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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REBELIÃO DE LÚCIFER 2 / J. J. Benitez
REBELIÃO DE LÚCIFER 2 / J. J. Benitez

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

REBELIÃO DE LÚCIFER

Parte 2

 

5 - DALAMACHIA

Quando despertou, os olhos de Sinuhe ficaram presos àquele sol. Jamais vira nada igual. Contemplá-lo era singularmente agra­dável. Em lugar de ofender a vista, o majestoso disco negro — praticamente no zênite — permitia ampla observação. Seus raios também negros derramavam-se por todo o firmamento. Entre­tanto, a considerável distância do solo, a obscura "luminosidade" vinda do estranho sol parecia desaparecer ou deter-se ou transfor­mar-se. Não teria podido precisar a que altura se dava o fenômeno, mas o fato é que a partir daquele ponto a negra radiação solar alterava-se ou se extinguia, dando lugar — ou sendo por ela subs­tituída — a uma claridade amarelada. Suas próprias roupas, as mãos, tudo se tingia daquela cor de limão. Foi nesse instante, ao contemplar seu corpo, que descobriu que se achava estendido so­bre uma areia igualmente amarela. Apalpando-a, identificou o lugar como um deserto ou talvez uma praia. Quando se dispunha a levantar-se uma mão acariciou-lhe os cabelos, ao mesmo tempo em que uma voz muito familiar se propagava clara e docemente no interior de sua cabeça.

— Já volta a si!

Ao sentar-se na areia descobriu às suas costas Nietihw. Ela estava de joelhos, sorridente e com o diadema de letras a cingir-lhe fronte e cabelos. Mas alguma coisa estava diferente em sua companheira... Sob a túnica — que transmudara seu azul pelo amarelo que parecia tudo inundar —, Sinuhe observou, perplexo, um corpo "vazio" e transparente. No lugar das vísceras e órgãos normais em todo ser humano, a mulher exibia uma complexa rede de vasos delgados,. igualmente transparentes, pelos quais circula­vam milhares de minúsculas borbulhas de todas as cores. Estes "tubos", como se fossem veias, artérias e capilares partiam do

centro do tórax, repartindo-se e ramificando-se pela totalidade do organismo de Nietihw.

Sinuhe fechou os olhos.

— Deus meu! Será que estou sonhando?

Aquele pensamento teve uma resposta fulminante. A voz da amiga tornou a soar-lhe no fundo do cérebro.

— Não, Sinuhe. . . Não se trata de um sonho.

Era a primeira vez que a companheira o chamava por seu nome secreto. Ele então abriu os olhos, desconcertado.

Nietihw, sem apagar seu sorriso reconfortante, mostrou-lhe seu corpo transparente como cristal e aparentemente "vazio", acrescentando:

— Não se alarme. A missão que nos foi conferida exige que meu corpo físico anterior, denso, sofra uma alteração temporal... Isto qué você vê — apontou Nietihw para o interior e o centro do seu peito — não é outra coisa senão um circuito vital por onde circulam antídotos complementares das correntes de Vida do sis­tema a que pertencemos...

Aproximou o rosto do lugar apontado por Nietihw e desco­briu que, onde logicamente deveria estar o coração, estavam os três círculos concêntricos — emblema de Micael — e que era deles, precisamente, que provinham os vasos mais grossos daquele fascinante "circuito vital".

— ... Não é a mesma coisa — prosseguiu a mulher sem mover os lábios —, mas guarda certa semelhança com os corpos "moronciais" ou dos ressuscitados de que você, precisamente, já me havia falado. A substância "moroncial" é muito mais sutil que esta, embora a estrutura do corpo deles seja idêntica à que você está vendo: os aparelhos circulatório, digestivo e respiratório (co­mo você pode observar) não existem nos corpos "moronciais". Não são necessários depois da morte física. Em seu lugar, os anjos ressuscitadores proporcionam aos humanos evolucionários estes "corpos" temporários, "alimentados" de uma vida que pode ser eterna, graças a estes circuitos vitais.

Maravilhado, Sinuhe acompanhou o contínuo e lento circular dos milhares de diminutas borbulhas coloridas, que sem cessar eram empurradas desde os três círculos concêntricos, repartindo-se através de centenas — talvez milhares — daqueles vasos mili­métricos e de transparência sem igual.

De repente, porém, o repórter afastou-se assustado. Examinou as próprias roupas e o corpo, e ao constatar que seu organismo

conservava a estrutura original não teve como evitar um pensa­mento que o encheu de espanto:

— Então você está morta?...

Nietihw escutou a dúvida do amigo com o mais amplo e compreensivo dos sorrisos.

— Não, Sinuhe... Simplesmente, e só enquanto durar a nos­sa missão, o poder de Ra me fortaleceu o espírito e mudou minha essência corporal.

— Por quê? — perguntou o nosso homem, incapaz de en­tender o que estava acontecendo. Antes que Nietihw chegasse a responder veio com uma segunda pergunta —: E por que meu corpo não sofreu transformação alguma?

As compreensíveis perguntas de Sinuhe ficariam no ar, por­que, subitamente, a luz amarela que o inundava todo, desapare­ceu. ..

 

Foi brusca a mudança. A atmosfera tênue e verde-amarelada que os envolvia foi invadida por outra coloração verde, tão sutil quanto a anterior. E os corpos, vestimentas e a areia daquela para­gem impregnaram-se de tons esmeralda.

Sinuhe ergueu os olhos para o sol negro, constatando como continuavam tingidas de trevas as profundidades daquele firma-mento desconhecido. Por debaixo, entretanto, a radiação — agora esverdeada — mantinha sua incrível forma de guarda-chuva luminescente. Foi nesse momento, ao erguer-se, que divisou o mar.

Consternado, girou sobre os calcanhares esquadrinhando o horizonte que se levantava enfrentando aquele oceano igualmente verde e adormecido. Ao longe, através da transparência esmeralda do espaço, apontavam alguns montes e montanhas cobertos de bosques; tudo isso submerso sob a mesma coloração. Sinuhe con­centrou a atenção na praia perscrutando os seus limites. Um deles perdia-se na distância. Em compensação o outro, perto de onde se encontravam, aparecia recortado pela abrupta invasão do ro­chedo no mar.

— Onde estamos?

Nietihw permaneceu em silêncio. Embora de forma confusa e incompleta, lembravam-se da experiência na clareira do bosque. Mas, como teriam chegado até ali? Que extraordinário mundo era aquele? E o investigador repetiu a pergunta que formulara mo­mentos antes da inexplicável mudança da luz:

— Por que meu corpo não sofreu variação alguma? Nietihw tomou entre as suas as mãos de Sinuhe e replicou:

— Não posso explicar-lhe por quê, mas o poder das trevas só me busca a mim.. . Você, além do mais, tem Ra.

— Ra? Onde está...?

Virou a cabeça, procurando a quase esquecida silhueta do amigo circular. Mas o disco não deu sinal de vida.

Com um movimento reflexo, lançou o olhar para o dedo anular direito. Tampouco ali estava o seu "enlace"...

Inquieto e confuso, consultou o relógio.

— Oh Deus!

Os dígitos estavam imóveis marcando as 13 horas e 51 mi­nutos: justamente o começo da lua nova e da aparição da mis­teriosa bruma no bosque da aldeia. Pressionou nervosamente os comandos do relógio; o mecanismo, porém, não obedeceu.

— Parou! — exclamou, resignado.

Sorrindo, Nietihw pegou-lhe a mão e o convidou a passear até a orla do mar.

O membro da Ordem da Sabedoria, com irreprimível inquie­tude, virou a cabeça para trás várias vezes na esperança de locali­zar Ra. E foi numa dessas infrutíferas tentativas que se apercebeu de outro detalhe que o imobilizou. Nietihw, estranhando, interro­gou-o com o olhar. Sinuhe, sem articular palavra, talvez fosse me­lhor dizer "pensamento", mostrou suas pegadas.

Assim que se refez da surpresa conseguiu dizer:

— Veja!. . . Ficam apenas as minhas pegadas. Mas e as suas? Efetivamente, embora os pés de Nietihw se afundassem na

areia, não deixavam marcas como os de Sinuhe.

— Tranqüilize-se — murmurou ela —, já lhe disse que meu corpo se transformou. E você ainda poderá contemplar outras maravilhas... pela graça e poder dos servidores de Micael.

Nietihw deu dois passos para trás. Fechou os olhos e, cru­zando as mãos sobre os três círculos concêntricos de seu peito, exclamou:

— "Waw", emblema da água, mostre-nos o caminho! Imediatamente, ante os olhos atônitos do investigador, uma das letras que compunham o diadema de Nietihw — o "W" — intensificou seu brilho esmeralda, formando-se à sua volta uma palpitante auréola. Vagarosamente, a última letra de "NIETIHW" foi afastando-se da fronte da filha da raça azul.

Temeroso, Sinuhe inclinou-se para trás. Evidentemente, a antiga amiga não era a mesma que conhecera na Casa Azul. Ao seu fantástico corpo de "vidro", ter-se-ia que acrescentar um co­nhecimento que, no primeiro momento, punha-o fora de si.

— Não tenha medo! "Waw" é parte de mim mesma.

Os olhos dela, sem sombra de desconfiança, acompanhavam as evoluções da letra, que se elevava silenciosa e majestosamente.

O "W", envolto naquela espécie de bruma verde resplande­cente, deteve-se a uns dez ou quinze metros acima da ourela do mar. De repente, inverteu sua posição, convertendo-se assim em um "M". E suas pernas exteriores, sempre vestidas de halos lumi­nosos, prolongaram-se até mergulhar nas ondas mansas e silencio­sas. Sinuhe despertou então para outro fato: as ondas que se iam quebrando incessantemente na areia não faziam ruído algum. Mas absorto na contemplação do "M", agora gigantesco, esqueceu de­pressa a insólita circunstância daquele oceano emudecido.

Subitamente a água — tersa e quieta até então — começou a borbotar às longas e luminescentes pernas da letra mágica.

 

O mar, ao influxo daquele "M" ou "W" invertido, continuou borbulhando, como se um gigantesco forno escondido fizesse fer­ver suas águas. O borboteio se foi fazendo mais e mais intenso e, de repente, dentre as verdes ampolas gasosas se destacou um vulto.

O "soror", ao intuir a natureza daquele ser, fez um movi­mento para interpor-se entre a letra e a companheira, pensando em protegê-la. Nietihw, porém, rogou-lhe que não se movesse. E, em silêncio, caminhou até ficar embaixo do "M".

Aquele vulto, informe em um primeiro momento, continuou emergindo do seio das águas agitadas. Sinuhe não se enganava. Diante dele aparecia uma descomunal cabeça de serpente, coberta de grandes placas que jorravam abundantemente. E, em seguida à monstruosa cabeça, vinha um corpo também escamoso e grosso como um tronco de carvalho.

O animal, empurrado por uma força invisível, continuou sua ascensão vertical, até chegar à altura da letra. Nesse instante, a pouca distância do verde e tenso ofídio, apareceu de entre as on­das o que, presumivelmente, devia ser a cauda do animal. Esta subiu também, indo em direção à cabeça. Pouco depois o corpo todo da serpente flutuava a pequena altura das águas, adquirindo uma figura quase circular. E o mar se aquietou. Extinguiu-se o movimento; só o jorrar do monstro imenso alterou ligeiramente a superfície do oceano.

A serpente, levitando como uma bolha de sabão, abriu as terríveis fauces, preparando-se para devorar a própria cauda. Nietihw, entretanto, atenta sob as pernas do "M", lançou um grito:

— Samej.

Sinuhe, aterrorizado, viu que a cabeça do réptil girava em direção à sua amiga. E seus olhos vidrados, enormes como luas, tingiram-se de sangue.

— Samej. — clamou de novo a filha da raça azul, levan­tando ao mesmo tempo o braço direito, para mostrar a coroa que lhe toucava a fronte —, que teu segredo beije minhas mãos!. . . Indica-nos o caminho!

E Samej, a serpente, como se tivesse reconhecido Nietihw, fechou as ameaçadoras fauces. E se foi esfumando o escarlate dos olhos. Então, a filha da raça azul estendeu os braços na direção do animal, aguardando a entrega do segredo solicitado.

Os olhos do réptil despediram rápidos e intermitentes lam­pejos brancos e abriram-se novamente suas mandíbulas. Com movimentos ondulantes foi avançando para a mulher. Sem tocar a água um só momento, seu corpo parecia lutar por um terreno invisível. Chegando diante de Nietihw, deteve-se. Durante alguns instantes, intermináveis para Sinuhe, os fulgurantes olhos do ofídio pareceram espetados no miúdo e frágil corpo da amiga. Ele, im­potente, temeu o pior. Samej arqueou então o lombo reluzente e, muito devagar, baixou a cabeça até quase tocar as delicadas e trans­parentes palmas das mãos. Naqueles momentos tão críticos Sinuhe sentiu falta — e quanta! — da poderosa presença de Ra.

Aquelas fauces, capazes de abarcar um cavalo, armadas de uma tríplice fileira de dentes, longos e encurvados como foices, exalavam um jorro ininterrupto de fumaça, de um verde mais opa­co do que aquele que lhe tingia o corpo.

As volutas daquela espécie de gás logo esconderam as mãos de Nietihw. Ela, porém, imperturbável, não se moveu. Instantes depois, Samej retirou a cabeça, ergueu-se e cerrou a boca desco­munal. As palmas da mulher continuavam envoltas no impenetrá­vel "alento" que, pouco a pouco, se ia dissipando.

O monstro surgido das águas voltou ao lugar em que apare­cera, adotando de novo a figura de grande círculo ou roda. E, quando a ponta da cauda já tocava a cabeça, Samej escancarou as mandíbulas, e passou a devorar a si mesma.

Em questão de segundos, os trinta metros, ou mais, que o corpo do réptil atingia, foram engolidos, Nesse momento, quando a cabeça do ofídio tragava já seu próprio pescoço, um segundo jorro de fumaça escapou de suas fauces. E Samej — ou o que dela restava — precipitou-se no mar, desaparecendo entre as águas. No ar ficara uma nuvenzinha verdolenga que, tocada por uma brisa inexistente, dirigiu-se para Sinuhe...

 

No momento, o perplexo investigador não se deu conta do lento mas contínuo deslocamento da nuvenzinha esverdeada. Uma vez desaparecida a misteriosa criatura, sua atenção se voltara para Nietihw. Mais concretamente, para as mãos dela. A fumaça exa­lada por Samej se fora dissipando e sobre as palmas já se podia adivinhar "algo" negro e reluzente...

Quando o verdoso "alento" da serpente desapareceu, a mu­lher protegeu o misterioso objeto, encerrando-o entre as mãos. Ato contínuo, abandonou sua posição sob as espigadas pernas do "M" e regressou para o lado do companheiro. Antes que ele pu­desse interrogá-la sobre quanto havia visto, a letra recuperou seu tamanho primitivo. Girou sobre si mesma e, sem pressa, dirigiu-se para o diadema da mulher. Fácil e suavemente, o "W" ocupou sua posição, completando assim o nome cósmico.

Nietihw postou-se então em frente ao repórter e, estendendo as mãos fechadas, pediu-lhe que examinasse o "segredo de Samej". Sinuhe obedeceu. Dispondo as suas em forma de concha, colocou-as debaixo das da amiga e esperou.

Quando Nietihw deixou cair o misterioso objeto entregue pela serpente, Sinuhe sentiu sobre a pele de suas palmas uma su­perfície fria e com arestas. A amiga, compreendendo a curiosidade que o consumia, sorriu divertida. Retirou então suas mãos, dei­xando a descoberto uma pequena esfera negra e polida como a obsidiana, mas extremamente leve. Examinando-a ele comprovou que, na realidade, tratava-se de uma esfera e um cubo, perfeita­mente embutidos um no outro.

— Que é? — perguntou Sinuhe.

- Dentro está o segredo de Samej, essa que se nutre de sua própria substância. Só ela e os rebeldes conhecem o caminho que dá aos arquivos de IURANCHA.

Sinuhe foi tateando aquele volume, em busca de algum botão ou ranhura que lhe permitisse abri-lo. Inicialmente, presa de um temor quase reverente, limitou-se a acariciá-lo. Mas, por mais que o revirasse, não conseguiu acertar com o mecanismo que o acio­nasse.

Levou nisso algum tempo, mas afinal teve de render-se. In­terrogou então Nietihw que, como resposta, fez-lhe uma pergunta:

— Diga-me, que pode significar "Samej"!

Como membro da Ordem da Sabedoria, fora instruído sobre a Cabala e, subitamente, ocorrendo-lhe o nome da serpente, co­meçou a compreender.

— "Samej", em hebraico, significa "beijar". . .

Nietihw, satisfeita, aceitou o esclarecimento e, com leve mo­vimento dos lábios translúcidos, incitou-o a beijar a estranha esfera.

Com alguma hesitação Sinuhe acedeu. Segurou-a entre as pontas dos dedos e aproximou-a à boca.

Nesse entretempo, a nuvenzinha esverdeada acabara por flu­tuar sobre o casal.

Os lábios tocaram, finalmente, a negra superfície do objeto. . .

 

Depois de depositar o tímido beijo na "esfera-quadrangular" vomitada por Samej, Sinuhe, temeroso, afastou-a rapidamente. Nos instantes imediatos nada aconteceu. Confuso, cruzou olhares com Nietihw. Antes porém que qualquer um dos dois chegasse a expressar-se, os vértices do cubo ou quadrilátero que estava imer­so na esfera começaram a dilatar-se. Sinuhe, assustado, soltou aquela coisa que, em lugar de cair no. chão, ficou flutuando e su­jeito a bruscas e intermitentes contrações. As arestas do cubo curvaram-se e, ante o assombro do investigador, o objeto continuou deformando-se, assim como se estivesse sendo modelado por al­gum escultor invisível.

Logo apareceram dois orifícios profundos e, abaixo deles — lembrando um nariz —, um terceiro buraco. A "esfera", quase irreconhecível, foi rachando-se na região inferior, surgindo ali uma espécie de boca.

No mesmo instante, Nietihw > que flutuava à altura de suas cabeças: era uma caveira negra.

Mas que significava?

Assim que terminou o processo de transformação a lustrosa e macabra cabeça abriu a pontiaguda mandíbula inferior, e a nu­venzinha precipitou-se como um dardo contra a dentadura da caveira. Em um abrir e fechar de olhos o fumo esmeralda foi ab­sorvido pelo crânio flutuante, desaparecendo no interior dele.

A caveira então fechou a boca e, com suave cabecear, se foi achegando ao perplexo Sinuhe que retroceu ao mesmo tempo em que pedia socorro à amiga impassível.

— Deus meul. . . Nietihw!

Mas a descarnada cabeça continuou seu balanceio no ar enquanto se aproximava com seu permanente sorriso gelado.

— Calma, Sinuhe! — pediu finalmente a filha da raça azul —. Não tenha medo!. . . Estenda as mãos!

A voz de Nietihw não lhe apaziguou o crescente pavor; mas serviu, pelo menos, para fazê-lo deter-se. E ele, trêmulo, ofereceu as mãos...

A caveira então se imobilizou a poucos centímetros do rosto de Sinuhe. E seus tenebrosos e esvaziados buracos irradiaram uma luz branca, igual àquela que ele vira nos olhos da serpente. E "algo", de repente, surgiu no fundo daqueles olhos fantasmagó­ricos.

— Sinuhe, diga: que é que você está vendo? A voz da companheira soou nítida.

— Diga-me: que está vendo? — repetiu ela em tom impe­rativo.

Pálido, meio hipnotizado pelos focos luminosos que jorravam das cavidades, Sinuhe forçou a vista, tentando obedecer à amiga.

— Há. . . alguma coisa — gaguejou.

— O quê, Sinuhe? — insistiu ela, impaciente.

— Sim... vejo uma figura. Não! são duas... Parecem iguais... Uma em cada olho. . . Mas. . .

Nietihw animou-o a continuar.

— Não é possível! — murmurou nosso homem —. Essa fi­gura é...

Antes que pudesse descrevê-la, apagaram-se os olhos da ca­veira.

Sem perder o monótono cabeceio, a cabeça retrocedeu. E, postando-se acima das suarentas palmas do investigador, abriu de novo as mandíbulas.

Sinuhe, olhar esgazeado, parecia alheio a tudo que o rodeava. Súbito e poderoso estalido o devolveria à realidade. Inespe­radamente, a caveira fechara a mandíbula inferior, provocando violento choque entre suas brilhantes e negras peças dentárias. Em conseqüência do golpe, um punhado de dentes saltou pelos ares. E, pausadamente, girando sobre si mesmos, foram caindo nas mãos abertas do "soror" que, sobressaltado com o entrechocar da dentadura, esteve a ponto de esquecer a ordem de Nietihw e recolher as mãos. Entretanto, as peças foram caindo, uma após outra, sobre as palmas. Mal lhe tocavam a pele e Sinuhe, mara­vilhado, descobria que cada um dos escurecidos dentes convertia-se em um número. Primeiro apareceu um "3". O seguinte se trans­formou em "1". A este seguiu-se um "4"... Depois outro "1", um "5", um "9", um "2", um "6", até que, finalmente, a última peça dentária desceu sobre as mãos, metamorfoseando-se em outro "9", diminuto, tão azeviche e reluzente como seus irmãos...

Nietihw e o companheiro, extasiados, sequer se atreveram a reagir. Que era e que significava aquele caótico punhado de nú­meros?

A filha da raça azul, mais audaciosa que Sinuhe, dirigiu-se até o amigo, disposta a examinar aquele monte de números que repousavam nas mãos dele. Porém, quando estava para tocá-los, as cavidades, nariz e boca, da caveira começaram a emanar, cada uma delas, fios daquele fumo verdolengo que pouco antes eles tinham visto ser absorvido pela caveira. E Nietihw parou.

 

As finas colunas de fumo foram envolvendo a caveira até que terminaram por ocultá-la em uma esfera opaca, parecida com a nuvem que as fauces de Samej arrojara. Os expedicionários, com os olhos fixos naquele "globo" esmeralda, assistiram então a outra rápida e mágica transformação: a diáfana "esfera" sofreu súbita contração. Oscilou no ar e, como se se tratasse de uma bola de cristal, rompeu-se em pedaços. Milhares de fragmentos verdes precipitaram-se "em câmara lenta" na areia.

Ao quebrar-se, no lugar que a nuvenzinha esférica ocupara, surgiu uma silhueta negra, redonda e familiar. ..

— Ra! — exclamou Sinuhe.

Iluminou-se-lhe o rosto ante a inesperada aparição do velho amigo. E o disco, de acordo com seu costume, respondeu-lhe ilu­minando as letras que o identificavam.

Nietihw tinha pressa de desvendar aquele novo mistério. Assim, esquecendo-se do disco — que se mantinha imóvel acima deles —, dedicou toda a sua atenção aos números que descansa­vam nas palmas de Sinuhe.

Pegou um, separando-o do resto; atraídos então por misterio­so magnetismo os demais o seguiram. O investigador contemplou a companheira que, em silêncio, limitou-se a examinar a cadeia de números. Contou-os e quando se sentiu segura mostrou a se­qüência ao desnorteado amigo.

— Não há dúvida — exclamou com ar de triunfo —, essa chave nos levará aos arquivos secretos.

Sinuhe leu a "cadeia" de números que Nietihw sustinha com as duas mãos, fascinado com a força que os mantinha coesos e que lhe lembrou a não menos misteriosa aderência das letras da coroa. Mas não logrou decifrá-la. Com os olhos, pediu ajuda à companheira. Ela, entretanto, não parecia disposta a simplifi­car o dilema.

— Observe com atenção, Sinuhe.

Ele concentrou o olhar nos quinze "elos" flutuantes, repe­tindo a seqüência por três vezes:

— 3... 1... 4... 1... 5... 9... 2... 6... 5... 3... 5... 8... 9... 7... 9.

— Não lhe diz nada? — insistiu Nietihw.

— 31415...

O membro da Loja secreta se deteve. Repassou aqueles pri­meiros cinco dígitos e, após consultar o resto da seqüência, sorriu.

— Claro. . . — retomou ele, enquanto ia acentuando o sor­riso de satisfação — agora entendo o porquê daquela figura nos olhos da caveira...

Nietihw aguardou a explicação, que já conhecia em parte.

— 3,1416! Estes números correspondem aos quinze primei­ros elementos do famoso número "pi": o número por excelência; o número transcendente.

A mulher assentiu.

— Então — continuou Sinuhe —, a figura que vi nas cavi­dades. . . Demônios, agora percebo: é a mesma que aparece gravada no anel!.. .

— Que anel?

O investigador, apontando para Ra, explicou à amiga como o disco se metamorfoseava, por vezes, em um belo e dourado selo quadrangular com um alto-relevo em que se podia distinguir um ser de cabeça quadrada e olhos enormes e redondos, corpo flamígero e segurando-se, com ambas as mãos, aos batentes de uma porta, como inicialmente ele interpretara.

— Agora entendo. Agora sei que esses batentes e o lintel superior não compõem uma porta, mas a letra grega "pi".

Nietihw parecia duvidar. Sinuhe tentaria convencê-la.

— Você já vai ver...

Levantou o braço direito em direção ao disco e pediu-lhe que se colocasse em seu dedo anular. Ra iluminou-se de intenso vermelho e, depois de lançar um de seus fluxos de anéis celestes sobre a mão do amigo, desmaterializou-se, reaparecendo no dedo em forma de anel.

Satisfeito, estendeu a mão até junto da vista de Nietihw, convidando-a a examinar o selo e a figura nele gravada. A filha da raça azul passou-lhe a "cadeia" de números, analisando o de­licado alto-relevo, agora tinto, também, pela radiação esmeralda que iluminava o lugar.

— Entretanto — refletiu Sinuhe —, não consigo entender. Temos uma seqüência de números, aparentemente relacionada com a letra "pi" que eu mesmo vi sobre essa criatura de cabeça quadrada e que aparece igualmente no anel. Mas aonde nos con­duz tudo isso? Que é que temos de buscar? Por que Samej nos terá entregue um segredo que só agrava as trevas da nossa missão?

 

Nietihw não respondeu às questões ventiladas com razão pelo companheiro de aventuras. Em parte porque ela mesma não co­nhecia as respostas e menos ainda os agitados sucessos que esta­vam por vir. Era o bastante saber que a busca dos arquivos secretos de IURANCHA dependia em razoável medida do número "pi" e da criatura desconhecida que aparecia sob a letra grega. No fundo, toda aquela incerteza tornava ainda mais fascinante a missão E enquanto recuperava a "cadeia" de números, colocando-a —à guisa de colar — à volta do pescoço do amigo, procurou animá-lo:

— Sinuhe, não desanime. Agurno ordenou-nos que procurás­semos Solônia, o serafim que guardou o Éden... Talvez a chave entregue pela serpente nos conduza até ele e sua espada.

— Sim, é possível... — concordou ele com certo desalento.

E acariciando as "contas" negras do seu colar, apressou-se em seguir Nietihw, que encetara a caminhada pela orla daquele ocea­no mundo, em direção aos alcantis que se esfumavam nos longes.

Com apenas uma centena de metros andados, Sinuhe se deu conta de um fato que, no fundo, não o surpreendeu demais: suas câmaras não haviam "saltado" com ele para aquele mundo irreal. Muito embora Ra continuasse ali, no dedo, a ausência dos apare­lhos fotográficos causou-lhe certo mal-estar. Na realidade, qual era a sua incumbência em tudo aquilo? Por que fora escolhido para acompanhar a filha da raça azul?

Ensimesmado nestes e em outros pensamentos semelhantes, continuou marchando pesadamente na areia esverdeada da praia solitária, sem perder um só instante de vista a graciosa e ligeira figura de Nietihw que, melhor que caminhar, parecia deslizar.

O rochedo já se achava bem próximo quando, subitamente, ela se deteve. Sinuhe imitou-a, buscando com o olhar o ponto que lhe teria chamado a atenção. Mas por mais que esquadrinhasse as rochas verde-esmeralda que se derramavam sobre a areia, mar adentro, nada percebeu de anormal. Era um imenso deserto.

— Que foi?

Nietihw, olhos pregados no alcantil, fez-lhe sinal para que não se movesse. Com a mão direita, pegou no diadema a letra "E", levando-a primeiro para os círculos concêntricos do seu peito e lançando-a em seguida para o céu.

Sinuhe, boquiaberto, viu como o "E" ganhava altura e, a grande velocidade, perdia-se dentro da tênue atmosfera verde, em direção à massa rochosa que delimitava o outro lado da praia. Naquele momento, a letra não aumentou ou modificou sua di­mensão e Sinuhe acabou por perdê-la de vista.

Pouco depois o "E" surgia novamente em meio à bruma, reintegrando-se diretamente à coroa de Nietihw.

— Que está acontecendo? — insistiu Sinuhe.

— "Eim", a letra que simboliza meu próprio ouvido detectou a presença de uma criatura estranha...

— Onde? — interrompeu-a, alarmado —. Não vejo nin­guém. ..

— Do outro lado do rochedo. Venha. Siga-me...

Sem titubear nem um pouco, Nietihw pôs-se a correr na direção que o "E" acabara de sobrevoar.

— Mas...

Foi estéril o propósito de Sinuhe de reter a impetuosa amiga. A contragosto, coração aos pulos, pressentindo perigo iminente, saiu atrás dela.

 

Ao transpor as primeiras rochas, Nietihw e o agitado amigo tiveram, seu avanço cortado por uma segunda muralha rochosa de uns cinco metros de altura. Sinuhe, ofegante, examinou aquela parede, compreendendo com certo alívio que seria impossível es­calá-la e ganhar o outro lado do escarpado.

Com um gesto de impotência, fez ver à amiga que só restava retroceder. Nietihw hesitou. Pegou o diadema e, escolhendo a letra " "H", colocou-a também sobre o peito. Mas, indecisa, devolveu-a ao lugar, sobre a testa.

— Que é que há com você? — perguntou, intrigado com o súbito arrependimento de Nietihw —. Para que serve essa letra? Por que você não a utilizou?

— "Hai", o "H", é o símbolo do ar... e nos teria permitido voar para o outro lado. Porém alguma coisa me diz que sua ajuda não é aconselhável.

O repórter olhou-a, perturbado.

— A criatura que se encontra do outro lado desta rocha — acrescentou ela — parece estar em perigo; é preferível agir com sigilo.

E Nietihw, contemplando as ondas que se quebravam entre as escarpas, convidou-o a que a seguisse.

— Faremos um pequeno rodeio.

Sinuhe não teve nem tempo de mostrar-lhe os riscos que correriam metendo-se entre as águas que se quebravam silencio­sas, mas fortemente nas arestas dos escolhos.

— Espere!... Talvez Ra pudesse...!

Mas, ignorando a recomendação do companheiro, continuou saltando as rochas e delas esquivando-se, disposta, aparentemente, a enveredar pelo mar. Entretanto, quando seus pés tocaram a água, a mulher tornou a deter-se. Esperou que Sinuhe se aproxi­masse e, ato contínuo, tomando do diadema o "W", colocou-o em contato com o tríplice circuito, e arrojou-o entre as ondas embravecidas.

— "Waw"!... — gritou — emblema da água, abra-nos ca­minho!

E a letra começou a planar, para cá e para lá, sobre o mar. Em alguns segundos, aquelas areias da superfície marinha por sobre as quais "Waw" tinha voado subitamente ficaram "conge­ladas". Sinuhe não podia dar crédito ao que via. As verdosas cristas das ondas sobrevoadas pelo "W" ficavam "petrificadas", convertidas em grandes e cintilantes massas rochosas, quase graníticas. A cada lado daquele mar solidificado, no entanto, agita­vam-se as águas...

Cumprida a missão, o "W", tal qual um dócil bumerangue, voltou até a fronte de sua dona e senhora.

E Nietihw, tomando da mão de Sinuhe, iniciou a caminhada pela franja do oceano cristalizado. O "corredor" adentrava um trecho no mar, para depois voltear em direção à praia, evitando assim o rochedo.

Foi nos últimos metros, no momento em que o casal estava para saltar para a areia da margem, que o investigador sentiu uma vibração surda debaixo dos pés. Em terra firme, coração na mão, descobriria a causa do estremecimento da singular "ponte de pe­dra" que lhes estendera "Waw": a enrugada superfície da estreita "senda" que os conduzira até ali voltou a liquefazer-se. E, entre as vagas mais e mais frenéticas, surgiu o dorso ondulante de Samej, a serpente.

Um calafrio percorreu Sinuhe.

— O tempo todo nós caminhamos sobre o corpo dela? — exclamou, retrocedendo ao avistar entre as águas os olhos purpu­rinos da serpente — Nietihw!

Desolado, Sinuhe descobriu que a amiga não estava ao seu lado. E, retrocedendo sempre, foi girando a cabeça em todas as direções. Mas Nietihw, com efeito, desaparecera. De repente, o crânio gigantesco de Samej emergiu das águas, cravando seus olhos circulares e vermelhos naquele homem que, atarantado, tra­tava de fugir para longe da margem.

 

A serpente continuou elevando-se acima das vagas, até que sua robusta cabeça se achou a uma altura considerável. As placas da pele, jorrando aquela água verdolenga, mil vezes refletiram a cambaleante imagem de Sinuhe que, aterrorizado, caía uma ou outra vez em sua atropelada fuga. Samej ia avançando, vagarosa­mente. Abandonou as águas e, arrastando-se de ventre, iniciou a perseguição ao investigador.

— Nietihw!... Socorro!

E novamente Sinuhe tombou na areia. Ao voltar-se para o gigantesco réptil, o pavor o imobilizou. A cabeça do monstro erguia-se a cinco ou seis metros acima do seu corpo. Numa última tentativa, tratou de arrastar-se em direção a um pequeno amon­toado de rochas, mas a cauda de Samej desceu até a areia cor de esmeralda, impedindo-lhe a passagem. Paralisado pelo medo, viu quando a serpente abria as fauces, exibindo aquele enxame de lâ­minas afiadas.

— Não!. . . Deus meu!. . . Ra!

E, seguindo um derradeiro impulso, cerrou o punho direito, dirigindo-o tremulamente para os sanguinolentos olhos do animal.

— Ra, ajude-me!

No mesmo instante brotou do anel um vento gelado e impe­tuoso que obrigou Samej a retroceder. Sinuhe, ante a salvadora reação do amigo recobrou o ânimo perdido e, levantando-se, não deixou de dirigir o punho para a serpente. Apesar de suas convul­sões, parte do corpo dela, erguido ainda sobre a areia, começou a apresentar sinais de congelamento. As longas presas converte­ram-se em pedras de gelo, os olhos redondos empanaram-se com a névoa esverdeada. Assim, de repente, Samej ficou rígida e imó­vel tal qual um poste. O jato gelado parou e Sinuhe, desorientado, continuou com o braço estendido, sem deixar de vigiar o corpo aparentemente morto do inimigo.

E antes que o investigador pudesse reagir ou tomar qualquer decisão, aquela massa cilíndrica espatifou-se em milhares de pe­quenos fragmentos de gelo, que caíram na areia. Perplexo, desceu o braço e aproximou-se dos "restos" de Samej.

Não jaziam aos pés de Sinuhe os milhares de cristais de gelo em que vira descompor-se o corpo do réptil. Em lugar deles, na areia, havia um longo arco e uma aljava com uma única flecha, tudo de gelo!

Hesitou. Temia tocá-los. Mas finalmente decidiu-se e, com efeito, comprovou que tanto o arco quanto a corda eram formados nor um gelo puríssimo e transparente. Examinou também a aljava e a flecha, constatando que eram confeccionados com o mesmo material. Mas a flecha, em vez de terminar em ponta, era arrema­tada por estranha protuberância.

— Oh! não é possível...

Ao descobrir os perfis da insólita cabeça de flecha, nervoso e alarmado, soltou-a. Mas a finíssima arma, longa de metro e meio, não chegou a cair na praia. Como uma exalação, foi bus­cando a boca do estojo, introduzindo-se ali.

Pouco lhe faltou para que abandonasse ali mesmo arco e aljava. Recuperado porém da primeira impressão, voltou a apa­nhar a flecha, examinando-a minuciosamente.

— Não é possível... — repetiu, ao certificar-se do que vira segundos antes.

A flecha, efetivamente, terminava em uma cabeça um tanto mais reduzida do que um punho: a cabeça de Samej! Esculpidas no gelo, distinguiam-se as cerradas fauces da serpente, como tam­bém seus olhos circulares...

Seguindo outro de seus impulsos naturais, Sinuhe jogou às costas a aljava, pegando com a esquerda o frio e espigado arco. Mas quando se dispunha a localizar a desaparecida Nietihw, re­tumbante alarido ecoou-lhe no cérebro...

¡

 

Ao sentir aquele grito dilacerante, acreditou identificá-lo com a voz da companheira. Aturdido com a segunda aparição de Sa­mej, a serpente, não tivera oportunidade de ocupar-se com a repentina desaparição de Nietihw nem com a exploração do lugar em que se encontrava. Entre a verde transparência daquela "at­mosfera", e no extremo oposto ao ponto em que agora se encon­trava, o investigador descobriu os restos de um navio encalhado na areia. Pareceu-lhe, apesar das centenas de passos que o distan­ciavam, desarvorado e meio enterrado ao pé da escarpa rochosa que fechava a praia a partir do rochedo que eles tiveram de ro­dear. Mas, por muito que forçasse a vista, não percebeu sinal algum de vida junto ao casco do barco. A muralha rochosa que haviam contornado lhe cortava a passagem às costas e sucedia o mesmo à sua direita, com aquele talude. À esquerda, abria-se o oceano e, por conseguinte, não lhe restava senão um caminho: o que levava ao' lugar onde se recortava o navio.

Tomando as maiores precauções, dirigiu-se finalmente para aquela extremidade da praia. Por mais que meditasse, não conse­guia entender por que o teria abandonado a filha da raça azul em momentos tão críticos e, ainda, a que atribuir aquele perfurante grito.

— Se ao menos eu tivesse a certeza de que Nietihw tomou este mesmo caminho. . .

Mas a ondulada superfície da praia esverdeada não mostrava pegada alguma.

Ao chegar perto do barco perdido, Sinuhe parou de andar. Inspecionou cuidadosamente seus restos, verificando que, realmente, estava, diante de um vetusto casco de madeira de uns quarenta metros de comprimento, encalhado sob o despenhadeiro e ader-nado do lado da amurada de bombordo. Antes de dar-lhe a volta, examinou o casco campanudo que se erguia à sua frente, semi-enterrado sob toneladas daquela areia cor de esmeralda. Raspou as partes ressecadas da quilha e deduziu que o hipotético naufrá­gio se teria dado há muitos anos. Pé ante pé, muito devagar, foi passando para a popa para verificar o que esconderia a coberta e se, como intuía, aquele grito podia ter partido do outro lado do navio, que ou quem o teria lançado.

Fazendo do timão um parapeito, dirigiu um primeiro olhar em direção à praia que se estendia desde ali e que, até aquele momento, ficara escondida pelo casco.

— Oh, não!

A cena que descortinava fez com que estremecesse. A algu­mas centenas de metros dali do navio, descobriu, estendido na areia, o corpo imóvel de Nietihw. Ao seu lado, com os braços para o alto, via-se uma criatura que, no primeiro instante, achou que era um menino. Segundos depois, ao vê-lo baixar uns braços enormes, compreendeu, aterrorizado, que não se tratava de um "menino". Era um ser idêntico aos que vira na torre e no bosque de Sotillo. Havia entretanto uma clara diferença em relação àque­les: esta monstruosa criatura não tinha o corpo transparente. Tanto o volumoso crânio como o resto do corpo eram de uma coloração anegrada.

De repente, aquela personagem tornou a alçar os braços acima da cabeça. Sinuhe percebeu que alguma coisa lhe brilhava entre as mãos e, intuindo que a amiga poderia estar correndo grave perigo, saltou para um lado do barco. Tomando da aljava a sua flecha, colocou-a junto da corda de gelo do seu arco e come­çou a tendê-la, alvejando a enorme cabeça do ser. Em vez de quebrar-se, a corda foi cedendo centímetro a centímetro, ao mes­mo tempo em que os braços de Sinuhe se endureciam como pedras. Quando alcançou a máxima tensão, o investigador assistiu, bo­quiaberto, a outro acontecimento mágico: as cerradas fauces la­vradas na cabeça da flecha escancararam-se e a seta, sem que o arqueiro chegasse a distender a corda, escapou violenta — como se tivesse vida própria — na direção do monstruoso anão. . .

 

Aturdido, não reagiu. A flecha foi perfurando a atmosfera esverdeada, deixando atrás um "fio" branco e luminoso que pouco a pouco se foi esfumando. Sinuhe poderia jurar que apontara pa­ra o crânio, mas a seta, em lugar de atingir o ponto escolhido pelo improvisado arqueiro, mudou sua trajetória e foi bater em cheio no peito da criatura.

O ser caiu de costas, mantendo entre as mãos aquele objeto reluzente, impossível de identificar a distância.

Convencido de que ele estava morto ou pelo menos muito fe­rido, Sinuhe correu para onde estava Nietihw. Ela continuava estendida na areia, sem dar sinal de vida. Mas, quando lhe falta­vam uns vinte passos para chegar até ela, estacou atônito: entre os enegrecidos dedos do monstro estava a dourada e brilhante co­roa de letras da amiga. Ao desviar o olhar para Nietihw, não só teve a confirmação de que seu diadema desaparecera, mas consta­tou também outro fato singular, que o deixou estarrecido: despo­jado do seu nome cósmico, o corpo perdera sua total transparência, recobrando o primitivo e natural aspecto humano.

O desconcerto do investigador, porém, foi momentâneo. De repente, alguma coisa negra e informe começou a serpentear na areia, bem perto do volumoso crânio do ser que jazia de costas, com a enorme flecha espetada no tórax.

Sinuhe, sem compreender de que se tratava, retrocedeu, de­sorientado. Mas "aquilo" parecia interessado tão-somente na mágica coroa de Nietihw, enredada entre os dedos da imóvel criatura.

Subitamente, brotava da areia aquela mão esgalhada e escura, avançando como um polvo sobre os braços enormes e esticados do homenzinho que, aparentemente, arrebatara o diadema da filha da raça azul. Sinuhe sentiu que se lhe eriçavam os cabelos. A mão, amputada à altura da munheca, foi explorando as longas extremidades da criatura, fazendo de tentáculos seus cinco dedos. Finalmente, ao chegar junto às letras, o índice e o polegar conseguiram a liberação do diadema, arrastando-o até a verde superfície da praia. Foi então, compreendendo as intenções da mão cortada, que Sinuhe fechou o punho direito, invocando o nome de Ra. Mas, ao tentar cortar o passo à mão que fugia com o nome cósmico, o nosso homem sentiu que alguém ou alguma coisa lhe agarrava o pé esquerdo. Desequilibrado, caiu de bruços na areia. Ao voltar-se contra o que lhe havia causado a queda espetacular, sentiu o coração na boca: outra mão, esquelética e negra, também seccionada no pulso, se havia enroscado em seu tornozelo, retendo-o com força titânica. Desesperado, viu quando a primeira mão imergiu entre as suaves dunas esverdeadas, soterrando-se com a coroa.

Instantes depois, as pontas dos dedos de uma terceira mão foram abrindo passagem entre os grãos de areia, bem perto do rosto exânime de Nietihw. E após esta apareceram uma quarta e uma quinta e uma sexta mãos, todas em movimento contínuo, como que articuladas por uma inteligência diabólica e subterrâ­nea. Cada uma delas foi agarrar-se a uma extremidade da túnica celeste, puxando a mulher com a evidente intenção de sepultá-la.

— Oh, não!. . .

Sinuhe, caído na areia, tentou safar-se da mão que o retinha, mas todas as suas convulsões e pontapés foram inúteis. Horrori­zado, constatou que aquelas quatro mãos começavam a enterrar o corpo indefeso da sua amiga. . .

 

— Ra!

O grito de Sinuhe teve resposta imediata. Quando cerrou de novo o punho direito, apontando o anel para o corpo de Nietihw, cujas pernas haviam já desaparecido dentro da areia, escapou do anel uma fumaça branca que, vertiginosamente, foi adotando forma humana. Sinuhe não precisou de muito tempo para identi­ficá-la: era ele mesmo!

Que pretendia Ra criando aquele seu brumoso duplo?

Imobilizado pelo punho férreo, o investigador descobriu, assombrado, como haviam aparecido, no peito daquele segundo "Sinuhe", umas letras misteriosas, também lavradas em fumo:

"ALEF-MEN-TAV."

Esses caracteres hebreus, formados nessa ordem, compunham a palavra "EMET" ("verdade"). Mas Sinuhe, aturdido com o ca­da vez mais rápido desaparecimento do corpo da companheira na areia, não chegou a intuir, naqueles dramáticos momentos, os propósitos do amigo. Irritado, ao ver como as tétricas mãos con­tinuavam arrastando Nietihw sabe Deus para que abismo, inter­pelou Ra pela segunda vez, pressionando-o a que os liberasse daquele novo pesadelo. Como única resposta, a branca e fumegante escultura ajoelhou-se junto ao quase desaparecido corpo da filha da raça azul, soprando, com todas as forças, o rosto lívido da mulher. E pela boca do "duplo" surgiu um jorro de letras: as mesmas que ele exibia no tórax. No mesmo instante, a delicada epiderme de Nietihw cobriu-se de uma espécie de neve, cujos flo­cos nada mais eram que centenas de "alef", "men" e "tav". Para surpresa do verdadeiro Sinuhe, aquele inexorável enterramento da amiga suspendeu-se. Imediatamente, como se tivessem sido aler­tados por "algo" muito mais cobiçado que o corpo que arrastavam para as profundidades da praia, destacaram-se da areia os famintos e ameaçadores dedos das quatro mãos. E todas elas, em uníssono, dirigiram-se para a "nevada" face da senhora.

Impassível, o segundo Sinuhe — de quem se desprendiam ininterruptas e delgadas tiras de fumo branco — esperou que os quatro tocos de mão cavalgassem até o rosto de Nietihw, onde se detiveram visivelmente irritadas. Pôs-se então a pulverizar entre os dedos as centenas de consoantes hebraicas. Aquele, sem dúvida, era o momento esperado pela criatura que Ra criara... Assim, antes que as mãos demolidoras pudessem reagir, o "duplo" abriu novamente a boca, aspirando profundamente. Ante a perplexidade de Sinuhe, todas as letras "alef" que ainda estavam pousadas na face de Nietihw eram absorvidas pela aspiração poderosa, pene­trando outra vez na fumegante figura. Sobre o rosto permanece­ram tão-somente as "men" e as "tav", formando assim, de repente, uma nova palavra: "morte". As mãos, desprevenidas, abriram-se ao contato com a "morte". Mas já era tarde demais. As centenas de "men" e "tav", por sua vez, tinham começado a devorá-las. Em segundos, aquelas sombrias garras ficaram reduzidas a um monte de ossos.

O "duplo" voltou-se assim para a outra mão, a última: a que continuava agarrando o pé do investigador. Mas, quando se preparava para repetir a operação, os dedos soltaram o tornozelo de Sinuhe, sumindo, qual escorpião, na areia esmeraldina.

 

Da mesma forma que havia surgido, assim Sinuhe viu extin­guir-se seu segundo "eu": sem que ninguém pudesse evitá-lo, o alvo fumo voltou a ser absorvido pelo anel e desapareceu.

Sinuhe precipitou-se então sobre o corpo imóvel da amiga. Limpou-]he do rosto os restos de "neve", arrojando para longe as esqueléticas garras. Não sem esforço conseguiu afinal desen­terrar Nietihw. O corpo, efetivamente, voltara a ser o de sempre. Alarmado, porém, o amigo constatou que o coração dela estava mudo.

— Não!... Nietihw!

Inúteis todas as tentativas para reanimá-la. A filha da raça azul, imersa numa palidez mortal, parecia efetivamente sem vida. Desconsolado, ele ajoelhou-se junto a ela e, envolvendo-lhe com os braços a cabeça, entregou-se a um amargo pranto. Bem depres­sa, no entanto, impelido por uma indignação irreprimível, arrancou o anel do dedo e, amaldiçoando a aparente passividade de Ra, arrojou-o violentamente em direção aos restos do navio.

— Por quê?. .. Por que você o permitiu?

Cego de raiva e de dor, Sinuhe não percebeu outro fato surpreendente: das profundezas daquele firmamento tenebroso surgiu, de repente, o adejar de um pássaro. Entre seu bico ele tomou o anel, voou para onde estava o casal, pousando sobre o ventre de Nietihw.

Receoso, Sinuhe tentou espantar o enorme corvo. Este, po­rém, depois de engolir o anel, abriu novamente o enegrecido bico e exclamou com voz grave:

— Filhos de IURANCHA! Não temais! Estou vindo para saldar minha dívida antiga...

Sinuhe retrocedeu, alarmado ante aquela ave falante.

— No princípio dos tempos — prosseguiu o corvo —, um dos meus antepassados desobedeceu a um humano chamado Noé. Foi solto depois do grande dilúvio, mas não regressou à arca. Por isso, e como castigo por sua desobediência, sua primitiva plumagem branca foi substituída por outra negra e sombria.

E o pássaro deu alguns passos curtos sobre o corpo de Nietihw, introduzindo o bico em um dos bolsos da túnica. Ao retirá-lo, vinha com o pequeno frasco de vidro contendo os luminosos e misteriosos grãos de areia que Sinuhe recolhera no claro do bosque, e que fora seu original presente de aniversário. Sinuhe ignorava, naturalmente, que Glória ou Nietihw o escondera na túnica.

O corvo, saltando sobre a areia, foi depositá-lo aos pés do seu perplexo e emudecido observador.

— Agora estamos em paz — retomou o corvo, assestando os olhos azeviche em Sinuhe —. Basta que os lábios de tua com­panheira toquem os "ibos" para que volte à vida.

— Os "ibos"?! Mas que é isso?!

O pássaro, depois de bicar insistentemente a parede de vidro do recipiente que jazia na areia, abriu as asas pronto para re­montar vôo.

— Algum dia, em IURANCHA, chamarão "tempo" aos "ibos".

E bateu solenemente a plumagem, elevando-se dentro da luz esmeralda. Mas, nem bem começara o seu vôo, a tonalidade es­cura do seu corpo desapareceu, sendo substituída por outra muito alva e deslumbrante. E o corvo continuou distanciando-se rumo ao sol negro do qual havia surgido.

 

Sem saber o que fazer, Sinuhe se pôs a contemplar o frasco de areia. Não sabia como, mas em tudo aquilo adivinhava a mão de Ra. Não obstante, seu "amigo" fora tragado por aquele oportuno corvo branco. Tal pensamento voltou a tranqüilizá-lo. Desviou os olhos para Nietihw e, ao vê-la imóvel e indefesa, com­preendeu que a missão de busca dos arquivos secretos de IU­RANCHA chegara a um momento sumamente delicado: ele perdera seu amigo Ra e Nietihw, sua coroa mágica...

Mas, acostumado desde sempre às variações de sorte, não se deixou abater. Recolheu o providencial presente de aniversário e, após examiná-lo, pôs-se de joelhos junto ao corpo da filha da raça azul. Abriu o vidrinho e, levantando ligeiramente a cabeça de Nietihw, aproximou-o aos lábios lívidos a boca do frasco. Os grãos deslizaram cintilantes até tocá-la. Nesse momento, ao tocar a pele, cada partícula daquela areia cinzenta perdeu sua luminosidade, convertendo-se em microscópicas gotas douradas. Ao contato com aquela espécie de "ouro potável", Nietihw reagiu. Sinuhe sentiu estremecimentos no corpo da companheira. Os lá­bios se entreabriram e o punhado de "ibos" desapareceu-lhe na boca.

— Nietihw!

Presa de intensa emoção, foi assistindo à progressiva recupe­ração da mulher. A palidez esfumou-se e, aos poucos, se lhe abriram os olhos.

— Oh!.. . Nietihw! Que está acontecendo com você?

Ela abriu e fechou os olhos. Finalmente, fixou o olhar na fisionomia assustada do companheiro. E Sinuhe pôde contemplar as formosas pupilas que emanavam leques luminosos, formados pelas sete cores do arco-íris. A cada pestanejar, os arco-íris desa­pareciam, reaparecendo quando Nietihw conseguia manter abertos os olhos. Aqueles feixes multicoloridos chegavam a propagar-se até a pessoa, coisa ou lugar em que Nietihw fixava sua visão. Assim, quando a filha da raça azul — totalmente recuperada — resolveu levantar-se, os fachos coloridos que partiam dos seus olhos iluminaram primeiro seu próprio corpo e, ato contínuo, a criatura que jazia na praia, a flecha e, por último, os restos dis­tantes do navio encalhado.

Não tardaria a vir a pergunta fatal. Nietihw levou as mãos aos cabelos e descobriu que o diadema desaparecera; interrogou o companheiro em silêncio. Ele se limitou a apontar para aquele ser ali perto, inanimado.

— Que aconteceu? — suplicou-lhe, banhando-lhe o rosto com aquelas catorze cores.

O investigador lhe foi relatando tudo o que vivera e presen­ciara e, ao concluir, interrogou-a, por sua vez, sobre a razão que a teria levado a deixá-lo ficar sozinho com Samej, a serpente.

Nietihw, com evidentes sinais de desalento, deixou-se cair sentada na areia. Afundou o rosto nos joelhos e desandou a cho­rar. Sinuhe, querendo mostrar que nem tudo estava perdido, apressou-se emocionado a consolá-la. Quando ergueu a cabeça o rapaz notou, maravilhado, que as lágrimas da amiga, em lugar de resvalar-lhe pelas faces, eram capturadas pelos leques de luz, deslizando por eles como chuva sobre cristal. E algumas daquelas lágrimas passaram, dessa forma, para os alhos e o rosto do pró­prio Sinuhe, que, perplexo, sentiu como se a consternação e a tristeza da amiga lhe inundassem também o próprio coração.

— Sinto, Sinuhe, mas pelo que consigo recordar, "Eim" (o “E”) chegou a alertar-me contra alguma coisa.. . melhor, contra alguém.

Sinuhe concordou, lembrando-se do lançamento da letra por cima do alcantil.

— Logo depois, ao pisar a praia, foi tudo muito rápido e confuso. . . Sem consultar-me, o "W" saltou do meu diadema e me foi arrastando até este mesmo lugar. Estendida na areia, mais ou menos como agora, achava-se esta ou qualquer outra criatura parecida. Inclinei-me sobre ela e, quando estava quase convencida de que se achava morta, os braços dela arremeteram-se contra mim. A partir de então, tudo escureceu. . .

— Não posso dizer com certeza, mas quase posso garantir-lhe que ela só queria a coroa que você trazia. ..

O par fez silêncio. Mas eles dois, movidos pelo mesmo im­pulso, voltaram seus olhares para o ser que provocara a súbita catástrofe.

Não obstante, como já intuíra Sinuhe, nem tudo estava per­dido. ..

 

Verificando que Nietihw tomava entre as mãos o frasco de areia, decidiu-se a externar o pensamento que lhe acabava de nascer na mente e que, evidentemente, era compartilhado pela amiga:

— Você crê que os "ibos" poderiam. . .?

— Logo o veremos — replicou a mulher, dirigindo-se cem decisão até a criatura. Sinuhe porém a deteve já ao pé do minús­culo ser.

— Um momento. . .

Debruçando-se sobre o enxuto corpinho descobriu, meio alarmado, que a cabeça da flecha, em lugar de penetrar no peito, havia com suas fauces mordido a escura e encarquilhada pele, justamente na altura do estranho emblema: um círculo vermelho com outro menor, preto, ao centro.

— Deus!.. .

— Mas o que há? — perguntou Nietihw, intrigada. Sinuhe mostrou-lhe aquele espécie de escudo e, em tom so­lene, anunciou:

— Esta criatura traz no peito a bandeira de Lúcifer. . . Te­rnos de agir com precaução.

Nietihw retrocedeu, assustada. O companheiro, com muito cuidado, empreendeu meticuloso estudo do corpo do presumível servidor do Maligno. Tal como havia suspeitado, a estrutura da­quele ente era quase idêntica à daqueles que vira em Sotillo: enorme cabeça provida de dois minúsculos olhos, tão negros quanto a pele e circundados por aquela estranha e repulsiva calosidade e, no lugar do que poderia ser a boca, uma espécie de orifício igualmente circular.

Sinuhe não deu com fossas nasais nem ouvidos. O resto do corpo — de um metro de comprimento, no máximo — era co­berto e protegido por uma pele flexível. Os braços, extremamente longos e finos, escorriam até abaixo dos joelhos, arrematados por mãos quase infantis, com cinco dedos iguais, mas desprovidas de polegares. Já aos pezinhos lhes faltavam dedos.

Tampouco possuía sexo. Consternado, Sinuhe não se expli­cava por que não teria, aquela monstruosa criatura, um corpo transparente como os que ele vira nas outras ocasiões passadas. Aquela diferença substancial, por quê? Se o inquieto investigador tivesse podido pressentir, naqueles momentos, as turbulentas cir­cunstâncias através das quais chegaria ele a desvelar esse novo mistério, o mais provável é que ali mesmo tivesse implorado pelo fim fulminante da missão... Mas, absorto naquela exploração minuciosa, não podia sequer imaginar o que lhes reservava o destino.

Ao reparar de novo nas fauces da flecha observou, preo­cupado, como entre as presas de gelo, que aprisionavam e des­garravam parte do tórax, não aparecia sangue. Desconfiado, colou o ouvido ao peito, mas a atenta escuta não lhe revelou som algum. Ou aquele ser carecia de coração ou, fato provável, estava real­mente morto... Assim, tranqüilizado, preparou-se para arrancar-lhe a seta. Nietihw vencera parte do medo e, ajoelhando-se junto do amigo, preparou o frasco com os "ibos".

Foi empunhar a haste de gelo da flecha, e a cabeça reduzida de Samej cobrou vida e se lhe abriram as fauces, liberando a pre­sa. Sinuhe soltou a seta que, traçando uma curva sobre a cabeça dele, foi alojar-se na aljava.

O casal, expectante, aguardou. Mas a criatura continuou imóvel, os olhos vidrados, fixados naquele céu verde-esmeralda.

Sinuhe, munindo-se de coragem, passou o braço esquerdo por debaixo daquela cabeça em forma de campânula, deslocando-

a da areia. Quando sua mão roçou aquela pele rugosa como a palha, um calafrio estremeceu-lhe as vísceras. Dissimulando, en­tretanto, animou a amiga a que abrisse o recipiente e vertesse algum tanto da cintilante areia no tenebroso agulheiro que parecia servir-lhe de boca...

E Nietihw, mãos trêmulas, aproximou o frasco da cara do monstro.

Por medida de precaução, Sinuhe pediu à companheira que se afastasse. Segurou firmemente os braços da criatura, e esperou.

Os finíssimos e cintilantes grãos de areia que o corvo branco havia chamado de "ibos", e que o investigador começava a iden­tificar com "porções de tempo", foram caindo na boca circular do ente. E, tal qual como sucedera com a filha da raça azul, de--pressa converteram-se naquele "ouro líquido". Porém, teriam o mesmo efeito revitalizador que no caso de Nietihw?

A resposta não se fez esperar...

A primeira coisa que chamou a atenção dos "iuranchianos" foi uma poderosa luminosidade no emblema centrado no peito. Pelas numerosas dentadas que a tríplice fileira de dentes de Samej praticou, surgiram outros tantos fios de luz, de vivo escarlate. Misteriosa atividade começava a manifestar-se no interior da cria­tura. Curiosamente, as mordeduras da serpente haviam deixado sobre a bandeira de Lúcifer uma figura familiar: os três anéis concêntricôs que constituíam, precisamente, o símbolo contrário: o de Micael. Cada um desses "círculos" fora delineado por vinte e quatro pequenos orifícios provocados, repito, pelos dentes caninos da flecha de gelo. No total — contou Sinuhe — os três círculos somavam 72 fendas, pelas quais escapavam outros tantos raios luminosos.

Fascinados por aquela tríplice coroa escarlate que brotava do tórax da criatura, nem Sinuhe nem Nietihw perceberam que os olhos dela começaram a pestanejar... E pouco a pouco a lumi­nosidade avermelhada foi perdendo força, até extinguir-se por completo. A criatura, erguendo o crânio enorme, cravou seus olhos na mulher. Nietihw, pálida, não conseguiu desviar o olhar daque­les círculos impenetráveis. E, por alguns minutos, suas catorze cores foram misteriosamente absorvidas pelas negras e opacas paredes que formavam aqueles olhos.

O rosto de Sinuhe havia ficado a pouco mais de um palmo daquela cabeça horrenda. Consciente do risco que poderia correr se soltasse os braços da criatura, continuou na mesma posição: escarranchado, de joelhos sobre o frágil corpo.

O ente percebendo o medo crescente de Sinuhe, girou a ca­beça para ele, e o orifício que lhe servia de boca abriu-se. Ante a surpresa do casal, exclamou com voz rouca e cavernosa:

— Agradeço-vos por me haverdes concedido um novo pe­ríodo de vida... Não temais. Embora a minha missão, como a dos meus irmãos, os "medianos" primários, consista em aniquilar-vos, em minha memória sobram restos de um sentimento que, agora, é mais forte que a ordem dada por Belzebu...

Sinuhe, desconcertado, interrompeu a amiga com o olhar. E Nietihw, convencida da sinceridade do "mediano", fez um gesto de aprovação.

Sinuhe preparou-se para soltar a criatura. Temeroso, porém, lançou mão ao mesmo tempo da flecha de gelo e a apontou para o emblema de Lúcifer.

O "mediano" se pôs em pé, ao mesmo tempo em que movia a cabeça negativamente, em reprovação à atitude ameaçadora do homem:

— Meu nome é Vana e, como vos disse, meus criadores (Van e Amadon) souberam desde o princípio dotar-me do senti­mento de gratidão. Como posso demonstrá-lo?

— Se é verdade o que dizes — interferiu Nietihw —, indica-nos como chegar até Solônia, o guardião do Éden. ..

Vana parecia hesitar. Mas, finalmente, levando a mão es­querda aos círculos vermelho e preto gravados no peito, falou assim:

— Outros 40 000 seres como eu, residentes em IURANCHA desde a chegada dos "Cem de Caligastia", zelam pela segurança dos arquivos que buscais com tanto empenho... Vou saldar mi­nha dívida de gratidão para convosco, porque (estou certo) minha revelação não porá em perigo o sagrado mistério que envolve tais arquivos... A Solônia só se pode chegar por intermédio dos ho­mens "Pi".

— Os homens "Pi"? — perguntou Sinuhe enquanto devolvia a seta a seu estojo —. Quem são?

O "mediano" ficou em silêncio. Deu vários passos em dire­ção ao interlocutor e, tomando entre os dedos o colar de números que pendia do colo de Sinuhe, argüiu:

— E tu mo perguntas?.. . Só os membros da Ordem do Grande Número podem levar este distintivo. . . Entretanto — re­fletiu Vana —, é evidente que nem tu nem a mulher sois homens

"Pi".

Nietihw, cada vez mais inquieta, nem deixou que à criatura terminasse:

— E como podemos chegar até eles?

O "mediano" voltou-se então para o barco e, estendendo o braço esquerdo na direção daqueles restos, acrescentou:

— Dalamachia...

Antes porém que pudesse prosseguir, a superfície da areia sobre a qual se encontravam começou a agitar-se. E Vana, Nie­tihw e Sinuhe descobriram, com horror, que dezenas de escuros e nervosos dedos surgiam entre seus pés...

 

— As "golem"!.. . Fugi!. .. São as "golem"!

A voz do "mediano" quebrou-se. Uma vintena daquelas esgalhadas mãos agarrara-se aos seus caniços, arrastando-o para o interior da terra.

— Fugi!

Sinuhe, de um salto, esquivou-se das primeiras garras que já investiam contra ele e, tomando do braço da companheira, arras­tou-a em direção ao navio encalhado.

Nietihw, presa do pânico, obedeceu ao amigo correndo desesperadamente.

Sinuhe virou-se para trás e viu que a cabeça de Vana desa­parecia, tragada por torvelinhos de poeira verde-esmeralda.

Quando o "mediano" foi definitivamente devorado, um ban­do daquelas garras ossudas, saltando e avançando qual exército de aranhas negras, precipitou-se atrás dos dois.

Ofegantes, continuaram correndo em direção ao casco, mas a corrida sobre a areia tornava-se cada vez mais lenta e fatigante. E aquelas mãos, muito mais ágeis, iam ganhando terreno.

Não faltavam mais que cinqüenta metros para alcançar o navio e uma das garras, mais veloz do que as outras, prendeu-se à túnica de Nietihw. Ao senti-la, a filha da raça azul estacou, pa­ralisada pelo medo.

— Não! — gritou-lhe Sinuhe —. Não pare!. .. Continue!.. . Continue!

Os afiados dedos puxavam para o chão, enquanto as demais mãos, adivinhando a crítica situação dos humanos, freou seu atro­pelado avanço, agora deslizando com movimentos lentos e cal­culados.

Sinuhe, sem tempo para pensar, puxou a flecha de gelo e, erguendo-a por cima da cabeça, alvejou a garra com preciso golpe. As fauces de Samej, escancaradas no instante mesmo em que fo­ram retiradas da aljava, trancaram-se mortalmente nas nervosas articulações da parte posterior. Os dedos, feridos pela cabeça da seta, largaram a túnica e Nietihw, aos gritos imperiosos do com­panheiro, continuou fugindo para o barco.

Sem perda de tempo o investigador colocou a flecha no arco e, apontando para o fervedouro de garras, disparou. Mas a seta, com a presa entre os dentes, foi cair na areia, entre o arqueiro e a multidão enfurecida. No mesmo instante, aos olhos atônitos do "iuranchiano", em estertores contínuos, as extremidades da­queles dedos agonizantes começaram a alongar-se, brotando em cada uma delas cabeças de serpente. E as novas cinco Samej caí­ram, por sua vez, sobre outras tantas garras. Estas, sofrendo igual metamorfose, foram enterrar-se nas demais que, desorientadas, começaram a retroceder.

Aproveitando a confusão, Sinuhe correu no rastro de Nietihw. Ela, do alto da coberta do navio, tinha os olhos aprisionados àquele vibrante bosque de serpentes implacáveis que, pouco a pouco, iam exterminando as diabólicas e sibilinas "golem".

Já sem respiração, o companheiro alcançou, finalmente, o casco adernado. Mas, antes de saltar para junto de Nietihw, al­guma coisa lhe chamou a atenção. Naquela banda de bombordo, junto à proa, dava para ler ainda um nome desgastado: "DALAMACHIA".

 

Ao vê-lo sobre a carcomida coberta, Nietihw, presa de um ataque nervoso, precipitou-se entre os braços dele.

Sinuhe, sem perder de vista a singular batalha que se travava na praia, acariciou-lhe os cabelos, tentando tranqüilizá-la. Entre­tanto, enquanto seus corações batiam ainda vertiginosamente, outro acontecimento veio sacudi-los: de repente, aquela "atmos­fera" esverdeada que os envolvia tornou-se escura. E ficou tudo submerso em uma luz violeta...

— Deus meu!.. . Mas que é isso?

À vista espantada do casal, o sol negro caminhava já muito próximo do horizonte, a ponto de, praticamente, esconder-se atrás de uma das cadeias de montanhas.

— Temos de nos apressar — reagiu Sinuhe, adivinhando

que aquelas estranhas mutações de cores na atmosfera deviam guardar estreita relação com o movimento daquele estranho sol —. Devemos procurar o caminho que nos leve aos homens "Pi"...

Nietihw concordou.

Aquela brusca "escuridão violácea" descera para complicar ainda mais a já angustiosa situação de nossos amigos. Mal se conseguia distinguir- a coberta do navio, e a praia, naturalmente, constituía tenebrosa incógnita. Que teria acontecido com Samep.

Sinuhe constatou que a seta não regressara à aljava. E uma idéia perturbadora começou a fustigá-lo: teriam as "golem" ven­cido o único aliado deles?

Nem a filha da raça azul nem seu companheiro sentiam-se dispostos a esperar o resultado daquele encontro sangrento entre a cabeça da serpente e as mãos amputadas. Então Sinuhe, lem­brado da última indicação de Vana, o "mediano" rebelde, sugeriu a Nietihw que descessem o mais depressa possível ao fundo da embarcação. Talvez ali, em algum lugar do velho casco, desco­brissem o caminho para os enigmáticos homens "Pi".

A mulher, movida por irrefreável desejo de distanciar-se das "golem", aderiu na hora. Os raios multicoloridos de seus olhos iluminaram a cobertura, revelando para os lados da popa o que parecia ser a única entrada. Os arco-íris que seus olhos projetavam exploraram ligeiramente a cabina escura; depois de lançar um último olhar para o lado da praia, Sinuhe introduziu seu arco de gelo pela pequena escotilha, comprovando, decepcionado, que a distância até o fundo do porão passava de cinco metros. Como poderiam pular daquela altura? Ra desaparecera e, para o cúmulo, já não tinham o diadema cósmico de Nietihw, roubado e enter­rado por uma daquelas "golem"...

Compreendendo o problema, ela apontou para o "colar de números" que ele portava, sugerindo-lhe que lançasse mão dele.

— Mas acontece que ele mal alcança meio metro de comprimento... — rebateu Sinuhe, descartando a idéia.

Sorrindo, Nietihw tomou o colar entre as mãos e pediu-lhe que se lembrasse a que letra hebraica estava ligado o número "pi".

— A "samej" — respondeu, mas sem saber até onde ela queria chegar.

— E qual é o seu valor numérico?

— Sessenta... Claro! — descobriu finalmente o membro da Ordem da Sabedoria —. Sessenta!

E, segurando a "cadeia" de números flutuantes, invocou a letra e seu número sagrado:

— "Samej"!... Sessenta!

Na mesma hora, aos quinze primeiros dígitos do número "pi" encadearam-se outros quarenta e cinco, até formar uma seqüência de sessenta.

Sem titubear, Sinuhe arrojou pela escotilha a "corda" mágica de números. Nietihw, decidida, foi a primeira a descer pela escada improvisada.

Já' o investigador hesitou. Prenderia o primeiro número — o 3 — na moldura de madeira do escotilhão e escorregaria assim até o porão, ou recolhia a "corda" e vencia a distância de um salto? Se se inclinasse para a primeira solução, o mais provável se­ria que não pudesse recuperar seu "colar", convertido agora em um longo cabo. . . E, em uma de suas típicas reações, enrolou ner­vosamente a "cadeia" à volta da cintura e projetou-se no vazio.

 

 

Ao vê-lo cair, Nietihw deu um grito e escondeu o rosto entre as mãos. Quando fechou os olhos, a obscuridade do fundo do barco se fez escuridão total.

Em seu empenho em conservar a "corda" mágica, Sinuhe não calculou bem a distância. Na realidade, eram sete metros. Quando estava a ponto de estatelar-se, "alguma coisa" freou-lhe a queda.

Assim que a filha da raça azul descobriu o rosto, os fachos coloridos tornaram a iluminar o recinto. O corpo desfalecido do repórter balouçava a pouco mais de metro e meio do solo. Nie­tihw correu em sua ajuda e então descobriu por que o amigo ficara providencialmente suspenso no ar: Samej, a seta de gelo, mostrava-se vibrante atrás dele, com as fauces cravadas no "cin­turão" de números.

Lentamente a flecha foi baixando, até que os pés de Sinuhe tocassem o piso do porão. A cabeça da serpente soltou então sua presa já salva, e retornou ao carcás vazio.

Recuperados do susto, dedicaram-se ambos a uma exaustiva exploração do lugar. Os olhos de Nietihw, única fonte de luz, percorreram a peça até se persuadirem, com surpresa, de que se encontravam em um reduzido quarto vazio. . . de forma piramidal. Curiosamente, o vértice de onde confluíam os quatro tabiques inclinadíssimos era constituído pela pequena escotilha por onde acabavam de descer.

Em poucos minutos, surpresa e desilusão eram os sentimentos que dominavam aqueles corações aventureiros. Surpresa porque, como puderam verificar, aquelas quatro faces da pirâmide não eram construídas de madeira como a cobertura do barco e o casco. As supostas anteparas eram formadas por vinte e três fileiras de pedra cada uma. E cada fileira, por sua vez, integrada por graníticos blocos retangulares. . .

Desilusão porque, por mais que tateassem e revistassem, não havia ali porta ou qualquer conduto.

— Que é isso?. . . Pegamos caminho errado? — explodiu Sinuhe, dirigindo um olhar impaciente para a claridade violácea recortada pelo escotilhão.

A companheira, porém, meio ajoelhada junto a uma das paredes, nem parecia ouvir os comentários do amigo. Seus dois leques coloridos estavam concentrados em uma pintura misteriosa, em que mal haviam reparado até aquele momento.

Sinuhe, cada vez mais aflito, continuava falando sozinho, tateando com frenesi as geladas pedras das fileiras, pedras talha­das e ajustadas de forma impecável. De repente, diante de tudo aquilo, teve a sensação de que haviam caído em uma armadilha...

 

Entretanto, preferiu silenciar aquele súbito sentimento. Mas, intrigado com o silêncio da companheira, acabou por juntar-se a ela. Aos seus olhos, ocupando boa parte de uma das paredes, aparecia, não uma pintura, mas um relevo delicado, talhado sobre a apertada rede de blocos retangulares. As catorze cores que Nie­tihw emanava foram passeando de cima para baixo, da esquerda para a direita, revelando ao membro da Escola da Sabedoria uma conhecida amostra da arte milenar egípcia: um disco — símbolo do deus Ra — do qual partiam nove longos raios luminosos, cujas

extremidades eram rematadas por mãos humanas. Após alguns minutos de observação atenta, Sinuhe pediu à filha dá raça azul que focalizasse toda sua luz naquelas mãos. Nietihw atendeu e descobriu, por sua vez, que em cada uma das palmas aparecia lavrada uma pequena letra hebraica.

".. .D.. .A.. .L.. .A.. M. . .A. . .C. . .H.. .I.. .A.. ." A voz do investigador, quando lia e traduzia os caracteres, propagou-se pelo acanhado recinto pontiagudo, com solene eco.

— "Dalamachia" — repetiu Sinuhe, mergulhado em pro­fundas reflexões.

Mas o insólito criptograma não parava aí. Nietihw baixou os olhos e iluminou, ao pé do ideograma, uma série de hieróglifos. Assim, o "soror", treinado pela Loja secreta na leitura e interpre­tação da tríplice escritura do Egito — a hieroglífica, a hierática e a demótica —, não tardaria a concluir que aqueles grafismos correspondiam a esta última: as dos iniciados...

Ao terminar a tradução da referida legenda, ante a expectante Nietihw, com uma exclamação de triunfo passou a ler em voz alta:

— Sim, Nietihw. . . Compreendo agora. Escute: "Ó Rá, a língua sagrada ilumina o número do teu olho: chave de Dala­machia."

Parecendo-lhe obscuras aquelas palavras, a mulher pediu-lhe que esclarecesse o sentido delas.

— Alguém (não sei quem) escreveu nesta parede a cifra para entrar em Dalamachia...

— Mas que é Dalamachia? Sinuhe deu de ombros.

— Isso eu não sei... Entretanto, a julgar pelo que nos disse Vana, esse nome deve ter alguma relação com os homens "Pi"... E a única forma de averiguá-lo será pôr em prática o que esconde este relevo.

— E que devemos fazer?

— Observe — apontou — que a língua sagrada em questão só pode ser a hebraica: a que forma a palavra "Dalamachia".

— Continuo não entendendo.. .

— Observe também — continuou Sinuhe com entusiasmo crescente — que cada uma dessas letras hebraicas tem um valor numérico... Pois bem, se somarmos todos e cada um desses va­lores, que número você crê que se obtém?

Desta vez foi Nietihw quem encolheu os ombros.

— O 6! — explodiu Sinuhe.

— Outra vez o 6... — murmurou com ar preocupado.

— Sim, preste atenção... Não há dúvida...

E Sinuhe, ajoelhando-se diante das nove mãos, entoou a primeira letra — o D —, como se se tratasse de um "mantra":

— Daleth!... o 4...

O eco se propagou pela pequena pirâmide; imediatamente, no centro do disco ou círculo superior destacou-se, intenso, um ponto vermelho.

— Deus meu!... Sinuhe, olhe!

Estupefato, o casal permaneceu por uns segundos com a vista no círculo de pedra. De onde viria aquela luz avermelhada?

Sinuhe, compreendendo que a ponta de cada uma das letras provocava a ativação de alguma mola ou mecanismo secreto no disco, apressou-se a entoar a segunda:

— Aleph!. ..o 1.

Novo eco confundiu-se com os restos do primeiro e, tal co­mo havia suposto, um segundo ponto vermelho apareceu no símbolo solar.

— Lamed!... o 30.

Tal qual um milagre, assim que ele pronunciou o "L", uma terceira áscua escarlate fulgiu no grande círculo.

— Aleph!. ..o 1.

— Mem!.. . o 40.

— Aleph!. ..o 1.

— Cheth!... o 8.

Ao cantar o "CH", um sétimo ponto — também tirante a vermelho — abriu-se no disco e Nietihw, que iluminava sempre a parte superior do relevo com seus arco-íris, sussurrou, enquanto se aferrava, medrosa, ao braço de um Sinuhe exultante:

— Não continue!

Ele, porém, fazendo ouvidos moucos às cautelosas palavras da mulher, entoou a penúltima letra:

— Yod!... o 10.

No centro do círculo, os oito pontos compunham já a figura de um "6", de vivíssimo escarlate. Sinuhe, ao vê-lo, repetiu vito­rioso a legenda que acompanhava o ideograma:

— "Só a língua sagrada ilumina o número de teu olho: chave de Dalamachia".

Antes, porém, que o investigador chegasse a cantar o último "A", uma corrente gelada soprada do escotilhão levou-os a mirar para o alto...

 

Os feixes multicoloridos dos olhos de Nietihw iluminaram então uma figura quadrangular. Estava suspensa a pouca distância acima da boca — também quadrada — por que haviam penetrado no interior do barco. E o par, intuindo novos e graves aconteci­mentos, apressou-se a se colocar na vertical do escotilhão. Nesses precisos momentos, enquanto observavam como aquela espécie de lousa se precipitava para o truncado vértice da pirâmide, Sinuhe voltou a experimentar a angustiosa sensação de que haviam caído em uma armadilha. O estalo da peça ao encaixar-se na escotilha, tampando-a, foi a trágica confirmação.

— Oh! Mas não!.. . Fomos apanhados!

Nietihw, trêmula, aferrou-se novamente a Sinuhe, implorando-lhe que fizesse alguma coisa. Mas havia nele tanto medo quanto na amiga. Apesar do vento gelado que precedera o "sepultamento", o rosto dele suava copiosamente.

Foram necessários alguns minutos, aliás intermináveis, para que, superando o terror, conseguisse reagir. Agora aparentando calma, pediu à companheira que iluminasse outra vez os muros oblíquos da pirâmide. Nietihw o fez entre soluços. Ele, ante a perplexidade da filha da raça azul, dedicou-se a contar as suces­sivas fileiras de pedras que armavam a parede.

Concluída a contagem, dirigiu-se à parede contígua, repe­tindo a operação com um mutismo irritante.

Ao terminar, iluminou-se-lhe o rosto. Nietihw soube então que seu enigmático amigo descobrira alguma coisa. Mas ele, do­minado pela incerteza, preferiu guardar silêncio e esperar.

Contou igualmente as fileiras de pedras do terceiro e do quar­to muros; então, satisfeita a curiosidade, bateu palmas, exclamando com um fio de esperança:

— Nietihw, creio que acertei!.. . Ela o mirou, ansiosa.

— Cada uma dessas paredes — explicou o "soror" — consta de vinte e três carreiras ou filas de blocos de pedra. E as quatro,

como você pode ver, rematam a cúspide de uma pirâmide... Não lhe diz nada tudo isso?

Nietihw refletiu:

— A cúspide de uma pirâmide? Vinte e três carreiras de pedra?...

Sinuhe não chegou a captar o trejeito de impotência na fisio­nomia da amiga. Absorto em suas meditações, voltara para um dos muros, tentando calcular a altura de vários daqueles silhares.

— Exato! — comentou consigo mesmo —. Onze décimos de pés!. . . Agora só resta uma última comprovação.

E na frente dos olhos atônitos de Nietihw desandou a ca­minhar — de Norte- a Sul, de Este a Oeste — pela plataforma quadrada que constituía o piso da pirâmide.

— Não há dúvida. Cada lado deste quadrado soma um pou­co mais de vinte e um passos: a famosa unidade linear do antigo Egito. Isto é, tendo-se em conta que cada um desses pés "egíp­cios"  equivale a 0,5432 metros. . . sim, pouco mais ou menos a metade. .. Isso significa uns onze metros.

Nietihw, consumida pela impaciência e aterrorizada pela idéia daquele sepultamento em vida, explodiu:

— Não estou entendendo nada, Sinuhe! Que é que você pretende? Como é que vamos escapar desta armadilha?

— Não perca a calma... Se não me engano, nós nos encon­tramos na parte superior da Grande Pirâmide de Quéops...

A mulher, temendo que aquela série de acontecimentos ti­vesse transtornado a mente do companheiro, tomou-lhe as mãos entre as suas e, iluminando o rosto de Sinuhe com seus arco-íris, interrogou-o, sem poder dissimular sua preocupação:

— Você está bem?

Sinuhe compreendeu e, esboçando um sorriso, replicou:

— Todo o bem que esta loucura me pode permitir. Acompanhando as dúvidas lógicas de Nietihw, narrou-lhe detalhadamente tudo quando averiguara:

— Você sabe que, na atualidade. . . quer dizer, nesta "atua­lidade" a que pertencíamos antes de "saltar" para este estranho "mundo", a famosa Grande Pirâmide do rei Quéops encontra-se ou encontrava-se trancada.

A filha da raça azul assentiu. Ela, tanto quanto Sinuhe, sabia que o cimo da pirâmide fora mutilado há séculos; provavelmente no século IX, na época do califa Al-Mamum, que foi quem ordenou o desmantelamento dos blocos de pedras que revestiam a construção.

— Pois bem, segundo os egiptólogos, em princípio a Gran­de Pirâmide estaria composta de 226 carreiras de blocos. Nessa "atualidade" ou "tempo" ou "mundo" de que procedemos, a tum­ba de Quéops só tem 203 carreiras. Faltam, portanto, 23...

Sinuhe mostrou então os quatro muros que os encarceravam, declarando:

— Por acaso, este arremate piramidal tem as mesmas car­reiras e dimensões que a cúspide arrebatada à Grande Pirâmide: vinte e um pés e pouco em sua base ou, se você preferir, onze metros e meio e um pouco mais de treze pés de altura.

— Não seria o caso de um erro ou de uma coincidência? Sinuhe tornou a sorrir. Como membro da Loja secreta da

Sabedoria, ele fora instruído na chamada "Mística dos Números", praticada sistematicamente pelos egípcios e, em especial, pelos construtores de pirâmides.

— Você não ignora que a mística do número (autêntica religião para os egípcios) exigia deles que toda quantidade, qual­quer que fosse a sua natureza, devia refletir o simbolismo da Justeza. Esta "Justa Medida", por seu turno, era o símbolo da virtude humana. E uma das mais significativas manifestações dessa Justeza era constituída pelos chamados triângulos retângulos sagrados. Os egípcios os utilizaram em todas as suas construções importantes; a Grande Pirâmide não foi uma exceção. Em meus estudos sobre essa Maravilha pude constatar como, a partir da carreira 203 (em que nos encontramos neste instante), unicamente a 226 equivalia quantitativamente ao diâmetro potencial de uma circunferência de 709,9999 de comprimento, cuja fração infinitesimal faz com.que sua leitura virtual seja de 710 inteiros, convertendo-se, com seu diâmetro de 226 inteiros na mais perfeita cir­cunferência, símbolo, como lhe digo, dessa "Justa Medida".. . e perfeito testemunho do conhecimento que tinham seus construto­res da razão existente entre o diâmetro e sua circunferência.

"Por outro lado, uma dessas medidas que acabo de verificar (sete metros e pouco de altura)  equivale à vigésima parte do volume da Pirâmide, de 270 pés ou 146,6 metros de altura...

Sinuhe percebeu que Nietihw mal podia seguir — e muito menos compreender — as explicações matemáticas que ele lhe estava transmitindo. E resumindo "sua" descoberta, concluiu:

— O que quero dizer-lhe é que só a Grande Pirâmide de Quéops reúne ou reunia as medidas concretas a que me estou referindo. Conseqüentemente, e não me pergunte como nem por quê, estamos prisioneiros no mais alto dela.

Nietihw não teve tempo para formular a próxima e mais importante pergunta: como escapar daquela angustiante clausura? As medições de Sinuhe tinham interrompido as sucessivas invoca­ções das letras sagradas e isso, à vista do que acabava de brotar no cabalístico relevo, poderia precipitar os acontecimentos...

 

Oito das nove mãos humanas que arrematavam os raios luminosos expedidos pelo disco ou símbolo solar começavam a recobrar vida. Nietihw apercebeu-se e, apavorada, mostrava o re­levo enquanto o iluminava com seus feixes coloridos. O casal, mudo e paralisado, ficou observando aqueles dedos de pedra que se contraíam e se articulavam, esforçando-se para se desprender do muro. Só a última mão — a que na palma trazia o "A" que completava a palavra "DALAMACHIA" — continuava manten­do o primitivo e pétreo aspecto.

De repente, a primeira das mãos fechou-se violentamente, esmagando a letra "D". A filha da raça azul focalizou seus arco-íris naquelas garras, comprovando, estarrecida, que as afiladas falanges se tingiam de negro. No mesmo instante, com sinistro estalido, a garra partiu-se à altura do punho, caindo no lajeado.

— As "golem"!

Nietihw e Sinuhe retrocederam para o centro da pirâmide, enquanto as outras mãos, convulsivas e serpeantes, cerravam-se, pulverizando cada uma das letras alojadas nas respectivas palmas. E, uma após outra, tal como a primeira, desprendiam-se do relevo, caindo sobre o piso e avançando, lenta e ameaçadoramente, na direção dos "iuranchianos".

— Sinuhe! Que faremos?

O primeiro impulso do homem foi lançar mão de sua flecha de gelo. Antes, porém, de utilizar-se da Samej, entoou a última das letras sagradas:

— Aleph!. ..o 1.

O eco do novo "mantra" reboou enlouquecido pelas paredes da cúspide daquela que Sinuhe supunha ser a Grande Pirâmide de Quéops. No mesmo instante apareceu um nono e derradeiro ponto escarlate, configurando um "6" definitivo no centro do disco do agora mutilado alto-relevo.

A partir de então, tudo se precipitou. As "golem", como se intuíssem que suas vítimas fossem escapar novamente, arquearam os enegrecidos dedos, aparentemente dispostas a saltar, como fe­linos, sobre o casal. Entretanto, como digo, os acontecimentos iriam atropelar-se uns aos outros...

Os nove pequenos círculos que emitiam a luz avermelhada abandonaram rapidamente sua forma em "6" e, adotando posi­ção horizontal, converteram-se em um "olho" amendoado.

— Olhe, Nietihw! — exclamou Sinuhe, convencido de que aquele tinha de ser o "olho" a que se referia a misteriosa inscrição.

Do centro do círculo de pedra o "olho" começou a pestanejar. A cada pestanejo, do "olho" de Ra foram expulsos milhares de flocos brancos e luminosos, iguais aos "ibos" que eles viram ascender da "areia" da clareira. Em segundos, tudo — incluindo paredes e pavimento da pirâmide -— ficou coberto pelas torrentes dos corpúsculos emitidas. E antes que as garras, também banha­das pelos "ibos", chegassem a reagir, estes — os "ibos" — cris­talizaram-se, convertendo-se em incontáveis e minúsculos espelhos triangulares.

Somente os corpos de Sinuhe e de Nietihw ficaram livres da transformação.

As "golem" — atarantadas — suspenderam o ataque imi­nente. Aquela constelação de espelhos começara a refletir as nevadas e reluzentes figuras dos humanos em milhares de pontos opostos, incluindo as superfícies abruptas das garras. E as catorze cores que partiam dos olhos de Nietihw, refletidas agora no mo­saico de espelhos compostos por cada uma das 1 185 pedras re­tangulares que formavam as quatro paredes, assim como no la­jeado do pavimento e ainda nas igualmente espelhantes mãos, encheram o recinto com mais de cem mil faixas multicoloridas que se entrecruzavam e de novo se refletiam, tecendo uma diabó­lica teia de aranha.

Entretanto, passados os primeiros momentos de confusão, vá­rias das "golem" saltaram para o centro da pirâmide. E suas curvas das unhas fizeram dos rostos de Sinuhe e de Nietihw seus alvos.

 

As garras, comprovando que seu ataque dera certo, avançaramcom fúria contra o casal. Muitas "golem" estrangularam o pescoço dos "iuranchianos", enquanto outras, sedentas de sangue, disparavam os dedos sobre os olhos deles, cravando-os ali como ganchos.

Ao ter Nietihw perfurados os seus globos oculares, os arco-íris se extinguiram e, com eles, o labirinto multicolorido que inundava a pirâmide. Apenas os milhões de flocos brancos que co­briam as hieráticas figuras de Sinuhe e da filha da raça azul con­tinuaram cintilando na escuridão. Quase simultaneamente os imóveis corpos do casal começaram a desmoronar.

Como se fossem de fato estátuas de areia, aquelas "esfinges" vieram abaixo, arrastando as "golem" em sua desintegração.

Coléricas, as garras foram emergindo do meio dos luminosos montes de "ibos" a que estavam reduzidos os corpos de Nietihw e do seu companheiro. Mas, quando as amputadas e espelhantes mãos conseguiram desembaraçar-se dos refulgentes grãos, outro incrível acontecimento as esperava: obcecadas pelo instinto assas­sino, as "golem" não prestaram atenção ao disco de pedra nem ao seu enigmático "olho" a pestanejar... Este, apartando-se do muro, sobrevoou o lugar, detendo-se sobre as garras. Seu pestane­jar fez-se então mais e mais rápido, e os milhões de "ibos" foram sendo absorvidos para o alto, penetrando em torvelinho pela pu­pila escarlate. E o "olho" de Ra multiplicou seu fulgor, até con­verter-se em uma esfera avermelhada e palpitante. As "golem" correram a encolher-se em um dos ângulos da pirâmide e, de re­pente, a pequena nuvem esférica começou a gotejar, salpicando de vermelho o grande espelho que revestia o enlousado. Duas da­quelas gotas aumentaram de tamanho e o resto, impelido por um poder oculto, distribuiu-se à sua volta, compondo um entrelaçado sanguinolento que foi inchando sobre o pavimento polido.

Aquilo que fora o "olho" de Ra acabou por dissolver-se e, quando a última gota escarlate se precipitou sobre a monstruosa forma que crescia sempre sobre o solo da pirâmide, rachou-se a totalidade dos espelhos. Com um bramido, aquela figura decolou para o alto, iluminando a peça com dois enormes olhos circulares injetados de sangue: era Samej, a serpente!

Seu corpo truculento continuou emergindo de entre as lousas, enquanto a cabeça girava e balanceava no ar, em busca de "algu­ma coisa"... Finalmente, o ofídio descobriu as "golem". Arqueou o ventre e, abrindo as fauces, exalou espesso jorro de fumaça que envolveu as garras.

Cumprida a missão, o corpo de Samej retrocedeu, fundindo-se e desaparecendo pelo mesmo orifício de onde viera. Quando seus imensos olhos circulares desapareceram definitivamente sob as lousas, elas se fecharam sobre a serpente, e as trevas voltaram a reinar na pirâmide.

Entretanto, que teria acontecido com as "golem"? E, sobre­tudo, que teria sido de Sinuhe e da filha da raça azul?

 

Quando Sinuhe voltou a si, seus olhos estavam afetadas pelos intensos leques luminosos que emanavam de Nietihw. A filha da raça azul, ajoelhada, mantinha entre suas mãos a cabeça do amigo. — Oh, Deus meu! — suspirou aliviada —. Até que enfim! O membro da Escola da Sabedoria afastou a vista do rosto da companheira, esforçando-se por se lembrar do que lhes suce­dera. Mas, por mais que brigasse com a memória, mal lhe ocorre­ram ao cérebro algumas recordações, tão enevoadas quanto desconexas. Via, isso sim, aquela "chuva" de flocos muito brancos que acabaria por envolvê-los e mais os milhares de espelhos no interior da pirâmide. A partir daí, tudo se esfumava.

Interrogou Nietihw. Ela fez sinal negativo. Que lhes teria acontecido? Onde estavam?

Com movimentos inseguros, ajudado pela amiga, conseguiu pôr-se em pé. Os arco-íris projetados por Nietihw percorreram o ambiente e os dois compreenderam que se achavam em um quar­to de forma cúbica, de uns dois metros quadrados, construído com sólidos blocos de granito. Em um dos lados abria-se um túnel, de boca estreita e retangular. Aproximaram-se dele de cócoras, mas só distinguiram um longo e escuro corredor descendente, de ape­nas um metro de altura por oitenta centímetros de largura.

O casal, movido pelo mesmo temor, preferiu evitar, no mo­mento, aventurar-se por aquele lugar tenebroso. Sinuhe tateou as paredes ásperas da acanhada sala onde haviam aparecido. Por mais que quebrasse a cabeça, não atinava como nem por que te­riam chegado até ali. Nietihw foi iluminando ponto por ponto cada uma das áreas e ângulos que o companheiro solicitava e, finalmente, o "soror" da Grande Loja guardou silêncio, mergu­lhando em uma de suas costumeiras e herméticas reflexões. Para ele, aquela inexplicável mudança de cenário tinha de ser obra de Ra. Mas não era este o pensamento que o atormentava. Se os seus cálculos não estavam errados, aquela câmara e o túnel que dela partia teriam necessariamente estreita relação com o interior da Grande Pirâmide de Quéops. E, embora tentasse dissimulá-lo, um estremecimento o sacudiu da cabeça aos pés.

— Que há com você? — interrogou Nietihw.

Sinuhe entretanto, ao menos naquele momento, não queria inquietar a amiga com suas lucubrações. Ele estudara a estrutura interna da Grande Pirâmide e sabia da diabólica rede de corredo­res, câmaras e poços traçada por seus construtores, e a dificuldade que redundaria evadir-se dali. Outros muitos antes deles — espe­cialmente saqueadores de tesouros — o haviam tentado e a maio­ria, não achando a saída, havia enlouquecido e morrido no labi­rinto. Mas, provavelmente, estaria enganado. ..

— Nada, não há nada comigo. Talvez o frio.. .

Efetivamente, pela boca do túnel vinha uma ligeira corrente de ar fresco. E o investigador, mostrando aquela entrada, animou Nietihw a prosseguir na busca dos homens "Pi". Na realidade, não tinham alternativa. Aquela câmara, com seus blocos de pedra imensos e desnudos, começava a parecer-lhes angustiosa e asfixiante.

O casal se dispôs a penetrar naquele inquietante e tenebroso passadiço. Antes, a pedido de Sinuhe, fizeram um inventário do que ainda lhes restava. Inexplicavelmente o arco de gelo, a aljava e a solitária seta haviam desaparecido. Ao contrário, a "cadeia" com os sessenta primeiros dígitos do número "pi" continuava cingindo a cintura de Sinuhe.

Quanto a Nietihw, sua única bagagem era o pequeno frasco de vidro com os "ibos".

Sinuhe, pressentindo graves e iminentes dificuldades, tornou a sentir falta do seu "amigo" desaparecido: o disco...

A sorte, uma vez mais, estava lançada. E, tomando a Nietihw pela mão, enveredaram os dois pelo silencioso e negro corredor...

 

O angusto do túnel os obrigou a caminhar curvados, o queixo colado aos joelhos. Sinuhe, roçando com o corpo a parede es­querda, situou-se um pouco à frente, enquanto Nietihw, agarrada à sua mão direita, procurava iluminar o corredor resvaladiço e a cada passo mais inclinado. Entretanto, os fachos multicoloridos que lhe brotavam dos olhos não chegavam a localizar o fundo da passagem. E um temor crescente foi apoderando-se deles. Que os aguardava ao final do túnel?

Nos primeiros metros, somente o arrastar rítmico dos pés sobre o piso tosco e suas respirações, cada vez mais cansadas, romperam aquele silêncio espesso, tão impenetrável como os mu­ros entre os quais deslizavam.

Sinuhe, diante da progressiva inclinação do passadiço — que naquele ponto devia oscilar pelos vinte e cinco graus — parou. Era melhor ter cuidado disse-o a Nietihw. Ela, buscando mais estabilidade, deixou livre a mão direita do companheiro. E, amparando-se nas paredes laterais com as respectivas palmas, tratou de frear a inércia imposta pela ladeira.

De repente, alguma coisa chamou a atenção do investigador. Seus olhos tinham ficado plantados no teto da passagem. A filha da raça azul concentrou o olhar naquele ponto e as catorze cores iluminaram três séries de hieróglifos, toscamente pintados em vermelho.

Após breve observação, o "soror" constatou tratar-se de marcas, provavelmente feitas pelos canteiros que haviam trabalha­do na construção e que, em escritura oval e tipicamente egípcia, reproduzia os nomes: "Khufu-Knum Khufu-Knum".

— Meu Deus!

A exclamação de Sinuhe, carregada de maus presságios, só serviu para aumentar a inquietação da companheira. E ela, no afã de descobrir a razão do lamento, deixou para trás o amigo, caminhando precipitadamente para a zona sob as inscrições.

Sinuhe não teve tempo de detê-la. E antes que pudesse evi­tá-lo, os pés da filha da raça azul resvalaram e ela foi precipitar-se de bruços no fundo do túnel.

— Sinuhe... Socorro!

O grito propagou-se qual tiro de canhão pelo estreito corre­dor, gelando o sangue do amigo, que bem depressa a perdeu de vista.

Por alguns segundos, o eco lamentoso confundiu-se com o contínuo e cada vez mais apagado som do roçar do corpo na la­deira resvaladiça-. Em seguida, depois de intermináveis instantes, ele tornou a escutar um segundo grito. Desta vez, mais agudo e terrível. Subitamente, quebrou-se a voz. E o silêncio invadiu tudo.

Às cegas, o coração apertado, Sinuhe lançou-se passadiço abaixo. Mas, como aconteceu com Nietihw, após três ou quatro passos perdeu o equilíbrio e rolou pelo tobogã.

Finalmente, após inacabável série de golpes contra os muros, foi dar com seus doloridos ossos em um patamar, também de pe­dra. Aturdido, levantou-se a custo mas, ao descobrir o que se lhe levantava à frente, por pouco não caiu desmaiado.

Aquele túnel descendente o conduzira a uma segunda câ­mara bastante mais espaçosa que a primeira. Em uma de suas paredes — exatamente aquela à frente da saída do passadiço — o corpo de Nietihw, de costas para ele, Sinuhe, achava-se firme­mente abraçado por um ser que, nos primeiros momentos, o in­vestigador, aterrado, pensou ser um esqueleto.

— Jesus Cristo!

 

Foi aproximando-se cautelosamente. Os arco-íris de sua com­panheira imóvel, focando a parede, emprestavam ao recinto uma medíocre claridade. Essa aparente contradição o confundiu mais ainda. Nietihw, em pé, o corpo colado à parede, permanecia na mais absoluta imobilidade, firmemente segura por aqueles longuíssimos braços que lhe cingiam as costas. "Se está desmaiada" — refletiu — "como é possível que seus olhos continuem emanando luz?" A resposta chegaria quando Sinuhe, em atitude defensiva, colocou-se em frente ao costado direito da desventurada amiga.

— Deus do céu!

Os fachos multicoloridos lhe revelaram, então, a verdadeira natureza do ente que ele confundira com um esqueleto: a filha da raça azul achava-se agarrada por braços mumificados.. . que brotavam da pedra. Aquelas pergaminhosas extremidades superio­res e mais um crânio — igualmente mumificado e que também emergia do muro, acima da cabeça de Nietihw — compunham a repulsiva criatura que mantinha em tenazes a sua companheira.

— Como é possível? — murmurou, ao mesmo tempo em que seu punho esmurrava a pedra —. Isto é puro granito!.. .

Sua primeira impressão, e lógica, foi que os restos daquela múmia teriam sido sepultados no interior do sólido e imenso mu­ro. Mas, como?

Uma vez ciente da macabra natureza daqueles macérrimos braços, mal cobertos por sujos farrapos de pano, sua atenção toda se concentrou em Nietihw..Efetivamente, respirava. As palmas das mãos achavam-se pregadas à parede, como se tentasse rechaçar aquele abraço sinistro. A cabeça, inexplicavelmente reta e incli­nada para trás, apontava para o crânio que sobressaía mais acima.

Os olhos, esgazeados, refletiam tal espanto, que Sinuhe temeu pela vida dela. Era na realidade aquele pânico insuperável — mais que o abraço de ferro — o que a mantinha paralisada.

Guiado pelo instinto, Sinuhe agarrou um dos braços, puxando-o com todas as forças. O cepo entretanto não cedeu um único milímetro. Foi tentar de outro ângulo. Inutilmente. Aquele punha­do de tendões e músculos tinha a mesma consistência daquele granito a que se achava unido. Então o membro da Escola da Sa­bedoria, sufocado, deixou-se desmoronar junto à parede, sem saber onde achar a solução. Se não conseguisse liberar Nietihw, nem ela nem ele teriam a menor oportunidade de sobreviver naquele tene­broso subterrâneo.

Reagindo contra a desesperação, desencostou-se da parede e começou. minucioso exame do recinto. Mas os frios e desnudos muros não lhe esclareceram grande coisa. Tratava-se — e isso parecia evidente — de uma das múltiplas câmaras ou antecâmaras existentes na Grande Pirâmide. A malfadada inscrição descoberta no teto do passadiço descendente, com o nome de "Khufu" — verdadeira identidade do rei Quéops —, o convencera de que se encontravam no interior dela. E, conhecendo como conhecia a tendência dos construtores para elaborar todo tipo de armadilha que um dia confundisse e frustrasse possíveis intrusos ou viola­dores de túmulos, chegou à conclusão de que sua companheira fora vítima da fatalidade e, claro, de um daqueles ardis. Pode ser que essas reflexões, e mais a dramática realidade da filha da raça azul, prisioneira daquele monstro parido de um bloco de granito, tivessem acabado por arruinar o ânimo de quem quer que fosse. Mas Sinuhe sabia também que a maior parte das arapucas da Grande Pirâmide dispunham de vários e secretos dispositivos ca­pazes de anular seus efeitos mortais, sempre e quando fossem descobertos a tempo... E esta — conjeturava Sinuhe — não tinha por que ser uma exceção. Entretanto, onde se esconderia essa hipotética e misteriosa mola que permitiria a liberação de Nietihw?

 

Desalentado, ele voltou para junto da parede em que estava ainda a amiga. Tornou a alisar a pedra retangular de onde surgiam a cabeça e os braços da múmia, atento a qualquer resquício ou sinal. Em vão. Aquela mola granítica, solidamente encaixada, não revelava nenhuma pista.

Deixou-se cair sentado no chão, literalmente arrasado. En­costou-se no bloco fatídico. À sua direita, o corpo de Nietihw, estático e na ponta dos pés. E foi esse detalhe, que até ali não lhe chamara a atenção, que o conduziria a outra descoberta deci­siva. Quando tinha os olhos fixos nos pés da amiga, percebeu que a extremidade inferior da túnica oscilava brandamente. A mal per­ceptível oscilação do tecido fez com que reagisse.

— Como não me dei conta antes?

Maldizendo a má estrela, buscou a borda do muro que pare­cia enfunar aquela parte da túnica de Nietihw. Colocou as mãos a quatro ou cinco centímetros da rocha e, com efeito, detectou uma finíssima corrente de ar. Alvoroçado, acompanhou com os dedos a trajetória da invisível fissura, comprovando que se esten­dia até um quarto do solo e a toda a largura do muro. Se não estivesse enganado, ali talvez encontrasse a chave.

Retrocedeu uns passos, postando-se na direção de Nietihw. Observou a parede e, depois de breve meditação, convenceu-se de que se encontrava diante de uma possível porta basculante, bem típica do engenho egípcio. "Sendo assim, talvez a rotação da lousa provoque a abertura dos braços... Mas como fazê-lo?"

"O único dispositivo capaz de mover este granito só pode estar do outro lado da parede. . . A não ser que..."

Acabava de assomar-lhe ao cérebro uma idéia feliz. Em seus anos de estudo e preparatório no universo da Loja da Sabedoria, tivera a oportunidade de comprovar como algumas dessas portas secretas podiam abrir-se, graças a um mecanismo escondido em algumas das múmias que faziam as vezes de gênios-guardiães. Tal dispositivo tinha, além disso, um caráter de amuleto para a múmia que o encerrava. Algumas dessas "molas-amuletos" em forma de placas linguais, tinham sido vistas por ele em múmias do Royal Scottich Museum de Edimburgo, do Gulbekian de Durham, na Inglaterra, e do Rijksmuseum van Oudheden de Leiden.

Que podia perder experimentando?

Decidido, dirigiu-se até o crânio que emergia da rocha. Mas a cabeça estava a mais de dois metros do solo, e Sinuhe, com sua estatura mediana, viu-se na irritante contingência de roçar não mais que o pontiagudo queixo do cadáver. Só havia uma solução. Decidido, saltou sobre os braços que aprisionavam Nietihw, en­carando assim a caveira.

A boca, tal como supusera, estava entreaberta, ostentando uma fileira amarela de dentes. Sobre o lábio inferior, à altura dos incisivos e caninos, descobriu uma pequena lâmina de forma re­tangular e arqueada que se perdia no interior.

Sinuhe agarrou a extremidade da lingüeta e, com o coração acelerado, puxou-a.

 

Os efeitos do puxão foram mais rápidos e bruscos do que podia imaginar o voluntarioso Sinuhe. A lâmina metálica — pro­vavelmente de ouro — cedeu coisa de dez centímetros e, ato contínuo, movidos por um mecanismo oculto, os braços da múmia abriram-se de golpe. Sinuhe, que se havia instalado de cócoras sobre os resistentes antebraços, não teve nem tempo de saltar. Seu próprio impulso, ao puxar a mola-amuleto e a automática aber­tura dos braços, provocou-lhe uma nova queda que o estatelou no duro enlousado.

Do solo, assistiu a um não menos fulminante girar da parede de pedra. Esta teve um movimento de báscula sobre um artifício oculto no centro do retângulo granítico — presumivelmente ao longo do eixo menor — fazendo com que a parte inferior da pa­rede se elevasse em direção ao corpo recentemente liberado de Nietihw. A rocha, impossível de ser parada, empurrou a filha da raça azul, deslocando-a e derrubando-a muito perto de Sinuhe. E ela quedou estendida no chão, imóvel, com seus fachos multi-coloridos a iluminar o teto da câmara.

E, antes que o nosso homem pudesse reagir, a porta secreta completou a volta determinada por aquele mecanismo secreto, fechando-se de novo.

Sinuhe, contente com a liberação da amiga, não prestou maior atenção ao fato de a folha de pedra ter voltado a encaixar-se, fechando-lhes novamente a passagem. Ajoelhado junto a Nie­tihw, tentou chamá-la a si. Depois de muito rodeá-la, viu-se obrigado a aplicar-lhe duas sonoras bofetadas. Finalmente, os olhos dela pestanejaram e se lhe foi extinguindo a extrema palidez do rosto.

— Nietihw!

Um tanto recuperada, ela se soergueu; passeou o olhar ao seu redor e, ao descobrir o companheiro, lançou-se aos seus bra­ços, vítima de um ataque de nervos.

— Fique tranqüila!... O pior já passou...

Sinuhe evitou qualquer referência à queda no túnel e ao pos­terior e trágico encontro com os braços da múmia. Depois de secar-lhe as lágrimas, suplicou-lhe que dominasse o medo.

— Agora, o importante é sair deste maldito lugar. ..

Pela primeira vez, desde que voltou a si, a filha da raça azul dirigiu o olhar em direção à parede onde ficara presa; após uma breve pausa, perguntou:

— Onde estamos?

Sinuhe recordou-lhe os hieróglifos em pintura vermelha des­cobertos no teto do corredor inclinado, fazendo-lhe ver que, se seus cálculos procediam, encontravam-se em um dos tobogãs que cruzavam, talvez, o maciço central da Grande Pirâmide de Khufu ou Queops e que, de acordo com seus conhecimentos, poderia conduzi-los bem até à câmara do Rei ou da Rainha, ou à parte mais profunda da pirâmide: à tenebrosa câmara "subterrânea". Sinuhe, no entanto, não fez menção aos incontáveis perigos que, como no caso do abraço mortal da múmia, poderia reservar-lhes a passagem por aqueles corredores...

— E esta — finalizou o "soror", mostrando as paredes que os rodeavam — tem de ser uma das câmaras-"armadilha" que, por sua vez, nos separaria do caminho que nos levaria até os ho­mens "Pi".. .

— Os homens "Pi"!... — exclamou muito cética —. Você crê, de verdade, que chegaremos até eles?...

— Tenho certeza — fingiu Sinuhe —. Não se esqueça de que ainda tenho a "cadeia".. .

Entretanto, interromperam-se as palavras do investigador. Em meio à penumbra, "algo" começara a brilhar.. .

 

Voltaram-se para a lousa de granito que acabava de fazer o movimento basculante. No centro, começara a cintilar um pequeno objeto. . .

A mulher quis aproximar-se, mas o companheiro, desconfiado daquela aparição tão súbita, impediu-a e a reteve ao seu lado. Nietihw banhou então as paredes todas com seus arco-íris e os dois, maravilhados, observaram como, sobre a áspera superfície da pedra e, acima do refulgente objeto, ia aparecendo uma série de hieróglifos.

Ao incidir sobre a minúscula e fulgurante peça, os leques luminosos que partiam de Nietihw sofreram refração instantânea, propagando-se em todas as direções. E aquele objeto manifestou-se ante os "iuranchianos" em toda a sua beleza.

Nietihw, esquecida da prudente atitude do companheiro, deu um passo em direção ao muro, a fim de examinar de perto a jóia. Pois disso se tratava. Diante do casal, alojada em um nicho de uns dez centímetros quadrados, surgira uma gema prodigiosa, formada por doze perfeitas e transparentes faces. Do núcleo do diamante partia uma luz branca ofuscante que irradiava para cada um dos pentágonos regulares que delimitavam o valioso dodecaedro.

Sinuhe imitou a companheira, e pôde comprovar como a pe­dra preciosa flutuava fluida no oco praticado na rocha. E, após atenta observação, levantou a vista, tentando decifrar aquele novo ideograma.

Em voz alta, o membro da Loja foi traduzindo os caracteres: "Estrangeiro: estás diante da primeira porta. . ." Sinuhe hesitou. Alguns dos símbolos, apesar de sua recente e misteriosa aparição sobre a pedra, estavam danificados, como se tivessem sido traçados há centenas ou milênios de anos. Nietihw concentrou toda a sua luz sobre os hieróglifos e os dois desco­briram, então, o motivo daquelas imperfeições: da mesma forma que se desenharam nas pedras — como eles testemunharam — assim também haviam começado a auto-eliminar-se. Por conse­guinte, não havia tempo a perder. E Sinuhe percorreu a legenda a toda velocidade:

— "... que conduz a Dalamachia. . . EBEN é meu nome." Nem bem haviam terminado aquela única e precipitada leitu­ra, e as três fileiras hieroglíficas apagaram-se. E diante do casal ficou apenas o tesouro deslumbrante. . .

A filha da raça azul repetiu as palavras que o amigo acabara de pronunciar e, voltando-se para ele, quis saber do significado.

"Estrangeiro: estás diante da primeira porta que conduz a Dalamachia" — memorizou Sinuhe, em atitude reflexiva — "EBEN é o meu nome."

— E daí? — insistiu a filha da raça azul.

Mas o investigador não fez mais que encolher os ombros.

— A não ser. . .

— Fale, pelo amor de Deus! — recriminou Nietihw.

— A não ser que esse nome ("Eben") tenha relação com a pedra preciosa que o Zohar ou Livro do Esplendor menciona; é um dos mais antigos e intrincados textos cabalísticos dos judeus. O Zohar remete para os começos dos tempos uma gema de incalculável valor, à volta da qual a história humana foi somando suas sucessivas intuições do Infinito. Ao explicar a criação do mundo, o texto diz que o Criador, do seu majestoso trono, arrojou a.o abis­mo uma pedra preciosa. Uma das extremidades do maravilhoso prisma foi mergulhar na escuridão; o outro emergiu do caos. A Tradição dá a esse diamante o nome de "Eben Hashetiaj" e, dizem os cabalistas, sobre essa base estabeleceu-se o mundo. Essa pedra se teria perdido e todas as lendas afirmam que aquele que a possuir | dominará o mundo. . .

Por um momento, conforme ia ele desenvolvendo sua exposi­ção, a filha da raça azul creu descobrir nos olhos do amigo uma chispa que a encheu de inquietude. É que Sinuhe, com a vista cra­vada no diamante, parecia mergulhado em reflexões insólitas. Fi­nalmente, estendendo as mãos para a gema, sussurrou com voz desconhecida:

— Sim, aquele que a possuir dominará o mundo —. E, agar­rando a pedra, retirou-a do nicho.

Nietihw, desconcertada, não soube o que dizer.

— E por que não podemos apoderar-nos dela? — obtemperou o investigador, indo de encontro às inquietudes que vagavam no ânimo da companheira —. Afinal de contas, quem está arris­cando a vida nesta tresloucada missão?. . .

A filha da raça azul não respondeu. Limitou-se a baixar os olhos, enquanto o amigo acariciava o fulgurante tesouro.

Foram momentos de grande tensão. Desarmada ante a sur­preendente cobiça do companheiro, não soube reagir. Inesperada­mente, porém, da mesma forma como se havia apoderado da gema, Sinuhe voltou a depositá-la no oco do muro. Nietihw buscou, an­siosa, o olhar do amigo e, quando se cruzaram, comprovou alivia­da que se extinguira aquele violento desejo de posse, tão rápido quanto havia chegado.

Nietihw não fez comentário algum. No entanto, ao contemplar o diamante, diáfano, devolvido ao seu escrínio, compreendeu que aquela oportuna reação de Sinuhe significava uma difícil vitória. A aguda intuição da filha da raça azul era perfeita.

 

No momento em que a jóia foi devolvida ao nicho, a luz do diamante se foi tornando mortiça, até ficar reduzida a um remoto tintilar interno. E ante a surpresa dos nossos protagonistas, suas doze faces pentagonais abriram-se, transformando-se em outras tantas pétalas de cristal. No fundo daquela rosa flutuante continua­va viva a centelha que fora o "coração" da gema.

Nietihw e Sinuhe entreolharam-se perplexos. E o membro da Ordem da Sabedoria, levado por aquele incurável afã de vasculhar tudo, colou o nariz à delicada e cristalina flor. Em poucos segun­dos, voltando-se para a amiga expectante, comentou sem dissimu­lar o desconcerto:

— Não pode ser!. . . Veja, Nietihw!

E, com o índice, foi enumerando as arestas que somavam as doze pétalas pentagonais.

— Sessenta!. . . Somam sessenta: o valor numérico de Samej! A filha da raça azul não pôde reprimir um calafrio ao ouvir

o nome da serpente. Mas, dominando-se mostrou, por sua vez, o cinturão de números que Sinuhe portava, acrescentando uma ob­servação que havia escapado ao meticuloso companheiro:

— Ou o valor do número "pi" se considerarmos tão-só seus cinco primeiros dígitos: 3,1416...

Sinuhe, não muito de acordo com a observação, moveu a ca­beça negativamente. A amiga, porém, convencida de que aquela era uma "pista" transparente na busca dos homens "Pi", colocou as duas mãos sob a ligeira e translúcida "rosa" e, com suma delica­deza, retirou-a do nicho. No mesmo instante, ao contato com a pele, as doze pétalas abriram-se ao máximo e a minúscula e branca luz do seu interior foi aumentando de volume e intensidade, até inundar por completo a concha das mãos de Nietihw.

O que aconteceu em seguida foi tão rápido como um relâm­pago: paredes, teto, pavimento da câmara estremeceram como se sacudidos por um violento sismo. Instintivamente, Nietihw prote­geu a "rosa" junto ao peito, enquanto o companheiro caía, derru­bado pelo forte abalo. A vibração cessou depressa. E o casal, sem alento, assistiu ao desmoronamento da laje de granito que abrigara o valioso diamante. Enquanto as demais paredes não pareciam ter sofrido dano algum, a porta secreta que Sinuhe fizera mover-se como báscula ficou reduzida a um grande monte de pó. Diante dos "iuranchianos" abriu-se um segundo e escuro corredor.

Enquanto Sinuhe ponderava sobre aquele tremor, negando-se a admitir-lhe a origem telúrica, sua companheira retirou a rosa do peito e, abrindo as mãos, contemplou maravilhada como da massa luminosa desprendiam-se, uma a uma, as doze pétalas pentagonais.

Incapazes de articular palavra, Nietihw e Sinuhe contemplavam a beleza daquelas perfeitas formas geométricas a revoar pelo espaço, indo fundir-se umas com as outras, até compor uma formosa e gigantesca mariposa de cristal, com asas transparentes e articula­das. Boquiaberto, o casal via como o enorme inseto batia as asas, perdendo-se nas trevas do passadiço que acabara de abrir-se ante eles.

Um súbito grito da filha da raça azul fez com que de novo Sinuhe estremecesse.

 

Nietihw, com,seus arco-íris iluminando suas próprias mãos, ficara paralisada. A massa brilhante que mantinha entre as palmas, da qual haviam escapado as doze pétalas de cristal, acabava de perder sua luminosidade. Em seu lugar apareceu um cérebro redu­zido, do tamanho aproximado de um punho, mas igualmente transparente.

Atemorizada, ela não conseguira reter o grito. O companheiro precipitou-se em seu socorro e ficou a contemplar, também atônito, a pequena massa cerebral — lembrando a de um ser humano — que palpitava entre os dedos da filha da raça azul. Debaixo da casca, distinguia-se um núcleo avermelhado e brilhante como um rubi.

— Deus meu, Sinuhe! — exclamou desorientada —. Que é isso?

O companheiro, tão desconcertado quanto ela, não soube o que responder.

— Não sei que sentido terá tudo isso — disse o investigador, rompendo assim o silêncio —, mas a verdade é que devemos con­tinuar.

E, apontando para o fundo do passadiço escuro, animou-a a reencetar a caminhada.

O novo túnel, descendente também, embora de menor incli­nação, foi muito mais cômodo que o anterior. O casal, sempre ajudado pelos raios multicoloridos, pôde penetrar nele sem ne­cessidade de abaixar-se. As paredes laterais, agora caiadas de bran­co, chegavam a quase dois metros de altura. E Nietihw, com o pequeno cérebro entre as mãos, ficou reconfortada quando sentiu o braço amigo sobre seus ombros.

A mente do investigador escaldava ainda com a lembrança do suposto terremoto. Havia "algo" estranho, muito estranho naquele tremor. "Algo" que não conseguia decifrar e que, ao mesmo tempo, fustigava-lhe o coração.. .

Por que não teriam escutado o estrondo que normalmente acompanha tais movimentos sísmicos? Por que a comoção das pa­redes da câmara teria coincidido com o desabrochar das doze pétalas de vidro, naquele instante em que Nietihw teve a iniciativa de tomar a "rosa" entre as mãos?

Por uma fração de tempo os nervos de Sinuhe se relaxaram um pouco, entretidos por aqueles pensamentos. No fundo, o que desejava era esquecer que estava enveredando por aquele corredor tenebroso, ao encontro do desconhecido. .. Por outro lado, a des­coberta do novo passadiço o pusera inseguro quanto ao ponto a que se dirigiam. Lembrava-se de que a entrada da pirâmide de Quéops, situada na face norte, tinha um tobogã em declive de 53 pés. Chegados a esse ponto, o túnel deveria ter-se dividido em dois: um ramal que subia em direção ao centro da tumba — onde se achavam as câmaras do Rei e da Rainha — e o outro, que dava no subsolo: na tétrica "câmara subterrânea".. . Deste passadiço, entretanto, nunca tivera notícia. "Além do mais" — confabulou — "que garantias temos nós de que a nossa entrada na Grande Pirâmide se teria dado pela entrada principal?"

Como lhe acontecia habitualmente, desde que se vira envol­vido naquela aventura, suas meditações foram bruscamente inter­rompidas. Nietihw focalizara o que parecia ser o fim do túnel.. . — Olha!

A voz da mulher — um sussurro, quase — propagou-se qual um dardo no meio das trevas. Em frente, tenuemente iluminada pelas catorze cores de Nietihw, levantava-se uma mole escura e reluzente, onde se espelhavam dois olhos.

Assustada, a filha da raça azul piscou. Mas a intermitência na semi-escuridão só contribuiu para realçar mais a vivacidade daquele olhar. Depois desses momentos de tensa espera, Sinuhe decidiu-se a avançar. E, lentamente, naquele silêncio que asfixiava, venceu a distância que o separava daquele novo mistério. Uns me­tros atrás, e a pedido do amigo, Nietihw aguardou expectante.

Ao aproximar-se, ele percebeu que a informe massa negra que lhes fechava a passagem era, na realidade, uma imponente escultura.

Examinou-a com calma, constatando que se encontravam diante de uma esfinge, esplendidamente talhada em um bloco de basalto negro. À diferença da famosa esfinge de Gizé, esta não ostentava aspecto totalmente "humano". A volumosa cabeça — que ocupava quase todo o espaço do túnel — exibia um curvado bico de falcão e, entre os lábios, destacava-se longa e afiada língua bifendida, característica das serpentes. Quanto aos olhos, rasgados como os de uma pantera, tinham sido magistralmente coloridos. Uma envoltura de bronze, fazendo as vezes de pálpebras, cobria o globo, feito por seu turno com um fragmento de quartzo branco raiado de rosa. No centro, representando as pupilas, Sinuhe obser­vou vários pedaços de cristal de rocha. E sob eles, um cravo re-fulgente determinava cada um dos pontos visuais, provocando, à luz dos olhos de Nietihw, uma irradiação plena de vida. . .

O corpo que sustentava a titânica cabeça — metade homem, metade animal — correspondia ao de um leão sedestre, com duas poderosas patas.

Sinuhe reclamou a presença da amiga e então os dois tribu­taram toda a atenção às três colunas de hieróglifos talhadas no

torso da majestosa esfinge.

 

— "Ô Ra" — traduzia o membro da Escola da Sabedoria —, "deste garras ao leão... Dotaste de vôo o pássaro... Puseste a peçonha na boca da cobra. . . Mas, que arma reservaste para o es­trangeiro que chegou à tua segunda porta?"

Sinuhe repassou os símbolos.

— Garras ao leão? Vôo ao pássaro? Veneno para a serpen­te?. . . Que chave encerrará essa inscrição?

Nietihw desviara a vista para o pequeno e cristalino cérebro que guardava entre suas mãos. À medida que se ia aproximando da esfinge, o núcleo cor de granada se ia manifestando mais e mais brilhante, até o ponto de impregnar os hemisférios com sua tona­lidade rubi. E agora, junto da escultura, a massa cerebral desenca­deara uma série de palpitações.

A filha da raça azul chamou a atenção do companheiro so­bre o intrigante fenômeno.

— Há algo que parece claro — disse Sinuhe, voltando-se para os símbolos lavrados no peito do leão —. Esse cérebro tem de guardar alguma relação com a esfinge. Mas qual?

— O segredo — retrucou Nietihw — deve esconder-se nessa última frase: "... que arma reservaste para o estrangeiro que che­gou à tua segunda porta?"

 

— Segunda porta? Que segunda porta? Onde está?

Sua companheira não soube o que responder. E juntos, de pé ante a esfinge, caíram em longo silêncio.

Incapaz de resolver o enigma, o investigador logo abandonou suas reflexões, entregando-se à rigorosa inspeção, pormenorizada, de cada uma das partes da escultura. Deslizou os dedos pelas frias patas do leão, na esperança de descobrir, quem sabe, alguma nova mola secreta. Mas foram inúteis as pesquisas. Por último sal­tou para o alto da gigantesca cabeça.

Nietihw, sem que ela mesma pudesse precisar por quê, con­tinuava obcecada pela última parte do hieróglifo. Sua intuição a levava, inclusive, mais além. "A chave" — repetia-se mentalmente — "tem de estar na palavra "arma"..."

Inesperadamente, um comentário trivial de Sinuhe, que conti­nuava encarapitado no alto da esfinge, veio clarear a incógnita:

— Aqui há só um pequeno poço — anunciou, apontando para uma pequena e escondida cavidade praticada na própria base da cabeça.

— Um poço? — inquiriu ela em um tom que a Sinuhe pa­receu exagerado.

— Sim, mas não vejo que importância. . .

— Que dimensão tem? — perguntou um tanto brusca. Sinuhe começou a compreender que alguma idéia adejava na cabeça da amiga e, submisso, palpou o orifício, deduzindo que naquela cavidade mal entraria um punho cerrado. E assim o trans­mitiu a Nietihw.

— Um punho? — clamou a filha da raça azul com ar triunfante —. Será que você não entende?

Na fisionomia de Sinuhe, esmaltada pelos fachos coloridos dos olhos da amiga, esboçou-se uma expressão interrogativa.

— Lembre-se do crânio de pedra da Esfinge de Gizé. Não dispunha também de um poço... e no mesmo lugar?

O investigador assentiu.

— E agora diga-me: se as "armas" do leão, do pássaro e da cobra são suas garras, vôo e veneno, respectivamente, qual será a do homem?

Os dois voltaram seus olhares para o cérebro palpitante.

— Sim — sentenciou Nietihw, levantando as mãos em dire­ção à fronte da esfinge —, a razão!

O investigador desceu para junto da sagaz companheira e, sem perda de tempo, ajudou-a a chegar até o lugar que ele acabara de abandonar. Uma vez ali, Nietihw, com extremo cuidado, passou a depositar o cérebro fulgente no reduzido orifício. O acoplamento foi matemático. E a filha da raça azul, sorridente, con­templou entusiasmada como a enigmática massa acelerava suas pulsações. Mas, subitamente, assim como se a implantação daquele cérebro tivesse disparado algum mecanismo oculto, fecharam-se as pálpebras de cobre da esfinge. E uma nova vibração fez oscilar o passadiço...

 

— Nietihw!... Cuidado!

Sinuhe não pôde sequer estender a mão para ajudar a com­panheira. Os muros e o teto oscilaram violentamente — como que sacudidos por violenta e ciclópica onda cósmica — e a boca da esfinge, diante do espanto do investigador, abriu-se de par em par.

— Jesus Cristo!

Aturdido com a imensa bocarra, Sinuhe, em um movimento reflexo, não teve tempo senão para proteger o rosto com os bra­ços. Da goela da esfinge — que teria permitido a passagem de vários homens ao mesmo tempo — brotaram línguas de fogo. . . branco! E aos borbotões, como um rio flamígero, precipitaram-se pelo túnel, envolvendo Sinuhe à sua passagem. Ele, arrastado pela singular torrente, bracejou com desespero, percebendo, com não pouca surpresa, que as chamas, longe de abrasá-lo, comportavam-se como uma corrente de água, chegando a molhar-lhe as roupas.

Meio asfixiado, lutou pela superfície. Ao emergir daquelas "águas de fogo", viu quanto fora arrastado por aquela impetuosa força até perto do final do passadiço, e que perdera de vista a sua Nietihw. E, saltando as cristas espumosas das chamas que inunda­vam o corredor, nadou com todo o elã em direção à boca da esfinge.

À luz que o silencioso e nacarado "caudal" irradiava — co­roado, como digo, por línguas sucessivas de um fogo frio e úmido — o investigador, enlouquecido, atinou com outro fato que o impeliu a bracejar mais desesperadamente ainda: o nível da "vaga de fogo" continuava subindo inexoravelmente, ameaçando inundar totalmente o túnel.

— Sinuhe!. . . Aqui!

De repente, das encabritadas chamas que se quebravam como ondas contra o corpo do nosso homem, destacou-se a voz de Nietihw. E Sinuhe, enchendo de ar os pulmões, submergiu na tor­rente, nadando em direção às fauces da escultura. Assim avançou mais rapidamente. Mas, a ponto de desfalecer, teve de buscar a superfície. Depois de uma vigorosa batida de pés no chão do cor­redor, nadou rijamente para o alto.

— Aqui!. .. Aqui!

Ao emergir daquele fantástico e agitado meio fluido, os olhos do jovem reconheceram a mão da amiga, estendida para ele, a pouco mais de meio metro. A filha da raça azul, empoleirada no alto do crânio de basalto, lutava para resgatar o companheiro.

Por um momento, Sinuhe temeu pela vida de Nietihw: as "águas" cobriam já os olhos da esfinge, e não tardariam a sepul­tá-la. ..

— Vamos! — gritou ela, impaciente —. Agarre-se de uma vez!

Dominado pelo instinto de conservação, arremessou-se para aquela mão, a ela se aferrando com todas as forças. Durante se­gundos a mulher agüentou o peso, segurando-se firmemente, com a mão esquerda, à base da cabeça de pedra. Inesperadamente, po­rém, o fluxo da corrente mudou e o investigador foi puxado para as fauces submersas.

— Deus meu!.. . Nietihw!

Súbito remoinho se fez em torno de Sinuhe que, arrastado, acabou por largar a mão da amiga. E os leques luminosos que bro­tavam dos espantados olhos de Nietihw iluminaram o companheiro naquele exato e crítico momento em que o torvelinho o devorava e ele desaparecia dentro da ardente espuma branca.

— Sinuhe!... Não!

 

Nietihw não hesitou. E, com uma reação que nem ela mesma chegaria jamais a explicar-se, saltou atrás do companheiro, sendo também colhida por aquela armadilha infernal.

A forte corrente arrastou-a para as escancaradas fauces da esfinge e, por algum tempo, seu corpo ficou à mercê daquele "rio" espesso e turbulento, chocando-se, sem cessar, contra as paredes daquilo que parecia uma continuação do corredor que lhes dera acesso à monumental escultura de basalto negro.

Com os pulmões a ponto de estourar, a filha da raça azul sentiu-se finalmente impelida para o fundo do túnel. Ali a maré branca mudou de cor e as línguas de fogo se diluíram, transfor­mando-se em fumaça verdosa. Nietihw, entretanto, não teve tempo para compreender: a força da torrente terminara por vomitá-la fo­ra do passadiço. E de repente, envolta naquela bruma esmeralda, viu-se estendida sobre um reluzente piso dourado. Aturdida, rou­pas ensopadas, descobriu, por entre as faixas daquele gás esverdeado, a figura de Sinuhe, de pé na sua frente.

O membro da Escola da Sabedoria investiu contra a compa­nheira e, sem meias palavras tomou-a pelos braços arrastando-a, sem consideração, para o centro do recinto onde foram "desagua­dos".

Nietihw, sem entender o estranho comportamento, tentou sa­far-se. Mas ele, fisionomia grave, mostrou-lhe o ponto de onde acabara de tirá-la. -

A filha da raça azul voltou a cabeça e um grito escapou-lhe da garganta. Sobre as lâminas de ouro que revestiam o aposento, ziguezagueava pesadamente uma velha conhecida: Samej, a ser­pente. As fauces abertas, mostrando as ameaçadoras filas de dentes, exalava o já familiar jorro de fumo verdolengo. Aquele mesmo que Nietihw vira ao final do túnel por onde fora arrastada.

A mulher, lívida, buscou refúgio nos braços do amigo.

— Como é possível?... Então, os corredores e esse rio de fogo...?

Sinuhe confirmou os balbuciantes pensamentos da amiga:

— Não há outra explicação, Nietihw. Durante todo esse tem­po permanecemos no interior de Samej...

O ofídio então, como a querer confirmar a dedução de Si­nuhe, ergueu-se sobre os primeiros patamares do seu ventre e fez desaparecer seu "alento" esmeralda, lançando do mais profundo da traquéia uma golfada daquelas chamas brancas e úmidas que haviam inundado o segundo passadiço. E, entre as oscilantes lín­guas que brotaram de Samej, o casal viu aparecer, por último, a delicada figura da borboleta de cristal... No mesmo instante, as brancas e delgadas "chamas de água" desapareceram. E a serpente cerrou a goela, iniciando uma de suas temíveis aproximações para junto dos indefesos "iuranchianos"...

 

Nietihw foi a última a dar-se conta da repentina perda dos seus arco-íris. Ao ser expelida, tal como Sinuhe o foi, das entra­nhas da grande serpente, seus olhos recobraram a normalidade.

Afortunadamente, o lugar em que se encontravam parecia ilumi­nado por intensa e dourada claridade, que irradiava do profuso chapeado que recobria totalmente a peça, teto e pavimento incluí­dos. Em circunstâncias menos dramáticas, possivelmente teriam ficado extasiados e fascinados com aquele esbanjamento de ouro. Mas ao centro da refulgente sala quadrangular e desnuda Samej desafiava...

Sinuhe ajudou a companheira a levantar-se e, com um rápido passar de olhos, procurou um possível refúgio. Desolado, percebeu que as paredes não proporcionariam nem abrigo nem possibilidade de evasão. No centro de cada um dos quatro muros — remota esperança — acreditou distinguir portas formadas igualmente por lâminas douradas de mais de dois metros de altura. Para o cúmulo dos cúmulos, nem a filha da raça azul nem o amigo dispunham, na ocasião, de arma alguma. Só a "cadeia" de números continuava cingindo a cintura de Sinuhe. Entretanto, acossados como estavam pela proximidade ameaçadora da serpente, nenhum deles se lem­brou da existência do "cinturão" mágico.

O casal retrocedeu e, instintivamente, correu para uma da­quelas hipotéticas portas. E Samej, com seus olhos circulares tingidos de rubro, contraiu os anéis centrais do corpo, lançando-se em demanda de nossos amigos.

— Sinuhe! — bradou a mulher, apavorada —. Não é pos­sível!

Apesar do ritmo frenético com que lutavam para alcançar a porta, o muro de ouro se ia afastando, inteirinho, com a mesma velocidade com que corria o casal. Dali a poucos minutos tiveram de deter-se, os dois, esgotados e perplexos ante aquele inexplicável distanciamento da parede. Sinuhe, com o rosto molhado de suor, contemplou o muro, agora tão imóvel quanto eles e a pouco mais de dez metros de distância. Era inútil ponderar. Então, girando sobre os calcanhares se dispôs a enfrentar Samej. Antes, porém, em derradeira tentativa para salvar Nietihw, indicou-lhe outra das misteriosas portas — aquela situada, no momento, à esquerda do casal — ordenando-lhe que corresse para lá. Ela titubeou. Mas ele, com gesto autoritário obrigou-a a obedecê-lo. E a filha da raça azul empreendeu uma nova e desesperada carreira. Entretanto, tal como já o suspeitava o investigador, também aquela segunda pare­de dourada distanciou-se, tornando inútil a fuga da amiga, aturdida.

Sinuhe reparou então que, das quatro paredes que compunham o recinto, só aquela que a amiga tentava alcançar deslocava-se a grande velocidade, convertendo o lugar em uma interminável sala retangular.

A serpente, surpreendida com aquela inesperada separação de suas vítimas, suspendeu por uns momentos o seu avanço. Pa­recia hesitar. Alçou a cabeça até quase tocar o teto e, após con­templar a trêmula figura do homem desdenhou-a, voltando o crânio couraçado para aquele frágil corpo que se afastava para parte alguma...

O colo de Samej oscilou. As fauces tornaram a abrir-se e a tríplice fileira de lâminas faiscou durante uns segundos, espelhan­do o ouro dos muros. E o réptil rastejou atrás dos passos da filha da raça azul.

Desesperado, Sinuhe saltou sobre o lombo de Samej e, enga­tinhando pelas pétreas placas que o cobriam, tentou chegar até a cabeça. Galgou o amplo pescoço, mas, a uma das violentas oscila­ções da serpente, foi projetado ao solo. O ofídio revolveu-se então para o lado do desgraçado "iuranchiano" e, levantando a cauda, preparou-se para esmagá-lo. Sinuhe, olhar fixo nos sanguinolentos olhos do monstro, creu ter chegado o seu fim...

 

Sorte ou azar para o membro da Loja secreta, suas aventuras não acabariam ali, debaixo do peso do corpo ciclópeo de Samej...

Quando já se considerava perdido, uma olvidada silhueta cruzou vertiginosamente por cima da balouçante cauda do réptil. Era a diáfana mariposa de diamante. Impetuosa como raio, ela precipitou-se sobre a extremidade de Samej, cravando-lhe uma das asas entre as placas. Ferida, a serpente estremeceu e violenta con­vulsão se lhe propagou pelo corpo todo. Quando a onda alcançou o ponto em que se achava incrustada a oportuna borboleta, esta saltou no espaço, atirada como se fora um trapo. Imediatamente, pela brecha aberta na cauda brotaram aquelas chamas brancas e úmidas entre as quais Sinuhe estivera imerso.

Aterrorizado, o investigador se atirou para um lado. Dessa vez, seus reflexos evitaram que o corpo de Samej o envolvesse. O animal, em meio aos estremecimentos, orientou a cabeça para a zo­na ferida, e nela arrojou espesso jorro de fumo verde. Mas o nosso homem, a quem o ataque da borboleta animara, aproveitou aque­les momentos de confusão e recolheu do solo a heróica amiga. As asas dela estavam ainda rígidas e afiadas como um machado.

Nesse ínterim, Somej conseguira fechar a ferida e, com as fauces meio escondidas por ininterruptas colunas de fumaça, ru­mou para o lado de Sinuhe e o encurralou com a cauda.

O réptil deitou o crânio para trás e, retraindo os anéis, pos­tou-se para o ataque final.

Consciente do perigo, Sinuhe apanhou a borboleta por uma das asas e, erguendo-a acima de sua cabeça, arrojou-a contra o ofídio. Em décimos de segundo, o duplo machado, girando sobre si mesmo como uma hélice mortal, atravessou o espaço que o se­parava de Samej, enfiando-se no pescoço dela, sob a grande mandíbula.

O investigador, sem se demorar junto à serpente para ver o resultado do lance, foi correndo na direção de Nietihw.

A poucos metros, o exausto casal de humanos observava Samej ir perdendo o equilíbrio e, entre estertores, chocar sua ca­beça, violentamente, contra as lâminas de ouro do pavimento. Uma das asas da borboleta penetrara profundamente no pescoço, abrindo uma nova e aparatosa ferida, por onde começara a fluir, aos borbotões, um riacho daquela "água de fogo".

Samej tentou cobrir a brecha com suas volutas de gás. En­tretanto, os contínuos e exasperados movimentos da cabeça só logravam aprofundar cada vez mais a asa de diamante, cravada justamente sob as fauces. Duas aterrorizantes batidas de corpo anunciaram o fim iminente do monstro. E Samej, agonizante, girou o crânio na direção do casal. Seus olhos, então, foram perdendo aquela cor escarlate, substituída por um azul intenso.

De repente, sem que Sinuhe conseguisse evitá-lo, a filha da raça azul, compadecida ante o trágico final do inimigo, precipi­tou-se sobre suas fauces entreabertas.

— Não!. . . Nietihw!

A impetuosa mulher desatendeu a advertência; de joelhos, desafiando os pontiagudos dentes, pôs-se a esvaziar o frasco dos "ibos" na boca de Samej.

Quando Sinuhe conseguiu resgatar o braço da amiga do inte­rior do réptil, mais da metade dos grãos luminosos se havia perdido na garganta do monstro.

— Por quê?... Por que você fez isso?

Nietihw não respondeu. Mas Sinuhe, ao passo que a levava para longe do ofídio, soube ler-lhe no olhar um misto de piedade e reconhecimento por aquele misterioso ser que, à sua maneira contribuíra — e não pouco — para o desenvolvimento da missão.

E, ante o crescente temor do rapaz, os efeitos da "areia" má­gica não tardaram a manifestar-se.

 

Da goela da serpente brotou uma golfada de fumo esmeralda, mais densa e abundante que as anteriores. Sinuhe, temendo um retorno à vida de Samej, inclinou-se para trás, protegendo Nietihw. Mas, ao contrário do que esperava, o corpo do réptil não experi­mentou movimento algum. As nevadas línguas de fogo continua­vam fluindo pela brecha, cada vez mais abundantes e velozes. Se aquela "torrente" leitosa e em permanente torvelinho era o sangue de Samej, não havia dúvida de que o animal se estava dessangrando aceleradamente. Essa hipótese não o tranqüilizou. Se a "vaga de fogo" continuasse manando naquele ritmo, a sala estaria submersa em questão de minutos. E, em tal caso, que fazer? Por onde escapar?

A "água de fogo" já cobria os pés dos "iuranchianos", quando, inesperadamente, a extremidade superior da grande coluna de fu­mo verde sofreu convulsões. E um não acabar de pequenas volutas, girando e borbulhando sem cessar, deu forma a uma cabeça fa­miliar...

Os dois, ao reconhecer aquela figura trêmula e fumegante, recuaram. Mas a maré branca que continuava subindo, começou a entorpecer-lhes a marcha. Além do mais, para onde ir?

Nietihw e o companheiro, avançando penosamente, afastando com as mãos as densas chamas, optaram pela porta mais próxima. Desta vez, o muro não se distanciou. E os nossos protagonistas sem atrever-se a olhar para trás, toparam finalmente com as dou­radas pranchas que vestiam aquele lado da peça.

Mas voltaram-se e o espetáculo os deixou sem fala. As lín­guas de fogo cobriam quase completamente o corpo inerte de Samej e, pelas fauces meio neufragadas, brotava sempre aquela coluna de fumo esmeralda. Porém o "alento" da serpente se trans­formara em uma segunda e espectral Samej. . .

Nietihw, sentindo-se responsável pelo inesperado e pouco de­sejado final, prorrompeu a chorar.

E a vibrante serpente de fumaça, desenhando no vazio um imenso arco, foi aproximando-se do aterrorizado par.

A filha da raça azul, com as espumantes cristas do rio de fogo a roçar-lhe já a cintura, escondeu o rosto entre as mãos, so­luçando desconsoladamente. Mas, para surpresa deles, a vaporosa cabeça de Samej se deteve, a curta distância. E ali se manteve, im­passível, vigilante, os circulares e opacos olhos esverdeados crava­dos em Nietihw. Esta, admirada por não se dar o novo ataque que imaginava, foi descobrindo seus olhos macerados. Nesse instante, a boca de fumaça daquele fantasma abriu-se, desvelando, uma após outra, as doze pétalas de cristal que pouco antes haviam dado vida à providencial mariposa de diamante.

E, diáfanas, ficaram no ar, evoluindo lenta e pausadamente sobre si mesmas, como à espera de alguma decisão da atônita filha da raça azul.

Sinuhe, sem saber que fazer, estendeu as mãos, como que para recebei as fulgurantes peças. Elas, porém, não baixaram. Fi­nalmente Nietihw, compreendendo, imitou o amigo.

E, uma após outra, as pétalas pentagonais se foram pousando em suas palmas.

Quando o último cristal tomou contato com a pele de Nie­tihw, as peças se iluminaram e, alinhando-se, converteram-se em uma fúlgida chave.

Satisfeita, a segunda Samej deslizou ondulante sobre a super­fície do rio de fogo e, para surpresa do casal, foi afundando na agitada massa de chamas brancas, até desaparecer.

Nietihw manuseou a chave com curiosidade: observou que os dentes eram formados por letras, igualmente transparentes e. como o resto do inesperado presente de Samej, de dureza diaman­tina. Incapaz de decifrá-las, apressou-se a depositar a chave nas mãos do amigo, não menos desconcertado. Sinuhe, no momento, não lhe prestou atenção. Seus olhos estavam presos ao ponto onde eles viram submergir a serpente de fumo. Subitamente, aquelas línguas de fogo úmido começaram a girar, provocando um remoinho que ameaçava propagar-se pela alva lagoa em que se conver­tera a câmara dourada. E, temendo que a força daquelas "águas" pudesse arrastá-los para o olho do torvelinho, segurou a compa­nheira, colando-lhe as espáduas contra a porta do muro.

A filha da raça azul, obedecendo ao instinto, pediu a Sinuhe que utilizasse a chave.

— A chave? — exclamou sem compreender —. Como?

— Os dentes dela formam uma palavra!... Aí deve estar a revelação! — gritou-lhe a mulher, sentindo já como a corrente os puxava para o centro, mais e mais encrespado da superfície da "água de fogo".

E Sinuhe, batalhando por manter-se junto à parede, levantou a chave acima das águas flamejantes, descobrindo, com efeito, que os dentes compunham a palavra hebraica "HESED".

Desgraçadamente, nem um deles dispunha de tempo para refletir sobre o novo enigma. O remoinho corrupiava agora com ímpeto vertiginoso e Sinuhe, sem perda de tempo, prendeu a chave entre os dentes e tratou de soltar a "cadeia" de números que con­servava ao redor da cintura. Ligou uma de suas extremidades ao olho da chave e, depois de gritar à amiga que se lhe aferrasse ao pescoço, levantou a chave, lançando-a ao ar. Mas o violento e es­pumoso torvelinho branco os agarrou. E Sinuhe, com a compa­nheira firmemente soldada às suas costas, foi sugado para o centro da lagoa.

 

De repente, em meio ao enlouquecido e cada vez mais rápido rodopiar do remoinho, Sinuhe, que se agarrava ainda e desesperadamente à "cadeia" de sessenta números, sentiu um fortíssimo puxão. Mas seus braços, quase desconjuntados, resistiram ao em­bate. A chave, tal como esperava o membro da Escola da Sabedo­ria, fora incrustar-se em algum lugar da câmara.

Palmo a palmo, coberto por vezes pelas embravecidas línguas de fogo, encetou uma aproximação, lenta, para o desconhecido mas providencial ponto em que supunha ter-se cravado ou enganchado a não menos mágica chave...

Com as mãos ensangüentadas, Sinuhe, à beira do desfalecimento, conseguiu finalmente livrar-se do olho do torvelinho. E, depois de descansar uns minutos sobre a tensa superfície das "águas", prosseguiu em seu avanço, aferrado sempre à "cadeia" do número "pi".

Quando o extenuado casal já se achava a poucos metros da parede, o nível da lagoa baixou bruscamente. E, sem que soubes­sem como, as alvas chamas começaram a desaparecer pelo olho do redemoinho, como se misteriosa mão tivesse aberto um buraco no chão da câmara.

Sinuhe e a companheira logo tiveram pé. Mas, esgotados, deixaram-se ficar estendidos, ainda seguros à "cadeia".

Quando as últimas línguas escorreram e a sala voltou ao seu primitivo brilho dourado, Nietihw rasgou um pedaço da fralda da túnica e, amorosamente, enfaixou as mãos ao amigo.

— Ânimo! — sussurrou-lhe, esforçando-se por convencê-lo e convencer-se de que o pior já tinha passado —. Vamos sair daqui!

No entanto, no mais recôndito de sua alma, a filha da raça azul sabia que as provas que lhes estavam infligindo não tinham chegado ao fim.

O jovem se levantou e, sacudindo as roupas, acompanhou o trajeto da "cadeia". A poucos passos percebeu que os negros e brilhantes números, magicamente engrenados entre si, conduziam a uma das portas. Concretamente, a uma fechadura colocada em altura média e na qual, com efeito, se havia introduzido a chave de diamante.

Silencioso, passou a soltar os números que ligara à chave, recolhendo ininterruptamente a "cadeia". Mas agora, em vez de cingi-la à cintura, colocou-a em torno do pescoço. E com indisfarçável curiosidade, pôs-se a inspecionar os painéis de ouro que adornavam ou protegiam o acesso misterioso.

Nietihw, a seu lado, lembrou-lhe a palavra que dava forma aos dentes e quis saber do significado dela. O investigador, distraidamente, respondeu-lhe que "HESED" era um vocábulo hebreu que queria dizer "clemência". Mas, ensimesmado em sua busca de alguma inscrição ou sinal que pudesse arrojar um raio de luz sobre o novo enigma, não se deu conta do imprudente dis­tanciamento da companheira.

A mulher, confiando na sagacidade de Sinuhe, esqueceu por momentos u problema da porta. Pois desde que vira desaparecer as brancas chamas sentia irrefreável curiosidade. Como e por on­de haviam escorrido aquelas "águas de fogo"?

Quietinha, sem que o amigo o percebesse, caminhou para o centro da câmara dourada...

Mas, quando apenas alguns passos a separavam do escuro círculo que já adivinhava sobre o pavimento, súbito pressentimen­to esteve a ponto de fazer com que voltasse.

A curiosidade, não obstante, foi mais poderosa, e então ela continuou até a beirada de um buraco de pouco mais de um metro de diâmetro, perfeitamente delimitado pelas lâminas de ouro. Aproximando-se descobriu um poço mergulhado na mais negra escuridão.

— Nietihw, creio que tenho a solução!...

As palavras de Sinuhe, que acabava de volver a cabeça em busca da companheira, ficaram-lhe bloqueadas na garganta. Im­potente, contemplou como a filha da raça azul era arrebatada por uma sombra.

De um salto, separou-se da porta, lançando-se atrás da amiga, Mas quando alcançou a abertura Nietihw já havia desaparecido.

Não chegou nem a olhar para o interior do poço. Antes que o fizesse, catapultada de lá do mais profundo, subiu uma prancha igualmente dourada que o fechou hermeticamente. Todos os seus esforços foram inúteis. Esmurrou e pisoteou a lâmina. Invocou "Ra", o amigo perdido, suplicou e, finalmente, caindo de joelhos no pavimento, chorou amargamente.

Era a segunda vez que perdia Nietihw e, só a idéia de que pudesse ter sido capturada pelas "golem" ou pelos "medianos" re­beldes, fê-lo mergulhar em fundo abatimento. Que poderia fazer pela companheira? Como, e de que lado procurá-la? Encontrava-se só e perdido no interior daquilo que supunha ser a Grande Pi­râmide de Quéops e, ainda por cima, sem armas nem qualquer ajuda. ..

 

Em uma de suas bruscas mudanças de estado de ânimo, Sinuhe secou as lágrimas e, com passo decidido, coração queimante de raiva, lançou-se em direção à porta onde sobressaía a chave de diamante. Colérico, maldizendo a hora em que aceitara a missão, girou a chave com ambas as mãos. Um estalido escapou da fechadura e, no mesmo instante, os painéis de ouro da porta se gretaram. E pelas mil fendas escaparam minúsculas chamas azuis, que se propagaram velozmente, consumindo as douradas lâminas quarteadas.

O investigador, temendo que o fogo celeste pudesse alcançá-lo, deu um passo para trás. As línguas vorazes, de apenas uma pole­gada de comprimento, extinguiram-se, entretanto, tão rapidamente como haviam surgido.

Ao volatilizar-se o chapeado, a porta foi convertida em um imenso espelho retangular. Esta, pelo menos, foi a primeira im­pressão de Sinuhe. Ali, à sua frente, recortava-se sua própria ima­gem. Mas, ao observar a si mesmo com mais cuidado, ficou perplexo: o Sinuhe que aquele suposto espelho refletia, não exibia ao colo a "cadeia" de números. O resto, sim, era seu retrato vivo. "Como pode ser?", perguntou-se alarmado, ao mesmo tempo em que levava a mão direita ao colar, em um tímido e quase mecânico gesto para convencer a si mesmo de que estava sonhando ou de que sofria alguma alucinação. Mas a "cadeia", essa sim, continuava sobre seu peito.

Um calafrio foi o prelúdio de outro sucesso não menos fan­tástico. Atônito, viu como a imagem que permanecia à sua frente não repetia o movimento que acabara de efetuar. Pela lógica, se na verdade se achava diante de um espelho, o braço da imagem — "seu" braço — deveria ter-se erguido também em direção ao colar.

Aturdido, começou a gesticular. O "outro", entretanto, não se movia. E continuou a mirá-lo, impassível, com os braços caídos ao longo do corpo, enquanto Sinuhe, com um sentimento crescente de ridículo, terminava por abaixar as mãos.

A cólera inicial dera lugar a um misto de admiração e temor. "Algo" especialmente singular estava a ponto de acontecer. E Si­nuhe, intuindo-o, sentiu aquela velha e familiar cocegazinha nas entranhas, sempre prévia do início de alguma aventura.

Entretanto, não satisfeito, avançou até o espelho, tocando-lhe a superfície com as pontas dos dedos trêmulos. A sensação rece­bida foi inequívoca: "aquilo" era uma fria lâmina compacta, sa­be-se lá de que metal polido, ou de cristal azougado...

Cada vez mais inquieto, retrocedeu de novo, e interrogou a imagem:

— Quem é você?

E o rosto do "outro" Sinuhe mudou sua expressão impene­trável em um sorriso acolhedor. E o verdadeiro Sinuhe — ou não se tratava do verdadeiro? — viu que os lábios da imagem se abriam e uma voz conhecida — a sua — ressoava do fundo do espelho.

— Sou Ka, seu outro EU.

— Meu o quê...?

O sorriso acentuou-se mais e, em tom benevolente, repetiu o que o Sinuhe "deste lado" do espelho já havia escutado clara­mente.

— Seu outro EU, Sinuhe...

E antes que nosso perplexo amigo tivesse tempo para orga­nizar as idéias, acrescentou:

— Você sabe que em cada mortal convivem duas perso­nalidades. Uma (você, no caso), primitiva e agressiva. Feroz.

Enraizada no animal que todos os humanos evolucionários levam dentro. Outra (eu), nascida diretamente do Pai Universal e que constitui sua chispa pré-pessoal em cada ser. Eu, Ka, represento o Amor, a Beleza e a Sabedoria.

— E o que deseja de mim? — gaguejou o investigador.

— A clemência da sua companheira, a filha da raça azul, com Samej permitiu-lhes chegar até a terceira porta. A partir de agora, serei eu quem prosseguirá na grande busca. A este lado de "Duart" (o limiar de Dalamachia), a cólera, a ambição e a mentira não têm acesso.

Irritado por aquelas suas próprias palavras e com o cérebro já no limite da resistência, o Sinuhe "deste lado" levantou os pu­nhos em atitude ameaçadora. Mas, antes que chegasse a esmurrar o espelho, os braços de Ka saíram da polida superfície, arrebatando-lhe o colar de números. E Sinuhe, a ponto de sofrer um ataque histérico, viu quando seu "outro" EU introduzia a "cadeia" no interior do espelho e a depositava, por sua vez, no próprio colo. E, fazendo com a mão direita um gesto de saudação, sorriu de novo. Ato contínuo, o espelho e, com ele, toda a sala dourada foram envolvidos por densas trevas.

 

Ao vê-la, teve a sensação — quase a certeza — de que aquela tocha fora colocada ali especialmente para ele. Retirou-a do aro de metal que a mantinha obliquamente ao muro e, intrigado, pas­seou a chama amarelenta ao seu redor. Onde estava? Que teria acontecido? Suas recordações e vivências estavam intactas em sua memória: os túneis em plano inclinado, o pequeno cérebro de cris­tal, a esfinge, aquele "rio" de fogo úmido, a sala dourada e a dramática experiência com a serpente, a desaparição de Nietihw e, inclusive, a aparição do seu "outro EU" no espelho... Mas, a partir daquele escurecimento, o arquivo de sua memória se negava a funcionar. Por mais que se esforçasse, não foi capaz de rememo­rar como chegara até ali. Examinou o lugar, verificando que se encontrava no alto de um lanço de escadas, toscamente cavadas na rocha. Às suas costas, fechava-lhe a passagem uma muralha rochosa também de mais de dois metros de altura por qualquer coisa mais de metro e meio de largura. Apalpou as paredes late­rais e concluiu serem elas tão maciças quanto o muro que se le­vantava atrás dele. A partir do reduzido patamar em que se achava, começava o lanço de escadas e, em seguida, à frouxa e crepitante luz da acha, Sinuhe divisou um corredor escuro. Era óbvio que só naquela direção encontraria a única saída possível.

Será que a sala dourada ficava do outro lado da muralha? Supondo que sim, como teria ele atravessado semelhante bloco de pedra?

Convencido de que suas dúvidas não teriam resposta pelo caminho da lógica e do raciocínio, preferiu prescindir de tais in­quisições. Agora, a única coisa importante era averiguar onde estava e, sobretudo, como dar com o paradeiro da amiga.

Desceu os dezesseis degraus e, vendo-se na boca do novo passadiço, estacou por uns momentos, assombrado com sua pró­pria serenidade. Quando pensou na filha da raça azul não o fez, como era de esperar, cheio de angústia ou de cólera. E mais: seu pulso não parecia alterado diante do tenebroso lugar nem ante os perigos que provavelmente o aguardariam. Não é que o fantasma do medo lhe tivesse desaparecido do coração, mas, inexplicavel­mente, sua alma estava plena de paz. Era assim como se soubesse que parte daquela "batalha" estava ganha e que os arquivos se­cretos de IURANCHA estavam quase ao alcance de suas mãos... Mas a inquietante solidão daquele corredor não tardaria a devolvê-lo à realidade. O passadiço, bem amplo, apresentava uns muros — incluídos teto e pavimento — tão toscamente trabalha­dos como os que acabava de abandonar. Tratava-se de um túnel retangular, perfurado em um calcário consistente, cujas paredes, evidentemente, foram lavradas a golpes de picareta. Enquanto ia avançando por ali, a ausência dos blocos graníticos que delinea­vam os passadiços pelos quais haviam deslizado anteriormente o induziu a uma nova dúvida: estaria fora da Grande Pirâmide? Ou, ao contrário, teria penetrado na plataforma rochosa sobre a qual se sustentava a Primeira Maravilha do mundo? Sinuhe — o novo, talvez o autêntico Sinuhe — precisaria de algum tempo para elu­cidar a nova incógnita...

Na expectativa de algum sinal ou inscrição foi avançando len­tamente. Dentro em pouco, quando mal havia dado uma vintena de passos, a luz da tocha iluminou o final do túnel. Cautelosamen­te, adiantou o facho, descobrindo que o passadiço desembocava em uma sala também retangular, de uns oito por quatro metros. Por alguns minutos, imóvel no limiar da câmara, quase não se atrevia a respirar. O amarelento bruxulear da tocha foi empurran­do as trevas e, subitamente, sobre a parede à direita de Sinuhe, surgiram umas oscilantes sombras disformes. Apesar de sua cres­cida coragem, ele tornou a sentir medo e, com um calafrio esteve a ponto de deixar cair a maça de madeira que lhe servia de archote.

Retrocedeu um par de passos colando as costas aos últimos metros do muro direito do corredor. E a escuridão voltou a encher o recinto silencioso. Que seriam aquelas sombras que ele vira os­cilar na parede? Os calafrios se propagaram agora em cadeia e todos os pêlos do corpo se lhe eriçaram.

Com o rosto voltado para a semi-iluminada porta de acesso à câmara, esperou o pior. "Aquelas sombras" — confabulou — "têm de pertencer a alguma coisa ou a alguém. No segundo caso, se se tratar de seres vivos, ao serem surpreendidos pela luz da to­cha, talvez seja imediato o seu ataque..."

E, imerso em um silêncio de morte, esperou que assomassem ao umbral, a qualquer momento, as silhuetas de sabe Deus que monstruosas criaturas...

 

 Os segundos transcorreram densos e intermináveis. Mas, para

estranheza de Sinuhe, nada nem ninguém apareceu no umbral da câmara. Então, arrastando as costas pelo muro, tornou a andar.

A boca do túnel se abria exatamente no centro da câmara e, por conseguinte, a parede em questão ficava a uns quatro metros do trêmulo Membro da Escola da Sabedoria. O facho iluminou a peça pela segunda vez e, com efeito, ele distinguiu as sombras temidas. Seus olhos se acostumaram rapidamente com a penum­bra e distinguiram o agente das sombras. À sua frente levantavam-se duas figuras humanas, cobertas, em parte, por brilhantes super­fícies douradas que, ao refletir a luz do archote, pareciam dotadas de um halo próprio.

Ao compreender do que se tratava, respirou aliviado e, pouco a pouco, pé ante pé, foi aproximando-se delas.

Encostadas à parede — em face uma da outra — quais sentinelas, erguiam-se duas estátuas negras, de tamanho natural, com saiotes, peitorais, braceletes pelos braços e antebraços e sandálias de ouro. Cada uma portava uma maça na mão direita, enquanto com a esquerda seguravam báculos — cada qual o seu — também dourados. À cabeça, lenço tipicamente egípcio, perfeitamente ajus­tado até as sobrancelhas e chapado em ouro. À luz do archote aproximado, surgiram inconfundíveis as feições de Mut, o abutre guardião do antigo Egito. Sinuhe pressentiu que se encontrava na ante-sala de um túmulo. Mas de quem? Ele sabia que os arqueó­logos não tinham encontrado múmia alguma no interior da pirâ­mide de Queops. Ao menos nas câmaras e passadiços descobertos até hoje...

Uma emoção intensa se foi apoderando de todo o seu ser. Que nova surpresa lhe reservava o destino? Que se esconderia do outro lado daquele muro? Porque certamente aquelas sentinelas com cabeça de abutre tinham sido colocadas ali como gênios ou deuses protetores... Impunha-se um imediato e minucioso reco­nhecimento do pano de rocha situado entre as duas sentinelas de madeira; então o investigador, não podendo conter a ansiedade, levou a acha para junto da parede. Já no primeiro exame vislum­brou uma possível confirmação de suas suspeitas: aquela zona central do muro apresentava uma superfície diferente da do tosco calcário do resto da câmara.

— Parece gesso... — comentou em voz baixa.

E, erguendo a chama amarelenta descobriu que, com efeito, tinha diante de si uma porta taipada, engessada e... selada!

Em crescente excitação, aproximou rosto e archote do peque­no selo oval, impresso com perfeição em argila, e distinguiu na parte superior o clássico cão deitado e, a seus pés, os nove cativos inimigos do Egito.

— Não é possível! — exclamou dentro de uma grande con­fusão.

Voltou a inspecionar o selo e, ciente do que tinha diante dos olhos, deixou-se cair ali, junto ao muro, escoltado pelas hieráticas figuras de Mut e suas sombras ameaçadoras.

Aquele, se a memória não o traía, era o selo da Necrópole Real, situada no chamado Vale dos Reis. Como era possível, en­tão, que se encontrasse no interior da Grande Pirâmide? Ou será que, como já vinha suspeitando, aquele não era o túmulo do faraó Queops?

Sentado em meio à penumbra, dedicou algum tempo a refle­tir. Logo desistiu. Naquele lugar — fosse ou não a Grande Pirâ­mide — ocorreram fatos demasiado estranhos e fantásticos para que tentasse agora julgar a presença daquele selo real com um mínimo de rigor científico.

"Suponho que o mais prático" — concluiu — "seja deixar-me levar pelos acontecimentos..."

Para começar, o mais importante e primordial seria atravessar aquela porta taipada. Mas como consegui-lo? Não dispunha de ferramentas, muito menos as adequadas e, mesmo que as tivesse, a demolição do muro lhe tomaria tempo demais. Tinha de haver outro sistema...

Repassou cada uma das estátuas, cuidadosamente, com a re­mota esperança de localizar algum dispositivo secreto. Depois de múltiplas tentativas, infrutíferas, abandonou o propósito e passou a centralizar a atenção no recinto. Caminhou de baixo para cima. Palpou e inspecionou as paredes e o solo e, finalmente, à beira da rendição, voltou para a porta irritante. Embora lutasse por espan­tá-lo, um sentimento de angústia começava a invadi-lo. E se real­mente estivesse enterrado vivo?

Iluminou a placa de gesso, percorrendo-a desde o lintel até o chão. Foi em uma segunda inspeção dessa porta que, de repente, na sua extremidade inferior esquerda, descobriu um novo selo, menor que o anterior. Nervoso, colocou a tocha sobre o piso e, deitando-se em frente ao círculo de argila, pôs-se a decifrá-lo.

Com o coração nas mãos, foi traduzindo os pequenos e deli­cados hieróglifos:

"Aqui... em DUART, MUT vela o sono... do Senhor do Oeste, irmão e genro do..."

A leitura foi interrompida. Como se sopradas por uma cor­rente de ar, as chamas da tocha oscilaram. Sinuhe, sobressaltado, voltou a cabeça em direção às trevas que pesavam sobre a câmara. Entretanto tudo parecia tranqüilo. Atribuindo aquelas oscilações a algum movimento nervoso, ele recomeçou a leitura do selo real.

". .. irmão e genro do último depositário do Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar... Sua primeira adaga aponta para Dalamachia..."

— Dalamachia! — exclamou, sem dissimular a surpresa e a alegria. Aquele nome endiabrado, agora convertido no objetivo básico na busca dos homens "Pi", estimulou-lhe os ânimos, e ele atacou a tradução com renovados brios.

"... A segunda, para o traidor: Horemheb."

Fechou os olhos e verificou se havia sido capaz de memorizar o hieróglifo.

"Aqui, em DUART, MUT vela o sono do Senhor do Oeste, irmão e genro do último depositário do Grande Tesouro do Reino

em Meio ao Mar. Sua primeira adaga aponta para Dalamachia. A segunda, para o traidor: Horemheb."

Reabriu os olhos e releu o criptograma.

— Exato! — se disse, felicitando-se pela excelente memória.

Apanhou novamente o archote e, sentando-se a um par de metros da porta selada, preparou-se para esmiuçar tudo quanto havia lido no camuflado sigilo da Necrópole Real. Mas seu coração abalou-se pela segunda vez: as chamas amareladas do facho que ele segurava com as duas mãos foram sacudidas por outra rajada. Desta vez, porém, o "sopro" chegou-lhe frio e claro até as faces.

 

Seu primeiro impulso foi pôr-se em pé. Aquelas oscilações da tocha não podiam ser acidentais. Na câmara, com exceção do acesso ao túnel, não havia aberturas e nem resquício de alguma. Não que ele o tivesse detectado. E, na suposição de que tudo se devia a uma corrente de ar nascida ou provocada a partir do cor­redor, por que as chamas se teriam dobrado justamente para o seu rosto, como que empurradas da parede taipada? O normal, tra­tando-se de uma corrente e estando a boca do passadiço à direita e atrás de Sinuhe, seria que ela tivesse impulsionado a chama em qualquer direção, menos na que acabava de tomar.

Tais deduções se atropelavam, enquanto seus olhos, fixos na resinosa ponta da acha, observavam como as chamas, em segun­dos, recuperavam a verticalidade e, portanto, a normalidade. Seus pêlos, porém, continuavam eriçados. A sensação de que "alguém" lançara o poderoso sopro contra a tocha era inquestionável. E o medo o manteve ancorado ao rugoso solo da câmara. Que poderia fazer? Se "algo" ou "alguém" se encontrava ali, invisível em meio à penumbra, não restava senão esperar. Mas esperar.. . o quê?

Sem atrever-se a mover um só músculo, lançou olhares para cada uma das estátuas. "Nem uma das duas" — pensou, no seu afã de acalmar-se — "terá podido girar a cabeça de madeira e soprar..."

Era uma conclusão lógica. Se as figuras talhadas ficavam face a face, dificilmente poderiam ser as responsáveis pelo movimento da chama. Ou sim?

Depois, Sinuhe examinou os báculos e maças de ouro, mas não encontrou nada suspeito. As maças, formadas por cabos cilíndricos, rematados por esferas magistralmente lavradas, eram os únicos objetos — dada sua posição, à altura do nascimento das coxas das estátuas — que coincidiam com o nível da tocha. Mas repeliu a idéia de que tais maças fossem as causadoras das agita­ções da chama.

Os minutos se foram escoando em calma absoluta e, progres­sivamente, o espírito de Sinuhe recuperou também seu ritmo frio e habitual. Aquela trégua devolveu-lhe o interesse pela inscrição descoberta no ângulo inferior esquerdo do tabique que tinha à frente. Convencido de que os crípticos hieróglifos escondiam algu­ma informação decisiva para o bom desenlace de sua acidentada busca, enfronhou-se nas hipotéticas interpretações deles.

A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a palavra "Duart". O seu "outro EU", ao falar-lhe do espelho, fizera men­ção dela: ".. .Deste lado de "Duart" (o umbral de Dalamachia), a cólera, a ambição e a mentira" — recordava Sinuhe — "não têm acesso." Parecia claro, por conseguinte, que a expressão "aqui, em 'Duart'" devia significar que aquela câmara em que se achava — ou talvez o que se ocultava do outro lado da porta taipada — era precisamente "o umbral da ansiada Dalamachia". "Por outra parte" — prosseguiu meditando — "a palavra "Duart", na lingua­gem do antigo Egito, exprimia 'o além'. Como poderiam conju­gar-se, então, os dois conceitos? Seria Dalamachia considerada 'o além'?"

O galimatias se tornou mais intrincado quando ele analisou as palavras seguintes. Talvez a menos complicada fosse "Mut". O membro da Escola da Sabedoria associou logo o termo com as estátuas que montavam guarda junto à porta selada. Aqueles rostos com forma de abutre correspondiam exatamente à figura de Mut, uma das aves carniceiras mais abundantes no Egito (a gyps fulvus) e que, desde a mais remota antigüidade, havia cumprido o papel de "guardião". Estava claro, por conseguinte, que aquelas escul­turas em madeira preta, com olhos e bico de abutre, "velavam" ou guardavam o sono do Senhor do Oeste, "irmão e genro do últi­mo depositário do Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar".

Foi nessas frases onde, como digo, ele tropeçou com maiores dificuldades. A expressão "Senhor do Oeste" só podia fazer refe­rência — sempre segundo as crenças do antigo Egito — a um rei que, ao morrer, recuperava assim sua qualidade de deus; quer dizer, de "Senhor do Oeste".

Os pensamentos de Sinuhe retrocederam às velhas teorias sobre o faraó Quéops. Porém, havia outro dado que evidentemente deitava por terra essa possibilidade. Tratava-se da palavra "Ho­remheb". Este famoso general vivera em tempos dos não menos famosos faraós Amenofis IV (o singular rei "herege", também co­nhecido como Akhenaton), Tutankhamon e Ay. O "Senhor do Oeste" a que o hieróglifo fazia menção tinha de ser, fatalmente, um desses três reis. O qualificativo de "traidor", além do mais, vinha coincidir com a imensa maioria das hipóteses dos egiptólogos, que não hesitam em considerar Horemheb como um usurpador do trono do Egito. De acordo com o que estudara Sinuhe, o refe­rido general, após a morte do rei e "Pai Divino" Ay, último faraó da XVIII dinastia, havia assumido o poder absoluto do Egito, fundando a XIX dinastia.

Entretanto, a qual faraó poderia referir-se a inscrição? Que grande rei "dormia o sono da morte" do outro lado daquela parede?

Depois de não poucas voltas ao cérebro, o membro da Escola da Sabedoria chegou a uma conclusão provisória: dentre os três monarcas citados, apenas um podia ser "irmão e genro", ao mesmo tempo, daquele desconhecido "depositário do Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar". No momento, não quis vasculhar a na­tureza de tão intrigante tesouro... Fazia-se mister ir por partes. E Sinuhe, espanando seus estudos sobre Egiptologia, considerou que aquele "Senhor do Oeste" poderia ser Tutankhamon, filho, como seu antecessor no trono — Akhenaton — de Amenofis III e, conseqüentemente, irmão do "herege". Além do mais Tutan­khamon, o "rei adolescente", obedecendo os complexos costumes da época, contraíra matrimônio com a princesa Ankhsenamon, uma das seis filhas do seu irmão Akhenaton, casado, por sua vez, com a belíssima Nefertiti. Ay, por sua vez, estava descartado como protagonista de semelhante parentesco. Somente o faraó Tutankha­mon, segundo esses cálculos, estava duplamente vinculado — como irmão e genro — ao fascinante "rebelde" da teologia egíp­cia: Akhenaton.

Quereria isso dizer que o rei enterrado do outro lado da parede era Tutankhamon?

Parte do enigma parecia esvaziado: o faraó Akhenaton tinha de ser o "depositário do Grande Tesouro". Mas de que tesouro? E, sobretudo, que espécie de relação existiria entre esse Grande Tesouro e Tutankhamon?

As novas incógnitas acenderam mais ainda os ânimos já ex­citados do investigador. Era preciso encontrar um meio para atravessar aquela maldita porta taipada. ..

Quanto ao "Reino em Meio ao Mar", Sinuhe desistiu. Por mais que repassasse a história do velho Egito, não soube ou não pôde vislumbrar a que poderia referir-se.

Do que não havia dúvida era que, do outro lado, em algum lugar, dois punhais ou duas adagas pertencentes ao rei morto apon­tavam, uma para Dalamachia, a outra, para Horemheb, o traidor. Isso tudo significaria que a misteriosa Dalamachia já estaria ao alcance de suas mãos? E, que pensar de Horemheb? Esconderia aquela advertência novos perigos?

Releu a inscrição pela enésima vez, mas, desgraçadamente, aquela informação parecia referir-se apenas ao que, presumivel­mente, poderia encontrar além do tabique que lhe vedava a passa­gem. Quanto à receita para atravessá-la, nada...

No fundo, sua situação era mais penosa do que antes de des­cobrir o segundo selo real: adivinhava que estava muito perto de "algo" fascinante e decisivo e, no entanto, não via como passar para o outro lado.

 

"Tenho de encontrá-lo!"

Aborrecido e irritado consigo mesmo, continuava obcecado pelo segundo selo real. Até que, em um daqueles tensos olhares interrogativos lançados ao tabique, reparou melhor no oval de argila — o primeiro selo — colocado no centro geométrico da por­ta taipada.

A figura impressa na parte superior — o cão deitado, imagem do rei defunto após as mágicas transformações que devia sofrer antes do renascimento definitivo para a imortalidade — não lhe sugeriu nada. O que não aconteceu com os nove escravos gravados abaixo do cão. Achavam-se distribuídos em três fileiras de três, quatro e dois prisioneiros, respectivamente.

Mecanicamente, em uma sondagem mais, o membro da Or­dem da Sabedoria converteu cada um daqueles números nas letras correspondentes do alfabeto hebraico, de acordo com o rigoroso método prescrito pela Cabala. E aí começou uma curiosa série de descobertas.. .

Dessa forma, o 3 equivalia à letra sagrada "Gimel", que é o símbolo da "garganta". O 4 queria significar "Daletty", o "peito".

O último — o 2 — corresponde em hebreu à letra "Beth" ou "boca", como órgão da palavra humana.

— Curioso! — murmurou Sinuhe, perplexo —. Muito curioso! Do ponto de vista esotérico, aquelas três palavras — "boca", "garganta" e "peito" — estavam quase a gritar que talvez a emis­são de algum som ou "mantra" mágico — como já acontecera na cúspide da pirâmide — poderia franquear-lhe o caminho... Mas que palavra ou palavras comporiam essa chave?

O achado seguinte chegou naturalmente. Ao somar as três fileiras de cativos verificou que aparecia o não menos sagrado 9, Sinuhe, pondo-se em pé, sentiu o quanto estava perto da solução.

Seguindo o mesmo procedimento cabalístico, este número — o 9 — tinha seu equivalente na letra hebraica "Teth". "E qual é o seu significado oculto ou esotérico?", perguntou-se o investigador que, supostamente, conhecia a resposta:

— "Muralha ou parede oculta" — disse em voz alta, ao mesmo tempo em que, contente, batia no tabique com as palmas das mãos —, "erigida para abrigar um tesouro e zelar por um objeto querido.. . em meio a perigos." Jesus Cristo!, como não me dei conta disso muito antes?

Agora lhe vinha com mais clareza: alguma palavra de poder intenso e profundo, que brotasse do peito, garganta e boca de um ente humano, era o meio oculto para derrubar, abrir ou anular aquele obstáculo.

Esforçando-se por dominar a ansiedade, buscou então o se­gundo selo. Essa "chave", se existir, tinha de estar escondida nos hieróglifos que acabara de decifrar. Mas onde? Em que palavra ou frase?

Tendo revisto cada vocábulo, convenceu-se de que nenhuma daquelas expressões guardava relação com a cifra buscada.

— E se experimentasse com o total das palavras? — animou a si mesmo

Então, usando os dedos, encetou a conversão a números de cada uma das letras seguindo, para tanto, o método conhecido por "Gematria". Porém a soma final, ainda que "familiar" — 3 327 ou "6" — não lhe disse nada. . . no momento.

Em novo assalto à "mensagem", inclinou-se para soletrar cada sílaba, fazendo a soma delas. Aí, surgiu o inesperado...

— "A-qui, em DUART, MUT ve-la o so-no do Se-nhor do O-es-te, ir-mão e gen-ro do úl-ti-mo de-po-si-tá-rio do Gran-de Te-sou-ro do Rei-no em Meio ao Mar. Sua pri-mei-ra a-da-ga

a-pon-ta pa-ra Da-la-ma-chia. A se-gun-da, pa-ra o trai-dor: Ho-rem-heb." Setenta e duas sílabas? — perguntou-se, incrédulo.

Contou de novo e viu que estava certo: 72!

Mentalmente, não se atrevendo a pronunciá-lo, ressuscitou na memória o "Nome Inefável e Temível" — soma das 72 sílabas sagradas — que, segundo a mais arcana das tradições hebraicas, fora utilizado por Moisés para separar as águas do Mar Vermelho: "SHEM HAMEFORASH".

Esse nome, assim como o integrado pelo Tetragrama YOD-HE-VAV-HE, uma das designações da Divindade, e de que se derivou uma grosseira tradução fonética (Yaveh, ou Jeová), goza de misterioso e mítico poder, conhecido somente pelos completa­mente iniciados.

Agora estava claro para ele. Se quisesse acesso para o "outro lado" — sem dúvida uma câmara funerária — teria de pronunciar o "nome" que as 72 sílabas sintetizavam — "SHEM HAMEFO­RASH" — ao qual só se poderia chegar com a interpretação cabalística e complementar dos dois sigilos reais.

"Toda uma complexa mas eficaz medida de segurança para preservar o 'tesouro' que, indubitavelmente, esconde-se detrás desse muro", deduziu Sinuhe, convencido de que se achava a um passo da Verdade que tanto anelaram, ele e a companheira desa­parecida.

E, depois de minuciosa revisão dos cálculos, postou-se em frente ao selo ovalado, decidido a pronunciar o "Nome Inefável e Temível" com todo o respeito e solenidade de que era capaz. . .

 

Inspirou profundamente, enchendo ao máximo os pulmões. Aquele "nome" — "SHEM HAMEFORASH" — devia nascer-lhe no mais profundo do peito e, tal como lhe haviam ensinado os Kheri Hebs de sua Ordem secreta, brotar por garganta e boca, sublimado em forma de sucessivas "mantras" ou sons mágicos. Só assim faria efeito. Entretanto o "soror" não pôde articular uma sílaba sequer. O archote começara a oscilar-lhe na mão direita, contagiado pelo tremor do pulso.

Sinuhe desistiu. Compreendeu que primeiro teria de domi­nar os nervos; então sentou-se em frente ao tabique, depositou a tocha no solo, entre si e a porta engessada. Cruzou as pernas, ado­tando uma das clássicas posturas da ioga e fechou os olhos. Depois

de longa e ritmada série de inspirações, quando achou que seu ritmo cerebral havia descido abaixo dos catorze ciclos por segundo, emitindo assim as benéficas ondas "alfa", preparou-se para voca­lizar o "Nome Inefável e Temível". Antes porém, como medida preventiva ante os possíveis perigos que lhe poderiam sobrevir na­quela aventura, "fabricou", mentalmente, uma bolha transparente e blindada que o rodeasse. Dessa forma, com o espírito reconfortado e protegido no interior da sua própria criação mental, Sinuhe — com voz grave — encheu a câmara silenciosa com potentes e rotundos "mantras". . .

— SHEM. . . HAM. .. E.. . FO. . . RASH!...

O eco das palavras bateu nas quatro paredes enchendo o lugar e o coração do investigador de presságios ameaçadores. Quando o eco se extinguiu ele, expectante, abriu os olhos, aguar­dando que o muro pudesse vir abaixo. Mas nada aconteceu... pelo menos naqueles primeiros momentos.

Consumido pela impaciência, chegou a pensar que sua ento­nação não tivesse sido correta ou, pior ainda, que aquele não era o "nome chave". Entretanto, não teve tempo para continuar com suas lucubrações. Bruscamente, um terceiro e sibilante sopro inci­diu sobre a acha, apagando as chamas.

Apesar de saber-se defendido pela "bolha mental", o sopro súbito e as densas trevas que se precipitaram no recinto o atemo­rizaram. Que fazer agora? Devia levantar-se e dirigir-se para a porta taipada? Mas como agir em meio àquela escuridão?

Obedecendo ao instinto preferiu esperar. Mas sua angustiosa espera não foi longa. De repente, bem perto, de algum ponto que ele acreditou ser próximo ao tabique lacrado, vieram alguns ruí­dos. Forçou a vista mas as trevas eram espessas demais. Os ou­vidos, em compensação, afiados pelo medo, continuaram regis­trando aquela série de sons, cada vez mais nítidos e próximos.

— Sim, parecem passos. ..

E um suor frio, incontido e perturbador banhou-lhe as mãos e o rosto.

Efetivamente, pareciam passos. Sinuhe virou a cabeça em todas as direções, mas "aquilo" — o que quer que fosse — não chegava nunca até ele. Trêmulo, aguçou ao máximo os ouvidos, e descobriu que, na realidade, os passos correspondiam não a um ente, mas a vários. Desconcertado, sentiu que davam voltas ao seu redor, a coisa de um ou dois metros. Justamente no local em

que se levantava a parede de sua "bolha". Seria possível que aque­les seres — homens ou bestas — estivessem rodeando a "esfera mental"?

E, com que intenção?

A resposta chegou fulminante: subitamente os passos cessa­ram e o investigador não pôde evitar que seus cabelos se eriçassem de terror. A julgar pelos sinistros arranhões e estalidos que vi­nham da parede de sua "bolha", dentes, garras ou seja lá o que for, aquelas criaturas tentavam rasgar-lhe a "blindagem" mental. Ficava óbvio, portanto, que pretendiam capturá-lo. . . ou matá-lo.

Em um último esforço fechou os olhos e, concentrando-se, "fabricou" no interior da primitiva esfera uma segunda "bolha". Desta vez, ainda reforçou a parede da nova "blindagem" com seus mais queridos e belos sonhos: seu amor pelo mar, seus filhos, Nietihw, sua recente paixão por Jesus de Nazaré e, sobretudo, com o sonho mais difícil: a busca da Verdade. . .

Súbito estalo obrigou-o a abrir os olhos. Aquelas criaturas tinham conseguido perfurar a primeira "bolha" e, quando o fize­ram, a "esfera mental" saltou pelos ares, iluminando a câmara com um resplendor azul, tão intenso quanto fugaz.

Sinuhe, espantado, ainda teve tempo para distinguir vários dos seres. Sua primeira impressão foi a de estar rodeado de ma­cacos ou gorilas. Mas, imediatamente, quando as trevas voltaram a invadir o recinto, lembrou-se de haver visto umas grenhas com­pridas que caíam pelos ombros dos seus atacantes e que, por conseguinte, não poderiam corresponder a símio algum. Então, quem seriam? E outra idéia lhe veio à mente. Não tivera tempo Seriam nove? "Nesse caso" — pensou — "poderia tratar-se dos nove cativos que ele vira no selo real?" E, embora o aspecto das misteriosas criaturas — cobertos apenas por uma tanga — fosse muito semelhante ao que ele observara nas nove figurinhas grava­das na argila, rechaçou, por absurda, tal possibilidade.

Em parte, o fato de desprezar aquela hipótese foi motivado, não apenas pelo ridículo da suposição, mas, muito especialmente por terem eles voltado à carga, atacando a nova e inesperada "blindagem" mental com fúria inenarrável.

Desarmado, Sinuhe assistiu então a uma chuva de dentadas e unhadas, vindas de todos os ângulos e com tal violência e selvageria, que tremeu até seu último átomo.

E, convencido de que seus "sonhos" não poderiam resistir àquele segundo e bestial embate, fechou os olhos disposto a assu­mir o que lhe parecia ser o fim...

 

Naqueles últimos segundos, cansado e derrotado, o membro da Escola da Sabedoria viu desfilar-lhe pela mente os principais momentos de tão insólita aventura. O peso de uma tristeza infinita baixou-lhe a cabeça. Ao menos no que lhe tangia a missão fracas­sara. Já não seria possível chegar até aos arquivos secretos de IURANCHA e revelar ao mundo a Verdade sobre a rebelião de Lúcifer e suas conseqüências. . .

Nesses instantes críticos, enquanto as coléricas criaturas es­murravam — com violência cada vez maior — a parede da sua última proteção, Sinuhe quisera ter chorado. Mas o coração, res­sequido, não correspondeu.

De repente, quando tudo parecia irremediavelmente perdido, os barulhos pararam. E um silêncio absoluto voltou a descer na câmara escura. Que teria acontecido?

Sinuhe levantou o rosto, sentindo que sua segunda "bolha" continuava ali, intacta e hermética. Ato contínuo, percebeu que as criaturas se afastavam precipitadamente, e o ruído de seus pas­sos se foi perdendo até uma distância que, apesar das reduzidas dimensões da sala, ele não conseguiu avaliar. E, com o coração a ponto de estourar, pensou distinguir em meio às trevas um ponto luminoso e distante. A julgar pela posição do "soror", achava-se justamente na direção que ocupava — ou que devia ocupar — o muro selado...

Mas por que parecia tão distante? A resposta não tardaria.

A princípio lentamente, depois com aceleração crescente, aquele "ponto" de luz se foi aproximando do perplexo Sinuhe. E foi então, ao deslocar-se a velocidade maior, que ele percebeu que não se tratava de um único foco luminoso. Eram dois! E o inves­tigador, de novo sobressaltado, descobriu que eram olhos de perfil felino, dos quais manavam feixes de luz âmbar.

Como que empurrado por alguma mola, se pôs em pé. Os olhos, ao chegarem junto à "bolha", estacaram. Piscaram e, num instante, fundiram-se, convertendo-se no símbolo do infinito. E aquele signo ( ), sem perder a vivíssima e amarelada luminosidade, começou a elevar-se, seguindo a curvatura da "esfera mental". Uma vez sobre a vertical de Sinuhe, a hélice enigmática girou sobre si mesma, transformando-se em um disco irradiante. E dela partiram milhares de finíssimos raios também ambarinos que, ao contato com a "esfera dos sonhos", derramaram-se por sua superfície, em forma de ouro líquido.

O que depois aconteceu resulta pouco menos que impossível de descrever: em meio a um banho de luz dourada, a "bolha" se desintegrou silente e, vagarosamente, diáfanas e majestosas, suas partículas — convertidas agora em milhares, talvez milhões de "sonhos" diminutos — vieram pousar, uma a uma, sobre o corpo de Sinuhe. Maravilhado, conforme os via cobrirem-lhe pele, ca­belos e roupas, foi identificando muitas das ilusões que tivera ao longo de sua vida. Ali, como rutilantes e minúsculas estrelas dou­radas, apareceram os mais entranhados e longínquos "sonhos" da meninice, da juventude e também os últimos e cada vez mais raros de sua maturidade.

Inexplicavelmente, nem uma só daquelas ilusões perdera a pureza da primitiva ingenuidade, nem o dourado brilho da beleza.

Levantou então os olhos para o símbolo do infinito mas, por muito que buscasse, a "hélice" desaparecera. E ali ficou, embru­lhado no mais surpreendente "traje" que jamais pudera imaginar: uma espécie de macacão de astronauta, flexível, leve como ca­da uma das ilusões que o compunham e brilhante, despedindo milhares de raios que tornavam perfeitamente visível o campo ao seu redor...

Sem poder crê-lo, palpou suas novas "roupas", sentindo que as estrelinhas que se entrelaçavam sobre o coração eram precisa­mente os seus "sonhos" e "ilusões" mais queridos: os que se ha­viam forjado na infância...

E com o espírito repleto de alegria, dirigiu o olhar para a porta taipada...

 

Alumiado pelo resplendor dourado que emitiam as milhares de milimétricas estrelas ou "ilusões" engastadas entre si e que lhe cobriam o corpo dos pés à cabeça, deu um passo em direção ao muro sobre o qual havia lançado o "Nome Inefável e Temível". Mas quando sua própria luz alcançou as hieráticas e negras repre­sentações de Mut, deteve-se. O tabique volatilizara-se! Nada mais havia no lugar. O gesso e os tijolos de adobe que taipavam a porta eram agora uma tênue obscuridade, umbral de outro recinto, em cujas profundidades ele creu distinguir confusos e esfumados bri­lhos avermelhados.

"Essa tem de ser a câmara funerária", pensou inquieto. Que novos perigos e enigmas o aguardavam do outro lado da porta que se lhe abria?

Antes de dar o passo decisivo, outro fato lhe chamou a aten­ção. A seus pés achavam-se os restos do primeiro selo real. E, junto ao oval de argila, várias cordas de esparto, revoltas e como que abandonadas às pressas. Estranhando abaixou-se e, tomando o selo entre as mãos, observou que as inscrições que decifrara —. o cão deitado e os nove cativos, símbolo dos grandes inimigos do Egito — tinham-se apagado. Acariciou a superfície do cartucho real e descobriu que as referidas gravações, contrariamente ao que havia suposto em um primeiro momento, não pareciam limadas ou apagadas. Simplesmente, como ocorrera com os escombros da porta taipada, haviam-se esfumado. . .

Aquilo e mais as cordas que achou, deixaram o investigador sumamente intrigado. E ao contar os enegrecidos cordéis, o pres­sentimento que já o rondara quando se encontrava encerrado na "bolha" mental, ressuscitou qual furacão: será que os prisioneiros que apareciam manietados com as mãos às costas recuperaram a vida? Que outra explicação poderiam ter entáo aquelas nove — justamente nove — cordas que havia encontrado junto ao selo real, agora "vazio"?

"Se esta fantástica idéia se confirma" — meditou, cravando o olhar na penumbra escarlate da câmara que o aguardava — "é quase certo que as bestas que destruíram a primeira "esfera" te­nham fugido nessa direção..."

Um calafrio percorreu-lhe a espinha. A hipótese inquietante podia significar novo confronto com os cativos. . . supondo-se que tivessem fugido para aquela sala.

Por breves instantes hesitou. Que fazer com as cordas e o oval de barro? Deixá-los ali e enveredar definitivamente pela câ­mara que se abria para ele, ou os levaria consigo?

Uma vez mais deixou-se arrastar pela intuição e, separando delicadamente as "estrelas" que cobriam um de seus bolsos, guar­dou o selo real. No mesmo instante aquelas "ilusões" — como se tivessem vida própria — recuperaram sua posição primitiva, tampando a cavidade deixada pela mão de Sinuhe. Quanto às nove cordas, preferiu amarrá-las em torno do punho esquerdo. Por úl­timo, depois de inspirar profundamente, atravessou o umbral com passos decididos...

 

Ao entrar naquela sala vazia, Sinuhe compreendeu por que os olhos felinos e luminosos que avistara do interior da sua "bo­lha" mental pareceram-lhe tão distantes. Nessa primeira observa­ção, imóvel e emocionado depois de cruzar a porta, calculou que se encontrava em uma câmara de uns cinco metros por sete, por outros três de altura, aproximadamente. O silêncio, se é possível, mais profundo, quase sagrado. E entendeu, igualmente, o porque da penumbra escarlate que entrevira do outro lado: os muros que se erguiam à direita e à esquerda — isto é, os menores — os­tentavam uma série de curiosos "archotes", embutidos obliqua-mente e a coisa de metro e meio do solo. O excitado membro da Escola da Sabedoria não tardaria a descobrir que aquelas tochas, na realidade, não eram tochas... Mas não nos adiantemos aos acontecimentos.

Desde o primeiro instante, só teve olhos para um enorme vulto que se erguia no centro geométrico do que ele considerava uma câmara sepulcral. Uma tumba que, de acordo com as inscri­ções do segundo selo real, talvez guardasse os restos do faraó Tutankhamon, falecido por volta de janeiro de 1 343 antes de Cristo. Entretanto seu bom senso — apesar de tudo o que vivera até ali — continuava rebelando-se contra hipótese tão absurda. O mundo inteiro assistira em novembro de 1 922 ao formidável achado no Vale dos Reis da entrada na tumba subterrânea do mencionado rei. H. Carter, o descobridor, após laboriosa escavação, abrira o sarcófago de Tutankhamon em 1 923. E a múmia do faraó, exa­minada e reconhecida por um sem-fim de peritos... Como enten­der então que ele pudesse encontrar-se naqueles momentos críticos na câmara funerária do irmão e genro de Amenofis IV?

"Sem dúvida" — meditou ao passo que se aproximava do vulto enigmático — "estou enganado. Esta não pode ser a sepul­tura de Tutankhamon. Além do mais, quando Howard Carter, lorde Carnavon e o resto dos arqueólogos penetraram finalmente na verdadeira câmara mortuária do faraó, primeiramente, antes de chegar ao sarcófago, tiveram de ir desmontando as quatro capelas sagradas que, encaixadas uma dentro da outra, cobriam-no e pro­tegiam-no. E aqui, evidentemente, não vejo tais capelas..."

Mas essas deduções racionais se embaçaram sob outra reali­dade não menos evidente: os hieróglifos do selo em que se fazia clara menção ao "sono de Tutankhamon".. .

Agindo com sua típica prudência, Sinuhe preferiu rodear aquela massa meio iluminada pelos estranhos "archotes". Com passos lentos, pendente do menor ruído ou movimento suspeito, deu-lhe uma volta completa, sem chegar perto. Ajudado pelo resplendor dourado que seu próprio "traje" emitia, identificou o vulto com uma espécie de bloco — pétreo talvez — de uns três metros de comprimento por metro e meio de altura e largura. Na parte de trás havia uns altos-relevos que Sinuhe, dada a prudente distância, não distinguiu com clareza.

Durante minutos deixou-se ficar em frente a ele, refletindo. Sentiu-se tentado a abordá-lo. Mas antes de aventurar-se quis certificar-se da natureza e características de quanto o cercava. E começou pelos singulares "archotes". Desde que penetrara na câ­mara outro fato desconcertante lhe chamara a atenção: embora fosse verdade que alumiassem com um frouxo brilho avermelhado, aquelas "tochas", porém, não ardiam. Pelo menos, não se consu­miam como habitualmente acontece com uma acha. Sinuhe não visualizou chamas. E no entanto irradiavam aquela luz escarlate, suficiente para romper, embora precariamente, as trevas do lugar.

Com muita curiosidade, dirigiu-se aos archotes que se alinha­vam na parede à esquerda da porta de entrada e, ao chegar até eles, não pôde reprimir sua admiração. Solidamente cravados e obliquamente ao muro, erguiam-se cinco remos ocos e transparen­tes, de metro e meio e — à primeira vista — idênticos. Mais ou menos até a metade, cada remo alargava-se em forma de pá. No interior destas últimas foi que observou "algo" que lhe lembrou a água. Mas uma "água" em ebulição, irradiando aquela luminosi­dade avermelhada. O resto do remo, porém, parecia vazio.

Maravilhado, foi examinando um a um. A seguir caminhou para a parede oposta, verificando que ali eram quatro os archotes de cristal. No total, portanto, havia nove remos a semi-iluminar a câmara. E o membro da Loja secreta se recordou, perturbado, de que no túmulo de Tutankhamon também foram descobertos outros tantos remos mágicos, depositados no solo da cripta "para levar a barca do rei através das águas do Mundo Inferior", tal como rezava o Livro dos Mortos do antigo Egito. Entretanto, aqueles que Carter achou eram muito mais prosaicos que estes. Não passavam de toscas pás de madeira...

Uma torrente de perguntas assaltou o investigador: quem teria fabricado semelhantes "tochas" de cristal? Que continham elas? Sua única missão seria alumiar — debilmente — o recinto?

Ao inspecionar aquela parede descobriu também no lugar que poderia ter sido ocupado por um décimo remo, um quadrado inexplicável pintado de branco e com pouco mais de um metro de lado. Ao tocá-lo as pequenas "estrelas" douradas que lhe re­vestiam os dedos cobriram-se de gesso.

— Assombroso!

Justificava-se a perplexidade do investigador. Aquela camada estava úmida como se tivessem acabado de aplicá-la... As demais partes dos muros, no entanto, embora igualmente recobertas com gesso e pintadas de amarelo, estavam secas. Aquele tom dourado que, em certa medida, suavizava a dureza do lugar, assim como as pinturas que Sinuhe foi descobrindo nas paredes mais compri­das, confirmavam suas suspeitas iniciais: aquela tinha de ser uma câmara funerária. Em todos os túmulos de Tebas esse tipo de pintura amarela nas paredes simbolizava o pôr do deus-sol sob as montanhas do Oeste. Daí, precisamente, derivava-se a denomi­nação aplicada a essa classe de câmaras. "A Casa de Ouro, onde o Uno descansa."

Os temas, além do mais, estavam desenvolvidos nas pinturas que adornavam as paredes de sete metros. Tinham todos eles ca­ráter funerário e religioso.

Dois dos murais, sobretudo, causaram impacto especial em Sinuhe. Estavam desenhados na parede oposta à da porta e à base de cores vivíssimas vermelhas, pretas, brancas e amarelas. Em um deles via-se a cena do traslado do cadáver do suposto "inquilino" da cripta. O rei era conduzido sobre andas ou caixões aos ombros dos cortesãos, todos eles usando os típicos saiotes egípcios e, sobre as perucas e cabeças raspadas, as respectivas vendas brancas em sinal de luto. A múmia aparecia sobre uma padiola em forma de leão instalada no interior de uma capela montada, por sua vez, sobre uma barca e esta, por último, descansando nas referidas andas.

A segunda pintura, na opinião do investigador, reportava-se a outra cerimônia muito particular no antigo Egito: a chamada "abertura da boca" do defunto. Na realidade, os egiptólogos ja­mais chegaram a um acordo sobre o significado desse ritual. Na pintura se podia ver um personagem de grande relevância mani­pulando uma estranha "alavanca" com a qual, aparentemente, devia abrir a boca do morto. E entre os dois, colocados sobre uma mesa, vários objetos necessários nesse cerimonial: um dedo hu­mano, o quarto traseiro de um boi, um leque com uma única pluma de avestruz e outro objeto desconhecido em forma de duplo penacho. Acima deles, via-se uma fila de cinco taças de ouro e prata.

E de repente, enquanto inspecionava aquele mural, Sinuhe viu-se assaltado por inequívoca e aguda sensação: "alguém" pare­cia observá-lo às suas costas. . .

Não era a primeira vez que experimentava aquela sensação tão clara. Um frio polar percorreu-lhe a espinha dorsal e o medo do desconhecido, uma vez mais, deixou-o tenso.

Na tentativa de surpreender o hipotético observador, girou velozmente em direção ao centro da câmara. Seus olhos esquadri­nharam a penumbra avermelhada e, submerso naquele silêncio que o abrumava, buscou o "intruso". Ninguém. Ali, tão-somente o negro túmulo rompia, a duras penas, a solidão da cripta.

"E se se tivesse escondido atrás do bloco de pedra?"

Tal idéia veio desassossegar-lhe ainda mais o quebrantado ânimo. Com o coração na mão, começou a rodear o que ele já imaginava ser um sarcófago.

Em guarda, punhos cerrados, mantendo-se sempre a uns três metros do monumento enigmático, foi caminhando ao seu redor. Mas aquela exploração redundaria também estéril. No momento era ele o único visitante da câmara sinistra. . . Uma vez mais, Sinuhe se enganava.

Nesses instantes, com o pulso mais refeito, observando os costados do catafalco, ficou fascinado pelos altos-relevos que adornavam as quatro quinas. Tratava-se das deusas Isis, Neftis, Neith e Selkit, dispostas de forma tal, que asas e braços estendidos rodeavam totalmente as paredes do túmulo em simbólico abraço protetor.

Já não havia dúvida: aquele bloco de pedra tinha de esconder os restos, senão a múmia, de um faraó. Possivelmente, como anunciava a inscrição do selo real, a do faraó Tutankhamon. Animado por esses pensamentos tão excitantes, o membro da Escola da Sa­bedoria tomou a decisão de tentar abrir o sarcófago. Mas como consegui-lo? A enorme lousa que o cobria devia pesar mais de uma tonelada...

"Tem de haver um jeito...", refletiu, animando-se e dirigin­do-se ao centro do gigantesco bloco. Mas, ao chegar a um metro do túmulo, "alguma coisa" inesperada cortou-lhe a passagem e o arrojou ao solo.

— Oh, Deus!...

Aturdido, viu-se arrojado ao solo rochoso com a mesma ve­locidade com que se havia levantado. Examinou sua proteção de "sonhos" e, após verificar que não sofrerá dano algum, repetiu a aproximação, sem poder crer no que acabava de experimentar. Entretanto quando seu corpo chegou de novo a um passo do sarcófago uma espécie de furacão — silencioso e com ímpeto — surgiu pela segunda vez de algum ponto do bloco, tornando-lhe impraticável o avanço e lançando-o novamente por terra.

Dessa vez, perplexo, não se levantou tão rapidamente. Era evidente que uma "muralha" invisível protegia a última morada daquele rei, E, tentando inteirar-se, deu uns passos ao redor do túmulo.

"Talvez experimentando pelo outro lado..." Mas a terceira tentativa foi tão catastrófica quanto as prece­dentes. E c atribulado "iuranchiano" rolou pelo solo. Apesar disso, não se rendeu. Pondo-se em pé tratou de abordá-lo pelas duas paredes restantes. A cada vez, entretanto, o vento reapareceu pontual e implacável, empurrando-o como a um boneco.

— Santo Deus! — lamentou-se desmoralizado —. É inabordável!

Seu cérebro e, pior ainda, sua vontade apagaram-se. Sozinho, sem armas, perturbado e sem saber como vencer a nova dificul­dade, sentiu-se à beira da rendição. Porém naquele "Sinuhe" — o que surgira do espelho — havia, sobretudo, uma tenacidade in­destrutível. Passados os primeiros momentos de confusão, uma serena coragem o impulsionou pela enésima vez na direção do misterioso túmulo.

"O dispositivo para anular esse furacão, supondo-se que ele exista, deve estar em outro lugar... Mas onde?"

Engatinhando, aproximou-se da zona limítrofe do vendaval invisível. Esforçando-se por não ser novamente arremessado, foi rodeando o sarcófago na esperança de encontrar em suas paredes alguma possível solução para neutralizar a "muralha" protetora. No entanto, com exceção das quatro deusas aladas, os demais costados — finamente trabalhados em maciço bloco de quartzito amarelo — não ofereciam quaisquer inscrições ou sinais.

De cócoras diante do sarcófago deduziu finalmente que sua busca deveria orientar-se em outra direção. Mas, quando se pre­parava para explorar a câmara pela segunda vez, uma agitada respiração rompeu o silêncio...

 

Em fração de segundos, os pensamentos de Sinuhe despen­caram. J Incapaz de mover-se afiou os ouvidos na esperança de que aquela respiração fosse só um engano ou talvez um perverso jogo do seu atormentado subconsciente. Mas não. Rítmica, intensa e clara tornou a soar às suas costas; e ele estremeceu.

Alguém estava muito perto. Podia quase sentir-lhe o alento compassado, o ruído rouco e gutural. E lentamente foi voltando-se. Aquela sensação que experimentara enquanto examinava as pin­turas funerárias — sensação inconfundível que delatava a presença de um observador — parecia a ponto de confirmar-se.

Em meio à penumbra escarlate, levemente iluminados tam­bém pelo resplendor dourado do seu "traje", apareceram ante Sinuhe aqueles olhos felinos de cor âmbar que já tivera ocasião de contemplar quando se achava no interior da "bolha".

O susto foi inevitável. Em movimento reflexo inclinou o corpo para trás, caindo em cheio no raio de ação do vento. O furacão, automaticamente, jogou-o para longe do túmulo e ele foi cair debaixo dos olhos do suposto inimigo.

Machucado, levantou a cabeça, verificando, horrorizado, que aquela criatura se achava a um palmo de seu rosto. Estendido e dominado pelo medo, só teve forças para contemplar umas del­gadas patas pretas terminadas em pezunhos armados com cinco ameaçadoras e curvadas unhas de prata.

Seu primeiro pensamento, pouco tranqüilizador, foi que es­tivesse aos pés de um animal.. . Um felino, talvez. . . Mas com garras de prata?

Pouco a pouco foi percorrendo o resto daquele corpo. Ao descobrir a cabeça, reconheceu um focinho longo e afilado e mais as orelhas, enormes, eretas e pontiagudas. E no centro do crânio escuro aqueles olhos de âmbar rasgados e penetrantes como es­padas.

"Não, não se trata de um felino" — considerou atropelada-mente — "Parece um chacal".

Os olhos do animal, como se tivessem captado a angustiosa dedução, cintilaram à luz dos milhares de estrelas que cobriam Sinuhe. E o investigador se deu conta de que aquelas pupilas ti­nham qualquer coisa de estranho. Pareciam artificiais e com incrustações de ouro, calcita e obsidiana. Também o corpo — mais parecido ao de um galgo que ao de um chacal — denotava qualquer coisa fora do normal. A pele, negra e lustrosa, parecia pintada...

Obedecendo a um impulso, confiado na aparente docilidade, estendeu a mão trêmula, até tocar numa das patas dianteiras. O chacal não se moveu, mas a respiração se tornou mais rápida e soturna, e Sinuhe, perplexo, acabou por confirmar o que já sus­peitava: aquela criatura era de madeira!

Foi tal o seu desconcerto, que só conseguiu fechar os olhos e esperar que ao abri-los de novo aquela impossibilidade tivesse desaparecido. Mas, ao fazê-lo, ali estava o animal petrificado.

Sinuhe compreendeu que se fosse esse seu propósito, o chacal já o teria atacado. Que pretenderia então? Por que estaria ali? Antes que tivesse a oportunidade de propor-se novas interroga­ções, o afilado focinho se abriu, deixando a descoberto duas fileiras de dentes ocos e transparentes que irradiavam uma luz escarlate idêntica à dos remos de cristal.

Na câmara então ecoou uma voz que lhe recordou a de um jovem.

— Eu sou Anúbis — falou o chacal —, primeira transfor­mação do grande rei que dorme e descansa neste túmulo.

O investigador se pôs em pé e, boquiaberto, contemplou o surpreendente galgo-chacal. Não havia dúvida: aquelas palavras vieram de sua boca... Temeroso, rodeou o animal, verificando que, efetivamente, tratava-se de belo exemplar, de um metro de altura, cauda longa, reta, caída e peluda, em forma de cabo.

— Surpreendente! — exclamou, lembrando-se da efígie des­se mesmo chacal sagrado que tivera oportunidade de ver esculpido no friso superior da parede norte do túmulo de Baqt. Simulta­neamente veio-lhe à memória o ancestral costume egípcio de venerar Anúbis como uma das deidades protetoras dos mortos. Em quase todas as sepulturas do antigo Egito — inclusive a do faraó Tutankhamon — aparece montando guarda muito perto do defunto. Seu papel, como "abridor dos Caminhos" e "se­nhor do cofre e da mumificação", era relevante. Em realidade, assumia a primeira das mutações que o morto devia sofrer em seu caminho para "Duart": "o além".

Sinuhe, postando-se frente ao chacal, atreveu-se enfim a perguntar:

— Quem é o grande rei de quem falas?

Anúbis dirigiu seu olhar amarelado em direção ao túmulo, respondendo logo:

— Foi conhecido em vida como Tutankhamon, irmão e gen­ro do último depositário do Grande Tesouro...

— O Grande Tesouro! — murmurou Sinuhe, lembrando-se da inscrição do segundo selo real. Sem esconder sua curiosidade, interrogou o chacal sobre a natureza e o paradeiro dele.

— O Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar encontra-se em poder dos homens "Pi". Eu, primeira mutação de Tutan­khamon, tive o grande privilégio de contemplá-lo e conhecê-lo... mas agora és tu que deves descobrir-lhe o paradeiro. Eu sou ape­nas o guardião da porta que pode levar-te até ele.

— Então é verdade que estou mais próximo que nunca. .. O chacal moveu a cabeça afirmativamente. E acrescentou:

— Vossa missão está chegando ao fim. Os arquivos secretos de IURANCHA ser-te-ão abertos... sempre e quando saibas ven­cer Horemheb, o traidor.

O investigador esteve a ponto de perguntar-lhe sobre o ge­neral mencionado. Mas outra questão, mais premente, começara a inquietá-lo...

— Dize-me, Anúbis: esse Grande Tesouro tem alguma coisa que ver com os arquivos secretos que buscamos?

O chacal não respondeu. Sinuhe tampouco insistiu. Em rea­lidade, o silêncio fora eloqüente. . .

E apontando para o grande sarcófago de pedra o membro da Escola da Sabedoria formulou outra pergunta:

— Sei que para cruzar essa porta (a que deve levar-me a Dalamachia e aos homens "Pi"), é preciso antes que seja aberto este túmulo. Podes ajudar-me?

E Anúbis, em resposta, deu meia-volta, mergulhando na penumbra sepulcral da câmara.

 

As palavras do chacal sagrado confirmaram as suspeitas de Sinuhe, abrindo-lhe o coração para a esperança. Se ali no túmulo repousavam os restos mortais de Tutankhamon, o hieróglifo gra­vado no segundo selo começava a fazer sentido. O membro da Loja secreta sabia que Howard Carter, ao explorar a múmia do 'Irmão e genro" de Amenofis IV (o grande Akhenaton), encon­trara dois preciosos punhais entre as complexas vendas de Tutan­khamon. Uma daquelas adagas era de ouro e a segunda de ferro. Isso, como digo, coincidia com a última parte do enigma: ".. . Sua primeira adaga aponta para Dalamachia. A segunda, para o trai­dor: Horemheb."

Pois bem, supondo-se que Anúbis o ajudasse a abrir o catafalco e que, de fato, ali repousasse a múmia do referido faraó, como poderia ele distinguir uma adaga da outra? Qual delas apon­taria para o traidor? A de ferro, talvez?

Veio-lhe à mente também que naquela época — pelos anos 1 300 antes de Cristo — o ferro era um metal praticamente des­conhecido no antigo Egito e que, por conseguinte, seu valor poderia ser muito superior ao do ouro. Teria tal circunstância alguma coisa que ver com o duplo dilema? Pela lógica, só a abertura do sarcófago real lançaria luz sobre aquelas questões tão obscuras c problemáticas.. .

Da mesma forma como o havia visto esfumar-se na penum­bra em direção à parede em que ardiam os quatro remos mágicos, assim surgiu Anúbis dentre as sombras. Por mais que vasculhasse os recantos daquele lado da câmara, Sinuhe não conseguiu vislum­brar a silhueta do galgo-chacal e muito menos o ponto ou o meio de que se valera para desaparecer tão misteriosamente.

O caso é que ali estava ele de novo, com seu grácil e lustroso corpo molhado pela aura dourada que fluía dos milhares de "so­nhos" e 'ilusões" que cobriam Sinuhe. O chacal trazia alguma coisa entre os dentes e, levantando a cabeça em direção ao "iuranchiano", deu-lhe a entender que a devia pegar. O investigador entendeu na hora. Examinando a "coisa", concluiu que se tratava de um estojo de escriba, como aqueles que se utilizavam nos re­motos tempos faraônicos: uma "paleta" ou estreita caixa retangular de uns trinta centímetros de comprimento, toda ela de marfim. Em um dos seus extremos apareciam seis pequenos orifí­cios, contendo outros tantos panos coloridos: branco, amarelo, vermelho, verde, azul e preto. No centro a paleta tinha uma aber­tura retangular pela qual fora introduzida uma dúzia de finíssimos juncos castanhos do mar. Eram os calamos ou estilos, cujas pontas — talhadas — faziam as vezes de pincéis.

Sinuhe, maravilhado, leu a delicada inscrição que rodeava o orifício retangular por onde assomavam os juncos.

"A filha do rei, Meritaton, amada e nascida da Grande Es­posa Real, Neferneferunefertiti."

Ligeiro tremor fez tremeluzirem seus milhares de estrelas douradas. Já não havia dúvida. Aquela paleta era, justamente, um dos múltiplos e valiosos objetos encontrados por Carter e seu grupo em 1 922, quando desvendou outra das salas do túmulo de Tutankhamon, contígua à cripta e que, casualmente, foi batizada como a "do Tesouro".. . Entre o enxoval ali depositado, os egiptólogos encontraram uma representação em madeira do deus Anúbis e, entre suas patas, aquela mesma paleta pertencente à princesa Meritaton, uma das seis filhas de Akhenaton e da belíssima Nefertiti.

Sinuhe olhou o chacal e suspeitou de que aquele equipamento de escriba poderia vir, precisamente, de algum lugar próximo — talvez dessa enigmática "sala do Tesouro", depósito, por que não? dos arquivos secretos de IURANCHA —, de que Anúbis, a julgar per suas próprias palavras, parecia fiel guardião. Fosse assim, e tudo se encaixaria com precisão. A figura de tamanho natural do deus chacal, talhada em madeira e envernizada com resina preta e descoberta pelos arqueólogos em 1 922 às portas da referida "sala do Tesouro", em um anexo da cripta de Tutankhamon, ti­nha de ser aquela prodigiosa figura de madeira que agora o con­templava com seus radiosos olhos de âmbar. Porém, os últimos e cada vez mais esgarçados farrapos de sua lógica encarregaram-se de lembrar-lhe de que "aquilo" era absolutamente impossível... Ele não podia estar no interior do túmulo de Tutankhamon. Aque­le não era o Vale dos Reis...

 

— Eis a resposta à tua pergunta.

A voz do chacal retumbou na solidão da câmara funerária, arrancando Sinuhe à sua áspera luta interior.

— Minha pergunta? — balbuciou, sem entender bem a que se referia Anúbis.

— Lembra que solicitaste minha ajuda para abrir o sarcófago...

Sinuhe fixou o olhar na paleta de marfim. Sua memória, com efeito, voltara a funcionar. Entretanto não chegava a entender os propósitos do interlocutor.

Anúbis, adiantando-se à pergunta iminente do humano, mos­trou seus dentes de cristal e falou nos termos seguintes:

— Só há um meio para franquear este túmulo...

E o galgo-chacal caminhou devagar até o limite do quartzito amarelo. Um passo mais, e o furacão brotaria qual invisível fan­tasma. Mas o guardião do "Tesouro mais recôndito" limitou-se a farejar as proximidades do catafalco. Depois, tocando com o focinho a caixa que Sinuhe sustinha, acrescentou em tom solene:

— Aquele que for capaz de cerrar os olhos das quatro deusas protetoras, não só terá aberto o sarcófago do Senhor do Oeste, mas, sobretudo, restituir-lhe-á ao seu último estado, no além.

Sinuhe conhecia essas crenças religiosas do antigo Egito. Tinha deduzido que Anúbis era a primeira transformação do rei Tutankhamon. Entretanto, como proceder para consumar essa se­gunda e derradeira mutação? Como cerrar os olhos das deusas aladas que cingiam o túmulo? Era mister, antes, neutralizar a bar­reira que o protegia.

— Dize-me, Anúbis. Por que puseste em minhas mãos esta paleta?

— Só com as cores sagradas de Meritaton é possível esboçar meu verdadeiro nome: o que me foi dado por Tiyi no momento em que nasci. .. Mas esse nome solar — concluiu o chacal — embora signifique minha ressurreição definitiva, não cabe a mim invocá-lo.

Anúbis fora explícito o suficiente para revelar-lhe boa parte do segredo. Entre os costumes egípcios havia um que se reves­tia de especialíssima transcendência. Todo recém-nascido devia receber um nome — o chamado "solar" — no próprio instante do nascimento. E era a invocação desse nome, uma vez morto o indivíduo, que abria ao defunto as portas de "Duart": o além. Daí que, para qualquer egípcio, a maior desgraça consistia na mudança de nome: castigo aplicado principalmente a ladrões e criminosos.

Sinuhe sabia que Tiyi, esposa de Amenofis III e mãe de Tutankhamon lhe dera, no instante em que o trouxe ao mundo, o estranho nome de Tutankhaton. E uma chispa de esperança fez-lhe brilhar os olhos com especial fulgor.

Sem perda de tempo, extraiu um dos pequenos juncos e, co­locando-se de cócoras em frente à primeira das deusas — Isis — introduziu o pincel no pequeno depósito circular que continha a tinta branca. A ponta umedeceu-se e o investigador, com pulso vacilante, começou a desenhar no ar os hieróglifos corresponden­tes à primeira sílaba de Tutankhaton. Prodigiosamente, aqueles signos — de um branco resplandecente — pairaram no ar, a um fio da "parede" de vento.

Nosso homem, perplexo, voltou-se para o chacal e acreditou visualizar em suas pupilas de ouro e obsidiana — feito luz — um sentimento humano.

Em silêncio, dirigiu-se à segunda quina e, molhando o pincel no mágico depósito amarelo, desenhou a segunda sílaba: "tan".

Na terceira — sempre sob o olhar vigilante de Anúbis —, traçou em vermelho a terceira sílaba — "Kha" (1) — e, diante da quarta e última deusa alada, em símbolos verdes, a sílaba "ton".

(1) Esse grupo consonantal "Kh" tem um som aspirado gutural, diferente do "R" de "Ra". Lembra o "j" espanhol. (Nota do tradutor.)

 

Satisfeito e intrigado, deu um passo para trás, caminhando ao redor do túmulo. As quatro sílabas ("Tu"-"tan"-"kha"-"ton"), oscilantes e iluminadas quais pedras preciosas, mantiveram-se ainda por curtos momentos no ar. Subitamente, porém, rasgando a penumbra e o silêncio da câmara, de cada um dos remos de cristal partiu um sibilante raio escarlate. E os nove finíssimos fei­xes luminosos fizeram de três das quatro sílabas flutuantes o seu alvo...

 

Sinuhe, diante dos cantos traseiros onde flutuavam as sílabas "kha" e "ton", permaneceu imóvel, atento àqueles raios vermelhos. Observou de soslaio o chacal e, ao vê-lo estático, fez o mesmo. O desenlace veio rápido. As três séries de hieróglifos iluminados, correspondentes às sílabas "tu", "tan" e "ton", acabaram por fun­dir-se, convertendo-se na letra hebraica "T" ("Teth"). Imediata­mente, o "escudo"-furacão se tornou visível, invadido por uma irradiação escarlate que emanava de cada uma das letras hebrai­cas, levitando ainda a metro e meio do solo. E o vento, tingido assim de vermelho, apareceu ante Sinuhe em toda a sua magni­tude, cobrindo paredes e lousa tal qual um segundo sarcófago. O investigador compreendeu que, não fora Anúbis, e jamais teria tido acesso ao túmulo. Mas a cadeia de acontecimentos fantásticos apenas começava...

Enquanto observava o "T" situado à sua frente veio-lhe à memória uma de suas últimas peripécias, vivida quando buscava um meio para atravessar o tabique. A soma dos nove cativos no primeiro selo real o havia conduzido precisamente àquela mesma letra, o "Teth", cujo valor simbólico era o 9. E essa letra, do ponto de vista esotérico, representava, como naquele caso, "uma muralha erigida para guardar um tesouro"...

O fio de sua reflexão não chegou ao final. Adiantando-se a estes pensamentos, cada um dos três "T" se transformou em um "9" e, ato contínuo, fulminada, a "couraça" avermelhada desva­neceu-se. E com ela os três noves, os raios escarlates e os nove remos de cristal. A obscuridade, ao se desintegrarem os misterio­sos “archotes" embutidos nos muros, tornou-se quase total, alivia­da apenas no centro da câmara pelo dourado brilho do "traje" de Sinuhe. Ele, sem saber a que se ater, buscou o chacal com o olhar. Anúbis, porém, continuava impávido, os olhos amarelos cravados na única sílaba sobrevivente: "kha".

Embora fosse evidente que o furacão havia desaparecido, tornando possível o contato com o bloco de pedra, Sinuhe não se atreveu a mover-se. A presença da última sílaba, a flutuar em frente à cabeça da deusa Selkit, e a imobilidade estatuária do com­panheiro, o galgo-chacal, deram-lhe a entender que o processo de abertura do sarcófago não se havia concluído. Não se enganava. Enquanto contemplava os caracteres vermelhos de "kha", o "kh" da sílaba trouxe-lhe à mente seu equivalente no alfabeto hebreu: "Jod". E inconscientemente rememorou seu secreto e cabalístico significado: a mão do homem. Movido por seu afã de desvendar aquele novo enigma e assomar-se quanto antes ao interior do tú­mulo, teve um súbito desejo: converter a sílaba "kha" de Tutan­khaton em "Jod" ou "J" do hebreu e esta, por sua vez, em mão. Mão humana, capaz de ir cerrando os olhos das quatro deusas aladas...

Sua surpresa exorbitou quando, de improviso, aquele de­sejo se tornou realidade. O "kha" foi modificando seus traços até transformar-se em branca, fumegante e delicada mão; e fiel ao pedido mental do investigador, foi pousar-se sobre os olhos de Selkit, baixando-lhe as pálpebras. Logo em seguida dirigiu-se à deusa lavrada naquele mesmo costado do sarcófago, repetindo a operação com Isis. Repetiu-se tudo com Neftis e Neith. Aquele novo e súbito prodígio fez com que Sinuhe estremecesse. Então lembrou-se de que minutos antes associara igualmente o "T" das sílabas restantes do nome solar de Tutankhamon ao "9", e este — ou a letra hebraica "Teth" — ao símbolo da "muralha". A imensa dúvida começou a fustigá-lo: será que seus desejos podiam tornar-se realidade? Como entender de outra forma aqueles espantosos sucessos... Mas se for verdade, se seus desejos podiam materia­lizar-se, por que agora e naquele lugar? Uma resposta iluminou-lhe o cérebro como imediata e inequívoca cristalização daquele último "desejo": o "traje"! Sim, essa tinha de ser a explicação... Enquanto estivesse coberto de "sonhos" e "ilusões" seus anelos podiam ser satisfeitos. Aquilo, por outro lado, explicaria seus "acertos" quando decifrou os selos reais... E quase automatica­mente evocou um querido e saudoso nome: Nietihw. Sinuhe não podia saber, então, que aquele, justamente aquele, era o único desejo que não podia fazer-se realidade... Bem depressa com­preendeu por quê.

Desiludido por seu aparente malogro, por não ter conseguido fazer da aparição da companheira uma realidade, concentrou-se outra vez no túmulo. Anúbis parecia definitivamente petrificado. Chegou a tocar-lhe a cabeça, comprovando que os olhos se esta­vam apagando. Rodeou o sarcófago, mas não encontrou rastro da mão que cerrara os olhos das deusas protetoras. Palpou também a grande lousa que cerrava o catafalco, verificando o que já havia intuído: aquela tampa de granito rosa devia pesar acima de mil quilos... Surgia, portanto, outro problema difícil. Como levan­tá-la?

Apesar da recente decepção, retrocedeu até colocar-se a um par de metros do bloco. Se na verdade o "traje" que o cobria tinha a capacidade fantástica de tornar realidade os seus desejos, a lousa não tardaria em ceder... Foi inútil. Por mais força que pusesse naquele sentimento, a tampa não se moveu. Desiludido, acabou por render-se. Dirigiu um olhar suplicante ao chacal, mas a vida de Anúbis, como suas próprias esperanças, esvaía-se.

— Será possível que agora, a. um passo do fim, esteja tudo perdido?

Docemente, imperceptivelmente, os felinos olhos mortiços de Anúbis se obscureceram. E no centro da câmara sepulcral tal frágil vaga-lume dourado, abatido e com medo, quedou Sinuhe, devorado pelas trevas e pela sua própria impotência...

Assim como ocorrera quando viu desaparecer no poço a fi­gura da amiga querida, aqueles foram, também, momentos amar­gos. Ele intuía — sabia — que ali muito perto, talvez do outro lado daquela tumba, talvez no fundo daquele sarcófago, encontrava-se

0 "Tesouro" que tanto haviam buscado: a Verdade sobre a rebe­lião de Lúcifer.. . a Verdade, em suma.

Mas o "novo Sinuhe" não estava definitivamente aniqui­lado.

 

Levou tempo, mas afinal compreendeu. Não bastava apenas desejar. Não era suficiente entregar-se e entregar a alma: para levantar a lápide tinha também de atuar, agir. Há muitos anos já, desde que descobrira a irreversível senda do mundo interior, Si­nuhe sabia que todos os desejos, sonhos e ilusões — por mais utópicos que fossem — podiam converter-se em realidade se, prin­cipalmente, soubesse imaginar como fazê-lo.

Assim pois, desamarrando oito das nove cordas que conser­vava enroladas no pulso, foi depositando-as — de duas em duas — sobre os quatro ângulos da tampa.

Em seguida, sem saber exatamente por quê, deixando-se levar pela intuição, dirigiu-se a cada uma das deusas, pondo-se a somar as plumas que lhes compunham as oito asas. Ao conhe­cer o resultado — 1 832 plumas de quartzito —, não pôde deixar de sorrir. Somando-se estas cifras (1+8 + 3 + 2) obtinha-se 14. Quer dizer — seguindo uma vez mais o método cabalístico —1 + 4 = 5. E por conversão ao alfabeto hebraico que represen­tava esse "5"?: a letra "H" ou "Hai", velha conhecida de Sinuhe e de Nietihw, quando ela ainda levava sua coroa com o nome cós­mico. "Hai", "casualmente", era — sempre do ponto de vista eso­térico — o símbolo do ar. E qual a melhor fórmula que umas asas para representá-lo?

Maravilhado, lançou um último olhar às deusas aladas, perguntando-se como era possível que os artífices que as haviam lavrado sobre o mesmo bloco do féretro tivessem podido manejar e "esconder" aquele segredo cabalístico 1 343 anos antes de Cris-

to, quando Moisés — possível "inventor da Cabala" — ainda não havia nascido... Tudo aquilo parecia tão confuso quanto fasci­nante.

Animado por essa descoberta, sentou-se frente ao túmulo e fechou os olhos. E imaginou e o fez com todo o coração e com toda a sua mente. Imaginou que as asas se desprendiam do sarcófago e, com elas, os corpos estilizados de Isis, Neftis, Neith e Selkit. Assim Sinuhe, em sua imaginação, desejou que aquelas asas de pedra batessem suave e majestosamente, fazendo com que as­cendessem as deusas protetoras acima do sarcófago.

Uma vez no ar, as deusas apanharam as oito cordas que ao contato com suas mãos converteram-se em outros tantos bu­merangues de negro e pesado ébano. O resto foi simples. Em sua imaginação, o membro da Escola da Sabedoria desejou e fez com que as oito curvadas armas fossem introduzidas pelas deusas na beirada rebaixada do catafalco, sobre a qual fora encaixada a lousa. Bastou um esforço pequeno para que os bumerangues — funcionando como alavancas — fizessem saltar a tampa de granito. Sem perda de tempo, enquanto as deusas se sustinham no ar, Sinuhe "prensou" a tonelada e um quarto de pedra, reduzindo-a a um diminuto e reluzente coração de ouro. Apoderando-se dele, dirigiu a imaginação até o hierático corpo de Anúbis. E por desejo expresso de sua vontade, o chacal abriu as fauces, e o coração palpitante tomou posse do seu corpo de madeira. E os olhos feli­nos voltaram a iluminar-se...

Seus desejos — guiados pela imaginação — consumaram-se. O investigador abriu os olhos. Diante dele se desenrolava um espetáculo que jamais olvidará: do túmulo, agora descoberto, bro­tava, mui lentamente, uma espécie de névoa branca que já come­çara a derramar-se pelas laterais, avançando e propagando-se pelo solo da câmara. E sobre os ângulos do bloco de quartzito ama­relo, agitando as asas, apareciam as quatro deusas com os bume­rangues entre os dedos e os olhos cerrados.

Sinuhe quis interrogar Anúbis mas, por muito que vasculhas­se na névoa que se esparzia inexorável em torno do catafalco, não viu nem sombra do chacal. O coração do "iuranchiano" voltou a ensombrecer-se. A que se devia aquela nova desaparição?

Um pressentimento o alertou. "Algo" desconhecido e grave parecia brotar daquela sepultura, entremeado com a estranha "bruma"...

 

Não encontrando o galgo-chacal, resolveu debruçar-se no túmulo. Deu um passo até o bloco mas, como se fosse uma advertência, um frio pungente subiu-lhe dos pés, obrigando-o a adiar a inspeção do sepulcro. Atônito, observou a bruma leitosa que já lhe ocultava um terço das pernas, e deduziu que aquela sensa­ção gelada provinha necessariamente do "fumo" que emergia do sarcófago. No afã de comprová-lo, abaixou-se e mergulhou as mãos na névoa.

— Jesus Cristo!

Sensação idêntica, cortante como mil alfanjes, obrigou-o a arrancá-las do alvo e enigmático "fumo". Ao contemplá-las des­cobriu, angustiado, que as pequeninas estrelas douradas — seus "sonhos" e "ilusões" — que protegiam aquelas mãos haviam de­saparecido. Outro tanto acontecia com as que lhe cobriam os pés e parte inferior das pernas...

— Oh, não!

Com efeito, aquela bruma, expandindo-se e ascendendo a pouco e pouco, possuía tal poder que começara a dissolver ou aniquilar seu "traje" protetor. Consciente do perigo iminente que o tingia, precipitou-se sobre a beira do catafalco, disposto a des­velar-lhe o segredo...

Mas, ao aproximar-se, uma visão decepcionante se apresen­tou ante seus olhos.

O halo dourado que emanava do seu "macacão" de estrelas iluminou enorme vulto, completamente recoberto com finas ven­das de brancura semelhante à da névoa. Sinuhe esticou a mão direita até tocá-lo. Sua imaginação sofrerá duro revés. Em lugar dos restos mumificados do faraó Tutankhamon, achou apenas um gigantesco "embrulho" — de aspecto humano, isso sim — enfaixado dos pés à cabeça.

— Oh!

Ao roçar os dedos, no que supunha fossem tiram de linho, eles afundaram ali. Como podia ser? As vendas, na realidade, eram pedaços daquele "fumo" que brotava pelos interstícios. Aque­le corpo — ou o que quer que fosse — fora vendado... com névoa! E os dedos, ao se afundarem na "bandagem", experimen­taram novamente aquela chicotada de gelo.

Não havia alternativa. A névoa, ascendendo sempre sobre o nível do solo, ocupava já a totalidade da superfície da cripta. Urgia decifrar aquele mistério e, sobretudo, buscar as adagas que o segundo selo real mencionava. Uma devia "apontar" para Dalamachia. A outra, para o traidor: Horemheb.

Trincando os dentes, lutando por superar as gélidas pontadas que haviam começado a amortecer-lhe pernas e mãos, foi desen­rolando as tiras de névoa, rasgando-as e arrojando-as para fora do catafalco. Quando acabou de retirar a última, o "fumo" dei­xou de manar do interior do sepulcro. E um murmúrio de perple­xidade escapou dos lábios do investigador. Em frente, ocupando todo o interior do sarcófago, surgira uma esfinge de ouro. Trata­va-se, sem dúvida, da tampa de um féretro resplandecente, em forma humana. Aquele ataúde, de uns dois metros de compri­mento, descansava sobre andas com figura de leão. Os traços da face da esfinge, soberbamente lavradas em lâmina de ouro, trou­xeram-lhe imediatamente à memória o rosto do jovem rei Tutankhamon. "Então, apesar de tudo" — pensou, excitado — "eu estava certo..."

Os olhos foram confeccionados com aragonita e obsidiana, e as sobrancelhas e pestanas, finamente adornadas à base de incrustações de lápis-lazúli.

Aquela máscara intrigou Sinuhe. Enquanto o resto do ataúde fora recoberto de um ouro brilhante, em forma de plumas, o das mãos e do rosto era diferente, um pouco mais acinzentado, simu­lando assim a cor dos mortos. As mãos, cruzadas sobre o peito, sustinham os emblemas reais: o cajado e o chicote, com incrustações de faiança azul-escuro. Sobre a fronte da figura jacente do rei menino, Sinuhe reconheceu imediatamente os dois emblemas e símbolos do Alto e Baixo Egito: a cobra e o abutre.

— Já não há dúvida! — exclamou, estourando de impaciên­cia —. Aqui dentro deve jazer a múmia do Senhor do Oeste, irmão e genro do último depositário do Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar...

Sua alegria, porém, foi anuviada por aquela névoa, cada vez mais alta. O frio alcançava-lhe já os joelhos...

 

Antes de começar a abertura do féretro, lançou um olhar nervoso à sua volta. Anúbis ainda desaparecido e a névoa, em­bora já não brotasse do túmulo, continuava enchendo a câmara.

Aqui e ali, justamente nos lugares em que, recordava-se, jogara as tiras de "fumo", apontavam pequenos remoinhos. As deusas, com as pálpebras descidas, estáticas com seus bumerangues nas mãos de pedra, continuavam com seu interminável e silencioso bater de asas. Sinuhe observou também suas amareladas, quase transparentes figuras, constatando que, apesar de se acharem a pouco mais de um metro acima do sarcófago, aquele movimento alado não provocava a menor corrente de ar.

— Quanto tempo permanecerão assim? — perguntou-se, inquieto.

Mas, como eu dizia, o frio encerrado na névoa mordia-lhe já os joelhos. Não havia tempo a perder. Inclinou-se sobre o ataúde de ouro e, examinando-lhe os lados, descobriu quatro asas de prata — duas de cada lado — dispostas, sem dúvida, para facilitar a remoção da tampa. Tremendo de frio e ansiedade, agar­rou as asas mais próximas e puxou com força. Ao contrário do que supusera, a tampa do ataúde era sumamente leve. E, à luz do seu minguado "traje", debruçou-se, impaciente e trêmulo, so­bre o conteúdo do féretro. Segunda decepção caiu sobre ele. No interior só havia um outro fardo, desta vez envolto em um tecido grosso de gaze, sumamente escurecido e estragado. Sobre o pano repousavam guirlandas de flores, arranjadas com folhas de oliveira e de salgueiro, pétalas de loto-azul e de centáurea.

— Incrível!

As coroas de flores conservavam um viço absoluto. Assim como se acabassem de ser trançadas...

— Como é possível? — perguntou-se enquanto acariciava as pétalas de loto —. Tutankhamon morreu há mais de 3 300 anos!

Com profundo respeito e veneração, Sinuhe foi retirando as grinaldas deixando-as cair sobre a névoa. Ao invés de afundar, começaram a flutuar sobre a superfície do "fumo", balançando-se suavemente. Mas o investigador, sem dar maior importância ao novo e estranho fato, afainou-se em despojar o fardo de sua gaze. Ao rasgá-la, surgiram algumas incrustações de vidro multicolorido, com ricos engastes de ouro. Suas mãos se detiveram por alguns segundos. Sinuhe, de repente, lembrou-se da histórica des­coberta de H. Carter no Vale dos Reis. Também naquela ocasião, os egiptólogos — ao abrir o sarcófago real — haviam encontrado um primeiro ataúde. E no seu interior um segundo féretro; e um terceiro, matematicamente ajustado e arrumado no anterior. Era isso o que o aguardava, ao "iuranchiano"? Se for assim, onde es­tarão as adagas?

Incapaz de controlar curiosidade e impaciência, precipitou-se sobre a tela arruinada rompendo-a em longas tiras, que foram sendo amontoadas desordenadamente em todo o perímetro do ataúde. Porque, efetivamente, foi isso o que apareceu ante os olhos atônitos do nosso homem: um segundo sarcófago, de dois metros de comprimento, de forma e desenho semelhantes ao pri­meiro. Todo ele se achava suntuosamente recoberto com grossas lâminas de ouro, com incrustações de vidro opaco, talhado e gra­vado, imitando jaspe vermelho, lápis-lazúli e turquesa, respecti­vamente.

Todo ele, incluída a máscara funerária, lembrava a tampa que acabava de apoiar no túmulo. Tudo, menos um detalhe: as mãos. Cruzadas também sobre o peito, não seguravam os emble­mas reais — o cajado e o flagelo — mas... uma adaga!

— Até que enfim! — gritou Sinuhe, que já sentia o gelo da névoa à altura de suas coxas.

Protegida por aquelas mãos de ouro, efetivamente, a empunhadura dirigida para a cabeça, havia surgido, finalmente, aquilo por que tanto ansiava. Ao contemplar a bainha, finamente lavrada em ouro, assim como o já citado punho — delicadamente traba­lhado em ouro granulado e a intervalos adornada com pedaços de cristal de rocha colorido — Sinuhe viu-se assaltado por tre­menda dúvida: achava-se ante a primeira ou a segunda adaga? A criptografia decifrada na porta tabicada só fazia alusão a uma "primeira adaga", que devia apontar para Dalamachia, e uma "segunda", que apontava, de acordo com a interpretação do in­vestigador, para o traidor: Horemheb.

Que fazer? Como saber se aquele formoso punhal era o pri­meiro ou o segundo?

 

Com as pernas doloridas por aquela névoa infernal, Sinuhe enfrentou por alguns segundos o enervante dilema.

Antes de começar a retirar a adaga estudou sua posição. Observou a empunhadura, concluindo que estava orientada justa­mente para uma das pinturas funerárias que tanto lhe haviam chamado a atenção: aquela que representava um alto dignitário com uma espécie de "alavanca" preta entre as mãos e a ponto de efetuar a chamada "abertura da boca" do defunto rei, pintado, por sua vez, em forma de múmia e diante desse dignitário. A ponta do punhal vinha a coincidir com a porta pela qual tivera acesso à câmara. E um enxame de dúvidas acossou-lhe a mente.

Supondo-se que aquela adaga "apontasse para Dalamachia", para que lado devia ele encaminhar-se? Paia a parede pintada ou em direção à porta que havia atravessado? Se, ao contrário, se tratasse da "segunda adaga", qual dos extremos apontava para o "traidor"?

Confuso, abandonou o túmulo e abrindo passagem pela branca névoa gelada foi postar-se ante o mural funerário. Os raios dourados que ainda emitiam seu ventre, torso, braços e ca­beça permitiram-lhe repassá-la com certa comodidade. Chegou mesmo a tocar a figura do nobre egípcio averiguando que efeti­vamente tratava-se apenas de gesso colorido. Aquele personagem desconhecido, toucado com uma coifa verde, vestia saiote branco e cobria os ombros com uma bonita pele de leopardo.

Resignado, deu meia-volta e retornou ao catafalco. Uma vez mais naquela louca aventura estava ele forçando os acontecimen­tos. E esse, obviamente, não era o procedimento mais prático...

Entretanto, enquanto arrastava as pernas quase insensíveis, as palavras de Anúbis em relação a Horemheb fizeram com que se virasse para o mural.

"... Os arquivos secretos de IURANCHA te serão aber­tos. .. sempre e quando saibas vencer o traidor."

— O traidor?... Traidor de quem/ De Tutankhamon?

De repente, em meio ao silêncio espesso, seus pensamentos voltaram-se contra ele, advertindo-o: "Por que, ao evocar a sen­tença do chacal, havia dirigido o olhar precisamente para aquele personagem?"

Embora ao longo da missão se tivesse visto envolvido em circunstâncias tão críticas quanto aquela, ao verificar como a neve lhe dissolvia já as estrelas do ventre, não pôde evitar um senti­mento de alarma. Se era verdade que se achava tão próximo aos homens "Pi" ou aos arquivos secretos ou a Dalamachia, seus ini­migos — forças talvez integradas pelos "medianos" rebeldes — não lhe concederiam trégua nem quartel. Era preciso estar mais desperto que nunca mas, paradoxalmente, Sinuhe notava que se lhe escapavam as forças por momentos... Jamais se sentira tão aba­tido.

Saltando os pequenos remoinhos, cada vez mais vigorosos, que abriam as névoas nas proximidades do bloco de quartzito, colocou-se em frente à figura jacente do jovem rei. E sem pensar, tomou da empunhadura da adaga, puxando-a. A bainha dourada solidamente segura pelas mãos da esfinge não se moveu. Mas a folha do punhal, em compensação, deslizou fácil e documente. Com o punho direito cerrado sobre a guarnição, Sinuhe, devorado por aquele gelo invisível e por sua própria incerteza, foi aproxi­mando a adaga até a altura dos olhos. O cintilar de suas estrelas douradas fez então brilhar a afiada e pontiaguda folha... de ferro!

Foi tudo simultâneo: no cérebro do investigador disparou um sinal de perigo, os olhos das deusas aladas se abriram e os oito bumerangues estremeceram, ao mesmo tempo em que intensa chama azul partida do punhal, cegando Sinuhe.

Sem largar a adaga inclinou-se para trás tampando o rosto com a mão esquerda. Quando, enfim, aquela explosão luminosa que, em silêncio, brotara da folha de ferro se foi dissipando em suas retinas doloridas, o "iuranchiano" descobriu, assombrado, que as quatro deusas protetoras já não flutuavam sobre o catafalco. Voltou-se automaticamente e, tal como vinha suspeitando há algum tempo, viu, horrorizado, que a figura do "alto dignitário" desaparecera da pintura funerária. Em seu lugar, de perfil tam­bém, aparecia uma das deusas adornada e provida de oito asas e de outros tantos braços, mas sem os bumerangues...

Com o coração aos pulos, fez um primeiro gesto para apro­ximar-se da parede. Mas um ceceio próximo o paralisou. Era o primeiro som que escutava na penumbra da cripta desde que Anúbis e sua respiração agitada desapareceram. E chegava nítido às suas costas.

No primeiro momento pensou reconhecer aquele som. Aba­lado, porém, rechaçou a idéia aterrorizante...

Com sumo cuidado, foi voltando-se. E lentamente, com a adaga no alto, aproximou-se do interior do túmulo.

O gelo que lhe atravessava o corpo propagou-se em vagas sucessivas até desembocar no coração. Mas aquele frio que lhe comprimia o peito agora não vinha da névoa, mas do pavor ful­minante que lhe provocara a visão do segundo ataúde. Sobre o ouro e o vidro multicor da figura jacente, retorciam-se oito sibilantes cobras.

Paralisado, com o braço no alto, Sinuhe lembrou-se dos bumerangues.

— Deus meu! — disse a si mesmo, sentindo como o gelo lhe encharcava a garganta —. Primeiro, foram cordas. Depois, bumerangues de ébano, e agora... agora converteram-se em ser­pentes.

As cobras logo detectaram os eflúvios — sem dúvida carre­gados de terror — que escapavam daquele humano incapaz de reagir ante a presença dos répteis venenosos. E, uma após outra, se foram levantando sobre o ventre, dirigindo para Sinuhe os ne­gros e penetrantes^ olhos. Quatro dos ofídios ostentavam três pequenas escamas sobre a cabeça. E o investigador compreendeu com espanto que se tratava da áspide ou "víbora de Cleópatra", sumamente perigosa. Quanto às demais, excitadas pela proximi­dade do ser humano, haviam-se apressado a achatar e alargar seus colos, exibindo-se em toda a sua macabra magnificência. Estas últimas — de pescoço preto — tinham ainda a faculdade de lan­çar o veneno aos olhos do adversário. Sinuhe o sabia e, meio hipnotizado pelo ceceio e pela lenta oscilação das cabeças dos répteis, creu chegado o fim.

 

Seu último pensamento foi para Nietihw. Que teria sido dela? Estaria viva?

A névoa já lhe chegava ao nível da cintura e, presa do mag­netismo das pupilas verticais dos ofídios, parecia resignado a morrer. Uma das áspides ergueu-se acima das companheiras e, abrindo as fauces, mostrou as presas venenosas. O ataque parecia iminente...

Mas, no último segundo, umas fauces maiores do que as das cobras agarram-lhe as roupas e, empurrando-o pela cintura, der­rubam-no de costas, mergulhando-o no "fumo" leitoso. Enquanto caía, arrastado por aqueles dentes desconhecidos, teve tempo de ver como os répteis, enganados no último instante, deslizavam velozes sobre a beirada do sepulcro, submergindo, como ele, na névoa espessa, sem dúvida empenhados em persegui-lo.

Ao tocar o solo rochoso da cripta, as fauces o liberaram e Sinuhe, bracejando e sem ar, revolveu-se sobre si mesmo em bus­ca do tão oportuno salvador. Mas ali, no meio da névoa, a branquidão era tal que o cegava. E não pôde distinguir forma ou figura alguma. A falta total de oxigênio no interior do "fumo" somada à considerável densidade do meio que o obrigava a mo­ver-se com lentidão e o cansava, forçaram-no a sair imediatamen­te. Ao emergir, descobriu desolado que seu "traje" de "sonhos" e "ilusões" dissolvera-se por completo. Agora, a única claridade da câmara vinha da névoa que continuava invadindo o lugar, lenta mas inexoravelmente.

Desta vez, conseguiu evitar o primeiro ataque das cobras. Não obstante, a imagem dos ofídios a corcovear na espessa clari­dade fez com que temesse nova acometida, provavelmente nas pernas ou no ventre. Aterrorizado, vasculhou com os olhos os quatro pontos cardeais, tentando descobrir os corpos das serpen­tes. Subitamente, entre as coxas, acreditou sentir o roçar de algu­ma coisa mais sólida que "fumo". À beira do histerismo, patinhou na névoa empreendendo enlouquecida e desesperada fuga em bus­ca de algum ponto mais distanciado do túmulo.

Mal conseguira avançar um par de metros em direção ao muro que sustentara os quatro remos de cristal e em cujo extremo se adivinhava aquele também enigmático quadrado de gesso bran­co, e sua caminhada foi truncada. Acima da superfície da névoa — no centro de quatro dos redemoinhos que se agitavam à sua frente — viam-se vários crânios. Sinuhe, em meio aos farrapos de luz, só distinguiu, de início, a parte superior de umas cabeças es­curas com uns olhos vidrados e ameaçadoras pupilas verticais.

"As cobras", deduziu apavorado.

Mas havia qualquer coisa de estranho naquelas cabeças, apenas assomadas à flor da névoa.

Pressentindo novo ataque, retrocedeu. No mesmo instante, à direita e à esquerda, emergindo por outros tantos redemoinhos, descobriu mais quatro vultos, dois de cada lado, idênticos aos que tinha diante de si. Em todos relampagueavam as mesmas pupilas verticais, frias e mortais como a névoa que o consumia.

Sem escolha, continuou caminhando de costas até que a pa­rede do catafalco impediu-lhe a fuga. Sem querer, voltara ao ponto de origem. Em seguida, os oito crânios — como se soubes­sem que sua vítima estava encurralada — emergiram sem pressa do meio da névoa, mostrando-se a Sinuhe em todo o seu horror.

Diante do nosso homem foram aparecendo oito corpos de mais de dois metros de altura cada um. Embora as pupilas fossem similares à das áspides e "víboras de Cleópatra", tratava-se, na realidade, de robustos seres peludos de aspecto humano, vestidos de tanga. As mãos, armadas com longas unhas e as cabeças, co­bertas de grenhas escuras e impenetráveis. Sinuhe os reconheceu. Eram oito dos nove cativos que haviam escapado misteriosamente do primeiro selo da Necrópole Real! Aqueles inimigos do Egito já tinham tentado acabar-lhe com a vida quando ele se encontrava encerrado na "bolha" mental. Inexplicavelmente, porém, haviam-se afastado da antecâmara, deixando abandonadas as cordas e o selo de argila. O sigilo e a nona corda continuavam em poder do investigador...

Impotente, viu como os cativos levantavam as garras prontos para um ataque que, agora, não seria repelido por "esfera" men­tal alguma...

Triunfantes, os rostos de azeviche dos cativos esboçaram sorrisos diabólicos, proclamando assim o que parecia ser um final fulminante. E foi nesses instantes críticos, quando as curvadas unhas — longas como cauda de escorpião — erguiam-se acima da cabeça do prisioneiro, ao ponto de cravar-se em sua presa, que Sinuhe — com a névoa à altura das costelas — intuiu onde pode­ria estar sua salvação...

 

— O Nome Inefável!...

Ao observar de perto a pele dos cativos — elástica e áspera como a argila de que haviam escapado —, recordou-se das pala­vras sagradas. O ato de pronunciá-las lhe havia franqueado a passagem à câmara sepulcral, embora, é bem possível, houvesse trazido consigo também o mágico "esvaziado" do selo real...

Tinha de arriscar-se. Talvez uma nova invocação do "Nome" obrasse o milagre e aqueles seres de barro...

Sinuhe — algo estranho nele — pensou e atuou simultanea­mente. Extraiu do bolso o oval de argila e, levantando-o com a mão esquerda, gritou:

— SHEM HAMEFORASH!

O eco bateu nos muros. Os sorrisos petrificaram-se e com eles os corpos dos oito cativos. E a névoa, vertiginosamente, qual branca trepadeira, ascendeu pelas musculosas extremidades dos prisioneiros, cobrindo-os totalmente. Em segundos, as oito criatu­ras de argila se converteram em outras tantas estátuas de "fumo". Mas a nova mutação duraria pouco. A neve cairia com a mesma velocidade com que se levantara. Os remoinhos desapareceram e também os oito cativos; Sinuhe, aliviado, recostou-se exausto con­tra a parede do sepulcro.

Seu desafogo, entretanto, foi breve. Ao examinar o selo ova­lado que ele conservava entre os dedos pouco faltou para que, presa de novo sobressalto, se lhe escapasse da mão. A quase tota­lidade da superfície — com exceção do segmento superior — havia recuperado o aspecto original: oito figurinhas apareciam tosca­mente representadas em outros tantos altos-relevos de barro. Eram os cativos ajoelhados e com as mãos novamente amarradas às costas. Mas faltava uma e, claro, a figura superior: a do galgo-chacal...

Com a névoa pelo peito, perguntou-se onde estaria Anúbis e por qüe teria sido atacado pelos oito dos nove cativos. E mais, quem o teria salvo das cobras? Tratar-se-ia do chacal de madeira a quem devolvera a vida? E se fosse isso, por que não tinha conse­guido vê-lo? Onde se esconderia? Será que aquela névoa não o afetava? Ele, em compensação, sentia-se cada vez mais fraco... É certo que a densa e nevada fumaça contribuíra — e não pouco — para a aniquilação das bestas que o rodeavam, mas, se não atuasse com rapidez — se não encontrasse Horemheb —, aquela mesma bruma que já lhe cobria e machucava o peito podia con­verter-se em seu túmulo.

Que fazer para defrontar-se com o "traidor"? Sinuhe dirigiu o olhar para a deusa alada que tomara o lugar do enigmático dignitário na pintura funerária, propondo-se esta e outras incóg­nitas com uma inquietação mais e mais angustiosa.

Os fatos, uma vez mais, precipitaram-se: de súbito, umas mãos longas e úmidas caíram-lhe ao pescoço, com a intenção de estrangulá-lo. Sobressaltado, tentou sair do catafalco. Mas aqueles dedos — como cepos — afogavam-no. O selo de argila lhe caiu da mão perdendo-se na névoa e o investigador, num esforço con­tínuo, cravou os dedos — agora livres — naquelas garras, mais que mãos, que se lhe fechavam em volta do pescoço. Em pânico, olhos arregalados, o "iuranchiano" acreditou identificar a criatura que o atenazava como o último e nono cativo.

Sua perplexidade e desespero alcançariam, entretanto, o paroxismo quando, ao colocar a mão esquerda sobre as garras, elas, feitas de um barro úmido, destroçaram-se quase completamente. Entre estertores, examinou a palma da mão, verificando que não

se enganara: ali, entre os dedos, tinham ficado porções de um adobe fresco e avermelhado.

Em reação fulminante, descarregou a adaga de ferro sobre a mão que lhe arroxava a região direita do colo, conseguindo o mesmo efeito. O punhal penetrou na garra; ao ser retirada, po­rém, em lugar de sangue, a brilhante lâmina só trouxe... barro!

Apesar do evidente estrago sofrido pelas mãos, nenhuma das duas cedeu um átimo sequer em seu objetivo. E Sinuhe, meio desmaiado, começou a sentir sinais de asfixia. Turvou-se-lhe a vi­são, e o coração, bombeando no limite de suas possibilidades, co­meçou a fraquejar.

Num derradeiro esforço, guiado unicamente pelo instinto de conservação, o membro da Loja reuniu suas poucas forças e puxou as garras e o ser para baixo, buscando a hipotética ajuda da né­voa. Evidentemente, a fantástica criatura não previra a súbita rea­ção e se viu, com efeito, arrastada para o interior da bruma. As mãos e os antebraços, submersos assim no "fumo" de gelo, sofre­ram a mesma sorte dos oito cativos. Simplesmente se dissolveram.

Sinuhe, livre da tenaz assassina, tentou a superfície. Mas, ao emergir frente ao catafalco, aquele inseparável "companheiro de viagem" — o espanto — voltou a soprar-lhe sobre o coração gelado.

Diante dele, em pé no interior do túmulo, achava-se o "alto personagem", tão misteriosamente desaparecido do mural funerá­rio. E Sinuhe, com a névoa a roçar-lhe já as clavículas, com­preendeu.

— Horemheb!... O traidor!

Confirmando suas suspeitas, o corpulento egípcio fez uma leve inclinação de cabeça, enquanto estendia os braços para Si­nuhe. Mãos e antebraços, efetivamente, foram amputados pela névoa. Nas extremidades distinguiam-se uns cotos úmidos e aver­melhados como o resto da pele do velho general.

Mas, no momento seguinte, o barro que formava o corpo de Horemheb cobrou vida e os cotos se auto-regeneraram e as muti­ladas extremidades renasceram. O êxito parcial do "iuranchiano" acabou sendo infrutífero...

Horemheb, cravando seus enormes e amendoados olhos ne­gros em sua vítima indefesa, falou:

— Escuta, estrangeiro!... Em vida do herege rei Akhenaton e do seu irmão Tutankhamon, fui enviado por Amon, meu senhor,

para recuperar o Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar e destruir o culto a Aton, vã tentativa dos fiéis a Micael para restituir sua autoridade perdida em IURANCHA. Desde então, sou o custódio desse Tesouro e nada nem ninguém poderá entrar na Sala de Thot...

Sinuhe só compreendeu em parte. Ele estudara que aquele temido general — que de fato conheceu o faraó herege e seu irmão — usurpara o trono do Egito após a morte de Ay, o cha­mado "Pai Divino" e sucessor de Tutankhamon. Sabia também que, seguindo os conselhos das castas sacerdotais, devolvera o culto e a glória a um de seus deuses: Amon, arrasando qualquer vestígio daquela outra divindade — Aton — "suprema revelação" do rei herege, Akhenaton. Mas que significava tudo aquilo sobre o Grande Tesouro e os fiéis a Micael? Que era a Sala de Thot? A confusão do investigador, à medida que escutava as palavras de Horemheb, foi crescendo...

— Podes unir-te a Amon, meu senhor — concluiu o general — ou morrer... Escolhe!

Grave silêncio, dramático como aquelas frases, planou pela cripta como o prelúdio de iminente e não menos dramático desenlace...

 

O cérebro de Sinuhe, acossado por aquele outro perigo — a névoa ondulante — não respondeu. Pouco importava agora a busca dos arquivos secretos de IURANCHA. O "fumo", em as­censão contínua, não tardaria a alcançar e sepultar-lhe a cabeça. Como pensar na missão quando sua vida tinha contados os mi­nutos?

Na ponta dos pés, esquivando-se dos gelados farrapos de névoa, foi aproximando-se do túmulo, já totalmente coberto pela bruma. Era inexplicável que as robustas pernas de Horemheb não se tivessem dissolvido. Pelo menos da perspectiva do investigador, os pés do general achavam-se no interior do catafalco e este, co­mo digo, fazia tempo desaparecera sob o nível daquele inesgotável horror leitoso. Entretanto, hierático e solene, o corpo de barro do traidor continuava sobressaindo acima da névoa.

Sinuhe não tardaria a entendê-lo. Ao topar com a lateral de quartzito, verificou que a totalidade do vazio do sepulcro re­tangular permanecia livre. A névoa ascendia e o enchia todo à exceção daquele reduto sagrado. Quanto aos pés de Horemheb, embrulhados em alvas sandálias, pareciam firmemente seguros sobre o tórax de ouro da esfinge jacente. Atordoado, levantou o rosto para o do general. Iluminada pela brancura que ameaçava inundar a câmara toda, aquela face avermelhada esboçou um sor­riso irônico. O monstro de adobe, levando a mão esquerda à pele de leopardo que lhe cobria o ombro, repetiu o ultimatum:

— Escolhe, estrangeiro!...

Para Sinuhe, tristemente, a escolha só podia ser uma. Can­sado, o corpo todo ferido pelo gelo, sem esperança de tornar a ver Nietihw, sem armas, sem a ajuda do já remoto "amigo" Ra, que sentido teria resistir? Quão longínquos pareciam, naqueles instantes, seu entusiasmo e seu afã de desvelar a Verdade sobre Lúcifer!...

Com voz quebrantada, só conseguiu retorquir:

— Está bem!... Não quero morrer!... Mas dize-me ao menos quem é teu senhor e qual a sorte que me aguarda.

Horemheb, satisfeito, continuou acariciando a pele de leo­pardo.

— Alegra-me tua sensatez, estrangeiro. Vossa missão estava fadada ao fracasso. Mas, ao eleger Amon, teu esforço não terá sido estéril... Ele, precisamente, te mostrará a Verdade por que tanto anseias.. .

— Amon? — interrompeu-o Sinuhe. — Quem é?

— Em teu mundo, em IURANCHA, fruto de vossa ignorân­cia, é conhecido como Lúcifer... meu senhor.

Destino trágico e paradoxal. Se Horemheb não mentia, a força do Maligno — contra a qual, sem dúvida, haviam batalhado até o momento — era a que, agora, ofertava-lhe a vida e a Ver­dade. ..

Aferrado à submersa beirada do catafalco, não teve forças para continuar interrogando o general. Seu único desejo era sair daquele lugar espantoso e sobreviver; e Horemheb, compreenden­do o lamentável estado do "iuranchiano", falou-lhe de novo:

— Porém, antes de conduzir-te à Torre de Amon, é preciso que renuncies ao símbolo que ainda te une a Dalamachia.

O investigador olhou-o sem compreender.

— Deves entregar-me o colar, a "cadeia" de números, sím­bolo dos estúpidos e ilusos homens "Pi"... até os quais jamais chegarás.

Sinuhe obedeceu. Documente, retirou-a do colo e ofereceu-a a Horemheb.

Sem abandonar o sorriso triunfante, o general inclinou o torso, ao mesmo tempo em que anunciava em tom cerimonial:

— Como general vitorioso e último rei da dinastia XVIII ordeno que tua submissão a Amon, e a mim mesmo, deve con­sumar-se com um ato de entrega total: cinge meu colo com a tua "coroa"...

Horemheb flexionou a perna direita, apoiando o joelho sobre as plumas de ouro do segundo ataúde. Com reverência, inclinou a cabeça até o alcance das mãos de Sinuhe. Este, tiritando, em silêncio, ergueu-se nas pontas dos pés, deslizou a "cadeia" ao redor da coifa verde, depositando-a no colo do traidor.

E uma tristeza infinita apoderou-se daquele homem vencido...

 

Foi como um relâmpago. Como uma descarga interior. Como uma luz ou talvez como um grito distante. Ao soltar a "coroa" de números na nuca de Horemheb, o nome de Nietihw fez vibrar até a última célula de Sinuhe: arrebatado, crisparam-se-lhe os dedos sobre o colo do general. O investigador deixou-se cair de costas sobre o mar de brumas, arrastando consigo o traidor.

Entre brancas turbulências, foram ambos submergidos no "fumo". Em segundos, o barro vermelho se consumiu e Horemheb, aniquilado pela névoa, desapareceu.

Sem poder entender sua reação fulminante, o membro da Escola da Sabedoria buscou a superfície desesperadamente. O nível do "fumo" chegava-lhe agora aos olhos; saltando sobre o solo rochoso, encheu de ar os pulmões e lançou-se em busca do túmulo. Se conseguisse galgá-lo e refugiar-se em seu interior, talvez adiasse seu fim...

Ao agarrar-se à borda do bloco de pedra, tentou saltá-lo. Mas aquele metro e meio era já demasiado para as suas forças esgo­tadas. Rendido, quase asfixiado, sentiu a massa gasosa a cobri-lo definitivamente.

Pronto para morrer, foi deslizando-se pela parede do catai alço, até cair de joelhos junto dele. Ali, prisioneiro da branquidão cegante — paradoxalmente salvadora e mortal — esperou a sua hora.

Entretanto, quando mal tocara o fundo da cripta, aquelas mesmas fauces que o salvaram do ataque das cobras trancaram-se em suas roupas e o impeliram para o alto, depositando-o brusca­mente no interior do sepulcro.

Ao contato com a madeira chapeada do segundo ataúde, Si­nuhe, com a pele azulada por um congelamento incipiente, entreabriu os olhos. Os pulmões inalaram ansiosamente e, pouco a pouco, compreendendo que fora resgatado do gás gelado, tratou de levan­tar-se. Mas era extrema a sua debilidade, por isso mal conseguiu sentar-se sobre a figura jacente. O "fumo", colado às quatro pa­redes exteriores do túmulo, continuava ganhando altura, respei­tando porém o espaço situado acima do grande bloco retangular. Ficava, assim, sobre o reduzido habitáculo que ocupavam agora o féretro e Sinuhe, um misterioso e providencial vazio ou "chaminé", fortemente iluminado pela irradiação daquelas vibrantes "paredes" de névoa.

Na mente do "iuranchiano" martelava uma única idéia: "A segunda adaga!... A segunda adaga!..."

Urgia encontrá-la. Mas, como abrir a tampa daquele ataúde? O punhal de ferro, tal como acontecera com sua "cadeia" de nú­meros, desaparecera na profundidade da bruma...

Tateou as asas de prata colocadas dos dois lados e puxou-as. Inútil. Seu próprio corpo, pesando sobre o féretro, dificultava a operação. Havia também a esfinge que, preenchendo a totalidade do nicho, não deixava espaço suficiente entre a pedra e o ataúde.

Bateu no peito dourado do jovem rei, tornando a maldizer sua má sorte. Mas logo compreendeu que tal atitude não o levaria a parte alguma, quando muito, só a desperdiçar as parcas energias que ainda lhe restavam. Tinha de pensar. E rápido. A névoa con­tinuara a encher a câmara. Talvez faltasse um metro — ou menos — para que tocasse o teto. Que aconteceria então?

Esfregou o rosto com as mãos espalmadas lutando por re­cuperar um pouco da circulação sangüínea. Foi então que atinou com a nona corda dos cativos amarrada ainda à sua munheca.

Com grande dificuldade, ajudando-se com os dentes, conse­guiu desenrolá-la.

— Sim, ainda é possível... — disse com seus botões, bus­cando ansiosamente uma das asas.

Deu um nó na corda e voltando-se para a alça oposta repetiu a operação. Uma vez amarrada às duas asas, segurou a corda entre os dentes e com as mãos procurou apoio nas beiradas superiores do sepulcro.

"É preciso consegui-lo!... Ê preciso!..."

Sinuhe lutou para levantar-se. Tinha de colocar os pés sobre a borda superior do túmulo. Só assim, puxando a corda com os dentes, poderia içar a tampa... talvez.

Mas as pernas, tumefatas, não responderam. Gemendo de raiva, deixou-se cair de joelhos sobre a esfinge.

Ofegante, esmurrou as pernas, rogando, exigindo e suplicando que recuperassem as forças. Tentou pela segunda vez. Agarrou com os dedos a beirada do sepulcro e alçou o próprio corpo ao mesmo tempo em que apertava a corda entre os dentes. Mas suas extre­midades,, convertidas em placas de gelo, não se moveram um só milímetro. Como um fardo, caiu de novo sobre a tampa resplan­decente. E dessa vez os gemidos desembocaram em amargo e copioso pranto. Seu último desejo — abrir aquele segundo ataúde e apoderar-se da adaga de ouro — começara a esfumar-se.

 

Mergulhado no desconsolo, Sinuhe, a princípio, não se deu conta. Suas lágrimas, ao resvalar-lhe pelas faces, arrastavam as últimas estrelas douradas que tinham formado o seu "traje" de "sonhos". A névoa não destruíra todas as "ilusões". Restavam ainda as que lhe protegiam o interior dos olhos, agora dissolvidas pelo pranto amargo.

E como um presente — ou talvez um milagre —, aquelas dezenas de minúsculas "estrelas" se foram caindo sobre a esfinge, fundindo à sua passagem o ouro da tampa.

Sinuhe encontrou-se assim, de repente, estendido sobre o ter­ceiro féretro.

Com o coração confuso e agradecido pôs-se de joelhos con­templando, atônito, aquele último ataúde. Era também feito de ouro e se achava igualmente envolto em fino tecido avermelhado.

Deu nervosas palmadas no linho que num instante se rasgou. Ao retirar a proteção surgiu a máscara, em ouro polido, de um rei quase menino, com formosos e esvaziados olhos rasgados. Sobre colo e peito havia um complicado colar de contas e de flores, cosido a uma armação de papiro.

Mas todo o seu interesse concentrou-se nas mãos. Rompeu o linho que cobria o resto do tórax e ao desvendá-las uma envol­vente alegria o compensou de tantas desventuras...

As mãos, cruzadas sobre o peito, lavradas também em ouro brunido e puríssimo, sustinham uma adaga. A segunda! A que devia "apontar Dalamachia"!

Como no segundo féretro, a adaga tinha a embocadura rica­mente decorada com um granulado de brilhante ouro amarelo e apontava para o queixo da máscara real. A bainha era rodeada de tiras de pedras semipreciosas e vidros em cloisonné, desembocando na empunhadura como uma valiosa cadeia em volutas, bordeada por uma corda de arame de ouro.

A adaga de ouro — como o punhal de ferro — também apontava a porta da cripta.

Sinuhe compreendeu que enfrentava o dilema anterior. Para onde dirigir-se? Mas em seguida, movendo negativamente a cabeça e contemplando as "paredes" fumegantes que já estavam para roçar o teto da câmara, desistiu de qualquer tentativa para elucidar a nova incógnita. Era óbvio que não poderia sair do sepulcro. . .

Delicadamente, inclinando-se sobre as mãos no ataúde que, sem dúvida continha os restos mumificados de Tutankhamon, foi retirando a adaga de dentro da bainha.

Aos seus olhos, cintilando como mil sóis, apareceu uma lâ­mina de ouro de especial dureza e de formas simples e belas. A superfície era lisa, com exceção de umas ranhuras profundas que desciam pelo centro, convergindo em um ponto. E nesse ponto descobriu uma inscrição. Uma legenda que o deixou perplexo:

"Já és um homem 'Pi'."

Não houve tempo para uma segunda leitura do hieróglifo. A névoa, ao tocar o teto da cripta, irrompeu como um tornado no oco produzido sobre o túmulo, envolvendo o aterrorizado "iuranchiano". E em uníssono, familiares e felinos olhos cor de âmbar irromperam no branco caos. E as fauces de Anúbis se cerraram sobre a mão esquerda de Sinuhe, arrastando-o no meio da névoa.

Sua última lembrança, antes de perder a consciência, foi uma perturbadora sucessão de sensações: o galgo-chacal a voar ou flu­tuar à sua esquerda — a puxá-lo como se ele fosse uma pluma —; aquele frio dilacerante e, finalmente, a implacável aproximação ao quadrado de gesso branco que ele tivera a oportunidade de ver e sentir junto aos quatro remos-archotes de cristal...

Depois, ao dar-se o choque com o "quadrado", escuridão. Somente escuridão...

 

Várias figuras o rodeavam quando, finalmente, abriu os olhos. Sinuhe, mente em branco, não soube o que fazer nem o que dizer. Não sabia se estava morto ou se acabara de despertar de um pesa­delo. Aqueles homens, ataviados com longas e alvas túnicas de Unho, formavam em torno dele um círculo tão fechado que lhe tornava impossível precisar onde estava. Um, especialmente, incli­nado um pouco sobre ele, impressionou-o. À diferença dos outros seis indivíduos, ele sobressaía pela enorme estatura — uns dois metros e meio, talvez — e pela cor da pele: era negro!

Estendido de costas no chão vermelho impecavelmente polido e brilhante, foi apalpando as roupas, ante a implacável e silenciosa presença dos observadores. Suas calças, assim como a camisa, estavam secas. E essa sensação trouxe-lhe à memória o gelo da neve que acabara por sepultá-lo na câmara sepulcral de Tutankhamon. No mesmo instante, encadeada às demais vivências: os olhos ambarinos e as fauces de Anúbis e o quadrado de gesso...

Incompreensivelmente, aquele esgotamento de morte se dis­sipara. Agora se sentia bem. Os sintomas de congelamento e aque­les seus primeiros e tímidos movimentos pareciam normais. No entanto, abrumado pelo círculo, não fez menção alguma de levan­tar-se. Não sabia quem eram aqueles seres, tampouco suas inten­ções. E, temeroso, foi passeando o olhar por suas fisionomias e aparatos.

Em sua fugaz inspeção, Sinuhe deduziu equivocadamente — talvez devido à luz avermelhada que banhava o lugar — que aque­les homens, com exceção do negro e de outro de rosto branco, eram vermelhos. O contraste o perturbou ainda mais. Alguns traços lhe recordaram os dos chineses e dos esquimós. O negro apresentava os traços típicos da raça: lábios grossos e salientes, nariz achatado e cabelo anelado. Quanto ao branco, a cabeça — totalmente raspada — poderia ter sido a de qualquer sacerdote do antigo Egito: pele ligeiramente tostada e reluzente, talvez efeito de algum óleo gorduroso, olhos negros e penetrantes, pômulos altos e afinados. As orelhas, pequenas e bem construídas, tinham lóbulos com orifícios circulares.

O que realmente veio inquietá-lo, pondo-o em guarda, foi a descoberta — no peito de cada uma das sete personagens — de um mesmo emblema. Uma figura que lhe era familiar: tratava-se daquele ser de cabeça quadrada e grandes olhos circulares, situado sob o signo da letra "pi". O mesmo que aparecia no alto-relevo do seu anel de ouro desaparecido e que ele tivera oportunidade de contemplar nas concavidades da não menos enigmática caveira negra, na praia...

Quem seriam aqueles homens? Por que exibiam aquele escudo? Que representaria?

Como se lhe tivesse captado os pensamentos, um dos atentos observadores — o de cabeça raspada — ajoelhou-se junto a Si­nuhe. Este, receoso, ergueu-se ligeiramente, apoiando os cotovelos no solo. Mas o rosto lustroso do que acabava de ajoelhar-se trans­formou-se subitamente. Amplo e sincero sorriso iluminou-lhe o rosto, e levando o dedo indicador direito ao emblema circular falou-lhe em tom cálido e amistoso:

— Não temas, Sinuhe. Este é o signo dos homens "Pi".. .

Boquiaberto, fixou o interlocutor desviando os olhos, depois, para cada um dos presentes. E todos, ao mesmo tempo, apoiaram as palavras do companheiro com movimentos afirmativos de cabeça.

— Os homens "Pi"? — conseguiu exclamar. — Mas, então...

O único que havia falado até o momento manteve o sorriso e, estendendo-lhe as mãos, levantou-se, sugerindo ao investigador, com isso, que o imitasse. Sinuhe aceitou com reserva. Mas o homem, acentuando o sorriso, tentou ganhar-lhe a confiança. De­pois de tantas amarguras, surpresas e perigos, o "iuranchiano" tinha de estar desconfiado. O receio acentuou-se quando, ao pôr-se em pé, descobriu a verdadeira cor dos que o rodeavam. ..

 

Assustado, retirou as mãos. O homem de pele branca que o ajudara, compreendendo a confusão de Sinuhe, guardou silêncio. E os sete misteriosos personagens, com os braços caídos ao longo das túnicas, esperaram que o recém-chegado saciasse sua curiosidade.

Como se fosse um menino, foi postando-se diante de cada um dos homens que o rodeavam, estudando-os e verificando se não estaria vivendo um sonho. Apesar da luz avermelhada que enchia o ambiente, Sinuhe podia ver que um daqueles seres era verdadeiramente vermelho. Com o cabelo negro e liso e o nariz de águia, juntamente com o tom da pele, lembrou-lhe os índios americanos. O segundo e o terceiro, esses, eram sumamente es­tranhos. Rostos e mãos — únicas partes visíveis de seus corpos — eram laranja e verde, respectivamente.

"Homens de cor laranja e verde?", perguntou-se, sem poder dar crédito ao que, evidentemente, tinha ante os olhos.

Ambos eram de talhe similar ao seu e os olhos, como os de seus companheiros, acompanhavam os movimentos do inves­tigador com uma calma divertida. Suas feições eram para ele irreconhecíveis. Não se enquadravam em nenhum dos fenótipos raciais de que se recordava. Só o profundo e negro olhar do verde e o brilho azeitonado da pele trouxeram-lhe à memória os formo­sos olhos dos hindus, e certa semelhança com a tez de alguns povos da Polinésia. Já a cor do homem laranja pareceu-lhe tão alheia quanto fascinante. Perfil extremamente fino e delicado, quase como o de uma donzela. Era o único, exceção do calvo, que tinha ca­belo albino.

Depois, com a mesma curiosidade, deu um passo até o quarto "humano" — embora o qualificativo não parecesse excessivamente claro na mente confusa de Sinuhe — ratificando sua primeira impressão: a que havia recebido quando se encontrava deitado. Aquele criatura, um pouco mais baixa que as outras e de pele amarela, oferecia as características das raças asiáticas orientais. Os­tentava um espesso bigode azeviche, olhos rasgados e pômulos nipônicos. Na realidade, poderia ser tomado por mongol ou chinês talvez.

Sinuhe se deteve muito pouco diante da gigantesca enverga­dura do negro. Entre assustado e tímido, levantou fugazmente os olhos até ao alto daqueles dois metros e meio, porém, embora o olhar do gigante estivesse dominado pela piedade, passou depressa para o sexto observador. Este, de pele azulada, era o mais baixo de todos. Talvez não fosse além de um metro e sessenta centíme­tros. Sob a túnica adivinhava-se uma constituição tão musculosa quanto as do amarelo, e o negro e o vermelho A cabeça, de forma ligeiramente ovalada e enterrada, sobressaía sobre o pescoço grosso e forte como o de um touro. Associou seus traços com os dos esquimós.

Concluído o exame, voltou-se para o único branco — o que parecia o chefe ou porta-voz daquele estranho conclave — e, mostrando o lugar com um vago gesto de mãos, perguntou-lhe:

— Onde estou?

— Esta era a câmara couraçada de IURANCHA...

E abrindo passagem entre os companheiros mostrou-lhe o recinto. Ao abrir-se o círculo, Sinuhe descobriu que fora parar em um estranho habitáculo em forma de prisma hexagonal de altís­simos muros. As seis paredes que formavam o hexágono, assim como o solo e talvez o teto — este, difícil de precisar em virtude da distância — tinham sido construídos com uma liga desconhecida, parecida com ouro,, embora de tonalidade acobreada. A "câmara couraçada" — como a havia denominado o branco — apesar de sua desnudez brilhante, tinha um efeito acolhedor.

Sinuhe deu um breve passeio, aproximando-se de um dos muros. Tocou-o com curiosidade e, ao sentir sua textura e dureza, viu-se assaltado por uma idéia extraordinária. Mas logo a aban­donou. Era fantástica demais. . . Se, naquele momento tivesse coin­cidido olhar para o homem de rosto brilhante, teria notado nele a confirmação do pensamento. Mas o membro da Escola da Sa­bedoria, cujo temor inicial ia dando lugar a lenta mas firme con­fiança e a uma excitante curiosidade, achava-se fascinado por outra descoberta. No centro geométrico do hexágono levantava-se uma pequena coluna de mármore branco, de apenas trinta centímetros de diâmetro e metro e meio de altura. Estava coroada por uma lâmina do mesmo metal que revestia o resto da câmara.

Voltando-se para o grupo de homens que continuava próximo a um dos muros, apontou para a coluna, interrogando-os com o olhar.

O branco, seguido bem de perto pelos seis homens de cor, deu então alguns passos em direção ao investigador. Chegando junto dele, suas mãos foram pousar sobre a acobreada e brilhante plataforma circular que arrematava a coluna. E uma sombra de tristeza obscureceu-lhe o olhar. Nesse instante, ao reparar nas suas ossudas e longas mãos, Sinuhe, hipnotizado, foi incapaz de apartar os olhos de um dos dedos do enigmático personagem...

 

O homem branco, compreendendo a surpresa de Sinuhe, es­tendeu-lhe então a mão direita, convidando-o a examinar em seu dedo anular o selo que tanto o impressionava. O "iuranchiano". sem dissimular a emoção, tomou a mão entre as suas, verificando que, efetivamente, tratava-se do símbolo ou emblema de sua Ordem: uma serpente vermelha, enroscada entre dois olhos.. .

Não foi preciso que formulasse pergunta alguma. O portador do anel de marfim adiantou-se aos seus pensamentos, dizendo-lhe:

— Querido irmão Sinuhe: sabemos que são muitas as dúvi­das que te assaltam o coração. Mas antes de explicar-te por que trago o selo da Escola da Sabedoria (nossa Ordem) e de falar-te sobre esta coluna, permite-me que, em benefício de uma melhor compreensão, deixe ambos os assuntos para o final. . .

As cálidas palavras do interlocutor e o incrível achado do escudo da Loja secreta naquele remoto lugar, infundiram em Sinuhe força e paz insuspeitadas. Então, abrindo a alma, dispôs-se a escutar aquilo que pressentia ser uma importante informação naquele quebra-cabeça enlouquecedor.

— Faz agora muito e muito tempo — prosseguiu seu irmão de Ordem, voltando a colocar as mãos sobre a lâmina averme­lhada da coluna —,-mais ou menos 200 000 anos de IURANCHA, homens leais a Micael, nosso Soberano, viram-se obrigados a fugir de Dalamachia, a cidade fundada por Caligastia, o então príncipe planetário de nosso mundo. Naqueles tempos, como sabes, re­gistrou-se no sistema de Satânia (regido por Lúcifer) uma rebelião que arrastou 37 planetas, entre eles o nosso. E as forças expedi­cionárias chegadas a IURANCHA 300 000 anos antes, com Cali­gastia e seu Estado-Maior, dividiram-se. A maior parte secundou os propósitos de Lúcifer e de Satan, seu lugar-tenente, e a Terra foi posta em "quarentena", sofrendo uma histórica paralisação em seu desenvolvimento natural. Nem todos porém, como te digo, obedeceram a Caligastia, representante de Lúcifer em IURANCHA. Houve seres celestes e membros materializados do Estado-Maior do citado príncipe, assim como 9 800 dos 50 000 "medianos", que formavam esse corpo especial de criaturas "mediadoras", cria­das para o bem, que repeliram a rebelião. Mas tiveram de disper­sar-se. Uma das expedições que fugiu de Dalamachia, a "cidade modelo" refugiou-se no que seria chamado o Grande Reino em Meio ao Mar. ..

Sinuhe, fascinado, recordou-se então do enigma que encon­trara sobre o tabique da cripta.

— Esse Grande Reino — prosseguiu o homem branco — não foi conhecido pelos atuais habitantes de IURANCHA. Mas foi pelos antigos. E houve um famoso escritor e filósofo grego que, quinhen­tos anos antes da sétima e última encarnação de Micael como Jesus de Nazaré, teve referências dele através de eminente legislador, Sólon, que, por sua vez, recebeu as notícias sobre a existência de tal império através dos sacerdotes egípcios da cidade de Sais...

— Atlântida!

Sem poder conter-se, o investigador pronunciou o mítico nome da ilha-continente, misteriosamente submersa no oceano Atlântico "no transcurso de um dia e uma noite, há uns 11 500 anos", se­gundo os Diálogos de Critias e Timeu, de Platão.

Assentindo com a cabeça, seu informador sorriu satisfeito.

— Atlântida ou Atlantis, sim — afirmou, adivinhando as dúvidas que atormentavam o perplexo "soror" —. O Grande Reino em Meio ao Mar! Uma segunda Dalamachia que durante milênios resistiu aos contínuos assédios das forças leais ao Maligno. . . Aquela valente expedição retirara da "cidade modelo" um grande tesouro: os arquivos secretos de IURANCHA. E pelo espaço de quase 200 000 anos pôde custodiá-lo e preservá-lo contra a ambi­ção de Caligastia e dos seus sequazes.. .

Ao chegar a este ponto da narração, a voz daquele homem se quebrou. Mas, apesar da evidente tristeza, continuou:

— Quando o planeta foi submetido à "quarentena" pelas altas hierarquias do universo local e da Ilha Estacionaria do Paraíso, à espera da captura e posterior julgamento do rebelde, todas as comunicações de IURANCHA foram cortadas. E desde então, tu o sabes, a humanidade se acha incomunicável, submersa no caos e à mercê dos rebeldes. E aqueles bravos, fiéis a Micael, foram finalmente sitiados. De comum acordo, traçaram heróico plano, visando pôr a salvo o Grande Tesouro. E numa odisséia que talvez algum dia te seja revelada, seis expedições partiram simul­taneamente do Reino em Meio ao Mar. Das seis, apenas uma transportava os arquivos secretos do planeta. Caligastia e suas forças conseguiram interceptar quatro dessas missões, mas, providencialmente, a que protegia o Grande Tesouro logrou seu obje­tivo, e desembarcou no que hoje é o Egito.

— E a outra? — interrompeu-o Sinuhe.

— Atingiram também a meta prevista. Chegaram ao que hoje conheceis como América, e se ocultaram e se mesclaram entre os

povos daquele continente. Os rebeldes, porém, suspeitando de que os leais a Micael pudessem tentar tirar de Atlantis os arquivos secretos, investiram contra o Reino com um último e feroz ataque. E as preces daqueles homens heróicos foram afinal escutadas. E de Jesusem, a capital do sistema de Satânia, foi enviada a IURANCHA (a pedido dos próprios atlântidas) uma das esferas artificiais que rodeiam habitualmente o planeta-capital. Era a última fase do plano prodigioso e generoso traçado pelos leais a Micael. Eles sabiam que, exatamente nesse tempo (11 345 anos antes de Cristo), a órbita periódica de 6 666 anos de "Ra" (a esfera artificial) coincidia sobre o nosso sistema solar. E optaram por sua autodestruição, na tentativa de fazer crer aos rebeldes que os arquivos secretos se teriam submergido com a Atlântida no fundo do oceano.;

O narrador fez uma pausa, visivelmente emocionado com a trágica recordação. E fixando os olhos em Sinuhe continuou:

— Esta humanidade cega nada sabe do sacrifício daqueles leais. Tal como relata Platão, o Grande Reino, com todos os habi­tantes e milhares de rebeldes, afundou no transcurso de um dia e uma noite, presa de violentos sismos e maremotos, provo­cados pela "ronda da roda de "Ra". Caligastia, durante algum tem­po, permaneceu no engano, convencido de que o Grande Tesouro se perdera para sempre.

— "Ra"! — murmurou Sinuhe, começando a compreender a natureza daquele astro "intruso", captado pelos radioastrônomos de Arecibo e de que já lhe falara seu Kheri Heb...

Muito embora as perguntas lhe borbulhassem no coração, esperou. Seu misterioso irmão de Ordem não havia concluído...

 

— Quando, 11 000 anos antes de Cristo — prosseguiu o homem branco — aquela audaciosa expedição que transportava os arquivos secretos conseguiu encalhar seu barco (o Dalamachia) em uma das praias do Egito, os atlântidas sobreviventes deram andamento a um minucioso e secreto plano, destinado, fundamen­talmente, a esconder o Grande Tesouro. E partindo do próprio casco do barco construíram uma pirâmide subterrânea.

Iluminaram-se os olhos de Sinuhe.

— Pirâmide gigantesca que já conheces — observou o nar­rador — e que, milhares de anos depois, teria sua réplica na chamada Grande Pirâmide de Quéops.

O investigador não se conteve e o corrigiu:

— Uma réplica, dizes? A de Quéops, a que todos conhecem, não tem algumas das câmaras que percorri.. .

O homem branco sorriu, benevolente.

— Digamos que os egiptólogos não tenham tido acesso a elas...

— Queres dizer...?

— Sim, que ambas as construções são gêmeas. Mas muito tempo há que transcorrer ainda até que os homens do teu mundo tenham acesso a esse segredo.

— Nem consigo entendê-lo... — murmurou Sinuhe, supli­cando que o tirassem da nova e irritante confusão.

— Deves conter tua impaciência e deixar-me prosseguir. Só assim poder ás compreender — o companheiro de Loja de Sinuhe guardou silêncio e, depois de pequena pausa, acrescentou: — e, talvez, se o crês oportuno, reencetar tua missão.

O investigador intuiu algo de especial naquelas últimas pala­vras. Será que a missão de busca dos arquivos secretos poderia terminar ali, na chamada "câmara couraçada" de IURANCHA?

— Muito tempo depois que a pirâmide subterrânea estava terminada e o Grande Tesouro depositado em seu interior (preci­samente onde agora nos encontramos), aqueles leais a Micael to­maram a decisão de fundar um novo povo. Sabiam que a forma mais segura e eficaz de salvaguardar os arquivos era, justamente, separar-se deles e fazer crer aos rebeldes (na suposição de que fossem descobertos) que o Tesouro continuava com eles.

— Um momento! — interferiu novamente o "soror". — Os arquivos secretos estão aqui?

Seu confidente não respondeu. Apareceu-lhe nos olhos aquele pesar que Sinuhe já tinha observado pouco antes. Finalmente, com voz trêmula, desvendou uma parte do que tanto interessava ao

investigador:

— Desgraçadamente, não... Foram saqueados.

— Como? Quando?

O homem branco levantou as mãos e suplicou-lhe paciência.

— O plano dos atlantes era bom. E deu os resultados dese­jados durante 10 000 anos. Uns 4 000 antes de vossa Era, aquela reduzida e valorosa população mesclou-se, por fim, com as tribos dos antigos povoadores do que, a partir desses tempos, seria co­nhecido como Egito. Aqueles humanos primitivos, dirigidos pelos atlantes, passaram assim, quase subitamente do Neolítico a um invejável estágio evolutivo. Bem depressa os conhecimentos da­quela expedição fizeram florescer as artes e as letras, proporcionan­do maravilhoso impulso ao comércio, às construções, à agricultura, às matemáticas, à astronomia e ao culto à Divindade única. Foram eles que revitalizaram o sangue e o espírito daquele povo, trans­formando-o, com o passar dos séculos, no que depois seria a admi­ração de IURANCHA.

Sinuhe se lembrou das crenças universais e ancestrais que acusaram sempre certa "influência" estrangeira como possível ex­plicação* e causa do misterioso e repentino desabrochar do antigo Egito. O escritor e historiador do século I, Deodoro da Sicília, já o insinuava quando escrevia: "Os egípcios eram estranhos quer em tempos remotos, assentaram-se às margens do Nilo, levando consigo a civilização do seu país de origem, a arte de escrever e uma linguagem refinada. Chegaram procedentes da direção do sol poente, e eram os homens mais antigos."

No século XX, o professor W. N. Emery, como outros muitos especialistas, anotava em seu livro Egito Arcaico que, no quarto milênio antes de Cristo, o Egito passou bruscamente da Idade da Pedra a reinos bem organizados onde, ao mesmo tempo em que aparecia a arte de escrever, a arquitetura monumental, as artes e os ofícios se desenvolveram de maneira incrível, com todos os sinais de uma civilização bem organizada e até mesmo requintada.

Mas que pôde ter acontecido? Por que o povo fundado pelos leais a Micael terminou por extinguir-se e, sobretudo, quem terá sido o responsável pelo roubo dos arquivos secretos?

 

— Aquele admirável impulso e transformação, no entanto — continuou o homem branco — não passou desapercebido para as hostes de Caligastia. Embora os atlantes tivessem cruzado seu sangue com o dos autóctones, apagando assim as pegadas do próprio passado e de sua verdadeira identidade, as forças do Ma­ligno (intrigadas e temerosas) não tardaram a infiltrar-se. Os descendentes da expedição primigênia (zelosos depositários da

existência do Grande Tesouro) adotaram pois uma série de medi­das preventivas. Uma delas foi precisamente a construção de pirâ­mides magníficas e monumentais. Uma, em especial, que levaria o nome do seu construtor, Quéops, foi levantada seguindo os mesmos padrões e medidas da Grande Pirâmide subterrânea...

— Por quê?

— Se os rebeldes continuassem misturando-se com o povo egípcio e chegassem a suspeitar ou desvelar a verdadeira origem de seus fundadores, a segurança dos arquivos secretos poderia ser comprometida. Daí que, por prevenção, decidiram levantar à mar­gem esquerda do Nilo, a muitos quilômetros da verdadeira locali­zação da pirâmide subterrânea, outra construção gêmea, com seu complexo enredado de câmaras e galerias (umas falsas, genuínas outras) que, se fosse o caso, serviria para confundir definitiva­mente os seguidores de Lúcifer.

"Não eram infundados os temores dos descendentes dos atlan­tes. As forças do mal foram ganhando terreno e influência, con­seguindo, a pouco e pouco, que o nobre povo egípcio olvidasse sua fé em um só Deus, caindo em um emaranhado de costumes idolatras e supersticiosos. E Amon, símbolo de Lúcifer, não tardou em ocupar posto de honra entre todas as divindades. Os rebeldes apoderaram-se do controle das castas sacerdotais, che­gando até mesmo ao trono. Apesar disso, no mais profundo do espírito egípcio, ficou viva a memória daqueles "deuses" chegados um dia do Oeste. Tal sentimento, unido à sua indestrutível crença em um "além mundo" e seus profundos conhecimentos científicos e artísticos foram o legado de uma raça (a dos atlantes) que praticamente veio a desaparecer. ..

— Extinguiram-se? — perguntou meio incrédulo.

— Quase por completo...

— Mas e o Grande Tesouro?

— No ano 1 366 antes de Cristo-Micael, em tempos da XVIII dinastia, os poucos conhecedores da existência da pirâmide subter­rânea decidiram-se a fundar uma Ordem secreta, que custodiasse o Grande Tesouro. Essa Ordem, caro Sinuhe, passou a chamar-se "Escola da Sabedoria"...

Ele, que havia estudado a origem remota da Loja de que era irmão, ignorava a íntima motivação por que fora criada. Daí sua surpresa, ao ouvir as palavras do portador daquele selo, não ter limite.

— Nossa Ordem? — balbuciou.

— A Escola da Sabedoria! — exclamou o branco com orgu­lho —. A mais antiga de IURANCHA, segundo reza vosso papiro número 10 474...

Sinuhe, cada vez mais perplexo, não teve forças para fazer perguntas.

— Pouco tempo após o nascimento da Grande Loja, a Pro­vidência fez com que o sucessor do rei Amenofis III, seu filho Akhenaton ou Amenofis IV, passasse a fazer parte do primeiro Templo da Irmandade. E guiado pela própria retidão e sensibilidade lutou pela implantação de uma única Divindade, que ele designou pelo nome de Aton. Durante seu curto reinado, a Escola da Sabe­doria assentou-se definitivamente, admitindo novos irmãos. Mas, apesar de escrupulosa seleção, a Loja cometeu grave e irreparável erro: um dos rebeldes (o general Horemheb, de grande prestígio em toda a nação), depois de numerosas e insistentes petições, foi admitido no Conselho dos Kheri Hebs. E dessa forma, as forças do mal acabaram por averiguar onde se encontrava o Grande Tesouro...

"Horemheb, astuto qual serpente, soube galgar o trono do Egito quando da morte de Ay, o "Pai Divino", membro, como seus antecessores (os faraós Akhenaton e seu irmão e genro, Tutankhamon) da Grande Loja. Apesar dos esforços da Escola da Sabedoria por impedi-lo, o traidor e seus sequazes, todos eles a serviço de Lúcifer, penetraram na pirâmide subterrânea e arreba­taram os arquivos...

Sinuhe desaprovou com a cabeça, comentando:

— Há alguns aspectos que não consigo entender.

Dessa vez foi o homem branco quem interrogou o "soror" com o olhar.

— Em primeiro lugar — expôs o investigador — se a pirâ­mide subterrânea foi construída milhares de anos antes do reinado de Tutankhamon, morto em 1 343 antes de Cristo, como é pos­sível que aqueles primitivos atlantes desenhassem e construíssem uma réplica quase exata do túmulo dele, no interior da pirâmide subterrânea?

— Muito simples — replicou o interlocutor com sorriso amargo —. Essa câmara sepulcral a que te referes, e de que pra­ticamente acabas de sair, é obra posterior.

— Continuo sem entender...

— A réplica da tumba descoberta em 1 922 de tua Era por Howard Carter no Vale dos Reis foi executada por Horemheb, com o único fito de confundir possíveis e futuros intrusos.. . como tu. As forças do Maligno, como haveis tido ocasião de sofrer, dominam e controlam a pirâmide. Nada nem ninguém pode entrar ou sair dela sem que os rebeldes o saibam e consintam.

— Isso não é possível — explodiu Sinuhe — Nietihw e eu fomos ajudados e, inclusive, salvos, em vários e graves momentos. Além do mais, como explicar vossa presença e a minha nesta "câ­mara couraçada"?

— Tanto tu, Sinuhe, como nós, os homens "Pi" — senten­ciou o branco com tristeza —, somos apenas prisioneiros.

Aquela revelação categórica mudava as coisas.

— Prisioneiros?.. . De quem?

— De Lúcifer ou de seus representantes em IURANCHA. .. naturalmente.

— Então — lamentou o investigador — todas essas provas a que temos sido submetidos.. .

O companheiro de Loja moveu a cabeça em sinal de desa­provação.

— Farsa pura. Puros sonhos e fantasias para provar-vos, conhecer-vos e, definitivamente, para colocar-vos (a ti e à filha da raça azul) no ponto desejado por eles. No mais inexpugnável. Naquele em que permanecereis (como nós) enterrados pelo resto da vida. . .

 

As palavras daquele homem foram ditas em tom tão convin­cente que Sinuhe, mergulhado nas mais densas dúvidas desde que se envolvera naquela missão, deixou-se cair no chão da câmara. Por muito tempo ficou sentado, cabeça baixa, tentando ordenai sentimentos e idéias.

Apesar de tudo, havia "alguma coisa" viva ainda — que lhe adejava no coração. Eram as palavras de Agurno, aquele ser gi­gantesco materializado no bosquezinho de Sotillo...

"Saibam que não será fácil" — tinha-lhes anunciado —. "Guardem-se de Belzebu. Estejam prevenidos porque' não haverá tréguas para vós. Embora ninguém os possa substituir, outros 'medianos' leais estarão prontos a socorrê-los. Procurem Solônia, o serafim que guardou o Éden. Sua espada lhes será necessária. O olho de Ra velará pelos dois..."

"Que sentido teriam agora essas palavras?" — meditou Sinuhe. — "Onde estavam esses 'medianos leais' que deveriam estar prontos para socorrê-los? Por que o olho de Ra fora tragado por aquele misterioso corvo branco?"

Entretanto, embora sua confusão fosse crescendo, Sinuhe ne­gava-se a aceitar que tudo tivesse sido farsa ou miragem manipu­ladas pelos rebeldes. É verdade que antes de penetrar no velho barco — o Dalamachia —, tanto Nietihw como ele haviam perdido a coroa com o nome cósmico e seu "amigo", o disco, respectiva­mente. Mas que sentido teria que Vana — o "mediano" rebelde a quem devolveram a vida — os tivesse ajudado? "Se as forças do mal estavam conjuradas para perdê-los" — deduziu, pondo à prova sua própria lógica — "aquela criatura não lhes teria indicado a direção de Dalamachia... Ou sim?"

Consumiu tempo mas, finalmente, convenceu-se, pela enésima vez, de que não podia confiar nas aparências. E se aquela suposta câmara blindada e os homens de cor fossem também um estra­tagema ou uma farsa? Já não podia ter certeza de nada, a não ser, claro, na sua intuição. E lutando consigo mesmo, tomou a firme decisão — acontecesse o que acontecesse — de não ser render. Sua missão era chegar até os arquivos secretos de IURANCHA e tinha de batalhar até consumir o último alento.. .

Mais animado, levantou o rosto e, pondo-se em pé, dirigiu-se novamente ao grupo que, silencioso, aguardava a sua reação. Ele porém, prudentemente, não abriu o coração aos homens "Pi". Em sua mente ficavam ainda muitas lacunas e, se em realidade se encontrava enterrado vivo, tinha todo o tempo do mundo — embo­ra os conceitos "tempo" e "mundo" não lhe aparecessem muito claros — para solucioná-las. Talvez por esse caminho se lhe fizesse a luz no espírito atormentado.. .

— Prisioneiros. Dizes que somos prisioneiros — manifestou-se, fixando o olhar nos olhos do porta-voz do grupo —. Mas e vós? Desde quando estais aqui? Acabais de afirmar que nada nem ninguém pode ingressar na pirâmide subterrânea sem o consenti­mento deles...

— É isso — replicou o branco —. Tuas perguntas são lógicas. Quem primeiro desafiou Horemheb fui eu, Amen-Em-Apt. Eis o

meu nome. Figuro nos sagrados papiros da Escola da Sabedoria com o cognome de O Verdadeiro Silencioso.

Aquela revelação quase arruinou os propósitos do investigador. Amen-Em-Apt, como constava no já mencionado papiro 10 474 da Loja, era considerado o propulsor, o primeiro Kheri Heb ou Grão-Mestre da Escola da Sabedoria. Sua existência remontava a quase catorze séculos antes de Cristo. E Sinuhe, boca aberta, contemplou de cima a baixo o sacerdote egípcio, sem poder conce­ber que estivesse diante de um ser humano que viveu na dinastia XVIII e, portanto, cerca de 3 350 anos atrás!

— Sei o que estás pensando, Sinuhe — surpreendeu-o Amen com um sorriso... Em primeiro lugar, devo esclarecer-te que não fui o primeiro Kheri Heb. Em todo caso, um mais do Primeiro Grão-Conselho... E, em segundo, que todo aquele que, como nós, desafia o poder das forças do Maligno e é capaz de chegar até aqui, é condenado ao pior dos suplícios: viver eternamente...

"Mas dizia-te que fui o primeiro a desafiar Horemheb. Con-tar-te-ei por quê. Quando os rebeldes, graças à traição do general, conquistaram o domínio da pirâmide subterrânea, na tentativa de salvar o Grande Tesouro, aventurei-me por ela. Tive de padecer sofrimentos idênticos aos que experimentaste. Finalmente, quando a segunda adaga estava em minhas mãos, fui projetado da névoa de gelo até a "câmara couraçada", e minha desilusão foi completa: o Tesouro havia desaparecido. Desde aquele momento, como te dizia, vivo nesta prisão... Depois, tal como tu, outros homens "Pi" também o tentaram... com o mesmo resultado.

Amen acompanhou essas palavras com um gesto, apresentan­do os homens que o escutavam.

— Por que vos chamais homens "Pi"?

— Somos, como tu e Nietihw, buscadores da Verdade. "Pi" é um símbolo: o número transcendental, racional e infinito que tende à Perfeição. Como "pi", toda alma evolucionária que anseia pela Verdade vai modificando a "quadratura" de suas imperfeições até talvez, algum dia, trocar sua tosca personalidade pela brilhante infinitude do "círculo". Mas tal momento se acha ainda muito distante...

E o Kheri Heb, mostrando a figura de cabeça quadrada em seu emblema, acrescentou:

— Por isso, com toda humildade, conscientes do nosso longo caminho para a Perfeição, nós, os homens "Pi", incluímos em nosso escudo o homem de cabeça quadrada: a primeira etapa para esse irrenunciável encontro com a Verdade.

Sem querer, Sinuhe se perguntou de que valiam agora aquelas boas intenções. Que sentido tinham os homens "Pi"?

Amen, lendo seu coração, respondeu-lhe assim:

— Precisamente os fracassos (ou aparentes fracassos), que­rido irmão, constituem o meio mais eficaz para que algum dia se possua a Verdade. E posso adiantar-te que nossa falida tentativa de recuperar o Grande Tesouro não foi em vão...

Sinuhe captou uma chispa de esperança nos olhos do Grão-Mestre. A que se referiria Amen-Em-Apt?

 

— Também os rebeldes cometem erros, Sinuhe...

O Kheri Heb abandonou a coluna de mármore e caminhou para um dos altos muros do hexágono. Uma vez ali, girou sobre os calcanhares e, apontando para a reluzente parede que estava às suas costas, exclamou:

— Solônia te espera... Dá-nos tempo para abrir o ano...

Sinuhe compreendeu. Se a "câmara blindada" se achava real­mente sob o controle permanente dos rebeldes, o mais provável seria que, naqueles momentos, estivessem sendo observados. Amen lhe havia falado em código. E embora houvesse entendido apenas a primeira frase, aceitou o jogo. Os homens "Pi", sem dúvida, sabiam alguma, coisa. Podia ser que ao longo da milenar residência na câmara, eles tivessem descoberto algum meio para sair da pirâmide.

O sacerdote se reintegrou ao grupo e prosseguiu em suas explicações:

— Horemheb e todos os que habitam a Torre de Amon (desde Belzebu até o último dos seus 40 000 "medianos" rebel­des) sabem que o Grande Tesouro está a salvo, a menos que alguém consiga penetrar em seus domínios. E ainda assim, tal missão seria quase impossível. Mas, para ter acesso à Torre infernal, é pre­ciso primeiro chegar até Solônia, o serafim que guardou as portas do Éden e que brande a espada "iluminadora". Nós somos os únicos que conhecemos o meio para encontrá-lo e os seguidores de Lúcifer sabem disso. Portanto, nada melhor para eles do que manter-nos com vida e perfeitamente vigiados nesta "câmara cou­raçada". Se alguém, alguma vez, pudesse ter nas mãos a espada de Solônia, os rebeldes teriam descoberto o segredo, tornando mais difícil ainda a recuperação dos arquivos. Eles, como sabes, estão conscientes da transcendência que teria para o mundo o conheci­mento do que verdadeiramente aconteceu no passado. Se a huma­nidade conquistasse essa parte da Verdade, as mentes de muitos nobres "iuranchianos" se abririam e talvez o caos e a confusão atuais fossem aliviados pela íuz e pela esperança.

Amen pronunciou então uma palavra que trouxe velhas lem­branças ao investigador.

— Os rebeldes têm também notícias de um Corpo de Reser­va, chamado "da Finalidade", que congrega uma série de "fina­listas" em IURANCHA e entre cujas missões figura a busca do Grande Tesouro...

— Os reservistas! — exclamou, recordando-se da misteriosa mensagem de Ra, no ático do velho casarão. — "Sou seu enlace mediano como reservista."

O sacerdote assentiu com gesto grave.

— Dize-me Amen: em que consiste esse Corpo de Reserva da Finalidade?

— Já que Belzebu e seus "medianos" o sabem, entendo que te posso falar disso. Esse "Corpo" é formado (nas diferentes épo­cas de IURANCHA) por um reduzido núcleo de humanos evolucionários, autóctones do planeta, homens e mulheres, escolhidos pelos diretores espirituais do Reino para colaborar no ministério da misericórdia e sabedoria junto aos filhos do tempo, seus irmãos. Quando seres humanos são eleitos "reservistas" ou indivíduos "des­tacados" nos planos dos administradores celestes, o chefe dos sera­fins planetários confirma sua agregação temporal ao corpo seráfico, designando para eles guardiães pessoais do Destino. Em geral são escolhidos pelas seguintes razões:

"Pela aptidão especial para serem secretamente treinados em missões de urgência.

"Pela consagração sincera a causas sociais, econômicas, polí­ticas, espirituais ou de qualquer outra índole e às quais se tenham entregado sem visar a recompensas ou reconhecimento humano.

"Por último, por estar de posse de um Harmonizador Mental dotado de extraordinária variedade de talentos e que, provavel­mente, tenha já adquirido grande experiência em outros mundos, na luta pela Justiça e pela Perfeição.

"Cada mundo habitado utiliza uma média de 70 Corpos de Reserva. Em IURANCHA, nosso planeta, há 12 grupos de "reser­vistas". Um para cada bloco de "supervisão seráfica". Na atuali­dade, tua Era, a totalidade de membros desse Corpo de Reserva soma 962. O grupo mais reduzido consta de 41 e o mais nutrido, de 172. Com exceção de uma vintena de humanos, os demais "reservistas" não têm consciência de terem sido preparados para as emergências planetárias. Perguntar-te-ás como são (como fostes) treinados. A maior parte, por uma ação meticulosa, lenta e conjugada mentalmente aos seus respectivos Harmonizadores e anjos da guarda. Freqüentemente, outras muitas» personalidades celestes participam também dessa preparação espiritual inconscien­te, sem esquecer, claro, os "medianos" leais que prestam serviços esplêndidos à causa.

— Então Ra, o disco, não era outra coisa senão um desses "medianos" leais...

Amen concordou com a cabeça.

— Essas criaturas — prosseguiu o Kheri Heb, esclarecendo assim outra das velhas dúvidas de Sinuhe — nasceram há já muito tempo e quase acidentalmente. Foram a prodigiosa conseqüência de um experimento mental, levado a cabo entre dois altos membros do Estado-Maior de Caligastia: um varão e uma mulher. Essa "união" espiritual deu um fruto singular: a aparição sobre IURAN­CHA (não o confundas com um nascimento) de um ser intermédio entre a natureza física e densa, como a nossa, e a espiritual. São invisíveis aos olhos dos "iuranchianos", mas podem materializar-se em diferentes formas e ocasiões. Há 500 000 anos, quando Cali­gastia era ainda um príncipe planetário leal a Micael, os 100 mem­bros que formavam seu Estado-Maior "procriaram" assim um total de 50 000 "medianos", que prestaram valiosos serviços ao mara­vilhoso plano de elevação física e mental da humanidade. Mas, ao acontecer a grande revolta, apenas 9 800 desses 40 000 perma­neceram fiéis a Micael. Todos os demais (Vana, por exemplo) foram engrossar as fileiras dos rebeldes, e seu quartel-general é a Torre de Amon, de onde se estendem pelo planeta, semeando a con­fusão e a iniqüidade. Durante séculos e séculos, inclusive agora, no teu século XX, muitos humanos os confundiram com "diabos" ou "demônios". E talvez tenham razão...

— E Belzebu? — perguntou um Sinuhe, fascinado.

— Continua sendo o chefe dos "medianos" desleais. Na atua­lidade é o custódio do Grande Tesouro.. .

— Alguma coisa eu não vejo claramente. Se esses "medianos" são de uma natureza intermediária, isso significa que são imortais?

— Foram-no, querido Sinuhe. Foram-no...

— Que queres dizer?

— Nós, apesar de levarmos o título de homens "Pi", não conhecemos toda a Verdade sobre o passado de IURANCHA; essa Verdade, como outras de valor incalculável, está depositada no Grande Tesouro. Só posso adiantar-te que a perda da imorta­lidade por parte de Belzebu e seus sequazes teve muito que ver com sua própria rebelião..., e com a Árvore da Vida. Mas não atormentes nossos corações com novas perguntas sobre aqueles sucessos. Se algum dia alcançares os arquivos secretos, tuas dúvi­das serão satisfeitas...

— Mas lembro-me de que Vana, o "mediano" rebelde — continuou Sinuhe, fazendo ouvidos moucos à súplica de Amen — foi devolvido à vida com a ajuda dos "ibos".

O Kheri'Heb considerou em sua verdadeira medida o zelo do jovem e impetuoso "iuranchiano". Mas, ao contrário do que espe­rava Sinuhe, eludiu o tema com a seguinte insinuação:

— E por que achas que os rebeldes capturaram Nietihw?. . .

O investigador se deu conta de que, efetivamente, quando a filha da raça azul desapareceu no poço da câmara dourada, con­servava o pequeno frasco com os mágicos "ibos" ou grânulos de "tempo", com os quais devolvera a vida a Samej, a serpente, e a Vana.

— Então, Nietihw...

— Sim, foi levada para a Torre de Amon. E sua preciosa carga de "ibos", requisitada por Belzebu. Essa "areia do tempo", que contribuiu decisivamente para o vosso "salto" a esta outra realidade, pode permitir agora aos rebeldes uma prolongação de sua longa, embora mortal existência. . .

Árvore da Vida, "medianos", Nietihw, Torre de Amon, Gran­de Tesouro. . . Tudo aquilo dançava na torturada alma de Sinuhe. Agora, mais que nunca, tinha de consumar a missão; e com êxito. Mas como?

 

Amen-Em-Apt pousou a mão direita sobre o ombro esquerdo de Sinuhe. Contemplou-o intensamente e, fazendo-se eco de seus próprios pensamentos, murmurou:

— Vejo que teu coração, longe de desfalecer, inflama-se e que desejas, mais que nunca, a recuperação do Grande Tesouro. ..

O investigador assentiu. Cerrava os punhos de raiva.

— És um "reservista" digno, Sinuhe. A verdadeira tempera se mede sempre ante a adversidade. Todos os que aqui estamos, prisioneiros da Mentira, fomos enviados pelos correspondentes Corpos da Reserva. Somos portanto "reservistas" como tu. Per­mite-me que tos apresente. Eles são parte da História de IURANCHA. Quando souberes quem representam, tenho certeza de que amarás um pouco mais a todos os humanos da Terra, e, contigo, se voltares ao teu mundo, aqueles que, por sua mediação, souberem e fizerem seu o testemunho que te vão oferecer. Mesmo que fosse somente para isso, caro Sinuhe, valeu a pena que tenhas chegado até aqui...

Observou-os, perplexo. Que espécie de informação tinham reservada para ele? A quem representariam?

De novo foi Amen, o sacerdote, quem tomou a palavra, ini­ciando um incrível relato. Uma história que marcaria as idéias do investigador sobre as raças humanas da Terra...

— A humanidade de IURANCHA, tal como te ensinou a Escola da Sabedoria, é velha. Desde a aparição daqueles gêmeos (Àdon e Fonta), 10 000 séculos se passaram. A primeira metade de sua História corresponde à época que precedeu a chegada do primeiro príncipe planetário. A segunda começou com a tomada de poder de Caligastia, faz agora, como sabes, 500 000 anos ter­restres. Os arqueólogos e antropólogos dos teus tempos chamam aos últimos milênios dessa segunda metade a Idade da Pedra...

A verdade é que Sinuhe não sabia aonde queria chegar o Grão-Mestre. Tudo aquilo ela já conhecia mais ou menos.

— Pois bem — prosseguiu Amen —, há um milhão de anos, aqueles homens foram submetidos a uma dura prova. Por puro instinto, fizeram por evitar cruzamento com as tribos de símios. Mas as terras altas do Tibet, com seus nove mil metros, impedia-lhes emigrar rumo ao este. Por outro lado, os andonitas (os descendentes de Andon) tampouco puderam encaminhar-se para o sul ou para o oeste. Naqueles tempos, o mar Mediterrâneo era muito mais extenso, chegando até o oceano Indico. Quando luta­ram para abrir caminho até o Norte, os gelos lhes fecharam a passagem. Esse "enclausuramento" foi registrado como uma das emoções "religiosas" mais antigas do homem: montanhas inaces­síveis, à direita, água à esquerda, gelo ao norte e ao sul, seus "pri­mos" os primatas, aos quais repudiavam. Desse "sentimento" surgiu profundo sentido de impotência que, com o tempo, daria lugar a tímidas e incipientes manifestações "religiosas".

"À diferença dos símios, aqueles andonitas evitaram freqüen­temente os bosques, Ê fácil constatar que a evolução progrediu em ritmo menos lento em terrenos abertos e quando, sobretudo, tiveram os humanos de enfrentar o frio e a fome. E em sua pere­grinação iniciada para o Norte, os andonitas (freados pela terceira glaciação: a que vossos geólogos qualificam como a "primeira") estimularam grandemente sua atividade, fruto das privações e cas­tigos de climas tão rigorosos.

"Aquele dado, o da primeira glaciação, é interessante" — pensou Sinuhe —. "De acordo com a Geologia moderna, esse pe­ríodo pode ter-se iniciado há um milhão de anos, com duração aproximada de cem mil anos. As afirmações de Amen não estão, por conseguinte, e no momento, em desacordo com a ciência do século XX..."

E o Kheri Heb, como se lhe tivesse lido os pensamentos, sublinhou:

— As duas glaciações precedentes (que vossos estudiosos não levam em conta) mal se estenderam pela Europa setentrional. Durante essa terceira, ou "primeira" época de gelo, como prefiras, a Inglaterra se comunicava com a França. Eram unidas por terra, assim como a África e a Europa, pela ponte terrestre da Sicília. Esses "canais", assim como aquele que vinculava Java pelo Leste, tiveram grande importância nas migrações andonitas. O chamado "homem de Java", considerado por vossos antropólogos como um pitecantropo, foi um daqueles andonitas que alcançaram o Leste e que depois prosseguiram seu caminho para a Tasmânia.

"Ao contrário destes últimos, os andonitas que emigraram para o Oeste viram-se menos contaminados pelos cruzamentos com as raças simiescas. Com o tempo, fortes contingentes dos andonitas que se haviam espalhado a leste, degenerando-se em seus contínuos cruzamentos com os primatas, retornaram para o Norte, unindo-se assim aos homens mais puros, colocando a primitiva raça humana à beira da extinção como tal espécie. Foram tempos muito difíceis para os que ainda conservavam o culto ao "Gerador do Alento". ..

"Por volta de 900 000 antes de Micael, a sabedoria que Onagar soubera infundir nos andonitas chegou ao seu mais baixo nível. O culto, a incipiente cultura e até mesmo o trabalho com o sílex estiveram a ponto de desaparecer.

"Naquele tempo, tribos de bastardos procedentes do sul da França, perigosamente entrecruzados com criaturas simiescas dos bosques, chegaram à Inglaterra. Eram arremedos humanos: falta­va-lhes o sentimento religioso e mal dominavam o sílex e o fogo. Pouco depois seguiu-lhes um povo prolífico e um pouco superior (a denominada "raça de Heidelberg"), cujos descendentes se es­tenderam por todo o continente: desde os gelos nórdicos até os Alpes e o Mediterrâneo.

"Em todo esse período de decadência, os chamados povos de Foxhall na Inglaterra e as tribos de Badonan, ao noroeste da Índia, souberam conservar alguns dos costumes de Andon, assim como restos da cultura de Onagar. Aqueles homens de Foxhall, os mais ocidentais de então, lograram transmitir seus conhecimentos sobre o sílex a seus sucessores, os remotos antepassados dos esquimós.

Aquela, se não se enganava, era a primeira vez que Sinuhe ouvia falar de Badonan. Intrigado, solicitou mais informação.

— Sim, memoriza bem esse nome (Badonan, tataraneto de Andon), pois de sua estirpe procedem estes irmãos que te con­templam. ..

— Os homens de cor?

— Exato. Mas antes — pediu o Kheri Heb — permite-me que conclua esta parte da História de IURANCHA.

— Além dos povos de Foxhall, a Oeste, o grupo de Badonan converteu-se em foco vital para a evolução do homem. Já verás por quê. ..

"Esse núcleo humano vivia nos contrafortes das terras altas do noroeste da índia. Foram os únicos herdeiros dos famosos gêmeos que jamais praticaram sacrifícios humanos. Os badonitas ocupavam vasta área rodeada de bosques e cortada por numerosos rios. A caça era abundante; prosperaram, construíram toscas casas

de pedra ou habitaram grutas ou galerias subterrâneas. Há ex­plicação para a escolha desses habitats altos. Enquanto as tribos do Norte temiam o gelo, aquelas que viviam perto de seus países de origem viram-se também aterrorizadas, mas por inundações con­tínuas. Muitas dessas tribos viram desaparecer e emergir a penín­sula da Mesopotâmia, e esse medo ancestral do mar e das cheias acabou por empurrá-las para o refúgio das terras elevadas. Hoje, nos atuais montes de Siwalik, ao norte da Índia, encontra-se a maior parte dos restos fósseis que cobriram a transição entre o homem e os grupos pré-humanos.

"Mas, pelo ano 850 000 antes de Micael, as tribos de Bado­nan iniciaram uma série de guerras com seus vizinhos, os bastardos cruzados com símios. E em menos de mil anos os destruíram ou expulsaram para os bosques do sul; com isso fortaleceram e me­lhoraram o ramo andônico. Aqueles descendentes da Badonan ocupariam lugar de destaque na evolução: deles nasceria a raça de Neanderthal.

 

— Neanderthal? — Sinuhe perguntou, incrédulo. — O ho­mem de Neanderthal?

Amen disse sim com breve e significativo sorriso.

O investigador sabia que os ossos desse homem primitivo, achados originariamente no vale de Neanderthal, junto à localidade de Mettmann, não longe da cidade de Düsseldorf no ano de 1856, constituíam fonte de polêmicas constantes entre arqueólogos. Muito especialmente na hora de fixar-lhe a verdadeira origem. Por isso, as revelações do Kheri Heb, concretizando a "pátria" da raça de Neanderthal nas terras altas do noroeste da índia, deixaram-no atônito.

— Aqueles povos (que depois seriam batizados pela tua ci­vilização como homens de Neanderthal) eram excelentes caçadores e melhores viajeiros. Desde seu encrave inicial na Índia, partiram para o Leste, penetrando na China e para o Oeste e para o Sul, dominando a África e a América do Norte, respectivamente. Sua influência foi indiscutível por meio milhão de anos mais ou menos.

"No ano 800 000 antes de Micael, a caça era muito abundan­te. Cervídeos, elefantes e hipopótamos deslocavam-se pela Europa. O gado era numeroso, assim como os cavalos e os lobos. E os homens de Neanderthal souberam fazer uso da carne abundante.

As tribos assentadas na França foram as primeiras a estabelecer a prioridade de eleição da esposa para aqueles membros do clã que demonstrassem maior habilidade na caça.

"A rena foi particularmente útil aos homens de Neanderthal. Utilizavam-nas como fonte de alimento, suas peles para cobrir-se e as partes duras para fabricar ferramentas. Não eram humanos muito inteligentes, porém trouxeram progressos aos trabalhos de sílex, chegando a alcançar quase o mesmo nível dos da época de Andon. Com eles surgiram os machados e as enxadas de sílex atado a cabos de madeira.

"E, em 750 000 antes de Micael, por causa da quarta glaciação, aqueles povos viram-se obrigados a deslocar-se para o Sul. Cinqüenta mil anos mais tarde, quando o pior período de gelo já conhecido na Europa iniciava seu retrocesso, as tribos puderam, finalmente, retornar aos países de origem. O clima era fresco e úmido; os bosques voltaram a cobrir aquelas terras. Graças à ponte terrestre da Sicília, numerosos animais africanos ganharam a Euro­pa, que viu multiplicarem-se leões, rinocerontes, hienas e elefantes.

"Pela metade desse novo período interglaciário (por volta de 650 000 antes de Micael), o clima se tornou tão cálido que o gelo e a neve dos Alpes desapareceram. Mas, pelos anos 550.000 a. M., os gelos avançaram novamente e os humanos foram empurrados para o Sul. Dessa vez, entretanto, as tribos dispunham de ampla faixa de terra que ia em direção ao nordeste, na Ásia, estenden­do-se entre a capa glacial e o mar Negro, que formava, então, um grande anexo do Mediterrâneo.

"Nas épocas seguintes às invasões glaciárias, a cultura huma­na pouco ou nada prosperou: as hierarquias celestes temeram pela vida inteligente em IURANCHA. Naquele último quarto de milhão de anos, os povos primitivos limitaram-se a pescar e a caçar, retro­cedendo, até mesmo, em relação a seus antepassados, os andonitas.

"Durante essas idades tenebrosas, a humanidade chegou ao nível mais baixo de sua História. O culto do homem de Neander­thal não ia além de uma vergonhosa superstição, um medo animalesco das nuvens, da bruma, das névoas. Progressivamente se foi desenvolvendo uma religião nascida do pânico diante das forças da Natureza, com o fito de granjear para si sua clemência à base de sacrifícios humanos. Uma das características mais tristes e degradantes do homem de Neanderthal nasceu, precisamente, do seu horror à escuridão. Não podiam compreender por que o Sol os deixava a cada dia para mergulhá-los nas trevas. Tão-somente a presença da Lua aliviava a pavorosa situação. Por isso, quando a Lua não aparecia no céu, as tribos começaram a oferecer-lhe sa­crifícios humanos para suplicar que voltasse a iluminar-lhes a noite. "E chegamos, enfim, ao ano 500 000 antes de Micael. Data verdadeiramente histórica para a humanidade de IURANCHA. ..

 

Sinuhe creu que seu informante, ao mencionar-lhe aquele momento crucial na História da Terra, iria referir-se à usurpação de Caligastia e, talvez, a um dos assuntos que o havia levado até ali: as causas da rebelião de Lúcifer. Amen, o "Verdadeiro Silen­cioso", e os homens de cor pareciam conhecer toda a verdade sobre IURANCHA. Mas não foi assim.

— Há alguns momentos — reencetou o branco sua exposi­ção — um nome te chamava a atenção: Badonan, Tua intuição não te enganava. Esse tataraneto de Andon e Fonta, além de pro­piciar o nascimento da raça de Neanderthal, foi o "tronco" mater de que brotariam as seis raças de cor que tens diante de ti. Escuta como se deu aquele singular acontecimento, de que a ciência de tua época sofre total ignorância.. .

"Naqueles tempos (faz agora meio milhão de anos) as tribos badonitas das terras altas do noroeste da atual Índia viram-se en­volvidas em uma luta racial que se prolongou durante mais de cem anos. Após a contenda sangrenta, os sobreviventes (uma centena de famílias, apenas) se tornaram os mais inteligentes sucessores dos gêmeos. E deu-se um misterioso acontecimento. Acontecimento que seria a origem de todas, melhor dito, de quase todas as raças humanas. ..

"Um casal que vivia na região nordeste dessas terras altas deu à luz uma prole tão estranha como evolvida: dezenove filhos de cores diferentes. Era a família Sangik. Um nome que foi um marco para a História...

"Os dezenove filhos, digo-te, não só eram mais vivos que seus contemporâneos mas, principalmente, chamaram imediatamente a atenção pela cor da pele. Cinco eram vermelhos; dois, alaranjados; quatro, azuis; dois, verdes; quatro, amarelos, e o resto (outros dois), índigos. Curiosamente, essas cores se acentuavam à luz solar. E essa peculiar característica dos Sangik se foi confirmando com os anos, quando os dezenove filhos se misturaram com outros membros de sua tribo, procriando filhos da mesma cor dos seus respectivos progenitores. A família Sangik pusera em IURANCHA a semente das raças de cor.

Sinuhe examinou os silenciosos companheiros de prisão e co­meçou a intuir o alvo do relato de Amen-Em-Apt. A Antropologia moderna — a do seu mundo — levava e leva decênios a discutir e polemizar sobre a origem do homem e das principais raças, tendo-se formado, inclusive, duas grandes escolas: a policentrista e a monocentrista. A primeira — lembrou Sinuhe — fundada por F. Weidenreich, supõe que o homem atual apareceu, por evolução, em vários centros ou regiões do planeta, relativamente independentes e com ritmos diferentes. Essa teoria — defendida por antropólogos tão esclarecidos como Debetz, V. Alexeiev, Coon e L. Brace, entre outros — acentua que essa diversidade de gênese deu lugar à formação das raças básicas da Terra: européia, negróide, australóide, mongolóide etc. . . Baseiam suas conclusões no fato de os representantes das raças de hoje continuaram guardando alguns traços parecidos com os dos fósseis típicos localizados em territórios em que tais raças viveram algum dia.

Os seguidores da escola monocentrista, por seu lado, tais como Vallois, G. Olivier, Howells, K. Oakley, Bunak e Roguinsky, para citar alguns, consideram que o homem consumou sua evolu­ção em um só centro ou região. Roguinsky, por exemplo, crê que o Homo Sapiens surgiu em uma zona bastante ampla, que abarca a Ásia ocidental, parte da Ásia central e meridional e o nordeste da África. Nessas zonas — afirma — cruzaram-se vários grupos de "paleoantropos", enriquecendo a estrutura genética de suas povoações e desencadeando assim a evolução do homem atual.

Se aquelas explanações do Kheri Heb estavam corretas, a es­cola monocentrista tinha razão: as principais raças humanas teriam nascido em um só ponto do planeta — ao nordeste da Índia —, tal como assegura Roguinsky quando indica, acertadamente, a Ásia meridional.

— E por que dizes que aquele (o nascimento dos dezenove filhos de cor) foi um acontecimento singular?

— Em um planeta ordinário — respondeu Amen — as seis raças básicas evolucionárias de cor apresentam-se uma após outra. Já aqui, em IURANCHA (um mundo "decimal", não o esqueças), aconteceu de uma só vez e no seio de uma só família. Em outros planetas, além disso, a presença dessas raças é um fato que acon­tece pouco depois da aparição dos primeiros seres humanos pro­priamente ditos. Em IURANCHA, se não fosse um mundo expe­rimental, deveria ter acontecido pouco depois da expansão dos andonitas. Mas aqui, tal qual revelam os arquivos secretos, tudo se complicou. ..

Sinuhe captou a insinuação e, sem conter-se, soltou-lhe à queima-roupa:

__ Conheces o conteúdo desse Grande Tesouro.. .

Amen manteve-se sério. E, uma vez mais, arruinou as espe­ranças do seu irmão de Loja.

__ Mesmo que assim fosse, és tu, e sobretudo a filha da raça azul, que deveis descobri-lo por vós mesmos. É vossa a missão. . .

E o sacerdote, esgrimindo um sorriso que deixou perplexo o "iuranchiano", acresceu:

— Além do mais, tudo isso, e nós mesmos, podemos ser uma ilusão a mais, criada pelo Maligno para confundir-te... e perder-te.

A afirmação, embora aparentemente cruel, foi de valor ines­timável para o confiante Sinuhe. Mas. . . sigamos o curso dos acon­tecimentos. ..

— Se IURANCHA, como te dizia — continuou o Kheri Heb, como se não se houvesse passado nada —, tivesse sido um planeta normal, a primeira raça de cor que teria prosperado e dominado o mundo, muito antes que as outras, teria sido a vermelha: a mais inteligente, arrojada e evoluída de quantas existem no universo..

— A vermelha? — repetiu o investigador, incrédulo... A que nós identificamos com a dos índios "peles-vermelhas"?

Amen dirigiu-se ao homem vermelho e, tomando-o pelo braço, conduziu-o frente a Sinuhe.

— Este é Onamonalonton. Um caudilho e chefe espiritual daquela primitiva raça vermelha de IURANCHA. Ele, melhor do que eu, te falará do seu povo e assim compreenderás o grande erro que comete a humanidade ao menosprezar seus atuais des­cendentes. ..

 

O homem vermelho saudou Sinuhe com uma leve inclinação de cabeça. E, cruzando os musculosos braços sobre o peito — à maneira indígena — falou assim:

— Meu povo (a raça vermelha) foi notável exemplo para a humanidade. Sob muitos aspectos foi superior a nossos antepas­sados comuns, os gêmeos Andon e Fonta. Muito cedo se destaca­ram pela inteligência e atividade, formando o primeiro Governo conhecido do planeta. Eram monogâmicos e souberam preservar-se dos perigosos cruzamentos com outras tribos inferiores ou simiescas. Mas, com o passar do tempo, tiveram graves dificuldades com seus "irmãos", os homens amarelos da Ásia. Inventaram o arco e as flechas e foram reconhecidos como bravos lutadores. Desgraçadamente, aqueles meus antepassados, consumidos por con­tínuas lutas fratricidas, enfraqueceram-se e foram expulsos da Ásia pelas tribos amarelas.

"Faz agora 85 000 anos, os sobreviventes vermelhos cruzaram o istmo de Bering, penetrando na América do Norte. Depois, quan­do essa "ponte" terrestre desapareceu, ficaram isolados dos irmãos e descendentes que povoavam outras regiões da Sibéria, China, Ásia central, Índia e Europa. Mas estes últimos grupos, em virtude de acasalamentos sucessivos, foram perdendo cor e identidade pri­mitivas.

"O resto do meu povo (aquele que emigrou para a América) levou consigo muitos dos ensinamentos e costumes de sua origem primeva. Seus antepassados imediatos haviam tido oportunidade de conhecer e aprender as últimas atividades e ensinanças do Quartel-General Mundial do príncipe planetário (Caligastia), embora, como aos demais humanos evolucionários de então, a rebelião os submergisse em profundo caos.

Ao ouvir o nome de Caligastia, Sinuhe esteve a ponto de interromper Onamonalonton. Ele sabia que a chegada, a IURANCHA do referido príncipe praticamente coincidira com o provi­dencial sucesso ocorrido na família Sangik. Mas se conteve.

— Lentamente, aqueles primeiros povoadores da América foram olvidando os ensinamentos. O nível espiritual e cultural baixou ao mínimo. Bem depressa, como acontecera com seus primigênios, os povos vermelhos se enredaram em lutas, chegando à beira do extermínio.

"Até que, faz agora 65 000 anos, a bondade do Pai Celestial me pôs em meio àquelas gentes dizimadas e degradadas. E pelo espaço de 96 anos esforcei-me por devolver ao meu povo o sen­timento do culto ao "Grande Espírito". Durante longo tempo da minha vida, o novo centro revitalizador dos homens vermelhos (meu quartel-general) esteve entre as sequóias gigantes da atual Califórnia.

O investigador interrompeu, surpreso:

— Então, os índios "Pés Pretos"... Onamonalonton sorriu.

— Sim, esse povo é hoje um dos ramos diretamente vincula­dos ao meu tempo de ensinanças.

Entretanto, a voz do cacique sofreu súbito declínio.

— Desgraçadamente, com o passar dos séculos, os homens vermelhos foram ignorando e modificando instruções e orientações, e as guerras aniquilaram os elementos mais valiosos Desde então, nenhum outro educador logrou devolver-lhes a luz. Tivessem se­guido meus ensinamentos, e a raça vermelha teria podido expan­dir-se em paz pelo continente, proporcionando uma civilização brilhante. Essa trágica realidade agravou-se pelo insulamento total dos primeiros homens americanos. Somente com a chegada dos brancos quebrou-se essa situação. Tarde demais, porém. O orgulho do meu povo e a iniqüidade dos segundos terminaram por submer­gir o homem vermelho na destruição e no obscurantismo quase absolutos.

Amen tinha razão. A partir desse instante — ao conhecer a que supunha ser a verdadeira história das raças humanas de cor —, Sinuhe compreendeu que o passado ds IURANCHA era muito mais intenso e rico do que aquilo que sempre imaginara. Um passado que, se desvendado, só poderia unir a todos os mortais deste mundo confuso, demonstrando, por exemplo, que a pretensa supremacia de algumas dessas raças não passa de quimera, fruto da ignorância.

Quem imaginaria que todos os homens de cor procedem no fundo de uma mesma família e que, em conseqüência, são "irmãos' no mais literal dos sentidos!. . .

Entusiasmado, Sinuhe se dispôs a escutar o segundo discurso: o que fazia alusão aos enigmáticos homens cor de laranja.. .

 

— Homens alaranjados na Terra?

Custava-lhe muito adaptar-se à idéia. Mas, por outro lado, Por que rechaçá-la? Que sabemos na realidade do passado remoto

do nosso mundo? A história de IURANCHA está repleta de "acha­dos" e "afirmações" que foram considerados "científicos" nas di­ferentes épocas em que surgiram ou se promulgaram e que hoje só provocam rubor nessa mesma "casta" científica. .. Exemplos? No século XVII o doutor James Ussher, arcebispo de Armagh (Irlanda), pensador de prestígio reconhecido, chegou a determinar o dia exato da criação do mundo: 22 de outubro do ano 4 004 antes de Cristo, às oito da tarde... Essa conclusão "científica", baseada em laboriosos cálculos em torno da duração das vidas dos personagens bíblicos, foi aceita e até corrigida e matizada por outro reconhecido cientista do mesmo século: nada menos que o vice-chanceler da Universidade de Cambridge, John Lighfoot, pedagogo eminente. O bom Lighfoot, depois de sisudos e "cien­tíficos" estudos, precisou o momento exato da criação de Adão; 23 de outubro do mesmo ano — 4 004 a.C. —, às nove da manhã! pelo meridiano de Greenwich, claro.

Mais exemplos? Na primeira metade do século passado, Lorde Kelvin atreveu-se a saltar a barreira do milhão de anos — antigüi­dade "estabelecida" pela ciência para o planeta — anunciando, apesar de seus princípios religiosos, que a Terra devia ter, pelo menos, uma idade de vinte e quatro milhões de anos. Kelvin foi o primeiro cientista a se atrever a tanto.. . Hoje sabemos, pelo relógio de urânio, que IURANCHA é "algo" mais velha: só 5 000 milhões de anos mais.. .

Louis S. B. Leakey, diretor do National Museum Centre for Prehistory and Palaeontology de Nairobi (Quênia), um dos grandes revolucionários da Paleontologia, recordava ao mundo em Paris, em 1 969, "que há mais de um século, Darwin já se atrevia a predizer que o berço da humanidade seria descoberto na África Mas foram poucos os que acreditaram nele. . ."

Em tempos mais próximos que os de Darwin, em 1900, o doutor Deyffarth, teólogo de Leipzig, escrevia um livro em que dizia textualmente:

"... Ficou incontestavelmente demonstrado que no dia 7 de setembro do ano 3 446 antes de Nosso Senhor Jesus Cristo termi­nou o dilúvio e se inventaram os alfabetos das raças do mundo."

Por que prosseguir na enumeração de exemplos sobre "verda­des científicas", obviamente superadas?

Amen-Em-Apt apresentou então o segundo homem de cor: o de pele alaranjada.

— Este é Porshunta, líder também do povo laranja...

O homem de cabelos albinos repetiu a breve reverência e com palavras enxutas expôs-lhe a não menos trágica história de sua gente:

— Meu povo também soube abeberar-se nas escolas de Dalamachia, sede do príncipe planetário. Durante muito tempo desta­cou suas delegações para a "cidade modelo", instruindo-se com a cultura e o progresso chegados de Jerusem e Edência, as capitais do sistema e da constelação, respectivamente.

"Quando o Mediterrâneo se retirou para o Oeste, minha raça foi a primeira a aventurar-se em uma peregrinação para o Sul, entrando na África: Ali destacou-se sobretudo na arte das constru­ções. E, embora com os milênios (e também a partir da rebelião do Maligno) fosse naufragando na escuridão espiritual, a bondade do Pai Celestial me conduziu até eles, faz agora 300 000 anos. Minha sede, em Armageddon, foi outra oportunidade, e a vida espiritual e cultural renasceu com força. Mas a chegada de outra raça irmã (a verde) marcaria o princípio do fim de meu povo infortunado. As batalhas foram constantes e o último choque, no vale do Nilo, conferiu o triunfo aos homens verdes. Meu povo, dizimado, dispersou-se, sendo absorvido pelos vencedores e, final­mente, pela raça índiga. E há uns 100 000 anos o homem alaranjado desapareceu por completo.

Ao guardar silêncio, um terceiro homem — o de cor verde — tomou entre as suas as mãos de Porshunta, exclamando com melancolia:

— Eu, Fantad, chefe da raça que não soube guardar em seu coração o sagrado dever da fraternidade, quero expor-te agora como meu povo (com justiça) recebeu o mesmo pagamento que reclamara dos homens cor de laranja. . .

 

E o "reservista" de olhos negros e profundos como a noite, falou assim:

— A História de IURANCHA sabe que a raça verde foi um dos grupos humanos menos capacitados, debilitados sempre por suas contínuas emigrações. Quando minha vida se extinguiu (faz 350 000 anos já) a dispersão do meu povo foi total e, com isso, sua decadência moral e cultural. A raça verde se dividiu então em três grupos. Os dó Norte, que acabaram como escravos dos amare­los e dos azuis. Os do Oriente, que se uniram a outras tribos da Índia. Restam ainda alguns descendentes, na atualidade, entre os chamados hindus. E os que se dirigiram para o Sul, penetrando na África. Estes, como sabes, massacraram os homens laranja. Os chefes destes últimos colonizadores verdes, da remota ordem dos gigantes, chegaram a medir até 2,40 e 2,70 metros. Seriam mitifi­cados depois através de muitas lendas e tradições.

"Mas estes sobreviventes vitoriosos seriam igualmente subju­gados pelos povos índigos, os últimos a emigrar desde o centro primigênio "Sangik", na Índia, e que os absorveram.

— Como podes comprovar, Sinuhe — interveio o homem amarelo —, a história das raças humanas tem sido sempre, desde suas origens, contínuo e trágico batalhar entre irmãos. A do meu povo, embora o final não tenha sido tão desgraçado, está igual­mente repleta de sangue, obscurantismo e desventura.

O homem de aspecto mongol guardou silêncio, aguardando que Amen o apresentasse.

— Singlanton, guia da raça amarela — anunciou o Kheri Heb —, falar-te-á de seu povo, o mais pacífico de IURANCHA.

— Com efeito — prosseguiu Singlanton — se meu povo conseguiu sobreviver, terá sido, especialmente, porque há 100 000 anos (data em que a bondade do Pai Celestial me concedeu a vida neste mundo evolucionário), até os tempos atuais da China moderna, as tribos amarelas, em geral, têm sido dóceis e pacíficas de espírito. Nossos remotos e primitivos antepassados foram os primeiros a abandonar a caça, estabelecendo-se em co­munidades que souberam estimular a vida familiar e a agricultura. Em inteligência eram inferiores a nossos irmãos, os homens ver­melhos, mas, social e coletivamente, conseguiram superar a todos os povos "Sangik", vindo a ser os fundadores do que poderíamos chamar "civilização radial". Esse sentido do fraterno, que não os abandonou nunca, permitiu-lhes viver em comunidade, tornando realidade seu total e definitivo domínio da Ásia.

"Jamais se distanciaram dos centros de influência espiritual do mundo, embora a apostasia do príncipe planetário os houvesse submetido (talvez mais que a qualquer outro povo) a um insula-mento e a uma postura impenetrável, que chegaram até os dias do teu século XX...

Uma vez ou outra, no transcorrer das exposições dos homens de cor, a rebelião de Lúcifer aparecia como a "grande desgraça" de IURANCHA. E Sinuhe confirmou suas suspeitas: aquela in­surreição remota e quase ignorada marcou trágica e decisivamente todas as raças do mundo. Mas por quê? Que teria ocorrido, na realidade, para que os povos da Terra se vissem assim conde­nados às trevas?

A resposta — ele o sabia — estava no Grande Tesouro...

 

Sinuhe aguardou a apresentação seguinte: a dos homens azuis. Aquela raça, de traços esquimós, havia-lhe causado emoção espe­cial. Talvez, involuntariamente, a associara com sua querida com­panheira. Ela, afinal de contas, era a última, ou uma das últimas descendentes da chamada "raça azul". Tratar-se-ia da mesma? Ou, pelo contrário, como já lhe haviam assegurado, os ancestrais de Nietihw nada teriam que ver com esses "azuis"?

Orlandof, o homem azul, depois de cumprimentar Sinuhe, também com leve inclinação de cabeça, acedeu de boa vontade ao pedido de Amen e expôs a odisséia de seu povo com as seguintes e singelas frases:

— Os azuis, minha raça, foram homens inquietos. Inventaram o dardo e muitos dos rudimentos das artes atuais. Tinham a força cerebral de seu irmão, o homem vermelho, e os sentimentos do amarelo. Durante milhares de anos beberam também das fontes de Dalamachia. Quinhentos anos antes da queda de Caligastia (faz agora 200 000 anos), a bondade do Pai Universal me colocou à frente do meu povo que conheceu, então, seu máximo ressurgi­mento espiritual. Mas, tal como te anunciaram meus irmãos "San­gik", a tempestade que se seguiu à rebelião de Lúcifer mergulhou os homens azuis em idêntica confusão; e eles retrocederam em sua evolução. E mil guerras intestinas explodiram.

"Os achados arqueológicos efetuados na Europa e que, se­gundo vossa classificação, correspondem à Idade da Pedra, per­tencem em grande parte a esqueletos, ferramentas e objetos deco­rativos daqueles primitivos homens azuis. E hoje, essa que chamais "raça branca" é a descendente do meu povo.

Sinuhe, perplexo, rogou a Orlandof que repetisse aquilo.

— Com efeito, a raça branca de IURANCHA é conseqüência direta dos povos azuis, ligeiramente modificados pelos cruzamentos com as raças amarela e vermelha. O resultado ficaria definitiva­mente alterado com a derradeira e mais importante contribuição: a segunda "raça azul ou violeta", à que pertence Nietihw...

O investigador, incansável, tratou de obter mais informações sobre essa segunda raça. Como surgiu na Terra? De onde proce­dia? Por que foi tão importante para o que hoje é a raça branca?

Orlandof se negou. E Amen tornou a lembrar-lhe que "essa parte da Verdade" ele só poderia encontrá-la nos arquivos se­cretos. ..

E, ignorando as súplicas de Sinuhe, tomou pelo braço o gi­gantesco homem negro, dizendo:

— E este, por último, é o grande chefe Orvonon, supremo educador da raça dos homens índigos. Escuta-o.

O enorme negro, ao sorrir, deixou a descoberto branca e orde­nada fileira de dentes. Apesar do talhe, havia nele, como nos companheiros, uma doçura inata.

— Como terás imaginado — falou com voz profunda — meu povo, ao deixar as terras altas do noroeste da índia, ocupou o continente africano. E nunca saiu dele, com exceção daqueles que foram escravizados. Devo reconhecer também que, ao contrá­rio dos vermelhos, meus irmãos foram sempre os mais atrasados do ponto de vista cultural. Minha raça, isolada como a vermelha, não pôde beneficiar-se da ascensão a todos os níveis que repre­sentou a "contribuição" da segunda raça "azul".. .

De novo aquela misteriosa "contribuição". E Sinuhe sentiu o quanto se consumia de curiosidade...

— Depois de meus dias em IURANCHA, a fé dos homens negros no "Deus dos Deuses", que me esforcei por restaurar, se foi apagando aos poucos, embora eles não perdessem de todo o íntimo sentido de adoração ao oculto e desconhecido.

— Estes que tens diante de ti, resumiu Amen-Em-Apt, des­cendente dos homens azuis —, foram os seis grandes guias (talvez hoje, em teu tempo, pudesses chamá-los profetas) das raças de cor originárias do planeta. Mas, ao longo da História de IURAN­CHA, outros muitos educadores foram postos entre os homens para iluminar-lhes o caminho, especialmente no período de obscu­rantismo que mediou entre a rebelião de Caligastia e a chegada dos segundos "azuis" ou "violetas". ..

— Por que falais de "azuis" ou "violetas"?

— Se a Suprema Inteligência te iluminar e conseguires chegar aos arquivos secretos te darás conta de que a diferenciação não tem a menor importância.

Amen, uma vez mais, respondia com evasivas.

— O certo é — argumentou Sinuhe, mudando de tática — que o "plano" celeste, ao menos com o nosso planeta, não parece ter dado bons resultados. A presença das raças de cor só serviu para multiplicar a violência e o ódio.

— Tens razão. . . até certo ponto. O "plano" da Divindade é bom. Erros posteriores são conseqüência da ignorância dos mor­tais ou, como no caso de IURANCHA, da terrível involução pro­vocada pela rebelião. . . Mas as raças, em si mesmas, não são negativas. Ao contrário. Dar-te-ei algumas razões: a variedade, por exemplo, é indispensável para permitir amplo funcionamento da seleção natural. Com o cruzamento de vários povos, quando são portadores de fatores hereditários superiores, conseguem-se raças melhores e mais fortes. Aqui na Terra, entretanto, como já insi­nuamos, falhou o último "passo": a revitalização dessas raças pela contribuição dos segundos "azuis", também chamados "ascensores biológicos".

— "Ascensores biológicos"? — pressionou Sinuhe.

O Kheri Heb, com um sorriso de cumplicidade, continuou enumerando razões que, em sua opinião, justificam a existência das raças de cor:

— A diversificação das raças, além disso, favorece competiti­vidade sã. E não te esqueças de que os diferentes estatutos dessas raças e dos grupos que as integram são essenciais para o cultivo da tolerância e do altruísmo humanos. Por último, a homogenei­dade das raças em um mundo em evolução não é desejável en­quanto esse planeta não tenha alcançado níveis relativamente altos de desenvolvimento espiritual.

— Queres dizer que, algum dia, em IURANCHA, haverá uma só raça humana?

— É possível, caro Sinuhe, sempre e quando o planeta saiba descobrir qual foi sua origem e qual seu destino maravilhoso. E tanto tu, como nós e todos os que nos sucedam na busca da Ver­dade, desempenhamos um modesto mas, ao mesmo tempo, insubs­tituível papel. E o vosso, aqui e agora, não é outro senão o de che­gar ao Grande Tesouro. . . e difundir quanto ele contém.

— Sim — lamentou-se o investigador —, mas, como? Amen, colocando de novo as mãos sobre a prancha cobreada da coluna de mármore branco, pôs em andamento um velho e calculado plano de fuga...

 

— Quando a força do Maligno te arrastou até nós — expli­cou-lhe o sacerdote —, uma de tuas primeiras perguntas (lembras-te?) foi sobre esta coluna.

Sinuhe se lembrava, naturalmente.

— Pois bem, desde que as atlantes construíram esta grande pirâmide subterrânea, cujo nome, como sabes (Dalamachia), evoca a "cidade-modelo" da qual eles foram obrigados a fugir depois da rebelião de Lúcifer, esta que chamamos "Câmara couraçada" de IURANCHA — e Amen fez um gesto com as mãos, abarcando o hexágono onde se achavam — foi sempre o depósito dos arquivos secretos do planeta. O Grande Tesouro, se o preferes!

— Aqui? Como...?

— É lógico que Nietihw e tu tenhais imaginado esses arqui­vos à maneira dos que habitualmente se utilizam em teu mundo. Fosse assim e, como compreenderás, não teria sido suficiente esta pirâmide, nem mais outras cem como Dalamachia... A História da Terra, amigo, é mais antiga e complexa do que pretendem os sábios de vossa Era. Seus arquivos, por conseguinte, tinham de ser... "diferentes".

O investigador compreendeu que estava na iminência de co­nhecer uma nova maravilha.

— Quando Caligastia e seu Estado-Maior tomaram posse de IURANCHA, há 500 000 anos, um corpo especial de serafins trans­portou de Edência, a capital de nossa constelação, a Árvore da Vida e a "pluma de Thot". Da primeira, não tenho permissão para falar-te. Mas da segunda sim, já que é a chave da tua missão.

A "pluma de Thot" vem a ser, na realidade, o Grande Tesouro. Entre outros sistemas, a administração dos universos uti­liza essas "plumas" como arquivos secretos de cada mundo evolucionário.

— Uma "pluma"? — perguntou impaciente. — Não te com­preendo.

— O importante não é que o entendas, mas que o creias e saibas como manejá-las, se é que a força e a luz da Sabedoria te permitirão chegar até ela. ..

— Tu dirás — retrucou, disposto a aceitar o que quer que fosse.

— Desde o momento em que os Mui Altos Pais da constela­ção decidem consagrar uma dessas "plumas" ao serviço de um planeta em evolução, esses mesmos seres celestes responsáveis pelo traslado delas permanecem já em íntimo e contínuo contato com o Grande Tesouro, subministrando à "pluma" toda a informação concernente ao mundo em questão. Esses serafins, conhecidos como os "arquivistas celestes", dependentes da Ordem dos "man­tenedores do arquivo do Paraíso", embora o pretendam, não podem influir nem controlar o destino da "pluma" que têm sob sua res­ponsabilidade. Somente no fim dos tempos de cada mundo devem restituí-la à capital da constelação. E durante o período de vida concedido a cada esfera evolucionária, o trabalho dos "arquivistas" se circunscreve à subministração informativa: a mais veraz, objetiva e pormenorizada que ser humano algum pode supor e que abarca todos os sucessos protagonizados pelas criaturas viventes do astro. Mas essa "pluma" (indestrutível e de cuja beleza não te falarei) goza de singular particularidade. Ao mesmo tempo em que recebe e classifica cronologicamente cada informação trazida pelos "arquivistas celestes", está preparada ("programada", diriam em teu mundo) para responder a quantas perguntas lhe sejam for­muladas pelos que ostentam o "sinal de Micael".

Amen fez uma pausa para esperar a imediata e lógica per­gunta do "soror".

— E eu, supondo-se que eu possa chegar até a "pluma de Thot", que devo fazer?

— Não é nossa intenção ocultar-te a verdade. A "pluma" de IURANCHA, o Grande Tesouro, como já te foi dito, caiu em poder dos rebeldes. Horemheb, o traidor, logrou apoderar-se dela e levá-la desta câmara.

O Kheri Heb apontou para a placa avermelhada sobre a co­luna, acrescendo:

— Durante milênios, este foi seu sagrado altar.. . Agora está fortemente custodiada na Torre de Amon, quartel-general de Bel-zebu e seus 40 000 "medianos". O ingresso nessa torre é pratica­mente impossível para os humanos. Além do mais, mesmo que o êxito te acompanhasse, os servidores de Lúcifer a guardaram em outra "câmara blindada", igualzinha a esta, na qual é material­mente inviável entrar ou sair, sem a ajuda dos próprios rebeldes. Como também sabes, a força do mal é a primeira interessada em que a sabedoria da "pluma" não transcenda aos mortais de IURANCHA. Isso significaria conhecer parte da Verdade sobre o que sucedeu em nosso mundo, e a inegável influência dessa força sobre a humanidade poderia ver-se afetada.

— Um momento — terçou Sinuhe —. Vamos por partes. Se compreendi bem, somente os que ostentam o "sinal de Micael podem interrogar a "pluma". . .

Amen concordou.

— Nesse caso, nem Belzebu nem seus sequazes puderam. . . —' Não precisam — interveio Amen, aclarando as dúvidas do investigador —. Eles fazem parte dessa Verdade. Em boa me­dida a protagonizaram, embora eu imagine que sentirão curiosidade por saber que terá sido do seu grande caudilho, Lúcifer. ..

— Não o sabem?

— Suponhamos que não. Quando eclodiu a rebelião, IURAN­CHA e os demais planetas leais ao Maligno foram postos em "qua­rentena" e, conseqüentemente, isolados do exterior.

— Bem interessante. . . — murmurou Sinuhe, acalentando na mente o que parecia ser uma remota possibilidade.

— Não cries ilusões — argumentou o sacerdote —. Se chegasses a penetrar na torre, como escapadas? E o que é mais difícil ainda: como resgatadas a "pluma"?

Nosso homem não houve responder. As dificuldades sempre o estimularam, embora, neste caso, reconhecesse que eram quase intransponíveis...

— Alguma coisa há de ocorrer-me — retrucou, sem meditar sobre o problema.

— Está bem. Era precisamente o que desejávamos ouvir. E agora, por favor, escuta atentamente. . .

 

Cinco dos sete homens — como se houvessem estado à espera durante milênios por aquele momento — caminharam devagar até a parede diante da qual Amen-Em-Apt pronunciara aquelas enigmáticas palavras: "Solônia te aguarda. . . Dá-nos tempo para abrir o ano".

Os cinco chefes, com exceção do negro, tomaram posição, situando-se de frente — e a coisa de meio metro — da reluzente parede. E assim permaneceram, hieráticos e em silêncio.

Alguma coisa eles planejavam e Sinuhe se preparou para o que supunha ser sua saída da "câmara couraçada". Então Amen, tomando-o pelo braço, colocou-o entre a coluna e o muro frente ao qual montavam guarda os homens de cor. Orvonon, o negro, com as imensas mãos sobre a prancha cobreada da coluna, parecia aguardar ordens.

— Escuta com atenção — expôs-lhe o sacerdote, em cujos olhos voltara a brilhar a esperança —. A partir deste momento, tudo dependerá de tua capacidade de compreensão e dos teus re­flexos. . . Lembras-te de que te falei de uma falha cometida pelos rebeldes?

Assentiu em silêncio.

— Bom. E te recordas que Dalamachia, a pirâmide subter­rânea onde nos encontramos, está sob o controle dos rebeldes?

O investigador repetiu o movimento afirmativo de cabeça.

— Pois não te olvides que, por essa razão, o que vais ouvir dos meus lábios não poderá ser repetido. Apesar de ter feito parte do primeiro Grão-Conselho da Escola da Sabedoria (e graças à sua precipitação por abordar Dalamachia e roubar o Grande Te­souro), Horemheb não chegou a conhecer a única saída secreta desta "câmara".. . Este, e manter-nos com vida, foram seus erros.

— Um instante — interveio Sinuhe, receoso — Se conhecíeis esse segredo, por que não o haveis aproveitado?

— Seria muito longo explicar.. . Apenas te direi que os atlantes, ao concluir a construção de Dalamachia, em previsão do que, desafortunadamente, ocorreu, construíram um mecanismo de abertura da Sala de Thot, ou do Grande Tesouro, sumamente "complexo". . .

O Kheri Heb deu ênfase especial àquela última palavra.

— "Complexo" — acentuou — porque, para ativá-lo, exige a presença, na câmara couraçada, de um descendente de cada uma das raças "Sangik", únicas e verdadeiras herdeiras do grande patrimônio que significam os arquivos secretos de IURANCHA. E esses representantes, além disso, como tu mesmo tiveste ocasião de experimentar em tua busca através da pirâmide, só poderiam ser autênticos e sinceros homens "Pi" ou leais buscadores da Ver­dade. . .

— continuo sem entender por que já não haveis escapado desta câmara.

— Querido Sinuhe, a sutileza dos construtores de Dalamachia era admirável. Uma vez reunidos (depois de milênios), estes seis homens de cor, os "Sangik" tiveram de vencer a difícil prova da desesperança. E uma vez alcançada essa dura meta, ao desvelar, após paciente estudo, o mecanismo propriamente dito de abertura, descobriram igualmente que essa "janela" para o exterior só pode ser aberta com o concurso simultâneo de todos eles. Isso requer, portanto, a presença de um sétimo homem: o único que pode tentar a fuga...

— E tu, Amen?... Durante muito tempo tens sido esse séti­mo afortunado. Por que não o tentaste?

O sacerdote sorriu com amargura.

— Tu te esqueces do essencial. Esse sofisticado sistema de segurança dos atlantes foi pensado para, em último caso, pôr a salvo o Grande Tesouro. Se a entrada nesta pirâmide subterrânea (tu o sabes) é árdua, a saída é mais ainda. O valor do Grande Tesouro assim o exigia. Mas a traição de Horemheb e a fulminante subtração da "pluma de Thot" tornaram inútil minha presença na "câmara couraçada". Se a "pluma" tivesse ficado aqui, com efeito, eu teria sido o sétimo homem, responsável por seu traslado para outro lugar...

Sinuhe insistiu:

— Apesar disso, por que não ocupas o meu posto? És, sem dúvida, um homem sábio e saberás, melhor que eu, chegar até a Torre de Amon.

— Não, Sinuhe, não posso.. .

— Por quê?

Amen, comprimindo o dedo índice no lado esquerdo das costas do investigador, explicou:

— Porque agora as coisas são diferentes. O julgamento de Lúcifer (como sabes) está próximo. Já não importa tanto resgatar o Grande Tesouro quanto conhecer a Verdade. Mas essa missão (também vô-lo disseram) é só o primeiro passo para assistir ao grande julgamento. E a esse tribunal só pode ter acesso a filha da raça azul. Eu, ou qualquer um desses chefes, poderíamos con­tar-te simplesmente essa Verdade, mas não é o estabelecido por "Ra". . . Sois vós, com vosso esforço, que deveis fazer-vos dignos representantes dessa honra. Lembra-te que, nesse caso, talvez mais que em nenhum outro, o caminho para a Verdade faz parte da própria Verdade. Alegra-me dizer que minhas palavras se vêem confirmadas, ainda, por este sinal.. .

O Kheri Heb pressionou as costelas de Sinuhe.

— O sinal de Micael!

O investigador recordou as marcas — os três círculos concêntricos — que tão misteriosamente foram gravados em suas costas durante a segunda exploração no ático da Câmara Municipal de Sotillo.

— Exato. Como vês, foi tudo meticulosamente preparado por aqueles que servem a Micael...

Sinuhe não podia crê-lo.

— Então, "eles" sabiam e sabem...

O sacerdote retirou seu indicador das costas do atônito "iuranchiano".

— Santo Deus! — exclamou o investigador. — De acordo com o que dizes, tu também sabias...

Amen sorriu maliciosamente.

— Já te disse que te esperávamos, melhor dito, vos esperá­vamos. .. Deves agora aproveitar nossa longa e paciente espera. Escuta. E que a Suprema Força te guie, Sinuhe.

 

— Permita-me que insista. Já que os rebeldes, conhecedores do nosso segredo, não tardarão em cair sobre esta câmara blindada, presta muita atenção a quanto vou comunicar-te. Não poderei falar senão uma vez...

Sinuhe apertou os maxilares.

— Siga! — animou-o por sua vez.

Na mente do investigador, outras dúvidas tinham ficado pen­dentes. Por exemplo: como e por onde poderiam entrar os rebeldes naquele recinto? Talvez pelo mesmo quadrado de gesso branco existente do outro lado da câmara? Além disso, se tinham o con­trole da pirâmide, por que não atuavam imediatamente, frustrando assim o que podia converter-se em uma circunstância adversa para eles? Talvez o sacerdote tivesse razão e optassem primeiro por conhecer este último segredo, tão zelosamente guardado. Ou have­ria outras razões?

Mas, afinal de contas, aqueles pensamentos em tropel eram apenas minúcias; questões secundárias, se comparadas com a máxima questão em jogo em semelhantes momentos: a fuga da "câ­mara couraçada" e — quem sabe? — se da pirâmide subterrânea de "Dalamachia".. .

Amen-Em-Apt situou então Sinuhe frente ao muro, entre a coluna e as costas dos cinco chefes. Por último, antes de retirar-se, abraçou o jovem, sussurrando-lhe ao ouvido:

— Se não compreendes o que vais ouvir. . . por Deus! salta de qualquer modo!

Não houve tempo para mais nada. Sinuhe mal pôde correspon­der ao abraço. Seu irmão de Loja, após pedir-lhe que se não movesse enquanto não recebesse a ordem, desapareceu de sua vista, indo postar-se à direita do homem negro. Trocou com ele um olhar e Orverdon, prestando atenção ao Kheri Heb, assentiu com a cabeça, dando-lhe a entender que estava tudo pronto.

E Amen, lentamente, dando tempo para que o "iuranchiano" estivesse preparado para interpretar suas solenes palavras, rompeu o silêncio do recinto:

— Ourocalcum!. . . sagrada proteção das muralhas do antigo Reino em Meio ao Mar e hoje da "câmara couraçada" de IURANCHA.. .

Com os nervos tensos, Sinuhe reconheceu aquela palavra — "ourocalcum" — como a mágica e soberba liga de ouro e outros metais misteriosos, empregados pelos atlantes no revestimento da terceira muralha — a externa — que guardava a cidadela de Poseidon, o primeiro rei de Atlântida. Essa muralha, assim como os muros do hexágono, resplandecia, segundo a lenda, com esplêndida luminosidade vermelha.

— Abre-nos teu segredo — prosseguiu Amen-Em-Apt —. Sob tua luz uma só fileira é igual a "5" e igual a um ano.. .

O investigador sentiu como se materializava a angústia em um golpe de sangue que lhe ascendeu das entranhas. Que teria querido dizer o Kheri Heb? Uma fileira igual a "5"?. . . Sinuhe puxou pela cabeça. Sabia que Dalamachia e a Grande Pirâmide de Quéops, sua réplica, foram construídas à base de grandes fileiras de pedras. Mas qual. delas era "igual a '5' e igual a um ano"?

Em frações de segundos, sua mente desenterrou seus velhos conhecimentos de Egiptologia. Mas, dominado pelos nervos, não chegou a conclusão alguma. E a voz do sacerdote ressoou de novo no hexágono:

__ ... E igual à liberdade...

Liberdade? Aquilo só se poderia interpretar de uma ma­neira: como a saída de Dalamachia... E, subitamente, fez-se a luz em seu cérebro atormentado.

"Deus meu!... claro! agora o compreendo."

Durante sua instrução como "soror" da Grande Loja, tivera a oportunidade de conhecer esta circunstância singular: o eixo principal de uma das fiadas da Grande Pirâmide de Queops — e de Dalamachia, naturalmente — coincide com a cota do vértice do triângulo isóscele do frontão da entrada à pirâmide, na face norte.

Essa fiada — a número 23 —, é igual, com efeito, a "5". Basta somar os dois números. Além disso, é também "igual a um ano". Das 226 fiadas de blocos que constituíam inicialmente a suposta tumba do rei Quéops, só uma — a 23! — equivale, pela longitude, ao chamado ano anomalístico de 365,2 dias. (Entendendo-se por "ano anomalístico" o tempo que transcorre entre duas passagens consecutivas da Terra pelo afélio e o periélio de sua órbita.)

Sinuhe rememorou seus vertiginosos cálculos, intuindo as in­tenções do sacerdote.

"Sob a luz do ourocalcum, uma só fileira — a 23 — é igual a '5'... e igual a um ano (essa fileira de pedra soma 365,2 pés egípcios, sendo essa longitude igual a um ano)... e igual a liber­dade: a fiada em questão coincide com a parte superior da porta secreta de acesso à Grande Pirâmide ^ela face norte. Se era assim" — deduziu Sinuhe — "em algum lugar daquela 'câmara couraça­da' tinha de esconder-se a providencial fiada 23 e, provavelmente, um dispositivo oculto que permitisse franqueá-la e alcançar a saída..."

Nesses críticos momentos deu-se conta de outro sério proble­ma. Se não lhe falhava a memória, a rocha triangular que trancava a pirâmide pesava quarenta toneladas.

Como iria deslocá-la?

 

— ... Abramos o "ano" com o arco-íris dos "Sangik"! Aquela parte do conjuro cabalístico de Amen-Em-Apt ficou incompreensível para Sinuhe. Mas, na suposição de que "algo" decisivo estava por acontecer, apertou os punhos, prestes a saltar — fora a recomendação do amigo — pela primeira cavidade ou conduto que se abrisse debaixo da refulgente lâmina de ourocalcum. No entanto, nada disso aconteceu. Ao finalizar aquela última e enigmática frase, o Kheri Heb fez um sinal a Orvonon. E este, fechando os olhos, colocou as imensas mãos sobre a prancha cir­cular que coroava a coluna. E, lenta e majestosamente, como que possuídas de força sobrenatural, começaram a elevar-se, arrastando atrás o branco pedestal de mármore.

Embora alheio ao que se passava às suas costas, Sinuhe pôde assistir a outro sucesso prodigioso protagonizado pelos cinco ho­mens "Sangik" e praticamente simultâneo com a ascensão da co­luna. Em silêncio profundo, os chefes obedeceram a Amen. E de suas frontes brotaram feixes luminosos, de igual coloração à da pele de cada um deles. Assim, da esquerda para a direita, formou-se um belíssimo leque com as cores do arco-íris: vermelho, laranja, amarelo, verde e azul.

Maravilhado diante daquela nova demonstração de poder mental, Sinuhe recordou os fachos de catorze cores da companheira querida. E aquele pensamento — a recordação de Nietihw, pri­sioneira dos rebeldes — veio fortalecê-lo.

Durante alguns segundos, os cinco focos passearam pelo muro, entrecruzando-se e como que a buscar "alguma coisa".

A coluna, entretanto, ao atingir os dois metros de altura de­teve a subida. Orvonon abriu os olhos e, depositando as mãos sobre a lâmina circular, fixou a atenção no "arco-íris" que seus irmãos continuavam projetando.

De repente, um dos cones luminosos ficou imóvel a pouco mais de metro e meio do solo. Era o azul. E do pequeno Círculo celeste projetado sobre o ourocalcum avermelhado surgiu uma tímida, quase imperceptível centelha de luz negra. Como que mo­vidos por mola, os outros fachos se deslocaram para aquele ponto, fundindo-se e concentrando-se sobre o ansiado lugar. E a luz preta — a mesma que o investigador contemplara no quarto da maquina­ria do velho relógio; e por cima da oscilante "campana de luz" da praia — foi tomando corpo, propagando-se pela superfície do muro.

Ante o olhar atônito de Sinuhe, aquela "luz" se foi derraman­do sobre o ourocalcum, adotando a forma de uma estrela de cinco pontas. Quando alcançou a longitude aproximada de um metro, a "luz" parou de avançar. E os braços horizontais começaram a pro­longar-se como um rastilho de pólvora, dividindo em duas a parede do hexágono.

Às suas costas, soou então a voz grave de Amen:

— A fileira, Sinuhe!... Prepara-te para pular!. ..

O investigador, confuso, não soube o que fazer. Onde estava o passadiço? Para onde devia saltar?

Sua incerteza não duraria muito.

Quando os negros braços horizontais da estrela se detiveram nas respectivas confluências das outras paredes do hexágono, os cinco homens "Sangik" fizeram desaparecer seus feixes luminosos, e retrocederam até se colocarem atrás de Amen e Orvonon. E no muro começou a palpitar aquela enorme estrela negra. . .

Se o "iuranchiano" tivesse virado o pescoço teria testemu­nhado como, ao produzir-se a ruptura da lâmina de ourocalcum — assinalando assim a fiada 23 de "Dalamachia" —, o pedestal da pluma de "Thot", instantaneamente, desaparecera deixando aberto no solo da "câmara" escuro e estreito túnel. Só a chapa circular que rematava a coluna ficara colada às palmas do chefe negro. E este, a um novo sinal do Kheri Heb, sem perda de um segundo, arrojou-se, esmagando a lâmina de ourocalcum sobre o centro geométrico da estrela. Ao contato com o metal mágico, a ponta superior da estrela, assim como as duas inferiores, dobra­ram-se, imprimindo ao conjunto enlouquecida rotação, no sentido horário. Imediatamente a estrela desapareceu, transformada em tenebroso torvelinho.

— Agora!... Sinuhe! pula!...

 

Apesar de seus firmes propósitos, o investigador hesitou. Sal­tar para aquele remoinho escuro que já estremecia o muro e a totalidade da "câmara couraçada" de Dalamachia? Um suor frio foi sua única reação. Sinuhe sentiu medo. Terror incontido, que parecia soldar-lhe os pés ao solo do hexágono.

— Sinuhe, por Nietihw!... Salta!

O segundo grito de Amen — dilacerante — fez com que se voltasse. Com espanto, descobriu umas velhas e esquecidas criatu­ras. Pelo buraco, agora existente no solo da câmara, emergiam, inconfundíveis, as "golem"... E as negras mãos amputadas apri­sionaram as túnicas dos "Sangik" e a do Kheri Heb. Mas, em vez

de lutar e resistir, os sete homens "Pi", ignorando a presença das diabólicas enviadas dos rebeldes, tinham cravados os seus olhos nos de Sinuhe. O investigador não teria podido descrever jamais aqueles olhares suplicantes, esperançosos e imperativos ao mesmo tempo...

Novas vagas de "golem", atropelando-se umas às outras, fo­ram vomitadas do vazio sinistro. E, trotando sobre os dedos, diri­giram-se para Sinuhe. Mas o "iuranchiano" atirado pelos olhares-catapultas daqueles homens que não hesitavam em sacrificar-se por ele, saltara já para a turbulência que sem cessar girava em círculos na parede.

Ao penetrar no que, à primeira vista, parecia um tobogã ascendente, escuro como um bueiro, forte calor o envolveu e ele foi açoitado por fortíssima corrente em espiral que o sugou, projetando-o como um dardo em direção oposta à "câmara couraça­da" de Dalamachia.

Foram segundos. Ou não? Na realidade, pouco importava. Qual o sentido de falar em "tempo", naquele mundo?

O caso é que, atropeladamente e procurando proteger-se das constantes cabeçadas contra os limites pétreos do passadiço cilín­drico, prosseguiu naquela alucinante subida... até sabe Deus onde.

De repente terminaram as trevas. Foi brusca a mudança. Aquela espécie de "encanamento" acabou, e Sinuhe se viu proje­tado com aquela mesma força, mas em meio a uma atmosfera vermelha!

A turbulência cessara. Mas ele descobriu que um não acabar de negras mãos tinha-se-lhe agarrado aos ombros, braços e tórax...

— As "golem"!

O achado o abalou. Mas compreendeu logo que não podia tratar-se das macabras extremidades que estiveram a ponto de cap­turá-lo na pirâmide. Aquelas mãos.. . não estavam amputadas. À altura dos corpos vinham fundidas a outros tantos raios, igual­mente pretos e brilhantes como a obsidiana. E aqueles raios... sim — observou o investigador quando olhou para o alto —, per­diam-se no espaço. Ele estava sendo transportado pelos ares... por uns raios terminados em mãos humanas!

Pelos ares?

Aquele pensamento, unido ao que divisava em terra — o velho barco encalhado, a costa e as águas do oceano, tudo isso tingido de vermelho —, levaram-no a compreender que os homens

"Pi" tinham logrado o seu propósito: Dalamachia, a pirâmide mi­lenar subterrânea era apenas uma lembrança. . . Algo ou alguém o havia puxado, burlando assim os rebeldes.

Seu vôo agora era suave. Harmonioso, quase. Os braços es­tendidos para frente, seguro e arrastado pelas mãos-raios negros, experimentou inolvidável sensação de paz. Paz que foi aumentando, na medida em que ascendia. . .

À sua passagem, aquela "atmosfera" escarlate roçava-lhe do­cemente a pele e lhe embaralhava os cabelos. Pouco a pouco, sem pressa, como se o tempo não contasse, a linha da praia foi desaparecendo. Foi então, seguindo a direção dos raios que pare­ciam dobrar-se sobre si mesmos, que divisou no alto uma silhueta escura.

— Oh, Deus!. . . O sol negro!

Já não havia dúvida. Aqueles raios tinham brotado do miste­rioso disco e a ele voltavam.

Aquele medo incipiente virou confusão quando, de repente, abandonou o "ar escarlate", entrando em uma obscuridade sideral, rasgada apenas pelo longínquo tiritar de milhões de estrelas. Seria aquele o firmamento que vislumbrara da terra, em companhia de Nietihw?

Seus temores o invadiram novamente. Ao deixar para trás o "céu" cor de sangue, a velocidade daquelas mãos aumentou, projetando-o como a um meteoro em direção à cada vez mais crescida figura do sol. A respiração quase desapareceu e o rosto, submetido àquela formidável aceleração, contorceu-se. Seus ouvidos e crânio todo começaram a zumbir e, espantado, viu como a silhueta do sol "negro" se lhe apresentava imensa, quilométrica. Gigantescas línguas de luz e fogo negros eram projetados no espaço. . .

Logo em seguida a atmosfera se tornou vermelha, passando imediatamente a negra. Depois, a ponto de chocar-se contra aquela massa, a consciência o abandonou. . .

 

— Sou Solônia, o que foi guardião do Éden. . . Levanta-te, filho de IURANCHA!

Que terá acontecido? A sensação de Sinuhe, ao despertar, foi de irrealidade e bruma. Como se as mãos o tivessem depositado suave e firmemente aos pés daquela incrível criatura. . .

Mas e o fogo negro? Por que não morrera abrasado? Onde se encontrava? Que teria sido dos raios e mãos que o haviam transportado?

Quando o membro da Escola da Sabedoria escutou a voz e conseguiu levantar o rosto, descobriu que se achava de joelhos diante de um ser de estatura e beleza desconcertantes. Seu corpo, em pé, aparecia envolto em uma cota de malha de um negro relu­zente. Mas aquela prodigiosa vestimenta defensiva, em lugar de ser tecida com aço, era trabalhada com letras diminutas. E estas, por sua vez, formavam outros tantos milhares de nomes. Um nome que o sobressaltou: "Micael". E daquela maravilhosa trama pro­tetora emanava ininterrupto resplendor negro...

Longos cabelos escuros, também rodeados de um halo de luz negra, caíam-lhe pelos ombros musculosos.

O rosto, como que lavrado a cinzel, era duro e sereno como o do mais bravo guerreiro jamais visto. Somente seus olhos ras­gados lhe pareceram familiares...

Sinuhe obedeceu e, ao pôr-se de pé, constatou atônito que seus olhos ficavam à altura da cintura de Solônia. Aquele gigante — um serafim, sem dúvida — sustinha entre as mãos a empunha­dura de uma espada... sem lâmina!

Timidamente, movido por sua curiosidade insaciável, olhou ao redor. Onde estava?

Inútil. Ao desviar o olhar do guardião do Éden, nublou-se-lhe a vista e ele não distinguiu senão escuridão. Baixou os olhos para o lugar em que sem dúvida se sustinha, mas aconteceu o mesmo: só "viu" trevas...

Perplexo, virou de novo o rosto para a única coisa visível no interior daquele sol "negro". Ou tampouco se encontrava no misterioso astro?

E Solônia, mostrando o próprio peito com a mão esquer­da disse:

— Não temas, Sinuhe, filho de IURANCHA!

Num instante, sobre a couraça, iluminaram-se três círculos celestes e concêntricos.

— Reconheces esta bandeira? — perguntou-lhe.

Sinuhe não se atreveu a falar. Nem sequer sabia se podia. Limitou-se a mover a cabeça em breve e quase imperceptível sinal de afirmação.

— É o emblema do Soberano de Nebadon, nosso Senhor — retumbou como trovão a voz de Solônia —. Tal como vos anun­ciou Agurno, o Mensageiro Solitário, para cumprir vossa missão deveras utilizar minha espada. Recebe-a, pois...

O serafim estendeu a mão direita para o nosso homem, convidando-o a tomar a empunhadura solitária.

Sinuhe, apesar das dúvidas que o acossavam, recebeu a espada do guardião. Tratava-se de uma enorme guarnição de quase meio metro de comprimento, um cabo de uns dez centímetros de diâ­metro que, a ele pelo menos, obrigava-o a empunhá-lo com ambas as mãos. Apesar das dimensões, era extremamente leve. "Talvez se deva" — pensou :— "a esses incríveis anéis..."

Efetivamente, tanto a empunhadura propriamente dita, quanto o braço horizontal, tinham sido forjados à base de aros paralelos. Cada círculo continha outros dois em seu interior, concêntricos, imitando assim o tríplice circuito de Micael. E todos eles, como ocorrera com as letras do nome cósmico de Nietihw e com a "ca­deia" do número "pi", magicamente coesos graças a uma força invisível.

Enquanto permaneceram entre a cota de malhas que cobria as mãos de Solônia, aqueles anéis da empunhadura conservavam a cor igualmente negra e reluzente. Agora, porém, ao passar para as mãos de Sinuhe, tornaram-se transparentes.

O investigador, sem saber o que fazer com semelhante arma, levantou o rosto para o serafim, interrogando-o com o olhar.

— A espada "iluminadora" — esclareceu Solônia — permitir-te-á descobrir a entrada secreta da Torre de Amon. Mas escuta minha advertência, filho de IURANCHA... Aquele que a empre­gar para a violência, que só espere violência.

"Uma espada 'iluminadora'?" — perguntou-se o "iuranchiano" — "Como devo utilizá-la? E que é isso de violência?..."

Solônia, apesar de lhe haver lido os pensamentos, não respon­deu. Por último, levantando a mão direita como o fizera Agurno ao despedir-se em meio à névoa do bosque, exclamou:

— Que a paz de Micael esteja contigo, Sinuhe!...

 

6 - A TORRE DE AMON

As trevas que o rodeavam caíram também sobre o serafim. E a figura foi engolida, desaparecendo da presença de Sinuhe. Só o emblema que lhe adornava o peito ficou a flutuar na penumbra, resplandecente. Nosso homem, com a empunhadura da espada "iluminadora" entre as mãos, quedou-se frente ao tríplice círculo celeste, incapaz de pensar ou de dar um passo sequer. Aliás, para onde?

Mas a sabedoria daqueles seres era ilimitada. Como se tudo tivesse sido minuciosamente previsto, o tríplice^ e sagrado círculo de Micael partiu-se em dois. E o investigador, boquiaberto, pre­senciou outra fantástica transformação...

Um após outro, os seis segmentos resultantes dessa inesperada divisão vertical do emblema foram separando-se do resto, configu­rando a lâmina de sua espada. Uma lâmina tão deslumbrante quanto singular. O primeiro dos segmentos tomou contato com a base da empunhadura, convertendo-se em um enorme "E". O segundo co­locou-se à continuação, em forma de "H". E os demais cruzaram também o escuro e foram formar o resto do estranho "aço" azul, com as letras "U", "N", "I" e "S", respectivamente.

Assim, os seis segmentos haviam dado corpo à espada com uma "lâmina" de quase dois metros, formada inteira e exclusiva­mente pela palavra "SINUHE".

O "soror", atônito, brandiu a arma, verificando que, tal como os anéis, as letras se mantinham firmes e misteriosamente coesas entre si, derramando sutis fulgores azuis a cada vibração ou mo­vimento.

— Agora — monologou com certa satisfação — só resta encontrar o caminho para essa maldita torre...

Mas o entusiasmo que o havia assaltado com a mágica apa­rição do seu nome duraria pouco... Sinuhe — talvez para sorte sua — parecia ter-se esquecido das advertências dos homens "Pi" sobre as dificuldades que adviriam ao aproximar-se da torre dos rebeldes.

Desejoso de entrar em ação, empunhando a espada com ousa­dia, girou sobre os calcanhares, em busca do ansiado caminho para a fortaleza de Amon. Deu um passo em meio às trevas e, como uma explosão, tudo ao seu redor se fez vermelho-sangue. Sem compreender o que acabava de acontecer, deteve-se, inspecionando aquela paisagem surgida repentinamente.

Alguma coisa rangeu sob seus pés. Ao baixar o olhar, o horror se misturou com a surpresa: estava pisando caveiras! Crânios hu­manos! Obedecendo ao instinto, retrocedeu. Mas, ao fazê-lo, como se tivesse atravessado uma porta invisível, penetrou naquela escuri­dão que abandonara segundos antes.

Num piscar de olhos esfumou-se-lhe a audácia. Bloqueado pelo medo e pelas trevas, não soube o que fazer. Que estava acon­tecendo? Por que ao adiantar-se cessava a escuridão e ele entrava naquele tétrico mundo avermelhado, coalhado de ossos? Apesar do medo, teve de admitir que a única forma de livrar-se daquelas perplexidades seria entrar de novo na claridade escarlate. E toman­do todas as precauções, a espada "iluminadora" a tremer-lhe entre as mãos, adiantou a perna direita. Depois a esquerda c, instantaneamente, apareceu sobre as caveiras, tingidas, como o resto de quanto tinha à vista, por aquela tênue "atmosfera" sanguinolenta.

"Aquele" — deduziu, inquieto — "tinha de ser o caminho para a Torre de Amon... Que outra paisagem poderia simbolizar melhor as diabólicas forças do mal?"

Removeu com os pés algumas das milhares de caveiras que atapetavam a pequena planície em que ele havia aparecido, observando que todas elas pertenciam a humanos adultos. Por últi­mo, antes de aventurar-se em direção à colina que se erguia a curta distância, introduziu um dos ganchos do "S" de sua espada pela órbita descarnada de um dos crânios, levantando-o com sumo cuidado.

Então, com a caveira a bailar na ponta da "folha", deu-se conta de outro detalhe que lhe veio confirmar as suspeitas: na fronte daquela e de todas as outras, fora gravado um número mítico: o "666".

 

— O sinal da Besta!

Invadiu-o um calafrio que se propagou à espada, fazendo tombar o crânio que caiu sobre seus irmãos, a crepitar sinis­tramente. Sinuhe não podia conceber que, a essa altura da missão, estivesse sendo vítima de sua fantasia. Para o caso de assim ser, abaixou-se, examinando uma das caveiras. Parecia extremamente ressecada... Quanto ao número na fronte, não havia dúvida de que fora gravado ou esculpido no próprio osso. Só a essa idéia já voltou a estremecer. A que desgraçados haviam pertencido aque­les milhares, talvez milhões de caveiras? E, sobretudo, quem e por que as teriam marcado como se se tratasse de gado?

Aquela sequidão dos ossos, própria de longa exposição às intempéries, lembrou-lhe o sol. Ao levantar a vista, voltou a sal­tar-lhe o coração no peito. Acima da "atmosfera" escarlate divisa­va-se, ao longe, aquele mesmo sol “negro” até onde ele voara. "Como é possível? Faz nada mais que uns minutos..."

Inconscientemente, ao levantar-se e dirigir o olhar para o alto, Sinuhe deu meia volta. E depois de descobrir a negra silhueta do disco, baixou os olhos, dando então com outro fato desconcertante: o horizonte daquela planura em que se achava perdia-se ao longe. Às suas costas ficava a colina, sim, mas, que teria ocorrido com as trevas "invisíveis"? Estaria ali aquele pedaço da planície quando ele abandonou a escuridão?

Dava para enlouquecer!

Tentando buscar uma explicação, deu um passo à frente, es­perando assim penetrar no lugar de onde viera. Mas nada sucedeu.

— Terei errado a direção? — perguntou-se, dando meia volta e repetindo o passo para frente.

O resultado foi o mesmo. Outro passo; sucedeu em uma terceira, quarta e quinta tentativas. Chegou a brandir a espada, imaginando que a lâmina, ao introduzir-se nas "trevas", desapare­ceria total ou parcialmente.

Finalmente, rendido por tantos e absurdos movimentos, deu de ombros, desistindo de seus propósitos.

— No fundo, que importa? — argumentou, secando o suor da testa. — Este tem de ser o território rebelde e, afinal, meu único destino possível é a torre.

Depois de atenta observação dos arredores — tudo convertido no mais extenso cemitério que jamais vira — o "iuranchiano" de­cidiu-se pelo promontório mais alto daquelas paragens: a pequena colina que surgira à sua frente quando deixou a "obscuridade".

— Talvez dessa altura eu me possa orientar melhor...

E, recuperando os ânimos desmantelados, encaminhou-se para o ponto visado.

O pressentimento de que Nietihw pudesse estar ali perto o estimulou, ajudando-o a vencer o difícil caminhar pelo perfil inós­pito do "terreno". A cada passo, macabramente, seus pés atolavam nas caveiras, quebrando-as ou às vezes apenas resvalando-as.

A subida pela ladeira, semeada de crânios, foi especialmente penosa. Era preciso enterrar primeiro um pé para depois, com a ajuda da espada, ir ganhando palmo a palmo.

Sufocado e suarento, depois de bom número de pausas obri­gatórias, levantou a vista e constatou, com satisfação, que apenas alguns metros o separavam do cume.

Com pressa de alcançá-lo, apertou o passo. Mas, ao relaxar as precauções, as ossadas cederam sob seus pés, originando um deslizamento. E o "iuranchiano", impotente, caiu de bruços, sendo arrastado colina abaixo, entre uma avalanche de caveiras e um estridente castanholar de ossos.

Quando, furioso, machucado e meio sepultado entre crânios, pôde pôr-se em pé, viu que a espada "iluminadora" saltara de suas mãos. Frenético por sua estupidez, voltou à falda da co­lina, angustiado ante a possibilidade de ter perdido seu único meio de desvelar a entrada da Torre de Amon. Naquele momento, a sorte parecia estar ao seu lado. A poucos metros, meio enterrada, descobriu a cintilante folha celeste. De joelhos sobre os ossos, uma vez resgatada a espada, dirigiu o olhar para o sol "negro", agradecendo a Solônia sua benevolência. Naquele instante, a "cam­pana" luminosa que cobria aquele fantástico mundo trocou sua tonalidade escarlate por outra, laranja. E o sol "negro" prosseguia em seu caminho rumo ao zênite.

Sinuhe não se havia acostumado ainda àquelas súbitas muta­ções de cor da atmosfera, não chegando a compreender a razão de semelhantes variações. Já na praia intuíra que a sucessão de cores devia guardar alguma relação com as diferentes posições do astro "negro". Mas sua inteligência não chegava além...

Imerso em tais reflexões, os cinco sentidos postos naquela segunda subida, assomou finalmente ao cume. Ao fazê-lo, "algo" inesperado e amedrontador apareceu-lhe ante os olhos.

 

Como primeira medida, atirou-se por terra. Do alto da colina, o rosto colado a uma daquelas sardônicas caveiras, dedicou-se — emocionado — a explorar a incrível construção que acabava de surgir no seu horizonte. No fundo de um precipício, continuação do declive que se abria ante o "soror", levantava-se uma torre circular mastodôntica — talvez uma centena de metros de altura — edificada à base de gigantescas mastabas ou plataformas circulares de dimensões decrescentes. À primeira vista, Sinuhe lem­brou-se da primitiva pirâmide escalonada do faraó Djoser, em Saqqarah, mas, como digo, configurada circularmente.

A "atmosfera" alaranjada que o envolvia impediu-lhe de pre­cisar detalhes.

Contou os enormes bancos ou terraços que a formavam. Seis! "Outra vez o seis?" pensou inquieto. Aquele desassossego não tinha sua origem na descoberta da cifra. A verdadeira razão, tinha de buscá-la mesmo na presença da torre. Sem dúvida devia ser a fortaleza de Belzebu e dos rebeldes. Tinha chegado ao que talvez fosse o último ato daquela enlouquecedora aventura...

A pergunta-chave não tardaria a vir: como, por onde, de que forma poderia meter-se dentro de semelhante fortim?

A distância que o separava do objetivo era tão considerável — uns dois quilômetros se acompanhasse a fralda da colina — que não pôde distinguir portas, janelas ou outro tipo de abertura. Tampouco conseguiu concluir qual fora o material usado na edificação.

"Talvez se trate de blocos", pensou, associando os imponentes muros aos da lembrada pirâmide de degraus, ideada pelo ministro do faraó Djoser — Imhotep —, o "inventor" da pedra de silharia.

Evidentemente que o único meio de tirar as dúvidas era tentar uma aproximação.

Do outro lado da torre, frente a frente com o cume onde se escondia Sinuhe, subia um promontório similar e igualmente coalhado de restos humanos. Durante bom espaço de tempo, dedi­cou-se a reconhecer aquela parte do desfiladeiro, assim como a vala em que se assentava a fortaleza. Mas não sentiu movimento algum. Tudo parecia tranqüilo...

Finalmente, tomou a decisão de descer pela ladeira movediça. Apesar do silêncio reinante, sentiu o coração apertado. Se os rebel­des ocupavam a torre, era provável que tivessem detectado sua pre­sença. Nesse caso, que esperavam eles para atacar?

— Atacar?

O investigador estacou. Seus pés ficaram enterrados entre as caveiras; levantou a espada e contemplou mais uma vez aquelas letras que formavam a lâmina. E as palavras de Solônia, o serafim, acudiram nitidamente à sua memória: "... Aquele que empregar a espada 'iluminadora' para a violência... que só espere violência".

Isso significaria que não deveria utilizá-la em caso de luta ou ataque?

Alguns crânios rolaram ladeira abaixo perdendo-se entre tom­bos, quando Sinuhe recomeçou seu perigoso avanço. Outros, ao estilhaçar-se, romperam a quietude do barranco com ecos inopor­tunos e ameaçadores.

A cada deslizamento, o "iuranchiano" cravava sua espada entre os ossos, procurando não fazer o menor movimento, tentando conservar, assim, o equilíbrio precário. Quando o rio de crânios diminuía o impulso, passada a passada ele prosseguia em sua aproximação. Dada a altura e o desnível em que ele se movia, uma queda ou escorregão teria sido sumamente perigoso, senão mortal.

De trecho em trecho, enquanto recuperava o alento, interrom­pia a marcha, perscrutando a fortaleza e suas vizinhanças. Por um momento, inquietante sensação o invadiu. "A torre estaria aban­donada?"

Essa idéia, longe de tranqüilizá-lo, agravou-lhe o mal-estar. Que poderia acontecer, se aquele não fosse o quartel-general de Belzebu? E, se fosse, que adiantaria se o encontrasse vazio?

 

Com o sol "negro" ao ponto de alcançar o zênite, venceu afinal os metros que o separavam da vala. Esgotado pelo esforço e pela tensão, deixou-se cair sobre as caveiras que abarrotavam, ali também, o fundo do barranco. Os pés, doloridos pelas dezenas de fragmentos ósseos que lhe foram aderindo às botas, negavam-se a ir adiante. Ao descalçar-se, descobriu preocupado umas plantas ensangüentadas e tumefatas.

Depois de minuciosa limpeza, e diante do feio aspecto daque­las múltiplas feridas, optou pelo único remédio mais à mão. Des­fez-se da camisa, rasgou-a e aplicou-se a vendar os pés. Ao contemplar tão tosca "obra de arte", sorriu, enternecendo-se e lembrando-se da ternura de Nietihw ao vendar-lhe as mão na "câ­mara dourada" de Dalamachia.

— Nietihw!... Que terá sido dela?

Levantou os olhos para a torre que o aguardava a pouco mais de quinhentos metros e aquele perfil encheu-o de negros presságios.

A vala oferecia o mesmo aspecto desértico. Tudo silencioso e envolto na luz laranja, e tão morto quanto os milhões de órbitas vazias que o observavam do solo.

Mas a sorte, uma vez mais, estava lançada. E Sinuhe, após tentativas, não poucas, conseguiu calçar as botas e retomar a mar­cha... diretamente em direção à base da fortaleza.

Aqueles últimos metros foram especialmente difíceis. Os pés, ao contato com as caveiras quebradiças, ressentiram-se de novo. Algumas das feridas tornaram a sangrar, provocando-lhe uma dor dilacerante. A duras penas, servindo-se da espada, arrastando as pernas, lutou por alcançar as proximidades do fortim.

— Nietihw! Devo chegar! É preciso chegar!

Aquele nome encheu-lhe o ânimo debilitado e o cérebro ne­gou-se a aceitar outro estímulo que não fosse o de avançar... Avançar!

Ofegante, suor frio a banhar-lhe o corpo, Sinuhe, finalmente, plantou sua espada ao pé da Torre de Amon. Sem forças para levantar a vista para a monstruosa construção, ajoelhou-se, apoian­do a fronte na lâmina celeste da arma.

— Não posso! Deus meu, não é possível!

O "iuranchiano" chegara ao limite de sua resistência. Aquela dramática circunstância — justamente agora, quando precisava de todo o ímpeto e sangue-frio — surgiu na pior das desolações.

— Não posso!... — repetiu, macerando o rosto e sentindo a agitada palpitação do peito e o gotejar do suor sobre as caveiras alaranjadas.

O instinto, entretanto, impeliu-o a levantar os braços e, aferrando-se ao travessão horizontal da empunhadura, fez por içar-se.

Nesse gesto desesperado, ainda com a cabeça inclinada para o chão macabro, seus olhos deram com os três círculos concêntricos que tão misteriosamente lhe haviam aparecido no costado esquer­do, lá "no seu mundo"...

Dessa vez, o sinal de Micael não lhe sugeriu nada.

— A não ser que...

Um raio de esperança acabava de iluminá-lo.

— Sim — se disse, desejando que aquela providencial reve­lação se materializasse — "eles" poderiam...

Reunindo suas últimas forças, levantou-se. Desenterrou a es­pada e, voltando o rosto para o sol "negro", implorou o socorro de Solônia. Ato contínuo, tomando da arma pela extremidade, foi aproximando o "S" ao tríplice circuito sagrado de Micael.

Na realidade, ignorava o que poderia acontecer no instante em que a "ponta" da espada "iluminadora" entrasse em contato com suas costas. Sem poder dominar o tremor das mãos, cravou de um golpe a última letra do seu nome sobre a marca do Soberano de Nebadon.

O "S" da singular folha nem sequer machucou-lhe o corpo. Mas ao incidir sobre o círculo tríplice se desprendeu das outras letras. E o membro da Grande Loja, atemorizado, soltou a espada, que retiniu contra as ossadas.

De repente, o enorme "S" saiu disparado, quedando imóvel e diáfano na frente do investigador. Mas sua surpresa chegou ao máximo quando os extremos do "S" se cerraram, convertendo-se em um símbolo bem conhecido do "iuranchiano": o círculo do Yang e o do Yin. O primeiro, como uma meia-lua, ocupando a parte superior e representando — segundo os fundamentos da filosofia chinesa do I Ching — o princípio ativo e positivo do universo circulante. O segundo — o Yin —, na metade inferior, complemento do Yang e símbolo das trevas e de todo o passivo e negativo.. . Este último, justamente, palpitava sem cessar, emi­tindo vivíssimo resplendor avermelhado. O Yang, em compensa­ção, tingido de negro, quase não se fazia visível, "dominado" pela força do mal.

Sinuhe compreendeu. Se conseguisse inverter o círculo mági­co, talvez melhorasse a sua situação.

Ansiosamente estendeu as mãos para o disco. Mas ao agarrá-lo pela meia-lua inferior, dedos, mãos e braços ficaram imediatamente cobertos por miríades de feridas semelhantes às dos pés. E uma dor insuportável atravessou-lhe o corpo qual relâmpago, fazendo com que cambaleasse. Espantado, retirou os braços, descobrindo outro sem fim de dolorosas lacerações ao longo e ao largo da face e do peito. O corpo se ia cobrindo de chagas, convertendo a pele em feixe sanguinolento...

Tentou gritar, mas a dor já lhe anuviava o cérebro. E com os olhos vidrados, entre estertores, num gesto suicida atirou-se contra o signo do bem e do mal...

 

Ao voltar a si, sentiu sobre o peito a fria superfície das ca­veiras. Alguma coisa havia mudado. Já não estavam tingidas de laranja. Agora refletiam uma luz mais clara... Amarela!

— Deus dos céus! — exclamou ao ver-se estendido sobre o campo de ossos. — Que se passou?... Onde estou?

Logo compreendeu que se achava exatamente no mesmo lu­gar. Sua espada "iluminadora" jazia sobre os crânios e sobre seu corpo...

— Jesus!

Chagas e fios de sangue haviam desaparecido. Palpou o torso nu, constatando que as feridas já não existiam, nem tampouco as dos braços e mãos. Até mesmo o suor se havia secado.

— Como é possível? — se repetiu mecanicamente, ao mesmo tempo que se descalçava.

Seus pés, como o resto do corpo, ofereciam um aspecto per­feito. As forças lhe haviam voltado ao organismo e sua alma pare­cia refeita e descansada.

— O círculo de Yin! — recordou.

Sua memória abriu-se de par em par, permitindo-lhe ver como, no último momento, quando já se cria perdido, ao lançar-se sobre o disco uma de suas mãos logrou aferrar-se à meia-lua superior, que girou, arrastada na queda do investigador.

Graças a essa mudança de posição, o símbolo do mal — o Yin — perdeu sua indubitável influência, que passou a Yang. E a sorte de Sinuhe variou também, já que ficou sob a ação da "luz".

Aquela reconstrução do incidente se ratificou quando, ao pôr-se em pé, observou em meio à nova "atmosfera" amarelada — flutuando a um metro das caveiras — o solene símbolo chinês. A meia-lua avermelhada — situada agora na parte superior — perdera o seu brilho. A inferior, ao contrário — o Yang — palpitava, lançando contínuos fluxos de luz... negra! E Sinuhe, agradecido, levou a mão esquerda sobre o tríplice círculo de Micael, elevando os olhos para o sol "negro", que começara a deixar para trás o zênite. Mentalmente reconheceu o poder e a magnanimidade de Solônia.

E recolhendo sua espada, cuja folha continuava denunciando a falta do "S", preparou-se para o que imaginava e desejava como sendo o assalto final à guarida de Belzebu.

Uma vez mais, apesar do seu repentino bem-estar e da co­ragem, equivocava-se.

 

Até aquele momento não tinha percebido a configuração ex­terna da torre. Ao assenhorear-se da espada, seus olhos se fixaram no muro inferior. O rosto de Sinuhe crispou-se e seu espírito voltou a anuviar-se.

"Na realidade" — pensou — "que outra coisa podia eu es­perar?"

Concentrou o olhar nas plataformas superiores mas o resul­tado da inspeção foi o mesmo. Cada palmo da obra exterior da fortaleza achava-se recoberto ou "adornado" por uma caveira humana. Centenas de milhares — talvez milhões — de crânios como os que asfaltavam o desfiladeiro e a vala tinham sido cuida­dosamente adossados a cada um dos seis terraços ou plataformas que configuravam o fortim. E todos eles, assombrosamente, olhan­do para fora.

Tampouco dali, ao pé da altiva torre, vislumbravam-se portas, janelas ou qualquer outra abertura. O conjunto formava um todo compacto e hermético.

Tocou algumas das ossadas, chegando a introduzir os dedos através das órbitas e das fossas nasais, puxando as cabeças. Nem uma delas cedeu. O macabro artífice de tão paciente obra soubera ligá-las aos hipotéticos muros interiores com tanta destreza quanto solidez. À diferença da imensa maioria dos restos espalhados sobre o terreno, aqueles crânios, sim, conservavam seus respectivos ma­xilares inferiores e, inclusive, para maior perplexidade, os liga-mentos e apófises estilóides que seguram essa mandíbula inferior. Ainda mais: em cada osso frontal, a pequena distância da fossa nasal, salientava-se a inquietante "marca" da Besta: o "666".

Cautelosamente, foi rodeando o ciclópico terraço ou mastaba que constituía a base da torre, estimando seu diâmetro em uns duzentos metros, com uma altura de vinte, aproximadamente. Isso significava, a julgar pela semelhança da altura com as cinco pla­taformas restantes, que a fortaleza simplesmente superava os cem metros de altura.

— Assombroso! — exclamou, considerando que a pirâmide escalonada de Djoser, no Egito, culmina nos sessenta metros.

Aquela primeira exploração terminaria em fracasso. Ao re­gressar ao ponto de partida, Sinuhe não tinha verificado a existên­cia de acesso algum. Ao menos que ele tenha podido constatar.

Por outro lado, o lugar continuava suspeitamente deserto. "Não é normal" — repetia-se a si mesmo —, "pois se aquela é, na verdade, a Torre de Amon, os Medianos' rebeldes, as 'golem' ou quem sabe que criaturas diabólicas, por que não deram sinais de vida? Ou seria possível que a fortaleza" — como já considerara antes — "estivesse vazia?"

Em uma segunda volta, um pouco mais confiante graças à aparente solidão que o acompanhava, e baseando-se nas palavras de Solônia, prestou mais atenção aos descarnados e amarelentos rostos que pareciam segui-lo a cada passo com seus enormes buracos vazios.

"... A espada "iluminadora" — anunciara-lhe o serafim — permitir-te-á descobrir a entrada secreta da torre..."

Pela enésima vez reparou na estranha lâmina azul, sem intuir a utilidade das letras que compunham.

— "E - H - U - N - I." E que demônios faço eu contigo? — murmurou, dirigindo-se à arma que tinha entre as mãos. — Se ao menos fosse capaz de descobrir alguma chave, algum indício...

Continuou caminhando ao pé do muro concentrando vista e inteligência naquele anárquico "mosaico" de cabeças ridentes. Os crânios estavam tão irregularmente distribuídos que se tornava muito difícil — para não dizer impossível — detectar o menor sinal de alinhamento ou, talvez, um esboço, uma figura... algo que, definitivamente, o pusesse de sobreaviso.

Finalizando de circunvalar o terraço pela segunda vez, expe­rimentou inclusive com a espada: ao mesmo tempo que iniciava a terceira volta à torre, foi aproximando a ponta da arma às caveiras. Mas nada aconteceu.

Com irreprimível desilusão, levou a termo um quarto e um quinto giro. Mas o muro resistia sempre. Onde se poderia encon­trar aquele maldito segredo?

Desconfiando que o misterioso acesso talvez estivesse em alguns dos terraços superiores, empreendeu uma última caminhada — a sexta — em torno da fortaleza.

— Se fracasso, não haverá outro remédio senão escalar.. . E, tal como supunha, aquela sexta volta também não deu fruto. Porém, foi só chegar ao lugar da partida — aquele em que se mantinha levitando, estático, o símbolo do "Yang-Yin" —. "algo" lhe chamou a atenção.

 

Foi muito fugaz. Quase imperceptível e captado com o rabo do olho. Sinuhe ficou imóvel. E, antes de virar o rosto para a esquerda, a fim de certificar-se do que havia visto, fechou os olhos, reconstruindo na mente a imagem que acreditava ter percebido. E aqueles crânios se desenhavam nítidos em seu cérebro.

— Não é possível! — argumentou contra si mesmo.

Ao levantar as pálpebras, aquela imagem continuava ali, clara e desconcertante.

Entre a "voragem" de ossadas, cinco apareciam com suas respectivas mandíbulas inferiores... caídas!

— Como é possível que não me tenha dado conta até agora?! — refletiu, aproximando-se com enorme curiosidade.

Havia ainda outro detalhe inexplicável. As cinco caveiras não só tinham as bocas abertas, mas se achavam alinhadas horizon­talmente!

O investigador podia jurar que aquelas cabeças não formavam fileira quando passou diante delas nas cinco vezes anteriores. Dando de ombros, porém, preferiu esquecer tão estranha circunstância. Afinal de contas, a incoerência sempre fora proverbial nele.

Examinou cuidadosamente as bocas abertas e, ao introduzir nelas os seus dedos, com surpresa não conseguiu sentir muro algum. Alarmado, espiou o interior das caveiras, mas o escuro era total. Ao acercar o rosto às filas de dentes, uma sutil corrente de ar veio confirmar-lhe as suspeitas: ou muito se enganava ou aquele tinha de ser o ponto de entrada da Torre de Amon.

Lutando contra a própria impaciência, retrocedeu um par de metros, contemplando aquela inesperada "pista". Mas o problema não estava resolvido.

"Obviamente" — deduziu — "o alinhamento desses crânios e a abertura dos seus maxilares devem corresponder a alguma coisa. Mas a quê?. . . Por quê?

Sinuhe cerrou os olhos, reconstruindo mentalmente — passo a passo — suas circunvoluções ao redor da fortaleza, e ao recor­dar que aquela era a sexta volta pela plataforma, um calafrio sacudiu-o da cabeça aos pés. Disposto a verificar a idéia que lhe acabava de brilhar no cérebro, empreendeu sua sétima marcha à base do fortim. Dessa vez, consumido pela incerteza, empreendeu frenética corrida. Pouco depois, detinha-se ofegante na frente das cinco caveiras.

Deus!...

Ao rematar a volta, outras cinco caveiras se haviam alinhado imediatamente por debaixo das primeiras e com os maxilares igual­mente abertos.

Sem alento, emocionado, o "soror" repetiu sua exploração, confirmando a presença de uma cada vez mais intensa corrente de ar fresco que brotava por aquelas dez pequenas entradas.

Sua intuição tinha sido um êxito. .. no momento. De novo, o número "seis" se convertera em protagonista de suas aventuras. Ao consumar as carreiras seguintes, outras tantas fileiras de crânios foram aparecendo mágica e prodigiosamente sob as primeiras. Ao empreender o circuito número onze, eram já cinco as fiadas apare­cidas no muro. A última, a mais baixa, a coisa de um metro do chão.

Nessa undécima volta, extenuado pelo esforço, Sinuhe não teve senão de resignar-se a fazê-la devagar. Mas movido por seu instinto aguçado foi aumentando suas passadas.

Ao retornar em frente do "quadrado" formado pelos vinte e cinco crânios — todos eles com as mandíbulas abertas —, foi colhido de surpresa por um novo e duplo achado: primeiro — e mais importante — no muro não se havia registrado alinhamento algum. Segundo, se não estava enganado, seus passos haviam so­mado outra curiosa cifra: 666!

Perplexo e incrédulo, repetiu a operação.

Ao concluir a volta número doze, os resultados foram idên­ticos: "666" metros de circunferência e nem uma só alteração entre as caveiras.

A fantástica coincidência fez com que se lhe transbordasse a excitação. Ali naquele misterioso alinhamento de ossadas huma­nas — todas elas com o "666" gravado nas frontes — tinha de estar a chave para penetrar no quartel-general de Belzebu.

Qual seria o passo seguinte?

 

Sentado diante do enigmático "quadrado", Sinuhe deixou que voasse o tempo.

Até aquele momento, a espada "iluminadora" não parecia ter desempenhado papel algum na solução daquele novo enigma. Quanto ao disco chinês — refletiu, dirigindo um olhar furtivo ao símbolo —, tampouco lhe sugeria nada de especial.. .

Onde poderia estar a solução? Por que, desde sua sexta volta ao redor da torre, teriam aparecido aquelas cinco fileiras de crâ­nios, concluindo o alinhamento com a volta número dez?

Depois de mil lucubrações, hipóteses e contra-hipóteses, o membro da Escola da Sabedoria recorreu, quase mecanicamente, ao método cabalístico. Somou os sucessivos "666" de cada fileira, notando que cada uma das adições lançava o mesmo resultado: o sagrado "9". Aquilo o intrigou. E procedeu então à soma total dos vinte e cinco "666". A cifra final — 16 650 — o devolvia, uma vez somados esses dígitos, ao "9"!

Seus alarmes mentais soaram ao mesmo tempo. Por conver­são de números a letras, aquele "9" passava a ser o "Teth" ou "T" do alfabeto hebreu. E, tal como acontecera em enigmas ante­riores, o "iuranchiano" descobriu que justamente aquele "Teth" era o símbolo esotérico da "oculta muralha para guardar um tesouro".

Levantou-se, nervoso.

— Um tesouro?... O Grande Tesouro!

As caveiras só podiam representar isso: uma "muralha" que escondia algo de muito valor.

— Os arquivos secretos de IURANCHA! — explodiu. Aquele entusiasmo porém depressa desapareceu. Embora parte do criptograma parecesse esclarecido, faltava ainda o mais impor­tante: como abrir ou demolir semelhante "muralha"?

"... A espada 'iluminadora' te permitirá descobrir a entrada secreta..."

Aquelas palavras de Solônia continuavam palpitando inces­santemente no subconsciente do jovem. Entretanto, embora muitas vezes refluíssem à sua mente, empenhado como estava em encon­trar por si só a chave do enigma, precisou de algum tempo para compreender que a solução, talvez, se achasse entre suas mãos.

— A espada!...

Agora sim chegara a hora de comprovar-lhe a eficácia. Assim Sinuhe, segurando-a com decisão, dirigiu a "folha celeste" sobre o "quadrado". Trêmulo, passou-a primeiramente sobre as vinte e cinco caveiras, sem atrever-se a roçá-las. Mas nada aconteceu.

À continuação, tocou com a ponta — formada pela letra "I" — o primeiro crânio da fileira superior. O alojado em sua extrema esquerda.

Então sucedeu o imprevisto. O fulgor da lâmina intensificou sua luminosidade e aquele halo azul se propagou pelos braços do "iuranchiano", envolvendo-lhe o corpo em uma aura celeste.

Simultaneamente, o "I" se transformou em um dedo índice que apagou o "666" da caveira e, com movimentos preciosos, o dedo humano desenhou um "S" no lugar do número.

Eletrizado por aquele fluxo celeste que o inundava, notou como o mágico dedo, e com ele o resto da espada, dirigia-se então à caveira contígua: a situada em segundo lugar naquela fileira superior.

Com a mesma firmeza, sem titubear, sem que Sinuhe inter-viesse, eliminou o número da Besta, substituindo-o por outra letra: o "A".

O mesmo sucedeu com as ossadas restantes daquela fileira. Ao terminar, sobre as frontes desses crânios apareciam — uma em cada um — letras hebraicas formando uma palavra enigmática: "SATOR".

Sem compreender, o membro da Loja deixou que agisse a espada "iluminadora".

Uma vez que deu por terminada a fileira superior, o dedo índice buscou a primeira caveira da segunda fila. Apagou igual­mente o "666", gravando no lugar um "A". E assim, crânio por crânio, foi dando forma a outra misteriosa palavra: "AREPO".

Ao concluir-se a terceira e mágica gravação, Sinuhe pôde ler: "TENET". Na quarta fiada, o dedo substituiu os "666" por outras

tantas letras do alfabeto hebraico, aparecendo um novo galimatias horizontal: "OPERA".

Por último, a "ponta" da espada percorreu as cinco caveiras da quinta fileira, deixando impressas outras tantas letras que deram lugar ao vocábulo seguinte: "ROTAS".

Instantaneamente o dedo azul desapareceu. E o halo que envolvia o "iuranchiano" retirou-se-lhe do corpo — desta vez em sentido inverso — até ficar concentrado ao longo da "folha" da espada.

Nesse momento Sinuhe recuperou sua vontade e a capacidade de movimento. E, maravilhado, examinou primeiro a arma que continuava sustentando entre as mãos. A letra "I", como sucedera com o "S", se havia esfumado. Agora era a letra seguinte — o "N" — a que ocupava a ponta da folha. Incrédulo, tocou-a, veri­ficando que não havia modificado sua tempera original.

Partindo da empunhadura, a espada "iluminadora" havia fi­cado reduzida às letras "E-H-U-N".

Quanto ao "quadrado", que significariam aquelas palavras?

 

Baixou a espada e caminhou até ao muro. A substituição do número da Besta por aquelas vinte e cinco letras, apesar da indubitável mediação da arma entregue pelo leal a Micael, o pusera em guarda. Os rebeldes não davam ainda sinais de vida, o que o intranqüilizava tanto quanto a resolução daquele interminável gali­matias. Não estaria sendo vítima de algum novo ardil dos "me­dianos" de Belzebu?

A tentação era irresistível. Assim pois, apoiando o joelho di­reito sobre as ossadas, os músculos tensos como cordas, aproximou as pontas dos dedos aos crânios. Roçou uma das letras mas, ao contrário do que supunha, nada ocorreu. Ao fazê-lo pela segunda vez, comprovou que o signo hebraico fora feito sobre o osso à maneira de um baixo-relevo. Ao apalpar o resto, observou que elas todas pareciam cinzeladas sobre as frontes.

— Impressionante!

Mais extraordinário ainda resultou a leitura do palíndromo, Porque naquele "quadrado", uma das palavras — ROTAS — podia ler-se da esquerda para a direita, da direita para a es­querda, de cima para baixo e de baixo para cima.. . E articuladas sobre essas letras exteriores, o observador podia ler igualmente, em qualquer direção, as outras quatro não menos intrigantes palavras...

Desconcertado, intuindo que o final do enigma não devia estar muito longe, esqueceu por completo onde se encontrava e mergu­lhou no criptograma.

As palavras SATOR, AREPO, TENET, OPERA e ROTAS eram legíveis, segundo esse palíndromo, em todas as direções. Também notou que a letra central — o "N" — era a única que não se repetia.

Que queria dizer o curioso "quadrado"? Que lhe estaria indicando?

Sinuhe começou por "traduzir" os textos, palavra por palavra. Mas as interpretações, seguindo o método cabalístico, resultavam absurdas ou divertidas.. .

"O semeador (SATOR)" — rezava uma delas — "reúne aqui o fruto do seu trabalho".

"O lavrador" — dizia outra — "tem suas obras na mão" ou "o semeador AREPO dirige as rodas cuidadosamente.. ."

Aquele, sem dúvida, não era o caminho adequado. E o mem­bro da Escola da Sabedoria, lutando para não esfrangalhar os nervos, escolheu outro procedimento.

 

 

 

As duas linhas centrais — as que davam lugar às palavras TENET — formavam uma cruz grega. Curiosamente, se unia as "A" com as "O", a primeira cruz se transformava então em uma de tipo potenzada (isto é, em forma de T). Mas o prodigioso "quadrado" ia além. Bastava unir à continuação os "A" e os "O" com o "N" central para desenhar uma cruz de Malta. Por último, ao tomar esse "N" como centro de um círculo de raio "NA" ou "NO", a figura resultante era a cruz dos Templários... "Estaria ali a chave para abrir a muralha?" Mas Sinuhe acabou por descartar essa possibilidade, enfronhando-se então em um capítulo mais complexo e surpreendente: a conversão, a números, daquelas vinte e cinco letras.

Depois de laboriosa investigação, o mágico "quadrado" de palavras revelou-se como um não menos mágico "quadrado" de números, todos eles herméticos e "altamente significativos"... As linhas da "cruz" formada pelas palavras TENET, por exemplo, somavam a mesma quantidade: 65. E outro tanto acon­tecia com as linhas diagonais. Os números correspondentes às casas exteriores "S" e "R" de ROTAS também davam uma mesma soma: 26.

Por outro lado, se tomasse as letras de duas em duas, a soma era igualmente "26", correspondendo, ainda, a pares de letras idên­ticas no "quadrado": "EE", "AA", etc.

Para o cúmulo, a letra central "N" equivalia exatamente à me­tade de 26.

E o "soror", à beira da loucura, descobriu que a chave cabalística daquele "quadrado" endiabrado tinha de residir naqueles três números: o 13, o 26 e o 65.

De mãos dadas com o mesmo método cabalístico — a Guematria —y converteu as três cifras em palavras. A "tradução" o deixou sem fala: "65" era a soma de ADONAI (Alef-Dalet-Nun-Yod: 1+4 + 50 + 10 = 65). E que significava ADONAI? Deus! O "26", por sua vez, era a soma guemátrica do Tetagrama: Yod-He-Vay-He (10 + 5 + 6 + 5 = 26). Isto é, Yaveh!

Somando os valores desses números sagrados — ADONAI e YHVH (Yaveh) — o "iuranchiano" tropeçou com outra surpresa: "65" e "26", eram igual a 91; quer dizer, 9 + 1 = 10 = 1. A unidade!

Do ponto de vista místico, teológico, esotérico e até cabalís­tico, a Unidade é sempre Deus ou Yaveh.

Aquele revesado tramado numérico achava-se além do mais perfeitamente unido ao "13". Em hebraico "uno" ou a "unidade" se diz EHAD, cuja soma guemátrica é precisamente 13: E "13", finalmente, era o "centro" (N) do "quadrado".. .

Ao manejar aqueles três conceitos — Yaveh, Adonai e "uno" ou a "unidade" —, acudiu-lhe à memória uma ancestral e sagrada oração judaica, recolhida no Deuteronômio 6,4:

"Yaveh, nosso Deus, Adonai é uno."

Quando já se dispunha a entoar essa oração, convencido de que havia dado com a chave para abrir passagem para o interior da Torre de Amon, outro descobrimento desviou-lhe as intenções.

A palavra ROTAS, que em hebraico se escreve "Resh-Vav-Tau-Samej", encerrava uma dupla e diabólica advertência: Samej, a serpente e o número da Besta. (Aquelas letras, numericamente, equivaliam a 200 + 6 + 400 + 60 = 666).

Emocionado, compreendeu que aquele "quadrado" mágico, formado pelas ossadas da mastaba, simbolizava o Bem e o Mal, ao mesmo tempo.

Que devia fazer? Pronunciar a frase sagrada ou invocar o nú­mero do Maligno?

 

Antes de tomar uma decisão, Sinuhe tentou analisar sua si­tuação. Se entoasse a prece sagrada, o mais provável é que visse franqueado seu o acesso à torre. Nesse caso, que novas aventuras o aguardariam? Poderia encontrar a companheira? Se, pelo con­trário, se decidisse pelo número da Besta, que seria dele?

Lançou um olhar ao símbolo chinês, perguntando-se, até mesmo, se os homens "Pi" não estariam novamente com a razão: não teria caído em outro sonho? Não seria tudo aquilo uma arma­dilha dos rebeldes?

— Mas e Solônia? — rebateu-se a si mesmo. — O guardião do Éden não pode ser uma maquinação do Maligno...

Provavelmente foi esta última reflexão que o conduziu à que, sem sabê-lo, seria a sua derradeira escolha naquela primeira fase da missão.

E, antes que seu atormentado espírito pudesse voltar atrás, pôs-se de pé. Segurou a espada, apontando com ela o centro do "quadrado" e, procurando ocupar mente e coração com uma só idéia — Nietihw — gritou com todas as forças:

— Yaveh... nosso Deus!.. .

Como se se tratasse de projéteis invisíveis, aqueles primeiros sons nem bem escaparam dos lábios de Sinuhe e começaram e pulverizar as caveiras. A primeira a estalar, desintegrando-se, foi a situada no ângulo superior esquerdo do "quadrado". E, a seguir, vertiginosamente e acompanhando uma ordem rígida, desaparece­ram todas as que compunham as três fileiras superiores.

O prodígio o colheu tão de surpresa que, estupefato ante a cadeia de silenciosas explosões, interrompeu a prece. Vendo, po­rém, que o processo de abertura do muro se detinha, apressou-se a concluí-la.

— ... Adonai é uno!

De maneira fulminante, as duas últimas fileiras — as que compunham as palavras "OPERA" e "ROTAS" — saltaram igual­mente pelos ares.

No lugar das vinte e cinco caveiras abria-se agora um escuro buraco quadrado de um metro de comprimento.

O investigador, absorto na contemplação da abertura, não reparou em outro curioso e significativo fato: aquela oração bíblica somava também vinte e seis letras...

Em uma primeira reação, o "iuranchiano" aproximou-se da boca do que supunha ser um passadiço. Mas, ao assomar-se, foi-lhe impossível distinguir alguma coisa. Tudo se achava sumido em espessa treva e dominado por ela. Curiosamente, a luminosidade amarelada que rodeava Sinuhe interrompia-se bruscamente no um­bral do suposto acesso à fortaleza.

Introduzindo cabeça e tórax pela abertura estendeu os bra­ços, mas não conseguiu sentir paredes, degraus ou chão — nada. "Aquilo" é o que havia de mais parecido ao vácuo. . . Só a corrente de ar se havia feito mais intensa e fria.

Ao retirar-se do interior da mastaba, permaneceu pensativo, sem perder de vista o negro acesso. Uma vez mais, só havia um meio de sair das dúvidas: aventurar-se torre adentro. Devia arma­zenar coragem e atravessar aquele "quadrado".

E uma cócega familiar nas entranhas anunciou-lhe novos e iminentes perigos...

 

Sinuhe não tardaria em fazer frente ao primeiro contratempo.

Depois de prender a espada ao cinto, inspirou profundamente e, aferrando-se aos crânios laterais que delimitavam o escuro qua­drado, preparou-se para saltar ao interior da base da grande torre. fia realidade nada sabia sobre o que encontraria lá embaixo ou do outro lado. Nem sequer se seus pés encontrariam qualquer sus­tentação. .. Mas era preciso fazê-lo.

Levantou a perna direita, introduzindo-a nas trevas e, quando se achava a cavalo sobre o muro, já para passar a outra perna, um ranger de ossos obrigou-o a voltar-se.

Ficou paralisado. Às suas costas, vindos talvez do outro lado do terraço, havia irrompido um grande grupo daquelas criaturas anãs e monstruosas.

— Deus meu!... Os "medianos"!

Em instantes, outra sucessão de estalidos, dessa vez prove­niente do lado oposto, veio juntar-se àquele pequeno exército de rebeldes que avançava para ele. Imediatamente, surgiu ante Sinuhe uma segunda tropa de seres de enormes cabeças e braços desproporcionados.

De um salto, abandonou a abertura e, separando-se do muro, resgatou a espada do cinto, brandindo-a em atitude defensiva. Quando ele empunhou a arma, os "medianos" estacaram. Sinuhe, girando sem cessar sobre si mesmo, tratou de não perder de vista as criaturas. Mas, depois daquele primeiro e aparente momento de hesitação, recomeçaram seu lento mas decidido caminhar contra o "iuranchiano". À sua passagem, as caveiras recomeçaram a estilhaçar-se, rompendo o silêncio com assustadora trepidação.

Quando se achava a pouco mais de dez metros do "soror", com a garganta seca pelo medo, observou como aquela multidão espichava os braços para ele, disposta, sem dúvida, a capturá-lo. E então rememorou uma imagem perdida: a do pesadelo sofrido na Casa Azul, pouco antes de ver-se envolvido em tão penosa aventura...

Fora de si, com a folha da espada vibrando, dirigiu-se então ao grupo que irrompera primeiro. Não estava disposto a deixar-se agarrar, mas, se necessário, estava disposto inclusive a morrer lutando...

Ao vê-lo carregar contra eles, os "medianos" novamente in­terromperam sua marcha. Mas uma das criaturas que avançava à cabeça destacou-se uns passos, cravando o olhar de seus olhos

negros no excitado humano. O olhar penetrante e a inegável audá­cia do rebelde, que parecia aguardar impassível o golpe fatal da espada "iluminadora", causaram em Sinuhe um efeito inexplicável. Ele se deteve diante do pequeno ser e, desconcertado, manteve a arma acima de sua cabeça, atento ao menor movimento suspeito. Então o "mediano", abrindo o reduzido orifício que fazia as vezes de boca, exclamou:

— Nada podes fazer, estrangeiro.. . Entrega-te à força de Belzebu, nosso chefe.

E, estirando seus braços tal qual caniços, convidou-o a que entregasse a espada.

Tal como Sinuhe imaginara, aquelas dúzias de monstros de cabeça em forma de pera invertida, de pele escura e curtida, e com o círculo negro e vermelho no peito, símbolo de Lúcifer, eram os servidores de Belzebu. Isso significava que a torre estava habi­tada e que Nietihw devia encontrar-se prisioneira em alguma da­quelas seis plataformas.

A confirmação de suas suspeitas e a lembrança da amiga acenderam de novo a ira do investigador que, como resposta, descarregou violento golpe de espada no crânio do "mediano". E as letras que formavam a folha afundaram-se na cabeça da cria­tura, partindo-a em dois. O rebelde caiu fulminado enquanto Si­nuhe, descrevendo grandes círculos com a arma, atirou-se sobre o compacto grupo, disposto a pelejar até o último alento.

As criaturas retrocederam e algumas, provavelmente tão assustadas quanto o "soror", tropeçaram entre si, rolando sobre as ossadas.

Animado pela desordenada fuga dos rebeldes, atacou nova­mente, destroçando, de um golpe, dois dos "medianos" mais pró­ximos. Mas, no momento em que se dispunha a carregar sobre os demais, o segundo contingente, que continuara avançando às suas costas, agarrou-lhe as pernas, cintura e ombros, derrubando-o de costas sobre as caveiras.

Do chão, o "iuranchiano" continuou esgrimindo com a espa­da "iluminadora", ferindo vários dos "medianos" que se lhe tinham arrojado — a dezenas — em cima do corpo. Apesar dos pontapés e golpes, das convulsões e até cabeçadas, a superioridade numérica dos adversários acabou por imobilizá-lo. E a espada saltou, final­mente, de suas mãos.

Sinuhe continuou lutando por safar-se daquela montanha de seres repulsivos. Mas, firmemente subjugado por dezenas de mãos, seus movimentos foram perdendo força e eficácia e, esgotado, teve de submeter-se.

Aí ocorreu o inesperado. Inexplicavelmente, os "medianos" o soltaram, fazendo um círculo ao seu redor; e caído no chão o atô­nito Sinuhe descobriu, flutuando acima dele, a sua espada "ilumi­nadora". Por um momento, a oportuna aparição infundiu-lhe novos ânimos. E, crendo que os rebeldes se retiravam por temor, levan­tou-se veloz em busca da arma que lhe entregara Solônia. Esten­deu os braços para ela e, quando estava para pegar a empunha-dura, a folha celeste — dirigida por força invisível — fez um brusco movimento, distanciando-se. Os rebeldes então abriram o cerco e Sinuhe, empenhado em recuperá-la, precipitou-se atrás dela. A espada, depois de um curto vôo, fora cravar-se em um dos "medianos" mortos pelo "iuranchiano". Obcecado pelo desejo de apossar-se da arma que poderia permitir-lhe reencetar a luta, tentou pela segunda vez empunhá-la. Mas, antes que suas mãos alcançassem a guarnição, a espada saltou do cadáver e sua folha apontou diretamente para o rosto de Sinuhe. Perplexo, parou. A ponta estava manchada por uma espécie de sangue preto e pas-toso, e antes que o "soror" pudesse compreender o que estava acontecendo, ela disparou contra ele o "N" que se lhe cravou nos olhos.

Com gritos de dor, levou as mãos à folha, lutando por arran­cá-la. Entretanto, só conseguiu ferir-se novamente com o fio das letras. Cambaleando, sentiu que as forças lhe escapavam do corpo. Então, uma frase grave e longínqua ecoou-lhe na memória, no mesmo instante em que ele desmoronava:

"... Mas escuta minha advertência, filho de IURANCHA... Aquele que a empregar para o violência, que só espere violência."

 

Uma dor aguda nos olhos — a mesma que o havia derrubado aos pés da Torre de Amon — fez com que voltasse a si.

E o coração de Sinuhe inundou-se de angústia.

— Está tudo escuro!

Aquelas primeiras palavras foram acompanhadas de imper­ceptíveis soluços; e o desditado investigador sentiu que não es­tava só.

Levou as mãos ao rosto e seus dedos tropeçaram com "algo" rígido e frio. "Algo" que permanecia cravado em seus olhos. Ex­plorou-o e lhe acudiram à mente, ligeiras, as imagens do "N" que formara parte da folha da espada "iluminadora" e o final de sua luta contra os "medianos" rebeldes.

— Deus meu! — sussurrou ao compreender que a letra conti­nuava incrustada em ambos os olhos. Aquela era a causa da sua cegueira.

Onde estava? Que havia acontecido?

A dor cedeu lentamente e o membro da Escola da Sabedoria soergueu o corpo e tateou o solo onde estava ao recobrar a cons­ciência. Embora sua visão se achasse totalmente perdida, logo re­conheceu as arestas e os inconfundíveis perfis das caveiras entre as quais caminhara em sua aproximação à fortaleza. Aqueles crânios, porém, pareciam firmemente soldados entre si. De joelhos, conti­nuou examinando o pavimento, concluindo que todos e cada um dos restos tinham sido dispostos com suas descarnadas caras "para cima". Aquilo alarmou-o mais ainda. Sem dúvida, não se tratava dos arredores do fortim, onde as ossadas tinham sido abandonadas aleatoriamente.

Naquela mesma posição, de joelhos, esticou a mão direita para o negro vazio que o rodeava em busca de qualquer coisa que lhe permitisse identificar o lugar. Seus dedos tropeçaram. As pontas tatearam nervosamente e em Sinuhe se fez uma luz: eram cabelos! Prosseguiu apalpando com veemência, comprovando que, com efeito, tratava-se de cabelos longos e sedosos. Tremendo de emoção, aproximou a outra mão daquela cabeça. Os dedos percorreram então as feições, detendo-se, emocionados, nos olhos.

— Deus meu!

Estavam úmidos; arrasados pelas lágrimas! Já sem conter-se? exclamou com voz quebrada:

— Nietihw!

Mãos suaves e delicadas saíram ao encontro das suas, segurando-as com força. E aqueles soluços que haviam acompanhado o despertar do "iuranchiano", fizeram-se mais intensos e entrecortados. A mulher, de joelhos em frente de Sinuhe, lançou-se-lhe nos braços.

— Nietihw!... Nietihw!

O jovem só acertava repetir o nome da companheira. E ela, incapaz de responder, dominada ao mesmo tempo pela alegria do reencontro e a profunda desolação que lhe inspirava o estado do amigo, limitou-se a afundar o rosto no ombro do membro da Loja, deixando-se arrastar por aquela torrente de sentimentos confusos,

Sinuhe, acariciando-lhe os cabelos, deixou que se desabafasse.

Quando a mulher se tranqüilizou, o "soror", depois de secar-lhe as faces, pediu-lhe começasse pelo começo: como fora cap­turada? Onde estavam?

As explicações de Nietihw foram breves. Quando se viu arrebatada na câmara dourada, a presença de umas criaturas mons­truosas, semelhantes a Vana, o "mediano" rebelde que lhes indicara a direção de Dalamachia, provocou nela um desmaio fulminante. Ao voltar a si, estava naquele lugar.

— Desde então — concluiu Nietihw — só tenho vivido para este momento.

— Onde estamos? Que espécie de cárcere é este?

— Você diz bem, Sinuhe — respondeu a filha da raça azul com amargura —, segundo a criatura que nos acompanha nesta cela macabra, nós três nos achamos sob o domínio de Belzebu, numa fortaleza que chamam a Torre de Amon...

— Então — murmurou o "iuranchiano", compreendendo que fora conduzido ao interior do forte —, todos os nossos esforços para recuperar os arquivos secretos...

A mulher guardou silêncio. Foi uma resposta significativa. Tudo, com efeito, parecia perdido...

Sinuhe, dando-se conta das últimas frases da amiga, pergun­tou ainda:

— Há alguém nos acompanhando?

Nietihw tomou então o braço do ser que permanecia em pé junto deles e, aproximando-o do companheiro, pôs em contato a mão da criatura com a de Sinuhe. Ao apalpá-la, o "soror" estre­meceu. Continuou percorrendo a áspera pele do longuíssimo e macérrimo braço, até conseguir tocar a cabeça. Ao comprovar-lhe forma e dimensão, retirou os dedos, assustado:

— Um "mediano"!

— Sim — confirmou ela em tom tranqüilizador —, um velho amigo nosso... Trata-se de Vana.

— Vana?... Mas por quê?

Desta vez foi a pequena criatura quem falou:

— Pouco a pouco irás compreendendo que Belzebu não per­doa. E eu, segundo nossas leis, cometi um erro ao indicar-vos o Ano caminho para os homens "Pi". Além disso, tua flecha de gelo me marcou para sempre...

— Não te compreendo — interveio Sinuhe.

Nietihw ajudou-o a pôr-se de pé e, dirigindo-lhe as mãos, depositou-as sobre o peito de Vana. Ao tocá-lo, experimentou clara sensação de calor. Seus dedos deslizaram sobre o tórax do "me­diano", enquanto recordava como as fauces de gelo de Samej, a serpente, haviam deixado sobre o escudo circular de Lúcifer um total de 72 fendas por onde brotaram misteriosos raios escarlates.

— Não é possível! — exclamou, ao constatar que as fissuras se haviam fechado, substituindo o emblema do Maligno pelo trí­plice círculo de Micael.

— É isso, Sinuhe — replicou o "mediano" —. Agora, com a bandeira do Soberano de Nebadon sobre meu peito e minha vontade, converti-me em um proscrito... para Belzebu e a sua gente. Assim como vós, só espero minha morte definitiva...

— Como nós? Que queres dizer?

A um sinal de Nietihw, Vana guardou silêncio. E ela, esfor­çando-se por desviar a atenção de companheiro da dramática revelação do "mediano", suplicou-lhe que fosse ele, agora, quem relatasse tudo o que acontecera desde a separação.

Compreendendo que algo de grave havia, obedeceu, passando a informá-la sobre seu estranho encontro com o seu duplo no espelho, sobre os sucessos na câmara funerária e na cripta dos três féretros, assim como sua aventura na câmara blindada de Dalamachia, seu vôo posteriormente para o sol "negro" e a apro­ximação da torre, com o fatídico combate final.

Ao terminar o relato, Sinuhe, levando as mãos ao "N" que lhe provocara a cegueira, concluiu, visivelmente combalido:

— Afinal, tudo perdido. Nós fracassamos.

Nietihw, com um fio de esperança na voz, retrucou ao fim de um breve silêncio:

— Pode ser que não, Sinuhe.. . pode ser que não...

 

Alertado por aquela insinuação, o "iuranchiano" procurou o rosto da amiga.

— Em que está pensando?

— Se não entendi mal — explicou, dirigindo-se aos dois —, os homens "Pi" lhe revelaram que o Grande Tesouro (a "pena” de Thot") só pode ser interrogada por alguém que ostente o sinal de Micael...

— Certo! — confirmou Sinuhe.

— E tal como assegurou Amen-Em-Apt, não é menos certo que os rebeldes, ao menos até hoje, continuam ignorando o des­tino do mestre e caudilho: Lúcifer. Estou enganada?

A pergunta foi dirigida a Vana, que fez um sinal com a cabeça.

— Sendo assim, e já que só você, Sinuhe, conserva a marca de Micael, por que não aproveitarmos a vantagem?

— Aproveitarmos? Como? — interpelou o membro da Loja, sem compreender bem as intenções da companheira.

— Muito simples. Pactuemos com Belzebu. Se nos permite chegar aos arquivos secretos, tanto ele como nós poderemos co­nhecer a parte de Verdade que nos interessa...

Sinuhe recordou como aquela possibilidade já havia pairado em seu coração na "câmara couraçada"... E agora, a filha da raça azul, longe de render-se, encarregava-se de ressuscitá-la, avivando-lhe assim a remota esperança.

O "mediano", entretanto, com mais consciência da situação deles, lembrou ao casal que, para pôr em execução uma idéia tão difícil, teriam primeiro de sair da cela...

— Vana tem razão — aparteou Sinuhe. E, pegando o braço da amiga, pediu-lhe que o guiasse e detalhasse as características do lugar.

— Não há muito que explicar. Fomos encerrados em um cubículo reduzido cujos muros, teto e solo estão formados ou cobertos por centenas de ossadas como as que você pôde sentir. Por suas órbitas, fossas nasais e bocas — acresceu com estreme­cimento — brota uma contínua luz preta e vermelha...

— Preta e vermelha? — interrompeu-a o "soror".

— Sim. De cada uma das aberturas desses macabros crânios sai um "cilindro" de luz: o centro é cor de granada e o resto, assim como um invólucros, é preto.

— O signo e emblema de Lúcifer — exclamou Sinuhe, pensativo. A seguir, interrompendo suas reflexões, perguntou de novo: — Em que ponto da torre nos encontramos, exatamente?

— Segundo Vana, na primeira mastaba ou plataforma. Na base da fortaleza.

Nietihw, adiantando-se à pergunta seguinte, esclareceu:

— A sede e o trono de Belzebu estão na quinta ou penúltima plataforma...

— E o Grande Tesouro?

Nietihw cruzou um olhar com Vana. O "mediano", sem perder sua habitual frieza, respondeu assim:

— Esquece qualquer pensamento de fuga, Sinuhe. Isto não é Dalamachia. Estamos nas mãos de Belzebu e só ele pode aceitar ou recusar o acordo sugerido por Nietihw...

— Está bem — replicou o "soror", que não era fácil de dobrar —, mas onde está escondido o Grande Tesouro?

Nietihw e Vana não chegaram a responder.

— Onde? — insistiu o "iuranchiano".

A filha da raça azul, tomando-lhe a mão lhe suplicou silêncio. Um silvo estridente, vindo de um dos muros, fez com que Sinuhe se virasse.

— Que é isso?

Nietihw, aproximando-se mais do inquieto companheiro, sus­surrou-lhe ao ouvido:

— Não sabemos.. . Os feixes de luz que escapavam de uma das paredes desapareceram... Parece como se...

A filha da raça azul não pôde continuar. O solvo se tornou mais agudo, enchendo a cela e perfurando os ouvidos do casal, como invisíveis adagas. E ambos, presa da dor, levaram as mãos aos ouvidos, na vã tentativa de alívio.

 

O silvo, ao ganhar intensidade, foi transformando-se em gani­do. E bruscamente, quando criam que seus cérebros já iam estou­rar, cessou. Cada uma das ossadas que formava aquele muro se tingiu de vermelho, como se um fogo implacável vindo do interior as devorasse. O casal e também Vana sentiram que uma onda de calor se desprendia da parede, enchendo a cela. Subitamente as caveiras, uma a uma, foram caindo, convertidas em brasas.

Quando o último crânio rolou no pavimento, Nietihw distin­guiu no lugar em que ele havia ocupado na parede uma silhueta circular e de um vermelho brilhante.

— Que é isso? — perguntou, temerosa.

Vana, dando um passo em direção à estranha figura, res­pondeu:

— O símbolo do universo. Belzebu assenhoreou-se dele. Agora — acrescentou, apontando a metade superior do disco — domina o Yin...

— O Yin? — terçou Sinuhe, adivinhando de que se tratava. Vana assentiu. E os "iuranchianos" compreenderam que os rebeldes se haviam apoderado do disco chinês que mudara a sorte de Sinuhe, quando ele se viu tomado pelas feridas.

Não houve tempo para mais nada. Por detrás do Yin-Yang surgiram vários rebeldes que, aos empurrões, os tiraram do habitáculo.

Sinuhe, desamparado, gritou o nome da companheira buscando-a com os braços estendidos para o vazio.

— Sinuhe!

A resposta da filha da raça azul e sua luta por desembaraçar-se das criaturas que a conduziam a poucos metros na frente, foram inúteis. Dois dos "medianos" subjugaram então o "iuranchiano", forçando-o a caminhar. Atrás Vana, com os braços igualmente controlados pelos rebeldes, cerrava a comitiva.

O "soror" compreendeu que começavam a subir uma espécie de rampa, toda ela pavimentada com ossadas dispostas como as da cela: as caras viradas para cima.

As sentinelas forçaram a marcha, arrastando os prisioneiros por um corredor interminável que percorria a torre em forma de espiral. À frente, diáfano e silencioso, avançava o símbolo do Yin-Yang.

Se o membro da Escola da Sabedoria tivesse ainda a sua visão, teria observado que, à sua passagem, nos muros do estreito passadiço — todo ele recoberto de crânios — se iam abrindo peque­nas portas de apenas um metro e meio de altura. No umbral se recortavam, fugazes e curiosas, as silhuetas de outros "medianos".

Finalmente, depois de penosa caminhada, Sinuhe sentiu-se violentamente empurrado para a frente, precipitando-se em um solo de arestas cortantes. Imediatamente, quando tratava de levan­tar-se daquele pavimento de caveiras, as solícitas mãos de Nietihw acudiram a ajudá-lo.

— Sou eu! Coragem!

— Onde estamos?

A filha da raça azul, baixando o tom de voz, explicou-lhe que tinham sido levados para uma enorme sala circular e abobadada, decorada, também, com milhares daqueles restos humanos. E que, de todas as órbitas, fossas nasais e mandíbulas partiam milhares de feixes cilíndricos luminosos — pretos e vermelhos — que davam ao recinto uma claridade sinistra. Em frente, sentados em onze tronos que se alinhavam em semicírculo e que eram também de­corados com dezenas de ossadas, observavam-nos outros tantos seres.

E Nietihw, abalada, aferrou-se ao braço do companheiro.

 

Sinuhe, diante dos tremores e do súbito silêncio da filha da raça azul, pressentia que alguma coisa grave acontecia,

— Que está acontecendo? Quem são esses seres? — cochi­chou, inclinando o rosto até o de Nietihw.

Ela, porém, não respondeu. A criatura situada no assento central se levantou; instantaneamente, em indubitável gesto de deferência, os demais "medianos" fizeram o mesmo, permanecendo junto a seus assentos.

Aquele ser, um "mediano", com efeito, tinha o aspecto seme­lhante ao de Vana e ao dos outros rebeldes. A única diferença residia numa longa capa vermelha que, quando ele caminhava, flutuava mansamente, sem tocar o solo. Aquela peça, continua­mente agitada por um vento inexistente, arrancava dos ombros enxutos, como se fizesse parte da pele escura e enrugada do indi­víduo. Abaixo da cabeçorra, um pouco mais volumosa talvez que as dos irmãos de tronos, pendia uma grossa cadeia de ouro, e dela, justamente sobre o emblema de Lúcifer, uma chave não menos considerável, em relação ao pequeno talhe do portador.

Para Vana, que assistia indiferente à aproximação do "me­diano", o singular comportamento dos raios luminosos à passagem daquele que parecia o chefe, não constituiu motivo de estranheza ou alarma, mas sim para Nietihw, que se foi refugiar atrás de Sinuhe. Conforme ia ele caminhando, os cilindros luminosos que os bura­cos das caveiras irradiavam extinguiam-se, formando um corredor estreito. E aquele corredor o levou justamente junto ao membro da Grande Loja.

Os guardiães, até ali postados às costas dos prisioneiros, fize­ram menção em interpor-se entre Sinuhe e o "chefe". Mas, a impe­rativo gesto de uma de suas diminutas mãos, os rebeldes recupe­raram a primitiva posição.

Ao chegar a um passo do "soror", o "mediano", depois de examinar com suma atenção o "N" ainda cravado nos olhos, moveu a cabeça repetidas vezes em sinal de desaprovação. E o escondido orifício circular que fazia as vezes de boca se abriu, dando pas­sagem a uma voz que Sinuhe associou com a de um ancião.

— Perguntavas quem somos? Pois permita-me que seja eu o primeiro a apresentar-se.. . Meu verdadeiro nome é "A-B-C, o primeiro", decano dos "medianos" secundários em IURANCHA...

— "A-B-C, o primeiro"? — repetiu Sinuhe com muita es­tranheza.

E o "chefe", adotando um tom benevolente, aclarou-lhe as dúvidas.

— Compreendo tua surpresa, estrangeiro. Há muito tempo sou conhecido pelo cognome de Belzebu...

O "mediano" captou a aguilhoada de terror que sacudiu Nietihw e, dirigindo-se a ela, considerou:

— Teu temor me é familiar... e justificável, estimada amiga, Mas não te deixes dominar por meu aspecto nem pelo que supões que represento.

O "iuranchiano", indignado pelo que considerou ser um sar­casmo, enfrentou o "mediano".

— Amiga? Como pode falar assim um servidor do Malig­no?. . . Desde quando somos amigos teus?

Belzebu pareceu gostar daquele sincero e audacioso gesto do estrangeiro, e, para surpresa de Sinuhe, foi colocar a mão sobre os três círculos que o costado esquerdo do jovem exibia.

— Embora não o compreendas — replicou o "mediano" —, vós e nós temos alguma coisa em comum: todos temos buscado e/continuamos buscando a Verdade. Quanto a essa definição tua (a de Maligno), resulta lógica, já que ignoras muitas coisas...

Nietihw, certamente surpreendida com as maneiras e o tom sereno de "A-B-C, o primeiro", acabou por dominar-se. E, apare­cendo por detrás do amigo, perguntou num fio de voz:

— Que queres de nós?

Belzebu foi taxativo e direto, mas Sinuhe que carecia da fina intuição feminina, não captou, de momento, as intenções do chefe dos "medianos" rebeldes.

— No fundo — respondeu a criatura, retirando a mão do emblema de Micael —, o mesmo que vós pretendeis de mim...

E, antes que a filha da raça azul intendesse de novo, deu meia volta, regressando ao seu trono. Enquanto se ia retirando, os grossos raios pretos e vermelhos brotavam de novo pelos buracos dos crânios, entrecruzando-se com os que manavam dos muros e abóbada.

 

Ao tomar assento Belzebu, os dez "medianos" o imitaram. E um expectante silêncio se fez na sala, rasgado apenas pelo leve tilintar da chave de ouro, lenta e ritmicamente golpeada pelo chefe contra os elos da corrente. Aquele jogo se prolongou por uns minutos. Finalmente, o "mediano" se dirigiu aos prisioneiros no­vamente, expondo-lhes com visível cansaço:

— Desde há dois mil anos, fruto dessa ignorância que domina IURANCHA, temos sido aborrecidos, condenados e agora, em vosso século XX, até mesmo ignorados. A humanidade não sabe que houve um tempo em que colaboramos para o engrandecimento e para a evolução dos mortais. Mas desde a "quarentena" vosso mundo (nosso mundo) tem sido enganado. A verdade que justi­ficou aquele levantamento contra a ordem estabelecida tem sido deformada e manipulada. Nos últimos séculos de IURANCHA, como sabeis, os estúpidos ministros das igrejas e religiões nos têm batizado e qualificado com definições tão grotescas e pueris como "diabos", "demônios" e "forças do Mal". — Belzebu levantou a voz e, apontando para os prisioneiros, recalcou: — Vós mesmos, buscadores definitivos da Verdade, vós nos considerais inimigos. .. — Não há razões de sobra para isso? — replicou Sinuhe. — Não haveis dominado o mundo e suas populações durante milênios? Podes negar a nefasta influência do Maligno, cobrindo de ódio, guerras, desolação e morte milhões de seres humanos? Hoje, é claro — animou-se o "iuranchiano" diante do silêncio do "media­no" — adivinha-se vossa escura e tenebrosa mão por detrás da ambição dos políticos, do refinamento e sadismo de verdugos co­bertos de condecorações, do falso misticismo e da sede ilimitada de poder das próprias igrejas, da intransigência dos teólogos, da inumana corrida belicista. .. Enfim, para que prosseguir? — con­cluiu o investigador, convencido da inutilidade dos seus argumen­tos. — É evidente que haveis logrado a posse de numerosas cons­ciências. ..

— A falta de informação — retorquiu Belzebu no mesmo instante — vos levou, como a tantos, a falsas interpretações. É certo que durante algum tempo e por razões muito diferentes das que imaginais nós, os leais a Lúcifer, trabalhamos em IURAN­CHA contra uma verdade (a vossa) e que foi, exatamente, a causa e a razão do grande levantamento. Há dois mil anos, porém, desde a chegada do Espírito (a que vós chamais Pentecostes), nem um sequer dos meus "medianos" pôde influir nas consciências dos "iuranchianos" e, muito menos, tomar posse delas. Isso terminou...

Sinuhe vacilou e Belzebu, saindo-lhe ao encontro dos pen­samentos, declarou:

— Sei o que pensais... Mas podeis estar seguros de que o caos atual entre os homens, sua degradação progressiva e, em espe­cial, o enfraquecimento e anulação de suas consciências não obe­decem a intervenção alguma dos que mantêm a lealdade ao que tu chamas Maligno. Em todo caso, essa inegável e crítica situação se origina no insulamento a que se tem visto submetido o planeta pelas mui altas hierarquias celestes que dizem servir à Verdade...

Naquelas últimas palavras, o "mediano" deixou transparecer profundo desprezo.

— Razões muito diferentes das que imaginamos? — pergun­tou Nietihw, que acompanhava com atenção o caloroso debate. — A que razões te referes? A Verdade não é una?

Belzebu, como se estivesse aguardando a questão proposta pela filha da raça azul, fez um sinal ao "mediano" situado à sua direita.

— Golab — anunciou — responder-te-á por mim.

E o "mediano", pondo-se em pé, passou a relatar o seguinte apólogo:

— Contam que outro buscador da Verdade saiu, em certa ocasião, pelos caminhos de IURANCHA. E ali, no grande cruza­mento do mundo, interrogou seus irmãos.

"— Dizei-me: qual é a Verdade?

"— Busca na Filosofia — responderam os filósofos.

"— Não — argumentaram os políticos. — A Verdade está no serviço.

"— Entra nas catedrais — lhe asseguraram os sacerdotes.

"— Sem dúvida, a Verdade é a Sabedoria — terçaram os sábios.

"— Renuncia a tudo — esgrimiram os ascetas.

"— Contempla e exalta as maravilhas do Senhor — anun­ciaram-lhe os místicos.

"— Acata e cumpre as leis — indicaram os governantes.

"— Conhece-te a ti mesmo — cantaram os guardiães do esoterismo.

"— A Verdade está nos números sagrados — deduziram os cabalistas.

"— Vive os prazeres — aconselharam os epicureus.

"— Une-te a nós — gritaram-lhe os revolucionários.

"— Vive e deixa viver — clamaram os existencialistas.

"— A Verdade é um mito — responderam os céticos.

"— O passado: eis a única Verdade — lamentaram os nos­tálgicos.

"Confuso, aquele humano se deixou cair na poeira do cami­nho, enquanto aquela multidão se distanciava, cantando e reivin­dicando 'a sua' verdade. Nisso, aconteceu de passar junto ao 'iuranchiano' um ancião venerável, que portava um refulgente diamante.

"— Quem és? — perguntou o derrotado buscador da Ver­dade.

"E o ancião, mostrando-lhe o diamante, respondeu:

"— Sou o guardião da Verdade.

— A Verdade? Ela existe?

"O ancião sorriu e aproximando a gema ao rosto do humano, replicou:

"— A Verdade, como este tesouro, tem mil faces. A cada qual cabe averiguar qual delas lhe toca".

Golab guardou silêncio e, a um sinal de Belzebu, voltou a sentar-se.

— A vós — prosseguiu o chefe dos "medianos" — desde a infância, vos mostraram uma das mil faces da Verdade. Mas que sabeis do resto? Conheceis, por acaso, o Manifesto da Liber­dade, o mais justo e corajoso pronunciamento que jamais se terá feito no nosso universo local, e que constituiu a filosofia da nossa rebelião?

Aquela revelação inesperada os deixou perplexos.

— Logo é certo que houve outras razões que justificaram e provocaram a revolta de Lúcifer. . . — comentou o membro da Escola da Sabedoria, em tom inseguro.

O "mediano", como que impelido por uma mola, se pôs em pé. Seus dez acólitos fizeram o mesmo. Dirigindo-se precipitada­mente em direção aos prisioneiros, explodiu ao chegar diante deles:

— Em nome dessa Verdade por que tanto ansiais; pensai! Será que a estúpida explicação de algumas igrejas sobre a rebelião pode satisfazer uma mente lógica e sensata? Será que considerais ao soberano sistêmico de Satânia e aos milhões de seres que a ele se uniram, tão solenemente estúpidos ao ponto de se levantarem contra a ordem estabelecida, simplesmente "porque queriam ser como Deus"?

Belzebu deu meia volta, regressando ao seu trono.

 

Na mente de Sinuhe três desconcertantes palavras tinham fi­cado gravadas: "Manifesto da Liberdade". Que seria aquilo? Por que tal pronunciamento — segundo o chefe dos "medianos" rebel­des — chegara a animar legiões de seres de indubitável inteligência e sabedoria à mais nefasta rebelião de Nebadon? Que outras "ver­dades" seriam silenciadas ou ignoradas pelas igrejas do mundo em torno dessa revolta?

— Podeis ter certeza — acrescentou Belzebu, já recuperada sua calma habitual — que nós, os leais a Lúcifer, somos os pri­meiros interessados em que a humanidade conheça essa parte da Verdade...

— Referes-te à rebelião? — perguntou Sinuhe, impaciente.

— Sim, é claro.

— Tu mesmo te contradizes, Belzebu — acusou o "iuranchiano", convencido de que aqueles desejos do rebelde eram uma nova amostra de suas intrigas e falsidades —. Se realmente pretendeis que a Verdade seja conhecida, por que roubastes o Grande Tesouro?

O "mediano" demonstrou impaciência.

— Sei que não vos posso convencer — exclamou enquanto girava a chave nervosamente entre seus dedos — a menos que a "pluma de Thot" fale por mim... Nós não roubamos o Grande Tesouro. Simplesmente o restituímos a seus legítimos depositários. Foram os fugidos da "cidade-modelo" de Dalamachia (os atlantes) que, furtiva e ilegalmente, apoderaram-se dos arquivos...

Sinuhe sentiu que a amiga lhe pressionava o braço como sinal de cumplicidade, e o "iuranchiano" compreendeu: aquela versão chocava frontalmente com a dos homens "Pi". Mas ambos — muito embora confusos — continuavam acreditando na de Amen-Em-Apt.

— Se é como dizes — reclamou a filha da raça azul, com a intenção de encurralá-lo — por que teus leais lutaram para nos impedir o acesso à Torre de Amon?

— Digamos que por duas grandes razões.

Belzebu estendeu suas mãos para Golab, reclamando qualquer coisa. No mesmo instante, o que parecia seu lugar-tenente entre­gava-lhe um pequeno frasco de cristal.

— Os "ibos" — murmurou Nietihw ao reconhecê-lo.

O chefe dos "medianos", mostrando-lhes a areia mágica que a mulher levava no momento da captura, prosseguiu:

— Em primeiro lugar, nunca lutamos contra ti, filha da raça azul. Em todo caso, lutamos por atrair-te...

"Desde que IURANCHA se viu submetida à injusta "qua­rentena", os frutos da Árvore da Vida não surtem efeito em nossos circuitos vitais. E, embora longevas, as vidas de meus "medianos" acabam por consumir-se. Por isso teu precioso, embora pequeno, carregamento de "tempo", foi uma constante tentação... Espero que nos saibas compreender.

A Árvore da Vida! A menção de Belzebu a tão fascinante enigma quase desviou a atenção de Sinuhe. Que saberia sobre isso o chefe dos rebeldes?

— A segunda razão, a mais importante, já a conheceis. Aqueles que os enviaram poderiam ter-vos mostrado a Verdade diretamente. Mas, justa ou injustamente, preferiram que a encontrásseis por vós mesmos. Agora, a um passo do Grande Tesou­ro, eles e nós sabemos que não fraquejastes. Embora, de outra perspectiva, os leais a Lúcifer também vos provamos...

Nietihw e Sinuhe não saíam do assombro. E foi o "soror" quem expressou em voz alta seus pensamentos:

— Não posso crer que tenhamos servido a duas forças ao mesmo tempo. . . Não é possível que ambos estivessem de acordo.

— Dir-te-ei uma coisa, Sinuhe: talvez fosse a tua ingenui­dade o que mais comoveu a "ambas as partes"... como as chamas. Tu crês, de verdade, que terias podido chegar até aqui sem, diga­mos. .. a nossa "colaboração"?

Belzebu fez outra pausa estratégica, deixando que o jovem se emocionasse àquela interrogação:

— O dia em que tenhais acesso a essa parte da Verdade — arrematou com uma velha e suspeita citação bíblica — "vossos olhos se abrirão..." Então, só então, compreendereis que o Bem e o Mal são irreais. Que as promessas de salvação que pregam vossas igrejas não são mais que astutas chantagens para lograr a submissão dos humanos; quer dizer, o poder...

O "mediano" mirou-a com aqueles olhos negros e brilhantes como a noite e a filha da raça azul creu distinguir neles uma sombra de piedade.

— As igrejas!... Querida amiga! Escuta os meus leais. Eles, como eu, conhecem o passado, o presente e o futuro do coração de IURANCHA..,.

Outro dos "medianos", o que tomava assento à esquerda de Belzebu, atendendo ao pedido do chefe se pôs em pé e falou assim aos prisioneiros:

— Meu nome é Harab. Tenho dedicado meu tempo a co­nhecer o passado, o presente e também o futuro do que vós chamais "igrejas". E eis o que vi e vejo...

"Em um princípio povoou IURANCHA uma humanidade primitiva. Adorava o raio e se prostrava temerosa ante o Sol e a Lua. Uns homens mal pintados, carregados de máscaras e penas, dançavam à volta do fogo invocando o deus da chuva, solicitando indulgência do deus dos ventos e a proteção do deus dos mortos. Aqueles feiticeiros foram temidos e servidos pelos humanos, seus escravos. Foi a religião do medo.

"Busquei depois no presente. A humanidade (vós) já não teme as forças da Natureza. O progresso deu lugar a uma nova forma de religião: a mente. Um sem-fim de igrejas pugna pela posse exclusiva da Verdade. Todas dispõem de sua própria Teolo­gia e baseiam sua existência no princípio dogmático e indiscutível da autoridade.

"Milhões de seres humanos aceitam sem discutir a proteção dessas religiões que pedem, em troca, cega e total submissão. Per­feitamente estabelecidas e cristalizadas, tais igrejas são o refúgio mais cômodo para aquelas mentes que se vêem assaltadas pelas dúvidas e pela incerteza. O preço a pagar é o da docilidade e con­sentimento intelectual a determinados princípios, ritos e dogmas que, apesar da infantilidade e fossilização, são tidos e considera­dos como revelações divinas, manifestações sagradas e caminho da perfeição.

"À frente dessas igrejas (vós o sabeis) há centenas de mi­lhares de novos feiticeiros empenhados, sobretudo, na vigilância e preservação desse princípio de autoridade. Certamente, não dançam ao redor do fogo nem fustigam seus fiéis com a chibata, embora houvesse um tempo em que queimavam, torturavam e en­carceravam em nome de Deus. Hoje, essa tirania é mais cruel e aniliquiladora: utilizam a obscura magia de palavras como "fé" e "salvação" para fazer desmoronar qualquer tentativa de liber­dade e de busca espiritual. É a religião do dogma...

Sinuhe teve de reconhecer que Harab falara a verdade, e esperou impaciente seu vaticínio para a religião do futuro.

— Dirigi depois meu olhar para a frente. E meu coração se sentiu aliviado: não vi igrejas nem religiões. A humanidade, em seu avanço incessante compreendera que a penetração e o sempre parcial conhecimento das realidades eternas nascem uni­camente do espírito e de mãos dadas com a experiência pessoal.

"As cerimônias, superstições, os feiticeiros e as rígidas es­truturas eclesiásticas haviam desaparecido, deixando passagem para a apaixonante aventura da busca pessoal. Os homens tímidos, vacilantes e medrosos de antanho eram audaciosos e incansáveis "viajeiros" ao mundo interior, em constante e vivificante evolução. Do letargo das tradições passar-se-á para a mais prometedora das experiências: o encontro da Verdade por meio do homem e no homem mesmo. Será a religião do Espírito...

Tanto Nietihw como Sinuhe compartilhavam das palavras de Harab, metade realidade, metade quimera. Mas suas reflexões fo­ram interrompidas por Belzebu.

— As igrejas!.. . Por acaso chegastes até aqui graças a elas? O chefe dos rebeldes levantou-se, caminhando pela terceira

vez para Vana e os "iuranchianos". E chegando junto deles os preveniu:

— Ouvi minhas palavras, estrangeiros! São essas igrejas as que vos combatem... Mas o pior está por chegar. Quando souberdes da Verdade que o Grande Tesouro guarda e a derdes a conhecer entre vossos irmãos de IURANCHA, serão essas igrejas as que cairão sobre vós com as armas do desprestígio, do ridículo e das maquinações subterrâneas. Lembrai-vos disso!

 

Nietihw voltou a uma de suas primeiras perguntas: — Que queres de nós?

— Já vô-lo disse — tornou Belzebu —. O mesmo que vós de mim.

— Fala claro! — terçou Sinuhe.

Mas a filha da raça azul, intuindo as "razões" do chefe dos rebeldes, rogou ao amigo que não interferisse. E, contundente e direta, perguntou ao "mediano":

— Tu tampouco conheces toda a Verdade... Engano-me? Belzebu pareceu hesitar. Na realidade era muito difícil, para não dizer impossível, adivinhar ou sequer intuir que classe de sentimentos palpitava naquele ser. A inexpressividade do rosto, incapacitado para sorrir, para exprimir a dor ou para refletir de qualquer outro estado de ânimo, deixava Nietihw em clara des­vantagem.

Finalmente ele aceitou o desafio:

— Digamos que nós também nos vemos afetados pelo insulamento da IURANCHA.

— Que queres tu dizer? — insistiu a mulher.

— Que, para os meus leais e para mim, seria de utilidade averiguar em que situação exata se encontram a rebelião e aqueles que conosco a defenderam. . .

Tinham razão os humanos e Vana. Pela primeira vez desde que compareceram diante do dono e senhor da Torre de Amon, a hipótese discutida na cela parecia certamente viável. A "qua­rentena" frustrara toda tentativa de comunicação com o exterior e, logicamente, como o resto da humanidade; os rebeldes estacio­nados em IURANCHA haviam sofrido também o isolamento cós­mico. Por não conhecer, entretanto, a natureza de tal levante, nem Sinuhe nem Nietihw podiam precisar em que momento começava a falta de informação dos adversários. Apesar disso, resolveram aproveitar o que, à primeira vista, apresentava-se como uma van­tagem. . .

Sinuhe estava ainda consciente de que ali o único humano marcado com o sinal de Micael era ele. Portanto podia, ou não, satisfazer a vontade de Belzebu. Tal como o haviam advertido os homens "Pi", ele, somente ele, achava-se autorizado a interrogar a "pluma de Thot". E, astutamente, como digo, resolveu utilizar em benefício próprio e de Nietihw aquela dupla circunstância. Precisava, porém, obrar com extrema cautela. Assim pois, o mem­bro da Escola da Sabedoria preferiu não precipitar os aconteci­mentos.

— Proponho-vos um trato — expôs Belzebu, entrando assim no terreno desejado pelo casal —. Estamos dispostos a franquear-vos a passagem para o Grande Tesouro, sempre e quando tu, Sinuhe, satisfaças nossa petição de interrogar a "pluma"...

— Interrogar? — interveio o jovem simulando não ter com­preendido —. Sobre quê?

— Isso te será comunicado em seu devido tempo.

E Belzebu, guardando silêncio, esperou uma decisão.

— Há algo mais — argumentou Sinuhe, rompendo a situa­ção tensa —. Dizes que sois os primeiros interessados em que essa parte da Verdade sobre a rebeldia de Lúcifer seja difundida entre os humanos de IURANCHA...

— Assim é, confirmou o "mediano".

— Mas quem nos garante que uma vez satisfeita a tua curio­sidade nos deixará partir?

A voz anciã do chefe dos rebeldes ressoou de novo na sala das caveiras:

— Tendes minha promessa.

Nietihw voltou a pressionar o braço do amigo, mostrando que estava de acordo. Mas o investigador não se mostrou confor­mado.

— Sinto muito — sentenciou enquanto apontava o dedo ín­dice para o pavimento —. Não é suficiente. Estes restos humanos falam contra ti...

Belzebu inclinou a cabeça, seguindo a direção do dedo de Sinuhe. E, ao compreender a alusão aos milhões de ossadas mar­cadas com o "666", apressou-se a replicar:

— Uma vez mais te equívocas. "Isto" — disse, apontando os muros e a abóbada — só faz parte da História. Como já te anunciei, desde a chegada a IURANCHA do Espírito de Verdade, nosso domínio sobre os humanos desapareceu. Embora muitas Igrejas continuem crendo e apregoando que o poder de Lúcifer pode dominar as mentes e vontades dos habitantes da Terra, isso acabou há dois mil anos...

"Desgraçadamente, vossos ministros e dirigentes religiosos confundem a loucura, a debilidade mental ou a maldade próprias de muitos "iuranchianos" com a possessão diabólica ou a influên­cia do Maligno, como tu a chamas. E eu te repito que, desde Pentecostes, nem um só de meus leais tem acesso a mente humana alguma. Nem sequer às mais precárias ou degeneradas... Deve-ríeis ter intuído que o destino dos humanos de IURANCHA não nos importa... Desde que explodiu a rebelião no sistema de Satânia, nossos objetivos foram outros... Que podeis importar-nos, vós, débeis mortais, quando está em jogo a nossa segunda morte? O casal sentiu que Belzebu era sincero. Mas que teria ele querido dizer com aquilo da "segunda morte"?

— Ignorais tudo sobre aqueles tempos críticos — prosseguiu o chefe dos rebeldes —, sobre as verdadeiras intenções de Lúci­fer e sobre as diferentes classes de seres celestes e sobre-humanos que elegemos seu Manifesto da Liberdade. Com que direito e co­nhecimento podes portanto duvidar de mim?

Sinuhe foi implacável.

— Em meu costado podes ver o sinal e bandeira de Micael, Soberano de Nebadon. Isso, ao menos no momento, converte-nos em adversários. Continuo exigindo, por conseguinte, uma ga­rantia. ..

Belzebu caiu em outro prolongado silêncio, e tanto Nietihw quanto Sinuhe chegaram a pensar que estava tudo perdido.

— Está bem — retomou enfim o "mediano" —. Terás essa garantia...

E voltando-se para os seus leais, exclamou com voz forte:

— Samael, Gamaliel, Gamchicot, Harab!... Trazei-a!

 

Os quatro "medianos" obedeceram. Passaram ela frente dos prisioneiros, desaparecendo da câmara pelo grande pórtico que se abria às costas de Vana e dos "iuranchianos". Ao contrário do que acontecera com Belzebu, os milhares de feixes cilíndricos que disparavam em todas as direções não se extinguiram à passa­gem das criaturas. Elas, simplesmente, transpassavam-nos como se se tratasse de meros raios luminosos.

Embora não fosse longa a espera, aqueles minutos resultaram excitantes para o casal. Voou-lhes pela mente um sem-fim de in­cógnitas. Que pretendia Belzebu? Haveria alguma prisioneira mais na fortaleza? A que se teria referido com aquela ordem misteriosa?

Quando os quatro rebeldes retornaram à câmara das cavei­ras, Sinuhe percebeu que a companheira vibrava de emoção. Mas a surpresa Nietihw, emudecida, não atendeu às sucessivas perguntas do "iuranchiano", que desejava saber o que estava acontecendo.

E os leais, solenemente, entregaram a Belzebu o que tinham ido buscar.

O "mediano" chefe dirigiu-se então a Sinuhe, pedindo-lhe que lhe estendesse suas mãos.

E Sinuhe, expectante, obedeceu. Ato contínuo, a criatura depositou-lhe sobre as palmas "algo" que o "soror" reconheceu imediatamente.

— Nietihw!. . . Tua coroa!

Efetivamente, sobre suas mãos faiscavam as sete letras dou­radas que formavam o nome cósmico da filha da raça azul. O diadema, roubado na praia pelas "golem" achava-se intacto.

— É suficiente? — perguntou-lhe Belzebu.

Desconcertados, nenhum dos humanos soube o que respon­der. Nietihw, fascinada ante a visão da quase olvidada coroa; Sinuhe, com o diadema a tremer-lhe entre os dedos e a refletir sobre o possível alcance daquele gesto. Era bem provável que, se a companheira voltasse a ostentar na fronte a poderosa arma, a situação dos dois mudasse radicalmente. Mas a desconfiança lhe palpitava ainda no coração.

E o senhor da Torre de Amon, adiantando-se a tais suspei­tas, acrescentou, dirigindo-se a Sinuhe:

— Faze o que estás pensando. Coroa de novo tua compa­nheira e devolve-lhe sua autêntica personalidade. A partir desse momento, tanto ela como tu sereis livres para abandonar o meu mundo.

O "iuranchiano" rogou então a Nietihw que se postasse à sua frente. E, sem nem mesmo dissimular a emoção, levantou o dia­dema e buscou a cabeça da filha da raça azul.

Quando o nome cósmico ficou solidamente encaixado, Nie­tihw sofreu a mesma transformação que experimentara no bosque, entre a névoa avermelhada: de seu corpo surgiram milhares de curtos raios brancos e, lançando um grito dilacerante, caiu des­maiada.

E tal como ocorrera em Sotillo, um dos "medianos" que assistia à cena, precipitou-se para ela, evitando que desmoronasse sobre as ossadas. Era Vana.

 

Sinuhe, alarmado pelo grito da amiga, lançou-se igualmente para ela, comprovando, estupefato, que o seu corpo, aparente­mente sem vida, era sustentado pelo proscrito.

— Nietihw!...

Convencido da morte da filha da raça azul, sentiu que uma onda de raiva lhe subia das entranhas. Com a face transtornada buscou Belzebu, disposto a fazê-lo pagar pela traição.

Bracejou no vazio, derrubou alguns dos guardiães e, quando acertou o ponto onde permanecia o chefe dos rebeldes, seu rosto foi chocar-se em alguma coisa firme e dura como aço. Aturdido com o golpe, tateou à volta, descobrindo que se achava enjaulado. Suas mãos foram-se aferrando a uma vintena de grossas barras que se levantavam do solo.

No mesmo instante em que o impulsivo "soror" se dirigia para o impávido Belzebu, vários dos fachos pretos e vermelhos que brotavam dos buracos das caveiras cortaram-lhe o passo, con­vertidos em sólidas barras.

O membro da Grande Loja as golpeou uma e outra vez e comprovou que formavam um círculo fechado à sua volta.

"Isso" — pensou Sinuhe — "vem confirmar minhas suspei­tas: aquele maldito rebelde pôs fim à minha companheira... e às minhas esperanças de cumprir a missão."

Presa de profunda agitação, com as mãos crispadas nas ver­gas, amaldiçoou Belzebu.

Suas imprecações, entretanto, foram subitamente interrompi­das. Alguém, com muita delicadeza, depositara-lhe uns dedos sobre os lábios. Atônito, pensou reconhecer aquela mão cálida... Alongou os braços entre as barras e seus dedos foram tocar os cabelos e o rosto de Nietihw.

— Sim — exclamou a mulher tentando tranqüilizar o amigo transtornado —, sou eu. .. Sem dúvida, você se esqueceu de que me aconteceu isso mesmo na primeira vez em que recebi meu nome cósmico. . .

Com efeito, recordou o desmaio na névoa, prelúdio do não menos misterioso traslado ao "inundo" em que agora se moviam.

— Então — balbuciou o "iuranchiano" — seu corpo...

— Sim, tornou-se transparente, tal qual ocorreu enquanto conservei a coroa.

E Nietihw fez um sinal a Belzebu pedindo-lhe que o libe­rasse, ao mesmo tempo em que, tomando a mão do amigo, anun­ciava-lhe:

— Nada tema, Sinuhe. . . E prepare-se para a última mara­vilha dessa primeira parte da nossa missão.

 

Que teria querido dizer com aquelas palavras? A "última maravilha"? Estaria chegando ao fim a busca dos arquivos secretos de IURANCHA?

Custava-lhe crer. Ademais, mesmo que assim fosse, impu­nha-se a ele outro obstáculo que lhe parecia insolúvel. Se conse­guisse interrogar a "pluma de Thot" sobre as verdades da rebelião de Lúcifer e suas conseqüências na Terra, como receber as res­postas estando cego?

Quando as grades que o enjaulavam recobraram sua natureza primitiva, convertendo-se em luz, Sinuhe percebeu certa agitação na sala. Escutou passos precipitados que cortavam sua frente, distanciando-se e, por último, sentiu uma mão — a de Nietihw — que o puxava.

A mulher não tornou a falar-lhe e ele, por sua vez, com a incômoda lembrança de sua violenta ação contra Belzebu, refu­giou-se igualmente em mutismo total.

Logo percebeu que acabavam de abandonar a câmara das caveiras e que se dirigiam, através da rampa em espiral, para o mais alto da torre. A comitiva, então, ia precedida pelo chefe dos "medianos".

A caminhada da quinta até a sexta e última mastaba do fortim foi breve. Ao alcançar o final da íngreme rampa, Belzebu se deteve junto a um muro ligeiramente convexo, onde morria o estreito corredor e que, tendo-se em conta a configuração da Torre de Amon, devia corresponder à base de plataforma ou ao terraço circular que coroava a fortaleza.

Ali naquela parede — construída também com dezenas de caveiras anarquicamente distribuídas — não havia porta alguma. Tampouco o passadiço que os levara até ao alto do quartel-general dos rebeldes oferecia acesso ou abertura por onde penetrar na misteriosa e derradeira mastaba.

A um sinal do "mediano"-chefe, os guardiães retrocederam, situando-se atrás do casal. Vana e dois dos dez "medianos" que pareciam formar o Estado-Maior, tomaram posição entre seu che­fe e os "iuranchianos". O resto se uniu ao grupo de sentinelas fechando, assim, a passagem pela rampa.

Golab, Vana e Samael, de costas para Nietihw, não foram obstáculos para que ela, atenta a tudo o que acontecia e conside­ravelmente mais alta que todos eles, notara que Belzebu se desfazia da cadeia de ouro que lhe pendia do peito, manipulando a chave.

A filha da raça azul não pôde precisar a manobra exata do "mediano", mas, observando-lhe o movimento dos dedos, podia jurar que girava uma série de rodinhas dentadas situadas no ex­tremo da chave.

Ao concluir, dirigiu a chave até um crânio colocado à altura de sua cabeça, introduzindo as rodas que faziam as vezes de dentes pelo oco das fossas nasais. Nietihw descobriu, então, que aquela caveira era a única entre todas as do muro que não ostentava o número da Besta na testa...

Belzebu, como se estivesse diante de uma fechadura comum e vulgar, fez com que a chave girasse no sentido horário, até com­pletar meia volta.

O silêncio se fez profundo e o "mediano", sem perda de tem­po, retirou a chave da insólita "fechadura", fazendo passar a corrente pela cabeça monstruosa. Nesse instante, como uma exalação procedente do fundo do corredor, o símbolo escarlate do Yang-Yin cruzou por cima dos presentes até deter-se a poucos centímetros da caveira.

Sinuhe e os demais escutaram então um ruído semelhante ao que produziria um caótico entrechocar de crânios humanos.

Ligeira pressão dos dedos de Nietihw no braço do amigo fê-lo compreender que "algo" se passava.

Pouco depois aquele seco e estridente chocar de caveiras foi cedendo, até desaparecer.

— Sinuhe!... Deus meu!

A exclamação da filha da raça azul contribuiu para elevar a tensão emocional do "iuranchiano". Que estaria acontecendo?

Enquanto se prolongou o macabro entrechocar de ossos, no muro se foi abrindo uma série de cavidades. Mas aqueles buracos tinham qualquer coisa de especial. Cada um correspondia a uma silhueta, ou melhor, a duas, de formas e dimensões humanas e, as outras quatro, muito menores.

Nietihw identificou e associou aquelas seis "perfurações" no muro das caveiras com outras tantas figuras, semelhantes às de quatro "medianos" e dois "humanos" — "quase" iguais a Sinuhe e a ela mesma. Os seis perfis se alinhavam ao longo da parede, recortando-se bem ao pé do muro.

Desde o instante em que as seis "brechas" ficaram abertas, por elas surgiu uma cálida luz avermelhada que Sinuhe, se tivesse podido ver, teria reconhecido na hora.

E digo que duas daquelas "silhuetas" eram "quase" idêntica às de Nietihw e de Sinuhe porque seus contornos coincidiam com o volume deles, com exceção do volume das cabeças. Estas eram enormes e desproporcionadas, à semelhança das quatro restantes.

Belzebu contemplou satisfeito como o disco se introduzia por uma das aberturas e, dando meia-volta, convidou seus três irmãos a imitarem o símbolo do universo.

Sem hesitar, os "medianos" avançaram até três das quatro silhuetas abertas entre as ossadas e que, como dizia, ajustavam-se matematicamente aos seus respectivos perfis. E ante o assombro da filha da raça azul cruzaram o muro. . .

O chefe da Torre de Amon, percebendo a surpresa nos olhos da mulher, mostrou-lhe a chave e, apontando as rodinhas denta­das, esclareceu:

— Não te alarmes. Só eu disponho da chave para permitir o acesso ao interior da Sala de Thot. Para franquear o muro sa­grado é imprescindível, primeiro, proporcionar à chave os nomes daqueles que deverão fazê-lo. E instantaneamente, como terás ob­servado, registra-se o deslocamento. Cada uma dessas silhuetas — concluiu Belzebu — tem as medidas exatas da aura do indivíduo eleito. . . Tal qual acontece com vossas impressões digitais, não há duas auras iguais. Conseqüentemente, a entrada na Câmara do Grande Tesouro fica reduzida e restrita àqueles que eu designo. . .

Nietihw, assim como Sinuhe, sabia que a misteriosa e invisível irradiação energética que emanam todos os corpos vivos adquire nos seres humanos características muito especiais, segundo o grau de bondade e, até, de saúde de cada pessoa. E esse halo, de acordo com tais parâmetros, chega a alcançar grandes proporções em torno da cabeça. Entendia-se agora por que as duas silhuetas mais altas apresentavam contornos enormes à altura do cérebro. . .

O chefe dos rebeldes, tomando Sinuhe pelos braços, con­duziu-o até a abertura que, aparentemente, correspondia à sua aura. O investigador, ao sentir aquelas ásperas mãos, reagiu. Nie­tihw porém o tranqüilizou, pedindo-lhe que obedecesse.

Uma vez junto da silhueta, Belzebu o impeliu suavemente, obrigando-o a caminhar, e Sinuhe, como sucedera com Golab. Vana e Samael, desapareceu do outro lado do muro.

A filha da raça azul, a pedido do "mediano", seguiu os pas­sos do companheiro, cruzando a parede pelo buraco aberto entre as caveiras e que correspondia ao perfil de sua aura. Por último, fez o mesmo o chefe dos rebeldes. E instantaneamente o silêncio do corredor daquela última mastaba da Torre de Amon viu-se novamente alterado pelo entrechocar de crânios. E as seis mágicas aberturas se fecharam. . .

 

— Sinuhe, a "pluma de Thot"!

Nietihw, maravilhada ante o que lhe acabava de surgir aos olhos, não prestou atenção ao fulminante fechar das silhuetas. No mesmo instante em que ingressou na chamada Sala do Grande Tesouro, reconheceu o lugar, graças à descrição que o amigo fi­zera da "câmara couraçada" de Dalamachia, o primitivo e legí­timo recinto que guardara os arquivos secretos de IURANCHA até a irrupção de Horemheb.

Uma luz avermelhada brotava de cada uma das seis altas e polidas paredes que formavam aquele hexágono. Tratava-se de uma réplica perfeita da sala a que fora conduzido Sinuhe e onde, como se recordará, aguardavam-no os homens "Sangik". Havia, entretanto, duas grandes diferenças. A primeira — aparentemente a menos importante — achava-se no teto do hexágono. Este, tam­bém a grande altura sobre o refulgente pavimento de ourocalcum, apresentava ujna espécie de cúpula transparente por onde entrava parte daquela luminosidade amarelada que havia cercado o "iuranchiano" enquanto lutava por penetrar na fortaleza. A segunda, que tinha provocado a admiração da filha da raça azul, consistia em uma coluna de mármore branco que se levantava no centro geométrico do hexágono.

— A "pluma"!. . . — repetiu, aproximando-se do incrível objeto que flutuava, majestoso, a poucos centímetros acima da prancha dourada que rematava o pedestal.

Sinuhe, consciente de que, finalmente, haviam chegado aos ansiados arquivos secretos, havia caído em prostração profunda. Não era aquela a situação que imaginara para o momento decisivo. Privado da visão, não podia sequer imaginar como era e em que consistia o Grande Tesouro. E, apesar da grande alegria que irra­diava das exclamações de Nietihw, seus ânimos fraquejaram.

A filha da raça azul não tardou em captar a imensa desola­ção que afogava seu irmão. E, esquecendo-se da coluna, acudiu até o muro junto ao qual se achava o "iuranchiano". Segurando-lhe a mão, guiou-o até o centro do hexágono. Ali, à volta do pedestal, haviam-se congregado os quatro "medianos", absortos ante a "pluma de Thot"...

— Sinuhe — procurou animá-lo a mulher —, estarei vendo por você. . . Tenha paciência.

A seguir, dominada pela emoção, Nietihw passou a descre­ver-lhe o Grande Tesouro.

Diante deles estava, efetivamente, a "pluma" de que já lhe falara Amen, o Kheri Heb. Mas o nome de "pluma" não guardava relação aparente alguma com seu aspecto exterior. Sobre a coluna aparecia uma esfera de meio metro de diâmetro, de transparência sem igual, imóvel e flutuando a uns dois dedos da superfície do pedestal. Em seu interior, com uma inclinação de vinte ou vinte e cinco graus sobre o eixo da esfera, flutuava também delicada va­reta, igualmente transparente como o cristal. E, ao redor dessa vareta, uma visão plena de harmonia e beleza: centenas de dimi­nutas esferas azuis — de apenas meio centímetro de diâmetro cada uma — girando por pares em órbitas paralelas entre si. O movi­mento das esferazinhas, da esquerda para a direita, registrava-se a velocidade sumamente lenta.

No pólo superior da fascinante esfera, Nietihw pôde ler:

"IURANCHA: 606 DE SATÂNIA".

Sem poder resistir à curiosidade, interrogou o chefe dos "medianos" sobre aquela inscrição.

— Assim figura nosso planeta nos arquivos do universo — respondeu Belzebu.

— Que é isso? — inquiriu a filha da raça azul, sem dar trégua ao interlocutor.

— Essas pequenas esferas somam 303 cadeias duplas de cristais de titânio. Nelas, embora possa parecer-te mentira, está contida toda a História de IURANCHA, desde a sua origem mais remota. Não tem sentido que vos confunda com o mecanismo de seu prodigioso funcionamento. Sabei unicamente que o armaze­namento desses trilhões de dados fundamenta-se na alteração (à vontade) do estado quântico da nuvem eletrônica de cada um dos átomos do titânio. Essa excitação converte os quatrilhões de átomos que reúne cada esfera em portadores, acumuladores e classificadores de um número quase infinito de mensagens...

E Belzebu, apontando para a cúpula, acrescentou:

— Mensagens ou informações trazidas pelos responsáveis pelo Grande Tesouro (os chamados "serafins arquivistas"), na "linguagem" universal dos números. Se cada um desses átomos é

susceptível de alcançar doze ou mais estados quânticos, isso sig­nifica que, em cada nível, pode codificar-se um algarismo, de zero a doze, por exemplo. Mas, como vos digo, cada uma dessas esferas azuis consta de quatrilhões de átomos. Imaginai, portanto, a in­formação codificada que podem acumular. .

Nietihw, encantada com a constante e pausada rotação das 606 esferas, fez menção de tocar as paredes da bolha cristalina. Mas, indecisa, conteve-se; olhando para o chefe dos rebeldes, aguar­dou consentimento ou desaprovação. Belzebu, com um movimento afirmativo da cabeça, deu-lhe a entender que podia fazê-lo. A filha da raça azul, então, abarcou a esfera com as palmas das mãos, recebendo cálida sensação de calor.

— Não temas — interveio o "mediano" —. É indestrutível.

__E, dirigindo-se a Sinuhe, acrescentou em tom solene: — Bem, o grande momento chegou. Aqui está a Verdade pela qual tanto tens lutado,.. Só tu podes interrogar a "pluma de Thot". Que desejas conhecer?

Era curioso. Pela mente de Sinuhe galopavam, em tropel, um sem-fim de dúvidas. Mas o coração, bloqueado pela responsabi­lidade, estancou.

A missão encomendada ao par — ao menos aquela primeira fase — era clara e definida: averiguar os verdadeiros motivos que impeliram Lúcifer a rebelar-se; descobrir o processo da insurrei­ção e as conseqüências para IURANCHA, nosso planeta. No entanto, hesitou. Por onde começar? Depois de prolongada medi­tação, optou por aclarar primeiro um detalhe que não se encaixava naquele quebra-cabeça.

— Dize-me, Belzebu, como posso ter acesso à Verdade se, presumivelmente, essa rebelião se forjou fora da Terra?

O "mediano" compreendeu, e mostrando novamente a cúpu­la transparente que se abria sobre eles. tranqüilizou-o:

— Embora IURANCHA tenha perdido qualquer contato com o exterior, os "arquivistas celestes" continuam diretamente ligados a Jerusem, a capital do sistema. São os únicos que, em virtude do seu trabalho, não se viram submetidos à "quarentena". Não temas: a Verdade aqui acumulada está, inclusive, acima da lealdade deles a Micael.. . É por isso que vós e eu estamos aqui, dispostos a conhecer a Verdade nua.

— Não posso compreender — interrompeu de repente a fi­lha da raça azul, apontando para as minúsculas esferas azuis —

como pode toda a História de IURANCHA e de seus milhares de milhões de habitantes estar concentrada aí...

— No fundo, é muito simples — terçou o "mediano" —. A imensa informação transmitida e armazenada em tão pequeno espaço se resolve porque os elétrons desses átomos não são regi­dos pelas leis do acaso, como habitualmente ocorre com o mundo microfísico. Essas posições são regidas e inspiradas pelo Espírito do Soberano de Nebadon, através dos seus "intermediários", os "arquivistas". Os cientistas do vosso tempo não o descobriram ainda, mas o mesmo sucede com a "ponte" ou "fator de união" da alma humana com o corpo, alojada no encéfalo. Esse nexo ou enlace, formado por uma reduzida "colônia" de átomos de criptônio, tampouco se acha submetido ao indeterminismo ou acaso...

Belzebu deu como superado o interessante assunto da alma, e repetiu sua pergunta anterior:

— A "pluma de Thot" aguarda. Que desejas saber? Nietihw saiu novamente ao encontro da crescente angústia do amigo, animando-o:

— Lembre-se. Estou ao seu lado. .. Você só tem de per­guntar.

E finalmente, seguindo as instruções do senhor da Torre de Amon, Sinuhe aproximou suas mãos à esfera flutuante. Ao tocá-la, as paredes de ourocalcum do hexágono perderam sua luminosi­dade avermelhada e o recinto ficou submerso na penumbra. Ao alto, do outro lado da cúpula, a "atmosfera" amarelo-esverdeada desapareceu e foi substituída por outra esmeralda. E o interior da bolha mágica foi inundado por um resplendor azul, que partia de cada um dos incansáveis 606 cristais esféricos de titânio.

O grande momento, efetivamente, chegara. . .

 

7 - LÚCIFER

Sinuhe, balbuciante, abriu os lábios buscando uma primeira pergunta. Mas qual? repetia-se obsecado. Através da Escola da Sabedoria e dos homens "Pi" pudera reconstruir a História do seu mundo até uma época próxima aos 500 000 anos antes de Cristo ou Micael. Exatamente até o instante — segundo todos os indícios — da chegada a IURANCHA do primeiro príncipe planetário, Caligastia.

A radiação celeste que escapava das pequenas esferas gira­tórias atravessava a parede da bolha, banhando os corpos de Sinuhe e dos cinco companheiros expectantes.

— Caligastia — decidiu-se por fim o "iuranchiano" — essa será a minha questão. . .

Com voz trêmula, sentindo em todo o corpo a acolhedora sensação de calor que emanava da esfera, exclamou:

— Quando, como e por que se deu a chegada a IURANCHA do príncipe planetário Caligastia?

Sinuhe não pôde vê-lo, mas viram-no os que rodeavam a "pluma de Thot". Ao concluir sua pergunta, do centro do tríplice círculo localizado no costado esquerdo do "soror" partiu um fi­níssimo fio luminoso de um branco nevado que foi incidir, com absoluta precisão, sobre uma das esferazinhas que girava, aproxi­madamente, pelo meio da vareta flutuante que servia de eixo para todo o sistema. Em décimos de segundos, a esfera e seu par fica­ram estáticos, enquanto os restantes 604 cristais de titânio conti­nuavam rodando em torno da varinha transparente.

E ante a expectativa geral uma voz metálica, clara e pausa­da, soou nos cérebros presentes:

— Filho de IURANCHA... Sinuhe e Nietihw estremeceram.

— Tuas perguntas exigem resposta múltipla. Antes de pro­ceder à abertura de tais circuitos históricos, convém que saibas o seguinte:

"Nenhuma de tuas consultas pode esperar a emissão, por parte destes arquivos, de juízos ou opiniões em torno dos sucessos registrados em IURANCHA ou fora dela. Não é nossa missão.

"Por último, a informação emitida se verá necessariamente dizimada, como conseqüência da necessária supressão da segunda e simultânea linguagem utilizada em nossos registros...

A explicação para a obscura advertência chegaria imediata­mente.

— ... Cada um dos acontecimentos, tanto a nível coletivo como individual, que se produz em teu mundo — esclareceu a voz — é arquivado seguindo uma "linguagem" dupla e simultânea: a própria do universo local de Nebadon e a igualmente universal dos símbolos matemáticos. Essa simultaneidade de dados (através de imagens e números), enriquece e garante sua objetividade. Como ocorre com os demais mortais de IURANCHA, teu cére­bro, Sinuhe, ainda não alcançou essa estimável e desejável ca­pacidade de raciocinar e dialogar com esse sistema duplo e si­multâneo. Em conseqüência, nossas respostas não gozarão da dupla transmissão de idéias. Estás avisado.

Sinuhe não entendeu muito bem o esclarecimento. Mas, ani­mado pela fluidez daquela voz indeterminada e impessoal — de homem ou de mulher? —, aceitou sem reserva. Seu espírito voltara a vibrar. E ardia em desejos de conhecer a verdadeira História daquele obscuro passado da Terra. Que teria acontecido com Caligastia? Por que seu reinado se vira marcado pelo fracasso? Que relação guardaria com a não menos obscura rebelião de Lúcifer?

— Estou disposto — anunciou o "iuranchiano". E repetiu sua pergunta inicial: — Quando, como e por que se deu, a IU­RANCHA, a chegada do príncipe planetário Caligastia?

 

— O conceito de príncipe planetário — respondeu em se­guida a "pluma de Thot" — seja em IURANCHA ou em qual­quer outro mundo evolucionário, corresponde a seres celestes pertencentes à Ordem dos Lanonandeks. Depois de terem sido confirmados pelos Melchizedeks como "Filhos Lanonandeks se­cundários", esses filhos do universo local foram incorporados às grandes reservas da sua Ordem em Edência, capital da constelação de Norladiadek, à que pertence IURANCHA. Dali foram desti­nados pelos respectivos soberanos dos sistemas para diferentes missões e, por último, comissionados como príncipes planetários para governar os mundos habitados em evolução.

"Quando é preciso designar um chefe para determinado planeta, a decisão do Soberano sistêmico correspondente surge a pedido dos Portadores de Vida.

"Toda chegada de um Filho Lanonandek a um mundo médio como IURANCHA se produz no momento em que é detectada em suas populações autóctones a vontade e a capacidade de eleger o caminho da vida eterna.

"Em teu planeta, porém, a aparição do primeiro príncipe ou Filho Lanonandek secundário se registrou quase meio milhão de anos depois do florescimento dessa vontade entre os primitivos povoadores.

"Tal acontecimento figura nos arquivos de IURANCHA como ocorrido faz agora 500 000 anos, coincidindo com outro sucesso singular: o nascimento das seis raças "Sangik" de cor. Naquela época, o planeta se achava povoado por quase quinhen­tos milhões de humanos, regularmente repartidos pelos continentes da Ásia, Europa e África.

"Caligastia, o primeiro príncipe de IURANCHA, estabeleceu o seu quartel-general no que hoje conheceis como Mesopotâmia. Quer dizer, no centro do mundo habitado naqueles tempos.

"Caligastia, como ficou refletido, era um Filho Lanonandek secundário. Ostentava o número 9 344 dos de sua Ordem, tendo desenvolvido múltiplas missões antes de sua incorporação em IU­RANCHA; inclusive antes da tomada de posse de Lúcifer como soberano do sistema de Satânia, fora agregado ao Comitê Con­sultivo dos Portadores de Vida em Jerusem. A seguir ocupou uma situação de categoria elevada no grupo de conselheiros de Lúcifer, levando a cabo mais de cinco missões de honra e de confiança.

"Quando o príncipe Caligastia foi enviado para IURANCHA, acompanhava-o, como é norma, o corço habitual de adjuntos-administrativos e de assistentes. À cabeça, encontrava-se Daligastia, associado ao príncipe...

Sinuhe, com uma infinidade de perguntas a revolver-lhe no cérebro, atreveu-se a interromper o relato.

— Daligastia? Quem era?

— Um Filho Lanonandek secundário — respondeu a voz —. Seu número de Ordem era muito mais elevado: 319 407...

O "iuranchiano", ao constatar que a voz admitia e respondia perguntas, decidiu continuar expondo quantas dúvidas o assaltas­sem. E interveio de novo:

— Que representa esse número?

— O de sua criação.

A voz, tendo percebido que não havia mais perguntas, reencetou sua exposição.

— Daligastia possuía a categoria de assistente no momento de ser agregado como associado de Caligastia.

"O Estado-Maior do príncipe enviado a IURANCHA incluía elevado número de colaboradores angélicos e outra considerável massa de seres celestes, encarregados de promover e fazer progre­dir os interesses e o bem-estar das raças humanas.

"Para os primitivos povoadores de teu mundo, aquela maciça embaixada de seres celestes constituiu o maior acontecimento da História. O núcleo mais próximo ao príncipe (os cem membros do seu Estado-Maior), que seria conhecido como "os cem de Ca­ligastia", provocou entre os humanos impacto especial. Esses ajudantes voluntários são cidadãos da capital de um sistema; neste caso, Jerusem. Nenhum conseguiu ainda sua fusão com os respec­tivos Harmonizadores de Pensamento. Enquanto regressam temporalmente a um estado material inferior (como foi o caso de IURANCHA), seus Harmonizadores mantêm e mantiveram seus estatutos residenciais no mundo-sede do sistema.

"Para desempenhar sua missão em IURANCHA, aquele Estado-Maior foi revestido pelos Portadores de Vida de corpos físicos, visíveis aos olhos humanos enquanto durou seu estágio planetário. Essas formas pessoais estiveram e estão sempre isentas de enfermidades comuns, embora, como corpos moronciais primi­tivos, achem-se expostos a certos acidentes de natureza mecânica.

"Esses "cem de Caligastia", desmaterializados para o trans­porte e rematerializados em IURANCHA, foram escolhidos pelo príncipe entre mais de 780 000 cidadãos ascendentes de Jerusem. Cada um desses cem membros de seu Estado-Maior procedia de um planeta diferente. Nem um, é claro, oriundo de IURANCHA. Foram conduzidos diretamente de Jerusem ao teu planeta por transporte seráfico. E aqui se lhes proporcionou a forma humana idônea, de acordo com sua dupla missão planetária, isto é, um corpo físico formado de carne e sangue, mas, ao mesmo tempo sintonizado com os circuitos de vida do sistema. Essas operações, assim como a criação física dos corpos para os membros do Es­tado-Maior (cinqüenta homens e cinqüenta mulheres) deram ori­gem a numerosas lendas que, muito mais tarde, fundiram-se e confundiram-se com outras tradições, nascidas de um aconteci­mento posterior e não menos crucial: a instalação planetária de Adão e Eva.

"Toda essa operação de repersonalização, desde a chegada dos transportes seráficos que conduziam os cem voluntários de Jerusem, até o momento em que tomaram consciência como seres ternários do reino, durou dez dias.. .

Nietihw e Sinuhe já tinham ouvido falar desses cidadãos "as­cendentes". Mas o "iuranchiano" quis ter certeza. E perguntou a respeito.

— Por cidadãos — esclareceu a voz — quer-se significar todos os humanos evolucionários que, depois de sua morte física, são ressuscitados nos mundos de Morôncia. Seu caminho é uma contínua ascensão para a Ilha Estacionaria e Eterna do Paraíso.

— Fala-nos também do quartel-general de Caligastia e de sua missão.

— A sede do príncipe planetário de IURANCHA — respon­deu a "pluma de Thot" — foi prevista e construída em uma região do então golfo Pérsico e que vem a corresponder à Mesopotâmia atual. Embora diferente dos de hoje, o clima e a paisagem dessa região foram estimados muito convenientes para os planos do Es­tado-Maior e de seus assistentes. Esse grupo eleito (chamá-los-emos os "cem de Caligastia") é o responsável pela organização das escolas planetárias de educação e cultura, onde as elites das raças evolucionárias recebem formação, e que são depois enviadas ao mundo todo para expandir tais ensinamentos.

"A grande parte do trabalho físico é realizado pelo Estado-Maior corporal. As cidades-sede, que em IURANCHA recebeu o nome de Dalamachia, são diferentes da atual concepção humana de cidades...

— Dalamachia!. . . — exclamou Sinuhe.

— Sim. E essa mesma emoção que te causou a ti — replicou a voz, adivinhando-lhe os sentimentos — registrou-se também en­tre os primitivos humanos do planeta, quando aqueles cem estran­geiros tomaram posse de IURANCHA. Foram necessários mais de mil anos para que a notícia da chegada de Caligastia e seu séquito se estendesse até aos confins do globo. Grande parte de

vossa mitologia posterior se origina nas lendas alteradas daqueles tempos primitivos em que os membros do Estado-Maior do prín­cipe foram repersonalizados como "super-homens". E foi exata­mente a tendência dos autóctones da Terra a considerá-los deuses, o que consistiu o maior obstáculo para a benéfica influência desses mestres extraterrenos.

— Podia-se considerá-los autenticamente humanos?

— Sem dúvida alguma. Do ponto de vista físico, haviam incorporado às suas formas corporais o plasma vivente de uma raça autóctone de IURANCHA: a "andônica".

"Os cem membros do Estado-Maior foram divididos em dois grupos (homens e mulheres) e repartidos segundo seu estatuto mortal anterior. Cada pessoa do grupo era capaz de participar do nascimento de uma nova ordem de seres físicos. Mas, de acordo com uma norma sagrada em todos os universos, haviam sido cui­dadosamente advertidos para que não recorressem à paternidade, salvo em limitadas ocasiões. Qualquer príncipe planetário é sub­metido a essa regra e só estão autorizados a procriar seus sucesso­res pouco antes de retirar-se do serviço planetário especial. Essa procriação tem lugar, ordinariamente, no momento da chegada dos Adães e Evas... ou pouco depois. Eis porque o Conselho dos Cem jamais soube que tipo de criaturas teria podido surgir de sua união sexual. Antes que pudessem chegar a essa etapa, a rebelião de Lúcifer arruinou o plano evolutivo de IURANCHA.

"E, de acordo com as suas instruções, os "cem de Caligastia" não se comprometeram com a reprodução sexual. Era outra a sua missão. Mas estudaram minuciosamente sua constituição pessoal e exploraram todas as fases imagináveis de conexão psíquica entre si. E foi no decurso do ano 33 de sua chegada a IURANCHA e de sua instalação em Dalamachia que os números dois e sete desse Estado-Maior descobriram, quase por acaso, um fenômeno sin­gular que derivava de sua união moroncial ou psíquica: uma procriação não sexual e imaterial. O resultado foi a primeira das criaturas "medianes"...

— Os "medianos"! — exclamou Sinuhe. Aquele, precisa­mente, era outro dos objetivos da missão: descobrir a origem e a natureza de tais seres. Mas, dessa vez, deixou que a informação seguisse o seu curso. Haveria tempo para entrar em detalhes sobre o assunto.

— O novo ser, resultado dessa aventura psíquica, era per­feitamente visível para qualquer dos cem e para seus associados celestes, mas para os humanos, invisível. A partir daquele acon­tecimento, com a autorização de Caligastia, todos os membros do Estado-Maior dedicaram-se à procriação de seres similares. E foi assim que os "cem" tornaram possível um Corpo de 50 000 "me­dianos" primários. Essas criaturas de tipo "mediano" (parte de natureza física e parte moroncial ou espiritual) prestaram e pres­tam serviços notáveis às hierarquias celestes. Em tempos do prín­cipe planetário, foram os encarregados de múltiplos serviços de conexão com as tribos autóctones de IURANCHA. Eram invisí­veis aos "iuranchianos", mas a existência desses semi-espíritos foi explicada aos primeiros alunos das escolas de Dalamachia. E deles (dos "medianos") derivar-se-ia também uma série de lendas vin­culadas, inclusive hoje em dia, ao mundo dos espíritos.

"Os cem membros de Caligastia eram imortais. Isso era pos­sível graças a uns "complementos antídotos" que circulavam em suas formas materiais. Se a rebelião não tivesse feito que perdes­sem o contato com os circuitos vitais, teriam continuado vivendo indefinidamente até a chegada a IURANCHA de um Filho de Deus ou até sua rendição no planeta.

"Esses "complementos antídotos" procediam dos frutos de uma árvore que foi chamada "da Vida". Na realidade, tratava-se de um arbusto enviado de Edência, capital da constelação, pelos Mui Altos no próprio momento da chegada de Caligastia. Essa árvore foi semeada no pátio central do templo do Pai Invisível, quando o príncipe fundou a cidade-modelo de Dalamachia. A in­gestão dos seus frutos permitia aos membros do Estado-Maior viver de uma forma indefinida...

— Tu te referes à imagem bíblica da Árvore da Vida? Não foi apenas um símbolo?

— O que em IURANCHA chamais Sagrada Escritura ou Bíblia — respondeu a "pluma" — é, em muitos de seus textos (especialmente nos mais antigos) uma amálgama de confusas rea­lidades, ocorridas em diferentes momentos históricos e distantes entre si. Quanto à "Árvore", não se trata de metáfora ou símbolo, mas de um fato físico e real, de posteriores confrontos sangrentos.

— Por quê? — insistiu Sinuhe.

— Devemos respeitar a ordem cronológica daqueles fatos — anunciou-lhe a voz —. Só assim poderás comprendê-lo.

"Eu te dizia que esse arbusto, originário de Edência, reunia uma série de qualidades energéticas que prolongavam a vida do Estado-Maior do príncipe, tornando-os praticamente imortais. O mesmo não ocorria, entretanto, com os humanos autóctones da Terra. Com eles, os frutos da "Árvore da Vida" não surtiam efeito algum. Somente os "cem de Caligastia" (como "sandonitas" mo­dificados) podiam beneficiar-se de sua influência, sempre e quan­do comessem dele. Em torno dessa planta extraordinária forjou-se, igualmente, um sem-fim de mitos e lendas que circularam pelo mundo até recentemente.

Sinuhe, com efeito, recordou algumas tradições "olímpicas" e americanas, assim como a do famoso Gilgamesh, (1) em busca do mítico vegetal que proporcionava a vida eterna.

(l) O mais conhecido herói da Mesopotâmia. Numerosos contos na antiga língua acadiana descrevem a odisséia desse rei que se recusava a morrer. O relato foi encontrado (12 tábuas) em Nínive, na Biblioteca do rei assírio Assurbanipal. Gilgamesh provavelmente viveu na primeira me­tade do terceiro milênio a.C. (Nota do Tradutor.)

 

— A terceira de tuas perguntas, Sinuhe, referia-se ao "por­quê" da chegada desse príncipe a IURANCHA.

"Como já se te adiantou, nos planos cósmicos cada mundo evolucionário é regido e governado por um príncipe planetário que tem a seu cargo a administração, organização e educação das raças autóctones. O Estado-Maior de Caligastia. seguindo essas normas universais, dividiu-se em dez Conselhos Autônomos inte­grados por dez membros cada um. Essas assembléias de conexão com os humanos eram presididas por Caligastia.

"Bem depressa, ao fundar a cidade-modelo de Dalamachia, as chamadas "Escolas do Príncipe" iniciaram suas atividades orientadas a instruir os primitivos mortais em todos os aspectos do progresso material e espiritual: técnicas para melhorar a alimenta­ção, o bem-estar citadino, para a domesticação e aproveitamento dos animais, extensão do conhecimento, para a implantação da indústria e comércio, difusão da religião revelada, para o assenta­mento das normas de saúde e higiene, prolongando com isso a vida, implantação das artes e das ciências e para o aperfeiçoamento das relações entre povos e raças. O trabalho nessas escolas se repartia da seguinte forma:

"Atividades físicas: compreendiam os labores no campo e a aprendizagem da construção e embelezamento das casas.

"Atividades sociais: aprendizagem de jogos e de todo tipo de relações humanas.

"Aplicação educativa: destinada fundamentalmente ao aper­feiçoamento do núcleo familiar.

"Instrução profissional: abarcava ensinamentos sobre o ca­samento e o lar, artes e ofícios e formação de futuros professores.

"Cultura espiritual: afirmação da Verdade Cósmica e pre­paração de meninos indígenas que, posteriormente, seriam envia­dos aos seus respectivos povos como guias.

"Em geral, partindo desses centros ou focos de cultura, em todos os planetas do sistema e do universo local não tarda em produzir-se progressiva influência edificante, que vai transforman­do o primitivismo das raças autóctones. Para isso sempre ajuda a ação simultânea dos humanos, previamente adestrados nas cidades-modelo e que, ao regressar aos seus países, criam novos e potentes centros de estudo e cultura.

"Quando os "cem de Caligastia" iniciaram sua missão em IURANCHA, propagando o novo Evangelho da iniciativa indivi­dual, incidindo nos grupos sociais existentes naquelas épocas, souberam respeitar, escrupulosamente, a regra de ouro dos uni­versos em relação aos mundos evolucionários. O grau de cultura de um planeta se mede em função da herança social dos seus povoadores. Mas a rapidez de sua expansão cultural fica inteiramente determinada pela aptidão que possuam seus habitantes para assi­milar idéias novas e avançadas. O Estado-Maior do príncipe, procedente, como já disse, do Mundo das Casas ou de Morôncia de Satânia, conhecia muito bem as artes e a cultura de Jerusem. Tais conhecimentos, porém, não têm valor em um planeta bárbaro e habitado por humanos primitivos. E, de acordo com essa regra de ouro dos universos, optaram por desenvolver seu trabalho com suavidade e lentidão, elegendo a sábia norma do progresso pela evolução e não pela revolução.

"Os cinqüenta pares que formavam o Estado-Maior do prín­cipe não tiveram filhos. Entretanto, pouco depois de sua instalação em IURANCHA, nas cinqüenta casas-modelo de Dalamachia ado­taram-se não menos de quinhentas crianças indígenas, procedentes das mais destacadas famílias andônicas e Sangik. E ali se beneficiaram da educação e cultura daqueles superpais.

"Cumpridos três anos de permanência nas Escolas do Prínci­pe, esses jovens estavam aptos para o casamento, e eram enviados como emissários culturais, profissionais ou religiosos para as suas tribos de origem.

"Nos arredores de Dalamachia, o campo foi colonizado em um raio de 160 quilômetros. Ali, centenas de antigos alunos des­sas escolas esforçaram-se por transmitir seus ensinamentos aos seus irmãos, os humanos. A agricultura, sobretudo, foi um dos grandes objetivos...

A mente de Sinuhe, influenciada desde a infância por histó­rias como a de Adão e Eva, ia-se perguntando onde e em que momento se encaixavam os "primeiros pais" bíblicos em tudo aquilo. Ao escutar as declarações sobre campo e agricultura, per­guntou à voz que sentido guardava aquela outra frase bíblica de "ganharás o pão com o suor de teu rosto".

— Nunca houve tal castigo. As técnicas da agricultura — esclareceu a "pluma de Thot" — são sempre inerentes ao estabe­lecimento de qualquer civilização progressiva. O trabalho da terra não foi, nem nunca será, uma maldição. Ao contrário...

"Dalamachia não precisou de muito tempo para converter-se em uma cidade florescente. Pouco depois de sua fundação contava já com mais de 6 000 habitantes. É difícil para os "iuranchianos" que vivem hoje sobre o planeta compreender o formidável pro­gresso que representou Dalamachia naqueles tempos remotos. Mas aquele foco de cultura planetária, que se estendeu por toda IURANCHA pelo espaço de 300 000 anos, foi subitamente cor­tado e perdido quando da rebeldia de Lúcifer...

Sinuhe, depois das revelações extraídas dos arquivos secretos de IURANCHA, não quis esperar, e formulou sua próxima e transcendental pergunta:

— Em que consistiu a rebelião?

 

Até o momento, nem Belzebu nem os demais "medianos" que assistiam ao relatório tinham feito qualquer gesto ou comen­tário. Tanto Nietihw quanto o companheiro interpretaram-no posi­tivamente.

As duas pequenas esferas azuis continuavam imóveis em sua órbita enquanto o resto prosseguia em seu lento e incessante rotar.

— Lúcifer — começou a voz — foi e é muito pouco conhecido em IURANCHA. Entre outras razões porque desde o princípio delegou poderes ao seu primeiro lugar-tenente: Satã.

"Lúcifer era (e é) um dos mais brilhantes filhos da Ordem dos Lanonandeks primários do universo local de Nebadon. Tinha excepcional experiência nos assuntos da administração cósmica, destacando-se como alto conselheiro de seu grupo. Sua sabedoria, sagacidade e eficácia foram sempre reconhecidas. Levava o número 37 dos da sua Ordem, e dele se tinha dito: "És perfeito em todos os sentidos desde o momento em que foste criado até o momento em que a iniqüidade se aninhou em ti." Muitas vezes ocupara uma cadeira no Conselho dos Mui Altos de Edência. Lúcifer reinava sobre a "santa montanha de Deus", o monte ad­ministrativo de Jerusem, já que era o administrador-em-chefe de um grande sistema formado por 607 planetas habitados, entre os quais IURANCHA figura como o 606.

"Antes de explodir a rebelião propriamente dita, Lúcifer e Satã haviam reinado pelo espaço de mais de 500 000 anos terres­tres sobre o sistema que tinham a seu cargo: Satânia. Satã, por sua vez, fazia parte desse mesmo grupo ou Ordem dos Lanonan­deks primários, embora nunca chegasse a exercer as funções de soberano sistêmico.

"E é preciso que se anote que tanto Lúcifer como Caligastia, o príncipe de IURANCHA, muito antes da consumação da revol­ta tinham sido advertidos pelos seus superiores celestes sobre suas respectivas tendências para a crítica e a um perigoso envaidecimento pessoal.

"Mas a História de vosso mundo transcorreu brilhante e esperançosa até que (faz agora uns 200 000 anos) IURANCHA recebeu uma das rotineiras visitas de inspeção de Satã. Esse foi o histórico momento em que a Terra, e mais exatamente Caligas­tia, conheceu os planos de Lúcifer...

— Talvez fosse necessário — argumentou o membro da Escola da Sabedoria — conhecer primeiro em que consistiam esses planos...

— Com efeito — proclamou a voz —. Para entender o ver­dadeiro alcance da rebelião, torna-se imprescindível que primeiro se exponha o chamado Manifesto da Liberdade proclamado por Lúcifer.

"Não existiam condições especiais no sistema de Satânia que pudessem favorecer ou justificar essa revolta. A idéia da sublevação nasceu no espírito de Lúcifer. Ninguém a instigou ou acon­selhou. A vontade de opor-se aos planos de Micael foi uma iniciativa individual, lenta e firmemente amadurecida durante mais de cem anos do tempo comum.

"Antes de decidir-se a expor seus pensamentos, Lúcifer jamais se manifestara contrário ao sistema administrativo do universo. Sua lealdade para com os chefes supremos era sincera e suas re­lações com o Filho Criador (Micael), profundas e cordiais. Ao longo desses cem anos, a União dos Dias de Salvington, capital do universo local de Nebadon, vinha informando às hierarquias celestes residentes em Uversa "que nem tudo estava em paz na mente de Lúcifer".

"E pouco a pouco, o soberano do sistema de Satânia começou a criticar o plano administrativo de Nebadon. Sua primeira insi­nuação aberta de desobediência se deu poucos dias antes da proclamação do seu Manifesto da Liberdade, por motivo da visita de Gabriel, chefe executivo de Micael e supervisor de todos os soberanos sistêmicos de Nebadon a Jerusem. Gabriel ficou im­pressionado e, convencido da iminente eclosão de uma revolta, trasladou-se para Edência, sede da constelação, onde parlamentou com os Pais de Norladiadek, adotando já as primeiras medidas preventivas, em caso de sublevação.

"E, há 200 000 anos, durante o conclave anual de Satânia, em presença das multidões reunidas em Jerusem, Satã (ganho para a causa de Lúcifer) deu a conhecer a chamada Declaração Luciferiana de Liberdade ou Manifesto da Liberdade, que com­preendia os seguintes pontos:

"Primeiro: a realidade do Pai Universal.

"Lúcifer aventava que o Pai Universal não existia e que a gravidade física e a energia espacial eram inerentes ao universo. O Pai (dizia o Manifesto) era um mito inventado pelos Filhos do Paraíso para permitir-lhes manter seu próprio poder sobre todos os universos. Negava também que a personalidade fosse um dom do Pai Universal e insinuava que existia um complô entre os Fi­lhos do Paraíso para introduzir uma gigantesca fraude em toda a criação. Essa afirmação se baseava no fato (segundo Lúcifer) de não existir uma idéia clara da natureza e personalidade reais do Pai. A acusação foi categórica.

"Segundo: o governo universal de Micael, o Filho Criador.

"Lúcifer sustentava em seu Manifesto da Liberdade que os sistemas locais de planetas deveriam ser autônomos, e protestava contra o direito que se arrogava Micael de assumir a soberania de Nebadon em nome do hipotético Pai Universal Paradisíaco. Considerou que todo esse plano de culto era só um estratagema para servir à ambição dos Filhos do Paraíso. Entretanto, admitiu também Micael (vosso Jesus de Nazaré) como seu Pai-Criador, mas não como seu Deus e legítimo chefe. Atacou violentamente os direitos dos Anciãos dos Dias, qualificando-os de "potentados estrangeiros" e acusando-os de intrometer-se nos assuntos próprios os sistemas locais e universais. Chamou-os de "tiranos e usurpa­dores", instigou seus partidários a considerar que os Anciãos dos Dias nada poderiam fazer para interferir no processo lógico de autonomia dos respectivos sistemas planetários, desde que os hu­manos e os anjos tivessem a coragem de reafirmar e reclamar seus direitos. Também pretendeu impedir que atuassem os agentes executivos dos Anciãos dos Dias naqueles sistemas locais em que os mortais pudessem reivindicar sua independência. Quanto à imortalidade, sustentava ser inerente às personalidades do sistema e ser a ressurreição igualmente natural e automática. Nem um só mortal (garantiu) se verá privado da vida eterna por mero capri­cho dos Anciãos dos Dias.

'Terceiro: o ataque ao plano universal de educação dos mortais ascendentes.

"Lúcifer sustentava neste último item do seu Manifesto da Liberdade que o tempo gasto na instrução dos mortais ou huma­nos evolucionários nos princípios da administração universal era excessivo, com desproporcionado consumo de energia. Qualificou esses princípios como imorais e nefastos, e protestou igualmente contra o programa que obrigava a preparar os mortais do espaço por um tempo muito prolongado, para um destino tão desconhe­cido quanto fictício. Apontando os "finalistas" residentes em Je­rusem anunciou que, aqueles, não tinham encontrado outro destino mais glorioso que o de serem devolvidos a humildes pla­netas semelhantes aos de sua origem. Sugeriu que tinham sido corrompidos por um excesso de disciplina e por um treinamento prolongado, acusando-os de traição aos seus irmãos, os humanos, por se prestarem a cooperar naquele plano que vinha mantendo o mito dos "ascendentes" rumo a um Pai inexistente.

"Por último, desafiou e condenou todo o plano de ascensão dos mortais para a Ilha Eterna do Paraíso.

— Um momento.. .

A voz de Sinuhe fez silenciar o surpreendente relato. Naquele instante, o casal partilhou os mesmos pensamentos e sentimentos.

Aquele Manifesto da Liberdade não guardava conexão com as explicações pueris oferecidas ao longo dos séculos pelas dife­rentes religiões e, muito especialmente, pela católica. Tendo em consideração o que acabavam de ouvir, o argumento esgrimido pelas igrejas — "Lúcifer se rebelou porque quis ser como Deus" — resultava absurdo.

De um ponto de vista objetivo — supondo-se que toda aquela aventura louca encerrasse alguma verdade —, as "novas razões" da famosa rebelião deram muito que pensar aos "iuranchianos". Para Sinuhe aquele Manifesto continha, no mínimo, aspectos mais concretos e até mais "lógicos" que a tradicional justificativa ca­tólica. ..

"O Grande Deus, o Pai Universal" — dizia o Manifesto luciferiano — "é um mito. Não existe. Ninguém pôde demonstrar sua existência real..."

A afirmação do soberano do sistema de Satânia foi e conti­nua sendo blasfêmia, pelo menos para os que crêem nessa Força ou Energia Suprema. Mas e para um ateu? Se se considera o ponto de vista de Lúcifer por um ângulo racional e científico, quem con­seguiu demonstrar a existência do Pai? Um dos argumentos que servia de apoio a essa postura insólita, falava dos "finalistas": essas miríades de seres evolucionários que; de acordo com os planos cósmicos, vão ascendendo, como nós, para a Ilha Eterna do Pa­raíso e que, logicamente, deveriam saber como é o Pai. E no en­tanto — segundo Lúcifer — jamais falaram sobre Ele. Esse silêncio dos "finalistas" foi igualmente usado pelo rebelde para qualificar esses mortais "ascendentes" e "finalistas" como "trai­dores dos seus próprios irmãos"; entrando assim no jogo das personalidades do Paraíso.

É evidente que, partindo desse princípio básico — "a não existência de Deus" — o resto foi fácil a Lúcifer. Que sentido tinha então que Micael declarasse sua soberania sobre o universo local de Nebadon, "em nome de um Pai Universal hipotético"? E de certa forma, ao reclamar a autonomia e o governo indepen­dente para o seu sistema de 619 planetas habitados e para os ou­tros sistemas planetários, Lúcifer se convertia — há 200 000 anos — no primeiro "separatista" e "nacionalista" da História, se seguir­mos a concepção humana de tais conceitos...

Nietihw e Sinuhe começavam a intuir o porquê da rebelião ter logrado arrastar a tantos milhares de milhões de criaturas... Não pretendendo, claro, avaliar a bondade ou a perversidade do soberano sistêmico, o que surgia muito nítido, é que Lúcifer jamais pretendeu ser como Deus. Entre outras razões — segundo o pró­prio Manifesto da Liberdade —, porque, para ele, Deus não existia.

Aceitando por um momento que tais argumentos estivessem corretos, o entusiasmo e a fidelidade que demonstraram seus seguidores, a partir do conclave de Jerusem, eram mais que justifi­cados.

Mas Sinuhe desejava conhecer outros aspectos da revolta. É verdade que se deu a mítica batalha nos céus? Quais foram os protagonistas? Lúcifer fracassou? Que risco correu nosso planeta?

E, com as mãos estendidas sobre a esfera transparente, for­mulou uma nova pergunta.

 

— Fala-nos do advento da rebelião.

— Após a leitura e proclamação do Manifesto da Liberdade — prosseguiu a voz dos arquivos de IURANCHA —, Satã se dirigiu às multidões atônitas congregadas em Jerusem, a capital do sistema de Satânia, declarando que se podia adorar as forças universais físicas, intelectuais e espirituais, mas que tão-só a Lú­cifer se devia obediência, pois era o chefe atual e real, "amigo dos humanos e dos anjos" e "Deus da Liberdade". Assim foi ele qualificado por seu lugar-tenente. E estes foram os gritos de guerra dos rebeldes.

"Lúcifer, a partir desse momento, apregoou incansavelmente a "igualdade de pensamento" e a "fraternidade da inteligência", insistindo em que a administração e o governo tinham de limitar-se a cada planeta e, em todo caso, à confederação voluntária dos mundos em sistemas locais. Qualquer outro tipo de supervisão celeste foi repelida.

"Prometeu aos príncipes planetários de Satânia que gover­nariam seus respectivos mundos como administradores supremos. Rechaçou Edência (sede da constelação a que pertence Satânia) como lugar das atividades legislativas e à capital do universo local de Nebadon, Salvington, como centro diretor dos assuntos judi­ciais. "Todas essas funções" — declarou Lúcifer — "devem con­centrar-se nos mundos-capitais dos sistemas". E ele mesmo iniciou a constituição da sua própria assembléia legislativa, organizando os tribunais sob a presidência de Satã. Ordenou aos príncipes leais à sua causa que fizessem o mesmo em seus planetas. Todo o gabinete administrativo de Lúcifer passou-se em bloco para o seu campo, e seus membros foram juramentados publicamente co­mo agentes da administração do novo chefe dos "mundos libe­rados".

Atônito com o que estava ouvindo Sinuhe interferiu, formu­lando duas novas perguntas:

— Já houve anteriormente alguma rebelião similar? E, em todo caso, qual foi a reação de Micael?

— Sim, houve — emitiu a voz ante a lógica surpresa dos "iuranchianos" —. A de Lúcifer era a número três das registradas no universo local de Nebadon. Mas aquelas duas primeiras sublevações tiveram lugar em constelações tão distantes da nossa, a de Norladiadek, que não se revestiam de importância. Lúcifer acentuou, precisamente, que tais insurreições malograram porque a maioria dos seres se absteve de seguir os chefes. E reafirmou que "as maiorias governam" e que o "pensamento é infalível".

"Quanto à tua segunda questão, inicialmente não se deu reação alguma por parte das altas hierarquias dos universos. Lú­cifer e seus leais atuaram com liberdade absoluta. Posteriormente, e de forma reiterada, foi-lhes oferecida a clemência. Mas Lúcifer declarou que tais perdões eram apenas uma prova a mais da inca­pacidade dos Filhos do Paraíso para conter a rebelião. Naqueles momentos, Lúcifer desafiou abertamente Micael, Manuel e os An­ciãos dos Dias, considerando sua aparente passividade como um sinal de fraqueza. E sua radicalização foi então completa.

"Só Gabriel se pronunciou a respeito, mas limitou-se a anun­ciar que "em seu devido tempo me entrevistarei com Micael e todos os seres ficarão em liberdade, qualquer que seja sua deter­minação. O governo dos Filhos pelo Pai deseja tão-só a lealdade e devoção quando expressadas voluntariamente".

"Em conseqüência, os rebeldes ficaram em liberdade para organizar e estabelecer seu governo. Foram anos caóticos e de desordens graves, sobretudo nos Mundos das Casas ou Moronciais. Mas o ataque de Lúcifer aos "finalistas", qualificando-os de traidores de seus irmãos, provocou efeito contrário ao pretendido pelo soberano rebelde: a maior parte dos cidadãos "ascendentes" que se achavam em Jerusem permaneceu fiel a Micael. E Lúcifer tomou esse respeito como ignorância.

— Mas — insistiu Sinuhe — que fez Micael?

— Quando a rebelião do sistema local de Satânia já se havia estendido e firmado em 37 dos 619 planetas habitados, Micael pediu a Manuel, seu irmão paradisíaco, que ó aconselhasse. De­pois dessa entrevista, aquele que seria mais tarde Soberano defi­nitivo de Nebadon anunciou que continuaria com sua política de não intervenção, tal como havia feito com as insurreições anteriores. Micael, naquele tempo, dirigia o universo local por direito divino e não em virtude do seu próprio direito pessoal. A expli­cação residia em que ainda não havia expandido totalmente sua carreira, não tendo sido investido, portanto, de "todo o poder sobre os céus e a terra".

"Durante 200 000 anos de IURANCHA, Micael não interveio contra as forças leais a Lúcifer. Agora, há 2 000 anos terrestres, possui poderes e autoridade para terminar rapidamente com qual­quer outra rebelião.

"E foi a partir dessa "não intervenção" de Micael na revolta, que Gabriel tomou a decisão de assumir o comando das tropas que não haviam secundado a Lúcifer. Reuniu seu Estado-Maior pessoal em Edência, celebrando uma "cúpula" com os Mui Altos da constelação. Entretanto, Micael continuou em Salvington.

"E Gabriel se dirigiu a Jerusem, a capital de Satânia, insta­lando-se na esfera consagrada ao Pai Universal. Ali, em presença das multidões leais, desdobrou o estandarte de Micael: a bandeira branca com os três círculos concêntricos e azuis no centro, sím­bolo do governo trinitário da criação.

"Lúcifer, por sua vez, desdobrou sua própria bandeira: bran­ca, também, com um círculo vermelho e outro menor, negro, no centro.

"E houve guerra nos céus. . .

 

— Então — disse Sinuhe — o Apocalipse tinha razão.. .

— Sim, Micael e seus anjos combateram e lutaram contra o Dragão de Lúcifer, de Satã e dos príncipes planetários rebeldes. Mas essa "guerra" nos céus não foi uma batalha física, tal como vós o entendeis em IURANCHA. Não se tratava de uma de vossas bárbaras contendas, onde se perde a vida física e corporal. Aquela luta foi, se é possível, mais implacável, já que estava em jogo a sobrevivência eterna.

"Nos primeiros tempos da "guerra nos céus" Lúcifer perma­neceu no "anfiteatro planetário". Gabriel, por outro lado, instalou seu quartel-general em suas proximidades e, dali, rebatia os sofismas dos rebeldes. As diferentes e numerosas personalidades celes­tes presentes tiveram, assim, a oportunidade de escutar as duas facções e adotar, finalmente, uma decisão pessoal.

— Quantas criaturas do sistema de Satânia se passaram para o bando de Lúcifer?

— A rebelião, como já foste informado, deu-se em escala sistêmica. Os teólogos do teu mundo equivocaram-se em suas apreciações ao considerar que ela teve um caráter universal. Fo­ram 37 os planetas que se alinharam com os rebeldes e ofereceram a Lúcifer suas respectivas administrações e criaturas. Foi, defini­tivamente, uma insurreição da Ordem Lanonandek. As demais ordens superiores do universo local de Nebadon não se uniram à secessão. Reduzido número de Portadores de Vida estacionados nos planetas rebeldes inclinaram-se para Lúcifer. Em compensa­ção, nenhum dos Filhos Trinitizados se perdeu. E os Melchize­deks, os arcanjos e as Brilhantes Estrelas da Noite permaneceram igualmente leais a Micael. Tampouco se viram implicados na re­belião os seres originários do Paraíso. Quanto aos chamados Con­ciliadores e Arquivistas Celestes, tampouco houve deserção alguma entre suas fileiras. Entretanto, forte contingente de Companheiros Moronciais e Instrutores do Mundo das Casas sim, fez sua a causa de Lúcifer.

"Entre as ordens supremas de serafins não se registrou baixa alguma. Em troca, os anjos superiores e, sobretudo o quarto grupo (o dos anjos administradores), foram os mais afetados. Milhares de serafins designados para as capitais de planetas preferiram Lúcifer. No total, um terço desses seres celestes se passou para o bando rebelde. Um terço também dos querubins estacionados em Jerusem uniu-se aos serafins desleais. Manótia, segundo co­mandante dos serafins do quartel-general de Satânia em Jerusem, persuadiu dois terços do Corpo de Serafins, e sua audácia foi reconhecida a nível universal.

"Dentre as ajudas angélicas planetárias, os que padeceram o furor da rebelião com maior virulência foram os Filhos Mate­riais ou "Adães e Evas". Um terço deles foi enganado e quase dez por cento dos ministros de Transição caíram igualmente em poder de Lúcifer...

Novamente surgiam os nomes de Adão e Eva e, aparente­mente, grande número deles. Mas Sinuhe preferiu abordar a questão mais na frente.

— ... João Evangelista — continuou a voz — recebeu uma visão simbólica dessas perdas e escreveu: "E a cauda do Dragão vermelho arrastou a terça parte das estrelas do céu e as arrojou às trevas."

"As maiores deserções, entretanto, aconteceram nas fileiras dos anjos. Ocorreu outro tanto entre os seres "medianos". Quanto aos 681 227 Filhos Materiais de Satânia, noventa e cinco por cento foram igualmente vítimas da rebelião.

— Como é possível — interrompeu o membro da Escola da Sabedoria — que a rebelião arrastasse tantos anjos e serafins?

— Ao eclodir o levante, o chefe dos exércitos seráficos em Jerusem passou-se para o bando luciferiano. Isso ocasionou a imediata e maciça adesão dos serafins de quarta ordem ao seu comandante. Mas uma criatura houve, Manótia, que se destacou por sua intrepidez. Não faz muito, ao descrever suas experiências sobre a rebelião, esse segundo comandante dos serafins dizia: "Meus momentos mais vivificantes foram aqueles em que me ne­guei a insultar Micael. As potências rebeldes trataram então de destruir-me. E em Jerusem registrou-se um grande cataclisma... Ausente meu imediato superior, tive de assumir o comando das legiões de anjos da capital de Satânia, assim como dos confusos assuntos seráficos do sistema. E moralmente apoiado pelos Mel­chizedeks e pelos humanos 'ascendentes', pude resistir aos emba­tes da rebelião. Tendo sido automaticamente cortados os circuitos que uniam o sistema ao resto da constelação, dependíamos da lealdade do nosso serviço de informação que lançava apelos de socorro a Edência, do sistema vizinho de Rantulia. Assim, pudemos sobreviver até a chegada do sucessor de Lúcifer. Depois fui agregado ao Corpo dos Melchizedeks ^que se haviam encarre­gado do falido planeta IURANCHA, tomando a meu cargo a jurisdição das ordens seráficas leais a Micael."

"Na atualidade — concluiu a voz — Manótia continua em atividade no teu mundo, em IURANCHA, onde desempenha o posto de chefe-adjunto dos serafins.

— Dizes que o sistema de Satânia foi isolado... Isso não parece justo, insinuou Sinuhe.

Mas a voz, como já o advertira, eludiu o assunto:

— Não é minha missão opinar, apenas registrar. O que figura nos arquivos de IURANCHA é o seguinte: tão logo se produziu a rebelião, os circuitos de Satânia foram interrompidos. Tanto os que uniam os planetas com a constelação, como os do resto do universo local. E os mundos foram submetidos a uma "quarente­na" que ainda dura. Nesse tempo todo, agentes seráficos e men­sageiros solitários transmitiram e transmitem a totalidade dos comunicados.

"Essa situação obrigou Lúcifer e seus leais a propagar e man­ter sua rebelião de uma forma pessoal. Uma das ações dos rebeldes concentrou-se precisamente nas Escolas do planeta cultural dos "finalistas", empenhando-se em ganhar para a sua causa as almas dos humanos evolucionários. Tal ação ficou registrada como um dos piores atos dos rebeles.

"Os humanos "ascendentes" talvez fossem os mais indefesos. Mas resistiram melhor, até mais que os espíritos inferiores. Ne­nhum dos cidadãos "ascendentes" de Jerusem, como já fostes informado, aliou-se à causa luciferiana.

"Hora após hora e dia após dia, as estações difusoras de Nebadon viram-se invadidas por todo tipo de observadores e cria­turas celestes, desejosos de conhecer o processo da rebelião em Satânia.

"Essa situação tensa se prolongaria durante dois anos do tempo sistêmico. Como sabes — esclareceu a "pluma de Thot" —, um dia de Satânia equivale a três de IURANCHA, menos uma hora, quatro minutos e quinze segundos. Cinco anos de cem dias do sistema de Satânia são, aproximadamente, quatro de IURAN­CHA.

"Ao cabo desses dois anos, Lanaforge foi designado sucessor de Lúcifer, aterrorizando com seu Estado-Maior o mar de cristal. Formava parte dos exércitos mobilizados por Gabriel em Edência e esta foi sua primeira mensagem ao Pai da constelação de Norladiadek: "Nenhum cidadão 'ascendente' de Jerusem se perdeu. Todos os mortais evolucionários sobreviveram às chamas ardentes e saíram vitoriosos da prova decisiva."

"A tropa de Jerusem contava então com 187 432 811 huma­nos "ascendentes" de todos os planetas habitados do sistema.

— Que representou a chegada de Lanaforge para a rebelião?

— Os rebeldes foram destronados e destituídos de todo po­der de governança. Apesar disso, permitiu-se-lhes circular livre­mente em Jerusem, nas esferas moronciais e nos planetas habita­dos. E prosseguiram com seus esforços para recrutar novos adeptos para a sua causa.

"Como também foste informado, por aqueles tempos, Micael não era ainda o Soberano de Nebadon. E embora os Anciãos dos Dias defendessem os Pais da constelação quando estes decidiram tomar em suas mãos o governo de Satânia, não comunicaram notícia alguma sobre a sorte de Lúcifer. Os rebeldes, conseqüentemente, continuaram percorrendo o sistema a propagar suas doutrinas.

Muitas questões pairavam sobre a rebelião, mas Sinuhe ardia em desejos de conhecer o papel desempenhado por Caligastia, o príncipe planetário de IURANCHA, e pelo resto do Estado-Maior. E solicitou informação a respeito:

— Que havia acontecido aos humanos do planeta Terra?

 

— Foi durante aquela visita de inspeção de Satã a IURAN­CHA, como te foi dito anteriormente, que Caligastia recebeu as primeiras notícias sobre a rebelião iminente. Devo esclarecer-te que Satã não se parece em nada com essas grotescas caricaturas humanas que dele se fizeram. Era, e continua sendo, um Filho Lanonandek primário de grande resplendor.

"E foi no curso dessa inspeção rotineira que Satã pôs Cali­gastia a par do Manifesto da Liberdade que Lúcifer se propunha levar a efeito em Jerusem.

"Imediatamente, o príncipe concordou em trair o planeta, no instante em que a rebelião se tornasse pública.

"Pouco depois dessa entrevista, quando a administração dos "cem de Caligastia" estava a ponto de iniciar novos e promissores projetos, altamente benéficos para a humanidade do teu mundo, ao meio-dia de um dia de inverno nos continentes setentrionais, o príncipe manteve longa conversação secreta com seu lugar-tenente, Daligastia. E, ato contínuo, este convocou os dez conselhos de IURANCHA em sessão extraordinária, informando-lhes que o príncipe estava disposto a proclamar-se soberano absoluto do planeta. Por conseguinte, os "cem" deveriam abdicar de suas fun­ções, delegando seus poderes a Daligastia.

"A inesperada declaração foi seguida de fulminante reação da parte de Van, um dos membros dos "cem" e presidente do Conselho de Coordenação das Tribos, que acusou Caligastia, Daligastia e Lúcifer de ultrajar a soberania do universo local de Nebadon. E, imediatamente, deu andamento a uma comunicação aos Mui Altos de Edência visando que o confirmassem em seu posto.

"As notícias da proclamação do Manifesto da Liberdade em Jerusem haviam chegado, então, às autoridades supremas celestes, e o sistema de Satânia, isolado. A partir desse momento, teu mundo, como os demais, ficou incomunicável. E todos os grupos ce­lestes que se achavam presentes em IURANCHA (fixos ou em trânsito) ficaram insulados, sem prévio aviso.

"Durante sete anos terrestres a situação em teu mundo não variou. Não se produziu qualquer tentativa exterior para modifi­cá-la.

Sinuhe lembrou-se de repente: no sul da Armênia atual, efetivamente, existe um lago que leva o nome de Van. Seria em memória daquele remoto membro dos "cem de Caligastia", que se opôs à rebelião de Lúcifer? Mas não se atreveu a alterar o curso da narração com uma questão aparentemente tão banal.

— Em IURANCHA quarenta membros do Estado-Maior corporal do príncipe, com Van à frente, recusaram unir-se à revo­lução. E numerosos assistentes humanos modificados os seguiram. Não obstante, cerca da metade dos serafins administrativos optou pelo bando de Caligastia, assim como 40 000 "medianos". Outros 9 800 permaneceram fiéis a Micael, e o príncipe rebelde preparou esses 40 000 "medianos" para que executassem suas ordens em todo o planeta.

"Ao mesmo tempo, Van organizava tudo para tentar salvar o Estado-Maior e as personalidades celestes bloqueadas em IU­RANCHA. Alguns serafins e querubins leais a Van, ajudados por três "medianos" igualmente fiéis, garantiram a vigilância e integri­dade da "Árvore da Vida", permitindo o acesso a seus frutos e folhas unicamente aos quarenta do Estado-Maior e a seus aliados humanos modificados...

Antes que a voz dos arquivos de IURANCHA se manifes­tasse sobre isso, os "iuranchianos" presentes na Sala de Thot compreenderam por que Belzebu se havia apoderado do frasco com os "ibos". Se não se enganavam, a partir da rebelião, muitos desses seres rematerializados no planeta perderam sua imortali­dade, quando não puderam superar as leis biológicas de IURAN­CHA com os frutos daquela árvore de Edência.

— ... O número desses leais que continuavam benefician­do-se da "Árvore da Vida" — continuou a voz — foi de 96: os quarenta já citados do Estado-Maior e outros 56 "andonitas" mo­dificados, cujo plasma vital servira para rematerializar os "cem de Caligastia". Foi durante esses sete anos de disciplina espiritual que um "iuranchiano" surpreendeu o universo. Vossa humanidade não conheceu esse herói, cujas façanhas inscreveram-se no livro de ouro da História de Nebadon.

"Refiro-me a Amadon, o associado modificado de Van, que foi qualificado como "o grande herói humano da rebelião de Lú­cifer". Esse descendente varão de Andon e Fonta foi um dos cem "iuranchianos" que cederam seu plasma vital aos membros cor­porais do Estado-Maior do príncipe. Sua inquebrantável fidelidade a Micael tem sido tomada como exemplo universal...

— E que foi que aconteceu com os restantes sessenta mem­bros desse Estado-Maior? — interrompeu Sinuhe, muito mais interessado no destino dos rebeldes que nas façanhas de Amadon.

— Eles elegeram Nod como novo chefe: um dos sessenta. E lutaram com todas as forças pelo príncipe. Mas bem depressa se deram conta de que tinham sido privados do apoio dos circuitos vitais do sistema, tendo sido rebaixados ao estado de simples mor­tais. Continuavam como seres sobre-humanos, mas já carentes de sua imortalidade. E, em desesperada tentativa para aumentar seu contingente, Daligastia ordenou a procriação sexual entre os ses­senta sobreviventes do Estado-Maior e os quarenta e quatro hu­manos modificados, também leais ao príncipe. Apesar disso, Daligastia sabia que aqueles 104 super-homens cedo ou tarde morreriam.

"Depois do desastre e da queda de Dalamachia, os 104 par­tidários de Lúcifer emigraram para o Norte e para o Leste. E seus descendentes ficaram conhecidos, durante milênios, com o nome de "noditas". E o lugar deles, como o "País de Nod"...

Nietihw recordou então uma passagem do Gênese (4,16). "... Caim, distanciando-se da presença do Senhor, habitou a terra de Nod, ao oriente de Éden."

O companheiro, fascinado por essa revelação, perguntou que relação guardavam aqueles acontecimentos com aquela outra pas­sagem da Bíblia (Gênese 6,1-4) em que se diz: "Quando come­çaram a multiplicar-se os homens sobre a terra e tiveram filhas, vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram dentre elas por mulheres as que bem quiseram. E disse Yaveh: 'Não permanecerá para sempre meu espírito no homem, porque não é mais que carne. Cento e vinte anos serão seus dias'. Havia então gigantes na Terra, e também depois, quando os filhos de Deus se uniram com as filhas dos homens e engendraram fi­lhos; estes são os heróis famosos de mui antigamente."

— Como já foste informado — anunciou a voz — muitas das antigas passagens da Bíblia sofreram deformações e interpolações. Quando os 104 leais a Caligastia se uniram sexualmente entre si e, logo após, com outros seres humanos, seus filhos se revelaram criaturas muito superiores ao resto dos "iuranchianos", tanto no aspecto físico, como mental. E esses fatos, com o passar dos tempos, acabaram por incorporar-se a todas as lendas. Esta foi, na verdade, a origem da infeliz passagem citada no Gênese e que rememoraste. Sem ser exatamente "filhos dos deuses", os membros corpóreos do Estado-Maior do príncipe foram, isso sim, tomados por "seres vindos dos céus". Esse fato passou pouco a pouco para a mitologia, obscurecendo-se, ainda mais, a partir dos graves acontecimentos que se deram muitos milhares de anos de­pois, com a chegada a IURANCHA de Adão e Eva.

“A rebelião de Lúcifer, por conseguinte, começara a dar seus primeiros e nefastos frutos em teu mundo. ..

— Por quê? — rebateu Sinuhe sem entendê-lo.

— Ao consumar-se a ruptura dos membros do Estado-Maior e de seus humanos modificados, o plano cósmico previsto para IURANCHA viu-se alterado. O progresso pela evolução viu-se substituído pelo da revolução. Os cruzamentos entre os 104 leais a Caligastia e as restantes tribos humanas trouxeram como resul­tado um momentâneo pico na civilização do planeta. Mas essa explosão de progresso só foi eficaz entre os povos mais próximos aos "noditas". Quando a experiência se propagou a outras raças primitivas mais distantes, o caos foi total. A maior parte daqueles humanos não estava ainda preparada, nem mental nem fisica­mente, para semelhante passo, e da liberdade se passou à liber­tinagem.

"Não se passara muito tempo desde que os 104 se decidiram a cruzar-se entre si e com "as filhas e filhos dos homens", quando se viram comprometidos em desesperada defesa da cidade de Dalamachia, atacada pelas hordas semi-selvagens dos povos entre os quais tinham tentado inculcar, prematuramente, aqueles prin­cípios de liberdade. Esses ataques obrigaram os rebeldes a fugir da esplêndida cidade-modelo, e encaminhar-se para o Norte e para o Leste.

— E que foi feito de Dalamachia?

— Cento e setenta anos depois do estouro da rebelião, uma grande inundação, procedente dos alterados mares do Sul, arrasou aquilo que fora o primeiro foco cultural do planeta. E o quartel-general de Caligastia sumiu-se por debaixo do nível do mar.

— E Van e seus leais, que destino tiveram?

— Van, chamado "o Inquebrantável", se havia retirado muito tempo antes para as terras do oeste da índia. Ali, ele e seus partidários ficaram ao abrigo dos ataques das tribos semibárbaras que haviam provocado a derrota de Nod e seus super-homens.

'Touco a pouco, trinta e nove dos quarenta membros do Estado-Maior foram regressando a Jerusem; Amadon e seus des­cendentes (os "amadonitas"), assim como Van, continuaram em IURANCHA. E, por mais de 150 000 anos, foram sustentados pela "Árvore da Vida" e pelo Ministério dos Melchizedeks que tinham tomado a seu cargo o governo do planeta.

— Qual foi o final de Nod e dos membros do Estado-Maior?

— Os dois grupos (os sessenta membros corporais e os qua­renta e quatro "andonitas" modificados) foram o germe da oita­va raça aparecida em IURANCHA. Os "noditas" de puro sangue eram, sem dúvida, uma raça magnífica, embora não prevista nos planos dos Portadores de Vida. Mas, com o tempo, acasalando-se com os humanos foram degradando-se e 10 000 anos depois da rebelião, a vida média de um indivíduo não ultrapassava a das raças autóctones.

"Quando os arqueólogos do teu tempo — aclarou a "pluma de Thot" — desenterraram os milhares de tabuinhas de argila dos sumérios, descendentes dos "noditas", descobriram listas de reis que retrocediam milhares de anos no tempo. Segundo esses arqui­vos, os reinados se prolongavam desde os 25 anos dos monarcas mais próximos aos 150 (ou mais) dos mais remotos. A explicação é simples: alguns dos primeiros chefes "noditas", descendentes dos membros do Estado-Maior de Caligastia, viviam muito mais que o resto dos humanos e que seus próprios sucessores.

— Certamente — interveio Sinuhe, evocando as vidas cen­tenárias de muitos patriarcas bíblicos —, que há de verdade nessas existências longevas que menciona a Bíblia?

— Em geral, trata-se de uma confusão entre os meses de 28 dias e os anos de mais de 365 dias. Cita-se, por exemplo, um humano que teria vivido mais de 900 anos. Na realidade, essa cifra representava 70 dos atuais anos de IURANCHA: "três vintenas mais dez".

"Depois da desaparição de Dalamachia, como já fostes in­formado, os "noditas" emigraram para o Leste e o Norte, fundando a cidade que se chamou Dilmun: o novo quartel-general racial e cultural dos rebeldes. Paulatinamente, todos os membros corporais do Estado-Maior e seus humanos modificados foram morrendo de morte natural. Uns 50 000 anos depois da morte de Nod, os des­cendentes viram-se obrigados a ampliar seus domínios, em busca de alimentos. E, conscientes de que deveriam fundir-se com outras raças limítrofes, fundamentalmente "Sangik" e "andônicas", os chefes "noditas" convocaram um grande conselho de todas as tri­bos para preservar a unidade racial. Depois de muitas deliberações, adotaram o chamado "plano de Bablot", um descendente de Nod. Bablot propôs a construção de um templo que perpetuasse e glorificasse a origem sagrada daquela estirpe. Essa magnífica e soberba construção deveria erguer-se no território de Nod...

Sinuhe, sem saber por quê, emocionou-se. E tinha razão para tanto...

— ... Esse templo deveria dispor de uma torre sem par no mundo. Deveria ser um monumento que testemunhasse toda a grandeza dos seus antepassados: os leais a Lúcifer. Surgiram, po­rém, complicações. Uma parte do povo "nodita" desejava que o templo e sua torre fossem edificados em Dilmun. Os demais, re­memorando a desaparição da antiga pátria, Dalamachia, devorada pelas águas, pretendiam que fossem levantados longe do mar.

"Bablot previa que aqueles novos edifícios chegariam a ser o núcleo e a base de um futuro centro de cultura e civilização "nodita". Seu critério prevaleceu. E começou-se a construção. A nova cidade se chamaria "Bablot", em homenagem a seu arquite­to. Mais tarde, porém, recebeu o nome de "Bablod". Por último, foi conhecida pelo de "Babel".

— Babel! — exclamou Sinuhe, compreendendo agora o por­quê de sua emoção —. Então.. . a confusão das línguas?

— Não houve tal. Depois de quatro anos e meio de traba­lho, os "noditas" se enredaram em debates intensos sobre a forma de construção da torre e do templo, assim como sobre a finalidade deles. E as obras se paralisaram. Os fornecedores de víveres pro­palaram então a notícia dos desentendimentos e muitas tribos se dirigiram para o lugar da construção.

— Quais foram esses motivos de dissensão entre os "nodi­tas"? A Bíblia fala de um castigo de Deus. . .

— Não, exatamente. Um dos grupos, o mais numeroso, de­sejava que aquele monumento fosse homenagem perene à supe­rioridade histórica e racial de sua raça. Para tanto, deveria superar todas as medidas e proporções imagináveis.

“O seguinte grupo em importância defendia que o templo devia comemorar a cultura de Dilmun. "Bablot" se converteria em um grande centro comercial e artístico.

"O terceiro contingente em discórdia, o menos importante, pensava que a edificação da torre poderia redimi-los, em parte, das loucuras dos seus antepassados que se uniram à rebelião de Caligastia. Sustentavam que o templo deveria ser consagrado ao Pai Universal, convertendo a futura cidade de "Bablot" em uma segunda Dalamachia que irradiasse cultura e espiritualidade entre os bárbaros dos arredores. Em votação, este último grupo foi derrotado e a maioria rechaçou a idéia de que Nod e seus com­panheiros (seus antepassados) tivessem sido responsáveis pela rebelião de Lúcifer.

"Por último, os dois bandos dominantes e em litígio resolve­ram a situação com as armas. O resultado final foi o extermínio quase absoluto dos "noditas"...

"Muito tempo depois (faz agora uns 120 000 anos), houve uma segunda tentativa para edificar a torre de Babel sobre as ruínas da primitiva construção. Mas o projeto voltou a fracassar, por falta do apoio necessário. Durante muito tempo, aquela região foi conhecida pelo nome de "o País de Babel".

"Aquele primeiro fracasso provocou a dispersão imediata dessa raça. E a cultura "nodita" eclipsou-se por 80 000 anos. até que foi parcialmente recuperada por Adão e Eva...

De novo Adão e Eva. Nietihw e Sinuhe não podiam com­preender quando, como e por quê se deu a aparição daqueles que a Bíblia chama "primeiros pais". Ou seria possível que as Sagra­das Escrituras estivessem equivocadas também nesse assunto? Por que os arquivos de IURANCHA lhes concedia tanta importância?

— A partir daquela dispersão — continuou a voz — os "noditas" sucessores dos rebeldes se dividiram em quatro grandes povos:

"Os ocidentais ou sírios. Foram os sobreviventes do chama­do grupo nacionalista: os partidários da primazia racial. Tomaram o caminho do norte, unindo-se com os andonitas e fundando as cidades do noroeste da Mesopotâmia. Contribuíram decisivamente para a aparição da raça assíria.

"Os orientais ou elamitas. Foram os partidários da cultura e do comércio. Emigraram em direção ao leste, ao Elam, fundindo-se com as tribos "Sangik". Sua região daria nome ao "País de Nod".

''Os centrais ou pressumérios. Foi um pequeno contingente que se instalou nas desembocaduras dos rios Tigre e Eufrates, conservando a pureza e a integridade racial. Sobreviveu durante milênios. De sua fusão com os descendentes de Adão e Eva, sur­giram os sumérios.

"Isso poderia explicar a vossos arqueólogos do século XX de IURANCHA porque esse povo sumeriano apareceu tão subita­mente na Mesopotâmia. Na realidade, os investigadores do teu mundo, Sinuhe, ignoram que os sumérios têm sua origem 200 000 anos atrás, com os rebeldes do Estado-Maior de Caligastia...

"Essa cultura, sucessora da de Nod, carregava a semente de um progresso milenar, abortado pela rebelião de Lúcifer. Assim, realizaram a construção de templos, o trabalho em metais, a agri­cultura, a pastoreio, a olaria, o estudo da astronomia e de outras ciências matemáticas, das leis comerciais e civis, da escritura e dos cerimoniais religiosos. É certo que haviam perdido e olvidado o alfabeto aprendido em Dalamachia, mas souberam conservar a particular escritura de Dilmun. Embora virtualmente perdido pa­ra o mundo, o idioma sumeriano não era semítico. Tinha numero­sos elementos comuns com as línguas chamadas arianas.

"Em documentos deixados pelos sumérios descreve-se uma paragem situada no golfo Pérsico: Dilmun. Os egípcios chamaram "Dilmat" a esse lugar. Posteriormente, os sucessores daqueles "noditas", que se haviam estabelecido entre o Tigre e o Eufrates confundiram a cidade com a legendária Dalamachia. Alguns ar­queólogos encontraram velhas tabuinhas de argila, nas quais os sumérios falam de "um paraíso terrestre em que os deuses aben­çoaram pela primeira vez a humanidade com o exemplo de uma vida civilizada". Essas tabuinhas descrevem, na realidade, a ci­dade de Dilmun, sede de Nod. Hoje, porém, repousam esquecidas e empoeiradas nos museus do teu mundo...

"O quarto grupo, formaram-no os "noditas" do Norte, os chamados "vanitas". Surgiram antes do conflito de Bablot. Eram os mais setentrionais e descendiam dos rebeldes que haviam dei­xado de obedecer a Nod para unir-se a Van e a Amadon. Muitos se instalaram às margens do lago que até hoje continua levando o nome de Van, ao sul da Armênia e ao norte do que foi a cidade de Nínive. O monte Ararat foi sua montanha sagrada. Para os descendentes dos "vanitas" representaria o mesmo que o Sinai pa­ra os hebreus. Há 10 000 anos, os sucessores daqueles primitivos "noditas" aliados de Van afirmavam que sua lei moral, formada por sete mandamentos, fora dada a Van, "o Inquebrantável", pelos deuses no cume do Ararat. E acreditavam com toda firmeza que Van e Amadon tinham sido transportados vivos do planeta quan­do oravam no cume. Por ser a montanha sagrada da Mesopotâmia do norte, não nos deve surpreender que tenha sido implicada em outras narrações judias posteriores sobre Noé e o dilúvio.

Sinuhe, fatigado, agradeceu que a voz do arquivo secreto de IURANCHA fizesse silêncio. Mas as surpresas continuariam...

 

A voz não esperou, e prosseguiu em seu relato, aliviando a tensão de Sinuhe. Seu espírito se achava demasiadamente agitado com aquelas revelações sobre os verdadeiros motivos da rebelião luciferiana e sobre o que, sem dúvida, podia qualificar-se como "primeiro grande conflito planetário". A "pluma de Thot" se re­feriu, então, a outra não menos fascinante e ignorada etapa da Terra: Adão e Eva.

— É fácil reconhecer em teu coração a dúvida que minha exposição anterior suscitou quando, em várias oportunidades, fa­lei-te dos Adães e Evas — começou a misteriosa voz dos arquivos de IURANCHA —. Tua mente se vem perguntando por que, ao referir-me aos que credes vossos primeiros pais, sempre o fiz no plural: "Adães e Evas". E sentiste estranheza, também, ao escutar a palavra "enviados" e não "nascidos", como é crença geral. . . Permiti que, antes de passar a contar a história de personagens tão relevantes, ponha-vos a par dos antecedentes de alguma coisa que ignorais e que se acha intimamente relacionada com o que foi o segundo privilégio concedido a IURANCHA.

"Em todos os mundos habitados e evolucionários dos univer­sos, durante a etapa do governo do respectivo príncipe planetário, os humanos mortais alcançam quase sempre o aperfeiçoamento em seu desenvolvimento natural. Essa culminância biológica é o aviso para que o Soberano do sistema envie a esse mundo dois membros de segunda ordem: os chamados "ascensores biológi­cos". Trata-se de dois filhos materiais, denominados, em Satânia, Adão e Eva. Estes foram os nomes dos primeiros Filhos Materiais do sistema a que pertence IURANCHA. Desde então, todos os Filhos Materiais descendentes daquele primeiro Adão e daquela primeira Eva conservam os nomes de seus "pais".

"Os Filhos Materiais são o dom do Filho Criador aos mundos habitados e em evolução. Constituem sua prole. Nessa criação física não intervém o Espírito-Mãe do Universo. Mas essa ordem material de filiação não é uniforme em todo o universo local. O Filho Criador gera apenas um par desses seres em cada um desses universos locais. E a natureza deles é adequada aos arquétipos de vida de cada sistema. É indispensável. De outro modo, o potencial reprodutor dos Adães seria incompatível com o dos mortais evo­lucionários. A IURANCHA chegou também um desses casais de "ascensores biológicos", descendentes dos Filhos Materiais de Satânia.

"Em geral, cada Adão e Eva permanecem no planeta junta­mente com o príncipe. Não correm grandes riscos, a não ser que, como sucedeu em vosso mundo, sua chegada coincida com uma "quarentena" e com ausência de príncipe planetário. Nesse caso extremo, sua missão se vê cercada de perigos.

"Como no resto dos mundos, o Adão e a Eva que chegaram à Terra tinham, eles também, uma missão básica: melhorar as raças autóctones do planeta.

"O talhe desses autênticos colossos oscila entre dois e meio e três metros. Seus corpos têm, entre outras, uma propriedade muito especial: irradiam luz. Às vezes violeta, às vezes azul. Quando rematerializados, à sua chegada ao planeta eleito, seus corpos são inteiramente físicos e humanos, embora carregados de energia divina e saturados de luz celeste. Esses Filhos Materiais (os Adães) e as Filhas Materiais (as Evas) são iguais em todos os sentidos, com exceção de suas naturezas reprodutoras e de certos fatores químicos. São, por conseguinte, fêmea e varão, mas concebidos para cumprir sua missão de uma forma complementar. "Enquanto permanecem fiéis aos seus objetivos cósmicos, os Filhos Materiais desfrutam de uma dupla via "alimentícia". De um lado, consomem energia materializada, como os outros huma­nos mortais. Mas, além disso, a absorção direta e automática de certas energias cósmicas lhes proporciona a imortalidade. Se fra­cassam ou se rebelam, esta segunda via sustentadora se interrompe, e os Adães e Evas se vêem submetidos à mesma morte natural da dos mortais desse mundo.

"Posso afirmar-vos que esses seres, únicos e maravilhosa­mente úteis, são o elo que une os mundos físicos com o espiritual. Acham-se concentrados nas sedes dos sistemas e ali vivem e se reproduzem como cidadãos materiais do reino, até serem enviados

(sempre aos pares) para os mundos evolucionários. Durante suas vidas nessas capitais sistêmicas, os Filhos Materiais não têm harmonizador de pensamento. Recebem-no depois de trasladados a um planeta.

"Contrariamente aos outros filhos criados que servem nos mundos evolucionários dos mortais, os Adães e Evas não são in­visíveis para esses humanos. Podem misturar-se e, até, procriar com eles.

"Todo Adão e Eva originais e diretamente criados são imor­tais por natureza, tal como sucede com as restantes ordens dos universos locais. Essa imortalidade é transmitida aos filhos, sem­pre e enquanto vivam em suas respectivas capitais sistêmicas. Mas, quando os Filhos Materiais têm filhos depois de terem sido rema­terializados em um mundo, sua prole não nasce imunizada contra a morte. Nesse processo de corporalidade, os "ascensores biológi­cos" experimentam uma mudança no mecanismo transmissor da vida. É uma das normas impostas pelos Portadores de Vida, que não permitem aos Adães e Evas que possam engendrar filhos que não morram.

"Quando o Soberano do sistema recebe a notícia de que um planeta concreto está pronto, já, para receber os "ascensores bio­lógicos", reúne o Corpo de Filhos Materiais na capital sistêmica e revê as necessidades e características do mundo evolucionário em questão. Em seguida, seleciona-se um casal do grupo de vo­luntários: um Adão e uma Eva do contingente mais antigo...

— Eu me pergunto — interveio finalmente Sinuhe — como se realiza essa operação de traslado e materialização?

— O casal selecionado é mergulhado em sono profundo, preparatório para o que se denomina "enserafinamento". Os Adães e Evas são entes semimateriais e, por conseguinte, não transportáveis por serafins. Hão de sofrer, necessariamente, prévia desmaterialização na capital do sistema, antes de partir para o seu objetivo. Essa preparação para o transporte requer uns três dias do tempo padrão e a colaboração de um Portador de Vida para estabelecer e configurar a rematerialização posterior, no termo da viagem.

"Essa técnica de desmaterialização não pode ser usada em sentido inverso: para devolver a dupla à capital do sistema, a menos que esse mundo se ache vazio. Em tais casos se monta uma estação de socorro, em que se utiliza a mesma técnica de desmate­rialização para toda a população recuperável...

— Um momento! — interrompeu o "iuranchiano" —. Isso quer dizer que as hierarquias celestes podem, em caso de emer­gência, retirar os humanos de um planeta?

— Assim é. Se uma catástrofe física chegasse a arruinar a residência planetária de uma humanidade em evolução, os Melchizedeks e os Portadores de Vida poderiam utilizar a técnica de desmaterialização para evacuar os sobreviventes. . . Esses humanos seriam então trasladados (por transporte seráfico) a um novo mundo, preparado já para a continuação de sua existência. Uma vez inaugurada, a evolução de uma raça humana deve prosseguir, independentemente da sobrevivência física do seu planeta.

— Nesse caso — tornou Sinuhe — se a Terra ou IURANCHA se visse envolvida em uma terceira guerra mundial, os sobre­viventes seriam conduzidos a outro mundo?

A voz, ignorando a pergunta, continuou nos seguintes termos:

— Em meus arquivos está registrada a História do teu mundo; não o futuro. . . Como te informava, ao chegar a seu destino, Filho e Filha Materiais são rematerializados sob a direção de um Portador de Vida. O processo necessita de dez a vinte e oito dias do tempo de IURANCHA. Durante esse período o Adão e a Eva continuam mergulhados na inconsciência de um sono profundo. Ao despertar, suas estruturas físicas acham-se totalmente con­cluídas.

"Nos mundos habitados evolucionários, esses filhos materiais constroem seus lares no que se denomina "Jardim do Éden". A localização é determinada previamente pelo príncipe planetário, cujo Estado-Maior colabora estreitamente com os primeiros tra­balhos, e conta com a ajuda de numerosos humanos modificados.

"Como já sabes, o nome "Jardim do Éden" vem de Edência, a capital da constelação de Norladiadek, à que pertence IURAN­CHA. São jardins planejados e levantados de acordo com a gran­deza botânica do mundo-capital dos Mui Altos Pais da constelação. Quase sempre se determina sua localização em lugar isolado e próximo aos trópicos desse planeta. São criações maravilhosas, destinadas a servir de segundo foco cultural desse mundo.

"A primeira e principal missão desses Adães e Evas é sempre a de multiplicar-se, dando origem à chamada raça azul ou violeta. No caso de IURANCHA e de outros mundos evolucionários, a segunda raça azul. . .

A voz fez uma pausa propositada. Os corações de Nietihw e Sinuhe haviam sofrido um sobressalto.

— A segunda raça azul! — exclamou o "iuranchiano" —. Então, você, Nietihw, é descendente de Adão e Eva!. . .

— Não te assombres, Sinuhe — prosseguiu a "pluma" — vós, humanos, não conheceis ainda o poder e a grandeza da Di­vindade. Como vos digo, o objetivo de todos esses casais "impor­tados" é formar e forjar uma nova espécie humana, mais forte e preparada para o glorioso futuro que vos aguarda sempre. Mas, durante muitas gerações, Adão e Eva se limitam a engendrar sua própria prole, sem cruzar-se com o resto das raças autóctones.

"Em um planeta "normal" — e a voz deu ênfase especial à palavra "normal" — os planos para elevar o nível da espécie hu­mana que habita esse mundo são sempre dispostos pelo príncipe e, posteriormente, executados por Adão e Eva. Mas, como vere­mos a seguir, em IURANCHA não foi assim.

"Cada par de Filhos Materiais chega sempre acompanhado por um séquito de anjos de quinta ordem, agregados à "missão adâmica". O grupo inicial é geralmente de uns cem mil. E uma vez terminada a residência (o Jardim do Éden) numerosos humanos nela se instalam, servindo assim como colaboradores e enlaces com as outras tribos do planeta em questão.

"Necessariamente, quando um Adão e uma Eva chegam a um planeta evolucionário, já terão sido prévia e exaustivamente instruídos sobre as raças existentes nesse mundo e sobre a fórmula idônea para melhorá-las. O plano não é obrigatoriamente unifor­me, permitindo aos Filhos Materiais completa liberdade de atua­ção, sempre de acordo com as normas sagradas que regem os universos.

"O normal é que os homens "azuis" ou "violetas" (procriados por Adão e Eva) não comecem a cruzar-se com os nativos do planeta até que o número deles — os "azuis" — não tenha ultrapassado o milhão de indivíduos. Esse momento se reveste sempre de especial e emocionante importância para os humanos mortais. É o príncipe planetário quem anuncia e proclama "que os filhos de Deus desceram para fundir-se com as raças humanas". E os mortais aguardam com impaciência o dia em que os exem­plares mais destacados de todas as tribos e raças superiores sejam chamados ao Jardim do Éden para unir-se aos filhos e às filhas do Grande Par e iniciar, assim, uma nova ordem de criaturas hu­manas.

"A raça azul ou violeta (os "adamitas") é monogâmica. Cada humano que se une a esses filhos de Adão e Eva se compromete a não ter outro cônjuge e a educar seus filhos na monogamia. Esses novos seres evolucionários passam pelas Escolas do Príncipe, onde são instruídos e formados. Em seguida se integram na estirpe de seus pais. Quando essa linha dos Filhos Materiais se une às raças evolutivas de um mundo, esse planeta entra em invejável era de progresso. Em geral, em cem mil anos se registra um avanço muito superior ao do milhão de anos precedente.

— Como são esses Jardins do Éden?

— Em quase todos os mundos habitados constituem centros vitais de cultura, funcionando eras inteiras como modelos sociais. Esses "jardins", sedes das raças "adâmicas", são o segundo foco cultural de cada planeta. O primeiro, como vos citei, é a cidade-modelo do príncipe. Mas ambos permanecem estreitamente uni­dos, regulando a marcha da civilização. As escolas do príncipe planetário se dedicam especialmente ao desenvolvimento da filo­sofia, da religião, da moral e dos trabalhos intelectuais e artísticos. As do Jardim do Éden consagram-se às artes práticas, à educação intelectual de base, à cultura social, ao desenvolvimento econômi­co, às relações comerciais, à aptidão física e ao governo civil.

"Finalmente, os dois centros acabam por fundir-se. Isso, po­rém, não ocorre antes da época do Filho Magistral.

"Os Filhos Materiais são, na realidade, o último elo (indis­pensável) que une Deus ao humano, vencendo assim o abismo quase infinito que se interpõe entre o Criador Eterno e as mais humildes das suas criaturas do tempo: vós. Por intermédio deles, os mortais de qualquer mundo podem conhecer e perceber o invi­sível príncipe planetário e ao seu Estado-Maior. Não olvideis que os Adães e Evas, embora fisicamente visíveis para os humanos, podem ver todas as ordens de seres espirituais, normalmente in­visíveis para os autóctones.

"Com o passar dos séculos, esse Grande Par acaba por ser considerado como o verdadeiro antepassado comum de toda a humanidade. É quando adquire verdadeiro sentido essa frase bí­blica que qualifica os vossos "Adão e Eva" como "primeiros pais do homem".

"A intenção cósmica, através dos Filhos Materiais e do príncipe planetário, é a de que os humanos evolucionários, ao abandonar sua existência terrena, tenham adquirido experiência suficiente para saber reconhecer a sete "pais"...

— Sete? — exclamou perplexo o "iuranchiano".

— É isso. Em primeiro lugar, o pai biológico ou carnal. Depois, o pai do reino ou Adão planetário. Em terceiro lugar, o chamado pai das esferas ou Soberano do sistema. Quarto: o Mui Alto Pai da constelação. Em quinto lugar, o Pai do Universo ou Filho Criador e Chefe Supremo do universo local...

— Micael ou Jesus de Nazaré! — interferiu Sinuhe.

— Perfeitamente. Em sexto lugar, aos "superpais" ou An­ciãos dos Dias, que governam o superuniverso. Por último, naturalmente, ao Pai Universal ou Pai de Havona. Isto é, o Pai Universal (aquele que identificais com o Grande Deus), que mora no Paraíso e que se derrama em cada uma das mais humildes criaturas que vivem no Universo dos Universos.

"Prodigioso, simplesmente prodigioso" — monologou o mem­bro da Loja — "se realmente fosse verdade..."

De novo, como em ocasiões anteriores, sem saber por quê, as dúvidas tinham-lhe escalado a mente. E se tudo aquilo não passasse de fruto de sua imaginação ou mais uma armadilha das forças do Mal?

"A verdade é que tudo resulta tão lógico, original e belo" — replicou para si mesmo — "que valia a pena que fosse realida­de. .. No momento, só posso escutar e deixar que o coração faça o resto..."

— ... Mas esse ambicioso plano dos Filhos Materiais — concluiu a voz — ver-se-ia truncado em IURANCHA. Uma vez mais, o fracasso adejava sobre o teu mundo atormentado.. .

 

— A chegada de Adão e Eva à Terra aconteceu faz agora uns 37 000 anos.

Sinuhe e a companheira compreenderam que a voz dos ar­quivos se dispunha a relatar aquela outra versão da estadia em IURANCHA dos, talvez, mal chamados "primeiros pais" da hu­manidade. Apoderou-se deles, então, uma grande excitação.

— Foi num meio-dia — continuou a "pluma de Thot" — e sem anúncio algum, que dois comboios seráficos, acompanhados do pessoal de Jerusem encarregado do transporte dos "ascensores biológicos", aterrissaram lentamente na superfície do vosso pla­netas, nas proximidades do templo do Pai Universal.

"Todo o trabalho de rematerialização dos corpos de Adão e Eva foi realizado no interior do mausoléu recentemente construído. Em dez dias estavam preparadas para serem apresentados ao mundo  como os novos chefes. Era o começo da nova concessão.

“Os filhos materiais destinados a IURANCHA, como vos disse, conheciam perfeitamente a situação que atravessava o mundo evolucionário. Tinham permanecido fiéis a Micael. A rebelião, entretanto, havia arrastado para as fileiras de Lúcifer 681 204 adães planetários.

“Sabiam das terríveis lutas que haviam assolado o planeta e que deveriam submeter-se, também, à autoridade do Conselho de Melchizedeks que regia IURANCHA desde que o príncipe Caligastia fora deposto do seu cargo. Van e Amadon, sabedores da chegada iminente desses Filhos Materiais, tinham preparado, anos a fio, o lugar onde se levantaria o Jardim do Éden.

“Um dos problemas que Van e seu associado enfrentaram foi justamente este: a escolha da paragem do Éden. ..

— Qual foi o lugar?— perguntou impaciente Sinuhe.

—Depois de várias expedições, o ponto escolhido foi uma península mediterrânea, que desfrutava de clima saudável e de temperatura regular.

O “iuranchiano” inquieto, insistiu:

— Uma península do Mediterrâneo? Qual?

— Tratava-se de uma península (quase uma ilha) que partia das costas do país que conheceis como Líbano...

— Oh!... Sempre acreditei que o Paraíso se achasse na Mesopotâmia

— Chovia copiosamente — prosseguiu a voz — nas terras altas que rodeavam a parte central dessa quase ilha e, durante a noite, uma névoa refrescava a vegetação do jardim. As ourelas dessa península eram muito altas e o istmo que a unia ao continente mal alcançava quarenta quilômetros em sua zona mais estreita. Um grande rio descia dos cumes elevados, regando o jardim, e corria para o oriente, enveredando pelas terras baixas da mesopotâmia até chegar ao mar. Esse rio era alimentado por quatro afluentes que nasciam nas colinas costeiras da península edênica. Eram as quatro cabeças fluviais que saíam do Éden, tal como registra vosso livro chamado Gênese. . .

Efetivamente, Sinuhe recordou-se de que em seu segundo capítulo, versículos 10 a 14, diz este texto bíblico:

“Plantou logo Yaveh Elohim um jardim no Éden, ao Oriente, e ali pôs o homem que ele formara. Fez Yaveh Elohim brotar nele, da terra, toda espécie de árvores formosas para a vista e sa­borosas para o paladar. e no meio do jardim a Árvore da Vida e a Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Do Éden saía um rio que regava o jardim e dali se repartia em quatro braços. O pri­meiro se chamava Fison, e é ele que rodeia toda a terra de Evilat, onde abunda o ouro, um ouro muito fino, e ainda bdélio e ágata; e o segundo se chama Geon, e é o que rodeia toda a terra de Cush; o terceiro se chama Tigre, e corre ao oriente da Assíria; o quarto rio é o Eufrates..."

— Incrível! — comentou Sinuhe.

— Um dos primeiros trabalhos foi a construção de uma muralha de tijolos, que isolasse essa península, em sua parte mais estreita, do resto do continente. E o Jardim do Éden, quase um jardim zoológico, foi construído a partir desse muro principal. Os grupos humanos que prepararam o Éden não sabiam qual seria o prazo para a chegada dos Filhos Materiais. Van, de certo modo, depois de muitos anos de trabalho, decepcionou-os ao anunciar-lhes que seria necessário preparar as novas gerações para que prosseguissem na edificação do jardim, na previsão de que a an­siada vinda de Adão e Eva pudesse atrasar-se.

"Foi no centro dessa península que se levantou o templo ao Pai Universal. Em seu interior, Van plantou a Árvore da Vida, tão ciosamente guardada pelo "Inquebrantável" durante aqueles 150 000 anos ou mais que mediaram entre o começo da rebelião e o surgimento de Adão e Eva. Esses Filhos Materiais precisavam do arbusto de Edência para perpetuar sua imortalidade, uma vez rematerializados. Em Jerusem, como te informei, os Adães e Evas não precisavam da ajuda da Árvore da Vida. . . Mas em IURAN­CHA, e em outros mundos evolucionários, é fundamental para manter sua imortalidade. . .

— Um instante — terçou Sinuhe —. No Gênese se fala de duas árvores: a da Vida e a da ciência do Bem e do Mal...

— Só houve uma árvore — esclareceu a "pluma" —. A se­gunda, como outras muitas passagens bíblicas, é pura retórica. . . que encobre um sem-fim de experiências humanas mal resolvidas. A da Vida, pelo contrário, não é um mito. É uma árvore (uma superplanta) que armazena certas energias do espaço, que cons­titui antídoto contra os elementos e fatores que provocam a senectude. Seus frutos atuam, em certa medida, como uma bateria de acumuladores superquímicos, liberando a força prolongadora de vida no universo, Essa forma de sustentação era absoluta­mente inassimilável pelos humanos evolucionários do teu planeta. Só os cem membros corporais do Estado-Maior de Caligastia e seus cem humanos associados e modificados, tal como já te foi explicado, podiam beneficiar-se das propriedades de imortalidade da Árvore da Vida.

Nietihw e Sinuhe adivinharam, nesse momento, o porquê daquela tentação bíblica: "... e se comêsseis desse fruto serieis como deuses."

— Depois da chegada de Adão e Eva a IURANCHA — retomou a voz — a notícia se espalhou, e milhares de humanos se dirigiram para a península edênica, aceitando as doutrinas de Van e Amadon. Quando despertaram, Adão e Eva receberam a responsabilidade, por parte do decano dos Melchizedeks, pela vi­gilância e cuidado do planeta. E ante ele prestaram juramento de fidelidade. A seguir foram proclamados soberanos de IURANCHA por Van que, a partir desse momento, declinou da autoridade nominal que ostentara durante mais de 150 000 anos, à espera da decisão final do Conselho dos Melchizedeks.

"Em seus primeiros quatro dias, os Filhos Materiais tomaram conhecimento do mundo. Inspecionaram o jardim. Contemplaram as vastas extensões daquelas terras. Celebraram sua chegada com todos os habitantes do Éden e, pela primeira vez, fizeram ver que as mulheres eram necessárias no controle do planeta. Em seu quin­to dia organizaram um governo provisório de administração, que devia funcionar até o momento em que os Melchizedeks abando­nassem IURANCHA.

"O sexto dia, destinaram-no a inspecionar todos os tipos de homens e seres vivos. E o sétimo, em certa medida, consagraram-no ao descanso, depois de haver tomado conhecimento da reali­dade do mundo que lhes fora encomendado. Foi no curso desse sétimo dia que sobreveio a primeira comoção que os pôs em estado de alerta. A luminosidade azul-violeta que irradiavam e a majes­tade dos corpos e as suas maneiras provocaram nos humanos que habitavam o jardim certo sentimento de adoração. O casal se diri­giu então às multidões reunidas. E, mostrando-lhes o templo de pedra do Pai Universal, disseram-lhes: "Dirigi-vos ao símbolo material da presença invisível do Pai e inclinai-vos, adorando Aquele que nos criou. Que esse ato seja a promessa sincera de que não caireis na tentação de cultuar a outro que não seja Deus."

— Quinto, sexto e sétimo dias — meditou Sinuhe, sem po­der afastar da mente uma idéia inquietante —. Isso tem algo que ver com a famosa criação bíblica dos seis dias?

— O relato da Criação, no por vós chamado Antigo Testa­mento, data de muito tempo depois da época de Moisés, o chefe judeu, que jamais ensinou ao seu povo uma história tão de­formada como a que lhes chegou. Na verdade, ele apresentara aos israelitas um relatório simples e condensado da Criação, com o propósito de aumentar a reverência devida ao Pai Universal: o Senhor Deus de Israel, tal como Moisés o chamou. Em suas primeiras ensinanças, Moisés evitou, sabiamente, remontar-se à época de Adão e Eva. Como instrutor dos hebreus, aquelas his­tórias dos Filhos Materiais foram intimamente associadas às da Criação. Hoje, em IURANCHA, a ciência reconhece a existência de uma civilização pré-adâmica que não se encaixa, evidentemente, com o exposto no Gênese, e em que (a causa dessas múltiplas distorções da realidade) Adão e Eva aparecem como os "primei­ros humanos da Terra". Os editores posteriores do Gênese, no seu afã de eliminar dos textos bíblicos qualquer alusão aos assun­tos humanos anteriores a Adão, cometeram, todavia, um erro que confirma a existência de tal manipulação...

— Um erro? A Bíblia (dizem) é um livro inspirado por Deus.. .

— A vontade dos humanos — replicou a voz — não tem por quê coincidir sempre com a vontade divina... E uma prova de que nem toda a Escritura Sagrada é obra de inspiração divina, está justamente no que vou recordar-te. No capítulo quarto do Gênese, quando, segundo esse texto, Caim mata seu irmão Abel, dizem: "... e Caim, afastando-se da presença de Deus, habitou a terra de Nod, ao oriente do Éden".

— Nod! Um dos rebeldes do primitivo Estado-Maior do príncipe Caligastia!

— Com efeito, Sinuhe — prosseguiu a "pluma de Thot" —. Essa referência demonstra que os editores dos Antigos Livros Sagrados conheciam muito mais coisas do que inscreveram na Bíblia.

"Quando os sacerdotes judeus regressaram a Jerusalém, aca­bavam de escrever seu relatório particular do começo do mundo e fizeram crer ao povo hebreu que aquela narração procedia dire­tamente de Moisés. Mas, segundo consta destes arquivos de IU­RANCHA, esses documentos, em sua maioria, têm apenas um valor apócrifo. Com o tempo, esses relatos sobre a Criação pas­saram ao Baixo Egito, onde um rei grego, conhecido na História recente de IURANCHA com Ptolomeu, fê-los traduzir em sua língua natal, o grego, por uma comissão de setenta eruditos. Esses documentos judeus passariam assim a engrossar a biblioteca real, em Alexandria.

"Não vos deveis esquecer que todos os comentários posterio­res sobre essa parte da Bíblia fundamentam-se na citada tradução dos Setenta, ou dela se originam. Aí começou novo calvário. O próprio Agostinho (a quem a Igreja chamada Católica considera santo) teve enormes dificuldades ao verificar que, sob muitos as­pectos, a tradução dirigida por Ptolomeu não coincidia com as versões judias. Depois, com o passar dos tempos, os instrutores cristãos perpetuaram a crença de que a raça humana fora criada num ato soberano. Tudo isso conduziu os humanos à hipótese de que existiu uma Idade de Ouro, uma felicidade utópica, nascida e cultivada no Jardim do Éden. Da mesma maneira, esses instru­tores de IURANCHA fizeram crer às pessoas simples que a culpa de Adão e Eva teria sido a causa da queda moral da humani­dade...

— De certo modo — opinou Sinuhe — assim foi...

— Não — retrucou vivamente a voz —. Nos arquivos de IURANCHA se recolhe uma crença generalizada entre os huma­nos, nascida exatamente dessa errônea narração bíblica: ao inter­pretar a queda dos Filhos Materiais como uma regressão ou retrocesso, a imagem da Divindade ficou para os mortais associa­da à vingança. A partir de então, Deus aparece como um ser co­lérico, que se enfurece com a raça humana como castigo pelos erros de determinados administradores do planeta.

"Uma vez mais, os humanos evolucionários do teu mundo confundiram os termos, os fatos e, até, muitos dos que protago­nizaram aquelas etapas.

— Dizes que Deus não é um ser colérico — manifestou Si­nuhe —. Sem dúvida estás certo. Mas como interpretar essas injustificáveis matanças que encobriu, dirigiu e protagonizou o próprio Yaveh?

— Os humanos evolucionários, ao longo de toda a sua His­tória, têm identificado muitas das criaturas celestes a serviço da Divindade ou de Lúcifer com o próprio Pai Universal...

A resposta não deixou o "soror" muito satisfeito.

— ... A Idade de Ouro a que aludem os instrutores huma­nos é um mito — continuou a "pluma de Thot" —>, O Éden, não obstante, foi uma realidade física. E o foi também a civilização que o ocupou durante 117 anos. Sua ruína deveu-se, como compreenderás em seguida, não à cólera ou à vingança da Divindade, mas ao equívoco de Adão e Eva. Recorda que uma das normas cósmicas, que devia ser respeitada acima de tudo, estabelecia e estabelece que os Filhos Materiais não se podem cruzar direta­mente com as raças autóctones dos mundos em evolução. O Gran­de Par devia procriar filhos próprios, com a finalidade de que, lentamente, essa segunda geração se fosse misturando com os hu­manos, elevando assim o nível biológico da humanidade.

Adivinhando que a voz se preparava para relatar-lhes a ver­dade sobre a enigmática culpa de Adão e Eva, Sinuhe — atento e sempre obcecado pelos pequenos detalhes — rogou-lhe que, an­tes de prosseguir com a história, lhe proporcionasse novos dados sobre um fato que o havia fascinado: aquela luminosidade azul-violácea que irradiavam os corpos dos gigantescos "ascensores biológicos".

— Foi um dos contratempos que tiveram de superar imedia­tamente, para anular ou reduzir a natural tendência dos humanos a considerá-los como deuses. As roupagens ajudaram a resolver o problema. Durante a noite, principalmente, a luz se destacava de­mais, è as vestimentas ajudavam a dissimular a radiação. À volta de suas cabeças, porém, continuavam vividos os halos magníficos. A partir de então, propagou-se pelo mundo a crença de que as pessoas santas dispõem ou desfrutam dessa mesma auréola lumi­nosa em torno de suas cabeças. Em muitas das pinturas da anti­güidade próxima de IURANCHA é possível descobrir imagens de seres que trazem halos semelhantes e que não são outra coisa que representações "adâmicas".

"Aqueles Filhos Materiais, chegados ao teu planeta, gozavam igualmente de outra particularidade quase inexistente em IURAN­CHA: a capacidade de transmissão mental de imagens.. .

— A telepatia?

— Assim é definida hoje pelos "iuranchianos". Adão e Eva podiam comunicar-se entre si e inclusive com sua prole, a dis­tâncias de oitenta quilômetros. Esse intercâmbio de idéias se pro­duzia graças à vibração de delicados alvéolos de gás, alojados em suas estruturas cervicais. Esse poder lhes foi retirado quando se afastaram do plano cósmico previsto para IURANCHA.

— Por que o fizeram? — adiantou-se Sinuhe. — Que terá ocorrido, realmente? É correta a versão bíblica da serpente?...

 

— A verdade — voltou a voz do arquivo — é mais dramá­tica. .. e bela, ao mesmo tempo, que a que vos foi transmitida.

Nietihw e Sinuhe ficaram surpresos. Mais "dramática e ao mesmo tempo bela"? Como era possível?

— Vossos próprios teólogos e exegetas — prosseguiu a "plu-ma" — reconheceram finalmente que a história do engano de Eva por uma serpente é apenas um símbolo. E aí têm razão.

"Adão e Eva ensinaram aos humanos tudo aquilo que eles poderiam assimilar e que, comparativamente não foi muito. Entre­tanto, os mortais das raças mais nobres esperavam ansiosos o momento, já anunciado, em que se lhes permitiria unir-se aos filhos do Grande Pai.

Como vos foi dito, os Filhos Materiais enviados a IURAN­CHA mantiveram-se no Jardim do Éden durante 117 anos. Mas, bruscamente, em conseqüência da impaciência de Eva e dos erros de julgamento do companheiro, afastaram-se do caminho traçado. Isso representou uma catástrofe para si mesmos, atrasando de forma desastrosa o desenvolvimento progressivo do vosso planeta. "O erro de Adão e Eva obedeceu realmente a hábil e paciente complô tramado por Caligastia, que fez cair (de boa fé) Eva. Eis como se passaram os fatos:

"O plano de evolução biológica, da forma como estava pla­nejado, era lento. Caligastia sugeriu a um grande chefe de uma tribo "nodita" a idéia de que, visto tratar-se de um dos povos mais inteligentes de IURANCHA, se se lograsse a união sexual direta de qualquer dos indivíduos "noditas" com Adão ou com Eva, o processo de desenvolvimento biológico da humanidade se aceleraria.

"Esses planos foram expostos a Eva secretamente. Adão ficou alheio ao complô. Pelo espaço de cinco anos a Filha Material discutiu, considerou e refletiu sobre a possibilidade de cruzamento com um dos mais destacados exemplares humanos descendentes de Nod. Finalmente, Eva, convencida da vantagem do plano, consentiu encontrar-se em segredo com Cano, um chefe e brilhante pensador da vizinha colônia de "nodistas" simpatizantes. A reu­nião se deu ao entardecer de certo dia de outono, não muito longe da mansão do Grande Par.

"Eva jamais tinha visto o formoso e arrebatado Cano, magní­fico espécime da estrutura física superior, dotado de aguda in­teligência.

"Cano, assim como Eva, cria também na retidão do projeto. De fato, fora do jardim, a poligamia se praticava normalmente. E, influenciada pela personalidade forte do "nodita", a Filha Ma­terial consentiu finalmente no ato sexual.

"Dera-se o passo fatal.

"Adão, por sua vez, não tardaria em descobrir que algo ia mal. Foi sua parceira quem o pôs logo a par dos antecedentes do plano tão longamente amadurecido. Anteriormente, cada vez que se acer­cavam da Árvore da Vida, o arcanjo guardião os advertia da necessidade imperiosa de resistirem às sugestivas provocações do príncipe planetário, ainda presente em IURANCHA, que os acon­selhava a conciliar os conceitos do Bem e do Mal. Aquele serafim, chefe dos ajudantes planetários (chamado Solônia), lhes havia anunciado: "No dia em que mescleis o Bem com o Mal parecer-vos-eis aos mortais do reino. E certamente morrereis."

— Solônia! — murmurou Sinuhe, recordando seu encontro com o estranho ente do sol "negro". Certamente, examinando esses fatos, as passagens bíblicas do Gênese relativas à tentação de Eva só podiam ser consideradas como uma parábola... bem infeliz, por sinal.

— Foi Solônia quem se dirigiu a Adão e Eva quando ambos parlamentavam no jardim sobre o passo irreparável dado pela supermulher. Eva pusera Cano a par de todas aquelas advertências do anjo guardião da Árvore da Vida. Mas o "nodita", de boa fé, fizera por persuadir a Filha Material de que nenhum homem ou mulher que atuasse com lisura podia sofrer dano algum e, muito menos, morrer por isso. É preciso levar em conta que o chefe "nodita" não conhecia o sentido das palavras de Solônia.

"Quando Eva se convenceu de que falhara, seu naufrágio moral foi patético. ..

Sinuhe, intérprete dos sentimentos de Nietihw, perguntou:

— E qual a atitude de Adão?

— O Filho Material soube medir, desde o primeiro instante, a dimensão da tragédia pessoal da companheira. E, apesar do seu abatimento e do coração machucado, só manifestou piedade e sim­patia pela amiga enganada. Não deveis olvidar que Adão e Eva se amavam intensa e profundamente...

"Solônia, como eu vos dizia, anunciou-lhes o erro e a quebra do juramento prestado ao Conselho dos Melchizedeks. A partir dessa solene declaração do anjo guardião, o Grande Par teve total e definitiva consciência de que tinha fracassado.

— Solônia... — murmurou Sinuhe —. Uma vez mais, pelo que vejo, a Bíblia confunde a voz de um ser celeste com a de Yaveh...

— Assim é. O relato bíblico desse sucesso identifica, como em tantas outras vezes, os associados e subordinados do Pai Uni­versal com Ele próprio. Seria o mesmo Solônia quem proclamaria o fracasso do plano cósmico para IURANCHA, pedindo o regres­so dos síndicos Melchizedeks.

— Há alguma coisa que não consigo compreender — acresceu o "iuranchiano" —. Por que Caligastia desejou a interrupção ou o fracasso da evolução de uma humanidade que, em certo sentido, havia-se posto ao seu lado, por ocasião da insurreição de Lúcifer?

— Só lendo no coração do príncipe se poderia adivinhar a verdade. Adão e Eva tinham repudiado o Manifesto da Liberdade. Dessa forma, arruinando-lhes a missão, a vingança de Caligastia se viu consumada e satisfeita. Tal como podeis supor, nesse caso, como em outras oportunidades, a humanidade desempenhou uni­camente o papel de simples e inconsciente "veículo" ou "meio" para satisfazer os propósitos das forças do Mal. Eis porque não é possível culpar os humanos pelo que foi um erro pessoal de Adão e Eva.

— Então o chamado "pecado original"... — disse Sinuhe.

— Antes de passar a expor tudo quanto foi registrado nos arquivos de IURANCHA sobre tal assunto, permite que eu pon­dere sobre os sucessos que se seguiram à queda do Grande Par. Só assim estareis em condições de avaliar essa parte da Verdade na medida justa.

"Na manhã seguinte ao grave erro de Eva, Adão, desesperado pelo fracasso da missão, saiu à busca de Laota, uma brilhante mulher "nodita" que dirigia as escolas ocidentais do jardim. E, premeditadamente, cometeu com ela a mesma loucura que a da companheira: uma procriação direta.

"Deveis considerar que, ao contrário de Eva, Adão não foi seduzido. Sabia exatamente o que fazia, e escolheu, deliberada-mente, compartilhar o destino da amada. A idéia da solidão em IURANCHA sem Eva era superior às suas forças.

"Sessenta dias depois do erro da Filha Material, o par teve a confirmação do seu fracasso: os Melchizedeks regressaram ao planeta, assumindo o governo dos assuntos do mundo.

"Adão pediu conselho aos Melchizedeks. Mas eles recusaram-se a dar-lhe qualquer explicação ou conselho. A partir desse mo­mento, os Filhos Materiais tomaram a decisão de abandonar o Éden, com todos os seus filhos e partidários, em busca de novo lar.

"E 117 anos depois de sua chegada a IURANCHA, longa caravana edênica partiu então da península. Ao terceiro dia de marcha, foi detida pelos transportes seráficos que chegavam pro­cedentes de Jerusem. Pela primeira vez, Adão e Eva foram infor­mados sobre o destino reservado a seus filhos primários.

"Enquanto os transportadores se preparavam, os filhos dire­tos que já tinham atingido a idade de escolha e de critério pessoal (vinte anos) receberam a opção de permanecer junto aos pais ou de ser trasladados, como alunos dos Mui Altos da Constelação, para a sua capital: Edência.

"Dois terços preferiram o regresso à sede de Norladiadek. O resto ficou com Adão e Eva. Quanto aos menores de vinte anos, foram levados para Edência.

"Os Filhos Materiais foram informados, igualmente, de que tinham sido rebaixados (por si mesmos) ao estatuto de simples mortais. A partir daí, portanto, só poderiam conduzir-se como um homem e uma mulher a mais de IURANCHA.

Não obstante, apesar desse fracasso, a posterior contribuição dos homens e mulheres da raça "azul-violácea" às raças autóctones da Terra foi assaz considerável, porque melhorou sensivelmente o nível biológico da humanidade. Não houve, por conseguinte (e respondo assim à tua pergunta sobre o chamado "pecado original") uma queda dos humanos evolucionários do planeta. Repito: não houve tal falta por parte dos mortais. A História de IURANCHA e de suas raças é uma evolução progressiva e a efusão "adâmica" deixou muito melhorados os povos do mundo em relação ao seu anterior nível biológico.

"As linhagens superiores do teu mundo têm, agora, os fatores hereditários derivados de quatro origens diferenciadas: "andonitas", "Sangiks", "noditas" e "adâmicas".

"Adão não pode ser considerado como uma fonte de maldi­ções para a raça humana. É verdade que transgrediu seu pacto com a Divindade, mas, apesar disso, sua contribuição ao desenvolvi­mento de IURANCHA foi destacada. Todos os seres fazem parte de um universo gigantesco; não pode parecer estranho que, às vezes, os passos para a Perfeição resultem imperfeitos.

"Os universos não foram criados perfeitos. A Perfeição é o fim e não a origem. Se o Universo fosse mecânico, se a Grande Causa Centro Primeira ou Grande Deus, como vós costumais cha­má-la, não fosse mais que uma força carente de Personalidade, se toda a Criação fosse um mero agregado de matéria física, do­minado por leis precisas e caracterizadas por ações energéticas e variáveis, então, a Perfeição poderia prevalecer. Até sem que o estatuto do Universo estivesse consumado. Mas nós vivemos em um Universo de Perfeição e de Imperfeição relativas. E nos ale­gramos com desacordos e mal-entendidos existentes, pois isso, justamente, é a prova da existência da Personalidade. Se nossos universos constituem uma existência dominada pela Personalidade, então podemos estar seguros de que a sobrevivência, o progresso e a realização da Personalidade são possíveis.

"É esse Universo pessoal e progressivo o verdadeiramente glorioso. Não o mecânico...

— Que foi feito de Adão e Eva?

— Houve um segundo Jardim do Éden fundado pelos Filhos Materiais, depois de sua peregrinação para a Mesopotâmia. Entre­tanto nasceu Caim, o filho de Eva com Cano. E também foi dado à luz Abel, o filho autóctone do casal. A partir daí, surgiria uma série de confrontos entre duas atitudes encabeçadas e represen­tadas pelos dois míticos filhos de Adão e Eva: Caim, o bastardo, e Abel, primeiro filho propriamente "humano".

— É verdade a maldição divina sobre o parto com dor? — perguntou Sinuhe ao escutar as alusões aos novos nascimentos.

— Não. Aquela nova raça (a azul-violácea ou "adâmica") tinha os olhos claros e a pele era mais para o branco. Os cabelos eram louros, ruivos ou castanhos. Eva continuou dando à luz numerosos filhos. Sempre sem dor. Só as mulheres das raças mistas,

nascidas da união de povos evolucionários com os "noditas" e, posteriormente, com os "adâmicos" começaram a experimentar violentas dores ao nascimento de seus filhos. Apesar da falta e de não mais comer do fruto da Árvore da Vida, Adão e Eva pos­suíam características fisiológicas diferentes das dos seus descen­dentes. Ao mesmo tempo em que tomavam os alimentos normais, obtinham da luz e de outras formas de energias hiperfísicas forças desconhecidas aos mortais de IURANCHA. Mas seus descendentes não herdaram o dom.

"Embora tivesse perdido a imortalidade, o casal, graças a essa especialíssima constituição física, pôde desfrutar de uma vida bem longa, muito superior à do resto dos humanos. Seus filhos, em primeiro grau, também se sobressaíram pela considerável lon­gevidade. Porém, pouco a pouco, mercê do cruzamento com outros povos evolucionários, esse potencial se foi também minando, até desaparecer.

"Já estabelecido no segundo jardim, junto às águas do Eufrates, Adão fez planos para deixar depois de si o máximo possível de seu plasma vital e melhorar, assim, o nível biológico das raças existentes então.

"Eva se pôs à cabeça de uma comissão de doze pessoas para o melhoramento da raça. Antes da morte de Adão, essa comissão havia escolhido 1 600 mulheres do tipo mais evoluído de IURAN­CHA, que foram fecundadas com o plasma vital adâmico. Quase todos os filhos resultantes dessas procriações alcançaram a idade adulta e o mundo se beneficiou, com isso, de uma contribuição suplementar que veio melhorar a estirpe humana. Essas candidatas à maternidade foram previamente selecionadas entre as tribos vi­zinhas do segundo jardim e que representavam a quase totalidade das raças do planeta. A maior parte dessas mulheres superiores era de origem "nodita".

— Quando morreu o Grande Par?

— Adão, à idade de 530 anos terrestres. Eva, aos 511. Ambos faleceram do que hoje se denomina velhice. Foram enterrados no centro do templo do serviço divino, construído por eles mesmos. Daí vem o costume, em IURANCHA, de sepultar os humanos notáveis nas cercanias dos lugares de culto. Esse foi o fim da história dos Filhos Materiais (Adão e Eva) chegados certo dia, faz agora 37 000 anos, ao teu mundo.

— Uma história — sentenciou Sinuhe — repleta de fracassos, de êxitos... e de amor. Uma história, a meu ver, mais lógica e formosa que a que nos fizeram conhecer.

Na mente do "iuranchiano" ficava um sem-fim de inter­rogações.

Se Adão e Eva, apesar do fracasso pessoal, conseguiram impulsionar o nível biológico da Humanidade e sua cultura, por que não teria IURANCHA respondido a esse impulso?

— Dizes bem — reatou a voz —. Aqueles Filhos Materiais deixaram um verdadeiro legado. Mas, ao desaparecerem eles, os humanos evolucionários não souberam conservar aquilo que, sem dúvida, era uma civilização excessiva para um mundo órfão e desprovido dos governantes planetários necessários. Teria sido tudo diferente se Adão e Eva não tivessem falhado. . .

"Não olvideis que são os povos que criam uma civilização e não esta que cria os povos.

 

— Há algo mais que desejo perguntar — virou Sinuhe — em relação a Adão e Eva: que aconteceu com a Árvore da Vida e com o primeiro Jardim do Éden?

— O erro de Eva e do companheiro trouxe consigo outra cadeia de desastres. Quando os humanos que habitavam o jardim receberam a notícia da transgressão dos planos cósmicos, entraram numa fase de fúria incontrolável. Responsabilizaram os "noditas" instalados para além das muralhas da península edênica do que, para eles, constituía uma grande desgraça. Arrasaram a colônia. Nem um só dos seus habitantes foi perdoado. Homens, mulheres e crianças foram executados. Até mesmo Cano, o que seria pai de Caim, foi igualmente sacrificado.

"Os desastres não se acabaram com a matança. A notícia do massacre dos "noditas" chegou finalmente a outras tribos que se assentavam mais ao norte. E um grande exército "nodita" se pôs em marcha em direção à península, iniciando-se assim uma longa história de guerras, morte e desolação entre "adâmicos" e "noditas".

"E houve, como diz vosso Gênese, "inimizade intensa entre o homem e a mulher". Entre a semente de um e a de outra.

"Quando Adão soube que aquele poderoso exército de "no­ditas" se dirigia para o Jardim do Éden, teve de tomar, solitário, sua decisão. Não recebeu conselho algum. Depois da partida do casal, rumo à Mesopotâmia, a península foi finalmente conquistada pelos "noditas".

"Esse povo conhecia e ouvira falar da Árvore da Vida e cria que seus frutos poderiam torná-los imortais. Ao penetrar no jar­dim, encontraram a árvore que, para grande surpresa deles, não era vigiada. Durante anos, comeram abundantemente dos seus fru­tos. Mas bem depressa compreenderam que não faziam efeito algum em seus corpos. Os "noditas" eram e continuaram sendo mortais. Enfurecidos, por ocasião de uma de suas lutas intestinas, queimaram templo e. Árvore.

"Cerca de 4 000 anos depois desses acontecimentos, o fundo oriental do mar Mediterrâneo submergiu, arrastando sob suas águas a totalidade da península edênica. Intensa atividade vulcânica cortou simultaneamente o istmo que unia então a Sicília com o continente africano. E a costa oriental do Mediterrâneo acabou por elevar-se.

"Esse foi o fim da mais bela criação natural do teu mundo..

Embora ignorasse se Belzebu chegaria a cumprir sua promessa de deixá-los ir-se da Torre de Amon, Sinuhe, ao ouvir aquela? últimas revelações, forjou em seu pensamento um firme propósi­to. .. para o caso de poder voltar ao "seu" mundo: procurar nas costas do Líbano pelos restos da península submersa, onde esteve o Jardim do Éden. . .

— Vós, agora — lembrou a voz aos "iuranchianos" — vos encontrais ante outra dessas belas criações surgidas em tempos adâmicos.

— Nós? — exclamou Sinuhe, sem compreender.

— Embora tenham optado pelo Manifesto da Liberdade — explicou a "pluma" —, as criaturas que vos cercam procedem justamente de um dos filhos de Adão e de Eva e foram chamados "medianos secundários".

Nietihw, perplexa, passou o olhar por Belzebu e seus três "irmãos". Mas nem um deles pronunciou palavra.

— Os "medianos"! — balbuciou Sinuhe. — Como aconteceu?

— A maioria dos mundos habitados de Nebadon alberga um ou vários grupos de seres excepcionais, cujo nível de funcionamento encontra-se a meio caminho entre as naturezas espirituais e as físicas ou mortais. Daí sua denominação de "medianos" ou "medianes". São, na realidade, o que poderíamos qualificar como um "acidente do tempo". Não obstante, geralmente seus serviços foram e são de inestimável valor. Em teu mundo, Sinuhe, em IURANCHA, operam hoje dois tipos de "medianos": os primários, pro­cedentes, como sabes, do Estado-Maior corporal do príncipe Caligastia, e os secundários, nascidos (se é que se me permite a expressão) da descendência de Adão e Eva.

"Em IURANCHA, depois da aparição dos primeiros cin­qüenta "medianos" primários, Caligastia ordenou que eles fossem observados pelo espaço de um ano. Terminado o prazo, depois de comprovar que poderiam prestar insuperáveis serviços como "enlaces" entre o Estado-Maior e os humanos evolucionários, de­cretou-se uma reprodução em massa dessas criaturas, até alcançar a já conhecida cifra de 50 000.

"Depois da procriação psíquica de cada contingente de "me­dianos" primários, registrava-se um período estéril de seis meses. Quando os cinqüenta pares do Estado-Maior tinham logrado criar um total de mil "medianos", as experiências cessaram. E não foi possível a procriação de novas criaturas intermediárias. Nos arqui­vos de IURANCHA jamais foi registrada a causa da repentina interrupção. Apesar dos esforços dos "cem de Caligastia", todos os experimentos levados a efeito para recomeçar a procriação de "medianos" foram infrutíferos.

"Esses seres, além de servirem de elo, foram enviados pelo príncipe a todo o planeta, e efetuaram valioso estudo das raças humanas. Com o advento da rebelião, 40 119 dos 50 000 que formavam o Corpo dos Medianos elegeram o Manifesto da Li­berdade.

"Quanto aos qualificados como "secundários", antes de falar sobre eles, é imprescindível que nos refiramos a Adamson, o pri­meiro filho de Adão e Eva, nascido no Jardim do Éden. Esse filho primogênito foi um dos que decidiu permanecer junto aos pais quando a caravana edênica foi detida pelos transportes seráficos. Adamson recebeu um duro golpe quando foi abandonado pela companheira e os filhos, que preferiram partir para Edência.

"Desde pequenino esse primeiro representante da raça "azul-violácea" em IURANCHA tinha ouvido, com muito interesse, as histórias de Van e Amadon a respeito de seus antigos lares, nas terras altas do Norte. Depois da criação do segundo jardim, decidiu viajar para aquelas latitudes. Adamson tinha então 120 anos e já, durante sua estadia na península edênica, fora pai de 32 filhos de puro sangue azul-violeta.

"Para o primogênito, embora amasse seus pais, o ambiente do segundo jardim não resultava satisfatório. Finalmente, em com­panhia de outros 27 parentes e amigos, partiu para o país dos seus sonhos infantis. Ao cabo de três anos o grupo achou sua meta. E Adamson descobriu, então, uma formosa jovem de 20 anos, uma das últimas descendentes do Estado-Maior de Caligastia. Ela se chamava Ratta. Ao conhecer Adamson e sua origem, aceitou casar-se com ele.

"Ratta e Adamson tiveram 77 filhos. Entre sua prole, tal como sucedera com a família Sangik, algo surpreendente aconte­ceu: o filho número quatro era invisível. E o mesmo sucedeu com o oitavo e com o número doze e com o dezesseis.. . E assim, su­cessivamente, a cada quatro.

"Ratta não chegou a compreendê-lo. Mas Adamson, que conhecia a existência dos "medianos" primários dos "cem de Ca­ligastia" e que estava consciente das estruturas fisiológicas sobre-humanas de ambos, considerou que se achavam diante de um fenô­meno similar.

"Quando veio ao mundo a segunda dessas crianças (uma menina e capaz, como o irmão número quatro, de fazer-se invisível à vontade), Adamson resolveu casá-los. Foi a origem da chamada Ordem Secundária dos "medianos" de IURANCHA. Em um sé­culo se reproduziram até atingir a cifra de 1 984.

"Em vida de Adamson esses "medianos" secundários presta­ram igualmente inestimáveis serviços. O primogênito de Adão e Eva morreu aos 396 anos de idade, deixando à sua morte um valioso Corpo de seres que se esforçaram por propagar a Verdade.

"Os descendentes de Adamson e Ratta mantiveram uma alta cultura pelo espaço de mais de 7 000 anos, até serem absorvidos pelos sucessivos acasalamentos com as tribos "noditas" e "andonitas". Seu principal centro localizou-se na região leste do extremo sul do mar Cáspio, perto de Kopet Dagh. A pouca altura, nos contrafortes do atual Turquestão, encontram-se vestígios do que antanho foi o quartel-general de Adamson. Nessas terras altas, ao pé da cadeia montanhosa do Kopet, quatro ramos descendentes do primogênito de Adão mantiveram por muito tempo outras tantas e florescentes civilizações. O segundo desses grupos emigrou para o Oeste, estendendo-se pela Grécia e ilhas do Mediterrâneo. O resto se encaminhou para o Norte e Oeste, penetrando na Europa atual com as raças mistas da última vaga de "andonitas", e participaram igualmente da invasão de parte da Índia com os "andonitas-árianos".

— Que aconteceu com aqueles estranhos "filhos" de Adamson e Ratta?

— Os dezesseis "medianos" secundários procriados pelo pri­mogênito de Adão e Eva (oito mulheres e oito homens) eram capazes de gerar, fosse pela técnica sexual normal, fosse pela união psíquica do casal, outro "mediano" secundário a cada setenta dias. Cada um desses casais deu à luz um total de 248 novos "media­nos". Existem oito subgrupos de criaturas "medianes" secundárias, que são designadas por letras. No caso do primeiro grupo recebem os seguintes nomes: "A-B-G-, o primeiro", "A-B-C-, o segundo", "A-B-O, o terceiro" e assim sucessivamente. Os do segundo grupo se denominam com as seguintes letras: "D-E-F, o primeiro", etc. . .

Sinuhe lembrou-se então da apresentação de Belzebu: "Sou "A-B-C, o primeiro". . ." Isso significava que o chefe dos "me­dianos" rebeldes da Torre de Amon era um dos filhos excepcionais do primogênito de Adão e Eva.

— Após o fracasso do plano dos Filhos Materiais — conti­nuou a voz —, os "medianos" primários leais a Micael voltaram ao serviço da comissão de Melchizedeks. Os secundários, depois da morte de Adamson, elegeram o Manifesto da Liberdade. Só 33 "medianos" secundários permaneceram fiéis às idéias de Adamson e Ratta. E passaram a depender dos novos síndicos planetários.

"Os "medianos" secundários que passaram a engrossar as filei­ras da rebelião em IURANCHA foram contínua fonte de desor­dens, chegando a influenciar, por vezes, as mentes e vontades dos humanos evolucionários inferiores. Mas esses poderes esporádicos (que qualificastes de "diabólicos") acabaram-se com a chegada, a IURANCHA, do Soberano do Universo de Nebadon, Micael, e do Espírito de Verdade...

Sinuhe se recordava das palavras de Belzebu a esse respeito. E, tentando confirmar-lhes a veracidade, insistiu.

— É verdade que, desde Pentecostes, as forças do Mal fica­ram incapacitadas para penetrar ou dominar as inteligências humanas?

— É isso mesmo — sublinhou a voz do arquivo —. E mais: os 40 119 "medianos" primários e os 873 secundários que auxilia­ram a rebelião foram, a partir do triunfo do Cristo Micael, devi­damente encarcerados.

— Então — exclamou Sinuhe — a Torre de Amon.. .

— Uma das prisões estabelecida por ordem dos Mui Altos de Edência, sede da constelação.

— Onde se encontra essa prisão? — insistiu, inquieto, Sinuhe. Mas a voz não respondeu.

— Agora compreendo — declarou Nietihw — por que se disse que Micael, nosso Jesus de Nazaré, livrou definitivamente o homem do risco de ser possuído pelo Diabo.. .

E, no mais profundo de sua alma, a filha da raça azul deu graças a Jesus Cristo. É que começava a intuir a maravilha e a generosidade de sua passagem por IURANCHA.

Pela primeira vez, desde que se iniciara aquele incrível e fascinante diálogo na "câmara couraçada" da fortaleza, a voz dos arquivos de IURANCHA dirigiu-se a Nietihw. Em tom solene anunciou-lhe:

— As maravilhas do Cristo-Micael não terminam aí, Nietihw, filha da raça azul-violácea de Adão e Eva. . .

 

— Os "medianos" rebeldes. O Diabo...

Sinuhe continuava debatendo-se ante uma velha dúvida. Re­solveu externá-la diretamente.

— Quem é então o Diabo?.. . Essas criaturas talvez: os "medianos"?

— Não, Sinuhe — replicou a voz —. A figura do Diabo ou do Demônio, tão espalhada entre os humanos de IURANCHA, é outro mito, cegamente alimentado por muitas igrejas. Nem Lúcifer nem Satã nem Caligastia guardam semelhança alguma com essas grotescas caricaturas humanas. Em que pesem seus erros, são seres de resplendor excelso.

— Dizes que os "medianos" rebeldes foram encarcerados. Que sucedeu com os leais?

— As duas ordens (primárias e secundárias) formam atual­mente um único Corpo de 10 992 criaturas. Os Medianos Unidos de IURANCHA são governados, alternativamente, pelo decano de cada uma das ordens. Ambas as classes, como sabes, são invisíveis aos olhos dos humanos evolucionários, não necessitando de ali­mentação ou absorção alguma de energia para a sua sobrevivência. Quando se acham a serviço dos mortais, podem penetrar no espí­rito do trabalho, do descanso e dos jogos daqueles humanos. Não dormem e não possuem poder de procriação sexual. Na realidade, como sabeis, não são nem homens nem anjos. Mas, em virtude de sua natureza, estão e se sentem mais próximos da humana que da espiritual. Pertencem, de certo modo, às vossas raças, e o sabem. Isso os torna sumamente úteis para infinidade de missões de estudo e conexão com os humanos. Os serafins guardiães dos mortais, por exemplo, recebem extraordinário apoio desses "me­dianos" na hora de velar por vós.

"Já que te interessa, como suponho, citar-te-ei os princi­pais trabalhos encomendados a esses "medianos" leais:

"Os "mensageiros" dispõem de nomes próprios. Formam um grupo reduzido e asseguram as comunicações pessoais de forma rápida e eficaz.

"Os "vigilantes planetários" são os guardiães ou sentinelas do mundo do espaço. Cumprem missões importantes como obser­vadores de numerosos fenômenos de grande transcendência para os seres sobrenaturais do reino. Patrulham o domínio espiritual invisível de IURANCHA.

"Os chamados "personalidades de contato" têm-se dedicado ao estabelecimento de contatos com os humanos mortais.

— Ra! — sussurrou o "iuranchiano", recordando o "amigo" perdido, o disco.

— Com efeito, Sinuhe — acentuou a "pluma de Thot" — e? por último, existe um quarto grupo de "medianos" denominados "ajudantes do progresso". São os mais espiritualizados. Acham-se distribuídos como assistentes das diversas ordens de serafins que atuam em grupos especiais sobre o planeta.

"Apesar dessa classificação, os "medianos" primários, por suas características, são mais unidos aos seres celestes, servindo quase sempre de associados e guias aos visitantes espirituais. Têm mais dificuldade que os secundários para comunicar-se com os humanos evolucionários e, em conseqüência, são eles os respon­sáveis pelas missões que têm como objetivo os mortais do reino. Esses 1111 "medianos" secundários leais a Micael, embora invi­síveis também para os "iuranchianos" mortais, são de natureza corporal diferente da dos primários. Se os comparamos com os procriados pelos "cem de Caligastia", os filhos de Adamson e Ratta são de uma natureza muito mais densa. Essas criaturas têm certo poder sobre as coisas do tempo e do espaço, incluído o reino animal.

"Muitos dos fenômenos físicos atribuídos pelos humanos aos anjos foram (e são) realizados por esses "medianos" secundários.. .

— Fenômenos? — interveio Sinuhe, intrigado. — Que fe­nômenos?

— Quando os primeiros apóstolos do Evangelho de Jesus de Nazaré foram presos pelos ignorantes chefes religiosos da época, um verdadeiro "anjo do Senhor abriu à noite as portas do cárcere e os conduziu para fora". Mas, no caso da libertação de Pedro, ocorrida depois da execução de Tiago por ordem de Herodes, foi um "mediano" secundário quem realizou o trabalho que os huma­nos atribuíram a outro anjo. . .

Sinuhe teve uma súbita idéia:

— São essas criaturas, os "medianos", os responsáveis pelos chamados fenômenos de "espiritismo"?

— Não...

A negativa reboou como um trovão. E, antes que o "iuran­chiano" interviesse, sentenciou:

— Os "medianos", em geral, não permitem que os humanos testemunhem suas atividades físicas nem seus contatos com o mun­do material de IURANCHA. Jamais, em toda a História do pla­neta, quebraram essas normas.

— Em toda a História de IURANCHA, dizes.. . Queres dizer que não morrem?

— São imortais por natureza, e constituem, por direito pró­prio, o primeiro grupo de habitantes permanentes do planeta. Ao contrário do que acontece com as outras criaturas evolucionárias, permanecem ancorados ao seu mundo, até que se alcance a Era da Luz. Embora estejam capacitados para cruzar e navegar pelos circuitos energéticos do universo, nunca abandonam sua esfera nativa. Exceto o "1-2-3, o primeiro", o número um dos "media­nos" primários, nenhum dos "medianos" leais pode partir de IURANCHA. Esse decano dos primários foi liberado de suas obri­gações planetárias pouco depois do Pentecostes e trasladado a Jerusem. Durante as jornadas da rebelião, "1-2-3, o primeiro", man­teve-se firme e fiel junto a Van e Amadon. Hoje é membro do "Conselho dos Vinte e Quatro".

Sinuhe e Nietihw reconsideraram. Se os "medianos", tanto primários como secundários de IURANCHA eram imortais, Bel-zebu lhes teria mentido. . . Não precisava do frasco dos "ibos". Mas por que o teria feito? Que pretenderia?

O "iuranchiano" insistiu sobre a imortalidade dos "medianos".

— Nascem já adultos — esclareceu a voz —. Não necessitam passar pelas habituais fases de crescimento dos mortais do reino. Sua sabedoria e experiência se incrementam com o passar do tem­po. E posso afirmar que entre os de IURANCHA há grandes pen­sadores e espíritos potentes. São, de certo modo, vossos "Irmãos Maiores..."

Convencido de que o chefe dos "medianos" rebeldes encar­cerados na Torre de Amon lhes havia preparado uma nova arma­dilha, Sinuhe guardou silêncio, sentindo como se um áspero nó lhe fechasse a garganta.

Que lhes reservaria ainda o destino, naquela interminável aventura?

 

O membro da Escola da Sabedoria retirou as mãos da esfera flutuante. No mesmo instante os dois diminutos cristais de titânio recuperaram seu movimento de translação em torno do eixo trans­parente. O resplendor azul retrocedeu e a penumbra que reinava na Sala de Thot desapareceu. As lâminas de ourocalcum que co­briam as paredes voltaram a refulgir, derramando na última mas-taba da fortaleza sua luz avermelhada.

Nietihw mirou o companheiro, sem compreender. Por que interrompia seu diálogo com a voz dos arquivos secretos de IURANCHA?

Sinuhe não fez comentário algum. O descobrimento daquilo que ele considerava uma nova traição de Belzebu, o "mediano" secundário, rebelde e chefe dos prisioneiros daquela estranha pri­são, o transtornara. Que sentido tinha conhecer a verdade sobre a rebelião de Lúcifer, se jamais sairiam vivos da Torre de Amon?

O chefe dos rebeldes adiantou-se aos desejos da filha da raça azul. Estendendo seus longos braços segurou com firmeza os pulsos de Sinuhe.

— Lembra-te de que fizemos um pacto — censurou-o Belze­bu —. A nós nos interessa também conhecer o estado atual da rebelião...

O "iuranchiano" esteve a ponto de enfrentar o "mediano". Mas a rápida intervenção da amiga evitou que cometesse um desatino.

— Por Deus, Sinuhe — suplicou-lhe Nietihw —, cumpramos o acordo. Depois. . . depois veremos.

Aquela insinuação infundiu-lhe certo ânimo. Havia uma tra­ma no ar...

Com um lacônico "de acordo", Sinuhe levou novamente as mãos sobre a superfície da esfera. No mesmo instante, como suce­dera a primeira vez, um finíssimo raio de luz partiu do seu tríplice círculo, incidindo em uma das esferas celestes. O par de cristais se imobilizou e as trevas voltaram a cair sobre a câmara.

— Qual a situação atual da rebelião e dos rebeldes? — per­guntou a contragosto.

— Como foste informado — proclamou a voz imediatamente —, tanto Lúcifer como seu lugar-tenente, Satã, circularam livremen­te por todo o sistema de Satânia durante 200 000 anos de IURAN­CHA. Só ao final da efusão de Micael em teu mundo (faz agora 1954 anos), a sorte desses caudilhos rebeldes e de quantos se juntaram ao Manifesto da Liberdade mudou definitivamente.

"Até então, Satã freqüentava regularmente as assembléias dos príncipes planetários em Jerusem, com a pretensão de representar os mundos apóstatas. Mas depois da proclamação de Micael como Soberano indiscutível do universo local de Nebadon, essa autori­zação lhe foi denegada. As simpatias que ainda se tinha em Jerusem por Lúcifer e Satã desapareceram a partir de sua tentativa de corromper Micael durante sua encarnação como humano.

"Esta sétima e última expansão de Micael em IURANCHA, como um mortal a mais do reino, pôs fim à rebelião em todo o sistema de Satânia, com exceção dos 37 mundos que tinham abra­çado a causa de Lúcifer. Este foi o significado das palavras de Micael (vosso Jesus de Nazaré) quando disse: "E vi Satã cair do céu como um raio."

— Lúcifer e Satã tentaram corromper e ganhar Micael para sua causa? — perguntou Sinuhe, novamente absorto com as reve­lações da voz dos arquivos. — Como pôde ser?

— Esse fato faz parte de uma extensa história da vida, em IURANCHA, de Jesus de Nazaré (conhecida pelos humanos como "as tentações do deserto") e que não cabe agora relatar. Basta o que te vou expor. Tanto Lúcifer como seu lugar-tenente suspeitavam de que súbita e misteriosa desaparição de Micael de sua sede habitual em Nebadon tinha de obedecer a uma nova expansão da­quele que fora chamado para ser o Soberano do universo local. Ao ter conhecimento da inesperada chegada a IURANCHA de um mortal de características tão singulares como as de Jesus de Nazaré, apressaram-se a visitar o planeta. Foi a única vez que Lúcifer viajou ao teu mundo...

— Não entendo — replicou o "iuranchiano" — Os chefes da rebelião não sabiam que Jesus era seu Soberano e Criador?

— Não a princípio. A encarnação de Micael na Terra, como nas seis anteriores, deu-se inicialmente em segredo. Poucas perso­nalidades celestes estavam a par. Mas os dois não tardaram a descobrir a tremenda realidade: aquele humano tinha de ser Micael. E Lúcifer e Satã empreenderam a que seria a sua última e deci­siva batalha. Durante algum tempo, lutaram para atrair Jesus para eles; mas o chamado Filho do Homem sabia que seu triunfo em IURANCHA resolveria para sempre a questão dos seus inimigos seculares, não só em Satânia, mas também nos outros dois sistemas que haviam registrado revoltas anteriores. A sobrevivência dos mortais e dos anjos ficou garantida quando vosso Mestre, em resposta às perguntas de Lúcifer, replicou: "Para trás de mim, Lú­cifer!" Este foi o princípio do fim da rebelião.

"Pouco antes de sua morte, Micael reconhecia ainda a Caligastia como, tecnicamente, o príncipe planetário de IURANCHA, quando disse: "Agora será o julgamento deste mundo. Agora o príncipe deste mundo será alijado."

À luz dessas revelações, com efeito, as enigmáticas palavras de Jesus de Nazaré adquiriam, para Nietihw e Sinuhe, novo e lógico sentido.

— O último ato de Micael antes de abandonar vosso planeta foi a oferta de perdão e misericórdia a Caligastia e a seu adjunto, Daligastia. Ambos a recusaram.

"Caligastia — prosseguiu a "pluma de Thot", indo ao en­contro dos pensamentos de Sinuhe — continua livre em IURAN­CHA. É o único que não foi preso. Mas carece de qualquer poder para penetrar no pensamento dos humanos evolucionários. Como também te foi explicado, apesar das enigmáticas assertivas dos ministros de vossas igrejas e da crença popular dos mortais, o Diabo, como tal, não existe. E o poder dos rebeldes foi cerceado a partir de Pentecostes. O mal, a degradação e o caos que reinam em IURANCHA são conseqüência do isolamento do planeta, das bruscas alterações originadas pela rebelião e pelo fracasso de Adão e Eva e, evidentemente, conseqüência das próprias tendências agressivas, primitivas e animalescas dos humanos.

"Nos primeiros tempos da rebelião luciferiana, Micael ofere­ceu igualmente seu perdão a todos os implicados na revolta. Che­gou mesmo a propor-lhes o retorno aos postos de serviço universal, tão logo fosse confirmado como Soberano absoluto de Nebadon. Chefe algum aceitou. No entanto, milhares de anjos pertencentes a ordens inferiores como também centenas de Filhos Materiais, acolheram essa medida de perdão e foram reabilitados no momento da ressurreição de Jesus de Nazaré em IURANCHA.

— Que foi feito de Lúcifer, de Satã e dos demais chefes?

— Quando Micael foi confirmado pelo Pai Universal como Soberano, Lúcifer foi encarcerado por agentes dos Anciãos dos Dias de Uversa, capital do superuniverso de Orvonton, a que per­tence o universo local de Nebadon. Continua prisioneiro no satélite-cárcere número um do grupo de esferas artificiais e de transição que rodeia Jerusem, a capital do sistema de Satânia.

— Prisioneiro! — exclamou Belzebu.

— Paulo, vosso São Paulo, soube da situação dos chefes re­beldes e escreveu: "Um exército espiritual de perversidade nos lugares celestes". Foi, como te digo, no momento em que Micael foi proclamado Soberano Supremo que Ele reclamou junto aos Anciãos dos Dias o direito de deter todas as personalidades que haviam participado da insurreição, enquanto se esperava pelo veredito dos tribunais superuniversais sobre o caso de Gabriel contra Lúcifer.. .

— Por que o "caso de Gabriel contra Lúcifer"?

— Não te olvides que, tecnicamente, Gabriel é o chefe e res­ponsável por todos os soberanos sistêmicos. Foi ele quem denun­ciou Lúcifer. Os Anciãos dos Dias aceitaram a petição de Micael, com uma só exceção: Satã. O lugar-tenente teria permissão para visitar periodicamente os príncipes rebeldes dos 37 mundos impli­cados na revolta, até que fossem devidamente substituídos ou até o início do julgamento por parte dos tribunais de Uversa.

— Satã continuou visitando IURANCHA? — perguntou, intrigado, o membro da Escola da Sabedoria.

— Sim, regularmente. Até a chegada de Micael, o planeta não contava com um Filho residente de linhagem suficiente para enfrentá-lo. A partir da abertura do processo de Gabriel contra Lúcifer e da tomada de posse de Machiventa Melchizedek como príncipe planetário e vice-regente de IURANCHA, Satã foi igual­mente internado nos mundos-cárceres de Jerusem.

— Então — exclamou Sinuhe, recordando a misteriosa men­sagem procedente do astro intruso, "Ra", que o conduzira à filha da raça azul —, o julgamento de Lúcifer chegou...

— A primeira sessão do processo se abriu há cinqüenta anos terrestres...

— Em 1 934! — murmurou o "soror".

— É isso...

— Mas por que deixaram passar tanto tempo? A rebelião eclodiu há 200 000 anos...

— A resposta à tua pergunta figura já em teu coração. Sabes que o tempo de IURANCHA não é o mesmo para todo o sistema. Tempos diferentes para o sistema, para o universo local, para os superuniversos e para Havona. Um dia de Nebadon equivale a 18 dias, 6 horas e 2,5 minutos dos de IURANCHA. E um ano de cem dias em Nebadon significa cinco para o teu mundo. O tempo do superuniverso de Orvonton também é diferente do vosso. Ali, um dia equivale a trinta dias em IURANCHA. E um ano de cem dias, a três mil dias do teu planeta; quer dizer, a uns oito anos e meio terrestres. Quanto ao tempo de Havona, um dia equivale a mil anos bissextos de IURANCHA.

"O que vós, humanos evolucionários, estimais como um longo período de centenas de milhares de anos, para as criaturas resi­dentes no Universo Central de Havona, não representa mais que um curto espaço de dias... Duzentos, aproximadamente, desde que se deu a rebelião.

— Que sorte os aguarda, a Lúcifer e ao resto dos rebeldes?

— Isso será avaliado pelo grande tribunal...

— E se for considerado culpado? — pressionou Sinuhe.

— Nesse caso, a mensagem-raio porá fim às suas existências, aniquilando-os. Ficarão reduzidos ao que nunca foram. E talvez se cumpram as proféticas palavras: "E aqueles que te conheceram entre os mundos te repudiarão. Foste o terror, mas deixarás de existir."

— Poderia haver benevolência ou perdão? A voz silenciou. Mas Sinuhe desafiou:

— Poderia...?

— A crença generalizada em todas as ordens celestes — de­clarou finalmente a voz — é que os rebeldes dignos de misericórdia já a receberam...

— Mas essa bondade e misericórdia divinas, dizem, são in­finitas. . .

— Sim, elas são — confirmou, lacônica, a "pluma de Thot". Duro silêncio caiu sobre a sala. Sinuhe, visivelmente confuso,

balbuciou uma última pergunta sobre aquele assunto desagradável:

— Quando se conhecerá o veredito final?

— Estima-se que não tardará muito para ser anunciado pu­blicamente. Antes, porém, um humano evolucionário de cada um dos 37 planetas afetados deverá assistir ao julgamento.

— Nietihw! — exclamou o "iuranchiano", recordando as revelações do seu Kheri Heb. Ela, como representante em IURAN­CHA da raça azul, deveria culminar a segunda parte da missão, com sua presença no referido processo. Mas quando e como teria lugar essa segunda fase da desconcertante aventura?

Sinuhe, supondo que a voz dos arquivos do planeta não ace­desse em responder-lhe, optou por esquecer o assunto. Uma vez mais, o "soror" se enganava. ..

 

— Lúcifer. . . encarcerado. Satã, o lugar-tenente, igualmente insulado. Mais de 40 000 "medianos" de IURANCHA prisio­neiros.

Sinuhe foi desfiando seus pensamentos em voz alta. E, mo­vido por incompreensível sentimento de piedade por aquele utópico

— quem sabe se blasfemo? — caudilho, perguntou, timidamente:

— Será que ninguém, nesses dezenove séculos, levou sequer uma palavra de consolo a Lúcifer?

Nietihw ficou perplexa ante a inesperada peroração do amigo. Belzebu e os "medianos", por seu lado, tendo escutado as revela­ções em silêncio, olharam o "iuranchiano" com um misto de sim­patia e curiosidade. Que pretendia Sinuhe? Teria perdido o juízo? Como podia ele exprimir piedade por alguém que fora responsável pela maior convulsão registrada no sistema de Satânia e em toda a constelação de Norladiadek?

— Desde Micael — respondeu a "pluma de Thot" secamente

— nenhuma personalidade de Satânia quis visitar os mundos-cárceres. Nem Lúcifer nem Satã receberam ajuda alguma, nem sua causa ganhou um só adepto. Nesses 2 000 anos terrestres, os sete satélites-prisão de Jerusem constituíram uma advertência para todo Nebadon. E se tornou realidade "que o caminho do transgressor é duro e que o salário do pecado é a morte".

— Algo há que também não compreendo — acresceu o jo­vem —. Se os chefes da rebelião foram depostos e encarcerados, por que os 37 mundos implicados continuam submetidos a essa "quarentena" e ao insulamento?

— Essa é a ordem dos Anciãos dos Dias: os circuitos celestes não serão restabelecidos enquanto não se conclua o julgamento de Lúcifer.

— Que conseqüências teve e tem para IURANCHA essa "quarentena"?

— O progresso da civilização em teu mundo não é muito dife­rente do de outros planetas que sofreram o infortúnio da solidão espiritual. Mas, se se compara com os mundos leais a Micael, IURANCHA, com efeito, surge como um lugar confuso e atrasado. Por causa dessa "involução cósmica", os humanos do teu mundo não podem compreender a cultura de outros planetas. E mais: nem sequer conhecem a existência dessas civilizações. O nível biológico de vossas raças encontra-se alterado e sumamente atrasado, e sois vítimas da falta de ideais autênticos. Mas não te confundas, Sinuhe: à primeira vista, IURANCHA é um mundo desgraçado. Certo. Não obstante, o insulamento oferece também vantagens.

— Vantagens? — retrucou Sinuhe com ceticismo.

— A falta de comunicação dessas esferas permite o exercício de uma virtude sem igual: a fé. O desenvolvimento dessa quali­dade, à margem da vista e de qualquer outra consideração mate­rial, fortalece os espíritos dos mortais desses mundos, até limites inimagináveis.

"Posso dizer-te que, em Jerusem, os humanos "ascendentes" de planetas incomunicáveis ocupam um setor residencial particular. Ali são conhecidos pelo nome de "agontonários", que significa "criaturas evolucionárias que podem crer sem ver". São (melhor dito, sois) seres capazes de triunfar nas mais difíceis missões. Em toda a "corrida ascendente" para a Ilha Eterna do Paraíso, o "Agrupamento de Agontonários" distingue-se sempre por sua audácia. São consideradas "forças de choque", capazes de superar dificuldades extremas...

— Entendo e admiro tudo quanto me dizes — rebateu Si­nuhe —, mas não teria sido mais justo e caritativo para esses mi­lhares de milhões de criaturas evolucionárias dos 37 mundos em "quarentena", que as altas hierarquias celestes tivessem feito abortar a rebelião instantaneamente?

— Entre as numerosas razões que figuram neste arquivo, pelas quais Lúcifer e seus rebeldes não foram detidos e julgados imediatamente, estou autorizado a expor-te as seguintes:

"l.a A misericórdia divina exige que todo culpado disponha de algum tempo para que reconsidere seu próprio comportamento.

"2.a A Justiça Suprema é dominada pelo amor do Pai Uni­versal. Por isso, a Justiça nunca destruirá o que a graça pode salvar. E o tempo, aqui, é vital.

"3.a Nenhum pai afetuoso impõe castigo a um filho faltoso. A paciência pode atuar independentemente do tempo.

"4.a A sabedoria e o amor estimulam sempre os filhos íntegros a tolerar o irmão transviado, pelo menos durante o tempo imposto pelo pai para que esse filho desorientado reconheça seu erro.

"5.a Independentemente da atitude de Micael, e apesar de ser o criador e pai de Lúcifer, não competia ao Soberano de Nebadon o direito de exercer justiça sobre o chefe rebelde de Satânia. Seria necessário, primeiro, que Micael concluísse sua carreia de expan­são e se proclamasse Soberano indiscutível.

"6.a Os Anciãos dos Dias poderiam ter fulminado os rebel­des. Mas raramente agem contra um criminoso sem antes examinar sua causa.

"7.a É evidente que Manuel aconselhou Micael a permanecer distante dos rebeldes e permitir que a rebelião prosseguisse em seu curso normal de autodestruição.

"8.a Em Edência, o Fiel dos Dias recomendou aos Pais da constelação que deixassem livres os rebeldes. Dessa forma, foi possível desterrar qualquer possível simpatia pela Manifesto da Liberdade. Cada cidadão (presente e futuro) de Norladiadek teve então a oportunidade de avaliar por si mesmo o alcance e a natu­reza da rebelião, amadurecendo sua decisão final em absoluta liberdade.

"9.a A Divina Ministra de Salvington ordenou que os exérci­tos celestes velassem, precisamente, para que nada nem ninguém se interpusesse na propagação da insurreição. Essa medida con­duziu a rápido desencanto.

"10.a Um comitê de urgência, formado por Poderosos Men­sageiros e mortais glorificados com experiência em rebeliões ante­riores, foi constituído em Jerusem. E preveniu Gabriel: se se fi­zesse abortar a rebelião, o número de seguidores de Lúcifer poderia multiplicar-se por três. Todo o Corpo de Conselheiros de Uversa concordou com essa recomendação, rogando a Gabriel que deixasse correr a revolta, mesmo que depois fossem necessários milhões de anjos para eliminar as conseqüências.

"O total de razões acumuladas nestes arquivos chega a 48. .. Mas supomos que existam muitas mais.

Sinuhe ficou em silêncio. Depois de longa meditação, ponde­rou mais para si:

— Que teria sido deste planeta se Caligastia não tivesse apos­tado na rebelião?

A voz, com a mesma precisão, sentenciou:

— IURANCHA, como outros milhares de milhões de mun­dos evolucionários, seguiria percorrendo, sem traumas nem con­vulsões, as sete eras evolutivas obrigatórias.

— Tem isso alguma relação com á Era da Luz, à que te referiste antes?

— É isso. Se tivessem contado com um príncipe planetário honesto e com uns Filhos Materiais firmes, as raças humanas do teu mundo, como todas as do espaço e do tempo, teriam conheci­do os seguintes estágios:

"A Era da Nutrição: nessas épocas, as criaturas pré-humanas e as raças iniciais de um planeta vivem principalmente para a sua alimentação e sobrevivência física. A busca de comida é o seu horizonte único e básico.

"A Era da Segurança: tão logo os caçadores primitivos dis­ponham de alimentação abundante, todo o seu tempo se destinará a reforçar sua segurança e a do seu clã. Nascem assim novas téc­nicas guerreiras e de construção de vivendas.

"A Era da Comodidade e dos Prazeres: depois de ter resol­vido seus problemas de alimentação e segurança, os homens caem no luxo e na esfera dos prazeres. São épocas que se caracterizam pela tirania em todos os níveis, pela intolerância, gula, embriaguez e o que hoje chamais "consumismo desenfreado".

"A Era da Busca da Sabedoria e do Conhecimento: a alimen­tação, a segurança, o prazer e o ócio são as bases que permitem o desenvolvimento da cultura e da inteligência. O esforço para pôr em prática os conhecimentos desemboca na sabedoria. A obsessão pelo bem-estar material domina ainda essa civilização, mas mui­tos dos seus indivíduos visam já outro horizonte: o do conheci­mento. Em geral, a educação e a cultura são o grande triunfo dessa Era.

"A Era da Filosofia e da Fraternidade: quando os mortais aprendem a pensar por si mesmos e a tirar proveito da experiên­cia, surge a Filosofia. A sociedade então se faz ética e seus homens, morais. E somente esses seres sábios e realmente morais estão capacitados para estabelecer uma autêntica irmandade humana.

"A Era do Esforço Espiritual: quando os mortais evoluem e passam pelos estágios de desenvolvimento físico, intelectual e social, cedo ou tarde alcançam os níveis de clarividência que os leva, irremissivelmente, à busca de satisfações espirituais e à com­preensão das verdades cósmicas. As religiões conseguem elevar-se acima das motivações do medo e da superstição, até à verdadeira sabedoria da experiência pessoal. Os humanos desta Era conhecem, por vez primeira, a plenitude da palavra "Deus".

"A Era da Luz e da Vida: é o florescimento das idades sucessivas da segurança física, da expansão intelectual e espiritual. Os desejos e objetivos humanos se fundem, então, com os de outros seres celestes. É a época final, época em que não existem fronteiras. O intercâmbio com outras civilizações é total. Nesses tempos, os príncipes planetários dos mundos "ancorados na luz" ascendem à posição de soberanos planetários.

Não era preciso ser muito sagaz para deduzir que a Terra — IURANCHA — não superara ainda a terceira dessas eras: a da Segurança. E mais: em algumas regiões do globo, os humanos se debatem ainda na primeira e na segunda. E, embora não seja menos certo que no planeta se "pressinta" uma mudança — um "salto" talvez para essa outra Era da Busca do Conhecimento —, a verdade é que o caminho a percorrer é ainda imenso.

 

Sinuhe e sua companheira compreenderam que tinham che­gado ao final. O arquivo secreto de IURANCHA lhes revelara tudo o que desejavam e precisavam saber: a frustrada história de Caligastia, o príncipe planetário rebelde chegado ao mundo faz agora 500 000 anos; a explosão da revolta luciferiana e a cisão do Estado-Maior corporal; o insólito Manifesto da Liberdade e o caráter relativamente reduzido da insurreição no sistema de Satânia; a chegada, há 37 000 anos, dos Filhos Materiais voluntários — Adão e Eva — e seu não menos frustrado plano de "ascensão biológica" das raças humanas; o segundo Jardim do Éden e a estranha aparição dos "medianos" secundários; a expansão final das raças "noditas" e "adâmicas" e a situação dos rebeldes e da rebelião, depois da encarnação de Micael — Jesus de Nazaré — na Terra.

Antes que a voz do arquivo se calasse para sempre, Sinuhe pediu resposta e conselho para duas últimas questões:

— E agora, depois desse rosário de fracassos, que podem fazer os povos do mundo?... e que devemos nós fazer?

— O destino de IURANCHA vai mudar — retomou a voz, enchendo de otimismo os "iuranchianos" —. Só é necessário espe­rar o final do processo contra Lúcifer. Quando for levantada a "quarentena", a esperança brilhará de novo. A melhora do nível evolutivo dos humanos, falida após a experiência adâmica, será canalizada pelos caminhos, principalmente humanos, da adaptação e do controle...

"Quanto a vós, filhos de IURANCHA, regressai e contai ao mundo quanto haveis vivido e conhecido... Só então, quando esta parte da Verdade tiver sido propagada... só então — insistiu a voz — podereis iniciar a segunda fase da missão: o julgamento de Lúcifer.

— Propagar esta parte da Verdade? Mas como?...

As novas perguntas do membro da Escola da Sabedoria não terminaram de ser enunciadas. Apesar de continuar com as mãos estendidas sobre a esfera flutuante, o feixe luminoso que partia do costado esquerdo de Sinuhe extinguiu-se e o par de esferinhas de titânio se pôs novamente em movimento. E as trevas voltaram.

Nietihw avisou o companheiro que tudo se havia concluído, E, depois de alguns minutos de indecisão, Sinuhe procurou Belzebu.

— Já que tudo está terminado, podemos abandonar a torre? O chefe dos "medianos" tornou a pousar sua pequena e áspera mão sobre o costado do "iuranchiano" acariciando o tríplice cír­culo de Micael.

— Foi esse o pacto, Sinuhe. Apesar de tudo o que ouviste, nós, que escolhemos o Manifesto da Liberdade, continuamos inte­ressados em que os humanos conheçam a Verdade... e julguem por si mesmos. Podeis voltar.

A filha da raça azul ajoelhou-se então ante o silencioso Vana e, depois de abraçar o "mediano", perguntou-lhe:

— Que será de ti, amigo?

Vana dirigiu um olhar para o chefe dos rebeldes. Depois, com voz serena, respondeu:

— O prazo para a misericórdia não se esgotou, filha de IURANCHA... Talvez a presença desta bandeira na Torre de Amon — disse mostrando o símbolo que ostentava no peito — signifique, para todos nós, o retorno à verdadeira Liberdade... Voltaremos a ver-nos, filha da raça azul.

Belzebu levantou o braço esquerdo e, quando os dois "me­dianos" às suas ordens se preparavam para inverter a posição do disco do Yin-Yang, Sinuhe, sem poder resistir à tentação, interpe­lou de novo o chefe dos rebeldes:

— Antes de partir, quisera saber algo...

Belzebu, com o braço ainda no alto, aguardou a pergunta.

— Dize-nos: se és imortal, por que nos enganaste, fazendo-nos crer que precisavas do frasco dos "ibos"?

O "mediano" cerrou o punho e, ao mesmo tempo em que seus servidores, atentos ao sinal, faziam girar o disco que simbo­lizava o Universo, colocando a meia-lua do Yang em posição dominante, replicou com voz vigorosa:

— Não houve tal engano, Sinuhe, filho de IURANCHA! Talvez ao teu retorno, se o destino voltar a cruzar nossos caminhos, conheças esse lado da Verdade...

— Mas...

O "soror" não teve tempo para protestar. Ao mudar de po­sição, o Yang saiu disparado para a cúpula onde se difundia a misteriosa "atmosfera" esmeralda.

E Nietihw, maravilhada, viu como a atravessava facilmente sem quebrá-la, perdendo-se, veloz, em direção a "algo" que se recortava nas alturas: o sol "negro"!

Tudo, a partir de então, se foi sucedendo vertiginosa e mate­maticamente. Melhor dito, tudo não...

De repente, vindo do astro "negro", irrompeu no hexágono um velho conhecido de Sinuhe: o corvo branco que o ajudara na praia e que lhe engolira o anel. Nessa ocasião, o vôo do pássaro foi diferente. Conforme se foi aproximando da cúpula, a cada lento e majestoso adejar, iam as asas deixando atrás de si esteiras colo­ridas. E, ao pousar sobre o solo da Sala de Thot, a filha da raça azul descobriu, fascinada, que o corvo enlaçara aquela última mas-taba da fortaleza e o sol "negro" com um gigantesco arco-íris.

Ato contínuo, o corvo remontou o vôo. Antes, porém, de perfurar a cúpula, abriu o bico e deixou cair alguma coisa dourada e brilhante.

E o anel de Sinuhe tilintou no solo de ourocalcum da sala. Nietihw apressou-se a apanhá-lo e, pegando a mão direita do ami­go, confuso porque não podia compreender o que se estava passan­do, introduziu-lhe o selo no dedo anular. Ao reconhecer o anel, Sinuhe pronunciou, comovido, o nome do pêndulo:

— Ra!

E, deixando-se levar pelo instinto, Nietihw arrastou o amigo até a base do arco-íris.

— Vamos, Sinuhe!. . . Saiamos daqui!

O "iuranchiano" obedeceu. Mas, ao passar junto da coluna que sustinha a esfera com os 606 cristais de titânio, ele se deteve. Antes que os "medianos" pudessem agir, abraçou-se à "pluma de Thot", ao mesmo tempo em que gritava para a filha da raça azul:

— É agora!. . . Fujamos!

Nietihw empurrou violentamente o companheiro para o arco-íris, submergindo com ele na cascata de luz.

Ao penetrar na fantástica "ponte", os "iuranchianos" foram absorvidos para o alto.

E tanto Sinuhe como a descendente da raça azul-violácea per­deram-se no céu esmeralda daquele insólito "mundo". . .

 

O resto desta história talvez carecesse de interesse, não fora por duas — talvez três — circunstâncias não menos surpreen­dentes.

De repente, sem saber como, Nietihw e Sinuhe descobriram que se achavam na praça da Lastra, na recôndita aldeia soriana de Sotillo dei Rincón, caminhando sem pressa em direção à Casa Azul. O Sol, radioso, provocava um brilho doce e discreto no bronze da Diana Caçadora, enquanto a bica continuava a jorrar em silêncio, como se nada tivesse acontecido...

O jovem, tendo a bolsa das câmaras ao ombro, deteve-se um instante junto à fonte. Voltou a cabeça para o bosquezinho e, em seguida, interrogou a companheira, com o olhar. A resposta brotou de seus corações...

Tinham regressado!

José Maria, o prefeito, confortavelmente sentado no jardim da Casa Azul, continuava sorvendo sua fumegante xícara de café. Sinuhe, maravilhado, constatou que seu relógio marcava 13h56. Não mais de cinco minutos haviam transcorrido desde o início da lua nova e daquela aventura fantástica!

Antes que Sinuhe conseguisse pronunciar palavra, a senhora da Casa Azul tomou-lhe a mão direita e, em silêncio, com um sorriso de cumplicidade, mostrou-lhe o anel dourado — com o símbolo dos homens "Pi" — que ainda lhe brilhava no dedo anular...

Pouco depois, o investigador iniciava o relato de tão desconcertante missão, com as seguintes frases:

"... Quanto a vós, filhos de IURANCHA, regressai e contai ao mundo quanto haveis vivido e conhecido... Só então, quando esta parte da Verdade tenha sido propagada... só então" — insistiu a voz — "podereis iniciar a segunda fase da missão: o julgamento de Lúcifer."

E este relato foi terminado em janeiro de 1 985.

 

Nesse mês de janeiro de 1 985 — dia 23, às seis da tarde —, José Maria Gómez Zardoya, alcaide de Sotillo, falecia na citada aldeia de Soria. Fora uma das duas pessoas que ouviram as miste­riosas sessenta e seis badaladas...

 

                                                                                            J. J. Benitez

 

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