Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Os Irmãos Karamazov - p3 / Dostoiévski
Os Irmãos Karamazov - p3 / Dostoiévski

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Irmãos Karamazov

 

INICIA SUA CARREIRA O FUNCIONÁRIO PIERKHÓTIN

Piotr Ilitch Pierkhótin, que deixamos batendo com todas as suas forças no portão da Casa Morózova, acabou naturalmente fazendo que lhe abrissem. Ouvindo tamanho barulho, Fiénia, ainda mal reposta de seu terror, quase teve uma crise de nervos: imaginou que era Dimítri Fiódorovitch que voltava (se bem que tivesse assistido à sua partida), porque só ele podia bater tão insolentemente. Correu para o porteiro, que despertara com o barulho, e suplicou-lhe que não abrisse. Mas ele, tendo ficado sabendo o nome do visitante e seu desejo de vei Fiedóssia Márkovna para tratar de um negócio importante, decidiu deixá-lo entrar. Piotr Ilitch pôs-se a interrogar a moça e descobriu logo o fato mais importante: ao lançar-se à procura de Grúchenhka, Dimítri Fiódorovitch levara um pilão e voltara de mãos vazias, mas ensan­güentadas. "O sangue pingava", exclamou Fiénia, imaginando na sua perturbação aquela horrenda circunstância. Piotr Ilitch vira aquelas mãos e ajudara a lavá-las; não se tratava de saber se tinham secado rapidamente, mas se Dimítri Fiódorovitch tinha ido verdadeiramente à casa de seu pai com o pilão, e donde se podia concluir isso. Piotr Ilitch insistiu neste ponto e, muito embora nada haja em suma sabido de certo, ficou quase convencido de que Dimítri Fiódorovitch só pudera ter ido à casa de seu pai e que, por conseqüência, deveria ter-se passado lá alguma coisa. "Quando ele voltou", acrescentou Fiénia, "e quando lhe confessei tudo, perguntei-lhe: 'Dimítri Fiódorovitch, por que tem o senhor as mãos em sangue?' Respondeu-me que era sangue humano e que acabara de matar alguém. Assim confessou, arrependendo-se, depois saiu correndo como um louco. Pus-me a pensar: 'Onde bem pode ir agora? Irá a Mókroie matar minha patroa'. Corri então à casa dele para suplicar-lhe que a poupasse. Ao passar diante da venda dos Plastunovi, vi-o quando ia partir, mas de mãos limpas." (Fiénia notara este detalhe.) A avó confirmou o relato de sua neta. Piotr Ilitch deixou a casa ainda mais perturbado do que quando nela entrara.

Parecia que o mais simples seria agora ir à casa de Fiódor Pávlovitch informar-se se nada acontecera; em caso afirmativo, e uma vez ciente, iria à casa do ispravnik. Piotr Ilitch estava bem decidido a isso. Mas a noite estava escura, ò portão maciço, conhecia muito pouco Fiódor Pávlovitch; se, à força de bater, lhe abrissem e nada se tivesse passado, no dia seguinte o malicioso Fiódor Pávlovitch iria contar na cidade, como uma anedota, que, à meia-noite, o funcionário Pierkhótin, a quem não conhecia, forçara sua porta para saber se ele, Fiódor, não tinha sido assassinado. Seria um escândalo! Ora, Piotr Ilitch temia o escân­dalo mais que qualquer coisa. No entanto, o sentimento que o impelia era tão poderoso que, depois de ter batido o pé com cólera e haver invectivado a si mesmo, lançou-se noutra direção, para a casa da Se­nhora Khokhlakova. Se ela respondesse negativamente à pergunta, a respeito dos 3 000 rublos dados àquela hora a Dimítri Fiódorovitch, iria procurar o isprávnik, sem passar em casa de Fiódor Pávlovitch; senão, deixaria tudo para o dia seguinte e voltaria para sua casa. Compreen­de-se bem que a decisão do jovem de se apresentar às 11 horas da noite em casa de conhecida senhora da sociedade, obrigá-la a levan­tar-se talvez para fazer-lhe uma pergunta singular, arriscava a provocar um escândalo bem maior que ir pedir informação em casa de Fiódor Pávlovitch. Mas tal é muitas vezes a sorte, sobretudo em semelhantes casos, das decisões das pessoas mais fleumatícas. Piotr Ilitch não estava de todo fleumático naquele momento! Lembrou-se toda a sua vida de como a inquietação insopitável que se apoderara dele degenerou em suplício e árrastou-o contra a sua vontade. Bem entendido, injuriou-se durante todo o caminho por causa daquele tolo passo que dava, mas "irei até o fim!", repetia pela décima vez, rangendo os dentes, e manteve sua palavra.

Soavam 11 horas, quando chegou à casa da Senhora Khokhlakova. Penetrou com bastante facilidade no pátio, mas o porteiro não pôde dizer-lhe com certeza se a senhora já estava deitada, como era costume seu àquela hora. "Faça-se anunciar e verá bem se o recebem ou não." Piotr Ilitch subiu, mas as dificuldades começaram. O lacaio não queria anunciá-lo; acabou por chamar a arrumadeira. Num tom polido, mas firme, Piotr Ilitch rogou-lhe que dissesse à sua ama que o funcionário Pierkhótin desejava falar-lhe a respeito dum assunto importante, sem o que não se teria permitido incomodá-la; "anuncie-me nestes termos", insis­tiu ele. Esperou no vestíbulo. A Senhora Khokhlakova já se achava no seu quarto de dormir. A visita de Mítia perturbara-a, pressentia para a noite uma dor de cabeça certa em semelhante caso. Ficou surpresa, mas recusou com irritação receber o jovem funcionário, se bem que a visita de um desconhecido, a semelhante hora, superexcitasse sua curio­sidade feminina. Mas Piotr Ilitch teimou desta vez como um mulo; vendo-se repelido, insistiu imperiosamente e fêz dizer nos mesmos ter­mos "que se tratava dum assunto muito importante, e que a senhora lamentaria talvez depois não o ter recebido". A criada de quarto olhou-o com espanto e voltou para levar o recado. A Senhora Khokhlakova ficou estupefata, refletiu, perguntou que aspecto tinha o visitante e sou­be que estava bem trajado, era jovem e bastante polido. Notemos, de passagem, que Piotr Ilitch era belo rapaz e sabia disso. A Senhora Khokhlakova decidiu aparecer. Estava em roupão de quarto e de chi­nelas e lançou um xale preto sobre os ombros. O funcionário foi convi­dado a entrar no salão. A dona da casa apareceu com ar interrogador, e, sem mandar o visitante sentar-se, convidou-o a explicar-se.

— Permito-me incomodá-la, minha senhora, a respeito de nosso conhecido comum, Dimítri Fiódorovitch Karamázov — começou Pier­khótin; mal, porém, havia pronunciado este nome, viva irritação pintou-se no rosto de sua interlocutora. Abafou ela um grito e interrompeu-o com cólera:

— Será que haverão de atormentar-me ainda por muito tempo com tão horrível personagem? Como ousou o senhor incomodar uma dama a quem não conhece, a semelhante hora... para lhe falar de um indivíduo que, aqui mesmo, há três horas, veio assassinar-me, ba­teu com o pé e saiu duma maneira escandalosa? Saiba, senhor, que darei queixa contra o senhor; queira jetirar-se imediatamente... Sou mãe, vou... eu...

— Então queria ele matá-la também?

— Será que ele já matou alguém? — perguntou impetuosamente a Senhora Khokhlakova.

— Queira conceder-me um minuto de atenção, minha senhora, e lhe explicarei tudo — respondeu com firmeza Pierkhótin. — Hoje, às 5 horas da tarde, o Senhor Karamázov me pediu emprestados 10 rublos, na qualidade de amigo, e sei positivamente que ele estava sem dinheiro; às 9 horas, foi à minha casa tendo na mão um maço de cédulas de 100 rublos, para cerca de 2 000 ou 3 000 rublos. As mãos e o rosto ensangüentados, tinha o ar de um louco. À minha per­gunta, donde provinha tanto dinheiro, respondeu textualmente que o recebera da senhora e que a senhora lhe adiantava uma soma de 3 000 rublos para que ele partisse em busca de minas de ouro...

O rosto da Senhora Khokhlakova exprimiu uma emoção súbita.

— Meu Deus! Foi o seu velho pai que ele matou! — exclamou ela, juntando as mãos. — Não lhe dei o dinheiro, absolutamente! Oh! corra, corra!... Não diga mais nada! Salve o velho, corra à casa do pai dele!

— Permita, minha senhora, com que então não lhe deu o dinheiro? Está bem certa de não lhe ter dado nenhuma soma?

— Nenhuma, nenhuma. Recusei, porque não sabia ele apreciar. Par­tiu furioso, batendo os pés. Lançou-se contra mim, recuei... Imagine — porque nada quero ocultar-lhe — que cuspiu em cima de mim! Mas por que ficar de pé? Sente-se... Desculpe-me, eu... Ou antes, corra a salvar aquele desgraçado velho de uma morte horrível!

— Mas se já o matou?

— Com efeito, meu Deus! Que vamos fazer agora? Que pensa o senhor que é preciso fazer?

Entretanto fizera Piotr Ilitch sentar-se e tomara lugar em frente dele. Este expôs-lhe brevemente os fatos de que fora testemunha, contou sua recente visita à casa de Fiénia e falou do pilão. Todos esses deta­lhes transtornaram a dama, que lançou um grito e pôs a mão diante dos olhos.

— Imagine o senhor que pressenti tudo isso! É um dom que tenho, todos os meus pressentimentos se realizam. Quantas vezes tenho olhado para aquele terrível homem pensando: acabará matando-me. E eis que aconteceu... Ou antes, se não me matou agora como a seu pai, foi graças a Deus, que me protegeu; além do mais, teve vergonha, porque eu lhe havia amarrado ao pescoço, aqui mesmo, uma pequena imagem, proveniente das relíquias de Santa Bárbara, mártir... Estive bem perto da morte naquele minuto. Tinha-me aproximado completamente dele, que me estendia o pescoço! Sabe o senhor, Piotr Ilitch (o senhor disse, creio, que é esse o seu nome), não creio nos milagres, mas aquela imagem, aquele milagre evidente em meu favor, isto me impres­siona e recomeço a crer em não importa o quê. Ouviu falar do stáriets Zósima?... Aliás, não sei o que digo... Imagine que ele cuspiu em mim com aquela imagem no pescoço... Cuspiu somente, sem matar-me, e... e eis para o que ele correu! Que vamos fazer agora? Que pensa o senhor?

Piotr Ilitch levantou-se e declarou que ia à casa do ispravnik contar tudo e este agiria como lhe conviesse.

— Ah! É um homem excelente, conheço Mikhail Makárovitch. Vá ter com ele sem falta. Como o senhor é engenhoso, Piotr Ilitch! No seu lugar, jamais teria pensado nisso!

— Tanto mais que me acho eu mesmo em bons termos com o ispravnik — observou Piotr Ilitch, visivelmente desejoso de escapar àquela dama expansiva que não o deixava despedir-se.

— Sabe duma coisa? Venha contar-me o que tiver visto e sabido... as verificações... o que se fará dele... Diga-me, a pena de morte não existe entre nós? Venha sem falta, ainda mesmo às 3 horas da manhã, até mesmo às 4... Mande acordar-me, sacudir-me, se não me levantar... Aliás, não dormirei, sem dúvida. E se eu o acompanhasse?

— N...ão, mas se certificar por escrito, para o que der e vier, que não deu o dinheiro a Dimítri Fiódorovitch, isto poderia servir... na ocasião...

— Decerto! — aprovou a Senhora Khokhlakova, lançando-se para sua escrivaninha. — Sabe? Estou impressionada e confundida com a sua engenhosidade, a sua perícia nessas questões... Serve aqui? Isto me causa grande prazer...

Enquanto falava, tinha, à pressa, traçado as seguintes poucas linhas, em letras graúdas:

Jamais emprestei 3 000 rublos ao desditoso Dimítri Fiódorovitch Ka~ ramázov, nem hoje, nem antes! Juro-o pelo que há de mais sagrado.

Khokhlakova.

— Pronto, aqui está! — disse ela, voltando-se para Piotr Ilitch. — Vá, salve sua alma. É um grande feito que o senhor pratica.

Fêz sobre ele três vezes o sinal-da-cruz e reconduziu-o até o ves-tíbulo.

— Quanto lhe sou grata! O senhor não pode imaginar como lhe sou grata por ter vindo em primeiro lugar procurar-me. Como é possível que não nos tenhamos jamais encontrado? Terei muito prazer em recebê-lo doravante. Causa-me prazer saber que o senhor serve aqui... e com tal exatidão, tanta engenhosidade... Mas devem apre­ciá-lo, compreendê-lo, enfim, e tudo quanto eu puder fazer pelo se­nhor, esteja certo... Oh! gosto da mocidade, sou doida por ela! As pessoas jovens são a esperança de nossa infeliz Rússia de hoje... Vá, vá!

Mas Piotr Ilitch já se havia escapulido, senão não o teria ela deixado partir tão depressa. Aliás, a Senhora Khokhlakova causara nele uma impressão bastante agradável, que amenizava mesmo sua apreensão de estar metido num negócio tão escabroso. Sabe-se que os gostos variam muito. "E ela não é lá tão idosa", pensava ele com satisfação, "pelo contrário, tê-la-ia tomado por sua filha."

Quanto à Senhora Khokhlakova, estava simplesmente encantada. "Uma tal habilidade, uma tal precisão em um homem tão jovem, com suas maneiras e seu exterior... Pretende-se que os jovens de hoje não prestam para nada, eis um exemplo, etc." Tanto que ela se esqueceu até "daquele horrendo acontecimento"; uma vez deitada, somente, é que se lembrou de "quão perto da morte estivera" e murmurou: "Ah! é horrível, horrível!" Mas adormeceu logo num sono profundo. Não me teria, aliás, estendido sobre detalhes tão insignificantes, se esse en­contro singular do jovem funcionário com uma viúva ainda frescalhota não tivesse influído, posteriormente, sobre toda a carreira daquele ra­paz metódico. Recorda-se isso mesmo com espanto em nossa cidade e diremos talvez uma palavra a respeito, ao terminar a longa história dos irmãos Karamázovi.

 

O ALARMA

Nosso isprávnik Mikhail Makárovitch, tenente-coronel reformado, que se tornara conselheiro de corte, era um honrado homem. Estabe­lecido em nosa cidade havia três anos apenas, conseguira atrair a simpatia geral porque "sabia reunir a sociedade". Havia sempre gente em casa dele, fosse apenas uma ou duas pessoas para jantar. Não teria podido viver sem isso. Os pretextos mais variados motivavam os convites. A comida não era fina, mas abundante, os pastéis de peixe excelentes, a quantidade dos vinhos compensava-lhes a mediocridade. Na primeira sala encontrava-se um bilhar, com cavalos de corrida ingleses enquadrados em molduras negras nas paredes, o que constitui, como se sabe, o ornamento necessário de todo bilhar em casa dum celibatário. Todas as noites jogava-se baralho. Mas muitas vezes a melhor sociedade de nossa cidade reunia-se para dançar, as mães com suas filhas. Mikhail Makárovitch, embora viúvo, vivia em família, com sua filha viúva e suas duas netas. Estas, que tinham terminado seus estudos, eram bastante gentis e alegres e, se bem que sem dote, atraíam para a casa de seu avô a juventude mundana. Em negócios, Mikhail Makáro­vitch era bastante limitado, mas exercia suas funções tão bem quanto muitos outros. Para falar a verdade, era um homem pouco instruído e até mesmo descuidado na sua maneira de compreender suas atribui­ções. Tinha vistas curtas a respeito de certas reformas do presente rei­nado, não por incapacidade, mas por indolência, não achando tempo para estudá-las. "Tenho mais alma de militar que de civil", dizia, falando de si mesmo. Não tinha ainda uma idéia nítida das bases da reforma do camponês, que aprendia a conhecer pouco a pouco, pela prática e malgrado seu; no entanto, era ele próprio proprietário rural. Piotr Ilitch estava certo de encontrar naquela noite visitas em casa de Mikhail Makárovitch. Achavam-se em casa dele, jogando baralho, o procurador e o jovem médico do ziêmstvo, Varvínski, recentemente chegado de Moscou, onde obtivera o lugar de um dos primeiros alunos da Escola de Medicina. O procurador — isto é, o suplente, mas todos o chamavam assim — Ipolit Kirílovitch era um homem especial, ainda jovem, com 35 anos, mas predisposto à tuberculose, casado com uma mulher obesa e estéril, cheio de amor-próprio, irascível, tendo ao mesmo tempo sólidas qualidades. Por desgraça, tinha uma idéia exagerada de seus méritos, o que o fazia parecer constantemente inquieto. Tinha mesmo pendores artísticos, certa penetração psicológica aplicada aos criminosos e ao crime. Neste sentido, considerava-se como lesado e vítima de preterições, tendo sempre estado persuadido de que não o apreciavam segundo seu valor nas altas esferas e que tinha inimigos. Nas horas de desencorajamento, ameaçava mesmo tornar-se advogado criminal. O caso Karamázov galvanizou-o inteiramente: "Um caso que podia apaixonar a Rússia!" Mas estou antecipando.

Na sala contígua achava-se, com as senhoritas, o jovem juiz de instrução Nikoíai Parfiénovitch Nieliúdov, chegado havia dois meses de Petersburgo. Causou espanto mais tarde que essas personagens se tivessem reunido como que de propósito na noite do crime, na casa do poder executivo. Entretanto, não havia nada naquilo que não fosse bastante natural: a mulher de Ipolit Kirílovitch estava com dor de dentes desde a véspera e era-lhe preciso a ele subtrair-se de suas queixas; o médico só podia passar o serão jogando baralho. Quanto a Nikolai Parfiénovitch Nieliúdov, projetara fazer visita naquela noite a Mikhail Makárovitch, como que por acaso, a fim de surpreender sua filha mais velha, Olga Mikháilovna, que fazia anos: conhecia seu segredo, porque, segundo ele, queria ela dissimulá-lo para não convi­dar a dançar, isto se prestava a alusões zombeteiras à idade dela, que temia revelar; amanhã falaria ele a todo mundo, etc. Aquele gentil rapaz era, a este respeito, um grande descarado, assim o tinham deno­minado nossas damas, e ele não se queixava disso. Pertencente à melhor sociedade, de famOia distinta, bem educado, era aquele gozador inofen­sivo e sempre correto. De baixa estatura e compleição delicada, trazia sempre em seus dedos delgados alguns grossos anéis. No exercício de seu cargo, tornava-se muito grave, tendo uma alta idéia de seu papel e de suas obrigações. Sabia sobretudo confundir, por ocasião dos inter­rogatórios, os assassinos e outros malfeitores da ralé, e suscitava neles certo espanto, senão respeito por sua pessoa.

Ao chegar em casa do isprávnik, ficou Piotr Ilitch estupefato por ver que todos estavam informados. Com efeito, tinham cessado de jogar, e discutiam a notícia, Nikolai Parfiénovitch tinha mesmo um ar belicoso. Piotr Ilitch soube com estupor que o velho Fiódor Pávlo-vitch fora efetivamente assassinado naquela noite em sua casa, assassi­nado e roubado. Acabava-se de sabê-lo da maneira seguinte:

Marfa Ignátievna, a mulher de Gregório, malgrado o sono profundo em que estava mergulhada, despertou de repente, sem dúvida aos gritos de Smierdiákov, que jazia no quartinho vizinho. Jamais pudera habi­tuar-se àqueles gritos do epiléptico, precursores da crise e que a apa­voravam. Ainda semi-adormecida, levantou-se e entrou no quarto de Smierdiákov. No escuro, ouvia-se o doente estertorar, debater-se. To­mada de medo, chamou seu marido, mas refletiu que, ao levantar-se, não vira seu marido a seu lado na cama. Voltou a tatear o leito: estava vazio. Correu para o patamar e chamou-o timidamente. Como res­posta, ouviu, no silêncio noturno, gemidos distantes. Prestou atenção: os gemidos repetiram-se; partiam mesmo do jardim. "Meu Deus, pare­cem os gemidos de Lisavieta Smierdiáchtchaia!" Desceu e percebeu que a portinha do jardim estava aberta: "Deve estar lá, o coitado!" Apro­ximou-se e ouviu Gregório chamá-la distintamente: "Marfa! Marfa!", com uma voz fraca e dolorida. "Meu Deus, preservai-nos!", murmurou Marfa, que se lançou na direção de Gregório.

Encontrou-o a vinte passos da paliçada, onde ele caíra. Tendo vol­tado a si,  tivera de arrastar-se muito tempo, perdendo várias vezes os sentidos. Notou ela logo que ele estava todo ensangüentado e pôs-se a gritar. Gregório murmurava fracamente palavras entrecortadas: "Ma­tou ... matou o pai... Por que gritas, idiota?... Corre, chama..." Marfa Ignátievna não se acalmava; de repente, vendo a janela de seu patrão aberta e iluminada, correu para lá e pôs-se a chamar Fiódor Pávlovitch. Mas, tendo olhado para dentro do quarto, um horrível espetáculo se ofereceu: jazia ele de costas, inerte. Seu roupão claro e sua camisa branca estavam inundados de sangue. A vela, que ficara em cima da mesa, iluminava vivamente o rosto do morto. Aterrorizada, Marfa Ignátievna saiu correndo do jardim, abriu o portão e precipitou-se em casa de Maria Kondrátievna. As duas vizinhas, a mãe e a filha, dormiam; as pancadas redobradas batidas nos postigos desperta­ram-nas. Com palavras incoerentes, Marfa Ignátievna contou-lhes a coisa e chamou-as em socorro. Como que de propósito, dormia em casa delas naquela noite o vagabundo Fomá. Fizeram-no levantar-se imediatamente e todos acorreram ao local do crime. Em caminho, Maria Kondrátievna lembrou-se de ter ouvido, cerca das 9 horas, um grito agudo. Era precisamente o: "Parricida!", de Gregório, quando havia agarrado pela perna Dimítri Fiódorovitch, que já subira na pali-çada. Chegadas junto de Gregório, as duas mulheres, com a ajuda de Fomá, transportaram-no para o pavilhão. À luz, verificou-se que Smierdiákov continuava presa de sua crise, os olhos revirados, a espuma nos lábios. Lavaram a cabeça do ferido com água e vinagre, o que o reanimou completamente. Sua primeira pergunta foi para saber se Fiódor Pávlovitch ainda estava vivo. As duas mulheres e Fomá vol­taram ao jardim e viram que não somente a janela, mas a porta da casa estava escancarada, quando havia uma semana que o bárin se fechava a duas voltas todas as noites e nem mesmo a Gregório permitia que batesse sob qualquer pretexto. Não ousaram entrar com medo de atraírem complicações. Por ordem de Gregório, Maria Kondrátievna correu à casa do isprávnik a dar o alarma. Precedeu de cinco mi­nutos Piotr Ilitch, de sorte que este chegou como testemunha ocular, confirmando pela sua narrativa as suspeitas contra o presumido autor do crime (o que havia êie recusado crer até então, no fundo de seu coração).

Resolveu-se agir energicamente. As autoridades judiciárias dirigiram-se aos locais e procederam a uma investigação. O médico do ziémstvo, um novato, ofereceu-se a acompanhá-las. Resumo os fatos: Fiódor Páv­lovitch tinha a cabeça partida, mas com que arma? Provavelmente a mesma que servira em seguida para golpear Gregório. Este, depois de ter recebido os primeiros cuidados, fêz, malgrado sua fraqueza, um relato bastante lógico do que lhe acontecera. Procurando-se com uma lanterna perto da pai içada, encontrou-se numa aléia, bem à vista, o pilão de cobre. Não havia desordem alguma no quarto de Fiódor Pávlovitch, exceto ter-se encontrado, por trás do biombo, perto do leito, um envelope de grande formato, em papel forte, com os dizeres: "Três mil rublos para meu anjo, Grúchenhka, se ela quiser vir". Mais embaixo, Fiódor Pávlovitch acrescentara: "e para minha franguinha". O envelope, que trazia três grandes sinêtes em cera vermelha, estava ras­gado e vazio. Encontrou-se no chão a fita côr-de-rosa que o amarrava. No depoimento de Piotr Ilitch, uma coisa atraiu a atenção dos ma­gistrados: a suposição de que Dimítri Fiódorovitch se suicidaria na manhã seguinte, segundo suas próprias palavras, a pistola carregada, o bilhete que escrevera, etc. Como Piotr Ilitch, incrédulo, o ameaçasse duma denúncia para impedi-lo disso, replicara Mítia, sorrindo: "Não terás tempo". Era preciso, pois, apressarem-se a ir a Mókroie para apanhar o criminoso antes que pusesse ele fim a seus dias. "Está claro, está claro", repetia o procurador superexcitado, "semelhantes cabeças loucas agem sempre assim: fazem a farra antes de morrer". O relato das compras de Dimítri acalorou-o ainda mais. "Lembrem-se, senhores, de que o assassino do comerciante Olsúfiev, que se apoderou de 1 500 rublos, teve como primeiro cuidado mandar frisar os cabelos, depois ir à casa das mulheres, sem se dar ao trabalho de ocultar o dinheiro." Mas o inquérito, as formalidades exigiam tempo, assim despachou-se para Mókroie o stanovói Mavríki Mavríkitch Chmiertsov, que viera à cidade receber seus vencimentos. Recebeu como instruções vigiar discretamente o "criminoso" até a chegada das autoridades competentes, formar uma escolta, etc. Guardando o incógnito, pôs somente ao cor­rente de uma parte do caso Trifon Borísovitch, seu velho conhecido. Foi então que Mítia encontrara no alpendre o hospedeiro que o pro­curava e notara uma mudança na expressão e no tom de Trifon Boríso­vitch. Mítia e seus companheiros ignoravam pois a vigilância de que eram objeto; quanto ao estôjo das pistolas, o hospedeiro havia-o desde muito posto em lugar seguro. Às 5 horas somente, quase ao romper do dia, chegaram as autoridades, em dois carros. O médico ficara em casa de Fiódor Pávlovitch, para fazer a autópsia e sobretudo porque o estado de Smierdiákov o interessava bastante. "Crises de epilepsia tão violentas e tão prolongadas, durante dois dias, são bastante raras e pertencem à ciência",' declarou a seus companheiros por ocasião da partida deles, e estes o felicitaram, rindo, por aquele achado. Afirmara mesmo que Smierdiákov não viveria até o amanhecer.

Depois desta digressão um tanto longa, mas necessária, retomamos nossa narrativa onde a deixamos.

 

PURGATÓRIOS DE UMA ALMA:

PRIMEIRO PURGATÓRIO

Mítia fitava os presentes com um ar estupidificado, sem compreender o que se dizia. De repente levantou-se, estendeu as mãos no ar e ex­clamou:

— Não sou culpado! Não derramei o sangue de meu pai... Queria matá-lo, mas sou inocente. Não fui eu!

Apenas acabava ele de falar surgiu Grúchenhka de trás das cortinas e caiu aos pés do isprávnik.

— Sou eu, maldita, que sou a culpada — gritou ela, chorando, de mãos estendidas. — Foi por minha causa que ele matou. Aquele pobre velho, que não mais existe, eu o torturei. Sou eu a principal culpada.

— Sim, és tu, criminosa! És uma desavergonhada, uma mulher depra­vada — vociferou o isprávnik, ameaçando-a com o punho. Fizeram-no calar-se imediatamente, o procurador chegou mesmo a agarrá-lo.

— Isto é desordem, Mikhail Makárovitch! 0 senhor perturba o inqué­rito... estraga o caso...

Estava quase sufocado.

— É precisor tomar providências... é preciso tomar providências — gritava de seu lado Nikolai Parfiénovitch — não se pode tolerar isso.

— Julguem-nos juntos! — continuava Grúchenhka sempre de joelhos — executem-nos juntos, estou pronta a morrer com ele.

— Grucha, minha vida, meu sangue, meu tesouro sagrado! — disse Mítia, ajoelhando-se ao lado dela e abraçando-a. — Não acreditem nela, está inocente, completamente inocente!

Separaram-nos à força, levaram para fora a jovem mulher. Ele des-faleceu e só voltou a si depois, sentado à mesa e cercado das pessoas com placas de metal. Em frente, sobre o divã, achava-se Nikolai Parfié­novitch, o juiz de instrução, que o exortava, da maneira mais cortês, a beber um pouco de água: "Isto o refrescará, o acalmará, não tenha medo, não se inquiete". Mítia interessava-se bastante pelos grossos anéis dele, um com uma ametista, o outro com uma pedra amarelo-clara, dum bri­lho magnífico. Por muito tempo depois lembrava-se ele com espanto de que aqueles anéis o fascinavam durante as penosas horas do interroga­tório e de que não podia destacar deles os olhos. À esquerda de Mítia achava-se o procurador, à direita, um jovem de jaquetao de caça bastante usado, diante de um tinteiro e papel. Era o secretário do juiz de instru­ção. Na outra extremidade do quarto, perto da janela, mantinham-se o isprávnik e Kolgánov.

— Beba água — repetia docemente, pela décima vez, o juiz de ins­trução.

— Já bebi, senhores, já bebi... Pois bem! Esmagai-me, condenai-me, decidi minha sorte! — exclamou Mítia, fixando-o.

— Com que então, afirma o senhor estar inocente da morte de seu pai, Fiódor Pávlovitch?

— Inocente! Derramei o sangue de outro velho, mas não o de meu pai. E o deploro! Matei... mas é duro ver-se acusado dum crime horrível que não se cometeu. É uma acusação terrível, senhores, um verdadeiro golpe de maça! Mas quem então matou meu pai? Quem podia matá-lo, senão eu? É prodigioso, é um absurdo impossível!...

— Vou dizer-lhe... — começou o juiz, mas o procurador (chamare­mos assim o suplente), depois de ter trocado uma olhadela com ele, dis­se a Mítia:

— O senhor se atormenta inutilmente a respeito do velho criado Gre-gório Vassíliev. Saiba que está vivo. Recuperou os sentidos e, malgrado o golpe terrível que o senhor lhe assestou, de acordo com os depoimen­tos de ambos, escapará com certeza. Tal é a opinião do médico.

— Vivo? Está vivo? — exclamou Mítia, de mãos juntas, o rosto ra­diante. — Meu Deus, rendo-te graças por esse milagre insigne que con­cedes ao pecador, ao celerado que sou, à sua prece!,.. Porque rezei a noite inteira!... — E benzeu-se três vezes.

— Esse mesmo Gregório prestou a respeito do senhor um depoimento de tal gravidade que... — prosseguiu o procurador, mas Mítia levan­tou-se bruscamente.

— Um instante, senhores, por favor, nada mais que um instante. Vou ter com ela...

— Com licença! É impossível agora! — exclamou Nikolai Parfiéno-vitch, que também se levantou. Os policiais seguraram Mítia, que tornou a sentar-se, aliás de bom grado.

— É pena. Queria somente anunciar-lhe que esse sangue que me an­gustiou a noite inteira está lavado e não sou um assassino! Senhores, é minha noiva! — disse ele, respeitosamente, olhando para todos os cir-cunstantes. — Oh! agradeço-vos! Vós me restituístes a vida... Aquele velho carregou-me nos braços, era ele quem me lavava numa tina, quan­do tinha eu três anos de idade, quando estava abandonado por todos. Ser­viu-me de pai!...

— Com que então, o senhor... — prosseguiu o juiz.

— Com licença, senhores, ainda um instante — interrompeu Mítia, pondo os cotovelos sobre a mesa, com o rosto oculto nas mãos —, dei-xai-me concentrar-me, deixai-me respirar. Tudo isso me transtorna, não se bate em cima de um homem como em cima de um tambor, senhores.

— O senhor deveria beber um pouco de água...

Mítia descobriu o rosto e sorriu. Tinha o olhar vivo e parecia trans­formado. Suas maneiras também tinham mudado, sentia-se de novo igual àquelas pessoas, seus antigos conhecidos, como se se tivessem encontra­do na véspera numa reunião social, antes do acontecimento. Notemos que Mítia havia a princípio sido recebido cordialmente em casa do ispráv­nik, mas que, posteriormente, no derradeiro mês sobretudo, quase cessara de freqüentar-lhe a casa. O isprávnik, quando o encontrava na rua, por exemplo, fechava a cara e só o cumprimentava por polidez, o que não escapava a Mítia. Conhecia ainda menos o procurador, mas visitava, sem bem saber por que, sua mulher, senhora nervosa e caprichosa; ela o re­cebia sempre graciosamente e testemunhava interesse por ele. Quanto ao juiz, conversara duas vezes com ele, a propósito de mulheres.

— O senhor, Nikolai Parfiénovitch, é um juiz de instrução bastante hábil, pelo que vejo — disse alegremente Mítia. — Vou ajudá-lo, aliás. Oh! senhores, ressuscitei... não se formalizem com minha franqueza, tanto mais que estou um pouco bêbado, confesso-o. Parece-me ter tido a honra... a honra e o prazer de tê-lo encontrado, Nikolai Parfiéno­vitch, em casa de meu parente Miúsov... Senhores, não pretendo igual­dade, compreendo minha situação perante os senhores. Pesa sobre mim... se Gregório me acusa, pesa sobre mim, bem decerto, uma acusação terrível. Compreendo-o muito bem. Mas, de fato, senhores, es­tou pronto e em breve poderemos tudo terminar. Se estou seguro de mi­nha inocência, não demorará muito, não é mesmo?

Mítia falava depressa, expansivamente, como se tomasse seus audito­res por seus melhores amigos.

— De modo que, anotamos, enquanto esperamos, que o senhor nega formalmente a acusação feita contra o senhor — disse num tom grave Nikolai Parfiénovitch, e ditou a meia voz ao escrivão o necessário.

— Anotar? Quer anotar isso? Pois seja, coisinto, dou meu pleno con­sentimento, senhores... somente, vejam... Espere, escreva isto: é cul­pado de violências, de ter assestado golpes terríveis em um pobre velho. E depois, no meu foro íntimo, no fundo do coração, sinto-me culpado, mas isto não é preciso escrever, é minha vida privada, senhores, isto não lhes diz respeito, são segredos do coração... Quanto ao assassinato de meu velho pai, sou inocente! É uma idéia monstruosa!... Provar-lhes-ei, ficarão os senhores convencidos imediatamente. Rirão mesmo de suas suspeitas!...

— Acalme-se, Dimítri Fiódorovitch — disse o juiz. — Antes de pros­seguir o interrogatório, quereria, se o senhor consentir em responder, que me confirmasse um fato: o senhor não gostava do defunto, parece, tinha constantes brigas com ele... Aqui, pelo menos, há um quarto de hora, declarou ter tido a intenção de matá-lo: "Não o matei", disse o senhor, "mas quis matá-lo!"

— Disse isso? Oh! bem possível! Sim, várias vezes, quis matá-lo... desgraçadamente!

— O senhor o queria. Consente em explicar-nos os motivos desse ódio contra seu pai?

— Que adianta explicar, senhores? — disse Mítia, com ar sombrio, erguendo os ombros. — Não ocultava meus sentimentos, toda a cidade os conhece. Não há muito tempo manifestei-os no mosteiro, na cela do stáriets Zósima... Na noite do mesmo dia, bati em meu pai e quase o matei, jurando diante de testemunhas que voltaria para matá-lo. Oh! as testemunhas não faltam, gritei isto durante um mês... O fato é paten­te, mas os sentimentos são outro negócio. Vejam, senhores, acho que não têm o direito de interrogar-me a respeito. Malgrado a autoridade de que estão revestidos, é um negócio íntimo, que só a mim interessa... mas uma vez que não ocultei meus sentimentos antes... falei deles a todo mundo no botequim, então... então não farei disso um mistério agora. Vejam os senhores, compreendo que há contra mim acusações esmaga­doras: disse a todos que o mataria e eis que o matam: não serei eu o culpado, em semelhante caso? Ah! ah! ah! Eu os desculpo, senhores, eu os desculpo absolutamente. Eu mesmo estou estupefato. Quem é, pois, o assassino, neste caso, senão eu? Não é verdade? Se não sou eu, quem é então? Senhores, quero saber, exijo que me digam onde foi ele morto, como, com que arma.

Olhou longamente o juiz e o procurador.

— Nós o encontramos caído no soalho, em seu gabinete, com a ca­beça rebentada — disse o procurador.

— É terrível, senhores!

Mítia estremeceu, apoiou os cotovelos na mesa, ocultou o rosto com sua mão direita.

— Continuemos — disse Nikolai Parfiénovitch. — Então, que moti­vos inspiraram seu ódio? O senhor, creio, declarou publicamente que ele provinha do ciúme?

— Oh! sim, o ciúme, e outra coisa mais.

— Questões de dinheiro?

— Oh! sim, o dinheiro desempenhava nisso também um papel.

— Tratava-se, creio, de 3 000 rublos que o senhor não havia recebido de sua herança?

— Como, 3 000? Mais, mais de 6 000, mais de 10 000, talvez. Disse-o a todo mundo, gritei-o por toda parte! Mas estava decidido, para pôr termo a tudo, a transigir em 3 000 rublos. Precisava deles a qualquer preço... de sorte que aquele pacote oculto debaixo de uma almof ada e destinado a Grúchenhka, considerava-o eu como propriedade minha que me tinha sido roubada, sim, senhores, como me pertencendo.

O procurador trocou uma olhadela significativa com o juiz.

— Voltaremos a isso — disse logo o juiz. — No momento, permita-nos consignar esse ponto, que o senhor considerava o dinheiro encerra­do naquele envelope como propriedade sua.

— Escrevam, senhores. Compreendo que é uma nova acusação contra mim, mas isto não me causa medo, acuso-me a mim mesmo. Estão ouvin­do? A mim mesmo. Vejam, senhores, creio que os senhores se enganam totalmente a meu respeito — acrescentou, com tristeza. — O homem que lhes fala é leal; cometeu muitas baixezas, mas sempre permaneceu no­bre no íntimo de si mesmo... Em uma palavra, não sei exprimir-me... Esta sede de nobreza sempre me atormentou, como a um mártir; eu a buscava com a lanterna de Diógenes, e no entanto só pratiquei vilanias, como nós todos, senhores... isto é, como somente eu, engano-me, eu só é que sou assim!... Senhores, tenho dor de cabeça. Fiquem sabendo que tudo nele me desgostava: seu exterior, não sei quê de desonesto, de gabolice e desprezo por tudo quanto é sagrado, palhaçada e irreligião. Mas agora que ele está morto, penso diferentemente.

— Como assim diferentemente?

— Não diferentemente, mas lamento tê-lo detestado tanto.

— Sente remorsos?

— Não, remorsos não, não anotem isto. Eu mesmo, senhores, não brilho nem pela bondade, nem pela beleza; de modo que não tinha o direito de achá-lo repugnante. Podem anotar isto.

Tendo assim falado, Mítia pareceu bastante triste. Tornava-se cada vez mais sombrio à medida que respondia às perguntas do juiz. Foi nesse momento que se desenrolou uma cena inesperada. Se bem que ti­vessem afastado Grúchenhka, encontrava-se ela num quarto próximo da­quele onde se realizava o interrogatório, em companhia da Maksímov, abatido e aterrorizado, que se ligava a ela como a uma âncora de sal­vação. Um mujique com placa de metal guardava a porta. Grúchenhka chorava; de repente, incapaz de resistir a seu pesar, depois de ter gritado: "Desgraça, desgraça!", correu para fora do quarto para o seu bem-amado, tão bruscamente que ninguém teve tempo de detê-la. Mítia, que a havia ouvido, estremeceu, precipitou-se a seu encontro. Mas impedi­ram de novo que se juntassem. Agarraram-no pelos braços; ele se de­bateu encarniçadamente, sendo precisos três ou quatro homens para con­tê-lo. Apoderaram-se também de Grúchenhka e ele a viu a estender-lhe os braços, enquanto a levavam. Passada a cena, reencontrou-se ele no mesmo lugar, à mesa, diante do juiz.

— Por que fazê-la sofrer? — exclamou ele. — Ela é inocente!... O procurador e o juiz esforçaram-se por acalmá-lo. Dez minutos de­correram assim.

Mikhail Makárovitch, que havia saído, tornou a entrar e disse todo comovido:

— Ela está lá embaixo. Permitem, meus senhores, que eu diga uma palavra a esse infeliz? Na presença dos senhores, bem entendido.

— Pois não, Mikhail Makárovitch, não vemos inconvenientes nisso — disse o juiz.

— Dimítri Fiódorovitch, escuta, meu pobre amigo — seu rosto ex­primia uma compaixão quase paternal —, Agrafiena Alieksándrovna en­contra-se lá embaixo, com as filhas do hospedeiro, o velho Maksímov não a deixa. Tranqüilizei-a, fiz-lhe compreender que tu devias justificar-te, que não se devia perturbar-te, senão agravadas as acusações contra ti, compreendes? Em suma, ela compreendeu, é inteligente e boa, que­ria beijar-me as mãos, pedindo graça para ti. Foi ela quem me enviou para tranqüilizar-te. Preciso dizer-lhe que estás tranqüilo a teu respeito. Acalma-te, pois. Sou culpado diante dela, é uma alma cristã, senhores, uma alma terna e inocente. Posso dizer-lhe, Dimítri Fiódorovitch, que estarás calmo?

O bom homem estava comovido pela dor de Grúchenhka, tinha mes­mo lágrimas nos olhos. Mítia adiantou-se para ele.

— Perdão, senhores, com licença, peço-lhes. O senhor é um anjo, Mi­khail Makárovitch, obrigado por ela. Ficarei calmo, ficarei alegre, áiga-Ihe isso na sua bondade; vou mesmo pôr-me a rir, sabendo que o senhor vela por ela. Acabarei em breve isto, assim.que ficar livre correrei para ela. Que ela tenha paciência! Senhores, vou abrir-lhes meu coração, va­mos terminar tudo isto alegremente, acabaremos rindo juntos, não é? Senhores, aquela mulher é a rainha da minha alma! Oh! deixem-me di­zer-lhes... Vejo que são corações nobres. Ela aclara e enobrece minha vida! Oh! se os senhores soubessem! Ouviram seus gritos: "Irei contigo à morte!" Que lhe dei eu, eu que nada tenho? Por que tal amor? Sou eu digno, eu, vil criatura, de ser amado a ponto de seguir-me ela à pri­são? Ainda há pouco, arrastava-se aos pés dos senhores por minha causa, ela, tão altiva e inocente! Como não adorá-la, não correr para ela? Se­nhores, perdoem-me! Agora, eis-me consolado!

Caiu sobre uma cadeira e, cobrindo o rosto com as mãos, pôs-se a soluçar. Mas eram lágrimas de alegria. O velho isprávnik parecia encan­tado, os juizes igualmente; sentiam que o interrogatório entrava numa fase nova. Quando o isprávnik saiu, Mítia tornou-se alegre.

— Pois bem, senhores, agora estou a seu dispor. E... não fossem todos esses detalhes e já nos teríamos entendido. Senhores, a seu dispor, mas é preciso que uma confiança mútua reine entre nós, senão não aca­baremos nunca. É pelos senhores que falo. Ao fato, senhores, ao fato! Sobretudo não cascavilhem minha alma, não a torturem com bagatelas, mantenham-se no essencial e lhes darei satisfação. Ao diabo os detalhes!

Assim falou Mítia. O interrogatório recomeçou.

 

SEGUNDO PURGATÓRIO

— O senhor não poderia acreditar quanto sua boa-vontade nos re-conforta, Dimítri Fiódorovitch — disse Nikolai Parfiénovitch. Seus olhos, de um cinzento-claro e salientes, brilhavam de satisfação. — O senhor falou com razão dessa confiança mútua, indispensável nos negócios de uma tal importância, se o acusado deseja verdadeiramente, espera e po­de justificar-se. De nosso lado, faremos tudo quanto de nós depender. O senhor já pôde ver como conduzimos este caso... Está de acordo, Ipolit Kirílovitch?

— Decerto — aprovou o procurador, todavia um pouco secamente em comparação com o outro.

Notemos uma vez por todas que Nikolai Parfiénovitch, desde sua re­cente entrada em funções, testemunhava profundo respeito pelo procura­dor, pelo qual sentia simpatia. Era quase o único a acreditar absoluta­mente no notável talento psicológico e oratório de Ipolit Kirílovitch, ví­tima de injustiças, no que acreditava piamente. Já ouvira falar dele em Petersburgo. Em compensação, o jovem Nikolai Parfiénovitch era o úni­co homem no mundo de quem o nosso mal-aventurado procurador gos­tava sinceramente. Em caminho, tinham podido combinar-se a respeito do caso que se anunciava e agora o espírito agudo de Nikolai Parfiéno­vitch captava no ar e interpretava cada sinal, cada jogo fisionômico de seu colega.

— Senhores, deixem-me contar-lhes as coisas sem me interromperem a propósito de bagatelas. Não será longo — continuou Mítia.

— Muito bem, mas, antes de ouvi-lo, permita-nos que constatemos este pequeno fato muito curioso para nós. O senhor pediu emprestados 10 ru-blos ontem à tardinha, às 5 horas, deixando suas pistolas como penhor a seu amigo Piotr Ilitch Pierkhótin.

— Sim, senhores, empenhei-as por 10 rublos, quando voltei de via­gem. E com isso?

— O senhor voltava de viagem? Tinha deixado a cidade?

— Fora a 40 verstas da cidade, senhores. Não sabiam disso? O procurador e o juiz trocaram um olhar.

— O senhor faria bem começando sua narrativa pela descrição me­tódica de seu dia desde a manhã. Queira dizer-nos, por exemplo, por que se ausentou, o momento de sua partida, e de seu regresso...

— Deviam ter-me pedido imediatamente — disse Mítia rindo. — Se quiserem, remontarei a anteontem, então comoreenderão o sentido de meus passos. Há dois dias, fui, logo de manhã, à casa do comerciante Samsónov para lhe pedir emorestados* 3 000 rublos com seguras garan­tias. Precisava dessa soma de repente e o mais depressa possível.

— Com licença — interrompeu num tom polido o procurador —, por que tinha o senhor necessidade de repente de tal soma, precisamente 3 000 rublos?

— Ah! senhores, quantos detalhes! Como, quando, por que, por qual razão tal soma e não outra? Palavrório, tudo isso. Desse jeito, nem três volumes seriam suficientes, precisaria ainda um epílogo!

Mítia falava com a bonomia familiar de um homem desejoso de dizer toda a verdade e animado das melhores intenções.

— Senhores — prosseguiu ele —, queiram desculpar minha brusqui-dão, estejam certos de meus sentimentos respeitosos a seu respeito. Não estou mais embriagado. Compreendo a diferença que nos separa: sou aos olhos dos senhores um criminoso que devem vigiar; não me passa­rão a mão pelos cabelos por causa de Gregorio, não se pode rebentar impunemente a cabeça de um velho. Isso me valerá seis meses ou um ano de prisão, mas sem privar-me de meus direitos civis, não é, senhor procurador? Compreendo tudo isso... Mas confessem que os senhores desconcertariam o próprio Deus com perguntas assim: "Aonde fôste, co­mo e quando? Por quê?"Eu me atrapalharia desta forma, os senhores anotariam imediatamente, e que resultaria disso? Nada! Afinal, se co­mecei a mentir, irei até o fim, e os senhores mo perdoarão, dadas sua instrução e nobreza de seus sentimentos. Para terminar, peço-lhes que renunciem a esses processos oficiais que consistem em fazer perguntas insignificantes: "Gomo te levantaste? Que comeste? Onde cuspiste?" e, es-estando adormecida a atenção do réu, perturbá-lo, perguntando-lhe: "A quem mataste? A quem roubaste?" Ah! ah! Eis o processo clássico dos senhores, eis em que se funda toda a sua astúcia! Empreguem esse ardil com os mujiques, mas não comigo, que compreendo as coisas e já servi! Ah! ah! ah! Não se zanguem, senhores, perdoem meu atrevimento. — Olhava-os com estranha bonomia. — Pode-se ter mais indulgência por Mítia Karamázov do que por um homem de espírito, ah! ha! ah!

O juiz ria. O procurador permanecia grave, não desfitava os olhos de Mítia, observava atentamente seus menores gestos e os movimentos de sua fisionomia.

— Contudo — disse Nikolai Parfiénovitch, continuando a rir —, nós não o confundimos a princípio com questões tais como: "Como se le­vantou esta manhã? Que comeu?" Fomos mesmo demasiado depressa ao alvo.

— Compreendo, aprecio a bondade dos senhores. Estamos todos três de boa fé, deve reinar entre nós a confiança recíproca de pessoas do mundo ligadas pela nobreza e pela honra. Em todo o caso, deixem-me olhá-los como meus melhores amigos nestas penosas circunstâncias! Isto não os ofende, não é, senhores?

— Pelo contrário, o senhor diz muito bem, Dimítri Fiódorovitch — aprovou o juiz.

— E os detalhes, senhores, todo esse processo chicanista, deixemo-los de lado! — exclamou Mítia muito exaltado. — Com eles não che­garemos a nenhum resultado.

— O senhor tem toda a razão — interveio o procurador —, mas mantenho minha pergunta. — É-nos indispensável saber por que tinha o senhor necessidade desses 3 000 rublos.

— Para uma coisa ou outra... que importa? Para pagar uma dívida.

— A quem?

— Isto recuso absolutamente dizer, senhores! Não é por temor ou timidez, pois se trata duma bagatela, mas por princípio. Isto diz respeito à minha vida privada e não permito que nela se toque. Sua pergunta nada tem que ver com o caso, portanto diz respeito à minha vida priva­da. Queria pagar uma dívida de honra, mas não direi a quem.

— Permita-nos anotar isso — disse o procurador.

— Peço-lhe. Escreva que recuso dizê-lo, achando que não seria hon­roso fazê-lo. Vê-se bem que não lhes falta tempo para escrever!

— Permita-me, senhor, preveni-lo, lembrar-lhe ainda, se o ignora — disse num tom severo o procurador —, que o senhor tem o direito abso­luto de não responder às nossas perguntas, e que, de outra parte, não temos absolutamente o direito de exigir respostas que o senhor julgue que não deve dar. Mas devemos chamar sua atenção para o prejuízo que causa a si mesmo recusando falar. Agora, queira continuar.

— Senhores, não me estou zangando... eu... — gaguejou Mítia um pouco confuso diante daquela observação — saibam que aquele Samsó-nov a cuja casa fui...

Bem entendido, não reproduziremos sua narrativa dos fatos que o leitor já conhece. Na sua impaciência, queria o narrador contar tudo deta­lhadamente e ao mesmo tempo com rapidez. Mas tinha-se de tomar por escrito suas declarações à medida que eram feitas, donde a necessidade de fazê-lo por vezes parar. Dimítri Fiódorovitch a isso se resignava, de má vontade; exclamava por vezes: "Senhores, é de exasperar o próprio Deus", ou "Senhores, sabem que me irritam sem motivo?", mas, apesar dessas exclamações, continuava expansivo. Foi assim que contou como Samsónov o mistificara (dava-se perfeitamente conta disso agora). A venda do relógio por 6 rublos, a fim de arranjar o dinheiro da viagem, interessou bastante os magistrados, que ainda ignoravam isso; com ex­trema indignação de Mítia, julgou-se necessário consignar com detalhes esse fato, que estabelecia de novo que na véspera também estava ele quase sem dinheiro algum. Pouco a pouco, Mítia tornava-se sombrio. Em seguida, depois de ter descrito sua visita a Liagávi, a noite passada na isbá e o começo de asfixia, abordou seu regresso à cidade e se pôs por si mesmo a descrever suas torturas de ciúme por causa de Grúchenh-ka. Escutavam-no em silêncio e com atenção, anotando-se sobretudo o fato de que desde muito tempo tinha ele um posto de observação no jardim de Maria Kondrátievna, para o caso de Grúchenhka ir à casa de Fiódor Pávlovitch, e que Smierdiákov lhe transmitia informações; isto foi mencionado bem devidamente. Falou longamente de seu ciúme, mal­grado sua vergonha em exibir seus sentimentos mais íntimos, por assim dizer, à desonra pública, mas dominava-a a fim de ser verídico. A se­veridade impassível dos olhares fixos nele, durante seu relato, acabou por perturbá-lo bastante fortemente: "Esse rapazola, Nikolai Parfiéno-vitch, com quem tagarelava eu a respeito de mulheres, há alguns dias, e esse procurador doentio não merecem que lhes conte isso", pensava ele tristemente. "Que vergonha!" "Suporta, resigna-te, cala-te", concluía, enquanto se fortalecia para continuar. Chegado ao ponto da visita à casa da Senhora Khokhlakova, voltou a ficar alegre e quis mesmo con­tar a seu respeito uma anedota recente, fora de propósito; mas o juiz interrompeu-o e convidou-o a passar ao essencial. Em seguida, tendo des­crito seu desespero e falado do momento em que, ao sair da casa da­quela senhora, tinha mesmo pensado em estrangular alguém para arran­jar os 3 000 rublos, fizeram-no parar para que fosse isso consignado. Por fim, contou como soubera da mentira de Grúchenhka, que logo partira da casa de Samsónov, quando devia, afirmava ela, ficar em casa do velho até a meia-noite. "Se não matei então aquela Fiénia, senhores, foi unicamente porque me faltava tempo", deixou ele escapar. Isto também ficou consignado. Mítia esperou com ar sombrio e ia explicar como en­trara no jardim de seu pai, quando o juiz o interrompeu e, abrindo um grande guardanapo que se achava junto dele, em cima do divã, dali tirou um pilão de cobre.

— Conhece este objeto?

— Ah! sim. Como não? Deixe-me vê-lo... Ao diabo, é inútil!

— O senhor esqueceu-se de falar dele.

— Que diabo! Pensam que haveria de ocultar isso? Tinha-me esque­cido, eis tudo.

— Quer contar-nos como arranjou esta arma?

— De boa vontade, senhores.

E Mítia contou como pegara o pilão e saíra.

— Mas qual era sua intenção apoderando-se deste objeto?

— Que intenção? Nenhuma. Peguei-o e saí correndo.

— Por que então, se não tinha intenção?

A irritação apoderava-se de Mítia. Fixava o rapazola com um mau sorriso, lamentava a franqueza que estava tendo com tal gente, a pro­pósito de seu ciúme.

— Que me importa o pilão?

— No entanto...

— Pois bem, era contra os cachorros. Estava escuro... prevenia-me.

— Antes, quando o senhor saía à noite, levava também uma arma, uma vez que receava tanto a escuridão?

— Com a breoa! É impossível conversar com os senhores! — excla­mou Mítia exasperado, e, dirigindo-se, rubro de cólera, ao escrivão:

— Escreva imediatamente... agora mesmo: "Pegou ele o pilão para ir matar seu pai... Fiódor Pávlovitch... para lhe rebentar a cabeça!" Estão contentes, senhores? — perguntou ele, num tom provocativo.

— Não podemos levar em conta tal depoimento, inspirado pela có­lera. Nossas perguntas lhe parecem fúteis e irritam-no, quando na ver­dade são muito importantes — disse secamente o procurador.

— Por favor, senhores! Peguei esse pilão... Por que se pega alguma coisa em semelhante caso? Ignoro-o. Peguei-o e saí correndo. Eis tudo. Ê vergonhoso, senhores, mas deixemos isso, senão juro-lhes que não di­rei mais uma palavra.

Pôs os cotovelos sobre a mesa, com a cabeça na mão. Estava sentado de lado em relação a eles e olhava a parede, esforçando-se por domi­nar um mau sentimento. Tinha, com efeito, grande vontade de levantar-se, de declarar que não diria mais uma palavra, ainda que tivessem de levá-lo a suplício.

— Vejam, senhores, ao ouvi-los, parece-me ter um sonho como por vezes me acontece... sonho muitas vezes que alguém me persegue, al­guém de quem tenho muito medo, e me procura, nas trevas. Oculto-me vergonhosamente atrás de uma porta, atrás de um armário. O desconhe­cido sabe, sobretudo, perfeitamente, onde me encontro, mas finge igno­rá-lo, a fim de atormentar por mais tempo, de brincar com meu terror... É o que os senhores estão fazendo agora! É a mesma coisa!

— O senhor tem tais sonhos? — perguntou o procurador.

— Sim, tenho tais sonhos... Não vão anotar?

— Não, mas o senhor tem sonhos estranhos.

— Agora, não é mais um sonho! É a realidade, senhores, o realismo da vida! Sou o lobo, os senhores são os caçadores!

— Sua comparação é injusta... — disse mansamente Nikolai Parf ié-novitch.

— Absolutamente, senhores! — disse Mítia com irritação, se bem que aliviado por sua brusca explosão de cólera. — Os senhores podem re­cusar-se a crer num criminoso ou num acusado que torturam com suas perguntas, mas não num homem animado de nobres sentimentos (digo-o ousadamente). Os senhores não têm o direito. Mas Silêncio, meu coração, Suporta, résigna-te, cala-te!

— Devo continuar? — perguntou ele, áspero.

— Como não? Peço-lhe — disse Nikolai Parfiénovitch.

 

TERCEIRO PURGATÓRIO

Embora falando com brusquidao, Mítia pareceu ainda mais desejoso de não omitir nenhum detalhe. Contou como escalara a paliçada, ca­minhara até a janela e tudo quanto se passara então nele. Com precisão e clareza, expôs os sentimentos que o agitavam, quando ardia por sa­ber se Grúchenhka estava ou não na casa. Coisa estranha, o procurador e o juiz escutavam com extrema reserva, de ar rebarbativo, não fazendo senão raras perguntas. Mítia nada podia presumir da ex­pressão de seus rostos. "Estão irritados e ofendidos", pensou, "tanto pior!" Quando contou que havia feito a seu pai o sinal, anunciando a chegada de Grúchenhka, os magistrados não prestaram nenhuma aten­ção à palavra "sinal", como se não compreendessem o alcance na cir­cunstância. Mítia notou esse detalhe. Chegado ao momento em que, à vista de seu pai debruçado para fora da janela, fremira de ódio e tirara o pilão de seu bolso, parou de súbito como de propósito. Olhava a pa­rede e sentia os olhares dos juizes fixos nele.

— Pois bem! — disse Nikolai Parfiénovicth. — O senhor agarrou sua arma e... que se passou em seguida?

— Em seguida? Matei... descarreguei em meu pai um golpe de pilão que lhe fendeu o crânio... Segundo os senhores, foi assim, não é mes­mo?

Seus olhos cintilavam. Sua cólera acalmada reacendia-se em toda a sua violência.

— Segundo nós, mas segundo o senhor? Mítia baixou os olhos, fez uma pausa.

— No que me diz respeito, senhores, no que me diz respeito, eis o que se passou — recomeçou ele, mansamente: — Teria sido minha mãe que implorava a Deus por mim, um espírito celeste que me beijou a fronte naquele momento? Não sei, mas o diabo foi vencido. Afastei-me da janela e corri para a paliçada. Meu pai, que me avistou então, ficou com medo, lançou um grito e recuou vivamente, lembro-me bastante bem... Eu já havia trepado na barreira, quando Gregório me agarrou...

Mítia ergueu enfim os olhos para seus ouvintes, que o olhavam com ar impassível. Um frêmito de indignação percorreu-o.

— Senhores, zombam de mim!

— Donde concluiu isso? — perguntou Nikolai Parfiénovitch.

— Os senhores não acreditam uma palavra do que digo! Compreendo muito bem que cheguei ao ponto capital; o velho jaz agora, com a ca­beça fendida, e eu, depois de ter tragicamente descrito minha vontade de matá-lo, com o pilão já na mão, fujo da janela... Tema de poema a ser posto em versos! Pode-se acreditar sob palavra em tal pândego? Os senhores são uns farsantes!

Voltou-se bruscamente na cadeira, que estalou.

-— Não notou o senhor — disse o procurador, parecendo ignorar a agitação de Mítia —, quando deixou a janela, se a porta que dá acesso ao jardim, no outro extremo da fachada, estava aberta?

— Não, não estava aberta.

— Tem certeza?

— Estava, pelo contrário, fechada. Quem teria podido abri-la? Ah! a porta? Esperem! — pareceu reconsiderar e estremeceu: — Os senho­res encontraram-na aberta?

— Sim.

— Mas quem pôde abri-la, senão os senhores?

— A porta estava aberta, o assassino de seu pai seguiu esse caminho para entrar e para sair — disse o procurador, esc and indo as palavras. — É bastante claro para nós. O assassinato foi cometido evidentemente no quarto, e não através da janela. Isto resulta do exame dos locais e da posição do corpo. Não há nenhuma dúvida a este respeito.

Mítia estava confuso.

— Mas é impossível, senhores! — exclamou ele, totalmente transtor­nado. — Eu... eu não entrei... Afirmo-lhes que a porta ficou fechada durante todo o tempo em que eu estive no jardim e quando fugi... Con­servava-me sob a janela e só vi meu pai do exterior... Lembro-me até o derradeiro minuto. Mesmo se não me lembrasse, estou certo disso, por­que os sinais só eram conhecidos de mim, de Smierdiákov e do defunto, e sem sinais ele não teria aberto a ninguém no mundo!

— Que sinais? — perguntou com ardente curiosidade o procurador, cuja reserva desapareceu logo. Interrogava com uma espécie de hesita­ção, pressentindo um fato importante, e receava que Mítia se recusasse a explicá-lo.

— Ah! O senhor não sabia? — disse Mítia, piscando o olho, com um sorriso irônico. — E se eu recusasse responder? Quem os informaria? O defundo, eu e Smierdiákov éramos os únicos a conhecer o segredo, Deus também o sabe, mas ele não o dirá aos senhores. Ora, o fato é curioso e sobre ele pode-se construir à vontade. Ah! Ah! Consolem-se, senhores, eu lhes revelarei o segredo, seus temores são vãos. Os senhores não sabem com quem têm de avir-se! O acusado depõe contra si mesmo, sim, porque sou um cavalheiro de honra, mas os senhores, não!

O procurador engolia essas pílulas na sua impaciência de conhecer o fato novo. Mítia explicou pormenorizadamente os sinais imaginados por Fiódor Pávlovitch para Smierdiákov, o sentido de cada pancada na ja­nela; reproduziu-òs mesmo em cima da mesa. Tendo-lhe Nikolai Parfié-novitch perguntado se ele havia feito então ao velho o sinal convenciona­do para a chegada da Grúchenhka, Mítia respondeu afirmativamente.

— Agora, construam sobre isso uma hipótese! — cortou ele, voltan-do-se com desdém.

— De modo que seu defunto pai, o senhor e o criado Smierdiákov eram os únicos a conhecer esses sinais? — insistiu o juiz.

. — Sim, o criado Smierdiákov e depois Deus. Notem isto. Devem os senhores mesmo recorrer a Deus.

Consignou-se, bem entendido, mas naquele momento disse o procura­dor, como se lhe tivesse sobrevindo uma idéia:

— Neste caso, e já que o senhor afirma sua inocência, não teria sido Smierdiákov que fêz seu pai abrir a porta, dando o sinal, e em segui­da... o assassinou?

Mítia lançou-lhe um olhar carregado de ironia e de ódio, fixou-o tan­to tempo que o procurador bateu as pálpebras.

— Os senhores queriam ainda pegar a raposa, beliscaram-lhe a cauda, ah, ah, ah, pensavam que eu ia agarrar-me ao que os senhores insinuam e exclamar a plenos pulmões: "Ah! Sim, foi Smierdiákov, eis o assas­sino!" Confessem que pensaram isto, confessem, e então continuarei.

O procurador não confessou nada. Esperou em silêncio.

— Os senhores enganaram-se. Não acusarei Smierdiákov — declarou Mítia.

— E o senhor nem mesmo suspeita dele?

— Será que os senhores suspeitam?

— Nós também suspeitamos dele. Mítia baixou os olhos.

— Basta de brincadeiras, escutem: desde o começo, quase no mo­mento em que saí de trás daquela cortina, esta idéia já me viera: "Foi Smierdiákov!" Sentado a esta mesa, quando gritava a minha inocência, o pensamento de Smierdiákov me perseguia. Agora, por fim, pensei ne­le, mas por espaço de um segundo, e logo disse a mim mesmo: "Não, não foi Smierdiákov!" Esse crime não é obra dele, senhores!

— Não suspeita então de alguma outra personagem? — perguntou com precaução Nikolai Parfiénovitch.

— Não sei quem, Deus ou Satã, mas não Smierdiákov! — disse reso­lutamente Mítia.

— Mas por que afirma o senhor com tal insistência que não foi ele?

— Por convicção. Porque Smierdiákov é uma natureza vil e covarde, ou antes, o composto de todas as covardias caminhando em cima de dois pés. Nasceu de uma galinha. Quando me falava, tremia de medo, pen­sando que eu ia matá-lo, quando nem mesmo levantava a mão. Lança­va-se a meus pés chorando, beijava minhas botas suplicando-me que não lhe fizesse medo. Entendem? Que não lhe fizesse medo. E eu mesmo dei-lhe presentes. É uma galinha epiléptica, um espírito fraco; um me­nino de oito anos surrá-lo-ia. Não, não foi Smierdiákov. Não gosta de dinheiro, recusava meus presentes... Aliás, por que teria ele matado o velho? É talvez seu filho natural, sabem disso?

— Conhecemos esta lenda. Mas o senhor também é filho de Fiódor Pávlovitch e no entanto andou dizendo a todo mundo que queria matá-lo.

— Mais outra pedra no meu jardim! É abominável. Mas eu não te­nho medo. Os senhores deviam ter vergonha de dizer-me isto em rosto! Porque fui eu que lhes falei. Não somente quis matá-lo, mas podia tê-lo feito, eu mesmo me acusei de ter estado a ponto de matá-lo. Mas meu anjo da guarda salvou-me do crime, eis o que os senhores não po­dem compreender... É ignóbil da parte dos senhores, ignóbil! Porque eu não matei, não matei! Entende, procurador? Não matei!

Sufocava. Durante o interrogatório jamais estivera em semelhante agi­tação.

— E que lhes disse Smierdiákov? — concluiu após uma pausa. — Posso sabê-lo?

— Ó senhor pode interrogar-nos sobre tudo quanto diga respeito aos fatos — respondeu friamente o procurador —, e repito-lhe que concor­damos em responder às suas perguntas. Encontramos o criado Smierdiá­kov em seu leito, sem conhecimento, presa de violenta crise de epilepsia, a décima talvez desde a véspera. O médico que nos acompanhava de­clarou, depois de ter examinado o doente, que não passaria ele talvez da noite.

— Então, foi o diabo que matou meu pai! — deixou Mítia escapar, como se sua derradeira dúvida desaparecesse.

— Voltaremos a este ponto — concluiu Nikolai Parfiénovitch. — Queira continuar seu depoimento.

Mítia pediu para repousar, o que lhe foi concedido com cortesia. Em seguida retomou seu relato, mas com esforço visível. Estava fatigado, indisposto, abalado moralmente. Além do mais, o procurador, como de propósito, irritava-o a cada instante, detendo-se em minúcias. Mítia aca­bava de descrever como, cavalgando a paliçada, assestara um golpe de pilão na cabeça de Gregório, que se agarrara à sua perna esquerda, de­pois saltara para junto do ferido, quando o procurador lhe pediu que explicasse com mais detalhes como se mantinha ele sobre a paliçada. Mítia admirou-se.

— Ora! Estava sentado assim, a cavalo, com uma perna de cada la­do...

— E o pilão?

— Tinha-o na mão.

— Não estava no seu bolso? Lembra-se desse detalhe? O senhor deve ter golpeado do alto.

— É provável. Por que essa observação?

— Quereria o senhor colocar-se sobre sua cadeira como estava então na paliçada, para nos mostrar perfeitamente como e de que lado o se­nhor golpeou?

— Será que não está zombando de mim? — perguntou Mítia, olhan­do de alto a baixo o procurador; mas este não fêz nenhum movimento. Mítia pôs-se a cavalo sobre a cadeira e levantou o braço:

— Eis como golpeei! Como matei! Estão satisfeitos?

— Agradeço-lhe. Não quererá explicar-nos agora por que de novo saltou para o jardim e com que fim?

— Com os diabos! Para ver o ferido... Não sei por quê!

— Na perturbação em que se encontrava e no momento em que fugia?

— Sim, numa perturbação daquela e no momento de fugir.

— Queria ir-lhe em socorro?

— Como? Sim, talvez, em socorro, não me lembro.

— Não se dava conta o senhor de seus atos?

— Oh! dava-me bem conta deles. Lembro-me dos menores detalhes. Saltei para ver e enxuguei-lhe o sangue com meu lenço.

— Vimos seu lenço. Esperava fazer o ferido voltar à vida?

— Não sei... Queria simplesmente certificar-me de que vivia ainda.

— Ah! queria certificar-se? E então?

— Não sou médico, não posso julgar isso. Fugi pensando tê-lo matado.

— Muito bem, agradeço-lhe. É tudo quanto precisava saber. Queira continuar.

Ai! Mítia não teve a idéia de contar — e no entanto se lembrava — que saltara por compaixão e pronunciara palavras de piedade diante de sua vítima: "O velho está liquidado; tanto pior, que aí fique!" O pro­curador concluiu que o acusado saltara em tal momento e em tal per­turbação somente para verificar com certeza se a única testemunha de seu crime vivia ainda. Quais deviam ser então a energia, a resolução, o sangue-frio daquele homem, etc, etc. O procurador estava satisfeito: "Exasperei esse homem irritável com minúcias e ele se traiu".

Mítia prosseguiu penosamente. Desta vez foi Nikolai Parfiénovitch que o interrompeu:

— Como pôde o senhor ir à casa da criada Fiedóssia Márkovna com as mãos e o rosto ensangüentados?

— Mas eu não sabia disso.

— É verossímil, isto acontece — disse o procurador, trocando uma olhadela com Nikolai Parfiénovitch.

— O senhor tem razão, procurador — aprovou Mítia. Em seguida contou sua decisão de se afastar, de deixar o caminho livre aos amantes.

Mas não pôde resolver-se, como ainda há pouco, a exibir seus sentimentos, a falar da rainha de seu coração. Isso causava-lhe repug­nância diante daquelas criaturas frias. De modo que, às perguntas reiteradas, respondeu lacônicamente:

— Pois bem! Tinha resolvido matar-me. Para que viver? O antigo amante de Gruchenhka, seu sedutor, vinha, após cinco anos, reparar sua falta, desposando-a. Compreendi que tudo estava acabado para mim... Atrás de mim a vergonha, e depois aquele sangue, o sangue de Gre-gório. Por que viver? Fui desempenhar as minhas pistolas, a fim de alojar-me uma bala na cabeça, ao amanhecer...

— E, esta noite, uma festa de arromba.

— Isto mesmo. Que diabo, senhores, acabemos o mais depressa. Es­tava decidido a matar-me, lá, no fim da aldeia, às 5 horas da manhã. Tenho mesmo no bolso um bilhete escrito em casa de Pierkhótin, quando carregava minha pistola. Ei-lo, leiam-no. Não é para os senhores que conto! — acrescentou desdenhoso. Lançou sobre a mesa o bilhete que os juizes leram com curiosidade, e, como de justiça, juntaram ao processo.

— E o senhor não pensou em lavar as mãos, mesmo antes de ir à casa do Senhor Pierkhótin? Não temia então as suspeitas?

— Que suspeitas? Que suspeitem de mim ou não, pouco me importa. Ter-me-ia suicidado às 5 horas, antes que tivessem tempo de agir. Sem a morte de meu pai, os senhores de nada saberiam e não teriam vindo aqui. Oh! é a obra do diabo, foi ele que matou meu pai, que tão prontamente informou os senhores. Como puderam chegar tão depressa? É fantástico!

— O Senhor Pierkhótin nos informou que, ao entrar em casa dele, tinha o senhor em suas mãos... em suas mãos ensangüentadas... grossa soma... um maço de cédulas de 100 rublos. Seu jovem criado também o viu.

— É verdade, senhores, lembro-me.

— Uma pequena pergunta — disse com grande mansidão Nikolai Parfiénovitch. — Poderia o senhor indicar-nos onde arranjou tanto dinheiro, quando está demonstrado que o senhor não teve tempo de ir à sua casa?

O procurador franziu o cenho a esta pergunta assim feita de frente, mas não interrompeu Nikolai Parfiénovitch.

— Não, não voltei à minha casa — disse Mítia tranqüilamente, mas de. olhos baixos.

— Permita-me neste caso que repita minha pergunta — insinuou o juiz. — Onde encontrou de repente semelhante soma, quando, segundo suas próprias confissões, às 5 horas do mesmo dia...

— Tinha necessidade de 10 rublos, empenhei minhas pistolas em casa de Pierkhótin, depois fui à casa da Senhora Khokhlakova para lhe pedir emprestados 3 000 rublos que ela nâo me deu, etc. Ah! sim, senhores, estava sem recursos e, de repente, eis-mecom milhares! Sabem de uma coisa? Os senhores têm medo, todos dois agora: que acontecerá se ele não nos indica a procedência desse dinheiro? Pois bem, não lhes direi, senhores, adivinharam certo, não o saberão — disse Mítia martelando a derradeira frase.

— Compreenda, Senhor Karamázov, que é essencial para nós sabê-lo — disse mansamente Nikolai Parfiénovitch.

— Compreendo-o, mas não o direi,

O procurador, por sua vez, lembrou que o acusado podia não respon­der às perguntas, se o julgasse preferível, mas que, em vista do pre­juízo que causava a si próprio com seu silêncio, em vista sobretudo da importância das perguntas...

— E assim por diante, senhores, e assim por diante! Estou farto, já ouvi essa ladainha. Compreendo a gravidade do caso: é esse o ponto capital, contudo não falarei.

— Que é que temos com isso? É ao senhor mesmo que prejudica — observou nervosamente Nikolai Parfiénovitch.

— Basta de brincadeiras, senhores. Pressenti desde o começo que haveríamos de contender sobre este ponto. Mas então, quando comecei a depor, tudo estava para mim confuso e flutuante, tive mesmo a sim­plicidade de propor-lhes uma confiança mútua. Agora vejo que essa confiança era impossível, uma vez que devíamos chegar a essa barreira maldita e nela estamos. Aliás, não lhes censuro nada, compreendo bem que os senhores não poderiam acreditar em mim sob palavra.

Mítia calou-se, com ar sombrio.

— Não poderia o senhor, sem renunciar à sua resolução de calar o essencial, informar-nos a respeito de um ponto: quais são os motivos bastante poderosos que o obrigam ao silêncio num momento tão crítico?

Mítia sorriu tristemente.

— Sou melhor do que os senhores pensam. Dir-lhes-ei esses moti­vos, se bem que não mereçam isso. Calo-me porque há para mim nisso uma questão de vergonha. A resposta à pergunta sobre a proveniência do dinheiro implica uma vergonha pior do que se tivesse eu assassinado meu pai para roubá-lo. Eis por que me calo. Então, senhores, querem consignar isso?

— Sim, vamos consigná-lo — gaguejou Nikolai Parfiénovitch.

— Não deveriam mencionar o que se refere à "vergonha". Se lhes falei assim, quando podia calar-me, foi unicamente por complacência. Pois bem, escrevam, escrevam o que quiserem — concluiu com ar de desgosto — não os temo e... mantenho meu orgulho perante os senhores.

— Não nos explicará de que natureza é essa vergonha? — perguntou timidamente Nikolai Parfiénovitch.

O procurador franziu o cenho.

— Bem, bem, c'est fini, não insistam. Não adianta envilecer-me. Já me envileci ao contato com os senhores. Não merecem que eu fale, nem os senhores, nem ninguém. Basta, senhores, calo-me.

Era categórico. Nikolai Parfiénovitch não insistiu mais; compreendeu, porém, pelos olhares de Ipoiit Kirílovitch, que este não desesperava ainda.

— Não pode dizer, pelo menos, a soma que tinha ao chegar à casa do Senhor Pierkhótin?

— Não, não posso.

— O senhor falou ao Senhor Pierkhótin de 3 000 rublos suposta­mente emprestados pela Senhora Khokhlakova.

— É possível. Mas chega, senhores, não direi qual a soma.

— Então, queira dizer-nos como veio o senhor a Mókroie e tudo quanto aqui fêz.

— Oh! basta que interroguem as pessoas que estão aqui. Aliás, vou contar-lhes.

Não reproduziremos seu relato, feito rapidamente e com sequidão. Passou em silêncio a sua embriaguez amorosa, explicando como desistira de suicidar-se, "em resultado de fatos novos". Narrava sem dar os motivos, sem entrar nos detalhes. Os magistrados fizeram-lhe, aliás, poucas perguntas; aquilo só lhes interessava mediocremente.

— Voltaremos a isso por ocasião dos depoimentos das testemunhas, que se realizarão, bem entendido, em sua presença — declarou Nikolai Parfíénovitch, terminando o interrogatório. — Por agora, queira depo­sitar sobre a mesa tudo quanto tiver em seu poder, sobretudo seu dinheiro.

— O dinheiro, senhores? Às suas ordens, compreendo que é neces­sário. Admiro-me de não terem os senhores pensado nisso mais cedo. Ei-lo, meu dinheiro, contem, tomem-no, está tudo aí, creio. — Esvaziou os bolsos, inclusive o dinheiro miúdo, tirou duas moedas de 10 cope-quês do bolso do colete. Fizeram a conta: havia 836 rublos e 40 copeques.

— É tudo? — perguntou o juiz.

— Tudo.

— De acordo com o seu depoimento, o senhor gastou 300 rublos na casa dos Plótnikovi; deu 10 rublos a Pierkhótin, 20 ao cocheiro. Perdeu 200 no jogo, em seguida...

Nikolai Parfíénovitch refez a conta, ajudado por Mítia. Até os copeques foram incluídos.

— Com esses 800, deveria o senhor ter, por conseqüência, cerca de 1 500 rublos.

— Isto mesmo.

— Todo mundo afirma que o senhor tinha muito mais.

— Pois que afirmem.

— O senhor também, aliás.

— Eu também.

— Verificaremos tudo isso pelos depoimentos de outras testemunhas. Não se inquiete, a respeito de seu dinheiro. Será depositado em lugar seguro e posto à sua disposição.7. ao terminar o processo... se ficar demonstrado que tem direito a ele. Agora...

Nikolai Parfíénovitch levantou-se e declarou a Mítia que tinha ele o encargo e o dever de examinar-lhe minuciosamente as roupas e tudo mais.

— Pois seja, senhores, revirarei os bolsos, se quiserem. E fêz menção de fazê-lo.

— É preciso mesmo que tire suas roupas.

— Como? Tirar as roupas? Que diabo! Não me poderia o senhor revistar como estou?

— Impossível, Dimítri Fiódorovitch, é preciso que tire as roupas.

— Como quiser — consentiu Mítia com ar sombrio. — Somente não aqui, peço-lhe; por trás da cortina. Quem procederá à revista?

— Decerto, por trás da cortina — aprovou com um sinal de cabeça Nikolai Parfíénovitch, cuja carinha expressava gravidade.

 

O PROCURADOR CONFUNDE MÍTIA

Passou-se então uma cena pela qual Mítia não esperava. Não teria jamais suposto, dez minutos antes, que ousassem tratá-lo daquela ma­neira, a ele, Mítia. Karamázov. Sobretudo, sentia-se humilhado, exposto à arrogância e ao desdém. Não lhe importava retirar sua sobrecasaca, mas pediram-lhe que se desvestisse completamente. Ou antes, ordena­ram-lhe, dera-se bem conta disso. Submeteu-se sem murmurar, por alti­vez desdenhosa. Além dos juizes, alguns mujiques acompanharam-no para trás da cortina, "sem dúvida para prestar mão forte", pensou Mítia, "talvez mesmo com algum outro fim”. "Será preciso tirar também minha camisa?", perguntou ele bruscamente; mas Nikolai Parfiénovitch não lhe respondeu: ele e o procurador estavam absorvidos pelo exame da sobrecasaca, das calças, do colete e do casquete, que pareciam inte­ressá-los bastante. "Que sem-cerimônial Nem mesmo observam a poli-dez necessária. "

— Pergunto-lhes pela segunda vez se devo tirar minha camisa, sim ou não? — disse Mítia, com irritação.

— Não se inquiete, nós o preveniremos — respondeu Nikolai Par­fiénovitch, num tom que pareceu autoritário a Mítia.

O procurador e o juiz entretinham-se a meia voz. A sobrecasaca trazia, sobretudo na aba esquerda, enormes manchas de sangue coa­gulado, bem como as calças. Além do mais, Nikolai Parfiénovitch ta­teou, em presença das testemunhas instrumentais, a gola, punhos, costuras, procurando ver se não havia dinheiro escondido. Deu-se a entender a Mítia que ele era bem capaz de ter costurado dinheiro em suas roupas. "Tratam-me como ladrão e não como oficial", resmungou ele consigo. Trocavam suas impressões na sua presença com uma fran­queza singular. £ deu-se que o escrivão, que se encontrava também atrás da cortina e se atarefava na busca, chamou a atenção de Nikolai Parfiénovitch para o casquete, que igualmente foi revistado: "Lembrem-se do amanuense Grudienko; foi no verão receber os vencimentos para todos da secretaria e pretendeu nos enganar, ao voltar, alegando ter perdido o dinheiro quando se encontrava embriagado; onde o en­contraram? Na bainha de seu casquete, onde as notas de 100 rubi os estavam enroladas e cosidas". O juiz e o procurador lembravam-se per­feitamente desse fato, de modo que puseram de lado o casquete de Mítia para ser submetido, bem como as roupas, a um exame minucioso.

— Com licença — exclamou de súbito Nikolai Parfiénovitch, perce­bendo o punho da manga direita da camisa de Mítia, arregaçado e manchado de sangue —, com licença! É sangue?

— Sangue.

— Que sangue? E por que sua manga está arregaçada?

Mítia explicou que se manchara de sangue quando se ocupara com Gregório e havia arregaçado a manga em casa de Pierkhótin, ao lavar as mãos.

— Será preciso também tirar sua camisa. É muito importante para as peças de convicção.

Mítia corou e zangou-se.

— Então, vou ficar completamente nu?

— Não se inquiete, arranjaremos isso. Faça o favor de tirar também suas meias.

— Não será brincadeira? Tudo isto é verdadeiramente indispensável?

— Não estamos brincando — replicou severamente Nikolai Parfié­novitch.

— Está bem, se é preciso... eu... — murmurou Mítia, que, sentan­do-se no leito, se pôs a tirar suas meias. Estava muito constrangido e, coisa estranha, sentia-se como culpado, assim nu, diante daquelas pessoas vestidas, achando quase que tinham elas agora o direito de desprezá-lo, como inferior. "A nudez em si nada tem de chocante, a vergonha nasce do contraste", pensou ele. "Dir-se-ia um sonho, tenho por vezes experimentado tais sensações em sonho." Era-lhe penoso tirar suas meias, bastante sujas, bem como sua roupa de baixo, e agora todo mundo o vira. Seus pés sobretudo lhe desagradavam, sempre achara disformes seus dedos grandes dos pés, particularmente o do pé direito, chato, com a unha recurvada, e todos o viam. O sentimento de sua vergonha tomou-o mais grosseiro. Tirou sua camisa com raiva.

— Não querem procurar em mais alguma parte, se não tiverem ver­gonha?

— Não, para o momento é inútil.

— Então, devo ficar assim nu?

— Sim, é necessário... Queira sentar-se, enquanto espera. Pode en­rolar-se num cobertor do leito, e eu... ocupar-me-ei com isso.

Tendo sido mostradas as roupas às testemunhas instrumentais e redi­gido o auto de seu exame, o juiz e o procurador saíram, levando as roupas. Mítia ficou em companhia dos mujiques, que não desfitavam dele os olhos. Sentia frio e enrolou-se no cobertor, demasiado curto para cobrir seus pés nus. Nikolai Parfienovitch fêz-se esperar muito tempo. "Toma-me por um rapazola", murmurou Mítia, rangendo os dentes. "Esse palerma desse procurador saiu também, por desprezo tal­vez, repugnava-íhe ver-me nu." Mítia imaginava que lhe restituiriam suas roupas após o exame. Qual não foi sua indignação, quando Nikolai Parfienovitch reapareceu com outra roupa, que um mujique trazia atrás dele.

— Aqui estão roupas — disse ele num tom desprendido, visivel­mente satisfeito com seu achado. — Foi o Senhor Kolgánov que lhas emprestou, bem como uma camisa limpa. Por felicidade, tinha-as ele na mala. O senhor pode ficar com suas meias.

— Não quero roupas dos outros! — exclamou Mítia exasperado. — Entreguem as minhas!

— Impossível.

— Dêem-me as minhas! Que Kolgánov e suas roupas vão para o inferno!

Tiveram dificuldade em convencê-lo. Mas afinal, de qualquer forma, explicaram-lhe que suas roupas, sujas de sangue, deviam "figurar entre as peças de convicção. Não temos mesmo direito de deixá-las com o senhor... diante do aspecto que o caso pode tomar". Mítia acabou por compreendê-lo, calou-se, vestiu-se à pressa. Fêz somente notar que o casaco que lhe emprestavam era mais rico que o seu e que não queria aproveitar disso. Além do mais, ridiculamente estreito. — Devo estar vestido como um palhaço... para diverti-los?

Fizeram-lhe observar que exagerava, que somente as calças eram um pouco compridas. Mas a sobrecasaca apertava-lhe os ombros.

— Diabos! É difícil de abotoar — resmungou de novo Mítia. — Façam o favor de dizer ao Senhor Kolgánov que não fui eu quem pediu essa roupa e que me disfarçaram de palhaço.

— Ele o compreende muito bem e lamenta... isto é, não sua roupa, mas este incidente... — resmoneou Nikolai Parfienovitch.

— Pouco me importa que ele o lamente! Está bem! Para onde ir agora? Preciso ficar aqui?

Pediram-lhe que passasse para o outro lado. Mítia saiu, com ar som­brio, esforçando-se por não olhar para ninguém. Naquele traje estra­nho, sentia-se humilhado, até mesmo aos olhos dos mujiques e de Trifon Borísovitch, cuja cara apareceu à porta: "Vem ver-me nestes trajes", pensou Mítia. Tornou a sentar-se no mesmo lugar, como sob a im-presão de um pesadelo. Parecia-lhe não se achar em seu estado normal.

— Agora, vão mandar-me açoitar? Só lhes falta isso! — disse ele, dirigindo-se ao procurador. Evitava voltar-se para Nikolai Parfienovitch, como desdenhando dirigir-lhe a palavra. "Examinou demasiado minuciosamente minhas meias, revirou-as mesmo, o monstro, para que todo mundo veja como estão elas sujas!"

— É preciso agora ouvir as testemunhas — proferiu Nikolai, como em resposta à pergunta de Mítia.

— Sim — disse o procurador com ar absorto.

— Dimítri Fiódorovitch, fizemos o possível a seu favor — prosse­guiu o juiz —, mas como o senhor se recusou categoricamente a nos explicar a proveniência da soma encontrada em seu poder, somos agora...

— De que é esse seu anel? — interrompeu Mítia, como que saindo de um devaneio e designando um dos anéis que ornavam a mão de Nikolai Parfiénovitch.

— Meu anel?

— Sim, esse aí... no dedo grande, cuja pedra é veiada — insistiu Mítia, como uma criança teimosa.

— É um topázio enfurnado — disse Nikolai Parfiénovitch, sorrindo. — Quer examiná-lo? Tirá-lo-ei...

— Não, não, não o tire! — exclamou raivosamente Mítia, reconsi­derando e furioso contra si mesmo. — Não o tire, é inútil... Ao diabo... Os senhores me envileceram! Acreditam que eu o dissimularia, se tivesse matado meu pai, que eu recorreria à astúcia e à mentira? Não, não está isto no caráter de Dimítri Fiódorovitch, ele não o supor­taria, e, se eu fosse culpado, juro-lhes que não teria esperado a chegada dos senhores e o nascer do sol, como tinha a princípio intenção; ter-me-ia suicidado antes da aurora! Sinto-o bem agora. Em vinte anos, teria aprendido menos do que durante essa noite maldita!... E estaria desse jeito sentado ao lado dos senhores, falaria desta maneira, com os mesmos gestos, os mesmos olhares, se fosse realmete um parricida, quando o assassínio acidental de Gregório me atormentou a noite intei­ra?... Não por temor, não pelo simples medo do castigo. Oh! ver­gonha! E querem que a farsantes como os senhores, que nada vêem e em nada crêem, cegos como toupeiras, revele eu nova baixeza, nova vergonha, ainda que fosse para me desculpar? Prefiro ir para o presí­dio! Aquele que abriu a porta para entrar em casa de meu pai é o assassino e o ladrão. Quem é? Perco-me em conjeturas, mas não foi Dimítri Karamázov, fiquem sabendo, eis tudo quanto posso dizer-lhes. Basta, não insistam... Mandem-me para a prisão ou para o cada-falso, mas nao me atormentem mais... Calo-me. Chamem suas tes­temunhas!

O procurador, que havia observado Mítia, enquanto este proferia seu monólogo, disse-lhe, de repente, no tom mais calmo e como se se tratasse de coisas perfeitamente naturais.

— A propósito dessa porta aberta de que o senhor acaba de falar, recebemos um depoimento muito importante do velho Gregório Vassí-lievitch. Afirma positivamente que, quando se decidiu, ao ouvir barulho, a entrar no jardim pela portinha que ficara aberta, notou à esquerda a porta da casa escancarada, bem como a janela, ao passo que o senhor garante que a dita porta ficou fechada todo o tempo em que o senhor esteve no jardim. Naquele momento não o havia ele ainda visto no escuro quando o senhor fugia, de acordo com seu relato, da janela onde estivera a ver seu pai. Não lhe oculto que Vassíliev conclui for­malmente e declara que o senhor deve ter escapado por aquela porta, se bem que não o haja visto sair por ela. Avistou-o a certa distância, no jardim, quando o senhor corria do lado da paliçada...

Mítia levantara-se.

— É uma mentira inpudente. Não pode ter visto a porta aberta, porque ela estava fechada... Ele mente.

— Creio-me obrigado a repetir-lhe que seu depoimento é categórico e que persiste nele. Interrogamo-lo por várias vezes.

— Fui eu precisamente quem o interrogou — confirmou Nikolai Parfiénovitch.

— É falso, é falso! É uma calúnia ou a alucinação dum louco. Muito simplesmente ter-lhe-á parecido ver isso no delírio causado pelo seu ferimento.

— Mas havia ele notado a porta aberta antes de ter sido ferido, quando acabava de entrar no jardim.

— Não é verdade, não pode ser! Ele me calunia por maldade... não pode ter visto... Não passei por aquela porta — disse Mítia, ofegante.

O procurador voltou-se para Nikolai Parfiénovitch e disse-lhe:

— Mostre então.

— Conhece este objeto? — E o juiz pousou sobre a mesa um grande envelope que trazia ainda três sinêtes. Estava vazio e rasgado dum lado. Mítia escancarou os olhos.

— É... é o envelope de meu pai — murmurou ele —, o que encerrava os 3 000... se o subscrito corresponde... Com licença: "À minha franguinha", é isto, "3 000", estão vendo, 3 000?

— Estamos vendo, decerto, mas não encontramos o dinheiro. O en­velope estava no chão, perto do leito, por trás do biombo.

Mítia ficou alguns segundos como que aturdido.

— Senhores, foi Smierdiakov! — exclamou ele, de súbito, com todas as suas forças. — Foi ele quem o matou, foi ele quem o roubou! Só ele sabia onde o velho escondia esse envelope... Foi ele sem dúvida alguma!

— Mas o senhor também sabia que este envelope estava escondido debaixo do travesseiro.

— Nunca! Vejo-o agora pela primeira vez, ouvira apenas falar dele por Smierdiakov... Somente ele conhecia o esconderijo do velho. Eu o ignorava...

— No entanto, o senhor inda há pouco afirmou, depondo, que o envelope se encontrava sob o travesseiro do defunto. Sob o travesseiro, portanto o senhor sabia onde ele estava.

— Nós consignamos isso! — confirmou Nikolai Parfiénovitch.

— É um absurdo! Ignorava-o totalmente. Aliás, talvez não fosse sob o travesseiro... Disse isto sem refletir... Que diz Smierdiakov? Interrogaram-no a respeito? Que diz ele? Isto é o principal... Eu lhes menti de propósito, por caçoada... Disse, sem pensar, que era sob o travesseiro, e agora os senhores... Bem sabemos, senhores, que a gente deixa escapar inexatidões. Mas somente Smierdiakov o sabia e ninguém mais!... Não me revelou o esconderijo! Mas foi ele, incontes-tàvelmente, foi ele o assassino, agora está para mim claro como o dia — clamou Mítia, com uma exaltação crescente. — Apressem-se em detê-lo... Matou enquanto eu fugia e Gregório jazia sem sentidos, é evidente... Fêz o sinal e meu pai abriu-lhe a porta... Porque somente ele conhecia os sinais, e sem sinal meu pai não teria aberto...

— O senhor se esquece de novo — observou o procurador com a mesma calma e ar já triunfante — que não havia necessidade de fazer o sinal, se a porta já estava aberta, quando o senhor se encon-contrava ainda no jardim...

— A porta, a porta — murmurou Mítia, fixando o procurador. Dei­xou-se cair de novo sobre sua cadeira. Houve um silêncio...

— Sim, a porta... É um fantasma! Deus está contra mim! — ex­clamou ele, com os olhos alucinados.

— Veja — disse gravemente o procurador —, julgue o senhor mesmo, Dimítri Fiódorovitch. Dum lado, esse depoimento esmagador para o senhor, a porta aberta por onde o senhor saiu. T>o outro, seu silêncio incompreensível, obstinado, relativamente à proveniencia de seu dinheiro, quando três horas antes o senhor empenhara suas pistolas por 10 rublos. Nestas condições, julgue o senhor mesmo em qual convicção devemos deter-nos. Não diga que somos zombadores frios e cínicos, incapazes de compreender os nobres ímpetos de sua alma... Ponha-se em nosso lugar...

Mítia experimentava uma emoção indescritível. Empalideceu.

— Está bem — exclamou, de repente —, vou revelar-lhes meu segredo, dizer-lhes onde arranjei o dinheiro... Revelarei minha igno­mínia, para não acusar em seguida nem aos senhores nem a mim.

— E acredite, Dimítri Fiódorovitch — disse com alegre solicitude Nikolai Parfiénovitch —, que uma confissão sincera e completa de sua parte, neste instante, pode melhorar muito sua situação ulterior, e até mesmo...

Mas o procurador tocou-o levemente com o pé por baixo da mesa e ele parou. Aliás, Mítia não o escutava.

 

O GRANDE SEGREDO DE MÍTIA. ZOMBAM DELE

— Senhores — começou ele, emocionado —, esse dinheiro... quero contar tudo... esse dinheiro era meu.

Os rostos do procurador e do juiz alongaram-se, não esperavam por isso.

— Como, seu? — disse Nikolai Parfiénovitch. — Pois se ainda cinco horas antes, segundo sua própria confissão...

— Ao diabo essas 5 horas da tarde e minha própria confissão! Não se trata mais disso! Esse dinheiro era meu, isto é... eu o tinha roubado... não meu, mas roubado para mim. Havia 1 500 rublos que andavam sempre comigo...

— Mas onde o senhor os arranjou?

— No meu peito, senhores... encontravam-se aqui, costurados, num pano, pendurados no meu pescoço. Desde muito tempo, desde um mês, trazia-os como testemunho de minha infâmia!

— Mas a quem pertencia esse dinheiro de que o senhor... o senhor se apropriou?

— O senhor quer dizer: "roubou", não é mesmo? Fale, pois, fran­camente. Sim, acho que é como se o tivesse roubado, ou, se quiser, dele me "apropriei". Ontem, à noite, roubei-o definitivamente.

— Ontem à noite? Mas o senhor acaba de dizer que há já um mês que... que o senhor o arranjou.

— Sim, mas não foi a meu pai que o roubei, tranqüilize-se, foi a ela. Deixe que eu conte, sem me interromper. É penoso. Veja o senhor, há um mês, Catarina Ivânovna Vierkhóvtseva, minha ex-noiva, me chamou... O senhor a conhece?

— Como não?

— Sei que o senhor a conhece. Uma alma nobre entre todas, mas odeia-me desde muito tempo e com razão.

— Catarina Ivânovna? — perguntou o juiz com admiração. O procurador também estava bastante surpreso.

— Oh! não pronunciem o seu nome em vão! Sou um miserável pelo fato de pô-la nisso. Sim, vi que ela me odiava... desde muito tempo... desde o primeiro dia, quando veio à minha casa, lá... Mas basta, os senhores não são dignos de sabê-lo, é inútil... Direi somente que há um mês ela me entregou 3 000 rublos para enviá-los à sua irmã e a uma sua outra parenta, em Moscou (como se não pudesse fazê-lo ela mesma!). E eu... estava precisamente na hora fatal de minha vida em que... Em suma, acabava de apaixonar-me por outra, por ela, por Grúchenhka, aqui presente. Trouxe-a aqui, a Mókroie, e gastei em dois dias a metade desse maldito dinheiro, guardando o resto. Pois bem, são esses 1 500 rublos que eu carregava sobre meu peito como um amuleto. Ontem, abri o pacote e comecei a gastar a soma. Os 800 rublos que restam estão nas mãos dos senhores.

— Com licença, o senhor gastou aqui, há três meses, 3 000 rublos e não 1 500, todo mundo o sabe.

— Quem o sabe? Quem contou meu dinheiro?

— Mas o senhor mesmo disse que havia gasto justamente 3 000 rublos.

— É verdade, disse-o a qualquer um, repetiram-no, toda a cidade acreditou. No entanto, só gastei 1 500 rublos e costurei a outra metade num amuleto. Eis donde provém o dinheiro de ontem...

— Isto é prodigioso! — murmurou Nikolai Parfiénovitch.

— Não falou disso antes a alguém... quero dizer, desses 1 500 ru­blos postos de parte? — perguntou o procurador.

— Não, a ninguém.

— É estranho. Na verdade, a ninguém no mundo?

— A ninguém no mundo.

— Por que esse silêncio? Que é que o obrigava a fazer disso um mistério? Muito embora esse segredo lhe pareça tão vergonhoso, essa apropriação, aliás temporária, de 3 000 rublos, não é relativamente, na minha opinião, senão um pecadilho, sendo dado, além disso, o caráter do senhor. Admitamos que seja uma ação das mais repreensíveis, con­cordo, mas não vergonhosa... Aliás, muitas pessoas tinham adivi­nhado a proveniência desses 3 000 rublos, sem que o senhor o confes­sasse, eu mesmo ouvi falar, Mikhail Makárovitch igualmente... Numa palavra: é o segredo de Polichinelo. Além do mais, há indícios, salvo erro, de que o senhor confiara a alguém que esse dinheiro vinha da Senhorita Vierkhóvtseva. De modo que, por que cercar de tal mistério o fato de ter guardado uma parte da soma, ligando a isso uma espécie de horror?... É difícil acreditar que lhe custe tanto confessar esse segredo... o senhor acaba de exclamar, com efeito: antes a prisão!

O procurador calou-se. Acalorara-se e não ocultava seu aborrecimen­to, sem mesmo procurar "castigar seu estilo".

— Não eram os 1 500 rublos que constituíam a vergonha, mas o fato de ter dividido a soma — disse com altivez Mítia.

— Mas enfim — disse o procurador com irritação —, que há de vergonhoso no fato de haver o senhor dividido esses 3 000 rublos adqui­ridos desonestamente? O que importa é a apropriação dessa soma e não o uso que o senhor fêz dela. A propósito, por que operou essa divisão? Com que fim? Poderia explicar-nos?

— Oh! senhores, é o fim que faz tudo! Pratiquei essa divisão por baixeza, isto é, por cálculo, porque aqui o cálculo é uma baixeza... E essa baixeza durou todo um mês!

— É incompreensível.

— O senhor me causa espanto. Aliás, vou ser preciso: é talvez, com efeito, incompreensível. Acompanhem-me bem: aproprio-me de 3 000 rublos confiados à minha honra, faço farra com eles, gasto a soma inteira; pela manhã vou à casa dela dizer-lhe: "Perdão, Cátia, gastei os teus 3 000 rublos". Fica bem isso? Não, é desonesto e covarde, é ação monstruosa, dum homem incapaz de dominar-se, não é? Mas não é um roubo, convenham, não é um roubo direto. Gastei o dinheiro, não o roubei. Eis um caso ainda mais favorável; acompanhem-me, por­que arrisco-me a atrapalhar-me, gira-me a cabeça. Gasto 1 500 rublos apenas dos 3 000. No dia seguinte, vou à casa dela levar-lhe o resto: "Cátia, sou um miserável, toma esses 1 500 rublos, porque gastei os outros, estes serão também gastos, preserva-me da tentação". Que sou eu em semelhante caso? Tudo quanto os senhores quiserem, um mons­tro, um celerado, mas não um ladrão confesso, porque um ladrão não teria decerto levado a soma, ter-se-ia apropriado dela. Ela assim vê que uma vez que eu restituí a metade do dinheiro, trabalharei se preciso toda a minha vida para devolver o resto, mas haverei de pro­curá-lo. Dessa forma, sou desonesto, mas não um ladrão.

— Admitamos que haja um matiz — o procurador sorriu friamente —, no entanto é estranho que veja o senhor nisso uma diferença fatal.

— Sim, vejo nisso uma diferença fatal. Cada qual pode ser deso­nesto, creio mesmo que cada qual o é, mas para roubar é preciso um franco canalha. E depois, perco-me nessas sutilezas... Em todo caso, o roubo é o cúmulo da desonestidade. Pensem: há um mês que guardo esse dinheiro, amanhã posso decidir devolvê-lo e cesso de ser desonesto. Mas não posso decidir-me a isso, muito embora exorte-me cada dia a tomar uma decisão. E há um mês que isto dura! Está bem, segundo a opinião dos senhores?

— Admito que não esteja bem, não o contesto... Mas deixemos de discutir a respeito dessas diferenças sutis, chegue ao fato, peço-lhe. O senhor não nos explicou ainda os motivos que o incitaram a divi­dir assim no começo esses 3 000 rublos. Com que fim escondeu a me­tade, que uso contava fazer dela? Insisto nisso, Dimítri Fiódorovitch.

— Ah! sim! — exclamou Mítia, batendo na testa. — Perdão por conservá-lo em suspenso em lugar de explicar-lhe o principal. O se­nhor teria logo compreendido, porque é o fito de minha ação que a torna ignóbil. Veja, o defunto não cessava de obsedar Agrafiena Alieksándrovna; eu sentia ciúme, acreditava que ela hesitava entre ele e mim. Pensava todos os dias: e se ela fosse decidir-se, se ela me dis­sesse de repente: "É a ti que amo, leva-me para o fim do mundo". Ora, possuía eu ao todo 20 copeques; como levá-la? Que fazer então? Estava perdido. Porque eu não a conhecia ainda, acreditava que ela precisava do dinheiro, que não me perdoaria minha pobreza. Então conto a metade da soma, de sangue-frio coso-a num trapo, de propósito deliberado, e vou para a pândega com o resto. É ignóbil! Compreendeu agora?

Os juizes puseram-se a rir.

— Na minha opinião, deu o senhor prova de sabedoria e de mora­lidade moderando-se, não gastanto tudo — disse Nikolai Parfiénovitch. — Que há de grave nisso?

— Há que eu roubei! Causa-me espanto que o senhor não compreen­da. Desde que carrego esses 1 500 rublos sobre meu peito, dizia a mim mesmo cada dia: "És um ladrão, és um ladrão!" £ste sentimento inspirou minhas violências durante esse mês, eis por que surrei o capitão no botequim e bati em meu pai. Nem mesmo ousei revelar este segredo a meu irmão Aliócha, tão celerado e, gatuno me sentia! E, no entanto, pensava: "Dimítri Fiódorovitch, talvez não sejas ainda um ladrão... Poderias amanhã ir entregar esses 1 500 rublos a Cá­tia". E foi ontem à noite somente que me decidi a rasgar meu amuleto, foi naquele momento que me tornei um ladrão incontestável. Por quê? Porque com meu amuleto destruí ao mesmo tempo meu sonho de ir dizer a Cátia: "Sou desonesto, mas não ladrão". Compreende agora?

— E por que foi justamente ontem à noite que o senhor tomou essa decisão? — interrompeu Nikolai Parfiénovitch.

— Que pergunta ridícula! Mas porque me havia condenado à morte às 5 horas da manhã, aqui, ao romper da aurora: "Não importa", pen­sava eu, "morrer honesto ou desonesto!" Mas aconteceu que não era a mesma coisa. Acreditarão os senhores? O que me torturava, sobre­tudo, nessa noite, não era o assassinato de Gregório, nem o temor da Sibéria, e isto no momento em que meu amor triunfava, em que o céu se abria de novo diante de mim! Sem dúvida, isto me atormen­tava, mas menos do que a consciência de ter tirado de meu peito aquele maldito dinheiro para gastá-lo, e ter-me tornado assim um ladrão incontestável! Senhores, repito-lhes, aprendi muito durante esta noite! Aprendi que não somente é impossível viver sentindo-se deso­nesto, mas também morrer com tal sentimento... É preciso ser honesto para enfrentar a morte!...

Mítia estava lívido.

— Começo a compreendê-lo, Dimítri Fiódorovitch — disse o pro­curador com simpatia —, mas, como quiser, tudo isso vem dos nervos... o senhor tem os nervos doentes. Por que, por exemplo, para pôr fim a seus sofrimentos, não foi devolver esses 1 500 rublos à pessoa que lhos havia confiado e ter uma explicação com ela? Em seguida, dada sua terrível situação então, por que não ter tentado uma combinação que parece bastante natural? Depois de ter confessado nobremente suas faltas, o senhor ter-lhe-ia pedido a soma de que necessitava; tendo em vista a generosidade dessa pessoa e o embaraço em que o senhor se encontrava, ela não lhe teria decerto recusado, sobretudo propondo-lhe as garantias oferecidas ao comerciante Samsónov e à Senhora Khokhla-kova. Não considera o senhor essa garantia como válida ainda agora?

Mítia corou.

— Acreditar-me-ia o senhor vil a este ponto? É impossível que o senhor fale seriamente — disse ele com indignação.

— Mas estou falando seriamente... Por que o duvida? — admirou-se por sua vez o procurador.

— Mas seria ignóbil. Senhores, fiquem sabendo que me estão ator­mentando! Pois seja, dir-lhes-ei tudo, confessarei meu pensamento in­fernal, e os senhores verão, para sua vergonha, até onde os sentimentos humanos podem descer. Saibam que também eu encarei essa combi­nação de que o senhor fala, procurador. Sim, senhores, estava quase resolvido a ir à casa de Cátia, tão desonesto eu era! Mas anunciar-lhe minha traição e, para as despesas que ela acarreta, pedir-lhe dinheiro, a ela, Cátia (pedir, entendem os senhores?), e fugir logo com sua rival, com aquela que a odeia e a ofendeu, vejamos, procurador, o senhor está louco!

— Não estou louco, mas não pensei a princípio nesse ciúme de mulher... se existia, como o senhor o afirma... sim, pode bem haver aí algo desse gênero — aquiesceu o procurador, sorrindo.

— Mas isto teria sido uma baixeza sem nome — berrou Mítia, batendo com o punho sobre a mesa —, algo de infecto! Ela me teria dado aquele dinheiro por vingança, por desprezo, porque tem ela tam­bém uma alma infernal e de grandes cóleras. Eu teria aceitado o dinheiro, por certo, tê-lo-ia aceitado, e então toda a minha vida... oh! Deus! Perdoem-me, senhores, o gritar tão forte. Não há muito tempo pensava eu ainda nessa combinação, na outra noite, quando estava cui­dando de Liagávi, e durante todo o dia de ontem, lembro-me, até aquele acontecimento.

— Até qual acontecimento? — perguntou Nikolai Parfiénovitch, mas Mítia não ouviu.

— Fiz-lhes uma - terrível confissão. Saibam apreciar isso, senhores, compreendam-lhe todo o valor. Mas se são capazes disso, é que me desprezam e morrerei de vergonha por haver-me confessado a gente como os senhores! Oh! matar-me-ei! E já vejo, vejo que não me acre­ditam! Como? Querem consignar isto? — exclamou ele, com terror.

— Mas sim — replicou Nikolai Parfiénovitch, espantado —, nós nota­mos que até a última hora pensava o senhor em ir à casa da Senhorita Vierkhóvtseva para lhe pedir aquela soma... Asseguro-lhe que essa de­claração é muito importante para nós, Dimítri Fiódorovitch... e sobre­tudo para ò senhor.

— Vejamos, senhores, tenham pelo menos o pudor de não mandar consignar isto! Pus minha alma a nu diante dos senhores e os senhores se aproveitam para nela cascavilhar!... Oh! meu Deus!

Cobriu o rosto com as mãos.

— Não se inquiete tanto, Dimítri Fiódorovitch — concluiu o pro­curador —, far-lhe-ão leitura de tudo quanto está escrito, modificando-se o texto lá onde o senhor não estiver de acordo. Agora, pergunto-lhe pela terceira vez, é bem verdade que ninguém, nem uma alma, ouviu falar desse dinheiro costurado no amuleto?

— Ninguém, ninguém, já o disse, o senhor então não compreendeu. Deixe-me tranqüilo.

— Pois seja, este ponto terá de ser esclarecido; enquanto se espera, reflita; temos talvez uma dezena de testemunhas que afirmam que o se­nhor mesmo sempre falou duma despesa de 3 000 rublos e não de 1 500. E agora, à sua chegada aqui, o senhor declarou a muitos que trazia ainda 3 000.

— Os senhores têm entre as mãos centenas de testemunhos análogos, um milhar de pessoas ouviu isso!

— Pois bem, como vê o senhor, todos são unânimes. A palavra "todos" significa pois alguma coisa.

— Isso não significa nada absolutamente. Menti e todos mentiram como eu.

— Por que mentiu?

— O diabo sabe por quê. Por gabolice, talvez... a gloríola de ter gasto tal soma... talvez para esquecer o dinheiro que eu havia escondido... sim, justamente, eis por quê... diabos... quantas vezes já me fizeram esta pergunta? Menti, eis tudo, e não quis desdizer-me. Por que se mente, por vezes?

— É bem difícil de explicar, Dimítri Fiódorovitch — disse grave­mente o procurador. — Mas diga-nos: esse amuleto, como o senhor chama, era grande?

— Não.

— De que tamanho, por exemplo?

— Do tamanho de uma nota de 100 rublos dobrada em duas.

— Faria melhor mostrando-nos os pedaços; deve tê-los certamente com o senhor.

— Que tolice! Não sei onde eles estão.

— Com licença: onde e quando o retirou de seu pescoço? O senhor não voltou para casa, segundo sua declaração.

— Foi ao ir à casa de Pierkhótin, depois de ter deixado Fiénia. Rasguei-o para tirar o dinheiro.

— No escuro?

— Para que uma vela? O pano foi depressa rasgado.

— Sem tesouras, na rua?

— Na praça, creio.

— Que fez dele?

— Atirei-o lá.

— Onde?

— Em alguma parte, na praça, o diabo sabe onde. Que é que interessa isso aos senhores?

— É muito importante, Dimítri Fiódorovitch; há nisso uma peça de convicção em seu favor, não o comprende? Quem o ajudou a costurá-lo, há um mês?

— Ninguém. Eu mesmo o costurei.

— Sabe coser?

— Um soldado deve saber coser; aliás, não há necessidade de ser hábil para isso.

— E onde arranjou o pano, isto é, esse trapo?

— Os senhores querem rir.

— Absolutamente. Não estamos com vontade de rir, Dimítri Fió­dorovitch.

— Não me lembro onde.

— Como pode ter esquecido?

— Palavra, não me lembro, rasguei talvez um pedaço de roupa branca.

— É muito importante: poder-se-ia encontrar, amanhã, em sua casa, a peça, a camisa, talvez, de que o senhor arrancou um pedaço. De que era esse trapo: de algodão ou de linho?

— O diabo o sabe. Esperem... Parece-me que não rasguei nada. Era, creio, de algodão. Costurei da touca de minha locadora.

— Da touca de sua locadora?

— Sim, tirei-a dela.

— Como, tirou-a?

— Estão vendo? Lembro-me, com efeito, de ter subtraído uma touca para aproveitar o pano em trapos, talvez como limpador de penas. Tirei-a furtivamente, porque era um trapo sem valor e me servi para costurar dentro dele aqueles 1 500 rublos... Creio bem que foi isso, um velho pedaço de tecido de algodão, mil vezes lavado.

— E está certo disso?

— Não sei. Parece-me. Aliás, pouco me importa.

— Neste caso, sua locadora poderia ter verificado o desaparecimento desse objeto.

— Não, não o notou. Um velho trapo, digo-lhes eu, um trapo que não valia 1 copeque.

— E a agulha, a linha, onde as arranjou?

— Paro, chega! — cortou bruscamente Mítia, zangado.

— É estranho que o senhor não se lembre onde atirou aquele... amuleto, na praça.

— Mandem varrer a praça amanhã, talvez o encontrem. Basta, senhores, basta! — proferiu Mítia num tom de acabrunhamento. — Vejo-o bem, não acreditam os senhores uma palavra do que lhes digo! É culpa minha e não dos senhores. Não deveria ter-me deixado levar a isso. Porque degradei-me revelando meu segredo! Isto lhes parece engraçado, vejo-o pelos seus olhos! Foi o senhor que me atraiu a este ponto, procurador! Triunfe agora!... Malditos sejam, carrascos!

Curvou a cabeça, cobriu o rosto com as mãos. O procurador e o juiz calavam-se. Ao fim dum minuto, Mítia levantou a cabeça e fitou-os inconscientemente. Sua fisionomia exprimia o desespero no seu último grau, tinha o ar desvairado. Entretanto era preciso acabar, pro­ceder ao interrogatório das testemunhas. Eram 8 horas da manhã, ti­nham apagado as-velas desde muito tempo. Mikhail Makárovitch e Kolgánov, que andavam abaixo e acima durante o interrogatório, tinham agora saído ambos. O procurador e o juiz pareciam fatigados. Fazia mau tempo, o céu estava nublado, a chuva caía torrencialmente. Mítia olhava vagamente através das vidraças.

— Posso olhar pela janela? — perguntou ele a Nikolai Parfié-novitch.

— À sua vontade — respondeu este.

Mítia levantou-se e aproximou-se da janela. A chuva fustigava as pequenas vidraças esverdeadas. Via-se a estrada enlamaçada e, mais longe, as filas de isbás, sombrias e pobres, que a chuva tornava mais miseráveis ainda. Mítia se lembrou de "Febo dos cabelos de ouro" e de sua intenção de matar-se "logo aos seus primeiros raios". Seme­lhante manhã teria convindo ainda melhor. Sorriu amargamente e vol­tou-se para seus "carrascos".

— Senhores, vejo que estou perdido. Ela, porém? Digam-me, supli­co-lhes, deve ela sofrer a mesma sorte? Está inocente, perdera a cabeça, ontem, para gritar que "era culpada de tudo". Está completamente inocente! Após esta noite de angústia, não me podem dizer os senhores o que farão com ela?

— Tranqüilize-se a este respeito, Dimítri Fiódorovitch — apressou-se em responder o procurador —, não temos no momento nenhum moti­vo para inquietar a pessoa pela qual se interessa. Espero que o mesmo aconteça ulteriormente. Pelo contrário, faremos tudo quanto estiver ao nosso alcance em seu favor.

— Senhores, agradeço-lhes, sabia que os senhores são justos e ho­nestos, apesar de tudo. Tiram-me um peso da alma... Que querem fazer agora? Estou pronto.

— É preciso proceder imediatamente ao interrogatório das testemu­nhas, o que deve realizar-se em sua presença, de modo que...

— Se tomássemos chá? — interrompeu Nikolai Parfiénovitch. — Creio que bem o merecemos.

Decidiu-se tomar um copo de chá e prosseguir-se o inquérito sem parar, esperando-se, para uma refeição mais substanciosa, uma hora mais favorável. Mítia, que a princípio recusara o copo que lhe oferecia Nikolai Parfiénovitch, tomou-o em seguida ele próprio e bebeu com avidez. Parecia extenuado. Com sua constituição robusta, parecia, que mal poderia causar-lhe uma noite de farra, mesmo acompanhada das mais fortes sensações? Mal se mantinha, porém, sobre sua cadeira e por vezes cria ver os objetos girarem em torno de si. "Ainda um pouco e vou delirar", pensava.

 

DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS. O NENÊ

Começou o interrogatório das testemunhas. Mas não prosseguiremos nosso relato de uma maneira tão detalhada como até agora, deixando de lado a maneira pela qual Nikolai Parfiénovitch lembrava a cada testemunha que devia depor de acordo com a verdade e sua consciência, e repetir mais tarde seu depoimento sob juramento, etc. Notaremos somente que o ponto essencial, aos olhos do juiz, era a questão de saber se Dimítri Fiódorovitch tinha gasto 3 000 rublos ou 1 500 por ocasião de sua primeira estada em Mókroie, um mês antes, bem como na véspera. Ai! todas as testemunhas, sem exceção, foram desfavorá­veis a Mítia, algumas contavam fatos novos, quase esmagadores, que infirmavam as declarações dele. O primeiro interrogado foi Trifon Bo-rísovitch. Apresentou-se sem o menor temor, pelo contrário, cheio de indignação contra o acusado, o que lhe conferiu grande ar de vera­cidade e de dignidade. Falou pouco, com reserva, esperando as pergun­tas às quais respondia com firmeza, refletindo. Declarou, sem rebuços, que um mês antes o acusado deveria ter gasto pelo menos 3 000 rublos, que os mujiques testemunhariam isso, tinham ouvido o próprio Mítri Fiódorovitch dizê-lo.

— Quanto dinheiro atirou ele aos ciganos! Só com eles, creio que deve ter gasto mais de 1 000 rublos.

— Não cheguei talvez a dar-lhes nem 500 — observou Mítia. — Somente não os contei então, estava bêbado. É pena.

Mítia escutava com ar sombrio, parecia triste e fatigado e parecia dizer: "Ora! Contem o que quiserem, agora para mim dá no mesmo".

— Os ciganos custaram-lhe mais de 1 000 rublos, Mítri Fiódorovitch. O senhor atirava-lhes o dinheiro sem contar e eles o apanhavam. É uma corja de gatunos, roubam os cavalos, foram expulsos daqui, senão teriam talvez declarado a quanto montou o ganho deles. Eu mesmo vi então a soma nas mãos do senhor — o senhor não ma deu a contar, é verdade —, mas assim à vista, lembro-me, havia bem mais de 1 500 rublos... Nós também sabemos o que seja o dinheiro...

Quanto à soma do dia anterior, Dimítri Fiódorovitch lhe havia de­clarado, desde sua chegada, que trazia 3.000 rublos.

— Vejamos, Trifon Borísovitch, declarei eu que trazia 3 000 rublos?

— Mas sim, Mítri Fiódorovitch. Disse-o em presença de Andriéi. Ele ainda está aqui, chamem-no. E na sala, quando o senhor servia o coro, exclamou mesmo que deixava aqui sua sexta nota de 1 000 rublos, contando com a outra vez, bem entendido. Stiepan e Siemion ouviram isso, Piotr Fomitch Kolgánov mantinha-se então ao lado do senhor, talvez também ele se lembre...

A declaração relativa ao sexto milhar de rublos impressionou os juizes e lhes agradou pela sua clareza: 3 000 então, 3 000 agora, com­pletavam bem os 6 000.

Foram interrogados os mujiques Stiepan e Siemion, o cocheiro An­driéi, que confirmaram o depoimento de Trifon Borísovitch. Além disso, consignou-se a conversa que Andriéi tivera em caminho com Mítia perguntando se iria para o céu ou para o inferno e se lhe perdoariam no outro mundo. O "psicólogo" Ipolit Kirílovitch, que escutara, sor­rindo, recomendou que se acrescentasse essa declaração aos autos.

Quando chegou sua vez, Kolgánov apresentou-se a contragosto, com ar sombrio, caprichoso, e conversou com o procurador e Nikolai Par-fiénovitch, como se os visse pela primeira vez, quando os conhecia desde muito tempo. Começou por dizer que "não sabia de nada e de nada queria saber". Mas ouvira Mítia falar da sexta nota de 1 000 e confessou que se encontrava então ao lado dele. Ignorava a soma que Mítia podia ter e afirmou que os poloneses tinham trapaceado no jogo de baralho. Após perguntas reiteradas, explicou que, expulsos os poloneses, Mítia voltara às boas graças junto a Agrafiena Alieksándrov-na e que esta declarara amá-lo. A respeito desta última exprimiu-se com delicadeza, como se pertencesse ela à melhor sociedade, não se permitiu nem uma só vez chamá-la Grúchenhka. Malgrado a repug­nância visível do rapaz em depor, Ipolit Kirílovitch reteve-o muito tempo e somente por ele soube do que constituía, por assim dizer, o "romance" de Mítia naquela noite. Nem uma vez Mítia interrom­peu Kolgánov, que se retirou sem esconder sua indignação.

Passaram aos poloneses. Tinham-se deitado em seu quartinho, mas não haviam pregado olho a noite toda; à chegada das autoridades, vestiram-se rapidamente, compreendendo que iriam chamá-los. Apresen­taram-se com dignidade, mas não sem apreensão. O pan baixinho, mais importante, era funcionário aposentado, de décima-segunda classe, ser­vira como veterinário na Sibéria e se chamava Mussialóvitch. Pan Vrubliévski era dentista. Às perguntas de Nikolai Parfiénovitch, res­ponderam a princípio dirigindo-se a Mikhail Makárovitch, que se conservava de lado; tomavam-no como a personagem mais importante e chamavam-no, a cada frase, pán polkhóvnik[1] Conseguiram fazer que eles compreendessem seu erro, aliás falavam corretamente o russo, salvo a pronúncia de certas palavras. Ao falar de suas relações com Grúchenhka, pan Mussialóvitch pôs nisso um ardor e uma altivez que exasperaram Mítia; exclamou que não permitia que um "tratante" se exprimisse assim em sua presença. Pan Mussialóvitch rebateu o termo e rogou que o mencionássemos nos autos. Mítia fervia de cólera.

— Sim, um tratante! Façam constar,'isto não me impedirá de repetir que ele é um tratante.

Nikolai Parfiénovitch deu prova de muito tato por ocasião deste desa­gradável incidente; depois de uma severa repreensão a Mítia, renunciou a inquirir a respeito do lado romanesco do caso e passou ao fundo. Os juizes interessaram-se bastante pelo depoimento dos poloneses, se­gundo o qual Mítia oferecera 3 000 rublos a pan Mussialóvitch para renunciar a Grúchenhka; 700 de contado e o resto "amanhã de manhã na cidade". Afirmava sob palavra de honra não ter consigo, em Mó-kroie, a soma completa. Mítia declarou a princípio que não prometera fazer o pagamento no dia seguinte na cidade, mas pan Vrubliévski confirmou o depoimento, e Mítia, depois de pensar, conveio que poderia ter falado assim na sua exaltação. O procurador fêz grande caso desse depoimento; tornava-se claro para a acusação que uma parte dos 3 000 rublos caídos nas mãos de Mítia tinha podido ficar escondida na cidade, talvez mesmo em Mókroie. Assim se explicava uma circunstân­cia embaraçosa para a acusação, o fato de terem sido encontrados apenas 800 rublos com Mítia; era, até então, a única que falava em seu favor, por mais insignificante que fosse. Agora, aquele único teste­munho vinha abaixo. À pergunta do procurador: onde teria ele arran­jado os 2 300 rublos prometidos ao pan para o dia seguinte, quando ele próprio afirmava não ter em seu poder senão 1 500, havendo dado sua palavra de honra, respondeu Mítia que tinha a intenção de propor ao pan, em lugar de dinheiro, a transferência por ato em cartório de seus direitos sobre a propriedade de Tchermachniá, já oferecidos a Samsonov e à Senhora Khokhlakova. O procurador sorriu da "ingenuidade do subterfúgio".

— E o senhor pensa que ele teria consentido em aceitar esses "direitos" em lugar de 2 300 rublos em dinheiro?

— Decerto, porque isso lhe iria dar não 2 000, mas 4 000 e até mesmo 6 000 rublos. Teria mobilizado seus advogados judeus e polo­neses, que haveriam de trazer o velho num cortado.

Naturalmente, o depoimento de pan Mussialóvitch foi transcrito in extenso nos autos, depois do que ele e seu companheiro puderam reti­rar-se. O fato de haverem trapaceado no jogo foi silenciado; Nikolai Parfiénovitch era-lhes grato e não queria inquietá-los por bagatelas, tanto mais quanto se tratava de uma querela entre jogadores embria­gados e nada mais. Aliás, o escândalo não faltara naquela noite... Os 200 rublos ficaram assim no bolso dos poloneses.

Chamaram em seguida o velho Maksímov. Entrou timidamente, a passos miúdos, o ar triste e a roupa em desordem. Refugiara-se todo o tempo junto a Grúchenhka, sentado ao lado dela em silêncio, "pronto a choramingar, enxugando os olhos com seu lenço de quadrados", como contou mais tarde Mikhail Makárovitch. Tanto que era ela quem o acalmava e consolava. De lágrimas nos olhos, o velho pediu desculpas por ter pedido emprestados 10 rublos a Dimítri Fiódorovitch, visto sua pobreza, e declarou-se pronto a restituí-los... Tendo-lhe Nikolai Parfiénovitch perguntado quanto ele pensava que Dimítri Fiódorovitch tinha em dinheiro, visto que podia observá-lo de perto ao pedir-lho em­prestado, respondeu Maksímov categoricamente: 20 000 rublos.

— O senhor já viu antes alguma vez 20 000 rublos? — perguntou Nikolai Parfiénovitch, sorrindo.

— Como não? Decerto. Não 20 000, mas 7 000, quando minha esposa hipotecou minha propriedade. Para falar a verdade, ela só mos mostrou de longe e aquilo formava uma maçaroca bem grossa de notas de 100 rublos. Dimítri Fiódorovitch também estava com notas de 100 rublos...

Não o retiveram muito tempo. Por fim chegou a vez de Grúchenhka. Os juizes temiam a impressão que sua chegada poderia produzir em Dimítri Fiódorovitch, e Nikolai Parfiénovitch dirigiu-lhe mesmo algu­mas palavras de exortação, às quais Mítia respondeu com um aceno de cabeça, indicando assim que não haveria desordem. Foi Mikhail Ma­károvitch quem trouxe Grúchenhka. Ela entrou, o rosto rígido e som­brio, o ar quase calmo, e tomou lugar em frente de Nikolai Parfiéno­vitch. Estava muito pálida e enrolava-se friorentamente no seu belo xale negro. Sentia, com efeito, o arrepio da febre, começo da longa doença que contraiu naquela noite. Seu ar rígido, seu olhar franco e sério, a calma de suas maneiras produziram a impressão mais favo­rável. Nikolai Parfiénovitch ficou mesmo seduzido; contou mais tarde que somente então compreendera quanto era encantadora aquela mu­lher; antes via nela "uma cortesã de subprefeitura". "Tem as maneiras da melhor sociedade", deixou ele escapar uma vez com entusiasmo num círculo de senhoras. Ouviram-no com indignação e logo o trataram de "descarado", o que o encantou. Ao entrar, lançou Grúchenhka a Mítia um olhar furtivo; ele, por sua vez, a examinou com inquietação, mas seu ar tranqüilizou-o. Após as perguntas habituais, Nikolai Parfiéno­vitch, com alguma hesitação, mas com o ar mais polido, perguntou-lhe "quais eram suas relações com o tenente reformado Dimítri Fiódorovitch Karamázov".

— Era um conhecido e como tal o recebi em minha casa neste último mês.

Em resposta a outras perguntas, declarou francamente que não ama­va Mítia então, se bem que ele lhe agradasse "por momentos"; seduzi­ra-o por maldade, bem como ao velho; o ciúme que Mítia sentia de Fiódor Pávlovitch e de todos divertia-a. Jamais pensara em ir à casa de Fiódor Pávlovitch, de quem ela zombava. "Durante todo este mês, não me interessava por eles; esperava um outro, que tinha culpa para comigo... Somente acho que não precisam os senhores de interrogar-me a esse respeito e não tenho obrigação de responder-lhes. Trata-se de minha vida privada."

Nikolai Parfiénovitch deixou imediatamente de lado os pontos "roma­nescos" e abordou a questão capital dos 3 000 rublos. Grúchenhka respondeu que fora mesmo a soma gasta em Mókroie um mês antes, segundo as palavras de Dimítri, porque ela mesma não havia contado as cédulas.

— Disse-lhe ele isso em particular ou diante de terceiros, ou então só o soube a senhora por intermédio de outras pessoas? — perguntou logo o procurador.

Grúchenhka respondeu afirmativamente a essas três perguntas.

— Ouviu-o a senhora dizê-lo em particular uma ou várias vezes? Respondeu que várias vezes.

Ipolit Kirílovitch ficou bastante satisfeito com esse depoimento. Ficou depois estabelecido que Grúchenhka sabia que o dinheiro provinha de Catarina Ivânovna.

— Não ouviu a senhora dizer que Dimítri Fiódorovitch gastara então menos de 3 000 rublos e guardara para si a metade?

— Não, nunca.

Pelo contrário, havia um mês Mítia lhe declarara por várias vezes estar sem dinheiro. "Esperava sempre recebê-lo de seu pai", concluiu Grúchenhka.

— Não disse ele, diante da senhora... incidentemente ou num mo­mento de irritação — perguntou de repente Nikolai Parfiénovitch —, que tinha intenção de tentar contra a vida de seu pai?

— Sim, ouvi-o dizer — respondeu Grúchenhka.

— Uma vez ou várias?

— Várias vezes, sempre em acessos de cólera.

— E a senhora acreditava que ele poria esse projeto em execução?

— Não, nunca! — respondeu ela com firmeza. — Contava com a nobreza de seus sentimentos.

— Senhores, um instante — exclamou Mítia —, permitam-me que diga, na presença dos senhores, uma palavra apenas a Agrafiena Aliek-sándrovna.

— Pode falar — consentiu Nikolai Parfiénovitch.

— Agrafiena Alieksándrovna — disse Mítia, levantando-se —, ju­ro-o perante Deus: sou inocente da morte de meu pai!

Mítia tornou a sentar-se. Grúchenhka levantou-se, benzeu-se piedosa­mente diante do ícone.

— Deus seja louvado! — disse ela com efusão e acrescentou, diri­gindo-se a Nikolai Parfiénovitch: — Acredite no que ele disse! Eu o conheço, é capaz de dizer não sei o quê por brincadeira ou por teimosia, mas nunca fala contra a sua consciência. Diz a verdade com­pleta, esteja certo!

— Obrigado, Agrafiena Alieksándrovna, reconfortaste minha alma — disse Mítia, com voz trêmula.

A respeito do dinheiro do dia anterior, declarou ela não conhecer a soma, mas ter ouvido Dimítri repetir freqüentemente que levara 3 000 rublos. Quanto à sua proveniência, dissera-lhe comente a ela que os "roubara" de Catarina Ivânovna, ao que respondeu ela que não era um roubo e que era preciso restituir o dinheiro logo no dia seguin­te. Insistindo o procurador em saber o que entendia Dimítri por dinheiro roubado, o do dia anterior ou o de havia um mês, declarou Gruchenhka que ele falara do dinheiro de então e ela assim o compreendia.

Terminado o interrogatório, disse Nikolai Parfiénovitch, com solici­tude, a Gruchenhka que estava ela livre de voltar para a cidade e que, se pudesse ele ser-lhe útil em alguma coisa, arranjando-lhe por exemplo cavalos ou fazendo-a acompanhar, faria...

— Obrigada — disse Gruchenhka, cumprimentando-o. — Partirei com aquele velho, o proprietário rural. Mas, se o senhor o permitir, esperarei aqui sua decisão a respeito de Dimítri Fiódorovitch.

Saiu. Mítia estava calmo e tinha o ar reconfortado, mas por um instante somente. Uma estranha lassitude invadia-o cada vez mais. Seus olhos se fechavam contra a sua vontade. O interrogatório das testemu­nhas estava afinal acabado. Procedeu-se à redação definitiva do processo verbal. Mítia levantou-se e foi estender-se a um canto, sobre uma gran­de mala coberta por um tapete. Adormeceu logo. Teve um sonho estra­nho, sem relação com as circunstâncias. Viajava pela estepe, numa região por onde passara outrora, estando de serviço. Um mujique o conduz em tieliega através da planície enlameada. Faz frio, são os primeiros dias de novembro, a neve cai em grossos flocos que se derre­tem imediatamente. O mujique chicoteia vigorosamente seus cavalos, tem uma comprida barba ruiva, é um homem duns cinqüenta anos, vestido com um ordinário cafetã cinzento. Aproximam-se de uma aldeia da qual se avistam as isbás negras, muito negras, a metade incendiadas, erguendo-se ainda apenas traves carbonizadas. Na estrada, à entrada da aldeia, uma multidão de mulheres alinha-se, todas magras e descarnadas, o rosto crestado. Ali está uma, à beira da estrada, ossuda, alta, pare­cendo ter uns quarenta anos, mas talvez não tendo senão vinte, o rosto longo e desfeito; tem nos braços uma criancinha que chora, seu peitos devem estar esgotados, parecem ressequidos, e a criança chora, chora sem parar, estende seus bracinhos nus, seus pequenos punhos roxos de frio.

— Por que choram eles? — pergunta Mítia, passando a galope.

— É o nenê — responde o cocheiro —, é o nenê que chora.

E Mítia fica impressionado por ter ele dito à sua maneira, como os mujiques, o "nenê" e não o bebê. Isso lhe agrada, isso lhe parece mais compassivo.

— Mas por que chora ele? — obstina-se em perguntar Mítia. — Por que seus bracinhos estão nus? por que não lhos cobrem?

— O nenê está transido de frio, suas roupas estão geladas, de modo que não o aquecem.

— Como assim? — insiste Mítia, estupidificado.

— É que eles são pobres, suas isbás foram queimadas, não têm pão.

— Não, não — prosseguiu Mítia, que parecia continuar a não com­preender —, dize-me por que aquelas desgraçadas se conservam aqui, por que tanta miséria, aquele pobre nenê, por que a estepe é nua, por que aquelas pessoas não se beijam cantando canções alegres, por que são tão negras, por que não dão de comer ao nenê?

Sente bem que suas perguntas são absurdas, mas não pode impedir-se de fazê-las e tem razão; sente também que o invade um enternecimento, que vai chorar, gostaria de consolar o nenê e sua mãe de peitos estor-ricados, de secar as lágrimas de todo mundo e isto tudo imediatamente, sem levar nada em conta, com todo o ardor de um Karamázov.

— Estou contigo, não te deixarei mais — diz-lhe ternamente Grú-chenhka.

Seu coração se abrasa e vibra a uma luz longínqua, quer viver, seguir o caminho que leva àquela luz nova, àquela luz que o chama.

— Que é? Onde estou? — exclama ele, abrindo os olhos. Ergue-se sobre a mala como quem desperta de um desmaio, com um sorriso radiante. Diante dele se encontra Nikolai Parfiénovitch, que o convida a ouvir o processo verbal e a assiná-lo.

Mítia deu-se conta de que dormira uma hora ou mais, mas não escutava o juiz. Estava estupefato por ter encontrado sob sua cabeça uma almofada que lá não estava quando se estirou esgotado sobre a mala.

— Quem pôs aqui esta almofada? Quem teve tanta bondade? — exclamou ele, com exaltação, com uma voz emocionada, como se se tratasse dum benefício inestimável. O corajoso coração que tivera essa atenção permaneceu desconhecido, mas Mítia estava comovido até as lágrimas. Aproximou-se da mesa e declarou que assinaria tudo quanto quisessem.

— Tive um belo sonho, senhores — disse ele com uma voz estranha e o rosto como que iluminado de alegria.

 

LEVAM MÍTIA PRESO

Uma vez assinado o processo verbal, dirigiu-se Nikolai Parfiénovitch solenemente ao acusado e leu para ele um "auto de processo e de prisão", segundo cujos termos ele, juiz de instrução... tendo interro­gado e detido... (seguiam-se os termos de acusação), atendendo a que este, embora declarando-se inocente dos crimes quê lhe eram imputados, nada produzira para justificar-se, a que entretanto as teste­munhas ... e as circunstâncias... o inculpavam inteiramente, tendo em vista os artigos... do Código Penal, ordenava, a fim de impedir que o supracitado se subtraísse ao inquérito e julgamento, que fosse encar­cerado e se desse cópia do presente ao procurador, etc. Em suma, de­clarou-se a Mítia que se achava ele doravante detido, qué iam levá-lo à cidadf e encerrá-lo numa residência muito pouco agradarei. Mítia ergueu ©s ombros.

— Está bem, senhores, não lhes quero mal, estou pronto... com­preendo que não lhes resta outra coisa a fazer.

Nikolai Parfiénovitch explicou-lhe que ele ia ser levado por Mavríki Mavríkitch, ali presente.

— Esperem — interrompeu Mítia, e sob um impulso irresistível dirigiu-se a todos os presentes: — Senhores, somos todos cruéis, todos monstros, é por nossa causa que choram as mães e as criancinhas, mas entre todos, eu o proclamo, sou eu o pior! Cada dia, batendo no peito, jurava emendar-me, e cada dia cometia as mesmas vilanias. Com­preendo agora que a criaturas tais como eu é preciso um golpe do destino e seu laço, uma força exterior que as dome. Jamais teria eu mesmo podido erguer-me! Mas o raio descarregou-se. Aceito as tor­turas da acusação, da ignomínia pública. Quero sofrer e redimir-me pelo sofrimento! Talvez o consiga, não é, senhores? Escutem, no entan­to, pela derradeira vez: não derramei o sangue de meu pai! Aceito o castigo, não por tê-lo matado, mas por ter querido matá-lo, e talvez mesmo o tivesse feito! Estou resolvido não obstante a lutar contra os senhores, declaro-lhes. Lutarei até o fim e, em seguida, que Deus decida! Adeus, senhores, perdoem-me meus rompantes durante o interrogatório, estava então ainda desvairado... Dentro de um instante serei um preso e pela derradeira vez Dimítri Karamázov, como um homem livre ain­da, estende-lhes a mão. Apresentando-lhes minhas despedidas, é ao mundo que as apresento!...

Sua voz tremia, estendeu com efeito a mão, mas Nikolai Parfiéno-vitch, que era quem se achava mais perto dele, ocultou a sua com um gesto convulsivo. Mítia percebeu-o e estremeceu. Deixou seu braço recair.

— O inquérito ainda não está terminado — disse o juiz um pouco confuso —, vai prosseguir na cidade, e, de minha parte, desejo que o senhor... consiga... justificar-se... Pessoalmente, Dimítri Fiódoro-vitch, sempre o considerei mais infeliz que culpado... Todos aqui, se ouso fazer-me intérprete deles, estamos dispostos a ver no senhor um jovem, no íntimo nobre, mas, ai! arrebatado por suas paixões duma maneira excessiva...

Foram estas derradeiras palavras pronunciadas pelo pequeno juiz com grande dignidade. Pareceu de repente a Mítia que aquele rapazola ia pegá-lo pelo braço, levá-lo para um canto e continuar sua recente conversa a respeito das "garotas". Mas quem sabe as idéias intempes­tivas que ocorrem por vezes mesmo a um criminoso a quem levam ao suplício?

— Os senhores são bons, humanos. Poderei tornar a vê-la para di­zer-lhe um último adeus?

— Sem dúvida, mas... em nossa presença...

— De acordo.

Trouxeram Grúchenhka, mas o adeus foi lacônico e decepcionou Nikolai Parfiénovitch. Grúchenhka fez uma profunda saudação a Mítia.

— Já te disse que sou tua, que te pertenço para sempre, seguir-te-ei por toda parte aonde te enviarem. Adeus, tu que te perdeste sem seres culpado.

Seus lábios tremiam, ela chorava.

— Perdoa-me, Grucha, o amar-te, o ter causado também tua perda pelo meu amor.

Mítia queria falar ainda, mas deteve-se e partiu. Foi logo cercado por pessoas que não o perdiam de vista. Duas tieliegui esperavam ao pé do patamar, onde chegara ele na véspera com muito barulho na tróica de Andriéi. Mavríki Mavríkitch, baixo e robusto, o rosto enru­gado, estava irritado por causa de alguma desordem inesperada e gri­tava. Num tom cortante, convidou Mítia a subir na tieliega. "Outrora, quando eu lhe pagava de beber no botequim, a personagem tinha outra cara'*, pensou Mítia. Trifon Borísovitch desceu o patamar. Perto do portão comprimiam-se mujiques, mulheres, os cocheiros, todos mirando Mítia.

— Adeus, boa gente! — gritou-lhes Mítia já na tieliega.

— Adeus! — disseram duas ou três vozes.

— Adeus, Trifon Borísovitch!

Mas Trifon Borísovitch nem mesmo se voltou, estando sem dúvida bastante preocupado. Gritava também e agitava-se. Tudo não estava em regra na segunda tieliega em que devia subir a escolta. O mujique de­signado para conduzi-la, enquanto vestia seu cafetã, sustentava energi­camente que não era ele quem devia ir, mas Akim. Mas Akim não estava ali; corria-se à sua procura; o mujique insistia, suplicava que se esperasse.

— É uma trama descarada que temos aqui, Mavríki Mavríkitch! — exclamou Trifon Borísovitch. — Há três dias, Akim te deu 25 copeques, tu os bebeste e agora gritas. Espanto-me somente da bondade do senhor para com esses sujeitos.

— Que necessidade temos duma segunda tróica? — interveio Mítia. — Viajemos com uma só, Mavríki Mavríkitch, não me revoltarei nem fugirei. Por que queres uma escolta?

— Aprenda a falar comigo, senhor, se não o sabe ainda. Trate de não me tratar por tu e guarde seus conselhos para outra ocasião... — replicou impertinentemente Mavríki Mavríkitch, como que feliz por extravasar seu mau humor.

Mítia calou-se, corando. Um instante depois, sentiu vivamente o frio. A chuva cessara, mas o céu estava coberto de nuvens, um vento áspero soprava no rosto. "Tenho arrepios", pensou Mítia, enrodilhando-se. Por fim Mavriki Mavríkitch subiu por sua vez e sentou-se pesadamen­te, bem à vontade, empurrando Mítia para um lado, sem parecer prestar-lhe atenção. Na verdade, estava mal-humorado e bastante des­contente com a missão que lhe haviam confiado.

— Adeus, Trifon Borísovitch! — gritou de novo Mítia, sentindo que, desta vez, não era de bom coração, mas de cólera, malgrado seu, que gritava. Trifon Borísovitch, com ar arrogante, as mãos atrás das costas, fixou Mítia com um olhar severo e não lhe respondeu.

— Adeus, Dimítri Fiódorovitch, adeus! — repercutiu de súbito a voz de Kolgánov. Correndo para a tieliega, estendeu a mão a Mítia. Estava sem casquete. Mítia teve ainda tempo de apertar-lha.

— Adeus, meu bravo amigo, não esquecerei sua generosidade! — disse ele com ardor. Mas a tieliega pôs-se em movimento, suas mãos desenlaçaram-se, os guizos retiniram, levavam Mítia.

Kolgánov correu para o vestíbuló, sentou-se num canto, curvou a cabeça, ocultou o rosto nas mãos e chorou por muito tempo, chorava como um menino. Estava quase convencido da culpabilidade de Mítia. "Que podem as pessoas valer depois disso?", murmurava ele, num total desamparo. Não queria mesmo mais viver naquele instante. "Será que isso vale a pena?", exclamava o rapaz no seu pesar.

 

KÓLIA KRASÓTKIN

Primeiros dias de novembro. Onze graus de frio e regêlo. Durante a noite, caiu um pouco de neve seca, que o vento áspero e picante levanta e varre através das ruas sombrias de nossa cidadezinha, sobre­tudo na praça do mercado. Está escura a manhã, mas a neve cessou. Não longe da praça, perto da loja dos Plótnikovi, encontra-se a casi­nha, muito limpinha no exterior e no interior, da Senhora Krasótkina, viúva de um funcionário. Completar-se-ão em breve catorze anos da morte do secretário do governo Krasótkin, mas sua viúva, ainda gra­ciosa e com pouco mais de trinta anos, vive de suas rendas em sua casinha. Doce e alegre, leva uma existência modesta e digna. Tendo ficado viúva aos dezoito anos, com um filho que acabava de nascer, con­sagrou-se inteiramente à educação de Kólia. Amava-o cegamente, mas o menino lhe causou certamente mais pesares que alegrias, no temor perpétuo de vê-lo adoecer, resfriar-se, vadiar, ferir-se ao brincar, etc. Quando Kólia entrou para o colégio, sua mãe pôs-se a estudar todas as matérias, a fim de ajudá-lo a fazer seus exercícios, travou conhe­cimento com os professores e suas esposas, adulou mesmo os camaradas de seu filho, para evitar que zombassem dele ou que lhe batessem. Che­gou a ponto de começarem os colegiais a zombar verdadeiramente de Kólia, a importunar "o queridinho da mamãe". Mas o menino soube fazer-se respeitar. Era ousado e logo passaram a achá-lo na classe "rudemente forte", e além disso esperto, de caráter teimoso, espírito audacioso e empreendedor. Era um bom aluno, corria mesmo o rumor de que em matemática e história universal passava a perna no Pro­fessor Dardaniélov. Mas Kólia, embora afetando certo ar de superio­ridade, era bom camarada e nada orgulhoso. Aceitava como devido o respeito dos colegiais e mostrava uma atitude amigável. Conhecia sobre­tudo a medida, sabia reter-se a tempo devido e para com os professores não ultrapassava jamais o derradeiro limite além do qual a vivacidade não pode ser tolerada, tornando-se desordem e insubordinação. No entanto, estava sempre pronto à travessura, quando se ensejava ocasião, como o derradeiro dos garotos, ou antes a bancar de malicioso, a chamar a atenção. Cheio de amor-próprio, soubera ganhar ascendência sobre sua mãe, que sofria desde muito tempo o seu despotismo. So­mente era-lhe insuportável a idéia de que seu filho a amava pouco. Kólia parecia-lhe sempre insensível a seu respeito e acontecia que, numa crise de lágrimas, ela o censurava pela sua frieza. O rapazinho não gostava disso e quanto mais efusões exigiam dele mais a elas se furtava. Mas era contra a sua vontade, provinha isto de seu caráter e não de sua vontade. Sua mãe se enganava; ele a amava, somente, não gostava das "ternuras de novilha", como dizia em sua linguagem de escolar. Seu pai deixara uma biblioteca, e Kólia, que gostava de ler, ficava por vezes horas mergulhado nos livros, em lugar de ir brincar, para grande es­panto de sua mãe. Leu assim coisas acima de sua idade. Nos últimos tempos, suas travessuras — sem ser perversas — espantavam sua mãe por causa de sua extravagância. Durante as férias, em julho, a mãe e o filho iam passar uma semana em casa de uma parenta, cujo marido era empregado ferroviário na estação mais próxima da nossa cidade. (Fora lá, a 70 verstas, que Ivã Fiódorovitch tomara o trem para Mos­cou, um mês antes.) Kólia começou por examinar minuciosamente o caminho de ferro e seu funcionamento, compreendendo que poderia deslumbrar seus colegas com seus novos conhecimentos. Ao mesmo tempo, ligou-se a seis ou sete garotos da vizinhança, de doze a quinze anos de idade, entre os quais dois provinham de nossa cidade. Faziam travessuras em comum e em breve o alegre bando teve idéia de fazer uma aposta verdadeiramente estúpida, cuja parada era de 2 rublos. Kólia, um dos mais jovens e portanto um pouco desdenhado pelos mais idosos, levado pelo amor-próprio ou pela temeridade, propôs ficar deitado entre os trilhos, sem mexer-se, enquanto o trem das 11 horas da noite passaria sobre ele a todo vapor. Na verdade, um exame prévio permitiria verificar que a coisa era factível, que a pessoa podia real­mente achatar-se entre os trilhos sem ser mesmo roçada pelo trem. Mas que minuto penoso teria de passar! Kólia jurou por toda parte que o faria. Começaram por zombar dele, trataram-no de fanfarrão, o que o excitou ainda mais. Também aqueles rapazes de quinze anos mostravam-se por demais arrogantes, tendo mesmo recusado a princípio levar em consideração aquele fedelho, tratando-o como camarada. Ofen­sa intolerável. Numa noite sem lua, decidiram ir a 1 versta da estação, onde o trem já passaria rapidamente. Na hora marcada Kólia deitou-se entre os trilhos. Os cinco outros apostadores, de coração a desfalecer, em breve tomados de pavor e de remorso, aguardavam nas moitas embaixo do talude. Dentro em pouco ouviu-se o barulho do trem que se punha em movimento. Duas lanternas vermelhas brilharam nas tre­vas, o monstro aproximava-se estrondosamente. "Foge! Foge!", gritaram, apavorados. Era demasiado tarde, o trem passou e desapareceu. Preci­pitaram-se para Kólia, que jazia, inerte, puseram-se a sacudi-lo, a er­guê-lo. De repente, ele se levantou e declarou que fingira um desmaio para fazer-lhes medo. Na realidade, tinha desmaiado mesmo, como ele próprio, espontaneamente, o confessou muito tempo depois à sua mãe. Dessa maneira, seu renome de "estabanado" ficou definitivamente estabelecido. Voltou para casa branco como linho. No dia seguinte, teve uma febre nervosa, mas mostrou-se muito alegre e contente. O acontecimento foi divulgado em nossa cidade, chegou ao conhecimento das autoridades escolares. A mamãe de Kólia suplicou-lhes que per­doassem a seu filho, e por fim um professor estimado e influente, Dardaniélov, falou em seu favor e obteve ganho de causa. O caso não teve conseqüências. Esse Dardaniélov, solteiro e ainda moço, estava desde muito tempo apaixonado pela Senhora Krasótkina; um ano antes, com o coração cheio de apreensão, arriscara-se a pedir-lhe a mão; ela o recusara, considerando que o casar-se de novo seria uma traição a seu filho. No entanto, Dardaniélov, de acordo com certos indícios, teria tido o direito de pensar que não era fundamentalmente antipático aquela viúva encantadora, mas casta e delicada em excesso. A louca travessura de Kólia deve ter rompido o gelo, e após a intervenção de Dardaniélov deu-se a entender a este que podia ter esperança, aliás longínqua, mas ele próprio era um fenômeno de pureza e de delicadeza e aquilo bastava à sua felicidade no momento. Gostava do menino, mas teria achado humilhante procurar amansá-lo; na classe mostrava-se severo para com ele, exigente. O próprio Kólia mantinha-o a distância, preparava muito bem seus exercícios, ocupava o segundo lugar, e toda a classe estava persuadida de que, em história universal, ele "passava a perna" ao próprio Dardaniélov em pessoa. Com efeito, Kólia perguntou-lhe uma vez quem havia fundado Tróia. Ao que respondeu o mestre por meio de considerações a respeito dos povos e de suas migrações da noite dos tempos, da fábula, mas não pode responder à pergunta precisa sobre a fundação de Tróia, achando-a mesmo ociosa. Os alunos ficaram convencidos de que Dardaniélov de nada sabia. Kólia informara-se a respeito em Smaragdov, que figurava entre os livros de seu pai. Finalmente, todos se interessaram pela fundação de Tróia, mas Krasótkin guardou seu segredo e seu prestígio permaneceu in­tacto.

Após o incidente da estrada de ferro, ocorreu uma mudança na atitude de Kólia para com sua mãe. Quando Ana Fiódorovna soube da proeza de seu filho, quase enlouqueceu. Teve violentas crises de nervos du­rante vários dias, a ponto de Kólia, seriamente aterrorizado, dar-lhe sua palavra de honra de jamais recomeçar semelhantes travessuras. Jurou-o de joelhos diante do ícone e pela memória de seu pai, como o exigia a Senhora Krasótkina; a emoção dessa cena fez chorar o "intrépido" Kólia como uma criança de seis anos: a mãe e o filho passaram o dia a lançar-se nos braços um do outro, derramando lágri­mas. No dia seguinte, Kólia despertou de novo "insensível", mas tor­nou-se mais silencioso, modesto, pensativo. Seis semanas depois» rein­cidia, e seu nome chegou até o juiz de paz, mas desta vez tratava-se de uma travessura bem diferente, ridícula mesmo e estúpida, cometida por outros e na qual não estava implicado. Tornaremos a falar dela. Sua mãe continuou a tremer e a atormentar-se e a esperança de Dar­daniélov crescia na medida dos alarmas dela. É preciso notar que Kólia compreendia e adivinhava a este respeito Dardaniélov, e, bem entendido, desprezava-o profundairiente por causa de seus "sentimen­tos"; antes tivera mesmo a indelicadeza de exprimir seu desprezo diante de sua mãe, fazendo alusões vagas às intenções de Dardaniélov. Mas após o incidente da estrada de ferro mudou também de conduta a este respeito; não se permitiu mais nenhuma alusão e falou com mais respeito de Dardaniélov diante de sua mãe, o que a sensível Ana Fió­dorovna compreendeu imediatamente com uma gratidão infinita; em compensação, à menor palavra referente a Dardaniélov proferida em presença de Kólia, fosse mesmo um estranho, tornava-se ela vermelha como uma cereja. Naqueles momentos Kólia olhava pela janela com ar carrancudo ou examinava o estado de seus sapatos, ou ainda cha­mava raivosamente Carrilhão, um cachorro de longos pêlos, muito grande e feio, que havia recolhido um mês antes e guardava em segredo, sem mostrá-lo a seus camaradas. Tratava-o com rigor, ensi­nava-lhe diversas habilidades, tanto que o pobre animal gania quando ele partia para o colégio, latia alegremente quando ele voltava, saltava como um louco, andava de duas patas, fazia-se de morto, etc, em suma, mostrava todas as habilidades que lhe haviam sido ensinadas, isto não porque lho ordenavam, mas no ardor de seu entusiasmo e de sua dedicação.

A propósito: esqueci-me de dizer que Kólia Krasótkin era o menino a quem Iliúcha, já conhecido do leitor, filho do capitão reformado Snieguiriov, ferira com o canivete, ao defender seu pai, a quem os colegiais ridicularizavam, chamando-o de "esfregão de tília".

 

GENTE MIÚDA

Portanto, naquela manhã glacial e brumosa de novembro, o jovem Kólia Krasótkin permanecia em casa. Era domingo e não havia aula. Mas acabavam de soar 11 horas, era-lhe absolutamente preciso sair "para um negócio muito importante", contudo ficava sozinho a guardar a casa, porque os adultos haviam saído em conseqüência de uma cir­cunstância extraordinária. A viúva Krasótkina alugava um apartamento de duas peças, o único da casa, à mulher dum médico, que tinha dois filhos pequenos. Era da mesma idade de Ana Fiodorovna e sua grande amiga; quanto ao doutor, que partira para Oremburgo, depois para Ta-chkent, não dava notícias de si havia seis meses, de sorte que a abandonada teria passado seu tempo a chorar sem a amizade da Se­nhora Krasótkina, que amenizava seu pesar. Para cúmulo de infortúnio, Catarina, a única criada da mulher do doutor, declarara bruscamente à sua patroa, durante a noite, que se preparava para dar à luz de manhã. Era quase miraculoso que ninguém tivesse notado a coisa até então. A mulher do doutor, estupefata, decidiu, enquanto era ainda tempo, transportar Catarina para a casa de uma parteira que aceitava pensio­nistas. Como estimava muito essa sua criada, pôs logo seu projeto em execução e ficou mesmo ao lado dela. Em seguida, pela manhã, foi preciso recorrer ao concurso e ajuda da Senhora Krasótkina, que podia naquela ocasião tomar providências e exercer certa proteção. De modo que as duas senhoras estavam ausentes, a criada da Senhora Kra­sótkina, Agáfia, saíra para o mercado e Kólia achava-se provisoria­mente como guarda dos fedelhos, o menino e a menina da mulher do doutor, que haviam ficado sozinhos. A guarda da casa não fazia medo a Kólia, sobretudo com Carrilhão; este recebera ordem de dei­tar-se debaixo de um banco, no vestíbulo, sem se mexer, e cada vez que seu dono passava, erguia ele a cabeça, batia no soalho com a cauda com um ar suplicante, mas, ai!, nenhum chamado se ouvia. Kólia olhava com severidade o infeliz cão-d'água, que recaía na imo­bilidade completa. Mas a única preocupação de Kólia eram os fedelhos. Ao passo que a aventura de Catarina lhe inspirava profundo desprezo, gostava muito dos pequenos e trouxera já para eles um livro infantil. Nástia, a mais velha, de oito anos, sabia ler, e o mais moço, Kóstia, de sete anos, gostava de escutá-lo. Bem entendido, Krasótkin teria podido interessá-los brincando com eles de soldado ou de esconder, por toda a casa. Não desdenhava fazê-lo quando preciso, tanto que se espalhou na classe o boato de que Krasótkin brincava de tróica em sua casa com seus pequenos locatários, fazendo papel do cavalo de sota, galopando, de cabeça baixa. Krasótkin repelia altivamente essa acusação, fazendo notar que com camaradas de sua idade teria sido vergonhoso, com efeito, "em nossa época", brincar de cavalo, mas que assim o fazia para os fedelhos, porque gostava deles e ninguém tinha o direito de pedir-lhe conta de seus sentimentos. Em compensação, os dois fedelhos o adoravam. Mas desta vez não se tratava de brinquedos; tinha de ocupar-se de um assunto de muita importância e parecendo mesmo quase misterioso. Entretanto, o tempo passava e Agáfia, a quem os meninos teriam podido ser confiados, não se dignava voltar do mercado. Já por várias vezes atravessara ele o vestíbulo, abrira a porta da loca­tária, observara com solicitude os fedelhos lendo, por injunção sua; cada vez que se mostrava, os meninos sorriam-lhe largamente, esperando vê-lo entrar e fazer alguma coisa engraçada. Mas Kólia estava preo­cupado e não entrava. Por fim, soaram as 11 horas e decidiu ele firmemente que, se dentro de dez minutos a "maldita" Agáfia não estivesse de volta, sairia sem esperá-la, depois de, é claro, ter feito os fedelhos prometerem não ter medo durante sua ausência, nem fazer bo­bagens, nem chorar. Com estas disposições, vestiu seu pequeno sobre­tudo algodoado, lançou sua sacola ao ombro e, malgrado os rogos reiterados de sua "mãe de nunca sair "com semelhante frio" sem calçar suas galochas, contentou-se em lançar-lhes um olhar desdenhoso ao passar no vestíbulo. Vendo-o vestido para sair, Carrilhão bateu no soalho com a cauda, agitando-se, e ia mesmo lançar um gemido lamentoso, mas Kólia julgou tal ardor contrário à disciplina, manteve o cão-d'água ainda um minuto debaixo do banco e só assobiou para ele ao abrir a porta do vestíbulo. O animal lançou-se como um louco e se pôs a saltar de alegria. Kólia ia ver o que estavam fazendo os fedelhos. Tinham acabado de ler e discutiam com animação, como lhes acontecia freqüentemente; Nástia, na qualidade de mais velha, le­vava sempre a melhor, e, se Kóstia não se punha de seu lado, apelava ela quase sempre para Kólia Krasótkin, cuja sentença era definitiva para as duas partes. Desta vez, a discussão dos fedelhos tinha algum interesse para Kólia, que ficou na soleira a escutar, vendo o que, as crianças redobraram de ardor na sua controvérsia.

— Nunca, nunca, acreditarei — sustentava Nástia — que as parteiras encontrem os bebês nos pés de couve. Agora é inverno, não há couves e a parteira não pode trazer uma filhinha para Catarina.

— O quê! — murmurou Kólia.

— Ou então elas as trazem de alguma parte, mas somente para aquelas que se casam.

Kóstia fixava sua irmã, escutava gravemente, refletia.

— Nástia, como és tola! — disse ele por fim, num tom calmo. — Como pode Catarina ter um filho, já que ela não é casada?

Nástia irritou-se.

— Tu não compreendes nada, talvez tivesse ela um marido, mas está na prisão.

— Será que ela tem de verdade um marido na prisão? — perguntou o positivo Kóstia.

— Ou então — continuou impetuosamente Nástia, abandonando sua primeira hipótese — pode acontecer também que ela hão tenha marido; tens razão; mas quer se casar e pôs-se a pensar como fazer, pensou e tornou a pensar, tanto que acabou por ter não um marido» mas um bebê.

— Está bem! É possível — aquiesceu Kóstia, subjugado —, mas não o disseste antes. Como podia eu saber?

— Muito bem, meninada! — exclamou Kólia, avançando. — Vocês são uma gente perigosa, pelo que vejo!

— Carrilhão está com você? — perguntou, sorrindo, Kóstia, que se pôs a estalar os dedos, chamando o cachorro.

— Meninada, estou atrapalhado — começou solenemente Kólia. — Vocês devem ajudar-me. Agáfia deve ter quebrado a perna, já que não volta, é seguro e certo. Tenho de sair. Vocês me deixarão ir?

Os meninos olharam-se receosos, seus rostos sorridentes exprimiram inquietação. Não compreendiam ainda bem o que queriam deles.

— Não farão bobagens em minha ausência? Não subirão no armá­rio com risco de quebrar uma perna? Não chorarão de medo, quando ficarem sozinhos?

A angústia apareceu nos rostinhos.

— Em compensação, poderia eu mostrar-lhes alguma coisa, um canhãozinho de cobre que se carrega com pólvora verdadeira.

Os rostinhos iluminaram-se.

— Mostre o canhão — disse Kóstia, radiante.

Krasótkin tirou de sua sacola um canhãozinho de bronze, que pou­sou em cima da mesa.

— Olhe, tem rodas — disse, fazendo o brinquedo rodar. — Pode-se carregá-lo com chumbinho e atirar.

— E ele mata?

— Mata todo mundo, basta apontá-lo — e Krasótkin explicou onde era preciso colocar a pólvora, o chumbo, indicou uma pequena aber­tura que representava o ouvido, explicou que o canhão recuava. As crianças escutavam com ardente curiosidade. O recuo sobretudo feria-lhes a imaginação.

— E você tem pólvora? — informou-se Nástia.

— Tenho, sim.

— Mostre também a pólvora — disse ela com um sorriso implo-rativo.

Krasótkin tirou de sua sacola um frasquinho, onde havia de fato um pouco de pólvora verdadeira e alguns grãos de chumbo enrolados em papel. Abriu mesmo o frasco, derramou um pouco de pólvora em sua mão.

— Aqui está. Somente tomem cuidado com o fogo, senão ela explo­dirá e nós todos morreremos — disse ele, para impressioná-las.

As crianças examinavam a pólvora com um temor respeitoso que aumentava o prazer. Os grãos de chumbo, sobretudo, agradavam a Kóstia.

— O chumbo não queima? — perguntou ele.

— Não.

— Dê-me um pouco de chumbo — disse, num tom suplicante.

— Aqui está um pouco, tome, somente não o mostre à sua mãe antes de minha chegada. Ela iria pensar que é pólvora, morreria de medo ou surraria vocês.

— Mamãe nunca surra a gente — observou Nástia.

— Sei disso, disse-o somente por causa da beleza do estilo. E vocês, nunca enganem sua mamãe, só desta vez, até que eu volte. Portanto, meninada; posso ir ou não? Não chorarão de medo na minha ausência?

— Nós cho-ra-remos — disse lentamente Kóstia, preparando-se já para fazê-lo.

— Nós choraremos, decerto — apoiou Nástia, receosa.

— Oh! meninos, que idade perigosa é a de vocês! Não há nada a fazer. Será preciso ficar com vocês não sei quanto tempo. E o tempo é precioso.

— Mande Carrilhão fingir de morto — pediu Kóstia.

— Não há outro recurso senão valer-me de Carrilhão. Aqui, Car­rilhão! — E Kólia ordenou ao cão de pêlos compridos, dum cinzento violaceo, do tamanho de um mastim comum, cego do olho direito e com a orelha esquerda cortada. Bancava o elegante, caminhava sobre as patas traseiras, deitava-se de costas com as patas no ar e ficava inerte, como' morto. Durante este último exercício a porta abriu-se e a gorda criada Agáfia, uma mulher de quarenta anos, com marcas de varíola, apareceu na soleira, com a rede de provisões na mão, e pôs-se a olhar. Kólia, por mais apressado que estivesse, não inter­rompeu a representação e, quando por fim assobiou para Carrilhao, o animal pôs-se a saltitar na alegria do dever cumprido.

— Isso é que um cachorro! — disse Agáfia, com admiração.

— E por que demoraste tanto tempo, sexo feminino? — perguntou severamente Krasótkin.

— Sexo feminino! Ora que fedelho!

— Fedelho?

— Sim, fedelho. Que é que tens com isso? Se estou atrasada, é que foi preciso — resmungou Agáfia, começando a remexer em redor da estufa, num tom nada irritado e- como que alegre por poder discutir com aquele jovem senhor tão jovial.

— Escuta, velha frívola, podes jurar-me por tudo quanto há de mais sagrado neste mundo que tomaras conta dessas crianças na minha ausência? Vou sair.

— E por que jurar? — disse Agáfia, rindo. — Tomarei conta de­les, sim.

— Não, é preciso que jures pela tua salvação eterna. Senão não me vou.

— À tua vontade. Que me importa isso? Está gelando. Fica em casa.

— Meninos, essa mulher ficará com vocês até minha volta ou à da mamãe de vocês, que já deveria estar de volta. Além disso, ela dará o almoço de vocês. Não é, Agáfia?

— Pode ser, sim.

— Adeus, meninos, vou-me de coração tranqüilo. Quanto a ti, vovó — disse ele, gravemente, a meia voz, ao passar diante de Agáfia —, espero que não lhes contes, bobagens a respeito de Catarina. Poupa a inocência deles. Aqui, Carrilhao.

— Que Deus te perdoe! — disse Agáfia, irritada. — Como é engra­çado! Mereceria uma surra, por falar assim.

 

O COLEGIAL

Mas Kólia não ouviu. Afinal, estava livre. Ao transpor o portão, ergueu os ombros e, depois de ter dito: "Que frio!", dirigiu-se para a praça do mercado. De caminho, parou diante de uma casa, tirou um apito do bolso, apitou com todas as suas forças, como dando um sinal convencionado. Ao fim dum minuto, viu-se sair um menino de onze anos, de tez vermelha, vestido igualmente com um sobretudo quente e até mesmo elegante. Era o jovem Smúrov, aluno da classe preparatória (ao passo que Kólia Krasótkin se achava duas classes acima), filho de um funcionário em boa situação. Seus pais proibiam-no de andar com Krasótkin, por causa de sua reputação de travesso, de modo que Smúrov acabava de ausentar-se furtivamente. Esse Smúrov, se o leitor está lembrado, fazia parte do grupo que atirava pedras em Iliú-cha, dois meses antes, e foi ele quem falou de Iliúcha a Aliócha Ka-ramázov.

— Há uma hora que o espero, Krasótkin — proferiu Smúrov, com ar decidido.

Os rapazes marcharam para a praça.

— Estou atrasado — replicou Krasótkin. — Culpa das circunstân­cias. Não te surrarão por vires comigo?

— Que idéia! Será que me surram? Carrilhão está com você?

— Claro.

— Vai levá-lo lá?

— Levo, sim.

— Ah! Se fosse Besouro!

— É impossível. Besouro não existe mais. Desapareceu não se sabe onde.

— Não se poderia então dar um jeito? — Smúrov parou de re­pente. — Iliúcha disse que Besouro também tinha pêlos compridos, cinzentos, côr de fumaça, como Carrilhão. Não se poderia dizer que este é Besouro? Talvez ele o acreditasse.

— Colegial, evita a mentira, em primeiro lugar; e em segundo lugar, ainda que seja com bom fim. Espero, principalmente, que não tenhas falado de minha vinda.

— Deus me livre. Compreendo. Mas não o consolarão com Car­rilhão — suspirou Smúrov. — Sabes? O pai dele, o capitão, "esfregão de tília", disse-nos que lhe levariam hoje um cãozinho, um mastim verdadeiro, de focinho preto; pensa consolar assim Iliúcha, mas é pouco provável.

— Como vai ele, Iliúcha?

— Mal, mal! Creio que ele está tísico. Tem pleno conhecimento, mas sua respiração é bem má. Um dia destes pediu que o levassem a passear um pouco. Calçaram-lhe os sapatos. Mas ele caiu ao fim de alguns passos. "Ah! papai, bem que te disse que estes sapatos não pres­tam. Antes mesmo tinha dificuldade em andar com eles." Pensava que caía por causa de seus sapatos e era simplesmente de fraqueza. Não dura uma semana. Herzenstube visita-o. Têm de novo muito dinheiro.

— Canalhas!

— Canalhas, quem?

— Os doutores e toda essa ralé médica, em geral e em particular. Renego a medicina. Não serve para nada. Aliás, estudarei tudo isso. Dize-me, vocês todos lá ficaram muito sentimentais. A classe inteira vai lá incorporada, digo a verdade?

— Toda não, mas uma dezena dos nossos vai lá todos os dias. Não é nada.

— O que me surpreende em tudo isso é o papel de Alieksiéi Kara-mázov; vão julgar amanhã ou depois seu irmão por um crime como aquele e acha ele tempo de fazer sentimentalismo com colegiais!

— Mas não há no caso nenhum sentimentalismo. Tu mesmo vais agora lá reconciliar-te com Iliúcha.

— Reconciliar-me? Expressão engraçada! Aliás, não permito que ninguém analise meus atos.

— Como Iliúcha ficará contente ao ver-te! Não duvida de que vais. Por que, por que recusaste por tanto tempo ir vê-lo? — excla­mou de repente Smúrov, com ardor.

— Meu caro, o problema é meu e não teu. Vou lá por minha von­tade, porque quero ir, ao passo que foi Alieksiéi Karamázov quem levou vocês todos lá; há pois uma diferença. E que sabes tu? Talvez não vá eu lá absolutamente para reconciliar-me. Estúpida expressão.

— Karamázov não tem nada a ver com isso. Os colegas tomaram simplesmente o hábito de ir lá, é bem certo que no começo com Ka­ramázov. Primeiro um, depois outro. Mas nada se passou de estúpido. O pai ficou encantado ao ver-nos. Sabes? Perderá a razão, se Iliúcha morrer. Vê que seu filho está perdido. Causou-lhe tanto prazer o nos termos reconciliado com Iliúcha... Iliúcha pediu informações a teu respeito, mas sem nada acrescentar. Seu pai ficará louco ou se enforcará. Já antes tinha jeito de maluco. Sabes? Ê um homem ho­nesto, vítima dum erro. A culpa é daquele parricida que lhe bateu então.

— No entanto, Karamázov é um enigma para mim. Teria podido travar conhecimento com ele, desde muito tempo, mas, em certos casos, gosto de mostrar-me orgulhoso. Além do mais, já formei sobre ele uma opinião que será preciso verificar, esclarecer.

Kólia calou-se gravemente, bem como Smúrov. Bem entendido, Smú-rov respeitava Kólia Krasótkin e nem mesmo pensava em se comparar com ele. Agora estava muito intrigado, porque Kólia explicara que vinha "por si mesmo"; devia haver aí um mistério nessa decisão súbita de ir hoje à casa de Iliúcha. Seguiam pela praça do mercado, atra­vancada de carroças e de aves domésticas. Sob os alpendres das vendas, mulheres do povo vendiam sequilhos, linha, etc. Em nossa cidade, esses ajuntamentos do domingo são chamados ingenuamente de feiras e há muitos deles durante o ano. Carrilhão corria com o humor mais alegre, afastava-se constantemente à direita ou à esquerda para farejar alguma coisa. Quanto aos seus irmãos de espécie encontrados no caminho, fa­rejava-os de boa vontade, segundo as regras em uso entre a gente canina.

— Gosto de observar a realidade, Smúrov — disse de súbito Kólia. — Notaste como os cães se farejam, quando se encontram? É, entre eles, uma lei geral da natureza.

— Sim, uma lei ridícula.

— Não é ridícula, não tens razão. Na natureza, nada há de ridículo, apesar do que dela pense o homem com seus preconceitos. Se os cães pudessem raciocinar e criticar, encontrariam certamente outro tanto de ridículo, se não mais, nas relações sociais das pessoas, seus donos, se não mais, repito-o, porque estou persuadido de que há bem mais tolices entre nós. É a idéia de Rakítin, uma idéia notável. Sou socia­lista, Smúrov.

— Que é um socialista? — perguntou Smúrov.

— É quando todos são iguais, têm uma opinião comum, não há casamentos, sendo a religião e as leis como convém a cada um. És ainda demasiado jovem para compreender essas questões. Está frio, não é mesmo?

— Sim, 12 graus. Meu pai olhou o termômetro ainda há pouco.

— Notaste, Smúrov, que no meio do inverno, com 15 ou mesmo 18 graus, o frio parece menos vivo que agora, no começo, quando gela de repente a 12 graus e há ainda pouca neve? Isto significa que as pessoas não estão ainda acostumadas a ele. Entre elas, tudo é hábito, em tudo, mesmo em política e nos negócios do Estado. Como é engraçado aquele mujique.

Kólia mostrou um mujique, de alta estatura, metido num tulup, com ar bonacheirão, que, ao lado de sua carroça, se aquecia batendo as mãos uma contra a outra com suas luvas. Sua barba estava coberta de geada.

— A barba do mujique está gelada! — disse Kólia em voz alta e com um ar implicante, passando ao lado dele.

— Há bem outras geladas — replicou sentenciosamente o mujique.

— Não mexas com ele — observou Smúrov.

— Não tem importância, ele não se zangará, é um homem bom. Adeus, Matviéi.

— Adeus.

— Chamas-te Matviéi?

— Matviéi. Não o sabias?

— Não; disse-o por acaso.

— Ora vejam só! És talvez um colegial?

— Com efeito.

— Surram-te?

— Decerto.

— Com força?

— Acontece.

— A vida não é alegre — suspirou o mujique de todo o coração.

— Adeus, Matviéi.

— Adeus. És um garoto delicado. Os rapazes continuaram seu caminho.

— É um bom mujique — disse Kólia a Smúrov. — Gosto de falar com gente do povo e sinto-me sempre contente em fazer-lhe justiça.

— Por que o fizeste crer que nos surravam? — perguntou Smúrov.

— Para causar-lhe prazer.

— Como assim?

— Sabes duma coisa, Smúrov? Não gosto que insistam, se não se compreende desde a primeira palavra. É por vezes difícil explicar. Na idéia do mujique, surra-se o colegial e deve-se fazê-lo; que é um colegial a quem não se surra? E se lhe digo que não, isto lhe causará pesar. Aliás, tu não compreendes isto. É preciso saber falar ao povo.

— Somente, nada de zombarias, rogo-te. Para que não haja outra complicação como aquela do pato.

— Tens medo?

— Evita bem isso, Kólia, deveras, tenho medo. Meu pai ficaria fu­rioso. Proibiram-me expressamente de andar contigo.

— Não tenhas medo, desta vez não acontecerá nada. Bom dia, Natacha — gritou ele para uma vendedora.

— Natacha coisa nenhuma! Chamo-me Maria — gritou-lhe a ven­dedora, uma mulher ainda jovem.

— Está bem, Maria, adeus.

— Ah! engraçadinho, não mais alto que uma bota, que intrometi-mento é esse?

— Não tenho tempo, conversaremos no domingo próximo — disse Kólia gesticulando, como se fosse ela que o importunasse, em vez do contrário.

— E que é que haveremos de conversar no domingo? Fôste tu que mexeste comigo e não eu que mexi contigo, insolente! Mereces umas chicotadas. Bem te conhecemos, boa bisca!

Risadas espocaram entre as vendedoras vizinhas de Maria, quando, de repente, surgiu duma arcada um indivíduo excitado, com ar de caixeiro de venda, aliás estranho à nossa cidade, de cafetã de longas abas, trazendo um casquete de pala, ainda jovem, de cabelos castanhos cacheados, o rosto pálido e bexigoso. Parecia agitado sem saber por que e se pôs logo a ameaçar Kólia com o punho.

— Eu te conheço — vociferou ele —, eu te conheço!

Kólia encarou-o. Não se lembrava de haver brigado com aquele homem, aliás tivera por demasiadas vezes altercações na rua para lem­brar-se de todas.

— Tu me conheces? — perguntou, ironicamente.

— Conheço-te! Conheço-te! — repisou o indivíduo.

— Tens muita sorte. Mas estou com pressa, adeus.

— Por que te mostras insolente? Recomeças? Eu te conheço!

— Se me mostro insolente, meu amigo, não tens nada com isso! — proferiu Kólia, parando, com os olhos sempre fixos nele.

— Como assim?

— Assim mesmo.

— Quem é então que tem? Quem é?

— Agora, camarada, o negócio é com Trifon Nikítitch e não con­tigo.

— Que Trifon Nikítitch? — E o rapaz, sempre acalorado, fixou Kólia com ar estúpido. Kólia olhou-o de alto a baixo, seriamente.

— Fôste à Igreja da Ascensão? — perguntou, num tom imperioso.

— Que igreja? Por quê? Não, não fui lá — respondeu o rapaz des­concertado.

— Conheces Sabaniéiev? — perguntou Kólia, no mesmo tom.

— Que Sabaniéiev? Não, não o conheço.

— Então, vai para o diabo! — cortou Kólia, que, dobrando à direita, afastou-se a passos rápidos, como que desdenhando falar a um simplório que nem mesmo conhecia Sabaniéiev.

— Espera, hei! Que Sabaniéiev? — reconsiderou o rapaz, de novo agitado. — De quem fala ele? — perguntou às vendedoras, olhando-as com ar aparvalhado.

As boas mulheres puseram-se a rir.

— Não é bobo aquele garoto — disse uma delas.

— De que Sabaniéiev falava ele? — teimava em repetir o rapaz, ges­ticulando.

— Deve ser o Sabaniéiev que trabalha em casa dos Kuzmítchev, eis de quem se trata — conjeturou uma das mulheres.

O rapaz examinou-a com espanto.

— Kuzmítchev? — repetiu outra. — Então não é Trifon. Aquele se chama Kuzmá e não Trifon. Ora, o garoto chamou-o de Trifon Nikítitch, logo não é ele.

— Estás vendo, não é nem Trifon, nem Sabaniéiev, é Tchitchov — interveio uma terceira vendedora, que havia ouvido com seriedade. — Alieksiéi Ivânovitch Tchitchov.

— É mesmo Tchitchov, com efeito — confirmou uma quarta. Todo confuso, o rapaz olhava ora uma ora outra.

— Mas por que me perguntou ele isso, por que, boa gente? — exclamou ele, quase desesperado. — "Conheces Sabaniéiev?" Quem diabo haverá de ser esse Sabaniéiev?

— Tens a cabeça dura, estão-te dizendo que não é Sabaniéiev, mas Tchitchov, Alieksiéi Ivânovitch, compreendes? — disse gravemente uma vendedora.

— Que Tchitchov? Di-lo, já que o sabes.

— Um grandalhão, de cabelos compridos. Era visto no mercado, no verão.

— Que queres que eu faça com o teu Tchitchov, hein, alma de Deus?

— E eu é que hei de saber?

— Quem sabe lá o que queres? — insistiu outra. — Tu mesmo deves saber, já que berras! Porque era a ti que falavam e não a nós, pateta! Não o conheces deveras?

— A quem?

— Tchitchov.

— Que o diabo carregue o teu Tchitchov e a ti com ele! Vou dar-lhe uma surra, palavra! Ele zombou de mim!

— Vais surrar Tchitchov? Ou será bem o contrário? Não passas dum imbecil!

— Tchitchov não, Tchitchov não, mulher dos diabos! É o garoto que surrarei. Tragam-no, tragam-no! Ele zombou de mim!

As mulheres desataram a rir. Kólia já estava longe e caminhava com ar vencedor; Smúrov, a seu lado, voltava-se por vezes para o grupo que gritava. Ele também se divertia muito, ao mesmo tempo que receava ter-se misturado a uma estória com Kólia.

— De qual Sabaniéiev lhe falavas tu? — perguntou ele a Kólia, duvidando da resposta.

— Sei lá! Agora, vão-se descompor até de noite. Gosto de mistificar os imbecis em todas as classes sociais. Olha aquele mujique. Ali está outro simplório. Nota isto; dizem: "Não há pior tolo que um tolo francês", mas uma fisionomia russa trai-se da mesma maneira. Não está escrito na testa dele que é um imbecil, aquele mujique?

— Deixa-o, tranqüilo, Kólia, sigamos nosso caminho.

— Nunca, já comecei, agora. Hei! bom dia, mujique!

Um robusto mujique, que caminhava devagar, sem dúvida, meio tocado, de rosto redondo e ingênuo, a barba grisalhante, ergueu a cabeça e olhou o rapazola.

— Ora bem! Bom dia, se não estás brincando — respondeu ele, sem se apressar.

— E se eu estiver brincando? — disse Kólia, rindo.

— Então brinca, se quiseres, Deus te perdoe. Pode-se sempre brin­car, não tem importância.

— Perdão, amigo, estava brincando.

— Pois bem, que Deus te perdoe!

— E tu, me perdoas?

— De todo o coração. Segue teu caminho.

— Tens ar de um mujique inteligente.

— Mais inteligente do que tu — respondeu ele com a mesma se­riedade.

— Duvido — disse Kólia, um tanto desconcertado.

— Digo a verdade.

— Afinal, pode bem dar-se isso.

— Sei o que digo.

— Adeus, mujique.

— Adeus.

— Há mujiques de diferentes espécies — observou Kólia, depois de uma pausa. — Poderia eu saber que iria dar com um sujeito inte­ligente?

Soou meio-dia no relógio da igreja. Os rapazes apressaram o passo e não falaram quase mais durante o trajeto, ainda bastante longo, até a casa do Capitão Snieguiriov. A vinte passos da casa, Kólia parou, disse a Smúrov que fosse na frente e chamasse Karamázov.

— É preciso tomar informações previamente — disse-lhe.

— De que serve fazê-lo vir? — objetou Smúrov. — Vai duma vez, ficarão encantados ao ver-te. Por que fazer conhecimento na rua, com um frio desses?

— Sei por que o faço vir aqui no frio — replicou despòticamente Kólia (o que gostava ele muito de fazer com aqueles "pequenos"), e Smúrov correu a executar suas ordens.

 

BESOURO

Kólia, com ar importante, encostou-se à barreira, aguardando a che­gada de Aliócha. Desde muito tempo queria vê-lo. Tinha ouvido falar muito a seu respeito de parte de seus camaradas, mas, até o presente, testemunhava uma indiferença desdenhosa e criticava mesmo Aliócha, de acordo com o que lhe relatavam a seu respeito. No seu foro íntimo desejava muito conhecê-lo; havia, em tudo quanto se contava de Aliócha, algo de simpático que atraía. De modo que o momento era grave; tratava-se de manter sua dignidade, de mostrar sua independência: "Senão ele me tomará por um garoto como esses outros. Que são para ele? Perguntar-lhe-ei, quando nos tivermos co­nhecido. É pena que seja eu de baixa estatura. Tuzinkov é mais moço do que eu e é uma meia cabeça mais alto. Não sou bonito, sei que meu rosto é feio, mas inteligente. Não é preciso tampouco que me expanda muito, lançando-me imediatamente nos seus braços. Acredi­taria ele... Ufa! que vergonha, se acreditasse..."

Assim se agitava Kólia, que se esforçava por assumir um ar de desprendimento. Sobretudo sua baixa estatura o atormentava mais ainda que sua feiúra. Em casa, desde o ano passado, notara seu tamanho a lápis na parede, e de dois em dois meses, de coração a bater, me­dia-se para ver se crescera. Ai! crescia muito lentamente, o que lhe provocava por vezes desespero. Quanto a seu rosto, não era absoluta­mente feio, mas, pelo contrário, bastante gentil, pálido, com sardas. Os olhos cizentos e vivos olhavam ousadamente e brilhavam muitas vezes de emoção. Tinha as maçãs do rosto um pouco largas, lábios pequenos e mais para delgados, porém muito vermelhos; o nariz niti­damente arrebitado: "Completamente chato, completamente chato!", murmurava, olhando-se no espelho, Kólia, que se retirava sempre com indignação. "E o rosto não deve ser inteligente", imaginava por vezes, duvidando mesmo disso. Aliás, não é preciso crer que a preocupação com seu rosto e sua estatura o absorvesse por completo. Pelo contrário, por mais vexatórias que fossem as estadas diante do espelho, esquecia-as em breve e por muito tempo, "consagrando-se todo inteiro às idéias e à vida real", como ele próprio definia sua atividade.

Aliócha apareceu dentro em pouco e avançou rapidamente ao en­contro de Kólia; ainda a distância notou este que mostrava ele um af radioso. "Estará realmente tão contente assim por ver-me?", pensava Kólia com satisfação. Notemos, de passagem, que Aliócha mudara muito, desde que o deixamos; abandonara a batina e trazia agora uma sobrecasaca de bom corte, um chapéu de feltro cinzento, os cabelos curtos. Ganhara com a mudança. Parecia um belo rapaz. Seu rosto gentil irradiava sempre a alegria, mas uma alegria doce e tranqüila. Kólia ficou surpreso por vê-lo sem sobretudo; saíra decerto à pressa. Estendeu a mão a Kólia.

— Ei-lo afinal, nós o esperávamos com impaciência.

— Minha demora tinha causas que o senhor saberá. Em todo o caso, tenho prazer em conhecê-lo. Esperava essa ocasião, pois me falaram muito do senhor — murmurou Kólia, constrangido.

— De qualquer maneira ter-nos-íamos conhecido. Também eu ouvi falar muito a seu respeito, mas chega aqui demasiado tarde.

— Diga-me, como vão as coisas aqui?

— Iliúcha vai muito mal, morrerá certamente.

— Será possível? Convenha que a medicina é uma coisa infame, Ka-ramázov — disse Kólia com ardor.

— Iliúcha lembrou-se de você muitas vezes, no delírio. Vê-se que ele gostava muito de você antes... até aquele incidente... com o canivete. Há outra causa... Esse cachorro lhe pertence?

— Sim, é Carrilhão.

— Não é Besouro? — Aliócha fitou tristemente os olhos de Kólia. — O outro desapareceu de verdade?

— Sei que todos estão querendo ver Besouro, contaram-me tudo — replicou Kólia, com um sorriso enigmático. — Escute, Karamázov, vou dizer-lhe tudo, foi aliás para explicar-lhe a situação que mandei cha­má-lo antes de entrar — começou ele com animação. — Na prima­vera, Iliúcha entrou para a classe preparatória. Sabe-se o que são os alunos dessa classe: uns fedelhos, uma criançada. Puseram-se logo a implicar com ele. Estou duas classes adiante e, bem entendido, observo de longe. Vejo um rapazinho raquítico, que não se submete, bate-se mesmo contra eles; é orgulhoso, seus olhos brilham. Gosto de tais ca­racteres. Os outros redobram. O pior é que tinha ele então uma roupa ordinária, umas calças que subiam nas pernas, sapatos furados. Razão demais para humilhá-lo. Isso me desagradou, tomei logo a defesa dele e dei-lhes uma lição, porque bato neles e eles me adoram, sabe disso, Karamázov? — disse Kólia, com um orgulho expansivo. — Em geral, gosto dos meninos. Tenho agora, em casa, dois garotinhos a meu cargo, foram eles que me retiveram hoje. De modo que cessaram de bater em Iliúcha e tomei-o sob minha proteção. É um menino altivo, asse­guro-lhe, mas acabou por me ser servilmente devotado, executou mi­nas menores ordens, obedeceu-me como a Deus, esforçando-se por imitar-me. Nos recreios, vinha procurar-me e íamos juntos, nos do­mingos também. No ginásio, zombam ao ver um grande ligar-se assim com um pequeno, mas é um preconceito. Tal é minha fantasia, e basta, não é? Instruo-o, desenvolvo-o, por que não posso desenvolvê-lo, diga, se me apraz? Porque o senhor, Karamázov, se se ligou a todos esses meninos, é sem dúvida porque quer influir sobre a jovem geração, desenvolvê-la, tornar-se útil, não é assim? E, confesso-o, essa feição de seu caráter, que conhecia por ouvir dizer, interessou-me ainda mais. Aliás, de fato, noto que se desenvolve naquele menino não sei que sensibilidade, sentimentalidade; ora, saiba que desde minha infância sou inimigo decidido das ternuras de novilha. Além do mais, ele se contradiz; altivo e servilmente devotado — servilmente devotado e, de repente, seus olhos cintilam, não quer ficar de acordo comigo, dis­cute, zanga-se. Expunha eu por vezes certas idéias; não que ele se opusesse a essas idéias, mas via que ele se revoltava contra mim pessoalmente, porque respondia eu a suas ternuras com frieza. A fim de educá-lo, mostrava-me tanto mais frio quanto se tornava ele mais terno; fazia-o de propósito, tal era a minha convicção. Propunha-me formar seu caráter, nivelá-lo, fazer dele um homem... afinal, o senhor me entende decerto. De repente, vejo-o vários dias seguidos perturbado, aflito, não por causa de ternuras, mas por alguma outra coisa, mais forte, superior. "Que tragédia será essa?", pensava eu. Apertando-o com perguntas, soube da coisa: travara ele conhecimento com o lacaio do falecido pai do senhor (quando ainda vivo), Smierdiákov; este ensinou-lhe uma brincadeira estúpida, isto é, cruel e covarde, pegar miolo de pão, nele enfiar um alfinete e atirá-lo a um mastim, um desses cães esfomeados que engolem dum trago, depois ficar vendo o que resultaria disso. Prepararam, pois, uma bolinha e atiraram-na a esse Besouro de pêlos compridos de que se trata agora, um cão que nin­guém alimentava e que ladrava ao vento o dia inteiro. (Gosta desse estúpido ladrido, Karamazov? Eu não posso suportá-lo.) O animal ati­rou-se à bolinha, engoliu-a, gemeu, depois pôs-se a girar e a correr, uivando, e desapareceu, como me contou Iliúcha. Confessava-o, cho­rando, agarrando-me, sacudido pelos soluços: "O cão corria e gemia", era só o que repetia. Aquela cena havia-o abalado. Tinha remorsos. Levei a coisa a sério. Queria sobretudo ensiná-lo a viver de acordo com sua conduta anterior, de modo que me utilizei de astúcia, con­fesso-o, e fingi uma indignação que não sentia talvez absolutamente. "Cometeste uma ação vil", disse-lhe, "és um miserável, não divulgarei a coisa, está entendido, mas no momento rompo minhas relações con­tigo. Vou refletir e far-te-ei saber por Smúrov (acompanhou-me hoje e é-me devotado) minha decisão definitiva". Ele ficou consternado. Senti que havia ido um pouco longe, mas que fazer? Era minha idéia então. No dia seguinte, mandei dizer-lhe por Smúrov que não lhe falaria mais, é a expressão em uso, quando dois camaradas rompem as rela­ções. Minha intenção secreta era tratá-lo com rigor alguns dias, depois, à vista de seu arrependimento, estender-lhe a mão. Estava firmemente decidido a isso. Mas, acredita-o? depois de ter ouvido Smúrov, eis que seus olhos faíscam e ele exclama: "Dize a Krasótkin de minha parte que agora vou atirar a todos os cachorros bolinhas com alfinetes, a todos, a todos!" "Ah!", pensei, "ele está ficando voluntarioso, é preciso corrigi-lo", e me pus a testemunhar por ele perfeito desprezo, a des­viar-me ou a sorrir ironicamente a cada encontro. E eis que sobreveio aquele incidente com o pai dele, o senhor se lembra? o esfregão de tília". Compreende o senhor que assim estava ele pronto a exasperar-se. Vendo que eu o abandonava, os meninos puseram-se a mexer com ele cada vez mais: "Esfregão de tília, esfregão de tília!" Foi então que começaram entre eles batalhas que eu lamento enormemente, porque creio que uma vez foi ele brutalmente surrado. Aconteceu-lhe atirar-se contra os outros ao sair da aula, mantinha-me eu a dez passos e obser­vava-o. Não me lembro de ter rido então; pelo contrário, causava-me ele grande compaixão e estava eu a ponto de lançar-me em seu socorro. Deu ele com meu olhar, ignoro o que imaginou, mas agarrou um canivete, atirou-se sobre mim e fincou-mo na coxa direita. Não fiz um movimento, sou corajoso quando preciso, Karamazov, limitei-me a fitá-lo com desprezo, como para dizer-lhe: "Não queres recomeçar, como lembrança de nossa amizade? Estou à tua disposição". Mas não me golpeou de novo, não pôde fazê-lo, ficou com medo, atirou fora o canivete, fugiu chorando. Bem entendido, não o denunciei, ordenei a todos que se calassem, a fim de que a coisa não chegasse aos ouvidos dos professores, só falei com minha mãe depois que a ferida cicatrizou, um simples arranhão. Soube depois que no mesmo dia batera-se ele a pedradas e mordera o dedo do senhor. Compreende em que estado se encontrava ele? Quando caiu doente, cometi a falta de não ir per­doá-lo, isto é, de me reconciliar com ele. Lamento-o agora. Mas foi então que me veio uma idéia. Aí está toda a história... somente, creio que errei...

— Ah! que pena — disse Aliócha, comovido — que não tenha eu conhecido as relações anteriores de você com Iliúcha; há muito tempo que teria ido rogar-lhe que me acompanhasse à casa dele. Sabe que no seu delírio febril fala de você? Ignorava quanto você lhe era que­rido! Será possível que você não tenha tentado reencontrar esse Besouro? Seu pai e seus camaradas procuraram-no por toda a cidade. Saiba que, doente e a chorar, repetiu três vezes diante de mim: "Foi porque matei Besouro que estou doente, papai. Foi Deus quem me puniu!" Não se pode tirar-lhe essa idéia da cabeça. £, se você tivesse trazido agora Besouro e provasse que ele está vivo, creio que a alegria o haveria de ressuscitar. Contamos todos com você.

— Diga-me, por que esperavam que fosse eu que deveria procurar Besouro? — perguntou Kólia com viva curiosidade. — Por que conta­vam comigo e não com outrem?

— Correu o boato de que você o procurava e o levaria. Smúrov falou a respeito. Esforçamo-nos todos em fazer crer a Iliúcha que Besouro está vivo, que o viram. Os meninos levaram-lhe um lebracho. Olhou-o com um fraco sorriso e pediu que lhe restituíssem a liberdade. Foi o que fizemos. Seu pai acaba de voltar com um molosso bem novinho. Pensava consolá-lo assim, mas creio que é pior...

— Diga-me ainda, Karamázov, que espécie de homem é o pai dele? Conheço-o, mas que pensa dele o senhor: é um palhaço, um farsante?

— Oh! não. Há pessoas de alma sensível, mas que vivem como que esmagadas. Sua palhaçada é uma espécie de ironia malévola para com aqueles a quem não ousam dizer a verdade na cara, em conse­qüência da humilhação e da timidez que sentem desde muito tempo. Creia, Krasótkin, que semelhante palhaçada é por vezes das mais trágicas. Agora, Iliúcha é tudo para ele e, se morrer, seu pai perderá a razão ou se matará. Estou quase certo disso, quando o olho!

— Compreendo-o, Karamázov, vejo que o senhor conhece o homem.

— Vendo-o com um cão, pensei que era Besouro.

— Espere, Karamázov, talvez tornemos a encontrar Besouro, mas este aqui é Carrilhão. Vou deixá-lo entrar e talvez cause mais prazer a Iliúcha que o molosso novinho. Espere, Karamázov, o senhor vai saber duma coisa. Ah! meu Deus, em que pensava eu? — exclamou de repente Kólia. — O senhor está sem sobretudo num frio desses e eu a retê-lo! Veja como sou egoísta! Somos todos egoístas, Karamázov!

— Não se inquiete, faz frio, mas não sou friorento. Vamos, pois. A propósito, qual é seu nome? Sei somente que se chama Kólia.

— Nikolai, Nikolai Ivânovitch Krasótkin, ou, como se diz adminis­trativamente, Krasótkin filho. — Kólia sorriu, mas acrescentou:

— Naturalmente, detesto meu nome de Nikolai.

— Por quê?

— É tão vulgar.

— Tem treze anos? — perguntou Aliócha.

— Catorze dentro de quinze dias. Devo confessar-lhe uma fraqueza, Karamázov, como entrada em matéria, para que o senhor veja de re­lance toda a minha natureza. Detesto que me perguntem minha idade... enfim... caluniam-me dizendo que estive brincando de bandidos com os alunos da preparatória, na semana passada. É verdade que brinquei, mas pretender que brinquei para me divertir eú mesmo, para meu pró­prio prazer, é uma verdadeira calúnia. Tenho razões de crer que o senhor está informado disso; ora, não brinquei por mim, mas por causa dos garotos. Porque nada sabiam imaginar sem mim. E, entre nós, contam-se sempre bobagens. É a cidade dos mexericos, posso afirmar-lhe.

— E ainda mesmo que tivesse você brincado por prazer próprio, que teria isso demais?

— Ah! para me divertir... Mas o senhor brincaria de cavalinhos?

— Você deve dizer a si mesmo isto — disse, sorrindo, Aliócha: — os adultos, por exemplo, vão ao teatro, onde representam também as aventuras de diversos heróis, por vezes também cenas de banditismo e de guerra; ora, não é isso a mesma coisa, no seu gênero, bem entendido? E quando os jovens brincam de guerra, durante o recreio, ou de ban­didos, é também a arte nascente, uma necessidade artística que se desen­volve nas almas jovens e por vezes esses brinquedos são mais perfeitos que as representações teatrais; a única diferença é que se vai ao teatro ver os atores, ao passo que a mocidade desempenha ela própria o papel de atores. Mas é tudo natural.

— Acredita-o? Está certo disto? — perguntou Kólia, fixando-o. — O senhor exprimiu uma idéia bastante curiosa; vou meditá-la, uma vez de volta para casa. Sabia bem que se pode aprender alguma coisa com o senhor. Vim instruir-me em sua companhia, Karamázov — disse Kólia, expansivamente.

— E eu na sua.

Aliócha sorriu, apertou-lhe a mão. Kólia estava encantado com Alió­cha. O que o impressionava era encontrar-se num pé de igualdade per­feita com ele, que lhe falava como a um adulto.

— Vim mostrar-lhe um número, Karamázov, uma representação tea­tral também — disse ele com um riso nervoso. — Foi por isso que vim.

— Então, primeiro à esquerda, à casa do proprietário. Seus camara­das deixaram lá seus sobretudos, porque no quarto está-se muito aper­tado e faz calor.

— Oh! não ficarei muito tempo, conservarei meu sobretudo. Carrilhao me esperará no vestíbulo. "Aqui, Carrilhao, deita-te e morre!" Está ven­do? Ele está morto. Entrarei primeiro para ver o que se está passando, depois, quando chegar o momento, assobiarei para ele: "Aqui, Carri­lhao!" O senhor vê-lo-á precipitar-se. Somente, é preciso que Smúrov não sé esqueça de abrir a porta nesse momento. Darei minhas instruções e o senhor verá um número...

 

À CABECEIRA DE ILIÚCHA

No quarto ocupado pela família do capitão reformado Snieguiriov, que já conhecemos, estava-se apertado e abafava-se, em vista do número de visitantes. Se bem que os meninos que ali se encontravam estivessem prontos, como Smúrov, a negar que Aliócha os tivesse reconciliado com Iliúcha e levado à casa deste, era mesmo assim. Toda a sua habilidade consistira em levá-los um após outro, sem ternuras de novilha e como que por acaso. Isto levara grande alívio aos sofrimentos de Iliúcha. A amizade quase terna e o interesse que lhe testemunhavam seus antigos inimigos muito o comoveram. Só faltava Krasotkin e sua ausência era de todas a mais penosa. Nas tristes recordações de Iliúcha, o episódio mais amargo era o incidente com Krasotkin, seu único amigo e seu defensor, contra o qual se lançara naquela ocasião com um canivete.

Era o que pensava o jovem Smúrov, rapaz inteligente (que fora o pri­meiro a reconciliar-se com Iliúcha). Mas Krasótkin, sondado vagamente por Smúrov a respeito da visita de Aliócha para um negócio, cortara cerce, mandando responder a Karamázov que sabia o que tinha de fazer, que não pedia conselho a ninguém e que, se fosse visitar o doente, seria idéia sua, tendo já um plano. Isto se passara duas semanas antes daquele domingo. Eis por que Aliócha não fora ele próprio ao seu encontro, como era intenção sua. Aliás, enquanto esperava, mandara Smúrov por duas vezes à casa de Krasótkin. Mas de cada vez este recusara secamen­te, mandando dizer a Aliócha que se ele fosse procurá-lo, ele próprio não iria jamais à casa de Iliúcha, e rogava que o deixasse tranqüilo. Até o derradeiro dia, o próprio Smúrov ignorava que Kólia tivesse deci­dido ir à casa de Iliúcha, e, na véspera à noite, somente, ao despedir-se dele, Kólia lhe dissera bruscamente que o esperasse em casa no dia se­guinte de manhã, porque o acompanharia à casa dos Snieguiriovi, mas que evitasse falar a quem quer que fosse dessa visita, porque queria chegar de improviso. Smúrov obedeceu. Gabava-se de que Krasótkin levaria Besouro desaparecido, de acordo com certas expressões feitas por ele incidentemente de que "eram todos uns asnos pelo fato de não pode­rem encontrar aquele cachorro, se ainda estivesse vivo". Quando Smúrov lhe dera parte timidamente de suas conjeturas a respeito do cachorro, Krasótkin ficara rubro de raiva: "Serei bastante estúpido para procurar cachorros forasteiros pela cidade, quando tenho Carrilhão? Pode-se es­perar que tal animal tenha ficado vivo depois de ter engolido um alfi­nete? São ternuras de novilha, eis tudo!"

Entretanto, Iliúcha, desde duas semanas, quase não deixara seu pe­queno leito, a um canto, perto das santas imagens. Não ia mais à escola desde o dia em que mordera o dedo de Aliócha. Sua doença datava de então, portanto, durante ainda um mês, pôde ele por vezes levantar-se, para andar pelo quarto e pelo vestíbulo. Por fim, suas forças abando­naram-no completamente e não podia mover-se sem a ajuda de seu pai. Este tremia por Iliúcha, deixou mesmo de beber; o temor de perder seu filho tornava-o quase louco e muitas vezes, sobretudo depois de tê-lo sustentado através do quarto e tornado a deitar, fugia para o vestíbulo. Ali, num canto escuro, com a testa contra a parede, abafava convulsiva-mente seus soluços, para que o doentinho não os ouvisse. De volta ao quarto, punha-se comumente a divertir e consolar seu querido filho, con­tava-lhe histórias, anedotas cômicas, ou imitava pessoas engraçadas que tinha encontrado, imitava mesmo os gritos dos animais. Mas as caretas e as palhaçadas de seu pai desagradavam bastante a Iliúcha. Muito em­bora se esforçasse por dissimular seu mal-estar, sentia, de coração cerra­do, que seu pai era humilhado em público e a lembrança do "esfregão de tília" e daquele horrível dia perseguia-o sem cessar. A irmã doente de Iliúcha, a doce Nínotchka, não gostava tampouco das caretas de seu pai (Varvara Nikoláievna partira desde muito tempo para fazer cursos em Petersburgo); em compensação, a mamãe, fraca de espírito, diver­tia-se bastante, ria de todo o coração, quando seu esposo representava alguma coisa ou fazia gestos cômicos. Era sua única consolação, pois no resto do tempo queixava-se, chorando, de que todos a esqueciam, de que não a tratavam com atenção, etc. Mas, nos derradeiros dias, tam­bém ela pareceu mudar. Olhava muitas vezes Iliúcha no seu canto e punha-se a pensar. Tornou-se mais silenciosa, acalmou-se, chorava por vezes, mas mansamente, para que não a ouvissem, O capitão notava aquela mudança com dolorosa perplexidade. As visitas dos meninos de­sagradavam-lhe a princípio, só faziam irritá-la, mas pouco a pouco os gritos alegres dos garotos e as histórias que contavam divertiram-na tam­bém e acabaram por agradar-lhe a ponto de ficar terrivelmente aborre­cida quando não estavam eles presentes. Batia palmas, ria, vendo-os brincar, chamava alguns dentre eles para beijá-los. Gostava particular­mente do jovem Smúrov. Quanto ao capitão, as visitas dos meninos que vinham distrair Ilíúcha enchiam-no de alegria e mesmo de esperança de que o pequeno cessaria agora de atormentar-se, restabelecer-se-ia talvez mais depressa. Malgrado sua inquietude, ficou persuadido até os derra­deiros dias de que seu filho ia recuperar a saúde. Acolhia os jovens visitantes com respeito, pondo-se a serviço deles, pronto a carregá-los às costas, e começou mesmo a fazê-lo, mas essas brincadeiras desagradaram a Iliúcha e foram abandonadas. Comprava para eles gulodices, bolinhos, nozes, oferecia-lhes chá com torradas. É preciso notar que não lhe fal­tava dinheiro. Aceitara os 200 rublos de Catarina Ivânovna, exatamente como Aliócha o previa. Em seguida, a moça, informada mais exata­mente da situação deles e da doença de Iliúcha, fora visitá-los, travara conhecimento com toda a família e encontrara mesmo a pobre demente. Desde então sua generosidade não se retardara e o capitão, tremendo à idéia de perder seu filho, esquecera sua antiga altivez e recebia humil­demente a caridade. Durante todo esse tempo, o Doutor Herzenstube, mandado por Catarina Ivânovna, visitara regularmente o doente de dois em dois dias, mas isto não servia de grande coisa, muito embora o enchesse de remédios. Naquele mesmo domingo, esperava o capitão novo médico chegado de Moscou, onde passava por ser uma celebridade. Ca­tarina Ivânovna mandara chamá-lo, com grandes despesas, com um fim do qual se tratará mais tarde, e na mesma ocasião pediu-lhe para visitar Iliúcha, do que fora prevenido o capitão. Não imaginava ele absoluta­mente que Kólia Krasótkin iria chegar, se bem que desejasse desde muito tempo a visita desse rapaz, a respeito do qual Iliúcha tanto se atormen­tava. Quando ele entrou, todos se aglomeravam em torno do leito do doente e examinavam um molosso pequenino, nascido na véspera, que o capitão encomendara havia uma semana para distrair e consolar Iliú­cha, sempre pesaroso com a desaparição de Besouro, que devia ter mor­rido. Iliúcha sabia, havia três dias, que lhe fariam presente dum pãozi­nho, um verdadeiro molosso (o que era bastante importante) e, em­bora por delicadeza se mostrasse encantado, seu pai e. seus camaradas viam bem, aquele novo cão só fazia despertar no seu coração as lem­branças do desgraçado Besouro, que ele fizera sofrer. O animalzinho mexia-se ao lado dele; com um fraco sorriso, acariciava-o com sua mão diáfana; via-se que o cão lhe agradava, mas... não era Besouro! Se tivesse os dois juntos, nada teria faltado à sua felicidade!

— Krasótkin! — gritou um dos meninos, que fora o primeiro a ver Kólia entrar. Houve certa emoção, os meninos se afastaram dos dois lados do leito, descobrindo assim Iliúcha. O capitão precipitou-se ao encontro de Kólia.

— Seja bem-vindo, caro visitante! Iliúcha, o Senhor Krasótkin veio ver-te...

Tendo-lhe estendido a mão, Krasótkin mostrou logo sua boa educa­ção. Voltou-se, primeiro, para a esposa do capitão, sentada na sua pol­trona (estava ela justamente bastante descontente e resmungava porque os meninos lhe ocultavam o leito de Iliúcha e impediam-na de olhar o cão) e fêz-lhe uma reverência cortês, depois, dirigindo-se a Nínotchka, cumprimentou-a da mesma maneira. Essa conduta impressionou favo­ravelmente a doente.

— Reconhece-se logo um jovem bem educado — disse ela, abrindo os braços. — Não é como aqueles ali; entram um por cima do outro.

— Como assim, mamãe, um por cima do outro? Que quer a senhora dizer? — balbuciou o capitão um tanto inquieto.

— Entram assim mesmo. No vestíbulo um monta a cavalo nos om­bros do outro e assim se apresentam em casa de uma família decente. Com que é que isso se parece?

— Mas quem então, mamãe, entrou assim?

— Ali está um que carregava o outro e ainda aqueles dois ali... Mas Kólia já estava à cabeceira de Iliúcha. O doente empalidecera.

Ergueu-se, encarando fixamente Kólia. Este, que havia dois meses não via seu amiguinho, parou consternado; não esperava encontrar um rosto tão amarelo e emagrecido, olhos ardentes de febre e como que desmesuradamente aumentados, mãos tão descarnadas. Com dolorosa surpresa via que Iliúcha respirava penosa e precipitadamente, os lábios ressequi­dos. Aproximou-se, estendeu-lhe a mão e disse, embaraçado:

— Como é, meu velho... como vai isso?

Mas sua voz estrangulou-se, seu rosto contraiu-se, teve um ligeiro tremor perto dos lábios. Iliúcha sorria-lhe tristemente, ainda incapaz de pronunciar uma palavra. Kólia passou-lhe de repente a mão pelos cabelos.

— Não vai mal! — respondeu ele, maquinalmente. Calaram-se um instante.

— Então, tens um novo cão? — perguntou Kólia, num tom indi­ferente.

— Si... im — disse Iliúcha, que ofegava.

— Ele tem o focinho preto, vai ser mau — disse Kólia, num tom grave, como se não houvesse nada de mais importante. Sobretudo esfor­çava-se por dominar sua emoção, para não chorar como um petiz, mas não o conseguia. —. Quando ele crescer, será preciso pô-lo na corrente, tenho certeza.

— Ficará enorme! — exclamou um dos meninos.

— É coisa sabida, um molosso é enorme, do tamanho dum bezerro.

— Do tamanho dum bezerro, dum verdadeiro bezerro — interveio o capitão. — Procurei de propósito um assim, o mais feroz, seus pais também são enormes e ferozes... Sente-se no leito de Iliúcha, ou então em cima do banco. Seja bem-vindo, caro visitante, esperado desde tanto tempo. Veio com Alieksiéi Fiódorovitch?

Krasótkin sentou-se no leito, aos pés de Iliúcha. Tinha talvez prepa­rado em caminho uma entrada em assunto, mas agora perdia o fio do mesmo.

— Não... Estou com Carrilhão... Tenho um cão assim, agora, Carrilhão. Está esperando lá embaixo... eu assobio e ele vem correndo. Tenho também um cão. — Voltou-se para Iliúcha. — Lembras-te, meu velho, de Besouro? — perguntou à queima-roupa.

O rostinho de Iliúcha contraiu-se. Olhou Kólia cheio de dor. Aliócha, que se conservava perto da porta, franziu o cenho, fez sinal às ocultas a Kólia para não falar de Besouro, mas Kólia não o notou ou não quis notá-lo.

— Onde está então... Besouro? — perguntou Iliúcha com uma voz partida.

— Ah! irmão, teu Besouro desapareceu!

Iliúcha calou-se, mas olhou de novo Kólia fixamente. Aliócha, que havia encontrado o olhar de Kólia, fêz-lhe novo sinal, mas de novo des­viou ele a vista, fingindo não ter compreendido.

— Fugiu sem deixar rasto. Podia-se esperar isso mesmo, depois da­quela bolinha — disse o impiedoso Kólia, que, entretanto, parecia ele próprio ofegante. — Em troca, tenho Carrilhão... Trouxe-o para ti...

— É inútil — exclamou Iliúcha.

— Não, não, pelo contrário, é preciso que o vejas... Isto te distrairá. Trouxe-o de propósito... um animal de pêlos compridos, como o ou­tro... A senhora permite que chame meu cachorro? — perguntou ele à Senhora Snieguiriova, com uma agitação incompreendida.

— Não é preciso, não é preciso! — gritou Iliúcha, com uma voz dilacerante. A censura brilhava em seus olhos.

— O senhor deveria ter... — o capitão levantou-se precipitadamente de cima da arca onde estava sentado, perto da parede. — O senhor de­veria ter... esperado... — Mas Kólia, inflexível, gritou para Smúrov: "Smúrov, abre a porta!" Assim que ela foi aberta, lançou ele um assobio. Carrilhão precipitou-se para dentro do quarto.

— Salta, Carrilhão, banca o elegante, banca o elegante! — vociferou Kólia. — O cão, erguendo-se nas patas trazeiras, manteve-se diante do leito de Iliúcha. Algo de inesperado se passou. Iliúcha estremeceu, incli­nou-se com esforço para Carrilhão e examinou-o, desfalecente.

— É... Besouro! — exclamou ele, com uma voz partida pelo sofri­mento e pela felicidade.

— Quem pensavas que era? — gritou com todas as suas forças Krasótkin, radiante. Passou os braços em redor do cão e levantou-o.

— Olha, meu velho, vê, um olho cego a orelha esquerda cortada, os próprios sinais que me tinhas indicado. Procurei-o de acordo com eles. Não demorou muito. Não pertencia, com efeito, a ninguém! a ninguém! Refugiara-se em casa dos Fiedótovi, no quintal, mas não lhe davam co­mida, é um cão vadio, que fugiu duma aldeia... Vês, meu velho, não deve ter engolido a tua bolinha! Senão, estaria morto, decerto! Portanto, pôde cuspi-la de novo, uma vez que está vivo. Tu não o havias notado. No entanto, picou a língua, por isso gemia. Corria gemendo, acreditaste que ele havia engolido a bolinha. Deve ter-lhe doído muito, porque os cães têm a pele bastante sensível na boca... bem mais sensível que o homem!

Kólia falava muito alto, com ar acalorado e radiante. Iliúcha nada podia dizer. Olhava para Kólia com seus grandes olhos escancarados e tornara-se branco como linho. Se Kólia, que de nada desconfiava, tivesse sabido o mal que podia causar ao doentinho uma tal surpresa, jamais se teria decidido a preparar tal golpe teatral. Mas no quarto era talvez Aliócha o único a compreender. Quanto ao capitão, dir-se-ia um menino.

— Besouro! Então é Besouro? — gritava ele cheio de felicidade. — Iliúcha, é Besouro, o teu Besouro! Mamãe, é Besouro! — Chorava quase.

— E eu não adivinhei! — disse tristemente Smúrov. — Bem dizia que Krasótkin encontraria Besouro. Manteve sua palavra.

— Manteve a palavra! — disse uma voz alegre.

— Bravo, Krasótkin! — disse um terceiro.

— Bravo, Krasótkin! — exclamaram todos os meninos, que se puseram a aplaudir.

— Esperem, esperem! — Krasótkin esforçava-se por dominar o tu­multo. — Vou contar-lhes como foi. Procurei-o e levei-o para casa e mantive-o oculto a todos os olhares até o derradeiro dia. Somente Smú­rov o soube, há duas semanas, mas assegurei-lhe que era Carrilhão e ele não desconfiou de nada. No intervalo, treinei Besouro. Vocês vão ver as habilidades que ele sabe! Treinei-o, meu velho, para trazê-lo já treinado. Não têm aí um pedaço de cozido? Ele fará um número de matar de rir. Têm mesmo?

O capitão correu à casa dos proprietários, onde se preparava a refei­ção da família. Kólia, para não perder um tempo precioso, gritou logo a Carrilhão: "Faze-te de morto!" Carrilhão pôs-se a girar, deitou-se de costas, imobilizou-se, com as quatro patas no ar. Os rapazes riam, Iliú­cha olhava com o mesmo sorriso doloroso, mas a mais contente era a "mamãe". Desatou a rir à vista do cão e se pôs a estalar os dedos, chamando:

— Carrilhão! Carrilhão!

— Por coisa alguma do mundo ele se levantará —, disse Kólia, com ar triunfante e com justo orgulho —, ainda mesmo que todos o cha­massem, mas à minha voz por-se-á de pé. Aqui, Carrilhão!

O cão se levantou, pôs-se a saltitar com gritos de alegria. O capitão chegou com um pedaço de cozido.

— Não está quente? — informou-se logo Kólia, com ar entendido. — Não, está bem, porque os cães não gostam das coisas quentes. Olhem todos, Iliúcha, olha então, meu velho, em que pensas? Trouxe-o para ele e ele não olha!

A nova habilidade consistia em pôr um belo pedaço de carne sobre o focinho estendido do cão imóvel. O infeliz animal devia mantê-lo tanto tempo quanto aprouvesse a seu dono, fosse mesmo uma meia hora. A prova de Carrilhão só durou um curto minuto.

— Engole! — gritou Kólia. E num piscar de olhos o pedaço passou do focinho de Carrilhão para sua goela. O público, é claro, exprimiu viva admiração.

— Será possível que tenha você tardado tanto, unicamente para ames­trar o cachorro? — exclamou Aliócha, num tom involuntário de censura.

— Isto mesmo — exclamou Kólia, com ingenuidade. — Queria mos­trá-lo em todo o seu brilho.

— Carrilhão! Carrilhão! — E Iliúcha estalou os dedos magros, para atrair o cão.

— Para que isso? Manda-o logo subir à tua cama. Aqui, Carrilhão! Kólia bateu sobre a cama e Carrilhão atirou-se como uma flecha para

Iliúcha, que lhe pegou a cabeça com as duas mãos, em troca do que Carrilhão lambeu-lhe logo a face. Iliúcha estreitou-o contra si, estendeu-se sobre o leito e ocultou o rosto no pêlo espesso do animal.

— Meu Deus, meu Deus! — exclamou o capitão. Kólia sentou-se de novo no leito de Iliúcha.

— Iliúcha, posso mostrar-te ainda alguma coisa. Trouxe-te um ca­nhãozinho. Lembras-te? Falei-te então e tu disseste: "Ah! como gostaria de vê-lo!" Pois bem, trouxe-o.

E Kólia tirou à pressa de sua sacola o canhãozinho de bronze. Apres­sava-se porque se sentia ele próprio muito feliz. Em outra ocasião, teria esperado que o efeito produzido por Carrilhão tivesse passado, mas agora apressava-se, desprezando qualquer comedimento: "Você já está feliz, pois bem, tome mais felicidade!" Ele próprio estava encantado.

— Há muito tempo que eu namorava isto em casa do funcionário Morózov, para ti, meu velho, para ti. Ele não se servia disso, vinha-lhe de seu irmão. Troquei-o por um livro da biblioteca de papai: O Parente de Maomé ou A Tolice Salutar. É uma obra libertina de há cem anos, quando não existia ainda censura em Moscou. Morózov é amador dessas coisas. Chegou mesmo a agradecer-me... — Kólia segurava o canhão, de modo que todos pudessem vê-lo e admirá-lo. Iliúcha soergueu-se e, continuando a apertar Carrilhão com a mão direita, contemplava deliciado o brinquedo. O efeito atingiu o cúmulo, quando Kólia declarou que tinha também pólvora e que se podia atirar, "se isto todavia não incomodar as senhoras!" Mamãe pediu para ver o brinquedo de mais perto, o que foi logo feito. O canhãozinho de bronze, munido de rodas, agradou-lhe de tal modo que ela se pôs a fazê-lo rodar sobre seus joe­lhos. Ao lhe pedirem permissão para atirar, consentiu imediatamente, sem compreender, aliás, do que se tratava. Kólia mostrou a pólvora e o chumbo. O capitão, na qualidade de antigo militar, preparou a carga, derramou um pouco de pólvora, rogando que se reservasse o chumbo para outra vez. Puseram o canhão no soalho, com a boca voltada para um espaço livre, introduziram-se no ouvido alguns grãos de pólvora e acenderam-na com um fósforo. O tiro partiu muito bem. A mamãe es­tremeceu, mas se pôs logo a rir. Os meninos olhavam, num silêncio solene, o capitão sobretudo exultava, contemplando Iliúcha. Kólia pegou o canhão e fez dele presente imediatamente a Iliúcha, com a pólvora e o chumbo.

— É para ti, para ti! Preparei-o desde muito tempo — repetiu ele, no cúmulo da felicidade.

— Ah! dê-mo, dê o canhãozinho antes a mim — pediu de repente a mamãe, como uma criança. Estava com ar inquieto, receando uma recusa. Kólia ficou perturbado. O capitão agitou-se.

— Mátuchka, mátuchka!... o canhão é teu, mas Iliúcha guardá-lo-á porque foi dado a ele; é a mesma coisa. Iliúcha deixará sempre que brinques com ele, será dos dois...

— Não, não quero que ele seja de nós dois, mas só meu e não de Iliúcha — continuou a mamãe, prestes a chorar.

— Mamãe, tome-o, ei-lo aqui, tome-o! — gritou Iliúcha. — Kra­sótkin, posso dá-lo a mamãe? — Voltou-se com ar suplicante para Kra­sótkin, como se temesse ofendê-lo, dando seu presente a outrem.

— Mas decerto! — consentiu logo Krasótkin, que tomou o canhão das mãos de Iliúcha e entregou-o ele próprio à mamãe, inclinando-se com uma reverência cortês. Ela chorou de enternecimento.

— Esse querido Iliúcha! Gosta bem de sua mamãe! — exclamou ela, comovida, e se pôs de novo a fazer o canhão rodar sobre seus joelhos.

— Mámienhka, vou beijar-te a mão — disse seu marido, passando logo das palavras aos atos.

— O jovem mais gentil é esse bom rapaz — disse a dama, reconhe­cida, designando Krasótkin.

— Quanto à pólvora, Iliúcha, trar-te-ei tanta quanta queiras. Nós mesmos a fabricamos agora. Boróvikov aprendeu a composição: 24 par­tes de salitre, dez de enxofre, seis de carvão de bétula; bate-se num pilão tudo junto, junta-se água para fazer uma pasta, coa-se através duma pele de asno e obtém-se pólvora.

— Smúrov já me falou da pólvora de vocês, mas papai diz que não é a verdadeira pólvora — observou Iliúcha.

— Como não a verdadeira? — Kólia corou. — Ela incendeia. Aliás, não sei...

— Não é nada — disse o capitão contrafeito. — Disse mesmo que a pólvora verdadeira tem outra composição, mas pode-se também fabri­cá-la dessa forma.

— O senhor sabe melhor do que eu. Pusemos fogo à nossa pólvora num pote de pomada, de pedra. Queimou bem, só ficou um pouco de fuligem. E era apenas a pasta, ao passo que se é coada através de uma pele... Aliás, o senhor conhece isso melhor do que eu... O pai de Búlkin deu-lhe uma surra por causa de nossa pólvora, sabes disso? — perguntou Kólia a Iliúcha.

— Ouvi dizê-lo — respondeu Iliúcha. Não se cansava de escutar Kólia.

— Tínhamos preparado uma garrafa de pólvora. Ele a guardava de­baixo da cama. Seu pai viu-a. "Ela pode explodir", disse ele, e deu-lhe ali mesmo uma surra. Queria queixar-se de mim no ginásio. Agora, proi­bição de andarem comigo foi feita a ele, a Smúrov, a todos. Minha repu­tação está feita: dizem que sou um maluco. — Kólia mostrou um sorriso de desprezo. — Começou isso desde o caso da estrada de ferro.

— Sua proeza chegou ao nosso conhecimento — exclamou o capitão. — Será verdade que o senhor não sentiu medo nenhum, quando o trem lhe passava por cima? Era aterrorizador?

O capitão esforçava-se por lisonjear Kólia.

— Não, particularmente! — disse este, num tom displicente. — Foi sobretudo aquele pato que forjou minha reputação — e voltou-se de novo para Iliúcha. Mas se bem que afetasse, ao falar, um jeito despren­dido, não estava senhor de si e não acertava o tom.

— Ah! também ouvi falar do pato! — disse Iliúcha, rindo. — Con­taram-me, mas não compreendi. É mesmo verdade que compareceste ao tribunal?

— Uma travessura, uma bagatela, da qual fizeram uma montanha, como é de costume entre nós — começou Kólia, com desenvoltura. — Caminhava eu pela praça, quando trouxeram patos para ali. Parei para olhá-los. Um tal Vichniakov, que é agora moço de recados na casa dos Plótnikovi, olha para mim e diz: "Por que olhas tanto para os patos?" Examino-o: o rosto redondo e estúpido, uns vinte anos; eu, fiquem sa­bendo, nunca desdenho o povo. Gosto de frequentá-lo. Ficamos para trás em relação ao povo — é um axioma. O senhor, ri, creio, Ka­ramázov?

— Não, Deus me livre, sou todo ouvidos — respondeu Aliócha, com o ar mais ingênuo.

O desconfiado Kólia retomou logo coragem.

— Minha teoria, Karamázov, é clara e simples: creio no povo e sinto-me sempre feliz em fazer-lhe justiça, mas sem mimá-lo, é o sine qua... Mas falava de um pato... Respondo àquele bobo: "É que es­tava perguntando a mim mesmo em que pensa o pato". Ele me fita, com um ar totalmente estúpido: "Em que pensa ele?" "Estás vendo aquela tieliega carregada de aveia? A aveia escapa-se do saco e o pato estende o pescoço até debaixo da roda para bicá-la, estás vendo?" "Estou vendo, sim. " "Pois bem", digo eu, "se se fizer avançar um pouquinho aquela tieliega, a roda cortará o pescoço do pato, sim ou não?" "De­certo que cortará", e ele abre-se num largo sorriso. "Pois bem, meu ra­paz", digo eu, "vamos a isso. " "Vamos a isso", repete ele. Logo foi feito; colocou-se junto da brida disfarçadamente e eu ao lado para dirigir o pato. O mujique naquele momento olhava para outra parte, conversando com alguém, e não tive de intervir; o próprio pato estendeu o pescoço para bicar, por baixo da tieliega, no caminho da roda. Fiz sinal ao ra­paz, ele puxou a brida e, zás! lá se foi o pescoço do pato! Por desgraça, os mujiques nos viram naquele momento e berraram: "Tu fizeste de propósito!" "Não foi, não!" "Foi, sim!" e gritaram: "Ao juiz de paz!", e levaram-me também: 'Tu também estavas lá. Estavas combinado com ele, todo o mercado te conhece!" Com efeito, sou conhecido de todo o mercado — acrescentou Kólia com orgulho. — Fomos todos à casa do juiz de paz, não tendo sido esquecido o pato. E eis o meu rapaz, apa­vorado, que se põe a chorar, chorava como uma mulher. O condutor gritava: "Desta maneira, pode-se matar quantos patos se quiser!" As testemunhas seguiam, naturalmente. O juiz de paz logo sentenciou: 1 ru­blo de indenização ao cocheiro, mas podia ficar com o pato. Não de­veria permitir-se fazer semelhantes brincadeiras no futuro. O rapaz não cessava de gemer: "Não fui eu, foi ele que me ensinou!" Respondi com grande sangue-frio que não lho ensinara, mas somente exprimira a idéia principal, não se tratava senão de um projeto. O juiz Niefiedov sorriu, mas arrependeu-se logo de haver sorrido: "Vou enviar uma comunica­ção a seu diretor", disse-me ele, "para que doravante não amadureça você mais tais projetos, em lugar de estudar e de aprender suas lições". Não fez nada disso, mas o caso espalhou-se e chegou, com efeito, às orelhas da diretoria; sabe-se como são elas compridas! O Professor Kol­básnikov ficou mais que qualquer outro exaltado, mas Dardaniélov to­mou de novo minha defesa. E Kolbásnikov está agora zangado com nós todos, como um burro vermelho. Ouviste dizer, Iliúcha, que ele se ca­sou, recebendo 1 000 rublos de dote dos Mikháilovi? A noiva é um ver­dadeiro espantalho. Os alunos da terceira classe logo compuseram um epigrama. É engraçado, vou trazê-lo para ti depois. Nada tenho a dizer de Dardaniélov: é um homem de sólidos conhecimentos. Respeito as pessoas como ele e não é porque ele me defendeu...

— No entanto, tu lhe passaste a perna a respeito da fundação de Tróia! — observou Smúrov, todo orgulhoso de Krasótkin. A história do pato agradara-lhe bastante.

— Mas deu-se mesmo isso? — interveio servilmente o capitão. — Trata-se da fundação de Tróia? Ouvimos falar disso. Iliúcha tinha-me contado...

— Ele sabe tudo, papai, é o mais instruído de nós todos! — disse Iliúcha. — Finge que não, mas é o primeiro em todas as matérias...

Iliúcha contemplava Kólia com uma felicidade infinita.

— É uma bagatela, considero eu mesmo essa questão como fútil — replicou Kólia com um orgulho modesto. Conseguira desinibir-se, se bem que estivesse um tanto perturbado; sentia que havia contado a his­tória do pato com demasiado ardor, ao passo que Aliócha calara-se du­rante todo o relato e ficara sério; seu amor-próprio inquieto perguntava a si mesmo, pouco a pouco: "Será que se cala porque me despreza, crendo que procuro seus elogios? Se ele se permite acreditar isto, eu... " — Esta questão é para mim das mais fúteis — cortou ele, orgulhosa­mente.

— Eu sei quem fundou Tróia — disse de repente um menino que não havia dito grande coisa até então, de ar tímido e silencioso, rosto delicado, de onze anos, chamado Kartachov. Mantinha-se perto da por­ta. Kólia olhou-o com surpresa. Com efeito, a fundação de Tróia tor­nara-se em todas as classes um segredo que só se podia desvendar len­do Smarágdov e somente Kólia o possuía. Um dia, o jovem Kartachov aproveitou dum momento de distração de Kólia e abriu furtivamente um volume de Smarágdov que se encontrava entre os livros dele e deu diretamente na passagem em que se tratava dos fundadores de Tróia. Havia já muito tempo que isso se dera, mas acanhava-se ele de revelar publicamente que também conhecia o segredo, temendo ser perturbado por outra pergunta de Kólia. Agora, não pudera impedir-se de falar, co­mo o desejava desde muito tempo.

— Pois bem, quem foi? — E Kólia voltou-se arrogantemente para o lado dele, vendo pelo seu ar que Kartachov sabia-o deveras e estava pronto para todas as conseqüências. Sentiu um frio.

— Tróia foi fundada por Teucro, Dárdano, Ilo e Trós — recitou o menino, corando como uma peônia, a ponto de causar dó ver. Seus colegas fixaram-no por um minuto, depois seus olhares voltaram-se para Kólia. Este continuava a mirar de alto a baixo o audacioso, com um sangue-frio desdenhoso.

— Pois bem! Como se arranjaram eles? — dignou-se por fim pro­ferir. — E que significa em geral fundar uma cidade ou um Estado? Será que eles foram colocar os tijolos, hein?

Riram. O temerário, de rosado tornou-se purpúreo. Calou-se, prestes a chorar. Kólia manteve-o assim um minuto.

— Para interpretar acontecimentos históricos, tais como a fundação duma nacionalidade, é preciso em primeiro lugar compreender o que isso significa — disse num tom doutorai. — Aliás, não atribuo impor­tância a todos esses contos de comadres; em geral, não tenho grande apreço pela história universal — acrescentou, displicentemente.

— Pela história universal? — perguntou o capitão, assustado.

— Sim. É o estudo das tolices da humanidade e nada mais. Só gosto das matemáticas e das ciências naturais — disse Kólia, num tom pre­tensioso, olhando a furto para Aliocha; só receava a opinião dele. Mas Aliocha permanecia grave e silencioso. Se tivesse falado então, as coisas ficariam como estavam; mas calava-se e seu silêncio podia ser desde­nhoso, o que irritou completamente Kólia.

— Outra vez, vêm-nos com as línguas clássicas. Loucura e nada mais... O senhor parece não concordar comigo, Karamázov?

— Não — disse Aliocha, retendo um sorriso.

— As línguas clássicas, se quer minha opinião, são uma medida po­licial, eis sua única razão de ser — e pouco a pouco Kólia recomeçou a ofegar. — Instituíram-nas porque são enfadonhas e embrutecem. Co­mo fazer para agravar o aborrecimento e a tolice que reinavam? Ima­ginou-se o estudo das línguas clássicas. Eis minha opinião e espero ja­mais mudá-la. — Corou, ligeiramente.

— É verdade — aprovou em tom convencido Smúrov, que escutara com atenção.

— Ele é o primeiro em latim — notou um dos meninos.

— Sim, papai, ele fala assim, mas é o primeiro da classe em latim — confirmou Iliúcha.

— Pois bem! E com isso? — Kólia achou necessário defender-se, se bem que o elogio lhe fosse bastante agradável. — Cavaco o latim por­que é preciso, porque prometi à mamãe acabar meus estudos e, na mi­nha opinião, quando se empreende uma coisa, deve-se fazê-la como é preciso, mas no meu foro íntimo desprezo profundamente o classicismo e toda essa baixeza... Não está de acordo, Karamázov?

— Por que uma baixeza? — sorriu de novo Aliocha.

— Com licença, todos os clássicos foram traduzidos, portanto não é para estudá-los que se tem necessidade do latim, mas unicamente por medidas policiais e a fim de embotar as faculdades. Não será isso uma baixeza?

— Mas quem lhe ensinou tudo isso? — exclamou Aliocha, afinal surpreso.

— Em primeiro lugar, eu mesmo posso compreendê-lo, sem que mo ensinem, em seguida, saiba que o que acabo de explicar-lhe, a respeito das traduções clássicas, o próprio Professor Kolbásnikov disse-o em pre­sença de toda a terceira classe...

— Eis o doutor! — disse Nínotchka, que se havia mantido calada todo o tempo:

Com efeito, diante do portão parará um carro, pertencente à Senhora Khokhlakova. O capitão, que esperara o médico a manhã inteira, pre­cipitou-se a seu encontro. A mamãe preparou-se, tomando um ar digno. Aliócha aproximou-se do leito, arranjou o travesseiro do doentinho. De sua cadeira Nínotchka o observava com inquietação. Os meninos des­pediram-se rapidamente, alguns prometendo voltar à tardinha. Kólia chamou Carrilhão, que saltou para baixo do leito.

— Eu fico, eu fico! — disse ele precipitadamente a Aliócha. — Es­perarei no vestíbulo e voltarei com Carrilhão, assim que o doutor se retirar.

Mas o médico já vinha entrando, uma personagem importante, de peliça, com grandes suíças e queixo rapado. Transposta a soleira, pa­rou de repente, como que desconcertado. Acreditava ter-se enganado: — "Onde estou?", murmurou, sem tirar a peliça e conservando seu boné de pele. Toda aquela gente, a pobreza do quarto, a roupa branca pen­durada numa corda perturbavam-no. O capitão inclinou-se profunda­mente...

— É mesmo aqui — murmurou, obsequioso —, é a mim que o se­nhor procura...

— Snie-gui-riov? — pronunciou gravemente o doutor. — O Senhor Snieguiriov é o senhor?

— Sou eu!

— Ah!

O doutor lançou novo olhar de asco pelo quarto e tirou sua peliça. Uma condecoração importante brilhava no seu peito. O capitão tomou conta da peliça, o doutor retirou seu gorro.

— Onde está o paciente? — perguntou ele num tom imperioso.

 

DESENVOLVIMENTO PRECOCE

— Que pensa que dirá o doutor? — disse rapidamente Kólia. — Que fisionomia repelente, não é? Não posso tolerar a medicina!

— Iliúcha morrerá. Creio que é infalível — respondeu Aliócha, mui­to triste.

— Os médicos são charlatães! Sinto-me contente por tê-lo conhecido, Karamázov. Há muito tempo que tinha vontade de conhecê-lo. Somente, é pena que nos encontremos em tão tristes circunstâncias...

Kólia teria bem querido dizer algo de mais caloroso, de mais ex­pansivo, mas sentia-se constrangido. Aliócha notou isso, sorriu, esten­deu-lhe a mão.

— Aprendi, desde muito tempo, a respeitar no senhor uma criatura rara — murmurou de novo Kólia, atrapalhando-se. — Disseram-me que o senhor era místico, que viveu num mosteiro... Mas isto não me de­teve. O contato da realidade curá-lo-á... É o que acontece às naturezas como a sua.

— Quem chama você místico? De que me curarei? — perguntou Aliócha, um tanto surpreso.

— Ora essa! Deus e o resto.

— Como, será que você não acredita em Deus?

— Pelo contrário, nada tenho contra Deus. Decerto, Deus não é senão uma hipótese... mas... reconheço que ele é necessário à ordem... à ordem do mundo e assim por diante... e se ele não exis­tisse, seria preciso inventá-lo — acrescentou Kólia, ficando corado. Ima­ginou de súbito que Aliócha pensasse que ele queria exibir seu saber e portar-se como adulto. "Ora, não quero absolutamente exibir meu sa­ber diante dele", pensou Kólia com indignação. E ficou de repente mui­to contrariado.

— Confesso que todas essas discussões me repugnam — interrom­peu-se. — Pode-se amar a humanidade sem crer em Deus, que pensa o senhor? Voltaire não acreditava em Deus mas amava a humanidade. ("Ainda, ainda!", pensou ele consigo. )

— Voltaire acreditava em Deus, mas fracamente, parece, e amava a humanidade da mesma maneira — respondeu Aliócha, num tom bem natural, como se conversasse com alguém da mesma idade ou mais ve­lho do que ele. Kólia ficou impressionado com essa falta de segurança de Aliócha na sua opinião sobre Voltaire e com o fato de parecer dei­xar que ele, um rapazinho, resolvesse a questão.

— Será que você leu Voltaire? — concluiu Aliócha.

— Não, precisamente... Aliás, li Candide numa tradução russa... uma velha tradução, malfeita, ridícula... ("Ainda, ainda!")

— E compreendeu?

— Oh! sim, tudo... isto é... por que pensa o senhor que não com­preendi? É certo que tem umas passagens salgadas... Sou capaz, cer­tamente, de compreender que é um romance filosófico e escrito para demonstrar uma idéia... — Kólia, decididamente, se atrapalhava. — Sou socialista, Karamázov, socialista incorrigível — declarou ele, de súbito, inconsideradamente.

— Socialista? — Aliócha pôs-se a rir. — Mas quando teve tempo? Não tem senão treze anos, creio?

Kólia sentiu vexame.

— Em primeiro lugar, não tenho treze anos, mas quatorze dentro de quinze dias — disse ele, impetuosamente. — Em seguida, não com­preendo absolutamente o que tem que ver aqui a minha idade. Trata-se de minhas convicções e não de minha idade, não é verdade?

— Quando for mais idoso, verá que influência tem a idade sobre as idéias. Pareceu-me também que isso não partia de você — respondeu Aliócha, sem se comover; mas Kólia, nervoso, interrompeu-o.

— Com licença, o senhor quer a obediência e o misticismo. Conve­nha que o cristianismo, por exemplo, só serviu aos ricos e aos grandes para manter a classe inferior na escravidão, não é verdade?

— Ah! sei onde você leu isso. Trataram de doutriná-lo! — excla­mou Aliócha.

— Permita, por que teria eu lido necessariamente isso? E ninguém me doutrinou. Posso eu mesmo... E se o senhor quer, não sou contra Cristo. Era uma personalidade completamente humana, e se tivesse vi­vido na nossa época ter-se-ia juntado aos revolucionários, talvez tivesse desempenhado um papel de destaque... É mesmo fora de dúvida.

— Mas onde pescou você tudo isso? Com que imbecil andou às voltas? — exclamou Aliócha.

— Não se pode dissimular a verdade. Tenho muitas vezes ocasião de conversar com o Senhor Rakítin, mas... pretende-se que o velho Bie­línski também disse isso.

— Bielínski? Não me lembro. Não o escreveu em parte alguma.

— Se não escreveu, disse-o, assegura-se. Ouvi alguém dizer... aliás, diabos...

— Você leu Bielínski?

— Veja o senhor... não... não o li, na verdade, mas... li o tre­cho a respeito de Tatiana, porque não parte ela com Oniéguin.

— Por que não parte ela com Oniéguin? Será que você... com­preende já isso?

— Com licença, creio que o senhor me toma pelo jovem Smúrov! — Kólia sorriu, irritado. — Aliás, não vá crer que sou um grande re­volucionário. Estou muitas vezes em desacordo com o Senhor Rakítin. Não sou partidário da emancipação das mulheres. Reconheço que a mulher é uma criatura inferior e deve obedecer. "Les femmes tricotent", disse Napoleão — Kólia sorriu —, e, pelo menos nisto, estou de pleno acordo com a opinião desse pseudogrande homem. Acho igualmente que é uma covardia expatriar-se para a América, pior que isso, uma tolice. Por que ir para a América, quando se pode trabalhar entre nós para bem da humanidade? Sobretudo agora, há todo um campo de ativida­de fecunda. Foi o que respondi.

— Como, respondeu? A quem? Será que já lhe propuseram ir para a América?

— Impeliram-me a isso, confesso-o, mas recusei. Isto, bem entendi­do, aqui entre nós, Karamázov, nem uma palavra a ninguém, entendeu? Só ao senhor é que conto. Não tenho vontade nenhuma de cair entre as patas da Terceira Seção e aprender lições na Ponte das Correntes. [2]

Lembra-se? É magnífico! Por que ri? Acha que lhe contei pilhérias? ("E se ele souber que só possuo aquele único número de O Sino** e que nada li além disso?", pensou Kólia, estremecendo. )

— Oh! não, não estou rindo e não penso absolutamente que você me mentiu. Eis por que não o penso: porque é, ai! a pura verdade! Diga-me, leu o Oniéguin, de Púchkin? Você falava de Tatiana...

— Não, ainda não, mas quero lê-lo. Não tenho preconceitos, Kara­mázov. Quero ouvir ambas as partes. Por que essa pergunta?

— Por coisa nenhuma.

— Diga, Karamázov, o senhor me despreza? — cortou Kólia, que se ergueu diante de Aliócha, como para se pôr em posição. — Por fa­vor, fale francamente.

— Eu o desprezo? — Aliócha olhou-o com espanto. — Por que, afi­nal? Deploro somente que uma natureza encantadora como a sua, na aurora da vida, já esteja pervertida por tais absurdos.

— Não se inquiete pela minha natureza — interrompeu Kólia, não sem fatuidade —, mas quanto a suspeitoso, eu o sou. Tola e grossei­ramente suspeitoso. O senhor sorriu ainda há pouco, e pareceu-me...

— Ah! sorri por uma razão bem diversa. Fique sabendo: li recen­temente a opinião de um estrangeiro, um alemão que vivia na Rússia, a respeito da juventude estudantil de hoje: "Se mostrardes a um estu­dante russo", escreveu ele, "uma carta do firmamento, a respeito da qual não tinha ele até então nenhuma idéia, ele vo-la devolverá no dia

Terceira Seção era a polícia secreta, cuja sede ficava perto da Pon­te das Correntes.

Kolokol, em russo. Famosa revista fundada por Herzen, literato russo, contemporâneo de Dostoiévski, e partícipe do movimento re­volucionário da época. Era publicada em Londres e introduzida clan­destinamente na Rússia. seguinte com correções". Conhecimentos nulos e uma presunção sem limites, eis o que queria dizer o alemão a respeito do estudante russo.

— Ah! é totalmente verdadeiro! — disse Kólia, numa explosão de riso. — É a própria verdade! Bravo, alemão! No entanto, aquele ca­beça quadrada não encarou também o lado bom, que- pensa o senhor? A presunção, seja, isto vem da juventude, isto se corrige, se verdadeira­mente deve ser corrigido; em compensação, há o espírito de indepen­dência desde os mais jovens anos, a audácia das idéias e das convicções, em lugar de seu servilismo rastejante diante da autoridade. No entan­to, o alemão disse a verdade! Viva o alemão! Entretanto, é preciso su­focar os alemães. Muito embora sejam fortes nas ciências, é preciso sufocá-los...

— Por que isso? — sorriu Aliócha.

— Ora essa! É pilhéria minha, possivelmente, convenho. Sou por ve­zes um capeta e, quando alguma coisa me agrada, não me contenho e sou capaz de proferir absurdos. A propósito, estamos aqui prosando e aquele doutor não acaba. Aliás, pode dar-se que esteja examinando a mamãe e a Nínotchka, a doente. Sabe duma coisa? Essa Nínotchka me agradou. Quando eu ia saindo, sussurrou-me ela: "Por que não veio antes?", num tom de censura. Creio que ela é muito boa e digna de lástima.

— Sim, sim, você voltará e verá que criatura é ela. Precisa conhe­cer tais criaturas para saber apreciar muitas outras coisas que aprenderá precisamente em companhia delas — observou Aliócha com ardor. — É o melhor meio para você se transformar.

— Oh! quanto lamento e me censuro por não ter vindo antes! — disse Kólia com amargura.

— Sim, é muito de lamentar. Viu a alegria do pobrezinho? E como se consumia ele à sua espera!

— Não me fale disso! Aviva meu pesar. Aliás, bem o mereci. Se não vim, foi por amor-próprio egoísta e por vil despotismo, do qual jamais pude desembaraçar-me, malgrado todos os meus esforços. Vejo-o agora, por muitas coisas sou um miserável, Karamázov!

— Não, você tem uma natureza encantadora, se bem que falsifica­da, e compreendo por que podia exercer tamanha influência sobre aque­le menino nobre duma sensibilidade doentia! — respondeu calorosa­mente Aliócha.

— E é o senhor quem me diz isso? — exclamou Kólia. — Imagine que pensei várias vezes, estando aqui, que o senhor me desprezava. Se soubesse como faço questão de sua opinião!

— Mas pode ser mesmo verdade que seja você tão desconfiado? Nessa idade! Pois bem, imagine que ainda há pouco, ao olhá-lo, quando você contava, pensava justamente que você deveria ser muito descon­fiado.

— Já o pensou? Que golpe de vista tem o senhor, vejam só! Aposto que foi quando falava eu do pato. Imaginei então que o senhor me des­prezava profundamente, porque eu me esforçava por bancar o malicio­so. Detestei-o de repente por essa razão e comecei a perorar. Em se­guida, pareceu-me (já aqui), quando eu disse: "Se Deus não existisse, era preciso inventá-lo", que me apressara por demais em exibir minha instrução, tanto mais quanto lera essa frase em alguma parte. Mas ju­ro-lhe que não era por vaidade, mas à toa, ignoro por que, na minha alegria, verdadeiramente creio que foi na minha alegria... muito em­bora seja vergonhoso aborrecer as pessoas pelo fato de se estar alegre. Sei disso. Em compensação, estou persuadido agora de que o senhor não me despreza e que sonhei tudo isso. Oh! Karamázov, sou profundamen­te infeliz. Imagino por vezes, Deus sabe por que, que toda gente zom­ba de mim e estou pronto então a subverter a ordem estabelecida.

— E atormenta o seu meio — sorriu Aliócha.

— É verdade, sobretudo minha mãe. Karamázov, diga, mostro-me agora muito ridículo?

— Não pense nisso, não pense absolutamente! — exclamou Aliócha. — E que é o ridículo? Sabe-se quantas vezes um homem é ou parece ridículo? Além do mais, atualmente, quase todas as pessoas que têm capacidade temem extremamente o ridículo, o que as torna infelizes. Admiro-me somente de que experimente você isso a tal ponto, se bem que o observe desde muito tempo e não unicamente em sua casa. Atual­mente, adolescentes estão atingidos por esse mal. É quase uma loucura. O diabo encarnou-se no amor-próprio, para apoderar-se da geração atual, sim, o diabo — insistiu Aliócha sem sorrir, como pensava Kólia, que o fixava. — Você é como todos — concluiu ele —, isto é, como mui­tos, somente não se deve ser como todos.

— Ainda mesmo que todos sejam assim?

— Sim, ainda mesmo que todos sejam assim. Apenas você não será como eles. Na realidade, você não é como todos; não corou em con­fessar um defeito e até mesmo um ridículo. Ora, atualmente quem é capaz disso? Ninguém, não se sente mesmo mais a necessidade de con­denar-se a si mesmo. Não seja como todos, ainda que ficasse sozinho.

— Muito bem! Não me enganei a seu respeito. O senhor é capaz de consolar. Oh! quanto me senti atraído para o senhor, Karamázov! Desde muito tempo aspirava por este encontro. Dar-se-ia que também pensasse assim a meu respeito? Ainda há pouco o disse.

— Sim, ouvi falar de você e pensava também em você... e se em parte é o amor-próprio que o fez agora perguntar isso, isso nada quer dizer.

— Sabe, Karamázov, que nossa explicação se assemelha a uma de­claração de amor? — declarou Kólia com uma voz fraca e como que envergonhada. — Não é ridículo?

— Absolutamente, e mesmo se fosse ridículo não quereria dizer na­da, porque está bem — afirmou Aliócha, com um claro sorriso.

— Convenha, Karamázov, que o senhor mesmo, agora, tem um pou­co de vergonha também... Vejo-o nos seus olhos — e Kólia sorriu com um ar astuto, mas quase feliz.

— Que há de vergonhoso?

— Por que corou?

— Mas foi você que me fez corar! — disse, rindo, Aliócha, que fi­cara, com efeito, todo vermelho. — Pois bem, sim, tenho um pouco de vergonha, Deus sabe por que, ignoro-o... — murmurou ele, quase constrangido.

— Oh! como gosto do senhor e como o aprecio neste momento, jus­tamente, porque o senhor também tem vergonha comigo! Porque é como eu! — exclamou Kólia, entusiasmado. Tinha as faces vermelhas, seus olhos brilhavam.

— Escute, Kólia, você será muito infeliz na vida — disse de repen­te Aliócha.

— Sei, sei. Como o senhor adivinha tudo! — confirmou logo Kólia.

— Mas, no conjunto, abençoará, no entanto, a vida.

— É isto! Viva! O senhor é um profeta! Nós nos entenderemos, Ka­ramázov. Sabe? O que mais me encanta é que o senhor me tratava completamente como a um igual. Ora, nós não somos iguais, o senhor é superior! Mas nos entenderemos. Dizia a mim mesmo há um mês: "Ou seremos imediatamente amigos para sempre, ou nos separaremos como inimigos até a morte!"

— E, ao falar assim, você já gostava de mim, decerto! — E Aliócha soltou uma risada alegre.

— Eu gostava enormemente do senhor, gostava do senhor e pensava no senhor! E como pode o senhor tudo adivinhar? Ora, eis o doutor. Meu Deus, diz alguma coisa, olhe que cara ele tem!

 

ILIÚCHA

O doutor saía da isbá metido na sua peliça e com seu gorro na cabe­ça. Tinha o ar quase irritado e cheio de asco, como se receasse sujar-se. Percorreu com os olhos o vestíbulo, lançando um olhar severo a Aliócha e a Kólia. Aliócha fez sinal ao cocheiro e o carro que havia trazido o doutor avançou para a porta. O capitão saiu precipitadamente atrás dele e, inclinado, desculpando-se quase, deteve-o para uma derra­deira palavra. O rosto do pobre homem estava abatido, seu olhar apa­vorado.

— Excelência, excelência... será possível? — começou ele, sem ter­minar, limitando-se a juntar as mãos em seu desespero, se bem que seu olhar implorasse ainda o médico, como se verdadeiramente uma pala­vra deste pudesse mudar a sorte do pobre menino.

— Que fazer? Não sou Deus — respondeu o doutor num tom dis­plicente, se bem que grave por hábito.

— Doutor... Vossa Excelência... e será em breve, em breve?

— Pre-pa-rem-se para tudo — respondeu o doutor, martelando as palavras e, baixando os olhos, dispunha-se a transpor a soleira para su­bir no carro.

— Excelência, em nome de Cristo! — O capitão apavorado deteve-o uma segunda vez. — Excelência... será que na verdade não há nada, nada que possa salvá-lo, agora?

— Isto não de-pen-de de mim, agora — declarou o médico, impa­ciente —, e, no entanto, hum! — parou de repente — sim, por exem­plo, o senhor poderia... en-viar... seu paciente... imediatamente e sem tardar (o doutor pronunciou estas derradeiras palavras quase com cólera, a ponto de fazer o capitão estremecer) a Si-ra-cu-sa, então... em conseqüência das novas condições cli-ma-té-ri-cas fa-vo-rá-veis... poderia, talvez, pro-du-zir-se...

— A Siracusa? — exclamou o capitão, como se não compreendesse ainda.

— Siracusa é na Sicília — explicou Kólia, em voz alta. O doutor olhou para ele.

— Na Sicília? Excelência — disse o capitão transtornado —, o se­nhor viu! — Juntou as mãos, mostrando o interior de sua casa. — E a mamãe, a família?

— N-ão, sua família não iria à Sicília, mas ao Cáucaso, desde a pri­mavera... e depois que sua esposa tivesse tomado as águas no Cáu­caso em vista de seus reumatismos... seria preciso enviá-la imediata­mente a Paris, à clínica do a-li-e-nista Le-pel-le-tier. Poderia dar-lhe uma apresentação; e então... poderia talvez produzir-se...

— Doutor, doutor! O senhor está vendo! — E o capitão estendeu de novo os braços, mostrando, no seu desespero, as traves nuas que formavam a parede do vestíbulo.

— Mas isto não é de minha alçada — sorriu o médico. — Disse-lhe simplesmente o que poderia responder a ciência à sua pergunta a res­peito dos derradeiros meios, o resto... a meu pesar...

— Não tenha medo, curandeiro, meu cachorro não o morderá — disse bem alto Kólia, notando que o doutor olhava com alguma inquie­tação para Carrilhão, que se mantinha na soleira. Um tom colérico res­soava em sua voz. Como o declarou mais tarde, foi de propósito e para insultar o doutor que o chamara de curandeiro.

— Que é? — disse o doutor, fitando Kólia com surpresa. — Quem é? — e dirigiu-se a Aliócha, como para lhe pedir contas.

— É o dono de Carrilhão, curandeiro, não se inquiete a respeito de minha pessoa.

— Carrilhão? — repetiu o doutor, que não tinha compreendido.

— Adeus, curandeiro, tornaremos a ver-nos em Siracusa.

— Quem é, quem é ele? — perguntou o doutor, exasperado.

— É um colegial, doutor, um- brincalhão, não lhe dê atenção — declarou, rapidamente, Aliócha, franzindo o cenho. — Kólia, cale-se! Não dê atenção — repetiu ele, com alguma impaciência.

— É preciso dar-lhe uma surra, dar-lhe uma surra — disse o dou­tor furioso, batendo com os pés.

— Sabe, curandeiro, que Carrilhão poderia muito bem morder? — proferiu Kólia, com voz trêmula e muito pálido, de olhos chamejantes. — Aqui, Carrilhão!

— Kólia, se você disser ainda uma palavra, romperei com você para sempre! — gritou impetuosamente Aliócha.

— Curandeiro, só há uma criatura no mundo que possa dar ordens a Nikolai Krasótkin, ei-la (designou Aliócha). Submeto-me, adeus.

Abriu a porta e entrou no quarto. Carrilhão lançou-se atrás dele. O doutor ficou cinco segundos como que petrificado, olhou Aliócha e cuspiu, gritando: "É, é, não sei o quê!" O capitão precipitou-se para ajudá-lo. Aliócha entrou por sua vez. Kólia já estava à cabeceira de Iliúcha. O doente segurava-lhe a mão e chamava seu pai. O capitão voltou logo.

— Papai, papai, venha cá... nós... — murmurou Iliúcha superexci­tado, mas, não tendo força para continuar, estendeu para a frente seus braços emagrecidos, passou-os em torno de Kólia e de seu pai, que reu­niu no mesmo abraço, apertando-se contra eles. O capitão foi sacudido por soluços silenciosos e Kólia estava a ponto de chorar.

— Papai, papai! Quanto dó o senhor me causa, papai! — gemeu Iliúcha.

— Iliúcha... meu querido... o doutor disse... que tu ficarás cura­do... seremos felizes...

— Ah! papai! Sei bem o que o novo doutor lhe disse a meu res­peito... Vi! — exclamou Iliúcha.

Apertou-os de novo com todas as suas forças contra si, ocultando seu rosto no ombro de seu pai.

— Papai! não chore... quando eu morrer, tome um bom menino, outro... escolha o melhor dentre eles, chame-o de Iliúcha e ame-o em lugar de mim...

— Cala-te, meu velho, ficarás bom! — gritou Krasótkin, como que zangado.

— Quanto a mim, papai, não se esqueça nunca de mim — continuou Iliúcha. — Venha a meu túmulo... o senhor sabe, papai, enterre-me junto de nossa grande pedra, lá aonde nós íamos passear, e vá lá com Krasótkin, de tardinha. E Carrilhão... E eu os esperarei... Papai, papai!

Sua voz estrangulou-se, os três mantiveram-se enlaçados, sem falar. Nínotchka chorava mansamente em sua cadeira, e de repente, vendo todos a chorar, a mamãe desatou em lágrimas.

— Iliúcha! Iliúcha! — exclamava ela. Krasótkin desvencilhou-se dos braços de Iliúcha.

— Adeus, meu velho, minha mãe me espera para almoçar — disse ele rapidamente. — Que pena não a haver eu prevenido! Ficará muito inquieta. Mas depois do almoço voltarei para teu lado, até a noite, e terei muita coisa para contar-te. E trarei Carrilhão, agora vou levá-lo, porque ele se poria a uivar na minha ausência e te incomodaria. Até logo!

Correu para o vestíbulo. Não queria chorar, mas não pôde impedir-se disso. Foi nesse estado que o encontrou Aliócha.

— Kólia, deve manter absolutamente sua palavra e voltar, senão ex­perimentará ele violento pesar — disse, com insistência.

— Absolutamente! Oh! quanto me censuro por não ter vindo mais cedo! — murmurou Kólia, chorando francamente.

Naquele momento o capitão surgiu e tornou a fechar logo a porta atrás de si. Tinha o ar desvairado, seus lábios tremiam. Parou diante dos dois jovens e ergueu os braços para o ar.

— Não quero um bom menino! Não quero outro! — murmurou ele, selvagem, rangindo os dentes, "se me esquecer de ti, Jerusalém, fique pegada minha língua... "

Não terminou, como se lhe faltasse a voz, e deixou-se cair diante de um banco de -madeira. Com a cabeça apertada entre os punhos, pôs-se a soluçar, gemendo, mas baixinho, para que seus gemidos não fossem ouvidos na isbá. Kólia precipitou-se para a rua.

— Adeus, Karamázov, virá também? — perguntou com um ar brus­co, zangado, a Aliócha.

— Esta tarde, sem falta.

— Que disse ele a respeito de Jerusalém?... Que era aquilo?

— Tirado da Bíblia: "Se me esquecer de ti, Jerusalém", [3] isto é, se eu esquecer o que tenho de mais precioso, se o trocar por outro amor, então que seja fulminado...

— Compreendo, basta! Venha também! Aqui, Carrilhão! — gritou ele, com raiva, ao cachorro, e afastou-se a grandes passadas.

 

EM CASA DE GRÚCHENHKA

Aliócha dirigia-se à praça da igreja, à Casa Morózova, onde residia Grúchenhka. Naquela mesma manhã, havia-lhe ela enviado Fiénia, ro­gando-lhe insistentemente que fosse à sua casa. Indagando dela, soube Aliócha que sua patroa se achava desde a véspera numa grande agitação. Durante os dois meses que se haviam seguido à prisão de seu irmão, fora ele muitas vezes à Casa Morózova, espontaneamente ou da parte de Mítia. Três dias após, caíra Grúchenhka gravemente doente; mantivera-se de cama quase cinco semanas, ficando oito dias sem conhecimento. Mudara muito e emagrecera, com a tez amarele­cida, embora pudesse sair havia já umas duas semanas. Mas aos olhos de Aliócha o rosto dela tornara-se mais sedutor e gostava ele, ao se aproximar dela, de encontrar-lhe o olhar. Seus olhos tinham tomado algo de resoluto e de reflexivo; uma decisão calma, mas inflexível, ma­nifestava-se nela. Entre os supercílios cavara-se uma pequena ruga vertical que dava a seu gracioso rosto uma expressão concentrada, quase severa ao primeiro contato. Nenhum traço da frivolidade de outrora. Admirava-se Aliócha de que Grúchenhka tivesse conservado sua alegria de outrora, malgrado a desgraça que a ferira — noiva de um homem detido quase logo depois por um crime horrível —, apesar da doença e da ameaça de uma condenação quase certa. Nos seus olhos outrora altivos uma espécie de doçura brilhava agora, mas mostravam por vezes um clarão de maldade, quando a retomava uma antiga inquietação que, longe de se acalmar, aumentava em seu cora­ção. Era a respeito de Catarina Ivânonva, de quem falava mesmo em seu delírio, durante sua doença. Aliócha compreendia que ela estava com ciúme por causa de Mítia, muito embora Catarina não o tivesse visitado uma vez sequer na prisão, como teria podido fazê-lo. Tudo isso embaraçava Aliócha, porque era somente nele que Grúchenhka» confiava, pedindo sem cessar seus conselhos; por vezes não sabia o que dizer-lhe.

Chegou à casa dela, preocupado. Voltara ela da prisão havia meia hora e, apenas pela vivacidade com que se levantou à entrada dele, con­cluiu que o esperava com impaciência. Em cima da mesa, havia um baralho, sobre o divã de couro arranjado como cama estava semi-esten­dido Maksímov, doente e enfraquecido, mas sorridente. Aquele velho, sem pouso, que voltara dois meses antes de Mókroie com Grúchenhka, não a deixara mais desde então. Após o trajeto sob a chuva e na lama, todo encharcado e apavorado, sentara-se no divã, olhando-a em silên­cio com um sorriso que implorava. Grúchenhka, esmagada de pesar e já presa da febre, esqueceu-o quase a princípio, absorvida por outros cuidados; de repente, olhou-o fixamente; ele mostrou um sorriso lasti­moso, embaraçado. Ela chamou Fiénia e ordenou que lhe desse de comer. Durante o dia inteiro ficou ele quase imóvel no seu lugar. Quando escureceu e fecharam os postigos, Fiénia perguntou à sua patroa:

— Então, senhora, esse senhor vai ficar para dormir?

— Sim, prepara-lhe um leito no divã — respondeu Grúchenhka. In­terrogando-o, soube que não sabia ele para onde ir e que "o Senhor Kolgánov, meu benfeitor, declarou-me francamente que não me rece­beria mais e me deu 5 rublos". "Pois bem, tanto pior, fica", decidiu Grúchenhka no seu pesar, sorrindo-lhe com compaixão. O velho ficou comovido com aquele sorriso, seus lábios tremeram de emoção. Foi assim que ficou em casa dela na qualidade de parasita errante. Mesmo durante a doença de Grúchenhka, não deixou a casa. Fiénia e a velha cozinheira, sua avó, não o expulsaram, mas continuaram a dar-lhe de comer e a fazer-lhe a cama em cima do divã. Posteriormente, Grú­chenhka se habituou mesmo com ele e voltando duma visita a Mítia (a quem visitava ainda convalescente) punha-se a conversar futilidades com Maksímuchka, para esquecer seu pesar. Verificou-se que o velho possuía certo talento de contador, de sorte que se lhe tornou mesmo necessário. Fora Aliócha, que não demorava, aliás, muito tempo, Grú­chenhka não recebia quase ninguém. Quanto ao velho comerciante Sam­sónov, estava então gravemente doente, "ia-se", como diziam na cidade; morreu, com efeito, uma semana depois do julgamento de Mítia. Três semanas antes de sua morte, sentindo chegar o fim, chamou à sua pre­sença seus filhos com suas famílias e ordenou-lhes que não mais o deixassem. A partir daquele momento, deu ordens expressas aos cria­dos para não deixarem entrar Grúchenhka e, se ela se apresentasse, dizer-lhe que "ele lhe desejava que vivesse muito tempo feliz e que o esquecesse completamente". Grúchenhka mandava, no entanto, quase todos os dias saber notícias dele.

— Eis-te afinal! — exclamou ela, largando as cartas e acolhendo alegremente Aliócha. — Maksímuchka me amedrontava dizendo que não virias mais. Ah! quanta necessidade tenho de ti! Senta-te. Que­res café?

— Com prazer — disse Aliócha, sentando-se. — Estou com muita fome.

— Fiénia, Fiénia, café! Está pronto desde muito tempo... Traze também uns bolinhos quentes! Sabes, Aliócha, tive uma complicação hoje a respeito desses bolinhos. Levei-os à prisão e, acredita, ele os recusou. Chegou mesmo a pisar um. "Vou deixá-los com o guarda", disse-lhe eu. "Se não os queres é que tua maldade te alimenta!" E fui saindo. Brigamos ainda uma vez. É todas as vezes a mesma coisa.

Grúchenhka falava com agitação. Maksímov sorriu timidamente e baixou os olhos.

— A propósito de que, hoje? — perguntou Aliócha.

— Não esperava isso absolutamente. Imagina que está com ciúme de meu "antigo". "Por que lhe dás dinheiro?", diz-me ele. "Puseste-te então a sustentá-lo?" Está com ciúme, da manhã à noite. Uma vez estava com ciúme até mesmo de Kuzmá, na última semana.

— Mas ele conhecia "o antigo"?

— Como não? Sabia de tudo desde o começo, hoje me injuriou. Te­nho vergonha de repetir suas palavras. O imbecil! Rakitka chegou, quando eu saía. É talvez ele quem o excita, hein? Que pensas? — acrescentou ela, com ar distraído.

— Ele te ama muito e agora está nervoso.

— Como não estar nervoso? Julgam-no amanhã. Tinha ido justa­mente para reconfortá-lo, porque tenho medo, Aliócha, de imaginar o que acontecerá amanhã! Tu dizes que ele está nervoso? E eu então? E ele fala do polonês! Que imbecil! Mas creio que ele não está com ciúme de Maksímuchka.

— Minha mulher também era bastante ciumenta — observou Mak­símov.

— De ti!... — disse Grúchenhka, rindo, malgrado seu. — Quem poderia mesmo fazê-la ficar ciumenta?

— As criadas de quarto.

— Cala-te, Maksímuchka, não estou de humor para risadas, a cólera mesmo me domina. Não olhes os bolinhos, não terás deles, far-te-iam mal. É preciso cuidar também desse; dir-se-ia que minha casa é um asilo. — Sorriu.

— Não mereço seus benefícios, sou insignificante — disse Maksí­mov, num tom queixoso. — Prodigalize antes sua bondade com os que são mais úteis do que eu.

— Ora, Maksímuchka, cada qual é útil, como saber qual o mais, qual o menos? Se somente aquele polonês não existisse! Aliócha, ele também imaginou cair doente, hoje. Fui vê-lo igualmente. Vou enviar-lhe de propósito os bolinhos. Não o fiz, mas já que Mítia me acusa disso, enviá-los-ei agora de propósito! Ah! eis Fiénia com uma carta. É isto, são os poloneses pedindo ainda dinheiro!

Pan Mussialóvitch enviava-lhe, com efeito, uma carta bastante longa e empolada, como era seu hábito, em que lhe rogava que lhe em­prestasse 3 rublos. Era acompanhada por um recibo com a promessa de pagar dentro de três meses; a assinatura de pan Vrubliévski figurava também. Grúchenhka já havia recebido de seu "antigo" muitas cartas semelhantes com reconhecimentos de dívidas. Isto datava de sua con­valescença, duas semanas antes. Sabia que os dois panówie tinham, contudo, vindo saber notícias dela durante sua doença. A primeira carta, escrita numa folha de grande formato, lacrada com um sinête de família, era longa, bastante obscura e empolada, de modo que Grúchenhka só leu a metade e pô-la de parte sem ter nada compreen­dido dela. Zombava bem de cartas naquela ocasião. Essa primeira carta foi seguida, no outro dia, de uma segunda, em que pan Mussialóvitch pedia-lhe que lhe emprestasse 2 000 rublos a curto prazo. Grúchenhka deixou-a igualmente sem resposta. Veio em seguida uma série de missivas, igualmente pretensiosas, em que a soma pedida diminuía gra­dualmente, caindo para 100 rublos, para 25, para 10, e por fim Grú­chenhka recebeu uma carta em que os panówie mendigavam 1 rublo somente, com um recibo assinado pelos dois. Tomada de súbita pie­dade, foi ela mesma, ao crepúsculo, à casa do pan. Encontrou os dois poloneses numa miséria negra, famintos, sem fumo, sem cigarros, de­vendo à sua locadora. Os 200 rublos ganhos de Mítia tinham desapa­recido depressa. Grúchenhka ficou surpresa, contudo, por ser acolhida pretensiosamente pelos panówie, com uma etiqueta majestosa e falas enfáticas. Só fez rir daquilo, deu 10 rublos ao seu "antigo", contou rindo a coisa a Mítia, que não demonstrou nenhum ciúme. Mas depois os panówie agarravam-se a Grúchenhka, bombardeavam-na todos os dias com pedidos de dinheiro, e todas as vezes enviava ela alguma coisa. Eis que hoje Mítia se mostrara ferozmente ciumento.

— Como uma tola, passei em casa dele, quando fui ver Mítia, porque ele também estava doente, o meu antigo pan — continuou Grúchenhka com volubilidade. — Conto isso a Mítia, rindo: "Imagina", digo-lhe, "que meu polonês pôs-se a cantar-me as canções de outrora, acompa­nhando-se numa guitarra. Pensa enternecer-me"... Então Mítia co­meçou a injuriar-me... De modo que vou enviar bolinhos aos panówie. Fiénia, dá 3 rublos à menina que eles mandaram e uma dúzia de bolinhos enrolados num papel. Tu, Aliócha, contarás isto a Mítia.

— Nunca! — disse Aliócha, sorrindo.

— Ora! Pensas que ele se atormenta? É de propósito que se faz de ciumento. No fundo, isto pouco lhe importa — declarou Grúchenhka, com amargura.

— Como, de propósito?

— Como és ingênuo, Aliócha! Não compreendes nada, malgrado toda a tua inteligência. O que me ofende não é o ciúme dele, o contrário é que me teria ofendido. Sou assim. Admito o ciúme, sendo eu mesma ciumenta. Mas o que me ofende é que ele não me ama absolutamente e tem ciúme agora de mim de propósito. Serei uma cega? Põe-se a falar-me de Cátia, de como mandou ela vir de Mos­cou um médico afamado e o primeiro advogado de Petersburgo para defendê-lo. Ama-a, pois que lhe faz o elogio em minha presença. É culpado para comigo, mas arma brigas contra mim e é o primeiro a acusar-me e a lançar as culpas sobre mim: "Conheceste o polonês antes de mim; é-me portanto permitido ter agora relações com Cátia". Eis como estão as coisas. Quer lançar sobre mim toda a culpa. É de propósito que provoca essas brigas comigo, digo-te, somente eu...

Grúchenhka não terminou, cobriu os olhos com seu lenço e desatou em lágrimas.

— Ele não ama Catarina Ivânovna — disse, com firmeza, Aliócha.

— Saberei dentro em pouco se ele a ama ou não — disse ela, com uma voz ameaçadora. Seu rosto alterou-se. Aliócha teve pena ao vê-la tomar de súbito um ar sombrio e irritado.

— Basta de tolices! Não foi para isso que te mandei chamar. Meu caro Aliócha, que se passará amanhã? Eis o que me tortura. Sou a única. Vejo que os outros não pensam nisso, ninguém se interessa. Tu, pelo menos, pensas nisso? É amanhã o julgamento! Dize-me, como vão julgá-lo? Mas foi o lacaio quem matou, o lacaio! Meu Deus! Será pos­sível que o condenem em lugar dele e que ninguém tome sua defesa? Não incomodaram o lacaio, não é mesmo?

— Interrogaram-no rigorosamente e todos concluíram que não foi ele. Agora está gravemente doente, desde aquela crise. É uma doen­ça séria.

— Senhor! Devias ir à casa daquele advogado e contar-lhe o caso em particular. Parece que mandaram buscá-lo em Petersburgo por 3 000 rublos.

— Sim, fomos nós que fornecemos a quantia, Ivã, Catarina Ivâ­novna e eu. Ela, sozinha, é que mandou buscar o médico, por 2 000 rublos. O advogado Fietiukóvitch teria exigido mais; este caso, porém, teve repercussão na Rússia inteira, todos os jornais falam dele, de modo que Fietiukóvitch quis mesmo encarregar-se dele sobretudo por causa da glória, tendo em vista a celebridade do processo. Estive com ele ontem.

— Então, falaste-lhe?

— Escutou sem dizer nada. Sua opinião já está formada, afirmou-me. No entanto, prometeu levar em consideração minhas palavras.

— Como, em consideração? Ah! os velhacos! Eles o perderão. E o doutor, porque o fizeram vir?

— Como perito. Quer-se estabelecer que Mítia é louco e que matou num acesso de demência — Aliócha sorriu mansamente —, mas meu irmão não consentirá nisso.

— Mas seria a verdade, se ele tivesse matado! Estava louco, então, completamente louco, e a culpa foi minha, minha, miserável! Mas não foi ele. E todo mundo pretende que foi ele o assassino. Até mesmo Fiénia depôs de maneira que parece ele culpado. E na venda, e aquele funcionário, e no botequim, onde o tinham ouvido antes, todos o acusam.

— Sim, os depoimentos multiplicaram-se — notou Aliócha, com ar sombrio.

— E Gregório Vassílievitch persiste em dizer que a porta estava aberta, pretende tê-la visto, e nada o fará mudar de opinião; fui vê-lo, falei-lhe. Pois ainda por cima injuriou-me.

— Sim, é talvez o depoimento mais grave contra meu irmão — disse Aliócha.

— Quanto à loucura de Mítia, ela existe agora mesmo — começou Grúchenhka, com ar preocupado, misterioso. — Sabes, Aliócha, há muito tempo que queria dizer-te: vou vê-lo todos os dias e encho-me de espanto. Dize-me: que pensas? De que fala ele sempre, atualmente? Não comprendo nada do que ele diz, pensava que era algo de pro­fundo, acima do meu alcance, tola que sou, mas eis que ele me fala dum nenê: "Por que é ele pobre, o nenê? Por causa dele é que vou agora para a Sibéria, não matei, mas é preciso que eu vá para a Si­béria!" De que se trata? Quem é este nenê? Não compreendi nada disso. Pus-me simplesmente a chorar. Ele falava tão bem, ambos nós chorávamos, beijou-me e fez sobre mim o sinal-da-cruz. Que é que isso significa, Aliócha, quem é esse nenê?

— Rakítin tomou o hábito de visitá-lo — sorriu Aliócha. — Aliás... isto não parte de Rakítin. Não o vi ontem, irei vê-lo hoje.

— Não, não é Rakitka, é seu irmão Ivã Fiódorovitch quem o ator­menta, quem vai vê-lo... — Grúchenhka interrompeu-se bruscamente. Aliócha olhou-a, estupefato.

— Como? Ivã vai vê-lo? Mítia mesmo me disse que ele nunca fora lá.

— Pois bem! Pois bem! Eis como sou! Tagarelei! — exclamou Grúchenhka, rubra de confusão. — Enfim, Aliócha, não fales, já que comecei, direi toda a verdade. Ivã foi lá duas vezes vê-lo: a primeira, logo que chegou de Moscou; a segunda, há uma semana. Proibiu Mítia de falar disso. Visitava-o às ocultas.

Aliócha permanecia mergulhado em suas reflexões. Aquela notícia impressionara-o fortemente.

— Ivã não me falou do caso de Mítia. Em geral, conversou pouco comigo; quando eu ia vê-lo, parecia sempre descontente, de modo que há já três semanas que não vou à casa dele. Hum... Se ele esteve lá há oito dias... produziu-se, com efeito, uma mudança em Mítia há uma semana...

— Sim, uma mudança — disse vivamente Grúchenhka. — Eles têm um segredo, o próprio Mítia me falou disso, e um segredo que o atormenta. Antes mostrava-se alegre, e se mostra ainda agora, so­mente, vês tu, quando começa a mover a cabeça, a andar de lá para cá, a puxar os cabelos das têmporas, sei que está agitado... tenho certeza!... Aliás, ainda hoje estava alegre.

— Tu disseste: nervoso.

— Uma e outra coisa. Fica nervoso por um momento, depois alegre, depois, de repente, nervoso de novo. Na verdade, Aliócha, ele me surpreende; uma tal sorte em perspectiva e acontéce-lhe desatar em gargalhadas por bagatelas; dir-se-ia uma criança.

— É verdade que ele te proibiu de me falares a respeito de Ivã?

— Sim, és tu sobretudo que Mítia teme. Porque há um segredo, ele mesmo mo disse... Aliócha, meu querido, vai pois, trata de saber qual é esse segredo e vem dizer-mo, que eu, desgraçada, conheça enfim minha sorte maldita! Foi por isso que te mandei chamar hoje.

— Pensas que isso diz respeito a ti? Mas então ele não te teria falado!

— Não sei. Talvez não ouse dizer-mo. Está prevenido. O fato é que tem um segredo.

— Mas tu mesma, que pensas disso?

— Penso que tudo está acabado para mim. São três ligados contra mim, Cátia faz parte disso. É dela que provém tudo. Mítia me previne por alusão. Pensa em abandonar-me, eis todo o segredo. Imaginaram isto todos três, Mítia, Cátia e Ivã Fiódorovitch. Ele mo disse, há uma semana, que Ivã está apaixonado por Cátia, por isso vai tanto à casa dela. Aliócha, queria perguntar-te: é verdade ou não? Fala-me em consciência.

— Não mentirei. Ivã não ama Catarina Ivânovna.

— Pois bem! eu também pensei isso então! Ele mente descarada­mente. E faz-se agora ciumento para poder acusar-me em seguida. Mas é um imbecil, não sabe dissimular, é demasiado franco... Pagar-mo-á! "Tu acreditas que eu matei!" Eis o que ele ousa censurar-me! Que Deus lhe perdoe! Espera, essa Cátia terá o que ver comigo no tribunal! Falarei... Direi tudo!

Pôs-se a chorar.

— Eis o que posso afirmar-te, Grúchenhka — disse Aliócha, levan­tando-se: — Em primeiro lugar, é que ele te ama, ama-te mais do que a tudo no mundo, e a ti somente, acredita-me. Tenho certeza disto. Em seguida, confesso-te que não irei arrancar seu segredo, mas se ele mo disser, preveni-lo-ei de que te prometi contar-to. Neste caso, voltarei para dizer-to hoje. Somente... parece-me que Catarina Ivânovna nada tem a ver com isso, esse segredo deve referir-se a outra coisa. É certamente isso. Por agora, adeus!

Aliócha apertou-lhe a mão. Grúchenhka continuava chorando. Via ele bem que não acreditava ela em suas consolações, mas aquela efusão havia-a aliviado. Causava-lhe pena deixá-la naquele estado, mas estava com pressa. Tinha ainda muito que fazer.

 

O PÉ DOENTE

Queria em primeiro lugar ir à casa da Senhora Khokhlakova. Apres­sava-se para acabar o mais depressa possível, para não chegar dema­siado tarde ao encontro com Mítia. Havia três semanas que a Senhora Khokhlakova estava doente; tinha o pé inflamado e, muito embora não estivesse de cama, passava os dias semi-estendida sobre um divã, na sua alcova, em galante traje íntimo, mas decente. Aliócha observara uma vez, sorrindo inocentemente, que a Senhora Khokhlakova torna­va-se faceira, malgrado sua doença; enfeitava-se de borlas, fitas, cami­setas. Durante os dois últimos meses, o jovem Pierkhótin pusera-se a frequentar-lhe a casa. Havia quatro dias que Aliócha ali não ia e, assim que entrou, dirigiu-se aos aposentos de Lisa, que lhe mandara dizer na véspera que fosse lá imediatamente vê-la para um negócio muito importante, o que por certas razões o interessava. Mas enquanto a criada de quarto ia anunciá-lo, a Senhora Khokhlakova, informada de sua chegada, chamou-o só por um minuto. Aliócha achou que era melhor satisfazer em primeiro lugar a mamãe, senão ela o mandaria chamar a todo instante. Estava estendida sobre o divã, vestida como para uma festa, e parecia bastante agitada. Acolheu Aliócha com gritos de entusiasmo.

— Há um século que não o vejo! Uma semana inteira, misericórdia! Ah! você cá esteve há quatro dias, na quarta-feira passada. Ia aos aposentos de Lisa, estou certa de que queria andar na ponta dos pés, para que eu não o ouvisse. Meu caro Alieksiéi Fiódorovitch, se você soubesse quanto ela me inquieta! Isto é o principal, mas falaremos a respeito depois. Caro Alieksiéi Fiódorovitch, confio-lhe inteiramente a minha Lisa. Após a morte do stáriets Zósima — paz à sua alma! (ela se benzeu) —, depois dele, considero você um asceta, se bem que lhe assente muito elegantemente seu novo traje. Onde encontrou você aqui um tal alfaiate? Mas não, afinal, isto não tem importância. Perdoe-me chamá-lo por vezes Aliócha, sou uma velha, tudo me é permitido — sorriu faceiramente —, mas isto também virá depois. Sobretudo, não devo esquecer o principal. Rogo-lhe, se divãgar, cha­me-me a atenção. Depois que Lisa retirou sua promessa — sua pro­messa infantil, Alieksiéi Fiódorovitch — de casar com você, deve ter bem compreendido que não era senão o capricho de uma menina doen­te, que ficou muito tempo na sua poltrona. Deus seja louvado, agora ela já anda. Esse novo médico que Cátia mandou buscar em Moscou para seu infeliz irmão, que amanhã... Que acontecerá amanhã? Morro só de pensar nisso! Sobretudo de curiosidade... Em suma, o tal médico veio ontem e examinou Lisa... Paguei-lhe 50 rublos pela visita. Mas não se trata disto. Está vendo, atrapalho-me. Apresso-me sem saber por quê. Não sei mais onde estou, tudo é para mim como uma meada enredada. Tenho medo de pô-lo em fuga, aborrecendo-o. Só tenho visto você. Ah! meu Deus! Nem pensei nisso, em primeiro lugar, café, Iúlia, Glafira, café!

Aliócha aparessou-se em agradecer, dizendo que acabara de tomar café.

— Em casa de quem?

— Em casa de Agrafiena Alieksándrovna.

— Em casa daquela mulher?! Ah! é ela a causa de tudo, aliás, não sei, dizem que ela procede agora irreprochàvelmente, é um pouco tarde. Teria valido mais antes, quando era preciso, de que serve isso agora? Cale-se, Alieksiéi Fiódorovitch, porque tenho tanto que dizer que não direi nada absolutamente, creio. Esse horrível processo... irei de qual­quer forma, preparo-me para isso, levar-me-ão numa cadeira, posso ficar sentada, e você sabe que figuro no rol das testemunhas. Como haverei de falar, como haverei de falar? Não sei o que direi. É preciso prestar juramento, não é?

— Sim, mas penso que a senhora não poderá comparecer.

— Posso ficar sentada. Ah! você me atrapalha! Esse processo, esse ato selvagem, em seguida todos vão para a Sibéria, outros se casam, e tudo isso depressa, depressa, e tudo muda, enfim todos envelhecem e olham para o túmulo. Pois bem! seja, estou fatigada. Aquela Cátia... cette charmante personrie, iludiu minha esperança; agora vai acompa­nhar um de seus irmãos à Sibéria, o outro a seguirá e estabelecer-se-á na cidade vizinha e todos farão uns e outros sofrer. Isto me faz perder o juízo, sobretudo essa publicidade; falaram disso milhares de vezes nos jornais de Petersburgo e de Moscou. Ah! sim, imagine você que escreveram também a meu respeito, que eu era uma "boa amiga" de seu irmão. Não posso pronunciar a tal palavra vergonhosa, imagine!

— É impossível! Onde escreveram isso, como?

— Vou mostrar-lhe. Recebi o jornal ontem. Aqui está, é no jornal de Petersburgo, Boatos. Esse Boatos apareceu este ano. Gosto muito dos boatos, tomei assinatura, e eis-me bem servida em questão de boatos. Está aqui, neste lugar, leia.

E estendeu a Aliócha um jornal que se achava sob o travesseiro.

Não estava agitada, mas abatida e, com efeito, tudo se misturava talvez na sua cabeça. O tópico era característico e devia certamente impressioná-la, mas por felicidade achava-se ela então incapaz de con­centrar-se em um ponto e podia num instante esquecer mesmo o jornal e passar a outra coisa. Quanto à repercussão daquele triste caso na Rússia inteira, conhecia-a Aliócha desde muito tempo, e Deus sabe as notícias estranhas que tivera ocasião de ler havia dois meses, entre outras verídicas, a respeito de seu irmão, dos Karamázovi e dele mesmo. Dizia-se mesmo num jornal que, apavorado pelo crime de seu irmão, havia-se ele feito monge e enclausurara-se; aliás, desmentia-se esse boato afirmando, pelo contrário, que em companhia do stáriets Zósima arrombara ele a caixa do mosteiro e fugira. A notícia aparecida no jornal Boatos intitulava-se: "Escrevem-nos de Skotoprigonievski"[4] (ai! assim se chama nossa cidadezinha, nome que ocultei por muito tempo), "a propósito do processo Karamázov". Era curta e o nome da Senhora Khokhlakova nela não figurava. Contava-se somente que o criminoso que se preparavam para julgar com tal solenidade, capitão reformado, de atitudes insolentes, vadio e partidário da servidão, man­tinha intrigas amorosas, influenciava sobretudo "algumas damas a quem sua solidão pesava". Uma delas, "uma viúva que se entediava", afe­tando mocidade, se bem que mãe de uma filha já grande, enamorara-se dele a ponto de oferecer-lhe, duas horas antes do crime, 3 000 rublos para partir em sua companhia para as minas de ouro. Mas o celerado preferira matar seu pai para roubar-lhe esses 3 000 rublos, contando com a impunidade, em vez de passear pela Sibéria os encantos qua­dragenários de sua dama. Essa correspondência faceta terminava, como convém, por uma nobre indignação contra a imoralidade do parricídio e da servidão. Depois de ter lido com curiosidade, Aliócha dobrou o jornal, que entregou à Senhora Khokhlakova.

— Então? Não sou eu? Fui eu, com efeito, que, uma hora antes, lhe propus as minas de ouro, e logo "encantos de quarenta anos"! Mas era esse o meu objetivo? O jornalista fê-lo de propósito. Que o sobe­rano juiz lhe perdoe essa calúnia como eu mesma lhe perdôo, mas foi... sabe quem? Seu amigo Rakítin.

— Talvez — disse Aliócha —, se bem que nada tenha ouvido a respeito.

— Foi ele, foi ele, decerto! Porque o pus para fora! Conhece então essa história?

— Sei que a senhora lhe pediu que cessasse suas visitas no futuro, mas por qual razão, justamente, não o soube... da parte da senhora pelo menos.

— Soube-o então por ele? Então, deblatera ele contra mim, com veemência?

— Sim, deblatera contra todo mundo, aliás. Mas ele tampouco me disse por qual motivo a senhora o despediu! De resto, encontro-o muito raramente. Não somos amigos.

— Pois bem! Vou contar-lhe tudo e, apesar de tudo, arrependo-me, porque há um ponto a respeito do qual sou eu mesma talvez culpada. Algo de totalmente insignificante, aliás. Veja, meu caro (a Senhora Khokhlakova assumiu um ar jovial, e sorriu enigmàticamente), veja, sus­peito... perdoe-me, falo-lhe como uma mãe... Oh! não, não, pelo contrário, dirijo-me a você como a meu pai... porque a mãe nada tem que ver aqui... Enfim, tanto faz, como ao stáriets Zósima a confissão, e é tudo perfeitamente justo: chamei-o ainda há pouco de as­ceta... Pois bem! eis, aquele pobre rapaz, seu amigo Rakítin (meu Deus! não posso zangar-me contra ele), em suma, aquele desmiolado, imagine que lhe deu na cabeça, creio, enamorar-se de mim. Só o percebi depois, mas no começo, isto é, há um mês, veio ver-me fre­quentemente, quase todos os dias, e contudo já nos conhecíamos antes. Não suspeitava de nada... e de repente foi como um raio de luz. Sabe você que há dois meses comecei a receber esse gentil e modesto rapaz, Piotr Ilitch Piekhótin, funcionário aqui? Você o encon­trou mais de uma vez. Não tem mérito ele, não é sério? Vem duas vezes por semana, aparece sempre bem vestido, e, em geral, gosto da mocidade, Aliócha, quando ela tem modéstia, talento, como você; é quase um estadista, fala tão bem, haverei de recomendá-lo sem dúvida alguma. É um futuro diplomata. Naquele horrendo dia, quase me salvou da morte vindo procurar-me à noite. Quanto a seu amigo Rakítin, vem sempre com seus sapatos ordinários que arrasta pelo ta­pete... em suma, põe-se a fazer alusões; uma vez, ao retirar-se, aper­tou-me a mão com bastante força. Foi a partir daquele momento que fiquei doente do pé. Ele já havia encontrado Piotr Ilitch em minha casa e — acreditá-lo-ia você? — falava mal dele sem cessar, encarni­çava-se contra ele não se sabia por quê. Contentava-me com observar os dois, para ver como se arranjariam, rindo comigo mesma. Um dia em que me encontrava sozinha, sentada, ou antes, já estendida, Mi­khail Ivânovitch veio ver-me e, imagine você, trouxe-me versinhos de sua autoria, nos quais descrevia meu pé doente. Espere, como é?

Esse encantador pèzinho, Sofre um tanto, coitadinho... ou algo assim, não consigo lembrar-me desses versos, tenho-os aí, hei de mostrar-lhos depois, são encantadores, e não tratam somente de meu pé, são morais, com uma idéia deliciosa, mas esqueci-a, em suma, dignos de figurar num álbum. Naturalmente, agradeci-lhe, ele pareceu lisonjeado. Mal acabara de fazê-lo e entrou Piotr Ilitch. Mikhail Ivâ­novitch ficou sombrio como a noite. Via bem que Piotr Ilitch o incomodava, porque queria ele certamente dizer alguma coisa após os versos, pressentia-o, e o outro entrou naquele momento. Mostrei os versos a Piotr Ilitch, sem dizer o nome do autor. Mas estou persuadida de que ele o adivinhou imediatamente, muito embora o negue até hoje. Piotr Ilitch desatou na gargalhada, pôs-se a criticar: "Maus versos", disse ele, "escritos por algum seminarista... " Sim, se o senhor visse com que calor, com que temeridade! Foi então que seu amigo, em lugar de rir, tornou-se furioso... Meu Deus! pensei que eles iam bater-se. "Sou eu", disse ele, "o autor. Escrevi-os por brincadeira, porque acho uma baixeza fazer versos... Somente, meus versos são bons. Querem elevar um monumento a Púchkin por ter cantado os pés das mulheres; meus versos têm uma tendência moral, o senhor mesmo não passa de um reacionário refratário à humanidade, ao pro­gresso, estranho ao movimento das idéias, um burocrata, um papa-or­denados!" Pus-me então a gritar, a suplicar-lhes. Ora, Piotr Ilitch, você sabe, não tem medo, assumiu uma atitude muito digna, olhou-o ironicamente e pediu desculpas depois de tê-lo escutado: "Não sabia", disse, "senão não me teria exprimido dessa maneira, teria louvado seus versos... Os poetas são uma gente irritável". Em suma, zombadas proferidas no tom mais sério. Ele mesmo me confessou depois que estava zombando, mas eu deixara-me enganar. Pensava então, estendida como agora: ficará bem ou não, se eu expulsar Mikhail Ivanovitch por causa da intemperança de sua linguagem para com meu hóspede? Acreditaria você? Estou estendida, de olhos fechados, sem conseguir decidir-me, atormento-me, meu coração bate; gritarei ou não gritarei? Uma voz me diz: "Grita" e outra "Não, não grites!" Mal ouvi esta outra voz, pus-me a gritar, depois desmaiei. Naturalmente, foi uma cena tumultuosa. De repente, levanto-me e digo a Mikhail Ivanovitch: "La­mento muito, mas não quero mais vê-lo em minha casa". Foi assim que o pus para fora. Ah! Alieksiéi Fiódorovitch! Sei bem que agi mal, mentia, não estava absolutamente zangada com ele, mas de súbito pareceu-me que seria muito bem aquela cena..., Somente — acredi­ta-o você? —, era aquela cena, no entanto, natural, porque eu chorava deveras e depois ainda alguns dias em seguida, afinal acabei por es­quecer tudo, uma vez, depois do almoço. Havia ele cessado suas visitas desde duas semanas e eu perguntava a mim mesma: será possível que não volte mais? Foi então e eis que à noite trazem-me o jornal Boatos. Leio e fico boquiaberta, com muita raiva. De quem seria? Dele! Logo que saiu daqui, rabiscara isto para enviá-lo ao jornal que o publicou. Passava-se isto há duas semanas. Aliócha, tagarelo a torto e a direito, mas é mais forte do que eu!

— É preciso absolutamente que chegue a tempo hoje de estar com meu irmão — balbuciou Aliócha.

— Justamente, justamente! Isso me lembra tudo! Diga-me, que é a obsessão?

— Que obsessão? — perguntou Aliócha, surpreso.

— A obsessão judiciária. Uma obsessão que faz perdoar tudo. Tenha você cometido o que tiver cometido, perdoam-lhe.

— A propósito de que diz isso?

— Eis por quê: essa Cátia... Ah! é uma encantadora criatura, mas ignoro de quem está ela enamorada. Veio aqui outro dia e nada pude saber. Tanto mais quanto ela se limita agora a generalidades, só me fala de minha saúde, afeta mesmo certo tom, e disse a mim mesma: "Pois seja, Deus a guarde!... " Ah! a propósito dessa obsessão, chegou esse tal doutor. Você sabe disso decerto, foi você que o mandou chamar, isto é, você não, mas Cátia. Sempre Cátia! Está bem! Eis aqui: um indivíduo é normal, mas de repente tem uma obsessão. Está lúcido, dá-se conta de seus atos, entretanto, está presa duma obsessão. Pois bem! é o que aconteceu certamente a Dimítri Fiódorovitch. É uma descoberta e um benefício da justiça nova. O tal doutor chegou, fez-me perguntas a respeito daquela noite, enfim, a respeito das minas de ouro: como estava ele então, o acusado? Em estado de obsessão, bem decerto; exclama: dinheiro, dinheiro, dê-me 3 000 rublos, depois foi assassinar. Não quero, dizia ele, não quero matar, no entanto o fez. De modo que perdoá-lo-ão por causa dessa resistência, muito embora tenha matado.

— Mas ele não matou — interrompeu um pouco bruscamente Alió­cha, cuja agitação e impaciência cresciam.

— Eu sei, foi o velho Gregório quem matou.

— Como, Gregório?

— Mas sim, foi Gregório. Ficou desmaiado depois de ter sido gol­peado por Dimítri Fiódorovitch, depois levantou-se e, vendo a porta aberta, foi matar Fiódor Pávlovitch.

— Mas por quê, por quê?

— Sob o império duma obsessão. Voltando a si, depois de ter sido golpeado na cabeça, a obsessão fê-lo cometer aquele crime. Ora, diz ele que não matou, talvez não se lembre. Somente veja você, será bem melhor que Dimítri Fiódorovitch haja matado. É bem isto, embora fale de Gregório, foi certamente Dimítri, e isto é melhor, muito melhor. Não que eu aprove o assassínio dum pai por um filho; os filhos, pelo contrário, devem respeitar os pais, no entanto, vale mais que seja ele, porque então não terão vocês de ficar desolados, uma vez que ele matou inconscientemente, ou antes conscientemente, mas sem saber como a coisa ocorreu. Deve-se absolvê-lo; será humano, ver-se-ão os benefícios da justiça nova, eu não sabia de nada, dizem que isso é já coisa antiga; desde que o soube, ontem, fiquei tão impressionada que queria mandar chamar você; e se o absolverem convidá-lo-ei para jantar imediatamente, reunirei conhecidos e beberemos à saúde dos novos juizes. Não acho que seja perigoso, aliás haverá gente, poder-se-á sempre levá-lo, se ele se mostrar furioso; mais tarde, poderá ele noutra parte ser juiz de paz ou alguma outra coisa, porque os melhores juizes são aqueles que sofreram também desgraças. Sobretudo, quem não tem sua obsessão agora? Você, eu, todo mundo, e quantos exem­plos! Um indivíduo está cantando uma romança, de repente algo lhe desagrada, pega uma pistola, mata o primeiro que encontra e absol­vem-no. Li-o recente, todos os doutores confirmaram-no. Confirmam tudo, agora. Pense pois, Lisa tem uma obsessão, fez-me chorar ontem e anteontem; hoje adivinhei que era simplesmente uma obsessão. Oh! Lisa causa-me tanta pena! Creio que perdeu o juízo. Por que mandou chamá-lo? Ou então veio você espontaneamente?

— Ela mandou chamar-me e vou ter com ela — declarou Aliócha, levantando-se com ar resoluto.

— Ah! caro Alieksiéi Fiódorovitch, eis talvez o essencial — exclamou a Senhora Khokhlakova, chorando. — Deus é testemunha de que lhe confio sinceramente Lisa, e não tem importância o haver mandado cha­má-lo, sem que eu o soubesse. Quanto a seu irmão Ivã, desculpe-me, mas não lhe posso confiar tão facilmente minha filha, muito embora o considere sempre como o rapaz mais cavalheiresco. Imagine que veio visitar Lisa e eu não sabia de nada.

— Como? O quê? Quando? — perguntou Aliócha, estupefato. Não se havia tornado a sentar.

— Vou contar-lhe, talvez o tenha mandado chamar para isso, não me lembro mais. Ivã Fiódorovitch veio ver-me duas vezes, depois de seu regresso de Moscou; a primeira, para fazer-me uma visita na qua­lidade de conhecido; a segunda, recentemente. Cátia encontrava-se aqui em minha casa e ele entrou sabendo disso. Bem entendido, não pre­tendia eu frequentes visitas da parte dele, conhecendo suas complica­ções, vous comprenez, cette affaire et Ia mort terrible de votre papa, [5] mas venho a saber de repente que ele veio de novo, não aos meus aposentos, mas aos de Lisa, há seis dias, ficou uns cinco minutos. Soube-o três dias depois por Glafira, isto chocou-me. Chamo logo Lisa, que se põe a rir: "Pensava", disse ela, "que a senhora estava dormindo e veio pedir-me notícias suas". Foi isto, decerto. Somente, Lisa, Lisa, meu Deus, que pena me causa! Imagine que, uma noite, há quatro dias, depois de sua visita, teve ela uma crise de nervos, gritos, gemidos. Por que nunca tenho eu crises de nervos? No dia seguinte, e no outro dia, novo ataque, e, ontem, essa obsessão. Ela grita para mim de repente: "Detesto Ivã Fiódorovitch, exijo que a senhora não o receba mais, que lhe proíba a entrada nesta casa!" Fiquei estupefata e repli­quei-lhe: "Por que razão despedir um jovem tão cheio de mérito, tão instruído e além do mais tão infeliz, porque todas essas histórias são antes uma desgraça que uma felicidade, não é mesmo?" Ela desatou a rir às minhas palavras, duma maneira ferina. Fiquei contente, pen­sando tê-la divertido e que as crises cessariam. Aliás, queria eu mesma despedir Iva Fiódorovitch por causa de suas estranhas visitas sem meu consentimento e pedir-lhe explicações. Esta manhã, eis que, ao des­pertar, Lisa zangou-se com Iúlia e, imagine, bateu-lhe «na cara. Ora, é monstruoso, trato de "você" minhas criadas de quarto. Uma hora depois, abraçava ela Iúlia e beijava-lhe os pés. Mandou dizer-me que não viria aqui, que não queria vir mais aqui aos meus aposentos, doravante, e, quando me arrastei até o seu qurato, cobriu-me de beijos, chorando, depois empurrou-me para fora sem dizer uma palavra, de modo que nada pude saber. Agora, caro Alieksiéi Fiódorovitch, ponho toda a minha esperança em você, meu destino está sem dúvida em suas mãos. Rogo-lhe que vá ver Lisa, que esclareça tudo isso, como só você sabe fazê-lo, e vir contar-me, a mim, a mãe, porque você comprende, morrerei deveras, se isto tudo continua, ou fugirei desta casa. Não posso mais, tenho paciência, mas posso perdê-la e então... então será terrível. Ah! meu Deus, enfim, Piotr Ilitch! — exclamou a Senhora Khokhlakova, radiante, vendo entrar Piotr Ilitch Pierkhótin. — Você chegou atrasado, atrasado! Pois bem, sente-se, fale, decida a sorte, que diz esse advogado? Aonde vai você, Alieksiéi Fiódorovitch?

— Ao quarto de Lisa.

— Ah! sim. Não se esquecerá, não se esquecerá do que lhe pedi? Trata-se de meu destino!

— Decerto que não, se todavia fôr possível... mas estou tão atra­sado... — murmurou Aliócha, retirando-se.

— Não, venha sem falta e não, como diz, se fôr possível, senão morrerei! — gritou às costas dele a Senhora Khokhlakova, mas Aliócha já havia desaparecido.

 

UM DIABINHO

Encontrou Lisa semi-estendida na poltrona onde a carregavam, quando ainda não podia ela andar. Não se levantou à entrada dele, mas seu olhar penetrante atravessou-o. Aquele olhar estava um tanto aceso, a tez amarelada; ficou Aliócha impressionado com a mudança que se operara nela naqueles três dias, havendo mesmo emagrecido. Não lhe estendeu ela a mão. Ele lhe aflorou os dedos finos, imóveis sobre seu vestido, e sentou-se diante dela, sem dizer nada.

— Sei que tem você pressa de ir à prisão — declarou bruscamente Lisa. — Mamãe reteve-o duas horas, acaba de falar-lhe de Iúlia e de mim.

— Como o sabe?

— Escutei. Que tem de me olhar? Se me agrada, escuto, não há mal nisso. Não peço perdão.

— Há alguma coisa que a perturbe?

— Pelo contrário, sinto-me muito bem. Ainda há pouco, pensava pela décima vez em como fiz bem em retomar a palavra dada e não me tornar sua mulher. Você não convém como marido; se casar com você e encarregá-lo de levar um bilhete a um apaixonado por mim, você o faria e traria mesmo a resposta. E aos quarenta anos ainda levaria tais bilhetes.

Pôs-se a rir.

— Há em você algo de mau e, ao mesmo tempo, de ingênuo — disse Aliócha, sorrindo.

— É por ingenuidade que não tenho vergonha diante de você. Não somente não tenho vergonha, mas não quero tê-la, justamente diante de você. Aliócha, por que é que não o respeito? Amo-o muito, mas não o respeito. Senão, não lhe falaria sem nenhuma vergonha, não é?

— Com efeito.

— Acredita que não tenho vergonha diante de você?

— Não, não acredito.

Lisa riu de novo nervosamente; falava depressa.

— Mandei bombons para seu irmão, Dimítri Fiódorovitch, na prisão. Aliócha, sabe que você é muito gentil? Eu o amarei muito por me ter permitido tão depressa não amá-lo.

— Por que mandou chamar-me, hoje, Lisa?

— Queria dar-lhe parte dum desejo. Quero que alguém me faça sofrer, que case comigo, depois me torture, me engane e me abandone. Não quero ser feliz.

— Enamorou-se da desordem?

— Ah! quero a desordem. Quero pôr fogo na casa. Imagino a coisa: irei às ocultas, absolutamente às ocultas, tratar de pôr fogo. Procuram apagá-lo, a casa arde. Sei e me calo. Ah! que coisa estúpida! que horror!

Fez um gesto de desgosto.

— Você vive na riqueza — disse Aliócha, em voz baixa.

— Será que vale mais viver pobremente?

— Sim.

— Era seu defunto monge quem lhe contava isso. Não é verdade. Que eu seja rica e todos os outros pobres, comerei bombons, beberei creme e não darei a ninguém! Ah! não fale, não diga nada (fez um gesto, se bem que Aliócha não tivesse aberto a boca), você já me disse tudo isso antes, sei-o de cor. É aborrecido. Se sou pobre, matarei alguém, talvez mesmo mate sendo rica. Por que me constranger?... Sabe duma coisa? Quero segar, segar os trigos. Serei sua mulher, você tornar-se-á mujique, um verdadeiro mujique; teremos um poldrinho, quer? Conhece Kolgánov?

— Sim.

— Ele sonha, andando. Diz: "De que serve viver? Na verdade, é melhor sonhar". Podem-se sonhar as coisas mais alegres, mas a vida é o tédio. Ele se casará em breve, fez, também a mim, uma declaração. Sabe chicotear pião?

— Sim.

— Pois bem! ele parece um pião: é preciso pô-lo em movimento, atirá-lo, chicoteá-lo. Se casar com ele, lançá-lo-ei a vida inteira. Não tem você vergonha de ficar comigo?

— Não.

— Você está muito zangado porque não falo das coisas santas. Não quero ser santa. Que se faz no outro mundo para o maior pecado? Você deve saber ao certo.

— Deus condena — disse Aliócha, olhando-a fixamente.

— É o que quero. Chegaria, condenar-me-iam, riria bem na cara de todos. Quero absolutamente pôr fogo na casa, Aliócha, em nossa casa, não me acredita?

— Por que, afinal? Há crianças, aos doze anos, que têm muita vontade de pôr fogo em alguma coisa e o fazem. É uma espécie de doença.

— Não é verdade, não é verdade. Há mesmo crianças, mas não falo disso.

— Você toma o mal pelo bem, é uma crise passageira que provém talvez de sua antiga doença.

— Mas você me despreza! Não quero fazer o bem, muito sim­plesmente, quero fazer o mal, não há nenhuma doença.

— Por que fazer o mal?

— Porque não resta nada em parte alguma. Ah! como seria bom! Sabe, Aliócha, penso por vezes em fazer muito mal, coisas vis, durante muito tempo, às ocultas, e de repente todos ficarão sabendo. Todos me cercarão e me mostrarão com o dedo e eu os encararei. É muito agradável. Por que é tão agradável, Aliócha?

— À toa. A necessidade de esmagar algo de bom, ou, como você dizia, de pôr fogo. Isto acontece também.

— Não me contentarei com dizê-lo, fá-lo-ei.

— Acredito-o.

— Ah! como o amo por causa dessa palavras: acredito-o. Com efeito, você não mente. Mas pensa talvez que lhe digo tudo isso de propósito, para irritá-lo?

— Não, não penso... se bem que haja talvez também um pouco dessa necessidade.

— Um pouco, sim. Não minto nunca diante de você — declarou ela com um clarão nos olhos.

O que impressionava sobretudo Aliócha era a seriedade dela; não havia sombra de malícia nem de brincadeira em seu rosto, muito em­bora outrora a alegria e a jovialidade não a deixassem nos seus mo­mentos mais sérios.

— Há momentos em que o homem ama o crime — declarou Aliócha, com ar pensativo.

— Sim, sim, você exprimiu minha idéia, amam-no, todos o amam, sempre, e não por momentos. Sabe? Há como que uma convenção geral de mentira a este respeito, todos mentem desde então. Pretendem odiar o mal e todos o amam dentro de si mesmos.

— E você continua a ler maus livros?

— Sim. Mamãe oculta-os debaixo de seu travesseiro, mas os surripio.

— Será que não tem você consciência de que se está destruindo?

— Quero destruir-me. Há aqui um rapaz que ficou deitado entre os trilhos durante a passagem de um trem. Felizardo! Escute, julgam agora seu irmão por ter assassinado seu pai, e todo mundo está con­tente porque ele o matou.

— Estão contentes porque ele matou meu pai?

— Sim, todos estão contentes. Dizem que é horrível, mas, dentro de si mesmos, estão muito contentes. Eu sou a primeira.

— Nas suas palavras, há um pouco de verdade — disse docemente Aliócha.

— Ah! que idéias tem você! — exclamou Lisa, entusiasmada. — E é um monge! Não pode você crer quanto o respeito, Aliócha, porque você nunca mente. Ah! é preciso que lhe conte um sonho ridículo: vejo por vezes, em sonho, diabos; é à noite, estou no meu quarto com uma vela; de repente, diabos surgem em todos os cantos, debaixo da mesa, abrem a porta, há uma multidão deles que quer entrar para agarrar-me. E já avançam, agarram-me. Mas benzo-me, e todos eles recuam, tomados de pavor; mas não desaparecem completamente; ficam a esperar na porta e nos cantos. De repente, sinto uma vontade louca de me pôr a blasfemar em voz alta; começo, ei-los que avançam em mul­tidão, muito contentes; agarram-me de novo, de novo me persigno... e então vão-se todos eles. É algo muito divertido; tanto que até se perde a respiração.

— Eu também já tive sonho igual — disse Aliócha.

— Será possível? — gritou Lisa, espantada. — Escute, Aliócha, não ria, é muito importante: pode acontecer que duas pessoas tenham o mesmo sonho?

— Decerto.

— Aliócha, digo-lhe que é muito importante — prosseguiu Lisa, no auge da surpresa. — Não é o sonho que importa, mas o fato de haver você podido ter o mesmo sonho que eu. Você nunca mente, não minta agora: é verdade? Não está troçando?

— É verdade.

Lisa, atordoada, calou-se um instante.

— Aliócha, venha ver-me, venha mais vezes — proferiu ela num tom suplicante.

— Virei sempre à sua casa, toda minha vida — respondeu ele, com firmeza.

— Falo a você só — continuou Lisa. — Falo a mim só e ainda a você. Senão a você, no mundo inteiro. E falo-lhe mais voluntariamente do que a mim. E não sinto nenhuma vergonha diante de você, Aliócha, nenhuma. Por que isso? Aliócha, é verdade que na Páscoa os judeus roubam as crianças e as degolam?

— Não sei.

— Tenho um livro em que se fala dum processo; conta-se que um judeu primeiro cortou os dedos de uma criança de quatro anos, depois crucificou-a numa parede com pregos; declarou ao tribunal que a criança morrera rapidamente, ao fim de quatro horas. É rápido, com efeito! Não cessava de gemer e ele ali permanecia a contemplá-la. Muito bem!

— Bem?

— Sim. Penso por vezes que fui eu quem a crucificou. Está pen­durada e geme, sento-me diante dela e como compota de abacaxi. Gosto muito disso. E você?

Aliócha contemplava em silêncio Lisa, cujo rosto dum amarelo pálido alterou-se de repente, seus olhos flamejaram.

— Sabe? Depois de ter lido essa história, solucei a noite inteira. Creio ouvir a criança gritar e gemer (aos quatro anos, compreende-se) e essa idéia da compota não me deixa. De manhã, enviei uma carta pedindo a alguém que viesse sem falta ver-me. Veio, contei-lhe tudo a respeito da criança e da compota, tudo, e disse: "Muito bem!" Pôs-se a rir e achou que, com efeito, estava bem. Depois partiu ao fim de cinco minutos. Será que me desprezava? Fale, Aliócha, fale, despre­zava-me, sim ou não?

Ergueu-se em seu divãzinho, com os olhos cintilantes.

— Diga-me — proferiu Aliócha, agitado —, você mesma mandou chamar esse "alguém"?

— Eu mesma.

— Enviou-lhe uma carta?

— Sim.

— Precisamente para pedir-lhe isso, a propósito da criança?

— Não, absolutamente. Mas quando entrou, perguntei-lhe. Respon­deu, pôs-se a rir, depois retirou-se.

— Agiu como homem honesto para com você — disse mansamente Aliócha.

— Mas desprezou-me? Riu.

— Não, porque ele mesmo crê talvez na compota de abacaxi. Está também muito doente agora, Lisa.

— Sim, assim o crê! — disse Lisa, com os olhos cintilantes.

— Ele não despreza ninguém — prosseguiu Aliócha. — Somente, não crê em ninguém. Se não crê, é bem certo que despreza.

— Por conseguinte a mim também? A mim?

— A você também.

— Está bem — disse Lisa, com raiva. — Quando ele saiu rindo, senti que o desprezo tinha algo de bom. Ter os dedos cortados como aquela criança é boa coisa; ser desprezada é boa coisa igualmente...

E soltou uma risada má, olhando para Aliócha.

— Sabe, Aliócha, quereria... Salve-me! — ergueu-se, inclinou-se para ele, abraçou-o. — Salve-me! — gemeu ela quase. — Disse a alguém no mundo o que acabo de dizer-lhe? Sim, disse a verdade, a verdade! Matar-me-ei, porque tudo me desgosta! Não quero mais viver! Tudo me inspira desgosto, tudo! Aliócha, por que você não me ama, de modo algum?

— Mas não, eu a amo! — respondeu Aliócha, com ardor.

— Será que você chorará por mim?

— Sim.

— Não porque recusei ser sua esposa, mas em geral?

— Sim.

— Obrigada! Só tenho necessidade de suas lágrimas. E que os outros me torturem, me pisem aos pés, todos, todos, sem exceção de nin­guém! Porque não amo ninguém. Está ouvindo? Ninguém! Pelo con­trário, odeio-os! Vá ver seu irmão, Aliócha, já é tempo! — e largou-o.

— Como deixá-la assim? — disse ele, quase aterrorizado.

— Vá ver seu irmão, a prisão será fechada. Vá, eis aqui seu chapéu! Abrace Mítia, vá, vá!

Empurrou Aliócha quase à força para a porta. Ele a olhava numa dolorosa perplexidade, quando sentiu na sua mão direita um bilhete do­brado, lacrado. Leu o endereço: "Ivã Fiódorovitch Karamázov". Lançou um olhar rápido a Lisa. O rosto dela era quase ameaçador.

— Não deixe de lho entregar! — ordenou, com exaltação, toda tremente. — Hoje, imediatamente! Senão, envenenar-me-ei! Foi por isso que o chamei!

E bateu a porta. Aliócha pôs a carta em seu bolso e dirigiu-se para a escada, sem entrar nos aposentos da Senhora Khokhlakova, a quem havia mesmo esquecido. Assim que ele se afastou, Lisa entreabriu à porta, meteu seu dedo na fenda e apertou-o com todas as suas forças, fechando-a. Ao fim de alguns segundos, tendo retirado sua mão, foi lentamente sentar-se na poltrona, examinou com atenção seu dedo ene­grecido e o sangue que havia brotado por baixo da unha. Seus lábios tremiam e ela murmurou rapidamente:

— Miserável! Miserável! Miserável! Miserável!

 

O HINO E O SEGREDO

Já era tarde (e os dias são curtos em novembro), quando Aliócha tocou à porta da prisão. Caía a noite. Mas sabia que o deixariam entrar sem dificuldade. Na nossa cidadezinha, é o mesmo que em toda parte. No começo, sem dúvida, uma vez terminada a instrução preparatória, as entrevistas de Mítia com seu parentes ou algumas outras pessoas eram cercadas de certas formalidades necessárias, mas, poste­riormente, fizeram exceção para certos visitantes. Chegou a ponto de, por vezes, realizarem-se quase a sós as entrevistas com o prisioneiro. Aliás, esses privilegiados eram pouco numerosos: somente Grúchenhka, Aliócha e Rakítin. O isprávnik Mikhail Makárovitch estava muito favo­rável à jovem. O velho lamentava ter gritado contra ela em Mókroie. Em seguida, uma vez ao corrente, mudara completamente de opinião a seu respeito. E, coisa estranha, se bem que estivesse persuadido da culpabilidade de Mítia, desde sua prisão tornava-se mais indulgente para com ele: "Era talvez uma boa natureza, mas a embriaguez e a desordem perderam-no!" Uma espécie de compaixão havia sucedido nele ao horror do começo. Quanto a Aliócha, o isprávnik gostava muito dele e conhecia-o desde muito tempo, e Rakítin, que tomara o costume de visitar frequentemente o prisioneiro, estava muito ligado com "as meninas do isprávnik", como as chamava, e não se passava dia que não estivesse em casa delas. Dava lições na casa do inspetor da prisão, velhote bonachão, mas militar severo. Aliócha conhecia bem e desde muito tempo esse inspetor, que gostava de conversar com ele a respeito da "suprema sabedoria". O velhote respeitava e até mesmo temia Ivã Fiódorovitch, sobretudo seus raciocínios, muito embora fosse ele próprio grande filósofo, à sua maneira, bem entendido. Mas sentia por Aliócha uma simpatia invencível. Havia um ano vinha estudando os Evan­gelhos apócrifos e dava parte a cada instante de suas impressões a seu jovem amigo. Outrora, ia mesmo vê-lo no mosteiro e discutia horas inteiras com ele e com os religiosos. Em suma, se Aliócha chegava atrasado à prisão, bastava passar em casa dele e a coisa se arranjava. Além do mais, o pessoal, até o derradeiro guarda, estava acostumado com ele. A sentinela não fazia naturalmente dificuldades, contanto que se tivesse uma autorização. Quando chamavam Mítia, descia este de sua cela e ia ao parlatório. Ao entrar, Aliócha encontrou Rakítin, que se despedia de Mítia. Ambos falavam em voz alta. Mítia, despe­dindo-se dele, ria muito, e Rakítin parecia resmungar. Sobretudo nos últimos tempos, não gostava. Rakítin de encontrar Aliócha, não lhe falava, cumprimentava-o mesmo com secura. Vendo Aliócha entrar, franziu o cenho, desviou a vista, mostrou-se muito preocupado em abo­toar seu sobretudo quente de gola de pele. Depois pôs-se a procurar seu guarda-chuva.

— Contanto que não esqueça nada! — falou, para dizer alguma coisa.

— Especialmente, não esqueças o que não te pertence! — disse Mítia, rindo. Rakítin esquentou-se imediatamente.

— Recomenda isto a teus Karamázovi, raça de exploradores, e não a Rakítin! — exclamou ele, tremendo de cólera.

— Que é que te deu? Estava brincando... São todos assim — disse Mítia a Aliócha, apontando Rakítin, que saía rapidamente. — Ria, estava alegre, e ei-lo que se arrebata! Nem mesmo te cumprimentou. Estão brigados? Por que vens tão tarde? Esperei-te com impaciência a manhã inteira. Não importa. Vamos tirar o atraso.

— Por que vem ele ver-te tantas vezes? Estás ligado a ele?

— Ligado a Mikhail? Não, precisamente. Aliás, é um porco! Toma-me por um miserável. Sobretudo, não entende uma brincadeira. É uma alma seca, lembra-me os muros da prisão, tais como os vi ao chegar. Mas é inteligente. Pois bem! Alieksiéi, estou perdido agora!

Sentou-se num banco, indicou um lugar, junto dele a Aliócha.

— Sim, é amanhã o julgamento. Não tens na verdade nenhuma es­perança, irmão?

— De que falas? — perguntou Mítia, com o olhar vago. — Ah! sim, do julgamento. Ao diabo! Bagatelas tudo isso. Falemos do essen­cial. Sim, julgam-me amanhã, mas não é isto que me faz dizer que estou perdido. Não temo pela minha cabeça, somente o que há dentro dela é que está perdido. Por que me olhas com ar desaprovador?

— De que falas, Mítia?

— Idéias! idéias! A ética! Que é a ética?

— A ética? — disse Aliócha, surpreso.

— Sim, uma ciência, qual?

— Há, com efeito, uma ciência com esse nome... somente... não posso explicar-te, confesso-o.

— Rakítin sabe. É muito culto. Que o diabo o carregue! Não se fará monge. Quer ir para Petersburgo fazer crítica, mas de tendência moral. Pois bem! pode ser útil, tornar-se alguém. É um ambicioso! Ao diabo a ética! Estou perdido, Aliócha, homem de Deus! Amo-te mais do que a todos. Meu coração bate, quando penso em ti. Quem é Carl Bernard?

— Carl Bernard?

— Não, Carl não, Claude Bernard. Um químico, não?

— Ouvi dizer que é um sábio, não sei de mais nada a seu respeito.

— Ao diabo! Também eu nada sei. É provavelmente algum canalha, são todos canalhas. Mas Rakítin irá longe. Mete-se em toda parte, é também um Bernard. Oh! esses Bernard! Pululam.

— Mas que tens, afinal?

— Quer ele escrever um artigo a meu respeito e estrear assim na literatura, eis por que vem ver-me, ele mesmo o declarou. Um artigo de tese: "Tinha de matar, é uma vítima do meio", etc. Haverá, diz ele, um matiz de socialismo. O diabo o carregue! Quanto a mim, pouco me importa! Não gosta de Ivã, detesta-o, tu também não lhe és simpático. Não o ponho para fora, ele tem espírito, mas que orgulho! Dizia-lhe eu ainda há pouco: "Os Karamázovi não são canalhas, são filósofos, como todos os verdadeiros russos; mas tu, malgrado teu saber, não és um filósofo, não passas de um labrego". Riu-se maldosamente. E eu acrescentei: de opinionibus non est disputandum. [6] Também sou clássico — concluiu Mítia, disparando a rir.

— Mas por que estás perdido? Disseste ainda há pouco.

— Por que estou perdido? Hum, no fundo... se se toma a coisa em conjunto, lamento Deus, eis tudo.

— Que queres dizer?

— Imagina, na cabeça, isto é, no cérebro, há nervos... esses nervos têm fibras e desde que elas vibram... vês, olho alguma coisa, assim, e elas vibram, essas fibras... e assim que elas vibram forma-se uma imagem, não imediatamente, mas ao fim dum instante, dum segundo, e forma-se um momento, isto é, não um momento — que o diabo o leve! — mas um objeto ou uma ação; eis como se efetua a percepção, o pen­samento vem em seguida... porque tenho fibras, e não porque tenho uma alma e fui criado à imagem de Deus; que bobagem! Mikhail expli­cava-me isto, ainda ontem, e enchia-me de ardor. Que bela coisa a ciência, Aliócha! O homem se transforma, compreendo-o... No entan­to, lamento Deus!

— Já é uma boa coisa — disse Aliócha.

— Lamentar eu Deus? A química, irmão, a química! Não há nada a fazer. Vossa Reverendíssima, afaste-se um pouco, é a química que passa! Rakítin não ama Deus. Oh! não, não o ama! É o ponto fraco deles todos! Mas ocultam-no, mentem. "Pois bem! exporás essas idéias na rubrica da crítica?", perguntei-lhe. "Não, não me deixarão fazê-lo", continuou ele, rindo. "Mas então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?" "Não o sabias? Para um homem de talento, tudo é permitido, sabe sempre tirar-se de apertos. Mas tu, tu mataste, tu te deixaste apanhar e agora apodreces em cima da palha. " Eis o que ele me disse, o porco. Outrora, punha para fora indivíduos como esse, agora os escuto. Aliás, diz ele coisas sensatas e escreve bem. Co­meçou, há oito dias, a ler-me um artigo; tomei nota de três linhas, es­pera, ei-las.

Mítia tirou vivamente de seu bolso um papel e leu: "Para resolver essa questão, é preciso pôr sua pessoa em oposição à sua atividade".

— Compreendes ou não?

— Não, não compreendo — disse Aliócha. Olhava Mítia e escutava-o com curiosidade.

— Eu tampouco. Não é claro, mas tem espírito. "Todos", diz ele, "escrevem assim, atualmente, vem do meio ambiente... " Faz também versos, o tratante. Cantou os pés da Khokhlakova, ah! ah! ah!

— Ouvi falar disso — disse Aliócha.

— Sim? Mas conheces os versos?

— Não.

— Tenho-os, vou ler-tos. Não sabes, mas é uma verdadeira história! Canalha! Há três semanas, imaginou ele mexer comigo: "Deixaste-te apanhar como um imbecil, por 3 000 rublos, mas eu vou recolher 150 000, caso com uma viúva e comprarei uma casa de pedra em Petersburgo, começarei a publicar um jornal". E a boca se lhe enche de água, não por causa da Khokhlakova, mas dos 150 000 rublos. Estava seguro de si, vinha ver-me todos os dias: "Ela está cedendo", dizia ele, radiante. E eis que o põem para fora; Pierkhótin, Piotr Ilitch passou-lhe a perna, viva! Beijarei de boa vontade aquela perua por havê-lo despachado. Foi na ocasião em que havia ele escrito esses versos. "Pela primeira vez", diz ele, "rebaixo-me a escrever versos, para seduzir, portanto com um fim útil. De posse do capital duma idiota, posso tornar-me útil à sociedade. " A utilidade pública serve de des­culpa a essa gente para todas as baixezas! "E, no entanto", diz ele, "escrevi coisa melhor que Púchkin, porque soube exprimir, em versos brincalhões, minha tristeza cívica. " Compreendo o que diz ele de Púch­kin. Por que limitar-se a descrever pés, se tinha verdadeiramente talento? Como estava orgulhoso de seus versos! Ah! o amor-próprio dos poetas! "Pelo restabelecimento do pé do objeto amado", eis o título que aquele pândego imaginou!

Seu encantador pèzinho Não vou seu pé lamentar,

Inchou, lhe dói um pouquinho. Púchkin o há de cantar,

Vêm doutores torturá-lo, Lamento-lhe a cabecinha.

Todos no afã de curá-lo. A toda idéia durinha.

Já começava a entender Quando o pé veio a doer. Que o pé se restabeleça E entre a idéia na cabeça.

Um verdadeiro porco, mas seus versos são divertidos, patife! E mis­turou-lhes deveras uma tristeza cívica. Estava furioso por ter sido des­pedido. Rangia os dentes.

— Já se vingou — disse Aliócha. — Escreveu um artigo a respeito da Senhora Khokhlakova.

E Aliócha contou-lhe o que aparecera no jornal Boatos.

— Foi ele, é bem dele! — confirmou Mítia, franzindo o cenho. — Esses artigos... eu sei... quantas infâmias já foram escritas a respeito de Grúchenhka, por exemplo!... e a respeito de Cátia, também... Hum!

Pôs-se a andar pelo quarto com ar preocupado.

— Irmão, não posso ficar muito tempo — disse Aliócha, após um silêncio. — Amanhã é um dia terrível para ti. Vai-se cumprir o julgamento de Deus... e admira-me que em lugar de coisas sérias fales de bagatelas...

— Não, não te espantes. Devo falar daquele cão fedorento? Do assassino? Conversamos de sobra a respeito dele! Que não se fale mais de Smierdiákov, aquele fedorento filho de uma fedorenta! Deus o cas­tigará, hás de ver!

Aproximou-se de Aliócha, beijou-o com emoção. Seus olhos cinti­lavam.

— Rakítin não compreenderia isto, mas, tu, tu compreendes tudo: por isso esperava-te com impaciência. Vês, queria desde muito tempo dizer-te muitas coisas, entre estas paredes degradadas, mas calava o essencial, o momento não parecia ter ainda chegado. Esperei a derradeira hora para expandir-me. Meu irmão, senti nascer em mim, desde minha prisão, um novo ser; um homem novo ressuscitou! Existia em mim, mas nunca se teria revelado se o rato não o tivesse atingido. Que me importa a mim cavoucar durante vinte anos nas minas? Isto não me amedronta, mas temo outra coisa agora: que esse homem ressusci­tado se retire de mim! Pode-se encontrar também nas minas, em um forçado e em um assassino, um coração de homem e entrar em entendimento com ele, porque ali também se pode amar, viver e so­frer! Pode-se reanimar o coração entorpecido de um forçado, cuidar dele, trazer afinal da cova para a luz uma alma grande, regenerada pelo sofrimento, ressuscitar um herói! Ora, há centenas deles e somos todos culpados para com eles. Por que pensei então no nenê, em tal momento? Era uma profecia. Irei por causa do nenê. Porque todos são culpados para com todos. Todos são nenês, há crianças grandes e pequenas. Irei por causa delas, é preciso que alguém se devote por todos. Não matei meu pai, mas aceito a expiação. Foi aqui, entre estas paredes degradadas, que tive consciência de tudo isso. Há muitos, centenas sob a terra, de martelo na mão. Sim, estaremos acorrentados, privados de liberdade, mas em nossa dor ressuscitaremos para a alegria, sem a qual o homem não pode viver nem Deus existir, porque é ele que a dá. Este é o seu grande privilégio. Senhor, que o homem se consuma na oração! Como viverei sob a terra sem Deus? Rakítin mente; se expulsam Deus da terra, nós o reencontraremos sob a terra! Um forçado não pode passar sem Deus, ainda menos que um homem livre! E então nós, os homens subterrâneos, cantaremos das entranhas da terra um hino trágico ao Deus da alegria! Viva Deus e sua alegria divina! Eu o amo!

Ao declamar essa tirada estranha, Mítia estava quase sufocado. Em­palidecera, seus lábios tremiam, lágrimas lhe corriam dos olhos.

— Não, a vida está cheia, a vida extravasa mesmo sob a terra! Não podes crer, Aliócha, como quero viver agora, a que ponto a sede da existência apoderou-se de mim, precisamente entre estas paredes degra­dadas! Rakítin não compreende isto, só pensa em construir uma casa, em pôr nela locatários, mas eu te esperava. Que é o sofrimento? Não o temo, fosse ele infinito. Outrora o temia. Pode acontecer que não responda a nada no tribunal... Com a força que sinto em mim, creio-me em condições de dominar todos os sofrimentos, contanto que possa dizer a mim mesmo a cada instante: existo! Em meio dos tormentos, crispado pela tortura, existo! Amarrado ao pelourinho, existo ainda, vejo o sol, e, se não o vejo, sei que ele luz. E saber isto é já toda a vida. Aliócha, meu querubim, a filosofia me mata, que o diabo a leve! Nosso irmão Ivã...

— Que há com Ivã? — interrompeu Aliócha, mas Mítia não ouviu.

— Vês, outrora, não tinha todas essas dúvidas, ocultava-as dentro de mim. Foi justamente talvez porque idéias desconhecidas referviam em mim que eu me embriagava, batia-me, arrebatava-me; era para domi­ná-las, esmagá-las. Nosso irmão Ivã não é como Rakítin, oculta seus pensamentos; é uma esfinge, cala-se sempre. Mas Deus me atormenta, não penso senão nisso. Que fazer se Deus não existe? Rakítin tem razão de pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Mui­to bem! Somente, como será ele virtuoso sem Deus? Pergunto a mim mesmo. Com efeito, a quem amará o homem então? A quem cantará hinos de reconhecimento? Rakítin ri, diz que se pode amar a humanidade sem Deus. Aquele fedelho pode afirmar isso, eu não posso compreendê-lo. A vida é fácil para Rakítin: "Ocupa-te antes", dizia-me hoje, "com estender os direitos cívicos ou impedir a alta da carne; dessa maneira, servirás. melhor a humanidade e a amarás mais que com toda a tua filosofia". Ao que lhe respondi: "Tu mesmo, não acreditando em Deus, elevarás o preço da carne se houver oportunidade, e ganharás 1 rublo em vez de 1 copeque". Zangou-se. Com efeito, que é a virtude? Responde-me, Alieksiéi. Não me represento a virtude como um chinês, é pois uma coisa relativa? Ou então, não é relativa? Questão insidiosa! Não rirás se te disser que isto me impediu de dormir durante duas noites? Admira-me que se possa viver sem pensar nisto. Vaidade! Para Ivã, não há Deus. Ele tem uma idéia. Uma idéia acima de meu alcance. Mas não a diz. Penso que ele é franco-maçom. Interroguei-o, não me deu resposta. Teria querido beber da água de sua fonte, ele se cala. Uma vez somente falou.

— Que disse?

— Perguntava-lhe: "Então, tudo é permitido?" Ele franziu a testa: "Fiódor Pávlovitch, nosso pai", disse ele, "era um porco, mas racio­cinava certo". Eis suas palavras. É mais claro que Rakítin.

— Sim — disse Aliócha, com amargura.

— Voltaremos a isto. Quase não te tenho falado de Ivã até o pre­sente. Esperei até o fim. Uma vez terminada a peça e pronunciada a sentença, contar-te-ei tudo. Há uma coisa terrível, para a qual serás meu juiz. Mas agora, nem mais uma palavra a respeito. Falas do julgamento de amanhã, acreditarias? não sei de nada.

— Falaste àquele advogado?

— De que serve? Contei-lhe tudo. Um manso velhaco da capital, um Bernard! Não crê uma palavra do que lhe digo. Pensa que sou culpado, imagina, vejo-o bem! "Então, por que veio defender-me?", perguntei-lhe. Pouco me importa essa gente! E os médicos quereriam fazer-me passar por louco. Não o permitirei! Catarina Ivânovna quer cumprir "seu dever" até o fim. Com rigor! (Mítia sorriu amargamente. ) É cruel como uma gata. Sabe que eu disse em Mókroie que tinha ela grandes cóleras! Contaram-lhe. Sim, os depoimentos multiplica­ram-se ao infinito. Gregório mantém o que disse; é honesto, mas imbecil. Há muitas pessoas honestas por imbecilidade. É uma idéia de Rakítin. Gregório me é hostil. Valeria melhor ter tal pessoa por ini­miga que por amiga. Digo isto a propósito de Catarina Ivânovna. Tenho muito medo de que ela fale no tribunal da saudação até o chão que ela me fez, quando lhe emprestei os 4 500 rublos! Há de querer pagar até o derradeiro vintém. Não quero seus sacrifícios! Terei ver­gonha disso no tribunal! Vai vê-la, Aliócha, pede-lhe que não fale disso. Ou então será impossível? Que diabo, não importa, agüentarei! Não a lastimo. É ela que o quer. O ladrão só terá aquilo que merece. Farei um discurso, Alieksiéi. (Sorriu de novo, amargamente. ) Somente, somente, há Grúchenhka, Senhor! Por que sofre ela tanto, agora? — exclamou ele, com lágrimas. — Pensar nela é o que me mata. Estava aqui, ainda há pouco.

— Contou-me. Causaste-lhe muito pesar hoje.

— Sei. Que o diabo me leve por causa de meu gênio! Fiz-lhe uma cena de ciúmes. Estava arrependido, quando ela partiu, beijei-a. Mas não lhe pedi perdão.

— Por quê?

Mítia pôs-se a rir alegremente.

— Que Deus te preserve, meu caro, de pedir alguma vez perdão a uma mulher amada! Sobretudo a uma mulher amada, e quaisquer que sejam teus agravos a ela! Porque a mulher, meu irmão, quem diabo sabe o que é? Eu, em todo o caso, conheço as mulheres! Tenta pois reconhecer teus erros: "É culpa minha, perdão, desculpa-me", so­frerás uma saraivada de censuras! Jamais um perdão franco, simples; começará por humilhar-te, envilecer-te, censurar-te-á agravos imagi­nários, e então somente te perdoará. E ainda é a melhor dentre elas! Não perdoará as menores coisas. Tal é a ferocidade de todas, sem exceção, desses anjos sem os quais não poderíamos viver! Vês tu, meu caríssimo, digo-o francamente: todo homem decente deve estar sob a chinela duma mulher. É minha convicção, ou antes, meu modo de sentir. O homem deve ser generoso; isto não rebaixa. Mesmo um herói, mesmo César. Mas nunca peças perdão, a nenhum preço. Lem­bra-te desta máxima, - vem de teu irmão Mítia, a quem as mulheres botaram a perder. Não, repararei meus agravos a Grúchenhka, mas sem pedir-lhe perdão. Venero-a, Alieksiéi, mas não o nota ela; pensa que nunca a amo bastante. Faz-me sofrer com esse amor. Antes, sofria eu com suas sinuosidades pérfidas, agora formamos uma só alma e por ela tornei-me um homem. Ficaremos juntos? Se não, morrerei de ciúme... Já penso nisso cada dia... Que te disse ela de mim?

Aliócha repetiu-lhe o que Grúchenhka dissera. Mítia escutou aten­tamente e ficou satisfeito.

— Então, não está zangada pelo fato de ser eu ciumento! Eis bem a mulher! "Também eu tenho um coração duro. " Gosto dessas natu­rezas, se bem que não suporte o ciúme! Brigaremos, mas a amarei sempre. Será que os forçados podem casar-se? Não posso viver sem ela...

Mítia andou pelo quarto, com os supercílios franzidos. Já quase não se enxergava. De repente, pareceu preocupado.

— Então, diz ela que há um segredo? Uma conspiração a três contra ela, com Cátia? Pois bem! não, não é isto. Grúchenhka enganou-se como uma tola. Aliócha querido, tanto pior... Vou revelar-te nosso segredo.

Mítia olhou para todos os lados, aproximou-se de Aliócha, pôs-se a falar-lhe em voz baixa, se bem que na realidade ninguém pudesse ouvi-los; o velho guarda dormitava sobre um banco, os soldados de serviço estavam bastante afastados.

— Vou-te revelar nosso segredo — disse ele à pressa. —- Iria fa­zê-lo depois, porque posso eu tomar uma decisão sem ti? És tudo para mim. Ivã nos é superior, mas tu vales mais que ele. Somente tu decidirás. Talvez sejas mesmo superior a Ivã. Vês, é um caso de consciência, um negócio tão importante que não posso resolvê-lo eu mesmo, sem teu conselho. No entanto, é ainda demasiado cedo para um pronunciamento, é preciso esperar o julgamento. Tu decidirás em seguida de minha sorte. Agora, contenta-te em escutar-me, mas não digas nada. Expor-te-ei somente a idéia, deixando de parte os detalhes. Mas nada de perguntas, não te mexas, está entendido? E teus olhos, que eu esquecia! Lerei neles tua decisão, mesmo que não fales. Oh! tenho medo! Escuta, Aliócha: Ivã propõe que eu fuja. Passo por cima dos detalhes; tudo está previsto, tudo pode arranjar-se. Cala-te. Na América, com Grucha, porque não posso viver sem ela... E se não a deixam seguir-me? Será que os forçados podem casar-se? Ivã diz que não. Que farei sem Grucha, debaixo da terra, com um martelo?

Só serviria para partir com ele minha cabeça! Mas, por outro lado, a consciência. Furto-me ao sofrimento, desvio-me da via de purificação que se oferecia a mim. Ivã "diz que na América, com boa vontade, pode a gente ser mais útil que nas minas. Mas que virá a ser então de nosso hino subterrâneo? A América é ainda vaidade! E há também, eu penso, muita desonestidade em partir para a América. Escapo à expiação! Eis por que te digo, Aliócha, só tu podes compreender isso; para os outros, tudo quanto te disse do hino são tolices, delírio. Tra­tar-me-ão de louco ou de imbecil. Ora, não sou uma coisa nem outra. Ivã também compreende o hino, decerto, mas cala-se. Não crê nele. Não fales, não fales: vejo pelo teu olhar que já decidiste. Poupa-me, não posso viver sem Grucha, espera até o julgamento.

Mítia acabou com ar desvairado. Segurava Aliócha pelos ombros, fixava-o com seu olhar ávido, ardente.

— Podem os forçados casar-se? — repetiu ele pela terceira vez, com voz suplicante.

Aliócha, muito comovido, escutava com profunda surpresa. — Dize-me — perguntou ele —, é verdade que Ivã insiste muito? Quem teve primeiro essa idéia?

— Foi ele. Ele insiste! Não o via, veio de repente, há uma sema­na, e começou por aí. Não propõe, ordena. Não duvida de minha obediência, se bem que lhe tenha eu aberto meu coração como a ti e falado do hino. Expôs-me seu plano, reuniu as informações, mas voltarei a isso. Ele o quer ardentemente. E, sobretudo, oferece di­nheiro: 10 000 rublos para fugir, 20 000 na América; pretende que se pode muito bem organizar a fuga com 10 000 rublos.

— E recomendou-te que não me falasses?

— A ninguém e sobretudo a ti. Tem medo de que sejas como a minha consciência viva. Não lhe digas que te pus a par, rogo-te!

— Tens razão, é impossível decidir antes da sentença. Depois do julgamento, verás tu mesmo; haverá em ti um homem novo que de­cidirá.

— Um homem novo, ou um Bernard, que decidirá como Bernard! Assim, parece-me ser eu mesmo um vil Bernard — disse Mítia, com um sorriso amargo.

— Será possível, meu irmão, que não esperes justificar-te amanhã? Mítia ergueu os ombros, abanou a cabeça negativamente.

— Aliócha — disse de repente —, está na hora de ires. Acabo de ouvir o inspetor no pátio; vai chegar aqui, estamos atrasados, é desordem. Beija-me depressa, faze sobre mim o sinal-da-cruz para o calvário de amanhã...

Abraçaram-se e beijaram-se.

— E Ivã, que me propõe a fuga, ele próprio acredita que eu matei. Triste sorriso desenhou-se em seus lábios.

— Perguntaste-lhe?

— Não. Queria perguntar-lhe, mas não tive coragem. Aliás, com­prendi-o pelo seu olhar. Então, adeus!

Beijaram-se de novo. Aliócha ia sair, quando Mítia o chamou.

— Fica assim diante de mim, assim.

Pegou de novo Aliócha pelos ombros. Seu rosto tornou-se muito pálido, seus lábios se contraíram, seu olhar sondava seu irmão.

— Aliócha, dize-me toda a verdade, como diante de Deus. Crês que eu matei? A verdade inteira, não mintas!

Aliócha cambaleou, teve um aperto de coração.

— Basta! Que dizes?... — murmurou como desvairado.

— Toda a verdade, não mintas!

— Jamais cri um só instante que sejas um assassino — exclamou com voz trêmula Aliócha, que levantou a mão como para tomar a Deus por testemunha. Uma expressão de felicidade pintou-se no rosto de Mítia.

— Obrigado — disse, suspirando, como depois de um desmaio. — Restituíste-me a vida... Acreditas? Até agora temia perguntar-to, a ti, a ti! Vai-te, agora, vai-te! Tu me fortificaste para amanha, que Deus te abençoe! Retira-te, ama Ivã!

Aliócha saiu todo choroso. Semelhante desconfiança da parte de Mítia, mesmo para com ele, revelava um desespero que ele jamais suspeitara que fosse tão profundo em seu desgraçado irmão. Infinita compaixão apoderou-se dele. Estava profundamente magoado. "Ama Ivã!" Lembrou-se de súbito desta derradeiras palavras de Mítia. Ia precisamente à casa de Ivã, a quem queria ver desde a manhã. Ivã inquietava-o tanto quanto Mítia, e agora mais do que nunca, após aquela entrevista.

 

NÃO FOSTE TU!

Para ir à casa de seu irmão, tinha de passar diante da casa onde morava Catarina Ivânovna. As janelas estavam iluminadas. Parou e resolveu entrar. Não havia visto Catarina desde mais de uma semana e pensou que Ivã estivesse talvez em casa dela, sobretudo na véspera dum tal dia. Na escada, fracamente iluminada por uma lanterna chi­nesa, cruzou com um homem em quem reconheceu seu irmão.

— Ah! és tu? — disse secamente Ivã Fiódorovitch. — Adeus. Vais à casa dela?

— Sim.

— Não to aconselho. Está agitada, tu a pertubarás ainda mais.

— Não, não — gritou uma voz no alto da escada. — Alieksiéi Fiódorovitch, acaba de vê-lo?

— Sim, vi-o.

— Manda ele dizer-me alguma coisa? Entre, Aliócha, e você tam­bém, Ivã Fiódorovitch, volte sem demora. Estão ouvindo?

A voz de Cátia era tão imperiosa que Ivã, após um instante de hesitação, decidiu-se a subir de novo com Aliócha.

— Ela estava escutando! — murmurou ele, agitado, consigo mesmo, mas Aliócha o ouviu.

— Permita-me que conserve meu sobretudo — disse Ivã, ao entrar no salão. — Ficarei apenas um minuto.

— Sente-se, Alieksiéi Fiódorovitch — disse Catarina Ivânovna, que ficou de pé. Não havia mudado, mas seus olhos sombrios brilhavam com um clarão mau. Aliócha lembrou-se mais tarde de que ela lhe parecera particularmente bela naquele instante.

— Que me manda ele dizer?

— Somente isto — disse Aliócha, olhando-a de frente: — Que a senhora se poupe e não fale no tribunal do que (hesitou um pou­co)... se passou entre vocês... por ocasião do primeiro encontro.

— Ah! de minha saudação até o chão por causa do dinheiro? — disse ela, com um riso amargo. — Teme por si ou por mim? Quer que eu poupe a quem, afinal? A ele ou a mim? Fale, Àlieksiéi Fió­dorovitch.

Aliócha olhava-a atentamente, esforçando-se por, compreendê-la.

— À senhora e a. ele.

— É isto — disse ela com maldade, e corou. — Você não me conhece ainda, Àlieksiéi Fiódorovitch. Eu tampouco me conheço. Tal­vez venha a detestar-me, depois do interrogatório de amanhã.

— A senhora deporá com lealdade — disse Aliócha. — É o que é preciso.

— A mulher nem sempre é leal. Há uma hora, temia o contato daquele monstro como o de um réptil... entretanto, é ele sempre um ser humano para mim. Mas é um assassino? Foi ele quem ma­tou? — exclamou ela, voltando-se para Ivã. Aliócha compreendeu logo que ela já lhe havia feito aquela pergunta antes de sua chegada, pela centésima vez talvez, e que haviam brigado. — Fui à casa de Smierdiákov... Foste tu que me persuadiste de que ele é um par­ricida. Acreditei em ti!

Ivã sorriu constrangido. Aliócha estremeceu, ouvindo aquele "em ti". Não suspeitava de tal intimidade.

— Pois bem! Basta — cortou Ivã. — Vou-me embora. Até amanhã. Saiu, dirigindo-se para a escada. Catarina Ivânovna agarrou impe­riosamente as mãos de Aliócha.

— Siga-o! Alcance-o! Não o deixe só um instante. Está louco. Não sabe que ele ficou louco? Está com febre nervosa. O médico mo disse, vá, corra...

Aliócha precipitou-se atrás de Ivã Fiódorovitch, que não havia dado ainda cinquenta passos.

— Que queres? — disse ele, voltando-se para Aliócha. — Ela te mandou seguir-me, porque eu estou louco. Sei isso de cor — acrescentou ele, irritado.

— Ela se engana, decerto, mas diz com razão que estás doente. Examinava-te ainda há pouco, tens o rosto desfeito, Ivã.

Ivã continuava andando, Aliócha seguia-o.

— Sabes, Àlieksiéi Fiódorovitch, como é que se fica louco? — perguntou Ivã, num tom calmo, em que transparecia curiosidade.

— Não, ignoro-o, penso que há muitos gêneros de loucura.

— Pode uma pessoa perceber por si mesma que está ficando louca?

— Penso que a pessoa não pode observar-se em semelhante caso — respondeu Aliócha, surpreso. Ivã calou-se um instante.

— Se queres conversar comigo, mudemos de conversa — disse ele, de repente.

— Com medo de esquecê-la, eis aqui uma carta para ti — disse timidamente Aliócha, estendendo-lhe a carta de Lisa. Aproximavam-se dum lampião. Ivã reconheceu a letra.

— Ah! é daquela diabinha! — Deu uma risada má e, sem abri-la, rasgou a carta em pedaços, que se dispersaram ao vento.

— Ainda não tem dezesseis anos e já se oferece — disse, num tom cheio de desprezo.

— Como se oferece ela? — exclamou Aliócha.

— Ora essa, como as mulheres corrompidas.

— Que estás dizendo, Ivã? — protestou Aliócha, cheio de dor. — É uma criança, tu insultas uma criança! Ela também está muito doente, talvez também se torne louca. Tinha de entregar-te sua carta... Queria eu, pelo contrário, que me explicasses... para salvá-la.

— Nada tenho a explicar-te. Se é uma criança, não sou eu sua babá. Cala-te, Alieksiéi, não insistas. Nem mesmo penso nisso.

Houve novo silêncio.

— Ela vai rezar à Virgem todas as noites para saber o que deve fazer amanhã — continuou ele, num tom maldoso.

— Tu... falas de Catarina Ivânovna?

— Sim. Aparecerá ela para salvar Mítia ou para perdê-lo? Rezará para ser esclarecida. Não sabe ainda, vê, não tendo tido ainda tempo de se preparar. Outra ainda que me toma por ama-de-leite, quer que eu a acalente.

— Catarina Ivânovna te ama, meu irmão — disse tristemente Aliócha.

— É possível. Mas a mim ela não agrada.

— Ela sofre. Por que então dizer-lhe... por vezes, palavras que lhe dão esperança? — prosseguiu timidamente Aliócha. — Sei que o fizeste, perdoa-me se falo assim.

— Não posso fazer o que seria preciso, romper e falar-lhe de cora­ção aberto! — disse Ivã, com arrebatamento. — É preciso esperar que o assassino seja julgado. Se romper com ela agora, botará a perder amanhã, por vingança, aquele desgraçado, porque ela o odeia e tem consciência disso. Aqui, é mentira sobre mentira! Enquanto ela conservar esperança, não botará a perder aquele monstro, sabendo que eu quero salvá-lo. Ah! quando será pronunciada essa maldita sen­tença!

As palavras "assassino" e "monstro" tinham impressionado dolorosa­mente Aliócha.

— Mas como poderia ela perder o nosso Mítia? Em que é de temer o seu depoimento?

— Não o sabes ainda. Tem em suas mãos um documento escrito por Mítia e demonstrando que foi ele quem matou Fiódor Pávlovitch.

— É impossível! — exclamou Aliócha.

— Impossível, como? Eu mesmo o li.

— Não pode existir semelhante documento! — repetia Aliócha com ardor. — Não pode existir, porque não foi Mítia o assassino. Não foi ele quem matou nosso pai.

Ivã parou.

— Quem então o matou, na tua opinião? — perguntou ele friamente. Havia arrogância na sua voz.

— Tu mesmo sabes quem — disse mansamente e num tom penetran­te Aliócha.

— Quem? Essa fábula a respeito daquele idiota epiléptico, Smier­diákov?

— Tu mesmo sabes quem... — deixou Aliócha escapar, já sem forças. Ofegava, tremia.

— Mas quem então, quem? — gritou Ivã cheio de raiva. Não era mais senhor de si.

— Só sei uma coisa — disse Aliócha, em voz baixa: "Não foste tu" que mataste o pai. Estou certo disso.

— Que queres dizer com estas palavras: "Não foste tu"? — per­guntou Ivã, estupefato.

— Não foste tu que mataste, não foste tu! — repetiu com firmeza Aliócha. Houve um silêncio.

— Mas sei bem que não fui eu, estás delirando? — disse Ivã, pálido, com um sorriso que era mais uma careta. Encarava Aliócha. Encon­travam-se de novo perto de um lampião.

— Não, Ivã, disseste a ti mesmo várias vezes que eras tu o as­sassino.

— Quando o disse?... Estava em Moscou... Quando o disse? — repetiu Ivã perturbado.

— Tu o disseste a ti mesmo muitas vezes, quando ficavas sozinho, durante aqueles dois terríveis meses — disse Aliócha brandamente. Dir-se-ia que falava, malgrado seu, obedecendo a uma ordem imperiosa. — Tu te acusaste, reconheceste que o assassino não era outro senão tu. Mas enganas-te, não és tu, tu me entendes? não és tu! É Deus quem me envia para dizer-to.

Ambos se calaram durante um minuto. Pálidos, fitavam-se bem nos olhos. De súbito, Ivã estremeceu, agarrou Aliócha pelo ombro.

— Estavas em minha casa! — cochichou ele, com os dentes cerra­dos. — Estavas em minha casa, à noite, quando ele veio... Confes­sa-o... Viste-o?

— De quem falas... de Mítia? — perguntou Aliócha, que não com­preendia.

— Dele não... ao diabo o monstro! — vociferou Ivã. — Será que sabes que ele veio ver-me? Como o soubeste? Fala!

— "Ele", quem? Ignoro a quem te referes — disse Aliócha, ater­rorizado.

— Não, tu sabes... senão como é que tu... não podes deixar de saber...

Mas conteve-se. Parecia meditar. Um sorriso estranho pregueava-lhe os lábios.

— Meu irmão — prosseguiu Aliócha, com voz trêmula —, disse-te isto porque crês na minha palavra, eu o sei. Disse-to duma vez para sempre: "Não foste tu!" Ouves? Duma vez para sempre. E foi Deus quem me inspirou, ainda que tenhas de odiar-me doravante.

Mas Ivã voltara a dominar-se.

— Alieksiéi Fiódorovitch — disse ele, com um sorriso frio —, não gosto nem dos profetas nem dos epilépticos; sobretudo dos enviados de Deus, você bem o sabe. Desde agora, rompo com você e sem dúvida para sempre. Rogo-lhe que me deixe nesta encruzilhada. De resto, aqui está a rua que leva à sua casa. Sobretudo, evite vir à mi­nha casa hoje, ouviu?

Voltou-se e afastou-se a passos firmes, sem se voltar.

— Meu irmão — gritou-lhe Aliócha —, se te acontecer alguma coisa hoje, pensa em mim!...

Ivã não respondeu. Aliócha ficou na encruzilhada, perto do lampião, até que Ivã desapareceu na escuridão. Retomou então lentamente o caminho de sua residência. Nem ele nem Ivã tinham querido morar na casa solitária de Fiódor Pavlovitch. Aliócha alugava um quarto mobiliado em casa de particulares. Ivã Fiódorovitch ocupava um apar­tamento espaçoso e bastante confortável na ala duma casa que per­tencia a uma senhora abastada, viúva de um funcionário. Tinha para servi-lo apenas uma velha surda, entrevada de reumatismo, que se deitava e se levantava às 6 horas. Ivã Fiódorovitch tornara-se muito pouco exigente durante aqueles dois meses e gostava muito de ficar sozinho. Ele mesmo arrumava seu quarto e ia raramente às outras peças. Tendo chegado ao portão e já segurando o cordão da sinêta, parou. Sentia-se sacudido por um arrepio de cólera. Largou o cordão, cuspiu, e dirigiu-se bruscamente para o outro extremo da cidade, para uma casinha de madeira em penada, a 2 verstas de sua residência. Era ali que morava Maria Kondrátievna, a antiga vizinha de Fiódor Pávlo­vitch, que ia à casa dele buscar sopa e à qual Smierdiákov cantava canções, acompanhando-se na guitarra. Vendera sua casa e vivia com sua mãe numa espécie de isbá; Smierdiákov, doente e quase moribundo, instalara-se em casa delas. Era para lá que se dirigia agora Ivã Fiódo­rovitvh, cedendo a um impulso súbito, irresistível.

 

PRIMEIRA ENTREVISTA COM SMIERDIÁKOV

Era a terceira vez que Ivã Fiódorovitch ia conversar com Smierdiá­kov, desde seu regresso de Moscou. Vira-o após o drama, no primeiro dia de sua chegada, depois visitou-o duas semanas após. Mas havia mais de um mês não voltara à casa de Smierdiákov e não sabia quase nada dele. Ivã Fiódorovitch voltara de Moscou cinco dias somente após a morte de seu pai, enterrado na véspera. Com efeito, ignorando Alió­cha o endereço de seu irmão em Moscou, recorrera a Catarina Ivânov­na, que telegrafou a suas parentas, na idéia de que Ivã Fiódorovitch fora visitá-las assim que chegara. Mas só as visitou quatro dias mais tarde e, depois de ter lido o telegrama, regressou a toda a pressa para a nos­sa cidade. Conversou em primeiro lugar com Aliócha, ficando surpreso por vê-lo afirmar a inocência de Mítia e designar Smierdiákov como o assassino, contrariamente à opinião geral. Depois de ter visto o isprávnik e o procurador, tomou conhecimento, com detalhes, da acusação e do interrogatório, ficou mais espantado ainda e atribuiu a opinião de Alió­cha unicamente ao seu extremo afeto fraternal, à compaixão que Mí­tia lhe inspirava. A este propósito, expliquemos de uma vez por todas os sentimentos de Ivã por seu irmão Dimítri Fiódorovitch: decidida­mente não gostava dele, a compaixão que ele lhe inspirava misturava-se a muito desprezo, indo até à aversão. Mítia era-lhe totalmente antipáti­co, até mesmo fisicamente. Quanto ao amor de Catarina Ivânovna por ele, causava indignação a Ivã. Vira Mítia no primeiro dia de sua che­gada, e essa entrevista, longe de enfraquecer sua convicção de culpabi­lidade, havia-a fortificado. Seu irmão estava então inquieto, numa agi­tação doentia, falava muito, mas distraído e desorientado, exprimia-se com brusquidão, acusava Smierdiákov, atrapalhava-se terrivelmente. Fa­lava sobretudo dos 3 000 rublos "roubados" pelo defundo. "Aquele di­nheiro me pertencia", afirmava Mítia. "Mesmo se eu o tivesse roubado, teria sido justo. " Não respondia quase às acusações que se elevavam contra ele e se discutia os fatos em seu favor era duma maneira con­fusa, canhestra, como se não quisesse mesmo justificar-se aos olhos de Ivã; pelo contrário, zangava-se, desdenhava as acusações, invectivava, acalorava-se. Zombava do testemunho de Gregório relativo à porta aberta, assegurava que era "o diabo quem a tinha aberto". Mas não podia explicar esse fato de uma maneira plausível. Havia mesmo ofen­dido Ivã, por ocasião dessa primeira entrevista, declarando-lhe brusca­mente que não cabia aos que sustentavam que "tudo é permitido" sus­peitar dele e interrogá-lo. Em suma, mostrara-se bastante pouco amável com Ivã Fiódorovitch. Este, após sua entrevista com Mítia, foi logo ter com Smierdiákov.

Ainda no vagão, pensava constantemente em Smierdiákov e na sua derradeira conversa na véspera de sua partida. Muitas coisas o pertur­bavam, pareciam-lhe suspeitas. Mas no seu depoimento ao juiz de ins­trução, havia Ivã provisoriamente guardado segredo a respeito. Espera­va avistar-se com Smierdiákov, que se encontrava então no hospital. O Doutor Herzenstube e o médico do hospital Varvínski responderam ca­tegoricamente às perguntas de Ivã Fiódorovitch que a epilepsia de Smier­diákov estava certificada e pareceram mesmo surpresos de que ele lhes perguntasse se não houvera simulação no dia do drama. Deram-lhe a entender que era uma crise extraordinária, que se repetira durante vá­rios dias, pondo em perigo a vida do doente. Agora, graças às medidas tomadas, podia-se afirmar que ele escaparia, mas talvez, acrescentou o Doutor Herzenstube, sua razão ficasse perturbada, se não para sempre, pelo menos por muito tempo. Insistindo Ivã Fiódorovitch em saber se ele estava louco no momento, responderam-lhe que, sem estar ainda completamente louco, apresentava certas anomalias. Ivã Fiódorovitch resolveu dar-se conta disso* pessoalmente. Foi imediatamente admitido à presença de Smierdiákov, que se encontrava num quarto separado, dei­tado. Um segundo leito era ocupado por um hidrópico que só poderia durar um ou dois dias e não iria atrapalhar a conversa. Smierdiákov mostrou um sorriso desconfiado à vista de Ivã Fiódorovitch, pareceu mesmo intimidado no primeiro momento, pelo menos teve Ivã essa im­pressão. Mas isso só durou um instante e Smierdiákov espantou-o quase pela sua calma no resto do tempo. À primeira vista, pôde Ivã Fiódoro­vitch convencer-se da gravidade de seu estado; estava muito fraco, fa­lava lentamente, penosamente, emagrecera muito e amarelecera. Du­rante os vinte minutos que durou a entrevista, queixava-se sem cessar de dores de cabeça e de lassidão em todos os membros. Seu rosto chu­pado de eunuco havia-se encolhido, com os cabelos revoltos nas têm­poras. Somente uma mecha delgada erguia-se à guisa de topete. Mas o olho esquerdo, piscante e parecendo fazer alusão, lembrava o antigo Smierdiákov: "Dá gosto falar com um homem de espírito", lembrou-se logo Ivã Fiódorovitch. Sentou-se a seus pés, num tamborete. Smierdiákov mexeu-se, gemendo, mas guardou silêncio, não tinha ar de muita curio­sidade.

— Podes falar-me? Não te fatigarei demais.

— Decerto — murmurou Smierdiákov, com voz fraca. — Há mui­to tempo que o senhor chegou? — acrescentou com condescendência, como para encorajar o visitante constrangido.

— Hoje somente... para esclarecer a trapalhada de vocês. Smierdiákov suspirou.

— Que tens de suspirar? Sabias então — perguntou Ivã.

— Como não o teria sabido? — disse Smierdiákov, após um silêncio. — Era claro, de antemão. Mas como prever que aquilo acabaria assim?

— Acabaria o quê? Nada de rodeios! Por que predisseste que terias uma crise logo que descesses à adega? Designaste abertamente a adega.

— Disse isso no seu depoimento? — perguntou Smierdiákov, com fleuma.

— Ainda não, mas o direi decerto. Deves-me explicações, meu ami­go, e fica sabendo, meu caro, que não permitirei que brinques comigo!

— Por que brincar com o senhor, quando minha esperança está toda no senhor, como que em Deus? — proferiu Smierdiákov, sem se co­mover.

— Em primeiro lugar, sei que não se pode prever uma crise de epi­lepsia. Tomei informações, portanto é inútil fingir. Como, pois, fizeste, para me predizer o dia, a hora e até mesmo o lugar? Como podias sa­ber de antemão que terias uma crise justamente naquela adega, se não simulaste?

— De toda maneira teria eu de ir à adega várias vezes por dia — respondeu lentamente Smierdiákov. — Foi assim que caí do celeiro, há um ano. Bem decerto não se podem prever o dia e a hora duma crise, mas pode-se ter sempre um pressentimento.

— Ora, tu predisseste o dia e a hora!

— No que concerne à minha doença, senhor, informe-se antes junto aos médicos para saber se ela era natural ou fingida; nada mais tenho a dizer-lhe a este respeito.

— Mas a adega? Como previste a adega?

— Essa adega o atormenta! Quando ali desci, tinha medo, descon­fiava, tinha medo porque, uma vez ausente o senhor, não havia mais ninguém para me defender. Pensava: "Vou ter um ataque, cairei ou não?" E essa apreensão provocou o espasmo na garganta... vim abaixo. Tu­do isso, bem como nossa conversa, na véspera, no portão, quando lhe dava parte de meus temores, inclusive a adega, eu o expus com detalhes ao Senhor Doutor Herzenstube e ao juiz de instrução, Nikolai Parfié­novitch; ficou tudo constando dos autos. O médico do hospital, Var­vínski, explicou particularmente que a apreensão mesma havia provo­cado a crise e o fato foi notado.

Como que esgotado pela lassidão, Smierdiákov respirou com dificul­dade.

— Então, já fizeste essas declarações? — perguntou Ivã Fiódorovitch um tanto desconcertado. Queria amedrontá-lo, ameaçando-o com a di­vulgação de sua conversa, mas o outro tomara a dianteira.

— Que tenho a temer? Devem eles conhecer toda a verdade — disse Smierdiákov, com segurança.

— E contaste também exatamente nossa conversa perto do portão?

— Não, não exatamente.

— Disseste também que sabes simular uma crise, como disso te ga­bavas diante de mim?

— Não.

— Dize-me agora: por que me mandavas para Tchermachniá?

— Temia que o senhor fosse para Moscou. Tchermachniá é mais perto.

— Mentes, foste tu que instaste comigo para partir; "Afaste-se do pecado", dizias.

— Foi unicamente por amizade, por devotamento, pressentindo uma desgraça, e para poupá-lo. Mas minha segurança passava além da do senhor. De modo que lhe disse: afaste-se do pecado, para fazê-lo com­preender que aconteceria alguma coisa e que o senhor deveria ficar para defender seu pai.

— Deverias ter-me falado francamente então, imbecil!

— Como poderia fazê-lo? O medo dominava-me e o senhor poderia ter-se zangado. Podia temer, com efeito, que Dimítri Fiódorovitch fi­zesse escândalo e arrebatasse aquele dinheiro que considerava como pro­priedade sua, mas quem teria crido que aquilo acabaria por um assassi­nato? Pensava que ele se contentaria com furtar aqueles 3 000 rublos ocultos sob o colchão, num envelope, mas ele assassinou. Como adi­vinhar, senhor?

— Então, se dizes tu mesmo que era impossível, como podia eu adi­vinhar e ficar? Não está claro.

— O senhor podia adivinhar pelo fato de enviá-lo eu a Tchermachniá em lugar de Moscou.

— Que é que isso prova?

Smierdiákov, que parecia muito cansado, calou-se de novo.

— O senhor podia compreender que se eu o aconselhava a ir a Tchermachniá é que desejava tê-lo por perto, porque Moscou é longe. Sabendo que o senhor estava nas proximidades, Dimítri Fiódorovitch teria hesitado! O senhor poderia, se preciso, acorrer e defender-me, por­que eu lhe havia informado que Gregório Vassílievitch estava doente e eu receava uma crise. Ora, explicando-lhe que se poderia, por meio de sinais, penetrar em casa do defunto, e que Dimítri Fiódorovitch os conhecia graças a mim, pensei que o senhor adivinharia por si mes­mo que ele se entregaria decerto a violências e que, longe de partir para Tchermachniá, o senhor ficaria.

"Ele fala sensatamente", pensava Ivã, "se bem que titubeie; por que dizia Herzenstube que tem ele o espírito transtornada?"

— Estás com astúcias comigo. O diabo te carregue! — exclamou ele, zangado.

— Francamente, cria então que o senhor havia adivinhado — repli­cou Smierdiákov, com o ar mais ingênuo.

— Neste caso, teria eu ficado!

— Isto mesmo! Eu pensava que o senhor partia apesar de tudo para salvar-se, porque o senhor tinha medo.

— Acreditavas que todos são tão covardes com tu?

— Desculpe, pensava que o senhor era como eu.

— Decerto, era preciso prever; aliás, eu previa uma vilania de tua parte. Mas tu mentes, mentes de novo — exclamou ele, impressionado por uma lembrança. — Hás de lembrar-te de que, no momento de mi­nha partida, disseste-me: "Dá gosto conversar com um homem de espí­rito". Estavas, pois, contente com a minha partida, uma vez que me cumprimentavas.

Smierdiákov suspirou várias vezes e pareceu corar.

— Estava contente — disse ele com esforço —, mas unicamente por­que o senhor se decidia por Tchermachniá em lugar de Moscou. É sempre mais perto; e minhas palavras não eram um cumprimento, mas uma censura. O senhor não compreendeu.

— Que censura?

— Muito embora pressentindo uma desgraça, o senhor abandonava seu pai e recusava-se a defender-nos, porque podia eu ser suspeitado de ter furtado aqueles 3 000 rublos.

— Que o diabo te leve! Um instante; falaste aos juizes a respeito dos sinais, daquelas pancadas?

— Expliquei-lhes tudo, sem faltar nada. Ivã Fiódorovitch admirou-se de novo.

— Se pensei então em alguma coisa foi numa infâmia de tua parte; aliás, esperava isso. Dimítri podia matar, mas acreditava-o incapaz de roubar. Tu me disseste que sabias simular as crises. Por que disseste isso?

— Por ingenuidade. Jamais simulei a epilepsia, foi simplesmente pa­ra me gabar, por estupidez. Gostava muito do senhor então e conver­sava com toda- a simplicidade.

— Meu irmão te acusa, diz que foste tu que mataste e roubaste.

— Decerto, que outra coisa poderá dizer? — Smierdiákov sorriu amargamente. — Mas quem acreditará em tais acusações dele? Gregó­rio Vassílievitch viu a porta aberta. É concludente. Enfim, que Deus o perdoe! Ele tenta salvar-se e tem medo.

Smierdiákov pareceu refletir, depois acrescentou:

— É sempre a mesma coisa; quer atirar esse crime sobre mim, já o ouvi dizer, mas teria eu prevenido o senhor de que sei simular a epilepsia, se me preparasse para matar seu pai? Meditando esse crime, poderia eu ser tão tolo a ponto de revelar de antemão tal prova e, ainda por cima, ao filho da vítima! Pense nisso! É verossímil? Neste momento, ninguém ouve nossa conversa, exceto a Providência, mas se o senhor a comunicasse ao procurador e a Nikolai Parfiénovitch, ser­viria isto para minha defesa, porque um celerado não pode ser tão ingênuo. Todos raciocinarão assim.

— Escuta — disse Ivã Fiódorovitch levantando-se, impressionado por esse último argumento. — Não suspeito de ti absolutamente. Seria ridí­culo acusar-te... agradeço-te mesmo teres-me tranqüilizado. Vou-me embora, mas voltarei. Adeus. Restabelece-te. Tens necessidade de algu­ma coisa?

— Agradeço-lhe. Marfa Ignatiévna não me esquece e, sempre boa, me vem em auxílio quando preciso. Pessoas de bem vêm ver-me todos os dias.

— Adeus. Aliás, não direi que sabes simular uma crise... aconse­lho-te também a não falar disso — disse Ivã sem saber por quê.

— Compreendo bem. Se o senhor não disser, não repetirei tampouco toda a nossa conversa junto ao portão...

Ivã Fiódorovitch saiu. Apenas dera uns dez passos no corredor, deu-se conta de que a derradeira frase de Smierdiákov tinha algo de ferino. Queria já arrepiar caminho, mas ergueu os ombros e "saiu do hospital. Sentia-se tranqüilizado pelo fato de que o culpado não era Smierdiákov, mas seu irmão Mítia, conquanto devesse ser isso precisamente o con­trário, parece. Não queria procurar a razão disso, sentindo repugnância em analisar suas sensações. Tinha pressa de esquecer. Nos dias que se seguiram, convenceu-se definitivamente da culpabilidade de Mítia, estu­dando mais a fundo as acusações que pesavam sobre ele. Pessoas infe­riores, tais como Fiénia e sua mãe, tinham prestado depoimentos per­turbadores. Inútil falar de Pierkhótin, do botequim, da loja dos Plótni­kovi, das testemunhas de Mókroie. Os detalhes sobretudo eram esma­gadores. A história das pancadas misteriosas havia impressionado o juiz e o procurador quase tanto quanto o depoimento de Gregório a res­peito da porta aberta. Marfa Ignátievna, interrogada por Ivã Fiódoro­vitch, declarou-lhe que Smierdiákov passara a noite atrás do biombo, "a três passos de nosso leito", e que, muito embora dormisse ela pro­fundamente, despertara muitas vezes ouvindo-o gemer: "Gemia o tem­po todo". Conversando com Herzenstube, Ivã Fiódorovitch deu parte de suas dúvidas a respeito da loucura de Smierdiákov, a quem achava simplesmente fraco, mas o velho sorriu com finura: "Sabe em que ele se ocupa agora? Aprende de cor palavras francesas escritas em letras russas num caderno, eh! eh! eh!" As dúvidas de Ivã Fiódorovith desa­pareceram, afinal. Já não podia pensar mais em Dimítri senão com des­gosto. No entanto, havia uma coisa estranha: a persistência de Aliócha em afirmar que o assassino não era Dimítri, mas "muito provavelmen­te" Smierdiákov. Ivã sempre fizera grande caso da opinião de seu irmão e aquilo o tornava perplexo. Outra coisa estranha, notada por Ivã: Aliocha nunca era o primeiro a falar de Mítia, limitando-se a responder às perguntas dele, Ivã. Aliás, tinha Ivã bem outra coisa na cabeça no mo­mento; desde seu regresso de Moscou, estava loucamente apaixonado por Catarina Ivânovna. Não é aqui o lugar para descrever essa nova paixão de Ivã Fiódorovitch, que influiu em toda a sua vida; formaria isto matéria dum outro romance que escreverei talvez um dia. Devo assinalar, em todo caso, que quando ele declarou a Aliócha, ao sair da casa de Catarina Ivânovna: "A mim ela não agrada", como o con­tei acima, mentia a si mesmo; amava-a loucamente, ao mesmo tempo que a odiava por vezes, a ponto de ser capaz de matá-la. Isto ligava-se a muitas causas; transtornada pelo drama, voltara-se para Ivã Fiódo­rovicht, que de novo estava a seu lado, como para um salvador. Esta­va ofendida, humilhada nos seus sentimentos. E eis que reaparecia o homem que a amava tanto antes — ela bem o sabia — e cuja inteli­gência e coração sempre apreciara. Mas a severa moça não se dera total­mente, malgrado a impetuosidade de seu amoroso, digna dos Karamázovi, e a fascinação que ele exercia sobre ela. Ao mesmo tempo, atormentava-se sem cessar por ter traído Mítia e, por ocasião de suas frequentes dis­cussões com Ivã, declarava-lhe isso francamente. Era o que, falando a Aliócha, chamara ela de "mentira sobre mentira". Havia, com efeito, muita mentira nas relações deles, o que exasperava Ivã Fiódorovitch.,. mas não antecipemos. Em suma, por algum tempo, esqueceu-se ele qua­se de Smierdiákov. No entanto, duas semanas após sua primeira visita, as mesmas idéias estranhas recomeçaram a atormentá-lo. Perguntava a si mesmo muitas vezes por que, na derradeira noite, na casa de Fiódor Pávlovitch, antes de sua partida, saíra de mansinho para a escada, co­mo um ladrão, para escutar o que fazia seu pai no rés-do-chão. Poste­riormente, lembrou-se disso com desgosto. Sentiu-se de súbito angus­tiado no dia seguinte pela manhã em viagem e, ao aproximar-se de Moscou, dizia a si mesmo: "Sou um miserável!" Por que isso? Pensava mesmo uma vez que essas idéias penosas podiam fazer que esquecesse Catarina Ivânovna, quando encontrou Aliócha na rua. Deteve-o logo e perguntou-lhe:

— Lembras-te daquela tarde em que Dimítri irrompeu em casa de nosso pai e bateu nele? Disse-te mais tarde no pátio que me reservava "o direito de desejar". Dize-me, pensaste então que eu desejava a mor­te de nosso pai?

— Sim — disse mansamente Aliócha.

— Aliás, não era difícil adivinhar. Mas não pensaste também que eu desejava que os répteis se devorassem mutuamente, isto é, que Di­mítri matasse nosso pai o mais depressa possível... e que eu mesmo o ajudaria nisso?

Aliócha empalideceu, olhou em silêncio para seu irmão, fitando-o bem nos olhos.

— Fala! — exclamou Ivã. — Quero saber o que pensaste. É-me precisa toda a verdade!

Sufocava e olhava de antemão Aliócha com um ar cheio de maldade.

— Perdoa-me, pensei isso também — murmurou Aliócha, sem acres­centar "circunstância atenuante".

— Obrigado — disse secamente Ivã, que prosseguiu seu caminho.

Desde então, notou Aliócha que seu irmão o evitava e lhe testemu­nhava aversão, tanto que cessou suas Visitas. Logo depois desse encon­tro, voltara Ivã Fiódorovitch a ver Smierdiákov

 

SEGUNDA ENTREVISTA COM SMIERDIÁKOV

Smierdiákov havia saído do hospital. Residia naquela casinha empe­nada que se compunha de duas peças reunidas por um vestíbulo. Maria Kondratievna e sua mãe habitavam uma, a outra era ocupada por Smierdiákov. Não se sabia exatamente a que título se instalara ele em casa delas; mais tarde, supôs-se que vivia como noivo de Maria Kon­dratievna e não pagava nada no momento. A mãe e a filha estima­vam-no muito e consideravam-no superior a elas. Depois de ter batido, Ivã, segundo as indicações de Maria Kondratievna, entrou diretamente à esquerda na peça ocupada por Smierdiákov. Uma estufa de faiança desprendia um calor intenso. As paredes estavam ornadas de papel azul, mas rasgado, sob* o qual, nas fendas, formigavam as baratas, das quais se ouvia o barulho contínuo. O mobiliário era insignificante: dois ban­cos contra as paredes e duas cadeiras perto da mesa muito simples, co­berta por uma toalha de ramagens côr-de-rosa. Sobre as janelas, gerâ­nios; a um canto, imagens santas. Sobre a mesa, um pequeno samovar de cobre, fortemente amassado, uma bandeja e duas xícaras. Mas estava apagado, Smierdiákov já havia tomado o chá... Estava sentado sobre um banco e escrevia num caderno. Ao lado dele, achavam-se um pe­queno tinteiro e uma vela num candelabro de ferro fundido. Olhando Smierdiákov, teve Ivã a impressão de que estava ele completamente res­tabelecido. Tinha o rosto mais fresco, menos magro, os cabelos empo­madados, um roupão de quarto pintalgado, forrado de algodão e bas­tante usado. Trazia óculos, o que era novidade para Ivã Fiódorovitch. Esse detalhe irritou-o: "Semelhante criatura usar óculos!" Smierdiákov ergueu lentamente a cabeça, fixou o visitante através de seus óculos; tirou-os, depois levantou-se displicentemente, menos em atitude de res­peito do que para cumprir estrita polidez. Ivã notou tudo isso num piscar de olhos e sobretudo o olhar malévolo e mesmo orgulhoso de Smierdiákov. "Que vens fazer aqui? Já nos entendemos", parecia ele dizer. Ivã Fiódorovitch mal se continha.

— Faz calor aqui — disse, ainda de pé, desabotoando seu sobretudo.

— Tire-o — sugeriu Smierdiákov.

Ivã Fiódorovitch tirou seu sobretudo, pegou uma cadeira com suas mãos trêmulas, aproximou-a da mesa e sentou-se. Smierdiákov já havia retomado seu lugar.

— Em primeiro lugar, estamos sós? — perguntou severamente Ivã Fiódorovitch. — Não poderão ouvir-nos?

— Ninguém. O senhor viu que há um vestíbulo.

— Escuta, então. Que é que insinuavas quando te deixei, no hospi­tal, dizendo que se eu não falasse de tua habilidade em simular epilep­sia, tu não relatarias ao juiz toda a nossa conversa junto do portão? Que significa esse "toda"? Que entendias com isso? Era uma ameaça? Existe um acordo entre nós? Tenho medo de ti?

Ivã Fiódorovitch falava com cólera, dava claramente a entender que desprezava os rodeios, jogava cartas na mesa. Smierdiákov lançou um olhar mau, seu olho esquerdo pôs-se a piscar, como para dizer, com sua reserva habitual: "Queres ir diretamente ao caso, pois seja!"

— Queria dizer então que, prevendo o assassinato do seu próprio pai, o senhor deixou-o sem defesa. Era uma promessa de calar-me para impedir julgamentos desfavoráveis de seus sentimentos ou mesmo de outra coisa.

Pronunciou Smierdiákov estas palavras sem se apressar, parecendo senhor de si, mas num tom áspero, provocante. Fixou Ivã Fiódorovitch com ar insolente.

— Como? O quê? Estás em teu bom senso?

— Estou em todo o meu bom senso.

— Estava eu então a par do assassinato? — exclamou Ivã, dando um formidável murro sobre a mesa. E que significa "de outra coisa"? Fala, miserável!

Smierdiákov calava-se, com a mesma insolência no olhar.

— Fala, pois, canalha infecto, dessa outra coisa!

— Pois bem! Queria eu dizer com aquilo que o senhor mesmo, tal­vez, desejasse vivamente a morte de seu pai.

Ivã Fiódorovitch levantou-se e bateu com todas as suas forças no ombro de Smierdiákov; este cambaleou até perto da parede, lágrimas inundaram-lhe o rosto. "É vergonhoso, senhor, bater em um homem sem defesa!"

Cobriu o rosto com seu sujo lenço de quadrados azuis e pôs-se a so­luçar.

— Basta! Pára com isso! — disse imperiosamente Ivã, que tornou a sentar-se. — Não me leves aos extremos!

Smierdiákov descobriu seus olhos. Seu rosto enrugado exprimia vivo rancor.

— De modo que, miserável, acreditavas que, de conluio com Di­mítri, queria eu matar meu pai?

— Não conhecia os seus pensamentos e foi para sonda-lo que o detive no corredor.

— Quê? Sondar o quê?

— Suas intenções. Se o senhor desejava que seu pai fosse pronta­mente assassinado!

O que exasperava Ivã Fiódorovitch era o tom altivo e impertinente de que não queria desistir Smierdiákov.

— Foste tu que o mataste! — exclamou ele, de repente. Smierdiákov sorriu, desdenhoso.

— O senhor sabe perfeitamente que não fui eu, e teria crido que um homem inteligente não insistiria nisso.

— Mas por que tiveste tal suspeita a meu respeito?

— Como o senhor sabe, é por medo. Porque estava em tal situação que desconfiava de todo mundo. Quis também sondá-lo porque, pensei, se o senhor estivesse de acordo com seu irmão, estaria eu perdido.

— Não falavas assim, há duas semanas.

— Subentendia a mesma coisa no hospital, supondo que o senhor compreenderia por meias palavras e que evitava uma explicação direta.

— Vejam só! Mas responde então, insisto: como pude inspirar em tua alma vil essa ignóbil suspeita?

— Matar pessoalmente, não era o senhor capaz disso, mas desejava que outrem o fizesse.

— Com que fleuma ele fala! Mas por que tê-lo-ia eu querido?

— Como? Por quê? E a herança? — disse perfidamente Smierdiákov. — Após a morte de seu pai, devia receber 40 000 rublos cada um, se não mais. Se Fiódor Pávlovitch, porém, tivesse desposado aquela se­nhora, Agrafiena Alieksándrovna, teria ela logo transferido o capital para seu nome, porque não é tola, de sorte que nada teria restado para os senhores três. Esteve isso por um fio; bastava que ela dissesse uma palavra e ele a teria acompanhado à igreja, todo enamorado. Ivã Fiódorovitch mal se podia conter.

— Está bem — disse por fim —, vês? nem te bati, nem te matei. Continua. Então, na tua opinião, encarregara eu meu irmão Dimítri des­sa tarefa, contava com ele?

— Certamente. Assassinando, perdia ele todos os seus. direitos, era degradado e deportado. Seu irmão Alieksiéi Fiódorovitch e o senhor herdariam a parte dele, e não seriam 40 000 rublos para cada um, mas 60 000 que lhes caberia. O senhor contava certamente com Dimítri Fió­dorovitch.

— Pões minha paciência à prova! Escuta, patife, se tivesse contado naquele momento com alguém, seria contigo, e não com Dimítri, e, ju­ro-o, pressentia alguma infâmia de tua parte... então... lembro-me de minha impressão!

— Eu também cri um instante que o senhor contava comigo — disse ironicamente Smierdiákov —, de sorte que o senhor se desmascarava ainda mais, porque se partia malgrado aquele pressentimento, isto re­vertia em dizer: podes matar meu pai, não me oponho a isso.

— Miserável! Havias compreendido isso.

— Pense um pouco: o senhor ia partir para Moscou, recusava, mal­grado os rogos de seu pai, dirigir-se a Tchermachniá. E consente, de repente, a uma palavra minha! Que é que o levava àquela Tchermach­niá? Para partir assim sem razão, a meu conselho, era preciso que esperasse o senhor alguma coisa de mim.

— Não, juro que não — gritou Ivã, rangendo os dentes.

— Como não? O senhor deveria ter-me, pelo contrário, o senhor, o filho da casa, por causa daquelas palavras, conduzido à polícia e mandado chicotear-me... pelo menos surrar-me ali mesmo. Em lugar de zangar-se, segue conscienciosamente meu conselho, parte, coisa ab­surda, porque deveria ter ficado para defender seu pai... Que devia eu concluir?

Ivã tinha o ar sombrio, com os punhos crispados sobre os joelhos.

— Sim, lamento não te ter surrado então — disse, com um sorriso amargo. — Não podia levar-te à polícia, não me teriam acreditado sem provas. Mas surrar-te... ah! lamento não ter pensado nisso; muito em­bora as agressões físicas sejam proibidas, ter-te-ia amassado devidamente o focinho.

Smierdiákov observava-o quase com volúpia.

— Nos casos ordinários da vida — declarou ele, num tom satisfeito e doutorai, como quando discutia sobre a fé com Gregório Vassílievitch em casa de seu amo —, as agressões físicas estão realmente proibidas pela lei, renunciaram a tais brutalidades. mas nos casos excepcionais, entre nós como no mundo inteiro, até mesmo na República Francesa, continuam a atacar-se violentamente como no tempo de Adão e Eva, e será sempre assim. No entanto, o senhor, mesmo num caso excepcio­nal, não ousou.

— São palavras francesas que estás aprendendo ali? — perguntou Ivã, designando um caderno sobre a mesa.

— Por que não? Completo minha instrução com a idéia de que um dia talvez visitarei também eu aquelas felizes regiões da Europa.

— Escuta, monstro — disse Ivã, que tremia de cólera —, não temo tuas acusações, depõe contra mim tudo quanto queiras. Se não te matei, ainda há pouco, foi unicamente porque suspeito de ti como autor desse crime e quero entregar-te à justiça. Eu te desmascararei.

— Na minha opinião, o senhor faria melhor calando-se. Porque, que pode o senhor dizer contra um inocente e quem o acreditará? Mas se o senhor me acusar, contarei tudo. Preciso bem defender-me!

— Pensas que tenho medo de ti agora?

— Admitamos que a justiça não acredite em minhas palavras; em compensação o público acreditará e será uma vergonha para o senhor.

— Isto quer dizer que "dá gosto falar com um homem de espírito", não é? — perguntou Ivã, rangendo os dentes.

— O senhor o disse. Dê prova de espírito.

Ivã Fiódorovitch levantou-se, fremente de indignação, vestiu seu so­bretudo e, sem mais responder a Smierdiakov, sem mesmo olhá-lo, pre­cipitou-se para fora da isbá. O vento fresco da noite refrescou-o. Fazia luar. As idéias e sensações turbilhonavam nele. "Ir denunciar agora Smierdiakov? Mas que dizer? Ele é, contudo, inocente. Será ele quem me acusará, pelo contrário. Com efeito, por que parti então para Tcher­machniá? Com que fim? Certamente, esperava eu alguma coisa, ele tem razão... " Pela centésima vez, lembrava-se de como, na derradeira noite passada em casa de seu pai, se mantinha ele na escada, à escuta, e isto lhe causava tal sofrimento que chegou mesmo a parar, como que traspassado: "Sim, esperava aquilo, então, é verdade! Quis o assassinato! Eu o quis mesmo? Preciso matar Smierdiakov!... Se não tiver a cora­gem disso, não vale a pena viver!... " Ivã seguiu diretamente para a casa de Catarina Ivânovna, que ficou espantada com o ar desvairado dele. Repetiu-lhe toda a sua conversa com Smierdiakov, até a mínima palavra. Se bem que se esforçasse ela por acalmá-lo, andava ele para lá e para cá, proferindo frases incoerentes. Sentou-se afinal, pôs os co­tovelos sobre a mesa, com a cabeça entre as mãos e fez uma reflexão estranha:

— Se não foi Dimítri, mas Smierdiakov, sou seu cúmplice, porque fui eu que o impeli ao crime. Impéli-o eu mesmo? Não o sei ainda. Mas se foi ele que matou e não Dimítri, sou também um assassino.

A estas palavras, Catarina Ivânovna levantou-se em silêncio, foi à sua escrivaninha e tirou de uma caixinha um papel que colocou diante de Ivã. Era o. documento a respeito do qual falara mais tarde a Alió­cha como duma prova formal da culpabilidade de Dimítri. Era uma carta escrita a Catarina ivânovna por Mítia, em estado de embriaguez, na noite de seu encontro com Aliócha, quando este voltava ao mosteiro de­pois da cena em que Grúchenhka insultara sua rival. Depois de tê-lo deixado, correu Mítia à casa de Grúchenhka, não se sabe se ele a viu, mas acabou a noite no botequim A Capital, onde se embriagou com­pletamente. Nesse estado pediu uma pena, papel e rabiscou um documen­to importante. Era uma carta prolixa, incoerente, digna de um bêbado. Dir-se-ia um ébrio, que, de volta à sua casa, conta com animação à sua mulher ou aos que o cercam que um canalha acaba de insultá-lo, a ele, homem decente, mas que haverá de arrancar-lhe o couro; o ho­mem fala a mais não poder, pontuando de murros sobre a mesa sua narrativa incoerente, comovido até as lágrimas. O panei de carta que lhe tinham dado no botequim era uma folha grosseira, suja, trazendo nas costas uma conta. Faltando espaço para aquele falatório de bêbado, Mítia enchera as margens e escrevera as derradeiras linhas atravessan­do o texto. Eis o que dizia a carta:

Cátia fatal, amanhã arranjarei dinheiro c te restituirei os teus 3 000 rublos. Adeus, mulher rancorosa, adeus também, meu amor! Acabemos com isso! Amanhã, irei pedir dinheiro a todo mundo, se me recusarem, dou-te minha palavra de honra de que irei à casa de meu pai, quebrar-lhe-ei a cabeça e me apoderarei do dinheiro debaixo de seu travesseiro, contanto que Ivã tenha partido. Irei parar no presídio, mas restituir-te-ei os teus 3 000 rublosf Adeus. Saúdo-te até o chão, em comparação contigo sou um miserável. Perdoa-me. Ou antes, não, não me perdoes; estaremos mais à vontade, tu e eu! Prefiro o presídio ao teu amor, por que amo outra, tu a conheces demasiado desde hoje. Como poderias perdoar? Matarei aquele que me despojou! Abandonarei vocês todos para partir para o Oriente, não mais ver ninguém, "ela" tampouco, por­que não és a única a me fazer sofrer. Adeus!

P. S. Eu te amaldiçôo, e contudo adoro-te! Sinto meu coração bater, resta nele uma corda que vibra por ti. Ah! Ê preferível que ele rebente! Eu me matarei, mas matarei em primeiro lugar o monstro, arrancar-lhe-ei os 3 000 rublos e os atirarei a teus pés. Serei um miserável a teus olhos, mas não um ladrão! Aguarda os 3 000. Estão na casa do cão maldito, debaixo de seu colchão, amarrados por uma fita côr-de-rosa. Não sou eu o ladrão, matarei o homem que me roubou. Cátia, não me desprezes. Dimítri é um assassino, mas não é um ladrão! Matou seu pai e se perdeu, para não ter de suportar o teu orgulho. E para não te amar.

PP. S. Beijo-te os pés, adeus!

PP. SS. Cátia, roga a Deus para que me dêem dinheiro. Então não derramarei sangue, mas, se mo recusarem, eu o derramarei. Mata-me!

Teu escravo e teu inimigo.

D. KARAMÁZOV

 

Depois de ter lido esse "documento", Ivã ficou convencido. Fora seu irmão quem matara e não Smierdiákov. Se não fora Smierdiákov, não fora pois ele, Ivã. Aquela carta constituía a seus olhos uma prova ca­tegórica. Para ele, não podia mais haver dúvida alguma sobre a culpa­bilidade de Mítia. A propósito, Ivã jamais suspeitara de uma cumplici­dade entre Mítia e Smierdiákov, isto não concordava com os fatos. Estava completamente tranqüilizado. No dia seguinte, só se lembrou com desprezo de Smierdiákov e de suas zombarias. Ao fim de alguns dias, admirou-se mesmo de ter podido ofender-se tão cruelmente com as suspeitas dele. Resolveu esquecê-lo totalmente. Passou-se assim um mês. Soube por acaso que Smierdiákov estava doente de corpo e espí­rito. "Esse indivíduo ficará louco", dissera a respeito dele o jovem mé­dico Varvínski. Cerca do fim do mês, o próprio Ivã começou a sentir-se bastante mal. Consultara mesmo o médico mandado vir de Moscou por Catarina Ivânovna. Pela mesma época as relações entre eles azeda­ram-se ao extremo. Eram como dois inimigos amorosos um do outro. Os regressos de Catarina Ivânovna para Mítia, passageiros mas violen­tos, exasperavam Ivã. Coisa estranha, até a derradeira cena em presença de Aliócha, quando voltou este da prisão, ele, Ivã, jamais ouvira, du­rante todo o mês, Catarina Ivânovna duvidar da culpabilidade de Mí­tia, malgrado seus regressos a ele, que lhe eram tão odiosos. Era tam­bém de notar que, sentindo seu ódio por Mítia crescer cada dia, com­preendesse Ivã ao mesmo tempo que o odiava não por causa dos re­gressos a ele de Catarina Ivânovna, mas por ter matado o pai deles! Dava-se perfeitamente conta disso. Não obstante, dez dias antes do jul­gamento, fora ver Mítia e lhe propusera um plano de evasão, evidente­mente concebido desde muito tempo. Fora esse passo inspirado em par­te pelo despeito que lhe causava a insinuação de Smierdiákov, de que ele, Ivã, tinha interesse em que seu irmão fosse condenado, porque sua parte da herança e a de Aliócha subiria de 40 000 para 60 000 rublos. Decidira sacrificar 30 000 para fazer Mítia evadir-se. Ao voltar da pri­são, estava triste e perturbado, teve de súbito a impressão de que dese­java aquela evasão não somente para fazer desaparecer assim o seu despeito, mas por outra razão. "Seria porque, no fundo de minha alma, seja também um assassino?", perguntara a si mesmo. Estava vagamente inquieto e ulcerado. Sobretudo, durante aquele mês, seu orgulho muito sofrerá, mas tornaremos a falar disso...

Quando Ivã Fiódorovitch, após sua conversa com Aliócha e já à porta de sua casa, resolvera ir à casa de Smierdiákov, obedecia a uma indignação súbita que dele se havia apoderado. Lembrou-se de repente de que Catarina lvânovna acabava de exclamar em presença de Alió­cha: "Foste tu, tu somente, que me persuadiste de que ele (isto é, Mí­tia) era o assassino!" Ao lembrar-se disso, ficou Ivã estupefato; jamais lhe assegurara a culpabilidade de Mítia, pelo contrário, chegara a sus­peitar de si mesmo em presença dela, ao voltar da casa de Smierdiákov. Em compensação, fora "ela" que lhe exibira então aquele documento e demonstrara a culpabilidade de seu irmão! E agora ela exclamava: "Eu mesma fui à casa de Smierdiákov!" Quando isso? Ivã nada sabia. Não estava ela então bem convencida. E que tinha podido dizer-lhe Smierdiá­kov? Teve um acesso de furor. Não compreendia como, uma meia hora antes, pudera deixar passar aquelas palavras sem se espantar. Largou o cordão da campainha e dirigiu-se à casa de Smierdiákov. "Eu o matarei talvez, agora!", pensava pelo caminho.

 

TERCEIRA E ÚLTIMA ENTREVISTA COM SMIERDIÁKOV

Durante o trajeto, um vento áspero e fresco começou a soprar, o mesmo que de manhã, trazendo uma neve fina, espessa e seca. Caía ela sem aderir ao solo, o vento fazia-a turbilhonar e dentro em breve desencadeou-se uma verdadeira tormenta. Na parte da cidade em que morava Smierdiákov, quase não há lampiões. Ivã marchava no escuro, orientando-se instintivamente. A cabeça doía-lhe. As têmporas latejavam-lhe, seu pulso estava precipitado. Um pouco antes de chegar à casinha de Maria Kondrátievna, encontrou um mujique embriagado, de cafetã remendado, que caminhava em ziguezague, invectivando, interrompendo-se por vezes para entoar uma canção com sua voz rouca: Para Piter[7] partiu Vanka, Por ele não esperarei.

Mas parava sempre no segundo verso e recomeçava suas impreca­ções. Desde bom tempo, sentia Ivã Fiódorovitch inconscientemente ver­dadeiro ódio contra aquele indivíduo; de repente deu-se conta disso. Imediatamente, teve uma vontade irresistível de matá-lo. Justamente na­quele momento encontraram-se lado a lado, e o mujique, cambaleando, deu violento encontrão em Ivã. Este repeliu com raiva o bêbado, que caiu sobre a terra gelada, exalou um gemido e calou-se. Jazia de costas, desmaiado. "Ele vai gelar!", pensou Ivã, que prosseguiu seu caminho.

No vestíbulo, Maria Kondrátievna, que viera abrir, com uma vela na mão, disse-lhe em voz baixa que Páviel Fiódorovitch (isto é, Smierdiákov) estava muito mal e parecia fora de juízo, tendo mesmo recusado tomar o chá.

— Está fazendo barulho, então? — indagou Ivã.

— Pelo contrário, está completamente calmo, mas não o retenha de­masiado tempo... — pediu Maria Kondrátievna.

Ivã entrou na isbá.

Estava esta sempre bastante aquecida, mas notavam-se algumas mu­danças no quarto; um dos bancos dera lugar a um grande divã de falso acaju, recoberto de couro, arranjado como cama, com travesseiros bas­tante limpos. Smierdiákov estava sentado, sempre metido no seu velho roupão de quarto. Tinham posto a mesa diante do divã, de sorte que restava pouco espaço. Em cima, um grosso volume de capa amarela. Acolheu ele Ivã com um longo olhar silencioso, não parecendo absolu­tamente surpreendido pela sua visita. Tinha mudado muito fisicamente, com o rosto bastante emagrecido e amarelo, os olhos cavados, as pál­pebras inferiores arroxeadas.

— Estás verdadeiramente doente? — disse Ivã Fiódorovitch. — Não te reterei muito tempo, conservarei mesmo meu sobretudo. Posso sen­tar-me?

Aproximou uma cadeira da mesa e sentou-se.

— Por que não falas? Só tenho uma pergunta a fazer-te, mais juro-te que não partirei sem resposta. Catarina Ivânovna veio ver-te?

Smierdiákov não respondeu, fez um gesto apático e virou-se.

— Que tens?

— Nada.

— Nada, como?

— Está bem! Sim, ela veio, que é que tem o senhor com isso? Dei­xe-me tranqüilo.

— Não, não te deixarei. Fala, quando veio ela?

— Ora, já perdi a lembrança.

Smierdiákov sorriu com desdém. De repente, voltou-se para Ivã, com o olhar carregado de ódio, como um mês antes.

— Creio que o senhor também está doente. Como tem as faces ca­vadas, o ar desfeito!

— Deixa minha saúde e responde à minha pergunta.

— Por que seus olhos estão tão amarelos? O senhor deve estar-se atormentando.

Pôs-se a rir, escarninho.

— Escuta, já te disse que não partirei sem resposta — exclamou Ivã exasperado.

— Por que essa insistência? Por que me tortura? — disse Smierdiá­kov, num tom doloroso.

— Que diabo! Não és tu quem me interessa. Responde e ir-me-ei imediatamente.

— Nada tenho a responder-lhe.

— Asseguro-te que te obrigarei a falar.

— Por que se inquieta o senhor? — Smierdiákov fitou-o com des­gosto, mais do que com desprezo. — Porque é amanhã o julgamento? Mas o senhor não arrisca nada, tranqüilize-se pois, afinal! Vá tranqüi­lamente para sua casa, durma em paz, nada tem a temer.

— Não te compreendo... por que haveria eu de temer amanhã? — disse Ivã, espantado e, de repente, sentiu-se gelado de medo. Smierdiá­kov mirava-o de alto a baixo.

— O senhor não com-pre-ende? — disse ele, num tom de censura.

— Que necessidade experimenta um homem inteligente de representar semelhante comédia?

Ivã olhava-o sem falar. O tom inesperado, tão arrogante, com que lhe falava seu antigo lacaio, exorbitava do comum.

— Digo-lhe que o senhor nada tem a temer. Não deporei contra o senhor, não há provas. Veja como suas mãos tremem. Por que isso? Volte à sua casa, não é o senhor o assassino!

Ivã estremeceu, lembrou-se de Aliócha.

— Sei que não sou eu... — murmurou ele.

— O senhor o sa-be?

Ivã levantou-se e agarrou-o pelo ombro.

— Fala, réptil! Dize tudo!

Smierdiákov não se mostrou nada amedrontado. Olhou somente Ivã com um ódio louco.

— Então, foi o senhor que matou, se é assim — murmurou ele com raiva.

Ivã deixou-se recair sobre sua cadeira, parecendo meditar. Sorriu maldosamente.

— Sempre a mesma história, como da outra vez?

— Sim, o senhor compreendia tudo da vez passada, compreende agora ainda.

— Compreendo somente que estás louco.

— E isto não o aborrece? Estamos aqui, creio, na intimidade, de que serve enganar-nos, representar uma comédia mutuamente? Ou então quer ainda lançar tudo sobre mim só, à minha cara? O senhor matou, é o senhor o principal assassino, não fui senão seu auxiliar, seu fiel instrumento, o senhor sugeriu, eu realizei.

— Realizou? Foste tu que mataste?

Sentiu como uma comoção no cérebro, um arrepio glacial percorreu-o todo. Por sua vez, Smierdiákov observava-o com espanto. O terror de Ivã impressionava-o afinal pela sua sinceridade.

— Não sabia, pois, de nada? — disse ele com desconfiança. Ivã continuava a olhá-lo, sua língua estava como que paralisada.

Para Piter partiu Vanka, Por ele não esperarei,

creu ele, de súbito, ouvir.

— Sabes, tenho medo de que sejas um fantasma — murmurou ele.

— Não há fantasma aqui, exceto nós dois, e ainda um terceiro. Sem dúvida, está aí, agora.

— Quem? Que terceiro? — proferiu Ivã cheio de medo, olhando em redor de si, como se procurasse alguém.

— É Deus, a Providência, que está aqui, perto de nós, mas é inútil procurá-lo, o senhor não o encontrará.

— Mentiste, não foste tu que mataste! — vociferou Ivã. — Estás louco, ou me exasperas à vontade, como da outra vez!

Smierdiákov, nada amedrontado, observava-o atentamente. Não podia dominar sua desconfiança, parecia-lhe que Ivã sabia de tudo e simulava ignorância para rejeitar todas as culpas sobre ele só.

— Espere — disse ele afinal, com uma voz fraca e, retirando sua perna esquerda de sob a mesa, pôs-se a arregaçar sua calça. Smier­diákov usava meias brancas e chinelos. Sem pressa, tirou sua liga e meteu a mão em sua meia. Ivã Fiódorovitch, que o olhava, estreme­ceu, de súbito, de terror.

— Demente! — berrou ele. Levantou-se dum salto, recuou viva­mente batendo com as costas na parede, onde ficou como que pregado, com os olhos fixos em Smierdiákov, cheio dum terror louco. Imper­turbável, continuava Smierdiákov a cascavilhar na meia, esforçando-se por pegar alguma coisa. Conseguiu-o por fim e Ivã viu-o retirar papéis ou um maço de papéis, que depositou em cima da mesa.

— Eis! — disse ele em voz baixa.

— O quê?

— Queira olhar.

Ivã aproximou-se da mesa, pegou o maço e começou a desfazê-lo, mas de repente retirou seus dedos como ao contato de um réptil repugnante, temível.

— Seus dedos tremem convulsivamente — notou Smierdiákov e ele mesmo, sem se apressar, desdobrou o papel. Sob o envelope, havia três pacotes de cédulas de 100 rublos.

— Está tudo aí, os 3 000, não precisa contar. Tome — disse desig­nando as cédulas. Ivã tombou sobre sua cadeira. Estava branco como linho.

— Fizeste-me medo... com essa meia... — proferiu ele, com estra­nho sorriso.

— Então, deveras, não sabia ainda?

— Não, não sabia, acreditava que tivesse sido Dimítri. Ah! meu irmão! meu irmão! — Pegou a cabeça entre as mãos. — Escuta: tu mataste só, sem meu irmão?

— Somente com o senhor, com o senhor só. Dimítri Fiódorovitch está inocente.

— Está bem... está bem... Falaremos de mim em seguida. Mas por que tremo dessa maneira?... Não posso articular as palavras.

— O senhor era atrevido então, "tudo é permitido", dizia o senhor, agora está com medo! — murmurou Smierdiákov estupefato. — Quer limonada? Vou pedir. Refresca. Mas seria preciso cobrir primeiro isto.

Designava o maço de cédulas. Fez um movimento para a porta, a fim de chamar Maria Kondrátievna e dizer-lhe para trazer limonada; procurando com que ocultar o dinheiro, tirou a princípio seu lenço, mas, como este estivesse sujo demais, pegou de cima da mesa o grosso volume amarelo que Ivã havia notado ao entrar, e cobriu com ele as cédulas. Aquele livro tinha como título: Sermões de Nosso Santo Padre Isaac, o Sírio.

— Não quero limonada — disse Ivã. — Senta-te e fala: como o fi­zeste? Dize tudo...

— O senhor deveria tirar seu sobretudo, senão ficará alagado de suor.

Ivã tirou seu sobretudo que atirou sobre o banco, sem se le­vantar.

— Fala, rogo-te, fala!

Parecia calmo. Estava certo de que Smierdiákov diria tudo agora.

— Como se passaram as coisas? — Smierdiákov suspirou. — Da maneira mais natural, segundo suas próprias palavras...

— Voltaremos a falar de minhas palavras — interrompeu Ivã, mas sem se zangar desta vez, como se estivesse totalmente senhor de si. — Conta somente, em detalhe e com ordem, como deste o golpe. Sobre­tudo não esqueças os detalhes, rogo-te.

— O senhor tinha partido, caí na adega...

— Era uma crise, ou então simulavas?

— Simulava, é claro. Desci tranqüilamente até embaixo, estendi-me, depois do que comecei a gritar. E debati-me, enquanto me transpor­tavam.

— Um instante. Simulaste também mais tarde, no hospital?

— Absolutamente. No dia seguinte de manhã, ainda em casa, fui dominado por uma crise verdadeira, a mais forte desde anos. Fiquei dois dias inconsciente.

— Bem, bem. Continua.

— Puseram-me sobre um divã, por trás do biombo; esperava por isso mesmo, porque, quando eu estava doente, Marfa Ignátievna me instalava sempre para passar a noite no quarto deles. Sempre foi boa para mim, desde que nasci. Durante a noite, eu gemia, mas man­samente. Esperava sempre Dimítri Fiódorovitch.

— Onde o esperavas, em tua casa?

— Por que em minha casa? Esperava sua vinda à casa do pai. Es­tava certo de que ele viria naquela mesma noite, porque, privado de minhas informações, devia fatalmente introduzir-se por meio de escalada e empreender alguma coisa.

— E se ele não tivesse vindo?

— Então, nada teria acontecido. Sem ele, eu não teria agido.

— Bem, bem... fala sem te apressares, sobretudo não omitas nada.

— Contava que ele mataria Fiódor Pávlovitch... decerto, porque eu o tinha preparado bem para isso... nos últimos dias... e sobre­tudo, conhecia os sinais. Desconfiado e arrebatado como era, não podia deixar de penetrar na casa. Esperava por isso.

— Um instante. Se ele tivesse matado, teria também tirado o di­nheiro; devias raciocinar assim. Que teria restado para ti? Não o vejo.

— Mas não teria jamais encontrado o dinheiro. Disse-lhe que o dinheiro estava debaixo do colchão. Mentia. Antes estava numa caixi­nha. Em seguida, como Fiódor Pávlovitch só confiava em mim no mundo, sugeri-lhe esconder o dinheiro por trás dos ícones, porque ninguém teria a idéia de procurá-lo ali, sobretudo, num momento de pressa. Meu conselho havia agradado a Fiódor Pávlovitch. Teria sido ridículo guardar o dinheiro debaixo do colchão, numa caixinha fechada à chave. Mas todos acreditaram nessa caixinha. Raciocínio estúpido. Portanto, se Dimítri Fiódorovitch tivesse assassinado, teria fugido ao menor alerta, como todos os assassinos, ou então tê-lo-iam surpreendido e detido. Podia eu assim, no dia seguinte, ou na mesma noite, ir furtar o dinheiro, sendo tudo imputado a Dimítri Fiódorovitch.

— Mas se ele tivesse apenas golpeado, sem matar?

— Neste caso, não teria eu certamente ousado tirar o dinheiro, mas contava que ele golpearia Fiódor Pávlovitch até fazê-lo perder os sentidos; então eu me apossaria da bolada e lhe teria explicado em seguida que fora Dimítri Fiódorovitch quem roubara.

— Espere... não estou entendendo mais. Foi então Dimítri quem matou? Tu somente roubaste?

— Não, não foi ele. Decerto, eu poderia dizer-lhe, ainda agora, que foi ele... mas não quero mentir, porque... porque mesmo se, como o vejo, o senhor nada compreendeu até o presente e não simula para lançar todas as culpas sobre mim, é, no entanto, culpado de tudo; com efeito, o senhor estava prevenido do assassinato, o senhor me encar­regou da execução e partiu. De modo que quero demonstrar-lhe esta noite que o principal, o único assassino foi o senhor, e não eu, se bem que tenha matado. Legalmente, é o senhor o assassino.

— Como assim? Por que sou eu o assassino? — não pôde Ivã Fió­dorovitch impedir-se de perguntar, esquecendo sua decisão de deixar para o fim da conversa o que lhe dizia respeito pessoalmente. — É sempre a propósito de Tchermachniá. Pára! Dize-me por que era preciso o meu consentimento, uma vez que havias tomado minha par­tida como um consentimento? Como me explicarás tu isso?

— Seguro de seu consentimento, sabia que, quando o senhor voltasse, não faria histórias com a perda desses 3 000 rublos, se por acaso a justiça suspeitasse de mim em lugar de Dimítri Fiódorovitch ou de cumplicidade com ele; pelo contrário, o senhor teria tomado minha de­fesa... Tendo herdado, graças a mim, poderia o senhor em seguida recompensar-me para o resto da vida, porque, se seu pai tivesse casado com Agrafiena Alieksándrovna, o senhor nada viria a receber.

— Ah! tinhas então a intenção de atormentar-me toda a vida! — disse Ivã de dentes cerrados. — E se eu não tivesse partido e te tivesse denunciado?

— Que poderia o senhor dizer? Que eu o aconselhara a partir para Tchermachniá? Bobagens, tudo isso. Aliás, se o senhor tivesse ficado, nada teria acontecido, teria eu compreendido que o senhor não queria e manter-me-ia tranqüilo. Mas sua partida assegurava-me que o senhor não me denunciaria e fecharia os olhos a respeito desses 3 000 rublos. Não teria podido perseguir-me em seguida, porque teria eu contado tudo à justiça, não o roubo ou o assassinato, isto não o teria eu dito, mas que o senhor me havia impelido e que eu não consentira. Desta maneira, não poderia o senhor confundir-me, por falta de provas, e eu teria revelado com que ardor o senhor desejava a morte de seu pai, e todo mundo tê-lo-ia crido, dou-lhe minha palavra.

— Desejava eu tão intensamente a morte de meu pai?

— Decerto, e seu silêncio me autorizava a agir.

Smierdiákov estava muito enfraquecido e falava com lassidão, mas uma força interior galvanizava-o, tinha algum desígnio oculto, Ivã o pressentia.

— Continua tua narrativa.

— Continuemos! Estou deitado e ouço um grito do bárin. Gregório saíra um pouco antes. De repente, põe-se ele a gritar, depois tudo volta a silenciar. Espero, imóvel, meu coração bate, não podia agüentar mais. Levanto-me, saio; à esquerda, a janela de Fiódor Pávlovitch estava aberta, avancei para escutar se dava ele sinal de vida, ouço o bárin agitar-se e suspirar. "Está vivo", penso. Aproximo-me da janela e grito ao bárin: "Sou eu". E ele me diz: "Veio, veio e fugiu". (Referia-se a Dimítri Fiódorovitch. ) "Matou Gregório!" "Donde?", pergunto-lhe em voz baixa. "Lá embaixo, no canto", e mostra-me. "Espere!", digo. Pus-me à sua procura e tropecei, perto do muro, em Gregório, que jazia des­maiado e todo ensangüentado. "É então verdade que Dimítri Fiódoro­vitch veio", pensei, e resolvi levar a coisa a cabo. Mesmo que Gregório estivesse vivo ainda, nada veria, uma vez que estava sem sentidos. O único risco era Marfa Ignátievna levantar-se. Senti-o naquele mo­mento, mas um frenesi apoderara-se de mim, a ponto de fazer-me perder a respiração. Voltei à janela do bárin: "Ela está aqui, Agrafiena Alieksándrovna veio, quer entrar". Ele estremeceu. "Onde, aqui, onde?" Susnira. ainda sem acreditar. "Ora, aqui, abra pois!" Olha-me pela janela, indeciso, temendo abrir; "tem medo de mim", pensei. É engraçado; de repente, imaginei fazer sobre a vidraça o sinal da chegada de Grúchenhka, diante dele, sob seus olhos; não acreditava ele nas pala­vras, mas, logo que eu bati, correu a abrir a porta. Eu queria entrar, ele barra-me a passagem. "Onde está ela, onde está ela?" Olha-me e palpita. "Ah! pensei, se tem tal medo de mim, isto vai mal!" E minhas pernas bambeavam, tremia ao pensar que ele não me deixasse entrar, ou que chamasse, ou que Marfa Ignátievna chegasse. Não me lembro, mas devia estar muito pálido. Cochichei: "Ela está lá embaixo, sob a janela, como foi que não a viu?" "Traze-a, traze-a!" "Ela está com medo, os gritos amedrontaram-na, escondeu-se numa moita; chame-a o senhor mesmo do gabinete. " Correu para ali, pousou a vela sobre a janela: "Grúchenhka, Grúchenhka! estás aí?", gritava ele. Não queria debruçar-se, nem afastar-se de mim, não ousava, por causa do medo que eu lhe inspirava. "Ei-la", digo-lhe, "ei-la lá na moita, sorri para o senhor, está vendo?" Acreditou em mim de repente e se pôs a tremer, tão louco estava por aquela mulher; debruçou-se inteiramente. Agarrei então o pesa-papéis de ferro fundido, que estava em cima da mesa, o senhor se lembra?, pesa bem umas 3 libras, e assestei-lhe com todas as minhas forças uma pancada na cabeça, com o canto. Não lançou um grito, tombou. Dei-lhe mais dois golpes e senti que estava ele com o crânio partido. Tombou de costas, todo coberto de sangue. Examinei-me: nem um respingo; enxuguei o pesa-papéis, repu-lo em seu lugar, depois tirei o envelope de trás dos ícones, retirando dele o dinheiro e atirando-o ao chão com a fita côr-de-rosa. Fui ao jardim todo a tremer, diretamente àquela macieira ôca, que o senhor conhece. Ti­nha-a notado e pus de reserva papel e um trapo; enrolei a soma neles e meti-a no fundo do ôco. Ficou lá quinze dias, até minha saída do hospital. Voltei a deitar-me, pensando com terror: "Se Gregório estiver morto, poderá isto ir muito mal; mas, se voltar a si, estará tudo muito bem, porque Dimítri Fiódorovitch veio e, por conseqüência, matou e roubou". Na minha impaciência, pus-me a gemer para despertar Marfa Ignátievna. Esta se levantou por fim, chegou até junto de mim, depois, notando a ausência de Gregório, correu para o jardim, onde eu a ouvi gritar. Já estava eu tranqüilizado.

Smierdiákov parou. Ivã havia-o escutado num silêncio de morte, sem se mover, sem desfitar dele os olhos. Smierdiákov lançava-lhe por vezes uma olhadela, mas olhava sobretudo de lado. Terminada sua narrativa, pareceu emocionado, respirando com dificuldade, o rosto coberto de suor. Não se podia adivinhar se ele sentia remorsos.

— Um instante — retomou Ivã, refletindo. — E a porta? Se ele só abriu a ti, como pôde Gregório tê-la visto aberta antes? Por que a viu ele bem em primeiro lugar? — Ivã interrogava com o tom mais calmo, nada irritado, de sorte que se alguém os tivesse observado naquele momento, do limiar, teria concluído que eles se entretinham pacificamente a respeito dum assunto qualquer.

— Quanto àquela porta que Gregório pretende ter visto aberta, não passa de um efeito de sua imaginação — disse Smierdiákov, com um sorriso. — Porque é um homem muito teimoso, terá acreditado ver e o senhor não conseguirá demovê-lo disso. É uma felicidade para nós que tenha ele formado uma idéia errônea; o depoimento dele acaba de confundir Dimítri Fiódorovitch.

— Escuta — disse Ivã, parecendo de novo atrapalhar-se —, es­cuta... Tinha ainda muitas coisas a perguntar-te, mas esquecia-as... Ah! sim, dize-me somente, por que abriste e lançaste ao chão o enve­lope? Por que não ter saído com tudo?... De acordo com tua narra­tiva, pareceu-me que o tinhas feito de propósito, mas não lhe posso compreender a razão...

— Não agi sem motivos. Um homem inteirado de tudo, como eu, por exemplo, que talvez pôs o dinheiro no envelope, viu quando o lacravam e escreviam o endereço, por que tal homem, se cometeu o crime, haveria de deslacrar logo o envelope, com tal precipitação e es­tando seguro do conteúdo? Pelo contrário, metê-lo-ia simplesmente em seu bolso e se esquivaria. Dimítri Fiódorovitch teria agido de outro modo; não conhece o envelope senão por ouvir dizer e apressar-se-á em deslacrá-lo, assim que o encontrar, para verificar o conteúdo, depois atirá-lo-á no chão, sem refletir que ele constituirá uma peça acusa­dora, porque é um ladrão novato, jamais operou abertamente e é nobre de nascimento. Não teria vindo precisamente roubar, mas retomar seus bens, como o havia previamente declarado diante de todo mundo, van­gloriando-se de ir à casa de Fiódor Pávlovitch para fazer justiça com suas próprias mãos. Por ocasião de meu depoimento, sugeri esta idéia ao procurador, mas sob forma de alusão, e de tal sorte que ele acreditou ter sido ele próprio quem a encontrou; estava encantado...

— Refletiste verdadeiramente em tudo isso no local e naquele mo­mento? — exclamou Ivã Fiódorovitch estupefato. Observava de novo Smierdiákov, cheio de espanto.

— Por favor, pode-se pensar em tudo numa tal pressa? Tudo isso estava combinado de antemão.

— Pois bem!... Pois bem! Foi o próprio diabo que te emprestou seu concurso! Não és bobo, és muito mais inteligente do que eu pen­sava...

Levantou-se para dar alguns passos pelo quarto, mas, como mal se podia passar entre a mesa e a parede, deu meia volta e tornou a sentar-se. Foi o que talvez o exasperou; pôs-se de novo a vociferar.

— Escuta, miserável, vil criatura! Não compreendes então que se ainda não te matei, é porque te guardo para responder amanhã perante a justiça? Deus o vê (levantou a mão), talvez tenha eu sido culpado, talvez tenha desejado secretamente... a morte de meu pai, mas, juro-to, não te impeli absolutamente, não, não! Não importa, denunciar-te-ei eu mesmo amanhã, está decidido! Direi tudo, mas compareceremos jun­tos! E digas ou testemunhes o que quiseres a meu respeito, eu o aceito e não te temo; confirmarei tudo eu mesmo! Mas tu também, será preciso que confesses! É preciso, é preciso, iremos juntos! Será assim!

Ivã exprimia-se com energia e solenidade: somente pelo seu olhar se via que manteria sua palavra.

— O senhor está doente, vejo, bem doente. Tem os olhos comple­tamente amarelos — disse Smierdiákov, mas sem ironia e até mesmo com compaixão.

— Iremos juntos! — repetiu Ivã. — E se não vieres, confessarei tudo sozinho.

Smierdiákov pareceu refletir.

— Isto não se dará, o senhor não irá — disse ele, num tom ca­tegórico.

— Tu não me compreendes!

— O senhor terá demasiada vergonha de confessar tudo, aliás isso não serviria de nada, porque negarei ter falado tais coisas com o senhor, direi que o senhor está doente (vê-se bem) ou que se sacrifica por compaixão por seu irmão e me acusa porque jamais vali nada a seus olhos. E quem lhe dará crédito? que prova tem o senhor?

— Escuta, tu me mostraste esse dinheiro para convencer-me. Smierdiákov retirou o volume, descobrindo o maço.

— Tome este dinheiro — disse ele suspirando.

— Decerto que o tomo! Mas por que mo dás, uma vez que mataste para obtê-lo? — E Ivã observou-o com estupefação.

— Não tenho mais necessidade dele — disse Smierdiákov, com voz trêmula. — Pensava a princípio, com este dinheiro, estabelecer-me em Moscou, ou mesmo no estrangeiro, era meu sonho, pois que tudo é permitido. Foi o senhor quem, com efeito, me ensinou isso e muitas vezes explicou-o: se Deus não existe, não há virtude e ela é inútil. Raciocinei assim.

— Chegaste a isso sozinho? — perguntou Ivã, com um sorriso cons­trangido.

— Sob a influência do senhor.

— Então tu crês em Deus, agora, pois que entregas o dinheiro?

— Não, não creio nele — murmurou Smierdiákov.

— Por que então o entregas?

— Deixe isso! — cortou Smierdiákov num gesto de lassidão. — O senhor mesmo repetia então que tudo é permitido. Por que está tão inquieto agora? Quer mesmo denunciar-se? Mas não há perigo! O se­nhor não irá! — afirmou ele, categórico.

— Haverás de ver!

— É impossível. O senhor é demasiado inteligente. Ama o dinheiro, eu o sei, as honras também, porque o senhor é muito orgulhoso, é doido pelo belo sexo, ama acima de tudo viver à sua vontade e inde­pendente. Não haverá de querer estragar toda a sua vida, atraindo sobre si tal ignomínia. De todos os filhos de Fiódor Pávlovitch é o senhor aquele que mais se lhe assemelha, é a mesma alma.

— Não és na verdade bobo — disse Ivã, com estupor; o sangue subiu-lhe ao rosto. — Pensava que eras um tolo.

— Era por orgulho que o senhor o acreditava. Tome, pois, o di­nheiro.

Ivã pegou o maço de cédulas e meteu-o no seu bolso, sem em­brulhá-lo.

— Mostrá-las-ei amanha no tribunal — disse ele.

— Ninguém lhe dará crédito. Não é o dinheiro que lhe falta no momento, o senhor põe no seu cofrezinho esses 3 000 rublos.

Ivã levantou-se.

— Repito-te que não te matei unicamente porque tenho necessidade de ti amanhã, não o esqueças!

— Pois bem! Mate-me, mate-me agora — disse Smierdiákov, com um ar estranho. — O senhor nem mesmo o ousa — acrescentou com um sorriso amargo —, o senhor não ousa mais nada, o senhor, tão ousado outrora!

— Até amanhã!... — E Ivã marchou para a porta.

— Espere... mostre-mas ainda uma vez.

Ivã tirou as cédulas, mostrou-lhas; Smierdiákov mirou-as uma de­zena de vezes.

— Pois bem! vá... Ivã Fiódorovitch! — gritou ele, de repente.

— Que queres? — Ivã, que ia saindo, voltou-se.

— Adeus.

— Até amanhã.

Ivã saiu. A tormenta continuava. Marchou a princípio com passos seguros, mas se pôs dentro em pouco a combalear. "É algo físico", pensava, sorrindo. Uma espécie de alegria invadia-o. Sentia em si uma firmeza inabalável; as hesitações dolorosas daqueles últimos tempos tinham desaparecido. Sua decisão estava tomada e "já não voltaria atrás", dizia a si mesmo, cheio de felicidade. Naquele momento, tropeçou, esteve a ponto de cair. Parando, distinguiu a seus pés o mujique que ele havia derrubado, jacente no mesmo lugar, inerte. A neve quase lhe recobria o rosto. Ivã ergueu-o e carregou-o em seus ombros. Tendo avistado luz em uma casinhola, foi bater nos postigos e pediu ao proprietário que o ajudasse a transportar o mujique para uma casa particular, prometendo-lhe 3 rublos. Não contarei pormenorizadamente como Ivã Fiódorovitch conseguiu ser bem sucedido em sua empresa e mandou examinar o mujique por um médico, pagando generosamente as despesas. Digamos somente que isso exigiu quase uma hora. Mas Ivã ficou satisfeito. Suas idéias dispersavam-se: "Se não tivesse eu to­mado uma resolução tão firme para amanhã", pensou ele de súbito, deliciado, "não teria ficado uma hora a ocupar-me com aquele mujique, teria passado de lado sem me inquietar... Mas como tenho a força de observar-me? E eles, que decidiram que me estou tornando louco!" Ao chegar diante da porta de sua casa, parou para perguntar a si mesmo: "Não faria eu melhor indo desde agora à casa do procurador e contar tudo?... Não, amanhã, tudo duma vez!" Coisa estranha, quase toda a sua alegria desapareceu no mesmo instante. Quando entrou no seu quarto, uma sensação glacial constringiu-o, como a lembrança, ou antes, a evocação de não sei que de penoso ou repugnante, que se encontrava naquele momento naquele quarto e que lá já estivera. Dei­xou-se cair sobre o divã. A velha criada trouxe-lhe o samovar, ele fez chá, mas não o bebeu; mandou a criada embora até o dia seguinte. Sentia-se tonto, cansado, indisposto. Foi adormecendo, mas pôs-se a andar para afugentar o sono. Parecia-lhe que delirava. Depois de se ter tornado a sentar, pôs-se a olhar, de tempos em tempos, em redor de si, como para examinar alguma coisa. Por fim seu olhar se fixou em um ponto. Sorriu, mas o rubor da cólera subiu-lhe ao rosto. Por muito tempo ficou imóvel, com a cabeça entre as mãos, fixando sempre o mesmo ponto, sobre o divã colocado contra a parede em frente. Visi­velmente, alguma coisa naquele lugar o irritava, o inquietava.

 

O DIABO. A ALUCINAÇÃO DE IVÃ FIÓDOROVITCH

Não sou médico e, no entanto, sinto que chegou o momento de fornecer algumas explicações sobre a doença de Ivã Fiódorovitch. Digamos imediatamente que estava na iminência de uma febre nervosa, tendo a doença acabado por triunfar de seu organismo enfraquecido. Sem conhecer a medicina, arrisco esta hipótese de que tinha ele talvez conseguido, por um esforço de vontade, conjurar a crise, esperando, bem entendido, a ela escapar. Sabia-se doente, mas não queria aban­donar-se à doença naqueles dias decisivos em que devia mostrar-se, falar ousadamente, justificar-se a seus próprios olhos. Tinha ido ver o médico vindo de Moscou a chamado de Catarina Ivânovna. Depois de havê-lo auscultado e examinado, concluiu o facultativo pela existência de um desarranjo cerebral e não ficou nada surpreendido com uma confissão que Ivã lhe fez, no entanto, com repugnância. "As alucinações são muito possíveis no seu estado, mas seria preciso controlá-las... aliás o senhor deve tratar-se seriamente, senão isso se agravará. " Mas Ivã Fiódorovitch não deu importância a esse sábio conselho: "Tenho ainda força para andar. Quando eu cair, será diferente. Tratará de mim quem quiser!"

Tinha quase consciência de seu delírio e fixava obstinadamente certo objeto, em cima do divã, em frente dele. Ali apareceu de repente um indivíduo, que entrou Deus sabe como, porque não estava ele ali quando chegou Ivã Fiódorovitch, após sua visita a Smierdiákov. Era um senhor, ou uma espécie de cavalheiro russo, qui frisait Ia cinquen-taine, [8] como dizem os franceses, um pouco grisalho, os cabelos longos e espessos, a barba em ponta. Trazia um paletó marrom, evidentemente de casa de um bom alfaiate, mas já usado, datando de cerca de três anos e completamente fora de moda. A roupa branca, o comprido lenço de pescoço, tudo lembrava o cavalheiro elegante; mas a roupa, observa­da de perto, não estava lá muito limpa e o lenço de pescoço bastante gasto. Suas calças de quadrados assentavam-lhe bem, mas eram demasiado claras e demasiado justas, como não se usam mais atualmente, da mesma maneira seu chapéu de feltro branco, malgrado a estação. Em suma, um aspecto ao mesmo tempo decente e de quem estava em dificuldades financeiras. O cavalheiro parecia ser um desses antigos pro­prietários rurais que floresciam no tempo da servidão; vivera na socie­dade, tivera outrora relações conservadas talvez até agora, mas, pouco a pouco, empobrecido após as dissipações da juventude e a recente abolição da servidão, tornara-se uma espécie de parasita de boa compa­nhia, recebido em casa de seus antigos conhecidos por causa de seu gênio acomodatício e a título de homem decente, que se pode admitir à sua mesa em qualquer ocasião, embora num lugar modesto. Esses parasitas, de gênio afável, que sabem contar uma história, organizar uma partida, detestar as incumbências de que os encarregam, são em geral viúvos ou solteirões; por vezes têm filhos, sempre educados longe, em casa de alguma tia, a respeito da qual o cavalheiro quase nunca fala quando em boa companhia, como se se envergonhasse de tal paren­tesco. Acaba por se desacostumar de seus filhos, que lhe escrevem de longe em longe, por ocasião de seu aniversário ou do Natal, cartas de felicitações às quais ele por vezes responde. A fisionomia daquele visi­tante inesperado era mais afável que bonachona, pronta à amabilidade de acordo com as circunstâncias. Não tinha relógio, mas usava um lornhão de tartaruga, preso por uma fita preta. O dedo médio de sua mão direita estava ornado com um anel de ouro maciço com uma opala barata. Ivã Fiódorovitch mantinha-se em silêncio, resolvido a não travar conhecimento. O visitante aguardava, como um parasita que acaba de deixar o quarto que lhe é reservado, à hora do chá, para fazer companhia ao dono da casa, mas que se cala, estando este absor­vido em suas reflexões, pronto todavia a uma amável prosa, contanto que o dono da casa a comece. De repente seu rosto revelou preo­cupação.

— Escuta — disse ele a Ivã Fiódorovitch —, desculpa-me, quero so­mente lembrar-te: foste à casa de Smierdiákov, a fim de te informa­res a respeito de Catarina Ivânovna, mas vieste embora sem nada saber. Decerto te esqueceste...

— Ah! sim! — disse Ivã preocupado. — Esqueci-me... Não im­porta, aliás, deixemos isso para amanhã. A propósito — disse ele, irritado, ao visitante —, era eu quem devia ter-me lembrado disso ainda há pouco, porque me sentia angustiado a respeito. Bastou que tivesses surgido para que acredite que essa sugestão partiu de ti.

— Pois bem! não o creio — e o cavalheiro sorriu com ar amável. —

A fé não se impõe. Aliás, neste domínio, as provas, mesmo materiais, são ineficazes. Tome acreditou porque queria acreditar, não por ter visto o Cristo ressuscitado. Assim, os espíritas... gosto muito deles... imagina que acreditam servir à fé, porque o diabo lhes mostra seus chifres de vez em quando. "É uma prova material da existência do outro mundo. " O outro mundo demonstrado materialmente! Que idéia! Enfim, isto provaria a existência do diabo, mas não a de Deus. Quero passar para uma sociedade idealista, a fim de fazer-lhes oposição.

— Escuta — disse Ivã Fiódorovitch, levantando-se —, creio que estou delirando, conta o que quiseres, pouco me importa! Não me exasperarás como antes. Somente, tenho vergonha... Quero andar pelo quarto... Por vezes deixo de ver-te, de ouvir-te, mas adivinho sempre o que queres dizer, porque "sou eu quem fala e não tu!" Mas não sei se dormia, na derradeira vez, ou se te vi realmente. Vou aplicar na minha cabeça um guardanapo molhado, talvez assim te dissipes.

Ivã foi buscar um guardanapo e fez como dizia, depois do que pôs-se a andar para lá e para cá.

— Causa-me prazer nos tratarmos por "tu" — disse o visitante.

— Imbecil, acreditas que vou tratar-te por "vós"? Sinto-me dispos­to... se pelo menos não tivesse dor de cabeça... mas não me venhas com tanta filosofia como na última vez. Se não podes ir-te embora, inventa pelo menos algo de engraçado. Conta-me mexericos, porque não passas de um parasita. Que pesadelo tenaz! Mas não te temo. Acabarei vencendo-te. Não me internarão!

— C'est charmant!, parasita. É meu papel, com efeito. Que sou eu na terra, senão um parasita? A propósito, surpreende-me ouvir-te; palavra, começas a tomar-me por um ser real e não pelo produto apenas de tua imaginação, como o sustentavas da outra vez.

— Nem um instante tomo-te por uma realidade — exclamou Ivã, com raiva. — És uma mentira, um fantasma de meu espírito doente. Mas não sei como desembaraçar-me de ti, vejo que será preciso sofrer algum tempo. És uma alucinação, a encarnação de mim mesmo, de uma parte apenas de mim... de meus pensamentos e de meus sentimentos, mas dos mais vis e dos mais tolos. A este respeito, poderias mesmo interessar-me, se tivesse tempo para perder contigo.

— Com licença, vou confundir-te; ainda há pouco, perto do lampião, quando deste com Aliócha, gritando-lhe: "Soubeste-o por ele? Como sabes que ele vem ver-me?", era a meu respeito que falavas. Portanto, acreditaste um instante que eu existo realmente — disse o cavalheiro com um sorriso delicado.

— Sim, era uma fraqueza... mas não podia acreditar em ti. Talvez te tenha visto somente em sonho, e não na realidade, na derradei­ra vez.

— E por que foste tão duro com Aliócha? Ele é encantador, sin­to-me culpado para com ele, por causa do stáriets Zósima.

— Como ousas falar de Aliócha, lacaio! — disse Ivã, rindo.

— Injurias-me rindo, bom sinal. Aliás, estás bem mais amável comigo do que da última vez e compreendo por que: essa nobre resolução...

— Não me fales disto — gritou Ivã furioso.

— Comprendo, compreendo, c'est noble, c'est charmant, vais amanhã defender teu irmão, tu te sacrificas... c'est chevaleresque...

— Cala-te, se não, toma cuidado com os pontapés!

— Em certo sentido, isso me causará prazer, porque meu objetivo será atingido; se ages assim, é que crês na minha realidade, não se trata um fantasma a pontapés. Basta de brincadeiras! Podes injuriar-me, mas vale mais a pena ser um pouco mais delicado, mesmo comigo. Imbecil, lacaio! Que expressões!

— Injuriando-te, injurio-me! Tu és eu mesmo, mas com outro foci­nho. Exprimes meus próprios pensamentos... e nada podes dizer de novo!

— Se nossos pensamentos, se encontram, isto me causa honra — disse graciosamente o cavalheiro.

— Somente, tu escolhes meus pensamentos mais estúpidos... És besta e vulgar. És estúpido. Não posso suportar-te! Que fazer, que fazer?! — murmurou Ivã entre dentes.

— Meu amigo, quero, no entanto, permanecer um cavalheiro e ser tratado com tal — disse o visitante com certo amor-próprio, aliás conciliante, bonachão. — Sou pobre, mas... não direi muito honesto, mas... admite-se geralmente como um axioma que sou um anjo decaído. Palavra, não posso imaginar como pude, outrora, ser um anjo. Se o fui algum dia, foi há tanto tempo que não é um pecado esquecê-lo. Agora, atenho-me apenas à minha reputação de homem decente e vivo como posso, esforçando-me por ser agradável. Gosto sinceramente dos homens; caluniaram-me muito. Quando me transporto aqui para a terra, entre vocês, minha vida toma uma aparência de realidade, e é o que mais me agrada. Porque o fantástico me atormenta como a ti mesmo, de modo que gosto do realismo terrestre. Entre vocês, tudo é definido, há fórmulas, geometria; entre nós, só equações indetermi­nadas! Aqui, passeio, sonho (gosto de sonhar). Torno-me supersticioso, não rias, peço-te; a superstição me agrada. Adoto todos os hábitos de vocês; gosto de ir aos banhos públicos, imagina, estar na estufa com os comerciantes e os popes. Meu sonho é encarnar-me, mas definitivamente, em algum comerciante obeso e partilhar de todas as suas crenças. Meu ideal é ir à igreja e lá acender uma vela, de todo o coração, palavra! Então meus sofrimentos terão fim. Gosto também dos remédios de vocês; na primavera, havia uma epidemia de varíola, fui vacinar-me. Se soubesses como estava eu contente! Dei 10 rublos para "nossos irmãos eslavos"!... Não me ouves. Não estás no teu estado normal, hoje... — O cavalheiro fez uma pausa. — Sei que foste ontem consultar aquele médico... pois bem! como vais? Que te disse ele?

— Imbecil!

— Em compensação, tens tanto espírito! Invectivas de novo. Não é por interesse que te perguntava isso. Podes não responder. Eis meus reumatismos que se apoderam de mim de novo.

— Imbecil!

— Continuas? Lembro-me ainda de meus reumatismos do ano pas­sado.

— O diabo com reumatismo?

— Por que não? Se me encarno, tenho de suportar todas as con seqüências. Satanas sum et nihil humani a me alienum, puto[9]

— Como, como? Satanas sum et nihil humani... Não está mal para o diabo!

— Sinto-me feliz por ver que afinal te causo satisfação.

— Isto não aprendeste de mim — disse Ivã, surpreso —, isto jamais me ocorreu. Ê estranho...

— Cest du nouveau, n'est-ce pas?[10] Desta vez agirei lealmente e te explicarei a coisa. Escuta. Nos sonhos, sobretudo durante os pesa­delos que provêm dum desarranjo de estômago ou de outra coisa, o homem tem por vezes visões tão belas, cenas da vida real tão com­plicadas, atravessa tal sucessão de acontecimentos, de peripécias inespe­radas, desde as manifestações mais altas até as menores bagatelas, que, juro-te, o próprio Liev Tolstói não as imaginaria. Entretanto, esses so­nhos ocorrem não aos escritores, mas a pessoas comuns: funcionários, jornalistas, popes... Um ministro chegou a confessar-me que suas me­lhores idéias lhe vinham quando dormia. É o mesmo agora; digo coisas originais, que nunca te vieram ao espírito, como nos pesadelos, entre­tanto, não sou senão tua alucinação.

— Mendes. Teu fim é persuadir-me de que existes e eis que tu mesmo pretendes ser um sonho.

— Meu amigo, escolhi hoje um método particular que te explicarei em seguida. Espera um pouco, onde estava eu? Ah! sim! Resfriei-me, mas não entre vocês, lá mesmo...

— Lá mesmo, onde? Dize, pois, demorarás ainda muito tempo? — exclamou Ivã, quase desesperado. Parou, sentou-se sobre o divã, pegou de novo a cabeça entre as mãos. Arrancou o guardanapo molhado e atirou-o fora com despeito.

— Estás com os nervos doentes — observou o cavalheiro com ar displicente, mas amigável. — Estás com raiva de mim porque me resignei, entretanto aconteceu da maneira mais natural. Corria eu para uma festa diplomática, em casa duma grande dama de Petersburgo, que manejava a seu gosto os ministros. De casaca, gravata branca, enlu­vado, no entanto estava ainda Deus sabe onde, e para chegar à terra era preciso transpor o espaço. Decerto, não é senão um instante, mas a luz do sol leva oito minutos e, imagina, de casaca e de colete aberto. Os espíritos não gelam, mas quando me encarnei... em suma, agi des­cuidadamente e aventurei-me; no espaço, no éter, na água... faz um frio, nem se pode mesmo chamar isso de frio, imagina: 150 graus abaixo de zero. Conhece-se a brincadeira de jovens aldeãs: quando gela a 30 graus, propõem a algum simplório lamber um machado; a língua gela instantaneamente, o simplório arranca a pele e são apenas 30 graus. A 150 graus, bastaria, penso, tocar um machado com um dedo para que este desapareça... se pelo menos houvesse um ma­chado no espaço...

— Mas será possível? — interrompeu distraidamente, Ivã Fiódoro­vitch. Lutava com todas as suas forças para resistir ao delírio e não afundar na loucura.

— Um machado? — repetiu o visitante com surpresa.

— Mas sim, que será feito dele lá? — exclamou Ivã com uma obstinação colérica.

— Um machado no espaço? Quelle idéel Se se encontrar bem longe da terra, penso que se porá a girar em torno sem saber por que, à maneira de um satélite. Os astrônomos calcularão quando se levantará e quando se porá. Gatsuk pô-lo-á no seu almanaque, eis tudo.

— És estúpido, horrivelmente estúpido! Prega mentiras mais espi­rituosas, ou não te darei ouvidos. Queres convencer-me pelo realismo de teus processos, persuadir-me de tua existência] Não creio nela!

— Mas não estou mentindo, tudo isso é verdade. Infelizmente, a verdade quase nunca é espirituosa. Vejo que esperas de mim algo de grande, talvez de belo. É lamentável, porque só dou o que posso...

— Não me venhas com filosofia, pedaço de asno!

— Como posso eu filosofar, quando estou com todo o lado direito paralisado, obrigando-me a gemer? Consultei a Faculdade; sabem diag­nosticar maravilhosamente, explicam-nos a doença, mas são incapazes de curar. Havia lá um estudante entusiasta: "Se o senhor morrer", dizia ele, "conhecerá exatamente a natureza de seu mal!" Têm a mania de dirigir-nos a especialistas: nós nos limitamos a diagnosticar, vá ver fulano, ele o curará. Não se encontra mais absolutamente o médico à moda antiga, que tratava todas as doenças. Agora só há especialistas, que fazem publicidade. Para uma doença no nariz enviam a gente a Paris, ao consultório de um especialista europeu. Ele examina o nariz da gente. "Não posso", diz ele, "curar senão a narina direita, porque não trato as narinas esquerdas, não é minha especialidade. Vá a Viena; há lá um especialista para as narinas esquerdas. " Que fazer? Recorri aos remédios de curandeiras, um médico alemão aconselhou-me que esfregasse no corpo, após o banho, mel e sal. Fui aos banhos só por prazer e me besuntei em pura perda. Em desespero de causa, escrevi ao Conde Mattei, de Milão; enviou-me um livro e umas bolinhas. Que Deus lhe perdoe! Imagina que o extrato de malte de Hoff curou-me. Tinha-o comprado por acaso, tomei um frasco e meio e tudo desapa­receu radicalmente. Estava resolvido a publicar uma declaração nos jornais, porque a gratidão falava dentro de mim, mas foi outra história, nenhuma redação a aceitou! "É demasiado reacionária", dizem, "ninguém acreditará nisso, le diable n'existe point. Publique isso anonimamente. " Mas de que vale uma declaração anônima? Brinquei com os redatores: "Ser reacionário", dizia-lhes, "é crer em Deus em nossa época, mas eu, eu sou o diabo". "Decerto, toda gente crê no diabo, contudo é impos­sível, poderia isso prejudicar o nosso programa. Talvez... sob uma forma humorística... " Mas então, pensei, não seria espirituoso. E minha declaração não apareceu. Isto ficou-me pesando no coração. Os melhores sentimentos, tais como a gratidão, estão formalmente proi­bidos para mim, por causa de minha posição social.

— Voltas a cair na filosofia? — disse Ivã, de dentes cerrados.

— Deus me livre! Mas a gente não pode impedir-se de queixar-se por vezes. Sou caluniado. Tu me tratas a todo momento de imbecil. Vê-se bem que és um homem jovem. Meu amigo, só há o espírito. Re­cebi da natureza um coração bom e alegre, "também compus vaude­villes". [11] Tomas-me, creio, por um velho Khlestakov, mas meu destino é bem mais sério. Por uma espécie de decreto inexplicável, tenho por missão "negar", e no entanto sou visceralmente bom e inapto para a negação. "Não! tens de negar! Sem negação, não há crítica, e que seria das revistas sem a crítica? Só restaria um hosana. Mas isto não basta para a vida, é preciso que esse hosana passe pelo cadinho da dúvida, etc. " Aliás, não me meto em tudo isto, não fui eu quem inventou a crítica, não sou o responsável por ela. Pois bem! tenho servido de bode expiatório, obrigaram-me a fazer crítica e a vida come­çou. Compreendemos essa comédia; quanto a mim, aspiro ao nada. Não, é preciso que vivas, dizem-me, porque sem ti nada existiria. Se tudo fosse razoável na terra, nada se passaria nela. Sem ti, nada de acontecimentos; ora, são precisos os acontecimentos. Cumpro, pois, minha missão, bem a contragosto, para suscitar acontecimentos, e rea­lizo o irracional, cumprindo ordem. As pessoas levam essa comédia a sério, malgrado todo o seu espírito. Para elas é uma tragédia. Sofrem, evidentemente... em compensação, vivem, uma vida real e não ima­ginária, porque o sofrimento é a vida. Sem o sofrimento, que prazer ofereceria ela? Tudo se assemelharia a um Te-Deum interminável; é santo, mas bastante tedioso. E eu? Eu sofro e, no entanto, não vivo. Sou a incógnita de uma equação. Sou o espectro da vida, que perdeu a noção das coisas, e esqueço até o meu nome. Ris?... Não, não ris, zangas-te de novo, como sempre. Ser-te-ia preciso sempre inteli­gência; ora, repito-te, daria toda essa vida sideral, todos os graus, todas as honras, para encarnar-me na pele duma vendedora obesa e ir queimar velas na igreja.

— Tu também não crês em Deus — disse Ivã, com um sorriso cheio de ódio.

— Como dizer, se falas seriamente...

— Deus existe ou não existe? — insistiu Ivã encolerizado.

— Ah! é sério, então? Meu caro, Deus é-me testemunha de que não sei de nada, não posso dizer melhor.

— Não, tu não existes, tu és eu mesmo e nada mais! Não passas de uma quimera!

— Se queres, tenho a mesma filosofia que tu, é verdade. Je pense, donc je suis, [12] eis o que é certo; quanto ao resto, quanto a todos esses mundos, Deus e o próprio Satã, tudo isso não me é provado. Têm eles uma existência própria, ou serão apenas uma emanação de mim, o desenvolvimento sucessivo de meu "eu", que existe temporal e pessoalmente... mas detenho-me, porque tenho a impressão de que vais bater-me.

— Farias melhor se me contasses uma anedota!

— Eis uma, precisamente no quadro de nosso tema, isto é, mais uma lenda que anedota. Tu me censuras minha incredulidade. Mas, meu caro, não sou eu só assim: entre nós, todos estão agora perturbados por causa das ciências de vocês. Enquanto havia os átomos, os cinco sentidos, os quatro elementos, a coisa ia bem ainda. Os átomos já eram conhecidos na Antigüidade. Mas vocês descobriram "a molécula química", "o protoplasma", e o diabo sabe ainda o quê! Aprendendo isso, os nossos baixaram a cauda. Foi a barafunda; sobretudo a su­perstição, os mexericos proliferaram; fica sabendo que temos disso, tanto quanto vocês, talvez mesmo um pouco mais, e afinal também as declarações: há igualmente entre nós uma seção em que recebemos certas "informações". Pois bem, essa lenda de nossa Idade Média, da nossa, não da de vocês, não merece nenhum crédito, exceto entre gordas vendedoras, as nossas, não as de vocês. Tudo quanto existe entre vocês existe também entre nós: revelo-te este mistério por amizade, se bem que seja proibido. Essa lenda fala, pois, do paraíso. Havia na terra certo filósofo que negava tudo, as leis, a consciência, a fé, so­bretudo a vida futura. Morreu pensando entrar nas trevas do nada e ei-lo em presença da vida futura. Espanta-se, indigna-se: "Isto", diz ele, "é contrário às minhas convicções". E foi condenado por isso... Desculpa-me, transmito-te esta lenda como ma contaram... Portanto, foi ele condenado a percorrer nas trevas 1 quatrilhão de quilômetros (porque contamos também em quilômetros, agora), e quando tiver ele acabado o seu quatrilhão, as portas do paraíso se abrirão diante dele e tudo lhe será perdoado...

— Que tormentos há no outro mundo, além do quatrilhão? — per­guntou Ivã com estranha animação.

— Que tormentos? Ah! não me fales! Outrora, havia-os para todos os gostos; agora, é sempre mais o sistema das torturas morais, "os re­morsos da consciência" e outras pataratas. Devemos isso à "doçura dos costumes" de vocês. E quem tira proveito disso? Somente os que não têm consciência, porque zombam dos remorsos! Em compensação, as pessoas decentes, que conservaram o sentimento da honra, sofrem... Eis o que acontece com as reformas operadas em terreno mal preparado e copiadas de instituições estrangeiras. São deploráveis! O fogo de outrora valia melhor. O condenado ao quatrilhão olha, pois, em redor de si, depois se deita atravessado na estrada: "Não ando, por princípio recuso!" Pega a alma de um ateu russo esclarecido e mistura-a com a do profeta Jonas, que se aborreceu três dias e três noites na barriga de uma baleia, e obterás o nosso pensador recalcitrante.

— Sobre que se estendeu ele?

— Havia certamente alguma coisa sobre a qual se estenderia. Não estás brincando?

— Viva! — exclamou Ivã, com a mesma animação. Escutava com uma curiosidade inesperada. — Pois bem! Continua ele deitado?

— Mas não, ao fim de mil anos, levantou-se e pôs-se a andar.

— Que asno! — Ivã deu uma risada nervosa e pôs-se a refletir. — Não será a mesma coisa ficar deitado eternamente ou marchar 1 quatrilhão de verstas? Mas perfaz isso 1 bilhão de anos?

— E até mesmo mais. Se houvesse um lápis e papel, poder-se-ia calcular. Faz muito tempo que ele chegou e é aqui que começa a anedota.

— Como? Mas onde arranjou ele 1 bilhão de anos?

— Pensas sempre na nossa terra atual! A terra reproduziu-se talvez 1 milhão de vezes; gelou-se, fendeu-se, desagregou-se, depois decom­pôs-se em seus elementos, e de novo as águas recobriram a terra. Em seguida, foi novamente um cometa, depois um sol donde saiu o globo. Esse ciclo se repete talvez uma infinidade de vezes, sob a mesma forma, até o mínimo detalhe. É mortalmente aborrecedor...

— Pois bem! Que aconteceu quando ele acabou?

— Assim que ele entrou no paraíso, dois segundos, de relógio na mão, não se tinham passado (se bem que seu relógio, na minha opi­nião, deve ter-se decomposto em seus elementos durante a viagem) e já exclamava que, por aqueles dois segundos, bem valia fazer não só 1 quatrilhão de quilômetros, mas 1 quatrilhão de quatrilhões, à quatrilhonésima potência! Em suma, cantou hosanas, exagerou mes­mo, a ponto de pensadores mais dignos recusarem estender-lhe a mão nos primeiros tempos; tornara-se demasiado bruscamente conservador. É o temperamento russo. Repito-o, é uma lenda. Eis as idéias que têm curso entre nós a respeito dessas matérias.

— Apanhei-te! — exclamou Ivã com uma alegria quase infantil, como se lhe voltasse a memória. — Fui eu mesmo que inventei essa anedota do quatrilhão de anos! Tinha então dezessete anos, estava no ginásio... Contei-a a um de meus camaradas, Koróvkin, em Mos­cou... Essa anedota é muito característica, tinha-a esquecido, mas lembrei-me dela inconscientemente; não foste tu que a contaste! É assim que uma multidão de coisas nos volta à memória, quando mar­chamos para o suplício... ou quando sonhamos. Pois bem, não passas de um sonho!

— A violência com que me negas assegura-me que, apesar de tudo, crês em mim — disse o cavalheiro jovialmente.

— Absolutamente! Não creio em ti nem uma centésima parte!

— Mas uma milésima crês. As doses homeopáticas são talvez as mais fortes. Confessa que crês em mim, pelo menos uma décima milésima parte...

— Não! — gritou Ivã irritado. — Aliás, gostaria bem de crer em ti!

— Eh! eh! eh! Por fim, confessou! Mas sou bom, vou ajudar-te. Fui eu que te apanhei! Contei-te, de propósito, essa anedota para desen­ganar-te definitivamente a meu respeito.

— Mentes. O fim de tua aparição é convencer-me de tua exis­tência.

— Precisamente. Mas as hesitações, a inquietação, o conflito entre a fé e a dúvida constituem por vezes tal sofrimento para um homem escrupuloso como tu, que melhor vale enforcar-se. Sabendo que crês um pouco em mim, contei-te essa anedota para entregar-te definitiva­mente à dúvida. Conduzo-te entre a fé e a* incredulidade alternativa­mente, não sem um fito. É um novo método; quando cessares comple­tamente de crer em mim, por-te-ás a assegurar-me que não sou um sonho, que existo verdadeiramente, conheço-te: então meu fito será atingido. Ora, meu fito é nobre. Depositarei em ti um minúsculo germe de fé que dará nascimento a um carvalho, um carvalho tão grande que será teu refúgio e quererás fazer-te anacoreta, porque é teu vivo desejo em segredo, nutrir-te-ás de gafanhotos, prepararás a tua salvação r. o deserto.

— Então, miserável, é para minha salvação que trabalhas?

— É bem preciso praticar alguma vez uma boa obra. Tu te zangas, pelo que vejo!

— Palhaço! Jamais tentaste aqueles que se nutrem de gafanhotos, rezam dezessete anos no deserto até ficarem cobertos de musgo?

— Meu caro, não faço outra coisa senão isso. A gente esquece o mundo inteiro por uma alma assim, porque é uma jóia de preço, uma aritmética. A vitória é preciosa! Ora, certos solitários, palavra de honra, valem tanto quanto tu, do ponto de vista intelectual, se bem que não o creias; podem contemplar simultaneamente tais abismos de fé e de dúvida que parece por vezes, na verdade, que basta apenas um cabelo para que eles sucumbam.

— Pois bem! Tu te retirarias de nariz bem comprido!

— Meu amigo — observou o visitante, sentencioso —, mais vale ter o nariz comprido do que não ter nariz nenhum, como dizia ainda recentemente um marquês doente (devia ter sido tratado por um espe­cialista), confessando-se a um padre jesuíta. Assisti a isso, era encan­tador. "Entregai-me meu nariz!", e batia no peito. "Meu filho", insinuava o padre, "tudo é regulado pelos decretos insondáveis da Providência, um mal aparente traz por vezes um bem oculto. Se uma sorte cruel o privou de seu nariz, o senhor ganha com isso pelo fato de ninguém mais doravante ousar dizer-lhe que o senhor tem o nariz comprido. " "Meu padre, não é isto um consolo!", exclamou ele desesperado. "Fi­carei, pelo contrário, encantado por ter cada dia o nariz comprido, con­tanto que ele esteja no seu lugar!" "Meu filho", disse o padre, suspi­rando, "não se podem pedir todos os bens ao mesmo tempo e já é murmurar contra a Providência, que, mesmo assim, não o esqueceu; porque, se o senhor grita, como ainda há pouco, que seria feliz toda a sua vida por ter o nariz comprido, seu desejo será satisfeito indire­tamente, porque, tendo perdido seu nariz, pelo fato mesmo, tem o senhor o nariz comprido... "

— Ora! Que coisa estúpida! — exclamou Ivã.

— Meu amigo, eu queria fazer-te rir, juro-te que tal é a casuística dos jesuítas e que tudo isso é rigorosamente exato. Esse caso é recente e causou-me bastantes preocupações. De volta para casa, o desgraçado rapaz estourou os miolos naquela noite; não o deixei até o derradeiro instante... Quanto aos confessionários jesuíticos, são na verdade meu divertimento agradável nas horas de tristeza. Eis uma historieta destes últimos dias. Uma jovem normanda, loura, de vinte anos, chega à casa de um velho padre. Uma beleza! Que corpo! Era de fazer vir água à boca. Ajoelha-se, murmura seu pecado através da grade. "Como, mi­nha filha, você recaiu no pecado?... Ó Saneia Maria, que ouço eu? Já é outro? Até quando durará isso? Não tem você vergonha?" "Ah! mon père", responde a pecadora arrependida, "ça lui a fait tant de plaisir et à moi si peu de peine!"[13] Considera essa resposta! É o grito da própria natureza, vale isto mais que a inocência! Dei-lhe a absolvição e voltei-me para retirar-me, quando ouvi o padre marcar-lhe um encontro para aquela noite. Por mais resistente que tenha sido o velho, sucumbiu logo à tentação. A natureza, a verdade desforraram-se! Por que fazes careta? Eis-te de novo zangado? Não sei mais que fazer para te ser agra­dável...

— Deixa-me, tu me obsedas como um pesadelo — gemeu Ivã, ven­cido pela sua visão. — Tu me aborreces e me atormentas. Daria muito para escorraçar-te.

— Repito, modera tuas exigências, não exijas de mim o grande e o belo, e verás como seremos bons amigos — disse o cavalheiro com um tom sugestivo. — Na verdade, tens razão de querer-me mal porque não apareci em meio duma nuvem vermelha, entre o trovão e os raios, com as asas avermelhadas, mas me apresentei com traje tão modesto. Em primeiro lugar teus sentimentos estéticos estão melindrados, depois teu orgulho: tão grande homem receber a visita de um diabo tão comum! Há em ti aquela fibra romântica de que zombou Bielínski! Que fazer, rapaz? Ainda há pouco, no momento de vir à tua casa, pensei, para brincar, em tomar a aparência de um conselheiro de Estado aposentado, condecorado com as ordens do Leão e do Sol, mas não ousei, porque ter-me-ias batido: como, pôr no peito as placas do Leão e do Sol, em lugar da Estrela Polar ou de Sírio?! E insistes em chamar-me estúpido. Meu Deus, não pretendo ter a tua inteligência. Mefistófeles, aparecendo a Fausto, afirma que quer o mal e não faz senão o bem. Bem, isso é lá com ele, comigo é o contrário. Sou talvez o único ser no mundo que ama a verdade e quer sinceramente o bem. Estava presente quando o Verbo crucificado subiu ao céu, levando a alma do bom ladrão; ouvi as exclamações jubilosas dos querubins cantando hosana! e os hinos dos serafins, que faziam tremer o universo. Pois bem, juro-o pelo que há de mais sagrado, quis juntar-me aos coros e gritar também hosana! As palavras iam sair de meu peito... sabes que sou bastante sensível e impressionável do ponto de vista estético. Mas o bom senso — a mais desgraçada de minhas faculdades — reteve-me nos justos limites e deixei passar a hora propícia! Porque, pensava eu então, que aconteceria se eu cantasse hosana? Tudo se extinguiria no mundo, não se passaria mais nada. Eis como os deveres de meu cargo e minha posição social obri­garam-me a repelir um impulso generoso e a permanecer na infâmia. Outros arrogam-se toda a honra do bem: não me deixam senão a in­fâmia. Mas não invejo a honra de viver às custas de outrem, não sou ambicioso. Por que, entre todas as criaturas, sou eu só votado às maldi­ções das pessoas honestas e mesmo aos pontapés de botas, pois, encarnan­do-me, devo suportar tais conseqüências? Há aí um mistério, mas a preço algum querem revelar-mo, com medo de que entoe eu hosana e tão logo desapareçam as imperfeições necessárias, reine a razão no mundo inteiro: seria naturalmente o fim de tudo, até mesmo de jornais e revistas, ' porque quem os assinaria então? Sei que por fim eu me reconciliaria, farei tam­bém eu o meu quatrilhão e conhecerei o segredo. Mas, à espera, amuo-me e cumpro a contragosto minha missão: perder milhões para salvar um só. Quantas almas, por exemplo, foi preciso perder e quantas repu­tações macular para obter um só justo, Jó, do qual se serviram outrora para me pregarem bem má peça. Não, enquanto o segredo não for reve­lado, existem para mim duas verdades: a lá de baixo, a deles, que ignoro totalmente, e a outra, a minha. Resta ver qual é a mais pura... Dormes?

— Penso bem — gemeu Ivã — em tudo o que há de animal em mim, tudo o que desde muito tempo digeri e eliminei como uma sujeira, tu mo trazes como uma novidade!

— Então, não fui bem sucedido! Eu que pensava encantar-te com mi­nha eloqüência! Esse hosana no céu, na verdade, não estava mal, não é? Depois aquele tom sarcástico à Heine, não é?

— Não, jamais tive esse espírito de lacaio! Como pôde minha alma produzir um lacaio de tua espécie?

— Meu amigo, conheço um encantador jovem russo, amador de lite­ratura e de arte. É o autor dum poema que promete, intitulado: "O Grande Inquisidor... " Era unicamente ele que eu tinha em vista.

— Proíbo-te de falar do "Grande Inquisidor" — exclamou Ivã, rubro de vergonha.

— E o cataclismo geológico, lembras-te? Que poema!

— Cala-te ou eu te mato!

— Matar-me? Não, é preciso que eu me explique em primeiro lugar. Vim cá para oferecer a mim mesmo esse prazer. Oh! quanto amo os sonhos de meus jovens amigos, fogosos, sedentos de vida! "Ali vive gente nova!", dizias tu na última primavera, quando te preparavas para vir aqui, "eles querem tudo destruir e regressar à antropofagia. Não me consultaram, os estúpidos. Na minha opinião, não é preciso destruir nada, a não ser a idéia de Deus no espírito do homem: eis por onde é preciso começar. Oh! os cegos, não compreendem nada! Uma vez que a huma­nidade inteira professe o ateísmo (e creio que essa época, à maneira das épocas geológicas, chegará a seu tempo), então, por si mesma, sem an­tropofagia, a antiga concepção do mundo desaparecerá, e sobretudo a antiga moral. Os homens se unirão para retirar da vida todos os gozos possíveis, mas neste mundo somente. O espírito humano se elevará até um orgulho titânico e isto será a humanidade deificada. Triunfando sem cessar e sem limites da natureza pela ciência e pela energia, o homem por isso mesmo experimentará constantemente uma alegria tão intensa que ela substituirá para ele as esperanças das alegrias celestes. Cada qual saberá que é mortal, sem esperança de ressurreição, e resignar-se-á à morte com uma altivez tranqüila, como um deus. Por altivez, abster-se-á de murmurar contra a brevidade da vida e amará seus irmãos duma maneira desinteressada. O amor só procurará gozos breves, mas o pró­prio sentimento de sua brevidade reforçar-lhe-á a intensidade tanto quan­to outrora ela se disseminava nas esperanças de um amor eterno, além-tumular"... e assim por diante. É encantador!

Ivã tapava os ouvidos com as mãos, olhava para o chão, tremia da cabeça aos pés. A voz prosseguiu:

— A questão consiste nisto, sonhava meu jovem pensador: será pos­sível que essa época chegue algum dia? Na afirmativa, tudo está deci­dido, a humanidade se organizará definitivamente. Mas como, diante da estupidez inveterada da espécie humana, não se venha isso a realizar talvez nem dentro de mil anos, é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo lhe é permitido. Mais ainda: mesmo se essa época nunca deva chegar, como Deus e a imor­talidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no mundo a viver assim. Poderia doravante, de coração leve, libertar-se das regras da moral tradicional, às quais estava o homem sujeito como um escravo. Para Deus, não existe lei. Em toda parte onde Deus se encontra, está em seu lugar! Em toda parte em que me encontrar, será o primeiro lugar... tudo é permitido, um ponto, é tudo! Tudo isso é muito gentil; somente, se se quer trapacear, de que serve a sanção da verdade? Mas nosso russo contemporâneo é assim feito: não se decidirá a trapacear sem essa sanção, tanto ama ele a verdade...

O visitante deixara-se arrebatar pela sua eloqüência, elevava cada vez mais a voz e olhava com ironia o dono da casa; mas não pôde acabar. Ivã agarrou de repente um copo em cima da mesa e atirou-o no orador.

— Ah! mais, c'est bete enfin![14] — exclamou o outro, erguendo-se vivamente e enxugando as gotas de chá que lhe caíram na roupa; lem­brou-se do tinteiro de Lutero![15] Quer ver em mim um sonho e lança copos contra um fantasma! Isso é digno duma mulher! Bem suspeitava de que fingias tapar os ouvidos e que estavas escutando...

Nesse momento, bateram na janela com insistência. Ivã Fiódorovitch levantou-se.

— Estás ouvindo? Abre então — exclamou o visitante. — É teu irmão Aliócha que vem anunciar-te uma notícia das mais inesperadas, garanto-te!

— Cala-te, impostor, sabia antes de ti que era Aliócha, pressentia-o, e decerto não vem à toa, traz evidentemente uma "notícia" — exclamou Ivã exaltado.

— Abre então, abre-lhe. Está lá fora uma tempestade de neve e é teu irmão quem bate. Monsieur sait-il le temps qu'il fait? Cest à ne pas mettre un chien dehors... [16]

Continuavam a bater. Ivã quis correr à janela, mas sentiu-se como que paralisado. Esforçava-se por partir os laços que o prendiam, mas em vão. Batiam cada vez com mais força. Por fim os laços se romperam e Ivã Fiódorovitch levantou-se. As duas velas acabavam de consumir-se, o copo que havia atirado contra seu visitante estava sobre a mesa. Sobre o divã, ninguém. As pancadas na janela persistiam, mas bem menos fortes do que lhe tinham parecido, bem discretas até.

— Não é um sonho! Não, juro que não era um sonho, tudo isso acaba de ocorrer.

Ivã correu à janela e abriu o postigo.

— Aliócha, eu te havia proibido de vir — gritou ele, com raiva a seu irmão. — Em duas palavras: que queres? Em duas palavras, ou­ves-me?

— Há uma hora Smierdiákov enforcou-se — disse Aliócha.

— Sobe o patamar, vou abrir a porta — disse Ivã.

 

"FOI ELE QUEM O DISSE!"

Aliócha contou a Ivã que uma hora antes Maria Kondrátievna fora à casa dele para informá-lo de que Smierdiákov acabava de suicidar-se. "Entro no quarto dele para retirar o samovar e vejo-o pendurado de um prego grande na parede. " Perguntando-lhe Aliócha se fizera ela sua declaração a quem de direito, respondeu que viera diretamente à casa de­le, correndo. Tremia como uma folha. Tendo-a acompanhado à isbá, ha­via Aliócha encontrado Smierdiákov ainda pendurado. Em cima da mesa, um papel com estas palavras: "Ponho fim a meus dias voluntariamente. Não acusem ninguém de minha morte". Deixando esse bilhete em cima da mesa, dirigiu-se Aliócha à casa do isprávnik, "e dali à tua casa", concluiu, olhando fixamente para Ivã, cuja expressão o intrigava.

— Meu irmão — disse de repente —, deves estar muito doente! Olhas-me sem ter o ar de compreender o que te digo.

— Foi bom teres vindo — disse Ivã com ar preocupado e sem pres­tar atenção à exclamação de Aliócha. — Sabia que ele se tinha en­forcado.

— Por intermédio de quem o sabias?

— Não lembro por intermédio de quem, mas sabia-o. Sabia-o? Sim, ele mo disse. Dizia-mo ainda há pouco...

Ivã mantinha-se no meio do quarto, com o ar sempre absorto, olhan­do para o chão.

— Ele, quem? — perguntou Aliócha com uma olhadela involuntária em redor.

— Esquivou-se.

— Ivã ergueu a cabeça e sorriu mansamente.

— Teve medo de ti, da pomba. És um puro "querubim". Dimítri as­sim te chama: querubim... O grito formidável dos serafins! Que é um serafim? Talvez toda uma constelação, e essa constelação não é talvez senão uma molécula química... Existe a constelação do Leão e do Sol, sabes?

— Meu irmão, senta-te — disse Aliócha espantado —, senta-te no divã, suplico-te. Deliras, apóia-te na almofada, assim. Queres um guar­danapo molhado sobre a cabeça? Isso te aliviaria.

— Dá-me o guardanapo que está em cima da cadeira, atirei-o ali ainda há pouco.

— Não, não está ali. Não te inquietes, ei-lo aqui — disse Aliócha encontrando num canto, perto do lavatório, um guardanapo limpo, ainda dobrado. Ivã examinou-o com olhar estranho. Pareceu voltar-lhe a memória.

— Espera — disse ele, levantando-se. — Há uma hora apliquei à minha cabeça esse mesmo guardanapo molhado, depois joguei-o ali... como pode estar ele seco? Não havia outro.

— Aplicaste esse guardanapo na cabeça?

— Mas sim, e andei pelo quarto há uma hora... Por que as velas estão consumidas? Que horas são?

— Em breve será meia-noite.

— Não, não, não! — exclamou Ivã. — Não era um sonho! Ele esta­va aqui, neste divã. Quando tu bateste na janela, atirei-lhe um copo... aquele... Espera um pouco, não é a primeira vez... mas não são so­nhos, é realidade: ando, falo, vejo... dormindo. Mas ele estava aqui, neste divã... É muito estúpido ele, Aliócha, muito estúpido. — Ivã pôs-se a rir e a caminhar pelo quarto.

— Quem é estúpido? De quem falas, meu irmão? — perguntou an­siosamente Aliócha.

— Do diabo! Ele vem ver-me. Veio duas ou três vezes. Irrita-me, pretendendo que lhe quero mal por não ser ele senão o diabo, em lugar de Satã, com asas avermelhadas, cercado de trovões e raios. Não pas­sa de um impostor, um mau diabo de baixa classe. Vai aos banhos. Se lhe tirassem a roupa, haveriam de encontrar nele certamente uma cau­da fulva, do comprimento de 1 archin, lisa como a de um cão dinamar­quês... Aliócha, estás enregelado, coberto de neve, queres chá? Está frio, vou pôr a funcionar o samovar... Cest à ne pas mettre un chien dehors...

Aliócha correu ao lavatório, molhou o guardanapo, persuadiu Ivã a tornar a sentar-se e aplicou-lho à cabeça. Sentou-se ao lado dele.

— Que é que me dizias há pouco a respeito de Lisa? — prosseguiu Ivã. (Tornava-se bastante loquaz. ) Lisa me agrada. Falei-te mal dela. É falso, ela me agrada. Tenho medo amanhã, por causa de Cátia so­bretudo, pelo futuro. Ela me abandonará amanhã e me espezinhará. Crê que perco Mítia por ciúme, por causa dela, sim, ela crê isto! Mas não! Amanhã, será a cruz e não a forca. Não, não me enforcarei. Sa­bes que não poderei jamais me matar, Aliócha? Será por baixeza? Não sou um covarde. É por amor à vida! Como sabia eu que Smierdiákov se enforcara? Sim, foi "ele" quem mo disse...

— E estás persuadido de que alguém veio aqui?

— Neste divã, no canto. Foste tu que o afugentaste. Sim, foste tu que o puseste em fuga, desapareceu à tua chegada. Gosto de teu ros­to, Aliócha. Sabias disto? Mas "ele" sou eu, Aliócha, eu mesmo. Tudo quanto há em mim de baixo, de vil, de desprezível! Sim, sou um "ro­mântico", ele o notou... no entanto, é uma calúnia. Ele é horrenda­mente estúpido, mas por isso é que logra êxito. É astuto, bestialmente astuto, sabe muito bem levar-me ao extremo. Zombava de mim, dizen­do que eu creio nele, foi assim que me obrigou a escutá-lo. Mistificou-me como a uma criança. Aliás, disse a meu respeito muitas verdades, coisas que eu jamais teria dito a mim mesmo. Sabes, Aliócha, sabes — acrescentou Ivã, num tom confidencial — que eu gostaria bem que fos­se realmente "ele", e não eu?

— Ele fatigou-te — disse Aliócha, olhando para seu irmão com com­paixão.

— Irritou-me, sabes, e bem habilmente: "A consciência, que é isso?

Fui eu que a inventei. Por que se tem remorsos? Por hábito. Hábito que tem a humanidade há 7 000 anos. Desfaçamo-nos do hábito e se­remos deuses". Foi ele quem o disse!

— Mas não tu, não tu? — exclamou malgrado seu Aliócha, com um olhar luminoso. — Pois bem! Deixa-o, esquece-o então! Que ele leve consigo tudo quanto maldizes agora e que não volte mais!

— Ele é mau, zombou de mim. É um insolente, Aliócha — disse Ivã, fremindo à lembrança da ofensa. — Caluniou-me a muitos res­peitos, caluniou-me em minha própria cara. "Oh! vais praticar uma no­bre ação, declararás que foste tu o assassino responsável, que o lacaio matou teu pai por instigação... "

— Meu irmão, contém-te; não foste tu que mataste. Não é verdade!

— Foi ele que o disse e ele o sabe: "Vais praticar uma ação vir­tuosa e, contudo, não crês na virtude, eis o que te irrita e te atormenta". Eis o que ele me. disse, e ele é perito nisso...

— És tu que dizes, e não ele! E falas em delírio!

— Não, ele sabe o que diz: "É por orgulho que vais dizer: 'Fui eu que matei, por que estais tomados de espanto? Mentis! Desprezo vossa opinião, zombo do vosso espanto'". Dizia ainda: "Sabes? queres que te admirem; é um criminoso, um assassino, dirão, mas que senti­mentos nobres! Para salvar seu irmão, acusou-se!" Mas é falso, Alió­cha — exclamou Ivã, com os olhos cintilantes. — Não quero a admi­ração dos alarves. Juro-te que ele mentiu. Foi por isso que lhe atirei um copo, que se quebrou no focinho dele!

— Meu irmão, acalma-te, deixa de...

— Não, é um sábio torcionário, e cruel — prosseguiu Ivã, que não havia ouvido. — Sabia bem por que ele vinha. "Pois seja", dizia ele, "tu querias ir por orgulho, mas guardando a esperança de que Smierdiá­kov seria desmascarado e enviado ao presídio, que absolveriam Mítia e que te condenariam moralmente apenas (ouves, ele riu neste ponto!), enquanto outros te admirariam. Mas Smierdiákov está morto, quem te acreditará agora no tribunal? Tu somente? No entanto, vais, decidiste ir. Com que objetivo, afinal?" É estranho, Aliócha, não posso suportar semelhantes perguntas. Quem tem a audácia de mas fazer?

— Meu irmão — interrompeu Aliócha, gelado de medo, mas espe­rando sempre fazer Ivã voltar à razão —, como pôde ele falar-te da morte de Smierdiákov antes de minha chegada, quando ninguém a co­nhecia e não tivera tempo de sabê-la?

— Ele me falou dela — disse Ivã, num tom decisivo. — Não me falou senão disso, se quiseres. "Se ainda acreditasses na virtude: não me acreditarão, não importa, vou por uma questão de princípio. Mas tu não passas de um porco, como Fiódor Pávlovitch, nada tens que ver com a virtude. Por que ires até lá, se teu sacrifício é inútil? Não sabes de nada e darias muito para sabê-lo! Suponhamos: tu te deci­diste! Pássaras a noite a pesar o pró e o contra! No entanto, irás, bem o sabes, sabes que, qualquer que seja tua resolução, a decisão não de­pende de ti. Irás, porque não ousarás fazer de outro modo. E por que não ousarás? Adivinha tu mesmo, é um enigma!" Nisso partiu, quando tu chegavas. Tratou-me de covarde, Aliócha. Le mot de Venigme[17] é que sou um covarde! Smierdiákov disse o mesmo. É preciso matá-lo. Cátia me despreza, vejo-o desde um mês. Lisa começa a desprezar-me: "Irás para que te admirem", é uma mentira abominável! E tu também, tu me desprezas, Aliócha. Detesto-te de novo! E odeio também o monstro, que ele apodreça no presídio! Cantou um hino! Irei amanhã cuspir na cara de todos.

Ivã levantou-se cheio de furor, arrancou o guardanapo, voltou a andar pelo quarto. Aliócha lembrou-se de suas recentes palavras: "Pa­rece-me dormir acordado... Ando, falo, vejo e, contudo, durmo". Era bem isso. Não ousava deixá-lo para ir procurar um médico, não tendo ninguém a quem confiá-lo. Pouco a pouco Ivã pôs-se a desarrazoar completamente. Continuava a falar, mas suas palavras eram incoeren­tes. Articulava mal as palavras; de repente cambaleou, mas Aliócha pôde sustentá-lo; tirou-lhe a roupa, com dificuldade, e meteu-o na cama. O doente caiu num profundo sono, com a respiração regular. Aliócha ve­lou-o ainda umas duas horas, depois pegou um travesseiro e estendeu-se sobre o divã, sem tirar a roupa. Antes de adormecer, rezou por seus irmãos. Começava a compreender a doença de Ivã. "Os tormentos du­ma resolução orgulhosa, uma consciência exaltada!" Deus, em quem Ivã não acreditava, e sua verdade tinham subjugado aquele coração ainda rebelde. "Sim", pensava Aliócha, "já que Smierdiákov está morto, nin­guém acreditará em Ivã; no entanto, ele irá depor. " "Deus vencerá", dis­se a si mesmo Aliócha, com um doce sorriso. "Ou Ivã despertará à luz da verdade, ou então... sucumbirá no ódio, vingando-se de si mes­mo e dos outros por ter servido uma causa na qual não acreditava", acrescentou ele com amargura, e rezou de novo por Ivã.



 

[1] Senhor coronel, em polonês.

[2] Perto da Ponte das Correntes Do edifício te recordarás.

[3] Salmos, C. CXXXVI, vs. 5 e 6.

[4] Significa, por extensão: Mercado de Animais.

[5] Você compreende, esse caso e a morte terrível de seu papai.

[6] Opiniões não se discutem.

[7]Petersburgo, na linguagem do povo.

[8] Orçando pelos cinqüenta.

[9] Sou Satanas e nada do que é humano reputo alheio a mim.

[10] É novidade, não é?

[11] Palavras de Khlestakov, em O Inspetor, de Gógol, 3. o ato, cena 6.

[12] "Penso, logo existo. " (Descartes.)

[13] Ah! meu padre, isso lhe causou tanto prazer e a mim tão pouco trabalho!

[14] Ah! mas é estúpido, afinal!

[15] Martinho Lutero acreditava ter visto muitas vezes o diabo, atirando-lhe certo dia com um tinteiro à cabeça.

[16] O senhor sabe que tempo está fazendo? Nem um cachorro se deve pôr lá fora..

[17] A chave do enigma

                                                                                           

Parte 1 - Parte 2 - Parte 4

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades