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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Idiota - p2 / Dostoiévski
O Idiota - p2 / Dostoiévski

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Idiota

 

Dois dias depois do estranho incidente na recepção em casa de Nastássia Filíppovna, com o qual finalizamos a primeira parte da nossa história, o Príncipe Míchkin seguiu inesperadamente para Moscou a fim de receber a sua inesperada fortuna. Foi dito que devia ter havido outros motivos para tão apressada partida; mas quanto a isso e quanto às aventuras do príncipe durante a sua ausência de Petersburgo pouca informação podemos dar. Esteve ausente seis meses; e mesmo aqueles que tinham razões para se interessarem por seu destino durante todo esse tempo, pouco vieram a saber. Mesmo os boatos que até eles chegaram espaçadamente foram, em sua maioria, estranhos e quase sempre contraditórios. A família Epantchín, naturalmente, tomou mais interesse do que quaisquer outras pessoas, apesar dele se ter ido embora sem mesmo se despedir. O General Epantchín viu-o duas ou três vezes; tiveram certa conversação séria. Mas, embora o tendo visto, não fez menção à família. E no começo, com efeito, no mínimo por um mês epois da partida do príncipe, o seu nome foi evitado pelos Epantchín.

Só a generala, logo no começo, dissera “que se havia enganado cruelmente com o príncipe”. Dois ou três dias depois acrescentara, vagamente, sem mencionar o nome de Míchkin, “que a coisa mais chocante da sua vida era o modo por que continuamente se enganava a respeito de pessoas”. E, finalmente, uns dez dias depois, ao se zangar com as filhas, explodiu, acrescentando judiciosamente:

“Basta de tantos erros. Basta, daqui por diante.”

Devemos esclarecer que durante certo tempo a atmosfera sentimental da casa foi insuportável. Havia uma sensação de mal-estar como que de indizível discórdia. A atmosfera era tensa, pesada. Todo o mundo andava amuado. O general vivia atarefadíssimo, dia e noite, absorvido em seu trabalho. A família quase não o via, mais. Raramente fora visto, antes, tão ocupado e ativo, especialmente no que concernia ao seu trabalho oficial. Quanto às meninas, nunca falavam abertamente uma palavra que fosse. Mesmo quando juntas sozinhas, muito pouco diziam. Eram moças orgulhosas, de brio, fechadas mesmo umas com as outras, embora se compreendessem entre si, não só com a palavra como com o olhar, nem sempre, pois lhes sendo preciso falar muito.

Havia apenas uma conclusão a ser tirada por um observador neutro, caso houvesse algum: isto é, que a julgar pelos fatos acim mencionados, aliás bem poucos, o príncipe conseguira deixar fort impressão na família Epantchín, apesar de só ter estado com eles uma única vez e isso mesmo por tempo bem curto. Talvez o sentimento que ele inspirou não passasse de mera curiosidade despertada por suas aventuras excêntricas.

Pouco a pouco os boatos que tinham circulado através da cidade se foram perdendo nas trevas da incerteza.

Contava-se, com efeito, a história de certo principezinho muito ingênuo (ninguém lhe sabia o nome), que entrara inesperadamente na posse de vasta fortuna, e que se casara com uma mulher francesa, uma notória dançarina de cancã do Château des Fleurs de Paris. Diziam outros, porém, que fora um general que se metera nos dinheiros e que o homem que se casara com a conhecida francesa dançarina de cancã era um jovem russo comerciante, de incrível fortuna, o qual, na cerimônia do casamento, por simples e pura arrogância, queimara, estando bêbado, em uma vela, talões de apólices no valor de setecentos mil rublos. Tais boatos, porém, acabaram se extinguindo, para isso tendo contribuído muito certas circunstâncias. Todos os do séquito de Rogójin, por exemplo, muitos dos quais poderiam ter esclarecido muita coisa, haviam partido, nas suas pegadas, para Moscou, uma semana depois de uma tremenda orgia no Vauxhall de Ekaterinhóf e na qual tomara parte Nastássía Filíppovna. As poucas pessoas interessadas no caso ficaram cientes, através de certas informações, de que Nastássia Filíppovna, logo depois da orgia, fugira sem deixar vestígios, tendo constado traços de sua passagem por Moscou; e tanto que a partida de Rogójin para Moscou coincidia com tal boato.

Da mesma forma correram rumores a respeito de Gavríl Ardaliónovitch Ívolguin, também muito conhecido em determinadas rodas. Mas certa coisa lhe aconteceu que abrandou e fez parar completamente, todas as histórias a seu respeito: caiu seriamente doente, não podendo voltar ao escritório e menos ainda à sociedade.

Restabeleceu-se após um mês de enfermidade, mas, por motivos que ele lá sabia, resignou ao cargo que desempenhava no escritório, como guarda-livros da Companhia, tendo sido substituído por outra pessoa. Nem uma vez, sequer, voltou à casa dos Epantchín. de maneira que um novo escriturário tomou os encargos de secretário do general. Os inimigos de Gavríl Ardaliónovitch poderiam insinuar que ele ficara tão humilhado com o que lhe acontecera que se envergonhava até de sair à rua; mas, na verdade, estava doente. tendo até sofrido um ataque de hipocondria; deu em ficar taciturno e irritável. Naquele mesmo inverno, Varvára Ardaliónovna se casou com Ptítsin. Quantos os conheciam deduziram que o casamento foi conseqüência do fato de Gánia não querer retomar as suas obrigações e não estar capacitado para tomar conta da família, chegando a necessitar de assistência e mesmo de cuidados dos seus.

Notemos, de passagem, que na família Epantchín não se faziam sequer referências a Gavríl Ardaliónovitch, como se este nunca tivesse sido visto e com efeito nem existisse no mundo, absolutamente. Ainda por cúmulo, a família inteira veio a saber, logo depois, um fato notável a respeito dele. Na noite fatal, depois da sua desagradável experiência com Nastássia Filíppovna, Gánia não se deitara, depois de chegar a casa, tendo ficado à espera do príncipe, com uma impaciência febril. O príncipe, por sua vez, tendo ido a Ekaterinhóf, só voltara a casa às seis horas da manhã seguinte. Então Gánia entrara nos cômodos dele e depusera sobre a mesa, à sua frente, o pacote de notas entreaberto com que Nastássia o presenteara enquanto jazia desacordado no chão. E solicitara ao príncipe devolver na primeira oportunidade o presente. Que, ao entrar nos cômodos de Míchkin, o fizera de maneira desesperada e quase hostil; mas que, depois da troca de algumas palavras entre os dois, Gánia permanecera lá mais de duas horas, chorando amargamente todo o tempo, tendo os dois se separado em termos amistosos.

Tal história, que chegou ao conhecimento dos Epantchín, aconteceu ser perfeitamente exata. Estranho foi, naturalmente, que tais fatos pudessem logo transparecer e cair no conhecimento geral. Tudo quanto tinha acontecido, por exemplo, em casa de Nastássia Filíppovna, se tornou conhecido dos Epantchín quase que no dia imediato e de maneira minuciosa. Quanto aos fatos relativos a Gavríl Ardaliónovitch, poder-se-ia supor que tivessem sido levados até à casa dos Epantchín por Varvára Ardaliónovna, que se tornara muito amiga das moças, embora talvez não falasse nada do irmão. Pelo menos não devia. Ela também era uma mulher altiva, à sua maneira, e era esquisito que buscasse intimidade com quem tinha despedido seu irmão. Já era conhecida, desde muito antes, das meninas Epantchín. mas as vinha ver raramente. Mesmo agora mal se mostrava na sala de visitas e entrava, ou melhor, deslizava pela escada dos fundos. Lizavéta Prokófievna nunca se incomodara con ela outrora e muito menos agora. o que não a impedia de demonstrar grande respeito pela mãe, Nina Aleksándrovna. Ficara espantada, amuara e considerava a intimidade das filhas com Vária como uma veneta qualquer e caprichos de quem “não sabia de que maneira contrariar a própria mãe”. Mas Vária continuara a visitá-las, tanto antes como depois de casada, No entanto, um mês depois da partida do príncipe, a Sra, Epantchiná recebeu uma carta da velha Princesa Bielokónskaia. que tinha ido passar quinze dias com a filha mais velha casada; e essa carta lhe produziu um efeito marcante, nada, porém, tendo referido às filhas e nem a Iván Fiódorovitch, ficando por vários indícios provado que a sua extrema excitação provinha disso. Deu em falar de modo algo estranho às filhas e sempre a respeito de assuntos extraordinários; evidentemente estava ansiosa por abrir seu coração, a custo se contendo.

No dia em que recebera a carta se mostrara de uma bondade incomum para com todos; chegara mesmo a beijar  Adelaída e Agláia; confessara até que estava em falta com elas; escusado dizer que as moças ficaram sem entender. Mostrou-se mesmo indulgente com Iván Fiódorovitch, com o qual durante um longo mês estivera “atravessada”. Claro que já no dia seguinte se arrependeu da própria sentimentalidade, arranjando motivos para se indispor com todos, antes do jantar, só clareando o horizonte lá pela noitinha. Durou toda uma semana esse esplêndido bom humor, caso que não se dava havia muito tempo.

Uma semana mais tarde chegou outra carta da Princesa Bielokónskaia; e então a Sra. Epantchiná resolveu falar. Anunciou. com toda a solenidade, que a “velha Bielokónskaia (nunca chamava de outro modo a princesa na ausência da mesma, quando a ela se referia) lhe mandara reconfortantes novas a propósito daquele... “extravagante indivíduo, aquele príncipe, sabem qual, pois não?” A velha dama lhe descobrira as pegadas em Moscou, infor mara-se a respeito e descobrira coisas bem boas. O príncipe fora afinal ter com ela, causara-lhe excelente impressão, conforme ficara evidente só com o fato de ela o ter convidado a ir vê-la todos os dias, entre uma e duas horas. Ele não lhe deu trégua desde esse dia; e ela ainda não se aborreceu dele”, concluiu a Sra. Epantchiná acrescentando mais que, por interferência da “velha”, o príncipe fora recebido em casa de duas ou três boas famílias. “Ainda bem que ele não se plantou  em casa e não se manteve tão arisco como um palerma.” As moças a quem tudo isso foi comunicado perceberam logo que sua mãe estava escondendo muita coisa da tal carta. Muita coisa que, decerto vieram a saber através de Varvára Ardaliónovna, provavelmente a par de tudo por Ptítsin, que sabia quanto se passava com o Príncipe nessa sua estada em Moscou. E Ptítsin estava em condições de saber muito mais do que qualquer outra pessoa, malgrado o seu impenetrável silêncio costumeiro a propósito de negócios, apenas Vária lhe conseguindo arrancar as palavras. A Sra. Epantchiná ficou antipatizando ainda mais com ela, por causa disso.

Mas, fosse o que fosse, o gelo se rompera sendo já Possível falar alto naquela casa sobre o príncipe.

Desta forma o grande interesse por ele despertado e a extraordinária impressão deixada na família, mais uma vez se evidenciaram. A mãe ficou perplexa com o efeito que as notícias de Moscou causaram sobre as filhas. E asfi lhas, por Sua vez, perplexas ficaram com a mãe que, depois de declarar que “a coisa mais chocante da sua vida era a facilidade com que se enganava com certas pessoas”, procurava sem embargo para o príncipe, a proteção da “onipotente” e velha Princesa Bielokónskaia, o que decerto custara muita insistência e súplica, pois se Sabia quão difícil era à “velhota” deixar que outros se prevalecessem dela em tais casos.

Logo que o gelo se rompeu e o vento mudou, também o general se apressou em explicar-se. Ficou evidente que também ele tomara o Príncipe sob especial interesse. Mas só discutiu o aspecto comercial da questão, Veio a saber-se que, no interesse mesmo do Príncipe, Solicitara a certas pessoas influentes de Moscou - umas duas em quem podia confiar - para o vigiarem, como lhes fosse possível; e vigiarem Principalmente o tal Salázkin a quem o príncipe confiara o        seu caso. Tudo quanto sobre a fortuna fora dito - ou melhor, quanto à exatidão dessa fortuna” - era realidade; mas o espólio propriamente dito era menos considerável do que se tinha murmurado no começo. A propriedade estava em parte sobrecarregada com dívidas, outros pretendentes tinham surgido também, e apesar dos conselhos dados ao príncipe, ele se vinha comportando de modo a prejudicar-se. “Que Deus o proteja!” Agora que o gelo do silêncio se rompera, o general estava contente em poder exprimir o seu modo de sentir “com toda a sinceridade do seu coração”, muito embora “esse indivíduo fosse um pouco destituído”, acrescentou. como bom observador. E a prova é que fizera uma série de coisas estúpidas. Credores do falecido comerciante tinham feito suas reclamações, por exemplo, baseando-se em documentos sem valor ou a estudar. Muitos mesmo, enfunando-se com o temperamento do príncipe, chegaram a apresentar-se sem documentos de qualquer ordem, e - parece incrível! - o príncipe satisfizera a maioria deles malgrado as asseverações dos amigos de que toda essa corja de credores não tinha absolutamente direito a coisa alguma; e que o único motivo pelo qual os satisfizera fora o estarem eles atualmente em más condições.

A Sra. Epantchiná observou que a velha Bielokónskaia lhe mandara dizer, em carta, algo a respeito e que isso “era estúpido. muito estúpido. Mas os malucos não têm cura”, acrescentara ela taxativamente; mas aditara de modo a evidenciar quanto lhe agradava a conduta desse “maluco”. Notou afinal o general quanto a mulher se interessava por Míchkin, como se fosse seu filho, dando logo em se mostrar afetuosa com Agláia, o que dantes não acontecia. Vendo isso, Iván Fiódorovitch adotou a política de tomar, por certo tempo, o ar próprio de quem anda ocupadíssimo em negócios.

Mas esse agradável estado de coisas não perdurou muito. Quinze dias depois, houve, outra vez, uma inesperada mudança. A generala amuou; e então, encolhendo os ombros, o General Epantchín se resignou outra vez ao “gelo do silêncio”.

O fato foi que, duas semanas antes, ele recebera uma carta confidencial, não muito clara, mas autêntica, informando-o de que Nastássia Filíppovna, que no começo tinha desaparecido em Moscou, depois de lá mesmo ter sido encontrada por Rogójin, sumira outra vez e de novo fora reencontrada, tendo-lhe prometido casarse com ele. E o incrível é que, depois desses quinze dias, Sua Excelência tinha, de repente, vindo a saber que ela escapulira pela terceira vez, quase na véspera do casamento, ocultando-se em uma província qualquer, coincidindo que na mesma ocasião o Príncipe Míchkin também sumira, deixando os seus negócios nas mãos de Salázkin. “Se com ela, ou em perseguição dela, não ficou esclarecido. mas que há coisa nisso, há”. concluíra o general.

Lizavéta Prokófievna também recebeu notícias desagradáveis. O remate de tudo isso foi que, dois meses depois da partida do príncipe, quase todos os boatos a seu respeito se extinguiram em Petersburgo e o “gelo do silêncio” não foi mais rompido pela família Epantchín. Mas Vária continuava a visitar as moças.

Para encerrar tais rumores e explicações, acrescentaremos que na primavera houve muitas novidades no lar dos Epantchín, não tendo sido pois difícil esquecer o príncipe, que não mandava notícias, e decerto nem pensou nisso. Durante o inverno combinaram após muitas vacilações passar o verão no estrangeiro, isto é, Lizavéta Prokófievna mais as filhas, visto ser impossível, ao general, perder seu tempo em “diversões frívolas”. Tal decisão partiu mais dos imediatos e contínuos esforços das moças, totalmente persuadidas de que os pais não as queriam levar para fora do país por estarem empenhados demais em casá-las, procurando-lhes maridos. Decerto os pais acabaram se convencendo que isso de maridos era matéria que também podia ser achada no estrangeiro; e que essa viagem. por um verão apenas, longe de atrapalhar seus planos, poderia talvez “ser proveitosa”. E esta é a ocasião e o lugar de mencionar que o proposto casamento de Afanássii Ivánovitch Tótskíi com a moça mais velha foi desmanchado, a oferta mesmo formal, de sua mão, nunca tendo chegado a ser feita, o que se deu por si só, sem nenhum discurso ou disputa doméstica. O projeto caíra sozinho ao tempo da partida do príncipe; e caíra tanto de um como do outro lado. O fato fora uma das causas do mau humor da família, muito embora a mãe acabasse por declarar peremptoriamente, então, que ficara tão contente “que até se benzera com as duas mãos ao mesmo tempo”. Apesar de vencido, e de saber que só se podia queixar de si mesmo, o general se considerou ofendido e desconsiderado em casa, por algum tempo. Sentia ter perdido Afanássii Ivánovitch, “uma tamanha fortuna e um sujeito tão aguçado!” Mas não demorou muito para o general vir a saber que Tótskii se apaixonara por certa francesa da mais alta sociedade, marquesa e legitimista; que estavam ambos para se casar, e que Afanásii Ivánovitch se achava de viagem marcada para Paris, e, depois, Grã-Bretanha. “Ora, com a tal francesa, é um homem perdido!” concluiu ele. Estavam os Epantchín se preparando a fim de partir antes do verão, quando uma circunstância detodo inesperada sobreveio, mudando-lhes os planos. E o passeio foi adiado, outra vez, com grande satisfação para o general e respectiva esposa.

Apareceu em Petersburgo. vindo de Moscou, um certo Príncipe Chtch... homem muito conhecido; e justamente muito considerado por suas excelentes qualidades. Tratava-se de um desses homens modernos, pode-se mesmo dizer reformadores, e que sendo honesto, modesto, e desejando de modo inteligente e acertado o bem público, trabalhava deveras. sempre se distinguindo por uma rara e feliz faculdade de saber como trabalhar. Sem cortejar o favor público, evitando a amargura e a verbosidade das lutas partidárias, o príncipe tinha uma lúcida compreensão da sua época e respectiva evolução, muito embora não se considerando um chefe. Estivera no serviço imperial. Fora, em seguida, membro ativo de um Zémstvo.

Filiara-se, como correspondente, a diversas sociedades culturais.

Colaborando com um afamado perito, tinha reunido fatos e observações que o levaram a melhorar em muito o plano de uma nova linha de estrada de ferro de grande importância. Andava pelos trinta e cinco anos de idade. Era homem “da mais alta sociedade” e possuía, além de tudo, uma “boa, sólida e notória fortuna”, segundo as palavras do General Epantchín que, por acaso, tivera negócios com ele relativos a certos empreendimentos de monta. Conhecera-o em casa do conde, que era o diretor do seu departamento de trabalho oficial. Interessava-se o Príncipe Chtch... pelos homens práticos da Rússia, e nunca desdenhara a sociedade deles. E aconteceu ser introduzido na família Epantchín, tendo Adelaída Ivánovna, a segunda das irmãs, lhe causado considerável impressão. Pediu-a, no fim do inverno. Adelaída o apreciava deveras; Lizavéta Prokófievna, idem. O General Epantchín ficou radiante. O passeio ao estrangeiro foi naturalmente transferido, e o casamento marcado para a primavera.

Isso não impediria que a viagem se realizasse lá pelos meados do verão, apenas como uma breve visita de um mês ou dois, a título de consolo para a mãe e para as duas filhas que ficavam; consolo pela perda de Adelaída. Mas aconteceu logo algo de novo. Nos fins da primavera (o casamento de Adelaída fora adiado para o meio do verão), o Príncipe Chtch... apresentou aos Epantchín certo membro de sua família, muito íntimo seu, embora parente afastado. Tratava-se de Evguénii Pávlovitch R., jovem de vinte e oito anos, ajudante-de-campo imperial, muito bem-parecido e pertencente a grande e importante família. Era talentoso, brilhante, “moderno”, “de alta educação” e, também, quase fabulosamente rico. Principalmente com este último ponto era o General Epantchín muito cuidadoso sempre. Tomou suas informações. “Parece que a coisa é certa, embora. naturalmente, a gente se deva sempre certificar”. Esse jovem e futuroso ajudante-de-ordens viera altamente recomendado de Moscou, pela Princesa Bielokónskaia. Mas corria a seu respeito um rumor algo inquietador: falava-se em liaisons, em conquistas, em corações esmagados.

Vendo Agláia, deu em se tornar assíduo em suas visitas aos Epantchín. Nada ainda fora dito, nenhuma suspeita. por menor, se esboçara, e já aos pais pareceu ficar de lado, outra vez, a ida ao estrangeiro, pelo verão. Só Agláia era de opinião diversa.

Tudo isso aconteceu justamente antes da segunda entrada do nosso herói na cena desta história. A esse tempo, a julgar pelas aparências, tinha o pobre Príncipe Míchkin sido completamente esquecido em Petersburgo. E se, inopinadamente surgisse entre aqueles que o tinham conhecido, pareceria ter caído do céu. Devemos aqui acrescentar outro fato, para assim completarmos a nossa introdução.

Depois da partida do príncipe, continuara Kólia Ívolguin a passar o seu tempo como antes – quer dizer, ia à escola, visitava o seu amigo Ippolít, tratava do pai, ajudava a irmã em casa, levava recados. Mas todos os pensionistas se tinham ido. Ferdichtchénko fora-se três dias depois da noitada em casa de Nastássia Filíppovna, sem deixar traço, de maneira que não se sabia dele absolutamente. Dizia-se, aliás, em fontes desautorizadas, que dera em beber. Com a ida do príncipe para Moscou os hóspedes acabaram. Mais tarde. com o casamento de Vária, Nina Aleksándrovna e Gánia mudaram-se para a casa de Ptítsin na outra ponta da cidade. Quanto ao General Ívolguin, um acontecimento surpreendente lhe sucedera mais ou menos nessa ocasião: fora dar com os costados na prisão dos devedores por obra e graça da sua amiga, a viúva do capitão, ligando-se o fato a diversas promissórias por ele assinadas no valor total de dois mil rublos. Causara-lhe isso não pequena surpresa; o pobre general fora “indubitavelmente vítima de sua incrível fé na  generosidade do coração humano, fiando-se de um modo genérico. Tendo adotado o suave hábito de assinar promissórias e letras, nunca lhe passara pela cabeça que isso implicasse em qualquer compromisso. Sempre supusera que tudo estava muito bem. Mas aconteceu que tudo ficou foi muito mal.

“Depois de uma coisa destas, como acreditar na humanidade? De que modo mostrar alguém a sua generosa confiança?”, deu ele em exclamar, amargamente, amesendado entre os seus novos amigos, em casa de Tarássov, em frente de uma garrafa de vinho, contando-lhes anedotas sobre o cerco de Kars e do soldado que ressuscitou.

Assim a coisa lhe assentou de maneira capital. Ptítsin e Vária foram de opinião que nunca estivera em lugar mais próprio; Gánia concordara inteiramente com eles. Apenas a pobre Nina Aleksándrovna derramou lágrimas amargas, em segredo (do que em casa todo o mundo se admirou, deveras) e, doente como já estava, arrastava-se, muitas vezes, como podia, para visitar o marido.

Mas desde o tempo da “adversidade do general”, como Kólia dizia - e, mais exatamente, desde o tempo do casamento da irmã, Kólia se desvencilhara deles e as coisas deram em se passar de tal modo que muito raramente dormia em casa, só sabendo, os seus, que fizera um número sem conta de novas relações. Ainda assim se tornou bastante conhecido na prisão dos devedores. Nina Aleksándrovna não ia até lá sem ele, e em casa, agora, já não o aborreciam com questões. Vária, que fora antes tão severa, já não o enfezava com a menor indagação que fosse a respeito da sua vagabundagem; e, com grande surpresa para o restante da família. Gánia, a despeito da sua hipocondria, dera habitualmente em conversar e em se comportar de maneira totalmente amistosa para com o irmão. E isso era algo inteiramente novo, pois Gánia, com vinte e sete anos de idade, jamais tomara o menor interesse, como amigo, pelo rapazinho de quinze anos. Tratara-o sempre de modo rude e exigia que a família fosse severa para com ele, estando sempre pronto a puxar-lhe as orelhas, o que levava Kólia “para lá dos mais extremos limites do sofrimento humano”. Podia-se com isso concluir que Kólia se tornara positivamente indispensável ao irmão.

Verdade é que o impressionara o fato de Gánia haver devolvido o dinheiro: só por tal gesto estava pronto a perdoar-lhe muita e muita coisa.

Foi só três meses depois da partida do príncipe, que a família Ívolguin se deu conta de que Kólia inesperadamente entretinha relações com os Epantchín, sendo muito bem recebido pelas moças. Vária soube logo disso, não devendo ele à irmã esse conhecimento, tendo-os procurado por vontade e inclinação sua. Pouco a pouco os Epantchín foram gostando dele. Logo no começo. Lizavéta Prokófievna não o tolerou; mas depois começou a levá-lo a sério, “por causa da sua franqueza e porque não era adulador”. Que Kólia não era adulador, aí estava uma asserção mais que verídica.

Armara as coisas de maneira a ser bastante independente e a se pôr em pé de igualdade perante elas, chegando, às vezes, a ler livros e jornais para a generala ouvir. A sua prestimosidade estava sempre à prova. Uma ou duas vezes, no entanto, teve brigas com Lizavéta Prokófievna, ousando chamá-la de déspota e jurando que não tornaria a pisar em casa dela. A primeira vez a briga começou por causa da questão “mulher”, já a segunda tendo sido por causa de divergência quanto ao melhor tempo do ano para apanhar verdelhões. E, por mais esquisito que pareça, dois dias depois da briga a Sra. Epantchina mandou-lhe um bilhete, por um criado, pedindo-lhe que voltasse. Kólia não embirrou e foi imediatamente vê-la. Somente Agláia não simpatizava com ele, conservando-o a distância. E no entanto era a Agláia que ele estava destinado a surpreender: o fato foi que, na Páscoa, ele aproveitou uma oportunidade de estarem ambos sós para lhe entregar uma carta, apenas lhe dizendo que lhe fora recomendado entregar-lhe quando estivesse sozinha. Agláia encarou de modo ameaçador o “pequeno atrevido”, mas Kólia se retirou sem aguardar mais nada. Ela abriu a carta e leu:

 

Outrora me honrastes com a vossa confiança. Talvez, agora, já me tenhais esquecido. Todavia vos estou escrevendo!... Como pode ser isso? Não sei. Mas sinto um irreprimível desejo de vos relembrar, e a vós tão só, que ainda existo. Quantas vezes não tenho eu tido saudades das três. Mas, de todas, era só a vós que eu via.

Preciso de vós - preciso muitíssimo. A meu respeito, que hei de eu dizer? Nada há a dizer. E nem é disso que se trata. O meu maior desejo éque sejais feliz. Sois feliz? Eis tudo quanto eu vos queria dizer.

Vosso irmão,

Príncipe L. Míchkin.

 

Lendo essa carta tão curta quanto incoerente, Agláia corou e ficou pensativa. Seria difícil dizer no que estava ela pensando.

Entre outras coisas perguntou a si mesma se a deveria mostrar a alguém. Sentiu que isso a envergonharia. E acabou trancando a carta na gaveta da sua mesa, fazendo-o com um sorriso irônico. Mas no dia seguinte a tirou de lá e a enfiou dentro de um volume grosso e pesadão (sempre fazia isso com os seus papéis de maneira a poder encontrá-los com facilidade quando quisesse). E nem bem uma semana depois, notou que livro era esse. Era Dom Quixote de la Mancha. Agláia desandou a rir, sem saber por quê. Nunca se ficou sabendo se chegou a mostrar a carta às irmãs.

Mas mesmo quando estava lendo a carta ficara perplexa com uma coisa: como podia o príncipe ter escolhido aquele criançola presumido e confiado, como seu correspondente, e talvez até único, em Petersburgo? Pôs-se então, com um cuidado exagerado, a reexaminar Kólia. Mas, apesar de ser ele facilmente suscetível, desta vez nem chegou a perceber essa análise. Apressadamente, e de maneira seca, explicou que apesar de ter dado o seu endereço permanente ao príncipe quando este deixara Petersburgo, tendo-se-lhe oferecido ficar às ordens para o que pudesse fazer, a entrega dessa carta fora a primeira incumbência recebida da parte dele; e, como reforço do que estava dizendo, mostrou o recado que o príncipe lhe dirigira. Agláia não fez a menor cerimônia e leu. A carta para Kólia dizia isto:

 

Caro Kólia, queira ter a bondade de entregar a cartaselada aqui junta a Agláia Ivánovna!

Espero que V. esteja bem. Seu dedicado,

Príncipe L. Míchkin

 

- É ridículo confiar em um fedelho como você! - disse Agláia arrogantemente a Kólia, tornando a lhe entregar a carta que acabara de ler; e passou por ele, desdenhosamente, indo embora para os seus aposentos.

Isso ultrapassava o que Kólia podia suportar, pois chegara a pedir a Gánia, sem lhe dizer para que, que lhe emprestasse (e para essa ocasião) o seu novo cachecol verde. Ficou amargamente ofendido.

 

Estava-se nos primeiros dias de junho e havia já uma semana que em Petersburgo fazia um tempo lindíssimo, coisa não muito comum. Os Epantchín possuíam uma luxuosa vila de verão em Pávlovsk. Lizavéta Prokófievna tornou-se de repente agitada, sem parar um momento, e depois de uns dois dias de lufa-lufa transferiram-se todos para lá.

E eis que, dois ou três dias depois disso, o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin chegou de Moscou, pelo trem da manhã. Não se encontrou com nenhum conhecido, na estação, mas pouco depois de desembarcar teve a súbita impressão de que estranhos olhos fulgurantes o olhavam por entre as pessoas que enchiam a plataforma.

Procurando vê-los, com maior atenção, não os descobriu mais. Talvez tivesse sido pura fantasia, mas isso lhe deixou uma desagradável sensação. De mais a mais, o príncipe estava tristonho e pensativo, qualquer coisa, decerto, o aborrecendo.

O fiacre tomou a direção do hotel nas imediações da Litéinaia. Não era, absolutamente, um hotel de primeira ordem; o príncipe tomou duas pequenas peças escuras e pessimamente mobiliadas, Lavou-se, mudou de roupa, não pediu coisa alguma, e saiu apressadamente, como se não quisesse perder tempo ou deixar de encontrar quem procurava.

Se alguém que o tivesse conhecido seis meses antes, ao tempo da sua primeira chegada a Petersburgo, o visse agora, bem o poderia imaginar grandemente mudado, a sua aparência sendo muito melhor. Mas isso seria verídico somente até certo ponto, pois tal diferença consistia apenas no modo de se vestir. As roupas eram novas e tinham sido cortadas por um bom alfaiate moscovita. Mas, mesmo nelas, havia qualquer coisa que não estava direito: eram demasiado conforme a moda (como as roupas feitas por alfaiates conscienciosos, mas não muito hábeis); e ainda por cima quem as usava era um homem que, a bem dizer, jamais se importara com sua aparência. De maneira que alguém, propenso a achar graça nas coisas, teria encontrado de que se rir na aparência do príncipe. O povo rirá sempre, seja do que for.

O príncipe tomou um fiacre e mandou seguir para Péski. Fácil lhe foi encontrar uma pequena casa de madeira em uma das ruas de lá. E com surpresa verificou que era bem bonita, embora pequena, e limpa, muito bem conservada, tendo na frente um jardim cheio de flores. As janelas que davam para a rua estavam abertas e através delas vinha o som contínuo de uma voz estridente, como de alguém que, ou lesse alto, ou estivesse fazendo um discurso. As vezes, essa voz era interrompida por um coro de cristalinas risadas. O príncipe atravessou o jardim, subiu os degraus e perguntou pelo Sr. Liébediev - Está lá dentro - respondeu a cozinheira ao abrir-lhe a porta. com as mangas arregaçadas até os cotovelos. E apontou para a sala de visitas.

Era um aposento forrado de papel azul bem escuro e mobiliado com certo capricho e elegância - isto é, contendo um sofá, uma mesa redonda, um relógio de bronze dentro de uma redoma de vidro, um estreito espelho de parede, e um pequeno candelabro de forma antiga que pendia, por uma cadeia de bronze, do teto adornado Bem no meio da sala, com as costas viradas para a porta, estava o Sr. Liébediev em pessoa. Vestia-lhe o busto apenas um colete, pois tirara o paletó por causa do calor. Dando golpes no próprio peito. estava a declamar tragicamente a respeito de qualquer assunto. Os seus ouvintes consistiam em um rapaz de uns quinze anos, de rosto animado e inteligente, segurando um livro; uma mocinha de uns vinte anos, vestida de luto, que ninava uma criança nos braços; uma meninota de treze anos, também de luto, que ria escancaradamente; e uma figura exótica, escarrapachada no sofá, um rapaz até bonito. de uns vinte anos, moreno, de cabeleira espessa e comprida, grandes olhos negros, com um começo de barba e de buço. Pelos modos, era quem interrompia Liébediev, freqüentemente, argumentando com ele; e era isso que provocava as gargalhadas dos outros.

- Lukián Timoféitch! Lukián Timoféitch! Estou chamando. Olhe pra cá. Ora, dane-se!

E agitando os braços a cozinheira se foi, vermelha de raiva.

Liébediev voltou e olhou; vendo o príncipe ficou por algum tempo embasbacado. Em seguida avançou na direção dele, com um sorriso congratulatório; mas antes de chegar parou outra vez, murmurando:

- Ilustríssimo príncipe!

Mas, sem propósito algum, como se não tivesse podido aproximar-se, deu uma volta e, sem mais aquela, investiu contra a rapariga de luto que estava com o nenê ao colo, a ponto desta se espantar, recuando. Deixou-a, porém, imediatamente, embarafustou na direção da mais nova, que estava de pé no portal do quarto próximo, ainda com ar de riso no semblante alegre. Ela se aturdiu com a exclamação e se trancou na cozinha. Para lhe aumentar o pavor Liébediev se pôs a sapatear atrás dela. Nisto, dando com os olhos do príncipe, que o olhava embaraçado, resolveu explicar:

- Para impor, nem mais nem menos do que... respeito Eh! Eh! Eh!

- Mas não há nenhuma necessidade disso - começou o príncipe.

- Um minuto.., um minuto.., um minuto, em um abrir e fechar de olhos!

E Liébedíev apressadamente sumiu da sala. Surpreendido o príncipe olhou para a moça, para o rapaz e para o sujeito do sofá, estavam todos rindo.

Riu-se Míchkin, também.

- Ele foi vestir o casaco - disse o rapazinho.

- Que coisa horrível! - começou o príncipe. - E eu esperava... Diga-me, ele está...

- Se ele está bêbado? Não foi o que o senhor pensou? - gritou uma voz lá do sofá.

- Quase nada. Três ou quatro cálices; uns cinco. talvez; mas que tem isso demais? É o comum.

Virou-se o príncipe para o sofá de onde vinha aquela voz; mas foi a mocinha quem começou a falar: e com a mais cândida das expressões no rosto encantador, disse:

- De manhã, ele nunca bebe muito. Se o senhor veio para conversar sobre negócios, fale agora, que é a melhor hora. Quando ele entra de noite volta quase sempre bêbado. Ultimamente deu em chorar de noite e em ler-nos a Bíblia, pois não há nem cinco semanas que mamãe morreu.

- Fugiu lá para dentro porque não sabia o que responder ao senhor - disse, rindo, o rapazola do sofá.

- Aposto o que quiserem como ele já lhe pregou uma peça e está chocando mais outra para breve.

Nisto, entrando de novo, já de paletó, pestanejando e tirando o lenço do bolso para enxugar as lágrimas, Liébediev desandou a dizer:

- Não há nem cinco semanas! Cinco semanas, se tanto. Ela deixou-nos sozinhos no mundo!

- Mas por que veio o senhor assim todo rasgado? - perguntou-lhe a rapariga.

- Pois não sabe que atrás da porta está pendurado o seu paletó novo? O senhor não viu?

- Cala essa boca, libélula! - berrou-lhe Liébediev. - Arre, também! - E bateu com o pé.

Que havia ela de fazer senão rir?

- O senhor não pense que me mete medo, não. Eu não sou

Gánia. Eu não fujo lá pra dentro, não. O senhor vai mais é acordar Liúbotchka e amedrontá-la até lhe virem as convulsões. Para que berrar dessa maneira?

- Não blasfemes, que Deus ouve! Não digas tal coisa! – Liébediev ficou logo apavorado e voando para o nenezinho, que dormia no colo da mana maior, fez sobre ele o sinal-da-cruz diversas vezes, com uma expressão de susto. - Deus a proteja e a preserve.

- E a minha caçulinha Liubov - acrescentou, virando-se para o príncipe - nascida do meu sacratíssimo matrimônio com a minha mulher Elena, recentemente falecida... E falecida de parto. E esta aqui, de Luto, é a minha filha Vera. E este... este, oh! Este aqui...

- Ora essa, prossiga! - exclamou o rapazola. - Prossiga, está com medo?

- Vossa Excelência - disse Liébediev, em uma espécie de impulso - por acaso leu nos jornais o assassinato da família Jemárin?

- Sim, li - respondeu o príncipe com certa surpresa.

- Pois bem, o verdadeiro assassino da família Jemárin, ali o tem o senhor!

- Que é que você me está dizendo? - fez o príncipe.

- Falando de modo alegórico, é claro. Ei-lo acolá, o futuro assassino número 2 de uma família Jemárin. Ele está acabando os preparativos para isso...

Todo o mundo riu. O príncipe chegou a desconfiar que Liébediev estivesse fingindo de maluco prevendo as perguntas que lhe seriam feitas e, não sabendo que jeito dar, procurasse assim ganhar tempo.

- É um rebelde! Vive tramando! - bradava Liébediev fingindo não se poder conter. - Diga-me o senhor, posso eu, tenho eu a obrigação de reconhecer aquele boca imunda ali, por assim dizer aquele monstro, como um sobrinho meu, ele, o único filho de minha defunta irmã Anísia?

- Ai! Ai! Cale a boca, seu bêbado! Seria o senhor capaz de acreditar em uma coisa, príncipe? Ele agora deu em se fazer de advogado - e pleiteia casos no tribunal. Ficou, de repente, tão eloqüente que até em casa, diante das crianças, fala difícil, em linguagem rebuscada! Não há cinco dias fez um discurso, diante do juiz de paz. E quem pensa o senhor que ele defendeu? Não uma pobre anciã que pediu e rogou que a defendesse, e que tinha sido saqueada por um agiota ignóbil que lhe furtara quinhentos rublos, tudo quanto a coitada tinha neste mundo. Defendeu mais foi o próprio agiota, um judeu chamado Záidler!

E só porque este lhe prometeu cinqüenta rublos...

- Cinqüenta rublos se eu ganhasse a causa e não mais do que cinco se eu a perdesse – explicou Liébediev incontinente, mudando de tom, deixando de Lado o diapasão dos berros.

- Ora, naturalmente que fez papel de idiota! Hoje em dia as coisas são diferentes.

- Que haviam de fazer senão se rirem dele? Mas ficou radiante consigo mesmo. “Não vos esqueçais” - disse ele - “que um infeliz velho, achacado de males, vivendo só do seu labor honesto, está a ponto de perder a sua última côdea de pão! Não vos esqueçais das sábias palavras do legislador: “Que a misericórdia prevaleça sempre nos tribunais ! “ E o senhor quer saber de uma coisa incrível? Todas as manhãs ele nos declama esse trecho, palavra por palavra, tal como o descascou lá! Justamente quando o senhor chegou ele nos lia essa joça pela quinta vez, todo radiante! Ele está lambendo os beiços de gosto. E agora ainda vai defender mais outro. O senhor é o Príncipe Míchkin, não é? Kólia me disse que jamais encontrou pessoa mais inteligente do que o senhor, no mundo...

- Justamente, justamente, não há mais ninguém tão inteligente no mundo - sustentou logo Liébediev.

- Mesmo assim, ele está mentindo, bem sabemos. Kólia gosta do senhor, mas este homem aqui o está adulando... Eu, todavia, não o pretendo adular, desde já Lhe garanto. O senhor tem bastante descortino, pode julgar entre mim e ele! - Voltou-se para o tio: - Aceitaria o senhor, o príncipe como juiz entre nós dois? Que bom ter aparecido aqui, príncipe!

- Perfeitamente! - gritou Liébediev, resolutamente. E, como um autômato, se virou para toda a assistência que começara a se juntar em volta dele.

- Mas que é que há? - perguntou o príncipe fechando a cara. Doía-lhe a cabeça, e cada vez se convencia mais de que Liébedíev estava zombando, contentando-se em ganhar tempo.

- Eis a situação do caso. Eu sou sobrinho dele. Quanto a isso, ele não mentiu, embora nunca fale a verdade. Não acabei os meus estudos, mas pretendo acabá-los; quero, porque tenho caráter. Arranjei um emprego na estrada de ferro que me dará vinte e cinco rublos por mês. Não nego que, umas duas ou três vezes, ele me tenha ajudado. Eu tinha vinte rublos e perdi-os. E quer o senhor saber de uma coisa, príncipe, sou tão ordinário, tão ruim que os perdi no jogo.

- Perdeu-os para um tratante.., um tratante, a quem você não devia ter pago! - interpôs Liébediev.

- Que é tratante, é; mas que eu devia pagar, devia - continuou o rapazola.

- De que é um tratante também eu dou testemunho, e não porque me tenha batido.

Chegou a ser oficial, foi expulso do exército, príncipe; um tenenteco que deu baixa, que anda com o grupo de Rogójin e que ensina boxe. Todo o bando. agora, vai de mal a pior, desde que Rogójin os largou. Mas o pior de tudo é que eu, sabendo que ele era tratante, gatuno e sem-vergonha, me sentei a jogar com ele, e quando apostei o meu último rublo (estávamos jogando pálki) pensei comigo mesmo: “Se eu perder irei ter com meu tio Lukián e me humilharei diante dele: ele me atenderá”. Isso de fato foi vil, sim, realmente foi vil. Foi uma ruindade consciente!

- Muito exato. Foi uma ruindade consciente - repetiu Liébediev.

- Ora, é favor não me interromper; espere um pouco - redargüiu-lhe o sobrinho, com pouco caso. - O tal está gozando a minha desgraça. Vim até ele, príncipe, e confessei tudo. Agi decentemente, não me poupei. Humilhei-me diante dele o mais que pude; todos aqui são testemunhas. Só poderei entrar para o emprego da estrada de ferro melhorando as minhas vestes, pois não hei de ir assim todo rasgado. Isto são botas que se usem? Como havia eu de ir para lá deste modo? E se eu não for a tempo, outro arranjará o meu lugar e ficarei outra vez na rua... E quando arranjarei eu uma outra oportunidade? No momento só peço a ele que me arranje quinze rublos e prometo nunca mais pedir nada; e, o que é mais, antes do fim do primeiro trimestre lhe restituirei o dinheiro emprestado. Eu tenho palavra. Posso viver só de pão e kvás, meses e meses, pois sou um sujeito de vontade. Em três meses ganho setenta e cinco rublos.

Contando com o que já lhe pedi emprestado antes, estarei devendo a ele coisa de uns trinta e cinco rublos; logo, até lá, terei o suficiente para lhe pagar. Ele que marque os juros que exige, que se dane o resto! Então ele não sabe com quem está tratando? Pergunte-lhe, príncipe, se nas outras vezes em que me ajudou eu não paguei. Então, por que é que ele não quer me ajudar agora? Está zangado porque paguei o tenente, e não pode haver outro motivo. O senhor está vendo o que ele é: não passa de um cão com os dentes arreganhados, diante da gamela.

- E nem assim se vai embora? - gritou Liébediev. - Planta-se aqui e não há meios de ir embora.

- Já lhe disse. Sem o dinheiro, é escusado; não vou. O senhor está rindo, príncipe? Parece que acha que eu não tenho razão?

- Não estou rindo: mas, a meu ver, de fato você não está lá muito com a razão - respondeu o príncipe, a contragosto.

- Diga então de uma vez que eu não estou com razão absolutamente. Não venha com panos quentes. Que é que quer dizer com esse “lá muito”?

- Posso ser mais explícito: ambos não estão com a razão.

- Mais explícito? Que absurdo! O senhor acha que eu não sei que a minha decisão nisso não pode valer? Que o dinheiro é dele, que é a ele que compete decidir, e que o que estou exigindo é um ato de violência da minha parte? Mas o senhor não sabe nada da vida, príncipe. Não há vantagem alguma em poupar homens como este aqui de uma liçãozinha. Eles precisam de uma lição. A minha consciência é clara. Eu tenho consciência, logo não lhe advirá nada de mau; eu lhe pagarei com juros. Além disso já lhe dei uma satisfação moral, também; ele assistiu à minha humilhação. Que éque ele quer mais? Que lucra ele em não ajudar a gente? Preste bem atenção nele! Pergunte-lhe como é que ele trata os outros! E como se aproveita das pessoas! Pergunte-lhe de que maneira foi que comprou esta casa! Aposto, seja o que for, como ele já enganou o senhor antes e que já está tratando de enganá-lo outra vez. O senhor ri. Não acredita, então?

- É que me parece que tudo isso não tem nada que ver com o seu caso - observou o príncipe.

- Estou aqui há três dias e quanta coisa não vi eu! - exclamou o rapazola. - O senhor até nem vai acreditar!

Ele desconfia deste anjo, desta rapariguinha órfã aqui, minha prima e sua filha; e todas as noites dá busca no quarto dela à procura de amantes! Aparece aqui, pé ante pé, e espia até debaixo do sofá. A maluqueira dele deu para desconfiar. Vê gatunos em todos os cantos. De noite está sempre se levantando, experimentando as janelas, a ver se estão bem fechadas, revistando as portas, espiando dentro do forno; e isso mais de doze vezes por noite.

Vai ao tribunal defender gatunos, mas se levanta três vezes por noite para vir rezar de joelhos, aqui na sala de visitas, as suas orações; e chega até a encostar a cabeça no assoalho, mais de meia hora, às vezes. E o que ele reza por todo o mundo, que piedosas lamentações, quando está bêbado! Imagine que tem rezado até pelo descanso eterno da alma da condessa Du Barry! Eu ouvi, com estes ouvidos. E Kólia também ouviu. Está doido varrido!

- Está vendo, está ouvindo como ele caçoa de mim, príncipe? – interveio Liébediev envergonhado e zangado deveras. - Ele não compreende que, por mais bêbado, degradado e trapaceiro que eu possa ser, a minha única boa ação na vida foi, quando esta víbora arreganhada era bebê ainda, eu lhe mudar as fraldinhas. Dava-lhe banho, e ficava de pé noites seguidas ao lado de minha irmã Anísia, que enviuvara e que não tinha vintém, tão pobre eu quanto ela. Atendia-os quando ficavam doentes, roubava, para aquecê-los, sim, roubava lenha da porteira, lá embaixo, cantarolava e dava estalinhos com os dedos em uma bola assoprada! E eis para que serviu eu ter sido ama dele! Para isso, para estar acolá, rindo de mim, agora! Que é que você tem com isso se uma vez fiz o sinal-da-cruz pela alma da Condessa Du Barry? Três dias antes acontecera eu ler, em um dicionário, a vida dela, que eu desconhecia. Sabe quem foi ela, a Du Barry? Vamos, diga, sabe? Sabe nada!

- Ora, naturalmente quem sabe é o senhor só - balbuciou o rapazola com desdém, embora a contragosto.

- Pois saiba que foi uma condessa que, da mais baixa e vergonhosa condição, se ergueu a uma situação quase de rainha, e a quem uma grande imperatriz escreveu com a sua própria letra:

“Querida prima”. E um cardeal, um legado do papa, em uma levée du roi (sabe você que era uma levée du roi?) se ofereceu para lhe calçar as pernas nuas com meias de seda, e considerou isso uma honra - ele que era um alto personagem sacro? Sabia disso? A sua cara mostra que não. Ora bem, e como foi que ela morreu? Vamos, responda, se é que sabe!

- Vá para o diabo, não me amole!

- Morreu do seguinte modo: depois de ter tido tantas honrarias, o carrasco Samson arrastou essa grande dama, que não tinha culpa, que era inocente, até à guilhotina, para diversão dos poissardes parisienses; e tamanho foi o terror dela que nem se deu conta do que lhe estava acontecendo. Viu que ele lhe dobrava o pescoço debaixo da lâmina e lhe dava pontapés, enquanto a ralé ria! E então lhe suplicou gritando: “Encore un moment, monsieur le bourreau, encore un moment!” “, palavras que significam: “Ainda um minuto, senhor carrasco, um minutinho só!” Talvez só por causa dessa sua imploração Deus a tenha perdoado: pois ninguém pode imaginar maior miséria para uma alma humana do que essa. Você entende o sentido da palavra miséria? Pois bem, miséria era aquilo! Quando eu li esse caso da condessa rogando “só um minuto mais!” senti meu coração como que apertado entre duas tenazes. E que tem um verrne como você que ver com isso, se eu, antes de me deitar, acho que deva mencionar em minhas orações essa mulher pecadora? E talvez a razão por que a mencionei tenha sido que desde o começo do mundo, provavelmente, ninguém se benzeu em sua intenção e nem mesmo pensou em fazê-lo. E lhe há de ter feito bem sentir no outro mundo que existe um pecador que ao menos pronunciou uma oração por ela aqui na terra. Por que é que você está rindo? Acha que não, hein seu ateu? Como é que você sabe? E, se você disse que me escutou, mentiu. Eu não rezei pela Condessa Du Barry, apenas; na minha oração, eu disse assim: “Senhor, dai descanso perpétuo àalma dessa grande pecadora, que foi a Condessa Du Barry e a todos os mais com ela parecidos!” E o caso, portanto, é muito diferente, pois há muitas dessas mulheres pecaminosas, exemplos da mutabilidade da fortuna, que sofreram muito, e que lá estão ainda se debatendo nas trevas, lamentando-se e esperando. E rezei, depois. por você e por quantos são como você, insolentes e atrevidos, visto você se perturbar ao ouvir minhas orações...

- Chega, cale a boca! Vá rezando por quem quiser, dane-se: pare com esse berreiro! - interrompeu-o o sobrinho, zangado. -O homem deu para ler, que se há de fazer? O senhor não sabia, príncipe? Não? - acrescentou com arreganho grosseiro.

- Ele só lê livros e histórias dessas!

- É que seu tio não é homem sem coração, convenhamos - observou o príncipe, embora com certa relutância, pois estava começando a sentir grande aversão pelo rapazola.

- Se o senhor começa a elogiá-lo desse modo, ele acaba inchando. Olhe só, ele está lambendo os beiços, botou a mão sobre o coração e já está de boca cheia. Vá lá que tenha coração; mas évelhaco, e isso é que atrapalha; e, ainda por cima, é bêbado. Está todo esbandalhado como acontece com quem leva a beber uma série de anos; é por isso que tudo lhe sai arrevesadamente. Gosta dos filhos, não nego; respeitava minha defunta tia... e até gosta de mim a ponto de no seu testamento me deixar uma doação...

- Não deixarei nada! - berrou Liébediev, furiosamente.

- Escute, Liébediev - falou o príncipe, de modo firme dando as costas para o rapazola.

- Sei, por experiência, que você, quando quer, pode ser um homem metódico, se lhe convém... Disponho de muito pouco tempo, hoje... e se você... Perdão, qual é o seu nome próprio? Não me lembro.

- Ti... Ti... Timoféi.

- Mais?

- Lukiánovitch.

Foi uma risada geral.

- Mentira! - gritou o sobrinho. - Até dizendo o nome ele mente! Ele não sechama Timoféi Lukiánovítch, príncipe, e sim Lukián Timoféitch. Mas como é que o senhor prega uma mentira dessas? Pois não é tão fácil dizer Lukián em vez de Timoféi? E que importância tem isso para o príncipe? Ele mente, mas é por vício, garanto-lhe eu.

- Mas afinal como é? - perguntou o príncipe, impacientemente.

- O direito, realmente, é Lukián Timoféitch - admitiu Liébediev, nas raias da confusão, abaixando os olhos humildemente e tornando a colocar a mão sobre o peito.

- Mas não entendo por que você disse então errado.

- Para me humilhar - sussurrou Liébediev, abaixando a cabeça ainda mais e fingindo maior humildade.

- Ora, mas que asneira! Eu só queria mais era saber onde anda Kólia - disse o príncipe, virando-se para ir embora.

- Eu lhe direi onde está Kólia. - E o rapazola se adiantou.

- Não, não, não! - Liébediev se esquentou, muito excitado.

- Kólia dormiu aqui e saiu de manhã para ir procurar o pai, a quem o senhor, príncipe, tirou da cadeia. Deus sabe por que. pagando-lhe as dívidas. O general, ontem, prometeu vir dormir aqui, mas não veio. Com certeza dormiu no Hotel da Balança, aqui ao lado. Kólia provavelmente está lá, ou em Pávlovsk, em casa dos Epantchín. Como tinha dinheiro, desde ontem andou falando em ir lá. De maneira que ou está no Hotel da Balança, ou em Pávlovsk.

- Foi a Pávlovsk... a Pávlovsk!... Vamos por aqui, por este caminho até ao jardim. Mandarei vir café!

E segurando a mão do príncipe, Liébediev levou-o para fora. Deixando a sala, atravessaram o pequeno pátio e passaram por uma cancela. Havia ali um jardim pequenino mas encantador, e onde, por causa da estação do ano, tão bela, todas as árvores já estavam com folhas. Liébediev fez o príncipe sentar-se em um banco de madeira pintado de verde e preto, junto a uma mesa da mesma cor e plantada no chão, e se sentou diante dele. Um minuto depois, trouxeram café, que o príncipe não recusou.

Liébediev ficou a olhálo bem no rosto, de modo obsequiador e ao mesmo tempo ardente.

- Eu ignorava que você tinha este estabelecimento - disse o príncipe, com um ar de quem está pensando em coisa muito diferente.

- E dos... órfãos... - fez Liébediev, remexendo-se; calou logo.

O príncipe, que sem dúvida já nem se lembrava da observação que acabara de fazer, olhava em frente, com ar distante. Um minuto se passou. Liébediev vigiava-o e esperava.

- E então? - disse o príncipe. como quem acorda. - Sim. você sabe muito bem qual é o nosso negócio. Vim, em resposta à sua carta. Fale.

Liébediev ficou confuso, tentou dizer qualquer coisa, mas gaguejou, e as palavras não lhe vieram. O príncipe esperava e sorria melancólicamente.

- Acho que o compreendo perfeitamente, Lukián Tímoféítch. Você absolutamente não me esperava e pensou que eu não viria de tão longe logo à sua primeira carta; e a escreveu apenas para limpar a sua consciência. Mas eu vim. Vamos, desista, não me decepcione! Desista de servir a dois senhores. Rogójin esteve aqui há três semanas. Eu sei de tudo. Conseguiu você vender-lha outra vez, como já o fizera antes? Fale a verdade.

- O monstro achou-a sozinho.., sozinho.

- Cuidado com ele. Naturalmente que tratou você mal...

- Espancou-me. Espancou-me miseravelmente - interrompeu-o Liébediev, com tremenda veemência. - Soltou o seu cachorro atrás de mim, em Moscou! E como correu atrás de mim pela rua afora! Uma cadela de caça, um animal pavoroso!

- Você acha que eu sou alguma criança, Liébediev? Diga-me, seriamente: ela, em Moscou, o deixou? Quando? Agora?

- Seriamente, seriamente, escapuliu-lhe no dia mesmo em que iam casar. Ele estava a contar os minutos, enquanto ela fugiu aqui para Petersburgo, diretamente vindo me procurar. “Salve-me, proteja-me e não diga nada ao príncipe, Lukián...” Ela tem mais medo do senhor do que do outro, príncipe. Que coisa misteriosa, não acha?

E Liébediev, astutamente, pôs o dedo na testa.

- E você vai e os ajunta de noVo, não foi?

- Ilustríssímo príncipe, como poderia eu... como poderia eu evitar isso?

- Bem, agora, chega. Eu descobrirei sozinho. Diga só onde está ela agora. Está com ele?

- Oh! Não, absolutamente não! Está sozinha. “Eu sou livre”. disse ela. E o senhor sabe, príncipe, quanto ela insiste neste ponto. “Eu ainda sou perfeitamente livre”; diz ela. Está morando ainda em casa de minha cunhada, conforme lhe disse na carta.

- Estará lá agora?

- Sim, a não ser que esteja em Pávlovsk, com um tempo tão bonito como este, na vila de Dária Aleksiéievna. “Ainda sou perfeitamente livre”, diz ela. Ainda ontem gabava a sua liberdade falando com Nikolái Ardaliónovitch. Um mau sinal!

E Liébediev arreganhou os dentes.

- Kólia costuma vê-la freqüentemente?

- É um desmiolado, um sujeito sem critério. Não sabe guardar um segredo.

- Você tem estado lá?

- Todos os dias. Todos os dias.

- Então, esteve lá ontem?

- Não. Estive há três dias.

- É uma lástima que você tenha dado para beber, Liébediev. Do contrário eu poderia lhe ter feito já uma pergunta.

- Não, não, não. Nem um pouco. - E Liébediev positivamente aguçou as orelhas.

- Diga-me, como foi que você a deixou? Em que estado?

- Procurando...

- Procurando?

- Deixei-a como se estivesse a procurar, sempre, uma coisa. Como se tivesse perdido qualquer coisa. Atormenta-a a idéia do casamento e o considera um insulto. Pensa nele menos do que em uma casca de laranja. Ou melhor, tem de pensar a toda hora, pois só a lembrança dele lhe causa medo e a faz tremer. Não lhe quer nem ouvir o nome, e não se encontram, sempre que isso possa ser evitado... E ele acha que tudo vai bem. E não há saída, para isso. Ela vive agitada, sarcástica, violenta, não pára de falar...

- Violenta? Não pára de falar?

- Violenta, sim. Ainda no outro dia, por causa de uma conversa, quase me arrancou os cabelos. Estava eu tentando trazê-la para a intimidade do Apocalipse.

- Como? - perguntou o príncipe pensando que escutara errado.

- Lendo-lhe o Apocalipse. Ela é uma criatura de imaginação infatigável. Eh! Eh! Não tardei em notar também sua grande inclinação para os assuntos elevados, mesmo os de difícil alcance. Ela aprecia conversas deste teor e as toma como sinal de grande apreço. Ora, eu tenho muito jeito para interpretar o Apocalipse. Há mais de quinze anos que o venho interpretando. Ela acabou concordando comigo que nós estamos vivendo na era do terceiro ginete, o ginete negro, e do cavaleiro que traz na mão uma balança, já que na presente era tudo é pesado nos pratos das balanças e ajustado por contratos, toda gente outra coisa não fazendo senão pensar nos seus direitos... “Uma medida de trigo por um dinheiro e tres medidas de cevada por um dinheiro”. E também pensam em conservar o espírito livre, o coração puro e o corpo incólume e todas as subseqüentes dádivas de Deus. Ora, claro está que se eles se fundamentam apenas no direito não farão jus a tais dádivas, razão pela qual sobrevirá o ginete amarelo e aquele cujo nome é Morte. após o que virá o inferno... Quando estamos juntos conversamos sobre estas coisas... E isto atua favoravelmente sobre ela.

- E você acredita nessas tais coisas? - perguntou o príncipe esquadrinhando Liébediev com uma expressão estranha.

- Não somente acredito como as explico. Despojado de tudo, e de tudo carecendo, outra coisa não sendo aqui embaixo senão um miserável átomo no vórtice da circulação humana, natural é que ninguém me respeite e que eu não passe de um joguete para o capricho alheio, sendo apenas pontapés a vantagem que de tudo isso me resulta. Mas no meu pendor para interpretar a Revelação, sou igual aos mais adiantados que possam existir no orbe, pois jeito não me falta. Já de uma feita um grande senhor tremeu diante de mim, sentado na sua poltrona, ao verificar de súbito este meu extraordinário dom. O caso foi que Sua Excelência Ilustríssima Nil Aleksiéicvitch me mandou buscar, no ano retrasado, um pouco antes da Páscoa - eu servia no apartamento dele - e ordenou a Piótr Zakhántch que me levasse do escritório à sala onde ele estava. E ficando então nós sozinhos, me diz ele assim: “É verdade que expões o Anticristo?” Não fiz segredo. “Dizem”, respondi. E expliquei e interpretei. E, em vez de lhe abrandar o terror, aumenteilho, intencionalmente, à medida que ia desdobrando a alegoria e inserindo as datas. Ele se pôs a rir, mas por fim deu em tremer ante as correlações, intimando-me a fechar o livro e a ir embora. Deume um presente, na Páscoa, mas, uma semana depois, rendia a alma ao Criador.

- Como assim, Liébediev?

- Muito simples. Foi atirado da sua carruagem, depois do jantar... bateu com a cabeça de encontro a um poste e ali mesmo imediatamente morreu, como uma criança, uma criancinha. Vivera setenta e três anos. Tinha uma cara vermelha, cabelos grisalhos. andava a bem dizer encharcado em perfumes e estava sempre a rir - ria como uma criança. E então Piótr Zakháritch se recordou e me disse: “Você bem que previu.”

O príncipe fez menção de se levantar. Liébediev ficou admirado e realmente se espantou de Míchkin se estar preparando para ir embora. Tanto que observou, de modo obsequioso:

- O senhor agora já não toma muito interesse pelas coisas. Eh Eh!

- É que não estou me sentindo lá muito bem. Tenho a cabeça pesada, por causa da viagem com certeza - respondeu o príncipe. de cara fechada.

- O senhor devia ir para fora da cidade - aventurou Liébediev, timidamente.

Já em pé, o príncipe parecia refletir.

- Dentro de três dias saio com toda a minha família, por causa do meu recém-nascido e para dar uns últimos arranjos nesta casa aqui. Vamos, também nós, para Pávlovsk – disse Liébediev.

- Vocês também vão para Pávlovsk? - perguntou o príncipe, repentina-mente.

- Por que é que todo o mundo aqui está indo para Pávlovsk? Você tem lá uma vila, dizia você?

-  Não é todo o mundo que está indo para Pávlovsk. Iván Petróvitch Ptítsin deixou-me ir para uma das vilas que adquiriu lá, baratinho. Lá é bonito, bem situado, há vegetação, em redor, tudo ébem barato, as pessoas são de bon ton e a atmosfera é musical - eis por que todo o mundo vai para Pávlovsk. Mas eu morarei em um pavilhão, pois a vila propriamente dita, eu...

- Vai alugá-la?

- Não. Não é bem isso.

- Alugue-ma - propôs-lhe logo o príncipe.

Não fora para outra coisa que Liébediev estivera trabalhando. Essa idéia lhe ocorrera três minutos antes. Não precisava de inquilino pois já tinha encontrado alguém que lhe dissera que talvez tomasse a vila. E Liébediev estava mais do que certo que nem era questão de “talvez”, que essa pessoa na certa alugaria a casa. Mas agora lhe vinha essa outra idéia, que já o entusiasmava por causa das vantagens: alugar a casa ao príncipe, mesmo porque o outro pretendente não dera uma decisão categórica.

Mera coincidencia. mas que dá uma feição nova ao negócio”. eis o que se levantou na imaginação dele, imediatamente. Recebeu a proposta do príncipe. com júbilo, e à imediata pergunta dele quanto ao preço simplesmente agitou as mãos.

- O senhor é quem manda. Trataremos disso já. O senhor não será prejudicado.

Estavam ambos saindo do jardim.

- E talvez eu lhe pudesse... eu lhe pudesse dizer uma coisa que lhe deva interessar, caso o senhor queira, mui altamente honrado príncipe, e referente quase que ao mesmo assunto - balbuciou Liébediev, bamboleando-se alegremente ao redor do príncipe.

O príncipe parou.

- Dária Aleksiéievna tem uma vila em Pávlovsk, também.

- E daí?!

- E uma certa pessoa, que é amiga dela, evidentemente pretende visitá-la freqüentemente lá, com uma certa finalidade...

- Quem?

- Agláia Ivánovna...

- Arre, basta, Liébediev! - interrompeu-o o príncipe, demonstrando uma desagradável sensação, como se tivesse sido tocado em um ponto sensível. - Que tenho eu de ver com isso?... Gostaria mais que você me dissesse quando se muda. Quanto mais cedo melhor para mim, pois estou em um hotel...

E enquanto assim falavam, deixaram o jardim e, sem irem para a casa, atravessaram o pátio e chegaram ao portão.

- Ora, muito bem, dá tudo muito certo! - entusíasmou-se Liébediev.

- Venha diretamente hoje, do hotel para a minha casa, e depois de amanhã nos mudaremos todos juntos para Pávlovsk.

- Vou pensar - respondeu o príncipe, saindo pelo portão e parecendo concentrar-se.

Liébediev ficou a olhá-lo. Impressionou-o o ar distraído do príncipe que até se esquecera de se despedir, ao ir embora. Nem sequer um gesto fizera, o que não estava de acordo com o que Liébediev conhecia da sua educação e delicadeza.

 

Passava das onze horas. O príncipe calculou que na residência dos Epantchín só encontraria o general que todavia poderia ter ficado na cidade, preso às suas obrigações, não estando ainda em casa. Viera-lhe o pensamento de que o general o pudesse levar até Pávlovsk: mas queria antes fazer uma visita na qual tinha particular interesse. Mesmo ante a hipótese de perder o General Epantchín e falhar em sua visita a Pávlovsk, ficando obrigado a adiá-la para o dia seguinte. decidiu o príncipe ir procurar a casa onde tanto desejava ir.

E todavia essa visita, sob um dado aspecto, era arriscada. Ficou perplexo e cheio de hesitação. Sabia que descobriria a casa na Rua Gorókhovaia. não longe da Rua Sadóvaia; resolveu ir até lá, crente de que pouco a pouco o seu espírito se refizesse.

Quando chegou ao ponto em que as duas ruas se cruzam. surpreendeu-se com a extraordinária emoção que estava sentindo: não esperava que o seu coração viesse a bater assim tão dobrosamente. Certo prédio, de longe, lhe atraiu a atenção, por causa, sem dúvida, de sua aparência esquisita; muito tempo depois o príncipe ainda se lembrava de se ter dito: “Deve ser aquela!” E com ar muito curioso caminhou nessa direção para verificar a sua conjetura: preferiria, fosse como fosse, não ter acenado no seu pressentimento. Era uma casa enorme e sinistra, de três andares, sem pretensões arquitetônicas, de uma cor verde suja. Uns poucos edifícios dessa espécie, construídos no fim do século passado, ainda permanecem sem modificação alguma em dadas ruas de Petersburgo (onde tudo se modifica tão depressa). São construídos solidamente, com largas paredes e raras janelas, muitas vezes com barras de ferro nas janelas do rés-do-chão. De hábito há sempre uma loja de câmbio, embaixo, e o dono, quase sempre da seita dos Skoptzy (que praticam a automutilação), trabalha na loja e mora em cima. Por dentro e por fora essas casas têm um como que aspecto inóspito e frígido.

Dir-se-ia que conservam algo de sombrio e secreto, e seria difícil explicar, só pela simples impressão, por que sugerem isso. As linhas arquitetônicas possuem, sem dúvida, um segredo específico. E tais prédios são ocupados, em sua maioria, por gente de comércio.

Tendo-se dirigido até à porta, o príncipe examinou a inscrição que nela havia, lendo: “Residência legada, hereditariamente, ao cidadão hereditário e honorário Rogójin”. Sem hesitar sequer, abriu a porta de vidro, que se fechou ruidosamente atrás dele, e subiu a grande escadaria até ao primeiro andar; uma escadaria de pedra, grosseiramente feita e muito escura; as paredes eram pintadas de vermelho. Ele sabia que Rogójin, com a mãe e o irmão ocupavam todo o segundo andar dessa casa lúgubre. O criado que abriu a porta ao príncipe fê-lo entrar sem lhe perguntar o nome, levando-o lá para dentro.

Atravessaram uma enorme sala de visitas cujas paredes tinham sido pintadas fingindo mármore; o assoalho era de tacos de carvalho, e os móveis de 1820, rústicos e pesados. Passaram através de pequenas peças que

obrigavam a virar e a desviar, ora subindo dois ou três degraus, ora descendo outros tantos, até que a empregada bateu em uma porta que foi aberta pelo próprio Parfión Semiónovitch. Ao ver o príncipe ficou tão pálido e petrificado que durante certo tempo permaneceu feito uma estátua, fixando-o com olhos de espanto e contraindo a boca em um sorriso de completa admiração, como se achasse na visita do príncipe algo de inacreditável e miraculoso. Apesar de preparado para isso. o príncipe ficou surpreendido.

- Parfión, dar-se-á o caso de eu ter vindo em hora inoportuna? Posso ir embora, seja franco - disse, por fim, com embaraço.

- Absolutamente! Absolutamente! - tornou Parfión, refazendo-se.

- Seja bem-vindo. Entre para cá.

Dirigiram-se um ao outro, como amigos íntimos. Já em Moscou tinham muitas vezes passado horas juntos, e esses encontros haviam deixado eterna memória em seus corações. Desde três meses não se encontravam.

O rosto de Rogójin não perdeu a sua palidez e havia ainda um ligeiro repuxamento bem perceptível. Embora recebesse bem o visitante, a sua extraordinária confusão persistia. Ao introduzir o príncipe e ao convidá-lo a sentar em uma poltrona, este se virou para ele e continuou de pé, impressionado com aquele olhar estranho e pesado. Era como se qualquer coisa transfixasse o príncipe e como se, ao mesmo tempo, certa recordação lhe viesse de novo, de algo recente, sinistro e angustiante. Sem se sentar, e sem se mover, ficou olhando por algum tempo Rogójin, bem nos olhos. E foi como se aqueles olhos brilhassem com mais fulgor. Por fim Rogójin sorriu, embora ainda bastante embaraçado e não sabendo direito o que estava fazendo.

- Por que é que o senhor está me olhando tão atentamente? Sente-se.

O príncipe sentou-se.

- Parfión - falou ele -, diga-me com sinceridade: você sabia que eu devia chegar hoje a Petersburgo, ou não sabia?

- Pensei que o senhor viesse e, como vê, não me enganei - ajuntou Rogójin, com um sorriso sarcástico. - Mas como poderia eu dizer que seria hoje?

O príncipe ainda ficou mais chocado por certo feitio abrupto que demonstrava a irritabilidade estranha dessa resposta.

- Mesmo que você soubesse que eu chegaria hoje, por que esse feitio irritado, ao me responder? – sussurrou o príncipe, de modo gentil, embora ainda mais confuso.

- A minha pergunta tem alguma coisa demais?

- É que, ao desembarcar, hoje, na estação, vi dois olhos que me olhavam como você fez agora mesmo!

- Não diga! Uns olhos? Quais? De quem? - perguntou Rogójin com ar desconfiado.

E ao príncipe pareceu ter ele tremido.

- Não sei; talvez fosse uma alucinação; dei agora para imaginar coisas, sempre. Quer saber, Parfión, meu amigo, sinto-me de novo como há cinco anos atrás, quando tinha ataques.

- Bem, talvez fosse imaginação sua. Como hei de eu saber? -balbuciou Rogójin.

Aquele sorriso amistoso, em seu rosto, não era muito adequado àquele momento, e sim forçado, e por mais que tentasse não o conseguia endireitar.

- Pensa ir de novo para o estrangeiro? - perguntou, ajuntando logo, inopinadamente.

- Lembra-se daquela vez, quando eu vinha de Pskóv? Vínhamos no mesmo vagão, juntos; foi no último outono. Eu vinha para cá, e o senhor.., com a sua capa, lembra-se, e aquelas polainas!

E Rogójin de repente deu uma risada; mas desta vez havia franca malícia, e estava satisfeito em a haver podido evidenciar por esse modo.

- Mora aqui, definitivamente?

- Sim, estou na minha casa. Onde haveria eu de estar?

- Há quanto tempo não nos víamos! Ouvi muitas coisas a seu respeito, que eu custo a acreditar.

- Essa gente sempre tem o que contar - observou ele, secamente.

- Com que então você mandou embora todos aqueles indivíduos que não o largavam, instalou-se aqui em sua velha residência e vive sossegadamente! Bravo, isso é muito bom. Esta casa é sua, ou pertence a vocês todos em comum?

- É de minha mãe. Os cômodos dela são para lá do corredor.

- E seu irmão, onde é que vive?

- Meu irmão Semión Semiónovitch mora no pavilhão.

- Ele é casado?

- Viúvo. Por que quer saber?

O príncipe olhou-o e não respondeu; ficara pensativo, e foi como se não tivesse ouvido a pergunta. Rogójin esperou e não insistiu. Ficaram calados, por algum tempo.

- No caminho para cá adivinhei, à distância de uns cem passos. que era esta a sua casa - confessou o príncipe.

- Como assim?

- Não sei como foi. A casa de vocês tem o ar da sua família, e lembra a sua maneira de vida, Rogójin. Mas se você me perguntasse como cheguei a essa conclusão, eu não lhe saberia explicar.

É uma impressão assim aérea, creio eu. E até me indispôs ter-me ela perturbado tanto. Eu antes já fazia idéia de que você viveria em uma casa assim. E logo que a vi, mesmo de longe, pensei: “É, nem mais nem menos, a espécie de casa que ele deve habitar.”

- Pois é! - Rogójin sorriu de modo distraído, não tendo compreendido bem o pensamento obscuro do príncipe.

- Foi meu avô quem construiu esta casa - acrescentou. -Esteve sempre alugada, embaixo, aos Khludiakóv, que são Skoptzy. e que continuam como inquilinos.

- Mas é tão sombria! Você mora em uma escuridão! - observou o príncipe, olhando para a sala.

Era um salão alto e sem luz, atulhado de móveis de todos os feitios, quase que em sua maioria grandes mesas de negócios, escrivaninhas e aparadores, onde estavam guardadas uma porção de livros comerciais e uma enorme papelada. Um largo sofá, forrado de marroquim, com certeza servia de cama ao dono da casa. O príncipe reparou na existência de uns dois ou três livros sobre a mesa junto da qual Rogójin o fizera sentar-se.

Um deles, justamente a História, de Solovióv, estava aberto tendo uma marca dentro. Pelas paredes pendiam alguns quadros a óleo, com molduras douradas bastante gastas. Os quadros eram escuros e manchados e dificilmente se descobriria o que representavam. Um retrato de corpo inteiro atraiu a atenção do príncipe.

Representava um homem de cerca de cinqüenta anos, metido em uma sobrecasaca muito longa, de talhe ocidental; duas medalhas lhe pendiam do pescoço. Tinha uma barba grisalha muito rala, e uma cara enrugada, com olhos desconfiados, melancólicos, desses que não fixam ninguém .

- É seu pai?

. É, sim - respondeu Rogójin, com um movimento de boca que revelava desagrado, como se esperasse qualquer gracejo provocado pela fisionomia paterna.

- Pertencia aos “Velhos Crentes”?

- Não; ia sempre à igreja; mas, na verdade, costumava dizer que a antiga forma de crer era mais verdadeira. Tinha também muito respeito para com os Skoptzy. Aqui era o escritório dele Mas, por que perguntou o senhor se ele era um “Velho Crente”?

- O seu casamento vai ser aqui?

- S... sim - respondeu Rogójin, logo se sobressaltando ante tão inesperada interrogação.

- E vai ser já?

- O senhor sabe muito bem que isso não depende de mim.

- Parfión, eu não sou seu inimigo, e não tenho a intenção de interferir em coisa alguma que lhe diga respeito. Digo-lhe o que já uma vez lhe disse, quase que em idênticas circunstâncias. Quando o seu casamento estava acertado, em Moscou, eu não impedi, você bem sabe disso. A primeira vez ela veio ter a mim, fugida, no dia em que deviam ser as núpcias; mas veio porque quis, e até rogando que eu a salvasse de você. Estou lhe repetindo as próprias palavras dela. Depois ela fugiu também de mim. Você a achou, outra vez, e estava de novo para se casar com ela quando me disseram que ela tornou a fugir. Foi mesmo? Liébediev me contou. Eis por que vim. Mas que vocês estavam juntos outra vez, só vim a saber ontem, no trem, por intermédio de um de seus primitivos amigos, um tal Zaliójev, se lhe interessa saber. E foi certo desígnio que me trouxe até aqui, em Petersburgo. Queria persuadi-la a ir para o estrangeiro, por causa da saúde. Ela não está nada bem, física e mentalmente. Do cérebro, principalmente; e a meu ver precisa ter muita cautela. Não quero dizer com isso que fosse comigo para o estrangeiro, sendo o meu plano que devia ir sem mim. Estou-lhe contando a absoluta verdade. Mas se é certo que vocês já se acomodaram, não me farei ver, e jamais, tampouco, tornarei a vê-la. Você sabe que não o estou enganando, pois sempre fui correto e sempre me abri com você. Nunca lhe ocultei o que eu penso sobre isso, e sempre tenho dito que casar-se com você seria a perdição dela. E a sua, também... maior, talvez, do que a dela. Se vocês viessem a separar-se, de novo, eu ficaria muito satisfeito; mas não pretendo atrapalhar nada e nem tentarei, eu próprio, separá-los. Não se zangue e não desconfie de mim. Você próprio sabe se eu era realmente rival seu, mesmo quando ela fugiu, me largando. Agora você está rindo. Eu sei de que é que você está rindo. Sim, moramos separados, em cidades diferentes e você sabe tudo isso com exatidão. Já lhe expliquei antes que eu não a amo com amor e sim com piedade. Creio que a minha definição é exata. E naquela ocasião você me disse que compreendia o que eu estava dizendo. Não foi verdade? Não compreendeu? E agora você, aqui, está me olhando com ódio! Então escute, eu vim para o tranqüilizar, pois você me é muito caro. Gosto muito de você, Parfión. E com isto me vou embora e nunca mais voltarei aqui. Adeus!

O príncipe levantou-se.

- Fique mais um pouco comigo - disse Parfión, mansamente, continuando sentado em seu lugar, com a cabeça descansando sobre a mão direita. - Há quanto tempo que eu não o via!

O príncipe sentou-se. Ficaram outra vez calados.

- Quando o senhor não está diante de mim, me ponho a odiálo. Minuto por minuto, durante estes três meses, Liév Nikoláievitch, em que não o vi, eu o detestei. Palavra de honra. Sentia-me capaz até de envenená-lo. Digo-lhe isso, agora. Bastou o senhor ficar sentado comigo um quarto de hora apenas, e toda a minha raiva passou e o senhor me é caro, como merece. Fique comigo um pouco...

- Quando estamos juntos, você acredita em mim; mas quando estou ausente deixa de acreditar, imediatamente, e começa a desconfiar de mim. Você é como seu pai - respondeu o príncipe, com um sorriso afável, tentando esconder a emoção.

- Acredito em tudo quanto diz, quando estou em sua companhia. Compreendo, naturalmente, que não podemos ser postos no mesmo nível...

- Por que acrescenta isso? Pronto, já se irritou outra vez contra mim - disse o príncipe, admirado.

- Está bem, irmão, é que a sua opinião, no caso, não foi pedida - respondeu. - Foi assentada sem nos consultar. Quer saber, nossas maneiras de amar são bem diferentes. E há uma diferença em tudo - prosseguiu devagar, depois de uma pausa. - Diz o senhor que a ama com piedade. Em mim, porém, não há nenhuma espécie de piedade por ela. E ela também me odeia, mais do que a qualquer coisa. Dei em sonhar com ela, agora, e sonho que está sempre a rir de mim, com outros homens. E é isso, deveras, o que ela está fazendo, irmão. Está aí, está indo para o altar comigo, e todavia se esqueceu de me lançar ao menos um pensamento. É o mesmo que se estivesse trocando de sapato. Não vai acreditar em uma coisa. Sabe há quantos dias não a vejo? Cinco dias. Não ouso ir à casa dela. Perguntaria logo: “Que é que veio fazer aqui?” Ela me cobriu de vergonha.

- De vergonha? Não diga isso.

- Então o senhor não sabe? Ora, pois se, como o senhor ainda agora mesmo disse, ela fugiu de mim, com o senhor, justamente no dia em que ia ser o casamento!

- Mas você vai agora pensar que...

- Então ela não me envergonhou em Moscou, com aquele oficial, Zemtiújnokov? Estou farto de saber isso!

E quando já tinha combinado comigo o dia do casamento!

- Impossível! - sustentou o príncipe.

- Sei disso direitinho! - E Rogójin teimava com convicção.

- Dirá o senhor que ela não é uma mulher dessas! Não adianta vir dizer-me que ela não é uma mulher dessas, irmão! Isso é asneira, Com o senhor, claro que ela não fará isso, e até se horrorizará com essas coisas, decerto. Mas comigo ela se porta assim. A coisa é essa. Ela me olha com profundo desprezo. Eu sei com toda a exatidão que só para me ridicularizar fingiu um caso com Keller. aquele oficial, o homem que boxeia... O senhor naturalmente ignora as partidas que ela me pregou em Moscou! E o dinheiro - a dinheirama que eu gastei!...

- E... e você vai se casar com ela, agora? E que é que você vai fazer depois? - perguntou-lhe o príncipe, horrorizado. Rogójin desceu um olhar terrível e sombrio sobre o príncipe e não respondeu.

- Há cinco dias que não a vejo - continuou ele, depois de um minuto de intervalo.

- É bem capaz de me fugir outra vez. “Em minha casa ainda mando eu”, disse ela. “Se me der na veneta rompo contigo e vou para o estrangeiro”. Disse-me isso também... Que iria para o estrangeiro - observou ele, como entre parênteses, com um olhar todo especial jogado para dentro dos olhos do príncipe.

- Eu sei que às vezes ela diz isso somente para me amedrontar, procurando meios de se rir de mim. Mas momentos há em que fica sinistra e taciturna, e não há meios de lhe arrancar palavra. E é disso que tenho pavor. Um dia julguei que o melhor sistema a adotar seria levar-lhe presentes sempre que a fosse ver. E o resultado foi que me ridicularizou ainda mais. irritou-se, deu à criada, a Kátia, o xale que eu lhe trouxera. Um xale igual àquele jamais ela o teve, não obstante haver sempre vivido suntuosamente. E quanto a marcar a data em que deva ser o nosso casamento, nem ouso abrir os lábios perguntando. Que raio de noivo estuporado sou eu que até medo tenho de visitá-la! Planto-me aqui, sentado, e quando já não suporto mais então saio, passo escondido diante da casa dela, fico em um vão pelas esquinas, a espreitar. Ainda um destes dias fiquei a noite inteira, até amanhecer, vigiando-lhe a porta. Cá uma desconfiança. E ela deve me haver visto, lá da janela.

“Que me farias tu”, disse ela depois, “caso viesses a saber que te engano?” Então não me contive e lhe arrumei: “Vai fazendo uma idéia, desde ja...

- Idéia... de quê?

- Sei lá! - riu Rogójin conturbado. - Em Moscou não a surpreendi com ninguém, por mais pistas que procurasse. Chamei-a de parte, certa ocasião, e então lhe fiz saber: “Prometeste casar comigo. Vais entrar para uma família honrada. Sabes o que foste até aqui?” E lhe disse o que ela havia sido.

- Teve essa coragem?

- Tive, sim.

- E depois?

- “Agora nem mesmo como um criado te suportarei, quanto mais como marido!”. “Pois daqui não me vou sem que retires essa frase; aconteça o que acontecer”. “E eu chamarei Keller, então, e direi a ele que te jogue para fora segurando-te pela nuca”. Então me atirei a ela e a espanquei até ficar negra e azul.

- Impossível!... - bradou o príncipe.

- Estou lhe dizendo como foi - reafirmou Rogójin, vagarosamente, mas com os olhos em chamas.

- E pelo espaço de trinta e seis horas não dormi, não comi e nem bebi. Não saí do quarto dela. Fiquei ajoelhado diante dela. “Não vou embora enquanto não me perdoares; nem mesmo morto. E se chamares alguém, eu me atirarei ao rio, pois que será de mim, doravante, sem ti?” E ela esteve todo aquele tempo como uma alucinada. Chorava...

De repente, quis até me matar com uma faca. Depois me injuriou. Chamou Zaliójev, Keller e Zemtiújnokov. E diante de todos eles apontava para mim e me ridicularizava. “Que tal achas irmos nós, aqui, sem contar contigo, é claro, ao teatro, em bando? Vocês, amigos, que dizem, hein, cavalheiros? Ele que fique para aí. Ou será que pensa que vai também, ou que eu deva ficar com ele? Quando sair darei ordem para que te tragam o chá, escutaste, Parfión Semiónovitch? Deves estar com o estômago dando horas”. Voltou do teatro sozinha.

“Esses teus amigos não passam de uns covardes e de uns pobres diabos! Ficaram com medo de ti e até quiseram me apavorar. Disseram: Ele vai lhe fazer pagar caro. Nastássia Filíppovna! É homem para lhe cortar a garganta, veja o que está fazendo! Pois agora, escuta: vou para o meu quarto de dormir e nem sequer fecharei a porta. Vês o medo que me inspiras? Fica sabendo e, se não acreditares, vai verificar. Trouxeram-te o chá?”

Disse-lhe eu: “Não, e nem quero”. “Nem estou aqui para insistir, era só o que faltava. Isso de birras, enjoa”. E fez conforme dissera: não fechou por dentro a porta do quarto. Na manhã seguinte. ao aparecer e dar comigo, emitiu uma gargalhada. “Qual, és mesmo um cretino! Pois fica para aí”. “Perdoa-me!” insisti eu. “Não me enfureças! E desde já fica certo que não me caso contigo absolutamente! Passaste a noite toda nessa cadeira. E não dormiste?” “Não”. “Estúpido! E estás resolvido a não almoçar nem jantar. também?”. “Estou. Só quero uma coisa: que me perdoes!”. “Se soubesses como isso te calha bem! Tal e qual um selim em uma vaca! E nem cuides que eu me esteja afligindo. Importa-me lá que comas ou não. Cuidas que com isso me enterneces? Causas-me mais é ódio, isso sim!” Apesar de tal declaração daí a pouco deu em troçar de mim, e fiquei admirado da raiva lhe haver passado, pois ela guarda raiva por um tempo incrível, principalmente quando alguém a irrita. Então compreendi que me tem em tão pouca conta que nem mesmo um sentimento de ódio lhe mereço. E esta é que é a verdade. “Sabes que em Roma existe o Papa, não sabes?”. “Mais ou menos “ Nunca pegaste sequer em uma História Universal, Parfión Semiónovitch?”. “Sou um burro, nunca aprendi nada”. “Pois vou te dar uma História a ler. Certa vez um Papa se zangou com um imperador que então resolveu se ajoelhar, descalço, diante do palácio, ficando três dias sem comer nem beber à espera de ser perdoado. E que cuidas tu que o imperador pensou e que juras fez enquanto esteve ajoelhado acolá? Escuta, eu mesma te vou ler”. Deu um pulo e trouxe o livro: “Poesia”, disse, e começou a ler-me em versos o que o imperador jurara durante aqueles três dias, isto é, de como se vingaria do Papa. “Não estás gostando, Paffión Semiónovitch?”, perguntou-me. “Está muito certo tudo quanto me leste”, afirmei eu. “Ah! Então achas que está certo? Então também estás fazendo o teu juramentozinho, hein? “Quando ela se casar comigo eu a farei recordar-se desta passagem. Humilhá-la-ei até meu coração folgar.” “Não, não sei, quem te diz que estou pensando isso?”. “Há, ainda dizes que não. Afinal, qual é a resposta certa?”. “Sei lá. Não estive a fazer projetos ainda”. “Mas, e para agora, que idéias tens em mente?”. “Contemplar-te, ver-te a andar pela sala. ouvir o frufru do teu vestido e sentir que meu coração transborda... Depois. se saíres daqui da sala, ficarei à escuta. E se não ouvir nada então me consolarei em recordar todas as tuas palavras, uma por uma... E o timbre da tua voz, e tudo que te vi fazer. Já na noite passada não pensei em nada só para ficar ouvindo bem a tua respiração; enquanto dormias te remexeste, mudando de posição...” “Está bem, então sou eu que te devo dizer que em todo esse tempo não pensaste nem te arrependeste de me haver espancado?!”. “Quem te diz que não pensei? Devo ter pensado...”. “E se eu não te perdoar e não casar contigo?”. “Já te disse que me afogo”. “Mas talvez me mates, antes!”, disse ela e pareceu ficar refletindo. E então se zangou outra vez e saiu da sala. Uma hora depois voltou, parou diante de mim e declarou: “Eu me casarei contigo, Parfión Semiónovitch. E não porque tenha medo de ti”, explicou com um semblante sinistro. “Se me devo perder, qualquer forma serve. Puxa a cadeira para junto da mesa. Mandei vir teu jantar. E se eu me casar mesmo contigo, serei séria no que te diz respeito”. Permaneceu calada, depois, algum tempo, até que acrescentou: Afinal de contas não és um lacaio, logo não fica bem eu te tratar como um lacaio”. E então marcou, a seguir, a data do casamento. E eis que, uma semana depois, fugiu de mim, indo se acoitar na casa de Liébediev. Mal embarafustei pela casa adentro, veio a mim e explicou: “Não desisti, propriamente, apenas exijo o tempo que cuidar necessário para viver livre, pois sou dona de mim mesma. Aconselho-te a aproveitar também, caso queiras, a tua liberdade”. E eis em que pé estamos agora... Diga-me, Liév Nikoláievítch, que pensa de tudo isso?

- E você próprio, que pensa você disso tudo? - perguntou-lhe o príncipe, por sua vez, olhando amarguradamente para Rogójin.

- Então o senhor acha que eu posso pensar?! - foram as palavras que irromperam dos lábios de Parfión Semiónovitch. Decerto quis acrescentar alguma coisa, mas ficou calado, com um desânimo desesperador.

O príncipe levantou-se decidido a despedir-se de vez, o que fez com estas palavras:

- Não quero atrapalhá-lo, de forma alguma. - E falava mansamente, quase a esmo, aparentemente, mas como se respondesse a algum secreto pensamento.

- O senhor quer saber de uma coisa? - disse Rogójin, com repentina impetuosidade, os olhos faiscando.

- Como é que o senhor me vem com isto agora? Quer me dizer que deixou de a amar? Ou se trata de mais um fingimento? Eu vejo as coisas. E por que foi então que veio para cá com tamanha pressa? Por piedade.

- E o rosto dele esboçou maldosa ironia. - Ah! Ah!

- Você pensa que eu o estou enganando, agora? - perguntou o príncipe.

- Não. E creio no senhor. Mas é que não entendo isso! Não vi a sua piedade ser maior do que o meu amor!

Toda a sua face ardia em um desejo premente de se explicar. E havia nela uma certa malícia.

- Escute, dentro de você, amor e ódio se confundem! - disse o príncipe sorrindo.

- Mas um prevalecerá e então talvez a perturbação venha a ser pior. É o que lhe digo, irmão Parfión...

- Quer dizer que eu a matarei?

O príncipe estremeceu.

- Você a odiará amargamente, por causa desse amor, por causa de toda essa tortura que você está sofrendo agora. O que me parece mais estranho em tudo isso é que ela ainda pense em se casar com você. Quando ouvi isso ontem, mal pude acreditar e fiquei tão aflito. Veja bem: ela o largou duas vezes e fugiu no dia do casamento. Portanto, ela tem qualquer pressentimento. Que é que ela descobriu em você, agora? O dinheiro não pode ser; seria bobagem. E é claro que você esbanjou muito, ultimamente. Será simplesmente para arranjar marido? Ora, acharia muitíssimos outros. Qualquer outro seria preferível, mil vezes, visto como você, realmente, poderá chegar até a assassiná-la. E ela sabe disso muitíssimo bem, agora, decerto. Ou será porque você a ama tão apaixonadamente? É verdade que pode muito bem ser por isso. Já me disseram que há mulheres que apreciam tal espécie de amor... Mas o príncipe calou-se e ficou pensativo.

- Por que está outra vez a sorrir olhando para o retrato de meu pai? - perguntou Rogójin que se pusera a vigiar todos os movimentos e alterações de atitude e de fisionomia do príncipe, tomado de intensa atenção.

- Por que estou sorrindo? É que me veio agora a impressão de que se não fosse essa desgraça, isto é, esse seu amor, você muito provavelmente ficaria como seu pai e isso em tempo muito rápido, é. Você se estabeleceria aqui, sossegadamente, moraria aqui em cima, com uma esposa obediente e submissa. Seria secarrão, pouparia as palavras, não confiaria em ninguém, nem sentiria quaisquer desejos. Não faria mais do que juntar dinheiro, em um sinistro isolamento. No máximo se comprazeria com velhos livros e se interessaria pela maneira por que os “Velhos Crentes” se benzem... Mas isso, é claro, somente já em idade mais madura...

- Ria-se... Mas, quer saber, ela também disse a mesma coisa. não há muito, quando esteve a olhar para aquele retrato ali. É esquisito que ela e o senhor hajam chegado a dizer a mesma coisa.

- Como assim? Então ela esteve aqui, em sua casa? - indagou o príncipe, com interesse.

- Esteve. E olhou muito tempo para o retrato e me fez perguntas a respeito de meu pai. “Serás exatamente como ele foi”, disse a rir. “Tens temperamento apaixonado, Parfión Semiónovitch, paixões temperamentais que dariam contigo na Sibéria se não fosses suficientemente sagaz. Sim, sagaz, lá isso és, e até muito”. (Estas foram as palavras dela, textuais. Palavra de honra, foi a primeira e única vez que a vi analisar-me neutramente.) “Se não fosse isso, se deixasses todas essas tolices, e como não tens instrução quase nenhuma, começarias desde logo a economizar dinheiro e te arranjarias muito bem, conforme se deu com teu pai, com os teus inquilinos da seita dos Skoptzy. Quem sabe até se não te converterias à crença deles? Sim, talvez te convertesses à crença deles e desses em amontoar dinheiro a tal ponto que em vez de dois milhões viesses a ter uns dez milhões até, muito embora morresses de fome entre os sacos de moedas. Sim, pois em tudo és apaixonado. A míníma coisa te leva à paixão”. Foi como ela conversou, quase que com estas mesmas palavras. E, antes, jamais me havia falado assim. O senhor sabe, ela não dá confiança de conversar senão trivialidades comigo, só me ridicularizando; e de fato, desta vez, também começou a rir. Sentia-se mal aqui. Andou pela casa toda, prestando atenção em tudo e pareceu assustada, a ponto de eu dizer: “Mudarei tudo isto aqui, transformarei tudo. Ou, se quiseres, compro outra casa antes de nos casarmos”. “Não, não”, disse ela. “Nada deve ser transformado, moraremos aqui como está. Quero morar com tua mãe, quando eu vier a ser tua esposa”. Levei-a até minha mãe.

Mostrou-se muito respeitosa diante dela, mais do que se fosse sua própria filha. Há já uns dois anos para cá que minha mãe não está em seu juízo perfeito (está doente) e desde que meu pai morreu, ela virou uma verdadeira criança: não fala, não anda, só sabe inclinar a cabeça para quem lhe aparece. Se a deixassem de alimentar creio até que nem daria conta disso, nem mesmo três dias depois.

Então peguei na mão direita de minha mãe, dobrei-lhe os dedos. “Mãe, abençoa-a! Ela vai para o altar comigo”.

Ela beijou então a mão de minha mãe, com sentimento, e me fez este reparo: “Quanto sofrimento não deve ter tua mãe suportado!” Depois viu este livro aqui. “O quê? Começaste então a ler a história russa?” (Já certa vez, em Moscou, me dissera: “Não sabes nada. Precisas te instruir. Lê ao menos a História da Rússia de Solovióv”.)

“Está muito bem. Continua a ler. Vou escrever uma lista de livros que deves ler primeiro. Achas que vale a pena eu fazer essa lista?” Sim, antes, nunca me havia falado desta maneira. Fiquei admiradíssimo. Pela primeira vez respirei como um homem que enfim está vivendo!

- Fico muito contente com isso, Parfión - disse o príncipe com sinceridade. - Muito contente mesmo. Quem sabe se depois de tudo Deus não ligará mesmo vocês dois direito?

- Isso nunca se dará! - afirmou Rogójin veementemente.

- Escute, Parfión, desde que você a ama assim, acabará ganhando o respeito dela. Não quer você isso? Se quer, por que não há de ter essa esperança? Eu disse, ainda há pouco, que não podia compreender que ela casasse com você. Mas, mesmo que eu não entenda isso, não tenho dúvidas de que possa ser uma razão suficiente essa questão de sua sensibilidade. Ela está convencida do seu amor e deve acreditar em algumas de suas boas qualidades, também. Nem pode ser diferentemente, e o que você acaba de me contar vem confirmar ainda mais essa minha impressão. Você próprio diz que ela achou um modo de lhe falar e de o tratar, inteiramente diverso daquele a que você está acostumado. Você anda desconfiado e ciumento e é isso que faz com que exagere tudo quanto tem notado erroneamente. Naturalmente ela não pensa tão mal a seu respeito quanto você diz. Se pensasse, seria o mesmo que deixar-se deliberadamente afogar ou degolar. E isso não é possível! Que pessoa existe que deliberadamente se deixe afogar ou degolar?

Parfión escutava com um sorriso amargo as palavras impetuosas do príncipe. A sua convicção nem assim se abalava.

- Que maneira horrível essa com que está me olhando, Parfión! - E havia no príncipe um como que sentimento de medo.

- Deixar-se afogar ou degolar! - disse, afinal, Rogójin. -Ah! Ora, é justamente para isso que ela se quer casar comigo! Porque espera ser morta! Então o senhor quer me dizer, Príncipe, que nunca chegou a ter compreensão da raiz de tudo isso?

- Não estou compreendendo você!

- Bem, talvez não me Compreenda mesmo. Eh! Eh! Dizem por aí que o senhor não é lá... muito certo. Ela ama um outro homem - Compreenda bem isto! Assim como eu a amo agora, assim ela ama. agora, um outro homem. E quer o senhor saber quem é esse homem? É o senhor! Como? Não sabia?

- Eu?

- O senhor! Ela ama-o desde aquele dia do aniversário dela. Só que acha impossível casar-se com o senhor, porque cuida que o desgraçaria e que arruinaria toda a sua vida. “Todo o mundo sabe quem eu sou”, diz ela. E teima nisso. Disse-me uma vez tudo isso direitinho, na minha cara. Ela receia desgraçar e arruinar o senhor.

Mas eu, eu não valho nada; comigo ela pode se casar! E para o que eu lhe sirvo! Repare só.

- Mas por que foi, então, que ela fugiu de você para mim.., e de mim...

- E do senhor para mim! Ah! Ora, uma porção de coisas lhe vêm à cabeça. Anda agora sempre com uma espécie de febre. Gritara uma vez: “Quero acabar comigo, caso-me! Marca logo o casamento!” Ela própria apressa as Coisas, fixa a data, mas quando o dia se aproxima fica com medo, ou lhe sobrevêm outras idéias! Só Deus sabe! O senhor tem visto. Dá em chorar, em rir, em tremer com febre. E que é que há de estranho em ela ter fugido? Fugiu do senhor naquela ocasião porque percebeu quanto o amava. E não pôde continuar com o senhor. Disse-me, príncipe, ainda agora, que a andei procurando em Moscou. Não é verdade. Foi ela quem veio diretamente para mim, fugida do senhor. “Marca o dia. Estou pronta. Dá-me champanha! Vamos até aos ciganos!”, gritava. Ela já se teria afogado desde muito, se não tivesse a mim. Eis a verdade. Ainda não fez isso porque me acha, decerto, mais terrível do que a água. É por despeito que se vai casar comigo. Se casar comigo garanto-lhe que será por despeito.

- E como é que você.., como é que você... - E logo o príncipe se calou, encarando Rogójin com verdadeiro pavor.

- Acabe a frase, vamos! - replicou este último, arreganhando os dentes.

- Se quiser, poderei dizer-lhe em que é que está pensando bem neste momento: “Como, depois de tudo isso, pode ela ser sua mulher? Como foi que eu permiti que ela chegasse a isso?” Eu sei que o senhor está pensando nisso.

- Não vim aqui com essa idéia, Parfión. Digo-lhe que não era isso que eu tinha no meu espírito...

- Pode ser que o senhor não tenha vindo com essa idéia e que nem ela estivesse em seu espírito, mas agora certamente a sua idéia é essa. Tornou-se essa! Ah! Ah! Bem, basta. Por que está o senhor tão confuso? Realmente, o senhor então não sabia? O senhor está mais é me surpreendendo!

- Tudo isso é ciúme. Tudo isso é doença. Você exagerou tudo isso imensamente - murmurou o príncipe agitadíssimo. - Por que é que está pegando na minha mão?

- Deixe isso quieto - disse Parfión, de modo rápido, tirando da mão do príncipe uma faca que ele pegara de cima da mesa. E a colocou onde estava antes, ao lado do livro.

- Bem que ao vir para Petersburgo eu já previa isto - continuou o príncipe.

- Bem que eu não queria vir aqui. Bem que quis esquecer tudo, arrancar tudo do meu coração. Bem, então, adeus!

Mas por que se incomoda de eu pegar nisto?

É que enquanto falava, o príncipe tinha outra vez, de modo distraído, pegado a mesma faca, de cima da mesa, e de novo Rogójin lha tirava da mão e a atirava sobre o móvel. Era uma faca lisa, em forma de punhal, com cabo de chifre e uma lâmina de 3 1/2 verchóki de comprimento e espessura usual. E vendo que o príncipe havia posto um reparo especial em a faca por duas vezes lhe ter sido tirada da mão, Rogójin tornou a pegar nela, muito sério, enfiou-a dentro do livro e atirou com este para cima de uma outra mesa.

- Você corta as páginas com ela? - indagou o príncipe, como que maquinalmente, absorvido em profundos pensamentos.

- Sim.

- Mas não é uma faca de jardim? Dessas de podar?

- É sim. Então não se pode cortar as folhas de um livro com uma faca de jardim?

- Mas é... uma faca quase nova em folha!

- E que tem que seja nova? Não posso comprar uma faca nova? - perguntou Rogójin.

E a sua cólera crescia a cada palavra do príncipe. Este estremeceu e encarou bem Rogójin.

- Arre! Que dois que nós somos! - Riu de repente, e se levantou.

- Desculpe-me, irmão, quando fico com a minha cabeça pesada como está agora. é sinal de que a minha doença está querendo voltar... Ando me tornando, ultimamente, muito distraído! É tão ridículo! O que eu lhe queria perguntar era uma coisa bem diferente... esqueci agora. Adeus!...

- Por aí, não - disse Rogójin.

- Tinha esquecido...

- Por aqui, por aqui! Vou lhe mostrar.

 

Percorreram as mesmas peças que o príncipe já atravessara ao entrar; Rogójin ia um pouco adiante e o príncipe o seguia. Chegaram a um salão de cujas paredes pendiam vários quadros com retratos de bispos e paisagens tão confusas que pareciam borrões de cor. Por sobre a esquadria de uma porta que dava para a sala seguinte se inclinava ligeiramente um quadro de formato um tanto esquisito, como que achatado, pois se tinha uns dois archines de comprimento não chegava a ter de altura mais do que seis verchóki.

Representava o Nosso Salvador, depois da descida da Cruz. O príncipe parou a olhá-lo, com ar de estar refletindo; mas prosseguiu fazendo menção de transpor a porta. É que se sentia tão oprimido que tinha pressa em sair daquela casa o mais rapidamente possível.

Mas Rogójin o deteve, estacando inesperadamente a olhar para o quadro.

- Este e os outros, imagine que meu pai os comprou por alguns rublos em um leilão. Gostava de quadros. Levou um “entendido” para dar a opinião. “São rebotalho”, disse o tal, “mas este aqui vale a pena carregar”. Referia-se a este quadro ali em cima. Custou dois rublos. Quando meu pai ainda era vivo esteve aqui um homem que se prontificou a dar trezentos e cinqüenta rublos por ele. E na semana passada um negociante, o Savéliev, falando com meu irmão Semión Semiónovitch, chegou a oferecer quinhentos rublos.

- É uma cópia de uma tela de Holbein - disse o príncipe, pondo-se a examinar o quadro.

- Não entendo muito de arte, mas me parece uma boa cópia. Vi o original no estrangeiro, de forma que reconheci logo.

Rogójin esqueceu logo o quadro e prosseguiu. Só mesmo a irritação que nele se evidenciou inesperadamente na atitude preocupada podia explicar essa alteração abrupta. O príncipe achou esquisito que a conversa a respeito do quadro, não tendo sido iniciada por ele e sim por Rogójin, fosse por este deixada em suspenso.

Mas, depois de dar alguns passos, Parfión se saiu com esta:

- E por falar nisso, Liév Nikoláievitch, há muito tempo que estou para lhe perguntar se acredita em Deus.

O príncipe não pôde deixar de retorquir:

- Por que me faz assim de chofre uma pergunta dessas, olhando para mim desta forma tão esquisita?

- É que às vezes fico a olhar para aquele quadro - declarou Rogójin, depois de uma pausa, parecendo não ter ouvido as palavras do príncipe.

- Eu acho - observou o príncipe como a desvendar um pensamento que lhe adviera do assunto do quadro - quer que lhe fale com franqueza?... Esse quadro... esse quadro só serve para fazer muita gente perder a fé.

- Nem mais nem menos! - afirmou logo Rogójin. Estavam justamente na porta principal, que dava para as escadas.

- Como? - E o príncipe até parou. - Que disse você? Falei isto por brincadeira. Está você falando sério? Acha mesmo? E qual o motivo por que deseja saber se acredito em Deus?

- Oh! Por nada! Já lhe devia ter feito esta pergunta antes. Hoje em dia existe muita gente que não acredita. Como o senhor viveu no estrangeiro... Uma vez um homem me declarou, é verdade que estava bêbado, que há mais quem não acredite, aqui na Rússia, do que nos outros países. E explicou assim: “É mais fácil para nós do que para eles porque estamos muito mais adiantados!” - E Rogójin sorriu com ironia. Sem esperar pela resposta abriu a folha da porta e ficou segurando pela maçaneta dando tempo para que o príncipe passasse. Embora surpreendido, o príncipe saiu. Rogójin transpôs o patamar, fechando a porta atrás de si. Ficaram então assim parados um diante do outro, como se não soubessem o que decidir.

- Então, adeus - disse o príncipe, estendendo-lhe a mão.

- Até à vista - respondeu Rogójin apertando a mão que lhe era estendida, mas o fazendo de um modo quase distraído. O príncipe desceu um degrau e se voltou.

- Quanto à questão de fé - começou sorrindo (evidentemente não queria se despedir sem um remate e parecia estar entregue a qualquer recordação analógica) - quanto à questão de fé, tive na semana passada, em dois dias seguidos, quatro conversas diferentes. Voltava eu para casa pela estrada de ferro recentemente inaugurada e, durante quatro horas, conversei com um homem, no vagão. Fizéramos camaradagem, ali mesmo. Já me haviam falado muito sobre ele, antes. Que era ateu, entre muitas outras coisas mais. Efetivamente se tratava de um homem culto, desde logo fiquei radiante com o ensejo de manter uma conversa com uma pessoa verdadeiramente instruída. Além disso, conforme depois fui verificando, era um indivíduo de uma educação fora do comum, tanto que se entreteve comigo como se eu fosse pessoa de igual valor e com as mesmas idéias dele. Realmente, ele não acreditava em Deus. Mas uma coisa me impressionou sobremaneira: que não tivesse querido, todo aquele tempo, tratar eloqüentemente do assunto. E me impressionou justamente porque eu já muitas vezes encontrara descrentes e os tinha ouvido ou lhes havia lido os livros e esses me pareceram bem diferentes deste outro, embora o nível fosse mais ou menos o mesmo. Aproveitei então para lhe observar isso; mas acho que não me expliquei bem, ou o fiz confusamente, pois não me compreendeu. Desci, à noitinha, em um hotel provincial onde, na noite anterior, tinha sido cometido um crime. E todo o mundo falava sobre o caso. Dois camponeses, de meia-idade, amigos desde muito tempo, inteiramente abstêmios, tendo tomado apenas chá, resolveram ocupar o mesmo quarto. Mas um deles reparou, naqueles dias, que o companheiro estava usando um relógio de prata preso a uma corrente de miçangas amarelas. E antes não o tinha nunca visto com aquilo. O homem não era gatuno, pelo contrário, era um homem honesto, tinha posses, como lavrador, não era absolutamente necessitado.

Mas aquele relógio o impressionou; e tão fascinado acabou ficando que, por fim, não pôde se dominar. Tomou de um punhal e quando o outro se virou para se ir, ele se aproximou cautelosamente por detrás, mediu bem o golpe, revirou os olhos para o céu, benzeu-se e fez mentalmente esta prece: “Que Deus me perdoe, por amor de Cristo!” E cortou a garganta, do amigo, de um golpe só, tomando-lhe, depois, o relógio.

Rogójin emendou várias gargalhadas, como se estivesse com um acesso. E vê-lo dar essas gargalhadas, a ele que antes estivera tão soturno, era positivamente estranho.

- Gostei disso! Sim, isso derruba tudo! - exclamou convulsivamente, custando a retomar o fôlego.

- O seu primeiro homem não acredita em Deus, absolutamente, ao passo que o segundo acredita nele de modo tão categórico que até reza enquanto pratica um assassinato! O senhor não teria capacidade para inventar uma coisa destas, irmão! Ah! Ah! Ah! Isto derruba tudo!

- Na manhã seguinte, saí para andar pela cidade - Continuou o príncipe, assim que Rogójin ficou quieto embora com os lábios ainda repuxados pelo esgar espasmódico da gargalhada.

- E vi um soldado embriagado, em um estado horroroso de desordem, a cambalear da parede para o meio-fio. Coseu-se a mim ... me compre uma cruz de prata, barine! Cedo-lha por duas grivnas! E prata maciça.” - Essa cruz que eu estava vendo na mão dele, ele a devera ter furtado. Sacudia-a enfiada em uma fita azul encardida. Qualquer um veria que era de estanho.

Era graúda, tinha oito pontas, típico modelo bizantino. Tirei vinte copeques, dei-lhos e imediatamente pus a cruz no pescoço. E pude ver na cara dele quanto ficou alegre por ter enganado um estúpido barine. Sumiu logo; decerto foi beber com o que tinha arranjado pela cruz. Naquela ocasião eu estava estupefato com as impressões violentas que a Rússia me causava! Antes eu não conhecia nada a respeito da Rússia. Eu crescera como que desarticulado e as recordações do meu país, de um certo modo, me eram fantásticas, durante aqueles cinco anos no estrangeiro. Ora, continuei a caminhar, pensando em tais coisas. “Sim, deixarei de julgar este homem que vendeu o seu Cristo. Só Deus sabe o que está oculto no coração fraco de um bêbado”. Uma hora depois, quando regressava ao hotel, passei por uma mulher do povo que tinha uma criança fraquinha ao colo. Era uma mulher bastante moça, e a criança não teria mais do que umas seis semanas. Nisto - e decerto era a primeira vez em toda a sua vidinha! - a criança lhe sorriu. Vi-a benzer-se com grande devoção. Por esse tempo eu tinha mania de fazer perguntas até na rua, ao acaso. - Que estás fazendo, criatura?” Então, tornando a fazer o sinal-da-cruz, com a mesma devoção, a mãe respondeu-me: “Deus, no Céu, cada vez que vê um pecador o invocar, com todo o coração, tem a mesma alegria que uma mãe quando vê o primeiro sorriso no rostinho do filho”. Foi com estas palavras mais ou menos que aquela camponesa me transmitiu este pensamento sutil, profundo e verdadeiramente religioso. Pensamento em que toda a essência da Cristandade encontra a sua expressão. Sim, a concepção de Deus é esta. Ele é nosso Pai é nosso Deus e se compraz nos homens como um pai se compraz em seu filho. A idéia fundamental de Cristo! Uma simples mulher do povo. É verdade que se tratava de uma mãe.., e quem sabe até se essa mulher não era a esposa daquele soldado? Escute, Parfión. Você me fez aquela pergunta. ainda agora.

Está aqui a minha resposta: a essência do sentimento religioso não se esboroa sob espécie alguma de raciocínio, ou de ateísmo, e não tem nada de ver com crimes ou delinqüências quaisquer. Há alguma coisa mais, além disso. E sempre haverá alguma coisa sobre a qual os ateus arremetem e se esboroam. E sempre se falará dela. E o principal é que essa coisa será notada mais claramente, e de modo mais rápido, no coração russo, do que em qualquer outro. Esta é a minha conclusão. E é uma das principais convicções a que já cheguei, na Rússia. Há muita coisa que fazer. Parfión! Há muita coisa que fazer neste nosso mundo russo, acredite-me. Recorde-se de como foi que nos encontramos em Moscou e conversamos, certa ocasião... e nunca me passou pela cabeça, que, voltando, agora, encontrasse você pela forma por que encontrei. Absolutamente. Está bem... Adeus, até que nos encontremos de novo. Deus esteja com você!

Virou-se e desceu as escadas.

- Liév Nikoláievitch! - gritou Parfión, lá de cima, quando o príncipe já estava no andar de baixo.

- Ainda tem aquela cruz que comprou do soldado?

- Tenho!

E o príncipe parou.

- Mostre.

“Mais outra das tais coisas estranhas”, pensou o príncipe. E, em um instante, subiu de novo e puxou a cruz sem a tirar do pescoço.

- De-ma.

- Para quê? Você... (O príncipe não desejava separar-se da cruz.) Quero usá-la. E lhe darei a minha.

- Você está querendo trocar as cruzes? Está bem, Parfión. Com muito gosto. Ficaremos sendo irmãos.

O príncipe tirou a sua cruz de estanho; e Parfión a sua, de ouro. E trocaram; Parfión não disse nada.

Com dolorosa surpresa o príncipe reparou que o mesmo sorriso amargo, irônico e desconfiado continuava estampado nas faces do novo irmão adotivo. E que, como nos outros momentos, isso estava visível, de um modo amplo. Então, ainda calado, Rogójin tomou a mão do príncipe e ficou hesitando, um pouco, sem tomar resolução alguma. Por fim puxou-o, dizendo:

- Venha comigo.

Atravessaram o patamar do primeiro andar e Rogójin tocou a campainha da outra porta fronteira. Abriu-a uma velha, toda arcada, que usava um lenço preto dobrado sobre as cãs e que se inclinou profundamente, diante de Rogójin, sem articular palavra. Este lhe perguntou, às pressas, qualquer coisa, e foi entrando, sem esperar resposta, guiando o príncipe através das salas. Outra vez atravessaram cômodos escuros, de um asseio extraordinário, mas álgidos e severos, mobiliados com peças antiquadas que cobertas claras escondiam. Sem se fazer anunciar, Rogójin conduziu o príncipe para o interior de um aposento pequeno, espécie de saleta de visitas que uma parede de mogno envernizado dividia, com portas em cada extremidade, uma delas dando para um dormitório, naturalmente.

Em um canto da saleta, perto da lareira, uma velhinha estava sentada em uma poltrona. Nem por isso parecia tão idosa. Tinha um rosto redondo, aparentando boa saúde, mas estava bastante grisalha e, logo à primeira vista, se percebia que se tornara quase infantil. Vestia um vestido de lã preta, tinha um grande xale-manta passado pelos ombros, e, na cabeça, uma touca branca, muito limpa, com fitas pretas que desciam ao pescoço, onde se atavam.

Os pés descansavam sobre um escabelo. Uma outra velhota, muito asseada, um pouco mais idosa, lhe fazia companhia. Também estava de luto e, como a outra, usava um toucado. Estava calada, tecendo uma meia, e era assim uma espécie de companheira. Ambas davam a impressão de estar sempre caladas. A primeira velha, vendo o filho com o príncipe, sorriu-lhes, sacudindo a cabeça várias vezes, o que era uma maneira de mostrar satisfação.

- Mãe - disse Rogójin, beijando-lhe a mão - este é o meu grande amigo, o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. Trocamos agora mesmo as nossas cruzes. Já uma vez, em Moscou, foi um verdadeiro irmão para comigo. Fez muita coisa por mim. Abençoe-o, mãe, como se estivesse dando a bênção a um filho seu. Assim, não, minha velhinha! Deixe-me arranjar direito os dedos da senhora.

Mas antes que Parfión conseguisse pegar-lhe nos dedos, já ela erguia a mão direita, com dois dedos dobrados sob o polegar, e três vezes, com devoção, fez o sinal-da-cruz sobre o príncipe. Depois ficou a acenar com a cabeça, bondosamente, significando afeição, outra vez.

- Vamos, Liév Nikoláievitch. Eu o trouxe aqui somente para isso - explicou Rogójin. E quando chegaram, de novo, à escadaria, acrescentou:

- Sabe? Ela não compreende nada do que a gente lhe diz! E, portanto, não compreendeu uma só palavra do que falei; mas o abençoou. Evidentemente, fez isso lá por sua própria vontade. Bem, agora, adeus. É hora do senhor ir indo. E eu também.

- Abriu a porta.

- Deixe-me ao menos abraçá-lo, ao nos separarmos, estranho camarada! - exclamou o príncipe, olhando-o com um ar de amável censura. E ia abraçá-lo; mas Rogójin, que também tinha aberto os braços, logo os deixou cair, outra vez. Faltou-lhe coragem. Voltou-se, para não olhar o príncipe, não querendo o abraço. Mas, repentinamente, murmurou, depois de uma estranha risada:

- Está com medo? Embora tenhamos trocado de cruzes, não o assassinarei, por causa do seu relógio. - E todo o seu rosto se alterou. Ficou terrivelmente pálido, com os lábios a tremer, os olhos quase sinistros. Mas acabou abraçando o príncipe, ardorosamente. E disse, depois, quase sem fôlego:

- Bem, tome-a então, já que assim está destinado. Ela é sua! Dou-lha... Lembre-se de Rogójin!

Dando-lhe as costas, depois, para não vê-lo mais, entrou apressadamente, batendo com a porta.

 

Já era um pouco tarde, quase duas e meia, o príncipe não encontrou mais o general em casa. Deixou o seu quarto e resolveu ir ao Hotel da Balança perguntar por Kólia e, caso este não estivesse, deixar-lhe um bilhete. No Hotel da Balança lhe foi dito que Nikolái Ardaliónovitch saíra de manhã deixando o seguinte recado, que se alguém o procurasse dissessem que voltaria às três horas; mas que se às três e meia ainda não tivesse voltado era sinal de que fora de trem a Pávlovsk jantar na casa da Generala Epantchiná.

O príncipe sentou-se, decidido a esperar. E como já estava ali, resolveu jantar.

Kólia não apareceu às três e meia, e nem mesmo às quatro. O príncipe então saiu e se pôs a andar maquinalmente. No começo do verão em Petersburgo há, muitas vezes, dias admiráveis, claros e já quentes. Por sorte, esse era um dia assim. Durante certo tempo o príncipe errou sem destino. Conhecia muito mal a cidade. Perambulou por praças e pontes, esteve parado em esquinas admirando a fachada dos prédios. Entrou em uma confeitaria a fim de descansar um pouco.

Tornou a sair. De quando em quando dava para prestar atenção nos transeuntes, com muito interesse; depois esqueceu essa gente das calçadas, seguiu a esmo. Sentia-se constrangido e aflito, ansiando ao mesmo tempo por solidão.

Desejava estar sozinho, entregar-se de todo a esse estado de ânimo, sem relutância alguma. Reagiu à idéia de prestar atenção às questões que surgiam do seu coração e do seu espírito, murmurando para si mesmo, confusamente: “Que culpa tenho eu de tudo isso em que me baralhei?”

Lá para as seis e meia se encontrou diante da estação da linha de Tsárskoie Seló. A solidão já se lhe tornara intolerável. Empolgou-o um impulso novo e ardente, e, por um momento, as trevas que haviam baixado em sua alma foram aclaradas por um raio de luz. Comprou um bilhete para Pávlovsk e ficou impaciente por seguir. Mas alguma coisa decerto o perseguia, e essa alguma coisa era uma realidade e não uma fantasia como estava talvez inclinado a supor. Já ia se sentar no seu vagão quando de repente atirou o bilhete na plataforma e abandonou a estação, confuso e pensativo.

Poucos minutos depois, já na rua, se recordou subitamente de qualquer coisa. Foi como se tivesse enfim agarrado uma preocupação angustiosa e que desde muito o molestava. E então percebeu que viera até ali imerso em qualquer preocupação que já durava tempo, muito embora somente agora tivesse verificado isso. Durante horas e horas antes, mesmo no Hotel da Balança e até mesmo antes de ir lá, estivera a procurar não sabia o quê; às vezes se esquecia dessa preocupação mas daí a meia hora, se tanto, ela voltava transformada ora em angústia, ora em apreensão.

Mal acabara exatamente agora de verificar este mórbido e até então inconsciente impulso de busca, de angústia, de cuidado por qualquer coisa difusa, quando lhe surgiu uma recordação que o interessou sobremodo.

Lembrou-se com a maior segurança de que. justamente no momento em que percebera que andava à procura de qualquer coisa urgente, havia parado na calçada defronte de uma vitrina, examinando com muita atenção os artigos ali expostos. Resolveu já agora ir verificar se deveras tinha estado diante de tal loja cinco minutos antes, talvez; ou se não teria sido sonho; ou se se teria enganado.

Existiria realmente a tal loja com os tais artigos expostos na tal vitrinaa? Ah! Sem dúvida não estava se sentindo bem, hoje, a bem dizer se achando quase no estado em que outrora se sentia quando estava para vir um dos ataques da sua antiga moléstia. Sabia que em tais ocasiões costumava pouco antes se sentir excepcionalmente “ausente” de tudo, e que então confundia coisas e pessoas, caso não se esforçasse por prestar bastante atenção nelas. E havia ainda um outro motivo especial para fazer com que desejasse realmente descobrir se antes tinha estado mesmo diante da tal loja. Entre os artigos expostos na vitrina havia um que ele admirara de modo particular, havendo até calculado que devia valer uns sessenta copeques de prata. Lembrava-se dessa particularidade, não obstante a agitação e seu estado mental. Portanto, se tal loja existisse, se tal artigo lá estivesse mesmo na vitrina, isso confirmava que de fato parara acolá, atraído simplesmente por aquele tal artigo. E por conseguinte tal artigo deveria interessá-lo muito, já que o atraíra messmo estando ele como estava, aborrecidíssimo e confuso por ter saído do trem e abandonado a estação. Enveredou para a direita, olhando para as lojas e eis que, quando mais batia seu coração tomado de impaciência, deu de súbito com a loja! Encontrara-a finalmente!

Estava a quinhentos passos dela, ainda agora, quando lhe veio a vontade irreprimível de voltar. E lá estava o artigo que devia valer uns sessenta copeques. Olhava-o e repetia: “Deve valer uns sessenta copeques, não mais”, e riu. Mas sua risada era histérica.

Sentiu-se indisposto, infeliz, zonzo. Lembrou-se claramente, então, de que quando ali estivera antes, ainda agora mesmo, repentinamente se tinha voltado da vitrina para a rua, como fizera aquela manhã ao descer do trem quando, já na rua, surpreendera os olhos de Rogójin sobre ele. Dando como certo que não se tinha enganado (muito embora antes soubesse que era verdade mesmo), afastou-se da loja e estugou o passo. Urgia dar tudo por acabado. Agora estava mais que ciente de que nem mesmo na estação aquilo fora imaginação sua.

Algo de verídico se passara com ele, ligado à sua inquietação anterior. Mas o subjugou uma intolerável repugnância; resolveu não pensar mais nessas coisas, e conseguiu dar um curso completamente outro às suas cogitações.

Lembrou-se, por exemplo, de que sempre um minuto antes do ataque epilético (quando lhe vinha ao estar acordado) lhe iluminava o cérebro, em meio à tristeza, ao abatimento e à treva espiritual, um jorro de luz e logo, com extraordinário ímpeto, todas as suas forças vitais se punham a trabalhar em altíssima tensão. A sensação de vivência, a consciência do eu decuplicavam naquele momento, que era como um relâmpago de fulguração. O seu espírito e o seu coração se inundavam com uma extraordinária luz. Todas as suas inquietações, todas as suas dúvidas, todas as suas ansiedades ficavam desagravadas imediatamente. Tudo imergia em uma calma suave. cheia de terna e harmoniosa alegria e esperança. Tal momento, tal relâmpago, era apenas o prelúdio desse único segundo (não era mais do que um segundo) com que o ataque começava. Esse segundo era naturalmente insuportável. Ao pensar depois naquele momento, quando outra vez bom, muitas vezes dissera a si próprio que aqueles relâmpagos e fulgores, lhe dando a mais alta percepção de autoconsciência e, por conseguinte, também de vida em sua mais alta forma. Não passavam de doença, isto é, de mera interrupção de uma condição normal. Portanto, não eram absolutamente a mais alta forma de existir e de ser, devendo muito ao contrário ser contada como a mais baixa. E acabava chegando, por último, a uma conclusão paradoxal. Que tem que seja doença? Que mal faz que seja uma intensidade anormal, se o resultado desse fragmento de segundo, recordado e analisado depois, na hora da saúde, assume o valor de síntese da harmonia e da beleza, visto proporcionar uma sensação desconhecida e não adivinhada antes? Um estado de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da vivência?

Estas expressões assim vagas pareciam-lhe muito compreensíveis, embora fracas demais. Que aquilo realmente era “beleza e adoração”, que era realmente a mais alta escala da vivência, não podia haver sequer possibilidade de dúvida.

Era como se em tal fração de momento contemplasse visões irreais e deslumbrantes como as despertadas pelo haxixe, pelo ópio ou pelo vinho ao destruírem a razão e distorcerem a alma. Era capaz de julgá-las inteiramente quando o ataque cessava. Tais frações de momento, para defini-las em uma palavra, caracterizavam-se por uma fulguração da consciência e por uma suprema exaltação da emotividade subjetiva. Se, nesse segundo, ou melhor, bem no último momento consciente anterior ao ataque, ele tivesse tempo para dizer a si mesmo, clara e lucidamente “Sim, por este só momento se daria toda a vida!”, então esse momento, sem dúvida, valia realmente por toda a vida. Não insistia na parte dialética do seu argumento, ainda assim.

Estupefação, treva espiritual e idiotismo, lá estavam e lá ficavam, diante e dentro dele, conspicuamente como a conseqüência desses “mais altos momentos”. Lá isso era irrefutável. A sua conclusão, ou melhor, a sua avaliação desse momento encerrava indubitavelmente um erro. Ainda assim, a realidade da sensação o deixava perplexo. E que poderia haver de mais real do que um fato? Ora, aquela sensação era um fato real, talvez a única realidade desejada. Tanto que ele chegara a dizer que tal fração de segundo, só pela felicidade infinita em que o arremessava, valia por toda a vida. “Nesse momento”, conforme dissera a Rogójin um dia, em Moscou em um de seus encontros, “eu como que compreendo a extraordinária expressão do apóstolo: ‘Não haverá mais tempo!”‘ E acrescentara com um sorriso: “Sem dúvida era  este mesmo que aludia Maomé, durante o qual o profeta epilético visitava as mansões todas de Alá em menos tempo do que o necessário para virar no chão a água de um cântaro.”

Sim, encontrara-se muitas vezes com Rogójin em Moscou e não fora apenas sobre essas coisas que conversara com ele. “Rogójin ainda agora acabou de dizer que naquela ocasião fui para ele um verdadeiro irmão. Disse isso pela primeira vez, hoje”, pensou o Príncipe.

Assim pensava, sentando-se em um banco debaixo de uma árvore no Jardim de Estio. Eram cerca de sete horas. O jardim estava quase vazio. Uma sombra passou pelo sol poente no crepúsculo abafadiço, e havia no ar como que um pressentimento de tempestade distante. A sua disposição contemplativa oferecia-lhe certo encanto. O espírito e a memória pareciam prendê-lo aos objetos visíveis à sua volta; e sentia prazer nisso. Esforçava-se, ainda assim, por esquecer alguma coisa atual, verdadeira, decerto grave; e ao primeiro olhar para dentro de si mesmo, se deu Conta imediatamente do seu sinistro pensamento aquele pensamento ao qual desde muito estava querendo fugir. Lembrou-se de que conversara com o garçom, durante o jantar na taverna, sobre um assassinato sensacional que despertara muitos comentários. Mal, porém, se recordava disso, quando algo estranho veio se interpor.

Um extraordinário e insubjugável desejo, quase uma tentação, paralisou repentinamente sua Vontade. Levantou-se do banco. E do jardim se dirigiu diretamente para a Petersbúrgskaia. Pouco antes, havia pedido a um transeunte, nas margens do Neva, que lhe apontasse por sobre o rio, Petersbúrgskaia. O homem lhe tinha mostrado; mas não fora até lá, naquela ocasião. Em todo caso, agora isso lhe serviu. Desde muito guardava certo endereço. Facilmente, encontraria a residência da parenta de Liébediev; mas lhe ocorria quase a certeza de que não estivesse em casa. “Certamente foi para Pávlovsk. Do contrário Kólia teria deixado ao menos uma palavra no Hotel da Balança, conforme combinara”. Se, pois. Se dirigiu para lá, não foi com a intenção de vê-la. O que o atraía agora era uma sinistra e atormentadora curiosidade de ordem muito diversa. Uma idéia nova lhe viera ao espírito.

Mas já era para ele suficiente estar andando e saber aonde ia. muito embora um minuto mais tarde estivesse caminhando de novo quase inconscientemente, alheio ao que o rodeava. Uma ulterior consideração sobre a sua “inesperada idéia” se lhe tornou imediatamente insípida, para não dizer impossível. Fixava com angustiosa e intensa atenção qualquer coisa que o seu olhar descobrisse: contemplava o céu, contemplava o Neva. Falou a um garoto que encontrou. Talvez a sua condição de epilético estivesse piorando, e da maneira mais aguda. A tempestade armava-se, embora vagarosamente. Começava a trovejar, ao longe. A atmosfera tornara-se muito abafada...

Sem saber por que (como uma pessoa perseguida por uma frase musical que acorda em seus ouvidos e não o larga, insiste, volta e irrita), perseguia-o agora com uma insistência incômoda a imagem do sobrinho de Liébediev, que conhecera nessa manhã. E o mais absurdo é que o continuava vendo como o assassino de que Liébediev falara quando lho apresentara. Sim, de fato ele, Míchkin, tinha lido qualquer coisa a tal respeito.

Desde que chegara à Rússia lia nos jornais e ouvia em conversas muitos casos desses, e acompanhava tais descrições. Ainda esta tarde, por exemplo, se interessara bastante pela conversa do garçom a respeito do assassinato da família Jemárin - o tal assassinato comentado por Liébediev. Recordava-se de que o garçom concordara com seus pontos de vista. Relembrava-se perfeitamente dos modos, das palavras desse garçom. Indivíduo arguto, atencioso e grave, muito embora “só Deus saiba realmente como ele é deveras, visto me ser difícil conhecer gente que nunca vi em um país onde mal acabo de chegar...” Todavia a alma russa começava a inspirar-lhe uma fé apaixonada. Oh! Naqueles seis meses tinha visto muita, muitíssima coisa que para ele era novidade absoluta, inesperada e inconjeturável. Se a alma alheia é por si só uma região sombria, a alma russa, essa então é uma gruta escura, por muitas e muitas razões. Contava já com alguns amigos. Um deles, por exemplo, era Rogójin. Certos episódios não o haviam tornado a ele, Míchkin, e Parfión amigos mesmo, quase irmãos? Mas, apesar disso tudo, poderia dizer deveras que conhecia direito Rogójin? Não era essa criatura um caos? Quanta coisa absurda e hedionda não existe na alma humana! Que sujeito repulsivo e convencido não era aquele sobrinho de Liébediev... “Mas em que e em quem estou eu a pensar?” (O príncipe continuava como dentro de um sonho...). “Teria ele assassinado aquelas criaturas, aquelas seis pessoas? Que embrulhada estou fazendo!... Que coisa mais absurda... Estarei delirando... E que rosto encantador, suave, o da filha maiorzinha de Liébediev! Aquela que estava com um irmãozinho no colo! Que expressão cândida, ainda infantil! Que sorriso beatífico...” E o mais estranho era que se esquecera dos traços verídicos daquele rosto. Se o baralhava, como era então que não podia esquecê-lo? Liébediev, que batia com o pé no chão para assustar a filharada, com certeza adorava todos eles. E também adorava o sobrinho, tão certo como dois mais dois serem quatro! Mas como podia ele, Míchkin, se aventurar a analisá-los tão categoricamente, se tinha acabado de chegar naquele dia mesmo? Como podia fazer tais julgamentos? De mais a mais, esse próprio Liébediev, por exemplo, não fora um enigma para ele? Esperara acaso encontrar um Liébediev tão diferente? O Liébediev que se apresentara hoje era o mesmo da outra vez? O Liébediev e a Du Barry! Ó Céus! Se Rogójín viesse a cometer um assassinato não seria coisa de espantar, compreender-se-ia. Era homem de uma natureza bem outra. Afinal, uma aquisição de arma com o intuito de matar e o assassinato de seis pessoas perpetrado em completo delírio eram coisas completamente diferentes!

Mas a essa altura o príncipe se sobressaltou. Adquirira Rogójin uma arma para determinada finalidade? “Não é um ato vil e criminoso da minha parte fazer uma suposição desta ordem, assim com tão cínica frieza?”

E uma onda de pejo se lhe espraiou pela cara. Ficou aterrado.

Chegou a parar na rua, ofegando. Várias lembranças se alternaram na sua memória: a estação ferroviária de Tsárskoie Seló, onde estivera de tarde; a outra estação por onde chegara a Petersburgo, aquela manhã mesmo; a pergunta feita cara a cara por Parfión: Uns olhos? Quais? De quem?”; a cruz que ele lhe dera; a bênção da velha Rogójin, em cujos cômodos estivera; aquele último abraço, convulso; a renúncia de Rogójin, lá naquela escada... E após tudo isso estar ele, Míchkin, naquela espécie de delírio ambulatório em busca sabia lá de quê!... Ah! Aquela loja! Aquele objeto exposto naquela vitrina... Quanta vilania!

E apesar de tudo, ainda caminhava agora com um “propósito especial”, guiado por uma “idéia súbita”! Toda a sua alma ficou dominada pelo desespero e pelo sofrimento. E o príncipe desejou retroceder, voltar para o hotel. Virou, com esse intento; mas um minuto depois refletiu, virou outra vez teimando em prosseguir no rumo de antes.

Sim, já estava agora na Petersbúrgskaia; e bem perto da tal casa. E isso não tinha mais nada de ver com aquele especial propósito nem com aquela idéia súbita. Mas como podia ser isso, então? Sim. é que a sua moléstia estava voltando. Não havia a menor dúvida. Talvez até viesse a ter um ataque ainda hoje mesmo.

Aquela treva já era um sintoma; a “idéia” também era conseqüência dessa espécie de aura prolongada. Mas eis que a treva se dispersa; o demônio a arrebata para longe; a dúvida cessa de existir: reina alegria em seu coração!

Havia tanto tempo que não a via! Que desejo agudo de vêla! Sim.., que bom encontrar-se com Rogójin, tomá-lo pela mão, fazê-lo caminhar a seu lado! Sentia o coração tão puro! Não, não era rival de Rogójin! Amanhã iria procurá-lo, contaria que tinha ido vê-la. De fato viera para Petersburgo simplesmente para vê-la. Rogójin tinha dito isso, e era verdade. Talvez a encontrasse. Talvez ela não tivesse ido para Pávlovsk.

Urgia clarear tudo isso, agora. E era o que ia fazer, lançar luz, muita luz, tanto no coração de um como no do outro. Não era direito, não era normal, mas sinistro e apaixonado, aquele gesto de renúncia de Rogójin proclamado no patamar da sua residência. Urgia lançar luz, muita luz, sobre isso tudo para que a ação fosse livre. Pois então o próprio Rogójin não podia caminhar na luz? Se dissera que não a amava “assim”, isto é, que não tinha compaixão por ela, “nenhuma espécie de piedade”, todavia acrescentara depois:

“Talvez a piedade do senhor seja maior do que o meu amor!” Mas Rogójin fora injusto para consigo próprio. Ah! Pois isso de estar ele, Rogójin, lendo, ultimamente.., já não era indício bastante de piedade? Pelo menos o começo já de uma “piedade”? A só presença daquele livro não provava que tal homem se sentia consciente de modo pleno quanto à sua atitude para com essa mulher? As palavras dele, lá na sua casa, não significavam alguma coisa bem mais profunda do que mera paixão? E o rosto de Nastássia Filíppovna era um rosto para inspirar apenas paixão? Ah! Um rosto assim aspirava sentimentos muito acima da paixão somente. Era um rosto que arrebatava, que prendia a alma inteira!... Ele...

E uma pungente, dolorosa recordação traspassou o peito do príncipe.

Pungente, e quanto! Lembrava-se agora de quanto sofrera, ainda recentemente, ao perceber sintomas de loucura nessa mulher. Sofrera tanto que beirava o limiar do desespero. E como pôde ele, Míchkin, se resignar quando ela lhe fugira para Parfión? Por que não correra à sua procura, ao invés de ficar à espera de notícias?... Seria possível que Parfión Rogójin ainda não tivesse percebido que ela estava louca? Como tem sossego esse homem para discernir as coisas, se tudo que faz é através de arrebatamentos, envolto sempre com um ciúme horrendo? Falar nisso.., que teria ele querido dizer, ainda hoje, com aquela suposição? (O príncipe enrubesceu involuntariamente, sentindo o coração subir-lhe à garganta.) Ora, que adiantava estar pensando em tais coisas? Havia loucura, e de ambos os lados. Ele, Míchkin, amar aquela mulher, apaixonadamente, era coisa que nem se devia supor. Corresponderia a julgá-lo capaz de crueza espiritual, de falta de humanidade. Sim, sim! Até consigo próprio Rogójin era injusto e falso!

Ou talvez ignorante do próprio coração que tinha, coração apto a se compadecer, coração que assim que acabasse de conhecer a verdade, assim que notasse que criatura digna de piedade era aquela mulher infeliz e insana, lhe perdoaria todo o passado causador de tão recíprocos tormentos! Sim, ele se tornaria o servo, o irmão, a Providência dessa criatura! A paixão ensinaria ainda muita coisa a Rogójin e despertaria grandes aperfeiçoamentos no seu espírito. A compaixão era a principal e decerto a única lei de toda a existência humana. Ah! Como se enganara, imperdoável e desonrosamente, a propósito de Rogójin! Não, não era “a alma russa que era uma região de trevas”, mas era, sim, a sua alma essa negra região, já que pudera pensar tais horrores! Pois que, só por umas poucas de palavras ardentes saídas do coração, em Moscou, Rogójin o tinha chamado de seu irmão, enquanto que ele... Mas isso era doença e delírio. Isso tido teria jeito!... Quão sinistramente não dissera Rogójin, aquela manhã, que estava “perdendo a fé”! Esse homem devia estar sofrendo terrivelmente! Ele dissera que “gostava de olhar aquele quadro”. Não que o apreciasse; sentia-se arrastado, atraído a isso. Rogójin não era simplesmente uma alma apaixonada; era um lutador, fosse como fosse. Queria retomar, à força, a fé perdida. Tinha uma angustiosa necessidade dela agora... Sim, acreditar em alguma coisa! Acreditar em alguém! Ah! Quão estranha não era aquela pintura de Holbein!... Mas... pois não é que é esta a rua? E a casa deve ser aquela! Sim, é ali, n- 16, a “residência da Sra. Filíssova”. É aqui. O príncipe tocou e perguntou por Nastássia Filíppovna.

A própria dona da casa lhe respondeu que Nastássia Filíppovna tinha ido aquela manhã mesmo para Pávlovsk, para a casa de Dária Aleksiéievna “e era muito provável que passasse alguns dias lá”. A Sra. Filíssova era baixota, viva, incisiva, quarentona, com ar desconfiado e astuto. Perguntou-lhe o nome, e havia evidentemente nessa pergunta um ar intencional de mistério. O príncipe, no começo, não quis responder, mas, subitamente se voltando, lhe pediu, com veemência, que transmitisse o seu nome a Nastássia Filíppovna. A Sra. Filíssova recebeu esse pedido categórico com grande atenção e com um extraordinário ar de sigilo, com o qual, evidentemente, queria significar “Fique tranqüilo; eu compreendo”. O nome de Míchkin parece que lhe causou grande impressão. Ele a olhou de maneira vaga, virou-se, e saiu rumo ao hotel. Mas, agora, estava completamente diferente. Uma extraordinária diferença lhe sobre-viera, e de modo quase instantâneo. Ia por ali fora, ainda mais pálido, fraco, agitado e se sentindo mal. Tremiam-lhe os joelhos e um vago sorriso de desnorteamento lhe levantava o lábio azulado. A sua “súbita idéia” estava ao mesmo tempo confirmada e justificada. Acreditou outra vez no seu demônio. E por sua vez ela, a sua idéia, confirmava o quê, justificava o quê? Por que de novo esse tremor, esse suor gélido, essas trevas glaciais de sua alma? Seria porque, uma vez mais, vira aqueles olhos? Mas se saíra do Jardim de Estio de propósito para vê-los! Consistira nisso a teima daquela “idéia súbita”. Tinha querido intensamente rever “aqueles olhos”, e tanto que estava quase certo de que os encontraria lá, diante daquela casa.

Pois se tinha querido isso apaixonadamente, por que então estava agora tão esmagado e atônito pelo fato de os ter acabado de ver? Acaso não esperava por isto? Sim, aqueles eram os mesmíssimos olhos (e nem podia haver dúvida alguma de que fossem) que vira fulgurar na estação, por entre o povo, ao desembarcar do trem de Moscou; eram os mesmos (absolutamente os mesmos) que surpreendera a olhá-lo aquela mesma tarde quando, em casa de Rogójin, se estava sentando na sala. Naquela ocasião Rogójin tinha negado, perguntando com um sorriso duro e tortuoso: “Uns olhos? Quais?!” E, não havia muitas horas, quando ele, o príncipe, fora tomar o trem para Pávlovsk a fim de ir ver Agláia, havia surpreendido, de repente, outra vez aqueles mesmos olhos. Era a terceira vez, naquele dia! Viera-lhe então um desejo instantâneo e quase indomável de ir procurar Rogójin e de lhe dizer que olhos eram aqueles.

Embarafustara pela estação afora, decidido a isso; mas, na rua, ficara inconsciente, depois, inconsciente de tudo até ao momento em que dera consigo mesmo parado diante da loja do cuteleiro a considerar que um certo artigo ali exposto. um objeto com um cabo de chifre de veado, deveria custar sessenta copeques.

Então um esquisito e terrível demônio se apossara dele e não havia meio de querer largá-lo. Fora esse demônio quem lhe sussurrara ao ouvido, quando, perdido em cismas, estava no Jardim de Estio sentado debaixo de uma árvore: “Rogójin, hoje, não deixou nem deixará de te seguir o dia inteiro, rastejando nas tuas pegadas”. E decerto, descobrindo que ele, Míchkin, não tinha ido a Pávlovsk (contratempo sem dúvida terrível para Rogójin) fora vaguear pelas imediações da casa da Filíssova, à espreita de que viesse, muito embora o príncipe tivesse dado a sua palavra de honra a Rogójin, de que não iria vê-la e nem viera a Petersburgo com esse fim. No entanto, bem que se apressara a ir até lá, febrilmente. Como admirar-se, pois, de haver encontrado Rogójin? E viu apenas um homem cuja disposição era sombria, mas que facilmente se chegava a compreender como, por que e com que fim ali viera ter. Aquele homem taciturno nem sequer se escondia mais. Se de manhã, sem motivo justificado, Rogójin tinha negado e mentido, de tarde, porém, na outra estação, se mantivera parado, quase à mostra, até se podendo dizer que o príncipe é que seescondera. E agora ali estava, nas imediações daquela casa, postado na calçada oposta, esperando-o, de braços cruzados. E bem à mostra, de propósito. Hirto, visível, como um acusador e como um juiz, e não como... um réu ou um espião.

E por que então o príncipe não foi ao encontro dele? Por que se afastou, fingindo não haver notado nada, embora os olhos de ambos se tivessem encontrado? (Sim, os seus olhos se tinham encontrado - ambos se tinham fixado bem.) Todavia o príncipe, horas antes, chegara a querer pegar Rogójin pela mão a fim de levá-lo até lá, estivera resolvido mesmo a ir no dia seguinte à casa dele somente - para dizer que tinha ido vê-la. Recusara-se a seguir o seu demônio quando, já a meio caminho, súbita alegria inundara a sua alma. Ou haveria hoje qualquer coisa em Rogójin, ou na imagem inteira desse homem, em suas palavras, movimentos, expressões. modos. e tudo, tomado em conjunto, justificasse as tremendas desconfianças do príncipe e as revoltantes diligências ditadas por sua voz interior? Algo que pudesse ser visto mas que fosse difícil analisar e descrever? Algo impossível de, com base suficiente e através de tantos mistérios confusos e indiscerníveis, justificar aquela impressão categórica e total que não tardou daí a pouco, por um impulso externo, a se tornar uma firme convicção?!

Mas... convicção de quê? (Oh! Como o príncipe se sentia torturado pela hedíondez, pela “ignominiosidade” da sua convicção, dessa “vil desconfiança”, e como se repreendia por isso!) Àguisa de repreensão e de desafio não cessava de se exprobrar “Fala. se és capaz, formula o teu pensamento, ousa exprimi-lo bem claro e bem nítido, sem vacilação. Oh! Que ignóbil que és!” E repetia tais doestos a si mesmo, indignado, o rosto cheio de vergonha. “E com que olhos poderei olhar para esse homem, pelo resto da minha vida? Que dia, meu Deus! Que pesadelo!”

Um momento houve, ao fim dessa miserável e longa caminhada de volta de Petersbúrgskaia, em que um irresistível desejo assaltou o príncipe de ir diretamente à casa de Rogójin, e de ficar a esperálo, e de abraçá-lo, com vergonha, com lágrimas, e de lhe dizer e liquidar tudo. Mas já estava diante do seu hotel. Como achara antipático esse hotel, de manhã! Aqueles corredores, aquela casa. aquele quarto - e antipatizando logo à primeira vista! E quantas vezes, durante o dia, não pensam, com repugnância, que teria de voltar para lá... “Ora, como uma velha doente, dei hoje em acreditar em todos os pressentimentos!” - pensou com irritada ironia, já diante da porta da entrada. Uma circunstância sobrevinda nesse dia se levantou no seu espírito, bem nesse momento; mas foi um pensamento “frio”, com perfeita tranqüilidade, “sem pesadelo”. Repentinamente se lembrou da faca que vira sobre a mesa de Rogójin. “E por que não haveria Rogójin de ter uma faca qualquer em cima da sua mesa?” - perguntou a si mesmo, com ar atônito. Mas nisto se sentiu petrificado de espanto, pois de súbito se lembrou que estivera parado diante da loja do cuteleiro. “Mas que conexão pode haver entre uma e outra coisa?” exclamou ele, por fim, parando. Um novo e insuportável golpe de vergonha, quase que de desespero, deixou-o plantado ali mesmo, fora da entrada. E, assim, permaneceu por um minuto. A gente é assaltada por insuportáveis e repentinas lembranças, principalmente quando elas vêm associadas à vergonha. “Sim, sou um homem sem coração e um covarde”, disse e repetiu, melancolicamente. Quis prosseguir, mas... estacou de novo.

Aquela entrada, que era sempre escura, ainda mais escura estava agora. A nuvem carregada se alargara pelos céus, tapando toda a claridade. E no momento exato em que o príncipe transpôs a entrada, a tempestade caiu em terrível aguaceiro. Estava o príncipe bem na entrada da porta da rua e acabava de sair de sua momentânea parada. E então viu perto das escadas, na obscuridade do corredor, embaixo, um homem. E esse, que parecia estar à espera de qualquer coisa, logo sumiu lá para dentro. O príncipe pudera apenas vê-lo de relance, muito mal, e não poderia dizer quem fosse. Além de que, muita gente subia e descia, pois era um hotel com contínuo vaivém. Mas ficou nitidamente convencido de que tinha reconhecido o homem e não tinha dúvidas de que era Rogójin. E imediatamente o príncipe enveredou escadas acima, atrás dele. Seu coração parou. “Tudo será decidido agora”, disse, com uma convicção inaudita.

O lance de escada, pelo qual o príncipe embarafustou lá de baixo, levava aos corredores do primeiro e do segundo andares, onde estavam os quartos. Como em todas as casas antigas, a escada era de pedra, escura, estreita e girava em volta de um grosso pilar central também de pedra. No primeiro patamar, separando em lance do outro, havia uma escavação no pilar, uma espécie de nicho, da largura de um passo, se tanto, e com meio passo de profundidade. Ainda assim dava para uma pessoa caber lá dentro.

Escuro como estava, pôde todavia o príncipe descobrir ao chegar no patamar que um homem se estava escondendo dentro do nicho.

Bem que o príncipe quis passar sem olhar para o lado direito. Já tinha dado um passo além, mas não pôde resistir e se voltou. Aqueles dois olhos, aqueles mesmos dois olhos, bateram de cheio nos seus. O homem que se tinha escondido dentro do nicho já estava dando um passo para fora. Por um segundo, ficaram olhando um para o outro, quase se esbarrando. Então, de repente, o príncipe o segurou pelos ombros e o virou para a escada, para mais perto da claridade. Queria ver bem aquela cara.

Os olhos de Rogójin faiscaram e um sorriso de fúria lhe contorceu a face. A sua mão direita estava erguida e uma coisa fulgurava nela; Míchkin nem pensou em resistir. Apenas se recordou de que pensou ter gritado: “Parfión, não acredito!” E nisto alguma coisa pareceu girar em partículas diante dele! Toda a sua alma se inundou de intensa claridade interior. Duraria esse momento, o quê? Meio segundo, talvez; mas ainda assim, clara e conscientemente, se lembrou do começo, do primeiro som do pavoroso grito que rompeu do seu peito e que não pôde evitar de modo algum. Depois a sua consciência instantaneamente se extinguiu e trevas completas se seguiram.

Era um ataque epilético, o primeiro que tinha depois de uma longa pausa.

É bem conhecido que o ataque epilético sobrevem inesperadamente. Nesse momento o rosto se deforma horrivelmente, de modo particular os olhos. Não só o corpo inteiro como os traços do rosto trabalham com sacudidelas convulsivas e contorções. Um terrível e indescritível grito, que não se assemelha a coisa alguma, é emitido pela vítima. Nesse grito tudo quanto é humano fica obliterado; e é impossível, ou dificílimo, ao observador imaginar e admitir que seja um homem quem o desfere. É como se um outro ser estivesse gritando dentro do homem. Pelo menos é assim que muita gente tem descrito a impressão que isso dá. A cena de um homem acometido de ataque epilético enche os que o testemunham de verdadeiro e irreprimível horror, tanto no acesso como no horror resultante havendo um elemento de mistério. É bem provável, portanto, que alguma dessas sensações de horror repentino, acrescida de qualquer outro aspecto momentâneo, tenha paralisado de repente o braço e o intuito de Rogójin. Só assim se explica que o príncipe não tivesse sido apunhalado. Decerto Rogójin bem naquele instante foi surpreendido com a cena do ataque, ouvindo o uivo e vendo o príncipe cambalear, cair e bater com a cabeça violentamente em um degrau, já na parte inferior do lance da escada. Fugindo por ali abaixo, e se desviando do corpo caído, Rogójín, atônito, conseguiu escapulir.

Lutando com suas violentas contraturas, o enfermo ainda rolou os degraus restantes, até ao patamar, no corredor. Coisa de uns cinco minutos depois, deram com ele assim, isso logo ocasionando ajuntamento. Uma poça de sangue sob a cabeça despertou dúvida se aquele homem ali se tinha machucado ou se fora vítima de um crime. Logo verificaram porém que se tratava de um caso de epilepsia; e um dos garçons do hotel reconheceu em Míchkin um hóspede registrado aquela manhã. Ainda bem que quaisquer dificuldades posteriores foram sanadas mercê de uma circunstância fortuita e favorável. Ei-la: Kólia Ívolguin prometera voltar ao Hotel da Balança entre três e quatro horas. Em vez disso, fora a Pávlovsk; lá resolvera, por acaso, não jantar em casa da Generala Epantchiná, regressando mais tarde a Petersburgo e logo se dirigindo ao Hotel da Balança. Cientificado pelo bilhete que o príncipe lhe deixara, de que este se achava na cidade, apressou-se em ir encontrá-lo no endereço indicado. Lá, porém, lhe foi dito que o hóspede tinha saído. Entrou então para o restaurante do rés-do-chão, anexo ao hotel, e se pôs a esperar tomando chá e ouvindo órgão. Acontecendo. no entanto, ouvir dizer que alguém tivera um ataque, saiu a ver. movido por um pressentimento. E no próprio local reconheceu o príncipe, logo ajudando a tomar medidas convenientes, sendo a primeira delas transportar o doente para o quarto. Apesar de já ter recobrado a consciência, o príncipe durante muito tempo ficou marasmado. Mandaram chamar um médico, por causa do ferimento na cabeça, tendo o doutor acabado por dizer que era coisa sem importância, apenas receitando uma compressa. Uma hora depois, quando o príncipe já estava começando a compreender o que se passara, Kólia o levou do hotel para a casa de Liébediev. Este recebeu o doente com reverências e extraordinária circunspeção. E foi por causa de tudo isso que apressou a mudança. Três dias depois, estavam todos em Pávlovsk.

 

Não sendo grande, a vila de Liébediev era confortável e até bonita. A parte a ser alugada fora pintada recentemente. Pela varanda bastante larga, situada na frente da casa, tinham sido colocados grandes caixotes pintados de verde com pés de laranjeiras, limoeiros e jasmineiros, o que na opinião de Liébediev tornava a aparência ainda mais sedutora. Quando comprara a casa já encontrara algumas dessas árvores, tendo ficado tão encantado com o efeito que elas produziam, que resolveu, na primeira oportunidade, comprar mais algumas, em leilão. Depois que todas as plantas foram trazidas para a vila e colocadas nos lugares definitivos, Liébediev, todos os dias, descia uma porção de vezes os degraus da varanda para ir admirar lá da rua o efeito. E de cada vez aumentava, mentalmente, O preço que decidira pedir ao futuro locatário.

O príncipe, alquebrado, deprimido e fisicamente incapacitado, dera-se bem com a transferência para a vila. Já no dia de sua chegada a Pávlovsk, isto é, três dias depois do ataque, parecia estar bem, embora sentisse ainda, por dentro, as conseqüências do mal. Agradavam-lhe as fisionomias que o assistiam durante aqueles dias, distraía-se com Kólia que o não largava por preço algum, simpatizava com a família de Liébediev. (O sobrinho deste fora embora para qualquer parte.) O próprio Liébediev não lhe era intolerável; quanto ao General Ívolguin, tratam-o bem ainda em Petersburgo ao lhe receber a visita. Na noite em que chegara a Pávlovsk ficara rodeado na varanda por uma porção de visitas. O primeiro a chegar foi Gánia, e tão mudado que o príncipe quase não o reconheceu: emagreceu muito naqueles seis meses. Vieram depois Vária e Ptítsin, que também possuíam uma vila em Pávlovsk. O General Ívolguin, esse então quase não largava a casa de Liébediev e não era de estranhar que, por assim dizer, fizesse parte dos cacarecos. Liébediev tentou conservá-lo apartado da vila, isto é, no seu pavilhão, querendo com isso evitar que o velho desse em visitar a todo instante o príncipe. O general e o príncipe tratavam-se como amigos velhos, como se se conhecessem desde muitos anos. Mesmo antes da transferência, durante aqueles três dias na residência antiga de Liébediev, o príncipe notara que este mais o general estavam freqüentemente juntos, sempre absorvidos em longa conversa, às vezes exaltavam-se aos gritos, discutindo, abordando assuntos difíceis, até mesmo científicos, o que evidentemente soerguia Liébediev ao sétimo céu. Isso até dava a impressão de que o general lhe era indispensável. Depois da mudança para Pávlovsk, dera Liébediev em atenazar a família tanto quanto fazia com o general. A pretexto de não incomodar o príncipe não permitia que ninguém dos seus o fosse ver. Batia com o pé, corria atrás das filhas, escorraçava-as, inclusive Vera com a criancinha; e para isso bastava desconfiar que quisessem ir para a varanda onde o príncipe estava sempre, apesar de o príncipe lhe pedir que não agisse assim. Mas ele lhe explicava categoricamente em resposta a essas advertências.

- Em primeiro lugar, se o senhor as deixar fazer o que muito bem quiserem, não haverá respeito aqui; e, em segundo lugar, aqui não é o lugar delas.

- Mas por que isso? - protestava o príncipe. - Com essas atenções e vigilâncias você acaba me aborrecendo. É estúpido estar aqui sozinho, já lhe disse muitas vezes; e você me deprime muito mais com esse negócio de andar na ponta dos pés e de viver gesticulando.

E o príncipe percebeu que, enquanto Liébediev escorraçava com todos os de casa, a pretexto de que o doente necessitava de sossego, ele, por sua vez estava vindo demais; e sempre abria primeiro a porta, metia a cabeça pelo vão, olhava em volta, como a certificar-se de que o príncipe lá estava ou não tinha saído, e então depois, muito devagar pé ante pé, em passinhos furtivos, se aproximava da poltrona a ponto de, às vezes, até assustar o seu inquilino.

Estava sempre a perguntar se queria alguma coisa; e quando o Príncipe finalmente, lhe suplicava que o deixasse só, virava-se muito obedientemente pé ante pé, sem uma palavra, demandava a porta, gesticulando muito, como a querer dizer que apenas viera dar uma olhadela, mas que não diria palavra alguma absolutamente que já estava indo embora, que não voltaria. Ainda assim, dez minutos depois, ou, no máximo um quarto de hora, reaparecia. O fato de Kólia ter livre acesso perante o Príncipe era a fonte da mais profunda mortificação e até mesmo de indignação para Liébediev. E Kólia descobriu e contou que Liébedíev certa vez, ficara meia hora escutando à porta a conversa do Príncipe. - Você afinal parece que se apropriou de mim definitivamente, conservando-me sob chave de cadeado - protestou o Príncipe, um dia. - Aqui, na vila, de qualquer maneira eu não quero que isso continue; e deixe que lhe diga, verei quem muito bem eu quiser e irei aonde me aprouver ir.

Mas nem há a menor dúvida! - afirmou Liébediev com aquelas mãos que nunca ficavam paradas. O Príncipe Correu-lhe o olhar, da cabeça aos pés.

- Você trouxe para cá o armariozinho que estava preso à cabeceira da sua cama?

- Não trouxe, não.

- Então você o deixou lá?

- Não me foi possível trazê-lo, só se estragasse a parede arrancando-o. Estava encravado com muita firmeza.

- E não lhe faz falta?

- Há um aqui. É muito melhor. Já o achei ao comprar a vila.

- Há!... Quem foi que esteve à minha procura cerca de uma hora, e você não deixou que me viesse ver?

- Foi.., foi o general. De fato não consenti; ele não deve vir vê-lo. Eu tenho um grande respeito para com esse homem, Príncipe, é um grande homem. Garanto-lhe. Pois bem, queria vê-lo. Em todo o caso... é melhor, ilustríssimo príncipe, não o receber.

- Mas por quê? Permite que lhe pergunte?! E por que é que você anda na ponta dos pés e se aproxima de mim sempre assim como se viesse sussurrar-me um segredo ao ouvido?

- Sou abjeto, abjeto!... Sei que sou - respondeu Liébediev inesperadamente, ferindo o peito com vontade.

- E não seria o general incômodo para o príncipe? Demasiado hospitaleiro?

- Como, demasiado hospitaleiro?

- Sim, não atrapalharia? Para começar lhe digo, ele pretende morar comigo e acho que não o impedirei. Mas é o homem dos exageros, imediatamente se julga um parente! Já muitas vezes me tem querido afirmar e até provar nosso parentesco; parece que estamos ligados através de uns tantos casamentos. O senhor, por exemplo, segundo ele, é seu primo, em segundo grau também, pelo lado materno; ainda ontem esteve a me explicar isso. Se o senhor é primo dele, então o senhor e eu somos parentes também, ilustríssimo príncipe. Mas, deixemo-lo; trata-se de uma fraqueza insignificante; e me garantiu, há pouco, que, em toda a sua vida, desde quando era aspirante até o dia 11 de junho do ano passado, nunca se sentava para jantar com menos de duzentas pessoas à sua mesa. E prosseguiu afirmando mais que não se levantavam nunca da mesa, a ponto de jantarem, cearem e tomarem chá quinze horas seguidas durante as vinte e quatro horas do dia, e isso durante trinta anos a fio, sem interrupção, mal havendo tempo para a troca das toalhas da mesa. Se alguém se levantava, vinha outro e se sentava; e que nos dias santos o menos que havia de gente eram umas trezentas pessoas, sendo que no milésimo aniversário da fundação da Rússia ele contara setecentas pessoas. É uma mania, quase uma paixão; e o senhor sabe muito bem que tais asserções são péssimo sintoma. Chega-se a ter medo de conservar em casa um hóspede assim. De forma que estive pensando: não seria tal indivíduo uma companhia inconveniente para o príncipe e para mim?

- Mas você está em ótimas relações com ele, segundo me parece...

- Somos como irmãos. Diverte-me infinitamente! Vá lá que sejamos até parentes, já que ele insiste tanto nisso! Mesmo porque isso é uma honra para mim, pois com toda essa história de banquetes de duzentos talheres e comemorações do milésimo aniversário da Rússia, acabei me convencendo de que ele é de fato uma personalidade notável! E olhe que não estou a fazer piada! O príncipe referiu-se ainda há pouco a segredos; isto é que estou vindo a todo instante como se tivesse algum segredo a contar... Pois olhe que acertou. Certa pessoa... muito sua conhecida, ainda agora mesmo mandou dizer que tem muito empenho em obter uma entrevista com o senhor.., mas em segredo.

- Em segredo, por quê? De modo algum. Irei hoje mesmo ver essa pessoa, se é que você assim o quer.

- Eu? Eu não tenho nada com isso, absolutamente! - E Liébediev abriu as mãos para os lados, protestando. - Naturalmente se essa pessoa pede segredo é porque teme alguma coisa. Mas não aquilo que o senhor pensa. Por falar nisso, quer saber de Outra coisa? O monstro vem todos os dias perguntar como vai passando o senhor!

- Deu você em falar tanto de “monstro” que já ando desconfiado.

- Não precisa desconfiar... Não precisa absolutamente desconfiar! - disse Liébediev querendo logo desistir do assunto. - Apenas lhe quero dar a entender que essa pessoa não está com receio de ninguém e sim de uma certa coisa, o que é muito diferente, muitíssimo diferente.

- Ora bem, de quê? Diga logo! - perguntou e exigiu o príncipe, com impaciência, olhando para os misteriosos trejeitos de Liébediev.

- Isso agora é segredo! - E Liébediev riu. - Segredo? Por quê? De quem?

- Não digo. Pois o príncipe ainda agora mesmo não zangou comigo por eu estar aparecendo aqui a cada instante com ares de quem quer contar um segredo? E não me proibiu, não me escorraçou?

- E Liébediev, gozando de modo total o fato de haver conseguido excitar a curiosidade do seu ouvinte, levando-o a uma dolorosa impaciência, concluiu de repente: - A tal pessoa está com medo de Agláia Ivánovna.

O príncipe ficou sério e se manteve calado durante mais de um minuto, até que disse:

- Meu caro Liébediev, desisto da sua vila. Onde está Gavríl Ardaliónovitch? Onde está o casal Ptítsin? Você também os seqüesfrou?

- Eles virão! Virão! E, além deles, o General Ívolguin, também. Vou abrir as portas e vou chamar também as minhas filhas. Todos, todos, todos, imediatamente, imediatamente! - sussurrou Liébedíev, amedrontadíssimo, agitando os braços e correndo de uma porta para outra.

Bem nesse momento, Kólia, vindo da rua, entrou pela varanda e anunciou que alguns amigos - a Sra. Epantchiná e as suas tres filhas - vinham a caminho para visitá-lo.

- Devo deixar entrar os Ptítsin e Gavríl Ardaliónovitch, caso venham, ou não devo? E o general, faço-o entrar até aqui, ou não? - dizia Liébediev. dando pulinhos, excitadíssimo com as notícias.

- Por que não? Deixe entrar quem quiser. Devo-lhe observar. Liébediev, que você adotou uma atitude errada para comigo desde o começo. Você está se equivocando sem parar, sempre. Eu não tenho a menor razão para estar me escondendo de quem quer que seja. - E o príncipe sorriu, ante o que Liébediev achou que também devia rir. Malgrado a agitação em que estava, demonstrava extrema satisfação.

As notícias trazidas por Kólia eram reais. Tinha vindo apenas alguns passos na frente dos Epantchín a fim de anunciar a chegada deles; tanto assim que as visitas chegaram ao mesmo tempo, vindas de ambos os lados, os Epantchín surgindo da rua, e os Ptítsin, Gánia e o General Ívolguin lá de dentro.

Os Epantchín só agora tinham sabido por Kólia que o príncipe estava doente e que se achava em Pávlovsk.

Até então a Sra. Epantchiná se mantivera em angustiosa perplexidade. Dois dias antes o general mostrara à família o cartão deixado pelo príncipe. A vista desse cartão acordou em Lizavéta Prokófievna a firme convicção de que o príncipe não tardaria em vir visitá-los em Pávlovsk. Em vão as filhas lhe garantiram que um homem que passara seis meses sem escrever não haveria de se apressar agora e que, com certeza, não lhe faltava com que se entreter, e bastante, em Petersburgo, afora eles. Como poderiam, pois, saber dele? A generala zangou-se seriamente com tais observações e quis até apostar como o príncipe apareceria no dia seguinte, no máximo, mesmo que fosse um pouco tarde e atrasado! No dia seguinte puseram-se a esperá-lo a manhã inteira; esperaram-no para jantar, para o serão, e quando começou a escurecer Lizavéta Prokófievna desandou a implicar com tudo, a brigar com todo o mundo, não fazendo, é lógico, enquanto isso, a menor alusão ao príncipe.

Tampouco no terceiro dia foi dita uma palavra sequer, a respeito dele. Quando, ao jantar, Agláia caiu na asneira de observar que mamãe estava furiosa porque o príncipe não tinha vindo, ao que o pai imediatamente redargüira não ser sua a culpa, Lizavéta Prokófievna se levantou da mesa e saiu, encolerizada. Por fim, lá pela noitinha, Kólia chegou e fez uma completa descrição das aventuras do príncipe, pelo menos até onde sabia.

Lizavéta Prokófievna ficou triunfante, mas Kólia apanhou uma boa raspança: “Você se gruda aqui dias e dias seguidos e a gente tem de agüentá-lo, e você podia ao menos nos ter participado isso tudo, já que ele não se achava capaz de vir”. Kólia esteve a ponto de se queimar com a expressão “e a gente tem de agüentá-lo”, mas adiou isso para uma ocasião mais propícia; se a frase não tivesse sido tão ofensiva, a teria talvez desculpado inteiramente, pois ficara muito contente com a agitação e a ansiedade de Lizavéta Prokófievna ao saber da doença do príncipe. Começou ela a insistir sem parar na necessidade de mandar vir uma celebridade médica de Petersburgo, a cuja procura seria bom mandar logo um portador; e que fosse médico célebre deveras e que viesse logo pelo primeiro trem. Mas as filhas a dissuadiram. Não quiseram, contudo, ficar atrás de sua mãe quando esta de repente resolveu ir visitar o doente.

- Pois se ele está em seu leito de morte - dissera Lizavéta Prokófievna, toda zonza - por que estarmos com cerimônias.

Trata-se de um amigo da família, ou não?

- Mas não fica bem a gente ir correndo, sem saber direito como ele está - observara Agláia.

- Muito bem; então não venham. E até fazem bem, pois do contrário, se Evguénii Pávlovitch chegar, não terá ninguém que o receba.

A tais palavras, naturalmente, Agláia saiu logo com os demais. Aliás mesmo sem essas palavras, ela agiria do mesmo modo. O Príncipe Chtch... que estava sentado com Adelaída, ante essa conversa logo concordou em acompanhá-las. Tinha-se interessado muito pelo príncipe, ao ouvir falar dele antes, logo que travara relações com os Epantchín. Pareceu-lhe até que o conhecia, que se tinham encontrado alhures, ultimamente, e que tinham passado uma noite Juntos em uma cidadezinha do interior, três meses antes. De fato o Príncipe Chtch... lhes contou uma porção de coisas relativas ao príncipe e se referiu muito amistosamente a ele; era, pois, com verdadeiro prazer que o ia visitar. O General Epantchín não se áchava em casa essa tarde; quanto a Evguénii Pávlovitch, estava demorando um pouco.

A vila de Liébediev não ficava a mais do que trezentos passoS. Lizavéta Prokófievna ficou logo desapontada de encontrar um grupo de gente em visita ao príncipe, sem falar no fato de entre essa gente haver umas duas ou três pessoas com quem positivamente embirrava.

O seu segundo desaponto foi a surpresa de encontrar um jovem com a evidente aparência de estar gozando perfeita saúde, todo janota, que lhe veio ao encontro muito risonho, em vez do doente que contara ir deparar em um leito de morte. Instantaneamente estacou, admirada, proporcionando intenso prazer a Kólia que bem poderia ter explicado, antes de saírem, que ninguém estava a morrer e que não se tratava de nenhum caso de leito de morte. Mas não o fizera justamente porque manhosamente antevía a raiva da Sra. Epantchiná quando, conforme ele já contava, desse com o príncipe, por quem tinha real afeição, em perfeita saúde. Queria assim lhe gozar a cólera. Kólia, de fato, só fazia disparates, tanto em falar alto as suas opiniões, como em sempre atiçar a irritação de Lizavéta Prokófievna. Estava sempre às turras com ela e, muitas vezes, de modo muito malicioso, apesar da estima que um tinha pelo outro.

- Não perde por esperar, meu amiguinho, não se precipite! Não gaste à toa o seu trunfo - avisou-o Lizavéta Prokófievna. sentando-se na poltrona que o príncipe lhe ajeitava.

Liébediev, Ptítsin e o General Ívolguin correram a arrumar cadeiras para as moças. A de Agláia foi o General Ívolguin quem a trouxe. Liébediev ofereceu uma outra ao Príncipe Chtch... também, expressando, com a curvatura do seu dorso, um profundo respeito. Vária saudou as senhoritas como habitualmente, com um sussurro absorto.

- Em verdade, príncipe, contava encontrá-lo, por assim dizer, de cama. Exagerei as coisas, na minha aflição, confesso. Senti-me terrivelmente desapontada, ainda agora mesmo, ao deparar com o seu rosto feliz, mas lhe juro que isso não durou mais do que um minuto, foi só enquanto não pensei. Sempre ajo e falo com mais sensibilidade quando me dão tempo para pensar. Creio que o mesmo se dá com o senhor. E, realmente, o restabelecimento de um filho meu não me daria mais satisfação do que o seu restabelecimento, príncipe; e caso não me esteja acreditando, a vergonha é para o senhor e não para mim. Este garoto malvado se compraz em brincadeiras de mau gosto como esta, à minha custa. Parece-me que ele é seu protégé. Se de fato é, eu o aviso desde já que uma bela manhã me negarei o prazer e a honra de continuar nossa amizade.

- Mas que foi que eu fiz? - perguntou Kólia. - Quanto mais eu lhe garantisse que o príncipe já estava quase bom, a senhora não haveria de querer acreditar em mim, porque lhe é muito mais interessante imaginá-lo em seu leito de morte.

- Veio para se demorar? - interrogou Lizavéta Prokófievna, dirigindo-se ao príncipe.

- Por todo o verão, e talvez um pouco mais.

- Veio sozinho, pois não? Ou está casado?

- Casado? Eu? - E o príncipe sorriu ante a simplicidade do escárnio.

- Não sei por que está rindo. Podia muito bem acontecer. Estive pensando nesta vila. Por que o senhor não foi ter conosco? Temos lugar de sobra. Mas seja como quis. Alugou dessa pessoa aí?... Dessa? - acrescentou, abaixando a voz, apontando Liébediev. - Por que é que ele vive dando pulinhos?

Nisto Vera apareceu, vindo lá da casa para a varanda, e, como sempre, com o nenezinho no colo.

Liébediev, que não parava em volta das cadeiras, completamente atarantado, sem saber o que fazer de si próprio e tampouco querendo ir embora, desesperada-mente zonzo investiu logo contra a filha, gesticulando e a escorraçando da varanda; e, por distração, até batendo com o pé. - Estará ele louco? - observou logo a Sra. Epantchina.

- Não, está mais...

- Bêbado, decerto. Esta sua roda não é lá tão atraente assim - deixou escapar, depois de olhar de soslaio para as outras visitas. - Mas que bonita menina! Quem é?

- É Vera Lukiánovna, a filha aqui de Liébediev.

- Ah!... Ela é muito mimosa. Gostaria de conhecê-la.

Mal ouviu as palavras acolhedoras da Sra. Epantchiná, Liébediev tratou logo de vir trazendo a filha, empurrando-a, para apresentá-la.

- Os meus filhos sem mãe! - ganiu, aproximando-se. – E A esta criancinha de colo também é órfã; é irmã daquela, é a minha filha Liubóv... nascida do meu legítimo casamento com a minha defunta mulher Elena, que morreu, não faz seis meses, de parto, pela vontade do Altíssimo... Sim... ela substitui a mãe, para o pequernicho, apesar de só ser irmã e não mais... não mais... não mais...

- E o senhor não passa de um maluco, se me permite! E por ora, chega. - Lizavéta Prokófievna se ia desmandando em sua indignação.

- Perfeitamente - concordou Liébediev, com uma curvatura respeitosa.

- Escute, Sr. Liébediev, é verdade o que dizem por aí? Que O senhor interpreta o Apocalipse? - perguntou Agláia.

- Perfeitamente... Há mais de quinze anos.

- Já ouvi qualquer coisa a seu respeito. Ou foi nos jornais?

- Não, era um outro intérprete, um outro que já morreu. Eu sou o sucessor – disse Liébediev fora de si de tanto júbilo.

- Então fará o favor de interpretá-lo para mim, qualquer dia destes, já que somos vizinhos. O Apocalipse me é incompreensível.

- Devo preveni-la, Agláia Ivánovna, de que tudo isso é simples charlatanismo da parte dele. - O General Ívolguin pôs logo as coisas nos seus lugares; estava sentado ao lado de Agláia, latejando de vontade de entrar na conversa. - Naturalmente que nas férias se toleram disparates - prosseguiu - e certos divertimentos! E encarregar um tão extraordinário intruso da interpretação do Apocalipse é um divertimento como qualquer outro, e até mesmo uma diversão notavelmente hábil... Mas... vejo que a senhorita está me olhando com surpresa! General Ívolguin! Tenho a honra de apresentar-me. Muitas vezes a ergui no meu colo, Agláia Ivánovna.

- Muita satisfação. Já conheço Varvára Ardaliónovna e Nina Aleksándrovna - sussurrou Agláia, fazendo desesperados esforços para não cair na gargalhada.

Lizavéta Prokófievna ficou rubra. A tensão que se estava acumulando desde muito em seus nervos repentinamente achou uma saída. Ela não podia suportar o General Ivôlguin, com quem já tivera relações outrora.

- O senhor está mentindo. Aliás, como sempre, bátiuchka. O senhor nunca a ergueu no colo - interrompeu-o ela com ar indignado.

- A senhora está esquecida. Já sim, mamãe, em Tver - asseverou logo Agláia. - Quando nós estávamos morando em Tver, eu tinha seis anos; lembro-me bem. Ele fez para mim um arco e uma flecha e me ensinou a atirar; eu até matei um pombo. O senhor se lembra de que nós matamos um pombo, juntos?

- E de que o senhor me trouxe um capacete feito de papelão e uma espada de pau?

Eu também me lembro - fez Adelaída.

- É mesmo, estou me lembrando - interveio Aleksándra. - Até as duas brigaram por causa do pombinho morto. E ficaram de castigo uma em cada canto. Adelaída ficou no canto com o capacete na cabeça e a espada na mão.

Quando o General Ívolguin disse a Agláia que a tinha carregado ao colo, dissera isso sem nenhuma significação, apenas para encetar conversa e porque sempre iniciava uma conversa deste jeito com gente nova, quando queria fazer relações. Mas, desta vez aconteceu que estava dizendo a verdade, muito embora, Como se deu no momento, tivesse esquecido. Foi só quando Agláia declarou que tinham matado um pombo juntos que a memória se lhe avivou; então se recordou de tudo, minúcia por minúcia, segundo acontece com gente idosa, muitas vezes, ao relembrar qualquer coisa. Seria difícil dizer que é que haveria nessa reminiscência que pudesse produzir tão forte efeito no pobre general que estava, como de costume, um pouco bêbado; mas o fato é que imediatamente ficou comovido.

- Lembro-me, lembro-me perfeitamente. Eu era capitão. A senhorita era uma bonequinha assim... Ah, Nina Aleksándrovna!

Gánia... Antigamente eu freqüentava a casa de Iván Fiódorovitch!..

- E veja agora para o que deu! - atirou-lhe a Sra. Epantchiná.

- Então não bebeu ainda quanto quis, para que isso o afete tanto assim? E não se lembra quanto tem desgostado sua senhora! Em vez de olhar pelos filhos acabou indo parar em uma prisão de sujeitos que não pagam! Deixe disso, bátiuchka; meta-se em qualquer canto, atras de uma porta e chore a sua antiga inocência; e talvez Deus lhe perdoe. Vamos, vamos, deixe disso. Não há nada melhor para ajudar um homem a se emendar do que pensar no passado com saudade!

É desnecessário repetir que ela estava falando seriamente. O General Ívolguin, como todo beberrão, era muito sensível, e, como todos os bêbados que caíam demasiado, sempre que se recordava dos tempos felizes ficava de beiço trêmulo. Obedeceu, levantou-se ese dirigiu humildemente para a porta. Lizavéta Prokófievna logo ficou com pena dele.

- Ardalión Aleksándrovitch, bom homem! - chamou-o. - Espere aí. Todos nós somos pecadores. Quando sentir a consciência  mais aliviada venha ver-me. Sentaremos e falaremos sobre o passado. Quem sabe se não sou cinqüenta vezes mais pecadora do que o senhor? Mas, por enquanto, até à vista; vá, de que lhe adianta ficar aí parado? - disse logo, receosa, ao vê-lo voltar.

- Deixe-o sozinho, é melhor - disse o príncipe, contendo Kólia que ia atrás do pai.

- Se ele se desapontar ainda mais, todo este minuto será perdido para ele.

- É isso mesmo; deixe-o sozinho, por uma meia hora - apoiou Lizavéta Prokófievna.

- Estão vendo no que deu ter falado a verdade uma vez na vida? Resultou em pranto – ousou comentar Liébediev.

- Também é outro, o senhor aí, se não é mentira o que já ouvi a seu respeito, bátiuchka - disse Lizavéta Prokófievna, fazendo-o calar prontamente.

As relações mútuas das visitas pouco a pouco foram se mostrando. O príncipe era naturalmente sensível e apreciou, ao máximo, a simpatia demonstrada pela Sra. Epantchiná e filhas e lhes disse que antes delas terem vindo já tencionava fazer-lhes uma visita aquele dia mesmo, apesar do seu estado ainda precário e do adiantado da hora. Lizavéta Prokófievna, reparando nas pessoas que o estavam visitando, observou que ainda lhe era possível cumprir essa intenção. Ptítsin, que era homem muito educado e cortês, prontamente se retirou para os cômodos de Liébediev, tendo até querido levar este consigo. Liébediev, por sua vez, prometeu ir logo. Vária, no entanto. entrara em conversa com as moças, e ali continuou. Tanto ela como Gánia tinham ficado mais à vontade com o desaparecimento do general. Gánia acabou se retirando, pouco depois de Ptítsin. Nos poucos minutos em que ficou nos fundos da varanda mantivera-se discreto e digno, nem sequer se desapontando com o ar intencional com que a Sra. Epantchiná, por duas vezes, o examinara de alto a baixo. Quem quer que o tivesse conhecido antes havia certamente de notar que mudara muito. E isso punha Agláia mais à vontade.

- Quem saiu agora não foi Gavril Ardaliónovitch? - perguntou ela, sem se dirigir propriamente a ninguém, interrompendo. com a sua pergunta, feita em voz alta, a conversa geral.

- Foi - respondeu o príncipe.

- Quase que não o conheci. Está muito mudado... Melhorou muito - disse Agláia.

- Felizmente - apoiou o príncipe, com sinceridade.

- Esteve bem doente - acrescentou Vária, em tom de alegre comiseração.

- Melhorou em quê? - perguntou Lizavéta Prokófievna, com muita raiva e ar escandalizado.

- Que idéia! Não vejo em quê! Qual é a melhora que lhe notam?

-  Não há nada comparável ao “pobre cavaleiro” - saiu-se, sem mais nem menos, Kólia, que estava ao lado da cadeira da Sra. Epantchiná.

- É exatamente a minha opinião - disse o Príncipe Chtch... e riu.

- E eu penso precisamente da mesma maneira - declarou solenemente Adelaída.

- “Pobre cavaleiro”? Qual? - perguntou a generala, olhando para todos eles, atarantada e em dúvida; vendo, porém, que Agláia tinha ficado vermelha, disse logo: - Alguma asneira, naturalmente. Que “pobre cavaleiro” é esse?

- Não é a primeira vez que esse fedelho, favorito da senhora, tem torcido perversamente as palavras alheias! - respondeu Agláia. com uma indignação altiva.

Em todas as explosões de raiva de Agláia (o que se dava muitas vezes) aparecia logo, apesar do feitio sério que ela tomava, qualquer coisa de infantil ou de colegial tão ingenuamente espetacular que era impossível deixar de rir ao olhá-la. Isso ainda a exacerbava mais, pois não podia compreender de que era que se riam e “como podiam e ousavam rir”. Suas irmãs e o Príncipe Chtch... riam agora e o próprio Príncipe Liév Nikoláievitch, embora também se tornando vermelho sem saber porquê. Kólia riu estrepitosamente, achando que tinha triunfado. Agláia, então, ficou seriamente zangada, o que redobrou a sua beleza. A confusão lhe assentava bem e quanto mais se zangava mais confusa ficava.

- Ele tem torcido perversamente muitas das suas palavras, também! - acrescentou ela.

- Estou me baseando nas suas próprias exclamações! - disse Kólia. - Há mais ou menos um mês, a senhora folheava o Dom Quixote, quando disse textualmente que nada era comparável ao “pobre cavaleiro”. Não sei a quem se referia a senhora, se era a Dom Quixote ou a Evguénii Pávlovitch, ou qualquer outra pessoa; mas a senhora se referiu a alguém, e até bem demoradamente.

- O senhor está mais é se excedendo, rapazinho, com essas suas conjeturas! - ralhou Lizavéta Prokófievna, querendo contê-lo.

- Mas não sou eu só - teimava Kólía. - Todo o mundo disse e ainda está dizendo. Ora essa, o Príncipe Chtch..., Adelaída Ivánovna e os demais declararam agora mesmo que ficavam a favor do “pobre cavaleiro”. Portanto deve haver um “pobre cavaleiro”. E realmente há; creio que se não fosse Adelaída Ivánovna nós já saberíamos há muito quem era o “pobre cavaleiro”.

- Eu? Que foi que eu fiz? - perguntou Adelaída, rindo.

- A senhora não quis pintar o retrato dele? - Eis o que foi que a senhora fez! Naquela ocasião Agláia Ivánovna lhe suplicou que pintasse o retrato do “pobre cavaleiro” e lhe descreveu completamente como devia ser o quadro. Ela lhe explicou tudo. A senhora não pintou.

- Mas como haveria eu de pintar se, conforme lá diz o poema. Esse “cavaleiro pobre” nem sequer, sempre o rosto escondido na viseira, ergue o olhar para um corpo de mulher?

Como então lhe hei de pintar o rosto? Só se pintar a viseira.., do herói taciturno...

-  Que negócio é esse de viseira? - perguntou, zangada, a generala, começando a desconfiar a que pessoa se referiam as filhas com a tal alcunha de “o pobre cavaleiro”. Decerto já a aplicavam havia alguns meses. Mas o que mais a afligia era que o Príncipe Liév Nikoláievitch também estava começando a ficar enrubescido. sendo que acabou por fim tão sem jeito como um menino de dez anos ante zombarias de adultos.

- Bem, querem vocês parar com essa maluqueira, ou não? Expliquem já essa charada de “cavaleiro pobre”! É assim um segredo tão misterioso que não se possa vir a saber?

Mas todos continuaram a rir.

Por fim o Príncipe Chtch... resolveu explicar, querendo esclarecer o mistério e mudar a conversa:

- O fato é o seguinte: existe um estranho poema russo, ou melhor, uma balada a respeito de um cavaleiro pobre. Trata-se de um trecho solto, sem começo nem fim. Ora, aconteceu estarmos nós um dia, há coisa de um mês, querendo descobrir, alegres da vida, como sucede depois do jantar, um assunto para o próximo quadro de Adelaída. É sabido como a família inteira anda sempre tentando achar assuntos para as telas de Adelaída. Conversa vai, conversa vem, nos ocorreu o tema do “cavaleiro pobre”. Já nem me recordo quem foi que se lembrou disso primeiro.

- Foi Agláia Ivánovna ! - gritou Kólia.

- Talvez. Talvez tenha sido. Não me lembro - continuou o Príncipe Chtch... - Alguns riram da idéia, outros acharam que não havia assunto melhor. Mas todos foram unânimes quanto a isto: que para pintar o “cavaleiro pobre” antes de mais nada era preciso achar uma cara para ele. Começamos pelas caras de todos os amigos e conhecidos. Mas nenhuma dava certo. E então desistimos da idéia. Não sei por que motivo Nikolái Ardaliónovitch se lembrou disso e trouxe à baila essa história. O que naquela ocasião tinha propósito, já agora não interessa.

- Trata-se pela certa de alguma asneira dele com intenção perversa! - declarou logo Lizavéta Prokófievna.

- Asneira? Pelo contrário: demonstração do mais profundo respeito! - aparteou Agláia de modo inteiramente inesperado e com voz grave e Séria.

Tinha dominado já a sua emoção e estava completamente à vontade. E mais ainda, olhando-a, até se podia verificar, mediante certos indícios, que ela se sentia bastante satisfeita pelo fato de a brincadeira estar prosseguindo. E essa revolução de sentimento se operou nela justamente à medida que o desapontamen to crescente do príncipe se foi tornando visível para todos.

A generala investiu:

- Ainda agora vocês se riam de bobagens, e essa menina intervém e diz que se trata de coisa digna de respeito. Corja de malucos! Respeito de quê? Por quê? Digam logo que é que lhes incute tanto respeito!

Cada vez mais séria e grave, Agláia respondeu logo à pergunta desdenhosa da mãe:

- O mais profundo respeito, sim senhora, porque esse poema descreve nem mais nem menos um homem que é capaz de um ideal. E mais ainda: um homem que, uma vez deparando com esse ideal acredita nele e por ele dá a sua vida, cegamente. Ora, isso nem sempre acontece nos nossos dias.

O poema não diz exatamente qual seja o ideal do “pobre cavaleiro”, mas podemos inferir que seja alguma visão, alguma imagem de “pura beleza”. Vai daí, devido a essa amorosa devoção, o cavaleiro pôs um rosário em volta do pescoço, em vez do gorjal. É verdade que há uma divisa obscura, que não nos é explicada, naquelas letras A. N. B. gravadas no seu escudo...

Kólia corrigiu-a logo:

- A.M.D.!

- Se eu disse A. N. B., sei o motivo... - atalhou Agláia, zangando-se.

- Evidentemente fica explícito que a esse cavaleiro pobre pouco se lhe dava quem fosse a sua dama e o que ela fazia. A ele lhe bastava tê-la escolhido e ter posto a sua fé em sua “pura beleza”, a que não cessou de render homenagem. E é nisto justamente que está o mérito. Mesmo que ela se tornasse, por exemplo, ladra, mais tarde, para ele o que importava era acreditar nela e estar sempre disposto a quebrar lanças por sua “pura beleza”. O poeta parece ter querido significar, em uma impressionante figura, a concepção do amor platônico da cavalaria medieval, tal como era sentido por um leal e sublime cavaleiro. Naturalmente tudo isso é um ideal. No nosso cavaleiro pobre tal sentimento atinge o seu limite mais elevado no ascetismo. Deve-se admitir que ser capaz de tais sentimentos significa muita coisa e que eles produzem uma profunda impressão. Imensa, louvável sob qualquer ponto de vista por exemplo, em Dom Quixote. O “pobre cavaleiro” no fundo é o próprio Dom Quixote. Um Dom Quixote sério e não cômico. No começo eu não entendia e me ria dele, mas agora amo e respeito o “pobre cavaleiro”.

Foi com estas palavras que Agláia concluiu. Encarando-a, era difícil dizer se estava falando sério, ou pilheriando.

E a mãe comentou:

- Seja lá como for, não passa de um maluco. Ele, com as suas façanhas... Só disseste tolices, criatura, com essa tua lengalenga, e a meu ver isso não te fica bem. Pelo menos não são boas maneiras. Como é esse poema? Recita-o lá! Decerto o sabes de cor. Preciso ouvir. Sempre embirrei com versos; deles não sai nada que preste. Mas, pelo amor de Deus, dê a sua opinião, príncipe! Ajude-me! Pois não combinei, daquela vez, que nos ajudaríamos os dois a esclarecer coisas? - acrescentou ela, voltando-se para o Príncipe Liév Nikoláievitch.

Mostrava-se bastante zangada. O príncipe tentou falar, mas se sentiu demasiado confuso. Agláia, no entanto, que já se excedera no seu discurso, não estava absolutamente embaraçada; muito pelo contrário, parecia radiante com o efeito produzido. Levantou-se logo, ainda grave e séria, atendendo ao pedido materno, como se outra coisa não quisesse agora senão recitar. E foi para o meio da varanda, bem defronte do príncipe, que continuava sentado na sua poltrona.

Todos os olhares a acompanharam, com surpresa. O Príncipe Chtch... as irmãs e a mãe de Agláia pareciam incomodados com essa brincadeira que já os preocupava. Era evidente que ela se comprazia com a expectativa, demorando bastante o prelúdio do recitativo.

Lizavéta Prokófievna esteve a ponto de ordenar à filha que se sentasse. Bem no momento em que esta começou a declamar a célebre balada, outras duas visitas entraram da rua e se dirigiram à varanda. Eram o general e um jovem.

A entrada de ambos causou discreto alvoroço.

 

O jovem que chegou com o general, aparentava uns vinte e oito anos, era alto e elegante, tinha um rosto bonito e inteligente e nos seus olhos grandes e negros havia uma expressão simpaticamente irônica. Agláia não se voltou para o olhar. Continuou a recitar os versos, persistindo em não fixar senão o príncipe e como que recitando só para ele. Mas os recém-chegados de certa forma interromperam a situação desagradável em que ele se achava.

Vendo-os, ele levantou-se, curvou-se um pouco, lá a distância de onde estava, para o general, fez sinal que não interrompesse a declamação. e se colocou por detrás da poltrona, aproveitando para ficar menos exposto. Depois, apoiando o braço no espaldar da poltrona, ficou àvontade para escutar a balada em uma posição mais conveniente e menos ridícula do que antes. Lizavéta Prokófievna, por seu turno, duas vezes se voltou para os recem-chegados, categoricamente lhes fazendo sinal de que ficassem quietos. O príncipe se interessou muito por esse seu novo visitante, o jovem que estava com o general. Sabia que devia ser Evguénii Pávlovicht Rádomskii, de quem já ouvira falar tanto, tendo até pensado nele mais de uma vez. A única coisa de que se admirou foi estar essa pessoa em roupas civis, pois, pelo que ouvira, Evguénii Pávlovitch era militar. Um sorriso de afavel ironia brincava nos lábios do jovem durante todo o tempo em que o poema era recitado, como se já soubesse alguma coisa a respeito da brincadeira do “pobre cavaleiro”.

“Quem sabe até se não foi idéia dele!” - pensou o príncipe. Mas, quanto a Agláia, a coisa era muito outra. A afetação e a pompa com que começara a recitar já iam sendo substituídas por um modo sério e por uma profunda consciência do espírito e significado do poema. Dizia estrofe por estrofe com uma tão nobre simplicidade, que antes do fim da declamação não só tinha despertado a atenção geral como, pela interpretação do elevado espírito da balada, conseguira até justificar, por certo modo, a exagerada gravidade com que se havia postado no centro da varanda. Tal gravidade podia até ser tomada como conseqüência da profundidade do tema, ou como respeito à beleza dos versos que se propusera interpretar.

Que fulgor o dos seus olhos! E um tremor quase imperceptível de deslumbramento duas vezes fulgiu no seu semblante admirável. Recitou:

 

Viveu outrora no seu burgo nobre

Um cavaleiro austero e taciturno

Cuja magnificência era ser pobre!

 

Como sempre, uma noite, após o turno

Pelas ermas ameiasdo castelo,

Se estirou no seu tálamo noturno

 

E, dormindo, sonhou sonho tão belo

- Oh radiosa visão de eucaristia!

Que artista ou poeta algum, em seu anelo

 

De interpretar o enigma que envolvia

Essa visão de uma tamanha essência,

Nunca ofará em cor ou verso, um dia!

 

Sublimando de vez sua existência,

Passa a adotar um teor extraordinário:

Se alguma tentação defronta, vence-a

 

Pois usa agora apenas um rosário

Ao invés do gorjal. E nem sequer,

Nas contingências deste mundo vário,

 

Lançando-se em batalha - onde as houver,

 Sempre o rosto escondido na viseira,

Ergue o olhar para um corpo de mulher.

 

Com seu sangue, conforme a leal maneira

Estas três letras N. F. B.

Grava no escudo oval, com mão certeira.

Contra a Mourisma, em prol da sua fé,

investe então com alma corajosa

Sempre que alguma pugna audaz se dê,

 

Bradando: “Lumen Coeli, Sancta Rosa!”

Eis a vida qual foi, deste Cruzado,

No Oriente rubro e na África pasmosa!

Já velho, regressou ao seu condado

E, sem reconhecer o que era seu,

Mais um dia em solidão plena morreu...

 

Envolto no marasmo do passado, tarde, ao recordar aquele momento, o príncipe ficava sempre estupefato e atormentado por uma interrogação para a qual não achava resposta: como pudera um tão sincero e nobre sentimento estar associado com uma tal malícia tão indisfarçável e irônica? Da existência dessa zombaria não tinha ele dúvidas; compreendera isso muito bem e tinha em que se fundamentar. No decorrer da declamação, Agláia tomara a liberdade de mudar as iniciais A. M. D. para estas outras N. F. B. Lá que tivesse entendido mal, ou ouvido errado, não era possível (aliás mais tarde isso lhe foi provado). Em todo o caso, a atitude de Agláia - um gracejo, naturalmente, embora desapiedado e impensado - fora premeditada. Durante aquele mês, todo o mundo falou (e sempre rindo) do “pobre cavaleiro” Ainda assim, conforme o príncipe se lembrou depois, Agláia pronunciara aquelas letras sem nenhum traço de mofa nem de escárnio, sem mesmo acentuá-las com ênfase a fim de demonstrar seu secreto significado. Pelo contrário, pronunciara aquelas letras com a mesma imutável gravidade, com uma tão inocente e ingênua simplicidade que se podia supor que tais iniciais estivessem na balada e impressas no livro, O príncipe sentiu-se atormentado por um mal-estar- que o deprimiu.

Lizavéta Prokófievna, é claro, não percebeu nem compreendeu a troca das letras, nem a alusão nelas incluída. O General Epantchín só percebeu que estavam recitando um poema. Alguns dos ouvintes, porem, compreenderam e ficaram Surpreendidos com o arrojo da intenção ante o sentido que nisso estava subentendido; mas ficaram calados e fingiram não ter reparado. Mas o príncipe estava pronto a apostar que Evguénii Pávlovitch não só compreendera, como estava tentando evidenciar que compreendera: o seu sorriso era demasiado zombeteiro.

- Que esplêndido! - elogiou a Sra. Epantchiná, arrebatada pelo entusiasmo, logo que a declamação acabou.

- De quem éesse poema?

- De Púchkin, mamãe - informou Adelaída. - Não nos envergonhe! Será possível?

- É de espantar que eu não seja mais ignorante ainda, com estas minhas filhas! - respondeu Lizavéta Prokófievna, amargamente. - Mas é uma desgraça! Logo que chegarmos a casa me mostrem esse poema de Púchkin.

- Creio que não temos lá nenhum Púchkin!

- Eu me recordo de haver visto dois volumes muito gastos rodandopelos cômodos! - acrescentou Aleksándra.

- Temos que mandar uma pessoa, Fiódor ou Aleksiéii, pelo primeiro trem, comprar um, na cidade. Será melhor mandar Aleksiéii. Agláia, vem cá me dar um beijo! Declamaste esplendidamente; mas se recitaste com sinceridade - acrescentou diminuindo o tom de voz – me entristeces; se quiseste gracejar com ele, não posso deixar de censurar teus sentimentos e até seria melhor que tivesses permanecido calada. Estás compreendendo bem? Podes ir, criatura. E ainda tenho mais alguma coisa a te dizer daqui a pouco, caso nos eternizemos nesta visitinha.

Neste ínterim o príncipe cumprimentava o General Epantchín que por sua vez lhe apresentava Evguénii Pávlovitch Rádomskií.

- Peguei-o pelo caminho, ainda na estação. Ao saber que eu vinha para cá e que todos estavam aqui.

- E soube também que o senhor se encontrava em Pávlovsk - atalhou Evguénii Pávlovitch - então, como desde muito tenho pensado obter não somente uma apresentação mas também a sua amizade, nãoquis perder este ensejo. O senhor está passando bem? Disseram-me que...

- Estou ótimo, e sinto muito prazer em conhecê-lo. Já me falaram muito a seu respeito e já conversei diversas vezes sobre o senhor com o Príncipe Chtch... - respondeu o príncipe, estendendo-lhe a mão.

Cortesias recíprocas foram trocadas. Apertaram a mão um do outro e se olharam bem. Não tardou que a conversa se generalizasse. Míchkin notou (dera agora para notar tudo, de modo rápido e vivo; e possivelmente notava até mesmo coisas que nem existiam) que os trajes civis de Evguénii Pávlovitch haviam despertado a curiosidade geral, e até surpresa; tanto que logo as restantes impressões e novidades ficaram esquecidas e apagadas. Esse pasmo até levava a conjeturar que tal mudança implicava em algo muito importante. Adelaída e Aleksándra examinavam Evguénii Pávlovitch com certa perplexidade. O Príncipe Chtch..., seu parente, mostrava-se um pouco preocupado e o general falava com certa emoção contida.

Agláia foi a única que observou Evguénii Pávlovitch sem se alterar, durante alguns instantes, embora demonstrando curiosidade também ela; parecia apenas decifrar qual dos trajes lhe ia melhor, civil se o militar. E logo se virou, não prestando mais atenção.

Lizavéta Prokófievna tampouco se abalançou em fazer comentários ou perguntas, não obstante ser ela quem decerto reparara logo na transformação. Pareceu ao príncipe que ela implicava um pouco com Evguénii Pávlovitch.

Como a interpretar a impressão geral, Iván Fiódorovitch exclamava com alvoroço:

- Até me assustei! Palavra, que fiquei surpreendido quando - dei com esse nosso amigo vestido assim em Petersburgo. Cheguei a acreditar que não fosse ele. E por que assim tão depressa, eis o enigma! Diz ele que não se devem quebrar cadeiras!

Pela conversa que se seguiu o príncipe ficou sabendo que Evguénii Pávlovitch vinha participando desde muito tempo a sua decisão de deixar temporariamente o serviço do exército; mas falava disso sempre com tanta leviandade que ninguém tomara a sério tais palavras. Era seu feitio falar tudo com ar brincalhão, mesmo quando os assuntos eram sérios; de forma que era impossível acreditar nele, o que talvez lhe conviesse.

- Será apenas por algum tempo, por alguns meses. Um ano, no máximo - ria Rádomskii.

 Mas por que isso? Não chego a compreender. Principalmente você que desfrutava uma situação de primeira ordem – continuou argumentando o General Epantchín.

- E onde arranjaria eu tempo para visitar os meus domínios, senão assim? O senhor mesmo não me aconselhou a ir ver direito as minhas propriedades? E mesmo pretendo dar um pulo até ao estrangeiro...

- E logo o assunto foi cortado. Ainda assim uma excessiva e predominante inquietação, cujo motivo o príncipe não atinava, parecia pairar na atmosfera.

Então o “pobre cavaleiro” ainda continuava em cena? - perguntou Evguénii Pávlovitch acercando-se de Agláia.

E, para maior atarantamento do príncipe, esta o olhou admirada e altiva, como a lhe dar a entender que o “cavaleiro pobre” era um assunto com que ele nada tinha de ver, não chegando ela, portanto, a compreender por que lhe fazia uma tal pergunta. Enquanto isso.

Kólia continuava os seus debates com Lizavéta Prokófievna:

- Mas é muito tarde, muitíssimo tarde para mandar alguém à cidade a estas horas. Pela milésima vez multiplicada por três lhe faço ver que é demasiado tarde para mandar comprar na cidade um volume de Púchkin.

- Realmente já está muito tarde para ir à cidade agora - interveio Evguénii Pávlovitch, afastando-se de Agláia. - A estas horas as lojas em Petersburgojá devem estar fechadas. Já passa das oito - declarou, consultando o relógio.

- Se a senhora passou até agora sem este livro por que não há de poder esperar por amanhã? - fez Adelaída.

- E nem é chique pessoas da melhor sociedade estarem a se interessar por literatura - acrescentou Kólia. - Pergunte só a Evguénii Pávlovitch. É muito mais correto viver refestelado em um cabriolé amarelo, de rodas encarnadas.

- Você está dando para falar por simbolos, outra vez, Kólia! - observou Adelaída.

- Mas ele só sabe falar charadísticamente - cascalhou Evguénii Pávlovitch. - Anda procurando em revistas frases inteiras. O meu prazer de ouvir a conversa de Nikolái Ardaliónovitch vem de longe, mas desta vez não se trata de nenhuma charada. Nikolái Ardaliónovitch está aludindo em cheio ao meu char-à-banc amarelo de rodas vermelhas. Mas já o troquei; você está atrasado.

O príncipe escutava Rádomskii falar. E verificava quanto as suas maneiras eram excelentes, modestas e vivazes. Estava particularmente satisfeito em ouvi-lo responder com perfeita equanimidade e bonomia às troças de Kólia.

- Que é isso? - perguntou Lizavéta Prokófievna, dirigindo-se a Vera, a filha de Liébediev que estava parada diante dela com alguns volumes grandes, quase novos e finamente encadernados em suas mãos.

- Isto é Púchkin - disse Vera. - O nosso Púchkin. Papai me disse que viesse oferecer à senhora.

- Como é isso? Como pode ser isso? - disse Lizavéta Prokófievna, espantada.

- Não como um presente! Não se trata de presente. Eu não tomaria tal liberdade! - E Liébediev surgiu, empurrando a filha.

- Ao preço do custo. Trata-se do nosso Púchkin para uso dafamília. Trata-se da edição Annénkov, que já não se compra hoje em dia; ao preço do custo! Ofereço com veneração, e só o quero vender para satisfazer à insigne impaciência dos honorabilíssimos sentimentos literários de Vossa Excelência.

- Bem, se é que o vende, obrigada. E fique desde já sabendo que não terá prejuízo. Peço-lhe, porém, uma coisa só; que não represente o maluco, aqui, por favor. Já me disseram que é muito lido, mas a nossa conversa fica para outro dia. Irá levá-los, pessoal-mente, não é?

- Com veneração e... o maior respeito! - careteou Liébediev, com extraordinário júbilo, tomando os livros das mãos da filha.

- Está bem. Veja lá, não vá perdê-los. Pegue-os; fico com eles, mesmo sem “o maior respeito”. Mas somente com uma condição: a de só receber sua visita na porta, o que não quer dizer tampouco que seja hoje - acrescentou ela examinando-o cuidadosamente. É melhor até mandar sua filha em seu lugar. Mande-a logo mais. Vera, de você eu gosto, está ouvindo?

Vera, todavia, já estava falando com o pai a propósito de um outro assunto.

- Por que é que o senhor, papai, não avisa ao príncipe que aquela gente está aí, querendo falar com ele? Se o senhor demora eles acabam entrando à força. Escute o escarcéu que estão fazendo! Liév Nikoláievitch – e agora se aproximara do príncipe - chegaram quatro homens que querem falar com o senhor. Já vieram há muito tempo, estão furiosos e papai não os quer deixar vir aqui.

Liébediev explicou, gesticulando muito:

- O filho de Pavlíchtchev ! O filho de Pavlíchtchev com mais uns outros! Não prestam para nada! Não merecem vir aqui para estorvar. Não vale a pena, príncipe, lhes dar atenção. E nem fica bem o senhor se incomodar por causa de um tal canalha, ilustríssimo príncipe. Não prestam para nada...

- O filho de Pavlíchtchev está aí? Oh, meu Deus! – exclamou o príncipe sobremodo desconcertado. - Ah, sim. Você sabe, porém, que... já pedi a Gavril Ardaliónovitch que trate do caso desse moço. E ainda agora Gavril Ardaliónovitch me disse que...

Nisto apareceu Gánia, vindo do pavilhão para a varanda, acompanhado por Ptítsin. Dentro do pavilhão havia rumores de altercação, ruídos esses que logo foram escutados na sala contígua, como se pessoas estivessem se aproximando. E a voz do GeneralÍvolguin parecia querer dominar as outras. Kólia correu lá para dentro.

- Ora aí está uma coisa pela qual me interesso – disse alto Evguénii Pávlovitch.

“Então este senhor aqui está a par do que se trata” pensou o príncipe.

- Um filho de Pavlíchtchev?... Qual filho de Pavlíchtchev? -perguntou admirado o General Iván Fiódorovitch, olhando para o grupo com curiosidade e logo percebendo pelo rosto de todos, com surpresa, que ele era o único que ignorava essa nova revelação.

De fato a excitação e a expectativa eram gerais. O príncipe ficou profundamente espantado que um caso assim tão pessoal despertasse tamanho interesse da parte de todos.

- Aproveite, príncipe, e ponha logo um ponto final nisso, já, o senhor mesmo. - Era Agláia quem falava assim, levantando-se na direção do príncipe, com uma seriedade muito particular. - E consinta que sejamos suas testemunhas. Estão ensaiando atirar-lhe lama, príncipe. Deve defender-se de modo triunfante. E saiba que ficarei contente se o fizer.

A Sra. Epantchiná corroborou:

- E eu também. Quero que essa reivindicação enervante tenha um remate categórico. Trate-os como merecem ser tratados, príncipe. Não os poupe! Essa história anda a pôr zoada nos meus ouvidos ejá ando com a paciência em pandarecos, por sua causa. Sem contar, ainda por cima, que deve ser interessante ver a cara que eles têm. Faça-os fugir e nós continuaremos onde estamos. Agláia teve uma boa idéia. Já ouviu referências a essa história, também príncipe? – Desta vez se dirigia ao Príncipe Chtch...

- Naturalmente que já. Foi em sua casa, até. Estou com muita curiosidade de ver esses rapazes - respondeu o Príncipe Chtch...

- São o que por aí se chama de niilistas, não é verdade?

- Não, alteza. Não são propriamente dos tais niilistas - explicou Liébediev dando um passo à frente, muito irrequieto. - Disse-me o meu sobrinho que estes tais já ultrapassaram de muito o niilismo. Trata-se de uma classe diferente. E a senhora se equivoca, Excelência, se cuida que os humilhará com sua veneranda presença. Eles não sabem o que seja inibição perante quem quer que defrontem. Longe disso. Os niilistas no mais das vezes sabem onde têm o nariz e são mesmo gente culta; mas estes tais os ultrapassam de muito porque antes de tudo são homens práticos, de negócios... Estes aqui fazem parte de uma espécie de dissidentes do niilismo, não lhes seguem a linha, adotam uma variante, uma espécie de viés, por tradição oral; não se manifestam através de artigos de jornais e sim por tarefas diretas, ativas. Não é uma questão, por exemplo, da irracionabilidade de Púchkin ou de qualquer outro, nem da necessidade de desarticular a Rússia toda, não. O que eles pregam e exigem é o direito que uma pessoa tem, caso deseje deveras uma coisa, de não se deter perante quaisquer obstáculos, mesmo que seja preciso liquidar com meia dúzia de indivíduos para obter uma finalidade. Seja lá como for, príncipe, eu o aconselharia a não...

Mas o príncipe, já tinha ido abrir a porta para eles, dizendo enquanto isso, a sorrir:

- Você os está caluniando, Liébediev. Vejo que seu sobrinho influenciou muito os seus sentimentos.

Não acredite nele, Lizavéta Prokófievna. Posso assegurar-lhe que isso de Górskii e Danilóv são meras exceções, e que estes rapazes... estão apenas... equivocados.. Preferia não recebê-los aqui, diante de outras pessoas. Desculpe-me Lizavéta Prokófievna. Deixá-los-ei entrar apenas para que a senhora à veja; depois, passarei para a sala com eles. Entrem, senhores!

Afligia-o ainda um outro pensamento, e bem desagradável: não teria porventura alguém arranjado de antemão tal encontro para essa hora e na presença de toda essa gente, que assim testemunharia um espetáculo com propensões mais de vergonha e derrota do que de triunfo? Mas logo ficou triste por lhe vir ao pensamento uma tão “monstruosa e perversa desconfiança”. Morreria de pejo se alguém descobrisse que uma tal idéia fulgurara em sua mente. No momento em que os visitantes entraram, logo tendeu a acreditar que o seu senso moral estava muito abaixo do nível dos recém-vindos.

Entraram cinco pessoas: quatro visitantes e o General Ívolguin, este então em um estado de grande nervosismo e violenta loquacidade.

 O príncipe pensou: “O general decerto está do meu lado”. E sorriu. Kólia esgueirava-se por entre eles, falando muito inflamado com Ipolít, que fazia parte do grupo. E, escutando, Ippolít arreganhava os dentes.

O príncipe os fez sentar. Eram todos muito jovens, meros adolescentes, de maneira que tal visita, o assunto e a atenção que lhes estava sendo dispensada, tudo tomava deveras um ar de coisa extravagante. Iván Fiódorovitch, por exemplo, que nada sabia ainda a respeito dessa nova revelação e nem a podia compreender, ficou indignado quando viu que se tratava de gente assim tão nova.

Se não o contivesse a impetuosidade inconcebível de sua mulher a favor dos negócios particulares do príncipe, o general teria lavrado o seu protesto, retirando-se. Todavia se deixou ficar, parte por curiosidade, parte por cavalheirismo, esperando ajudar o príncipe ou, no mínimo, vir a ser útil no exercício da autoridade que emanava de sua pessoa e de sua condição. Mas a profunda saudação que o General Ívolguin lhe fez de longe o pôs de novo sobre brasas. Amarrou a cara e resolveu taxativamente se manter calado.

Se três do grupo eram bem jovens, o quarto porém já era homem perto dos trinta anos. Tratava-se do tenente reformado que fizera parte do bando de Rogójin, o tal campeão de boxe “que nos seus bons tempos não dava aos mendigos nunca menos de quinze rublos a cada um”. Adivinhava-se logo que viera com os outros como um amigo “persuasivo” e para, caso necessário, garanti-los. O primeiro e o mais importante dos restantes era um jovem a quem fora dada a designação de “o filho de Pavlíchtchev”, muito embora se apresentasse com o nome de Antíp Burdóvskíi. Era um rapaz de roupas sujas e comuns. As mangas do seu casaco brilhavam como dois espelhos. O colete puído estava abotoado acima da junção das clavículas, tapando de todo a camisa; trazia ao pescoço uma echarpe de seda preta incrivelmente ensebada e mais torcida do que uma corda. Mãos encardidas. Não era feio e o rosto, conquanto marcado de espinhas, entremostrava, se é que assim se pode dizer, um ar de insolente inocência. Teria uns vinte e dois anos, era magro e de estatura regular. Não havia um traço de escárnio nem de introspecção na sua fisionomia; nada, a não ser uma visível convicção dos seus próprios direitos e ao mesmo tempo algo como uma estranha e permanente vontade de ser e de se sentir insultado.

Entrara acompanhado pelo sobrinho de Liébediev, já conhecido do leitor, e por Ippolít, e vinha falando com excitação e depressa; dava a impressão de gaguejar, percebendo-se que pronunciava as palavras com dificuldade e precipitação, dando às sílabas um sotaque que parecia de estrangeiro; mas era russo legítimo. Ippolít ainda era mais jovem do que os demais; devia andar pelos dezessete ou dezoito anos, tinha uma expressão inteligente mas irritada e apresentava evidentes sinais de doença. Magro como um esqueleto, pálido e amarelo como um círio, olhos brilhantes como brasas; nas bochechas chupadas, havia de cada lado uma mancha vermelha típica da tuberculose. De fato, tossia sem parar, a mínima palavra e o menor hausto o pondo sufocado. Devia estar tuberculoso já em terceiro grau. Dir-se-ia que não tinha vida para mais de umas três semanas. Tão cansado se sentia que logo se atirou a uma cadeira, diante de todos. Os outros visitantes ficaram um tanto cerimoniosos e mesmo confusos, mal acabaram de aparecer na varanda. Faziam tudo, ainda assim, para assumir um ar importante e se via bem que temiam não agüentar até ao fim essa dignidade que contrastava tanto com a fama do desprezo que manifestavam pelas trivialidades do mundo e pelas convenções, já que só consideravam uma coisa: os seus interesses.

E eis que cada qual se apresentou, sucessivamente

- Antíp Burdóvskii - pronunciou “o filho de Pavlíchtchev”, depressa, como a evitar que a língua se travasse.

- Vladímir Doktorénko - articulou clara e distintamente o sobrinho de Liébediev, como alardeando o fato de possuir tal nome.

- Keller - disse o tenente reformado.

- Ippolít Tieriéntiev - sibilou o último do grupo, com uma inesperada voz de falsete.

Um por um, eles finalmente se sentaram nas cadeiras vagas existentes perto do Príncipe e, tendo declarado seus nomes, deram em rodar nas mãos os gorros a fim de reforçar suas atitudes. Parecia que iam falar, mas permaneceram calados, à espera de qualquer coisa. Mas aquele silêncio tinha algo de desafio, como dando a entender que “não, meu caro, está muito enganado se pensa que desistimos”.

Bastaria uma pessoa articular algumas palavras a título de prólogo querendo ajudá-los, para que desandassem a falar ao mesmo tempo, atrapalhando-se uns aos outros.

 

Foi o príncipe quem rompeu o silêncio:

- Eu não esperava por nenhum dos senhores. Tenho estado doente. Deve haver um mês solicitei a Gavríl Ardaliónovitch (e logo se voltou para Antíp Burdóvskii), conforme fiz saber especialmente ao senhor, que cuidasse do seu caso. Não quero dar a entender com isto que me oponho a uma explicação pessoal. Mas o senhor e os seus companheiros devem concordar comigo que em uma ocasião destas, com visitas que aqui estão... Bem. Sugiro que passemos para uma das salas, caso desejem ainda assim ter um colóquio comigo. Estou com pessoas amigas, aqui, e...

- Bem vemos que amigos não lhe faltam - atalhou o sobrinho de Liébediev em tom de provocação, conquanto sem ousar erguer a voz -, mas permite que eu faça um reparo? É o seguinte: o senhor nos devia ter tratado com mais um pouco de consideração e não nos ter feito esperar duas horas na sua antecâmara.

- O mesmo digo eu... Nem parece educação de príncipe. Afinal de contas... É o senhor porventura algum general?... Mas não sou seu criado! E... e... eu... e... - balbuciava Antíp Burdóvskii aos arrancos, excitadíssimo, os beiços trêmulos, a raiva lhe entrecortando ainda mais as palavras. Falando, parecia que estava explodindo ou se rasgando. Acabou por se atrapalhar tanto que no fim de umas quatro ou cinco elocuções já ninguém o entendia direito.

- Pois se o homem é príncipe, rapazes! - advertiu-os por escárnio Ippolít com seu timbre de falsete.

- Se eu fosse tratado assim - garantiu o campeão de boxe - ou melhor, se a coisa fosse diretamente comigo, eu, como um  homem de honra... Ainda bem que o caso não é comigo, vim só acompanhar ali o Burdóvskii...

-  Senhores, somente ainda agora, não há sequer minutos, foi que vim a saber que estavam aqui - reiterou-lhes o príncipe.

-  Não temos medo, príncipe, dos seus amigos, quaisquer que sejam eles, pois estamos no nosso direito - declarou outra vez o sobrinho de Liébediev.

- E que direito tinha o senhor, deixe que lhe pergunte - tornou a guinchar Ippolít, cada vez mais excitado – de submeter o caso de Burdóvskii ao julgamento de seus amigos? Está mais que claro de antemão qual possa ser a opinião de seus amigos!

O príncipe conseguiu uma brecha:

-  Caso o senhor não queira falar aqui, Sr. Burdóvskii, convido-o a passar para uma das salas. E torno a repetir que foi precisamente ainda agora mesmo que vim a saber que estavam aí...

- Mas o senhor... não tem o direito.., não tem o direito... o direi... to! Por que chamou seus amigos?... Por que... se cercou... deles?... - gaguejou outra vez Burdóvskii encarando-o de modo ao mesmo tempo  rude e desconfiado. E quanto mais desconfiava daquelas presenças mais se acalorava. – O senhor... não tem... esse di... di... direito!

Uma vez pronunciadas estas palavras aos repelões, calou abruptamente, como se o acometesse uma súbita inibição. Fixando os olhos de míope, uns olhos salientes e injetados de sangue, em Míchkin, ficou como que hirto, em uma indignação muda, com o corpo em ângulo para a frente. A vista disso o próprio Príncipe, atarantado, não respondeu nada, ficando a contemplá-lo muito pasmo, sem prosseguir.

- Foi então que Lizavéta Prokófievna lhe disse, sem nenhuma aparente relação com aquela conjuntura:

- Escute! Olhe, Liév Nikoláievitch! Leia isto aqui. Há de interessá-lo.

E lhe estendeu logo um semanário humorístico, mostrando um trecho com o dedo. E que, mal haviam aquelas visitas sido introduzidas, Liébediev dera uns pulinhos de lado até chegar perto de Lizavéta Prokófievna (de quem andava procurando cair em boas graças) e sem dizer nada extraíra do bolso lateral do casaco aquele jornaleco, que abriu diante dos olhos dela mostrando bem um trecho marcado a lápis de cor. Os poucos períodos que Lizavéta Prokófievna teve tempo de ler, além de surpreendê-la emocionaram-na fortemente.

O príncipe vacilou:

- Em vez de ler isso agora diante de todos.., não seria melhor eu ler sozinho, logo mais.., depois?

- Não, não! Deve ser lido alto. Leia você, Kólia! - E arrancando impacientemente o pasquim das mãos do príncipe, quase sem lhe haver dado tempo de o segurar, o entregou a Kólia. - Bem alto, para que todos ouçam!

- Lizavéta Prokófievna era uma criatura impulsiva e não havia quem lhe pudesse tolher os ímpetos. Em uma decisão lhe vindo, não tornava a refletir, levantava todas as âncoras e zarpava para o mar pouco se importando com o tempo. Iván Fiódorovitch mexeu-se, inquieto.

Imediatamente todos ficaram perplexos, guardando. Kólia segurou o jornal e começou a ler alto o trecho que Liébediev, em um arremesso, veio mostrar qual era.

 

FILHOS DE PROLETÁRIOS E REBENTOS DE NOBRES OU

EPISÓDIOS DE UMA ESPOLIAÇÃO DE HOJE E DE SEMPRE

PROGRESSO! REFORMA! JUSTIÇA!

 

“Coisas bem estranhas se passam na nossa chamada Santa Rússia, nesta era de reformas e de grandes empresas, era de movimentos nacionais e de centenas de milhões de rublos drenados para o exterior, anualmente, era do encorajamento do comércio e da paralisação da indústria, etc., etc., já que nem é possível enumerar tudo, senhores. Portanto - vamos direito ao fato. Eis aqui uma especiosa anedota acerca de um rebento da nossa decadente nobreza (De Profundis!), um dos tais rebentos cujos avós se arruinaram na roleta, cujos pais se viram obrigados a servir como aspirantes e porta-bandeiras no exército e que, via de regra, morrem nas vésperas de ser denunciados pelo uso indébito dos dinheiros públicos, ao passo que os tais rebentos, isto é, os netos, como o herói da nossa história, ou crescem idiotas, ou se complicam em casas criminosas, sendo aliás absolvidos pelo júri que confia e acredita que se emendarão, ou então acabam perpetrando uma dessas burlas que fazem pasmar o público e desgraçam ainda mais esta nossa época já tão degradada. O rebento a que nos referimos, usando polainas como um forasteiro e tremendo de frio dentro de uma capa sem forro, chegou a uns seis meses a esta nossa Rússia, vindo da Suíça, onde estivera em tratamento por causa de uma idiotia (sic!). Cumpre aqui confessar que era um camarada de sorte e a tal ponto que - sem nada dizer quanto à interessante moléstia que o obrigou a se submeter a um tratamento na Suíça (imaginem lá se existe algum tratamento para a idiotia!) - poderia servir como ilustração do provérbio russo que diz: Isso de sorte é só para certa casta de gente! Deixado criança ainda com a morte do pai - consta ter este sido um tenente que morreu quando estava para ser julgado pelo repentino desaparecimento do dinheiro todo da companhia, vulgar peripécia ou conseqüência de jogo de cartas, agravado ainda por cima pelo uso excessivo de cnute no lombo dos seus subordinados (decerto os senhores se lembram ainda como isso era nos velhos tempos!) - foi o nosso baronete pegado e educado pela caridade de um riquíssimo latifundiário russo. Esse latifundiário russo - que aqui chamaremos P. - era o amo ou o senhor de quatro mil almas. (Sim, dispunha de quatro mil servos! Compreendem, senhores, o que isso significa? Eu não chego a aquilatar, tenho de ir a um dicionário ver o que quer dizer isso, porque essas coisas de outrora já não me entram no bestunto!) Tratava-se muito provavelmente de um desses mandriões desocupados que malbaratam a existência no estrangeiro. o verão nas estações de águas, o inverno no Château des Fleurs de Paris, sítios esses onde, no transcorrer de seus dias, deixam somas incríveis. Pode-se dizer com segurança que pelo menos um terço do tributo pago outrora pelos servos ia direitinho para as algibeiras do proprietário do Château des Fleurs de Paris (que sujeito afortunado!). Assim pois pôde o caridoso e disponível P. tratar do fidalgote como autêntico príncipe; contratou tutores, governantes (decerto bem bonitas) trazidas por ele pessoalmente de Paris. Mas o último rebento da nobre mansão era idiota. De nada valeu no caso a interferência de governantes oriundas do Château des Fleurs. Aos vinte anos o tal rebento não aprendera língua nenhuma, nem mesmo a sua nativa língua russa; quanto a esta última, em todo o caso isso ainda é desculpável. Por fim deu na veneta do feliz senhor de servos, P., que o idiota talvez recuperasse o juízo na Suíça. O ricaço imaginava que até a inteligência podia ser comprada, tanto mais na Suíça! Cinco anos entre as geleiras passou ele, sob os cuidados de um doutor célebre, nisto sendo gastos muitos milhares.

O Idiota, é claro, não deixou de continuar idiotíssimo, mas pelo menos se tornou um ser humano, o que vale pouco, está-se vendo.

P. morreu de repente, sem deixar testamento e com os negócios, como era de esperar, desorganizados.

Irromperam inúmeros herdeiros vorazes que pouco se importaram com a tradição de latifundiários tomarem à sua conta, por vez de caridade, o tratamento de rebentos aristocráticos na Suíça, por causa de idiotia. O rebento, conquanto imbecil, lá deu um jeito de enganar o seu médico obtendo continuar a ser tratado grátis por mais dois anos, conforme nos atestaram, escondendo a notícia da morte de seu benfeitor. Mas o médico não era assim tão cretino como os seus clientes. Alarmado com a interrupção do encaixe cambial e principalmente com o apetite daquele paspalhão de vinte e cinco anos; abotoou-lhe umas polainas, presenteou-o com uma capa esburacada e caritativamente o recambiou de terceira classe nach Russland, desembaraçando-se do gajo. A sorte pareceu dar as costas ao nosso herói. Mas qual o quê! O fado que mata de fome províncias inteiras arremessou todas as suas dádivas sobre este aristocrata, nisso imitando aquela nuvem da fábula de Krilóv que passou intata por sobre os campos ressecados e foi chover em cima do oceano. Quase no momento exato de sua chegada a Petersburgo, um parente de sua mãe (pertencente sem dúvida a uma família de comerciantes) deu com o rabo na cerca, isto é... em Moscou! Um celibatário, negociante da velha guarda e “velho crente”, que deixou uma fortuna redonda de vários milhões em caixa forte.

(Se ao menos fosse para mim e para os caros leitores!). E tudo foi parar, sem demandas, nas mãos do nosso rebento, aquele tal baronete que se fora curar de imbecilidade na Suíça! Bem, isso agora era uma toada mais fina! Uma chusma de amigos e conhecidos se ajuntou em volta do nosso barão de polainas que perseguia uma célebre beldade de fácil virtude.

Melhorou as relações e, acima de tudo, era perseguido por perfeitos bandos de jovens donzelas esfomeadas e sedentas de matrimônio legítimo. E, com efeito, que poderia haver de melhor?! Um aristocrata, um milionário e um idiota... todas as qualidades juntas de uma só vez, um esposo que não se encontraria assim sem mais aquela, mesmo procurado com uma lanterna de Diógenes!”

- Isto.., isto ultrapassa a minha tolerância - bradou Iván Fiódorovitch, subindo ao cúmulo da indignação.

- Pare com isso, Kólia! - gritou o príncipe com voz suplicante. Ouviram-se exclamações.

- Leia! Leia, haja o que houver! - ordenou Lizavéta Prokófievna, evidentemente fazendo um desesperado esforço para continuar se contendo. - Príncipe, se o senhor faz parar a leitura. nós brigamos!

Não havia outra solução. Kólia, inflamado, rubro, agitado, prosseguiu na leitura, com voz perturbada.

“Mas enquanto o nosso milionário feito às pressas flutuava, por assim dizer, no empíreo, uma nova revelação veio à cena. Certa manhã um visitante surgiu, com uma fisionomia serena, vestido modestamente, mas um homem de bem, evidentemente de tendências progressistas. Em uma linguagem cortês mas digna e sensata, em breves palavras lhe explicou a razão da sua visita. Tratava-se de um notável advogado. Recebera instruções de um certo moço e viera a seu mando. Este moço era, nem mais nem menos, o filho do falecido P., apesar de usar um outro nome. O libertino P. tinha, em sua mocidade, seduzido uma moça virtuosa, serva doméstica, mas de educação européia (aproveitando-se, sem dúvida, daqueles direitos senhoriais dos tempos de servidão) e notando a próxima e inevitável conseqüência dessa ligação, se apressou em lhe arranjar. como marido, um certo homem honrado e de caráter que se ocupava em comércio e outros serviços, e que, havia muito, se apaixonara pela moça. Tratou logo o patrão de ajudar o jovem casal. Mas tal ajuda, dado o caráter nobre do marido, logo foi suspensa. O tempo passou e o barine pouco a pouco esqueceu a moça e o filho que ela tivera dele, vindo depois, como já é sabido, a morrer sem deixar nada explícito quanto a esse filho. Enquanto isso, esse seu filho, que crescia sob um outro nome, visto ter nascido depois de um casamento legítimo, tendo sido adotado devido ao honorabilíssimo caráter do esposo de sua mãe, esposo esse que, por sua vez, também veio a falecer, mais ou menos nesse mesmo tempo, se viu à mercê de seu próprio fado, com a mãe doente, de cama, padecendo, e isso em uma das mais afastadas províncias da Rússia. Ganhava a sua vida na capital, com o seu trabalho honrado de todos os dias, dando aulas em casas de famílias de negociantes. E, desta maneira, se foi aguentando, primeiramente na escola, e depois freqüentando cursos de leitura proveitosa, tendo em mira o seu futuro adiantamento.

- Mas o que é que se pode ganhar dando aulas a dez copeques por hora a meia dúzia de pobres, e ainda por cima com a progenitora de cama, inválida, a sustentar e cuja morte afinal de contas, lá em uma remota província, em nada lhe alterava a situação? E eis que se levanta, agora, a questão: qual devia ser, para o nosso pobre rebento, por justa decisão a tomar? Com toda a certeza o leitor esperaria que - ele dissesse a si mesmo: “Gozei toda a minha vida das mercês de P., algumas dezenas de milhares de rublos seguiram para a Suíça, por conta de minha educação, de minhas governantas e do meu tratamento como imbecil. E agora nado eu nos meus milhões, ao passo que o nobre filho de P. está gastando os seus altos talentos em dar lições, sem ser culpado do desregramento de seu libidinoso pai que o esqueceu. Tudo quanto foi gasto comigo devia ser gasto com ele. As enormes somas despendidas comigo, não são, nem eram, na realidade, minhas. O que houve foi um engano da fortuna; essas somas deviam ter ido para o filho de P., deviam ter sido gastas em benefício dele, e não no meu, como foi feito pelo fantástico capricho do frívolo e desmemoriado P.

Se, porém, eu fosse nobre, delicado e justo, devia entregar metade da minha fortuna ao filho dele; mas, como antes de mais nada eu sou esperto, e estou mais do que farto de saber que não pode haver demanda judicial, absolutamente não darei a ele a metade dos meus milhões. Em todo o caso, seria vil e vergonhoso, da minha parte (o rebento esqueceu que mesmo isso não seria prudente), não devolver eu, agora, ao filho de  as dezenas de milhares de rublos gastas por P. com a minha cretinice. Isso seria justo e direito! Pois que teria sido de mim se P. não me tivesse educado e tivesse olhado por seu filho, em lugar de mim?”

“Mas não! Não é deste modo, próprio de cavalheiro, que tal gente encara essas coisas. A despeito das representações do advogado do jovem, o qual se encarregou dessa causa apenas por amizade e quase que contra a vontade do interessado, como que a força, a despeito de lhe serem apontadas quais as obrigações da honestidade, da honra, da justiça e mesmo da prudência, o paciente da Suíça permaneceu inflexível e - que é que o leitor está pensando? - tudo isso não é nada; e agora chegamos ao que é realmente imperdoável e que não pode ser desculpado sob rótulo de doença alguma! O interessante vem agora: este tal milionário, que já tinha aproveitado as polainas do professor, não pôde compreender que aquele nobre caráter que se matava dando aulas. não estava pedindo caridade, não estava pedindo auxílio, e sim pugnando pelo que de direito lhe era devido, muito embora não se tratasse de uma demanda judicial. Nem mesmo a isso recorreu, sendo os seus amigos que por conta própria a isso se obrigaram. Com ar majestoso, julgando com o poder dos seus milhões ser capaz de esmagar as pessoas impunemente, o nosso rebento tirou do bolso uma nota de cinqüenta rublos e a mandou ao nosso excelente rapaz, em um gesto de caridade insultante. Sei que o leitor propende a não acreditar nisso. O leitor dana-se, sofre, solta exclamações de indignação; mas foi isso, leitor amigo, o que ele fez! O dinheiro, é lógico, lhe foi remetido de volta imediatamente. arremessado, por assim dizer, às suas fuças! Qual o recurso deixado então? Não cabe demanda judicial, só há um recurso: a publicidade.

Esta história é, pois, apresentada ao público sob garantia de absoluta autenticidade. Um dos nossos mais conhecidos escritores humorísticos alinhavou um excelente epigrama sobre o caso e que merece destaque como rascunho da vida russa, tanto na província como na capital:

 

“Nem todo idiota é bocó:

Vou provar esta asserção

Citando um exemplo só.

 

Com seus ataques insanos,

Metido em um capotão,

No espaço de cinco anos,

 

O bom Liév ficou

Simulando ser bocó,

Mas quando à Rússia voltou,

 

O nosso imbecil primário

Achou prontinha uma herança!

E o que é mais extraordinário,

 

Do estudante que logrou...

Nem ao menos teve dó!...

Este epigrama provou

 

E ainda prova, por si só,

Que este idiota Milionário

Nada tinha de bocó!”

 

Mal acabou de ler, Kólia entregou o jornal ao príncipe e, sem dízer uma palavra, correu a se meter em um canto e tapou o rosto com as mãos. Sentia-se intoleravelmente envergonhado; a sua sensibilidade juvenil, não afeita ainda a tais vilanias, ficara ferida muito além do que podia suportar. A impressão que sentia era que algo de terrível tinha sucedido, esmigalhando tudo! E que ele, por ter lido alto aquilo, fora a causa de tudo.

Todavia, os demais pareciam sentir a mesma coisa. As moças ficaram muito deprimidas e envergonhadas. Lizavéta Prokófievna lutava com uma violenta raiva. Ela também, talvez, estivesse amargamente arrependida de se ter metido nisso. E agora se mantinha calada.

Quanto a Míchkin, sentiu o que as pessoas demasiado sensíveis sentem em tais casos; ficou tão envergonhado com a conduta dos outros, sentiu tamanha vergonha pelas suas visitas, que por muito tempo teve pejo de encará-las. Ptítsin, Vária, Gánia, o próprio Liébediev - todos estavam com ar embaraçado.

E a coisa mais estranha é que tanto Ippolít como o “filho de Pavlíchtchev” pareciam ambos perplexos. O sobrinho de Liébediev também estava notoriamente atarantado. O boxeador era o único calmamente sentado, inteiramente sereno, cofiando os bigodes, com ar sobranceiro, com os olhos postos no chão, não por desapontamento, mas fingindo um modesto orgulho e um iniludível triunfo.

Era patente que o artigo o deleitara.

- Isso nem merece comentário! - sentenciou o general, em voz baixa.

- Nem cinqüenta lacaios juntos comporiam uma coisa assim!

- Permita-me, meu caro senhor, perguntar-lhe como ousa fazer tão insultantes suposições? - gritou Ippolít, a tremer.

- Isto, isto, isto, para um homem honrado... o senhor mesmo há de ouvir, general, se é que é um homem de bem, isto, isto... éinsultante! - gaguejava o boxeador que inesperadamente também se inflamara, torcendo os bigodes e agitando os ombros e o corpo.

- Em primeiro lugar, eu não sou “o seu caro senhor”, e em segundo lugar, não tenho de lhes dar satisfações! - respondeu Iván Fiódorovitch, com severidade. Estava terrivelmente zangado. Ergueu-se da cadeira e sem dizer mais nada foi para a entrada da varanda onde ficou de pé, perto dos degraus, de costas para o grupo, violentamente indignado com a mulher por não ter ela sequer pensado em sair de lá.

- Amigos, amigos, permitam-me, finalmente, que eu fale, disse o príncipe, aflito e embargado.

- E eu lhes peço para conver sarmos de maneira a que nos possamos entender todos. Quanto au artigo não digo nada, senhores, ele fala por si. Apenas uma coisa. amigos: nada do que está escrito no artigo é verdade. Digo assim, porque os senhores mesmos sabem. É tão ignominioso, de fato, que eu me surpreenderia enormemente se foi algum dos senhores que escreveu isso!

- Até ao presente momento eu ignorava esse artigo - avisou Ippolít. - Não o aprovo!

- Embora eu soubesse que estava escrito, eu... eu também teria aconselhado a não o publicarem, porque acho prematuro - ajuntou o sobrinho de Liébediev.

- Eu sabia, mas eu tenho direito.., eu... - balbuciou “o filho de Pavlíchtchev”.

-  Como! Foi então o senhor quem preparou tudo isso? - perguntou o príncipe, olhando atentamente para Burdóvskii. - Mas é possível?

- Recusamo-nos a reconhecer o seu direito de perguntar uma coisa dessas! - interveio o sobrinho de Liébediev.

- Apenas o que me admira é que o Sr. Burdóvskii pudesse... ele próprio... Mas... agora pergunto eu, já que os senhores deram publicidade ao caso, por que ficaram tão ofendidos, ainda agora. quando eu principiei a falar sobre o caso diante dos meus amigos?

- Até que enfim! - ciciou Lizavéta Prokófievna, indignadíssima.

- E então, príncipe., o senhor se esquece também - e Liébediev, não se podendo conter, arranjava uma passagem por entre as cadeiras. em um estado febril de agitação -, então, o senhor se esquece também que foi somente graças à sua bondade e à infinita grandeza do seu coração que recebeu e escutou essa gente? E que essa gente não tem o direito de pedir nada; especialmente tendo o senhor posto já o caso nas mãos de Gavríl Ardaliónovitch, o que, também, já foi excesso de bondade? E agora, ilustríssimo príncipe, no seio dos seus diletos amigos, o senhor não pode sacrificar a companhia deles por essa gente. E o que o senhor deve fazer é escorraçar toda essa corja para a rua, já! E eu, como dono da casa, fá-lo-ei com o maior prazer...

-  Perfeitamente! Muito bem! - trovejou o General Ívolguin, de súbito, lá dos fundos da sala.

- Chega, Liébediev, chega, chega! - ia começando o príncipe, mas as suas palavras se perderam em uma explosão de indignações.

-Não, com licença, príncipe, com licença, não chega não! - vociferou o sobrinho de Liébediev cujo timbre afogava o dos Outros. - Agora devemos colocar o caso sobre uma base firme e clara, visto, evidentemente, não estar nada combinado. Há um certo sofisma, uma certa sutileza judiciária envolvida em tudo isso e, por causa dessa sutileza, nos ameaçam pôr na rua. Mas é possível, príncipe, que o senhor possa pensar que nós somos tão cretinos que não sabíamos que não temos recurso judicial a interpor e que, analisando o caso sob o ponto de vista da lei, não temos sequer direito a tentar uma ação por um simples rublo? Mas nós, de um modo absoluto, nos damos conta de que, se não há uma reivindicação legal, há, todavia, uma reivindicação humana, natural! A que é dada pelo bom senso e pela voz da consciência. E conquanto essa reivindicação não esteja escrita em nenhum código humano, todavia um homem generoso e honesto, em outras palavras, um homem sensato, sente que tem de ser generoso e honesto mesmo em pontos que não estão escritos nos códigos. Eis por que viemos até aqui sem nenhum medo de ser postos na rua (como nos ameaçaram ainda agora) pois não estamos pedindo, mas sim requerendo, apesar mesmo do impróprio da hora, adiantada para a nossa visita. (Aliás não viemos em hora tardia, foi o senhor quem nos deixou a esperar na sua antecâmara.) Viemos, repito, sem tergiversar, porque o consideramos um homem de sensatez, isto é, de honra e de consciência. E o que é mais, não viemos humildemente, não viemos como pedintes, nem como trampolineiros, e sim com nossas cabeças eretas, como homens livres. Não se trata sequer de uma petição, mas sim de uma instância livre e altiva. (Ouça bem, não com uma petição, mas com uma instância, guarde bem isso.) E pomos o caso em suas mãos, diretamente, dignamente. Como se considera o senhor, perante o direito, no caso de Burdóvskii? Não admite o senhor que foi beneficiado e talvez até salvo da morte por Pavlíchtchev? Se o senhor admite isso (o que é evidente), tenciona ou pensa o senhor, já que recebeu milhões, compensar o filho de Pavlíchtchev em sua pobreza, apesar de usar ele o nome de Burdóvskii? Sim, ou não? Se sim, ou melhor, em outras palavras, se o senhor tem o que o senhor chama, em sua linguagem, honra e consciência, e que nós outros mais exatamente chamamos de senso comum, então nos atenda e satisfaça, e daremos o caso por liquidado. Satisfaça-nos sem querer salamaleques ou gratidões de nossa parte; não espere isso de nós, pois não terá agido por nossa causa e sim por causa da justiça. Se, porém, o senhor não nos quiser satisfazer, isto é, se responde não, vamos embora imediatamente e o caso também está acabado! E então lhe havemos de dizer na cara, diante de todas as suas testemunhas, que o senhor é um homem de inteligência inferior e de desenvolvimento primário. E que, pelo futuro, não ouse cognominar-se homem de brio e de consciência, pois não tem o direito de o fazer, visto ter comprado tal direito barato demais. Terminei! Expus o caso. Ponha-nos na rua se é capaz. Não lhe será difícil, o senhor tem a força. Mas, ainda assim, lembre que não pedimos, exigimos! Exigimos e não pedimos!

E o sobrinho de Liébediev parou, muito excitado.

- Nós exigimos... exigimos... exigimos... não pedimos!... berrava Burdóvskii, grosseiramente, até ficar vermelho como um camarão.

Depois dessa espécie de discurso feito pelo sobrinho de Liébediev, houve uma movimentação geral, com murmúrios de protesto, embora cada pessoa do grupo não tentasse se intrometer no caso, exceto Liébediev, talvez, que parecia estar com um acesso de febre. (E interessante será destacar aqui que Liébediev, embora estivesse do lado do príncipe, não deixava de demonstrar emoção, de ordem como que familiar, ante o discurso do sobrinho, dando em encarar os presentes com certo ar de satisfação.)

- Na minha opinião - começou o príncipe, em voz um tanto baixa -, na minha opinião, Sr. Doktorénko, na metade de quanto falou agora, o senhor está com a razão, e em mais da metade, mesmo. E eu concordaria com o senhor imediatamente se o senhor não tivesse deixado fora do seu discurso uma certa coisa. Mas eu lhe posso dizer o que foi exatamente que o senhor deixou de fora; não me sinto apto, mas para tornar o seu discurso inteiramente certo, alguma coisa se requer dentro dele. Porém será melhor voltarmos ao caso, desde o começo, senhores! Digam-me, por que publicaram este artigo? Não há uma só palavra nele que não seja calúnia; portanto, no meu pensar, os senhores cometeram uma perversidade.

- Dá licença?

- Meu caro senhor!

- Isso... isso... isso - ouvia-se de todos os lados, ao mesmo tempo, lá do grupo dos visitantes.

- No que se refere ao artigo - atalhou estridulamente Ippolít - já disse que nem eu nem os demais o aprovamos. Foi escrito por aquele ali (apontou para o boxeador que estava sentado a pouca distância); foi escrito ignominiosamente, concordo, escrito em mau russo, e na gíria dos homens do exército, reformados. Ele, além de estúpido, é um mercenário; concordo. Digo-lhe isso todos os dias na cara, mas, pelo menos na metade, estava direito. A publicidade é um direito legal para todos e ainda mais para Burdóvskii. Ele lá que responda pelos seus absurdos! No que se refere ao meu protesto pela presença de seus amigos, penso ser necessário informá-los, senhores, que eu protestei apenas para defender os nossos direitos. Na realidade, porém, até preferimos que houvesse testemunhas e, de nossa parte, nós quatro estamos certos que, sejam essas suas testemunhas quais forem, mesmo que se trate de amigos seus, não podem deixar de reconhecer a reivindicação de Burdóvskii (porque ela é matematicamente certa), sendo, portanto, até melhor que se trate de amigos seus; isso tornará a verdade ainda mais patente.

- Lá isso é verdade. Concordamos sim! - asseverou o sobrinho de Liébediev.

- Por que foi, então, que os senhores começaram a fazer rebuliço e gritaria, se até as testemunhas lhes convinham? - indagou o príncipe surpreso.

- E quanto ao artigo, príncipe - aparteou o boxeador, que se estava tornando excitado demais e desesperado para falar (suspeitar-se-ia até que a presença de senhoras produzia um forte e patente efeito sobre ele) quanto ao artigo, confesso ser eu o autor, muito embora ali o meu amigo doente, a quem já me acostumei a perdoar, por causa justamente da doença, tenha criticado dizendo que não prestava. Mas eu o escrevi e o publiquei no jornal de um amigo, em forma de carta. Tão só não são meus os versos que, de fato, vieram da pena de um célebre satírico. Só os li para o Sr. Burdóvskii, e isso mesmo em parte; e ele logo concordou comigo que o publicasse, muito embora estejam a ver que eu os poderia publicar sem o consentimento dele. O direito de publicidade é um direito que abrange a todos  e é um direito honorável e benéfico. Espero que o senhor príncipe seja bastante progressista para não negar isso!...

- Não lhe estou negando nada, mas há de convir que esse seu artigo...

- É severo, quer o senhor dizer?! Mas o senhor sabe muito bem que isso é em benefício público, a bem dizer. E, além do mais, como se haveria de deixar passar um caso tão fragrante como esse. Tanto pior para o culpado! Mas o público se beneficia diante de tais coisas. Quanto a certas pequenas incorreções, a bem dizer hipérboles, há de o senhor convir que o que importa no caso, bem mais, é o motivo. O objeto, a intenção, vem primeiro. O que importa é o exemplo benéfico; depois então que se entre no caso individual. E sem falar no mais: o estilo, o valor humorístico da coisa... E de fato, todo o mundo escreve desse jeito, conforme o senhor muito bem sabe. Ah! Ah!

- Mas os senhores estão em uma pista completamente falsa, posso lhes assegurar - exclamou o príncipe. -

Os senhores publicaram este artigo na suposição de que eu por nada me induziria a satisfazer o Sr. Burdóvskií; e então tentaram amedrontar-me e tirar uma vingança. Mas em que se apoiavam os senhores? E se eu me decidisse a satisfazer a reivindicação do Sr. Burdóvskii? E digo-lhes plenamente, diante de todo o mundo, que tal é o meu querer.

- Isso? Ora aí está uma sábia e generosa afirmativa de um homem sábio e generoso! - elogiou o campeão de boxe, virando-se para todos os lados.

- Céus! - não pôde deixar de exclamar Lizavéta Prokófievna.

- Inominável! inominável! - desaprovava e se escandalizava o general, categoricamente.

- Com licença, amigos! Com licença! Vou explicar bem - suplicou e prometeu o príncipe.

- Sr. Burdóvskii, o seu agente ou representante, Tchebárov, foi ver-me há cinco semanas. A descrição que o ex-tenente Keller faz dele, desse Tchebárov, é lisonjeira demais - acrescentou o príncipe com vontade de rir, voltando-se para o ex-campeão de boxe. - Eu não apreciei esse senhor de forma alguma. Percebi logo que esse Tchebárov entrou neste caso com intenções escusas e que, para falar candidamente, abusou de sua simplicidade, senhor Burdóvskii, quando o atiçou a tentar essa reivindicação.

- O senhor, não tem o di... di... direito de dizer is... so! Eu não sou.., nenhum sim.., simplório - Pôs-se Burdóvskii a gaguejar, excitadíssimo. E logo o sobrinho de Liébediev lhe veio em ajuda:

- Com que direito faz o senhor suposições desta ordem?

- ...que são insultantes no mais alto grau! - estridulou Ippolít. A sua insinuação é insultante, falsa e impertinente!

- Lastimo. Lastimo! Lastimo - desculpou-se Míchkin, prontamente.

- Por favor, desculpem-me. É que pensei que fosse melhor para nós que eu usasse inicialmente de franqueza. Mas os senhores é que decidem. Como queiram.  Eu disse a Tchebárov que como não me achava em Petersburgo, ia autorizar imediatamente um amigo a tratar do caso e que lhe comunicasse,  senhor Burdóvskii. Declaro-lhes, senhores, que no começo tomei o caso como uma trapaça apenas, por causa da comparticipação de Tchebárov, cujos modos me pareceram suspeitos e demasiado vivazes... Oh! Não se ofendam, Senhores! Pelo amor de Deus, não se ofendam - exclamou o príncipe, vivamente, ao tornar a distinguir sinais de ressentimento em Burdóvskii e demonstrações de protesto por parte dos amigos deste. - Claro que não me refiro ao senhor nem aos presentes, quando falo em trapaça, chantagem. Naquela ocasião eu não conhecia nenhum dos senhores pessoalmente. Ignorava-lhes até os nomes. Apenas me restringi a julgar Tchebárov. Falei de modo geral porque... Se soubessem quão nefandamente fui saqueado depois que entrei na posse de minha fortuna!

- Príncipe, o senhor é extraordinariamente ingênuo! - zombou. O Sobrinho de Liébediev - Quem lhe manda ser príncipe e milionário! Pode muito bem ser que o senhor seja bondoso e simples mas de qualquer forma não pode fugir à lei geral - sentenciou Ippolít.

- Possivelmente senhores, muito possivelmente - apressou-se o príncipe em concordar - muito embora eu não saiba a que lei geral se estejam referindo. Mas permitam que eu prossiga e não se ofendam, absolutamente; juro que não tenho a menor intenção de insultar ninguém. E é uma lástima, senhores, que não se possa proferir uma palavra, sinceramente, sem que fiquem logo ofendidos! Mas, em primeiro lugar, foi um terrível choque, saber da existência de um filho de Pavlíchtchev em tão terrível situação como Tchebárov me explicou. Pavlíchtchev foi meu benfeitor e amigo de meu pai. Mas, ah! Por que escreveu o senhor aquelas falsidades a respeito de meu pai, Sr. Keller? Nunca houve apropriação indébita do dinheiro de nenhuma companhia nem maus tratos a subordinados quaisquer. Quanto a isso estou absolutamente convicto! E como pôde o senhor estender a sua mão para escrever tal calúnia? E o que o senhor disse de Pavlíchtchev ultrapassa tudo quanto é suportável. Deu o senhor esse nobre homem como sendo um libertino frívolo, e o fez com tanta audácia e segurança como se realmente estivesse contando a verdade, e todavia, ele foi um dos homens mais virtuosos e castos que já houve no mundo! Era notavelmente culto, costumava corresponder-se com inúmeros cientistas dos mais insignes, e gastou grande parte do seu dinheiro com desenvolvimento da Ciência. Quanto ao seu coração e à sua benemerência. Oh! Sem dúvida estava o senhor completamente com razão ao dizer que eu, naquele tempo, era mais um idiota do que qualquer outra coisa, não tendo a menor noção de nada (apesar de falar russo e até poder entender o que me falassem); mas posso agora apreciar tudo quanto recordo, em seu verdadeiro valor...

Com licença - guinchou Ippolít -, não será isso muito sentimental? Nós aqui não somos nenhuma criança. O que queremos é entrar diretamente na questão. E já são quase dez horas, repare bem.

- Muito bem, senhores - concordou o Príncipe. - Depois da minha primeira suspeita, ainda pensei que talvez eu me houvesse equivocado e que Pavlíchtchev tivesse efetivamente um filho. Mas fiquei muitíssimo admirado que aquele filho desvendasse, tão diligentemente, isto é, quero dizer, tão publicamente o segredo do seu nascimento, desgraçando o nome de sua mãe. Pois já naquela ocasião Tchebárov me ameaçava com a Publicidade!

- Coisa ridícula! - comentou o sobrinho de Liébediev

- O senhor não tem o direito. O senhor não tem O direito; - exclamava Burdóvskii, ao que guinchou com veemência Ippolít:

- O filho não é responsável pelo procedimento imoral do pai, nem a mãe tem do que ser censurada.

- Mais razão ainda, então, para poupá-la, pensaria eu, no caso - aventurou singelamente o príncipe.

- O senhor não é tão somente ingênuo, príncipe; vai, talvez, um pouco além... - chacoteou o sobrinho de Liébediev, maldosamente.

- E que direito tinha o senhor? - ganiu Ippolít, em uma voz deformadíssima.

- Todavia, nenhum. Todavia, nenhum - prontamente redargüiu o príncipe.

- Os senhores têm razão nisso, admito, mas me saiu, e que hei de fazer? E comigo mesmo eu disse, naquela ocasião, que não devia deixar o meu sentimento pessoal intervir no caso, porque se considero ser preciso satisfazer a solicitação do Sr. Burdóvskii por causa do meu sentimento para com Pavlíchtchev, eu devia satisfazê-la de qualquer modo, mesmo que respeitasse ou não Sr. Burdóvskii. Apenas fiz tal reparo, senhores, porque me pareceu anômalo, para um filho, desvendar o segredo materno tão publicamente... E de fato foi principalmente neste terreno que me capacitei que Tchebárov era um tratante e tinha instigado o Sr. Burdóvskii a uma tal fraude por dolo.

-   Mas isso é intolerável! - partiu de entre os seus visitantes, alguns dos quais chegaram a se levantar.

- Senhores, foi justamente então que compreendi que o pobre  Sr. Burdóvskii devia ser uma pessoa simples e sem ajuda, facilmente dominada por cavalheiros de indústria, e que, por conseguinte, eu precisava ajudá-lo. E o farei como a um “filho de Pavlíchtchev” - primeiramente, livrando-o do Sr. Tchebárov, em segundo lugar, oferecendo-lhe os meus amistosos bons ofícios e guia, e, em terceiro lugar, decidindo dar-lhe dez mil rublos, exatamente quanto, segundo meus cálculos, Pavlíchtchev deve ter gasto comigo.

O quê! Só dez mil rublos? - vociferou Ippolít.

- Bem, príncipe, nós somos muito fraquinhos em aritmética, ou melhor, o senhor é um ás em contas, muito embora se faça de simplório - zombou o sobrinho de Liébediev.

- Eu não concordo em receber dez mil rublos.

- Segura isso, Antíp! - compelia-o o boxeador, em um sussurro claro e rápido, inclinando-se para ele por detrás da cadeira de Ippolít! - Segura isso! E depois veremos!!!

- Escute, Sr. Míchkin - goelou Ippólit -, compreenda bem que nós não somos cretinos, vulgares cretinos, como provavelmente pensam todas essas suas visitas, tanto essas damas que nos desprezam condignamente, como esse senhor da alta sociedade - apontou para Evguénii Pávlovitch - a quem não tenho, naturalmente, a a honra de conhecer, muito embora cuide já ter ouvido falar em Sua Excelência.

- Mas, por Deus, os senhores de novo não me entendem - voltou-se o príncipe para eles, com agitação.

- Em primeiro lugar, Sr. Keller, em seu artigo o senhor descreveu a minha fortuna muito por ouvir dizer! Eu absolutamente não herdei milhões. Tenho talvez uma oitava ou uma décima parte do que o senhor supõe. E, em segundo lugar, dezenas de milhares não foram gastos comigo na Suíça. Pagavam-se a Schneider seiscentos rublos por ano; e isso mesmo ele só recebeu durante os três primeiros anos, e Pavlíchtchev nunca foi a Paris para buscar lindas governantas; isso é outra calúnia. Na minha opinião, muito menos de dez mil rublos foram gastos comigo, ao todo; mas eu me propus dar dez mil e hão de admitir que eu não haveria de oferecer ao Sr. Burdóvskii, em pagamento, mais do que lhe era devido, mesmo que eu simpatizasse imensamente com ele! E não haveria de fazê-lo por um sentimento de delicadeza apenas, pois lhe deveria pagar o que lhe era devido e não lhe fazer uma esmola! Não sei por que hão de os senhores se negar a compreender isto. E além disso, resolvi, por amizade e ativa simpatia, compensar mais tarde o infeliz Sr. Burdóvskii, que evidentemente fora enganado, pois não podia ele, de outra maneira, concordar em uma coisa tão baixa como, por exemplo, essa de dar publicidade a este escândalo referente à sua mãe, como deixou, no artigo do Sr. Keller... Mas por que estão os senhores ficando zangados, outra vez? Temos de nos estar equivocando completamente uns aos outros? Ora, aconteceu o que eu já pensava! Estou convencido agora, pelo que vejo, que meu pressentimento era correto - tentou a custo o príncipe persuadi-los, ansioso por pacificar a excitação deles, sem reparar que, ao contrário, a estava aumentando.

- Convencido agora de quê? - caíram-lhe em cima, quase em fúria.

- Ora, em primeiro lugar, tive tempo para ver nitidamente quanto o Sr. Burdóvskii se parece comigo; e agora vejo claramente o que ele é. É um homem inocente, dominado por qualquer um. Um homem desamparado... E por conseguinte, eu devo ajudá-lo. E, em segundo lugar, Gavríl Ardaliónovitch - a quem o caso foi confiado, e com quem não falei durante muito tempo porque estive viajando e, depois disso, doente em Petersburgo, me disse ainda hoje que examinou o dossiê de Tchebárov, atentamente, acabando por deduzir que Tchebárov é quem eu já cuidava que fosse. Sei, senhores, que muita gente me considera como um idiota, e que, dada a minha reputação de jogar fora dinheiro, à vontade, Tchebárov pensou que podia facilmente vir como impostor sobre mim, contando principalmente com a minha estima por Pavlíchtchev. Mas o ponto capital ouçam-me, senhores, ouçam-me bem! - o ponto capital é que está provado agora que o Sr. Burdóvskii não é em absoluto filho de Pavlíchtchev! Gavríl Ardaliónovitch acabou de me dizer e me garante que tem legítimas provas disso. Bem, que pensam os senhores disto? É difícil acreditar em uma coisa destas, depois da celeuma que foi feita! E escutem, as provas existentes são positivamente categóricas! Quase não creio ainda, chego a não acreditar, asseguro-lhes que estou duvidando até, visto Gavríl Ardaliónovitch não ter tido tempo para me mostrar todos os documentos. Mas que Tchebárov é um tratante, quanto a isso não há mais dúvida! Ele usou do pobre Sr. Burdóvskii e dos senhores todos que vieram auxiliar um amigo (notoriamente ele carece de uma ajuda, compreendo, naturalmente!); abusou dos senhores todos e os envolveu em um caso fraudulento, pois lhes sustento que de fato se trata de um dolo; é uma trapaça!

- Como, trapaça!? Então não é filho de Pavlíchtchev? Mas, como assim? - tais eram as exclamações ouvidas de todos os lados.

Todo o bando de Burdóvskii como que caiu em uma inexpressiva perturbação.

- Sim, naturalmente que é trapaça! Pois se o Sr. Burdóvskii afinal não é mesmo o filho de Pavlíchtchev, sua reivindicação é simplesmente fraudulenta (claro que se, no caso, ele soubesse a verdade); mas a coisa é que foi enganado, eis por que insisto quanto a que seja aclarado o seu caráter! Eis por que digo que ele merece ser lastimado por sua simplicidade e não pode ser deixado sem auxílio. Se assim não fosse, também ele seria um tratante. Estou agora convencido que ele não compreendeu! Eu estava na mesma atuação que ele, quando fui para a Suíça; também eu tinha o hábito de gaguejar incoerentemente. Tenta uma pessoa se exprimir e não pode. Compreendam que eu posso simpatizar com ele, muito bem, sou quase como ele, se é que me é permitido falar assim. Inteiramente igual! Portanto, não existe nenhum “filho de Pavlíchtchev”; o que houve foi mistificação; mas, apesar de tudo, mudei de modo de pensar. E estou pronto a lhe dar dez mil rublos em memória de Pavlíchtchev. Antes do Sr. Burdóvskii aparecer em cena, já eu tinha resolvido dedicar dez mil rublos à fundação de uma escola em memória de Pavlíchtchev; mas agora dá no mesmo ser para uma escola ou para o Sr. Burdóvskíi, pois apesar dele não ser filho de Pavlíchtchev, merece tanto como se o fosse, por ter sido tão impiedosamente enganado. Piamente acreditou ele ser filho de Pavlíchtchev! Falem com Gavríl Ardaliónovitch, ouçam-no, amigos; terminemos com isto! Não se excitem. Sentem-se! Gavríl Ardaliónovitch lhes explicará tudo diretamente. E confesso que terei muita satisfação em ouvir também todos os comprovantes. Disse-me ele que foi a Pskóv ver sua mãe. Sr. Burdóvskii, que absolutamente não morreu como o fizeram declarar no artigo... Sentem-se, senhores, sentem-se!

O príncipe sentou-se e conseguiu que Burdóvskii e seus amigos se tornassem a sentar. Durante os dez ou vinte minutos últimos falara alto e impetuosamente, com uma impaciência precipitada. Quase arrebatado, tentando falar com todos; e não pôde depois, amargamente, deixar de se arrepender de certas frases e suposições que então lhe escaparam. Se não se tivesse esgotado a ponto de perder a serenidade, não teria sido capaz de tão mal e tão apressadamente pronunciar alto certas conjeturas e certos desnecessários protestos.

Mal se tinha sentado em seu lugar e já um ardente remorso fazia doer o seu coração. Além do fato de ter “insultado” Burdóvskii declarando em público sofrer o mesmo de igual doença de que ele próprio se fora tratar na Suíça, o oferecimento de dez mil rublos destinados a uma escola tinha sido feito, a seu ver. grosseiramente e sem delicadeza, como uma caridade. E, ainda por cima, fizera isso alto, diante de todo o mundo. “Eu devia ter esperado e só lhe fazer esse oferecimento amanhã, a sós”, pensava o príncipe. “Agora, talvez não tenha sido correto! Sim, sou um idiota, verdadeiramente um idiota”, disse para si mesmo, em um paroxismo de vergonha e de mal-estar.

No entanto, Gavríl Ardaliónovitch, que até então estivera para um canto, em um obstinado silêncio, avançou, e por convite do príncipe, tomou posição ao lado dele e começou calmamente, com muita clareza, a dar conta do caso que lhe fora confiado pelo príncipe. Todas as conversas cessaram instantaneamente. Todos ouviam com extrema curiosidade, especialmente o grupo de Burdóvskii.

 

- Certamente o senhor não chegará ao ponto de negar - começou Gavril Ardaliónovitch, dirijindo-se imediatamente a Burdóvskii que se pôs a escutá-lo atentamente, apesar de uma visível agitação, os olhos muito abertos – não tentará nem quererá, de fato, negar que nasceu justamente dois anos depois que sua respeitável mãe se casou com o Sr. Burdóvskii, seu pai. A data do seu nascimento pode ser facilmente comprovada, de modo que a distorção deste fato - tão insultante para o senhor e para sua mãe... no artigo do Sr. Keller, deve ser levada à conta, simplesmente, da superabundância da imaginação do mesmo Sr. Keller: supunha ele, sem dúvida, tornar a reivindicação mais forte, por essa declaração, assim, pois, cooperando em seu interesse. O Sr. Keller diz que antes de publicar lhe leu parte do artigo, mas não todo... e não pode haver dúvida de que não lhe leu esta passagem...

- De fato não li - interrompeu o boxeador - mas todas as informações me foram dadas por pessoa competente e eu...

- Com licença, Sr. Keller - atalhou Gavríl Ardaliónovitch - permita que eu fale. Asseguro-lhe que já chegarei ao seu artigo. E então o senhor dará as suas explicações; mas o melhor, agora, é tratarmos das coisas em sua seqüência natural, Inteiramente por acaso, com o auxílio de minha irmã Varvára Ardalíónovna Ptítsina, obtive de uma sua amiga íntima, a Sra. Zubkóva, viúva que tem uma propriedade no campo, uma carta que lhe escreveu do estrangeiro o Sr. Pavlíchtchev, há vinte e quatro anos. Havendo travado conhecimento com a Sra. Zubkóva, tive ensejo de recorrer também, por sugestão dessa mulher, a um seu parente que fora outrora grande amigo do Sr. Pavlíchtchev, o coronel reformado Viazóvkin. E dele consegui mais outras duas cartas escritas também pelo Sr. Pavlíchtchev, ainda do estrangeiro. Através de tais cartas e dos fatos e datas nelas mencionados, ficou categoricamente provado, sem nenhuma possibilidade de erro ou de dúvida, que ele partira para fora do país um ano e meio antes do senhor nascer, Sr. Burdóvskii, e que fora do país permaneceu durante três anos. Ora, como o senhor bem sabe, sua mãe nunca esteve fora da Rússia. No momento não lhe leio as cartas; já é tarde. Mas se lhe interessa, marque uma hora para conversar comigo, amanhã cedo, se quiser, Sr. Burdóvskii, e traga as suas testemunhas - quantas lhe aprouver e peritos para examinar a caligrafia; estou certo de que o senhor ficará mais do que convencido da veracidade dos fatos expostos. Se assim for, todo o caso, naturalmente, cai por terra e fica liquidado.

Isso provocou, outra vez, emoção geral e excitação crescente. Burdóvskii imediatamente se levantou.

Já que assim é, fui enganado! Enganado não por Tchebárov, mas desde muito antes Não preciso de peritos, não preciso ir ver o senhor, acredito, retiro minha reivindicação. Não concordo em receber os dez mil rublos... Adeus.

Pegou o gorro e afastou a cadeira para sair.

- Se o senhor pudesse ficar mais um pouco, Sr. Burdóvskii disse Gavril Ardaliónovitch, detendo-o com brandura e delicadeza Ao menos uns cinco minutos. É que alguns outros fatos vieram à luz, a tal respeito, e são muito importantes E eu acho que o senhor não os devia ficar ignorando e, decerto, lhe seria muito mais conveniente se o seu caso pudesse ser completamente esclarecido.

Burdóvskii sentou-se sem falar, de cabeça baixa, parecendo perdido em cismas. O sobrinho de Líébediev, que se tinha levantado para segui-lo, também se sentou de novo, não tendo, porém, perdido a Sua arrogância, apesar de não poder esconder quanto estava perplexo. Ippolít estava carrancudo, decepcionado e evidentemente atônito, mas deu em tossir tão violentamente que manchou de sangue o seu lenço.

O boxeador, esse, então, mostrava-se arrasado - O, Antíp! - disse ele amargamente - Já no outro dia... anteontem, te disse que talvez não fosses mesmo filho de Pavlíchtchev!

Isso provocou gargalhadas gerais, umas mais altas do que Outras.

-  O fato que o senhor aduziu neste momento, Sr. Keller - agora Gavril Ardaliónovitch imprensava-o -, tem seu valor. Apesar disso, no entanto, eu tenho o direito de argumentar que embora o Sr. Burdóvskii soubesse muito bem a data de seu nascimento, ignorava completamente a circunstância do Sr. Pavlíchtchev residir no estrangeiro onde passava a maior parte de sua vida, só voltando uma vez ou outra à Rússia. De mais a mais o fato dele estar fora naquele tempo não era coisa assim tão importante que obrigasse as pessoas a se recordarem disso vinte anos depois; nem mesmo as pessoas que conheciam bem o Sr. Pavlíchtchev sem falar no Sr. Burdóvskíi que, a essa altura, nem nascido era, o que não quer dizer que fosse ou seja impossível estabelecer a veracidade desse fato. Quanto a mim, devo confessar que foi por mero acaso que coligi tais fatos que podiam muito bem não ter chegado às minhas mãos. O que também prova que essa averiguação pudesse ser quase impossível ao Sr. Burdóvskii e até a Tchebárov, mesmo no caso de a procurarem obter, ou nisso pensarem. Quem sabe até se nem lhes passou isso pela cabeça!

- O senhor dá licença? - aparteou, com irritação, Ippolit. - Para que toda essa lengalenga, se posso perguntar?! O caso já foi esclarecido; concordamos em aceitar o fato mais importante; por que então desenrolar toda essa lengalenga a respeito? Ou quererá o senhor, quem sabe, estadear a sua habilidade em investigações e expor diante de nós e do príncipe as suas extraordinárias qualidades de detetive? Ou está o senhor tentando desculpar e justificar o Sr. Burdóvskii, provando que ele se atrapalhou em toda essa questão por causa de sua ignorância? Veja, porém, que isso é uma imprudência, senhor! Burdóvskii dispensa as suas desculpas e justificações, deixe que lhe diga! Isso lhe é penoso e incomodativo; afinal de contas já basta a posição desastrada em que ele está; e o senhor devia ver e compreender isso.

- Chega, Sr. Tieriéntiev, chega - disse Gavríl Ardaliónovitch fazendo-o calar-se.

- Fique calmo, não se excite; receio que o senhor piore. E lastimo isso. Se prefere, paro aqui, ou antes, tratarei de resumir o mais possível uns tantos fatos que, estou convencido, devem ser plenamente conhecidos - acrescentou reparando no movimento geral de notória impaciência. - Eu apenas quero demonstrar que o Sr. Pavlíchtchev evidenciava esse interesse e bondade para com sua mãe, Sr. Burdóvskii, somente porque ela era irmã de uma serva por quem desde a mocidade ele estava apaixonado. E tanto que certamente acabariam se casando se ela não tivesse morrido repentinamente.

Tenho provas da exatidão disso e de certos outros fatos pouco conhecidos ou inteiramente esquecidos. E, mais ainda, posso informá-lo como sua mãe foi tomada aos dez anos pelo Sr. Pavlíchtchev e educada por ele como se fosse sua parenta, como teve à sua disposição um dote considerável e de como os aborrecimentos originados por causa disso partiram dos numerosos parentes por cuja conta certos rumores correram. Chegou-se a pensar que ele se casaria com a sua pupila, acabando ela, porém, em sua livre escolha, se casando (e isso posso provar de maneira taxativa) com um funcionário rural chamado Burdóvskii. Reuni documentações fidedignas que comprovam que seu pai, Sr. Burdóvskii, que não mostrava propensões para o comércio, largou o emprego ao receber o dote de sua mãe, de quinze mil rublos, e se meteu em especulações comerciais, tendo sido enganado; perdeu o seu capital, desandou a beber para esquecer suas mágoas, conseqüentemente caindo doente, e vindo a morrer, por fim, oito anos depois de ter esposado a mãe do senhor. Então, depois disso, ficou ela, segundo o seu próprio testemunho, completamente sem recursos e teria chegado à ruína se não fosse o constante e generoso auxilio do Sr. Pavlíchtchev que lhe concedia seiscentos rublos por ano. Também ficou notório que ele gostava extremamente do senhor quando criança. Pelo que sua mãe me contou, é quase certo que ele gostava do senhor principalmente por causa do seu feitio desventurado de criança miserável, parecendo estropiado e gago. E, como vim a saber em fontes muito seguras, Pavlíchtchev em toda a sua vida sempre teve um sentimento de especial ternura por tudo quanto injustamente fosse flagelado pela natureza, principalmente crianças - fato esse que, a meu ver, é de grande valor no nosso caso. Finalmente, posso garantir que descobri um fato de importância primordial, e que vem a ser o seguinte: a marcada preferência de Pavlíchtchev pelo senhor (e foi mediante os esforços dele que o senhor entrou para o ginásio e recebeu uma educação apropriada) pouco a pouco foi levando os parentes de Pavlíchtchev e os membros de sua casa a imaginarem que o senhor fosse filho dele e que o seu pai tivesse sido enganado. Mas é preciso que se repare bem que tal idéia só avultou e se tornou convicção geral nos últimos dias de vida de Pavlíchtchev, quando toda a parentela dele estava sobressaltada com o seu testamento, estando já os fatos originais esquecidos e até impossibilitada sua averiguação imediata. Sem dúvida, tal idéia também lhe chegou aos ouvidos, tomando conta inteiramente do senhor. Sua mãe, cujo conhecimento tive a honra de fazer, sabia desses boatos. Mas até hoje não sabe (e nem eu lhe disse) que o senhor, seu filho, estivesse dominado por tal suposição. Fui encontrar sua respeitabilíssima mãe em Pskóv, doente e na extrema penúria em que ficara desde a morte de Pavlíchtchev. Disse-me ela, com lágrimas nos olhos, de pura gratidão, que era sustentada apenas pelo senhor. Ela confia muito no seu futuro e crê de modo absoluto em seu triunfo daqui por diante...

- Mas isso já está ficando intolerável! - berrou o sobrinho de Liébediev, não suportando mais.

- Qual é o fim desse romance?

E Ippolít o coadjuvou, em um movimento abrupto:

- Isso ofende e chega a ser inaudito!

Só Burdóvskii ficou imperturbável.

- Qual o fim, o objeto disto? - disse Gavríl Ardaliónovitch, com fingida admiração, maliciosamente preparando o seu remate.

- Porque, em primeiro lugar, o Sr. Burdóvskii decerto está agora plenamente convencido de que o Sr. Pavlíchtchev o amava por generosidade e não por ser o filho dele. Só este fato já era essencial que o Sr. Burdóvskii soubesse, já que ficou do lado do Sr. Keller, aprovando tudo quanto do artigo lhe foi lido. Digo isto porque considero o Sr. Burdóvskii um homem direito. Em segundo lugar parece que não houve a menor intenção de chantagem e dolo no caso, mesmo da parte de Tchebárov; esse é um ponto importante para mim, também, porque o príncipe, ao falar acaloradamente ainda agora, me mencionou como concordando com a sua opinião de haver um elemento desonesto e trapaceiro no caso. Pelo contrário, houve absoluta boa-fé por parte de todos, e muito embora o Sr. Tchebárov possa ser um grande espertalhão, neste caso ele aparece apenas como um agudo e intrigante advogado. Esperava fazer alto negócio com isso, como advogado, e os seus cálculos não foram apenas agudos e magistrais; foram seguros. Baseava-se ele na correção com que o príncipe se comporta a respeito de dinheiro; baseava-se em sua gratidão e respeito por Pavlíchtchev. E, o que é mais, se baseava principalmente na maneira cavalheiresca com que o príncipe, como mais que notório, cumpre suas obrigações de honra e consciência. Quanto ao Sr. Burdóvskii, pessoalmente, ainda se pode dizer que, graças a certos pendores seus, foi tão trabalhado por Tchebárov e por seus amigos outros, que tomou o caso a peito, fora até do seu interesse moral, porém mais como um serviço à verdade, ao progresso e à humanidade.

Agora, pois, após tudo quanto acabo de dizer, se torna mais do que claro que o Sr. Burdóvskii é um homem inocente, sejam quais forem as aparências. E assim, o príncipe, mais prontamente e zelosamente do que antes, lhe vai oferecer seu amistoso auxílio e, de modo particular, essa ajuda substancial a que se referiu agora ao falar sobre escolas e Pavlíchtchev.

- Pare! Agora não, Gavríl Ardaliónovitch, deixe isso para depois... - exclamou o príncipe desapontadíssimo; mas era tarde demais.

- Eu já lhe disse, já lhe disse três vezes - falou Burdóvskii no auge da irritação - que não quero o dinheiro, que não aceito... não quero aceitar... Vou-me embora!

E já ia a correr pela varanda. Mas o sobrinho de Liébediev o agarrou pela manga e lhe disse ao ouvido qualquer coisa. Imediatamente Burdóvskii voltou e tirando um enorme envelope sem lacre do bolso o arremessou sobre a mesa, na direção do príncipe.

- Aí está o dinheiro. Como foi que o senhor ousou? Como? O dinheiro!

- Aqueles duzentos e cinqüenta rublos que o senhor teve o desplante de lhe enviar, como uma esmola, por Tchebárov! - explicou Doktorénko. Ao que Kólia comentou:

- Mas o artigo dizia cinqüenta.

- Fiz mal - declarou o príncipe erguendo-se e indo até Burdóvskii - Confesso que fiz mal, Burdóvskií mas acredite que não mandei isso como esmola. Tenho de reconhecer agora e antes. (O príncipe estava muito angustiado, com um ar exausto e esgotado e as suas palavras eram um pouco desconexas.) Falei em trapaça mas não me referi ao senhor. Eu estava enganado. Disse que o senhor era doente como eu. Mas o senhor não é como eu, o senhor dá aulas.., o senhor sustenta sua mãe. Eu disse que o senhor estava expondo sua mãe à vergonha; mas o senhor a ama, ela mesma o disse... E eu não sabia. Gavríl Ardaliónovitch não me tinha contado tudo. Sou culpado. Cheguei a lhe oferecer dez mil rublos, mas mereço censuras, eu devia ter feito isso de modo diferente, e agora.., isso não pode ser feito, porque o senhor me desdenha...

- Isto é uma casa de loucos! - exclamou Lizavéta Prokófievna.

- Lógico que é uma casa de malucos! - não pôde Agláia deixar de dizer, cortantemente.

Mas as palavras delas se perderam na celeuma geral. Todos gritavam e discutiam, alguns seriamente, outros rindo. Iván Fiódorovitch Epantchín estava no auge da indignação e, com um ar de ofendida dignidade, esperava pela mulher. Quem pôs em tudo aquilo a última palavra foi o sobrinho de Liébediev:

- Sim, príncipe, tem-se de lhe fazer justiça. O senhor sabe como aproveitar a sua.., ora bem.., doença (para me exprimir polidamente); tal jeito deu o senhor no modo por que ofereceu sua amizade e seu dinheiro, de maneira tão engenhosa, que é impossível agora a um homem de bem receber uma e outra coisa, seja sob que circunstância for. E isso ou é uma demonstraçãozinha de inocência, ou de esperteza... O senhor sabe, melhor do que nós.

-  Mas, com licença, senhores! - volveu Gavríl Ardaliónovitch que nesse ínterim tinha aberto o envelope. - Aqui não há duzentos e cinqüenta rublos e sim somente cem. Quero, com o que estou dizendo, que não haja mal-entendido.

- Deixe, deixe,.. - exclamou o príncipe, acenando para Gavríl Ardaliónovitch

- Não! “Deixe”, não!... - E o sobrinho de Liébediev se interpôs. - Esse seu “deixe” é insultante para nós, príncipe. Não estamos escondendo, declaramos abertamente: no envelope há só cem rublos, em lugar de duzentos e cinqüenta; nem isso vem a dar no mesmo...

- De fato não vem a dar no mesmo! - acrescentou Gavríl Ardaliónovitch, com um ar de ingênua perplexidade.

- Queira não nos interromper; não somos nenhum idiota, senhor advogado - redargüiu o sobrinho de Liébediev com desprezo. - Naturalmente que cem rublos não são a mesma coisa que duzentos e cinqüenta, nem isso vem a dar no mesmo, mas o que importa é o princípio. O que importa é a iniciativa e lá isso de estarem faltando cento e cinqüenta rublos é mero pormenor. O que importa é que Burdóvskii não aceita a sua esmola, Excelência, que a joga em seu rosto e isso tem justamente o sentido de que não faz diferença se são cem ou duzentos e cinqüenta. Burdóvskii não aceitou os dez mil rublos, conforme o senhor já escutou; e não teria trazido os cem rublos, em restituição, se fosse desonesto. Os cento e cinqüenta rublos ficaram com Tchebárov como pagamento da viagem que fez para se avistar com o príncipe. O senhor pode rir de nossa falta de tirocínio e experiência em negócios; o senhor tentou o mais que pôde nos ridicularizar, mas não ousará chamar-nos de desonestos. Nós nos cotizaremos todos, senhor, para pagar ainda esses cento e cinqüenta rublos ao príncipe. Tê-lo-íamos pago, mesmo que fosse só um rublo! Pagaremos com juros.

Burdóvskií é pobre. Burdóvskii não tem milhões, e Tchebárov mandou cobrar a sua viagem. Nós esperávamos ganhar a questão... quem não teria feito o mesmo, no lugar dele?

- Quem não teria?! - exclamou o Príncipe Chtch...

- Eu acabo perdendo o juízo, aqui! - proferiu Lizavéta Prokófievna.

- Isto me faz lembrar - disse a rir, Evguénii Pávlovitch, que desde muito estava prestando atenção em tudo aquilo - uma célebre defesa feita recentemente por um advogado que, enumerando com justificativa a pobreza do seu cliente, desculpando-o por ter assassinado e roubado seis pessoas de uma só vez, repentinamente rematou com algo mais ou menos assim: “Era natural que, ante a uma pobreza, ocorresse ao meu cliente a idéia de assassinar seis pessoas! Sim, porque, afinal de contas, em idêntica situação, a quem não ocorreria a mesma idéia?” Algo mais ou menos deste teor! Muito engraçado.

Basta! - fez ver Lizavéta Prokófievna, em um transporte quase de raiva. - Já é tempo de parar com este espetáculo.

Estava em uma terrível excitação. Atirou a cabeça para trás. Ameaçadora-mente e, com os olhos em chama, e um ar de altivo e feroz desafio, encarou um por um,já não podendo distinguir amigos de inimigos. Atingira aquele auge de ódio longamente contido mas por fim irreprimível em que a avidez pelo conflito imediato e pelo ataque súbito cria, em dada pessoa, o impulso que tudo comanda. Aqueles que conheciam a Sra. Epantchiná logo sentiram que lhe sobreviera algo fora do comum. Iván Fiódorovitch disse no dia seguinte ao Príncipe Chtch...: “Ela tem desses ataques de vez em quando, mas acessos como o de ontem jamais lhe vêm a não ser de três em três anos. No máximo!” - acrescentou enfaticamente.

- Chega, Iván Fiódorovitch. Deixa-me sozinha - gritou Lizavéta Prokófievna.

- Tira esse braço daí, não me ofereças o braço. Ou achas que me vais conduzir para fora? És o marido, o chefe da família, mas só me pegarias pela orelha e me levarias lá para fora se eu fosse néscia demais para te obedecer e seguir. Devias mais é pensar em tuas filhas, isso sim! Agora já sabemos o caminho sem ti. Tive vergonha suficiente para me conter um ano. Espera, não vês que tenho de agradecer ao príncipe? Muito obrigada, príncipe, pelo divertimento. Permaneci de propósito para ouvir o que esses rapazes diziam. E é uma desgraça! Uma desgraça! Que caos, que infâmia! Pior do que um sonho. Há muita gente como eles? É? Fique quieta, Agláia! Deixe-me, Aleksándra, vocês não têm nada com isto! Saia da minha frente, Evguénii Pávlovitch, não me incomode!... Então, meu caro, você lhe está pedindo desculpas? - dirigia-se agora a Míchkin. - “A culpa foi minha”, diz ele, “de ousar vos oferecer uma fortuna...” E, escute aqui, de que é que você se está rindo aí, seu fanfarrão? - apontava para o sobrinho de Liébediev. - “Nós recusamos a fortuna”, diz o outro. “Nós exigimos, não pedimos!” Como se não soubessem que amanhã este idiota se porá de rastros para lhes oferecer sua amizade e seu dinheiro, outra vez. É, ou não é, você aí?

- É, sim, senhora! - disse o príncipe, com voz tênue e humilde.

- Ouviram? Vocês já contavam com isso! - E voltada para Doktorénko: - É o mesmo que o dinheiro já estar no bolso de vocês! E aí está por que vocês tentam impressionar-nos... Não, meu rico tipo, não me venha com manhas, eu o conheço... estou vendo o seu jogo...

- Lizavéta Prokófievna! - exclamou o príncipe.

- Vamos embora, Lizavéta Prokófievna, já é tempo de nos irmos, e levemos o príncipe conosco - disse o Príncipe Chtch... procurando sorrir, para aparentar calma.

As moças estavam de pé, ao lado, meio espantadas; o General Epantchín permanecia boquiaberto; os demais presentes, admirados. Os que se achavam mais para o lado de fora cochichavam entre si, sorrindo às escondidas. A cara de Liébediev estava estarrecida, em uma expressão de perfeito êxtase.

- Caos e infâmia podem ser encontrados em qualquer lugar, senhora! - disse o sobrinho de Liébediev, nem com isso perdendo o embaraço em que estava.

- Ruim, assim, não! Ruim assim, como entre os senhores, não, caro senhor - retorquiu Lizavéta

Prokófievna em um ar de vingança histérica. - Larguem-me! - gritava para os que tentavam persuadi-la. Ora, pois não disse você ainda agora, Evguénii Pávlovitch, que até um advogado, no tribunal, declarara ser muito natural que um pobre sangre seis pessoas? Isso significa o fim de tudo; nunca ouvi tamanha coisa. Está tudo mais do que claro agora! E este sujeito gago, quem não vê que mataria qualquer um? (e apontava para Burdóvskii, que a ficou fitando atarantadamente). Estou pronta a apostar que ele matará alguém! Talvez, de fato, não aceite o seu dinheiro, talvez não queira os seus dez mil rublos, talvez não o aceite por causa da consciência; mas irá à noite matar você e tirar o dinheiro do cofre; e fará isso por causa da consciência. Então não será desonestidade, para ele. Será apenas uma erupção de “nobre indignação”, será um “protesto”, ou Deus sabe o quê... Arre! Tudo está de pernas para o ar, tudo está de cambalhotas! Uma rapariga cresce em casa e repentinamente, no meio da rua, se mete em um fiacre, dizendo: “Mamãezinha, no outro dia me casei com um tal Kárlitch, ou Ivánitch, adeusinho!” E está direito, um comportamento desta ordem, respondam?! É natural, demonstra respeito? A questão “mulher”?

Este fedelho - apontou para Kólia - ainda no outro dia estava argumentando sobre o significado da questão “mulher”.

Mesmo que a mãe seja maluca, qualquer de vocês tem de se comportar como um ser humano, perante ela. Por que chegar a casa com a cabeça no ar? “Abra caminho, não vê que estou entrando? Restitua-nos os nossos direitos e não dê um pio sequer! Preste-nos toda espécie de respeito, como até aqui nunca nos foi prestado e nós a trataremos pior do que ao mais ínfimo lacaio”. Exigem justiça, repisam em seus direitos, e ainda o caluniam como pérfidos no artigo de um jornaleco. “Exigimos, não pedimos e não lhe dispensaremos gratidão porque o senhor está agindo em satisfação à própria consciência!” Isso é raciocínio de gente? Pois bem, se vocês lhe não demonstram gratidão, o príncipe lhes pode responder que também não a dispensa a Pavlíchtchev, porque Pavlíchtchev também agiu direito em satisfação à sua consciência. E vocês bem sabem que estão contando justamente com a gratidão dele por Pavlíchtchev! Ele não lhes pediu dinheiro emprestado, não lhes deve nada; com que é então que vocês estão contando, senão com a sua gratidão? E como é então que vocês repudiam isso? Lunáticos Encaram a sociedade como selvagem e inumana, porque ela expõe a donzela seduzida à vergonha; mas se vocês cuidam que a sociedade é inumana, devem vocês também pensar que a pobre moça sofre pela censura da sociedade! E, se assim é, por que a expõem vocês à sociedade, através dos jornais, e acham que ela não deva sofrer? Lunáticos! Ordinários! Não acreditam em Deus, não crêem em Cristo! Ora, vocês, estão tão comidos pelo orgulho e pela vaidade que acabarão se entredevorando, eis o que desde já lhes profetizo. Não é isso caos, infâmia e pandemônio! E depois de tudo ainda esta desventurada criatura precisa lhes ir pedir perdão, também! Há mais gente como vocês? E de que é que se estão rindo? De eu não ter me sabido conter e explodir contra vocês? Sim, explodi sim, e agora não há outro jeito! Que é que está arreganhando os dentes, você aí, seu “limpa-chaminés”? - apontou para Ippolít. - Está quase a botar a alma pela boca e ainda tenta corromper os outros! Foi você quem pôs a perder este fedelho aqui - apontava para Kólia - que não faz outra coisa senão besteiras por sua causa; você lhe prega ateísmo, você que não crê em Deus, você que não está ainda assim tão velho para uma surra! Você não se enxerga? Então, vai procurá-los, amanhã, Príncipe Liév Nikoláievitch? - perguntou ela, de novo, ao príncipe, com a respiração suspensa.

-Vou.

- Então não quero mais saber de você. - Virou-se, para se ir, mas tornou a voltar.

- E irá ver este ateu, também? - apontou para Ippolít. - Tem a coragem de se rir de mim? - gritou ela, em um verdadeiro berro, e avançou para Ippolít, não suportando seu esgar sarcástico.

- Lizavéta Prokófievna! Lizavéta Prokófievna! Lizavéta Prokófievna! - ouviu-se de todos os lados, ao mesmo tempo. - Mãe, isso é vergonhoso! - disse Agláia, alto.

- A Senhorita Agláia Ivánovna não se inquiete - respondeu Ippolít, calmamente.

Lizavéta Prokófievna tinha-se arremessado contra ele e lhe segurara o braço. E, por qualquer motivo inexplicável, ainda o estava segurando com força. Ficou diante dele, com os olhos coléricos presos nele.

- Não se inquiete, a sua mamãe já se dará conta de que não pode atacar um agonizante... Se ela quer que eu explique por que me ri, eu explico. E terei muito gosto se ela me der permissão para isso.

Nisto começou a tossir terrivelmente, e não podia parar.

- Ele está a morrer e ainda quer pronunciar discursos - gritou Lizavéta Prokófievna largando-lhe o braço e olhando quase com terror para o sangue que ele limpava dos lábios. - Você não tem de falar nada. Deve mais é ir se deitar.

- E o que farei - respondeu Ippolít, em uma voz rouca, muito baixa, quase um sussurro.

- Assim que chegar a casa me deitarei... Nestes quinze dias vou morrer, já sei. B... já me disse isso na semana passada. De maneira que, se me permite, lhe quero dizer umas palavras, ao nos separarmos.

- Está maluco? Deixe de bobagem! Precisa mais é de enfermeira; agora não é hora de falar. Vá já para a cama!

- Se me meto na cama nunca mais me levantarei até morrer - disse Ippolít, sorrindo.

- Ontem, por exemplo, pensei em me deitar não me levantar mais; mas decidi deixar isso para até depois de amanhã, caso pudesse me agüentar nas pernas... e assim poder vir eles até aqui... O que há é que me sinto terrivelmente cansado.

- Sente-se, sente-se, por que há de estar de pé? Tem uma cadeira aqui! - E Lizavéta Prokófievna correu e lhe ajeitou ela própria uma cadeira.

- Muito obrigado - continuou Ippolít, brandamente. - Mas a senhora também vai se sentar, diante de mim, e nós vamos conversar, Lizavéta Prokófievna; faço questão disso, agora... - e sorriu outra vez. - Pense bem, esta é a última vez que saio a apanhar ar e ver gente. Em quinze dias certamente estarei debaixo da terra. De modo que será uma espécie de despedida à humanidade e à natureza. Não sou lá muito sentimental, a senhora já deve ter reparado, mas estou bastante contente que tudo isso se passe em Pávlovsk; aqui, seja lá como for, ainda se podem ver as árvores cheias de folhas.

Você não pode falar agora - Insistiu Lizavéta Prokófievna cada vez mais sobressaltada – Está mais é com febre. Esteve para aí a dar guinchos e agora nem pode tomar a respiração! Está sufocado! Isso passa, em um minuto. Por que teima a senhora em contrariaro meu último desejo? Quer saber de uma coisa? Há muito tempo que eu sonhava em vir a conhecê-la Lizavéta Prokófievna. Kólia me falava tanto na senhora! Ele foi o Único que não me largou de mão... A senhora é uma criatura original, uma criatura excêntrica e quer saber de uma coisa, eu já estava gostando da senhora, mesmo.

-Deus meu! E não é que estive a ponto de agredi-lo?

- Foi Agláia Ivánovna quem não deixou. Não estou enganado não é? Esta é Sua filha Agláia Ivánovna? É tão bonita que logo, àprimeira vista, adivinhei que era ela, apesar de nunca a haver visto, Que ao menos me seja dado olhar para uma mulher bonita pela última vez na minha vida. E Ippolít sorriu com uma espécie de Sorriso Crispado e sem graça. - O príncipe está aqui, e o marido da senhora; todo o mundo. Por que não consente no meu derradeiro desejo?

- Vejam uma cadeira! - gritou Lizavéta Prokófievna; ela mesma porém, agarrou a primeira que estava à mão e se sentou defronte de Ippolít. - Kólia - ordenou ela -, você hoje deve ir com ele, deve levá-lo. E amanhã certamente, irei eu até lá...

- Se a Senhora dá licença, vou pedir ao príncipe uma xícara de chá... Sinto-me muito cansado. É verdade Lizavéta Prokófievna ainda há pouco, creio eu, a senhora deu a entender que queria levar o príncipe a tomar chá em Sua casa; em vez disso, fique conosco um pouco mais; o príncipe nos fará servir chá a todos, aqui. Desculpe esta minha idéia... Mas como sei que a senhora é de boa índole e o Príncipe também como, afinal, de boa índole somos todos...

O príncipe apressou-se em dar ordens nesse sentido. Liébediev saiu quase a voar, precipitadamente da sala; Vera acompanhou-o.

- Então, está bem - decidiu repentinamente a generala. - Pode falar, mas fale devagar, sem se excitar. Você, afinal, abrandou o meu coração. Príncipe, o senhor não merece que eu tome chá aqui. Mas.., seja. Ficarei; não pensem que me vou desculpar perante quem quer que seja! Absolutamente! Era só o que faltava! Ainda assim, príncipe peço perdão se ralhei com o senhor; vá lá por esta vez. Mas não estou prendendo ninguém - voltou-se com uma expressão de extraordinária raiva para o esposo e as filhas, como se a tivessem desconsiderado. Eu sei voltar para casa sozinha.

Mas não a deixaram acabar. Prontamente todos a rodearam. O principe logo começou a insistir com todos para que ficassem para o chá, pedindo desculpas por não ter pensado nisso antes. Até o General Epantchín assumiu um ar cordial, chegando a murmurar algo convincente; e perguntou a Lizavéta Prokófievna se na varanda estaria muito frio para ela. Esteve quase a indagar de Ippolít quanto tempocursara a Universidade, por um nada deixando de o fazer. Evguénii Pávlovitch e o Príncipe Chtch... tornaram-se inesperadamente em extremo cordiais e bem-humorados. Uma expressão de prazer começou a se misturar à de espanto nos rostos de Adelaída e Aleksándra; de fato todos pareciam radiantes por ter acabado o paroxismo de Lizavéta Prokófievna. Somente Agláia continuava amuada  lá no seu canto, sentada a pouca distância. odos resolveram ficar; ninguém quis ir embora, nem mesmo o General Ívolguin, depois que Liébediev lhe segredou qualquer coisa decerto não muito agradável, apenas se retirando para um canto. O príncipe estendeu o seu convite a Burdóvskii e aos amigos deste, sem exceção. Balbuciaram, com ar constrangido, que esperariam por Ippolít e logo se retiraram para a ponta extrema da varanda, onde sentaram enfileirados. Provavelmente o chá já tinha sido providenciado, antes, por Liébediev, pois foi trazido quase imediamente.

Soaram as onze horas.

 

Ippolít apenas umedeceu os lábios, logo depondo sobre a mesinha a xícara de chá trazida por Vera Liébediev; e ficou olhando em torno, meio confuso. Depois começou a falar, com uma espécie de precipitação súbita:

- Está vendo estas xícaras, Lizavéta Prokófievna? Estas xícaras de  porcelana chinesa... Creio que são legítimas... Liébediev as traz guardadas a chave sempre no aparador, expostas como em uma vitrina, como é de hábito. Fazem parte do dote trazido pela mulher dele... Sempre guardadas! Mas agora estão aqui fora, estão sendo usadas somente por causa da senhora... Em sua honra, tão alegre ficou ele de ver a senhora aqui.

E foi como se esgotasse o assunto, embora ficasse com ar de querer prosseguir.

Evguénii Pávlovitch disse ao ouvido de Míchkin:

- Envergonhou-se. Eu já esperava por isso. É perigoso, não acha? Sinal certo de que, por despeito, tentará fazer alguma coisa tão excêntrica que a própria generala ficará atrapalhada.

O príncipe ficou a olhar para ele de modo indagador.

- Não receia qualquer disparate? Eu por mim não receio. Pelo contrário, até gostaria, pois na verdade estou ansioso para que a nossa querida Lizavéta Prokófievna seja punida... e ainda hoje, até mesmo já se for possível.

E não quero sair daqui sem assistir a isso. O senhor parece estar com febre...?

- Oh! Não se incomode. De fato, não estou bem – respondeu o princípe, sem dar atenção, evidenciando mesmo certa impaciência. - É que ouviu falarem no seu nome. Era Ippolít conversando a seu respeito, por entre risadas histéricas. Dizia: -A senhora não acredita? Pois não acredite; mas o príncipe acreditaria imediatamente e não se surpreenderia nada.

- Está ouvindo, príncipe? Ouça o que ele está dizendo. - E Lizavéta Prokófievna se voltou para ele.

Pessoas riam, perto. Intrometido como sempre, Liébediev avançou até junto de Lizavéta Prokófievna, muito agitado. -  Ele estava me dizendo que este palhaço aqui, o seu proprietário, foi.., quem corrigiu para aquele cavalheiro o artigo que leram esta noite a seu respeito.

O príncipe fitou Liébediev, com surpresa.

-  Fale logo de uma vez! - exclamou Lizavéta Prokófievna batendo com o pé.

-  Bem - balbuciou o príncipe, examinando Liébediev - vejo agora que ele o fez.

-  É a santa verdade, Excelência - respondeu Liébediev firmemente, sem a menor hesitação, depondo a mão sobre o peito.

-  E parece orgulhar-se disso! - observou ela quase pulando da cadeira.

-  Eu sou um homem vil - sussurrou Liébediev, cuja cabeça pendia mais e mais à medida que com a mão ele batia no peito.

-  Que tenho eu com isso, se o senhor é uma pobre criatura? Ele pensa que se justifica dizendo que é uma  pobre criatura! E o senhor não tem vergonha, príncipe, de tratar com gente tão à-toa? Pergunto mais uma vez.

A isso não se perdoa.

O príncipe me perdoará! - exclamou Liébediev com ar comovido.

-  Foi só por nobreza de alma - disse Keller com voz retumbante indo até eles e se dirigindo imediatamente a Lizavéta Prokófievna -, foi só por bondade, senhora, e para evitar deixar mal um amigo que se tinha comprometido, que eu não disse nada, esta noite, a respeito das correções, apesar dele ter sugerido que nos atirassem escadas abaixo, como a senhora muito bem ouviu. Para pôr as coisas em sua verdadeira luz, confesso que de fato recorri a ele, como a uma pessoa competente e lhe ofereci seis rublos, não para corrigir o estilo, mas simplesmente para me dar os faltos que, em sua grande maioria, me eram desconhecidos. As polainas, o apetite em casa do professor suíço, os cinqüenta rublos em vez de duzentos e cinqüenta; toda a arrumação, toda ela pertence a ele.  Vendeu-me as informações por seis rublos, mas o estilo, lá isso não senhora, o estilo ele não corrigiu.

- Devo observar - atalhou Liébediev com febril impaciência e com uma voz arrastada, enquanto a risada crescia cada vez mais -que só corrigi a primeira metade do artigo, porque quando chegamos ao meio não concordamos e até brigamos por causa de um ponto; não corrigi, pois, a segunda parte, não sendo portanto de estranhar a má gramática dessa segunda metade, e que não pode ser à minha conta...

- E em tudo isso o que aborrece é essa parte! - observou Prokófievna.

Permita o senhor que lhe pergunte quando foi corrigido o artigo - disse Evguénii Pávlovitch, dirigindo-se a Keller.

Ontem de manhã - respondeu Keiler. - Nós nos encontramos tendo cada qual prometido, sob palavra de honra, guardar segredo.

- Isto enquanto se arrastava diante de você com protestos de devoção.  Que corja!

Não quero mais o seu Púchkin e não consentirei que sua filha venha à minha casa visitar-me.

Lizavéta Prokófievna estava a ponto de erguer-se, mas logo se virou irritada para Ippolít, que ria.

O senhor acha que eu vim para aqui como palhaço, seu moço?

- Deus me livre de pensar isso! - respondeu Ippolít com um sorriso forçado - mas o que mais me impressiona, de tudo, é a sua incrível excentricidade, Lizavéta Prokófievna. - Confesso que encetei essa conversa sobre Liébedíev de propósito; eu sabia que efeito isso teria sobre a senhora, e sobre a senhora só, pois o príncipe certamente perdoará... e até arranjará uma desculpa para ele, em seu espírito, agora mesmo, muito provavelmente. Não é verdade, príncipe?

Faltava-lhe o ar; a sua estranha excitação aumentava a cada palavra.

- Bem! - disse Lizavéta Prokófievna, colericamente, admirada do tom dele. - Bem! E daí?

- Já ouvi muita coisa a respeito da senhora, em assuntos desta mesma natureza.., e com grande prazer!... E assim fui aprendendo a respeitá-la! - continuou ele.

O que ele disse foi isso, conquanto com tais palavras quisesse significar coisa muito diferente. Falou com uma certa ironia e ainda por cima se achava excitado de uma forma diversa da habitual, como se nisso houvesse inquietação. Mostrava-se confuso e perdia a cada palavra o fio do que estava dizendo. Tudo isso, mais a sua aparência tuberculosa e aqueles seus olhos estranhamente fulgurantes e aloucados não podiam deixar de chamar a atenção geral.

- Eu devia me surpreender, embora nada saiba a respeito do mundo (do que estou bem ciente), não só de a senhora permanecer em nossa companhia - apesar de não sermos companhia decente para a senhora – como também de consentir que essas.., jovens escutassem um caso escandaloso, muito embora já devam ter lido tudo isso em romances. Não sei se me explico bem... porque estou meio zonzo, mas, seja lá como for, quem, a não ser a senhora, permaneceria aqui... a pedido daquele garoto (sim, garoto, devo confessar) para passar a noite conosco e tomar parte em tudo, muito embora estivesse farta de saber que no dia seguinte se envergonharia?... (Concordo que não me estou exprimindo lá muito direito.) Eu aprovo tudo isso, extremamente; e profundamente respeito tudo isso, embora qualquer pessoa possa ver pela expressão do rosto do marido da senhora quanto tudo isto lhe parece impróprio. Eh! Eh! - cacarejou ele, atarantado de todo; e repentinamente deu em tossir tanto que por uns dois minutos não pôde prosseguir.

- Tanto falou que perdeu o fôlego! - pronunciou Lizavéta Prokófievna, friamente, observando-o com uma curiosidade severa.

- Bem, meu caro camarada, já chega. Precisamos ir indo.

- Permita-me que lhe diga também, da minha parte - irrompeu irritado, perdendo a paciência, Iván Fiódorovitch -, que meu amigo, e vizinho, e que de modo algum lhe compete criticar Lizavéta Prokófievna em qualquer de suas ações e nem, tampouco, se referir alto e na minha cara, ao que está escrito no meu semblante, compreendeu o senhor? E se minha senhora permaneceu aqui - prosseguiu com uma irritação que a cada palavra crescia mais - foi por puro espanto, senhor, e por um interesse, compreensível hoje em dia a todos, pelo espetáculo dado pela gente nova. Eu próprio fiquei, como quem pára na rua quando vê algo que... que... cause... curiosidade - completou Evguénii Pávlovitch.

- Excelente e verídico. - E Sua Excelência, quase perplexo pela comparação, ficou radiante. - Precisamente, como um caso raro.

Mas, seja lá como for, o que espanta mais do que qualquer outra coisa e me causa pena, se assim, gramaticalmente, se pode dizer que o senhor não é capaz, seu moço, de compreender que Lizavéta Prokófievna ainda ficou mais tempo porque o senhor está doente - se é que realmente está desenganado - ou, melhor explicando, ficou por compaixão, ficou por causa do seu angustiante pedido, senhor, e que, portanto, nenhum desdouro, absolutamente nenhum, causa isso ao nome dela, ao seu caráter, agora, ou depois! Lizavéta Prokófievna! - concluiu o general com o rosto afogueado - se pretende ir, despeça-se então do príncipe...

- Obrigado pela lição, general - aparteou Ippolít, falando sério e olhando-o pensativo.

- Vamos, mamãe. Há quanto tempo já deveríamos ter ido! - disse Agláia, de modo colérico e impaciente, erguendo-se da cadeira. - Dois minutos mais, caro Iván Fiódorovitch, se é que permite.

Lizavéta Prokófievna voltou-se com dignidade para o esposo:

- Creio que ele esteja com febre e com delírio. Basta ver-lhe os olhos. Ele não pode ficar assim. Liév Nikoláievitch, não poderia ele passar a noite aqui, com você, para não ter de ir para Petersburgo, de noite, nesse estado? Cher prince, espero que não se aborreça - acrescentou, dirigindo-se ao Príncipe Chtch... logo a seguir dizendo à filha: - Aleksándra, venha cá, endireite esse querida.

Ela própria endireitou o penteado da filha, o qual, aliás, estava perfeitamente direito, e a beijou. Só para isso a chamara.

- Bem que eu a cuidava suscetível de uma expansão!... – recomeçou Ippolít, despertando da sua rêverie. - Sim, era isso que eu queria dizer. - Mostrava-se satisfeito como se repentinamente se tivesse lembrado de qualquer coisa. - Aqui Burdóvskii, Sinceramente desejava proteger a própria mãe, não é?

E acontece que a desgraçou. Aqui o príncipe deseja ajudar Burdóvskii e com toda a sinceridade lhe oferece a sua amizade, uma fortuna, e talvez seja entre todos nós o único que não sinta aversão por ele; e todavia estão um diante do outro se olhando como a um inimigo! Ah! Afr Ah! Todos aqui detestam Burdóvskii porque acham que se comportou de maneira hedionda e incrível com sua mãe. É isso, ou não é isso? Todos aqui gostam imensamente da beleza e da elegância das formas e é só isso o que lhes importa. É ou não é verdade? Desde muito reparei que é isso o que importa aqui. Ora bem. deixem que lhes diga que nenhum dos senhores aqui amou tanto sua mãe como Burdóvskii ama a dele. Eu sei, príncipe, que o senhor, às escondidas, mandou dinheiro para a mãe de Burdóvskii. por intermédio de Gánia, aposto até, eh, eh, eh - ria histericamente - e aposto agora como Burdóvskii o vai acusar de indelicadeza e falta de respeito para com a mãe dele. Juro que assim será. Ah! Ah Ah!

A essa altura ficou, de novo, sufocado e tossiu.

- Bem, é tudo? Agora, chega. Já disse tudo o que tinha a dizer? Bem, agora vá dormir; está com febre - interrompeu-o Lizavéta Prokófievna, impaciente, com os olhos arregalados para ele.

- Meu Deus! Ele ainda quer falar mais!

- O senhor está rindo, não é? Por que é que o senhor continua a rir de mim? Reparo que o senhor está sempre a rir de mim - disse Ippolít virando-se para Evguénii Pávlovitch, irritadíssimo Este, realmente, estava rindo. - Eu só queria lhe perguntar, Sr. ... Ippolít... desculpe-me, esqueci o seu nome.

- Sr. Tieriéntíev - disse o príncipe.

- Sim, Tieriéntiev. Obrigado, príncipe. Já me fora mencionado antes, mas me esqueci... Eu queria perguntar-lhe, Sr. Tieriéntíev, se é verdade o que ouvi dizer: que o senhor acha que lhe bastará falar. de uma janela, pelo espaço apenas de um quarto de hora, para que eles concordem com o senhor e o sigam imediatamente.

- É muito possível que eu tenha falado assim - respondeu Ippolít, procurando lembrar-se.

- Com certeza falei - acrescentou logo, ficando ainda mais sequioso e olhando para Evguénii Pávlovitch. - Por quê? E daí?

- Absolutamente por-nada. Eu só queria saber para orientação minha.

Evguénii Pávlovitch ficou calado, mas Ippolít Continuou a olhá-lo com um ar impaciente de espera.

- Bem, vocês acabaram? - perguntou Lízavéta Prokófievna? - Acabem logo com isso, amigos; ele já devia estar deitado. Ou vocês acham que ainda não acabaram?

Estava irritadíssima.

- Sinto-me tentado a acrescentar - prosseguiu Evguénii Pávlovitch, sorrindo - que tudo quanto ouvi de seus companheiros, Sr. Tieriéntiev, e tudo quanto o senhor disse ainda agora, com um talento inconfundível, advém, na minha opinião, da teoria da vitória do direito antes de tudo, à parte tudo e com exclusão de tudo e talvez mesmo antes de saber em que consista esse direito. Mas talvez eu esteja enganado.

- Claro que está enganado. Não chego mesmo a compreendê-lo. Adiante!

Houve um sussurro em um dos cantos. O sobrinho de Liébediev estava cochichando qualquer coisa.

- Ora, é pouca coisa mais - continuou Evguénii Pávlovitch. - Só quero observar com isto que, sob esse ponto de vista, se pode facilmente saltar para o direito da fôrça, o direito do braço individual, da vontade pessoal, como já tantas vezes tem acontecido na história do mundo. Proudhon chegou ao direito da força. Na guerra americana muitos dos liberais mais avançados se declararam do lado dos plantadores, sob a base de que os negros são negros, e inferiores à raça branca e, por conseguinte, que o direito da força estava do lado dos brancos...

- Pois bem! Portanto o senhor não nega que a força seja direito? - E que mais? Só me resta dizer que os senhores são lógicos. Eu só queria observar que do direito da força ao direito dos tigres e dos crocodilos, mesmo para o direito dos Danílóv e Górskii, não há mais do que um passo.

- Não sei. E que mais?

Ippolít mal escutava o que Evguénií Pávlovitch dizia e respondia “Pois bem!” e “Que mais?” mais como cacoete apanhado em argumentos do que por atenção ou curiosidade.

- Nada mais... É tudo.

- Não pense, porém, que estou zangado com o senhor - concluiu Ippolít, inesperadamente. E, sem saber o que estava fazendo, lhe estendeu a mão, a sorrir.

Evguénii Pávlovitch primeiramente ficou surpreendido; depois, com a maior seriedade, tocou a mão que lhe era oferecida como se estivesse aceitando uma desculpa.

- Devo ajuntar - ponderou com o mesmo modo equivocamente respeitoso - a minha gratidão para com o senhor pela atenção com que me escutou, pois, segundo inúmeras vezes observei, os nossos liberais são incapazes de permitir que alguém mais tenha uma convicção própria sem que logo se defronte com o antagonista desdenhoso, ou coisa pior.

- Nisso tem o senhor perfeitamente razão - observou o General Epantchín. E cruzando as mãos atrás das costas se retirou com ar aborrecido para os degraus da varanda, onde bocejou, cheio de tédio.

- Bem, desta vez, basta, meu amigo - anunciou Lízavéta Prokófievna -, pois até você? - disse, referindo-se a Evguénii Pávlovitch.

- Já é tarde - ponderou Ippolít, levantando-se de modo preocupado, e quase alarmado, olhando em volta com um ar perplexo.

- Detive-os tanto tempo. Quis dizer tudo... Eu pensava que todos pela última vez.., foi tudo imaginação...

Era evidente que ele se reanimava por acessos e supetões. Vinha a si, de repente, do atual delírio, por uns poucos minutos; recordava-se e falava em estado de completa consciência, principalmente em frases desconexas que talvez tivesse pensado ou aprendido de cor em suas longas horas de enfadonha doença, no leito, na solidão das vigílias.

- Bem, adeus - repetiu de modo abrupto. - Pensam que me é fácil dizer-vos adeus? Ah! Ah! - riu de sua grosseira pergunta e, furioso por não conseguir dizer o que queria, gritou, irritado: - Excelência, tenho a honra de convidá-lo para os meus funerais, caso ache que eu mereço tal honra... E todos vós, senhoras e cavalheiros, acompanhados pelo general!

Riu outra vez, mas era o riso de um louco. Lizavéta Prokófievna correu para ele assustada e o segurou pelo braço. Ele a olhou com atenção, com o mesmo riso parado e glacial.

- Sabem que vim para cá para contemplar as árvores? Aquelas ali! - e apontou para as árvores do parque. - Será isso ridículo, será? Não haverá nada de ridículo nisso? - perguntou com ar sério a Lizavéta Prokófievna, acabando por ficar imerso em pensamentos; um minuto depois soergueu a cabeça e começou com ar perscrutador a encarar todo o grupo; procurava Evguénii Pávlovitch que estava de pé, bem perto, à direita dele, no mesmo lugar de antes; mas, como tinha esquecido, o procurava.

- Ah, o senhor não foi embora! - Encontrara-o, por fim. - O senhor ainda há pouco estava rindo por eu querer discursar dajanela para a rua, durante um quarto de hora... Mas saberá osenhor que ainda não fiz dezoito anos? Descansei tanto sobre o meu travesseiro, tanto espiei através da janela, tanto e tanto pensei sobre tudo e sobre todos... que... um homem morto não tem idade, anote bem isso. Foi o que eu pensei na semana passada ao passar as noites acordado... E quer saber que é que o senhor receia acima de tudo? antes de mais nada o senhor receia a nossa sinceridade, muito embora nos menospreze! A senhora pensou que eu queria me rir da senhora, Lizavéta Prokófievna! Não, eu não me estava rindo da senhora, eu só queria lhe ser agradável. Kólia me disse que o Príncipe achava que a senhora não passava de uma criança... e é isso mesmo... Sim... mas, sim o quê? Que é que ia dizer?... - Tapou a cara com as mãos e ficou a refletir. - Ah, sim, quando a senhora disse ainda agora “Adeus!” me veio logo este pensamento:

“Esta gente toda aqui não existirá mais, nunca mais, para mim! E estas árvores também... Não haverá mais nada para mim a não ser a parede de tijolos vermelhos, as paredes da casa de Meyer... em frente da minha janela... Bem, dize-lhes tudo isso.., tenta dizer-lhes; ali está uma beleza de rapariga.., que adianta? Estás morto, sabes? Apresenta-te como homem morto; dize-lhes que o homem morto tem licença de dizer o que quiser... e que a Princesa Maria Aleksiéievna não achará isso defeito! (Princesa Maria Aleksiéievna - alusão à comédia de Griboiédov, A Desgraça de Ter Inteligência, em que Famússov exclama em uma passagem diretamente ligada ao título: “Meu Deus, que não dirá agora a Princesa Maria Aleksiéievna?” (N. do T.) Ah! Ah! Não se riem?... - olhou-os a todos, um por um, com ar desconfiado.

- Não sabem de que idéias me vêm à cabeça quando estou com ela pousada no travesseiro! E mais, estou convencido de que a natureza é muito irônica... Disseram ainda há pouco que sou um ateu, mas conhecem ou não conhecem os caprichos da natureza?... De que é que estão rindo, outra vez? São terrivelmente cruéis - rematou, com uma - indignação lúgubre, olhando-os a todos. - Eu não corrompi Kólia - concluiu, em um tom inteiramente outro, sério e convicto, como se recordando outra vez de qualquer coisa.

- Ninguém, ninguém está rindo de você, aqui. Não se aborreça - disse Lizavéta Prokófievna, aflita. - Amanhã virá um novo médico. O Outro estava errado. Sente-se, você nem pode se suster nas pernas! Está delirando... Ah! Que é que vamos fazer com ele, agora? - perguntou, ansiosamente, fazendo-o sentar-se na poltrona.

Uma lágrima brilhou em sua face. Ippolít parou, como que espantado. Ergueu a mão, esticou-a timidamente e tocou a lágrima. Sorriu um sorriso de criança.

- Eu... lhe... - começou ele, jubiloso - a senhora nem imagina quanto eu... Ele sempre me falava tão entusiasticamente da senhora, ele, ali - e apontou Kólia. - Eu gosto do entusiasmo dele. Eu nunca o corrompi! É o único amigo que deixo... Bem gostaria eu de deixar um amigo em cada um, em cada um, mas não me resta senão ele... Eu pensava fazer muito, eu tinha o direito... Oh! Quanto eu desejava! Mas agora não desejo nada. Não quero desejar nada. A mim mesmo me prometi não desejar nada; eles que procurem a verdade sem mim! Sim, que a natureza é irônica, é! Por que - resumiu ele com veemência - cria ela os melhores seres apenas para se rir deles, depois? Foi obra dela a única criatura reconhecida sobre a terra como perfeição... foi ainda ela quem mostrou essa criatura aos homens, como foi ela quem decretou que essa criatura dissesse tais palavras pelas quais tanto sangue foi derramado, tanto, tanto que, se o fosse de uma só vez, todos os homens se teriam afogado nele. Ah! Bem bom é que eu vá morrer! Talvez também eu viesse a proferir alguma mentira horrível, a natureza me teria feito cair nessa armadilha... Mas eu não corrompi ninguém. Eu queria viver para a felicidade de todos os homens, só para descobrir e proclamar a verdade... Olhando através da janela para as paredes de Meyer, sonhei discursar apenas pelo espaço de um quarto de hora, o bastante para convencer todo o mundo, todo o mundo! E ao menos, uma vez na minha vida, encontrei os senhores, já que não tenho outros; e vejam só: o que resultou de tudo isso? Nada! O que resultou de tudo isso é que também aqui me desprezam! Portanto, não passo de um doido! Portanto, não sou necessário aqui! Portanto, já é tempo que eu me vá! Não consegui deixar atrás de mim nenhuma memória, nenhum eco, nem traço, nenhuma ação; não preguei sequer uma única verdade!... E não riam do camarada louco! Esqueçam! Esqueçam tudo! Esqueçam, por favor, não sejam assim tão cruéis! Sabem, porventura, que se não me tivesse sobre-vindo esta tuberculose eu me mataria?

E ainda parecia estar para dizer muito mais coisas, mas não disse. Recostou-se para trás, na poltrona, cobriu a cara com as mãos e começou a chorar feito criança pequena.

- Que é que vamos fazer com ele, agora?! - exclamava Lizavéta Prokófievna que, se inclinando sobre ele, lhe tomou a mão, apertando-a de encontro ao peito. Ele soluçava convulsivamente.

- Ora vamos, vamos, não chore, que é isso? Vamos, chega! Você é um bom rapaz. Deus lhe perdoará, levando em conta a sua ignorância! Vamos, chega; seja homem! Olhe que depois se envergonhará do que está fazendo!

- Longe, bem longe - disse Ippolít, tentando soerguer a cabeça, tenho um irmão e irmãs, ainda bem pequeninos! Pobres inocentes... Ela os corromperá. A senhora, que é uma santa, é uma criança também como eles..., salve-os, tire-os daquela mulher.. Ela... Oh! Que desgraça... Ajude-os, ajude-os! Deus lhe pagará centuplicadamente. Pelo amor de Deus, pelo amor de Cristo!

- Iván Fiódorovitch, escuta, homem, vamos, responde: que é que vamos fazer com ele agora?! – gritava Lizavéta Prokófievna. exasperada. - Faze-me o favor de romper com esse teu silêncio majestático! Se não te resolves a nada, fica sabendo desde já que passarei a noite aqui nesta casa tratando deste moço. Não me tiranizes, estou farta de despotismos!

Aos brados, nervosa, colérica, Lizavéta Prokófievna esperava üma resposta imediata. Mas em muitos casos, como no exemplo de agora, quem assiste a coisa deste gênero tende a receber as perguntas em silêncio total, com interesse passivo, não querendo assumir responsabilidade nenhuma; e só muito depois de tudo isso passado que exterioriza sua opinião. Entre as pessoas ali presentes em tal circunstância, algumas havia, capazes de continuar sentadas naquela varanda até pela manhã sem proferir uma única palavra. Citemos um exemplo: Varvâra Ardaliónovna. Permanecia sentada bem perto, Ouvia tudo com uma atenção extraordinária, mas nem mesmo nos momentos mais críticos emitira a menor opinião; decerto, tanto esse seu silêncio como essa curiosidade estavam sendo superintendídos por motivos específicos.

Finalmente, o general deu o seu parecer:

- A meu ver, querida, do que mais se precisa aqui, no momento, é de uma enfermeira e não de uma criatura agitada como tu. Sim, uma pessoa sensata, equilibrada, de confiança, que passe a noite tomando conta do doente. O melhor é falarmos com o príncipe. Seja como for... o doente tem de ficar em paz. E amanhã, então. tomaremos providências, voltaremos ao caso.

E nisto Doktorénko, de modo ao mesmo tempo irritado e irritante, se dirigiu ao príncipe:

- Já é meia-noite! Temos de ir embora! Afinal, ele vem conosco ou fica com o senhor?

- Não seria preferível o senhor ficar aqui fazendo companhia a ele? Há lugar de sobra - redargüiu o príncipe.

- Excelência! - Era Keller, que embarafustou inesperadamente até chegar bem perto do General Epantchín.

- Se precisam de um homem de confiança para passar a noite aqui com o rapaz. estou pronto a sacrificar-me por um amigo... É uma alma tão boa! Ah, Excelência, não imagina! Não é de hoje que eu considero este rapazinho como sendo um gênio! Não sou instruído, é claro, vê-se logo, mas que as palavras dele são pérolas, lá isso são, Excelência!

O general afastou-se, com desdém.

Enquanto isso o príncipe raciocinava alto, levado pelas considerações de Lizavéta Prokófievna:

- De fato seria mais conveniente ele ficar aqui, já que tem dificuldade até em andar.

E ela, cada vez mais alvoroçada:

- Mexa-se, príncipe! Ou está dormindo? Olhe, se não o quer aqui, meu caro, eu levo conosco o doente para a minha casa. (Deus do Céu, pois se até o príncipe, também, está que nem se pode suster em pé!) Você também está sentindo alguma coisa?!

Ao entrar, aquela noite, com as filhas em visita ao príncipe, Lizavéta Prokófievna não o encontrara, conforme sua imaginação supunha, às portas da morte. E ele, para a tranqüilizar, aparentara estar muito melhor do que de fato estava; mas, já agora, o incidente com o “filho de Pavlíchtchev”, com a barafunda suscitada por Ippolít, tudo, somado à sua doença ainda recente e a recordações inerentes, trabalhara a sua sensibilidade delicada, pondo-o no limiar da febre. Certa ansiedade amedrontadiça podia ser notada nos seus olhos que não largavam Ippolít, como à espera de mais alguma coisa.

E eis que de repente Ippolít se levantou horrivelmente lívido, com o rosto deformado por uma expressão de vergonha terrível e desesperadora. Tal aspecto estava mais nítido principalmente no olhar que verrumava o grupo com chispas de ódio e pavor, muito embora os lábios se contorcessem em um arreganho abjeto. Circunvagou o olhar sempre com o mesmo fulgor até encontrar Burdóvskii e Doktorénko que se achavam nos degraus da varanda. E correu para eles.

- Ah! Era isto que eu temia! - exclamou o príncipe. - Tinha de se dar!...

Lá dos degraus Ippolít se voltou depressa para ele e, com os traços todos da fisionomia vibrando de raiva demoníaca, o apostrofou:

- Há! “Era isto que eu temia”, hein? Mas “tinha de se dar”, Hein? Pois deixe que lhe diga: se há aqui alguém que eu deteste - vociferou, cuspindo, com um guincho estridente - olhe que a todos aqui eu detesto, a todos, todos - é o senhor, alma jesuítica, visguenta, milionário idiota, filantropo reles! Ao senhor detesto mais do que aos outros e a tudo o mais no mundo! Eu o compreendi logo e o detesto desde muito tempo, quando apenas o conhecia de ouvir falar a seu respeito. Detestava-o já com todo o ódio da minha alma... E tudo isto foi elucubração sua. O senhor me conduziu a esta ruína que aqui está. O senhor arrastou um homem quase morto até à vergonha! O senhor, o senhor, o senhor é o culpado desta minha abjeta covardia! Eu o mataria, se eu tivesse que continuar a viver! Não quero, não preciso da sua benevolência, não preciso de nada, de nada, está ouvindo? De ninguém! O senhor me pegou em delírio, mas agora ouse triunfar, se é capaz! Eu os amaldiçôo, a todos, a todos!

E a essa altura, ficou sufocado.

- Ele se envergonhou de ter chorado! - sussurrou Liébediev ao ouvido de Lizavéta Prokófievna. - Isso “tinha de se dar”; o príncipe - bravos! - viu bem certo através dele.

Lizavéta Prokófievna, porém, nem se dignou olhá-lo de esguelha. Estava de pé, ereta, altiva, a cabeça um pouco para trás, examinando “toda essa ralé” com uma curiosidade desdenhosa. Quando Ippolít acabou, o general encolheu os ombros. Sua mulher olhou-o, medindo-o de alto a baixo, colericamente, como a exigir uma explicação a esse movimento de ombros, mas logo se voltou para o príncipe.

- Temos de lhe agradecer, príncipe, sim, ao senhor, o excêntrico amigo de nossa família, a agradável noite que nos proporcionou.

Suponho que o seu coração se rejubila agora por ter conseguido arrastar-nos até ao âmago de sua loucura... Basta, meu caro amigo. Muito obrigada por nos ter dado uma visão bem clara. afinal, do que o senhor é.

E com modos indignados começou a arranjar o manto, esperando “essas pessoas aí” desaparecerem, para então sair. Um fiacre chegou nesse momento para os levar. Doktorénko mandara, um quarto de hora antes, o filho de Liébediev, um garoto de colégio, ir buscar um carro de praça. Imediatamente, depois da esposa, o General Epantchín conseguiu deitar a palavra; também.

- Sim, com efeito, príncipe! Eu nunca poderia esperar por uma coisa destas, depois de tudo, depois de todas as nossas amistosas relações... E, de mais a mais, Lizavéta Prokófievna...

- Não, não, arre! Como se pode fazer uma coisa destas? - exclamou Adelaída, aborrecida com seus pais. E aproximando-se do príncipe, estendeu-lhe a mão.

Ele somente pôde responder com um sorriso apalermado. E já em seus ouvidos soava uma outra voz bem feminina. Era Agláia:

- Se não expulsar daqui para fora toda essa gente sórdida, eu... eu o odiarei por toda a minha vida!... Por toda a minha vida!

Tinha um ar frenético e se virou antes que ele a pudesse olhar. Todavia, já agora, quem, e o que poderia ele escorraçar, visto os outros terem carregado com o doente e com ele terem partido?

- Afinal? Decides-te ou não, Iván Fiódorovitch? Até que, horas devo eu aturar este resto de espetáculo?

- Está bem, está bem, querida, estou às tuas ordens. Príncipe... E Iván Fiódorovitch estendeu a mão para o príncipe que nem lha pôde apertar, pois o general abalou atrás de Lizavéta Prokófievna que descia os degraus da varanda, furiosa, praguejando.

Aleksándra, Adelaída e o noivo desta despediram-se do príncipe com demonstrações de afeto. O mesmo fez Evguénii Pávlovitch que era o único de bom-humor.

- Desde que vi essa gente, príncipe, previ o desfecho. Apenas lamento que o meu pobre amigo tivesse de passar horas tão ruins - sussurrou, com um sorriso encantador. Agláia foi embora sem dizer adeus.

Mas as peripécias dessa noite não haviam acabado. Lizavéta Prokófievna ainda teria de se defrontar com outra surpresa. Ainda não tinha acabado de descer os degraus que davam da varanda diretamente sobre a estrada que marginava o parque, quando uma carruagem magnífica, puxada quase a galope por dois cavalos brancos, se aproximou da vila.

Dentro da caleça estavam duas senhoras vestídas espaventosamente. A caleça passou, mas a alguns metros da casa os cavalos foram sofreados com estardalhaço. E uma das senhoras, como se houvesse reconhecido repentinamente uma pessoa com quem precisasse falar, se voltou, começando a dizer alto, com uma voz cristalina:

- Evguénii Pávlovitch. És tu, querido?

De onde se achava, o príncipe se sobressaltou e talvez mais alguem. Mas a voz continuava:

- Ah! Como foi bom te haver encontrado, afinal!.., imagina tu que mandei um mensageiro, isto é, dois, dois mensageiros à cidade! E estiveram o dia inteiro à tua procura!

Evguénii Pávlovitch parou no último degrau, como fulminado. Lizavéta Prokófievna também se deteve, mas sem ficar petrificada, pondo-se apenas a encarar a audaciosa personagem com o mesmo desprezo frio e a mesma altivez fremente com que, cinco minutos antes, encarara “aquela ralé ignóbil”. Depois volveu um olhar firme para Evguénii Pávlovitch.

E lá da caleça a voz cristalina continuava:

- As notícias são ótimas, sabes? Não te inquietes mais por causa das promissórias que estavam com o Kupfer. Rogójin comprou-as por trinta mil rublos. Acabei por persuadi-lo. Arranjei-te sossego para mais três meses. Quanto a Biskúp e toda a sua canalha, não te aflijas que daremos um jeito por intermédio de amigos. Vês? Tudo se aplainou. Fica tranqüilo, querido. Até amanhã!...

E a carruagem rodou, logo desaparecendo.

Rubro de indignação, depois lívido de espanto, Evguénií Pávlovitch olhava agora em redor, muito espantado, raciocinando em voz alta: “Quem será essa criatura? Promissórias?... Quais promissórias? Não tenho a menor idéia do que isto signifique...”

Lizavéta Prokófievna continuou a fixá-lo ainda por uns dois minutos mais. Por fim embarafustou estrada adiante, rumo a casa, todos os demais procurando acompanhá-la.

Um minuto depois Evguénii Pávlovitch voltou à varanda, onde ainda se achava o príncipe, e, extremamente agitado, lhe perguntou:

- Príncipe, porventura não saberá o que significa essa.. história?

- Não sei de nada, não entendi coisa nenhuma - respondeu o príncipe, entregue também ele a um estado de angustiosa tensão.

- Deveras? Que significará tudo isso?

- Não sei... Não posso atinar...

Afinal Evguénii Pávlovitch deu de ombros, com uma espécie de riso espasmódico:

- Promissórias? Eu, assinar promissórias? Isso é algum engano! Não é comigo! Dou-lhe a minha palavra de honra. Mas, que é isso? Está se sentindo mal? Está desmaiando, príncipe?

- Eu? Oh! Não: não!... Asseguro-lhe que não...

 

Só três dias depois de tudo isto foi que os Epantchín ficaram de bem outra vez com o príncipe.

Este, como sempre, se considerava muito culpado, aceitando contrito o castigo, muito embora no íntimo estivesse perfeitamente convencido de que Lizavéta Prokófievna não estava propriamente zangada com ele, mas consigo mesma.

Assim, um tão longo período de animosidade o reduziu, no começo do terceiro dia, ao mais lúgubre atarantamento. Outras circunstâncias contribuíam para isso; principalmente uma que, para a sensibilidade do príncipe, foi crescendo de importância durante aquele tríduo insuportável. (Não era de agora que ele se censurava de dois defeitos opostos: a sua excessiva presteza “insensata e despropositada” em acreditar em toda gente e, por outro lado, a sua lúgubre desconfiança de todo o mundo.) Em síntese: já no terceiro dia o tal incidente da dama espalhafatosa que interpelara Evguénii Pávlovitch estava tomando em sua imaginação proporções alarmantes e misteriosas. A essência de tal enigma, sem falar em outros aspectos do caso, residia para ele, Míchkin, nesta mortificante pergunta: “Era ele culpado dessa nova “monstruosidade”, ou se daria que...” Mas não tinha coragem de continuar o pensamento. Quanto às letras “N. F. B.”, não via nisso senão uma inocente jocosidade... uma brincadeira sobremodo infantil. Sim, de fato; tanto que chegaria a ser vergonhoso e até mesmo de certo modo deselegante tentar esquadrinhar isso.

Todavia, no dia seguinte àquela cena noturna tão escandalosa e nociva, da qual se julgava a causa maior, tivera Míchkin o prazer, logo de manhã cedo, de uma visita do Príncipe Chtch... acompanhado de Adelaída. “Tinha vindo principalmente para indagar da sua saúde”. Tratava-se de um passeio matinal. Adelaída chegara até a descobrir no parque uma árvore... Sim, uma árvore maravilhosa!

Velha, copada, de galhos retorcidos, com uma fenda enorme no tronco e já toda coberta com folhas novinhas, muito verdes. Que esplêndido motivo para uma tela! Positivamente não podia Adelaída deixar de pintar aquela árvore. De forma que não se referiam senão a isso, durante a curta visita, que apenas durou uns trinta minutos.

Como sempre, o Príncipe Chtch... se mostrava muito cordial e amável. Interrogou Míchkin sobre coisas antigas referentes ao modo pelo qual haviam travado conhecimento; assim, nada foi dito a propósito dos acontecimentos da véspera.

Mas Adelaída não era criatura para se conter. Confessou com um sorriso que tinham vindo “incógnitos”. Mas a confissão ficou apenas nisto, embora através da palavra “incógnitos” se pudesse depreender que ela e eventualmente o noivo estavam em má cotação perante os pais, ou melhor, perante a mãe. Mas nem Adelaída nem o príncipe Chtch... proferiram uma única palavra a respeito de Agláia ou mesmo do General Epantchín. E saindo, para prosseguir no passeio, tampouco instaram para que Míchkin os acompanhasse. Muito menos insinuaram que os fosse visitar a casa. Verdade é que uma frase muito sugestiva escapou dos lábios de Adelaída.

Conversando sobre uma aquarela que estivera pintando, demonstrou, de repente, vivo desejo de mostrar-lha. “Como é que se fará isso? Espere! Ou mando Kólia trazer-lha ainda hoje, caso ele apareça, ou eu mesma lha trarei amanhã quando sair para dar uma volta com o príncipe, concluiu ela satisfeita por ter saído da dificuldade tão habilmente e até mesmo com ar natural em seu efeito recíproco.

Por fim, quando já se despedia, o Príncipe Chtch... fez um gesto de quem quase se esquecera de uma coisa.

- Ah! Sim! Sabe o senhor por acaso quem seja aquela pessoa que falou alto, ontem, lá da carruagem?

 O Príncipe respondeu logo:

- Foi Nastássia Filíppovna. O senhor não descobriu que era ela? Mas quem a acompanhava, não sei.

- Ah! Sim. Já me disseram também a mesma coisa. Mas que desejaria ela dizer assim tão alto? Tratava-se, para mim, devo confessar, de um mistério... Para mim e para todos.

E, falando, o Príncipe Chtch... mostrava extrema e visível perplexidade.

Simploriamente, Míchkin explicou:

- Referiu-se a umas promissórias de Evguénii Pávlovitch. Comunicou-lhe que, a pedido dela, Rogójin tirou esses títulos das mãos de um agiota. Que ele, Rogójin, esperará, enquanto Evguénii Pávlovitch não as puder saldar.

- Eu escutei, eu escutei, meu caro príncipe. Mas não pode ser!... Evguénii Pávlovitch não pode ter assinado tais letras! Pois se ele é riquíssimo!... É verdade que se descuidou, tempos atrás, e. com efeito, eu próprio o ajudei... Mas, com a fortuna que tem. precisar passar promissórias a um agiota e estar embaraçado por isso!? É impossível! E nem pode ele estar assim em termos íntimos e amistosos com Nastássia Filíppovna. Eis o que é mais misterioso. Evguénii Pávlovitch jura que isso é algum equívoco (e eu confio nele de modo absoluto). Escute uma coisa, caro príncipe: não saberia o senhor de nada? Não ouviu por acaso qualquer referência. Ou boato?

- Não tenho a menor noção a respeito desse mistério e lhe asseguro que estou alheio a tudo!

-  Ora, ora, príncipe, que modo estranho de responder. Quer que eu lhe seja franco? Hoje não estou conhecendo o senhor. Então acha que eu o suporia comprometido em um caso tão escabroso? O príncipe hoje não está muito feliz!

Deu-lhe logo um abraço, chegando até a beijá-lo.

- Escabroso? Como, escabroso?

- Pois não percebe que tal pessoa quis positivamente prejudicar Evguénii Pávlovitch, atribuindo-lhe, aos ouvidos dos que saíam da varanda, fatos de que ele não participou?! Fatos que ele até ignora! - redargüiu o Príncipe Chtch..., com fisionomia severa.

Míchkin ficou confuso, continuando a olhar com firmeza para o seu interlocutor, como à espera de outras palavras em prosseguimento àquela observação. E vendo que tais palavras não vinham, instou, de modo indireto:

-  Tal pessoa apenas se referiu a umas promissórias... Foi só sobre esse assunto de dívidas que tal pessoa quis comunicar qualquer solução...

-  Mas eu lhe pergunto... e o príncipe julgue por si mesmo... que pode haver de comum entre tal... pessoa e Evguénii Pávlovitch? E ainda mais com esse Rogójin metido no caso? Repito-lhe que a fortuna deEvguénii é enorme! Disso estou perfeitamente informado, sem contar que ainda herdará uma outra fortuna.., de um tio! Será que Nastássia Filíppovna não teria querido...

E nisto o Príncipe Chtch... interrompeu a frase, pois evidentemente não lhe convinha conversar com o príncipe a respeito de Nastássía Filíppovna.

- Está bem... Mas, pelo menos ele a conhece... E a dedução, perante o que todos ouvimos aqui da varanda, ontem, disse Liév Nikoláievitch.

- Bom, lá isso pode ser. Creio que sim. Talvez se tenham dado há ums dois ou três anos passados... Ou melhor; Evguénii se dava com Tótskii. Não passou disso. Intimidade nunca houve. De mais a mais ela não estava aqui. Andou muito tempo não sei por onde.

Muita gente que veraneia em Pávlovsk nem sabe da presença dela aqui.

Eu, por exemplo, foi apenas há três dias, se tanto, que reparei nessa carruagem.

- Que carruagem esplêndida! - disse Adelaída. Sim realmente é uma caleça muito bonita.

E os dois noivos se despediram de maneira amistosa; até mesmo fraternal, do Príncipe Liév Nikoláievitch.

Mas o nosso herói emprestou a essa visita uma importância máxima. Desde a noite anterior que ele suspeitava de uma série de coisas cujo prelúdio vinha de data precedente e que atingia agora o ápice com essa visita ao encontro das suas apreensões. Percebia que o Príncipe Chtch..., ao querer interpretar o incidente, andara quase beirando a verdade determinante do mesmo, percebendo até que reinava uma intriga. (“Estou em jurar que ele percebeu tudo... mas como não ousa falar às claras, me comunicou sua desconfiança alinhavando uma interpretação vaga.”) Uma coisa era mais do que certa: os dois tinham vindo vê-lo na esperança de colher qualquer informação esclarecedora. (Pelo menos o Príncipe Chtch... viera com esse intuito.) Portanto, o consideravam incluído nessa tal intriga.

Ora, se de fato Nastássia Filíppovna urdira tal estratagema e o efetivara, a dedução a tirar era esta: ela agira assim movida por um terrível propósito. Qual? Um propósito especialíssimo! “E agora como se há de fazer com que essa mulher não prossiga nisso? Não há quem seja capaz de a demover de uma resolução quando ela tem um desígneo em mente!” E o príncipe sabia disso por experiência própria.

“Ela é louca! Louca!”

Levara toda aquela manhã emaranhado no exame de muitos outros incidentes inexplicáveis e simultâneos, e demandando, todos eles uma imediata solução. O príncipe não podia deixar de se sentir acabrunhadíssimo. Sua atenção foi distraída um pouco pela vinda de Vera Liébediev que apareceu com Liúbotchka para visitá-lo e que, muito risonha, lhe contou uma história muito comprida. Não tardou que entrasse também a outra irmãzinha, sempre de boca aberta, a olhar muito pasmada para o príncipe; e daí a pouco surgia o filho de Liébediev, que já freqüentava a escola! Este então informou que “a estrela chamada Absinto”, no Apocalipse, “e que cai sobre os cursos das águas” era, segundo a interpretação do pai. a rede de estradas de ferro espalhadas pela Europa. O príncipe não acreditou que Liébediev interpretasse assim esse trecho de versículo. tendo, em pensamento, resolvido perguntar isso depois, na primeira oportunidade.

Por intermédio de Vera veio a saber que Keller se encafuara placidamente na casa deles. Instalara-se no pavilhão, desde a véspera. e não dava o menor sinal de estar com vontade de se ir embora. Principalmente depois que arranjou amizade com o General ÍvoLguin. estando ambos inseparáveis. Como motivo dessa resolução dava o seu desejo de “se instruir a fundo”.

À proporção que via e escutava os filhos de Liébediev, o príncipe cada vez simpatizava mais com eles.

Kólia não apareceu porque logo cedinho fora a Petersburgo. O próprio Liébediev também saíra ao clarear do dia, para tratar de certos negócios seus. Mas o príncipe esperava com impaciência a visita de Gavríl Ardaliónovitch que devia vir vê-lo nesse dia, sem falta. De fato este chegou às seis da tarde, depois do jantar. O príncipe percebeu, ao primeiro relance, que se algum homem havia que devesse saber “as novidades”, era este.

E como não, se na verdade dispunha de gente como a sua irmã e o cunhado, fontes esplêndidas de informações?

As relações do príncipe com Gavril Ardaliónovitch eram especiais. Encarregara-o, por exemplo, de deslindar o caso de Burdóvslcii, recomendando-lhe especial interesse. Não obstante a confiança demonstrada em tal circunstância, perdurava entre ambos. devido a conjunturas anteriores, certa cerimônia, havendo assuntos sobre os quais não se abalançavam a trocar impressões. O príncipe parecia notar em Gánia, às vezes, o desejo de uma sinceridade maior e mais amistosa. Agora, por exemplo, mal acabou de entrar, todo o seu feitio dava ensejo a que Míchkin rompesse de vez com a camada de gelo que ainda os bloqueava. Mas Gavríl Ardaliónovitch estava com pressa, porque sua irmã, com quem tinha um assunto urgente a tratar, o estava esperando com as crianças de Liébediev lá no pavilhão.

Por isso a visita de Gánia ao príncipe não durou mais do que vinte minutos. E se aquele contava com uma série completa de perguntas impacientes, confissões impulsivas e desabafos íntimos, se enganou tremendamente, pois o príncipe todo esse tempo permaneceu como que distraído, com o pensamento longe.

Absolutamente não se deram as tais perguntas esperadas... Muito menos ainda  a pergunta principal que era lógico esperar. Então Gánia resolveu adotar a maior cautela nas próprias palavras. E falou sem parar, enchendo bem aqueles vinte minutos, mantendo uma conversa viva, rápida, com muita efusão. Não tocou, absolutamente, no ponto principal.

Disse, entre outras coisas, que Nastássia Filíppovna estava em Pávlovsk havia somente uns quatro dias, mas que já atraía as atenções gerais. Que se instalara com Dária Aleksiéievna em uma pequena casa desgraciosa na Rua dos Marinheiros, mas que a sua carruagem era talvez a mais luxuosa de Pávlovsk. Que a não largava uma chusma de seguidores, velhos e moços, sua carruagem sendo acompanhada muitas vezes por homens a cavalo. Que ela, Nastássia Filíppovna, continuava muito caprichosa na escolha de amigos, recebendo somente aqueles com os quais simpatizava.

Que ainda assim se estava formando um verdadeiro regimento à sua volta, dispondo até de campeões caso precisasse. Que certo senhor que morava em uma vila de veraneio já brigara com uma senhorita de quem era formalmente noivo. E que um general escorraçara o filho, pelo mesmo motivo. Que ela aparecia constantemente pelas ruas guiando a parelha, e que a acompanhava uma jovem encantadora de uns dezesseis anos no máximo, parenta longe de Dária Aleksiéievna. Que essa jovem cantava muito bem, de maneira que acasa, de noite, atraía as atenções gerais. Que, no entanto, Nastássia Filíppovna se comportava com extrema conveniência, vestindo-se sem alarde e com extraordinário bom gosto, a ponto de todas as damas invejarem sua elegância, sua beleza e sua carruagem.

- O excêntrico incidente de ontem - aventurou Gánia - foi decerto premeditado. Ninguém podia esperar por uma coisa dessas, dada a compostura que até então manteve: para se descobrir nela defeito ou falta, só procurando muito ou inventando. Mas não deve haver gente tão baixa assim para se encarregar disso - concluiu ele, certo de que o príncipe lhe iria perguntar por que chamara ao incidente da véspera de “premeditado” e por que não haveria gente tão baixa assim para agir contra ela.

Gánia espraiou-se quanto a Evguénii Pávlovitch sem que nada lhe fosse perguntado a tal respeito; e o mais estranho é que entrou em tal assunto sem o menor pretexto. Na opinião dele, Evguénii Pávlovitch antes não conhecia Nastássia Filíppovna e, mesmo agora a devia conhecer muito por alto, pois lhe tinha sido apresentado eventualmente havia uns quatro dias apenas ao sair a passeio, não tendo ido, provavelmente, vez alguma à casa dela. Quanto às promissórias, havia algum fundamento; Gánia nem tinha dúvida. A fortuna de Evguénii Pávlovitch era de fato vultosa, mas certos negócios ligados à sua propriedade estavam realmente confusos. E ao chegar a este ponto deveras interessante, Gánia parou. Assim pois, relativamente ao escândalo da véspera feito por Nastássia Filíppovna, não fez ele nenhum outro comentário além do que acima foi exposto.

Finalmente apareceu Varvára Ardaliónovna, procurando Gánia.

Ficou só um minuto; participou (sem ter sido perguntada) que Evguénii Pávlovitch fora, aquele dia, a Petersburgo e talvez ficasse lá até o dia seguinte. Que Ptítsin, seu marido, também estava em Petersburgo, provavelmente por causa dos negócios de Evguénii Pávlovitch; sabia disso muito por alto. E ao se ir acrescentou que Lizavéta Prokófievna estivera todo o dia com o diabo no corpo; e que, o que era pior, Agláia brigara com a família inteira, não apenas com o pai e a mãe, mas até com as irmãs, “o que constituía um péssimo sinal”.

Depois de lhe terem dado, assim meramente de passagem, este último retalho de notícias (que era de extrema importância para o príncipe) irmão e irmã lá se foram. E Gánia não pronunciou uma só palavra a respeito do caso do “filho de Pavlíchtchev”. E assim agira, decerto, por falsa delicadeza, para poupar os sentimentos do príncipe. Ainda assim, o príncipe lhe agradeceu, mais uma vez, a maneira cuidadosa pela qual se conduzira no caso, ficando contentíssimo de se ver sozinho, afinal. Deixou a varanda, atravessou a estrada e entrou parque adentro. Precisava pensar muito antes de decidir certo passo. E nem tal “passo” era dos que se possam dar a esmo, e sim dos que só se devem dar depois de madura deliberação.

Veio-lhe então uma terrível vontade de deixar tudo e de voltar para o lugar de onde tinha vindo: ir indo, até chegar a qualquer região remota; ir, imediatamente, sem sequer dizer adeus a quem quer que fosse. Um pressentimento lhe veio de que se permanecesse ali, poucos dias que fosse, seria arrastado a esse mundo, irrevogavelmente, e que estragaria a sua vida dentro disso, para sempre. Mas nem dez minutos duraram tais considerações. Logo caiu em si e verificou que lhe seria “impossível” ir embora, que isso seria quase covardia. Tantas e tais eram as dificuldades que se lhe antolhavam quanto lhe cabia o dever de solvê-las ou, no mínimo, de fazer tudo quanto pudesse para solvê-las. Absorvido em tais pensamentos regressou a casa depois de um passeio de menos de um quarto de hora.

E nesse momento se sentia profundamente infeliz.

Liébediev ainda não regressara; por isso foi que lá pela noitinha Keller conseguiu irromper diante do príncipe entornando confidências e confissões, apesar de não estar bêbado. Declarou francamente que estava ali, diante de Míchkin, para lhe contar toda a sua vida e que fora para fazer isso que ficara em Pávlovsk. Não houve a menor possibilidade de o príncipe se livrar dele. Nada o induziria a ir embora. Keller ali estava preparado para um discurso interminável, engrolando incoerências. Mas, sem mais aquela, quase logo depois das primeiras palavras, passou logo do preâmbulo à conclusão, anunciando que “tinha perdido a tal ponto qualquer traço de moralidade (e apenas por falta de crença no Todo-Poderoso!) que se tornara até gatuno”.

- Pode o senhor imaginar uma coisa destas?

- Escute, Keller. Se eu estivesse em seu lugar só haveria de confessar isso em caso de muita necessidade – começou o príncipe.

- Mas talvez você faça coisas assim contra si mesmo, de propósito!

- Ao senhor, só, só ao senhor, e isso mesmo para promover o  meu aperfeiçoamento. A mais ninguém. Morrerei levando o meu segredo para a tumba. Mas, príncipe, se soubesse, se pudesse vir a ver quão difícil é hoje em dia se arranjar dinheiro! Como há de uma pessoa arranjá-lo, permita que lhe pergunte? A resposta é a mesma: “Traga ouro e diamantes e lhe daremos alguma coisa por eles!” Aí está por que eu não o arranjo. Pode o senhor imaginar uma coisa destas? Perdi o meu caráter, acabei por perdê-lo de tanto esperar, esperar. “Pode-me dar alguma coisa por esmeraldas?”, perguntei então. “Claro, por esmeraldas também”, disse o homenzinho. “Bravos, então está bem”, disse eu! E, pondo o meu chapéu, raspei-me, apostrofando-os: “O que vocês são, são uns canalhas. Danem-se! Sim, por Júpiter!”

- E você tinha esmeraldas, mesmo?

- Lérias! Ó príncipe, que idéia doce, inocente, pastoral, digo até mesmo cândida, que o senhor tem da vida!

O príncipe acabou sentindo não propriamente pena desse homem, mas indisposição por causa dele. Ocorreu-lhe ajudar de qualquer forma essa criatura, mediante alguma boa influência. Não, no caso, influência sua, pois não se considerou capaz de poder exercê-la, por muitos motivos; não que deixasse de confiar em si mesmo, ruas devido ao seu feitio sui generis de encarar as coisas. E assim o foi aturando, uma vez vencido o desejo de se ver livre dele. Keller, com extraordinária presteza, confessou ações sobre as quais pareceria inconcebível que alguém quisesse conversar. A cada nova história asseverava que positivamente estava arrependido e “cheio de lágrimas”, mas, falando, via-se que estava orgulhoso de as ter cometido. E se tornou tão absurdo que, por fim, tanto ele como o príncipe se riam a perder.

- A grande coisa é que você tem uma espécie de confiança infantil, e uma extraordinária franqueza – disse no fim, o príncipe.

- E, quer saber, isso faz com que muita, muita coisa lhe seja perdoada!

- Eu tenho alma nobre, nobre e cavalheiresca! - confirmou Keller enternecido. - Mas quer saber de uma coisa, príncipe, tudo isso não passa de sonho, ou - como direi? - de bravata; e sempre dá em nada. E por que será? Não compreendo!

- Não descoroçoe! Agora se pode dizer, com certeza, que você me fez um relato total de tudo. Parece-me que até será impossível acrescentar qualquer coisinha mais ao que você me disse, não é?

- Impossível? - exclamou Keller, quase com ar aflito. - Oh, príncipe, como o senhor interpreta, de uma maneira completa, à la Suisse, a natureza humana!

- Acha então possível acrescentar mais alguma coisa? - indagou o príncipe, com um espanto acanhado. - Ora, diga lá, Keller, que é que deseja de mim e por que foi que veio a mim com essa confissão.

- Do senhor? O que desejo? Em primeiro lugar, causa prazer assistir à sua simplicidade; dá gosto sentar e ficar ouvindo o senhor. A gente vê logo que tem diante de si uma pessoa virtuosa, nem há dúvida; e, em segundo lugar, em segundo lugar... - e ficou confuso.

-  Quem sabe se você não queria me pedir dinheiro emprestado? - foi-lhe ao encontro do pensamento o príncipe com ar grave e singelo, um pouco timidamente, até.

Keller não pôde deixar de ficar sobressaltado. Assestou imediatamente, cheio de admiração, o olhar no rosto do príncipe e arrumou com o punho fechado, violentamente, sobre a mesa.

- Ora aí está como se derruba um sujeito, de um golpe só! Palavra de honra, príncipe, que simplicidade, que inocência, coisa nunca vista nem mesmo na Idade do Ouro! Como de uma vez só o senhor traspassa o âmago de um sujeito, como uma flecha, com sua tão profunda observação psicológica! Mas, com licença, Alteza! Isto requer, está a pedir uma explicação, pois estou traspassado... Naturalmente, em todo este meu ímpeto,  o meu intento era pedir-lhe dinheiro emprestado. Mas o senhor me perguntou como se não achasse repreensível, como se fosse uma coisa mais que lógica.

- Sim... de você só podia ser mesmo assim.

- E isso não o aborrece?

- Não!... Por quê?

- Escute, príncipe. Tenho estado por aqui, desde ontem; primeiro, uma deferência toda especial para com o arcebispo francês Bourdaloeu - estive saboreando-o em casa de Liébediev até às três da madrugada; e em segundo lugar, e esse é que é o principal (e agora solenemente lhe faço o juramento de que estou a dizer a santa verdade!) fui ficando porque eu desejava, em lhe fazendo uma completa e sincera confissão - como direi? - promover o meu aperfeiçoamento. E pensando nisso adormeci, banhado em lágrimas, lá pelas quatro da madrugada. Acreditará o senhor na palavra de homem de honra, se eu disser que logo que caí no sono, sinceramente cheio por dentro, e - como direi? - por fora, de lágrimas (sim, eu estava soluçando deveras, lá disso me recordo eu!), um pensamento infernal me sobreveio? “E por que, uma vez tudo feito e dito, não lhe pedir dinheiro emprestado, depois da minha confissão?” E o caso foi que preparei a minha confissão - como direi? - assim à guisa de um fricassé, tendo lágrimas como molho, para calçar o caminho com aquelas lágrimas de modo a abrandá-lo e sacar-lhe cento e cinqüenta rublos. Não acha o senhor que isso foi vil?

- O mais provável é que isso não se tenha dado assim; o mais certo deve ter sido que ambas as coisas vieram ao mesmo tempo. Os dois pensamentos lhe acudiram juntos.

Aliás, isso acontece muitas vezes. Comigo se dá isso constantemente. Parece-me, porém, que seja um mau sinal. E quer saber de uma outra coisa, Keller? Não me farto de me repreender por isso. Você deve ter estado a falar como se fosse eu, ainda agora. Às vezes chego a imaginar que todo o mundo seja assim - continuou o príncipe com ar sério e de profundo interesse - tanto que eu estava começando a desculpar-me, pois é extremamente difícil Lutar contra esses pensamentos duplos. Eu tenho tentado. Só Deus sabe como eles nascem e surgem no espírito. Mas você chama a isso simplesmente vilania! Agora comecei a ter medo desses pensamentos, outra vez. Seja lá como for, não sou seu juiz. Mas, a meu ver, não se pode chamar isso de vilania, apenas. Que acha você? Você estava agindo fraudulenta-mente para obter o meu dinheiro com Lágrimas; mas, ao mesmo tempo, você jura que também havia um outro motivo para a sua confissão. Logo havia tanto um motivo honroso, como um outro, mercenário. Quanto ao dinheiro, você precisa dele para viver dissolutamente, não é? Por conseguinte, depois de uma tal confissão isso naturalmente é fraqueza. É afinal como há de você desistir de viver dissolutamente, de uma hora para outra? É impossível, eu sei. Que fazer, então? O melhor é deixar isso com a sua consciência. Que acha?

E o príncipe olhou Keller com grande interesse. O problema das idéias duplas tinha evidentemente ocupado o seu espírito por algum tempo.

- Esplêndido! Palavra que não percebo por que. afinal de contas, chamam o senhor de idiota! – exclamou Keller.

O príncipe corou um pouco.

- Nem o pregador Bourdaloue teria poupado um homem; mas o senhor poupou um, julgando-me de modo humano! Para me punir, pois, e para lhe mostrar quanto isso me toca, não tomarei cento e cinqüenta rublos. Dê-me só vinte e cinco, que serão suficientes! É tudo quanto desejo, por uns quinze dias. Não voltarei por causa de dinheiro, senão daqui a uns quinze dias. Minha intenção era dar um presentinho a Agáchka, mas ela não o merece. Oh! Que Deus o abençoe, príncipe!

Liébediev entrava, tendo acabado de chegar da cidade. E reparando que Keller estava com uma nota de vinte e cinco rublos na mão, amarrou a cara. Mas Keller, uma vez provido de fundos, ficou com pressa de se ir embora. Imediatamente se pôs Liébediev a falar mal dele.

- Você está sendo injusto, ele realmente está arrependido - observou o príncipe, depois.

- De que lhe adianta o arrependimento? É a mesma coisa que eu, ontem, a dizer: “Sou abjeto, sou abjeto!”

O senhor bem sabe que isso não passa de palavras.

- Então, no seu caso também, foram apenas palavras? Pois eu pensava que...

- Bem, ao senhor, mas ao senhor só, contarei a verdade, porque o príncipe vê através das pessoas. Palavras e ações, mentiras e verdades estão em mim de tal forma misturadas que no fundo sou sincero. A verdade e a ação consistem, em mim, em uma contrição sincera, creia ou não o senhor

- juro que é assim - é a palavra e a mentira no pensamento infernal (e sempre presente) de como enganar alguém, de como, através de lágrimas, fingir arrependimento. Eis o que se dá. por Deus! Eu a outro homem não diria isto, pois ou se riria, ou me vingaria. Mas o senhor, príncipe, o senhor julga humanamente.

- Ora, muito bem! Keller também me disse isso ainda agora - exclamou o príncipe - e vocês ambos parecem orgulhosos disso! Vocês, positivamente, me surpreendem. Mas ele, ao menos, é mais sincero do que você; transformou isso em método. Bem, chega. Não franza a cara, Liébediev, e tire essa mão do coração. E que é que você me quer falar? Você não entrou aqui, à toa... - Liébediev careteou e deu uns pulinhos. O príncipe declarou:

- Estive esperando por você o dia inteiro, para lhe perguntar uma coisa. Diga-me a verdade certa, uma vez na vida. Você tem alguma coisa com aquela carruagem que parou aqui, ontem, ou não tem?

Liébediev tornou a fazer uma careta, a dar uns risinhos, a esfregar as mãos; deu até mesmo um espirro. E não havia jeito de falar.

- Vejo que sim.

Mas indiretamente, indiretamente! que estou lhe dizendo é a santa verdade! A única parte que tomei naquilo foi fazer uma certa pessoa saber a tempo exato que eu tinha determinado número de pessoas em minha casa e que “umas quantas” pessoas estavam presentes.

- Eu sabia que você tinha mandado seu filho, lá. Ele acabou de me dizer não há muito. Mas que complicação é essa? - perguntou o príncipe impaciente.

-  A intriga não é minha. Minha, não - protestou Liébediev, gesticulando. - Há outros, outros, metidos nisso; e se trata mais de uma fantasia do que de uma intriga.

-  Mas que significa isso? Pelo amor de Deus, explique-se. Será possível que você não compreenda que isso me diz respeito? Veja bem, estão difamando o caráter de Evguénii Pávlovitch.

- Príncipe, ilustríssimo príncipe! - recomeçou Liébediev, saltitando. - O senhor não consentiu nunca que eu dissesse a verdade toda. O senhor bem sabe disso; eu tentei mais de uma vez. O senhor jamais consentiu que eu prosseguisse...

O príncipe ficou parado, pensando um pouco.

- Está bem, diga então a verdade - ordenou com certo esforço, depois de uma luta severa consigo mesmo.

E Liébediev prontamente começou:

- Agláia Ivánovna...

- Cale-se, cale-se! - gritou o príncipe, furioso, ficando logo vermelho de indignação e de vergonha, ao mesmo tempo. - Isso éimpossível, é absurdo! Você inventou tudo isso; ou você mesmo ou algum outro maluco como você. E nunca mais me torne a falar nisso.

Tarde da noite, lá pelas dez horas, Kólia chegou com uma verdadeira mochila de novidades. Tais novidades eram de duas ordens: de Petersburgo e de Pávlovsk. Apressadamente relatou os principais itens das novidades de Petersburgo (principalmente as referentes a Ippolít e à cena da véspera) passando logo para as novidades de Pávlovsk, deixando claro que depois voltaria outra vez às outras. Regressara de Petersburgo havia três horas, e antes de vir falar com Míchkin estivera em casa dos Epantchín. “Está lá uma trapalhada!” Sem dúvida a base de tudo era o caso da carruagem; mas alguma coisa havia acontecido - alguma coisa que nem ele nem o príncipe sabia o que era. “Não espionei, nem fiz indagações com ninguém, naturalmente. Receberam-me, todavia, muito bem, melhor do que eu esperava: mas, quanto ao senhor, príncipe, nem uma palavra.”

O fato mais importante e de maior interesse era que Agláia tinha brigado com todo o mundo lá, a respeito de Gánia. Não chegara a saber minúcias da briga, a não ser que fora por causa de Gánia (imagine só); que fora uma briga séria; logo, devia haver alguma coisa importante. O general aparecera atrasado e carrancudo; chegara com Evguénii Pávlovitch, que fora excelentemente acolhido e que estivera todo o tempo maravilhosamente alegre e encantador.

Mas a notícia mais impressionante foi a de que Lizavéta Prokófievna muito de mansinho mandara chamar Varvára Ardaliónovna que estava noutro cômodo, sentada com as moças e, de uma vez para sempre, a pusera para fora de casa, embora de maneira muito polida. “Foi a própria Vária quem me contou”. Mas que, quando Vária saíra dos cômodos da Sra. Epantchiná e se despedira das moças, estas ignoravam a cena da proibição definitiva e que se estivesse despedindo delas pela última vez.

- Mas Varvára Ardaliónovna esteve aqui às sete horas - disse o príncipe, atônito.

-  Foi posta para fora às oito horas, ou pouco antes. Estou com muita pena de Vária... E de Gánia também.

Sem dúvida que os dois estavam sempre às voltas com umas intrigazinhas; não podiam passar sem isso. Nunca pude descobrir que é que ambos estavam chocando, e nem quero saber. Mas lhe asseguro, meu caro e bondoso príncipe, que Gánia não tem mau coração. Sob muitos pontos de vista é uma alma perdida, não resta dúvida, mas tem pontos, por outro lado, que merecem ser estimados; e nunca me perdoarei por o não ter compreendido antes... E agora fico sem saber se devo ir lá. ou não, depois do que se passou com Vária. Verdade é que desde o começo os freqüentei por mim só, separadamente; mas, ainda assim. devo agora refletir sobre minha conduta.

- Você não precisa se incomodar por causa de seu irmão - comentou o príncipe.

- Se as coisas chegaram a isto, é que a Sra. Epantchiná julgou seu irmão perigoso, o que significa que certas esperanças dele estavam sendo encorajadas de novo.

- Como? Que esperanças? - disse Kólia espantado. - Certamente não vai agora o senhor pensar que Agláia... Isto é impossível.

O príncipe ficou calado.

- O senhor é terrivelmente cético, príncipe - acrescentou Kólia, dois minutos depois.

- Tenho reparado que de algum tempo para cá o senhor vem ficando um grande cético; deu em não acreditar em nada e está sempre a imaginar coisas!... Será que usei a palavra “cético” corretamente, neste caso?

- Creio que sim, embora não tenha muita certeza eu próprio.

- Mas, pondo de lado a palavra “cético”, encontrei uma outra explicação! - exclamou Kólia. O senhor não é cético, o que o senhor é, é ciumento. O senhor está demoniacamente enciumado de Gánia, por causa de certa elegante senhorita!

Dizendo isso, Kólia se levantou e começou a rir como talvez nunca tivesse rido antes. Estava radiante com a idéia de que o príncipe estivesse com ciúme de Agláia; mas parou logo que percebeu que o príncipe se tinha molestado de fato. Depois disso ficaram falando seriamente, com ânimo, durante uma hora, ou quase uma hora e meia.

No dia seguinte teve Míchkin que passar a manhã toda em Petersburgo, a negócio urgente. Já era tarde, seriam cinco horas, quando, de volta para Pávlovsk, encontrou o General Epantchín na estação da estrada de ferro. O general pegou-o precipitadamente pelo braço, encarando-o como que preocupado, e arrastou o príncipe para um compartimento da primeira classe onde pudessem viajar juntos e sós. Ardia de impaciência para discutir alguma coisa importante.

- Para começar, caro príncipe, não esteja zangado comigo, e se da minha parte alguma coisa houve - esqueça-a. Eu devia ter ido vê-lo ontem, mas não fui porque temi que Lizavéta Prokófievna interpretasse isso a seu modo... A minha casa está simplesmente um inferno... Uma inescrutável esfinge se instalou lá; estou zonzo e em tudo isso não ligo pé com cabeça. Quanto a você, a meu ver, tem menos culpa do que qualquer de nós; embora, naturalmente, muita coisa se tenha dado por sua causa. Quer saber de uma coisa, príncipe? É bonito ser filantropo, mas com moderação. Eu gosto da caridade, dos corações bondosos, naturalmente, e respeito Lizavéta Prokófievna, mas...

E neste estilo prosseguiu o general durante muito tempo; as suas palavras se foram tornando estranhamente incoerentes. Via-se que ele estava extremamente transtornado e que se debatia contra alguma coisa localizada muito além da sua compreensão.

- Tenho plena certeza de que o senhor nada tem com isso - conseguiu ele enfim se tornar mais claro -, mas eu lhe peço, como um amigo, que não nos visite por um certo tempo, até que os ventos mudem. E quanto a Evguénii Pávlovitch - continuou com extraordinária veemência - trata-se tudo de uma insensata calúnia, a mais difamante das maledicências! Trata-se de enredo, de intriga, de uma tentativa de destruir tudo para que briguemos com ele. E deixe que lhe diga baixo, no ouvido, que ainda não houve troca de uma só palavra entre nós e Evguénii Pávlovitch. Está compreendendo? Não existe compromisso de espécie alguma! Mas essa palavra deve ser dita e em breve, aliás. Trata-se, pois, de uma tentativa de estragar o rapaz! Mas com que fim? Para quê? Não atino! Ela é uma mulher espetacular, uma mulher excêntrica. Ando com tanto medo dela que nem tenho podido dormir. E que carruagem! - com cavalos brancos, realmente muito chique! Sim, é justamente o que em francês se chama chic! Quem lhe terá dado tudo isso? Eu me enganei, fiz mal, por Júpiter, anteontem, pois cheguei a pensar que fosse Evguénii Pávlovitch. Mas já verifiquei que não pode ser absolutamente. E se assim não é, qual o fim dela se intrometer? Aí é que está o enigma, aí é que está o mistério! Para guardar Evguénii Pávlovitch para si mesma? Mas lhe repito e estou pronto a jurar que ele nem a conhece e que aquele negócio de promissórias é pura invenção! E a insolência dela em dizer alto, daquela maneira: “Querido”, lá do outro lado da rua? Invencionice nefanda! Claro que devemos desprezar tudo isso e tratar Evguénii Pávlovitch com redobrado respeito. Foi o que eu já disse a Lizavéta Prokófievna. Mas deixe que lhe externe agora a minha opinião particular. Estou mais que convencido de que ela está fazendo tudo isso só para se vingar de mim pessoalmente, por causa do que houve, lembra-se? Apesar de em verdade eu não lhe ter feito nada. Mudo de cor, só em pensar naquilo. Não foi à toa que reapareceu por aqui. Pensei que essa mulher tinha ido embora de vez! Onde diabo se escondeu esse tal Rogójin? O senhor não saberá, por acaso? E eu que pensava que ela já era a Sra. Rogójina desde muito tempo! O homem estava de fato completamente desnorteado. Falou só ele, a viagem inteira, durante aquela hora toda do percurso; fazia perguntas a que ele mesmo respondia; tocava, segurava, largava a mão do príncipe, e de forma que este ficou mais do que convencido de que o general não desconfiava dele. E isso era o que importava ao príncipe. E para conclusão de tudo, acabou o general por lhe contar o que havia sobre o tio de Evguénii Pávlovitch que era o diretor de certo departamento em Petersburgo!:

“Em uma situação importantíssima, com setenta anos, um viveur, um gourmand, um velho aristocrata com hábitos... Ah! Ah! Disseram-me que lhe tinham falado de Nastássia Filíppovna e que andou atrás dela. Fui vê-lo não há muito tempo. Não me pôde receber, não estava passando bem. Mas é um velho muito rico, riquíssimo, um homem de importância e... praza a Deus, ainda há de florescer por muitos anos, mas Evguénii Pávlovitch acabará entrando na posse de todo esse dinheiro. Claro, claro... Ainda assim, tenho algum receio, certo receio muito vago... Há qualquer coisa no ar, um pressentimento que esvoaça como um corvo. Tenho certo receio, certo receio!...” 

E foi somente no terceiro dia, conforme já dissemos, que se deu a formal reconciliação dos Epantchín com Liév Nikoláievitch.

 

Às sete horas da noite o príncipe se preparava para ir ao parque quando, sem ser esperada, Lizavéta Prokófievna entrou sozinha pela varanda adentro.

- Não vá pensar - começou ela -, e lhe digo isso antes de mais nada, que lhe vim pedir perdão. Era só o que faltava. A culpa foi inteiramente sua.

O príncipe não respondeu uma única palavra.

- Foi, ou não foi?

- Tanto minha, como sua, muito embora nem eu nem a senhora tenhamos do que ser censurados. Amolei-me trasanteontem, mas hoje cheguei à conclusão de que não tinha razão nenhuma para isso.

- Então é o que tem a dizer? Muito bem. Escute, mas escute sentado pois não pretendo ficar em pé.

Sentaram-se ambos.

- Em segundo lugar, nem sequer uma só palavra a respeito dos tais rapazes. Sentei-me apenas por uns dez minutos. Vim para colher informações. (E calculo já quanta coisa você não está imaginando.) E se você se referir, mesmo por alto, aos rapazes daquela noite, àqueles insolentes, eu me levanto, vou embora e rompo definitivamente com você.

- Perfeitamente - respondeu o príncipe.

- Permita que lhe pergunte uma coisa. Mandou você, há uns dois meses, ou mesmo dois meses e meio, aí pela Páscoa. uma carta Agláia?

- Escrevi.

- Com que fim? Que dizia essa carta? Mostre-me essa carta! Os olhos de Lizavéta Prokófievna despediam chispas, toda ela se agitava com impaciência.

- Não está comigo. - O príncipe ficou zonzo e horrivelmente desapontado.

- Se ela não a pôs fora, está com ela, com Agláia Ivánovna.

- Não finja! Que é que você escreveu?

- Não estou fingindo, não tenho de que ter medo. E não vejo razão alguma para não poder lhe ter escrito...

- Não dê com a língua nos dentes. Tem muito tempo para falar depois. Que dizia a carta? Por que é que você está ficando vermelho?

O príncipe pensou um pouco.

- Não estou compreendendo o que a senhora quer; apenas percebo que esse caso da carta a aborreceu. Mas deve concordar que eu posso recusar-me a responder a essa pergunta. Para lhe mostrar, porém, que não é a carta que me está embaraçando e que não me arrependo de a ter escrito e que absolutamente não estou vermelho por causa dela - Míchkin ficou mais vermelho ainda, no mínimo o dobro do que estava - vou lhe repetir a carta, pois acho que a sei de cor.

Dito isso, o príncipe repetiu a carta, quase palavra por palavra, conforme a escrevera.

- Mas que amontoado de asneiras? Qual a significação de todos esses disparates? Explique-me, já que os escreveu - perguntou Lizavéta Prokófievna, de um modo agudo, depois de ouvir com uma atenção extraordinária.

- Eu próprio não poderia explicar bem. Só sei que escrevi com sinceridade. Naquela ocasião eu tive momentos de intensa vivacidade e invulgares esperanças.

- Esperanças? Quais?

- É difícil explicar. Mas não é o que a senhora está pensando aí, talvez. Esperanças... Isto é... em uma palavra, esperanças quanto ao futuro! E alegria por não ser, talvez, um estranho em uma certa casa... Veio-me, de repente, um enternecimento pelas coisas do neu país. Certa manhã de sol peguei da pena e escrevi. Por que a ela, não sei. Quanta vez a gente espera contar com um amigo ao seu lado, compreende? E a impressão é que eu precisava de um amigo - acrescentou o príncipe, depois de uma pausa.

- Você está apaixonado?

- Não. Eu... eu escrevi como se escrevesse a uma irmã.  De fato, cheguei até a assinar “Seu irmão

- Sim. Você sabia por quê. Estou compreendendo.

- É-me muito desagradável. Lizavéta Prokófievna, responder a essas perguntas.

- Eu sei que lhe é desagradável, mas que me importa que lhe seja  desagradável? Escute, conte-me a verdade. Como se estivesse diante de Deus. Você me está mentindo, ou não?

- Não estou, não.

- Você está falando a verdade, ao dizer que não está apaixonado?

- Acho que é a pura verdade.

- Palavra de honra? Então você “acha”, hein? Foi o garoto quem levou a carta?

- Pedi a Nikolái Ardaliónovitch...

- O garoto! O garoto! - E Lizavéta Prokófievna o interrompeu violentamente.

- Não conheço nenhum Nikolái Ardaliónovitch. Só conheço o garoto.

- Estou dizendo Nikolái Ardaliónovitch.

- O garoto, digo-lhe eu.

- Garoto, não. Nikolái Ardaliónovitch - respondeu o príncipe, teimando firmemente, embora de maneira delicada.

- Oh! Muito bem, meu caro, muito bem! Conservarei essa queixa contra você.

Por um minuto dominou sua emoção e ficou calma.

- E que significa essa história de “pobre cavaleiro”?

- Absolutamente não sei. Não tenho nada de ver com isso. Alguma brincadeira.

- Ouvir tudo isso, de uma vez, é agradável! Mas como poderia ela estar interessada em você? Como, se o chamou de alienado e de idiota?

- A senhora não precisava me contar isso - observou o príncipe, em ar de reprimenda, mas em tom quase de sussurro.

- Não se zangue. Ela é uma moça estouvada, rebelde e maluca. Quando se interessa por alguém só sabe tratar assim, grosseiramente, confundindo a pessoa em pleno rosto. Com qualquer outro faria o mesmo. Mas é favor não ficar triunfante, meu caro amigo, ela não é sua. Não quero nem pensar nisso e nunca tal se dará. Escute uma coisa: jure-me que você não se casou com aquela mulher.

- Lizavéta Prokófievna, que é que a senhora está dizendo? Dou-lhe a minha palavra!

E o príncipe quase deu um salto de espanto.

- Mas você esteve para se casar com ela, não esteve?

- Estive quase me casando - balbuciou o príncipe. abaixando a cabeça.

- Então você está apaixonado por ela? Foi por causa dessa outra que você apareceu por aqui? Foi por causa dela?

- Não vim para me casar - respondeu o príncipe.

- Tem você alguma coisa no mundo que considere como sagrada?

- enho, sim, senhora.

- Jure, então, que não veio para se casar com ela.

- Juro pelo que a senhora quiser.

- Acredito em você. Beije-me. Até que enfim posso respirar livremente: mas deixe que lhe diga: Agláia não ama você, fique avisado disso, e não se casará com você enquanto eu for viva; está ouvindo?

- Estou ouvindo, sim senhora... - E o príncipe enrubesceu tanto que não pôde continuar olhando para Lizavéta Prokófievna.

- Preste bem atenção. Considerei a sua volta como minha Providência. (Você não vale isso!) Molhei muitas fronhas com as minhas lágrimas, à noite. Não por sua causa, meu caro, não precisa inquietar-se. Também eu tenho os meus tormentos... e bem diferentes, perpetuamente os mesmos. Eis por que andei esperando o seu regresso com tal impaciência. Ainda acredito que o próprio Deus me enviou você como um amigo e irmão. Não tenho mais ninguém. Exceto a Princesa Bielokónskaia; e essa mesma está longe e, além disso, é tão estúpida como um carneiro com aquela sua velhice. Agora me responda simplesmente: sim, ou não. Se sabe, ou se não sabe por que foi que ela deu aqueles gritos lá da carruagem trasanteontem.

- Dou-lhe a minha palavra de honra que não sei de nada referente a isso e que nem estou nessa história.

- Basta; acredito em você. Agora já tenho outras idéias a tal respeito. Ontem de manhã atirei toda a culpa sobre Evguénii Pávlovitch... após levar três dias a fazer ilações. Ficou perfeitamente evidente que ele foi ridicularizado como um imbecil, por alguma causa, por algum motivo, com algum fim. Seja como for, isso dá apreensões! E não fica bem! Mas Agláia não se casará com ele, digo-lhe desde já. Ele pode ser um homem esplêndido, mas é assim que as coisas são. Antes, ainda hesitei; mas agora me convenci da realidade. “Põe-me primeiro em um caixão, enterra-me depois, e então poderás casar tua filha”. Foi o que eu disse hoje sem titubear a Iván Fiódorovitch. Vê a confiança que deposito em você? Está vendo bem?

- Vejo e compreendo.

Lizavéta Prokófievna olhou penetrantemente para o príncipe. Decerto ela queria sorrateiramente descobrir que impressão essas notícias a respeito de Evguénii Pávlovitch causavam nele.

- Você não sabe de nada, quanto a Gavríl Ardaliónovitch? - Ao contrário... Sei muita coisa.

- Você soube, ou não soube, que ele... reatou relações com Agláia?

- Absolutamente não soube - disse o príncipe, surpreendido e mesmo atarantado.

- A senhora diz que Gavríl Ardaliónovitch mantém intimidade com Agláia Ivánovna? Impossível!

- Sim, ultimamente, sim. A irmã esteve preparando o caminho aqui para ele, todo o inverno. Trabalhando como um rato, indo e vindo.

- Não acredito - repetiu o príncipe, firmemente, depois de certa reflexão, muito perturbado.

- Se isso se tivesse dado, certamente que eu teria sabido.

- Acha que ele viria espontaneamente fazer-lhe uma lacrimosa confissão, reclinado sobre o seu peito? Ah! Você é um simplório! um simplório! Todo o mundo faz de você o que quer... Não tem vergonha de confiar nele? Pois não vê que ele lhe está armando um embuste?

- Eu sei muito bem que ele me decepciona muitas vezes - considerou o príncipe, com relutância, em voz baixa. - E ele sabe muito bem que eu sei... - E o príncipe se calou.

- Você sabe mas continua confiando nele! Isso é o cúmulo! Mas também que se havia de esperar de você? Não tenho do que ficar surpreendida. Senhor Deus! Você sempre será o mesmo homem! Irra!... E sabe que esse Gánia, ou essa Vária, a puseram em correspondência com Nastássia Filíppovna?

- Puseram quem?

- Agláía.

- Não acredito! É impossível! Com que fim? - Ergueu-se da cadeira.

- Também eu não acreditava, mas há provas. É uma rapariga voluntariosa, caprichosa, doida! Perversa, perversa, perversa! Digo e repetirei durante mil anos - ela é uma rapariga ruim! Todas o são, mesmo essa insossa franguinha Aleksándra; mas Agláia ultrapassa todos os limites. Chego até a não acreditar! Talvez porque não me convenha acreditar! - ajuntou, como que para si só. Por que você não nos veio ver? - Virou-se prontamente para o príncipe.- Por que levou três dias sem aparecer? - gritou com ar impaciente.

O príncipe pôs-se a dar os motivos, mas novamente ela o interrompeu:

- Todos a consideram um maluco e não acreditam em você! Foi ontem à cidade? Aposto como foi implorar de joelhos àquele tratante que aceitasse o seu dinheiro, os seus dez mil rublos!

- Absolutamente; isso nem me passou pela cabeça. Não fui vê-lo: de mais a mais ele não é um tratante! Mandou-me uma carta.

- Mostre-ma!

O príncipe tirou uma folha da sua carteira e a estendeu a

Lizavéta Prokófievna. Dizia assim:

 

Caro Senhor. - Não tenho, perante olhos alheios, o menor direito a qualquer orgulho. Na opinião do mundo sou demasiado insignificante para ter tal luxo. Mas isso é perante os olhos de outros e não perante os seus. Estou perfeitamente persuadido, caro senhor, de que é melhor do que os outros homens. Não concordo com Doktorénko e rompi com ele por causa desta divergência. Nunca receberei dinheiro, por menor que seja, do senhor: mas ajudou minha mãe e portanto tenho de lhe ser grato, mesmo que isso seja uma prova de fraqueza. Em todo o caso já agora o considero de modo diferente, e me acho no dever de lhe dizer. E em conformidade com isso me parece que não pode haver mais relações de qualquer ordem entre nós.

 

Antíp Burdóvskii

 

P.S. Os duzentos rublos que faltam lhe hão de ser pagos corretamente assim que for possível.

 

- Quanta asneira e bobagem! - comentou Lizavéta Prokófievna, atirando-lhe com o papel de volta.

- Nem merece leitura. Por que você está se arreganhando?

- Confesse que ficou contente com o que leu! E bastante.

- Quê? Com este amontoado de besteiras tresandando a vaidade? Ora, mas você não está vendo que todos eles estão giras, com orgulho e vaidade?

- Sim, mas ele próprio se confessa em erro, rompeu com Doktorénko e, por ser vaidoso, isso lhe deve ter custado ainda mais. Oh! A senhora não passa de uma criança. Lizavéta Prokófievna! Quer, no fim de tudo, que eu esbofeteie você?

- Não, de modo algum. Mas por que quer a senhora fingir que não ficou satisfeita com a carta? Está envergonhada dos seus sentimentos? Em tudo a senhora é assim!

- Não se atreva mais a dar um passo para ir me ver - gritou Lizavéta Prokófievna, ficando em pé e se tornando pálida de tanta raiva. - Não quero nunca mais lhe pôr os olhos em cima!

- Dentro de três dias a senhora virá por sua espontânea vontade convidar-me. Ora, diga, não se sente envergonhada? Pois se esses seus sentimentos são dos melhores! A senhora bem sabe que com -isso está apenas se afligindo.

- Nunca o convidarei, nem que esteja morrendo por isso. Esquecerei o seu nome! Até já o esqueci!

Afastou-se de perto do príncipe.

- Não é preciso a senhora me proibir. Já me proibiram! - disse o príncipe, seguindo-a.

- O... quê? Quem o proibiu? - Virou-se como um relâmpago, como se uma agulha a tivesse picado. O príncipe, hesitou em responder; sentiu que tinha dado uma escorregadela em falso.

Lizavéta Prokófievna refletiu um pouco; depois avançou para o príncipe, tomou-o pela mão e o arrastou atrás de si escadas abaixo.

- Vamos. Imediatamente! Tem de ser já, agora mesmo! - gritou, em um acesso de extraordinária excitação e impaciência. - Quem foi que o proibiu? - gritou Lizavéta Prokófievna, violentamente.

- Agláia Ivánovna.

- Quando? Fale, homem!

- Mandou-me dizer, esta manhã, que não me atrevesse a ir vê-las outra vez.

Lizavéta Prokófievna ficou como que petrificada, mas se pôs a refletir.

- Mandou como? Mandou quem? Pelo garoto? Um recado verbal? - perguntou mais uma vez.

- Eu tenho o bilhete.

-  Onde? Dê-me isso. Já!

Míchkin pensou um minuto: por fim tirou do bolso do colete um pedaço de papel enxovalhado onde estava escrito:

 

Príncipe Liév Nikoláievitch! - Se, depois de tudo  quanto aconteceu, conta surpreender-me com a sua visita à nossa vila, saiba desde já que não me encontrará entre os que se comprazerão em vê-lo.

 

Agláia Epantchiná

 

Lizavéta Prokófievna refletiu um pouco; depois avançou para o príncipe, tomou-o pela mão e o arrastou atrás de si escadas abaixo.

- Vamos. Imediatamente! Tem de ser já, agora mesmo! - gritou, em um acesso de extraordinária excitação e impaciência.

- Mas a senhora está me expondo a...

- A quê? Inocente! Palerma! Você nem parece homem! Ainda bem que vou ver isso tudo eu mesma, com os meus olhos.

- Mas deixe ao menos que eu pegue o meu chapéu...

- Pronto, está aqui o seu horroroso chapéu! Vamos! Não sabe nem escolher as suas coisas com gosto!... Há!  Então ela lhe escreveu isso... depois do que se passou!? Birra, veneta: ou acesso?!... - murmurou Lizavéta Prokófievna, arrastando o príncipe por ali fora e sem lhe soltar a mão. - Ainda hoje o defendeu lá em casa e disse alto que era um bobo em não vir ver-nos... Mas justamente por isso ela não lhe devia ter escrito um bilhete tão insensato! Um bilhete impróprio! Indigno de uma menina distinta, bem-educada e sensata! Ah!... Já sei! Já sei!...

Ela ficou ansiosa com o fato de você não aparecer lá em casa! Mas fez muito mal em escrever nestes termos a um idiota, porque em lugar de entender o que ela queria, você tomou a carta ao pé da letra, como uma proibição... Está gostando de me ouvir, não é? Feche esses ouvidos! - gritou, toda inflamada, ao perceber que falara demais. - Ela precisa de alguém, como você... para se rir. Desde muito que ela procura um fantoche, eis por que o chamou. E agora estou satisfeita, satisfeitíssima... pois minha filha sempre acabou achando um bufão!

Estou satisfeitíssima. É para o que você serve! E ela sabe como deve manobrá-lo. Oh, se sabe! E bem!..

                                                                                      

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