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Os Irmãos Karamazov - p2 / Dostoiévski
Os Irmãos Karamazov - p2 / Dostoiévski

 

 

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Os Irmãos Karamazov

 

NOIVADO

Foi a Senhora Khokhlakova quem recebeu de novo Aliócha, toda azafamada; a crise de Catarina Ivânovna terminara com um desmaio, seguido "dum profundo abatimento. Agora ela delirava, presa da febre. Tinham mandado chamar Herzenstube e as tias. Estas já estavam lá. Esperava ansiosamente, enquanto jazia ela sem sentidos. Ah! se fosse uma febre nervosa!"

Assim dizendo, tinha a boa senhora o ar sério e inquieto. "É sério, desta vez, é sério", acrescentava ela a cada palavra, como se tudo quanto lhe acontecera até então não contasse. Aliócha escutava-a com pesar. Quis contar-lhe sua aventura, ela, porém, interrompeu-o às pri­meiras palavras; não tinha tempo, rogou-lhe que fizesse companhia a Lisa, enquanto a esperasse.

— Lisa, meu caro Alieksiéi Fiódorovitch — cochichou-lhe quase ao ouvido —, Lisa espantou-me ainda há pouco, mas também enterne­ceu-me, por isso meu coração tudo lhe perdoa. Imagine que logo depois de sua saída revelou sincero pesar por ter zombado de você ontem e hoje. Mas não eram zombarias, ela brincava simplesmente. Quase chorava, o que me surpreendeu. Jamais antes se arrependia seriamente de suas zombarias a meu respeito, eram meras brincadeiras. Acontece-lhe a cada instante rir de mim. Mas agora, é sério, faz grande caso de sua opinião, Alieksiéi Fiódorovitch; se for possível, poupe-a, não lhe guarde rancor. Eu mesma só faço poupá-la, porque ela é tão inteli­gente, acredita-o? Dizia ela ainda há pouco que você era seu amigo de infância, "o mais sério", imagine essa amizade séria; e eu, então? A este respeito tem sentimentos bastante sérios e até mesmo recor­dações, sobretudo essas frases, essas pequenas palavras, que brotam quando menos se espera. Recentemente, a propósito de um pinheiro, por exemplo. Havia um pinheiro em nosso jardim, quando ela era bem pequena, talvez exista ainda e não tenho razão de falar no passado. Os pinheiros não são como as pessoas, ficam muito tempo sem mudar, Alieksiéi Fiódorovitch. "Mamãe", disse ela, "lembro-me daquele pi­nheiro como em sonho. "[1] Deve ter-se exprimido doutra forma; há aqui uma confusão; pinheiro é uma palavra tão boba... Em todo o caso, disse-me a esse respeito algo de original, que não atino repetir. Aliás, esqueci tudo. Pois bem, até logo, estou toda emocionada, é de perder a cabeça. Alieksiéi Fiódorovitch, estive louca duas vezes e curaram-me. Vá ver Lisa. Reconforte-a como você sabe tão bem fazer. Lisa — gritou ela, aproximando-se da porta —, trago-te tua vítima, Alieksiéi Fiódorovitch, que não está absolutamente zangado, asseguro-te; pelo contrário, admira-se de que hajas podido acreditar em tal.

— Merci, maman. Entre, Alieksiéi Fiódorovitch.

Aliócha entrou. Lisa olhou-o com um olhar confuso e corou até as orelhas. Parecia envergonhada e, como se faz em semelhantes casos, pôs-se a falar com rapidez a respeito de coisa bem diversa, fingindo interessar-se por isso exclusivamente.

— Mamãe acaba de contar-me, Alieksiéi Fiódorovitch, a história daqueles 200 rublos e de sua missão... junto àquele pobre oficial... descreveu-me aquela cena atroz, como o insultaram e, sabe, muito embora mamãe conte muito mal... duma maneira desconchavada... derramei lágrimas ao ouvir aquilo. Pois bem! entregou-lhe você o tal dinheiro e como aquele desgraçado...

— Justamente não lho entreguei. É uma história muito longa — res­pondeu Aliócha, parecendo, por seu lado, sobretudo preocupado com aquele caso; no entanto, notava Lisa que também ele desviava a vista e tinha visivelmente o espírito em outra parte. Aliócha sentou-se e começou sua narrativa; desde as primeiras palavras, seu constrangi­mento desapareceu por completo e cativou por sua vez Lisa. Falava sob a influência da emoção e da viva impressão que sentira ainda há pouco, duma maneira interessante e pormenorizada. Já em Moscou, quando Lisa era ainda menina, gostava ele de visitá-la, quer para contar uma aventura recente, uma leitura que o impressionara, quer para lembrar um episódio de sua infância. Por vezes devaneavam juntos e compunham os dois verdadeiras novelas, na maior parte das vezes alegres e cômicas. Agora reviviam essas recordações, velhas de dois anos. Lisa ficou vivamente emocionada pela narrativa dele. Aliócha pintou-lhe com calor Iliúchka. Depois que descreveu com detalhes a cena em que o infeliz havia pisoteado o dinheiro, Lisa juntou as mãos e não pôde impedir-se de exclamar:

— Então você não lhe deu o dinheiro, deixou-o partir? Deveria ter-lhe corrido atrás, procurado alcançá-lo...

— Não, Lisa, é melhor assim — disse Aliócha, que se levantou e se pôs a andar, com ar preocupado.

— Como melhor, melhor em quê? Agora, eles vão morrer de fome!

— Não morrerão, porque esses 200 rublos lhes chegarão às mãos. De qualquer maneira, ele amanhã os aceitará. Estou certo disto — declarou Aliócha, andando, perplexo. — Veja você, Lisa — prosseguiu ele, parando bruscamente diante dela —, cometi um erro, mas teve ele um feliz resultado.

— Que erro e por que um feliz resultado?

— Eis por quê. Aquele homem é poltrão e de caráter fraco. Está muito ressentido, mas é um homem bom. Não cesso de perguntar a mim mesmo por que se ofendeu ele subitamente e pisou com os pés o dinheiro, porque, asseguro-lhe, até o derradeiro momento não sabia ele que iria pisoteá-lo. E creio que se ofendeu por diversas razões... não podia ser de outro modo na sua situação... Em primeiro lugar, rejubilou-se por demais diante de mim à vista do dinheiro e não soube ocultar isso. Se tivesse mostrado uma alegria moderada e feito cerimônia, como outros em casos semelhantes fazem caretas, teria podido resignar-se a aceitar, mas sua alegria foi demasiado sincera e isto lhe causou vexame. Lisa, ele é um homem sincero e bom, eis o pior em tais situações! Falava todo o tempo com uma voz fraca, debilitada, e tão depressa, tão depressa, que se teria dito que ria ou mesmo chorava... chorou mesmo de alegria... falou de suas filhas, do lugar que lhe dariam em outra cidade, e depois de ter-se expandido teve vergonha de súbito de haver-me mostrado sua alma. Imediata­mente detestou-me. É desses pobres envergonhados, extremamente or­gulhosos. Ofendeu-se sobretudo por me ter tomado demasiado depressa por seu amigo e cedido tão rapidamente; depois de ter-se lançado contra mim para intimidar-me, abraçou-me e me acariciou à vista das cédulas. Naquela posição deve ter ressentido toda a sua humilhação e foi então que eu cometi um erro grave. Declarei-lhe que, se não tivesse ele bastante dinheiro para mudar-se para outra cidade, dar-lhe-iam mais, eu mesmo lho daria, com meus próprios recursos. Eis o que o magoou: por que vinha também eu em seu socorro? Sabe você, Lisa, é extrema­mente penoso para um desgraçado ver que todos se consideram como benfeitores seus... ouvi-o dizer, o stáriets me falou disso! Não sei como exprimi-lo, mas tenho-o notado eu mesmo. E experimento o mesmo sentimento. Mas, sobretudo, se bem que ignorasse ele até o derradeiro momento que pisotearia as cédulas, pressentia-o, é fatal. Eis por que experimentava tal alegria... E eis como, por mais desagra­dável que isto seja, tudo vai muito bem. Sou mesmo de opinião que nada poderia ocorrer de melhor.

— Como é isso possível? — exclamou Lisa, olhando Aliócha com estupefação.

— Lisa, se em lugar de pisotear esse dinheiro tivesse-o ele aceitado, ao chegar em casa, uma hora depois, teria chorado de humilhação, é mais do que certo. No dia seguinte, viria lançar-mo à cara, tê-lo-ia pisado com os pés, talvez, como ainda há pouco. Agora partiu todo or­gulhoso e em triunfo, muito embora saiba que "se perde". Portanto, nada é mais fácil, agora, do que obrigá-lo a aceitar esses 200 rublos, não mais tarde do que amanha, porque mostrou que era honrado, atirou fora e pisou o dinheiro. No entanto, tem necessidade urgente dessa soma. Por mais orgulhoso que ainda esteja neste momento, vai pensar no socorro de que se privou. Pensará nele ainda mais nesta noite, pensará amanhã de manhã talvez, estará pronto a correr à minha casa e desculpar-se. Será então que me apresentarei: "O senhor é orgulhoso, demonstrou-o. Pois bem, aceite agora, perdoe-nos". Então ele aceitará.

Foi com uma espécie de embriaguez que Aliócha pronunciou estas palavras: "Então ele aceitará!" Lisa bateu palmas.

— Ah! é verdade, compreendi tudo de repente! Aliócha, como sabe você tudo isso? Tão jovem e já conhecedor do coração humano... Não o teria jamais acreditado...

— É preciso sobretudo persuadi-lo agora de que se acha em pé de igualdade com todos nós, embora aceite o dinheiro — prosseguiu Aliócha, exaltado —, e não somente de igualdade, mas mesmo de superioridade...

— "Em pé de superioridade!" É encantador, Aliócha, mas fale, fale!

— Quer dizer que não me exprimi como era devido... no caso de pé... mas isto não importa... porque...

— Mas isto não importa, decerto, absolutamente! Perdoe-me, que­rido Aliócha... Até agora, quase não tinha respeito por você... isto é, tinha, mas decerto num pé de igualdade, doravante será num pé de superioridade... Meu querido, não se zangue se procuro fazer espírito — encareceu com vivo sentimento. — Sou uma pequena zombeteira, mas você, você!... Diga-me, Alieksiéi Fiódorovitch, não há em toda a nossa discussão... desdém por esse infeliz... pelo fato de dissecar­mos sua alma com certa altivez, dando como certo desde agora que aceitará o dinheiro?

— Não, Lisa, não há desdém — respondeu com firmeza Aliócha, como se previsse essa pergunta —, já pensei nisso ao vir para cá. Julgue você mesma: que desdém pode haver, quando somos todos iguais a ele, quando todos o são? Porque não valemos mais. Fôssemos nós melhores, seríamos semelhantes no lugar dele. Ignoro o que seja você, Lisa, mas acho que tenho a alma mesquinha para muitas coisas. A alma dele não é mesquinha, mas bastante delicada... Não, Lisa, não há nenhum desdém para com ele! Sabe, Lisa, meu stariets disse uma vez: "É preciso muitas vezes tratar as pessoas como a crianças e algu­mas como a doentes".

— Caro Alieksiéi Fiódorovitch, quer que tratemos as pessoas como a doentes?

— Decerto, Lisa, estou disposto a isso, mas não completamente, por vezes mostro-me por demais impaciente ou então não reparo em nada. Você, você não é assim.

— Ah! não o creio! Alieksiéi Fiódorovitch, quanto sou feliz!

— Como é bom que você diga isso, Lisa!

— Alieksiéi Fiódorovitch, você é de uma bondade supreendente, mas por vezes tem o ar pedante... no entanto, vê-se que você não o é. Vá sem fazer rumor abrir a porta e veja se mamãe não nos escuta — cochichou rapidamente Lisa.

Aliócha fez o que ela pedia e declarou que ninguém estava à escuta.

— Venha cá, Alieksiéi Fiódorovitch — prosseguiu Lisa, corando cada vez mais. — Dê-me sua mão; assim. Escute, tenho uma grande con­fissão a fazer-lhe: escrevi-lhe ontem, não por brincadeira, mas seria­mente...

E cobriu os olhos com a mão. Via-se que esta confissão lhe custava muito. De repente, agarrou a mão de Aliócha e beijou-a três vezes, impetuosamente.

— Ah! Lisa, é admirável! — exclamou Aliócha, todo contente. — Eu sabia que era sério...

— Vejam só que segurança! — Repeliu-lhe a mão sem contudo a largar, corou e riu-se, levemente, cheia de felicidade. — Beijo-lhe a mão e ele acha isto admirável.

Censura injusta, aliás; Aliócha estava também bastante perturbado.

— Gostaria de agradar-lhe sempre, Lisa, mas não sei como fazer — murmurou ele, corando por sua vez.

— Aliócha, meu querido, você é frio e presunçoso. Vejam só isso! Não se dedignou de escolher-me por esposa e ei-lo tranqüilo! Estava certo de que lhe tinha escrito seriamente. Mas isto é pura presunção!

— Estava eu errado acreditando estar certo? — E Aliócha pôs-se a rir.

— Pelo contrário, Aliócha, estava muito bem.

Lisa olhou-o ternamente e cheia de felicidade. Aliócha havia mantido a mão dela na sua. De repente, inclinou-se e beijou-a na boca.

— Que é isso? Que tem você? — exclamou Lisa. Aliócha ficou todo desconcertado.

— Perdoe-me, se fiz mal... Talvez tenha cometido uma tolice... Você me achava frio e então eu a beijei... Mas vejo que foi uma tolice...

Lisa desatou a rir e ocultou o rosto nas mãos.

— E com esse traje! — deixou ela escapar, rindo; mas de súbito parou, ficou séria, quase severa.

— Não, Aliócha, para mais tarde os beijos, porque nós dois não entendemos disso ainda e é preciso esperar ainda muito tempo — concluiu ela. — Diga-me antes por que escolhe para esposa uma tola e uma doente como eu, você, tão inteligente, tão refletido, tão pene­trante? Aliócha, sinto-me muito feliz, porque sou indigna de você.

— Mas não, Lisa! Em breve deixarei o mosteiro completamente. Ao voltar para o mundo, terei de casar-me, eu o sei. "Ele" mo ordenou. Quem acharia eu melhor que você... e quem haveria de querer-me, senão você? Já refleti nisso. Em primeiro lugar, você me conhece desde a infância; em segundo lugar, tem você muitas qualidades que me faltam totalmente. É mais alegre do que eu; sobretudo, mais in­gênua, porque eu já aflorei muitas coisas... Ah! não sabe você que sou um Karamázov? Que importa que você ria e pilherie, e mesmo à minha custa? Fico tão contente com isso... Mas você ri como uma menina e se atormenta com seus pensamentos.

— Como, me atormento? Como isso?

— Sim, Lisa, sua pergunta, ainda há pouco: "não há desdém por esse infeliz, pelo fato de dissecarmos assim sua alma?", é uma pergunta dolorosa... vê você? Não sei explicar-me, mas os que fazem tais perguntas são capazes de sofrer. Na sua cadeira, deve você meditar muito...

— Aliócha, dê-me sua mão. Por que a retira? — murmurou Lisa, numa voz enfraquecida pela felicidade. — Escute, como se trajará você, quando sair do mosteiro? Não ria e trate de não se zangar, é muito importante para mim.

— Quanto ao traje, Lisa, ainda não pensei nele, mas escolherei aquele que lhe agradar.

— Gostaria de vê-lo usar um casaco de veludo azul-escuro, um colete de pique branco e um chapéu de feltro cinzento... Diga-me, acreditou você ainda há pouco que eu não o amava, quando me des­disse de minha carta de ontem?

— Não, não o acreditei.

— Oh! o insuportável, o incorrigível!

— Vê você? Sabia que você... me amava, mas fingi crer que você não me amava mais, para ser-lhe... agradável...

— É pior ainda! Tanto pior e tanto melhor. Aliócha, eu o adoro. Antes de sua chegada, tinha dito a mim mesma: "Vou pedir-lhe a carta de ontem e se ele ma restituir sem dificuldade (como se pode esperar de sua parte), isto significa que ele não me ama absolutamente mais, que não sente nada, que não passa de um garoto tolo e que estou per­dida". Mas você deixou a carta na cela e isto me restituiu a coragem; não teria sido pelo fato de pressentir você que eu tornaria a pedir-lha e a fim de não ma restituir? Não é verdade?

— Não é isto de todo, Lisa, porque tenho a carta comigo, como a tinha ainda há pouco; está neste bolso, ei-la.

Aliócha tirou a carta rindo e mostrou-lha de longe.

— Somente, não lha darei. Contente-se com olhá-la.

— Como, você mentiu? Você, um monge, mentindo?

— É verdade que menti, mas foi para não lhe devolver a carta. É preciosa para mim — acrescentou, com fervor, corando de novo — e não a darei a ninguém.

Lisa examinava-o, encantada.

— Aliócha — cochichou ela —, vá ver se mamãe não nos está escutando.

— Bem, Lisa, olharei, mas não seria melhor não fazê-lo? Por que suspeitar de que sua mamãe pratique essa baixeza?

— Como? Que baixeza? Mas vigiar sua filha é seu direito, não há baixeza. Esteja certo, Alieksiéi Fiódorovitch, de que, quando eu for mãe' e tiver uma filha, igual a mim, vigiá-la-ei da mesma maneira.

— Deveras, Lisa? Mas isso não está bem.

— Meu Deus! Que baixeza há nisso? Se ela escutasse uma con­versa mundana, seria vil, mas trata-se de sua filha a sós com um rapaz... Saiba, Aliócha, que vou vigiá-lo desde que nos casarmos, abrirei todas as suas cartas para lê-las... Já está prevenido...

— Decerto, se faz questão disso... — murmurou Aliócha. — Mas não será louvável...

— Que desdém! Aliócha, meu bem, não briguemos desde o começo. Prefiro falar-lhe francamente: é censurável, decerto, escutar às portas, estou errada e você está certo, mas isto não me impedirá de escutar.

— Pois escute. Você nunca me haverá de apanhar em falta — disse, rindo, Aliócha.

— Outra coisa: obedecer-me-á você em tudo? É preciso decidir isto também desde já.

— De muito boa vontade, Lisa, salvo nas coisas essenciais. Nestes casos, mesmo se você não estiver de acordo comigo, só me submeterei à minha consciência.

— Isto é o que deve ser. Saiba que não somente estou pronta a obedecer-lhe nos casos graves, mas cederei a você em tudo, juro-lhe desde agora, em tudo e por toda a minha vida — gritou Lisa apaixo­nadamente —, e isto com felicidade, com alegria! Além do mais, juro-lhe jamais escutar às portas e ler suas cartas, porque você tem razão. Por mais forte que seja minha curiosidade, resistirei a isso, pois que você acha isso vil. Você é agora a minha Providência... Diga-me, Alieksiéi Fiódorovitch, por que está você tão triste nestes últimos dias? Sei que tem aborrecimentos, pesares, mas noto ainda em você uma tristeza oculta, talvez.

— Sim, Lisa, tenho uma tristeza oculta. Vejo que você me ama, uma vez que adivinhou isso.

— Que tristeza? A propósito de quê? Pode-se saber? — perguntou timidamente Lisa.

— Mais tarde, Lisa, lho direi... — Aliócha perturbou-se. — Agora você não compreenderia. E eu mesmo não saberia explicar-lhe.

— Sei também que você se atormenta por causa de seus irmãos e de seu pai.

— Sim, de meus irmãos — proferiu Aliócha, pensativo.

— Não gosto de seu irmão Ivã Fiódorovitch, Aliócha.

Esta observação surpreendeu Aliócha, mas não a rebateu.

— Meus irmãos se perdem — prosseguiu ele — e meu pai igual­mente. Arrastam outros consigo. É a "força da terra" própria dos Karamazovi, segundo a expressão do Padre Paísi, uma força violenta e brutal... Ignoro mesmo se o espírito de Deus domina essa força. Sei somente que eu mesmo sou um Karamázov... Sou um monge, um monge... Dizia você ainda há pouco que sou um monge?

— Sim, disse-o.

— Ora, talvez não creia em Deus.

— Não crê? Que está dizendo? — murmurou Lisa, com reserva. Mas Aliócha não respondeu. Havia naquelas palavras bruscas algo de misterioso, de demasiado subjetivo talvez, que ele próprio não explicava a si mesmo e que o atormentava.

— Além do mais, meu amigo se vai; o mais eminente dos homens vai deixar a terra. Se você soubesse, Lisa, os laços morais que me ligam àquele homem! Vou ficar só... Voltarei a vê-la, Lisa... Do­ravante, estaremos sempre juntos.

— Sim, juntos, juntos! Desde agora e por toda a vida. Beije-me, permito-lhe.

Aliócha beijou-a.

— Agora, vá embora! Que o Cristo esteja com você! (Fez sobre ele o sinal-da-cruz. ) Vá vê-lo enquanto ainda é tempo. Tenho sido cruel, retendo-o. Hoje rezarei por ele e por você. Aliócha, seremos felizes, não é verdade?

— Creio que sim, Lisa.

Aliócha não tinha intenção de procurar a Senhora Khokhlakova ao sair do quarto de Lisa, mas encontrou-a na escada. Desde as primeiras palavras adivinhou que ela o esperava.

— É horrível, Alieksiéi Fiódorovitch. É uma infantilidade e uma tolice. Espero que você não vá imaginar... Tolices, tolices! — excla­mou ela, zangada.

— Mas não lhe diga; isto a agitaria e lhe faria mal.

— Eis a palavra sábia dum jovem prudente. Devo entender que você estava consentindo unicamente por piedade pelo seu estado doentio, com medo de irritá-la, contradizendo-a?

— Absolutamente; falei-lhe com toda a seriedade — declarou Aliócha com firmeza.

— Deveras? É impossível. Em primeiro lugar, nossa casa ser-lhe-á fechada, em seguida partirei e levá-la-ei comigo, fique sabendo!

— Mas por quê? — disse Aliócha. — Ainda está longe, dezoito meses talvez a esperar.

— É verdade, Alieksiéi Fiódorovitch, e em dezoito meses poderão vocês brigar e separar-se. Mas sou tão infeliz! São tolices, de acordo, mas isto me consternou. Sou como Famússov na derradeira cena, o senhor é Tchátski, ela é Sofia. Corri aqui para encontrá-lo. Na comédia também as peripécias se passam na escada. Ouvi tudo, mal me podia conter. Eis pois a explicação para essa noite em claro e as recentes crises nervosas! O amor para a filha, a morte para a mãe! Agora, um segundo ponto, essencial: que carta é essa que Lisa lhe escreveu? Mostre-ma imediatamente!

— Não, para quê? Dê-me notícias de Catarina Ivânovna, isto me interessa bastante.

— Continua a delirar e não recuperou os sentidos; suas tias estão aqui a se lamentar, com seus ares imponentes. Herzenstube veio, ficou de tal modo espantado que eu não sabia o que fazer, queria mesmo mandar chamar outro médico. Levaram-no no meu carro. E, para dar cabo de mim, ei-lo com essa carta! É verdade que dezoito meses nos separam de tudo isso. Em nome do que há de mais sagrado, em nome de seu stáriets moribundo, mostre-me essa carta, a mim, mãe dela. Segure-a, se quiser, eu a lerei à distância.

— Não, não lhe mostrarei, Catarina Óssipovna, mesmo que ela o permitisse. Voltarei amanhã, conversaremos, se quiser; agora, adeus.

E Aliócha saiu precipitadamente.

 

SMIERDIÁKOV E SUA GUITARRA

Não tinha, aliás, tempo. Ao despedir-se de Lisa, viera-lhe uma idéia; como fazer para encontrar imediatamente seu irmão Dimítri, que parecia evitá-lo? Já eram 3 horas da tarde: Aliócha experimentava vivo desejo de voltar ao mosteiro, para ir ter com o ilustre moribundo, mas a necessidade de ver Dimítri venceu-o; o pressentimento de uma catástrofe iminente crescia em seu espírito. De que natureza era ela, que teria ele querido dizer agora a seu irmão, ele mesmo não tinha idéia nítida. "Que meu benfeitor morra sem mim! Pelo menos, não me censurarei toda a minha vida por não ter salvo alguém, quando talvez podia fazê-lo, ter passado além na. pressa de regressar a casa. Aliás, obedeço assim à vontade dele..."

Seu plano consistia em surpreender Dimítri de improviso. Eis como: escalando a cerca, como na véspera, penetraria no jardim e se instalaria no pavilhão. "Se ele não estiver lá, sem nada dizer a Fomá nem às proprietárias, ficarei oculto, a esperar até a noite. Se Dimítri está ainda tocaiando ali a vinda de Grúchenhka, virá provavelmente ao pavilhão... " Aliás, Aliócha não se deteve em detalhes do plano, mas resolveu executá-lo, embora devesse não voltar ao mosteiro naquele dia.

Tudo se passou sem obstáculo; transpôs a cerca quase no mesmo lugar que na véspera e dirigiu-se secretamente para o pavilhão. Não desejava ser notado; as proprietárias, bem como Fomá (se estivesse lá), poderiam ficar do lado de seu irmão e conformar-se com suas instruções, portanto não deixar Aliócha entrar no jardim ou advertir Dimítri, a tempo, de sua presença. Sentou-se no mesmo lugar e se pôs à espera; o dia era tão belo como o anterior, mas o pavilhão pareceu-lhe mais arruinado do que na véspera. O pequeno copo de conhaque deixara um círculo sobre a mesa verde. Idéias ociosas vi­nham-lhe ao espírito, como acontece sempre por ocasião de uma espera aborrecida: por que se sentara ele precisamente no mesmo lugar e não em outro? A tristeza invadia-o, proveniente duma vaga inquietação. Esperava havia um quarto de hora apenas, quando ressoaram perto os acordes de uma guitarra. Provinha das moitas, a uns vinte passos, quando muito. Aliócha lembrou-se de ter entrevisto na véspera, perto do tapume, à esquerda, um velho banco rústico e verde, entre os arbustos. Era dali que partiam os sons. Uma voz masculina cantava em falsete, acompanhando-se da guitarra: Uma força pertinaz À amada preso me traz, Senhor, tende piedade, Dela e de mim! Dela e de mim!

A voz parou: voz de tenorino com floreios de lacaio. Uma voz de mulher, cariciosa e tímida, proferiu, afetadamente:

— Por que se vê você tão raramente, Páviel Fiódorovitch, por que se esquece de nós?

— Nada disso — respondeu a voz de homem, com uma digni­dade firme, se bem que cortês. Via-se que era o homem quem domi­nava, que a mulher o cortejava. "Deve ser Smierdiákov", pensou Aliócha, "a julgar pela voz pelo menos. A mulher é decerto a filha da dona da casa, a que voltou de Moscou e vai de vestido de cauda tomar sopa em casa de Marfa Ignátievna... "

— Adoro os versos, quando são harmoniosos — prosseguiu a voz feminina. — Continue.

A voz voltou a cantar:

Pouco me importa a coroa, Se minha amada está boa, Senhor, tende piedade, Dela e de mim! Dela e de mim!

— Da outra vez, era bem melhor — observou a mulher. — Você cantava, a propósito da coroa: "Se meu benzinho está bem". Era mais terno.

— Versos são frioleiras! — cortou Smierdiákov.

— Oh! não, adoro os versos.

— Os versos! Não há nada de mais tolo. Julgue você mesma; será que a gente fala rimando? Se falássemos todos rimando, mesmo por ordem das autoridades, seria isso por muito tempo? Os versos não são coisa séria, Maria Kondrátievna.

— Como você é inteligente! Onde aprendeu tudo isso? — continuou a voz, cada vez mais caridosa.

— Saberia muito mais, se a sorte não me tivesse sido sempre contrária. Teria matado em duelo aquele que me chamasse de vilão, porque não tenho pai e nasci duma fedorenta. Eis o que me lançaram em rosto, em Moscou, onde souberam disto por Gregório Vassflievitch. Ele me censura por me revoltar eu contra meu nascimento: "Tu lhe rompeste as entranhas". Pois seja, mas teria preferido que me matassem no ventre de minha mãe, a ter nascido. Dizia-se no mercado — e sua mãe me contou isso com sua falta de delicadeza — que a cabeça de minha mãe era ninho de galinha e que tinha de altura apenas 2 archini e pico. Por que dizer "e pico", quando podiam ter dito, como toda gente costuma dizer, simplesmente: "e um pouco mais"? É essa uma maneira boba de falar, muito própria de gente rústica. Pode o mujique falar direito diante de um homem culto? Por efeito de sua incultura, não possui senso nenhum do bem falar. Eu, desde menino, sempre que ouvia esse "e pico", tinha vontade de dar cabeçadas na parede. Detesto tudo quanto é russo, Maria Kondrátievna.

— Se você fosse um cadete ou um jovem hussardo, não falaria assim, mas tiraria seu sabre em defesa da Rússia.

— Não somente não desejaria ser hussardo, Maria Kondrátievna, mas desejo, pelo contrário, a supressão de todos os soldados.

— E se o inimigo vier, quem nos defenderá?

— De que servirá? Em 1812, viu a Rússia a grande invasão do imperador dos franceses, Napoleão I, pai do atual, [2] e bom teria sido se os franceses nos tivessem conquistado; uma nação inteligente teria subjugado um povo estúpido, anexando-o. Tudo teria marchado de outra maneira.

— Quer dizer com isso que eles valem mais do que nós? Pois eu não trocaria um de nossos elegantes por três ingleses jovens — declarou com voz terna Maria Kondrátievna, acompanhando (provavelmente) suas palavras com o olhar mais langoroso.

— Isto depende dos gostos.

— Você parece um estrangeiro entre nós, o mais nobre estrangeiro, digo-o sem nenhuma vergonha.

— Para falar a verdade, no que diz respeito à corrupção, as pessoas de lá e as de cá se assemelham. Todos uns velhacos, com esta diferença: o estrangeiro anda de botas envernizadas, ao passo que o nosso tratante nacional vive de cócoras na sua miséria e não se queixa. É preciso fustigar o povo russo, como o disse ontem com razão Fiódor Pávlovitch, muito embora ele e seus filhos não passem de uns loucos.

— Você respeita muito Ivã Fiódorovitch, você mesmo o disse.

— Mas tratou-me de lacaio fedorento. Toma-me por um revoltado, no que se engana. Se tivesse eu algum dinheiro, desde muito haveria fugido daqui. Dimítri Fiódorovitch é pior que um lacaio, pela sua conduta e pela sua inteligência; é um balaio furado, um bom para nada e, no entanto, o respeitam. Eu não passo de um queima-panelas, admitamos, mas, com sorte, poderia abrir um café-restaurante em Mos­cou, na Rua de São Pedro. Porque, com efeito, preparo pratos espe­ciais e nenhum de meus colegas, em Moscou, é capaz disso, exceto os estrangeiros. Dimítri Fiódorovitch é um vagabundo, mas se provocar a duelo um filho de conde, não se recusará ele a comparecer ao ter­reno. Ora, que tem ele mais do que eu? É infinitamente mais estúpido. Quanto dinheiro já não gastou, sem mais nem menos?

— Isto de duelo deve ser coisa muito interessante — insinuou Maria Kondrátievna.

— Como assim?

— É espantoso, tal bravura, sobretudo quando jovens oficiais tro­cam balas por causa de uma mulher. Que quadro! Ah! se as mulheres pudessem assistir a isso... Eu gostaria tanto...

— É bonito quando se presencia, mas quando o alvo é a garganta da gente, a impressão não é nada agradável. Você sairia a correr, Maria Kondrátievna.

— E você, fugiria também?

Smierdiákov não se dignou responder. Depois de uma pausa, novo acorde soou e a voz de falsete entoou a derradeira copia:

Por mais esforços que façam, Ninguém aqui me retém, Vou gozar a minha vida, Vou viver na capital, E não hei de lamentar-me, Não, não me lamentarei...

Nesse momento sobreveio um incidente. Aliócha espirrou; o silêncio se fez no banco. Levantou-se e marchou para o lado deles. Era com efeito Smierdiákov, trajado com todo o apuro, empomadado, creio que até mesmo de cabelos frisados e de botinas envernizadas. Trazia sua guitarra ao lado. A mulher era Maria Kondrátievna, a filha da proprietária, moça nada feia, mas de rosto demasiado redondo, semea­do de sardas; trazia um vestido azul-claro, com uma cauda de 2 archini.

— Meu irmão Dimítri tardará a chegar? — perguntou Aliócha, com o tom mais calmo possível.

Smierdiákov levantou-se lentamente; sua companheira imitou-o.

— Como posso eu saber das idas e vindas de Dimítri Fiódorovitch? Seria diferente se fosse eu seu guardião — respondeu tranqüilamente Smierdiákov, com um matiz de desdém.

— Perguntava simplesmente se você sabia.

— Ignoro onde ele se encontra e não quero sabê-lo.

— Meu irmão me disse que você o informava de tudo quanto se passa na casa e lhe havia prometido anunciar-lhe a chegada de Agrafiena Alieksandrovna.

Smierdiákov, impassível, ergueu os olhos para Aliócha.

— Como fez para entrar? Há já uma hora que a porta foi aferrolhada.

— Ora, escalei a cerca. Espero que me desculpe (dirigia-se à Maria Kondrátievna), estava com pressa de ver meu irmão.

— Ah! nada há que desculpar! — murmurou a jovem, lisonjeada.

— Dimítri introduz-se muitas vezes dessa maneira no pavilhão; já está instalado, antes que a gente o tenha visto.

— Estou à sua procura, gostaria muito de vê-lo. Não poderia dizer-me onde se encontra ele neste momento? É para um negócio sério que lhe diz respeito.

— Ele não nos diz para onde vai — balbuciou a moça.

— Mesmo aqui, em casa de meus conhecidos, seu irmão me per­seguia com perguntas a respeito de meu amo — disse Smierdiákov.

— Que se passa em casa dele, quem entra, quem sai, se não tenho nada a comunicar-lhe? Por duas vezes ameaçou matar-me.

— Será possível? — admirou-se Aliócha.

— Pensa que ele se constrangeria, com o caráter que tem? Pode o senhor mesmo julgar por ontem. "Se não conseguir apanhar Agrafiena Alieksandrovna e ela passar a noite em casa do velho, não respondo pela tua vida", disse-me ele. Tenho muito medo e, se ousasse, deveria denunciá-lo às autoridades. Deus sabe do que é ele capaz.

— Um dia destes, disse-lhe: "Eu te esmagaria num pilão" — acres­centou Maria Kondrátievna.

— Talvez não passe isso de palavras soltas... — observou Aliócha.

— Se eu pudesse vê-lo, falar-lhe-ia a este respeito.

— Eis tudo quanto posso comunicar-lhe — disse Smierdiákov, depois de ter refletido. — Venho freqüentemente aqui como vizinho. Por que não? Por outra parte, Ivã Fiódorovitch mandou-me hoje bem cedo à casa de Dimítri Fiódorovitch, na Rua do Lago, para dizer-lhe que fosse sem falta jantar com ele no botequim da praça. Fui lá, mas não o encontrei; já eram 8 horas. "Ele veio e depois partiu", dis­se-me textualmente o dono da casa. Dir-se-ia que haviam combinado isso. Neste momento, talvez esteja à mesa com Ivã Fiódorovitch, porque este não voltou para jantar; quanto a Fiódor Pávlovitch, há já uma hora que jantou e agora faz a sesta. Mas rogo-lhe instante­mente que não revele nada disso, ele seria capaz de matar-me por uma bagatela.

— Meu irmão Ivã marcou encontro com Dimítri no botequim, hoje? — insistiu Aliócha.

— Sim.

— No botequim A Capital, na praça?

— Precisamente.

— É bem possível! — exclamou Aliócha, agitado. — Agradeço-lhe, Smierdiákov, a notícia é importante, corro lá imediatamente.

— Não me atraiçoe.

— Não, apresentar-me-ei como por acaso, fique tranqüilo.

— Aonde vai então? Vou abrir-lhe a porta — gritou Maria Kon­drátievna.

— Não, é mais perto por aqui. Vou transpor a cerca.

Aquela notícia impressionara Aliócha, que correu ao botequim. Não seria conveniente entrar ali com aquele seu traje, mas podia infor­mar-se e chamar seus irmãos à escada. Assim que se aproximou do botequim, uma janela se abriu e Ivã gritou-lhe:

— Aliócha, podes vir ter aqui comigo? Ficar-te-ei infinitamente grato.

— Sim, mas com esta roupa...

— Estou num gabinete reservado, sobe o patamar, vou ao teu en­contro.

Um instante depois, estava Aliócha sentado ao lado de seu irmão. Ivã jantava sozinho.

 

OS IRMÃOS TRAVAM AMIZADE

Na verdade, a mesa de Ivã, perto da janela, estava protegida por um simples biombo dos olhares indiscretos. Encontrava-se ao lado do balcão, na primeira sala, em que os garçons circulavam a todo instante. Somente um velhinho, militar reformado, bebia chá num canto. Nas outras salas, ouvia-se o barulho habitual dos botequins: chamados, garrafas que se desarrolhavam, os choques das bolas no bi­lhar. Um órgão fazia-se ouvir. Aliócha sabia que seu irmão não gostava dos botequins e a eles quase nunca ia. Sua presença só se explicava, pois, pela entrevista marcada com Dimítri.

— Vou mandar pedir para ti uma sopa de peixe ou outra coisa. Não vives de chá somente. — Ivã estava visivelmente encantado com a companhia de Aliócha. Acabara de jantar e tomava chá.

— De acordo, e em seguida chá, estou com fome — disse Aliócha num tom jovial.

— E doce de cerejas? Lembras-te de como gostavas dele, na tua infância, em casa de Políenov?

— Ah! lembras-te? Quero sim, gosto ainda dele.

Ivã tocou a campainha, ordenou uma sopa de peixe, chá e doces.

— Lembro-me de tudo, Aliócha. Tu tinhas onze anos e eu quinze. A camaradagem entre irmãos não é possível naquela idade, com quatro anos de diferença. Não sei mesmo se gostava de ti. Nos pri­meiros anos de minha estada em Moscou, nem mesmo pensava em ti. Depois, quando lá apareceste por tua vez, encontramo-nos uma única vez, creio. Há quatro anos que vivo aqui e não temos conversado. Parto amanhã e pensava ainda há pouco nos meios de ver-te para dizer-te adeus. Chegas a propósito.

— Desejavas muito ver-me?

— Muito. Quero que aprendamos a conhecer-nos mutuamente. Em seguida, nos separaremos. Na minha opinião, vale melhor conhecer-mo-nos antes de separar-nos. Tenho notado como me observavas, du­rante esses três meses. Lia-se em teus olhos uma expectativa contínua. Não saberia tolerar isso e era o que me mantinha a distância. Afinal, aprendi a estimar-te: eis, pensava eu, um homenzinho de caráter firme. Nota que falo seriamente, embora rindo. Porque tu és firme, não és? Gosto de firmeza, por não importa que motivo e mesmo na tua idade. Enfim, teu olhar ansioso deixou de desagradar-me, tornou-se-me mesmo simpático. Dir-se-ia que tens afeição por mim, Aliócha.

— Decerto, Ivã. Dimítri diz que és um tumulo. Eu digo que és um enigma. Tu o és ainda agora para mim, no entanto começo a com­preender-te, desde esta manhã apenas.

— Que queres dizer? — disse Ivã, rindo.

— Não te zangarás, pelo menos? — perguntou Aliócha, rindo tam­bém.

— E então?

— Então, descobri que és um rapaz semelhante a todos os outros, aos 23 anos, um rapaz bem viçoso, bem gentilmente ingênuo, um verdadeiro fedelho, em uma palavra. Minhas palavras não te ofendem?

— Pelo contrário, estou admirado duma coincidência — exclamou Ivã, com ímpeto. — Acreditarias que desde nossa entrevista desta manhã só penso na ingenuidade dos meus 23 anos, e é por isso que começas, como se o tivesses adivinhado? Sabes o que dizia a mim mesmo ainda há pouco? Se não tivesse mais fé na vida, se duvidasse duma mulher amada, da ordem universal, persuadido ao contrário de que tudo não é senão um caos infernal e maldito e estivesse eu preso dos horrores da desilusão — mesmo então quereria viver ainda assim. Depois de ter bebido na taça encantada, só a deixaria uma vez esgo­tada. Aliás, perto dos trinta anos, pode ser que sinta saudade dela, mesmo inacabada, e irei... não sei aonde. Mas, até os trinta anos, tenho a certeza, minha mocidade triunfará de tudo, do desencanto, do desgosto de viver. Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo se haveria no mundo um desespero capaz de vencer em mim esse furioso apetite de viver, inconveniente talvez; e penso que ele não existe, pelo menos antes de trinta anos. Esta sede de viver é chamada de vil por certos moralistas catarrentos e tuberculosos, sobretudo por poetas. É verdade que é um traço característico dos Karamázovi, essa sede de viver à qualquer preço; encontra-se em ti, mas por que haveria de ser vergonhosa? Há ainda muita força centrípeta em nosso planeta, Aliócha. Quer-se viver, e eu vivo, mesmo a despeito da lógica. Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo certas pessoas, sem saber por quê. Amo o heroísmo, no qual talvez tenha deixado de crer desde muito tempo, mas que venero por hábito. Eis que te trazem a sopa de peixe. Bom apetite. É excelente, preparam-na bem aqui. Quero viajar pela Europa, Aliócha. Sei que não encontrarei lá senão um cemitério, mas quão querido! Queridos mortos nele repousam, cada pedra atesta a vida ardente deles, sua fé apaixonada nos seus ideais, sua luta pela verdade e pela ciência. Oh! cairei de joelhos diante daquelas pedras, beijá-las-ei, derramando lágrimas. Convencido, aliás, intimamente, de que tudo aquilo não é senão um cemitério e nada mais. E não serão lágrimas de desespero, mas de felicidade. Embriago-me com meu próprio enternecimento. Gosto dos brotos tenros da primavera e do céu azul. A inteligência e a lógica não entram nisso absolutamente, é o coração que ama, é o ventre, gosta-se de suas primeiras forças juvenis... Compreendes tu alguma coisa dessa minha arenga, Aliócha? — E Ivã pôs-se a rir.

— Compreendo por demais, Ivã; desejar-se-ia amar pelo coração e pelo ventre, como bem o disseste. Estou encantado com esse teu ardor de viver. Penso que se deve amar a vida acima de tudo.

— Amar a vida, em vez do sentido da vida?

— Decerto. Amá-la antes de raciocinar, sem lógica, como dizes; então somente compreender-se-á o sentido dela. Eis o que entrevejo desde muito tempo. A metade de tua tarefa está realizada e adquirida, Ivã: amas a vida. Ocupa-te com a segunda parte, é a salvação.

— Estás muito apressado em salvar-me, talvez não esteja eu ainda perdido. Em que consiste essa segunda parte?

— Em ressuscitar teus mortos, que estão talvez ainda vivos. Dá-me chá. Estou satisfeito com nossa conversa, Ivã.

— Vejo que estás de veia. Gosto dessas professions de foi, [3] da parte de um noviço. Sim, tens firmeza, Alieksiéí. É verdade que queres deixar o mosteiro?

— Sim, meu stáriets me envia para o mundo.

— Então, nós tornaremos a ver-nos antes dos meus trinta unos, quando começar a desdenhar a taça. Nosso pai não quer renunciar a ela antes dos setenta anos, ou mesmo dos oitenta. Disse-o muito seriamente, embora seja um palhaço. Agarra-se à sua sensualidade como a um rochedo... Na verdade, após os trinta anos, não há outro recurso talvez. Mas é vil entregar-se a isso até os setenta. Melhor vale cessar aos trinta. Conserva-se uma aparência de nobreza, ao mesmo tempo que se engana a si mesmo. Não viste Dimítri hoje?

— Não, mas vi Smierdiákov. — E Aliócha fez a seu irmão um relato pormenorizado de seu encontro com Smierdiákov. Ivã escutava-o com ar preocupado e insistiu sobre certos pontos.

— Rogou-me que não repetisse a Dimítri o que disse dele — acrescentou Aliócha.

Ivã franziu as sobrancelhas e pôs-se a refletir.

— Foi por causa de Smierdiákov que fechaste a cara?

— Sim. Que o diabo o carregue! Queria, com efeito, ver Dimítri; agora, é inútil... — declarou Ivã a contragosto.

— Partes deveras tão cedo, irmão?

— Sim.

— Como acabará tudo isso, entre Dimítri e nosso pai? — pergun­tou Aliócha, com inquietação.

— Voltas sempre a isso! Que posso eu fazer? Serei o guarda de meu irmão Dimítri? — replicou Ivã com irritação. De repente teve um sorriso amargo. — É a resposta de Caim a Deus. Pensas nisso neste momento, talvez, hein? Mas, que diabo! Não posso, no entanto, ficar aqui para vigiá-los! Meus negócios terminaram, parto. Não vás crer que eu estava com ciúmes de Dimítri, que procurava tomar-lhe a noiva, durante estes três meses. Oh! não, tinha meus negócios. Aca­baram, parto. Viste o que se passou?

— Em casa de Catarina Ivânovna?

— Decerto. Libertei-me dum só golpe. Que me importa Dimítri? Nada tem ele a ver com o caso. Tinha eu meus negócios próprios com Catarina Ivânovna. Sabes tu mesmo que Dimítri se portou como se estivesse conivente comigo. Não lhe pedi nada, foi ele mesmo quem ma transmitiu solenemente, com sua bênção. É de causar riso. Aliócha, se soubesses como me sinto leve, atualmente! Aqui, jantando, queria pedir champanha para celebrar minha primeira hora de liberdade. Puxa! Seis meses de servidão, quase, e, de repente, eis-me desembara­çado! Ontem ainda, não tinha a menor idéia de que era tão fácil dar tudo por acabado.

— Queres falar de teu amor, Ivã?

— Sim, do amor, se queres. Apaixonei-me por uma colegial e cau­sávamos sofrimento um ao outro. Não pensava senão nela... e de repente tudo se desmorona. Ainda há pouco falava eu com ar inspi­rado, mas saí rindo às gargalhadas, acreditas nisso? É a pura verdade.

— Falas disso ainda agora com alegria — notou Aliócha, exami­nando o rosto radiante de seu irmão.

— Mas como podia eu saber que não a amava absolutamente? Era, no entanto, a verdade. Mas quanto ela me agradava, e ainda ontem quando eu discorria! Mesmo agora, agrada-me muito, entretanto deixo-a de coração leve. Pensas talvez que banco o fanfarrão.

— Não, talvez não fosse amor.

— Aliócha — disse Ivã rindo —, não raciocines a respeito do amor, isto não te convém. Como te salientaste ainda há pouco! Es­queci-me de abraçar-te por isto... Quanto ela me atormentava! Era um verdadeiro dilaceramento. Oh! ela sabia que eu a amava! Era a mim que ela amava e não a Dimítri — afirmou alegremente Ivã. — Dimítri só lhe serve para torturar-se. Tudo quanto lhe disse é a verdade pura. Somente, ser-lhe-ão precisos talvez quinze ou vinte anos para dar-se conta de que não ama realmente a Dimítri, mas apenas a mim, a quem ela faz sofrer. Talvez mesmo não o adivinhe nunca, malgrado a lição de hoje. Será melhor assim. Deixei-a para sempre. A propósito, que há com ela? Que se passou depois de minha partida?

Aliócha contou-lhe que Catarina Ivânovna tivera uma crise de ner­vos e delirava agora sem conhecimento.

— Não estará mentindo aquela Khokhlakova?

— Creio que não.

— É preciso saber notícias dela. Não se morre duma crise de ner­vos. Aliás, foi bondade de Deus conceder isso às mulheres. Não irei à casa dela. Para quê?

— Tu lhe disseste, no entanto, que ela jamais te amara.

— Foi de propósito, Aliócha. Vou pedir champanha, bebamos à minha liberdade! Se soubesses como estou contente!

— Não, meu irmão, não bebamos, aliás, sinto-me triste.

— Sim, és triste, percebi-o desde muito tempo.

— Então partes decididamente amanhã de manhã?

— Amanhã, mas não disse de manhã... Aliás, pode ser que sim. Acreditadas que hoje jantei aqui unicamente para evitar o velho, de tal modo me causa ele aversão? Se só houvesse ele, teria partido daqui desde muito tempo. Por que te inquietas tanto com a minha partida? Temos ainda tempo daqui até lá, toda uma eternidade!

— Como, se partes amanhã?

— Que é que isso pode mesmo fazer? Teremos sempre tempo para tratar do assunto que nos interessa. Por que me olhas com espanto? Responde, por que estamos reunidos aqui? Para falar do amor de Catarina Ivânovna, do velho ou de Dimítri? Do estrangeiro? Da si­tuação fatal da Rússia? Do Imperador Napoleão? É para isso?

— Não.

— Portanto, compreendes tu mesmo por quê. Nós outros, fedelhos, temos como tarefa resolver as questões eternas, eis nosso fim. Agora, toda a jovem Rússia só faz dissertar sobre essas- questões primordiais, ao passo que os velhos se limitam às questões práticas. Por que me olhaste durante três meses com um ar ansioso, senão para me perguntar: "Tens fé ou não tens?" Eis o que exprimiam os teus olhares, Alieksiéi Fiódorovitch; não é verdade?

— Pode muito bem ser — concedeu Aliócha, sorrindo. — Mas não estás zombando de mim neste momento, meu irmão?

— Zombando de ti? Não haveria de querer causar pesar a meu jovem irmão, que me olhou durante três meses com tanta ansiedade. Aliócha, olha-me de frente: sou um menino igual a ti, com a diferença de que és noviço. Como procede a juventude russa, pelo menos uma parte? Vai para um botequim de ar viciado, tal como este, por exem­plo, e instala-se num canto. Esses rapazes não se conhecem e ficarão quarenta anos sem tornar a encontrar-se. Que discutem eles naqueles breves minutos? Apenas questões essenciais: se Deus existe, se a alma é imortal. Os que não crêem em Deus discorrem sobre o socialismo, a anarquia, sobre a renovação da humanidade; ora, essas questões são as mesmas, mas encaradas sob outra face. E boa parte da juven­tude russa, a mais original, hipnotiza-se com essas questões. Não é verdade?

— Sim, para os verdadeiros russos, as questões da existência, de Deus, da imortalidade da alma, ou, como dizes, as mesmas encaradas sob outra face, são primordiais, e tanto melhor assim — disse Aliócha, olhando seu irmão, com um sorriso escrutador.

— Aliócha, ser russo não é sempre uma prova de inteligência. Não há nada de mais tolo que as ocupações atuais da juventude russa. No entanto, há um adolescente russo a quem amo bastante.

— Como expuseste bem tudo isso! — disse Aliócha, rindo.

— Pois bem, dize-me por onde começar. Pela existência de Deus?

— Como queiras, podes mesmo começar pela "outra face". Proclamaste ontem que Deus não existia. — Aliócha olhou seu irmão com um olhar penetrante.

— Disse isso ontem em casa do velho, expressamente para irri­tar-te. Vi teus olhos faiscarem. Mas agora estou disposto a entreter-me seriamente contigo. Desejo entender-me contigo, Aliócha, porque não tenho amigo e quero ter um. Imagina que admito talvez Deus — disse Ivã, rindo. — Não esperavas por isto, hein?

— Sem dúvida, se não brincas neste momento.

— Vamos lá! Foi ontem, em casa do stáriets, que se podia achar que eu estava brincando. Sabes, meu caro, que havia um velho pecador no século XVIII que disse: "Si Dieu riexistait pas, il foudrait Vinven­ter"?[4] E, com efeito, foi o homem quem inventou Deus. E o que é espantoso não é que Deus exista realmente, mas que essa idéia da necessidade de Deus tenha vindo ao espírito de um animal feroz e mau como o homem, tão santa, comovente e sábia é ela, tanta honra faz ao homem. Quanto a mim, renunciei desde muito tempo a per­guntar a mim mesmo se foi Deus quem criou o homem, ou o homem quem criou Deus. Bem entendido, não passarei em revista todos os axiomas que os adolescentes russos deduziram das hipóteses européias, porque o que na Europa é uma hipótese torna-se logo um axioma para os ditos. adolescentes, e não somente para eles mas para seus professores, que muitas vezes se lhes assemelham. De modo que afasto todas as hipóteses: qual é, com efeito, nosso desígnio? Meu de­sígnio é explicar-te o mais rapidamente possível a essência de meu ser, minha fé e minhas esperanças. Assim, declaro admitir Deus, pura e simplesmente. É preciso notar, no entanto, que, se Deus existe, se criou verdadeiramente a terra, fê-la, como se sabe, segundo a geometria de Euclides, e não deu ao espírito humano senão a noção das três dimensões do espaço. Entretanto, encontraram-se, encontram-se ainda geômetras e filósofos, mesmo eminentes, para duvidar de que todo o universo e até mesmo todos os mundos tenham sido criados somente de acordo com os princípios de Euclides. Ousam mesmo supor que duas paralelas que, de acordo com as leis de Euclides, jamais se pode­rão encontrar na terra, possam encontrar-se, em alguma parte, no infinito. Decidi, sendo incapaz de compreender mesmo isto, não pro­curar compreender Deus. Confesso humildemente minha incapacidade em resolver tais questões; tenho essencialmente o espírito de Euclides: terrestre. De que serve querer resolver o que não é deste mundo? E aconselho-te a jamais quebrar a cabeça a respeito, meu amigo Aliócha, sobretudo a respeito de Deus: existe ele ou não? Essas questões estão fora do alcance dum espírito que só tem a noção das três dimensões. Assim, admito Deus, não só voluntariamente, mas ainda sua sabedoria, seu fim que nos escapa; creio na ordem, no sentido da vida, na har­monia eterna, na qual se pretende que nos fundiremos um dia: creio no Verbo para o qual propende o Universo que está em Deus e que é ele próprio Deus, até o infinito. Estou no bom caminho? Imagina que, em definitivo, esse mundo de Deus, eu não o aceito e, embora saiba que ele existe, não o admito. Não é Deus que repilo, nota bem, mas a criação; eis o que me recuso admitir. Explico-me: estou con­vencido, como uma criança, de que o sofrimento desaparecerá, que a comédia revoltante das contradições humanas se esvanecerá como uma lamentável miragem, como a manifestação vil da impotência mesqui­nha, como um átomo do espírito de Euclides; que no fim do drama, quando aparecer a harmonia eterna, uma revelação se produzirá, pre­ciosa a ponto de enternecer todos os corações, de acalmar todas as indignações, de resgatar todos os crimes e o sangue vertido; de sorte que se poderá não só perdoar, mas justificar tudo quanto se passou sobre a terra. Que tudo isso se realize, seja, mas não o admito e não quero admiti-lo. Que as paralelas se encontrem sob meus olhos, verei e direi que se encontraram; e no entanto não o admitirei. Eis o essencial, Aliócha, eis minha tese. Comecei expressamente nossa conversa duma maneira que não podia ser mais idiota, mas levei-a até minha confissão, porque é o que esperas. Não era a questão de Deus que te interessava, mas a vida espiritual de teu irmão querido. Tenho dito.

Ivã acabou sua longa tirada com uma emoção singular, inesperada.

— Mas porque começaste de "uma maneira que não podia ser mais idiota"? — perguntou Aliócha, olhando com ar pensativo.

— Em primeiro lugar, por cor local: as conversas dos russos sobre esse tema travam-se sempre idiotamente. Em seguida, a idiotice apro­xima do fim e da clareza. É concisa e não faz astúcia, o espírito usa de atalhos e escapa-se. O espírito é desleal, mas há honestidade na idiotice. Quanto mais idiotamente confessar o desespero que me acabrunha, tanto melhor valerá isto para mim.

— Explicar-me-ás por que "não admites o mundo"?

— Decerto, não é um segredo e ia fazer isso mesmo. Meu irmãozinho, não tenho a intenção de perverter-te, nem de abalar tua fé. Sou eu antes que quereria curar-me ao teu contato — disse Ivã com o sorriso duma criança. Aliócha jamais o vira sorrir assim.

 

A REVOLTA

— Devo confessar-te uma coisa — começou Ivã. — Jamais pude compreender como se pode amar seu próximo. É precisamente, na minha idéia, o próximo que não se pode amar, ou somente a distância. Li, em alguma parte, a propósito de um santo, João, o Misericordioso, [5] a quem um passante faminto e franzido de frio foi um dia suplicar que o aquecesse; o santo deitou-se com ele, tomou-o nos seus braços e se pôs a insuflar seu hálito na boca purulenta do infeliz, infectada por uma horrível moléstia. Estou persuadido de que fez isso com esforço, mentindo a si mesmo, num sentimento de amor ditado pelo dever e por espírito de penitência. Para que se possa amá-lo, é preciso que um homem esteja oculto; desde que ele mostra seu rosto, o amor desaparece.

— O stáriets Zósima falou por várias vezes disso — observou Aliócha. — Dizia também que muitas vezes, para almas inexperientes, o rosto de um homem é um obstáculo ao amor. Há, no entanto, muito amor na humanidade, um amor quase igual ao do Cristo, eu mesmo o sei, Ivã...

— Pois bem; eu, eu não o sei ainda e não posso compreendê-lo; muitos estão no mesmo caso. Trata-se de saber se isso provém dos maus pendores, ou se é inerente à natureza humana. Na minha opinião, o amor do Cristo pelos homens é uma espécie de milagre impossível na terra. É verdade que ele era Deus; mas nós não somos deuses. Suponhamos, por exemplo, que eu sofro profundamente; outro não poderá jamais conhecer a que ponto sofro, porque é outro e não eu. Além do mais, é raro que um indivíduo consinta em reconhecer o sofri­mento de seu próximo (como se fosse uma dignidade!). Por que isso, que pensas? Talvez porque cheiro mal, tenho o ar estúpido ou terei pisado o pé daquele senhor! Além disso, há diversos sofrimentos: o que humilha, a fome, por exemplo, meu benfeitor quererá bem admiti-lo; mas desde que meu sofrimento se eleve, que se trate de uma idéia, por exemplo, só nela crerá por exceção, porque, talvez, examinando-me, verá que não tenho o rosto que sua imaginação em­presta a um homem que sofre por uma idéia. Logo cessará seus bene­fícios, e isto sem maldade. Os mendigos, sobretudo aqueles que têm alguma nobreza, não deveriam jamais mostrar-se, mas pedir esmola por intermédio dos jornais. Em teoria, ainda, pode-se amar seu pró­ximo, e até mesmo de longe; de perto, é quase impossível. Se, pelo menos, tudo se passasse como no palco, nos balés em que os pobres em farrapos de seda e com rendas rasgadas mendigam, dançando gra­ciosamente, poder-se-ia ainda admirá-los. Admirá-los, não amá-los. Mas basta, a respeito. Queria somente colocar-te no meu ponto de vista. Queria falar dos sofrimentos da humanidade em geral, mas vale mais que me limite aos sofrimentos das crianças. Meu argumento, ficará reduzido à décima parte, mas é melhor assim. Perco com isso, bem entendido. Em primeiro lugar, podem-se amar as crianças de perto, mes­mo sujas, mesmo feias (parece-me, no entanto, que as crianças nunca são feias). Em seguida, se não falo dos adultos, é que não somente são repelentes e indignos de ser amados, mas têm uma compensação: comeram o fruto proibido, discerniram o bem e o mal, tornaram-se "semelhantes a deuses". Continuam a comê-lo. Mas as criancinhas nada comeram e são ainda inocentes. Gostas de crianças, Aliócha? Sei que as amas e compreenderás por que só quero falar delas. Sofrem muito, também elas, sem dúvida; é para expiar a falta de seus pais, que comeram o fruto; mas é o raciocínio dum outro mundo, incom­preensível para o coração humano aqui embaixo. Um inocente não saberia sofrer por um outro, sobretudo um pequeno ser! Isto te sur­preenderá, Aliócha, mas eu também adoro as crianças. Nota que os homens cruéis, de paixões selvagens, os Karamázovi, amam por vezes muito as crianças. Até os sete anos, as crianças diferem enorme-mente do homem; são como um outro ser, com outra natureza. Co­nheci um bandido num cárcere; durante sua carreira, quando se intro­duzia de noite nas casas para roubar, assassinara famílias inteiras, inclusive as crianças. No entanto, na prisão, amava-as estranhamente. Só fazia olhar as que brincavam no pátio da prisão e tornou-se amigo de um menino habituado a brincar sob sua janela... Sabes por que digo tudo isto, Aliócha? Estou com dor de cabeça e sinto-me triste.

— Estás com um ar esquisito, como se não estivesses em teu normal — observou Aliócha, com inquietação.

— A propósito, um búlgaro contava-me outrora em Moscou — continuou Ivã, como se não tivesse ouvido seu irmão — as atrocidades dos turcos e dos cherqueses em seu país: temendo um levante geral dos eslavos, incendeiam, estrangulam e violam as mulheres e crianças; pregam os prisioneiros nas paliçadas pelas orelhas, abandonam-nos assim até de manhã, depois os enforcam, etc. Compara-se por vezes a crueldade do homem com a dos animais selvagens; é uma injustiça para com estes. As feras não atingem jamais os refinamentos do ho­mem. O tigre dilacera sua presa e a devora; não conhece outra coisa. Não lhe viria à idéia pregar as pessoas pelas orelhas, ainda mesmo que o pudesse fazer. São os turcos os que torturam crianças com um prazer sádico, arrancam os bebês do ventre materno, lançam-nos no ar para recebê-los nas pontas das baionetas, sob os olhos das mães, cuja presença constitui o principal prazer. Eis outra cena que me impressionou. Pensa nisto: um bebê ainda de peito, nos braços de sua mãe trêmula, e em torno deles os turcos. Ocorre-lhes uma idéia divertida: acariciando o bebê, conseguem fazê-lo rir; depois um deles aponta-lhe um revólver bem junto ao rosto. A criança ri alegremente, estende suas mãozinhas para agarrar o brinquedo; de repente, o artista puxa o gatilho e rebenta-lhe a cabeça. Os turcos gostam muito, segundo dizem, de coisas doces.

— Meu irmão, a que vem tudo isto?

— Penso que se o diabo não existe e foi por conseguinte criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem.

— Como Deus, então?

— Sabes muito bem usar as palavras, como diz Polônio no Hamlet — continuou Ivã, rindo. — Pegaste nessa frase; pois seja, isso me agrada. Mas é belo o teu Deus, se o homem o fez à sua imagem. Perguntavas ainda há pouco a que vem tudo isto? Vê, sou um dile­tante, um amador de fatos e anedotas; recolho-os dos jornais, anoto o que me é contado; isto já forma uma bela coleção. Os turcos nela figuram, naturalmente, com outros estrangeiros, mas tenho também casos nacionais que os ultrapassam. Entre os russos, as varas e o chicote têm sobretudo lugar de honra; não se prega ninguém pelas orelhas, ora essa, somos europeus, mas nossa especialidade é açoitar e não se poderia privar-nos dela. Dir-se-ia que essa prática desapareceu no estrangeiro, em conseqüência do abrandamento dos costumes, ou então porque as leis naturais proíbem que o homem açoite seu seme­lhante. Em compensação, existe lá como aqui um costume, a tal ponto nacional, que seria quase impossível na Rússia, muito embora se implante também entre nós, sobretudo em virtude do movimento religioso na alta sociedade. Possuo uma interessante brochura traduzida do francês, em que se conta a execução em Genebra, há cinco anos, de um assassino chamado Ricardo, que se converteu ao cristianismo antes de morrer, na idade de 24 anos. Era filho natural, dado por seus pais, quando tinha seis anos, a pastores suíços, que o educaram para fazer dele um trabalhador. Cresceu como um pequeno selvagem, sem nada aprender; aos sete anos, mandaram-no a fazer pastar o rebanho, ao frio e à umidade, mal vestido e faminto. Aquela gente não sentia nenhum remorso ao tratá-lo assim; pelo contrário, achava que tinha direito de fazê-lo, porque lhe haviam dado Ricardo como uma coisa e não julgava mesmo necessário nutri-lo. O próprio Ricardo conta que então, como o filho pródigo do Evangelho, quis mesmo comer a var­redura destinada aos porcos que eram engordados, mas era privado disso e batiam-lhe quando ele a roubava dos animais; foi assim que passou sua infância e sua mocidade, até que, tornando-se grande e forte, pôs-se a roubar. Aquele selvagem ganhava a vida em Genebra como jornaleiro, bebia seu salário, vivia como um monstro e acabou por assassinar um velho para roubá-lo. Foi preso, julgado e condenado à morte. Não se é sentimental naquela cidade! Na prisão, é logo cercado pelos pastores, pelos membros de associações religiosas, pelas senhoras patrocinadoras. Aprendeu a ler e a escrever, explicaram-lhe o Evangelho e, à força de doutriná-lo e de catequizá-lo, acabou por con­fessar solenemente seu crime. Dirigiu ao tribunal uma carta declarando que era um monstro, mas que o Senhor se havia dignado esclarecê-lo e enviar-lhe sua graça. Toda Genebra ficou emocionada, a Genebra filantrópica e beata. Tudo quanto havia de nobre e de bem-pensante acorreu à prisão. Beijam-no, abraçam-no: 'Tu és nosso irmão! Foste tocado pela graça!" Ricardo chora de enternecimento: "Sim, Deus iluminou-me! Na minha infância e na minha mocidade, invejava eu a varredura dos porcos; agora, a graça tocou-me, morro no Senhor!" "Sim, Ricardo, tu derramaste sangue e deves morrer. Não é culpa tua se ignoravas Deus, quando roubavas a varredura dos porcos e batiam-te por causa disso (aliás, tinhas bastante culpa, porque é proi­bido roubar), mas derramaste sangue e deves morrer. " Enfim chega o derradeiro dia, Ricardo, enfraquecido, chora e só faz repetir a cada instante: "Eis o mais belo dia de minha vida, porque vou para Deus!" "Sim", exclamam pastores, juizes e senhoras patrocinadoras, "é o mais belo dia de tua vida, porque vais para Deus!" O grupo se dirige para o cadafalso, atrás da carreta ignominiosa que leva Ricardo. Che­ga-se ao local do suplício. "Morre, irmão", gritam para Ricardo, "morre no Senhor, sua graça te acompanhe. " E, coberto de beijos, o irmão Ri­cardo sobe ao cadafalso, colocam-no na guilhotina e sua cabeça cai, em nome da graça divina. É característico. A referida brochura foi traduzida para o russo pelos luteranos da alta sociedade e distribuída como suplemento gratuito a diversos jornais e publicações, para instruir o povo. A aventura de Ricardo é interessante porque nacional. Na Rússia, se bem que seja absurdo decapitar um irmão pela única razão de ter-se tornado dos nossos e tê-lo tocado a graça, temos quase coisa igual. Entre nós, torturar batendo constitui uma tradição histórica, um gozo pronto e imediato. Niekrássov conta num de seus poemas como um mujique bate com seu chicote nos olhos de seu cavalo. Quem já não viu isso? É bem russo. O poeta mostra que o cavalicoque sobre­carregado, atolado com sua carroça, não pode desvencilhar-se. Então o mujique bate-lhe encarniçadamente, bate sem compreender o que faz, os golpes chovem numa espécie de embriaguez. "Não podes puxar, pois puxarás assim mesmo; morre, mas puxa. " A besta sem defesa debate-se desesperadamente, enquanto seu dono açoita seus doces olhos, donde rolam lágrimas. Enfim, consegue ele desatolar-se e lá se vai tremendo, sem fôlego, num andar cambaleante, constrangido, vergo­nhoso. Produziu isto em Niekrássov uma impressão espantosa. Mas também não se trata apenas de um cavalo que Deus criou para ser chicoteado? Foi o que nos explicaram os tartaros que nos legaram o chicote. No entanto, podem-se também açoitar as pessoas. Um senhor culto e sua mulher sentem prazer em açoitar com varas sua filhinha de sete anos. E o papai sente-se feliz porque as varas têm espinhos. "Isto causará mais dor assim", diz ele. Há seres tais que se excitam a cada golpe, até o sadismo, progressivamente. Bate-se na criança um minuto, depois cinco, depois dez, sempre mais fortemente. Ela grita, afinal, já sem forças, sufoca: "Papai, meu papaizinho, tenha dó!" O caso torna-se escandaloso e recorre-se ao tribunal. Toma-se um advogado. Há muito tempo que o povo russo chama o advogado "uma consciência que se aluga". O defensor pleiteia em nome de seu cliente: "O caso é simples; é uma cena de família, como se vêem muitas. Um pai açoi­tou sua filha, é uma vergonha processá-lo!" O júri fica convencido, recolhe-se e traz um veredicto negativo. O público exulta por ver absol­vido aquele carrasco. Ai! não assistia eu à audiência. Teria proposto fundar uma bolsa em honra daquele bom pai de família!... Eis um belo quadro! No entanto, tenho ainda melhor, Aliócha, e sempre a propósito de crianças russas. Trata-se de uma menina de cinco anos, por quem criaram aversão seu pai e sua mãe, honrados funcionários instruídos e bem educados. Repito-o, é um pendor especial de muitas pessoas o prazer de torturar as crianças, mas somente as crianças. Para com os outros indivíduos, esses carrascos se mostram afáveis e ternos, como europeus instruídos e humanos, mas sentem prazer em fazer as crianças sofrerem, é sua maneira de amá-las. A confiança angélica dessas criaturas sem defesa seduz os seres cruéis. Não sabem aonde ir, nem a quem se dirigir, e isto excita os maus instintos. Cada homem oculta em si um demônio: acesso de cólera, sadismo, desencadeamento de paixões ignóbeis, doenças contraídas na devassidão, ou então a gota, a hepatite, isto varia. Portanto, aqueles pais instruídos praticavam muitas sevícias na pobre menininha. Açoitavam-na, espe­zinhavam-na sem razão, seu corpo vivia coberto de equimoses. Ima­ginaram por fim um refinamento de crueldade: pelas noites glaciais, no inverno, encerravam a menina na privada, sob pretexto de que ela não pedia a tempo, à noite, para ir ali (como se, naquela idade, uma criança que dorme profundamente pudesse sempre pedir a tempo). Esfregavam-lhe os próprios excrementos na cara, e sua mãe, sua pró­pria mãe obrigava-a a comê-los! E essa mãe dormia tranqüila, insen­sível aos gritos da pobre criança fechada naquele lugar repugnante! Vês tu daqui aquele pequeno ser, não compreendendo o que lhe acon­tece, no frio e na escuridão, bater com seus pequeninos punhos no peito ofegante e derramar lágrimas inocentes, chamando o "bom Deus" em seu socorro? Compreendes esse absurdo, tem ele um fim, meu ami­go e meu irmão, tu, o noviço piedoso? Dizem que tudo isso é indispensável para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no espírito do homem. Para que pagar tão caro essa distinção diabólica? Toda a ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças. Não falo dos sofrimentos dos adultos. Eles comeram o fruto proibido, que o diabo os leve! Mas as crianças! Faço-te sofrer, Aliócha, tens ar de não estar passando bem. Queres que me detenha?

— Não, também quero sofrer. Continua.

— Ainda um pequeno quadro característico. Acabo de ler nos Arqui­vos Russos ou em A Antigüidade Russa, não sei bem. Era na época mais sombria da servidão, no começo do século XIX. Viva o czar liber­tador! Um antigo general, com importantes relações, rico proprietário rural, vivia numa de suas propriedades da qual dependiam 2 000 almas. Era um desses indivíduos (na verdade já pouco numerosos, então) que, uma vez retirados do serviço militar, estavam quase convencidos de seu direito de vida e de morte sobre seus servos. Cheio de arrogância, tratava do alto seus modestos vizinhos, como se fossem para­sitas e palhaços seus. Tinha ele uma centena de capatazes, todos a cavalo e uniformizados, e várias centenas de galgos. Ora, eis que um dia um pequeno servo de oito anos, que se divertia atirando pedras, feriu na pata um daqueles cães favoritos. Vendo seu cão coxear, per­guntou o general a causa. Explicaram-lhe o caso, designando o culpa­do. Mandou imediatamente agarrar o menino, a quem arrancaram dos braços de sua mãe e fizeram passar a noite na prisão. No dia se­guinte, logo ao romper da aurora, o general, em uniforme de gala, monta a cavalo para ir à caça, cercado de seus parasitas, de seus monteiros, de seus cães, de seus capatazes. Reúne-se toda a famulagem para dar-se um exemplo e a mãe do culpado é trazida, bem como o menino. Era uma manhã de outono, brumosa e fria, excelente para a caça. O general manda que se tire toda a roupa do menino, o que foi feito. O menino tremia, louco de medo, não ousando dizer uma palavra. "Façam-no correr", ordena o general. "Corre! corre!", gri­tam-lhe os capatazes. O menino põe-se a correr. "Cisca! Cisca!", berra o general, e açula toda a sua matilha. Os cães estraçalharam a criança diante dos olhos de sua mãe. O general, parece, foi posto sob tutela. Pois bem, que merecia ele? Seria preciso fuzilá-lo? Fala, Aliócha.

— Sim, fuzilá-lo! — proferiu mansamente Aliócha, totalmente pá­lido, com um sorriso convulso.

— Bravo! — exclamou Ivã, encantado. — Se o dizes, tu, é que... Vejam só, o asceta! Tens, pois, também um diabinho no coração, Alió­cha Karamázov?

— Disse uma tolice, mas...

— Sim, mas... Fica sabendo, noviço, que as tolices são necessá­rias ao mundo; sobre elas é que ele se funda: sem essas tolices, nada se passaria aqui na terra. Sabemos o que sabemos.

— Que sabes tu?

— Nada compreendo— prosseguiu Ivã, como em sonho —, nada quero compreender agora. Atenho-me aos fatos. Tentando compreen­der, altero os fatos...

— Por que me atormentas? — disse dolorosamente Aliócha. — Dir-me-ás por fim?

— Decerto. Preparava-me para dizer-te. Gosto de ti e não quero abandonar-te ao teu Zósima. Ivã calou-se um instante e seu rosto entristeceu-se de súbito.

— Escuta, limitei-me às crianças para ser mais claro. Nada disse das lágrimas humanas de que a terra está saturada, abreviando de propósito meu assunto. Confesso humildemente não compreender a razão desse estado de coisas. Os homens são os únicos culpados: ti­nham-lhes dado o paraíso, cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do céu, sabendo que seriam felizes; não merecem, pois, nenhu­ma compaixão. Segundo meu pobre espírito terrestre, sei apenas que o sofrimento existe, que não há culpados, que tudo se encadeia, tudo passa e se equilibra. São as pataratas de Euclides, eu sei, mas não posso consentir em viver baseando-me nisso. Que bem me pode fazer tudo isso? Preciso é de uma compensação, do contrário destruir-me-ia a mim mesmo. E não uma compensação em alguma parte, no infinito, mas aqui embaixo, que eu mesmo a veja. Acreditei, quero ser teste­munha, e, se já estou morto, que me ressuscitem; se tudo se passasse sem mim seria bastante aflitivo. Não quero que meu corpo com seus sofrimentos e suas faltas sirva unicamente para arder a serviço de alguma harmonia futura. Quero ver com meus olhos a corça dormir junto do leão, a vítima beijar seu matador. É sobre este desejo que repousam todas as religiões e eu tenho fé. Quero estar presente quando todos souberem o porquê das coisas. Mas as crianças, que farei delas? Não posso resolver essa questão. Se todos devem sofrer, a fim de con­correr com seu sofrimento para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? Não se compreende por que deveriam sofrer, também elas, em nome da harmonia. Por que serviriam de materiais destinados a prepará-la? Compreendo bem a solidariedade do pecado e do castigo, mas não pode ela aplicar-se aos inocentinhos, e se na verdade são solidários com os malfeitos de seus pais, é uma verdade que não é deste mundo e que eu não compreendo. Um galhofeiro malicioso obje­tará que as crianças crescerão e terão ocasião de pecar, mas aquele menino de oito anos ainda não havia crescido e foi estraçalhado pelos cães. Aliócha, não estou blasfemando. Compreendo como estremecerá o Universo, quando o céu e a terra se unirem no mesmo grito de alegria, quando tudo quanto vive ou viveu proclamar: "Tens razão, Senhor Deus, porque tuas vias nos são reveladas!", quando o carrasco, a mãe, o menino se beijarem e declararem com lágrimas: "Tens ra­zão, Senhor Deus!" Sem dúvida então, a luz se fará e tudo será explicado. Mas eis a dificuldade: não posso admitir tal solução. E tomo minhas providências a tal respeito, enquanto me encontro ainda aqui na terra. Acredita-me, Aliócha, pode ser que eu viva até esse mo­mento ou que ressuscite então, e exclamarei talvez com os outros, vendo a mãe beijar o carrasco de seu filho: "Tu tens razão, Senhor Deus!", mas será contra minha vontade. Enquanto ainda é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale ela uma lágrima de criança, daquela pequenina vítima que batia no peito e rezava ao "bom Deus", no seu canto infecto; não as vale, porque aquelas lágrimas não foram redimidas. Enquanto assim for, não se poderá falar de harmonia. Ora, não há possibilidade de redimi-las. Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu. Mas de que serve esse castigo, uma vez que as crianças tiveram também o seu inferno? Aliás, que vale essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofri­mento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço. Não quero que a mãe perdoe ao carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu seu filho estraçalhado pelos cães. Ainda mesmo que seu filho perdoasse, não teria ela o direito. Se o direito de perdoar não existe, que vem a tornar-se a harmonia? Há no mundo um ser que tenha esse direito? Por amor pela humanidade é que não quero essa harmonia. Prefiro conservar meus sofrimentos não redimidos e minha indignação persistente, mesmo se não tivesse razão! Aliás, deram realce excessivo a essa harmonia, a entrada custa demasiado caro para nós. Prefiro entregar meu bilhete de entrada. Como homem de bem, tenho mesmo obrigação de devolvê-lo o mais cedo possível. É o que faço. Não recuso admitir Deus, mas muito respeitosamente devolvo-lhe meu bi­lhete.

— Mas isto é revolta — disse mansamente Aliócha, de olhos baixos.

— Revolta? Não era meu desejo ver-te empregar essa palavra. Po­de-se viver revoltado? Ora, eu quero viver. Responde-me francamente. Imagina que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas, a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre suas lágrimas a felicidade futura. Consentidas tu, nestas condições, em edificar semelhante felicidade? Responde sem mentir.

— Não, não consentiria.

— Então, podes admitir que os homens consentiriam em aceitar essa felicidade ao preço do sangue dum pequeno mártir?

— Não, não posso admiti-lo, meu irmão — declarou Aliócha, com os olhos cintilantes. — Perguntaste se existe no mundo inteiro um ser que teria o direito de perdoar. Sim, esse ser existe. Pode tudo perdoar, a todos e por tudo, porque foi ele quem verteu seu sangue inocente por todos e por tudo. Tu o esqueceste, é ele a pedra angular do edi­fício e é a ele que se deve gritar: "Tu tens razão, Senhor Deus, porque tuas vias nos são reveladas".

— Ah! sim, "o único impecável" e "seu sangue". Não, não o es­queci, admirava-me, pelo contrário, de que não o tivesses ainda men­cionado, porque nas discussões os vossos começam habitualmente por colocá-lo à frente. Fica sabendo, mas não rias, que compus um poema, há um ano. Se puderes conceder-me ainda dez minutos, recitar-to-ei.

— Escreveste um poema?

— Não — disse Ivã, rindo —, porque jamais compus dois versos sequer em minha vida. Mas sonhei esse poema e lembro-me dele. Serás meu primeiro leitor, isto é, meu ouvinte. Por que não aproveitar tua presença? Queres?

— Sou todo ouvidos.

— Meu poema intitula-se "O Grande Inquisidor"; é absurdo, mas quero que o fiques conhecendo.

 

O GRANDE INQUISIDOR

— É necessário um preâmbulo do ponto de vista literário. A ação se passa no século XVI. Sabes que nessa época era de uso fazer intervirem nos poemas as potências celestiais. Não falo de Dante. Na França, os clérigos julgadores e os monges davam representações em que se punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, o Cristo e Deus Pai. Eram espetáculos ingênuos. Em Notre Dame de Paris, de Vítor Hugo, em honra ao nascimento do Delfim, no reinado de Luís XI, em Paris, é o povo convidado a uma representação edifi­cante e gratuita, Le bon jugement de Ia três sairite et gracieuse Vierge Marie. [6] Nesse mistério, aparece a Virgem em pessoa para pronunciar o seu bon jugement. Entre nós, em Moscou, antes de Pedro, o Grande, davam-se de tempos em tempos representações desse gênero, tiradas sobretudo do Antigo Testamento. Além disso, circulava uma porção de recitativos e de poemas em que figuravam, de acordo com as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos nossos mos­teiros, traduziam-se, copiavam-se esses poemas, compunham-se mesmo novos, e isto sob a dominação tártara. Por exemplo, existe um peque­no poema monástico, sem dúvida traduzido do grego: La Vierge chez les damnés, [7] com quadros duma audácia dantesca. A Virgem visita o inferno, guiada por São Miguel Arcanjo. Vê os condenados e seus tormentos. Entre outras, há uma categoria de pecadores num lago de fogo. Alguns afundam-se no lago e não aparecem mais; são esses "esquecidos pelo próprio Deus", expressão duma profundeza e duma energia notáveis. A Virgem, banhada em pranto, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede perdão para todos os pecadores que viu no inferno, sem distinção. Seu diálogo com Deus é de um interesse extraordinário. Suplica, insiste e, quando Deus lhe mostra os pés e as mãos de seu filho traspassados pelos cravos e lhe pergunta: "Como poderei eu perdoar a seus carrascos?", ordena ela a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que caiam de joelhos com ela e implorem o perdão para os pecadores, sem distinção. Afinal, obtém a cessação dos tormentos, cada ano, da sexta-feira santa a Pentecostes, e os condenados, do fundo do inferno, agradecem a Deus e exclamam: "Senhor, tua sentença é justa!" Pois bem! Meu pequeno poema teria sido nesse gosto, se tivesse aparecido naquela época. Deus aparece; não diz nada, só faz passar. Quinze séculos decorreram, desde que ele prometeu voltar ao seu reino, depois que seu profeta escreveu: "Voltarei em breve. Quanto ao dia e à hora, o próprio Filho não os conhece, mas somente meu Pai que está no céu", segundo suas pró­prias palavras na terra. E a humanidade o espera com a mesma fé de outrora, uma fé mais ardente ainda, porque quinze séculos se pas­saram desde que o céu deixou de dar testemunhos ao homem.

Daquilo que o coração diz O céu não dá testemunho.

E só resta a fé no referido coração. É verdade que numerosos milagres se verificavam então; santos realizavam curas maravilhosas. A Rainha dos Céus visitava certos justos, de acordo com a biografia deles. Mas o diabo não dorme; a humanidade começou a duvidar da autenticidade daqueles milagres. Naquele momento nascia na Ale­manha uma terrível heresia que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardente como um facho, caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas. " [8] A fé dos fiéis só fez redobrar. As lágrimas da humanidade elevam-se para ele como outrora, aguardam-no, amam-no, espera-se nele como antes... Depois de tantos séculos, a hu­manidade reza com fervor: "Senhor Deus, dignai-vos aparecer-nos", depois de tantos séculos grita ela para ele, ele que quis, na sua mise­ricórdia infinita, descer entre seus fiéis. Outrora, já havia visitado justos, mártires, santos anacoretas, como o narram suas biografias. Entre nós, Tiútchev, que acreditava profundamente na verdade de suas palavras, proclamou que Sob o peso da cruz, esmagador, O Rei dos Céus, de servo disfarçado, Toda te percorreu, terra natal, O solo teu inteiro abençoando. Mas eis que quis ele mostrar-se por um instante pelo menos ao povo sofredor e miserável, ao povo que se arrastava no pecado, mas que o ama ingenuamente. A ação se passa na Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias no país ardiam as fogueiras à glória de Deus e Em esplêndidos autos de fé Queimavam-se horríveis heréticos. Oh! não foi assim que ele prometeu voltar no fim dos tempos, em toda a sua glória celeste, subitamente, "como um relâmpago que brilha do Oriente ao Ocidente". Não, quis visitar seus filhos, no lugar onde crepitavam precisamente as fogueiras dos heréticos. Na sua misericórdia infinita, volta ao convívio dos homens sob a forma que tivera durante os três anos de sua vida pública. Ei-lo que desce para as ruas ardentes da cidade meridional, onde, justamente na véspera, na presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais encantadoras damas da corte, o grande inquisidor mandara queimar uma centena de heréticos ad majorem gloriam Dei[9] Apareceu docemente, sem se fazer notar, e — coisa estranha — todos o reconheciam. Seria uma das mais belas passagens de meu poema explicar a razão disso. Atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à sua passa­gem e segue-lhe os passos. Silencioso, passa ele por entre a multidão com um sorriso de compaixão infinita. Seu coração está abrasado de amor, seus olhos desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e despertam o amor nos corações. Estende-lhes os braços, abençoa-os, uma virtude salutar emana de seu contato e até mesmo de suas vestes. Um velho, cego de infância, exclama em meio da multidão: "Senhor, cura-me e eu te verei". Uma casca cai de seus olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão sobre as marcas de seus passos. As crianças lançam flores à sua passagem, canta-se, grita-se: "Hosana!" "É ele, deve ser ele!", exclama-se. "Só pode ser ele!" Ele pára no adro da Catedral de Sevilha no momento em que trazem um pequeno ataúde branco no qual repousa uma me­nina de sete anos, a filha única de uma pessoa notável. A morta está coberta de flores.

"Ele ressuscitará tua filha", gritam na multidão para a mãe lacri­mosa. O padre, que sai a receber o ataúde, olha com ar perplexo e franze o cenho. De súbito, repercute um grito, a mãe se lança aos seus pés: "Se és tu, ressuscita minha filha!", e estende os braços para ele. O cortejo pára, deposita-se o caixão sobre as lajes. Ele a contem­pla, cheio de compaixão, e sua boca ordena docemente mais uma vez: "Talitha kumi, [10] e a menina se levantou". A morta se levanta, senta-se e olha em redor de si, sorridente, com ar admirado. Tem na mão o buquê de rosas brancas que haviam depositado no caixão. No meio da turbamulta há agitação, grita-se, chora-se. Naquele momento passa pela praça o cardeal, grande inquisidor. É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queima­dos os inimigos da Igreja Romana. Retomara sua velha batina grosseira. Seus sombrios auxiliares e a guarda do Santo Ofício seguem-no a uma distância respeitosa. Detém-se diante da multidão e observa de longe. Viu tudo, o caixão depositado diante dele, a ressurreição da menininha, e seu rosto ensombreceu-se. Franze suas espessas sobrancelhas e seus olhos brilham com um clarão sinistro. Aponta-o com o dedo e ordena aos guardas que o prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a submeter-se, a obedecer-lhe tre­mendo, que a multidão se afasta imediatamente diante dos esbirros; em meio dum silêncio de morte, estes o pegam e levam-no. Como um só homem, aquele povo se inclina até o chão diante do velho inqui­sidor, que o abençoa sem dizer palavra e prossegue seu caminho. O prisioneiro é conduzido ao sombrio e velho edifício do Santo Ofício, onde o encerram numa estreita cela abobadada. O dia chega ao fim, vem a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está embalsamado do perfume de loureiros e limoeiros. Nas trevas, a porta de ferro da masmorra abre-se de repente e o grande inquisidor apa­rece, com um facho na mão. Está só, a porta torna a fechar-se atrás dele. Pára no limiar e observa longamente a Santa Face. Por fim, aproxima-se, pousa o facho sobre a mesa e diz-lhe:

— És tu, és tu? — Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: — Não digas nada, cala-te. Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais do que já disseste outrora. Por que vieste estorvar-nos? Porque tu nos estorvas, bem o sabes. Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem tu és e não quero sabê-lo: tu ou apenas tua aparência; mas amanhã eu te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar tua fogueira. Sabes disso? Talvez — acrescenta o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos em seu prisioneiro.

— Não compreendo bem o que quer isto dizer, Ivã — observou Aliócha, que escutara em silêncio. — É uma fantasia, um erro do ancião, um qüiproquó estranho?

— Admite esta última suposição — disse Ivã, rindo —, se o rea­lismo moderno te tornou a este ponto refratário ao sobrenatural. Seja como quiseres. É verdade que o meu inquisidor tem noventa anos e sua idéia pode ter-lhe desde muito tempo transtornado o espírito. Afi­nal, é talvez um simples delírio, o devaneio de um velho antes de seu fim, com a imaginação esquentada pelo recente auto de fé. Mas, qüiproquó ou fantasia, que nos importa? O que é preciso somente notar é que o inquisidor revela afinal seu pensamento, desvenda o que calou durante toda a sua carreira.

— E o prisioneiro não diz nada? Contenta-se com olhá-lo?

— Com efeito. Só pode calar-se. O próprio ancião faz-lhe observar que não tem ele o direito de acrescentar uma palavra às suas antigas palavras. É talvez o traço fundamental do catolicismo romano, na mi­nha humilde opinião: "Tudo foi transmitido por ti ao papa, tudo de­pende pois agora do papa, não venhas estorvar-nos antes do tempo, pelo menos". Tal é a doutrina deles, dos jesuítas, em todo caso. Encontrei-a nos seus teólogos. "Tens tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?", pergunta o velho, que responde em seu lugar: "Não, não tens o direito, porque essa revelação se ajuntaria à de outrora, e seria isso retirar aos homens a liberdade que defendias tanto na terra. Todas as tuas revelações novas feririam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, essa liberdade da fé. Não disseste bem muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem, viste-os, os homens "livres" — acrescenta o velho, com ar sarcástico. — Sim, isto nos custou caro — prosseguiu ele, olhando-o com severidade —, mas levamos a cabo afinal aquela obra em teu nome. Foram-nos precisos quinze séculos de rude labor para instaurar a liberdade; mas está feito, e bem feito. Não o crês? Olhas-me com doçura, sem mesmo fazer-me a honra de te indignares. Mas fica sabendo que jamais os homens se creram tão livres como agora, e, no entanto, a liberdade deles de­positaram-na humildemente a nossos pés. Isto é a nossa obra, para dizer a verdade: é a liberdade que sonhavas?"

— Não compreendo de novo — interrompeu Aliócha. — Ironiza ele, zomba?

— Absolutamente! Vangloria-se de ter, ele e os seus, suprimido a liberdade, com o fito de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira vez (fala ele, bem entendido, da Inquisição), que se pode pensar na felicidade dos homens. São naturalmente revoltados; revoltados podem ser felizes? Tu estavas advertido — diz-lhe ele —, con­selhos não te faltaram, mas não os levaste em conta, rejeitaste o único meio de proporcionar a felicidade aos homens; felizmente, ao partires, tu nos transmitiste a obra, prometeste, concedeste-nos solenemente o direito de ligar e desligar; decerto, não podes pensar em retirar de nós agora esse direito. Por que então vieste estorvar-nos?"

— Que significa isso: "As advertências e os conselhos não te fal­taram?" — perguntou Aliócha.

— Mas é o ponto capital no discurso do ancião.

"O espírito terrível e profundo, o espírito da destruição e do nada", continua ele, "falou-te no deserto e as Escrituras relatam que ele te 'tentou', é verdade? E nada se podia dizer de mais penetrante que o que te foi dito nas três perguntas ou, para falar com as Escrituras, as 'tentações' que repeliste? Se jamais houve na terra um milagre autên­tico e retumbante, foi o dia daquelas três tentações. O simples fato de terem sido formuladas aquelas três perguntas constitui um milagre. Suponhamos que tenham desaparecido das Escrituras, que seja preciso reconstituí-las, imaginá-las de novo para substituí-las ali, e que se reúnam para esse efeito todos os sábios da terra, homens de Estado, prelados, sábios, filósofos, poetas, dizendo-lhes: imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do aconteci­mento, mas ainda exprimam em três frases toda a história da humanidade futura — acreditas que esse areópago da sabedoria humana poderia imaginar nada de tão forte e de tão profundo como as três questões que te propôs então o poderoso espírito? Essas três questões provam por si sós que se tem de ver com o espírito eterno e absoluto e não com um espírito humano transitório. Porque resumem e predi­zem ao mesmo tempo toda a história ulterior da humanidade, são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Não se podia na ocasião perceber isso, porque o futuro estava velado, mas agora, após quinze séculos decorridos, vemos que tudo fora previsto naquelas três perguntas e realizou-se a ponto de ser impossível acrescentar-lhes ou retirar-lhes uma só palavra.

"Decide, pois, tu mesmo quem tinha razão: tu, ou aquele que te interrogava? Lembra-te da primeira pergunta, do sentido, senão do teor: queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impe­dem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade! Vês aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que tua mão se retire e não tenham eles mais pão.

"Mas tu não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, estimando que era ela incompatível com a obediência comprada por meio de pães. Replicaste que o homem não vive somente de pão; mas sabes que, em nome desse pão terrestre, o espírito da terra se insur­girá contra ti, lutará e te vencerá, que todos o seguirão, gritando: 'Quem é semelhante a esse animal? Ele nos deu o fogo do céu!' Sé­culos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. 'Nutre-os e então exige deles que sejam vir­tuosos!' Eis o que se inscreverá sobre o estandarte da revolta que abaterá teu templo. Em seu lugar elevar-se-á novo edifício, uma segun­da torre de Babel, que ficará sem dúvida inacabada, como a primeira, mas tu terias podido poupar aos homens essa nova tentativa e mil anos de sofrimento. Porque virão eles procurar-nos, depois de ter penado mil anos para construir sua torre! Procurar-nos-ão sob a terra como outrora, nas catacumbas onde estaremos escondidos (perseguir-nos-ão de novo) e clamarão: 'Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do céu não no-lo deram'. Então, aca­baremos a torre deles, porque para isso basta apenas o alimento, e nós os nutriremos, utilizando-nos falsamente de teu nome, e os faremos crescer. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: 'Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis'. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotên­cia para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados. Tu lhes prometias o pão do céu; ainda uma vez, é ele comparável ao da terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e deprava­da? Milhares e dezenas de milhares de almas seguir-te-ão por causa desse pão, mas que acontecerá aos milhões e bilhões que não terão a coragem de preferir o pão do céu ao da terra? Será que só preferes os grandes e os fortes, aos quais os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas te ama, só serviria de matéria explorável? Eles também nos são queridos, os seres fracos. Embora depravados e revoltados, tornar-se-ão finalmente dóceis. Ficarão espantados e acreditarão que somos deuses por ter consentido, pondo-nos a comandá-los, em assu­mir a liberdade que os atemorizava e reinar sobre eles, de modo que ao final terão medo de ser livres. Mas lhes diremos que somos teus discípulos e reinamos em teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque então não deixaremos que te aproximes de nós. E será essa impostura que constituirá nosso sofrimento, porque será preciso que mintamos. Tal é o sentido da primeira pergunta que te foi feita no deserto, e eis o que rejeitaste em nome da liberdade, que punhas acima de tudo. No entanto, ocultava ela o segredo do mundo. Consentindo no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade — indivíduos e coletividade —, isto é: 'Diante de quem se inclinar?' Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar.. Mas só quer ele inclinar-se diante de uma força incontestada, que todos os humanos respeitem por consenso universal. Porque essas pobres criaturas atormentar-se-ão em procurar um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no qual todos juntos comunguem, unidos pela mesma fé. Porque essa necessidade da comunidade na adoção é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar esse sonho que se têm os homens exterminado pelo gládio. Os povos forjaram deuses e desconfiaram uns dos outros: 'Abandonai vossos deuses, adorai os nossos, senão, ai de vós e de vossos deuses!' E assim será até o fim do mundo, mesmo quando os deuses tiverem desaparecido; prosternar-se-ão diante dos ídolos. Tu não ignoravas, tu não podias ignorar esse segredo funda­mental da natureza humana e, no entanto, repeliste a única bandeira infalível que te ofereciam e que teria curvado sem contestação todos os homens diante de ti, a bandeira do pão terrestre; rejeitaste-a em nome do pão do céu e da liberdade! Vê o que fizeste em seguida, sempre em nome da liberdade! Não há, repito-te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes a paz da consciência. O pão te garantia o êxito; o homem se inclina diante de quem lhe dá, porque é uma coisa incontestável, mas, se um outro se torna senhor da consciência humana, largará ali mesmo o teu pão para seguir aquele que cativa sua consciência. Nisto tu tinhas razão, porque o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver. Sem uma idéia nítida da finalidade da existência, prefere o homem a ela renunciar e se destruirá em vez de ficar na terra, embora cercado de montes de pão. Mas que aconteceu? Em lugar de te apoderares da liberdade hu­mana, tu ainda a estendeste! Esqueceste-te então de que o homem pre­fere a paz e até mesmo a morte à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso. E, em lugar de princípios sólidos que teriam tranqüilizado para sempre a consciência humana, tu escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo quanto ultra­passa a força dos homens e com isso agiste como se não os amasses, tu, que vieras dar tua vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os pavores dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntaria­mente seguido pelos homens fascinados. Em lugar da dura lei antiga, o homem, devia doravante, com coração livre, discernir o bem e o mal, não tendo para se guiar senão tua imagem, mas não previas que ele repeliria afinal e contestaria mesmo tua imagem e tua liber­dade, esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher? Gri­tarão por fim que a verdade não estava em ti, de outro modo não os terias deixado numa incerteza tão angustiosa, com tantas preocupa­ções e problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína de teu reino. Não acuses ninguém. Entretanto, era isso que te propunham? Há três forças, as únicas que possam subjugar para sempre a consciência desses fracos revoltados, a saber: o milagre, o mistério, a autoridade! Tu rejeitaste todas as três, dando assim um exemplo. O espírito terrível e profundo havia-te transportado ao pináculo e havia-te dito: 'Queres saber se és o filho de Deus? Lança-te daqui abaixo, porque está escrito que os anjos o sustentarão e o carregarão, e ele não sofrerá nenhum feri­mento. Saberás então se és o filho de Deus e provarás assim tua fé em teu pai'. Mas repeliste esta proposta, não te precipitaste. Mostraste então uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revol­tada, não são deuses! Sabias que, dando um passo, um gesto para te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a fé nele, ter-te-ias rebentado sobre aquela terra que vinhas salvar, para grande alegria do tentador. Mas há muitos como tu? Podes admitir um instante que os homens teriam a força de suportar semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, diante das questões capitais e dolorosas, agarrar-se à livre decisão do coração? Oh! Tu sabias que tua firmeza seria relatada nas Escri­turas, atravessaria as idades e iria até as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo teu exemplo, o homem se contentaria com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem rejeita Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre que ele procura. E, como não saberia passar sem ele, forja novos, os seus próprios, inclinar-se-á diante dos prodígios de um mágico, dos sortilégios de uma feiticeira, ainda que seja um revoltado, um herege, um ímpio confesso. Tu não desceste da cruz, quando zombavam de ti e gritavam-te, por derrisão: 'Desce da cruz e creremos em ti'. Não o fizeste, porque de novo não quiseste sujeitar o homem por meio de um milagre. Desejavas uma fé livre e não inspirada pelo maravilhoso. Tinhas necessidade de um livre amor e não dos transportes servis dum escravo aterrorizado. Aí ainda, fazias idéia demasiado alta dos homens, porque são escravos, se bem que tenham sido criados rebeldes. Vê e julga, após quinze séculos decorridos: quem elevaste até a ti? Juro-o, o homem é mais fraco e mais vil do que o pensavas. Pode ele, pode ele realizar o mesmo que tu? A grande estima que tinhas por ele fez mal à compaixão. Exigiste demasiado dele. Tu, no entanto, que o amavas mais do que a ti mesmo! Estimando-o menos, ter-lhe-ias im­posto um fardo mais leve, mas em relação com teu amor. Ele é fraco e covarde. Que importa que no presente se insurja por toda parte contra nossa autoridade e se mostre orgulhoso de sua revolta? É o orgulho de jovens escolares que se amotinaram em aula e expulsa­ram seu mestre. Mas a alegria dos garotos terá fim e lhes custará caro. Derrubarão os templos e inundarão a terra de sangue. Mas perceberão por fim, essas crianças estúpidas, que são apenas fracos revoltosos, incapazes de revoltar-se por muito tempo. Derramarão lágrimas bobas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis zombar deles, certamente. Gritarão contra ele com desespero e essa blasfêmia tor­ná-los-á ainda mais infelizes, porque a natureza humana não tolera a blasfêmia e acaba sempre por tirar vingança dela. Assim, a inquie­tação, a perturbação, a desgraça, tal a partilha dos homens, após os sofrimentos que suportaste pela liberdade deles. Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os participantes da primeira ressurreição e que havia 12 000 para cada tribo. Para serem tão numero­sos, deveriam ser mais que homens, quase deuses. Suportaram tua cruz e a existência no deserto, nutrindo-se de gafanhotos e de raízes; decerto, podes orgulhar-te desses filhos da liberdade, do livre amor, de seu su­blime sacrifício em teu nome. Mas, lembra-te, não eram eles senão alguns milhares e quase deuses, e o resto? É falta deles, dos outros, dos fracos humanos, se não puderam suportar o que suportam os fortes? É culpada a alma fraca por não poder conter dons tão terrí­veis? Vieste na verdade apenas para os eleitos? Então, é um mistério, incompreensível para nós, e teremos o direito de pregá-lo aos homens, de ensinar que não é a livre decisão dos corações nem o amor que importam, mas o mistério, ao qual devem eles submeter-se cegamente, mesmo malgrado sua consciência. É o que temos feito. Corrigimos tua obra baseando-a no milagre, no mistério, na autoridade. E os homens regozijaram-se por ser de novo levados como um rebanho e libertados daquele dom funesto que lhes causava tais tormentos. Tínhamos razão de agir assim, dize-mo? Não era amar a humanidade compreender sua fraqueza, aliviar seu fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com nossa permissão? Por que então vir entravar nossa obra? Por que guardas tu o silêncio, fixando-me com teu olhar penetrante e terno? É preferível que te zangues, não quero o teu amor, porque eu mesmo não te amo. Por que haveria eu de dissimular isto? Sei a quem falo, tu conheces o que tenho a dizer-te, vejo-o nos teus olhos. Cabe a mim esconder-te nosso segredo? Talvez o queiras ouvir de minha boca. Ei-lo: não estamos contigo, mas com ele, desde muito tempo já. Há justamente oito séculos que recebemos dele esse derradeiro dom que tu repeliste com indignação, quando ele te mostrava todos os reinos da terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declaramo-nos os únicos reis da terra, se bem que até agora não tenhamos tido ainda tempo de completar nossa obra. Mas de quem a culpa? Oh! o negócio está apenas começado, bem longe de ser com­pletado, e a terra terá de sofrer ainda muito, mas atingiremos nosso fim, seremos césares e então pensaremos na felicidade universal.

"Entretanto, terias podido então tomar o gládio de César. Por que repeliste esse derradeiro dom? Seguindo esse terceiro conselho do po­deroso espírito, realizavas tudo quanto os homens procuram na terra: um senhor diante de quem inclinar-se, um guarda de sua consciência e o meio de se unirem finalmente na concórdia em uma comunidade de formigueiro, porque a necessidade da união universal é o terceiro e derradeiro tormento da raça humana. A humanidade teve sempre tendência no seu conjunto para organizar-se sobre uma base universal. Houve grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se elevaram, sofreram mais, experimentando mais fortemente que os outros a ne­cessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e Gengis-Cã, que percorreram a terra como um furacão, encarnavam, também eles, sem ter disso consciência, essa aspiração dos povos à unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem está qualificado para dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem de seu pão? Tomamos o gládio de César e, assim fazendo, nós te abandonamos para segui-lo. Oh! Decorrerão ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque será nisto que eles acabarão, depois de ter edificado sua torre de Babel sem nós. Mas então a besta virá para nós arrastando-se, lamberá nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue. E nós montaremos nela, ergueremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra: 'Mistério'. Então somente a paz e a felicidade reinarão sobre os homens. Tu te orgulhas de teus eleitos, mas não passam de um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. Aliás, entre esses fortes destinados a ser eleitos, quantos se cansaram por fim de esperar-te, levaram e levarão ainda a outras partes as forças de seu espírito e o ardor de seu coração, quantos acabarão por insurgir-se contra ti em nome da liberdade! Mas serás tu que lha terás dado. Nós tornamos todos os homens felizes e as revoltas e os massacres inseparáveis de tua liberdade cessarão. Oh! Nós os persuadiremos de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando de sua liberdade em nosso favor. Pois bem, diremos a verdade ou mentiremos? Convencer-se-ão eles próprios de que dizemos a verdade, porque se lembrarão daquela servidão e daquela perturbação em que os mergulhou a tua liberdade. A independência, o livre-pensamento, a ciência tê-los-ão desviado num tal labirinto, posto em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes furiosos, destruir-se-ão a si mesmos, e os outros, rebeldes, porém fracos, multidão covarde e miserável, se arrastarão a nossos pés, gritando: 'Sim, tínheis razão, somente vós possuíeis seu segredo e nós voltamos a vós; salvai-nos de nós mesmos!' Sem dúvida, recebendo de nós os pães, verão bem que tomamos os deles, ganhos com seu próprio trabalho, para distri­buí-los, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão; mas o que lhes causará mais prazer que o próprio pão será recebê-lo de nossas mãos! Porque se lembrarão de que outrora o próprio pão, fruto de seu trabalho, mudava-se em pedra em suas mãos, ao passo que, quando voltaram a nós, as pedras tornaram-se pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto os homens não a tiverem compreendido, serão infelizes. Quem mais contribui para essa incompreensão, dize-me? Quem dividiu o rebanho e disper­sou-o por estradas desconhecidas? Mas o rebanho se recomporá, vol­tará a obedecer e será isso para todo o sempre. Então, dar-lhe-emos uma felicidade mansa e humilde, uma felicidade adaptada a criaturas fracas como eles. Nós os persuadiremos, por fim, a não se orgulharem, porque foste tu, elevando-os, quem os ensinou a serem orgulhosos; provar-lhes-emos que são débeis, que são crianças dignas de dó, mas que a feli­cidade infantil é a mais deleitável. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e se comprimirão contra nós com medo, como uma tenra ninhada sob a asa materna. Sentirão uma surpresa medrosa e terão orgulho de toda aquela energia e inteligência que nos permitiram domar a multidão inumerável dos rebeldes. Nossa cólera fá-los-á tre­merem, a timidez dominá-los-á, seus olhos tornar-se-ão lacrimosos como os das crianças e das mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão bem facilmente ao riso e à alegria, à alegria radiosa das crianças. Decerto, sujeitá-los-emos ao trabalho, mas nas horas de lazer organizaremos sua vida como um brinquedo de criança, com cantos, coros, danças inocentes. Oh! permitiremos mesmo que pequem — são fracos —, e nos amarão por causa disso como crianças. Dir-lhes-emos que todo pecado será redimido, se for cometido com nossa permissão; por amor é que lhes permitiremos que pequem e assumiremos o castigo de tais pecados. Amar-nos-ão como a benfeitores que tomam a si a carga de seus pecados perante Deus. Não terão segredo algum para conosco. De acordo com seu grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibir-lhes-emos que vivam com suas mulheres e suas amantes, que tenham filhos ou não tenham, e eles nos escutarão com alegria. Submeter-nos-ão os segredos mais penosos de sua consciência, resolveremos todos os casos e eles aceitarão nossa decisão com alegria, porque ela lhes poupará a grave preocupação de resolverem eles mesmos livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns 100 000, seus diretores, exceto nós, os depositários do segredo; Os felizes contar-se-ão por bilhões e haverá 100 000 mártires encarregados do conhecimento maldito do bem e do mal. Morrerão tranqüilamente, extinguir-se-ão mansamente em teu nome e no outro mundo nada encontrarão senão a morte. Mas nós guardaremos o segredo; nós os ninaremos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para criaturas como eles. Profetiza-se que voltarás para vencer de novo, cercado de teus eleitos, poderosos e orgulhosos; diremos que eles só se salvaram a si mesmos, ao passo que nós salvamos o mundo inteiro. Dizem que a fornicadora, montada na besta e tendo nas mãos a taça do mistério, será desonrada, que os fracos se revoltarão de novo, rasgarão sua púrpura e desnudarão seu corpo 'impuro'. Eu me levantarei então e te mostrarei os bilhões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, que nos sobrecarregamos com seus pecados, para sua felicidade, nós nos ergueremos diante de ti, dizendo: 'Não te tememos; também eu estive no deserto, vivi de gafa­nhotos e de raízes; também eu abençoei a liberdade com que gratificaste os homens e me preparava para figurar entre teus eleitos, os poderosos e os fortes, ardendo por completar-lhes o numero. Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei a juntar-me àqueles que corrigiram tua obra. Abandonei os orgulhosos, voltei aos humildes, para fazer a felicidade deles. O que te digo se realizará e nosso império se edificará. Repito-te, amanhã, a um sinal meu, verás aquele rebanho dócil trazer carvões acesos para a fogueira a que subirás, por teres vindo estorvar nossa obra. Porque, se alguém mereceu mais que todos a fogueira, foste tu. Amanhã, queimar-te-ei. Dixi. "[11]

Ivã parou. Exaltara-se ao discorrer e falava com animação; ao ter­minar, sorriu.

Aliócha escutara em silêncio, com uma emoção extrema. Por várias vezes, tinha querido interromper seu irmão, mas contivera-se.

— Mas... é absurdo! — exclamou, corando. — Teu poema é um elogio de Jesus e não uma censura... como o querias. Quem acredi­tará no que dizes da liberdade? É assim que se deve compreendê-la? É essa a concepção da Igreja Ortodoxa?... É Roma, e não toda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os jesuítas!... Não existe personagem fantástico como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros dos quais se assume a carga? Quem são esses detentores do mistério, que se encarregam do anátema pela felicidade dos homens? Quando se viu isso? Conhecemos os jesuítas, fala-se mal deles, mas são semelhantes aos teus? De modo algum!... É sim­plesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação uni­versal, com um imperador, o pontífice romano, à sua frente... eis o ideal deles, não há aí mistério nenhum, nem tristeza sublime... A sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de servidão futura em que eles se tornariam proprietários de terras... eis tudo. Talvez mesmo não creiam em Deus. Teu inquisidor não passa de uma ficção...

— Pára, pára! — disse, rindo, Ivã. — Como te acaloras! Uma ficção, dizes? Pois seja, evidentemente. No entanto, crês verdadeiramen­te que todo o movimento católico dos derradeiros séculos seja apenas inspirado pela sede do poder, em vista somente dos bens terrestres? Não será o Padre Paísi quem. te ensina isto?

— Não, não, pelo contrário, o Padre Paísi falou uma vez no teu mesmo sentido... mas, decerto, não disse de todo a mesma coisa — emendou Aliócha.

— Eis uma informação preciosa, apesar do teu "não de todo a mes­ma coisa". Mas por que os jesuítas e os inquisidores ter-se-iam unido unicamente em vista da felicidade terrestre? Não se pode encontrar entre eles um só mártir, presa dum nobre sofrimento e amando a humanidade? Suponhamos que entre essas criaturas sedentas somente de bens materiais seja encontrada uma só como o meu velho inqui­sidor, que viveu de raízes no deserto e encarniçou-se em domar seus sentidos para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre amou a humanidade. De repente, vê claro, dá-se conta de que é uma felicidade medíocre atingir a liberdade perfeita, quando milhões de criaturas permanecem para sempre desgraçadas, demasiado fracas para usar de sua liberdade, de que esses revoltados débeis não poderão jamais terminar sua torre, e de que não é para tais gansos que o grande idealista sonhou sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, meu inquisidor volta atrás e... alia-se às pessoas de espírito. Será, pois, impossível?

— Alia-se a quem, a que pessoas de espírito? — exclamou Aliócha, quase zangado. — Não têm espírito, não detêm mistérios, nem segre­dos... O ateísmo, eis o segredo deles. Teu inquisidor não crê em Deus.

— Pois bem, e se assim fosse? Adivinhaste, afinal. É bem isto, eis todo o segredo, mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele, que sacrificou sua vida a seu ideal no deserto e não cessou de amar a humanidade? No declínio de seus dias convence-se claramente de que somente os conselhos do grande e terrível espírito poderiam tornar suportável a existência dos revoltados débeis, "desses seres abortados, criados por derrisão". Compreende que é preciso es­cutar o espírito profundo, esse espírito de morte e de ruína, e, para isto fazer, admitir a mentirá e a fraude, conduzir cientemente os homens à morte e à ruína, enganando-os durante o caminho todo, para ocultar-lhes para onde os leva, e para que esses lastimáveis cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome daquele no qual o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é uma desgraça? E se se encontra, seja apenas uma criatura seme­lhante, à frente desse exército "ávido de poder em vista apenas de bens vis", não é bastante para suscitar uma tragédia? Bem mais ainda, basta um só chefe semelhante para encarnar a verdadeira idéia diretriz do catolicismo romano, com seus exércitos e seus jesuítas, a idéia supe­rior. Declaro-te que estou persuadido de que esse tipo único jamais faltou entre os que estão à testa do movimento. Quem sabe se não houve talvez alguns entre os pontífices romanos? Quem sabe? Talvez aquele maldito velho, que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, e isto não por efeito do acaso, mas sob a forma de uma aliança, de uma liga secreta, organizada desde muito tempo para manter o mistério, roubá-lo aos desgraçados e aos fracos, para torná-los felizes? Deve certamente ser assim, é fatal. Imagino mesmo que os franco-maçons têm um mistério análogo na base de sua doutrina e é por isso que os católicos odeiam os franco-maçons; vêem neles uma concorrência, a difusão da idéia única, quando deve haver um só rebanho sob um só pastor. Aliás, defendendo meu pensamento, tenho o ar de um autor que não suporta tua crítica. Basta disso.

— Talvez sejas tu mesmo um franco-maçom — deixou escapar de súbito Aliócha. — Não crês em Deus — acrescentou com profunda tristeza. Parecera-lhe que seu irmão o olhava com ar zombeteiro. — Como acabou teu poema? — continuou, de olhos baixos. — Ou já se acabou?

— Queria acabá-lo assim: o inquisidor se cala, espera um momento a resposta do prisioneiro. Seu silêncio lhe pesa. O cativo escutou-o todo o tempo, fixando-o com seu olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe dar resposta. O velho queria que ele lhe dissesse alguma coisa, ainda mesmo palavras amargas e terríveis. De repente, o prisioneiro aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. É toda a sua resposta. O velho estremece, seus lábios tre­mem, vai à porta, abre-a e diz: "Vai-te e não voltes mais... nunca mais!" E deixa que ele se vá pelas trevas da cidade. O prisioneiro sai.

— E o velho?

— O beijo queima-lhe o coração, mas ele persiste na sua idéia.

— E tu estás com ele, também tu! — exclamou amargamente Aliócha.

— Que absurdo, Aliócha! É apenas um poema destituído de senti­do, a obra dum fedelho estudante que jamais fez versos. Pensas que vou agora meter-me com os jesuítas, juntar-me àqueles que corrigiram sua obra? Oh! Senhor! que me importa? Já to disse: assim que atingir os meus trinta anos, quebrarei a taça.

— E os brotos tenros, os túmulos queridos, o céu azul, a mulher amada? Como viverás, qual será teu amor por eles? — exclamou Alió­cha, cheio de dor. — Pode-se viver com tanto inferno no coração e na cabeça? Sim, vais juntar-te a eles... se não, tu te suicidarás, desesperado.

— Há em mim uma força que resiste a tudo! — declarou Ivã, com um frio sorriso.

— Qual?

— A dos Karamázovi... a força que eles haurem de sua baixeza.

— Quer dizer mergulhar na corrupção, perverter sua alma, não é?

— Poderia ser isso também... Talvez escape a isso até os trinta anos e depois...

— Como poderás escapar a isso? É impossível, com tuas idéias.

— Também karamazovianas!

— Quer dizer que "tudo é permitido", não é?

Ivã franziu o cenho e empalideceu estranhamente.

— Ah! apanhaste ao vôo aquela frase de ontem que tanto ofendeu Miúsov... e que Dimítri repetiu tão ingenuamente. Pois seja, "tudo é. permitido", já que se disse isto. Não me retrato. Aliás, Mítia formu­lou-a bastante bem.

Aliócha examínava-o em silêncio.

— Na véspera de partir, meu irmão, pensava que tinha só a ti no mundo, mas vejo agora que, mesmo em teu coração, não há mais lugar para mim, meu caro eremita. Não renegarei esta fórmula de que "tildo é permitido" e serás tu então que me renegarás, não é?

Aliócha aproximou-se dele e beijou-lhe suavemente os lábios.

— É um plágio! — exclamou Ivã, de súbito exaltado. — Tiraste isto do meu poema. Agradeço-te, no entanto. É tempo de partir, Alió­cha, para ti e para mim.

Saíram. No patamar, pararam.

— Escuta, Aliócha — disse Ivã num tom firme —, se posso ainda amar os brotos primaveris, será graças à tua lembrança. Bastar-me-á saber que estás aqui, em alguma parte, para retomar gosto pela vida. Estás contente? Se quiseres, toma isto como uma declaração de ami­zade. Agora, sigamos cada qual para seu lado. E chega, entendes-me?

Quer dizer que, se não partir amanhã (o que não é provável) e nos encontrarmos de novo, nem uma palavra a respeito dessas questões. Peço-te formalmente. E, quanto a Dimítri, rogo-te também que não me fales mais dele, nunca mais. O assunto está esgotado, não? Em troca, prometo-te, aos trinta anos, quando eu quiser "atirar minha taça", voltar a conversar ainda contigo, onde quer que te aches, ainda que esteja eu na América. Interessar-me-á muito então ver o que te tornaste. Eis uma promessa solene, com efeito. Nós nos despedimos por dez anos, talvez. Vai ter com teu pater seraphicus, que está morrendo; se morresse em tua ausência, haverias de ficar zangado comigo porque te retive. Adeus; beija-me ainda uma vez, e agora vai-te...

Ivã afastou-se e seguiu seu caminho sem voltar-se. Fora assim que Dimítri partira na véspera, em condições muitíssimo diversas, é verdade. Essa observação estranha atravessou como uma flecha o espírito entris­tecido de Aliócha. Ficou alguns instantes a acompanhar seu irmão com o olhar. De repente, percebeu, pela primeira vez, que Ivã gingava ao andar e que tinha, visto de costas, o ombro direito mais baixo que o outro. Mas de súbito Aliócha deu meia volta e dirigiu-se, quase cor­rendo, para o mosteiro. A noite caía; estava inquieto, invadido por um pressentimento indefinível. Como na véspera, o vento elevou-se e os pinheiros centenários rugitavam lúgubremente, quando entrou no bosque do eremitério. Corria quase. "Pater seraphicus, donde tirara ele esse nome? Ivã, pobre Ivã, quando tornarei a ver-te?... Aqui está o ere­mitério, Senhor! Sim, é ele, o pater seraphicus, que me salvará... dele para sempre!"

Várias vezes, mais tarde, admirou-se de ter podido, após a partida de Ivã, esquecer-se tão totalmente de Dimítri, a quem prometera a si mesmo, naquela manhã mesma, procurar e descobrir, embora tivesse de passar a noite fora do mosteiro.

 

ONDE REINA AINDA A OBSCURIDADE

Por seu lado, depois de ter deixado Aliócha, dirigiu-se Ivã Fiódorovitch à casa de seu pai. Coisa estranha, sentiu de repente uma ansiedade intolerável, que aumentava à medida que se aproximava da casa. Não era a sensação que lhe causava espanto, mas a impossibili­dade de defini-la. Conhecia a ansiedade por experiência e não o surpreendia senti-la naquele momento, quando, depois de ter rompido com tudo quanto o retinha naqueles lugares, ia engajar-se numa via nova e desconhecida, sempre também solitária, cheio de esperança sem finalidade, de confiança excessiva na vida, mas incapaz de precisar sua expectativa e suas esperanças. Naquele instante, se bem que apreen­desse o desconhecido, não era isso que o atormentava. "Não será a aversão pela casa paterna?", pensava ele. "Seria na verdade isso, tanto ela me repugna, muito embora lhe transponha os umbrais hoje pela derradeira vez... Mas não, não é isso. Foram talvez as des­pedidas com Aliócha, depois de nossa conversa. Conservei-me calado por tanto tempo, sem dignar-me falar, e eis que passo a acumular tantos absurdos. " Na realidade, podia ser o despeito da inexperiência e da vaidade juvenis, o despeito de não ter revelado seu pensamento, sobretudo com uma criatura como Aliócha, de. quem esperava ele certamente muito em seu foro íntimo. Sem dúvida, esse despeito existia, era fatal, mas havia outra coisa. "Estar ansioso até a náusea e não poder precisar o que quero. Não pensar, talvez... "

Ivã Fiódorovitch tentou "não pensar", mas nada conseguiu. O que o irritava sobretudo era que aquela ansiedade tinha uma causa fortuita, exterior, sentia-o ele. Um ser ou um objeto obsedava-o vagamente, da mesma maneira que se tem por vezes diante dos olhos, sem que se perceba, durante um trabalho ou uma conversação animada, alguma coisa irritante até o sofrimento, até que nos vem por fim a idéia de afastar aquele objeto incômodo, muitas vezes uma bagatela: uma coisa que não está no lugar, um lenço caído no chão, um livro fora da estante, etc. De muito mau humor, chegou Ivã à casa paterna; a quinze passos da porta ergueu os olhos e adivinhou de repente o mo­tivo de sua perturbação.

Sentado num banco, perto do portão, o criado Smierdiákov tomava fresco. Ao primeiro olhar compreendeu Ivã que aquele Smierdiákov o incomodava e que sua alma não podia suportá-lo. Foi como um raio de luz. Ainda há pouco, quando Aliócha contava seu encontro com Smierdiákov, sentira uma sombria repulsa, e, por contragolpe, animo­sidade. Em seguida, durante a conversa, não pensou mais naquilo, mas, desde que se encontrou só, a sensação esquecida emergiu do in­consciente. "Será possível que esse miserável me inquiete a tal ponto?", pensava ele, exasperado.

Com efeito, havia pouco, sobretudo nos últimos dias, tomara aversão àquele homem. Ele próprio acabara por notar aquela antipatia cres­cente. O que a agravava talvez é que, no começo de sua estada entre nós, experimentava Ivã Fiódorovitch por Smierdiákov uma espécie de simpatia. Achara-o a princípio muito original e conversava habitual­mente com ele, julgando-o um pouco limitado ou antes inquieto, e sem compreender o que podia mesmo atormentar constantemente aquele contemplador. Entretinham-se também com questões filosóficas, pergun­tando mesmo por que a luz brilhava no primeiro dia — quando o sol, a lua e as estrelas só tinham sido criados no quarto dia — e a maneira de compreender isso. Mas em breve Ivã Fiódorovitch con­venceu-se de que Smierdiákov interessava-se mediocremente pelos astros e que lhe era preciso outra coisa. Manifestava um amor-próprio exces­sivo e ofendido. Isto desagradou bastante a Ivã e engendrou sua aver­são. Mais tarde sobrevieram incidentes desagradáveis, o aparecimento de Grúchenhka, as brigas de Dimítri com seu pai; houve barulhos. Se bem que Smierdiákov sempre falasse com agitação, não se podia nunca saber o que desejava ele para si mesmo. Alguns de seus desejos, quando os formulava involuntariamente, impressionavam pela sua incoerên­cia. Eram constantemente perguntas, alusões que ele não explicava, interrompendo-se ou falando de outra coisa no momento mais ani­mado. Mas o que exasperava Ivã e acabara por tornar-lhe Smierdiákov antipático era a familiaridade chocante que este lhe testemunhava cada vez mais. Não que fosse descortês, pelo contrário; mas Smierdiákov chegara a um ponto, Deus sabe por que, em que se acreditava solidário com Ivã Fiódorovitch; exprimia-se sempre como se existisse entre eles uma aliança secreta conhecida só dos dois e incompreensível para os que os cercavam. Ivã Fiódorovitch levou muito tempo para compreen­der a causa de sua repulsa crescente e só muito recentemente dera-se conta disso. Queria passar irritado e desdenhoso, sem nada dizer a Smierdiákov, mas este se levantou e esse gesto revelou a Ivã Fiódoro­vitch seu desejo de falar-lhe em particular. Olhou-o e parou, e o fato de agir assim, em lugar de passar adiante como era sua intenção, trans­tornou-o. Olhava com cólera e repulsa aquela figura de eunuco, de cabelos penteados sobre as têmporas, com uma mecha levantada. O olho esquerdo piscava maliciosamente, como para dizer-lhe: "Tu não passarás, vês bem que nós, gente de espírito, temos de conversar". Ivã Fiódorovitch estremeceu.

"Para trás, miserável! Que há de comum entre nós, imbecil?!", quis gritar; mas em lugar dessa descompostura, e para grande assombro seu, proferiu coisa bem diversa:

— Meu pai ainda está dormindo? — perguntou, num tom resigna­do, e, sem pensar nisso, sentou-se no banco. Um instante, quase teve medo, lembrou-se depois. Smierdiákov mantinha-se diante dele, com as mãos atrás das costas, e olhava-o com segurança, quase com seve­ridade.

— Repousa ainda — disse, sem se apressar. (Foi ele quem me dirigiu por primeiro a palavra!) — O senhor me causa espanto — acrescentou depois de algum silêncio, os olhos baixos com afetação, brincando com a ponta de sua botina engraxada, com o pé direito para a frente.

— Que é que te causa espanto? — perguntou secamente Ivã Fiódo­rovitch, esforçando-se por conter-se, mas nauseado por sentir viva curiosidade, que queria satisfazer a qualquer preço.

— Por que não vai a Tchermachnia? — perguntou Smierdiákov, com um sorriso familiar. "Deves compreender meu sorriso, se és um homem de espírito", parecia dizer seu olho esquerdo.

— Que irei fazer em Tchermachniá? — admirou-se Ivã Fiódo­rovitch.

Houve um silêncio.

— Fiódor Pávlovitch rogou-lhe insistentemente — disse por fim, sem se apressar, como se não ligasse nenhuma importância à resposta dele: "Indico-te um motivo de terceira ordem, unicamente para dizer algu­ma coisa".

— Com os diabos! Fala mais claramente. Que queres? — exclamou Ivã Fiódorovitch, com cólera, tornando-se grosseiro.

Smierdiákov puxou o pé direito para junto do esquerdo, endireitou-se, sempre com o mesmo sorriso fleumático.

— Nada de sério... Era só por falar.

Novo silêncio. Ivã Fiódorovitch compreendia que deveria levantar-se, zangar-se; Smierdiákov mantinha-se diante dele e parecia esperar: "Ve­jamos, zangar-te-ás ou não?" Tinha pelo menos a impressão disso. Por fim, fez um movimento para levantar-se. Smierdiákov aproveitou a ocasião.

— Terrível situação a minha, Ivã Fiódorovitch, não sei como sair do aperto — disse com voz firme, depois do que suspirou. Ivã tornou a sentar-se.

— Ambos perderam a cabeça, dir-se-iam crianças. Falo de seu pai e de seu irmão Dimítri Fiódorovitch. Daqui a pouco, Fiódor Pávlovitch vai-se levantar e perguntar-me a cada instante: "Por que ela não veio?", até meia-noite e mesmo depois. Se Agrafiena Alieksándrovna não vier (creio que não tem ela absolutamente intenção disso), amanhã de manhã virá ele perguntar-me de novo: 'Por que ela não veio? Quando virá ela?", como se fosse culpa minha! Do outro lado, é a mesma história; ao cair da noite, por vezes antes, chega seu irmão, armado: "Toma cuidado, tratante, queima-panelas, se a deixas passar sem me prevenir, matar-te-ei em primeiro lugar!" De manhã, atormenta-me ele como Fiódor Pávlovitch, tanto que pareço também responsável perante ele pelo fato de não ter vindo sua dama. A cólera deles cresce todos os dias, a ponto de sonhar eu por vezes em suicidar-me, tal é o medo que tenho. Não espero nada de bom.

— Por que te meteste nisto? Por que te tornaste o espião de Dimítri Fiódorovitch?

— Como agir de outro modo? Aliás, não me meti em nada, se quer saber. No começo calava-me, não ousando replicar. Fez ele de mim seu servidor. Depois, são ameaças contínuas: "Eu te matarei, patife, se a deixares entrar". Estou certo, senhor, de ter amanhã uma longa crise.

— Que crise?

— Mas uma crise longa, muito longa. Durará várias horas, um dia ou dois, talvez. Uma vez, durou três dias, ficando eu sem conhe­cimento. Caíra do celeiro. Fiódor Pávlovitch mandou chamar Herzenstube, que prescreveu gelo sobre o crânio, depois outro remédio. Estive à morte.

— Mas dizem que é impossível prever as crises de epilepsia. Como podes saber que será amanhã? — perguntou Ivã Fiódorovitch com uma curiosidade a que se misturava cólera.

— É verdade.

— Além do mais, caíras do celeiro daquela vez.

— Poderei cair amanhã, porque subo lá todos os dias. Se não for no celeiro, cairei na adega. Vou lá também todos os dias.

Ivã examinou-o longamente.

— Tu tramas alguma coisa que não compreendo bem — disse ele em voz baixa, mas com ar ameaçador. — Não terás a intenção de simular uma crise por três dias?

— Se eu pudesse simular — não passa de um brinquedo, quando se tem experiência —, teria plenamente o direito de recorrer a esse meio para salvar minha vida, porque quando estou nesse estado, até mesmo se Agrafiena Alieksandrovna chegasse, seu irmão não poderia exigir contas a um doente. Teria vergonha.

— Com os diabos! — exclamou Ivã Fiódorovitch, com as feições contraídas pela cólera. — Por que tens de temer sempre pela tua vida? As ameaças de Dimítri são falas de um homem furibundo e nada mais. Matará alguém, mas não tu.

— Matar-me-ia como a uma mosca, a mim em primeiro lugar. Re­ceio ainda mais passar por seu cúmplice, se ele atacasse loucamente seu pai.

— Por que te acusariam de cumplicidade?

— Porque lhe revelei um segredo... os sinais.

— Que sinais? Que o diabo te leve! Fala claramente.

— Devo confessar — disse arrastadamente Smierdiákov, com ar doutorai —, temos um segredo, Fiódor Pávlovitch e eu. O senhor sabe sem dúvida que desde alguns dias ele se tranca com ferrolho assim que chega a noite. Nestes tempos, o senhor regressa cedo, sobe imedia­tamente para seus aposentos, ontem mesmo nem chegou a sair, de modo que ignora talvez com que cuidado ele se embarricava. Se Gre­gório Vassílievitch chegasse, ele só lhe abriria a porta depois de reco­nhecer-lhe a voz. Mas Gregório Vassílievitch não vem, porque sou eu somente que sirvo nos aposentos de seu pai — decidiu ele assim desde aquela intriga com Agrafiena Alieksandrovna; de acordo com suas ins­truções, passo a noite no pavilhão; até meia-noite devo montar guarda, vigiar o pátio, para o caso de ela vir; desde alguns dias a espera o torna louco. Eis seu raciocínio. "Dizem que ela tem medo dele (de Dimítri Fiódorovitch, entende-se), portanto virá de noite pelo pátio; fica de vigia lá até depois de meia-noite. Assim que ela chegar lá, corre a bater na porta ou na janela no jardim, duas vezes de leve, assim, depois três vezes mais depressa, toc, toc, toc. Então compreenderei que é ela e te abrirei devagarzinho a porta. " Deu-me outro sinal para os casos extraordinários, primeiro, dois golpes depressa, toc, toc, de­pois, após um intervalo, uma vez forte. Compreenderá que há novidade e me abrirá e eu farei meu relatório. Isto no caso em que viessem de parte de Agrafiena Alieksándrovna, ou se Dimítri Fiódorovitch che­gasse, a fim de assinalar sua aproximação. Ele tem muito medo e mesmo se estivesse trancado com sua beldade e o outro chegasse, sou obrigado a informá-lo disso imediatamente, dando três pancadas. O pri­meiro sinal, cinco pancadas, quer pois dizer: "Agrafiena Alieksándrovna chegou"; o segundo, três pancadas, significa: "Negócio urgente". Fez-me ensaiar várias vezes. E como ninguém no mundo conhece esses sinais, exceto ele e eu, abrir-me-á sem hesitar, nem chamar (receia muito fazer barulho). Ora, Dimítri Fiódorovitch está ao corrente desses sinais.

— Por quê? Foste tu que lhos transmitiste? Como ousaste?

— Tinha medo. Podia eu guardar o segredo? Dimítri Fiódorovitch insistia cada dia: "Tu me enganas, tu me ocultas alguma coisa! Que­brar-te-ei as pernas!" Falei para provar-lhe minha submissão e persua­di-lo de que não o engano, bem pelo contrário.

— Pois bem, se pensas que ele quer entrar por meio deste sinal, impede-o!

— E se eu tiver minha crise, como lho impedirei, admitindo que o ouse? Ele é tão violento!

— Que o diabo te carregue! Por que estás tão certo de ter uma crise amanhã? Zombas de mim!

— Não mo permitiria; aliás, não é momento para riso. Pressinto que terei uma crise, basta o medo para provocá-la

— Se estiveres deitado, será Gregório quem vetará. Previne-o, ele o impedirá.

— Não ouso revelar os sinais a Gregório Vassílievitch, sem a per­missão do patrão. Aliás, Gregório Vassílievitch está doente desde ontem e Marfa Ignátievna prepara-se para cuidar dele. É bastante curioso: ela conhece e tem de reserva uma infusão fortíssima, feita de certa erva, é um segredo. Três vezes por ano, dá esse remédio a Gregório Vassílie­vitch, quando tem ele seu lumbago e fica como que paralítico. Pega ela um guardanapo embebido desse licor e esfrega-lhe com ele as costas uma meia hora, até que lhe fique a pele avermelhada e até mesmo inchada. Depois dá-lhe a beber o resto do frasco, recitando uma oração. Ela mesma toma um pouco. Não tendo ambos costume de beber, caem ali mesmo e adormecem num sono profundo que dura muito tempo. Ao despertar, Gregório Vassílievitch está quase sempre curado, ao passo que sua mulher fica com enxaqueca. De sorte que, se amanhã Marfa Ignátievna puser seu projeto em execução, não ouvirão eles Dimítri Fiódorovitch e o deixarão entrar. Estarão dormindo.

— Que absurdo! Tudo se arranjará como de propósito: tu terás tua crise, os outros estarão adormecidos. É de acreditar-se que tens inten­ções... — exclamou Ivã Fiódorovitch, franzindo o cenho.

— Como poderia eu arranjar tudo isso... e para que, quando tudo depende unicamente de Dimítri Fiódorovitch?... Se ele quiser agir, agirá, senão não irei procurá-lo para empurrá-lo para a casa de seu pai.

— Mas por que viria ele, e às ocultas ainda por cima, se Agrafiena Alieksandrovna não vem, como tu mesmo dizes? — prosseguiu Ivã Fiódorovitch, pálido de cólera. — Eu também sempre pensei que era uma fantasia do velho, que jamais aquela criatura viria aqui à casa dele. Por que, pois, Dimítri forçaria a porta? Fala, quero conhecer teu pensamento.

— O senhor mesmo sabe por que ele virá, de que adianta aqui meu pensamento? Virá ele por animosidade ou por desconfiança, se eu estiver doente, por exemplo; terá dúvidas e quererá explorar ele próprio os aposentos, como ontem de noite, ver se ela não teria entrado sem que ele o soubesse. Sabe também que Fiódor Pávlovitch preparou um grande envelope contendo 3 000 rublos, selado com três sinêtes e amarrado por uma fita. Escreveu de seu próprio punho: "Para meu anjo, Grúchenhka, se ela quiser vir". Três dias depois, acrescentou: "Para minha franguinha". Aí tem o senhor o perigo!

— Que absurdo! — exclamou Ivã Fiódorovitch fora de si. — Dimítri não irá roubar dinheiro e matar seu pai ao mesmo tempo. Ontem, teria podido matá-lo como um louco furioso por causa de Grúchenhka, mas não irá roubar.

— Tem ele extrema necessidade de dinheiro, Ivã Fiódorovitch. O senhor nem mesmo pode fazer idéia — explicou Smierdiákov com grande calma e bem nitidamente. — Aliás, acha ele que esses 3 000 rublos lhe pertencem e declarou-me: "Meu pai me deve justamente 3 000 rublos". Além do mais, Ivã Fiódorovitch, considere isto: está ele quase certo de que Agrafiena Alieksandrovna, se o quiser, obrigará Fiódor Pávlovitch a casar-se com ela. Acho que ela não virá, mas talvez queira ela algo mais, queira tornar-se uma dama. Sei que seu amante, o comerciante Samsónov, dizia-lhe francamente que não seria este um mau negócio, e ria. Ela mesma não é tola; não tem razão nenhuma para casar-se com um pobretão como Dimítri Fiódorovitch. Neste caso, Ivã Fiódorovitch, sabe o senhor muito bem que nem o senhor nem seus irmãos herdarão de seu pai 1 rublo sequer, porque se Agrafiena Alieksandrovna casar com ele, será para pôr tudo em seu nome e ficar com todos os seus capitais. Se o pai dos senhores morrer agora, receberá cada um 40 000 rublos, até mesmo Dimítri Fiódorovitch, a quem ele detesta tanto, porque seu testamento ainda não está feito... Dimítri Fiódorovitch está ao corrente de tudo isto...

As feições de Ivã contraíram-se. Corou.

— Por que, pois — interrompeu bruscamente —, me aconselhas a partir para Tchermachniá? Que tencionavas com isso? Após minha partida, acontecerá aqui alguma coisa.

Ofegava.

— Justamente — disse num tom calmo Smierdiákov, fixando Ivã Fiódorovitch.

— Como justamente? — repetiu Ivã Fiódorovitch, procurando conter-se, com o olhar ameaçador.

— Digo isto por compaixão pelo senhor. No seu lugar, largaria tudo... para me afastar de tal negócio — replicou Smierdiákov, com ar franco. Ambos se calaram.

— Tens cara dum chapado imbecil... e dum perfeito canalha!

Ivã Fiódorovitch levantou-se dum salto. Queria transpor a pequena porta, mas parou e voltou para Smierdiákov. Passou-se então algo de estranho: Ivã Fiódorovitch mordeu os lábios, cerrou os punhos e esteve a ponto de lançar-se contra Smierdiákov. Este percebeu isso a tempo, estremeceu e recuou. Mas nada de desagradável aconteceu, e Ivã Fió­dorovitch, silencioso e perplexo, dirigiu-se para a porta.

— Parto amanhã para Moscou, se o queres saber, amanha de ma­nhã, eis tudo! — gritou ele, com raiva, surpreendido ele mesmo por ter podido dizer isto a Smierdiákov.

— Perfeito! — replicou este, como se já o esperasse. — Somente, talvez tenham de telegrafar-lhe para lá, caso aconteça alguma coisa.

Ivã Fiódorovitch voltou-se de novo, mas uma mudança súbita ope­rara-se em Smierdiákov. Toda a sua familiaridade displicente desa­parecera; todo o seu rosto exprimia uma atenção e uma expectativa extremas, mas tímidas e servis. "Não acrescentaras nada?", ' lia-se no seu olhar fixo sobre Ivã Fiódorovitch.

— E não me chamariam também de Tchermanchniá, se acontecesse alguma coisa? — vociferou Ivã Fiódorovitch, elevando a voz sem saber por quê.

— Também o avisarão em Tchermachma... — murmurou Smier­diákov, em voz baixa, sem cessar de fitar Ivã bem nos olhos.

— Somente Moscou é longe e Tchermachniá é perto; será que la­mentas as despesas da viagem, que insistes por Tchermachniá, ou me lamentas por ter eu de dar uma grande volta?

— Justamente — murmurou Smierdiákov, com voz mal segura e um sorriso vil, pronto de novo a saltar para trás. Mas, com grande surpresa sua, Ivã Fiódorovitch desatou a rir. Transposta a porta, ria ainda. Quem o tivesse observado naquele instante não teria atribuído aquele riso à jovialidade. Ele próprio não teria podido explicar o que sentia. Andava maquinalmente.

 

DÁ GOSTO FALAR COM UM HOMEM DE ESPÍRITO

Falava sozinho também. Encontrando Fiódor Pávlovitch no salão, gritou-lhe, gesticulando: "Subo ao meu quarto, não irei aos seus apo­sentos... adeus!", e passou, evitando olhar seu pai. Sem dúvida, sua aversão pelo velho dominou-o naquele momento, mas essa animosidade manifestada com tal sem-cerimônia surpreendeu o próprio Fiódor Páv­lovitch. Tinha evidentemente algo de urgente a dizer a seu filho e viera a seu encontro com este fim; diante daquela indelicada acolhida, calou-se e acompanhou-o com um olhar irônico até que ele desapareceu.

— Que tem ele? — perguntou a Smierdiákov, que chegava.

— Está zangado. Quem sabe por quê? — respondeu evasivamente Smierdiákov.

— Ao diabo sua zanga! Apressa-te em trazer-me o samovar e vai-te. Nada de novo?

Vieram então as perguntas de que Smierdiákov acabava de queixar-se a Ivã Fiódorovitch, referentes à visitante esperada, mas silenciamos a respeito. Meia hora mais tarde, a casa estava fechada e o velho apaixonado pôs-se a andar para lá e para cá, com o coração palpitante, aguardando o sinal convencionado. Por vezes, olhava as janelas som­brias, mas só via a noite.

Já era bastante tarde e Ivã Fiódorovitch não dormia. Meditava e só se deitou às 2 horas. Não exporemos o curso de seus pensamentos; não chegou o momento de entrar naquela alma; chegará a vez dela. Seria, aliás, bastante árduo, porque não eram pensamentos, mas antes uma agitação vaga. Ele próprio sentia que perdia pé. Desejos estranhos o atormentavam: assim, depois da meia-noite, sentiu uma vontade irresis­tível de descer, de abrir a porta e ir ao pavilhão dar uma surra em Smierdiákov, mas, se lhe tivessem perguntado por que, não teria podido indicar um só motivo, salvo talvez que aquele lacaio se lhe tornara odioso, como o pior ofensor que existisse. Por outra parte, uma timi­dez inexplicável, humilhante, invadiu-o várias vezes, paralisando suas forças físicas. Sua cabeça girava, doía-lhe. Uma sensação de ódio aguilhoava-o, como se fosse ele vingar-se de alguém. Odiava até mesmo Aliócha, lembrando-se de sua recente conversa, e, por instantes, detestava a si mesmo. Esquecera Catarina Ivânovna e admirou-se mais tarde, lem­brando-se de que na véspera, quando se gabava diante dela de partir para Moscou no dia seguinte, dizia a si mesmo: "É absurdo, não partirás e não romperás tão facilmente, fanfarrão!" Muito tempo depois, lembrou-se Ivã Fiódorovitch com repulsa de que, naquela noite, foi de mansinho, como se temesse ser percebido, abrir a porta, saiu para o patamar e pôs-se a escutar as idas e vindas de seu pai no andar térreo; escutou por muito tempo, com estranha curiosidade, retendo sua res­piração e com o coração batendo. Ele próprio ignorava por que agia assim. Toda a sua vida tratou aquele processo como indigno, conside­rando-o, no fundo de sua alma, o mais vil que tinha a censurar-se. Não sentia então nenhum ódio contra Fiódor Pávlovitch, mas somente uma curiosidade intensa; que poderia ele estar fazendo lá embaixo? Via-o olhando as janelas sombrias, parando de repente no meio do quarto para escutar se não batiam. Por duas vezes, saiu Ivã Fiódorovitch assim para o patamar. Cerca das 2 horas, quando tudo ficou calmo, ele pró­prio se deitou, ávido de sono, porque se sentia extenuado. Na verdade, adormeceu profundamente, sem sonhos, e, quando despertou, já era dia. Ao abrir os olhos, surpreendeu-se ao sentir uma energia extraordiná­ria, levantou-se, vestiu-se à pressa e pôs-se a arrumar sua mala. A lavadeira acabava justamente de trazer-lhes a roupa branca e ele sorriu ao pensar que nada se opunha à sua repentina partida. Era repentina, com efeito. Se bem que Ivã Fiódorovitch tivesse declarado na véspera a Catarina Ivânovna, a Aliócha, a Smierdiákov, que partia no dia se­guinte para Moscou, lembrava-se de que, ao meter-se na cama, não pensava em partir, pelo menos não imaginava que, ao despertar, co­meçaria a arrumar sua mala. Por fim, ficou ela pronta, bem como seu saco de viagem; eram já 9 horas, quando Marfa Ignátievna veio per­guntar-lhe, como de costume: "Toma o chá em seu quarto ou vai descer?" Desceu quase alegre, muito embora suas palavras e seus gestos traíssem certa agitação. Saudou afavelmente seu pai, perguntou mesmo pela sua saúde, mas sem esperar sua resposta declarou-lhe que partia dentro de uma hora para Moscou e pediu que preparassem cavalos. O velho es­cutou-o sem o menor espanto, descuidou mesmo de mostrar, por con­venção, um ar aflito; em compensação, agitou-se, lembrando-se muito a propósito de um negócio importante para ele.

— Ah! Parece incrível! Nada me disseste ontem. Não importa, não é tarde demais. Faze-me um grande prazer, meu caro, passa por Tchermachniá. Basta dobrares à esquerda na estação de Volóvia, 1 dúzia de verstas no máximo, e lá estarás.

— Desculpe-me, mas não posso; há 80 verstas até a estação, o trem de Moscou parte às 7 horas da noite, tenho o tempo justo.

— Terás muito tempo, amanhã ou depois de amanhã, mas hoje vai a Tchermachniá. Que te custa tranqüilizar teu pai? Se não estivesse ocupado, teria eu mesmo ido lá desde muito tempo, porque o negócio é urgente, mas... não posso ausentar-me no momento... Vês? Possuo matas, em dois lotes, em Bieguítchev e em Diátchkino, nas charnecas. Os Máslovi, pai e filho, negociantes, só oferecem 8 000 rublos pela lenha; no ano passado apresentou-se um comprador que dava 12 000, mas não é daqui, nota bem. Porque não há comprador entre os daqui. Os Máslovi, que possuem centenas de milhares de rublos, é que fazem os preços: é preciso aceitar-lhes as condições, ninguém ousa disputar com eles. Ora, o Padre Ilinski escreveu-me na quinta-feira passada noticiando-me a chegada de Górstkin, também comerciante, que eu conheço e tem a vantagem de não ser daqui, mas de Pogrébov, não temendo, portanto, os Máslovi. Oferece 11 000 rublos, entendes-me? Fi­cará lá uma semana no máximo, escreveu-me o padreco. Irás negociar a coisa com ele...

— Escreva então ao padreco, ele se encarregará disso.

— Não saberá fazê-lo, eis a dificuldade. Esse padreco não entende nada disso. Vale seu peso em ouro, eu lhe confiaria 20 000 rublos sem recibo, mas não tem faro, é uma criança. Contudo, é um erudito, ima­gina só! Esse Górstkin tem o ar de um mujique, de blusa azul, mas é um perfeito tratante, eis a desgraça: mente. E por vezes a tal ponto que a gente pergunta por quê. Uma vez, contou que sua mulher tinha morrido e que ele se tornara a casar; era tudo mentira; sua mulher continua viva e surra-o regularmente. Trata-se, pois, agora, de saber se ele quer comprar mesmo por 11000 rublos.

— Mas eu tampouco entendo coisa alguma dessas espécies de ne­gócios.

— Espera, sair-te-ás bem, vou dar-te todos os pormenores a respeito desse Górstkin. Há muito tempo que mantenho relações de negócios com ele. Escuta lá: é preciso olhar para a barba que ele tem, ruiva e maltratada. Quando ela se agita e ele mesmo se zanga enquanto fala, a coisa vai bem, fala ele a verdade e quer ultimar; mas se acaricia sua barba com a mão esquerda, sorrindo, é que quer enrolar-nos, tra­paceia. Inútil olhar-lhe os olhos, é água turva; olha sua barba. Seu ver­dadeiro nome não é Górstkin, mas Liagávi; [12]mas cuida de não cha­má-lo Liagávi, pois se ofenderia. Se vês que o negócio se arranja, es­creve-me umas linhas. Mantém o preço de 11 000 rublos. Podes baixar uns 1 000, mas não mais. Pensa pois, 8 e 1. 1, faz isto 3 000 de dife­rença. É para. mim dinheiro achado e tenho extrema precisão dele. Se me anunciares que a coisa é séria, haverei de achar tempo para dar um pulo até lá e ultimar o negócio. Que adianta deslocar-me daqui agora, se o padre estiver enganado? Pois bem, irás ou não?

— Ah! não tenho tempo, dispense-me.

— Presta este serviço a teu pai, não me esquecerei disso. Vocês todos não têm coração. Que é para ti um dia ou dois? Aonde vais agora, a Veneza? Ela não vai desmoronar-se, tua Veneza. Teria bem mandado Aliócha, mas entende ele disso? Ao passo que tu és astuto, vejo-o bem. Não és negociante de madeira, mas tens olho. Trata-se de ver se aquele homem fala seriamente ou não. Repito-o: olha sua barba; se ela me­xer-se, é sério.

— Então, manda-me o senhor mesmo a essa maldita Tchermachniá? — exclamou Ivã com um sorriso mau.

Fiódor Pávlovitch não notou ou não quis notar a maldade e reteve só o sorriso.

— Com que então, vais, não é? Vou dar-te um bilhete.

— Não sei, decidirei isso no caminho.

— Por que no caminho? Decide agora. Fechado o negócio, escreve-me duas linhas, entrega-as ao padre, que fará chegar às minhas mãos teu bilhete. Depois disso, estarás livre e poderás partir para Veneza. O pope te levará de carro à estação de Volóvia.

O velho exultava: escreveu umas linhas, mandou buscar um carro, serviu-se um pequeno almoço, conhaque. A alegria tornava-o habitual­mente expansivo, mas desta vez parecia conter-se. Nem uma palavra a respeito de Dimítri Fiódorovitch. De modo algum afetado pela sepa­ração, nada achava para dizer. Ivã Fiódorovitch ficou impressionado: "Eu o aborrecia", pensava. Ao acompanhar seu filho, o velho agitou-se como se quisesse beijá-lo. Mas Ivã Fiódorovitch apressou-se em es­tender-lhe a mão, visivelmente desejoso de evitar o beijo. Ele com­preendeu logo e parou.

— Deus te guarde! — repetiu ele do patamar. — Voltarás algum dia, não? Terei sempre prazer em ver-te! Que o Cristo esteja contigo!

Ivã Fiódorovitch subiu no tarantás.

— Adeus, Ivã não me queiras mal! — gritou-lhe uma última vez seu pai.

Os criados, Smierdiákov, Marfa, Gregório, tinham vindo dizer-lhe adeus. Ivã deu a cada um 10 rublos. Smierdiákov correu a arranjar o tapete.

— Estás vendo? Vou a Tchermachniá... — deixou de súbito Ivã escapar, como contra sua vontade e com um riso nervoso. Muito tempo mais tarde lembrou-se disso.

— É então verdade o que se diz: dá gosto falar com um homem de espírito — replicou Smierdiákov, com um olhar penetrante.

O tarantás partiu a galope. O viajante estava preocupado, mas olhava avidamente os campos, os outeiros, um bando de gansos selvagens que voavam alto no céu claro. De repente, experimentou uma sensação de bem-estar. Tentou conversar com o cocheiro e interessou-se bastante por uma resposta do mujique; mas em breve deu-se conta de que seu espírito estava em outra parte. Calou-se, respirando com delícia o ar puro e fresco. A lembrança de Aliócha e de Catarina Ivânovna atra­vessou-lhe o espírito; sorriu docemente, soprou os seus queridos fan­tasmas, que desapareceram. "Mais tarde!", pensou. Chegaram bem depressa à estação de posta; os cavalos foram substituídos para se dirigirem a Volóvia. "Por que dá gosto falar com um homem de espírito, que queria ele dizer com isso?", perguntou a si mesmo, de súbito. "Por que lhe disse eu que ia a Tchermachniá?"

Chegado à estação de Volóvia, Ivã desceu e foi cercado pelos cocheiros: tratou o preço para Tchermachniá, 12 verstas por uma estrada vicinal. Mandou atrelar, entrou no posto, olhou a encarregada, tornou a sair para o patamar.

— Não vou mais a Tchermachniá. Terei tempo, irmãos, de chegar às 7 horas à estação?

— Às suas ordens. É preciso atrelar?

— Agora mesmo. Será que um de vocês não vai amanhã à cidade?

— Mítri irá justamente.

— Poderias tu, Mítri, prestar-me um obséquio? Vai à casa de meu pai, Fiódor Pávlovitch Karamázov, e dize-lhe que não fui a Tcher­machniá.

— Por que não? Conhecemos Fiódor Pávlovitch desde muito tempo.

— Toma, eis aqui uma gorjeta, porque não se pode contar muito com ele... — disse jovialmente Ivã Fiódorovitch.

— É verdade — disse Mítri rindo. —. Obrigado, senhor, darei seu recado.

Às 7 horas da noite, tomou Ivã o trem para Moscou. "Para trás todo o passado! Está acabado para sempre! Que não ouça mais falar dele! Para um novo mundo, para novas terras, sem olhar para trás!" Mas de repente sua alma ensombreceu-se e uma tristeza tal como nunca sentira apertou-lhe o coração. Meditou toda a noite. Somente pela manhã, ao chegar a Moscou, pareceu voltar a si.

— Sou um miserável! — disse.

Fiódor Pávlovitch, após a partida de seu filho, sentiu-se de coração leve. Durante duas horas, esteve quase feliz, com a ajuda do conhaque, quando sobreveio um incidente desagradável que o consternou; ao dirigir-se à adega, Smierdiákov caiu do primeiro degrau da escada. Marfa Ignátievna, que se achava no pátio, não viu a queda, mas ouviu o grito, o grito esquisito do epiléptico presa duma crise, que ela conhe­cia bem. Tivera ele, ao descer os degraus, um ataque que o fizera rolar até embaixo sem conhecimento, ou então foram a queda e o choque que o provocaram? Não se sabia de nada. O certo é que o encontra­ram no fundo da adega, torcendo-se em horríveis convulsões, os lábios espumantes. A princípio acreditou-se que ele se contundira, fraturara um membro, mas "o Senhor o preservara", segundo a expressão de Mar­fa Ignátievna. Estava indene, contudo custou um trabalhão fazê-lo subir. Conseguiu-se com a ajuda dos vizinhos. Fiódor Pávlovitch, que assistia à remoção, também ajudou. Estava transtornado. O doente per­manecia sem conhecimento: a crise, que cessara, recomeçou; concluiu-se disso que as coisas se passariam como no ano anterior, quando caíra ele do celeiro. Tinham-lhe então posto gelo na cabeça. Restava ainda algum na adega, que Marfa utilizou. Ao anoitecer, Fiódor Pávlovitch mandou chamar o Doutor Herzenstube, que chegou sem demora. Depois de ter examinado atentamente o doente (era o médico mais meticuloso da província, um velhinho respeitável), concluiu que era uma crise extraordinária, que podia ocasionar complicações; que, para o momento, não compreendia bem, mas que, no dia seguinte de manhã, se os remé­dios prescritos não tivessem agido, tentaria outro tratamento. Deita­ram o doente no pavilhão, num quartinho contíguo ao de Gregório. Em seguida, Fiódor Pávlovitch só teve aborrecimentos: a sopa, prepa­rada por Marfa Ignátievna, comparada com a que fazia Smierdiákov, não passava de uma água suja; e a galinha estava tão dura que não havia jeito de trincá-la. Diante das amargas censuras, aliás justifica­das, de seu amo, a boa mulher replicou que a galinha era velha e que ela mesma não era cozinheira de profissão. À noitinha, outro aborre­cimento. Soube Fiódor Pávlovitch que Gregório, que estava doente des­de a antevéspera, fora para a cama, presa de lumbago. Apressou-se em tomar o chá e trancou-se, extremamente agitado. Era a noite em que esperava, quase com certeza, a visita de Grúchenhka; pelo menos Smier­diákov lhe assegurara naquela manhã mesma que ela prometera vir. O coração do incorrigível velho batia violentamente; ia e vinha pelos quartos vazios, prestando ouvidos. Era preciso estar de vigia: talvez Dimítri Fiódorovitch o espionasse nos arredores e assim que ela batesse à janela (Smierdiákov afirmava que ela conhecia o sinal), seria pre­ciso abrir-lhe imediatamente, não a retendo no vestíbulo, no receio de que ela se amedrontasse e fugisse. Fiódor Pávlovitch estava inquieto, mas nunca esperança mais doce lhe havia embalado o coração: estava quase certo de que dessa vez ela viria.

 

O "STARIETS" ZÓSIMA E SEUS HÓSPEDES

Quando Aliócha entrou, ansioso, na cela do stariets, sua surpresa foi grande. Em lugar do moribundo, talvez sem conhecimento, que ele temia ver, encontrou-o sentado numa poltrona, enfraquecido, mas com ar alegre, disposto, cercado de visitantes com os quais se entretinha tranqüilamente. Tinha-se levantado um quarto de hora, quando muito, antes da chegada de Aliócha; os visitantes reunidos na cela aguardavam seu despertar, confiantes na firme garantia do Padre Paísi de que "o mestre levantar-se-ia certamente para conversar ainda uma vez com aqueles a quem amava, como o prometera pela manhã". O Padre Paísi cria firmemente naquela promessa, como em tudo quanto o monge dizia, a ponto de, se o tivesse visto sem conhecimento e até mesmo sem respiração, duvidar da própria morte e esperar que ele voltasse a si para cumprir sua palavra. De manhã mesmo, o stariets Zósima dissera-lhe, ao ir repousar: "Não morrerei sem entreter-me ainda uma vez convosco, meus bem-amados, verei vossos queridos rostos, expandir-me-ei pela derradeira vez". Os que se tinham reunido para aquela última entrevista eram os melhores amigos do stariets, desde muitos anos. Contavam-se quatro: os padres Iósif, Paísi e Mikhaií, este último superior do ascetério, homem de certa idade, bem menos culto que os outros, de condição modesta, mas de espírito firme, ao mesmo tempo sólido e cândido, ar rude, mas de coração temo, se bem que dissimulasse pudicamente essa ternura. O quarto era um velho monge simples, filho de pobres camponeses, o Irmão Anfim, muito pouco instruído, taciturno e manso, o mais humilde entre os humildes, pare­cendo sempre sob a impressão dum grande terror, que o teria domi­nado. Esse homem timorato era bastante querido pelo stariets Zósima, que teve durante toda a sua vida muita estima por ele, se bem que só trocassem raríssimas palavras. No entanto, tinham percorrido juntos a santa Rússia durante anos. Remontava isso a quarenta anos, aos começos do apostolado do stariets; pouco depois de sua entrada em um mosteiro pobre e obscuro da província de Kostroma, acompanhou ele o Padre Anfim nas suas coletas em favor do dito mosteiro. Os visi­tantes mantinham-se no quarto de dormir do stariets, bastante exíguo, como já se disse, de modo que havia apenas lugar para eles quatro, sentados em torno de sua poltrona (ficando de pé o noviço Porfíri). Já estava escoro, o quarto era iluminado por lamparinas e círios acesos diante dos ícones. À vista de Aliócha, que parará, embaraçado, na soleira, o stáriets mostrou um sorriso alegre e estendeu-lhe a mão.

— Boa tarde, meu doce amigo, chegaste. Sabia que virias. Aliócha aproximou-se, inclinou-se até o chão e pôs-se a chorar. Sentia um aperto de coração, a alma fremente, um desejo irreprimível de soluçar.

— Terás tempo de chorar — sorriu o stáriets, abençoando-o. — Vês? Converso, tranqüilamente sentado, talvez viva ainda vinte anos, como mo desejou ontem aquela boa mulher de Vichegórie, com sua filhinha Lisavieta. Senhor, lembra-te delas! (e benzeu-se). Porfíri, levaste seu donativo aonde eu disse?

Referia-se aos 60 copeques dados com alegria por aquela mulher, para remetê-los "a uma mais pobre do que ela". Tais donativos são uma penitência que a pessoa se impõe voluntariamente e devem provir do trabalho pessoal do doador. O stáriets tinha mandado Porfíri à casa de uma pobre viúva, reduzida à mendicidade com seus filhos, após um incêndio. O noviço respondeu imediatamente que fizera o necessá­rio e entregara aquele donativo, de acordo com a ordem recebida, "da parte de uma benfeitora desconhecida".

— Levanta-te, meu caro — prosseguiu o stáriets —, para que eu te veja. Estiveste em casa dos teus e viste teu irmão?

Pareceu estranho a Aliócha que ele o interrogasse expressamente a respeito de um de seus irmãos, mas qual? Era, então, por causa desse irmão, talvez, que o enviara à cidade ontem e hoje.

— Vi um deles — respondeu.

— Quero falar do mais velho, diante do qual me prosternei.

— Vi-o ontem, mas foi-me impossível encontrá-lo hoje — disse Aliócha.

— Apressa-te em encontrá-lo, volta amanhã e deixa tudo o mais. Pode ser que tenhas tempo de evitar uma tremenda desgraça. Ontem, inclinei-me diante do profundo sofrimento futuro dele.

Calou-se de repente, com ar pensativo. Aquelas palavras eram estra­nhas. O Padre Iósif, testemunha daquela cena na véspera, trocou um olhar com o Padre Paísi. Aliócha não se conteve mais.

— Meu pai e meu mestre — disse ele, presa de grande agitação —, vossas palavras não são claras. Que sofrimento o espera?

— Não sejas curioso. Ontem, tive uma impressão terrível; pareceu-me ler todo o seu destino. Tinha um olhar... que me fez fremir ao pensar na sorte que aquele homem preparava para si mesmo. Uma vez ou duas em minha vida, vi em alguns tal expressão... parecendo revelar seu destino, e ele se cumpriu, ai! Enviei-te para seu lado, Alieksiéi, com a idéia de que tua presença fraternal o aliviaria. Mas tudo vem do Senhor, e nossos destinos dependem dele. "Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto. "[13] Lem­bra-te disto. Quanto a ti, Alióchka, abençoei-te muitas vezes em pen­samento por causa de teu rosto, fica-o sabendo — declarou o stáriets com um doce sorriso. — Eis minha idéia a teu respeito: deixarás estes muros, viverás no mundo como um religioso. Terás numerosos adversários, mas teus próprios inimigos te amarão. A vida trar-te-á muitas desgraças, mas encontrarás nisso a felicidade, tu a abençoarás e obri­gar ás os outros a abençoá-la, o que é o essencial. Meus padres — e mostrou um sorriso amável ao dirigir-se a seus hóspedes —, jamais disse até agora, mesmo a esse rapaz, por que seu rosto me era tão caro à alma. Foi para mim como uma recordação e um presságio. Na aurora da vida, ainda menino, tinha um irmão mais velho que morreu à minha vista, com a idade de dezessete anos apenas. Posteriormente, no curso dos anos, convenci-me pouco a pouco de que aquele irmão foi no meu destino como que uma indicação, um decreto da Provi­dência, porque sem ele, bem decerto, não me teria feito religioso, nem entrado nesta estrada preciosa. Essa primeira manifestação produziu-se na minha infância, e, ao término de minha carreira, tenho à minha vista como que sua repetição. O milagre, meus padres, é que, sem se parecer muito com ele de rosto, pareceu-me Alióchka de tal modo semelhante a ele espiritualmente que muitas vezes o considerei como meu jovem irmão, vindo para encontrar-me no final de minha jornada, como lem­brança do passado, tanto que eu mesmo me admirei dessa estranha ilusão. Ouves, Porfíri? — dirigia-se ao noviço ligado a seu serviço. — Vi-te muitas vezes pesaroso porque preferia Alióchka a ti. Ficas co­nhecendo agora o motivo, mas eu te amo, fica sabendo, e teu pesar muitas vezes me magoou. Quero falar-vos, meus caros hóspedes, de meu jovem irmão, porque nada se passou em minha vida de mais significativo, nem de mais comovedor. Tenho o coração enternecido e toda a minha existência me aparece neste instante como se a re­vivesse...

Devo fazer notar que esta derradeira conversa do stáriets com seus visitantes no dia de sua morte foi conservada em parte por escrito. Foi Alieksiéi Fiódorovitch Karamázov quem a redigiu de memória algum tempo depois. É uma reprodução integral ou se valeu ele de trechos de outras conversas com seu mestre? Não saberia dizê-lo. Aliás, o discurso do stáriets neste manuscrito é por assim dizer inter­rompido, como se ele fizesse um relato de sua vida a seus amigos, ao passo que, certamente, segundo o que se contou depois, foi uma conversa geral, na qual os hóspedes tomaram parte, a ela misturando suas próprias recordações. Assim, também, não podia esse relato ser ininterrupto, porque o stáriets sufocava-se por vezes, perdia a voz, esten­dia-se sobre seu leito para repousar, mantendo-se acordado e os visitantes ficando em seus lugares. Por duas vezes o Padre Paísi leu o Evangelho no intervalo. Coisa curiosa, ninguém esperava que ele morresse naquela noite. Com efeito, depois de ter dormido profundamente durante o dia, tinha como que haurido de si mesmo uma força nova, que o sustentou por toda aquela longa conversa com seus amigos. Mas aquela animação incrível, devida à emoção, foi breve, porque ele se extinguiu bruscamente... Preferi, sem entrar nos detalhes, limitar-me à narrativa do stáriets de acordo com o manuscrito de Alieksiéi Fiódorovitch Kara­mázov. Será mais curto e menos fatigante. se bem que, repito-o, Aliócha tenha aproveitado muito de conversas anteriores.

 

BIOGRAFIA DO "STÁRIETS" ZÓSIMA, MORTO COM DEUS, REDIGIDA SEGUNDO SUAS PALAVRAS

POR ALIEKSIÉI FIÓDOROVITCH KARAMÁZOV

a) O jovem irmão do "stáriets" Zósima.

Meus caros padres, nasci numa província longínqua do norte, em V***, de um pai nobre, mas de condição modesta. Morreu quando tinha eu dois anos e não me lembro absolutamente dele. Deixou à minha mãe uma isbá e um capital suficiente para viver com os filhos ao abrigo da necessidade. Éramos dois: meu irmão mais velho, Márkel, e eu, Zinóvi. Oito anos mais velho do que eu, era arrebatado, irascíveh porém bom, sem malícia e estranhamente taciturno, sobretudo em casa, com nossa mãe, os criados e comigo. No ginásio, era um bom aluno, não se juntava com seus colegas nem brigava com eles, pelo menos minha mãe o contava. Seis meses antes de seu fim, quando já tinha dezessete anos, pôs-se a procurar um deportado, exilado de Moscou em nossa cidade, por causa de suas idéias liberais. Era um sábio e um filósofo conhecido na universidade. Tomou amizade a Márkel, a quem recebia em sua casa. Durante todo o inverno o jovem passou noites inteiras em casa dele, até o momento em que o deportado foi chamado a Petersburgo para ocupar um lugar oficial, que solicitara, pois tinha protetores. Chega a Quaresma e Márkel nega-se a jejuar, in-vectiva, zomba: "São absurdos, Deus não existe", o que fazia estremecer nossa mãe, os criados e eu mesmo, porque embora só tivesse nove anos ficava cheio de terror ao ouvir tais palavras. Tínhamos quatro criados, todos servos, comprados de um proprietário conhecido nosso. Lembro-me de que minha mãe vendeu por 60 rublos um dos quatro, a cozinheira Afímia, coxa e idosa, e contratou em seu lugar uma serva de condição livre. Na sexta semana da Quaresma, meu irmão sentiu-se subitamente pior; sempre doente, de constituição débil, predis­posto à tuberculose, era de estatura média, magro e fraco, o rosto distinto. Resfriou-se e em breve o doutor disse baixinho à minha mãe que era tísica e galopante e que ele não passaria da primavera. Nossa mãe pôs-se a chorar, a rogar a meu irmão, com precaução (a fim de não o espantar), que se confessasse e comungasse, porque estava ainda de pé então. A estas palavras, zangou-se, deblaterou contra a Igreja, mas pôs-se, no entanto, a refletir; adivinhou que estava perigosamente doente e que por esta razão sua mãe mandava-o comungar enquanto tinha ele força para isto. Aliás, sabia desde muito tempo que estava condenado; um ano antes, dissera-nos uma vez à mesa: "Não fui feito para viver neste mundo convosco, não durarei talvez um ano". Foi como uma predição. Três dias se passaram, começou a Semana Santa. Meu irmão foi à igreja desde a terça-feira. "Faço isto pela senhora, mamãe, para lhe ser agradável e tranqüilizá-la", disse-lhe. Nossa mãe chorou de alegria e de pesar: "Seu fim está então próximo, se se opera nele tal mudança". Mas dentro em pouco acalmou-se, de modo que se confessou e comungou em casa. O tempo tornara-se claro e sereno, o ar embalsamado; a Páscoa caía tarde naquele ano. Tossia ele a noite inteira, lembro-me, dormia mal, de manhã vestia-se, tentava sentar-se numa cadeira. Revejo-o sentado, doce e calmo, sorridente, doente, mas de rosto alegre e jovial. Mudara moralmente por completo. Era sur­preendente. A velha criada entrava em seu quarto. "Deixa-me acender a lâmpada diante da imagem, meu bem. " Outrora, opunha-se a isto, apagava mesmo a lâmpada. "Acende, minha amiga, era eu um monstro para proibir-te disso antes. O que fazes é uma prece, bem como a alegria que experimento por isto. Portanto, rezamos a um só Deus. " Estas palavras pareceram-nos estranhas, minha mãe foi chorar em seu quarto, voltando depois para junto dele a enxugar os olhos. "Não chores, querida mamãe", dizia ele, por vezes, "viverei ainda muito tempo, divertir-me-ei com a senhora, a vida é tão alegre, tão divertida!" "Ai, meu querido, onde está a alegria, quando tens febre a noite inteira e tosses como se teu peito fosse rebentar?" "Mamãe, não chores, a vida é um paraíso onde todos estamos, mas não queremos sabê-lo, senão amanhã a terra inteira tornar-se-ia um paraíso. " Suas palavras surpreendiam todo mundo pela sua estranheza e pela sua decisão, ficava-se comovido até as lágrimas. Conhecidos vinham à nossa casa: "Caros amigos", dizia ele, "que fiz eu para merecer o vosso amor, por que me amais tal como sou? Outrora ignorava isto e não o apre­ciava". Aos criados que entravam, dizia a cada instante: "Meus que­ridos, por que me servis, serei eu digno de ser servido? Se Deus me concedesse a graça de deixar-me vivo, eu mesmo vos serviria, porque todos devem servir uns aos outros". Nossa mãe, escutando-o, abanava a cabeça: "Meu querido, é a doença que te faz falar assim". "Mãe adorada, deve haver amos e servidores, mas quero servir os meus como eles me servem. Dir-te-ei ainda, mamãe, que cada um de nós é culpado diante de todos por tudo e eu mais do que os outros. " Nossa mãe nesse instante sorria através de suas lágrimas: "Como podes ser mais que todos culpado diante de todos? Há assassinos, bandidos, que pecados cometeste para te acusar mais que todos?" "Querida mãe, felicidade minha (tinha dessas frases caridosas, inesperadas), sabe que, na verdade, cada qual é culpado diante de todos por todos e por tudo. Não sei como te explicar isto, mas sinto que é assim e isto me atormenta. Como podíamos viver, irritar-nos, sem nada saber, então?" Cada dia despertava mais enternecido, mais jovial, fremente de amor. O Doutor Eisenschmidt, um velho alemão, visitava-o: "Como é, doutor, viverei ainda um dia?", brincava ele por vezes. "Viverás mais que um dia, meses e anos!", replicava o doutor. "Que são meses e anos?!", exclamava ele. "Para contar os dias, basta um dia ao homem para conhecer toda a felicidade. Meus bem-amados, de que serve discutirmos, vanglo­riar-nos, guardar rancor uns contra os outros? Vamos antes passear, recrear-nos no jardim, beijar-nos-emos, abençoaremos a vida. " "Seu filho não está destinado a viver", dizia o doutor à nossa mãe, quando esta o acompanhava até o patamar. "A doença o faz perder a razão. " Seu quarto dava para o jardim, sombreado por velhas árvores, os rebentos haviam brotado, os pássaros primaveris tinham chegado, can­tavam sob as janelas, sentia ele prazer em olhá-los e eis que se pôs a pedir-lhes também perdão: "Pássaros do bom Deus, alegres pássaros, perdoai-me, porque pequei também contra vós. " Nenhum de nós pôde então compreendê-lo, e ele chorava de alegria: "Sim, a glória de Deus me cercava: os pássaros, as árvores, os prados, o céu: só eu vivia na vergonha, desonrando a criação, cuja beleza e cuja glória não notava". "Tu te responsabilizas por muitos pecados", chorava por vezes nossa mãe. "Mamãe querida, é de alegria e não de pesar que choro. Tenho vontade de ser culpado diante deles, não posso explicar-te isto, porque não sei como amá-los. Se tenho pecado para com todos, todos me perdoarão, eis o paraíso. Não estou nele agora?" Disse ainda muitas coisas que esqueci. Lembro-me de que um dia entrei sozinho em seu quarto, não havia ninguém a seu lado. Era à noitinha, o sol poente iluminava o quarto com seus raios oblíquos. Fez-me sinal para que me aproximasse, pôs as mãos sobre meus ombros, fitou-me com ternura durante um minuto, sem dizer uma palavra. "Pois é, vai brincar agora, vive por mim!" Saí e fui brincar. Posteriormente, lembrei-me de muitas dessas palavras, chorando. Disse ainda muitas coisas espantosas, admi­ráveis, que não podíamos compreender então. Morreu três semanas após a Páscoa, em pleno conhecimento, e, se bem que não falasse mais, ficou o mesmo até o fim; a alegria brilhava em seus olhos, procurava-nos com o olhar, sorria para nós, chamava-nos. Mesmo na cidade falou-se muito de sua morte. Era eu bem jovem então, mas tudo isso deixou em meu espírito uma marca inapagável. Mais tarde, devia manifestar-se. Foi o que aconteceu.

b) A Sagrada Escritura na vida do "stáriets" Zósima.

Ficamos sós, minha mãe e eu. Boas amizades aconselharam-na em breve a que — uma vez que possuía meios — faria bem enviando-me a Petersburgo e que mantendo-me a seu lado entravaria talvez minha carreira. Aconselharam-na a pôr-me no Corpo de Cadetes, para entrar em seguida na Guarda Imperial. Minha mãe hesitou muito tempo em separar-se de seu derradeiro filho, mas decidiu-se no entanto, não sem muitas lágrimas, pensando em contribuir para minha felicidade. Conduziu-me a Petersburgo e colocou-me como lhe haviam dito. Jamais tornei a vê-la. Morreu, com efeito, ao fim de três anos, passados na tristeza e na ansiedade por causa de nós dois. Só tenho preciosas re­cordações do lar paterno, porque são para o homem as mais preciosas de todas as recordações da primeira infância em casa de seus pais; é quase sempre assim, contanto que o amor e a concórdia reinem, ainda que pouco, na família. E pode-se conservar uma recordação co­movida da pior família, se se tem uma alma capaz de emoção. Entre essas recordações um lugar pertence à História Sagrada, que me interessava muito, apesar de minha pouca idade. Tinha eu então um livro com magníficas gravuras, intitulado: Cento e Quatro Histórias Santas Tiradas do Antigo e do Novo Testamento, onde aprendi a ler. Conservo-o ainda agora como uma relíquia. Mas antes de saber ler, aos oito anos, experimentava certa impressão das coisas espirituais, lembro-me disso. Minha mãe levou-me à missa na segunda-feira da Semana Santa. Era um dia claro, torno a ver o incenso subindo lenta­mente para a abóbada; por uma janela estreita da cúpula, os raios do sol desciam até nós, as nuvens de incenso pareciam neles fundir-se. Olhei com enternecimento e pela primeira vez minha alma recebeu conscientemente a semente da palavra divina. Um adolescente avançou para o meio do templo com um grande livro, tão grande que me parecia que ele o carregava com dificuldade, depositou-o no atril, abriu-o, pôs-se a ler. Compreendi então que liam num templo consagrado a Deus. "Havia no país de Hus um homem justo e piedoso, que possuía grandes riquezas, não só em camelos, como em ovelhas e jumentas; seus filhos viviam em prazeres, eles os amava e rogava a Deus por eles, no receio de que, divertindo-se, pecassem. E eis que o diabo sobe até junto de Deus ao mesmo tempo que os filhos de Deus e diz ao Senhor que percorreu todo o país, abaixo e acima. 'Viste meu servo Jó?', pergunta-lhe Deus. E fez ao diabo o elogio de seu nobre servidor. O diabo sorriu àquelas palavras. 'Entrega-mo e verás que teu servidor murmurará contra ti e amaldiçoará teu nome. ' Então Deus entregou ao diabo o justo a quem estimava. O diabo matou-lhe os filhos e os rebanhos, aniquilou suas riquezas com uma rapidez fulminante e Jó rasgou suas vestes, lançou-se de rosto ao chão, exclamou: 'Saí nu do ventre de minha mãe, voltarei nu à terra. Deus me havia tudo dado; Deus tudo me retomou. Que seu nome seja abençoado agora e para sempre!'" Meus padres, desculpai minhas lágrimas, porque é toda a minha infância que surge diante de mim, parece-me que tenho oito anos e sinto-me como então admirado, perturbado, arrebatado. Os camelos falavam à minha imaginação e Satanás, que fala daquela maneira a Deus, e Deus que entrega seu servidor à ruína, e este que exclama: "Que teu nome seja abençoado, apesar de teu rigor!" Depois o canto suave e doce no templo. "Que minha prece seja ouvida", e de novo o incenso e a oração de joelhos! Desde então — e aconteceu ontem ainda — não posso ler aquela tão santa história sem derramar lágri­mas. Que grandeza, que mistério inconcebível! Ouvi mais tarde palavras de zombadores e detratores, de blasfemadores, palavras soberbas. Como podia o Senhor entregar ao diabo para que com isso se divertisse um santo a quem ele estimava, arrebatar-lhe os filhos, cobri-lo de úlceras a ponto de limpar ele suas chagas purulentas com um caco de telha, e tudo isso para quê? Para se vangloriar diante de Satanás: "Eis o que pode suportar um santo por amor de mim!" Mas o que faz a grandeza do dra­ma é o mistério, é que aqui a aparência terrestre e a verdade eterna se confrontaram. A verdade terrestre vê cumprir-se a verdade eterna. Aqui o Criador, aprovando sua obra como nos primeiros dias da criação, con­templa Jó e se orgulha de novo de sua criatura. E Jó, louvando o senhor, serve não somente a ele, mas a toda a criação, de geração em geração, e aos séculos dos séculos, porque estava a isso predestinado. Senhor, que livro e que lições! Que força miraculosa dá ao homem a Escri­tura Sagrada! É como a representação do mundo, do homem e de seu caráter. Quantos mistérios resolvidos e revelados: Deus reexalta Jó, restitui-lhe sua riqueza, anos decorrem e tem ele outros filhos e os ama. "Como podia ele amar esses novos filhos, depois de ter perdido os primeiros? A recordação destes permite que ele seja perfeitamente feliz, como outrora, por mais queridos que sejam os novos?" Mas decerto; a dor antiga se transforma misteriosamente pouco a pouco numa doce alegria: à impetuosidade juvenil sucede a serenidade da velhice; abençôo cada dia o nascer do sol, meu coração canta-lhe um hino como outrora, mas prefiro seu poente de raios oblíquos, evo­cando doces e ternas recordações, queridas imagens de vida, longa vida abençoada, e, dominando tudo, a verdade divina que acalma, reconcilia, absolve! Eis-me ao termo de minha existência, eu o sei, e sinto todos os dias minha vida terrestre ligar-se já à vida eterna, desco­nhecida, mas bem próxima e cujo pressentimento faz vibrar minha alma de entusiasmo, ilumina minha mente, enternece-me o coração... Amigos e mestres, tenho muitas vezes ouvido dizer, e agora mais que nunca dizem que os padres, sobretudo os do campo, queixam-se da insuficiência do que ganham e da sua mediocridade; afirmam mesmo — vi-o — que já não podem mais explicar a Escritura ao povo, em vista de seus fracos recursos, que se os luteranos chegarem e se puserem esses heréticos a desviar suas ovelhas, tanto pior, porque não ganham eles o bastante. Que Deus lhes assegure o pagamento tão precioso aos olhos deles (porque sua queixa é legítima), mas na verdade, se alguém é responsável por esse estado de coisas, nós mesmos o somos pela metade! Porque admitamos que o tempo falte, que o padre tenha razão, que seja ele sobrecarregado pelo trabalho e pelo seu ministério; encontrará ele sempre nem que seja uma hora por semana para se lembrar de Deus. Aliás, não está ele ocupado o ano inteiro. Reúna em sua casa, uma vez por semana, à noite, as crianças, para começar. Seus pais saberão e virão em seguida. Inútil construir um local para isso; basta recebê-los na isbá; não temais que a sujem, é apenas por uma hora. Abre-se a Bíblia para fazer-se uma leitura, sem palavras sábias, sem soberba ou ostentação, mas com uma doce simplicidade, na alegria de ler para eles, de ser escutado e de ser por eles compreendido, detendo-se por vezes para explicar um termo ignorado pelas pessoas simples; não tenhais receio, eles vos compreenderão, um coração orto­doxo compreende tudo! Lede para eles a história de Abraão e de Sara, de Isaac e de Rebeca, como Jacó foi à casa de Labão e lutou em sonho com o Senhor, dizendo: "Este lugar é terrível", e impressionareis o espírito piedoso do povo simples. Contai-lhes, sobretudo às crianças, como o jovem José, futuro intérprete de sonhos e grande profeta, foi vendido por seus irmãos, que disseram a seu pai que seu filho tinha sido devorado por uma besta feroz, mostrando-lhe suas vestes ensan­güentadas. Como, posteriormente, chegaram seus irmãos ao Egito à procura de trigo, e José, alto dignitário, que eles não reconheceram, perseguiu-os, acusou-os de roubo e reteve seu irmão Benjamim, se bem que os amasse. Porque se lembrava sempre de como seus irmãos o tinham vendido aos comerciantes, à beira de um poço, em alguma parte do deserto ardente, como chorava e como lhes suplicava, de mãos juntas, que não o vendessem como escravo em terra estrangeira: re­vendo-os após tantos anos, amou-os de novo ardentemente, mas fê-los sofrer e perseguiu-os, embora amando-os. Retira-se afinal, não podendo mais conter-se, lança-se sobre seu leito e desata a chorar; depois enxuga o rosto e volta radiante para declarar-lhes: "Eu sou José, vosso irmão!" E a alegria do velho Jacó, ao saber que seu filho bem-amado estava vivo! Fez a viagem ao Egito, abandonou sua pátria, morreu em terra estrangeira, legando aos séculos dos séculos uma grande palavra, guar­dada misteriosamente durante toda a sua vida no seu coração tímido, o saber que de sua raça, da tribo de Judá, sairia a esperança do mundo, o Reconciliador e o Salvador! Padres e mestres, desculpai-me que eu, um menino, vos explique o que sabeis desde muito tempo e que poderíeis ensinar-me com bem mais arte. É o entusiasmo que me faz falar, perdoai minhas lágrimas, porque esse livro me é querido; e se o padre também chora, verá sua emoção partilhada pelos seus ouvintes. Basta uma minúscula semente: uma vez lançada na alma do povo. sim­ples, não perecerá e ali ficará até o fim, entre as trevas e a infecção do pecado, como um ponto luminoso e uma recordação sublime. Nada de longos comentários, de homilias, ele compreenderá tudo simples­mente. Duvidais disso? Lede-lhe a história tocante da bela Ester e da orgulhosa Vasti, ou a maravilhosa narrativa de Jonas no ventre da baleia. Não esqueçais tampouco as parábolas do Senhor, sobretudo no Evangelho segundo São Lucas (como sempre o fiz), em seguida aos Atos dos Apóstolos, a conversão de Saulo (isto absolutamente!). Por fim, no Martirológio, bastaria a vida de Santo Aleixo, homem de Deus, e da mártir sublime entre todas, Maria, a Egipcíaca. Essas narrativas singelas comoverão o coração do povo e isto apenas uma hora por semana, malgrado vossos fracos recursos. O padre dar-se-á conta de que o nosso povo misericordioso, reconhecido, lhe retribuirá seus benefícios ao cêntuplo; lembrando-se do zelo de seu pastor e de suas palavras comovidas, ajudá-lo-á no seu campo, na casa, testemunhar-lhe-á mais respeito que antes e então seu estipêndio aumentará. É uma coisa tão simples que por vezes tememos mesmo falar dela, porque zom­barão da gente e, no entanto, como é certa! Aquele que não crê em Deus não crê em seu povo. Quem creu no povo de Deus verá seu santuário, mesmo que nele não tivesse crido até então. Somente o povo e sua força espiritual futura converterão nossos ateus desprendidos da terra natal. E que é a palavra de Cristo sem o exemplo? Sem a palavra de Deus, o povo perecerá, porque sua alma está ávida dessa palavra e de toda idéia nobre. Na minha juventude, vai fazer em breve quarenta anos, percorríamos a Rússia, o Padre Anfim e eu, pe­dindo esmolas para nosso mosteiro; passamos uma vez a noite com pescadores, à margem dum grande rio navegável; um jovem camponês de belo rosto, parecendo ter uns dezoito anos, veio sentar-se perto de nós; apressava-se em chegar no dia seguinte ao seu posto para sirgar uma barca mercante. Seu olhar era doce e límpido. Fazia uma noite clara, calma e quente, uma noite de julho; uma bruma subia do rio e nos refrescava; de tempos em tempos um peixe emergia, os pássaros haviam-se calado, tudo respirava paz, oração. Éramos os únicos que não dormiam, aquele jovem e eu. Falamos da beleza do mundo e de seu mistério. Cada erva, cada escaravelho, uma formiga, uma abelha dourada, todos conheciam seu caminho duma maneira admirável, por instinto, atestam o mistério divino, cumprem-no eles próprios conti­nuamente. Vi que o coração daquele moço se aquecia. Confiou-me que amava a floresta e os pássaros que a habitam; era passarinheiro, compreendia-lhes os cantos, sabia atrair todos eles. "Para mim, não existe nada de melhor que a vida na floresta", dizia ele, "embora tudo esteja bem. " "É verdade", respondi-lhe, "tudo é bom e magnífico, porque tudo é verdade. Olha o cavalo, nobre animal, familiar ao homem, ou o boi, que o nutre e trabalha para ele, curvado, pensativo; considera a fisionomia deles: que mansidão, que apego a seu dono, que muitas vezes lhes bate sem piedade, que mansidão, que confiança, que beleza! Chega a comover saber que nele não há pecado, porque tudo é per­feito, inocente, exceto o homem, e o Cristo está em primeiro lugar com os animais. " "Será possível", perguntou o adolescente, "que o Cristo esteja também com eles?" "Como poderia ser de outro modo", repliquei-lhe, "pois que o Verbo é destinado a todos? Todas as criaturas, cada folha, aspiram ao Verbo, cantam a glória de Deus, gemem incons­cientemente o Cristo. É este o mistério de sua existência sem pecado. Lá, na floresta, vaga um urso temível, ameaçador e feroz, sem que nisso haja culpa sua. " E contei-lhe como um grande santo que fazia peni­tência na floresta, onde tinha sua cela, recebeu um dia a visita de um urso. Apiedou-se do animal, abordou-o sem temor, deu-lhe um pedaço de pão. "Vai", disse-lhe, "que o Cristo esteja contigo!" E a fera re­tirou-se documente, sem lhe fazer mal. O rapaz ficou comovido ao saber que o eremita ficara indene e que o Cristo também estava com o urso. "Que bom! Como todas as obras de Deus são boas e maravi­lhosas!" E mergulhou num doce devaneio. Vi que ele havia compre­endido. Adormeceu a meu lado, com um sono leve, inocente. Que o Senhor abençoe a juventude! Rezei por ele antes de adormecer. Senhor, envia a paz e a luz aos teus!

c) Recordações da mocidade do "stáriets" Zósima ainda no mundo. O duelo.

Passei quase oito anos em Petersburgo, no Corpo dos Cadetes. Essa educação nova sufocou muitas das impressões de minha infância, mas sem fazer que as esquecesse. Em troca, adquiri uma porção de hábitos e até mesmo de opiniões novas que fizeram de mim um indivíduo quase selvagem, cruel e tolo. Adquiri um verniz de polidez e prática do mundo ao mesmo tempo que do francês, mas todos considerávamos os soldados que nos serviam no Corpo como verdadeiros brutos. Eu talvez mais do que os outros, porque de todos os meus camaradas era o mais impressionável. Tornados oficiais, estávamos prontos a derramar nosso sangue para vingar a honra de nosso regimento; quanto à verdadeira honra, nenhum de nós tinha dela noção, e, se a tivesse aprendido, teria sido o primeiro a rir dela. A embriaguez, a devassidão, a impudência nos tornavam quase altivos. Não direi que fôssemos per­vertidos; todos aqueles rapazes tinham boa natureza, mas portavam-se mal, eu sobretudo. Estava de posse de meu capital, de modo que vivia à minha fantasia, com todo o ardor da juventude, sem peias; navegava com todas as velas desdobradas. Mas eis uma coisa que causava admi­ração: lia por vezes, e até mesmo com grande prazer; não abri quase nunca a Bíblia naquela época, porém ela não me largava; andava por toda parte comigo, conservava esse livro, sem dar-me conta disso, "cada dia e cada hora, cada mês e cada ano". Depois de quatro anos de serviço, encontrei-me por fim na cidade de K***, onde nosso re­gimento tinha guarnição. A sociedade ali era variada, divertida, acolhe­dora e rica; fui bem recebido em toda parte, sendo como era alegre de natureza; além do mais, passava por ter fortuna, o que não prejudica nunca na sociedade mundana. Sobreveio uma circunstância que foi o ponto de partida de tudo o mais. Liguei-me a uma moça encantadora, inteligente e distinta, de caráter nobre, de família respeitável. Seus pais, ricos e influentes, faziam-me boa acolhida. Pareceu-me que aquela moça tinha inclinação por mim; meu coração inflamou-se com essa idéia. Compreendi mais tarde que, provavelmente, não a amava com tanta paixão, mas que a elevação de seu caráter inspirava-me respeito, o que era inevitável. No entanto, o egoísmo impediu-me então de pe­dir-lhe a mão; parecia-me demasiado duro renunciar às seduções da devassidão, à minha independência de celibatário jovem e rico. Fiz, no entanto, alusões, mas adiei para mais tarde qualquer passo decisivo. Fui então enviado em comando de serviço para outro distrito; de volta, após dois meses de ausência, soube que a moça se casara com um rico proprietário dos arredores, mais velho do que eu, porém jovem ainda, com relações na melhor sociedade, coisa de que eu não gozava, homem bastante amável e instruído, quando não era eu nada disso absolutamente. Esse desenlace inesperado consternou-me a ponto de perturbar-me o espírito, tanto mais que, como o soube então, aquele jovem proprietário era noivo dela desde muito tempo. Havia-o encon­trado muitas vezes em casa dela, sem nada notar, cego que estava pela minha fatuidade. Era isso sobretudo que me vexava: como quase toda gente estava ao corrente, ao passo que eu de nada sabia? E expe­rimentei de súbito um ressentimento intolerável. Rubro de cólera, lem­brei-me de quantas vezes lhe havia quase declarado meu amor, e como não me havia ela nem detido nem prevenido, concluí daí que havia zombado de mim. Mais tarde, evidentemente, dei-me conta de meu erro; lembro-me de que ela punha fim, gracejando, a tais conversas e falava de outra coisa, mas, no momento, estava incapaz de raciocinar e ardia por vingar-me. Lembro-me com surpresa de que minha ani­mosidade e minha cólera causavam repugnância a mim mesmo, porque, com meu caráter leviano, era incapaz de permanecer muito tempo zangado com alguém; de modo que me excitava artificialmente até a extravagância. Esperei a ocasião e, numa reunião mundana bastante numerosa, consegui ofender meu "rival", por um motivo totalmente es­tranho, zombando de sua opinião a propósito de um acontecimento então importante — estava-se em 1826 — e escarnecendo dele com espírito, pelo que disseram. Em seguida, provoquei uma explicação de sua parte e mostrei-me tão grosseiro nessa ocasião que ele aceitou a luva, malgrado a enorme diferença que nos separava, porque era eu mais jovem que ele, insignificante e de posição inferior. Mais tarde, soube de fonte certa que aceitara ele minha provocação também por ciúme de mim; já antes se mostrara um pouco ciumento de mim em relação à sua mulher, então sua noiva; disse a si mesmo que se ela soubesse agora que eu o insultara, sem que ele me houvesse provocado em duelo, desprezá-lo-ia involuntariamente e seu amor ficaria abalado. Encontrei logo como testemunha um camarada, tenente de nosso regi­mento. Se bem que os duelos fossem então rigorosamente reprimidos, eram moda entre os militares, de tal modo se desenvolvem e enraízam preconceitos absurdos. Junho chegava ao fim; nosso encontro estava marcado para o dia seguinte de manhã, às 7 horas, fora da cidade, e eis que me aconteceu algo de verdadeiramente fatal. À noite, voltando para casa de muito mau humor, zangara-me com meu ordenança, Afanássi, e havia-lhe batido violentamente no rosto, a ponto de ensan­güentá-lo. Estava desde pouco tempo a meu serviço e eu já lhe havia batido, mas jamais com tal selvagería. Acreditá-lo-íeis, meus queridos, quarenta anos se passaram desde então e lembro-me daquela cena com vergonha e dor. Deitei-me e quando despertei, ao fim de três horas, era já dia. Levantei-me, não tendo mais vontade de dormir, fui à janela, que dava para um jardim; o sol se levantara, fazia um tempo magnífico, os pássaros gorjeavam. "Que será isto?", pensei. "Experimento uma espécie de sentimento de infâmia e de baixeza. Não será pelo fato de que vou derramar sangue? Não", pensei, "não é isto. Ou porque tenho medo da morte, medo de ser morto? Não, absolutamente, longe disso... " E adivinhei, de repente, que eram os golpes dados em Afanássi na noite anterior. Revi a cena, como se ela se repetisse: ele, de pé diante de mim, que lhe bato no rosto a toda força, suas mãos na costura das calças, a cabeça ereta, os olhos escancarados, estreme­cendo a cada pancada, não ousando mesmo levantar os braços para se resguardar, e ali estava um homem reduzido àquele estado, batido por outro homem! Que crime! Foi como uma agulha que me traspassou a alma. Estava como que fora de mim, e o sol brilhava, as folhas agradavam à vista, os pássaros louvavam a Deus. Cobri o rosto com as mãos, estendi-me no leito e desatei a chorar. Lembrei-me então de meu irmão Márkel e de suas derradeiras palavras aos criados; "Meus bem-amados, por que me servis? Por que me amais, serei digno de ser servido?" "Sim, serei digno?", perguntei a mim mesmo, de repente. Com efeito, a que título merecia eu ser servido por outro homem, feito como eu à imagem de Deus? Esta questão atravessou-me assim o espírito pela primeira vez. "Mãe querida, na verdade, cada qual é culpado diante de todos e por todos, somente os homens ignoram isso; se o soubessem, seria logo o paraíso!" "Senhor, seria isto verdade", pensei, chorando, "sou talvez o mais culpado de todos e o pior que existe?" E de súbito o que eu ia fazer apareceu-me em plena luz, em todo o seu horror: ia matar um homem de bem, nobre, inteligente, sem ne­nhuma ofensa de sua parte, e tornar assim sua mulher para sempre infeliz, torturá-la, fazê-la morrer. Estava deitado de bruços, com a face contra o travesseiro, tendo perdido a noção do tempo. De repente, entrou meu camarada, o tenente, que vinha procurar-me com pistolas: "Eis o que está bem", disse ele, "já te levantaste, está na hora, vamos". Minhas idéias desconcertaram-se, perdi a cabeça; contudo, saímos para subir ao carro. "Espera-me", disse-lhe, "volto imediatamente, esqueci meu porta-moedas. " Voltei correndo para casa e fui ao quartinho de Afanássi. "Afanássi, ontem bati-te duas vezes no rosto, perdoa-me!" Ele estremeceu como se tivesse medo; vi que não era bastante e prosternei-me a seus pés, pedindo-lhe perdão. Ficou estupidificado. "Vossa nobreza, bárin, como... mereço eu?... " Pôs-se a chorar como eu havia pouco, com o rosto oculto nas mãos, e voltou-se para a janela, abalado pelos soluços; corri a juntar-me a meu camarada e partimos: "Viste o vencedor", gritei-lhe, "ei-lo diante de ti!" Estava repleto de alegria, rindo todo o tempo, tagarelava sem cessar, a respeito de não sei mais o quê. O tenente olhava-me: "Pois bem, camarada, és um bravo; vejo que sustentarás a honra do uniforme". Chegamos ao terreno, onde éramos esperados. Colocaram-nos a doze passos um do outro, meu adversário devia atirar em primeiro lugar; mantinha-me diante dele, alegremente, sem pestanejar, examinando-o com afeto. Ele atirou, fui somente arranhado na face e na orelha. "Louvado seja Deus!", digo. "O senhor não matou um homem!" Quanto a mim, dei meia volta e atirei minha arma para o ar, na direção da floresta: "Eis teu lugar!", exclamei. Depois, encarando meu adversário: "Senhor, perdoe a um estúpido rapaz tê-lo ofendido e obrigado a atirar contra ele. O senhor vale dez vezes mais do que eu, é superior a mim. Transmita minhas palavras à pessoa a quem o senhor respeita mais no mundo". Apenas acabara de falar, todos três exclamaram: "Permita", disse meu adversá­rio, encolerizado, "se o senhor não queria bater-se, por que nos inco­modou?" "Ainda ontem era eu estúpido. Hoje, tornei-me mais avisado", respondi-lhe, alegremente. "Acredito-o a respeito de ontem, mas quanto a hoje é difícil dar-lhe razão. " "Bravo!", disse eu, batendo palmas. "Estou de acordo com o senhor a respeito, mereci-o!" "Senhor, quer ou não quer atirar?" "Não atirarei, atire mais uma vez, se quiser, mas faria melhor abstendo-se. " As testemunhas gritam, sobretudo a minha: "Pode-se desonrar o regimento pedindo perdão no terreno; se o tivesse pelo menos sabido!" Declarei então a todos, num tom sério: "Senhores, é tão espantoso assim em nossa época encontrar um homem que se arrepende de sua tolice e que reconhece publicamente suas faltas?" "Sim, mas não no terreno", replica minha testemunha. "Eis o que é espantoso: devia eu ter pedido desculpas desde nossa chegada aqui, antes que o cavalheiro atirasse, e não induzi-lo em pecado mortal; mas nossos usos são tão absurdos que era quase impossível ter agido assim, porque minhas palavras não têm valor, a seus olhos, senão pronunciadas depois de ter sido alvo de seu tiro a doze passos; antes, ter-me-ia ele tomado por um covarde, indigno de ser escutado. Senhores", exclamei, com todo o coração, "olhai as obras de Deus: o céu está claro, o ar puro, a erva tenra, os pássaros cantam, a natureza é magnífica e inocente; somente nós, ímpios e estúpidos, não compreendemos que a vida é um paraíso, porque basta que queiramos compreender isso para vê-la aparecer em toda a sua beleza e então nos abraçaríamos, chorando... " Quis continuar, mas não pude, faltou-me a respiração, senti uma felicidade tal que depois jamais experimentei. "Eis sábias e piedosas palavras", disse meu adversário. "Em todo o caso, o senhor é original. " "O senhor ri", disse-lhe eu, sorrindo, "porém mais tarde me louvará. " "Agora também estou pronto a louvá-lo, estendo-lhe a mão, porque o senhor me parece verdadeiramente sincero. " "Não, agora não, mais tarde, quando eu me tiver tornado melhor e merecido seu respeito, o senhor ma estenderá, fará bem então. " Voltamos para casa; minha teste­munha resmungava todo o tempo e eu o beijava. Meus camaradas, postos ao corrente, reuniram-se naquele mesmo dia para julgar-me. "Ele desonrou o uniforme, deve pedir baixa. " Encontrei defensores: "No entanto, recebeu ele um tiro". "Sim, mas teve medo dos outros e pediu perdão no terreno. " "Se tivesse tido medo", replicavam meus defensores, "teria primeiro atirado antes de pedir perdão, ao passo que lançou a pistola ainda carregada na floresta; não, passou-se algo de diferente, de original. " Eu escutava, divertindo-me em observá-los: "Caros amigos e camaradas, não se atormentem por causa de minha baixa. Já está dada. Enviei o perdido esta manhã e, assim que ela for aceita, entrarei para um mosteiro. Eis por que peço baixa". A estas palavras, todos explodiram em risadas: "Deverias ter começado por advertir-nos. Agora, tudo se explica, não se pode julgar um monge". Não paravam de rir, mas sem zombar, com uma doce alegria. Todos gostavam de mim, até mesmo meus mais fogosos acusadores. Em seguida, durante o último mês, até que fosse eu reformado, era como se me carregassem em triunfo: "Ah! o monge!", diziam. Cada qual tinha por mim uma palavra gentil, puseram-se a dissuadir-me, a lamentar-me mesmo: "Que vais fazer?" "Não, é um bravo, recebeu um tiro e podia ele próprio atirar, mas tivera um sonho na véspera que o impelia a fazer-se monge, eis a razão. " Foi quase a mesma coisa na sociedade local. Até então, não atraía eu a atenção; recebiam-me cordialmente, e nada mais; agora, cada qual disputava conhecer-me e convidar-me para sua casa: riam de mim, ao mesmo tempo que me estimavam. Se bem que se falasse abertamente de nosso duelo, o caso não teve conseqüências, porque meu adversário era parente próximo de nosso general e, como não houvera efusão de sangue e eu pedira baixa, a coisa virou brincadeira. Pus-me então a falar bem alto e sem temor, malgrado as zombadas, porque não eram elas propriamente malévolas. Essas conversas realizavam-se sobretudo à noite, em companhia de senhoras; as mulheres gostavam ainda mais de escutar-me e obrigavam os homens a fazer o mesmo. "Como pode dar-se que seja eu culpada por todos?", e cada qual ria-me na cara. "Vejamos, posso ser culpada por você, por exemplo?" "Donde o saberia", respondia-lhes eu, "quando o mundo inteiro está desde muito tempo engajado numa outra via, quando tomamos a mentira pela verdade e exigimos de outrem a mesma mentira? Uma vez, em minha vida, resolvi agir sinceramente e todos vós acreditastes que eu estava louco. Embora, gostando de mim, ríeis de mim. " "Como não gostar de alguém como o senhor?", disse-me a dona da casa, rindo bem alto. Havia muita gente em casa dela. De repente, vejo levantar-se a jovem que fôra a causa de meu duelo e a quem quisera fazer minha noiva pouco tempo antes; não havia notado sua chegada. Dirigiu-se para mim e estendeu-me a mão: "Permita-me", disse, "que lhe declare que, longe de rir do senhor, agradeço-lhe com emoção e respeito-o pela sua maneira de agir". Seu marido aproximou-se, tornei-me o centro da reunião, quase me beijavam. Sentia-me contente assim; minha atenção foi atraída por um senhor de certa idade, que me tinha igualmente abordado; até então conhecia-o somente de nome, sem ter jamais trocado uma palavra com ele.

d) O misterioso visitante.

Era um funcionário que ocupava desde muito tempo um lugar de destaque em nossa cidade. Homem respeitado por todos, rico, reputado pela sua beneficência, doara importante soma ao hospício e ao orfanato e praticara muito bem em segredo, sem o revelar, o que só se veio a saber após sua morte. De cerca de cinqüenta anos, tinha o ar quase severo, falava pouco; estava casado havia dez anos com uma mulher ainda jovem, de quem tinha três filhos em tenra idade. No dia seguinte à noite, estava eu em casa, quando a porta se abriu e entrou aquele senhor.

É preciso notar que não morava eu mais na mesma casa; assim que dei baixa, instalara-me em casa de uma senhora idosa, viúva dum funcionário, cuja criada me servia, porque no dia mesmo do meu duelo mandara embora Afanassi para sua companhia militar, corando ao olhá-lo de frente depois do que se passara, de tal modo um leigo não preparado é inclinado a ter vergonha da ação mais justa.

— Há vários dias que o escuto com grande curiosidade — disse-me o visitante, ao entrar. — Desejei por fim conhecê-lo para me entreter com o senhor ainda mais pormenorizadamente. Poderia o senhor pres­tar-me esse grande serviço?

— De muito boa vontade, e olharei isso com uma honra muito particular — respondi-lhe. Estava quase amedrontado, de tal maneira me impressionara ele desde a primeira vez. Porque, muito embora me escutassem com curiosidade, ninguém me havia ainda abordado com ar tão sério e severo. Além do mais, viera procurar-me em minha casa. Sentou-se.

— Noto no senhor — prosseguiu ele — uma grande força de caráter, porque não temeu servir a verdade num caso em que arriscava, pela sua franqueza, atrair para si o desprezo geral.

— Os seus elogios talvez sejam bastante exagerados — disse-lhe eu.

— Absolutamente. Esteja certo de que tal ato é bem mais difícil de praticar do que o senhor pensa. Eis somente o que me impres­sionou e por isso vim vê-lo. Se minha curiosidade talvez indiscreta não o chocar, descreva-me suas sensações no momento em que se decidiu a pedir perdão, por ocasião do duelo, admitindo-se que o senhor se lembre delas. Não atribua à frivolidade a minha pergunta; pelo contrário, ao fazer-lha, tenho um fim secreto que lhe explicarei provavelmente mais tarde, se aprouver a Deus que ainda nos encon­tremos.

Enquanto ele falava, eu o fitava e experimentei de repente por ele uma confiança completa, ao mesmo tempo que viva curiosidade, por­que sentia que sua alma guardava um segredo.

— Deseja conhecer minhas sensações no momento em que pedia perdão a meu adversário? — respondi-lhe. — Mas vale mais a pena contar-lhe em primeiro lugar os fatos ainda ignorados dos outros. — E narrei-lhe toda a cena com Afanassi e como me havia prosternado diante dele. — O senhor mesmo pode ver depois disso — concluí eu — que durante o duelo já me sentia mais à vontade, porque tinha começado ainda em casa e, uma vez entrado nessa via, continuei não somente sem esforço, mas com alegria.

Ele me escutava, com atenção e simpatia.

— Tudo isso é bastante curioso. Voltarei a vê-lo.

A partir de então, visitou-me quase todas as noites. E teríamos ficado grandes amigos, se me tivesse falado de si próprio. Mas quase não falava, limitando-se a interrogar-me a respeito de mim mesmo. No entanto, tomei-lhe amizade e confiava-lhe todos os meus sentimentos, pensando: "Não tenho necessidade de seus segredos para saber que é um justo... Além do mais, um homem tão sério e bem mais idoso que eu, que me vem procurar e faz caso dum rapaz". Soube dele muitas coisas úteis, porque era homem de alta inteligência. "Penso também desde muito tempo que a vida é um paraíso", e acrescentou: "Só penso nisso". Olhava-me sorrindo. "Estou ainda mais convencido disso que o senhor mesmo, mais tarde saberá por quê. " Eu o escutava, dizendo a mim mesmo: "Tem decerto uma revelação a fazer-me". "O paraíso", dizia ele, "está oculto no íntimo de cada um de nós; neste momento eu o oculto em mim e, se quiser, realizar-se-á amanhã ver­dadeiramente para toda a minha vida. " Falava com enternecimento, olhando-me com ar misterioso, como se me interrogasse. "Quanto à culpabilidade de cada um por todos e por tudo, de parte seus pecados, suas considerações a esse respeito são perfeitamente justas e é espan­toso que tenha podido o senhor abraçar essa idéia com tal amplitude. Quando os homens a comprenderem será certamente para eles o advento do reino dos céus, não em sonho, mas na realidade. " "Mas quando acontecerá isto?", exclamei, doloridamente. "Talvez não seja senão um sonho. " "Como, o senhor mesmo não crê no que prega?! Saiba que esse sonho, como diz o senhor, realizar-se-á certamente, mas não ago­ra, porque tudo é regido por leis. É um fenômeno moral, psicológico. Para renovar o mundo, é preciso que os próprios homens mudem de caminho. Enquanto cada qual não for verdadeiramente o irmão de seu próximo, não haverá fraternidade. Jamais os homens saberão, em nome da ciência ou do interesse, repartir pacificamente entre si a pro­priedade e os direitos. Ninguém terá bastante, e todos murmurarão, terão inveja uns dos outros, exterminar-se-ão mutuamente. Pergunta o senhor quando isso se realizará? Isso virá, mas somente quando tiver terminado o período de isolamento humano. " "Que isolamento?", per­guntei. "Reina ele em toda parte na hora atual, mas não está terminado e seu termo ainda não chegou. Porque, no presente, cada qual aspira a separar sua personalidade dos outros, quer gozar ele próprio a ple­nitude da vida; entretanto, todos esses esforços, longe de atingir o alvo, só resultam num suicídio total, porque, em lugar de afirmar plena­mente sua personalidade, caem numa solidão completa. Com efeito, neste século, todos se fracionaram em unidades, cada qual se isola no seu buraco, separa-se dos outros, oculta-se, ele e seus bens, afasta-se de seus semelhantes e os afasta de si. Amontoa riqueza sozinho, felici­ta-se pelo seu poder e pela sua opulência; ignora, o insensato; que, quanto mais amontoa, mais se enterra numa impotência fatal. Porque está habituado a só contar consigo mesmo e destacou-se da coletividade, acostumou-se a não crer na entreajuda, no seu próximo, na humani­dade, e treme somente à idéia de perder sua fortuna e os direitos que ela lhe confere. Por toda parte, em nossos dias, o espírito humano começa ridiculamente a perder de vista que a verdadeira garantia do indivíduo consiste não no seu esforço pessoal isolado, mas na solidariedade. Mas este isolamento terrível terá certamente fim e todos compreenderão ao mesmo tempo quanto sua separação mútua era contrária à natureza. Tal será a tendência da época, e causará espanto o ter-se demorado tanto tempo nas trevas, sem ver a luz. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem... Mas, até então, é preciso guardar o estandarte e — ainda que sozinho a agir — o homem deve mostrar o exemplo e sair do isolamento para se reaproximar de seus irmãos, mesmo passando por maluco. Isto a fim de impedir que uma grande idéia pereça. "

Esses temas apaixonantes enchiam nossos serões. Abandonei mesmo a sociedade e minhas visitas tornaram-se mais raras; além disso, come­cei a passar de moda. Não digo isto para queixar-me, por que continua­vam a estimar-me e fazer-me boa cara, mas é preciso convir que a moda tem grande império no mundo. Acabei ficando entusiasmado pelo meu misterioso visitante, porque sua inteligência me arrebatava: além disso, tinha a intuição de que nutria ele um projeto e se preparava para uma ação talvez heróica. Sem dúvida mostrava-se grato pelo fato de não procurar eu conhecer seu segredo e de não fazer a ele nenhuma alusão. Notei por fim que começava ele a ser atormentado pelo desejo de fazer-me uma confidencia. Pelo menos, tornou-se isto evidente ao fim de um mês mais ou menos. "Sabe", perguntou-me uma vez, "que se interessam muito por nós na cidade e que minhas freqüentes visitas causam espanto? Pois seja, em breve tudo se explicará. " Por vezes era presa, de súbito, de uma agitação extraordinária; quase sempre então se levantava e ia-se embora. Acontecia-lhe fitar-me muito tempo com um olhar penetrante. Pensava eu: "Ele vai falar", mas parava e dis­corria a respeito de um assunto vulgar. Começou a queixar-se de dores de cabeça. Um dia em que havia conversado muito tempo e apaixo­nadamente, vi-o de repente empalidecer, seu rosto contraiu-se, fitava-me com um ar esgazeado.

— Que tem — perguntei —, sente-se mal?

— Eu... saiba... eu... cometi um assassinato.

Sorria ao falar, branco com linho. "Por que sorri ele?" Este pensa­mento atravessou-me a mente antes que tivesse eu coordenado minhas idéias. Eu mesmo empalideci.

— Que está dizendo? — exclamei.

— Veja — respondeu-me com o mesmo sorriso triste —, a primeira palavra custou-me. Agora que comecei, continuarei.

Não lhe dei crédito imediatamente, mas somente ao fim de três dias, quando me contou todos os detalhes. Eu acreditava que ele estivesse louco, no entanto acabei por convencer-me de que dizia a verdade, para doloroso espanto meu. Assassinara, catorze anos antes, uma jovem senhora rica e encantadora, viúva de um proprietário rural, que possuía em nossa cidade uma casa para suas estadas aqui. Sentiu por ela viva paixão, fêz-lhe uma declaração e quis decidi-la a tornar-se sua esposa. Ela, porém, já havia dado seu coração a outro, oficial distinto, então em campanha, cujo próximo regresso ela aguardava. Recusou-lhe o pedido de casamento e rogou-lhe que cessasse suas visitas. Recusado e conhe­cendo a disposição da casa, nela se introduziu uma noite pelo jardim e pelo telhado, com uma audácia extraordinária, arriscando-se a ser descoberto. Mas, como acontece freqüentemente, os crimes audaciosos são muitas vezes mais bem sucedidos que os outros. Tendo entrado no celeiro por uma trapeira, desceu para os quartos por uma pequena escada, sabendo que os criados não fechavam sempre a chave a porta de comunicação. Contava com a negligência deles ainda dessa vez e não se enganava. No escuro, dirigiu-se para o quarto de dormir, onde ardia uma lâmpada de cabeceira. Como de propósito, as duas criadas de quarto tinham saído às ocultas, convidadas a uma ceia festiva na vizinhança. Os outros criados dormiam no rés-do-chão. Vendo-a ador­mecida, sua paixão despertou, depois um furor vingativo e ciumento apoderou-se dele e, não mais podendo dominar-se, mergulhou-lhe uma faca no coração, sem que ela lançasse um grito. Com uma astúcia in­fernal, tratou de voltar as suspeitas contra os criados; deixou de parte o porta-moedas dela, mas abriu a cômoda com as chaves encontradas debaixo do travesseiro e subtraiu, como um criado ignorante, o dinheiro e as jóias de acordo com o tamanho, deixando de lado as mais pre­ciosas, bem como os objetos de valor. Apropriou-se também de algumas lembranças de que voltarei a falar. Realizado seu crime, voltou pelo mesmo caminho. Ninguém, nem no dia seguinte, quando foi dado o alarma, nem mais tarde, teve a idéia de suspeitar o verdadeiro culpado. Ignorava-se seu amor pela vítima, porque fora ele sempre taciturno, fechado e não possuía amigos. Passava simplesmente por um conhe­cido da viúva, a quem não via, aliás, desde duas semanas. Suspeitou-se logo de Piotr, criado-servo da vítima, e imediatamente todas as cir­cunstâncias contribuíram para confirmar essa suspeita, porque sabia ele que sua senhora estava decidida a fazê-lo arrolar entre os recrutas que devia fornecer, visto como era só e de má conduta. Estando bêbado, ameaçara-a de morte no botequim. Fugira dois dias antes do assassi­nato e no dia seguinte encontraram-no totalmente embriagado, caído na estrada, nos arredores da cidade, com uma faca no bolso e a mão direita ensangüentada. Sustentou ele que o sangue era de seu nariz, mas não lhe deram crédito. As criadas confessaram que se haviam ausentado e tinham deixado a porta de entrada aberta até sua volta. Houve outros indícios análogos, que provocaram a detenção desse cria­do inocente. Instauraram o processo, mas ao fim duma semana con­traiu ele febre maligna e morreu no hospital, sem conhecimento. O caso foi arquivado, submeteram-se à vontade de Deus e todos, juizes, autoridades, público, ficaram convencidos de que aquele criado era o assassino. Começou então o castigo. Aquele visitante misterioso, que se tornara meu amigo, confiou-me que a princípio não tinha sentido nenhum remorso. Lamentava somente ter matado uma mulher amada e, suprimindo-a, suprimira seu amor, quando o fogo da paixão lhe queimava as veias. Mas então esquecia quase o sangue inocente derra­mado, o assassinato de um ser humano. A idéia de que sua vítima teria podido tornar-se a esposa dum outro parecia-lhe impossível, de modo que ficou muito tempo persuadido de que não podia ter agido de outro modo. A detenção do criado perturbou-o, mas sua doença e morte tranqüilizaram-no, porque aquele indivíduo sucumbira certamente — pensava ele — não pelo medo causado por sua detenção, mas pelo res­friamento contraído por ter jazido uma noite inteira sobre a terra úmi­da. Os objetos e o dinheiro roubados não o inquietavam, porque rou­bara, não por cupidez, mas para desviar as suspeitas. A soma era insignificante e em breve doou-a, aumentando-a consideravelmente, a um hospício que se fundava na nossa cidade. Fê-lo de propósito, para apaziguar sua consciência e, coisa curiosa, conseguiu isso por um tempo bastante longo, como mo contou mais tarde. Redobrou de atividade no seu serviço, fêz-se confiar uma missão árdua que lhe tomou dois anos, e esqueceu quase o que se passara, graças à firmeza de seu caráter; quando se lembrava de seu crime, esforçava-se por não pensar nele. Consagrou-se igualmente à beneficência, ocupou-se com boas obras em nossa cidade, assinalou-se nas capitais, foi eleito em Petersburgo e Moscou membro de sociedades filantrópicas. Por fim, foi invadido por um devaneio doloroso que ultrapassava suas forças. Apaixonou-se então por uma moça encantadora, com quem se casou em breve, na esperança de que o casamento dissiparia sua angústia solitária e, se cumprisse escrupulosamente seus deveres para com sua mulher e seus filhos, baniria as recordações de outrora. Mas aconteceu precisamente o contrário do que esperava. Desde o primeiro mês de seu casamento, uma idéia o atormentava sem cessar: "Minha mulher me ama, mas que aconteceria se ela soubesse?" Quando ela ficou grávida de seu primeiro filho e comunicou-lhe, ele perturbou-se: "Dou a vida e eu mesmo a tirei". Os filhos vieram ao mundo: "Como ousarei amá-los, instruí-los, educá-los, como lhes falarei da virtude? Derramei sangue". Teve belos filhos, vinha-lhe vontade de acariciá-los: "Não posso fitar-lhes os rostos inocentes; não sou digno". Por fim, teve a visão amea­çadora e lúgubre do sangue de sua vítima, que gritava vingança da jovem vida que ele destruíra. Sonhos terríveis surgiram-lhe. Tendo o coração firme, suportou por muito tempo esse suplício: "Expio meu crime sofrendo secretamente". Mas era uma esperança vã; seu sofri­mento só fazia agravar-se com o tempo. O mundo respeitava-o pela sua atividade beneficente, se bem que seu caráter sombrio e severo inspi­rasse temor; mas, quanto mais crescia esse respeito, mais se lhe tornava intolerável. Confessou-me que pensara em suicidar-se. Mas outro sonho pôs-se a persegui-lo, um sonho julgado a princípio impossível e insen­sato, que acabou, no entanto, por incorporar-se a seu coração a ponto de não poder arrancá-lo dali. Pensava em fazer a confissão pública de seu crime e passou três anos presa dessa obsessão, que se apresentava sob diversas formas. Por fim, creu, de todo o coração, que depois de ter confessado o seu crime aliviaria sua consciência e recuperaria o repouso para sempre. Malgrado esta certeza, encheu-se de terror; como fazê-lo, com efeito? Sobreveio então aquele incidente em meu duelo. "Ao vê-lo, tomei minha decisão. "

— Será possível — exclamei, juntando as mãos — que um inci­dente tão insignificante tenha podido engendrar semelhante determi­nação?

— Minha determinação estava concebida desde três anos, aquele incidente serviu-lhe de impulso. Olhando o senhor, fiz censuras a mim mesmo e invejei-o — declarou ele com rudeza.

— Não lhe darão crédito — observei eu —, ao fim de catorze anos.

— Tenho provas esmagadoras. Apresentá-las-ei. Pus-me então a chorar, beijei-o.

— Decida a respeito de um ponto, de um só! — disse-me ele (como se tudo dependesse de mim agora). — Minha mulher, meus filhos! Ela morrerá de pesar, talvez, meus filhos conservarão sua posição e a propriedade, mas serão para sempre os filhos de um forçado. E que recordação de mim guardarão eles em seu coração!

Mantinha-me calado.

— Como separar-me deles, deixá-los para sempre?

Eu estava sentado, murmurando mentalmente uma prece. Levantei-me, por fim, apavorado.

— E então? — e ele me fixava.

— Vá — disse eu —, faça sua confissão. Tudo passa, só a verda­de fica. Seus filhos, quando crescerem, compreenderão a grandeza de sua determinação.

Ao deixar-me, sua resolução parecia tomada. Mas veio ver-me du­rante mais de duas semanas, todas as noites, sempre a se preparar, sem poder decidir-se. Angustiava-me. Por vezes, chegava resoluto, dizendo com ar enternecido:

— Sei que, desde que tiver confessado, será para mim o paraíso. Durante catorze anos estive no inferno. Quero sofrer. Aceitarei o sofri­mento e começarei a viver. Agora, não ouso amar nem meu próximo, nem mesmo meus filhos. Senhor, eles compreenderão talvez o que me custou meu sofrimento e não me censurarão!

— Todos compreenderão o seu ato, se não agora, mais tarde, porque o senhor terá servido à verdade, à verdade superior, que não é deste mundo.

Deixava-me, aparentemente consolado, e voltava no dia seguinte zan­gado, pálido, o tom irônico,

— Cada vez que volto, o senhor me examina com curiosidade: "Ainda não confessaste?" Espere, não me despreze demais. Não é tão fácil de fazer como o senhor pensa. Talvez não o faça. O senhor não irá denunciar-me, não é?

Por vezes, longe de experimentar uma curiosidade desarrazoada, tinha até medo de fitá-lo. Sofria, estava aflito, tinha a alma cheia de lágrimas. Cheguei a perder o sono.

— Estava com minha mulher há pouco — continuou ele. — Com­preende o senhor o que é uma mulher? Ao sair, os meninos gritaram para mim: "Adeus, papai, volte depressa para ler para nós". Não, o senhor não pode compreender isso. A desgraça alheia não pode ser compreendida.

Tinha os olhos cintilantes, os lábios trêmulos. De súbito, deu um murro na mesa; os objetos que nela estavam tremeram. Um homem tão manso... acontecia-lhe isso pela primeira vez.

— Devo denunciar-me? É preciso fazê-lo? Ninguém foi condenado, ninguém foi para a prisão por minha causa, o criado morreu de doença. Expiei pelos meus sofrimentos o sangue derramado. Aliás, não me acreditarão, não darão fé às minhas provas. Será preciso confes­sar? Estou pronto a expiar meu crime até o fim, contanto que ele não reflita sobre minha mulher e meus filhos. É justo perdê-los ao mesmo tempo que me perco? Não será isto um pecado? Onde está a verdade? Saberão essas pessoas reconhecê-la, apreciá-la?

"Senhor", pensava eu, "pensa ele na estima pública em semelhante momento!" Inspirava-me tal piedade que teria partilhado de sua sorte, quando menos para aliviá-lo. Tinha o ar desvairado. Estremeci, não somente porque compreendia, mas sentia o que custa semelhante deter­minação.

— Decida minha sorte! — exclamou ele.

— Vá denunciar-se — murmurei. A voz me faltava, mas murmurei com tom firme. Peguei em cima da mesa o Evangelho e mostrei-lhe o versículo 24 do capítulo XII de São João: "Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto". Acabara de ler este versículo antes da chegada dele.

Ele o leu.

— É verdade. — Mas teve um sorriso amargo. — É terrível o que se encontra nesses livros — disse, após uma pausa. — É fácil aplicar o que dizem aos outros. E quem os escreveu? Foram homens?

— Foi o Espírito Santo.

— É fácil para o senhor tagarelar. — Sorriu de novo, mas quase com ódio.

Retomei o livro, abri-o noutro lugar e mostrei-lhe a Epístola aos Hebreus, capítulo X, versículo 31. Ele leu: "É coisa horrenda cair nas mãos do Deus vivo".

Rejeitou o livro, todo trêmulo.

— Eis um versículo terrível. Palavra, o senhor soube escolhê-lo. — Levantou-se. — Pois bem! adeus, talvez não volte... haveremos de tornar a ver-nos no paraíso. Portanto, há catorze anos que "caí nas mãos do Deus vivo". Amanhã, rogarei a essas mãos que me soltem...

Quis abraçá-lo, beijá-lo, mas não ousei: causava dó ver seu rosto contraído. Saiu. "Senhor", pensei, "aonde irá ele?" Caí de joelhos diante do ícone e roguei por ele à Santa Mãe de Deus, mediadora e auxilia­dora. Meia hora se passou em lágrimas e preces; era já tarde, cerca de meia-noite. De súbito a porta se abre, era ele ainda. Espantei-me.

— Onde estava o senhor? — perguntei-lhe.

— Creio que esqueci alguma coisa... meu lenço... Está bem, mesmo que não haja esquecido nada, deixe que me sente...

Sentou-se. Fiquei de pé diante dele.

— Sente-se também.

Foi o que fiz. Ficamos assim dois minutos. Ele me fitava; de repen­te, sorriu, depois abraçou-me, beijou-me...

— Lembra-te de que voltei a procurar-te. Ouves-me? Lembra-te!

Era a primeira vez que me tuteava. Partiu. "Amanhã", pensei.

Adivinhara certo. Ignorava então, não tendo ido a parte alguma na­queles últimos dias, que seu aniversário caía precisamente no dia se­guinte. Naquela ocasião, havia em casa dele uma recepção a que comparecia a cidade em peso. Realizou-se como de costume. Após o banquete, avançou para o meio de seus convidados, tendo na mão um papel dirigido a seus chefes. Como estivessem estes presentes, leu o que estava escrito para todos os que ali se encontravam: um relato detalhado de seu crime! "Sendo um monstro, separo-me da sociedade. Deus me visitou", concluía ele. "Quero sofrer." Ao mesmo tempo, depôs sobre a mesa as provas guardadas durante catorze anos: jóias da vítima, roubadas para desviar as suspeitas, uma medalha e uma cruz tiradas do pescoço dela, seu caderninho de notas e duas cartas: uma, de seu noivo, informando-a de sua próxima chegada, e a que ela começara em resposta para enviar no dia seguinte. Por que ter ficado com essas duas cartas e tê-las conservado durante catorze anos, em lugar de destruí-las como provas? O que aconteceu é que todos foram tomados de surpresa e de terror, mas ninguém quis acreditar nele, se bem que o escutassem com uma curiosidade extraordinária, como se escuta um doente; alguns dias mais tarde, todos concordaram que o infeliz estava louco. Seus chefes e a Justiça foram obrigados a dar prosseguimento ao caso. mas em breve arquivaram-no; muito embora os objetos apresentados e as cartas dessem que pensar, achava-se que, mesmo se fossem autênticas aquelas peças, não podiam servir de base a uma acusação formal. A própria defunta poderia ter-lhas confiado. Soube depois que a autenticidade delas fora verificada por numerosos conhecidos e amigos da vítima e que não restava dúvida alguma. Mas, de novo, o caso iria dar em nada. Cinco dias após, soube-se que o infeliz caíra doente e temia-se pela sua vida. Não posso explicar a na­tureza de sua doença, atribuída a perturbações cardíacas; soube-se que a junta médica, a pedido de sua mulher, o examinara também do ponto de vista mental e concluíra pela existência da loucura. Não fui teste­munha de nada, contudo crivaram-me de perguntas e, quando quis visitá-lo, foi-me isso proibido por muito tempo, principalmente por sua mulher. "Foi o senhor", disse-me ela, "que o transtornou. Ele já era melancólico, mas no último ano sua agitação extraordinária e suas esquisitices chamaram a atenção de toda gente, e o senhor o pôs a perder; foi o senhor quem o doutrinou, ele não o deixava durante este mês. " Ora, não somente sua mulher, mas todos na cidade caíam-me em cima e acusavam-me: "É culpa sua", diziam. Calava-me, com o coração alegre por aquela manifestação da misericórdia divina para com um homem que se havia condenado a si mesmo. Quanto à sua loucura, não podia acreditar nela. Permitiram afinal que o visse. Ele mesmo pedira com insistência minha presença para despedir-se de mim. À primeira vista, verifiquei que seus dias estavam contados. En­fraquecido, a tez amarela, as mãos trêmulas, sufocava, mas havia ale­gria, emoção em seu olhar.

— Consumou-se! — declarou. — Há muito tempo que desejava ver­te. Por que não vieste?

Dissimulei-lhe que me fora proibido visitá-lo.

— Deus teve piedade de mim e me chama para seu lado. Sei que vou morrer, mas sinto-me calmo e alegre, pela primeira vez desde tantos anos. Depois de minha confissão, minha alma entrou no paraíso. Agora ouso amar meus filhos e beijá-los. Não me acreditam, ninguém acreditou em mim, nem minha mulher, nem meus juizes; meus filhos não acreditarão nunca. Vejo nisso a prova da misericórdia divina para com eles. Herdarão um nome sem mancha. Agora, pressinto Deus, meu coração exulta, como no paraíso... Cumpri meu dever...

Incapaz de falar, ofegava, apertava-me a mão, olhava-me com um ar exaltado. Mas não conversamos muito tempo, sua mulher vigiava-nos furtivamente. Pôde ele, no entanto, murmurar:

— Lembras-te de como voltei à tua casa à meia-noite? Recomen­dei-te mesmo que te lembrasses. Sabes por que voltava eu? Voltava para matar-te!

Estremeci.

— Depois de haver-te deixado, vaguei pelas trevas, em luta comigo mesmo. De repente, senti por ti um ódio quase intolerável. "Agora", pensei, "tem-me ele em suas mãos, é meu juiz, sou forçado a denun­ciar-me, porque ele sabe tudo. " Não que eu temesse tua denúncia (não pensava nisso), mas dizia a mim mesmo: "Como ousarei olhá-lo, se não me acusar?" E, mesmo que estivesses nos antípodas, a simples idéia de que existias e me julgavas, sabendo de tudo, teria sido insuportável. Detestava-te como responsável por tudo. Voltei à tua casa, lembrando-me de que tinhas um punhal em cima da mesa. Sentei-me e roguei-te que fizesses o mesmo. Durante um minuto refleti. Matando-te, per­dia-me, mesmo sem confessar o outro crime. Mas não pensava nisso, não queria pensar nisso naquele instante. Odiava-te e ardia de desejo de vingar-me de ti. Mas o Senhor venceu o diabo em meu coração. Fica sabendo, pois, que nunca estiveste tão perto da morte.

Morreu ao fim duma semana. Toda a cidade acompanhou-lhe o enterro. O padre pronunciou uma alocução comovida. Deplorou-se a terrível doença que pusera fim a seus dias. Mas toda gente ergueu-se contra mim por ocasião de seus funerais. Cessaram mesmo de rece­ber-me. No entanto, algumas pessoas, depois um maior número, admi­tiram a verdade de suas alegações, vindo muitas vezes interrogar-me com maligna curiosidade, porque a queda e a desonra do justo causam satisfação. Mas guardei silêncio e deixei em breve definitivamente a cidade. Cinco meses depois, o Senhor julgou-me digno de entrar no bom caminho e eu o bendigo por me ter tão visivelmente guiado. Quanto ao infortunado Mikhail, menciono-o todos os dias em minhas orações.

 

EXTRATOS DAS CONVERSAÇÕES E DA DOUTRINA DO "STÁRIETS" ZÓSIMA

e) Do religioso russo e de seu possível papel.

Padres e mestres, que é um religioso? Em nossos dias, nos meios esclarecidos, pronuncia-se este termo com ironia, por vezes mesmo como uma injúria. E isto vai aumentando. É verdade, ai! que se contam, mesmo entre os monges, muitos mandriões, sensuais, libidinosos e desavergonhados vagabundos. "Não passais de preguiçosos de mem­bros inúteis da sociedade, vivendo do trabalho alheio, mendigos sem vergonha. " Entretanto, quantos monges são humildes e mansos, aspiram à solidão para nela se entregar a fervorosas preces! Não se fala deles, cercam-nos de silêncio e causarei espanto a muita gente dizendo que são eles que salvarão talvez ainda uma vez a terra! Porque estão ver­dadeiramente prontos para "o dia e a hora, o mês e o ano". Guar­dam na sua solidão a imagem do Cristo, esplêndida e intata, na pureza da verdade divina, legada pelos padres da Igreja, pelos apóstolos e pelos mártires, e, quando a hora chegar, revelá-la-ão ao mundo abalado. É um grande idéia. Essa estrela brilhará no Oriente.

Eis o que penso dos religiosos. Enganar-me-ei talvez, será presunção minha? Olhai os leigos e esse mundo que se ergue acima do povo cristão: não alterou ele a imagem de Deus e sua verdade? Têm a ciên­cia, mas somente a ciência sujeita aos sentidos. Quanto ao mundo espiritual, a metade superior do ser humano, rejeitam-no, banem-no alegremente, mesmo com ódio. O mundo proclamou a liberdade, sobre­tudo nestes derradeiros anos, e que representa ela? Nada mais senão a escravidão e o suicídio! Porque o mundo diz: "Tu tens necessidades, satisfá-las, porque possuis os mesmos direitos que os grandes e os ricos. Não temas satisfazê-las, aumenta-as mesmo". Eis o que se ensina atual­mente. Tal é a concepção deles de liberdade. E que resulta desse direito de aumentar as necessidades? Entre os ricos, a solidão e o suicídio es­piritual; entre os pobres, a inveja e o crime, porque se conferiram direitos, mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessi­dades. Assegura-se que o mundo, abreviando as distâncias, transmitindo o pensamento pelos ares, unir-se-á sempre cada vez mais, que a fra­ternidade reinará. Ai! não acrediteis nessa união dos homens. Conce­bendo a liberdade como o aumento das necessidades e sua pronta satisfação, alteram-lhes a natureza, porque fazem nascer neles uma multidão de desejos insensatos, de hábitos e imaginações absurdos. Não vivem senão para invejar-se mutuamente, para a sensualidade e a ostentação. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, cargos, lacaios, passa tudo como uma necessidade à qual se sacrifica até sua vida, sua honra e o amor à humanidade, matar-se-ão mesmo, na impossibi­lidade de satisfazê-la. O mesmo ocorre entre aqueles que são ricos; quanto aos pobres, a insatisfação das necessidades e a inveja são no momento afogadas na embriaguez. Mas em breve, em lugar de vinho, embriagar-se-ão de sangue, é o fim para que os conduzem. Dizei-me se tal homem é livre. Um "campeão da idéia" contava-me que, estando na prisão, privaram-no de fumo e que essa privação lhe foi tão penosa que quase traiu sua idéia para obtê-lo. Ora, esse indivíduo pretendia lutar pela humanidade. De que pode ser ele capaz? Quando muito dum esforço momentâneo, que não sustentará por muito tempo. Nada de admirar que os homens tenham encontrado sua servitude em lugar da liberdade, e que em lugar de servir à fraternidade e à união, tenham caído na desunião e na solidão, como mo dizia outrora meu visitante misterioso e mestre. De modo que a idéia do devotamento à huma­nidade, da fraternidade e da solidariedade desaparece gradualmente do mundo; na realidade, acolhem-na mesmo com derrisão, porque como desfazer-se de seus hábitos, aonde irá aquele prisioneiro das necessidades inumeráveis que ele próprio inventou? Na solidão, preocupa-se muito pouco com a coletividade. Afinal de contas, os bens materiais aumen­taram e a alegria diminuiu.

Bem diferente é o caminho do religioso. Zombam da obediência, do jejum, da oração, entretanto é a única via que conduz à verdadeira liberdade; suprimo as necessidades supérfluas, domo e flagelo pela obe­diência minha vontade egoísta e orgulhosa, chego assim, com a ajuda de Deus, à liberdade do espírito e com ela à alegria espiritual! Qual dentre eles é mais capaz de exaltar uma grande idéia, de pôr-se a seu serviço, o rico isolado ou o religioso liberto da tirania dos hábitos? Censura-se ao religioso o seu isolamento: "Tu te retiraste para um mosteiro para cuidar de tua salvação, e desertaste a causa fraternal da humanidade". Mas vejamos quem serve mais à fraternidade. Porque o isolamento está do lado deles e não do nosso, mas eles não o notam. Foi do nosso meio que saíram outrora os homens de ação do povo. Por que não será assim em nossos dias? Esses jejuadores e esses taci­turnos mansos e humildes se erguerão para servir a uma nobre causa. É o povo quem salvará a Rússia. O mosteiro russo sempre esteve com o povo. Se o povo é isolado, nós também o somos. Ele partilha de nossa fé e um político incréu jamais fará nada na Rússia, seja embora sincero e genial. Lembrai-vos disso. O povo derrubará o ateu e a Rússia será unificada na ortodoxia. Preservai o povo e velai pelo seu coração. Instruí-o na paz. Eis vossa missão de religiosos, porque esse povo traz Deus em si.

f) Amos e servos podem tornar-se mutuamente irmãos em espírito?

É preciso confessar que o povo também está presa do pecado. A corrupção aumenta visivelmente todos os dias. O isolamento invade o povo; os açambarcadores e os sanguessugas aparecem; já o comer­ciante se mostra mais ávido de honras, aspira a mostrar sua instrução, sem que tenha nenhuma; com esse fito, desdenha os antigos usos, enver­gonha-se mesmo da fé de seus pais. Vai à casa dos príncipes, embora não passe de um mujique depravado. O povo está desmoralizado pela bebedice e não pode curar-se dela. Quantas crueldades na família, para com a mulher e mesmo para com os filhos, causadas por ela! Vi nas fábricas crianças de nove anos, débeis, atrofiadas, curvadas e já cor­ruptas. Um local sufocante, o barulho das máquinas, o trabalho inces­sante, as obscenidades, a aguardente, é isso que convém à alma dum menino? Precisa é de sol, dos jogos de sua idade, de bons exemplos e de um mínimo de simpatia. É preciso que isso cesse, religiosos, meus irmãos, os sofrimentos das crianças devem ter um fim, levantai-vos e pregai. Mas Deus salvará a Rússia, porque se o povo baixo está per­vertido e atola-se no pecado, sabe que Deus tem horror ao pecado, e se sente culpado perante ele. De modo que nosso povo não cessou de crer na verdade, reconhece Deus, derrama lágrimas de enternecimento. Não acontece o mesmo entre os grandes. Adeptos da ciência, querem organizar-se eqüitativamente pela razão apenas, mas sem o Cristo, como outrora; já proclamaram que não há crime nem pecado. Têm razão de acordo com seu ponto de vista, porque sem Deus, onde está o crime? Na Europa, já o povo se subleva contra os ricos, por toda parte seus chefes o incitam ao assassinato e lhe ensinam que sua cólera é justa. Mas "maldita é sua cólera, porque é cruel". Quanto à Rússia, o Senhor a salvará como a salvou muitas vezes. É do povo que virá a salvação, de sua fé, de sua humildade. Meus padres, pre­servai a fé do povo, não estou sonhando: toda a minha vida fui impressionado pela nobre dignidade de nosso grande povo, vi-a, posso atestá-la. Não é servil, após uma escravidão de dois séculos. É livre no seu comportamento e nas suas maneiras, mas sem querer ofender a ninguém. Não é vingativo, nem invejoso. "Tu és distinto, rico, inte­ligente, tens talento. Pois seja, que Deus te abençoe. Respeito-te, mas sabe que também eu sou um homem. O fato de respeitar-te sem inve­jar-te revela-te minha dignidade humana. " Na verdade, se não o dizem (porque não sabem ainda dizê-lo), agem assim, vi-o, experimentei-o eu mesmo, e, acreditá-lo-íeis? quanto mais pobre e humilde o homem russo mais se nota nele essa nobre verdade, porque os ricos entre eles, os açambarcadores e os sanguessugas já estão na maior parte perver­tidos, e nossa negligência, nossa indiferença são muito culpadas por isso. Mas Deus salvará os seus, porque a Rússia é grande pela sua hu­mildade. Penso no nosso futuro, parece-me vê-lo aparecer, porque acontecerá que o rico mais depravado acabará por envergonhar-se de sua riqueza diante do pobre, e o pobre, vendo sua humildade, com­preenderá e lhe cederá, responderá jovialmente, amigavelmente, à sua nobre confusão. Ficai certos desse desenlace; tende-se para ele! Só há igualdade na dignidade espiritual e isto só é compreendido entre nós. Havendo irmãos, a fraternidade reinará, e sem a fraternidade não se partilharão jamais os bens. Guardamos a imagem do Cristo e ela res­plandecerá aos olhos do mundo inteiro como um diamante precioso... Assim seja!

Padres e mestres, aconteceu-me uma vez algo de tocante. Por oca­sião de minhas peregrinações, encontrei na cidade de K*** meu antigo ordenança Afanássi, oito anos depois de me haver separado dele. Ten­do-me visto, por acaso, no mercado, reconheceu-me, acorreu todo ale­gre: "Bátiuchka, bárin, é mesmo o senhor? Será possível que esteja vendo mesmo o senhor?" Conduziu-me à sua casa. Livre do serviço militar, casara-se, tinha já dois filhos. Ele e sua mulher viviam' de um pequeno negócio de frutas e hortaliças. Seu quarto era pobre, mas limpo e alegre. Fêz-me sentar, preparou o samovar, mandou cha­mar sua mulher, como se fosse uma festa minha visita à sua casa. Apresentou-me seus dois filhos: "Abençoe-os, meu padre". "Cabe a mim abençoá-los?", respondi. "Não passo de um humilde religioso, mas ro­garei a Deus por eles; quanto a ti, Afanássi Pávlovitch, não te esqueço nunca em minhas orações, desde aquele famoso dia, porque és a causa de tudo. " Expliquei-lho da melhor maneira. Ele me olhava sem poder afazer-se à idéia de que eu, seu antigo amo, um oficial, me encontrasse agora diante dele naquele hábito, e chegou mesmo a chorar. "Por que choras", perguntei-lhe, "tu, a quem não posso esquecer? Rejubila-te antes comigo, meu caro, porque meu caminho está iluminado de feli­cidade. " Ele não falava, mas suspirava e abanava a cabeça com enter­necimento. "Que fez de sua fortuna?" "Dei-a ao mosteiro, vivemos em comunidade. " Após o chá, despedi-me deles. Deu-me 50 copeques, ofe­renda para o mosteiro, e vejo que ele me enfia 50 outros na mão apres­sadamente. "É para o senhor", disse-me, "que viaja. Isto posso servir-lhe, meu padre. " Aceitei sua esmola, saudei-o, a ele e à sua esposa, e parti alegre, pensando no caminho: "Todos dois, sem dúvida, ele em sua casa e eu que caminho, suspiramos e nos sorrimos alegremente, de coração contente, lembrando-nos de como Deus fez que nos encon­trássemos". Jamais o tornei a ver depois. Eu era seu amo, ele meu ser­vidor, e agora, beijando-nos com emoção, confundimo-nos numa nobre união. Pensei muito nisso e agora digo a mim mesmo: é inconcebível que essa grande e franca união possa realizar-se por toda parte à sua hora, entre os russos? Creio que ela se realizará e que a hora está próxima.

A propósito dos servidores, acrescentarei o que segue: na minha juventude, irritava-me freqüentemente contra" eles: "a cozinheira serviu demasiado quente, o ordenança não escovou minhas roupas". Mas fui esclarecido pelo pensamento de meu querido irmão, que ouvira na minha infância: "Serei digno de ser servido por outrem? Tenho o di­reito de explorar sua miséria e sua ignorância?" Admirava-me então de que as idéias mais simples, as mais evidentes, nos venham tão tarde ao espírito. Não se pode passar sem servidores neste mundo, mas fazei de maneira a que o vosso se sinta em vossa casa mais livre moral­mente do que se não fosse um servidor. E porque não serei o servidor do meu, e que ele o veja, sem nenhum orgulho de minha parte, nem desconfiança da dele? Por que meu servidor não seria como meu na rente, que aceitaria afinal com alegria em minha família? De agora em diante, é isto realizável e servirá de base à magnífica união do futuro, quando o homem não quererá mais transformar em servidores seus semelhantes, como agora, mas desejará ardentemente, pelo contrário, tornar-se ele próprio o servidor de todos, segundo o Evangelho. Seria um sonho crer que o homem encontrará afinal sua alegria unicamente nas obras de civilização e de caridade e não, como em nossos dias, nas satisfações brutais, na glutonaria, na fornicação, no orgulho, na presunção, na supremacia invejosa de uns sobre os outros? Estou per­suadido de que não é um sonho e que os tempos estão próximos. Riem, perguntam: quando chegarão esses tempos, é provável que cheguem? Penso que realizaremos essa grande obra como Cristo. Quan­tas idéias neste mundo, na história da humanidade, eram irrealizáveis dez anos atrás e no entanto apareceram de repente, quando foi chegado seu termo misterioso e se espalharam por toda a terra! O mesmo acon­tecerá conosco, nosso povo brilhará diante do mundo e todos dirão: "A pedra que os arquitetos tinham rejeitado tornou-se a pedra angu­lar". Poder-se-ia perguntar aos zombadores: se nós sonhamos, quando erguereis vós o vosso edifício, quando vos organizareis eqüitativamente de acordo apenas com a vossa razão, sem o Cristo? Se afirmarem ten­der também para a união, somente os mais ingênuos entre eles poderão acreditar nisso, muito embora possa causar espanto essa ingenuidade. Na realidade, há mais fantasia entre eles que entre nós. Podem orga­nizar-se segundo a justiça, mas, tendo repudiado o Cristo, acabarão por inundar o mundo de sangue, porque o sangue chama o sangue e o que tirar a espada perecerá pela espada. Sem a promessa do Cristo, exter­minar-se-iam até só restarem dois. E no seu orgulho, não poderiam esses conter-se, o derradeiro suprimiria o penúltimo e a si mesmo em seguida. Eis o que aconteceria sem a promessa do Cristo de deter essa luta por amor dos dois e dos humildes. Depois de meu duelo, estando ainda de uniforme, aconteceu-me falar dos servidores em sociedade e lembro-me de que causei espanto a todo mundo. "Com que então seria preciso instalar o servidor no sofá e oferecer-lhes chá?" Respondi-lhes: "Por que não, ainda fosse uma vez ou outra?" A gargalhada foi geral. A pergunta deles era frívola e minha resposta não era clara, mas acho que encerrava certa verdade!

g) Da oração, do amor, do contato com os outros mundos.

Jovem, não esqueças a oração. Cada uma delas, se sincera, exprime um novo sentimento, fonte duma idéia nova que ignoravas e que te reconfortará, e compreenderás que a prece é uma educação. Lembra-te ainda de repetir cada dia, e todas as vezes que puderes, mentalmente: "Senhor, tem piedade de todos aqueles que comparecem agora diante de ti". Porque, a cada hora, milhares de seres terminam sua exis­tência terrestre e suas almas chegam à presença do Senhor; quantos entre eles deixaram a terra no isolamento, ignorados de todos, tristes e angustiados por causa da indiferença geral! E talvez na outra extre­midade do mundo, tua prece por ele chegará a Deus, sem que vós vos tivésseis conhecido. A alma, tomada de temor na presença do Senhor, comover-se-á por ter também na terra alguém que a ama e in­tercede por ela. E Deus vos olhará a ambos com mais misericórdia, porque, se tens tal compaixão daquela alma, ele terá muito mais, ele, cuja misericórdia e cujo amor são infinitos. E a perdoará por tua causa.

Meus irmãos, não temais o pecado, amai o homem mesmo no pecado, é isto a imagem do amor divino, amor que não há maior na terra. Amai toda a criação no seu conjunto e nos seus elementos, cada folha, cada raio de luz, os animais, as plantas. Amando cada coisa, compreendereis o mistério divino nas coisas. Tendo-o compreen­dido uma vez, vós o conhecereis sempre mais, cada dia. E acabareis por amar o mundo inteiro com um amor universal. Amai os animais, porque Deus lhes deu o princípio do pensamento e uma alegria tran­qüila. Não a perturbeis, não os atormenteis tirando-lhes essa alegria, não vos oponhais ao plano de Deus. Homem, não te ergas acima dos animais; eles não têm pecado, ao passo que com tua grandeza man­chas a terra com tua aparição, deixando após ti um rasto de podridão — ai! quase todos nós! Amai particularmente as crianças, porque elas, como os anjos, também não têm pecado; existem para comover-nos os corações, purificá-los, são para nós como uma indicação. Maldito o que ofende um desses pequeninos! Foi o Padre Anfim quem me ensinou a amá-los; sem nada dizer, com os copeques que nos davam em nossas peregrinações, comprava por vezes bolinhos e doces para distribuí-los com eles; não podia passar perto das crianças sem ficar comovido.

Pergunta-se por vezes, sobretudo em presença do pecado: "Ê preciso recorrer à força ou ao amor humilde?" Não empregueis jamais senão esse amor, podereis assim submeter o mundo inteiro. A humildade cheia de amor é uma força tremenda, sem nenhuma outra igual. Cada dia, a cada instante, vigiai-vos, mantende uma atitude digna. Passastes ao lado duma criança blasfemando, sob o império da cólera, sem no­tá-la; ela, porém, vos viu e guarda talvez em seu coração inocente vos­sa imagem envilecedora. Vós não a vistes e talvez tenhais semeado em sua alma um mau germe que poderá desenvolver-se, e isto porque não vos contivestes diante dessa criança, não cultivastes em vós o amor ativo, refletido. Meus irmãos, o amor é mestre, mas é preciso saber adquiri-lo, porque se adquire dificilmente ao preço dum esforço prolongado; é preciso amar, com efeito, não por um instante, mas até o fim. Qualquer um, até mesmo um celerado, é capaz de um amor fortuito. Meu irmão pedia perdão aos pássaros; isto parece absurdo, mas é justo, porque tudo se assemelha ao oceano, onde tudo se derrama e comunica, toca-se num lugar e isto repercute na outra extremidade do mundo. Admitamos que seja uma loucura pedir perdão aos pássaros, mas os pássaros, e a criança, e cada animal que vos cerca sentir-se-iam mais à vontade, se vós mesmos fôsseis mais dignos do que o sois agora, um pouco que seja. Então rezaríeis aos pássaros, possuídos totalmente pelo amor numa espécie de êxtase, vós lhes rogaríeis que vos perdoassem vossos pecados. Estimai esse êxtase, por mais absurdo que pareça aos homens. Meus amigos, pedi a Deus a alegria. Sede alegres como as crianças, como as aves dos céus. No vosso apostolado não vos deixeis perturbar pelo pecado, não temais que ele macule vossa obra e vos impeça de rea­lizá-la, não digais: "o pecado, a impiedade, o mau exemplo são pode­rosos, ao passo que nós somos fracos, isolados; o mal triunfará, sufocará o bem". Não vos deixeis abater assim, meus filhos! Só há um meio de salvação: toma a teu cargo todos os pecados dos homens. Com efeito, meu amigo, desde que responderes sinceramente por todos e por tudo, verás logo que é verdadeiramente assim, que és culpado por todos e por tudo. Mas atirando tua preguiça e tua fraqueza sobre os outros, tor­nar-te-ás finalmente cheio de um orgulho satânico e murmurarás contra Deus. Eis o que penso desse orgulho; é-nos difícil compreendê-lo aqui embaixo, por isso é que se cai tão facilmente no erro, a ele nos. aban­donamos, imaginando realizar algo de grande, de nobre. Entre os sentimentos e os movimentos mais violentos de nossa natureza, há muitos que não podemos ainda compreender aqui embaixo; não te dei­xes seduzir, não penses que isso te possa servir, no que quer que seja de justificação, porque o Juiz soberano te pedirá conta do que podias compreender e não do resto; convencer-te-ás disto tu mesmo, porque discernirás tudo exatamente e não farás objeção. Sobre a terra, vaga­mos sem rumo, e, se não tivéssemos a preciosa imagem do Cristo para guiar-nos, sucumbiríamos e nos perderíamos totalmente, como o gênero humano antes do dilúvio. Muitas coisas nos estão ocultas neste mundo; em compensação, temos a sensação misteriosa do liame vivo que nos prende ao mundo celeste e superior: as raízes de nossos senti­mentos e de nossas idéias não estão aqui, mas em outra parte. Eis por que dizem os filósofos que é impossível sobre a terra compreender a essência das coisas. Deus tomou de empréstimo aos outros mundos as sementes para semeá-las aqui embaixo e cultivou seu jardim. Tudo quanto podia brotar, brotou, mas as plantas que somos vivem somente pelo sentimento de seu contato com esses mundos misteriosos; quando esse sentimento se enfraquece ou desaparece, o que havia em nós bro­tado perece. Tornamo-nos indiferentes à vida, sentimos mesmo aversão por ela. É esta pelo menos minha idéia.

h) Pode-se ser o juiz de seus semelhantes? Fé até o fim.

Lembra-te de que não podes ser o juiz de ninguém. Porque antes de julgar um criminoso, deve o juiz saber que é ele próprio tão cri­minoso quanto o acusado, e talvez mais que todos culpado do crime dele. Quando tiver compreendido isto, poderá ser juiz. Por mais absurdo que isto pareça, é verdade. Porque se eu mesmo fosse um justo, talvez não houvesse diante de mim um criminoso. Se podes encarregar-te do crime do acusado que julgas em teu coração, fá-lo imediatamente e sofre em seu lugar, quanto a ele, deixa-o ir sem censuras. E mesmo se a lei te instituiu juiz dele, tanto quanto é possível, faze também a justiça naquele espírito, porque, uma vez partido, condenar-se-á ele ainda mais severamente que o teu tribunal. Se ele se vai insensível a teu bom tratamento e zombando de ti, não fiques impressionado; é que a hora dele ainda não chegou, mas chegará; e, no caso contrário, um outro em lugar dele compreenderá, sofrerá, condenar-se-á, acusar-se-á a si mesmo, e a verdade será cumprida. Crê firmemente nisto; é aí que repousam a esperança e a fé dos santos. Não te canses de agir. Se te lembrares, à noite, antes de dormir, de que não cumpiste o que era preciso, levanta-te logo para cumpri-lo. Se os que te cercam, por malícia ou indiferença, recusam ouvir-te, põe-te de joelhos e pede-lhes perdão, porque, na verdade, é culpa tua se não querem escutar-te. Se não podes falar àqueles que estão envinagrados, serve-os em silêncio e na humildade, sem jamais desesperar. Se todos te abandonam e se te expulsam com violência, ao ficares sozinho, prosterna-te, beija a terra, rega-a com tuas lágrimas, e essas lágrimas darão frutos, ainda mesmo que ninguém te veja, nem te ouça na tua solidão. Crê até o fim, mesmo que todos os homens se hajam desviado e tenhas ficado fiel sozinho; leva então tua oferenda e louva a Deus, por teres sido o único a manter a fé. E se dois, tais como vós, se reúnem, então eis a plenitude do amor vivo, beijai-vos com efusão e louvai o Senhor, porque sua verdade cumpriu-se, ainda que apenas em vós dois.

Se tu mesmo pecaste e estás mortalmente aflito por isso, rejubila-te por um outro, por um justo, rejubila-te por ser ele, em compensação, um justo e não ter pecado.

Se estás indignado e aflito por causa da iniqüidade dos homens, a ponto de quereres vingar-te, teme acima de tudo esse sentimento; impõe-te o mesmo castigo que se fosses tu mesmo culpado do crime deles. Aceita esse castigo e suporta-o, teu coração se acalmará, com­preenderás que tu também és culpado, porque terias podido esclarecer os celerados mesmo na qualidade de único justo, e não o fizeste. Escla­recendo-os, ter-lhes-ia mostrado um outro caminho, e o autor do crime não o teria talvez cometido, graças à luz. Se os homens ficarem mesmo insensíveis a essa luz, malgrado teus esforços, e negligenciarem sua salvação, fica firme e não duvides do poder da luz celeste; persuade-te de que, se não foram eles salvos agora, sê-lo-ão mais tarde. Senão, seus filhos serão salvos em lugar deles, porque tua luz não perecerá, mesmo se estiveres morto. O justo desaparece, mas a luz fica. Após a morte do salvador é que a gente se salva. O gênero humano repele seus profetas, massacra-os, mas os homens amam seus mártires e veneram aqueles que eles mesmos fizeram perecer. É pela coletividade que tra­balhas, pelo futuro que ages. Não procures recompensa jamais, porque tens já uma grande nesta terra: tua alegria espiritual, de que somente o justo partilha. Não temas nem os grandes nem os poderosos, mas sê sábio e sempre digno. Segue a medida, conhece os termos, instrui-te a este respeito. Retirado na solidão, reza. Prosterna-te com amor e beija a terra. Ama incansavelmente, insaciável mente, todos e tudo, pro­cura esse êxtase e essa exaltação. Rega a terra de lágrimas de alegria, ama essas lágrimas. Não te envergonhes desse êxtase, ama-o, porque é um grande dom de Deus, concedido somente aos eleitos.

i) Do inferno e do fogo eterno. Consideração mística.

Meus padres, pergunto a mim mesmo: "Que é o inferno?" Defino-o assim: "O sofrimento por não poder mais amar". Uma vez, no infi­nito do espaço e do tempo, um ser espiritual, pela sua aparição na terra, teve a possibilidade de dizer: "Eu sou e eu amo". Uma vez somente foi-lhe concedido um momento de amor ativo e vivo, para isso foi-lhe dada a vida terrestre, limitada no tempo; ora, esse ser feliz repeliu esse dom inestimável, nem o apreciou nem amou, considerou-o ironica­mente, ficou a ele insensível. Tal ser, tendo deixado a terra, vê o seio de Abraão, entretém-se com ele como está dito na parábola de Lázaro e do mau rico, contempla o paraíso, pode elevar-se até o Senhor, mas o que o atormenta precisamente é que se apresenta sem ter amado, entra em contato com aqueles que amaram e cujo amor desdenhou. Porque tem uma clara noção das coisas e diz a si mesmo: "Agora tenho o conhecimento e, malgrado minha sede de amor, esse amor será sem valor, não representará nenhum sacrifício, porque a vida terrestre terminou e Abraão não virá aplacar — ainda que com uma só gota de água viva — minha sede ardente de amor espiritual, que agora me abrasa, depois de tê-la desdenhado na terra. A vida e o tempo passaram agora. Daria com alegria minha vida pelos outros, mas é impossível, porque a vida que se podia sacrificar ao amor já decorreu, um abismo a separa da existência atual". Fala-se do fogo do inferno no sentido literal; temo sondar esse mistério, mas penso que, se houvesse mesmo verdadeiras chamas, os danados se regozijariam, porque esqueceriam nos tormentos físicos, ainda que por um instante, a mais horrível tortura moral. É impossível libertá-los dela, porque esse tormento está neles e não fora. E, se se pudesse, penso que mais desgraçados seriam ainda. Porque, mesmo se os justos do paraíso os perdoassem à vista de seus sofrimentos e os chamassem a si no seu amor infinito, não fariam senão aumentar-lhes esses sofrimentos, excitando neles essa sede ardente dum amor correspondente, ativo e grato, doravante impossível. Na timidez de meu coração, penso, no entanto, que a consciência dessa impossibilidade acabaria por aliviá-los, porque, tendo aceitado o amor dos justos sem poder a ele corresponder, sua humilde submissão criaria uma espécie de imagem e de imitação desse amor ativo e desdenhado por eles na terra... Lamento, irmãos e amigos, não poder formular claramente isto. Mas infelizes daqueles que se destruíram a si mesmos, infelizes dos suicidas! Penso que não pode haver mais infelizes do que eles. É um pecado, dizem-nos, orar a Deus por eles, e a Igreja aparentemente os repudia, mas meu pensamento íntimo é que se pode­ria rezar por eles também. O amor não haveria de irritar o Cristo. Toda a minha vida tenho rezado em meu coração por esses infortuna-dos, confesso-vo-lo, meus padres, e ainda agora.

Oh! há no inferno seres que permanecem soberbos e intratáveis, malgrado seu conhecimento incontestável e a contemplação da verdade inelutável; há-os terríveis, que se tornaram totalmente presa de Satanás e de seu orgulho. São mártires voluntários que não podem satisfazer-se com o inferno. Porque são eles próprios malditos, tendo amaldiçoado Deus e a vida. Nutrem-se de seu orgulho irritado como um esfomeado no deserto se poria a sugar seu próprio sangue. Mas são insaciáveis por todos os séculos dos séculos e repelem o perdão. Amaldiçoam Deus que os chama e quereriam que Deus se aniquilasse, ele e toda a sua criação. E arderão eternamente no fogo de sua cólera, terão sede da morte e do nada. Mas a morte fugirá deles...

Aqui termina o manuscrito de Alieksiéi Fiódorovitch Karamázov. Re­pito-o: está incompleto e fragmentário. As informações biográficas, por exemplo, só abarcam a primeira juventude do stáricts Aproveitaram de seu ensino e de suas opiniões para resumi-los num todo, coisas ditas evidentemente em várias ocasiões e em várias vezes. As afirmativas do stáricts nas suas derradeiras horas não são precisas, dá-se somente uma idéia do espírito e do caráter dessa conversação, comparados com extratos de outras lições, no manuscrito de Alieksiéi Fiódorovitch. O fim do stáriets sobreveio duma maneira verdadeiramente inesperada, porque, muito embora todos os assistentes daquela derradeira noite se dessem conta de que sua morte se aproximava, não se podia imaginar que ela ocorresse tão subitamente; pelo contrário, como já o observa­mos, seus amigos, vendo-o tão disposto e loquaz naquela noite, acre­ditaram numa melhora sensível, ainda que passageira. Cinco minutos antes de sua morte, não se podia ainda nada prever. Sentiu de repente uma dor aguda no peito, empalideceu, apoiou suas mãos no coração. Todos se reuniram solícitos em torno dele; sorrindo, malgrado seus sofrimentos, escorregou de sua cadeira, pôs-se de joelhos, prosternou-se com a face inclinada para o chão, estendeu os braços, depois, como em êxtase, beijando a terra e rezando (ele próprio o havia ensinado), en­tregou suavemente, alegremente, sua alma a Deus. A notícia de sua morte espalhou-se logo no eremitério e alcançou o mosteiro. Os ínti­mos do defunto e os designados pela sua posição procederam ao amor­talhamento, segundo o antigo rito, e a comunidade reuniu-se na igreja. Antes do dia, tornou-se a notícia conhecida na cidade, consti­tuindo-se o assunto de todas as conversas: muitas pessoas dirigiram-se ao mosteiro. Mas falaremos disto no livro seguinte; digamos somente, por antecipação, que durante aquele dia ocorreu um acontecimento tão inesperado e, segundo a impressão que produziu entre os monges e na cidade, a tal ponto estranho e desconcertante, que até agora, após tantos anos, se guardou em nossa cidade a mais viva recordação daquele dia movimentado...

 

O ODOR DELETÉRIO

O corpo do Padre Zósima foi preparado para a inumação segundo o rito estabelecido. Não se lavam os monges e os ascetas falecidos, o fato é notório. "Quando um monge é chamado ao Senhor (lê-se no Grande Ritual), o irmão preposto ao encargo esfrega-lhe o corpo com água morna, traçando previamente, com a esponja, uma cruz sobre a fronte do morto, sobre o peito, mãos, pés e joelhos e nada mais. " Foi o Padre Paísi quem levou a cabo essa operação. Em seguida, revestiu o defunto com o hábito monástico e envolveu-o numa capa, fendendo-a um pouco, como está prescrito, para lembrar a forma da cruz. Puse­ram-lhe na cabeça um capuz terminado por uma cruz de oito braços, ficando o rosto coberto por um véu negro, e nas mãos um ícone do Salvador. O cadáver, assim vestido, foi posto pela manhã num ataúde preparado desde muito tempo. Decidiu-se deixá-lo por todo aquele dia no quarto grande que servia de salão. Como pertencesse o defunto à categoria de ieromonakh, convinha ler em sua intenção não o Saltério, mas o Evangelho. Depois do ofício dos mortos, o Padre Iósif começou a leitura; quanto ao Padre Paísi, que queria substituí-lo em seguida pelo resto do dia e da noite, estava no momento muito ocupado e inquieto, bem como o superior do eremitério. Verificava-se, com efeito, entre a comunidade e os leigos que acorreram em multidão, algo de extraordi­nário, uma agitação inaudita, inconveniente mesmo, uma expectativa febril. Os dois religiosos faziam tudo quanto estava a seu alcance para acalmar os espíritos superexcitados. Quando clareou suficientemente, viram-se chegar fiéis trazendo consigo seus doentes, sobretudo as crian­ças, como se só estivessem à espera daquele momento, aguardando uma cura imediata, que não podia tardar em operar-se, segundo a crença deles. Foi somente então que se verificou a que ponto todos tinham o hábito de considerar o defunto stáriets, ainda quando vivo, como um verdadeiro santo. E os recém-chegados estavam longe de pertencer todos ao baixo povo. Aquela ansiosa expectativa dos crentes, que se manifes­tava abertamente, com uma impaciência quase imperiosa, parecia escan­dalosa ao Padre Paísi e ultrapassava suas previsões. Encontrando reli­giosos bastante emocionados, falou-lhes assim: "Essa expectativa frívola e imediata de grandes coisas não é possível senão entre os leigos e não convém a nós". Mas não lhe davam ouvidos, e o Padre Paísi percebia isto com inquietação, se bem que ele próprio (se não se quer nada ocultar), embora reprovando esperanças demasiado prontas, que achava frívolas e vãs, partilhava delas secretamente, no fundo de seu coração, quase no mesmo grau, do que se dava conta. No entanto, certos encon­tros lhe desagradavam bastante e excitavam dúvidas nele, por uma es­pécie de pressentimento. Foi assim que, na multidão que se aglomerava na cela, notou com repugnância (e censurou-se por isso imediatamente) a presença de Rakítin e do religioso de Obdorsk, que se retardava no mosteiro. Todos dois pareceram de súbito suspeitos ao Padre Paísi, embora não fossem os únicos a respeito. No meio da agitação geral, o monge de Obdorsk movimentava-se mais que todos, viam-no por toda parte fazendo perguntas, de ouvido à escuta, cochichando com ar misterioso. Parecia impaciente e como que irritado pelo fato de não se ter ainda produzido o milagre de há muito esperado. Quanto a Ra­kítin, encontrava-se desde bem cedo no eremitério, como se soube mais tarde, seguindo instruções da Senhora Khokhlakova. Assim que essa mulher, boa, porém desprovida de caráter e que não tinha acesso ao ascetério, soube, ao despertar, da notícia, foi tomada de tal curiosidade que enviou imediatamente Rakítin com a missão de tudo observar e mantê-la ao corrente por escrito, mais ou menos a cada meia hora, de tudo quanto acontecesse. Tinha ela Rakítin na conta de um rapaz duma piedade exemplar, tão insinuante era ele e tanto sabia fazer-se valer aos olhos de todos, contanto que encontrasse nisso o mínimo lucro. Como o dia se anunciasse belo, numerosos fiéis comprimiam-se em torno dos túmulos; a maior parte agrupava-se em torno da igreja, outros disseminavam-se aqui e ali. O Padre Paísi, que dava volta pelo ascetério, pensou de repente em Aliócha, a quem não via desde muito tempo. Avistou-o no mesmo instante, no canto mais afastado, perto da cerca, sentado sobre a tumba dum religioso, morto havia mui­tos anos e famoso pelo seu ascetismo. Estava de costas para o eremi­tério, de frente para a cerca, e o monumento quase o dissimulava. Ao aproximar-se, viu o Padre Paísi que ele havia ocultado seu rosto nas mãos e chorava amargamente, com o corpo sacudido pelos soluços. Observou-o um instante.

— Basta de choro, caro filho, basta, meu amigo — disse ele por fim com simpatia. — Por que chorar? Rejubila-te, pelo contrário. Igno­ras, pois, que este dia é um dia sublime para ele? Pensa somente no lugar onde ele se encontra agora, neste minuto!

Aliócha olhou o monge, descobrindo seu rosto molhado de lágrimas como o de um menininho, mas voltou-se imediatamente e tornou a co­brir o rosto com as mãos.

— Talvez tenhas razão em chorar — declarou o Padre Paísi, com ar pensativo. — Foi o Cristo quem te enviou essas lágrimas. "Tuas lágrimas de enternecimento são apenas um repouso da alma e servirão para distrair-te o coração", acrescentou ele consigo mesmo, pensando com afeto em Aliócha. Apressou-se em afastar-se, sentindo que tam­bém ele iria chorar, se o olhasse. Entretanto, o tempo decorria, suce­diam-se as cerimônias fúnebres. O Padre Paísi substituiu o Padre Iósif junto do ataúde e prosseguiu a leitura do Evangelho. Mas antes das 3 horas da tarde ocorreu aquilo de que já falei no fim do livro prece­dente, um acontecimento tão inesperado, tão contrário à esperança geral que, repito-o, nossa cidade e seus arredores dele se lembram até agora com um interesse extraordinário. Acrescentarei que me repugna quase falar desse acontecimento escandaloso, no fim dos mais vulgares e naturais, e tê-lo-ia decerto passado em silêncio, se não tivesse influído de maneira decisiva sobre a alma e o coração do principal, embora futuro, herói de minha narrativa, Aliócha, nele provocando uma espécie de revolução que lhe agitou a razão, mas o fortaleceu definitivamente para um fim determinado.

Quando, ainda antes do amanhecer, o corpo do stáriets foi posto no caixão e transportado para o primeiro quarto, alguém perguntou se era preciso abrir as janelas. Mas esta pergunta, feita incidentemente, ficou sem resposta e quase não foi percebida, exceto por alguns. A idéia de que tal morto pudesse corromper-se e cheirar mal pareceu-lhes absurda e desagradável (senão cômica), por causa do pouco de fé e da frivolidade que revelava, porque se esperava justamente o contrário. Pouco depois do meio-dia começou uma coisa, a princípio notada em silêncio por aqueles que iam e vinham, cada qual temendo visivelmente dar parte aos outros do que pensava; cerca das 3 horas, foi aquilo verificado com tal evidência que a notícia se espalhou entre todos os visitantes do eremitério, alcançou o mosteiro, onde mergulhou toda gente em espanto e logo depois atingiu a cidade, agitando crentes e incréus. Estes se rejubilaram; quanto aos crentes, houve entre eles quem se rejubilasse inda mais, porque "a queda do justo e de sua honra causam prazer", como dizia o defunto numa de suas lições. O fato é que o ataúde pôs-se a exalar um odor deletério, que foi aumentando. Procurar-se-ia em vão nos anais de nosso mosteiro um escândalo se­melhante àquele que se desenrolou entre os próprios religiosos, logo após a comprovação do fato, e que teria sido impossível em outras circunstâncias. Bem muitos anos depois, alguns dentre eles, lembran­do-se dos incidentes daquele dia, perguntavam a si mesmos com horror como pudera o escândalo atingir tais proporções. Porque, já antes, religiosos irreprocháveis, duma santidade reconhecida, stártsi pie­dosos tinham morrido e seus caixões haviam espalhado um odor dele­tério que se manifestava naturalmente, como no caso de todos os mortos, mas sem causar escândalo, nem mesmo emoção alguma. Sem dúvida, segundo a tradição, os restos de outros religiosos, mortos desde muito tempo, tinham escapado à corrupção, coisa de que a comunidade con­servava uma recordação comovida e misteriosa, vendo naquilo um fato miraculoso e a promessa duma glória ainda maior provinha de seus túmulos, se tal fosse a vontade divina. Entre eles, guardava-se sobretudo a memória do stáriets Jó, morto cerca de 1810, na idade de 105 anos, famoso asceta, grande jejuador e taciturno, cujo túmulo era mostrado com veneração a todos os fiéis que chegavam pela primeira vez ao mosteiro, com alusões misteriosas às grandes esperanças que ele susci­tava. (Era o túmulo onde o Padre Paísi encontrara Aliócha pela manhã. ) Além desse, citava-se igualmente o Padre Varsonófi, o stáriets ao qual havia sucedido o Padre Zósima, o qual, quando vivo, todos os fiéis que freqüentavam o mosteiro tinham por "inocente". A tradição pre­tendia que aquelas duas personagens jaziam nos seus ataúdes como se estivessem vivas, que as tinham enterrado intactas, que seus rostos mesmos estavam de certa forma luminosos. Outros relembravam com insistência que seus corpos exalavam um odor suave. No entanto, mal­grado lembranças tão sugestivas, seria difícil explicar exatamente como uma cena tão absurda e chocante pôde passar-se junto ao caixão do Padre Zósima. Quanto a mim, atribuo-a a diferentes causas que agi­ram todas juntas. Assim, aquele ódio inveterado ao "starietismo", tido como uma inovação perniciosa, que existia ainda entre numerosos monges. Em seguida, havia sobretudo a inveja que se tinha à santidade do defunto, tão solidamente estabelecida quando era ele vivo que se tornara como que proibido discuti-la. Porque, muito embora o stáriets conquistasse uma multidão de corações mais pelo amor que pelos mi­lagres e tivesse constituído como que uma falange com aqueles que o amavam, atraíra, no entanto, por isso mesmo, invejosos, depois inimigos encarniçados, declarados e ocultos, não somente no mosteiro, mas entre os leigos. Se bem que não houvesse causado dano a ninguém, dizia-se: "Por que passa ele por santo a tal ponto?" E somente esta pergunta, à força de repetida, acabara por engendrar um ódio inextinguível. De modo que, penso que muitos, ao saber que ele cheirava mal ao fim de tão pouco tempo — pois ainda não se passara um dia que ele morrera —, ficaram encantados; da mesma maneira, aquele aconteci­mento foi quase um ultraje e uma ofensa pessoal para alguns dos partidários do síáriets que até então o haviam reverenciado. Eis em que ordem se sucederam as coisas.

Desde que se declarou a corrupção, bastava ver o aspecto dos reli­giosos que entravam na cela, podia-se adivinhar o motivo que os levava. O que entrava, tornava a sair ao fim de um momento para confirmar a notícia à multidão dos outros que o esperavam. Uns abanavam a cabeça com tristeza, outros não dissimulavam sua alegria, que explo­dia em seus olhares maliciosos. E ninguém lhes fazia censuras, ninguém elevava a voz em favor do defunto, o que era mesmo estranho, porque seus partidários formavam a maioria no mosteiro; mas via-se que o Senhor mesmo permitia que a maioria triunfasse provisoriamente. Em breve, apareceram na cela, também como emissários, leigos, na maior parte pessoas instruídas. O baixo povo não entrava, muito embora se comprimisse em multidão às portas do eremitério. É incontestável que a afluência dos leigos aumentou notavelmente, após três horas, em conseqüência daquela notícia escandalosa. Os que não teriam talvez vindo naquele dia chegavam agora de propósito e entre eles algumas pessoas duma posição notável. Aliás, o decoro não fora ainda aberta­mente perturbado e o Padre Paísi, com olhar severo, continuava a ler o Evangelho à parte, com firmeza, como se não notasse nada do que se passava, se bem que já tivesse observado algo de insólito. Mas vozes a princípio tímidas, que se firmaram pouco a pouco e tomaram certa audácia, chegaram até seus ouvidos. "De modo que o julgamento de Deus não é'o dos homens!", ouviu de repente o Padre Paísi. Esta reflexão foi formulada a princípio por um leigo, funcionário da cidade, homem de certa idade, que passava por muito piedoso; não fez, aliás, senão repetir em voz alta o que os religiosos diziam entre si ao ouvido desde muito tempo. O pior é que proferiam essas palavras pessimistas com uma espécie de satisfação que ia aumentando. Em breve, começou o decoro a ser perturbado, dir-se-ia que todos se sentiam autorizados a agir assim; "Como pôde ocorrer isso?", diziam alguns, a princípio como se lamentando, "ele não era corpulento, só tinha a pele e os ossos, por que haveria de feder?" "É uma advertência de Deus", apressavam-se em acrescentar outros, cuja opinião prevalecia, porque indicavam que, se o odor tivesse sido natural, como para todo pecador, ter-se-ia manifestado mais tarde, após 24 horas pelo menos, mas "isso adian­tou-se à natureza", portanto deve-se ver nisso o dedo de Deus. Este raciocínio era irrefutável. O manso Padre Iósif, o bibliotecário, favorito do defunto, pôs-se a objetar contra certos maldizentes que "não era em toda parte assim", que a incorruptibilidade do corpo dos justos não era um dogma da ortodoxia, mas apenas uma opinião, e que nas re­giões mais ortodoxas, no Monte Atos, por exemplo, liga-se menos im­portância ao odor deletério; não é a incorruptibilidade física que passa lá como o principal sinal da glorificação dos redimidos, mas a cor de seus ossos, depois que seus corpos permaneceram longos anos sob a terra: "Se os ossos se tornarem amarelos como a cera, significa isto que o Senhor glorificou um justo; mas se ficarem negros, é que o Senhor não o julgou digno. Eis como se procede no Monte Atos, san­tuário onde se conservam em toda a sua pureza as tradições da orto­doxia", concluiu o Padre Iósif. Mas as palavras do humilde padre não causaram impressão e provocaram mesmo réplicas irônicas: "Tudo isso é erudição e novidades, não adianta ouvi-lo", decidiram entre si os reli­giosos. "Mantemos os antigos usos; seria preciso imitar todas as novi­dades que apareçam?", acrescentavam outros. 'Temos tantos santos quanto eles. No Monte Atos, sob o jugo turco, esqueceram tudo. A ortodoxia alterou-se entre eles desde muito tempo, nem sinos têm", encareciam os mais irônicos. O Padre Iósif retirou-se cheio de pesar, tanto mais quanto exprimira sua opinião com pouca segurança e sem ajuntar-lhe muita fé. Previa, na sua perturbação, uma cena chocante e um começo de insubordinação. Pouco a pouco, em seguida à do Padre Iósif, todas as vozes prudentes se calaram. Como por uma espé­cie de acordo, todos aqueles que haviam amado o defunto e aceitado com terna submissão a instituição do "starietismo" foram de súbito tomados de pavor e limitavam-se a trocar olhares tímidos quando se encontravam. Os inimigos do "starietismo", a que consideravam novi­dade, erguiam altivamente a cabeça: "Não somente o Padre Varsonófi não fedia, mas espalhava um odor suave", recordavam eles com uma alegria maligna. "Seus méritos e não sua posição lhe tinham valido essa justificação. " Em seguida, a censura e até mesmo as acusa­ções não foram poupadas contra o defunto: "Ensinava erradamente que a vida é uma grande alegria e não uma humilhação dolorosa", di­ziam alguns entre os mais obtusos. "Cria segundo a nova moda, não admitia o fogo material no inferno", acrescentavam outros ainda mais obtusos. "Não jejuava rigorosamente, permitia-se o uso de doces, toma­va mesmo docinhos de cereja com chá, de que gostava muito e que lhe eram enviados pelas senhoras. Convém a um asceta beber chá?", diziam outros invejosos. "Pontificava cheio de orgulho", lembravam com encarniçamento os mais malévolos, "acreditando-se um santo, ajoe­lhavam-se diante dele, que aceitava isso como coisa devida. " "Abusava do sacramento da confissão", cochichavam malignamente os mais fogo­sos adversários do "starietismo" e entre eles religiosos idosos, de uma devoção rigorosa, verdadeiros jejuadores taciturnos, que haviam guardado silêncio durante a vida do defunto, mas abriam agora a boca, coisa deplorável, porque suas palavras influíam fortemente sobre os jovens religiosos, ainda hesitantes. O monge de São Silvestre, vindo de Obdorsk, era todo ouvidos, suspirava profundamente, abanava a cabeça: "O Padre Fierapont tinha razão ontem", pensava ele consigo, e justa­mente naquele momento apareceu este, como para redobrar a confusão. Já dissemos que ele raramente deixava sua cela de madeira no apiá­rio, ficava mesmo muito tempo sem ir à igreja, e que não ligavam a essas fantasias atribuídas à sua maluquice, desobrigando-o do regula­mento. Mas, para falar toda a verdade, viam-se seus superiores obri­gados a mostrar-se tolerantes para com ele. Porque teriam escrúpulo em impor formalmente a regra comum a tão grande jejuador e taciturno, que rezava dia e noite, adormecendo mesmo de joelhos. "É mais santo que nós todos e suas austeridades ultrapassam a regra", teriam dito então os religiosos; "se não vai à igreja, sabe ele mesmo quando é pre­ciso ir, segue sua própria regra. " Era para evitar esses murmúrios pro­váveis e o escândalo que se deixava em paz o Padre Fierapont. Como todos o sabiam, sentia ele verdadeira aversão pelo Padre Zósima e de repente soube na sua cela que "o julgamento de Deus não era o dos homens e havia-se adiantado à natureza". Pode-se crer que o monge de Obdorsk, que voltara cheio de medo de sua visita da véspera, tivesse sido um dos primeiros a correr para dar-lhe a notícia. Men­cionei também que o Padre Paísi, que lia impassível o Evangelho diante do ataúde, sem ver nem ouvir o que se passava lá fora, havia, no entanto, pressentido o essencial, porque conhecia a fundo o seu meio. Não estava perturbado e, pronto para qualquer eventualidade, observava com um olhar penetrante a agitação cujo resultado já previa. De repente, um rumor insólito e inconveniente, no vestíbulo, feriu-lhe os ouvidos. A porta escancarou-se e o Padre Fierapont apareceu no limiar.

Da cela, distinguiam-se "nitidamente numerosos monges que o tinham acompanhado e se comprimiam nó pé do patamar e entre eles leigos. No entanto, não entraram, mas esperaram o que diria e faria o Padre Fie­rapont, porque previam, não sem temor, malgrado sua ousadia, que por algum motivo comparecera ele ali. Parando no limiar, o Padre Fierapont ergueu as mãos, e por baixo de seu braço direito assomaram os olhos agudos e curiosos do visitante de Obdorsk, incapaz de con­ter-se, tendo subido sozinho atrás dele por causa de sua extrema curio­sidade. Os outros, uma vez que a porta se abriu com estrondo, recua­ram, pelo contrário, presas dum medo súbito. De braços erguidos, o Padre Fierapont vociferou:

— Eu afugento os demônios! — E pôs-se logo, voltando-se suces­sivamente para os quatro cantos da cela, a fazer o sinal-da-cruz. Os que o acompanhavam compreenderam imediatamente o sentido de seu ato, sabendo que, não importa aonde ele fosse, antes de sentar-se e de falar, exorcismava o maligno.

— Fora daqui, Satanás, fora daqui! — repetia ele a cada sinal-da-cruz. — Afugento os demônios! — vociferou de novo. Sua batina gros­seira estava cingida por uma corda, sua camisa de cânhamo deixava ver seu peito cabeludo. Tinha os pés inteiramente nus. Assim que agitou os braços, ouviu-se o tinir das pesadas correntes que trazia sob o hábito. O Padre Paísi parou de ler, adiantou-se e ficou diante dele na expec­tativa.

— Por que vieste, reverendo padre? Por que perturbar a ordem? Por que escandalizar o rebanho humilde? — proferiu ele afinal, olhando-o com severidade.

— Por que vim? Que perguntas tu? Que crês tu? — gritou o Padre Fierapont com ar desvairado. — Vim afugentar vossos hóspedes, os demônios impuros. Verei se vós abrigastes muitos na minha ausência. Quero varrê-los daqui.

— Afugentas o maligno e talvez tu mesmo o sirvas — prosseguiu intrepidamente o Padre Paísi —, e quem pode dizer de si mesmo: "Sou santo"? És tu, meu padre?

— Sou manchado e não santo. Não me sento numa cadeira e não quero ser adorado como um ídolo! — trovejou o Padre Fierapont. — Agora, os homens arruinam a santa fé. O defunto, vosso santo — e voltou-se para a multidão, apontando com o dedo o caixão —, rejeitava os demônios. Dava uma droga contra eles. E ei-los que pululam em vossa casa, como as aranhas nos cantos. Agora, ele próprio fede. Ve­mos nisso uma séria advertência do Senhor.

Era uma alusão a um fato real. O maligno aparecera a um dos religiosos, a princípio em sonho, depois em estado de vigília. Apavo­rado, relatou a coisa ao stáriets Zósima, que lhe prescreveu um jejum rigoroso e orações fervorosas. Como nada desse jeito, aconselhou-o a tomar um remédio, sem renunciar às suas práticas piedosas. Muitos então ficaram chocados e discorriam entre si, abanando a cabeça, sobre­tudo o Padre Fierapont, ao qual certos detratores se tinham apressado em ir contar aquela prescrição "insólita" do stáriets.

— Vai-te embora, padre! — disse imperiosamente o Padre Paísi. — Não cabe aos homens julgar, mas a Deus. Talvez vejamos aqui uma "advertência" que ninguém é capaz de compreender, nem tu nem eu. Vai-te embora, padre, e não escandalizes o rebanho! — repetiu ele num tom firme.

— Não observava ele o jejum prescrito aos professos, eis donde vem essa advertência. Isto é claro, é um pecado dissimulá-lo! — pros­seguiu o fanático, deixando-se arrebatar pelo seu zelo extravagante. — Adorava os bombons que as senhoras lhe traziam em seus bolsos; sacri­ficava a seu ventre, enchia-se de doçuras, nutria seu espírito de pensa­mentos arrogantes... De modo que está sofrendo esta ignomínia...

— Tuas palavras são fúteis, padre. Admiro teu jejum e teu ascetis­mo, mas tuas palavras são fúteis, tais como as que pronunciaria no mundo um rapazola inconstante e estouvado. Vai-te, padre, ordeno-te! — concluiu o Padre Paísi, com voz trovejante.

— Ir-me-ei! — proferiu o Padre Fierapont, como que desconcer­tado, mas sempre cheio de cólera. — Vós vos orgulhais de vossa ciência diante de minha nulidade. Cheguei aqui pouco instruído, aqui esqueci o que sabia, o Senhor mesmo me preservou, a mim, mesquinho que sou, de vossa grande sabedoria...

Imóvel diante dele, o Padre Paísi esperava com firmeza.

O Padre Fierapont calou-se alguns instantes e de súbito ensombre­ceu-se, levou a mão direita à face, e pronunciou com voz arrastada, olhando o caixão do stáriets:

— Amanhã cantar-se-á para ele: "Ajuda e Protetor", hino glorioso, e para mim, quando eu rebentar, apenas: "Que vida bem-aventurada", medíocre versículo — disse ele, num tom de pesar. — Vós vos orgu­lhastes e inchastes, este lugar está deserto! — berrou ele como um insensato, e, agitando os braços, voltou-se rapidamente e desceu à pressa os degraus do patamar. A multidão que o esperava hesitou; alguns o seguiram imediatamente, outros demoraram, porque a cela continuava aberta e o Padre Paísi, que saíra para o patamar, observava, imóvel. Mas o velho fanático não acabara: a vinte passos, voltou-se para o sol poente, ergueu os braços no ar e — como que ceifado — desabou no chão, gritando:

— Meu Senhor venceu! O Cristo venceu o sol poente! — urrava ele como um possesso, os braços estendidos para o sol e caído com o rosto contra o chão; chorava como uma criancinha, sacudido pelos soluços, afastando os braços por terra. Todos então lançaram-se para ele, reper­cutiram exclamações, soluços... Uma espécie de delírio apoderara-se de todos eles.

— Eis um santo! Eis um justo! — exclamava-se sem temor. — Me­rece ser stáriets — acrescentavam outros com arrebatamento.

— Ele não quererá ser stáriets... ele próprio recusará... não servirá a essa novidade maldita... não irá imitar as loucuras deles — con­tinuaram outras vozes.

É difícil imaginar o que teria acontecido, mas justamente naquele momento o sino tocou chamando ao serviço divino. Todos se benze­ram. O Padre Fierapont levantou-se e fez o mesmo, depois dirigiu-se para sua cela sem se voltar, pronunciando palavras incoerentes. Pequeno número de pessoas o seguiu, mas a maior parte se dispersou, com pressa de ir à cerimônia. O Padre Paísi cedeu o lugar ao Padre Iósif e saiu. Os clamores dos fanáticos não podiam abalá-lo, mas sentiu de súbito uma tristeza e uma angústia singulares invadirem-lhe o co­ração. Perguntou a si mesmo donde lhe vinha essa tristeza que chegava até o abatimento e compreendeu que provinha, ao que pa­recia, duma causa insignificante. O fato é que, na multidão que se apertava à entrada da cela, avistara Aliócha entre os agitados e lembrava-se de ter experimentado então uma espécie de sofrimento. "Esse rapaz manteria agora tal lugar em meu coração?", perguntou a si mesmo, com surpresa. Naquele instante, passou Aliócha ao lado dele, apressando-se não se sabe para onde, mas não para a igreja. Seus olhares encontraram-se. Aliócha desviou os olhos e baixou-os; somente pelo seu aspecto adivinhou o Padre Paísi a profunda mudança que se operava nele naquele momento.

— Foste também seduzido? — exclamou o Padre Paísi. — Estarias também com as pessoas de pouca fé? — acrescentou, tristemente.

Aliócha parou, olhou-o vagamente, depois de novo desviou os olhos e baixou-os. Mantinha-se de lado, sem encarar seu interlocutor. O Pa­dre Paísi observava-o atentamente.

— Aonde vais tão depressa? Tocam para o ofício — disse ele ainda, mas Aliócha não respondeu.

— Deixarias o eremitério sem autorização, sem receber a bênção? De repente Aliócha sorriu constrangidamente, lançou um olhar dos

mais estranhos ao Padre Paísi, que o interrogava, aquele padre ao qual o confiara, antes de morrer, seu antigo diretor, o mestre de seu coração e de seu espírito, seu stáriets bem-amado; depois, sempre sem respon­der, agitou a mão como se já nem cuidasse do respeito devido e diri­giu-se a passos rápidos para a saída do eremitério.

— Tu voltarás! — murmurou o Padre Paísi, acompanhando-o com os olhos e com dolorosa surpresa.

 

MOMENTO CRÍTICO

O Padre Paísi não se enganava ao decidir que seu "caro rapaz" voltaria; talvez mesmo compreendera, senão totalmente, pelo menos com sagacidade, o verdadeiro estado de alma de Aliócha. Não obstan­te, confesso que me seria agora muito difícil definir exatamente aquele momento estranho da vida do jovem e simpático herói de minha narra­tiva. À pergunta entristecida que o Padre Paísi fazia a Aliócha: "Es­tarias também com as pessoas de pouca fé?", poderia eu decerto res­ponder com firmeza em lugar dele: "Não, não está com elas". Mais ainda, era até muito pelo contrário: sua perturbação provinha precisa­mente de sua fé ardente. Existia, contudo, essa perturbação, e tão dolorosa que mesmo muito tempo depois considerava Aliócha aquele triste dia como um dos mais penosos e dos mais funestos de sua vida. Se se perguntar: "É possível que experimentasse ele tanta angústia e agitação unicamente porque o corpo de seu stáriets, em lugar de operar milagres, se havia pelo contrário rapidamente decomposto?", responde­rei sem rebuços: "Sim, é bem isso". Rogarei todavia ao leitor que não se apresse em rir da simplicidade de meu rapaz. Não somente não tenho a intenção de pedir perdão por ele, ou de desculpar e de justi­ficar sua fé ingênua atribuindo-a à sua juventude, por exemplo, ou aos fracos progressos realizados em seus estudos, etc, mas declaro, pelo contrário, sentir sincero respeito pela natureza de seu coração. Segu­ramente, outro rapaz, acolhendo com reserva as impressões do coração, morno e não ardente nas suas afeições, leal, mas de espírito por demais judicioso para sua idade, tal rapaz, digo eu, teria evitado o que aconteceu ao meu; mas em certos casos é mais honroso ceder por inteiro ao impulso, ainda que pouco sensato, provocado por um grande amor, que a ele resistir. Com mais forte razão na juventude, porque um rapaz constantemente judicioso é suspeito e não vale grande coisa, eis minha opinião! "Mas", dirão talvez as pessoas sensatas, "todo rapaz não pode crer em tal preconceito e o vosso não é um modelo para os outros. " Ao que responderei: "Sim, meu rapaz acreditava com fervor, totalmente, mas não pedirei perdão para ele".

Muito embora haja eu declarado mais acima (talvez com demasiada pressa) não querer desculpar nem justificar meu herói, vejo que uma explicação é necessária para a compreensão ulterior da narrativa. Não se tratava aqui de esperar milagres com uma impaciência frívola. E não é para o triunfo de certas convicções que Aliócha tinha então necessidade de milagres, nem pelo de alguma idéia preconcebida sobre alguma outra, de maneira alguma; antes de tudo, no primeiro plano, surgia diante dele uma figura que absorvia tudo, a figura de seu stáriets bem-amado, do justo a quem tanto venerava. Era sobre ele, sobre ele só, que se concen­trava por vezes, pelo menos nos seus mais vivos impulsos, todo o amor que ele trazia em seu jovem coração "por todos e por tudo", agora e no ano anterior. Na verdade, aquele ser encarnava desde tanto tempo a seus olhos o ideal absoluto, que a ele aspirava com todas as forças de sua juventude, exclusivamente, até a esquecer, por momentos "todos e tudo". (Lembrou-se mais tarde ter completamente esquecido, naquele penoso dia, seu irmão Dimítri, como o qual tanto se preocupava na véspera; esquecera-se também de levar os 200 rublos ao pai de Iliúcha, como prometera a si mesmo fazê-lo. ) Não era de milagres que necessitava, mas somente da justiça suprema, violada a seus olhos, o que o ma­goava profundamente. Que importava que aquela justiça esperada por Aliócha tomasse pela força das coisas a forma de milagres operados imediatamente pelos despojos de seu antigo diretor, a quem adorava? Era o que pensava e esperava todo mundo, no mosteiro, mesmo aqueles diante dos quais ele se inclinava, o Padre Paísi, por exemplo; Aliócha, sem se deixar perturbar pela dúvida, pensava da mesma maneira que eles. Um ano inteiro de vida monástica o havia preparado para isso, seu coração estava acostumado àquela expectativa. Mas tinha sede de justiça e não somente de milagres! E aquele que deveria ter sido, segun­do sua esperança, elevado acima de todos, achava-se rebaixado e co­berto de vergonha! Por que isso? Quem era juiz? Essas questões ator­mentavam seu coração inocente. Fora ofendido e mesmo irritado por ver o justo entre os justos entregue às zombarias malévolas da multidão frívola, tão inferior a ele. Que nenhum milagre se houvesse realizado, que a expectativa geral tivesse sido iludida, ainda passava! Mas por que aquele opróbrio, aquela decomposição apressada que "se adiantava à natureza", como diziam os monges malévolos? Por que aquela "adver­tência" com que triunfavam em companhia do Padre Fierapont, por que se criam autorizados a isso? Onde estava, pois, a Providência? Com que fim se havia ela retirado "no momento decisivo" (pensava Aliócha), parecendo submeter-se às leis cegas e impiedosas da natureza?

De modo que o coração de Aliócha sangrava; como já o dissemos, tratava-se do ser a quem ele mais amava no mundo e que ficara "cober­to de ignomínia e de infâmia!" Queixas fúteis e insensatas, mas, repi­to-o pela terceira vez (e talvez com frivolidade, concordo): causa-me satisfação não se ter meu rapaz mostrado discreto em semelhante mo­mento, porque a discrição vem sempre a seu tempo, quando não se é tolo; ao passo que se num momento como aquele não tivesse havido amor no coração do rapaz, quando teria havido? É preciso mencionar, no entanto, um fenômeno estranho, mas passageiro, que se manifestou no espírito de Aliócha naquele instante crítico. Era, a intervalos, uma impressão dolorosa resultante da conversa da véspera com seu irmão Ivã, que o obsedava agora. Não que suas crenças fundamentais estivessem de algum modo abaladas: amava seu Deus e nele cria firmemente, se bem que houvesse murmurado subitamente contra ele. No entanto, uma impressão confusa, mas penosa e má, proveniente daquela conversa, sur­giu em sua alma, tendendo a impor-se cada vez mais. Ao cair da noite, Rakítin, que atravessava o bosque de pinheiros para ir ao mosteiro, avis­tou Aliócha, estendido sob uma árvore, o rosto contra a terra, imóvel e parecendo dormir. Aproximou-se e interpelou-o.

— És tu, Alieksiéi? Será possível que tu... — proferiu ele, admi­rado, mas não terminou. Queria dizer: "Será possível que hajas chegado a esse ponto?" Aliócha não voltou a cabeça, mas, segundo um movi­mento que ele fez, adivinhou Rakítin que ele o ouvia e compreendia.

— Que tens, afinal? — prosseguiu ele, surpreso, mas um sorriso irônico aparecia já em seus lábios. — Escuta, procuro-te há mais de duas horas. Desapareceste de repente. Que fazes, pois, aqui? Olha-me, pelo menos!

Aliócha ergueu a cabeça, sentou-se, encostando-se à árvore. Não cho­rava, mas seu rosto exprimia o sofrimento. Lia-se a irritação em seus olhos. Aliás, não olhava Rakítin, mas para o lado.

— Mas não tens mais o mesmo rosto! Tua famosa doçura desapa­receu. Zangaste-te contra alguém? Ofenderam-te?

— Deixa-me! — disse de súbito Aliócha, sem olhá-lo, com um gesto de lassidão.

— Oh! oh!, eis como estamos! Um anjo, gritar como os simples mortais! Ora essa, Aliócha, francamente, tu me surpreendes, a mim que de nada me espanto. Acreditava que fosses um homem instruído.

Aliócha olhou para ele afinal, mas com um ar distraído, como se o compreendesse mal.

— E tudo isso porque o teu velho cheira mal! Acreditavas seriamente que ele ia fazer milagres? — exclamou Rakítin, com sincero espanto.

— Acreditei-o, acredito-o, quero acreditá-lo sempre! Que precisas mais? — perguntou Aliócha, com irritação.

— Nada absolutamente, meu caro. Que diabo! os escolares de treze anos não crêem mais nisso! Então, tu te zangaste, eis-te agora revoltado contra Deus: nada de pagamento, nada de condecoração! Que miséria!

Aliócha olhou-o longamente, com os olhos semicerrados, um clarão passou neles... mas não era de cólera contra Rakítin.

— Não me revolto contra meu Deus, apenas não aceito seu universo

— disse ele, com um sorriso constrangido.

— Como, não aceitas o universo? — E Rakítin refletiu um instante.

— Que trapalhada é essa? Aliócha não respondeu.

— Deixemos essas bagatelas; ao fato! Comeste hoje?

— Não me lembro... Creio que sim.

— Deves restaurar-te, tens ar de esgotamento, faz pena ver. Não dormiste esta noite, ao que parece, tiveste uma sessão. Em seguida toda essa barafunda, essas palhaçadas. Com certeza não te empanturraste senão de pão bento. Tenho no bolso um salsichão que trouxe inda há pouco da cidade, por prevenção, mas não haverias de querer...

— Dá-mo.

— Ah! ah! Então, é a revolta franca, as barricadas! Pois bem, irmão, não percamos tempo. Vem à minha casa... Beberei de boa vontade vodca, estou fatigadíssimo. A vodca, decerto, não te tenta... Gos­tarias?

— Dá-me vodca também.

— Ah! bravo! É curioso! — exclamou Rakítin, lançando-lhe um olhar estupefato. — Seja como for, vodca ou salsichão não são de des­denhar, vamos!

Aliócha levantou-se sem dizer palavra e seguiu Rakítin.

— Se teu irmão Ivã Fiódorovitch te visse, ele é quem ficaria sur­preendido! A propósito, sabes que ele partiu esta manhã para Moscou?

— Sei — disse Aliócha, com indiferença. De repente, a imagem de Dimítri apareceu-lhe um instante apenas; lembrou-se vagamente de um negócio urgente, de um dever imperioso a cumprir, mas essa recorda­ção não lhe causou nenhuma impressão, não chegou até seu coração, apagou-se logo de sua memória. Mais tarde, lembrou-se disso muito tempo.

— Teu irmão Vânia chamou-me uma vez de palerma liberal. Tu mesmo me deste um dia a entender que eu era desonesto... Pois seja. Vão ser vistas agora vossas capacidades e vossa honestidade (isto Ra­kítin cochichou para si mesmo). Escuta — continuou ele em voz alta —, evitemos o mosteiro, a vereda nos leva diretamente à cidade... Hum! Devo passar em casa de Khokhlakova. Escrevi-lhe a respeito dos acontecimentos e imagina que ela me respondeu por um bilhete a lápis (adora escrever, essa dona) que "não teria jamais esperado semelhante conduta da parte de um stáriets tão respeitável como o Padre Zósima!" Sic. Ela também se zangou. Sois todos iguais! Espera!

Parou bruscamente e, com a mão sobre o ombro de Aliócha, rete­ve-o, dizendo:

— Sabes, Aliócha? — Olhava-o bem dentro dos olhos, sob a impres­são de uma idéia súbita que temia visivelmente formular, malgrado seu ar zombeteiro, tanta dificuldade tinha em crer nas novas disposições de Aliócha. — Sabes aonde faríamos bem em ir? — disse, num tom insinuante.

— Aonde queiras... tanto faz.

— Vamos à casa de Grúchenhka, hein? Queres? — disse por fim Rakítin, todo tremente de expectativa.

— Vamos — respondeu tranqüilamente Aliócha. Rakítin esperava tão pouco esse pronto consentimento que quase deu um salto para trás.

— Até que enfim! — ia ele exclamar, mas agarrou Aliócha pelo braço e arrastou-o rapidamente, temendo vê-lo mudar de opinião. Cami­nhavam em silêncio. Rakítin tinha medo de falar.

— Como ficará ela contente!... — quis ele dizer, mas calou-se. Não era decerto para fazer prazer a Grúchenhka que lhe levava Aliócha; um homem sério como ele só agia por interesse. Tinha um duplo fim: vingar-se em primeiro lugar, contemplar "a ignomínia do justo" e a "queda" provável de Aliócha, "de santo tornado pecador", do que se rejubilava de antemão; além disso, tinha em vista uma vantagem ma­terial de que se tratará mais longe.

"Eis uma ocasião que é preciso agarrar pelos cabelos", pensava ele com uma alegria maligna.

 

A CEBOLA

Grúchenhka morava no bairro mais animado, perto da praça da igreja, em casa da viúva do comerciante Morózov, onde ocupava no pátio um pequeno pavilhão de madeira. A Casa Morózova, [14] de pedra, de dois andares, era velha e feia. A proprietária, mulher idosa, vivia ali sozinha com duas sobrinhas, solteironas. Não tinha necessidade de alugar seu pavilhão, mas sabia-se que admitira Grúchenhka como locatária (quatro anos antes) unicamente para comprazer a seu paren­te, o comerciante Samsónov, protetor declarado de Grúchenhka. Dizia-se que o velho ciumento, instalando em casa dela sua "favorita", contava com a vigilância da velha para fiscalizar a conduta de sua locatária. Mas essa vigilância tornou-se em breve inútil, de sorte que a Senhora Morózova só via raramente Grúchenhka e cessara de importuná-la espionando-a. Na verdade, quatro anos já haviam decorrido desde que o velho trouxera da sede do distrito aquela jovem de dezoito anos, tímida, acanhada, franzina, magra, pensativa e triste, e muita água havia passado sob as pontes. Não se sabia nada de preciso sobre ela na nossa cidade e nada mais se soube depois, mesmo quando muitos começaram a interessar-se pela beleza perfeita que se tornara, em quatro anos, Agrafiena Alieksándrovna. Contava-se que aos dezessete anos fora seduzida por um oficial que logo a abandonara. Partira para casar-se, deixando Grúchenhka na ignomínia e na miséria. Dizia-se, aliás, que, apesar de tudo, provinha Grúchenhka de uma família honrada e dum meio eclesiástico, sendo filha de um diácono em disponibilidade, ou algo de parecido. Em quatro anos, a órfã sensível, desgraçada, franzina, tornara-se viçosa, rosada, uma beleza russa de caráter enérgico, orgulho­sa, impudente, hábil em manejar o dinheiro e em adquiri-lo, avara e avisada, que soubera, honestamente ou não, amontoar certo capital. Uma única coisa não deixava dúvida alguma: é que Grúchenhka era inacessível e que, exceto o velho, seu protetor, ninguém, durante quatro anos, pudera vangloriar-se de ter-lhe conquistado os favores. O fato era certo, porque muitos suspirantes se haviam apresentado, sobretudo nos dois últimos anos. Mas todas as tentativas fracassaram e alguns tiveram de bater em retirada, cobertos de ridículo, graças à resistência daquela jovem criatura de caráter enérgico. Sabia-se ainda que ela se ocupava com negócios, sobretudo desde um ano, e manifestava nisso capacidades notáveis, tanto que muitos tinham acabado por chamá-la de judia. Não que emprestasse com usura, mas sabia-se, por exemplo, que, em companhia de Fiódor Pávlovitch Karamázov, resgatara, durante algum tempo, promissórias a preço vil, pelo décimo de seu valor, conse­guindo recuperar em seguida, em certos casos, a totalidade da dívida. O velho Samsónov, cujos pés inchados não o transportavam mais havia um ano, viúvo que tiranizava seus filhos maiores, capitalista duma avare­za impiedosa, caíra, no entanto, sob a influência de sua protegida a quem no começo tratara com mesquinharia, a pão e laranja, a "óleo de se­mente de cânhamo", como diziam os zombadores. Mas Grúchenhka soubera emancipar-se, ao mesmo tempo que lhe inspirava uma confiança sem limites quanto à sua fidelidade. Aquele velho, grande homem de negócios, tinha também um caráter notável: avaro e duro como pedra, se bem que Grúchenhka o tivesse subjugado a ponto de não poder ele passar sem ela, não chegou a conceder-lhe capitais impor­tantes e, mesmo se ela o houvesse ameaçado de abandoná-lo, teria ficado inflexível. Em compensação, reservou-lhe certa soma, e, quando se soube disso, foi motivo de espanto para todo mundo. "Tu não és tola", disse ele, dando-lhe 8 000 rublos, "opera tu mesma, mas fica sabendo que, fora de tua pensão anual, como antes, não receberás nada mais até minha morte e que não te deixarei nada em testamento. " Manteve a palavra e seus filhos, que sempre mantivera em sua casa como criados, com suas mulheres e seus filhos, herdaram tudo; Grú­chenhka nem mesmo foi mencionada no testamento. Com seus conse­lhos sobre a maneira de fazer valer seu capital, ajudou-a ele notavel­mente e indicou-lhe "negócios". Quando Fiódor Pávlovitch Karamázov, que entrou em relações com Grúchenhka, a propósito duma operação "fortuita", acabou ficando apaixonado por ela a ponto de perder a razão, o velho Samsónov, que já estava com um pé na sepultura, divertiu-se muito. É de notar que Grúchenhka foi, durante todo o tempo de suas relações com seu velho, plena e até cordialmente sin­cera para com ele, e isto, ao que parece, não o fora com nenhum outro homem do mundo. Mas quando Dimítri Fiódorovitch entrou na fila, o velho cessou de rir: "Se for preciso escolher entre os dois", disse-lhe ele, uma vez, seriamente, "escolhe o pai, mas com a condição de que o velho patife case contigo e te consigne antecipadamente certo capital. Não te ligues com o capitão, não tirarás disso nenhum proveito". Assim falou o velho libertino, pressentindo seu fim próximo; morreu com efeito cinco meses mais tarde. Seja dito de passagem, se bem que na cidade a rivalidade absurda e chocante dos Karamázovi pai e filho fosse conhecida desde muito, que as verdadeiras relações de Grúchenhka com cada um deles permaneciam ignoradas da maior parte. Até mesmo suas criadas (após o drama de que falaremos) tes­temunharam em justiça que Agrafiena Alieksándrovna recebia Dimítri Fiódorovitch unicamente por temor, porque ameaçara matá-la. Tinha duas criadas, uma cozinheira bastante idosa, desde muito tempo ao serviço de sua família, doente e quase surda, e sua neta, esperta, arru­madeira de vinte anos de idade. Grúchenhka vivia muito parcamente, num interior dos mais modestos, três peças mobiliadas de acaju pela proprietária, no estilo de 1820. À chegada de Rakítin e Aliócha, era já noite, ainda não haviam acendido as luzes. A jovem mulher estava estendida no salão, sobre seu divã de espaldar de acaju, duro e reco­berto de couro, já usado e furado, com a cabeça apoiada em dois tra­vesseiros. Repousava de costas, imóvel, com as mãos atrás da cabeça, trazendo um vestido de seda preta, com um toucado de renda que lhe assentava admiravelmente; nos ombros, um fichu preso por um broche de ouro maciço. Esperava alguém, inquieta e impaciente, a tez pálida, os lábios e os olhos ardentes, com o pezinho a bater compasso sobre o braço do divã. Ao rumor que fizeram os visitantes ao entrar, saltou em terra, gritando com voz de terror: "Quem vem lá?" A arrumadeira apressou-se em tranqüilizar sua ama. — Não é ele, não tenha medo.

"Que terá ela?", murmurou Rakítin, levando Aliócha pelo braço para o salão. Grúchenhka continuava de pé, ainda mal reposta de seu terror. Uma grossa mecha de seus cabelos castanhos, escapada de seu toucado, caía-lhe sobre o ombro esquerdo; ela, porém, não lhe deu atenção e só a arranjou quando reconheceu os visitantes.

— Ah! és tu, Rakitka? Causaste-me medo! Com quem estás? Meu Deus, eis quem me trazes! — exclamou ela, ao perceber Aliócha.

— Manda então acender a luz! — disse Rakítin, com o tom dum familiar que tem direito de mandar na casa.

— Decerto... Fiénia, traze-lhe uma vela... Achaste o momento azado para trazê-lo. — Fez um sinal com a cabeça a Aliócha e arran­jou seus cabelos diante do espelho. Parecia descontente.

— Não te agrada isso? — perguntou Rakítin, com súbito ar de enfado.

— Causaste-me medo, Rakitka, eis tudo — e Grúchenhka voltou-se sorrindo para Aliócha. — Não tenhas medo de mim, meu caro Aliócha, estou encantada com tua visita inesperada. Pensava que era Mítia que queria entrar à força. Vês tu? Enganei-o ainda há pouco, jurou-me que acreditava em mim e menti-lhe. Disse-lhe que ia à casa do meu velho Kusmá Kuzmitch fazer contas a noite toda. Vou lá, com efeito, uma vez por semana. Fechamo-nos a chave: ele cavaca suas contas e eu escrevo nos livros. Ele só se fia em mim. Como foi que Fiénia deixou que vocês entrassem? Fiénia, corre ao portão, verifica se o capitão não anda rondando por perto. Está talvez escondido e nos espiona, tenho um medo terrível!

— Não há ninguém, Agrafiena Alieksándrovna. Olhei para todos os lados, vou espiar a cada instante pelas frestas, porque eu também tenho medo.

— Os postigos estão fechados, Fiénia, baixa as cortinas, senão ele verá a luz. Temo hoje teu irmão Mítia, Aliócha. — Grúchenhka falava muito alto, com ar inquieto e superexcitado.

— Por que o temes tanto hoje? — perguntou Rakítin. — Comu­mente, ele não te causa terror. Tu o fazes andar como bem entendes.

— Digo-te que espero uma notícia, de modo que Mítia seria aqui demais agora. Não acreditou que eu ia a casa de Kusmá Kuzmitch, tenho esta impressão. Agora, deve estar montando guarda no jardim da casa de Fiódor Pávlovitch. Se está emboscado lá, não virá aqui, tanto melhor! Fui deveras à casa do velho e Mítia me acompanhava; fi-lo prometer ir procurar-me à meia-noite. Dez minutos depois, saí e corri até aqui, tremendo de medo de que ele me tornasse a encontrar.

— Porque estás tão bem vestida? Tens um toucado bastante curioso.

— Tu mesmo é que és bastante curioso, Rakítin! Repito-te que estou esperando uma notícia. Assim que a receber, levantarei vôo e vocês não me verão mais. Eis por que me preparei assim.

— E para onde levantarás vôo?

— Se te perguntarem, dirás que não sabes de nada.

— Como está ela alegrei... Nunca te vi assim. Está enfeitada como quem vai para um baile! — admirou-se Rakítin, examinando-a.

— Estás ao corrente dos bailes?

— E tu?

— Eu vi um baile. Há três anos, quando Kusmá Kuzmitch casou seu filho; eu olhava da tribuna. Mas por que conversarei contigo, quan­do tenho um príncipe como hóspede? Meu caro Aliócha, não quero crer nos meus olhos; como aconteceu que viesses à minha casa? Na verdade, não te esperava, jamais acreditei que pudesses vir. O momento é mal escolhido, no entanto estou bem contente. Senta-te no divã, aqui, meu belo astro! Na verdade, ainda não voltei a mim... Rakitka, se o tivesses trazido ontem ou anteontem!... Pois bem, assim mesmo estou contente. Melhor vale talvez agora, em tal minuto, que no outro dia...

Sentou-se vivamente ao lado de Aliócha, examinando-o, extasiada. Estava verdadeiramente contente e não mentia. Seus olhos brilhavam, sorria, mas com bondade. Aliócha não esperava ver nela uma expressão tão benévola... Fizera dela uma idéia aterrorizadora. Seu rompante pérfido contra Catarina Ivânovna havia-o transtornado na antevéspera, agora se espantava por vê-la tão mudada. Por mais acabrunhado que se sentisse pelo seu próprio pesar, examinava-a, malgrado seu, com atenção. Suas maneiras tinham melhorado, as entonações melífluas, a languidez dos movimentos tinham quase desaparecido... agora, simpli­cidade, gestos prontos, sinceros, mas via-se que estava superexcitada.

— Meu Deus, que coisas estranhas se passam hoje! Por que me sinto tão feliz por ver-te, Aliócha? Ignoro-o.

— É mesmo verdade? — perguntou Rakítin, sorrindo. — Antes, ti­nhas um fito ao insistir para que eu o trouxesse aqui.

— Sim, um fito que não existe mais agora, o momento passou. E agora vou tratar bem vocês. Tornei-me melhor agora, Rakitka. Senta-te também. Mas já o fizeste. Ele não se esquece. Vês tu, Aliócha? Está ressentido porque não o convidei em primeiro lugar para sentar-se. É muito suscetível, esse meu caro amigo. Não te zangues, Rakitka, sin­to-me boa neste momento. Por que estás tão triste, Aliócha? Terias medo de mim? — E Grúchenhka sorriu maliciosamente, olhando-o bem nos olhos.

— Tem um pesar. Uma recusa de posto.

— Que posto?

— O stáriets dele cheira mal.

— Como assim? Tagarelas, alguma vilania ainda, sem dúvida. Alió­cha, deixa-me sentar-me em teus joelhos, assim. — E logo se instalou sobre os joelhos dele, risonha, tal como uma gata caridosa, com o braço direito ternamente passado em redor do pescoço dele.

— Saberei bem fazer-te rir, meu gentil devoto! Na verdade, deixas­me sobre teus joelhos, isto hão te causa zanga? Basta que o digas e me levantarei.

Aliócha calava-se. Não ousava mover-se, não respondendo às pala­vras ouvidas, como que inerte. Mas não experimentava o que podia imaginar Rakítin, por exemplo, que o observava com ar galhofeiro. Seu grande pesar absorvia as sensações possíveis e, se tivesse ele podido analisar-se naquele momento, teria compreendido que estava encoura­çado contra as tentações. Não obstante, malgrado a inconsciência de seu estado e a tristeza que o acabrunhava, causava-lhe espanto uma sensação estranha: aquela mulher terrível não lhe inspirava mais aquele terror, inseparável no seu coração da idéia da mulher. Pelo contrário, instalada sobre seus joelhos e enlaçando-o, despertava nele um senti­mento inesperado, uma extraordinária e cândida curiosidade, sem o menor pavor; eis o que o surpreendia a seu malgrado.

— Basta de tanta conversa sem nada dizer! — exclamou Rakítin. — Manda antes servir o champanha. Sabes que prometeste isto.

— É verdade, Aliócha, prometi-lhe antes de tudo champanha, se ele te trouxesse. Fiénia, traze a garrafa que Mítia deixou, despacha-te. Se bem que avarenta, darei uma garrafa, não para ti, Rakítin, não passas de um pobre-diabo, mas para ele. Embora não esteja disposta a isso, quero beber com vocês.

— Qual é afinal essa "notícia"? Pode-se saber, é segredo? — insistiu Rakítin, fingindo não notar o motejo lançado contra ele.

— Um segredo de que estás a par — disse Grúchenhka, com ar preo­cupado. — O meu oficial vai chegar, Rakítin.

— Ouvi dizer isso; mas está tão perto assim?

— Acha-se ele agora em Mókroie, donde me enviará um portador. Acabo de receber uma carta dele. Espero.

— Ora essa! Por que em Mókroie?

— Seria longo demais contá-lo. Chega.

— Mas então, e Mítia, está sabendo?

— Nem uma palavra. Senão, me mataria. Aliás, não tenho mais medo dele agora. Cala-te, Rakitka; não quero ouvir mais falar disso. Causou-me ele muito mal. E não quero mais pensar nisso, prefiro pensar em Aliócha, olhá-lo... Sorri, pois, meu querido, desenruga o rosto, far-me-ás prazer... Mas ele sorriu! Vê como ele me olha com olhar acariciante. Sabes, Aliocha, acreditava que me querias mal por causa da cena de ontem, em casa daquela senhorita. Fui grosseira... No en­tanto, apesar de tudo, a coisa foi bem sucedida. Esteve bem e esteve mal — disse Grúchenhka, pensativamente, com um sorriso mau. — Mítia me contou que ela gritava: "É preciso chicoteá-la!" Ofendi-a gravemente. Atraiu-me à sua casa, querendo subjugar-me, seduzir-me com seu chocolate... Não, o que se passou, correu muito bem. — Sorriu de novo. — Somente, receio que te hajas zangado...

— Na verdade, Aliocha, ela tem medo de ti, de ti, o pintainho

— interveio Rakítin, com real surpresa.

— Para ti, Rakítin, é que ele é um pintainho, porque não tens consciência. Eu o amo. Acreditas, Alióchà, amo-te de toda a minha alma.

— Ah! a desavergonhada! Faz-te uma declaração, Aliocha.

— E com isso? Amo-o.

— E o oficial? E a feliz notícia de Mókroie?

— Não é a mesma coisa.

— Eis a lógica das mulheres!

— Não me aborreças, Rakítin. Digo-te que não é a mesma coisa. Amo Aliocha de outra maneira. Na verdade, Aliocha, tive maus desíg­nios a teu respeito. Sou vil, sou violenta, mas em certos momentos olhava-te como minha consciência. Dizia a mim mesma: "Como deve ele desprezar-me agora!" Pensava assim antes de ontem, ao sair da casa daquela senhorita. Desde muito tempo me chamaste a atenção, Aliocha; Mítia sabe-o, compreende-me. Acreditadas tu? Sou por vezes tomada de vergonha ao olhar-te. Como vim a pensar em ti e desde quando, ignoro-o.

Fiénia entrou, pousou sobre a mesa uma bandeja com uma garrafa desarrolhada e três copos cheios.

— Eis o champanha! — exclamou Rakítin. — Estás excitada, Agra­fiena Alieksándrovna. Depois de beberes, pôr-te-ás a dançar. Que falta de habilidade! — acrescentou ele. — Já está vertida e morna, sem a rolha.

Nem por isso deixou de esvaziar seu copo dum trago e enchê-lo de novo.

— Ocasiões como esta são raras — observou, enxugando os lábios.

— Vamos, Aliócha, pega teu copo e mostra-te corajoso. Mas a que beberemos? Toma o teu, Grucha, e bebamos às portas do paraíso.

— Que queres dizer com isso?

Ela pegou um copo. Aliócha bebeu um bom gole do seu e depô-lo sobre a mesa.

— Não, prefiro abster-me — disse ele, com um doce sorriso.

— Ah! tu te gabavas! — gritou Rakítin.

— Eu também, então — disse Grúchenhka. — Acaba a garrafa, Rakitka. Se Aliócha beber, beberei.

— Eis que começam as efusões! — zombeteou Rakítin. — E estás sentada nos joelhos dele! Ele está pesaroso, convenho, mas, tu, que tens tu? Ele está revoltado contra seu Deus, ia comer salsichão!

— Como assim?

— O stáriets dele morreu hoje, o velho Zósima, o santo.

— Ah! morreu? Não sabia de nada. — Benzeu-se. — Meu Deus, e eu que estou sentada nos joelhos dele!

Levantou-se vivamente e sentou-se no divã. Aliócha olhou-a com surpresa e seu rosto iluminou-se.

— Rakítin — proferiu ele, num tom firme —, não me irrites di­zendo que me revoltei contra meu Deus. Não tenho animosidade contra ti, sê, pois, melhor, tu também. Sofri uma perda inestimável e não podes julgar-me neste momento. Olha-a, viste sua mansuetude para comigo? Vim aqui para encontrar uma alma perversa, impelido pelos meus maus sentimentos; encontrei uma verdadeira irmã, uma alma amorosa, um tesouro... Agrafiena Alieksándrovna, é de ti que falo. Regeneraste minha alma.

Opresso, Aliócha calou-se, com os lábios trêmulos.

— Dir-se-ia que ela te salvou! — zombou Rakítin. — Mas sabes que ela queria comer-te?

— Basta, Rakitka! Calem-se ambos: tu, Aliócha, porque tuas pala­vras me causam vergonha. Acreditas que sou boa, mas sou má. Tu, Rakitka, porque mentes. Tinha-me proposto comer-te, mas é coisa do passado, isso. Que não te ouça mais falar assim, Rakitka! — Grúchenh­ka exprimira-se com viva emoção.

— Estão os dois com o diabo no couro! — murmurou Rakítin, ob­servando-os com surpresa. — Acreditaria a gente estar numa casa de saúde. Agora mesmo vão chorar, decerto!

— Sim, chorarei, sim, chorarei! — afirmou Grúchenhka. — Ele me chamou sua irmã, não o esquecerei jamais! Por pior que eu seja, Rakitka, dei, no entanto, uma cebola.

— Que cebola? Com os diabos, estão mesmo malucos, não há que ver!

A exaltação deles espantava Rakítin, que deveria compreender que tudo concorria para agitá-los duma maneira excepcional. Mas Rakítin, sutil quando se tratava de si mesmo, destrinçava mal os sentimentos e as sensações de seu próximo, tanto por inexperiência juvenil como por egoísmo.

— Vês tu, Aliócha? — e Grúchenhka riu nervosamente. — Gabei-me a Rakítin de ter dado uma cebola. Vou explicar-te a coisa com toda a humildade. É apenas uma lenda. Matriona, a cozinheira, contava-me quando eu era menina: "Havia uma megera que morreu sem deixar atrás de si uma única virtude. Os diabos apoderaram-se dela e lança­ram-na no 4ago de fogo. Seu anjo da guarda quebrava a cabeça para descobrir nela uma virtude e falar a respeito a Deus. Lembrou-se e disse ao Senhor: 'Ela arrancou uma cebola na horta para dá-la a um mendigo'. Deus respondeu-lhe: 'Pega essa cebola, entrega-a àquela mu­lher lá no lago para que nela se agarre. Se conseguires retirá-la de lá, irá ela para o paraíso; se a cebola se partir, ficará ela onde está'. O anjo correu à mulher e estendeu-lhe a cebola. 'Toma', disse ele, 'segu­ra-a bem. ' Pôs-se a puxá-la com precaução e ela já estava ficando de fora. Os outros pecadores, vendo que a retiravam do lago, agar­raram-se a ela, querendo aproveitar a boa fortuna. Mas a mulher, que era muito má, dava-lhes pontapés: 'É a mim que estão tirando e não a vocês. A cebola é minha e não de vocês'. A estas palavras, a cebola se partiu. A mulher recaiu no lago, onde está-se queimando até agora. O anjo partiu, chorando", Eis essa lenda, Aliócha. Não acredites que eu. seja boa, é bem o contrário. Teus elogios causar-me-iam vergonha. Desejava de tal modo tua vinda, que prometi 25 rublos a Rakítin, se ele te trouxesse. Um instante.

Foi abrir uma gaveta, pegou seu porta-moedas e dele retirou uma cédula de 25 rublos.

— É absurdo! — exclamou Rakítin, embaraçado.

— Toma, Rakitka, estou quites contigo. Não haverás de recusar, tu mesmo pediste. — E atirou-lhe a cédula.

— Como é isso? — replicou ele, visivelmente confuso, mas esfor­çando-se por ocultá-lo. — Tudo é lucro, os tolos existem no interesse das pessoas de espírito.

— E agora, cala-te, Rakitka. O que vou dizer não se dirige a ti. Tu não gostas de nós.

— E por que haveria eu de gostar de vocês? — disse ele brutal­mente. Contara ser pago sem' que o soubesse Aliócha, cuja presença causava-lhe vergonha e irritava-o. Até então, por política, poupara Grúchenhka, malgrado suas palavras picantes, porque ela parecia do­miná-lo. Mas a cólera tomava conta dele.

— Gosta-se em troca de alguma coisa. Que fizeram por mim to­dos dois?

— Ama em troca de nada, como Aliócha.

— Como te ama ele e que provas te deu disso? Por que todo esse alvoroço?

De pé no meio do salão, Grúchenhka falava com calor, com voz exaltada:

— Cala-te, Rakitka, não compreendes nada de nossos sentimentos. E cessa de tutear-me, proíbo-to. Donde te vem essa audácia? Senta-te num canto e nem mais uma palavra! Agora, Aliócha, vou confessar-me a ti somente, para que saibas o que sou. Queria perder-te, estava decidida a isso, a ponto de comprar Rakítin para que ele te trouxesse. E por que isso?' Tu de nada sabias, desviavas-te de mim, passavas de olhos baixos. Eu interrogava as pessoas a teu respeito. Teu rosto me perseguia: "Ele me despreza", pensava eu, "e nem mesmo quer olhar-me". Por fim, perguntei a mim mesma, com surpresa: "Por que temer esse rapazola? Eu o devorarei. Isso me divertirá". Estava exasperada. Acredita-me, ninguém aqui ousaria faltar ao respeito a Agrafiena Aliek­sándrovna; não tenho senão aquele velho ao qual me vendi. Foi Sa­tanás que nos uniu e ninguém mais. Havia, pois, decidido que serias minha presa, era um jogo para mim. Eis a detestável criatura que chamaste de irmã. Agora meu sedutor chegou, espero notícias. Sabes o que era ele para mim? Há cinco anos, quando Kuzmá Kuzmitch me trouxe para aqui, eu me ocultava por vezes para não ser vista, nem ouvida; como uma tola, soluçava, não dormia mais, dizendo a mim mesma: "Onde está ele, o monstro? Deve rir de mim com uma outra. Oh! como me vingarei, se algum dia o encontrar!" Na escuridão, solu­çava sobre meu travesseiro, torturava meu coração de propósito: "Ele me pagará!", exclamava eu. Ao pensar que era impotente, que ele zom­bava de mim, havia-me talvez completamente esquecido, deslizava de meu leito para o soalho, inundada de lágrimas, presa de uma crise de nervos. Passara a odiar todo mundo. Em seguida, formei um capital, endureci o coração, engordei. Pensas que me tornei mais sensata? Absolutamente. Ninguém o imagina, mas quando chega a noite acon­tece-me, como há cinco anos, ranger os dentes e chorar: "Hei de vin­gar-me! hei de vingar-me!" Estás-me acompanhando? Então, que pensas disto? Há um mês recebo uma carta anunciando-me sua chegada. Ficou viúvo. Quer ver-me. Fiquei sufocada. "Meu Deus, ele vai chegar e chamar-me, arrastar-me-ei para ele como um cão batido, como uma culpada! Não posso crer nisso eu mesma! Terei ou não a baixeza de correr para ele?" E uma cólera contra mim mesma me dominou, nestas últimas semanas, mais violenta do que há cinco anos. Vês minha exas­peração, Aliócha, confessei-me a ti. Mítia não passava de uma diversão. Cala-te, Rakitka, não te cabe julgar-me. Antes da chegada de vocês, eu esperava, pensava no meu futuro, e vocês jamais conhecerão meu estado de alma. Aliócha, dize àquela senhorita que não me queira mal por causa da cena de anteontem!... Ninguém no mundo pode compreen­der o que sinto agora... Talvez leve uma faca, ainda não decidi.

Incapaz de conter-se, Grúchenhka interrompeu-se, cobriu o rosto com as mãos, deixou-se cair sobre o divã, soluçou como uma criança. Aliócha levantou-se e aproximou-se de Rakítin.

— Micha — disse ele —, ela te ofendeu, mas não te zangues. Ouvis­te-a? Não se pode exigir demais de uma alma, é preciso ter miseri­córdia.

Aliócha pronunciou suas palavras num impulso irresistível. Tinha ne­cessidade de expandir-se e tê-las-ia dito mesmo que estivesse só. Mas Rakítin olhou-o ironicamente e Aliócha deteve-se.

— Estás com a cabeça cheia do teu stáriets e me bombardeias à sua maneira, Aliócha, homem de Deus — disse ele, com um sorriso odiento.

— Não zombes, Rakítin, não fales do morto, ele era superior a todos na terra — exclamou Aliócha, com lágrimas na voz. — Não é como juiz que te falo, mas como o derradeiro dos acusados. Que sou eu diante dela? Viera aqui para perder-me, por covardia. Ela, porém, após cinco anos de sofrimentos, por causa de uma palavra sincera que ouve, perdoa, esquece tudo e chora! Seu sedutor voltou, chama-a, ela lhe perdoa e corre alegremente para ele. Porque ela não levará faca, não. Não sou assim, Micha, ignoro se o és. É uma lição para mim... Ela é superior a nós... Tinhas ouvido antes o que ela acaba de contar? Não, sem dúvida, porque terias compreendido tudo desde muito tem­po... Ela perdoará também, aquela que foi ofendida anteontem, quan­do souber de tudo... Essa alma ainda não se reconciliou, é preciso poupá-la... oculta talvez um tesouro...

Aliócha calou-se, porque lhe faltava a respiração. Malgrado sua irritação, Rakítin olhava-o, espantado. Não esperava semelhante tirada da parte do pacífico Aliócha.

— Aqui temo-lo, um advogado! Estarias apaixonado por ela? Agra­fiena Alieksándrovna, viraste a cabeça do nosso asceta! — exclamou ele com uma risada impudente.

Grúchenhka ergueu a cabeça, sorriu docemente para Aliócha, com o rosto ainda cheio das lágrimas que acabava de derramar.

— Deixa-o, Aliócha, meu querubim, vês como ele é. Que adianta falar-lhe? Mikhail Óssipovitch, queria pedir-te perdão, mas agora desisto disso. Aliócha, vem sentar-te aqui (ela pegou-lhe a mão e olhava-o, radiante), dize-me, será que eu o amo, sim ou não, ao meu sedutor? Perguntava-o a mim mesma, aqui, no escuro. Esclarece-me, chegou a hora, farei o que disseres. Será preciso perdoar?

— Mas já perdoaste.

— É verdade — disse Grúchenhka, pensativa. — Oh! o coração covar­de! Vou beber à minha covardia. — Pegou um copo que esvaziou dum trago, depois atirou-o no chão. Havia crueldade em seu sorriso.

— Talvez não tenha ainda perdoado — disse ela, com ar ameaçador, de olhos baixos, como que falando a si mesma. — Talvez meu coração pense somente em perdoar. Vês tu, Aliócha? São meus cinco anos de lágrimas o que eu amava, a ofensa que sofri, e não ele.

— Pois bem! Não gostaria de estar em sua pele — disse Rakítin.

— Mas jamais o estarás, Rakitka. Limparás meus sapatos. Será nisto que te empregarei. Uma mulher como eu não foi feita para ti... E talvez também não para ele...

— Então, por que tão bem vestida?

— Não me censures o meu traje, Rakitka, não conheces o meu cora­ção! Se quiser, agora mesmo mudarei de vestido. Não sabes por que o vesti. Talvez vá dizer-lhe: "Jamais me viste tão bela?" Quando ele me deixou, era eu uma mocinha de dezessete anos, magrela e chorona. Eu o acariciarei, excitá-lo-ei: "Vês o que me tornei? Então, meu caro, basta de conversa, isto põe-te água na boca, mas vai beber em outra parte!" Eis, Rakitka, para que servirá talvez este vestido. Estou arre­batada, Aliócha. Posso rasgar este vestido, desfigurar-me, sair a pedir esmola. Sou capaz de ficar em minha casa agora, de devolver a Kuzmá seu dinheiro, seus presentes, e ir alugar-me a serviço diário. Pensas que me faltaria coragem, Rakitka? Basta que me levem aos extremos... Quanto ao outro, eu o enxotarei, zombarei dele...

Proferindo estas derradeiras palavras como numa crise, cobriu o rosto com as mãos, lançou-se sobre as almofadas, soluçando de novo. Rakítin levantou-se.

— Está ficando tarde — disse ele —, não nos deixarão entrar no mosteiro.

Grúchenhka sobressaltou-se.

— Como, Aliócha, queres deixar-me? — exclamou, com dolorosa surpresa. — Pensas fazê-lo? Transtornaste-me e agora eis de novo a noite, a solidão!

— Ele não pode, entretanto, passar a noite em tua casa. Mas, se ele quiser, fique. Vou-me embora sozinho! — disse malignamente Ra­kítin.

— Cala-te, malvado! — gritou Grúchenhka, encolerizada. — Nunca me disseste semelhantes palavras!

— Que palavras?

— Não sei, nada de extraordinário, mas ele revirou-me o coração... O primeiro, o único que teve piedade de mim. Por que não vieste mais cedo, querubim? — E caiu de joelhos diante dele, como em êxtase. — Toda a minha vida, esperei alguém como tu, que me traria o perdão. Acreditei que me amariam por outro motivo que não apenas o de ser uma perdida...

— Que fiz eu por ti? — perguntou Aliócha, com um terno sorriso, inclinado sobre ela e tomando-lhe as mãos. — Dei uma cebola, a menor de todas, eis tudo!...

As lágrimas inundaram-lhe os olhos. Naquele momento, ouviu-se rumor, alguém entrava no vestíbulo; Gruchenhka levantou-se aterrorizada. Fiénia irrompeu barulhentamente no quarto.

— Minha senhora, minha boa e querida senhora, o correio chegou — exclamou ela alegremente, toda ofegante. — O tarantás chega de Mókroie, com o postilhão Timofiéi. Vão trocar de cavalos... Uma carta, senhora, eis aqui uma carta!

Brandia a carta, gritando. Gruchenhka apoderou-se dela, aproximou-a da vela. Era um bilhete de algumas linhas que leu num instante.

— Ele me chama! — Estava pálida, o rosto contraído por um sorriso mórbido. — Ele assobia para mim! Arrasta-te, cãozinho! — Mas ficou apenas um momento indecisa, de repente o sangue subiu-lhe ao rosto.

— Parto! Adeus, meus cinco anos! Adeus, Aliócha, a sorte está lan­çada... Afastem-se todos, vão-se embora, que eu não os veja mais!

Gruchenhka voa para uma vida nova. Não me guardes rancor, Rakitka. É talvez para a morte que sigo! Oh! sinto-me como que em­briagada!

Precipitou-se para seu quarto de dormir.

— Agora não precisa mais de nós — resmungou Rakítin. — Vamos embora. Essa música poderia muito bem recomeçar; estou com os ouvidos mais que cheios...

Aliócha deixou-se levar maquinalmente.

No pátio, viam-se idas e vindas à luz duma lanterna; trocava-se a atrelagem de três cavalos. Mal os dois jovens tinham descido o patamar, abriu-se a janela do quarto de dormir e a voz de Gruchenhka elevou-se, sonora.

— Aliócha, saúda teu irmão Mítia, dize-lhe que não guarde uma má lembrança de mim. Repete-lhe minhas palavras: "Foi a um mise­rável que Gruchenhka se deu e não a ti, que és nobre!" Acrescenta que Gruchenhka o amou durante uma hora, nada mais que uma hora; que ele se recorde sempre dessa hora, doravante, é Gruchenhka quem lho ordena... por toda a sua vida...

Acabou com soluços na voz. A janela tornou a fechar-se.

— Hum! — murmurou Rakítin rindo. — Ela estrangula Mítia e quer que ele se lembre disso toda a sua vida. Que ferocidade!

Aliócha pareceu não ter ouvido. Caminhava rapidamente ao lado de Rakítin; tinha o ar apalermado. Rakítin teve de súbito a sensação de que lhe metiam um dedo numa chaga viva. Esperara bem outra coisa ao pôr Aliócha em presença de Gruchenhka e estava decepcionado.

— É o polonês, o tal oficial dela — prosseguiu ele, contendo-se. — Aliás, não é mais oficial agora, esteve servindo na Alfândega na Sibé­ria, na fronteira chinesa. Deve ser um pobre-diabo. Dizem que perdeu o lugar. Tendo sabido que Gruchenhka tem dinheiro, voltou, isto explica tudo.

De novo, Aliócha pareceu não ter ouvido. Rakítin não se conteve mais.

— Então, converteste uma pecadora? Puseste uma mulher de má vida no bom caminho? Expulsaste os demônios, hein? Ei-los, os milagres que esperávamos: realizaram-se!

— Pára com isso, Rakítin! — disse Aliócha. de alma dolorida.

— Tu me desprezas agora por causa dos 25 rublos que recebi? Vendi um verdadeiro amigo. Mas tu não és o Cristo e eu não sou Judas.

— Rakítin, asseguro-te que não pensava mais nisso, és tu quem o recordas.

Mas Rakítin estava exasperado.

— Que o diabo leve vocês todos! — vociferou de repente. — Por que, diabo, liguei-me a ti? Doravante, não quero mais saber de ti. Vai sozinho, eis teu caminho.

Dobrou numa outra rua, deixando Aliócha sozinho ali, nas trevas. Aliócha saiu da cidade e voltou ao mosteiro pelos campos.

 

AS BODAS DE CANÁ

Era já muito tarde para entrar no mosteiro, quando Aliócha chegou ao eremitério; o irmão porteiro introduziu-o por uma entrada parti­cular. Tinham soado 9 horas, a hora do repouso, após um dia tão agitado. Aliócha abriu timidamente a porta e penetrou na cela do stáriets, onde se encontrava agora seu ataúde. Não havia ninguém, exceto o Padre Paísi, lendo o Evangelho diante do morto, e o jovem noviço Porfíri, esgotado pela conversação da derradeira noite e pelas emo­ções do dia; dormia o profundo sono da mocidade, deitado no chão, na peça vizinha. O Padre Paísi, que ouvira Aliócha entrar, nem mesmo voltou a cabeça. Aliócha ajoelhou-se num canto e pôs-se a rezar. Sua alma transbordava, mas suas sensações permaneciam confusas, uma afugentando a outra, numa espécie de movimento giratório uniforme. Coisa estranha, experimentava ele uma sensação de bem-estar e não se admirava disso. Contemplava de novo aquele morto que lhe era tão querido, mas a compaixão lacrimosa e dolorosa da manhã desapare­cera. Ao entrar, caíra de joelhos diante do caixão como diante de um santuário e, no entanto, a alegria esplendia em sua alma. Um ar fresco entrava pela janela aberta. "O cheiro deve ter então aumentado, do contrário não se teriam decidido a abrir uma janela", pensou Aliócha. Mas não se sentia mais angustiado, nem indignado por causa daquela idéia da corrupção. Pôs-se a rezar mansamente, e em breve percebeu que o fazia quase maquinalmente. Fragmentos de idéias surgiam, tais como fogos-fátuos; em compensação, reinavam em sua alma uma cer­teza, um apaziguamento de que tinha consciência. Punha-se a rezar com fervor, cheio de reconhecimento e de amor... Em breve passava para outra coisa, esquecendo a oração e o que a interrompera. Prestou ouvidos à leitura do Padre Paísi, mas acabou por dormitar, esgo­tado...

"Três dias depois celebraram-se umas bodas em Caná da Galiléia; encontrava-se lá a Mãe de Jesus.

"E foi também convidado Jesus com seus discípulos para as bo­das. "[15]

— As bodas?... — Esta idéia turbilhonava no espírito de Aliócha. — Ela também é feliz... foi a um festim... Não, decerto, não levou faca... Era simplesmente uma palavra desagradável... Devem-se per­doar sempre as palavras desagradáveis. Consolam a alma... Sem elas a dor seria insuportável. Rakítin seguiu pelo beco. Enquanto pensar ele em seus agravos, seguirá sempre por um beco... Mas a estrada, a grande estrada reta, clara, cristalina, com o sol resplandecente, no final... Que é que se lê?

"... E, faltando o vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: 'Não têm vinho'", ouviu Aliócha.

— Ah! sim, perdi o começo. É pena, gosto dessa passagem: as bodas de Cana, o primeiro milagre... Que belo milagre! Foi consagrado à alegria e não ao luto... "Quem ama os homens, ama também sua alegria... " O defunto repetia isto a cada instante, era uma de suas idéias principais... "Não se pode viver sem alegria", * disse Mítia... "Tudo quanto é verdadeiro e belo respira sempre o perdão", dizia ele também.

"... E Jesus disse-lhe: 'Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não chegou a minha hora*.

"Disse sua mãe aos que serviam: 'Fazei tudo o que ele vos disser'. "

— Fazei... Dai alegria a gente muito pobre... Muito pobres, segura­mente, pois que até mesmo em suas bodas o vinho faltou... Os histo­riadores contam que em torno do lago de Genesaré e na região estava então disseminada a população mais pobre que se possa imaginar... E sua mãe, de grande coração, sabia que ele não viera somente cumprir sua missão, sublime, mas que partilhava da alegria ingênua das pessoas simples e ignorantes que o convidavam cordialmente para suas humildes bodas. "Minha hora ainda não chegou. " Fala com um doce sorriso (deve ter-lhe sorrido ternamente). Na realidade, pode dar-se que te­nha baixado à terra para multiplicar o vinho em bodas de pobres? Mas fez o que ela lhe pedia...

"... Disse-lhes Jesus: 'Enchei as talhas de água'. E encheram-nas até em cima.

"Então disse-lhes Jesus: 'Tirai agora e levai ao mestre-sala'. E eles levaram.

"E o mestre-sala, logo que provou a água convertida em vinho, como não sabia donde lhe viera aquele vinho, ainda que o soubessem os serventes, porque tinham tirado a água, chamou o esposo e dis­se-lhe:

"— Todo homem põe primeiro o bom vinho e quando já o têm bebido bem, então apresenta o inferior; tu, ao contrário, tiveste o bom vinho guardado até agora. "

— Mas que acontece? Por que o quarto está oscilando? Ah! sim... são as bodas, o casamento... bem, decerto. Eis os convidados, os jovens esposos, a multidão alegre e... onde está então o prudente mestre-sala? Que é isso? O quarto oscila de novo... Quem se levanta na grande mesa? Como... ele também está aqui? Mas estava no seu cai­xão... Levantou-se, viu-me, vem para cá... Meu Deus!...

Com efeito, ele se aproximou, o velhinho seco, de rosto sulcado de rugas, rindo docemente. O caixão desapareceu, ele está vestido como ontem, em companhia deles, quando seus visitantes se reuniram. Seu rosto está descoberto, seus olhos brilham. Como pode ser isto, também ele no festim, também ele convidado para as bodas de Cana?

— Tu estás também convidado, meu querido, com todas as regras — disse sua voz tranqüila. — Por que te escondes aqui, não te vêem... Vem para junto de nós.

É sua voz, a voz do stáriets Zósima... como não haveria de ser ele, pois está chamando? O stáriets toma a mão de Aliócha, que se levantou.

— Regozijemo-nos — prosseguiu o ancião —, bebamos o vinho novo, o vinho da grande alegria. Vês aqueles convidados? Eis o noivo e a noiva, eis o prudente mestre-sala, prova o vinho novo. Por que estás surpreendido por ver-me? Dei uma cebola e eis-me aqui. Muitos dentre nós não deram senão uma cebola, uma bem pequena cebola... Que são nossas obras? E tu também, meu terno e manso rapaz, tu também soubeste hoje dar uma cebola a uma faminta. Começa tua obra, meu querido! Estás vendo o nosso Sol, tu o percebes?

— Tenho medo... não ouso olhar... — balbuciou Aliócha.

— Não tenhas medo dele. Sua majestade é terrível. Sua grandeza nos esmaga, mas sua misericórdia é sem limites; por amor fêz-se semelhante a nós e se rejubila conosco, muda a água em vinho, para não interromper a alegria dos convidados, aguarda outros, chama-os continuamente por todos os séculos dos séculos. E eis que trazem o vinho novo, vê os copos...

Algo ardia no coração de Aliócha, enchia-o até doer-lhe, lágrimas de alegria derramaram-se de sua alma... Estendeu os braços, lançou um grito, despertou...

De novo o caixão, a janela aberta, e a leitura calma, grave, ritmada do Evangelho. Mas Aliócha não escutava mais. Coisa estranha, ador­mecera de joelhos e encontrava-se agora de pé. De súbito, como erguido de seu lugar, aproximou-se em três passos do ataúde, bateu mesmo com o ombro no Padre Paísi sem dar-se conta disso. O padre ergueu os olhos, mas retomou logo sua leitura, percebendo que o rapaz não se achava em seu estado normal. Aliócha contemplou um instante o cai­xão, o morto que estava dentro dele estendido, de rosto coberto, com o ícone sobre o peito, o capuz encimado pela cruz de oito braços. Acabava de ouvir sua voz, ecoava ainda em seus ouvidos. Escutou ainda, esperou... de súbito, voltou-se bruscamente e saiu da cela.

Desceu o patamar sem se deter. Sua alma exaltada tinha sede de liberdade, de espaço. Acima de sua cabeça, a abóbada celeste estendia-se até o infinito, as estrelas calmas cintilavam. Do zênite ao horizonte apa­recia, indistinta ainda, a Via-Láctea. A noite serena envolvia a terra. As torres brancas e as cúpulas douradas destacavam-se sobre o céu de safira. As opulentas flores de outono, em redor da casa, haviam adormecido até a manhã. A calma da terra parecia confundir-se com a dos céus, o mistério terrestre confinava com o das estrelas. Aliócha, imóvel, olhava; de súbito, como que ceifado, prosternou-se.

Ignorava por que estreitava a terra, não compreendia por que teria querido, irresistivelmente, abraçá-la toda inteira, mas abraçava-a cho­rando, inundando-a com suas lágrimas, e prometia a si mesmo, com exaltação, amá-la sempre. "Rega a terra com lágrimas e alegria e ama-a... " Estas palavras repercutiam em sua alma. A respeito de que choraria? Oh! no seu êxtase, chorava mesmo a respeito daquelas estrelas que cintilavam no infinito, e não se envergonhava daquela exaltação. Dir-se-ia que os filhos daqueles mundos inumeráveis convergiam em sua alma e que toda ela fremia, em contato com os outros mundos. Teria querido perdoar, a todos e por tudo, e pedir perdão, não por ele, mas pelos outros e por tudo, "os outros o pedirão por mim". Estas palavras também lhe vinham à memória. De mais a mais, sentia claramente e como que tangivelmente algo de firme e de inabalável penetrar na sua alma. Uma idéia apoderava-se de seu espírito, por toda a sua vida e para sempre. Havia-se prosternado fraco adolescente e reergueu-se luta­dor sólido para o resto de seus dias. Teve consciência disto, e sentiu-o naquele momento de sua crise. E nunca mais, dali por diante, pôde Alió­cha esquecer aquele instante. "Minha alma foi visitada naquela hora", di­zia ele, mais tarde, crendo firmemente na verdade de suas palavras.

Três dias depois, deixou o mosteiro, de conformidade com a vontade de seu stáriets, que lhe havia ordenado que "vivesse no mundo".

 

KUZMÁ SAMSÓNOV

Dimítri Fiódorovitch, a quem Grúchenhka, ao voar para uma vida nova, fizera transmitir seu derradeiro adeus, querendo que ele se lem­brasse por toda a sua vida duma hora de amor, estava naquele mo­mento às voltas com as piores dificuldades. Como ele mesmo o disse mais tarde, poderia ter sofrido uma congestão cerebral, naqueles dois últimos dias, no estado em que se encontrava. Aliócha não pudera des­cobri-lo na véspera e não fora ele ao encontro marcado por Ivã no botequim. Seus tocadores mantiveram silêncio, de conformidade com suas instruções. Durante aqueles dois dias, esteve literalmente em aper­tos, "lutando com seu destino para salvar-se", segundo sua expressão. Ausentou-se mesmo algumas horas da cidade, para um negócio urgente, malgrado seu temor de deixar Grúchenhka sem vigilância. O inquérito ulterior precisou o emprego de seu tempo da maneira mais formal; limitar-nos-emos a notar os fatos essenciais nos dois dias que precede­ram a catástrofe que se abateu sobre ele.

Se bem que Grúchenhka o tivesse amado durante uma hora, ela o atormentava por vezes impiedosamente. A princípio, nada podia ele conhecer de suas intenções; era impossível penetrá-las pela doçura ou pela violência. Ter-se-ia zangado e desviado dele completamente. Tinha ele a intuição de que ela se debatia na incerteza, sem poder decidir-se; de modo que pensava ele, não sem razão, que devia ela por vezes detestá-lo, a ele e à sua paixão. Tal era talvez o caso, mas não podia compreender exatamente o que causava a ansiedade de Grúchenhka. Na verdade, toda a questão que o atormentava se resumia numa alter­nativa: ele, Mítia, ou Fiódor Pávlovitch. Aqui é preciso notar um fato certo; estava persuadido de que Fiódor Pávlovitch não deixaria de ofe­recer a Grúchenhka sua mão (se já não o fizera), e não acreditava um instante sequer que o velho libertino esperasse arranjar tudo com 3 000 rublos. Assim raciocinava Mítia, conhecendo Grúchenhka e seu caráter. Eis por que podia parecer-lhe por vezes que o tormento de Grúchenhka e sua indecisão provinham unicamente do fato de não sa­ber ela qual escolher; ignorando qual dos dois lhe traria mais vantagem. Quanto ao próximo regresso do oficial, do homem que desempenhara um papel fatal em sua vida e cuja chegada esperava ela com tanta emo­ção e terror — coisa estranha, não pensava ele nisso absolutamente. É verdade que Grúchenhka mantivera silêncio a respeito naqueles últimos dias. No entanto, sabia ele da carta recebida um mês antes, e conhecia mesmo uma parte de seu conteúdo. Gruchenhka lha havia então mostrado num momento de irritação, sem que ele ligasse impor­tância àquilo, o que a surpreendeu. Teria sido difícil explicar por quê; talvez simplesmente porque, acabrunhado pela sua funesta rivalidade com seu pai, nada pudesse imaginar de mais perigoso naquele momento. Não acreditava num noivo surgido não se sabia donde, após cinco anos de ausência, nem em sua próxima chegada, anunciada aliás em termos vagos. A carta era nebulosa, enfática, sentimental, e Gruchenhka lhe dissimulara as derradeiras linhas, que falavam mais claramente de retorno. Mais ainda, Mítia lembrou-se posteriormente do ar de desdém de Gruchenhka por aquela mensagem vinda da Sibéria. Limitou a isso suas confidencias a respeito daquele novo rival, de sorte que pouco a pouco esqueceu ele o oficial. Pensava somente que em todo caso um conflito com Fiódor Pávlovitch estava iminente e devia ter seu desen­lace em primeiro lugar. Cheio de ansiedade, esperava a cada instante a decisão de Gruchenhka e acreditava que ela viria bruscamente, por inspiração. Se ela fosse dizer-lhe: "Toma-me, sou tua para sempre", estaria tudo terminado; levá-la-ia consigo para o mais longe possível, senão mesmo para o fim do mundo, para o fim de Rússia; casar-se-iam e instalar-se-iam, incognitamente, ignorados de todos. Então começaria uma vida nova, regenerada, virtuosa, com que ele sonhava apaixonada­mente. O lamaçal em que se atolara voluntariamente causava-lhe horror e, como muitos em semelhante caso, contava sobretudo com a mudança de ambiente; escapar àquelas pessoas, às circunstâncias, fugir daquele lugar maldito, seria a renovação completa, a existência transformada. Eis no que acreditava e o que o fazia languescer.

Isto unicamente no caso em que a questão fosse resolvida felizmente. Havia bem outra solução, outra saída, terrível, porém. Se de repente ela lhe dissesse: "Vaí-te, escolhi Fiódor Pávlovitch, casarei com ele, não tenho necessidade de ti", então... oh! então... Mítia ignorava, aliás, o que aconteceria então, ignorou-o até o derradeiro momento, deve-se-lhe fazer esta justiça. Não tinha intenções determinadas, o cri­me não foi premeditado. Contentava-se com tocaiar, espionar, atormen­tava-se, mas não encarava senão um desenlace feliz. Repelia mesmo toda e qualquer outra idéia. Era aqui que começava novo tormento, que surgia nova circunstância, acessória, mas fatal e insolúvel.

No caso em que ela dissesse: "Sou tua, leva-me", como a levaria ele? Onde arranjaria o dinheiro? Precisamente então, as rendas que recebia desde anos dos pagamentos regulares de Fiódor Pávlovitch esta­vam esgotadas. Decerto, Gruchenhka tinha dinheiro, mas Mítia se mos­trava a este respeito dum orgulho violento; queria levá-la e começar uma existência nova com seus recursos pessoais e não os dela. A idéia mesma de poder recorrer à sua bolsa inspirava-lhe profundo desgosto. Não me estenderei a este respeito, não o analisarei, limitando-me a anotá-lo; tal era seu estado d'alma naquele momento. Podia isso provir inconscientemente dos remorsos secretos que experimentava por haver-se desonestamente apropriado do dinheiro de Catarina Ivânovna: "Sou um miserável aos olhos de uma, sê-lo-ei de novo aos olhos da outra", dizia a si mesmo então, como ele próprio o confessou posteriormente. "Se Gruchenhka o souber, não quererá semelhante indivíduo. Portanto, onde encontrar fundos, ou arranjar esse fatal dinheiro? Senão tudo fracassará, por falta de recursos. Que vergonha!"

Sabia talvez onde encontrar esse dinheiro. Não direi mais no mo­mento, porque tudo se esclarecerá, mas explicarei sumariamente em que consistia para ele a pior dificuldade: para arranjar aqueles recursos, para ter o direito de tomá-los, seria preciso em primeiro lugar restituir a Catarina Ivânovna seus 3 000 rublos, senão "sou um larápio, um ca­nalha, e não quero começar assim uma vida nova", decidiu Mítia, e resolveu tudo subverter se fosse preciso, mas restituir em primeiro lu­gar e a qualquer preço aquela soma a Catarina Ivânovna. Deteve-se nesta decisão, por assim dizer, nas derradeiras horas de sua vida, após sua derradeira entrevista com Aliócha na antevéspera, na estrada. Ins­truído por seu irmão a respeito da maneira pela qual Grúchenhka insultara sua noiva, reconheceu que era um miserável e rogou-lhe que a informasse disto, "se isto pudesse aliviá-la". Na mesma noite, sentiu em seu delírio que valia mais "matar e roubar alguém, contanto que restituísse o dinheiro de Cátia". "Serei um assassino e um ladrão para todo mundo, seja; irei de preferência para a Sibéria a deixar Cátia dizer que roubei seu dinheiro para fugir com Grúchenhka e começar uma vida nova! Isto é impossível!" Assim falava Mítia, rilhando os dentes, e havia motivo para que receasse por momentos uma congestão cerebral. Mas continuava a lutar...

Coisa estranha: dir-se-ia que com semelhante resolução não lhe res­tava em partilha senão o desespero, porque onde arranjar tal soma e sobretudo um pobretão como ele? Entretanto, esperou até o fim arran­jar aqueles 3 000 rublos, contando que lhe caíssem eles nas mãos duma maneira qualquer, ainda mesmo do céu. É o que acontece àqueles que, como Dimítri, só sabem desperdiçar seu patrimônio, sem ter nenhuma idéia da maneira pela qual se adquire o dinheiro. Era uma tempestade no seu crânio desde o encontro com Aliócha, estando todas as suas idéias enredadas. Assim começou ele pela tentativa mais estranha, porque pode dar-se o caso de que, em semelhantes transes, as empresas mais extra­vagantes pareçam as mais realizáveis a semelhantes pessoas. Resolveu ir encontrar o comerciante Samsónov, protetor de Grúchenhka, e sub­meter-lhe um plano, segundo o qual este lhe adiantaria logo a soma desejada. Estava seguro de seu plano do ponto de vista comercial, per­guntando a si mesmo somente como acolheria Samsónov sua proposta, se quisesse encará-la doutra maneira. Mítia não conhecia aquele comer­ciante senão de vista e jamais lhe havia falado Mas desde muito tempo tinha a convicção de que aquele velho libertino, cuja vida estava por um fio, não se oporia a que Grúchenhka refizesse a sua, casando-se com um homem seguro, até mesmo desejá-lo-ia e facilitaria as coisas, chegada a ocasião. Por ouvir dizer, ou de acordo com certas palavras de Grúchenhka, concluía igualmente que o velho talvez o preferisse a Fiódor Pávlovitch como marido da jovem. Numerosos leitores acharão talvez cínica a expectativa, de parte de Dimítri Fiódorovitch, de seme­lhante socorro, e a intenção de tirar sua noiva das mãos de seu protetor. Posso simplesmente fazer notar que o passado de Grúchenhka parecia definitivamente enterrado aos olhos de Mítia. Pensava nele cheio de misericórdia e decidira com todo o ardor de sua paixão que, desde que Grúchenhka lhe tivesse dito que o amava e ia casar-se com ele, estariam ambos logo regenerados, desembaraçados de seus vícios, não tendo senão virtudes; perdoar-se-iam mutuamente suas faltas e co­meçariam uma nova existência. Quanto a Kuzmá Samsónov, via nele um homem fatal no passado de Grúchenhka, que não o havia, no en­tanto, jamais amado, um homem agora "passado", também ele fora de conta. Não poderia fazer sombra a Mítia aquele velho débil cuja ligação se tornara paternal, por assim dizer, e isto desde cerca de um ano. Em todo caso, dava Mítia prova duma grande ingenuidade, porque, com todos os seus vícios, era um homem bastante ingênuo. Essa ingenuidade persuadia-o de que o velho Kuzmá, a ponto de deixar este mundo, experimentava sincero arrependimento pela sua conduta para com Grúchenhka, que não tinha protetor e amigo mais devotado do que aquele velho doravante inofensivo.

No dia seguinte à sua conversação com Aliócha nos campos, Mítia, que quase não havia dormido, apresentou-se cerca das 10 horas da manhã em casa de Samsonov e fêz-se anunciar. A casa era velha, som­bria, espaçosa, de um andar, com dependências e um pavilhão. No rés-do-chão moravam os dois filhos dele, casados, sua irmã bastante idosa e sua filha. Dois caixeiros, um dos quais tinha numerosa família, ocupavam o pavilhão. Todo aquele mundo necessitava de espaço, en­quanto o velho vivia sozinho no primeiro andar, não querendo lá nem mesmo sua filha, que cuidava dele e devia subir cada vez que ele tinha necessidade dela, malgrado sua asma inveterada. O primeiro andar compunha-se de grandes peças aparatosas, mobiliadas no velho estilo comercial, com intermináveis fileiras de poltronas maciças e de cadei­ras de acaju ao longo das paredes, lustres de cristal cobertos de capas e tremós. Essas peças estavam vazias e inabitadas, confinando-se o velho no seu quartinho de dormir lá no fundo, onde o serviam uma velha criada de touca e um rapaz que se mantinha em cima de uma arca no vestíbulo. Quase não podendo mais andar, por causa de suas pernas inchadas, só raramente se levantava da poltrona, sustentado pela velha, para dar uma volta pelo quarto. Mesmo com ela se mostrava severo e pouco comunicativo. Quando o informaram da chegada do "capitão", recusou recebê-lo. Mítia insistiu e fêz-se anunciar de novo. Kuzmá Samsonov informou-se então do ar do visitante, se tinha bebido ou fazia barulho. "Não", respondeu o rapaz, "mas não quer ir-se em­bora. " A uma nova recusa, Mítia, que previra o caso e tomara suas precauções, escreveu a lápis: "Para um negócio urgente, a respeito de Agrafiena Alieksándrovna", e enviou o bilhete ao velho. Depois der ter refletido um instante, ordenou este que conduzissem o visitante à sala e mandou transmitir a seu filho mais moço ordem de subir imediatamente. Esse homem de elevada estatura e duma força hercúlea, que se barbeava e se vestia à européia (o velho Samsonov usava cafetã e barba), chegou logo. Todos tremiam diante do pai. Este man­dara-o chamar não por medo do capitão — não era homem medroso —, mas à loa, mais como uma testemunha. Acompanhado de seu filho, que o segurara por baixo do braço, e pelo rapaz, arrastou-se até a sala. Deve-se crer que experimentava uma curiosidade bastante viva. A sala em que Mítia estava à espera era imensa e lúgubre, de dois tons, com uma galeria, paredes imitando mármore e três enormes lustres cobertos de capas. Mítia, sentado perto da entrada, esperava impacientemente sua sorte. Quando o velho apareceu na outra extre­midade, a 10 sajénhi, Mítia levantou-se vivamente e marchou a grandes passos a seu encontro. Estava corretamente trajado, com a sobrecasaca abotoada, seu chapéu na mão, com luvas pretas, como na antevéspera no mosteiro, em casa do stáriets, por ocasião da entrevista com Fió­dor Pávlovitch e seus irmãos. O velho esperava-o de pé, com um ar grave, e Mítia sentiu que ele o examinava. Seu rosto, bastante inchado naqueles últimos tempos, com seu lábio pendente, surpreendeu Mítia. Dirigiu a seu visitante um cumprimento grave e mudo, indicou-lhe um assento e, apoiado ao braço de seu filho, tomou ele próprio lugar, gemendo, no divã em frente de Mítia. Este, testemunha de seus esforços dolorosos, sentiu logo um remorso e acanhamento ao pensar no nada que era diante da importante personagem a quem tirara de seus cômodos.

— Que deseja, senhor? — perguntou o velho, depois que se sentou, num tom frio, embora polido.

Mítia estremeceu, ergueu-se, mas retomou seu lugar. Pôs-se a falar alto, depressa, com exaltação, gesticulando. Sentia-se que aquele ho­mem em apuros procurava uma derradeira saída, pronto a dar tudo por acabado em caso de fracasso. O velho Samsónov deve ter com­preendido tudo isso num instante, se bem que seu rosto houvesse per­manecido impassível.

— O respeitável Kuzmá Kuzmitch ouviu provavelmente falar mais de uma vez de minhas desavenças com meu pai, Fiódor Pávlovitch Karamázov, que me despojou da herança de minha mãe... porque isso é assunto de todas as conversas, metendo-se as pessoas naquilo que não lhes compete... Pode igualmente ter sido informado por Grúchenhka... perdoe, por Agrafiena Alieksándrovna... pela honra­díssima e respeitabilíssima Agripina[16] Alieksándrovna...

Assim começou Mítia, que se atrapalhou desde as primeiras pala­vras. Mas não citaremos integralmente suas palavras, limitando-nos a resumi-las. O fato é que ele, Mítia, conferenciara, havia três meses, na sede do distrito, com um advogado, "um célebre advogado, Kuzmá Kuzmitch, o Senhor Páviel Pávlovitch Kornieplódov, de quem o se­nhor já deve ter ouvido falar. Grande cabeça, espírito quase de esta­dista... ele também o conhece... falou do senhor nos melhores ter­mos... " E Mítia, pela segunda vez, não soube como continuar. Mas não se detinha por tão pouco, passava adiante, discorria à vontade. Aquele advogado, segundo as explicações de Mítia e o exame dos documentos (Mítia atrapalhou-se e passou rapidamente por cima), foi de opinião, a respeito da aldeia de Tchermachniá, que deveria ter-lhe pertencido por herança materna, que se podia intentar um pro­cesso e derrotar assim o velho energúmeno, "porque todas as saídas não estão fechadas e a Justiça sabe abrir-se um caminho". Em suma, podia-se esperar exigir de Fiódor Pávlovitch um suplemento de 6 000 e até mesmo 7 000 rublos, porque Tchermachniá vale pelo menos 25 000, que digo? 28 000, "30 000, Kuzmá Kuzmitch, e imagine que aquele car­rasco não me pagou nem 17 000! Abandonei então esse negócio, não en­tendendo nada da chicana, e à minha chegada aqui fui atordoado por uma ação de reconvenção (aqui Mítia atrapalhou-se de novo e deu um salto). Pois bem, respeitável Kuzmá Kuzmitch, não quer o senhor que eu lhe ceda todos os meus direitos sobre aquele monstro e isto por 3 000 rublos somente?... O senhor não arrisca nada, nada abso­lutamente, juro-o pela minha honra; pelo contrário, poderá ganhar 6 000 ou 7 000 rublos, em lugar de 3 000... E, sobretudo, queria termi­nar este negócio hoje mesmo. Iríamos à casa do tabelião, ou então... em suma, estou pronto a tudo, dar-lhe-ei todos os documentos que o se­nhor quiser, assinarei... lavraríamos o ato hoje, esta manhã mesmo, se possível... O senhor me daria esses 3 000 rublos... porque é o senhor o primeiro capitalista daqui... e assim me salvaria... permi­tindo-me praticar um ato sublime... porque nutro os mais nobres sentimentos para com uma pessoa que o senhor bem conhece e a quem cerca de uma solicitude paternal. De outro modo, não teria vindo aqui. Pode-se dizer que três cabeças se entrechocaram, porque o destino é uma coisa terrível, Kuzmá Kuzmitch. Ora, como o se­nhor não entra mais em conta desde muito tempo, restam duas cabeças, segundo minha expressão talvez canhestra, mas não sou lite­rato. Minha cabeça e a daquele monstro. De modo que, escolha: eu ou um monstro! Tudo se acha agora entre suas mãos, três destinos e dois dados... Desculpe-me, atrapalhei-me, mas o senhor compreende... vejo pelos seus olhos que o senhor compreendeu... Senão, só me resta desaparecer, eis tudo!" Mítia parou de repente sua fala extra­vagante com aquele "eis tudo" e, levantando-se, esperou uma resposta à sua absurda proposta. Na derradeira frase, sentira de súbito que o negócio estava fracassado e sobretudo que havia proferido uma terrível mixórdia. "É estranho, ao vir aqui estava seguro de mim mesmo e agora atrapalho tudo!" Enquanto ele falava, o velho permanecia im­passível, observando-o com ar glacial. Ao fim de um minuto, Kuzmá Kuzmitch disse por fim num tom categórico e desencorajador:

— Desculpe-me, mas não nos ocupamos com tais negócios. Mítia sentiu fugirem-lhe as pernas.

— Que irá ser de mim, Kuzmá Kuzmitch? — murmurou ele, com um sorriso pálido. — Estou perdido agora. Que pensa o senhor?

— Desculpe-me...

Mítia, de pé e imóvel, notou uma mudança na fisionomia do velho. Estremeceu.

— Veja, senhor, tais negócios são incômodos. Entrevejo um pro­cesso, advogados, o diabo e tudo mais! Se o senhor quiser, há aqui um homem, dirija-se a ele.

— Meu Deus, quem é?... O senhor me restitui a vida, Kuzmá Kuzmitch — balbuciou Mítia.

— Não está aqui neste momento. É um mujique, comerciante de madeira, apelidado Líagávi. Há um ano vive em conversações com Fiódor Pávlovitch a respeito da floresta da Tchermachniá de vocês. Não estão de acordo no preço. Talvez já tenha o senhor ouvido falar disso. Encontra-se ele justamente agora lá, hospedado na casa do Padre Ilinski, em llhínskoie, a 12 verstas da estação de Volóvia. Escreveu-me a respeito desse negócio, pedindo conselho. Fiódor Páv­lovitch quer ir em pessoa encontrá-lo. Se o senhor se adiantasse a ele, fazendo a Liagávi a mesma proposta que a mim, talvez que ele...

— Eis uma idéia genial! — interrompeu Mítia, entusiasmado. — É justamente o que é preciso para aquele homem. É comprador, pedem-lhe caro, e eis um documento que o torna proprietário, ah! ah! ah! — E Mítia explodiu uma risada seca, inesperada, que surpreendeu Sam­sónov.

— Como agradecer-lhe, Kuzmá Kuzmitch?

— Não há de quê — respondeu Samsónov, inclinando a cabeça.

— Mas o senhor não sabe, o senhor acaba de salvar-me. Oh! foi um pressentimento que me trouxe à sua casa... Então, vamos ver esse pope!

— É inútil agradecer-me.

— Corro lá. Abusei de sua saúde. Jamais esquecerei, é um russo quem lho diz, Kuzmá Kuzmiích!

Mítia quis agarrar a mão do velho para apertá-la, mas ele tinha um olhar mau. Mítia retirou sua mão, enquanto censurava sua des­confiança. "Deve estar fatigado... ", pensou.

— É por ela, Kuzmá Kuzmitch! O senhor compreende que é por ela! — disse ele com voz ressoante. Inclinou-se, deu meia volta e apressou-se em direção à saída, com grandes passadas. Palpitava de entusiasmo. "Tudo parecia perdido, mas meu anjo da guarda me salvou", pensava ele. "E se um homem de negócios como esse velho (que nobre ancião, que porte imponente!) indicou esse caminho... sem dúvida o êxito está garantido. Não há um minuto a perder. Vol­tarei esta noite, mas terei ganho de causa. Será possível que o velho haja zombado de mim?" Assim monologava Mítia, ao voltar para sua casa, e não podia imaginar as coisas de outro modo: ou era um conselho prático — vindo dum homem experimentado, que conhecia aquele Liagávi (que nome engraçado!) — ou então o velho zombara dele! Ai! a derradeira hipótese era a única verdadeira. Mais tarde, muito tempo após o drama, o velho Samsónov confessou, rindo, que zombara do capitão. Tinha espírito maligno e irônico, com antipatias mórbidas. Teria sido o ar entusiasta do capitão, a tola convicção da­quele "cesto furado" de que ele. Samsónov, podia levar a sério seu plano absurdo, um sentimento de ciúme de Grúchenhka, em nome da qual aquele desmiolado lhe pedia dinheiro — ignoro o que inspirou o velho, mas, quando Mítia se mantinha diante dele, sentindo suas pernas dobrarem-se, e exclamou estüpidamente que estava perdido, olhou com maldade e imaginou pregar-lhe uma peça. Após a partida de Mítia, Kuzmá Kuzmitch, pálido de cólera, dirigiu-se a seu filho, ordenando-lhe que tomasse as providências para que aquele patife não voltasse a pôr os pés em sua casa, senão...

Não acabou sua ameaça, mas seu filho, que o tinha, no entanto, visto muitas vezes encolerizado, tremeu de medo. Uma hora depois, estava ainda o velho agitado pela cólera; ao anoitecer, sentiu-se indis­posto e mandou chamar o curandeiro.

 

LIAGÁVI

Por conseguinte, era preciso "galopar", e Mítia não tinha com que pagar a corrida: 20 copeques, eis o que lhe restava de sua antiga prosperidade! Possuía um velho relógio de prata, que havia muito tempo estava parado. Um relojoeiro judeu, instalado numa lojinha, no mercado, deu por ele 6 rublos. "Não esperava tanto!", exclamou Mítia, encantado (o encantamento continuava). Pegou seus 6 rublos e correu à sua casa. Ali completou a soma pedindo emprestados 3 rublos a seus locadores, que lhe deram de bom grado, se bem que fosse o derradeiro dinheiro que tinham, tanto gostavam de Mítia. Na sua exaltação, Mítia revelou-lhes que sua sorte se decidia e explicou — à pressa, bem entendido — quase todo o plano que acabava de expor a Samsónov, a decisão deste último, suas futuras esperanças, etc. An­tes já, estavam aquelas pessoas a par de muitos de seus segredos e o olhavam como dos "seus", um bárin nada orgulhoso. Tendo dessa maneira juntado 9 rublos, mandou Mítia buscar cavalos de posta para ir até a estação de Volóvia. Mas desta maneira comprovou-se e foi relembrado que "na véspera de certo acontecimento não tinha Mítia 1 copeque, que para arranjar dinheiro vendera um relógio e pedira emprestados 3 rublos a seus locadores, tudo isso diante de testemu­nhas".

Noto o fato, compreender-se-á mais tarde por quê.

Rodando para Volóvia, Mítia, radiante à idéia de desembaraçar por fim e de terminar todos aqueles negócios, estremecia, no entanto, inquieto: que aconteceria a Grúchenhka, durante sua ausência? De­cidir-se-ia ela hoje a ir encontrar Fiódor Pávlovitch? Eis por que partira sem preveni-la, recomendando aos locadores que nada dissessem no caso de virem chamá-lo. "Preciso voltar absolutamente esta noite", repetia ele, sacudido na tieliega, "e trazer esse Liagávi... para lavrar o ato... " Mas, ai! seus sonhos não estavam destinados a realizar-se de acordo com seu plano.

Em primeiro lugar perdeu tempo tomando para Volóvia o caminho vicinal. O percurso verificou-se ser de 18 e não de 12 verstas. Em seguida não encontrou o Padre Ilinski em casa, pois fora à aldeia vizinha. Enquanto Mítia partia à sua procura com os mesmos cavalos, já estafados, a noite estava quase chegada. O bátiuchka, homenzinho tímido de ar afável, explicou-lhe logo que o tal Liagávi, que se alojara a princípio em sua casa, estava agora em Sukhói Posiélok, e passaria a noite na isbá do guarda-florestal, porque traficava também lá. A pe­didos instantes de Mítia de conduzi-lo imediatamente à presença de Liagávi e de "assim salvá-lo", o padre consentiu, após alguma hesitação, em acompanhá-lo a Sukhói Posiélok, misturando-se nisso certa curio­sidade; por desgraça, aconselhou ir-se a pé, porque a distância era de pouco mais de 1 versta. Mítia aceitou, bem entendido, e caminhou a grandes passos, de sorte que o pobre bátiuchka mal podia segui-lo. Era um homem ainda moço e bastante reservado. Mítia se pôs logo a falar de seus planos, pediu nervosamente conselhos a respeito de Liagávi, conversou durante todo o caminho. O padre escutava-o aten­tamente, mas não aconselhava nada. Respondia evasivamente às pergun­tas de Mítia: "Não sei; como haveria de sabê-lo?", etc, etc. Quando Mítia falou de suas desavenças com seu pai a respeito da herança, o padre amedrontou-se, porque dependia ele, a certos respeitos, de Fiódor Pávlovitch. Informou-se com surpresa da razão pela qual Mítia cha­mava de Liagávi o mujique Górstkin e explicou-lhe que, muito embora esse nome de Liagávi fosse o dele, ofendia-se tremendamente com ele e era preciso chamá-lo Górstkin, "senão o senhor nada poderá obter dele, que nem mesmo o escutará", concluiu o padre. Mítia espantou-se um pouco e explicou que o próprio Samsónov o havia chamado assim. A estas palavras, o padre mudou de conversa; deveria ter dado parte de suas suspeitas a Dimítri Fiódorovitch: se Samsónov o havia dirigido àquele mujique sob o nome de Liagávi, não teria sido por derrisão, não haveria naquilo algo de duvidoso? Mas Mítia não tinha tempo de se deter com tais bagatelas. Caminhava sempre e somente ao chegar a Sukhói Posiélok se apercebeu de que haviam feito 3 verstas e não 1 e meia. Dissimulou seu descontentamento. Entraram na isbá, da qual o guarda-florestal, que conhecia o padre, ocupava a metade; o forasteiro estava instalado na outra, separada pelo vestíbulo. Foi para lá que se dirigiram, acendendo uma vela. A isbá estava superaquecida.

Sobre uma mesa de pinho havia um samovar apagado, uma bandeja com xícaras, uma garrafa de rum vazia, um garrafão de aguardente quase vazio e restos de pão de trigo. O forasteiro jazia sobre o banco, com as roupas enroladas sob a cabeça à guisa de travesseiro, e roncava ruidosamente. Mítia estava perplexo. "Certamente, é preciso despertá-lo: meu negócio é por demais importante, vim com tanta pressa e tenho também pressa de voltar hoje mesmo", murmurava, inquieto. Aproxi­mou-se e pôs-se a sacudi-lo, mas o dorminhoco não despertou. "Está bêbado", concluiu Mítia. "Que fazer, meu Deus, que fazer?" Na sua impaciência, começou a puxá-lo pelas mãos, pelos pés, a levantá-lo, a sentá-lo no banco, mas só obteve, após longos esforços, surdos res­mungos e invectivas enérgicas, embora confusas.

— Seria melhor o senhor esperar — disse por fim o padre —, nada se pode obter agora.

— Bebeu o dia inteiro — observou o guarda.

— Meu Deus! — exclamou Mítia. — Se o senhor soubesse como tenho necessidade dele e em que situação me encontro!

— Será melhor esperar até amanhã de manhã — repetiu o padre.

— Até de manhã? Mas é impossível!

No seu desespero, ia ainda sacudir o bêbado, mas parou logo, com­preendendo a inutilidade de seus esforços. O padre calava-se, o guarda cheio de sono mostrava-se sombrio.

— Que tragédias se encontram na vida real! — proferiu Mítia, de­sesperado. O suor escorria-lhe no rosto. O padre aproveitou-se dum minuto de calma para explicar-lhe avisadamente que, mesmo se con­seguisse despertar o dorminhoco, este não poderia discutir com ele, bêbado como estava; "uma vez que se trata de um negócio importante, é mais seguro deixá-lo tranqüilo até de manhã... " Mítia concordou.

— Ficarei aqui, bátiuchka, esperando a ocasião. Assim que ele acor­dar, começarei... Pagar-te-ei a vela e o pernoite — disse ele ao guar­da. — Lembrar-te-ás de Dimítri Karamázov. Mas o senhor, bátiuchka, onde vai deitar-se?

— Não se inquiete, volto para casa na jumenta dele — disse, desig­nando o guarda. — Portanto, adeus e boa sorte.

Assim foi feito. O padre cavalgou a jumenta, feliz por ver-se livre mas vagamente inquieto e perguntando a si mesmo se não faria bem em informar no dia seguinte Fiódor Pávlovitch a respeito daquele curioso negócio, "senão ele se zangará ao sabê-lo e retirará sua pro­teção a mim". O guarda, depois de coçar-se, voltou, sem dizer pala­vra, para seu quarto; Mítia tomou lugar no banco para esperar a oca­sião, como dizia. Profunda angústia o dominava, como uma espessa bruma. Procurava, sem consegui-lo, reunir suas idéias. A vela ardia, um grilo cantava, sufocava-se no quarto superaquecido. Imaginou de re­pente o jardim, a entrada; a porta da casa de seu pai abria-se miste­riosamente e Grúchenhka acorria. Levantou-se bruscamente.

— Tragédia! — murmurou, rilhando os dentes. Aproximou-se maqui­nalmente do homem que dormia e pôs-se a examiná-lo. Era um mujique esgalgado, ainda moço, de cabelos cacheados, barbicha ruiva. Tra­zia uma blusa de chita da Índia e um colete preto, com a cadeia dum relógio de prata no bolsinho. Mítia observava aquela fisionomia com verdadeiro ódio. Os cachos, sobretudo, o exasperavam, não se sabia por quê. O mais humilhante é que ele, Mítia, ficava ali diante daquele homem com seu negócio urgente, ao qual tudo sacrificara, no extremo das forças, e aquele mandrião, "do qual depende agora minha sorte, ronca como se nada houvesse, como se viesse dum outro planeta!** Mítia, perdendo a cabeça, lançou-se de novo para despertar o mujique embriagado. Pôs naquilo uma espécie de encarniçamento, maltratou-o, chegou a bater-lhe, mas, ao fim de cinco minutos, não obtendo ne­nhum resultado, tornou a sentar-se, num desespero impotente.

"Tolice, tolice! E... como tudo isso é lamentável. " Começava a sen­tir dor de cabeça. "Será preciso abandonar tudo? Voltar?", pensava ele. "Não, ficarei até de manhã, decididamente! Por que ter vindo aqui? E não tenho com que voltar. Como fazer? Oh! que absurdo!"

Entretanto sua dor de cabeça aumentava. Ficou imóvel e adorme­ceu insensivelmente, sentado como estava. Ao fim de duas horas, foi despertado por uma dor intolerável na cabeça, suas têmporas latejavam. Levou muito tempo para voltar a si e dar-se conta do que se passava. Compreendeu por fim que era um começo de asfixia, devida ao carvão, e que teria podido morrer O bêbado continuava a roncar; a vela consumira-se e estava a ponto de apagar-se. Mítia lançou um grito e precipitou-se cambaleante para a casa do guarda, que logo despertou. Sabendo do que se tratava, foi fazer o necessário, mas acolheu a coisa com uma fleuma surpreendente, o que causou assombro a Mítia.

— Mas ele está morto, está morto, e então... que fazer? — ex­clamou ele, na sua exaltação.

Abriram-se as portas e a janela, destapou-se a estufa. Mítia trouxe da entrada um balde de água com a qual molhou a cabeça, depois em­bebeu de água um trapo de pano que aplicou sobre a de Liagávi. O guarda continuava a mostrar uma indiferença desdenhosa; depois de ter aberto a janela, disse com ar mal-humorado: "Está tudo bem assim" e voltou a deitar-se, deixando a Mítia uma lanterna acesa. Durante uma meia hora, cuidou Mítia do bêbado, renovando a compressa, resolvido a velar a noite inteira; já sem forças, sentou-se para retomar fôlego, seus olhos fecharam-se logo, estirou-se inconscientemente sobre o banco e adormeceu com um sono de chumbo.

Despertou muito tarde, cerca das 9 horas. O sol brilhava nas duas janelas da isbá. O mujique de cabelos cacheados estava instalado dian­te de um samovar fervente e novo garrafão, mais de cuja metade já havia bebido. Mítia levantou-se sobressaltado e percebeu logo que o maldito mujique estava de novo embriagado, irremediavelmente em­briagado. Observou-o um minuto, escancarando os olhos. O mujique olhava-o em silêncio, com um ar astuto e fleumático e até mesmo com arrogância, pelo que creu Mítia. Lançou-se para ele:

— Permita, olhe... eu... o guarda deve ter-lhe dito quem sou: o Tenente Dimítri Karamázov, filho do velho com quem anda o senhor em tratativas para um corte de madeira.

— Mentes! — replicou o mujique, num tom decidido.

— Minto como? Não conhece Fiódor Pávlovitch?

— Não conheço nenhum Fiódor Pávlovitch — declarou o mujique, com a língua pastosa.

— Mas o senhor está negociando a madeira dele; esperte-se, domi­ne-se. Foi o Padre Ilinski quem me trouxe aqui... O senhor escreveu a Samsónov e este me disse que me dirigisse ao senhor... — Mítia ofegava.

— Tu m... entes! — repetiu Liagávi. Mítia sentia-se desfalecer.

— Por favor, não é brincadeira nenhuma. O senhor está embriagado, sem dúvida. Poderia afinal falar, compreender... senão... sou eu que não compreendo nada disso!

— És tintureiro!

— Perdão, sou Karamázov, Dimítri Karamázov, tenho uma proposta a fazer-lhe... uma proposta muito vantajosa... precisamente a pro­pósito da madeira.

O mujique acariciava a barba com ar importante.

— Não, trabalhaste de empreitada e és um tratante!

— Asseguro-lhe que se engana! — berrou Mítia, torcendo as mãos. O mujique continuava a acariciar a barba; de súbito piscou o olho com um ar astuto.

— Cita-me uma lei que permita cometer tratantadas, entendes? És um tratante, compreendes?

Mítia recuou com ar sombrio, teve "a sensação duma pancada na testa", como disse mais tarde. Foi de súbito como um raio de luz, compreendeu tudo. Ficou estupidificado, perguntando a si mesmo como ele, um homem no entanto sensato, pudera tomar a sério tal absurdo, meter-se em semelhante aventura, cuidar solícito daquele Liagávi, mo­lhar-lhe a cabeça... "Ora bem, este sujeito está bêbado e embebedar­se-á uma semana ainda — que adianta esperar? E se Samsónov zom­bou de mim? E se ela... Meu Deus, que fiz eu?... "

O mujique olhava-o e ria. Em outras circunstâncias, Mítia, cheio de cólera, teria arremetido contra aquele imbecil, mas agora sentia-se fraco como uma criança. Sem dizer uma palavra, pegou de cima do banco o seu sobretudo, vestiu-o, passou para a outra peça. Não encontrou nin­guém lá e deixou em cima da mesa 50 copeques pelo pernoite, pela vela e pelo incômodo. Ao sair da isbá, encontrou-se em plena flo­resta. Partiu ao acaso, não se lembrando mesmo qual a direção a to­mar, se à direita ou à esquerda da isbá. Na véspera, na sua precipitação, não reparara no caminho. Não experimentava nenhum sentimento de vingança, nem mesmo para com Samsónov, e seguia maquinalmente o estreito caminho, a cabeça perdida e sem se inquietar a respeito da direção que tomava. A primeira criança que aparecesse tê-lo-ia der­rubado, tão esgotado estava ele. Conseguiu, contudo, sair da floresta: os campos ceifados e desnudos estendiam-se a perder de vista. "Por toda parte o desespero, a morte!", repetia, enquanto andava.

Por felicidade, encontrou um velho comerciante que um carroceiro conduzia à estação de Volóvia. Levaram consigo Mítia, que lhes per­guntara qual o caminho. Chegaram três horas depois. Em Volóvia, alugou cavalos, a fim de seguir para a cidade, e sentiu então que estava morto de fome. Enquanto atrelavam, prepararam-lhe uma omelete. De­vorou-a, bem como um grande naco de pão, salsichão, e bebeu três copinhos de vodca. Uma vez restaurado, retomou coragem e recuperou sua lucidez. Movimentava-se, apressava o carroceiro, ruminava novo plano "infalível" para arranjar naquele mesmo dia aquele maldito di­nheiro. "E dizer-se que o destino pode depender de 3 000 desgraçados rublos!", exclamava, desdenhosamente. "Decidir-me-ei hoje!" E, não fosse o pensamento contínuo em Grúchenhka e a inquietação que experimen­tava por causa dela, poderia ter estado talvez completamente contente. Mas aquele pensamento traspassava-o a cada instante como um punhal. Por fim chegaram e Mítia correu à casa dela.

 

AS MINAS DE OURO

Era precisamente a visita de que Grúchenhka havia falado a Ra­kítin com tanto terror. Esperava então um correio e regozijava-se com a ausência de Mítia, ontem e hoje, esperando que ele não viesse talvez antes de sua partida, quando de súbito ele aparecera. Sabe-se o resto; para despistá-lo fizera-se ela acompanhar por ele à casa de Kuzmá Samsónov, onde, dizia, tinha de ir fazer contas; despedindo-se de Mítia, fizera-o prometer ir buscá-la à meia-noite. Ficara ele satisfeito com esse arranjo: "Ela fica em casa de Kuzmá, portanto não irá à casa de Fiódor Pávlovitch... contanto que não esteja ela mentindo", acres­centou logo. Acreditava-a sincera. Seu ciúme consistia, longe da mulher amada, em imaginar toda espécie de traições, mas, de volta para seu lado, transtornado, persuadido de sua desgraça, ao primeiro olhar lan­çado àquele doce rosto, uma revolução operava-se nele, esquecia suas suspeitas e tinha vergonha de seus ciúmes. Apressou-se em voltar para casa, tinha ainda tanto que fazer! Pelo menos estava com o coração mais leve. "É preciso agora informar-me com Smierdiákov, se nada aconteceu ontem à noite, se ela não foi à casa de Fiódor Pávlovitch. Ah!... " De sorte que, mesmo antes de estar em casa, o ciúme se insinuava de novo no seu coração inquieto.

O ciúme! "Otelo não é ciumento, é confiante", disse Púchkin. Esta observação atesta a profundeza de nosso grande poeta. Otelo sente-se transtornado porque perdeu seu ideal. Mas não irá ocultar-se, espionar, escutar às portas: é confiante. Pelo contrário, foi preciso pô-lo no caminho, excitá-lo com grande esforço, para que ele duvidasse da traição. Tal não é o verdadeiro ciumento. Não se pode imaginar a infâ­mia e a degradação a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem nenhum remorso. E não são sempre almas vis que assim agem. Pelo contrário, embora tendo sentimentos elevados, um amor puro e de­votado, pode uma pessoa esconder-se debaixo de mesas, comprar tra­tantes, prestar-se à mais ignóbil espionagem. Otelo jamais teria podido resignar-se a uma traição — não perdoá-la, mas a ela resignar-se —, se bem que tenha a doçura e inocência duma criança. Bem diferente é o verdadeiro ciumento. Tem-se dificuldade em imaginar os compro­missos e a indulgência de que alguns são capazes. Os ciumentos são os primeiros a perdoar, todas as mulheres sabem disso. Perdoariam (após uma cena terrível, bem entendido) uma traição quase flagrante, os abraços e beijos de que foram testemunhas, se fosse a derradeira vez, se seu rival desaparecesse, partisse para o fim do mundo e eles mesmos partissem com a bem-amada para um lugar onde ela não tornaria a encon­trar mais o outro. A reconciliação, naturalmente, não é senão de curta duração, porque na ausência de um rival o ciumento inventaria um segundo. Ora, que vale tal amor, objeto de uma vigilância incessante? Mas um verdadeiro ciumento não o compreenderá nunca. Há, no en­tanto, entre eles, pessoas de sentimentos elevados e, coisa de espantar, quando se acham eles à escuta num esconderijo, ao mesmo tempo que compreendem a vergonha de sua conduta, não experimentam no mo­mento nenhum remorso. À vista de Grúchenhka, o ciúme de Mítia desaparecia, tornava-se confiante e nobre, desprezava-se mesmo pelos seus maus sentimentos. Isto significava somente que aquela mulher lhe inspirava um amor mais elevado do que ele o cria, um amor em que havia outra coisa além da sensualidade, da atração carnal de que falava ele a Aliócha. Mas assim que Grúchenhka partia, recome­çava Mítia a suspeitar nela todas as baixezas e perfídias da traição, sem experimentar nenhum remorso.

Assim, pois, o ciúme atormentava-o mais uma vez. Em todo caso, o tempo urgia. Era preciso, em primeiro lugar, arranjar uma pequena soma, as 9 rublos de ontem tinham-se ido quase todos na viagem, e todos sabem que sem dinheiro não se vai longe. Pensara nisso, na tieliega que o trazia, ao mesmo tempo que no novo plano. Possuía duas excelentes pistolas que ainda não empenhara, porque eram de estima­ção. No botequim A Capital, travara conhecimento com um jovem funcionário e soubera que, celibatário e em muito boas condições finan­ceiras, tinha ele paixão por armas. Comprava pistolas, revólveres, pu­nhais, com os quais formava panóplias que exibia com vaidade, hábil no explicar o sistema dum revólver, como carregá-lo, atirar, etc. Sem hesitar, Mítia foi oferecer-lhe suas pistolas em penhor por 10 rublos. Encantado, o funcionário queria absolutamente comprá-las, mas Mítia não consentiu nisso; o outro deu-lhe 10 rublos, declarando que não cobraria juros. Despediram-se como bons amigos. Mítia apressava-se, dirigiu-se a seu pavilhão, por trás da casa de Fiódor Pávlovitch, para chamar Smierdiákov. Mas desta maneira constatou-se de novo que, três ou quatro horas antes de um certo acontecimento de que se tratará depois, Mítia estava sem dinheiro e empenhara um objeto de estimação, ao passo que três horas mais tarde se achava de posse de milhares de rublos... Mas não antecipemos. Em casa de Maria Kondrátievna, a vizinha de Fiódor Pávlovitch, soube ele, consternado, da doença de Smierdiákov. Ouviu o relato da queda na adega, da crise que se seguiu, da chegada do doutor, da solicitude de Fiódor Pávlovitch; informaram-no também da partida de seu irmão Ivã para Moscou naquela manhã mesma. "Deve ter passado antes de mim por Volóvia", pensou, mas Smierdiákov preocupava-o intensamente. "Que fazer agora, quem velará para me informar?" Interrogou avidamente aquelas mulheres, para sa­ber se elas nada tinham notado na véspera. Compreenderam elas muito bem o que queria ele saber e tranqüilizaram-no: "Tudo se passara nor­malmente". Mítia refletiu: "Decerto era preciso vigiar também hoje, mas onde: aqui ou à porta de Sansonov?" Decidiu que seria nos dois lugares, à sua vontade, e enquanto esperava... havia aquele novo plano seguro, concebido na estrada e cuja execução não era possível diferir. Mítia resolveu consagrar uma hora a isso. "Dentro de uma hora saberei tudo, e então, em primeiro lugar, em casa de Samsónov informar-me se Grúchenhka está lá, depois de novo aqui até as 11 horas, e volta­rei lá para reconduzi-la de volta. "

Correu à sua casa e, depois de ter-se asseado, dirigiu-se à casa da Senhora Khokhlakova. Ai! tal era o seu famoso "plano". Resolvera pedir emprestados 3 000 rublos àquela senhora, persuadido de que ela não lhos recusaria. Não será caso de admiração talvez que, neste caso, não haja ele ido em primeiro lugar à casa de alguém de seu mundo, em lugar de Samsónov, cuja mentalidade lhe era estranha, e com o qual não sabia exprimir-se? Mas é que desde um mês quase rompera com ela, conhecia-a pouco, aliás, e sabia que ela não podia to­lerá-lo, porque era ele o noivo de Catarina Ivânovna. Teria ela querido que a moça o deixasse para casar-se com "o querido Ivã Fiódorovitch, tão instruído e que possuía tão belas maneiras". As de Mítia desagradavam-lhe fortemente. Zombava dela e dissera uma vez que "aquela senhora era tão viva e desenvolta quanto pouco instruída". E pela ma­nhã, na tieliega, fora aquilo como um raio de luz: "Se ela se opõe ao meu casamento com Catarina Ivânovna (e sabia-a irreconciliável), por que me recusaria agora esses 3 000 rublos que me permitiriam aban­donar Cátia e partir definitivamente? Quando essas grandes damas muito cheias de si têm um capricho na cabeça, nada se poupam para atingir os seus fins. Ela é, aliás, tão rica... ", dizia a si mesmo Mítia. Quanto ao plano, era igual ao precedente, isto é, o abandono de seus direitos sobre Tchermachnia, não com um fim comercial, como no caso de Samsónov, e sem tentar aquela senhora, como o comerciante, com a possibilidade dum bom negócio, dum ganho de alguns milhares de rublos, mas simplesmente em garantia de sua dívida. Desenvolvendo essa idéia nova, Mítia entusiasmava-se, como acontecia sempre por ocasião de seus empreendimentos e de suas novas decisões. Todo pro­jeto novo apaixonava-o. Não obstante, ao chegar ao patamar, sentiu um arrepio repentino; naquele instante compreendeu, com uma precisão matemática, que estava ali sua derradeira esperança, que em caso de malogro não teria outro recurso senão estrangular alguém para roubá-lo... Eram 7 horas e meia, quando tocou a campainha.

A princípio, tudo marchou a contento, foi recebido imediatamente. "Dir-se-ia que ela me espera", pensou Mítia. Assim que foi introduzido no salão, a dona da casa apareceu e declarou-lhe que o esperava.

— Não podia supor que o senhor viria, há de convir; no entanto, esperava-o. Admire meu instinto, Dimítri Fiódorovitch, contava com sua visita hoje.

— É verdadeiramente de admirar, minha senhora — disse Mítia, sentando-se canhestramente —, mas vim por causa dum negócio da mais alta importância, no que a mim se refere, e apresso-me...

— Eu sei, Dimítri Fiódorovitch, não se trata mais de pressentimento, de inclinação retrógrada pelos milagres (ouviu falar do stáriets Zósi­ma?), era fatal, o senhor deveria vir depois de tudo o que se passou com Catarina Ivânovna.

— A realidade da vida, minha senhora, é isso. Mas permita-me que lhe explique...

— Precisamente, a realidade da vida, Dimítri Fiódorovitch. Não há senão isso que valha aos meus olhos, estou curada dos milagres. O senhor soube da morte do stáriets Zósima?

— Não, senhora, não sabia de nada — respondeu Mítia, um tanto surpreso. Voltou-lhe a lembrança de Aliócha.

— Esta noite mesmo, e imagine o senhor...

— Minha senhora — interrompeu Mítia —, imagino somente que me encontro numa situação desesperada, e que se a senhora não vier em meu auxílio tudo se desmoronará, eu, em primeiro lugar. Perdoe-me a vulgaridade da expressão, a febre queima-me.

— Sim, sei que o senhor tem febre, não pode ser de outra forma; diga o que disser, sei-o de antemão. Há muito tempo que me ocupo com seu destino, Dimítri Fiódorovitch, acompanho-o, estudo-o. Sou um médico experimentado, creia-o.

— Não o duvido, minha senhora. Em compensação, sou eu um doente experimentado — replicou Mítia, esforçando-se por ser amável — e tenho o pressentimento de que, se a senhora segue com tal inte­resse meu destino, não me deixará sucumbir. Mas permita-me afinal que lhe exponha o plano que me traz... e o que espero da senhora... Vim cá, minha senhora...

— De que servem essas explicações? Isto não tem importância. Não é o senhor o primeiro a quem eu iria em socorro, Dimítri Fiódorovitch. Deve ter ouvido falar de minha sobrinha Bielhmiésova. Seu marido estava perdido, afundava-se. Pois bem, aconselhei-o a criar cavalos e agora ele está próspero. O senhor entende de criação de cavalos, Di­mítri Fiódorovitch?

— Absolutamente, minha senhora, absolutamente! — exclamou Mí­tia, que se levantou na sua impaciência. — Suplico-lhe, senhora, que me ouça, deixe-me falar dois minutos somente, para explicar-lhe meu projeto. Além do mais, tenho muita pressa!... — gritou Mítia, exal­tado, compreendendo que ela ia falar mais ainda e na esperança de gritar mais forte do que ela. — Vim desesperado, para pedir-lhe em­prestado 3 000 rublos contra um penhor seguro, que oferece plena garantia! Deixe-me somente dizer-lhe...

— Depois, depois! — exclamou a Senhora Khokhlakova, agitando a mão. — Sei já tudo quanto o senhor me quer dizer. Pede-me 3 000 rublos, dar-lhe-ei bem mais, salvá-lo-ei, Dimítri Fiódorovitch, mas é preciso obedecer-me.

Mítia sobressaltou-se.

— Senhora, teria tamanha bondade?! — exclamou ele num tom emocionado. — Meus Deus! A senhora salva um homem da morte, do suicídio... Minha eterna gratidão...

— Dar-lhe-ei infinitamente, infinitamente mais de 3 000 rublos! — repetiu a Senhora Khokhlakova, que olhava, sorridente, o entusiasmo de Mítia.

— Mas não preciso de tanto! Tenho necessidade somente dessa fatal soma, 3 000 rublos. Ofereço-lhe uma garantia e lhe agradeço. Meu plano...

— Basta, Dimítri Fiódorovitch, está dito, está feito — interrom­peu-o a Senhora Khokhlakova, com a modéstia triunfante de uma benfeitora. — Prometi salvá-lo e salvá-lo-ei, como a Bielhmiésov. Que pensa o senhor das minas de ouro?

— As minas de ouro, senhora? Jamais pensei nisso!

— Mas eu penso, pelo senhor. Há um mês que o observo com este objetivo. Olhei-o muitas vezes, quando o senhor passava, pensando: eis um homem enérgico, cujo lugar é nas minas. Eu mesma estudei seu andar e persuadi-me de que o senhor descobriria filões.

— Pelo meu modo de andar, senhora?

— Por que não? Como, nega que se possa conhecer o caráter pelo modo de andar, Dimítri Fiódorovitch? As ciências naturais confirmam o fato. Oh! sou realista. Desde hoje, após essa história no mosteiro que tanto me afetou, tornei-me totalmente realista e quero entregar-me a uma atividade prática. Estou curada do misticismo. "Basta!", como diz Turguéniev.

— Mas senhora, esses 3 000 rublos que me prometeu tão generosa­mente...

— Eles não lhe escaparão, é como se os tivesse em seu bolso. E não 3 000, mas 3 milhões, em breve prazo. Eis minha idéia: o senhor descobrirá minas, ganhará milhões, quando voltar ter-se-á tornado um homem de ação capaz de nos guiar para o bem. Será preciso, pois, abandonar tudo aos judeus? O senhor construirá edifícios, fundará diversas empresas. Socorrerá os pobres e eles o abençoarão. Estamos no século das estradas de ferro. O senhor será conhecido e notado no Ministério das Finanças, que se encontra em extrema penúria. A queda de nossa moeda fiduciária impede-me de dormir, Dimítri Fiódorovitch, conhecem-me mal a este respeito.

— Minha senhora, minha senhora — interrompeu, de novo, Dimí­tri, inquieto —, seguirei muito provavelmente seu sábio conselho... irei talvez lá... às minas a que se refere... voltarei para conversar com a senhora... mas agora esses 3.000 rublos que a senhora tão ge­nerosamente... eles me libertariam, e se possível hoje... Não tenho uma hora a perder...

— Escute, Dimítri 'Fiódorovitch, chega! Uma pergunta: parte ou não para as minas de ouro? Responda-me categoricamente.

— Irei, minha senhora, depois... Irei aonde a senhora quiser... mas agora...

— Espere então! — dirigiu-se vivamente para uma magnífica escri­vaninha e remexeu dentro das gavetas com precipitação.

"Os 3 000!", pensou Mítia, crispado pela expectativa, "e isto imedia­tamente, sem papel, sem formalidades... Que grandeza de alma! Que excelente mulher! Se somente falasse menos... "

— Aqui está — exclamou ela, radiante, voltando para Mítia —, eis o que eu procurava.

Era um pequeno ícone de prata, com uma corrente, como os que se usam por vezes sob a roupa.

— Vem de Kiev, Dimítri Fiódorovitch — disse a Senhora Kho­khlakova, com respeito —, relíquias de Santa Bárbara, a grande mártir. Permita-me que eu mesma ponha este pequeno ícone em seu pescoço e o abençoe em véspera de uma vida nova.

É, tendo-lhe passado a corrente no pescoço, tratou de ajustá-la. Mítia, muito constrangido, inclinou-se e procurou ajudá-la. Por fim, o ícone ficou colocado como era preciso.

— Agora, pode partir — disse ela, tornando a sentar-se, triunfante.

— Minha senhora, estou tão comovido... e não sei como agrade­cer-lhe... a sua solicitude, mas... se soubesse a senhora como tenho pressa! Essa soma que espero de sua generosidade... Oh! minha se­nhora, já que é tão boa, tão generosa — e Mítia teve uma inspiração —, permita-me que lhe revele... o que, aliás, a senhora já sabe... amo uma pessoa. Traí Cátia, Catarina Ivânovna, quero dizer... Oh! tenho sido inumano, desonesto, mas amava outra... uma mulher a quem a senhora talvez despreze, porque está a par de tudo, mas que eu não posso abandonar, de modo que esses 3 000...

— Abandone tudo, Dimítri Fiódorovitch — interrompeu em tom cortante a Senhora Khokhlakova. — Sobretudo as mulheres. Seu obje­tivo são as minas. Inútil levar mulheres para lá. Mais tarde, quando o senhor voltar rico e célebre, encontrará uma amiga de coração na mais alta sociedade. Será uma moça moderna, prudente e sem pre­conceitos. Nessa época, justamente, o feminismo ter-se-á desenvolvido e a nova mulher aparecerá...

— Minha senhora, não é isto, não é isto... — disse Dimítri Fió­dorovitch, juntando as mãos, com ar suplicante.

— Mas sim, Dimítri Fiódorovitch, é precisamente disto que o senhor necessita, é disto que está o senhor sedento sem o saber. Interesso-me bastante pelo feminismo. O desenvolvimento da mulher e até mesmo seu papel político no futuro mais próximo, eis meu ideal. Tenho uma filha, Dimítri Fiódorovitch, esquecem-se disto muitas vezes. Escrevi a respeito a Chtchédrin. Este escritor abriu-me tais horizontes sobre a missão da mulher que lhe dirigi, o ano passado, estas duas linhas: "Aperto-o de encontro ao meu coração e beijo-o em nome da mulher moderna, continue". E assinei: "Uma mãe". Teria querido assinar: "Uma mãe contemporânea", mas hesitei. Afinal de contas limitei-me a "uma mãe", é mais belo moralmente, Dimítri Fiódorovitch, e a pala­vra "contemporânea" poderia ter lembrado O Contemporâneo, lembran­ça amarga para ele, em vista da censura atual. Meu Deus, que tem o senhor?

— Minha senhora — disse Mítia, de pé, com as mãos juntas como um suplicante —, a senhora vai fazer-me chorar, se demora ainda o que tão generosamente...

— Chore, Dimítri Fiódorovitch, chore! É um belo sentimento... no caminho que o espera. As lágrimas aliviam. Mais tarde, uma vez de volta da Sibéria, o senhor se rejubilará comigo...

— Mas permita — vociferou de súbito Mítia —, suplico-lhe pela derradeira vez, diga-me se posso receber da senhora hoje a soma pro­metida. Senão, quando será preciso vir buscá-la?

— Que soma, Dimítri Fiódorovitch?

— Mas os 3 000 rublos que a senhora me prometeu... que tão ge­nerosamente...

— Três mil o quê... 3 000 rublos? Mas não os tenho — disse ela, com alguma surpresa.

— Como?... ainda há pouco... a senhora disse que era como se eu os tivesse em meu bolso...

— Oh! não, o senhor compreendeu-me mal, Dimítri Fiódorovitch. Falava das minas. Prometi-lhe bem mais de 3 000 rublos, lembro-me agora, mas tinha em vista unicamente as minas.

— Mas o dinheiro? Os 3 000 rublos?

— Oh! se o senhor contava com dinheiro, não o tenho no mo­mento absolutamente, Dimítri Fiódorovitch. Estou mesmo em dificulda­des com meu administrador e acabo de pedir emprestados a Miúsov 500 rublos. Se os tivesse, aliás, não lhos daria. Em primeiro lugar, não empresto dinheiro a ninguém. Quem devedor tem, guerra lhe vem. Mas ao senhor, particularmente, teria recusado, mesmo gostando do senhor, mesmo para salvá-lo. Porque o senhor só precisa de uma coisa: das minas e das minas!

— Oh! que o diabo... — berrou Mítia, dando um violento murro sobre a mesa.

— Ai! ai! — exclamou a Senhora Khokhlakova, aterrorizada, refu­giando-se na outra extremidade do salão. Mítia cuspiu com desprezo e saiu rapidamente. Ia como um doido nas trevas, batendo no peito no mesmo lugar em que dois dias antes diante de Aliócha, por ocasião do derradeiro encontro deles na estrada. Por que batia ele justamente no mesmo lugar, que significava esse gesto? Não tinha revelado ainda a ninguém aquele segredo, nem mesmo a Aliócha, um segredo que ocul­tava a desonra, e mesmo sua perda e o suicídio, porque tal era sua resolução no caso em que não arranjasse os 3 000 rublos para restituir a Catarina Ivânovna e tirar de seu peito, daquele lugar, a desonra que carregava e que torturava sua consciência. Tudo isto será esclarecido mais adiante. Após a ruína de sua derradeira esperança, aquele homem tão robusto desmanchou-se de súbito em lágrimas, como uma criança. Caminhava estupidificado, enxugando suas lágrimas com o punho, quando deu um encontrão em alguém. Uma mulher, que ele quase derrubara, lançou um grito agudo.

— Meu Deus, quase me matou! Preste atenção, vagabundo!

— Ah! é você? — gritou Mítia, examinando a velha no escuro. Era a criada de Kuzmá Samsónov, que ele vira na véspera.

— E o senhor quem é, bátiuchka? — proferiu a velha em outro tom. — Não o estou reconhecendo.

— Não serve em casa de Kuzmá Samsóncv?

— Perfeitamente... Mas não consigo reconhecê-lo.

— Diga-me, minha boa mulher, estará Agrafiena Alieksándrovna em casa dele neste momento? Eu mesmo a levei para lá.

— Sim, bátiuchka, ela ficou um instante e partiu.

— Como, partiu? Quando?

— Não ficou muito tempo. Divertiu Kuzmá Kuzmitch, contando-lhe uma estória, depois saiu.

— Mentes, maldita! — gritou Mítia.

— Ai! ai! — exclamou a velha. Mas Mítia havia desaparecido, corria a bom correr para a casa onde morava Grúchenhka. Havia ela partido, um quarto de hora antes, para Mókroie. Fiénia estava na cozinha com sua avó, a cozinheira Matriona, quando o "capitão" chegou. À sua vista, Fiénia gritou com todas as suas forças.

— Estás gritando? — perguntou Mítia. — Onde está ela? — E sem esperar a resposta de Fiénia, paralisada de medo, caiu a seus pés.

— Fiénia, em nome de Cristo, nosso Salvador, dize-me onde ela está!

— Não sei de nada, caro Dimítri Fiódorovitch, de nada absolu­tamente. Ainda que o senhor me matasse agora mesmo, nada posso dizer. Mas o senhor a acompanhou...

— Ela voltou...

— Não, ela não voltou, juro-o por Deus.

— Mentes! — urrou Mítia. — Basta o teu terror para eu adivinhar onde ela está...

Saiu correndo. Apavorada, Fiénia felicitava a si mesma por se ter livrado tão facilmente, compreendendo que aquilo poderia ter dado em complicação, se houvesse demorado mais. Ao sair, teve ele um gesto que causou espanto às duas mulheres. Sobre a mesa havia um almofariz com um pilão de cobre; Mítia, que já havia aberto a porta, agarrou de passagem aquele pilão e meteu-o no seu bolso.

— Meu Deus! ele quer matar alguém — gemeu Fiénia.

 

NAS TREVAS

Para onde corria ele? Pode-se imaginar: "Onde poderá ela estar, senão em casa de Fiódor Pávlovitch? Foi diretamente da casa de Samsónov para lá, está claro. Toda essa intriga salta aos olhos... " As idéias se entrechocavam em sua cabeça. Não entrou no pátio de Maria Kondrátievna: "É inútil dar alarma, deve ela participar da conjura, bem como Smierdiákov; estão todos comprados!" Sua reso­lução estava tomada; deu uma grande volta, transpôs o passadiço, foi sair em um beco lá atrás, deserto e desabitado, limitado de um lado pela sebe da horta vizinha, do outro, pela alta paliçada que cercava o jardim de Fiódor Pávlovitch. Escolheu para escalá-la precisamente o lugar por onde trepara, segundo a tradição, Lisavieta Smierdiáchtchaia. "Se ela pôde passar por ali — pensou ele —, por que não faria eu outro tanto?" De um salto suspendeu-se à paliçada, içou-se e encontrou-se escarranchado no alto. Bem perto erguia-se o banheiro, mas via de seu lugar as janelas iluminadas da casa. "É isto, há luz no quarto de dormir do velho, ela está lá!" E saltou para o jardim. Muito embora soubesse que Gregório e talvez Smierdiákov es­tivessem doentes, que ninguém podia ouvi-lo, ficou imóvel instintiva­mente e prestou ouvidos. Por toda parte um silêncio de morte, uma calma absoluta, nem o menor sopro. "Só se ouve o silêncio... ", vol­tou-lhe este verso à memória, "contanto que não me hajam ouvido! Acho que não. " Então pôs-se a caminhar pela relva a passos de lobo, de ouvido atento, ' evitando as árvores e as moitas. Lembrava-se de que havia sob as janelas espessos maciços de sabugueiro e de briônia. A porta que dava acesso ao jardim, do lado esquerdo da fachada, estava fechada, verificou ao passar. Por fim atingiu os maciços e ali se ocultou. Retinha a respiração. "É preciso esperar. Se me ouviram, devem estar agora à escuta... Contanto que não vá tossir ou espir­rar!... "

Esperou dois minutos. Seu coração batia, por momentos quase sufo­cava. "Estas palpitações não cessarão, não posso mais esperar. " Man­tinha-se na sombra, por trás duma moita meio iluminada. "Uma briônia, como suas bagas estão vermelhas!", murmurou ele, maquinalmente. A passos de lobo, aproximou-se da janela e ergueu-se nas pontas dos pés. O quarto de dormir de Fiódor Pávlovitch aparecia-lhe totalmente, pequena peça separada em duas por biombos vermelhos, "chineses", como os chamava seu proprietário. "Grúchenhka está ali atrás", pensou Mítia. Pôs-se a examinar Fiódor Pávlovitch, vestido com um roupão de seda raiada — que Mítia nunca vira usado por ele — com um cordão que terminava em borlas. A gola dobrada deixava ver uma camisa elegante de fino pano de Holanda, ornada de botões de ouro. Sua cabeça estava enrolada com o mesmo lenço vermelho com que o vira Aliócha. "Faz-se bonito. "

Fiódor Pávlovitch conservava-se perto da janela, com ar pensativo. De súbito, voltou a cabeça, escutou e, não ouvindo nada, aproximou-se da mesa, serviu-se de um meio copo de conhaque, que bebeu. Depois suspirou profundamente, fez uma pausa. Após isto, dirigiu-se com ar distraído para o espelho, ergueu um pouco o lenço para examinar as equimoses e escaras. "Está só, muito provavelmente. " O velho afastou-se do espelho e pôs-se diante da janela. Mítia recuou vivamente para a sombra.

"Ela está talvez por trás dos biombos, já dormindo. " Fiódor Páv­lovitch retirou-se da janela. "É ela que ele espera, não está, pois, aqui; senão, por que olharia ele para a escuridão? É a impaciência que o devora. " Mítia voltou a observar. O velho estava sentado diante da mesa, visivelmente triste. Por fim, apoiou o cotovelo na mesa, com a face encostada à mão direita. Mítia olhava avidamente. "So­zinho, sozinho! Se ela estivesse aqui, estaria ele com outro ar. " Coisa estranha; experimentou de repente um despeito estranho pelo fato de não se encontrar ela ali. "O que me aborrece não é sua ausência, mas não saber a que me ater", explicava a si mesmo. Mais tarde, lem­brou-se Mítia de que seu espírito estava então extraordinariamente lúcido e que se dava ele conta dos mínimos detalhes. Mas a angústia provinda da incerteza crescia em seu coração. "Está ela aqui, sim ou não?" De súbito decidiu-se, estendeu o braço, bateu na janela. Duas pancadas levemente, depois três outras mais depressa: toc, toc, toc, sinal convencionado entre o velho e Smierdiákov, para anunciar que Grúchenhka tinha chegado. O velho estremeceu, ergueu a cabeça e correu para a janela. Mítia voltou para a sombra. Fiódor Pávlovitch abriu, inclinou-se.

— Grúchenhka, és tu? — perguntou ele, com voz trêmula. — Onde estás, minha querida, meu anjo, onde estás? — Bastante emocionado, ofegava.

"Sozinho. "

— Onde estás então? — repetiu o velho, com o busto debruçado para fora, a fim de olhar para todos os lados. — Vem cá, preparei um presente para ti, vem vê-lo!

"O envelope com os 3 000 rublos. "

— Mas onde estás então? Estás na porta? Vou abrir...

E Fiódor Pávlovitch arriscava-se a cair, olhando para a porta que dava para o jardim e escrutando as trevas. Ia certamente apressar-se em abrir a porta, sem esperar a resposta de Grúchenhka. Mítia não se moveu. A luz iluminava nitidamente o perfil detestado do velho, com seu pomo-de-adão, seu nariz recurvado, seus lábios sorrindo em voluptuosa expectativa. Uma cólera furiosa ferveu de súbito no coração de Mítia: "Eis o meu rival, o carrasco de minha vida!" Era um acesso irresistível, o arrebatamento de que falara a Aliócha, por ocasião de sua conversa no pavilhão, em resposta à sua pergunta: "Como podes dizer que matarás teu pai?"

"Não sei", dissera Mítia, "talvez matarei, talvez não. Temo não poder suportar seu rosto naquele momento. Odeio seu pomo-de-adão, seu nariz, seus olhos, seu sorriso impudente. Causa-me asco. Eis o que temo, não poderei conter-me... "

A aversão tornava-se intolerável. Mítia, fora de si, tirou de seu bolso o pilão de cobre.

"Deus me preservou naquele momento", dizia mais tarde Mítia; naquele momento, com efeito, Gregório, sofrendo, despertou. Antes de deitar-se, tinha tomado o remédio de que Smierdiákov falara a Ivã Fiódorovitch. Depois de haver-se esfregado, ajudado por sua mulher, com vodca misturada a uma infusão secreta muito forte, bebeu o resto da droga, enquanto Marfa Ignátievna recitava uma prece. Ela também bebeu e, não tendo o hábito, adormeceu com um sono de chumbo, ao lado de seu marido. De repente, este despertou, refletiu um instante e, muito embora sentisse uma dor aguda nos rins, levan­tou-se e vestiu-se às pressas. Talvez se censurasse o dormir, estando a casa sem guarda num tempo tão perigoso. Smierdiákov, esgotado pela sua crise, jazia imóvel no quarto vizinho. Marfa Ignátievna não se movera; "está fatigada", pensou Gregório, depois de havê-la olhado, e saiu gemendo para o patamar. Quis somente lançar uma olhadela, não tendo forças para ir mais longe, tanto lhe doíam os rins e a perna direita. De súbito lembrou-se de que não havia fechado com chave a portinha do jardim. Era um homem meticuloso, escravo da ordem estabelecida e dos hábitos inveterados. Coxeando e com con­torções de dor, desceu o patamar e dirigiu-se para o jardim. Com efeito, a porta estava escancarada. Entrou maquinalmente: acreditara avistar ou ouvir alguma coisa, mas, olhando para a esquerda, notou a janela aberta, onde ninguém se via. "Por que está aberta? Não se está mais no verão", pensou Gregório. No mesmo instante, bem à sua frente, a quarenta passos, uma sombra se deslocava rapidamente, alguém corria no escuro. "Meu Deus!", murmurou ele, e, esquecendo seu lumbago, pôs-se em perseguição do fugitivo. Tomou pelo caminho mais curto, conhecendo melhor o jardim que o outro. Este se dirigiu para o banheiro, contornou-o, lançou-se para o muro. Gregório não o perdia de vista enquanto corria e atingiu a paliçada no momento em que Dimítri a escalava. Fora de si, Gregório lançou um grito, avançou e agarrou-o por uma perna. Seu pressentimento não o enganara, reco­nheceu-o, era mesmo ele, "o execrável parricida".

— Parricida! — vociferou o velho, mas não disse mais nada e caiu como fulminado. Mítia saltou de novo para dentro do jardim e curvou-se sobre Gregório. Maquinalmente, desembaraçou-se do pilão, que caiu a dois passos no caminho, bem em evidência. Gregório tinha a testa a sangrar, Mítia tateou-a, ansioso por saber se rebentara o crânio do velho ou se o havia apenas entontecido com o pilão. O sangue morno jorrava, inundando seus dedos trêmulos. Tirou de seu bolso o lenço imaculado que tomara para ir à casa da Senhora Kho­khlakova e aplicou-lho na cabeça, esforçando-se estüpidamente por estancar-lhe o sangue. O lenço ficou logo embebido. "Meu Deus, para que fiz isto? Como saber o que há... e que importa agora? O velho está liquidado; se o matei, tanto pior para ele!", proferiu em voz alta. Então escalou a paliçada, saltou para o beco e se pôs a correr, metendo no bolso de sua sobrecasaca o lenço ensangüentado que aper­tava na sua mão direita. Alguns passantes lembraram-se mais tarde de ter encontrado naquela noite um homem que corria a bom correr. Dirigiu-se de novo para a Casa Morózova. Após a partida dele, Fiénia precipitara-se para a casa do porteiro, Nazar Ivânovitch, suplicando-lhe que "não mais deixasse o capitão entrar, nem hoje, nem amanhã". Posto ao corrente do que havia, o porteiro concordou, mas teve de subir à casa da proprietária, que o mandara chamar. Encarregou de substi­tuí-lo seu sobrinho, um rapaz de vinte anos, recentemente chegado do campo, mas esqueceu-se de mencionar o capitão. O rapaz, que se lembrava das gorjetas dele, reconheceu-o e abriu-lhe a porta logo. Sorrindo, apressou-se em informá-lo, solicitamente, de que "Agrafiena Alieksándrovna não estava em casa".

— Onde está ela então, Prókhor? — E Mítia parou.

— Há duas noras que ela partiu para Mókroie com Timofiéi.

— Por quê?

— Não sei, para ir ter com um oficial que mandou um carro bus­cá-la.

Mítia precipitou-se como um louco para dentro da casa.

 

UMA DECISÃO SÚBITA

Fiénia achava-se na cozinha com sua avó, preparando-se para dei­tar-se. Fiando-se no porteiro, não tinham fechado a porta. Assim que entrou, Mítia agarrou Fiénia pela garganta.

— Imediatamente... dize-me com quem está ela em Mókroie — vociferou ele.

As duas mulheres lançaram um grito.

— Ai! Vou dizer-lhe, ai! caro Dimítri Fiódorovitch, dir-lhe-ei tudo, não ocultarei nada! — gaguejou Fiénia, apavorada. — Ela foi ver um oficial.

— Que oficial?

— O mesmo, o que a abandonou há cinco anos.

Dimítri largou Fíénia. Estava mortalmente pálido e sem voz, mas via-se pelo seu olhar que compreendera tudo a meias palavras, adivi­nhara até o mínimo detalhe. A pobre Fiénia, evidentemente, não podia dar-se conta disso. Permanecia assentada sobre a arca, toda trêmula, com os braços estendidos como para defender-se, sem um movimento. As pupilas dilatadas pelo pavor, fixava Mítia, que estava com as mãos ensangüentadas. Em caminho, devia tê-las levado ao rosto para enxugar o suor, porque a testa estava manchada, bem como a face direita. Fiénia estava a ponto de ter uma crise de nervos; a velha cozinheira olhava como uma louca, prestes a desmaiar. Di­mítri sentou-se maquinai mente junto de Fiénia.

Seu pensamento vagava numa espécie de estupor. Mas tudo se expli­cava; estava ele ao corrente, a própria Grúchenhka lhe falara daquele oficial, bem como da carta recebida um mês antes. De modo que, desde um mês, aquela intriga se desenrolava sem que o soubesse, até a chegada desse novo pretendente, e não pensara nele. Como podia ser isso? Esta pergunta erguia-se diante dele como um monstro e gelava-o de pavor.

De súbito falou docemente a Fiénia, num tom caricioso, esque­cendo-se de que acabava de aterrorizá-la e tratá-la mal. Pôs-se a interrogá-la, com uma precisão surpreendente no estado em que se en­contrava. Se bem que Fiénia olhasse com estupor suas mãos ensan­güentadas, respondeu com solicitude a cada uma de suas perguntas. Pouco a pouco passou mesmo ela a sentir prazer em expor-lhe todos os detalhes, não para entristecê-lo, mas como se quisesse de todo o coração prestar-lhe serviço. Contou-lhe a visita de Rakítin e Aliócha, enquanto ela estava de vigia, as palavras de despedida que sua patroa lhe mandara por Aliócha, a ele, Mítia, que devia "lembrar-se sempre de que ela o amara por uma pequena hora". Mítia sorriu e suas faces enrubesceram-se. Fiénia, em quem o medo dera lugar à curiosidade, arriscou-se a dizer-lhe:

— O senhor tem sangue nas mãos, Dimítri Fiódorovitch.

— Sim — disse ele, olhando-as distraidamente. Reinou prolongado silêncio. Seu terror de ainda há pouco passara, uma resolução inflexível possuía-o. Levantou-se com um ar pensativo.

— Bárin, que lhe aconteceu? — perguntou Fiénia, apontando-lhe para as mãos. Falava com comiseração, como a pessoa mais próxima dele no seu pesar.

— É sangue, Fiénia, sangue humano. Meus Deus, por que tê-lo derramado?... Há uma barreira (olhava a moça como se lhe pro­pusesse um enigma), uma barreira alta e de aspecto formidável, mas amanhã, ao nascer do sol, Mítia a transporá... Tu não compreendes, Fiénia, de que barreira se trata, não importa... amanhã saberás tudo... agora, adeus! Não serei um obstáculo, saberei retirar-me. Vive, minha adorada... tu me amaste uma hora. lembra-te sempre de Mítia Ka­ramázov...

Saiu bruscamente, deixando Fiénia quase mais aterrorizada que havia pouco, quando se lançara ele contra ela.

Dez minutos depois, apresentou-se em casa de Piotr Ilitch Pierkhó­tin, o jovem funcionário a quem empenhara suas pistolas por 10 rublos.

Eram já 8 e meia da noite e Piotr Ilitch, depois de ter tomado chá, acabava de vestir sua sobrecasaca para ir jogar bilhar. Vendo Mítia e seu rosto manchado de sangue, exclamou:

— Meu Deus! Que tem o senhor?

— Nada — disse vivamente Mítia. — Vim desempenhar minhas pistolas. Obrigado. Estou com pressa, Piotr Ilitch, por favor, despacha-me logo.

Piotr Ilitch mostrava-se cada vez mais espantado. Mítia tinha entra­do, com um maço de notas de banco na mão, segurando-as de maneira insólita, com o braço estendido, como para mostrá-las a todo mundo. Devia tê-las trazido assim pela rua, segundo o que contou depois o jovem criado que lhe abriu a porta. Eram cédulas de 100 rublos que ele segurava com seus dedos ensangüentados. Piotr Ilitch explicou mais tarde aos curiosos que era difícil avaliar a soma à primeira vista, podendo haver de 2 000 a 3 000 rublos. Quanto a Dimítri, "sem ter bebido, nem por isso se achava em seu estado normal, parecendo exal­tado, bastante distraído e ao mesmo tempo absorto, como se meditasse, sem conseguir chegar a uma solução. Apressava-se, respondia com brusquidão, duma maneira estranha, tendo por momentos o ar alegre e de modo algum aflito".

— Mas que tem o senhor afinal? — gritou de novo, examinando-o com estupor, Piotr Ilitch. — Como pôde sujar-se dessa forma? Caiu? Olhe!

Levou-o para diante do espelho. À vista de seu rosto manchado, Mí­tia estremeceu, franziu as sobrancelhas.

— Diabos! Só faltava isto!

Passou as cédulas de sua mão direita para a esquerda e tirou viva­mente seu lenço. Cheio de sangue coagulado, formava ele uma bola toda colada. Mítia atirou-o no chão.

— Com a breca! Não teria o senhor um pedaço de pano... para me limpar?

— Então não está ferido? Faria melhor lavando-se. Vou dar-lhe água.

— Perfeito... mas onde meterei isto? — e designava com emba­raço o maço de cédulas, como se coubesse a Piotr Ilitch dizer-lhe onde pôr seu dinheiro.

— No seu bolso, ou então coloque em cima da mesa. Ninguém to­cará nele.

— Em meu bolso? Ah! sim, está bem... Não, veja o senhor, tudo isso são besteiras! Em primeiro lugar, concluamos o caso das pistolas. Entrega-mas. Eis aqui o dinheiro... tenho extrema necessidade delas... e nem um minuto a perder.

E, destacando do maço a primeira cédula, estendeu-a ao funcio­nário.

— Não tenho troco. Não tem o senhor moeda?

— Não. (Como tomado duma dúvida, Mítia verificou algumas das cédulas. ) São todas iguais... — E olhou de novo para Piotr Ilitch com olhar interrogador.

— Onde fez fortuna? — perguntou Piotr Ilitch. — Um instante, vou mandar meu criado à casa dos Plótnikovi. Fecham tarde, dar-nos-ao moedas. Ei! Micha! — gritou ele, no vestíbulo.

— Em casa dos Plótnikovi? Eis uma famosa idéia! — disse Mítia.

— Micha — continuou ele, dirigindo-se ao criado que acabava de entrar —, corre à casa dos Plótnikovi e dize-lhes que Dimítri Fiódo­rovitch os saúda e vai para lá agora mesmo. Escuta ainda: que eles me preparem champanha, três dúzias de garrafas, embaladas como quando fui a Mókroie... Comprei então quatro dúzias (dirigia-se a Piotr Ilitch), eles estão ao corrente, não te atormentes, Micha. E depois acrescentem queijo, pastéis de Strasburgo, salmões fumados, presunto, caviar, enfim, tudo quanto tenham lá, por cerca de 100 ou 120 rublos. Que não se esqueçam de pôr bombons, peras, duas ou três melancias, ou quatro, não, uma bastará, chocolate, doce de cevada, caramelos, enfim, como da outra vez. Com o champanha deve orçar pelos 300 rublos. Não te esqueças de nada, Micha... é mesmo Micha que ele se chama? — perguntou a Piotr Ilitch.

— Espere — disse este, que o observava com inquietação. — Será melhor que o senhor mesmo vá lá, Micha se atrapalharia.

— Receio mesmo! Ora, Micha, e eu que queria dar-te um beijo pelo trabalho... se não te atrapalhares, haverá 10 rublos para ti, vai depressa... Que não se esqueçam do champanha, depois conhaque, vinho tinto e vinho branco e tudo como antes... Sabem o que havia.

— Escute, pois! — interrompeu Piotr Ilitch, impaciente desta vez. — Que o rapaz vá somente obter o troco e dizer que não fechem. O senhor mesmo irá fazer a encomenda. Dê sua cédula. Despacha-te, Micha!

Piotr Ilitch tinha pressa em despachar Micha, porque o rapaz estava de boca aberta diante do visitante, com os olhos esbugalhados, à vista do sangue e do maço de cédulas que tremia entre os dedos de Mítia, cujas instruções parecia não ter compreendido lá muito.

— E agora, vá lavar-se — disse bruscamente Piotr Ilitch. — Ponha o dinheiro em cima da mesa ou em seu bolso... Isto. Tire sua sobrecasaca.

Ajudando-o a tirar a sobrecasaca, exclamou de novo:

— Olhe, há sangue na sua sobrecasaca.

— Mas não. Somente um pouco na manga e depois aqui, no lugar do lenço... deve ter escorrido através do bolso, quando me sentei em cima de meu lenço, em casa de Fiénia — explicou Mítia com ar confiante. Piotr Ilitch escutava-o com as sobrancelhas con­traídas.

— Bem arranjado está o senhor, deve ter-se batido — murmu­rou ele.

Segurava o jarro e ia derramando a água à medida. Na sua pre­cipitação, Mítia lavava-se mal, suas mãos tremiam. Piotr Ilitch orde­nou-lhe que ensaboasse e esfregasse mais. Tomara sobre Mítia uma espécie de ascendência que se afirmava cada vez mais. É de notar que esse rapaz não era nada medroso.

— Não limpou as unhas; agora lave o rosto, aqui, perto da têm­pora, na orelha... É com essa camisa que vai partir? Aonde vai? Toda a manga direita está manchada.

— Sim, manchada — disse Mítia, examinando-a.

— Vista outra.

— Não tenho tempo. Mas olhe... — continuou Mítia sempre con­fiante, enxugando-se e tornando a vestir sua sobrecasaca. — Vou enrolar a manga da camisa assim, não a verão.

— Diga-me agora o que se passou. Bateu-se de novo no botequim, como da outra vez? Surrou de novo o capitão? — Piotr Ilitch evocava a cena num tom de censura. — Em quem bateu de novo... ou matou, talvez?

— Tolices!

— Como, tolices?

— Deixe isso — disse Mítia, que se pôs a rir. — Na praça, ainda há pouco, esmaguei uma velha.

— Esmagou? Uma velha?

— Um velho! — corrigiu Mítia, que fitou Piotr Ilitch rindo e gri­tando como se o outro fosse surdo.

— Que diabo! Um velho, uma velha... Matou alguém?

— Reconciliamo-nos, depois de havermos brigado. Deixamo-nos co­mo bons amigos. Um imbecil... perdoou-me certamente, agora.... Se se tivesse levantado, não me teria perdoado — e Mítia piscou o olho. — Mas que vá ele para o diabo! Entendeu, Piotr Ilitch? Deixemos isso! Não quero falar disso neste momento! — declarou redondamente Mítia.

— Falo isto porque o senhor gosta de brigar com não importa quem... como naquela ocasião, por bagatelas, com aquele capitão. O senhor acaba de bater-se e vai agora cair na orgia! Eis seu caráter completo. Três dúzias de garrafas de champanha! Para que tamanha quantidade?

— Bravo! Dá-me agora as pistolas. O tempo urge. Gostaria bem de conversar contigo, meu caro, mas não tenho tempo. Aliás, é inútil, é tarde demais. Ah! onde está o dinheiro, que fiz dele? — Pôs-se a procurar nos bolsos.

— O senhor mesmo o colocou em cima da mesa... ei-lo. Tinha-se esquecido? O senhor parece não prestar atenção ao dinheiro. Eis suas pistolas. É estranho, às 5 horas o senhor as empenha por 10 rublos e agora tem o senhor quanto, 2 000, 3 000 rublos, talvez?

— Três, talvez — e Mítia riu, metendo as cédulas em seus bolsos.

— O senhor vai perdê-las desse jeito. Será dono de minas de ouro?

— De minas? De minas de ouro! — exclamou Mítia com todas as suas forças, desatando a rir. — Quer ir às minas, Pierkhótin? Há aqui uma senhora que lhe dará 3 000 rublos somente para que o senhor vá para lá. Deu-mos, a mim, tanta questão faz das minas! Conhece a Senhora Khokhlakova?

— De vista somente, mas já ouvi falar dela. Na verdade, foi ela quem o presenteou com esses 3 000 rublos? Assim, sem mais nem menos? — indagou Piotr Ilitch, olhando-o com desconfiança.

— Amanhã, quando o sol se levantar, quando Febo resplandecer eternamente jovem, vá à casa dela glorificando o Senhor e pergunte-lhe se ela mos deu ou não. Informe-se.

— Ignoro as relações entre os dois... já que o senhor se mostra tão afirmativo, devo necessariamente acreditar... Agora que o senhor está com o dinheiro, não é a Sibéria que o tenta... Seriamente, aonde vai o senhor?

— A Mókroie.

— A Mókroie? Mas já é noite.

— Tinha tudo, não tenho mais nada... — disse de repente Mítia.

— Como, mais nada? Tem milhares de rublos e não é mais nada?

— Não falo de dinheiro. Que o diabo o carregue! Falo do caráter das mulheres. "As mulheres têm o caráter crédulo, versátil, deprava­do. " Foi Ulisses quem o disse e com bastante razão.

— Não o compreendo.

— Estou então bêbado?

— Pior que isso.

— Moralmente bêbado, Piotr Ilitch, moralmente... E basta!

— Como? Carrega sua pistola?

— Carrego minha pistola.

Com efeito, tendo Mítia aberto a caixa, pegou pólvora, que derra­mou num cartucho. Antes de pôr a bala no cano, examinou-a à luz da vela.

— Por que examina essa bala? — perguntou Piotr Ilitch, intri­gado.

— À toa. Uma idéia que me veio. Tu, se pensasses em meter uma bala no crânio, olhá-la-ias antes de pô-la na pistola?

— Por que olhá-la?

— Ela me atravessará o crânio, então isto me interessa: ver como é ela feita... Aliás, tolices, tudo isso. Está pronto — acrescentou ele, uma vez introduzida a bala e socada com estôpa. — Meu caro Piotr Ilitch, se soubesses como tudo isso é absurdo! Dá-me um pedaço de papel.

— Aqui está.

— Não, papel para escrever. Isto. — E Mítia, pegando uma pena, escreveu vivamente duas linhas, depois dobrou o papel em quatro e meteu-o no bolso do colete. Arrumou as pistolas na caixa, que fechou à chave e conservou na mão. Depois olhou Piotr Ilitch, sor­rindo, com ar pensativo.

— Vamos, agora! — disse ele.

— Ir aonde? Não, espere... Então quer o senhor meter uma bala no crânio... — proferiu Piotr Ilitch, inquieto.

— Aquela bala? Tolices! Quero viver, amo a vida. Saiba-o. Amo o louro Febo e sua quente luz... Meu caro Piotr Ilitch, saberias afastar-te?

— Como assim?

— Deixar o caminho livre ao ser querido e aquele a quem odeias... querer bem mesmo àquele a quem odiasses... e dizer-lhes: Deus vos guarde! Ide, passai, e eu...

— E o senhor?

— Basta isto, vamos.

— Por Deus, vou contar tudo a alguém, para que o impeçam de partir — declarou Piotr Ilitch, fixando-o. — Que vai o senhor fazer em Mókroie?

— Há lá uma mulher, uma mulher, basta para ti, Piotr Ilitch, de explicações!

— Escute, se bem que seja o senhor violento, sempre me agra­dou... e estou inquieto.

— Obrigado, irmão. Sou violento, dizes. É verdade. Não faço senão repetir a mim mesmo: violento! Ah! eis Micha, tinha-me esqueci­do dele.

Micha vinha chegando com um maço de dinheiro miúdo; anunciou que tudo ia bem em casa dos Plótnikovi: embalavam as garrafas, o peixe, o chá, tudo estaria pronto. Mítia pegou uma cédula de 10 rublos e entregou-a a Piotr Ilitch, atirando outra para Micha.

— Proíbo-lhe! Não quero isto em minha casa, estraga os criados. Poupe seu dinheiro, por que gastá-lo? Amanhã virá o senhor pedir-me 10 rublos. Por que põe sempre o dinheiro nesse bolso? Vai perdê-lo.

— Escuta, meu caro, vem a Mókroie comigo.

— Que irei fazer lá?

— Queres, vamos esvaziar uma garrafa, bebamos à vida! Tenho sede, quero beber contigo. Nunca bebemos juntos, não é mesmo?

— Pois bem, vamos ao botequim.

— Não tenho tempo para isso, mas vamos à casa dos Plótnikovi, num reservado de trás. Queres que te proponha um enigma?

— Faça-o.

Mítia tirou de seu colete o papelzinho e mostrou-o a Piotr Ilitch. Havia nele escrito visivelmente: "Castigo-me como expiação de minha vida inteira".

— Na verdade, vou contar tudo a alguém — disse Piotr Ilitch.

— Não ter ás tempo, meu caro, vamos beber.

A venda dos Plótnikovi — ricos comerciantes —, situada bem perto da casa de Piotr Ilitch (na esquina da rua), era a principal mercea­ria da nossa cidade. Encontrava-se lá de tudo, como não importa qual armazém da capital: vinho da adega dos irmãos Eliessieievi, frutas, charutos, chá, café, etc. Havia sempre três caixeiros e dois rapazinhos para recados. Nossa região empobreceu-se, os proprietários dispersa­ram-se, o comércio foi-se estancando, mas a mercearia prosperava cada vez mais, compradores não faltavam para suas mercadorias. Mítia estava sendo esperado com impaciência, pois era lembrado que, três ou quatro semanas antes, fizera ele encomendas para várias centenas de rublos pagos de contado (não lhas teriam entregue a crédito). En­tão, como hoje, tinha ele na mão um maço de dinheiro grosso que pro­digava a torto e a direito, sem mercadejar, nem se inquietar com a quantidade de suas compras. Dizia-se na cidade que na sua excursão a Mókroie com Grúchenhka "dissipara em um dia e uma noite 3 000 rublos e que voltara da festa sem vintém, tal como sua mãe o pusera no mundo". Contratara um grupo de ciganos que acampavam então em nossas paragens e aproveitaram de sua embriaguez para lhe sub­trair dinheiro e beber sem controle vinhos caros. Contava-se, rindo, que em Mókroie oferecera ele champanha aos rústicos, dera bom­bons e pastéis de Strasburgo de presente a moças e mulheres do campo. Riam também entre nós, sobretudo no botequim (mas, por prudência, na ausência do interessado), da confissão pública de Mítia, de que o único favor que lhe valera aquela "escapada" com Grú­chenhka fora "a permissão de beijar-lhe o pé, e nada mais".

Quando Mítia e Piotr Ilitch chegaram à venda, uma tieliega atrela­da a três cavalos, com um tapete e guizos, esperava ali já, com o cocheiro Andriéi. Estavam acabando de arranjar uma caixa de merca­dorias e só se esperava a chegada de Mítia para fechá-la e pô-la no lugar. Piotr Ilitch ficou admirado.

— Donde vem essa tieliega? — perguntou ele.

— Indo à tua casa, encontrei Andriéi e ordenei-lhe que viesse diretamente para aqui. Não há tempo a perder! Na derradeira vez, viajei com Timofiéi, mas hoje seguiu ele na minha frente com uma mágica. Andriéi, estaremos muito atrasados?

— Eles nos precederão de uma hora, quando muito — apressou-se em responder Andriéi, um cocheiro na força da idade, ruivo e seco. — Sei como vai Timofiéi, sua corrida não pode comparar-se com a nossa, Dimítri Fiódorovitch. Não terão uma hora de avanço!

— Cinqüenta rublos de gorjeta, se não passarmos de uma hora de atraso.

— Responda por isso, Dimítri Fiódorovitch.

Todo agitado, Mítia dava ordens de uma maneira estranha, sem seguimento. Piotr Ilitch achou oportuno intervir.

— Por 400 rublos, exatamente como da outra vez — ordenava Mítia. — Quatro dúzias de garrafas de champanha, nem uma de menos.

— Por que tal quantidade, para quê? Pare! — vociferou Piotr Ilitch. — Que contém essa caixa? Haverá aí coisas no valor de 400 rublos?

Os caixeiros, que se afanavam com entonações melífluas, explica­ram-lhe imediatamente que não havia naquela primeira caixa senão meia dúzia de garrafas de champanha e "tudo quanto era preciso para começar", frios, bombons, etc. As principais "mercadorias" seriam expedidas à parte, como da outra vez, numa tieliega especial, puxada também por três cavalos, que chegaria "uma hora quando muito depois de Dimítri Fiódorovitch".

— Não mais de uma hora, e ponham o mais possível de bombons e caramelos; as moças de lá gostam disso — insistiu Mítia.

— Caramelos? Pois seja. Mas por que quatro dúzias de garrafas? Uma só basta — disse Piotr Ilitch, quase com cólera. Pôs-se a mer­cadejar, a exigir uma fatura, e não conseguia acalmar-se. Só salvou, porém, uma centena de rublos. Ficou-se de acordo que as mercadorias entregues só montariam a 300 rublos.

— Que o diabo os carregue! — exclamou ele, como que reconside­rando. — Que tenho eu com isso? Joga o dinheiro fora, se nada te custou!

— Vem cá, homem econômico, adianta-te, não te zangues! — E Mí­tia arrastou-o para o reservado do fundo da venda. — Vão servir-nos bebida. Piotr Ilitch, vem comigo, porque gosto dos rapazes gentis como tu.

Mítia sentou-se diante de uma mesinha coberta por uma toalha su­ja. Piotr Ilitch tomou lugar em face dele e trouxeram-lhes champanha. Perguntaram se os cavalheiros não queriam ostras, "as primeiras ostras recebidas bem recentemente".

— Ao diabo as ostras! Não gosto de ostras e aliás nada quero comer — respondeu grosseiramente Piotr Ilitch.

— Não há tempo para ostras — observou Mítia. — Aliás, estou sem apetite. Sabes, meu amigo, que jamais gostei da desordem?

— Mas quem gosta afinal? Misericórdia! Três dúzias de garrafas de champanha para os mujiques. É de causar indignação a qual­quer um.

— Não é disto que quero falar, mas da ordem superior. Não existe em mim essa ordem... De resto, tudo está acabado, inútil afligir-se. É demasiado tarde. Toda a minha vida foi desordenada. É tempo de ordená-la. Faço trocadilhos, hein?

— Deliras, isto sim.

— "Glória ao Altíssimo na Terra, / Glória ao Altíssimo em mim!" Estes versos escaparam-se um dia de minha alma, não são versos, são lágrimas... Eu mesmo os compus... Mas não quando arrastei o capitão pela barba.

— Por que falas do capitão?

— Por que falo? Tolice! Tudo acaba, tudo chega ao mesmo total.

— Tuas pistolas me perseguem.

— Tolices ainda! Bebe e deixa lá teus devaneios. Amo a vida, amei-a demais, até enjoar. Basta agora. Bebamos à vida, meu caro. Por que estou contente comigo mesmo? Sou vil, minha baixeza me atormenta, mas estou contente comigo mesmo. Abençôo a criação, estou pronto a abençoar Deus e suas obras, mas... ' é preciso destruir um inseto maligno, para impedi-lo de estragar a vida dos outros... Bebamos à vida, irmão! Que há de mais precioso? Bebamos também a uma bela rainha.

— Pois seja! Bebamos à vida e à tua rainha!

Esvaziaram um copo. Mítia, malgrado sua exaltação, estava triste. Parecia presa duma pesada preocupação.

— Micha... é Micha? Ei! meu caro, vem cá, bebe este copo em honra de Febo dos cabelos de ouro que se levantará amanhã,..

— Por que oferecer-lhe bebida? — exclamou Piotr Ilitch, irritado.

— Mas deixa, eu o quero.

— Ora!

Micha bebeu, cumprimentou e saiu.

— Ele se recordará mais tempo de mim. Uma mulher, amo uma mulher! Que é a mulher? A rainha da terra! Estou triste, Piotr Ilitch. Lembras-te de Hamlet? "Sinto-me triste, bem triste, Horácio... Ai! pobre Yorick!" Sou eu, talvez, Yorick. Justamente, sou agora Yorick e depois um crânio.

Piotr Ilitch escutava-o em silêncio; Mítia calou-se igualmente.

— Que cão é esse que tem aí? — perguntou com ar distraído ao caixeiro, ao notar, num canto, um lindo fraldiqueiro de olhos negros.

— É o fraldiqueiro de Varvara Alieksiéievna, nossa patroa — res­pondeu o caixeiro. — Ela esqueceu-o aqui, é preciso levá-lo à casa dela.

— Vi um semelhante... no regimento... — disse Mítia, com ar pensativo —, mas tinha uma pata traseira quebrada... Piotr Ilitch, queria perguntar-te: nunca roubaste?

— Por que essa pergunta?

— À toa... estás vendo? O bem alheio, o que se tira do bolso... Não falo do Tesouro Público, todo mundo o pilha, e tu também, de­certo...

— Vai-te para o diabo!

— Nunca roubaste do bolso o porta-moedas de alguém?

— Roubei uma vez 20 copeques de minha mãe, quando tinha nove anos. Peguei-os de cima da mesa e escondi-os em minha mão.

— E depois?

— Levei uma surra de chicote, naturalmente. Mas tu, roubaste?

— Sim — confessou Mítia, piscando o olho com ar malicioso.

— E que foi?

— Vinte copeques de minha mãe. Tinha nove anos. Restituí-lhos ao fim de três dias. — E levantou-se.

— Dimítri Fiódorovitch, é preciso apressar-se — gritou Andriéi na porta da venda.

— Está tudo pronto? Partamos! Ainda uma palavra e... a Andriéi um copo de vodca, depois conhaque, imediatamente! Esta caixa (com as pistolas) debaixo do assento. Adeus, Piotr Ilitch, não guardes má lembrança de mim.

— Mas voltas amanhã?

— Absolutamente.

— O senhor quer pagar? — interveio o caixeiro.

— Pagar? Mas decerto!

Tirou de novo de seu bolso um maço de notas, atirou três sobre o balcão e saiu. Todos o acompanharam cumprimentando-o e dese­jando-lhe boa viagem. Andriéi, enrouquecido por causa do conhaque que acabava de tomar, montou no assento. Mas, no momento em que Mítia se instalava, Fiénia ergueu-se diante dele. Acorria resfolegante, juntou as mãos e lançou-se a seus pés:

— Bátiuchka, Dimítri Fiódorovitch, não ponha a perder minha ama! E eu que tudo lhe contei!... Não lhe faça mal, a ele, é o seu primeiro amor. Voltou da Sibéria para casar-se com Agrafiena Aliek­sándrovna... Não destrua uma vida!

— Ah! ah! ah! Eis o que é a coisa! — murmurou Piotr Ilitch. — Vai haver banzé lá! Agora compreendo tudo. Dimítri Fiódorovitch, dá-me imediatamente tuas pistolas, se queres ser um homem, entendes?

— Minhas pistolas? Espera, meu caro, lançá-las-ei num charco, na estrada. Fiénia, levanta-te, não fiques a meus pés. Doravante Mí­tia, esse tolo, não porá mais ninguém a perder. Escuta, Fiénia — gritou ele, uma vez sentado —, eu te ofendi ainda há pouco, perdoa-me... Se recusares, tanto pior, nada para mim tem importância agora! A caminho, Andriéi, e depressa!

Andriéi fez seu chicote estalar, a sinêta tilintou.

— Até a vista, Piotr Ilitch! Para ti, minha derradeira lágrima! "Ele não está embriagado, e no entanto quantas pataratas ele solta!", pensou Piotr Ilitch. Tinha intenção de ficar para fiscalizar a expedição do resto das provisões, suspeitando de que iriam enganar Mítia, mas, de súbito, zangado consigo mesmo, cuspiu e foi jogar bilhar.

— É um imbecil, mas um bom rapaz — dizia a si mesmo, a ca­minho. — Ouvi falar desse "antigo" oficial de Grúchenhka. Se ele chegou... Ah! aquelas pistolas! Mas que diabo? Serei mentor dele? À vontade! Aliás, não acontecerá nada, cão que ladra não morde. Uma vez embriagado, bater-se-ão, depois reconciliar-se-ão. São homens de ação. Que é isso de: "eu me afasto, eu me castigo"; não haverá nada! Estando bêbado, no botequim, falou vinte vezes neste estilo. Agora, está "bêbado moralmente". Serei seu mentor? Sem dúvida algu­ma deve ter-se batido, todo o seu rosto está ensangüentado. Com quem? Informar-me-ei no botequim. E seu lenço cheio de sangue... Ora essa, ficou em minha casa, no chão... ora bolas!

Chegou ao botequim de muito mau humor e começou logo uma partida, o que teve por efeito desanuviá-lo. Jogou outra e contou que Dimítri Karamázov estava de novo com dinheiro, aí uns 3 000 rublos, que ele próprio vira. Partira de novo para Mókroie para farrear com Grúchenhka. Seus ouvintes escutaram-no com curiosidade e ar sério. Deixou-se mesmo de jogar.

— Três mil rublos? Onde os teria arranjado?

Fizeram-lhe perguntas. A notícia de que aquele dinheiro provinha da Senhora Khokhlakova foi acolhida com ceticismo.

— Não teria ele roubado o velho?

— Três mil rublos! É duvidoso.

— Gabou-se em voz alta de que mataria seu pai, todos aqui o ouviram. Falava justamente de 3 000 rublos...

Piotr escutava e tornou-se de súbito lacônico em suas respostas. Não disse uma palavra a respeito do sangue que havia no rosto e nas mãos de Mítia, coisa a respeito da qual, ao chegar ali, tinha intenção de falar. Começou-se terceira partida, e pouco a pouco a conversação desviou-se de Mítia. Quando ela terminou, Piotr Ilitch não teve mais vontade de jogar, pousou o taco e partiu, sem cear, como havia pro­jetado. Na praça, parou perplexo, pensando em ir diretamente à casa de Fiódor Pavlovitch para se informar se havia acontecido alguma coisa. "Por uma bagatela irei despertar a casa e fazer escândalo. Que diabo, serei mentor dele?"

Já voltava para sua casa em muito má disposição de ânimo, quan­do de repente se lembrou de Fiénia: "Diabos! Deveria tê-la interro­gado ainda há pouco — pensou ele, cheio de despeito —, saberia tudo". Sentiu bruscamente uma impaciência e um desejo tão vivos de lhe falar e de informar-se que, a meio do caminho, desviou-se para a casa da Senhora Morózova, onde morava Grúchenhka. Chegado ao portão, bateu e a pancada que ressoou na noite desembriagou-o, ao mesmo tempo que o irritava. Ninguém respondeu, todo mundo dormia na casa. "Vou fazer escândalo!", pensou com mal-estar; mas, longe de ir-se embora, bateu com mais força. O barulho ressoou por toda a rua. "Não poderão deixar de abrir-me!", dizia a si mesmo, exas­perado contra si próprio, enquanto redobrava seus golpes.

 

SOU EU QUEM CHEGA

E Dimítri Fiódorovitch voava para Mókroie. A distância era de 20 verstas aproximadamente; porém os cavalos galopavam de maneira a transpô-la em uma hora e um quarto. A rapidez da corrida refres­cou Mitia. O ar era vivo; o céu, estrelado. Era a mesma noite, talvez a mesma hora, em que Aliócha, caído em terra, "jurava com arrebatamento amá-lo sempre". A alma de Mítia sentia-se perturbada e malgrado sua ansiedade não tinha pensamento naquele instante senão para seu ídolo, que queria rever pela derradeira vez. Nem um minuto seu coração hesitou. Crer-se-á dificilmente/ que esse ciumento não sentisse ciúme algum daquela personagem nova, daquele rival que sur­gia bruscamente. O mesmo não se daria para com não importa qual outro, no sangue do qual talvez mergulhasse suas mãos, mas contra o primeiro amante dela não sentia ele no momento nem ódio ciumento nem mesmo animosidade; é verdade que ainda não o havia visto. "É o direito incontestável deles, é o seu primeiro amor, que ela não esqueceu após cinco anos; ela não amou senão a ele, pois, durante todo o tempo. Por que me vim meter eu de través? Que venho fazer aqui? Afasta-te, Mítia, deixa a estrada livre! Aliás, tudo está acabado agora, mesmo sem esse oficial... "

Eis em que termos teria ele podido exprimir suas sensações, se tivesse podido raciocinar. Mas era incapaz. Sua resolução nascera es­pontaneamente, fora concebida, adotada com todas as suas conseqüên­cias às primeiras palavras de Fiénia. No entanto, sentia uma pertur­bação dolorosa: a resolução não lhe dera calma. Demasiadas recorda­ções o atormentavam. Por momentos, isso lhe parecia estranho; ele mesmo escrevera sua sentença: "Castigo-me e expio". O papel estava em seu bolso, a pistola, carregada; decidira acabar amanhã aos pri­meiros raios de "Febo dos cabelos de ouro". Entretanto, não podia romper com o passado que o acabrunhava, sentia-o dolorosamente e essa idéia desesperava-o. Teve um momento vontade de mandar An­driéi parar, de descer da tieliega, de pegar sua pistola e de acabar de uma vez, sem esperar o dia. Mas foi apenas um relâmpago. Os cavalos "devoravam o espaço", e, à medida que se aproximava do objetivo, somente a idéia dela o possuía cada vez mais e bania de seu coração os pensamentos fúnebres. Desejava tanto vê-la, fosse apenas de pas­sagem e de longe! "Verei como está ela agora com ele, seu primeiro amor; nada mais quero. " Jamais sentira tanto amor por aquela mu­lher fatal, um sentimento tão novo e nunca experimentado, que ia até a imploração, até o desaparecimento dela! "E eu desaparecerei!", pro­feriu ele de súbito, numa espécie de êxtase.

Havia quase uma hora que rodavam. Mítia mantinha-se calado e Andriéi, mujique falador no entanto, não dissera uma palavra, como se temesse falar, limitando-se a estimular sua atrelagem baia, magra, mas fogosa. De súbito, Mítia exclamou com viva inquietação:

— Andriéi, e se estiverem dormindo? Até então não pensara nisso.

— Pode muito bem acontecer, Dimítri Fiódorovitch.

Mítia franziu o cenho. Acorria ele com tais sentimentos... e dor­miam... ela também, talvez com ele... A cólera ferveu no seu co­ração.

— Chicoteia, Andriéi, vivamente!

— Talvez não estejam ainda deitados — sugeriu Andriéi, após um silêncio. — Ainda há pouco Timofiéi dizia que havia numerosa com­panhia.

— Na posta?

— Não, na hospedaria, em casa dos Plastunovi.

— Sei. Como é isso? Uma numerosa companhia? Quem são? Esta notícia inesperada inquietava bastante Mítia.

— Segundo Timofiéi, são todos homens: dois da cidade, ignoro quais, depois dois forasteiros, parece, e talvez mais algum outro. Parece que estão jogando baralho.

— Baralho?

— Então talvez não durmam ainda. Devem ser 11 horas, quando muito.

— Chicoteia, Andriéi, chicoteia — repetiu nervosamente Mítia.

— Tenho uma coisa a perguntar-lhe — continuou Andriéi ao fim dum momento —, mas receio zangá-lo, bárin.

— Que queres?

— Ainda há pouco Fiedóssia Márkovna suplicou-lhe de joelhos que não fizesse mal à sua patroa e a um outro... então, como o estou levando para lá... Perdoe-me, senhor, digo isso em consciência, mas talvez seja uma tolice.

Mítia segurou-o bruscamente pelos ombros.

— És cocheiro, não?

— Sim.

— Então sabes que é preciso deixar o caminho livre. Julgas, por acaso, que um cocheiro não deve dar lugar a ninguém, esmagar os outros para passar? Não, cocheiro, não é preciso esmagar as pessoas, não é preciso estragar a vida alheia; se o fizeste, se destruíste a vida de alguém, castiga-te, desaparece!

Mítia falava no cúmulo da exaltação. Malgrado seu espanto, Andriéi prosseguiu a conversa.

— É verdade, Dimítri Fiódorovitch, o senhor tem razão, não é preciso atormentar ninguém, nem nenhum animal, porque são criatu­ras de Deus, como o cavalo, por exemplo. Há cocheiros que martirizam seu animal sem razão, nada os detém, correm infernalmente desaba­lados para...

— O inferno? — interrompeu Mítia com uma brusca explosão de riso. — Andriéi, alma simplória — e agarrou-o de novo pelos om­bros —, dize-me: Dimítri Fiódorovitch Karamázov irá para o inferno, na tua opinião?

— Não sei, isso depende do senhor... Veja: quando o Filho de Deus morreu na cruz, foi direito ao inferno e livrou todos os dana­dos. E o inferno gemeu ao pensar que não chegariam mais pecadores. E o Senhor disse então ao inferno: "Não gemas, inferno, hospedarás grandes senhores, intendentes, juizes, ricaços, e estarás de novo cheio como sempre o estiveste, até que eu volte". Tais foram suas pa­lavras...

— Eis uma bela lenda popular! Chicoteia o cavalo da esquerda, Andriéi!

— Eis, senhor, aqueles a quem está destinado o inferno; quanto ao senhor, nós o vemos como uma criança... E, se bem que seja violento, o Salvador perdoá-lo-á por causa de sua simplicidade.

— E tu, Andriéi, me perdoas?

— Mas que hei de perdoar-lhe? O senhor não me fez nada.

— Não, por todos; tu só, pelos outros, agora, na estrada, perdoas-me? Fala, alma simples!

— Oh! senhor! Faz medo conduzi-lo, sua conversa é estranha... Mas Mítia não ouviu. Rezava com exaltação.

— Senhor, recebe-me, na minha iniqüidade, mas não me julgues. Deixa-me entrar sem julgamento, porque eu mesmo me condenei, não me julgues, porque eu te amo, meu Deus! Sou vil, mas amo-te: no inferno mesmo, se para lá me enviares, proclamarei meu amor por toda a eternidade. Mas deixa-me acabar de amar... aqui embaixo... ainda cinco horas, até o nascer de teu sol... Porque eu amo a rainha de minha alma, não posso impedir-me de amá-la. Tu me vês todo inteiro. Cairei de joelhos diante dela... 'Tu tens razão", dir-lhe-ei, "em prosseguir teu caminho... Adeus, esquece tua vítima, não tenhas nenhuma inquietação!"

— Mókroie! — gritou Andriéi, mostrando a aldeia com seu chicote. Através da escuridão lívida aparecia a massa negra das construções que se estendiam por uma distância considerável. A aldeia de Mókroie contava 2 000 almas, mas àquela hora todos dormiam, somente raras luzes furavam a escuridão.

— Depressa, Andriéi, depressa, estou chegando! — exclamou Mítia, como em delírio.

— Não estão dormindo! — disse de novo Andriéi, apontando para a hospedaria dos Plastunovi, situada à entrada e cujas seis janelas para a rua estavam iluminadas.

— Não dormem! Faze barulho, Andriéi, vai a galope, faze tilintar os guizos. Que toda a gente saiba quem chega! Sou eu em pessoa! — exclamou Mítia, cada vez mais excitado.

Andriéi pôs os seus cavalos em galope e chegou barulhentamente ao pé do patamar, onde parou a atrelagem estafada. Mítia saltou em terra. Justamente naquele momento o dono da hospedaria, que ia dei­tar-se, teve a curiosidade de olhar quem chegava com tanto estar­dalhaço.

— És tu, Trifon Borísovitch?

O dono debruçou-se, olhou, desceu vivamente, obsequioso e en­cantado.

— Bátiuchka, Dimítri Fiódorovitch, o senhor aqui, de novo?

Esse Trifon Borísovitch era um latagão baixo e gordo, robusto, de rosto um pouco balofo, ar severo e implacável, sobretudo com os mu­jiques de Mókroie, mas sabendo tomar rapidamente a expressão mais obsequiosa, quando farejava uma pechincha. Usava a camisa russa, de gola dobrada; tinha recursos, mas só sonhava em elevar-se. Mantinha a metade dos mujiques em suas garras, todos ali pelos arredores lhe deviam. Alugava terras dos proprietários rurais, ele mesmo as comprava e mandava lavrá-las pelos mujiques em pagamento de suas dívidas, das quais jamais conseguiam eles libertar-se. Era viúvo e tinha quatro filhas; uma, já viúva, vivia em casa de seu pai com seus dois filhos de pequena idade, e trabalhava para ele como criada. A segunda estava casada com um funcionário cuja fotografia, minúscula, de uni­forme e com dragonas, se via, entre outras, na hospedaria. As duas mais moças, por ocasião da festa comunal ou para fazer visitas, punham vestidos azul-celestes ou verdes, em moda, com uma cauda de 1 archin, mas, no dia seguinte, já de pé desde o nascer do dia, como de costume, varriam os quartos, carregavam água, limpavam o lixo deixado pelos viajantes. Apesar de já ter feito um apreciável pé-de-meia, Trifon Borísovitch gostava bem de espoliar os farristas. Lem­brava-se de que, um mês antes, o rega-bofe de Dimítri Fiódorovitch com Grúchenhka lhe proporcionara, em um dia, mais de 200 rublos, se não 300, e acolhia-o agora com alegre solicitude, farejando nova pechincha, somente pelo jeito com que Mítia chegara ao patamar.

— Bátiuchka, Dimítri Fiódorovitch, temo-lo de novo por aqui?

— Um instante, Trifon Borísovitch! Em primeiro lugar, onde está ela?

— Agrafiena Alieksándrovna? — adivinhou logo o hospedeiro, lan­çando-lhe um olhar penetrante. — Está aqui...

— Com quem? Com quem?

— Viajantes... Um funcionário, que deve ser polonês, segundo sua maneira de falar. Foi ele que a mandou buscar; o outro, seu camarada ou seu companheiro de viagem, quem sabe? Estão à paisana...

— Bem, estão farreando? São ricaços?

— Qual farra! Não grande coisa, Dimítri Fiódorovitch.

— Não grande coisa? E os outros?

— Dois senhores da cidade que pararam de volta de Tchermachniá. O mais moço é um parente do Senhor Miúsov, esqueci seu nome... O senhor deve conhecer o outro, o proprietário rural Maksímov, que foi em peregrinação ao mosteiro dos senhores.

— Ninguém mais?

— Ninguém mais.

— Basta, Trifon Borísovitch. Dize-me agora, que está ela fazendo?

— Acaba de chegar, está com eles.

— Está alegre? Ri?

— Não, não muito... Parece mesmo aborrecer-se. Passava a mão nos cabelos do mais jovem.

— O polonês, o oficial?

— Mas não é jovem, nem oficial. Não nos dele, nos cabelos do sobrinho de Miúsov... esqueci seu nome.

— Kolgánov?

— Justamente, Kolgánov.

— Está bem, verei. Estão jogando baralho?

— Jogaram, depois tomaram chá. O funcionário pediu licores.

— Basta, Trifon Borísovitch, basta, meu caro, decidirei eu mesmo. Há ciganos?

— Não se ouve mais falar em ciganos, Dimítri Fiódorovitch, as autoridades expulsaram-nos. Mas há judeus que tocam citara e violino. Mesmo a esta hora pode-se mandá-los buscar.

— É preciso mandá-los buscar, absolutamente. E as moças, pode-se acordá-las, Maria sobretudo, Stiepanida, Arina. Duzentos rublos para o coro!

— Mas por esta soma farei acordar a vila inteira, se bem que durmam agora. Aliás, vale a pena tratar dessa forma os mujiques e as moças? Gastar o dinheiro com tais brutos! Sabe lá o nosso mujique apreciar esses charutos que tu lhe dás. Fede, o patife. Quanto às moças, todas têm piolhos. Prefiro mandar, gratuitamente, que minhas filhas, que acabam de deitar-se, levantem. Acordá-las-ei a pontapés e cantarão para ti. E dizer-se que o senhor ofereceu champanha aos mujiques!

Trifon Borísovitch não tinha razão de queixar-se de Mítia. Da outra vez, surripiara-lhe meia dúzia de garrafas de champanha e guardara uma cédula de 100 rublos apanhada debaixo da mesa.

— Trifon Borísovitch, gastei aqui mais de 1 000 rublos, lembras-te?

— Decerto, como esquecê-lo. O senhor deixou bem uns 3 000 rublos em nossa casa.

— Pois bem! Chego com outro tanto, desta vez, olha.

E pôs sob o nariz do hospedeiro seu maço de notas de banco.

— Escuta e presta bem atenção. Dentro de uma hora chegarão vi­nho, provisões, bombons; será preciso levar tudo isso lá para cima. Da mesma forma, a caixa que está no carro; abram-na imediatamente e sirvam o champanha... Sobretudo, que haja moças e Maria, so­bretudo.

Tirou de sob o assento a caixa das pistolas.

— Eis teu pagamento, Andriéi! Quinze rublos pela corrida e 50 para beber... pelo teu devotamento. Lembra-te do bárin Karamázov!

— Tenho medo, bárin... — E Andriéi hesitou. — Cinco rublos de gorjeta bastam, não aceitarei mais. Trifon Borísovitch será teste­munha. Perdoe-me minhas tolas palavras...

— De que tens medo? — Mítía olhou-o de alto a baixo. — Vai-te para o diabo, então! — gritou ele, atirando-lhe 5 rublos. — Agora, Trifon Borísovitch, conduze-me de mansinho até onde possa ver sem ser visto. Onde estão eles, no quarto azul?

Trifon Borísovitch olhou Mítia, apreensivo, mas tratou de obede­cer-lhe documente; levou-o ao vestíbulo, entrou para uma sala con­tígua àquela em que se encontravam as pessoas referidas e dela retirou a vela. Depois introduziu Mítia ali e colocou-o num canto donde podia observar à vontade o grupo, que não o via. Mas Mítia não pôde olhar por muito tempo; avistou Grúchenhka, seu coração pôs-se a bater, sua vista perturbou-o. Estava ela numa poltrona, perto da mesa. Ao lado dela, no divã, o jovem e belo Kolgánov; segurava a mão dele e ria, enquanto, sem olhá-la, falava ele com ar zangado a Maksímov, sentado em frente da jovem mulher. No divã, ele; numa cadeira, ao lado, outro desconhecido. O que se refestelava no divã fumava ca­chimbo; era um homem corpulento, de rosto largo, de baixa estatura, ar carrancudo. Seu companheiro pareceu a Mítia de estatura bastante ele­vada; mas não pôde ver mais, faltava-lhe o fôlego. Não ficou nem um minuto, depositou o estôjo sobre a cômoda e, com o coração desfalecente, entrou no quarto azul.

— Ai! — gemeu com terror Grúchenhka, que foi a primeira a avistá-lo.

 

PRIMEIRO E INDISCUTÍVEL

Mítia aproximou-se a grandes passos da mesa.

— Senhores — começou ele em voz alta, mas gaguejando a cada palavra —, eu... não é nada, não tenham medo! Não é nada — disse ele, voltando-se para Grúchenhka, que, inclinada para o lado de Kolgánov, se agarrava a seu braço —, eu... também viajo. Ir-me-ei de manhã. Senhores, será permitido a um viajante... ficar convosco neste quarto, até de manhã somente?

Estas últimas palavras dirigiam-se à personagem obesa sentada no divã. Este retirou gravemente seu cachimbo dos lábios e disse num tom severo:

— Pánie, [17] estamos aqui na intimidade. Há outros quartos.

— É o senhor, Dimítri Fiódorovitch? Que faz por aqui? — exclamou Kolgánov. — Tome lugar, seja bem-vindo!

— Boa noite, caro amigo... e incomparável! Sempre o estimei... — replicou Mítia com alegre solicitude, estendendo-lhe a mão por cima da mesa.

— Ai! como o senhor aperta! Partiu-me os dedos — disse Kolgánov, rindo.

— Ele aperta sempre assim, é sua maneira — observou alegremente Grúchenhka, com um sorriso tímido. Compreendera pelo ar de Mítia que ele não faria barulho e observava-o com uma curiosidade mistu­rada de inquietude. Alguma coisa nele feria-lhe a atenção; aliás, ela não esperava tal atitude da parte dele.

— Boa noite — disse num tom melífluo o proprietário rural Mak­símov.

Mítia voltou-se para ele.

— Boa noite, ei-lo também aqui, isto me causa prazer. Senhores, senhores, eu... (Dirigiu-se de novo ao pan do cachimbo, tomando-o como a principal personagem. ) Quis passar minhas derradeiras horas neste quarto... onde adorei minha rainha!... Perdoe-me, pánie! Acorri e prestei juramento... Oh! não tenhais medo, é minha derradeira noite! Bebamos amigavelmente, pánie! Vão servir-nos vinho... Trouxe isto. (Tirou do bolso seu maço de cédulas. ) Quero música, barulho, como da outra vez... Mas o verme inútil que se arrasta pelo chão vai de­saparecer! Relembrar-me-ei de um dia de alegria em minha derradeira noite.

Sufocava; teria querido dizer muitas coisas, mas não proferia senão estranhas exclamações. O pan impassível olhava vez a vez Mítia, seu maço de notas e Grúchenhka; parecia perplexo.

— Se minha rainha consentir... — começou ele.

— Senta-te, Mítia — interrompeu Grúchenhka. — Que é que con­tas? Não me faças medo, rogo-te. Tu o prometes? Então tua presença me causa prazer...

— Eu, fazer medo? — exclamou Mítia, levantando os braços. — Oh — passai, passai! Não sou nenhum obstáculo!... — De súbito, sem que ninguém o esperasse, deixou-se cair sobre uma cadeira e desfez-se em lágrimas, com a cabeça voltada para a parede e agarran­do-se ao espaldar.

— Ora essa, mas que tens? — disse Grúchenhka, num tom de censura. — Ia visitar-me dessa forma, não compreendia eu nenhuma de suas palavras. Uma vez, pôs-se a chorar, agora isso recomeça. Que vergonha! Por que choras? Se houvesse pelo menos motivo para isso!

— acrescentou ela, com ar enigmático, apoiando as derradeiras pa­lavras.

— Eu... eu não choro... Vamos, boa noite! — Voltou-se e pôs-se a rir, mas não como de costume, e sim com um riso nervoso que o abalava.

— A coisa continua... Fica, pois, mais alegre! Estou muito con­tente por teres vindo, Mítia, estás ouvindo? Muito contente. Quero que ele fique conosco — disse ela, imperiosamente, dirigindo-se ao que se encontrava no divã. — Quero-o, e se ele se retirar também ir-me-ei embora! — acrescentou, com os olhos cintilantes.

— Os desejos de minha rainha são ordens! — declarou o pan, bei­jando a mão de Grúchenhka. — Rogo ao pan que se junto a nós! — disse ele, gentilmente, a Mítia. Este levantou-se na intenção de proferir nova tirada, mas faltou-lhe a palavra e disse somente:

— Bebamos, pánie! Todos puseram-se a rir.

— Meu Deus, pensava que ele ia fazer novo discurso — disse Grúchenhka. — Estás ouvindo, Mítia? Fica tranqüilo. Fizeste bem em trazer champanha, bebê-lo-ei, não posso suportar licores. Mas foi ainda melhor teres vindo tu mesmo; o aborrecimento aqui é enorme... Vieste farrear? Esconde teu dinheiro no bolso! Onde encontraste tudo isso?

As cédulas que Mítia mantinha amarfanhadas na mão atraíam a atenção, sobretudo a do polonês. Mítia meteu-as rapidamente em seu bolso e corou. Nesse momento, trouxe o hospedeiro numa bandeja uma garrafa desarrolhada e copos. Mítia agarrou a garrafa, mas estava tão confuso que não soube o que fazer. Foi Kolgánov quem encheu os copos em lugar dele.

— Outra garrafa! — gritou Mítia para o hospedeiro e, esquecen­do-se de bater os copos com o pan que havia tão solenemente convidado a beber, esvaziou seu copo sem esperar. Sua fisionomia mudou logo. Em lugar da expressão solene e trágica que tinha ao entrar, tornou-se ela infantil. Pareceu humilhar-se e rebaixar-se. Olhava todo mundo com uma alegria tímida, com pequenos risos nervosos e o ar reco­nhecido dum cãozinho em falta, mas que reentra em graça. Parecia ter esquecido tudo e ria todo o tempo, olhando Grúchenhka, de quem se aproximara. Depois examinou também os dois poloneses. O do divã surpreendeu-o pelo seu ar digno, seu tom e sobretudo seu cachimbo. "Pois bem, então? Fuma cachimbo, perfeitamente!", pensou Mítia. O rosto um tanto enrugado do pan quase quadragenário, seu nariz mi­núsculo enquadrado por bigodes encerados que lhe davam um ar imper­tinente, pareceram perfeitamente naturais a Mítia. Até mesmo sua mal­feita peruca, confeccionada na Sibéria e que lhe cobria estupídamente as têmporas, não lhe causou espanto: "Deve convir-lhe", disse a si mesmo. O outro pan, mais jovem, sentado perto da parede, olhava os presentes com ar provocante, escutava a conversa num silêncio des­denhoso; só surpreendeu Mítia pela sua estatura bastante elevada, contrastando com a do pan sentado no divã. Pensou também que aquele gigante deveria ser o amigo e o acólito do pan do cachimbo, co­mo que seu guarda-costas, e que o pequeno comandava sem dúvida o grande. Mas tudo isso parecia natural e indiscutível a Mítia. O cãozinho não tinha mais nem sombra de ciúme. Não havia ainda nada com­preendido do tom enigmático de Grúchenhka, compreendia somente que ela se mostrava graciosa para com ele e lhe havia "perdoado". Via-a beber, pasmando-se de prazer. Contudo, o silêncio geral chamou-lhe a atenção e se pôs a examinar todos os presentes com ar interrogador: "Que fazemos? Por que não começais nada, senhores?", parecia dizer seu olhar.

— Eis um que sabe dizer piadas, todos nós rimos — disse Kol­gánov apontando para Maksímov, como se tivesse adivinhado o pen­samento de Mítia.

Mítia observou-os uns após outros.

— Piadas? — e rebentou em seu riso breve e seco. — Ah! ah! ah!

— Sim. Imagine que acha ele que todos os nossos cavaleiros se casaram, em 1820, com polonesas; é absurdo, não é?

— Polonesas? — replicou Mítia, encantado.

Kolgánov compreendia bastante bem as relações de Mítia com Grúchenhka, adivinhava as do pan, mas isto não lhe interessava, so­mente Maksímov o preocupava. Foi por acaso que viera com ele parar naquela hospedaria onde travara conhecimento com os poloneses. Fora Uma vez à casa de Grúchenhka, a quem não agradara. Agora, mos­trara-se ela acariciadora para com ele, antes da chegada de Mítia, mas permanecia ele insensível. Com vinte anos, elegantemente trajado, tinha Kolgánov um rosto gentil, com belos cabelos louros, encantado­res olhos azuis de expressão pensativa e por vezes superior à sua idade, se bem que tivesse por momentos modos infantis, o que de modo algum o constrangia. Em geral, era bastante original e até mesmo caprichoso, mas sempre meigo. Por vezes, tomava seu rosto uma expressão concentrada; olhava para a gente e nos escutava, parecendo ao mesmo tempo absorvido num sonho interior. Ora mostrava-se mole e indolente, ora agitava-se pela causa mais fútil.

— Imagine que há quatro dias que o arrasto atrás de mim — prosseguiu Kolgánov, pesando um pouco as palavras, mas sem ne­nhuma fatuidade. — Foi depois que seu irmão Ivã o repeliu do carro, o senhor deve lembrar-se. Interessei-me então por ele e levei-o ao campo, mas ele vive a dizer piadas, tanto que faz até vergonha. Levo-o de volta...

— O cavalheiro não viu as senhoras polonesas e diz coisas que não aconteceram — observou o pan do cachimbo.

— Mas fui casado com uma polonesa — replicou Maksímov, rindo.

— Sim, mas serviu na cavalaria? Era dela que o senhor falava. É cavalariano? — interveio Kolgánov.

— Ah! sim, é ele cavalariano? Ah! ah! — gritou Mítia, que era todos ouvidos e fixava cada interlocutor como se esperasse Deus sabe o quê.

— Não, vê o senhor? — Maksímov voltou-se para ele. — Quero falar daquelas pánienki... assim que uma delas dança uma mazurca com um ulano nosso, salta-lhe sobre os joelhos como uma gata bran­ca... sob os olhos e com o consentimento do papai e da mamãe... No dia seguinte o ulano vai pedi-la em casamento... e pronto... ih! ih! ih!

— O pan é um canalha — resmungou o pan de elevada estatura, cruzando as pernas. Mítia não notou senão sua enorme bota engraxada, de sola espessa e suja. Aliás, os dois poloneses estavam bastante mal trajados.

— Ora, já vem o nome de canalha! Por que injuriar? — disse Grúchenhka, irritada.

— Páni Agripina, o pan conheceu na Polônia moças de classe baixa e não moças nobres.

— Podes afirmá-lo! — disse desdenhosamente o pan de pernas compridas.

— Não faltava mais que isso! Deixem-no falar! Por que impedir que as pessoas falem? É divertido — replicou Grúchenhka.

— Não impeço ninguém, páni — observou o pan de peruca com um olhar expressivo; depois disso pôs-se de novo a fumar.

— Não, não, o pan disse a verdade. — Kolgánov esquentou-se de novo, como se se tratasse dum negócio importante. — Maksímov não foi à Polônia. Como pode, pois, falar dela? Casou-se o senhor na Polônia?

— Não, foi na província de Smolensk. Minha futura fora a prin­cípio levada lá por um ulano, escoltada por sua mãe, por uma tia e por uma parenta com um filho grande, poloneses puro-sangue... e ele cedeu-ma. Era um tenente, um rapaz bastante gentil. Queria a princípio casar com ela, mas desistiu, porque ela era coxa...

— Então o senhor casou-se com uma coxa? — exclamou Kolgánov.

— Sim. Ambos me dissimularam a coisa. Eu acreditava que ela saltitava.... mas que era de alegria...

— Á alegria de 'casar com o senhor? — gritou Kolgánov, com voz sonora.

— Perfeitamente. Mas era por um motivo completamente diferente. Uma vez casados, na mesma noite do casamento, ela me confessou tudo e pediu perdão. Saltando um charco, quando menina, quebrou uma perna, ih! ih! ih!

Kolgánov soltou uma risada infantil e deixou-se cair sobre o divã. Grúchenhka também ria. Mítia achava-se no cúmulo da felicidade.

— Sabe de uma coisa? Ele está dizendo a verdade agora, não mente mais — disse Kolgánov a Mítia. — Foi casado duas vezes, é de sua primeira mulher que fala; a segunda fugiu de casa e vive ainda, sabia-o?

— Deveras? — disse Mítia, voltando-se para Maksímov com um ar muito espantado.

— Sim, tive essa contrariedade, ela fugiu com um mussiê. Havia previamente feito transferir minhas propriedades para ele. "És um homem instruído", dizia-me ela, "sempre acharás com que comer. " Depois largou-me. Respeitável eclesiástico dizia-me um dia a esse respeito: "Se tua primeira mulher era coxa, a segunda tinha pé muito ligeiro". Ih! ih! ih!

— Escutem aqui — disse vivamente Kolgánov —, se ele mente, e isto acontece-lhe por vezes, é unicamente para causar prazer; não há baixezas nisso, não é mesmo? Gosto dele por vezes. É vil, mas franco. Que pensam disso? Qualquer outro se envilece por interesse, mas ele, é o seu natural... Imaginem, por exemplo, que ele pretende que Gogól o pôs em cena em Almas Mortas. Devem lembrar-se de que se vê no livro o proprietário rural Maksímov chicoteado por Nózdriov, que é processado "por ofensa pessoal ao proprietário Maksímov, com chi­cote, achando-se em estado de embriaguez". Pretende tratar-se dele próprio e que foi chicoteado. Será possível? Tchitchikov viajava cerca de 1830, quando muito, de modo que as datas não combinam. Não pode ter ele sido chicoteado então.

A excitação de Kolgánov, difícil de explicar, nem por isso deixava de ser sincera. Mítia tomava seu partido.

— Afinal de contas, fizeram bem se o chicotearam! — disse ele, rindo.

— Não é que me chicotearam propriamente, mas algo parecido — interveio Maksímov.

— Como assim? Fôste ou não chicoteado?

— Que horas são, pánie? — perguntou com ar de aborrecimento o pan do cachimbo ao pan das pernas compridas. Este ergueu os ombros; nenhum deles tinha relógio.

— Deixem então que os outros falem! Se os senhores se aborrecem, não é razão para impor silêncio a todo mundo — disse Grúchenhka, com ar agressivo. Mítia começava a compreender. O pan respondeu desta vez com visível irritação:

— Páni, não me oponho, não disse nada.

— Está bem, continua — gritou ela a Maksímov. — Ror que se calam todos?

— Mas não há nada a contar, são tolices — continuou Maksímov com satisfação e com gestos um tanto afetados. — Em Gogól, tudo isso é alegórico, porque seus nomes são todos simbólicos: Nózdriov não era Nózdriov, mas Nósov; quanto a Kuvchínikov, este já nem tinha semelhança alguma, porque se chamava Chkvórniev. Fenardi cha­mava-se mesmo assim, somente não era um italiano, mas um russo, Pietrov; a Senhorita Fenardi era bonita na sua roupa de banho, com sua saia curta de lantejoulas, e desfilou bem, mas não quatro horas, apenas quatro minutos... e encontrou toda gente.

— Mas por que te chicotearam? — berrou Kolgánov.

— Por causa de Piron.

— Que Piron? — perguntou Mítia.

— Ora, o célebre escritor francês, Piron. Tínhamos bebido, em nu­merosa companhia, num botequim, naquela mesma feira. Tinham-me convidado e me pus a citar epigramas: "És tu, Boileau? Que roupa engraçada tens!" Boileau responde que vai ao baile de máscaras, isto é, ao banho, ih! ih! ih! E eles tomaram isso como se fosse para si pró­prios. Tratei logo de citar outro epigrama, mordaz e bem conhecido das pessoas instruídas:

Ês Safo, sou Faón, concordo, Mas para meu grande pesar, Do mar não sabes o caminho.

"Sentiram-se ainda mais ofendidos, e puseram-se a dizer-me desa­foros; por desgraça, pensando arranjar as coisas, contei-lhes como Piron, que não foi recebido na Academia, mandou gravar no seu túmulo este epitáfio para se vingar:

Aqui jaz Piron, sem valia, Nem mesmo foi da Academia.

"Então agarraram-me e chicotearam-me. "

— Mas por quê? por quê?

— Por causa de meus conhecimentos. Há muitos motivos pelos quais se pode açoitar um homem — concluiu sentenciosamente Maksímov.

— Basta, é idiota, estou mais que farta. E pensei que seria engra­çado! — interrompeu Grúchenhka. Mítia apressou-se em deixar de rir. O pan de pernas compridas levantou-se e se pôs a andar dum lado para outro, com o ar arrogante de um homem que se aborrece numa com­panhia que não é a sua.

— Como ele anda! — disse Grúchenhka, com ar de desprezo. Mítia inquietou-se; além do mais tinha notado que o pan do cachimbo olha­va-o com irritação.

— Pánie — exclamou ele —, bebamos! — Convidou também o outro que passeava e encheu três copos com champanha.

— À Polônia, pánowie! Bebo à vossa Polônia!

— Com muito gosto, pánie, bebamos — disse o pan de cachimbo com ar importante, mas afável.

— E o outro pan também. Como se chama ele?... Tome um copo, ilustríssimo.

— Pan Vrubliévski[18] — disse o outro.

Pan Vrubliévski aproximou-se da mesa, bamboleando-se.

— À Polônia, pánowie, viva! — gritou Mítia, erguendo seu copo. Entrechocaram os copos. Mítia encheu de novo os três copos,

— Agora, à Rússia, pánowie, e sejamos irmãos.

— Serve-nos também — disse Grúchenhka. — Quero brindar à Rússia.

— Eu também — disse Kolgánov.

— E então, então — apoiou Maksímov —, beberei à velha vo­vòzinha.

— Todos, todos! — gritou Mítia. — Patrão, uma garrafa! Trouxeram as três garrafas que restavam.

— À Rússia, viva!

Todos beberam, exceto os pánowie. Grúchenhka esvaziou seu copo dum gole.

— E então, pánowie, é assim que sois?

Pan Vrubliévski pegou seu copo, ergueu-o e disse com voz aguda:

— À Rússia, nos seus limites de 1772![19]

— Muito bem! — aprovou o outro pan. Ambos esvaziaram seus copos.

— Sois uns imbecis, pánowie! — disse bruscamente Mítia.

— Pánie! — exclamaram os dois poloneses, eretos como gaios. Pan Vrubliévski, sobretudo, estava indignado.

— Não posso amar o meu país? — gritou.

— Silêncio! Nada de brigas! — gritou imperiosamente Grúchenh­ka, batendo com o pé. Tinha o rosto vermelho, os olhos cintilantes. O efeito do vinho fazia-se sentir. -Mítia ficou com medo.

— Pánowie, perdoem. É culpa minha. Pan Vrubliévski, não o farei mais!...

— Mas cala-te afinal, senta-te, imbecil! — apostrofou-o Grúchenhka. Todos se sentaram e ficaram calados.

— Senhores, sou a causa de tudo! — continuou Mítia, que nada compreendera do repente de Grúchenhka. — Pois bem! que vamos fazer... para divertir-nos?

— Com efeito, a gente se aborrece aqui — disse, displicentemente, Kolgánov.

— Se jogássemos baralho, como ainda há pouco... ih! ih! ih!

— Baralho? Boa idéia! — aprovou Mítia. — Se os pánowie con­sentirem.

— Pozno, pánie — respondeu de mau-humor o pan do cachimbo.

— É verdade — apoiou pan Vrubliésvki.

— Pozno? Que quer dizer pozno? — Perguntou Grúchenhka.

— Quer dizer que já é tarde, páni — explicou o pan do divã.

— Para ele sempre é tarde. Sempre acha tudo impossível — quase gritou, zangada, Grúchenhka. — Que tristes convivas! Destilam abor­recimento e querem impô-lo aos outros. Antes de tua chegada, Mítia, estavam todos calados, fazendo-se de orgulhosos.

— Minha deusa — replicou o pan do cachimbo —, dizes a ver­dade. É tua frieza que me torna triste. Estou pronto, pánie — disse, voltando-se para Mítia.

— Começa, pánie — disse Mítia, destacando de seu maço duas cé­dulas de 100 rublos que colocou em cima da mesa. — Quero fazer-te ganhar muito dinheiro. Pega as cartas e mantém a banca!

— O baralho deve ser o do patrão — disse gravemente o pan baixinho.

— Será o melhor — aprovou pan Vrubliévski.

— O baralho do patrão, pois seja! Está muito bem, pánowie! Cartas! O hospedeiro trouxe um baralho lacrado e anunciou a Mítia que as moças reuniam-se, que os judeus chegariam em breve, mas que a tieliega das provisões ainda não chegara. Mítia correu logo ao quarto vizinho para dar ordens. Havia somente três moças e Maria não estava lá ainda. Não sabia bem o que fazer e ordenou apenas que fossem distribuídos com as moças as guloseimas e bombons da caixa. — E vodca para Andriéi — acrescentou. — Eu o ofendi.

Foi então que Maksímov, que o havia seguido, tocou-lhe no ombro, cochichando:

— Dê-me 5 rublos. Gostaria de jogar também, ih! ih! ih!

— Perfeitamente. Aqui estão 10. Se perderes, torna a procurar-me...

— Muito bem — murmurou Maksímov, que tornou a entrar na sala. Mítia voltou pouco depois e pediu desculpas por ter-se feito esperar. Os pánowie já haviam tomado lugar e deslacrado o baralho, com ar muito mais amável e quase gentil. O pan do divã, que estava fumando outra cachimbada, preparava-se para baralhar as cartas. Seu rosto tinha algo de solene.

— Aos seus lugares, pánowie — exclamou pan Vrubliévski.

— Não quero mais jogar — observou Kolgánov. — Já perdi 50 rublos ainda há pouco.

— O pan foi infeliz, mas a sorte pode mudar — insinuou o pan do cachimbo.

— Quanto possui a banca? — perguntou Mítia.

— Talvez 100 rublos, pánie, talvez 200. Tanto quanto queiras apostar.

— Um milhão! — disse Mítia, rindo.

— O capitão talvez tenha ouvido falar de pan Podvisótski.

— Que Podvisótski?

— Em Varsóvia, a banca agüenta todas as apostas. Chega Podvisóts­ki, vê milhares de moedas de ouro, joga contra a banca. O banqueiro diz: "Pánie Podvisótski, jogas com ouro, ou sob palavra?" "Sob pala­vra, pánie", diz Podvisótski. "Tanto melhor. " O banqueiro corta e Podvisótski junta as moedas de ouro. "Espera, pánie", diz o banqueiro. Abre uma gaveta e dá-lhe 1 milhão: "Toma, eis tua conta!" A banca era de 1 milhão. "Ignorava-o", disse Podvisótski. "Pan Podvi­sótski", disse o banqueiro, "ambos jogamos sob palavra. " Podvisótski pegou o milhão.

— Não é verdade — disse Kolgánov.

— Pan Kolgánov, entre pessoas decentes não se fala assim.

— É assim que um jogador polonês dará 1 milhão! — exclamou Mítia, mas logo se conteve. — Perdão, pánie, não tenho razão de novo. Certamente dará ele 1 milhão sob palavra de honra, a honra polonesa. Eis 10 rublos no valete.

— E eu 1 rublo na dama de copas, na bonitinha pánienxa — de­clarou Maksímov, e, como para dissimulá-lo aos olhares, aproximou-se da mesa e fêz por baixo um sinal-da-cruz. Mítia ganhou, o rublo também.

— Dobro! — gritou Mítia.

— E eu, ainda 1 rublinho, um simples rublinho — murmurou bea­tificamente Maksímov, encantado por haver ganho.

— Perdido! — gritou Mítia. — Dobro!

— Perdeu de novo.

— Pare — disse, de súbito, Kolgánov.

Mítia dobrava sempre sua parada, mas perdia a cada jogada. E os "rublinhos" ganhavam sempre.

— Perdeste 200 rublos, pánie. Será que apostas ainda? — pergun­tou o pan do cachimbo.

— Como, já 200? Pois seja, ainda 200! — E Mítia ia colocar as notas sobre a dama, quando Kolgánov cobriu-a com a mão.

— Basta! — gritou ele, com sua voz sonora.

— Que tem o senhor? — perguntou Mítia.

— Basta, não quero! O senhor não jogará mais.

— Por quê?

— Porque não. Pare, vá-se embora! Não o deixarei jogar mais. Mítia olhava-o com espanto.

— Deixa, Mítia, ele talvez tenha razão; já perdeste muito — pro­feriu Grúchenhka, num tom singular. Os dois pánowie levantaram-se com ar muito ofendido.

— Está brincando, pánie? — perguntou o mais baixo, fixando seve­ramente Kolgánov.

— Como ousa o senhor? — disse arrebatadamente, por sua vez, Vru­bliévski.

— Nada de gritos, nada de gritos! Ah! os galos-da-índia! — excla­mou Grúchenhka.

Mítia olhava a uns e a outros sucessivamente: algo o impressio­nou no rosto de Grúchenhka, ao mesmo tempo que uma idéia nova e estranha lhe vinha ao espírito.

— Páni Agripina! — começou ô pan baixinho, rubro de cólera. De repente, Mítia aproximou-se dele e bateu-lho no ombro.

— Excelência, duas palavras.

— Que deseja, pánie?

— Vamos ao quarto vizinho. Dir-te-ei duas palavras que irão agra­dar-te.

O pan baixinho admirou-se e olhou Mítia, apreensivo; mas con­sentiu imediatamente, com a condição de que o pan Vrubliévski o acompanharia.

— É teu guarda-costas? Pois seja, que venha ele também, sua pre­sença é, aliás, necessária... Vamos, pánowie!...

— Aonde vão? — perguntou Grúchenhka, inquieta.

— Voltaremos agora mesmo — respondeu Mítia. Seu rosto expri­mia a resolução e a coragem, tinha um ar bem diferente daquele de uma hora antes, à sua chegada. Conduziu os pánowie não à peça à direita, onde se reunia o coro, mas a um quarto de dormir, repleto de malas, de arcas, com dois grandes leitos e uma montanha de tra­vesseiros. A um canto, uma vela ardia sobre uma mesinha. O pan e Mítia instalaram-se frente a frente e pan Vrubliévski ao lado deles, com as mãos atrás das costas. Os poloneses tinham ar severo, mas intrigado.

— Em que posso servi-lo, senhor? — murmurou o mais baixo.

— Serei breve, pánie. Aqui tenho dinheiro — e exibiu seu maço de cédulas. — Se queres 3 000 rublos, toma-os e vai-te embora.

O pan olhava-o atentamente.

— Três mil, pánie? — Trocou um olhar com Vrubliévski.

— Três mil, pánowie, 3 000! Escuta, vejo que és um homem ajui­zado. Toma 3 000 rublos e vai-te para o diabo com Vrubliévski, ouviste? Mas imediatamente, agora mesmo e para sempre! Sairás por esta porta. Levarei teu sobretudo ou tua peliça. Atrelarão para ti uma tróica, e boa noite, hein?

Mítia esperava a resposta com segurança. O rosto do pan tomou uma expressão das mais decididas.

— E os rublos?

— Aqui, estão, pánie: 500 rublos como sinal, imediatamente, e 2 500 amanhã na cidade. Juro pela minha honra que os terás, ainda que fosse preciso arrancá-los de baixo da terra!

Os poloneses trocaram novo olhar. O rosto do mais baixo tornou-se hostil.

— Setecentos, 700 imediatamente! — acrescentou Mítia, sentindo que a coisa ia atrapalhar-se. — Pois bem, pánie, não me acreditas? Não posso dar-te os 3 000 rublos duma vez. Voltarias amanhã para junto dela. Aliás, não os tenho comigo, estão na cidade — balbuciou Mítia, perdendo coragem a cada palavra. — Palavra de honra, num escon­derijo...

Vivo sentimento de amor-próprio brilhou no rosto do pan baixinho.

— É tudo quanto queres? — perguntou, ironicamente. — Fora! Que vergonha! — E cuspiu. Pan Vrubliévski imitou-o.

— Tu cospes, pánie — disse Mítia, desolado Dor causa de seu fracasso —, porque pensas tirar vantagem de Grúchenhka. Sois, todos dois, uns idiotas!

— Isto me ofende profundamente! — disse o pan baixinho, verme­lho como uma lagosta e, no cúmulo da indignação, saiu do quarto com Vrubliévski, que se bamboleava. Mítia seguiu-os, todo confuso. Temia Grúchenhka, pressentindo que o pan iria queixar-se. Foi o que acon­teceu. Com um ar teatral, plantou-se diante de Grúchenhka e repetiu:

— Páni Agripina, fui profundamente ofendido!

Mas Grúchenhka, como que queimada ao vivo, perdeu a paciência e gritou, vermelha de cólera:

— Fala russo, nem uma palavra de polonês! Falavas russo outrora. Tê-lo-ias esquecido em cinco anos?

— Páni Agripina...

— Chamo-me Agrafiena, sou Grúchenhka! Fala russo, se queres que te escute!

O pan, sufocado, gaguejou com ênfase, estropiando as palavras:

— Páni Agrafiena, vim para esquecer o passado e tudo perdoar até este dia...

— Perdoar como? Foi para perdoar que vieste? — interrompeu Grúchenhka, que se levantou.

— Isto mesmo, páni, porque tenho coração generoso. Mas tive gran­de surpresa vendo teus amantes. Pan Mítia ofereceu-me 3 000 rublos para que eu me vá embora. Cuspi-lhe na cara.

— Como? Ele te oferecia dinheiro por mim? É verdade, Mítia? Ousaste-o? Estou, pois, à venda?

— Pánie, pánie — disse Mítia —, ela é pura e jamais fui seu amante! Mentiste...

— Como ousas defender-me diante dele? Não foi por virtude que me conservei pura, nem por temor de Kuzmá, era para ter o direito de tratar de miserável esse homem. Recusou ele deveras teu dinheiro?

— Pelo contrário, aceitava-o; somente queria os 3 000 rublos ime­diatamente e eu só lhe dava 700 rublos de entrada.

— Está claro; soube que tenho dinheiro, eis por que quer casar comigo.

— Páni Agripina, sou um cavalheiro... sou... um nobre polonês e não um vagabundo! Vim para casar contigo, mas não encontro mais a mesma páni, a de hoje é uma teimosa e desavergonhada.

— Volta para donde vens! Vou mandar pôr-te para fora daqui! Tola que fui por atormentar-me durante cinco anos! Mas não era por causa dele que me atormentava, era o meu rancor que eu acari­nhava. Aliás, meu amante não era isso. Parece mais o pai dele! Onde encomendaste uma peruca? O outro ria, cantava, era um falcão, mas tu não passas de uma galinha molhada! E eu que passei cinco anos em lágrimas, ó tola criatura!

Recaiu sobre a poltrona e ocultou seu rosto nas mãos. Naquele mo­mento, no quarto vizinho, o coro das moças, afinal reunido, entoou uma ousada canção dançável.

— Isto é uma Sodoma! — gritou pan Vrubliévski. — Patrão, ponha para fora essas desavergonhadas!

O hospedeiro, que esperava desde muito tempo na porta, adivinhando pelos gritos que estavam a brigar, entrou sem demora.

— Que berros são esses? — apostrofou ele Vrubliévski.

— Animal!

— Animal? Com que cartas estavas jogando ainda há pouco? Dei-te um baralho novinho. Que fizeste dele? Empregaste cartas falsas! Isso podia levar-te à Sibéria, sabes tu? Porque equivale a passar moeda falsa... — Indo ao divã, pôs a mão entre o espaldar e unia almofada, retirando dali o baralho lacrado.

— Ei-lo, o meu baralho, intato. — Elevou-o no ar e mostrou-o aos assistentes. — Vi-o operar e substituir suas cartas pelas minhas. És um velhaco e não um pan.

— E eu vi o outro pan trapacear duas vezes! — disse Kolgánov.

— Ah! que vergonha, que vergonha! — Grúchenhka juntou as mãos, corando. — Meu Deus, que homem ele se tornou!

— Bem o imaginava! — disse Mítia.

Então, pan Vrubliévski, confuso e exasperado, gritou para Grú­chenhka, ameaçando-a com o punho:

— Rameira!

Mítia já se havia lançado sobre ele; agarrou-o, ergueu-o e carregou-o num abrir e fechar de olhos até o quarto onde tinham estado antes.

— Larguei-o no soalho! — anunciou, ao voltar, resfolegante. — Debate-se o canalha, mas não voltará!... — Fechou um dos ba­tentes da porta e, mantendo o outro aberto, gritou para o pan bai­xinho:

— Excelência, não gostaria de fazer-lhe companhia? Rogo-lhe...

— Mítri Fiódorovitch — disse Trifon Borísovitch —, retoma deles teu dinheiro então! É como se eles te houvessem roubado.

— Faço-lhes presente de meus 50 rublos — disse Kolgánov.

— E eu dos meus 200. Que isto lhes sirva de consolação!

— Bravo, Mítia! Que grande coração! — gritou Grúchenhka num tom em que vibrava viva irritação.

O pan baixinho, rubro de cólera, mas que nada perdera de sua dig­nidade, dirigiu-se para a porta; de repente parou e disse a Grúchenhka:

— Páni, se queres seguir-me, vem, se não, adeus!

Gravemente, sufocado de indignação e de amor-próprio ferido, saiu. Sua vaidade era extrema; mesmo depois do que se passara, esperava ainda que a páni o seguiria. Mítia fechou a porta.

— Fecha-os — disse Kolgánov. Mas a fechadura rangeu do lado deles. Tinham-se fechado eles próprios.

— Bravo! — gritou Grúchenhka, com raiva implacável. — As­sim é que deve ser!

 

DELÍRIO

Começou então quase uma orgia, uma festa de arromba. Grúchenhka foi a primeira a pedir bebida:

— Quero embriagar-me como da outra vez, lembras-te, Mítia, quan­do nos conhecemos!

Mítia delirava quase, pressentia "sua felicidade". Aliás, Grúchenh­ka afastava-o de seu lado a cada instante:

— Vai divertir-te, dize-lhes que dancem e se divirtam como da outra vez!

Estava superexcitada. O coro se reunia no quarto vizinho. Aquele em que se achavam era exíguo, separado em duas partes por uma cortina de chita da Índia, por trás da qual um imenso leito com um edredão e uma montanha de travesseiros. Todos os quartos de apa­rato daquela casa possuíam um leito. Grúchenhka instalou-se à porta; era dali que olhava o coro e as danças, por ocasião do primeiro festim deles. As mesmas moças encontravam-se, ali os judeus com seus violinos e suas cítaras tinham chegado, bem como a famosa tieliega com as provisões. Mítia movimentava-se no meio de toda aquela gente. Ho­mens e mulheres acorriam, despertados e farejando um rega-bofe enorme, como um mês antes. Mítia cumprimentava e beijava os conhe­cidos, servindo de beber a quem chegava. Somente as moças aprecia­vam o champanha, os mujiques preferiam o rum e o conhaque, sobre­tudo o ponche. Mítia ordenou que preparassem chocolate para as moças e conservassem ferventes a noite inteira três samovares para oferecer chá e ponche a quantos os quisessem. Em suma, uma pân­dega extravagante começou. Mítia sentia-se ali no seu elemento e ani­mava-se à medida que a desordem aumentava. Se um mujique lhe tivesse então pedido dinheiro, teria tirado seu maço de notas e dis­tribuído à direita e à esquerda sem contar. Eis sem dúvida por que, a fim de preservar Mítia, o dono da casa, Trifon Borísovitch, que renunciara a deitar-se naquela noite, quase não o deixava. Não bebia (um copo de ponche ao todo), velando, cuidadosamente, à sua maneira, pelos interesses de Mítia. Quando se tornava preciso, detinha-o, afe­tuosa e servilmente, e pregava-lhe um sermão, impedindo-o de distribuir como "da outra vez" aos mujiques "charutos, vinho do Reno" e, Deus nos guarde, dinheiro. Indignava-se ao ver as moças comerem bombons e bebêrem licores.

— Estão cheias de piolhos, Mítri Fiódorovitch; meter-lhes-ia de bom grado o pé em certo lugar, isto seria mesmo fazer-lhes honra. Mítia lembrou-se de Andriéí e mandou levar-lhe ponche: "Ofendi-o ainda há pouco", repetia com voz enternecida. Kolgánov recusou a princípio beber e o coro lhe desagradou muito, mas, depois de ter absorvido dois copos de champanha, tornou-se bastante alegre e achou tudo perfeito, os cantos e a música. Maksímov, satisfeito e meio bêbado, não o deixava. Grúchenhka, a quem o vinho subia à cabeça, apon­tava Kolgánov a Mítia: "Que rapaz gentil!" E Mítia corria a beijar todos dois. Pressentia muitas coisas; ela não lhe dissera nada ainda de semelhante e retardava o momento; por vezes somente lançava-lhe um olhar cheio de ardor. De repente, pegou-lhe na mão e fê-lo sentar-se ao lado dela.

— Que chegada a tua ainda há pouco! Tive tanto medo! Querias ceder-me a ele, não é? É verdade?

— Não queria perturbar a tua felicidade. Ela, porém, não o escutava.

— Está bem, vai, diverte-te, não chores, eu te chamarei de novo. Deixou-o, voltou a escutar as canções, a olhar as danças, enquanto o acompanhava com o olhar; ao fim de um quarto de hora, tornou a chamá-lo.

— Fica aqui, conta-me, como soubeste de minha partida, quem foi o primeiro a informar-te?

Mítia começou seu relato desordenadamente, duma maneira incoe­rente, por vezes franzia as sobrancelhas e parava.

— Que tens? — perguntava-lhe ela.

— Nada. Deixei lá embaixo um doente. Para que ele fique curado, para saber que ficará curado, daria dez anos de minha vida!

— Deixa-o tranqüilo, esse teu doente. Então querias matar-te ama­nhã, bobinho, por quê? Gosto dos desmiolados, como tu — murmurou ela, com a voz um tanto pastosa. — Então estás disposto a tudo por minha causa, não é? E querias deveras matar-te amanhã? Espera, dir-te-ei talvez uma palavrinha... não hoje, amanhã. Quererias hoje? Não, não quero... Vai divertir-te.

Uma vez, no entanto, ela o chamou com ar preocupado.

— Por que estás triste? Porque estás triste, vejo-o — acrescentou ela, com os olhos fitos nos dele. — Por mais que beijes os mujiques e te movimentes, bem o percebo. Uma vez que estou alegre, fica alegre também... Amo alguém aqui... adivinha quem! Olha, ele adormeceu, o coitado, está bêbado.

Falava de Kolgánov, que estava embriagado, com efeito, e dormi­tava em cima do divã. Mas, de parte a embriaguez, sentia ele tristeza ou, como dizia, "tédio". As canções das moças, que se tornavam por demais lascivas e licenciosas, à medida que bebiam, tinham acabado por aborrecê-lo. O mesmo com as danças; duas moças, disfarçadas de urso, eram "exibidas" por Stiepanida, uma mocetona armada dum cacete. "Entusiasmo, Maria", gritava, "se não, toma cuidado!" Final­mente, os ursos rolaram no soalho duma maneira indecente, com explo­sões de gargalhadas dum público grosseiro.

— Que se divirtam, que se divirtam! — disse sentenciosamente Grúchenhka, num ar extasiado. — É o dia deles. Por que não haveriam de divertir-se?

Kolgánov olhava com ar de desgosto:

— Como são baixos esses costumes populares! — observou, afastan­do-se. Ficou sobretudo chocado por uma canção "nova", com um estribilho alegre, em que um bárin em viagem interrogava as moças:

O bárin às moças perguntou: Gostam de mim, gostam de mim, meninas? Mas estas acham que não podem amá-lo: O bárin me surraria E eu dele não gostaria. Depois foi a vez de um cigano, que não é mais feliz: O cigano há de roubar E eu lágrimas derramar. Outras personagens desfilam, fazendo a mesma pergunta, até um soldado, repelido com desprezo:

O soldado levará Seu saco e eu atrás... Seguia-se um verso dos mais cínicos, cantado abertamente e que fazia furor entre os ouvintes. Acabava-se pelo comerciante: O mercador às moças perguntou: Gostam de mim, gostam de mim, meninas? Dele, elas gostam muito porque

O mercador será rico E eu dona de tudo fico. Kolgánov zangou-se:

— Só falta nessa canção um ferroviário ou um judeu para fazer perguntas às moças. Garanto que ganhariam para todos.

Quase ofendido, declarou que se entediava, sentou-se no divã e ador­meceu. Seu rosto gentil, um pouco empalidecido, repousava sobre a almofada.

— Olha como ele é belo — disse Gruchenhka a Mítia. — Passei-lhe a mão pelos cabelos, dir-se-ia linho...

E, inclinando-se sobre ele, beijou-lhe com ternura a testa. Kol­gánov abriu logo os olhos, olhou-a, ergueu-se, perguntou com ar preo­cupado:

— Onde está Maksímov?

— Eis o que lhe faz falta! — Gruchenhka pôs-se a rir. — Fica comigo um minuto. Mítia, vai procurar o Maksímov dele.

Maksímov não largava as moças, exceto para ir beber licores. Já bebêra duas xícaras de chocolate. Estava com o nariz escarlate, os olhos úmidos e ternos. Aproximou-se e declarou que ia dançar A Ta­manqueira.

— Na minha infância ensinaram-me essas danças mundanas...

— Vai com ele, Mítia, eu o verei dançar daqui.

— Eu também vou olhar — exclamou Kolgánov, declinando inge­nuamente do convite de Gruchenhka para ficar com ela. E todos foram ver. Maksímov dançou, com efeito, mas não obteve êxito, salvo da parte dê Mítia. Sua dança consistia em saltitar com contorsões, com as solas do sapato no ar; a cada salto, Maksímov batia com a mão na sola. Isto desagradou a Kolgánov, mas Mítia beijou o dan­çarino.

— Obrigado, deves estar fatigado. Queres bombons, heín? Um cha­ruto, talvez?

— Um cigarro.

— Queres beber?

— Tomei licores... Não tem bombons de chocolate?

— Há uma porção em cima da mesa, escolhe, meu anjo!

— Não, prefiro os de baunilha... para os velhos... ih! ih! ih!

— Não, irmão, não há desses.

— Escute! — disse o velho, inclinando-se para o ouvido de Mítia. — Aquela moça ali, a Maria, ih! ih! ih! Gostaria bem de conhecê-la, graças à sua bondade...

— Vejam só isso! Estás brincando, camarada.

— Não faço mal a ninguém — murmurou humildemente Mak­símov.

— Bem, bem. Aqui, camarada, a gente tem de contentar-se com cantar e dançar, ainda que, afinal... Espera... Regala-te, bebe, diver­te-te. Tens necessidade de dinheiro?

— Depois, talvez — sorriu Maksímov.

— Bem, bem.

Mítia tinha a cabeça em fogo. Saiu para o alpendre que cercava uma parte do prédio. O ar fresco lhe fêz bem. Só na escuridão, segurou a cabeça com as duas mãos. Suas idéias esparsas agruparam-se de súbito e tudo se aclarou a uma luz terrível... "Se tenho de matar-me é agora ou nunca", pensou ele. "Pegar uma pistola e acabar neste canto escuro!" Cerca de um minuto ficou indeciso. Ao vir a Mókroie, tinha na consciência a vergonha, o roubo cometido e o sangue derra­mado... Mas sentia-se mais à vontade. Tudo estava acabado. Gru­chenhka, cedida a um outro, não existia mais para ele. Sua decisão fora fácil de tomar, parecia pelo menos inevitável e necessária, pois por que haveria de viver doravante? Mas a situação não era mais a mesma. Aquele fantasma terrível, aquele homem fatal, o amante de outrora, desaparecera sem deixar traços. A aparição temível tornava-se um boneco ridículo que se trancava a chave. Gruchenhka tem vergonha e adivinha em seus olhos quem é que ela ama. Bastaria agora viver, e é impossível, oh! maldição! "Meu Deus, ressuscita aquele que jaz perto da paliçada! Afasta de mim esse cálice amargo! Porque tu pra­ticaste milagres para pecadores como eu! E se o velho vive ainda? Oh! então, lavarei a vergonha que pesa sobre mim, restituirei o dinheiro roubado, arrancá-lo-ei de sob a terra... A infâmia só terá deixado traços em meu coração para sempre. Mas não, são sonhos impossíveis! Oh! maldição!"

Um raio de esperança aparecia-lhe, no entanto, nas trevas. Correu para o quarto, para ela, para sua rainha por toda a eternidade. "Uma hora, um minuto de seu amor não valem o resto da vida, ainda mesmo nas torturas da vergonha? Vê-la, a sós, ouvi-la, não pensar em nada, esquecer tudo, pelo menos nesta noite por uma hora, um instante!" Ao tornar a entrar, encontrou o hospedeiro Trifon Borísovitch, que lhe pareceu sombrio e preocupado.

— Então, Borísovitch, estavas à minha procura?

— Não — o hospedeiro pareceu constrangido —, por que haveria de procurá-lo? Onde estava o senhor?

— Por que estás tão carrancudo? Estarias zangado? Espera, vais poder deitar-te... Que horas são?

— Já deve passar de 3 horas.

— Vamos acabar, vamos acabar.

— Mas não adianta nada. Enquanto o senhor quiser... "Que há?", pensou Mítia correndo para a sala de dança. Gruchenhka não estava mais ali. No quarto azul Kolgánov dormitava sobre o divã. Mítia olhou por trás das cortinas. Sentada sobre uma mala, com a cabeça inclinada sobre o leito, ela chorava copiosamente, esforçando-se por abafar seus soluços. Fez sinal a Mítia para se aproximar e tomou-lhe a mão.

— Mítia, Mítia, eu o amava! Não cessei de amá-lo durante cinco anos. Era a ele que eu amava ou ao meu rancor? Era a ele, oh! era a ele! Menti, dizendo o contrário!... Mítia, tinha eu dezessete anos então, era ele tão terno, tão alegre, cantava-me canções... ou então assim me parecia a mim, meninota tola. Agora, meu Deus, não é mais absolutamente o mesmo. Seu rosto mudou, não o reco­nhecia. Ao vir aqui, pensava todo o tempo: "Como irei abordá-lo, que lhe direi, que olhares trocaremos?"... Minha alma desf alecia... e foi como se recebesse um balde de água suja. Dir-se-ia um professor sisudo. Cheguei a ficar boba. Pensei a princípio que a presença de seu comprido camarada o constrangia. Pensei, ao olhá-los: por que não acho nada para dizer-lhe? .Sabes, foi a mulher dele que o estragou, a tal pela qual me abandonou... Ela o metamorfoseou, Mítia, que ver­gonha! Oh! que vergonha sinto, Mítia, vergonha por toda a minha vida! Maldito sejam esses cinco anos!

Desfez-se de novo em lágrimas, sem largar a mão de Mítia.

— Mítia, meu querido, não te vás, quero dizer-te uma coisa — murmurou ela, erguendo a cabeça. — Escuta, dize-me a quem amo. Amo alguém aqui, quem é? — Um sorriso brilhou em seu rosto cheio de lágrimas. — À entrada dele, meu coração desfaleceu: 'Tola, eis aquele a quem amas", disse meu coração. Tu apareceste e tudo se ilu­minou. "De quem tem ele medo?", pensei. Porque tu tinhas medo, não podias falar. "Não é deles que ele tem medo", disse a mim mesma. "Ha­verá homem que lhe cause medo? Eu só é que causo, eu só." Porque Fiénia te contou, bobinho, o que gritei a Aliócha pela janela: amei Mítia durante uma hora e parto para amar... outro. Mítia, como pude pensar que amaria outro depois de ti? Perdoas-me, Mítia? Amas-me? Amas-me tu?

Levantou-se, pôs as mãos nos ombros dele. Mudo de felicidade, con­templa-lhe ele os olhos, o sorriso; de repente, apertou-a em seus braços.

— Tu me perdoas o ter-te feito sofrer? Era por maldade que eu vos torturava a todos. Foi por maldade que| enlouqueci o velho... Lembras-te do copo que partiste em minha casa? Lembrei-me disso e fiz o mesmo hoje bebendo ao "meu coração vil". Mítia, por que não me beijas? Depois de um beijo tu me olhas, tu me escutas... Para que escutar-me? Beija-me com mais força, assim. Não se deve amar pela metade! Serei agora tua escrava, tua escrava por toda a vida! É doce ser escrava! Beija-me! Faze-me sofrer, faze de mim o que qui-seres... Oh! é preciso fazer-me sofrer... Pára, espera, depois, não quero assim... — E ela o repeliu, de repente. — Vai-te, Mítia, vou beber, quero embriagar-me, dançarei bêbeda, quero-o, quero-o.

Libertou-se dele e saiu. Mítia seguiu-a, cambaleando. "Aconteça o que acontecer, não importa, daria o mundo inteiro por este instante", pensava ele. Grúchenhka bebeu dum trago um copo de champanha, que a aturdiu. Sentou-se numa cadeira, sorrindo de felicidade. Suas faces coloriram-se, sua vista turvou-se, seu olhar apaixonado fascinava. O próprio Kolgánov ficou encantado e aproximou-se dela.

— Sentiste quando te beijei ainda há pouco, enquanto dormias? — murmurou ela. — Estou bêbeda agora, e tu? Por que não bebes, Mítia? Eu bebi...

— Já estou embriagado... de ti, e quero ficar bêbado de vinho. — Bebeu ainda um copo e — isto pareceu-lhe estranho — esse derradeiro copo embriagou-o de repente, a ele que suportara a bebida até então. A partir daquele momento, tudo girou em torno dele, como no delírio. Andava, ria, falava a todo mundo, não se conhecia mais. Só um sentimento ardente se manifestava nele por momentos "como brasa na alma", lembrou-se ele mais tarde. Aproximava-se dela, contemplava-a, escutava-a... Ela se tornou bastante loquaz, chamando todos, atraindo alguma moça do coro, que mandava embora depois de tê-la beijado, ou por vezes com um sinal-da-cruz. Estava a ponto de chorar. O "ve­lhinho", como chamava a Maksímov, divertia-a bastante. A cada ins­tante vinha ele beijar-lhe a mão, e acabou por dançar de novo, acompanhando-se de uma velha canção de estribilho arrebatante:

O porco, gru, gru, gru,

A bezerra mé, mé, mé,

O pato, coen, coen,

O ganso, quá, quá, quá,

No quarto a franga corria,

Cá, có, có, cantando ia.

— Dá-lhe alguma coisa, Mítia, ele é pobre. Ah! os pobres, os ofendidos!... Sabes tu, Mítia, quero entrar para um convento. Ê sério, irei algum dia. Lembrar-me-ei toda a vida do que me disse Aliócha hoje. Dancemos agora. Amanhã, no convento, hoje, no baile. Quero fazer loucuras, boa gente, Deus as perdoará. Se eu fosse Deus, perdoaria a todo mundo: "Meus caros pecadores, perdôo a todos". Irei implorar meu perdão: "Perdoai a uma tola, boa gente". Sou uma besta feroz, eis o que sou. Mas quero rezar. Dei uma pequena cebola. Uma miserável como eu quer rezar! Mítia, não os impeça de dançarem. Todo mundo é bom, sabes? Todo mundo. A vida é bela. Por mau que se seja, é bom viver... Somos bons e maus ao mesmo tempo... Dizei-me, rogo-vos, por que sou tão boa? Porque sou muito boa...

Assim divãgava Grúchenhka à medida que a embriaguez a dominava. Declarou que queria dançar, levantou-se, cambaleando.

— Mítia, não me dês mais vinho, mesmo se eu pedir. O vinho perturba-me e tudo gira, até mesmo a estufa. Mas quero dançar. Vão ver como danço bem...

Era uma intenção decidida; exibiu um lenço de batista que pegou por uma ponta para agitá-lo ao dançar. Mítia apressou-se, as moças se calaram, prontas a entoar, ao primeiro sinal, a toada da dança russa. Ao saber que Grúchenhka queria dançar, Maksímov lançou um grito de alegria, saltitou diante dela, cantando:

Pernas finas, ancas torneadas, Cauda em forma de trombeta. Ela, porém, o afastou com uma rabanada do lenço.

— Psiu! Que todos venham olhar-me. Mítia, chama também os que estão fechados... Por que fechá-los? Dize-lhes que vou dançar, que eles venham ver-me...

Mítia bateu vigorosamente à porta dos poloneses.

— Ei! vocês aí... Podvisótski! Saiam! Ela vai dançar e chama-os.

— Laidakf — resmungou um dos poloneses.

— E tu és mais que um laidak, és um canalha!

— Por que não pára o senhor de mexer com a Polônia? — obser­vou gravemente Kolgánov, igualmente bêbado.

— É bom, meu rapaz! Mas o que eu disse dirige-se a ele e não à Polônia. O miserável não a representa. Cala-te, meu bonitote, come bombons.

— Que criaturas! Por que não querem eles fazer a paz? — mur­murou Grúchenhka, que avançou para dançar. O coro repercutiu. Ela entreabriu os lábios, agitou seu lenço e, depois de ter balanceado, parou no meio da sala.

— Não tenho forças... — murmurou ela, com voz extinta. — Des­culpem-me, não posso... perdão.

Saudou o coro, fêz reverências à direita e à esquerda.

— Ela bebeu, a bonita senhora — disseram vozes.

— A madama tomou um pileque — explicou, com uma risadinha, Maksímov às moças.

— Mítia, leva-me... toma-me...

Mítia ergueu-a em seus braços e foi depositar seu precioso fardo sobre o leito. "Agora, vou-me embora", pensou Kolgánov, e, deixando a sala, fechou atrás de si a porta do quarto azul. Mas nem por isso deixou a festa de continuar cada vez mais barulhenta. Grúchenhka estava deitada, Mítia colou seus lábios aos dela.

— Deixa-me — implorou ela —, não me toques antes que eu seja tua... Disse que seria tua... poupa-me... Perto dele, é impossível, causa-me horror isto.

— Obedeço! Nem mesmo em pensamento... Respeito-te! Sim, é repugnante aqui. — Sem afrouxar seu abraço, ajoelhou-se junto do leito.

— Muito embora sejas violento, sei que és nobre... É preciso que seja honestamente doravante... Sejamos honestos e bons, não nos assemelhemos aos animais... Leva-me para bem longe, entendes?... Não quero aqui, mas longe, longe...

— Sim, sim. — Mítia apertou-a. — Levar-te-ei, partiremos... Oh! daria toda a minha vida. por um ano contigo, só para nada saber desse sangue.

— Que sangue?

— Nada — e Mítia rangeu os dentes. — Grucha, queres que seja honestamente, mas sou um ladrão. Roubei Katka. Oh! vergonha! oh! vergonha!

— Katka? Aquela senhorita? Nã*o, nada lhe tomaste. Reembolsa-a, toma meu dinheiro... Por que gritas? Tudo quanto me pertence é teu. De que serve o dinheiro? Nós o gastamos sem poder impedir-nos disso. Iremos de preferência cavar a terra. É preciso trabalhar, entendes? Aliócha ordenou-o. Não serei tua amante, mas tua mulher, tua escra­va, trabalharei para ti. Iremos cumprimentar a senhorita, pedir-lhe perdão, e partiremos. Se ela recusar, tanto pior. Entrega-lhe seu dinheiro e ama-me. Esquece-a. Se a amas ainda, estrangulo-a... Furar-lhe-ei os olhos com uma agulha...

— É a ti que amo, a ti somente. Amar-te-ei na Sibéria.

— Por que na Sibéria? Pois seja. na Sibéria, se quiseres. Que me importa?... Trabalharemos... há neve... Gosto de viajar sobre a neve... e o tintineio da si neta... Estás ouvindo? Uma sínêta tilin-ta... Onde é? Viajantes que passam... parou.

Fechou os olhos e pareceu adormecer. Uma sinêta, com efeito, havia tilintado ao longe. Mítia reclinou a cabeça sobre o peito de Grúchenhka. Não reparava que a campainha tinha cessado de tilintar e que às can­ções e ao tumulto havia sucedido na casa um silêncio de morte. Grúchenhka abriu os olhos.

— Que há? Dormi? Ah! sim, a sinêta... Sonhei que viajava sobre a neve... a sinêta tilintava e adormeci. íamos os dois juntos, longe, longe. Beijava-te, apertava-me contra ti, tinha frio e a neve cintilava...

Não sabes como ela cintila ao clarão da lua? Cria-me noutro lugar que não na terra... Desperto, meu bem-amado, junto de ti. Que bom!

— Perto de ti — murmurou Mítia, cobrindo de beijos o peito e as mãos de sua amada. De repente pareceu-lhe que ela olhava diretamente à sua frente, por cima de sua cabeça, com um olhar estranhamente fixo. A surpresa, quase o terror, pintou-se em seu rosto.

— Mítia, quem é esse que nos está olhando? — cochichou ela. Mítia voltou-se e viu alguém que havia afastado as cortinas e os examinava. Levantou-se e avançou vivamente para o indiscreto.

— Venha cá, peço-lhe — disse uma voz decidida.

Mítia saiu de trás das cortinas e parou. O quarto estava cheio de novas personagens.. Mítia sentiu um arrepio na espinha, estremeceu. Reconhecera todos imediatamente. Aquele velho de elevada estatura, de sobretudo, com uma insígnia no casquete de seu uniforme, é o is-právnik Mikhail Makráritch. Aquele janota tuberculoso, de botas irrepro-cháveis, é o suplente. Tem um cronômetro de 400 rublos, ele o mostrou. Aquele rapaz de óculos, baixinho... Mítia esqueceu seu nome, mas co­nhece-o, viu-o: é o juiz de instrução, que acaba de sair da Escola de Direito. Este aqui, é o stanovói, Mavríki Mavríkitch, um de seus co­nhecidos. E aqueles, com suas placas de metal, que fazem? E depois dois mujiques... Ao fundo, perto da porta, Kolgánov e Trifon Baríso-vitch...

— Senhores... Que há, senhores? — proferiu a princípio Mítia, que, de repente, prosseguiu com voz forte:

— Com-pre-endo!

O rapaz de óculos aproximou-se dele e disse com ar importante, mas com um pouco de pressa:

— Temos de dizer-lhe... numa palavra, peço-lhe que venha aqui, perto do divã... É necessário que tenhamos uma explicação.

— O velho! — exclamou Mítia, exaltado. — O velho ensangüen­tado! ... Compreendo!

E deixou-se cair sobre uma cadeira.

— Compreendes? Compreendeste? Parricida, monstro, o sangue de teu velho pai grita contra ti! — berrou de repente o velho isprávnik, aproximando-se de Mítia. Estava fora de si, vermelho, trêmulo de cólera.

— Mas é impossível, Mikhail Makáritch! — exclamou o rapaz baixinho. — Não é assim, não é assim!... Não teria jamais esperado semelhante coisa do senhor!...

— Mas está delirando, senhores, delirando! — continuou o isprávnik.

— Olhem-no: à noite, bêbado em companhia de uma mulher perdida, manchado do sangue de seu pai... Está delirando!...

— Rogo-lhe instantemente, meu caro Mikhail Makáritch, que mo-dere seus sentimentos — gaguejou o suplente, senão serei obrigado a tomar...

O pequeno juiz de instrução interrompeu-o e proferiu com voz firme e grave:

— Senhor tenente reformado Karamázov, devo declarar-lhe que o senhor é acusado de ter matado seu pai, Fiódor Pávlovitch, assassinado esta noite.

Acrescentou alguma coisa, o suplente igualmente, mas Mítia escutava sem compreender. Olhava-os a todos com um olhar estupidifiçado.



 

[1] Trocadilho com a palavra sosna, pinheiro, e a expressão sosna, em sonho, na frase sosna kak sosna.

[2] Dostoiévski faz Smierdiákov cometer um erro histórico, para ressaltar sua ignorância e pedantismo.

[3] Profissões de fé.

[4] "Se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo" Citação da Epístola ao Autor dos "Três Impostores", de Voltaire.

[5] Possível equívoco de Dostoiévski, confundindo este santo com São Julião, o Hospitaleiro.

[6] O bom julgamento da santíssima e graciosa Virgem Maria.

[7] A Virgem entre os condenados.

[8] Do Apocalipse, de São João.

[9] "Para a maior glória de Deus. " Mote dos jesuítas.

[10] "Jovem, levanta-te. " São Lucas, C. VII, v. 14. Palavras da linguagem aramaica, pronunciadas por Jesus Cristo quando da ressurreição do filho da viúva de Nain.

[11] "Tenho dito. " Expressão latina empregada antigamente no final dos discursos.

[12] Literalmente: cão de caça. Apelido de Górstkin.

[13] São João, C. XII, vs. 24-25.

[14] Costumavam-se denominar os prédios pelos nomes dos seus proprie­tários.

[15] São João, C. II, vs. 1-10.

[16] Agripina, empregado por Mítia com intenção notadamente irônica, tem em russo um matiz mais distinto do que a forma habitual Agra­fiena.

[17] Vocativo de pan, senhor, em polonês.

[18] Literalmente: interesseiro. Nome forjado. De rubi, rublo.

[19] Antes da partilha e anexação da Polônia.

                                                                                           

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