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A TORRE NEGRA 5 / Stephen King
A TORRE NEGRA 5 / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TORRE NEGRA

 

Parte V

O CAMPO ESCARLATE DE CAN’- KA NO REY

 

A FERIDA E A PORTA

(ADEUS, MINHA QUERIDA)

Nos últimos dias da longa jornada, depois de Bill — agora só Bill, não mais o Gago Bill — deixá-los no Federal, na fronteira das Terras Brancas, Susannah Dean começou a ter freqüentes acessos de choro. Quando sentia a vinda do aguaceiro se desculpava, dizendo que precisava entrar no mato para fazer suas necessidades. E lá se sentava numa árvore caída ou simplesmente na terra fria, cobria o rosto com as mãos e deixava as lágrimas rolarem. Se Roland sabia que isto estava acontecendo (e certamente devia notar os olhos vermelhos quando ela voltava à estrada), não fez comentários. Susannah achava que Roland sabia o que ela fazia.

O tempo de Susannah no Meio Mundo — e no Fim do Mundo — estava quase no fim.

 

Bill levou-os em seu belo limpa-neve laranja para um galpão Quonset com uma placa desbotada na frente que dizia:

 

POSTO FEDERAL 19

VIGILÂNCIA DA TORRE

PROIBIDO ULTRAPASSAR ESTE PONTO!

 

Ela achou que o Posto Federal 19 continuava tecnicamente nas Terras Brancas de Empática, mas a temperatura fora aumentando consideravelmente à medida que a estrada da Torre descia e a neve no solo se tornara pouco mais que uma película fina. Grupos de árvores salpicavam o terreno à frente, mas Susannah achou que a área logo ia se abrir quase completamente, como as pradarias do Meio-Oeste americano. Havia arbustos que provavelmente dariam pequenas frutas no tempo quente (talvez até uva-de-passarinho), mas agora estavam despidos e estalavam no vento quase constante. A maioria do que viam de ambos os lados da estrada da Torre — que um dia fora pavimentada, mas agora se reduzia a pouco mais que um par de sulcos entrecortados — era relva alta brotando da fina cobertura de neve. Ela sussurrava no vento e Susannah conhecia a música: Commala-venha-venha, a jornada está quase completa.

— Não posso ir mais longe — disse Bill, desligando o motor e interrompendo Little Richard em pleno delírio. — Digo que lamento, como costumam dizer no Arco das Terras de Fronteira.

A viagem tinha levado um dia inteiro e metade de outro. Durante esse tempo ele os divertira com um fluxo constante do que chamava “as velhas canções douradas”. Algumas não eram absolutamente antigas para Susannah; músicas como “Sugar Shack” e “Heat Wave” eram os sucessos do dia no rádio quando ela voltou de suas feriazinhas no Mississippi. Outras jamais ouvira. A música não estava preservada em discos de vinil ou fitas, mas em bonitos discos prateados que Bill chamava “ceidez”. Ele os empurrava por uma fenda no painel repleto de instrumentos do limpa-neve e a música saía de pelo menos oito diferentes alto-falantes. Qualquer música teria lhe soado muito bem, Susannah supôs, mas ficou especialmente envolvida por duas canções que nunca tinha ouvido. Uma era uma pequena peça de rock delirantemente alegre chamada “She Loves You”. A outra, triste e meditativa, era “Hey Jude”. Roland, aliás, parecia conhecer esta última; cantou acompanhando a música, embora a letra que ele conhecia fosse diferente da que saía dos múltiplos alto-falantes do limpa-neve. Quando ela perguntou, Bill disse que o grupo se chamava The Beetles.

— Nome engraçado para uma banda de rock-and-roll — disse Susannah.

Patrick, sentando com Oi no minúsculo banco traseiro do limpa-neve, bateu no ombro dela. Susannah se virou e ele estendeu o bloco que agora não parava de encher. Sob a figura de Roland de perfil, ele havia escrito: BEATLES, não Beetles.

— Um nome engraçado para uma banda de rock-and-roll, não importa como se escreva — disse Susannah, o que lhe deu uma idéia. — Patrick, você tem o toque? — Quando ele franziu a testa e levantou as mãos (não estou entendendo, o gesto dizia), ela reformulou a questão: — É capaz de ler minha mente?

Ele abanou os ombros e sorriu. O gesto dizia não sei, mas ela achou que Patrick sabia. Achou que sabia muito bem.

 

Atingiram o “Federal” por volta do meio-dia e lá Bill lhes serviu uma grande refeição. Patrick devorou a dele e depois se sentou num canto com Oi enroscado em seus pés. Começou a desenhar os que estavam sentados em volta da mesa no lugar que já tinha sido uma grande sala comunitária. As paredes da sala estavam cobertas de monitores de TV — Susannah achava que eram pelo menos trezentos. Deviam ter sido construídos realmente para durar, pois alguns continuavam operando. Uns poucos mostravam os morrotes pouco acidentados que cercavam o galpão, mas a maioria só mostrava uma tela embaçada. Num deles havia uma série de linhas que mexiam que a fizeram sentir um certo mal-estar no estômago quando as observou por mais tempo. As telas embaçadas, disse Bill, já tinham mostrado imagens de satélites em órbita em volta da Terra, mas as câmeras haviam apagado muito tempo atrás. O monitor onde apareciam as linhas que mexiam era mais interessante. Bill disse a eles que, até alguns meses atrás, aquele monitor mostrava a Torre Negra. Então, de repente, a imagem se dissolvera naquelas linhas.

— Acho que o Rei Vermelho não gosta de aparecer na televisão — disse Bill. — Principalmente se desconfiasse que vinham visitas. Não querem outro sanduíche? Há muitos, eu garanto. Não? Sopa, então? O que me diz de você, Patrick? Está magro demais, você sabe... realmente, realmente magro demais.

Patrick virou o bloco e mostrou um desenho de Bill se curvando na frente de Susannah, uma bandeja de sanduíches cuidadosamente preparados numa mão metálica, uma garrafa de chá gelado na outra. Como todos os desenhos de Patrick, aquele superava bastante a mera caricatura, ainda que tivesse sido produzido com gestos de fantástica velocidade. Susannah aplaudiu. Roland sorriu e abanou a cabeça. Patrick riu, mantendo os dentes cerrados para que ninguém pudesse perceber o buraco vazio por trás deles. Então virou a folha e começou um desenho novo.

— Há uma frota de veículos lá atrás — disse Bill — e, embora muitos não andem mais, alguns ainda funcionam. Posso lhes dar um caminhão com tração nas quatro rodas. Não posso garantir que ele ainda rode macio, mas acho que podem depender dele para levá-los à Torre Negra. Ela está apenas a 120 rodas daqui.

Susannah sentiu um grande e agitado sobe e desce no estômago. Cento e vinte rodas correspondia a uns 160 quilômetros, talvez até um pouco menos. Estavam perto. Tão perto que era assustador.

— Não vão querer alcançar a Torre após o anoitecer — disse Bill. — Pelo menos eu não teria essa idéia, considerando o novo residente. Mas o que é mais uma noite de acampamento na margem da estrada para viajantes tão notáveis quanto vocês? Não muito, eu diria! Mesmo passando uma última noite na estrada (e excluindo a possibilidade de enguiçar, que os deuses sabem que é sempre possível), vocês terão sua meta em vista pelo meio da manhã do dia de amanhã.

Roland pensou longa e cuidadosamente no assunto. Susannah teve de dizer a si mesma para respirar fundo enquanto ele fazia isso, porque parte dela não queria respirar.

Não estou pronta, aquela parte pensava. E havia uma parte mais profunda — uma parte que se lembrava de cada nuance do que havia se tornado um sonho recorrente (e em evolução) — que pensava um pouco mais longe: Não é para eu ir, de jeito nenhum. Não até o fim.

Por fim disse Roland:

— Eu lhe agradeço, Bill... todos nós dizemos obrigado, tenho certeza... mas acho que vamos dispensar sua gentil oferta. Se me perguntasse por quê, eu não saberia dizer. Só sei que parte de mim acha que amanhã de dia é cedo demais. Esta parte de mim pensa que devíamos seguir o resto do caminho a pé, exatamente como viajamos até aqui. — Ele inspirou fundo, soltou o ar. — Ainda não estou pronto para chegar lá. Não de todo pronto.

Você também, Susannah se maravilhou. Você também.

— Preciso de um pouco mais de tempo para preparar minha mente e meu coração. Talvez até minha alma. — Pôs a mão no bolso de trás e puxou a fotocópia do poema de Robert Browning que fora deixada para eles no armário do banheiro de Dandelo. — Existe algo escrito aqui sobre a necessidade de recordar os velhos tempos antes de chegar à última batalha... ou à última defesa. Está bem dito. E talvez eu realmente só precise daquilo de que este poema fala... sorver momentos anteriores, mais felizes. Não sei. Mas a não ser que Susannah tenha alguma objeção, acho que vamos a pé.

— Susannah não tem objeções a fazer — disse ela em voz baixa. — Susannah acha que é isso aí mesmo. Susannah só faz objeções a ser arrastada como um tubo de escape rachado.

Roland dispensou-lhe um grato (mesmo que distraído) sorriso — ele parecia ter de alguma forma se afastado dela durante aqueles últimos dias — e se virou de novo para Bill.

— Eu me pergunto se você não teria alguma carrocinha que eu pudesse puxar? Pois teremos de levar pelos menos alguma tralha... e há o Patrick. Ele terá de ser conduzido parte do tempo.

Patrick parecia indignado. Esticou um braço na frente do corpo, fechou o punho e flexionou o músculo. O resultado — um pequeno calombo saltando do bíceps do braço erguido — pareceu envergonhá-lo, pois ele abaixou rapidamente o braço.

Susannah sorriu e estendeu a mão para dar umas palmadinhas no joelho dele.

— Não faça essa cara, docinho. Não foi sua culpa ter ficado só Deus sabe quanto tempo engaiolado como João e Maria na casa da bruxa.

— Estou certo de que tenho uma coisa assim — disse Bill — e uma versão movida a bateria para Susannah. O que não tenho, posso fabricar. Levaria no máximo uma ou duas horas.

Roland estava calculando.

— Se sairmos daqui com cinco horas de luz do dia pela frente, acho que somos capazes de fazer 12 rodas até o anoitecer. A distância que Susannah poderia chamar de 15 ou 16 quilômetros. Outros cinco dias a essa velocidade, um tanto indolente, pode nos levar à Torre que passei a vida inteira buscando. Gostaria de chegar a ela, se possível, por volta de um pôr-do-sol, pois é sempre nessa hora que a tenho visto nos meus sonhos. Susannah?

E a voz interior — aquela voz profunda — murmurou: Quatro noites. Quatro noites para sonhar. Isto devia ser suficiente. Talvez mais do que suficiente. Ka, é claro, teria de intervir. Se tivessem de fato superado seu alcance, isso não iria... não poderia... acontecer. Mas Susannah agora achava que o ka chegava a toda parte, inclusive à Torre Negra. Quem sabe já não era encarnado pela Torre Negra.

— Acho ótimo — ela respondeu a Roland em voz baixa.

— Patrick? — Roland perguntou. — O que você me diz?

Patrick abanou os ombros e sacudiu a mão na direção deles, mal desviando os olhos do bloco. Fosse lá o que eles quisessem, esse gesto dizia tudo. Susannah achava que Patrick pouco compreendia da Torre Negra e menos ainda se importava. E por que se importaria? Estava livre do monstro e estava de barriga cheia. Essas coisas lhe bastavam. Perdera a língua, mas podia desenhar quanto quisesse. Susannah tinha certeza de que, para Patrick, isso representava mais do que uma troca justa. E no entanto... no entanto...

Ele também não está destinado a ir. Nem ele, nem Oi, nem eu. Mas o que, então, vai ser de nós?

Não sabia, mas estava estranhamente despreocupada a esse respeito. Ka diria. O ka e os sonhos dela.

 

Uma hora mais tarde os três humos, o trapalhão e Bill, o robô, estavam agrupados ao redor de uma carreta bastante simples que lembrava uma versão ligeiramente ampliada do Táxi Ho Fat de Luxo. As rodas, altas mas finas, giravam como um sonho. Mesmo carregado, Susannah pensou, seria como puxar uma pena. Pelo menos enquanto Roland estivesse descansado. Puxar o veículo morro acima sem a menor dúvida diminuiria sua energia depois de algum tempo, mas como iam consumir a comida que estavam carregando, o Táxi Ho Fat II ficaria cada vez mais leve... e ela achava que não haveria muitos morros. Tinham chegado às terras abertas, às áreas de pradarias; toda a neve e vertentes cobertas de árvores tinham ficado para trás. Bill a equipara de um veículo elétrico que era mais scooter que carrinho de golfe. Seus dias de ser arrastada por trás (“como um tubo de escape”) estavam encerrados.

— Se me der mais meia hora, posso lixar — disse Bill fazendo correr a mão metálica de três dedos pela beirada onde fora cortada a metade da frente da pequena carreta que era agora o Táxi Ho Fat II.

— Dizemos obrigado, mas não será preciso — disse Roland. — Colocaremos um par de peles sobre a beirada, assim.

Ele está impaciente para partir, Susannah pensou, e após todo este tempo por que não estaria? Eu mesma estou ansiosa para partir.

— Bem, se diz assim, que seja assim — disse Bill, parecendo um tanto desgostoso. — Acho que simplesmente detesto vê-los ir embora. Quando me encontrarei de novo com humos?

Nenhum deles respondeu a isso. Não sabiam.

— Há uma poderosa corneta no telhado — disse Bill, apontando para o Federal. Não sei para que tipo de problema ela devia alertar... vazamentos de radiação, talvez, ou algum tipo de ataque... mas sei que o barulho que faz alcança pelo menos umas cem rodas. Até mais, se o vento estiver soprando na direção certa. Se eu vir o sujeito que vocês acham que está atrás de vocês ou se algum sensor de movimento que ainda funcione o captar, disparo o alarme. Talvez escutem.

— Obrigado — disse Roland.

— Se fossem motorizados, passariam facilmente a perna nele — Bill lembrou. — Alcançariam a Torre e nem chegariam a encontrá-lo.

— De fato é verdade — disse Roland, mas sem revelar o menor indício de estar disposto a alterar sua decisão e Susannah gostou daquilo.

— O que vai fazer contra aquele a quem se refere como o Pai Vermelho dele, se ele realmente tiver o comando do Can’-Ka No Rey?

Roland balançou a cabeça, embora já tivesse discutido esta possibilidade com Susannah. Achava que talvez conseguissem dar a volta na Torre de uma certa distância e depois chegar até sua base vindo de uma direção que não pudesse ser vista da sacada onde o Rei Rubro estava encurralado. Então poderiam forçar caminho pela porta abaixo dele. Não saberiam, é claro, se isso era possível antes de realmente ver a Torre e o jeito do terreno.

— Bem, haverá água se Deus quiser — disse o robô antes conhecido como Gago Bill —, como falava o Povo Antigo. E talvez eu os veja de novo, se não em outro lugar, pelo menos na clareira no final do caminho. Se os robôs tiverem permissão para entrar lá. Espero que tenham, pois há muitos robôs conhecidos meus que eu gostaria de rever.

Pareceu tão desamparado que Susannah se aproximou e, sem pensar no absurdo de querer abraçar um robô, ergueu os braços para ser levantada. Ele a levantou e ela o abraçou... um abraço aliás bem forte. Bill compensava pelo maldoso Andy em Calla Bryn Sturgis e nem que fosse por isso valia a pena abraçá-lo. Quando os braços do robô fecharam-se ao seu redor, ocorreu a Susannah que Bill poderia quebrá-la em duas partes com aqueles braços de aço e titânio. Mas ele não fez isso. Foi delicado.

— Longos dias e belas noites, Bill — disse ela. — Que você passe muito bem, são os votos de todos nós.

— Obrigado, madame — disse ele colocando-a no chão. — Eu digo obra-gado, ubra-gado, ulbra... — Uiiiff! Bateu na cabeça, produzindo um forte barulho metálico. — Eu digo obrigado a vocês. — Fez uma pausa. — Consertei mesmo a gagueira, é verdade, mas tentem compreender, eu não sou inteiramente sem emoções.

 

Patrick surpreendeu os dois andando por quase quatro horas ao lado do scooter elétrico de Susannah antes de se cansar e subir no Táxi Ho Fat II. Ficaram atentos ao alarme avisando que Bill avistara Mordred (ou que os instrumentos no Federal o haviam detectado), mas não ouviram nada... e o vento estava soprando para o lado certo. Ao pôr-do-sol, tinham acabado de atravessar o último trecho de neve. A terra continuava a se nivelar, atirando suas sombras bem para a frente.

Quando finalmente pararam para passar a noite, Roland reuniu bastante lenha para uma fogueira e Patrick, que tinha cochilado, acordou bem a tempo de fazer uma enorme refeição com salsicha tipo Viena e feijão com açúcar (vendo o feijão desaparecer na boca sem língua de Patrick, Susannah se lembrou de que, antes de pousar a cabeça cansada para dormir, teria de esticar suas peles acima do garoto). Susannah e Oi também comeram com vontade, mas Roland mal tocou na comida.

Quando o jantar acabou, Patrick pegou o bloco para desenhar, franziu a testa olhando para o lápis e estendeu a mão para Susannah. Ela sabia o que ele queria e tirou um frasco de conservas da pequena bolsa de coisas pessoais que levava pendurada no ombro. Ela a guardara com cuidado porque lá dentro estava o apontador de lápis, que era o único que havia, e ela tinha medo que Patrick o perdesse. Naturalmente Roland podia afiar os Eberhard-Fabers com a faca, mas isso não deixaria de alterar a qualidade das pontas. Inclinou o frasco, derramando borrachas, clipes de papel e o objeto procurado na palma da mão. Depois o entregou a Patrick, que afiou o lápis com algumas rápidas torções, devolveu o apontador e mergulhou de imediato no trabalho. Por um momento Susannah contemplou as borrachas rosadas e tornou a se perguntar por que Dandelo se preocupara em cortá-las. Um meio de implicar com o rapaz? Se assim fosse, a coisa não tinha funcionado. Talvez um dia, quando estivesse mais velho (quando o pequeno mas inegavelmente brilhante mundo retratado por seu talento tivesse seguido adiante) e as sublimes conexões entre seu cérebro e dedos tivessem enferrujado um pouco, ele precisasse recorrer às borrachas. Por ora mesmo seus erros continuavam a ser inspirações.

Não desenhou por muito tempo. Quando Susannah o viu de cabeça oscilando no clarão alaranjado do sol poente, tirou o bloco de seus dedos cordatos, recostou-o na traseira da carreta (nivelada graças a um conveniente pedregulho que brotava do chão e servia de apoio para a ponta da frente), cobriu-o com peles e beijou seu rosto.

Sonolentamente, Patrick estendeu a mão e tocou a ferida no rosto de Susannah. Ela estremeceu, mas permaneceu firme ante o toque suave. A ferida tinha adquirido de novo uma casca, mas latejava dolorosamente. Um simples sorriso já lhe doía. A mão recuou e Patrick dormiu.

As estrelas tinham aparecido. Roland as contemplava com um ar fascinado.

— O que você vê? — ela perguntou.

— O que você vê? — ele perguntou em retorno.

Susannah ergueu a cabeça para a brilhante paisagem celestial.

— Bem — disse ela —, o Velho Astro e a Velha Mãe, mas eles parecem ter se movido para oeste. E aquilo... ó, meu Deus! — Pôs as mãos na barba por fazer de Roland (ele nunca parecia ficar com uma verdadeira barba, só com uma escovinha eriçada) e o fez virar a cabeça. — Isso não estava no céu quando saímos do mar Ocidental, eu sei que não. Aquele está em nosso mundo, Roland... a chamamos de Ursa Maior!

Ele abanou a cabeça.

— E antigamente, segundo os mais velhos livros da biblioteca de meu pai, ela também estava no céu de meu mundo — disse Roland. — Era chamada de Concha de Lídia. Agora está aí de novo. — Sorrindo, ele se virou para Susannah. — Outro sinal de vida e renovação. Como o Rei Rubro deve odiar erguer os olhos do canto onde está encurralado e vê-la de novo navegando pelo céu!

 

Não muito tempo depois, Susannah dormiu. E sonhou.

 

Ela está de novo no Central Park, sob um brilhante céu cinzento de onde os primeiros e poucos flocos de neve vêm mais uma vez flutuando; perto dela, cantores natalinos entoam não “Noite Feliz” ou “O Menino Nasceu” mas a Canção do Arroz: “Arroz seja verde-ô, Ver o que vemos-ô, Visto-ô que é verde-ô, Venha-venha-commala!” Ela tira o chapéu com medo de que alguma coisa tenha nele se alterado, mas o chapéu continua dizendo FELIZ NATAL! e

(nada de duplos aqui)

ela está confortada.

Olha para o lado e lá estão Eddie e Jake, sorrindo. Não têm nada na cabeça; o chapéu dos dois está com ela. Ela combinou os chapéus num só.

Eddie está usando uma camisa de moleton que diz: EU BEBO NOZZ-A-LA!

Jake está usando uma que diz: EU GUIO O TAKURO SPIRIT!

Nada disto é exatamente novo. Mas o que vê atrás deles, perto de um caminho que leva à Quinta Avenida, com toda certeza é. É uma porta com cerca de 2 metros de altura, que parece feita de pau-ferro sólido. A maçaneta é de ouro puro, filigranada com uma forma que a dama pistoleira finalmente reconhece: dois lápis cruzados. Do tipo Eberhard-Faber nº 2, ela não tem dúvida. E as borrachas foram cortadas.

Eddie estende uma xícara de chocolate quente. É do tipo perfeito, com chantilly em cima, e um pequeno salpico de noz-moscada sobre o creme.

— Aqui — ele diz —, trouxe chocolate quente.

Ela ignora a xícara oferecida. Está fascinada pela porta.

— É como aquelas pela praia, não é? — pergunta.

— Sim — diz Eddie.

— Não — diz Jake ao mesmo tempo.

— Você vai descobrir — eles dizem juntos e, deliciados, sorriem um para o outro.

Ela passa pelos dois. Nas portas por onde Roland os puxara havia as inscrições O PRISIONEIRO, A DAMA DAS SOMBRAS e O EMPURRADOR. A E embaixo:

O ARTISTA

 

Ela se vira para eles e os dois sumiram.

O Central Park sumiu.

O que vê são os escombros de Lud, seus olhos encaram as terras devastadas.

Numa brisa fria e cortante ouve seis palavras sussurradas:

— O tempo está quase esgotado... depressa...

 

Ela acordou numa espécie de pânico, pensando: Tenho de deixá-lo... e é melhor eu fazer isso antes mesmo de ver sua Torre Negra no horizonte. Mas para onde vou? E como posso deixá-lo sozinho para enfrentar tanto Mordred quanto o Rei Rubro apenas com Patrick para ajudar?

Esta idéia a fez refletir sobre uma amarga certeza: na hora H, Oi seria quase certamente mais valioso para Roland do que Patrick. O trapalhão tinha dado mostras de sua fibra em mais de uma ocasião e sem dúvida mereceria o título de pistoleiro se tivesse um revólver para levar e mão para tirá-lo da cinta. Patrick, no entanto... Patrick era um... bem, um artilheiro do lápis. Mais veloz no manejo que labaredas azuis, mas seria difícil matar alguma coisa com um Eberhard-Faber, a não ser que ele estivesse muito afiado.

Ela havia se sentado. Roland, encostado na parte de trás de seu pequeno carrinho motorizado e de vigia, não tinha reparado. E ela não queria que reparasse. Aquilo provocaria perguntas. Susannah tornou a se deitar, puxando as peles em volta do corpo e pensando na primeira caçada que tinham feito. Lembrava-se de como o cervo novo tinha mudado de direção e corrido direto para ela e como o decapitara com o Oriza. Lembrava-se do som de assobio no ar friorento, produzido quando o vento soprou através do pequeno orifício no fundo do prato, um orifício tão parecido com o apontador de Patrick. Achava que sua mente estava tentando estabelecer algum tipo de vínculo, mas sentia-se cansada demais para descobrir o que poderia ser. Além disso talvez estivesse fazendo esforço demais. Se assim fosse, que providência poderia tomar?

Havia pelo menos uma coisa que de fato sabia devido ao tempo passado em Calla Bryn Sturgis. Os símbolos gravados na porta queriam dizer NÃO-ENCONTRADA.

O tempo está quase esgotado. Depressa.

No dia seguinte suas lágrimas começaram.

 

Ainda havia muitas moitas atrás das quais podia se esconder para fazer suas necessidades (e chorar suas lágrimas, quando não conseguisse mais contê-las), mas o terreno continuava a se aplainar e a se abrir. Por volta do meio-dia do segundo dia na estrada, Susannah viu o que, a princípio, achou que fosse a sombra de uma nuvem movendo-se através do ferreiro bem lá na frente, só que o céu era puro azul de um horizonte a outro. Então a grande mancha negra começou a dar guinadas de um modo muito inadequado para uma nuvem. Ela prendeu a respiração e fez seu pequeno carrinho elétrico parar.

— Roland! — chamou. — Lá embaixo há uma manada de búfalos ou talvez de mamutes! Tão certo quanto vamos morrer um dia!

— Bem, acha mesmo? — Roland perguntou sem revelar sequer um interesse passageiro. — Muito tempo atrás nós os chamávamos bisões. É um rebanho de bom tamanho.

Patrick estava em pé do Táxi Ho Fat II, desenhando febrilmente. Ele mudou a posição do lápis que usava, agora apoiando a haste amarela na palma da mão e sombreando o desenho com a ponta. Susannah quase pôde sentir a poeira se levantando da manada que ele sombreava com o lápis. Patrick parecia ter tomado a liberdade de mudar a manada para 10 ou 15 quilômetros mais perto, ou talvez sua visão fosse muito mais aguçada que a dela. Isso, ela supôs, era inteiramente possível. De qualquer modo, os olhos de Susannah tinham se adaptado e já podia vê-los melhor. As grandes cabeças peludas. Até mesmo os olhos negros.

— Há quase cem anos não se vêem mais manadas de búfalos deste tamanho na América — disse ela.

— É? — Ainda só um interesse gentil. — Mas eu diria que estão em grande quantidade aqui. Se um pequeno tet deles entrar no alcance de um tiro de pistola, vamos pegar alguns. Eu gostaria de saborear alguma carne fresca que não fosse de cervo. Você não?

Susannah deixou o sorriso responder por ela. Roland também sorriu. E ocorreu de novo a Susannah que logo não veria mais aquele homem que ela acreditara ser uma miragem ou um demônio antes de passar a conhecê-lo como an-tet e dan-dinh. Eddie estava morto, Jake estava morto e em breve não veria mais Roland de Gilead. Será que ele também ia morrer? E ela?

Ergueu os olhos para o clarão do sol, querendo que ele errasse o motivo de suas lágrimas se as visse. E seguiram para o sudeste daquela imensa terra vazia, para o cada vez mais forte bate-bate-batimento que era a Torre no eixo de todos os mundos e do próprio tempo.

Bate-bate-batimento.

Commala-venha-venha, a jornada está quase completa.

Naquela noite ela fez a primeira vigília, depois acordou Roland à meia-noite.

— Acho que ele está em algum lugar lá fora — disse Susannah, apontando para noroeste. Não havia necessidade de ser mais específica; só podia tratar-se de Mordred. Não havia mais ninguém. — Fique de olho.

— Vou ficar — disse ele. — E se ouvir um tiro, acorde. E rápido.

— Pode contar com isso — disse ela, estendendo-se na relva seca de inverno atrás do Táxi Ho Fat II. A princípio não teve certeza se seria capaz de dormir; continuava elétrica com a sensação de uma presença inimiga nas proximidades. Mas conseguiu dormir.

E sonhou.

 

O sonho da segunda noite é ao mesmo tempo parecido e diferente do sonho da primeira. Os elementos principais são exatamente os mesmos: o Central Park, o céu cinzento, borrifos de neve, vozes em coro (desta vez fazendo harmonias em “Come Go With Me”, o velho sucesso dos Del-Vikings), Jake (EU GUIO O TAKURO SPIRIT!) e Eddie (agora usando um casaco de moletom dizendo CLIQUE! É UMA CÂMERA SHINNARO!). Eddie tem chocolate quente, mas não oferece. Ela pode ver a ansiedade não apenas nos rostos, mas na tensa postura dos corpos. E a principal diferença neste sonho: existe algo a ser visto ou algo afazer, talvez ambos. Fosse lá o que fosse, esperavam que ela já o visse ou fizesse até agora e ela está sendo devagar.

Uma questão um tanto terrível ocorre a Susannah: está sendo deli-beradamente devagar? Há alguma coisa ali que não quer confrontar? Pode até ser possível que a Torre Negra esteja complicando a porra das comunicações? Certamente é uma idéia burra — afinal as pessoas que vê não passam de criações de sua imaginação ansiosa; estão mortas/ Eddie morto por uma bala, Jake como resultado de atropelamento — um morto naquele mundo, outro no Mundo-chave onde graça é graça, feito é feito (tem de ser feito, pois lá o tempo corre sempre na mesma direção) e Stephen King é seu poeta laureado.

Mas não pode negar aquele olhar em seus rostos, aquele olhar de pânico que parece dizer: Você tem a coisa, Suze... Tem o que queremos lhe mostrar, tem o que precisa saber. Vai deixar escapar? E o quarto tempo e o relógio está batendo, vai continuar a bater, tem de continuar a bater porque você não pode mais pedir tempo.Vocês precisam andar depressa... depressa...

 

Acordou de repente, numa arfada. Já era quase dia. Passou a mão na testa e ela ficou molhada de suor.

O que você quer que eu saiba, Eddie? O que você sabe que eu também devia saber?

A esta pergunta não houve resposta. Como poderia haver? Mistah Dean, ele tá morto, ela pensou e se recostou. Ficou assim por mais uma hora, mas não conseguiu dormir de novo.

 

Como o Táxi Ho Fat I, o Táxi Ho Fat II estava equipado com alças. E ao contrário das que havia no Táxi I, agora eram alças ajustáveis. Quando Patrick sentia vontade de caminhar, as alças podiam ser separadas para que ele pudesse puxar uma e Roland a outra. Quando Patrick sentia vontade de viajar no carro, Roland tornava a juntar as alças para que pudesse puxá-las sozinho.

Pararam ao meio-dia para uma refeição. Quando acabaram, Patrick entrou nos fundos do Táxi Ho Fat II para tirar uma soneca. Roland esperou até ouvir o garoto (pois assim continuavam a pensar em Patrick, não importa qual fosse a idade dele) roncando, depois se virou para Susannah.

— O que está te afligindo, Susannah? Gostaria que me contasse. Gostaria que me contasse dan-dinh, embora não haja mais um tet nem eu seja mais o teu dinh. — Ele sorriu. A tristeza naquele sorriso partiu o coração de Susannah, que não conseguiu mais reter as lágrimas. Nem a verdade.

— Se eu ainda estiver com você quando virmos sua Torre, Roland, é que as coisas deram muito errado.

— Como errado? — ele perguntou.

Ela balançou a cabeça, começando a chorar ainda mais.

— Devia haver uma porta. Seria a Porta Não-Encontrada. Mas não sei como achá-la! Eddie e Jake me visitam em sonhos e me dizem que eu sei... me dizem com os olhos... mas não sei! Juro que não sei!

Ele a pegou nos braços, apertou-a e beijou o lado de sua testa. No canto da boca, a ferida latejava e ardia. Não estava sangrando, mas tinha começado de novo a crescer.

— O que tiver de ser será — disse o pistoleiro como a mãe um dia lhe dissera. — O que tiver de ser será e fique quieta, deixe o ka fazer seu trabalho.

— Você disse que o tínhamos deixado para trás.

Ele a balançava nos braços, balançava, e isso era bom. Era tranqüilizador.

— Eu estava errado — disse ele. — Como tu sabes.

 

Era a vez dela ficar de vigia no início da terceira noite e, quando estava olhando para trás, para o noroeste ao longo da estrada da Torre, uma mão agarrou seu ombro. O terror lhe saltou na mente como um boneco de molas e Susannah girou

(está atrás de mim ó meu Deus Mordred está me pegando por trás e ele é a aranha!)

aproximando a mão do revólver na cintura e o puxando de lá.

Patrick recuou, o rosto comprido de terror, as mãos erguidas na frente do corpo. Se gritasse teria certamente acordado Roland e então tudo podia ter sido diferente. Mas estava assustado demais para gritar. Produziu um som abafado na garganta e mais nada.

Ela pôs o revólver no coldre, mostrou as mãos vazias, depois puxou o rapaz e lhe deu um abraço. A princípio ele ficou rijo contra ela (ainda com medo), mas pouco depois relaxou.

— O que é, querido? — ela perguntou, sotto voce. E então, usando sem perceber a frase de Roland: — O que está te afligindo?

Ele se afastou de Susannah e apontou direto para o norte. Por um momento ela não compreendeu, mas então viu as luzes alaranjadas dançando e cintilando. Julgou que estariam a quase 10 quilômetros de distancia e achou fantástico que não as tivesse visto antes.

Falando baixo, para não acordar Roland, ela disse:

— São só luzes de bobeira, docinho... Não vão te fazer mal. Roland as chama de duendes. São como o fogo-de-santelmo ou coisa parecida.

Mas Patrick não fazia a menor idéia do que era o Fogo de Santelmo; ela pôde ver isso no olhar de dúvida. Fez o que pôde, ao dizer-lhe que os duendes não podiam machucá-lo, e na verdade nunca haviam chegado assim tão perto. Quando ela tornou a olhar, as luzes começaram a se afastar e logo a maioria delas havia sumido. Talvez Susannah os tenha feito partir pelo pensamento dela. Antigamente, Susannah teria zombado de uma idéia dessas, mas agora não.

Patrick começou a relaxar.

— Por que não dorme mais um pouco, querido? Precisa de um descanso. — E ela também precisava, mas estava com medo. Logo acordaria Roland, poderia dormir e o sonho viria. Os fantasmas de Jake e Eddie olhariam para ela, mais frenéticos que nunca. Querendo que soubesse de algo que não sabia, não podia saber.

Patrick balançou a cabeça numa negativa.

— O sono não vem? — Susannah perguntou.

Ele tornou a balançar a cabeça.

— Bem, então por que não desenha um pouco? — Desenhar sempre o relaxava.

Patrick sorriu, assentiu com um novo movimento da cabeça e foi de imediato pegar o bloco atual no Ho Fat. Caminhava com grandes e exageradas passadas sorrateiras, tomando cuidado para não acordar Roland. Isto a fez sorrir. Patrick estava sempre disposto a desenhar; ela achava que uma das coisas que o mantivera vivo no porão do casebre de Dandelo fora saber que, de vez em quando, o velho fodido fedorento lhe daria um bloco e um lápis. Era tão dependente daquilo quanto Eddie nos seus piores momentos de vício, ela ponderou, só que a droga de Patrick eram finos riscos de grafite.

Ele se sentou e começou a desenhar. Susannah retomou sua vigília, mas logo sentiu um estranho formigamento por todo o corpo, como se ela fosse quem estava sendo vigiada. Tornou a pensar em Mordred e sorriu (o que doía; com a ferida inchando de novo, sorrir agora sempre doía). Não era Mordred; era Patrick. Patrick estava de olho nela.

Patrick a estava desenhando.

Susannah ficou parada por quase vinte minutos e então a curiosidade tomou conta dela. Para Patrick, vinte minutos era tempo suficiente para pintar a Mona Lisa e talvez boa parte de um fundo com a Basílica de São Paulo. Aquela sensação de formigamento era tão estranha, não parecendo absolutamente uma coisa mental, mas algo físico.

Ela se aproximou de Patrick, mas a princípio ele manteve o bloco contra o peito com uma timidez que não lhe era comum. Mas ele queria que Susannah visse; isso estava estampado em seus olhos. Era quase um olhar amoroso, embora ela achasse que era pela Susannah do desenho que Patrick se apaixonara.

— Vamos lá, torrão de açúcar — disse ela pondo a mão no bloco. Mas não o puxaria, nem mesmo se Patrick quisesse. Ele era o artista; cabia inteiramente a ele a decisão de mostrar ou não sua obra. — Posso ver?

Ele conservou mais um momento o bloco contra o corpo. Então (cautelosamente, sem olhar para ela) estendeu o bloco. Ela o pegou e baixou os olhos para sua figura. Por um instante mal pôde respirar, tão bom era o desenho. Os olhos grandes. As bochechas altas, que o pai tinha chamado “jóias da Etiópia”. Os lábios cheios, que Eddie tanto gostava de beijar. Era ela, era ela viva... mas era também mais que ela. Susannah nunca teria imaginado que o amor pudesse brilhar com tão perfeita limpidez a partir dos riscos traçados por um lápis, mas ali estava esse amor, oh, digam a verdade, digam toda a verdade, amor do garoto pela mulher que o salvara, que o tirara do buraco escuro onde, de outro modo, ele certamente teria morrido. Amor por ela como mãe, amor por ela como mulher.

— Patrick, é maravilhoso! — disse Susannah.

Ele a olhou com ar ansioso. Com ar de dúvida. Sério?, seus olhos perguntavam; e Susannah percebia que só ele — o pobre Patrick, internamente tão carente, que sempre convivera com aquela aptidão e por isso a encarava com tanta naturalidade — podia duvidar da beleza simples do que tinha feito. Desenhar o fazia feliz; isto ele sempre soubera. Que as figuras pudessem fazer outros felizes... Com essa idéia ele levaria algum tempo para se acostumar. Susannah tornava a se perguntar por quanto tempo Dandelo o mantivera prisioneiro e, antes de mais nada, queria saber como aquela coisa velha e maligna chegara a Patrick. Desconfiava que jamais ia saber. Bem, por ora parecia muito importante convencer Patrick de seu próprio valor.

— Sim — disse ela. — Sim, é maravilhoso! Você é um ótimo artista, Patrick. Contemplar isto faz com que eu me sinta muito bem!

Desta vez ele esqueceu de manter os dentes cerrados. E aquele sorriso, sem língua ou não, foi tão incrível que ela teve vontade de ingeri-lo. Fez seus medos e ansiedades parecerem pequenos e tolos.

— Posso ficar com ele?

Patrick concordou com um ávido movimento de cabeça. Começou a puxar a folha com uma das mãos e apontou para ela. Sim! Rasgue a folha! Pegue! Fique com ele!

Ela começou a puxar a folha, mas parou. O amor (e o lápis) de Patrick tinham-na feito bonita. A única coisa a estragar aquela beleza era a mancha negra ao lado da boca. Susannah virou o desenho para ele, apontou para a ferida desenhada e tocou-a no próprio rosto. Estremeceu. Mesmo o toque mais leve doía.

— Esta é a única coisa terrível — disse.

Ele abanou os ombros, erguendo as mãos abertas na altura dos ombros e Susannah teve de rir. Riu baixo para não acordar Roland, mas sim, teve realmente de rir. Uma fala de um filme antigo lhe viera à memória: Pinto o que vejo.

Só que aquilo não era pintura e de repente lhe ocorreu que Patrick podia cuidar daquela coisa podre, feia, dolorosa. Pelo menos como ela existia no papel.

Então a mulher do papel será minha gêmea, ela pensou afetuosamente. Minha melhor metade; minha bela irmã gê...

E de repente compreendeu...

Tudo? Compreendeu tudo?

Sim, ela pensaria muito mais tarde. Não de um modo coerente que pudesse ser anotado como: se a + b = c, logo c - b = a e c - a = b, mas sim, compreendeu tudo. Intuiu tudo. Não era de admirar que o Eddie-sonho e o Jake-sonho tivessem se mostrado impacientes com ela; era tão evidente.

Patrick a desenhara.

Nem era a primeira vez que a escolhiam como tema.

Roland a escolhera para entrar no seu mundo... e a trouxera com mágica.

Eddie a escolhera para amá-lo.

Assim como Jake.

Meu Deus, será que pudera andar tanto tempo, atravessar tanta coisa sem saber o que era o ka-tet, o que ele significava? O ka-tet era família.

O ka-tet era amor.

Desenhar é conquistar uma imagem com um lápis ou talvez a carvão.

Conquistar é também fascinar, puxar e trazer para dentro de si. Fazer alguém sair de si mesmo.

Trazer tinha tudo a ver com a Detta.

Patrick, aquele genial garoto sem língua, confinado na terra selvagem. Confinado. E agora? Agora?

Agora ele é minha coisa especial, pensava Susannah/Odetta/Detta, pondo a mão no bolso para pegar o frasco de vidro, sabendo exatamente o que ia fazer e por que ia fazer aquilo.

Quando devolveu o bloco sem rasgar a folha onde agora havia sua imagem, Patrick pareceu muito desapontado.

— Naum, naum — disse ela (com a voz de muitas). — Mas uma coisa que eu gostaria que você fizesse antes que eu guarde o desenho. Que é tão belo, tão precioso, tão definitivo, tão capaz de me dizer como eu era neste onde, neste quando!

Estendeu um dos pedaços rosados de borracha, compreendendo agora por que Dandelo os cortara. Pois tivera suas razões.

Patrick pegou o que Susannah lhe oferecia e revirou a coisa entre os dedos, testa franzida, como se jamais tivesse visto aquilo. Susannah estava certa que tinha, mas há quantos anos? Até que ponto chegara perto de desfazer-se de seu torturador, de uma vez por todas? E por que Dandelo simplesmente não o matara naquele momento?

Porque assim que tirou as borrachas, achou que estava seguro, Susannah pensou.

Patrick olhava para ela, confuso. Começava a ficar transtornado.

Susannah sentou-se ao lado dele e apontou para a mancha no desenho. Depois colocou delicadamente os dedos ao redor do punho de Patrick e dirigiu-o para o papel. A princípio ele resistiu, depois deixou que sua mão, com o pedaço de borracha rosada, fosse empurrada para a frente.

Ela pensou na sombra sobre a terra que não fora absolutamente uma sombra, mas uma manada de grandes animais peludos que Roland chamava de bisões. Imaginou como fora capaz de cheirar a poeira quando Patrick começou a desenhar a poeira. E se lembrou como, depois de Patrick desenhar a manada mais perto do que ela de fato estava (licença artística e vamos dar graças por isso), os animais realmente pareceram estar mais perto. Ela se lembrava de ter julgado que os olhos tinham demorado a se adaptar e agora achava espantosa sua burrice. Como se os olhos pudessem se adaptar à distância do modo como poderiam se adaptar ao escuro.

Não, Patrick os movera para mais perto. Os movera para mais perto por desenhá-los mais perto!

Quando a mão de Patrick, segurando a borracha, estava quase tocando o papel, Susannah afastou a mão dela — teria de ser tudo obra de Patrick, por alguma razão tinha certeza disso. Susannah só mexeu os dedos de um lado para o outro, indicando o que queria. Ele não entendeu. Ela fez de novo o movimento de apagar e depois apontou para a ferida ao lado do lábio inferior e cheio.

— Faça desaparecer, Patrick — disse ela, surpresa pela determinação em sua própria voz. — É feio, faça desaparecer. — Fez de novo o gesto de quem apagava no ar. — Passe a borracha.

Desta vez ele entendeu. Susannah viu o brilho em seus olhos. Patrick ergueu o pedaço de coisa rosada para ela. Perfeitamente rosada — nem um traço de grafite. Ele encarou Susannah, sobrancelhas erguidas, como se perguntando se ela tinha certeza.

Susannah balançou afirmativamente a cabeça.

Patrick levou a borracha à ferida e começou a esfregá-la, a princípio de modo hesitante. Então, quando viu o que estava acontecendo, trabalhou com mais disposição.

 

Ela experimentou a mesma estranha sensação de formigamento. Enquanto ele desenhava, a sensação a envolveu de cima a baixo. Agora parecia localizada num único ponto, do lado direito da boca. Quando Patrick pegou o jeito da borracha e começou realmente a manejá-la, o formigamento se transformou em profunda e tremenda coceira. Ela teve de enfiar as mãos com força na terra, de ambos os lados do corpo, para não erguê-las até o rosto e colocar as unhas na ferida, arranhando-a furiosamente, sem se importar em rasgá-la de uma ponta à outra e fazer uma boa quantidade de sangue jorrar pela blusa de pele de cervo.

Vai acabar em mais alguns segundos, tem que ser, tem de acabar, ó meu Deus, por favor, QUE ISTO TERMINE...

Patrick parecia ter se esquecido completamente dela. Contemplava o desenho, o cabelo caindo de um lado e de outro do rosto e tapando-o em sua maior parte. Estava completamente absorvido por aquele maravilhoso brinquedo novo. Apagava delicadamente... depois um pouco mais forte (a coceira aumentava)... depois de novo mais suavemente. Susannah tinha vontade de gritar. De repente a coceira estava por toda parte. Queimava o cérebro frontal, fervilhava pelas superfícies úmidas dos olhos como duas nuvens de mosquitos, dava calafrios nas pontas dos mamilos, tornando-os irremediavelmente duros.

Vou gritar, não posso evitar, tenho de gritar...

Estava tragando o ar para fazer exatamente isso quando a coceira de repente parou. A dor também parou. Ela estendeu a mão para o lado da boca, mas hesitou.

Eu não teria coragem.

É meió te coragem!, Detta respondeu num tom indignado. Dispois de tudo pruquê passou — de tudo pruquê nós passamos — tu deve ter uma reserva de fibra pra mete o dedo na porra da própria cara, sua puta covarde.

Ela encostou os dedos na pele do rosto. Na pele lisa. A ferida que tanto a perturbara desde Trovoada havia sumido. Sabia que, quando se olhasse num espelho ou em alguma poça de água calma, não veria sequer uma cicatriz.

 

Patrick trabalhou um pouco mais — primeiro com a borracha, depois com o lápis, depois outra vez com a borracha —, mas Susannah não sentiu coceira, sequer um comichão fraco. Foi como se, uma vez ultrapassado certo ponto crítico, as sensações simplesmente tivessem parado. Ela se perguntava quantos anos tinha o Patrick quando Dandelo cortou todas as borrachas dos lápis. Quatro? Seis? Sem dúvida seria jovem. Susannah tinha certeza de que o olhar de confusão de Patrick quando ela lhe mostrou uma das borrachas fora espontâneo, mesmo que, ao começar a usá-la, o garoto tivesse agido como um velho profissional.

Talvez seja como andar de bicicleta, ela pensou. Depois que a pessoa pega o jeito, não esquece mais.

Esperou tão paciente quanto pôde e, após cinco minutos muito demorados, sua paciência foi recompensada. Sorrindo, Patrick virou o bloco e mostrou a figura. Tinha apagado completamente a imperfeição e sombreado um pouco a área para que ficasse como o resto da pele. Havia tirado cuidadosamente cada farelo de borracha.

— Muito bom — disse ela, o que não deixava de ser um cumprimento bastante boboca para homenagear um gênio, não é?

Então ela se inclinou para a frente, pôs os braços em volta dele e deu-lhe um beijo decidido na boca.

— Patrick, é lindo!

O sangue subiu com tanta rapidez e força pelo rosto do rapaz que Susannah chegou a ficar alarmada, com medo de que, apesar da juventude, Patrick pudesse ter algum ataque. Mas ele estava sorrindo quando estendeu o bloco com uma das mãos enquanto a outra fazia de novo gestos para que rasgasse a folha. Queria que Susannah pegasse. Queria que o desenho ficasse com ela.

Susannah rasgou a folha com muito cuidado, se perguntando num canto escuro do fundo da mente o que aconteceria se rasgasse — se ela fosse rasgada — bem pelo meio. Susannah notou que não havia surpresa no rosto dele, nem assombro, nem medo. Ele tinha de ter visto a ferida ao lado de sua boca. Sem dúvida a coisa nojenta dominava o rosto dela quando Patrick a viu pela primeira vez, inclusive fora desenhada com detalhes quase fotográficos. Agora a coisa se fora — a exploração de seus dedos o confirmara. Patrick, no entanto, não revelava qualquer emoção, pelo menos não com relação a isso. A conclusão parecia suficientemente clara. Quando apagou a ferida de seu desenho, ele também a apagou de sua mente e de sua memória.

— Patrick?

Ele a olhou sorrindo. Feliz por ela estar feliz. E Susannah estava muito feliz. O fato de também estar morrendo de medo não vinha absolutamente ao caso.

— Não quer desenhar mais uma coisa para mim?

Ele assentiu. Fez um sinal na folha e virou o bloco para ela ver:

 

?

 

Susannah contemplou por um momento o ponto de interrogação, depois o encarou. Viu como agarrava com força a borracha, seu maravilhoso brinquedo novo.

Susannah disse:

— Quero que me desenhe uma coisa que não está aqui.

Ele empinou comicamente a cabeça para o lado. Ela teve de sorrir um pouco, apesar do rápido aumento das batidas de seu coração — Oi às vezes tinha aquela expressão, quando não estava cem por cento certo do que a pessoa pretendia.

— Não se preocupe, vou lhe dizer o que é.

E ela começou a dizer, muito cautelosamente. Patrick prestava atenção. A certa altura Roland ouviu a voz de Susannah e acordou. Ele se aproximou, observou-a sob a pálida luz vermelha das brasas da fogueira, começou a desviar a cabeça e, de repente, deu uma guinada, olhos se arregalando. Até aquele momento, Susannah não tinha certeza se Roland veria o que não estava mais ali. Achou pelo menos possível que a mágica de Patrick tivesse sido forte o bastante para apagar a marca também da memória do pistoleiro.

— Susannah, teu rosto! O que aconteceu a teu...

— Calado, Roland, se gosta de mim.

O pistoleiro se calou. Susannah voltou sua atenção para Patrick e começou de novo a falar, em voz baixa mas num tom de urgência. Patrick ouvia e, de repente, ela viu a luz da compreensão penetrar nos olhos dele.

Roland alimentou o fogo sem esperar que ninguém lhe pedisse para fazer aquilo e logo a pequena fogueira brilhava sob as estrelas.

Patrick escreveu uma pergunta, colocando-a economicamente à esquerda do ponto de interrogação que já havia desenhado:

 

De que altura?

 

Susannah pegou Roland pelo cotovelo e colocou-o na frente de Patrick. O pistoleiro tinha mais de um metro e noventa. Ela fez com que Roland a pegasse e pôs a mão sete ou oito centímetros acima da cabeça dele. Patrick abanou a cabeça, sorrindo.

— E preste atenção para uma coisa que tem de estar lá — disse ela e tirou um galho da pequena pilha de lenha. Quebrou-o sobre o joelho, criando uma ponta lascada com a qual poderia escrever. Conseguia se lembrar dos símbolos. Era melhor não ficar se preocupando muito com eles, mas Susannah sentia que deviam estar absolutamente corretos ou a porta que ela queria que Patrick fizesse se abriria em algum lugar para onde não quisesse ir ou não se abriria absolutamente. Quando começou a desenhar na mistura de terra com cinza ao lado da fogueira, ela o fez tão rapidamente quanto Patrick poderia fazê-lo, não parando em momento algum para dar mais uma olhada num ou noutro símbolo. Porque se voltasse a olhar para um, sem dúvida voltaria a olhar para todos. Logo ia descobrir algo que não lhe pareceria certo e a dúvida ia se instalar como um enjôo no estômago. Detta — a arrogante Detta boca-suja que tinha interferido em mais de uma ocasião como sua salvadora — poderia avançar e tomar a frente, acabar a coisa para ela, mas Susannah não podia contar com isso. No nível mais profundo de seu coração, ainda não confiava inteiramente que Detta não mandasse tudo para o inferno num momento crucial, nem que só pela sombria alegria da coisa. Também não confiava de todo em Roland, que podia querer que ela ficasse por razões que ele próprio não compreenderia inteiramente.

Assim ela desenhou depressa na terra e nas cinzas, sem olhar para trás. Foram estes os símbolos que brotaram sob a ponta esvoaçante de seu improvisado utensílio:

 

 

 

— Não-encontrada — Roland sussurrou. — Susannah, o que... como...

— Cale! — ela repetiu.

Patrick se debruçou sobre o bloco e começou a desenhar.

 

Ela olhava em volta procurando a porta, mas o círculo de luz lançado pela fogueira continuou muito pequeno, mesmo depois de Roland ter avivado o fogo. Pelo menos pequeno em comparação com a vasta escuridão da campina. Susannah não via nada. Quando se virou para Roland, percebeu a pergunta muda nos olhos dele e então, enquanto Patrick continuava trabalhando, mostrou o retrato que o rapaz fizera dela. Indicou o lugar onde a ferida havia estado. Aproximando a folha do rosto, Roland viu pelo menos as marcas de borracha. Patrick ocultara os poucos traços que tinham sido removidos com grande habilidade e Roland só encontrou um vestígio deles após um exame muito meticuloso; fora como procurar uma velha trilha depois de muitos dias de chuva.

— Não é de admirar que o homem cortasse as borrachas — disse ele, devolvendo o desenho a Susannah.

— Foi o que pensei.

Daí ela resvalou para um salto verdadeiramente intuitivo: se Patrick pudesse (pelo menos naquele mundo) des-criar via borracha, talvez pudesse criar via desenho. Quando ela mencionou como a manada de búfalos parecera estar misteriosamente mais perto, Roland esfregou a testa como alguém com terrível dor de cabeça.

— Eu devia ter visto isso. Devia ter percebido o que significavam as borrachas cortadas. Susannah, estou ficando velho.

Ela o ignorou — não era a primeira vez que o ouvia se queixar — e contou-lhe os sonhos com Eddie e Jake. Não se esqueceu de mencionar o nome dos produtos nos moletons, as vozes em coro, a oferta de chocolate quente e o pânico crescente nos olhos deles à medida que as noites iam passando. E ela, que, no entanto, não conseguia captar o que o sonho pretendia lhe dizer.

— Por que não me falou deste sonho antes? — Roland perguntou. — Por que não me pediu para ajudar a interpretá-lo?

Ela o olhou com firmeza, achando que agira certo ao não pedir a ajuda dele. Sim... Por mais que aquilo pudesse magoá-lo.

— Você perdeu os dois. Você estaria mesmo a fim de me perder, também?

Roland ficou vermelho. Mesmo à luz da fogueira ela pôde perceber isso.

— Falas mal de mim, Susannah, e pensas pior ainda.

— Talvez sim — disse ela. — Se assim for, me desculpe. Eu mesma não sabia muito bem o que queria. Parte de mim quer ver a Torre, você sabe. Parte de mim quer muito isso. E mesmo se Patrick conseguir dar vida à Porta Não-Encontrada e se eu conseguir abri-la, não é para o mundo real que ela vai se abrir. É isso que os nomes nas camisas querem dizer, tenho certeza.

— Não deve pensar assim — disse Roland. — Raramente a realidade é uma coisa em preto e branco, eu acho, uma coisa de é ou não é, ser ou não ser.

Patrick deixou escapar um piado e ambos se viraram. Ele tinha levantado e virado o bloco para que pudessem ver o desenho. Era uma representação perfeita da Porta Não-Encontrada, Susannah pensou. O ARTISTA não estava impresso nela e a maçaneta era apenas de metal brilhante — não tinha lápis cruzados a enfeitá-la —, mas nenhum problema com esses detalhes. Susannah não se preocupara em falar sobre essas coisas, para não complicar a boa compreensão.

Só faltou eles desenharem um mapa para mim, Susannah pensou. E se perguntou por que tudo tinha de ser tão incrivelmente difícil, tão incrivelmente

(adivinhação-de-dum)

misterioso e sabia que isso era uma pergunta para a qual jamais encontraria resposta satisfatória... exceto que era a condição humana, não é? As respostas que importavam nunca vinham com facilidade.

Patrick fez outro daqueles ruídos tipo piado. Desta vez com um tom interrogativo. Ela de repente percebeu que o pobre guri estava praticamente morrendo de ansiedade, e por que não? Acabara de executar sua primeira encomenda e queria saber o que seu patrono d’arte ia achar.

— Está ótimo, Patrick... Incrível.

— Ê — Roland concordou, pegando o bloco. A porta lhe pareceu exatamente como as que encontrara quando cambaleava ao longo da praia do mar Ocidental, delirando e quase morto por causa da mordida envenenada da lagostrosidade. Era como se a pobre criatura sem língua tivesse olhado dentro de sua cabeça e visto uma verdadeira imagem daquela porta — uma fottergraff.

Susannah, enquanto isso, olhava desesperadamente em volta. E quando começou a rastejar com as mãos para a borda do clarão da fogueira, Roland teve de chamá-la de volta com energia, lembrando a ela que Mordred podia estar em qualquer lugar por ali e a escuridão era amiga de Mordred.

Mesmo impaciente, ela recuou da orla da luz, pois se lembrava muito bem do que acontecera ao corpo que tinha gerado Mordred e com que rapidez acontecera. Mas doía, doía quase fisicamente recuar. Roland tinha lhe dito que esperava ter seu primeiro vislumbre da Torre Negra lá pelo final do dia seguinte. Se ainda estivesse com ele, se visse a Torre junto com ele, Susannah achava que talvez o poder da Torre se mostrasse forte demais para ela. O encanto da Torre. Dada a escolha entre a porta e a Torre, sabia que ainda podia escolher a porta. Mas ao passo que chegavam mais perto e o poder da Torre crescia, pulsando de forma mais intensa e mais insistente dentro da cabeça, quando as vozes cantantes ficavam ainda mais suaves, seria mais difícil escolher a porta.

— Não a vejo — disse ela num tom de desespero. — Talvez eu estivesse errada. Talvez não exista nenhuma porra de porta. Ó, Roland...

— Não acho que tenha errado — disse Roland. Falava com óbvia relutância, como pode falar um homem que tem uma tarefa a cumprir ou uma dívida a pagar. E tinha de fato uma dívida para com aquela mulher, ele admitia, pois afinal não a havia agarrado pelo cangote e levado para aquele mundo? Um mundo onde ela aprendera a arte de matar, onde ficara apaixonada e fora despojada de tudo. Afinal Roland não a seqüestrara e a levara para a dor atual? Se pudesse acertar as contas, tinha obrigação de fazê-lo. Sua vontade de conservá-la perto de si — colocando em risco a própria vida de Susannah — era puro egoísmo, indigno da formação que recebera.

Pior ainda, era indigno de todo o amor e respeito que passara a ter por ela. Partia o que restava de seu coração a idéia de lhe dar adeus, adeus a Susannah, a pessoa que sobrara de seu estranho e maravilhoso ka-tet, mas se era o que ela queria, o que ela necessitava, teria de fazê-lo. E achava que podia fazê-lo, pois tinha visto algo no desenho do rapaz que Susannah não percebera. Não algo que estivesse ali; algo que não estava.

— Olha-te — disse delicadamente, mostrando o desenho a ela. — Está vendo como ele tentou te agradar, Susannah?

— Sim! — disse ela. — Sim, é claro que vejo, mas...

— Acredito que tenha levado uns dez minutos para fazer isto e a maioria de seus desenhos, bons como sempre, são feitos em três ou quatro minutos no máximo, você não acha?

— Não estou entendendo você! — Ela quase gritou a frase.

Patrick puxou Oi para perto dele e passou o braço em volta do trapalhão. Não parou de olhar para Susannah e Roland com olhos arregalados, infelizes.

— Ele trabalhou com tanto empenho para dar o que você queria, mas só existe a porta. Está isolada, sozinha no papel. Não há... não há...

Ele procurava a palavra certa. O fantasma de Vannay sussurrou secamente em seu ouvido.

— Não há contexto!

Por um momento Susannah continuou parecendo confusa e então a luz da compreensão começou a irromper em seus olhos. Roland não esperou; simplesmente deixou cair a mão esquerda boa no ombro de Patrick e lhe disse para pôr a porta atrás do pequeno carrinho elétrico de Susannah, que ela havia passado a chamar Ho Fat III.

Patrick ficou feliz em obedecer. Para começar, pôr o Ho Fat III na frente da porta lhe dava um motivo para usar a borracha. Desta vez ele trabalhou muito mais depressa — quase de um modo descuidado, algum observador poderia ter dito —, mas o pistoleiro, sentado do seu lado direito, achou que Patrick não errou um único traço no seu retrato do carrinho. Acabou desenhando a única roda que havia na frente e pondo um reflexo do clarão da fogueira na calota. Então pousou o lápis e, quando ele fez isso, houve um distúrbio no ar. Roland sentiu a pressão no rosto. As chamas do fogo, que estavam ardendo bem para o alto na escuridão sem vento, jorraram brevemente para os lados. Então a sensação passou. As chamas voltaram a arder para o alto. E a menos de 3 metros da fogueira, atrás do carrinho elétrico, havia uma porta como a que Roland encontrara pela última vez em Calla Bryn Sturgis, na Gruta das Vozes.

 

Susannah esperou até o amanhecer, a princípio mexendo em sua tralha para passar o tempo, depois tornando a colocá-la de lado... Qual seria o benefício de suas parcas posses em Nova York (para não mencionar o pequeno saco de pele em que estavam guardadas)? As pessoas iam rir. Bem, provavelmente iam rir de qualquer modo... ou gritar e sair correndo ante a simples visão dela. A maioria das pessoas não acharia a Susannah Dean que de repente aparecesse no Central Park parecida com uma moça de formação superior ou uma herdeira de grande fortuna; nem mesmo com Sheena, Rainha da Selva, sinto muito. Não, para as pessoas de uma cidade civilizada ela provavelmente lembraria alguma espécie de fugitiva de um número de circo. E depois que atravessasse aquela porta haveria algum meio de voltar? Nenhum. Absolutamente nenhum.

Então ela pôs a tralha de lado e simplesmente esperou. Quando a aurora começou a mostrar sua primeira e débil luminosidade branca no horizonte, chamou Patrick e perguntou se ele não queria ir com ela. Voltar ao mundo de onde viera ou a um mundo muito parecido, Susannah disse, embora soubesse que Patrick não se lembraria absolutamente de tal mundo — de onde fora tirado novo demais e cujo trauma de ser arrebatado de lá se apagara de sua memória.

Patrick olhou para ela, depois para Roland, que estava acocorado a contemplá-lo.

— De qualquer jeito, filho — disse o pistoleiro. — Vai poder desenhar num mundo ou no outro, é verdade. Embora para onde ela vai, haja mais para apreciar.

Roland quer que ele fique, Susannah pensou e ficou furiosa. Então Roland a encarou e deu uma breve sacudida de cabeça. Ela não tinha certeza, mas achou que aquilo significava...

E não, não apenas achava. Sabia o que significava. Roland queria que ela soubesse que estava escondendo seus pensamentos de Patrick. Seus desejos. E embora ela não ignorasse que às vezes o pistoleiro mentia (a mentira mais espetacular fora no encontro na área comum de Calla Bryn Sturgis, antes da chegada dos Lobos), nunca o presenciara mentindo para ela. Para Detta, talvez, mas não para ela. Nem para Eddie. Ou Jake. Houve ocasiões em que Roland não disse a eles tudo que sabia, mas mentir abertamente...? Não. Tinham formado um ka-tet e Roland jogara aberto. Verdade diabólica seja dita.

Patrick de repente ergueu os olhos do bloco e escreveu rapidamente na folha em branco. Depois mostrou:

 

Vou ficar. Medo de ir para Halgum lugar novo.

 

Como para enfatizar exatamente o que queria dizer, abriu os lábios e apontou para a boca sem língua.

E será que ela viu alívio no rosto de Roland? Se viu, detestou-o por isso.

— Tudo bem, Patrick — disse Susannah, tentando não deixar que nenhuma de suas emoções transparecesse na voz. Chegou a estender o braço e dar palmadinhas na mão dele. — Compreendo como se sente. E embora seja verdade que as pessoas podem ser cruéis... cruéis e mesquinhas... há muitas que são gentis. Escute, então: não vou antes do nascer do dia. Se mudar de idéia, a proposta continua de pé.

Ele abanou rapidamente a cabeça.

Obrigada, tá feliz que num vou fazê mais força pra mudá a idéia dele, Detta pensou com raiva. O velho branco também tá provavelmente agradecido!

Cale a boca!, Susannah disse a ela e, por milagre, Detta obedeceu.

 

Mas quando o dia clareou (revelando um rebanho de bisões de tamanho médio pastando a menos de 3 quilômetros de distância), Susannah deixou Detta voltar à sua mente. Mais: deixou Detta tomar a frente. Era mais fácil desse jeito, menos doloroso. Foi Detta quem deu um último passeio em volta do acampamento, respirando com força, pelas duas, os últimos ares daquele mundo e guardando-os na memória. Foi Detta quem circundou a porta, balançando para cá e para lá sobre a pele endurecida das palmas das mãos. Ao chegar do outro lado, viu que havia absolutamente nada. Patrick caminhou de um lado, Roland no outro. Patrick piou de surpresa quando viu que a porta sumira. Roland não disse nada. Oi andou até o lugar onde a porta estivera, farejou no ar... e atravessou o ponto onde ela estava, se você estivesse olhando do outro lado. Se estivéssemos do outro lado, Detta pensou, nós o veríamos passar através da porta, como um truque mágico.

Susannah voltou ao Ho Fat III, no qual decidira cruzar pela porta. Sempre presumindo, é claro, que ela se abrisse. Tudo aquilo seria apenas uma grande piada se ela não abrisse. Roland se aproximou para ajudá-la a se instalar no assento; ela o empurrou energicamente e subiu sozinha. Depois apertou o botão vermelho ao lado do volante e o motor elétrico do carrinho deu a partida com um ronco baixo. A agulha que marcava a carga da bateria continuava ainda bem no verde. Ela virou o acelerador de mão para a direita do guidom e rolou devagar para a porta fechada com os símbolos que significavam NÃO-ENCONTRADA aparecendo na frente. Parou com o nariz estreito do carrinho quase encostando na porta.

Virou-se para o pistoleiro com um sorriso fixo de faz-de-contas.

— Tudo bem, Roland... Então dizemos adeus pra tu. Longos dias e belas noites. Que alcances a porra da Torre e...

— Não — disse ele.

Susannah o encarava, Detta o encarava com olhos ao mesmo tempo muito brilhantes e de risada. Desafiando-o a transformar aquilo em alguma coisa que ela não queria que fosse. Desafiando-o a fazê-la sair agora que ela estava dentro. Vamo lá, branquelo, vamo vê se consegue!

— Que foi? — ela perguntou. — Que qui tu tem na cabeça, garotão?

— Eu não diria adeus a você assim, após todo este tempo — disse ele.

— Aonde você quer chegar? — Só que foi uma frase meio diferente, dita no tom irritado e burlesco de Detta: Aon-tu qué chega?

— Você sabe.

Ela sacudiu a cabeça com ar desafiador. Num sei.

— Para começar — disse ele, colocando gentilmente a mão esquerda de Susannah, endurecida pela marcha na terra, em sua mutilada mão direita —, há mais alguém que devia ter a opção de ir ou ficar, e não estou falando de Patrick.

Por um momento ela não entendeu. Então olhou para baixo e viu um certo par de olhos cercados de dourado, um certo par de orelhas em pé e compreendeu. Havia se esquecido de Oi.

— Se Detta perguntar, Oi certamente vai querer ficar, pois nunca simpatizou com ela. Se Susannah perguntar... bem, aí eu não sei.

E de repente, Detta foi-se. Voltaria (Susannah compreendia agora que jamais estaria inteiramente livre de Detta Walker e que não fazia mal, porque não queria mais estar), mas por enquanto sumira.

— Oi? — Susannah perguntou gentilmente. — Quer vir comigo, querido? Pode ser que encontremos novamente o Jake. Talvez não exatamente igual, mas ainda...

Oi, que ficara quase inteiramente silencioso durante a jornada através das Terras Áridas, as Terras Brancas de Empática e as terras abertas da planície, agora falou:

— Ake? — Mas falava num tom de dúvida, como alguém que mal se lembra de uma pessoa e isso partiu o coração de Susannah. Ela tinha prometido a si mesma que não ia chorar; Detta era quase uma garantia de que não ia chorar, mas agora Detta se fora e as lágrimas estavam de novo ali.

— Jake — disse ela. — Você se lembra de Jake, docinho de mel, eu sei que sim. Jake e Eddie.

— Ake? Ed? — Agora com um pouco mais de certeza. Ele realmente lembrava.

— Vem comigo — ela insistiu e Oi tomou um passo como se fosse saltar para o seu lado no carro. Então, sem ter a mínima idéia da razão por que estava falando isso, ela acrescentou: — Há outros mundos além deste.

Oi parou assim que essas palavras saíram da boca de Susannah. Ele se sentou. Depois tornou a se levantar, e Susannah teve um momento de esperança: quem sabe não encontrariam lá algum pequeno ka-tet, algum dan-tete-tet numa versão nova-iorquina onde as pessoas guiavam Takuro Spirits e, com suas câmeras Shinnaro, tiravam fotos umas das outras bebendo Nozz-A-La.

Oi, no entanto, voltou a trote para perto do pistoleiro e sentou-se ao lado de uma bota surrada. Tinham andado para longe, aquelas botas, longe. Quilômetros e mais quilômetros, rodas e mais rodas. Mas agora a caminhada estava quase concluída.

— Olan — disse Oi, e a determinação daquela estranha vozinha fez rolar uma pedra contra o coração de Susannah. Ela se virou com amargura para o velho com o grande trabuco na cintura.

— Pronto — disse. — Você tem seu próprio feitiço, não é? Sempre teve. Atraiu Eddie para uma morte e Jake para duas delas. Agora Patrick e até mesmo o trapalhão. Está feliz?

— Não — disse ele, e Susannah viu que de fato não estava. Achou que jamais vira tamanha tristeza e solidão num rosto humano. — Nunca estive mais longe da felicidade, Susannah de Nova York. Não quer mudar de idéia e ficar? Não quer cumprir este último turno comigo? Só me faria feliz.

Por um momento febril ela achou que sim. Achou que simplesmente tiraria o carrinho elétrico da frente da porta — que não prometia nada e de onde era de um lado só — e seguiria com ele para a Torre Negra. Seria apenas mais um dia; acampariam no meio da tarde e chegariam ao anoitecer do dia seguinte, exatamente como ele queria.

Então Susannah se lembrou do sonho. Das vozes que cantavam. O rapaz estendendo a xícara de chocolate quente — do bom, com chantilly.

— Não — disse em voz baixa. — Vou correr o risco e seguir.

Por um instante Susannah achou que Roland tornaria as coisas mais fáceis, simplesmente concordando e deixando-a ir. Então a raiva dele — ou melhor, o desespero dele — irrompeu numa dolorosa explosão.

— Mas você não pode ter certeza! E se o próprio sonho, Susannah, não passar de um truque, de um encantamento? E se as coisas que vir depois da porta ser aberta forem também apenas truques e encantamentos? E se ao adentrá-la você cair no espaço todash?

— Então iluminarei a escuridão pensando naqueles que amo.

— E isso pode funcionar — disse ele, falando no tom mais amargo que Susannah ouvira. — Pelos primeiros dez... ou vinte anos... ou mesmo cem anos. E depois? E quanto ao resto da eternidade? Pense no Oi! Acha que ele se esqueceu de Jake? Nunca! Nunca! Nunca enquanto vivermos. Nunca enquanto ele viver! Oi sente que há alguma coisa errada! Susannah, não. Imploro, não vá. Posso pedir de joelhos, se for preciso. — E para horror dela, foi exatamente o que Roland começou a fazer.

— Não vai ajudar — disse ela. — E se estas são as últimas imagens que vou levar de você... meu coração diz que são... não deixe que sejam devocê de joelhos. Você não é homem que se ajoelha, Roland, filho de Steven, nunca foi e não quero me lembrar de você desse jeito. Quero me lembrar de você de pé, como em Calla Bryn Sturgis. Como ao lado de seus amigos na Colina de Jerico.

Roland se levantou e se aproximou dela. Por um momento Susannah achou que Roland pretendia impedi-la de ir pela força e teve medo. Mas ele se limitou a pôr a mão (embora logo a tirasse) em seu braço.

— Me deixe perguntar outra vez, Susannah. Você tem certeza?

Ela consultou o coração e viu que tinha. Compreendia os riscos, mas sim... tinha certeza que queria ir. E por quê? Porque o caminho de Roland era o caminho da arma. O caminho de Roland era a morte para quem o seguia em algum carrinho ou caminhava ao lado dele. Roland o provara repetidamente desde os primeiros dias de sua missão — não, antes até, desde o dia em que tinha ouvido Hax, o cozinheiro, planejando a traição, o que resultou na morte do homem na forca. Era tudo pelo bem (pelo que ele chamava o Branco), não havia dúvida, mas Eddie continuava enterrado em seu túmulo num mundo e Jake em outro. Susannah não tinha dúvidas de que exatamente o mesmo destino esperava Oi e o pobre Patrick.

E suas mortes não demorariam a acontecer.

— Tenho certeza — disse ela.

— Está bem. Vai me dar um beijo?

Ela o pegou pelo braço, puxou-o para baixo e encostou os lábios nos dele. Quando inalou, aspirou o ar de mil anos e milhares e milhares de quilômetros. E sim, sentiu o gosto da morte.

Mas não para você, pistoleiro, ela pensou. Para outros, mas nunca para você, Que eu possa escapar do seu encanto, e que possa estar bem.

Foi ela quem interrompeu o beijo.

— Pode abrir a porta para mim? — perguntou.

Roland se aproximou da porta e pôs a mão na maçaneta, que cedeu facilmente com o seu aperto.

Um ar gelado soprou, forte o bastante para jogar para trás o cabelo comprido de Patrick. Com ele vieram alguns flocos de neve. Susannah pôde ver grama ainda verde sob uma fina camada de gelo, assim como uma trilha e uma cerca de ferro. Vozes cantavam “O Menino Nasceu”, exatamente como no sonho.

Podia ser o Central Park. Sim, podia ser; o Central Park de algum outro mundo ao longo do eixo, talvez, não aquele de onde ela viera, mas suficientemente próximo para que, com o tempo, não sentisse qualquer diferença.

Ou talvez se tratasse, como dizia Roland, de um encantamento.

Talvez fosse a escuridão todash.

— Pode ser um truque — disse ele, quase certamente lendo sua mente.

— A vida é um truque, o amor um encantamento — ela respondeu. — Talvez voltemos a nos encontrar, na clareira no final do caminho.

— Se diz assim, que assim seja — disse Roland. — Ele estendeu uma perna, plantando o gasto calço da bota no solo, e se curvou. Oi tinha começado a chorar, mas continuou firmemente sentado ao lado da bota esquerda do pistoleiro. — Adeus, minha querida.

— Adeus, Roland. — Então ela olhou para a frente, respirou fundo e virou o acelerador do carrinho, que seguiu suavemente adiante.

— Espere! — Roland gritou, mas Susannah não se virou nem tornou a olhar para ele. Atravessou a porta, que bateu de imediato atrás dela com um estampido seco, dramático, que Roland conhecia bastante bem, um estampido com que sonhava desde a longa e febril caminhada pelo litoral do mar Ocidental. O cântico se fora e só restava agora o ruído solitário do vento na campina.

Roland de Gilead sentou-se na frente da porta, que já parecia gasta e sem importância. Jamais voltaria a se abrir e ele pôs o rosto nas mãos. Ocorreu-lhe que, se não tivesse passado a amá-los, jamais se sentiria tão sozinho. Das muitas coisas, no entanto, que tinha a lamentar, a reabertura de seu coração não estava entre elas, nem mesmo naquele momento.

 

Mais tarde — porque há sempre um mais tarde, não é? — ele preparou um desjejum e se forçou a comer sua parte. Patrick comeu avidamente, depois foi fazer suas necessidades enquanto Roland arrumava as coisas.

Havia um terceiro prato que continuava cheio.

— Oi? — Roland perguntou, inclinando o prato para o trapalhão. — Não vai dar pelo menos uma mordida?

Oi olhou para o prato e recuou com firmeza dois passos. Roland abanou a cabeça e jogou fora a comida intacta, espalhando-a na relva.

Talvez Mordred chegasse ali em boa hora e encontrasse alguma coisa para satisfazê-lo.

Seguiram adiante no meio da manhã, Roland puxando o Ho Fat II e Patrick andando ao lado dele de cabeça baixa. E logo a pulsação da Torre enchia de novo a cabeça do pistoleiro. Muito perto agora. Aquele firme poder pulsante expulsou todas as imagens de Susannah e ele se alegrou. Entregou-se ao firme pulsar e deixou-o varrer todos os seus pensamentos e toda a sua dor.

Commala-venha-venha, cantava a Torre Negra, agora despontando no horizonte. Commala-venha-venha, o pistoleiro já vê a chegada.

Commala-venha-Roland, a jornada está quase acabada.

 

MORDRED

O dan-tete os observava quando o sujeito de cabelo comprido com quem estavam agora viajando agarrou Susannah pelo ombro para mostrar os duendes alaranjados que dançavam na distância. Mordred observou quando ela girou, puxando um dos grandes revólveres do Papai Branco. Por um momento, aqueles olhos de vidro que viam longe e que ele encontrara na casa da Odd’s Lane tremeram em sua mão. Ansioso, Mordred torcia bastante para que sua Mamãe Pássara Negra atirasse no Artista. Como a culpa a teria devorado! Seria como a lâmina de uma machadinha rombuda, é! Era mesmo possível que, assolada pelo horror do que havia feito, ela acabasse apontando o cano do revólver para a própria cabeça e puxasse o gatilho uma segunda vez. Como o Velho Papai Branco gostaria de acordar para ver isso!

Ah, crianças são tão sonhadoras.

Não aconteceu, é claro, mas houve muito mais a observar. Parte, no entanto, era difícil. Porque não era apenas seu entusiasmo que fazia o binóculo tremer. Ele agora estava aquecido, protegido por camadas das roupas humanas de Dandelo, mas ainda sentia frio. Exceto quando sentia calor. E de um modo ou de outro, com frio ou calor, tremia como um velho caipira sem dentes no canto de uma lareira. Um estado de coisas que vinha piorando aos poucos desde que deixara a casa de Joe Collins. A febre rugia em seus ossos como um vento tempestuoso. Mordred já não estava mui faminto (pois Mordred não tinha mais apetite), mas Mordred estava mui doente, mui doente, mui doente.

Na verdade, ele tinha medo de que Mordred estivesse mui moribundo.

Mesmo assim, observava o grupo de Roland com grande interesse e, depois que o fogo foi realimentado, viu as coisas ainda melhor. Viu a porta aparecer, embora não pudesse ler os símbolos escritos nela. Compreendeu que, de alguma forma, o Artista conseguira dar-lhe vida através do desenho — que talento abençoado por Deus o dele! Mordred já ansiava por devorá-lo. Havia sempre a possibilidade de que tal talento fosse transmissível! Duvidava disso, o lado espiritual do canibalismo era bastante exagerado, mas que mal havia em conferir diretamente?

Observou a palestra deles. Viu — e também compreendeu — o apelo de Susannah ao Artista e ao Vira-Lata, suas súplicas chorosas

(venham comigo para que eu não precise ir sozinha, vamos, sejam camaradas; sejam os dois camaradas, oh bu-uh)

e alegrou-se com a dor e fúria de Susannah quando os apelos foram rejeitados pelos dois, garoto e animal; Mordred se alegrou mesmo sabendo que aquilo tornaria seu trabalho mais difícil (um pouco mais difícil, pelo menos; será que um rapaz mudo e um trapalhão poderiam de fato lhe dar muito trabalho depois que mudasse de forma e iniciasse o ataque?). Por um momento achou que, em sua raiva, Susannah podia atirar no Velho Papai Branco com o próprio revólver dele e isso Mordred não queria. O Velho Papai Branco estava reservado para ser dele. A voz que vinha da Torre Negra lhe dizia isso. Mui doente ele certamente estava, mui moribundo podia estar, mas o Velho Papai Branco continuava reservado para ser a refeição dele, não da Mamãe Pássara Negra. Até porque ela deixaria a carne apodrecer sem dar uma única mordida! Mas ela não atirou nele. Em vez disso ela o beijou. Mordred não queria ver aquilo, que o fazia se sentir pior do que nunca, e pôs o binóculo de lado. Ficou deitado na relva, no meio de uma pequena moita de amieiros, tremendo, gelado e quente, tentando não vomitar (passara todo o dia anterior vomitando e cagando, até os músculos da barriga começarem a doer devido ao esforço de manter um tráfego tão pesado em duas direções ao mesmo tempo; e nada subira pela garganta além de densos filetes gosmentos de cuspe; e nada saíra de seu traseiro além de um caldo marrom e grandes peidos abafados). Tornou a olhar pelo binóculo bem a tempo de ver a ponta de trás do pequeno carrinho elétrico desaparecer quando Mamãe Pássara Negra o fez atravessar a porta. Algo rodopiava ao redor da porta. Poeira, talvez, mas ele pensou antes em neve. Havia também um cântico. Aquele som também quase o deixou enjoado, como ficara ao ver Susannah beijar o Velho Papai Pistoleiro Branco. Então a porta bateu atrás dela, o cântico cessou e o pistoleiro ficou simplesmente sentado ali, o rosto enfiado nas mãos, bu-uh, sniff-sniff. O trapalhão se aproximou dele e pôs o focinho comprido em cima de suas botas como oferecendo consolo, que doçura, que vômito de doçura! Já então amanhecera e Mordred cochilou um pouco. Quando acordou, foi ao som da voz do Velho Papai Branco. O esconderijo de Mordred estava a favor do vento e as palavras chegavam claramente até ele: “Oi? Não vai dar pelo menos uma mordida?” Mas o trapalhão não queria e o pistoleiro jogara na relva a comida que havia preparado para a bostinha peluda. Mais tarde, depois que se puseram de novo a caminho (o Velho Papai Pistoleiro Branco puxando o carrinho que o robô fizera e que avançava devagar ao longo dos sulcos da estrada da Torre; ele de cabeça baixa, os ombros mui curvados), Mordred rastejou para o lugar do acampamento. De fato chegou a comer um pouco da comida jogada fora — certamente não estava envenenada pois a esperança de Roland fora que ela descesse pela goela do trapalhão —, mas parou depois de três ou quatro pedaços de carne, sabendo que, se continuasse comendo, suas entranhas colocariam tudo para fora, tanto pelo norte quanto pelo sul. Não podia deixar aquilo acontecer. Se não conseguisse reter pelo menos algum alimento, ficaria fraco demais para segui-los. E ele tinha de seguir. E tinha de se manter próximo deles por mais algum tempo. Mas a coisa devia acontecer naquela noite. Tinha de ser, porque no dia seguinte o Velho Papai Branco alcançaria a Torre Negra e aí quase certamente seria tarde demais. Era o que lhe dizia seu coração. Mordred começou a andar como Roland fizera, mas mais devagar. Vez por outra, quando as cólicas o dominavam e sua forma humana oscilava, ele se vergava. Uma escuridão ameaçava brotar sob a pele, o casaco pesado começava a inchar e as outras pernas tentavam se soltar. O casaco só ficava de novo frouxo quando Mordred, rangendo os dentes e gemendo com o esforço, forçava as pernas a se encolherem. Uma vez cagou mais ou menos meio litro de um fedorento fluido marrom na calça, e uma vez conseguiu abaixar a calça antes, mas, de um modo ou de outro, pouco se importava com aquilo. Ninguém o convidara para o Baile da Colheita, ah-ah! Convite perdido no correio, sem dúvida! Mais tarde, quando chegasse a hora do ataque, libertaria o pequeno Rei Vermelho. Mas se acontecesse agora, tinha quase certeza de que não seria capaz de trocar novamente de forma. Não teria a força. O metabolismo mais rápido da aranha atiçaria a doença do modo como um vento forte atiça o fogo baixo, transformando-o num incêndio devorador de florestas. O que o estava matando devagar o mataria rapidamente. Então ele resistiu à coisa e, à tarde, se sentia um pouco melhor. A pulsação da Torre crescia rápido agora, ganhando em energia e urgência. Assim como crescia a voz de seu Papai Vermelho, insistindo para que seguisse adiante, insistindo para que se mantivesse numa distância onde o ataque fosse possível. Há semanas o Velho Papai Pistoleiro Branco não dormia mais que quatro horas por noite, pois vinha trocando turnos de vigília com a Mamãe Pássara Negra, que agora se fora. Mas a Mamãe Pássara Negra jamais tivera de puxar aquele carrinho, não é verdade? Não, ao contrário ela viajava nele como a Rainha Porra do Monte de Merda, né? O que significava que o Velho Papai Pistoleiro Branco estava bastante cansado, mesmo com o pulsar da Torre Negra para animá-lo e impeli-lo para a frente. Naquela noite o Velho Papai Branco teria de depender do Artista e do Vira-Lata no primeiro turno de vigília ou tentar fazer toda a coisa sozinho. Mordred achava que podia agüentar passar aquela noite em claro simplesmente porque sabia que nunca mais teria uma outra. Rastejaria para mais perto, como fizera na noite anterior. Ficaria observando o acampamento com os olhos de vidro do velho monstro para visão ao longe. E quando todos estivessem dormindo, trocaria de forma pela última vez e se lançaria sobre eles. No escurinho, rapidinho, aí vou eu! O Velho Papai Branco poderia nunca mais acordar, mas Mordred esperava que acordasse. Bem no final. Bem a tempo de ainda perceber o que estava acontecendo com ele. Bem a tempo de saber que seu filho o arrebatava para a terra da morte poucas horas antes de ele ter alcançado sua preciosa Torre Negra. Mordred cerrou os punhos e viu os dedos ficarem pretos. Sentiu a coceira terrível mas agradável dos lados do corpo, as pernas da aranha tentando irromper de novo — sete em vez de oito, graças à terrível e horrivelmente nojenta Mamãe Pássara Preta que estivera ao mesmo tempo grávida e não-grávida e que ela apodrecesse gritando para sempre no espaço todash (ou pelo menos até que um dos Grandes que viviam lá a encontrasse). Mordred resistia e encorajava a mudança com igual ferocidade. Por fim apenas resistiu e o ímpeto de se transformar cedeu. Ele soltou um peido de vitória, que, embora demorado e fedorento, foi silencioso. Seu eu era agora um acordeão quebrado que não conseguia mais fazer música, só arfava. Os dedos voltaram à habitual coloração rosada e branca e o comichão que subia e descia pelos lados do corpo desapareceu. A cabeça flutuava e rodopiava de febre; os braços finos (pouco mais que varas) doíam sob os calafrios. A voz de seu Papai Vermelho era às vezes alta e às vezes fraca, mas estava sempre lá: Venha pra mim. Corra pra mim. Apresse seu duplo. Venha-commala, este bom filho meu. Derrubaremos a Torre, destruiremos toda a luz que há e governaremos juntos a escuridão.

Venha pra mim.

Venha.

 

Certamente os três que ficaram (quatro, contando também com ele) tinham passado além do guarda-chuva do ka. Nunca tinha havido, desde que o Primal recuara, uma criatura como Mordred Deschain, que era parte humo e parte formado daquela sopa rica e potente. Certamente o ka nunca teria pretendido que uma criatura dessas tivesse uma morte tão mundana quanto a que agora a ameaçava: febre trazida por comida estragada.

Roland podia lhe ter dito que comer o que encontrava na neve ao lado do celeiro de Dandelo não era uma boa idéia; aliás, Robert Browning podia ter dito o mesmo. Má ou não, verdadeira égua ou não, Lippy (provavelmente batizada com base em outro poema de Browning, um poema mais conhecido chamado “Fra Lippo Lippi”), era também um animal doente quando Roland deu fim à vida dela com uma bala na cabeça. Mas Mordred estava em sua forma de aranha ao se deparar com a coisa que pelo menos parecia uma égua e quase nada teria conseguido impedi-lo de comer a carne. Só quando retomou a forma humana ele se perguntou, meio apreensivo, como poderia haver tanta carne na velha pangaré ossuda de Dandelo e por que ela estava tão macia e quente, tão cheia de sangue não-coagulado. Afinal ele a encontrara no meio da neve; Lippy já devia estar há alguns dias caída ali. Os restos da égua deviam estar congelados e duros.

Então o vômito começou. A febre veio a seguir e com ela a luta para não mudar de forma até estar perto o bastante de seu Velho Papai Branco, que queria rasgar de cima a baixo. O ser cuja chegada vinha há mil anos sendo profetizada (principalmente pelo povo manni e geralmente em murmúrios temerosos), o ser que deveria se tornar meio humano e meio divino, o ser que gerenciaria o fim da humanidade e a volta do Primal... este ser tinha finalmente chegado como uma criança ingênua e malvada e agora estava morrendo com a barriga cheia de carne de cavalo envenenada.

O ka podia não ter nada a ver com isto.

 

Roland e seus dois companheiros não fizeram grandes avanços no dia em que Susannah os deixou. Mesmo que Roland não tivesse planejado viajar poucos quilômetros para que chegassem à Torre ao pôr-do-sol do dia seguinte, ele não teria sido capaz de ir muito longe. Estava desencorajado, solitário e quase morto de cansaço. Patrick também estava cansado, mas pelos menos ele podia ir sentado no carro se preferisse e, durante a maior parte daquele dia, foi isso mesmo que preferiu, às vezes cochilando, às vezes desenhando, às vezes andando um pouco antes de voltar a subir no Ho Fat II e tirar mais uma soneca.

O pulsar da Torre estava forte na cabeça e no coração de Roland, sua canção era poderosa e amável, parecendo agora reunir mil e uma vozes, mas nem mesmo essas coisas puderam tirar o chumbo de seus ossos. Então, quando estava procurando um lugar com sombra onde pudessem parar e fazer uma pequena refeição de meio-dia (na realidade já estavam no meio da tarde), Roland viu uma coisa que momentaneamente o fez se esquecer tanto do cansaço quanto da dor.

Crescendo ao lado da estrada havia uma rosa silvestre, aparentemente gêmea idêntica da rosa do terreno baldio. Florescia desafiando a estação, que Roland imaginava ser mero início de primavera. A coloração levemente rosada que tinha por fora ia escurecendo por dentro até se transformar num vermelho febril, a cor exata, ele pensou, da paixão. Caindo de joelhos, inclinou o ouvido para aquela concha de coral e prestou atenção.

A rosa estava cantando.

A fraqueza continuou, como seria esperado (desse lado da sepultura, pelo menos), mas a solidão e a tristeza se foram, ao menos por algum tempo. Ele espreitou dentro da rosa e viu um centro amarelo tão brilhante que nem dava para olhar diretamente.

O portão do Gan, pensou, não sabendo exatamente o que era isso, mas sem duvidar de que estivesse certo. É o portão do Gan, assim é!

Aquilo era diferente da rosa no terreno baldio de um modo crucial: não havia sensação de enjôo nem abafadas vozes dissonantes. Aquela rosa estava cheia de saúde assim como cheia de luz e amor. A rosa e todas... elas... elas devem...

Elas alimentam os Feixes, não é? Com suas canções e seu perfume. Como os Feixes as alimentam. É um campo de forças vivo, um dar e receber, tudo partindo da Torre. E aquilo é apenas o começo, o primeiro batedor. No Can’-Ka No Rey há dezenas de milhares de rosas exatamente como aquela.

O pensamento o deixou meio tonto de espanto. Então veio outro que o encheu de raiva e de medo: o único ser com uma vista geral daquele grande tapete vermelho estava insano. Acabaria com todos eles num instante assim que tivesse rédea solta para fazê-lo.

Um tapinha hesitante no ombro de Roland. Era Patrick, com Oi no calcanhar. Patrick apontou para o gramado ao lado da rosa e fez gestos de comer. Apontou para a rosa e fez movimentos de desenho. Roland não estava com muita fome, mas a outra idéia do rapaz o agradou bastante.

— Sim — disse ele. — Vamos comer alguma coisa aqui, depois talvez eu tire uma soneca enquanto você desenha a rosa. Não quer fazer dois desenhos dela, Patrick? — Mostrou os dois dedos restantes da mão direita para que Patrick entendesse bem.

O rapaz franziu a testa e empinou a cabeça. Não entendera. Seu cabelo caía num dos ombros num feixe brilhante. Roland pensou em como Susannah lavara aquele cabelo num riacho apesar dos piados de protesto de Patrick. Era o tipo de coisa em que Roland jamais teria pensado, mas deixava o jovem com uma aparência bem melhor. Olhar para aquelas ondas de cabelo brilhante lhe dava saudades de Susannah apesar da canção da rosa. Ela havia trazido graça à sua vida. Uma palavra que só lhe ocorrera depois de ela ter ido embora.

Enquanto isso, lá estava Patrick, com um talento selvagem, mas tremendamente lento na compreensão das coisas.

Roland gesticulou para o bloco, depois para a rosa. Patrick abanou a cabeça — aquela parte ele pegara. Então Roland levantou dois dedos da mão boa e apontou de novo para o bloco. Deste vez o brilho irrompeu no rosto de Patrick, que apontou para a rosa, para o bloco, para Roland e depois para si próprio.

— É isso, garotão! — disse Roland. — Um desenho da rosa pra você e outro pra mim. É legal, não é?

Patrick abanou entusiasticamente a cabeça, começando a trabalhar enquanto Roland foi cuidar do rango. De novo Roland serviu três pratos e de novo Oi se recusou a comer. Quando olhou nos olhos cercados de dourado do trapalhão, Roland viu um vazio ali — uma espécie de perda — que o feriu nas profundezas. E Oi não poderia ficar sem comer por muito tempo: já estava muito, muito magro. Quase no osso do ofício, Cuthbert teria dito, provavelmente sorrindo. Precisava de sassatrás quente e sais. Mas o pistoleiro não tinha sassy ali.

— Por que essa cara? — Roland perguntou mal-humorado ao trapalhão. — Se querias ir com ela, devias ter ido quando tiveste a chance! Por que atiras agora contra mim a nuvem triste dos teus olhos?

Oi olhou-o por mais um instante e Roland percebeu que tinha ferido os sentimentos do camaradinha; parecia ridículo, mas era verdade. Oi foi se afastando, a caudinha torta caída. Roland teve vontade de chamá-lo de volta, mas isso teria sido ainda mais ridículo, não é? Qual era o plano? Desculpar-se com um zé-trapalhão?

Sentiu-se constrangido e irritado consigo mesmo, sentimentos que nunca tivera antes de puxar Eddie, Susannah e Jake do lado-América e trazê-los para sua vida. Antes da chegada deles Roland não sentia quase nada e, embora fosse um estreito estilo de vida, sob certos aspectos não era tão mau; pelo menos não perdia tempo se perguntando se devia se desculpar com os animais quando falasse com eles num tom áspero, pelos deuses!

Roland se acocorou ao lado da rosa, dominado pelo poder calmante de sua canção e pelo esplendor da luz — da luz saudável — que vinha de seu centro. Então Patrick piou, gesticulando para Roland chegar para o lado para que ele pudesse ver a rosa e desenhá-la. Isto só fez aumentar a sensação de desajuste e irritação de Roland, mas ele recuou sem uma palavra de protesto. Afinal, pedira que Patrick fizesse o desenho, não é? Pensou em como, se Susannah estivesse ali, os olhos dos dois teriam se encontrado com divertida compreensão, como fazem os olhos dos pais ante as artes de uma criança pequena. Mas ela não estava ali, é claro; Susannah fora a última deles e agora também tinha ido embora.

— Tudo bem, pode ver como fica um rosengaff um tiquinho melhor? — ele perguntou se esforçando para parecer engraçado, mas só conseguindo parecer mal, mal-humorado e cansado.

Patrick, pelo menos, não reagiu à aspereza no tom do pistoleiro: provavelmente nem entendeu o que eu disse, Roland pensou. O garoto mudo estava sentado com os tornozelos cruzados, o bloco equilibrado nas coxas e, a seu lado, o prato de comida pela metade.

— Não vá se esquecer de comer por causa do desenho — disse Roland. — Preste atenção. — Obteve outro distraído movimento de cabeça por suas preocupações e desistiu. — Vou tirar um cochilo, Patrick. Será uma longa tarde. — E uma noite ainda mais longa, acrescentou para si mesmo... e, no entanto, tinha a mesma consolação que Mordred: aquela noite seria provavelmente a última. Não tinha certeza do que o esperava na Torre Negra, no final do campo de rosas, mas mesmo que conseguisse acertar as contas com o Rei Rubro, tinha absoluta certeza de que aquela seria sua última marcha. Achava que jamais deixaria Can’-Ka No Rey e tudo bem. Estava muito cansado. E, apesar do poder da rosa, triste.

Roland de Gilead pôs um braço sobre os olhos e dormiu de imediato.

 

Não dormiu muito antes de Patrick acordá-lo com um entusiasmo de criança para mostrar o primeiro desenho da rosa que fizera... O sol sugeria que não tinham se passado mais de dez minutos, no máximo 15.

Como todos os desenhos de Patrick, aquele tinha uma força estranha. A representação da rosa de Patrick era quase viva, embora ele tivesse apenas um lápis para trabalhar. Roland, no entanto, teria realmente preferido mais uma hora de sono àquele exercício de apreciação da arte. Mas abanou aprovadoramente a cabeça — não ia ficar mal-humorado e rabugento diante de uma coisa tão fascinante —, e Patrick sorriu, satisfazendo-se mesmo com tão pouco. Virou a folha e começou de novo a desenhar a rosa. Um desenho para cada um, como Roland havia pedido.

Roland podia ter dormido de novo, mas para quê? O garoto mudo concluiria o segundo desenho numa questão de minutos e o acordaria de novo. Em vez disso se aproximou de Oi e alisou o pêlo espesso do trapalhão, algo que fazia raramente.

— Desculpe por eu ter sido grosseiro com você, amigão — disse Roland. — Quem sabe não quer me dizer alguma coisa?

Mas Oi não queria.

Quinze minutos mais tarde, Roland recarregou as poucas coisas que havia tirado do carrinho, cuspiu nas palmas das mãos e tornou a suspender as alças. O carro estava mais leve agora, tinha de estar, mas parecia mais pesado.

É claro que está mais pesado, ele pensou. Tem o peso da minha dor. Eu a carrego comigo para todo lugar, é isso.

Logo o Ho Fat II tinha também Patrick Danville dentro dele. O garoto subira, arranjara um pequeno ninho e caíra no sono quase de imediato. Roland avançava com dificuldade, cabeça baixa, a sombra crescendo aos seus calcanhares. Oi caminhava a seu lado.

Mais uma noite, o pistoleiro pensou. Mais uma noite, mais um dia a seguir e depois está acabado. De um modo ou de outro.

Deixou o pulsar da Torre e as muitas vozes cantantes encherem sua cabeça e iluminarem seus passos... pelo menos um pouco. Havia mais rosas agora, dúzias e dúzias espalhadas de cada lado da estrada, dando vida à monotonia da campina. Algumas floresciam na própria estrada e ele tomava cuidado para não passar em cima delas. Por mais cansado que pudesse estar, não esmagaria uma só rosa nem deixaria uma roda passar sobre uma só pétala caída.

 

Parou para passar a noite enquanto o sol ainda estava bem acima do horizonte, fatigado demais para ir adiante embora ainda houvesse pelo menos mais duas horas de luz do dia. Ali havia um riacho que tinha secado, mas em seu leito crescera uma ebulição daquelas bonitas rosas silvestres. A canção delas não diminuiu a fadiga de Roland, mas até certo ponto conseguiu fazer reviver seu espírito. Ele achou que este efeito também atingira Patrick e Oi, o que era ótimo. Ao acordar, Patrick olhara avidamente ao redor. Depois seu rosto tinha ficado sombrio e Roland soube que ele estava de novo tendo plena consciência da partida de Susannah. Então o rapaz havia chorado um pouco, mas talvez agora não haveria choro.

Havia um agrupamento de choupos na margem do riacho (pelo menos o pistoleiro achou que fossem choupos), mas as árvores tinham morrido quando a água da qual suas raízes bebiam secou. Agora os galhos eram apenas coisas descarnadas, emaranhados sem folhas contra o céu. Naquelas silhuetas ele pôde descobrir muitas e muitas vezes o número 19, tanto nos caracteres do mundo de Susannah quanto nos de seu próprio mundo. Num determinado local os galhos pareciam claramente estampar a palavra CHASSIT contra o céu cada vez mais escuro.

Antes de fazer fogo e preparar um jantar adiantado — as latas da despensa de Dandelo seria o bastante para aquela noite, ele reconheceu —, Roland foi até o leito seco do riacho e cheirou as rosas, passeando devagar entre as árvores mortas e ouvindo sua canção. Tanto o cheiro quanto o som eram revigorantes.

Sentindo-se um pouco melhor, pegou alguma madeira debaixo das árvores (também cortando alguns dos galhos mais baixos, deixando troncos secos, lascados, que lembravam um pouco os lápis de Patrick) e colocou gravetos no centro. Depois riscou um fósforo, recitando o velho catecismo quase sem ouvi-lo: “Faísca mui escura, quem é meu senhor? Vou deitar. Vou ficar? Abençoe este acampamento com fogueira.”

Enquanto esperava que o fogo primeiro crescesse e depois se reduzisse a uma camada de brasas rosadas, Roland tirou o relógio que ganhara em Nova York. No dia anterior ele havia parado, embora tivessem lhe assegurado que a bateria duraria cinqüenta anos.

Agora, quando o final da tarde se misturava ao início da noite, os ponteiros tinham começado muito lentamente a se mover para trás.

Depois de observar aquilo por algum tempo, fascinado, fechou a tampa e contemplou os siguls ali gravados: chave, rosa e Torre. Uma fraca e misteriosa luz azulada tinha começado a brilhar nas janelas que espiralavam para cima.

Eles não sabiam que faria isso, ele pensou e devolveu cuidadosamente o relógio ao bolso esquerdo na frente da calça, verificando primeiro (como sempre fazia) se não havia buraco por onde ele pudesse cair. Depois esquentou a comida. Ele e Patrick comeram bem.

Oi não deu uma única mordida.

 

Além da noite que passara palestrando com o homem de preto — a noite durante a qual Walter lera um futuro desolado de um baralho, sem a menor dúvida trapaceado —, aquelas 12 horas de escuridão à margem do riacho seco foram as mais longas da vida de Roland. O cansaço que tomava conta dele se tornou cada vez mais profundo e sombrio, até que parecia um manto de pedras. Rostos e lugares antigos marchavam diante de seus olhos pesados: Susan, cavalgando decidida pela Baixa com o cabelo louro esvoaçando; Cuthbert descendo a encosta da Colina de Jerico quase do mesmo jeito, gritando e rindo; Alain Johns erguendo um copo num brinde; Eddie e Jake se engalfinhando na relva, berrando, enquanto Oi dançava em volta deles, latindo.

Mordred estava em algum lugar por ali, e perto, porém Roland se sentia repetidamente mergulhar no sono. A todo momento acordava num solavanco, arregalando freneticamente os olhos para o escuro, percebendo que estava se aproximando cada vez mais da beira da inconsciência. A todo momento esperava ver a aranha com a marca vermelha na barriga se lançando sobre ele, mas nada via além dos duendes, sua dança alaranjada na distância. Nada ouvia além do sussurro do vento.

Mas ele espera. Espera o momento propício. E se eu dormir... quando eu dormir... cairá sobre nós.

Por volta das três da manhã, graças unicamente à sua força de vontade, despertou de um cochilo que esteve realmente à beira de jogá-lo num sono mais profundo. Olhou desesperadamente em volta, esfregando duramente os olhos com as palmas das mãos, fazendo mirks e fonders e sankofites explodirem em seu campo de visão. A fogueira já estava muito baixa. Patrick se achava a uns 6 metros dali, junto à base contorcida de um choupo. De onde Roland se encontrava, o rapaz não era mais que um corcunda coberto por pele de animal. De Oi não havia sinal imediato. Roland chamou o trapalhão e não teve resposta. O pistoleiro já ia tentar ficar de pé quando viu o velho amigo de Jake um pouco além da orla do clarão cada vez mais fraco da fogueira — pelo menos viu o brilho dos olhos cercados de dourado. Os olhos se voltaram um momento para Roland, depois sumiram, provavelmente quando Oi tornou a pousar o focinho sobre as patas.

Também está cansado, Roland pensou, e como não haveria de estar?

A questão do que seria de Oi depois do dia seguinte tentou chegar à superfície da mente perturbada e cansada do pistoleiro, mas Roland a repeliu. Levantou-se (em seu cansaço, as mãos resvalaram para o quadril que antigamente causava problemas, como se ainda esperassem encontrar alguma dor ali), foi até Patrick e sacudiu-o para que acordasse. Deu algum trabalho, mas por fim os olhos do garoto se abriram. Aquilo ainda não bastava para Roland. Ele agarrou os ombros de Patrick e puxou-o para uma posição sentada. Quando o garoto tentou desabar de novo, Roland tornou a sacudi-lo. Com força. Patrick olhou para Roland com um ar de atordoada incompreensão.

— Ajude-me a atiçar o fogo, Patrick.

Fazer isso devia despertá-lo pelo menos um pouco. E assim que a fogueira estivesse de novo brilhando, Patrick teria de fazer uma breve vigília. Roland não gostava da idéia, sabia perfeitamente bem que deixar Patrick encarregado de uma vigília noturna seria perigoso, mas tentar dar conta do resto da vigília até o raiar do dia seria ainda mais perigoso. Precisava dormir. Uma hora ou duas bastavam e certamente Patrick poderia ficar acordado esse tempo.

Patrick estava esperto o suficiente para reunir alguns gravetos e jogá-los na fogueira, embora se movesse como um zumbi — um cadáver reanimado. E quando o fogo melhorou, desabou com os braços entre os joelhos ossudos no mesmo lugar onde estivera, já mais adormecido que acordado. Roland achou que talvez tivesse realmente de esbofetear o rapaz para deixá-lo alerta e mais tarde lamentou — amargamente — não ter feito exatamente isso.

— Patrick, me escute. — Balançou Patrick pelos ombros com força suficiente para fazer o cabelo comprido esvoaçar, mas uma parte caiu na frente dos olhos do garoto. Roland o afastou. — Preciso que fique acordado para fazer a vigília. Só por uma hora... só até... Levante os olhos, Patrick! Olhe! Deuses, você não vai ter coragem de dormir de novo! Está vendo lá em cima? A estrela mais brilhante de todas as que estão perto de nós!

Era para a Velha Mãe que Roland apontava e Patrick abanou de imediato a cabeça. Agora havia um brilho de interesse em seu olho e o pistoleiro achou que isso era encorajador. Era o olhar “eu quero desenhar” de Patrick. E se estava disposto a desenhar a Velha Mãe enquanto ela brilhava naquele largo espaço entre os dois galhos do maior choupo morto, então havia possibilidades reais de que ficasse desperto. Talvez até o amanhecer, se ficasse plenamente absorvido pelos desenhos.

— Fique aqui, Patrick. — Fez o rapaz se sentar contra o tronco da árvore. Um tronco descarnado, cheio de nódulos e (esperava Roland) suficientemente desconfortável para impedir o sono. Roland fazia todos esses movimentos mais ou menos como alguém se deslocando embaixo d’água. Oh, estava cansado. Muito cansado. — Ainda vê a estrela?

Patrick abanou enfaticamente a cabeça. Parecia ter realmente se desfeito da sonolência e o pistoleiro agradeceu aos deuses por aquela dádiva.

— Quando a estrela ficar atrás daquele galho mais grosso e você não conseguir mais enxergá-la, nem desenhá-la sem se levantar... pode me chamar. Acorde-me, por mais difícil que seja. Está entendendo?

Patrick assentiu de imediato, mas Roland já viajara bastante com ele para saber que tal abano de cabeça significava pouco ou nada. Ávido para agradar, era isso. Se alguém lhe perguntasse se nove mais nove eram igual a 19, abanaria a cabeça com o mesmo entusiasmo instantâneo.

— Quando não conseguir mais vê-la de onde está sentado... — Agora suas palavras pareciam vir de muito longe. Tinha simplesmente de torcer para que Patrick entendesse. Pelo menos o rapaz sem língua havia pegado o bloco e um lápis recentemente apontado.

É minha melhor garantia, a mente de Roland sussurrou enquanto ele cambaleava para seu pequeno amontoado de peles entre a fogueira e o Ho Fat II. Não vai cair no sono enquanto estiver desenhando, certo?

Esperava que não, mas não tinha certeza absoluta. E não importava, porque ele, Roland de Gilead, ia dormir de um modo ou de outro. Fizera o máximo que pudera e isso teria de bastar.

— Uma hora — ele murmurou e sua voz soou distante, muito pequena a seus próprios ouvidos. — Me acorde daqui a uma hora... quando a estrela... quando a Velha Mãe for para trás...

Mas Roland não conseguiu terminar. Nem sabia mais o que estava dizendo. A exaustão se apoderou dele e rapidamente o transportou para um sono sem sonhos.

 

Mordred viu aquilo tudo através dos olhos de vidro que enxergavam longe. A febre tinha aumentado e, em sua chama brilhante, a sua própria exaustão havia pelo menos partido temporariamente. Observou com ávido interesse o pistoleiro acordar o rapaz mudo — o Artista — e instigá-lo a lhe dar ajuda para atiçar o fogo. Observou torcendo para que o mudo concluísse sua tarefa e voltasse a dormir antes que o pistoleiro pudesse detê-lo. Isto não aconteceu, infelizmente. Tinham acampado perto de um grupo de choupos descarnados e Roland conduziu o Artista para a árvore maior. Ali apontou para o céu. Estava salpicado de estrelas, mas Mordred percebeu que o Velho Papai Pistoleiro Branco indicava a Velha Mãe, que era a mais brilhante. Por fim o Artista, que não parecia ter todos os parafusos no lugar (pelo menos não no departamento dos miolos), pareceu compreender. Estendeu a mão para o bloco e já tinha começado a fazer algum esboço quando o Velho Papai Branco cambaleou uma pequena distância, sempre murmurando instruções e ordens às quais o Artista não estava, sem a menor dúvida, dando absolutamente a mínima. O Velho Papai Branco desabou tão de repente que, por um momento, Mordred teve medo que a tira de carne seca que servia ao filho-da-puta como coração tivesse finalmente desistido de bater. Então Roland se mexeu na relva, se acomodando melhor, e Mordred, deitado num outeiro cerca de 90 metros a oeste do leito seco do riacho, sentiu sua própria batida de coração diminuir. E por mais profunda que pudesse ser a exaustão do Velho Papai Pistoleiro Branco, sua longa linhagem, que retrocedia até as origens no próprio Eld, e seu treinamento seriam suficientes para despertá-lo de revólver na mão no segundo exato em que o Artista desse um de seus gritos sem palavras, mas diabolicamente altos. A cólica se apoderou de Mordred, a pior de todas. Ele se dobrou, lutando para manter a forma humana, lutando para não gritar, lutando para não morrer. Ouviu outro daqueles longos ruídos fracos que vinham de baixo e sentiu mais um pouco do encaroçado ensopado marrom escorrer pelas suas pernas. Mas o nariz, sobrenaturalmente aguçado, cheirou mais do que excremento naquele novo caldo; desta vez havia cheiro de sangue além do cheiro de merda. Achou que a dor não ia acabar nunca, que continuaria aprofundando até rasgá-lo em dois, mas por fim ela começou a afrouxar. Olhou para sua mão esquerda e não ficou de todo surpreso ao ver que os dedos tinham escurecido e se fundido. Nunca mais voltariam à forma humana aqueles dedos; acreditava que só lhe sobrava uma única metamorfose. Mordred limpou o suor da testa com a mão direita e levou de novo o bin-dóculo aos olhos, rezando ao Papai Vermelho para que o bobo do garoto mudo tivesse adormecido. Mas ele não dormia. Estava recostado no tronco do choupo, olhando entre os galhos e desenhando a Velha Mãe. Aquele foi o momento em que Mordred Deschain mais se aproximou do desespero. Como Roland, achou que desenhar era a única coisa capaz de manter o idiota do garoto acordado. Por conseguinte, por que não ceder à troca enquanto ainda tinha o calor daquele último pico de febre para abastecê-lo com sua energia destrutiva? Por que não se arriscar? Era Roland que ele queria, afinal, não o garoto; certamente podia, em forma de aranha, precipitar-se sobre o pistoleiro com rapidez suficiente para agarrá-lo e puxá-lo contra a boca suplicante. O Velho Papai Branco poderia disparar um tiro, quem sabe dois, mas Mordred achou que poderia sobreviver a um ou dois tiros, se os pedaços de chumbo esvoaçando não encontrassem o nódulo tranco nas suas costas de aranha: o cérebro do corpo duplo. E assim que eu o puxar para dentro, não vou soltá-lo até deixá-lo completamente seco, até transformá-lo numa múmia de pó como aquela outra figura, Mia. Relaxou, pronto para deixar a mudança se apoderar dele e então outra voz falou do centro de sua mente. Era a voz do Papai Vermelho, o que estava aprisionado ao lado da Torre Negra e precisava de Mordred vivo, pelo menos por mais um dia, para poder libertá-lo.

Espere mais algum tempo, aconselhava aquela voz. Espere um pouco mais. Quem sabe não tenho outro truque na manga. Espere... espere só um pouco mais...

Mordred esperou. E após um momento ou dois, sentiu a pulsação vinda da Torre Negra se alterar.

 

Patrick também sentiu aquela alteração. A pulsação passava uma tranqüilidade. E havia palavras nela, palavras que diminuíam sua avidez para desenhar. Ele completou outro traço, parou, pôs o lápis de lado e ficou simplesmente contemplando a Velha Mãe, que parecia estar pulsando no ritmo das palavras que ele ouvia em sua cabeça, palavras que Roland teria reconhecido. Só que eram cantadas pela voz de um velho, trêmulas mas melodiosas:

 

Bebê-cabeça, bebê querido,

Outro dia ido.

Sejam alegres, amáveis teus sonhos de agora,

Sejam sonhos de campos e amoras.

Bebê amado, bebê-cabeça,

Bebê me traga aqui suas frutas.

Oh chussit, chissit, chassit!

Traga o bastante para encher a cesta!

 

A cabeça de Patrick se inclinou. Seus olhos se fecharam... se abriram... acabaram se fechando de novo.

O bastante para encher minha cesta, ele pensou e adormeceu à luz da fogueira.

 

 

NOVE

 

Agora, meu bom filho, sussurrou a voz fria no meio dos miolos quentes, quase derretendo de Mordred. Agora. Vá até ele e garanta que jamais acorde de seu sono. Mate-o entre as rosas e governaremos juntos.

Mordred saiu do esconderijo, o binóculo caindo da mão que não era mais absolutamente mão. Enquanto ele se transformava, uma sensação de enorme confiança lhe varreu o corpo. Mais um minuto e tudo estaria acabado. Os dois dormiam e não havia como fracassar.

Correu para o acampamento e para os homens adormecidos, pesadelo negro de sete pernas, a boca se abrindo e fechando.

 

 

DEZ

 

Em algum lugar, a milhares de quilômetros de distância, Roland ouviu o latido alto e urgente, furioso, selvagem. A mente exausta tentou se desviar dele, apagá-lo e voltar para o fundo do sono. Então houve um horrível grito de agonia que o acordou num segundo. Conhecia aquela voz, mesmo tão distorcida pela dor.

— Oi! — ele gritou dando um salto. — Oi, onde está você? Venha aqui! Venha a...

Ali estava ele se contorcendo no aperto da aranha. Ambos claramente visíveis à luz da fogueira. Atrás deles, encostado no tronco do choupo, Patrick olhava estupidamente através de uma cortina de cabelo que logo estaria imundo novamente, já que Susannah se fora. O trapalhão se mexia furiosamente de um lado para o outro tentando dar dentadas no corpo da aranha, espuma saindo de seus maxilares, ao passo que Mordred o dobrava de um jeito pelo qual seu lombo jamais fosse projetado.

Se ele não tivesse saído correndo da relva alta, Roland pensou, eu é que estaria nas garras de Mordred.

Oi sentiu seus dentes mergulharem fundo numa das pernas da aranha. À luz da fogueira Roland pôde ver as covinhas, do tamanho de moedas, dos músculos dos maxilares do trapalhão enquanto ele mascava cada vez mais fundo. A coisa deu um grito agudo e o aperto afrouxou. Nesse momento Oi podia ter se livrado, se tivesse optado por isso. Ele não o fez. Em vez de pular para o chão e correr aproveitando o momento de liberdade antes que Mordred fosse capaz de agarrá-lo de novo, Oi usou o tempo para esticar o pescoço comprido e se apoderar do ponto onde uma das pernas da coisa juntava-se a seu corpo inchado. Mordeu com força, provocando o fluxo de um líquido vermelho-escuro que vazava fartamente pelos lados de seu focinho. A luz da fogueira o líquido brilhou com cintilações laranja. Mordred gritou ainda mais alto. Tinha deixado Oi fora de seus cálculos e agora pagava o preço. Sob a luz da fogueira, as duas formas que se contorciam eram figuras de um pesadelo.

Em algum lugar por perto, Patrick piava de horror.

Afinal o inútil filho-da-puta acabou dormindo, Roland pensou amargamente. Mas quem o deixara como vigia?

— Solte-o, Mordred! — Roland gritou. — Solte-o e deixo você viver outro dia! Juro em nome de meu pai!

Olhos vermelhos, cheios de insanidade e malvadez, o espreitaram sobre o corpo contorcido de Oi. Acima deles, no alto do lombo da aranha, havia minúsculos olhos azuis, pouco mais que furos de alfinetes. Encaravam o pistoleiro com uma raiva sem dúvida demasiado humana.

Meus próprios olhos, Roland pensou angustiado e, então, houve um estalo doloroso. Era a coluna de Oi, mas apesar do ferimento mortal ele não afrouxou a mordida no ponto onde a perna de Mordred se articulava ao corpo, embora as cerdas do pêlo, fortes como aço, já tivessem levado grande parte de seu focinho, deixando à mostra dentes afiados que às vezes se fecharam no pulso de Jake com suave carinho, puxando-o até alguma coisa que Oi queria que o menino visse. Ake!, ele gritava em tais ocasiões. Ake-Ake!

A mão direita de Roland caiu para o coldre e encontrou-o vazio. Foi só então, horas após ela ter ido embora, que Roland percebeu que Susannah levara um de seus revólveres para o outro mundo. Bom, ele pensou. Bom. Se foi de fato a escuridão que ela encontrou, haveria cinco balas para as coisas que visse por lá e a última para si própria. Bom.

Mas este pensamento foi também vago e distante. Puxava o outro revólver quando Mordred se agachou nas patas traseiras e usou a perna média restante, curvando-a ao redor da barriga de Oi e puxando o trapalhão, ainda rosnando, para longe da perna rasgada e ensangüentada. A aranha torceu o corpo peludo para cima numa horrível espiral. Por um momento tapou o farol brilhante que era a Velha Mãe. Então Mordred arremessou Oi para longe e Roland teve um momento de déjà vu, lembrando-se de que vira aquilo muito tempo atrás, na bola de cristal do mago. Oi descreveu um arco pela borda do clarão da fogueira e foi empalado num dos galhos do choupo cuja ponta o próprio pistoleiro havia cortado para servir de lenha. Oi deu um terrível grito de dor — um grito de morte — e ficou ali pendurado, suspenso, mole, sobre a cabeça de Patrick.

Mordred avançou para Roland sem uma pausa, mas o ataque foi uma coisa vagarosa, trôpega; levara um tiro numa das pernas minutos após seu nascimento e agora tinha outra perna flácida, quebrada, as pinças se contraindo espasmodicamente enquanto se arrastavam pela relva. O olho de Roland nunca estivera mais claro, o frio que o cercava em momentos como aquele nunca fora mais profundo. Viu o nódulo branco e os olhos azuis de artilheiro e eram seus olhos. Viu a face de seu único filho espreitando sobre o lombo da abominação e de repente ela desapareceu num jato de sangue quando sua primeira bala a atingiu. A aranha se empinou, as patas se agitando para o céu escuro e salpicado de estrelas. As duas balas seguintes de Roland entraram na barriga levantada e saíram pelas costas, puxando com elas borrifos de um líquido escuro. A aranha virou para o lado, talvez tentando correr, mas suas pernas restantes não lhe deram apoio. Mordred Deschain caiu no fogo, lançando no ar uma tira de centelhas vermelhas e alaranjadas. Ficou se contorcendo nas brasas, os pêlos rijos da barriga começando a queimar, e Roland, sorrindo amargamente, atirou de novo. A aranha moribunda rolou de costas para fora do fogo agora espalhado, as pernas que lhe restavam se contraindo num nó e depois se soltando. Uma caiu no fogo e começou a arder. O cheiro era atroz.

Roland deu um passo à frente para abafar com as botas o foguinho que brasas espalhadas tinham iniciado na relva e então um uivo de ultraje e fúria surgiu em sua cabeça.

Meu filho! Meu filho único! Você o assassinou!

— Ele era meu também — disse Roland contemplando a monstruosidade que queimava em fogo lento. Podia confessar a verdade. Sim, pelo menos isso podia fazer.

Venha então! Venha, matador do próprio filho, e olhe para sua Torre, mas saiba de uma coisa: você morrerá velho na beirada do Can’-Ka sem conseguir sequer encostar a mão na porta! Jamais o deixarei passar! O próprio espaço todash passará antes que eu deixe você passar! Assassino! Assassino de sua mãe, assassino de seus amigos — sim, cada um deles, pois Susannah jaz com a garganta cortada do outro lado da porta que você a fez atravessar — e agora assassino do próprio filho!

— Quem o mandou para mim? — Roland perguntou à voz em sua cabeça. — Quem mandou aquela criança... pois é o que ele era por dentro daquela pele escura... para a morte, seu fantasma vermelho?

A isto não houve resposta, então Roland pôs o revólver no coldre e apagou os focos de fogo antes que pudessem se espalhar. Pensando no que a voz havia dito sobre Susannah, concluiu que não acreditava nela. Susannah podia estar morta, sim, podia estar, mas achava que o Pai Vermelho de Mordred tinha tanta certeza disso quanto ele mesmo.

O pistoleiro se livrou deste pensamento e se aproximou da árvore, onde o último membro de seu ka-tet estava pendurado, empalado... mas ainda vivo. Os olhos cercados de dourado contemplaram Roland com o que quase parecia uma exausta expressão de divertimento.

— Oi — disse Roland, esticando a mão, sabendo que podia ser mordido e não dando a isso a menor importância. Achou que parte dele (e, aliás, não uma parte pequena) queria ser mordida. — Oi, todos nós dizemos obrigado. Eu digo obrigado, Oi!

O trapalhão não mordeu e só pronunciou uma palavra.

— Olan. — Depois suspirou, lambeu a mão do pistoleiro uma única vez, baixou a cabeça e morreu.

 

Quando a aurora se firmou na luz clara da manhã, Patrick foi num passo hesitante para perto do pistoleiro, que estava sentado no leito seco do riacho, entre as rosas, o corpo de Oi esticado no colo como um xale. O rapaz soltou um piado baixo, indagador.

— Não agora, Patrick — disse Roland num tom ausente, alisando o pêlo de Oi. Era espesso, mas suave ao toque. Achou difícil acreditar que a criatura embaixo daquele pêlo se fora, a despeito dos músculos se enrijecendo e dos pontos dilacerados onde o sangue havia agora coagulado. Penteou o melhor que pôde com os dedos aquele pêlo suave. — Não agora. Temos todo o santo dia para chegar lá e vamos nos dar bem.

Não, não havia necessidade de correr, nenhuma razão para não prantear calmamente o último de seus mortos. Não havia dúvida na voz do velho Rei quando ele prometeu que Roland morreria de velhice antes de conseguir sequer encostar a mão na porta que havia na base da Torre. Eles iriam, é claro, e Roland estudaria o terreno. Agora, no entanto, percebia que aquela idéia de chegar à Torre por um lado não observado pelo velho monstro e depois contorná-la não era absolutamente uma idéia, mas uma esperança de tolo. Não havia dúvida na voz do velho vilão; e também não havia dúvida escondida atrás da voz.

Por enquanto nada daquilo tinha importância. Lá estava outra criatura que ele matara e, se houvesse alguma consolação na coisa, era simplesmente isto: Oi seria o último. Agora estava de novo sozinho, excetuando, é claro, Patrick. O pistoleiro tinha a impressão de que Patrick era imune ao terrível germe que ele carregava, pois, para começar, nunca fizera parte do ka-tet.

Só mato minha família, Roland pensou, alisando o zé-trapalhão morto.

O que mais doía era se lembrar de como falara áspero com Oi na véspera: Se querias ir com ela, devias ter ido quando tiveste a chance!

Teria o trapalhão ficado por saber que Roland ia precisar dele? Que quando a barra pesasse (uma expressão de Eddie, é claro), Patrick não ia dar conta do recado?

Por que atiras agora contra mim. a nuvem triste dos teus olhos?

Porque ele sabia que aquele ia ser seu último dia e sua morte seria difícil?

— Acho que você sabia das duas coisas — disse Roland e fechou os olhos para poder sentir melhor o pêlo embaixo das mãos. — Não imaginas como me arrependo de ter falado contigo daquele jeito... Daria os dedos da minha mão esquerda saudável para poder retirar aquelas palavras. Daria mesmo, um por um, é sério.

Mas ali, como no Mundo-chave, o tempo corria numa única direção. O que estava feito estava feito. Não havia segunda chance.

Roland teria dito que nenhuma raiva sobrava, que cada migalha dela também ardera, mas, quando sentiu a comichão por toda a pele e compreendeu o que ele significava, sentiu uma fúria brotar renovada em seu coração. E sentiu a frieza se instalar em suas mãos cansadas, mas ainda talentosas.

Patrick o estava desenhando! Sentado sob o choupo, como se uma brava criaturinha, que valia por dez dele — não, por cem! —, não tivesse morrido naquela mesma árvore, e ter morrido por ambos.

É o jeito dele, Susannah falou calma e amavelmente do fundo de sua mente. É tudo que ele tem, tudo o mais lhe foi tomado — seu mundo natal assim como sua mãe, sua língua e o cérebro que tivera antigamente. Ele também está de luto, Roland. E também está assustado. Este é o único meio que tem de se tranqüilizar.

Tudo verdade, sem a menor dúvida. Mas a verdade acabava alimentando sua raiva em vez de amortecê-la. Pôs de lado o revólver que lhe restava (que ficou brilhando entre duas das rosas cantantes) porque tê-lo à mão não seria bom, não, não em seu atual estado de espírito. Então ficou de pé, pretendendo fazer Patrick escutar o maior sermão da vida dele, nem que fosse apenas para se sentir um pouco melhor. Já podia ouvir as primeiras palavras: Gostas de desenhar aqueles que salvaram tua vida absolutamente inútil, garoto burro? Isto alegra teu coração?

Estava abrindo a boca para começar quando Patrick pousou o lápis e pegou o novo brinquedo. A borracha já estava meio gasta e não havia outras; assim como a arma de Roland, Susannah tinha levado com ela os pedacinhos rosados de borracha, provavelmente pelo simples fato de estar carregando o frasco no bolso e ter a mente ocupada com outros assuntos mais importantes. Patrick pôs a borracha sobre o desenho, depois ergueu os olhos — talvez para se certificar de que queria realmente apagar — e viu o pistoleiro parado no leito do riacho, a cara fechada para ele. Patrick percebeu de imediato que Roland estava aborrecido, embora provavelmente não fizesse a menor idéia de por quê, sua face se contraiu de medo e infelicidade. Roland o via agora como Dandelo o devia muitas vezes ter visto e sua raiva desmoronou ante este pensamento. Não queria que Patrick tivesse medo dele... Por respeito a Susannah, se não a si mesmo, não queria que Patrick tivesse medo dele.

E descobriu que era, afinal, por respeito a ele próprio.

Por que não matá-lo, então?, perguntou a voz manhosa, pulsando em sua cabeça. Matá-lo e livrá-lo de seu sofrimento se estás sentindo tanto carinho por ele? Ele e o trapalhão podem entrar juntos na clareira. E podem reservar ali um lugar para você, pistoleiro.

Roland balançou a cabeça e tentou sorrir.

— Não, Patrick, filho de Sônia — disse ele (pois era como Bill, o robô, havia chamado o garoto). — Não, eu estava errado... de novo... e não vou te repreender. Mas...

Caminhou para onde Patrick estava sentado. Patrick se encolheu humilde, com um sorriso conciliador de cachorrinho, o que tornou a deixar Roland completamente irado, mas desta vez ele reprimiu facilmente a emoção. Patrick também gostara de Oi e aquele era o único meio que tinha de lidar com sua dor.

O que agora pouco importava a Roland.

Baixou a mão e tirou suavemente a borracha dos dedos do garoto. Patrick olhou-o com ar indagador e estendeu a palma da mão vazia, pedindo com os olhos que o maravilhoso (e útil) brinquedo novo fosse devolvido.

— Negativo — disse Roland, o mais gentil que pôde. — Só os deuses sabem quantos anos você passou sem ter a menor idéia de que essas borrachas existiam; acho que pode passar o resto de um dia sem esta. Talvez haja alguma coisa para você desenhar... e depois apagar... mais tarde. Está entendendo, Patrick?

Patrick não entendia, mas depois de Roland pôs a borracha na segurança de seu bolso, ao lado do relógio, o rapaz pareceu se esquecer do assunto e simplesmente voltou ao desenho.

— Deixe também um pouco este desenho de lado — disse Roland.

Patrick obedeceu sem discutir. Apontou primeiro para o carrinho, depois para a Torre Negra e soltou aquele piado indagador.

— Vamos — disse Roland —, mas primeiro devemos ver o que Mordred tinha como bagagem... pode haver alguma coisa útil. E temos de enterrar nosso amigo. Vai me ajudar a colocar Oi debaixo da terra, Patrick?

Patrick ajudou de boa vontade e o enterro não demorou muito; o corpo era muito menor que o coração que havia nele. Pelo meio da manhã tinham começado a cobrir os últimos e poucos quilômetros da longa estrada que levava à Torre Negra.

 

O REI RUBRO E A TORRE NEGRA

Tanto a estrada quanto a história têm sido longas, você não concordaria? A viagem tem sido longa e o custo tem sido alto... mas nunca uma coisa grande foi alcançada com facilidade. Uma longa história, como uma Torre alta, tem de ser construída pedra por pedra. Agora, porém, quando chegamos mais perto do fim, é preciso observar aqueles dois viajantes caminhando para nós com grande cuidado. O homem mais velho — o que tem a cara bronzeada, enrugada, e o revólver na cinta — está puxando o carrinho que chamam de Ho Fat II. O mais novo — com o imenso bloco de desenho enfiado sob o braço, o que o deixa parecido com um estudante de antigamente — está andando ao lado do veículo. Sobem o aclive suave, comprido, de um morrote, não muito diferente das centenas de outros que já subiram. A estrada meio invadida pela vegetação que seguem está cheia, de ambos os lados, dos restos de muros de pedra; rosas silvestres crescem em bonita profusão entre as pedras caídas. Pelos terrenos marcados de mato, além daqueles muros caídos, há estranhas construções de pedra. Alguns lembram as ruínas de castelos, outros têm a aparência de obeliscos egípcios, outros ainda são claramente Círculos Falantes do tipo onde demônios podem ser invocados; uma antiga ruína com colunas e pedestais de pedra tem a aparência de Stonehenge. Quase esperaríamos ver druidas encapuzados reunidos no centro daquele grande círculo, quem sabe jogando as runas, mas os zeladores desses monumentos, esses precursores do Grande Monumento, estão todos desaparecidos. Só pequenos rebanhos de bisões pastam ali, onde se faziam cultos.

Não importa. Não é para velhas ruínas que queremos olhar perto do fim de nossa longa jornada, mas para o velho pistoleiro puxando as alças do carro. Parados na crista da lombada, esperamos que ele venha até nós. Ele vem. E vem. Implacável como sempre, um homem que sempre aprende a falar a linguagem da terra (pelo menos um pouco dela) e a lidar com os costumes do país; é também um homem que endireitaria os quadros em anônimos quartos de hotel. Muita coisa nele mudou, mas não isso. Ele chega ao topo da lombada, agora tão próximo de nós que podemos sentir o cheiro ácido de seu suor. Ergue a cabeça, o olhar rápido e automático que costuma atirar primeiro para cima e depois para os lados quando chega ao topo de qualquer colina... Verifiquem sempre sua posição era a norma de Cort e o último de seus alunos ainda não a esquecera. Olha para cima sem interesse, depois para baixo... e pára. Após um momento contemplando o calçamento rachado, infestado de mato da estrada, torna a erguer os olhos, desta vez mais devagar. Muito mais devagar. Como se com medo do que já possa ter visto.

E é aqui que temos de nos juntar a ele (mergulhar dentro dele), embora verificar a posição do coração de Roland num momento como este, quando a meta obsessiva de sua existência finalmente está à vista, seja mais do que este pobre contador de histórias pode fazer. Certos momentos estão além da imaginação.

 

Roland ergueu rapidamente os olhos quando chegou ao topo da lombada, não porque esperasse problemas, mas porque o hábito estava arraigado demais para ser rompido. Verifiquem sempre sua posição, dizia Cort, martelando isso em suas cabeças desde quando eram pouco mais que bebês. Ele se virou e olhou a estrada que deixara para trás (ficava cada vez mais difícil passar entre as rosas sem esmagar nenhuma, embora, pelo menos até aquele ponto, tivesse conseguido fazer o truque). Então, num reflexo atrasado, percebeu o que acabara de ver.

O que você pensou que viu, Roland disse a si mesmo, ainda olhando para a estrada, provavelmente é apenas outra das estranhas ruínas por que passamos desde que começamos de novo a andar.

Mas Roland já havia percebido que não era assim. O que tinha visto não estava nem de um lado nem de outro da Torre Negra, mas bem à frente.

Ergueu de novo a cabeça, ouvindo o pescoço ranger como dobradiças numa porta velha. Ali, quilômetros ainda à frente mas já visível no horizonte, real como as rosas, estava o topo da Torre Negra. O que Roland vira em mil sonhos enxergava agora com os olhos vivos. Sessenta ou 80 metros à frente, a estrada subia para uma colina mais alta, onde um antigo Círculo Falante se desfazia em hera e madressilva de um lado e desaguava num pequeno bosque de pau-ferro do outro. No centro daquele horizonte próximo, a forma escura se elevava, borrando uma minúscula porção de céu azul.

Patrick parou ao lado de Roland e soltou um de seus piados.

— Está vendo isto? — Roland perguntou. A voz era seca, entrecortada pelo assombro. Então, antes que Patrick pudesse responder, o pistoleiro apontou para o que o garoto usava no pescoço. No fim das contas, o binóculo tinha sido o único item na ínfima tralha de Mordred que valera a pena pegar.

— Passe pra mim, Pat.

Patrick obedeceu de bom grado. Roland levou o binóculo aos olhos, fez um ajuste mínimo na peça móvel do foco e prendeu a respiração quando o topo da Torre entrou no campo de visão. Parecia suficientemente próximo para ser tocado. Que parte do topo estava aparecendo no horizonte? Para quanto da Torre estava olhando? Seis metros? Talvez 15? Não sabia, mas podia ver pelo menos três das estreitas fendas de janelas que ascendiam em espiral pelo corpo da Torre. E podia ver, lá no alto, uma sacada, suas muitas cores cintilando no sol da primavera e seu centro escuro parecendo espreitar de volta através do próprio binóculo, como o Olho do Todash.

Patrick piou e estendeu a mão para o binóculo. Queria dar sua própria olhada e Roland passou o binóculo sem um murmúrio. Sentia-se tonto, não realmente ali. Ocorreu-lhe que tinha às vezes se sentido assim nas semanas que precederam sua batalha com Cort, como se fosse um sonho ou um raio de luar. Sentira algo chegando, alguma grande alterado, e era isso que estava experimentando naquele momento.

Lá está, ele pensou. Lá está meu destino, o fim da estrada de minha vida. E contudo meu coração ainda bate (um pouco mais rápido que antes, é verdade), meu sangue ainda corre e sem dúvida quando me curvo para agarrar as alças deste mal abençoado carrinho minhas costas gemem e pode ser que eu solte um pouquinho de gás. Absolutamente nada mudou.

Esperou pelo desapontamento que este pensamento certamente pressagiava — a decepção. Ela não veio. O que sentiu foi uma estranha, difusa exaltação que parecia começar em sua mente e depois se espalhar para os músculos. Pela primeira vez, desde que pegaram o caminho no meio da manhã, as imagens de Oi e Susannah deixaram sua mente. Sentia-se livre.

Patrick baixou o binóculo. Quando voltou a olhar para Roland, havia uma vibração em seu rosto. Apontou para a coluna escura despontando no horizonte e deu um piado.

— Sim — disse Roland. — Algum dia, em algum mundo, alguma versão de você vai pintá-la, juntamente com Llamrei, o cavalo de Arthur Eld. Isto eu sei, pois tenho tido a prova. E agora, é onde temos de ir.

Patrick piou de novo, depois mostrou um ar meio ansioso. Pôs as mãos nas têmporas e balançou a cabeça de um lado para o outro, como alguém que tivesse uma terrível dor de cabeça.

— Sim — disse Roland. — Também tenho medo. Mas para isso não há saída. Tenho de ir lá. Quer ficar aqui, Patrick? Ficar esperando por mim? Se quiser, dou licença para que fique.

Patrick balançou de imediato a cabeça numa negativa. E, para o caso de Roland não ter entendido bem, o garoto mudo se agarrou com força no braço dele. A mão direita, a mão com que desenhava, era como aço.

Roland abanou a cabeça. Chegou a tentar sorrir.

— Sim — disse ele —, está ótimo. Fique comigo pelo tempo que quiser. Mas entenda que, no final, terei de avançar sozinho.

 

Agora, à medida que passavam de cada depressão de terreno a cada novo topo de morro, a Torre Negra parecia brotar mais perto. Um número maior de janelas subindo em espiral pela grande circunferência ia ficando visível. Roland pôde ver dois mastros de aço saindo do topo. As nuvens que seguiam os caminhos dos dois Feixes em funcionamento pareciam irromper das portas, formando uma grande forma de X no céu. As vozes ficaram mais altas e Roland percebeu que estavam cantando os nomes do mundo. De todos os mundos. Não entendia como ele podia saber disso, mas tinha certeza. Aquela sensação de leveza continuava a dominá-lo. Finalmente, quando atingiram a crista de uma colina onde, à esquerda, havia grandes homens de pedra em marcha para o norte (o que sobrava de suas faces, pintadas num tom vermelho-sangue, olhava fixamente para eles), Roland mandou Patrick subir no carrinho. Patrick pareceu surpreso. Soltou uma série de piados que Roland achou que significavam: Mas você não está cansado?

— Estou, mas mesmo assim preciso de uma âncora. Sem isso, sou capaz de começar a correr para aquela Torre, embora parte de mim saiba que isso não seria muito inteligente. E se a boa e simples exaustão não estourar meu coração, o Rei Vermelho é capaz de tirar minha cabeça com um dos seus brinquedos. Suba, Patrick!

Patrick obedeceu. Viajou arqueado para a frente, os binóculos pressionados contra os olhos.

 

Três horas mais tarde, chegaram ao sopé de um morrote muito mais íngreme. Era, dizia o coração de Roland, a última subida. O Can’-Ka No Rey estava do outro lado. No topo, à direita, havia um monte de pedras que outrora formavam uma pequena pirâmide. O que sobrava chegaria talvez a 10 metros de altura. Rosas cresciam ao redor da base num rude anel escarlate. Mirando naquilo, Roland subiu devagar a colina, puxando o carrinho pelas alças. A partir de certo ponto, o topo da Torre Negra de novo apareceu. Cada passo trazia uma extensão maior da Torre para seu campo de visão. Agora já podia ver as sacadas com parapeitos na altura da cintura. Não era preciso usar o binóculo; o ar estava extraordinariamente claro. Calculou em no máximo 8 quilômetros a distância que faltava vencer. Talvez não passasse de 5. Nível após nível da Torre surgia ante seu olhar, um olhar não de todo descrente.

Bem próximo do topo da colina, com a arruinada pirâmide de pedras sempre à direita, agora a vinte passos deles, Roland parou, se curvou e pousou pela última vez as alças do carrinho na estrada. Cada nervo de seu corpo falava de perigo.

— Patrick? Pule.

Patrick obedeceu, olhando ansioso para o rosto de Roland e piando. O pistoleiro balançou a cabeça.

— Ainda não posso dizer por quê. Mas sei que aqui não é seguro. — As vozes cantavam num grande coro, mas o ar ao redor estava parado. Nem um só pássaro voava nos ares ou cantava na distância. Todas as manadas errantes de bisões tinham sido deixadas para trás. Uma brisa sussurrava em volta deles e a relva se movia um pouco. As rosas inclinavam os caules silvestres.

Os dois seguiram juntos e, a certa altura, Roland sentiu um toque tímido nos dois dedos da mão direita. Olhou para Patrick. O garoto mudo olhava ansioso de volta, tentando sorrir. Roland pegou a mão dele e foi assim que chegaram à crista da colina.

Embaixo deles havia um grande manto vermelho que se estendia, em todas as direções, até o horizonte. A estrada passava através dele, uma faixa branca e empoeirada perfeitamente reta, com uns 4 metros de largura. No meio do campo de rosas, ficava a Torre com seu escuro tom cinzento de fuligem, exatamente como tinha aparecido nos sonhos de Roland; as janelas brilhavam no sol. Lá a estrada se bifurcava e executava um perfeito círculo branco ao redor da base da Torre para continuar seguindo pelo outro lado, na direção do que agora Roland acreditava ser precisamente o leste, em vez de sudeste. Outra estrada cruzava em ângulos retos a estrada da Torre: vinda do norte e do sul, se de fato, como ele acreditava, os pontos cardeais tivessem sido restabelecidos. Vista do ar, a Torre Negra pareceria o centro de uma mira de revólver cheio de sangue.

— É... — Roland começou e então um grito enlouquecido flutuou na brisa, estranhamente não abafado pelos quilômetros da distância. Avança pelo Feixe, Roland pensou. E é carregado pelas rosas.

— PISTOLEIRO! — gritou o Rei Rubro. — AGORA VOCÊ MORRE!

Houve um som assobiante, a princípio fraco, mas que logo aumentou. Foi cortando a canção combinada da Torre e das rosas como a lâmina mais afiada de todas já afiadas numa roda de pó de diamante. Patrick ficou atônito, espreitando mudamente para a Torre; teria sido explodido e ejetado das botas se não fosse salvo por Roland, cujos reflexos continuavam rápidos como sempre, puxando-o pelas mãos para trás do monte de pedras da pirâmide. Havia outras pedras ocultas na vegetação alta, de urtigas e erva-do-diabo; tropeçaram nelas e se estatelaram no chão. Roland sentiu a quina de um pedregulho se espetar dolorosamente em suas costelas.

Continuando a aumentar, o assobio ia se transformando num silvo de arrebentar os tímpanos. Roland viu o lampejo de alguma coisa dourada cortando o ar — um dos pomos de ouro. O projétil atingiu o carrinho e o fez explodir, espalhando para todo lado a tralha deles. A maioria das coisas acabou caindo na estrada; foram latas rolando e batendo umas nas outras, algumas estourando.

Então veio um riso alto, trepidante, que fez ranger os dentes de Roland; a seu lado Patrick tapava os ouvidos. A loucura naquele riso era quase insuportável.

— APAREÇA! — instigou a voz distante, enlouquecida, gargalhante. — APAREÇA E VAMOS BRINCAR, ROLAND! VENHA PARA MIM! VENHA AFINAL PARA SUA TORRE DEPOIS DE TÃO LONGOS ANOS, O QUE ME DIZ?

Patrick o encarava, olhos desesperados e assustados. Apertava o bloco de desenho contra o peito, como um escudo.

Espreitando cautelosamente por trás do canto da pirâmide, Roland viu, numa sacada dois andares acima da base da Torre, exatamente o que vira na pintura de sai Sayre: uma mancha vermelha e três manchas brancas; uma face e duas mãos erguidas. Mas aquilo não era pintura e uma das mãos fez um gesto rápido de quem atira alguma coisa. Outro zumbido infernal se elevou no ar. Roland rolou para trás contra os destroços da pirâmide. Depois de um intervalo que pareceu sem fim, o pomo de ouro atingiu o outro lado da pirâmide e explodiu. A onda de choque jogou-os de cara no chão. Patrick gritou aterrorizado. Rajadas de pedras caíram dos dois lados. Algumas bateram com força na estrada, mas Roland não viu ia única lasca atingindo uma só rosa.

O garoto se colocou de joelhos e parecia que ia sair correndo (prova-mente de volta à estrada), mas Roland o agarrou pela gola do casaco de pele, tornando a puxá-lo para baixo.

— Estamos bem seguros aqui — murmurou para Patrick. — Olhe!

Estendeu a mão para dentro de um buraco revelado pelas pedras que tinham se soltado e bateu no interior com os nós dos dedos. Houve um tilintar abafado e Roland mostrou os dentes num sorriso tenso. — Aço! Ié! Mesmo que ele acerte esta coisa com uma dúzia de suas bolas de fogo adoras, não vai conseguir derrubá-la. O máximo que vai conseguir é explodir a argamassa e as pedras, deixando exposto o que há por baixo, sabia disso? E não acho que ele vai desperdiçar munição. Não pode ter muito mais que um carregamento de burro.

Antes de Patrick ter tempo de responder, Roland tornou a espreitar ia beiradas irregulares da pirâmide. Fez concha com as mãos ao redor da boca e gritou:

— TENTE DE NOVO, SAI! CONTINUAMOS AQUI, MAS QUEM SABE VOCÊ NÃO TEM SORTE NO PRÓXIMO ARREMESSO!

Houve um momento de silêncio, depois um grito insano:

— AAAAAAAAAAH! NÃO SE ATREVA A DEBOCHAR DE MIM! NÃO SE ATREVA! AAAAAAAAAAH!

Então veio outro daqueles assobios crescentes. Roland agarrou Patrick e caiu em cima dele atrás da pirâmide, mas sem encostar nela. Teve medo que pudesse vibrar com força suficiente, quando chegasse o pomo de ouro, para fazer uma concussão ou transformar em geléia suas entranhas.

Só que desta vez o pomo de ouro não atingiu a pirâmide. Ele a ultrapassou, voando por cima da estrada. Roland se afastou de Patrick e rolou de costas. Seus olhos captaram a mancha dourada e marcaram o lugar onde ela completou um círculo e deu a volta para atingir seus alvos. Acertou-a no ar como um prato de argila. Houve um clarão de cegar e a coisa sumiu.

— OH MEU CARO, AINDA AQUI! — Roland gritou, lutando para r na voz a nota certa de diversão e zombaria. Não era fácil quando você estava gritando a plenos pulmões.

Outro grito enlouquecido em resposta: AAAAAAAAAH! Roland ficou espantado que o Rei Vermelho não rachasse a própria cabeça de uma ponta à outra com esses gritos. Tornou a carregar o tambor que esvaziara — pretendia manter o revólver carregado pelo tempo que desse — e desta vez enfrentou um duplo silvo. Patrick gemeu, rolou de barriga, mergulhou a cabeça na relva salpicada de pedras e cobriu-a com as mãos. Roland sentou-se com as costas contra a pirâmide de pedras e de aço, o cano comprido da pistola de largo calibre pousado na coxa, relaxado, à espera. Ao mesmo tempo voltou toda a sua força de vontade para um fim. Seus olhos queriam lacrimejar em resposta àquele silvo alto, cada vez mais próximo, mas não o podia permitir. Se alguma vez precisou da extraordinária agudez visual pela qual ficou conhecido em sua época, o momento era aquele.

E os olhos azuis ainda estavam claros quando os pomos de ouro passaram como raios sobre a estrada. Desta vez um fez a volta pela esquerda, o outro pela direita. Assumiram um procedimento evasivo, virando loucamente primeiro para um lado e depois para outro. Isso não fez diferença. Roland esperou, sentado com as pernas esticadas e as velhas botas rachadas empinadas tranqüilamente num V, o coração batendo com firmeza, mas devagar, o olho cheio de toda a claridade e colorido do mundo (se enxergasse um pouco melhor naquele último dia, talvez tivesse sido capaz de ver o vento). De repente sacou o revólver e fez explodir no ar ambos os pomos de ouro. Logo estava de novo recarregando os tambores vazios enquanto na frente de seus olhos, ao ritmo das batidas de seu coração, imagens retardadas ainda pulsavam.

Inclinou-se para o canto da pirâmide, puxou o binóculo, que apoiou num conveniente patamar de rocha, e espreitou em busca do inimigo. O Rei Rubro quase saltou para ele e, pela primeira vez na vida, Roland viu exatamente o que tinha imaginado: um velho com um enorme nariz em forma de gancho e tom de cera, lábios vermelhos brotando na neve de uma barba luxuriante, cabelo muito branco se derramando pelas costas quase até as nádegas esquálidas. A face rosada do Rei Rubro espreitava os dois peregrinos. Ele usava um manto de vermelho brilhante, salpicado aqui e ali com raios e símbolos cabalísticos. Para Susannah, Eddie e Jake, o Rei teria lembrado Papai Noel. Para Roland parecia o que era: o Inferno encarnado.

— COMO VOCÊ É LENTO! — gritou o pistoleiro num zombeteiro tom de assombro. — EXPERIMENTE TRÊS, TALVEZ COM TRÊS DE UMA VEZ VOCÊ ACERTE!

Olhar através do binóculo era como olhar numa ampulheta mágica inclinada para o lado. Roland viu o Grande Rei Vermelho dando saltos, sacudindo as mãos diante do rosto de um modo quase cômico. Roland achou que podia ver um caixote aos pés daquela figura coberta por um manto, mas não tinha certeza absoluta; as grades de ferro cheias de volutas entre o piso da sacada e o parapeito obscureciam a visão.

Só pode ser seu suprimento de munição, ele pensou. Só pode ser. Quantos projéteis teria ele num caixote daquele tamanho? Vinte? Cinqüenta? Não importava. A não ser que o Rei Vermelho conseguisse atirar mais de 12 pomos de uma só vez, Roland confiava que poderia explodir no ar qualquer coisa que o velho demônio colocasse no seu caminho. Era para isso, afinal, que ele fora feito.

Infelizmente o Rei Rubro sabia disso tão bem quanto Roland.

A coisa na sacada deu outro grito horrível, de rachar os tímpanos (Patrick tampou as orelhas sujas com os dedos sujos), e fez o gesto de quem se abaixava para pegar mais munição. De repente, no entanto, parou. Roland viu-o avançar para o parapeito da sacada... e espreitar diretamente para seus olhos. Era um olhar rubro, abrasador. O pistoleiro baixou o binóculo de imediato para não ficar hipnotizado.

A voz do Rei flutuou até ele.

— ESPERE ENTÃO, ESPERE UM POUCO... E REFLITA SOBRE O QUE VOCÊ PODE GANHAR, ROLAND! PENSE COMO ESTÁ PERTO DELE E... PRESTE ATENÇÃO! OUÇA A CANÇÃO QUE CANTA SUA AMADA!

Então o Rei caiu em silêncio. Nada mais de assobios, nada mais de zumbidos, nada mais de pomos de ouro chegando. O que Roland ouvia era o sopro do vento... e o que o Rei queria que ele ouvisse:

O chamado da Torre.

Venha, Roland, cantavam as vozes. Vinham das rosas do Can’-Ka No Rey, vinham dos Feixes se fortalecendo lá em cima, vinham principalmente da própria Torre, aquilo que Roland buscara a vida inteira, que estava agora, agora, por fim, a seu alcance... e que alguém queria manter longe dele. Se avançasse para a Torre, seria morto na área aberta. O chamado, no entanto, era como um anzol em sua mente, um anzol que puxava. O Rei Rubro sabia que se esperasse, a Torre faria seu trabalho. E, à medida que o tempo passava, Roland também percebeu isso. Porque as vozes que chamavam não eram constantes. No nível em que estavam naquele momento podia suportá-las. Na realidade as estava suportando. Mas ao passo que a tarde avançava, o timbre do chamado ficava mais forte. Ele começava a compreender — e com um horror crescente — por que nos seus sonhos e visões sempre se via chegando à Torre Negra ao pôr do sol, quando a luz no céu ocidental parecia refletir o campo de rosas, transformando tudo num balde de sangue suspenso por uma única escora, um sangue escuro como a meia-noite contra o horizonte ardente.

Ele se vira chegando ao pôr-do-sol porque era quando a chamada cada vez mais forte da Torre ia finalmente superar sua força de vontade. Ele iria. Nenhum poder sobre a Terra seria capaz de detê-lo.

O venha... venha... se transformava em VENHA... VENHA..., depois em VENHA! VENHA! Sua cabeça doía com aquilo. E por aquilo. Repetidamente se via ficando de joelhos, obrigando-se, mais uma vez, a sentar e permanecer encostado na pirâmide.

Patrick o encarava com medo crescente. O garoto era parcial ou completamente imune àquele chamado (Roland entendeu isto), mas sabia o que estava acontecendo.

 

Tinham ficado imóveis pelo que Roland julgava ter sido uma hora quando o Rei lançou outro par de pomos de ouro. Desta vez os projéteis passaram voando de ambos os lados da pirâmide e guinaram quase de imediato, dirigindo-se para Roland em formação perfeita, apenas 6 metros um do outro. Ele acertou o da direita, girou o pulso para a esquerda e fez também o outro explodir. A explosão do segundo foi próxima o bastante para fustigar seu rosto com ar quente, mas pelo menos não houve estilhaços; quando os pomos estouravam, parece que estouravam completamente.

— TENTE DE NOVO! — ele gritou. Sua garganta agora estava áspera e seca, mas ele sabia que as palavras estavam sendo bem transportadas; o ar daquele local era feito para esse tipo de comunicação. E sabia que cada palavra era uma adaga cravada na carne do velho lunático. Mas Roland tinha seus próprios problemas. A chamada da Torre estava ficando cada vez mais forte.

— VENHA, PISTOLEIRO! — aliciou a voz do maluco. — TALVEZ, AFINAL, EU TE DEIXE VIR! PODEMOS, PELO MENOS, PALESTRAR SOBRE O ASSUNTO, NÃO PODEMOS?

Para seu horror, Roland achou que estava sentindo uma certa sinceridade naquela voz.

Sim, ele pensou sombriamente. E podemos tomar um café. Ou beliscar, quem sabe, uma rosquinba.

Sua mão tateou, conseguiu tirar o relógio do bolso e abrir a tampa. Os ponteiros corriam vigorosamente para trás. Ele se inclinou contra a pirâmide e fechou os olhos, mas foi pior. O chamado da Torre

(venha, Roland venha, pistoleiro, commala-venha-venha, a jornada agora acabou)

estava mais alto, mais insistente que nunca. Tornando a abrir os olhos, Roland ergueu a cabeça para o implacável céu azul, vendo as colunas de nuvens que corriam por ele em direção à Torre e ao final do campo de rosas.

E a tortura continuou.

 

Ele esperou mais uma hora enquanto as sombras dos arbustos e das rosas que cresciam perto da pirâmide se alongavam, nutrindo a esperança quase inútil de que algo lhe ocorreria, alguma idéia brilhante que evitaria ter que pôr sua vida e seu destino nas mãos do rapaz a seu lado, talentoso mas um tanto fraco da cabeça. Mas quando o sol começou a baixar pelo arco ocidental do céu e o azul lá no alto começou a escurecer, Roland sabia que não havia mais nada. Os ponteiros do relógio de bolso giravam para trás ainda mais depressa. Logo estariam em uma rotação fora de controle. E quando começassem a fazer isso, ele iria. Com pomos ou sem pomos de ouro (e será que o maluco não tinha mais nada de reserva?), ia avançar. Correria, avançaria em ziguezague, cairia no chão e rastejaria se tivesse de rastejar. Mas não importa o que fizesse, sabia que seria muita sorte se conseguisse cumprir pelo menos metade da distância até a Torre Negra antes de ser atirado no ar por uma explosão. Morreria entre as rosas.

— Patrick — ele chamou. A voz era rouca.

Patrick ergueu os olhos com intensidade desesperada. Roland contemplou as mãos do garoto — sujas, cheias de crostas, mas a seu modo tão incrivelmente talentosas quanto as de Roland — e se deu por vencido. Ocorreu-lhe que havia resistido até agora só por orgulho; quisera matar o Rei Rubro, não meramente enviá-lo para alguma zona de vácuo. E, é claro, não havia garantias de que Patrick pudesse fazer ao Rei o que fizera à ferida no rosto de Susannah. Mas o chamado da Torre logo ficaria tão forte que a resistência seria impossível e não existia qualquer outra opção.

— Troque de lugar comigo, Patrick.

Patrick obedeceu, passando cuidadosamente por cima de Roland. Ficou agora pelo lado da pirâmide mais próximo da estrada.

— Olhe pelo instrumento que vê longe. Apóie neste corte da pedra... sim, assim mesmo... Olhe.

Patrick olhou, e olhou pelo que pareceu a Roland um tempo muito longo. A voz da Torre, enquanto isso, cantava, repicava, adulava. Finalmente, Patrick voltou a olhar para o pistoleiro.

— Agora pega teu bloco, Patrick. Desenha aquele homem. — Não que fosse um homem, mas tinha a aparência.

A princípio Patrick continuou apenas a encarar Roland, mordendo o lábio. Então, por fim, pôs a cabeça do pistoleiro entre as mãos e puxou-o para a frente até as duas testas se tocarem.

Muito difícil, sussurrou uma voz no fundo da mente de Roland. Não era absolutamente a voz de um garoto, mas a voz de um homem adulto. Um homem poderoso. Ele não está inteiramente ali. Ele obscurece. Ele muda de cor.

Onde Roland já ouvira aquelas palavras?

Não havia tempo para pensar nisso agora.

— Está dizendo que não pode? — Roland perguntou, injetando (com um certo esforço) uma nota de frustrada incredulidade na voz. — Que você não pode? Que Patrick não pode? Que o Artista não pode?

Os olhos de Patrick se alteraram. Por um momento Roland viu neles a expressão que estaria permanentemente ali se Patrick se transformasse num homem feito... e as telas na sala de Sayre diziam que isso ia acontecer, pelo menos em algum trilho de tempo, em algum mundo. Patrick ficaria velho o bastante para pintar a recordação de tudo que estava vendo naquele dia. A expressão seria de altivez se ele se tornasse um homem maduro com um pouco de sabedoria articulada ao talento; agora era só arrogância. O olhar de um garoto que sabe que é mais rápido que labaredas azuis, sabe que é o melhor e não precisa aprender mais nada. Roland conhecia aquele olhar. Afinal já não o vira a encará-lo de uma centena de espelhos e poças paradas de água quando ele era jovem assim como Patrick Danville?

Eu posso, veio a voz na cabeça de Roland. Só estou dizendo que não vai ser fácil. Vou precisar da borracha.

Roland balançou negativamente a cabeça. Em seu bolso, a mão se fechou em volta do que restava do pedaço rosado de borracha e apertou.

— Não — disse ele. — Deve desenhar a frio, Patrick. Cada traço deve sair certo logo da primeira vez. Apagar só mais tarde.

Por um momento o olhar de arrogância fraquejou, mas só por um momento. Quando voltou, o que veio com ele agradou tremendamente ao pistoleiro e também o tranqüilizou um pouco. Era um olhar de extrema vibração. O olhar que o homem talentoso usa quando, depois de anos a se mover sonolentamente de um lado para o outro, alguém finalmente o desafia a fazer algo que colocará à prova suas aptidões, algo que as fará chegar a seus limites. Talvez a ultrapassá-los.

Patrick rolou de novo para o binóculo, que deixara escorado um pouco de lado, logo abaixo do corte na pedra. Observou um longo tempo enquanto as vozes cantavam cada vez mais intensamente seu imperativo na cabeça de Roland.

E por fim Patrick voltou à antiga posição, pegou o bloco e começou a fazer o desenho mais importante de sua vida.

 

Foi um trabalho lento em comparação com o método habitual de Patrick — traços rápidos que produziam em questão de minutos um desenho completo e fascinante. Várias vezes, Roland teve de se conter para não gritar com o garoto: Depressa! Pelo amor de todos os deuses, depressa! Não vê como estou sofrendo?

Mas Patrick não notou e, de qualquer modo, não teria se importado. Estava totalmente tomado pelo trabalho, dominado pela ânsia de compor a figura desconhecida. Parava de vez em quando para pegar o binóculo e dar outra longa olhada naquele seu tema de manto vermelho. Às vezes inclinava o lápis para matizar alguma coisa, depois passava o polegar para produzir uma sombra. Às vezes suas pupilas rolavam para cima e os olhos não mostravam mais nada que o brilho de cera da parte branca. Era como se o próprio Patrick estivesse se transformando em alguma versão daquele Rei Rubro que parecia brotar de forma mui intensa em seu cérebro. E de fato, como Roland poderia garantir que essa metamorfose não seria possível?

Não me interessa saber o que é. Só quero que ele acabe antes que eu enlouqueça e saia correndo para aquilo que o Velho Rei Vermelho tão corretamente chamou de “minha amada”.

Pelo menos meia hora, com a duração de três dias, se passou desta maneira. A certa altura o Rei Rubro chamou Roland mais persuasivamente do que nunca, perguntando se, afinal, ele não queria mesmo ir até a Torre para palestrar. Talvez se Roland conseguisse livrá-lo de sua prisão na sacada, pudessem enterrar juntos o passado e subir até a sala no topo da Torre com o mesmo espírito de amizade. Sem dúvida não era impossível. Uma chuva forte criava estranhos companheiros de cama na pousada; será que Roland não tinha ouvido esse ditado?

O pistoleiro conhecia muito bem esse ditado. Também percebia que a oferta do Rei Vermelho era essencialmente o mesmo falso pedido de antes, só que agora vestido de paletó e gravata. E desta vez Roland ouviu a ansiedade que se escondia na voz do velho monstro. Ele nem desperdiçou energia numa resposta.

Percebendo que sua tentativa de persuasão havia fracassado, o Rei Rubro atirou outro pomo de ouro. Este voou tão alto sobre a pirâmide que pareceu apenas uma faísca, mas logo mergulhou sobre eles com o grito de bomba caindo. Roland deu conta dele com um único tiro, e recarregou de uma plenitude de cápsulas. Chegou inclusive a desejar que o Rei mandasse mais algumas daquelas granadas voadoras, pois pelo menos elas desviavam temporariamente sua cabeça do terrível chamado da Torre.

Ela tem estado à minha espera, Roland pensou aflito. É o que torna tão difícil resistir, eu acho... Está chamando a mim em particular. Não exatamente a Roland, aliás, mas a toda a linhagem do Eld... e dessa linhagem, só sobrei eu.

 

Por fim, quando o sol poente começou a ganhar os primeiros traços de alaranjado e Roland sentia que não poderia mais suportar aquilo, Patrick pôs o lápis de lado, franziu a testa e estendeu o bloco para Roland. O olhar deixou o pistoleiro assustado. Não sabia que havia aquela expressão no repertório do garoto mudo. A arrogância anterior de Patrick se dissipara.

Roland pegou o bloco e, por um momento, o espanto o fez desviar a cabeça. Era como se aqueles olhos que apareciam no desenho de Patrick tivessem o poder de fasciná-lo; como se pudessem, quem sabe, induzi-lo a colocar o revólver na testa e estourar os doloridos miolos. Era tão bom assim. A face ávida e indagadora era comprida, as bochechas e testa marcadas por rugas tão profundas que pareciam sem fundo. Dentro da barba exuberante, os lábios eram cheios e cruéis. Era a boca de um homem que transformaria um beijo numa mordida se entrasse no clima, e com freqüência entrava.

— O QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ FAZENDO? — veio aquela voz estridente, lunática. — NÃO VAI ADIANTAR, NÃO IMPORTA O QUE SEJA! TENHO O DOMÍNIO DA TORRE... AAAAAAAH!... SOU COMO A RAPOSA COM AS UVAS, ROLAND! É MINHA, MESMO QUE EU NÃO POSSA ESCALÁ-LA! E VOCÊ VIRA! AAAAH! DIGA A VERDADE! ANTES QUE A SOMBRA DA TORRE ALCANCE SEU VIL ESCONDERIJO, VOCÊ VIRÁ! AAAAAAAH! AAAAAAAH! AAAAAAAH!

Patrick cobriu as orelhas, recuando. Agora que acabara de desenhar, captava de novo aqueles gritos terríveis.

Que o retrato era o maior trabalho da vida de Patrick, Roland não tinha a menor dúvida. Desafiado, o rapaz fizera mais do que ir além de si mesmo; voara para além de si mesmo e se entregara a seu gênio. A imagem do Rei Rubro era assombrosa em sua claridade. O instrumento de ver longe não pode explicar isto, ou não tudo isto, Roland pensou. É como se ele tivesse um terceiro olho, um olho que brota de sua imaginação e vê tudo. É com esse olho que enxerga quando faz as pupilas dos outros dois rolarem para cima. Possuir um talento desses... e expressá-lo com algo tão humilde quanto um lápis! Ó deuses!

Ele quase esperou ver a pulsação começar a bater no cavado das têmporas do velho, onde veias que lembravam molas de relógio tinham sido esboçadas com alguns matizes suaves, sombreados. No canto dos lábios cheios e sensuais, o pistoleiro viu o cintilar de um único e agudo

(presa)

dente e teve a impressão de que os lábios do desenho podiam ganhar vida e se abrir enquanto ele as olhava, revelando um punhado de presas: um mero lampejo de branco (que afinal era apenas um pouquinho de papel sem traços) fazia a imaginação ver todo o resto e sentir inclusive o fedor de carne que devia acompanhar cada jorro de respiração. Patrick tinha capturado perfeitamente um tufo de pêlos saindo enroscados de uma das narinas do Rei e o pequeno fio de uma cicatriz que ondulava como uma ponta de barbante pela sobrancelha direita do Rei. Era um trabalho maravilhoso, mil vezes melhor que o retrato que o garoto mudo fizera de Susannah. Certamente se Patrick tinha sido capaz de apagar a ferida daquele desenho, poderia apagar agora o Rei Rubro, deixando o parapeito da sacada sem nada atrás, salvo a porta fechada para o corpo da Torre. Roland quase esperava que o Rei Rubro respirasse e se mexesse, tamanha a precisão do retrato! Seguramente...

Mas não era. Não era, e querer que fosse não o mudaria. Por mais que fosse preciso mudá-la.

São os olhos dele, Roland pensou. Eram grandes e terríveis, olhos de dragão numa forma humana. Eram tremendamente bem-feitos, mas não estavam exatos. Roland sentiu uma espécie de certeza angustiada e desesperada e estremeceu da cabeça aos pés com força suficiente para fazer os dentes bateram. Não eram de todo exa...

Patrick agarrou o cotovelo de Roland. O pistoleiro estivera tão febrilmente concentrado no desenho que quase gritou. Ergueu os olhos.

Patrick balançou a cabeça para ele, depois encostou os dedos nos cantos dos próprios olhos.

Sim. Os olhos dele. Eu sei disso! Mas o que há de errado com os olhos?

Patrick ainda estava tocando os cantos de seus olhos. Lá no alto um bando de gralhas, soltando os gritos agudos que tinham originado seu nome, voavam por um céu que logo seria mais roxo que azul. Era para a Torre Negra que voavam; Roland se levantou para acompanhar aquelas aves para que não tivessem aquilo que ele não podia ter.

Patrick agarrou-o pelo casaco de pele e puxou-o para trás. O rapaz balançou violentamente a cabeça e desta vez apontou para a estrada.

— EU VI ISSO, ROLAND! — veio o grito. — VOCÊ ACHA QUE O QUE É BOM PARA OS PÁSSAROS É BOM PARA VOCÊ, NÃO É? AAAAAAAAH! E É VERDADE, CLARO! CLARO COMO AÇÚCAR, CLARO COMO SAL, CLARO COMO RUBIS NOS COFRES DO REI DANDO... AAAAAAAH, AH! PODIA TER PEGADO VOCÊ AGORA HÁ POUCO, MAS POR QUE ME PREOCUPAR? ACHO QUE PREFIRO VÊ-IO VIR MIJANDO E TREMENDO, INCAPAZ DE SE SEGURAR!

E é o que vai acontecer, Roland pensou. Não vou conseguir me conter. Posso ser capaz de me manter aqui por mais dez minutos, talvez até por mais vinte, mas no fim...

Patrick interrompeu seus pensamentos, apontando mais uma vez para a estrada. Apontando para o caminho por onde tinham vindo.

Fatigado, Roland balançou a cabeça.

— Mesmo que eu pudesse resistir à força da coisa... e não posso, tudo que posso fazer é ficar parado aqui... tentar recuar seria inútil. Assim que não estivéssemos mais sob cobertura, ele usaria todas as outras armas de que dispõe. Ele tem mais alguma coisa, tenho certeza. E seja lá o que for, não é provável que as balas de meu revólver consigam detê-la.

Patrick balançou a cabeça com força suficiente para fazer o cabelo comprido voar de um lado para o outro. O aperto no braço de Roland foi ficando mais forte até as unhas se cravarem na carne do pistoleiro, penetrando três camadas da vestimenta de peles. Os olhos de Patrick, sempre amáveis e geralmente confusos, espreitavam agora Roland com uma expressão próxima da fúria. Ele apontou de novo com a mão livre, três rápidos gestos cutucando o ar com o indicador encardido. Não, contudo, na direção da estrada.

Patrick estava apontando para as rosas.

— O que há com elas? — Roland perguntou. — Patrick, o que há com elas?

Desta vez Patrick apontou primeiro para as rosas, depois para os olhos em seu desenho.

E então Roland compreendeu.

 

Patrick não queria pegá-las. Quando Roland fez sinal para que ele fosse, o rapaz balançou de imediato a cabeça, fazendo de novo o cabelo chicotear de um lado para o outro, olhos arregalados. Fez um som de assobio entre os dentes, imitação notavelmente boa de um pomo chegando.

— Vou atirar em qualquer coisa que ele mande — disse Roland. — Já me viu fazer isto. Se houvesse alguma rosa que eu pudesse pegar só esticando a mão, eu pegaria. Mas não há. Então você é que tem de pegar a rosa porque só eu posso dar cobertura.

Mas Patrick apenas se encolheu contra o lado irregular da pirâmide. Patrick não iria. Talvez seu medo não fosse exatamente tão grande quanto seu talento, mas chegava perto. Roland calculou a distância para a rosa mais próxima. Teria de abrir mão da escassa cobertura da pirâmide, mas talvez não muito. Olhando para a abreviada mão direita, que teria que dar o puxão na rosa, ele se perguntou que força teria de aplicar. O fato, é claro, era que não sabia. Não eram rosas comuns. Sem dúvida os espinhos que cresciam no caule verde podiam ter um veneno capaz de imobilizá-lo no meio da relva, transformando-o em alvo fácil.

E Patrick não iria. Patrick sabia que antigamente Roland tivera amigos e que agora todos os amigos dele estavam mortos. Patrick não iria. Se Roland tivesse duas horas para trabalhar o rapaz — possivelmente uma já bastava —, talvez conseguisse abrir caminho pelo seu terror. Mas não tinha esse tempo. O pôr-do-sol estava chegando.

Além disso, a rosa está perto. Posso fazer isso se for preciso... e tenho de fazer.

Como o tempo aquecera bastante, não era preciso andar com as toscas luvas de pele de cervo que Susannah fizera, mas Roland as usara de manhã e elas continuavam enfiadas em seu cinto. Pegou uma delas e cortou a ponta para que os dois dedos que ainda tinha pudessem passar pelo buraco. A luva protegeria pelo menos sua palma dos espinhos. Calçou a luva e, segurando com a outra mão o revólver que lhe restava, ficou um instante com um joelho no chão, olhando para a rosa mais próxima. Uma rosa bastaria? Teria de bastar, ele decidiu. A próxima estava pelo menos 2 metros mais distante.

Patrick agarrou o ombro dele, balançando freneticamente a cabeça.

— Tenho de ir — disse Roland e é claro que ia. Era trabalho dele, não de Patrick. Sem dúvida cometera um erro ao mandar o garoto fazer a coisa. Se ele, Roland, fosse bem-sucedido, ótimo, maravilhoso. Se fracassasse e fosse feito em pedacinhos ali, na orla do Can’-Ka No Rey, pelo menos não teria mais de enfrentar aquele terrível puxão.

O pistoleiro respirou fundo e saltou de trás da pirâmide em direção à rosa. Nesse instante, Patrick se agarrou de novo a ele, tentando impedi-lo. Pegou uma dobra do casaco de Roland e torceu-a o mais que pôde. Roland caiu desajeitadamente para o lado. O revólver pulou de sua mão e caiu no meio da relva alta. O Rei Rubro gritou (o pistoleiro ouviu ao mesmo tempo triunfo e fúria naquela voz) e então o zumbido de outro pomo começou a se aproximar. Roland fechou a enluvada mão direita no caule da rosa. Os espinhos passaram pelo duro couro de cervo como se aquilo não fosse mais que uma camada de teias de aranha. Logo atingiram sua mão. A dor foi enorme, mas a canção da rosa era doce. Ele pôde ver no fundo de sua copa um brilho amarelo, que era como o brilho de um sol. Ou de um milhão de sóis. Pôde sentir o calor do sangue enchendo a cavidade da palma da mão e correndo entre os dedos restantes. O sangue ensopou a pele de cervo, fazendo florescer outra rosa, agora de sangue, em sua raspada superfície marrom. E lá vinha o pomo de ouro que o mataria, liquidando a canção da rosa, o assobio enchendo sua cabeça e ameaçando partir seu crânio.

O caule não chegou a quebrar. A certa altura, a rosa se soltou do chão, com raízes e tudo. Roland rolou para a esquerda, pegou o revólver e atirou sem olhar. O coração lhe dissera que não dava mais tempo de olhar. Houve uma tremenda explosão e, desta vez, o bafo de ar quente que bateu em seu rosto foi como um furacão.

Perto. Agora muito perto.

O Rei Rubro externou sua frustração com um grito — AAAAAAAAAH! —, e o grito foi seguido por vários assobios se aproximando. Patrick se apertou contra a pirâmide, escondendo a cara. Roland, a rosa segura na mão direita que sangrava, rolou de costas, ergueu o revólver e esperou que os pomos de ouro dessem a volta. Quando a completaram, Roland cuidou deles: um, dois, três.

— CONTINUO AQUI! — ele gritou para o Rei Rubro. — ESTOU AQUI E VOCÊ PODE TOMAR NO OLHO DO SEU CU!

O Rei Rubro deu mais um de seus terríveis uivos, mas não mandou outros pomos.

— ENTÃO AGORA VOCÊ TEM UMA ROSA! — ele gritou. — ESCUTE-A, ROLAND! ESCUTE-A BEM, POIS ELA CANTA A MESMA CANÇÃO! ESCUTE COMMALA-VENHA-VENHA!

Agora aquela canção era quase imperativa na cabeça de Roland. Queimava furiosamente pelos seus nervos. Ele agarrou Patrick e obrigou-o a se virar.

— Agora! — disse ele. — Por minha vida, Patrick. Pelas vidas de cada homem e mulher que morreram em meu lugar para que eu pudesse continuar!

E cada criança, ele pensou, vendo Jake pelo olho de sua memória. Jake primeiro pendendo sobre a escuridão, depois caindo nela. Encarou os olhos apavorados do garoto mudo.

— Acabe a coisa! Mostre que é capaz.

 

Então Roland testemunhou algo impressionante: quando Patrick pegou a rosa, não levou nenhum corte. Não foi sequer arranhado. Roland, porém, ao puxar com os dentes a luva dilacerada, viu que além da palma da mão estar bastante cortada, um dos dedos que lhe sobravam estava agora pendurado por um simples tendão ensangüentado. Oscilava como alguma coisa que quisesse dormir. Mas Patrick não se cortara. Os espinhos não o perfuravam. E o terror desaparecera de seus olhos. Estava olhando da rosa para o desenho, de um lado para o outro com um amável ar de cálculo.

— ROLAND! O QUE ESTÁ FAZENDO? VENHA, PISTOLEIRO, POIS O PÔR DO SOL ESTÁ QUASE AÍ!

E sim, ele iria. De um modo ou de outro. Saber disso não deixava de tranqüilizá-lo um pouco, não deixava de fazê-lo ficar onde estava sem tremer demais. A mão direita de Roland parecia dormente até o pulso e ele suspeitou que jamais voltaria a senti-la como antes. Tudo bem; ela já não servia para grande coisa desde que as lagostrosidades a pegaram.

E a rosa cantava: Sim, Roland, sim... Você a terá de novo. Ficará de novo inteiro. Haverá renovação. Apenas venha.

Patrick puxou uma pétala da rosa, avaliou-a, depois puxou outra. Colocou-as na boca. Por um momento, seu rosto ficou sem movimento por um tipo peculiar de êxtase e Roland se perguntou que gosto as pétalas poderiam ter. O céu estava cada vez mais escuro. A sombra da pirâmide, antes escondida pelas pedras, agora se estendia quase até a estrada. Quando a ponta daquela sombra tocasse o caminho que o trouxera até ali, Roland desconfiava que ia avançar, não importa que o Rei Rubro ainda controlasse o acesso à Torre.

— O QUE ESTÁS FAZENDO? AAAAAAAAH! QUE DIABOLISMO TENS NO CORAÇÃO E NA MENTE?

E é você quem fala de diabolismo!, Roland pensou pegando o relógio e puxando a tampa. Embaixo do vidro os ponteiros corriam para trás, das cinco para as quatro horas, das quatro para as três, das três para as duas, das duas para a uma, da uma para a meia-noite.

— Patrick, rápido! — disse ele. — O mais depressa que puder, eu lhe imploro, pois meu tempo está quase acabando.

Patrick pôs a palma da mão na frente da boca e cuspiu uma pasta vermelha, um tom de sangue fresco. A cor do manto do Rei Rubro. E a cor exata de seus olhos lunáticos.

A beira de usar a cor pela primeira vez em sua vida de artista, Patrick pareceu que ia mergulhar a ponta do indicador da mão direita naquela pasta e de repente hesitou. Uma estranha certeza ocorreu então a Roland: os espinhos daquelas rosas só espetavam quando as raízes ainda amarravam a planta a Mim, ou à Mãe Terra. Se fosse Patrick a puxar a rosa, Mim teria reduzido a farrapos aquelas mãos talentosas, tornando-as inúteis.

É ainda o ka, o pistoleiro pensou. Mesmo aqui no Fim do Mun...

Antes que pudesse concluir o pensamento, Patrick pegou a mão direita do pistoleiro e examinou-a com a intensidade de um vidente. Recolheu um pouco do sangue que corria e misturou-o com sua rosa-pasta. Depois, cuidadosamente, pôs uma pequena porção daquela mistura sobre o segundo dedo da mão direita. Baixou o dedo para a pintura... hesitou... olhou para Roland. Roland abanou positivamente a cabeça. Patrick reagiu com a gravidade de um cirurgião à beira de dar o corte inicial numa cirurgia de risco e aplicou o dedo ao papel. A ponta do dedo tocou o papel com a delicadeza de um bico de beija-flor mergulhando numa flor. Coloriu o olho esquerdo do Rei Rubro e se levantou. Patrick empinou a cabeça, olhando para o que tinha feito com uma fascinação que Roland jamais vira num rosto humano em todo o seu longo e errante tempo de vida. Era como se o garoto fosse um profeta manni no deserto, que finalmente, após vinte anos de espera, tivesse conseguido ver de relance a face do Gan.

Então Patrick irrompeu num sorriso enorme, luminoso.

A resposta da Torre Negra chegou de imediato e — ao menos para Roland — foi imensamente gratificante. A velha criatura encurralada na sacada uivou de dor.

— O QUE ESTÁS FAZENDO? AAAAAAH! AAAAAAAH! PÁRA! ISSO QUEIMA! QUEIMAAA! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!

— Agora acabe o outro — disse Roland. — Rápido! Pela sua vida e pela minha!

Patrick coloriu o outro olho com a mesma delicada ponta do dedo. Agora dois brilhantes olhos rubros espreitavam do desenho em preto-e-branco de Patrick, olhos que haviam sido coloridos com a seiva da rosa e o sangue do Eld; olhos que ardiam como o próprio fogo do Inferno.

Estava feito.

Finalmente Roland pegou a borracha e estendeu-a para Patrick.

— Faça-o desaparecer — disse. — Faça aquele duende infame desaparecer deste mundo e de todos os outros mundos! Faça com que suma de vez.

 

Não havia dúvida de que ia funcionar. Desde o momento em que Patrick encostou a borracha no desenho — começando naquele emaranhado de pêlos do nariz —, o Rei Rubro começou a gritar de dor e horror em seu reduto no balcão. Ele estava compreendendo.

Patrick hesitou, olhando para Roland em busca de confirmação, e Roland abanou a cabeça.

— Sim, Patrick. A hora dele chegou e você vai ser o carrasco. Continue com a coisa.

O Velho Rei atirou mais quatro pomos e Roland cuidou de todos eles com a maior calma. Depois disso não houve mais disparos, pois o Rei já não tinha mãos para soltá-los. Seus gritos se transformaram numa tremenda mistura de ganidos que Roland achou que jamais deixariam seus ouvidos.

O garoto mudo apagou a boca cheia e sensual no fundo da espuma de barba e, quando ele fez isso, os gritos primeiro ficaram abafados, depois pararam. Patrick acabou apagando tudo, a não ser os olhos, que o pedacinho que sobrara da borracha nem conseguia borrar. Permaneceram ali até o pedaço de borracha rosada (originalmente parte de um Pencil-Pak comprado na Woolworth’s de Norwich, Connecticut, durante uma promoção de volta às aulas em agosto de 1958) ter se reduzido a uma lasca que o rapaz não conseguia sequer segurar entre as unhas longas e sujas. Então ele a jogou fora e mostrou o que sobrava ao pistoleiro: duas órbitas malévolas, rubro-sangrentas, flutuando a três quartos do caminho para o alto da folha.

Todo o resto dele se fora.

 

A sombra da ponta da pirâmide já tocava a estrada; agora o céu no oeste mudou do alaranjado de uma fogueira reaptide àquele caldeirão de sangue que Roland, desde a infância, vira em seus sonhos. Enquanto isso a chamada da Torre duplicara, depois triplicara. Roland sentiu-a se estender e agarrá-lo com mãos invisíveis. A hora de seu destino chegara.

Contudo havia aquele rapaz. Aquele rapaz sem amigos. Roland não o abandonaria à morte ali no fim do Fim do Mundo se pudesse evitar isso. Embora o pistoleiro não tivesse interesse em expiação, Patrick não deixava de compensar por todos os crimes e traições que finalmente o tinham levado à Torre Negra. A família de Roland estava morta; seu filho bastardo fora o último a morrer. Agora o Eld e a Torre seriam unidos.

Mas antes de mais nada — e por fim — vinha isto:

— Patrick, preste atenção — disse ele, pegando o ombro do garoto com a mão esquerda, inteira, e a mão direita, mutilada. — Se quer viver para fazer todos os desenhos que o ka depositou em seu futuro, não me faça nenhuma pergunta nem me peça para repetir nada...

O rapaz o encarou silencioso, olhos arregalados na luz vermelha cada vez mais fraca. Em volta deles, a Canção da Torre se elevou, transformando-se num forte berreiro que não era outra coisa além de commala.

— Volte para a estrada. Primeiro pegue todas as latas que estiverem inteiras e que devem ser suficientes para alimentá-lo. Depois volte pelo caminho que viemos e jamais se afaste da estrada. Você ficará bem.

Patrick abanou a cabeça com perfeita compreensão. O garoto, Roland percebeu, acreditava, e isso era bom. Acreditar o protegeria melhor que um revólver, mesmo um revólver com cabo de sândalo.

— Volte para o Federal. Volte para o robô, o robô que chamavam de Gago Bill. Mande que Bill o leve até uma porta que se abra para o lado-América. Se não conseguir abri-la com a mão, desenhe-a aberta com o lápis. Está entendendo?

Patrick tornou a abanar a cabeça. É claro que entendia.

— Se o ka acabar por conduzi-lo a Susannah em algum onde ou quando, diga a ela que Roland ainda a ama de todo o coração. — Puxou Patrick para si e beijou a boca do garoto. — Dê isso a ela. Está entendendo?

Patrick assentiu.

— Tudo bem. Eu vou. Longos dias e belas noites. Que possamos nos encontrar na clareira do fim do caminho, quando todos os mundos terminam.

Contudo, ele sabia que isto não ia acontecer, pois os mundos jamais terminariam, agora não. Para ele não haveria clareira. Para Roland Deschain, de Gilead, último da linhagem do Eld, o caminho terminava na Torre Negra. O que lhe parecia ótimo.

Ficou de pé. Agarrado ao bloco, o garoto o encarou com olhos grandes, espantados. Roland se virou. Tomou fôlego até o fundo dos pulmões e deixou-o sair num grande grito.

— AGORA ROLAND VAI ATÉ A TORRE NEGRA! TENHO SIDO VERDADEIRO E AINDA CARREGO O REVÓLVER DE MEU PAI E VOCÊ SE ABRIRÁ AO TOQUE DE MINHA MÃO!

Patrick viu-o andar com passos largos para onde a estrada acabava, silhueta preta contra aquele tremendo céu ardente. Viu Roland caminhar entre as rosas e sentou-se tremendo nas sombras quando Roland começou a gritar os nomes de amigos, entes queridos e companheiros do ka; nomes que soavam com clareza naquele ar estranho, como se fossem ecoar para sempre.

— Venho em nome de Steven Deschain, ele de Gilead!

— Venho em nome de Gabrielle Deschain, ela de Gilead!

— Venho em nome de Cortland Andrus, ele de Gilead!

— Venho em nome de Cuthbert Allgood, ele de Gilead!

— Venho em nome de Alain Johns, ele de Gilead!

— Venho em nome de Jamie DeCurry, ele de Gilead!

— Venho em nome de Vannay, o Sábio, ele de Gilead!

— Venho em nome de Hax, o Cozinheiro, ele de Gilead!

— Venho em nome de David, o falcão, ele de Gilead e do céu!

— Venho em nome de Susan Delgado, ela de Mejis!

— Venho em nome de Sheemie Ruiz, ele de Mejis!

— Venho em nome de Père Callahan, ele de Jerusalem’s Lot e das estradas!

— Venho em nome de Ted Brautigan, ele da América!

— Venho em nome de Dinky Earnshaw, ele da América!

— Venho em nome de tia Talitha, ela de River Crossing e aqui vou depositar sua cruz, como me foi pedido!

— Venho em nome de Stephen King, ele do Maine!

— Venho em nome de Oi, o bravo, ele do Mundo Médio!

— Venho em nome de Eddie Dean, ele de Nova York!

— Venho em nome de Susannah Dean, ela de Nova York!

— Venho em nome de Jake Chambers, ele de Nova York, que chamo de meu único filho verdadeiro!

— Sou Roland de Gilead, e venho em meu próprio nome; você se abrirá para mim.

Então foi ouvido o som de uma trompa. O que simultaneamente gelou o sangue de Patrick e o deixou num estado de exaltação. Os ecos foram sumindo no silêncio. Mas de repente, talvez um minuto depois, ecoou um grande estrondo: o barulho de uma porta batendo e se trancando para sempre.

Depois disso veio o silêncio.

 

Patrick sentou-se na base da pirâmide, tremendo, até o Velho Astro e a Velha Mãe se elevarem no céu. A canção das rosas e da Torre não cessara, mas ficara mais baixa e sonolenta, pouco mais que um murmúrio.

Por fim ele voltou para a estrada, pegou o maior número possível de latas inteiras (considerando a força da explosão que demolira o carrinho, havia um número surpreendente delas) e encontrou um saco de couro de cervo para carregá-las. Quando percebeu que esquecera o lápis, voltou para pegá-lo.

Ao lado do lápis, brilhando sob a luz das estrelas, estava o relógio de Roland.

O garoto pegou-o com um pequeno (e nervoso) piado de alegria. Colocou-o no bolso. Depois voltou para a estrada e jogou no ombro seu pequeno saco de provisões.

Posso dizer que andou quase até meia-noite e que olhou para o relógio antes de descansar. Posso dizer que o relógio tinha parado completamente. Posso dizer que, ao meio-dia do dia seguinte, Patrick tornou a olhar para os ponteiros e viu que eles tinham começado de novo a andar na direção certa, ainda que muito devagar. De Patrick, no entanto, não posso dizer mais nada, nem se conseguiu voltar ao Federal, nem se encontrou o Gago Bill, nem se finalmente chegou mais uma vez ao lado-América. Não posso dizer nenhuma dessas coisas, sinto muito. Aqui a escuridão o esconde do meu olho de contador de histórias e ele tem de continuar sozinho.

 

EPÍLOGO

SUSANNAH EM NOVA YORK

Ninguém se assusta quando o pequeno carro elétrico vai saindo de lugar nenhum, centímetro por centímetro, até aparecer totalmente aqui, no Central Park; ninguém vê isso acontecer, só nós vemos. A maioria dos que estão aqui olham para cima, pois os primeiros flocos de neve do que acabara sendo uma grande tempestade de neve pré-Natal caem rodopiando de um céu nublado. A Nevasca de 1987, como os jornais vão chamá-la. Visitantes do parque que não estão vendo a neve cair observam os cantores natalinos. Eles vêm de escolas públicas de uptown e usam blazers vermelho-escuros (os garotos) ou vestidos vermelho-escuros (as garotas). Este aqui é o Coro Escolar do Harlem, às vezes chamado de Rosas do Harlem no Post e no tablóide rival, o Sun de Nova York. Cantam um antigo hino numa maravilhosa harmonia doo-wop* e estalam os dedos enquanto vão passando pelas estrofes. Transformam o hino em algo que chega quase a lembrar os sons iniciais dos Spurs, dos Coasters, ou dos Dark Diamonds. Estão não muito longe das instalações onde os ursos polares vivem suas vidas urbanas. A canção que estão cantando é “O Menino Nasceu”.

Um dos que estão olhando a neve em cima é um homem que Susannah conhece bem e seu coração salta direto para o céu quando ela o vê. Na mão esquerda do homem há um grande copo de papel e Susannah tem certeza de que no copo há chocolate quente, do gostoso, com chantilly.

Por um momento ela é incapaz de tocar nos controles do carrinho, que vieram de outro mundo. Lembranças de Roland e Patrick deixaram sua mente. Agora só consegue pensar em Eddie... Eddie na sua frente, ali e naquele momento, Eddie vivo de novo. E se aquilo não é o Mundo-chave, não de todo, o que será então? Se a Coop City ficar no Brooklyn (ou mesmo no Queens!) e se Eddie guiar um Takuro Spirit em vez de um Buick Electra, o que serão todas aquelas coisas? Não importa. Só uma coisa importa, e é o que impede que a mão de Susannah vá para o acelerador fazendo o carro rodar na direção dele.

E se Eddie não a reconhecer?

Se, ao se virar, ele vir apenas uma senhora negra sem-teto num carrinho elétrico cuja bateria logo estará gasta como um velho chapéu amassado?

Uma senhora negra sem dinheiro, sem roupas, sem endereço (não naquele onde e quando, dêem graças, sai) e sem pernas? Uma sem-teto negra sem nenhuma ligação com ele? E se Eddie de fato a reconhecer, em algum lugar bem no fundo da mente, mas continuar negando completamente esse conhecimento como Pedro negou Jesus, pois lembrar seria simplesmente doloroso demais?

Pior ainda: e se Eddie se vira para ela e ela o vê fodido, desconectado, com aquele olhar vazio do velho viciado em drogas? E se, e se... E lá vem a neve que logo deixara o mundo inteiro branco.

Pára de te atormentar e vai falar com ele, Roland diz a ela. Você não enfrentou Blaine, o taheen do Céu Azul e a coisa sob o Castelo Discórdia só para por o rabo entre as pernas e correr agora, certo? Certamente você tem muito mais fibra que isso.

Mas ela só tem certeza do que realmente faz quando vê sua mão subir para o acelerador. Antes que tenha tempo de torcê-lo, no entanto, a voz do pistoleiro torna a lhe falar, desta vez num tom ligeiramente divertido.

Será que primeiro você não quer se livrar de alguma coisa, Susannah?

Ela abaixa os olhos e vê a arma de Roland enfiada no cinto, como pistola de bandido mexicano ou sabre de pirata. Susannah puxa a arma, espantada ao sentir como é bom segura-la... como parece brutalmente à vontade em sua mão. Separar-se daquilo, ela pensa, será como se separar de um amante. E não tem de se separar, ou tem? Do que ela gosta mais?, essa e a questão. Do homem ou da arma? Todas as escolhas brotarão desta pergunta.

Obedecendo a um impulso, ela rola o tambor e vê que as balas parecem velhas, as cápsulas não tem brilho.

Essas jamais vão disparar, ela pensa... e, sem saber por que, ou sem saber com exatidão o que aquilo significa, conclui: Essas estão úmidas.

Da uma olhada no cano e fica incomodamente triste — mas não surpresa — ao descobrir que nenhuma luz passa pelo cano. Esta entupido. A julgar pela aparência, parece que esta assim há décadas. Aquela arma jamais voltará a disparar e, portanto, não há opção a ser feita. Aquela arma está acabada.

Ainda segurando com uma das mãos o revólver com cabo de sândalo, Susannah usa a outra mão para girar o acelerador. O carrinho elétrico — aquele que ela chamou de Ho Fat III, embora esse nome também já esteja desbotando em sua mente — rola sem ruído para a frente e passa por um latão de lixo pintado de verde com JOGUE O LIXO NO LUGARCERTO!escrito do lado. Ela atira o revólver de Roland naquela lata de lixo. Fazer isso lhe da um aperto no coração, mas ela não hesita. O revólver é pesado e mergulha entre embalagens amassadas de fast-food, panfletos com anúncios e jornais. Mergulha como pedra na água. O muito que Susannah ainda tem de pistoleiro a faz lamentar amargamente ter de jogar no lixo uma arma tão cheia de história (mesmo que a última viagem entre os mundos a tenha estragado). Já tomou, no entanto, consciência da mulher que está à sua espera para não vacilar nem olhar para trás. A coisa está feita.

Antes que possa alcançar o homem com o copo de papel, ele se vira. Na verdade esta usando um moletom que diz EU BEBO NOZZ-A-LA!, mas ela mal registra o detalhe. Ele: ele é o que ela registra. É Edward Cantor Dean. E então mesmo isso se torna secundário, porque o que Susannah vê nos olhos dele é tudo que temia. Uma total confusão. Ele não a conhece.

Então, de modo hesitante, ele sorri e aquele é o sorriso que Susannah lembra, o sorriso que sempre amou. E Eddie não tem drogas na cabeça, ela percebe de imediato. Esta claro em seu rosto. Principalmente nos olhos. Os cantores do Harlem cantam e Eddie estende o copo de chocolate quente.

— Graças a Deus — diz ele. — Já estava quase achando que eu mesmo e que teria de beber isto. Que as vozes estavam erradas e eu estava mesmo ficando louco. Que... bem... — Deixa a frase morrer, parecendo mais do que meramente confuso. Parece estar com medo. — Escute, você está aqui por minha causa, não é? Por favor me diga que não estou virando um completo imbecil. Porque, minha senhora, estou me sentindo nervoso como um gato de rabo comprido numa sala cheia de cadeiras de balanço.

— Não está — diz ela. — Quero dizer, não está virando um completo imbecil. — Susannah lembra a história de Jake sobre vozes discutindo em sua mente, uma gritando que ele estava morto, a outra que estava vivo. Ambas totalmente convincentes. Susannah faz pelo menos idéia de como aquilo devia ser terrível, porque ela conhece um pouco sobre outras vozes. Vozes estranhas.

— Graças a Deus — ele diz. — Seu nome é Susannah?

— É — diz ela. — Meu nome é Susannah.

Sua garganta esta terrivelmente seca, mas as palavras pelo menos saem. Ela pega o copo da mão dele e sorve o chocolate quente pelo chantilly. É doce e bom, um gosto daquele mundo. O barulho dos táxis buzinando, os motoristas correndo para ganhar o dia antes que a neve os faça parar, tudo isso é igualmente bom. Com um sorriso largo, Eddie estende a mão e limpa uma pequena pincelada de chantilly na ponta do nariz de Susannah. O toque é elétrico e Susannah percebe que ele sente a mesma coisa. Passa pela cabeça dela que Eddie vai de novo beijá-la pela primeira vez e de novo dormir com ela pela primeira vez e ficar apaixonado de novo por ela pela primeira vez. Talvez Eddie já saiba dessas coisas porque vozes lhe contaram, mas ela já as conhece por um motivo muito melhor: essas coisas simplesmente já aconteceram. O ka é uma roda, Roland dizia, e agora ela sabe que é verdade. Suas lembranças do

(Mundo Médio)

onde e quando do pistoleiro estão ficando nebulosas, mas ela acha que vai se lembrar o suficiente para perceber que tudo aquilo já aconteceu antes e existe algo incrivelmente triste nisso.

Mas ao mesmo tempo é bom.

É um tremendo milagre, isso é que é.

— Está com frio? — ele pergunta.

— Não, estou bem. Por quê?

— Você estremeceu.

— Foi a doçura do chantilly. — Então, olhando para Eddie, põe a língua de fora e lambe um pouco da espuma salpicada de noz-moscada.

— Se nao esta sentindo frio agora, vai sentir — diz ele. — A WRKO diz que a temperatura vai cair quase sete graus esta noite. Por isso eu lhe trouxe uma coisa. — Tira do bolso de trás um chapéu de tricô, do tipo que pode ser puxado para tampar as orelhas. Na frente do chapéu ela vê as palavras impressas em letras vermelhas: FELIZ NATAL.

— Comprei no Brendio’s, na Quinta Avenida — diz ele.

Susannah nunca ouviu falar do Brendio’s. Brentano’s, talvez (a livraria), mas não Brendio’s. É claro, no entanto, que na America onde Susannah cresceu, ninguém jamais ouviu falar de Nozz-A-La nem de automóveis Takuro Spirit.

— Suas vozes mandaram que comprasse? — Agora ela caçoava um pouco.

— Bem — ele fica vermelho —, na realidade foi mais ou menos isso. Experimente.

Serve perfeitamente.

— Me diga uma coisa — diz ela. — Quem é o presidente? Não vai me dizer que é o Ronald Reagan, certo?

Por um momento ele a contempla com ar incrédulo, depois sorri.

— Quê? Aquele velho ator que apresentava no Death Valley Days na TV? Está brincando, certo?

— Negativo. Eu sempre achei que você é quem estava brincando sobre Ronnie Reagan, Eddie.

— Não entendo o que está querendo dizer.

— Tudo bem, só me diga quem é o presidente.

— Gary Hart — diz ele, como se falasse a uma criança. — Do Colorado. Ele quase deixou de concorrer em 1980*... como tenho certeza que você sabe... por causa daquela história do Monkey Business.** Mas acabou dizendo: “Fodam-se se não podem entender uma piada”, e continuou no páreo. Acabou tendo uma vitória esmagadora. O sorriso se abranda um pouco quando ele a examina.

— Não está brincando comigo, está? — perguntou.

— Ou é você que está brincando comigo a respeito das vozes? As que ouve na cabeça. As que o acordam às duas da manhã.

Eddie pareceu quase chocado.

— Como pode saber disso?

— É uma longa história. Talvez um dia eu lhe conte. — Se eu ainda conseguir me lembrar, ela pensa.

— Não são apenas as vozes.

— Não?

— Não. Tenho sonhado com você. Há meses. Tenho esperado por você. Escute, não nos conhecemos... isto é loucura... mas você tem onde ficar? Não tem, não é?

Ela balança a cabeça numa negativa. E numa imitação passável de  John Wayne (ou talvez a imitação seja de Blaine, o trem), ela diz:

— Sou uma estranha aqui em Dodge, peregrino.

O coração de Susannah está batendo devagar, mas pesadamente no peito; ela sente uma alegria crescente. Tudo vai ficar bem. Não sabe como, mas sabe que sim, tudo vai ficar muito bem. Desta vez o ka esta trabalhando seu favor e a força do ka é enorme. Sabe disto por experiência própria.

— Se eu perguntasse como eu conheço você... ou de onde vem... — Eddie faz uma pausa, olha francamente para ela e diz o resto. — Ou como é possível que eu já a esteja amando...?

Ela sorri. Parece bom sorrir e não faz mais doer o lado do rosto porque o que esteve ali (algum tipo de cicatriz, talvez... ela não consegue se lembrar muito bem) já não está mais.

— Docinho — diz a ele —, foi o que eu falei: é uma longa história. Com o tempo, vai saber uma parte dela... a parte de que eu puder me lembrar. E pode ser que ainda tenhamos algum trabalho a fazer. Por uma empresa chamada Tet Corporation. — Olha ao redor e pergunta: — Em que ano estamos?

— Em 1987 — ele diz.

— E você mora no Brooklyn? Ou quem sabe no Bronx?

O jovem, cujos sonhos e vozes em altercação o levaram até ali — com um copo de chocolate quente na mão e um chapéu com os dizeres FELIZ NATAL no bolso de trás —, explode numa risada.

— Deus, não! Sou de White Plains! Vim de trem com meu irmão. Ele está logo ali. Quis ver mais de perto os ursos polares.

O irmão. Henry. O grande sábio e viciado eminente. O coração dela se aperta.

— Quero apresentar você — diz ele.

— Não, realmente, eu...

— Ei, se vamos ser amigos, tem de ser amiga também do meu irmão caçula. Somos grudados. Jake! Ei, Jake!

Ela nao havia reparado no garoto parado junto ao parapeito que isola a instalação rebaixada dos ursos polares do resto do parque, mas agora ele se vira, e o coração de Susannah dá um grande e vertiginoso salto. Jake acena e marcha para eles.

— Jake também anda sonhando com você — diz Eddie. — É só por isso que sei que não estou ficando louco. Pelo menos não mais louco do que já sou.

Ela pega a mão de Eddie — a mão familiar, tão amada. E quando os dedos de Eddie se fecham sobre os dela, Susannah acha que vai morrer de alegria. Terá muitas perguntas — e eles também —, mas por enquanto só uma parece importante. Quando a neve começa a cair mais densamente, pousando em seu cabelo, em suas pestanas e nos ombros do moletom, ela a faz.

— Você e Jake, qual o sobrenome de vocês?

— Toren — diz Eddie. — É alemão.

Antes que qualquer um dos dois possa dizer mais alguma coisa, Jake se junta à dupla. E vou dizer que os três viveram felizes para sempre? Não vou, pois isso não acontece com ninguém. Mas houve felicidade.

E eles de fato viveram.

Sob o fluir, às vezes percebido de relance, do encanto do Feixe que conecta Shardik, o Urso, com Maturin, a Tartaruga, por meio da Torre Negra, eles de fato viveram.

É tudo.

E é o bastante.

Digam obrigado.

 

                                                                                            Stephen King

 

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