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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Servidão Humana p3 / William Somerset Maugham
Servidão Humana p3 / William Somerset Maugham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Servidão Humana

 

Philip habituou-se a ir tomar chá com Norah todos os dias. E a fim de que as suas visitas não a embaraçassem, levava sempre um bolo, uma libra de manteiga ou um pouco de chá. Começaram a tratar-se por tu. A simpatia feminina era coisa nova para ele. Deleitava-se por encontrar alguém que ouvia de bom grado a história dos seus aborrecimentos. As horas fugiam. Ele não ocultava a sua admiração por Norah. Era uma companheira deliciosa. Não podia deixar de compará-la a Mildred. Que contraste entre a estupidez obstinada de uma, incapaz de se interessar pelo que não conhecesse, e a inteligência tão viva da outra, tão rápida em apanhar as coisas. Ficava aterrado ao pensar que podia ter-se ligado por toda a vida a uma mulher da espécie de Mildred. Uma noite, contou a Norah toda a história do seu amor. Não era coisa de que pudesse orgulhar-se, e foi-lhe bastante agradável ser objecto de tão encantadora simpatia.

 

-- Creio que estás agora curado -- disse ela, quando Philip terminou.

 

Tinha, às vezes, um jeito engraçado de inclinar a cabeça como um cachorrinho de Aberdeen. Sentada numa cadeira de respaldo vertical, Norah costurava, pois não podia perder tempo. Philip aninhara-se confortavelmente a seus pés.

 

-- Nem te posso dizer quanto dou graças por tudo estar terminado -- suspirou.

 

-- Pobrezinho, deves ter passado maus bocados -- murmurou ela e, para lhe testemunhar a sua simpatia, pousou-lhe a mão no ombro.

 

Philip tomou-lha e beijou-a, mas Norah retirou-a.

 

-- Por que fizeste isso? -- perguntou, corando.

 

-- Desagrada-te?

 

Ela contemplou-o um momento com olhos cintilantes e depois sorriu.

 

-- Não -- respondeu.

 

Philip pôs-se de joelhos e encarou-a. Norah olhava-o fixamente nos olhos e a sua boca rasgada tremia com um sorriso.

 

-- Então? -- perguntou.

 

-- És uma criatura adorável. Estou tão reconhecido pela tua bondade, gosto tanto de ti...

 

-- Não sejas tolo.

 

Philip segurou-a pelos cotovelos e puxou-a para si. Sem oferecer resistência, Norah inclinou-se um pouco e ele beijou-lhe os lábios vermelhos.

 

-- _por que fizeste isso? -- tornou ela a perguntar.

 

-- Porque é agradável.

 

Norah não respondeu, mas os seus olhos tomaram uma expressão de ternura e passou a mão suavemente pelos cabelos de Philip.

 

-- Isso não é coisa que se faça. Nós éramos excelentes amigos... Seria tão bom continuar assim.

 

-- Se queres apelar para os meus bons sentimentos, é melhor que deixes de me acariciar o rosto.

 

Ela riu-se, mas continuou.

 

-- Estou a portar-me muito mal, não estou?

 

Surpreendido e achando certa graça naquilo, Philip contemplou-a. Viu os olhos dela ficarem ternos e húmidos; tinham uma expressão que o encantava. Comoveu-se de súbito e as lágrimas vieram-lhe aos olhos.

 

-- Norah, gostas de mim? -- perguntou, incrédulo.

 

-- Para um rapaz inteligente, fazes perguntas bem tolas.

 

-- Oh, minha querida, nunca me ocorreu essa ideia.

 

Enlaçou-a com os braços e beijou-a, enquanto ela, corada, rindo e chorando ao mesmo tempo, se abandonava ao abraço dele.

 

Daí a pouco, Philip soltou-a e, voltando a sentar-se como antes, olhou para ela com curiosidade:

 

-- Francamente, estou aturdido! -- disse.

 

-- Porquê?

 

-- Estou tão surpreso...

 

-- E satisfeito?

 

-- Deliciado -- exclamou ele, sinceramente. -- E tão orgulhoso, tão feliz, tão agradecido...

 

Tomou-lhe as mãos e cobriu-as de beijos. Era, para ele, o princípio de uma felicidade que parecia sólida e duradoura. Tornaram-se amantes mas continuaram amigos. Havia em Norah um instinto maternal que encontrava vazão no seu amor por Philip; ela precisava de alguém para amimar, repreender e cobrir de desvelos; tinha um temperamento doméstico e achava prazer em cuidar da saúde e da roupa de Philip. A susceptibilidade deste em relação ao seu defeito físico despertava-lhe uma piedade que, instintivamente, se exprimia em ternura. Era jovem, forte e sadia, e parecia-lhe perfeitamente natural oferecer o seu amor. Tinha boa disposição e uma alma alegre. Gostava de Philip porque ria com ela de todas as coisas divertidas que lhe despertavam a atenção, e, acima de tudo, amava-o por ele ser quem era.

 

Quando lhe explicou isso, Philip respondeu com alegria:

 

-- Tolice. Tu gostas de mim porque sou uma pessoa calada que sabe escutar.

 

Philip, na realidade, não a amava. Gostava muito dela, sentia prazer na sua companhia e achava graça e interesse na sua palestra. Ela devolvera-lhe a fé em si próprio e, por assim dizer, derramara-lhe um bálsamo nas feridas da alma. Sentia-se imensamente :,

lisonjeado que ela olhasse por ele. Admirava-lhe a coragem, o optimismo e aquela atrevida atitude de desafio perante o destino. Norah tinha uma pequena filosofia própria, que era, ao mesmo tempo, prática e ingénua.

 

-- Vês, não acredito em igrejas, pastores e tudo isso -- dizia ela -- mas acredito em Deus e não creio que Ele se importe muito com o que a gente faça, contanto que cada um contribua com a sua parte e de vez em quando ajude o próximo. Em geral, acho as pessoas muito boas e tenho pena das que o não são.

 

-- Mas, e a outra vida?

 

-- Bom, quanto a isso, nada sei ao certo, é claro -- sorriu ela -- mas espero que seja tudo pelo melhor. De qualquer modo, não haverá alugueres a pagar nem romances a escrever.

 

Tinha o dom feminino da lisonja delicada. Achava que Philip revelara coragem ao deixar Paris por ter a consciência de que não seria um grande artista. E ele ficou encantado quando a companheira exprimiu a sua admiração entusiástica. Nunca pudera adquirir a certeza sobre se a sua decisão indicava coragem ou falta de firmeza. Era delicioso verificar que ela a considerava heróica. Norah aventurava-se a levá-lo para um terreno que os amigos instintivamente evitavam.

 

-- É uma tolice da tua parte ser tão susceptível em relação ao teu pé -- dizia ela. Via que ele corava violentamente, mas continuava. -- Sabes, as pessoas estão longe de pensar nisso tanto como tu. A primeira vez que te vêem, notam, mas depois esquecem-se.

 

Ele não respondia.

 

-- Não estás zangado comigo, não é verdade?

 

--Não.

 

Norah punha-lhe os braços à volta do pescoço.

 

-- Sabes, só falo assim porque te amo. Não quero que isso te faça infeliz.

 

-- Acho que podes dizer o que quiseres -- respondia ele, sorrindo. --Só desejo poder fazer alguma coisa para te mostrar quanto te sou grato.

 

A influência de Norah também se exercia de outros modos. Não permitia que ele se mostrasse mal-humorado, e, quando Philip perdia a calma, ria-se dele. Tornou-o mais urbano.

 

- Podes levar-me a fazer o que quiseres - disse ele, uma vez.

 

-- E lamentas isso?

 

- Não. Gosto de fazer o que te agrada.

 

Philip teve o senso de compreender a sua ventura. Parecia-lhe que Norah lhe dava tudo quanto uma esposa pode dar, deixando-lhe ainda a liberdade; considerava-a a amiga mais encantadora de quantas tivera e ao mesmo tempo encontrava nela uma simpatia que não achara em homem algum. As suas relações sexuais não eram senão o elo mais forte daquela amizade. Completavam-na, mas não eram essenciais. E porque os sentidos de Philip estavam satisfeitos, ele tornou-se mais sereno e de convívio mais fácil. Sentia-se na plena posse de si próprio. Pensava às vezes no Inverno durante o qual vivera obcecado por uma hedionda paixão, e enchia-se de aversão por Mildred e de horror por si.

 

Aproximavam-se os exames e Norah estava tão interessada neles como Philip. Este sentia-se lisonjeado e comovido por tal interesse. Norah fê-lo prometer que viria em seguida dizer-lhe o resultado. Dessa vez, passou sem dificuldade nas três cadeiras e, quando ela recebeu a notícia, desfez-se em lágrimas.

 

- Oh! Que alegria! Estava tão ansiosa.

 

- Tontinha - riu ele, mas com um nó na garganta.

 

Como não ficar comovido diante de semelhante solicitude?

 

- E que é que vais fazer agora? - perguntou ela.

 

- Posso entrar em férias com a consciência tranquila. Nada tenho a fazer até o período de Inverno, que começa em Outubro.

 

- Vais então a Blackstable visitar o teu tio?

 

- Estás enganada. Vou ficar em Londres, para me divertir contigo.

 

- Preferia que fosses.

 

- Porquê? Estás cansada de mim?

 

Ela riu e pousou-lhe as mãos dos ombros.

 

- Porque tens estudado de mais. Pareces muito cansado. Precisas de ar puro e de repouso. Vai, por favor.

 

Por um momento Philip não respondeu. Contemplava Norah com olhos apaixonados.

 

- Olha, se outra pessoa me dissesse isso, não acreditaria. Só pensas no meu bem. Gostava de saber o que vês em mim.

 

- Queres dar-me um atestado de boa conduta junto com a demissão? - respondeu ela, alegremente.

 

- Direi que és bondosa e solícita, nada exigente, que nunca causas aborrecimentos e és fácil de contentar.

 

- Tudo isso é tolice, mas uma coisa eu te posso dizer: sou uma das poucas pessoas que sabem aproveitar da experiência.

 

Philip aguardava com impaciência o momento de voltar a Londres. Durante os dois meses que passou em Blackstable, Norah escreveu-lhe frequentemente. Eram longas cartas em que ela, numa letra graúda e ousada, lhe descrevia espirituosamente os pequenos acontecimentos da vida quotidiana, os aborrecimentos domésticos da senhoria, inesgotável assunto de riso, os cómicos contratempos dos seus ensaios - ia figurar num importante espectáculo, num dos teatros de Londres - as suas estranhas aventuras com os editores... Philip lia muito, tomava banhos de mar, jogava ténis e passeava de barco. Em principios de Outubro, voltou a Londres, a fim de preparar-se para o seu segundo exame. Desejava vivamente ser aprovado, para acabar de vez com a rotina do curso. Transposto esse obstáculo, o estudante começa a tratar de doentes, entrando em contacto não só com pacientes de ambos os sexos, como também com os livros. Philip via Norah todos os dias.

 

Lawson passara o Verão em Poole. Trazia inúmeros esboços do porto e da praia. Tinha duas ou três encomendas de retratos e propunha-se ficar em Londres até que as brumas do Inverno o afastassem. Hayward, que estava também em Londres, pretendia passar o Inverno no estrangeiro, mas deixava-se ficar, semana após semana, por pura incapacidade de se resolver a ir. Engordara durante os últimos dois ou três anos - havia cinco que Philip o conhecera em Heidelberga - e estava prematuramente calvo. Era muito susceptível a esse respeito e usava o cabelo comprido para esconder a clareira que se lhe abria no alto da cabeça. O seu único consolo era possuir agora uma testa bastante nobre. Os olhos azuis tinham perdido a cor. Em geral, mantinha-os baixos, com uma expressão apática. A boca, perdida a plenitude da mocidade, tornara-se débil e descorada. Hayward falava ainda com ar vago das coisas que pretendia fazer no futuro, mas com menos convicção. Tinha a consciência de que os amigos já não acreditavam nele. Depois de beber dois ou três copos de *whisky* mostrava-se propenso à elegia.

 

- Sou um falhado - murmurava. - Não fui feito para a brutalidade da luta pela vida. O mais que posso fazer é ficar de lado e deixar que passe a turba, acotovelando-se na busca de prazeres.

 

Dava a impressão de que falhar era coisa mais delicada e refinada do que vencer. Insinuava que o seu alheamento provinha da repulsa por tudo quanto fosse baixo e comum. Dizia belas coisas sobre Platão.

 

-- Pensava que nesta altura já tivesses deixado Platão em paz - disse Philip, com impaciência.

 

- Pensavas? - perguntou o outro, erguendo as sobrancelhas.

 

Não se mostrava inclinado a prosseguir no assunto. Descobrira ultimamente a impressionante dignidade do silêncio.

 

- Não vejo a utilidade de andar a ler e reler a mesma coisa - disse Philip. - Isso não passa de uma forma laboriosa de preguiça.

 

- Acaso julgas ter um espírito tão grande que podes compreender à primeira leitura o mais profundo dos pensadores?

 

- Não quero compreender, não sou crítico. Não me interesso pelos escritores por causa deles mas por mim.

 

- Então por que lês?

 

- Um pouco por prazer, porque é um hábito e eu sinto-me :,

tão inquieto quando não leio como quando não fumo; e outro pouco para me conhecer. Quando leio um livro, tenho a impressão de que o faço apenas com os olhos, mas às vezes encontro uma passagem, talvez uma única frase que tem sentido *para mim*, e que se torna parte de mim mesmo. Tirei do livro tudo quanto me era útil e nada mais poderei extrair dele, ainda que torne a lê-lo uma dúzia de vezes. Tenho a impressão de que nós somos como um botão em flor: a maior parte das nossas leituras desliza sobre nós sem produzir o menor efeito, mas certas coisas, que têm para nós um sentido especial, abrem uma pétala: uma a uma, as pétalas desabrocham, e por fim surge a flor.

 

Philip não estava satisfeito com a metáfora, mas não soube como melhor explicar uma coisa que sentia mas sobre a qual não tinha ideias claras.

 

- Queres fazer isto, torna-te aquilo... - observou Hayward, encolhendo os ombros. - É tão vulgar...

 

Philip conhecia agora muito bem o amigo. Era fraco e vaidoso, tão vaidoso que se tornava necessário um cuidado constante para não o melindrar. Misturava preguiça e idealismo de tal modo que não podia separá-los. Encontrou um dia, no *atelier* de Lawson, um jornalista que ficou encantado pela sua conversa, e uma semana mais tarde o director de um jornal escreveu-lhe, a sugerir-lhe que fizesse crítica nas suas colunas. Hayward passou quarenta e oito horas em angustiosa indecisão. Falara tanto tempo em conseguir uma ocupação dessa natureza que não teve coragem para dar uma recusa formal. A ideia, porém, de ter que fazer alguma coisa aterrorizava-o. Declinou por fim o convite e respirou aliviado.

 

- Isso impediria o meu trabalho - confiou a Philip.

 

- Que trabalho? - perguntou Philip, brutalmente.

 

- A minha vida interior - respondeu ele.

 

Pôs-se então a dizer coisas bonitas sobre Amiel, o professor genebrino cujo brilho prometia uma obra que nunca foi realizada. Por ocasião da sua morte, o motivo e a justificação do seu malogro não tardaram a revelar-se, sob a forma de um maravilhoso e pormenorizado diário, encontrado entre os papéis do defunto. Hayward sorria enigmaticamente.

 

Podia ainda falar com delícia sobre literatura; o seu gesto era refinado, e elegante o seu julgamento. Manifestava constante interesse pelas ideias, o que fazia dele um companheiro agradável. Na realidade, essas ideias nada significavam para ele, uma vez que não lhe produziam o menor efeito. Tratava-as como teria tratado belas porcelanas numa sala de leilão. Manuseava-as com prazer, sentia-lhes a forma e o brilho, avaliava-as mentalmente para depois tornar a pô-las nas prateleiras, esquecendo-as de todo.

 

E foi Hayward quem fez uma descoberta capital. Uma noite depois de ter longamente preparado o terreno, levou Philip e Lawson a um botequim de Beak Street, notável não só pela sua história - gloriosas lembranças do século __XVIII despertavam ali a imaginação romântica - mas também pelo seu ponche, que era o melhor de Londres, e ainda pelo seu rapé. Hayward conduziu-os a uma sala comprida, cheia de sombria magnificência. Das paredes pendiam quadros representando mulheres nuas: eram vastas alegorias da escola de Haydon; mas o fumo, o gás e a atmosfera londrina tinham-nas enriquecido, dando-lhes o aspecto de telas antigas. A madeira escura que forrava as paredes, o ouro maciço e fosco das cornijas e as mesas de mogno davam ao salão um ar de sumptuoso conforto. Os bancos de couro, ao longo das paredes, eram fofos e cómodos. Dentro de uma cabeça de carneiro, sobre uma mesa, em frente da porta, achava-se o famoso rapé. Pediram ponche. Beberam-no. Era ponche de rum quente. Como descrevê-lo? Não lograriam fazê-lo o vocabulário sóbrio, os epítetos comedidos da nossa narrativa. Termos pomposos, frases exóticas e de rico lavor ocorrem à fantasia exaltada. Aquela bebida aquecia o sangue e clareava as ideias, inundava a alma de bem-estar; predispunha logo a mente a dizer coisas espirituais e a apreciar o espírito alheio. Tinha o vago da música e a precisão da matemática. Apenas uma das suas qualidades era susceptível de comparação: possuía o calor de um coração generoso, mas o gosto, perfume e suavidade não se poderiam exprimir com palavras. Se tentasse fazê-lo, Charles Lamb, com o seu tacto infinito, teria traçado encantadores quadros da vida do seu tempo. Lord Byron, visando o impossível, teria podido atingir o sublime numa estrofe de *_Don Juan*. Oscar Wilde, amontoando jóias de Ispahan sobre brocados de Bizâncio, poderia ter criado uma beleza perturbadora. Reflectindo sobre ele, o espírito titubeava e tinha visões de festins de Heliogábalo, subtis harmonias de Debussy, envoltas no bafio de velhas arcas que guardam punhos de renda, gibões e gargantilhas de uma geração esquecida. Fazia recordar a pálida fragrância dos lírios do vale e o sabor do queijo de Cheddar.

 

Hayward descobriu o botequim onde se obtinha aquela preciosa mistura, ao encontrar na rua um tal Macalister, que fora seu colega em Cambridge. Era corretor de fundos e filósofo. Costumava frequentá-lo uma vez por semana; em breve, Philip, Lawson e Hayward adquiriram o hábito de se encontrarem ali todas as noites de terça-feira. A evolução da moda tornara-o um lugar pouco frequentado, o que constituía grande vantagem para os amantes da boa conversa. Macalister era um sujeito robusto e atarracado, de cara larga e voz macia. Era versado em Kant e julgava tudo do ponto de vista da razão pura. Gostava de expor as suas doutrinas. Philip escutava-o com vivo interesse. Havia muito chegara à conclusão de que nada era mais divertido do que :, a metafísica, mas não estava certo da sua eficácia nos assuntos da vida. O pequeno e bem elaborado sistema que construíra em resultado das suas meditações em Blackstable de nada lhe servira durante o seu capricho por Mildred. Não podia afirmar com segurança que a razão prestasse grande serviço como norma de conduta. Parecia-lhe que a vida não dependia dela. Lembrava-se com muita nitidez da violência da emoção que dele se assenhoreara e da sua incapacidade de reagir, como se estivesse manietado e por terra. Lia muitas coisas sábias nos livros, mas só podia julgar por experiência própria. Não sabia se era diferente dos outros. Ao agir, não calculava os prós e os contras, os benefícios que lhe adviriam do acto ou o prejuízo que pudesse resultar da omissão; mas todo o seu ser era irresistivelmente impelido. Não agia com uma parte de si mesmo, mas com toda a sua pessoa. A força que o dominava nada parecia ter de comum com a razão: esta limitava-se a indicar os métodos de obter aquilo por que a sua alma ansiava.

 

Macalister lembrou-lhe o Imperativo Categórico:

 

- Procede de tal modo que cada uma das tuas acções possa converter-se em regra universal de procedimento.

 

- Isso parece-me perfeitamente disparatado - disse Philip.

 

- Que ousadia qualificar assim um princípio estabelecido por Emmanuel Kant - retorquiu Macalister.

 

- Porquê? O respeito pelo que os outros dizem é uma qualidade estupidificante. Há demasiado respeito no mundo. Kant pensava assim ou assado, não porque isso fosse verdade, mas porque era Kant.

 

- Então, qual é a sua objecção ao Imperativo Categórico?

 

(_Falavam como se a sorte de Impérios estivesse em jogo).

 

- Ele sugere que podemos, por um esforço de vontade, escolher um partido a tomar e que a razão é o guia mais seguro. Por que haviam os seus ditames de ser melhores que os da paixão? São diferentes, nada mais.

 

- Pareces estar satisfeito por ser escravo das tuas paixões.

 

- Escravo, sim, porque não as posso vencer, mas satisfeito, nunca - retorquiu Philip, a rir.

 

Enquanto falava, pensava na loucura que o arrastara para Mildred. Lembrou-se de como se irritara contra isso e como sofrera com semelhante degradação.

 

"_Graças a Deus, agora estou livre de tudo" - pensou.

 

No entanto, mesmo ao dizer isso para si, não estava bem certo de que o fazia com sinceridade. Quando estava sob a influência da paixão, sentira um vigor singular, e o seu espírito trabalhara com uma força desusada. Dir-se-ia que estava mais vivo, e no simples facto de existir havia qualquer coisa de emocionante, uma veemência da alma que tornava um tanto insípida a existência actual. Toda a sua miséria de então recebera certa compensação, nesse afluxo de vida.

 

As palavras imprudentes de Philip lançaram-nos numa discussão sobre o livre arbítrio e a vontade e Macalister, com a sua memória infalível, aduzia argumento sobre argumento. O seu espírito comprazia-se na dialéctica e obrigava Philip a contradizer-se. Vendo-se encurralado, só conseguia escapar sacrificando as suas teorias, depois de ter caído em armadilhas de lógica e de ter sido bombardeado com citações.

 

Finalmente Philip declarou:

 

- Não posso falar pelos outros, só posso falar por mim. A ilusão da liberdade é tão forte em mim que não me posso desfazer dela, mas acredito que seja uma simples ilusão. Contudo, essa ilusão é um dos motores mais poderosos das minhas acções. Antes de agir, sinto que tenho a faculdade de escolha, e isso influi no que vou fazer. Mas, uma vez realizada a coisa, parece-me que era inevitável desde a eternidade.

 

- E que inferes daí? - perguntou Hayward.

 

- Ora, muito simplesmente, a inanidade do arrependimento. É inútil lamentar o vaso quebrado, quando todas as forças do Universo se reuniram para fazê-lo cair.

 

Certa manhã, ao levantar-se, Philip sentiu a cabeça andar à roda e, voltando para a cama, percebeu de repente que estava doente. Todos os membros lhe doíam e tiritava de frio. Quando a senhoria lhe trouxe a refeição da manhã, gritou-lhe pela porta aberta que não se sentia bem, e pediu uma chávena de chá com torradas. Poucos minutos mais tarde, bateram à porta e Griffiths entrou. Havia um ano que moravam na mesma casa, sem nunca terem ido além do cumprimento no corredor.

 

- Ouvi dizer que estava doente - disse Griffiths. - Resolvi entrar para ver o que tem.

 

Corando sem saber porquê, Philip disse que não era nada. Estaria bom dentro de poucas horas.

 

- Pois sim, mas deixe que lhe tire a temperatura.

 

- Não é preciso - respondeu Philip, irritado.

 

- Vamos lá.

 

Philip pôs o termómetro na boca. Griffiths sentou-se na beira da cama e palrou animadamente uns instantes, depois pegou no termómetro e examinou-o.

 

- Escute, meu velho, precisa de ficar na cama, e vou trazer o velho Deacon, para o ver.

 

- Tolice! - respondeu Philip. - Não tenho nada. Não quero que se incomode comigo.

 

- Mas não é incómodo. Você tem febre e precisa de ficar na cama. Combinado, não é assim?

 

Havia um encanto particular na sua maneira, uma mistura de gravidade e bondade que era infinitamente atraente.

 

- Você tem admirável ar profissional - murmurou Philip fechando os olhos, a sorrir.

 

Griffiths ajeitou-lhe o travesseiro e estendeu com habilidade as roupas da cama, acomodando o doente. Foi à sala de visitas de Philip procurar um sifão e, como não o encontrasse, trouxe um do seu próprio quarto. Baixou, depois, os estores.

 

- Agora, trate de dormir que vou ver se trago o velho logo que ele faça a sua visita à enfermaria.

 

O tempo que Philip ficou só pareceu-lhe longo. Tinha a impressão de que a cabeça lhe ia estalar, sentia uma dor aguda nos membros e temia começar a chorar. Bateram, enfim, à porta e Griffiths sadio, forte e jovial, entrou.

 

- Aqui está o dr. Deacon - disse.

 

O médico, um homem idoso, de maneiras brandas, e que Philip conhecia apenas de vista, avançou. Algumas perguntas, um breve exame, e o diagnóstico.

 

--Que diz o senhor? - perguntou a Griffiths, sorrindo.

 

- Gripe.

 

- Isso mesmo.

 

O dr. Deacon correu os olhos em torno daquele tristonho quarto de casa de hóspedes.

 

-- Não gostaria de ir para o hospital? Pô-lo-ão num quarto particular, onde será mais bem tratado do que aqui.

 

- Prefiro ficar onde estou - disse Philip.

 

Não queria ser incomodado e sempre se sentia intimidado em ambientes novos. Encolhia-se ante a ideia de enfermeiras a correr em volta dele, e não o atraía o frio asseio do hospital.

 

- Posso cuidar dele, doutor - disse Griffiths, prontamente.

 

- Está bem.

 

E o dr. Deacon passou uma receita, deu instruções e retirou-se.

 

- Agora, terá de fazer tudo o que eu disser - disse Griffiths. -Vou ser ao mesmo tempo a enfermeira de dia e a enfermeira de vela.

 

- É muita bondade sua, mas não precisarei de nada.

 

Griffiths pousou na testa de Philip a mão grande, fresca e seca, e esse contacto pareceu fazer-lhe bem.

 

- Vou apenas mandar preparar isto no dispensário e voltarei em seguida.

 

Daí a pouco, trouxe o remédio e deu uma dose ao doente. Subiu depois ao quarto, para ir buscar os seus livros.

 

- Não lhe faz diferença que eu estude aqui esta tarde? - perguntou ao descer. - Vou deixar a porta aberta, quando quiser alguma coisa dê um grito por mim.

 

Mais tarde, naquele mesmo dia, Philip, ao despertar de uma sonolência inquieta, ouviu vozes na sala de visitas. Um amigo viera visitar Griffiths.

 

- Olha, é melhor não vires esta noite - ouviu dizer a Griffiths.

 

E, instantes depois, outra pessoa entrou na sala e exprimiu a sua surpresa por encontrar Griffiths ali. Philip ouviu a explicação deste:

 

- Estou a cuidar de um aluno do segundo ano que mora aqui. O pobre diabo está com gripe. Nada de jogo esta noite, meu velho.

 

Assim que Griffiths ficou só, Philip chamou-o.

 

- Escute, não é por minha causa que você vai deixar de receber os seus amigos esta noite, pois não? - perguntou.

 

- Nada disso. Preciso estudar a minha cirurgia.

 

- Não mude os seus planos. Eu arranjo-me sozinho. Não precisa de preocupar-se comigo.

 

- Está muito bem.

 

Philip piorou. Ao anoitecer, começou a delirar um pouco, mas pela madrugada despertou de um sonho agitado. Viu Griffiths levantar-se de uma cadeira de braços, ajoelhar-se e, com os dedos, deitar, um após outro, vários pedaços de carvão no fogão. Vestia um roupão por cima do pijama.

 

- Que faz aí? - perguntou.

 

- Oh... Acordei-o? Procurava avivar o lume sem fazer barulho.

 

- Porque não está deitado? Que horas são?

 

- Mais ou menos cinco. Achei melhor ficar aqui consigo esta noite. Trouxe uma cadeira de braços. Se tivesse trazido um colchão, dormiria como uma pedra e não acordaria quando precisasse de mim.

 

- Era melhor que fosse menos abnegado - gemeu Philip. - E se apanha a gripe?

 

- Então, terá de cuidar de mim, meu velho - volveu o outro com uma risada.

 

De manhã, Griffiths ergueu os estores. A noite de vigília deixara-o pálido e cansado, mas estava de boa disposição.

 

- Agora vou lavá-lo - disse alegremente para Philip.

 

- Eu posso lavar-me sozinho - respondeu o doente, envergonhado.

 

- Tolice. Se estivesse no hospital, seria lavado por uma enfermeira. Posso fazê-lo tão bem como ela.

 

Demasiado fraco e acabrunhado para resistir, Philip permitiu que Griffiths lhe lavasse o rosto, as mãos, os pés, o peito e as costas.

 

Fê-lo com uma delicadeza encantadora, ao mesmo tempo que despejava uma torrente de palavras amigas; mudou depois os lençóis exactamente como no hospital, sacudiu o travesseiro e arranjou a roupa da cama.

 

- Gostaria que a Irmã Arthur me visse. Havia de ficar pasmada. Deacon vem vê-lo daqui a pouco.

 

- Não posso compreender por que é tão bom para mim - disse Philip.

 

- Vou praticando. Até é divertido ter um doente...

 

Griffiths deu-lhe a primeira refeição e foi vestir-se para ir comer alguma coisa. Poucos minutos antes das dez, voltou com um cacho de uvas e flores.

 

- Mas você é de uma amabilidade incrível! - exclamou Philip. Esteve na cama durante cinco dias.

 

Norah e Griffiths cuidavam dele alternadamente. Embora Griffiths fosse da mesma idade de Philip, adoptava para com este uma cómica atitude maternal. Era atencioso, gentil e encorajador; o seu maior predicado, porém, consistia numa vitalidade que parecia emprestar saúde a todos quantos se aproximavam dele. Philip não estava habituado aos mimos que a maioria das pessoas recebem das mães e irmãs e ficou profundamente tocado pela ternura feminina daquele forte rapagão. Melhorou. Sentado ociosamente no quarto, Griffiths distraía-o, contando-lhe os seus casos amorosos. Era namorador, capaz de envolver-se em três ou quatro aventuras ao mesmo tempo; e valia a pena escutar a narrativa dos ardis a que se via obrigado para se tirar de dificuldades. Tinha o dom de emprestar um encanto romântico a tudo quanto lhe acontecia. Estava crivado de dívidas, e todos os seus objectos de valor se achavam empenhados; conseguia, contudo, ser sempre alegre, extravagante e generoso. Era aventureiro por natureza. Gostava das pessoas de ocupações duvidosas e propósitos indefinidos. Tinha grandes relações entre a ralé que frequenta os bares de Londres. Mulheres perdidas tratavam-no como a um amigo, tomavam-no para confidente, contando-lhe as suas aventuras e dificuldades. Batoteiros, enternecidos com a sua falta de dinheiro, pagavam-lhe jantares e emprestavam-lhe notas de cinco libras. Era invariavelmente reprovado nos exames; mas suportava isso com jovialidade e submetia-se com uma graça tão encantadora às reprimendas paternas que seu pai, um médico que tinha clínica em Londres, não tinha coragem de se zangar a sério com ele.

 

- Sou um tapado para os livros - dizia em tom alegre. - Mas é que não posso estudar.

 

A vida era demasiado bela. Mas era evidente que, quando ele tivesse passado a exuberância da mocidade e fosse afinal diplomado, conseguiria um tremendo êxito na clínica. Curaria os doentes com o simples encanto das suas maneiras.

 

Philip adorava-o agora como adorara no colégio os rapazes altos, desempenados e cheios de energia vital. Quando se restabeleceu, já uma sólida amizade os ligava, e Philip sentia um encanto particular em ver que Griffiths parecia sentir prazer em ficar sentado na sua pequena sala de visitas, tomando o tempo do amigo com a sua tagarelice divertida e fumando inúmeros cigarros. Philip levava-o às vezes à casa de bebidas próximo da Regent Street. Hayward achava-o estúpido, mas Lawson reconhecia-lhe a sedução e estava ansioso por pintar-lhe um retrato. Griffiths era uma figura pitoresca, de olhos azuis, tez branca e cabelos crespos. Frequentemente, os amigos discutiam assuntos que ele desconhecia por completo, e então o rapaz ficava em silêncio, com um sorriso bondoso no rosto simpático, sentindo perfeitamente que a sua presença era suficiente contribuição para o entretenimento da companhia. Quando descobriu que Macalister era corretor, pediu-lhe ansiosamente palpites para a Bolsa. E Macalister, com o seu sorriso grave, contou-lhe que teria feito fortuna se tivesse comprado certos títulos em determinadas ocasiões. Isso fazia vir água à boca de Philip, pois estava a gastar mais do que esperava e não seria nada mau fazer algum dinheiro pelo fácil método sugerido por Macalister.

 

- Na próxima vez que souber de um bom palpite, hei-de avisar-te - dizia o corretor. - _às vezes aparecem. A questão é esperar a oportunidade.

 

Como seria agradável ganhar cinquenta libras e oferecer a Norah as peles de que ela tanto precisava para o Inverno... Olhava as lojas de Regent Street e escolhia os artigos que havia de comprar com aquele dinheiro. Ela merecia tudo. Tornara-lhe a vida muito feliz.

 

Uma tarde, chegou aos aposentos, de volta do hospital, para se lavar e arranjar antes de ir, como de costume, tomar chá em companhia de Norah e, ao meter a chave na fechadura, a dona da casa abriu-lhe a porta:

 

- Tem uma senhora à sua espera - disse ela.

 

- Eu? - exclamou Philip.

 

Estava surpreendido. Só podia ser Norah e ele não tinha ideia do que poderia tê-la trazido ali.

 

- Não queria deixá-la entrar, mas ela veio três vezes e parecia tão aborrecida por não o encontrar... Então, disse-lhe que esperasse.

 

Philip deixou a senhoria ainda a explicar e precipitou-se para o quarto. O coração desfaleceu-lhe. Era Mildred. Estava sentada, mas ergueu-se logo que ele entrou. Não avançou para ele nem falou. A surpresa de Philip era tamanha que nem sabia que dizer.

 

- Que diabo queres? - perguntou.

 

Mildred pôs-se a chorar sem responder. Não levou as mãos aos olhos, mas conservou-as caídas ao longo do corpo. Parecia uma criadinha a pedir emprego. Havia uma dolorosa humildade na sua atitude. Philip não saberia dizer que sentimentos lhe acudiam. Teve o súbito impulso de voltar as costas e fugir do quarto.

 

- Não pensei em ver-te outra vez - disse por fim.

 

- Quem me dera ter morrido... - gemeu ela

 

Philip deixou-a parada onde estava. De momento, só pensava em recobrar o domínio de si próprio. Tremiam-lhe os joelhos. Olhava para ela, que gemia com desespero.

 

- Que aconteceu? - perguntou.

 

- Ele deixou-me... O Emil...

 

O coração de Philip sobressaltou-se. Compreendia agora que a amava tão apaixonadamente como antes. Nunca deixara de amá-la. Abatida e submissa, ali estava ela na sua frente. Desejou tomá-la nos braços, cobrir-lhe de beijos o rosto manchado de lágrimas. Quão longa fora a separação! Não sabia como pudera suportá-la.

 

- É melhor que te sentes. Vou dar-te alguma coisa para beberes.

 

Arrastou a cadeira para perto do lume e ela sentou-se. Philip misturou *whisky* e soda e Mildred, ainda soluçante, bebeu. Olhava-o com os olhos grandes e tristes, circundados por largas olheiras. Estava mais magra e mais pálida do que quando ele a vira pela última vez.

 

- Antes tivesse casado contigo quando mo pediste - disse.

 

Philip, sem saber porquê, sentiu um nó na garganta. Incapaz de conservar a reserva que se impusera pôs-lhe a mão no ombro.

 

- Sinto muitíssimo o que aconteceu.

 

Ela inclinou a cabeça para o peito dele e rompeu num choro histérico. Como o chapéu a estorvasse, tirou-o. Nunca sonhara que Mildred fosse capaz de chorar daquela maneira. Beijou-a repetidas vezes. Isso pareceu aliviá-la um pouco.

 

- Foste sempre tão bom para mim, Philip - disse ela. - Por isso, sabia que podia recorrer a ti.

 

- Conta-me o que aconteceu.

 

- Oh, não posso, não posso! - exclamou ela, esquivando-se.

 

Philip caiu de joelhos ao lado de Mildred e encostou a face à dela.

 

- Bem sabes que não há nada que não possas dizer-me. Nunca te censurei coisa alguma.

 

Mildred contou-lhe a história pouco a pouco. Em certos momentos, soluçava tanto, que mal se podia entender o que dizia.

 

- Na segunda-feira passada, ele foi a Birmingham e prometeu voltar na quinta, mas não voltou, nem sexta. Então, escrevi uma carta, a perguntar o que tinha acontecido e ele nem respondeu. Escrevi de novo, a dizer que, se não respondesse, eu ia a Birmingham. E hoje de manhã recebi uma carta de um advogado, a dizer que não tinha qualquer direito a Emil e que, se insistisse, ele pediria a protecção da lei.

 

- Mas isso é absurdo - gritou Philip. - Um homem não pode tratar a sua mulher dessa maneira. Tiveram alguma zanga?

 

- Sim. Tivemos uma questão no domingo. E ele disse que estava farto de mim, mas já o dissera doutras vezes e voltava sempre.

Não pensei que desta vez fosse a sério. Ele estava assustado porque lhe disse que ia ter um filho. Escondi-lho enquanto pude. Depois, tive que dizer. Ele respondeu que a culpa era minha, que eu devia ter tido cuidado. Só queria que ouvisses as coisas que me disse! Mas vi logo que ele não era um cavalheiro. Deixou-me sem um vintém. Não pagara o aluguer e eu não tinha dinheiro para pagar. A dona da casa disse-me das boas... O que me disse só se diz a uma ladra.

 

- Pensei que tivessem alugado uma casa.

 

- Isso foi o que ele prometeu, mas fomos para uns quartos mobilados, em Highbury. Emil era mesquinho. Chamava-me gastadora, mas não me dava nada para gastar.

 

Mildred tinha um dom especial para misturar as coisas importantes com as triviais. Philip estava intrigado. Tudo aquilo lhe parecia incompreensível.

 

- Nenhum homem podia ser assim tão patife - disse.

 

- Não o conheces. Eu não voltaria agora para o Emil nem que ele mo viesse pedir de joelhos. Fui uma tola em ter-me importado com ele. E não ganhava o que dizia. As mentiras que me contou!

 

Philip reflectiu um momento. Estava tão profundamente comovido com a desgraça dela que não podia pensar em si próprio.

 

- Gostarias que eu fosse a Birmingham? Poderia procurá-lo e tentar arranjar as coisas.

 

- Oh, que esperança! Agora, ele não volta mais, conheço-o muito bem.

 

- Mas é obrigado a sustentar-te. Não pode fugir a isso. Não entendo nada dessas coisas, mas o melhor é procurar um advogado.

 

- Mas como? Não tenho dinheiro.

 

- Eu to darei. Vou escrever um bilhete ao meu advogado, o desportista que foi executor testamentário de meu pai. Queres que vá lá contigo agora? Julgo que ainda estará no escritório.

 

- Não, dá-me uma carta para ele. Vou sozinha.

 

Mildred estava um pouco mais calma. Philip sentou-se e escreveu o bilhete. Lembrou-se depois de que ela não tinha dinheiro. Felizmente descontara um cheque no dia anterior e pôde dar lhe cinco libras.

 

-_és tão bom para mim, Philip - disse ela.

 

- Sinto-me tão satisfeito por poder fazer alguma coisa por ti...

 

- Ainda gostas de mim?

 

- Como sempre gostei.

 

Mildred ofereceu-lhe os lábios e ele beijou-os. Havia nesse gesto um abandono que Philip nunca lhe notara até então. Bem valia toda a angústia que sofrera.

 

Mildred saiu e Philip deu-se conta de que ela passara duas horas ali, na sua companhia. Sentia-se extraordinariamente feliz.

 

- Coitadinha! Coitadinha... - murmurava para consigo, com o coração a arder num amor ainda maior que o antigo.

 

Nunca mais pensou em Norah até que, pelas oito horas, chegou um telegrama. Antes de abri-lo adivinhou que era dela.

 

*_Que há? Norah*.

 

Não soube que fazer nem responder. Podia encontrá-la quando terminasse o espectáculo em que ela tomava parte e acompanhá-la a pé até casa, como às vezes fazia. Mas toda a alma se lhe revoltava à ideia de vê-la naquela noite. Pensou em escrever-lhe, mas não se animava a começar com o *querida Norah* de sempre. Resolveu telegrafar:

 

*_Desolado. Não pude sair. Philip*.

 

Via-a em pensamento. Sentia uma vaga repulsa por aquele rostozinho feio, com os zigomas salientes e a tonalidade crua da pele. Havia nesta uma aspereza que lhe causava arrepios. Sabia que o telegrama devia ser seguido de alguma iniciativa da sua parte, mas, apesar de tudo, adiou-a.

 

Tornou a telegrafar-lhe no dia seguinte.

 

*_Impossível ir. Lamento. Escreverei*.

 

Mildred dera a entender que voltaria às quatro da tarde e ele não quisera dizer-lhe que a hora era inconveniente. Afinal, ela estava em primeiro lugar. Esperou-a com impaciência. Da janela, viu-a chegar e foi em pessoa abrir a porta da rua.

 

- Então? Falaste com Nixon?

 

- Falei - respondeu ela. - Disse que não valia a pena. Não se pode tomar medida alguma. O remédio é aguentar e cara alegre.

 

- Mas isso é impossível! - exclamou Philip.

 

Ela sentou-se, desanimada.

 

- Nixon deu alguma razão? - perguntou.

 

Mildred estendeu-lhe uma carta amarrotada.

 

- Aqui está a tua carta, Philip. Não a entreguei. Ontem não tive coragem de contar. Não pude. Emil não casou comigo. Não podia. Já tinha mulher e três filhos.

 

Philip sentiu-se de súbito pungido pelo ciúme e pela angústia.

Aquilo ultrapassava quase as suas forças.

 

- Foi por isso que não pude voltar para casa da minha tia. Não tenho mais ninguém no mundo senão tu.

 

- Mas que foi que te fez ir para ele? - perguntou Philip, em voz baixa, que se esforçava por manter firme.

 

- Não sei. No começo, ignorava que, Emil era casado. E quando ele me contou, disse-lhe boas. Depois, passei meses sem lhe falar, e, quando voltou à casa de chá e tornou a pedir-me, não sei que se passou comigo. Senti que não podia resistir. Tinha de ir com ele.

 

- Tu amava-lo?

 

- Não sei. Não podia deixar de rir das histórias que me contava. E depois, tinha qualquer coisa... Dizia que nunca me arrependeria, prometia dar-me sete libras por semana - garantiu que estava a ganhar quinze, mas era mentira, não estava. E, além disso, eu já andava aborrecida de ir para o emprego todos os dias e não me dava muito bem com a minha tia. Ela queria tratar-me como uma criada e não como parenta. Dizia que eu devia arrumar o meu quarto e que, se não o arrumasse, ninguém o faria para mim. Oh! Se ao menos eu não tivesse ido atrás desse homem! Mas, quando Emil apareceu e me pediu que fosse viver com ele, senti que não podia resistir...

 

Philip afastou-se dela. Sentou-se à mesa e ficou com a cabeça entre as mãos. Sentia-se horrivelmente humilhado.

 

- Não estás zangado comigo, Philip? - perguntou ela com voz lastimosa.

 

- Não - respondeu, erguendo a vista mas evitando olhar para ela. - Estou apenas muito magoado.

 

- Porquê?

 

- Compreendes, amava-te tão apaixonadamente... Fiz tudo quanto pude para que te interessasses por mim. Pensei que eras incapaz de amar quem quer que fosse. _é tão medonho saber que te dispuseste a sacrificar tudo por aquele tipo reles... Só queria saber o que viste nele.

 

-- Sinto muito, Philip. Juro que depois me arrependi amargamente.

 

Philip pensou em Emil Miller, com aquele seu aspecto viscoso e malsão, os olhos azuis e velhacos, a janotice vulgar. Usava sempre uns berrantes coletes de malha, vermelhos. Philip suspirou. Ela ergueu-se e caminhou para ele, pondo-lhe os braços em redor do pescoço.

 

- Nunca esquecerei que te ofereceste para casar comigo,

 

Ele tomou-lhe a mão e ergueu os olhos para ela. Ela inclinou-se e beijou-o.

 

- Philip, se ainda me queres, faço tudo quanto me pedires. Sei que és um cavalheiro em toda a extensão da palavra.

 

O coração dele como que parou. Aquelas palavras causavam-lhe um vago nojo.

 

- É uma grande bondade da tua parte, mas não posso.

 

- Já não gostas de mim?

 

- Sim, amo-te de todo o coração.

 

- Então por que não aproveitamos a vida, enquanto podemos? Agora não tem importância.

 

Philip desprendeu-se dela.

 

- Tu não podes compreender. Desde que te vi fiquei apaixonado por ti, mas agora... esse homem! Desgraçadamente, tenho uma imaginação muito viva. Só de pensar nisso fico revoltado.

 

- És engraçado - disse ela.

 

Ele pegou-lhe de novo na mão e sorriu-lhe.

 

- Não deves pensar que eu seja um ingrato. Por muito que te agradeça, nunca será de mais. Mas... bem vês, isto é mais forte do que eu.

 

- Es é um bom amigo, Philip.

 

Continuaram a conversar e em breve tinham voltado à familiaridade e camaradagem dos velhos tempos. Fazia-se tarde. Philip sugeriu que jantassem juntos e fossem depois às variedades. Foi necessário persuadi-la, pois tinha a ideia de que devia portar-se de acordo com a situação e instintivamente sentia não ficar bem sair a passear a sua desgraça numa casa de diversões. Philip pediu-lhe, por fim, que fosse, simplesmente para lhe ser agradável. _e uma vez convertido o consentimento em sacrifício, ela acedeu. Tinha uma nova compenetração que fazia as delícias de Philip. Pediu-lhe que a levasse ao pequeno restaurante de Soho, onde tantas vezes haviam estado; ele ficou-lhe infinitamente reconhecido, porque tal sugestão mostrava que Mildred ligava àquele lugar lembranças felizes. Ela foi-se tornando cada vez mais alegre, à medida que o jantar prosseguia. O borgonha da tasca da esquina aqueceu-lhe o coração e ela esqueceu-se de que devia manter uma expressão dolorosa. Philip achou prudente falar-lhe do futuro.

 

- Penso que estás sem nada, não é verdade? - perguntou ele, quando a oportunidade se apresentou.

 

- Só tenho o que me deste ontem e já tive de pagar três libras à senhoria.

 

- Bom, para começar vou dar-te uma nota de dez libras. Procurarei o meu advogado para que ele escreva a Miller. Podemos fazê-lo contribuir com alguma coisa, estou certo disso. Se conseguirmos dele umas cem libras, isso dará para o teu sustento até nascer a criança.

 

- Prefiro morrer de fome a aceitar um vintém dele.

 

- Mas é monstruoso que te abandone dessa maneira.

 

- Também tenho que pensar no meu orgulho.

 

A situação era um pouco embaraçosa para Philip. Era necessária uma economia rigorosa para fazer que o seu dinheiro durasse até terminar os estudos. Precisava também de alguma coisa com que se manter como interno de medicina e cirurgia nos hospitais, Mildred, porém, contara-lhe vários exemplos da mesquinhez de Miller e Philip temia discutir com ela, no caso de ser acusado de falta de generosidade.

 

- Dele não aceito nem a metade de um vintém. Prefiro pedir esmola. Já teria procurado trabalho há muito tempo, se não fosse o meu estado. A gente tem que pensar na saúde, não é verdade?

 

- Não precisas de te preocupar com o presente - disse Philip. -Posso dar-te tudo o que quiseres até ficares em condições de trabalhar de novo.

 

- Sabia poder contar contigo. Disse a Emil que não pensasse que não tinha ninguém por mim. Disse também que eras um cavalheiro em toda a extensão da palavra.

 

Pouco a pouco Philip ficou a saber como se dera a separação.

 

Parecia que a mulher do tipo descobrira a aventura em que ele andava metido, nas suas visitas a Londres, e dirigira-se ao chefe da firma para a qual ele trabalhava. Ameaçou-o com o divórcio e na casa afirmaram-lhe que, em tal caso, seria demitido. Emil tinha uma apaixonada dedicação pelos filhos e não podia suportar a ideia de ficar separado deles. Vendo-se na alternativa de escolher entre a mulher e a amante, preferiu a primeira. Procurara sempre ansiosamente evitar um filho que viesse complicar ainda mais a situação; e quando Mildred, incapaz de ocultar por mais tempo a gravidez, o informou do facto, foi assaltado de pânico. Provocou uma zanga e abandonou-a sem mais demora.

 

- Quando achas que acaba o tempo? - indagou Philip.

 

- Nos princípios de Março.

 

- Faltam três meses.

 

Era necessário discutir os planos. Mildred declarou que não ficaria nos seus aposentos em Highbury e Philip também achou mais conveniente que ela ficasse perto dele. Prometeu procurar-lhe instalação no dia seguinte. Ela sugeriu Vauxhall Bridge Road, como vizinhança mais conveniente.

 

- E ficaria perto para depois - acrescentou ela.

 

- Que queres dizer com isso?

 

- Ora, não poderei ficar lá além de dois meses ou um pouco mais. Depois, tenho de ir para uma maternidade. Conheço uma muito séria, frequentada por gente fina. Cobram quatro guinéus por semana, sem extraordinários. Claro, o doutor é pago em separado. Uma amiga minha foi para lá e disse que a senhora que toma conta é muito séria. Pretendo dizer-lhe que meu marido é um oficial que está na _índia e que vim para Londres ter a criança, por ser melhor para a minha saúde.

 

Philip achava extraordinário ouvi-la falar daquela maneira. Com os seus traços miúdos e delicados e o seu rosto pálido, tinha um aspecto frio e virginal. Ao pensar nas paixões inesperadas que ardiam naquele peito, sentiu o coração estranhamente perturbado. O pulso bateu-lhe com violência.

 

Ao chegar a casa, ao contrário do que esperava, Philip não encontrou nenhuma carta de Norah. Também nada recebeu na manhã seguinte. Esse silêncio irritava-o e, ao mesmo tempo, alarmava-o. Desde o mês de Junho, costumavam encontrar-se todos os dias que ele passava em Londres. Ela devia estranhar que Philip deixasse passar dois dias sem a visitar nem justificar a ausência. Tê-lo-ia, por um infeliz acaso, visto na companhia de Mildred ? Não podia suportar a ideia de que ela estivesse magoada ou que sofresse, e resolveu visitá-la naquela tarde. Sentia-se quase inclinado a censurá-la por lhe ter permitido tomar tanta intimidade com ela. O pensamento de continuar essas relações enchia-o de repugnância.

 

Alugou dois quartos para Mildred no segundo andar de uma casa de Vauxhall Bridge Road. Eram barulhentos, mas Philip sabia que ela gostava do rumor do tráfego sob as janelas.

 

-- Não suporto essas ruas mortas, onde a gente não vê vivalma o dia inteiro - dizia ela. - Gosto de movimento.

 

Depois, encheu-se de coragem e foi a Vincent Square. Ao tocar a campainha, sentiu o mal-estar da apreensão. Tinha a desagradável consciência de estar a conduzir-se mal para com Norah. Temia as censuras. Sabia-a impulsiva e detestava cenas. Talvez o melhor fosse contar-lhe francamente que Mildred voltara e que o seu amor por ela era tão violento como antes. Sentia muito, mas não podia oferecer-lhe mais nada. Pensou depois no sofrimento de Norah, pois sabia que ela o amava. Antes, esse amor lisonjeara-o e inspirara-lhe um imenso reconhecimento. Agora, porém, era horrível. Ela não merecia que ele lhe infligisse uma dor tão amarga. Como iria Norah recebê-lo? Enquanto subia as escadas passaram-lhe pela mente todas as atitudes possíveis, da parte dela, e formulou as mais diversas hipóteses. Bateu à porta. Sentiu que estava pálido e pensava em como esconder o nervosismo.

 

Norah estava a escrever ardorosamente, mas ergueu-se de um salto assim que ele entrou.

 

- Conheci os teus passos! - exclamou. - Onde andaste escondido, meu menino travesso?

 

Aproximou-se dele alegremente e enlaçou-lhe o pescoço com os braços. Estava encantada por vê-lo. Ele beijou-a e, para dissimular a perturbação, disse que estava morto por chá. Ela avivou o lume para fazer ferver a água.

 

- Tenho andado muito atarefado - disse, ele, desastradamente.

 

Ela começou a tagarelar com a vivacidade habitual. Um novo editor acabava de lhe encomendar um pequeno romance. Ganharia quinze guinéus.

 

- _é dinheiro caído do céu. Vou contar-te o que vamos fazer. Teremos umas pequenas férias. Que dizes de passar um dia em Oxford, hem? Adoro ver as universidades.

 

Philip olhou para ela, a fim de ver se havia alguma sombra de reprovação nos seus olhos; mas mostravam-se tão francos e alegres como sempre: estava radiante por vê-lo. Sentiu um aperto no coração. Não lhe podia dizer a verdade brutal. Ela preparou-lhe umas torradas, cortou-as em pequenos pedaços e deu-lhas como se ele fosse uma criança.

 

- Já alimentou o cadáver? - perguntou.

 

Ele meneou a cabeça, sorrindo. Norah acendeu-lhe um cigarro. Depois, como gostava de fazer, veio sentar-se-lhe nos joelhos. Era muito leve. Reclinou-se-lhe nos braços, com um suspiro de felicidade.

 

- Dize-me alguma coisa bonita - murmurou.

 

- Que posso dizer-te?

 

- Podias fazer um esforço de imaginação e dizer que gostas um pouco de mim.

 

- Bem o sabes.

 

Não tinha coragem para lhe contar a verdade. Ao menos naquele dia não queria perturbar-lhe a paz. Talvez lhe escrevesse depois. Seria mais fácil. Não podia suportar a ideia de vê-la chorar. Norah obrigou-o a beijá-la e, ao fazê-lo, Philip pensou em Mildred e nos seus lábios pálidos e delgados. E a lembrança da rapariga ficou com ele todo o tempo, como uma forma incorpórea, mais substancial, porém, do que uma sombra. E essa visão distraía-lhe continuamente o pensamento.

 

- Estás muito sossegado hoje - disse Norah.

 

A loquacidade dela era um gracejo habitual entre ambos.

 

- Tu não me deixas dizer uma palavra - respondeu Philip. - Até já perdi o hábito de falar.

 

- Mas não me escutas, e isso não são modos.

 

Ele corou de leve, pensando se ela teria alguma desconfiança :,

do seu segredo. Desviou os olhos, perturbado. O peso de Norah molestava-o naquela tarde e não desejava que ela lhe tocasse.

 

- O meu pé está dormente - disse.

 

- Perdão! - exclamou ela, pondo-se de pé - Preciso emagrecer, se não quiser perder este hábito de me sentar no colo dos cavalheiros.

 

Philip começou a bater ostensivamente com o pé no chão e a caminhar de um lado para o outro. Postou-se depois diante do lume, a fim de que ela não retomasse a posição anterior. Enquanto Norah falava, dizia consigo que ela valia bem dez Mildreds; divertia-o muito mais e era interlocutora mais jovial; tinha mais inteligência e uma natureza mais delicada. Era uma mulherzinha corajosa, honesta e boa; e Mildred, reflectiu com amargura, não merecia nenhum desses epítetos. Se tivesse a menor parcela de bom-senso, ficaria com Norah, pois fá-lo-ia muito mais feliz do que Mildred: no fim de contas, ela amava-o, ao passo que Mildred se mostrava apenas agradecida pelo auxílio que lhe prestava. Mas, em última análise, o que importava era amar, mais do que ser amado. E ele ansiava por Mildred com toda a alma. Preferia passar dez minutos com ela a estar uma tarde inteira com Norah. Dava mais apreço a um simples beijo dos seus lábios frios do que a tudo quanto Norah lhe pudesse oferecer.

 

"Isso está acima das minhas forças", pensou. "Trago-a no sangue."

 

Pouco lhe importava que não tivesse coração, que fosse viciosa e vulgar, obtusa, e cúpida. Amava-a. Preferia sofrer ao lado de uma a ser feliz junto da outra.

 

Quando se ergueu para sair, Norah disse-lhe naturalmente:

 

- Bom, ver-te-ei amanhã, não?

 

- Sim - retorquiu ele.

 

Sabia ser-lhe impossível vir, pois tinha de ajudar Mildred na mudança. Não teve, contudo, a coragem de dizê-lo. Resolveu telegrafar depois. Mildred viu os quartos na manhã seguinte e declarou-se satisfeita. Depois do almoço, Philip subiu com ela a Highbury. Mildred tinha uma mala de roupas e outra com várias bugigangas, almofadões, fotografias emolduradas - coisas com que pretendia dar um ar doméstico à instalação. Possuía ainda duas ou três caixas de papelão grandes, mas tudo podia ir no tejadilho de um trem. Ao passar pela Victoria Street, Philip escondeu-se no fundo da carruagem, temendo que Norah andasse por ali. Não tivera ainda tempo para lhe telegrafar e não o poderia fazer do posto de Vauxhall Bridge, uma vez que ela podia estranhar que andasse por aquela zona, pois, se chegara até ali, não teria desculpa por não ter ido ao largo vizinho, onde ela morava. Chegou à conclusão de que era melhor ir passar meia hora com ela. :,

Essa necessidade, porém, deixou-o irritado. Estava zangado com Norah porque o obrigava a estratagemas vulgares e degradantes. Sentia-se, porém, feliz por estar com Mildred. Achou divertido ajudá-la a desfazer as malas; e experimentou uma agradável sensação de posse ao instalá-la naqueles aposentos que ele descobrira e cujo aluguer pagaria. Não permitiu que a rapariga se fatigasse. Era um prazer fazer as coisas para Mildred, e esta não tinha o menor desejo de fazer o que alguém quisesse fazer por ela. Foi Philip quem lhe tirou os vestidos da mala. Como Mildred não pretendesse sair de novo, trouxe-lhe as chinelas e tirou-lhe as botinas. Esse papel de criado encantava-o.

 

- Estás a acostumar-me mal - disse ela, correndo os dedos afectuosamente pelos cabelos de Philip, enquanto este, ajoelhado, lhe desabotoava as botinas.

 

Philip tomou-lhe as mãos e beijou-as.

 

- Como é bom ter-te aqui comigo...

 

Arranjou as almofadas e as fotografias. Mildred tinha vários vasos de faiança verde.

 

- Vou arranjar flores - disse ele.

 

Lançou um olhar satisfeito em torno de si.

 

- Como não pretendo sair mais, vou vestir um roupão - disse ela.

 

- Desabotoa-me aqui atrás, sim?

 

Voltou-lhe as costas com tanta indiferença como se ele fosse uma mulher. O seu sexo nada significava para ela. Mas Philip sentia-se cheio de gratidão pela intimidade que aquele pedido testemunhava. Com dedos inábeis, desprendeu os colchetes.

 

- Naquele primeiro dia em que fui à casa de chá, nem imaginei que pudesse um dia fazer-te isto - disse com um riso forçado.

 

- _é preciso que alguém o faça... - comentou ela.

 

Entrou no quarto de dormir e meteu-se num roupão azul-claro, enfeitado com grande quantidade de rendas baratas. A seguir Philip acomodou-a num sofá e foi preparar-lhe o chá.

 

- Acho que não posso ficar para tomar chá contigo - disse, pesaroso. - Tenho um maldito encontro. Mas estarei de volta dentro de meia hora.

 

Que resposta daria se lhe perguntasse com quem era o encontro?

Mas Mildred não mostrou curiosidade. Philip encomendara jantar para dois, ao alugar os quartos. Pretendia passar tranquilamente o serão em companhia dela. Tinha tanta pressa de voltar que tomou um "eléctrico" em Vauxhall Bridge Road. Achou preferível dizer logo a Norah que não podia demorar-se senão uns minutos.

 

- Olha, dei um pulo até aqui para ver como estavas - disse, assim que entrou. - Estou ocupadíssimo.

 

O rosto dela anuviou-se.

 

- Mas... que há? :,

 

Exasperava-o ver-se forçado a dizer mentiras, e sentiu que corara ao responder que se tratava de uma demonstração no hospital, à qual era obrigado a assistir. Quis parecer-lhe que não o acreditara e isso irritou-o ainda mais.

 

- Ah... Está bem, não faz mal. Ter-te-ei amanhã todo o dia.

 

Philip encarou-a com ar vago. O dia seguinte era domingo e contava passá-lo com Mildred. Procurava persuadir-se de que lhe cumpria fazer aquilo por um dever de decência; não podia deixá-la só numa casa estranha.

 

- Sinto muitíssimo. Amanhã estou comprometido.

 

Sabia que isto ia provocar uma cena que daria tudo para evitar. A cor das faces de Norah avivou-se.

 

- Mas convidei os Gordon para almoçar - (era um casal de actores que andava em *tournée* pelas províncias e passaria o domingo em Londres). - Preveni-te a semana passada.

 

- Desculpa, esqueci-me... - Philip hesitou. - Temo que não me seja possível vir. Não há mais alguém que possas convidar?

 

- Que vais fazer amanhã, então?

 

- Preferia que não me submetesses a um interrogatório.

 

- Não queres dizer-me?

 

- Não tem a mínima importância, mas é um pouco desagradável ser forçado a dar conta de tudo quanto faço...

 

Norah mudou de repente. Conseguiu dominar a cólera veio tomar as mãos do rapaz.

 

-- Não me desapontes amanhã, Philip. Contava passar o dia junto de ti. Os Gordon querem conhecer-te e vamos divertir-nos tanto...

 

- Se pudesse, viria da melhor vontade.

 

- Não sou muito exigente. Nem te peço muitas vezes que faças uma coisa que te desagrade. Não poderás faltar a esse teu compromisso... só uma vez?

 

- Sinto muito, não vejo maneira... - replicou ele, carrancudamente.

 

- Dize-me o que é - pediu ela, aduladora.

 

Ele tivera tempo de inventar um pretexto.

 

- As duas irmãs de Griffiths vieram passar o domingo aqui e temos de levá-las a passear.

 

- Só isso? - disse ela alegremente. - O Griffiths pode muito bem arranjar outro companheiro.

 

Por que não pensara num motivo mais premente? Era uma mentira mal engendrada.

 

- Não, sinto muitíssimo. Não posso... Prometi e tenho de manter a promessa.

 

- Mas prometeste-me também. Está claro que estou em primeiro lugar.

 

- Preferia que não insistisses.

 

Ela exasperou-se.

 

- Não vens porque não queres. Não sei o que estiveste a fazer estes últimos dias. Andas tão diferente!

 

Philip consultou o relógio.

 

- Creio que são horas de me ir embora - disse ele.

 

- Então não vens amanhã?

 

- Não.

 

- Nesse caso, não precisas vir mais - gritou Norah, perdendo definitivamente a paciência.

 

- Como quiseres - replicou ele.

 

- Não te quero prender mais tempo - acrescentou ela, irónica.

 

Encolheu os ombros e retirou-se. Sentia-se aliviado porque aquilo podia ter sido pior. Não houvera lágrimas. Enquanto caminhava, congratulou-se por se ter tão facilmente tirado da dificuldade. Entrou na Victoria Street e comprou algumas flores para levar a Mildred.

 

O jantarzinho foi um grande acontecimento. Philip trouxera um boião de caviar, de que Mildred, sabia-o, gostava muito. A dona da casa serviu-lhes costeletas com legumes e uma sobremesa. Philip pedira borgonha, o vinho preferido dela. Com as cortinas descidas, um bom lume, o ambiente era confortável.

 

- É como se a gente estivesse em casa - sorriu Philip.

 

- Eu podia estar em piores condições, não podia?

 

Terminado o jantar, Philip arrastou duas poltronas para diante do lume e sentaram-se. Pôs-se a fumar o seu cachimbo, confortado. Sentia-se feliz e disposto à generosidade.

 

- Que gostarias de fazer amanhã? - perguntou.

 

- Oh, vou a Tulse Hill. Lembras-te da gerente lá da casa? Pois está casada e convidou-me para passar o dia com ela. _é claro, pensa que também estou casada.

 

O coração de Philip desfaleceu.

 

- Mas recusei um convite só para poder passar o domingo contigo...

 

Pensou que, se ela o amasse, diria que nesse caso ficava. Sabia muito bem que Norah, em idêntica situação, não hesitaria.

 

- Pois foi uma tolice. Há três semanas ou mais que prometi ir.

 

- Mas, como podes ir sozinha?

 

- Oh... Digo que Emil está fora, em serviço. O marido dela negoceia em luvas e é um sujeito muito fino.

 

Philip permaneceu calado e sentimentos amargos lhe passaram pelo coração. Ela olhou-o de soslaio.

 

- Queres ser desmancha-prazeres, Philip? Compreende, é a última vez que posso sair, sabe Deus por quanto tempo. E, além disso, prometi...

 

Ele segurou-lhe a mão e sorriu.

 

- Não, querida. Quero que te divirtas o mais possível. Não desejo senão a tua felicidade.

 

Um pequeno livro de capa azul estava aberto em cima do sofá, de costas para cima. Philip apanhou-o distraidamente. Era uma novela barata, de Courtenay Paget. Era o pseudónimo de Norah.

 

- Gosto dos livros dele - disse Mildred. - Já li todos. São tão distintos...

 

Philip lembrou-se do que Norah dissera de si própria:

 

- Gozo de uma enorme popularidade entre as cozinheiras. Elas acham-me tão requintada...

 

Em retribuição das confidências de Griffiths, Philip contara-lhe pormenores das suas complicações amorosas e no domingo, pela manhã, depois do pequeno almoço, quando fumavam ao pé do lume, Philip contou-lhe a cena do dia anterior. Griffiths felicitou-o por se ter livrado tão facilmente das dificuldades.

 

- Ter uma aventura com uma mulher - observou em ar sentencioso - é a coisa mais simples do mundo. Mas livrar-se dela é um trabalho dos diabos.

 

Philip estava um tanto envaidecido da habilidade com que se conduzira no assunto. Fosse como fosse, sentia imenso alívio. Lembrava-se de Mildred, que estaria a divertir-se em Tulse Hill e a felicidade dela causava-lhe real satisfação. Fora um acto de sacrifício da sua parte não a privar daquele prazer, apesar da sua própria decepção; e isso enchia-lhe o coração de indizível contentamento.

Mas, na manhã de segunda-feira, encontrou em cima da mesa uma carta de Norah. Dizia:

 

*_Querido:

*_Lamento ter ficado zangada no sábado. Perdoa e vem tomar o chá da tarde como sempre. Amo-te. Tua

*_Norah*

 

Caiu-lhe o coração aos pés e ficou sem saber que fazer. Levou o bilhete a Griffiths e mostrou-lho.

 

- O melhor é deixá-lo sem resposta - disse este.

 

- Oh!... Impossível - exclamou Philip. - Sentir-me-ia miserável a pensar nela à espera, à espera... Não sabes o que é estar :,

em suspenso, aguardando a chegada do carteiro. Eu sei, e não desejo essa tortura a ninguém.

 

- Meu caro, não se rompe uma ligação como essa sem que alguém sofra. É preciso resignarmo-nos ao inevitável. Felizmente, essas coisas não são muito demoradas.

 

Philip dizia consigo que Norah nada fizera para que ele a fizesse sofrer. E que sabia Griffiths do grau de angústia de que ela era capaz? Lembrou-se da sua própria dor, quando Mildred lhe dissera que ia casar. Não queria que ninguém passasse pelo que ele passara.

 

- Se estás tão empenhado em não lhe causar sofrimento, volta para ela - aconselhou Griffiths.

 

- Isso é impossível.

 

Philip levantou-se e ficou a caminhar no quarto, de um lado para outro, nervosamente. Estava furioso com Norah, pela sua insistência. Devia ter compreendido que ele já não tinha amor para lhe dar. E diziam que as mulheres percebiam tão depressa essas coisas!

 

-- Podias ajudar-me - disse a Griffiths.

 

- Meu caro, não faças tanto espalhafato. Bem sabes que toda a gente tem de resolver esses problemas. Provavelmente, ela não te ama tanto como imaginas. Sempre temos uma tendência para exagerar a paixão que inspiramos.

 

Fez uma pausa e olhou para Philip, com ar divertido.

 

- Olha cá, não há senão uma coisa a fazer. Escreve-lhe a dizer que está tudo terminado. Mas faz isso de modo que não possa haver dúvida. Ficara magoada, mas o golpe será menor se fizeres a coisa brutalmente do que se andares com rodeios.

 

Philip sentou-se à mesa e redigiu a seguinte carta:

 

*_Minha querida Norah,

*_Sinto muito fazer-te infeliz, mas acho melhor que as coisas fiquem onde as deixámos no sábado. Parece-me inútil continuar, uma vez que já não nos dá prazer. Tu mandaste-me embora e eu fui. Não pretendo voltar. Adeus.

*_Philip Carey*

 

Mostrou a carta a Griffiths e pediu-lhe a opinião. Griffiths leu-a e considerou Philip com os olhos cintilantes. Não exprimiu o seu pensamento.

 

- Acho que assim pega - disse.

 

Philip saiu para ir ao correio. Passou uma manhã desagradável; procurava imaginar com grandes pormenores os sentimentos de Norah quando recebesse a carta. Torturava-se ao pensar nas suas :,

lágrimas. Mas, ao mesmo tempo, estava aliviado. A aflição que se imagina é mais fácil de suportar do que a aflição que se vê. Agora, estava livre para amar Mildred com toda a alma. O coração batia-lhe mais depressa, à ideia de ir vê-la naquela tarde, após o trabalho no hospital.

 

Como de costume, voltou aos seus aposentos para se preparar, mas, mal metera a chave na fechadura, ouviu uma voz atras de si.

 

- Posso entrar? Há meia hora que estou à tua espera.

 

Era Norah. Sentiu-se corar até à raiz dos cabelos. Ela falava alegremente. Não havia o menor traço de ressentimento na sua voz e nada indicava que tivesse havido um rompimento entre ambos. Philip sentiu-se encurralado. Encheu-se de pânico, mas fez o possível pata sorrir.

 

- Pois não... - respondeu.

 

Abriu a porta, e ela entrou na frente para a sala de visitas. Philip estava nervoso. Para disfarçar, ofereceu um cigarro a Norah e acendeu outro para si. Ela olhou com vivacidade.

 

- Por que me escreveste aquela carta horrível, meu menino travesso? Se a tivesse levado a sério sentir-me-ia completamente desgraçada.

 

- Mas era a sério - respondeu ele, gravemente.

 

- Não sejas tolo. Perdi a calma no outro dia mas escrevi a pedir desculpa. Não ficaste satisfeito e por isso estou aqui para me desculpar outra vez. Afinal de contas, és senhor de ti próprio e não tenho qualquer direito sobre ti. Não pretendo forçar-te a fazer coisa alguma que não queiras.

 

Ergueu-se da cadeira em que estava sentada e dirigiu-se para Philip impulsivamente, com os braços estendidos.

 

- Vamos fazer as pazes, Philip. Sinto muito se te ofendi.

Ele não pôde impedir que ela lhe segurasse as mãos, mas não teve coragem de encará-la.

 

- Infelizmente, é tarde de mais.

 

Norah deixou-se cair no soalho, a seus pés, e enlaçou-lhe os joelhos.

 

- Philip, não sejas tolo. Também tenho mau génio e compreendo que te magoei. Mas é absurdo ficar amuado por causa disso. Para que serve fazer-nos a ambos infelizes? Foi tão deliciosa a nossa amizade... - E, passando os dedos lentamente pela mão dele: -Amo-te, Philip.

 

Ele pôs-se de pé, desembaraçando-se dela, e caminhou para o outro lado da sala.

 

- Sinto muito, mas não posso fazer nada. Está tudo terminado.

 

- Queres dizer que já não me amas?

 

- Acho que sim.

 

- Procuravas então uma oportunidade para te desfazeres de mim e aproveitaste esta?

 

Não respondeu. Norah encarou-o fixamente por um tempo que lhe pareceu intolerável. Sentada no soalho, onde ele a deixara, inclinara-se contra a poltrona. Começou a chorar em silêncio, sem ocultar o rosto e, uma a uma, grandes lágrimas lhe rolaram pelas faces. Não soluçava. Era horrivelmente confrangedor vê-la. Philip voltou-se para outro lado.

 

- Sinto muitíssimo magoar-te. Não tenho culpa de não te amar.

 

Ela não respondeu. Deixou-se ficar simplesmente onde estava, como que exânime, e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Aquilo teria sido mais fácil de suportar se houvesse censuras da parte dela. Philip esperava as explosões do seu génio e estava preparado para isso. No fundo, sentia que uma zanga de verdade, na qual cada um dissesse ao outro coisas cruéis, seria de certo modo uma justificação do seu comportamento. O tempo corria. Por fim, Philip ficou assustado com aquele choro silencioso; foi ao quarto de dormir e trouxe de lá um copo de água. Inclinou-se para ela.

 

- Queres beber um pouco? Far-te-á bem.

 

Ela aproximou maquinalmente os lábios do copo e bebeu dois ou três golos. Depois, num murmúrio exausto, pediu um lenço. Enxugou os olhos.

 

- Bem sabia que não me tinhas o mesmo amor que eu a ti -gemeu ela.

 

- Acho que é sempre assim - disse ele. - Há sempre um que ama e outro que se deixa amar.

 

Pensou em Mildred e uma dor aguda trespassou-lhe o coração. Norah ficou largo tempo sem responder.

 

- Eu era tão infeliz e tinha uma vida tão triste... - disse ela por fim.

 

Não se dirigia a Philip, mas a si mesma. Nunca a ouvira queixar-se da vida que levava com o marido, nem da sua pobreza. Admirara-lhe sempre a atitude desassombrada diante do mundo.

 

- Depois, apareceste e foste tão bom para mim... E admirava-te porque eras inteligente e era tão maravilhoso ter alguém em quem confiar. Amava-te. Nunca pensei que pudesse acabar. E sem nenhuma culpa da minha parte...

 

As lágrimas começaram a rolar de novo, mas agora estava mais senhora de si. Escondeu o rosto no lenço de Philip. Fez um grande esforço para se dominar.

 

- Dá-me mais água - pediu.

 

Enxugou os olhos.

 

- Sou ridícula... Desculpa. É que não esperava...

 

- Sinto muito, Norah. Quero que saibas quanto te sou reconhecido por tudo quanto fizeste por mim.

 

(_Que será que ela viu em mim? - reflectia Philip).

 

- Oh, é sempre a mesma coisa - suspirou ela. - Quando queremos que os homens se portem bem devemos tratá-los mal: se a gente se porta correctamente, fazem-nos sofrer por isso.

 

Levantou-se do chão e disse que se ia embora. Lançou a Philip um olhar prolongado e firme. Depois suspirou.

 

- É uma coisa tão inexplicável... Qual é a significação disto?

 

Philip tomou uma resolução súbita.

 

- Penso que é melhor dizer tudo. Não quero que me julgues mal. Quero que compreendas que foi inevitável. Mildred voltou.

 

Norah ficou vermelha.

 

- Por que não me disseste logo? Merecia mais franqueza.

 

- Não tive coragem.

 

Norah mirou-se no espelho e endireitou o chapéu.

 

- Queres chamar-me um trem? - pediu. - Não me sinto com forças para andar.

 

Philip foi até à porta e deteve um carro que passava. Mas quando ela desceu, ficou sobressaltado por vê-la tão pálida. Tal era a lassidão dos seus movimentos que se diria ter envelhecido de súbito Parecia tão doente que Philip não teve coragem de deixá-la ir sozinha.

 

- Acompanhar-te-ei, se o permitires.

 

Não respondeu e ele entrou também no trem. Passaram em silêncio sobre a ponte, atravessaram ruas sórdidas, no meio das quais crianças brincavam, soltando gritos agudos. Quando chegaram à porta da casa de Norah, esta não desceu imediatamente. Parecia não poder reunir as forças necessárias para mover as pernas.

 

- Espero que me perdoes, Norah - pediu Philip.

 

Ela voltou os olhos na direcção dele e Philip viu que estavam outra vez brilhantes de lágrimas. Mas Norah sorriu com esforço.

 

- Coitado, estás tão preocupado comigo! Não te inquietes. Não te censuro. Isto passará.

 

Acariciou-lhe o rosto num gesto leve e rápido, para lhe mostrar que não guardava ressentimento. Esse gesto foi mais sugerido do que realizado. Depois, saltou do carro e entrou em casa.

 

Philip pagou ao cocheiro e dirigiu-se a pé para o apartamento de Mildred. Sentia um peso estranho no coração. Estava inclinado a exprobrar-se. Mas porquê? Não sabia que outra coisa pudesse ter feito. Ao passar por uma casa de frutas, lembrou-se de que Mildred gostava de uvas. Dava graças por poder demonstrar-lhe o seu amor, lembrando-se do todos os caprichos que ela tinha.

 

Nos três meses que se seguiram, Philip foi ver Mildred todos os dias. Levava os livros consigo e, depois do chá, estudava, enquanto Mildred, estendida no sofá, lia novelas. De quando em quando levantava os olhos e ficava a olhá-la. Um sorriso feliz aflorava-lhe aos lábios. Ela sentia-lhe o olhar.

 

- Não percas tempo a olhar para mim, pateta. Continua o teu estudo - disse-lhe um dia.

 

- Tirana - respondeu-lhe alegremente.

 

Punha o livro de lado quando a senhoria entrava, a fim de pôr a mesa para o chá e palrava animadamente com ela. Era uma mulherzinha do povo, de meia-idade, que tinha a réplica pronta e não era destituída de veia humorística. Mildred tornara-se sua grande amiga, tendo-lhe contado uma história complicada e fictícia das circunstâncias que a haviam levado àquela conjuntura. A mulherzinha, dotada de bom coração, ficou comovida e não se poupava trabalho para proporcionar conforto a Mildred. O senso de conveniência desta última inspirou-lhe a ideia de fazer passar Philip por seu irmão. Jantavam juntos e Philip sentia-se deleitado quando o prato que encomendara tentava o apetite caprichoso da companheira. Que encanto sentar-se junto dela! E, de quando em quando, por puro contentamento, apertava-lhe a mão. Ao deixar a mesa, ela instalava-se numa poltrona perto do lume e, sentado no soalho, reclinando-se-lhe nos joelhos, Philip fumava. Passavam longos momentos sem falar e, às vezes, Philip percebia que ela dormitava. Não ousava então mover-se, para não a despertar, e ficava muito quieto, a olhar preguiçosamente para o lume, gozando a sua felicidade.

 

- Dormiu um soninho? - perguntava a sorrir, quando ela acordava.

 

- Não estava a dormir - protestava ela. - Tinha só os olhos fechados.

 

Nunca admitia que tivesse estado a dormir. Possuía um temperamento apático e o seu estado não lhe causava inconvenientes sérios. Preocupava-se muito com a própria saúde e aceitava os conselhos de quem quer que os oferecesse. Nas manhãs bonitas, saía a dar um passeio higiénico e demorava-se fora certo tempo. Quando não fazia muito frio, ia sentar-se no St. James. Park. Mas o resto do dia passava-o perfeitamente feliz no seu sofá, a ler novela após novela, ou a tagarelar com a proprietária da casa. Tinha um interesse inesgotável pelos mexericos e contava a Philip, com abundância de pormenores, a história da senhoria, dos inquilinos do primeiro andar e da gente que morava nas casas contíguas. Uma vez ou outra, Mildred, tomada de pânico, confiava a Philip os seus receios quanto às dores do parto :, e ficava aterrorizada à ideia de morrer. Fez-lhe um relato circunstanciado dos partos da senhoria e da senhora que vivia no primeiro andar. (_Mildred não a conhecia. "_Eu não sou de muitas relações" - dizia. -- "_Não sou dessas que se dão com toda a gente"). Narrava aqueles pormenores com um curioso misto de horror e satisfação; mas em geral esperava o acontecimento com calma.

 

- No fim de contas, não sou a primeira que vai ter um filho, não é assim? E o doutor diz que tudo correrá bem. Claro, correria mal se eu não fosse bem conformada.

 

Mrs. Owen, a dona da casa onde ela ia ter a criança, recomendara um médico, e Mildred visitava-o uma vez por semana. Pagava-lhe quinze guinéus.

 

- Naturalmente, podíamos encontrar um mais barato, mas Mrs. Owen recomendou-me tanto esse médico que achei não valer a pena arriscar a saúde para economizar algumas libras.

 

- Se estás contente e tranquila, o que menos importa é a despesa - disse Philip.

 

Aceitava tudo quanto Philip fazia por ela, como se fosse a coisa mais natural deste mundo e aquele, por sua vez, gostava de gastar dinheiro com Mildred. Cada nota de cinco libras que lhe dava provocava-lhe um arrepio de prazer e orgulho. E deu-lhe muitas, porque ela não era económica.

 

- Não sei para onde vai o dinheiro - ela própria dizia. - Parece que me escorrega pelos dedos como água.

 

- Não faz mal - disse-lhe Philip. - Sinto-me tão contente por poder fazer alguma coisa por ti...

 

Como não soubesse coser bem, não fez o enxoval da criança; disse a Philip que saía muito mais barato comprá-lo pronto. Philip acabava de vender um dos títulos hipotecários em que haviam empregado o seu dinheiro. E agora, com quinhentas libras no Banco, à espera de serem investidas em algo mais negociável, sentia-se rico. Falavam muitas vezes no futuro. Philip estava ansioso por que Mildred ficasse com a criança, mas ela recusava: tinha de ganhar a vida e isso ser-lhe-ia mais fácil se não tivesse um filho de quem cuidar. O seu plano era voltar para uma das casas da firma para a qual trabalhara e deixar a criança entregue a alguma boa mulher do campo.

 

- Posso achar quem cuide bem dela por sete xelins e seis pence por semana. Será melhor para a criança e para mim.

 

Isso pareceu a Philip uma falta de sensibilidade, mas quando tentou chamá-la a razão, ela fingiu pensar que estava a referir-se às despesas.

 

- Não precisas de te incomodar com isso - disse ela. - Não serás tu quem pagará.

 

- Sabes que não faço caso do dinheiro.

 

No fundo do coração, ela tinha a esperança de que o filho :,

nascesse morto. Só fazia leves alusões a isso, mas Philip compreendia-lhe o pensamento. A princípio, indignou-se, mas devia confessar que aquela seria a melhor solução para todos.

 

- Tudo isso é muito bonito de dizer - observara Mildred em tom lamentoso - mas é já bastante difícil para uma rapariga. ganhar a vida sozinha, quanto mais com um filho...

 

- Felizmente podes contar comigo - sorriu-lhe Philip segurando-lhe a mão.

 

- Tens sido bom para mim, Philip.

 

- Ora... tolice!

 

- Não podes dizer que nada te ofereci em troca de tudo o que tens feito por mim.

 

- Santo Deus! Não quero retribuição. Se alguma coisa fiz por ti, foi porque te amo. Nada me deves. Não quero que me dês coisa alguma, a não ser que me ames.

 

Sentia-se um tanto horrorizado ante a ideia de que o corpo de Mildred, era uma mercadoria que ela podia entregar com indiferença, em pagamento de serviços prestados.

 

- Mas quero retribuir, Philip. Tens sido tão bom para mim...

 

- Pois bem, não perdemos nada por esperar. Quando te restabeleceres, teremos uma pequena lua-de-mel.

 

- Seu maroto!...  -- fez ela, a sorrir.

 

Mildred esperava ir para a maternidade em Março, e logo que se restabelecesse, iria passar uma quinzena à beira-mar. Isso daria a Philip o ensejo de estudar sem interrupção para os exames. Vinham depois as férias da Páscoa e tinham combinado ir juntos a Paris. Philip falava interminavelmente das coisas que fariam. Paris, naquela época, era delicioso. Alugariam quarto num hotelzinho que ele conhecia, no Bairro Latino, e comeriam em pequenos restaurantes, os mais diversos e encantadores. Iriam ao teatro e levá-la-ia às variedades. Mildred gostaria de conhecer os seus amigos. Philip falou-lhe de Cronshaw; ela vê-lo-ia também. E havia ainda Lawson, que fora a Paris passar uns meses. Iriam ao *_Bal Bullier*. Fariam excursões. Iriam até Versalhes, Chartres, Fontainebleau...

 

- Mas isso vai custar um dinheirão disse ela.

 

- Oh! Para o diabo a despesa! Imagina apenas quanto anseio por isso. Não vês o que essa viagem significa para mim? Nunca amei senão a ti. E nunca amarei.

 

Ela escutava aquele entusiasmo com olhos sorridentes. Philip julgou ver neles uma ternura nova e era-lhe grato por isso. Mildred mostrava-se muito mais afável que de costume. Já não tinha aquele ar de superioridade que o irritava. Estava agora tão acostumada a ele, que já não se dava ao trabalho de ter atitudes. Já não trazia o cabelo penteado com o antigo esmero; amarrava-o simplesmente num rolo e renunciou até à franja que costumava :, usar. Esse arranjo negligente ficava-lhe muito bem. O rosto estava tão delgado que os olhos pareciam muito grandes; andavam cercados de olheiras e o calor das faces acentuava-lhes a cor. Mildred tinha uma expressão absorta, que era infinitamente comovedora. Havia nela, pensava Philip, um ar de Madona. desejava que pudessem continuar assim para sempre. Sentia-se mais feliz do que jamais fora em toda a vida.

 

Costumava deixá-la às dez da noite, porque Mildred gostava de ir para a cama cedo. Era obrigado a estudar mais umas horas, em casa, para recuperar o tempo perdido no serão. Geralmente, penteava o cabelo de Mildred antes de se retirar. Dos beijos que lhe dava ao despedir-se, fizera um ritual. Beijava-lhe primeiro as palmas das mãos (como eram finos os seus dedos e lindas as unhas em cujo cuidado ela gastava tanto tempo!) a seguir beijava-lhe os olhos fechados, primeiro o direito e depois o esquerdo, e, por fim, os lábios. Ia para casa com o coração a transbordar de amor. Anelava por uma oportunidade de satisfazer o desejo de sacrifício que o consumia.

 

Chegou finalmente para Mildred o momento de ir para a maternidade. Philip só podia visitá-la à tarde. Mildred alterou a sua história e apresentou-se como esposa de um soldado que fora reunir-se ao seu regimento na Índia. Philip, para a dona do estabelecimento, ficou a ser seu cunhado.

 

- Tenho de tomar muito cuidado com o que digo - observou-lhe ela. - Pois há outra senhora aqui que é esposa de um funcionário da Índia.

 

- Se fosse a ti, não me inquietava com isso - disse Philip. - Estou convencido de que o marido dela e o teu foram no mesmo navio.

 

- Que navio? - perguntou ela, inocentemente.

 

- O Navio Fantasma.

 

Mildred, num parto feliz, deu à luz uma menina. Quando Philip teve permissão de vê-la, encontrou-a ao lado da mãe. Mildred achava-se muito fraca, mas contente por ver que tudo terminara. Mostrou-lhe a criança e ela também a examinou com curiosidade.

 

- É uma coisinha engraçada, não é? Não posso acreditar que seja minha.

 

A pequerrucha era vermelha, enrugada e tinha um aspecto esquisito. Philip sorriu ao olhar para ela. Não sabia bem que dizer; isso embaraçava-o porque a proprietária da casa estava a seu lado. E ele sentia, pela maneira como a mulher o olhava, que, duvidando da história complicada de Mildred, o tomava pelo pai da criança.

 

- Que nome lhe vais pôr? - perguntou.

 

- Não sei ainda. Madeleine ou Cecília. :,

 

A enfermeira deixou-os a sós por uns minutos e Philip, inclinando-se, beijou Mildred na boca.

 

- Estou contente por teres sido feliz, querida.

Ela pôs-lhe os braços finos em torno do pescoço.

 

- Tens sido muito bom para mim, querido Phil.

 

- Agora sinto que és minha, afinal. Esperei tanto tempo por ti, meu amor.

 

Ouviram os passos da enfermeira e Philip ergueu-se bruscamente. A enfermeira entrou. Havia um leve sorriso nos seus lábios.

 

Três semanas depois, Philip viu Mildred e a filha partirem para Brighton. Tivera uma rápida convalescença e parecia mais bonita do que nunca. Ia para uma pensão onde passara alguns fins-de-semana com Emil Miller. Escrevera antes, para dizer que seu marido fora obrigado a ir à Alemanha, em viagem de negócios e que viria com a filha. Sentia prazer nas histórias que inventava e revelava certa fertilidade de imaginação em trabalhar os pormenores. Mildred tencionava procurar em Brighton uma mulher que estivesse disposta a tomar conta da criança. Philip estava surpreendido pela insensibilidade com que ela insistia em livrar-se da filha. Mas Mildred argumentou dentro do bom-senso que seria melhor que a pobrezinha fosse confiada a alguém, antes de se acostumar a ela. Philip esperava que o instinto materno se impusesse depois de duas ou três semanas de nascida a criança, e contava com ele para ajudá-lo a persuadir Mildred a ficar com a filha. Nada disso, porém, aconteceu. Mildred não era má para a menina; fazia tudo quanto era necessário; divertia-se às vezes com ela, falava muito a seu respeito; mas, no fundo, era-lhe indiferente. Não olhava para a filha como parte de si própria. Imaginava-a já parecida com o pai. Estava constantemente a pensar em como se arranjaria quando ela crescesse. Exasperava-se por ter cometido a tolice de deitá-la ao mundo.

 

- Se ao menos naquele tempo, soubesse o que sei hoje... -dizia.

 

Ria de Philip por vê-lo preocupar-se com o bem-estar da criança.

 

- Se fosses o pai não estarias mais alvoroçado - disse ela. - Só queria saber se o Emil faria isso...

 

O espírito de Philip estava cheio de histórias que ouvira a respeito de crianças que são entregues aos cuidados de gente mercenária e dos brutos que maltratam essas infelizes criaturinhas, a eles confiadas pelos pais egoístas e cruéis.

 

- Não sejas tão tolo - disse Mildred. - Isso é quando a gente :,

paga tudo de uma vez. Mas quando se paga um tanto por semana, é do interesse de quem cuida tratar bem da criança.

 

Philip insistiu para que Mildred entregasse a menina a pessoas que não tivessem filhos e prometessem não aceitar mais.

 

- Não regateies quanto ao preço - avisou. - Prefiro pagar meio guinéu por semana a expor a pequena ao risco de ser mal alimentada ou maltratada.

 

- _és um tipo engraçado, Philip - riu-se ela.

 

Para ele, havia algo muito comovente no desamparo daquela criaturinha. Era pequena, feia e chorona. O seu nascimento fora esperado com vergonha e angústia. Ninguém a queria. E ela dependia dele, um estranho, para ter alimento, abrigo e roupas com que cobrir a nudez.

 

Quando o comboio se pôs em movimento, beijou Mildred. Teria beijado a pequena também, se não temesse que a mãe se risse dele.

 

- Vais escrever-me, sim, querida? Ficarei à tua espera com toda a impaciência.

 

- Trate de passar no exame, ouviu?

 

Estudara com ardor e nos dez últimos dias fez um esforço final. Estava ansioso por passar, primeiro para poupar tempo e despesa, pois o dinheiro tinha simplesmente voado, com uma rapidez incrível, nos últimos quatro meses; em segundo lugar porque esse exame marcava o fim da parte ingrata dos estudos. Depois dele, o estudante começava com a medicina, obstetrícia e cirurgia, coisas de interesse maior do que a anatomia e a fisiologia com que se ocupara até então: Philip sentia-se antecipadamente interessado nessas matérias. Também não queria confessar a Mildred que perdera o ano, embora o exame fosse se bastante difícil e a maioria dos candidatos ficasse reprovada da primeira vez; ela desprezá-lo-ia se ele não passasse. Tinha um modo particularmente humilhante de dar a entender o que pensava.

 

Mildred mandou-lhe um postal com a notícia de que chegara bem. Philip roubava meia hora por dia para lhe escrever uma longa carta. Tinha sempre certa timidez em se expressar de viva voz, mas com a pena na mão achava que lhe podia escrever todas as coisas que ditas verbalmente lhe pareceriam ridículas. Tirando proveito dessa descoberta, extravasou todo o coração no papel. Nunca chegara a dizer-lhe o sentimento de adoração que lhe inspiravam todos os seus actos e pensamentos. Falou-lhe do futuro, da felicidade que o aguardava e também da gratidão que lhe devia. Perguntava a si próprio (já o fizera muitas vezes, mas sem pô-lo jamais em palavras) o que havia nela para enchê-lo de tão singular delícia. Não sabia. Sabia apenas que, quando estava junto de Mildred, era feliz, e, quando longe dela, o mundo lhe parecia de súbito frio e sem cor; sabia apenas que, quando pensava nela, :, o coração parecia crescer-lhe dentro do peito, de tal maneira que lhe era difícil o respirar (como se aquilo lhe comprimisse os pulmões); pulsava tão desordenadamente, que a delícia da sua presença chegava a ser quase um sofrimento. Os joelhos tremiam-lhe e sentia-se estranhamente enfraquecido, como se estivesse trémulo de fome. Esperava as respostas de Mildred com ansiedade. Não contava que ela lhe escrevesse amiúde, porque sabia que lhe era difícil redigir cartas. Contentou-se com o bilhete mal alinhavado que chegou, em resposta a quatro missivas suas. Ela falava-lhe da pensão em que estava, do tempo e da criança; contava-lhe que fora dar um passeio ao cais com uma senhora com quem travara amizade e que gostava muito da menina; dizia, também, que iria ao teatro na noite de sábado e que Brighton estava cheia de gente. Essa maneira de escrever comovia Philip. O estilo enredado, a formalidade do assunto, davam-lhe um estranho desejo de rir, de tomá-la nos braços e de beijá-la.

 

Foi para os exames confiante e satisfeito. E, nas provas escritas, não encontrou dificuldade alguma. Sabia ter respondido bem, e embora estivesse mais nervoso na prova oral, conseguiu responder às perguntas com propriedade. Quando soube o resultado, enviou um telegrama triunfante a Mildred.

 

Ao voltar para o seu alojamento, Philip encontrou uma carta dela, a dizer que achava melhor ficar outra semana em Brighton. Encontrara uma mulher que se dispunha a tomar conta da pequena por sete xelins semanais, mas Mildred queria pedir informações dela. Dizia beneficiar tanto com o ar da praia que mais uns dias lhe fariam enorme bem. Era-lhe odioso pedir dinheiro a Philip, mas esperava que lhe mandasse algum na volta do correio, pois tivera de comprar um chapéu novo, já que não podia andar em companhia da amiga, sempre com o mesmo chapéu, pois essa amiga trajava muito bem. Philip teve um instante de amargo desapontamento. Isso tirou-lhe todo o prazer de ter sido aprovado nos exames.

 

- Se tivesse por mim a quarta parte do amor que tenho por ela, não ficaria lá nem um dia mais que o necessário.

 

Afastou, rápido, esse pensamento. Era puro egoísmo. Sem dúvida, a saúde dela era mais importante do que qualquer outra coisa. Mas agora, ele nada tinha a fazer; podia, pois, passar a semana com ela em Brighton e estariam juntos o dia inteiro, O seu coração exultou com essa ideia. Seria divertido aparecer diante de Mildred assim de repente, a dizer-lhe que alugara um quarto na mesma pensão. Consultou o horário dos comboios. Mas deteve-se. Não tinha a certeza de que Mildred sentisse prazer em vê-lo; travara amizades em Brighton. Ele era sossegado e ela gostava da jovialidade turbulenta. Não ignorava que se divertia mais com os outros do que com ele. Seria uma tortura se sentisse :, que era importuno. Temia correr esse risco. Não ousava sequer sugerir em carta que, como nada o prendesse na cidade, gostaria de passar a semana onde pudesse vê-la todos os dias. Mildred, sabia que ele nada tinha a fazer; se o quisesse a seu lado, ter-lhe-ia escrito. Philip receava a angústia que sofreria se se oferecesse para ir e ela apresentasse algum pretexto para evitá-lo.

 

Escreveu-lhe no dia seguinte, enviava uma nota de cinco libras, e, no fim da carta, dizia que, se fosse boazinha e desejasse vê-lo no sábado, teria prazer em ir a Brighton; acrescentou, contudo, que de forma alguma queria alterar os planos que ela tivesse feito. Esperou a resposta com impaciência. E a resposta veio. Mildred dizia-lhe que, se lhe tivesse comunicado antes o desejo de visitá-la, arranjaria as coisas; mas prometera ir ver umas variedades na noite de sábado; além disso, se ele fosse para a pensão, os hóspedes podiam falar... Por que não vinha na manhã de domingo, para passar o dia? Poderiam almoçar no Metrópole e depois levá-lo-ia a visitar a distintíssima senhora que ia tomar conta da menina.

 

Domingo. Philip abençoou-o, porque o dia estava lindo. Quando o comboio se aproximava de Brighton, o sol jorrava pela janela da carruagem. Mildred esperava-o na plataforma.

 

- Que gentileza vires esperar-me! - exclamou, ao tomar-lhe as mãos.

 

- Contavas que eu fizesse isso, não é verdade?

 

- Contava, sim. Mas, como é boa a tua aparência!

 

- Tenho aproveitado muito. Mas acho que o melhor é demorar-me aqui o mais possível. Lá na pensão mora uma gente muito distinta. Depois de tantos meses sem ver ninguém, precisava de animação. _às vezes, era aborrecido.

 

Mildred estava muito elegante, com o chapéu novo, de palha negra, enfeitado com muitas flores baratas. Trazia em redor do pescoço uma *boa* comprida, imitando penugem de cisne. Estava ainda muito magra e caminhava um pouco curvada (sempre fora assim) mas os olhos já não pareciam tão grandes. E se lhe faltava ainda frescura à tez, esta, por outro lado, perdera o tom terroso. Desceram ambos em direcção ao mar. Lembrando-se de que havia meses que não caminhava com ela, Philip teve de súbito a consciência da seu coxear; fez um esforço para caminhar empertigado, a fim de o ocultar.

 

- Estás contente por me ver? - indagou ele, com o amor a dançar-lhe doidamente no coração.

 

- Claro que estou. Nem precisas de perguntar.

 

- A propósito: Griffiths manda-te saudades.

 

- Que atrevimento!

 

Philip falara-lhe muito de Griffiths. Contara-lhe como ele era namorador e Mildred divertira-se muitas vezes com a

narração :, de alguma aventura que Griffiths, com carácter confidencial, contara ao amigo. Mildred escutara, com certa repugnância fingida, uma vez ou outra, mas geralmente com curiosidade; e Philip, levado pela admiração, exagerava a beleza e a sedução do outro.

 

- Tenho a certeza de que gostarás dele tanto como eu. É um tipo muito jovial e divertido e uma óptima pessoa.

 

Philip explicou que, quando ambos eram perfeitamente estranhos, Griffiths cuidara dele numa doença; e, nessa narrativa, o sacrifício de Griffiths não ficou diminuído.

 

- Não se pode deixar de gostar dele - concluiu Philip.

 

- Não gosto de homens bonitos - disse Mildred. - São muito pretensiosos.

 

- Ele quer conhecer-te. Falei-lhe muito a teu respeito.

 

- Que lhe disseste? - perguntou Mildred.

 

A única pessoa a quem Philip podia falar do seu amor por Mildred era Griffiths. Pouco a pouco, contara-lhe toda a história da sua ligação com ela. Descrevera-a cinquenta vezes. Detinha-se amorosamente em cada pormenor do seu físico e Griffiths conhecia com exactidão o modelado daquelas mãos finas e a brancura daquele rosto. Ria-se de Philip, quando ele lhe falava do encanto dos seus lábios delgados e pálidos.

 

- Graças a Deus, não vejo as coisas de uma maneira tão séria -dizia-lhe. - A vida, assim, não valeria a pena...

 

Philip sorria. Griffiths não conhecia as delícias de uma paixão tão doida que chegava a ser necessária como a carne e o vinho, como o ar que se respira ou qualquer outra coisa essencial à existência. Griffiths sabia que Philip olhara pela rapariga durante o parto e ia agora viajar com ela.

 

- Bom, devo reconhecer que mereces alguma coisa em troca  -observou ele, certa vez. - Isso deve ter custado bom dinheiro. A sorte é que tens recursos.

 

- Não tenho - replicou Philip. - Mas que me importa!

 

Era ainda cedo para o almoço, e Philip e Mildred sentaram-se num dos abrigos do passeio, para gozar o sol e ver as pessoas que passavam. Caixeiros das lojas de Brighton desfilavam aos dois e aos três, volteando as bengalas, e as empregadinhas caminhavam saltitantes, em bandos risonhos. Podiam distinguir-se as pessoas que tinham vindo de Londres passar ali o dia. O ar vivo como que lhes afugentava a canseira. Havia muitos judeus, senhoras gordas com vestidos justos de cetim e brilhantes nos dedos, homenzinhos corpulentos de gestos exuberantes. Viam-se também senhores de meia-idade, cuidadosamente trajados, que passavam o fim-de-semana num dos grandes hotéis locais; caminhavam compenetradamente depois da reforçada refeição da manhã, a fim de conseguirem apetite para um almoço igualmente substancial: passavam o dia na companhia de amigos, a falar do "_Dr. Brighton" ou da "_Londres à beira-mar". Aqui e ali, um actor afamado passava, com estudada indiferença pela atenção que despertava: usava às vezes sapatos de verniz, um casacão com gola de astracã e bengala de castão de prata; outras vezes, dava a impressão de voltar de uma caçada, pois passava de *knickerbockers*, dentro de um sobretudo de xadrez e com um chapéu também de pano xadrez, puxado para a nuca. O Sol brilhava sobre o mar azul, calmo e transparente.

 

Depois do lanche, foram a Hove ver a mulher que ia tomar conta da criança. Morava numa rua escusa, numa casa pequena mas limpa e bem arranjada. Chamava-se Mrs. Harding. Era uma pessoa um tanto gorda e entrada em anos, tinha cabelos grisalhos e uma cara vermelha e rechonchuda. Com a sua touca de renda, tinha um aspecto maternal e Philip achou que devia ser bondosa.

 

- Não lhe aborrecerá cuidar de uma criança? - perguntou-lhe.

 

Ela explicou que o marido, coadjutor eclesiástico, era muito mais velho do que ela e tinha dificuldade em achar trabalho permanente, uma vez que os pastores precisavam de homens novos, que os auxiliassem; ganhava alguma coisa, de quando em quando, substituindo alguém que entrava de férias ou caía doente; e uma instituição de caridade dava-lhes uma pequena pensão. A vida de Mrs. Harding, porém, era solitária; cuidar de uma criança seria uma distracção, e os poucos xelins que lhe pagariam semanalmente ajudá-la-iam a manter-se. Prometeu que seria bem alimentada.

 

- _é uma perfeita senhora, não é? - disse Mildred, quando saíam.

 

Voltaram para tomar chá no Metrópole. Mildred gostou da multidão e da orquestra. Philip estava cansado de falar e ficou a observar o rosto da companheira, enquanto ela examinava com olhos penetrantes os vestidos das mulheres que entravam. Tinha uma agudeza especial para calcular o preço das coisas. De quando em quando, inclinava-se para Philip e sussurrava-lhe ao ouvido o resultado das suas meditações.

 

- Vês aquela *aigrette*? Aquilo custa nada menos de sete guinéus.

 

Ou então: - Olha aquele arminho, Philip. É de coelho, sem dúvida, não é arminho. - Ria, triunfante.

 

- Era capaz de descobri-lo a uma légua de distância.

 

Philip sorria, feliz. Estava contente por ver o prazer de Mildred e a ingenuidade da sua conversa divertia-o e comovia-o ao mesmo tempo. A orquestra tocava músicas sentimentais.

 

Depois do jantar, foram a pé até à estação e Philip tomou-lhe o braço. Contou-lhe os preparativos que fizera para a viagem a França. Mildred devia voltar para Londres no fim da semana, mas disse-lhe que não podia deixar Brithton antes do sábado da semana próxima. Já marcara um quarto num hotel de Paris. Esperava ansiosamente a hora de comprar as passagens.

 

- Não te importas que vamos em segunda classe? Não devemos ser extravagantes e é melhor que cheguemos lá com bastante dinheiro.

 

Falara-lhe uma centena de vezes no Bairro Latino. Vagabundeariam pelas suas velhas ruas encantadoras e passariam horas sentados nos lindos jardins do Luxemburgo. Se o tempo estivesse bom, quando se fartassem de Paris, talvez fossem a Fontainebleau. As árvores estariam então cobertas de folhas. O verde da floresta na Primavera era a coisa mais bela que ele conhecia; era como uma canção e como o delicioso sofrimento do amor. Mildred escutava-o calada. Philip voltou-se para ela e procurou olhar-lhe fundo nos olhos.

 

- Queres ir, não queres? - perguntou.

 

- Claro que quero - sorriu ela.

 

- Não sabes com que ansiedade espero essa viagem. Não sei como hei-de passar os próximos dias. Tenho medo que aconteça alguma coisa que no-la impeça. _às vezes é endoidecedor não te poder dizer quanto te amo. E no fim de contas, no fim de contas...

 

Deteve-se de súbito. Chegavam à estação, mas tinham-se demorado no caminho, de sorte que Philip mal teve tempo de se despedir de Mildred. Deu-lhe um beijo rápido e precipitou-se para a bilheteira. Mildred continuava parada onde ele a deixara. A correr, Philip era estranhamente grotesco.

 

No sábado seguinte, Mildred voltou para Londres; nessa noite Philip teve-a toda para si. Comprou bilhetes para o teatro, beberam champanhe ao jantar. Era o primeiro divertimento dela em Londres, havia muito tempo, e Mildred desfrutou-o com ingénuo entusiasmo. Chegou-se a Philip, no trem, quando se dirigiam do teatro para o quarto que lhe mandara reservar em Pimlico.

 

- Chego a acreditar que estejas contente por me ver - disse ele.

 

Ela não respondeu, mas apertou-lhe a mão de leve. As demonstrações de afeição eram, nela, tão raras que Philip estava encantado.

 

- Pedi a Griffiths que jantasse connosco amanhã - contou-lhe.

 

- Ah! Fico muito contente com isso. Quero conhecer o teu amigo.

Não havia casa de diversões aonde levá-la na noite de Domingo :,

e Philip temia que ela ficasse aborrecida por passar com ele todo o dia. Griffiths era divertido; havia de ajudá-los a passar o serão. Philip gostava tanto de ambos que desejava que eles se conhecessem e ficassem amigos. Deixou Mildred com as seguintes palavras:

 

- Faltam apenas seis dias.

 

Tinham combinado jantar, no domingo, na galeria do Romano porque ali a comida era excelente e parecia custar muito mais do que realmente custava. Philip e Mildred chegaram primeiro e tiveram de esperar algum tempo por Griffiths.

 

- Esse diabo anda sempre atrasado - disse Philip. -Provavelmente, está a fazer a corte a alguma das suas beldades.

Griffiths chegou. Alto e esbelto, era uma bela figura; a cabeça assentava-lhe bem nos ombros e dava-lhe um ar conquistador que era atraente; e os cabelos ondulados, a boca vermelha, os olhos azuis, cordiais e atrevidos, tinham um grande encanto. Philip viu Mildred deitar-lhe um olhar avaliador, e sentiu uma curiosa satisfação. Griffiths saudou-os com um sorriso.

 

- Tenho ouvido falar muito de si - disse a Mildred, ao apertar-lhe a mão.

 

- Não tanto quanto eu do senhor - respondeu ela.

 

- Nem tão mal - interveio Philip.

 

- Ele disse horrores a meu respeito?

 

Griffiths riu e Philip viu que Mildred notava quanto eram brancos e regulares os seus dentes e como era agradável o seu sorriso.

 

- Vocês devem sentir-se como velhos amigos - disse Philip. -Tenho falado tanto de um ao outro...

 

Griffiths estava na melhor das disposições de espírito, pois passara nos exames finais e obtivera o seu diploma; acabava de ser nomeado cirurgião interno num hospital do norte de Londres. Ia assumir o cargo em princípios de Maio e, entretanto, pretendia passar umas férias em casa; era aquela a sua última semana na capital e estava resolvido a divertir-se o mais possível. Começou a dizer as alegres tolices que Philip, incapaz de fazer o mesmo, tanto admirava. Não havia muito no que dizia, mas a sua vivacidade dava-lhe brilho à palestra. Emanava dele, quase tão sensível como o calor do corpo, uma tal vitalidade comunicativa, que todos que o conheciam se sentiam fascinados. Mildred revelou uma vivacidade que Philip não lhe conhecia. Ficou deliciado por ver que a sua pequena festa obtinha êxito. Ela divertia-se imenso. Ria cada vez mais alto. Esquecera-se por completo da elegante reserva que se lhe tornara uma segunda natureza.

 

Em dado momento, Griffiths disse:

 

- Olhe, é muito difícil para mim chamar-lhe Mrs. Miller. Philip chama-lhe sempre Mildred.

 

- O que te posso dizer é que ela não te arrancará os olhos se lhe chamares também Mildred - riu Philip.

 

- Então tem que chamar-me Harry.

 

Philip, silencioso enquanto os outros dois conversavam, pensava em como era bom ver criaturas felizes. De quando em quando, Griffiths troçava um pouco, e sem malícia, da constante seriedade do amigo.

 

- Acho que ele gosta muito de ti, Philip - sorriu Mildred.

 

- Não é mau tipo - respondeu Griffiths, tomando a mão de Philip e sacudindo-a alegremente.

 

O facto de Griffiths gostar de Philip parecia acrescentar alguma coisa ao seu encanto pessoal.

 

Eram todos sóbrios e o vinho que beberam subiu-lhes à cabeça. Griffiths tornou-se mais loquaz e tão barulhento que Philip, embora achasse graça naquilo, teve de lhe pedir que se aquietasse. Possuía o dom de contar histórias, e as suas aventuras, narradas por ele próprio, nada perdiam em graça e romantismo. Representava em todas essas proezas um papel galante e jovial e Mildred, os olhos a cintilar de animação, incitava-o a prosseguir. Griffiths despejava anedota sobre anedota. Quando começaram a apagar as luzes, ela mostrou-se surpreendida.

 

- Palavra de honra, a noite passou depressa. Não pensei que fossem mais de nove e meia.

 

Ergueram-se para sair e, ao despedir-se, ela acrescentou:

 

- Amanhã, vou tomar chá ao quarto de Philip. Pode aparecer, se quiser.

 

- Está bem - anuiu Griffiths.

 

Ao voltar para Pimlico, Mildred não falou senão no rapaz. Estava cativada pela sua bela aparência, pelas suas roupas bem talhadas, pela voz e pela gaiatice.

 

- Estou contente por teres gostado dele - disse-lhe Philip.  - E tu que te eximias um pouco a conhecê-lo... lembras-te?

 

- _é muito gentil... gostar assim de ti. É um amigo que vale a pena conservar.

 

Ofereceu o rosto para que Philip o beijasse, coisa que raramente fazia.

 

- Diverti-me muito esta noite, Philip. Muito obrigada.

 

- Não sejas tola - riu ele, tão comovido ante a satisfação dela, que sentiu os olhos húmidos.

 

Ela abriu a porta e, antes de entrar, voltou-se para Philip.

 

- Diz ao Harry que estou loucamente apaixonada por ele.

 

- Está bem - riu ele. - Boa-noite.

 

No dia seguinte, quando tomavam o chá, Griffiths entrou.

Afundou-se preguiçosamente numa poltrona. Havia uma estranha sensualidade na lentidão de movimentos dos seus membros alongados. Philip permaneceu calado enquanto os outros dois tagarelavam sem cessar; mas estava radiante. Admirava tanto ambos que lhe parecia perfeitamente natural que eles se admirassem mutuamente. Pouco lhe importava que Griffiths absorvesse a atenção de Mildred, pois tê-la-ia a seu lado durante o serão. Havia em Philip um pouco da atitude do marido amoroso que confia na afeição da esposa e fica a olhar divertido enquanto ela namorisca inofensivamente com um estranho. _às sete e meia, porém, olhou para o relógio e disse:

 

- Já é tempo de irmos jantar, Mildred.

 

Houve uma pausa momentânea e Griffiths pareceu reflectir.

 

- Bom, vou-me embora - disse por fim. - Não sabia que era tão tarde.

 

-Tem algum compromisso para hoje à noite? - indagou ela.

 

- Não.

 

Houve outro silêncio. Philip sentiu-se vagamente irritado.

 

- Vou preparar-me - disse, acrescentando para Mildred: -  Não queres lavar as mãos?

 

Ela não respondeu.

 

- Por que não janta connosco? - perguntou a Griffiths.

 

Este olhou para Philip e viu que ele o contemplava com expressão sombria.

 

- Já jantei com vocês ontem - respondeu rindo. - Não quero ser indiscreto.

 

- Ora! Não tem importância - insistiu Mildred. - Faz com que ele venha, Philip. Não faz mal, não é verdade?

 

- Pois venha, se quiser.

 

- Então, está bem - disse Griffiths, prontamente. - Vou lá acima preparar-me.

 

No momento em que ele deixou o quarto, Philip voltou-se para Mildred, zangado.

 

- Por que diabo o convidaste a jantar connosco?

 

- Não pude deixar de fazê-lo. Seria esquisito nada lhe dizer depois dele ter dito que não tinha nada que fazer.

 

- Ora, que asneira! E por que diabo perguntaste se não tinha nada que fazer?

 

Os lábios descorados de Mildred apertaram-se um pouco.

 

- _às vezes, também preciso de divertir-me um bocado. Fico cansada de estar sempre sozinha contigo.

 

Ouviram Griffiths descer a escada e Philip entrou no quarto de dormir, para lavar-se. Jantaram num restaurante italiano das proximidades. Philip estava carrancudo e silencioso, mas depressa percebeu que lhe era desvantajosa a comparação com Griffiths, e tratou de ocultar o aborrecimento. Bebeu muito vinho para anular a dor que lhe roía o coração e pôs-se a conversar. Mildred, como que sentindo remorso pelo que dissera, fez tudo quanto pôde para lhe ser agradável. Foi gentil e afectuosa. Em dado momento, Philip começou a pensar que fora um tolo em se entregar àquele sentimento de ciúme. Depois do jantar, entraram num fiacre e foram às variedades. Mildred, sentada entre os dois, deu-lhe espontaneamente a mão. A raiva de Philip desvaneceu-se. De súbito, sem saber como, teve a consciência de que Griffiths segurava a outra mão da rapariga. Outra vez, e violentamente, a dor se apoderou dele. Uma verdadeira dor física. Tomado de pânico, perguntou a si mesmo o que podia ter perguntado antes: se Mildred e Griffiths estavam enamorados um do outro. Nada pôde ver da representação, devido ao nevoeiro de suspeita, raiva, consternação e infortúnio que parecia pairar-lhe diante dos olhos, mas fez um esforço para ocultar o facto como se não tivesse importância. Continuou a falar e a rir. Depois, tomado de um estranho desejo de se torturar, levantou-se e disse que ia beber alguma coisa. Até então, Mildred e Griffiths nunca tinham ficado a sós um instante. Queria deixá-los entregues a si próprios.

 

- Também vou - disse Griffiths. - Estou com sede.

 

- Ora que tolice! Fique a conversar com Mildred.

 

Ignorava por que motivo dissera aquilo. Estava a atirá-los aos braços um do outro, a fim de tornar mais intolerável a dor que sofria. Não foi ao bar; subiu para o balcão, donde podia vigiá-los sem ser visto. Tinham deixado de olhar para o palco e sorriam em mútua contemplação. Griffiths falava com a habitual e feliz fluência e Mildred parecia suspensa dos seus lábios. A cabeça de Philip começou a doer-lhe horrivelmente. Deixou-se ficar imóvel onde estava. Sabia que, se voltasse, seria importuno. Os dois estavam a divertir-se sem ele, ao passo que ele sofria, sofria .. O tempo passava e Philip tinha um extraordinário acanhamento de se lhes reunir. Sabia que não pensavam nele e reflectiu com amargor que pagara o jantar e os três lugares das variedades. Ridicularizavam-no! O rosto ardia-lhe de vergonha. Via como Mildred e Griffiths eram felizes na sua ausência. O seu primeiro impulso foi ir para casa e deixá-los ali sozinhos. Acontecia, porém, que não tinha consigo o chapéu e o sobretudo e teria de dar explicações intermináveis. Voltou. Percebeu uma sombra de aborrecimento nos olhos de Mildred e sentiu um desfalecimento.

 

- Demoraste-te um tempo dos diabos - disse-lhe Griffiths com um sorriso de acolhimento.

 

- Encontrei uns conhecidos. Estive a conversar com eles e não pude libertar-me. Achei que vocês estariam muito bem aqui sozinhos.

 

- Diverti-me imenso - disse Griffiths. - Quanto a Mildred. não sei...

 

Ela deixou escapar um riso de complacência feliz. Havia nele uma tonalidade vulgar que deixou Philip horrorizado. Propôs que se retirassem.

 

- Vamos - disse Griffiths. - Levar-te-emos a casa.

 

Philip suspeitou que ela própria tivesse sugerido aquilo, a fim de poder ficar a sós com o outro. No carro, não lhe segurou a mão nem ela a ofereceu, mas Philip, durante todo o tempo teve a certeza de que ela apertava a de Griffiths. A sua ideia predominante era de que tudo aquilo não passava de uma horrível vulgaridade. Enquanto o trem rodava, ficou a imaginar que planos teriam feito para se encontrarem sem o seu conhecimento. Amaldiçoou-se por tê-los deixado a sós; chegara mesmo a afastar-se para que eles pudessem combinar coisas...

 

- Vamos aproveitar o trem - disse Philip, quando chegaram à casa onde Mildred morava. - Estou cansado de mais para ir a pé.

 

No caminho de volta, Griffiths conversou com alegria e parecia indiferente ao facto de Philip responder apenas por monossílabos. Este sentiu que o amigo havia de perceber que alguma coisa se passava com ele. O seu silêncio tornou-se por fim tão significativo e impossível de romper, que Griffiths, subitamente nervoso, cessou de falar. Philip queria dizer alguma coisa, mas era tão tímido que mal podia resolver-se a fazê-lo, embora o tempo passasse e a oportunidade se perdesse. Era melhor dizer a verdade por uma vez. Forçou-se a falar.

 

- Estás a namorar a Mildred? - perguntou de repente.

 

- Eu? - riu Griffiths. - É por isso que estiveste tão esquisito esta noite? _é claro que não, meu velho.

 

Tentou segurar o braço de Philip, mas este esquivou-se. Sabia que Griffiths mentia. Não se animava a perguntar-lhe se não tinha segurado a mão de Mildred. De súbito, sentiu-se muito fraco e abatido.

 

- Para ti isso não tem importância, Harry - disse. - Já tens tantas mulheres... Não ma tires. Ela é toda a minha vida. Tenho sido tão infeliz...

 

Faltou-lhe a voz e não pôde conter um soluço. Estava horrivelmente envergonhado de si mesmo.

 

- Meu velho, sabes que não seria capaz de fazer uma coisa que te ferisse. Gosto demasiado de ti para tal. _era apenas uma tolice minha. Se soubesse que levavas a coisa a sério, teria tido mais cuidado.

 

- Isso é verdade?

 

- Dou-te a minha palavra de honra que ela não me interessa

Philip suspirou, aliviado. O trem parou à porta de casa.

 

No dia seguinte, Philip acordou de bom humor. Como não queria importunar Mildred com o abuso da sua presença, evitou vê-la antes da hora do jantar. Quando foi buscá-la, encontrou-a pronta e troçou daquela pontualidade fora do comum. Trazia o vestido novo que ele lhe dera. Philip notou-lhe a elegância.

 

- Tem que ir de novo para a costureira  - disse ela. - A saia não cai bem.

 

- Precisas então apressá-la, se queres levar o vestido para Paris.

 

- Ficará pronto a tempo.

 

- Temos apenas três dias. Tomaremos o comboio das onze, não é assim?

 

- Se quiseres.

 

Tê-la-ia quase um mês exclusivamente para si. Os seus olhos pousaram nela, numa adoração famélica. Philip conseguia rir um pouco da sua própria paixão.

 

- Gostaria de saber o que vejo em ti - murmurou.

 

- Que gentileza! - retorquiu ela.

 

O corpo dela era tão delgado que quase se lhe via o esqueleto. O peito era chato como o de um rapaz. A boca, de lábios pálidos e estreitos, era feia, e a pele levemente esverdeada.

 

- Durante a viagem vou dar-te pílulas de Bland - disse Philip a rir. - Hei-de trazer-te gorda e rosada.

 

- Não quero engordar.

 

Mildred não falou em Griffiths, mas, durante o jantar, um pouco por malícia, pois naquela noite sentia-se seguro de si e do seu poder sobre ela, disse:

 

- Parece-me que travaste forte namoro com o Harry, a noite passada...

 

- Já te disse que gosto dele - respondeu ela, a rir.

 

- Felizmente, sei que ele não gosta de ti.

 

- Como sabes?

 

- Perguntei-lhe.

 

Ela hesitou um momento, de olhar fito em Philip, e com um estranho fulgor nos olhos.

 

- Queres ler a carta que recebi dele esta manhã?

 

Deu-lhe um sobrescrito em que Philip reconheceu a letra ousada e nítida de Griffiths. Eram oito páginas. Bem escrita, franca e cheia de encanto, era a carta de um homem habituado a cortejar mulheres. Dizia a Mildred que a amava apaixonadamente desde o primeiro momento em que a vira; não queria amá-la, porque sabia quanto Philip gostava dela, mas aquilo era superior às suas forças. Philip era tão bom rapaz, que estava envergonhadíssimo de si próprio. A culpa, porém, não era sua, pois sentia-se :, arrastado. Dirigia a Mildred galanteios deliciosos. Para terminar, agradecia-lhe ter consentido em almoçar com ele no dia seguinte e declarava estar impaciente por vê-la. Philip notou que a carta estava datada da noite anterior; Griffiths devia tê-la escrito depois de separar-se dele, e dera-se ao trabalho de sair para levá-la ao correio quando ele o julgava na cama.

 

Leu-a com um horrível palpitar de coração, mas conseguiu ocultar a surpresa. Devolveu a carta a Mildred com um sorriso calmo.

 

- Gostaste do almoço?

 

- Bastante! - respondeu ela com ênfase.

 

Sentindo que as mãos tremiam, Philip pô-las debaixo da mesa.

 

- Não deves levar Griffiths muito a sério. Sabes que ele não passa de uma borboleta.

 

Ela pegou na carta e tornou a olhá-la.

 

- Também é superior às minhas forças - disse Mildred numa voz que procurava tornar indiferente. - Não sei o que se passa comigo.

 

- A situação é um pouco embaraçosa para mim, não achas?

 

Mildred lançou-lhe um olhar rápido.

 

- _o facto é que a encaras com muita calma, devo dizer.

 

- Que esperas que faça? Queres que me ponha a arrancar os cabelos às mãos-cheias?

 

- Sabia que ias ficar zangado comigo.

 

- _é curioso, mas não estou zangado. Devia saber que isto tinha de acontecer. Fui um tolo em os ter reunido. Sei perfeitamente que ele tem todas as vantagens sobre mim; é muito brilhante, é simpático, é mais divertido, sabe falar em coisas que te interessam...

 

- Não sei o que queres dizer com isso. Se não sou inteligente, a culpa não é minha, mas não sou tão tola como imaginas. Isso garanto-te. _és importante de mais para mim, meu menino.

 

- Vais fazer uma cena? - perguntou ele, com brandura.

 

- Não, mas não vejo razão para me tratares como se fosse uma não sei quê...

 

- Desculpa. Não tive intenção de te ofender. Somente quis esclarecer as coisas. Para quê criar complicações quando podemos evitá-las? Vi que te sentias atraída por ele e achei isso muito natural. A única coisa que me dói de verdade é saber que ele te encorajou. Griffiths sabia quanto eu te queria. Acho que foi uma baixeza escrever-te aquela carta, cinco minutos depois de me garantir que não te dava a menor importância.

 

- Estás muito enganado se pensas que, dizendo essas coisas desagradáveis, me fazes gostar menos dele.

 

Philip guardou silêncio por um momento. Não sabia que palavras usar para fazer com que Mildred compreendesse. Queria falar com sangue-frio, com deliberação, mas encontrava-se num turbilhão de sentimentos e não podia pensar com clareza.

 

- Não vale a pena sacrificar tudo por um lume de palha. No fim de contas, ele não se importa com ninguém mais de dez dias e és um tanto fria; essa coisa não pode ter muita importância para ti.

 

- _é o que julgas.

 

O tom impertinente que ela adoptara tornava a situação mais difícil para Philip.

 

- Se amas Griffiths, nada há a fazer. Hei-de suportar a situação da melhor maneira, Entendemo-nos muito bem, tu e eu. E não procedi mal contigo, não é verdade? Não me amas, nunca o ignorei, mas tens afeição por mim, e quando formos para Paris, hás-de esquecer Griffiths. Se tratares de afastá-lo do pensamento, isso não será difícil e mereço que faças alguma coisa por mim.

 

Mildred não respondeu. Continuaram a comer. Quando o silêncio se tornou opressivo, Philip começou a falar de coisas indiferentes. Fingia não notar que Mildred estava desatenta. As suas respostas eram negligentes e não aventurava qualquer observação. Por fim, interrompeu abruptamente o que ele dizia:

 

- Philip, acho que não posso viajar no sábado. O médico diz que não devo.

 

Ele sabia que aquilo não era verdade, mas perguntou:

 

- Quando podes então partir?

 

Mildred olhou para ele e, vendo-lhe o rosto branco e rígido, desviou dele o olhar nervosamente. Naquele momento, tinha-lhe um pouco de medo.

 

- É melhor acabar com isto. Não posso ir contigo de maneira nenhuma.

 

- Era disso mesmo que estava desconfiado. Agora, é tarde para mudar de resolução. Já comprei as passagens e tudo.

 

- Disseste que só me levavas se eu quisesse ir. Pois não quero.

 

- Mudei de ideia. Estou cansado de suportar os teus caprichos. Tens de ir.

 

- Gosto muito de ti como amigo, Philip. Mais que isso não seria possível. Não gosto de ti dessa maneira. Não sou capaz, Philip.

 

- A semana passada, não pensavas assim.

 

- Era diferente.

 

- Não conhecias Griffiths?

 

- Tu próprio disseste que, se gosto dele, não há remédio.

 

O rosto de _mildred fixou-se numa expressão de enfado e manteve os olhos fitos no prato. Philip estava pálido de raiva. Quisera dar-lhe um murro na cara e imaginou-a com um olho enegrecido. A uma mesa vizinha jantavam dois rapazes de dezoito anos, que, de quando em quando, lançavam olhares para Mildred.

"_Talvez me invejem por jantar com uma rapariga bonita - reflectiu Philip. - Talvez desejassem estar no meu lugar".

 

Foi Mildred quem quebrou o silêncio.

 

- De que serve viajarmos juntos? Pensaria nele a toda a hora. Não seria muito agradável para ti.

 

- Isso é comigo - retorquiu ele.

 

Mildred pensou no que estava subentendido nessa frase e corou.

 

-- Mas é nojento.

 

-- Que tem isso ?

 

- Pensei que fosses um cavalheiro em toda a extensão da palavra.

 

- Estavas enganada - replicou ele, a rir, pois achava graça à resposta.

 

- Por amor de Deus, não rias - exclamou ela. -- _não posso ir contigo, Philip. Sinto muitíssimo. Sei que não me tenho portado bem contigo, mas não se pode forçar a natureza.

 

- Esqueceste o que fiz por ti quando estavas em apuros? Arranjei o dinheiro que te sustentou até a tua filha nascer. Paguei o médico e tudo mais. Dei o dinheiro para ires a Brighton e sustento a criança, pago as tuas roupas, dei-te tudo quanto tens no corpo, agora.

 

- Se fosses um cavalheiro não me lançavas em rosto o que fizeste por mim.

 

- Por amor de Deus, cala-te! Pensas que me importa alguma coisa que seja ou não um cavalheiro ? Se fosse um cavalheiro, não perderia o meu tempo com uma vadia reles como tu. Pouco se me dá que gostes ou não de mim. Estou cansado de fazer papel de tolo. Pois hás-de ir comigo a Paris no sábado ou terás de aguentar as consequências!

 

As faces de Mildred estavam vermelhas de cólera e, quando respondeu, a voz tinha a crua vulgaridade que geralmente ocultava sob uma pronúncia educada:

 

- Jamais gostei de ti, nem no princípio, mas agarraste-te a mim. Sempre detestei os teus beijos. Agora, não deixaria que me tocasses nem que estivesse a morrer de fome.

 

Philip tentou engolir o que tinha no prato, mas os músculos da garganta negaram-se a obedecer. Esgotou o copo e acendeu um cigarro. Estava trémulo. Não falou. Esperou que ela se movesse, mas Mildred continuava sentada, em silêncio; olhava fixamente para a toalha branca. Se estivessem sós, tê-la-ia enlaçado e beijado apaixonadamente; imaginava aquele comprido pescoço branco atirado para trás, enquanto ele comprimisse os lábios de encontro aos dela. Passaram uma hora sem falar e por fim Philip achou que o criado começava a olhá-los com curiosidade. Pediu a conta.

 

- Vamos? - disse em voz calma.

 

Sem responder, ela pegou nas luvas e na bolsa. Enfiou o casaco.

 

- Quando vais encontrar-te com Griffiths outra vez?

 

- Amanhã - respondeu ela com indiferença.

 

- É melhor que sejas franca com ele.

 

Ela abriu maquinalmente a bolsa e viu ali um papel branco. Pegou-lhe.

 

- Aqui está a conta deste vestido - disse, hesitante.

 

- E que tem isso?

 

- Prometi à costureira pagar amanhã.

 

- Prometeste?

 

- Isso quer dizer que, depois de teres dito que o comprasse, não o queres pagar?

 

- Justamente.

 

- Vou pedir ao Harry - disse ela, com vivo rubor nas faces.

 

- Terá muito prazer em te ajudar. Actualmente deve-me sete libras e empenhou o microscópio a semana passada, porque não tinha vintém.

 

- Não penses que me assustas com isso. Sou capaz de ganhar a minha vida.

 

- E é o melhor que tens a fazer. Não pretendo dar-te mais nem um chavo.

 

Mildred pensou no aluguer que precisava de pagar ao sábado e no sustento da filha, mas nada disse. Deixaram o restaurante e, na rua, Philip perguntou-lhe:

 

- Queres que chame um trem para ti? Vou dar uma volta.

 

- Não tenho dinheiro. Tive de pagar uma conta esta tarde.

 

- Não te fará mal andar a pé. Se amanhã quiseres ver-me, estarei em casa à hora do chá.

 

Tirou o chapéu e afastou-se sem pressa. Olhou para trás pouco depois e viu que ela continuava onde a deixara, com ar desamparado, olhando para os carros que passavam. Voltou e, com uma risada, pôs-lhe uma moeda na mão.

 

- Toma estes dois xelins para voltares para casa.

 

E afastou-se, apressado. antes que ela pudesse falar.

 

No dia seguinte, à tarde, Philip ficou sentado no quarto a pensar se Mildred viria ou não. Dormira mal. Passara a manhã no clube da Escola de Medicina, a ler um jornal após outro. Estava-se em férias e dos estudantes que ele conhecia poucos se encontravam em Londres; achou, porém, um ou dois com quem conversar. :,

Jogou uma partida de xadrez, matando assim as horas de tédio. Depois do lanche, sentiu-se tão cansado, doía-lhe tanto a cabeça, que voltou para os seus aposentos e deitou-se. Tentou ler um romance. Não vira Griffiths. Este não estava em casa quando Philip voltara, na noite anterior; ouvira-o chegar, mas não fora, como de costume, ao seu quarto, ver se ele dormia. E, de manhã, ouviu-o sair cedo. Era evidente que queria evitá-lo. De súbito, bateram de leve à porta. Philip ergueu-se de um salto e foi abrir. Mildred estava no limiar. Ela não se moveu.

 

- Entra.

 

Fechou a porta atrás dela. Mildred sentou-se. Depois de hesitar, começou:

 

- Muito obrigada por me teres dado aqueles dois xelins ontem à noite.

 

  -- Oh... isso não tem importância.

 

Ela dirigiu-lhe um leve sorriso, que lembrou a Philip o olhar tímido e suplicante de um cãozito espancado por travessura, que deseja reconciliar-se com o dono.

 

- Almocei com o Harry - disse ela.

 

-- Sim?

 

- Se ainda queres que vá contigo no sábado, Philip, vou.

 

Uma palpitação de triunfo agitou-lhe o coração, mas durou apenas um instante. Seguiu-se logo a suspeita.

 

- Por causa do dinheiro?

 

- Em parte - respondeu ela simplesmente. -- Harry nada pode fazer. Deve cinco semanas de aluguer, a ti deve sete libras e o alfaiate não o deixa em paz. Está pronto a empenhar qualquer coisa, mas já empenhou quase tudo. Foi uma dificuldade enorme conseguir que a costureira esperasse pelo dinheiro do meu vestido novo. No sábado, tenho de pagar o aluguer do quarto, e não posso arranjar trabalho de um momento para outro. É preciso esperar uma vaga.

 

Disse tudo isto com uma voz queixosa e igual, como se relatasse as injustiças do destino que tinham de ser suportadas como fazendo parte da ordem natural das coisas. Philip não respondeu. Conhecia bem todos aqueles pormenores.

 

- Disseste "em parte" - observou por fim.

 

- Bom, o Harry diz que foste muito decente connosco. Foste um verdadeiro amigo para ele, e fizeste por mim o que talvez nenhum outro homem teria feito. Diz que devemos portar-nos bem. E concorda, também, com o que disseste: que é volúvel por natureza, não é como tu, e seria tola se te deixasse para ir com ele. Diz que com ele seria uma coisa passageira e contigo é permanente.

 

- *_Queres*, então, ir comigo? - perguntou Philip.

 

- Para mim é o mesmo.

 

Philip olhou para ela e os cantos da boca descaíram-lhe numa :,

expressão lastimosa. Na verdade, triunfara e ia ter o que desejava. Soltou uma risada de mofa ante a própria humilhação. Mildred levantou rapidamente os olhos para ele, mas não falou.

 

- Esperei com toda a minha alma o momento de viajar contigo e pensei que, afinal, depois de toda essa miséria, ia ser feliz...

 

Não terminou o que estava a dizer. Subitamente, sem transição, Mildred rompeu numa torrente de lágrimas. Estava sentada na mesma cadeira em que Norah estivera a chorar. E, como esta, escondeu o rosto no espaldar, para o lado onde havia uma pequena saliência, junto à depressão formada pelo peso da cabeça.

 

"Não sou feliz com as mulheres" - pensou Philip.

 

O corpo magro de Mildred estava sacudido de soluços. Philip nunca vira uma mulher chorar com tão completo abandono. Era horrivelmente doloroso e ele tinha o coração dilacerado. Sem perceber o que fazia, dirigiu-se para ela e enlaçou-a com os braços. Ela não resistiu, mas, na sua miséria, deixou-se consolar. Ele sussurrou-lhe pequenas palavras reanimadoras. Quase sem saber o que dizia, inclinou-se para ela e beijou-a repetidas vezes.

 

- És muito, muito infeliz? - perguntou, afinal.

 

- Preferia estar morta - gemeu ela. - Devia ter morrido quando a criança nasceu.

 

Como o chapéu a incomodasse, Philip tirou-lho. Acomodou-lhe melhor a cabeça na cadeira. Depois, foi sentar-se à mesa e ficou a olhá-la.

 

- O amor é uma coisa terrível, não é? Imagina que há quem deseje amar...

 

Agora, a violência dos soluços diminuta e ela deixava-se ficar na cadeira, exausta, com a cabeça atirada para trás e os braços pendentes. Tinha o grotesco aspecto desses manequins que os pintores usam para estudar efeitos de roupagem.

 

- Não sabia que o amavas assim - disse Philip.

 

Entendia perfeitamente o amor de Griffiths, pois colocava-se no lugar dele, via-a com os seus olhos, tocava-a com as suas mãos; podia julgar-se no corpo de Griffiths, e foi com os lábios dele que a beijou, foi com os olhos azuis e alegres do outro que sorriu para ela. A comoção da mulher era o que mais o surpreendia. Nunca a julgara capaz de paixão, e aquilo era paixão; não havia dúvida. Pareceu-lhe que alguma coisa cedia no seu coração; percebia-a como algo que realmente se quebrasse e sentiu-se tomado de uma estranha debilidade.

 

- Não quero fazer-te infeliz. Não precisas ir comigo se não quiseres. Dar-te-ei o dinheiro do mesmo modo.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Não, disse que ia e vou.

 

- De que serve isso se estás a morrer de amor por ele?

 

- Sim, é essa a palavra. Estou a morrer de amor. Sei que isto não durará em mim como não durará nele, mas, agora...

 

Fez uma pausa e fechou os olhos como se fosse desmaiar. Uma ideia estranha ocorreu a Philip, que a expressou no mesmo instante, sem se deter para pensar nela.

 

- Por que não vais viajar com ele?

 

-- De que modo? Sabes que não temos dinheiro.

 

- Dou o dinheiro.

 

- Tu?

 

Ergueu-se e olhou para Philip. Os seus olhos começaram a brilhar e a cor voltou-lhe às faces.

 

- Talvez o melhor fosse acabar com isso de uma vez e depois voltares para mim.

 

Agora, que fizera a sugestão, estava angustiado, e no entanto essa tortura dava-lhe uma sensação subtil e singular. Mildred fitava nele os olhos arregalados.

 

- Oh! Como poderíamos viajar com o teu dinheiro? Harry nem quererá pensar nisso.

 

- Depende de o convenceres.

 

As objecções de Mildred faziam-no insistir e, apesar de tudo, desejava de todo o coração que ela recusasse com veemência.

 

- Darei cinco libras e vocês podem ficar fora de sábado até segunda-feira. É muito fácil. Na segunda-feira, ele vai para casa, até começar a trabalhar no hospital.

 

- Oh, Philip, falas sério? - exclamou ela, juntando as mãos. - Se pudesses deixar-nos ir... eu amar-te-ia depois... Faria tudo quanto pedisses. Tenho a certeza de que esta paixão acaba se formos. Queres dar-nos o dinheiro?

 

- Quero.

 

Mildred mudara por completo. Começou a rir. Philip podia ver que uma alegria doida a transfigurava. Ergueu-se e veio ajoelhar-se ao pé dele, segurando-lhe as mãos.

 

- Tu és bom, Philip. O melhor que conheço. Depois, não ficarás zangado comigo?

 

Ele meneou a cabeça, a sorrir, mas com que agonia no coração!

 

- Posso contar ao Harry? E posso dizer também que não te importas? É a única maneira de ele consentir... Oh, não sabes quanto gosto dele! Depois farei tudo quanto quiseres. Vou contigo a Paris ou a qualquer parte, na segunda-feira.

Levantou-se e pôs o chapéu.

 

- Aonde vais?

 

- Vou perguntar-lhe se está disposto a levar-me.

 

- Já?

 

- Queres que fique? Se queres, fico.

 

Sentou-se, mas ele sorriu ao de leve.

 

- Não, não, é melhor que vás já. Há apenas uma coisa: de momento, não posso suportar a presença de Griffiths. Isso ser-me-ia bastante desagradável. Dize-lhe que não lhe guardo rancor nem coisa parecida, mas pede-lhe que procure não se encontrar comigo.

 

- Está bem. - Mildred ergueu-se vivamente e calçou as luvas. --Depois, te conto o que ele disser.

 

- Podias jantar comigo hoje.

 

- Está bem.

 

Ofereceu-lhe o rosto a beijar, e quando Philip encostou os lábios aos seus, envolveu-lhe o pescoço com os braços.

 

- _és um amor, Philip.

 

Duas horas mais tarde, mandou-lhe um bilhete, a dizer que estava com dores de cabeça e não podia jantar com ele. Philip quase esperava aquilo. Sabia que Mildred jantava com Griffiths. Sentia um ciúme horrível, mas a súbita paixão que se assenhoreara daquelas duas criaturas parecia ser uma coisa imposta de fora, como se um deus lha houvesse instilado e sentiu-se impotente. Afigurava-se tão natural que eles se amassem... Philip via todas as vantagens que Griffiths tinha sobre ele e confessava que, no lugar de Mildred, faria o mesmo. O que mais o feria era a traição do outro; tinham sido tão bons amigos e Griffiths conhecia o seu apaixonado devotamento por Mildred... Devia tê-lo poupado.

Não tornou a ver Mildred antes de sexta-feira; estava ansioso por vê-la, mas, quando ela chegou, verificou que fora completamente esquecido, pois os pensamentos da rapariga giravam em torno de Griffiths e de repente, odiou-a. Via agora por que ela e Griffiths se amavam. Griffiths era obtuso, oh, tão obtuso! Havia muito sabia disso, mas fechara sempre os olhos, obtuso e frívolo: aquele seu encanto mascarava um supino egoísmo; estava disposto a sacrificar quem quer que fosse aos seus apetites. E quão inútil era a existência que levava, beberricando nos cafés-concerto, frequentando bares, borboleteando de um amor barato para outro! Jamais lia um livro, era cego a tudo que não fosse fútil e vulgar. Nunca tinha um pensamento que fosse belo: a palavra mais comum nos seus lábios era *bem*; era esse o seu maior elogio para homens e mulheres. *_Bem*! Não era de admirar que agradasse a Mildred. Tinham sido feitos um para o outro.

Philip conversou com Mildred de coisas que a nenhum deles interessava. Sabia que ela desejava falar de Griffiths, mas não lhe deu oportunidade. Não se referiu ao facto de que, duas noites antes, deixara de jantar com ele, dando uma desculpa qualquer. Mostrou-se natural; procurou dar-lhe a entender que de súbito ficara indiferente e exerceu uma habilidade especial em dizer pequenas coisas destinadas a magoá-la, mas que eram tão indefinidas, tão delicadamente cruéis que ela não tinha de que queixar-se. Por fim, ela levantou-se. :,

 

- Acho que devo ir-me embora - disse.

 

- Sim, deves ter muito que fazer - respondeu ele.

 

Ela estendeu-lhe a mão, Philip disse-lhe adeus e abriu a porta. Não ignorava o que ela tinha a dizer-lhe e sabia também quanto o seu ar frio e irónico a intimidava. Muitas vezes a sua timidez lhe dava, mau grado seu, um aspecto tão frígido que, sem intenção da sua parte, assustava as pessoas. Tendo descoberto isso, podia, quando a ocasião se apresentava, assumir voluntariamente a mesma atitude.

 

- Não esqueceste o prometido? - perguntou ela por fim, quando Philip lhe abriu a porta.

 

- De que se trata?

 

- Do dinheiro.

 

- Quanto queres?

 

Falava com uma fria deliberação que lhe tornava as palavras particularmente ofensivas. Mildred corou. Sabia que ela o odiava naquele momento e admirava-se do domínio próprio que a impedia de esbofeteá-lo. Desejava fazê-la sofrer.

 

- Tenho o vestido e o aluguer amanhã. É só. Harry não quer ir, e assim não precisamos de dinheiro para isso.

 

O coração de Philip começou a bater desordenadamente e largou o fecho. A porta rodou nos gonzos.

 

- E por que não quer ir?

 

- Diz que com o teu dinheiro não pode ir.

 

Um demónio se apoderou de Philip, o demónio secreto que sempre o torturava. Desejava com toda a alma não ver Mildred e Griffiths partirem juntos. Contudo, obstinou-se em persuadir Griffiths a isso, por intermédio dela.

 

- Não sei porquê, dada a minha boa vontade.

 

- Foi o que eu lhe disse.

 

- Creio que, se ele quisesse ir, não hesitaria.

 

- Oh, não é isso, quer ir, sim. Iria já se tivesse dinheiro.

 

- Se tem esses escrúpulos, dar-te-ei o dinheiro, a ti.

 

- Disse que o emprestavas, se ele quisesse, e que pagaríamos logo que pudéssemos.

 

- Não deixa de ser uma novidade para ti, isso de pedir de joelhos a um homem que te leve para um fim-de-semana.

 

- É verdade - declarou com um risinho impudente, que fez passar um arrepio pela espinha de Philip.

 

- Que vais fazer então? - perguntou.

 

- Nada. Harry vai para casa amanhã. Precisa de ir.

 

Aquilo seria a salvação de Philip. Griffiths ausente, poderia recuperar Mildred. Ela não conhecia ninguém em Londres e seria obrigada a procurar a sua companhia. Quando estivessem de novo juntos, poderia fazer com que a rapariga depressa esquecesse aquele capricho. Seria prudente mais nada dizer. Mas sentia um desejo diabólico de desfazer os escrúpulos do par. Queria ver até onde iria o abominável comportamento de ambos para com ele. Se os tentasse um pouco mais, cederiam; e foi tomado de uma alegria feroz, à ideia de semelhante ignomínia. Embora cada palavra que pronunciava fosse uma tortura para si, achava nessa tortura um terrível prazer.

 

- Parece-me que isso ou se faz agora ou nunca mais.

 

- Foi o que eu lhe disse.

 

Havia, na voz dela, uma nota de paixão que surpreendeu Philip. No seu nervosismo, rola as unhas.

 

- Aonde pensavas ir?

 

- A... A Oxford. Foi na Universidade de lá que ele estudou, sabes. Disse que ia mostrar-me os colégios.

 

Philip lembrou-se de que uma vez sugerira essa visita de um dia a Oxford, e ela achara que seria extremamente fastidioso.

 

- E parece que vão ter bom tempo. Lá deve estar muito lindo, agora.

 

- Fiz tudo o que pude para convencê-lo.

 

- Por que não fazes outra tentativa?

 

- Posso dizer que queres que vamos?

 

- Não acho que precises de chegar a esse ponto - retorquiu 1

Philip.

 

Ela guardou silêncio por momentos, olhando para ele. Philip procurou retribuir-lhe o olhar de um modo amistoso. Odiava-a, desprezava-a, amava-a de todo o coração.

 

- Escuta, vou ver se é possível fazer alguma coisa. E depois, se disser que sim, venho buscar o dinheiro amanhã. A que horas estás aqui?

 

- Voltarei depois do jantar e ficarei à espera.

 

-_está bem.

 

- Agora vou dar-te o dinheiro para o vestido e para o quarto.

 

Foi à secretária e tirou todo o dinheiro que tinha. O vestido custara seis guinéus; havia além disso o aluguer e a alimentação dela, e mais o sustento da criança durante uma semana. Philip deu-lhe oito libras e dez xelins.

 

- Muito obrigada - disse ela. E retirou-se.

 

Depois de almoçar no rés-do-chão da Escola de Medicina, Philip voltou ao seu alojamento. Era uma tarde de sábado e a dona da casa lavava as escadas.

 

- Mr. Griffiths está no quarto? - indagou.

 

- Não, senhor. Foi-se embora esta manhã, logo depois de o senhor sair.

 

-- Não voltará?

 

- Julgo que não. Levou a bagagem.

 

Que significaria aquilo? - reflectiu Philip. Subiu ao quarto, pegou num livro e começou a ler. Era a *_jornada a Meca*, de Burton, que ele acabava de trazer da Biblioteca Pública de Westminster. Leu a primeira página mas não lhe compreendeu o sentido, porque o seu espírito estava longe. Esperava a todo o momento que tocassem a campainha. Não ousava crer que Griffiths tivesse partido sem Mildred para casa da família, no Cumberland. Ela não tardaria a aparecer, à procura do dinheiro. Apertou os dentes e continuou a ler. Tentava desesperadamente concentrar a atenção no livro. As frases delineavam-se-lhe no cérebro à custa de esforço, mas eram deformadas pela agonia que o torturava. Desejou de todo o coração não ter feito aquela horrível oferta de dinheiro; agora, porém, que estava consumada, não sentia forças para voltar atrás, não por causa de Mildred, mas por si próprio. Tinha uma obstinação mórbida que o obrigava a cumprir o prometido. Verificou que as três páginas que lera não lhe causaram nenhuma impressão. Recomeçou a leitura: surpreendeu-se a reler vezes sem conta a mesma frase. E elas misturavam-se horrivelmente aos seus pensamentos, como numa obsessão de pesadelo. O que podia fazer era sair e ficar longe do quarto até à meia-noite. _àquela hora já não poderiam ir; e imaginou-os a tocarem a campainha, de hora em hora, para saber se ele estava em casa. Gozava à ideia da decepção deles. Repetia a frase para si mesmo, maquinalmente. Mas não podia fazer aquilo. Que viessem buscar o dinheiro! E poderia ver então a que profundidade de infâmia um homem podia descer. Agora, não conseguia ler mais. Não enxergava as palavras. Inclinou-se para trás na cadeira, fechando os olhos, e, embotado pelo sofrimento, ficou à espera de Mildred.

 

   A dona da casa apareceu:

  

- Pode receber a sr.a Miller?

 

- Mande-a entrar.

 

Philip reuniu forças para receber Mildred, sem dar o menor sinal do que sentia. Teve o impulso de cair de joelhos, tomar-lhe as mãos e implorar-lhe que não partisse; mas sabia não haver meio de dissuadi-la. Contaria a Griffiths o que ele dissera e a maneira como se portara. Teve vergonha.

 

- Então, que me dizes da viagem? - perguntou jovialmente.

 

- Estamos prontos. Harry está lá fora. Disse-lhe que tu não querias vê-lo e por isso não lhe apareceste. Mas quer saber se pode entrar só por um minuto, para dizer adeus

 

- Não. Não desejo vê-lo - respondeu Philip.

 

Compreendia que a Mildred pouco importava que ele falasse :,

ou não com Griffiths. Agora que estava ali, queria que ela se fosse depressa.

 

- Olha, aqui tens as cinco libras. Gostaria agora que te fosses.

 

Ela pegou na nota e agradeceu. Voltou-se para sair.

 

- Quando voltas? - perguntou ele.

 

- Ah... segunda-feira. Harry precisa de ir para casa da família.

 

Philip sabia que o que ia dizer era humilhante, mas estava acabrunhado pelo ciúme e pelo desejo.

 

- Então, ver-te-ei na volta, não?

 

Não pôde evitar que a sua voz tomasse um tom de súplica.

 

- Naturalmente. Avisar-te-ei logo que volte.

 

Apertaram-se as mãos. Por entre as cortinas da janela, viu Mildred saltar para o trem estacionado diante da porta. Este pôs-se em movimento. Philip atirou-se para cima da cama e escondeu o rosto nas mãos. Sentiu que as lágrimas lhe vinham aos olhos e teve raiva a si próprio; cerrou as mãos e inteiriçou o corpo para se conter; mas não conseguiu e grandes soluços de dor irromperam-lhe do peito.

Levantou-se por fim, exausto e envergonhado, e foi lavar o rosto. Tomou uma dose forte de *whisky* com soda. A bebida fê-lo sentir-se um pouco melhor. Depois, os seus olhos deram com as passagens para Paris que estavam em cima da chaminé e agarrando-as num impulso de raiva, atirou-as ao fogo. Sabia que podia devolvê-las e receber o dinheiro, mas o destruí-las dava-lhe uma sensação de alívio. Saiu a seguir, à procura de companhia. O clube estava vazio. Sentiu que enlouqueceria se não achasse com quem conversar. mas Lawson estava no estrangeiro. Foi aos aposentos de Hayward: a criada que abriu a porta disse-lhe que o patrão fora passar o fim-de-semana a Brighton. Philip dirigiu-se então para uma galeria e verificou que a estavam a fechar naquele momento. Não sabia que fazer. Estava desorientado. Pensou em Griffiths e Mildred, a caminho de Oxford, sentados frente a frente no comboio, felizes. Voltou para o seu quarto; este porém, encheu-o de horror, pois fora tão desgraçado ali dentro. Tentou mais uma vez ler o livro de Burton mas, enquanto lia, ficou a repetir mentalmente, numa obstinação, que fora um tolo. Partira dele a sugestão daquela viagem, ele próprio lhes proporcionara o dinheiro para isso, forçara-os a aceitar. Devia ter previsto o que aconteceria quando apresentou Mildred a Griffiths. Aquela sua paixão veemente era o bastante para despertar o desejo do outro. _àquela hora, o par devia ter chegado a Oxford. Instalar-se-iam numa das casas da John Street. Philip nunca estivera em Oxford, mas Griffiths falara-lhe tanto do lugar, que sabia exactamente para onde os dois iriam. Jantariam no *_Claredon*. Griffiths tinha o hábito de jantar lá, quando levava consigo as suas conquistas.

 

Philip foi comer alguma coisa num restaurante, perto de Charing Cross. Resolveu ir a um espectáculo e encaminhou-se para um teatro onde representavam uma peça de Oscar Wilde. _ficou a imaginar se Mildred e Griffiths estariam ou não num teatro, naquela noite: precisavam de matar o tempo e eram ambos suficientemente imbecis para não se contentarem com palestrar. Philip experimentou uma perversa delícia em pensar na vulgaridade daqueles espíritos que tão bem se ajustavam um ao outro. Assistiu à peça com a atenção vaga. Tentava ficar alegre bebendo *whisky* em cada intervalo. Depressa o álcool lhe subiu à cabeça, mas a sua embriaguez era ao mesmo tempo selvagem e melancólica. Quando a peça terminou, tomou outro copo. Não podia ir para a cama, pois não conseguiria dormir: temia os quadros que a sua viva imaginação lhe poria diante dos olhos. Tentou não pensar mais nisso. Sabia que bebera de mais. Por fim invadira-o um desejo de fazer coisas horríveis e sórdidas. Desejava rolar nas sarjetas. Todo o seu ser ansiava por bestialidades. Queria aviltar-se.

 

Atravessou Piccadilly, arrastando o pé boto, sombriamente embriagado, com a raiva e a miséria a dilacerar-lhe o coração. Foi detido por uma prostituta muito pintada, que lhe segurou o braço. Empurrou-a violentamente, dizendo-lhe palavras brutais. Caminhou alguns passos e depois parou. Aquela servir-lhe-ia tão bem como qualquer outra. Estava arrependido de lhe ter dito palavras rudes. Voltou a aproximar-se dela.

 

- Escuta. . . - começou.

 

- Vá para o inferno! - gritou a mulher.

 

Philip riu-se.

 

- Era só para saber se me dá a honra de cear esta noite na minha companhia.

 

Ela olhou para Philip, atónita, e hesitou um instante. Viu que ele estava bêbedo.

 

- Tanto me faz.

 

Achou divertido que ela usasse uma frase tantas vezes ouvida dos lábios de Mildred. Levou-a a um dos restaurantes que estava habituado a frequentar com Mildred. Percebeu que, enquanto caminhavam, ela reparava no seu coxear.

 

- Tenho um pé boto - disse ele. - Há algum inconveniente nisso?

 

- Você é um ponto - riu ela.

 

Quando chegou a casa, Philip sentiu que os olhos lhe doíam e na sua cabeça havia um martelamento que lhe dava vontade de gritar. Tomou outro *whisky* com soda, para se refazer e, deitando-se na cama, mergulhou num sono sem sonhos até ao meio-dia.

 

Chegou por fim a segunda-feira e Philip achou que a sua prolongada tortura terminara. Examinou o horário dos comboios e verificou que o último pelo qual Griffiths podia ir para casa; naquela noite, partia de Oxford logo depois da uma hora. Calculou que Mildred tomasse o que saía poucos minutos depois para Londres. Teve desejos de ir esperá-la à estação, mas pensou que ela gostaria de ficar um dia em paz. Talvez lhe rabiscasse duas linhas, à noite, para lhe dizer que voltara, caso contrário, iria ao seu alojamento na manhã seguinte. Estava agora acobardado. Sentia um ódio amargo por Griffiths, mas, quanto a Mildred, não obstante o que se passara, o que experimentava era apenas um desejo intolerável. Estava contente agora por Hayward não estar em Londres no sábado à tarde, quando, perturbado, saíra em busca de consolo humano. Não deixaria de lhe contar tudo e Hayward certamente pasmaria ante a sua fraqueza. Desprezá-lo-ia e talvez ficasse chocado ou enojado pelo facto de Philip pensar na possibilidade de fazer de Mildred sua amante, depois de ela se ter abandonado a outro homem. Que lhe importava que fosse escandaloso e repugnante? Estava disposto a todas as transigências, preparado para degradações ainda mais humilhantes, uma vez que pudesse satisfazer o seu desejo.

 

Lá pelo anoitecer, os seus passos conduziram-no, independentemente da vontade, para a casa onde Mildred morava. Ergueu os olhos para a janela. Estava às escuras. Não se aventurou a perguntar se ela voltara. Confiava na promessa dela. Mas, de manhã, não veio a carta esperada e quando, perto do meio-dia, bateu à porta, a criada disse-lhe que Mildred ainda não regressara. Não compreendia... Sabia que Griffiths devia ter ido para casa da família no dia anterior, porque tinha de ser padrinho num casamento e Mildred estava sem dinheiro. Dava voltas à cabeça a pensar nas hipóteses do que acontecera. Tornou a sair à tarde e deixou um bilhete, a pedir a Mildred que fosse jantar com ele naquela noite. Tão calmamente, como se nada tivesse acontecido naquela última quinzena. Disse o lugar e a hora a que deviam encontrar-se. E, apesar de tudo, manteve o compromisso. Esperou uma hora e ela não veio. Na manhã de quarta-feira, teve vergonha de ir a casa dela e mandou um mensageiro com uma carta e instruções para trazer a resposta. Passada uma hora, o rapaz voltou com a carta de Philip fechada e com o recado de que a senhora ainda não voltara. Philip estava desesperado. Aquilo era o cúmulo! Repetiu intimamente, muitas e muitas vezes, que detestava Mildred e, atribuindo a Griffiths a culpa deste último desapontamento, odiou-o tanto que chegou a conhecer as delícias do homicídio. Saiu a caminhar ao acaso, pensando na alegria que :, teria ao atirar-se a ele numa noite escura, cravar-lhe uma faca na garganta, bem na carótida, e deixá-lo morrer na rua como um cão. Philip estava com os sentidos perturbados pelo sofrimento e pela raiva. Não gostava de *whisky*, mas bebia para se entorpecer. Foi para a cama embriagado, na noite de terça e na de quarta-feira.

 

Na manhã de quinta, ergueu-se muito tarde e arrastou-se, lívido e de olhos remelosos, para a sala de visitas, a ver se havia ali alguma carta. Um curioso sentimento trespassou-lhe o coração quando reconheceu a letra de Griffiths.

 

*_Meu velho:

*_nem sei como te escrever e, no entanto, sinto que tenho de fazê-lo. Espero que não estejas muito zangado comigo. Sei que não devia ter levado a Milly, mas foi uma coisa que não pude evitar. Ela fez-me perder a cabeça e teria feito tudo para conquistá-la. Quando me disse que nos oferecias dinheiro para a viagem, não pude resistir. E, agora, tudo terminou e estou muitíssimo envergonhado de mim mesmo e arrependido de ter procedido como um idiota. Quisera que me escrevesses, a dizer que não estás zangado comigo e desejo que permitas que eu te visite. Fiquei muito sentido por dizeres à Milly que não me querias ver. Sê camarada. Escreve-me duas linhas, a dizer que me perdoas. Ficarei com a consciência mais leve. Pensei que não te importasses, porque ofereceste o dinheiro. Mas sei que não devia aceitar. Vim para casa na segunda-feira e Milly quis ficar um ou dois dias em Oxford, sozinha. Voltará para Londres na quarta-feira e, assim, quando receberes esta, já terás falado com ela e espero que tudo se arranje. Escreve a dizer que estou perdoado. Por favor, escreve de seguida. Sempre teu

*_Harry*.

 

Philip rasgou a carta, furioso. Não tencionava responder. Desprezava Griffiths por causa daquelas desculpas. Exasperava-se com os seus pruridos de consciência. Cada qual podia agir como entendesse, mas era desprezível que viesse depois com arrependimentos. Achava a carta covarde e hipócrita. Aquele sentimentalismo causava-lhe repugnância.

 

"Seria muito fácil, se se pudesse fazer uma grosseria - murmurou para consigo - e depois dizer que estava arrependido e continuar como se nada tivesse acontecido".

 

Esperava de todo o coração ter um dia a oportunidade de vingar-se de Griffiths.

 

Fosse como fosse, sabia que Mildred estava na cidade. Vestiu-se apressado, não teve paciência para se barbear, bebeu uma chávena de chá, tomou um trem e dirigiu-se para os aposentos dela. Teve a impressão de que o carro não corria: arrastava-se. Sentia uma dolorosa ansiedade por vê-la e, inconscientemente, dirigiu uma oração ao Deus, em quem não acreditava, para que Ele a fizesse recebê-lo com bondade. Só desejava esquecer. Com o coração a bater, tocou a campainha. Esqueceu todo o seu sofrimento, no desejo apaixonado de envolvê-la mais uma vez nos seus braços.

 

- A sr.a Miller está em casa? - perguntou alegremente.

 

- Foi-se embora - respondeu a criada.

 

Philip olhou-a com o ar inexpressivo.

 

- Veio há mais ou menos uma hora e levou as suas coisas.

 

Por um instante, Philip não atinou com o que dizer

 

- Entregou-lhe a minha carta? Ela disse para onde ia?

 

Percebeu a seguir que mais uma vez Mildred o enganara. Não pretendia voltar para junto dele. Fez um esforço para ocultar o seu vexame.

 

- Muito bem. Ela mo comunicará. Deve ter mandado carta com o novo endereço.

 

Voltou para os seus aposentos, desesperado. Devia ter previsto que ela se portaria daquela maneira. Nunca lhe ligara a menor importância, desde o princípio o considerara tolo. Não tinha piedade, nem bondade, nem caridade. A única coisa a fazer era aceitar o inevitável. A dor que sofria era horrível, preferia morrer a suportá-la. E veio-lhe à ideia que seria melhor acabar com tudo de uma vez. Podia atirar-se ao rio ou deitar a cabeça num carril do caminho de ferro. Mal, porém, formulara esse pensamento em palavras, já se rebelava contra ele. A razão dizia-lhe que, dentro de algum tempo, esqueceria a sua infelicidade. Se empregasse todas as suas forças poderia esquecê-la e seria grotesco matar-se por causa de uma ordinária qualquer. Tinha apenas uma vida e era loucura atirá-la fora. *_Sentia* que nunca venceria aquela paixão, mas *sabia* que, no fim de contas, era apenas uma questão de tempo.

 

Não quis ficar em Londres. Lá tudo lhe lembrava a sua infelicidade. Telegrafou ao tio, avisando-o de que ia a Blackstable e, arrumando as malas à pressa, tomou o primeiro comboio. Queria fugir daqueles quartos sórdidos onde suportara tanto sofrimento. Queria respirar ar puro. Estava enojado de si próprio. Sentia-se um pouco doido.

 

Desde que Philip entrara na idade adulta, tinham-lhe dado o melhor dos quartos vagos do vicariato. Era um compartimento de esquina e em frente da janela erguia-se uma velha árvore que escondia a paisagem; mas, pela outra janela, avistavam-se vastas campinas, além do jardim e do terreno do vicariato. Philip :, lembrou-se do papel que forrava as paredes desde os tempos da sua infância. Naquelas paredes, viam-se aguarelas esmaecidas, da primeira fase do período Vitoriano, feitas por um amigo da mocidade do vigário. Tinham um encanto fanado. O toucador estava cercado por adornos de musselina engomada. Havia um velho armário normando onde se guardavam as roupas. Philip soltou um suspiro de prazer. Nunca compreendera que todas aquelas coisas, no fim de contas, tinham alguma significação para ele. No vicariato, a vida continuava como sempre. Nenhuma peça da mobília fora mudada de um lugar para outro. O vigário comia as mesmas coisas, dizia as mesmas coisas, saía para o mesmo passeio todos os dias. Engordara um pouco mais, estava um pouco mais silencioso e um pouco mais mesquinho. Acostumara-se a viver sem a mulher e pouquíssima falta sentia dela. Ainda brigava com Josiah Graves. Philip foi visitar o tesoureiro da igreja. Estava um pouco mais magro, um pouco mais branco e um pouco mais austero. Mostrava-se ainda autocrático e cada vez mais reprovava as velas do altar. As lojas de Blackstable tinham ainda aquele aspecto antiquado mas simpático, e Philip parou na frente da casa onde se vendiam artigos para marujo, botas, encerados e cordame. Lembrou-se de que, quando criança, sentira ali a atracção do mar, e a magia da aventura e do desconhecido.

 

Não podia evitar que o seu coração começasse a pulsar desordenado à chegada do carteiro, pois a sua hospedeira de Londres podia mandar-lhe alguma carta de Mildred. Sabia, porém, que não viria carta alguma. Agora podia reflectir com mais calma e compreendia que, procurando forçar Mildred a amá-lo, tentara o impossível. Não sabia que eflúvio passava do homem para a mulher, da mulher para o homem, e tornava um deles escravo do outro. Era cómodo chamar-lhe instinto sexual, mas, se não passasse disso, ele não compreendia por que causava tão veemente atracção por uma pessoa, de preferência às outras. Era irresistível: o espírito não podia lutar contra ele; ao lado dessa força, de nada valiam a amizade, a gratidão e o interesse. Porque não atraíra sexualmente Mildred, nada do que fizera tivera qualquer efeito sobre ela. Essa ideia revoltava-o. Transformava a natureza humana em bestial e sentiu subitamente que o coração dos homens estava cheio de recantos sombrios. Julgara Mildred assexuada, porque se lhe mostrara indiferente. A sua aparência anémica, os lábios finos, o corpo de ancas estreitas e peito chato, o langor dos gestos, levara-o a tal suposição. No entanto, era capaz de súbitas paixões, e para satisfazê-las expunha-se voluntariamente a todos os riscos. Não compreendera a sua aventura com Emil Miller; parecera-lhe uma coisa tão contrária ao seu feitio... Mildred não conseguira explicar-lha. Agora, :, porém, que a vira com Griffiths, Philip sabia que se passara a mesma coisa da outra vez: perdera a cabeça, levada por um desejo impossível de dominar. Procurava descobrir que qualidades possuíam aqueles dois homens, para atraí-la de modo tão irresistível. Tinham ambos uma gaiatice vulgar, que lhe excitava o senso de humor simplório e certa grosseria natural. O que a arrastara, porém, fora talvez a sexualidade exuberante que era a característica mais acentuada de ambos. Mildred tinha uma noção de refinamento e distinção que se arrepiava ante os factos da vida, e considerava indecentes as funções do corpo, empregando toda a sorte de eufemismos para designar objectos comuns. Preferia as palavras rebuscadas às simples, por achá-las mais decorosas. A brutalidade daqueles homens era como um azorrague nas suas espáduas brancas e magras, fazendo-a estremecer sob uma dor voluptuosa.

 

Em todo o caso, uma coisa resolvera Philip: não voltaria à casa onde tanto sofrera. Escreveu à dona do alojamento, a avisá-la. Queria viver no meio das suas coisas. Decidiu alugar quartos não mobilados: seria agradável e mais barato. O aspecto económico era de premente importância, pois, no último ano e meio, gastara quase setecentas libras. Impunha-se a economia mais rígida. _às vezes, encarava o futuro com pânico. Fora um tolo, ao gastar tanto dinheiro com Mildred. Contudo, sabia que, se ela voltasse, se portaria da mesma maneira. Era-lhe divertido pensar que os amigos o consideravam um espírito forte, um ser reflectido e calmo, simplesmente porque o seu rosto não lhes revelava os sentimentos com muita expressão e porque era lento nos gestos. Achavam-no razoável e elogiavam-lhe o bom-senso. A sua expressão plácida, porém, não era mais do que uma máscara, usada inconscientemente, tal como a coloração protectora de certas borboletas, e frequentemente se admirava da fraqueza da sua vontade. Parecia-lhe que a menor comoção o movia como o vento move as folhas, e, quando a paixão o arrastava, sentia-se impotente. Não possuía autodomínio. Mas dava a impressão de possuí-lo, porque era indiferente a muitas coisas que abalavam as outras criaturas.

 

Reflectiu com ironia acerca do sistema filosófico que criara para si próprio, porque não lhe valera de muito na conjuntura por que passara. Ficou a considerar sobre se o pensamento na verdade ajudava o homem em qualquer circunstância crítica da vida. Mais lhe parecia ser o joguete de uma força estranha, mas ao mesmo tempo ligada a ele, que o arrastava como o grande sopro do Inferno impele eternamente Paolo e Francesca. Antes de agir, reflectia, mas, no momento decisivo, obedecia apenas ao instinto, à sensação... não sabia bem a quê. Portava-se como se fosse uma máquina movida tanto pela força do ambiente como pela da personalidade; a sua razão observava os factos, incapaz de intervir; era como esses deuses de Epicuro que, do alto do

Empíreo, acompanham as acções dos homens sem poderem alterar a mais pequena partícula dos acontecimentos.

 

Alguns dias antes do início do semestre, Philip foi a Londres procurar um alojamento. Percorreu as ruas em torno de Westminster Bridge Road, mas a falta de asseio desagradou-lhe. Afinal, escolheu uma habitação em Kensington, que lhe agradou pelo seu aspecto antigo e tranquilo. Esse bairro lembrava um pouco a Londres de Thackeray, à beira do Tamisa, quando pela Kensington Road passava a enorme carruagem dos Newcomes, levando a família para o West London e os plátanos estavam cheios de folhas. As casas da rua escolhida por Philip tinham dois andares e na maioria das janelas viam-se "escritos" a anunciar quartos para alugar. Philip bateu à porta de uma dessas casas, onde o cartaz avisava haver quartos não mobilados, e foi uma mulher silenciosa e severa, que lhe mostrou quatro compartimentos pequenos, um dos quais tinha lavatório e fogão. O aluguer era de nove xelins por semana. Philip não queria tantos quartos, mas o preço era baixo e desejava instalar-se sem demora. Perguntou à dona da casa se podia encarregar-se da limpeza e de preparar-lhe a refeição da manhã, mas ela respondeu que tinha muito que fazer. Isso, aliás, não lhe desagradou, pois a mulher dera a entender que nada queria com ele a não ser receber o aluguer. Disse-lhe que, se perguntasse na mercearia da esquina, que era também agência do correio, encontraria uma mulher disposta a fazer-lhe aquele serviço.

 

Philip tinha uma pequena mobília que conseguira reunir aos poucos, uma poltrona comprada em Paris, mesa, alguns quadros e o pequeno tapete persa que lhe fora dado por Cronshaw. O tio oferecera-lhe uma cama articulável que de nada lhe servia agora, uma vez que já não alugava a casa em Agosto. Com dez libras, Philip comprou tudo o mais que era essencial. Despendeu dez xelins para colocar um papel cor de trigo na sala que reservou para as visitas. Pendurou na parede um esboço do *_Quai des Grands Augustins* que Lawson lhe dera, umas reproduções da *_Odalisque* de Ingres e da *_Olympia* de Manet - coisas que em Paris tinham sido objecto da sua contemplação, sempre que se barbeava. Para se lembrar de que ele próprio também estivera empenhado na prática da arte, pôs à vista o desenho a carvão que fizera do jovem espanhol Miguel Ajuria: era o melhor de todos os seus trabalhos. Nu, em pé, com os punhos cerrados, os pés solidamente apoiados no solo, a figura tinha uma força peculiar e no seu :, rosto havia aquele ar resoluto que causava tanta impressão. E, embora Philip, após tanto tempo, visse muito bem os defeitos do seu trabalho, as lembranças que lhe despertava faziam-no tolerável. Que seria feito de Miguel? Não há nada mais terrível do que a procura, sem talento, de um ideal artístico. Alquebrado pelo frio, pela fome e pela doença - teria acabado num hospital, ou, vencido pelo desespero, procurado a morte nas águas lamacentas do Sena? Com a sua volubilidade de meridional, talvez tivesse abandonado a luta voluntariamente, e agora, empregado num escritório de Madrid, voltasse a sua fervente retórica para a política e para as corridas de touros.

 

Philip pediu a Lawson e Hayward para verem os seus novos aposentos. E ambos vieram, um com uma garrafa de *whisky* e outro com uma lata de *_paté de foi gras*. Ficou encantado quando lhe elogiaram o gosto. Agradar-lhe-ia convidar também o corretor escocês, mas possuía apenas três cadeiras e portanto não podia receber mais convidados. Lawson sabia que, por seu intermédio, Philip se fizera muito amigo de Norah Nesbit e contou-lhe que poucos dias antes a encontrara na rua...

 

- Ela perguntou-me como ias.

 

Philip corou ao ouvir aquele nome, (não pudera ainda libertar-se do hábito embaraçoso de ficar vermelho quando estava perturbado) e Lawson olhou para ele com ar de troça. Passava agora a maior parte do ano em Londres, e fizera tais concessões ao ambiente que já usava o cabelo curto e trazia um elegante fato de sarja e um chapéu de coco.

 

- Pelo que vejo, tudo entre vocês terminou - disse ele.

 

- Há meses que não a vejo.

 

- Estava bem bonita. Trazia um chapéu elegante, coberto de penas brancas de avestruz. Deve estar bastante bem.

 

Philip mudou de assunto, mas continuou a pensar em Norah e, depois de um intervalo, quando os três falaram de outra coisa, perguntou de repente:

 

- Pareceu-te que Norah estava zangada comigo?

 

- Nem nada. Falou bem de ti.

 

- Estou tentado a procurá-la.

 

- Ela não te morderá...

 

Philip pensara muitas vezes em Norah. Quando Mildred o abandonara, o seu primeiro pensamento fora para ela e dizia a si próprio, com amargor, que Norah nunca o teria tratado daquela maneira. O primeiro impulso foi procurá-la. Conhecia-lhe o bom coração. Mas teve vergonha. Norah fora sempre boa para ele e ele tratara-a abominavelmente.

 

- Se ao menos tivesse tido o bom-senso de ficar com ela! - disse para consigo, mais tarde, quando Lawson e Hayward já se tinham ido e ele ficara a fumar o último cachimbo antes de se deitar.

 

Lembrou-se das horas agradáveis passadas na confortável salinha de Vincent Square, das visitas de ambos às galerias de pintura, das idas ao teatro e dos encantadores serões passados em conversa íntima. Recordou-se da solicitude com que Norah se interessava pelo seu bem-estar e por tudo quanto lhe dizia respeito. Ela amara-o com um amor terno e duradouro. Havia nesse amor alguma coisa mais do que simples sensualidade, era um sentimento quase maternal. Sempre vira nele uma coisa preciosa, pela qual devia agradecer aos deuses com toda a alma. Resolveu, confiar-se à sua caridade. Devia ter sofrido horrivelmente, mas Philip sentia que Norah tinha suficiente grandeza de coração para lhe perdoar; era incapaz de querer mal a alguém. Devia escrever-lhe? Não. Melhor seria aparecer-lhe de repente e atirar-se a seus pés - sabia que, quando chegasse a hora, a sua timidez o impediria de fazer esse gesto dramático, mas era assim que gostava de imaginar a cena. Dir-lhe-ia que, se ela de novo o quisesse, poderia agora confiar nele para sempre. Estava curado da doença odiosa de que sofrera. Sabia quanto Norah valia e não teria mais ilusões. A imaginação voava-lhe para o futuro. Via-se a remar com ela no rio, aos domingos. Levá-la-ia a Greenwich, pois nunca esquecera a deliciosa excursão em companhia de Hayward, e a beleza do porto de Londres permanecia como um tesouro permanente na sua lembrança. Nas quentes tardes de Verão, ficariam sentados no parque, a conversar; ria consigo, ao lembrar-se da sua alegre conversa que jorrava como um regato murmurando num leito de seixos, divertida, petulante, cheia de personalidade. A agonia sofrida havia de apagar-se-lhe do espírito como um sonho mau.

 

No dia seguinte, perto da hora do chá, um momento em que com toda a certeza, Norah estaria em casa, foi bater-lhe à porta. Mas, depois de fazê-lo, a coragem faltou-lhe de súbito. Poderia ela perdoar-lhe? Era abominável impor a sua presença daquela forma... A porta foi aberta por uma criada desconhecida. Philip perguntou se Mrs. Nesbit estava em casa.

 

- Queira perguntar-lhe se pode receber Mr. Carey - disse -Esperarei aqui.

 

A criada subiu as escadas a correr e logo em seguida voltou.

 

- Quer fazer o favor de subir? Segundo andar, em frente.

 

- Eu sei - disse Philip, com um leve sorriso.

 

Subiu com o coração alvoroçado. Bateu à porta.

 

- Entra - disse a voz jovial que tão bem conhecia.

 

Parecia dizer: "_Entra numa existência de paz e felicidade" Quando Philip entrou, Norah avançou para o cumprimentar. Apertou-lhe a mão como se se tivessem visto no dia anterior. Um homem ergueu-se.

 

- Mr. Carey... Mr. Kingsford.

 

Muito desapontado por não a encontrar sozinha, Philip sentou-se e examinou o desconhecido. Nunca lhe ouvira mencionar o nome, mas pareceu-lhe que ocupava a cadeira com o ar de quem se encontra em sua casa. Era um homem de quarenta anos, cara escanhoada, cabelos louros, compridos e cuidadosamente fixados com brilhantina; tinha a tez avermelhada e os olhos pálidos e cansados que os homens louros costumam ter quando deixam de ser jovens. O nariz era grosso, a boca rasgada e os ossos da face salientes. Homem de construção robusta, tinha ombros largos e estatura superior à mediana.

 

- Estava a pensar no que seria feito de ti - disse Norah com a sua maneira desembaraçada. - Encontrei Mr. Lawson o outro dia, não te contou? E disse-lhe que já era tempo de vires fazer-me uma visita.

 

Philip não descobriu a menor sombra de embaraço na fisionomia de Norah e admirou a naturalidade com que conduzia uma entrevista em que ele próprio se sentia acanhado. Norah ofereceu-lhe chá. Ia pôr-lhe açúcar na chávena quando ele a deteve.

 

- Que estupidez a minha! - exclamou ela. - Tinha-me esquecido.

 

Philip não acreditou. Norah devia lembrar-se muito bem de que ele nunca tomava chá com açúcar. Aceitou o incidente como um sinal de que a indiferença dela era fingida.

 

A conversação que Philip interrompera continuou e em dado momento começou a aperceber-se de um leve constrangimento. Kingsford não lhe dava atenção especial. Falava bem e com fluência, não sem graça, mas com um ar ligeiramente dogmático. Era jornalista, segundo parecia, e a respeito de cada assunto que tratavam tinha sempre alguma coisa divertida a dizer. Philip ficou exasperado por se ver posto à margem da conversação. Estava resolvido a ficar até que o outro saísse. Seria Kingsford um admirador de Norah? Nos velhos tempos, haviam muitas vezes falado dos homens que desejavam fazer-lhe a corte e juntos se tinham rido deles. Philip tentou orientar a conversa para assuntos que só ele e Norah conheciam, mas o jornalista intervinha e conseguia desviar a palestra para um tema que obrigava Philip ao silêncio. Ficou levemente ressentido com Norah porque ela devia ver que o expunha ao ridículo. Mas talvez fizesse aquilo propositadamente e como castigo e este pensamento restituiu-lhe o bom humor. Por fim, o relógio bateu seis horas e Kingsford ergueu-se.

 

- Tenho de ir - disse.

 

Norah apertou-lhe a mão e acompanhou-o ao patamar. Fechou a porta atrás de si e ficou do lado de fora uns dois minutos.

 

"_Que estarão a dizer?" - pensou Philip.

 

- Quem é este Mr. Kingsford? - perguntou vivamente, quando ela voltou. :,

 

- Oh... É o director de uma das revistas de Harmsworth, que ultimamente tem ficado com a maioria dos maus trabalhos.

 

- Pensei que nunca mais se ia embora.

 

- Estou satisfeita por teres ficado. Queria conversar contigo.

 

Norah enroscou-se na grande poltrona, de um modo que só a sua pequena estatura tornava possível, e acendeu um cigarro. Philip sorriu quando a viu assumir aquela postura que sempre achara engraçada.

 

- Ficas tal qual uma gata.

 

Os seus belos olhos negros brilharam.

 

- Devia perder este hábito. É absurdo portar-me como uma criança, nesta idade. Mas sinto-me bem, sentada nas pernas.

 

- _é agradável estar sentado aqui outra vez - disse Philip, feliz. - Nem sabes quanta falta tenho sentido disto.

 

- Por que diabo não vieste antes? - perguntou Norah, jovial.

 

- Tive medo... - respondeu ele, corando.

 

Ela lançou-lhe um olhar cheio de bondade. Os lábios esboçaram um sorriso encantador.

 

- Não precisas de o ter...

 

Ele hesitou um instante. O coração bateu-lhe rápido.

 

- Lembras-te da última vez que nos encontrámos? Portei-me pessimamente contigo. Tenho até vergonha de mim próprio.

 

Norah encarou-o fixamente. Não respondeu. Ele quase perdeu a cabeça. De súbito, o objectivo da visita pareceu-lhe uma enormidade. Ela nada fazia para ajudá-lo e mal pôde balbuciar desajeitadamente:

 

- Poderás perdoar-me algum dia?

 

Então, impetuosamente, contou que Mildred o abandonara e que a sua infelicidade fora tão grande que quase pusera termo à existência. Contou-lhe tudo quanto acontecera entre ambos, o nascimento da criança, o encontro com Griffiths, a sua insensatez, a sua boa-fé e a imensa decepção. Disse-lhe as vezes que pensara na sua bondade e no seu amor, quão amargamente lamentara tê-los atirado fora. Só fora feliz quando junto dela, e sabia agora quanto ela valia. A sua voz estava rouca de comoção. Sentia às vezes tal vergonha do que dizia que, ao falar, conservava os olhos fixos no chão. Com o rosto desfigurado pela dor, sentia, no entanto, estranho alívio em dizer aquelas coisas. Afinal, terminou. Atirou-se para trás, na cadeira, exausto, e esperou. Nada ocultara; pelo contrário, procurando humilhar-se, pintara-se mais desprezível do que realmente fora. Estava surpreendido de que ela não falasse, e por fim ergueu os olhos. Ela não o olhava. Tinha o rosto pálido e parecia mergulhada em reflexão.

 

- Não tens nada a dizer-me?

 

Norah teve um sobressalto e corou.

 

- Acho que passaste um mau bocado - disse. - Sinto imenso.

 

Pareceu que ia continuar, mas calou-se, e ele ficou de novo à espera. Por fim, Norah deu a impressão de fazer um esforço para falar.

 

- Estou noiva de Mr. Kingsford.

 

- Por que não me disseste logo? - exclamou ele. - Para que deixaste que me humilhasse diante de ti?

 

- Lamento. Não podia interromper-te... Conheci-o logo que tu... - Hesitou, como à procura de expressões que o não ferissem -...que tu me anunciaste a volta da tua amiga. Durante algum tempo, senti-me desgraçada e ele foi extremamente bondoso para comigo. Sabia que alguém me fizera sofrer, mas naturalmente ignorava que esse alguém eras tu. Que teria sido de mim sem ele? De um momento para o outro, senti-me incapaz de trabalhar... Estava tão fatigada e doente! Falei-lhe acerca de meu marido. Ofereceu-se para me dar o dinheiro necessário para o meu divórcio, se depois consentisse em casar com ele. A situação de Kingsford é muito boa e eu não precisaria de escrever mais nada, a não ser para meu prazer. Nem podes saber o quanto foi gentil para comigo e as atenções de que me cercou. Isso comoveu-me profundamente. E agora, gosto muito, muito dele.

 

- Então já conseguiste o divórcio? - perguntou Philip.

 

- Obtive uma sentença provisória, que se tornará definitiva em Julho e casaremos em seguida.

 

Por algum tempo, Philip não disse palavra.

 

- O que lamento é ter-me exposto ao ridículo - murmurou por fim.

 

Pensava na sua longa e humilhante confissão. Ela contemplou-o com curiosidade.

 

- Nunca me amaste de verdade - disse ela.

 

- Amar não é uma coisa muito agradável.

 

Philip tinha, porém, capacidade para se refazer rapidamente e, levantando-se, estendeu-lhe a mão:

 

- Estimo que sejas muito feliz. No fim de contas, é a melhor coisa que podia acontecer-te.

 

- Virás visitar-me outra vez, sim? - perguntou.

 

- Não - respondeu ele, sacudindo a cabeça. - A tua felicidade causar-me-ia demasiada inveja.

 

Afastou-se lentamente da casa. Norah tinha razão ao afirmar que ele nunca a amara. Estava desapontado, irritado, mesmo, mas levava a vaidade mais ferida do que o coração. E sabia-o. Agora, tinha a consciência de que os deuses lhe tinham pregado uma partida e riu-se de si sem nenhuma alegria. Não é muito agradável possuir-se o dom de se divertir à custa dos seus próprios absurdos.

 

Nos três meses que se seguiram, Philip estudou matérias novas para ele. A multidão de alunos que se matriculara havia dois anos na Escola de Medicina diminuíra bastante: alguns, intimidados pelas dificuldades dos exames, abandonaram os estudos; outros, como a vida de Londres fosse muito cara para a bolsa paterna, regressaram à província e outros tinham enveredado por outras profissões. Um camarada de Philip inventara um plano engenhoso para ganhar dinheiro: comprava coisas em leilões para empenhá-las, mas, depois, achara mais vantajoso empenhar objectos comprados a crédito. Um belo dia, os colegas leram-lhe o nome no noticiário policial, e isso causou alguma sensação na escola. Houve um mandato de prisão, garantias por parte do pai vexado, e o jovem fora mandado carregar "o fardo do homem branco", além-mar. A imaginação de outro, que nunca estivera numa cidade, deixou-se empolgar pela sedução dos bares e das variedades. Passava o tempo no meio de gente entendida em palpites e dos treinadores, e era agora auxiliar de um homem de apostas. Philip vira-o uma vez, num bar, perto de Piccadilly Circus, com um sobretudo cintado e um chapéu de feltro castanho de abas largas e lisas. Um terceiro, com pendor para o canto e para a mímica, conseguira êxito nas reuniões artísticas da Escola de Medicina, a imitar comediantes famosos; abandonara o hospital para ingressar no coro de uma companhia de operetas. Ainda outro - e esse interessava Philip, porque as suas maneiras bruscas e o seu abuso das interjeições não sugeriam que fosse capaz de qualquer sentimento profundo - sentia-se asfixiado nas casas de Londres. Ficava agoniado nos espaços e a sua alma, cuja existência ignorava, debatia-se espantada, como um pássaro a ofegar na mão que o prende. Sentia a saudade dos horizontes largos e dos espaços livres e desolados das regiões onde passara a infância. Um dia, foi-se embora, entre duas aulas, sem dizer nada a ninguém. Soube-se depois que abandonara a medicina e trabalhava numa quinta.

 

Philip assistia agora a aulas de medicina e cirurgia. _às vezes, de manhã, aprendia a fazer ligaduras; contente por ganhar algum dinheiro, dava lições de auscultação, ao mesmo tempo que se exercitava no emprego do estetoscópio e adquiria noções de farmácia. Ia fazer exame de Matéria Médica em Julho e achava divertido lidar com várias drogas, unguentos, e fazer misturas e pílulas. Lançava-se avidamente sobre qualquer coisa donde pudesse extrair uma sugestão de interesse humano.

 

Viu Griffiths uma vez, de longe, mas, para não ter de fingir que não o conhecia, evitou-o. Philip alheara-se um pouco dos amigos de Harry, alguns dos quais eram também seus, ao verificar que sabiam da sua rotura com aquele, pois desconfiava que :, não ignorassem a razão. Um deles, sujeito muito alto, de cabeça pequena e ar lânguido - um rapaz chamado Ramsden, que era dos mais fiéis admiradores de Griffiths e lhe copiava as gravatas, os sapatos, a maneira de falar e os gestos - contara a Philip que Griffiths estava muito sentido porque ele não respondera à sua carta. Queria fazer as pazes.

 

- Pediu-te que me desses esse recado? - indagou Philip.

 

- Oh, não, digo isto inteiramente por minha conta. Harry está muito arrependido do que fez e diz que tu sempre te portaste decentemente com ele. Sei que ficará satisfeito por se reconciliar contigo. Não vem ao hospital porque tem receio de que, se o vires, não lhe queiras falar.

 

- _é o que faria.

 

- Não imaginas como isso o faz sofrer.

 

- Pois eu posso suportar muito bem esta situação que tanto o incomoda - respondeu Philip.

 

- Griffiths está disposto a fazer tudo para repará-la.

 

- Pura infantilidade e histeria! Que lhe interessa isso? Sou uma pessoa bastante insignificante e ele pode passar muito bem sem a minha companhia. Ele já não me interessa.

 

Ramsden achou Philip áspero e frio. Calou-se por instantes e olhou em torno, com ar perplexo.

 

- Harry está arrependidíssimo por se ter metido com aquela mulher.

 

- Está? - perguntou Philip.

 

Respondeu com uma indiferença que o deixava satisfeito. Ninguém poderia adivinhar com que violência o seu coração batia. Esperou, impaciente, que Ramsden continuasse.

 

- Suponho que já estejas curado, não é assim?

 

- Eu? - retorquiu Philip. - Completamente.

 

Pouco a pouco descobriu a história das relações de Mildred com Griffiths. Escutou com um sorriso nos lábios, fingindo uma equanimidade que iludiu o obtuso rapaz com quem falava. O fim de semana que Mildred passara com Griffiths em Oxford inflamara mais do que extinguira a súbita paixão da rapariga. E, quando Griffiths fora para casa da família, ela, revelando um sentimento inesperado, resolveu ficar sozinha em Oxford, onde fora tão feliz. Achava ela que nada podia induzi-la a voltar para Philip: tinha-lhe repugnância. Griffiths foi o primeiro a ficar admirado ante a paixão que despertara, pois achara aqueles dois dias em companhia de Mildred um tanto aborrecidos. Não alimentava o menor desejo de transformar um episódio divertido numa ligação maçadora. Ela levou-o a prometer que lhe escreveria e, como Harry era honesto e decente, dotado de polidez natural e do desejo de ser agradável para com todos, escreveu-lhe, ao chegar a casa, uma longa e encantadora carta. Mildred respondeu, desajeitadamente, com torrentes de paixão, pois não tinha o dom da expressão e escrevia mal e de modo vulgar. A carta causara-lhe tédio, e quando no dia seguinte, recebeu outra e logo a seguir uma terceira, começou a pensar que aquele amor deixara de ser lisonjeiro para se tornar alarmante. Não respondeu. Ela bombardeou-o com telegramas, a perguntar-lhe se estava doente e se recebera as suas cartas. Dizia que aquele silêncio a deixava terrivelmente aflita. Foi forçado a escrever, mas procurou que a sua resposta fosse o mais aérea possível, sem ser ofensiva. Suplicou-lhe que não telegrafasse, uma vez que lhe era difícil explicar as mensagens a sua mãe, uma senhora de costumes antigos, para quem um telegrama era ainda um acontecimento temível. Mildred respondeu na volta do correio que precisava de vê-lo e anunciou-lhe a intenção de empenhar o que possuía (tinha o estojo que Philip lhe dera como presente de casamento e podia arranjar com ele oito libras) a fim de ir até à cidade a quatro milhas da qual ficava a aldeia onde o pai de Griffiths exercia clínica. Griffiths assustou-se e dessa vez usou o telégrafo para dissuadi-la. Prometeu avisá-la da sua chegada a Londres e, quando o fez, verificou que ela já perguntara por ele no hospital onde ia trabalhar. Não gostou disso e, quando a encontrou, disse-lhe que não devia vir ali sob pretexto algum. E agora, depois de uma ausência de três semanas, notava que, decididamente, a aborrecia. Já nem sabia por que se incomodara por causa dela e resolveu romper tão depressa quanto lhe fosse possível. Era uma pessoa que detestava as disputas e não gostava de causar sofrimento a ninguém. Ao mesmo tempo, porém, tinha outras coisas que fazer e estava decidido a não deixar que Mildred o importunasse. Ao encontrá-la, mostrou-se agradável, alegre, divertido e afeiçoado. Inventou desculpas convincentes para o intervalo de ausência, mas fez tudo quanto pôde para evitá-la. Quando ela o obrigava a marcar encontros, esquivava-se, mandando-lhe telegramas à última hora. Dera ordens à senhoria (os primeiros três meses de emprego ia passá-los em quartos alugados) para, quando Mildred o procurasse, dizer que não estava em casa. Ela vigiava-o na rua e Griffiths, sabendo que Mildred esperara a sua saída do hospital durante horas, dizia-lhe umas palavras amistosas e encantadoras, e afastava-se invocando quaisquer obrigações profissionais. Adquiriu grande habilidade em esgueirar-se do hospital sem ser visto. Uma vez, ao voltar para os seus aposentos à meia-noite, viu uma mulher parada junto à grade do subsolo e, suspeitando de quem se tratava, preferiu pedir pousada a Ramsden. No dia seguinte, a senhoria contou-lhe que Mildred ficara sentada no portal, a chorar, horas e horas, vendo-se ela obrigada a dizer-lhe por fim que, se não se fosse embora, chamaria a polícia.

 

- Digo-te, meu rapaz - concluiu Ramsden - tens uma sorte danada por estares livre disso tudo. Harry diz que, se tivesse a mais leve suspeita de que ela seria assim tão incomodativa, preferia ir para o inferno a meter-se com ela.

 

Philip imaginou Mildred sentada naquele portal as longas horas da noite. Via a face melancólica que erguera para a senhoria, quando esta a mandara embora.

 

- Que fará ela agora?

 

- Ora... conseguiu um emprego nalguma parte, graças a Deus. Assim está todo o dia ocupada.

 

A última coisa que Philip ouviu, antes do fim do semestre de Verão, foi que a urbanidade de Griffiths dera por fim lugar ao exaspero, ante aquela constante perseguição. Dissera a Mildred que estava farto daquela maçada e que o melhor que ela tinha a fazer era sumir-se e não tornar a importuná-lo.

 

- Era a única coisa que ele podia fazer - disse Ramsden. - Já era de mais.

 

- Então, está tudo acabado? - indagou Philip.

 

- Ora... Há dez dias que nem a vê. Como sabes, Harry é maravilhoso nisso de se descartar das pessoas. Foi o osso mais duro que teve de roer, mas roeu-o por fim.

 

Philip não ouviu mais falar dela. Ela perdeu-se na vasta massa anónima da população de Londres.

 

No começo do período de Inverno, Philip ficou adido ao serviço de doentes externos. Eram três os ajudantes de médico que se encarregavam dos doentes externos, dois dias por semana cada um e Philip inscreveu-se no quadro do dr. Tyrell. Este era bastante popular entre os estudantes, que competiam uns com os outros para trabalhar com ele. O dr. Tyrell era alto e magro, de trinta e cinco anos, cabeça muito pequena, cabelo ruivo aparado curto e olhos azuis. O seu rosto era de um escarlate vivo. Falava bem, numa voz agradável, gostava de uma boa chalaça, e tomava o mundo pelo lado bom. Estava habituado ao êxito, tinha uma vasta clientela e a perspectiva de ser condecorado em breve. Graças ao convívio com os estudantes e os pobres, adquirira um ar protector, e graças à lida constante com os doentes, a condescendência jovial do homem de saúde, qualidades essas que constituem o "ar profissional". Os seus pacientes sentiam-se diante dele como crianças em frente de um professor folgazão. Na sua presença, cessavam de considerar a doença como um grande mal, achando-a antes uma espécie de travessura absurda, que divertia em vez de irritar.

 

O estudante devia trabalhar todos os dias, atender casos e colher as informações que pudesse. Mas, nos dias em que estava como auxiliar, os seus deveres eram um pouco mais definidos.

 

Naquele tempo, o serviço externo do Hospital de S. Lucas consistia em três salas contíguas, que comunicavam entre si, e uma comprida e sombria sala de espera, com colunas maciças de alvenaria e compridos bancos. Ali esperavam os pacientes, depois de ter recebido os "cartões" ao meio-dia. Sentados na obscuridade, com frascos e boiões de pomada na mão, aguardavam em longas fileiras. Eram criaturas de ambos os sexos e de todas as idades, algumas bem vestidas, outras esfarrapadas e sujas, dando, em conjunto, uma impressão estranha e horrível. Lembravam os sombrios desenhos de Daumier. Todas as salas estavam pintadas da mesma maneira: cor de salmão com uma barra alta castanha. Sentia-se ali um forte odor de desinfectantes que se misturava à medida que a tarde avançava, com um cheiro acre de gente. A primeira sala era a maior e tinha no meio uma mesa e uma cadeira para o médico. De cada lado, havia uma mesa mais pequena, um pouco mais baixa: a uma destas estava sentado o interno e à outra, o aluno encarregado do "livro" do dia. Era um grosso volume no qual se registavam nome, idade, sexo e profissão do paciente, bem como o diagnóstico da doença.

_à uma e meia, o médico interno chegava, tocava a campainha e dizia ao porteiro que mandasse entrar os doentes antigos. Havia sempre grande quantidade deles e era necessário atender o maior número possível antes das duas, hora a que chegava o dr. Tyrell. O interno com quem Philip começou a trabalhar era um homenzinho activo, demasiado cônscio da sua importância. Tratava os auxiliares com condescendência e era evidente que não lhe agradava a familiaridade dos estudantes mais velhos, que haviam sido seus contemporâneos e não costumavam tratá-lo com o respeito que a sua actual posição exigia. Auxiliado por um dos estudantes, examinava os doentes. Estes começavam a entrar. Primeiro, os homens. Bronquite crónica, "uma tosse teimosa", era do que principalmente sofriam. Um doente dirigia-se ao interno e outro ao estudante, entregando os respectivos "cartões", nos quais, se registavam melhoras, eram escritas as palavras *_Rep.* 14, e dirigiam-se ao dispensário, com os seus frascos ou boiões, a fim de receberem remédios para mais quinze dias. Alguns clientes antigos esperavam, a fim de serem examinados pelo próprio chefe do serviço, mas raramente o conseguiam; e só três ou quatro, cujo estado parecia exigir tal atenção, ficavam.

 

O dr. Tyrell entrava sempre com movimentos rápidos e maneiras joviais. Lembrava vagamente um palhaço a saltar para a pista de um circo com a exclamação: "Cá estamos!" A sua atitude parecia indicar: "_Que tolice é essa de estarem doentes? Vou pô-los finos!" Sentava-se, perguntava se havia doentes antigos  :, para ver, examinava-os à pressa, olhando para eles com olhos astutos, enquanto discutia os sintomas, dizia uma graça ao interno (da qual todos os auxiliares riam com gosto) que também ria gostosamente mas com ar de quem pensava ser um pouco atrevido da parte dos alunos rirem daquele modo, e tocava a campainha para o porteiro introduzir os novos doentes.

 

Estes entravam, um a um, e caminhavam até à mesa onde se achava o dr. Tyrell. Eram velhos, novos e de meia-idade, a maioria pertencente à classe operária, trabalhadores das docas, carroceiros, empregados de fábricas e cafés; mas havia alguns bem vestidos, que pertenciam a uma classe evidentemente superior: caixeiros, empregados de escritório e coisas semelhantes. O dr. Tyrell olhava para estes últimos com desconfiança. _às vezes envergavam roupas velhas para aparentar pobreza; mas o médico tinha olho esperto para desmascarar tais fraudes, e, em muitas ocasiões, recusava-se a atender pessoas que, pensava ele, podiam muito bem pagar serviços médicos. As mulheres eram as mais desajeitadas nessa simulação. Traziam um casaco e uma saia quase andrajosos, mas esqueciam-se de tirar os anéis dos dedos.

 

- Se a senhora pode comprar jóias é porque pode pagar ao médico. Este hospital é uma instituição de caridade - dizia o dr. Tyrell.

 

Devolvia-lhe o "cartão" e mandava entrar o doente seguinte.

 

- Mas tirei o "cartão"

 

- Pouco me interessa o seu "cartão"; vá-se embora. Não tem nada que vir aqui roubar o tempo dos que são pobres de verdade.

 

A doente retirava-se de mau modo, furiosa.

 

- _provavelmente, vai escrever uma carta aos jornais acerca da péssima administração dos hospitais de Londres - dizia o dr. Tyrell com um sorriso, enquanto pegava no próximo "cartão" e fixava no doente um dos seus olhares astutos.

 

A maioria dos pacientes vivia sob a impressão de que o hospital era uma instituição oficial, sustentada pelos impostos que eles pagavam, de maneira que consideravam aquela assistência como uma coisa a que tinham direito. Imaginavam que o médico que lhes dedicava o seu tempo era regiamente pago.

 

O dr. Tyrell dava a cada um dos estudantes um caso a examinar. O rapaz levava o doente para uma das salas interiores; estas eram mais pequenas e tinham cada uma um divã revestido de crina preta. Fazia ao doente uma série de perguntas, examinava-lhe os pulmões, o coração e o fígado, rabiscava anotações no "cartão" do hospital, formava uma ideia aproximada do diagnóstico e depois esperava que o dr. Tyrell viesse. Este entrava, seguido de um pequeno grupo de alunos, quando acabava os homens. O estudante lia as suas anotações. O médico fazia-lhe uma ou duas perguntas e examinava a seguir o doente. Se havia :, alguma coisa interessante a ouvir, os estudantes aplicavam os seus estetoscópios. Era frequente ver-se um homem com três rapazes a auscultar-lhe o peito e dois as costas, ao passo que outros esperavam, impacientes por observar também. O doente ficava no meio deles, um pouco embaraçado, mas não de todo descontente por se ver centro de todas as atenções. Escutava confusamente, enquanto o dr. Tyrell discorria com fluência sobre o caso. Dois ou três estudantes tornavam a auscultar, para reconhecer o sopro ou a crepitação que o médico descrevia, e finalmente mandavam o homem vestir-se.

 

Uma vez examinados todos os casos, o dr. Tyrell voltava para a sala grande e sentava-se de novo à sua escrivaninha. Perguntava ao estudante que estivesse mais perto o que receitaria ao doente que acabava de ver. O rapaz mencionava um ou dois medicamentos.

 

- Receitava isso? - dizia o dr. Tyrell. - Bem, pelo menos é original. Não nos precipitemos.

 

Isto provocava sempre riso entre os alunos. Encantado com o seu dito humorístico, o médico receitava outra droga que não a sugerida pelo estudante. Quando havia dois casos exactamente da mesma espécie e o rapaz propunha o tratamento que o médico indicara para o primeiro, o dr. Tyrell procurava com grande habilidade descobrir outro remédio. As vezes, para se divertir à custa dos farmacêuticos do hospital, que, sempre abarrotados de serviço, preferiam fornecer medicamentos já preparados, essas boas poções de hospital consagradas por anos de experiência, dava-se o trabalho de passar uma receita complicada.

 

- Vamos dar um pouco de trabalho aos farmacêuticos  - Se continuarmos a receitar apenas *mixt:alb:*, acabam por ficar burros.

 

Os estudantes riam e o doutor passeava em torno o olhar, gozando o próprio espírito. Depois, tocava a campainha, e quando o porteiro aparecia, dizia-lhe:

 

- As velhas, se faz favor.

 

Inclinava-se para trás na cadeira, a tagarelar com o interno, enquanto o porteiro mandava entrar o rebanho das doentes. Eram raparigas anémicas, com grandes franjas e lábios descorados: não podiam digerir a alimentação má e insuficiente; senhoras idosas, gordas ou magras, envelhecidas prematuramente pelos partos amiudados, sofriam de bronquite crónica; mulheres que tinham isto, aquilo e aqueloutro. O dr. Tyrell e o seu interno atendiam-nas rapidamente. O tempo corria e o ar, na pequena sala, ficava cada vez mais viciado. O médico consultava o relógio.

 

- Muitas doentes novas, hoje? - perguntava.

 

- Bastantes, parece-me - dizia o interno.

 

- _é melhor mandá-las entrar. Pode continuar com as antigas.

 

Entravam. Nos homens, as moléstias mais comuns provinham do abuso do álcool, mas nas mulheres eram devidas à alimentação deficiente. Perto das seis horas, estava tudo terminado. Philip, exausto por ter estado de pé todo o tempo, pelo ar empestado e pelo esforço de atenção, dirigia-se com os colegas até à Escola de Medicina, a fim de tomar chá.

 

Achava no trabalho um interesse absorvente. Ali estava a Humanidade em bruto - material a ser trabalhado pelo artista. E sentia uma curiosa impressão, ao pensar que estava na mesma posição do artista e que os doentes eram como argila nas suas mãos. Lembrou-se, com um divertido encolher de ombros, da sua vida em Paris, absorto em cores, tonalidades, valores e sabe Deus que mais, com o fito de produzir coisas belas: aquele contacto directo com homens e mulheres dava-lhe uma vibrante sensação de poder que ainda não experimentara. Achava um interesse infindável em examinar-lhes os rostos e ouvi-los falar. Cada um tinha a sua característica. Uns arrastavam desajeitadamente os pés, outros andavam em passo curto e vivo e ainda outros em passadas lentas e pesadas, tímidos estes, ousados aqueles. Pelo seu aspecto, muitas vezes se lhes podia adivinhar a profissão. Aprendia-se a maneira de fazer determinadas perguntas a fim de que fossem compreendidas. Descobria-se sobre que assuntos quase todos mentiam e quais os quesitos com que se lhes podia arrancar a verdade. Percebia-se o modo diferente como as pessoas encaravam as mesmas coisas. O diagnóstico de uma doença perigosa seria aceito por este com um sorriso e uma graça, e por aquele com mudo desespero. Philip verificou que era menos tímido com essa gente do que o fora diante de outros. Não era exactamente simpatia o que experimentava, pois a simpatia implica condescendência; sentia-se, porém, à vontade com eles. Notou também que era capaz de pô-los à vontade e, quando lhe entregavam um caso para ver o que podia fazer, parecia-lhe que o doente se entregava nas suas mãos com uma confiança especial.

 

"_Talvez", pensava ele com um sorriso, "talvez esteja talhado para médico. Que sorte se encontrei a minha verdadeira vocação!"

 

Afigurava-se-lhe que, de todos os colegas, era ele o único que via o interesse dramático daquelas tardes. Para os outros, homens e mulheres eram apenas casos bons, se complicados, maçadores, se fáceis. Ouviam sopros e espantavam-se diante de fígados anormais. Um ruído inesperado nos pulmões dava-lhes que falar. Mas, para Philip, havia muito mais. Achava interesse no simples facto de olhar para os doentes, para a forma das cabeças ou das mãos, a expressão dos olhos e o comprimento dos narizes. Via-se naquela sala a natureza humana apanhada de surpresa e com frequência a máscara do hábito era rudemente arrancada, deixando a alma desnudada. _às vezes deparava-se-lhe um estoicismo natural, profundamente comovedor. Numa ocasião, Philip ouviu um homem rude e ignorante dizer que era um caso perdido; e tendo ele próprio domínio sobre si mesmo, admirou-se ante aquele esplêndido instinto que forçava o indivíduo a conservar um sorriso na presença dos estranhos. Mas ser-lhe-ia possível ser estóico quando estava a sós, em frente da sua alma, ou entregar-se-ia então ao desespero? Em certas ocasiões, havia tragédia. Um dia, uma jovem trouxe a irmã para ser examinada. Era uma rapariga de dezoito anos, feições delicadas, grandes olhos azuis, cabelos louros, que faiscavam como ouro quando batido por um raio de sol outonal; tinha a pele de uma beleza surpreendente. Os olhos dos estudantes riram-se para ela. Não era com frequência que viam uma rapariga bonita naquelas salas sombrias. A mais velha relatou a história da família: pai e mãe haviam morrido tísicos: só lhe restavam a irmã e mais um irmão. A rapariga tossia ultimamente e perdera peso. Tirou a blusa: a pele do pescoço era de uma brancura de leite. O dr. Tyrell examinou-a em silêncio, com a rapidez de sempre. Mandou que dois ou três auxiliares aplicassem os estetoscópios num lugar que indicou com o dedo. Depois deixaram-na vestir-se. A irmã, que se mantinha um pouco afastada, falou ao médico em voz baixa, a fim de não ser ouvida pela rapariga. A sua voz tremia de medo.

 

- Ela não está, sr. doutor, não é verdade?

 

- _infelizmente está, sim.

 

- É a última. Quando ela se for, não terei mais ninguém.

 

Começou a chorar, enquanto o doutor a contemplava com ar grave: tinha também o tipo de tísica; também não viveria muito. A rapariga voltou-se e viu as lágrimas da irmã. Compreendeu o que significavam. A cor fugiu-lhe do lindo rosto e as lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces. Por minutos, ficaram as duas a chorar em silêncio; depois, a mais velha, esquecendo aquele grupo indiferente que as observava, aproximou-se da irmã, tomou-a nos braços e pôs-se a embalá-la docemente como se fosse uma criança.

 

Quando se retiraram, um dos estudantes perguntou:

 

- Quanto tempo acha que ela durará, doutor?

 

O dr. Tyrell encolheu os ombros.

 

- O irmão e a irmã morrerão três meses depois dos primeiros sintomas. Com ela acontecerá o mesmo. Se fossem ricas, talvez se pudesse fazer alguma coisa. Não lhes podemos dizer que vão para St. Moritz. Nada se pode fazer por elas.

 

Outra vez foi um homem de aspecto robusto, no vigor da idade. Sofria de uma dor persistente e o médico do seu clube parecia não lhe conseguir melhoras. Para ele, também a sentença foi de morte, não a morte inevitável que horroriza, mas é, contudo, tolerável porque a ciência nada pode diante dela, mas a morte que é inevitável apenas porque o doente representa uma pequena roda na grande máquina de uma civilização complexa e tem tão pouca força como um autómato para mudar as circunstâncias. A sua única esperança era um repouso absoluto. O dr. Tyrell não pedia impossíveis.

 

-- O senhor precisa de arranjar um trabalho muito mais leve.

 

- Na minha profissão não existe trabalho leve.

 

- Bom, se continuar assim será o suicídio. O senhor está muito doente.

 

- Então o sr. doutor quer dizer que vou morrer?

 

- Não queria dizer isso... mas é certo que o senhor não está em condições de fazer trabalho pesado.

 

- Se não trabalho, quem sustentará minha mulher e os meus filhos?

 

O dr. Tyrell encolheu os ombros. Este dilema fora-lhe apresentado centenas de vezes. O tempo urgia e havia muitos doentes para atender.

 

- Bom, vou dar-lhe um remédio e o senhor pode voltar daqui a uma semana para me dizer como passa.

 

O homem pegou no papel onde estava a receita inútil e retirou-se. O doutor podia dizer o que quisesse. Não se sentia tão mal que não pudesse continuar a trabalhar. Tinha um bom emprego e não estava em condições de perdê-lo.

 

- Dou-lhe um ano - disse o dr. Tyrell.

 

_às vezes havia comédia. De quando em quando, surgia um lampejo de humor londrino; às vezes, uma senhora velha, escapada de um romance de Charles Dickens, divertia-os com a sua garrulice e extravagância. Certa ocasião, foi uma mulher que pertencia ao corpo de baile de um teatro ligeiro famoso. Aparentava cinquenta anos, mas deu a idade de vinte e oito. Estava escandalosamente pintada e os enormes olhos negros lançavam olhares impudentes aos rapazes. Os sorrisos dela eram grosseiramente provocantes. Muito segura de si, tratou o dr. Tyrell, que se divertia imensamente, com a tranquila familiaridade que teria usado para com algum admirador avinhado. Sofria de bronquite crónica e contou que isso prejudicava o exercício da sua profissão.

 

- Não sei por que sofro disso, palavra que não. Nunca estive um dia de cama, em toda a minha vida. Basta olhar para mim para se ver...

 

Revirava os olhos para os rapazes, com um prolongado movimento dos cílios pintados, mostrando-lhes os dentes amarelos. Falava com sotaque *cockney* e uma afectação de requinte que fazia de cada palavra um motivo de riso.

 

- Isso é o que se chama "tosse de Inverno" - respondeu o dr. Tyrell gravemente - _é doença que aparece com frequência em senhoras de certa idade.

 

- Ora, vejam lá! Muito lindo dizer isso a uma senhora. Até hoje, ninguém me tratou por "senhora de certa idade!"

 

Arregalou os olhos e atirou a cabeça para o lado, encarando-o com uma gaiatice indescritível.

 

- _é esse o inconveniente da nossa profissão - disse ele. - _às vezes, força-nos a ser pouco galantes.

 

Agarrou a receita e atirou-lhe um último sorriso melífluo.

 

-- Irá ver-me dançar, querido, sim?

 

- Com toda a certeza.

 

Tocou a campainha para mandar entrar a seguinte.

 

- Estimei que os cavalheiros estivessem aqui, para me proteger.

 

Mas, de um modo geral, a impressão que aquilo tudo dava não era de drama nem de comédia. Não se podia descrever. Era múltiplo e vário; havia risos e lágrimas, felicidade e desdita; era indiferente e interessante Era tudo o que se quisesse: era tumultuoso e apaixonado; era grave; era triste e cómico; era trivial; era simples e complexo; a alegria estava lá e o desespero também. O amor das mães pelos filhos, o dos homens pelas mulheres. A luxúria arrastava-se por aquelas salas, com pés de chumbo, punindo culpados e inocentes, mulheres desamparadas e crianças miseráveis. _o álcool assenhoreava-se de homens e de mulheres e cobrava-lhes o inevitável tributo. A morte gemia naquela casa, onde era diagnosticado o princípio da vida, enchendo de terror e de vergonha alguma pobre rapariga. Não havia ali nem bem nem mal. Havia apenas factos. Era a vida.

 

No começo do ano, Philip ficou encarregado dos curativos no serviço externo. O trabalho era da mesma natureza que o anterior, mas possuía esse carácter directo que constitui uma das vantagens da cirurgia sobre a clínica. Era maior, ali, o número de doentes atacados desses dois males que a negligência e o falso pudor do povo permitem que alastrem. O cirurgião assistente, para quem Philip trabalhava, chamava-se Jacobs. Era um homem baixo, gordo, de jovialidade exuberante, calvo e de voz estridente. Tinha um sotaque *cockney* e quase todos os estudantes lhe chamavam "pelintra"; mas a sua habilidade, quer como cirurgião, quer como professor, fazia que alguns deles lhe esquecessem a origem. Era dotado de considerável jocosidade, que recaía imparcialmente sobre estudantes e doentes. Sentia grande prazer em expor os :, seus auxiliares ao ridículo. Para fazer isso, não encontrava muita dificuldade, uma vez que os rapazes eram ignorantes, tímidos e não lhe podiam responder como a um igual. Jacobs enchia as tardes a dizer verdades rudes, sob pretexto de fazer espírito, e divertia-se mais com elas do que os estudantes, obrigados a recebê-las com um sorriso. Certo dia, apareceu-lhe um caso: um menino com um pé boto. Os pais queriam saber se era possível fazer alguma coisa. O dr. Jacobs voltou-se para Philip:

 

- Esse caso é para ti, Carey. É assunto que conheces um pouco.

 

Philip corou, tanto mais que o cirurgião falava com intenção evidentemente humorística e os seus auxiliares, intimidados, riam obsequiosamente. Era de facto um assunto que Philip estudara com ansiosa atenção, desde que viera para o hospital. Lera os livros da biblioteca que tratavam de *talipes*, nas suas várias formas. Mandou o rapaz tirar os sapatos e as meias. Tinha catorze anos, nariz arrebitado, olhos azuis e cara pintalgada de sardas. O pai explicou desejar que fizessem alguma coisa, se fosse possível, pois aquilo era um obstáculo para o filho ganhar a vida. Philip observou-o com curiosidade. Era um rapaz alegre, nada tímido, mas tagarela e de uma afoiteza que o pai reprovava. Estava muito interessado no pé.

 

- _é só porque é feio, sabe? - disse a Philip. - Não me incomoda.

 

   - Está quieto, Ernie - acudiu o pai. - Estás a falar de mais.

 

   Philip examinou-lhe o pé e passou a mão pela deformidade. Não podia compreender por que não sentia o rapaz a humilhação que sempre o deprimira. Por que não podia ele também encarar o seu defeito com aquela indiferença filosófica? Em dado momento, o dr. Jacobs aproximou-se dele. O rapaz estava sentado na beira do divã, tendo de um lado o cirurgião, e Philip do outro. Junto deles, em semicírculo, agrupavam-se os estudantes. Com o brilho habitual, Jacobs fez uma pequena dissertação sobre o *talipes*. Falou das suas variedades e das formas decorrentes de diversas condições anatómicas.

 

- Acho que o seu caso é *talipes equinus* - disse, voltando-se subitamente para Philip.

 

- _é.

 

Philip sentiu que os olhos dos colegas estavam postos nele. Amaldiçoou-se por lhe ser impossível deixar de corar. As palmas das mãos humedeceram-se-lhe de suor. O cirurgião falava com a fluência devida a uma longa prática e com a admirável perspicácia que o distinguia. Era profundamente interessado na sua profissão. Mas Philip não o escutava. Desejava apenas que o homem terminasse quanto antes. Em dado momento, percebeu que Jacobs se lhe dirigia:

 

- Não te importas de tirar o sapato por um momento, Carey?

 

Philip sentiu um estremecimento percorrer-lhe o corpo. O seu ímpeto foi dizer ao cirurgião que fosse para o inferno, mas não tinha coragem de provocar uma cena. Temia o ridículo brutal de que seria objecto. Fez um esforço por parecer indiferente.

 

- Absolutamente nada - respondeu.

 

Sentou-se e desamarrou os cordões do sapato. Os dedos tremiam-lhe. Pensou que não conseguiria desfazer o nó. Lembrou-se de quando, na escola, o forçaram a mostrar o pé, e da humilhação que então lhe roera as entranhas.

 

- Traz os pés limpinhos, hem? - disse Jacobs, com a sua estridente voz de *cockney*.

 

Os estudantes abafaram risadas. Philip notou que o rapaz que estivera a examinar olhava agora para o pé com aguda curiosidade. Jacobs segurou-lhe o pé e disse:

 

- Sim, é o que eu pensava. Pelo que vejo, já foi operado. Quando era criança, não?

 

Continuou a dissertar com fluência. Os estudantes inclinavam-se para olhar o pé. Dois ou três examinaram-no minuciosamente, quando Jacobs o soltou.

 

- Quando terminarem, avisem - disse Philip com um sorriso, ironicamente.

 

Gostaria de os matar a todos. Pensou em como seria delicioso cravar-lhes um formão no pescoço (não sabia por que lhe viera ao espírito precisamente esse instrumento). Que animais eram os homens! Quisera acreditar no inferno para se consolar com a ideia das torturas horríveis que lhes estariam reservadas. Jacobs desviou-lhe a atenção para o tratamento. Dirigia-se em parte ao pai do rapaz e em parte aos estudantes. Philip calçou a meia e apertou o sapato. Por fim, o cirurgião terminou. Mas, depois, como que levado por uma reflexão tardia, voltou-se para Philip.

 

- Olha, acho que vale a pena tentares uma operação. Está claro que não te deixarei o pé normal, mas penso que posso fazer alguma coisa. Reflecte nisso, e, quando precisares de férias vem passar uns dias ao hospital.

 

Philip perguntara muitas vezes a si próprio se seria possível fazer alguma coisa para corrigir aquele defeito, mas, como a simples ideia de mencionar o assunto lhe repugnava, evitara consultar qualquer dos operadores do hospital. As seus leituras diziam-lhe que, depois da intervenção feita quando era criança (e ainda estava relativamente atrasado, naquela época, o tratamento do *talipes*) havia agora pouca esperança de grandes melhoras. Mesmo assim valia a pena tentar a operação, se esta lhe atenuasse o coxear e permitisse o uso de calçado semelhante ao que todos :, usavam. Lembrou-se do fervor com que orara ao Omnipotente, a pedir o milagre que o tio lhe dissera ser possível. Sorriu melancolicamente.

"Naquele tempo, era uma alma um tanto ingénua", pensou.

 

 

Em fins de Fevereiro, o estado de Cronshaw piorou nitidamente. Já não podia levantar-se. Ficava na cama, insistindo em manter as janelas fechadas. Não queria que chamassem o médico. Alimentava-se pouco, mas exigia *whisky* e cigarros. Philip sabia que ambas as coisas lhe faziam mal, mas o argumento de Cronshaw era irrespondível:

 

- Sei que essas coisas estão a matar-me. Pouco se me dá.

 Avisaste-me e fizeste tudo quanto era necessário: desprezo o teu aviso. Dá-me de beber e vai para o inferno.

 

Leonard Upjohn aparecia duas ou três vezes por semana, e havia no seu aspecto algo da folha morta, imagem que descrevia exactamente a maneira como ele surgia. Era um homem de trinta e cinco anos, com cabelos longos e claros; tinha o rosto pálido e a aparência doentia de quem vive muito pouco ao ar livre. Usava um chapéu que se assemelhava aos dos pastores protestantes dissidentes. Philip não gostava dele, por causa da sua atitude superior; a sua conversação fluente aborrecia-o. Leonard Upjohn gostava de ouvir o som da própria voz. Tinha o requisito primordial do bom conversador: não era sensível ao interesse dos interlocutores. Nunca percebia que estava a dizer às pessoas coisas que elas já sabiam. Dizia a Philip, com palavras medidas, o que pensava de Rodin, Albert Samain e César Franck. A dona da casa de Philip vinha durante uma hora, pela manhã, e, como o rapaz tivesse de passar todo o dia no hospital, Cronshaw ficava muito tempo sozinho. Upjohn disse a Philip que alguém devia fazer-lhe companhia, mas não se ofereceu para isso.

 

- É medonho a gente pensar na solidão desse grande poeta. Poderá morrer sem vivalma que o assista.

 

- Acho isso muito provável - disse Philip.

 

- Como pode ser tão empedernido?!

 

- Por que não vem fazer o seu trabalho para aqui, todos os dias? - perguntou Philip, secamente. - Assim, estaria perto dele, em caso de necessidade.

 

- Eu? Meu caro... A mim, só me é possível trabalhar no ambiente a que me habituei. Além disso, saio tanto...

 

Upjohn estava também um pouco surpreendido por Philip ter trazido Cronshaw para sua casa.

 

- Melhor fora que o tivesse deixado em Soho - disse, erguendo a mão fina num gesto ondulante. - Havia um quê de romanesco naquela sórdida água-furtada. Se fora ao menos Wapping ou Shoreditch, era de suportar-se, mas esta respeitabilidade de Kensington! Que lugar para um poeta morrer!

 

Com frequência, Cronshaw mostrava-se tão mal-humorado que Philip só não perdia a paciência por se lembrar de que aquela irritabilidade era um sintoma da doença. Upjohn chegava muitas vezes antes do regresso de Philip, e Cronshaw, então, queixava-se amargamente dele. Upjohn escutava complacentemente.

 

- O facto é que Carey não tem o sentido do belo - dizia a sorrir. - Tem o espírito burguês.

 

Era sarcástico para Philip, e o rapaz tinha de exercer grande domínio sobre si, nas relações com ele. Uma noite, porém, não pôde conter-se. Tivera um dia atarefado no hospital e sentia-se cansado. Leonard Upjohn aproximou-se dele quando, na cozinha, preparava uma chávena de chá, e disse-lhe que Cronshaw se queixava da sua insistência em lhe trazer um médico.

 

- O amigo não compreende que está a fruir um raro, um excepcional privilégio? Devia fazer tudo quanto está ao seu alcance para demonstrar que aprecia a grandeza dessa confiança.

 

- _é um privilégio raro e excepcional que mal posso custear -respondeu Philip.

 

Sempre que se tratava de dinheiro, Leonard Upjohn assumia uma atitude levemente desdenhosa. O seu temperamento sensível ficava ofendido pela referência ao assunto.

 

- Há um não sei quê de magnífico na atitude de Cronshaw, e o senhor perturba-o com as suas admoestações importunas. Devia reverenciar os pensamentos delicados do poeta, mesmo que os não possa aquilatar.

 

O rosto de Philip anuviou-se.

 

- Vamos vê-lo - disse friamente.

 

O poeta encontrava-se deitado de costas, lendo um livro, com o cachimbo na boca. O ar estava viciado e o quarto, apesar dos esforços de Philip para arranjá-lo, tinha aquele aspecto de sordidez que parecia acompanhar Cronshaw para onde quer que ele fosse. O poeta tirou os óculos quando os viu entrar. Philip fervia de raiva.

 

- Upjohn disse-me que você se lhe queixou da minha insistência em trazer um médico. Quero que o médico venha porquê você pode morrer de um instante para o outro e assim eu teria quem pudesse passar o atestado de óbito necessário. De contrário, haverá um inquérito e serei censurado por não ter chamado esse médico.

 

- Não pensei nisso. Julguei que querias trazer o médico por minha causa e não por tua. Agora, podes trazê-lo quando quiseres.

 

Philip não respondeu, mas encolheu imperceptivelmente os ombros. Cronshaw, que o observava, riu guturalmente:

 

- Não fiques zangado, meu caro. Sei muito bem que estás pronto a fazer tudo por mim, Vamos ver esse doutor. Talvez me possa servir de alguma coisa. E, seja como for, a visita dele confortar-te-á. - Voltou os olhos para Upjohn. - És um tolo consumado, Leonard. Por que andas a aborrecer o rapaz? Eu já lhe dou muito incómodo. _o mais que farás por mim será escrever um bonito artigo a meu respeito depois da minha morte. Conheço-te.

No dia seguinte, Philip procurou o dr. Tyrell. Sentia que era homem capaz de se interessar pela história. Logo que se livrou do trabalho do dia, Tyrell acompanhou Philip a Kensington. O médico limitou-se a confirmar os prognósticos do rapaz. Era um caso perdido.

 

- Se quiseres, levo-o para o hospital - disse. - Podemos alojá-lo num quarto pequeno.

 

- Nada o convenceria a ir.

 

- Como sabes, pode morrer a toda a hora, ou então apanhar nova pneumonia.

 

Philip meneou a cabeça afirmativamente. O dr. Tyrell fez uma ou duas sugestões e prometeu voltar quando o rapaz quisesse. Deixou o endereço. Quando Philip voltou para junto de Cronshaw, encontrou-o a ler calmamente. O poeta não se deu ao trabalho de perguntar o que dissera o doutor.

 

- Estás satisfeito, agora, meu caro? - perguntou.

 

- Suponho que nada o induzirá a fazer qualquer das coisas que o dr. Tyrell recomendou...

 

- Nada - sorriu Cronshaw.

 

Cerca de quinze dias depois, ao voltar uma noite para casa, após o seu trabalho diário no hospital, Philip bateu à porta do quarto de Cronshaw. Como não obtivesse resposta, entrou. Cronshaw jazia na cama, enrodilhado. Philip aproximou-se. Não sabia se o poeta estava a dormir ou se simplesmente se deixara ficar deitado, num dos seus irreprimíveis acessos de irritabilidade. Ficou surpreendido ao vê-lo de boca aberta. Tocou-lhe no ombro e deixou escapar um grito de medo. Meteu a mão por baixo da camisa de Cronshaw e procurou sentir o coração. Não sabia que fazer. Em desespero, pôs um espelho diante da boca do homem; pois ouvira dizer que era costume fazer-se isso. Estremeceu ao lembrar-se de que estava à sós com Cronshaw. Ainda não tirara o chapéu e o sobretudo: desceu as escadas a correr. Tomou um trem e mandou seguir para Harley Street. O dr. Tyrell estava em casa.

 

- Pode vir a minha casa agora mesmo? Parece-me que Cronshaw morreu.

 

- Se morreu, de nada serve a minha presença.

 

- Mas ficar-lhe-ia muito agradecido se viesse. Tenho um carro à espera. Não perderá mais de meia hora.

 

Tyrell pôs o chapéu. No carro, fez-lhe uma ou duas perguntas.

 

- Esta manhã, quando o deixei, não parecia ter piorado - disse Philip. - Tive um grande choque quando entrei há pouco no quarto. E pensar que morreu sozinho... Acha que ele sabia que ia morrer?

 

Philip lembrou-se do que Cronshaw dissera. Ficou a pensar se, no último momento, o terror da morte se apossara dele. Imaginou-se em conjuntura idêntica, cônscio de que o fim estava próximo e sem ver ninguém a seu lado para lhe dar coragem, no momento em que se sentisse tomado de medo.

 

- Estás um tanto perturbado - disse o dr. Tyrell.

 

Olhou para o rapaz com os seus claros olhos azuis, que não eram destituídos de simpatia. Quando viu Cronshaw, disse:

 

- Deve ter morrido há algumas horas. Creio que a morte o apanhou a dormir. _às vezes, acontece.

 

O corpo, todo encolhido, era repugnante. Nada tinha de humano. _o dr. Tyrell contemplava-o sem comoção. Com um gesto maquinal, tirou o relógio.

 

- Bem, preciso de ir-me embora. Mandarei a certidão de óbito. Sem dúvida vais comunicar aos parentes.

 

- Não creio que tenha parentes - disse Philip.

 

- E o enterro?

 

- Tratarei disso.

 

_o dr. Tyrell lançou um olhar rápido a Philip. Devia oferecer umas libras para ajudar o rapaz nas despesas necessárias? Nada sabia da sua situação. Talvez estivesse em condições de pagar tudo e achasse impertinente qualquer sugestão nesse sentido.

 

- Bom, se precisares de mim para alguma coisa, estou às ordens --  disse o médico.

 

Saíram juntos e separaram-se à porta. Philip foi ao telégrafo, para avisar Leonard Upjohn. Dirigiu-se depois a uma casa funerária, por onde costumava passar todos os dias, a caminho do hospital. A sua atenção fora muitas vezes atraída para aquele estabelecimento, pelas três palavras, em letras de prata num fundo de fazenda negra, que enfeitavam a vitrina, junto com dois modelos de ataúdes: "_Economia, Rapidez, Probidade". Achara-lhes sempre muita graça. O proprietário era um judeuzinho gordo, de cabelos negros, longos, crespos e gordurosos, vestido de preto, com um grande anel de brilhante no dedo médio. Recebeu Philip de um modo peculiar, misto de exuberância natural e gravidade própria do ofício. Não tardou a perceber que Philip estava desorientado e prometeu mandar em seguida uma mulher para fazer o que o caso exigia. Fez para o enterro sugestões magnificentes e Philip :, envergonhou-se quando ele pareceu achar que as suas objecções eram mesquinhas. Era horrível regatear em tal assunto, e Philip, por fim, consentiu em fazer uma despesa que mal podia custear.

 

- Compreendo perfeitamente - disse o cangalheiro -que não deseje ostentação ou coisa semelhante. Eu próprio não gosto disso, fique certo. Mas o senhor há-de querer que o enterro seja digno de um homem educado. Deixe isso comigo. Farei o mais barato possível, sem esquecer o que é apropriado. Nada mais posso dizer não acha?

 

Philip foi para casa jantar. Enquanto comia, chegou a mulher para lavar o cadáver. Pouco depois, entregaram-lhe um telegrama:

 

*_Sobremaneira abalado e condoído. Lamento impossibilidade comparecer hoje. _jantar fora. Convosco amanhã cedo. Profunda simpatia.

*_upjohn*

 

Dentro em pouco, a mulher bateu à porta da sala de estar.

 

- Está pronto. Quer vir vê-lo, para ver se está tudo em ordem?

 

Philip seguiu-a. Cronshaw estava deitado de costas, com os olhos fechados e as mãos piedosamente sobre o peito.

 

- Pelo direito, o senhor devia mandar vir flores.

 

- Amanhã trarei algumas.

 

A mulher lançou ao cadáver um olhar de satisfação. Terminara a sua tarefa e agora descia as mangas, tirava o avental e punha o chapéu. Philip perguntou quanto lhe devia.

 

- Bem, alguns pagam-me dois xelins e seis pence, outros dão-me cinco xelins.

 

Philip teve vergonha de dar quantia inferior à maior. A mulher agradeceu-lhe com o entusiasmo que as circunstâncias lhe pareciam permitir e foi-se embora. Philip voltou para a sala de estar, tirou da mesa os restos da ceia e sentou-se para ler a *_cirurgia*, de _Walsham. Achou-a difícil. Sentia-se singularmente nervoso. Quando ouvia barulho na escada, tinha um sobressalto e o coração começava a bater-lhe com violência. _aquela coisa, no quarto contíguo, aquilo que fora um homem e agora era nada, enchia-o de susto. O silêncio parecia ter vida, como se algum misterioso movimento se processasse dentro dele; a presença da morte pesava naquele ambiente, sobrenatural e aterradora. Philip foi tomado de um súbito horror pelo que fora o seu amigo. Tentou fazer um esforço para ler, mas, num dado momento, atirou o livro para longe, com desespero. O que o perturbava era a absoluta futilidade daquela vida que findara havia pouco. Que importava que Cronshaw estivesse vivo ou morto? Se não tivesse vindo ao mundo, :, teria sido exactamente o mesmo. Philip pensou na mocidade de Cronshaw. Era-lhe necessário um esforço de imaginação para figurá-lo mais esbelto, a caminhar com passadas elásticas, cabelos na cabeça, jovial e cheio de esperança. A norma de vida de Philip, satisfazer os instintos com o devido respeito ao polícia ao virar da esquina, não dera resultado naquele caso: Cronshaw seguira esse caminho e por isso a sua existência redundara num lamentável desastre. Pelos modos, não se devia confiar nos instintos. Philip estava perplexo. Se aquela norma de vida era inútil, que outra havia, afinal? E por que agiam as pessoas desta maneira e não daquela? Portavam-se de acordo com os seus sentimentos, mas esses sentimentos podiam ser bons ou maus. Parecia questão de puro acaso levarem ao triunfo ou ao desastre. A vida afigurava-se-lhe uma inextricável confusão. Os homens corriam de um lado para o outro, apressados, impelidos por forças que desconheciam. E o objectivo daquilo tudo escapava-lhes. Davam a impressão de se apressarem apenas por amor à pressa.

 

Na manhã seguinte, Leonard Upjohn apareceu com uma pequena coroa de louros. Era-lhe agradável a ideia de coroar a cabeça do poeta morto. E, não obstante o silêncio desaprovador de Philip, tentou colocar os lauréis na cabeça calva. O efeito era grotesco. Lembrava uma aba de chapéu usada por um artista reles de variedades.

 

- Ficará melhor sobre o coração - disse Upjohn.

 

- Mas o senhor colocou-a em cima do estômago - observou Philip.

 

Upjohn esboçou um ténue sorriso.

 

- Só um poeta sabe onde fica o coração de um poeta - respondeu.

 

Voltaram para a sala de estar e Philip contou ao outro as providências que tomara para o enterro.

 

- Espero que não se tenha poupado a despesas. Gostaria que o féretro fosse seguido de uma longa fileira de carros vazios, e gostaria também que os cavalos levassem altas plumas ondulantes e que houvesse um grande número de carpideiras, com longos véus de crepe nos chapéus. Agrada-me essa ideia dos carros assim vazios...

 

- Como quem vai custear o enterro sou eu e não me encontro com excesso de fundos, procurei fazer a coisa o mais modestamente possível.

 

- Mas, meu caro, em tal circunstância, por que não lhe arranja um enterro de indigente? Pelo menos isso teria alguma coisa de poético. O amigo possui o instinto infalível da mediocridade.

 

Philip corou levemente, mas não respondeu e, no dia seguinte, ele e Upjohn acompanharam o carro fúnebre no único veículo que Philip alugara. Lawson, não podendo comparecer, mandara uma coroa. E, para que o caixão não parecesse muito abandonado, Philip comprara mais duas. Na volta, o cocheiro chicoteava os cavalos. Cansadíssimo, o rapaz acabou por adormecer. Foi acordado pela voz de Upjohn.

 

- De certo modo, é uma sorte que os poemas não tenham ainda aparecido. Creio que é melhor retê-los um pouco, até que eu escreva o prefácio. Comecei a pensar nele durante o trajecto para o cemitério. Afigura-se-me que posso fazer coisa bastante boa. Seja como for, principiarei com um artigo em *_The Saturday*.

 

Philip não respondeu e fez-se silêncio entre ambos. Por fim, Upjohn falou:

 

- Parece-me de melhor aviso conservar a cópia desse artigo. Parei depois outro para uma dessas revistas e, mais tarde, posso utilizá-lo como prefácio.

 

Philip procurou ler os mensários e semanas depois o artigo apareceu. Causou alguma sensação e excertos dele foram reproduzidos em vários jornais. Era um excelente ensaio, vagamente biográfico, pois ninguém sabia grande coisa do passado de Cronshaw, mas delicado, terno e colorido. Leonard Upjohn, no seu estilo intrincado, traçara pequenos e graciosos quadros da vida de Cronshaw no Bairro Latino, a conversar e a fazer versos. O poeta convertia-se numa figura pitoresca, num Verlaine inglês. As frases coloridas de Leonard Upjohn assumiam uma trémula dignidade, uma grandiloquência mais patética ao descrever o sórdido fim, o quartinho miserável de Soho. E, com uma reticência absolutamente encantadora, sugerindo uma generosidade muito maior do que a modéstia lhe permitia estadear, insinuou os esforços por ele feitos para transportar o poeta para uma vivenda escondida entre madressilvas, no meio de um pomar florido. Em vez disso, alguém, bem intencionado mas despido de finura, levara o poeta para a respeitabilidade vulgar de Kensington! Leonard Upjohn descrevia Kensington com aquele humor contido que a estrita limitação ao vocabulário de sir Thomas Browne exigia. Com delicado sarcasmo, narrava as últimas semanas do poeta, a paciência com que Cronshaw suportava a atenciosa amabilidade do jovem estudante que se oferecera para cuidar dele, e a piedade que inspirava o divino vagabundo naquele ambiente desesperadoramente burguês. Beleza que sai das cinzas, dizia como Isaías. Era um triunfo para a ironia morrer aquele poeta pária em semelhante moldura de respeitabilidade vulgar. Isso lembrava a Leonard Upjohn, Cristo entre os fariseus, e a analogia deu-lhe ensejo para uma passagem de inefável beleza. Contava depois como um amigo - o bom gosto não lhe permitia mais que uma leve alusão ao autor de tão delicada fantasia -tinha deposto uma coroa de louros sobre o coração do poeta morto; e as belas mãos :, sem vida pareciam descansar com voluptuosa paixão sobre as folhas de Apolo, olorosas de uma fragrância de arte, e mais verdes que o jade trazida por bronzeados marinheiros da China multímoda e inexplicável. E, em admirável contraste, o artigo terminava com a descrição do enterro burguês, ordinário e prosaico, daquele que devia ter baixado à sepultura como um príncipe ou como um mendigo. Era a vergastada derradeira, a vitória final dos filisteus sobre a arte, a beleza e as coisas imateriais.

 

Leonard Upjohn nunca escrevera coisa melhor. Era um milagre de encanto, graça e compaixão. No decorrer do artigo, transcreveu os melhores poemas de Cronshaw, de forma que, quando o volume apareceu, bem pouco trazia de novo, mas aumentara muito a reputação de Upjohn. Daí por diante, ficou a ser um crítico considerado. Parecera antes um pouco frio, mas havia naquele artigo um calor de humanidade infinitamente sedutor.

 

Na Primavera, terminado o seu trabalho como auxiliar de cirurgia, Philip entrou para o serviço do hospital. Esse novo estágio durava seis meses. Tinha de passar todas as manhãs nas enfermarias, primeiro na dos homens e, depois, na das mulheres, acompanhando o médico interno. Mantinha o registo dos casos, fazia análises e entretinha-se com as enfermeiras e enfermeiros. Duas tardes por semana, o médico de serviço de um grupo de estudantes vinha examinar os doentes. Esse trabalho não oferecia a lufa-lufa, a constante variedade e o contacto íntimo com a realidade que caracterizavam o serviço externo. Mas ali Philip adquiriu uma boa dose de conhecimentos. Dava-se muito bem com os doentes e sentia-se um pouco lisonjeado por ver o prazer que mostravam ao receber os seus cuidados. Os seus sofrimentos, sabia-o ele, não lhe despertavam nenhuma simpatia profunda, mas gostava daquela gente. E porque não se dava ares de importância, era mais popular entre os doentes do que os outros colegas. Fazia-se agradável, encorajador e amigo. Como todos os que trabalham em hospitais, verificou que os homens são mais fáceis de tratar do que as mulheres. Estas eram de ordinário lamurientas e tinham mau génio, queixando-se amargamente das enfermeiras atarefadíssimas, que não pareciam dar-lhes a atenção a que se julgavam com direito. Eram turbulentas, ingratas e grosseiras.

 

Em breve, Philip teve a sorte de arranjar um amigo. Certa manhã, o médico interno confiou-lhe um novo caso, um homem. Sentando-se à beira da cama, Philip pôs-se a preencher a papeleta. Nesta, observou que o doente era classificado como jornalista. Chamava-se Thorpe Athelny, nome invulgar para um doente :, de hospital. Idade, quarenta e oito anos. Sofria de um agudo ataque de icterícia e fora levado para a enfermaria por causa de obscuros sintomas que era necessário observar. Em voz agradável e educada, respondeu às várias perguntas que Philip, segundo a praxe, lhe fez. Tornava-se difícil dizer se era alto ou baixo, uma vez que estava deitado, mas a cabeça e as mãos pequenas sugeriam tratar-se de um homem de estatura abaixo da mediana. Philip tinha o hábito de olhar para as mãos das pessoas: as de Athelny surpreenderam-no. Eram muito pequenas e tinham os dedos longos e afilados, com belas unhas rosadas. Muito lisas, seriam de uma brancura admirável, se não fosse a icterícia. O doente conservava-as fora da roupa, com uma delas entreaberta, juntos o médio e o indicador. Enquanto falava a Philip, parecia contemplá-las com satisfação. Com uma leve cintilação nos olhos, o rapaz olhou para o rosto do doente. Apesar do tom bilioso, tinha certa distinção: olhos azuis, nariz recurvo, agressivo, mas bem desenhado, pequena barba pontuda e grisalha. Era meio calvo mas, a julgar pelas mechas que lhe restavam, devia ter tido um belo cabelo ondulado e ainda o usava comprido.

 

- Vejo que é jornalista - disse Philip. - Para que jornais escreve?

 

- Para todos. O senhor não abre um jornal que não tenha a minha colaboração.

 

Ao lado da cama havia um diário e, pegando-lhe, Athelny apontou para um anúncio. Em letras graúdas lia-se o nome de uma firma conhecida, *_Lynn and Sedley, Regent Street, London*; por baixo, em tipo menor, mas ainda assim de bom tamanho, esta asserção dogmática: *_Protelar é roubar tempo*. Depois, uma pergunta tanto mais surpreendente quanto mais razoável: *_Por que nco comprar hoje?* Uma repetição em caracteres grandes, como o martelar da consciência no coração de um criminoso. *_Por que não*? Depois e ousadamente: *_Milhares de pares de luvas procedentes dos principais mercados do mundo, a preços de pasmar. Milhares de pares de meias dos mais afamados fabricantes do Universo, com descontos sensacionais*. Finalmente, voltava a perguntar, mas desta vez com um carácter de desafio: *_Por que não comprar hoje*?

 

- Sou representante da firma *_Lynn Sedley* junto da Imprensa -disse, esboçando um gesto com a sua bela mão. -- "_E para que funções inferiores..."

 

Philip continuou a fazer as perguntas regulamentares, algumas simples assunto de rotina, outras engenhosamente engendradas para o doente revelar coisas que era de esperar desejasse ocultar.

 

- Já viveu no estrangeiro? - perguntou Philip.

 

- Estive onze anos em Espanha.

 

- Que fazia lá?

 

- Era secretário da companhia inglesa das águas, em Toledo.

 

Philip recordou-se de que Clutton passara alguns meses em Toledo e a resposta do jornalista levou-o a encará-lo com mais interesse. Sentiu, porém, que não convinha manifestar esse sentimento: era necessário conservar a distância que devia existir no hospital, entre doentes e médicos. Terminado o exame, dirigiu-se para as outras camas.

 

A doença de Thorpe Athelny não era grave e, embora estivesse ainda muito amarelo, depressa se sentiu bastante melhor. Conservava-se na cama apenas porque o médico achava que ele devia ficar para observação até que certas reacções se tornassem normais. Um dia, ao entrar na enfermaria, Philip notou que Athelny, de lápis na mão, lia um livro. Depô-lo quando o estudante se aproximou da cama.

 

- Posso ver o que está a ler? - perguntou Philip, que nunca passava por um livro sem olhá-lo. Pegou-lhe e viu que era um volume de poemas espanhóis de San Juan de la Cruz e ao abri-lo, caíu de dentro uma tira de papel. Philip apanhou-a e viu que nela estava escrita uma poesia.

 

- Não me diga que passa a escrever versos as suas horas de lazer. É uma ocupação pouco própria para um doente de hospital.

 

- Procurava fazer algumas traduções. Sabe espanhol?

 

- Não.

 

- Bem, mas conhece a história de San Juan de la Cruz, não?

 

- Não tenho a menor ideia.

 

- É um dos místicos espanhóis. Dos melhores poetas que a Espanha teve. Achei que valia a pena traduzi-lo para o inglês.

 

- Posso ler a sua tradução?

 

-  Ainda está em bruto - disse Athelny; mas deu-a a Philip com uma presteza que indicava estar ansioso de que lha lesse.

 

Estava escrita a lápis, numa caligrafia bonita mas original e difícil de ler. Imitava os caracteres góticos.

 

- Mas não lhe toma muito tempo escrever assim? _é admirável.

 

- Não sei por que não deva ser bela a letra manuscrita.

 

Philip leu o primeiro verso:

 

*_numa noite obscura

Com ânsias em amores inflamada

Ó ditosa ventura! -

Saí sem ser notada,

Estando minha casa sossegada.*

 

Philip olhou para Thorpe Athelny com curiosidade. Não sabia se o homem o intimidava ou atraía. Notara-lhe um ar superior, e corou à ideia de que Athelny podia tê-lo achado ridículo.

 

- Que nome pouco comum tem o senhor - observou, para dizer alguma coisa.

 

- É um nome muito antigo do _yorkshire. Outrora, o chefe da minha família levava o dia inteiro, a galope, para dar volta às suas terras. Mas os fortes tombaram. Mulheres fáceis e cavalos lerdos.

 

_athelny era míope e, ao falar, olhava para o interlocutor com uma intensidade especial. Tomou o volume de poesias.

 

- O senhor devia ler espanhol - disse. - É um nobre idioma; não tem a melifluidade do italiano... a língua dos tenores e dos tocadores de realejo... mas tem grandeza: não murmura como um regato no jardim, mas cresce, tumultuosa como um poderoso rio a transbordar.

 

Esta grandiloquência divertiu Philip, que, no entanto, era sensível à retórica. Escutava com prazer, enquanto Athelny, com expressões pitorescas e o fogo de um verdadeiro entusiasmo, lhe descrevia a delícia de ler *_D. Quixote* no original e a música, romântica, límpida e apaixonada do encantador Calderon.

 

- Preciso de continuar com o meu trabalho - disse Philip em dado momento.

 

- Oh! Perdoe-me, esquecera-me... Direi a minha mulher que traga uma vista de Toledo para lhe mostrar. Quando tiver tempo, venha conversar comigo. Não sabe o prazer que me dá.

 

Nos dias que se seguiram, em momentos roubados, sempre que havia oportunidade, estreitaram-se as relações entre Philip e o jornalista. Thorpe Athelny era bom conversador. Não dizia coisas brilhantes mas falava de maneira inspiradora, com uma vivacidade ardente, que inflamava a imaginação. E o cérebro de Philip, povoado de quimeras, formigava de imagens novas. Athelny tinha uma educação aprimorada. Tanto de livros como do mundo, sabia muito mais do que Philip. Era muito mais velho e a fluência da sua conversa dava-lhe certa superioridade. No hospital, porém, Athelny recebia a caridade e estava sujeito a regras estritas. Equilibrava-se entre as duas posições com espírito e naturalidade. Certa vez, Philip perguntou-lhe por que viera para o hospital.

 

- Ora... Tenho por princípio aproveitar todos os benefícios que a sociedade proporciona. Tiro vantagens da época em que vivo. Quando adoeço, procuro entrar para um hospital, não tenho falso pudor e os meus filhos frequentam a escola oficial.

 

- Sim? - estranhou Philip.

 

- E a instrução é de primeira ordem. Muito melhor do que a que recebi em Winchester. Como acha que poderei educá-los a não ser assim? Tenho nove. E o senhor precisa de ir vê-los, quando eu voltar para casa. Quer?

 

- Com muito prazer - respondeu Philip.

 

Dez dias mais tarde, Thorpe Athelny estava em condições de deixar o hospital. Deu a Philip o endereço e o rapaz prometeu ir almoçar com ele no domingo seguinte, à uma hora. Athelny dissera-lhe morar numa casa construída por Inigo Jones. Falou, com o entusiasmo transbordante com que falava de tudo, da balaustrada de carvalho antigo. E, quando desceu para abrir a porta a Philip, fê-lo imediatamente admirar a talha elegante do lintel. Era uma casa pobre que crecisava urgentemente de uma demão de pintura, mas que tinha a dignidade do seu período numa ruazinha entre Chancery Lane e Holborn, a qual em tempo, passados fora de bom tom, mas que era agora pouco mais do que uma ruela miserável. Falava-se em demolir-lhe as casas, a fim de se construírem em lugar delas belos edifícios para escritórios. Enquanto isso não acontecia, os alugueres eram ali baratos e Athelny conseguira alugar os dois pavimentos superiores por um preço conveniente. Philip nunca o vira de pé e ficou surpreendido com o seu pequeno porte. Não teria mais de um metro e sessenta centímetros de altura. Estava vestido de maneira extravagante, com calças de linho azul, das usadas pelos trabalhadores franceses e um velho casaco de veludo castanho. Trazia à cintura uma faixa vermelho vivo e usava colarinho baixo, tendo por gravata uma laçada flutuante, dessas com que o tipo popular do francês aparece nas caricaturas do *_Punch*. Acolheu Philip com entusiasmo. Começou a falar, em seguida, da casa, passando amorosamente a mão pelos balaústres.

 

- Olhe para isto. Ponha a mão. É como seda. Que milagre de graça! E dizer-se que dentro de cinco anos o encarregado da demolição vai vender isto como lenha...

 

Insistiu em levar Philip para um quarto do primeiro andar, onde um homem em mangas de camisa, uma mulher em desalinho e três crianças, estavam a almoçar.

 

- Trouxe este cavalheiro só para lhe mostrar o tecto. Já viu coisa mais maravilhosa? Como está, Mrs. Hodgson? Este senhor é Mr. Carey, que cuidou de mim quando estive no hospital.

 

- Entre, senhor - disse o homem. - Os amigos de Mr. Athelny são sempre benvindos. Mr. Athelny mostra sempre esse tecto a todos os seus amigos. Não importa o que a gente esteja a fazer. Podemos estar na cama, ou a lavar-nos... ele entra sempre.

 

Philip percebeu que consideravam Athelny uma criatura um tanto excêntrica, mas mesmo assim gostavam dele e escutavam boquiabertos quando ele discorria com a sua fluência impetuosa sobre a beleza daquele tecto do século __XVII.

 

- Que crime demolir isto, hem, Hodgson? Você, um cidadão influente, por que não escreve para os jornais, a protestar?

 

O homem em mangas de camisa soltou uma gargalhada e disse a Philip:

 

- Mr. Athelny diz sempre essa brincadeira. Eles dizem que estas casas são insalubres e é perigoso morar nelas.

 

- A salubridade que vá para o diabo, o que importa é a arte! -exclamou Athelny. - Tenho nove filhos que passam muito bem, apesar dos esgotos defeituosos. Não, não, eu é que não me arrisco. Nada dessas invenções modernas. Quando me mudar daqui, antes de alugar casa, quero primeiro ter a certeza de que os esgotos não prestam.

 

Ouviu-se bater à porta, que foi aberta por uma menina de cabelos louros.

 

- Papá! A mamã manda dizer que se deixe de conversas e venha almoçar.

 

- Esta é a minha terceira filha - disse Athelny, apontando para a pequena com o indicador, num gesto teatral. - Chama-se Maria del Pilar, mas dá com mais vontade pelo nome de Jane. Jane, o teu nariz precisa de ser assoado.

 

- Não tenho lenço, papá.

- Ora, ora, menina - respondeu ele, fazendo aparecer um enorme lenço de cor viva. - Para que foi que o Todo-Poderoso te deu esses dedos?

 

Subiram e Philip foi levado para uma sala cujas paredes tinham almofadas de carvalho escuro. No meio via-se uma mesa estreita, de teca, sobre um tripé reforçado por duas barras de ferro. Era o que na Espanha se chama *mesa de hieraje*. Iam almoçar ali, pois estavam dispostos dois lugares e havia duas grandes poltronas com braços largos, lisos, de carvalho, espaldar e assentos de couro. Eram severas, elegantes e incómodas. A única peça do mobiliário que existia, além destas, era um *bargueno* com ornatos complicados de ferro dourado pousado em cima de um pedestal gótico de desenho tosco mas de bela talha. Viam-se ali dois esplêndidos pratos, muito partidos, mas de vivo colorido. Nas paredes, velhos mestres da escola espanhola em descascadas mas belas molduras. A despeito da tristeza dos motivos, dos estragos do tempo, da má conservação e apesar da concepção inferior, essas telas tinham a flama da paixão. Nada havia naquela sala que tivesse algum valor, mas o efeito geral era adorável. Era magnífica e, no entanto, austera. Philip sentiu que aquele ambiente oferecia o espírito da velha Espanha. Athelny mostrava ainda o interior do *bargueno*, com a sua magnífica ornamentação e as suas gavetas secretas, quando uma bela rapariga, com duas tranças de luminoso cabelo castanho a caírem-lhe pelas costas, entrou.

 

- A mãe disse que o almoço está à espera e eu vou pô-lo nos pratos quando se sentarem à mesa.

 

- Venha cumprimentar Mr. Carey, Sally. - E, voltando-se:,

para Philip. - Não a acha enorme? É a minha filha mais velha. Quantos anos tens, Sally?

 

- Em Junho que vem faço quinze.

 

- Baptizei-a com o nome de Maria del Sol, porque foi a primeira e dediquei-a ao glorioso sol de Castela, mas a mãe chama-lhe Sally e o irmão, Cara-de-_Pudim.

 

A rapariga sorriu timidamente, corando. Tinha dentes brancos e regulares. Bem feita de corpo, alta para a idade, os seus olhos cinzentos eram agradáveis e a testa ampla. Tinha as faces vermelhas.

 

- Vai dizer à tua mãe que venha apertar a mão de Mr. Carey antes de ele se sentar.

 

- A mamã diz que vem depois do almoço. Ainda não se lavou.

 

- Pois então vamos lá dentro vê-la. Este senhor não pode comer o pastelão de Yorkshire, antes de apertar a mão que o preparou.

 

Philip seguiu o dono da casa, que entrou na cozinha. Era pequena e atravancada. O barulho era ali grande, mas cessou logo que o estranho penetrou. No entanto, havia uma grande mesa, em redor da qual, ansiosos por comer, se sentavam os filhos de Athelny. Ao pé do forno, a tirar dele, uma por uma, batatas assadas, estava uma mulher.

 

- Betty, aqui está Mr. Carey - disse Athelny.

 

- Ora, que ideia de trazê-lo aqui. Que ficará a pensar?

 

Trazia um avental sujo e tinha as mangas do vestido de algodão arregaçadas até acima do cotovelo; os cabelos estavam eriçados de ganchos de encaracolar. Mrs. Athelny era uma mulher grande, umas boas três polegadas mais alta do que o marido, loura, com os olhos azuis e uma expressão bondosa. Tinha sido uma criatura bonita, mas o correr dos anos e os muitos partos tornaram-na gorda e desleixada. Os olhos azuis haviam empalidecido, a pele estava vermelha e áspera, e a cor fugia-lhe dos cabelos. Empertigou-se, enxugou a mão no avental e estendeu-a ao recém-chegado.

 

- Seja benvindo - disse, em voz lenta, e dum modo que pareceu curiosamente familiar a Philip. - Athelny disse que foi muito bom para ele no hospital.

 

- Agora, vai ser apresentado à tropa - anunciou Athelny. - Este é o Thorpe - disse, apontando para um rapaz rechonchudo, de cabelos crespos - o meu filho mais velho, herdeiro do título, das terras e das responsabilidades da família. Aqui Athelstan, Harold e Edward. - Mostrou com o indicador os três filhos mais pequenos, todos rosados, saudáveis e sorridentes, embora baixassem os olhos acanhados para os pratos, ao sentirem-se olhados com simpatia por Philip. - Agora as raparigas, pela ordem: Maria del _sol...

 

- Cara-de-_Pudim - disse um dos pequenos.

 

- O teu senso de humor é rudimentar, meu filho. Maria de las Mercedes, Maria del Pilar, Maria de la Concepción, Maria del Rosário.

 

- Eu trato-as por Sally, Molly, Connie, Rosie e Jane - declarou Mrs. Athelny. - Agora, Athelny, volta para a tua sala que vou mandar o almoço. Depois, mando as crianças quando elas se lavarem.

 

- Minha querida, se tivesse que te dar um nome, seria o de Maria do Sabão. Vives a torturar esses pobres fedelhos com o sabão.

 

- Vá à frente, Mr. Carey, senão o Athelny nunca se resolve a sentar-se e a comer o almoço.

 

Athelny e Philip instalaram-se nas grandes cadeiras monacais e Sally trouxe-lhes dois pratos de carne, pastelão, batatas assadas no forno, e couves. Athelny tirou do bolso seis pence e mandou buscar um jarro de cerveja.

 

- Espero que não tenha servido aqui o almoço por minha causa... - disse Philip. - Teria muito prazer em comer junto com as crlanças.

 

- Oh, não, tomo sempre as refeições sòzinho. Gosto desses costumes antigos. Não acho que as mulheres devam sentar-se à mesa com os homens. Isso estraga a conversa e estou certo de que é muito mau para elas. Asssim, ficam com coisas na cabeça e as mulheres nunca se sentem à vontade quando têm ideias.

 

Tanto o dono da casa como o hóspede comiam com grande apetite.

 

- Já provou alguma vez este pastelão do Yorkshire? Ninguém o faz como a minha mulher. Essa é a vantagem da gente não casar com uma senhora. Reparou que não é uma senhora pois reparou?

 

Era uma pergunta embaraçosa e Philip não soube que responder.

 

- Isso nem me passou pela cabeça... - disse, hesitante.

 

Athelny riu. Tinha um riso particularmente alegre.

 

- Não, não é uma senhora nem coisa que se pareça. O pai era um camponês e ela nunca na vida aspirou os *hh*. Tivemos doze filhos e nove estão vivos. Já lhe disse que é tempo de parar, mas ela é uma mulher obstinada, já se habituou e não acredito que fique satisfeita antes dos vinte.

 

Neste momento Sally entrou com a cerveja e, depois de encher o copo de Philip, foi para o outro lado da mesa, para servir o pai.

 

Este pôs-lhe o braço em torno da cintura.

 

- Já viu uma mocetona mais jeitosa do que esta? Quinze anos e parece que tem vinte. Olhe estas faces. Nunca esteve doente na vida. Quem casar com ela será um felizardo, não é, Sally?

 

Sally escutou com um vago sorriso ingénuo, não muito embaraçada, pois estava habituada às saídas do pai, mas com uma modéstia natural que era muito atraente.

 

- Não deixe a comida esfriar, pai - disse ela, esquivando-se-lhe. -Quando quiser que traga o pudim, chame, sim?

 

Ficaram a sós e Athelny levou a caneca de cerveja aos lábios. Bebeu a longos sorvos.

 

- Palavra de honra, não há nada melhor do que a cerveja inglesa, hem? - disse. - Agradeçamos ao Senhor estes prazeres simples da carne assada, do pudim de arroz, do bom apetite e da cerveja. Já fui casado com uma senhora. Santo Deus! Nunca se case com uma senhora, meu rapaz.

 

Philip pôs-se a rir. Estava divertido com a cena: o engraçado homenzinho nas suas roupas extravagantes, a sala guarnecida de almofadas de madeira, o mobiliário espanhol, a cozinha inglesa: um conjunto de uma incongruência deliciosa.

 

- Você ri, meu rapaz, porque não pode imaginar um casamento desigual. Quer uma companheira que seja do seu nível intelectual. A sua cabeça está cheia de ideias de camaradagem entre marido e mulher. Asneiras, meu rapaz! Um homem não pensa em discutir política com a mulher. E que importância acha que dou à opinião de Betty sobre o cálculo diferencial? O que um homem deseja é uma mulher que saiba cozinhar e que cuide dos filhos. Já experimentei os dois termos opostos e sei. Vamos ao nosso pudim.

 

Bateu palmas e Sally entrou em seguida. Quando começou a tirar os pratos, Philip quis levantar-se para ajudá-la, mas Athelny deteve-o.

 

- Deixe isso com ela, meu rapaz. Sally não quer que se incomode, não é assim, Sally? Nem achará que você é pouco delicado por ficar sentado enquanto ela o serve. Diabos levem o cavalheirismo, não é verdade, Sally?

 

- Sim, pai - respondeu a jovem, recatadamente.

 

- Sabes do que estou a falar, Sally.

 

- Não, pai. Mas bem sabe que a mamã não gosta que pragueje.

 

Athelny riu estrepitosamente. Sally trouxe-lhes os pratos de pudim de arroz, rico, suculento e cheio de nata. Athelny atacou-o com gosto.

 

- Uma das regras desta casa é que o almoço de domingo deve ser sempre o mesmo. _é um ritual. Carne assada e pudim de arroz, cinquenta domingos por ano. No domingo de Páscoa, carneiro e ervilhas verdes e no dia de S. Miguel, ganso assado e molho de maçã. Dessa maneira, conservamos as tradições do nosso povo. Quando Sally casar, há-de esquecer muitos desses sábios princípios que lhe tenho inculcado, mas nunca esquecerá  que, para se ser bom e feliz, se deve comer aos domingos carne assada e pudim de arroz.

 

- Quando terminarem, avisem, para eu trazer o queijo - disse Sally, imperturbável.

 

- Conhece a lenda do alcião? - perguntou Athelny. Philip estava a habituar-se àquele rápido saltar de um assunto para outro. -Quando o maçarico se cansa de voar sobre as ondas, a sua companheira vem colocar-se abaixo dele e sustenta-o com as asas. É isso o que um homem quer da esposa. Vivi três anos com a minha primeira mulher. Era uma pessoa de sociedade, tinha mil e quinhentas libras anuais de rendimento, dávamos jantares muito elegantes na nossa pequena casa de tijolo vermelho de Kensington. Ela era encantadora, pelo menos toda a gente o afirmava, os advogados que nos visitavam com suas esposas, os literatos e os políticos. Oh! Era uma mulher encantadora. _obrigava-me a ir à igreja de chapéu alto e fraque, levava-me a concertos clássicos, e gostava muito de conferências nas tardes de domingo. Sentava-se à mesa todas as manhãs às oito e trinta e, se eu vinha atrasado, encontrava o pequeno almoço frio. Lia os livros consagrados, admirava os mestres da pintura e adorava a música séria. Santo Deus, como essa mulher me aborrecia! Ainda é encantadora e mora na mesma casinha de tijolo vermelho, em Kensington, que tem nas paredes os papéis de Morris e as águas-fortes de Whistler. Dá ainda os mesmos jantares elegantes, com vitela em molho branco e sorvetes da Gunter, como dava há vinte anos.

 

Philip não perguntou como duas pessoas tão malcasadas se haviam separado, mas Athelny contou-lhe.

 

- Betty não é minha mulher, sabe? A minha legítima esposa não quis conceder-me o divórcio. As crianças são bastardas, toda essa tropa. E isso torna-as piores? Betty era uma das criadas da casinha de tijolo vermelho de Kensington. Há coisa de quatro ou cinco anos, fiquei em má situação financeira, com sete filhos às costas, e fui pedir à minha mulher legítima que me ajudasse. Ela respondeu que me daria uma pensão se eu deixasse a Betty e fosse morar no estrangeiro. Então, acha que posso deixar a Bétty? Preferi passar fome por algum tempo. Minha mulher disse que eu gostava da sarjeta, que degenerei, desci na escala social. Ganho três libras por semana como agente de publicidade de um vendedor de roupa branca. E todos os dias dou graças a Deus por não estar na casinha de tijolo vermelho de Kensington.

 

Sally trouxe o queijo de Cheddar e Athelny prossegruu na sua fluente conversa.

 

- O maior erro do mundo é pensar que o dinheiro é indispensável para educar uma família. Dinheiro é necessário para fazer senhoras e cavalheiros, mas não desejo ver os meus filhos transformados  :, em senhoras e cavalheiros. Daqui a um ano, Sally comecará a ganhar a vida. Ela vai entrar como aprendiza num *atelíer* de costura, não é, Sally? E os rapazes vão servir a pátria. Quero que entrem todos para a Marinha, é uma vida alegre, e sadia: boa alimentação, bom soldo e uma pensão para acabarem os dias.

 

Philip acendeu o cachimbo. Athelny fumava cigarros de tabaco havano, que ele próprio enrolava. Sally levantou a mesa. Philip mostrava-se reservado e embaraçado, por ser alvo de tantas confidências. Athelny, com a sua voz poderosa, muito forte para o seu corpo pequeno, com a sua ênfase e o seu ar exótico, era uma criatura surpreendente. Lembrava a Philip muitas coisas de Cronshaw. A mesma independência de espírito, o mesmo amor à boémia, mas um temperamento infinitamente mais vivo. Menos requintado, não se comprazia naquelas abstracções que tornavam tão cativante a conversa de Cronshaw. Muito cioso da sua origem aristocrática, mostrou a Philip as fotografias de um solar Isabelino e disse:

 

- Os Athelny viveram aí durante sete séculos, meu rapaz. Ah, se visse as chaminés e os tectos!

 

Havia um armário dissimulado na parede e dele Athelny tirou uma árvore genealógica, mostrando-a a Philip com uma satisfação infantil. Era de facto impressionante.

 

- Veja como se repetem os nomes da família; Thorpe, Athelstan, Harold, Edward. Servi-me deles para baptizar os meus filhos. E as filhas como vê receberam nomes espanhóis.

 

Philip sentiu mal-estar à ideia de que toda aquela história não passasse de uma impostura habilidosa, contada não com fins baixos, mas simplesmente pelo desejo de impressionar e surpreender. Athelny dissera-lhe ter feito os seus estudos em Winchester, mas Philip, sensivel às diferenças de maneiras, não via no seu novo amigo as características do homem educado num colégio de primeira ordem. Enquanto Athelny enumerava as grandes alianças que os seus antepassados tinham contraído, Philip divertiu-se a imaginar se o homem não seria filho de algum comerciante de Winchester, leiloeiro ou negociante de carvão, e se uma semelhança de sobrenome não seria a única ligação que havia com a antiga família cuja árvore genealógica exibia.

 

Ouviu-se bater à porta e as crianças entraram em tropel.

Estavam agora limpas e arranjadas, rostos reluzentes à força de sabão, e cabelos alisados. Sally ia levá-los à escola dominical.

Athelny gracejou com eles, na sua maneira teatral e exuberante, e via-se que era devotado a todos. O orgulho que tinha da boa saúde e aspecto dos filhos era comovedor. Philip achou que as crianças estavam um pouco intimidadas pela sua presença e quando o pai as despediu, saíram a correr da sala, visivelmente aliviadas. Poucos instantes depois, Mrs. Athelny entrou. Tinha tirado os ganchos e penteado a franja com esmero. Trajando um vestido preto muito simples, com um chapéu enfeitado de flores baratas, esforçava-se por introduzir as grandes mãos, avermelhadas pelo trabalho, em luvas de pelica preta.

 

- Vou à igreja, Athelny - disse. - Precisas de alguma coisa?

 

- Das tuas preces somente, minha Betty.

 

- Não te valerão de grande coisa, estás perdido há muito -gracejou ela. Depois, voltando-se para Philip, disse em voz arrastada: - Não consigo levá-lo à igreja. _é um verdadeiro ateu.

 

- Não parece a segunda mulher de Rubens? - exclamou Athelny. - Vestida à moda do século XVII, ficaria esplêndida. _é o género de mulher que nos serve, meu rapaz. Olhe para ela.

 

- Falas pela tripas de Judas, Athelny - replicou ela tranquilamente.

 

Conseguiu afinal abotoar as luvas, mas, antes de sair, voltou-se para Philip, com um sorriso bondoso e levemente embaraçado.

 

- Fica para o chá, não? Athelny gosta de ter com quem conversar e não é muito vulgar ter um companheiro inteligente para isso.

 

- Claro que fica para o chá - disse Athelny. E quando a mulher se foi, acrescentou: - Faço empenho em mandar as crianças à escola dominical e gosto que Betty vá à igreja. A religião é excelente para as mulheres. Não sou religioso, mas gosto, que mulheres e as crianças o sejam.

 

Philip, exigente em matéria de verdade, ficou um tanto escandalizado por essa atitude leviana.

 

- Mas como pode deixar que ensinem a seus filhos coisas que o senhor considera não serem verdade?

 

-Se são coisas belas, não me importa muito que não sejam verdadeiras. Querer satisfazer a razão, ao mesmo tempo que o senso estético, é pedir muita coisa. Preferia que Betty fosse católica-romana, gostaria de vê-la, no dia da sua conversão, coroada de flores de papel, mas ela é irremediavelmente protestante. Além disso, a religião é uma questão de temperamento. Se o seu espírito se inclinar para ela, acreditará em não importa o quê. Se não for, de nada lhe servirá o que lhe inculcarem, pois acabará por afastar-se dela. A religião é talvez a melhor escola de moral. É como uma dessas drogas que vocês, médicos, empregam e que contêm outras em solução: não são eficazes por si mas permitem a absorção das outras. A religião faz absorver a moral. Perde-se a primeira e fica a segunda. E é mais provável ser-se um homem de bem tendo aprendido a bondade através do amor de Deus do que pela leitura de Herbert Spencer.

 

Isto era contrário a todas as ideias de Philip. Considerava ainda o Cristianismo uma servidão degradante, da qual devíamos libertar-nos a todo o custo. O seu subconsciente associava a religião às cerimónias intermináveis da catedral de Tercanbury e às longas horas de tédio na fria igreja de Blackstable. A moral de que falava Athelny não era, para ele, mais do que uma parte da religião, conservada pela inteligência coxa, depois de libertar-se das crenças indispensáveis para lhe servir de base. Mas, como ele meditava a resposta, Athelny mais disposto a ouvir-se falar do que a discutir, enveredou por uma longa tirada sobre o Catolicismo Romano. Achava que essa religião representava um aspecto essencial da Espanha, essa Espanha que tanto significava para ele, porque se refugiara ali para esquecer o convencionalismo que durante a vida conjugal achara tão irritante. Com gestos largos e naquele tom enfático que tanta força dava ao que dizia, Athelny descreveu a Philip as catedrais espanholas, com os seus vastos espaços sombrios, o ouro maciço do altar, as sumptuosas grades de ferro, douradas e desbotadas, o ar carregado de incenso, o silêncio. Philip quase chegava a ver os cónegos, metidos em sobrepelizes curtas de cambraia, os acólitos de vermelho, a passar da sacristia para o coro; ouvia quase o monótono salmodiar das vésperas. Os nomes que Athelny mencionava, Ávila, Tarragona, Saragoça, Segóvia, Córdova, ressoavam-lhe no coração como trombetas. E Philip parecia ver os grandes edifícios de granito cinzento, engastados nas velhas cidades espanholas, no meio de uma paisagem amarelenta, áspera e varrida pelo vento.

 

- Sempre tive vontade de ir a Sevilha - disse tranquilamente, quando Athelny, com a mão ainda levantada num gesto dramático, fez uma pequena pausa.

 

- Sevilha! - exclamou Athelny. - Não, não, não vá lá. Sevilha faz lembrar raparigas dançando ao som de castanholas, cantando nos jardins à beira do Guadalquivir, corridas de touros, flores de laranjeira, *mantones de Manila*. Essa é a Espanha da ópera cómica e de Montmartre. Só uma inteligência superficial se deixará seduzir de modo permanente pelo seu encanto fácil. Théophile Gautier tirou de Sevilha tudo quanto ela podia oferecer. Chegámos depois dele e só podemos repetir o que ele sentiu. Gautier pôs as manápolas gordas sobre o que era evidente e lá nada há senão o evidente; e está tudo marcado de dedos e maculado. Murillo é o pintor dessa cidade.

 

Athelny levantou-se da cadeira, aproximou-se do móvel espanhol, baixou a parte dianteira com os seus grandes gonzos dourados e a sua soberba fechadura: apareceu uma série de pequenas gavetas Athelny tirou um maço de fotografias.

 

- Conhece El Greco? - perguntou.

 

- Ah... Lembro-me de que um dos meus amigos de Paris ficou muito impressionado com ele.

 

- El Greco foi o pintor de Toledo. - Athelny não conseguia achar a foto que queria mostrar. - _é um quadro que El Greco pintou da cidade que ele amava. Nenhuma fotografia é mais exacta. Vamos sentar-nos à mesa.

 

Philip empurrou a cadeira para diante e Athelny colocou-lhe a reprodução na frente. Este examinou-a longamente, com curiosidade e em silêncio. Estendeu a mão para agarrar mais fotografias que o outro lhe passou. Philip nada conhecia daquele mestre enigmático. No primeiro momento, o desenho arbitrário atrapalhou-o. As figuras eram extraordinariamente alongadas, as cabeças muito pequenas e as atitudes extravagantes. Aquilo não era realismo, e no entanto... no entanto, até na fotografia se tinha a impressão de uma perturbadora realidade. Athelny descrevia com ardor, em frases coloridas, mas Philip apenas o escutava vagamente. Estava confuso. Estranhamente comovido. Aqueles quadros pareciam dizer-lhe qualquer coisa, cujo sentido não compreendia. Eram retratos de homens de olhos grandes e melancólicos que pareciam dizer-nos não se sabia o quê. Eram espigados monges em hábitos franciscanos ou dominicanos de fisionomias atormentadas, fazendo gestos cujo sentido escapava ao observador. Havia uma Assunção da Virgem, uma Crucificação na qual o pintor, por uma espécie de magia, conseguara dar ao Cristo morto um corpo não apenas de carne bumana, mas de essência divina. E numa Ascenção, o Salvador parecia elevar-se ao Empíreo e no entanto manter-se com tanta segurança no ar como sobre a terra firme. Os braços levantados dos Apóstolos, as ondulações das suas roupagens, os gestos extáticos, davam uma impressão de exaltação e santa alegria. O fundo de quase todos os quadros era o céu nocturno, a escura noite da alma, com nuvens selvagens, impelidas pelos estranhos ventos do inferno e sinistramente iluminadas por uma lua inquietante.

 

- Vi muitas e muitas vezes esse céu em _toledo - disse Athelny.

 

- Tenho a ideia de que, quando pela primeira vez El Greco chegou à cidade, foi numa noite assim. E esse céu causou-lhe uma impressão tão forte, que nunca mais pôde esquecê-lo.

 

Philip lembrou-se de como Clutton se impressionara ante aquele estranho mestre, cuja obra via agora pela primeira vez. Clutton era, pensava ele, a pessoa mais interessante de todas quantas conhecera em Paris. A sua maneira sarcástica, o seu alheamento hostil tornavam difícil conhecê-lo. Mas, olhando para o passado, Philip descobrira-lhe uma forca trágica que em vão procurava expressar-se na pintura. Clutton era um homem de carácter invulgar, místico à maneira de uma época sem inclinações para o :, misticismo, e impacientava-se com a vida, por se achar incapaz de dizer coisas que obscuros impulsos do seu coração lhe sugeriam.

_o seu intelecto não fora moldado para as coisas do espírito. Nada de surpreendente, pois, na profunda simpatia que ele experimentava pelo grego que descobrira uma nova técnica para exprimir os anseios da sua alma. Philip tornou a olhar para a série de retratos de fidalgos espanhóis com folhos de renda na gola e barbas pontudas; rostos pálidos contra o negro sóbrio das suas roupas e a escuridão do fundo. El Greco foi o pintor da alma; e aqueles senhores, descorados e gastos, não pelo esgotamento mas pela sujeição, com os seus espíritos torturados, parecem andar alheios à beleza do mundo, pois os seus olhos apenas se voltam para os próprios corações, ofuscados pela glória do inefável. Nenhum pintor mostrou de modo mais impiedoso que o mundo não é mais que um lugar de passagem. As almas dos homens que pintou têm escritos nos olhos os seus estranhos anseios. Os seus sentimentos são milagrosarnente agudos, não para sons, aromas e cores, mas para as subtilíssimas sensações da alma. O nobre leva dentro de si um coração de monge e os seus olhos vêem as mesmas coisas que nas suas celas vêem os santos -- e isso não o surpreende. Os seus lábios não são lábios que sorriam.

 

Philip, ainda em silêncio, voltou à vista de Toledo, que para ele era a mais impressionante de todas as telas. Não podia tirar os olhos dela. Sentia de modo estranho que se achava no limiar de alguma nova descoberta da vida. A perspectiva da aventura fazia-o tremer. Pensou por um instante no amor que o consumira: o amor parecia demasiado trivial ao lado da exaltação que lhe acelerava agora o ritmo do coração. O quadro que contemplava era mais comprido que largo, e mostrava um grupo de casas amontoadas em cima de um outeiro; a um canto, um rapaz segurava um grande mapa da cidade; noutro, via-se a figura clássica que representava o rio Tejo; e no céu aparecia a virgem cercada de anjos. Essa paisagem era contrária a todos os conceitos de Philip, pois vivera em ambientes onde se prestava culto ao realismo; contudo, nenhum dos mestres, cujos passos ele procurara humildemente seguir, conseguira uma realidade maior. Philip ouviu Athelny dizer que a representação era tão precisa que, quando os cidadãos de Toledo olhavam para o quadro, chegavam a reconhecer as suas casas. O artista pintara exactamente aquilo que vira, mas vira com os olhos do espírito. Havia algo de sobrenatural naquela cidade de um cinzento pálido. Era uma cidade da alma, vista a uma luz desmaiada, que não era da noite nem do dia. Ficava sobre um outeiro verde, mas não de um verde deste mundo, e estava cercada de muralhas maciças e bastiões feitos para o assalto, não de qualquer engenho ou máquina inventada pelo homem, mas pelas preces e os jejuns, os suspiros contritos :, e as mortificações da carne. Era uma cidadela de Deus. Aqueles casas cinzentas não eram feitas de pedras manuseadas por canteiros; havia qualquer coisa de terrificante no seu aspecto e não se sabia que homens podiam viver lá dentro. Poder-se-ia caminhar pelas ruas sem pasmar de encontrá-las desertas, mas ainda assim não vazias, pois sentia-se uma presença invisível e no entanto manifesta aos sentidos interiores. Era uma cidade mística, na qual a imaginação vacilava como quem passa da claridade para a escuridão. _a alma desnuda por ali passeava, conhecendo o incognoscível, sentindo-se estranha possuidora de um conhecimento íntimo, mas inexprimível, do absoluto. E sem surpresa, naquele céu azul, real de uma realidade que só a alma percebe e não a vista, como os seus esgarçados farrapos de nuvens arrastados por estranhos ventos, como os gritos e os suspiros das almas penadas, via-se a Santa Virgem com roupagem vermelha e um manto azul, cercada de anjos alados. Philip sentia que os habitantes daquela cidade deviam ter visto a aparição sem espanto, reverentes e gratos, seguindo depois o seu caminho.

 

Athelny falou dos escritores místicos de Espanha, de Teresa de Ávila, San Juan de la Cruz, Fray Diego de Leon; em todos eles se encontrava essa paixão do não visto que Philip descobria nas pinturas de El Greco; pareciam ter o poder de tocar o incorpóreo e ver o invisível. Naquela geração de espanhóis fremiam ainda as gloriosas façanhas de uma grande nação. As suas imaginacões enriqueciam-se com os esplendores da América e das ilhas verdes do  _mar das Caraíbas. Traziam nas veias a força de vários séculos de combates contra os mouros. Ciosos de serem os senhores do mundo, levavam consigo os grandes espaços, os pardacentos descampados e as montanhas coroadas de neve de Castela, o Sol, o azul do céu e os prados floridos da Andaluzia. Apaixonada e vária, essa vida tão plena e tão rica dava-lhes um intérmino anseio de conquistar mais. Insatisfeitos como todos os humanos, lançavam-se com toda essa vitalidade na busca ansiosa do inefável. A Athelny não desagradava encontrar alguém a quem pudesse ler as traduções com que por algum tempo preenchera os seus lazeres. Com a sua voz bela e bem timbrada, recitou o "Cântico da Alma e do Cristo seu Esposo", o poema encantador que começa com as palavras *en una noche oscura*, e depois a *noche serena* de Fray Luis de Leon. Traduzira-os com grande simplicidade, mas não sem talento, e encontrara palavras que, em todo caso, sugeriam a áspera grandeza do original. Os quadros de El Greco explicavam os poemas e os poemas explicavam os quadros.

 

Philip professara certo desdém pelo idealismo. Tivera sempre a paixão da vida, e o idealismo que se lhe deparara afigurava-se-lhe, em geral, uma fuga covarde a essa mesma vida. Incapaz de suportar os embates da multidão, o idealista isolava-se. Faltava-lhe força para lutar e por isso classificava a batalha de volgar; era vaidoso e, como os seus semelhantes não o estimassem, segundo ele, pelo seu justo valor, consolava-se com o desprezo que lhes votava. Para Philip, Hayward era o seu tipo representativo: louro, lânguido e agora excessivamente gordo, com um princípio de calvície, zelava pelos restos da sua beleza e reservava-se sempre o prazer delicado de criar obras perfeitas num futuro incerto. No fundo disso, a bebida e triviais amores de rua. Era para reagir ao que Hayward apresentava que Philip clamava pela vida tal como era. Imundície, vício, fealdade eram coisas que não o chocavam. Declarava querer o homem na sua nudez, e, a cada exemplo de baixa crueldade, de egoísmo, de luxúria, esfregava as mãos: isso era a vida. Em Paris, aprendera que não havia beleza nem fealdade, mas apenas a verdade; a busca da beleza era sentimentalismo. Não pintara um anúncio do *chocolat Meunier* numa paisagem, para fugir à tirania do bonito?

 

Aqui, porém, parecia adivinhar algo de novo. Havia algum tempo que procurava, mas só agora tinha consciência disso. Sentia-se em vésperas de uma descoberta. Parecia-lhe vagamente existir alguma coisa melhor do que o realismo, que adorara. Mas, evidentemente, não se tratava aqui do idealismo exangue que se aparta da vida por fraqueza. _era, antes, a aceitação forte e viril da vida em toda a sua vivacidade, beleza e esqualidez, heroísmo e abjecção. Era ainda realismo, mas um realismo levado a um grau superior, no qual os factos se transformavam sob uma claridade mais viva. Parecia-lhe que aprofundava melhor as coisas através dos olhos daqueles fidalgos mortos de Castela, e os gestos dos santos, a princípio tresloucados e torturados, adquiriam um significado misterioso. Mas não sabia qual. Tinha a ideia de uma mensagem muito importante a receber, mas transmitida numa língua desconhecida. Esperara sempre encontrar o sentido da vida, e ali, se bem que ainda obscuro, ele se lhe oferecia. Sentia-se profundamente perturbado. Esse princípio de verdade, discernia-o como se distingue uma cadeia de montanhas à luz de relâmpagos, numa sombria noite de tempestade. Afigurava-se-lhe que um homem não devia entregar a própria vida ao acaso, mas que a sua vontade devia ser poderosa. Dir-se-ia que o domínio sobre si próprio podia ser tão ardente e tão activo como o abandono às paixões: a vida interior oferecia tanta diversidade, tantas riquezas como a vida daquele que conquista reinos e explora terras desconhecidas.

 

A conversa entre Philip e Athelny foi interrompida por um tempestuoso subir da escada. Athelny abriu a porta às crianças, que voltavam da escola dominical. E, entre gritos e risadas, elas entraram. O pai perguntou-lhes alegremente o que tinham aprendido. Sally apareceu por um momento, com instrucções da mãe para que Athelny entretivesse as crianças enquanto ela aprontava o chá. Começou a contar-lhes uma das histórias de Andersen. Não eram crianças acanhadas e depressa chegaram à conclusão de que não havia razão para temer Philip. Jane aproximou-se dele e, em dado momento, sentou-se-lhe nos joelhos. Era a primeira vez que Philip, na sua vida solitária, entrava num ambiente de família: os seus olhos sorriam ao pousarem nas louras crianças atentas ao conto de fadas. A vida do seu novo amigo, embora parecesse excêntrica à primeira vista, revelava agora possuir a beleza da perfeita naturalidade. Sally tornou a entrar:

 

-- _vamos, meninos, o chá está pronto - disse.

 

Jane fugiu dos joelhos de Philip e dirigiram-se todos para a cozinha. Sally comecou a estender a toalha na comprida mesa espanhola.

 

- A mãe pergunta se pode vir tomar chá com os senhores. Eu servirei o chá aos pequenos - disse ela.

 

-- Diz à tua mãe que ficaremos muito orgulhosos e honrados se ela nos favorecer com a sua companhia - respondeu Athelny.

 

Philip teve a impressão de que ele era incapaz de dizer qualquer coisa sem floreios de oratória.

 

-- Então, vou pôr a mesa para ela - disse Sally.

 

Em breve voltava trazendo uma bandeja em que se via um pão feito em casa, um naco de manteiga e um frasco de compota de morangos. Enquanto colocava as coisas na mesa, o pai gracejava com ela. Dizia-lhe que já era tempo de arranjar marido. Contou a Philip que ela era muito orgulhosa e não queria saber dos candidatos que se alinhavam à porta, dois a dois, do lado de fora da escola dominical, e que ambicionavam o privilégio de acompanhá-la até casa.

 

- O pai diz cada uma! - volveu Sally com o seu sorriso plácido e bem-humorado.

 

- Olhando para ela, ninguém diz que um oficial de alfaiate se alistou no Exército só porque ela não o cumprimentava, e um engenheiro electricista, veja bem, um engenheiro electricista, deu em beber, só porque Sally, na igreja, se recusou a compartilhar com ele o seu hinário. Estremeço só de pensar no que vai acontecer, quando ela pentear o cabelo para cima.

 

- A mãe trará depois o chá - disse Sally.

 

- Sally nunca me presta a menor atenção - riu Athelny, contemplando-a com um olhar de amoroso orgulho. - Trata das suas ocupações, indiferente a guerras, revoluções ou cataclismos. Que esposa para um homem de bem!

 

Mrs. Athelny trouxe o chá. Sentou-se e principiou a cortar o pão e a pôr-lhe manteiga. Philip divertia-se por ver que ela tratava o marido como se este fosse uma criança. Serviu-lhe geleia e cortou para ele o pão com manteiga em fatias de tamanho conveniente. Tirara o chapéu e com o vestido de domingo, que parecia um pouco justo, lembrava uma dessas mulheres do campo que Philip, quando era criança, costumava visitar em companhia do tio. Descobriu, então por que lhe era familiar o som da sua voz. Falava tal qual como a gente dos arredores de Blackstable.

 

- De que lugar é a senhora? - perguntou-lhe.

 

- De Kent. Sou de Ferne.

 

- Era o que eu pensava. Meu tio é o vigário de Blackstable.

 

- Que graça! - exclamou ela. - Na igreja, estive a pensar se o senhor teria algum parentesco com o Reverendo Carey. Vi-o muitas vezes. Tenho uma prima que casou com Mr. Barker, de Roxley Farm, ao pé da igreja de Blackstable. Estava sempre em casa deles, quando era nova. Não é tão engraçado?

 

Olhou para o rapaz com um interesse novo e os seus olhos cansados brilharam. Perguntou-lhe se conhecia Ferne. Era uma bonita aldeia, a cerca de dez milhas de Blackstable e o pastor desse lugar ia às vezes a Blackstable, para a Festa da Colheita. Mencionou os nomes de várias pessoas das redondezas. Estava encantada por falar na região onde passara a juventude. E era um prazer para ela recordar cenas e pessoas que lhe permaneciam na memória com a tenacidade peculiar à sua classe. Isso dava a Philip uma sensação esquisita. Um bafejo do campo parecia entrar de repente naquela sala de painéis de madeira, em plena cidade de Londres. Parecia-lhe ver os fartos campos de Kent, com os seus olmos imponentes, e as narinas dilatavam-se-lhe ao perfume daquele ar carregado do sal do Mar do Norte, que o torna vivo e penetrante.

 

Philip só deixou os Athelny às dez horas. As crianças entraram às oito, para dar as boas-noites, e, com a maior naturalidade, ofereceram a Philip as faces para beijar. O rapaz ficou comovido. Sally apenas lhe estendeu a mão.

 

- Sally nunca beija os cavalheiros antes de os ver duas vezes -explicou o pai.

 

- Então o senhor tem que me convidar outra vez - disse Philip.

 

- Não deve dar ouvidos ao que o pai diz - observou Sally, com um sorriso.

 

- _é a mais senhora do seu nariz - acrescentou Athelny.

 

Cearam pão, queijo e cerveja, enquanto Mrs. Athelny metia as crianças na cama. E, quando Philip foi à cozinha dar-lhe  as boas-noites (lá estava sentada, descansando e a ler o *_Weekly _despatch*), ela convidou-o cordialmente a voltar.

 

- Temos sempre um bom almoço aos domingos, quando o Athelny tem emprego. E vir conversar com ele e até uma obra de caridade.

 

No sábado seguinte, Philip recebeu um postal de Athelny, a dizer que o esperavam para almoçar no dia seguinte. _temendo, porém, que os recursos da família não fossem tantos que Athelny desejasse a aceitação do convite, Philip escreveu-lhe a avisar que iria apenas para o chá. Comprou um grande bolo de ameixas para que a sua visita não fosse dispendiosa para a família. Verificou que os Athelny o recebiam com alegria e o bolo completou-lhe a conquista das crianças. Philip insistiu para que todos tomassem chá, juntos, na cozinha e a refeição foi ruidosa e divertida.

 

Em breve Philip se habituou a ir a casa dos Athelny todos os domingos. Tornou-se um grande favorito das crianças porque era simples, sem afectações e porque demonstrava gostar dos pequenos. Logo que ouviam a campainha da porta, um deles espreitava pela janela, para ver se era de facto Philip e, depois, precipitavam-se todos para a escada, em tumulto, para lhe abrirem a porta. Atiravam-se-lhe aos braços. Ao chá brigavam pelo privilegio de se lhe sentar ao lado. _e em breve principiaram a chamar-lhe tio Philip.

 

Athelny era muito comunicativo e, paulatinamente, Philip conheceu-lhe os vários estádios da vida. Seguira muitas profissões, e Philip suspeitou que devia deitar a perder todas as empresas em que se metia. Estivera numa plantação de chá, em Ceilão, e fora caixeiro-viajante de vinhos italianos na América. Como secretário da Companhia de Águas de Toledo, trabalhara mais tempo do que em qualquer dos outros empregos. Fora também jornalista e, por algum tempo, trabalhara como repórter para um vespertino: ocupara ainda o posto de subdirector de um jornal do centro da Inglaterra e chegara a ser o director de outro, na Riviera. De todas as suas diferentes ocupações, recolhera inúmeras anedotas divertidas, que contava com um vivo prazer com a sua capacidade de narrador. Lera muito e deliciava-se principalmente com livros raros; expunha as suas reservas de conhecimentos abstrusos com um prazer infantil, ante o espanto dos interlocutores. Havia três ou quatro anos, a mais negra pobreza levara-o a aceitar o trabalho de agente de publicidade de uma grande firma de panos. Embora achasse o trabalho indigno do seu talento, que ele próprio tinha em grande conta, a firmeza da mulher e as necessidades da família conseguiram que não o abandonasse.

 

Quando deixava os Athelny, Philip caminhava até Chancery Lane e atravessava o Strand, para tomar um ónibus na extremidade da Parliament Street. Num domingo, quando havia já cerca de seis semanas que frequentava a casa de Athelny, seguiu o caminho de sempre, mas o ónibus de Kensington ia cheio. Estava-se em Junho, mas chovera durante o dia e a noite estava fria e húmida. Philip andou até Piccadilly Circus, a fim de conseguir lugar. _o ónibus costumava parar junto ao chafariz e quando chegava ali, raramente trazia mais de dois ou três passageiros. Havia um carro de quinze em quinze minutos e Philip teve de esperar algum tempo. Contemplou distraído a multidão. Os cafés estavam a fechar e havia muita gente pelos arredores. Repercutiam-se ainda no espírito as ideias que Athelny tinha o dom mágico de sugerir.

 

De súbito, o seu coração cessou de bater. Acabava de ver Mildred. Havia semanas que não pensava nela. A rapariga atravessou a Shaftesbury Avenue e parou no abrigo, para esperar o desfile de uma série de trens. Aguardando a oportunidade de passar, não tinha olhos para mais nada. Trazia um grande chapéu de palha negra, enfeitado de plumas abundantes, e envergava um vestido de seda preta. Naquele tempo, andavam em moda os vestidos de cauda. O caminho ficou livre e Mildred atravessou a rua com a saia a arrastar pelo chão e desceu o Piccadilly. Com o coração a bater descompassadamente, Philip seguiu-a. Não lhe queria falar, mas apenas saber para onde se dirigia a tal hora. Desejava ver-lhe o rosto. Mildred continuava a caminhar vagarosamente e dobrou para a Air Street, a fim de entrar na Regent Street. Tornou a subir na direcção do Circus. Philip estava intrigado. Não podia compreender o que significava aquele ir e vir. Talvez estivesse à espera de alguém, e sentiu uma grande curiosidade por saber quem fosse. Mildred alcançou um homem atarracado, que caminhava em passadas lentas, na mesma direcção que ela. Olhou-o de soslaio ao passar. Deu mais alguns passos e, chegando à frente da casa de modas *_Swan e Edgar*, parou e ficou à espera, voltada para a rua. Quando o homem se aproximou, ela sorriu. O homem encarou-a por um instante, voltou a cabeça para o outro lado e continuou a andar. Philip compreendeu então.

 

Foi assaltado de um horror indescritível. Por momentos, sentiu nas pernas uma fraqueza tal que mal se podia manter em pé. Seguiu-a depois rapidamente e tocou-lhe no braço.

 

- Mildred.

 

Ela voltou-se com um violento sobressalto. Philip teve a impressão de que ela ficara vermelha, mas a obscuridade impediu-o :, de ver bem. Por algum tempo, ficaram frente a frente, a olhar um para o outro sem dizer palavra. Por fim, disse:

 

- Imagine-se que encontro!

 

Ele não soube que responder. Estava tremendamente abalado e as frases que se lhe atropelavam no cérebro pareciam incrivelmente melodramáticas.

 

- Que horror! - murmurou arquejante e quase para si próprio.

 

Ela mais nada disse e, voltando-se, fitou os olhos no chão. Philip sentiu que o rosto se lhe contraía de sofrimento.

 

- Não haverá um sítio onde possamos conversar?

 

- Não quero conversar - respondeu ela de mau modo. - Deixe-me em paz, ouviu?

 

Ocorreu a Philip a ideia de que talvez ela tivesse urgente necessidade de dinheiro e por isso não pudesse retirar-se àquela hora.

 

- Se estás muito precisada, tenho aqui duas libras - disse ele, à toa.

 

- Não sei o que quer dizer. Passava por aqui, a caminho de casa.

Esperava encontrar uma das pequenas da casa onde trabalho.

 

- Não mintas agora, por amor de Deus - replicou ele.

 

Depois, vendo que ela estava a chorar, repetiu a pergunta:

 

- Não podemos ir conversar para algum sítio? Não posso ir ao teu quarto?

 

- Não pode, não - soluçou ela. - Não tenho licença para levar homens para lá. Se quiser, encontramo-nos amanhã.

 

Estava certo de que Mildred não compareceria ao encontro. Não consentiria que ela lhe fugisse.

 

- Não. Tens de me acompanhar a qualquer sítio agora mesmo.

 

- Está bem. Sei de um quarto, mas cobram seis xelins.

 

- Pouco me importa. Onde é?

 

Ela deu-lhe o endereço e Philip chamou um trem. Dirigiram-se para uma rua escura para lá do *_British Museum*, nas proximidades de Gray.s Inn Road. Mildred fez o carro parar à esquina.

 

- Não gostam que a gente vá de carro até à porta - disse.

 

Eram as primeiras palavras que um deles pronunciava, desde que haviam entrado no trem. Andaram uns metros e Mildred bateu a uma porta três pancadas secas. Philip distinguiu na penumbra um cartaz, a anunciar quartos para alugar. Uma mulher alta e idosa abriu-lhes a porta tranquilamente e fê-los entrar. Lançou um olhar inquiridor a Philip e dirigiu-se a Mildred em voz baixa. Mildred conduziu-o através de um corredor até um quarto que ficava nas traseiras. Estava às escuras. A rapariga pediu-lhe fósforos e acendeu o bico de gás. Como não houvesse globo, a :,

chama brilhou num clarão ofuscante. Philip viu que se encontrava num quarto de dormir sórdido, pequeno de mais para a mobília pintada, a imitar madeira boa. As cortinas de renda estavam muito sujas. Um grande biombo de papel dissimulava a grade do fogão. Mildred atirou-se para cima de uma cadeira. Philip sentou-se na beira da cama. Sentia vergonha. Via agora que as faces de Mildred estavam empastadas de carmim, e as sobrancelhas enegrecidas a carvão. Mas ela estava magra e doente e o vermelho das faces exagerava-lhe o esverdeado palor da pele. Mildred contemplava o biombo com ar vago. Philip não achava que dizer e sentia na garganta uma espécie de sufocação de choro. Tapou os olhos com as mãos.

 

- Que horror, meu Deus! - gemeu ele.

 

- Não sei por que está tão espantado. Pensei que ficaria satisfeito.

 

Philip não respondeu e, instantes após, ela rompeu num soluço.

 

- Pensa que faço isto por gosto, não pensa?

 

- Oh! Querida - exclamou ele. - Sinto muito, sinto tanto, tanto. ..

 

-- Sim... Isso valer-me-á de muito...

 

Philip tornou a emudecer. Tinha um medo desesperado de dizer alguma coisa que ela pudesse tomar por censura ou escárnio.

 

- Onde está a criança? - perguntou por fim.

 

- Está comigo, aqui, em Londres. Como não tinha dinheiro para

continuar com ela em Brighton, aluguei um quarto em Highbury e foi busca-la. Disse que trabalhava no teatro. Vir de lá todos os dias para West End é o mesmo que fazer uma viagem. Mas é difícil encontrar quem queira alugar quarto a uma mulher sozinha.

 

- Não quiseram readmitir-te na casa de chá?

 

- Não achei trabalho em parte alguma. Quase que gastei as pernas à procura de emprego. Uma vez, cheguei a conseguir um lugar, mas só durou uma semana, porque estava fraca e um dia, quando ia trabalhar, disseram que não me queriam mais. A culpa não é deles. Precisam de raparigas que sejam fortes, naqueles lugares.

 

- O teu aspecto não é muito bom. - observou Philip.

 

- Não estava em condições de sair esta noite. Mas que fazer? Necessitava de dinheiro. Escrevi ao Emil, a dizer que não tinha recursos, mas nem se deu ao trabalho de responder à carta.

 

- Podias ter-me escrito.

 

- Depois do que aconteceu não tive coragem e também não queria que soubesse que estava em dificuldades. Não ficaria admirada se me dissesse que tinha o que merecia.

 

- Não me conheces bem, sabes? Nem agora.

 

Por um momento, ficou a recordar a angústia que sofrera por causa dela e sentiu mal-estar à recordação da sua dor. Mas aquilo não passava de mera recordação. Ao olhar para Mildred, via que já não a amava. Tinha muita pena, mas estava contente por se achar livre. Contemplando-a gravemente, perguntava a si próprio por que se deixara imbecilizar a tal ponto por aquela paixão por ela.

 

- É um cavalheiro em toda a extensão da palavra - disse Mildred. - _é o único que jamais encontrei. - Fez uma pequena pausa e depois corando: - aborrece-me pedir-lhe, Philip, mas pode dar-me alguma coisa?

 

- Por sorte, trago algum dinheiro comigo. Parece-me que só tenho duas libras.

 

Deu-lhe os soberanos.

 

- Depois lhe pago, Philip.

 

- Oh!... não tem importância. Não te preocupes - e sorriu.

 

Nada dissera do que desejara dizer. Haviam conversado como se tudo aquilo fosse natural e parecia que ela voltaria ao horror da sua vida e ele nada faria para impedi-lo. Mildred levantara-se para pegar no dinheiro e ambos estavam de pé.

 

- Estou a tomar-lhe o tempo? - perguntou ela. - Com certeza quer ir para casa.

 

- Não, não tenho pressa - respondeu ele.

 

- Estou satisfeita por ter a sorte de estar sentada.

 

Estas palavras, com tudo o que traziam implícito, dilaceraram-lhe o coração. E era terrivelmente doloroso ver o ar exausto com que ela se deixou cair de novo na cadeira. O silêncio prolongou-se tanto que Philip, embaraçado, acendeu um cigarro.

 

- Foi muito bom em não me dizer nada desagradável. Pensei que fosse dizer não sei o quê...

 

Viu que ela chorava de novo. Lembrou-se de quando Mildred voltara para ele, depois de ter sido abandonada por Miller e de como chorara. A recordação do sofrimento dela e da sua própria humilhação parecia tornar mais transbordante ainda a compaixão que sentia agora.

 

- Se ao menos pudesse sair disto! - gemeu ela. - Odeio esta vida. Não fui feita para ela. Não tenho jeito. Era capaz de fazer tudo para me ver livre. Até ser criada, se pudesse. Oh! preferia ter morrido.

 

E, lamentando a própria sorte, entregou-se livremente ao pranto. Soluçava histericamente e o seu corpo magro sacudia-se todo.

 

- _oh, não sabe o que isto é. Só se sabe quando se cai nela.

 

Philip não podia suportar aquele choro. Torturava-o o horror da situação.

 

- Pobrezinha! - murmurava. - Pobrezinha!

 

Estava profundamente comovido. De repente, teve uma inspiração, que o encheu de um perfeito êxtase de felicidade.

 

- Escuta, se queres sair disso, tenho uma ideia. Estou, agora muito mal de dinheiro. Preciso de fazer todas as economias possíveis, mas moro numa pequena casa, em Kensington, e tenho um quarto desocupado. Se quiseres, podes ir morar lá com a tua filha. Pago três xelins e seis *pence* por semana, para uma mulher cozinhar e fazer a limpeza. Podias encarregar-te disso e o dinheiro que pago à mulher daria mais ou menos para custear a maior despesa da comida. Onde come um, comem dois e acho que a criança não faz grande diferença.

 

Mildred parou de chorar e olhou para ele.

 

- Quer dizer que, depois de tudo quanto aconteceu, ainda me aceita?

 

Philip corou um pouco, embaraçado diante do que precisava dizer.

 

- Quero que me compreendas. Só te darei um quarto que nada me custa, e o teu sustento. Nada mais espero de ti, além do trabalho que a mulher da casa faz. Fora disso, nada quero de ti. Espero que saibas cozinhar o bastante.

 

Ela pôs-se em pé e quis caminhar para ele.

 

- Como é bom para mim, Philip.

 

- Não, por favor, fica onde estás - disse ele, apressado, estendendo a mão como para afastá-la.

 

Não sabia porquê; parecia-lhe que seria impossível suportar o contacto dela.

 

- Não quero ser para ti mais do que um amigo.

 

- Como é bom para mim - repetiu ela. - Como é tão bom para mim!

 

- Então aceitas?

 

- Aceito, sim, farei tudo para sair disto. Nunca se arrependerá do que fez, Philip, nunca. Quando posso ir?

 

- Será melhor amanhã.

 

De súbito, ela desatou de novo a chorar.

 

- Por que diabo choras agora? - perguntou Philip.

 

- Estou tão agradecida... Não sei como poderei retribuir-lhe...

 

- Oh, não tem importância. É melhor ires agora para casa.

 

Deu-lhe o endereço e disse-lhe que, se fosse às cinco e meia, estaria a esperá-la. Era tão tarde que Philip teve de ir a pé para casa, mas o caminho não lhe pareceu longo porque estava embriagado de felicidade. Parecia não pisar o chão.

 

No dia seguinte, Philip levantou-se cedo para aprontar o quarto para Mildred. Disse à mulher que lhe cuidava da casa que já não precisava dela. Mildred chegou às seis horas, mais ou menos, e Philip, que estava à janela, desceu para ajudá-la a trazer a bagagem. Esta consistia, agora, apenas em três grandes embrulhos de papel pardo, porque Mildred vira-se obrigada a vender tudo quanto não lhe fosse absolutamente necessário. Trazia o mesmo vestido de seda preta da noite anterior e, embora já não tivesse carmim nas faces, notava-se-lhe ainda nos olhos o negro que resistira à lavagem rápida da manhã; e isso dava-lhe um aspecto acentuadamente doentio. Ao descer do trem com a filha nos braços, era uma figura patética. Parecia um pouco acanhada e nada acharam para dizer um ao outro, além de coisas triviais.

 

- Chegaste sem novidade?

 

- Nunca morei nesta parte de Londres.

 

Philip mostrou-lhe o quarto. Era o mesmo onde Cronshaw morrera. Philip, embora achasse absurdo, nunca olhara com simpatia a ideia de voltar para ele. E, desde a morte de Cronshaw, ficara no quarto pequeno, dormindo na cama de campanha para a qual passara, a fim de proporcionar maior comodidade ao amigo. A criança dormia placidamente.

 

- Acho que nem se lembra dela - disse Mildred.

 

- Desde que a levámos para Brighton nunca mais a vi.

 

- Onde posso deitá-la? Está tão pesada que não posso pegar-lhe por muito tempo.

 

- Infelizmente não temos berço - disse Philip, com um riso nervoso.

 

- Ora! Dorme comigo. Está acostumada.

 

Mildred depôs a filha numa poltrona e correu os olhos pelo quarto. Reconheceu a maioria dos objectos que vira no antigo alojamento de Philip. Só uma coisa era nova: um retrato deste, pintado por Lawson no fim do Verão anterior; estava pendurado por cima da chaminé. Mildred examinou-o com os olhos críticos.

 

- Há coisas de que gosto e coisas de que não gosto. Acho que ao natural é melhor do que no retrato.

 

- Ah! As coisas estão melhor -- notou Philip, a rir. - Nunca me disseste que eu tinha boa aparência.

 

- Não sou dessas que se preocupam com a cara dos homens. Não gosto de homens bonitos. São muito presunçosos.

 

Os olhos dela varejaram o quarto, na busca instintiva de um espelho. Mas não havia nenhum. Mildred ergueu a mão e endireitou a grande franja de cabelo.

 

- Que dirá a gente da casa, da minha vinda para aqui? - perguntou de súbito.

 

--  Ora, aqui só mora um homem com a mulher. Passa o dia fora e nunca vejo a mulher, a não ser aos sábados, quando vou pagar o aluguer. Vivem retraídos. Desde que vim para cá, não troquei duas palavras com essa gente.

 

Mildred dirigiu-se ao quarto de dormir, para desempacotar as suas coisas e colocá-las em ordem. Philip tentou ler, mas a sua exaltação não lho permitiu. Repoltreou-se na cadeira, a fumar um cigarro, e, com os olhos sorridentes, pôs-se a observar a criança que dormia. Sentia-se feliz. Estava absolutamente certo de que já não amava Mildred. Causava-lhe surpresa que o antigo sentimento o tivesse deixado de maneira tão completa. Percebia uma leve repulsa física por ela. Achava que, se lhe tocasse, ficaria todo arrepiado. Não podia compreender. Pouco depois, Mildred bateu à porta e entrou.

 

- Ora? não precisas de bater - disse-lhe. - Já deste uma volta pelo palácio?

 

- É a mais pequena cozinha que vi neste mundo.

 

- Hás-de achá-la de bom tamanho para cozinhar os nossos sumptuosos repastos - retorquiu ele, jovialmente.

 

- Reparei que não há nada em casa. É melhor eu sair, para comprar alguma coisa.

 

 - Sim, mas ouso lembrar-te que devemos ser muitíssimo económicos.

 

-- Que devo fazer para o jantar?

 

- _é melhor escolheres os pratos que sabes preparar - disse Philip a rir.

 

Deu-lhe algum dinheiro e ela saiu. Voltou meia hora mais tarde e pôs as compras em cima da mesa. Estava ofegante por ter subido as escadas.

 

- _és anémica - observou Philip. - Vou dar-te pílulas de Blaud.

 

- Levei muito tempo para encontrar os estabelecimentos. Comprei fígado. É saboroso, não é? Não se pode comer muito, e assim fica mais económico do que carne.

 

Havia na cozinha um fogão a gás e Mildred, depois de pôr o fígado ao lume, voltou para a sala de estar a fim de preparar a mesa.

 

- Por que pões só um talher? - indagou Philip. - Não queres comer nada?

 

Mildred corou.

 

- Pensei que não queria que me sentasse à mesa consigo.

 

- Mas por que diabo não havia de querer?

 

- Ora, sou apenas uma criada.

 

- Não sejas parva. Como podes ser assim tão tola?

 

Philip sorriu, mas aquela humildade confrangia-lhe o coração de um modo curioso. Coitadinha! Lembrou-se de quando a vira pela primeira vez. Hesitou um instante.

 

- Não penses que estou a fazer-te um favor - disse. - Trata-se de um acordo perfeitamente comercial. Dou-te casa e comida em troca do teu trabalho. Não me ficas a dever nada e nada há nisso de humilhante para ti.

 

Ela não respondeu, mas grossas lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces. Philip sabia, pela sua experiência no hospital, que as mulheres daquela classe consideravam o trabalho da casa como degradante. Não pôde deixar de sentir-se um pouco irritado com ela. Mas censurou-se por isso, pois era evidente que Mildred estava cansada e doente. Levantou-se e ajudou-a a pôr outro talher na mesa. A criança acordara e Mildred preparou-lhe o biberão. O fígado e o toucinho estavam prontos. Sentaram-se ambos à mesa. Por economia, Philip só bebia água, mas tinha em casa meia garrafa de *whisky* e julgou que um gole faria bem a Mildred. Fez o que pôde para que a refeição decorresse animada, mas Mildred estava abatida e exausta. Quando terminaram, ela ergueu-se e levou a filha para a cama.

 

- Acho que te fará bem o deitar cedo - disse Philip. - Pareces completamente derreada.

 

- Penso em ir-me deitar depois de lavar a louça.

 

Philip acendeu o cachimbo e começou a ler. Era-lhe agradável ouvir alguém a mexer na sala contígua. _às vezes, a solidão oprimia-o. Mildred entrou para levantar a mesa e Philip ouviu o ruído dos pratos que ela lavava. Sorriu ao pensar como era característico de Mildred fazer tudo aquilo de vestido de seda preta. Mas tinha que estudar. Trouxe o livro para a mesa. Estava a ler a *_Medicina*, de Osler, que acabava de substituir, na preferência dos estudantes, o livro de Taylor, por muitos anos o tratado favorito. Pouco depois, Mildred entrou, descendo as mangas. Philip lançou-lhe um olhar, mas não se moveu. O momento era curioso e sentia-se um pouco nervoso. Temia que Mildred o imaginasse capaz de se aproveitar da situação. Não sabia bem como tranquilizá-la, sem brutalidade.

 

- A propósito, amanhã tenho uma aula às nove e gostaria que me servisses o pequeno almoço às oito e um quarto. Podes arranjar-me isso?

 

- Claro que sim. Quando estava na Parliament Street, todas as manhãs tomava o comboio das oito e doze, em Herne Hill.

 

- Espero que gostes do teu quarto. Depois de uma noite bem dormida, vais sentir-te outra.

 

- Estuda até tarde?

 

- Em geral, até às onze ou onze e meia.

 

- Então vou dar-lhe boa-noite.

 

- Boa-noite.

 

Estavam separados pela mesa. Philip não lhe estendeu a mão. Mildred fechou a porta sem ruído. Ouviu-lhe os passos no quarto e dentro em pouco o rangido da cama advertia-o de que ela se deitara.

 

O dia seguinte era terça-feira. Philip, como de costume, tomou a primeira refeição apressadamente e precipitou-se para apanhar a aula das nove. Mal teve tempo de trocar umas palavras com Mildred. Quando voltou, ao entardecer, encontrou-a sentada junto da janela, ponteando-lhe as meias.

 

- Olá, menina diligente! - disse-lhe a sorrir. - Como passaste o dia?

 

- Ora, fiz uma boa limpeza nos quartos e depois levei a pequena a dar um passeio.

 

Mildred trazia um velho vestido preto, o mesmo que usava como uniforme quando trabalhava na casa de chá. Estava usado, mas ficava-lhe melhor do que o vestido de seda do dia anterior. A criança, sentada no soalho, ergueu para Philip os seus grandes olhos misteriosos e rompeu numa risada quando o viu sentar-se a seu lado e pôr-se a brincar com os seus dedinhos. O sol da tarde entrava no quarto e enchia-o de uma luz macia.

 

- É agradável a gente voltar para casa e encontrar alguém. Uma mulher e uma criança enfeitam muito bem um quarto.

 

Trouxera da farmácia do hospital um frasco de "Pílulas de Blaud". Entregou-o a Mildred e recomendou-lhe que tomasse as pílulas depois de cada refeição. Era um remédio a que ela estava habituada, pois tomara-o repetidas vezes, desde os dezasseis anos.

 

- Estou certo de que Lawson havia de gostar dessa tua cútis esverdeada - disse Philip. - Diria que ela se presta para ser pintada, mas como agora ando muito prosaico, só ficarei satisfeito quando estiveres branca e corada.

 

- Já me sinto melhor.

 

Depois de uma refeição frugal, Philip encheu a bolsa de tabaco e pôs o chapéu. _às terças, costumava ir à casa de bebidas de Beak Street e pareceu-lhe uma feliz coincidência que Mildred tivesse chegado na véspera, pois desejava tornar perfeitamente claras as suas relações.

 

- Vai sair? - perguntou ela.

 

- Vou, sim. às terças-feiras dou a mim próprio uma noite de folga. Amanhã nos veremos. Boa-noite.

 

Philip ia sempre à casa de bebidas com uma sensação de prazer. Macalister, o corretor filósofo, achava-se geralmente ali e era com alegria que se dispunha a discutir sobre qualquer assunto. Hayward comparecia regularmente quando estava em Londres e, embora ele e Macalister não gostassem um do outro, continuavam, pela força do hábito, a encontrar-se ali naquela noite da semana. Macalister considerava Hayward um pobre diabo e zombava das suas delicadezas de sentimento. Perguntava satiricamente pelo trabalho literário do outro e recebia com sorrisos escarninhos as suas vagas sugestões a propósito de futuras obras-primas. As suas discussões acaloravam-se com frequência. Mas o ponche era bom e ambos o apreciavam. Em geral, à medida que a noite avançava, as divergências aplanavam-se e cada um acabava por achar o outro um excelente rapaz. Naquela noite, Philip encontrou ambos e mais Lawson na taberna. Lawson vinha mais raramente do que outrora, pois começava a ter relações em Londres e ia muitas vezes jantar fora. Achavam-se todos de perfeito acordo, pois Macalister dera-lhes uma boa indicação para a Bolsa e Hayward e Lawson tinham ganho cinquenta libras cada um. Era uma grande coisa para Lawson, que tinha hábitos pródigos e ganhava pouco dinheiro. Chegara àquela situação da carreira do pintor de retratos em que os críticos o mencionam muito e numerosas damas da aristocracia estão dispostas a deixarem-se retratar de graça (era publicidade para ambos e dava às grandes damas um ar de protectoras das artes). Mas muito raramente conseguia Lawson um abastado filisteu que estivesse disposto a pagar bom dinheiro pelo retrato da esposa. Lawson transbordava de satisfação.

 

- É a maneira mais notável de fazer dinheiro que encontrei - exclamou. - Nem seis pence tive que desembolsar.

 

- Não sabe o que perdeu por não estar aqui na terça-feira passada, meu rapaz - disse Macalister a Philip.

 

- Santo Deus! Por que não me escreveu? - replicou este último. - Se soubesse como me cairiam bem agora umas cem libras...

 

- Oh, não tivemos tempo para isso. Temos que estar a postos. Tive uma informação na terça-feira passada e perguntei a esses camaradas se gostariam de arriscar alguma coisa. Comprei-lhes mil acções quarta-feira de manhã, houve uma alta na tarde desse mesmo dia e tornei-as a vender. Fiz cinquenta libras para cada um deles e umas duzentas para mim.

 

Philip estava doente de inveja. Vendera recentemente o último título de hipoteca em que fora empregada a sua pequena fortuna e tinha agora apenas seiscentas libras. _às vezes tomava-se de pânico, ao pensar no futuro. Precisava ainda manter-se por dois anos, antes de se diplomar; depois, pretendia candidatar-se a lugares em hospitais, de sorte que não podia esperar ganhar fosse o que fosse pelo menos durante três anos. Com a economia mais estrita não lhe sobraria, ao formar-se, mais do que uma :, centena de libras. Era muito pouco para ter como reserva, em caso de doença que o impedisse de trabalhar ou na falta de trabalho. Uma cartada feliz ser-lhe-ia de grande importância.

 

- Ora, não faz mal - disse Macalister. - De uma hora para outra surgirá alguma coisa. Vai haver outra alta nas sul-africanas, um destes dias, e então verei o que posso fazer por si.

 

Macalister trabalhava com acções de minas sul-africanas. Muitas vezes lhes contara histórias de fortunas súbitas, feitas na grande alta verificada um ou dois anos antes.

 

- Bom, para a próxima vez, não se esqueça.

 

Conversaram até quase à meia-noite. Philip, que de todos era o que morava mais longe, foi o primeiro a retirar-se. Se não apanhasse o último "eléctrico" teria de ir a pé, e isso levá-lo-ia a recolher-se muito tarde. Ainda assim, chegou a casa perto da meia-noite. Com surpresa sua, ao entrar encontrou Mildred ainda sentada na sua poltrona.

 

- Ainda não estás deitada?! - exclamou.

 

- Não tinha sono.

 

- Mesmo assim devias ir para a cama, para descansar.

 

Ela não se moveu. Philip notou que, depois do jantar, a rapariga tornara a envergar o vestido de seda preta.

 

- Achei melhor esperar, para ver se precisava de alguma coisa.

 

Olhou-o e a sombra de um sorriso brincou-lhe nos lábios descorados. Philip não estava certo de ter ou não compreendido. Sentia-se ligeiramente embaraçado, mas assumiu uma atitude entre prosaica e alegre.

 

- É muita bondade da tua parte, mas é também uma travessura. Corre já para a cama o mais depressa possível, de contrário não poderás levantar-te cedo amanhã.

 

- Não tenho vontade de me deitar.

 

- Tolice - retorquiu ele friamente.

 

Mildred ergueu-se um pouco carrancuda, e foi para o quarto. Ele sorriu, quando a ouviu fechar ruidosamente a porta com a chave.

Os dias seguintes passaram sem incidentes. Mildred adaptava-se à nova situação. Philip saía apressado, após a refeição matinal e ela ficava com toda a manhã para arranjar a casa. Conquanto fossem ambos muito frugais, ela gostava de demorar-se bastante na compra das poucas coisas de que precisavam. Não se dava ao trabalho de fazer jantar só para si; contentava-se com uma chávena de cacau e pão e manteiga. Depois, levava a criança a passear no carrinho e, ao voltar, passava o resto da tarde ociosa. Andava extenuada e esse repouso fazia-lhe bem. Fez camaradagem com a retraída senhoria de Philip, quando este a encarregou de pagar o aluguer. E, dentro de uma semana, sabia mais sobre a vida dos vizinhos do que ele num ano.

 

- É uma senhora muito séria - disse Mildred. - Uma perfeita dama. Eu disse que éramos casados.

 

- Achaste isso necessário?

 

- Ora, afinal, tinha que dizer alguma coisa... _é tão esquisito estar aqui sem ser casada consigo. Não sei o que ela pensaria de mim.

 

- Acho que ela não te deu o mínimo crédito.

 

- Garanto que deu. Contei que estamos casados há dois anos... Tinha que dizer isso, bem vê, por causa da criança... E que a sua família não queria o casamento porque você era estudante. (Ela pronunciava "estodante"). Assim, tivemos de guardar segredo, mas, como os seus pais acabaram por ceder, agora vamos passar o Verão com eles.

 

- És mestra em histórias da carochinha - observou Philip.

 

Estava vagamente irritado pelo facto de Mildred ter ainda a paixão de dizer mentiras. De nada lhe valiam as lições daqueles dois anos. Mas acabou por encolher os ombros.

 

No final de contas - reflectiu - ela não teve muitas oportunidades.

 

Era uma linda tarde quente e sem nuvens, e a gente do sul de Londres parecia estar nas ruas. Havia no ar essa inquietação que às vezes se apodera do londrino, quando uma mudança no tempo o traz para o ar livre. Depois de levantar a mesa do jantar, Mildred foi até à janela. Os ruídos da rua subiam até ela, vozes de pessoas, o rolar do tráfego incessante, um realejo a distância.

 

- Com certeza tens de estudar hoje de noite, não, Philip? - disse em ar de expectativa.

 

- Preciso de estudar, mas nada me obriga. Tens alguma coisa a propor-me?

 

- Tinha vontade de sair um pouco. Não podíamos dar uma volta na imperial de um ónibus?

 

- Se queres...

 

- Então vou pôr o chapéu - disse ela, contente.

 

A noite não permitia que se ficasse em casa. A criança estava a dormir e podiam deixá-la sozinha sem o menor perigo. Mildred disse que a deixava sempre à noite, quando saía, e a pequena nunca acordava. Mildred estava com boa disposição de espírito quando voltou, já de chapéu. Aproveitara a oportunidade para pintar as faces. Philip pensou que a excitação tivesse trazido um leve colorido àquele rosto pálido. Ficou sensibilizado ante a alegria infantil de Mildred e censurou-se a si próprio pela austeridade com que a tratava. A rapariga desatou a rir, quando se viu ao ar livre. O primeiro ónibus que viram ia para Westminster Bridge; tomaram-no. Philip fumava o seu cachimbo. Olhavam ambos para as ruas regurgitantes. As lojas estavam vivamente iluminadas, e as pessoas faziam compras para o dia seguinte. Passaram por um teatro de variedades a que chamavam o *_Canterbury* e Mildred exclamou:

 

- Oh, Philip, vamos lá! Há meses que não entro num teatro.

 

- Sabes que não podemos ir para as poltronas.

 

- Oh! Não faz mal. Ficarei muito satisfeita nas galerias.

 

Desceram e andaram uns cem metros, até à entrada. Conseguiram lugares excelentes, a seis *pence*, muito alto mas não nas galerias, pois a noite estava tão linda que havia acomodação de sobra. Os olhos de Mildred cintilavam. Ela divertia-se imenso. Havia naquela criatura uma simplicidade que comovia. Mildred era um enigma. Existiam nela certas coisas que ainda lhe agradavam, possuía mesmo - julgava ele - muito de bom, mas fora mal educada e tivera uma vida árdua. Censurara-lhe, pois, muita coisa que não dependia dela evitar. E se lhe exigia virtudes que não estavam ao alcance dela, a falta era sua e não da rapariga. Em circunstâncias diferentes, Mildred poderia ter sido uma criatura encantadora. Era extraordinariamente incapaz para a batalha da vida. Ao olhá-la agora de perfil, vendo-lhe a boca levemente aberta e o delicado rubor das faces, Philip achava-lhe um aspecto estranhamente virginal. Sentiu uma transbordante compaixão por ela. E, com toda a alma, perdoou-lhe o mal que lhe causara. A atmosfera do fumo do tabaco fazia doer os olhos de Philip, mas, quando propôs que se fossem embora, Mildred voltou para ele um rosto súplice, a pedir-lhe que ficassem até ao fim. Sorriu e consentiu. Ela tomou-lhe a mão e ficou a segurá-la até ao fim da representação. Quando saíram para a rua apinhada de gente, Mildred não quis ir para casa. Caminharam até Westminster Bridge Road, olhando para os transeuntes.

 

- Há meses que não me divertia tanto como hoje - disse ela.

 

O coração de Philip transbordava e agradecia ao destino por ter cedido ao súbito impulso de levar Mildred e a filha para a sua companhia. Era bastante agradável ver a gratidão feliz da rapariga. Por fim ela sentiu-se cansada e tomaram um ónibus para casa. Era tarde, e, quando entraram na rua onde moravam, não viram vivalma. Mildred enfiou o braço no de Philip.

 

- Exactamente como dantes Phil? - disse ela.

 

Mildred nunca lhe chamara Phil, que era o diminutivo que Griffiths lhe dava. E, mesmo agora, isso ainda lhe causava uma curiosa mágoa. Lembrou-se de quanto desejara morrer; o seu sofrimento fora tão grande que chegara a pensar deveras no suicídio. Tudo isso parecia muito remoto. Sorriu ao Philip daquele tempo. Agora nada sentia por Mildred, senão infinita piedade. Chegaram a casa e, quando entraram na sala de estar, Philip acendeu o gás.

 

- A menina está bem? - perguntou.

 

- Vou ver.

 

Voltou para dizer que a pequena nem se mexera desde que tinham saído. Era uma criança admirável. Philip estendeu-lhe a mão.

 

- Então, boa-noite.

 

- Já vais para a cama?

 

- É quase uma hora. Não estou acostumado a ficar acordado até tarde.

 

Ela apertou-lhe a mão e, retendo-a, olhou-o bem nos olhos, com um pequeno sorriso.

 

- Phil, a outra noite, naquele quarto, quando me convidaste para vir morar aqui, não levei a sério, como pensaste, essa história de ser para ti só cozinheira e criada.

 

- Não levaste? - perguntou Philip, retirando a mão. - Pois eu levei.

 

- Não sejas tolo dessa maneira - riu-se ela.

 

Philip sacudiu a cabeça.

 

- O que disse foi perfeitamente a sério. Noutras condições, não te teria pedido que viesses para cá.

 

- Porquê?

 

- Porque me era impossível. Não sei explicar, mas isso estragaria tudo...

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Então está muito bem, seja como quiseres. Não te pedirei de joelhos.

 

Saiu, batendo com a porta atrás de si.

 

Na manhã seguinte Mildred mostrou-se amuada e taciturna. Ficou no quarto até a hora de aprontar o jantar. Cozinhava mal e, além de costeletas e bifes, pouca coisa fazia, não sabendo aproveitar as sobras. Desse modo Philip era obrigado a gastar mais dinheiro do que esperava. Ela serviu à mesa e sentou-se diante de Philip, mas não quis comer. Philip fez uma observação a esse respeito e Mildred declarou que estava com dores de cabeça e não tinha fome. Ele sentia-se contente por ter onde passar o resto do dia. Os Athelny eram alegres e acolhedores: era delicioso e inesperado saber que todos, naquela família, aguardavam com prazer a sua visita. Quando voltou para casa, Mildred já estava deitada e no dia seguinte ainda permaneceu silenciosa. _à hora do jantar, sentou-se com uma expressão de altivez no rosto e uma pequena ruga entre as sobrancelhas. Philip ficou irritado com isso mas convenceu-se de que devia ser mais atencioso para com ela. Tinha de fazer concessões.

 

- Estás muito calada - observou com um sorriso amável.

 

- Sou paga para cozinhar e fazer a limpeza, não sabia que também tinha de falar.

 

Philip achou a resposta indelicada, mas, já que iam viver juntos, precisava fazer o possível para que tudo corresse bem.

 

- Acho que estás zangada comigo por causa de ontem à noite -disse.

 

Era um assunto melindroso, mas no entanto era necessário discuti-lo.

 

- Não entendo o que quer dizer.

 

- Por favor, não estejas zangada comigo. Nunca te pediria que viesses morar aqui, se não pretendesse que as nossas relações fossem puramente amistosas. Tive essa ideia porque achei que precisavas de uma casa e de uma oportunidade para procurar trabalho.

 

- Ora, não pense que me ralo.

 

- Bem sei - apressou-se ele a dizer. - Não deves pensar que não esteja agradecido. Compreendo que querias fazer aquilo apenas para me ser agradável. E só uma impressão que tenho, não posso livrar-me dela... tudo se tornaria feio, horrível.

 

- Você tem graça - disse ela, fitando os olhos nele com curiosidade. - Não posso compreendê-lo.

 

Já não estava zangada, mas apenas intrigada. Não fazia ideia do que ele queria dizer. Aceitava a situação, tinha até uma vaga impressão de que Philip se portava de maneira nobre e de que ela devia admirá-lo. Mas também se sentia inclinada a rir-se dele e mesmo a desprezá-lo um pouco.

 

"_Que tipo esquisito!" pensou ela.

 

E a vida de ambos continuava sem maiores incidentes. Philip passava o dia inteiro no hospital e estudava em casa, à noite, excepto quando ia ter com os Athelny ou à casa de bebidas de Beak Street. Certa vez, o médico que auxiliava convidou-o para um banquete e em duas ou três ocasiões foi a festas dadas por colegas seus. Mildred aceitava a monotonia daquela vida. Se não gostava que Philip a deixasse sozinha certas noites, não o dizia. De tempos a tempos, ele levava-a às variedades. Mantinha a sua resolução de não criar entre ambos outros laços que fossem além dos cuidados domésticos prestados por ela em troca de casa e comida. Mildred chegara à conclusão de que era inútil tentar conseguir trabalho naquele Verão. Com a aprovação de Philip, resolveu ficar como estava até o Outono. Achava ela que lhe seria fácil arranjar então alguma coisa que fazer.

 

- Pela parte que me toca, podes ficar aqui até conseguires um emprego conveniente. O quarto está aí e a mulher que trabalhava antes aqui pode tomar conta da criança.

 

Philip afeiçoou-se muito à filha de Mildred. Era naturalmente afectuoso e tinha poucas oportunidades para o mostrar. Mildred não era má para a criança. Cuidava dela muito bem e, uma vez que a pequena apanhou uma gripe, mostrou-se enfermeira devotada. Mas a pequena enchia-a de aborrecimento e Mildred ralhava com ela quando a incomodava. Gostava da filha, mas não tinha o amor materno que poderia tê-la induzido a esquecer-se de si própria. Mildred não era expansiva e achava ridículas as manifestações de ternura. Quando Philip se sentava com a pequenita nos joelhos, a brincar com ela e a beijá-la, ria-se dele.

 

- Se fosse o pai dela, garanto que não fazia mais espalhafato -observou ela. - Você é doido por essa criança.

 

Philip corou, porque abominava que se rissem dele. Era absurdo que fosse tão devotado à filha de outro homem e sentia mesmo um pouco de vergonha daquele excesso de sentimento. Mas a criança, sentindo o apego de Philip, encostava o rosto ao dele ou aninhava-se-lhe nos braços.

 

- Para si é tudo muito fácil - disse Mildred. - Como a parte desagradável é comigo... Gostava de ficar acordado, de madrugada, uma hora inteira, só porque Sua Senhoria não quer dormir?

 

Philip lembrou-se de várias coisas da sua infância que julgava esquecidas. Segurou os dedos do pé da criança.

 

- Este porquinho foi pró mercado, este porquinho ficou em casa.

 

Quando entrava em casa, à tarde, o seu primeiro olhar era para a menina, que encontrava refastelada no chão. E quando ela dava gritinhos de satisfação ao vê-lo, sentia-se deleitado. Mildred ensinara a filha a chamar-lhe pai, e quando ela fez isso pela primeira vez, sem ser mandada, a mãe desatou a rir imoderadamente.

 

- Só gostava de saber se gosta da pequena porque ela é minha filha - disse - ou se faria o mesmo com qualquer outra criança.

 

- Como não conheci nenhuma outra criança, não o posso dizer.

 

Lá pelo fim do segundo trimestre como auxiliar no hospital, teve um bafejo de sorte. Era em meados de Julho. Foi uma terça-feira à noite à casa de Beak Street e só encontrou Macalister. Estiveram a conversar sobre os amigos ausentes e passado um instante Macalister disse-lhe:

 

- A propósito, soube hoje uma coisa muito importante. _é a respeito das acções da *_new Kleinfontein*, uma mina de ouro da Rodésia. Se quiser arriscar, pode ganhar alguma coisa.

 

Philip esperara ansiosamente por semelhante oportunidade, mas, agora que esta surgia, hesitava. Tinha um medo horrível de perder dinheiro. Não possuía o espírito do jogador.

 

- Gostaria muito, mas não sei se terei coragem de arriscar. Quanto poderei perder, se as coisas correrem mal ?

 

- Não devia falar-lhe nisto, mas você parecia tão disposto -respondeu Macalister, secamente.

 

Philip sentiu que o corretor o considerava um tanto bronco.

 

- Estou tentadíssimo a atirar-me - disse, a rir.

 

- Mas sem arriscar não é possível ganhar dinheiro.

 

Macalister começou a falar de outras coisas e Philip, enquanto respondia, continuava a pensar que, se a sorte lhe sorrisse, o corretor se divertiria à sua custa, da próxima vez que se encontrassem. Macalister tinha uma língua sarcástica.

 

- Acho que vou tentar, se você não se opuser... - disse com sofreguidão.

 

- Está bem. Vou comprar duzentas e cinquenta acções para si, e, se houver uma alta de meia coroa, vendo-as imediatamente.

 

Philip calculou com rapidez o lucro que teria e veio-lhe água à boca. Trinta libras seriam um presente do céu. A dizer a verdade, a sorte estava em débito para com ele. Na manhã seguinte, à hora do café, contou a Mildred o que fizera. Ela achou que tinha sido uma grande tolice.

 

- Nunca vi ninguém ganhar dinheiro na Bolsa - disse ela. - Era o que o Emil sempre dizia: não esperes fazer dinheiro na Bolsa.

 

Philip comprou um jornal da tarde, ao voltar para casa e procurou logo a página financeira. Nada conhecia do assunto e foi com dificuldade que achou as suas acções. Viu que elas tinham subido um quarto. O seu coração começou a bater descompassado e ficou apreensivo à ideia de que Macalister não as tivesse comprado em seu nome, por esquecimento ou por qualquer outra razão. Macalister prometera telegrafar. Philip não teve paciência de esperar o "eléctrico." Saltou para um trem. Era uma extravagância insólita.

 

- Há algum telegrama para mim? - perguntou ao irromper na sala.

 

- Não - disse Mildred.

 

Desapontado, Philip deixou-se cair numa cadeira.

 

- Então ele não comprou as acções! Maldito seja! - acrescentou com violência. - Que sorte cruel! E todo o dia estive a pensar no que faria com o dinheiro.

 

- Que vai fazer agora? - perguntou ela.

 

- De que serve falar? Oh! Precisava tanto desse dinheiro...

 

Ela riu e entregou-lhe um telegrama.

 

- Estava a brincar consigo. Eu abri...

 

Philip arrebatou-lhe o papel das mãos. Macalister tinha-lhe comprado duzentas e cinquenta acções, que vendera em seguida com o lucro de meia coroa, como sugerira. A nota da comissão viria no dia seguinte. Por um momento, Philip ficou furioso com Mildred, por causa daquela brincadeira cruel, mas depois só teve pensamentos para a sua alegria.

 

- Isso tem tanta importância para mim! - exclamou. - Vou comprar-te um vestido novo, se quiseres.

 

- Estou a precisar muito de um - respondeu ela.

 

- Sabes o que vou fazer? Vou ser operado no fim de Julho.

 

- Hem? Mas que é que tem? - interrompeu Mildred.

 

Ocorreu-lhe que uma doença secreta poderia explicar aquela maneira de proceder que tanto a intrigava. Philip corou porque lhe era odioso ter de aludir à sua deformidade.

 

- Não, eles acham que podem melhorar o meu pé. Antes, não tinha tempo para perder com isso, mas agora o tempo é o que menos importa. Vou começar como ajudante de cirurgião em Outubro, em vez de fazê-lo no mês que vem. Ficarei no hospital apenas algumas semanas e depois podemos passar o resto do Verão numa praia. Isso far-nos-á muito bem, a ti, à criança e a mim.

 

- Oh, vamos a Brighton, Philip. Gosto de Brighton, há tanta gente distinta lá...

 

Philip pensara vagamente em alguma pequena aldeia de pescadores na Cornualha, mas, ao ouvir Mildred, ocorreu-lhe que ela se aborreceria lá mortalmente.

 

- O lugar pouco importa, contanto que vamos para o mar.

 

Não sabia porquê, mas sentia subitamente uma irresistível saudade do mar. Queria banhar-se e pensava, com delícia, em mergulhar na água salgada. Era bom nadador e nada o enchia de contentamento como um mar picado.

 

- Olha, vai ser lindo! - exclamou.

 

- Vai ser como uma lua-de-mel, não é verdade? - disse Mildred. - Quando é que pode dar-me o vestido novo, Phil?

 

Philip pediu a Jacobs que lhe fizesse a operação. Jacobs aceitou com prazer, uma vez que naquela época estava precisamente interessado em casos descurados de *talipes* e colhia material para uma monografia. Avisou Philip de que não podia deixar-lhe o pé perfeito, mas julgava-se capaz de fazer alguma coisa. E, embora o rapaz continuasse a claudicar, ser-lhe-ia possível usar um calçado mais discreto. Philip lembrou-se de como rezara a Deus, que podia mover montanhas para quem tivesse fé, e sorriu amargamente.

 

- Não espero milagres  -- respondeu.

 

- Acho que faz muito bem em me deixar tentar alguma coisa. Verá que um pé boto será um obstáculo para a sua clínica. O leigo é cheio de manias e não gosta que o médico tenha qualquer coisa de comum com ele.

 

Philip foi para uma daquelas salas pequenas que existiam à entrada das enfermarias reservadas para casos especiais. Permaneceu ali um mês, pois o cirurgião não lhe quis dar alta antes que pudesse andar. Suportou bem a operação e achou agradável a temporada no hospital. Lawson e Athelny foram vê-lo e um dia Mrs. Athelny levou com ela duas das crianças. Os estudantes apareciam de quando em quando para palestrarem. Mildred visitava-o duas vezes por semana. Todos lhe mostraram bondade, e Philip, sempre surpreendido quando alguém se dava algum incómodo por sua causa, ficou comovido e grato. Gozava aquela despreocupação: não precisava de inquietar-se quanto ao futuro nem se o dinheiro duraria muito ou se passaria ou não nos exames finais. E, com grande alegria sua, podia ler à vontade. _ultimamente, não podia ler muito, pois que Mildred o perturbava: sempre que procurava fixar a atenção nos livros, ela fazia um comentário fútil, não se dando por satisfeita enquanto ele não respondesse. E quando estava confortavelmente instalado com um livro nas mãos, ela aparecia-lhe e pedia-lhe que fizesse alguma coisa: tirar uma rolha, bater um prego...

 

Resolveram ir para Brighton em Agosto. Philip queria alugar casa, mas Mildred disse que assim teria de cuidar do alojamento. Só poderia aproveitar as férias se fossem para uma pensão.

 

- Aqui em casa, tenho que andar às voltas com a comida. Estou farta disso e quero variar.

 

Philip concordou. E, como Mildred conhecia uma pensão em Kemp Town, onde não lhes cobrariam mais de vinte e cinco xelins por semana, por cada um, combinou com Philip escrever para lá, reservando quartos; mas, quando ele voltou para Kensington, verificou que Mildred nada fizera. Ficou irritado.

 

- Não sabia que andavas assim tão ocupada.

 

- Também não posso pensar em tudo. Não tenho culpa de me esquecer, pois não?

 

Philip estava tão ansioso por ir para o mar, que resolveu ir sem nada comunicar à dona da pensão.

 

- Deixaremos a bagagem na estação e iremos à pensão para ver se há quartos. Se houver, mandamos um carregador buscar as nossas coisas.

 

- Faça como entender - disse Mildred, secamente.

 

Não gostava de ser repreendida e, isolando-se num silêncio ostensivo, ficou negligentemente sentada, enquanto Philip fazia os preparativos para a partida.

 

A casa era quente e abafada, sob o sol de Agosto, e subia da rua um hálito malcheiroso. Quando Philip estava na enfermaria, de paredes nuas, suspirara pelo ar livre e pelo bater das ondas de encontro ao peito. Endoideceria se passasse outra noite em Londres. Mildred recuperou o bom humor ao ver as ruas de Brighton apinhadas de gente em férias, e ambos estavam em excelente disposição de espírito, ao dirigirem-se para Kemp Town. Philip acariciou o rosto da criança.

 

- Depois de passarmos aqui alguns dias, esta carinha estará com outras cores - disse, sorrindo.

 

Chegaram à pensão e despediram o carro. Uma criada desalinhada abriu-lhes a porta e quando perguntaram se havia quartos, respondeu que ia ver. Foi chamar a patroa. Uma mulher de meia-idade, gorda e de ar expedito, desceu as escadas, lançou-lhes o olhar inquiridor próprio da sua profissão e perguntou-lhe que quartos pretendiam.

 

- Dois quartos de solteiro, sendo um com berço, se é que existe algum por aqui.

 

- Acho que não posso atendê-los. O que tenho é um belo quarto para casal, onde poderia pôr um berço.

 

- Creio que não nos serve - disse Philip.

 

- Para a semana que vem posso dar-lhes mais outro quarto. Brighton está agora muito cheia e os hóspedes têm de contentar-se com o que se pode arranjar.

 

- Se for só por alguns dias, Philip, acho que podíamos remediar-nos - disse Mildred.

 

- O mais conveniente seriam dois quartos. Pode recomendar-nos outra casa onde aceitem hóspedes?

 

- Recomendar, posso, mas não creio que encontre coisa melhor do que aqui.

 

- Se fizesse o favor de me dar o endereço...

 

A casa indicada pela gorda matrona ficava na rua próxima e para lá se dirigiram. Philip podia caminhar bem, embora tivesse de se apoiar numa bengala. Sentia-se um tanto fraco. Mildred levava a menina nos braços. Deram alguns passos em silêncio. Ao cabo de um momento, viu que Mildred chorava. Aborreceu-o, mas não o mostrou. Mildred, porém, obrigou-o a dar atenção.

 

- Empreste-me um lenço, sim? - pediu. - Não posso tirar o meu, por causa da criança - disse com a voz estrangulada pelos soluços, voltando o rosto para o lado oposto ao dele.

 

Philip deu-lhe o lenço mas não disse nada. Ela enxugou os olhos e, ante o silêncio dele, continuou:

 

- Nem que eu fosse leprosa...

 

- Por favor, não faças cenas na rua - disse ele.

 

- _é tão esquisito para os outros, insistir daquela maneira em quartos separados... Que pensarão de nós?

 

- Se soubessem as circunstâncias, não se surpreenderiam com a nossa moral - respondeu Philip.

 

Ela olhou-o de soslaio.

 

- Vai dizer que não somos casados? - perguntou vivamente.

 

-- Não.

 

- Então por que não vive comigo como se fôssemos casados?

 

- Não posso explicar, querida. Não quero humilhar-te, mas isso é simplesmente impossível. Acredito que seja tolo e absurdo, mas é mais forte do que eu. Amava-te tanto que, agora... - Calou-se de repente. - Afinal de contas, não há explicação para estas coisas.

 

- Ah! Grande amor devia ser esse! - exclamou ela.

 

A pensão que lhes fora indicada era dirigida por uma solteirona saltitante, de olhos astutos e conversa volúvel. Ofereceu-lhos um quarto de casal a vinte e cinco xelins semanais por pessoa e mais cinco xelins pela criança. Podiam, também, dispor de um quarto para cada pessoa pagando mais uma libra por semana.

 

-- Tenho de cobrar isso - explicou a mulher à guisa de desculpa - porque podia pôr duas camas até num quarto para solteiro.

 

- Acho que isso não nos arruinará. Qual é a tua opinião, Mildred?

 

- Oh! Tanto me faz. Qualquer coisa me serve.

 

Philip relevou essa resposta azeda com uma risada e, como a dona da pensão tivesse providenciado para mandar buscar a bagagem, sentaram-se para descansar. O pé de Philip doía um pouco e foi com prazer que o pousou numa cadeira.

 

- Acho que não faz mal estar sentada na mesma sala consigo -disse Mildred, agressivamente.

 

- Não vamos discutir, Mildred - retorquiu ele delicadamente.

 

- Não sabia que você podia dar-se ao luxo de deitar fora uma libra por semana.

 

- Não te zangues comigo. Asseguro-te que é essa a única maneira de podermos viver juntos.

 

- Acho que me despreza, é o que é.

 

- Claro que não. Por que havia de desprezar-te?

 

- Isto é tão fora do natural...

 

- _é? Não estás apaixonada por mim, pois não?

 

- Eu?! Por quem me toma?

 

- Se ao menos fosses uma mulher ardente... Mas não é esse o caso.

 

- Isso é tão humilhante... - retorquiu ela, amuada.

 

- Ora... se fosse a ti, não faria tanto barulho, por causa disto.

 

Havia cerca de doze pessoas na pensão. Comiam numa sala escura e estreita, em redor de uma comprida mesa, à cabeceira da qual se sentava a proprietária, para servir. A comida era má. A dona da casa dizia que era cozinha francesa e com isso queria dar a entender que a qualidade inferior dos géneros estava disfarçada por molhos mal feitos: solho a fingir de linguado e carneiro da Nova Zelândia mascarado de cordeiro. A cozinha era pequena e ficava em lugar impróprio, de sorte que tudo era servido :, morno. Os pensionistas eram aborrecidos e pretensiosos: velhas senhoras com filhas solteironas, celibatários ridículos, de maneiras afectadas, pálidos empregados do comércio, de meia-dade, acompanhados de esposas que falavam das filhas casadas e dos filhos que ocupavam um bom cargo nas colónias... _à mesa, discutia-se o último romance de Miss Corelli; alguns gostavam mais de Lord Leighton que de Alma Tadema e outros gostavam mais de Alma Tadema que de Lord Leighton. Mildred em breve contou às senhoras o seu romântico casamento com Philip, e este viu-se objecto de interesse, porque a família, gente de muito boa posição, o deserdara, ao vê-lo casar quando era apenas um "estodante". E o pai de Mildred, que tinha uma grande propriedade lá para as bandas do Devonshire, não queria fazer nada pelo casal, porque a filha casara com Philip. Era por isso que tinham ido para uma pensão e a criança não tinha ama. Ocupavam dois quartos porque estavam habituados a grandes comodidades, e não gostavam de dormir em quartos acanhados. Os outros hóspedes também ofereciam explicações para a sua presença; um dos cavalheiros celibatários ia geralmente passar as férias ao Metrópole, mas gostava de uma companhia alegre, coisa que não se consegue nos hotéis dispendiosos. E a senhora que tinha uma filha solteirona mandara reformar a sua linda casa de Londres. "Gwennie, minha querida - dissera à donzela - este ano não podemos gastar muito no veraneio." E assim tinham ido para ali, embora não estivessem habituados a morar em pensões... Mildred achava-os a todos muito distintos, pois dizia detestar gente vulgar e rude. Gostava que o cavalheiro fosse cavalheiro em toda a extensão da palavra.

 

- Quando as pessoas são cavalheiros e senhoras - dizia ela -gosto que sejam cavalheiros e senhoras de verdade.

 

Esta observação pareceu enigmática a Philip, mas, quando ouviu Mildred fazê-la duas ou três vezes a diferentes pessoas e verificou que estas concordavam calorosamente, chegou à conclusão de que tais palavras eram obscuras apenas para a sua inteligência.

 

Era a primeira vez que Mildred e Philip passavam todo o tempo juntos. Em Londres não a via com tanta frequência. Ficava o dia inteiro no hospital e, quando voltava, as preocupações domésticas, a criança e os vizinhos davam-lhes assunto para conversa até a hora em que ele começava a estudar. Agora, passava todo o dia com ela. Após a primeira refeição, desciam para o mar. Enchiam a manhã com um banho e um passeio pela praia. _à noite, depois de meterem a menina na cama. iam para o cais, onde as horas decorriam toleravelmente, pois ficavam a ouvir música e a ver as pessoas que passavam. (Philip divertia-se a imaginar quem eram e a tecer pequenas histórias em torno delas; :, adquirira o hábito de responder só com a boca às observações de Mildred, de sorte que os seus pensamentos não eram perturbados). As tardes, porém, eram longas e aborrecidas. Sentavam-se ambos na areia. Mildred dizia que deviam tirar o maior proveito possível do "_Doutor Brighton" e Philip não podia ler porque a companheira fazia frequentes observações sobre isto e aquilo. Se não lhe dava atenção, ela queixava-se.

 

- Ora, ponha esse aborrecido livro de lado. Não pode fazer-lhe bem estar sempre a ler. Estragar a cabeça, é o que pode acontecer, Philip.

 

- Asneiras! - replicava ele.

 

- Além disso, é falta de educação.

 

Philip descobriu que era difícil conversar com ela. Não tinha capacidade para atentar no que ela própria dizia, de modo que um cão que lhe atravessava o campo da visão ou um homem de jaqueta berrante que passava evocava uma observação e já ela esquecia aquilo em que estava a falar. Tinha fraca memória para nomes e ficava irritada quando não se lembrava deles. Por isso, parava no meio de uma história, para espremer os miolos. Frequentemente, desistia, vencida, mas não raro a palavra esquecida lhe ocorria mais tarde e interrompia Philip, que estava a falar de coisas completamente diferentes.

 

- Collins, exactamente! Tinha a certeza de que me lembraria. Collins, era esse o nome de que me não lembrava.

 

Isso exasperava Philip, que assim ficava com a certeza de que Mildred não lhe dava ouvidos. No entanto, quando se calava, a rapariga censurava-lhe o ar taciturno. O espírito dela era desses que não podem fixar-se cinco minutos em abstracções. Quando Philip dava largas ao seu gosto pelas generalizações, ela apressava-se a revelar o seu tédio. Mildred sonhava muito e como se lembrava dos seus sonhos com todas as minúcias, narrava-os todos os dias prolixamente.

 

Certa manhã Philip recebeu uma longa carta de Thorpe Athelny. Estava a gozar as férias da maneira teatral que o caracterizava e na qual havia bastante bom-senso. Havia dez anos que fazia sempre o mesmo. Levava a família para um campo de lúpulo em Kent, não longe da casa paterna de Mrs. Athelny, e lá passavam as três semanas ajudando à colheita. Esse trabalho ao ar livre proporcionava-lhes dinheiro, com grande satisfação de Mrs. Athelny, e renovava-lhes o contacto com a terra-mãe. Era nisto que Athelny insistia. A permanência no campo dava-lhes uma força nova. Era corno uma cerimónia mágica, mercê da qual renovavam a juventude, o vigor dos membros e a bonomia do espírito. Philip ouvira-o dizer muitas coisas fantásticas, retóricas e pitorescas sobre o assunto. Agora, Athelny convidava-o a passar um dia com eles: desejava transmitir-lhe certas meditações :, sobre Shakespeare e sobre o copofónio. Além disso, as crianças reclamavam a presença do tio Philip. Philip tornou a ler a carta à tarde quando estava sentado com Mildred, na praia. Pensou em Mrs. Athelny, a alegre mãe de tantos filhos, com a sua bondosa hospitalidade e o seu bom humor; em Sally, tão séria para a idade que tinha, com os seus engraçados modos um pouco maternais, o ar de autoridade, as longas tranças louras e a ampla testa. E depois, em bando, lembrou-se de todos os outros, alegres, barulhentos, saudáveis e simpáticos. Teve saudades daquela gente. Tinham os Athelny uma qualidade que ele se lembrava de ter encontrado noutras pessoas, e que era a bondade. Só agora percebia isso, mas era evidentemente a beleza daquela bondade que o atraía. Em teoria, não acreditava em semelhante coisa: se a moral era simples questão de conveniência, bem e mal não tinham sentido. Não gostava de ser ilógico, mas tinha ali, diante de si, uma bondade simples, natural, espontânea, e achava-a bela. Meditando, lentamente, rasgou a carta em pedacinhos. Não via como ir sem Mildred, e não queria ir com ela.

                                                                                           

 

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