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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Servidão Humana p4 / William Somerset Maugham
Servidão Humana p4 / William Somerset Maugham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Servidão Humana

 

Fazia muito calor, o céu estava limpo, e eles haviam-se refugiado num recanto sombrio. A criança, muito séria, brincava com seixos, na praia. De quando em quando, engatinhava até Philip e dava-lhe uma pedrinha, depois tomava-a de novo e colocava-a cuidadosamente na areia. _estava entretida num brinquedo misterioso e complicado, cujas regras só ela compreendia. Mildred dormia. Deitada, com a cabeça atirada para trás, tinha a boca levemente aberta, as pernas estendidas, e as botinas sobressaíam das saias de maneira grotesca. Os olhos de Philip tinham estado vagamente fitos nela, mas agora examinava-a com atenção especial. Lembrou-se de que a amara apaixonadamente e perguntou a si próprio por que motivo lhe era agora totalmente indiferente. Aquela transformação enchia-o de uma dor surda. Parecia-lhe que tudo quanto sofrera fora em pura perda. O contacto da sua mão provocara-lhe êxtase; desejara penetrar-lhe na alma, a fim de poder participar de todos os seus pensamentos e comoções. Sofrera agudamente porque, quando o silêncio caía entre ambos, uma observação que partisse dela mostrava quão distanciados andavam os seus pensamentos. E rebelara-se ante o muro intransponível que isola as personalidades umas das outras. Achava estranhamente trágico tê-la amado de maneira tão doida e não a amar agora. _às vezes, odiava-a. Ela era incapaz de aprender, e a experiência da vida nada lhe ensinara. Continuava tão estúpida como antes. Ficava revoltado ao ver a insolência com que ela se dirigia à criada da pensão.

Pôs-se então a reflectir nos seus planos. No fim do quarto ano, estaria em condições de fazer o exame de obstetrícia e em mais um ano estaria diplomado. Poderia então tratar de uma viagem à Espanha. Desejava ver as telas que conhecia apenas de reproduções fotográficas. Sentia de modo profundo que El Greco guardava um segredo de particular importância para ele; esperava descobri-lo em Toledo. Não queria fazer as coisas com grande largueza. Com cem libras, podia viver seis meses em Espanha: se Macalister lhe indicasse outro bom negócio, ganharia facilmente essa soma. O seu coração inflamava-se ao pensar nas velhas e belas cidades e nas planícies pardacentas de Castela. Estava convencido de que poderia tirar da vida muito mais do que ela lhe oferecia agora. Achava que, em Espanha, viveria com maior intensidade.  _talvez lhe fosse possível ser médico nalguma daquelas antigas cidades, onde havia tantos estrangeiros em trânsito ou residentes, e ganhar assim a vida. Isso, porém, seria muito mais tarde. Primeiro, precisava de ocupar um ou dois lagares em hospitais, pois assim ganharia experiência e ser-lhe-ia fácil conseguir posteriormente uma colocação. Desejava obter um posto de médico de bordo, num desses grandes cargueiros que se demoram muito tempo nos portos, permitindo a visita aos lugares onde param. Desejava conhecer o Oriente e a sua fantasia estava cheia de quadros de Banguecoque, de Xangai e dos portos do Japão. Imaginava palmeiras, céus ardentes e azuis, gente de pele escura, pagodes; os perfumes orientais inebriavam-lhe as narinas. O coração batia-lhe num apaixonado desejo pelo que o mundo tem de belo e de estranho.

Mildred acordou.

- Acho que dormi - disse. - Então, sua travessa, que é que fez? Ontem, estava com o vestido limpo e veja como está agora, Philip.

Quando voltaram para Londres, Philip começou o seu trabalho de auxiliar nas enfermarias de cirurgia. Não estava tão interessado na cirurgia como na medicina, que sendo uma ciência mais empírica, oferecia campo mais vasto à imaginação. O trabalho era agora mais árduo do que na secção médica. Havia uma aula das nove às dez, hora a que entrava na enfermaria. Ali se faziam os curativos, retiravam-se os pontos e renovavam-se as ataduras. Philip orgulhava-se um pouco da leveza da sua mão e divertia-se a arrancar palavras de aprovação à enfermeira. Em certas tardes da semana, havia operações. Em pé, ao fundo do anfiteatro, Philip, de bata branca, apressava-se a passar os instrumentos ao cirurgião ou a limpar o sangue do campo operatório. Quando se tratava de alguma operação rara, o anfiteatro enchia-se, mas em geral não havia ali mais de meia dúzia de estudantes, de maneira que as coisas se passavam numa intimidade  que Philip achava agradável. Naquela época, a humanidade parecia ter a paixão da apendicite e muitos casos eram ali operados. O cirurgião com quem Philip trabalhava tinha uma amistosa rivalidade com um colega, para ver quem tirava um apêndice em menos tempo e com menor incisão.

A seu tempo, Philip foi posto no serviço de urgência. Os estudantes dividiam-se em turnos que duravam três dias e durante os quais ficavam no hospital e tomavam as refeições na sala comum. Tinham um quarto no rés-do-chão, próximo do serviço de acidentes com uma cama que de dia se transformava em armário. O estudante de serviço tinha de ficar à mão dia e noite, para atender os sinistrados. Não paravam nunca e não decorriam mais que uma ou duas horas sem que soasse a sineta, que ficava exactamente por cima da cabeceira, fazendo-o levantar-se da cama instintivamente. Naturalmente, a noite de sábado era a mais movimentada, sendo a hora do encerramento dos cafés e casas de diversões a de mais intenso trabalho. A polícia trazia homens terrivelmente embriagados, a necessitar de uma lavagem ao estômago. As mulheres, um tanto alcoolizadas também, apresentavam-se com ferimentos na cabeça ou com o nariz posto a sangrar pelos maridos. Algumas juravam apresentar queixa à polícia e outras, envergonhadas, declaravam que aquilo fora desastre. O que o estudante podia fizer, fazia, mas, se havia algum caso importante, mandava chamar o cirurgião interno: tinha nisto muito cuidado, pois o médico não gostava de descer cinco lances de escadas por uma coisa de nada. Os casos variavam de golpes nos dedos a carótidas cortadas. Chegavam rapazes com as mãos esmagadas por uma máquina, homens que tinham sido atropelados por veículos, e crianças que haviam partido uma perna ou um braço quando brincavam. De quando em quando a polícia trazia suicidas frustrados. Philip viu um homem de aspecto horrendo e olhos tresloucados, com um enorme golpe que ia de orelha a orelha, e que ali ficou sob a custódia de um guarda, em silêncio, furioso por estar vivo. Não fazia segredo da sua determinação de tentar novamente matar-se logo que se visse livre. As enfermarias estavam cheias e o cirurgião interno encontrava-se perante um dilema, quando os doentes eram trazidos pela polícia: se fossem mandados para a esquadra e lá viessem a morrer, os jornais diriam coisas desagradáveis; e era muito difícil, às vezes, dizer se um homem estava moribundo ou bêbado. Philip só ia para a cama quando estava muito cansado, para não ter o incómodo de levantar-se daí a uma hora. Sentava-se na sala do serviço de acidentes e, nos intervalos do trabalho, conversava com a enfermeira da noite. Era uma mulher grisalha, de aparência masculina, que ocupava aquele lugar havia vinte anos. Gostava do serviço porque era dona de si mesma e não havia freira que a incomodasse. Os seus movimentos eram lentos, mas possuía uma capacidade de trabalho imensa e jamais falhava em casos de emergência. Os estudantes, quase sempre inexperientes ou nervosos, achavam nela um esteio. A enfermeira vira centenas deles e não lhe causavam a menor impressão: chamava-lhes sempre Mr. Brown. E quando, protestando, lhe diziam os seus nomes verdadeiros, limitava-se a menear a cabeça e continuava a chamar-lhes Mr. Brown. Philip gostava de palestrar com a enfermeira, naquela sala nua, com os dois divãs de crina, à luz flamejante do gás. Havia muito que ela deixara de olhar como seres humanos as pessoas que entravam. Para ela, tratava-se de bêbados, de braços quebrados ou de pescoços cortados. Encarava o vício, a miséria e a crueldade do mundo como coisas naturais. Nas acções humanas, nada encontrava que elogiar ou censurar. Aceitava-as. Tinha uma espécie de humor macabro.

- Lembro-me de um suicida - disse ela um dia a Philip - que se atirou ao Tamisa. Pescaram-no e trouxeram-no para cá e dez dias depois apanhou a febre tifóide, por ter engolido água do rio.

- Morreu?

- Morreu. Nunca pude saber se foi suicídio ou não... São uns tipos engraçados, esses suicidas. Recordo-me de um homem que perdera a mulher e que não encontrava trabalho. Empenhou as roupas e comprou um revólver, mas fez o serviço muito mal: só tirou um olho, e acabou por salvar-se. Depois, acredite, sem um olho e com uma parte da cara a menos, chegou à conclusão de que, no fim de contas, este mundo não era muito ruim. Daí por diante, passou a viver feliz. Uma coisa que sempre notei é que as pessoas não se suicidam por amor, como seria de esperar; isso não passa de uma fantasia dos romancistas. Suicidam-se porque não têm dinheiro. Não sei por que é.

- Sem dúvida porque o dinheiro é mais importante do que o amor - sugeriu Philip.

Fosse como fosse, naquela época os pensamentos dele estavam bastante ocupados com questões de dinheiro. Descobrira a pouca verdade que havia naquele dito frívolo que ele próprio repetira, segundo o qual onde come uma pessoa podem comer duas. As despesas começavam a apoquentá-lo. Mildred não era boa dona de casa e eles gastavam tanto com a comida como se comessem num restaurante. A criança precisava de roupas e Mildred, de calçado, sombrinha e outras pequenas coisas sem as quais não podia passar. Ao voltarem de Brighton, ela anunciou a intenção de procurar emprego, mas não tomou providências para isso, até que um dia uma forte gripe a levou à cama durante uma quinzena. Quando se restabeleceu, respondeu a dois anúncios, mas nada conseguiu: ou chegava tarde de mais, quando as vagas já estavam preenchidas, ou o trabalho parecia-lhe superior às suas forcas. Recebeu certa vez uma proposta, mas o salário era apenas de catorze xelins por semana e achava valer mais do que isso.

- Não convém a gente deixar-se explorar - observou. - Ninguém respeita quem se vende barato de mais.

- Não acho muito mau catorze xelins - retorquiu Philip, seco.

Não podia deixar de pensar no auxílio que essa quantia representaria para as despesas da casa. Mildred começava a insinuar que não conseguia emprego porque não tinha um vestido decente para se apresentar. Philip deu-lhe o vestido e ela fez uma ou duas tentativas mais. Pareceu-lhe, porém, que Mildred não se empenhara nelas. Não queria trabalhar. A única maneira que Philip conhecia de ganhar dinheiro era na Bolsa. Andava ansioso para repetir a tentativa feliz do Verão; mas rebentara a guerra no Transval e não se negociavam valores sul-africanos. Macalister contou-lhe que, dentro de um mês, Redvers Buller entraria em Pretória e a alta seria certa. O remédio era esperar com paciência. Era necessário um revés dos ingleses, a fim de que os títulos descessem um pouco; então, sim, valeria a pena comprar. Philip começou a ler assiduamente os *_Comentários da City* no seu jornal favorito. Andava preocupado e irritado. Uma ou duas vezes, falou asperamente a Mildred e, como ela não tinha tacto nem paciência, respondeu-lhe de mau modo, e questionaram. Philip manifestava sempre o seu arrependimento pelo que dissera, mas Mildred, que não sabia perdoar, ficava amuada um ou dois dias. Exasperava Philip de todos os modos: pelo jeito de comer e pelo desalinho em que deixava as roupas na sala de estar. Emocionado pela guerra, Philip lia avidamente os jornais da manhã e da tarde. Mildred, porém, não se interessava pelos acontecimentos. Travara relações com uma ou duas pessoas que moravam na mesma rua. Perguntara-lhe uma delas se gostaria de receber a visita do pastor. Mildred usava aliança e intitulava-se Mrs. Carey. Nas paredes da casa, viam-se alguns dos desenhos feitos por ele em Paris: eram nus, dois de mulheres e um de Miguel Ajuria, este último em pé, firmemente plantado no solo e com os punhos cerrados. Philip conservava-os porque eram os seus melhores trabalhos e porque lhe lembravam dias felizes. Havia muito que Mildred encarava aqueles desenhos com desagrado.

- Preferia que tirasse esses desenhos da parede, Philip -  disse-lhe por fim. - Mrs. Foreman, a do número treze, veio aqui ontem de tarde e eu não sabia para que lado olhar. Não tirou os olhos deles.

- Mas que têm eles, afinal?

- São indecentes. Ter desenhos de gente nua... Acho isso repugnante. E depois, não fica bem para a menina. Ela começa a compreender as coisas.

Como podes ser tão vulgar?

- _vulgar? Decente é que é. Nunca disse nada, mas acha que gosto de passar todo o santo dia a olhar para essa gente em pêlo?

-- _não tens a menor noção do ridículo, Mildred? - perguntou ele friamente.

- _não sei que tem o ridículo a ver com isto. Vontade não me faltou de tirar essas coisas das paredes. Quer saber o que penso desses desenhos? Acho que são nojentos.

- Não me interessa o que pensas e proíbo-te de lhes mexer.

Quando Mildred se zangava com Philip, punia-o através da filha. A pequena gostava tanto dele como ele dela e era com grande prazer que todas as manhãs se arrastava para o seu quarto (estava quase com dois anos e já podia muito bem) e subia para cima da cama. Quando Mildred a impedia de fazer isso, chorava com desespero. _às observações de Philip, a mãe respondia:

- Não quero que ela se acostume mal.

E se ele dizia qualquer coisa, respondia:

- Você nada tem que ver com o que faço a minha filha. Quem o ouvisse, pensaria que era o pai. A mãe dela sou eu e devo saber o que é bom para ela.

A estupidez de Mildred exasperava-o, mas agora era-lhe tão indiferente que só às vezes o encolerizava. Habituou-se a tê-la em casa. Veio o Natal e com ele dois dias de folga. Philip trouxe alguns ramos de azevinho e enfeitou o alojamento. No dia de Natal deu pequenos presentes a Mildred e à criança. Como fossem apenas dois, não podiam comer um peru, mas Mildred assou uma galinha e aqueceu o pudim de Natal que comprara numa mercearia das redondezas. Abriram uma garrafa de vinho. Depois do jantar, Philip sentou-se na sua poltrona ao pé do lume, a fumar o seu cachimbo. O vinho, a que não estava habituado, fazia-o esquecer um instante as preocupações de dinheiro que constantemente o assaltavam. Sentia-se feliz e em conforto. Mildred veio dizer-lhe que a menina desejava dar-lhe o beijo das boas-noites e, com um sorriso, ele entrou no quarto de dormir da rapariga. Depois, dizendo à pequena que dormisse, apagou o gás e, deixando a porta aberta para o caso de ela chorar, voltou para a sala.

- Onde vais sentar-te? - perguntou a Mildred.

- Fique na sua cadeira. Vou sentar-me no chão.

Quando se instalou, Mildred aninhou-se diante do lume e recostou-se-lhe nos joelhos. Philip não pôde deixar de lembrar-se de que tinham ficado uma vez assim, no quarto dela, em Vauxhall Bridge Road, mas as posições estavam invertidas. Era ele quem estava sentado no soalho, com a cabeça reclinada nos joelhos de _mildred. Com que paixão a amava naquele tempo! Sentiu então uma ternura que havia muito não experimentava. Parecia-lhe ainda ter ao redor do pescoço os suaves bracinhos da criança.

-- Estás bem? - perguntou.

Mildred ergueu os olhos para o companheiro e, com um leve sorriso, inclinou a cabeça afirmativamente. Ficaram a olhar para o lume em silêncio, com ar sonhador. Por fim ela voltou-se e fitou-o com curiosidade.

- Sabe que ainda não me beijou uma vez, sequer, desde que estou aqui? - disse de repente.

- Queres?- ele sorriu.

- Acho que já não gosta de mim.

- Gosto muito de ti.

- _gosta mais da menina.

Não respondeu e Mildred repousou-lhe a face na mão.

- Já não está zangado comigo? - perguntou, dali a pouco,  com os olhos postos no chão.

-- Por que havia de estar?

-- Nunca me interessei por si como agora. Só depois de passar pelo fogo é que aprendi a amá-lo.

Philip sentiu um calafrio ao ouvi-la empregar aquela frase que ela lera nas novelas baratas que devorava. Ficou depois a cismar sobre se o que Mildred dissera tinha algum sentido para ela própria. Talvez não conhecesse outro modo de expressar os verdadeiros sentimentos, senão a linguagem pomposa de *_the Family _herald*.

- É uma coisa tão esquisita vivermos juntos assim...

Não respondeu e o silêncio fez-se entre ambos. Mas por fim Philip falou como se tivesse notado aquela pausa:

- Não deves querer-me mal. Não se podem evitar essas coisas. Lembro-me de que te achava malvada e cruel porque fazias isto e aquilo. Mas era grande tolice minha. Não me tinhas amor e era absurdo acusar-te por isso. Pensei que podia fazer com que me amasses, mas vejo agora que tal coisa era impossível. Não sei o que faz com que nos amem, mas seja o que for, é a única coisa que importa e, quando ela não existe, não a podemos criar com bondade, generosidade ou coisa que o valha.

- Acho que, se amasse de verdade, ainda me amaria agora...

- Também creio. Lembro-me de ter pensado naquele tempo que o meu amor duraria para sempre. Achava preferível morrer a viver longe de ti. Cheguei a desejar ardentemente que envelhecesses, que ficasses mirrada, enrugada, para que ninguém mais se importasse contigo e pudesse ter-te toda para mim.

Ela não respondeu e instantes depois ergueu-se e disse que ia para a cama. Esboçou um sorriso tímido e breve.

- Hoje é dia de Natal, Philip. Não quer dar-me um beijo de boa-noite?

Philip pôs-se a rir, corou de leve e beijou-a. Ela foi para o quarto e ele começou a ler.

A tempestade desencadeou-se duas ou três semanas mais tarde. A atitude de Philip levara Mildred ao auge de uma estranha exasperação. Havia muitas e diversas emoções na sua alma, e passava com facilidade de uma a outra disposição de ânimo. Ficava grande parte do tempo sozinha, a cogitar na sua situação. Não punha todos os seus sentimentos em palavras, nem mesmo sabia distingui-los uns dos outros, mas certas coisas permaneciam-lhe no espírito e examinava-as muitas vezes. Nunca compreendera Philip, nem gostara muito dele. Mas gostava de tê-lo a seu lado por julgá-lo um cavalheiro. Impressionava-a o facto de Philip ser filho de um médico e sobrinho de um pastor. Desprezava-o um pouco por tê-lo levado a tantas tolices e ao mesmo tempo nunca se sentia completamente bem na presença dele. Não podia ficar à vontade e adivinhava que ele estava a criticar-lhe os modos.

Quando, cansada e cheia de vergonha, ela se refugiara na pequena habitação de Kensington, queria apenas ficar em paz. Era um consolo pensar que ali não havia aluguer a pagar. Não precisava sair com bom ou mau tempo e podia ficar tranquilamente na cama se não se sentisse bem. Abominava a existência que tinha. Era horrível ter de mostrar-se afável e subserviente. E até agora, ao lembrar-se disso, ela chorava com pena de si própria, ao pensar na grosseria dos homens e na sua linguagem brutal. Mas lembrava-se disso muito raramente. Estava agradecida a Philip por tê-la salvo e quando recordava com que sinceridade a amara e quão mal o tratara, sentia um angustiante remorso. Era-lhe fácil reparar o mal feito. Isso pouco significava para ela. Ficara surpreendida quando Philip recusara a sua insinuação, mas encolhera os ombros: Philip que se desse ares, se isso lhe aprouvesse. Pouco lhe importava, pois em breve estaria bastante ansioso e seria então a sua vez de recusar. Se ele pensava que aquilo era uma privação para ela, estava muito enganado. Não tinha dúvidas quanto ao seu poder sobre ele. Philip era esquisito, mas conhecia-o a fundo. Brigara com ela vezes sem conta e em todas as ocasiões jurara nunca mais a ver. No entanto, pouco depois, vinha pedir-lhe de joelhos que lhe perdoasse. Vibrava ao lembrar-se de como ele rastejara a seus pés, pronto a deitar-se no chão para que o pisasse. Vira-o chorar. Sabia exactamente como tratá-lo: não lhe dar atenção, fingir que não lhe percebia o mau humor, deixá-lo a sós como castigo; dentro em pouco se humilharia. Ria interiormente, bem-humorada, ao pensar que o fizera beijar o chão diante de si. Agora tinha experiência. Conhecia os homens e não queria saber deles. Estava resolvida a ficar com Philip. No fim de contas, esse, pelo menos, era um cavalheiro em toda a extensão da palavra e isso não era coisa para se desprezar. De qualquer modo, não tinha pressa e não estava disposta a dar o primeiro passo. Sentia-se contente por ver quanto Philip se apegava à menina, embora isso lhe fosse motivo de riso. Era, cómico que se afeiçoasse tanto à filha de outro homem. Philip era esquisito, não havia a menor dúvida.

Mas algumas coisas a deixavam surpreendida. Habituara-se à subserviência dele. Nos velhos tempos ele sentia-se feliz em fazer alguma coisa para ela e Mildred acostumara-se a vê-lo ficar abatido por causa de uma resposta áspera e em êxtase ante uma palavra de bondade. Agora mostrava-se diferente, e Mildred dizia para consigo que Philip nada melhorara no ano que passara. Nem por um momento lhe ocorrera que pudesse haver qualquer mudança nos seus sentimentos e achava que ele estava apenas a fingir quando não dava atenção às suas explosões de génio. Philip, às vezes, queria ler e pedia-lhe que cessasse de conversar: ela não sabia se explodir ou ficar carrancuda, mas acabava tão intrigada que não fazia nada. Depois, houve aquela ocasião em que ele lhe disse desejar manter as relações de ambos num carácter platónico e, lembrando um incidente do passado comum, ocorreu a Mildred que ele temesse a possibilidade de uma gravidez. Deu-se ao trabalho de tranquilizá-lo. Aquilo não lhe importava. Era dessas mulheres incapazes de compreender que um homem pudesse não ter a obsessão do sexo. As suas relações com os homens não haviam sido de natureza a fazê-la mudar de ideia e não concebia que fossem capazes de ter outro interesse. Ocorreu-lhe por fim que Philip amava outra mulher. Passou a vigiá-lo, suspeitando das enfermeiras do hospital ou de pessoas que ele encontrava fora de casa. Perguntas ardilosas levaram-na à conclusão de que não havia nenhuma criatura perigosa em casa de Athelny e foi obrigada a admitir que Philip, como a maioria dos estudantes de medicina, era indiferente ao sexo das enfermeiras com quem o trabalho o punha em contacto. Associavam-nas a um vago cheiro de iodofórmio. Philip não recebia cartas e não tinha nenhum retrato de mulher entre as suas coisas. Se amava alguém, conseguia ocultar isso com muita habilidade e respondia a todas as perguntas de Mildred com franqueza e, aparentemente, sem desconfiar que fossem feitas por algum motivo especial.

- Não creio que goste de outra mulher - concluiu de si para si.

Foi um alívio, porque, nesse caso, era certo que a amava. Mas, se assim fosse, o seu comportamento era muito estranho. Se era para tratá-la daquele modo, por que a convidara para morar na sua companhia? Não era natural. Mildred não era mulher que concebesse a possibilidade da compaixão, da generosidade ou da bondade. Chegava a uma única conclusão: que Philip era esquisito. Meteu-se-lhe na cabeça que as razões daquela conduta eram cavalheirescas e, com a fantasia excitada pelas extravagâncias dos romances baratos, arquitectava toda a espécie de explicações novelescas para a delicadeza de Philip. A sua imaginação fervilhava de histórias de incompreensões amargas, purificações pelo fogo, almas brancas de neve, e mortes no frio cruel de uma noite de Natal. Decidira pôr termo a todas aquelas tolices de Philip, quando fossem a Brighton. Lá ficariam a sós, toda a gente os julgaria marido e mulher, e havia ainda o mar e a banda musical. Ao verificar que nada induziria Philip a dormir no mesmo quarto que ela, quando ele lhe falou sobre isso num tom de voz que ainda não lhe conhecia, percebeu de súbito que ele não a queria. Ficou estupefacta. Lembrou-se de tudo quanto lhe dissera no passado e do desespero com que a amara. Sentiu-se humilhada e furiosa, mas possuía uma espécie de insolência natural que a ajudou a enfrentar a situação. Não fosse Philip pensar que ela o amava, porque isso não era verdade. Odiava-o às vezes e ardia por humilhá-lo. Sentia-se, porém, tolhida por uma estranha impotência. Não sabia de que maneira lidar com ele. Começou a ficar nervosa na sua presença. Uma ou duas vezes, chegou a chorar. Outras tantas, procurou ser particularmente gentil para com ele. Mas se lhe tomava o braço quando passeavam à noite, ao longo da praia, logo ele se esquivava como se o contacto lhe fosse desagradável. Mildred não encontrava explicação para aquilo. O único poder que exercia sobre o rapaz era por intermédio da menina, de quem Philip parecia cada vez gostar mais. Podia fazer com que ficasse pálido de raiva: bastava dar na criança uma palmada ou um empurrão. E as únicas ocasiões em que o antigo sorriso de ternura vinha aos olhos dele era quando ela estava com a filha nos braços. Notara isso quando um fotógrafo da praia lhe tirara uma fotografia nessa pose. Depois disso, assumira frequentemente a mesma atitude, para que Philip a olhasse.

Quando voltaram para Londres, Mildred começou a procurar o trabalho que afirmara ser fácil de encontrar. Desejava agora ficar independente de Philip. Pensava na satisfação com que lhe anunciaria que ia alugar quarto e levar a menina. Mas o seu coração desfaleceu ao entrar em maior contacto com a realidade. Desabituara-se das longas horas de serviço e não queria sujeitar-se às impertinências das gerentes, além da sua dignidade se revoltar à ideia de exibir outra vez um uniforme. Aos vizinhos das suas relações, contara que a sua situação financeira era de desafogo: seria rebaixamento se soubessem que ela precisava de trabalhar. A sua indolência natural impunha-se. Não queria abandonar Philip e, uma vez que ele estava pronto a sustentá-la, não via motivo para isso. Não dispunha de dinheiro para deitar fora, mas tinha casa e comida e a situação de Philip podia melhorar :, muito. O tio estava velho e tinha de morrer um dia e ele herdaria algum dinheiro, e, mesmo como estavam as coisas, era melhor assim do que escravizar-se de manhã à noite por uns magros xelins semanais. Os seus esforços rarearam: continuava a ler as colunas de anúncios do jornal simplesmente para mostrar que desejava trabalhar, se se apresentasse alguma oportunidade que valesse a pena. Mas tomava-se de pânico à ideia de que Philip se cansasse de sustentá-la. Já não tinha domínio sobre ele e imaginava que o rapaz lhe permitia ficar, somente porque gostava da pequena. Meditava e tornava a meditar sobre a situação, concluindo furiosamente que um dia ainda havia de fazê-lo pagar tudo aquilo. Não se podia conformar com o facto de já não ser amada. Forçá-lo-ia a amá-la. Sentia-se melindrada e certas vezes, de maneira curiosa, chegava a desejar Philip. Este mostrava-se agora tão frio que a exasperava. Pensava incessantemente nele como amante. Achava que Philip a tratava de modo abominável e não sabia o que fizera para merecê-lo. Não se cansava de repetir para consigo que viver daquela maneira não era natural. Pensou depois que, se a situação fosse diferente e estivesse para ter um filho, Philip certamente casaria com ela. Tinha esquisitices, mas era um cavalheiro em toda a extensão da palavra, e isso ninguém podia negar... Por fim, a ideia tornou-se-lhe uma obsessão e decidiu forçar uma mudança nas relações entre ambos. Ele nem ao menos a beijava, e Mildred queria levá-lo a isso. Recordava-se do ardor com que lhe comprimia os lábios com os seus. Essa lembrança dava-lhe uma curiosa sensação. Muitas vezes lhe fitava a boca.

Uma noite, em princípios de Fevereiro, Philip disse-lhe que ia jantar com Lawson, numa festa que o pintor dava no estúdio, para comemorar o seu aniversário. Avisou que só voltaria tarde. Lawson comprara duas garrafas do famoso ponche da casa de Beak Street e estavam dispostos a passar uma noite alegre. Mildred perguntou se iriam mulheres. Philip respondeu que não, pois só homens tinham sido convidados. Iam apenas ficar sentados a conversar e a fumar. Mildred não achou que isso pudesse ser muito divertido. Se fosse pintor, havia de cercar-se de meia dúzia de modelos. Foi para a cama mas não pôde dormir e em dado momento ocorreu-lhe uma ideia. Levantou-se e foi correr o ferrolho do postigo da porta da frente, a fim de que Philip não pudesse entrar. Ele voltou por volta da uma hora da madrugada e Mildred ouviu-o blasfemar ao encontrar o postigo fechado. Ergueu-se da cama e abriu-lhe a porta.

- Por que diabo te fechaste? Desculpa o ter-te feito levantar da cama.

- Deixei-o aberto propositadamente... não sei como ele se fechou.

-Volta depressa para a cama, senão apanhas um resfriamento.

Entrou na sala e acendeu o gás. Ela seguiu-o. Aproximou-se do lume.

- _vou aquecer um pouco os pés. Estão que nem um gelo.

Philip sentou-se e começou a tirar os sapatos. Os seus olhos cintilavam e as faces estavam afogueadas. Mildred achou que ele estivera a beber.

- Divertiu-se bastante? - perguntou, com um sorriso.

- Sim, a noite foi óptima.

Philip não bebera, mas ficara a conversar e a rir e estava ainda excitado. Uma noitada como aquela lembrava-lhe os velhos tempos de Paris. Estava muito bem disposto. Tirou o cachimbo do bolso e encheu-o.

- Não vai deitar-se? - indagou ela.

- Ainda não. Não tenho sono. Lawson estava num dos seus dias. Falou pelos cotovelos, desde que cheguei até que saí.

- Sobre que conversaram?

- Sabe Deus! Sobre todas as coisas deste mundo. Queria que nos visses a berrar como desesperados, sem que nenhum escutasse os outros.

Philip riu com prazer ao lembrar-se daquilo, e Mildred riu também. Tinha agora a certeza absoluta de que ele bebera de mais. Era exactamente o que ela esperava. Conhecia os homens.

- Dá licença que me sente? - perguntou.

Antes que ele respondesse, sentou-se-lhe nos joelhos.

- Se não vais deitar-te, é melhor ires vestir um roupão.

- Ora, estou muito bem assim. - Depois, pondo-lhe os braços em torno do pescoço, encostou o rosto ao dele e disse: - Porque é tão mau para mim, Phil?

Ele tentou erguer-se, mas ela não o deixou.

- Amo-o muito, Philip.

- Não digas tolices.

- Não, não são tolices, é verdade. Não posso viver sem si. Quero-o!

Ele libertou-se-lhe dos braços.

- Levanta-te, por favor. É uma tolice tua e estás a fazer com que me sinta um perfeito idiota.

- Amo-o, Philip. Quero reparar todo o mal que lhe fiz. Não posso continuar assim, isso não está na natureza humana.

Philip deixou-se escorregar da cadeira, e fê-la cair desamparada.

-- Sinto muito, mas é tarde de mais.

Ela deixou escapar um soluço dilacerante:

- Mas porquê? Como é que pode ser tão cruel?

-- Acho que é porque te amei demasiado. Consumi essa paixão. :, Só ao pensar nisso que queres, fico horrorizado. Não posso olhar para ti, agora, sem pensar em Miller e em Griffiths. Não se pode evitar essas coisas. Talvez seja dos nervos.

Mildred tomou-lhe a mão e cobriu-a de beijos.

- Não faças isso! - exclamou Philip.

Ela atirou-se para trás, na cadeira.

- Não posso continuar assim. Se não me ama, é melhor que me vá embora.

- Não sejas tola, não tens para onde ir. Podes ficar aqui até quando quiseres, mas deve ficar plenamente entendido que somos apenas amigos e mais nada.

Então ela deixou de súbito o tom veemente de paixão e riu-se. Foi uma risada insinuante e macia. Aproximou-se dele com ar furtivo e enlaçou-o, provocante. _falou-lhe em vez baixa e cariciosa.

- Não seja um velho tonto. Acho que isso são nervos. Nem imagina como sei ser boazinha.

Inclinou a cabeça e roçou a cara pela dele. Para Philip, o sorriso dela era um ricto abominável e o brilho daqueles olhos enchia-o de horror. Recuou instintivamente.

- Não quero - exclamou.

Mas ela não o deixou escapar. Procurou-lhe a boca com os lábios. Philip segurou-lhe as mãos e, apertando-as rudemente, empurrou-a para trás.

- Causas-me nojo - disse.

- Eu?

Mildred procurou apoio com a mão na cornija do fogão. Encarou-o por um instante e de súbito duas manchas vermelhas apareceram-lhe nas faces. Soltou uma risada aguda de cólera.

- Causo-te nojo!?

Fez uma pausa e respirou com força. Depois rompeu numa torrente furiosa de impropérios. Gritou a plenos pulmões. Disse-lhe todos os nomes feios que lhe vieram à mente. Usou uma linguagem tão obscena que Philip ficou estupefacto. Ela sempre se mostrara tão desejosa de ser requintada, tão chocada ante o que era grosseiro, que nunca ocorrera ao rapaz que ela conhecesse as palavras que acabara de empregar. Mildred avançou e ergueu para ele um rosto que a fúria desfigurava. Enquanto despejava o seu discurso tumultuoso, a saliva espumava-lhe nos lábios.

- Nunca me importei contigo. Nem uma vez! Sempre trocei de ti. Aborrecias-me, matavas-me de tédio e odiava-te! Se não fosse por dinheiro, nunca me tocarias. Sentia vómitos quando era obrigada a deixar que me beijasses. Ríamos de ti, eu e Griffiths, ríamos porque eras um trouxa. Trouxa! Trouxa!

Tornou a irromper em invectivas abomináveis. Acusou-o das faltas mais baixas, chamou-lhe mesquinho, idiota, vaidoso e egoísta. Cobriu de um ridículo virulento tudo quanto lhe era caro. Por fim, voltou-lhe as costas para sair. Mas ficou e, numa violência histérica, gritou-lhe um epíteto sujo e infamante. Tornou a voltar-se, ergueu o trinco da porta e abriu-a com estrondo. Depois, deu meia volta e arremessou-lhe a injúria que sabia ser a única que realmente o atingia. _pôs na palavra todo o veneno e toda a malícia de que era capaz. Lançou-lhe em rosto como uma bofetada: - _aleijado!

Philip acordou sobressaltado na manhã seguinte, certo de que era tarde e olhando para o relógio viu que eram nove horas. Saltou da cama e foi buscar água quente à cozinha, para fazer a barba. Não viu sinal de Mildred, e as coisas que ela utilizara para preparar a ceia da noite anterior ainda estavam por lavar, amontoadas no lavadouro. Bateu-lhe à porta do quarto.

- Acorda, Mildred. _é muito tarde.

Ela não respondeu nem mesmo depois de segundo chamamento, mais forte, e concluiu que devia estar amuada. Philip tinha muita pressa e não podia preocupar-se com aquilo. Pôs a água a ferver e saltou para a banheira, que costumava encher ao deitar-se, para que no dia seguinte a água estivesse menos fria. _calculava que, enquanto ele se vestia, Mildred preparasse o café e o deixasse na sala. Fizera isso duas ou três vezes, quando estava de mau humor. Mas Philip não a sentia mover-se e compreendeu que, se quisesse comer alguma coisa, teria de prepará-lo. _irritou-se por Mildred lhe pregar aquela partida exactamente na manhã em que dormira de mais. Quando acabou de aprontar-se, ainda não havia sinal dela. Ouviu-lhe, porém, os movimentos no quarto. Era evidente que Mildred estava a levantar se. _philip fez o chá e cortou duas fatias de pão, que cobriu de manteiga. Comeu-as enquanto calçava os sapatos, depois, desceu as escadas a correr e dirigiu-se para a rua principal, a fim de apanhar o "eléctrico". Enquanto os seus olhos procuravam nos postos de jornais cartazes com as notícias da guerra, pensou na cena da noite anterior: agora, que tudo passara, não podia deixar de ver o grotesco da situação. Achava que se expusera ao ridículo, mas não era senhor dos seus sentimentos e, naquele instante, eles haviam sido avassaladores. Estava agastado com Mildred porque ela o metera naquela absurda posição. Depois, com renovada surpresa, pensou na explosão da rapariga e na suja linguagem que ela empregara. Não pôde deixar de corar ao lembrar-se da injúria final. Mas encolheu os ombros desdenhosamente. Havia muito aprendera que, quando os colegas se zangavam com ele, nunca deixavam de escarnecer da sua deformidade. Vira no hospital homens que lhe imitavam o caminhar, não na sua frente, como costumavam fazer os rapazes da escola, mas quando julgavam que não os via. Sabia agora que não faziam tal coisa por maldade deliberada, mas porque o homem é por natureza um animal imitativo e porque aquilo era um meio fácil de provocar o riso. Sabia-o, mas nunca se pudera resignar.

Foi com prazer que se atirou ao trabalho. A enfermaria pareceu-lhe agradável e amiga quando entrou. A irmã saudou-o com um sorriso rápido e profissional.

- Chegou muito tarde, Mr. Carey.

- Andei na pândega ontem à noite.

- Isso vê-se.

- Obrigado.

Rindo, foi atender o primeiro dos seus casos, um rapaz com úlceras tuberculosas e tirou-lhe as ligaduras. O rapaz mostrou-se contente por vê-lo e Philip brincou com ele, enquanto lhe punha as ligaduras novas. Era o preferido dos doentes; tratava-os com bom humor, tinha mãos leves e delicadas que os não magoavam. Alguns estudantes eram um pouco rudes e descuidados nos seus métodos. Philip almoçou com os amigos, no restaurante do clube. A refeição, que foi frugal, consistiu em bolo com manteiga e uma chávena de cacau. Falaram sobre a guerra. Vários estudantes estavam a alistar-se mas as autoridades mostravam-se severas e recusavam os que não tinham feito estágio em hospitais. Alguém sugeriu que, se a guerra continuasse, dentro em pouco o governo aceitaria com prazer qualquer médico recém-formado. Mas a opinião geral era a de que a guerra terminaria dentro de um mês. Agora que Roberts estava no teatro da luta, as coisas chegariam rapidamente a bom termo. Esta era também a opinião de Macalister; dissera a Philip que deviam ficar à espreita de uma oportunidade e comprar acções antes que a paz fosse proclamada. Haveria então grande alta e podiam ganhar bom dinheiro. Philip dera instruções a Macalister para lhe comprar acções quando a oportunidade se apresentasse. As trinta libras que ganhara no Verão aguçavam-lhe o apetite e queria agora ganhar alguns centos.

Ao terminar o trabalho do dia, Philip tomou um "eléctrico" para voltar a Kensington. Ia a conjecturar sobre qual seria a atitude de Mildred, aquela noite. Era um aborrecimento pensar que provavelmente se mostraria grosseira e recusaria responder-lhe às perguntas. A noite estava quente para aquela época do ano, e mesmo nas ruas cinzentas do sul de Londres sentia-se o langor de Fevereiro. Após os meses de Inverno, a natureza torna-se impaciente: corre na terra um frémito prenunciador da Primavera, quando reassume as suas actividades eternas. Philip gostaria de continuar a viagem no "eléctrico". Era-lhe desagradável voltar para casa e queria ar livre. Mas o desejo de ver a criança assaltou-o :, de súbito e sorriu aos seus próprios pensamentos, ao imaginar a menina adiantando-se para ele com gritinhos de satisfação. Ficou surpreendido quando, ao aproximar-se da casa e olhar maquinalmente para cima, não viu luz na janela. Subiu as escadas e bateu. Nenhuma resposta. Quando saía, Mildred costumava deixar a chave debaixo do capacho, onde a encontrou. Entrou e dirigiu-se para a sala; riscou um fósforo. Acontecera qualquer coisa. Não percebeu logo de que se tratava. Abriu completamente o gás e acendeu-o. O quarto inundou-se subitamente de luz e Philip olhou em torno. Cortou-se-lhe a respiração. Estava tudo devastado. Todas as coisas que ali havia tinham sido destruídas por gosto. A raiva apoderou-se dele. Precipitou-se para o quarto de Mildred. Encontrou-o vazio e às escuras. Quando acendeu a luz, viu que ela levara todas as suas coisas e as da criança. (Ao entrar, notara que o carrinho não estava no patamar, como de costume, mas julgou que Mildred tivesse levado a filha a passear). Todos os objectos que havia sobre o lavatório tinham sido quebrados. Uma faca cortara em cruz os assentos das duas cadeiras. O travesseiro fora aberto e havia largos cortes nos lençóis e nas colchas. O espelho parecia ter sido partido a martelo. Philip estava desnorteado. Entrou no seu quarto. Confusão geral. A bacia e o jarro estavam em bocados, o espelho fora despedaçado e os lençóis feitos em tiras. Mildred rasgara no travesseiro um buraco suficiente para introduzir a mão e espalhara depois as penas pelo quarto. Esburacara os cobertores. No toucador havia fotografias da mãe de Philip: as molduras e os vidros tinham sido partidos. Philip dirigiu-se à cozinha. Tudo quanto era susceptível de partir-se fora partido: copos, tachos, pratos e travessas.

Philip ofegava. Mildred não deixara nenhuma carta, mas apenas aquela ruína para assinalar o seu ódio. Podia imaginar a cara convulsa com que ela se encarniçara naquele trabalho de destruição. Voltou à sala e olhou em torno. Estava tão atónito que já não sentia raiva. Olhou com curiosidade para a faca de cozinha e para o martelo de partir o carvão que estavam sobre a mesa, onde Mildred os deixara. Nesse instante, deu com uma comprida faca de trinchar que se encontrava, quebrada, sobre a cornija do fogão. Para fazer tantos danos, devia ter gasto muito tempo. O retrato que Lawson lhe fizera estava cortado em cruz e horrivelmente esburacado. Os seus próprios desenhos tinham sido rasgados em pedaços. E as reproduções fotográficas da *_Olympia* de Manet, da *_Odalisque* de Ingres e o retrato de Filipe IV tinham sofrido grandes golpes. Havia rasgões na toalha da mesa, nas cortinas e nas duas poltronas. Estavam completamente estragadas. Numa das paredes, por cima da mesa que Philip usava como escrivaninha, achava-se o pedaço de tapete persa que Cronshaw lhe dera. Mildred sempre o detestara.

- Se é tapete deve ir para o chão - dizia. - Isso não passa de um pedaço imundo de fazenda, é o que é.

O tapete enfurecia-a porque Philip lhe dissera que aquilo continha a resposta de um grande enigma. Julgava que estivesse a troçar dela. Cortara-o à faca três vezes, de cima a baixo, o que decerto lhe exigira alguma força. Agora, lá estava ele em farrapos. Philip possuía dois ou três pratos brancos e azuis, de nenhum valor mas que comprara um a um por muito pouco dinheiro: gostava deles pelas recordações que lhes estavam associadas. Achavam-se agora espalhados no chão, em cacos. Havia longos cortes na lombada dos seus livros, e Mildred dera-se ao trabalho de arrancar páginas aos volumes franceses brochados. Os pequenos enfeites do fogão jaziam no sobrado, em pedaços. Tudo o que uma faca ou um martelo podiam destruir fora destruído.

Tudo quanto Philip tinha em casa, vendido, não daria mais de trinta libras, mas a maior parte do que possuía eram coisas amigas. Era uma pessoa doméstica, apegava-se a todas aquelas quinquilharias, simplesmente porque lhe pertenciam. Tinha orgulho no seu pequeno lar, que com tão pouco dinheiro soubera arranjar, dando-lhe um cunho pessoal. Atirou-se para uma cadeira desesperado. Como pudera Mildred ser tão cruel? Foi tomado de súbito temor. Tornou a levantar-se e dirigiu-se ao corredor, onde ficava o armário em que guardava as suas roupas. Abriu-o. Deu um suspiro de alívio. Ela parecia tê-lo esquecido e nenhuma das peças fora tocada.

Philip voltou para a sala e, contemplando a cena, ficou a pensar no que havia a fazer. Não tinha ânimo para tentar recompor as coisas. Além do mais, não havia comida nenhuma em casa e estava com fome. Saiu para ir comer. Quando voltou, sentia-se mais calmo. Uma ligeira angústia se apoderou dele, ao pensar na criança. Ficou a imaginar se ela sentiria ou não a falta dele. Talvez sentisse, no princípio, mas numa semana o teria esquecido. E dava graças por ter ficado livre de Mildred. Não pensava nela com rancor, mas com uma total sensação de tédio.

   - Espero em Deus nunca mais tornar a vê-la - disse em voz alta.

   A única coisa que lhe restava era deixar aqueles quartos. Resolveu avisar a senhoria na manhã seguinte. Não estava em condições de reparar os danos e restava-lhe tão pouco dinheiro que era obrigado a procurar moradia ainda mais barata. Teria prazer em sair dali. As despesas eram uma preocupação e a lembrança de Mildred ficaria para sempre associada àquela casa. Philip sentia-se impaciente e não descansaria antes de pôr em prática o plano que tinha em mente. Assim, na tarde seguinte, trouxe um negociante de mobílias em segunda-mão que lhe ofereceu três libras por todos os seus bens, danificados ou não. Dois dias :, mais tarde, mudou-se para uma casa fronteira ao hospital, onde morara ao entrar para a Faculdade. A proprietária era uma senhora muito decente. Philip ficou com um quarto por seis xelins semanais. Era pequeno e feio, dava para o pátio das traseiras. Philip, porém, já nada possuía além das roupas e de um caixote de livros, e estava satisfeito por se instalar tão barato.

   Aconteceu então que a sorte de Philip Carey, de nenhuma importância a não ser para ele próprio, foi atingida pelos acontecimentos por que o seu país estava a passar. Fazia-se História e o processo era tão momentoso que parecia absurdo poder influir na vida de um obscuro estudante de medicina. Uma após outra, as batalhas de Magersfontein, Colenso e Spion Kop, que já tinham sido perdidas nos campos de jogos de Eton, humilharam a nação e vibraram um golpe de morte no prestígio da aristocracia e das classes elevadas, que até então não haviam encontrado quem se opusesse à sua pretensão de possuírem o instinto natural da governação. A velha ordem estava a ser abalada: na verdade, fazia-se História. Depois, o colosso usou, da sua força e, errando de novo crassamente, chegou por fim, através do próprio erro, a algo que se parecia com uma vitória. Cronje rendeu-se em Paardeberg, Ladysmisth foi libertada e, em princípios de Março, Lord Roberts tomou Bloemfontein.

   Foi dois a três dias depois de terem essas notícias chegado a Londres que Macalister entrou na casa de Beak Street e anunciou alegremente que as coisas estavam a assumir bom aspecto na Bolsa. A paz aproximava-se. Roberts entraria em Pretória dentro de poucas semanas e as acções começariam a subir. Tudo indicava que ia haver uma grande alta.

   - Chegou a nossa hora - disse o corretor a Philip. - Não devemos ficar para trás. Agora ou nunca.

   Macalister tinha informações directas. O gerente de uma mina da _áfrica do Sul telegrafara ao sócio principal da firma, a dizer que as instalações estavam intactas. _começariam a trabalhar logo que fosse possível. Aquilo não era uma especulação, mas um emprego de capital. Para provar a confiança do sócio principal, Macalister contou a Philip que o homem comprara quinhentas acções para duas irmãs suas. Nunca as metia em negócio que não fosse tão seguro como o Banco de Inglaterra.

   -Vou jogar, até a camisa - disse ele.

   As acções estavam cotadas entre dois e um oitavo a dois e um quarto; Macalister aconselhou Philip a que não fosse ambicioso e se satisfizesse com uma alta de dez xelins. Ia comprar trezentas :, para si próprio e sugeriu que Philip ficasse com a mesma quantidade. Pretendia retê-las para vender quando achasse oportuno. Philip tinha grande fé no corretor, em parte porque este era escocês, e, portanto, cauteloso por natureza, e em parte porque acertara da primeira vez. Aceitou pressuroso a proposta.

   - Creio que poderemos vendê-las antes da liquidação -disse Macalister - mas, se não pudermos, conseguirei transferir o pagamento para o próximo ajuste de contas.

Esse pareceu a Philip um sistema de primeira ordem. Reter as acções até o momento de poder vendê-las com lucro, sem jamais ter que desembolsar um vintém. Começou a ler no jornal as cotações da Bolsa com um interesse novo. No dia seguinte houve pequena alta e Macalister escreveu-lhe para dizer que tivera de pagar dois e um quarto pelas acções. O mercado estava firme. Mas, dentro de um ou dois dias, produziu-se um recuo. Chegaram da _áfrica do Sul notícias menos tranquilizadoras e Philip viu com ansiedade que os títulos tinham caído dois pontos. Macalister, porém, estava optimista. Os *boers* não podiam aguentar-se por muito tempo mais e apostava como Roberts entraria em Johannesburgo antes de meados de Abril. No momento da liquidação Philip teve de pagar perto de quarenta libras. Isso aborreceu-o consideravelmente, mas achou que o melhor caminho era não vender. Na situação em que estava, o prejuízo seria grande de mais. Durante duas ou três semanas, nada aconteceu: os *boers* não compreendiam que estavam vencidos e que nada mais lhes restava senão render-se. Tiveram, até, um ou dois pequenos êxitos e as acções de Philip caíram mais meia coroa. Tornou-se evidente que a guerra não terminara. As vendas aceleraram-se. Quando Macalister encontrou Philip, mostrou-se pessimista.

   - Não sei se o melhor não será limitar o prejuízo... Só em diferenças paguei mais do que desejava.

   A ansiedade era uma doença para Philip. Não podia dormir, engolia apressado a refeição da manhã, reduzida agora a chá e pão com manteiga, e precipitava-se para a sala de leitura do clube, a fim de ler o jornal. _às vezes, as notícias eram más e de outras não havia notícia alguma. Mas, quando as acções faziam algum movimento, era para cair. Philip não sabia que fazer. Se vendesse agora, perderia perto de trezentas e cinquenta libras, ficando assim reduzido a oitenta. Desejava de todo o coração nunca ter cometido a asneira de especular na Bolsa. Mas o único remédio era reter os títulos. Algo de decisivo devia acontecer a qualquer momento, e as acções decerto subiriam. Não esperava agora obter lucro, mas sim recuperar o que perdera. Era a sua única esperança de poder terminar o curso de medicina. O semestre de Verão começava em Maio e no fim do período tencionava fazer o exame de obstetrícia. Depois, só teria mais um ano de :, estudo. Fez cálculos cuidadosos e chegou à conclusão de que, incluindo tudo, poderia manter-se com cento e cinquenta libras. Mas era rigorosamente o mínimo.

   Em princípios de Abril foi à casa de bebidas de Beak Street, ansioso por encontrar Macalister. Era um alívio discutir a situação com o corretor. O saber que numerosas pessoas, além dele, sofriam perdas de dinheiro, tornava a sua inquietação um pouco menos intolerável. Mas, quando Philip chegou lá, encontrou Hayward. Mal se sentara, já o outro dizia:

   - Embarco para o Cabo no domingo.

   -Tu!? - exclamou Philip.

   Hayward era o homem de quem menos esperaria semelhante gesto. No hospital, os estudantes alistavam-se em grandes grupos. O governo aceitava com prazer quem tivesse um diploma. E outros, que partiam como simples soldados, escreviam para casa, a dizer que os punham a trabalhar em hospitais, logo que revelavam a qualidade de estudantes de medicina. Uma vaga de sentimento patriótico varria o país inteiro. E apresentavam-se voluntários de todas as classes sociais.

   - Em que qualidade embarcas? - indagou Philip.

   - Como soldado, na milícia de Dorset.

   Philip conhecia Hayward havia oito anos. A intimidade juvenil, que lhe viera da admiração pelo homem que tão bem sabia falar de arte e de literatura, desaparecera, substituída pelo hábito. Quando Hayward estava em Londres, Philip e ele encontravam-se uma ou duas vezes por semana. Hayward ainda falava de livros com delicada compreensão. Philip, que deixara de ser tolerante, irritava-se às vezes com o amigo. já não acreditava implicitamente que nada no mundo tem importância fora da Arte. Ressentia-se com o desprezo de Hayward pela acção e pelo triunfo. Mexendo o seu ponche, Philip pensava na sua antiga amizade e na ardente expectativa de que Hayward viesse a produzir grandes coisas. Havia muito perdera todas essas ilusões; sabia agora que Hayward jamais faria outra coisa senão conversar. Achava mais difícil viver com as suas trezentas libras anuais, agora que estava com trinta e cinco anos, do que quando era rapaz. Os seus fatos, embora feitos por um bom alfaiate, eram usados por muito mais tempo do que antigamente ele julgaria possível. Estava corpulento em excesso e nenhum arranjo artificioso do cabelo conseguia esconder-lhe a calvície. Os olhos azuis estavam baços e descorados. Não era difícil adivinhar que bebia demasiado.

   - Que diabo de ideia foi essa de ir para o Cabo? - perguntou Philip.

    - Ah! Não sei... Achei que devia ir.

    Philip ficou silencioso. Sentia-se um pouco constrangido.

Compreendia que Hayward era arrastado por uma intranquilidade de alma que não sabia a que atribuir. Alguma força interior fazia que ele achasse necessário ir lutar pela pátria. Era estranho, uma vez que olhava o patriotismo como simples preconceito. Gabando-se do seu cosmopolitismo, encarava a Inglaterra como um lugar de exílio. Os compatriotas, considerados em globo, feriam-lhe as susceptibilidades. Que seria - perguntava Philip a si próprio - que levava as pessoas a fazer coisas tão contrárias a todas as suas teorias sobre a vida? O razoável para Hayward seria ficar de lado, a observar com um sorriso os bárbaros a exterminarem-se. Era como se os homens fossem títeres nas mãos de uma força desconhecida que os impelia a proceder de um modo ou de outro. Faziam algumas vezes uso da razão para justificar as suas acções. E quando isso era impossível, procediam da mesma maneira, a despeito da razão.

   - A humanidade é muito extraordinária - disse Philip. - Nunca esperaria ver-te partir como soldado.

    Hayward sorriu, levemente embaraçado, e não disse palavra.

    - Fui examinado ontem - observou por fim. - Uma *gêne*... Mas ao menos a gente tem a vantagem de ficar a saber que está de perfeita saúde.

   Philip notou que ele usava ainda, desnecessariamente e com afectação, palavras francesas. _mas, naquele mesmo momento, Macalister entrou.

 

- Queria falar contigo, Carey - disse. - A minha gente não está resolvida a reter por mais tempo aquelas acções. O mercado encontra-se numa barafunda dos diabos e querem que retires os títulos.

   O coração de Philip desfaleceu. Sabia que era impossível. Significava aceitar o prejuízo. O orgulho fê-lo responder com calma:

   - Não acho que valha a pena, por enquanto. Podes vendê-las.

   - Isso é muito bonito dizer, mas não sei bem se posso. O mercado está estagnado e não há compradores.

   - Mas elas estão cotadas a um e um oitavo.

   - Ah, estão... Mas isso não quer dizer coisa alguma. Não se encontra quem pague tanto.

   Philip, por um instante, não soube quer dizer. Tentava dominar-se.

   - Queres dizer então que não valem absolutamente nada?

   - Ora! Não é isso que estou a dizer. Está claro que valem alguma coisa, mas compreendes, o facto é que ninguém as compra agora.

   - Então, o que deves fazer é vender por quanto puderes.

   Macalister olhou para Philip com atenção. Avaliava como era grave o golpe sofrido.

   - Sinto muitíssimo, meu velho, mas todos nós estamos no mesmo barco. Ninguém pensava que a guerra durasse tanto. Arrastei-te, mas fui contigo.

   -- Isso não tem importância - disse Philip. - Cada um tem de aceitar a sua sorte.

   Voltou para a mesa de onde se levantara para falar com Macalister. Estava aniquilado. A cabeça começou a doer-lhe violentamente, mas não quis que os amigos o julgassem pusilânime. Deixou-se ficar ali uma hora. Riu febrilmente de tudo quanto os outros diziam. Por fim, levantou-se para se ir embora.

   - Encaras a coisas com bastante frieza, hem? - disse Macalister, apertando-lhe a mão. - Acho que ninguém gosta de perder trezentas ou quatrocentas libras.

   Philip voltou para o seu feio quarto e atirou-se para a cama; entregou-se ao desespero. Não cessava de lamentar amargamente a sua loucura, embora tentasse convencer-se de que era absurdo qualquer arrependimento, pois o que acontecera era inevitável, precisamente porque acontecera. Mas era inútil. Sentia-se tomado de uma depressão profunda. Não pôde dormir. Lembrou-se de todas as maneiras como esbanjara dinheiro nos últimos anos. A cabeça doía-lhe horrivelmente.

   Na noite seguinte, chegou pelo correio um extracto da sua conta. Examinou a sua caderneta do Banco. Depois de pagar tudo restar-lhe-iam sete libras. Sete libras! Dava graças por poder pagar. Teria sido horrível ver-se obrigado a confessar a Macalister que não tinha dinheiro. Trabalhara no serviço de oftalmologia durante o trimestre de Verão e comprara um oftalmoscópio a um estudante. Não o pagara ainda, mas faltava-lhe coragem para dizer ao colega que queria voltar atrás. Precisava também comprar determinados livros. Tinha consigo cinco libras, as quais lhe durariam seis semanas. Escreveu, então, ao tio uma carta que julgou muito comercial. Dizia nela que, devido à guerra, sofrera graves prejuízos e não podia continuar os estudos, a menos que o tio viesse em seu auxílio. Sugeria que o vigário lhe mandasse cento e cinquenta libras durante os dezasseis meses seguintes, em prestações mensais. Prometia pagar juros e restituir o capital pouco a pouco, quando começasse a ganhar dinheiro. Diplomar-se-ia o mais tardar dentro de ano e meio e estava certo de conseguir então um lugar de assistente, que lhe daria três libras semanais. O tio respondeu que nada podia fazer. Não estava certo pedir-lhe que abrisse mão de tal soma quando a situação era das piores e o pouco que possuía era de seu dever conservar para um caso de doença. Terminava a carta com uma pequena homilia. Advertira-o oportunamente, e nunca lhe dera atenção. Para ser sincero, não podia dizer que estava surpreendido. Havia muito esperava que fosse aquele o fim das extravagâncias e da falta de equilíbrio do sobrinho.

   Philip ficou de todas as cores ao ler isto. Nunca lhe ocorrera que o tio pudesse recusar. Rompeu num acesso de raiva a que, porém, se seguiu um grande pasmo. Se o tio não o ajudasse, não poderia continuar no hospital. O pânico apoderou-se de Philip que, pondo de lado o orgulho, tornou a escrever ao vigário de Blackstable, expondo-lhe o caso com mais premência. Mas talvez não se explicasse com propriedade e o tio não percebesse em que situação desesperada se encontrava, pois respondeu que não alterava a sua resolução. Philip estava com vinte e cinco anos e, a dizer a verdade, já devia ganhar a vida. Quando ele morresse, herdaria alguma coisa, mas até então negava-se a dar-lhe um vintém que fosse. Philip sentiu nessa carta a satisfação de um homem que, depois de vários anos de desaprovação à sua conduta, via enfim realizadas as suas previsões.

 

   Philip começou a empenhar as roupas. Para reduzir as despesas tomava só uma refeição por dia, além do pequeno almoço. Consistia ela em pão com manteiga e cacau que tomava às quatro horas da tarde, a fim de sustentar-se até ao dia seguinte. _às nove, sentia tanta fome que tinha de ir para a cama. Pensou em pedir um empréstimo a Lawson, mas o temor de uma recusa inibia-o. Pediu-lhe por fim cinco libras. Lawson emprestou-as com prazer mas, ao entregá-las, disse:

   - Vais devolver-mas dentro de uma semana ou pouco mais, não é? Tenho de pagar a conta da casa de molduras. Ando muito falto...

   Philip sabia que não poderia pagar e a ideia do que Lawson pudesse pensar deixava-o tão envergonhado que, dentro de dois dias, devolveu-lhe o dinheiro intacto. Lawson, que casualmente saía para almoçar, convidou Philip a acompanhá-lo. Mas ele mal pôde comer, tanta satisfação sentia ao ver alimentos sólidos. Estava certo de que, no domingo, teria o bom jantar dos Athelny. Hesitou em contar-lhes o que acontecera. A família considerara-o sempre em boa situação e temia que pudessem deixar de estimá-lo se o soubessem sem dinheiro.

   Embora tivesse sido sempre pobre, nunca lhe ocorrera a possibilidade de não ter que comer. Não era coisa que acontecesse às pessoas em cujo meio vivia. Estava envergonhado como se tivesse alguma doença infame. Aquela situação encontrava-se absolutamente fora do campo da sua experiência. Sentia-se tão abatido que, a não continuar na Faculdade de Medicina, não sabia que outro :, rumo tomar. Tinha a vaga esperança de que alguma coisa surgiria. Não podia acreditar que fosse verdade o que lhe acontecera. Lembrava-se de como, no primeiro ano na escola, julgara a sua vida um sonho do qual havia de despertar para se encontrar mais uma vez em casa. Cedo, porém, viu que, dentro de uma semana ou pouco mais, estaria absolutamente sem dinheiro. Devia tentar ganhar alguma coisa imediatamente. Se já estivesse diplomado, mesmo com o pé boto ser-lhe-ia possível embarcar para o Cabo, devido à grande necessidade de médicos. Não fosse aquele defeito, poderia alistar-se num dos regimentos de voluntários que embarcavam constantemente. Foi ao secretário da Escola de Medicina e perguntou-lhe se lhe podia dar o posto de explicador para algum estudante atrasado. Mas o secretário não lhe deu a menor esperança. Philip lia os anúncios das publicações médicas e candidatou-se ao lugar de assistente não diplomado de um médico que tinha um dispensário em Fulham Road. Quando o procurou, viu que o homem lançava um olhar para o seu pé torto. E, ao saber que estava apenas no quarto ano, disse imediatamente que a sua experiência era insuficiente. Philip compreendeu que era apenas uma desculpa. O médico não queria um auxiliar que pudesse não ser tão activo quanto desejava. Philip voltou a atenção para outros meios de ganhar dinheiro. Sabia francês e alemão e parecia-lhe haver alguma esperança de encontrar um lugar de correspondente comercial. Essa ideia deixou-o angustiado, mas cerrou os dentes: não havia outra coisa a fazer. Como a sua timidez não lhe permitisse responder aos anúncios que exigiam a presença do candidato, respondia aos que pediam apenas cartas. Mas não tinha experiência nem recomendações. Estava ciente de que o seu alemão e o seu francês não eram comerciais. Ignorava os termos usados no comércio e não sabia estenografia nem escrever à máquina. Não pôde deixar de reconhecer que o seu caso era sem esperança. Pensou em escrever ao advogado que fora executor testamentário de seu pai, mas não chegou a fazê-lo porque fora contra o conselho expresso desse profissional que vendera as hipotecas em que o seu dinheiro estava empregado. Sabia por intermédio do tio que Mr. Nixon condenava inteiramente o seu modo de viver. Aquele ano passado por Philip no escritório de contabilidade levara o homem à conclusão de que ele era vadio e incompetente.

   - Prefiro morrer de fome - murmurou Philip para consigo mesmo.

   Uma ou duas vezes, pensou no suicídio. Seria fácil tirar uma droga da farmácia do hospital. Era um consolo pensar que, na pior das hipóteses, tinha à mão meios para acabar com a vida sem dor. Mas não foi essa uma solução que tomasse a sério. Quando Mildred o abandonara para ir com Griffiths, a sua angústia fora :, tão grande que quisera morrer para se libertar do sofrimento. Não sentia isso agora. Lembrava-se de ter ouvido a enfermeira do serviço de acidentes contar que as pessoas se suicidavam mais por falta de dinheiro do que por amor. Riu consigo mesmo ao pensar que o seu caso era uma excepção. Desejava apenas aliviar as suas mágoas contando-as a alguém. Não conseguia, porém, forçar-se a uma confissão. Tinha vergonha. Continuou a procurar trabalho. Passou semanas sem pagar o aluguer, explicando à senhoria que ia receber dinheiro no fim do mês. Ela nada disse, limitando-se a franzir os lábios e a assumir um ar carrancudo. Quando chegou o fim do mês e ela lhe perguntou se não podia pagar alguma coisa por conta, foi com grande mal-estar que respondeu negativamente. Contou-lhe que ia escrever ao tio e que estava certo de poder pagar a conta no sábado seguinte.

   - Bom, espero que possa, Mr. Carey, porque também tenho o aluguer para pagar e não posso ficar em atraso. - Não falava zangada, mas sim com uma resolução que chegava a assustar. Depois de breve pausa, acrescentou: - Se o senhor não pagar no sábado que vem, terei de me queixar ao secretário do hospital.

   - Sim, sim. Pode ficar sossegada.

   A mulher fitou-o um instante e depois correu os olhos pelo quarto. Quando tornou a falar foi sem nenhuma ênfase, como se estivesse a dizer uma coisa absolutamente natural:

   -Tenho boa carne assada lá em baixo. Se o senhor quiser descer à cozinha, terei muito prazer em lhe servir um bocado.

   O rapaz sentiu-se corar até à planta dos pés e sufocou um soluço.

   - Muito obrigado, Mrs. Higgins, mas não tenho vontade.

   - Está bem.

   Quando ela deixou o quarto, Philip atirou-se para cima da cama. Teve de cerrar os punhos para conseguir não chorar.

 

   Sábado. Era o dia em que prometera pagar o aluguer. Durante toda a semana esperara um acontecimento... Não encontrara trabalho. Nunca, até então, fora levado a tais extremos e estava tão desnorteado que não sabia que fazer. No fundo, tinha a impressão de que tudo aquilo não passava de um absurdo. Restavam-lhe uns trocos e vendera todas as roupas sem as quais lhe era possível passar. Possuía alguns livros e uma ou duas bugigangas com que podia fazer um par de xelins. A senhoria, porém, vigiava-lhe as idas e vindas. Philip temia que ela o detivesse, se o visse tirar algum objecto mais do alojamento. O remédio era dizer-lhe que não podia pagar. Faltou-lhe coragem. Estava-se em meados de Junho. A noite era bela e agradável. Decidiu passá-la fora. Saiu a caminhar vagarosamente ao longo do cais de Chelsea, pois o rio estava sereno e silencioso, até se cansar. Depois, sentou-se num banco e dormitou. Não soube quanto tempo dormiu. _acordou sobressaltado, sonhando que um guarda o sacudia para que seguisse o seu caminho. Quando, porém, abriu os olhos, viu que estava só. Pôs-se novamente a caminhar, sem saber porquê e, afinal, chegou a Chiswick, onde tornou a dormir. Em dado momento, a dureza do banco despertou-o. A noite pareceu-lhe muito longa. Sentiu um calafrio. Estava tomado por uma sensação de abatimento e não sabia que diabo fazer. Envergonhava-se de ter dormido no cais. Parecia-lhe particularmente humilhante. Sentiu que as suas faces se avermelhavam na escuridão. Lembrou-se de histórias que ouvira. Entre os que viviam daquele modo, achavam-se oficiais, padres e antigos alunos de Universidades. Acabaria como eles, parado numa fileira, às espera da sopa de uma instituição de caridade? Seria muito melhor matar-se. Não podia continuar assim. Lawson havia de ajudá-lo quando conhecesse a sua situação. Era absurdo que o seu orgulho o impedisse de solicitar auxílio. Por que dera tamanha queda? Procurara fazer sempre o que lhe parecia melhor e tudo se fora por água abaixo. Quando podia, ajudava as pessoas e não achava que tivesse sido mais egoísta do que qualquer outro. Afigurava-se-lhe uma horrível injustiça ficar reduzido àquela contingência.

   Mas era inútil fazer tais reflexões. Continuou a caminhar. Agora, o dia clareava: o rio estava belo no silêncio, e havia algo de misterioso naquela hora matinal. Tudo prometia um dia belíssimo e o céu pálido da madrugada estava limpo de nuvens. Philip sentia-se muito cansado, a fome roía-lhe as entranhas, mas o medo constante de ser interpelado por um polícia impedia-o de ficar sentado. Era uma mortificação que não desejava. Sentia-se sujo e ansiava por um banho. Achou-se, por fim, em Hampton Court. Se não comesse alguma coisa, desataria a chorar. Procurou uma casa de pasto barata e entrou. Havia lá dentro um cheiro de coisas quentes que lhe causou uma leve impressão de náusea. Pretendia comer algo substancial que o refizesse para o resto do dia, mas o seu estômago revoltou-se à vista da comida. Tomou uma chávena de chá e pão com manteiga. Lembrou-se, então, de que era domingo e podia ir a casa dos Athelny. Pensou na carne assada e no pastelão que iam comer, mas achava-se tremendamente cansado e não tinha coragem para enfrentar a família feliz e bulhenta. Estava a sentir-se fatigado e miserável. Queria ficar só, ficar em paz. Resolveu entrar nos jardins do palácio e estender-se no chão. Doíam-lhe os ossos. Talvez encontrasse uma fonte e pudesse lavar as mãos e o rosto e beber uns goles de água. Estava com muita sede. E agora, que já não tinha fome, pensava :, com prazer nas flores, na relva e nas grandes árvores copadas Parecia-lhe poder ali pensar melhor no que faria. Estendeu-se na relva, à sombra, e acendeu o cachimbo. Por economia, havia, muito que se limitara a fumar duas cachimbadas por dia; dava graças por ter agora a bolsa cheia de tabaco. Ignorava o que faziam as pessoas quando não tinham dinheiro. Pouco depois, adormeceu. Quando despertou, era quase meio-dia e pensou que devia pôr-se em marcha para Londres, a fim de lá estar na manhã seguinte, para responder aos oferecimentos de emprego que lhe parecessem prometedores. Lembrou-se de o tio lhe ter dito que, ao morrer, lhe deixaria o pouco que tinha. Philip não fazia a menor ideia de quanto fosse. Não podia ser mais do que algumas centenas de libras. E se tentasse conseguir dinheiro por conta do que viria a herdar? Nada arranjaria sem o consentimento do tio, e este nunca lho daria.

   "_O que me resta fazer é esperar que ele morra" - concluiu.

   Philip calculou-lhe a idade. O vigário de Blackstable já passara havia muito dos setenta. Tinha uma bronquite crónica, mas muitos velhos a tinham e viviam indefinidamente. Entretanto alguma coisa havia de surgir. Philip não podia deixar de sentir que a sua situação era de todo anormal: as pessoas da sua condição não morriam de fome. Era por não conseguir acreditar na realidade daquela aventura que não se entregava ao extremo do desespero. Decidiu pedir meia libra emprestada a Lawson. Passou todo o dia no jardim e, quando sentia muita fome, fumava. Não comeria nada antes de se pôr em marcha para Londres. Era uma longa caminhada e devia refazer as forças para isso. Partiu quando o dia começou a refrescar; e, quando estava cansado, dormia nos bancos. Ninguém o incomodou. Na Estação de Vitória, lavou-se, penteou-se e barbeou-se. Tomou depois chá e pão com manteiga e, enquanto comia, leu a coluna de anúncios do jornal da manhã. Ao correr os olhos por eles, deu com um que pedia um caixeiro para a "secção de roupas" de um armazém muito conhecido. Sentiu um curioso desfalecimento de coração, porque, com os seus preconceitos burgueses, parecia-lhe horrendo trabalhar como caixeiro de loja. Mas encolheu os ombros porque, no fim de contas, que lhe importava aquilo? Resolveu tentar a sorte. Tinha uma esquisita sensação de que, aceitando todas as humilhações e indo mesmo ao encontro delas, forçaria a mão do destino em proveito próprio. _às nove horas, sentindo-se terrivelmente acanhado, apresentou-se no local indicado e viu que muitos outros haviam chegado à sua frente. Eram de todas as idades, desde rapazes de dezasseis anos até homens de quarenta. Alguns conversavam em voz baixa, mas a maioria estava silenciosa. Quando Philip foi para o seu lugar, os que se encontravam próximo lançaram-lhe um olhar de hostilidade. Ouviu um deles dizer: :,

 

   - A única coisa que desejo é que me recusem o mais depressa possível, para ter tempo de procurar noutra parte.

O vizinho de Philip examinou-o de alto a baixo e perguntou-lhe:

   - Tem prática?

   - Não.

   O outro fez uma pequena pausa e depois observou:

   - Depois do almoço, até nas casas sem importância, não atendem ninguém sem hora marcada.

   Philip olhou para os empregados. Alguns desenrolavam peças de chita e de cretone e outros, explicou-lhe o vizinho, preparavam as encomendas da província, feitas pelo correio. Perto das nove e um quarto, chegou o director da casa. Philip ouviu um dos homens que esperavam, dizer a outro que aquele era Mr. Gibbons. Tratava-se de um sujeito de meia-idade, baixo e corpulento, de cabelos escuros e lustrosos e barba negra. Tinha movimentos vivos e uma cara inteligente. Trazia um chapéu alto e vestia fraque, tendo a lapela adornada por um gerânio branco cercado de folhas. Entrou no escritório, deixando a porta aberta. Era uma sala muito pequena, onde se via apenas uma escrivaninha americana num dos cantos, uma estante de livros e um armário. Os homens que esperavam do lado de fora viram-no tirar maquinalmente o gerânio da botoeira e pô-lo num frasco de tinta cheio de água. Era contra as regras da casa usar flor ao peito nas horas de serviço.

   (Durante o dia os homens do estabelecimento, desejosos de ser bem vistos pelo patrão, admiravam a flor).

   - Nunca vi coisa mais linda - diziam. - É do seu jardim?

   - É, sim - sorria ele com um fulgor de orgulho a encher-lhe os olhos inteligentes.

   Tirou o chapéu e mudou de casaco, relanceando os olhos pelas cartas e depois pelos homens que o esperavam. Fez um leve sinal com o dedo e o primeiro da fila entrou no escritório. Desfilaram um por um à sua frente, respondendo às perguntas. Tratava com eles muito laconicamente, conservando os olhos fixos no rosto do candidato.

 - Idade? Tem prática? Por que deixou o último emprego?

Ouvia as respostas com cara inexpressiva. Quando chegou a vez de Philip, o rapaz teve a impressão de que Mr. Gibbons o examinava com curiosidade. As suas roupas estavam limpas e eram bastante bem talhadas O seu aspecto era um pouco diferente do dos outros.

   - Prática?

   - Acho que não tenho nenhuma - respondeu Philip.

   - Não serve.

   Philip retirou-se. A provação fora muito menos dolorosa do :, que esperava e não sentiu qualquer desapontamento particular. Não podia ter esperança de ser bem sucedido na primeira tentativa. Conservava consigo o jornal e tornou a percorrer a secção de anúncios: Uma loja em Holborn precisava também de um caixeiro. Para lá se dirigiu, mas ao chegar soube que alguém já fora admitido. Se quisesse arranjar alguma coisa naquele dia, precisava de ir ao estúdio de Lawson antes que o pintor saísse para o almoço. Encaminhou-se, pois, para Yeoman.s Row, pela Brompton Road.

   - Escuta, estou um tanto falho até o fim do mês - disse, assim que encontrou uma oportunidade. - Queria que me emprestasses meia libra... Podes?

   Era incrível a dificuldade que achava em pedir dinheiro. Lembrava-se da maneira despreocupada como os doentes do hospital lhe extraíam pequenas quantias, quase como se lhe concedessem um favor, embora não tivessem a menor intenção de restituir o dinheiro.

   - Pois não - respondeu Lawson. - Agora mesmo.

   Quando, porém, meteu a mão no bolso, descobriu que tinha apenas oito xelins. Philip sentiu-se desfalecer.

   - Ah!... Está bem, empresta-me cinco, sim? - disse num sopro.

   - Aqui estão.

   Philip foi a uma casa de banhos em Westminster e gastou seis *pence* num banho. Depois comeu alguma coisa. Não sabia que fazer naquela tarde. Não queria voltar ao hospital, por temer que lhe fizessem perguntas; além do mais, nada tinha a fazer lá. Nos dois ou três serviços em que trabalhara haviam de estranhar um pouco a sua ausência, mas... que pensassem o que quisessem, pois isso não lhe importava. Não seria o primeiro estudante que desaparecia sem aviso. Dirigiu-se à biblioteca pública e leu os jornais até se aborrecer. Depois, pediu as *_New Arabian Nights* de Stevenson, mas percebeu que não podia ler. As palavras não tinham sentido algum para ele. Continuou a reflectir sobre a sua situação desamparada. Não cessava de ruminar as mesmas ideias e a fixidez destas fazia-lhe doer a cabeça. Por fim, desejoso de ar fresco, entrou no Green Park e estendeu-se na relva. Pensou na desgraça da sua deformidade, que lhe tornava impossível ir para a guerra. Adormeceu e sonhou que de repente ficava bom e embarcava para o Cabo num regimento de milícia. As fotografias que vira nos jornais ilustrados forneceram-lhe material para a fantasia. Era noite. Estava metido num uniforme de caqui, no *veldt*, sentado, com os outros soldados, em redor da fogueira. Ao despertar, viu que ainda estava claro e dentro em pouco ouviu o Big Ben dar as sete. Tinha doze horas pela frente e nada para fazer. Temia a noite interminável. O céu estava carregado e talvez até chovesse. :, Teria de ir para um albergue, onde conseguiria uma cama. Vira-as anunciadas por lâmpadas, na frontaria de algumas casas de Lambeth: "Boas camas -- 6 *pence*". Nunca entrara nesses albergues e temia-lhes o mau cheiro e os parasitas. Resolveu ficar ao ar livre, se lhe fosse possível. Deixou-se estar no parque até à hora de fecharem os portões e depois começou a caminhar a esmo. Estava muito cansado. Veio-lhe a ideia de que um acidente seria um acontecimento feliz, naquelas circunstâncias, pois assim seria levado para um hospital, onde ficaria semanas numa cama limpa. _à meia-noite, sentiu tanta fome que, não podendo resistir mais, foi a uma taberna, em Hyde Park Corner, comeu duas batatas e tomou uma chávena de café. Depois, tornou a andar. A inquietação não lhe permitia dormir e angustiava-o um medo terrível de ser empurrado pela polícia. Notou que começava a olhar para os guardas de um ângulo novo. Era aquela a terceira noite que passava ao relento. De quando em quando, sentava-se nos bancos de Piccadilly e, quando a manhã se aproximou, desceu até ao rio. Ouvia o Big Ben marcar os quartos de hora e calculava quanto tempo faltava para a cidade despertar. De manhã, gastou algumas moedas: mandou passar a roupa e tomou um banho. Comprou um jornal para ler os anúncios e uma vez mais saiu em busca de trabalho.

   Continuou assim por vários dias. Comia muito pouco e começava a sentir-se fraco e doente, de maneira que mal lhe sobrava a energia necessária para prosseguir na procura do emprego que lhe parecia tão terrivelmente difícil de encontrar. Habituou-se a passar longas horas nas traseiras das lojas, com a esperança de ser admitido, e a ser secamente recusado. Andou por toda a cidade de Londres, dirigindo-se aos lugares indicados nos anúncios, e chegou a conhecer de vista alguns homens que, tão infrutiferamente como ele, buscavam também ocupação. Um ou dois tentaram fazer camaradagem com ele, mas Philip sentia-se demasiado infeliz e cansado para os encorajar a isso. Não procurou mais Lawson, porque lhe devia cinco xelins. Começou a ficar tão tonto que não conseguia pensar com clareza e cessou de preocupar-se com o que lhe acontecia. Chorava muito. A princípio ficava envergonhado, enfurecido consigo mesmo. Mas verificou que o choro o aliviava e, de certa maneira, lhe minorava a fome. Nas madrugadas sofria muito por causa do frio. Uma noite, entrou no seu quarto para mudar a roupa branca. Introduziu-se furtivamente, cerca das três horas, quando estava bem certo de que todos dormiam. Tornou a sair às cinco. Estendeu-se na cama e a maciez era deliciosa. _doíam-lhe todos os ossos e enquanto assim estava, entregava-se àquele prazer; era tão delicioso que não lhe apeteceu dormir. Habituara-se já à falta de alimento e não sentia muita fome, estava apenas fraco. Agora vinha-lhe constantemente ao espírito a ideia de dar cabo de si. Mas empregava toda a sua força para não se fixar nela, pois temia que a tentação lhe tomasse conta dos pensamentos e lhe fosse impossível fugir-lhe. Repetia para si mesmo que seria absurdo suicidar-se, visto que alguma coisa aconteceria em breve. Não podia libertar-se da ideia de que a sua situação era absurda de mais para ser levada a sério. Era como uma doença que precisava de suportar, mas da qual se restabeleceria inevitavelmente. Todas as noites, jurava que nada o induziria a passar assim outra noite e resolveu escrever na manhã seguinte ao tio, a Mr. Nixon, o advogado, ou a Lawson. Mas, quando chegava a hora, não tinha coragem para fazer a humilhante confissão do seu completo desastre. Não sabia como Lawson receberia aquilo. Desde que eram amigos, o pintor fora o cabeça-de-vento e Philip sempre se orgulhara do seu bom-senso Teria de contar-lhe toda a história da sua loucura. Inquietava-o um pressentimento de que Lawson, depois de o auxiliar, lhe voltaria as costas com frieza. O tio e o advogado, naturalmente, fariam alguma coisa por ele, mas receava as reprimendas de ambos. Não desejava que ninguém o repreendesse; cerrava os dentes e repetia: o que acontecera era inevitável justamente por ter acontecido. Lamentar era absurdo.

   Os dias eram intermináveis e os cinco xelins que Lawson lhe emprestara não durariam muito tempo. Ansiava por que chegasse o domingo, para ir, se pudesse, a casa dos Athelny. Não sabia o que o impedira de procurá-los antes. Talvez fosse o desejo de sair da dificuldade por suas próprias mãos. Porque Athelny, que se achara em situações igualmente desesperadas, era a única pessoa que podia fazer alguma coisa em seu benefício. Talvez depois de almoçar ele conseguisse contar-lhe que se encontrava em dificuldades. Repetiu para si mesmo muitas e muitas vezes o que lhe ia dizer. Tinha um medo imenso de que Athelny se esquivasse com frases vagas. Isso seria tão horrível que desejava retardar o mais possível fazer aquela prova. Philip perdera toda a confiança no próximo.

   A noite de sábado foi fria e áspera. Philip sofreu tremendamente. Desde o meio-dia desse sábado até a hora em que se arrastou em passos cansados para a casa de Athelny, nada comeu. Gastou os dois últimos *pence*, no domingo, pela manhã, num banho e numa escovadela, nos lavabos de Charing Cross.

 

   Quando Philip tocou à campainha, uma cabeça assomou à janela e em seguida ouviu na escada o ruidoso tropel das crianças que desciam ao seu encontro. Foi um rosto pálido, ansioso e magro :, que ele lhes deu a beijar. Ficou tão comovido com aquela transbordante afeição que, para ter tempo de se refazer, se demorou propositadamente a subir as escadas. Achava-se num tal estado de nervos que a menor coisa bastava para fazê-lo chorar. Perguntaram-lhe por que não viera no domingo anterior e Philip respondeu que estivera doente. Quiseram saber o que fora e, para os divertir, sugeriu uma enfermidade misteriosa cujo nome, híbrido e bárbaro, na sua mistura de grego e latim (a nomenclatura médica está eriçada dessas palavras) lhes fez soltar guinchos de prazer. Arrastaram Philip para a sala e fizeram-no repetir o nome para edificação do pai. Athelny ergueu-se e apertou-lhe a mão. Olhou fixamente para Philip, mas os seus olhos redondos e salientes pareciam sempre exprimir espanto. Philip não soube por que, nesta ocasião, aquele olhar o perturbou.

 

   - Sentimos muito a sua falta, domingo passado – disse Athelny.

   Philip não sabia mentir com desembaraço. Ficou escarlate ao terminar a exposição do motivo por que não viera. Mrs. Athelny entrou nesse instante e apertou-lhe a mão.

   - Espero que esteja melhor, Mr. Carey -- desejou ela.

   O rapaz não sabia por que motivo ela imaginara ter-lhe acontecido alguma coisa, pois a porta da cozinha estava fechada quando subira com as crianças e estas não o haviam deixado.

   - O almoço só estará pronto daqui a dez minutos - disse ela na sua voz arrastada. - _não quer tomar um ovo batido num copo de leite enquanto espera?

   Havia no seu rosto uma expressão de inquietude que perturbou Philip. Forçou uma risada e respondeu que não tinha fome. Sally entrou para pôr a mesa e Philip começou a brincar com ela. A família costumava gracejar, insinuando que ia engordar tanto como uma tia de Mrs. Athelny, chamada Elisabeth, que as crianças nunca tinham visto mas que para elas representava o tipo da corpulência grotesca.

   - Escuta, Sally, que foi que te aconteceu depois da última vez que estive aqui? - principiou Philip.

   - Que eu saiba, nada.

   - Acho que aumentaste de peso.

   - Pois tenho a certeza de que o senhor não aumentou -retorquiu ela. - Está um perfeito esqueleto.

   Philip ficou vermelho.

   - Isso é um *tu quoque*, Sally - exclamou o pai. - Serás multada num fio dos teus cabelos de ouro. Jane, vai buscar a tesoura grande.

 - Ora, papá, mas ele *está* magro - retorquiu Sally. - Só tem a pele e o osso.

   - Não é essa a questão, menina. Ele tem a plena liberdade de emagrecer, mas a tua obesidade ofende o decoro.

   Enquanto falava, pôs o braço orgulhosamente em torno da cintura da filha, olhando-a com olhos de admiração.

   - Deixe-me pôr a mesa, pai. Posso estar gorda, mas há muita gente que parece não se importar com isso.

   - Esta tratante! - exclamou Athelny, fazendo um gesto dramático. - Lança-me em rosto o facto notório de que Joseph, um filho do Levi que vende jóias em Holborn, lhe propôs matrimónio.

   - Aceitaste, Sally? - perguntou Philip.

   - Então, ao fim deste tempo ainda não conhece o pai? Não há uma palavra de verdade naquilo.

   - Pois bem, se não te propôs casamento - exclamou Athelny - por S. Jorge e pela Alegre Inglaterra, vou segurá-lo pelo nariz e perguntar-lhe imediatamente quais são as suas intenções.

   - Sente-se, pai, o almoço está pronto. Vocês, meninos, vão todos lavar as mãos. E não façam de conta, porque antes de comerem uma migalha de comida, examiná-las-ei.

   Antes de começar a comer, Philip julgava estar famélico, mas verificou depois que a comida lhe revoltava o estômago e que mal podia tocar-lhe. Tinha as ideias turvas e não percebeu que Athelny, contra o seu hábito, falava muito pouco. Philip sentia-se aliviado por estar numa casa confortável, mas, de momento a momento, olhava instintivamente pela janela. O dia estava tempestuoso. Acabara-se o bom tempo. Fazia frio e soprava um vento áspero. De quando em quando, bátegas de chuva batiam contra a vidraça. "_Que vou fazer numa noite destas?" - reflectiu ele. Os Athelny costumavam deitar-se cedo e não podia lá ficar para além das dez horas. O coração desfalecia-lhe à ideia de sair para a escuridão gelada da noite. Agora que estava entre amigos, aquilo parecia-lhe mais terrível do que quando se encontrava lá fora sozinho. Ficou a repetir interiormente que muitas outras criaturas também passariam a noite ao relento. Lutou por distrair o espírito na conversa, mas no meio das suas frases uma chicotada da chuva nas vidraças fazia-o estremecer.

   - Parece até que estamos em Março - comentou Athelny. - Não é o tempo indicado para fazer a travessia do Canal.

Terminaram a refeição e Sally entrou para levantar a mesa.

 - Aceita um mata-ratos de dois *pence*? - perguntou Athelny, oferecendo-lhe um charuto.

   Philip aceitou e aspirou o fumo com delícia. Aquilo serenou-lhe os nervos de um modo extraordinário. Quando Sally se retirou, Athelny mandou-a fechar a porta.

   - Agora não seremos perturbados - disse, voltando-se para Philip. - Já pedi à Betty que não deixasse as crianças entrar senão quando eu chamasse.

   Philip lançou-lhe um olhar sobressaltado, mas, antes que pudesse compreender o sentido daquelas palavras, Athelny ajeitou os óculos no nariz  com o seu gesto habitual e prosseguiu:

   - Escrevi-lhe no domingo passado, para perguntar por que não viera e, como não tive resposta, fui ao seu quarto na quarta-feira.

   Philip desviou a cabeça e não respondeu. O coração começou a bater-lhe com violência. Athelny não falava e, em certo momento, o silêncio pareceu intolerável a Philip. Não achava uma única palavra para dizer.

   - A proprietária disse-me que você não aparecia desde sábado à noite. Contou que lhe devia um mês de aluguer. Onde dormiu toda a semana passada?

   Foi com indizível mal-estar que Philip respondeu, sem tirar os olhos da janela:

   - Em parte nenhuma.

   - Andei à sua procura.

   - Porquê?

   - Betty e eu já passámos pela mesma situação... com a diferença de que tínhamos filhos para cuidar. Por que não nos procurou?

   - Não pude.

Philip teve medo de não conter o choro. Sentia-se muito fraco. Fechou os olhos e franziu o sobrolho; procurava dominar-se. Veio-lhe, de súbito, um acesso de raiva brusco. Por que não o deixavam em paz? Mas estava alquebrado. E depois, os olhos ainda fechados, e lentamente, para manter a firmeza da voz, contou a história das suas aventuras nas últimas semanas. Enquanto falava, parecia-lhe haver-se conduzido de maneira inepta, e isto tornava mais difícil a narrativa. Athelny achá-lo-ia um consumado imbecil.

   - Muito bem. Agora, vai morar connosco até encontrar ocupação - disse Athelny quando ele terminou.

   Philip corou, sem saber porquê.

   - Oh, é uma grande bondade sua, mas acho que não devo.

    - Porque não?

   Philip não respondeu. Recusara instintivamente, por puro medo de incomodar, e um acanhamento natural impedia-o de aceitar favores. Sabia, além disso, que os Athelny viviam com dificuldades, e com aquela numerosa família não tinham espaço nem dinheiro para sustentar um estranho.

   - Não há dúvida de que tem de ficar - disse Athelny. -Thorpe dormirá com um dos irmãos e você pode dormir na cama dele. Não é a sua comida que vai fazer-nos diferença.

   Philip teve medo de falar e Athelny, aproximando-se da porta, chamou a mulher.      

   - Betty - disse quando ela entrou. - Mr. Carey vem morar connosco.

   - Que bom! - exclamou ela. - Vou já preparar a cama.

Falou num tom cordial e amigo, aceitando tudo como muito natural, a tal ponto que Philip se comoveu profundamente. Nunca esperava que as pessoas fossem bondosas para ele, e, quando o eram, ficava surpreendido e sensibilizado. Nesse momento, não pôde evitar que duas grossas lágrimas lhe rolassem pelas faces. Os Athelny discutiram os arranjos e fingiram não notar a que estado a fraqueza de Philip o levara. Quando a senhora Athelny se retirou, Philip reclinou-se na cadeira e, olhando pela janela, riu de leve:

   - Não está uma noite muito boa para andar lá fora, pois não?

 

   Athelny disse a Philip que lhe podia conseguir com facilidade um lugar na grande firma para a qual ele próprio trabalhava. Vários empregados tinham ido para a guerra e Lynn ç Sedley, com fervor patriótico, haviam prometido conservar-lhes os lugares. O trabalho dos heróis recaía sobre os que ficavam e, como não aumentavam os salários destes últimos, podiam os patrões fazer economias ao mesmo tempo que davam prova de patriotismo. Mas a guerra prosseguia e o comércio desenvolvia-se. Chegavam as férias, época em que grande número de empregados se ausentava durante quinze dias: teriam de admitir auxiliares. A recente experiência de Philip fazia-o duvidar de que mesmo assim lhe dessem emprego. Mas Athelny, apresentando-se como pessoa de influência na firma, insistia em afirmar que o gerente nada lhe recusaria. Philip, com o seu conhecimento de Paris, seria muito útil. Era apenas questão de esperar um pouco, pois havia de conseguir um lugar bem remunerado para desenhar vestidos e pintar cartazes. Philip fez um cartaz para as vendas de Verão e Athelny levou-o. Dois dias mais tarde, trouxe-o de volta, dizendo que o gerente o admirara muitíssimo e lamentava sinceramente não ter de momento vaga na secção de publicidade. Philip perguntou se não havia outro trabalho.

   - Receio que não.

   - Está bem certo disso?

   - Bem... A verdade é que, amanhã, vão anunciar, a pedir um indicador para a loja - disse Athelny, olhando para ele com ar de dúvida, através dos óculos.

   - Acha que tenho alguma probabilidade de conseguir esse lugar?

   Athelny ficou um tanto confuso. Tinha-o levado a esperar coisa bastante melhor: por outro lado, a sua pobreza não lhe permitia continuar a sustentá-lo por tempo indefinido.

   - Você podia aceitar o lugar enquanto espera coisa melhor. As probabilidades são sempre maiores se já trabalhar na casa.

   - O senhor sabe que não sou orgulhoso - sorriu Philip.

   - Se está decidido, deve apresentar-se amanhã, às nove menos um quarto.

   Não obstante a guerra, era evidente que havia muita dificuldade em se obter trabalho, pois, quando Philip entrou na loja, vários pretendentes já estavam à espera. Reconheceu entre eles alguns dos que encontrara nas suas buscas precedentes. A um deles, vira-o certa tarde deitado no parque. Para Philip, agora, isso significava que o homem também estava sem tecto e passava as noites ao relento. Os candidatos a emprego eram de todas as espécies, velhos e novos, altos e baixos, mas cada um deles procurara fazer-se elegante para a entrevista com o gerente. Tinham penteado o cabelo com todo o cuidado e lavado as mãos de maneira escrupulosa. Esperavam num corredor que, Philip soube-o mais tarde, conduzia ao salão de refeições e às oficinas. De distância, em distância, interrompia-os uma série de cinco ou seis degraus. Embora houvesse luz eléctrica na loja, a iluminação ali era apenas a gás e os bicos estavam protegidos com uma armação de arame; o gás ardia com ruído. Philip chegou pontualmente, mas eram quase dez horas quando foi admitido no escritório. Era um compartimento triangular como um pedaço de queijo deitado de lado: havia nas paredes quadros de mulheres metidas em espartilhos e dois projectos de cartazes: um homem de pijama com largas listas verdes e brancas, e um navio de velas soltas a singrar no mar azul, vendo-se numa das velas, em caracteres graúdos, estas palavras: "_grande Venda de Roupas Brancas". A parede mais larga do escritório dava para o fundo de uma das vitrinas que estava a ser ornamentada àquela hora, de maneira que um empregado entrava e saía a todo o momento. O gerente lia uma carta. Era um homem corado, de cabelos louro-pálido e grosso bigode da mesma cor. Pendia-lhe da corrente do relógio uma porção de medalhas de futebol. Estava sentado, em mangas de camisa, a uma grande escrivaninha, com um telefone ao lado. _à sua frente, achavam-se os anúncios do dia, trabalho de Athelny, e recortes de jornais colados em cartolina. O homem relanceou os olhos para Philip, mas nada lhe disse. Ditava uma carta à dactilógrafa, sentada diante de uma mesa menor, a um canto. Perguntou depois a Philip o nome, a idade e se tinha prática. Falava com sotaque londrino numa voz aguda e metálica. Philip notou que os dentes do maxilar superior eram grandes e salientes; davam a impressão de estar frouxos e de que um puxão poderia arrancá-los.

   - Creio que Mr. Athelny já lhe falou a meu respeito -disse Philip.

   - Ah, você é o rapaz que fez aquele cartaz?

   - Sou, sim, senhor.          

   - Para nós não serve, sabe, não serve de maneira nenhuma.

   Olhou Philip de alto a baixo. Pareceu notar que o rapaz, de certo modo, era diferente dos outros que o tinham precedido.

   - Como sabe, terá de arranjar um fraque. Com certeza não tem... Parece ser um rapaz sério. Deve ter verificado que a arte não dá nada.

   Philip não sabia dizer se ele pensava contratá-lo ou não. O gerente fazia-lhe observações com ar hostil.

   - Tem família?

   - Meu pai e minha mãe morreram quando eu era criança.

   - Gosto de dar uma oportunidade aos novos. Muitos a quem ajudei são hoje gerentes de secção. E mostram-se muito reconhecidos, essa justiça lhes faço. Sabem quanto fiz por eles. Começar de baixo é a única maneira de aprender no comércio e com perseverança é possível subir até ninguém sabe onde. Se trabalhar com acerto, um dia poderá encontrar-se numa posição como a minha. Tome nota disto, rapaz.

   - Estou pronto a fazer tudo que puder, senhor -respondeu Philip.

   Sabia que devia usar "senhor" sempre que possível, mas a palavra soava-lhe de maneira estranha e receava exagerar. O gerente gostava de falar. Dava-lhe um agradável sentimento da. sua própria importância e não participou a Philip a sua decisão senão depois de muito palavrório.

   - Bom, acho que serve - disse afinal, com ar pomposo. - Em todo o caso, estou disposto a dar-lhe uma oportunidade.

   - Muito obrigado, senhor.

   - Pode começar desde já. Vou pagar-lhe seis xelins por semana, com casa e comida. Como vê, terá tudo quanto precisa e os seis xelins serão apenas para o bolso. O pagamento é mensal. Pode começar na segunda-feira. Acho que não tem motivo de queixa.

   - Não, senhor.

   - Sabe onde fica Harrington Street, em Shaftesbury Avenue? _é lá que vai dormir. Número dez. Pode ir para lá no domingo, à noite, se quiser. Se não, mande a sua mala na segunda-feira. - E, inclinando a cabeça. -- Passe bem.

 

   Mrs. Athelny emprestou a Philip dinheiro para pagar à senhoria, o suficiente para que o deixasse retirar as suas coisas. Por cinco xelins e a cautela de um fato, o rapaz conseguiu numa casa de penhores um fraque que lhe assentava bem. De empenhou o resto das roupas. Mandou a mala para Harrington Street e  :, na segunda-feira de manhã dirigiu-se para a loja, em companhia de Athelny, que o apresentou ao chefe da secção de roupas, entregando-lho. Era um homenzinho de trinta anos, amável e irrequieto, chamado Sampson. Apertou a mão de Philip e, para mostrar as suas qualidades, de que muito se orgulhava, perguntou-lhe se falava francês. Ficou surpreendido quando recebeu resposta afirmativa.

   - E alguma outra língua?

   - Falo alemão.

   - Upa! _às vezes também vou a Paris, *_Parlez-vous français*? Já esteve no Maxim.s?

   Philip foi colocado no alto da escadaria da secção de "fatos". Consistia o seu trabalho em dirigir os fregueses para as diversas subsecções. Estas, ao que parecia, eram muitas: Mr. Sampson enumerou-as rapidamente. De súbito percebeu que Philip coxeava.

   - Que é que tem na perna? - indagou.

   - Tenho um pé boto. Mas isso não me impede de caminhar ou de fazer qualquer outra coisa.

   O chefe da secção olhou um momento para o pé com ar de dúvida e Philip calculou que o homem estivesse a perguntar a si próprio por que o admitira o gerente. Philip sabia que o gerente nada notara.

   - Não espero que acerte com as secções no primeiro dia. Quando tiver alguma dúvida pergunte a uma das empregadas.

   Mr. Sampson retirou-se e Philip, procurando lembrar-se de onde ficava esta ou aquela secção, aguardava com ansiedade algum cliente que viesse pedir informações. _à uma hora, subiu para almoçar. O refeitório, que ficava no último andar do vasto edifício, era amplo, comprido e bem iluminado, mas todas as janelas estavam fechadas por causa da poeira e sentia-se ali um horrível cheiro de cozinha. Havia longas mesas cobertas por toalhas, com grandes garrafas de água dispostas a intervalos, tendo ao centro saleiros e galheteiros. Os empregados entravam em grupos ruidosos e sentavam-se em bancos que guardavam ainda o calor dos que tinham almoçado às doze e trinta.

   - E nada de "pickles"! - observou o homem que estava ao lado de Philip.

   Era um rapaz magro e alto, de nariz adunco e rosto pastoso. A cabeça alongada, de forma irregular, dava a impressão de que o crânio fora comprimido a esmo, aqui e ali. Via-se-lhe na testa e no pescoço grande quantidade de espinhas vermelhas e inflamadas. Chamava-se Harris. Philip veio a saber que em certos dias traziam para a mesa grandes pratos cheios de "mixed-pickles". Eram muito apreciados. Não havia facas nem garfos, mas um pouco depois um rapaz grande e gordo, de casaco branco, entrou com um punhado de talheres e atirou-os com grande ruído para cima :, da mesa. Cada um agarrou o que precisava. Estavam quentes e gordurosos, por terem sido lavados havia pouco em água já utilizada. Pratos em que a carne nadava em molho eram distribuídos em redor da mesa por empregados de casaco branco, e quando eles os arremessavam, num gesto de prestidigitador, o molho transbordava e caía na toalha. Trouxeram depois grandes travessas com repolho e batatas, a cuja vista o estômago de Philip se revoltou. O rapaz notou que todos deitavam grande quantidade de vinagre na comida. O barulho era ensurdecedor. Conversava-se, ria-se, gritava-se. Ouvia-se o tinir de facas e garfos e estranhos ruídos de mastigação. Foi com satisfação que Philip voltou para a loja. Começava a aprender onde ficava esta ou aquela secção, e já era com menos frequência que fazia perguntas a esse respeito, quando alguém precisava de uma indicação.

   - A primeira à direita. A segunda à esquerda, minha senhora.

   Algumas empregadas, quando o trabalho diminuía, dirigiam-lhe algumas palavras e Philip percebeu que estavam a sondá-lo. _às cinco, mandaram-no subir novamente para o refeitório, a fim de tomar chá. Foi com prazer que se sentou. Viam-se na mesa grandes fatias de pão prodigamente barradas de manteiga e muitos empregados tinham os seus potes de geleia, que eram guardados no vestiário e tinham o nome deles escrito.

   Philip estava exausto quando o trabalho terminou, às seis e meia. Harris, o seu vizinho de mesa, ofereceu-se para levá-lo a Harrington Street, a fim de mostrar-lhe onde ia dormir. Disse a Philip que havia uma cama desocupada no seu quarto e, como os outros quartos estavam cheios, achava que Philip seria alojado lá. A casa de Harrington Street fora uma sapataria, e a loja servia de quarto de dormir. Era muito escuro, pois três quartas partes de cada janela tinham sido entaipadas; e, como as não abriam, a única ventilação era feita por uma pequena clarabóia, ao fundo. O local cheirava a mofo e Philip deu graças por não ter de dormir ali. Harris levou-o à sala de visitas, que ficava no primeiro andar; tinha um velho piano, cujo teclado dava a impressão de uma fileira de dentes estragados. Em cima da mesa, numa caixa de charutos sem tampa, estava um jogo de dominó. Havia por lá números atrasados de *_The Strand Magazine* e de *_The Graphic*. As outras divisões eram usadas como quartos de dormir. Aquela em que Philip ia instalar-se ficava no último pavimento. Havia nele seis camas e ao lado de cada uma delas via-se uma caixa ou um baú. A única mobília era uma cómoda: tinha quatro gavetas grandes e duas pequenas. Philip, como novato, ficou com uma destas. Cada uma tinha a sua chave, mas, como todas eram iguais, não serviam para muito e Harris aconselhou-o a guardar na mala o que fosse de valor. Por cima da chaminé, pendia um espelho. Harris indicou a Philip o lavabo, uma sala ampla com oito bacias enfileiradas; :, era ali que todos os pensionistas se lavavam. O lavabo dava para outro quarto, onde havia duas banheiras encardidas, com os tabiques manchados de sabão. Linhas negras marcavam os diferentes níveis alcançados pela água dos banhos.

Quando Harris e Philip voltaram para o quarto de dormir, encontraram um homem alto a mudar de roupa e um rapaz de dezasseis anos a assobiar com toda a força, enquanto escovava o cabelo. Daí a poucos instantes, sem dizer palavra, o homem alto retirou-se. Harris piscou o olho para o rapaz e o rapaz, ainda a assobiar, piscou também. Harris disse a Philip que o homem se chamava Prior: estivera no Exército e agora trabalhava na secção de sedas. Vivia muito isolado. Todas as noites ia ver a namorada, saindo sem ao menos dizer boa-noite. Harris retirou-se também e o rapaz ficou a olhar com curiosidade para Philip enquanto este tirava as suas coisas da mala. Chamava-se Bell e trabalhava de graça, como aprendiz, na secção de miudezas. Mostrou-se muito interessado no trajo de noite de Philip. Falou-lhe dos outros ocupantes do quarto, fazendo-lhe toda a espécie de perguntas pessoais. Era um rapaz alegre e, nos intervalos da conversa, cantava em voz de falsete trechos de canções ligeiras, Depois de terminar, Philip foi dar um passeio pelas ruas, a olhar os transeuntes. De vez em quando parava à porta dos restaurantes e olhava para os que entravam. Sentiu fome: comprou um bolo, que comeu enquanto caminhava. O ecónomo, o homem que às onze e um quarto fechava o gás, dera-lhe uma chave de trinco, mas, temendo que fechassem a casa à chave, Philip voltou a tempo. Conhecia já o sistema de multas: quem entrava depois das onze pagava um xelim, e meia coroa se chegasse depois das onze e um quarto. Além disso, os atrasos eram levados ao conhecimento da direcção: à terceira vez, era-se demitido.

Quando Philip chegou, todos, menos o soldado, já haviam voltado e dois estavam na cama. Philip foi recebido com gritos.

   - Oh, Pancrácio! Seu malandro!

   Philip viu que Bell vestira ao travesseiro o seu traje de noite. O rapaz estava radiante com a brincadeira.

   - Tem de o vestir na "noite de confraternização", Pancrácio.

   - E, se não toma cuidado, conquista a beldade da firma.

   Philip já ouvira falar das "confraternizações", pois o dinheiro descontado no ordenado para custeá-las causava descontentamento permanente aos empregados. Eram apenas dois xelins por mês incluindo assistência médica e direito a uma biblioteca composta de novelas ensebadas. Mas como, além disso, descontavam ainda quatro xelins por mês para a lavagem de roupa, Philip chegou à conclusão de que nunca chegaria a ver a quarta parte dos seus seis xelins semanais.

   A maioria dos homens comia grossas fatias de toucinho :,

metidas entre dois pedaços de pão. Essas sanduíches, a ceia habitual dos empregados da firma, eram fornecidas a dois *pence* cada uma por uma pequena tenda vizinha. O soldado entrou pesadamente; silencioso e rápido, tirou a roupa e atirou-se para a cama. _às onze e dez, a chama do gás aumentou subitamente e cinco minutos mais tarde apagou-se. O soldado adormeceu logo, mas os outros, em pijama e camisa de dormir agruparam-se perto da grande janela e atiraram os restos das sanduíches para cima das mulheres que passavam lá em baixo, ao mesmo tempo que lhes gritavam graçolas. A casa fronteira, de seis andares, era uma oficina de alfaiates judeus, que trabalhavam até às onze horas. As janelas não tinham cortinas e estavam vivamente iluminadas. A filha do explorador daquela gente - a família consistia de pai, mãe, dois rapazes e uma rapariga de vinte anos - percorria a casa para apagar as luzes quando o trabalho terminava. _às vezes, a rapariga permitia que um dos alfaiates lhe fizesse a corte. Os colegas de Philip divertiam-se imenso a espreitar as manobras de um ou outro homem para ficar para trás. Faziam pequenas apostas para ver quem acabaria por vencer. _à meia-noite, fechava a taberna do fim da rua e, pouco depois, iam todos para a cama. Bell, que era o que dormia mais perto da porta, atravessava o quarto a pular de cama para cama e nem mesmo quando chegava à sua parava de falar. Por fim, tudo mergulhava num silêncio perturbado apenas pelo roncar firme do soldado e Philip adormecia.

   _às sete horas, acordou ao som estridente de uma sineta e às oito menos um quarto estavam todos vestidos e desciam apressados a escada, descalços, para calçar lá em baixo, os sapatos. Atacavam-nos a caminho da loja de Oxford Street, onde iam tomar café. Se chegassem um minuto depois das oito, não encontravam nada e, uma vez no estabelecimento, não tinham licença de sair para comer. Em certas ocasiões, se sabiam não poder chegar a tempo, detinham-se numa leitaria perto da casa onde dormiam e compravam dois bolos: mas isso custava dinheiro e a maioria preferia ficar sem comer até à hora do almoço. Philip comeu algumas fatias de pão com manteiga, tomou uma chávena de chá, e, às oito e meia, começou o trabalho do dia.

   - A primeira à direita. A segunda à esquerda, minha senhora.

   Depressa começou a responder às perguntas de maneira completamente maquinal. O trabalho era monótono e muito fatigante. Passados alguns dias, doíam-lhe os pés de tal forma que mal se podia manter direito. Os tapetes grossos e macios queimavam-lhe as plantas dos pés, e à noite era-lhe doloroso tirar os sapatos. As lamentações eram gerais e os colegas disseram-lhe que as meias e os sapatos apodreciam, em consequência daquele suar contínuo. Todos os companheiros de quarto sofriam da mesma maneira e aliviavam a dor dormindo com os pés fora da roupa. A principio, Philip não podia caminhar e via-se obrigado a passar os serões na sala de estar da casa de Harrington _street, com os pés num balde de água fria. O seu companheiro nessas ocasiões era Bell, o rapaz da secção de miudezas, que muitas vezes não saía, para arranjar os selos da sua colecção. E, enquanto os prendia com papel gomado, assobiava monotonamente.

 

As "noites sociais" realizavam-se em segundas-feiras alternadas. Havia uma no princípio da segunda semana de trabalho de Philip na firma. Ficou combinado que iria em companhia de uma das empregadas da sua secção.

   - Não te vendas barato - aconselhou ela. - Faze como eu.

   Tratava-se de Mrs. Hodges, uma mulherzinha de quarenta e cinco anos, de cabelos mal tingidos e rosto bilioso todo estriado de vasos capilares. A esclerótica dos seus olhos azuis desbotados era amarelenta. Tomada de súbita amizade por Philip, não havia uma semana que ele estava na loja e já ela o tratava pelo nome de baptismo.

   - Nós dois é que sabemos o que é ter visto melhores tempos - disse ela.

   Contou a Philip que o seu nome verdadeiro não era Hodges; referia-se sempre ao "meu marido Misterodges", um advogado que a tratara de maneira tão adorável que ela preferira abandoná-lo, recuperando a independência. Mas sabia o que era ter carruagem própria, meu amigo - chamava a todos "meu amigo" - e ela e o marido nunca comiam a hora certa. Costumava palitar os dentes com o alfinete do enorme broche de prata: um chicote e um rebenque cruzados, tendo ao centro duas esporas. Philip sentia-se mal no novo ambiente e as raparigas da loja chamavam-lhe "convencido". Uma tratou-o um dia por "Phil" e ele não respondeu, porque não tinha a menor ideia de que ela se dirigisse à sua pessoa. A empregada virou-lhe o rosto, chamou-lhe "tipo presunçoso" e, na próxima. vez que lhe falou, disse com enfática ironia

"*_Mister* Carey". Era uma Miss Jewell e ia casar-se com um médico. As outras nunca tinham visto o noivo, mas afirmavam que devia ser um cavalheiro, a julgar pelos presentes encantadores que lhe dava.

   - Nunca dês importância ao que elas dizem, meu amigo -dizia Mrs. Hodges. - Também passei pelo que estás a passar. Elas não têm educação, as pobrezinhas... Acredita no que te digo, acabarão por gostar de ti se conservares a dignidade, como conservei a minha.

   A festa realizava-se no restaurante do rés-do-chão. As mesas :, maiores eram arrastadas para junto das paredes, a fim de se fazer espaço para a dança, e as mais pequenas eram preparadas para o *whist* progressivo.

   - Os chefes têm de chegar cedo - disse Mrs. Hodges.

Apresentou Philip a Miss Bennett, que era a beldade da firma. Dirigia a secção de "_Roupas de Baixo" e quando Philip entrou, ela estava a palestrar com o chefe da secção de "_Meias para Cavalheiros". Miss Bennett era uma mulher de proporções maciças, de cara muito grande e vermelha, fortemente empoada, e busto de dimensões imponentes. Trazia os cabelos louros penteados com esmero. Estava vestida com luxo exagerado para a ocasião, mas não sem gosto: vestido negro de gola alta e luvas de *glacé* também negro, que não tirava nem para jogar as cartas. Viam-se-lhe em redor do pescoço várias e pesadas correntes de ouro; braceletes nos pulsos e brincos com medalhões, um dos quais representava a rainha Alexandra. Exibia uma bolsa de cetim preto e mastigava "sen-sen".

   - Prazer em conhecê-lo, Mr. Carey - disse. - _é a primeira vez que vem às nossas confraternizações, não é? Deve sentir-se um pouco acanhado, mas não há razão para isso, garanto-lhe.

   Fazia o possível para que os convivas se sentissem à vontade. Dava-lhes palmadinhas no ombro e ria muito.

   - Sou muito traquinas, não sou? - exclamou ela, voltando-se para Philip. - Não sei o que pensará de mim... Mas não posso conter-me.

   Aqueles que vinham tomar parte na "noite social" iam entrando os empregados mais novos, rapazes que não tinham namoradas, e raparigas que não haviam encontrado ninguém com quem passear. Alguns dos rapazes vestiam traje de passeio, com gravata branca de laço e lenço de seda vermelha. Como iam representar, tinham um ar abstracto e atarefado. Uns mostravam-se confiantes, mas outros deixavam transparecer o nervosismo e olhavam ansiosamente para o público. Em dado momento, uma rapariga de basta cabeleira sentou-se ao piano e correu os dedos barulhentamente pelo teclado. Quando o auditório se acomodou, a executante correu os olhos em redor e disse o nome da peça.

   - *_Um passeio na Rússia*.

   Estalaram aplausos durante os quais, com muito destreza, ela amarrou guizos nos pulsos. Sorriu de leve e imediatamente rompeu numa vigorosa melodia. Ao terminar, estouraram de novo as palmas e quando estas cessaram a rapariga tocou, como bis, uma peca que imitava o mar. Havia pequenos trilos que representavam o ruído das ondas e acordes trovejantes, com todo o pedal, para sugerir uma tempestade. Depois disso, um cavalheiro entoou uma canção chamada *_Dize-me adeus* e, como bis, mimoseou a plateia com o *_Canta para eu dormir*. O auditório demonstrava o seu entusiasmo com grande discernimento. Eram todos aplaudidos até bisarem, e, para que não houvesse ciúmes, as palmas eram iguais para todos. Miss Bennett avançou para Philip.

   - Tenho a certeza de que o senhor toca ou canta, Mr. Carey - disse ela, galhofeira. - Vê-se na sua fisionomia.

   -Receio que esteja enganada.

   - Mas nem ao menos recita?

   - Não tenho nenhuma habilidade de salão.

   O chefe da secção de "_Meias para Cavalheiros" era um declamador afamado. Os empregados da sua área pediram em altas vozes que ele dissesse alguma poesia. Não foi preciso insistir. O homem despejou um longo poema de carácter trágico, durante o qual revirou os olhos, pôs a mão no peito e se portou como se sofresse uma terrível agonia. No último verso tudo se explicava: o herói do poema tinha comido pepinos ao jantar. Provocou risos, mas um pouco forçados, pois todos conheciam muito bem o poema. _mesmo assim riram alto e lonngamente. Miss Bennett não cantava, não tocava nem recitava.

   - Oh, não, ela tem uma habilidadezinha própria - disse Mrs. Hodges.

   - Ora não comecem a troçar comigo. É verdade que sei ler a mão e predizer o futuro.

   - Oh! Leia a minha mão, Miss Bennett - exclamaram as empregadas da sua secção, ansiosas por agradar-lhe.

   - Não gosto de ler a mão, não gosto, é verdade. Já disse a várias pessoas coisas horríveis que vieram a acontecer e isso faz as pessoas supersticiosas.

   - Oh, Miss Bennett, só uma vez.

   Reuniu-se um grupo em seu redor e, no meio de gritos de embaraço, risinhos, rubores e exclamações de susto ou admiração, a beldade da firma falou com ar misterioso de homens louros e morenos, de carta com dinheiro e de viagens, até o suor em grossas bagas lhe perlar a cara pintada.

   - Olhem para mim - dizia ela. - Estou numa sopa.

   A ceia era às nove. Havia bolos, sanduíches, chá e café, tudo grátis. Mas quem quisesse uma água mineral tinha de pagar. A galanteria levava muitas vezes os rapazes a oferecer

"ginger-beer" às senhoras, mas as boas maneiras não permitiam que elas aceitassem. Miss Bennett gostava muito de "ginger-beer" e não se acanhava de beber duas e até três garrafas durante a noite; mas insistia em pagá-las do seu bolso. Os homens gostavam dela por isso.

   - _é muito esquisita - diziam - mas note-se que não é má pessoa, não é como muitas outras...

   Depois da ceia jogava-se *whist* progressivo. Quando os jogadores passavam de mesa para mesa, ouviam-se muitas risadas e gritos. Miss Bennett sentia cada vez mais calor. :,

   - Olhem para mim - dizia. - Estou numa sopa.

   No momento oportuno, um dos mais ousados dentre os jovens observou que se quisessem dançar, já era tempo de começar. A rapariga que tocara os acompanhamentos sentou-se ao piano e colocou um pé decidido no pedal. Tocou uma valsa sonhadora, marcando o compasso nos graves, enquanto com a mão direita bordava arabescos em oitavas alternadas. Para variar, cruzou as mãos e passou a tocar a melodia nos baixos.

   - Ela toca bem, não é verdade? - perguntou Mrs. Hodges a Philip. - E o mais interessante é que nunca teve lições na vida. _é só de ouvido.

   Miss Bennett amava a dança e a poesia acima de todas as coisas deste mundo. Dançava bem, mas com extrema lentidão. Punha nos olhos a expressão de quem tinha os pensamentos longe, perdidos na distância. Falava incessantemente, sobre o soalho, o calor, a ceia. Dizia que os salões de Portman tinham os melhores soalhos de Londres e gostava dos bailes que lá havia. Eram muito selectos, e ela não suportava dançar com toda a espécie de homens que se não conhece. Ora, bem vê, uma rapariga expõe-se nem se sabe a quê...

   Quase todas as pessoas dançavam muito bem e se divertiam. O suor escorria-lhes pelos rostos e os colarinhos muito altos dos rapazes amoleciam.

   Philip olhava, tomado de uma tristeza que havia muito não se lembrava de ter experimentado. Sentia-se intoleravelmente só. Não se retirava porque temia parecer orgulhoso e ria e falava com as raparigas, mas no fundo era infeliz. Miss Bennett perguntou-lhe se tinha namorada.

   - Não - respondeu sorrindo.

   - Oh, não faz mal, aqui há muitas para escolher. E algumas delas são muito distintas. Espero que não leve muito tempo a arranjar uma...

   Olhou para ele com ar patusco.

   - Não te vendas barato - disse Mrs. Hodges. - _é o que recomendo.

   Eram quase onze horas quando a festa acabou. Philip não pôde dormir. Como os outros, mantinha os pés doloridos fora das roupas. Procurava com toda a energia não pensar na vida que levava. O soldado roncava tranquilamente.

 

  O salário era pago mensalmente pelo secretário. No dia de pagamento, os grupos de empregados, ao descer do chá, entravam no corredor e juntavam-se à longa fila dos que esperavam em :, ordem, como nas bichas que se formam diante de uma bilheteira. Um a um, os homens penetravam no escritório. O secretário achava-se sentado à escrivaninha, tendo à frente uma espécie de gamelas, cheias de dinheiro. Perguntava o nome do empregado, procurava-o rápido no livro de registo e, depois de um olhar de suspeita dirigido ao funcionário, mencionava em voz alta a soma que este ia receber e, tirando o dinheiro da gamela, contava-lho na mão.

   - Obrigado - dizia. - Outro!

   - Obrigado - era a resposta.

   O empregado passava para o segundo secretário e, antes de deixar o escritório, pagava-lhe os quatro xelins correspondentes à lavagem da roupa, os dois xelins para a associação e as multas em que porventura tivesse incorrido. Com o que lhe restava, voltava para a sua secção e lá ficava à espera da hora de fechar. Na sua maioria, os homens que moravam com Philip deviam à mulher que lhes vendia as sanduíches que habitualmente ceavam. Era uma velha engraçada, muito gorducha, de larga cara vermelha e cabelos escuros correctamente penteados em bandós, segundo a moda que nos mostram os primeiros retratos da rainha Vitória. Costumava usar um chapeuzinho preto, avental branco e mangas arregaçadas até ao cotovelo. Cortava as sanduíches com as mãozarras sujas e engorduradas. Tinha gordura na blusa, no avental e na saia. O seu nome era Mrs. Fletcher, mas todos lhe chamavam "_Mamã". Gostava realmente dos empregados da loja - os "meus meninos", como dizia - e nunca lhes negava crédito no fim do mês. Era sabido que, de quando em quando, emprestava a este e àquele alguns xelins, em ocasiões de aperto. Era uma boa mulher. Quando iam para férias ou delas voltavam, os empregados beijavam-lhe as faces gordas e vermelhas. E a mais de um que perdera o emprego e não conseguia achar outro trabalho, ela dera comida de graça. Os rapazes ficavam sensibilizados ante o grande coração da velha e retribuíam-lhe com afeição sincera. Havia uma história que gostavam de contar. Um homem que prosperara em Bradford, a ponto de chegar a ser dono de cinco lojas, voltara depois de quinze anos para visitar "_Mamã Fletcher" e dar-lhe de presente um relógio de ouro.

   Philip achou-se com dezoito xelins, o que lhe sobrava do pagamento do mês. Era o primeiro dinheiro que ganhava com o seu trabalho. Não lhe dava o orgulho que seria de esperar; causava-lhe apenas uma sensação de desfalecimento. A pequenez da soma agravava o desamparo da sua situação. Quis dar quinze xelins a Mrs. Athelny, como pagamento parcial do que lhe devia, mas ela não aceitou mais de meio soberano.

   - Mas não vê que assim levarei oito meses a pagar a minha

dívida? :,

   - Enquanto o Athelny estiver a trabalhar, posso esperar.    

E, depois, quem sabe se eles não lhe darão um aumento?

   Athelny prometia sempre falar ao gerente a respeito de Philip. Era absurdo que o talento do rapaz não fosse aproveitado. Mas nada fez e Philip em breve chegou à conclusão de que o agente de publicidade não era pessoa de tão grande importância aos olhos do gerente como o era a seus próprios olhos. _às vezes, via Athelny na loja. Lá, perdia o ar bombástico. E, metido em roupas limpas mas vulgares, passava apressado através das secções - um homenzinho humilhado, cabisbaixo, ansioso que ninguém desse pela sua presença.

   - Quando penso no tempo que perco naquela firma... -dizia em casa. - Fico quase tentado a pedir a demissão. Aquilo não é campo para um homem como eu. Estou a estragar-me, passo fome.

   Mrs. Athelny, que costurava tranquilamente, não dava ouvidos àquelas queixas. Apertava um pouco os lábios.

   - _é muito difícil encontrar trabalho hoje em dia. O emprego que tens é fixo e garantido. Espero que fiques nele enquanto estiverem satisfeitos contigo.

   Era evidente que Athelny ficaria. Valia a pena observar o ascendente que essa criatura sem instrução, que não estava presa a ele por nenhum laço legal, adquirira sobre aquele homem brilhante e volúvel. Agora que Philip se encontrava numa situação diferente, Mrs. Athelny tratava-o com uma bondade materna e ele comovia-se ao ver-lhe a ansiedade para que ele comesse bem. Era o conforto da sua vida (e quando se habituou àquilo, a monotonia desta era o que mais o apavorava) poder ir todos os domingos àquela casa amiga. Que alegria sentar-se naquelas imponentes cadeiras espanholas e discutir toda a espécie de coisas com Athelny! Embora as suas condições de vida não lhe parecessem auspiciosas, voltava sempre para o quarto de Harrington Street com um sentimento de alegria exultante. A princípio, para não esquecer o que aprendera, Philip tentou continuar a leitura dos livros de medicina, mas viu que era inútil. Não podia fixar a atenção no estudo, depois do exaustivo trabalho do dia. Parecia inútil continuar a estudar, visto não saber quando lhe seria possível voltar para o hospital. Sonhava frequentemente que estava na enfermaria. O despertar era doloroso. A sensação de outras pessoas a dormir no mesmo quarto era-lhe inexprimivelmente penosa. Habituara-se à solidão e estar sempre em companhia de outros, nunca ficar um instante a sós consigo próprio, parecia-lhe horrível nesses momentos. Era então que se lhe afigurava mais difícil combater o desespero. Via-se a continuar naquela vida - "primeira, à direita, segunda, à esquerda, minha senhora", indefinidamente. E, além disso, teria de dar graças se não fosse despedido. Os homens que tinham ido para a guerra em breve estariam de volta; a firma  garantira-lhes a readmissão, e isso significava que outros seriam dispensados. Precisaria de movimentar-se até mesmo para manter o miserável posto que ocupava.

   Só uma coisa podia libertá-lo: era a morte do tio. Receberia então algumas centenas de libras e com elas ficaria habilitado a concluir o curso de medicina. Começou a desejar de todo o coração a morte do velho. Calculava o tempo que lhe podia restar de vida. O pastor já passara dos setenta. Philip não lhe sabia a idade exacta, mas o tio William devia ter pelo menos uns setenta e cinco. Sofria de bronquite crónica e todos os Invernos lhe vinha uma tosse rebelde. Embora já soubesse a matéria de cor, Philip lia e tornava a reler, nos seus livros de medicina, a marcha da bronquite crónica nos velhos. Um Inverno rigoroso podia ser fatal ao velho. De todo o coração, Philip desejava chuva e frio. Pensava nisso constantemente, de tal modo que a ideia se converteu em monomania. O tio William sofria também os efeitos do calor, e em Agosto havia três semanas de canícula. Philip imaginava que um dia, talvez viesse um telegrama dizendo que o vigário morrera subitamente, e pensava no inexprimível alívio que sentiria. Enquanto, no alto da escada, indicava às pessoas as secções desejadas, reflectia no destino a dar ao dinheiro. Não sabia a quanto montava a herança; talvez não fossem mais de quinhentas libras, mas mesmo isso seria o bastante. Deixaria o emprego imediatamente, sem se dar o trabalho sequer de prevenir, arranjaria a mala e sairia sem dizer palavra a ninguém; voltaria então para o hospital. Era a primeira coisa a fazer. Estaria muito esquecido? Em seis meses, recordaria tudo; feito isso, submeter-se-ia aos seus três exames o mais depressa possível; em primeiro lugar, obstetrícia e, depois, cirurgia e clínica médica. Assaltava-o um medo terrível de que o tio, não obstante as suas promessas, viesse a deixar tudo à igreja e à paróquia. Este pensamento tornava-o doente. O tio não seria tão cruel a esse ponto. Mas, se isso acontecesse, Philip já resolvera quanto ao que lhe cumpria fazer. Não continuaria indefinidamente daquela maneira. A vida era-lhe tolerável apenas porque podia esperar algo de melhor. Quando perdesse a esperança, não teria medo. A única decisão corajosa, em tal circunstância, seria suicidar-se e, pensando nisso repetidas vezes, deliberava cuidadosamente qual o veneno indolor a tomar e como consegui-lo. Dava-lhe ânimo pensar que, se as coisas se tornassem insuportáveis; possuía, afinal de contas, uma forma de evasão.

   - Segundo à direita, minha senhora, e em baixo. Primeira à esquerda, depois siga a direito. Mr. Philips, faça o favor de seguir em frente.

   Uma vez por mês, durante uma semana, Philip ficava "de serviço". Tinha de ir para a secção às sete da manhã e vigiar os varredores. Quando estes terminavam, devia tirar as capas das :, caixas e dos modelos. Depois, à noite, quando os empregados se            iam embora, tinha de repor as coberturas nos modelos e nas caixas e "chefiar" novamente os varredores. Era um trabalho poeirento e sujo. Não lhe permitia ler, escrever ou fumar, mas simplesmente andar de cá para lá. O tempo custava imenso a passar. Quando saía, às nove e meia, davam-lhe uma pequena ceia e era esta a única compensação, pois o chá das cinco deixava-o com um grande apetite e o pão com queijo, e o cacau abundante que a firma fornecia, eram recebidos com satisfação.

   Um dia, quando havia já três meses que Philip trabalhava na firma de Lynn, Mr. Sampson entrou na secção a espumar de cólera. O gerente, que, ao entrar, olhara a vitrina de roupas, mandara chamar o chefe da secção e fizera observações satíricas a propósito do arranjo das cores. Obrigado a calar-se diante do sarcasmo do seu superior, Mr. Sampson desforrou-se nos caixeiros e deu uma desanda no pobre-diabo que tinha a seu cargo a ornamentação da vitrina.

   - Quando se quer uma coisa bem feita, há que fazê-la com as próprias mãos - trovejava. - Já o disse e nunca me canso de repetir. Não se pode confiar nada a vocês. E ainda se acham inteligentes... Ora... inteligentes!

   Atirava-lhes esta palavra como se fosse o mais acerbo termo

injurioso.

   - Não sabem que, se pusermos um azul eléctrico na vitrina ele matará todos os outros azuis?

   Correu os olhos pela secção, com ar feroz, e o seu olhar recaiu sobre Philip.

   - Você fica encarregado de fazer a vitrina na próxima sexta-feira, Carey. Vamos a ver como se sai.

   Voltou para o escritório, a resmungar, cheio de cólera. O coração de Philip desfaleceu. Quando chegou a sexta-feira, entrou na vitrina com uma doentia sensação de vergonha. As faces ardiam-lhe. Era horrível exibir-se aos transeuntes e, embora tentasse convencer-se de que era uma tolice entregar-se a semelhante sentimento, voltou as costas para a rua. Não havia muita probabilidade de que algum dos estudantes do hospital passasse pela Oxford Street àquela hora, e não conhecia mais ninguém em Londres. Mas, enquanto trabalhava, com um nó na garganta, Philip tinha a permanente impressão de que, ao voltar-se, daria com os olhos em algum conhecido. Apressou-se o mais possível. Pela simples observação de que todos os vermelhos se casavam bem, espaçando os modelos mais do que o habitual, Philip conseguiu um efeito excelente. E quando o chefe da secção foi à rua para apreciar o resultado, ficou visivelmente satisfeito.

   - Sabia que não errava ao mandá-lo para a vitrina. O facto é que você e eu somos pessoas de educação. Olhe que não diria :, isso lá na secção, mas você e eu somos educados e isso dá sempre na vista. Não vale a pena dizer que não, porque sei que isso dá na vista.

   Philip foi escalado para fazer regularmente esse trabalho, mas não pôde acostumar-se à publicidade. Abominava as manhãs de sexta-feira, quando lhe cumpria arranjar a vitrina, num medo que o fazia despertar às cinco horas e ficar na cama de olhos abertos, com o coração angustiado. As raparigas da secção perceberam-lhe o feitio acanhado e depressa descobriram o seu estratagema de ficar com as costas voltadas para a rua. Riam dele e chamavam-lhe "arisco".

   - Acho que você tem medo que a sua tia passe e risque o seu nome do testamento.

   De um modo geral, dava-se bem com as empregadas. Achavam-no um tanto esquisito, mas o seu pé boto parecia desculpar o facto de não ser como os outros. E, com o correr do tempo, verificaram que Philip era boa pessoa. Nunca deixava de auxiliar os outros, era polido e afável.

   - Bem se vê que é um cavalheiro - diziam.

   - Muito reservado, não é? - observou uma das raparigas, cujo apaixonado entusiasmo pelo teatro deixara Philip impassível.

   Na sua maioria, tinham "amiguinhos", e as que não os tinham preferiam dizer o contrário a dar a entender que ninguém as procurava. Uma ou outra dera sinais de querer começar namoro com Philip e este observava-lhes as manobras, e divertia-se sob o seu ar grave. Fartara-se de amar por muito tempo; quase sempre se sentia cansado e muitas vezes com fome.

 

   Philip evitava os lugares que frequentara em tempos mais felizes. As pequenas reuniões na casa de Beak Street tinham cessado. Macalister, como deixara os amigos em má situação, não mais aparecera lá e Hayward estava no Cabo. Só restava Lawson, e Philip, sentindo agora que o pintor e ele já nada tinham de comum, não desejava vê-lo. Mas no sábado à tarde, depois de jantar e mudar de roupa, Philip descia a Regent Street para ir à biblioteca pública, em St. Martin.s Lane, resolvido a passar lá a tarde, quando, de súbito, se viu em frente do pintor. O seu primeiro impulso foi de passar sem dizer uma palavra, mas Lawson não lhe deu ensejo.

   - Mas onde diabo estiveste metido todo este tempo? -exclamou.

   - Eu? - retorquiu Philip. :,

   - Escrevi a convidar-te a vir ao estúdio para uma festa e nem sequer respondeste...

   - Não recebi a tua carta.

   - Sim, eu sei. Fui ao hospital perguntar por ti e vi a minha carta no escaninho da entrada. Largaste a medicina?

   Philip hesitou um momento. Envergonhava-se de dizer a verdade, mas a vergonha que sentia deixava-o encolerizado. Fez um esforço para falar. Não pôde conter o rubor das faces

   - Sim. Perdi o pouco dinheiro que tinha. Não tive recursos para continuar.

   - Ah!... Que pena! Que fazes agora?

   - Sou indicador numa loja.

   Estas palavras sufocaram-no, mas estava resolvido a não ocultar a verdade. Manteve os olhos fitos em Lawson e viu-lhe o embaraço. Sorriu furioso.

   - Se fores à casa Lynn ç Sedley e te dirigires para a secção de "_Roupas Feitas", ver-me-ás metido num fraque, a caminhar de lá para cá, com ar *degagê*, indicando os balcões para as damas que querem comprar camisas ou meias. Primeira à direita, minha senhora. Segunda à esquerda!

   Vendo que Philip fazia humorismo, Lawson riu desajeitadamente Não sabia que dizer. O quadro que Philip lhe pintava horrorizava-o, mas temia mostrar comiseração.

   - É uma grande mudança para ti... - disse.

   As palavras pareceram-lhe absurdas e logo se arrependeu de tê-las pronunciado. Philip corou profundamente.

   - _é... - disse. - A propósito, devo-te cinco xelins.

   Meteu a mão no bolso e tirou algumas moedas de prata.

   - Ora, não tem importância. Até já me esquecera

   - Toma lá, anda.  

   Lawson recebeu o dinheiro em silêncio. Achavam-se ambos no meio da rua e as pessoas, ao passarem, acotovelavam-nos. Havia nos olhos de Philip um brilho sarcástico que causava intenso mal-estar ao pintor. Ignorava que o coração do outro estava cheio de desespero. Lawson desejava fazer com urgência alguma coisa, mas não sabia o quê.

   - Escuta, não queres ir ao estúdio para conversarmos?

   - Não - respondeu Philip.

   - Porquê?

   - Não há nada a dizer.

   Philip viu uma expressão dolorosa nos olhos de Lawson.    Lamentava, mas nada podia fazer: tinha de pensar em si próprio. Não podia suportar a ideia de discutir a sua situação: só podia aturá-la mediante permanente resolução de não pensar nela. Receava a própria fraqueza, uma vez que tivesse aberto o coração. Além disso, sentia uma irresistível repulsa pelos lugares em que :, fora infeliz. Lembrava-se da humilhação que sofrera naquele estúdio, quando torturado por uma fome canina, esperara que Lawson lhe oferecesse uma refeição. Lembrava-se também do dia em que lhe pedira os cinco xelins emprestados. Detestava a presença de Lawson porque ela lhe lembrava aqueles dias de completo rebaixamento.

   - Então vem jantar comigo uma noite destas. A noite que quiseres.

   Philip estava comovido com a bondade do pintor. Era estranho como toda a gente se mostrava bondosa para ele, reflectiu.

   - _é uma grande gentileza tua, meu velho, mas prefiro não ir. - Estendeu a mão. - Adeus.

   Lawson, perturbado por uma conduta que lhe parecia inexplicável, apertou-lhe a mão e Philip, coxeando, afastou-se rapidamente. Levava um peso no coração e, como era seu costume, começou a censurar-se pelo que fizera. Não sabia que louco orgulho o levara a recusar aquele oferecimento de amizade. Mas ouviu que alguém corria atrás dele e, num dado momento, ouviu a voz de Lawson a chamá-lo. Parou e, de súbito, um sentimento de hostilidade tomou-lhe conta do ser. Philip apresentou a Lawson um rosto frio e carrancudo.

   - Que há?

   - Já sabes o que sucedeu a Hayward?

   - Sim, sei que foi para o Cabo.

   - Morreu... Morreu logo que lá chegou.

   Por um momento, Philip não respondeu. Mal podia acreditar  no que ouvia.

   - Como? - perguntou por fim.

   - Ora... Disenteria. Má sorte, não achas? Estava a parecer-me que não sabias. Quando me disseram, fiquei bastante abalado.

   Lawson fez um cumprimento rápido com a cabeça e retirou-se. Philip sentiu uma pancada seca no coração. Nunca perdera um amigo da sua idade, pois a morte de Cronshaw, homem muito mais velho do que ele, ocorrera como um facto normal e esperado. A notícia que acabava de receber causara-lhe um choque. Lembrava-lhe a sua própria condição mortal, pois embora, como toda a gente, Philip soubesse perfeitamente que os homens, sem excepção, devem morrer, não tinha nenhum sentimento íntimo de que isso se aplicasse à sua pessoa. E a morte de Hayward, apesar de haver já muito tempo que não tinha por ele nenhuma afeição especial, atingiu-o profundamente. Lembrou-se, de súbito, de todas as boas palestras que haviam tido e era-lhe doloroso pensar em que jamais conversariam. Recordava-se do seu primeiro encontro e dos agradáveis meses que tinham passado juntos em Heidelberga. _o coração de Philip batia apressado, ao lembrar-se :, dos anos decorridos. Continuou a caminhar maquinalmente, sem notar para onde ia, e de repente verificou, com um movimento de irritação, que, em vez de dobrar para Haymarket vagueara ao longo da Shaftesbury Avenue. Aborrecia-o voltar sobre os próprios passos e, além, disso, aquela notícia tirara-lhe a vontade de ler; queria, sim, ficar sentado na solidão e entregar-se aos seus pensamentos. Resolveu ir ao British Museum. A solidão era agora o seu único luxo. Desde que estava na firma Lynn, ia ali com frequência para se postar diante dos grupos do Partenon. E, sem nenhum pensamento deliberado, deixava que os mármores divinos lhe dessem repouso à alma perturbada. Naquela tarde, porém, eles nada tinham para lhe dizer. Passados uns minutos saiu impaciente da sala. Havia ali muita gente, provincianos de fisionomia atoleimada, estrangeiros a compulsar catálogos; a fealdade daquela gente conspurcava as obras-primas eternas, a sua agitação turbava o repouso imortal dos deuses. Entrou noutra sala, onde quase não havia ninguém. Cansado, sentou-se. Os seus nervos estavam tensos. Não podia afastar do espírito aquela gente. _às vezes, na casa de Lynn, tinha a mesma impressão e contemplava com horror o desfile. Eram seres tão feios e havia tamanha mesquinhez nas suas faces, que chegavam a causar terror. Tinham as feições deformadas por todos os desejos vis. Sentia-se que viviam alheios às ideias de beleza. Tinham olhos furtivos e queixos fracos. Não havia maldade neles, apenas pequenez e vulgaridade. O único género de espírito que conheciam era a comicidade baixa. _às vezes, Philip surpreendia-se a olhá-los, à procura de descobrir com que animal se pareciam (fazia por evitá-lo, pois isso rapidamente se transformava em obsessão) e em todos havia um pouco de carneiro, de cavalo, de raposa ou de bode. Os seres humanos enchiam-no de repulsa.

   Mas, pouco depois, a influência do lugar tomou conta dele. Sentiu-se mais tranquilo. Começou a olhar distraidamente as pedras tumulares que se enfileiravam na sala. Eram obras de canteiros atenienses do quarto e quinto séculos antes de Cristo. Muito simples, não constituíam trabalho de grande talento, mas nelas vivia o inefável espírito de Atenas. O tempo dera ao mármore a cor do mel, de tal maneira que, inconscientemente, se pensava nas abelhas do Himeto, e suavizara-lhe os contornos. Algumas das lápidas representavam uma figura nua, sentada num banco. Outras, a separação dos mortos daqueles que os amavam. Noutras ainda, viam-se os mortos de mãos unidas com alguém que ficava para trás. Em todos, a trágica palavra adeus; isso e nada mais. Essa simplicidade era infinitamente tocante. O amigo deixava o amigo, o filho separava-se da mãe e a necessidade de dominar-se tornava mais pungente a dor dos que sobreviviam. Muitos, muitíssimos séculos tinham passado sobre aquelas desgraças. :, Havia dois mil anos que os que tinham chorado jaziam feitos pó, bem como aqueles que prantearam. Mas a sua dor continuava viva e enchia o coração de Philip, de tal modo que sentia um impulso de compaixão, dizendo:

   - Coitados, coitados.

   E ocorreu-lhe que os visitantes boquiabertos e os gordos turistas a manusear os seus guias, e mais toda aquela gente vulgar e mesquinha que enchia a loja com os seus desejos triviais e os seus cuidados comuns, eram mortais e tinham de morrer. Também amavam e deviam separar-se dos entes queridos, a mãe do filho, a esposa do marido; e talvez aquilo fosse mais trágico por causa da sordidez e da fealdade das próprias vidas. Nada sabiam daquilo que dá beleza ao mundo. Havia uma pedra muito bela: um baixo relevo de dois homens jovens, de mãos dadas; e a reticência da linha, a simplicidade, faziam pensar que ali o escultor fora tocado por sincera comoção. Era um delicado monumento elevado a esse sentimento que só um outro no mundo ultrapassa - a amizade. Ao contemplá-lo, Philip sentiu que as lágrimas lhe vinham aos olhos. Pensou em Hayward e recordou-se da sua ardente admiração por ele, quando do primeiro encontro, de como viera depois a desilusão e mais tarde a indiferença, até que por fim nada os mantinha unidos senão o hábito e as velhas memórias. Uma das coisas curiosas da vida é que, depois de vermos uma pessoa todos os dias durante meses, se nos torna tão íntima que não podemos imaginar a existência sem ela; mas vem a separação e tudo prossegue de idêntica maneira, de modo que a companhia que parecia essencial revela-se desnecessária. A nossa vida contínua e nós nem ao menos sentimos a falta do amigo. Philip pensou naqueles remotos dias de Heidelberga. Hayward, capaz de grandes coisas, mostrara-se cheio de entusiasmo pelo futuro, mas com o passar do tempo nada realizara e resignara-se ao malogro. Agora, estava morto. A sua morte fora tão fútil como a sua vida. Morrera ingloriamente, de uma doença estúpida, falhando uma derradeira vez na realização do que se propunha. Agora, era exactamente como se nunca tivesse existido.

   Philip perguntava consigo, desesperadamente, qual era a finalidade da existência. Parecia-lhe inane. Passara-se o mesmo com Cronshaw: nenhuma importância havia no facto de ter vivido. Estava morto e esquecido; o seu livro de poemas andava pelos alfarrabistas. A sua vida parecia não ter servido senão para dar a um jornalista ambicioso pretexto para escrever um artigo. E Philip exclamava interiormente:

   - De que serve tudo isto?

   Que desproporção entre o esforço e o resultado! As brilhantes esperanças da juventude tinham de ser pagas ao preço amargo da desilusão. Como a dor, a doença e a desgraça pesavam na :, balança! Que significava tudo aquilo? Pensou na sua própria vida, nas vivas esperanças com que entrara nela, nas limitações que lhe eram impostas pelo corpo, na falta de amigos e na ausência de afeição que lhe cercara a juventude. Sempre fizera o que lhe parecia melhor, mas que desastre o seu! Outros homens, sem maiores vantagens do que ele, triunfavam e outros ainda, com muito mais predicados, falhavam! Parecia pura questão de sorte. A chuva caía tanto sobre o justo como sobre o ímpio, e para nada neste mundo havia motivo ou causa.

   Ao pensar em Cronshaw, Philip lembrou-se do tapete persa que o poeta lhe dera, dizendo que ele oferecia uma resposta à sua pergunta sobre o sentido da vida. E, de súbito, a resposta ocorreu-lhe. Soltou uma risada. Agora que a tinha, era como um desses quebra-cabeças que nos obcecam até que alguém nos mostra a solução; ficamos então a imaginar como aquilo nos pôde escapar. A resposta era evidente. A vida não tem sentido. Sobre a Terra, satélite de um astro que viaja velozmente pelo espaço, seres vivos surgiram sob a influência de condições criadas pela história do planeta. E, tendo assim havido um começo de vida na Terra, sob a influência de outras condições haverá um fim. O homem, que não é mais importante do que as outras formas de vida, não surgiu como o ponto culminante da criação, mas como uma reacção física ao meto ambiente. Philip lembrou-se da fábula do rei oriental que, desejando conhecer a história do homem, recebeu de um sábio quinhentos volumes; atarefado com os assuntos do governo, solicitou-lhe que os condensasse. Passados vinte anos, o sábio voltou e a sua história não tinha agora mais de cinquenta volumes; mas o rei, demasiado velho então para ler tantos e tão maçudos tomos, rogou-lhe que abreviasse uma vez mais a história. Passaram-se mais vinte anos e o sábio, velho e encanecido, trouxe um único livro, no qual se continha a ciência que o rei procurava. Mas o rei jazia no seu leito de morte e não lhe sobraria tempo para ler nem aquele volume. O sábio, então, narrou-lhe a história do homem numa simples linha. Era esta: nasceu, sofreu e morreu. A vida não tem nenhum sentido. E, vivendo, o homem não cumpre finalidade alguma. _é indiferente que ele nasça ou não nasça, viva ou deixe de viver. A vida é insignificante e a morte sem consequência. Philip exultou como exultara na infância, quando o peso da crença em Deus lhe fora tirado dos ombros. Parecia-lhe que alijava agora a última carga de responsabilidade. E, pela primeira vez, sentiu-se livre. A sua insignificância transformava-se em força e ele sentia-se de súbito um igual do destino cruel que parecia persegui-lo. Porque se a vida não tem sentido, o mundo fica despojado da sua crueldade. O que fizesse ou deixasse de fazer nada significava. O malogro não tinha importância e o êxito redundava em nada. :, Era a criatura mais insignificante naquela massa pululante da humanidade que, por breve espaço, ocupa a superfície da Terra. E era todo-poderoso porque arrancara ao caos o segredo da sua inanidade. Os pensamentos atropelavam-se-lhe no cérebro excitado. Philip aspirava o ar profundamente, com jubilosa satisfação. Tinha vontade de pular e cantar. Havia meses que não se sentia tão feliz.

   - Oh! Vida - gritou intimamente. - Oh! Vida, onde está o teu aguilhão?

   Porque a mesma onda de fantasia que lhe mostrara, com toda a força de uma demonstração matemática, que a vida não tinha sentido, trazia consigo outra ideia. E fora por isso que Cronshaw, imaginava ele, lhe dera o tapete persa. Assim como o tecelão desenha o tapete sem outro cuidado que não o prazer estético, pode um homem viver a sua vida; ou, para quem for obrigado a acreditar que os seus actos não dependem da vontade, nada impede de contemplar a própria existência como um plano estabelecido. Mas não entra nessa procura nem necessidade nem utilidade. _é simplesmente a busca de uma satisfação pessoal. De acontecimentos diversos, acções, sentimentos, pensamentos, podia traçar um desenho regular, trabalhado, complicado ou belo. Essa faculdade de escolher não será talvez uma ilusão, um prodigioso escamoteio, graças ao qual as aparências se irisam de reflexos? Não importava: assim parecia; portanto, para ele, era. No curso contínuo da vida (esse rio nascido de nenhuma fonte e que corre interminavelmente para mar algum) um imaginativo, uma vez convencido da vaidade da existência, pode encontrar uma satisfação pessoal na escolha dos vários fios que formam o desenho. Existe um padrão, o mais simples, perfeito e belo, no qual um homem nasce, chega à virilidade, casa, procria filhos, luta pelo pão e morre. Mas outros há, intrincados e maravilhosos, nos quais a felicidade não entra e onde não se tenta o êxito; nesses, pode-se descobrir uma graça mais perturbadora. Algumas vidas, e entre elas a de Hayward, são truncadas pela cega indiferença da sorte, quando o desenho ainda está imperfeito. Nesse caso, é reconfortante pensar que isso não tem a mínima importância. Outras vidas, como a de Cronshaw, oferecem um desenho difícil de seguir: é preciso mudar de ponto de vista, alterar velhos conceitos, para poder compreender que semelhante vida é a sua própria justificação. Afastando o desejo de felicidade, Philip pensava libertar-se das derradeiras ilusões. A vida afigurava-se-lhe horrível quando medida pelo padrão da felicidade, mas agora tinha a impressão de ganhar forças ao descobrir que ela podia ser aferida por outros estalões. A felicidade importava tão pouco como a dor. Uma e outra contribuíam, como todos os demais pormenores da vida, para a elaboração do desenho. Por um instante, :,

teve a impressão de pairar acima dos acidentes da sua existência e sentia que eles já não podiam atingi-lo como antes. O que lhe acontecesse agora seria apenas mais um motivo a acrescentar à complexidade do padrão. E quando o fim se aproximasse, rejubilaria pelo seu acabamento. Seria uma obra de arte e nem por ser ele o único a conhecer-lhe a existência deixaria de ser bela; e com a sua morte a existência cessaria imediatamente de o ser.

   Philip sentia-se feliz.

 

Mr. Sampson, o chefe de secção, tomou-se de simpatia por Philip. Era um homem muito elegante e as empregadas da sua secção diziam que não seria de admirar se ele casasse com uma das freguesas ricas. Morava fora da cidade e muitas vezes causava impressão aos seus subordinados, vindo para o trabalho com trajo de noite. Algumas vezes fora visto pelos que faziam o serviço de limpeza chegar pela manhã ainda enfarpelado e, enquanto entrava no escritório para vestir o fraque habitual, os empregados trocavam piscadelas graves. Nesses dias, ao voltar do chá, bebido à pressa, por sua vez piscava o olho a Philip enquanto descia as escadas, a esfregar as mãos.

   - Que noite! Que noite, meu Deus! - exclamava.

   Dizia a Philip que ele era o único cavalheiro na casa e que só eles é que sabiam o que a vida era. Pronunciadas essas palavras, as suas maneiras mudavam de súbito. Passava a chamar-lhe Mr. Carey em vez de "meu velho", assumia o ar de importância consentâneo com a sua posição de chefe e fazia voltar Philip ao seu lugar de simples indicador.

   Lynn ç Sedley recebiam figurinos de Paris uma vez por semana e adaptavam os modelos às necessidades dos seus fregueses. A clientela da casa era especial. A parte principal era constituída por mulheres das pequenas cidades industriais, demasiado elegantes para fazerem os seus vestidos na localidade onde residiam, e que não possuíam o suficiente conhecimento de Londres para descobrir bons costureiros ao alcance das suas posses. Além dessa gente, havia, em singular contraste, grande número de artistas ligeiros. _o próprio Mr. Sampson conquistara essa freguesia para a casa, com o que muito se orgulhava. Haviam começado por comprar ali roupas para o palco e o homem induzira grande número a comprar também o resto do vestuário.

   -- Tão bom como Paquin e por metade do preço - afirmava ele.

   Ele tinha um ar persuasivo, afável e comunicativo para essa espécie de fregueses que comentavam entre si: :,

   - De que vale deitar dinheiro fora, quando se pode comprar no Lynn um vestido que ninguém dirá que não veio de Paris?

   Mr. Sampson tinha grande orgulho na amizade dos artistas populares, e sempre que ia almoçar às duas horas do domingo, com Miss Victoria Virgo - "ela trazia aquele azul polvilhado que lhe fizemos e aposto que não disse a ninguém ser de fabrico nosso; tive mesmo de afirmar-lhe que, se não o tivesse desenhado com as minhas próprias mãos, juraria que o vestido viera de Paquin" - na sua bela residência de Tulse Hill, no dia seguinte mimoseava a secção com abundantes pormenores. Philip nunca dera muita atenção ao vestuário feminino, mas, com o decorrer do tempo, um pouco divertido consigo próprio, começou a tomar pelo assunto um interesse técnico. Mais do que ninguém da secção, sabia ver as cores e ainda conservava dos tempos de estudante em Paris um certo conhecimento de desenho. Mr. Sampson, homem ignorante e cônscio da sua incompetência, mas com uma habilidade que o habilitava a aproveitar as sugestões alheias, pedia constantemente a opinião dos empregados da sua secção sobre os novos desenhos. Teve a inteligência de perceber que a crítica de Philip era valiosa. Mas, como era muito ciumento, jamais confessaria ter aceitado o conselho de quem quer que fosse. Quando alterava algum desenho de acordo com uma sugestão de Philip, acabava sempre por dizer:

   - Bom, no fundo isso concorda com a minha ideia.

   Um dia, quando havia já cinco meses que Philip estava na casa, Miss Alice Antónia, a conhecida actriz joco-séria, entrou na loja e pediu para falar a Mr. Sampson. Era uma mulher avantajada, de cabelos cor de linho, muito pintada, com uma voz metálica e esse jeito aéreo da comediante habituada à amizade dos rapazes que enchem as galerias dos teatros de variedades provincianos. Tinha uma nova canção e desejava que Mr. Sampson lhe desenhasse um trajo.

   - Quero uma coisa que chame a atenção - recomendou ela. - Nada dessas velharias. Quero uma coisa diferente, que ninguém tenha usado.

   Mr. Sampson, com modos suaves e familiares, disse que estava absolutamente certo de arranjar o que ela precisava. Mostrou-lhe esboços.

   - Sei que aqui não encontrará nada que preste, mas quero mostrar-lhe o género que sugeriria...

   - Oh! Não! Não é nada disso - retorquiu ela, enquanto passava os olhos, impacientes pelos desenhos. - Quero uma coisa que dê nas vistas e os deixe de boca aberta.

   - Sim, entendo perfeitamente, Miss Antónia - disse o chefe da secção, com um sorriso brando, mas com os olhos vagos e estúpidos. :,

   - Creio que, no fim de contas, terei que dar um pulo a Paris.

   - Não, não! Penso que podemos servi-la satisfatoriamente, Miss Antónia. O que conseguir em Paris pode conseguir também aqui.

   Depois de ela, numa reviravolta, deixar a loja, Mr. Sampson, um pouco preocupado, discutiu o assunto com Mrs. Hodges.

   - Ela é dura de roer, não há dúvida - disse Mrs. Hodges.

   - Alice, mas que queres? - monologou o chefe da secção, irritado. E julgou ter marcado um tento contra ela.

   As suas ideias sobre vestidos de variedades jamais iam além de saias curtas, um turbilhão de rendas e lantejoulas rebrilhantes. Mas Miss Antónia exprimira-se a esse respeito de maneira inconfundível.

   - Ai, minha vida! - dissera ela.

   A exclamação fora lançada num tom que indicava profunda antipatia por coisa tão comum, mesmo se ela não tivesse acrescentado que aquelas lantejoulas lhe causavam nojo. Mr. Sampson "expeliu" uma ou duas ideias, mas Mrs. Hodges disse-lhe francamente achar que não serviam. Foi ela quem pensou em Philip.

   - Sabes desenhar, Phil. Por que não fazes uma experiência para veres do que és capaz?

   Philip comprou uma caixa barata de tintas de aguarela e à noite, enquanto Bell, o barulhento rapaz, assobiando sempre as mesmas três notas, se entretinha com os selos - fez uns esboços. Lembrava-se de alguns vestidos que vira em Paris e adaptou um deles, tirando efeito de uma combinação de cores violentas e pouco comuns. O resultado divertiu-o e, na manhã seguinte, mostrou o desenho a Mrs. Hodges. Ela ficou um tanto espantada, mas levou-o ao chefe.

   - _é invulgar - disse ele. - Isso não se pode negar.

   Ficou intrigado, mas ao mesmo tempo o seu olho prático viu que aquilo ia servir à maravilha. A fim de salvar a sua dignidade, começou a fazer sugestões para alterar o modelo, mas Mrs. Hodges, com melhor senso, aconselhou-o a mostrá-lo a Miss Antónia assim como estava.

   - Com ela é tudo ou nada. E podia entusiasmar-se por ele.

   - _é muito mais nada do que tudo - afirmou Mr. Sampson, olhando para o *décolletage*. - Ele sabe desenhar. _é estranho por que não o disse há mais tempo.

   Quando Miss Antónia foi anunciada, o chefe colocou o desenho em cima da mesa, em posição tal que lhe atraísse a atenção no momento em que ela entrasse no escritório. Ela reparou logo nele.

   - E isto o que é? - indagou ela. - Porque não mo faz?

   - _é precisamente uma ideia que tivemos para si - disse Mr. Sampson com ar despreocupado. - Gosta?

   - Se gosto!? - exclamou ela. - _é isso mesmo o que me serve.

   - Ah... Vê? Não precisa de ir a Paris. Basta dizer o que quer para ser atendida.

   O trabalho foi posto imediatamente em execução. Philip sentiu um arrepio de satisfação ao ver terminado o vestido. Mr. Sampson e Mrs. Hodges ficaram com todas as glórias. Mas isso pouco importava a Philip e, quando foi ao Tivoli em companhia dos dois ver Miss Antónia usar o vestido pela primeira vez, sentiu-se orgulhoso. Respondendo às perguntas de Mrs. Hodges, contou-lhe afinal como aprendera a desenhar -(temendo que as pessoas com quem vivia agora pudessem pensar que se dava ares de importância, sempre tivera o maior cuidado em não falar das suas ocupações passadas) - e ela repetiu a informação a Mr. Sampson. O chefe da secção nada lhe disse sobre o assunto, mas começou a tratá-lo com mais deferência e oportunamente encomendou-lhe desenhos para dois fregueses da província. Os modelos agradaram. Mr. Sampson, então, começou a falar às clientes de "um talentoso jovem, estudante de belas-artes em Paris, sabe?..." que trabalhava para ele. Em breve Philip, em mangas de camisa, escondido atrás de um biombo, passou a desenhar de manhã à noite. Algumas vezes, estava tão ocupado que tinha de almoçar às três, com os retardatários. Gostava disso, porque estes eram poucos e estavam demasiado cansados para falar. A comida também era melhor, pois consistia nas sobras da mesa dos chefes de secção. A promoção de Philip a desenhador de vestidos teve grande efeito na secção. Philip compreendeu que era objecto de inveja. Harris, o empregado de cabeça disforme, a primeira pessoa que conhecera na firma, e com quem travara amizade, não podia ocultar a sua amargura.

   - Alguns têm sorte... - dizia ele. - Qualquer dia, estás chefe de secção e nós todos temos de te dar senhoria.

   Disse a Philip que devia pedir aumento de ordenado, porque, não obstante o trabalho difícil de que estava agora encarregado, o rapaz nada mais recebia além dos seis xelins semanais com que começara. Pedir aumento, contudo, era coisa melindrosa. O gerente tinha um modo sarcástico de tratar com tais reclamantes.

   - Acha que vale mais, não é? Quanto pensa que vale, hem?

   O empregado, com o coração na boca, insinuava achar que devia ganhar mais dois xelins semanais.

   - Ah... Está bem, se acha que vale, conte com o aumento.   - Depois, fazia uma pausa e, em certas ocasiões, com um olhar duro como aço, acrescentava. - E também com a sua demissão.

   De nada valia retirar o pedido. O remédio era deixar o emprego. A ideia do gerente era que os empregados descontentes não faziam bem as coisas e, se não mereciam aumento, era melhor mandá-los embora de uma vez. O resultado era que eles nunca :, pediam melhoria de salário, a menos que estivessem dispostos a deixar a casa. Philip hesitou. Desconfiava um pouco dos companheiros de quarto, quando lhe afirmavam que o chefe da sua secção não podia passar sem o seu trabalho. Eram sujeitos decentes, mas o seu conceito de humorismo era primitivo e haviam de achar muita graça se, persuadindo Philip a pedir aumento, o fizessem ir para a rua. Philip não podia esquecer as mortificações sofridas quando andava à procura de trabalho. Não queria expor-se nova-

mente a isso e sabia haver pouca esperança de conseguir noutro

sítio um emprego como desenhador. Havia em Londres centenas de pessoas que desenhavam tão bem como ele. Mas precisava muitíssimo de dinheiro. As suas roupas estavam puídas, e os grossos tapetes apodreciam-lhe os sapatos. Estava quase persuadido a dar o passo aventuroso, quando, certa manhã, ao sair do café, no rés-do-chão, atravessando o corredor que levava ao escritório do gerente, viu, numa fileira, homens que procuravam emprego e esperavam o momento de ser atendidos. Havia cerca de cem candidatos e quem quer que fosse admitido obteria o salário de seis xelins semanais que Philip ganhava. Viu um dos homens lançar-lhe olhares de inveja, porque tinha emprego. Isso fê-lo estremecer. Não ousou correr o risco.

 

   O Inverno passou. De vez em quando, Philip ia ao hospital, entrando furtivamente, a horas tardias, quando tinha poucas probabilidades de encontrar algum conhecido: queria ver se havia lá cartas para ele. Pela Páscoa, recebeu uma, do tio. Ficou surpreendido, pois o vigário de Blackstable em toda a vida só lhe escrevera meia dúzia de cartas, e ainda assim sobre negócios.

 

*_Caro Philip:

*_Se pretendes ter férias em breve e quiseres vir até cá, terei prazer em ver-te. Estive muito mal com a minha bronquite, este Inverno, e o dr. Wigram nunca esperou que eu resistisse. Tenho uma admirável constituição e, graças a Deus, sinto-me maravilhosamente refeito.

*_Teu afeiçoado,

*_William Carey* :,

 

   A carta encheu Philip de cólera. De que maneira pensava o tio que ele vivia? Nem ao menos se dava o incómodo de perguntar. Pouco lhe teria importado que ele morresse de fome. Mas, ao voltar para casa, ocorreu-lhe uma ideia. Deteve-se debaixo de um lampião e tornou a ler a carta. A letra do tio já não apresentava a mesma firmeza que a caracterizava. Estava maior e tremida: talvez a doença o tivesse abalado mais do que ele queria confessar, tendo procurado, naquela nota formal, exprimir um grande desejo de ver o único parente que tinha no mundo. Philip respondeu, a dizer que em Julho iria a Blackstable passar duas semanas. O convite vinha a calhar, pois não sabia que fazer no seu breve período de férias. Os Athelny iam para a colheita em Setembro, mas ele não podia ser dispensado em tal época, justamente quando eram preparados os modelos para o Outono. O regulamento dos Lynn impunha quinze dias de férias aos empregados, mesmo que estes não quisessem. E, durante esse tempo, se não tivesse para onde ir, o funcionário podia dormir no seu quarto, mas não tinha direito à comida. Grande número deles não possuía amigos a uma distância razoável de Londres, e para eles as férias eram um período difícil, durante o qual tinham de pagar as refeições com os seus magros salários; ficavam o dia inteiro sem nada fazer, por não terem que gastar. Philip não saía de Londres desde a sua ida a Brighton com Mildred, havia já dois anos e suspirava por ar fresco e pelo silêncio do mar. Pensou nisso com um desejo tão apaixonado durante Maio e Junho, que, chegado afinal o momento de partir, ficou apático.

   Na última noite, ao falar com o chefe da secção, a respeito de uns trabalhos que tinha de interromper, Mr. Sampson perguntou-lhe de repente:

   - Quanto é que está a ganhar?

   - Seis xelins.

   - Não acho que seja bastante. Vou providenciar para que lhe paguem doze quando voltar.

   - Muitíssimo obrigado - sorriu Philip. - Estou a precisar urgentemente de roupa nova.

   - Se trabalhar sempre como até aqui e não andar de namoro com as empregadas, como fazem muitos, olharei por si, Carey. Tome nota, tem muito que aprender, mas promete. Justiça lhe seja feita, promete. E, assim que o mereça, tratarei de arranjar-lhe uma libra por semana.

   Philip ficou a pensar em quanto tempo teria de esperar por isso. Dois anos, talvez?

 

   Sobressaltou-se ao ver a mudança que se operara no tio. Quando o vira pela última vez, era ainda um homem vigoroso e empertigado, com o seu rosto, redondo e sensual, sempre bem :, escanhoado. Estava singularmente decaído. A pele tinha uma coloração amarela. Viam-se-lhe duas grandes bolsas sob os olhos. Envelhecido e encurvado, deixara crescer a barba durante a doença e caminhava com muita lentidão.

-Hoje não estou nos meus melhores dias - disse ele, quando Philip, que acabara de chegar, lhe fazia companhia na sala de jantar. - O calor abate-me.

   Enquanto fazia perguntas sobre assuntos da paróquia, Philip examinava-o: quanto tempo duraria ainda? Um Verão ardente

daria cabo dele. Notou-lhe a extrema magreza das mãos, que

um tremor agitava. Aquilo significava muito para Philip. Se o

velho morresse naquele Verão, poderia voltar para o hospital no princípio do trimestre do Inverno. O coração palpitou-lhe à ideia de não voltar para os Lynn. _à hora do almoço, o vigário sentou-se, encurvado na sua cadeira, e a governanta que o servia desde a morte da mulher disse:

   - Mr. Philip vai trinchar?

   O velho, que estava resolvido a fazê-lo para não confessar

a sua fraqueza, pareceu satisfeito em abandonar a tentativa à

primeira sugestão.

   - Tem excelente apetite - observou Philip.

   - Oh! Sim, sempre comi bem. Mas estou mais magro do que quando estiveste aqui da última vez. Isso alegra-me, pois não gosto de ficar muito gordo. O dr. Wigram declara que foi muito melhor para mim emagrecer um pouco.

   Quando o almoço terminou, a criada trouxe-lhe um remédio.

   - Mostra a receita ao sr. Philip - disse o vigário. - Ele também é médico. Gostaria de saber se achas bem. Eu disse ao dr. Wigram que estás a estudar medicina e que ele devia fazer uma redução no seus honorários. As contas que tenho de pagar são tremendas. Durante dois meses visitou-me todos os dias, a cinco xelins a visita. _é um montão de dinheiro, não achas? E ainda agora vem duas vezes por semana. Vou dizer-lhe que não precisa de voltar. Quando tiver necessidade, mandá-lo-ei chamar.

   Olhou para Philip com expressão ansiosa, enquanto este lia as receitas. Eram narcóticos. Eram dois e um deles era o remédio que o vigário explicou que tomava apenas quando a sua nevrite se tornava insuportável.

   - Sou muito cauteloso - disse. - Não quero habituar-me ao ópio.

   Não aludiu à situação do sobrinho. Quis parecer a Philip que o tio continuava a falar acerca de dinheiro numa atitude de defesa, para o caso de ele pedir algum empréstimo. Gastara tanto com o médico e mais tanto com o farmacêutico, durante a sua doença, e além disso vira-se obrigado a manter todos os dias o lume aceso no quarto, e agora, aos domingos, precisava de ir à igreja de carro, tanto de manhã como à noite. Philip, raivoso, sentiu ganas de lhe dizer que não precisava de ter medo, pois não lhe pediria dinheiro; mas conteve-se. Parecia-lhe que tudo o velho perdera, menos duas coisas: os prazeres da mesa e a sovinice. Era uma velhice hedionda.

   _à tarde, veio o dr. Wigram e, depois da visita, Philip acompanhou-o até ao portão do jardim.

   - Como o acha? - perguntou Philip.

   O dr. Wigram mostrava-se mais ansioso por não errar do que por acertar, e nunca arriscava uma opinião definida quando podia evitá-la. Exercia a profissão em Blackstable havia trinta e cinco anos. Tinha a reputação de ser muito digno de confiança e numerosos doentes seus achavam que, para um médico, era melhor ser prudente do que sábio. Havia um doutor novo em Blackstable - (havia dez anos que se estabelecera ali, mas era ainda olhado como intruso). Era considerado como muito inteligente, mas não tinha muita clínica entre as pessoas importantes do lugar, só porque ninguém sabia nada ao certo a respeito dele.

   - Está tão bem quanto é possível - disse o dr. Wigram, em resposta à pergunta de Philip.

   - Tem alguma coisa de grave?

   -Bom, Philip, seu tio já não é criança - tornou o médico, com um sorriso prudente que sugeria que, afinal de contas, o pastor de Blackstable também não era um velho.

   - Ele parece achar que o coração não anda bom.

   - Não estou satisfeito com o coração - aventurou o outro.                                   - Acho que deve tomar cuidado, muito cuidado.

   Philip tinha uma pergunta na ponta da língua: quanto tempo viveria ainda o velho? Temia que isso parecesse chocante. Em semelhante assunto, o decoro comum exige um circunlóquio; mas ao fazer, em vez dessa, outra pergunta, ocorreu-lhe de repente que o médico devia estar acostumado à impaciência dos parentes dos enfermos. Competia-lhe ver o que havia por trás das expressões de comiseração. Philip, sorrindo de leve ante a própria hipocrisia, baixou os olhos.

   - Suponho que não esteja em perigo imediato...

   Essa era a espécie de pergunta que o médico mais detestava. Se se dizia que um doente não tinha nem um mês de vida, a família preparava-se para a perda; e se depois ele sobrevivesse a esse prazo, mostravam-se ressentidos com o médico por se terem atormentado antes do momento oportuno. Por outro lado, se se dissesse que podia viver um ano e ele morresse numa semana, a família acusava o médico de não conhecer o seu ofício. Pensavam em toda a afeição que poderiam ter prodigalizado ao defunto se soubessem que o seu fim estava tão próximo. O dr. Wigram fez o gesto de quem lava as mãos.

   - Não acho que haja qualquer risco iminente, desde que ele... :, continue como está  -aventurou por fim. - Mas, por outro lado, não nos devemos de esquecer que ele já não é rapaz e... bem, a máquina está gasta. Se conseguir passar bem o Verão, não acha que não chegue sem novidade até o Inverno. E se o Inverno não o incomodar de mais, ora... não me parece que lhe possa acontecer coisa alguma.

   Philip voltou para a sala de jantar onde se encontrava o tio.

Com o barrete na cabeça e um xale nos ombros, o vigário tinha

um aspecto grotesco. Os seus olhos estavam fixos na porta e pousaram no rosto de Philip assim que este entrou. Philip compreendeu que o tio esperara ansiosamente a sua volta.

   - Então, que disse ele de mim?

   Philip compreendeu de súbito que o velho temia a morte. Isso deixou-o um pouco envergonhado e desviou o olhar involuntariamente. As fraquezas da natureza humana causavam-lhe sempre embaraço.

   -- Diz que o considera muito melhor - respondeu.

Um brilho de satisfação surgiu nos olhos do tio.

   - Tenho uma constituição maravilhosa - afirmou. E, desconfiado, acrescentou: - _que mais te disse?

   Philip sorriu.

   - Assegura que, se o tio cuidar de si, não vê razão para que não chegue aos cem.

   - Não ouso esperar isso, mas não sei por que não possa atingir os oitenta. Minha mãe viveu até aos oitenta e quatro.

   Havia uma pequena mesa ao lado da cadeira de Mr. Carey, e sobre ela via-se uma Bíblia e o grosso volume do ritual anglicano que havia tantos anos, costumava ler à família. Estendeu a trémula e agarrou a Bíblia.

   - Esses velhos patriarcas atingiam uma bonita idade não era? - disse com um sorriso estranho, em que Philip leu uma  espécie de tímido apelo.

   O velho aferrava-se à vida. No entanto, acreditava implicitamente em tudo o que a sua religião ensinava. Não tinha dúvidas sobre a imortalidade da alma e julgava ter-se portado muito bem, de acordo com a sua capacidade: era muito provável que fosse para o Céu. Na sua longa carreira, a quantos moribundos ministrara o amparo da religião! Talvez estivesse na mesma situação do médico que não pode aproveitar das suas próprias receitas. Philip sentia-se intrigado e chocado ante aquele ansioso apego à Terra. Que horror sem nome moraria no fundo do espírito do velho? Teria gostado de mergulhar naquela alma, a fim de ver na sua nudez o tremendo pavor do desconhecido que suspeitava existir ali.

   A quinzena passou-se rápida e Philip voltou para Londres. Passou um Agosto sufocante, atrás do seu biombo, na secção :, de vestidos, desenhando em mangas de camisa. Os empregados, por turnos, partiam para férias. _à noite, geralmente, Philip ia ao Hyde Park ouvir a banda. Mais acostumado ao trabalho, cansava-se menos, e o espírito, refazendo-se da longa estagnação, procurava nova actividade. Todos os seus desejos se concentravam agora na morte do tio. Continuava a sonhar o mesmo sonho: certa manhã, era-lhe entregue um telegrama que anunciava o súbito falecimento do vigário e, com ele, a sua libertação. Quando acordava, via que tudo aquilo não passara de sonho e deixava-se tomar de um cólera sombria. Agora que o acontecimento parecia capaz de sobrevir a qualquer momento, ocupava-se em tecer complicados planos de futuro. Passava rapidamente sobre o ano de estudo que lhe restava para obter o diploma e demorava-se na viagem a Espanha, na qual punha todo o seu empenho. Lia livros sobre esse país, emprestados pela biblioteca pública, e já conhecia, pelas fotografias, o aspecto preciso de cada cidade. Via-se a espairecer nas ruas de Córdova, na ponte que atravessa o Guadalquivir; vagabundeava pelas tortuosas ruas de Toledo e sentava-se nas igrejas, onde arrebatava a El Greco o segredo que o misterioso pintor guardara para ele. Athelny acompanhava-o nessas fantasias, de sorte que, nas tardes de domingo, traçavam ambos cuidados itinerários, a fim de que Philip nada perdesse que fosse digno de nota. Para enganar a própria impaciência, Philip começou a estudar espanhol e, na sala deserta da casa de Harrington Street, passava uma hora, todas as noites, a fazer exercícios de espanhol e a decifrar, com uma tradução inglesa ao lado, a linguagem magnificente de *_D. Quixote*. Athelny dava-lhe uma lição por semana e Philip aprendia algumas frases que lhe seriam de utilidade na viagem. Mrs. Athelny ria-se deles.

   - Vocês dois e esse espanhol! - exclamava. - Por que não fazem alguma coisa que se aproveite?

   Mas Sally, que crescera e que pelo Natal ia mudar de penteado, ficava às vezes ao pé deles, a escutar com o seu ar grave, enquanto o pai e Philip trocavam observações numa língua que ela não compreendia. A jovem achava Athelny o homem mais admirável que existia e só exprimia a sua opinião sobre Philip através dos elogios do pai.

   - O papá acha que o tio Philip é um tipo extraordinário - observava ela aos irmãos e irmãs.

   Thorpe, o mais velho dos rapazes, tinha já idade suficiente para ser admitido a bordo do *_Arethusa*, e Athelny brindava a família com descrições magníficas do filho, quando voltasse para as férias, envergando o seu uniforme. Logo que Sally fizesse dezassete anos, entraria para uma modista. Athelny, sempre retórico, falava nos pássaros que se cobrem de plumagem, aprendem a voar e abandonam o ninho paterno; e, com lágrimas nos olhos, :, dizia-lhes que o ninho estaria sempre ali, se um dia quisessem regressar. Encontrariam um catre, a mesa posta e o coração de um pai que nunca se fechava à aflição dos filhos

   - Que palavrório é esse, Athelny? - perguntava-lhe a mulher. - Não sei que tormentos poderão sofrer enquanto andarem direito... Contanto que cada um seja honesto e não tenha medo de trabalhar, emprego é coisa que não faltará. Isso é o que eu penso. E o que te digo é que não ficarei triste quando o último dos meus filhos ganhar a vida com o suor do rosto.

   Os muitos partos, os trabalhos árduos e a constante ansiedade começavam a produzir efeito em Mrs. Athelny. _às vezes, à noite, as costas doíam-lhe tanto que tinha de sentar-se para descansar. O seu ideal de felicidade era ter uma rapariga que lhe fizesse os trabalhos mais penosos, para que não precisasse de levantar-se antes das sete da manhã. Athelny agitou a bela mão branca, num gesto ondulante.

   - Ah, minha Betty, tu e eu bem merecemos alguma coisa do Estado. Criámos nove filhos cheios de saúde. Os rapazes servirão o seu rei, as raparigas hão-de cozinhar, costurar e por sua vez darão à pátria filhos saudáveis. - Voltou-se para Sally e, para consolá-lá daqueles contrastes, acrescentou com grandiloquência: -- "_Também servem os que, firmes se limitam a esperar".

   Athelny acrescentara ultimamente o socialismo às outras teorias contraditórias em que acreditava com veemência. Declarou:

   - Num Estado socialista, recebíamos uma bela pensão, tu e eu, Betty.

   - Ora, não venhas com os teus socialistas. Não suporto essa gente - exclamou ela. - Isso só quer dizer que outro bando de preguiçosos inúteis vai encher os bolsos à custa da classe operária. A minha divisa é: "_Deixem-me em paz". Não quero que se metam na minha vida. Quero aproveitar o mais possível o osso duro que me tocou a roer. Quem fica para trás que o leve o diabo.

   - Comparas a vida a um osso duro? - tornou Athelny. - Nunca! Tivemos os nossos altos e baixos, as nossas lutas, e sempre fomos pobres, mas tem valido a pena viver e, sim!, tem valido cem vezes a pena, é o que digo quando olho para os meus filhos.

   - Vai falando, Athelny - retorquiu a mulher, contemplando-o sem cólera mas com serena zombaria. -Quanto aos filhos, ficaste com a parte agradável. Quem os teve foi eu e quem os aguenta também sou eu. Não digo que não goste deles, já que os temos, mas se pudesse voltar atrás, ficava solteira. Ora, se tivesse ficado solteira, podia ter agora a minha lojinha, quatrocentas ou quinhentas libras no Banco e uma rapariga para fazer o trabalho mais pesado. Oh! Por coisa alguma neste mundo queria recomeçar a mesma vida.

   Philip pensava nos incontáveis milhões para quem a vida não passa de um eterno mourejar, sem beleza nem fealdade, mas            que deve ser aceito com a mesma tranquilidade com que aceitamos as mudanças de estação. A fúria tomou-lhe conta do ser, porque tudo aquilo parecia inútil. Não podia reconciliar-se com a crença de que a vida não tinha significado, e, no entanto, tudo quanto via, todos os seus pensamentos aumentavam a sua convicção. Mas, na fúria que o dominava, havia um elemento de alegria. Já que não tinha sentido, a vida não era tão horrível e encarava-a com uma estranha sensação de força.

 

   O Outono passou e veio o Inverno. Philip deixara o seu endereço a Mrs. Foster, a governanta do tio, para que ela pudesse comunicar com ele. Entretanto, ainda ia ao hospital uma vez por semana, na esperança de encontrar cartas. Uma noite, viu o seu nome num sobrescrito, traçado numa caligrafia que esperava nunca mais tornar a ver. Aquilo deu-lhe uma sensação esquisita. Hesitou um instante em abrir a carta. Aquela letra trazia-lhe um punhado de recordações odiosas. Mas, afinal, impacientando-se consigo próprio, rasgou o sobrescrito.

 

     *_William Street, 7

    *_Fitzroy Square

   *_Caro Phil:

   *_Preciso falar consigo uns minutos, o mais breve possível. Estou numa situação horrível e não sei o quc fazer. _não é dinheiro.

   *_Sinceramente sua,

      *_Mildred*

 

   Rasgou a carta em pedacinhos e, ao sair para a rua, espalhou-os na escuridão.

   - Que vá para o diabo - murmurou.

   Uma sensação de repugnância invadiu-o à ideia de tornar a vê-la. Pouco lhe importava que ela estivesse em dificuldades, merecia fosse o que fosse. Pensava em Mildred com raiva e o amor que um dia tivera aumentava agora o sentimento de aversão. A sua lembrança enchia-o de náuseas e, enquanto atravessava o Tamisa, chegou-se ao parapeito da ponte, fugindo instintivamente àqueles pensamentos. Deitou-se, mas não pôde dormir. Imaginava o que poderia ter acontecido a Mildred e não coseguia afastar de si o temor de que estivesse doente e faminta. Não lhe :, teria escrito se não se encontrasse em situação desesperada. Enfurecia-se consigo próprio pela sua fraqueza, mas sabia que não encontraria paz enquanto não a visse. Na manhã seguinte, escreveu um bilhete-postal e pô-lo no correio, quando ia a caminho da loja. Foi tão ríspido quanto possível, dizendo simplesmente lamentar que se encontrasse em dificuldades e que iria ao endereço indicado às sete horas daquela noite.

   Era uma casa suja, numa rua sórdida. E quando, nauseado à ideia de vê-la, perguntou se Mildred estava, assaltou-o a doida esperança de que ela tivesse saído. O ambiente dava a impressão de um desses lugares onde entra e sai gente com frequência. Não lhe ocorrera olhar para o carimbo da carta de Mildred e não sabia há quantos dias estaria na caixa da escola. A mulher que atendeu o toque de campainha não respondeu à sua pergunta, mas precedeu-o silenciosamente pelo corredor e bateu a uma porta das traseiras.

   - Mrs. Miller, está aqui um cavalheiro que deseja vê-la.

   A porta abriu-se de leve e Mildred espreitou para fora, desconfiada.

   - Ah! _é você - disse ela. - Entre.

   Philip entrou e ela fechou a porta. Era um quarto de dormir muito pequeno, desarranjado como todos os lugares em que Mildred morava. Havia um par de sapatos sujos no chão, um afastado do outro. Em cima da cómoda, via-se um chapéu ao lado de tranças postiças. Sobre a mesa, uma blusa. Philip procurou onde colocar o seu chapéu. Os cabides que ficavam atrás da porta estavam cheios de saias e notou que tinham a barra enlameada.

   - Não quer sentar-se? - perguntou ela. Depois soltou uma risada breve e embaraçada. - Deve ter ficado surpreendido ao receber notícias minhas outra vez

   - Estás muitíssimo rouca! - respondeu ele. - Tens alguma coisa na garganta?

   - Sim, há algum tempo que tenho.

   Philip nada disse. Esperava que ela explicasse porque o chamara. O aspecto do quarto dizia-lhe bastante claramente que ela voltara para a vida de onde a arrancara. Que teria acontecido à menina? Havia uma fotografia dela sobre a cornija da chaminé, mas no quarto não se via o menor sinal da presença de uma criança. Mildred segurava o lenço, enrolado como uma bola, e passava-o de uma para a outra mão. Philip  percebeu-lhe o grande nervosismo. Olhava fixamente para o lume e ele podia contemplá-la sem lhe encontrar o olhar. Muito mais magra do que quando o deixara, Mildred tinha a pele amarela e mirrada mais distendida sobre os zigomas. Tingira o cabelo, que estava agora cor de linho: isso mudava-a muito, dando-lhe um aspecto ainda mais vulgar. :,

   - Fiquei aliviada quando recebi a sua carta devo dizer-lhe - disse ela por fim. - Receei que talvez já não estivesse no hospital.

   Philip permaneceu calado.

   - Já deve estar formado, não está?

   - Não.

   - Mas... como?

   - Não estou no hospital. Tive de desistir há dezoito meses.

   - Você não tem persistência. Parece que não aquece lugar.

   Philip ficou mais um instante em silêncio e, quando tornou a falar, foi num tom glacial:

   - Perdi o pouco dinheiro que tinha numa especulação infeliz e não pude continuar os estudos. Fui obrigado a ganhar a vida como melhor podia.

   - Em que trabalha agora?

   - Numa loja.

   - Ah!...

   Ela relanceou-lhe os olhos, mas desviou-os imediatamente. Philip julgou vê-la corar. Mildred enxugava febrilmente a palma das mãos com o lenço.

   - Não deve ter esquecido tudo quanto aprendeu, não é verdade?

   As palavras saíam-lhe em jactos, de um modo estranho.

   - _tudo, não.

   - Foi por isso que lhe pedi que viesse. - Baixou a voz, que se tornou um cochicho rouco. - Não sei o que tenho.

   - Por que não vais a um hospital?

   - Não gosto, nem quero que os estudantes fiquem a examinar-me. Depois, tenho medo que me prendam no hospital.

   - De que te queixas? - perguntou Philip friamente, com a frase estereotipada que se usava no serviço hospitalar.

   - _é que... apareceu-me uma inflamação e até agora não sarou...

   Philip sentiu um aperto de horror no coração. O suar gotejou-lhe na testa.

   - Deixa-me ver a garganta.

   Levou-a até à janela e examinou-a como pôde. De repente, os olhos de ambos encontraram-se. Havia nos dela um medo mortal. Era horrível de ver. Estava apavorada. Desejava que ele a tranquilizasse e olhava-o súplice; não se atrevia a pedir palavras de conforto, mas com todos os nervos tensos esperava recebê-las: ele não as tinha para dizer.

   - Acho que estás muito doente - disse.

   - O que poderá ser?

   Quando lho disse, a rapariga empalideceu mortalmente e os seus lábios ficaram amarelos. Começou a chorar, num abandono, silenciosamente a princípio, e depois em soluços sufocados. :,

   - Sinto muito - disse ele por fim - Mas era preciso dizer...

   - Seria preferível que eu me matasse e acabasse tudo de uma vez.

   Ele não tomou conhecimento da ameaça.

   - Tens dinheiro? - indagou.

   - Seis ou sete libras.

   - Precisas de abandonar esta vida, compreendes? Não achas que podes encontrar algum trabalho? Infelizmente não me é possível ajudar-te muito, ganho só doze xelins por semana.

   - Que posso fazer agora? - exclamou ela, impaciente.

   - Não sei. *_Precisas* de arranjar alguma coisa.

   Falou-lhe em tom grave, expondo-lhe o perigo que corria e o perigo a que expunha os outros. Mildred escutava com expressão sombria. Philip tentou consolá-la. Por fim, conseguiu  levá-la a uma aquiescência rabugenta, com a promessa de fazer tudo quanto ele aconselhasse. Passou-lhe uma receita e disse que ia deixá-la na farmácia mais próxima. Persuadiu-a da necessidade de tomar o remédio com a mais severa regularidade. Por fim, erguendo-se para sair, estendeu a mão.

   - Não desanimes. Em pouco tempo, estarás boa da garganta.

   Mas, quando ele ia para sair, o rosto de Mildred contorceu-se de súbito e ela segurou-o pelo casaco.

   - Oh! Não me deixe - exclamou em voz rouca. - Tenho tanto medo, não me deixe sozinha ainda, Phil, por favor! Não tenho mais ninguém no mundo, é o único amigo que tive.

   Ele sentiu o terror daquela alma, estranhamente parecido com o que vira nos olhos do tio, ante a ameaça da morte. Baixou os olhos. Duas vezes aquela mulher entrara na sua vida para fazê-lo infeliz. Não tinha o menor direito sobre ele, e, no entanto, sem saber porquê, no fundo do seu coração, sentia uma dor estranha. Fora por isso que, depois de receber a carta de Mildred, não encontrara paz enquanto não obedecera à chamada.

   - Acho que nunca me livrarei disto por completo - disse para consigo.

   O que o intrigava era aquela curiosa repugnância física, que lhe tornava incómoda a presença dela.

   -- Que queres que faça? - perguntou.

   - Vamos jantar juntos. Eu pago.

   Ele hesitou. Sentia que Mildred se insinuava novamente na sua vida, quando ele a julgava desaparecida para sempre. Ela contemplava-o com uma ansiedade aflitiva.

   - Sim, sei que me portei muito mal, mas não me deixe sozinha agora. Já teve a sua vingança. Se me abandonar, não sei o que farei.

   - Bem, seja - disse ele - mas vamos a um lugar barato, agora não tenho dinheiro para deitar fora. :,

   Ela sentou-se e calçou os sapatos, depois mudou de saia e pôs um chapéu. Saíram juntos e caminharam até encontrar um restaurante na Tottenham Court Road. Philip desabituara-se de comer àquelas horas e a garganta de Mildred estava em tal estado que não lhe permitia engolir. Comeram um pouco de presunto frio e Philip bebeu um copo de cerveja. Estavam sentados um diante do outro, como outrora. Recordar-se-ia ela? - perguntou Philip a si próprio. Não tinha nada para dizer, e teriam ficado em silêncio se Philip não fizesse um esforço para falar. _à luz

do restaurante, com aqueles vulgares espelhos que reflectiam as coisas em série infinita, ela parecia velha e macilenta. Philip estava ansioso por saber da criança, mas não tinha coragem de perguntar. Por fim ela falou:

   - Sabe? A criança morreu no Verão passado.

   - Ah! - exclamou ele.

   - Podia dizer que sente muito

   - Não sinto -respondeu ele. - Fico muito satisfeito.

   Ela relanceou os olhos para ele, e, compreendendo o que ele queria dizer, desviou-os.

   - Chegou a ter-lhe muita afeição, não é verdade? Sempre achei engraçado que gostasse tanto da filha de outro.

   Depois de comer, passaram pela farmácia para levar o remédio que Philip receitara. E, ao voltarem para o sórdido quartinho, fez-lhe tomar a primeira dose. Depois ficaram sentados, até à hora de Philip voltar para _Harrington Street. Sentia-se tremendamente aborrecido.

   Philip começou a ir vê-la todos os dias. Mildred tomava o remédio que ele receitara e seguia-lhe as instruções. Em breve, os resultados eram tão visíveis que ela passou a ter maior confiança na competência de Philip. _à medida que melhorava, ia recobrando coragem. Falava com mais desenvoltura.

   - Logo que arranjar emprego, tudo correrá bem - dizia. -  Já recebi uma lição e pretendo aproveitar. Chega de pândegas.

   Todas as vezes que a via, Philip perguntava-lhe se já encontrara trabalho. Ela respondia-lhe que não se apoquentasse, pois arranjá-lo-ia quando quisesse. Não se apressava. Seria melhor não fazer nada durante algumas semanas. Ele não pôde opor-se a tal, mas, decorrido esse prazo, tornou-se mais insistente. Mildred riu-se dele, pois estava agora muito mais alegre, e chamou-lhe "apressadinho". Contou-lhe longas histórias de "gerentes" com quem conversara, pois tinha a ideia de trabalhar nalguma casa de pasto; repetia o que dissera e ouvira. Nada ficara assente. Mas Mildred estava certa de conseguir alguma coisa no começo da semana seguinte. Era inútil apressar-se, e seria um grande erro aceitar coisa que não lhe conviesse.

   - _é absurdo falar desse modo - disse ele, impaciente. - Deves :, aceitar qualquer coisa que possas conseguir. Não estou em condições de te auxiliar e o teu dinheiro não durará eternamente.

   - Oh! Está bem, o dinheiro ainda não se acabou e não se fala mais nisso.

   Philip lançou-lhe um olhar penetrante. Tinham passado três semanas desde o dia em que atendera à sua chamada, e ela possuía então menos de sete libras. Começou a desconfiar. Lembrou-se de certas coisas que ela dissera. Juntou umas às outras. Ficou a conjecturar sobre se Mildred teria feito alguma tentativa para encontrar trabalho. Talvez lhe tivesse mentido aquele tempo. Achava muito estranho que o dinheiro durasse tanto.

   - Quanto pagas de aluguer?

   - Ora, a dona da casa é amiga, muito diferente das outras. Está sempre pronta a esperar ate que eu possa pagar.

   Philip calou-se. A sua suspeita era tão horrível que chegava a hesitar. Era inútil perguntar-lhe, pois ela negaria tudo. Se quisesse saber, teria de averiguar por si mesmo. Tinha o hábito de deixá-la todas as noites às oito e, quando o relógio bateu, Philip ergueu-se. Mas, em vez de voltar para Harrington Street, permaneceu na esquina da Fitzroy Square, a fim de ver quem quer que descesse a William Street. A espera afigurou-se-lhe interminável e estava a ponto de retirar-se, pensando que a sua desconfiança não tinha fundamento, quando a porta do n.° 7 se abriu e Mildred saiu. Philip recuou para o escuro e viu-a caminhar na sua direcção. Trazia o chapéu cheio de plumas que lhe vira no quarto e um vestido que notou ser demasiado espalhafatoso para a rua e impróprio para a época do ano. Seguiu-a lentamente, até vê-la entrar em Tottenham Court Road, onde afrouxou o passo. _à esquina de Oxford Street, parou, olhou em redor e atravessou a rua para entrar num teatro de variedades. Philip aproximou-se dela e tocou-lhe no braço. Viu que as suas faces e lábios estavam pintados.

  -Aonde vais, Mildred?

   Ela teve um sobressalto ao som daquela voz e ficou vermelha, como sempre acontecia quando era apanhada numa mentira. Depois, o fulgor da cólera, que ele tão bem conhecia, veio-lhe aos olhos e, instintivamente, procurou defender-se com injúrias. Mas não pronunciou as palavras que lhe estavam na ponta da língua.

   - Ora, ia só ver o espectáculo. Ficar em casa todas as noites sozinha deixa-me nervosa.

   Philip nem sequer fingiu acreditar no que ela dizia.

   - Não deves fazer isso. Santo Deus! Já te disse cinquenta vezes como é perigoso. Tens de parar imediatamente com isso.

   - Oh!... cala a boca - exclamou ela, brutalmente. - Como pensas que posso viver?

   Philip segurou-lhe o braço e, sem pensar no que fazia, tentou afastá-la dali. :,

   - Por amor de Deus, vem. Deixa-me levar-te a casa. Não sabes o que estás a fazer. _é criminoso.

   - Que importa? Eles que se amolem. Os homens não foram tão bons para mim que eu deva preocupar-me por causa deles.

   Empurrou-o e, aproximando-se da bilheteira, depositou o dinheiro. Philip tinha três *pence* no bolso. Não podia segui-la. Deu meia volta e desceu lentamente a Oxford Street.

   - Não posso fazer mais nada - disse, para consigo. Foi o fim.

   Nunca mais a viu.

 

   Como o Natal naquele ano calhava numa quinta-feira, a loja fechava quatro dias. Philip escreveu ao tio, a perguntar-lhe se não via inconveniente em que ele fosse passar as festas no vicariato. Recebeu uma resposta de Mrs. Foster, dizendo que Mr. Carey não estava em condições de escrever pessoalmente mas desejava ver o sobrinho e teria prazer em que ele fosse. Foi receber Philip à porta e, ao apertar-lhe a mão disse:

   - Vai encontrá-lo mudado, desde a última vez que cá esteve mas finja que nada notou. Ele está muito nervoso com o seu estado de saúde.

   Philip assentiu com a cabeça e entrou na sala de jantar.

   - Mr. Philip está aqui, meu senhor.

   O vigário de Blackstable estava moribundo. Quem olhava para aquelas faces cavadas e para aquele corpo mirrado, não podia enganar-se. Estava sumido na sua poltrona, com a cabeça estranhamente atirada para trás e um xale sobre os ombros. Já não podia caminhar sem o auxílio de bengalas e as mãos tremiam-lhe tanto que com dificuldade levava o alimento à boca.

   Não poderá durar muito - pensou Philip ao olhar para ele.

 - Que tal me achas? - perguntou o vigário. - Achas que mudei muito desde a última vez que estiveste aqui?

   - Penso que está com aspecto mais saudável do que no Verão passado.

   - Foi o calor. Abate-me sempre.

   A conversa de Mr. Carey nos últimos meses consistia no número de semanas que passara na cama e no número de semanas que passara na sala de estar. Tinha uma campainha a seu lado e, enquanto falava, tocou-a, para chamar Mrs. Foster, que estava sentada na sala contígua, pronta a atendê-lo. Queria saber em que dia do mês se erguera da cama.

   - No dia 7 de Novembro, senhor vigário.

   Mr. Carey olhou para Philip, para ver como ele recebia a informação. :,

   - Mas ainda como bem, não é, Mrs. Foster?

   - Come, sim, senhor, tem um apetite excelente.

   - Contudo, parece que não engordei.

   Nada o interessava agora senão a sua saúde. Concentrava--se indomavelmente numa coisa: viver, simplesmente viver, não obstante a monotonia da sua vida e as dores permanentes, que só o deixavam dormir quando sob a influência da morfina.

   - _é um horror o dinheiro que tenho de gastar com o médico. - E, tornando a tocar a campainha: - Mrs. Foster, mostre ao sr. Philip a conta da farmácia.

   Com toda a paciência, ela pegou num papel e entregou-o a Philip.

   - _e isso foi só num mês. Eu pensei... Tu, que és médico, não poderás conseguir os remédios mais baratos? Pensei em adquiri-los nos depósitos, mas nesse caso tinha de pagar o porte do correio...

   Embora, pelas aparências, estivesse tão pouco interessado em Philip que nem chegara ainda a perguntar-lhe o que fazia, o vigário parecia satisfeito por ter o sobrinho em casa. Perguntou-lhe quanto tempo podia demorar-se e, quando Philip respondeu que devia voltar para Londres na manhã de terça-feira, exprimiu o desejo de que a visita fosse mais longa. Contou-lhe com minúcia todos os sintomas e repetiu o que o médico dizia do seu caso. Interrompeu-se de súbito para tocar a campainha e, quando Mrs. Foster entrou, disse:

   - Ah!... Era só para saber se estava aí. Não tinha a certeza.

Quando ela se retirou, o vigário explicou a Philip que se sentia mal quando não sabia se Mrs. Foster estava ao alcance de chamada. Ela sabia o que era preciso fazer, no caso de lhe acontecer alguma coisa. Percebendo que a governanta se mostrava cansada e tinha os olhos pesados pela falta de sono, Philip insinuou ao tio que talvez a fizesse trabalhar de mais.

   - _ora, tolices... - respondeu o velho. - Ela é forte como um cavalo. - E, na próxima vez que a mulher lhe veio dar o remédio, disse-lhe

   - O sr. Philip afirma que a senhora trabalha de mais, Mrs. Foster. Gosta de cuidar de mim, não gosta?

   - Oh! Não é nenhum incómodo, meu senhor. Procuro fazer tudo quanto posso.

   Dentro em pouco, o remédio produziu efeito e Mr. Carey adormeceu. Philip entrou na cozinha e perguntou à governanta como podia resistir àquele trabalho. Sabia que durante meses ela descansara muito  pouco.

   - Ora, que hei-de fazer? - respondeu ela. - O pobre senhor vigário depende tanto de mim que, embora seja às vezes um pouco impertinente, não posso deixar de gostar dele. Há tantos anos que estou aqui, já nem sei o que farei quando ele se for. :,

   Philip viu que ela era realmente afeiçoada ao velho. Lavava-o, vestia-o, dava-lhe os alimentos e levantava-se uma dúzia de vezes durante a noite, pois dormia na sala contígua, a fim de que, sempre que ele acordasse e tocasse a pequena campainha, ela pudesse acudir sem demora. O vigário podia morrer a qualquer momento, mas também era possível que vivesse meses. Era admirável que ela cuidasse de um estranho com tão paciente ternura, e era trágico e lamentável o ser ela a única pessoa no mundo que se preocupava com ele.

   Parecia a Philip que a religião pregada pelo tio durante toda a vida tinha agora para ele apenas uma importância formal. Todos os domingos, o coadjutor vinha administrar-lhe a Santa Comunhão e amiúde lia passagens da Bíblia. Era, contudo, evidente que o homem encarava a morte com horror. Acreditava que ela fosse a porta de acesso a uma vida sempiterna, mas não queria entrar nessa vida. Sofrendo dores constantes, acorrentado à sua cadeira e tendo renunciado à esperança de tornar a pôr os pés fora de casa, tal uma criança nas mãos da mulher a quem pagava para cuidá-lo - o vigário apegava-se ao mundo que conhecia.

   Philip tinha na mente uma pergunta que não podia formular porque estava certo de que o tio nunca lhe daria senão uma resposta convencional. Na hora extrema, agora que a máquina se extinguia irremediavelmente, acreditaria ainda o sacerdote na imortalidade? Talvez no fundo da sua alma, proibida de se manifestar em caso de premência, morasse a convicção de que Deus não existia e de que após esta vida vinha o nada.

Na noite seguinte à do Natal, Philip achava-se na sala de jantar, em companhia do tio. Tinha de partir muito cedo, na manhã seguinte, para poder estar na loja às nove horas. Ia, pois, despedir-se do velho. O vigário de Blackstable dormitava e Philip, estendido no sofá próximo da janela, deixara cair sobre os joelhos o livro que estava a ler e corria negligentemente os olhos pela sala. Calculava quanto renderia a venda daquela mobília. Tinha caminhado pela casa, examinando as coisas que conhecia desde a infância: duas ou três peças chinesas havia que podiam conseguir um preço decente e Philip perguntava consigo se valeria ou não a pena levá-las para Londres. A mobília, porém, era de estilo vitoriano, de mogno, sólida e feia; não daria nada num leilão. Havia três ou quatro mil livros, mas quem não sabia que os livros rendem pouco? Não era provável que conseguisse mais de uma centena de libras por eles. Philip não sabia quanto lhe deixaria o tio e, pela centésima vez, computou a quantia mínima necessária para terminar o curso, diplomar-se e viver durante o seu estágio como interno de hospital. Olhou para o velho que dormia um sono inquieto: não havia nada de humano naquela face encarquilhada; :, era o focinho de algum estranho animal. Philip pensou no quão fácil seria acabar com aquela vida inútil. Pensava nisso todos os dias, quando Mrs. Foster preparava o remédio que dava ao doente uma noite tranquila. Havia dois frascos. Um continha a droga que ele tomava regularmente e o outro, um opiato, para o caso em que a dor se tornasse insuportável. Deste último era-lhe preparado um copo, que ficava ao lado da cama. O velho tomava-o geralmente às três ou quatro horas da manhã. Seria uma coisa simples duplicar a dose: morreria durante a noite e ninguém suspeitaria de nada, pois era assim que o dr. Wigram lhe esperava a morte. O fim viria sem dor. Philip cerrava os punhos ao pensar no dinheiro de que tanto precisava. Alguns meses mais daquela vida miserável nada significavam para o velho, mas esses poucos meses representavam tudo para ele. Estava a chegar ao limite a sua capacidade de resistência e, quando pensava em voltar para o trabalho na manhã seguinte, estremecia de horror. O coração batia-lhe descompassado à ideia que o obsidiava e, não obstante fazer esforços para afastá-la do espírito, não conseguia. Seria tão fácil, tão fácil... Não tinha a menor afeição pelo velho, que por sua vez jamais gostara dele; fora egoísta toda a vida, egoísta para com a mulher que o adorava, indiferente para com o menino que lhe haviam confiado. Não era um homem cruel, mas obtuso, duro, carcomido pelos pequenos prazeres materiais. Seria fácil, extremamente fácil. Mas Philip não se atrevia... Temia o remorso. De nada lhe valeria o dinheiro se passasse o resto da vida arrependido do que fizera. Embora muitas vezes tivesse procurado convencer-se da futilidade do remorso, havia certas coisas que lhe voltavam à mente de tempos a tempos, aborrecendo-o. Desejaria não as ter na consciência.

   O tio abriu os olhos. Philip ficou satisfeito com isso, porque o velho parecia agora mais humano. Estava francamente horrorizado com a ideia que lhe viera, pois estivera a premeditar um homicídio e pôs-se a meditar se outras pessoas também tinham pensamentos tais, ou se era depravado e anormal. Achava que não teria coragem para fazer aquilo, quando chegasse a hora, mas a ideia lá estava a persegui-lo sem cessar. Só o medo é que lhe detinha o braço. O tio falou:

   - Não estás à espera da minha morte, Philip?

   O coração de Philip pôs-se a bater desordenadamente.

 - Santo Deus, não!

   - Fazes muito bem, meu rapaz. Não gostaria disso. Ficarás com algum dinheirinho quando eu me for, mas não deves desejar a morte do teu tio. Não aproveitarias o dinheiro, se assim fizesses.

   Falava numa voz baixa, com um tom de curiosa ansiedade. Philip sentia-se angustiado. Que singular intuição levara o velho a desconfiar dos estranhos desejos que se agitavam no seu cérebro? :,

   - Espero que viva ainda vinte anos - respondeu.

   - Bem... Não posso esperar tal coisa, mas, se tomar cuidado, não vejo por que não durar mais uns três ou quatro.

   O vigário ficou silencioso por um instante e Philip não achava que dizer. Depois, como se tivesse estado a reflectir sobre o assunto, o velho tornou a falar.

   - Toda a gente tem o direito de viver o mais possível.

Philip queria distraí-lo.

   - A propósito, nunca mais teve notícias de Miss Wilkinson?

   - Tive, sim. Recebi uma carta dela este ano. Casou, sabes?

   - Casou?!

   - Pois. Casou com um viúvo. Creio que vivem muito bem.

 

   No dia seguinte, Philip recomeçou o trabalho, mas o fim que ele esperava dentro de pouco tempo não veio. Passaram-se semanas e meses. _o Inverno foi-se e nos parques as árvores rebentaram em botões e folhas. Uma terrível lassidão assenhoreou-se de Philip. _o tempo escoava-se, embora avançasse a passos lentos. Tinha a impressão de que a sua juventude também lhe fugia e em breve a perderia sem nada ter realizado. _o seu trabalho parecia-lhe mais fútil, agora que estava certo de que ia deixá-lo. Adquirira habilidade em desenhar vestidos e, apesar de não ser dotado de faculdade inventiva, adaptava facilmente as modas francesas ao mercado britânico. _às vezes não achava maus os seus próprios desenhos, mas a casa estragava-os sempre na execução. Divertia-se ao observar a viva irritação que experimentava quando as suas ideias não eram executadas com propriedade. Tinha, porém, de proceder com cautela. Sempre que sugeria alguma coisa original, Mr. Sampson reprovava: os seus fregueses não desejavam nada *outré*, aquilo era um negócio muito respeitável e, quando se tinha semelhante clientela não valia a pena tomar liberdades. Uma ou duas vezes, falou asperamente a Philip. Pelo simples facto de não se harmonizarem as ideias de ambos, julgava que o rapaz se excedia.

   - Tome cuidadinho, meu bom rapaz, senão qualquer dia ver-se-á no olho da rua.

   Philip tinha desejos de dar-lhe um soco no nariz, mas continha-se. No fim de contas, aquilo não poderia durar muito tempo e então ficaria livre daquela gente para sempre. Em certas ocasiões, num desespero cómico, exclamava que o tio devia ser de ferro. Que constituição! As doenças de que sofria teriam matado qualquer pessoa decente doze meses antes. Quando, por fim, recebeu a notícia de que o vigário estava à morte, Philip, que andara a :, pensar erra outras coisas, foi tomado de surpresa. Estava-se em Julho e dentro de mais uns quinze dias entraria de férias. Recebeu uma carta de Mrs. Foster, a dizer-lhe que o doutor não dava muitos dias de vida ao Rev. Carey e, se Philip desejasse ainda vê-lo deveria ir imediatamente. Philip foi ao chefe da secção e disse que precisava de deixar a casa. Mr. Sampson era um sujeito decente e, quando teve conhecimento das circunstâncias, não opôs dificuldades. Philip despediu-se dos colegas. A razão da sua saída espalhara-se de forma exagerada e o pessoal julgava que o rapaz ia entrar na posse de uma fortuna. _mrs. Hodges tinha lágrimas nos olhos quando lhe apertou a mão.

   - Tão cedo não te vemos aqui - disse ela.

   - Estou satisfeito por deixar a firma - respondeu ele.

   Era estranho, mas tinha verdadeiro pesar em separar-se daquela gente que julgava ter abominado e, quando se retirou da casa de _Harrington Street, foi sem contentamento. Tinha antecipado tanto as comoções que experimentaria nessa ocasião, que nada sentia agora. Estava indiferente, como se apenas partisse para uns dias de férias.

   - Sou de uma natureza muito ruim - disse para consigo. - Espero as coisas com enorme ansiedade e, quando elas se apresentam, fico sempre desapontado.

   Chegou a Blackstable às primeiras horas da tarde. Mrs. Foster recebeu-o à porta e a fisionomia dela mostrou-lhe que o vigário ainda não morrera.

   - Está um pouco melhor hoje - disse. - Tem uma constituição maravilhosa.

   Fê-lo entrar no quarto, onde o Rev. Carey jazia de costas. Dirigiu a Philip um leve sorriso, no qual havia um laivo de astúcia satisfeita por ter mais uma vez enganado o inimigo

   - Pensei que tudo se acabava ontem - disse numa voz exausta. - Todos achavam que eu me ia, não foi, Mrs. Foster?

   - O senhor tem uma constituição maravilhosa, não se pode negar.

   - Ainda há vida nesta velha carcaça.

   Mrs. Foster disse que o vigário não devia falar, pois isso o cansaria. Tratava-o como a uma criança, com bondoso despotismo. E havia algo de infantil na satisfação do velho em ter enganado a expectativa dos outros. Ocorreu-lhe em seguida que Philip fora chamado e divertia-se com o logro em que ele caíra. Se conseguisse evitar outro ataque cardíaco, ficaria bastante bem dentro de duas semanas. Tivera vários ataques desses. Davam-lhe a impressão de que ia morrer, mas escapava sempre. Todos falavam da sua constituição, mas ninguém sabia quanto ela era forte.

   - Vais ficar um ou dois dias? - perguntou o velho a Philip, fingindo crer que o sobrinho viera de férias.

   - Já pensara nisso - respondeu Philip,

   Dali a pouco, chegou o dr. Wigram, que, depois de ver o vigário, se dirigiu a Philip. O médico adoptou um tom apropriado.

   - Receio que desta vez seja o fim, Philip - disse ele. -Será uma grande perda para todos nós. Conheci-o durante trinta e cinco anos.

   - Mas parece bastante bem, agora - respondeu Philip, jovialmente.

   - Estou a mantê-lo vivo à força de drogas, mas isto não pode durar. Estes dois últimos dias foram terríveis. Meia dúzia de vezes pensei que estava morto.

   O doutor calou-se por instantes, mas, ao portão, disse subitamente a Philip:

   - Mrs. Foster não lhe disse nada?

   - Não compreendo...

   - Esta gente é muito supersticiosa. Meteu-se-lhe na cabeça que há no espírito do vigário algo que ele não tem coragem de confessar, e que não pode morrer antes de se livrar disso.

   Philip não respondeu e o médico continuou:

   - Claro que é um disparate. Levou uma vida exemplar, cumpriu o seu dever, foi bom sacerdote e estou certo de que vamos sentir grande falta dele; nada pode ter feito que a sua consciência lhe reprove. Duvido que o próximo vigário seja tão bom como este.

   Durante dias, Mr. Carey continuou sem alteração. O apetite, que antes era excelente, abandonou-o e pouco podia comer. O dr. Wigram não hesitava agora em ministrar-lhe o opiato para acalmar a dor da nevrite que o atormentava. E isso, mais o constante tremor dos membros paralíticos, estava a exauri-lo gradualmente. O cérebro permanecia lúcido. Philip e Mrs. Foster assistiam-no, revezando-se. Ela estava tão cansada, em virtude dos muitos meses durante os quais atendera às necessidades do doente, que Philip insistiu em ficar com o tio uma noite, a fim de que ela pudesse dormir. Passou as longas horas numa poltrona, para não adormecer, e leu, à luz de uma lâmpada velada, As *_Mil e Uma Noites*. Não tornara a lê-las desde os tempos de criança, e o livro lembrava-lhe de novo a infância. _às vezes, abandonando a leitura, ficava a ouvir o silêncio da noite. Quando os efeitos do opiato se dissipavam, Mr. Carey tornava-se inquieto e desatava a pedir coisas constantemente.

   Afinal, de manhã cedo, quando os pássaros chilreavam bulhentamente nas árvores, Philip ouviu que o chamavam pelo nome. Foi até à cama.

   Mr. Carey estava deitado de costas, com os olhos fixos no tecto. Não os voltou para Philip. Este viu que o suor inundava a fronte do tio e, pegando numa toalha, enxugou-lha.

   - És tu, Philip? - perguntou o velho.

   Philip teve um sobressalto ao notar-lhe a súbita alteração da voz. Era baixa e rouca. Só um homem transido de medo falaria daquela maneira.

  - Sou. Quer alguma coisa?

  Houve uma pausa e os olhos vazios continuavam fitos no tecto. Depois uma crispação lhe passou pela face.

  - Acho que vou morrer -  disse o velho.

  - Oh! Que tolice! - exclamou Philip. - Ainda viverá muitos anos.

   Duas lágrimas brotaram dos olhos do velho. Philip, ao vê-las, ficou terrivelmente comovido. O tio nunca traíra nenhuma comoção particular nos assuntos da vida, e era penoso ver-lha agora, pois significava um terror indizível.

   - Manda chamar Mr. Simmonds - disse ele. - Quero tomar a comunhão.

   Mr. Simmonds era o coadjutor.

   - Agora? - perguntou Philip.

   - Depressa, senão será tarde.

   Philip foi acordar Mrs. Foster, mas era mais tarde do que pensava e ela já estava a pé. Disse-lhe que mandasse o jardineiro com um recado e voltou para o quarto do tio.

   - Mandaste chamar Mr. Simmonds?

   - Mandei.

   Houve um silêncio. Philip sentou-se na beira da cama e de vez em quando enxugava-lhe o suor da fronte.

   - Deixa-me segurar a tua mão, Philip - disse o velho por fim.

   Philip deu-lhe a mão e o moribundo agarrou-a como se se aferrasse à vida, procurando nela conforto na sua hora extrema. Talvez nunca tivesse amado pessoa alguma, mas agora voltava-se instintivamente para um ser humano. Tinha a mão húmida e fria. Segurava a de Philip com uma débil e desesperada energia. O velho lutava com o medo da morte. E Philip reflectiu que todos deviam passar por aquilo. Oh! Como era monstruoso! Podiam acreditar num Deus que permitia que as suas criaturas sofressem tão cruel tortura! Jamais se interessara sentimentalmente pelo tio e durante dois anos, todos os dias lhe desejara a morte. Agora, porém, não podia dominar a compaixão que lhe enchia o peito. Que preço se pagava para se ser diferente dos animais!

   Permaneceram num silêncio somente quebrado pela pergunta rouca do moribundo:

   - Ainda não veio?

   Afinal, a governanta entrou suavemente para dizer que Mr. Simmonds chegara. Trazia uma maleta onde estava a sua sobrepeliz. Mrs. Foster trouxe a bandeja da comunhão. O coadjutor apertou silenciosamente a mão de Philip e, com uma gravidade profissional, aproximou-se do enfermo. Philip e a governanta saíram do quarto.

   Philip caminhou pelo jardim gotejante do orvalho matinal. Os pássaros cantavam alegremente. O céu estava azul, mas o ar salino era suave e fresco. As rosas estavam em plena floração. O verde das árvores, o verde da relva, era vivo e brilhante. Philip caminhava, e pensava no mistério que se processava naquele quarto. Isso lhe provocava uma comoção especial. Pouco depois, Mrs. Foster veio dizer-lhe que o tio desejava vê-lo. O coadjutor estava a guardar as suas coisas na malinha preta. O doente voltou um pouco a cabeça e recebeu o rapaz com um sorriso. Philip ficou atónito, pois havia naquela face uma alteração, uma extraordinária mudança. Os olhos já não se mostravam apavorados e a crispação das feições desaparecera. Parecia tranquilo e feliz.

   - Estou bem preparado agora - disse. E a sua voz tinha uma tonalidade diferente. - Quando o Senhor houver por bem chamar-me, estarei pronto para lhe entregar a alma nas mãos.

   Philip não falou. Bem via que o tio era sincero. Era quase um milagre. Recebera o corpo e o sangue do Salvador e eles haviam-lhe dado força para enfrentar o inevitável mergulho na noite eterna. Sabia que estava para morrer: resignava-se. Disse apenas uma coisa mais:

   - Vou juntar-me à minha querida mulher.

   Philip surpreendeu-se. Lembrou-se do egoísmo empedernido com que o tio tratara a mulher e quão obtuso se mostrara diante do seu amor humilde e devotado. O coadjutor, profundamente comovido, retirou-se e Mrs. Foster, a chorar, acompanhou-o até a porta. O vigário, exausto pelo esforço, caiu em leve modorra, e Philip sentou-se ao pé da cama e esperou o fim. A manhã avançava e a respiração do velho ia ficando estertorosa. Veio o doutor e disse que o vigário estava a agonizar. Estava inconsciente e arranhava fracamente os lençóis com os dedos. Estava desassossegado e soltou um grito. O dr. Wigram deu-lhe uma injecção hipodérmica.

   - Já não serve de nada, pode morrer de um momento para o outro.

_o médico olhou para o relógio e depois para o moribundo. Philip viu que era uma hora. O dr. Wigram pensava no seu almoço.

   - Não vale a pena o senhor esperar - disse Philip.

- Nada mais posso fazer - respondeu o médico.

   Quando saiu, Mrs. Foster pediu a Philip que fosse ao carpinteiro, que também se encarregava dos funerais, e lhe dissesse para mandar uma mulher lavar o corpo.

   - O senhor precisa de um pouco de ar fresco - disse ela. - Vai fazer-lhe bem.

  O homem morava a meia milha de distância. Quando Philip lhe deu o recado, perguntou:

   - Quando faleceu o pobre senhor?

   Philip hesitou. Ocorreu-lhe que podia parecer brutal ir buscar uma mulher para lavar o cadáver, enquanto o tio ainda vivia. Ficou a imaginar por que teria Mrs. Foster pedido aquilo. Haviam de pensar que estava aflito por matar o velho. Pareceu-lhe que o outro o contemplava de um modo esquisito. O homem repetiu a pergunta. Isso irritou Philip. Não era da sua conta.

   - Quando se finou o senhor vigário?

   O primeiro impulso de Philip foi dizer que o tio morrera justamente naquele momento, mas isso parecia inexplicável se o moribundo se arrastasse por mais algumas horas. Corou e respondeu embaraçado:

   - Oh!... Ainda não está bem morto.

   O armador lançou-lhe um olhar perplexo e o rapaz apressou-se a explicar.

   - Mrs. Foster está sozinha e quer uma mulher lá com ela. O senhor compreende, não é? Ele pode já estar morto.

   O carpinteiro sacudiu a cabeça, aquiescendo.

   - Ah, sim. Vou mandar alguém imediatamente.

   De volta ao vicariato, Philip subiu ao quarto do moribundo. Mrs. Foster ergueu-se da cadeira em que estava sentada, ao lado da cama.

   - Está tal qual como quando o deixou - disse ela.

   Desceu para comer alguma coisa e Philip ficou a observar com curiosidade o processo da morte. Nada havia agora de humano naquele ser inconsciente que continuava a lutar debilmente. Por vezes, um som murmurado escapava-se-lhe da boca frouxa. O sol, brilhando num céu sem nuvens, fustigava a terra, mas as árvores do jardim estavam frescas e agradáveis. Estava um dia lindo. Uma varejeira zumbiu, batendo na vidraça. De súbito, ouviu-se um ronco forte. Philip estremeceu, apavorado. Um movimento percorreu os membros do velho. Estava morto. A máquina desmantelara-se por fim. A mosca zumbia, zumbia ruidosamente contra a vidraça.

 

   Josiah Graves, com os seus modos autoritários, fez todos os preparativos, decentes mas económicos, para o funeral. Quando viu tudo terminado, voltou ao vicariato com Philip. O testamento fora-lhe confiado, e, com o devido senso das conveniências, leu-o a Philip depois do chá matinal. O documento estava escrito em meia lauda de papel: o Rev. Carey deixava tudo quanto tinha ao sobrinho. Havia a mobília, cerca de oitenta libras no Banco, vinte acções da companhia A. B. C., algumas da cervejaria Allsop, outras de um teatro de variedades de Oxford e ainda outras de certo restaurante de Londres. Tinham sido compradas a conselho de Mr. Graves e foi com satisfação que este explicou a Philip:

   - O senhor compreende, o povo precisa de comer, gosta de beber e quer divertimentos. Há uma garantia capital nessas coisas que o público acha necessárias.

   Essas palavras revelavam um admirável discernimento entre a grosseria do vulgo, que deplorava mas aceitava, e o gosto mais refinado dos eleitos. A soma total de dinheiro empregado subia a cerca de quinhentas libras; a isso devia acrescentar o saldo da conta do Banco e mais o produto da venda da mobília. Para Philip, era a riqueza. Não se sentia feliz, mas infinitamente aliviado.

   Mr. Graves deixou-o, depois de discutirem o leilão, que devia ser realizado o mais cedo possível, e Philip sentou-se para examinar os papéis do falecido. O Rev. William Carey orgulhava-se de nunca destruir coisa alguma: havia pilhas de correspondência que datava de cinquenta anos antes e montes de contas cuidadosamente classificadas. O vigário conservava não somente cartas a ele dirigidas como também cópias das que escrevera. Havia um maço amarelento de cartas que escrevera ao pai em meados do século, quando, estudante de Oxford, fora passar as férias na Alemanha. Philip leu-as displicentemente. Era um William Carey que ele não conhecera, e no entanto havia no rapaz traços que, para um observador agudo, teriam sugerido o homem que ele seria mais tarde. Eram cartas formais e um pouco bombásticas. O estudante mostrava-se empenhado em ver tudo quanto era digno de nota e descrevia com belo entusiasmo os castelos do Reno. As quedas de água de Schaffhausen fizeram-no "render graças reverentes ao Todo-_Poderoso Criador do Universo, cujas obras são portentosas e belas", e não podia deixar de pensar que aqueles que viviam diante "desse lavor do abençoado Mestre deviam ser levados por tal contemplação a existências paras e santas". No meio das contas, Philip encontrou uma miniatura de William Carey, pintada logo após a sua ordenação. Mostrava um jovem coadjutor magro, com longos cabelos que lhe caíam em anéis naturais, olhos escuros e uma face de asceta, pálida, ampla e sonhadora. Philip lembrou-se da risadinha com que o tio costumava falar das dúzias de chinelas que as suas admiradoras lhe confeccionavam.

   Durante o resto da tarde e todo o serão, Philip devassou a numerosa correspondência. Olhava rápido para o endereço e para a assinatura, depois rasgava a carta em duas partes e atirava-a ao cesto de papéis que tinha ao lado. De súbito deparou-se-lhe uma que trazia a assinatura "_Helen". Não conhecia a letra. Era fina, angulosa e antiquada. Começava por "meu caro William" e terminava com "tua irmã afeiçoada". Compreendeu, então, que era de sua mãe. Nunca vira nada escrito por ela e a caligrafia era-lhe estranha. A carta dizia-lhe respeito.

 

   *_Meu caro William:

   *_Stephen escreveu-te a agradecer as tuas felicitações pelo nascimento do nosso filho e pelos bondosos votos que fizeste a meu respeito. Graças a Deus, estamos ambos de Doa saúde e sinto-me profundamente agradecida por essa mercê. Agora que posso segurar a pena, quero dizer-te, e à querida Louise, quanto estou sinceramente grata a ambos por todas as bondades que tiveram para comigo, desde o meu casamento. Vou pedir-te um grande favor. Stephen e eu queremos que sejas o padrinho do menino, e esperamos que aceites. Sei que não peço pouca coisa, porque tenho a certeza de que levarás muito a sério as responsabilidades do encargo, mas espero ansiosamente que o aceites, porque és um representante da Igreja, além de tio do pequeno. Muito me preocupo com o bem-estar dele e rogo a Deus dia e noite para que venha a ser um cristão bom e honesto. Com o teu conselho para o guiar, espero que se torne um soldado da Fé em Cristo e seja todos os dias da sua vida temente a Deus, humilde e piedoso.

   *_Tua irmã afeiçoada,

      *_Helen*

 

Philip pôs a carta de lado e, curvando-se sobre a mesa, descansou o rosto nas mãos. Aquilo comovia-o profundamente e ao mesmo tempo causava-lhe surpresa. Admirava-se daquele tom religioso, que não lhe parecia sensaborão nem sentimental. Nada sabia de sua mãe, que morrera havia quase vinte anos, senão que fora bela e era estranho descobrir que fora simples e piedosa. Nunca pensara nesse lado da sua natureza. Tornou a ler o que ela escrevera a seu respeito, o que ela esperava e pensava dele. Quão diferente saíra! Fez um rápido exame de consciência. Talvez fosse melhor ela ter morrido. Depois, um súbito impulso levou-o a rasgar a carta. Aquele tom de ternura e simplicidade faziam-na particularmente íntima. Tinha a estranha sensação de que havia algo de indecoroso em ler uma carta que expunha a alma delicada de sua mãe. Continuou a passar em revista a enfadonha correspondência do vigário.

   Poucos dias depois, voltou para Londres e, pela primeira vez em dois anos, entrou de dia no átrio do Hospital S. Lucas Foi falar com o secretário da Escola de Medicina, que ficou surpreendido ao vê-lo, perguntando-lhe com curiosidade o que estivera a fazer. As aventuras de Philip tinham-lhe dado confiança em si próprio e olhava muitas coisas sob um ângulo diferente. Outrora, a pergunta ter-lhe-ia causado atrapalhação. Respondeu com calma e num tom estudadamente vago, que impedia uma segunda pergunta: assuntos particulares haviam-no obrigado a interromper o curso e estava ansioso por diplomar-se o mais :, depressa possível. O primeiro exame que lhe era dado fazer seria o de ginecologia e obstetrícia. Inscreveu-se, candidatando-se a um lugar na enfermaria de mulheres. Uma vez que se estava em férias, não houve dificuldade em conseguir um posto como auxiliar de obstetrícia. Ficou combinado que desempenharia essas funções durante a última semana de Agosto e as duas primeiras de Setembro. Depois de conversar com o secretário, Philip percorreu a faculdade, mais ou menos deserta, pois os exames e o semestre de Verão haviam terminado. Vagueou pelo terraço que dava para o rio. Tinha o coração transbordante. Achava que podia agora começar uma vida nova e deixar para trás os erros, loucuras e misérias do passado. O rio a correr sugeria que tudo passava, estava sempre a passar e nada tinha importância. O futuro estendia-se diante dele, rico de possibilidades.

   Voltou a Blackstable e ocupou-se da liquidação dos bens do tio. Marcou-se o leilão para meados de Agosto, quando a presença dos veraneantes tornaria possível a obtenção de preços melhores. Foram organizados catálogos e remetidos aos vários negociantes de livros em segunda mão de Tercanbury, Maidstone e Ashford.

   Uma tarde Philip teve a ideia de ir a Tercanbury, visitar a sua antiga escola. Não a via desde o dia em que, de coração aliviado, a deixara com a sensação de que dali para diante era senhor de si mesmo. Achou estranho vaguear pelas ruas estreitas de Tercanbury, que tão bem conhecera durante anos. Olhou as velhas lojas, sempre no mesmo lugar, a vender sempre as mesmas coisas; os livreiros com obras didácticas, livros religiosos e as últimas novelas numa das vitrinas e com fotografias da catedral e da cidade na noutra. As casas de desporto, com os seus tacos de *cricket*, apetrechos de pesca, raquetes de ténis e bolas de futebol; o alfaiate onde mandara fazer os fatos durante toda a meninice; o peixeiro onde o tio comprava peixe sempre que vinha a Tercanbury. Vagueou pela sórdida rua onde, por trás do alto muro, ficava a casa de tijolo vermelho onde funcionava a escola preparatória. Mais adiante, via-se o portão que levava à *_King.s School*. Philip entrou no pátio quadrangular, em redor do qual ficavam as várias dependências. Eram exactamente quatro horas e os rapazes saíam apressados da escola. Philip viu os professores nas suas becas e borlas: eram-lhe desconhecidos. Havia mais de dez anos que deixara aquela escola e muitas mudanças se tinham ali operado. Viu o director, que caminhava devagar, descendo da escola para a sua casa particular. Falava com um rapaz crescido, que devia estar no sexto ano. Estava um pouco mudado; alto, cadavérico, romântico, tal como outrora, sempre com os mesmos olhos selvagens. A barba negra, porém, estava agora estriada de fios grisalhos e a face morena e lívida parecia mais fundamente :, marcada. Philip teve vontade de se lhe dirigir, mas temia que ele o tivesse esquecido e detestava explicar quem era.

   Aqui e ali, rapazes conversavam uns com os outros e, em dado momento, alguns dos que tinham ido mudar de roupa à pressa voltaram para jogar a bola; outros vagueavam em grupos de dois e três e saíam pelo portão. Philip sabia que iam para o campo de *cricket*. Outros, enfim, dirigiam-se para o recinto de ténis. Philip encontrava-se no meio deles como um estranho. Dois ou três rapazes lançaram-lhe olhares indiferentes. Os visitantes, atraídos pela escadaria em estilo normando, não eram raros ali e despertavam pouca atenção. Philip olhava-os com curiosidade. Pensou com melancolia na distância que o separava deles e reflectiu amargamente em quanto desejara fazer e no pouco que fizera. Parecia-lhe agora que todos aqueles anos, idos e esquecidos, tinham sido completamente desperdiçados. Os rapazes, joviais e buliçosos, faziam as mesmas coisas que ele fizera: era como se nem um dia tivesse decorrido desde que deixara a escola. Contudo, naquele lugar, onde, pelo menos de nome, conhecera todos, eram-lhe agora desconhecidos. Dentro de poucos anos, também outros substituiriam aqueles, que iriam sentir-se depois tão estranhos como ele. Esta reflexão, porém, não lhe trouxe alívio algum; apenas lhe fazia ver, nítida, a futilidade da vida humana. Cada geração repetia um ciclo trivial. Que fim teriam levado os seus companheiros? Deviam andar perto dos trinta anos. Alguns estariam mortos; outros, casados e com filhos. Seriam soldados e sacerdotes, advogados e médicos. Eram homens graves que começavam a deixar a mocidade para trás. Teriam alguns deles malbaratado a vida como ele? Pensou no rapaz a quem fora tão devotado. Era engraçado, não conseguia lembrar-se do nome. Recordava-se exactamente do seu aspecto, pois fora o seu maior amigo; mas o nome é que não lhe vinha de forma alguma à lembrança. Pensou no passado, sorrindo, divertido, das ciumeiras que sofrera por causa dele. Era irritante não lhe ocorrer aquele nome. Desejou ser outra vez rapaz, como os que via a vaguear pelo pátio, a fim de que, evitando os seus erros, pudesse começar de novo e tirar mais proveito da vida. Sentiu uma solidão intolerável. Quase lamentou ter saído da penúria que sofrera nos últimos dois anos, pois a luta desesperada pela subsistência amortecera-lhe a dor de viver. *_Com o suor do teu rosto ganharás o pão de cada dia*: não era um anátema lançado sobre a Humanidade, mas o bálsamo que a reconciliava com a existência.

   Estava, porém, impaciente consigo mesmo. Relembrou a sua ideia acerca da tessitura da vida: os sofrimentos por que passara não eram mais do que uma parte da decoração caprichosa e bela. Repetiu para si próprio, veementemente, que devia aceitar com alegria todas as coisas - o tédio e a exaltação, o prazer e a dor - :, porque isso contribuía para a riqueza do desenho. Procurara o belo conscientemente e lembrava-se de ter, ainda criança, olhado com prazer para a catedral gótica que se avistava da escola. Foi até lá e contemplou o vulto maciço, cinzento sob o céu nublado, com a torre central a erguer-se como os louvores dos homens ao seu Deus. Mas o rapazes jogavam ténis e eram ágeis, fortes e activos. Philip não podia deixar de ouvir-lhes as exclamações e as risadas. O clamor da mocidade continuava insistente e era apenas com os olhos que ele via o belo espectáculo que tinha diante de si.

 

   No princípio da última semana de Agosto, Philip começou a exercer as suas funções no "distrito". O trabalho era árduo, pois tinha de atender a uma média de três partos por dia. A paciente obtinha com antecedência no hospital um "cartão" que, quando a sua hora chegava, era levado por um mensageiro, geralmente uma rapariguita, ao porteiro, que ia à casa onde Philip estava alojado, no outro lado da rua. _à noite, o porteiro, que tinha uma chave do trinco, vinha em pessoa acordar Philip. Havia um certo mistério em levantar-se na escuridão e caminhar pelas ruas desertas de South Side. _àquelas horas da noite, era geralmente o marido quem trazia o "cartão". Se já tinha muitos filhos, apresentava-se com uma indiferença mal-humorada, mas se casara havia pouco, mostrava-se nervoso e às vezes embebedava-se, procurando atenuar a ansiedade. Frequentemente, era preciso caminhar um quilómetro ou mais, durante os quais, Philip e o mensageiro discutiam as condições de trabalho e o custo da vida. Philip aprendia coisas sobre os vários ofícios que eram exercidos naquela margem do rio. Inspirava confiança às pessoas em cujo meio fora lançado. E, durante as longas horas de vigília num quarto abafado, a parturiente estendida numa cama larga que ocupava mais de metade do compartimento, a mãe da paciente e a parteira conversavam com Philip com tanta naturalidade como se palestrassem entre si. As circunstâncias em que vivera nos últimos dois anos haviam-lhe ensinado várias coisas sobre a vida dos pobres e estes divertiam-se ao ver que o doutor as conhecia e respeitavam-no porque se não deixava enganar com os seus pequenos subterfúgios. Philip era bondoso, tinha mãos delicadas e jamais perdia a paciência. Os doentes ficavam satisfeitos porque o "doutor" não se negava a beber com eles uma chávena de chá, e, quando a madrugada vinha encontrá-los ainda de vigília, ofereciam-lhe uma fatia de pão embebida em molho de carne assada. Philip não era enfastiado e comia agora quase de tudo com bom apetite. Algumas das casas a que ia, em imundos becos que partiam de ruas escusas amontoadas :, umas em cima das outras, sem luz nem ar, eram simplesmente esquálidas; mas outras, embora em mau estado, os soalhos roídos pelo caruncho e telhados desfeitos, tinham um inesperado ar de imponência. Encontravam-se nelas balaustradas de carvalho delicadamente trabalhado e as paredes conservavam ainda as almofadas de maneira. Eram habitadas por grande número de pessoas. Em cada quarto vivia uma família e durante o dia ouvia-se a algazarra incessante das crianças que brincavam no pátio. As paredes velhas eram o nascedouro de toda a espécie de insectos. O ar estava tão viciado que às vezes, sentindo-se agoniado, Philip tinha de acender o cachimbo. As pessoas que ali moravam viviam ao deus dará. As crianças não eram bem acolhidas. O pai recebia-as com uma raiva ostensiva e a mãe com desespero; era mais uma boca para alimentar, e havia pouco para sustentar as que já cá estavam. Philip percebia frequentemente o desejo de que a criança nascesse morta ou morresse em seguida. Assistiu ao parto de uma mulher que teve gémeos (fonte de comicidade para bem-humorados) e quando ela o soube, rompeu num choro agudo e longo de miséria. A mãe dela disse francamente:

   - Não sei como vão sustentá-los.

   - Talvez Nosso Senhor queira levar os anjinhos - disse a parteira.

   Philip vislumbrou o rosto do marido, quando este olhou para o minúsculo par de crianças deitadas lado a lado: estava contraído numa carranca feroz que o sobressaltou. Sentiu na família ali reunida um horrível ressentimento contra aqueles pobres átomos que tinham vindo ao mundo sem que ninguém os desejasse. Suspeitava de que, se não falasse com firmeza, aconteceria um "acidente". Tais ocorrências eram frequentes; as mães "abafavam" os filhos, e talvez os erros de dieta nem sempre resultassem de descuido.

   - Virei todos os dias - disse Philip. - Aviso-os de que, se lhes acontecer alguma coisa, haverá um inquérito.

   O pai não respondeu, mas encarou o estudante de cenho franzido. Tinha o crime no pensamento.

   - Benza-os Deus! - disse a avó. - Que pode acontecer-lhes?

   A grande dificuldade era manter as mães na cama durante dez dias, o tempo mínimo exigido pela assistência à maternidade. Era difícil atender a família, pois ninguém cuidaria gratuitamente das crianças e o marido resmungava porque o chá não estava pronto quando voltava do trabalho, cansado e com fome. Philip ouvira dizer que os pobres se ajudavam uns aos outros. Mas todas as mulheres se lhe queixavam de não poderem conseguir, sem remuneração, alguém para arranjar a casa e servir o almoço às crianças - e elas não podiam pagar. Escutando o que essas criaturas diziam e tirando deduções de frases que ouvia ocasionalmente, Philip veio :, a compreender quão pouco havia de comum entre os pobres e as classes que lhes estão acima. Não invejavam os seus superiores porque a vida destes era demasiado diferente e tinham um ideal de bem-estar que fazia a existência das classes abastadas parecer rígida e formal. Além disso, tinham certo desprezo pelos seus representantes, porque eram efeminados e porque não trabalhavam com as próprias mãos. Os orgulhosos queriam simplesmente que os deixassem em paz, mas a maioria olhava para o rico como gente que devia ser explorada. Sabiam como conseguir certas vantagens que os caridosos lhes punham ao alcance e aceitavam esses benefícios como um direito que lhes advinha da loucura dos seus superiores e da sua própria astúcia. Suportavam o pastor com desdenhosa indiferença, mas a visitadora sanitária despertava neles um ódio acerbo. Entrava e abria as janelas sem pedir licença e sem perguntar se gostavam ou não ("e eu com a minha bronquite, isso até pode matar-me de frio"), metia o nariz pelos cantos e, mesmo que não dissessem que a casa estava suja, via-se muito bem o que pensava. "_Isso está muito bem para os que têm criados, mas só queria saber como é que ela arrumava o quarto, se tivesse quatro filhos, se tivesse de cozinhar, lavar e remendar as roupas".

   Philip descobriu que a maior tragédia da vida daquela gente não era a separação nem a morte, coisas naturais cuja dor podia ser acalmada pelas lágrimas, mas a perda do emprego. Viu um homem voltar para casa de tarde, três dias após o parto da mulher e contar-lhe que fora despedido. Era pedreiro e naquela época o trabalho escasseava. O operário contou o facto e sentou-se para comer.

   - Oh, Jim! - exclamou ela.

   O pedreiro comeu impassivelmente uma mistura que estivera a cozer numa caçarola, à sua espera. Não tirava os olhos do prato. A mulher mirou-o duas ou três vezes, com expressão alarmada e depois começou a chorar em silêncio. O operário era um tipo desgracioso, com o rosto rude e castigado pela intempérie. Via-se-lhe na testa uma longa cicatriz branca. Tinha mãos largas e curtas. Pouco depois, empurrou o prato para um lado, como se desistisse de fazer força para comer, e voltou a ficar parado, a olhar para a janela. O quarto ficava no sótão da casa, nas traseiras, e dali nada mais se via, além de nuvens ameaçadoras. O silêncio parecia carregado de desespero. Philip sentiu que nada havia a dizer e só restava retirar-se. Ao arrastar-se cansado para fora, pois estivera de pé a maior parte da noite, o coração encheu-se-lhe de raiva contra a crueldade do mundo. Conhecia a procura desesperada de trabalho e o desânimo, que é mais duro de suportar do que a fome. Dava graças por não ter de acreditar em Deus, pois, perante semelhante estado de coisas, ser-lhe-ia intolerável. Só era possível reconciliar-se com a existência na certeza de que ela não tinha sentido.

   Afigurava-se-lhe que as pessoas que passam o tempo a auxiliar as classes pobres erram, porque procuram remédio para as coisas que lhes seriam intoleráveis, se tivessem de suportá-las; e não se lembram de que essas mesmas coisas não incomodam os que estão habituados a elas. Os pobres não querem quartos amplos e arejados. Sofrem de frio, porque a sua alimentação não é nutritiva e a sua circulação é má. Os aposentos espaçosos dão-lhes uma sensação de frialdade e precisam de queimar a menor quantidade possível de carvão. Não é provação para eles dormirem vários num quarto: preferem-no até. Nunca estão por um momento a sós, desde que nascem até ao instante de morrer, e a solidão oprime-os. Comprazem-se na promiscuidade em que vivem e o constante ruído que os cerca é-lhes indiferente aos ouvidos. Não sentem necessidade de tomar banho constantemente, e Philip ouviu-os muitas vezes falar com indignação da necessidade de fazê-lo quando entravam no hospital: era ao mesmo tempo uma afronta e um incómodo. Desejavam, antes de mais nada, que os deixassem em paz. Assim, quando o homem tem emprego seguro, a vida corre facilmente e não é destituída de prazeres. Há bastante tempo para tagarelar; depois do trabalho do dia, um copo de cerveja sabe muito bem e as ruas são uma fonte constante de entretenimentos. Quando a gente tem vontade de ler, lá está o *_Reynold.s* ou o The News of the World*, "Mas a senhora sabe como o tempo voa. Quando eu era nova, passava o dia com o nariz metido nos livros, mas agora não tenho nem cinco minutos para ler o jornal".

   Era hábito fazer três visitas depois de um parto e certo domingo Philip foi ver uma parturiente à hora do almoço. Levantara-se pela primeira vez.

   -Não pude aguentar a cama por mais tempo. Não posso perder tempo e faz-me nervoso ficar deitada o dia inteiro sem nada fazer. Então disse ao Erb: Olha, vou levantar-me e fazer-te o almoço.

   Erb estava sentado à mesa, já com a faca e o garfo nas mãos.

   Era um homem novo, de fisionomia aberta e olhos azuis. Ganhava bom dinheiro e o casal estava em situação desafogada. Havia apenas meses que tinham casado e estavam ambos encantados com o rosado bebé que jazia no berço, ao pé da cama. Sentia-se no ar um delicioso cheiro de bife e os olhos de Philip voltaram-se para o fogão.

   - Ia servir neste instante - disse a mulher.

   - Pois sirva - animou-a Philip. - Vou só dar uma vista ao herdeiro e depois retiro-me.

   Marido e mulher riram-se da palavra usada por Philip, e Erb, levantando-se, foi com o estudante até ao berço. Olhou para o filho com orgulho.

   - Um rapaz como se quer, hem? - comentou Philip.

Pegou no chapéu. A mulher de Erb já servira o bife e colocara na mesa um prato de ervilhas.

   - Vão ter um belo almoço - sorriu o estudante.

   - Ele só passa os domingos em casa e gosto de fazer algum prato especial, porque assim sente falta da casa quando está a trabalhar.

   - Será que o senhor quer dar-nos o gosto de sentar-se para comer connosco?... - disse Erb.

   - Ora, Erb! - interrompeu-o a mulher, escandalizada.

   - Só se não me convidarem - respondeu Philip com o seu agradável sorriso.

   - Muito bem, isso é que se chama ser amigo. Sabia que não ficaria ofendido, Polly. Vai já buscar outro prato, pequena.

   Polly estava atarantada. Aquele Erb! Ninguém podia adivinhar as coisas que lhe dava na telha fazer. Mas pegou num prato e esfregou-o rapidamente no avental, depois tirou um talher da gaveta da cómoda, onde guardava o seu melhor serviço de mesa, no meio das melhores toalhas. Havia um jarro de cerveja sobre a mesa e Erb encheu o copo de Philip. Quis dar-lhe o melhor pedaço do bife, mas Philip insistiu em que as porções fossem iguais. Era uma sala ensolarada, com duas janelas que chegavam até ao chão. Tinha sido a sala de estar de uma casa que fora outrora, senão luxuosa, pelo menos respeitável. Devia ter sido habitada uns cinquenta anos antes por algum comerciante rico ou por um militar reformado. Antes de casar, Erb fora jogador de futebol. Nas paredes, havia fotografias de vários *teams* em atitudes airosas - os jogadores de cabelos bem lambidos, o capitão orgulhosamente sentado ao centro, segurando uma taça. Havia outros sinais de prosperidade; fotografias dos parentes de Erb e da mulher em roupas domingueiras. Sobre a lareira, via-se uma caprichosa combinação de conchas, formando a miniatura de uma gruta. De cada lado desta, canecas para cerveja com a inscrição: "_Lembrança de Southend" em letras góticas, e paisagens pintadas. Erb era um tipo característico. Anti-sindicalista, expressava-se com indignação acerca dos esforços que o sindicato fazia para conquistá-lo. Achava que o sindicato não lhe servia, pois nunca tinha dificuldade em encontrar trabalho e pagava-se bom salário a quem tivesse cabeça e não se negasse a pôr as mãos em qualquer serviço que aparecesse. Polly era tímida. No lugar dele, entraria para o sindicato: quando da última greve, ela esperava que lhe trouxessem Erb numa ambulância todas as vezes que ele saía. Voltou-se para Philip.

   - Ele é cabeçudo, ninguém pode com a vida dele.

   - Ora bem, o que eu digo é que estamos num país livre e que não quero ser mandado.

   - De nada vale dizer que estamos num país livre - volveu Polly. - Não é por causa disso que deixarão de te quebrar a cabeça quando puderem.

   Terminada a refeição, Philip passou a bolsa de tabaco a Erb e ambos acenderam os cachimbos. O estudante levantou-se, pois talvez o esperasse em casa uma "chamada". Despediu-se. Viu que lhes tinha dado prazer em compartilhar do seu almoço, e o casal notou que Philip também gostara bastante.

   - Bom, passe bem, doutor - disse Erb. - Quando a patroa cair noutra, espero ter um médico tão bom como o senhor.

   - Ora, Erb! - protestou ela. - Como sabes que cairei noutra?

 

   Terminaram as três semanas de serviço. Philip assistira a sessenta e dois partos e já não podia mais. Quando voltou para casa, na última noite, por volta das dez horas, esperava de todo o coração que não tornassem a chamá-lo. Havia dez dias que não tinha uma noite inteira de descanso. Acabava de atender um caso horrível. Um brutamontes meio ébrio viera buscá-lo para o levar a um quarto situado numa viela malcheirosa, o mais sujo de quantos encontrara. Era uma pequena mansarda em que a maior parte do espaço estava tomada por uma cama de madeira com um dossel de trapos vermelhos e nojentos e o tecto era tão baixo que Philip podia tocar-lhe com a ponta dos dedos. _à luz de uma única vela que iluminava frouxamente o quarto, Philip dirigiu-se para essa cama, fazendo debandar os percevejos que nela fervilhavam. A mãe, uma mulher gorda, já idosa, tivera uma longa sucessão de filhos nados-mortos. Era uma história a que Philip estava acostumado. O marido fora soldado na _índia. A legislação imposta àquele país pelo falso pudor inglês dava livre curso à mais funesta de todas as enfermidades, e no fim quem sofria eram os inocentes.

Bocejando, Philip despiu-se e tomou um banho; depois sacudiu as roupas em cima da água e ficou a olhar os insectos que caíam nela, esperneando. No momento exacto em que ia para a cama, ouviu bater à porta e o porteiro do hospital entrou, trazendo-lhe um "cartão".

   - Diabos o levem! - exclamou Philip. - Você é a última pessoa que eu desejava ver hoje. Quem o trouxe?

   - Acho que foi o marido, doutor. Mando esperar?

Philip olhou para o endereço, viu que era uma rua sua conhecida e disse ao porteiro que iria só. Vestiu-se e em cinco :, minutos, com a maleta negra na mão, estava na rua. Um homem que a escuridão escondia aproximou-se dele e disse ser o marido.

   - Achei melhor esperar, doutor. A zona não é lá de muita confiança e eles não sabem quem o senhor é.

   Philip riu-se.

   - Santo Deus, homem, todos conhecem o médico! Já estive em lugares mais perigosos do que Waver Street.

   Era verdade. A mala preta valia como um passaporte nas ruas mais escusas e nos becos fétidos onde um polícia não ousava aventurar-se. Uma ou duas vezes, um grupo de homens olhara para Philip com ar de curiosidade quando este passava. Ouvira cochichar e depois uma voz que dizia:

   - É o médico do hospital.

Quando passava, um ou dois deles haviam dito: "Boa-noite, doutor".

   - Temos que andar mais depressa, doutor, se não se importa - disse o homem que o acompanhava. -Disseram-me que não havia tempo a perder.

   - Por que deixaram para a última hora? - indagou Philip, estugando o passo.

   Olhou de relance para o homem, ao passarem sob um lampião.

   - Você parece muito novo - disse.

   Era louro, completamente imberbe, parecia um rapazinho. Era baixo, mas forte.

   - Você é muito novo para estar casado - disse Philip.

   - Fomos obrigados.

   - Quanto ganha?

   - Dezasseis.

   Dezasseis xelins por semana não era muito para sustentar mulher e filho. O quarto onde o casal morava denotava a extrema pobreza dos ocupantes. Era de bom tamanho, mas parecia ainda maior por estar quase desguarnecido. Não havia tapete no chão, nem quadros nas paredes; a maioria dos quartos que Philip conhecia tinha alguma coisa: fotografias ou, metidas em molduras baratas, gravuras dos números de Natal dos jornais ilustrados. A parturiente jazia numa pequena cama de ferro, das mais baratas. Philip ficou surpreendido ao notar como ela era jovem.

   - Céus! Mas não pode ter mais de dezasseis anos - disse para a mulher que viera ajudar.

   No "cartão" do hospital, a rapariga figurava com a idade de dezoito anos. Acontecia, porém, que, quando elas eram muito jovens costumavam aumentar um ou dois anos. Aquela era também bonita, coisa rara nessas classes em que a constituição é arruinada pela má alimentação, pelo ar viciado e pelas ocupações pouco saudáveis. Tinha as feições delicadas, grandes olhos azuis e arranjava a escura cabeleira nesse complexo penteado que é típico das vendedoras de frutas. Ela e o marido estavam muito nervosos.

   - _é melhor esperar lá fora. Fique perto para o caso de precisar de si - disse-lhe Philip.

   Agora que o via melhor, o estudante tornou a surpreender-se com o seu ar juvenil. Sentia-se que devia andar na rua a brincar com outros rapazelhos, em vez de esperar ansiosamente o nascimento de um filho. As horas passaram e só quase às duas a criança nasceu. Parecia tudo correr satisfatoriamente. O marido foi chamado e Philip comoveu-se ante o modo desajeitado e tímido com que o rapaz beijou a mulher. Meteu os instrumentos na bolsa. Antes de retirar-se, tomou o pulso à parturiente.

   - Olá! - exclamou.

   Lançou-lhe um olhar rápido: sucedera alguma coisa. Em casos de emergência, mandava-se chamar o assistente-chefe do Serviço de Obstetricia. Era um médico diplomado e Philip encontrava-se sob as suas ordens naquele "distrito". Garatujou uma nota e, entregando-a ao marido, disse-lhe que corresse ao hospital. Pediu-lhe que se apressasse, pois a mulher estava em perigo. O rapaz precipitou-se para fora. Philip esperou ansiosamente. Sabia que a mulher estava a esvair-se em sangue e temia vê-la morrer de um momento para o outro, antes que o chefe chegasse. Tomou todas as medidas ao seu alcance. Desejou com fervor que o cirurgião não tivesse sido chamado para outra parte. Os minutos pareciam intermináveis. Afinal, o homem chegou e, enquanto examinava a paciente, fez perguntas a Philip em voz baixa. Este viu-lhe na fisionomia que julgava o caso bastante grave. Chamava-se Chandler. Era um homem alto, de poucas palavras, nariz comprido, rosto magro e muito enrugado para a idade que tinha. Abanou a cabeça.

   - Era um caso perdido desde o princípio. Onde está o marido?

   - Pedi-lhe que esperasse no patamar.

   - _é melhor mandá-lo entrar.

   Philip abriu a porta e chamou-o. O rapaz estava sentado no escuro, no primeiro degrau da escada que levava ao andar inferior. Aproximou-se da cama.

   - Que houve? - indagou.

   - Há uma hemorragia interna. É impossível fazê-la parar.

O cirurgião hesitou um momento e, porque era uma coisa dolorosa de dizer, fez a voz um tanto brusca:

   - Está a morrer.

   O rapaz não pronunciou uma palavra. Ficou absolutamente imóvel, olhando para a rapariga que jazia sobre a cama, pálida e inanimada. Foi a parteira quem falou.

   - Estes senhores fizeram tudo quanto podiam, Harty -disse ela. - Desde o princípio, vi que isto aconteceria.

   - Cale a boca - ordenou Chandler.

   As janelas não tinham cortinas e, pouco a pouco, a noite parecia aclarar-se. Não era ainda a aurora, mas estava próxima. Chandler conservava a mulher com vida por todos os meios de que dispunha, mas a vida escapava-se e de súbito ela morreu. O marido, aos pés da cama de ferro ordinário, ali ficou com as mãos sobre as guardas, muito pálido, sem falar. Uma ou duas vezes, Chandler lançou-lhe um olhar inquieto, julgando que ele fosse desmaiar. Os seus lábios estavam cinzentos. A parteira soluçava com ruído, mas o rapaz não lhe prestava atenção. Os seus olhos estavam fixos na mulher com uma expressão de suprema perplexidade. Lembrava um cão chicoteado, sem saber porquê. Quando Chandler e Philip reuniram os seus instrumentos, o primeiro voltou-se para o marido.

   - _é melhor deitar-se um pouco. Deve estar mais morto do que vivo.  

   - Não tenho onde me deitar, doutor - respondeu ele.

   Havia na sua voz uma humildade que causava pena.

   - Não conhece ninguém nesta casa que possa emprestar-lhe uma cama?

   - Não, senhor.

   - Vieram para cá a semana passada - explicou a parteira.  - Ainda não conhecem ninguém.

   Chandler hesitou um momento, embaraçado, depois acercou-se do rapaz e disse:

   - Lamento muito o que aconteceu.

   Estendeu a mão e o rapaz, depois de um olhar instintivo, para verificar a limpeza da sua, apertou-lha.

   - Obrigado, sr. doutor.

   Philip apertou-lhe também a mão. Chandler disse à parteira que fosse buscar o atestado de óbito de manhã. Saíram da casa e caminharam juntos em silêncio.

   - A princípio, abala um pouco, não é assim? - disse Chandler, por fim.

   - Um pouco - respondeu Philip.

   - Se quiser, direi ao porteiro que não o chame mais esta noite.

   - De qualquer modo, o meu serviço termina esta manhã, às oito.

  - Quantos casos teve?

  - Sessenta e três.

  - Excelente. Terá então o seu certificado amanhã.

  Chegaram ao hospital e o médico entrou para ver se alguém o procurara. Philip continuou a andar. O dia fora ardente e mesmo agora, na madrugada, havia uma tepidez no ar. A rua estava muito silenciosa. Philip não tinha vontade de ir para a cama.

   Era o fim do seu trabalho e não precisava de apressar-se. Saiu a passear, vagarosamente, satisfeito do ar fresco e do silencio. Pensou em ir até a ponte, olhar o nascer do dia sobre o rio. Um polícia, à esquina, deu-lhe os bons-dias. Pela. maleta, via quem era Philip.

   - Trabalhou muito esta noite, sr. Doutor - disse.

   Philip fez um sinal afirmativo com a cabeça e prosseguiu. Debruçou-se no parapeito e contemplou o amanhecer. _àquela hora, a grande metrópole era como a cidade dos mortos. O céu estava sem nuvens, mas as estrelas brilhavam frouxamente à aproximação do dia. Havia uma leve bruma sobre o rio e os grandes edifícios das bandas do Norte eram como palácios de uma ilha encantada. Um grupo de barcaças estava ancorado ao largo. Todas as coisas tinham um tom violeta sobrenatural, que era um tanto perturbador e intimidante. Mas depressa tudo ficou pálido, frio e cinzento. Surgiu então o Sol, um raio de ouro cortou o céu, e o céu ficou iridescente. Philip não podia tirar da lembrança a rapariga morta, estendida na cama, branca e exangue, e o rapaz parado ali perto, como um animal ferido. A nudez do quarto miserável tornava ainda mais pungente a dor daquela cena. Era cruel que um acaso estúpido cerceasse a vida daquela criatura quando apenas começava a viver. Mas, ao mesmo tempo que pronunciava mentalmente estas palavras, Philip pensou na vida que lhe estaria destinada; os filhos, a eterna luta contra a pobreza, a juventude gasta pelo trabalho e pelas privações; seria mais tarde uma matrona desleixada... Via-lhe a cara bonita ficar magra e branca, o cabelo ralo, as lindas mãos, brutalmente deformadas pela faina diária, converterem-se nas garras de um animal velho. E depois, quando o homem tivesse deixado para trás a mocidade, a dificuldade em conseguir emprego, os pequenos salários que teria de aceitar e a inevitável, abjecta penúria do fim. Podia ser enérgica, industriosa, económica, que isso não a salvaria. Na velhice, era o asilo ou a dependência da caridade dos filhos. Quem poderia lamentá-la por ter morrido quando a vida tão pouco lhe oferecia.

   Mas a piedade era inane. Philip sentiu que não era disso que aquela gente precisava. Eles não se apiedavam de si próprios. Aceitavam o seu destino. Era a ordem natural das coisas. De outra forma, santo Deus!, de outra forma atravessariam o rio em multidões formigantes, para a zona onde aqueles edifícios se erguiam, seguros e imponentes. E seria a depredação, o incêndio e a pilhagem. Mas o dia, suave e pálido, rompera e o nevoeiro era ténue. Banhava todas as coisas numa radiação macia. O Tamisa estava cinzento, rosado e verde, cinzento como madrepérola e verde como o coração de uma rosa amarela. Os trapiches e os armazéns de Surrey Side agrupavam-se em amorável desordem. :, A cena era tão linda que o coração de Philip batia apaixonadamente. Estava dominado pela beleza do Universo. Ao lado daquilo, nada parecia ter importância.

 

   Philip passou no posto de clínica externa as poucas semanas que lhe restavam de férias, antes do inicio do período de Inverno. Em Outubro, encetou os estudos regulares. Estivera tanto tempo ausente do hospital, que se encontrava entre muita gente nova. Os estudantes que cursavam anos diferentes pouco tinham de comum entre si e os seus contemporâneos estavam, na maior parte, já diplomados. Alguns ocupavam lugares de assistentes ou postos em hospitais do interior e casas de saúde, outros ainda deixaram-se ficar no Hospital de S. Lucas. Os dois anos durante os quais o seu espírito permanecera inactivo haviam-no revigorado, pensava Philip, e agora sentia-se disposto a trabalhar com energia.

   _os Athelny estavam encantados com a mudança da sorte dele. Philip deixara fora do leilão umas tantas coisas da casa do tio e oferecera presentes a todos. Ofereceu  a Sally um cordão de ouro que pertencera à tia. Sally estava agora mulher feita. Trabalhava como aprendiza num *atelier* de costura de Regent Street e todas as manhãs, às oito, ia para o serviço. Tinha olhos azuis de expressão franca, testa larga e cabelos fartos e brilhantes. Era robusta, de ancas largas e seios pujantes. O pai, que gostava de discutir-lhe a aparência, advertia-a constantemente de que não devia engordar. A rapariga atraía, porque era sadia, animal e feminina. Tinha muitos admiradores, que a deixavam imperturbável. Dava a impressão de considerar como uma tolice os assuntos amorosos. Compreendia-se facilmente que os rapazes a achassem inacessível. Sally tinha o espírito de uma pessoa mais velha do que a sua idade. Estava acostumada a ajudar a mãe nos trabalhos da casa e no cuidado das crianças, de modo que adquirira assim um ar autoritário que levava Mrs. Athelny a dizer que Sally gostava muito de fazer o que lhe vinha à cabeça. Não falava muito, mas à medida que crescia dava a impressão de ir adquirindo um tranquilo senso do ridículo, e às vezes fazia uma observação pela qual se via que, por trás daquele exterior impassível, estava sossegadamente a divertir-se com o próximo. Philip notou que nunca chegara com ela a essa intimidade afectuosa que tinha com o resto da numerosa família Athelny. De quando em quando, a indiferença da rapariga deixava-o levemente irritado. Havia nela qualquer coisa de enigmático.

   Quando Philip lhe deu o cordão, Athelny, com o seu feitio turbulento, insistiu em que ela devia beijá-lo. Sally, porém, fez-se vermelha e recuou. :,

   - Não, não beijo - disse

   - Sua diabinha ingrata! - exclamou Athelny. - Por que não?

   - Não gosto de ser beijada por homens - respondeu.

   Philip viu-lhe o embaraço e, divertido, é claro, desviou a atenção de Athelny para outro assunto. Não era coisa muito difícil. Mas a mãe falou-lhe mais tarde sobre isso, pois, na próxima visita de Philip, Sally aproveitou a primeira oportunidade em que ficaram alguns minutos a sós para tocar no assunto.

  - Magoei-o a semana passada, por não ter querido beijá-lo.

   - Não tem importância - respondeu-lhe a rir.

   - Não é que seja ingrata. - Corou um pouco ao pronunciar a frase formal que preparara. - Estimarei sempre o cordão e foi muita gentileza sua presentear-me com ele.

   Philip achava sempre um pouco difícil conversar com ela.     A jovem fazia correctamente as suas obrigações, mas nunca parecia sentir necessidade de conversar. Contudo, nada havia de insociável nela. Um domingo, à tarde, quando Athelny e a mulher tinham saído juntos e Philip, tratado como pessoa de familia, ficara a ler na sala de estar, Sally entrou e sentou-se a costurar perto da janela. As roupas dos mais novos eram feitas em casa e Sally não podia passar os domingos na ociosidade. Philip pensou que ela desejasse conversar e abandonou o livro.

   - Continue a ler - disse ela. Como estava só, vim costurar aqui, a seu lado.

   - És a pessoa mais silenciosa que conheço - observou Philip.

   - Nesta casa já temos quem converse bastante.

   Não havia ironia no tom da voz dela: estava simplesmente a expor um facto. Mas isso sugeriu a Philip que ela já deixara de tomar o pai pelo herói que imaginava nos tempos de criança. Mentalmente, associava a conversação brilhante do homem à sua prodigalidade, causa de tantas dificuldades na vida da família. Comparava a retórica paterna com o bom-senso prático da mãe. E, embora a vivacidade do pai a divertisse, talvez lhe causasse por vezes certa irritação. Philip contemplava-a enquanto costurava, curvada para o trabalho. Era sadia, forte e normal. Seria engraçado vê-la entre as outras raparigas do *atelier*, com os seus bustos descarnados e faces anémicas. Mildred era anémica.

Algum tempo depois, apareceu-lhe um pretendente. Ela saía de quando em quando, com amigas que arranjara no *atelier* e encontrara um rapaz, engenheiro electricista muito bem encaminhado na vida - um partido vantajoso. Certo dia, contou à mãe que ele lhe propusera casamento.

   - Que respondeste? - indagou ela.

   - Ora, disse que por enquanto não tenho pressa de me casar. - Fez uma pausa entre as frases, como era seu hábito. - Como ficou muito aborrecido, disse-lhe que viesse tomar chá no domingo. :,

   Era uma cerimónia para a qual Athelny se sentia inteiramente solicitado. Ensaiou durante toda a tarde a maneira de representar o papel de pai nobre, para edificação do rapaz, até a criançada ter ataques de riso. Pouco antes da chegada do pretendente, Athelny desencantou um tarbuche egípcio e insistiu em usá-lo.

   - Vai-te, Athelny! - disse a mulher. Envergara o seu melhor vestido, que era de velado negro e lhe ficava muito justo, visto ter engordado de ano para ano. - Vais deitar tudo a perder.

   Tentou arrancar-lhe o tarbuche da cabeça, mas o homenzinho esquivou-se-lhe habilmente.

   - Não me agarres, mulher! Nada me induzirá a tirá-lo. Esse rapaz deve ficar a saber desde o começo que não é uma família ordinária aquela em que se prepara para entrar.

   - Deixe que ele fique assim, mamã - disse Sally, no seu tom tranquilo e indiferente de sempre. - Se Mr. Donaldson levar a coisa a mal, pode ir-se embora e que bons ventos o levem.

   Philip achava que o jovem ia ser submetido a uma rude prova, pois e Athelny, no seu jaquetão de velado castanho, gravata negra de artista e tarbuche vermelho, devia ser um espectáculo surpreendente para um ingénuo engenheiro electricista. Ao entrar, foi saudado pelo dono da casa com a altiva cortesia de um grande de Espanha e por Mrs. Athelny de maneira simples e perfeitamente natural. Sentaram-se nas cadeiras monacais de alto espaldar, em torno da velha mesa. Mrs. Athelny serviu o chá num bule de barro vidrado que dava uma nota inglesa e rústica à reunião. Ela própria fizera bolinhos e sobre a mesa havia geleia feita em casa. Era como um chá no campo e, para Philip, muito característico e encantador, naquela antiga mansão jacobita. Por qualquer fantástica razão, meteu-se na cabeça de Athelny discorrer sobre a história bizantina. Estivera a ler os últimos volumes da *_Decadência e Queda do Império Romano*. E, com o indicador teatralmente espetado, despejava nos ouvidos espantados do pretendente, histórias escandalosas sobre Teodora e Irene. Dirigia-se unicamente ao convidado, numa torrente de empolada oratória. E o rapaz, reduzido a um silêncio impotente, tímido, inclinava a cabeça a intervalos regulares para mostrar que prestava um interesse inteligente. Mrs. Athelny não prestava atenção às palavras de Thorpe, mas interrompia-o de quando em quando para oferecer ao rapaz mais chá ou para obrigá-lo a aceitar mais bolo com geleia. Philip observava Sally. Estava sentada, com os olhos baixos, calma, silenciosa e atenta. _as suas compridas pestanas faziam-lhe uma linda sombra no rosto. Impossível saber se achava graça à cena ou se estava interessada pelo rapaz. Era inescrutável. Uma coisa, porém, não oferecia dúvidas: o engenheiro electricista tinha boa aparência, era louro, :, de rosto escanhoado, feições regulares, agradáveis, e uma fisionomia honesta. Era alto e bem constituído. Philip não pôde deixar de pensar que daria um excelente companheiro para Sally. E sentiu uma ponta de inveja pela felicidade que imaginava estar reservada a ambos.

   Em dado momento, o pretendente disse achar que já era tempo de retirar-se. Sally levantou-se sem uma palavra e acompanhou-o até à porta. Quando voltou, o pai rompeu:

   - Bem, Sally, achamos o teu rapaz muito simpático. Estamos preparados para recebê-lo na nossa família. Mandem correr os pregões e comporei uma canção nupcial.

Sally pôs-se a levantar a mesa do chá. Não dizia palavra. De repente, lançou um olhar rápido a Philip.

   - Como o achou, Mr. Philip?

   Jamais quisera chamar-lhe tio Phil, como faziam as crianças, e não o tratava por Philip.

   - Acho que vocês formam um belo par.

   Sally deitou-lhe outro olhar vivo e, corando de leve, continuou o seu trabalho.

   - Achei o rapaz muito distinto e bem-educado - disse Mrs. Athelny. - Parece-me que é desses que podem fazer a felicidade de qualquer rapariga.

   Sally guardou silêncio por momentos e Philip olhou com curiosidade para ela. Ninguém poderia dizer se estava a reflectir sobre o que a mãe dissera ou se andava perdida no mundo da Lua.

   - Por que não respondes quando falam contigo, Sally? -  observou-lhe a mãe, um pouco irritada.

   - Acho que ele é um tolo.

   - Então não aceitas o rapaz?

   - Não, não aceito.

   - Não sei que mais queres - volveu Mrs. Athelny, visivelmente atónita. -_é um rapaz muito decente e está em condições de dar-te uma casa muito boa. Sem contar a tua, já temos bastantes bocas para alimentar. Quando se apresenta uma oportunidade assim é um pecado não aproveitar. E até estou a dizer que poderás ter uma rapariguinha para fazer o serviço mais pesado.

   Philip nunca ouvira Mrs. Athelny referir-se tão directamente às dificuldades da sua vida. Viu a importância que tinha para eles o sustento de cada filho.

   - De nada serve continuar, mãe - disse Sally, com o seu ar tranquilo. - Não casarei com ele.

   - Acho que és uma filha muito cruel, egoísta e sem coração.

   - Se quer que eu ganhe a vida, mãe, posso até

ajustar-me como criada.

   - Não sejas tola, bem sabes que teu pai não consentiria nisso. :,

  _Philip surpreendeu o olhar de Sally e julgou ver nele um lampejo de malícia. Que poderia ter achado de engraçado naquela conversa? Era uma rapariga singular.

 

   Durante o seu último ano no "_S. Lucas, Philip trabalhou com ardor. Estava contente com a vida. Achava delicioso ter o coração livre e o bolso suficientemente cheio para prover às suas necessidades. Ouvira outros falar com desprezo do dinheiro. Teriam experimentado um dia viver sem ele? _sabia que a falta de dinheiro torna o homem mesquinho, vil e avarento; deforma-lhe o carácter e leva-o a olhar o mundo por um prisma vulgar. Quando se tem de levar em conta cada vintém, o dinheiro assume uma importância grotesca. _é preciso que estejamos numa situação desafogada para atribuir-lhe o seu valor real. Levava uma vida solitária, não visitando ninguém a não ser os Athelny, mas não se sentia só. Ocupava-se com os planos para o futuro e às vezes pensava no passado. A sua lembrança demorava-se de quando em quando nos velhos amigos, mas nada fazia para vê-los. Teria gostado de saber o que fora feito de Norah Nesbit. Era, agora, Norah qualquer coisa, mas não podia lembrar-se de como se chamava o homem que ia casar com ela. Philip dava graças por tê-la conhecido: era uma alma boa e corajosa. Uma noite, cerca das sete e meia, viu Lawson caminhando pelo Piccadilly; vestia o seu trajo de noite e talvez voltasse de um teatro. Cedendo a um repentino impulso, Philip dobrou rápido uma esquina. Havia dois anos que achava não poder reatar a amizade interrompida. Ele e Lawson nada mais tinham a dizer um ao outro. Philip perdera o interesse pela arte. Parecia-lhe ter agora a possibilidade de gozar com mais ardor do que quando muito novo. Mas a arte afigurava-se-lhe sem importância. Estava ocupado na formação de um desenho tirado do caos multímodo da existência, e os materiais com que trabalhava pareciam tornar mais trivial aquela preocupação com palavras e cores. A amizade de Philip com Lawson fora um motivo no desenho que ele elaborava; era puro sentimentalismo julgar que o pintor ainda tivesse algum interesse para ele.

   _às vezes, Philip pensava em Mildred. Evitava de propósito as ruas em que havia probabilidade de vê-la. Mas por vezes um sentimento qualquer, talvez curiosidade, talvez alguma coisa mais profunda que não gostaria de confessar, fazia-o deambular pela Regent Street e por Piccadilly, nas horas a que era de esperar ela andasse por ali. Não sabia, então, se desejava ou se temia encontrá-la. Certa vez, avistou pelas costas uma criatura que, por um momento, lhe pareceu ser Mildred. Teve uma sensação curiosa: :, era uma dor aguda no coração, uma dor estranha, em que havia medo e um desfalecimento de causar náuseas. E quando apressou o passo e verificou que estava enganado, não soube se o que experimentava era alívio ou desapontamento.

 

   No princípio de Agosto, Philip passou em Cirurgia, o seu último exame, e recebeu o diploma. _havia sete anos que entrara para o Hospital de S. _lucas. Estava quase com trinta anos. Desceu as escadas do *_Royal College of Surgeons* levando na mão o canudo que o habilitaria a fazer clínica, e o coração batia-lhe de satisfação.

   "_Agora sim, vou começar a vida", pensava.

   No dia seguinte, foi à Secretaria, para inscrever-se como candidato a um dos lugares no hospital. _o secretário era um homenzinho agradável, de barba negra. Philip sempre o achara muito afável. O outro felicitou-o pelo êxito e depois disse:

   - Quer um lugar de substituto por um mês, na costa do Sul? Três guinéus por semana, com casa e comida.

   - Não me importaria - respondeu Philip.

   - _é em Farnley, no Dorsetshire. Com o dr. South. Terá de ir imediatamente. O assistente dele está com amigdalite. Deve ser uma bela localidade.

   Havia qualquer coisa nas maneiras do secretário que deixou Philip intrigado. Era um pouco suspeito.

   - Essa história tem algum gato escondido? - perguntou.

   O secretário hesitou um momento, rindo de forma conciliatória.

   - Bem, o facto é que o dr. South, segundo dizem, é um tipo esquisito e um tanto rabugento. As agências não querem mandar-lhe mais assistentes. Não tem papas na língua e os seus auxiliares não gostam dele.

   - _mas acha que ele ficará satisfeito com um médico recém-formado? Afinal de contas, não tenho prática...

   - Deve dar graças por tê-lo a si - afirmou o secretário, diplomaticamente.

   Philip reflectiu um momento. Nada tinha a fazer durante as próximas semanas e estava satisfeito com a oportunidade de ganhar algum dinheiro. Podia economizá-lo para a viagem a Espanha, que se prometera a si próprio para quando terminasse as suas funções no "S. Lucas", ou, se ali não lhe dessem nada, nalgum outro hospital.

   - Está bem, vou.

   - Mas sucede que tem de ir esta tarde. Pode? Em caso afirmativo, telegrafarei imediatamente.

Philip gostaria de ter alguns dias livres. Mas vira os Athelny na noite anterior (fora levar-lhes a boa nova) e não havia razão alguma para que não pudesse partir imediatamente. A sua bagagem era pequena. Pouco depois das sete daquela noite, saltava na estação de _Farnley e tomava um carro para a residência do dr. South. Era uma casa comprida e baixa, com as paredes caiadas, recobertas de videiras virgens. Philip foi introduzido no consultório. Um velho, sentado a uma escrivaninha, ergueu os olhos quando a criada mandou entrar Philip. Não se levantou nem falou, simplesmente fixou o olhar em Philip. Este ficou confuso.

   - Creio que esta à minha espera - disse. - O secretário do "_S. Lucas" telegrafou-lhe esta manhã.

   - Atrasei o jantar meia hora. Quer lavar-se?

   - Quero - respondeu Philip.

   Achou graça aos modos esquisitos do dr. South. O médico ergueu-se e Philip viu que era um homem de estatura mediana, magro, de cabelos brancos aparados muito curto, e larga boca, tão firmemente cerrada que parecia não ter lábios. Tinha as faces escanhoadas, com excepção das pequenas suíças brancas que lhe aumentavam a forma quadrada do rosto, dada pelo queixo firme. Vestia um fato de *tweed* castanho e uma gravata branca. A roupa dançava-lhe no corpo, frouxa, como se tivesse sido feita para um homem muito maior. Dava a impressão de um fazendeiro respeitável, dos meados do século __xix. Abriu uma porta.

   - Ali é a sala de jantar - disse, apontando para o compartimento fronteiro. - O seu quarto é a primeira porta que dá para o patamar. Desça quando estiver pronto.

   Durante o jantar, Philip viu que o dr. South estava a examiná-lo, mas falava pouco e o rapaz compreendeu que não desejava ouvir o assistente conversar.

   - Quando se formou? - perguntou o homem, de repente.

   - Ontem.

   - Esteve em alguma universidade?

   - Não.

   - O ano passado, quando o meu assistente teve férias, mandaram-me um ex-universitário. Disse-lhes que não tornassem a mandar-me outro. Esses diabos são cavalheiros de mais para mim.

   Houve outra pausa. O jantar era muito simples mas excelente. Philip mantinha um exterior calmo, mas o seu coração saltava de comoção. Estava imensamente satisfeito por ter conseguido um lugar de médico substituto. Isso fazia-o sentir-se extremamente adulto. Tinha o desejo insano de rir, sem motivo especial. E quanto mais pensava na sua dignidade profissional, maior era a sua vontade rir.

   Mas o dr. South interrompeu-lhe de súbito os pensamentos.

   - Que idade tem?

   - Vou fazer trinta.

   - Como foi que só agora se formou?

   - Só comecei a estudar medicina com vinte e dois anos e tive de interromper o curso por dois anos.

   - Porquê?

   - Pobreza.

   O dr. South lançou-lhe um olhar esquisito e tornou a ficar em silêncio. No fim do jantar, levantou-se da mesa.

   - Sabe que espécie de clientela é esta?

   - Não. - retorquiu Philip.

   - Na maioria, são pescadores com suas famílias. Tenho o Sindicato e o Hospital dos Marítimos. Estive sempre só aqui, mas depois que procuraram transformar isto numa praia elegante, mandaram outro médico para a parte alta e a gente rica vai procurá-lo. Fico só com os que não podem pagar ao médico.

   Philip viu que essa rivalidade era o ponto nevrálgico do velho. - Bem vê que não tenho prática - observou Philip.

   - Nenhum de vocês sabe nada.

   Saiu da sala sem mais palavra e deixou Philip entregue a si próprio. Quando a criada entrou para levantar a mesa, contou a Philip que o dr. South via os doentes das seis às sete. O trabalho daquela noite estava terminado. Philip foi ao quarto buscar um livro, acendeu o cachimbo e instalou-se para ler. Era um grande prazer, uma vez que não lera senão livros de medicina, nos últimos meses. _às dez, o dr. South entrou e olhou para ele. Philip não gostava de ficar com os pés no soalho e arrastara uma cadeira para descansá-los sobre ela.

   - O senhor parece que gosta de pôr-se à vontade - disse o dr. South, com uma expressão sombria, que teria perturbado Philip se não estivesse tão bem disposto.

   Os olhos de Philip brilharam quando respondeu:

   - Faz alguma objecção?

   O dr. South mirou-o, mas não respondeu directamente. 

   - Que está a ler?

   - *_O Peregrine Pickle*, de Smollet.

   - Parece-me que sei que Smollet escreveu o Peregrine Pickle.

   - Desculpe. Os médicos não se interessam muito pela literatura, não é assim?

   Philip pusera o livro sobre a mesa e o dr. South pegou-lhe. Era um volume que pertencera ao vigário de Blackstable, um livro fino, encadernado em marroquim desbotado, com uma gravura em cobre no frontispício. As páginas estavam amareladas pelo tempo e manchadas. Philip, sem a menor intenção, fez um pequeno movimento para a frente, quando o dr. South segurou o livro. Um leve sorriso lhe veio aos olhos. Ao velho médico, muito pouca coisa escapava:

   - Acha-me engraçado? - perguntou glacialmente.

   - _vejo que gosta de livros. _é uma coisa que sempre se nota no jeito como as pessoas os seguram.

   O dr. South largou o livro imediatamente.

   - O primeiro almoço é às oito e meia - disse, saindo da sala.

   "_Que velho engraçado!" - pensou Philip.

   Cedo descobriu por que achavam os assistentes do dr. South difícil a convivência com o velho. Em primeiro lugar, o homem opunha-se firmemente a todas as descobertas dos últimos trinta anos. Não tolerava esses remédios que se tornam moda, adquirem fama de fazer curas milagrosas e em poucos anos deixam de ser empregados. Tinha um certo número de receitas tradicionais que trouxera do "_S. Lucas", onde estudara, e usara-as toda a vida. Achava-as tão eficazes como qualquer outra coisa que tivesse aparecido desde então. Philip admirou-se da desconfiança que o dr. South mostrava pela assepsia. _aceitara por deferência a opinião universal, mas encarava as precauções que Philip vira recomendar de maneira tão insistente e escrupulosa no hospital, com a tolerância desdenhosa de um homem que se dignasse brincar aos soldadinhos de chumbo como uma criança.

   - Tenho visto anti-sépticos aparecerem e substituírem logo todos os outros; depois veio a assepsia e tomou o lugar dos desinfectantes. Patranhas!

   Os rapazes que lhe eram mandados conheciam somente a prática hospitalar e vinham com o desprezo mal disfarçado pelo médico sem especialidade: era uma prevenção que  adquiriam na atmosfera do hospital. Mas tinham visto apenas os casos complicados que apareciam nas enfermarias. Sabiam tratar uma doença obscura das glândulas supra-renais, mas ficavam impotentes diante de um resfriamento comum. O seu conhecimento era teórico e a sua arrogância ilimitada. O dr. South observava-os com os lábios apertados. Experimentava um prazer selvagem em mostrar-lhes quão enorme era a sua ignorância e quão injustificável a sua pretensão. A clientela do lugar era pobre, gente que vivia da pesca. O próprio médico era quem lhes preparava as receitas. O dr. South perguntava ao assistente como esperava viver se tivesse de dar ao pescador com dores de estômago uma receita composta de meia dúzia de drogas caras. Queixava-se também de que os médicos jovens eram incultos. Só liam *_The Sporting Times* e *_The British Medical Journal*. Não sabiam escrever legivelmente nem redigir correctamente. Durante dois ou três dias, o dr. South observou Philip atentamente, pronto a cair sobre ele com áspero sarcasmo se encontrasse ensejo. E Philip, ciente disso, continuava o seu trabalho, a divertir-se tranquilamente com a situação. Estava satisfeito com a mudança. Gostava daquela sensação de independência e responsabilidade. Toda a espécie de gente vinha ao consultório. Sentia-se lisonjeado porque parecia capaz de inspirar coragem aos seus doentes. E era interessante acompanhar ali o processo da cura, que num hospital só podia ser verificado com intervalos distantes. As suas visitas levavam-no a cabanas de telhados baixos, nas quais se viam apetrechos de pesca e velas, e aqui e ali lembranças de viagens por distantes mares; um estojo de laca do Japão, arpões e remos da Melanésia, ou adagas dos bazares de Istambul. Havia um ar de romance naqueles quartinhos abafados a que o sal do mar dava uma frescura amarga. Philip gostava de conversar com os marujos, e quando estes viram que ele não era pretensioso, contaram-lhe longas histórias das viagens longínquas da sua juventude.

   Uma ou duas vezes, Philip enganou-se no diagnóstico. (_Nunca vira um caso de sarampo, e, quando viu a erupção, tomou-a por uma misteriosa doença da pele), algumas vezes, os seus tratamentos diferiram dos do dr. South. A primeira vez que isso aconteceu, o velho médico atacou-o com uma ironia feroz, que Philip recebeu de bom humor. Tinha certo dom de réplica pronta e deu uma ou duas que fizeram o dr. South parar e olhar para ele com curiosidade. O rosto de Philip era grave, mas os olhos cintilavam. O velho médico não podia fugir à impressão de que o rapaz estava a zombar dele. _habituara-se a ser temido e detestado pelos seus auxiliares e aquilo era novidade para ele. _às vezes, ficava a ponto de se deixar levar pela fúria e mandar Philip embora no primeiro comboio. Fizera isso com dois ou três assistentes. Mas tinha uma sensação inquietante de que, se tal acontecesse, Philip rir-se-lhe-ia simplesmente na cara. E de súbito sentia o que a situação tinha de engraçado. Mau grado seu, a boca encrespava-se-lhe num sorriso e retirava-se. Dentro em pouco, teve a certeza de que Philip estava sistematicamente a rir-se à sua custa. Primeiro, ficou surpreendido e depois divertiu-se.

   - Que grande maroto! - dizia para si próprio, a rir. - Que grande maroto!

  

   Philip escrevera a Athelny para lhe dizer que ia passar uma temporada como substituto no Dorsetshire e a seu tempo, recebeu a resposta. Estava redigida com o formalismo característico de Athelny, engastada de epítetos como um diadema persa de pedras preciosas. E aquela linda caligrafia de que Thorpe tanto se orgulhava era tão difícil de ler como os caracteres góticos, a que se assemelhava. Sugeria a Philip que viesse reunir-se à sua família nos campos de lúpulo de Kent, para onde iam todos os anos. E, a fim de persuadi-lo, dizia várias coisas belas e complicadas sobre a alma de Philip e sobre as gavinhas espiraladas do lúpulo. :, Philip respondeu imediatamente, a dizer que iria logo que se visse livre. Embora não tivesse nascido naquelas terras, tinha uma particular afeição pela Ilha de Thanet e ardia de entusiasmo à ideia de passar uma quinzena tão próximo da gleba e num ambiente que precisava apenas de um céu azul para ser idílico como os bosques de oliveiras da Arcádia.

   As quatro semanas de trabalho em Farnley decorreram rápidas. No alto do penhasco estava a erguer-se uma cidade nova, com vivendas de tijolo vermelho em torno dos campos de golfe e acabara de ser inaugurado um grande hotel para receber os hóspedes, no Verão. Philip, porém, raramente subia até lá. Perto do porto, as casinholas de pedra do século passado amontoavam-se numa deliciosa confusão e as ruas estreitas, descendo o declive íngreme, tinham um ar de antiguidade que cativava a imaginação. Viam-se, à beira-mar, bonitas vivendas que tinham na frente minúsculos jardins bem cuidados; eram habitadas por capitães reformados da marinha mercante e por mães ou viúvas de embarcadiços. Tinham essas vivendas um aspecto curioso e pacato. No pequeno porto, entravam vapores de carga procedentes da Espanha e do Levante, navios de pequena tonelagem. E, de quando em quando, um veleiro chegava, impelido pelos ventos da aventura. Philip lembrava-se do pequeno porto sujo de Blackstable, com os seus barcos carvoeiros. Fora lá que pela primeira vez sentira o desejo - agora obsessão - das terras do Oriente e das ilhas ensolaradas dos mares tropicais. Mas ali a gente sentia-se mais perto do vasto e profundo oceano do que nas praias daquele Mar do Norte que sempre parecia tão circunscrito. Aqui, podia respirar a plenos pulmões, olhando a vastidão uniforme do mar. E o vento oeste, esse adorável vento salgado da Inglaterra, sublimava o coração, ao mesmo tempo que o fazia transbordar de ternura.

   Uma noite, na última semana, uma criança bateu à porta do consultório, no momento em que os dois médicos aviavam as suas receitas. Era uma rapariguita esfarrapada, de cara suja e pés descalços. Philip abriu a porta.

   - Por favor, sr. doutor, pode vir agora a casa de Mrs. Fletcher, em Ivy Lane?

   - Que tem Mrs. Fletcher? - gritou o dr. South, com a sua voz áspera.

   A pequena não tomou conhecimento da pergunta. Tornou a dirigir-se a Philip:

   - Por favor, o filhinho dela sofreu um acidente. Pode ir lá depressa?

   - Diga a Mrs. Fletcher que já vou - berrou o dr. South.

   A rapariguinha hesitou um momento e, pondo o dedo sujo na boca suja, ficou a olhar em silêncio para Philip.

   - Que há, pequena? - perguntou Philip sorrindo.

   - Desculpe, _Mrs. Fletcher mandou perguntar se podia ir o doutor novo...

   Ouviu-se um ruído no laboratório; o dr. South saiu para o corredor.

   - Mrs. Fletcher não está satisfeita comigo? - ladrou ele. - Tenho atendido Mrs. Fletcher desde que ela nasceu. Por que não hei-de ser digno de tratar também daquele fedelho imundo?

   A pequena deu, por um instante, a impressão de que ia desfazer-se em pranto, mas depois pareceu resolver o contrário. Deitou a língua de fora ao dr. South e, antes que ele pudesse refazer-se da surpresa, deitou a correr com quantas pernas tinha. Philip viu que o velho médico estava contrariado.

   - O senhor parece um tanto fatigado e daqui a Ivy Lane é uma boa caminhada - disse, querendo dar ao outro uma desculpa para não ir.

   O dr. South deixou escapar um grunhido surdo.

   - Fica muito mais perto para um homem que pode usar ambas as pernas do que para um homem que só tem perna e meia.

   Philip corou e guardou silêncio por momentos.

   - Quer que eu vá ou quer ir? - perguntou por fim, friamente.

   - De que vale eu ir? Eles preferem-no a si.

   Philip pegou no chapéu e foi ver o doente. Quando voltou eram quase oito horas. O dr. South estava de pé, na sala de jantar, com as costas voltadas para a lareira.

   - Demorou-se bastante - observou.

   - Sinto muito. Por que não começou a jantar?

   - Porque achei melhor esperar. Esteve todo esse tempo em casa de Mrs. Fletcher?

   - Não, não estive. Parei para olhar o pôr-do-Sol, na volta, e esqueci-me das horas.

   O dr. South não respondeu e a criada trouxe carapaus assados na grelha. Philip comeu com excelente apetite. De súbito, o dr. _South atirou-lhe uma pergunta.

   - Por que ficou a olhar o pôr-do-Sol?

   Philip respondeu, com a boca cheia:

   - Porque me sentia feliz.

   O dr. South lançou-lhe um olhar esquisito e a sombra de um sorriso aflorou-lhe ao rosto velho e cansado. Continuaram a comer em silêncio, mas, quando a criada lhe serviu vinho do Porto e deixou a sala, o velho reclinou-se na cadeira e fixou os olhos penetrantes em Philip.

   - Você ficou um pouco picado quando falei no seu defeito físico, hem, meu rapaz? - perguntou.

   - _é o que toda a gente faz directa ou indirectamente quando se zanga comigo.

   - Sem dúvida, sabem que esse é o seu ponto fraco.

   Philip encarou-o com olhar firme

   -- Está muito satisfeito por ter descoberto isso?

O doutor não respondeu, mas soltou uma risada gutural de amarga alegria. Ficaram sentados por um instante, a olhar-se. Depois, o velho deixou Philip extremamente surpreendido com estas palavras:

   - Por que não fica aqui comigo? Livrar-me-ei desse idiota da amigdalite.

   - _é muita bondade sua, mas no Outono espero conseguir um lugar no hospital. Isso vai ajudar-me a obter outro posto, mais tarde.

   - Estou a oferecer-lhe sociedade - disse o dr. South com ar rabugento.

   - Porquê? - indagou Philip, surpreendido.

   - Parece que gostam de si nesta terra.

   - Nunca pensei que esse facto encontrasse a sua aprovação - retorquiu Philip, secamente.

   - Acha então que, depois de quarenta anos de prática, dou a mínima importância a essa história da clientela preferir o meu assistente a mim? Não, meu amigo. Não há o menor laço afectivo entre num e os meus doentes. Deles não espero gratidão alguma. Espero apenas que paguem as contas. Então, que diz?

   Philip não respondeu, não porque estivesse a pensar na proposta, mas porque estava atónito. Era, evidentemente, coisa rara oferecer alguém sociedade a um médico recém-formado. E Philip percebia, admirado, que, embora nada o induzisse a confessá-lo, o dr. South simpatizara com ele. Pensou em como se divertiria o secretário do Hospital de S. Lucas quando lhe contasse.

   - A clínica rende cerca de setecentas libras por ano. Podemos calcular quanto valeria a sua parte. Você pagar-me-ia aos poucos. E, quando eu morresse, ficaria no meu lugar. Acho que isso é melhor do que andar a bater com a cabeça pelos hospitais dois ou três anos e aceitar depois lugares de assistente até poder trabalhar por conta própria.

   Philip sabia que estava ali uma oportunidade que a maioria dos seus colegas se apressaria a segurar com ambas as mãos. Havia médicos de mais e metade deles aceitaria, agradecida, uma situação segura como aquela, ainda que modesta.

   - Sinto muitíssimo, mas não posso - disse. - Isso significa desistir de tudo por que suspirei durante anos. De um modo ou de outro, passei tempos duros, mas sempre tive diante de mim a esperança de me formar para poder viajar e agora, quando acordo pela manhã, os meus próprios ossos sentem o desejo de viajar... Ir, pouco importa para onde, mas ir, ver lugares onde nunca estive.

   Agora a meta parecia-lhe muito mais próxima. Terminaria o seu estágio no "_S. Lucas", em meados do ano seguinte e depois iria a Espanha. Tinha recursos para passar lá alguns meses, a vaguear naquela terra que para ele era sinónimo de romance: Depois, embarcaria para o Oriente. Tinha a vida diante de si e o tempo nada lhe importava. Podia errar, durante anos, se quisesse, no meio de estranha gente, por lugares desconhecidos, onde a vida assumia estranhos aspectos. Não sabia que procurava ou que coisas essas viagens lhe podiam trazer. Mas tinha o pressentimento de que havia de aprender algo de novo sobre a vida e obter uma chave do mistério que solucionara, apenas para achá-lo depois mais misterioso ainda. E, mesmo que nada encontrasse, pelo menos aliviaria a inquietação que lhe roía o peito. Mas o dr. South dava-lhe uma prova de grande bondade e parecia-lhe ingratidão recusar o seu oferecimento sem lhe dar uma razão aceitável. Assim, com o seu feitio tímido, procurando parecer tão natural quanto possível, fez uma tentativa para explicar por que lhe era tão importante a realização dos planos que acariciara com tanta paixão.

   O dr. South escutou-o em silêncio e uma expressão de ternura lhe veio aos velhos olhos astutos. O facto de o médico não insistir para que lhe aceitasse a proposta pareceu a Philip outro acto de bondade. A benevolência é quase sempre muito peremptória. O velho pareceu achar boas as razões de Philip. Mudando de assunto, começou a falar na sua mocidade. Estivera na Armada e fora por causa do seu longo trato com o oceano que, ao reformar-se, se estabelecera em Farnley. Contou a Philip os seus remotos dias no Pacífico e doidas aventuras na China. Tomara parte numa expedição contra os caçadores de cabeças de Bornéu e conhecera a Samoa ainda Estado independente. Estivera nas ilhas de coral. Philip escutava-o, arrebatado. Pouco a pouco o dr. South passou a falar de si próprio. Era viúvo, morrera-lhe a mulher havia trinta anos e a filha casara-se com um fazendeiro da Rodésia. Desaviera-se com o genro e havia dez anos que a filha não vinha a Inglaterra. Era como se nunca tivesse tido mulher ou filha. Vivia muito solitário. A sua rabugice pouco mais era do que uma couraça com que procurava ocultar uma desilusão completa. Para Philip, era trágico vê-lo ali simplesmente a esperar a morte, não com impaciência mas com certa aversão; odiava a velhice e não podia resignar-se às suas limitações. No entanto, tinha a impressão de que a morte era a única solução para a amargura da sua existência. Philip surgira-lhe no caminho e a afeição natural que a longa separação da filha matara - pois ela tomara o partido do marido, e o velho nunca chegara a ver os netos - voltava-se agora para Philip. A princípio, isso deixara-o agastado e dissera consigo que era um sinal de senilidade. Mas havia em Philip alguma coisa :, que o atraía e descobria-se a sorrir para o rapaz sem saber porquê. Philip não o enfastiava. Uma ou duas vezes, o dr. South pôs-lhe a mão no ombro. Desde que a filha deixara a Inglaterra, havia tantos anos, fora aquele, de todos os gestos que fizera, o que mais se aproximava de uma carícia. Quando chegou o dia de Philip partir, o dr. South acompanhou-o até à estação. Sentia-se estranhamente deprimido.

   - Foi uma temporada admirável - disse Philip. - O senhor foi muito bondoso comigo.

   - Deve estar contente por ir-se embora, não é assim?

   - Fui muito feliz aqui.

   - Mas quer ver o mundo, não é isso? Ah! Tem a mocidade. - Hesitou um momento. - Não esqueça que, se mudar de ideia, a minha proposta continua de pé.

   - _é uma grande bondade sua.

   Philip apertou-lhe a mão, da janela da carruagem, e o comboio pôs-se em movimento. Philip pensou na quinzena que ia passar nos campos de lúpulo. Sentia-se feliz à ideia de tornar a ver os amigos e estava radiante porque o dia estava bonito. O dr. South, porém, voltou a passos tentos para a sua casa vazia. Sentia-se muito velho e muito só.

 

   Era já bastante noite quando Philip chegou a Ferne. Era a aldeia natal de Mrs. Athelny, que estava acostumada a, desde menina, auxiliar a colheita de lúpulo. Dirigia-se para lá todos os anos, com o marido e os filhos. Como muitos dos habitantes de Kent, a família fazia aquilo muito satisfeita por ganhar algum dinheiro, mas considerando especialmente aquela excursão anual, esperada com meses de antecedência, como a melhor das férias. O trabalho não era pesado: fazia-se em comum, ao ar livre, e para as crianças significava um longo e delicioso piquenique. Ali os rapazes encontravam-se com as raparigas. Nos longos crepúsculos, quando o trabalho terminava, passeavam pelas ruelas, em pares amorosos. E à época da colheita de lúpulo costumavam seguir-se muitos casamentos. Saíam em carros com roupas de cama, marmitas, panelas, cadeiras e mesas. Ferne, enquanto durava a colheita, ficava deserta. Muito exclusivistas, os habitantes do lugar não gostavam da intromissão de "estrangeiros", que era o nome que davam aos que vinham de Londres. Olhavam para eles com desprezo e ao mesmo tempo com temor. Eram gente turbulenta e os dignos camponeses não queriam misturar-se com eles. Nos velhos tempos, os trabalhadores da colheita dormiam em celeiros mas, havia dez anos, erguera-se uma fila de choças :, de ambos os lados de um prado. Os Athelny, como muitos outros, ficavam todas as temporadas com a mesma choça.

   Athelny foi esperar Philip à estação, num carro que pedira emprestado na hospedaria onde lhe reservara um quarto. Dali ao campo de lúpulo, a distância era de um quarto de milha. Deixaram lá a mala de Philip e dirigiram-se para o prado, onde ficavam as choças. Estas não passavam de barracões compridos e baixos, divididos em pequenos quartos de cerca de quatro metros de lado. Na frente de cada uma delas, via-se uma fogueira de gravetos, ao redor da qual se agrupava a família, que olhava com interesse para a ceia que estava a cozinhar. O ar do mar e o sol tinham bronzeado as faces dos filhos de Athelny. Mrs. Athelny estava outra, no seu chapéu de abas largas: sentia-se que os longos anos de cidade não lhe tinham produzido nenhuma modificação real; era uma mulher nascida e criada naquela vida e podia ver-se que se sentia mais em casa quando estava no campo. Estava a fritar toucinho e ao mesmo tempo não perdia de vista os filhos mais novos. Teve, porém, para Philip, um cordial aperto de mão e um sorriso satisfeito. Athelny mostrava-se entusiasmado com os encantos da vida rural.

   - Vivemos famintos de sol e de luz, nas cidades onde moramos. Isso não é vida, é uma longa prisão. Vamos vender tudo quanto temos, Betty, e comprar uma granja na província.

   - Já estou a ver-te no campo - respondeu ela com um desdém bem-humorado. - Ora! No primeiro dia de chuva que tivéssemos no Inverno, chorarias por Londres. - E, para Philip: - O Athelny é sempre assim quando vem para cá. Granja, essa é muito boa! Se não sabe diferençar um nabo de uma beterraba.

   - O pai esteve muito preguiçoso hoje - observou Jane, com a sua franqueza de sempre. - Não chegou a encher uma caixa.

   - Estou a adquirir prática, menina, e amanhã encherei mais caixas do que vocês todos juntos.

   - Venham comer, meninos! - disse Mrs. Athelny. - Onde está Sally?

   - Estou aqui, mãe.

  Saiu da choça e as chamas da fogueira projectaram-lhe no rosto uma cor viva. Ultimamente, Philip apenas a vira com os trajes elegantes que ela usava desde que estava no *atelier* de costura. Havia algo de encantador no vestido estampado que trazia agora; ficava-lhe folgado, facilitando-lhe o trabalho; as mangas arregaçadas, deixavam à mostra os seus braços fortes e roliços. Usava também um chapéu de largas abas.

   - Pareces uma camponesa de contos de fadas -- disse Philip ao apertar-lhe a mão.

   - _é a beldade dos campos de lúpulo - disse Athelny. - Palavra de honra, se o filho do senhor do castelo a vir, na certa vai pedi-la em casamento antes que o diabo tenha tempo de esfregar um olho.

   - O proprietário não tem filhos, pai - disse Sally.

   Olhou em torno, procurando onde sentar-se e Philip arredou-se para lhe dar um lugar a seu lado. Iluminada pelas chamas da fogueira, estava magnífica. Era como uma deusa campestre e fazia pensar nessas raparigas frescas e robustas que o velho Herrick cantou em metro esquisito. A ceia foi simples: pão com manteiga, torresmos, chá para as crianças e cerveja para o casal Athelny e para Philip. Athelny, que comia vorazmente, elogiava em alta voz tudo quanto levava à boca. Lançava palavras de desdém contra Lúculo e amontoava invectivas sobre Brillat-Savarin.

   - Essa qualidade tens tu, Athelny - disse a mulher. -Gostas de comer e não te enganas no caminho.

   - Contanto que seja feito pelas tuas mãos, minha Betty...  - replicou ele, esticando um dedo eloquente.

   Philip sentia-se muito à vontade. Olhava, feliz, para a série de fogueiras, para a gente que se agrupava em torno delas e para a cor das chamas contra a noite. Na extremidade do prado, via-se um renque de grandes olmos e, por cima deles, o céu estrelado. As crianças falavam e riam e Athelny, criança também no meio delas, fazia-as morrer de riso com as suas artimanhas e fantasias.

   - Todos têm o Athelny em grande conta - comentou a mulher - Vejam: Mrs. Bridges disse-me que não sabia o que fariam se o Athelny não estivesse aqui. Anda sempre entusiasmado com alguma coisa, mais parece um menino de colégio do que um pai de família.

   Sally guardava silêncio mas rodeava Philip de atenções que o encantavam. Era agradável tê-la a seu lado e, de quando em quando, lançar um rápido olhar àquele rosto sadio e queimado do sol. Uma vez encontrou-lhe os olhos e ela sorriu tranquilamente. Quando a ceia terminou, Jane e o irmão mais pequeno foram buscar, ao regato que corria ao fundo do prado, um balde de água para lavar os pratos.

   - Meninos, mostrem ao tio Philip onde dormimos e depois vão para a cama.

   Agarrado pelas mãos das crianças, Philip foi arrastado até à choça. Entrou e riscou um fósforo. Não havia mobília e, a não ser um baú em que se guardavam as roupas, não se via ali mais nada além das camas, que eram em número de três e ficavam encostadas às paredes. Athelny seguiu Philip e mostrou-as com orgulho.

   - _é nisto que dormimos - exclamou. - Nada de enxergões de molas e colchões de penas. Nunca dormi tão bem como aqui. Quanto a ti, dormirás entre lençóis. Meu caro amigo, compadeço-me do fundo do coração.

   As camas consistiam numa grossa camada de lúpulo, sobre a qual havia outra de palha, esta por sua vez coberta por um lençol. Depois de um dia ao ar livre, cercados pelos aromas do lúpulo, os alegres segadores dormiam um sono de pedra. _às nove horas, reinava silêncio no prado e estavam todos na cama, excepto um ou dois homens que ainda se demoravam na hospedaria e não voltavam senão às dez, hora de fechar. Athelny foi até lá em companhia de Philip, mas antes de partirem Mrs. Athelny disse-lhe:

   - Tomamos o chá de manhã ao quarto para as seis, mas acho que o senhor não se levantará tão cedo. _é que temos de começar a trabalhar às seis, compreende?

   - Está claro que deve levantar-se cedo - exclamou Athelny - e trabalhar como todos nós. Tem de ganhar a sua comida. Quem não trabalha não come, meu rapaz.

   - Os pequenos vão banhar-se antes do chá e podem chamá-lo quando voltarem. Eles passam pelo "_Alegre Marinheiro".

   - Se me acordarem a tempo, irei tomar banho com eles -disse Philip.

   Jane, Harold e Edward gritaram de satisfação ante essa ideia e, na manhã seguinte, Philip foi acordado de um sono profundo pela entrada barulhenta das crianças. Os rapazes saltaram-lhe para cima da cama e ele teve de tirá-los dali a chineladas. Vestiu um casaco e um par de calças e desceu. O dia acabava de romper e havia uma frialdade no ar, mas no céu sem nuvens o Sol brilhava, cor de ouro. Sally, segurando a mão de Connie, estava parada no meio do caminho, com uma toalha e um fato de banho no braço. Philip via agora que o seu chapéu era cor de alfazema e, contra ele, o rosto vermelho e bronzeado dava a impressão de uma maçã. Ela saudou-o com o seu sorriso lento e suave e Philip notou de súbito que os dentes eram pequenos, regulares e muito brancos. Por que nunca prestara atenção?

   - Fui de opinião que deviam deixá-lo dormir - disse ela. - Mas quiseram ir acordá-lo. Eu disse que o senhor não queria ir, na verdade.

   - Ora, queria, sim.

   Foram pela estrada e depois atravessaram uma zona de charcos. Por um atalho, o mar ficava a menos de uma milha. A água parecia fria e cinzenta e Philip só ao vê-la sentiu calafrios. Os outros, porém, tiraram as roupas e correram para o mar, gritando. Sally fazia tudo com certa lentidão e só entrou na água quando todos já chapinhavam em torno de Philip. A natação era o único desporto do rapaz, que se sentia à vontade dentro de água. Começou a fazer de porco-marinho, de afogado e de senhora gorda que não quer molhar o cabelo. Em breve, a garotada em peso o imitava. O banho foi barulhento, sendo necessário que Sally se mostrasse bastante severa para que todos saíssem da água.

   - O senhor é pior do que eles - disse a Philip, no seu modo grave e maternal que era a um tempo tocante e cómico. - Eles não eram assim tão travessos quando o senhor não estava.

   Voltaram. Sally, com o cabelo reluzente a escorrer-lhe pelos ombros e o chapéu na mão. Mas, quando chegaram à choça, Mrs. Athelny já tinha saído para o campo de lúpulo. Athelny, metido nas calças mais velhas que um mortal já usara, a jaqueta abotoada até cima, para não mostrar que estava sem camisa, e um chapéu enorme na cabeça, fritava arenques numa fogueira de gravetos. Estava encantado consigo próprio: era um bandoleiro dos pés à cabeça. Logo que viu o bando aproximar-se, começou a berrar o coro das feiticeiras de *_Macbeth* por cima dos odorosos arenques.

   - Comam sem demora, senão a mãe zanga-se - disse quando chegaram.

   E, dentro de poucos minutos, Harold e Jane, levando fatias de pão com manteiga nas mãos, saíram todos a correr pelo prado e entraram no campo de lúpulo. Foram os últimos a chegar. A paisagem dos campos de lúpulo estava ligada à infância de Philip e os fornos de lúpulo eram para ele a feição mais típica do condado de Kent. Foi sem a menor sensação de estranheza, mas como se estivesse em casa, que seguiu Sally através das longas linhas de lúpulo. O sol estava brilhante e projectava sombras nítidas. Philip deliciou os olhos na riqueza das folhas verdes. O lúpulo amarelecia e tinha para ele a beleza e a flama que os poetas vêem nos pâmpanos da Sicília. Enquanto caminhavam Philip sentia-se assombrado pelo esplendor da cena. Um odor suave subia do solo fértil de Kent e a brisa caprichosa de Setembro estava impregnada do agradável aroma do lúpulo. Athelstan sentiu instintivamente a alegria da cena, pois ergueu a voz e começou a cantar. Era a voz rachada de um rapaz de quinze anos e Sally voltou a cabeça.

   - Está calado, Athelstan, senão vamos ter tempestade.

   Daí a pouco ouviram um zunzum de vozes, e dentro de instantes reuniram-se aos colhedores. Estavam todos a trabalhar activamente, falando e rindo enquanto trabalhavam. Sentavam-se em cadeiras, em mochos, em caixas, tendo ao lado os seus cestos e alguns ficavam ao pé do cesto, e atiravam para dentro dele o lúpulo que colhiam. Havia um bando de crianças por ali, e muitas outras, ainda de colo, em berços improvisados, ou enroladas em cobertores, em cima da terra parda, macia e seca. As crianças trabalhavam pouco e brincavam muito. As mulheres debulhavam com afinco; desde crianças, estavam habituadas à colheita e produziam duas vezes mais do que os "estrangeiros" de Londres. Vangloriavam-se do número de alqueires que colhiam por dia, mas queixavam-se de que não ganhavam agora tanto dinheiro como nos velhos tempos: antigamente, pagavam-lhes :, um xelim por cinco alqueires, mas agora tinham de colher oito e até nove alqueires para ganhar um único xelim. Em épocas passadas, um bom colhedor podia ganhar durante a temporada o bastante para manter-se o resto do ano, mas as coisas tinham mudado. Conseguiam-se as férias gratuitas, e quase só isso. Mrs. Hill comprara um piano com o que ganhara na colheita, pelo menos era o que constava; mas era muito sovina, ninguém queria ser assim, e a maioria achava que isso não passava de conversa fiada e que, se a verdade fosse dita, talvez descobrissem que ela gastara na compra algum do dinheiro que tinha no Banco.

   Os trabalhadores estavam divididos em grupos de dez, sem contar as crianças, E Athelny vangloriava-se em alta voz de um dia poder organizar um grupo formado inteiramente por membros da sua família. Cada companhia tinha o "encarregado da caixa", cuja tarefa era trazer-lhe os cachos de lúpulo. Consistiam essas caixas num grande saco metido numa armação de madeira de cerca de sete pés de altura, e longas fileiras delas eram colocadas entre as alas de lúpulo. E era essa posição que Athelny aspirava para quando a família estivesse em condições de formar um grupo. Enquanto isso não acontecia, a sua actividade consistia mais em animar os outros do que propriamente em trabalhar. Dirigiu-se negligentemente para Mrs. Athelny, que trabalhava havia meia hora e já despejara um cesto na caixa, e, com o cigarro nos lábios, começou a debulhar. Afirmou que produziria mais do que todos, com excepção da mulher. Claro que ninguém trabalhava tanto como ela. Isso trouxe-lhe à lembrança as provas impostas por Afrodite à curiosa Psiqué. E pôs-se a contar às crianças a história de amor de Psiqué pelo esposo invisível. Contava-a muito bem. A Philip, que escutava com um sorriso nos lábios, a velha lenda parecia enquadrar-se maravilhosamente na cena. O céu estava muito azul e, pensava ele, não podia ser mais adorável, mesmo na Grécia. As crianças, com os seus cabelos louros e faces rosadas, fortes, sadias e vivazes; a delicada forma dos cachos de lúpulo; o esmeralda atrevido das folhas, como um clangor de trombetas; a magia da alameda verde, que se estreitava até convergir num ponto, à distância; os trabalhadores com os seus grandes chapéus de palha: talvez houvesse, nisso tudo, mais espírito grego do que se poderia encontrar nos livros dos professores ou nos museus. Philip dava graças pela beleza da Inglaterra. Pensou nas coleantes estradas, orladas de sebes, nas pradarias verdes com os seus álamos, na linha suave dos outeiros coroados de pequenos bosques, na superfície rasa dos pântanos e na melancolia do Mar do Norte. Comprazia-se em sentir aquele encanto. Mas, em dado momento Athelny ficou inquieto e anunciou que ia ver como estava a mãe de Robert Kemp. Conhecia toda a gente e tratava todos pelo nome próprio. Sabia a história das suas famílias e de tudo quanto :, lhes acontecera desde o nascimento. Com uma vaidade inofensiva, Athelny fazia o papel de homem do mundo no meio deles. Havia na sua familiaridade um quê de condescendência. Philip não quis acompanhá-lo.

   - Tenho de ganhar o meu almoço - disse.

   - Muito bem, meu rapaz - respondeu Athelny com um grande gesto, afastando-se em passadas lentas. - Quem não trabalha não come.

 

   Philip, que não tinha cesto, sentou-se ao lado de Sally. Jane achava monstruoso que ele ajudasse a irmã mais velha e não a ela. O tio Phil prometera-lhe trabalhar com ela, depois de encher o cesto de Sally. Esta era quase tão rápida no trabalho como a mãe.

   - Debulhar não estraga as mãos? - perguntou Philip.

   - Oh! Não. É preciso ter as mãos macias. _é por isso que as mulheres são melhores debulhadoras do que os homens. Quem tem a mão dura e os dedos vagarosos não pode fazer este serviço como deve ser.

   Gostava de ver os movimentos ágeis da rapariga e Sally, por sua vez, mirava-o com aquele seu jeito maternal tão divertido e ao mesmo tempo tão encantador. Philip era desajeitado a princípio e a rapariga ria-se dele. Quando se inclinou para lhe mostrar a melhor maneira de debulhar, as mãos de ambos encontraram-se. Ele ficou surpreendido por vê-la corar. Não se persuadia de que Sally já era mulher feita. Porque a conhecera menina de tranças, não podia deixar de considerá-la ainda como uma criança. No entanto, o número de admiradores com que ela contava mostrava que Sally já não era criança. Embora estivesse ali havia poucos dias, já um dos primos a olhava tanto que todos começaram a fazer troça dela. Chamava-se Peter Gann e era filho da irmã de Mrs. Athelny, casada com um fazendeiro das proximidades de Ferne. Ninguém ignorava por que motivo ele achava necessário atravessar todos os dias a plantação...

   _às oito, um toque de trompa anunciou a primeira refeição, e, embora Mrs. Athelny dissesse que eles não a mereciam, nem por isso deixaram de comer com robusto apetite. Puseram-se de novo a trabalhar até ao meio-dia, quando outra vez soou a trompa, dando o sinal para o almoço. A intervalos, o medidor ia de caixa em caixa, acompanhado por um assentador que registava, primeiro no seu livro e depois na caderneta do debulhador, o número de alqueires de lúpulo debulhado. Logo que cada caixa se enchia, era medida em cestos de um alqueire cada um e despejada num enorme saco, o qual, por sua vez era levado pelo medidor, ajudado por :, outro homem, até uma grande carroça. Athelny voltou e, de quando em quando, vinha contar quanto Mrs. Heath ou Mrs. Jones haviam debulhado e concitava a família a bater uma e outra. Estava a procurar bater *records*, e às vezes, levado pelo entusiasmo, trabalhava firmemente durante uma hora. O que mais o divertia naquele trabalho, entretanto, era mostrar a beleza das suas mãos graciosas, das quais tinha excessivo orgulho. Gastava muito tempo a tratar delas. Contou a Philip, distendendo os dedos afilados, que os grandes de Espanha dormiam sempre com as mãos metidas em luvas untadas de óleo, a fim de lhes preservar a brancura. A mão que segurava a garganta da Europa, observava dramaticamente, era tão formosa e delicada como a de uma mulher. E olhava para as suas, enquanto debulhava cuidadosamente o lúpulo, suspirando de satisfação. Quando se cansou, enrolou um cigarro e discorreu com Philip sobre literatura. _à tarde, fazia muito calor. O trabalho não prosseguia tão activamente e a conversação diminuía. A tagarelice incessante da manhã minguava, reduzida a observações casuais. Minúsculas gotas de suor perlavam o lábio superior de Sally, que tinha a boca levemente entreaberta enquanto trabalhava. Era como um botão de rosa prestes a abrir.

   A hora do repouso dependia do estado do forno. Algumas vezes enchiam-no cedo e pelas três ou quatro horas já estava debulhada a quantidade máxima de lúpulo que podia secar durante a noite. Então, o trabalho parava. Mas em geral a última medição do dia começava às cinco. Medida a sua caixa, cada grupo reunia as suas coisas, debandava pelo campo e punha-se a tagarelar outra vez, agora que o trabalho estava terminado. As mulheres voltavam para as choças, a fim de dar banho às crianças e preparar o jantar, ao passo que uma boa parte dos homens descia pela estrada até a hospedaria. Um copo de cerveja sabia-lhes bem, após o dia de trabalho. A caixa dos Athelny era a última a ser medida. Quando chegou o medidor, Mrs. Athelny, com um suspiro de alívio, levantou-se e estirou os braços. Estivera sentada na mesma posição durante muitas horas e sentia o corpo dolorido.

   - Vamos agora ao "_Alegre Marinheiro!" - propôs Athelny. - Os ritos do dia devem ser devidamente observados, e não há nenhum mais sagrado do que esse.

   - Leva uma jarra contigo, Athelny - disse-lhe a mulher - e traz pinto e meio de cerveja para o jantar.

   Deu-lhe o dinheiro, vintém por vintém. O salão do bar já estava cheio. O chão era de areia, os bancos estavam dispostos em círculo. Nas paredes, viam-se retratos amarelos de campeões de boxe da época vitoriana. O dono da casa conhecia todos os fregueses pelo nome. Estava inclinado sobre o balcão, e sorria benignamente para dois rapazes que jogavam a malha. Quando :,  eles erravam, os espectadores riam a valer. Fez-se lugar para os recém-chegados. Philip ficou sentado entre um velho agricultor vestido de veludo frisado, com as calças afiveladas abaixo dos joelhos, e um rapaz de dezassete anos, de cara lustrosa e com uma grande mecha de cabelo, em forma de gancho, cuidadosamente colada na testa vermelha. Athelny insistiu em tentar a sorte nas malhas. Apostou meio pinto de cerveja e ganhou. Quando a bebia à saúde do vencido, disse:

   - Prefiro ganhar nisto a ganhar no Derby, meu rapaz.

   No meio daqueles campónios, tinha uma figura exótica, com o seu chapéu de abas largas e a barba em ponta, e era fácil ver que eles o achavam muito esquisito. Mas a disposição de Athelny era tão jovial e o seu entusiasmo tão contagioso, que era impossível não gostar dele. A conversação corria livremente. Trocaram-se algumas graças no sotaque lento e carregado da Ilha de Thanet e havia risadas estrepitosas às saídas do humorismo local. Uma agradável reunião! Era preciso ter o coração duro para não sentir um calor de afeição pelo próximo. Os olhos de Philip detiveram-se na janela, ainda batida pelo sol claro. Tinha pequenas cortinas brancas amarradas com fitas vermelhas, como as da janelas de uma vivenda, e viam-se no peitoril vasos de gerânios. Um a um, os desocupados ergueram-se e voltaram alegremente para o campo onde estava a preparar-se o jantar.

   - Espero que esteja pronto para se meter na cama - disse Mrs. Athelny a Philip. -Não está acostumado a levantar-se às cinco e ficar o dia inteiro ao ar livre.

   - Vai tomar banho com a gente, tio Phil, não vai?! - exclamaram os rapazes.

   - Claro que vou.

   Estava cansado e feliz. Depois do jantar, recostando-se na parede da choça, sentado numa cadeira sem respaldo, pôs-se a fumar o seu cachimbo e a olhar para a noite. Sally estava ocupada. Entrava e saía, e ele observava preguiçosamente os seus movimentos metódicos. O andar dela atraiu-lhe a atenção. Não era particularmente gracioso, mas fácil e seguro. O movimento das pernas partia dos quadris e os pés pisavam resolutamente o chão. Athelny saíra para tagarelar com um dos vizinhos e dentro em pouco Philip ouviu Mrs. Athelny dirigir-se a todos:

   - Ora esta, não tenho chá em casa! Queria pedir ao Athelny que o fosse comprar. - Depois de uma pausa, acrescentou: - Sally dá um pulo até a casa de Mrs. Black e traz meia libra de chá, sim? Estamos sem nenhum.

   - Está bem, mãe.

   Mrs. Black tinha uma casinha a cerca de meia milha dali, na estrada, e combinava as funções de agente do correio com a de provedora geral. Sally saiu da choça, descendo as mangas.

   - Queres que te acompanhe, Sally? - perguntou Philip.

   - Não se incomode. Não tenho medo de ir sozinha.

   - Sei que não tens medo, mas é que está a chegar a hora de dormir e estou com vontade de estender as pernas.

   Sally não respondeu e saíram juntos. A estrada estava branca e silenciosa. Nenhum ruído na noite de Verão. Não falaram muito.

   - Ainda faz calor - disse Philip.

   - Acho que está muito bom para a época do ano.

   O silêncio de ambos, porém, não parecia embaraçoso. Achavam agradável caminhar lado a lado e não sentiam necessidade de falar. De repente, perto de uma sebe de arbustos, ouviram cochichos e a silhueta de duas pessoas. Estavam sentadas muito juntas uma da outra e não se separaram à passagem de Philip e Sally.

   - Quem serão? - perguntou Sally.

   - Pareciam bastante felizes, não pareciam?

   - Com certeza pensaram que nós também somos namorados.

   Viram a luz da casinha que procuravam e entraram na pequena loja. A luz ofuscou-os por momentos.

   - Chegaram muito tarde - disse Mrs. Black. - Ia já fechar. - E, olhando para o relógio: - São quase nove.

   Sally pediu meia libra de chá (_Mrs. Athelny nunca se decidia a comprar mais de meia libra de cada vez) e de novo se puseram a caminho. De vez em quando, algum animal nocturno soltava um grito agudo e curto, mas isso parecia tornar o silêncio ainda mais pronunciado.

   - Creio que, se a gente parar, pode ouvir o barulho do mar - disse Sally.

   Apuraram o ouvido e imaginaram distinguir o suave ruído de pequenas ondas a lamber o cascalho. Ao tornarem a passar pela sebe, encontraram ainda ali os namorados, mas já não falavam; estavam nos braços um do outro, com os lábios colados.

   - Parece que estão muito ocupados - disse Sally.

   Dobraram um cotovelo da estrada e uma aragem tépida bateu-lhes nas faces. A terra desprendia frescura. Havia algo de estranho na noite trémula e alguma coisa, não se sabia quê, parecia estar à espera. O silêncio tornou-se, subitamente, prenhe de significação. Philip tinha um estranho pressentimento. O coração parecia-lhe muito cheio e como que prestes a rebentar. (_Estas frases estafadas exprimiam precisamente a curiosa sensação). Sentia-se feliz, ansioso e expectante. Vieram-lhe à memória os versos em que Jessica e Lorenzo murmuram entre si palavras melodiosas, terminando as frases um do outro, sem impedirem que a paixão transpareça clara e brilhante através dos conceitos que os divertem. Não sabia o que havia no ar que lhe despertava estranhamente os sentidos. Tinha a impressão de ser um puro espírito, a gozar dos :, perfumes, dos sons e dos sabores da terra. Jamais sentira tamanha e tão inefável capacidade para a beleza. Temia que Sally, falando, quebrasse o encantamento, mas a rapariga não disse palavra e Philip desejou ouvir o som da voz dela. O seu timbre grave e rico era a própria voz da noite campestre.

   Chegaram ao campo que ela devia atravessar para voltar à choça. Philip foi abrir-lhe a cancela.

   - Bom, Sally, vou dar-te aqui as boas-noites.

   - Muito obrigada, por me ter acompanhado.

   Estendeu-lhe a mão e, ao tomá-la, Philip disse:

   - Se fosses boazinha, davas-me o beijo de despedida, como todos os outros.

   - Está bem - respondeu ela.

   Philip falara por brincadeira. Queria simplesmente beijá-la, porque estava feliz, gostava dela e a noite era encantadora.

   - Boa-noite, então - disse com um sorriso breve, puxando-a para si.

   Ela estendeu-lhe os lábios. Eram quentes, macios e cheios. Ele demorou-se um pouco, eram como uma flor. Depois, sem saber porquê, sem o querer, enlaçou-a com os braços. Ela abandonou-se em silêncio. O seu corpo era rijo e forte. Sentiu o coração dela bater contra o seu. Então, perdeu a cabeça. Os sentidos transbordaram-lhe como uma torrente de águas impetuosas. Levou-a para a sombra mais escura da sebe.

 

   _Philip dormiu profundamente e acordou num sobressalto, para descobrir que Harold lhe fazia cócegas no rosto com uma pena. Ouviu-se um grito de satisfação quando abriu os olhos. Estava bêbado de sono.

   - Vamos, seu preguiçoso! - disse Jane. - Sally diz que não espera se o tio não andar depressa.

   Lembrou-se então do que acontecera. Sentiu o coração desfalecer e, já com os pés fora da cama, parou. Não sabia como enfrentá-la. Sentia-se oprimido por uma súbita onda de reprovação íntima e lamentou amargamente o que fizera. Que lhe diria ela naquela manhã? Temia o encontro e perguntava a si próprio como pudera cometer tal loucura. Mas as crianças não lhe deram tempo. Edward pegou-lhe nos calções de banho e na toalha. Athelstan puxou as roupas da cama e dentro de três minutos desciam todos ruidosamente para a estrada. Sally sorriu para Philip. Era um sorriso suave e inocente como o de sempre.

  - Quanto tempo levou para se vestir! Pensei que nunca mais vinha.  Não havia a mínima diferença no modo dela. Esperava alguma mudança, subtil ou abrupta. Imaginava descobrir vergonha ou ódio no seu modo de tratá-lo ou talvez algum aumento de familiaridade. Mas nada. Ela estava exactamente como sempre. Caminharam para o mar, juntos, falando e rindo. Sally mantinha-se silenciosa; mas era sempre assim, reservada e gentil. Estava assombrado. Esperava que o incidente da noite anterior tivesse causado alguma revolução nela, mas era exactamente como se nada tivesse acontecido. Como se tudo não passasse de um sonho. Segurando de um lado a mão de uma das meninas e do outro a de um garoto, enquanto caminhava a conversar da maneira mais despreocupada possível, Philip procurava uma explicação. Desejaria Sally que o caso fosse esquecido? Talvez os sentidos a tivessem arrastado como acontecera com ele e, encarando o que sucedera como um acidente devido a circunstâncias fora do comum, podia ser que ela tivesse decidido afastar o assunto da lembrança. Ele emprestava-lhe uma força de pensamento e uma sabedoria amadurecida que não se lhe ajustavam nem à idade nem ao carácter. Mas compreendeu que nada conhecia dela. Houvera sempre em Sally algo de enigmático.

   Saltaram ao eixo dentro de água e o banho foi tão ruidoso como o do dia anterior. Sally tinha a mesma atitude maternal para com todos, vigiando-os sempre e chamando-os quando se afastavam muito. Nadava discretamente, avançando e recuando, enquanto o resto do bando prosseguia na sua brincadeira. De vez em quando, voltava-se de costas para boiar. Em dado momento, saiu da água e começou a enxugar-se. Chamou os outros em tom mais ou menos peremptório e, por fim, só Philip permaneceu dentro de água. Aproveitou a oportunidade para nadar um bom pedaço. Estava mais acostumado à água fria nessa manhã e deliciava-se com aquela frescura salgada. Era agradável poder usar dos membros livremente e vencia a água com braçadas longas e firmes. Mas Sally, enrolada numa toalha, desceu para a beira da praia.

   - Tens de vir imediatamente, Philip - gritou ela, como se falasse a um menino confiado aos seus cuidados.

   E quando, com um sorriso divertido ante aquele tom autoritário, Philip se aproximou dela, Sally repreendeu-o.

   - _é uma travessura ficar tanto tempo na água. Tens os lábios roxos. E olha os dentes como batem!

   - Está bem. Já saio.

   Nunca lhe falara daquela maneira. Era como se o que acontecera lhe desse uma espécie de direito sobre ele e a rapariga o considerasse como uma criança a necessitar de desvelo. Dentro de poucos minutos, estavam vestidos e puseram-se a caminho. Sally reparou nas mãos dele.

  - Olha, estão completamente roxas.

   - Ora, não faz mal! _é só a circulação. Faço o sangue voltar num instante.

   - Deixa ver.

   Ela tomou-lhe as mãos e esfregou-as uma após outra, até lhes voltar a cor. Comovido e intrigado, Philip observava-a. Não lhe podia dizer nada, por causa das crianças e não encontrou os olhos dela. Estava, porém, certo de que eles não evitavam propositadamente os seus, era simplesmente por acaso que os olhares de ambos não se cruzavam. Durante o dia, nada de extraordinário notou na atitude de Sally. Talvez se mostrasse mais loquaz que de costume. Quando de novo se encontraram sentados no campo de lúpulo, contou à mãe que Philip se portara muito mal em não querer sair da água enquanto não ficara roxo de frio. Era incrível, mas parecia que o único efeito do incidente da noite anterior fora o despertar nela um sentimento de protecção para com ele: tinha o desejo natural que sentia em relação aos irmãos e irmãs.

   Só na noite seguinte, tornou a ver-se a sós com ela. Ela preparava o jantar e Philip estava sentado na relva, ao lado do lume. Mrs. Athelny fora fazer compras à aldeia e as crianças estavam espalhadas aqui e ali. Philip hesitou em falar. Estava muito nervoso. Sally ocupava-se do seu trabalho com uma tranquila competência e aceitava placidamente o silêncio que, para ele, era tão embaraçoso. Não sabia como começar. Sally raramente falava, a menos que lhe dirigissem a palavra ou que tivesse alguma coisa especial para dizer. Por fim ele não pôde suportar o silêncio.

   - Não estás zangada comigo, não, Sally? - lançou ele de súbito.

  A rapariga ergueu os olhos calmamente e olhou para ele sem comoção alguma.

   - Eu? Não. Por que havia de estar?

   Philip ficou pasmado e não respondeu. Ela levantou a tampa da marmita, mexeu o conteúdo e tornou a tapá-la. Um cheiro agradável se espalhou no ar. Sally tornou a olhar para ele, com um sereno sorriso que mal lhe separava os lábios. Era mais um sorriso dos olhos.

   - Sempre gostei de ti - disse ela.

   O coração de Philip bateu descompassado e sentiu o sangue subir-lhe às faces. Teve um riso forçado.

   - Não sabia isso.

   - Porque és um pateta.

   - Não sei por que gostas de mim.

   - Eu também não. - Pôs mais lenha na fogueira. - Vi que gostava de ti naquele dia em que chegaste lá a casa, depois de andares a dormir pelas ruas, e não tinhas comido nada, lembras-te? E eu e a mãe arranjámos-te a cama do Thorpe.

   Philip tornou a corar, pois não sabia que ela estava ao par daquele incidente. Lembrava-se com vergonha e horror.

   - Foi por isso que não quis saber dos outros. Lembras-te daquele rapaz com quem a mãe queria que eu casasse? Convidei-o para tomar chá porque ele me incomodou muito, mas sabia que não o aceitaria.

   Philip estava tão surpreendido que não atinava com o que dizer. Tinha no peito uma esquisita sensação. Não sabia o que fosse, a menos que se tratasse da felicidade. Sally mexeu a marmita uma vez mais.

   - Queria que os miúdos viessem de uma vez. Não sei onde se meteram. O jantar está pronto.

   - Queres que vá chamá-los? - perguntou Philip.

   Era um alívio falar de coisas práticas.

   - Não é má ideia, não, confesso... Lá vem a mãe.

   Depois, quando ele se levantou, encarou-o sem embaraço:

   - Queres que vá hoje à noite passear contigo, depois de meter os pequenos na cama?

   - Quero.

   - Então espera-me na cerca. Vou quando estiver livre.

   Ficou a esperá-la sob a luz das estrelas, encostado à sebe. Em torno, as amoras silvestres rebentavam em frutos. Da terra, evolava-se o luxurioso perfume da noite e o ar estava subtil e parado. O coração batia-lhe doidamente. Não podia compreender o que lhe acontecera. Associava o amor a gritos e lágrimas veementes, e nada disso havia em Sally. Mas não podia saber que outra coisa, além do amor, a teria levado a entregar-se. Mas amor, paixão por ele? Não se surpreenderia se ela escolhesse o primo, Peter Gann, que era alto, esbelto e forte, com o rosto queimado de sol e as passadas longas e fáceis. "_Que teria ela visto em mim?" - perguntava Philip a si próprio. Não sabia se ela o amava da mesma maneira como ele encarava o amor. E contudo... Estava convencido da pureza da rapariga. Tinha uma vaga intuição de que várias coisas se haviam combinado, coisas pelas quais ela se deixara influenciar inconscientemente. As fragrâncias embriagadoras do ar, do lúpulo e da noite, os instintos naturais da mulher, a ternura irresistível, uma afeição em que havia um pouco de mãe e outro pouco de irmã... e dera tudo quanto tinha para dar, porque o coração dela transbordava de caridade.

   Ouviu ruído de passos na estrada e uma figura surgiu da escuridão.

   - Sally... - murmurou.

   Sally aproximou-se da sebe, e com ela vieram os suaves e puros perfumes do campo. Parecia trazer consigo o odor do feno recém-cortado, a fragrância do lúpulo maduro e a frescura da :, relva nova. Os lábios dela eram macios e cheios contra os seus e aquele belo corpo vigoroso era firme nos seus braços.

   - Leite e mel - disse ele. - Tu és como leite e mel.

Fê-la fechar os olhos e beijou-lhe as pálpebras, primeiro uma e depois a outra. O braço dela, forte e musculoso, estava nu até ao cotovelo. Philip acariciou-o com a mão, admirando-lhe a beleza: brilhava nas trevas. Sally tinha a pele que Rubens pintava: o seu braço era branco, incrivelmente branco e transparente, e tinha dos lados uma penugem dourada. Era o braço de uma deusa saxónica, mas nenhuma imortal tinha aquela naturalidade deliciosa e doméstica. E Philip pensou num jardim de vivenda, cheio dessas flores caras ao coração de todos os homens, a malva-rosa e a rosa branca e vermelha chamada "_York-and-_Lancaster", o amor-perfeito, a margarida, a espora e a madressilva.

   - Como podes gostar de mim? - perguntou. - Sou insignificante, aleijado, vulgar e feio.

   Ela tomou-lhe a face com ambas as mãos e beijou-lhe os lábios.

   - _és um tolo, é o que tu és.

 

Terminada a colheita do lúpulo, Philip, levando no bolso a notícia da sua nomeação para o cargo de assistente de médico interno do Hospital de S. Lucas, voltou para Londres com os Athelny. Alugou um modesto alojamento em Westminster e assumiu as suas funções no começo de Outubro. O trabalho era interessante e variado. Cada dia aprendia alguma coisa nova. Via Sally amiúde. A vida sorria-lhe. Cerca das seis horas, estava livre, salvo nos dias de consulta, e então ia até à casa onde Sally trabalhava, esperá-la quando ela saía. Vários rapazes esperavam também a saída, no passeio fronteiro ou, um pouco distanciados, na primeira esquina. Duas a duas ou em pequenos grupos, as raparigas tocavam-se com o cotovelo e riam, ao reconhecê-los. No seu vestido negro, muito simples, Sally não lembrava a jovem camponesa que debulhava o lúpulo ao lado do amigo. Afastava-se rapidamente da casa, mas afrouxava o passo ao aproximar-se dele, encarando-o com o seu belo sorriso tranquilo. Caminhavam juntos pela rua apinhada de gente. Ele falava-lhe do seu trabalho no hospital e ela contava-lhe o que estivera a fazer naquele dia. Philip veio a saber o nome das raparigas com quem ela trabalhava. Sentia em Sally um restrito mas vivo senso do ridículo. Fazia sobre as raparigas ou os namorados, observações que o divertiam pela sua graça inesperada. Sally tinha um jeito bem característico de dizer as coisas: muito gravemente, como se não fosse nada engraçado; contudo, dizia-o com tanta agudeza que Philip irrompia num riso deliciado. A jovem olhava-o então de relance, vendo-se-lhe nos olhos sorridentes que não ignorava a sua veia cómica. Encontravam-se com um aperto de mão e despediam-se da mesma forma cerimoniosa. Uma vez Philip convidou-a a tomar chá com ele no seu quarto, mas ela recusou.

   - Não, isso não faço. Pareceria esquisito.

   Jamais trocavam uma palavra de amor. Ela parecia não desejar mais nada além da camaradagem daqueles passeios. No entanto Philip tinha a certeza de que ficava contente por estar a seu lado. Intrigava-o tanto quanto o intrigara no princípio. Não conseguia entender-lhe a conduta, mas quanto mais a conhecia, mais gostava dela. Era competente, sabia dominar-se e havia nela uma honestidade encantadora. Sentia-se que era possível confiar nela em qualquer circunstância.

   - _és imensamente boa - disse-lhe uma vez, a propósito de nada.

   - Acho que sou como toda a gente - respondeu ela.

   Ele sabia que não a amava. Era uma grande afeição o que sentia; gostava da sua companhia. Esta possuía o curioso dom de serená-lo. E, embora achasse ridículo por se tratar de uma costureirinha de dezanove anos, respeitava-a. Admirava-lhe a saúde perfeita. Era um esplêndido animal, sem defeitos. A perfeição física enchia-o sempre de uma admiração respeitosa. Ela fazia-o sentir-se indigno.

   Um dia, três semanas depois de voltarem a Londres, quando caminhavam lado a lado, notou que a rapariga mantinha um silêncio fora do comum. A serenidade da sua expressão estava alterada por uma leve ruga esboçada na testa.

   - Que tens, Sally? - perguntou.

   Ela não voltou os olhos para ele, mas conservou-os fitos em frente e a cor do rosto acentuou-se-lhe.

   - Não sei.

   Philip compreendeu logo o que ela queria dar a entender. O coração bateu-lhe de súbito, numa pancada brusca, e sentiu-se empalidecer.

   - Que queres dizer? Achas que estás?...

   Parou. Não pôde continuar. Nunca lhe passara pelo espírito a possibilidade de vir a acontecer uma coisa daquelas. Viu então que os lábios de Sally tremiam e que ela fazia um esforço para não chorar.

   - Ainda não tenho a certeza. Talvez não seja nada.

   Continuaram a caminhar em silêncio até que chegaram à esquina de Chancery Lane, onde ele sempre a deixava. Sally estendeu-lhe a mão e sorriu.

   - Não te preocupes com isso por enquanto. Esperemos o melhor.

   Ele prosseguiu o seu caminho, com os pensamentos num tumulto. Que idiota fora! Foi a primeira coisa que lhe ocorreu. Um abjecto, um miserável idiota! E repetiu isso para consigo uma dúzia de vezes, num acesso de raiva. Desprezava-se. Como fora meter-se em tal embrulhada? Mas, ao mesmo tempo, porque as ideias se lhe sucediam rápidas no cérebro e mesmo assim pareciam continuar juntas, numa confusão desesperada, como as peças de um brinquedo de armar vistas num pesadelo - ao mesmo tempo perguntava a si mesmo o que poderia fazer. Estava tudo tão claro diante dele! Tudo quanto desejara encontrava-se finalmente ao seu alcance. E agora a sua inconcebível estupidez erguera aquele novo obstáculo. Nunca fora capaz de vencer o que reconhecia ser defeito, no seu desejo resoluto de uma vida bem ordenada: era a paixão por viver no futuro. E ainda mal se instalara no trabalho do hospital, já se ocupava dos preparativos para as viagens. Muitas vezes procurara não pensar com excessiva minúcia nos seus planos de futuro. Isso só servia para provocar desânimo. Mas agora que a sua meta estava tão próxima, não via inconveniente em abandonar-se a um anseio a que era tão difícil resistir. Em primeiro lugar, queria ir a Espanha. Era essa a terra do seu coração e já agora estava imbuído do seu espírito, da sua cor e encanto, da sua história e grandeza. Sentia que essa terra tinha uma mensagem para ele em particular, uma mensagem que nenhum outro país lhe podia dar. Conhecia as velhas e soberbas cidades como se desde a infância tivesse palmilhado as suas ruas sinuosas: Córdova, Sevilha, Toledo, Leão, Tarragona, Burgos... Os grandes pintores da Espanha eram os pintores da sua alma e o sangue pulsava-lhe rápido ao imaginar-se em êxtase, face a face com aquelas obras que, mais do que quaisquer outras, eram significativas para o seu coração inquieto e torturado. Tinha lido os grandes poetas, mais característicos da sua própria raça do que os poetas de outras terras, porque pareciam ter tirado a sua inspiração não das correntes gerais da literatura mundial, mas directamente das planícies ressequidas e perfumadas e das montanhas desoladas do seu país. Mais alguns meses e iria ressoar-lhe nos ouvidos o idioma que lhe parecia mais expressivo da grandeza da alma e da paixão. O bom gosto dera-lhe a intuição de que a Andaluzia era demasiado mole e sensual, um pouco vulgar, mesmo, para satisfazer o seu ardor. A sua imaginação demorava-se de melhor grado entre as vastidões de Castela, varridas pelo vento, e a áspera magnificência de Aragão e Leão. Não sabia bem o que lhe haviam de dar aqueles contactos desconhecidos, mas sentia que tiraria deles uma força e uma resolução que o tornariam mais capaz de afrontar e compreender as maravilhas múltiplas de lugares mais distantes e mais estranhos. :, Porque aquilo era apenas o começo. Entrara em contacto com as várias companhias que aceitavam médicos nos seus vapores e sabia exactamente quais eram as suas rotas. Por homens que haviam viajado nelas, conhecia as vantagens e desvantagens de cada linha. Pôs de lado a "_Oriente", e a "_P. ç _O." Era difícil conseguir um posto nelas, e além disso o seu tráfego de passageiros dava pouca liberdade ao médico de bordo. Mas havia outras linhas de navegação que trabalhavam com grandes cargueiros, em desafogadas expedições ao Oriente, parando por períodos vários em toda a espécie de portos, desde um ou dois dias até uma quinzena. Assim, sobrava bastante tempo e muitas vezes era possível fazer-se uma pequena viagem pelo interior. A remuneração não era grande e a comida apenas tolerável. Por esse motivo, não havia muita procura de lugares e um homem diplomado por uma Faculdade londrina tinha as maiores probabilidades de conseguir colocação, se a solicitasse. Urna vez que não havia passageiros, além de um ou dois ocasionais, embarcando a negócios de um para outro porto fora da grande rota comum, a vida a bordo era agradável e cordial. Philip sabia de cor a lista dos lugares em que tocavam. E cada um deles evocava-lhe visões de um sol tropical, de uma cor mágica e de uma vida intensa, misteriosa e formigante. Vida! Isso era o que ele desejava. Afinal, entraria em contacto íntimo com ela. E talvez em Tóquio ou Xangai fosse possível passar para alguma outra linha e descer às ilhas do sul do Pacífico. Um médico era útil em qualquer parte. Talvez se lhe apresentasse ensejo de embrenhar-se na Birmânia, e que esplêndidas florestas na Samatra ou Bornéu não visitaria ele! Era ainda novo e o tempo não lhe dava cuidados. Não tinha laços em Inglaterra, não tinha amigos. Podia ir e vir pelo mundo durante anos, conhecendo a beleza, a maravilha e a multiplicidade da vida.

E agora acontecia aquilo! Afastou logo a possibilidade de que Sally estivesse enganada. Sentia uma estranha certeza de que os seus temores tinham fundamento. Afinal de contas, era tão provável... Qualquer pessoa podia ver que a Natureza construíra aquela rapariga para ser mãe. Sabia bem o que devia fazer. Não devia permitir que o incidente o fizesse desviar-se um passo sequer do seu caminho. Pensou em Griffiths; podia imaginar facilmente com que indiferença o rapaz teria recebido semelhante noticia. Julgá-la-ia um aborrecido contratempo e em seguida trataria de safar-se como pessoa atilada que era. Teria deixado a rapariga entregue a si própria, para que saísse da entaladela como melhor pudesse. Philip dizia para consigo que aquilo acontecera porque era inevitável. Nem ele nem Sally mereciam censuras. Ela era uma rapariga que conhecia o mundo e as realidades da vida; assumira aquele risco com os olhos abertos. Seria loucura permitir que tal acidente perturbasse todo o desenho da sua existência. :, Era uma das poucas pessoas que tinha consciência aguda da transitoriedade da vida. Sabia ser necessário tirar dela o melhor partido. Faria por Sally tudo quanto pudesse, dar-lhe-ia o dinheiro que fosse preciso. Um homem forte jamais deixaria que o desviassem dos seus propósitos.

   Philip dizia tudo isso de si para si, mas tinha a certeza de que não o faria. Simplesmente, não podia. Conhecia-se bastante.

   - Sou de uma fraqueza ridícula - resmungou, cheio de desespero.

   Sally mostrara-se boa e confiante para com ele. De modo algum poderia fazer uma coisa que, não obstante todo o seu raciocínio, achava horrível. Sabia que não teria sossego nas suas viagens, se levasse consigo o pensamento constante de tê-la tornado infeliz. Além disso, havia o pai e a mãe; tinham-no tratado sempre bem. Não era possível retribuir-lhe com ingratidão. A única coisa a fazer era casar com Sally o mais cedo possível. Escreveria ao dr. South a dizer que ia casar e estava disposto a aceitar-lhe a oferta, caso ela continuasse de pé. Aquela clientela de gente pobre era a única possível para ele. Lá, a sua deformidade não tinha importância e ninguém zombaria das maneiras simples de sua mulher. Era curioso pensar nela como sua mulher, dava-lhe uma estranha e suave sensação. E uma onda de ternura o assaltava ao pensar no filho que era dele. Não duvidava de que o dr. South ficasse satisfeito em tê-lo consigo. E imaginava a vida que levaria com Sally, naquela aldeia de pescadores. Teriam uma casinha com vistas para o mar e veria os possantes navios passarem ao largo, rumo a terras que jamais conheceria. Talvez fosse essa a resolução mais sábia. Cronshaw dissera-lhe que os factos da vida não têm importância para aquele que, pelo poder da fantasia, se mantém senhor dos reinos gémeos do tempo e do espaço. Era verdade. *_Para sempre tu amas e ela será bela*! (1)

 (1) Célebre verso da célebre *_Ode a um Vaso _Grego*, de _Keats. (*_N. do _R.*) 

 

   O presente de núpcias que daria à esposa seriam todas as suas grandes esperanças. Renúncia! Enlevado pela beleza desse gesto, Philip passou todo o serão a pensar nele. Estava tão agitado que não pôde ler. Teve a impressão de que o arrastavam para a rua. Subiu e desceu Birdcage Walk com o coração a pulsar de alegria. Mal podia conter a impaciência. Queria ver o contentamento de Sally quando lhe fizesse a proposta. Se não fosse tão tarde, teria ido procurá-la naquele mesmo momento. Já se imaginava nos longos serões que passaria com ela, na sala de estar tão confortável, com as cortinas ainda levantadas para que pudessem ver o mar. Ele, ocupado com os seus livros; ela, curvada sobre o trabalho; e a lâmpada velada tornava-lhe ainda mais belo o rosto adorável. Falariam sobre o filho, que ia crescendo, e, quando ela erguesse o rosto para ele, os seus olhos lampejariam de amor. E os pescadores e as mulheres, os seus clientes, viriam a sentir uma grande afeição por eles que, por seu turno, participariam das dores e prazeres daquela gente simples. Mas o seu pensamento voltava para o filho que seria de ambos! Já sentia em si uma apaixonada devoção pela criança. Pensava em correr-lhe a mão pelos pequeninos membros perfeitos. Sabia que seria linda. E poria nela todos os seus sonhos de uma vida rica e variada. Pensando na longa odisseia do seu passado, aceitava-a alegremente. Aceitava a própria deformidade que tão dura lhe fizera a vida. Sabia que ela lhe deformara também o carácter, mas percebia agora que graças a ela adquirira aquele poder de introspecção que tanto prazer lhe dava. Sem isso, jamais teria possuído a sua aguda apreciação da beleza, a paixão da arte e da literatura, o interesse no variado espectáculo da vida. O ridículo e o desprezo de que tantas vezes fora alvo haviam-lhe dado vida interior e feito desabrochar aquelas flores que, sabia-o ele, jamais perderiam a fragrância. Via, depois, que a normalidade era a coisa mais rara do mundo: todos tinham algum defeito de corpo ou de espírito. Lembrou-se de toda a gente que conhecera (o mundo inteiro parecia-se com um hospital, não tinha pés nem cabeça), via uma longa procissão deformada física e mentalmente, alguns com doença do espírito, fraqueza de vontade ou tendência para a embriaguez. Naquele momento podia sentir por todos eles uma santa compaixão. Eram desamparados instrumentos nas mãos de um acaso cego. Podia perdoar a Griffiths a sua traição e a Mildred a dor que lhe infligira. Não eram responsáveis pelas suas acções. A única atitude razoável era aceitar a parte boa dos homens e ter paciência com as suas faltas. As palavras do Deus agonizante atravessaram-lhe a memória:

*_Perdoai-lhes, meu Pai, porque eles não sabem o que fazem*.

 

   Tinha combinado encontrar-se com Sally no sábado, na *_National Gallery*. Ela ficara de vir assim que se visse livre do trabalho e consentira em almoçar com ele. Dois dias se haviam passado desde o último encontro de ambos e a sua exaltação não o deixara um só momento. Era porque se comprazia nessa sensação que não procurara vê-la. Ensaiara cuidadosamente tudo quanto lhe ia dizer e como o diria. Agora, a sua impaciência era insuportável. Havia escrito ao dr. South e tinha no bolso o telegrama que recebera dele naquela manhã: "*_Vou despedir idiota amigdalite.  

Quando vem?" Philip caminhava pela Parliament Sreet. O dia estava lindo e o Sol, claro e frio, fazia vibrar a luz na rua apinhada de gente. Havia ao longe, uma ténue brama que esbatia deliciosamente as linhas nobres dos edifícios. Atravessou _Trafalgar Square. De súbito, o coração deu-lhe um pulo no peito. Vira diante de si uma mulher que lhe pareceu ser Mildred. Tinha a mesma figura e caminhava arrastando levemente os pés, naquela sua maneira característica. Sem pensar, mas com o coração a pulsar desordenadamente, aproximou-se dela apressado. Mas, quando a mulher se voltou, viu que era uma desconhecida. O rosto era o de uma pessoa mais velha e a pele, amarelenta, estava vincada de rugas. Diminuiu o passo. Estava infinitamente aliviado, mas não era apenas alívio o que sentia: era desapontamento, também. Assaltou-o o terror de si próprio. Nunca se libertaria daquela paixão? Apesar de tudo, no fundo do coração, sentia que um anseio estranho e desesperado por aquela mulher vil ficaria sempre latente nele. Aquele amor causara-lhe tanto sofrimento, que sabia que nunca se livraria totalmente dele. Só a morte poderia saciar aquele desejo.

   Mas arrancou de si essa angústia. Pensou em Sally, com os  seus bondosos olhos azuis, e inconscientemente os lábios esboçaram um sorriso. Subiu os degraus da *_National Gallery* e sentou-se no primeiro salão, a fim de poder vê-la no momento em que ela entrasse. Sempre lhe dera uma sensação confortadora encontrar-se no meio de quadros. Não olhava para nenhum em particular, mas deixou que a magnificência das suas cores e a beleza das suas linhas lhe influenciassem a alma. Tinha a imaginação ocupada por Sally. Seria agradável tirá-la de Londres, onde ela parecia uma figura deslocada, qual flor do campo entre as orquídeas e azáleas de uma loja. Compreendera, no campo de lúpulo de Kent, que ela não pertencia à cidade. E estava certo de que a rapariga floresceria sob os céus suaves de Dorset, adquirindo beleza ainda mais rara. Sally entrou e ele levantou-se para ir ao seu encontro. Estava vestida de preto, com punhos brancos e um cabeção de cambraia. Apertaram-se as mãos.

   - Esperaste muito tempo?

   - Não. Dez minutos. Estás com fome?

   - Não muita.

   - Então sentemo-nos aqui um pouco, sim?

   - Como quiseres.

   Sentaram-se calmamente, lado a lado, sem falar. Philip gostava de tê-la perto de si. Sentia-se aquecido pela sua saúde radiante. Uma chama de vida cercava-a, qual aura resplandecente.

   - Então, como passaste? - disse por fim, com um breve sorriso.

   - Oh! Vai tudo bem. Foi rebate falso.

   - Sim?

   - Não ficas contente?

   Uma sensação extraordinária o invadiu. Estava certo de que a suspeita de Sally era fundada e nem por um instante lhe ocorrera que houvesse uma possibilidade de engano. Todos os seus planos foram subitamente derribados e a existência, traçada com tanto cuidado, não era mais do que um sonho que jamais se realizaria. Estava livre uma vez mais. Livre! Não precisava de desistir de nenhum dos seus projectos e a vida ainda estava nas suas mãos para fazer com ela o que quisesse. Não sentia nenhum júbilo, mas apenas consternação. O coração desfalecia-lhe. O futuro estendia-se numa vacuidade desolada. Era como se tivesse singrado a vastidão dos mares durante largos anos, por entre perigos e privações, para chegar finalmente a um porto seguro e, no momento de nele entrar, algum vento contrário se erguesse e o arrastasse outra vez para o largo. E porque demorara o espírito nessas frescas pradarias e agradáveis bosques da terra, o vasto deserto do oceano enchia-o de angústia. Faltava-lhe ânimo para tornar a enfrentar a solidão e a tempestade. Sally observava-o com os seus olhos claros.

   - Não estás contente? - repetiu ela. - Pensei que ficarias louco de alegria.

   Ele encarou-a com expressão ansiosa.

   - _não sei ao certo - murmurou.

   - _és engraçado. A maioria dos homens não diria isso.

   Philip compreendeu que se iludira. Não era a intenção de sacrifício que o levara a pensar em casamento, mas sim o desejo de ter uma mulher, um lar e uma afeição. E agora, que tudo isso parecia escorrer-lhe por entre os dedos, sentia-se tomado de desespero. Aquilo era a coisa que mais desejava no mundo. Que lhe importavam a Espanha e as suas cidades, Córdova, Toledo, Leão? Que significavam para ele os pagodes da Birmânia e as lagunas das ilhas do Pacifico? As Américas estavam ali, ao alcance da sua mão. Parecia-lhe que em toda a sua vida aspirara aos ideais que outros, com as suas palavras e escritos, tinham inculcado nele, e nunca seguira o desejo do seu próprio coração. A sua conduta fora influenciada pelo que julgava dever fazer e não pelo que desejava de toda a alma. Agora, punha tudo isso de lado com impaciência. Vivera constantemente no futuro e o presente sempre, sempre lhe fugira por entre os dedos. Os seus ideais? Pensou no desejo de formar um desenho complexo e belo com as miríades de factos insignificantes da vida: não vira também que o desenho mais simples, aquele segundo o qual o homem nasce, trabalha, casa, procria e morre, era de certo modo o mais perfeito? Podia bem ser que abandonar-se à felicidade fosse aceitar a derrota; mas era uma derrota melhor do que muitas vitórias.

   Relanceou os olhos para Sally, imaginando em que estaria ela a pensar e depois desviou o olhar.

   - Ia pedir-te que casasses comigo - disse.

   - Pensei que talvez o pedisses, mas não gostaria de te servir de estorvo.

   - Nunca o serias.

   - E as tuas viagens, a Espanha e tudo o mais?

   - Como sabes que quero viajar?

   - Ora, se não havia de saber! Quantas vezes te ouvi falar nisso com o pai, horas e horas!

   - Nada disso tem a menor importância para mim. - Fez uma pausa breve e acrescentou, num murmúrio baixo e rouco:                 

 - Não quero deixar-te! Não posso deixar-te.

   Ela não respondeu. Philip não saberia dizer em que ela pensava.

   - Não sei se queres casar comigo, Sally.

   Ela não se moveu e não havia sombra de comoção no seu rosto, mas não olhou para ele ao responder:

   - Se quiseres.

   - Mas tu não queres?

   - Ora, está claro que gostaria de ter a minha casa e já é tempo de tratar da minha vida.

   Ele sorriu de leve. Já a conhecia muito bem e aquele tom não o surpreendia.

   - Mas não queres casar *_comigo*?

   - Não casaria com mais ninguém.

   - Então está tudo resolvido.

   - A mãe e o pai é que vão ficar admirados, não achas?

   - Como me sinto feliz!...

   - E eu quero almoçar - respondeu ela.

   - Querida.

   Sorriu, agarrou-lhe a mão e apertou-a. Levantaram-se e saíram da Galeria. Pararam um momento na balaustrada, a olhar para Trafalgar Square. Trens e ónibus deslizavam rápidos para baixo e para cima, a multidão passava apressada em todas as direcções e o sol brilhava.

 

                                                                                            William Somerset Maugham

 

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