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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DAVID COPPERFIELD p2 / Charles Dickens
DAVID COPPERFIELD p2 / Charles Dickens

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DAVID COPPERFIELD

 

FAÇO OUTRA INICIAÇÃO

Eu e o senhor Dick depressa nos tornámos os melhores amigos do mundo. Muitas vezes, depois de ele acabar o seu trabalho quotidiano, nós saíamos juntos para altear o papagaio de papel. O homem não deixava passar um dia sem consagrar umas horas ao memorial, que afinal não progredia nada, por mais que o autor diligenciasse, pois o rei Carlos I aí se introduzia sempre. O senhor Dick largava então o manuscrito e começava outro. A sua paciência e esperança perante as decepções contínuas, os esforços que fazia para rechaçar o rei Carlos I de um relato, em que vagamente sentia ser assunto estranho, e a exactidão com que este voltava para alterar a estrutura completa do memorial, tudo isto produzia em mim uma impressão profunda. O que ele tencionava fazer da obra, uma vez concluída; o destinatário e os efeitos que esperava obter, eis o que o próprio Dick ignorava, suponho eu, aliás como as outras pessoas que o cercavam. Mas não era necessário que se preocupasse com este problema, porque se havia alguma coisa certa no mundo era que o memorial nunca seria terminado.

Que espectáculo comovedor esse de o ver com um papagaio, quando este subia a grande altura! Dissera‑me o senhor Dick que o papagaio era feito de velhas folhas de memoriais inutilizados e que tinha confiança nesse processo para divulgar os factos; mas, uma vez o aparelho no ar, deixava de pensar nisso, entretido a puxá‑lo, aos sacões, com uma guita. Jamais se mostrava tão sereno como nessa ocasião. Eu acreditava, quando à tarde lhe fazia companhia no declive de um outeiro verdejante, que esse objecto lhe arrancava o espírito da confusão e o levava consigo (tal a minha credulidade infantil!) para as regiões celestiais. Quando enrolava o cordel, e quando o papagaio, descendo a pouco e pouco, abandonava aquela zona de luz esplendorosa, para cair, palpitante, no chão, estendido como uma criatura morta, o senhor Dick parecia emergir lentamente de um sonho. Eu via‑o apanhar depois o papagaio, olhar derredor com ar alucinado, como se houvessem sido ambos derrotados ‑ e lastimava‑o de todo o coração.

Enquanto eu progredia na amizade e intimidade do velhote, avançava também nas boas graças da sua amiga devotada, a minha tia. Esta concebeu por mim tal afeição que ao fim de poucas semanas abreviou o meu nome adoptivo de Trotwood em Trot; e até me animou a esperar que poderia, se continuasse como principiara, ocupar nos seus sentimentos o lugar da minha irmã Betsey Trotwood.

‑ Trot ‑ disse ela uma noite, no momento em que, como de costume, lhe traziam o gamão para jogar com o senhor Dick ‑ não devemos negligenciar a tua educação.

Era o meu único tema de inquietação, e fiquei satisfeitíssimo ao ouvir semelhante referência.

‑ Gostarias de estudar em Cantuária? ‑ prosseguiu a tia. Respondi que isso me agradava deveras, tanto mais que ficava perto.

‑ Pois então está decidido. Queres partir amanhã?

A rapidez das deliberações da senhora Trotwood não me era ainda familiar. Fiquei, pois, surpreendido com uma proposta tão súbita e repliquei:

‑ Sim, senhora.

‑ Janet, manda reservar a carruagem e atrela o cavalo ruço amanhã de manhã às dez horas. Esta noite farás a mala do menino.

Sentia‑me inundado de alegria ao ouvir dar estas ordens, mas sofreei o entusiasmo e censurei o meu egoísmo quando notei a tristeza que a nossa separação causava no senhor Dick. Nessa noite jogou tão mal que, depois de o haver chamado à ordem várias vezes, a tia fechou o gamão e se recusou a continuar a partida. Quando, porém, lhe disse que eu viria no sábado e que poderia também ir visitar‑me às quartas‑feiras, o senhor Dick reanimou‑se e prometeu construir outro papagaio de papel maior do que o primeiro. No dia seguinte de manhã, recaíra no desânimo e quis consolar‑se oferecendo‑me tudo quanto possuía de ouro e prata; mas a tia interveio para limitar o seu presente a cinco xelins, que a instâncias suas foram alargados para dez. Despedimo‑nos à porta do jardim, do modo mais afectuoso, e ele só reentrou em casa quando a tia lhe ordenou que o fizesse.

Indiferente à opinião pública, a senhora Trotwood conduziu com mestria o cavalo ruço através das ruas de Dover. Ia direita como um cocheiro num cortejo de gala e não perdia de vista os mínimos movimentos do animal, fazendo filé em não permitir que ele seguisse a sua própria vontade, sob nenhum pretexto. Quando alcançámos o campo, ela deu‑lhe certa liberdade e, lançando a vista para o vale de coxins em que eu estava mergulhado, à sua beira, perguntou se me considerava feliz.

‑ Bastante, minha tia. Muito obrigado ‑ respondi.

Ela ficou tão contente que, não tendo as mãos livres para testemunhar o seu prazer, me acariciou a cabeça com o chicote.

‑ É um colégio importante? ‑ indaguei.

‑ Ignoro, Trot. Vamos em primeiro lugar a casa do doutor Wickfield.

‑ É o director do colégio?

‑ Não, mas tem um escritório.

Não pedi mais informações quanto ao doutor Wickfield, e a minha tia não mas deu de moto próprio. Conversámos, pois, de outros assuntos até à altura de chegarmos a Cantuária. Era dia de feira, e a tia encaminhou o veículo pelo meio dos carrinhos, cestos, hortaliças e mercadorias expostas. As voltas e desvios que executávamos (aliás na perfeição) valiam‑nos comentários, às vezes pouco lisonjeiros, da parte dos feirantes. Mas Betsey seguia sempre com indiferença soberana; creio até que abriria caminho, com a mesma calma, através de um país inimigo.

Por fim parámos diante de uma casa de aspecto antigo, que fazia saliência na rua; as janelas altas e gradeadas avançavam ainda mais, e as traves, com as extremidades esculpidas, formavam também protuberância: afigurava‑se‑me que todo o prédio se inclinava para a frente a fim de ver o que se passava no passeio estreito. Essa casa era de uma limpeza extraordinária. O velho batente de cobre, na porta baixa e abobadada, ornado de grinaldas de flores e frutos esculpidos, brilhava como uma estrela. Os dois degraus de pedra que se tinha de descer para entrar estavam tão brancos como se fossem atapetados de linho alvo. Todos os ângulos, recantos, esculturas, molduras, vidros, frestas, tudo isto, embora antiquíssimo, tinha o resplendor da neve.

Quando a carruagem se deteve à porta, descobri, ao observar o prédio, uma figura cadavérica a uma janelinha do torreão, figura que rapidamente desapareceu. Abriu‑se então a porta e eu vi reaparecer esse rosto, realmente cadavérico, mas que tinha no grão da pele um pouco desse tom rubro que distingue às vezes a pele das pessoas ruivas. Os cabelos eram ruivos. Tratava‑se de um rapaz que podia ter quinze anos (segundo agora calculo) mas que parecia de muito mais idade. O cabelo estava cortado à escovinha. Não se lhe viam sobrancelhas, nem pestanas. Os olhos, castanhos avermelhados, eram tão desprovidos de algo que os sombreasse que eu pensei como é que ele conseguiria adormecer. Ossudo, tinha os ombros levantados, vestia com decência fato preto (com uma suspeita de gravata branca) abotoado até ao pescoço. Mão comprida, muito magra, verdadeira mão de esqueleto: chamou‑me a atenção enquanto ele, de pé junto à cabeça do cavalo, esfregava o queixo e nos observava.

‑ O doutor Wickfield está, Uriah Heep? ‑ perguntou minha tia.

‑ Está, sim, senhora. Se quiser fazer o favor de entrar... ‑respondeu Uriah Heep, indicando com a mão comprida uma sala.

Apeámo‑nos, e, deixando‑o tomar conta da carruagem, entrámos numa sala baixa e extensa, que dava para a rua. Ao entrar ali, vi pela janela que Uriah Heep soprava nas ventas do cavalo, depois as tapava com a mão, precipitadamente, como se lhe fizesse um feitiço. Diante do fogão alto e antigo havia dois retratos: um representando um homem de cabelo branco (que não era propriamente velho) e sobrancelhas pretas, o qual olhava para documentos amarrados com uma fita encarnada. O outro era de uma senhora de fisionomia sossegada e meiga e que parecia contemplar‑me.

Julgo que procurava ainda um retrato de Uriah quando se abriu uma porta na outra extremidade da sala, e entrou um cavalheiro. Ao vê‑lo, voltei‑me para o primeiro dos retratos para me certificar de que o recém‑chegado não saíra da moldura: o retratado, porém, continuava imóvel. Quando o homem se aproximou da luz, vi que era um pouco mais velho do que no tempo em que fora pintado.

‑ Senhora Betsey Trotwood ‑ disse ele ‑ entre, se faz favor. Eu estava ocupado, desculpe‑me. Sabe o que me absorve tanto. Só tenho uma razão de viver.

Betsey agradeceu‑lhe e nós penetrámos no seu escritório, que estava mobilado como o de um homem de negócios, com livros, papéis, caixas de folha, etc. Dava para um jardim e continha um cofre de ferro, embutido na parede mesmo por cima da prateleira do fogão: pensei como fariam os limpa‑chaminés para o contornar, quando procediam à limpeza.

‑ Pois, minha senhora ‑ disse o doutor Wickfield (percebi que era ele, que exercia advocacia e administrava as terras de um proprietário rico da região). ‑ Que bom vento a traz por cá? Suponho que é bom vento...

‑ Decerto. Não venho por causa de nenhum processo.

‑ Faz bem, minha senhora. Mais vale vir por outra coisa qualquer.

O doutor Wickfield tinha o cabelo todo branco, mas as sobrancelhas ainda estavam pretas. O rosto era prazenteiro e, à minha vista, chegava a ser belo, e apresentava um esplendor que os ensinamentos da Pegotty me habituaram a considerar como resultado do vinho do Porto. A mesma causa atribuí eu à voz e à nutrição incipiente. Mostrava‑se muito bem trajado, com um casaco azul, colete às riscas e calças de nanquim. A camisa de peitilho de rendas e a gravata de cambraia pareciam de perfeita brancura e, àminha imaginação, evocavam a penugem de um cisne.

‑ Apresento‑lhe o meu sobrinho ‑ disse Betsey.

‑ Não sabia que tinha sobrinhos ‑ replicou Wickfield.

‑ Sobrinho‑neto, para explicar melhor. ‑ Também não sabia que os tivesse.

‑ Adoptei‑o ‑ declarou a tia, com um gesto de mão que indicava a sua indiferença pelo que ele pensava ou sabia ‑ e trouxe‑o cá para o matricular num colégio onde possa ser bem tratado e educado. Nomeie‑me um estabelecimento nessas condições e dê‑me todos os informes a esse respeito.

‑ Antes de a poder aconselhar como deve ser ‑ disse o doutor Wickfield ‑ farei a velha pergunta: qual a razão para isto?

‑ Diabos o levem!‑exclamou a tia. ‑ Sempre à procura dos motivos, quando eles estão à vista! Pois bem: a razão é tornar esta criança feliz e útil.

‑ A coisa traz água no bico ‑ volveu Wickfield, sacudindo a cabeça e sorrindo com ar incrédulo.

‑ O senhor quer convencer‑me de que os seus motivos são sempre únicos e claros? ‑ replicou a tia, sorrindo também. ‑ Julga‑se mais recto do que ninguém nos negócios que faz.

‑ É que tenho um só motivo na vida, minha senhora. Os outros têm dezenas deles, mesmo centenas. Mas eu só tenho um. Aí está a diferença. Em todo o caso, este é evidente. O melhor colégio? Quer realmente o melhor?

Betsey fez um sinal afirmativo.

‑ O melhor dos que possuímos ‑ continuou o doutor Wickfield, reflectindo ‑ não poderia aceitar neste momento o seu sobrinho como interno.

‑ Todavia, ele pode hospedar‑se, entretanto, noutro lugar ‑ sugeriu Betsey.

Wickfield achou que isso era possível. Depois de breve discussão, ele propôs levar a tia a esse colégio, para que julgasse por si mesma. Levá‑la‑ia também a duas ou três casas que aceitavam hóspedes. A tia concordou e nós saímos todos três, quando ele parou para dizer:

‑ Mas este nosso amiguinho não precisa de nos acompanhar. Mais vale deixá‑lo aqui.

A tia parecia disposta a discutir este ponto, mas, para facilitar as coisas, declarei que ficaria de boa vontade, e reentrei no escritório do senhor Wickfield, onde, à espera deles, tornei a sentar‑me na cadeira que ocupara.

Essa cadeira achava‑se defronte de um corredor estreito que ia dar ao quartinho redondo do terreão em que eu descobrira o rosto pálido de Uriah Heep. Depois de ter levado o cavalo à estrebaria próxima, Uriah começara a trabalhar abancado a uma carteira em que estava o quadro de cobre para colocar papéis e onde ele fixara o manuscrito que copiava. Embora tivesse a cara voltada para o meu lado, julguei a princípio que esse manuscrito o impedisse de me ver; mas, olhando com maior atenção, notei, não sem constrangimento, que os seus olhos vigilantes apareciam de vez em quando como dois sóis rubros e que ele me espiava por momentos, enquanto a pena corria, ou fingia correr, no papel. Fiz várias tentativas para fugir a essa espionagem: subi a uma cadeira a fim de ver de perto um mapa colocado na outra parede da sala; mergulhei na leitura do jornal de Kent; mas aqueles olhos atraíam‑me sempre, e todas as vezes que o relanceava tinha a certeza de que ele estava consciente dessa minha investigação.

Por fim, e para meu grande alívio, a tia e o doutor Wickfield voltaram. A ausência fora demorada. Não tinham sido felizes na sua diligência, tanto quanto eu desejaria, pois se eram incontestáveis as vantagens oferecidas pelo colégio a senhora Trotwood não engraçara com nenhuma das casas susceptíveis de me hospedarem.

‑ É de lamentar ‑ disse ela. ‑ Não sei que faça, Trot.

‑ É, de facto, lamentável ‑ corroborou o doutor Wickfield. ‑ Mas há uma solução, que lhe vou apresentar.

‑ Qual é?

‑ Deixe por enquanto aqui o seu sobrinho. É rapaz sossegado. Não me incomodará. A casa, tranquila como um convento, foi mesmo feita para favorecer o estudo. E tem muita acomodação.

A ideia agradou, evidentemente, à minha tia, mas um escrúpulo de delicadeza impediu‑a de aceitar. E a mim também.

‑ Vamos, minha senhora ‑ disse o doutor Wickfield. ‑ É um meio de sair de dificuldades. Trata‑se apenas de um arranjo provisório, que se anulará quando lhe convier. Teremos muito tempo, daqui até lá, para achar melhor. Acho preferível que o deixe aqui por enquanto.

‑ Fico‑lhe muito agradecida ‑ respondeu a tia. ‑ E ele igualmente, mas...

‑ Bem sei o que quer dizer ‑ atalhou o doutor Wickfield. ‑ Não desejo impor‑lhe qualquer favor, minha senhora. Pagará a pensão, se achar mais acertado. Não disputaremos quanto ao preço: paga o que quiser.

‑ Nessas condições ‑ retorquiu Betsey ‑ terei muito gosto em deixar aqui o Trot, o que não impede de lhe ficar do mesmo modo reconhecida

‑ Então vamos visitar a minha pequena governanta ‑ disse Wickfield.

Subimos uma escada sumptuosa. O corrimão era tão amplo que quase poderíamos andar por cima dele. Depois entrámos numa sala sombria, com três ou quatro janelas de forma esquisita, que eu já observara da rua. Nos vãos havia velhos bancos de carvalho que pareciam provir das mesmas árvores que deram o soalho reluzente e os grandes barrotes do tecto. Via‑se ainda um piano e móveis de cores garridas, verde e encarnado, e algumas flores. Dir‑se‑ia ser uma sala feita apenas de cantos e recantos. E em cada canto encontrava‑se um móvel curioso, mesinha, credencia, estante, poltrona, o que me fazia supor que não existia outro ângulo mais confortável do que aquele. Era assim que eu pensava, até chegar a novo recanto, que se me afigurava tão bom ou talvez melhor. Em tudo se respirava o ar de tranquilidade e de perfeito asseio que distinguia o prédio já no exterior.

O doutor Wickfield bateu à porta que se abria num desses lados, e surgiu uma rapariguinha mais ou menos da minha idade, que o beijou. Reconheci logo no rosto dela a expressão calma e doce da senhora de que eu vira o retrato no rés‑do‑chão. Poderia supor‑se que o original continuava criança e que o retrato é que se fizera adulto. Se bem que a fisionomia fosse alegre, inculcava uma serenidade, um espírito bom e tranquilo, que eu jamais esquecerei.

Era, segundo explicou o doutor Wickfield, a sua pequena governanta, a filha Agnes. Ao ouvir o tom com que ele pronunciara essas palavras e ao ver a maneira como lhe pegava na mão, compreendi qual era a sua única razão de viver. Tinha a um lado, pendente, uma bolsinha, onde guardava as chaves, e a menina parecia já bastante grave e avisada para o governo doméstico. Escutou com ar interessado o que o pai lhe disse de mim e, quando ele acabou, ela propôs‑nos que fôssemos ao quarto que me seria destinado. Era espaçoso e excelente, também com vigas de carvalho e vitrais. Ficava noutro andar, e a escada que subia até lá tinha igualmente belas proporções.

Não me lembro onde e quando vi, na minha infância, vitrais numa Igreja. Nem me recordo do assunto. Mas sei que, ao ver aquela pequena virar‑se e esperar, no alto da escada, sob essa luz solene, pensei no vitral da igreja e o seu brilho suave permaneceu para sempre associado à pessoa de Agnes Wickfield.

A tia estava tão satisfeita como eu com a solução encontrada. Não quis de modo nenhum ficar para jantar, com medo de ser noite quando regressasse com o seu famoso cavalo ruço, e creio que o doutor Wickfield a conhecia bem para não discutir com ela. Trouxeram‑lhe apenas uma refeição ligeira, e Agnes voltou para junto da sua perceptora e o pai ao seu gabinete. De forma que nos deixaram, para nos despedirmos sem constrangimento.

Disse‑me Betsey que o doutor Wickfield providenciaria em tudo e que não me faltaria nada; em seguida falou‑me afectuosamente e deu‑me os melhores conselhos.

‑ Trot ‑ concluiu ela ‑ faz honra a ti mesmo, a mim e ao senhor Dick, e que Deus esteja contigo!

Eu sentia‑me deveras comovido e mal pude agradecer‑lhe. Pedi‑lhe então que me recomendasse ao senhor Dick.

‑ Nunca pratiques acções indignas, não mintas, nem sejas cruel. Evita estes três vícios, Trot, e eu confiarei sempre em ti.

Prometi não abusar da sua bondade e não esquecer aqueles conselhos.

‑ A carruagem está à porta ‑ acrescentou a tia. ‑ Vou partir. Deixa‑te estar aqui.

Com isto, beijou‑me à pressa e saiu da sala, fechando a porta atrás de si. De começo fiquei um pouco surpreendido com essa partida brusca e quase receei haver‑lhe desagradado; mas, olhando para a rua, vi como ela subiu melancólica para a carruagem e desapareceu sem voltar a vista.

Compreendi então e fui menos injusto para com ela.

Às cinco horas (a do jantar em casa do doutor Wickfield) eu havia recobrado ânimo e sentia certo apetite. Tinham posto somente dois talheres, porém Agnes, que esperara pelo pai na sala, antes de jantar, desceu com ele e sentou‑se à sua frente, à mesa. Custou‑me a crer que o advogado pudesse jantar sem ser com a filha.

Não nos demorámos ali após a refeição; subimos à sala e, num canto bastante confortável, Agnes trouxe um copo para o pai e uma garrafa de Porto. Acredito que esta bebida não teria para o meu hospedeiro o perfume costumado se lhe fosse dada por outras mãos.

Wickfield bebeu, e em quantidade razoável, durante duas horas, enquanto a filha tocava piano ou trabalhava, conversando connosco. Estava quase sempre alegre, mas às vezes o seu olhar poisava na filha e ele tornava‑se pensativo e calava‑se. Agnes não tardava a perceber isso e arrancava‑o sempre a essa concentração com uma pergunta ou um afago. Então o pai saía das suas meditações e recomeçava a beber.

Agnes presidiu ao chá que preparara. Depois correu o tempo, como a seguir ao jantar, até ao momento de recolher à cama. O pai tomou‑a então nos braços e beijou‑a. Uma vez só comigo, pediu velas para o escritório. Eu, por meu turno, subi a escada para me deitar.

Durante a tarde eu descera até à porta e até havia dado uns passos na rua, para lançar ainda uma vista de olhos aos prédios antigos e à catedral, pensando como atravessara aquela velha cidade na minha viagem e, sem o saber, passara perto da casa em que morava agora. Voltando para trás, vi Uriah Heep, que fechava o escritório. Sentia‑me bem disposto para com todos e por isso entrei para lhe falar e, ao sair, apertei‑lhe a mão. Mas que mão viscosa, meu Deus, a sua! Se, ao vê‑la, me parecera a de um espectro, o tocá‑lo confirmou‑me essa impressão. Esfreguei em seguida os dedos a fim de os aquecer e apagar os vestígios do contacto.

Este contacto fora tão desagradável que ao chegar ao meu quarto sentia ainda frio e humidade. Debruçando‑me à janela, observei uma das figuras esculpidas no extremo das traves: dir‑se‑ia olhar‑me de soslaio e pareceu‑me que era Uriah Heep que subira até lá, não sei como. Precipitadamente, fechei‑lhe a janela na cara.

 

SOU OUTRO EM MUITOS ASPECTOS

No dia seguinte de manhã, depois do primeiro almoço, retomei a vida de estudante. Acompanhado do doutor Wickfield, compareci no lugar das minhas lições: um edifício de aspecto grave, dentro de um pátio. Reinava aí uma atmosfera de erudição que parecia convir perfeitamente às gralhas que desciam das torres da Sé para deambular na relva com o seu ar de sabichonas. Fui apresentado ao meu novo professor, o doutor Strong.

Este pareceu‑me quase tão enferrujado como as grades de ferro das portas exteriores do edifício, quase tão hirto e pesado como as enormes urnas de pedra que as ladeavam, a intervalos regulares, por cima do muro de tijolos derredor do pátio, como um jogo colossal de chinquilho para entreter o tempo. Achava‑se ele na biblioteca (o doutor Strong), com o seu fato mal escovado, o cabelo mal penteado, as polainas pretas mal abotoadas; os sapatos bocejavam como duas cavernas no tapete do fogão. Concedeu‑me um olhar sem brilho: deu‑me a impressão do cavalo cego, há muito tempo abandonado, que pastava no cemitério de Blunderstone. Disse que tinha gosto em conhecer‑me, estendeu a mão, e eu mal soube que devia fazer dessa mão que, por si mesma, não fazia nada.

Mas ao lado do doutor Strong estava sentada, trabalhando, uma mulher nova. Ele tratou‑a por Annie e calculei que fosse sua filha. A rapariga tirou‑me das dúvidas, porque ajoelhou a fim de calçar os sapatos ao professor e abotoar‑lhe as polainas com muita graça e solicitude. Quando acabou, saímos para ir à aula. Fiquei admirado por ouvir o senhor Wickfield chamá‑la «senhora» Strong e pensei se não seria casada com o filho do mestre ou esposa deste mesmo; mas o próprio Strong me elucidou, dizendo na ocasião em que se deteve no corredor:

‑ A propósito, Wickfield, ainda não descobriu nenhum emprego que convenha ao primo da minha mulher?

‑ Ainda não ‑ respondeu o advogado.

‑ Gostaria que se conseguisse o mais depressa possível, pois Jack Maldon não faz nada e precisa de ganhar, situação que às vezes origina graves consequências. Segundo o doutor Watts ‑ acrescentou olhando para mim e oscilando a cabeça ao compasso da citação: ‑ «Satanás dá sempre maus conselhos àqueles cujas mãos estão desocupadas.»

‑ Ah, doutor, se Watts tivesse conhecido os homens, poderia ter escrito, com mais verdade, que isso acontece de preferência aos que têm as mãos ocupadas. Estes fazem o seu quinhão de mal no mundo, pode crer.

Quais as acções dos que estiveram mais ocupados a ganhar dinheiro, ou poderio, nos dois últimos séculos? Não foram maléficas?

‑ Bem me parece que Jack Maldon nunca estará tão ocupado para tanto ‑ volveu o doutor Strong afagando pensativamente o queixo.

‑ Talvez não ‑ replicou Wickfield. ‑ Mas voltando à vaca‑fria, com desculpas pela digressão: ainda não achei nada para o senhor Jack Maldon. Suponho ‑ ajuntou, com certa hesitação ‑ que adivinhei o seu propósito, e isso dificulta a coisa...

‑ O meu propósito ‑ asseverou Strong ‑ é querer descobrir uma situação que convenha ao primo e antigo companheiro de infância de Annie.

‑ Bem sei. Aqui ou no ultramar.

‑ Sim, aqui ou no ultramar ‑ repetiu Strong, aparentemente surpreendido com a ênfase que o outro dera à frase.

‑ Empreguei a sua própria expressão: «ou no ultramar» ‑ declarou o advogado.

‑ Sem dúvida ‑ redarguiu o professor. ‑ Ou num lado ou noutro.

‑ Não tem preferência por nenhum? ‑ perguntou Wickfield.

‑ Não ‑ respondeu o doutor.

‑ Não? ‑ repisou Wickfield, admirado.

‑ Creia que não.

‑ Nenhuma razão para optar pela pátria ou pelo ultramar?

‑ Nenhuma.

‑ Devo acreditá‑lo, e com certeza que acredito ‑ rematou Wickfield. ‑ Se mais cedo o soubera, mais fácil teria sido o meu trabalho. Mas confesso que julgava diferentemente.

O doutor Strong considerou‑o com ar intrigado, indeciso, quase imediatamente transformado num sorriso que me satisfez, pois achava‑o amável e condescendente. Em todo o seu aspecto, abstraindo da camada de gelo que o cobria e que era proveniente das suas preocupações de estudioso, havia afinal algo de amabilidade e doçura e também de simplicidade, apreciáveis para um aluno como eu. Continuando a dizer «não» e «nenhuma» e outras palavras lacónicas de igual significado, o doutor Strong seguia à nossa frente, com passinhos irregulares, e nós íamos atrás dele: notei que Wickfield tomara uma atitude séria, meneando a cabeça sem dar fé de que eu o observava.

A aula, bastante ampla, ficava do lado mais aprazível do edifício, dominado por meia dúzia de urnas majestosas; daí se descortinava um velho jardim privado, que pertencia ao doutor Strong, e onde havia pessegueiros com frutos que amadureciam junto do muro soalheiro, voltado ao sul. Viam‑se também dois grandes aloés, em caixotes, no relvado sob as janelas: as suas folhas rígidas e largas, que se diriam feitas de zinco pintado, sempre foram para mim, por associação de ideias, o símbolo do silêncio e do repouso. Cerca de vinte e cinco rapazes curvavam‑se laboriosamente sobre os livros, quando entrámos na sala, mas logo se ergueram para saudar o professor e permaneceram de pé quando nos viram, ao doutor Wickfield e a mim.

‑ Mais um aluno, meus amigos ‑ participou o doutor Strong.‑ É Trotwood Copperfield.

Um dos presentes, chamado Adams, que era o chefe de turma, deu um passo ao meu encontro e desejou‑me boas vindas. Tinha o ar de um moço sacerdote, com a sua gravata branca, mas achei‑o afável e bem disposto. Mostrou‑me o meu lugar e apresentou‑me aos professores com uma naturalidade capaz de me pôr à vontade, se isso fosse possível.

Quão longe se me representava o tempo em que me encontrara entre camaradas da minha idade, salvo Mick Walker e o Batata Farinhenta! Aqui, sentia‑me mais deslocado do que nunca na minha vida. Atravessara lugares de que nem se fazia ideia, adquirira uma experiência superior aos meus verdes anos, ao meu aspecto, à minha situação. Por isso imaginava vagamente que era uma impostura figurar nesse colégio como um estudante igual aos outros. Tornara‑me, na época de Murdstone & Grinby, tão avesso às distracções e aos jogos infantis que me reconhecia desajeitado nas coisas mais habituais. Tudo quanto aprendera dissipara‑se de tal modo nas vis preocupações da existência quotidiana, que após me haverem interrogado me relegaram para a última bancada da classe. Mas, embora me inquietasse a minha falta de aptidão e também o desconhecimento das noções livrescas, ainda me afligiu mais pensar que as coisas que eu sabia me afastavam muito mais dos meus colegas do que a minha própria ignorância. Calculava o que diriam de mim se soubessem as horas que passei com os reclusos de King's Bench. Haveria algo em mim que denunciasse as minhas relações com a família Micawber? Aquelas idas às casas de penhores, aquelas vendas, aquelas ceatas... Algum destes alunos ter‑me‑ia visto atravessar Cantuária, andrajoso, moído, e iria reconhecer‑me? Que ideia fariam, eles para quem o dinheiro valia tão pouco, se soubessem como eu, a muito custo, reunia uns cobres para a compra diária das minhas salsichas, da minha cerveja, das minhas fatias de bolo? Como reagiriam, ignorantes que eram da vida nas ruas de Londres, se descobrissem a vergonhosa familiaridade (de que eu mesmo me envergonhava) que tivera com certos presos por dívidas? Tudo isto me corria no espírito nesse dia passado no colégio. Receava o mínimo dos meus gestos ou olhares; encolhia‑me de cada vez que se aproximava um dos meus novos camaradas. E, quando a aula acabou, fugi imediatamente, temendo atraiçoar‑me se correspondesse a qualquer sinal de amizade ou simpatia.

Mas da velha residência do doutor Wickfield emanava tal influência que ao bater à porta, com os livros debaixo do braço, comecei a sentir apaziguar‑se a minha ansiedade. Ao subir ao quarto espaçoso, a sombra grave da escadaria pareceu afugentar‑me as dúvidas e os pavores. Estudei deliberadamente até ao jantar (saíamos do colégio às três horas) e desci com a esperança de me tornar outra vez um rapazinho aceitável.

Agnes estava na sala, à espera do pai, que uma visita retinha no escritório. Acolheu‑me com o seu delicioso sorriso e quis saber se o colégio me agradava. Respondi que tinha esperança de me comprazer nas aulas, mas que, sendo a primeira vez, me sentia um tanto deslocado.

‑ Nunca andou no colégio?‑perguntei‑lhe.

‑ Ora, todos os dias!

‑ Mas... quer dizer aqui em casa?

‑ O papá não poderia dispensar‑me ‑ replicou ela, sorrindo e movendo a cabeça. ‑ É necessário que a sua governanta esteja presente.

‑ Gosta muito de si, ao que vejo.

Fez um gesto afirmativo e foi escutar à porta, para se certificar de que ele vinha e ir recebê‑lo à escada. Mas como o doutor Wickfield ainda não viesse, ela regressou junto de mim.

‑ A mamã morreu ao dar‑me à luz ‑ replicou com o seu ar tranquilo. ‑ Só a conheço através do retrato que está lá em baixo. Notei que ontem o contemplou. Pensou decerto que era meu...

Disse‑lhe que as achava bastante parecidas.

‑ É a opinião do papá ‑ confirmou Agnes, satisfeita. ‑ Oiça. Cá está ele!

O rosto calmo e puro da rapariga iluminou‑se de alegria, enquanto ela ia ao encontro do pai. Voltaram daí a instantes, de mão dada. O doutor Wickfield cumprimentou‑me cordialmente e emitiu o parecer de que me daria bem no colégio do doutor Strong, que era um dos homens mais simpáticos do mundo.

‑ Deve haver pessoas que abusem da sua bondade. Nunca seja desse número, Trotwood. Ele é o menos desconfiado dos mortais e, quer constitua virtude ou defeito, isso merece que se tenha em conta em todas as relações com o doutor, importantes ou não.

Pareceu‑me que se exprimia como um homem cansado ou desiludido, mas este problema não reteve muito tempo a minha atenção, porque vieram anunciar o jantar e nós descemos a fim de nos sentarmos nos lugares já determinados.

Mal nos havíamos instalado, Uriah Heep apareceu, mostrando à porta a cabeça ruiva e a mão magra.

‑ O senhor Maldon ‑ disse ele ‑ deseja falar ao senhor.

‑ Ainda há pouco estivemos juntos ‑ replicou o dono da casa.

Conservando, com a mão, a porta aberta, Uriah Heep olhou para mim, para Agnes, para os pratos e os talheres, para cada objecto da sala, mas sem ter o ar de reparar em nada, tanto era o cuidado que punha em interessar o patrão no assunto que ali o trouxera.

‑ Desculpe... é apenas para lhe dizer... ‑ proferiu uma voz atrás de Uriah, enquanto a cabeça deste se substituía pela do homem que falava. ‑ Desculpe esta invasão... Se estivesse em meu poder, antes teria ido para o estrangeiro. A minha prima Annie prefere no entanto ter os seus amigos próximo de si em vez de os ver exilados... e o velho doutor...

‑ O doutor Strong ‑ interrompeu gravemente o senhor Wickfield.

‑ O doutor Strong, naturalmente ‑ redarguiu o outro. ‑ Eu chamo‑lhe «velho doutor». Dá no mesmo.

‑ Ignorava isso ‑ declarou Wickfield.

‑ Pois bem. O doutor Strong julgava eu que fosse da mesma opinião. Mas, da forma como o senhor procede comigo, vejo que ele mudou de parecer. Neste caso, não tenho nada a acrescentar, salvo que partirei em breve. Assim é melhor. Pensei vir cá dizer‑Lho. Quando tencionamos afogar‑nos, não vale a pena parar diante da água...

‑ Esteja certo de que, no seu caso, a demora não será grande ‑ sentenciou Wickfield.

‑ Obrigado. Muito obrigado. A cavalo dado não se olha o dente... o que não é coisa agradável de fazer. Aliás, suponho que a minha prima Annie podia resolver o caso à sua moda. Bastaria que ela dissesse ao velho doutor...

‑ Acha que seria suficiente a senhora Strong falar ao marido... É isso?

‑ Nem mais. Se disser «faça isto ou aquilo», a coisa faz‑se impreterivelmente.

‑ E porquê? ‑ inquiriu o dono da casa, que continuava calmamente a jantar.

‑ Porque a Annie é uma rapariga encantadora, ao passo que o velho doutor... isto é, o doutor Strong... não é um rapaz encantador ‑ disse, rindo, Jack Maldon. ‑ Sem ofensa para ninguém, senhor Wickfield. O que pretendo explicar é que é justo e razoável conceder compensação numa união desta natureza.

‑ Conceder compensações à mulher? ‑ indagou, sério, o doutor Wickfield.

‑ Sim, à mulher ‑ repetiu, rindo, Jack Maldon.

Vendo, porém, que o advogado prosseguia a refeição com a mesma calma imperturbável, e que não havia esperança de o impressionar, acrescentou:

‑ Em todo o caso, disse o que tinha que dizer, e, pedindo mais uma vez desculpa de o incomodar, só me resta ir‑me embora.

E claro que seguirei as suas instruções. Este assunto tem de ser resolvido exclusivamente entre nós dois; nem vale a pena falar ao doutor.

‑ Já jantou? ‑ perguntou Wickfield, apontando para a mesa.

‑ Obrigado. Vou jantar a casa da minha prima Annie. Até à vista.

Wickfield, sem se levantar, viu‑o sair com ar pensativo. Era, em minha opinião, um rapaz um tanto leviano, bem parecido, eloquente, confiante e ousado. Tal foi o meu primeiro encontro com o senhor Jack Maldon. Não esperava vê‑lo tão cedo depois do que, de manhã, dissera o doutor Strong.

Acabado o jantar, tornámos a subir ao andar superior e tudo se passou como na véspera. Agnes colocou as garrafas e os copos no mesmo canto da sala. O doutor Wickfield começou a beber e fê‑lo copiosamente. Agnes tocou piano para ele, junto de quem depois se sentou; fez costura, conversou, e jogou comigo várias partidas de dominó. Em seguida preparou o chá, e mais tarde, quando peguei nos livros de estudo, deitou‑lhes uma olhadela, indicou‑me o que conhecia (não era pouca coisa) e referiu a melhor maneira de trabalhar e compreender. Ainda a vejo, tímida, cuidadosa e calma; escuto‑lhe ainda a voz bela e tranquila, à hora em que escrevo estas palavras. A influência, favorável entre nós, que daí por diante exerceria sobre mim, começava já a penetrar‑me o coração. Amo a pequena Emily, não amo Agnes ‑ não, de maneira nenhuma nesse sentido ‑ mas sinto que a bondade, a paz, a verdade se encontram onde se encontra Agnes, e que a doce claridade daquele vitral que vi outrora na igreja a banha sempre (e a mim quando estou perto dela) e a tudo o que a rodeia.

Chegado o momento de recolher, Agnes deixou‑nos e eu estendi a mão ao doutor Wickfield, disposto a retirar‑me também. Mas ele deteve‑me e disse:

‑ Você, Trotwood, preferia ficar connosco ou ir para outra casa?

‑ Preferia ficar ‑ respondi sem hesitação.

‑ Está certo disso?

‑ Se me dá licença...

‑ Mas... é que levamos aqui uma vida muito aborrecida.

‑ Não mais para mim do que para a Agnes. Mesmo nada aborrecida!

O doutor Wickfield repetiu as minhas palavras, enquanto passeava lentamente na sala. Encostou‑se à prateleira do fogão e tornou a repeti‑las.

Nessa noite tomara vinho (ou então imaginei) até que os olhos se lhe injectassem de sangue. Eu não os via nessa ocasião, porque ele os baixara, tapando‑os com os dedos, mas observara um momento antes.

‑ Gostava de saber ‑ murmurou ‑ se a minha Agnes se fatiga de mim. Como poderia eu fatigar‑me dela? Mas não é a mesma coisa, não é a mesma coisa...

Falava como num sonho, sem se me dirigir. Por isso permaneci silencioso.

‑ É uma casa velha, enfadonha, e uma vida monótona ‑ continuou. ‑ Todavia preciso da companhia de Agnes. A ideia de que posso morrer e abandonar a minha querida filha, ou que ela pode morrer e abandonar‑me, entenebrece as minhas horas mais felizes e só se dilui afogando‑a em...

Não completou a frase, mas voltou ao ponto em que estivera antes. Fez maquinalmente o gesto de deitar vinho com a garrafa vazia e recomeçou a andar.

‑ Se essa ideia ,é penosa e difícil de suportar quando Agnes está presente, que será sem ela? Não, não e não. É‑me impossível tentar isso...

Apoiou‑se de novo ao fogão e meditou demoradamente; eu já não sabia se devia deixá‑lo ou continuar ali em silêncio, aguardando o fim do seu devaneio. Por fim despertou, circunvagou o olhar pela sala e os seus olhos encontraram os meus.

‑ Fica connosco, Trotwood, hem? ‑ disse ele em tom natural e como se respondesse a uma frase que eu acabasse de proferir. ‑ Alegra‑me muito. Far‑nos‑á companhia, a nós dois. Vê‑lo aqui dá‑nos prazer. É bom para mim e para Agnes. E bom para todos.

‑ Tenho a certeza de que é bom para mim ‑ repliquei. ‑ Gosto imenso de estar cá.

‑ Você é um rapaz digno! Fique tanto tempo quanto lhe agrade. Com isto, deu‑me um aperto de mão e uma pancadinha no ombro e disse‑me que, se eu trabalhasse de noite, após a filha recolher, ou se me apetecesse ler, fosse até ao seu escritório, caso ele lá estivesse e se desejasse a sua companhia. Agradeci‑lhe a amabilidade. Então desceu a escada, e eu, não me sentindo cansado, fui no seu encalço a fim de aproveitar por meia hora a autorização concedida.

O gabinete estava iluminado; imediatamente me atraiu a atenção Uriah Heep, que já exercia sobre mim uma espécie de fascinação. Uriah entretinha‑se a ler ‑ era um livro grande e volumoso ‑ com tão manifesta atenção que o indicador descarnado seguia cada linha e deixava na página marcas viscosas (pelo menos assim o julguei) como deixa um caracol.

‑ Esta noite trabalha até tarde ‑ observei‑lhe.

‑ É verdade, menino Copperfield.

Trepei para o tamborete fronteiro, de modo a poder falar‑lhe mais comodamente. No rosto de Uriah não havia nada que se assemelhasse a um sorriso: alargava a boca, formando dois vincos profundos de cada lado da cara. Era tudo o que podia fazer.

‑ Isto não é propriamente trabalho, menino Copperfield.

‑ Então que é? ‑ perguntei.

‑ Aumento os meus conhecimentos de Direito. Estudo o Tratado de Tidd. Que escritor, este Tidd!

O tamborete era excelente observatório. Enquanto, após esta exclamação entusiasta, Uriah continuava na leitura, seguindo as linhas com o dedo, eu reparei nas suas narinas, transparentes e afiadas, que se dilatavam e contraíam de maneira estranha e impressionante: pareciam piscar em vez dos olhos, cuja expressão permanecia inalterável.

‑ Creio que o senhor é um grande homem de leis ‑ disse‑lhe depois de prolongada observação.

‑ Eu, menino Copperfield? Ah, não! Sou uma pessoa muito modesta.

Não me enganara acerca das mãos dele, pois que esfregava com frequência as palmas uma contra a outra, para as secar e aquecer, além de as enxugar de vez em quando com o lenço.

‑ Sei perfeitamente que sou a pessoa mais modesta do mundo ‑ declarou Uriah Heep. ‑ Minha mãe também é uma criatura modesta. Vivemos numa casa humilde, mas temos muitas razões para agradecer a Deus. O ofício do meu pai era igualmente modesto: sacristão.

‑ Que faz ele agora?

‑ Compartilha com outros da glória do Senhor. Mas temos de ser gratos. Que felicidade para mim viver em casa do doutor Wickfield!

Perguntei‑lhe se estava há muito tempo ao serviço do advogado.

‑ Há quatro anos, menino Copperfield ‑ respondeu Uriah, fechando o livro depois de haver cuidadosamente marcado a página. ‑ Desde a morte de meu pai. Que maior motivo de gratidão para mim do que a bondade do doutor Wickfield, que me aceitou como praticante para que eu aprendesse o ofício, o que não estava nas fracas possibilidades económicas da minha mãe?

‑ Então, quando terminar o seu aprendizado, será um verdadeiro homem de leis?

‑ Se Deus quiser, menino Copperfield.

‑ Vai decerto ser associado nos negócios do doutor Wickfield. Veremos na tabuleta Wickfield e Heep ou então Heep, sucessor de Wickfield.

‑ Ah, não, senhor ‑ replicou Uriah, abanando a cabeça. ‑ Sou muito modesto para tanto.

Na verdade, parecia‑se extraordinariamente com o rosto esculpido na trave da parte exterior da minha janela. Recolhido na sua humildade, olhava‑me de revés, com a boca escancarada e as faces enrugadissimas.

‑ O doutor Wickfield é homem excelente, menino Copperfield ‑ disse Uriah. ‑ Se o conhecesse há mais tempo, saberia isto muito melhor ainda.

Respondi que estava persuadido de que assim era, mas que pessoalmente o conhecia há pouco tempo, embora fosse amigo da minha tia.

‑ A sua tia, menino Copperfield, é uma senhora muito simpática.

Exprimia o seu entusiasmo agitando‑se de uma forma esquisita. As contorções desviaram‑me a atenção do cumprimento que ele dirigira à senhora Trotwood para as torceduras que dava à garganta e a todo o corpo.

‑ Uma senhora simpaticíssima, menino Copperfield. Ela tem grande admiração por Agnes Wickfield, não tem?

Informei‑o de que sim, e fi‑lo ousadamente, se bem que não tivesse a certeza do que dizia.

‑ Conto que seja da mesma opinião. Sem dúvida que é!

‑ Todos devem admirá‑la ‑ asseverei.

‑ Obrigado, menino Copperfield, obrigado por isso. É pura verdade. Por mais modesto que eu seja, não deixo de ver quanto é verdade. Obrigado, menino Copperfield!

À força de se contorcer, na exaltação dos seus sentimentos, deixou o banco que ocupava e uma vez de pé, começou a preparar‑se para recolher aos seus aposentos.

‑ A minha mãe está à espera ‑ disse ele, consultando um relógio de bolso ‑ e decerto principia a inquietar‑se. Embora sejamos humildes, somos muito dedicados um ao outro. Se quiser dar‑nos o prazer de uma visita, uma destas tardes, e tomar chá connosco, a minha mãe terá imenso prazer na sua companhia, tanto como eu.

Participei que teria muito gosto em ir.

‑ Obrigado, menino Copperfield ‑ respondeu Uriah, repondo o livro na estante. ‑ Creio que está cá por algum tempo, não é verdade?

Expliquei que tencionava ficar ali enquanto frequentasse o colégio.

‑ Suponho que acabará por pertencer a este escritório, menino Copperfield.

Protestei que não alimentava nenhum projecto nesse sentido, nem que ninguém me incitava a isso, mas Uriah persistiu na sua ideia, retorquindo com brandura:

‑ Pois acho que virá para aqui um dia.

Já pronto a sair do escritório por aquela noite, perguntou‑me se não me importava que apagasse a luz. E, como lhe respondesse que estava às suas ordens, apagou‑a finalmente.

Depois de me ter estendido a mão (no escuro, deu‑me a impressão de um peixe), Uriah entreabriu a porta que dava para a rua, deslizou para lá e fechou‑a, deixando‑me reencontrar às apalpadelas o caminho do interior da casa, o que me custou a valer, depois de vários encontrões. Tal foi, creio, a causa imediata que me levou a sonhar com ele durante metade da noite: entre outras coisas vi‑o lançar ao mar o barco‑residência do senhor Peggotty, embarcado numa expedição de pirataria. No alto do mastro flutuava a bandeira preta, com a divisa Tratado de Tidd, símbolo diabólico sob o qual nos levava, a mim e à pequena Emily, até ao mar das Caraíbas, a fim de nos afogar.

No dia seguinte, no colégio, venci um pouco o meu embaraço, e no outro dominei‑o por completo; em pouco menos de quinze dias, senti‑me perfeitamente à vontade e feliz no meio dos meus novos companheiros. Eu era um pouco azelha nos jogos, bastante atrasado nos estudos, mas contava com o hábito para melhorar o primeiro ponto e com o trabalho para aperfeiçoar o segundo. Pus mãos à obra, com seriedade, e senti‑me recompensado com os elogios que recebi. Não tardou que a época de Murdstone & Grinby se me tornasse tão estranha que eu mal acreditava tê‑la vivido. Pelo contrário, a existência actual parecia‑me tão familiar como se a vivesse há muito tempo.

Era excelente o colégio do doutor Strong, tão diverso do do senhor Creakle como o dia da noite. Boa ordem, método inteligente. Dignificava‑se em tudo a lealdade e a boa‑fé dos alunos, com a intenção confessada de confiar nas suas virtudes; a menos que não se mostrassem merecedores, o sistema operava maravilhas. Tínhamos todos a impressão de que tomávamos parte no progresso do estabelecimento, que éramos sustentáculos da sua honra e da sua reputação. Por isso se lhe tornámos verdadeiramente dedicados, e eu em primeiro lugar: não conheci aluno, durante todo o tempo que lá estive, que não comungasse destes sentimentos. Estudávamos da melhor vontade, com o desejo de dignificar a nossa escola. Fora dos períodos de aula, jogávamos no recreio, em franca liberdade. Na cidade gozávamos de boa fama.

Entre os estudantes, alguns viviam como pensionistas em casa do director. Por eles soube de alguns pormenores quanto à vida dele. Era casado há pouco menos de um ano com a bela rapariga que eu vira na secretaria; fora um casamento de amor. A mulher não tinha dinheiro e cercava‑a uma roda de parentes pobres (diziam os rapazes) capazes de o assediarem, ao doutor, até o expulsarem da própria casa. Admirava‑se, em geral, o ar meditabundo de Strong, sempre em busca de raízes gregas; na minha ignorância e inocência julguei que se tratasse de uma monomania botânica (tanto mais que ele, ao andar, olhava sempre para o chão) até ao dia em que compreendi serem as raízes das palavras, com vista a um novo dicionário que planeava. Adams, o primeiro da turma, que se notabilizava nas matemáticas, havia calculado, disseram‑me, o tempo que faltaria para concluir esse dicionário, consoante o método do autor e o andamento do trabalho: considerava que a obra ficaria pronta dentro de mil seiscentos e quarenta e nove anos, a contar do último aniversário do doutor, o sexagésimo segundo.

Strong era o ídolo de todo o colégio, e só numa instituição muito mal formada é que poderia deixar de ser assim, pois que se tratava do melhor dos homens, duma fé tão simples que enterneceria um coração empedernido. Quando passeava no pátio adstrito à sua residência, vigiado pelas gralhas que erguiam a cabeça com ar entendido como se tivessem a pretensão de conhecer melhor que ele as coisas da vida, bastava que se aproximasse um vagabundo e o impressionasse com alguma frase do relato das suas desditas para que a sua sorte ficasse garantida durante dois dias. O facto era tão notório que os professores e oS alunos mais velhos se encarregavam de cortar o passo a esses vadios: saltavam pela janela e expulsavam‑nos antes que pudessem fazer‑se notados do mestre, o que às vezes se verificava a pequena distância dele em que o bom do homem se desse conta do facto. E assim ele prosseguia a sua lenta deambulação. Fora do domínio que lhe era próprio, e entregue a si mesmo, era uma ovelha nas mãos dos tosquiadores. Tiraria as polainas para as dar como esmola ao primeiro que lhas pedisse. Até corria entre nós uma história cuja origem nunca soube mas a que dei tanto crédito que hoje chego a tê‑la por verídica. Num dia de Inverno gelado, Strong oferecera realmente as polainas a um mendigo que causou escândalo na vizinhança por andar de porta em porta a mostrar um lindo bebé envolto numa coisa que toda a gente reconheceu: as polainas do doutor, célebres naquelas redondezas. A lenda acrescenta que o único que os não identificou foi o próprio Strong. Quando elas apareceram à venda, dias depois, à porta de um adelo mal afamado (onde trocavam roupa por aguardente) viram‑no por mais de uma vez deter‑se ali, apalpando e examinando a mercadoria com ar de entendido, como se admirasse a elegância do corte e julgasse aquelas polainas superiores às suas.

Era bastante agradável ver o doutor em companhia da bela esposa. Tinha ele um modo paternal e benigno de lhe demonstrar ternura, no qual se reconhecia a expressão da sua bondade. Não raramente os encontrava passeando no jardim, próximo dos pessegueiros. Observava‑os de mais perto na secretaria ou na sala. Parecia‑me que ela tomava muito cuidado nele e o amava deveras, se bem que a não achasse interessada em excesso pelo dicionário, obra de que o doutor transportava sempre alguns fragmentos nas algibeiras e na carneira do chapéu. Nesses passeios, dir‑se‑ia que Strong lhe fazia prelecção acerca do seu trabalho.

Eu via a mulher com relativa frequência. A senhora Strong afeiçoara‑se a mim e interessava‑se pelos meus estudos. Além disso, estimava muito Agnes Wickfield e vinha muitas vezes à nossa casa. Havia, pareceu‑me, certo constrangimento entre ela e o advogado (de quem se julgaria ter medo) e esse constrangimento nunca se dissipou. Quando aparecia à noite, não queria que o meu hospedeiro a acompanhasse no regresso, e saía então comigo. Ao atravessarmos alegremente o adro da Sé, na esperança de não encontrar ninguém, não era raro surgir‑nos o senhor Jack Maldon, que se mostrava sempre surpreendido com o encontro.

A mãe da senhora Strong era uma senhora com quem eu simpatizava a valer. Tinha o apelido Markleham, mas os alunos chamavam‑na o «Veterano», devido ao seu talento estratégico e à habilidade com que dirigia importantes efectivos de parentes contra o doutor. Mulher pequenina, de olhar vivo, usava um chapéu imutável enfeitado de flores artificiais e duas borboletas também artificiais que oscilavam sobre essas flores. Para nós, o chapelinho viera de França, pois não podia ter nascido senão da arte dessa nação engenhosa. Em todo o caso, o adorno capilar acompanhava‑a por toda a parte e, quando havia reuniões nocturnas, a senhora Markleham transportava‑o num cestinho. As borboletas tinham a propriedade de tremer constantemente, e, como abelhas operosas aproveitavam‑se dos melhores momentos mas à custa do doutor Strong.

Observei o Veterano (emprego este nome sem intenção desrespeitosa) numa ocasião que me ficou gravada na memória por causa de outro facto que relatarei. Certa tarde, quando da partida de Jack Maldon para a índia, onde serviria como cadete ou coisa que o valha (o doutor Wickfield conseguira finalmente obter‑lhe esse posto), festejava‑se o aniversário de Strong. Nós alcançáramos feriado, de manhã tínhamos‑lhe dado presentes e feito um discurso de que foi porta‑voz o primeiro aluno do curso, e déramos vivas até enrouquecer e provocar lágrimas. Depois, ao serão, Wickfield, Agnes e eu fomos tomar chá com ele, na intimidade.

Jack Maldon chegara antes de nós. A senhora Strong, vestida de branco, com fitas cor de cereja, tocava piano quando entrámos, e ele voltava‑lhe as páginas, curvado sobre a prima. No momento em que esta se virou para nós, pareceu‑me que a sua tez rosada e branca não estava tão pura como de costume. Todavia conservava‑se extraordinariamente bela.

‑ Esqueci‑me ‑ disse a mãe da senhora Strong, quando nos sentámos ‑ de lhe endereçar os meus parabéns, caro doutor. Acredite que não é simples formalidade. Faço os melhores votos pela sua felicidade.

‑ Muito obrigado ‑ respondeu Strong.

‑ Os melhores votos ‑ insistiu o Veterano. ‑ Não só para si como para Annie e Jack Maldon e para muitos outros. Ainda me parece que foi ontem ‑ continuou, dirigindo‑se a Jack:‑Tu eras um rapazinho como Copperfield e já fazias a corte à tua prima, atrás das groselheiras do quintal.

‑ Querida mãe ‑ atalhou a senhora Strong ‑ para quê falar disso, agora?

‑ Annie, não sejas ridícula ‑ replicou a mãe. ‑ Se não podes ouvir lembrar coisas sem corar, agora que és uma velha casada, quando é que deixarás de corar?

‑ Velha? ‑ observou Jack Maldon. ‑ A Annie? Ora adeus!

‑ Sim, Jack ‑ retorquiu o Veterano. ‑ Virtualmente, é uma velha casada, embora velha não seja pela idade. A tua prima é a mulher do doutor e eu posso falar dela nestes termos. É bom para ti, Jack, que Annie seja a mulher do doutor. Tu achaste nele um amigo benévolo e influente, que te concederá ainda mais favores se o mereceres. Não tenho falso orgulho, nunca hesito em dizer, francamente, que certos membros da nossa família precisam de um amigo. Tu eras um desses, antes que a influência da tua prima te facilitasse um.

O doutor, na sua grande bondade, agitou a mão como para significar que isso não tinha importância e evitar a Jack Maldon mais largas recordações de outros tempos. Mas a senhora Markleham mudou de cadeira para se aproximar mais do dono da casa e, tocando com o leque na manga do casaco dele, prosseguiu:

‑ Caro doutor, desculpe‑me se insisto neste ponto, mas é coisa que tenho muito a peito. Até lhe chamo a minha monomania. É um assunto que me absorve tanto! O senhor foi para nós uma bênção do Céu. Consideramo‑lo o nosso benfeitor.

‑ Exageros... ‑ replicou Strong.

‑ Não, não, perdoe‑me ‑ contraveio o Veterano. ‑ Em presença do doutor Wickfield posso falar, porque é nosso amigo íntimo. Vou começar exercitando os privilégios duma sogra; se continua nesse tom, acabo por lhe ralhar. Sou franca, sincera. O que digo neste momento disse‑o quando o senhor me surpreendeu (lembra‑se como fiquei admirada?) ao pedir‑me a Annie em casamento. Não que esse pedido fosse de estranhar (seria absurdo pensar tal coisa), mas porque o senhor conhecera o pai, e conhecia‑a, a ela, desde a idade de seis meses, e eu nunca previra semelhante situação... Imaginá‑lo casado... e com a minha filha!

‑ Bem, não pense mais nisso ‑ respondeu Strong.

‑ Mas tenho que pensar ‑ atalhou o Veterano, pondo o leque nos lábios do doutor.‑ E penso muito. Lembro estas coisas para que me chamem a atenção para qualquer engano. Falei em seguida com a Annie e disse‑lhe: «Minha filha, o doutor Strong procurou‑me e tu foste o objecto de uma declaração e de um belo pedido de casamento.» Fiz alguma pressão? Não, senhor. Disse: «Agora, Annie, conta‑me toda a verdade, imediatamente. O teu coração está livre?» «Mamã», volveu ela, chorando, «sou muito nova (o que era perfeitamente verdadeiro) e não sei ainda se tenho coração.» «Então, filha», disse‑lhe, «podes ter a certeza de que estás livre. Em qualquer caso, meu amor, o doutor Strong anda inquieto, convém dar‑lhe uma resposta. Não podemos deixá‑lo na incerteza.» «Mamã!», exclamou Annie, sempre a chorar, «ele seria infeliz sem mim? Sendo assim, creio que aceito, porque o venero.» Deste modo se concluiu o ajuste. Só então disse à Annie: «Annie, o doutor Strong não será só teu marido, mas também o representante do teu defunto pai; será o representante do chefe da família, o representante da sabedoria e da estabilidade e, acrescentarei, dos recursos da nossa família. Em suma, será para ti um benfeitor.» Empreguei então este termo e repito‑o agora. Se possuo alguma qualidade, essa é o espírito de continuidade.

A filha permaneceu silenciosa e imóvel durante esta longa tirada, de olhos fitos no chão. O primo, de pé a seu lado, baixara também a vista. Annie disse então, docemente, com voz trémula:

‑ Acabou, minha mãe?

‑ Não, querida Annie ‑ ripostou o Veterano. ‑ Ainda não acabei. é pena que mostres pouca afeição pela tua família, e como não serve de nada queixar‑me a ti, vou fazê‑lo ao teu marido. Vamos, caro doutor, olhe para a tontinha da sua mulher.

Como o doutor voltasse para a esposa o rosto bondoso, em que se estampava a doçura e a simplicidade, ela baixou ainda mais a cabeça. Notei que Wickfield a olhava com atenção.

‑ Quando disse a esta marota, outro dia ‑ continuou a mãe, agitando a cabeça e o leque, com ar divertido ‑ que havia um caso na família de que poderia ocupar‑se com o marido, respondeu‑me que isso era fazer um requerimento e que, sendo o senhor sempre tão generoso, satisfazendo todos os seus desejos, não queria por essa vez falar‑lhe nisso.

‑ Annie, minha querida ‑ acudiu o doutor ‑ tu não tens razão. Privaste‑me de um prazer.

‑ Foi exactamente o que eu lhe disse! ‑ exclamou o Veterano. ‑ Daqui por diante apetece‑me ser eu mesma a falar, já que a minha filha o não faz!

‑ Teria muito gosto em ouvi‑la ‑ replicou o genro.

‑ Palavra?

‑ Com toda a certeza.

‑‑Então será assim! ‑ declarou a senhora Markleham.

‑ Está combinado.

Tendo desta forma levado a água ao seu moinho, deu com o leque umas pancadinhas na mão do doutor Strong e regressou triunfante ao seu primeiro posto.

Chegaram outros convidados, entre eles os dois professores e Adams, e a conversa generalizou‑se. Naturalmente, falaram de Jack Maldon, da sua viagem, do país para onde se dirigia e de todos os seus projectos. Maldon devia partir nessa mesma noite, depois do jantar, na mala‑posta para Gravesend, lugar do embarque. Salvo se viesse de licença ou por motivo de doença, ele devia estar ausente não sei quantos anos.

Todos se desvelavam a afirmar‑lhe que a índia era uma terra caluniada. De nada a podiam acusar, a não ser de um tigre ou dois na sua fauna e de ser um pouco escaldante nas horas quentes do dia. Pela minha parte, eu via no senhor Jack Maldon um Sindbad moderno e imaginava‑o intimamente relacionado com todos os rajás, sentado sob um dossel, a fumar cachimbo dourado em forma de espiral.

A senhora Strong tinha voz agradável: muita vez a ouvira cantar na intimidade. Mas, fosse por ter receio de o fazer em público, nessa noite foi‑lhe impossível exibir essa prenda. Tentou, uma vez, encetar um duo com o primo Maldon, mas foi mesmo incapaz de começar. E mais tarde, quando quis cantar a solo, embora principiasse num tom delicioso, a voz logo lhe faltou, deixando‑a infeliz, de cabeça pendida sobre o piano. O bom do doutor alegou a sua timidez e, para a distrair, propôs que jogasse às cartas, coisa em que ele não era nada perito. O Veterano aproveitou a oportunidade de o ter como parceiro e, como preliminares da iniciação, fez‑se depositário de todas as moedas de prata que o genro tinha na algibeira.

A partida foi animada, mercê, por um lado, dos erros do doutor, pois os cometeu com abundância, mal‑grado a vigilância das borboletas do chapéu. A senhora Strong recusara‑se a jogar, porque não se sentia muito bem. Quanto ao primo Maldon, esse tinha ainda de fazer as malas; mas, terminado este trabalho, voltou e sentou‑se junto dela, no sofá, a conversar. De vez em quando, ela levantava‑se e ia deitar uma vista de olhos ao jogo do marido e indicar‑lhe como devia proceder. Estava muito pálida; vi‑lhe tremer o dedo quando, para dar qualquer indicação, se inclinou sobre o ombro do doutor. Mas este, feliz com a atenção que ela lhe testemunhava, não notou coisa nenhuma, a menos que eu me enganasse.

O jantar já não foi tão alegre. Cada qual parecia denotar o aborrecimento causado pela separação e, conforme se aproximava a hora da partida, esse sentimento aumentava. Jack Maldon procurou gracejar, mas estava pouco à vontade e só piorou as coisas. Também me pareceu que o Veterano não concorria para desanuviar a atmosfera, porque se fartou de recordar fases da mocidade de Jack Maldon.

Todavia o doutor Strong julgava tornar toda a gente satisfeita, porque ele o estava, e supunha que atingíramos o auge da alegria e do contentamento.

‑ Querida Annie ‑ disse ele consultando o relógio e enchendo o copo ‑ eis a hora em que o nosso primo tem de partir e não há o direito de o reter. A maré, que representa o seu papel nesta conjuntura, não espera por ninguém. Senhor Jack Maldon, tem à sua frente uma longa travessia e uma terra desconhecida; muitos homens, porém, se têm achado no seu caso e se acharão antes do fim dos tempos. Os ventos que vai afrontar levaram milhares e milhares de pessoas para a riqueza, e trouxeram milhares e; milhares de pessoas afortunadas.

‑ Não é pouco ‑ interveio a senhora Markleham ‑ ver um rapaz que conhecemos desde a infância partir para o fim do mundo, abandonando todos os que conheceu e sem conhecer nada do que vai encontrar! Quem consente em praticar semelhante sacrifício merece realmente ser sustentado e ajudado sempre.

‑ O tempo passará depressa para si ‑ prosseguiu o doutor, dirigindo‑se ao viajante ‑ e depressa para cada um de nós. Alguns de nós, certamente, segundo o curso natural das coisas, não podem ter a satisfação de o saudar à volta. Não o fatigarei com os meus conselhos: mas tem quem o fará melhor do que eu, a sua prima Annie. Imite‑lhe as virtudes tanto quanto puder.

A senhora Markleham abanou‑se com o leque e moveu a cabeça. ‑ Adeus, senhor Jack ‑ disse o doutor, levantando‑se, seguido logo por todos nós. ‑ Desejo‑lhe óptima viagem e uma bela carreira no ultramar. E feliz regresso à Inglaterra!

Fizemos coro com o dono da casa e apertámos a mão de Jack Maldon. Em seguida, o rapaz despediu‑se à pressa das senhoras presentes e correu para a porta. Foi acolhido, no momento em que entrava na carruagem, por uma série formidável de aclamações da parte dos alunos que se haviam reunido no relvado, para esse fim. Precipitando‑me no meio deles para engrossar o grupo, cheguei perto do veículo, quando este começava a deslocar‑se, e tive a impressão de ver passar, de cara transtornada, o senhor Jack Maldon segurando qualquer coisa cor de cereja na mão. Depois de mais ovações, agora em honra do doutor Strong e da mulher, os estudantes dispersaram‑se e eu reentrei na casa, onde encontrei os convidados, em círculo de roda do anfitrião, ocupados a discutir a partida de Jack Maldon, os seus sentimentos, a sua atitude. No meio dessas observações, a senhora Markleham exclamou:

‑ Onde está Annie?

Não estava ali. Chamaram‑na e ela não respondeu. Deixámos a sala em grupo compacto para ir ver o que se passava no vestíbulo. Houve um instante de pavor, e depois percebemos que a senhora Strong se achava desmaiada e que faziam o que é costume para que recobrasse os sentidos. Então o marido, que lhe fizera descansar a cabeça nos seus joelhos, afastou‑lhe os caracóis e disse, olhando derredor:

‑‑Coitada da Annie! Tão fiel e tão terna! Foi a separação de um primo, amigo de infância e companheiro de brincadeiras que lhe provocou o desmaio. Estou desolado!

Annie abriu os olhos e verificou que a rodeávamos. Pôs‑se de pé, ajudada por outrem, e apoiou a cabeça ao ombro do doutor, ou aí a escondeu, não sei bem. Entrámos na sala para a deixar só com o marido e com a mãe; ela, porém, declarou que estava tão bem como nunca estivera desde manhã e que preferia fazer‑nos companhia. Trouxeram‑na, pois, muito pálida e com ar cansado, e instalaram‑na num canapé.

‑ Querida Annie ‑ disse a mãe, compondo‑lhe o vestido. ‑ Olha, perdeste um laço de fita. Alguém fará o favor de o procurar? É uma fita cor de cereja.

Era o laço que ela tinha antes sobre o peito. Procurámo‑lo. Eu próprio o fiz por todos os cantos. Mas ninguém o encontrou.

‑ Lembras‑te da última vez que o tinhas? ‑ inquiriu a senhora Markleham.

A mim mesmo perguntei como é que a achara tão pálida. Estava agora coradíssima, quando respondeu que o tinha pouco antes, mas que não valia a pena procurá‑lo mais.

Entretanto recomeçaram a busca, sem maior êxito. A senhora Strong suplicou que desistissem, mas houve ainda quem persistisse, até que a dona da casa se considerou perfeitamente recomposta e os convidados se despediram.

Voltámos vagarosamente para casa, eu, Agnes e o doutor Wickfield. Eu e Agnes admirávamos o luar e o doutor Wickfield mal levantava os olhos do chão. Quando alcançámos a porta da rua, a rapariga descobriu que se esquecera da sua bolsinha. Contente por lhe poder prestar um serviço, retrocedi a correr, a fim de a procurar.

Entrei na sala de jantar do doutor Strong, onde Agnes deixara a bolsa. Estava deserta a essa hora, mas vi entreaberta a porta de comunicação com o gabinete do doutor. Fui lá para explicar a minha diligência e pedir uma vela.

Strong, sentado na sua poltrona, ao lado da lareira, tinha a mulher aos pés, instalada num tamborete. O marido, com um sorriso de satisfação, lia em voz alta, num manuscrito, a exposição de qualquer teoria extraída do seu interminável dicionário, e ela, de olhos erguidos, fitava‑o. Nunca a vira assim: era tamanha a sua palidez, tão estranho o seu ar de sonâmbula, tão impressionante a expressão de medo, que ainda hoje, com o meu juízo mais amadurecido, não sei explicar o que tudo aquilo significava. Penitência, humilhação, pejo, orgulho, amor, lealdade? Talvez tudo isso. Tinha os olhos muito abertos, o cabelo escuro descaía‑lhe sobre os ombros e sobre o vestido branco, desarranjado pela falta do laço.

Entrei e expliquei a razão da minha ida ali. Annie saiu do seu devaneio. Quando voltei ao gabinete para devolver a vela, Strong afagava paternalmente a cabeça da mulher e acusava‑se de ser um maçador impenitente. Annie pediu‑lhe que recomeçasse a leitura, mas ele não quis e aconselhou‑a a ir deitar‑se.

No entanto, a mulher rogou que a deixasse ficar, e fê‑lo com voz rápida e instante. Desejava, nessa noite, sentir‑se na verdade a sua confidente. (Ainda a oiço murmurar umas frases entrecortadas, de súplica.) E quando virava de novo a cara para ele, depois

de me ter lançado um olhar quando eu saía, vi‑a cruzar as mãos sobre os joelhos do marido e erguer a vista, com um rosto mais calmo, enquanto ele retomava a leitura.

Esta cena causou‑me uma impressão profunda, de que me lembrei por muito tempo.

 

APARECE ALGUÉM

Não tive ainda oportunidade de falar da Peggoty após a minha fuga; mas, já se sabe, escrevi‑lhe uma carta de Dover, quase a seguir à chegada, e outra carta, mais comprida, com minudências acerca da protecção que a tia me dispensara. Uma vez matriculado no colégio, tornei a escrever‑lhe para lhe contar pormenorizadamente a minha situação e as perspectivas felizes que se me ofereciam. Não teria nada que me desse tanto prazer para o emprego do dinheiro do senhor Dick como o envio à antiga criada, pela mala‑posta, junto com outra carta, de meio guinéu que lhe devia; e só nesta última epístola lhe falei do malandrim que me desapossara dessa importância e da sua carroça puxada por um burro.

A estas comunicações respondeu Peggotty com a prontidão de um correspondente comercial, embora sem a concisão de que este usaria. Esgotou todas as suas faculdades de expressão a tentar descrever‑me o que pensava da minha viagem, e assim encheu quatro páginas com inícios de frases incoerentes, cortadas de interjeições, que não conduziam a nenhum fim, a não ser nódoas de tinta. Mas estas valiam mais do que o melhor estilo, pois me revelavam que Peggotty chorava sobre o papel. Que mais poderia eu desejar?

Compreendi sem muita dificuldade que ela não seria capaz, apesar de tudo, de ter grande estima pela minha tia. Este período era bastante curto em relação ao resto. Nunca se conhecem bem as pessoas, escrevia Peggotty; mas pensar que a senhora Trotwood estava tão diferente do que fora, eis o que se podia chamar Moralidade. Tal foi o termo que empregou. Evidentemente que sempre tivera medo da minha tia, pois só com timidez lhe enviava os seus respeitos e agradecimentos. E também era evidente que tinha medo de mim, ao admitir a possibilidade de segunda fuga, se fosse inferir das alusões repetidas à hipótese de me enviar o preço para Yarmouth, se eu lho pedisse.

Deu‑me depois uma notícia que me confrangeu: a mobília da nossa antiga casa fora vendida e os irmãos Murdstones haviam partido, fechando a residência, que seria alugada, se não aparecesse comprador. Se bem que eu não usufruísse dela enquanto eles lá estavam, a verdade é que me penalizou imaginar esse velho lar completamente abandonado; pensar que as ervas ruins cresciam no quintal e que as folhas caídas cobriam os passeios com o seu espesso tapete húmido! Evoquei o vento de Inverno uivando derredor, a chuva fria batendo nas vidraças, o luar criando fantasmas nas paredes dos quartos vazios e velando todas as noites a solidão da casa. Tornei a ver o túmulo no cemitério, debaixo da árvore, e pareceu‑me que o prédio também estava morto e se dissipara tudo quanto se associara à saudade do meu pai e da minha mãe.

Não havia mais nenhuma notícia nas cartas da Peggotty. O senhor Barkis era marido exemplar, dizia ela, embora um tanto aferrado ao dinheiro; mas todos nós temos os nossos defeitos, e ela tinha com certeza o seu quinhão (apesar de eu não saber qual era). Barkis enviava‑me os seus cumprimentos e informava que o meu quarto, em casa deles, me esperava sempre. O irmão, o pescador Peggotty, ia bem, assim como o sobrinho Ham; a senhora Gummidge passava sofrivelmente, e a pequena Emily recusara‑se a mandar‑me lembranças, dizendo no entanto que a Peggotty, se quisesse, as enviasse por sua conta.

Todas estas informações comuniquei‑as à tia Betsey, só ocultando o que respeitava à Emily, pois sentia instintivamente que não seria do agrado da senhora Trotwood. Nos meus primeiros tempos da estada em casa do doutor Strong, a tia foi visitar‑me várias vezes a Cantuária, e sempre a horas impróprias, na intenção, suponho eu, de me fazer surpresa. Mas, achando‑me ocupado, estudioso e com bons créditos, e sabendo de todos que alcançava renome no colégio, depressa renunciou a semelhantes visitas. Eu via‑a aos sábados, todas ou quase todas as semanas, quando ia a Dover em passeio; e via o senhor Dick quinzenalmente, à quarta‑feira: ele chegava ao meio‑dia, na diligência, e ficava até ao dia seguinte de manhã.

Nessas ocasiões o senhor Dick nunca se deslocava sem uma pasta de cabedal que continha boa provisão de objectos de escritório e o livro das suas memórias. A respeito deste documento, pensava ele que o tempo, agora começava a urgir e que precisava de terminar o trabalho.

O senhor Dick gostava muito de pão de espécie. Para tornar mais agradáveis as suas visitas, a tia pedira‑me que lhe abrisse uma conta na pastelaria, estipulando contudo que não lhe servissem mais de um desses bolos por dia. Além disso, todas as despesas da estalagem passavam pelas mãos da tia antes de serem liquidadas; acabei por desconfiar que ele tinha apenas direito de fazer tilintar o seu dinheiro, mas não de o gastar. Prosseguindo nas minhas investigações, descobri que as coisas se passavam realmente desta forma, ou pelo menos que havia, entre a tia e o senhor Dick, um acordo que estipulava que ele lhe prestaria contas de todos os seus desembolsos. Como lhe não ocorria a ideia de a enganar, e como desejava sempre ser‑lhe simpático, jamais se aventurava a outras despesas. Neste ponto, assim como nos demais, o senhor Dick estava convencido de que a tia Betsey era a mulher mais prudente e assisada do mundo; isso me repetia o próprio, em segredo e sempre em voz baixa.

‑ Trotwood ‑ disse‑me ele com ar de mistério, após me haver feito essa confidência, numa quarta‑feira ‑ qual é o homem que se dissimula junto da nossa casa e mete medo à sua tia?

‑ Medo à tia? ‑ repeti.

O senhor Dick oscilou a cabeça.

‑ Pensava que ela não tinha medo de nada ‑ observou‑me ‑ pois que é ‑ aqui a voz tornou‑se‑lhe um sussurro ‑ a mulher mais extraordinária do mundo.

Assim falando, recuou, para ver o efeito que essa sua declaração produzira em mim.

‑ A primeira vez que ele veio ‑ continuou o senhor Dick ‑ foi... Vejamos, o rei Carlos morreu em 1649... Disse 1649, não é verdade?

‑ Sim, senhor.

‑ Suponho que a História não mente, hem? ‑ prosseguiu o senhor Dick.

‑ Com certeza que não.

Eu era novo e ingénuo. Acreditava‑o.

‑ Não compreendo ‑ disse ele, meneando a cabeça. ‑ Há um erro qualquer. Seja como for, foi pouco tempo depois do lapso que fez passar para a minha cabeça certos dissabores do rei que o homem se apresentou pela primeira vez. Eu saía com a senhora Trotwood, tomado que foi o chá, aí ao anoitecer. Ele estava lá, muito perto da residência.

‑ Passeava? ‑ inquiri.

‑ Passeava...?‑repetiu o senhor Dick.‑Vejamos... Preciso de puxar pela memória. Não, não passeava.

A fim de concluir o caso mais depressa, indaguei o que é que ele fazia,.

‑‑Bem... não estava lá propriamente... até à ocasião em que se aproximou por trás dela e segredou. Então a senhora Trotwood voltou‑se, e desmaiou; eu fiquei imóvel e olhei para o homem, que partiu. O mais extraordinário é que, desde esse dia, tenha ficado escondido, na terra ou algures.

‑ Mas ficou realmente escondido desde esse dia?

‑ É indubitável ‑ replicou o senhor Dick, movendo sempre a cabeça. ‑ Não tornou a surgir senão ontem à noite. Nós passeávamos e ele veio por trás, outra vez, e eu reconheci‑o.

‑ Voltou a assustar a tia?

‑ Estava trémula ‑ assegurou o senhor Dick, batendo os dentes para imitar o terror da tia. ‑ Apoiou‑se às grades, e chorou. Agora escute...‑Chegou‑se mais e cochichou:‑Por que lhe deu ela dinheiro, ao luar?

‑ Talvez fosse um mendigo...

O senhor Dick abanou mais uma vez a cabeça, como para repelir semelhante hipótese. Repetidamente, com ar confidencial, explicou: «Mendigo, não; mendigo, não!» Acrescentou que, da janela do seu quarto, descobrira, a uma hora adiantada da noite, do outro lado da vedação do jardim, a tia dar dinheiro a esse homem, ao luar. Em seguida o homem sumira‑se (enfiara pela terra, ao que lhe parecia) e não o vira mais. A tia entrou precipitadamente em casa, às ocultas, e de manhã ainda andava trémula. O senhor Dick sentia‑se preocupado.

Fiquei absolutamente persuadido de que o desconhecido desta história era apenas uma alucinação do senhor Dick, no género da do príncipe infeliz que lhe causava tanto transtorno. Mas, após um momento de reflexão, comecei a aceitar a ideia de que talvez tentassem ou ameaçassem raptar o próprio Dick, subtraindo‑o à protecção da minha tia, dada a afeição profunda que nutria pelo seu hóspede; e ela se visse obrigada a pagar certa importância para que os deixassem em paz. Eu já estimava deveras o senhor Dick e preocupava‑me com a sua tranquilidade. Os meus receios reforçaram aquela hipótese; durante algum tempo nunca via chegar uma quarta‑feira sem experimentar a apreensão de que ele se não encontrasse na diligência, como de costume, quando esta aparecia. Afinal chegava sempre, com o seu cabelo branco, o seu sorriso e o seu ar feliz; jamais me tornou a falar do homem que fora capaz de amedrontar a tia Betsey.

Essas quartas‑feiras eram os dias mais alegres da vida do senhor Dick, e decerto da minha. Não tardou que todo o colégio o conhecesse. Ele não participava activamente em nenhum jogo, excepto no lançamento de papagaios de papel, mas interessava‑se muito pelas nossas distracções. Quantas vezes o vi seguir atento uma partida de chinquilho ou de pião! O seu rosto exprimia verdadeira curiosidade; nos momentos críticos, retinha a respiração. Noutras ocasiões, durante a perseguição à lebre, descobria‑o empoleirado numa árvore, animando os jogadores, agitando o chapéu por cima da cabeça, e esquecido do rei Carlos e de tudo quanto lhe dizia respeito. Passava imenso tempo, no Verão, no recinto de críquete, e, nos dias de Inverno, não era raro lobrigá‑lo, de pé, com o nariz azulado do frio, à neve e ao vento, a olhar para os alunos que desciam o escorregadouro e batiam uns contra os outros as mãos enfiadas em luvas de lã.

Era o favorito de toda a gente e possuía notável engenho. Cortava laranjas consoante métodos de que nenhum de nós fazia a menor ideia. Construía um barco fosse lá com que fosse. Fabricava peças de xadrez com ossos de carneiro e carros romanos com figuras de velhas cartas de jogar; fazia rodas com carrinhos de linhas e gaiolas de pássaros utilizando bocados de arame. No que, porém, se mostrava mais hábil era nos trabalhos de cordelinhos e palha. Estávamos convencidos de que sabia fazer tudo o que mãos humanas são capazes de realizar.

A fama do senhor Dick transpôs depressa o nosso círculo. Após algumas quartas‑feiras, o próprio doutor Strong fez‑me perguntas acerca dele e eu repeti tudo quanto a tia Betsey me contara. O meu relato interessou tanto o doutor que me pediu lhe apresentasse o senhor Dick aquando da sua próxima visita. Desempenhei‑me do encargo. O director do colégio recomendou ao senhor Dick que, não me encontrando à chegada da diligência, fosse directamente à escola e aí aguardasse o final das lições da manhã. Assim nos habituámos a vê‑lo aparecer naturalmente; quando nos atrasávamos nas aulas, o que sucedia em geral às quartas‑feiras, já o encontrávamos no pátio do recreio. Foi aí que ele conheceu a juvenil esposa do director (mais pálida do que antigamente mas não menos bela). Destarte se tornou cada vez mais familiar no estabelecimento, até que um dia entrou na aula para aí esperar por nós. Sentava‑se sempre num canto reservado, num tamborete que por esse motivo recebeu o nome de Dick. Aí ficava, com a cabeça encanecida um pouco à banda, atento ao que se fazia e tomado de profundo respeito pela ciência que nunca pudera adquirir.

Esse respeito o senhor Dick alargou‑o ao doutor Strong, que considerou como o maior filósofo de todos os tempos. A princípio, só lhe falava de chapéu na mão. E mesmo quando se tornaram grandes amigos e passavam horas passeando juntos, no lado do pátio conhecido pelo nome de Jardim do Doutor, o senhor Dick descobria‑se de vez em quando, indicando assim a veneração que dedicava à sabedoria e à ciência. Como aconteceu que o doutor começasse a ler‑lhe trechos do famoso dicionário durante aqueles passeios? Não sei. Talvez de início tivesse a impressão de que os lia para si mesmo. O caso é que essa leitura se converteu em habitual. O senhor Dick escutava, de faces brilhantes de orgulho e prazer; acreditava plenamente que o dicionário era o livro mais deleitoso do mundo.

Assim os víamos passar e repassar diante das aulas: o doutor lia, brandindo às vezes o manuscrito, ou movia gravemente a cabeça, e o senhor Dick escutava‑o como se preso àquela leitura; mas o seu pobre espírito devia errar sabe Deus por onde, nas asas das palavras difíceis. Este espectáculo constituía uma das coisas mais agradáveis a que me era dado assistir. Dir‑se‑ia que eles podiam ir e vir eternamente deste modo, e que o mundo podia, de certa maneira, tornar‑se melhor, como se mil coisas em que tanto empenho se faz não tivessem qualquer importância para ele nem para mim.

Cedo a Agnes se relacionou com o senhor Dick, e por laços de amizade, pois este ia com frequência a casa do doutor. Igualmente conheceu Uriah Heep. A afeição entre nós dois continuou também a aumentar e manteve‑se neste aspecto singular: o senhor Dick queria vigiar‑me como um tutor, mas consultava‑me sempre acerca das mínimas coisas e guiava‑se invariavelmente pelos meus conselhos. Não só tinha grande consideração pela minha sagacidade natural como achava que eu herdara boa parte das qualidades da minha tia.

Uma quinta‑feira de manhã, na ocasião de deixar o hotel com o senhor Dick para ir ao escritório da diligência antes de voltar à escola (pois tínhamos uma hora de aula antes do primeiro almoço), encontrei na rua Uriah, que me lembrou a promessa de tomar chá com ele e com a mãe; e acrescentou, num esgar: «Não tinha a certeza de que tivesse aceitado, senhor Copperfield. Somos tão humildes...»

Na verdade, eu ainda não sabia se gostava de Uriah ou se o detestava; laborava em dúvidas nesse ponto, e fiquei ali na rua a olhá‑lo bem de frente. Contudo, melindrei‑me com a suposição que ele alimentava quanto ao meu orgulho e declarei que esperava apenas um convite mais concreto.

‑ Se é isso, senhor Copperfield, se não é a nossa condição modesta o que o retém, quererá aparecer esta noite? Mas, se o motivo é o nosso estado social, espero que não haja inconveniente em confessá‑lo, senhor Copperfield, porque nós não temos ilusões a esse respeito.

Disse‑lhe que falaria com o senhor Wickfield, e, se ele concordasse (o que era mais que certo) eu iria com o maior prazer.

Às seis horas, pois (nesse dia o consultório do advogado fechava mais cedo), anunciei a Uriah que estava pronto.

‑ A minha mãe vai ficar orgulhosa ‑ disse ele, enquanto caminhávamos juntos. ‑ Ou, pelo menos, ficaria, se não fosse pecado, senhor Copperfield.

‑ No entanto, você esta manhã não hesitou em classificar‑me de orgulhoso.

‑ Meu Deus, que ideia! Não, não julgue tal coisa. Nem por sombras tive semelhante pensamento, mesmo que o senhor nos considerasse muito humildes, porque na verdade o somos.

‑ Tem estudado muito Direito, ultimamente? ‑perguntei para mudar de conversa.

‑ Oh, senhor Copperfield!‑retorquiu, num tom de extrema modéstia ‑ as minhas leituras não merecem o nome de estudo. O que me acontece é passar, à noite, uma hora ou duas a ler o senhor Tidd.

‑ Trabalho árduo, hem?

‑ Árduo para mim, às vezes. Mas não sei o que seria para uma pessoa mais bem dotada.

Depois de ter batido o compasso de uma ária, com dois dedos da mão esquelética no queixo, mas sempre a andar, Uriah acrescentou:

‑ Bem vê, senhor Copperfield, há expressões... palavras latinas... modos de dizer no livro do senhor Tidd que são difíceis para um leitor tão ignorante como eu.

‑ Gostaria de aprender latim? ‑ ripostei logo. ‑ Eu ensinava‑lhe, com todo o prazer, ao mesmo tempo que aprendia também...

‑ Muito obrigado, senhor Copperfield. É deveras amável em fazer‑me essa proposta, mas sou muito humilde para aceitar.

‑ Que absurdo, Uriah!

‑ Desculpe, fico‑lhe muito grato e teria o maior gosto nisso, garanto‑lhe. Mas sou demasiado humilde. Há tanta gente que despreza a minha situação modesta! Se me tornasse mais culto, essas pessoas sentir‑se‑iam escandalizadas. Um homem como eu não deve ter ambições. Se tem de vencer na vida, que o seja humildemente, senhor Copperfield.

Jamais aquela boca se alargara tanto nem tão grandes se fizeram as rugas das faces como no instante em que confessava os seus sentimentos. E a cabeça acompanhou estas expressões de modéstia numa agitação incessante.

‑ Julgo que não tem razão, Uriah. Estou mesmo convencido de que há várias coisas que lhe poderia ensinar, se quisesse aprendê‑las.

‑ Não duvido, senhor Copperfield, não tenho a menor dúvida. Não sendo, porém, o senhor uma pessoa humilde, como pode ser bom juiz num caso destes? Não quero, com a minha futura sabedoria, irritar os meus superiores. Não, muito obrigado. Sou deveras humilde. E aqui está a minha modesta habitação, senhor Copperfield.

Entrámos num quarto baixo e antiquado, que dava directamente para a rua, e encontrámos aí a senhora Heep, parecidíssima com Uriah, embora em proporções mais reduzidas. Recebeu‑me com extrema humildade e desculpou‑se por dar na minha presença um beijo ao filho; apesar da humildade da sua condição, disse ela, tinham natureza afectuosa e esperavam que ninguém se ofendesse com isso. O quarto era decente, misto de sala e cozinha, mas não tinha qualquer requinte. O serviço de chá estava colocado na mesa e a chaleira na prateleira do fogão. Havia uma cómoda com uma estante, onde Uriah lia ou estudava à noite. Via‑se também a pasta azul de Uriah, da qual surgiam alguns papéis; e ainda os livros do mesmo, espécie de batalhão comandado pelo senhor Tidd. A um canto, avultava um armário. O resto compunha‑se dos móveis habituais. Não me lembro que nenhum objecto especial tivesse o ar nu, seco, desguarnecido que todavia a impressão do conjunto me deixou. Seria também por humildade que a senhora Heep usava ainda crepes, apesar do tempo que decorrera após a morte do marido? Creio que a touca disfarçava um pouco esse aspecto porque no mais ela exibia o luto cerrado das primeiras semanas.

‑ Este dia, Uriah ‑ disse ela ao filho, enquanto preparava o chá ‑ há‑de ficar memorável, porque recebemos o senhor Copperfield.

‑ Foi o que eu já disse a ele mesmo ‑ respondeu Uriah.

‑ Se há um motivo para que eu desejasse que o meu marido estivesse ainda vivo ‑ continuou ela ‑ esse é o de ter podido aproveitar a sua companhia nesta noite.

Estes cumprimentos embaraçaram‑me, mas a verdade é que sentia que me acolhiam de facto como uma pessoa de importância, e considerei a senhora Heep com um sentimento de gratidão.

‑ Há muito tempo ‑ acrescentou a senhora Heep ‑ que Uriah esperava este dia. Receava contudo que a nossa condição modesta fosse um obstáculo. Humildes éramos, humildes somos e humildes continuaremos a ser ‑ concluiu a dona da casa.

‑ Estou persuadido, minha senhora, de que não há nenhuma razão para isso, senão o facto de lhe ser agradável que assim seja ‑ respondi.

‑ Obrigada, senhor Copperfield. Conhecemos a nossa posição e satisfazemo‑nos com ela.

A pouco e pouco, a senhora Heep foi‑se aproximando de mim. Também a pouco e pouco Uriah passou para a minha frente, e ambos, respeitosamente, insistiram em que eu me servisse das melhores coisas que havia na mesa. Não notei nada de particularmente delicado, mas tomei a intenção como realidade e achei que assim agradava à mãe e ao filho. Não tardou que falassem das suas tias e eu aludi à minha. Em seguida ocuparam‑se dos pais e eu mencionei os meus. Por fim a senhora Heep referiu‑se ao padrasto e eu nomeei o meu, porém logo me detive, porque a tia me aconselhara a guardar silêncio a este respeito.

O certo é que eles foram tirando nabos da púcara e souberam de mim o que quiseram, circunstância de que ainda hoje me recordo com vergonha. Na minha candura juvenil, sentia‑me lisonjeado com aquelas confidências que me faziam e, ripostando, cria‑me o protector dos meus dois respeitosos hospedeiros.

Havia entre eles grande amizade, eis o que era evidente. Julgo que isso me comovia como uma pincelada da natureza; mas a perícia com que um retomava tudo o que o outro dizia constituía um efeito da arte, perante o qual eu me sentia ainda mais desarmado. Quando já não houve mais nada para investigar acerca da minha pessoa (pois me calei no assunto Murdstone & Grinby, e assim no da fuga), começaram a falar do doutor Wickfield e da Agnes. Uriah atirou a bola à senhora Heep, esta aparou‑a e devolveu‑lha, Uriah conservou‑a um momento em seu poder, depois tornou a atirá‑la à mãe, e assim prosseguiram nestas idas e vindas, até que por fim eu não sabia quem tinha a bola, e estava desnorteado. Aliás, ela mudava continuamente, tão depressa elogiava Wickfield como Agnes, tão depressa as altas virtudes daquele como a minha admiração pela filha; ora a importância dos processos e recursos do advogado, ora a nossa vida doméstica depois do jantar; ora o vinho que o doutor Wickfield tomava, a razão que o impelia a isso e a infelicidade de assim suceder; ora uma coisa e outra, ora as duas ao mesmo tempo. E sem eu próprio falar o fantasma da sua humildade e a honra que lhes proporcionava a minha companhia, achei‑me a soltar a cada instante, sobre uma coisa e outra, palavras que nada me autorizava a pronunciar e cujos efeitos eu via, estarrecido, no fremir nervoso do nariz de Uriah.

Começava a sentir‑me pouco à vontade e a desejar pôr termo à visita quando, descendo a rua, passou um vulto diante da porta (tinham‑na deixado aberta a fim de arejar o quarto, onde estava calor, porque o tempo ia pesado para a estação). Esse transeunte voltou atrás, lançou uma olhadela ao interior e depois entrou, exclamando em voz muito alta:

‑ Copperfield! Será possível?!

Era o senhor Micawber. O senhor Micawber com o seu monóculo, o colarinho avantajado, o ar distinto, a bengala e o tom de voz protector: não lhe faltava nada.

‑ Meu caro Copperfield ‑ disse‑me ele, estendendo a mão ‑ eis na verdade um encontro feito para nos convencer do sentimento de instabilidade e de incerteza das coisas humanas; em suma, um encontro extraordinário. Eu passeava na rua, meditando na probabilidade de ver surgir qualquer coisa (tenho justamente grande confiança nisto), e vejo aparecer um amigo moço mas precioso, ligado ao período mais agitado da minha vida: devo dizer, caro Copperfield, o ponto crucial da minha existência. Como vai você?

Não confessarei que ficasse deliciado com o aparecimento de Micawber naquele lugar; mas agradava‑me tornar a vê‑lo e apertei‑lhe com prazer a mão ao mesmo tempo que lhe perguntava pela mulher.

‑ Obrigado, está de boa saúde ‑ respondeu, fazendo como outrora um sinal com os dedos e mergulhando o queixo no colarinho. ‑ Os gémeos já não tiram o seu sustento das fontes da natureza: em resumo ‑ concluiu Micawber num dos seus ímpetos de confiança ‑ foram desmamados e ela é, ao presente, minha companheira de viagem. Há‑de rejubilar, Copperfield, de reatar conhecimento com um jovem que se mostrou, em todas as circunstâncias, digno ministro do sagrado altar da amizade.

Repliquei que teria o maior prazer em vê‑la.

‑ É muito amável ‑ disse Micawber. Depois sorriu, ajustou novamente o queixo e olhou em volta de si. ‑ Descobri o meu amigo Copperfield ‑ recomeçou com ar benevolente, sem se dirigir a ninguém em particular ‑ não na solidão mas compartilhando o repasto com uma dama viúva e um homem que, aparentemente, é a sua vergôntea; que em suma ‑ esclareceu Micawber, noutro ímpeto de confiança ‑ é o seu filho. Considero uma honra para mim estar presente.

Não podia, naquela conjuntura, fazer menos do que apresentar o senhor Micawber a Uriah Heep e à mãe. Fi‑lo, pois. Enquanto eles se curvavam diante da visita, esta tomou uma cadeira, e, do modo mais cortês, esboçou um gesto breve com a mão.

‑ Todos os amigos do meu amigo Copperfield ‑ disse ele ‑ têm direitos sobre mim.

‑ Somos muito humildes ‑ declarou a senhora Heep ‑ para sermos amigos do senhor Copperfield. O senhor Copperfield teve a bondade de vir tomar connosco uma xícara de chá e nós estamos‑lhe muito reconhecidos, assim como pela sua cortesia, senhor Micawber.

‑ Minha senhora ‑ volveu Micawber, inclinando‑se ‑ é deveras amável. E você, Copperfield, que faz agora? Continua no comércio de vinhos?

Eu estava impaciente por afastá‑lo dali e repliquei, de chapéu na mão e decerto muito corado, que era aluno do colégio do doutor Strong.

‑ Aluno? ‑ repetiu Micawber, erguendo as sobrancelhas. ‑ Folgo imenso em sabê‑lo... embora um cérebro como o do meu amigo Copperfield ‑ continuou, virando‑se para Uriah e a mãe ‑ não necessite da cultura que precisaria se não conhecesse ainda os homens e as coisas: é um solo rico no qual se desenvolvem colheitas abundantes. Em resumo ‑ rematou Micawber, sorridente, em mais um ímpeto de confiança ‑ é uma inteligência capaz de assimilar todos os clássicos.

Uriah, passando lentamente as mãos uma sobre a outra, fez uma contorção horrível de todo o busto para exprimir que partilhava desse juízo a meu respeito.

‑ Vamos falar com a sua esposa? ‑ propus a Micawber, no propósito de o afastar.

‑ Se realmente lhe quer dar essa honra, Copperfield ‑ respondeu ele, pondo‑se de pé. ‑ Não tenho escrúpulo de dizer aqui, em presença dos nossos amigos, que sou uma pessoa que, desde há anos, luta contra a pressão das dificuldades financeiras. ‑ Eu estava convencido de que ele não deixaria de aflorar este ponto, tanto apreciava vangloriar‑se das suas dificuldades. ‑ Em certas ocasiões as minhas dificuldades... em suma, têm‑me vencido! Houve momentos em que vim ao de cima, outros em que elas me submergiam e eu cedi, repetindo a minha mulher as palavras catónicas: «Platão, dizes bem, está tudo agora decidido. Já não posso combater.» Todavia, a cada instante da minha vida, não experimentei maior satisfação do que entornando as minhas dores (se assim posso classificar as ditas dificuldades, que constavam principalmente de letras a dois e quatro meses da vista), entornando‑as, repito, no seio do meu amigo Copperfield.

O senhor Micawber pôs ponto final neste belo elogio, exclamando: «Boa noite, senhor Heep. Boa noite, minha senhora. Sou um seu criado.» Em seguida saiu comigo, numa atitude das mais distintas, fazendo soar os tacões no pavimento e cantarolando uma canção.

Os esposos Micawbers haviam‑se alojado numa estalagem modesta. Ocupavam um quarto separado da sala de estar por um tabique e bastante impregnado de cheiro a tabaco. Suponho que ficava por cima da cozinha, porque se diria que pelas fendas do soalho entrava o odor de banha quente e nas paredes havia uma sujidade gelatinosa. Também o cheiro das bebidas espirituosas e o tilintar dos corpos denunciavam uma vizinhança: a do botequim da estalagem. No quarto, sob uma gravura que representava um cavalo de corridas, a senhora Micawber estava estirada num canapé, com a cabeça perto do fogão e os pés quase sobre o tabuleiro com os restos de uma refeição. O marido preveniu‑a nestes termos:

‑ Minha querida, deixa que te apresente um aluno do doutor Strong.

Notarei de passagem que Micawber, que se esquecia sempre da minha idade e da minha posição, nunca olvidava (título de nobreza aos seus olhos) que eu era aluno do doutor Strong.

A senhora Micawber ficou surpreendida, mas contente, de me ver. Experimentei igual sentimento e, após ternas efusões de parte a parte, sentei‑me perto dela.

‑ Emma ‑ disse o senhor Micawber ‑ se queres expor ao Copperfield a nossa situação actual, que lhe despertará, estou certo, vivo interesse, eu vou entretanto passar a vista pela gazeta para ver o que há quanto a anúncios.

‑ Julgava‑a em Plymouth ‑ observei à dama, enquanto o marido saía.

‑ Caro Copperfield, fomos realmente a Plymouth.

‑ Para estar próximo ‑ atrevi‑me a alvitrar.

‑ Nem mais nem menos. Mas, na verdade, o talento não acha emprego nas alfândegas. A influência local da minha família mostrou‑se inábil de nos obter, na administração aduaneira, um lugar que conviesse às faculdades de um homem como Micawber. Poria em relevo a incapacidade dos outros. Além disso não lhe oculto, meu caro Copperfield, que os meus parentes de Plymouth, ao saberem que Micawber chegara comigo, o pequeno Wilkins, a irmã e os gémeos, não lhe fizeram a recepção calorosa que ele tinha o direito de esperar, ele que acabava de recuperar a liberdade! De facto ‑e a senhora Micawber baixou a voz‑ a recepção foi bastante fria. Mas isto fica entre nós...

‑ Meu Deus!

‑ Sim, custa realmente considerar as pessoas sob esse aspecto, Copperfield, mas a recepção foi bastante fria. Não há dúvidas quanto a isto. De facto, a minha família de Plymouth revelou‑se em absoluto desagradável para com Micawber, antes mesmo que decorresse uma semana.

Disse‑lhe (e pensei) que deviam ter vergonha da sua atitude.

‑ Mas foi mesmo assim ‑ prosseguiu a senhora Micawber. ‑ Nestas circunstâncias, que devia fazer um homem da têmpera de Micawber? Evidentemente que só restava uma solução: pedir emprestado a esse ramo da família o dinheiro necessário para regressar a Londres, mesmo à custa de todos os sacrifícios.

‑ Nesse caso, voltaram?

‑ Voltámos. Desde então, tenho consultado outros ramos familiares acerca da deliberação que Micawber há‑de tomar, pois sustenho que é preciso tomar uma ‑ declarou a senhora Micawber, com lógica e energia. ‑ É claro que uma família de seis membros, sem contar com o pessoal doméstico, não pode viver do ar.

‑ Sem dúvida, minha senhora.

‑ A opinião desses outros ramos familiares foi que o meu marido devia encaminhar imediatamente a sua atenção para os combustíveis.

‑ Para quê?

‑ Para o comércio do carvão. Informações colhidas esclareceram Micawber de que podia haver no Medway Coal Trade colocação para alguém com o talento dele. Neste caso, como logo disse o meu marido, era conveniente ver em primeiro lugar a região. Viemos ver. Digo no plural, Copperfield, porque nunca abandono Micawber.

Num murmúrio, testemunhei a minha admiração aprovadora.

‑ Viemos e vimos o Medway. Quanto ao negócio de carvão nesta zona, acho que exige na verdade talento mas também capitais. Micawber tem o primeiro mas falta‑lhe o resto. Visitámos, creio, quase todo o Medway e essa foi igualmente a minha opinião pessoal. Mas, achando‑nos tão perto daqui, Micawber pensou que seria absurdo não dar mais um passo e ver a catedral. Vale a pena ser visitada, e, além disso, há grandes probabilidades de que surja qualquer coisa numa cidade diocesana. Estamos cá há três dias. Ainda não apareceu nada, meu caro Copperfield, e talvez fique menos admirado do que outro qualquer se souber que esperamos neste momento, de Londres, a importância que nos libertará das obrigações pecuniárias nesta estalagem. Até à chegada dessa quantia ‑ a senhora Micawber falava com certa comoção ‑ estarei separada do meu lar, ou seja, da minha instalação de Pentonville, do meu pequeno, da minha pequena, e dos gémeos.

Senti a maior compaixão pelos Micawbers naquele aperto angustiante, e disse‑o a Micawber, que reentrava nesse instante; acrescentei que gostaria de dispor de muito dinheiro para lhes emprestar a soma de que precisavam.

A resposta dele denotou bem o seu desvario. Confiou‑me, apertando a minha dextra:

‑ Copperfield, você é um amigo verdadeiro. Mas, quando as coisas chegam a este extremo, ainda resta a um homem aquilo com que se barbeia.

A esta alusão terrível, a senhora Micawber lançou os braços ao pescoço do marido e suplicou‑lhe que se acalmasse. Ele chorou, mas depressa se sentiu restabelecido, o suficiente para chamar o criado e ordenar que lhe trouxesse, ao primeiro almoço do dia seguinte, rins grelhados e um prato de camarões.

Quando me despedi, convidaram‑me para jantar com eles quando quisesse, e tanto insistiram que não pude recusar. Como sabia que era impossível voltar no dia seguinte, pois tinha de trabalhar à noite, Micawber declarou que passaria por casa do doutor Strong, de manhã (estava persuadido de que o correio lhe traria o dinheiro desejado), e me proporia a melhor ocasião. Fui, pois, naquele dia, chamado ao locutório, antes das doze horas, e aí achei o senhor Micawber. A refeição realizar‑se‑ia na outra tarde. Perguntei‑lhe se recebera o que esperava; ele apertou‑me as duas mãos e afastou‑se.

Estando à janela nessa noite, fiquei surpreendido e um pouco contrariado ao ver Micawber e Uriah Heep passarem na rua de braço‑dado: Uriah consciente da sua humildade e da honra que lhe faziam, e Micawber muito satisfeito por dispensar protecção a Uriah. Mas fiquei ainda mais admirado quando compareci no dia seguinte, à hora marcada, na estalagem e soube que Micawber estivera a tomar aperitivos em casa da senhora Heep.

‑E deixe‑me dizer‑lhe, meu caro Copperfield, que o seu amigo Heep é um moço digno de vir a ser procurador‑geral. Se o houvesse conhecido no tempo em que as minhas dificuldades atingiram o seu ponto culminante, tudo o que posso dizer é que julgo que os meus credores teriam sido tratados muito melhor do que foram.

Não compreendi como isso teria sido possível, porque Micawber não pagara absolutamente nada; mas calei‑me. Abstive‑me igualmente de pedir que não fizesse muitas confidências a Uriah e de perguntar se haviam falado de mim. Receei ferir a susceptibilidade de Micawber e especialmente a da mulher, tão sensível; mas achei‑me constrangido e aquele pensamento perturbou‑me muitas vezes daí por diante.

A refeição foi excelente: um belo prato de peixe, vitela cozida, salsichas fritas, perdiz e um pudim. Havia não só vinho como cerveja. Depois do jantar, Micawber preparou, com as suas mãos, um ponche bem quente.

Era um conviva estupendo. Nunca o tinha visto tão bem disposto. À força do ponche, a cara começou a luzir‑lhe, até parecer envernizada. Enterneceu‑se a propósito da cidade e levantou‑lhe um brinde, pois ele e a mulher tinham nela encontrado bem‑estar e conforto e jamais esqueceriam as horas passadas na Cantuária. Em seguida bebeu à minha saúde. E todos três, eu e os Micawbers, passámos revista às nossas relações de outro tempo, durante as quais vendêramos todo o mobiliário da casa.

Então brindei à senhora Micawber; pelo menos disse modestamente:

‑ Se me dá licença, vou beber à sua saúde, minha senhora.,.

Micawber aproveitou o ensejo para louvar as qualidades da esposa e confessou que ela fora sempre o seu guia, o seu consolo, a sua amiga. E respondeu‑me que, ao atingir a idade de casar, escolhesse uma mulher como a sua, se é que tal coisa se podia encontrar.

Conforme o ponche se esgotava, Micawber tornava‑se mais jovial e amistoso. O entusiasmo dela corria parelhas com o do marido. Cantámos Auld Lang Syne [1], e, quando chegámos a «amigo fiel, aqui tens a minha mão», fizemos círculo, de mãos dadas, de roda da mesa. Ao entoarmos os versos de Willie Waught sem fazer a mínima ideia do que pudessem significar, sentimo‑nos realmente comovidos.

Enfim, nunca vi ninguém tão regozijado como o senhor Micawber, até ao momento em que me despedi dele e da sua simpática esposa num adeus em que pus todo o meu coração. Não estava, pois, preparado para, no dia seguinte de manhã, às sete horas, receber a carta que transcrevo, datada da véspera às nove e meia da noite, um quarto de hora depois da minha partida.

 

«Meu jovem e caro amigo

«Os dados estão lançados: tudo acabou. Dissimulando o cuidado sob a dolorosa máscara da alegria, não lhe anunciei que não havia qualquer esperança de receber o dinheiro! Nestas circunstâncias, igualmente humilhantes para sofrer, para considerar e para descrever, liquidei as obrigações contraídas neste estabelecimento dando uma letra ao portador, pagável a quinze dias da emissão, na minha residência de Pentonville, Londres. Quando chegar o prazo, não poderei satisfazer o compromisso. O resultado é a mina. Vai cair o raio e a árvore será derrubada.

«Possa o desgraçado que hoje se lhe dirige, meu caro Copperfield, servir‑lhe de farol na existência. Ele escreve nesta intenção e com essa esperança. Se lhe fosse possível jactar‑se de representar esse papel, talvez que um reflexo de luz penetrasse no ergástulo sem júbilo da sua existência, futura,, embora a sobrevivência seja agora (e é o menos que posso dizer) extremamente problemática.

«Eis a derradeira comunicação, meu caro Copperfield, que lhe envia o proscrito indigente

Wilkins Micawber.»

 

Recebi tamanho abalo com a leitura desta carta dilacerante que corri logo à estalagem, no propósito de sossegar o pobre Micawber com alguma palavra de consolação. Mas, de caminho, cruzei‑me com a diligência de Londres, que levava já os Micawbers. Ele era a imagem da calma satisfeita, sorridente, ouvindo falar a mulher, e comendo nozes que tirava de um cartucho de papel. Via‑se uma garrafa a sair‑lhe do bolso interior. Não repararam em mim e eu pensei que, feitas as contas, mais valera que assim fosse. Com o espírito desanuviado, voltei pois por uma rua que encurtava o trajecto para o colégio. Afinal, aquela debandada aliviava‑me de um grande peso, se bem que os estimasse bastante, a eles dois.

 

UMA RETROSPECTIVA

O meu tempo de colégio! O deslizar silencioso da minha existência! A sua marcha invisível, insensível ‑ da infância à adolescência! Vejamos se esta água móvel, que é hoje um barranco seco coberto de folhas, deixou na sua passagem algum vestígio que me permita reencontrar‑lhe o curso.

Eis‑me no meu lugar habitual da Sé, onde, após a concentração no colégio, nós íamos em grupo todos os domingos de manhã. O cheiro a terra, a atmosfera sem sol, a sensação de estar separado do mundo exterior, o órgão que ressoa através das tribunas da abóbada e das naves, todas estas recordações me arrebatam num adejo e me fazem pairar, em devaneio semiconsciente, por cima dos dias pretéritos.

No colégio, não sou o último. Em poucos meses saltei para a frente de vários. Mas o «primeiro» afigura‑se‑me um ente considerável, dominando ao longe a tão vertiginosa altura que me parece inatingível. Agnes pretende que não, eu todavia sustento que sim, digo‑lhe que não pode fazer ideia da acumulação de saber conseguida por esse ser extraordinário, a cujo lugar ela pensa que eu ‑ pobre de mim!‑poderia aspirar a erguer‑me. Esse «primeiro» não é nem meu íntimo nem meu protector oficial como era Steerforth, mas tributo‑lhe o maior respeito. O que sobretudo me intriga é saber o que fará depois de sair do colégio e como a humanidade procederá com uma pessoa da sua categoria.

Mas que vejo de súbito? A menina Shepherd, que tanto estimo.

A menina Shepherd é pensionista na escola das senhoras Nettingalls. Adoro‑a. Usa um casaquinho curto e bem cingido, é muito roliça e tem cabelos encaracolados, de um loiro de cânhamo. As alunas das senhoras Nettingalls também vão à catedral. Não consigo seguir o ofício divino porque olho para a menina Shepherd. Só a oiço durante os salmos e é o seu nome que, mentalmente, misturo com os membros da família real. Em casa, no meu quarto, acontece‑me bradar num transporte de amor: «Menina Shepherd!»

Decorre certo tempo antes que eu compreenda quais são os sentimentos que a menina Shepherd me consagra, mas, graças a Deus, consigo encontrá‑la numa aula de dança. Tenho‑a como meu par. Logo que lhe toco na luva, sinto um arrepio subir‑me por baixo da manga da camisa, ao longo do braço direito, até à raiz dos cabelos. Não trocamos palavrinhas doces, mas entendemo‑nos. Estamos destinados um para o outro.

Dou‑lhe às ocultas uma dúzia de nozes. Porquê? Nem o sei. Não são penhores de amor. Tão difíceis de conter num pacotinho decente, quase impossíveis de partir (mesmo nas portas), tão oleosas uma vez abertas! Todavia considero‑as dignas de oferecer à menina Shepherd. Ofereço‑lhe também bolachas e um número incalculável de laranjas. Certo dia, no vestiário, beijo‑a ‑ ó júbilo indizível! ‑ mas qual não é o meu desespero, qual não é a minha indignação, quando oiço correr o boato, no dia seguinte, de que as senhoras Nettingalls lhe tinham metido os pés num aparelho de madeira para os adelgaçar!

A minha paixão pela menina Shepherd é o tema dominante, a razão da minha vida. Como se explica então que, um dia, tudo acabasse entre nós? Não sei. Consta‑me que ela formulara o desejo de que eu não a olhasse tanto, e que dava manifesta preferência ao menino Jones. Jones? Ora, pois! Um insignificante! Alarga‑se o abismo que nos separa. Enfim, certo dia encontro as alunas das senhoras Nettingalls a passear. A menina Shepherd faz‑me uma careta e, rindo‑se, volta‑se para a sua vizinha. Assim acabou a paixão da minha vida, pois me parecia ter durado a vida inteira. Não me ocupo já da menina Shepherd no domingo seguinte, e ela já nada tem que ver com a família real.

Na aula, faço progressos e ninguém perturba o meu sossego. Já não tenho o mínimo respeito pelas meninas da escola Nettingalls e não me interessarei mais por nenhuma delas, por mais bonitas que sejam. Acho as lições de dança enfadonhas e pergunto por que diabo as pequenas não podem dançar umas com as outras, deixando‑nos a nós tranquilos. Sou cada vez mais forte em versos latinos e cada vez mais desleixado com os cordões dos sapatos. O doutor Strong faz o meu elogio público. O senhor Dick está louco de alegria e a tia Betsey envia‑me um guinéu na volta do correio.

A sombra de um moço de talho levanta‑se diante de mim como a cabeça, revestida de capacete, de Macbeth. Quem é esse moço? É o terror da juventude de Cantuária. Correm vagos boatos a seu respeito. Parece que é o sebo o que lhe dá o brilho ao cabelo e o ar de força sobrenatural capaz de o fazer adversário de quem quer que seja. Possui estatura imponente, pescoço de toiro, faces encarnadas. Fala com grosseria e diz mal especialmente dos alunos do doutor Strong. Anuncia a toda a gente que nos castigará e designa alguns, entre os quais eu figuro: combater‑nos‑á só com uma das mãos, porque a outra será amarrada às costas. Espia a passagem dos mais novos e, cobardemente, desfecha‑lhes socos na cabeça. A mim desafia‑me em plena rua. Tudo isto, compreende‑se, me decide a medir forças com ele.

É por um belo dia de Verão, ao canto de um muro, num recinto coberto de erva, que me encontro com o rapaz do talho, conforme previamente combináramos. Acompanha‑me o escol do colégio.

Dois outros talhantes, um botequineiro e um limpa‑chaminés assistem ao meu rival. Preenchem‑se todas as formalidades e eis‑nos em presença um do outro. Recebo um murro por cima do olho esquerdo e vejo as estrelas. Impossível de saber, daí a pouco, onde fica o muro, onde é que estou, onde é que estamos todos. A custo sei quem eu próprio sou e quem é o magarefe, pois lutamos corpo a corpo, agarrados, roçando a erva espezinhada. De vez em quando aparece‑me o carniceiro, sangrando, mas seguro de si; ou então não vejo nada, e acho‑me, ofegante, sob os joelhos do cortador; ou, ainda, atiro‑me tão furiosamente a ele que trituro os dedos ao contacto com o seu rosto, sem que isto pareça comovê‑lo. Finalmente, perturbado, confuso, como se despertasse de um sono agitado, recupero a consciência para ver o meu adversário afastar‑se. Os dois outros carniceiros, o limpa‑chaminés e o taberneiro vão‑no felicitando, e ele, de caminho, veste o casaco; de tudo isto concluo que foi o meu rival quem obteve a vitória.

Levam‑me para casa em estado deplorável. Põem‑me nos olhos pedaços de carne crua. Esfregam‑me o corpo com aguardente e vinagre. Tenho no lábio superior uma tumefacção que me dói horrivelmente. Conservo‑me no quarto durante dois ou três dias e faço uma triste figura com uma pala verde a proteger‑me a vista. Aborrecer‑me‑ia bastante sem a companhia de Agnes, autêntica irmã para mim. Toma parte do meu infortúnio, lê‑me livros, e, graças a ela, o tempo afigura‑se‑me menos longo e eu sinto‑me menos infeliz. Agnes goza sempre da minha confiança. Falo‑lhe do moço do talho, conto‑lhe tudo o que se passou. A rapariga também acha que eu não podia proceder de outro modo, mas ainda treme à ideia do nosso combate.

Insensivelmente para mim, Adams deixou de ser o «primeiro». Já nos deixou há tanto que só eu o conheço quando vem de visita ao doutor Strong. Adams está prestes a estagiar para advogado. Usará peruca. Admiro‑me de lhe surpreender um ar mais humano e menos imponente do que imaginara. Enfim, ainda não revolucionou o mundo, pois o mundo, tanto quanto sei, prossegue o seu caminho sem dar pela existência de Adams.

Depois, mais nada. Todos os combatentes da Poesia e da História desfilam majestosos, infindàvelmente... e que sucede em seguida? Sou o «primeiro» no colégio. Domino os outros, olho cheio de condescendência para algum mais pequeno, que me lembra o que eu fui outrora, quando da minha chegada. Mas esse «eu» de outro tempo dir‑se‑ia não fazer já parte de mim. Recordo‑me como de qualquer coisa que ficou para trás no caminho da vida, qualquer coisa que eu vi passar e não como algo que realmente fui. Dá‑me quase a impressão de um desconhecido.

Quanto à pequena que encontrei ao entrar em casa do doutor Wickfield, que é feito dela? Também desapareceu, e, em seu lugar, já não é uma rapariga que atravessa as salas, mas a réplica exacta do seu retrato. Agnes, minha doce irmã, como a chamo no meu foro interior, minha conselheira e amiga, anjo bom de todos os que sofreram a sua influência pacífica e generosa... Agnes tornou‑se uma mulher.

E em mim houve outras mudanças além da idade e do aspecto e das muitas coisas que entretanto aprendi. Uso um relógio de ouro, um anel e sobrecasaca. Ponho cosmético no cabelo, o que, aliado ao anel, não inculca muito. Estarei outra vez apaixonado? Estou. Adoro a mais velha das Larkins.

Esta Larkins não é tão nova como isso. Trata‑se de uma mulher grande e bela, alta, morena, de olhos pretos. Digo que já não é muito nova, porque a mais pequena também não é, e aquela deve ter mais quatro anos. A primogénita há‑de orçar pelos trinta anos. Mas a minha paixão ultrapassa as marcas.

Vejo‑a lidar com oficiais, o que considero intolerável. Vejo‑a falar‑lhes ao ar livre. Eles atravessam a rua para ir ao seu encontro, quando lhe reconhecem, no passeio, o chapéu de cores vivas, seguido do da irmã. Ela ri, dá‑lhes conversa e parece satisfeita. Passo grande parte do tempo na ideia de dar de cara com essa criatura e cumprimentá‑la (porque a conheço pessoalmente) e, se isto acontece, fico contentíssimo. Consigo que a minha saudação seja retribuída uma vez por outra. Sofro atrozmente na noite do baile dado por ocasião das corridas, pois sei que só dança com militares. Se há justiça neste mundo, espero merecer uma compensação a estes infortúnios.

Perco o apetite e uso continuamente o meu lenço novo de seda. A minha desforra é vestir‑me o melhor possível. Ah, as vezes que engraxo o calçado! Assim, posso ter a impressão de ser mais digno dela. Enlevo‑me por tudo quanto lhe pertence e lhe diz respeito. O pai (velhote mal humorado, de papada e de olho de vidro) chega a ter imenso interesse para mim. Quando não posso ver a filha, esforço‑me por o encontrar e pergunto‑lhe: «Como vai, senhor Larkins? Como vão as suas filhas e toda a família?» E como isto me parece forçado, coro de vergonha.

Penso sem cessar na minha idade. Tenho dezassete anos, o que é pouco para a mais velha das Larkins. Mas que importa? Hei‑de chegar depressa aos vinte e um. À noite, vagueio pelas imediações da casa delas, embora me corte o coração ver lá entrar oficiais e ouvi‑los na sala em que a minha amada toca harpa. Não é raro, tomado por um sentimentalismo doentio, andar de roda da residência pensando onde será o quarto dela, isto depois de já terem recolhido aos aposentos. (O que eu julgava ser o da eleita do meu coração não era afinal senão o do pai.) Desejo que rebente um incêndio para que eu atravesse a correr a multidão paralisada pelo medo; encostaria uma escada à janela para a tomar nos braços e salvá‑la: mas voltaria atrás, a fim de trazer qualquer objecto esquecido, e morreria entre as chamas. A minha paixão é assim uma coisa desinteressada: bastar‑me‑ia proceder como um herói e expirar num acto de abnegação.

Todavia há ocasiões em que tenho ideias mais alegres. Ao vestir‑me (o que me ocupa duas horas) para ir a uma recepção oferecida pelos Larkins (convite feito com três semanas de antecipação), deixo‑me invadir por deliciosas fantasias. Vejo‑me, cheio de coragem, fazendo uma declaração à bela Larkins. Ela descansa a cabeça no ombro e murmura: «Oh, senhor Copperfield, mal posso acreditar nos meus ouvidos!» Na manhã seguinte o senhor Larkins procura‑me e diz: «Meu caro Copperfield, a minha filha contou‑me tudo. A idade não é obstáculo. Aqui tem vinte mil libras. Que sejam felizes!» Imagino a tia Betsey, condescendente, dar‑nos a sua bênção. O senhor Dick e o doutor Strong assistem ao casamento. Sou um rapaz sensato ‑ assim pensava nesse tempo ‑ e modesto também. Mas estas fantasmagorias não foram menos verdadeiras!

Dirijo‑me, pois, àquela casa encantada, repleta de flores e de luzes, onde se conversa e toca música, e, ai de mim!, abundam os oficiais. A primogénita das Larkins resplende de formosura. Está vestida de azul com flores azuis no cabelo ‑ como se tivesse necessidade de usar «não‑me‑deixes»! É a primeira vez que sou convidado para uma festa a valer, de gente crescida, e sinto‑me um tanto constrangido. Tenho a impressão de que não sou daquele meio, que ninguém se interessa por mim, excepto o senhor Larkins, que me pergunta pelos meus colegas. Bem podia ele ficar calado, não vou ali para que me considerem criança!

Passo certo tempo num vão de porta e devoro com os olhos a minha deusa. Ei‑la que se aproxima... sim, a mais velha das Larkins, e me pergunta se quero dançar.

‑ Consigo só ‑ tartamudeio, inclinando‑me.

‑ Só? ‑ repete a ninfa.

‑ Com outra não teria prazer.

A Larkins sorri e cora (assim me parece) e responde:

‑ Com todo o gosto. Não esta dança, mas a que se há‑de seguir. Chega a ocasião.

‑ Creio que é uma valsa ‑ diz ela, hesitante, quando me apresento. ‑ Sabe valsar? Caso contrário, o capitão Bailey...

Mas valso (e menos mal, por acaso) e conduzo a Larkins. Furto‑a implacavelmente ao capitão Bailey, que sofre, sem dúvida, mas não faço caso. Eu também sofri. Valso com a mais velha das Larkins! Não sei onde estou, nem entre quem, nem por quanto tempo. Sei apenas que pairo no espaço, com um anjo azul, numa espécie de delírio abençoado, até que nos encontramos sozinhos numa saleta. Descansamos num sofá. Ela admira a flor que ostento na lapela (camélia cor‑de‑rosa, preço meia coroa). Ofereço‑lha, então, com estas palavras:

‑ Peço muito caro por isto.

‑ E quanto é? ‑ replica a Larkins.

‑ Custa uma das flores que tem no cabelo e que eu guardarei como um avaro guarda o seu ouro.

‑ Que atrevido! ‑ exclama. ‑ Pois aqui a tem.

Dá‑me a flor, e não parece zangada. Levo‑a aos lábios antes de a esconder no peito. Rindo, a minha companheira enfia o braço no meu:

‑ Agora, leve‑me ao capitão Bailey.

Absorto no pensamento dessa conversa deliciosa, penso ainda na valsa e vejo a Larkins voltar pelo braço de um cavalheiro de idade, tipo vulgar, que tinha estado a jogar toda a noite ao whist.

‑ Cá está ‑ diz ela ‑ o meu amigo atrevido. O senhor Chestle quer conhecê‑lo, senhor Copperfield.

‑ Admiro o seu bom gosto ‑ começa o senhor Chestle. ‑ Faz‑lhe honra. Suponho que se interessa muito pela cultura do lúpulo, que eu faço em larga escala. Se lhe apetecer ir um dia a Ashford, procure por mim, pois terei muito prazer em hospedá‑lo o tempo que quiser.

Agradeço efusivamente ao senhor Chestle e aperto‑lhe a mão. Ainda julgo que estou a sonhar: danço com ela uma vez, recebo felicitações por valsar bem, e sou convidado pelo senhor Chestle. É cheio de contentamento que regresso a casa. Toda a noite valso em pensamento, com o braço em torno do meu par vestido de azul. Durante mais uns dias, ando perdido num sonho delicioso, mas não torno a encontrá‑la na rua nem em sua própria casa quando a vou visitar. E mal me consola desta desilusão a flor murcha que ainda conservo e me foi oferecida no baile.

‑ Trotwood ‑ diz‑me Agnes um dia, depois do jantar. ‑ Sabe quem se casa amanhã? É alguém que você admira.

‑ Não é a Agnes, pois não?

‑ Eu? Está a ouvir, papá? ‑exclama, levantando a face risonha da música que está a copiar. ‑ Não! É a mais velha das meninas Larkins.

‑ Com... quem? ‑ pergunto a custo. ‑ Não é com o capitão Bailey.

‑ Não é nenhum capitão. Casa com um produtor de lúpulo, o senhor Chestle.

Por uma ou duas semanas vivo atrozmente deprimido. Tiro o anel do dedo, volto a usar o fato velho, deixo de pôr cosmético no cabelo. Contemplo a flor mirrada que me fora oferecida e lamento a minha sorte. Todavia, em pouco tempo me aborreço deste género de existência e, como o rapaz do talho me provocasse outra vez, deito fora a flor, atiro‑me sobre o magarefe e dou‑lhe uma sova.

Depois desta vitória, torno a pôr o anel no dedo e, sem exagerar muito, penteio‑me com cosmético. Estas são as últimas recordações da minha vida no período que vai até aos dezassete anos.

 

OLHO DERREDOR E FAÇO UMA DESCOBERTA

Ao certo não sei se, no fundo, experimentava alegria ou tristeza quando terminei o curso liceal e deixei o colégio do doutor Strong. Fora aí bastante feliz, gostava deveras do director e havia‑me tornado eminente e distinto nesse pequeno mundo. Por estas razões entristecia‑me a partida; mas, por outro lado, e por motivos menos concretos, regozijava‑me com o facto. Seduziam‑me ideias ainda confusas de vir a ser independente, isto é, de me tornar personagem importante, um magnífico animal susceptível de ver e de fazer coisas que me valorizassem na sociedade. Estas considerações fantasistas pesaram tanto no meu espírito juvenil que, evocando‑as agora, não creio que saísse desgostoso do colégio. Outras separações ocorridas na minha existência muito mais me impressionaram, do que essa. Tento em vão recordar‑me das circunstâncias exactas que influíram em mim e do que senti então, mas nada disso me parece digno de registo. Talvez estivesse enleado pelas perspectivas que se me apresentavam. Tudo quanto sei é que as minhas aventuras infantis não me faziam saudades e que a vida, nessa época, me surgia como uma história fantástica cujo livro eu estava prestes a folhear.

Eu e a tia Betsey confabulávamos gravemente acerca da profissão que devia escolher. Havia já um ano que procurava resposta à sua pergunta incessante: «Que desejas ser?» Ora a verdade é que nada de especial me tentava. Calculo que teria aceitado o comando de uma expedição marítima e dado a volta ao mundo numa viagem triunfal de descobrimento se notasse em mim quaisquer aptidões para a arte de navegar. Na ausência, porém, dessas qualidades milagrosas, a minha vontade era enveredar por uma carreira que não pesasse muito no orçamento da tia, e a ela me consagraria de alma e coração.

O senhor Dick assistira regularmente às nossas reuniões, com ar prudente e meditativo. Só apresentou uma sugestão: e fê‑la subitamente (não sei o que se lhe metera na cabeça), aconselhando a que me tornasse «caldeireiro». A tia acolheu tão friamente a proposta que ele não insistiu e se limitou, daí por diante, a tilintar o dinheiro no bolso, embora sempre atento às ideias que ela ia desenvolvendo.

‑ Vou‑te dizer uma coisa, Trot ‑ começou a tia uma manhã, naquele Natal que se seguiu ao meu regresso a casa. ‑ Como este ponto ainda está por decidir, e como não devemos tomar uma resolução imprópria, se a pudermos evitar, penso que seria preferível dar‑mo‑nos tempo para respirar.

Entretanto irás examinando o caso sob um aspecto diferente daquele por que o vias como aluno do colégio.

‑ Está bem, tia Betsey.

‑ Ocorreu‑me a ideia ‑ prosseguiu ela ‑ de que conviria mudar de horizonte, lançar uma vista de olhos ao exterior para formar um juízo menos apaixonado. Por que não hás‑de ir, por exemplo, viajar? Visitarias a tua terra natal e aquela mulherzinha que tem um nome extravagante ‑ acrescentou, esfregando o nariz. (Nunca perdoará a Peggotty o facto de a tratarem por esse estranho apelido.)

‑ Ó tia, isso era o melhor que podia acontecer!

‑ Pois então, tens sorte, porque também é do meu agrado. Aliás, é natural e racional que te regozijes, pois estou convencida de que nunca farás senão o que for racional e natural.

‑ Assim espero, tia.

‑ Tua irmã Betsey Trotwood seria a rapariga mais natural e racional do mundo. E tu és digno dela, não és?

‑ De si é que conto ser digno. É já bastante para mim.

‑ Foi providencial que a tua pobre mãe não sobrevivesse, porque estaria agora tão vaidosa do filho que a coisa lhe transtornaria aquela cabecinha oca ‑ ajuntou a tia, olhando‑me com ar apreciador. (A senhora Trotwood desculpava‑se sempre das próprias fraquezas atribuindo‑as à minha mãe.) ‑ Meu Deus, Trot, como te pareces com ela!

‑ Espero que seja do seu gosto...

‑ É tal qual a mãe, Dick ‑ exclamou enfaticamente. ‑ Faz‑me recordá‑la na véspera do dia em que ele nasceu. Tão certo como estar agora a vê‑lo!

‑ Acha que sim? ‑ retorquiu o senhor Dick.

‑ E também me lembra o David ‑ declarou a tia em tom categórico.

‑ Parece‑se muito com o David ‑ corroborou o senhor Dick.

‑ Mas o que eu desejo, Trot ‑ recomeçou a tia ‑ é que sejas, não digo fisicamente (fisicamente estás bem) mas moralmente, um rapaz autêntico, firme, cheio de vontade. Quero que sejas resoluto, determinado ‑ continuou, sacudindo a touca e cerrando o punho. ‑ Que tenhas carácter, Trot, força de carácter, que não te deixes influenciar pelas pessoas e pelas coisas, excepto para bom fim. Eis o que pretendo para ti, o mesmo que o teu pai ou a tua mãe podia ter sido, para bem de qualquer deles.

Manifestei à minha tia o propósito de a contentar.

‑ Para que possas habituar‑te, até certa medida, a governar‑te por ti mesmo, farás a viagem sozinho. A princípio era minha intenção que o senhor Dick te acompanhasse, mas, reflectindo bem no caso, ele ficará aqui para se ocupar de mim.

O senhor Dick parecia um pouco desiludido, mas logo o rosto se lhe iluminou à ideia de que teria a honra insigne de se ocupar da mulher mais extraordinária do mundo.

‑ Demais a mais ‑ acrescentou a tia ‑ ele tem o seu memorial...

‑ Ah, com certeza!‑apressou‑se a dizer o senhor Dick.‑ Tenciono acabá‑lo imediatamente, Trotwood! Tenho de o acabar já e então seguirá o seu caminho, e... ‑ interrompeu‑se, fez uma pausa demorada e concluiu ‑ ... fará estardalhaço no charco das rãs.

De acordo com o simpático projecto da senhora Trotwood, fui contemplado, sem tardar, com uma bela quantia de dinheiro e um saco de viagem. Despediram‑se de mim o mais afectuosamente possível: nessa ocasião a tia deu‑me bons conselhos e muitos beijos. Disse que, sendo o seu objectivo que eu visse as coisas e reflectisse, achava razoável, se fosse da minha vontade, passar uns dias em Londres, quer à ida para Suffolk, quer à volta. Em suma, tinha carta branca para agir durante três semanas ou um mês, sem outra obrigação, além da já mencionada, de contemplar e meditar, dando‑lhe conta fielmente, três vezes por semana, dos meus pensamentos e acções.

Fui primeiramente a Cantuária, para cumprimentar o doutor Wickfield e a filha (ainda não renunciara ao meu antigo quarto em casa deles) e igualmente o bom amigo doutor Strong. Agnes ficou encantada por me ver e confessou que a residência já não parecia a mesma depois de eu ter partido.

‑ Eu também não me julgo o mesmo quando estou longe ‑ respondi. ‑ Se a não tenho, Agnes, considero‑me privado do meu braço direito. Não é muito lisongeira a comparação, porque no braço não há coração nem cérebro. Mas a verdade é que todos os que a conhecem precisam dos seus conselhos e da sua ajuda.

‑ Creio que todos os que me conhecem me estragam com mimos ‑ observou ela, sorrindo.

‑ Não. É porque a Agnes não se parece com mais ninguém. É tão bondosa, tão meiga... de uma natureza tão agradável... E tem sempre razão.

A filha de Wickfield desatou a rir.

‑ Quem ouvisse pensaria tratar‑se da ex‑menina Larkins ‑ observou, ao mesmo tempo que ia reocupar a sua mesa de trabalho.

‑ Ora, não é ser amável abusar da minha confiança ‑ atalhei ruborizado com aquela referência à minha antiga fada de vestido azul. ‑ Mas, tanto pior, confiar‑me‑ei sempre a si. Agnes, não quero perder o hábito. Sempre que eu tiver aborrecimentos ou estiver apaixonado, dir‑lhe‑ei, caso mo permita. Dir‑lho‑ei até, se me apaixonar para sempre por alguém.

‑ Você esteve sempre apaixonado! ‑ comentou ela em tom bastante jovial.

Por minha vez ri também, embora um pouco atrapalhado.

‑ Ora, não passava de uma criança... um colegial. Presentemente já não sou tão pueril e creio que, mais dia menos dia, me apaixonarei a valer. O que me surpreende, Agnes, é que a você também não aconteça o mesmo.

Ela continuava divertida. Sacudiu a cabeça, negando, e eu prossegui:

‑ Bem sei que não está, caso contrário ter‑me‑ia dito, ou, pelo menos ‑ acrescentei, vendo‑a corar ‑ dar‑mo‑ia a entender. Não conheço quem seja digno de a amar, Agnes. Para que eu desse o meu consentimento, seria preciso que surgisse uma pessoa mais digna, mais nobre do que quantas têm vindo cá. Doravante estarei alerta quanto aos seus admiradores, e acredite que exigirei muito daquele que tiver a honra de lhe agradar.

Até aqui a nossa conversa oscilara entre o tom meio jocoso meio sério que a nossa velha amizade autorizava; mas foi numa voz muito diferente que Agnes respondeu, olhando‑me de súbito.

‑ Trotwood, quero perguntar‑lhe uma coisa. Talvez mais tarde não tenha oportunidade de o fazer, e é apenas a si que a desejo perguntar. Não acha que o meu pai está a mudar de dia para dia? Eu próprio o suspeitara e até pensava se a rapariga notava o facto. Devia ter lido o meu pensamento, porque baixou a vista e aos olhos lhe afloraram as lágrimas.

‑ Diga‑me o que há ‑ insistiu ela, em voz baixa.

‑ Creio... posso falar‑lhe francamente, em atenção ao afecto que dedico a ele?

‑ Decerto, Trotwood.

‑ Suponho que o hábito a que ele se entrega cada vez mais, desde que cheguei aqui, lhe é muito prejudicial. Vejo‑o tão nervoso...

‑ É verdade ‑ confirmou Agnes, meneando a cabeça.

‑ Tremem‑lhe as mãos, a língua entaramela‑se, os olhos esbugalham‑se... E é sempre nessas ocasiões em que está menos em si que alguém o vem chamar para qualquer processo.

‑ Uriah ‑ disse Agnes.

‑ Sim, senhora. E preocupa‑o tanto a circunstância de não se ter mostrado à altura da situação, de a não ter compreendido bem ou não ter podido dissimular o seu estado, que a doença se agrava de dia para dia. Tem um ar tão abatido, tão desnorteado! Não se assuste com o que lhe vou dizer, Agnes, mas ainda ontem espreitei para o consultório e vi‑o a chorar como uma criança, com a cabeça apoiada à secretária.

Ainda eu estava a falar quando senti a mão de Agnes tapar‑me a boca. Daí a um instante, ela ia ao encontro do pai, que acabava de entrar. Lançou‑lhe os braços ao pescoço e olharam ambos para mim. A expressão da rapariga era impressionante.

A ternura pelo pai, o reconhecimento pelos cuidados com que a rodeara sempre, tudo isso se lhe podia ler no rosto. Parecia também suplicar‑me, com grande fervor, que me mostrasse, mesmo em pensamentos, cheio de bondade para com ele e que nunca o julgasse severamente. Estava ao mesmo tempo orgulhosa do seu progenitor e compadecida e triste, e queria que eu partilhasse dos seus sentimentos. Nenhuma palavra me poderia ser mais eloquente do que essa expressão de Agnes.

Combináramos ir tomar chá a casa do doutor Strong. Comparecemos à hora habitual e encontrámo‑los todos, ele, a mulher e a sogra, sentados em volta do fogão do escritório. O doutor, para quem a minha partida representava um acontecimento, como se se tratasse de uma viagem à China, recebeu‑me como um convidado de distinção e mandou pôr mais uma acha no lume a fim de que, explicou, pudesse contemplar o seu antigo aluno à luz das chamas.

‑ Depois do Trotwood, não verei caras novas, Wickfield ‑ declarou Strong, aquecendo as mãos. ‑ Tornei‑me preguiçoso e amigo do conforto. Dentro de seis meses deixarei tudo isto para levar uma vida mais a meu gosto.

‑ Há dez anos que você diz a mesma coisa! ‑ redarguiu Wickfield.

‑ Desta vez é um propósito firme. O meu adjunto tomará o meu lugar. É assunto decidido. Você terá de se ocupar menos dos nossos contratos.

‑ Mas também terei de verificar se não está iludido ‑ retorquiu o advogado. ‑ Sozinho, não se desenvencilha facilmente.

‑ E então ‑ continuou Strong, sorridente ‑ só pensarei no meu dicionário e nesta outra minha obra... Annie.

Annie Strong estava sentada atrás da mesa do chá. Wickfield lançou‑lhe a vista, mas tive a impressão de que ela lhe evitava o olhar com uma hesitação e timidez tão fora do costume que ao advogado não passaram despercebidas; e disse, após um silêncio breve:

‑ Vejo que chegou mala da índia...

‑ É verdade. Notícias de Jack Maldon ‑ anunciou o doutor.

‑ Ah, sim?

‑ Coitado do Jack! ‑ disse a senhora Markleham, abanando a cabeça. ‑ Que clima pavoroso! Parece que é o mesmo que viver num areal debaixo de um sol ardente. O rapaz tinha aspecto saudável, mas era só aspecto. O que o impunha era o seu espírito, não a sua constituição. Querida Annie, deves lembrar‑te de que o teu primo nunca foi forte... não o que chamamos robusto ‑ continuou ela, sublinhando a palavra e circunvagando o olhar pela sala ‑ desde o tempo em que ele e a minha filha eram crianças e passeavam de mão dada todo o dia...

Annie, a quem este discurso fora dedicado, não se dignou responder.

‑ Em conclusão, minha senhora ‑ interveio o doutor Wickfield ‑ o senhor Maldon está doente?

‑ Doente? ‑ respondeu o Veterano. ‑ Meu caro doutor, está tudo o que quiser...

‑ Menos de saúde?

‑ Menos de saúde, realmente! Apanhou fortes insolações, malária, febres, que sei mais! Quanto ao fígado‑acrescentou a sogra de Strong, com ar resignado ‑ há muito que renunciou a ele.

‑ Diz isso tudo na carta?

‑ Se o diz? ‑ volveu a senhora Markleham, agitando o leque.‑ Meu bom amigo, é que o não conhece com certeza para fazer semelhante pergunta. Se o diz? Deixar‑se‑ia antes esquartejar por quatro cavalos ferozes...

‑ Mamã! ‑ acudiu a senhora Strong.

‑ Minha querida Annie ‑ replicou a mãe ‑ peço‑te duma vez para sempre que não te intrometas onde não és chamada. Sabes tão bem como eu que o teu primo Maldon antes se faria esquartejar por não sei quantos cavalos... Para que me limitar a quatro? Por oito, dezasseis, trinta e dois, mas não diria nada que pudesse alterar os planos do doutor.

‑ Os planos de Wickfield ‑ esclareceu Strong, passando a mão pela cara e olhando o seu conselheiro com ar penalizado. ‑ Ou melhor, os nossos planos. Eu tinha proposto ou aqui ou no ultramar.

‑ E eu tinha dito no ultramar ‑ acrescentou gravemente Wickfield. ‑ Fui eu quem o mandou para lá. Sou o responsável.

‑ Oh, responsável! ‑ repetiu o Veterano. ‑ Fez‑se tudo pelo melhor. Sim, sabemos isso muito bem. Foi com as melhores intenções. Mas, visto que o rapaz não consegue aclimatar‑se, pronto, não se insista. O pior é que morrerá para não dificultar os planos do doutor. Conheço‑o ‑ prosseguiu, abanando‑se com o leque e falando em tom doloroso e profético. ‑ E sei que há‑de morrer para não alterar esses planos.

‑ Ora, ora ‑ acudiu com bom humor o genro ‑ supõe‑me tão agarrado a esses planos? Eu próprio os posso modificar, ou fazer outros. Se Maldon voltar por motivo de doença não o devemos deixar partir outra vez e procuraremos encontrar em Inglaterra alguma coisa que lhe convenha mais.

A senhora Markleham ficou tão comovida com estas palavras generosas, que, diga‑se de passagem, não previra nem provocara, que declarou ao genro compreendê‑lo muito bem, e por duas vezes lhe bateu de leve com o leque, depois de lhe ter aí deposto um beijo. Em seguida censurou a filha por não ser mais expansiva, visto que cumulavam de favores o seu velho camarada de jogos.

Então referiu‑se a outros membros da família, que também mereciam ser protegidos.

Durante este tempo, a filha, Annie, não abriu a boca nem levantou a cabeça. Por seu lado, Wickfield não desviava a vista de cima dela, que estava sentada ao lado de Agnes; olhava‑a tão atento que não percebia que outros, por seu turno, o observavam. Perguntou a certa altura o que, em resumo, escrevera Jack Maldon e a quem endereçara a carta.

‑ Aqui tem! ‑ exclamou a senhora Markleham, tirando uma carta que estava na prateleira do fogão, mesmo acima da cabeça do doutor Strong.‑ O rapaz escreve ao próprio doutor... Onde é...? Ah, «tenho o desgosto de o informar que a minha saúde está seriamente abalada e que receio ser obrigado a regressar à pátria por algum tempo. Nisso reside a minha única esperança de cura». É claro como água. Pobre rapaz! A única esperança de cura! Mas a carta enviada à Annie é mais explícita. Annie, queres mostrá‑la outra vez?

‑ Agora, não, mamã ‑ suplicou a interpelada, em voz baixa.

‑ Querida filha, tu és, em certos casos, a pessoa mais ridícula do mundo, e talvez a que menos sabe reconhecer os direitos da própria família. Se eu não perguntasse, nunca teríamos conhecimento dessa carta. É essa a confiança que depositas no teu marido? Causas‑me espanto. Devias ser mais sensata.

De má vontade, Annie exibiu a carta. A mão tremia‑lhe quando ma passou para que a entregasse à mãe.

‑ Ora vejamos ‑ disse a senhora Markleham, pondo os óculos.‑ Onde está essa parte? Ah, «a saudade dos outros tempos, querida Annie...» Não, não é isto. «O velho director, tão amável... De quem se trata? Meu Deus, Annie, que letra tem o teu primo! Que estúpida sou! Deve ser «doutor» e não director [2]. Sim, na verdade amável. ‑ Aqui interrompeu‑se para beijar o leque e agitá‑lo na direcção do genro, que nos mirava com o seu ar bonacheirão.‑ Pronto, já encontrei! «Não te admires, querida Annie, por saber...» Não, não é de admirar, se ele nunca foi muito saudável. Onde é que eu ia? «Resolvi partir daqui, custe o que custar, com baixa para tratamento, se for possível, ou apresentando a minha demissão. O que sofri e sofro é intolerável.» E sem a solicitude do melhor dos homens ‑ rematou a senhora Markleham, fazendo com o leque o mesmo sinal ao doutor ‑ seria para mim intolerável pensar.

A velhota observou Wickfield como se esperasse qualquer comentário da sua parte, mas este não disse uma palavra. Sentado, de olhos fitos no lume, guardava um silêncio austero. O assunto esgotara‑se e nós começámos a falar de outras coisas, mas Wickfield manteve a mesma atitude.

Só erguia a vista de vez em quando para a desviar preocupado para o doutor ou a mulher, ou para ambos ao mesmo tempo.

Strong adorava música. A mulher e Agnes Wickfield cantavam com muito sentimento. Fizeram‑no em dueto e tocaram piano a quatro mãos, o que nos proporcionou um pequeno concerto. Houve, todavia, duas coisas que me impressionaram: Annie recompusera‑se e voltara a ser o que era, mas cavara‑se como que um abismo entre ela e o doutor Wickfield. Quanto a este, eu desconfiei que ele não concordava com a intimidade entre a senhora Strong e Agnes e que lhe desagradava vê‑las juntas. Devo acrescentar que me veio à memória a cena que presenciara no dia da partida de Jack Maldon, mas desta vez interpretei‑a diferentemente e fui tomado de certa inquietação. Annie já não tinha para mim a beleza inocente que outrora lhe achara; a sua graça natural, o encanto das maneiras pareceram‑me suspeitos. Quando contemplei Agnes, sentada à minha beira, tão bondosa e leal, experimentei a vaga sensação de que a amizade entre as duas era mal empregada.

Mostravam‑se, porém, tão contentes na companhia uma da outra que, mercê de ambas, o serão se passou animadamente. Não esqueci o incidente com que terminou. Despediam‑se, e Agnes preparava‑se para beijar a amiga quando o doutor Wickfield se colocou entre elas, como por acaso, e levou a filha a toda a pressa. Os seus olhares cruzaram‑se e eu vi então nos olhos de Annie a expressão que já surpreendera na noite da partida do primo, como se todo o tempo decorrido desde então não fosse nenhum e eu ainda estivesse parado no limiar da porta a observá‑la.

Não saberei descrever a impressão que senti; mais tarde, ao pensar nisso, revi esse rosto nimbado por uma beleza inocente, como sucedera noutro tempo. Ao entrar em casa, a mesma ideia obcecou‑me. Parecia‑me que, sobre o tecto do doutor Strong, se acumulava uma nuvem negra. O meu respeito por aquela cabeça encanecida misturava‑se de compaixão à ideia da confiança que o doutor depositava nos que lhe faziam tanto mal. A sombra ameaçadora, ainda informe, de um grande desgosto, de uma desgraça imensa enublava de certa maneira os lugares tranquilos da minha mocidade, testemunhas dos meus esforços e das minhas brincadeiras de rapazes, e prejudicava‑os cruelmente. Já não era com alegria que recordava os aloés venerandos de largas folhas, que se curvavam ao peso dos anos, a relva tão unida, tão cuidada, o Jardim do Doutor, as urnas de pedra, o som familiar dos sinos da Sé ecoando sobre a cidade. Dir‑se‑ia que esse monumento calmo fora profanado sob os meus olhos e a sua paz e a sua honra atiradas aos quatro ventos.

Mas, no dia seguinte, tive de deixar a velha residência, tão impregnada da doce presença de Agnes, e esta mudança absorveu‑me suficientemente. Deveria voltar em breve, sem dúvida, e tornar a dormir, talvez muitas vezes, no meu antigo quarto... mas o tempo ali passado esse não voltaria mais. Fiz um embrulho de tudo o que me restava quanto a livros e roupa, a fim de o remeter para Dover. Sentia‑me triste e custava‑me a ideia de que Uriah tinha consciência disso: diligenciava ajudar‑me com tanto afã que bem se via a vontade que nele havia de me ver pelas costas.

Despedi‑me de Agnes e do pai afectando uma indiferença viril e subi para a diligência de Londres. Ao atravessar a cidade invadiu‑me tamanha onda de indulgência que me levou quase a fazer um sinal amigável ao meu ex‑inimigo moço do talho e a atirar‑lhe uma moeda de xelim, para que fosse beber. Mas o rapaz tinha um ar tão feroz, ali empertigado à porta da loja, que achei preferível conter os meus sentimentos ‑ tanto mais que lhe notei a falta de um dente (consequência do soco que lhe aplicara), o que me esfriou o entusiasmo.

Lembro‑me de que, durante a viagem, a minha maior preocupação foi parecer mais velho do que era aos olhos do cocheiro e falar com rudeza. Este último ponto consegui‑o (com prejuízo da minha própria identidade) e perseverei no processo, porque julguei que me dava grande importância.

‑ Vai até Londres? ‑ perguntou‑me o cocheiro.

‑ Vou, sim, William ‑ respondi familiar e condescendente, porque o conhecia. ‑ Vou primeiramente a Londres e depois a Suffolk.

‑ Para caçar?‑sugeriu ele.

O homem sabia tanto como eu que estávamos no defeso. Mas senti‑me lisonjeado.

‑ Ainda não sei ‑ retorqui, fingindo indecisão ‑ se darei alguns tiritos.

‑ Consta que a passarada se está tornando rara.

‑ Parece que sim.

‑ É natural de Suffolk?

‑ Sou ‑ asseverei com ar importante. ‑ Sou de Suffolk.

‑ Dizem que as tortas de maçã são ali famosas ‑ opiniou William.

Eu não sabia nada a esse respeito, mas considerei‑me obrigado a sustentar a reputação do país natal e a me mostrar bem informado. Baixei, pois, a cabeça afirmativamente.

‑ E os cavalos de Suffolk!‑prosseguiu ele. ‑ Esses é que sim! Um bom cavalo de Suffolk vale quanto pesa. Já criou cavalos lá em Suffolk?

‑ Não... realmente não.

‑ Sou capaz de apostar que o senhor que vem aqui atrás se dedica à criação de cavalos em larga escala.

O referido cavalheiro envesgava um olho e tinha queixo de rabeca. Usava chapéu alto, claro, de aba lisa e estreita; calças castanhas muito justas, que pareciam abotoadas de cada lado desde as botas até às ancas. Enfiava a cabeça por cima do ombro do cocheiro, tão perto de mim que eu lhe sentia o hálito bafejar‑me a nuca. Quando me voltei para o ver, notei que ele observava, com o olho que não era estrábico, os cavalos da frente com ar de entendido.

‑ Não é verdade? ‑ perguntou‑lhe William.

‑ Não é o quê? ‑ replicou o interpelado atrás de nós.

‑ Que tem criação de cavalos de Suffolk em grande escala?

‑ Mais que certo!‑respondeu ele. ‑ Crio todos os cavalos e cães, de todas as raças. Há pessoas como eu para quem os cavalos e os cães são tudo: substituem para mim o comer e o beber, a casa, a mulher e os filhos, a leitura, a escrita, as contas, o tabaco, o sono...

‑ Um passageiro destes ninguém pensaria ver ali atrás, hem?‑ segredou‑me o cocheiro, enquanto sacudia as rédeas.

Compreendi que era uma forma de me insinuar que ele é que devia ocupar o meu lugar a seu lado, e, corando, propus a troca.

‑ Se não lhe faz diferença ‑ disse William ‑ creio que seria mais correcto.

Sempre me recordo deste incidente como de uma derrota, a primeira da minha vida, pois quando fora reservar aquele lugar escrevera «assento do cocheiro» no respectivo livro e dera meia coroa de gratificação ao empregado. A fim de ser digno desse banco dianteiro, levava um sobretudo especial e uma boa manta. Ia orgulhoso de tal situação e achava que fazia muita honra à diligência ‑ e afinal, ainda antes da primeira estação de muda, via‑me desapossado do lugar por um indivíduo ridículo, vesgo, cujo único mérito consistia em cheirar a estrebaria e perceber de cavalos.

Tamanho infortúnio, sucedido na diligência de Cantuária, em nada concorreu para diminuir a desconfiança de mim mesmo que já experimentara mais de uma vez na minha vida. Em vão usei uma linguagem varonil e rude durante o resto da viagem: o certo é que me sentia completamente aniquilado e irremediavelmente infantil.

Apesar disso, não desgostei da viagem: recebera uma boa educação, ia bem vestido, tinha dinheiro no bolso e reencontrava, de passagem, os sítios onde dormira durante a minha longa caminhada, depois da fuga de Londres. Cada ponto de referência, na estrada suscitava‑me tantas recordações! Quando, do alto da diligência, via passar um vagabundo era como se tornasse a sentir na camisa suja a mão negra do funileiro. Quando atravessámos, com grande fragor, a estreita rua de Chatham, descobri de relance a viela em que habitava aquele monstro velho e asqueroso que me comprara o casaco e estiquei avidamente o pescoço para observar o ponto em que me sentara, primeiro ao sol, em seguida à sombra, à espera de que o avarento me pagasse o que devia. Enfim, ao passar ‑ no decurso do último troço ‑ diante do colégio de Salem, em que o senhor Creackle exercera sobre mim a sua tirania, apeteceu‑me pagar fosse o que fosse para me apear e ir pavonear‑me cheio de importância diante desses alunos que lembravam pardalitos metidos numa gaiola.

Parámos no Golden Cross, em Charing Cross, hotel de aparência medíocre, situado num bairro populoso. Um criado indicou‑me a casa de jantar, e a criada mostrou‑me o quarto de dormir, muito pequenino, que cheirava a carruagem de aluguer e não seria maior do que uma cela. Mas a minha excessiva juventude era‑me sempre prejudicial: a criada não me dava ouvidos, e o criado tinha familiaridades comigo e queria completar com os seus conselhos a minha inexperiência.

‑ Então que deseja para o jantar? ‑ perguntou‑me este último em tom confidencial. ‑ A gente moça, em geral, prefere as aves. Que me diz a uma galinha?

Respondi tão dignamente quanto possível que a galinha não me seduzia muito.

‑ Deveras? As pessoas novas, geralmente, não gostam de vaca nem de carneiro. Que lhe parece uma costeleta de vitela?

Aceitei a sugestão, porque não me lembrava de mais nada.

‑ Aprecia batatas? ‑ inquiriu com ar insinuante, inclinando‑se para mim. ‑ É uma coisa de que a rapaziada costuma atulhar‑se.

Encomendei, pois ‑ com voz cavernosa ‑ uma costeleta de vitela com batatas, e pedi‑lhe igualmente que fosse ao botequim ver se havia correspondência para o senhor Trotwood Copperfield, o que já sabia não ser provável mas que bem podia aumentar a minha consideração.

Voltou em breve para me informar que não havia nada para mim, do que me fingi surpreendido. O criado pôs a mesa num pequeno compartimento, perto do fogão, e entretanto perguntou‑me o que desejava tomar. Respondi que um pouco de xerez; foi para ele excelente ocasião de encher um cálice esvaziando várias garrafas que já tinham servido há muito tempo. Sei isto porque o vi, olhando por cima do jornal, muito azafamado a fazer a trasfega, atrás de um meio tabique, como um boticário ou droguista que aviasse uma receita. Além disso, quando o vinho chegou, achei‑o torvo e de mau gosto, mas bebi‑o, estupidamente sem pestanejar.

Todavia não perdi o bom humor, o que prova que se pode estar prestes a morrer envenenado mas bem disposto, e decidi ir ao teatro. Escolhi Covent Garden e aí, num camarote de frente, apreciei Júlio César e uma pantomina nova. Foi para mim agradável ver todos aqueles romanos vivos e expeditos em vez de serem como os dos velhos textos lidos no liceu. Essa mistura de realidade e mistério, a influência da poesia, as luzes, a música, o público, os cenários cintilantes e pomposos que se sucediam com espantosa facilidade, tudo me deslumbrou tanto que à meia‑noite, quando me encontrei na rua, sob a chuva, tive a impressão de haver descido das nuvens, após aí ter levado durante séculos uma vida romântica, para cair num mundo ruidoso e pobre, à claridade dos archotes, onde as pessoas patinhavam na lama e abriam caminho entre trens de praça servindo‑se do guarda‑chuva como arma de combate.

Eu saíra por uma porta lateral e fiquei um instante imóvel na rua, como se a terra me fosse estranha. Mas fui empurrado e acotovelado de tal maneira que a custo me recompus; por fim descobri o percurso para o hotel. Enquanto andava, não deixei de repisar no meu espírito o espectáculo extraordinário a que assistira; mais tarde, depois de haver tomado um cálice de Porto e comido ostras, ainda os meus pensamentos eram os mesmos, e à uma hora da manhã estava sentado diante do lume, na casa de jantar.

Achava‑me tão absorto na lembrança da peça teatral e também nas saudades dos tempos idos (pois aquela fora de certo modo uma tela em que eu vira desfilar os meus anos de infância), que não sei dizer em que momento reparei a valer no vulto de um belo mancebo, bem constituído e trajado com uma negligência de fino gosto, que me deixou com boas razões para me recordar. A pouco e pouco dei fé da sua presença, sem todavia o ter visto entrar.

Levantei‑me por fim para recolher ao quarto, com grande alívio do criado, que parecia cheio de sono, lá no seu posto habitual. Ao ir em direcção à porta, passei de fronte do tal rapaz e observei‑o detidamente. Em seguida voltei atrás e tornei a olhar. Ele não me reconhecera, mas eu já sabia de quem se tratava.

Noutras circunstâncias, não teria a audácia de lhe dirigir a palavra: deixaria isso para o dia seguinte, e até talvez o perdesse de vista; mas, no meu estado de espírito de então, ainda obcecado pelo teatro, senti‑me tão grato à protecção que esse rapaz me concedera em tempos que a velha afeição reapareceu espontaneamente e, de coração palpitante, aproximei‑me dele.

‑ Steerforth! Não falas comigo? ‑ bradei.

O interpelado olhou‑me como fazia antigamente, mas sem dar mostras de me haver reconhecido.

‑ Creio que te esqueceste de mim ‑ observei.

‑ Oh, cos diabos! ‑ exclamou de súbito. ‑ És o pequeno Copperfield!

Agarrei‑lhe as duas mãos e apertei‑as. Tê‑lo‑ia agarrado pelo pescoço e chorado no seu ombro se não tivesse medo de lhe desagradar.

‑ Nunca, nunca, nunca me senti tão feliz, meu caro Steerforth. Que alegria tornar a ver‑te!

‑ E eu estou satisfeitíssimo também ‑ replicou, apertando‑me cordialmente a mão. ‑ Então, caro Copperfield, que comoção é essa?

Bem via eu quanto ele estava contente de verificar como a sua presença me alegrava. Enxuguei uma lágrima, que não pudera reter a despeito dos meus esforços sobre‑humanos, ri com um risinho contrafeito e sentei‑me a seu lado.

‑ Mas por que cargas de água te encontro cá? ‑ perguntou Steerforth, dando‑me uma pancadinha no ombro.

‑ Cheguei hoje de Cantuária, pela diligência. Fui adoptado por uma tia que habita essa região e acabo de tirar o meu curso liceal. E tu, Steerforth, como se explica que te veja agora aqui?

‑ Olha, sou o que se chama estudante de Oxónia ‑ respondeu ele. ‑ Por outras palavras, vou lá periodicamente aborrecer‑me. Nesta ocasião dirijo‑me a casa da minha mãe. Estás um rapaz bem bonito, Copperfield. Afinal, não mudaste nada.

‑ Pois eu conheci‑te logo, não és fácil de passar despercebido. Steerforth riu, passando a mão pela bela cabeleira ondulada e disse‑me jovialmente:

‑ Como calculas, vou em viagem de obrigação. A minha mãe vive um pouco distante da cidade, e, como as estradas estão em péssimo estado e a casa me enfastia um tanto, passarei aqui a noite em vez de prosseguir a jornada. Cheguei apenas há seis horas e não fiz outra coisa senão dormir e ressonar no teatro.

‑ Eu também fui ao teatro ‑ declarei. ‑ Estive em Covent Garden. Que delícia, que representação magnífica, Steerforth!

O meu amigo riu com vontade.

‑ Meu pequeno Davy ‑ retorquiu, tornando a afagar‑me o ombro ‑ és cândido como uma bonina. A bonina do campo, ao nascer do Sol, não tem mais frescura do que tu. Eu estive igualmente em Covent Garden e nunca vi coisa mais lamentável. Olá! ‑ acrescentou, dirigindo‑se ao criado, que de longe seguia a nossa conversa e logo avançou cheio de deferência. ‑ Onde puseram o senhor Copperfield?

‑ Como disse?

‑ Onde é que ele dorme? Qual é o número do quarto?

‑ Ah ‑ redarguiu o criado, com ar contrafeito ‑ o senhor Copperfield está actualmente no número 44.

‑ E que ideia foi essa de o meter nesse antro infecto, por cima da cavalariça?

‑ É que ‑ respondeu o rapaz, sempre constrangido ‑ não sabíamos que este senhor fosse exigente nesse particular. Podemos dar‑lhe o 72, se ele preferir. Fica a seguir ao senhor Steerforth.

‑ Já se sabe que prefere. Trata disso imediatamente.

O criado foi logo cumprir a ordem. Steerforth, divertido pela ideia de que me haviam dado o 44, riu de novo e bateu‑me nas costas. Em seguida convidou‑me a tomar com ele o primeiro almoço, no outro dia às dez horas, o que eu aceitei com alvoroço. Já era bastante tarde e nós pegámos cada um na sua vela para subir ao quarto. Separámo‑nos à porta, com a maior cordialidade. O meu novo aposento era muito superior ao primeiro: não cheirava a bafio, o leito de colunas parecia vastíssimo, um verdadeiro domínio. Aí, no meio de almofadas que davam para meia dúzia de pessoas, dormi de um sono feliz, sonhando com a velha Roma, com Steerforth e a Amizade, até que, na manhã seguinte, as primeiras diligências, rodando sob as abóbadas com grande fragor, me desviaram o sonho para os Deuses e a sua Cólera.

 

EM CASA DE STEERFORTH

Quando, às oito horas, a criada me bateu à porta para me avisar de que a água da barba estava quente, eu corei na cama ao pensar na inutilidade da prevenção. A ideia de que a rapariga se risse, ao dizer aquilo, preocupou‑me todo o tempo em que me vesti, e deu‑me, creio eu, aquele ar mortificado que apresentei ao encontrá‑la na escada, no momento de descer para o primeiro almoço. Sofria tanto com o reconhecimento da minha extrema juventude que, por instantes, hesitei se devia passar defronte dela, dada essa circunstância tão humilhante. Ouvindo‑a afadigar‑se na escada, a contas com a vassoura, fiquei parado à janela, donde avistava no meio de uma confusão de trens de praça, a estátua equestre do rei Carlos, que nada tinha de real entre a chuva miudinha e o nevoeiro acastanhado da manhã. Nessa altura o criado participou‑me que o senhor com quem ia almoçar já estava à minha espera.

Não foi na casa de jantar que encontrei Steerforth, mas numa sala particular, muito confortável, com reposteiros encarnados e tapete oriental. O fogão estava aceso e, sobre a mesa coberta de uma toalha asseadíssima, via‑se servida a refeição. A sala, o lume, o almoço, Steerforth, tudo se reflectia alegremente em miniatura num espelhinho redondo colocado em cima do aparador. De começo senti‑me intimidado: Steerforth parecia tão elegante, tão senhor de si! Era‑me tão superior, em todos os aspectos (incluindo a idade)! Mas depressa reapareceu a sua familiaridade protectora, e eu achei‑me perfeitamente à vontade. Não me cansei de admirar as transformações que ele realizara no Golden Cross nem de comparar a minha lastimosa situação da véspera com o confronto e bem‑estar dessa manhã. Quanto ao tom desdenhoso do criado, isso apagara‑se como por encanto. O homem servia‑nos com ar humilde e contricto.

‑ Agora, Copperfield ‑ disse o meu amigo, quando ficámos sós ‑, gostaria de saber o que fazes e para onde vais. Fala‑me de ti. Tenho a impressão de que me pertences.

Corando de gozo por ver que ainda se interessava por mim, contei‑lhe as razões pelas quais a tia me propusera aquela digressão.

‑ Tens muito tempo à tua frente ‑ comentou Steerforth. ‑ Por que não vens passar um dia ou dois na minha casa de Highgate? A mãe há‑de agradar‑te (é um tanto vaidosa deste seu filho, mas tu desculpá‑la‑ás) e ela também há‑de simpatizar contigo.

‑ Gostava de ter a certeza de que fosse verdade tudo quanto dizes ‑ observei‑lhe.

‑ Ah! ‑ exclamou Steerforth ‑ quem for meu amigo terá o reconhecimento eterno da minha mãe.

‑ Nesse caso, estimar‑me‑á sem dúvida.

‑ Óptimo. O que é preciso é ir prová‑lo. Vamos primeiramente, durante uma hora ou duas, ver as curiosidades da cidade. É bom ter alguém a quem se possa fazer as honras da casa, Copperfield; depois empreenderemos a viagem para Highgate, na diligência.

Custava‑me a crer em tanta felicidade. Não seria um sonho e não iria eu acordar daí a pouco no número 44 para a minha refeição solitária servida por um criado que tomava comigo excessiva familiaridade? Escrevi à tia Betsey para lhe contar que tivera a sorte de encontrar um antigo camarada de colégio, pessoa que eu muito admirava, e que aceitara um convite seu para o acompanhar ao lar paterno. Depois disso saímos de carruagem. Vimos, entre outras coisas, um Panorama, depois fomos visitar o Museu Britânico, e aqui verifiquei que o meu amigo estava ao par de muitos conhecimentos sem todavia parecer que lhes concedia qualquer importância.

‑ Hás‑de tirar notas altíssimas na Universidade ‑ disse eu a Steerforth ‑ se é que já não começaste a tirá‑las. Terão boas razões para se orgulhar de ti.

‑ Eu, distinções?! Ora, minha Bonina... importas‑te que te chame assim?

‑ De maneira nenhuma.

‑ É amável da tua parte. Pois, querida Bonina ‑ continuou ele, rindo ‑, não pretendo nem tenho a menor vontade de me distinguir desse modo. O que já fiz é bastante para mim, e até começa a pesar‑me na vida...

‑ Mas a fama? ‑ objectei.

‑ És um romântico! ‑ volveu Steerforth, rindo sempre. ‑ Para que irei esfalfar‑me só para que meia dúzia de papalvos fiquem de boca aberta e me dêem palmas? Divirjam a sua admiração para outrem, que não me preocuparei nem um instante.

Envergonhei‑me do meu equívoco e mudei logo de conversa, o que, felizmente, não era difícil com Steerforth, pois ele próprio possuía o dom de variar de assunto com extraordinária naturalidade.

Depois dessa curta volta pela cidade, fomos almoçar, e o dia breve de Inverno passou tão rapidamente que já era quase noite quando a diligência nos deixou à porta de uma velha casa de tijolos, no alto da colina de Highgate. Uma senhora de certa idade (todavia não muita) recebeu‑nos ao limiar. Tinha porte soberbo e rosto formoso. Apertou Steerforth nos braços e exclamou: «Querido James!» Fui‑lhe apresentado, e ela, que era a mãe do meu amigo, acolheu‑me cerimoniosamente.

A residência, antiga, aristocrática, muito calma, estava tratada com esmero. Das janelas do meu quarto via Londres estirar‑se ao longe, qual uma imensa toalha de névoa em que cintilavam, aqui e ali, algumas luzes. Antes de me chamarem para jantar tive apenas tempo, enquanto mudava de fato, de relancear a mobília maciça e as paredes, das quais pendiam tapeçarias bordadas (obra, decerto, da juventude da senhora Steerforth) e alguns pastéis que representavam damas decotadas, de cabelo empoado, que o belo lume do fogão, acabado de acender, iluminava com uma claridade intermitente.

Havia outra senhora na casa de jantar, figura franzina, morena e de aspecto não muito agradável, se bem que não fosse desprovida de beleza. Ou por me encontrar sentado à sua frente, ou porque não esperava a sua presença, ou porque ela tinha realmente algo de peculiar, a minha atenção foi atraída para a sua pessoa. Era magra, como disse, tinha cabelo preto, olhos pretos muito vivos e uma cicatriz no lábio: uma velha cicatriz; não lhe chamaria costura, porque não estava descorada, e já fechara havia muitos anos. Essa cicatriz devia, tempos antes, atravessar‑Lhe a boca até ao queixo, mas do meu lugar mal se via, salvo no lábio superior, levemente deformado. Em meu parecer a senhora orçaria pelos trinta anos e deu‑me a impressão de que ansiava por se casar. Lembrava um prédio um tanto arruinado, por estar muito tempo sem locatário. Não era todavia uma criatura feia, repito, e a magreza dir‑se‑ia provocada por um fogo interior que a consumia e lhe brilhava nos olhos de órbitas fundas.

Quando da apresentação, ouvi o seu apelido: Dartle, mas Steerforth e a mãe tratavam‑na por Rosa. Percebi que era, de há anos, a dama de companhia da senhora Steerforth. Afigurou‑se‑me que nunca dizia o que realmente desejava dizer; começava por insinuações e, deste modo, chegava melhor aos seus fins. Por exemplo: quando a dona da casa aludiu, por brincadeira, ao receio que tinha de que o filho levasse em Oxónia vida desregrada, a senhora Dartle observou:

‑ Ah, sim? Sabe como sou ignorante. Pergunto simplesmente para estar informada. Mas não será sempre assim? Imaginei que a vida, ali, era considerada como...

‑ Preparação para uma carreira séria, não era o que queria dizer, Rosa? ‑ volveu secamente a senhora Steerforth.

‑ Perfeitamente. Era isso. Mas é verdade? Gostaria me dissessem se estou enganada. Não é certo que...

‑ O quê? ‑ perguntou a senhora Steerforth.

‑ Ah, quer dizer que não!‑replicou Rosa. ‑ Pois bem, alegro‑me por ter aprendido. Sei agora o que devo fazer sempre. É muito útil perguntar. De hoje em diante não consentirei que, diante de mim, se fale de prodigalidade, de libertinagem, a propósito da vida dos estudantes...

‑ E terá razão ‑ disse a senhora Steerforth. ‑ O preceptor do meu filho é homem consciencioso. Nele depositaria a minha confiança se não a depositasse inteirinha no meu filho.

‑ Ah, sim? ‑ replicou a senhora Dartle. ‑ Meu Deus! É homem consciencioso? De facto?

‑ Disso estou persuadida ‑ corroborou a mãe do meu amigo.

‑ Tanto melhor! ‑ exclamou a outra. ‑ Que felicidade! É, pois, realmente consciencioso. Então não é... mas, já se sabe que não pode ser... uma vez que é consciencioso. Pois bem, de hoje em diante terei dele a melhor opinião. Não imagina quanto sobe na minha estima, agora que estou absolutamente certa de que é consciencioso.

Quando expunha critérios pessoais ou contestava um alvitre, a senhora Dartle procedia sempre por insinuações. Mesmo ao contradizer Steerforth desenvolvia, como notei, uma habilidade exímia. Assim, por exemplo, antes do fim do jantar, a senhora Steerforth interrogou‑me acerca da minha ida a Suffolk e eu disse, ao acaso, que me agradaria muito se Steerforth quisesse acompanhar‑me; e expliquei a este último que ia visitar a minha velha criada e a família do senhor Peggotty. Perguntei‑lhe se se lembrava do pescador que ele vira na escola.

‑ Ah, esse labrego! ‑ acudiu o meu amigo. ‑ O filho ainda está lá, creio eu...

‑ Não é filho, é sobrinho ‑ repliquei. ‑ Adoptou‑o e trata‑o como filho. Tem também uma linda sobrinha, que igualmente adoptou. Em suma, a sua casa (ou melhor, o barco, porque vivem num barco, em terra firme) está cheia de pessoas que dependem da sua generosidade. Hás‑de achar divertido ver esse interior...

‑ Parece‑te? ‑ murmurou Steerforth. ‑ Sim, é possível. Preciso de pensar. Sem falar do prazer que terei em viajar na tua companhia, Bonina, vale a pena ir lá para observar essa gente no seu meio.

A esperança de novo prazer fez‑me palpitar o coração, mas o tom com que Steerforth dissera «essa gente» levou outra vez a senhora Dartle (cujos olhos não cessavam de nos espiar) a intervir deste modo:

‑ Ah, sim? Diga‑me, por favor, eles são realmente?

‑ São o quê? Quem?

‑ Esses tais. Serão deveras seres de espécie diferente? Gostava de saber!

‑ De facto ‑ replicou Steerforth, encolhendo os ombros ‑ existe entre nós grande desigualdade. Não são tão sensíveis como nós. Não os podemos escandalizar ou irritar facilmente. Creio que são muito virtuosos... pelo menos é o que se pretende, e não sou eu quem o contradiz. Mas falta‑lhes finura e podem gabar‑se de que ninguém os pode atingir a fundo por causa da sua pele grossa e rugosa.

‑ Ah, sim? ‑ retorquiu a senhora Dartle. ‑ Nada me tinha até agora causado tanta satisfação como ouvir dizer isso! É tão consolador! Agrada tanto saber que não sentem o sofrimento! Muitas vezes me apoquentei por causa dessa gente: mas acabou‑se, não pensarei mais no caso. Vivendo e aprendendo. Todos os dias nos instruímos. Tinha dúvidas, confesso, mas dissiparam‑se. Não estava informada e agora estou. Isto demonstra quanto é útil fazer perguntas, não acha?

Eu pensava que Steerforth quisera arreliar a senhora Dartle e era todo ouvidos quando ficámos os dois sozinhos ao canto do lume; mas ele limitou‑se a perguntar a minha opinião acerca dela.

‑ Julgo‑a bastante inteligente...

‑ Inteligente? Reduz tudo e todos a farinha. Afia as coisas como tem afiado a cara e o corpo nestes últimos anos. Acabará por toda ela ser uma lâmina...

‑ Que cicatriz extraordinária tem no lábio!‑observei.

O semblante de Steerforth entenebreceu‑se e ele esteve um momento calado.

‑ Sim, de facto. E a culpa foi minha.

‑ Um acidente infortunado?

‑ Não. Eu era pequeno e ela exasperou‑me. Então atirei‑lhe um martelo à cara. Que criancinha meiga, hem? Prometia bastante...

Senti‑me aborrecido por haver recordado um assunto penoso, mas já era tarde.

‑ Como viste, conservou a marca ‑ disse Steerforth. ‑ E conservá‑la‑á até ao túmulo, se é que essa mulher jamais repousará em qualquer parte, é filha de um primo afastado do meu pai. Perdeu a mãe, o pai morreu por seu turno, e a minha mãe, que já então era viúva, fê‑la sua dama de companhia. Possui duas mil libras e economiza o rendimento para juntar ao capital. Aqui tens a história de Rosa Dartle.

‑ Naturalmente estima‑te como a um irmão.

‑ Hum ‑ replicou Steerforth, de olhos fitos nas chamas. ‑ Há irmãos a quem se estima pouco... e outros... Serve‑te, Copperfield, vamos beber, para tua honra, à saúde das boninas do campo, e, para minha honra... ou vergonha, à saúde dos lírios que não trabalham nem fiam.

Proferiu jovialmente estas palavras, e o sorriso melancólico, que tinha havia instantes, desapareceu‑lhe por completo. Voltou a ser o rapaz franco, tão sedutor como nunca.

À hora do chá não pude coibir‑me de contemplar a cicatriz, e fi‑lo com dorido interesse. Reparei então que era essa a parte mais susceptível da fisionomia. Quando a senhora Dartle empalidecia, era a cicatriz que mudava em primeiro lugar, tornando‑se cor de chumbo em todo o seu comprimento, como quando se aproxima do fogo um risco feito com tinta simpática.

Houve entre ela e Steerforth uma pequena disputa durante uma partida de gamão, e, por minutos, imaginei que Rosa estava indignadíssima: a cicatriz apareceu como as palavras fatídicas na parede do rei de Babilónia.

Não me admirei do culto que a senhora Steerforth votava ao filho. Dir‑se‑ia que não falava senão dele, que não pensava senão nele. Mostrou‑me um medalhão que continha uma miniatura dele criança e uma madeixa dos seus cabelos; mostrou‑me também um retrato tirado na idade em que eu o conhecera, e ainda uma miniatura recente, que sempre trazia consigo. Numa papeleira próxima do fogão estavam guardadas as cartas que o filho lhe escrevera; ter‑me‑ia lido algumas, o que me daria prazer, se Steerforth não interviesse e conseguisse, à força de artimanhas, que a mãe renunciasse a tal intento.

‑ Foi em casa do senhor Creakle que se viram pela primeira vez ‑ disse ela, quando estávamos sentados a uma mesa, frente a frente, e Steerforth, noutra, jogava ao gamão com Rosa Dartle. ‑ Lembro‑me realmente de que James me falou de um colega mais novo, a quem se afeiçoara, mas, como pode calcular, o seu nome varreu‑se‑me da memória.

‑ Revelou‑se por essa época tão generoso comigo, tão nobre! E eu tinha necessidade de um amigo como ele. Sem o James, ficaria completamente desnorteado.

‑ É sempre nobre e generoso ‑ garantiu a senhora Steerforth.

Sabe Deus com quanto calor apoiei este juízo! Ela compreendeu, pois se portou menos distante comigo; só para fazer o elogio do filho é que retomava as suas maneiras importantes.

‑ Dum modo geral, não era um colégio digno do James ‑ observou. ‑ Longe disso. Mas nessa ocasião houve circunstâncias particulares que foi preciso tomar em consideração. O meu filho era de um natural ardente, convinha pois confiá‑lo a um homem capaz de reconhecer a sua superioridade e tê‑la sempre em conta. Esse homem era o senhor Creakle.

Eu já suspeitava, porque conhecia o homem. E esse facto, em vez de aumentar o meu desprezo por ele, pelo contrário o melhorou aos meus olhos ‑ se é que existe algum mérito em não resistir a uma pessoa tão irresistível como Steerforth.

‑ Foi lá que se desenvolveram os dons naturais do meu filho ‑ prosseguiu aquela mãe orgulhosa ‑ por um sentimento de emulação voluntária e orgulho consciente. James ter‑se‑ia revoltado contra qualquer pressão, mas achou‑se como rei do lugar e quis mostrar‑se digno da situação desfrutada. Estava bem no seu carácter.

Confirmei que estava realmente no carácter de James Steerforth, e fi‑lo com toda a força da minha convicção.

‑ O meu filho seguiu, pois, de sua livre vontade e sem qualquer compulsão, o caminho em que sempre poderá ultrapassar todos os competidores quando esse for o seu desejo. Diz ele que o senhor lhe é extremamente dedicado e que ontem chorou de alegria ao encontrá‑lo. James ficaria magoado se eu me mostrasse admirada de que ele inspire tamanha dedicação; mas não posso mostrar‑me indiferente a quem saiba apreciar‑lhe os méritos, e por isso me alegra vê‑lo aqui, senhor Copperfield. Posso também afirmar‑lhe que ele lhe dedica particular amizade e que pode contar sempre com a sua protecção.

A senhora Dartle jogava ao gamão com o ardor que punha em todas as coisas. Se eu a tivesse visto apenas ocupada com esse jogo, poderia imaginar que ela só vivera para isso. Creio não me iludir se disser que Rosa não perdeu uma só palavra da nossa conversa nem uma única expressão do meu rosto, enquanto eu ouvia, orgulhoso e feliz, as confidências da senhora Steerforth e me sentia mais idoso do que à minha partida de Cantuária.

O serão chegava ao seu termo. Trouxeram uma bandeja com garrafas e copos. Steerforth, sentado diante do lume, prometeu‑me pensar a sério em acompanhar‑me na viagem a Suffolk. Havia ainda muito tempo disponível, dizia ele: uma semana, por exemplo. A mãe incitava‑o a fazer essa jornada. Durante a conversa, chamou‑me várias vezes Bonina, o que provocou a intervenção da senhora Dartle.

‑ Mas isso é realmente uma alcunha? Por que é que ele lha dá? Será... por o achar novo e inocente? Tenho tanta dificuldade em compreender certas coisas!

Corei de leve e respondi que a resposta devia ser essa.

‑ Ah, como me satisfaz sabê‑lo! ‑ comentou Rosa. ‑ Interrogo e fico contente por aumentar os meus conhecimentos. Ele acha‑o novo e inocente e é por isso que são amigos? Que engraçado !

Com isto, foi‑se deitar, seguida da dona da casa. Eu e Steerforth demorámo‑nos mais meia hora diante do fogão. Falámos do Traddles e de outros camaradas do internato de Salem e, por nossa vez, recolhemos à cama. Steerforth ocupava um quarto ao lado do meu e eu fui lá deitar uma vista de olhos. Não se pode imaginar nada de mais confortável. Estava cheio de poltronas, coxins, tamboretes bordados pela mãe e tinha tudo o necessário para agradar. Havia também, na parede, um belo retrato da senhora Steerforth, que parecia contemplar o filho adorado, como se fosse um prazer para ela vigiar‑lhe o sono, ainda que não em carne e osso.

Encontrei o fogão aceso no meu quarto e os cortinados da cama abertos. Instalei‑me numa poltrona ampla, ao canto do lume, e meditei na minha felicidade. Já tinha decorrido um bom momento quando descobri, por cima da lareira, um retrato da senhora Dartle, que parecia fitar em mim os olhos ardentes.

A parecença era flagrante e o olhar, por isso, dir‑se‑ia trespassar‑me. O pintor não desenhara a cicatriz, mas eu via‑a bem: aparecia e desaparecia; às vezes não era visível, como sucedia quando estávamos à mesa, senão no lábio superior, mas depressa se revelava em todo o comprimento, como eu verificava nas ocasiões em que a senhora Dartle se excitava.

Achei que teriam feito melhor em pendurar esse retrato noutro quarto e não no que me destinavam. Fosse como fosse, despi‑me à pressa, apaguei a vela e meti‑me na cama. Mas, ao adormecer, não pude esquecer‑me de que ela estava lá e que pretendia saber «se era realmente assim». Acordei a meio da noite e surpreendi‑me a falar só: perguntava a toda a gente se era assim ou não era... sem saber ao certo a que é que me referia.

 

EMILY

Havia naquela casa um criado que, segundo averiguei, entrara para o serviço de Steerforth na Universidade e nunca mais o deixara. O homem parecia a respeitabilidade em pessoa. Creio que jamais existiu, entre gente da sua condição, ninguém mais respeitoso do que ele. Andava nas pontas dos pés, era calado, extremamente calmo, deferente, atencioso. Estava sempre à nossa beira quando era preciso, mas desaparecia logo que se tornava desnecessário. A respeitabilidade era, pois, a sua qualidade mais notável; a expressão do rosto nada tinha de servil; não dobrava a espinha; falava com voz branda. Se tivesse o nariz torto, acharia maneira de parecer ainda mais respeitador. Movia‑se banhado numa atmosfera de respeito e aí se encontrava no seu elemento. Seria quase impossível suspeitá‑lo de uma acção vil. Nunca a ninguém ocorreria a ideia de lhe vestir libré e considerar‑se‑ia uma ofensa encarregá‑lo de trabalhos vulgares. Notei, quanto a isto, que o pessoal da casa tinha essa intuição, pois os outros criados é que tomavam à sua conta este género de serviço, enquanto ele, durante esse tempo, ficava instalado na despensa, geralmente a ler o jornal.

Raras vezes vi pessoa mais reservada, mas esta circunstância, como todas as outras, só contribuía a lhe aumentar a respeitabilidade. O facto de não lhe saber o nome de baptismo devia fazer parte do seu prestígio. Era tratado por Littimer, o que se não pode negar que seja perfeitamente respeitável: um primeiro nome, Peter ou Thomas, torná‑lo‑ia muito vulgar.

Não sei se era pela própria respeitabilidade do indivíduo, mas a verdade é que, na sua presença, eu me sentia extraordinariamente novo. Que idade tinha ele, não sou capaz de calcular: impassível e digno, tanto podia aparentar cinquenta anos como trinta, e este facto representava mais um trunfo a seu favor.

Littimer aparecia‑me no quarto, de manhã, antes que eu me levantasse; trazia‑me essa malfadada água quente para a barba e vinha preparar a roupa para eu vestir. Entreabrindo os cortinados do leito, para o observar, via‑o envolto na mesma atmosfera de respeitabilidade, sem que a brisa de Janeiro o perturbasse sequer, pois nem respirava como fazem as pessoas que sentem frio. Colocava‑me as botas direita e esquerda na posição de um primeiro passo de dança e sacudia‑me os grãos de pó do fato, que punha depois em cima da cadeira, como se se destinasse a uma criança.

Da primeira vez dei‑lhe bom dia e perguntei‑lhe que horas eram. Littimer tirou do bolso do colete um relógio respeitabilíssimo, como eu nunca vira, e, retendo a tampa com o polegar, para que ela se não abrisse em demasia, consultou o mostrador como se fosse uma ostra profética, tornou a fechar o relógio e disse.

‑ Se é do seu agrado, são oito horas e meia. O senhor Steerforth gostaria de saber como passou a noite o seu ilustre hóspede.

‑ Muito bem ‑ respondi. ‑ Como está o senhor Steerforth?

‑ Muito obrigado pela sua atenção. O senhor Steerforth vai menos mal.

Outra das suas características. Nunca empregava termos superlativos. Referia‑se a tudo com uma calma que denotava perfeito equilíbrio.

‑ Terei a honra de lhe prestar mais algum serviço? O gongo soa às nove horas. A família toma o almoço às nove e meia.

‑ Não preciso de mais nada. Obrigado.

‑ Eu é que lhe agradeço.

Dizendo isto, passou diante do leito, fazendo‑me uma pequena vénia, como a pedir desculpa de me haver incomodado, e saiu fechando a porta atrás de si, com tanta precaução como se eu tivesse recaído num sono de que dependesse a minha vida.

De cada vez era sempre a mesma conversa: nem uma palavra a mais, nem uma palavra a menos, e, sempre que me encontrava em presença desse homem tão respeitoso e respeitável, eu sentia‑me retroceder à infância, a despeito dos progressos que fizera na véspera à noite e da maturidade que ia adquirindo no convívio de Steerforth, da mãe deste e da senhora Dartle.

Arranjámos cavalos, e Steerforth, que tinha conhecimentos universais, ensinou‑me a montar. Obtivemos floretes e Steerforth ensinou‑me a esgrimir. Conseguimos luvas e, sempre sob a direcção do mesmo mestre, aprendi a arte do pugilismo. Não me importava que o meu amigo me achasse novato em tudo isto, o que considerava insuportável era exibir a minha inabilidade diante de Littimer. Nada me fazia crer que ele soubesse qualquer dessas coisas, e nada, nem um simples estremecimento das suas pálpebras respeitáveis, me deixava supor a sua perícia em tais assuntos. Mas, sempre que o criado assistia aos exercícios, eu achava‑me um mísero pexote, o mais inexperiente dos mortais.

Descrevi esta personagem com todo o cuidado por causa da impressão especial que me produziu então e devido ao que se passou em seguida.

A semana decorreu agradavelmente, e com a rapidez que se imagina, pois eu andava deslumbrado. Tive tantas oportunidades de conhecer melhor James Steerforth e de o admirar mais ainda em todos os aspectos que, por fim, me ficou a impressão de que passara com ele muito mais de oito dias. James tinha uma forma sedutora de me tratar como um brinquedo, e nenhuma outra atitude me seria mais agradável. Fazia‑me lembrar a antiguidade das nossas relações, com um seguimento natural; provava‑me que era o mesmo: já não havia razão para comparar os meus méritos com os dele, o que poderia constranger. Lisonjeava‑me, sobretudo, vê‑lo tão familiar comigo, sem esforço, afectuosíssimo, como se eu fosse o seu amigo dilecto. Recordava‑me, com satisfação, que no colégio me tratava de modo diferente dos outros e que na vida prosseguia de igual maneira. Dava‑me a impressão de lhe ser mais querido do que ninguém e o coração transbordava‑me de afecto por ele.

James resolveu, pois, acompanhar‑me na minha viagem. Chegou o dia da partida. De começo, pensara em levar o Littimer, mas desistiu da ideia. Esta personagem respeitabilíssima, sempre satisfeita com a sua sorte, fosse ela qual fosse, ordenou a nossa bagagem numa carruagem que devia transportar‑nos a Londres duma forma tão segura que poderia sem perigo sofrer os maiores solavancos. E aceitou com perfeita tranquilidade a moeda que lhe ofereci humildemente.

Dissemos adeus às senhoras e eu agradeci com efusão à dona da casa. A senhora Steerforth replicou amavelmente às minhas palavras. O olhar calmo de Littimer, no qual julguei ler a convicção muda de que eu era bastante juvenil, foi a última coisa que me impressionou.

Não tentarei descrever o que senti ao voltar à minha terra natal em circunstâncias tão favoráveis. Chegámos lá em diligência. A reputação de Yarmouth importava‑me tanto que fiquei reconhecido a Steerforth por o ouvir dizer, quando seguíamos pelas ruas sombrias que levavam à estalagem, que achava o país (tanto quanto podia julgar) um cantinho perdido cheio de beleza e originalidade. Fomo‑nos deitar daí a pouco. De passagem notei que havia um par de botas sujas e polainas à porta do quarto chamado do Delfim, esse que eu outrora ocupara. Na manhã seguinte almoçámos tarde. Steerforth, que estava de excelente humor, passeara já na praia e achara processo, disse‑me ele, de travar conhecimento com quase todos os pescadores. Alegava até que tinha visto, de longe, a casa do senhor Peggotty com a sua chaminé fumegante; sentira enorme desejo de lá entrar e de fingir que era eu: explicaria que crescera tanto ao ponto de ser irreconhecível!

‑ Bonina, quando fazes tenção de me apresentar? Estou às tuas ordens. Tu é que resolves.

‑Pois bem, pensava ir esta noite, Steerforth, pois é a ocasião > em que se encontram todos reunidos à lareira. Gostava que os visses assim tão confortàvelmente instalados. É um interior tão curioso!

‑ Será, portanto, esta noite.

‑ Não os prevenirei da nossa chegada ‑ acrescentei, radiante. ‑ Faremos uma surpresa.

‑ Certamente ‑ volveu o meu amigo. ‑ De outra forma não teria graça. Veremos os indígenas ao natural!

‑ Embora seja aquela gente a que fizeste alusão...

‑‑Ah, não esqueceste a minha escaramuça com a Rosa? ‑ exclamou James, lançando‑me uma olhadela rápida. ‑ Diabos a levem! Chego a ter medo dessa criatura. Produz‑me o efeito de um génio mau. Deixemo‑la, porém. Que vais fazer agora? Visitar a tua antiga criada, não é isso?

‑ É, sim. Em primeiro lugar quero vê‑la, e depois aos outros. ‑ Nesse caso ‑ opinou Steerforth, consultando o relógio ‑

podes gastar duas horas nessa visita. É tempo suficiente para matar saudades.

Respondi, rindo, que considerava bastante, mas que ele devia ir também, pois a sua fama precedera‑o e era quase tão célebre como eu.

‑ Irei aonde quiseres e farei a tua vontade. Diz‑me onde é, e daqui a duas horas ver‑me‑ás aparecer, sentimental ou irónico, consoante preferires.

Expliquei‑lhe minuciosamente onde ficava a residência do senhor Barkis, cocheiro em Blunderstone e outros lugares. Feito isto, parti só. O ar estava frio e vivo, a terra seca, o mar claro e ondulado, o sol quase quente e muito luminoso. Por toda a parte viço e frescura. Eu próprio me sentia tão bem disposto, tão alegre por me achar ali que, por pouco, teria detido todos os transeuntes para lhes apertar a mão.

É claro que as ruas me pareceram pequenas (costuma assim acontecer às ruas que nós conhecemos na infância), mas eu não esquecera o mínimo pormenor e não verifiquei nenhuma alteração até chegar à loja do senhor Omer. Em vez de Omer lia‑se então Omer & Joram, mas continuava a mesma inscrição: Negociante de Panos, Alfaiate, Capelista, Trajes de Luto.

Depois de ter lido a tabuleta, senti‑me arrastado para a entrada do estabelecimento: atravessei a rua, fui dar uma vista de olhos ao interior. Ao fundo achava‑se uma mulher bonita, com uma criança que lhe pulava nos braços, enquanto outro miúdo se lhe agarrava ao avental. Depressa reconheci Minnie: os pequenos deviam ser seus filhos. A porta envidraçada da loja não estava aberta, mas da oficina, no outro extremo do pátio, chegava‑me o som débil de uma canção que se diria nunca se haver extinguido.

‑ O senhor Omer está? ‑ perguntei da entrada. ‑ Em caso afirmativo, gostaria de o ver por um instante.

‑ Sim, senhor, ele está ‑ disse Minnie. ‑ Com um tempo destes a asma não o deixa sair. Joe, vai chamar o teu avô.

O garoto que se agarrava ao avental de Minnie gritou com tanta força que até se assustou da própria voz. Escondeu a cara na saia da mãe, com grande admiração desta. Ouvi aproximar‑se alguém, de respiração opressa, e o senhor Omer apareceu, mais esfalfado do que outrora, mas não muito envelhecido.

‑ Às suas ordens, senhor... ‑ disse ele. ‑ Que deseja de mim?

‑ Pode apertar a minha mão, senhor Omer, se lhe aprouver ‑ disse‑lhe, com a dextra estendida. ‑ Já foi muito amável comigo e receio não me ter mostrado bastante reconhecido.

‑ Agrada‑me muito ouvir isso, mas a verdade é que não me recordo. Tem a certeza?

‑ Absoluta.

‑ Parece que a minha memória não está melhor do que o meu fôlego ‑ disse o senhor Omer, fitando‑me e abanando a cabeça. ‑ De facto não me lembro.

‑ Esqueceu‑se de um rapazinho que foi buscar à diligência? Em seguida o tal rapazinho almoçou consigo. Era eu. Depois partimos para Blunderstone, nós dois, e também a senhora e o senhor Joram, que nesse tempo ainda não eram casados.

‑ Deus do Céu!‑exclamou Omer, tão surpreendido que até teve um ataque de tosse. ‑ Será possível? Minnie, minha filha, tu lembras‑te? Eu creio que sim... não se tratava de uma senhora?

‑ A minha mãe ‑ respondi.

‑ Pois, pois ‑ repetiu Omer. ‑ E havia um menino. Havia duas pessoas. Foi lá, em Blunderstone. Meu Deus! E como tem passado?

‑ Bem, obrigado ‑ repliquei. ‑ E o senhor?

‑ Não tenho razão de queixa. Respiro com dificuldade, mas isto acontece aos velhos. Tiro o melhor partido dos acontecimentos. É a melhor política, hem?

O senhor Omer começou a rir, tossiu de novo, e a filha, que esteve presente a toda a conversa e fazia dançar o filho mais novo em cima da mesa, veio ajudar o velho até que o ataque de tosse lhe passou.

‑ Pois é verdade ‑ continuou ele. ‑ E lembro‑me agora que foi durante esse trajecto que se decidiu a data do casamento da Minnie com o Joram. «Marque‑a, marque‑a», dizia Minnie. Agora o Joram é meu sócio e aqui estão os seus rebentos.

Minnie sorriu, afagando os bandós, e o velho deu a mão ao pequerrucho, que continuava pulando sobre a mesa.

‑ Eram dois cadáveres ‑ prosseguiu o senhor Omer nas suas reminiscências. ‑ Nessa ocasião Joram fez um caixãozinho forrado de cinzento, com pregos prateados, do tamanho deste garoto, talvez menos duas polegadas... Quer tomar alguma coisa?

Agradeci recusando.

‑ Ora espere ‑ acrescentou ele. ‑ A mulher do cocheiro Barkis... irmã do pescador Peggotty... não tinha nada com a sua família?

A minha resposta afirmativa deu‑lhe grande satisfação.

‑ Penso que em breve a minha respiração ainda será mais curta, assim como a memória ‑ notou o velho cangalheiro. ‑ Olhe, temos aqui uma parenta dos Peggottys, com muito jeito para a costura. Não há duquesa em Inglaterra que se lhe possa comparar.

‑ Não será a pequena Emily? ‑ perguntei involuntariamente.

‑ É, sim, é. É pequena, na realidade. Mas creia que tem um rostinho que faz a inveja de metade das mulheres desta terra!

‑ Oh, papá! ‑ acudiu Minnie.

‑ Minha querida, não digo isto por ti ‑ e piscou‑me um olho, assim falando ‑, mas sei que a metade das mulheres de Yarmouth e de cinco léguas em redor se mostram ciumentas por causa da Emily.

‑ Ela devia manter‑se no seu lugar ‑ replicou Minnie ‑ e não dar motivo a falatórios. As outras ficariam sossegadas.

‑ Sossegadas, minha filha! É essa a tua experiência da vida? Uma mulher nunca está sossegada perante a beleza das outras.

Depois desta observação, julguei que chegara a derradeira hora para o senhor Omer; tossiu tão fortemente que lhe faltou o ar, a despeito das tentativas que fazia para impedir o ataque. Acabou no entanto por se recompor, mas respirava dificilmente. Ofegante, sentou‑se num banco da loja.

‑ Como vê ‑ disse ele, enxugando a testa ‑ a rapariga não se dá com ninguém, não tem amigos... não falo de admiradores. Então espalharam maldosamente que queria fazer‑se senhora. Mas a minha opinião é que tudo resulta do que ela dizia na escola: que, se fosse uma senhora, faria isto e aquilo pelo tio, que lhe compraria uma porção de coisas bonitas...

‑ A mim o declarou também ‑ acudi vivamente ‑ quando éramos pequenos.

O senhor Omer meneou a cabeça e esfregou o queixo.

‑ Tem razão. E a pequena sabe vestir‑se melhor do que as mais ricas, e isto é que traz sarilhos. Demais a mais, é caprichosa. No fundo, não sabia bem o que queria, e, muito mimada, recusava submeter‑se. Não disseram mais nada contra ela, não é verdade, Minnie?

‑ Não, papá ‑ respondeu a senhora Joram. ‑ E isto foi o pior, julgo eu.

‑ Então, quando arranjou um lugar de dama de companhia, em casa de uma velhota rabugenta, a coisa complicou‑se e perdeu o emprego. Por fim fizeram‑na aprendiza. Já se passaram dois anos e as más‑línguas calaram‑se. É uma rapariga que vale por seis, hem, Minnie?

‑ Com certeza, papá. Agora não vá dizer que eu também a caluniei.

‑ Está bem, está bem. Enfim, meu caro senhor ‑ concluiu Omer, depois de esfregar o queixo por mais uns minutos ‑ como não quero que pense que tenho a língua mais comprida do que o fôlego... declaro que já disse tudo.

Tinham falado de Emily a meia voz, o que me fez calcular que a rapariga não estaria longe. Perguntei isto ao senhor Omer, que com a cabeça me indicou a porta da oficina. Pedi logo licença, que me foi concedida, de lançar uma olhadela e vi Emily, através dos vidros, sentada a trabalhar. Continuava bela como sempre, com aqueles olhos azuis tão puros que me haviam traspassado o coração. Sorria para o outro filho da Minnie, que brincava a seu lado. O ar decidido que se lia no seu rosto bastava para justificar o que eu ouvira contar, mas notei igualmente aquela timidez caprichosa de outro tempo; nada na sua beleza deliciosa me dizia que Emily estivesse destinada a outra coisa senão a ser boa e feliz numa existência de virtude e de ventura.

Durante este tempo, do outro lado do pátio, a canção do martelo (que se julgaria nunca ter cessado) prosseguia interminavelmente.

‑ Não quer entrar para falar com ela? ‑ perguntou‑me o senhor Omer. ‑ Entre, esteja à sua vontade.

Mas eu acanhei‑me. Tinha medo de a perturbar e de ficar por meu turno perturbado. Informei‑me apenas da hora a que ela saía à noite, a fim de poder coincidir a nossa visita com a sua chegada a casa. Depois despedi‑me do senhor Omer, da filha e dos netos, e fui visitar a minha velha amiga Pegotty.

Lá a encontrei, na sua cozinha ladrilhada, a contas com os preparativos do jantar. Bati à porta e Peggotty abriu‑ma sem demora e perguntou o que eu desejava. Olhei‑a sorrindo, mas não fui correspondido nesse sorriso. Nunca deixara de lhe escrever, porém tinham decorrido sete anos sem que nos tornássemos a encontrar.

‑ O senhor Barkis está? ‑ inquiri, contrafazendo uma voz rude.

‑ Está, sim, senhor. O reumático obrigou‑o a ficar de cama.

‑ Ainda vai a Blunderstone?

‑ Quando tem algumas melhoras, ainda vai.

‑ E a senhora, também o acompanha?

Olhou‑me com mais atenção e vi‑a esboçar um movimento rápido, como para unir as mãos.

‑ É que eu queria saber ‑ acrescentei ‑ uma coisa a respeito de certa casa de lá, chamada... como se chama?... ah, as «Gralhas».

Deu um passo atrás e estendeu os dedos, com ar indeciso, receoso, tal se me quisesse repelir.

‑ Peggotty! ‑ exclamei.

‑ Querido menino! ‑ replicou ela. E, chorando, caímos nos braços um do outro.

Os disparates que disse, o riso e as lágrimas que sobre mim verteu, o orgulho e alegria que mostrou, tudo misturado de tristeza pelas recordações do passado ‑ eis o que nem tenho coragem de relatar. Não me acudiu a ideia de que seria pueril corresponder às suas efusões, e nunca, nunca na minha vida, dei vazão aos meus sentimentos com tanta naturalidade como naquela manhã.

‑ Barkis vai ficar tão contente! ‑ disse Peggotty, secando os olhos com o avental. ‑ Há‑de lhe fazer melhor do que todos os remédios. Posso ir preveni‑lo? Quer ir vê‑lo?

Decerto que eu queria. Mas Peggotty não saiu da cozinha tão depressa como queria. Sempre que chegava à porta, voltava‑se para me olhar e retrocedia a fim de chorar mais um pouco no meu ombro. Enfim, para facilitar as coisas, subi com ela e, depois de ter esperado um instante no patamar, enquanto ela o informava da minha visita, apresentei‑me diante do doente.

Barkis recebeu‑me com o maior entusiasmo. Não se lhe podia apertar a mão devido ao reumatismo, por isso me pediu que, em substituição, lhe sacudisse a borla do barrete de dormir, o que fiz calorosamente. Sentei‑me à beira da cama e ele disse‑me que lhe fazia grande bem pensar que estava outra vez a conduzir‑me pela estrada de Blunderstone. Achava‑se estendido, com a cabeça mais alta, e tão abafado que só se lhe via a cara.

‑ Que nome escrevi então na carruagem? ‑ perguntou‑me com um sorriso em que se lhe espelhava o sofrimento.

‑ Ah, senhor Barkis, tivemos muitas conversas sérias acerca disso, não é verdade?

‑ Eu há muito tempo que suspirava, bem sabe...

‑ De facto, há muito tempo, senhor Barkis.

‑ E não me arrependo. Lembra‑se de que uma vez me contou que ela fazia tortas de maçã e muitas coisas mais?

‑ Lembro‑me muito bem.

‑ Pois falou a pura verdade. Tão verdade como os impostos... a coisa mais verdadeira que há ‑ acrescentou sacudindo a borla do barrete, a única maneira de dar ênfase às palavras.

Voltou os olhos para mim, como se esperasse o meu assentimento ao que acabava de dizer. Fiz‑lhe a vontade, e ele repetiu:

‑ Nada mais verdadeiro do que os impostos. Um homem pobre como eu sou pensa mais nisto quando está de cama. Sou muito pobre, senhor David.

‑ Lastimo, senhor Barkis.

‑ Paupérrimo ‑ confirmou ele.

Nisto, tirou penosamente e lentamente o braço de debaixo da roupa e, com mão hesitante, pegou numa bengala que estava apoiada ao leito. Com ela começou a vasculhar o chão até que encontrou uma caixa cuja extremidade já eu notara ao entrar. Então pareceu sossegar.

‑ Velhos hábitos ‑ comentou. ‑ Oxalá fosse dinheiro.

‑ Decerto, senhor Barkis.

‑ Mas não é ‑ declarou, abrindo os olhos o mais que podia. Garanti‑lhe que acreditava e a expressão dulcificou‑se. Virando‑se para a mulher, disse:

‑ É a mais apta, a melhor das esposas, esta Peggotty Barkis. Merece todos os elogios que se lhe fizerem. Minha querida, não nos queres arranjar para hoje um jantarzinho catita? Qualquer coisa que se coma e beba?

Tencionava protestar contra este desperdício em minha honra, mas percebi que Peggotty, do outro lado da cama, temia que eu recusasse. Deixei‑me, pois, ficar calado.

‑ Tenho algum dinheiro para isso, minha querida ‑ participou ele. ‑ Mas agora estou cansado. Se tu e o senhor David me deixásseis dormir um pouco, eu procurá‑lo‑ia quando acordar.

Acedendo ao seu desejo, saímos do quarto. Peggotty confidenciou‑me que o marido se tornara um pouco mais «desconfiado» do que antigamente, que recorria sempre àquele estratagema antes de extrair a mínima moeda da sua reserva, e que era à custa de sofrimentos inauditos que conseguia levantar‑se da cama para tirar dinheiro daquela malfadada caixa. De facto, ouvimo‑lo daí a pouco soltar gemidos sufocados e lúgubres a cada esforço despendido em todas as articulações. Os olhos de Peggotty encheram‑se de compaixão por ele, mas disse‑me que mais valia deixá‑lo proceder assim, pois esse generoso impulso só lhe podia causar bem. Continuou, pois, a gemer, até que voltou à cama, certamente com dores atrozes. Feito isso, chamou‑nos, fingindo despertar de um sono reparador, e tirou um guinéu de debaixo do travesseiro. A sua satisfação à ideia de que nos enganara e que mantivera inviolado o segredo do cofre parecia compensá‑lo de todos os tormentos por que acabava de passar.

Preveni Peggotty da visita de Steerforth, que não tardou a aparecer. Para a velha criada o ele ser meu amigo correspondia a ser seu benfeitor: em qualquer destes casos estava pronta a recebê‑lo com a mesma gratidão e o mesmo fervor. As maneiras amáveis, o ar comunicativo de Steerforth, o seu físico agradável, o dom que ele tinha de se adaptar a tudo, quando queria, de tocar na corda sensível dos outros, alcançaram‑lhe em cinco minutos a simpatia de Peggotty. Bastaria já a amizade que me dedicava para a conquistar de vez. Em resumo, por todas estas razões juntas, creio que Peggotty lhe votou desde logo verdadeira adoração.

Ficou para jantar. Fê‑lo não só de boa vontade mas com entusiasmo e alegria. O ar e a luz entraram com ele no quarto de Barkis, como se fosse o bom tempo em pessoa, refrescando tudo na sua passagem. Fazia fosse o que fosse sem esforço, sem ruído, sem rudeza, pondo em tudo um tacto extraordinário, que se diria a suma perfeição. A atitude que tomava era tão graciosa e natural que, mesmo agora, ao lembrar‑me, sinto invadir‑me enorme comoção.

Passámos momentos deliciosos na saleta, onde o Livro dos Mártires, no qual ninguém pegara depois de mim, continuava colocado no mesmo lugar. Comecei a folhear as estampas horripilantes, recordei‑me das sensações que em geral me despertavam, mas não tornei a experimentá‑las. Peggotty falou‑me do quarto que considerava sempre o meu; participou‑me que esse aposento estava preparado para me receber e que esperava lhe fizesse o favor de aceitar. Steerforth dominou logo a situação e, sem sequer me dar tempo a olhá‑lo, perplexo como eu ficara, declarou:

‑ Dormirás aqui, já se sabe, durante a nossa permanência na terra. Eu irei para a estalagem.

‑ Isso tem aspecto pouco amável... forçar‑te a vir de tão longe para te abandonar em seguida!

‑ Meu Deus, a quem é que mais pertences? Não fales mais no caso, que está arrumado.

A questão resolveu‑se, pois, nesse sentido.

James foi encantador até ao fim, isto é, até à ocasião em que, ouvindo dar oito horas, tomámos o caminho do barco do senhor Peggotty. Tornava‑se até de instante para instante mais sedutor e revelava‑me já esse dom de que eu hoje estou persuadido ser o seu: tinha a certeza do êxito no seu desejo de agradar, o que o fazia mais subtil e inteligentemente compreensivo. Se alguém, naquela noite, me viesse dizer que isso não passava de um jogo a que ele se entregava, na excitação da hora, só com o vão propósito de parecer superior e no desejo nefasto e irreflectido de conquistar aquilo que afinal lhe era indiferente; se alguém me viesse dizer tal coisa eu não sei como manifestaria a minha indignação.

Andando a seu lado, na praia sombria e glacial, em direcção ao barco‑residência, eu experimentava redobrados sentimentos de fidelidade e amizade. O vento soprava lugubremente em volta de nós, mais ainda do que na primeira noite em que ali estivera.

‑ Que sítio ermo, Steerforth! ‑ murmurei.

‑ Principalmente com esta escuridão ‑ respondeu ele. ‑ O mar uiva como se quisesse devorar‑nos. É aquele o barco, onde vejo uma luz?

‑ É, sim, é aquele.

‑ Já o tinha visto esta manhã. Fui até lá instintivamente.

Calámo‑nos ao chegar perto da luz e, silenciosamente, procurámos a porta. Pus a mão no fecho e, segredando a Steerforth que me seguisse, entrei...

Fora já tínhamos ouvido um sussurro de vozes. Na ocasião de entrarmos, alguém batia palmas e fiquei surpreendido ao verificar que fora a senhora Gummidge, de ordinário tão triste; mas não era só ela que dava provas de excitação: o dono da casa, de fisionomia radiante, soltava gargalhadas e, abrindo os braços rudes, preparava‑se para neles acolher a pequena Emily. No rosto de Ham lia‑se admiração, enlevo, certa timidez canhestra: o rapaz pegava na mão da prima como para a apresentar ao tio e protector. E a pequena Emily, corada e intimidada, mas contente (via‑se‑lhe bem no rosto jubiloso) com a alegria do senhor Peggotty, estava prestes a largar a mão de Ham para se lançar nos braços daquele. Foi ela, porém, a primeira pessoa que deu fé da nossa intrusão. Eis o espectáculo que se nos ofereceu quando passámos da noite sombria e gelada para o quarto claro e aquecido do navio. Em segundo plano, a senhora Gummidge dava palmas estrondosas.

Com a nossa chegada, a cena terminou como por encanto, de tal modo que se duvidaria da sua veracidade. Achei‑me no meio da família estupefacta, frente a frente do pescador, a quem estendi a mão. Ham bradara:

‑ É o senhor Davy!

Daí a pouco estávamos todos a dar apertos de mão, a pedir notícias uns dos outros, a manifestar o prazer que o encontro nos proporcionava; falávamos todos ao mesmo tempo. O senhor Peggotty estava tão orgulhoso e encantado por nos ver que nem sabia que fizesse: apertou‑me novamente a mão, depois a de Steerforth, e mais uma vez a minha. Enfiava os dedos pelo cabelo e ria com um riso tão triunfante, tão feliz, que dava prazer contemplá‑lo.

‑ Pois... só pensar que senhores como estes... verdadeiros senhores... vêm aqui, a minha casa... Nunca me aconteceu nada parecido com esta noite, palavra de honra. Anda cá, Emily, minha filha; anda cá, feiticeira. Apresento‑te o amigo do senhor Davy, aquele senhor de quem ouviste falar. Vieram juntos. Hoje é a noite mais bela da vida do teu tio... e nunca haverá outra igual!

Depois de fazer este pequeno discurso, todo de um fôlego, com extraordinária animação e entusiasmo, o senhor Peggotty apoiou as mãos presas no rosto da sobrinha, beijou‑a repetidamente, puxou‑a com ternura para o seu peito largo e acariciou‑a demoradamente. Depois deixou‑a afastar‑se, e a rapariga foi esconder‑se no quartinho onde eu dormi outrora; então, voltando‑se para nós, corado e ofegante, disse no auge do contentamento:

‑ Se estes dois senhores... verdadeiros senhores que eles são!...

‑ Muito bem ‑ acudiu Ham. ‑ Verdadeiros senhores!

‑ ... se estes dois senhores me não desculparem de estar no estado em que estou... quando souberem de que se trata... não sei como lhes pedir perdão! Emily, minha querida! Ela sabia que eu ia contar, e pisgou‑se. ‑ Aqui, a alegria do homem transbordou. ‑Quer ter a bondade de ir ver o que faz a pequena? ‑perguntou ele à senhora Gummidge.

A velha fez um sinal de assentimento e desapareceu.

Steerforth limitou‑se a menear a cabeça, mas denotava tanto interesse e simpatia pelos sentimentos do senhor Peggotty, que este lhe respondeu como se o meu amigo houvesse falado:

‑ Tem razão. É isso mesmo. Ela é assim. Obrigado, senhor. Ham, como se quisesse dizer o mesmo, empregou, como Steerforth, uma linguagem muda.

‑ A nossa pequena Emily ‑ começou o senhor Peggotty ‑ tem sido na nossa casa (posso ser um ignorante, mas esta é a minha convicção) o que só uma criaturinha com aqueles olhos pode ser num lar. Não é minha filha. Nunca tive filhos. Mas, se os tivesse, não os amaria mais. Compreende?

‑ Perfeitamente ‑ respondeu Steerforth.

‑ Sei que me compreende ‑ continuou o senhor Peggotty ‑ e, mais uma vez, obrigado. O senhor Davy há‑de lembrar‑se do que ela era, e julgar pelos seus olhos o que é ao presente. Mas nem o senhor nem o senhor Davy podem compreender inteiramente o lugar que a rapariga tem ocupado e sempre ocupará no meu coração. Sou rude, senhores, tão rude como um ouriço do mar, mas ninguém, salvo talvez uma mulher, poderá saber, creio, o que é para mim esta pequena Emily. E entre nós ‑ ajuntou, baixando a voz ‑, essa mulher não seria a senhora Gummidge, por maiores méritos que tenha.

O senhor Peggotty enfiou de novo nos cabelos os dedos (agora das duas mãos), como quem se prepara para o mais difícil. E prosseguiu, poisando então os punhos nos joelhos:

‑ Havia certa pessoa que conhecia a nossa Emily desde que o pai dela morrera afogado, que a vira crescer e fazer‑se rapariga e depois mulher. Não era sujeito que a gente se embasbacasse a admirar... era mesmo como eu, um marinheiro rude, verdadeiro lobo‑do‑mar, mas, em suma, um rapaz digno, com o coração no seu lugar!

Bem me parece que nunca vi Ham rir com a boca tão dilatada como naquela ocasião.

‑ E eis que este marujinho se lembra de ficar apaixonado ‑ continuou o senhor Peggotty, no cúmulo da satisfação. ‑ Segue a pequena por toda a parte, faz‑se a sua sombra, não come nem bebe por causa da menina, até que me conta aquilo que lhe vai lá por dentro. Ora, bem sabem, eu desejava que a nossa Emily viesse a dar o nó, mas queria vê‑la apalavrada com um mancebo sério que a pudesse proteger. Não sei quanto tempo ainda tenho de vida, nem se vou morrer de um dia para outro; mas, se vir, numa noite de tempestade, da barra de Earmouth, pela última vez as luzes da cidade, morrerei mais sossegado pensando que está na praia um homem que é fiel à minha Emily (que Deus a abençoe!) e que nada poderá acontecer à minha sobrinha enquanto esse homem viver.

No entusiasmo do seu discurso, o senhor Peggotty agitava a mão direita como se dissesse eterno adeus às luzes da cidade; depois, tendo feito um sinal de cabeça a Ham, cujo olhar encontrara, prosseguiu:

‑ Pois bem, aconselhei‑o a ir falar com a Emily. É um rapagão, mas tímido a valer e custa‑lhe a falar de amores. Por fim fui eu quem tomou a palavra. «O quê? Ele?» disse a Emily. «Ele que eu conheço tão intimamente desde sempre e que estimo tanto. Oh, tio é impossível! No entanto, é um rapaz sério.» Dou‑lhe um beijo e riposto: «Minha querida fazes bem em dizer o que pensas, faz o que quiseres, tens a liberdade dos passarinhos.» Nada mais. Então vou procurá‑lo e falo assim: «Gostaria muito, mas não vejo‑ meio. Sê amigo dela como antes. Que entre ambos nada se altere. Sê um homem.» E ele, apertando a minha mão: «Está combinado.» Durante dois anos, continuou fiel e leal, sempre o mesmo connosco.

O rosto do senhor Peggotty, que mudara várias vezes de expressão no decurso do relato, retomou então o ar feliz e triunfante do começo e, com uma das mãos no meu joelho e a outra no de Steerforth (tivera o cuidado de as humedecer previamente, para dar mais energia ao gesto), dirigiu‑nos esta prática, ora a um ora a outro:

‑ E eis que uma noite, uma noite que foi a de hoje, a pequena Emily volta do trabalho, e ele acompanha‑a. Nada de estranho no caso, dir‑me‑ão. Com efeito, nada, pois o rapaz toma conta da prima como um irmão, quando anoitece, ou mesmo antes de anoitecer. Todo o tempo! Mas acontece que lhe pega na mão e nos grita contentíssimo: «Reparem! Aqui está a minha futura mulherzinha!» E a Emily acrescenta, meio tímida meio descarada, rindo e chorando igualmente: «Sim, tio, se é da sua vontade.» Se era da minha vontade! ‑ exclamou o senhor Peggotty, extasiado. ‑ Como se pudesse ser de outra maneira! «Se é do seu agrado, tio, eu agora estou mais ajuizada. Mudei de opinião. Serei para ele uma boa esposa, tanto quanto puder, pois é muito bom rapaz.» Então a senhora Gummidge aplaudiu, como no teatro, e os senhores entraram nessa ocasião. Pronto. Cá está o homem que vai desposá‑la, logo que a rapariga acabe o seu aprendizado.

Ham cambaleou (a coisa não tinha nada de extraordinário) sob o golpe que, na sua alegria sem limites, o senhor Peggotty lhe descarregara como prova de amizade e confiança; em seguida, achando‑se obrigado a dizer‑nos fosse o que fosse, principiou a balbuciar com enorme dificuldade:

‑ Ela não era mais alta que o senhor Davy... da primeira vez que o senhor veio cá... e eu já calculava o que prometia ser.

Vi‑a desabrochar, meus senhores, como uma flor. Daria a vida por ela, senhor Davy. Oh, que felicidade, que alegria! Meus senhores, ela é para mim mais que... tudo o que eu desejo e mais do que nunca poderia dizer. Eu... eu... amo‑a para sempre. Não há senhor na terra, nem no mar, que ame a sua dama como eu.

Sentir‑me‑ia, pois, constrangido se devesse tomar a palavra depois dessa manifestação de amor tão espontânea. Felizmente foi Steerforth quem se encarregou disso, e fê‑lo de forma tão hábil que daí a pouco estávamos todos perfeitamente à vontade.

‑ Senhor Peggotty ‑ disse Steerforth ‑ o senhor é um homem sério e merece ser sempre tão feliz como está esta noite. Dê cá a sua mão, senhor Peggotty, e você, Ham, os meus votos de felicidade! A sua mão, também. Bonina, espevita o lume, é preciso que ele brilhe claro. Senhor Peggotty, se não convencer a sua linda sobrinha a vir ocupar este lugar à lareira, palavra que me vou embora. Não quero por nada deste mundo ser a causa de uma vaga aqui ao canto do fogão, e sobretudo uma vaga como essa, e numa noite como a de hoje!

Ouvindo isto, o senhor Peggotty foi ao meu antigo quarto buscar a pequena Emily. De começo a rapariga opôs‑se, e foi necessário que o Ham comparecesse também. Ambos a trouxeram para o devido lugar à lareira: vinha confusa, intimidada, mas cedo recuperou a confiança quando viu com que doçura e respeito Steerforth lhe falava e com que habilidade evitava tudo o que a pudesse embaraçar. Referiu‑se a navios, peixes, marés em conversa com o dono da casa. Lembrou‑me o dia em que ele conhecera Ham no internato de Salem. O barco, e tudo o que se lhe relacionava, parecia encantá‑lo. Em resumo, mostrou tamanho tacto e à‑vontade que acabou, a pouco e pouco, por nos enredar num círculo mágico e aí ficámos a tagarelar sem o menor constrangimento.

Emily não falou muito durante esse tempo, mas olhava, escutava; o rosto belo animou‑se. Depois da sua conversa com o senhor Peggotty, Steerforth descreveu‑nos um naufrágio pavoroso, tal como se o estivesse a ver nessa mesma ocasião, e a rapariga não desviou dele os olhos e pareceu, também, ver o naufrágio. Seguidamente, para variar, o meu amigo contou (com tal jovialidade como se o caso fosse tão novo para o narrador como para nós) uma aventura divertida que lhe sucedera, e a Emily riu a bom rir, fazendo ressoar no barco o seu riso argentino; contagiados por essa hilaridade simples, todos nós soltámos gargalhadas, incluindo o próprio Steerforth. Obrigou ainda o senhor Peggotty a cantar (ou antes, urrar) a canção Quando sopram os ventos de tempestade, e ele também entoou um canto de marinheiro tão belo e comovente que eu tive quase a impressão de que o vento que rondava a casa e murmurava surdamente, enquanto nos calávamos, se detivera por fim para lhe escutar a voz.

Conseguiu distrair a senhora Gummidge, essa vítima da melancolia, como ninguém (segredou‑me o senhor Peggotty) pudera ainda fazê‑lo depois da morte do marido. Deixou‑lhe tão pouco tempo de estar triste que ela, no dia seguinte, declarou que se sentira enfeitiçada.

Contudo, Steerforth não foi o único a fazer as despesas da conversa nem monopolizou a atenção geral. A pequena Emily afoitou‑se e aludiu, embora timidamente, aos nossos passeios na praia, quando apanhávamos conchinhas e seixos, e eu perguntei‑Lhe se não se esquecera da admiração que lhe tributava. E, enquanto ríamos e corávamos ao recordar os bons tempos de outrora, que nos pareciam quase irreais, Steerforth ficou um instante silencioso e atento, a observar‑nos com ar pensativo. Toda a noite, Emily conservou‑se sentada no velho baú, no seu cantinho familiar à lareira. Ham ocupava junto dela o lugar que fora o meu, mas eu perguntava a mim mesmo se seria para o arreliar ou por pudor (devido à nossa presença) que a rapariga passou a noite sem nunca se chegar para o noivo.

Creio que já era meia‑noite quando nos despedimos. Havíamos ceado bolachas e peixe seco, e Steerforth tirara do bolso um frasco de genebra holandesa, que nós outros homens (agora posso dizê‑lo sem corar) esvaziámos por completo. Trocámos adeuses cordiais e a família Peggotty ficou no limiar da porta, a alumiar‑nos, até desaparecermos. De longe ainda vi, atrás de Ham, os olhos da pequena Emily, que nos contemplava, e ouvi a sua voz meiga recomendar‑nos que déssemos atenção ao caminho.

‑ Que deliciosa criaturinha! ‑disse‑me Steerforth, enfiando o braço no meu. ‑ O sítio é patusco e esta gente é original. Lidar com eles dá‑nos uma sensação diferente.

‑ Tivemos sorte ‑ respondi ‑ em sermos testemunhas da sua alegria pelo próximo casamento. Nunca vi ninguém tão feliz. Regala tanto presenciar estas coisas e tomar parte numa satisfação honesta!

‑ O noivo é um bocado rústico para ela, não te parece? ‑ observou Steerforth.

O meu companheiro tratara Ham e os outros com tanta cordialidade, que esta resposta tão seca, tão inesperada, me causou impressão desagradável; mas, virando‑me de repente para ele, notei‑lhe um clarão de malícia no olhar e fiquei tranquilo.

‑ Ah, Steerforth! ‑ repliquei. ‑ Podes troçar destes simplórios. Podes discutir com a senhora Dartle a esse respeito, ou esconder os teus verdadeiros sentimentos, para me espicaçar. Mas eu percebo que tu, quando queres, os compreendes, e que sabes partilhar da sua felicidade, como acabas de fazer esta noite com este pobre pescador, ou lisonjear a adoração que me consagra a minha velha criada. No fim de contas, nenhumas das suas alegrias ou das suas dores te são indiferentes, e isto leva‑me a estimar‑te, Steerforth, vinte vezes mais!

Passo acelerado regressávamos a Yarmouth.

 

VELHOS CENÁRIOS E PERSONAGENS NOVAS

Eu e Steerforth passámos mais de quinze dias na região. Andávamos, como é natural, a maior parte do tempo juntos; no entanto, acontecia às vezes separarmo‑nos durante horas. Ele era bom marinheiro, ao passo que eu preferia a terra; por isso ficava geralmente para trás, quando o meu amigo e o senhor Peggotty partiam de barco. Também não gozava de liberdade absoluta, pois aceitara a hospitalidade da minha antiga criada e, sabendo quanto esta última se desvelava a tratar todo o dia do marido doente, não desejava regressar muito tarde a casa. Mas Steerforth, que dormia na estalagem, podia fazer o que lhe apetecesse e dispor à sua vontade do tempo: vim até a saber que oferecia (quando eu já estava deitado) pequeninas festas no «Willing Mind», de que o senhor Peggotty era assíduo; ou que passava noites inteiras embarcado, se havia luar, vestido de pescador, para só voltar na manhã seguinte, com a maré alta. Nada disto, porém, me surpreendia, porque não ignorava que o seu espírito infatigável e intrépido gostava de arrostar com trabalhos rudes e tempestades, além de outras sensações fortes que por acaso se lhe apresentassem.

Além disso, eu queria naturalmente rever Blunderstone e as paisagens familiares da minha infância, ao passo que Steerforth, tendo ido lá só uma vez, já não achava motivo de aí regressar. Aconteceu‑nos, pois, três ou quatro vezes, em seguida ao primeiro almoço, partirmos com rumos diferentes e só nos reencontrarmos à noite para cear. Em que ocupara ele o tempo? Não fazia a mais pequena ideia. Sabia apenas que o meu amigo era muito popular no país e que descobrira cem maneiras de empregar a sua actividade em coisas que outro qualquer não acharia que fazer.

Quanto a mim, durante as peregrinações solitárias, jamais deixava de admirar todos os pormenores do velho trajecto e de percorrer os lugares da minha infância. Frequentava‑os de acordo com as saudades que sentia, demorava‑me entre eles como, outrora, os meus pensamentos quando longe da terra natal. Passava horas inteiras a deambular próximo do jazigo de ao pé da árvore, em que dormiam os meus pais, esse jazigo que eu vi da casa, no tempo em que esta ainda não pertencia a estranhos; esse jazigo de que a Peggotty sempre cuidara tão devotadamente e que circundara de um jardim. Situava‑se num ângulo tranquilo, um pouco afastado do passeio, mas suficientemente perto para que eu pudesse ler os nomes gravados na pedra. Distraía‑me então a andar cá e lá, sobressaltando‑me todas as vezes que soavam horas no campanário da igreja, pois que me parecia escutar uma voz defunta. Durante essas visitas, os meus pensamentos eram sempre os mesmos: «Que papel estava eu destinado a desempenhar na vida? Que iria realizar de notável?» Os passos que eu dava não produziam eco noutro ambiente, mas apenas acolá, como se tivera voltado ao antigo lar para edificar as minhas ilusões junto de uma mãe ainda viva.

A nossa velha residência mudara muito. Haviam desaparecido os ninhos espedaçados que as gralhas abandonaram muito tempo antes. As árvores, podadas, desbastadas, surgiam‑me irreconhecíveis. O jardim tornara ao estado selvagem. Quase todas as janelas estavam fechadas. Ali morava um pobre demente e os que dele se ocupavam: o infeliz passava o tempo sentado defronte da minha janelinha, a que dava para o cemitério: o seu cérebro doente conheceria algumas das fantasias que tinham povoado o meu, quando de lá escorregava mansamente, pela manhã, a fim de ir lançar uma vista de olhos aos rebanhos que pastavam nos prados?

Os nossos vizinhos de outrora, o senhor e a senhora Grayper, tinham embarcado para a América do Sul, e a chuva, abrindo caminho através do telhado da casa deserta, deixara grandes manchas nas paredes exteriores. O doutor Chillip tornara a casar‑se, agora com uma mulher alta e descarnada, de nariz comprido; tinham um rebento enfermiço, de cabeça grande e pesada e olhinhos fixos que pareciam inquirir a razão de o haverem deitado ao mundo.

Era ao mesmo tempo com tristeza e alegria que eu errava por esses sítios da minha infância, até à hora em que, vendo avermelhar‑se o sol de Inverno, sabia ser ocasião de tomar o caminho de regresso; mas, uma vez em casa, e sobretudo quando jantava festivamente em companhia de Steerforth, diante de um bom lume, tornava a pensar nas coisas que vira e recordara. Experimentava à noite a mesma impressão (todavia menos viva) ao achar‑me no meu aposento tão asseado: folheava então o Livro dos Crocodilos, que continuava em cima da mesa, e lembrava‑me com a alma cheia de gratidão, que bênção era para mim ter um amigo como Steerforth, uma amiga como Peggotty e uma tia generosa que substituía admiravelmente os entes queridos que eu perdera.

O processo mais fácil para voltar a Yarmouth, quando regressava desses longos passeios, era tomar um barco de passagem, que me deixava na extensa praia que fica entre o mar e a cidade. Podia, ao atravessá‑la, evitar um grande desvio, pois não precisava de seguir pela estrada. E, apenas a cem metros do caminho que eu devia percorrer, encontrava‑se a residência do senhor Peggotty, o que me induzia a fazer‑lhe uma visita curta. Steerforth esperava‑me quase sempre e nós dirigíamo‑nos, à hora em que a noite refresca e a névoa se adensa, para o lado das luzes cintilantes da cidade.

Por uma tarde escura, em que voltava mais tarde que o costume (estivera nesse dia em Blunderstone pela última vez, pois se aproximava o dia da partida), deparei Steerforth sentado, só e pensativo, à lareira do senhor Peggotty. Achava‑se tão absorto que não me sentiu entrar. De qualquer maneira, tinha probabilidade de não me ouvir, atendendo a que a areia me sufocava o ruído dos passos, mas, depois de eu permanecer no quarto uns momentos, o certo é que ele não saiu do seu torpor. Fiquei preocupado por o ver assim perdido nas suas cogitações.

Pus‑lhe a mão no ombro, e Steerforth sobressaltou‑se tanto que por meu turno me sobressaltei igualmente.

‑ Chegas como um espectro vingador! ‑ murmurou. A sua voz quase denotava cólera.

‑ Tinha de me anunciar de qualquer forma ‑ respondi. ‑ Fiz‑te descer da lua?

‑ Não ‑ replicou ele. ‑ Não.

‑ Nesse caso, onde estavas? ‑ inquiri, sentando‑me a seu lado.

‑ Contemplava as imagens que dançam nas chamas.

‑ Agora impedes‑me de as ver ‑ observei‑lhe, pois o meu amigo fora atiçar rapidamente o lume com uma acha inflamada, provocando girândolas de faíscas que se engolfaram, crepitando, na chaminé.

‑ Não as terias visto ‑ respondeu. ‑ Detesto esta hora crepuscular. Não é dia e ainda não é noite. Vens tão atrasado! Onde estiveste?

‑ Dei o meu passeio habitual, pela última vez.

‑ E eu ‑ ripostou Steerforth circunvagando a vista ‑ conservei‑me aqui. Pensava como poderiam dispersar‑se, ou morrer vítimas não sei de que catástrofe, os que se encontravam neste quarto tão alegres quando da noite da nossa chegada, e isto a avaliar pelo aspecto desolado que noto. David, quem me dera ter tido, nestes últimos vinte anos, um pai judicioso!

‑ Que aconteceu, meu caro James?

‑ Gostaria, de todo o coração, de haver sido mais bem aconselhado. Gostaria, com o mesmo ardor, de ser capaz de me reger a mim mesmo.

Havia na sua atitude qualquer coisa de tão desanimado que eu fiquei estupefacto. Nunca pensara que ele pudesse ser tão diferente como o via nesse instante.

‑ Mais valera para mim ser esse pobre Peggotty ou o lorpa do sobrinho ‑ declarou levantando‑se e indo apoiar‑se ao fogão, com ar sombrio ‑ que ser o que sou, assim rico e instruído, e atormentar‑me como o faço há meia hora neste barco diabólico.

A alteração que se produzira em Steerforth abalava‑me tanto que o examinei durante uns minutos, em silêncio, enquanto ele, com a cabeça apoiada na mão, olhava tristemente para o fogo. por fim supliquei‑lhe que me revelasse o que o contrariava tanto e me permitisse, senão dar‑lhe conselhos, pelo menos partilhar da sua dor. Antes que eu terminasse, Steerforth começou a rir, nervosamente de início, depois com a jovialidade natural.

‑ Não é nada, Bonina! Quando nos encontrámos em Londres, disse‑te que a minha própria companhia me era às vezes pesada. E ela fazia‑me o efeito de um pesadelo, ainda agora quando chegaste: talvez até o houvesse tido. Nessas ocasiões, erguem‑se‑me do fundo da memória histórias da carochinha, e eu deixo‑me embalar. Creio mesmo que me confundi com o rapazinho que troçava de tudo e que atiraram como alimento aos leões. Percorreu‑me um arrepio da cabeça aos pés e assustei‑me comigo mesmo.

‑ Fora isso, não tens medo de nada, se não me engano.

‑ Talvez. Contudo há muitas coisas com que poderia assustar‑me. Pronto, acabou‑se ‑ disse ele. ‑ Não tornarei a estar melancólico, David, mas repito‑te, meu caro, que mais valera que houvesse tido um pai cheio de firmeza e bom senso.

O senso de Steerforth era sempre expressivo, porém nunca lhe vira, como então, quando o meu amigo contemplava as chamas, tanta convicção e tristeza.

‑ Não falemos mais deste assunto ‑propôs, fazendo o gesto de lançar qualquer coisa. ‑ Pronto, acabou‑se ‑ repetiu.

«Porque, tendo morrido, sou de novo um homem», como Macbeth. E agora, vamos jantar, se é que não fui desmancha‑prazeres, ainda como Macbeth.

‑ Mas para onde teriam ido todos? ‑ exclamei.

‑ Sabe Deus! ‑ volveu Steerforth. ‑ Em passeio, fui até ao ancoradoiro, antes de chegares, e em seguida vim devagar até cá... e não achei ninguém! Então comecei a reflectir, e era isso que fazia quando entraste.

A chegada da senhora Gummidge, com um cabaz, deu‑nos a explicação de a casa estar vazia. Fora comprar qualquer coisa de que precisava, antes que o senhor Peggotty voltasse, e deixara a porta encostada a fim de que Ham e Emily, que nessa noite regressariam cedo, pudessem entrar durante a sua ausência. Steerforth divertiu‑a muito ao saudá‑la jovialmente e ao fingir, còmicamente, que a queria beijar; depois agarrou‑me no braço e arrastou‑me à pressa.

Alegrara a senhora Gummidge e recuperara a boa disposição, porque a sua conversa, durante o nosso trajecto, foi tão folgazã como de costume.

‑ Então ‑ disse‑me em tom afável ‑ é amanhã que abandonamos a nossa existência de piratas?

‑ Foi o que decidimos ‑ respondi ‑, e sabes que temos lugares marcados na diligência.

‑ Nesse caso, é inevitável ‑ disse Steerforth. ‑ Quase me esqueci de que havia mais coisas que fazer neste mundo vil além de se deixar embalar pelas ondas. E é pena!

‑ Tal a atracção da novidade!‑repliquei, sorrindo.

‑ Provavelmente, embora isso seja uma reflexão sarcástica para uma pessoa tão inocente como o meu jovem amigo. Ah, bem sei que sou caprichoso, David, mas também sou capaz de qualquer coisa mais positiva. Quem diz que não poderia ser aprovado num exame para piloto, aqui nestas águas?

‑ O senhor Peggotty acha que és extraordinário.

‑ Um fenómeno náutico, hem?

‑ Decerto, e tu não ignoras como é verdade. Pões tanto ardor em tudo o que fazes, e consegues fazê‑lo sem esforço. O que mais me admira, Steerforth, é contentares‑te com o aspecto fantasista das tuas possibilidades.

‑ Contentar‑me? ‑ replicou. ‑ Só uma coisa me contenta, Bonina: é a tua candura. Quanto ao aspecto caprichoso, nunca aprendi a arte de me atrelar às rodas em que hoje em dia giram os nossos Ixiões. Perdi‑me num mau aprendizado, e agora é tarde. Sabes que comprei um barco?

‑ És incrível, James! ‑ exclamei. ‑ E se calhar não tencionas voltar cá...

‑ Não tenho a certeza. Afeiçoei‑me a esta região. A verdade é que adquiri um barco que estava à venda. O senhor Peggotty diz que é um navio veleiro; na minha ausência será ele o patrão.

‑ Agora compreendo tudo, Steerforth! ‑ bradei, entusiasmado. ‑ Finges tê‑lo comprado para ti, mas na realidade queres ser útil ao senhor Peggotty. Devia tê‑lo adivinhado, conhecendo‑te como te conheço. Meu bom amigo, quanto aprecio a tua generosidade !

‑ Cala‑te! Quanto menos disseres, melhor será ‑ respondeu corando.

‑ Bem o sabia. Não disse já que tu compartilhavas das alegrias, dores e comoções desta boa gente?

‑ Sim, sim, disseste. Portanto, não se fala mais nisso. Parecia ligar ao caso tão pouca importância que eu me calei, receando ofendê‑lo, mas continuava a pensar no facto enquanto prosseguíamos o nosso caminho com passo rápido.

‑ O barco precisa de ser aparelhado de alto a baixo ‑ disse Steerforth. ‑ Littimer vai ficar aqui para vigiar, de modo a que não lhe falte nada. Não sabias que ele chegou esta manhã?

‑ Não.

‑ Pois é verdade. E trouxe‑me uma carta da minha mãe.

Os nossos olhares cruzaram‑se e eu notei que ele empalidecera. Tinha os lábios brancos. Todavia, fitava‑me sem pestanejar. Temi que um mal‑entendido entre Steerforth e a mãe fosse a causa desse acesso de melancolia que o acabrunhara à lareira dos Peggottys, e comuniquei‑lhe a minha suspeita.

‑ Ah, não! ‑ redarguiu, abanando a cabeça, com um riso breve.‑Nada disso! Pois o meu dedicadíssimo criado chegou hoje.

‑ Sempre o mesmo?

‑ Sempre. Tão distante e calmo como o Pólo Norte. Vai‑se mudar o nome da embarcação, que se chama Procelária.

‑ E como há‑de ser agora?

‑ Emily...

Steerforth continuava a fitar‑me e eu supus que o seu propósito era prevenir‑me de que não queria elogios. Contudo, não pude evitar que a satisfação se me estampasse na cara; quanto a falar, coibi‑me de o fazer. O meu amigo retomou então o seu ar risonho, como se aliviado.

‑ Mas espera ‑ observou ele, olhando em frente. ‑ Parece que a Emily vem ali. Com o noivo, hem? Um autêntico cavaleiro andante. Nunca a larga.

Ham, por essa época, era carpinteiro naval. Cultivando disposições naturais, tornara‑se excelente operário. Vestido com o seu traje de trabalho, rude mas viril, parecia ser o digno protector da criaturinha fresca e pura que o acompanhava. Tinha um semblante tão franco, mostrava tão sinceramente o amor que sentia e o orgulho que isso lhe despertava, que o achei, no íntimo, ser merecedor de mil venturas e estarem os dois perfeitamente talhados um para o outro.

Quando parámos para lhes falar, ela retirou timidamente a mão do braço de Ham e no‑la estendeu, corando. Trocámos algumas palavras, depois eles prosseguiram o seu caminho, mas desta vez, sempre um pouco tímida e constrangida, Emily não retomou o braço do noivo. Tudo isto me pareceu encantador, e Steerforth afigurou‑se‑me abundar nas mesmas ideias. Vimo‑los desaparecer ao longe, sob a claridade da lua‑nova.

De repente passou por nós uma rapariga. Dir‑se‑ia segui‑los. Não a tínhamos notado, mas, reparando melhor, achei que já a havia encontrado algures. Era de aspecto ousado e vestida de maneira berrante, mas ao mesmo tempo pobre; naquele instante, julgar‑se‑ia não ter outro fito senão o de ir no encalço do casal, que se perdera já numa linha de sombra entre as nuvens e o mar; daí a pouco ela também se dissipava ao longe.

‑ Que quererá isto dizer? ‑ perguntou Steerforth, detendo o passo. ‑ É um vulto sinistro...

Falava com voz sufocada, que eu considerei deveras estranha.

‑ Penso que os segue para lhes pedir esmola ‑ repliquei.

‑ Não seria caso inaudito uma mendiga, mas acho esquisito que tome essa forma, nesta noite.

‑ Porquê?

Steerforth meditou e respondeu:

‑ Pela simples razão de que eu pensava justamente em qualquer coisa análoga no momento em que ela passou por nós. Donde diabo poderia surgir?

‑ Da sombra desse muro, decerto ‑ sugeri.

‑ E desapareceu! ‑ exclamou o meu companheiro, olhando por cima do ombro. ‑ Oxalá desapareça também o mau agoiro. Agora vamos jantar.

No entanto, ainda olhou várias vezes para trás, para a linha do horizonte que brilhava ténue à distância, e várias vezes exprimiu, durante o curto trajecto que nos faltava, o seu espanto em frases breves e concisas. Só pareceu ter esquecido este incidente na ocasião em que nos achámos instalados confortável e alegremente à mesa, iluminados pelas velas e pela lareira.

Littimer estava presente e não deixou de me produzir o efeito costumado. Pedi‑lhe notícias das senhoras e ele respondeu‑me respeitosamente (e, já se sabe, com ar muito respeitável) que elas não iam mal e que me enviavam cumprimentos. Nada mais, e contudo tive a impressão de que acrescentava: «Como o senhor é novo, excessivamente novo!»

Acabávamos de jantar quando Littimer, saindo do seu canto (donde parecia espiar‑nos, ou melhor, espiar‑me), deu uns passos para nós e disse ao seu patrão:

‑ Desculpe, senhor, mas a senhora Mowcher está aqui.

‑ Quem? ‑ exclamou Steerforth, surpreendido.

‑ A senhora Mowcher.

‑ Essa agora! Que diabo faz ela cá?

‑ Parece que é natural destes sítios. Disse‑me que vem todos os anos por motivo de negócios. Encontrei‑a na rua esta tarde e perguntou‑me se poderia aparecer depois do jantar.

‑ Conheces a giganta de quem se fala, Bonina?

Fui obrigado a confessar, envergonhado por me ver inferior a Littimer neste assunto, que a senhora Mowcher me era totalmente desconhecida.

‑ Então tens de a conhecer ‑ ripostou Steerforth. ‑ É uma das sete maravilhas do mundo. Quando chegar a senhora Mowcher ‑ acrescentou, dirigindo‑se ao criado ‑ manda‑a entrar.

Eu fiquei cheio de curiosidade e excitadíssimo com a ideia de ver essa pessoa, tanto mais que o meu amigo desatava a rir sempre que eu fazia alusão à senhora Mowcher, recusando‑se a dar explicações. Esperei, pois, com viva impaciência. Havia já meia hora que tinham levantado a toalha e nos sentáramos ao canto do lume, diante de uma garrafa de vinho, quando se abriu a porta e Littimer anunciou com a impassibilidade que nunca o largava:

‑ A senhora Mowcher!

Olhei para o lado da porta, mas não vi nada. Continuei a olhar, pensando que a senhora Mowcher se demorava em excesso, quando, com profunda estupefacção, lobriguei atrás do canapé que avultava entre mim e a porta uma anã ofegante, a avançar balanceando o corpo. Devia ter uns quarenta a quarenta e cinco anos. A cabeça era enorme, a cara espessa, olhos cinzentos maliciosos, e braços tão curtos que, ao pretender pôr o dedo no nariz achatado (numa atitude trocista e olhando de soslaio para Steerforth), teve de deixar o braço a meio caminho e de agachar a cabeça. O queixo (ou antes, a papada) parecia tão gordo que escondia por inteiro as fitas e até o laço da touca. Não se lhe via pescoço nem cintura, e quase nada de pernas, pois, embora fosse acima da média até ao ponto em que, normalmente, devia ser a cintura, e se bem que terminasse, como o comum dos mortais, por um par de pés, era mulher tão pequenina que uma cadeira lhe serviu de mesa para nela colocar a bolsa que transportava. Esta criatura, vestida de modo original, uniu o dedo indicador ao nariz com a dificuldade que salientei; inclinava necessariamente a cabeça para uma banda, fechava um dos olhinhos e tomava um ar de perversidade postiça. Depois de ter observado Steerforth por momentos, deixou escapar uma torrente de palavras:

‑ O quê, minha flor? ‑ começou jovialmente, sacudindo a cabeça enorme. ‑ Está então aqui?! Que faz este menino travesso? Que faz tão longe da sua mamã? Nada de bom, seria capaz de apostar. Ah, o senhor é um sonso, e eu também sou uma sonsa. Hem? Ah, com certeza não esperava encontrar‑me aqui, não é verdade? Meu amigo, eu estou ao mesmo tempo em toda a parte, como a moeda que o prestidigitador descobre no lenço da senhora. A propósito de lenços e de damas, que consolo deve ser para a sua bondosa mamã. Estou quase a pôr as mãos no fogo!

Neste comenos a senhora Mowcher desatou as fitas da touca, lançou‑as para trás, e sentou‑se, arquejando, num tamborete diante do fogão, mesmo sob a mesa de mogno, cujo rebordo lhe servia, de certo modo, de abrigo.

‑ Oh, deuses ‑ prosseguiu ela, batendo nos joelhos e olhando‑me irónica. ‑ Sou muito gorda, Steerforth. Depois de ter subido a um andar, mal posso cobrar alento, como se houvesse carregado um balde de água. Se me visse da janela do último piso crer‑me‑ia bonita mulher, hem?

‑ Crê‑lo‑ia de qualquer maneira ‑ respondeu Steerforth.

‑ Ah, que pantomineiro! ‑ bradou a anã, ameaçando‑o com o lenço com que enxugava a testa. ‑ Nada de imprudências! O que lhe dou é a palavra de honra de que a semana passada me encontrava em casa de Lady Mithers... Essa é que se defende bem!

Esperava‑a, quando vejo aparecer Mithers em pessoa... Esse também sabe defender‑se! Tem a peruca bem conservada, há dez anos que a usa, e inundou‑me de cumprimentos, a tal ponto que estive para gritar por socorro. Ah, ah, ah! Não é desagradável, mas tem falta de princípios.

‑ Que fazia em casa de Lady Mithers? ‑ inquiriu Steerforth.

‑ São coisas que não lhe dizem respeito, meu menino ‑ retorquiu ela, batendo no nariz, fazendo caretas, piscando os olhos, a pontos de me parecer um duende em carne e osso. ‑ Queria saber se eu impeço os cabelos dela de caírem, ou se os tinjo, ou ainda se lhe arranjo a cara e as sobrancelhas, hem? Sabê‑lo‑á, quando eu lho disser. Lembra‑se do nome do meu bisavô?

‑ Não.

‑ Era Walker, meu menino, descendente de uma linhagem de Walkers, de quem herdei a propriedade de Hookey.

Jamais me fora dado observar um piscar de olhos como o da senhora Mowcher, nem uma confiança tão grande como a da mesma dama. Quando escutava uma resposta, tinha um modo extraordinário de inclinar a cabeça para o lado, um ar manhoso, de olho alerta, como as pegas. Eu estava deveras estupefacto e continuei a examiná‑la, sem me preocupar com as normas da civilidade.

Ela entretanto puxara para si a cadeira e começara a esvaziar a bolsa. Aí mergulhava o bracinho curto até ao ombro e tirava sucessivamente frascos, esponjas, pentes, escovas, bocadinhos de flanela, ferros de frisar e outros instrumentos. Pôs tudo isto sobre a cadeira e, suspendendo de repente a tarefa, perguntou a Steerforth, com grande atrapalhação para mim:

‑ Quem é o seu amigo?

‑ É o senhor Copperfield, que a deseja conhecer.

‑ Isso é facílimo. Bem parece ser o que ele desejava ‑ replicou a senhora Mowcher, que, sorridente, de bolsa na mão, se aproximou de mim bamboleando‑se. ‑ Que face de pêssego! ‑ exclamou, pondo‑se em bicos de pés para me beliscar a cara. ‑ Gosto muito de pêssegos. Muito prazer em conhecê‑lo, senhor Copperfield.

Informei‑a de que me considerava feliz por ter a honra de lhe ser apresentado, por isso o prazer era recíproco.

‑ Oh, meu Deus, como somos delicados! ‑ murmurou, fazendo menção de esconder, còmicamente, a cara larga por trás da mão minúscula. ‑ Que mundo de embustes!

Dizia isto em tom confidencial, dirigindo‑se ora a um ora a outro, e tirando a mão da face para a mergulhar outra vez na bolsa.

‑ Que quer dizer, senhora Mowcher? ‑ perguntou Steerforth.

‑ Ah, ah, ah, não há dúvida de que somos todos bons farsantes, não é verdade, meu menino? ‑ replicou a anã. ‑ Olhe, - acrescentou, extraindo qualquer coisa do saco. ‑ Eis fragmentos de unha do príncipe russo, príncipe alfabeto de trás para diante, porque tem no seu nome todas as letras baralhadas.

‑ Esse príncipe russo é seu cliente? ‑ indagou Steerf orth.

‑ É como diz. Sou eu quem, duas vezes por semana, lhe cuida das unhas das mãos e dos pés.

‑ E paga bem?

‑ Paga como fala... pelo nariz ‑ explicou a senhora Mowcher. ‑ Não tosquia as pessoas, como alguns que eu conheço. Mas também não tosquia os bigodes, que são ruivos de natureza e pretos pela arte.

‑ Devido aos seus artifícios, naturalmente ‑ disse Steerforth. A senhora Mowcher piscou os olhos afirmativamente.

‑ Viu‑se obrigado a recorrer a mim. Não pôde evitá‑lo. O nosso clima prejudica‑lhe a pintura. Na Rússia estava bem, mas aqui era impossível. Nunca se viu um príncipe tão cor de ferrugem...

‑ É por isso que o considera farsante?

‑ O senhor é a nata da rapaziada, meu caro ‑ retorquiu a senhora Mowcher, meneando novamente a cabeça. ‑ Referi‑me a todos nós em geral, e exibi fragmentos das unhas do príncipe, para o demonstrar. As unhas do príncipe ajudam‑me muito, mais do que todos os serviços que presto nos meios elegantes. Trago‑as sempre comigo. São as melhores referências: se a Mowcher corta as unhas do príncipe, seguramente que é alguém. Ofereço‑as às meninas, que as guardam nos seus álbuns, suponho eu. Ah, ah, ah! O conjunto do sistema social (como dizem os oradores no Parlamento) é baseado apenas nas unhas dos príncipes ‑ rematou aquela mulher de palmo e meio, diligenciando cruzar os braços e oscilando sempre a cabeça.

Steerforth riu com vontade e eu acompanhei‑o. A senhora Mowcher, entretanto, continuava a baloiçar a cabeça (que tinha sempre de banda), a levantar um dos olhos ao tecto e a piscar‑nos o outro.

‑ Ora, ora! ‑ prosseguiu ela, batendo nos joelhos e procurando erguer‑se. ‑ Isto não é vida. Chegue‑se, Steerforth, deixe‑me explorar as regiões polares e acabe‑se a coisa de vez.

Escolheu então dois ou três instrumentos pequeninos e um frasco, e eu, admirado, ouvi perguntar se a mesa era sólida. Steerforth respondeu‑lhe afirmativamente, e ela, apoiando a cadeira à mesa e pedindo‑me que lhe desse a mão, trepou com agilidade, como se subisse para um palco.

‑ Se algum dos senhores me viu os tornozelos ‑ observou ela, depois de estar empoleirada ‑ terei então de me suicidar.

‑ Eu não vi nada ‑ declarou Steerforth.

‑ Eu também não ‑ disse por meu turno.

‑ Nesse caso, consinto em viver ‑ volveu a senhora Mowcher. ‑ Agora, meu menino, preste‑se ao sacrifício.

Convidava assim o meu amigo a entregar‑se‑lhe nas mãos, e Steerforth sentou‑se de costas para a mesa, voltando para mim o rosto risonho. Deixou que ela lhe inspeccionasse a cabeça, evidentemente com o propósito apenas de nos divertir: era um espectáculo fantástico, esse de ver a senhora Mowcher, de pé por trás dele, a examinar‑lhe o cabelo castanho e abundante através duma lupa enorme que tirara da algibeira.

‑ Está muito bem ‑ participou após um exame breve. ‑ Sem mim estaria calvo em menos de um ano. Espere um instantinho, que já vamos fazer uma fricção para lhe conservar as ondas por mais dez anos.

Com isto, despejou um pouco do conteúdo do frasco num pedaço de flanela e numa das escovas, e começou a friccionar e escovar o crânio de Steerforth com energia extraordinária, sem todavia se calar um só momento.

‑ Charley Piegrave, filho do duque ‑ disse ela curvando‑se para olhar Steerforth por baixo do nariz ‑ tem umas suíças... conhece Charley?

‑ Assim, assim.

‑ Que homem! Quanto às pernas... se ao menos possuísse as duas, o que não é o caso... poderia desafiar qualquer competição. Imagine o que quiser, mas sempre lhe digo que quis passar sem mim... ele que é oficial da Guarda!

‑Que louco!‑comentou Steerforth.

‑ Pois, louco ou não, foi o que pretendeu. E então foi a um perfumista pedir um frasco de água de Madagáscar.

‑ Fez isso? O Charley?

‑ É verdade. Mas o perfumista não tinha.

‑ Que é? Alguma coisa que se beba?

‑ Que se beba! ‑ repetiu a senhora Mowcher.

E deteve‑se para lhe dar uma pancadinha na face.

‑ Serve para os bigodes. Estava lá na loja uma mulher que nunca ouvira falar daquilo e que perguntou a Charley: «Não será... carmim?» E ele: «Carmim»? Ora... (aqui um nome que não se diz na sociedade). Que julga que iria fazer com carmim? «Desculpe», tornou ela, «pensei que fosse Isto. Designam‑no por tantos nomes!» Pois aí está, meus meninos ‑ prosseguiu a senhora Mowcher ‑ a razão por que falei há pouco de farsantes. ‑ E continuou a friccionar o cabelo de Steerforth. ‑ Eu também uso esse processo.

‑ Que processo? ‑ acudiu o meu amigo. ‑ Refere‑se ao carmim?

‑ Digo que também uso esse processo, meu caro: há quem lhe chame pomada para os lábios, há quem o designe de outras maneiras; eu, por mim, dou‑lhe o nome que os clientes querem e forneço‑o. Quando aplico os meus cuidados às senhoras, perguntam‑me às vezes: «Que tal me achas, Mowcher? Estou ainda pálida?» Ah, ah, ah! Não é reconfortante, meu menino?

Nunca na minha vida eu assistira a cena semelhante: a senhora Mowcher, empoleirada numa mesa da casa de jantar, esfregando com ardor a cabeça de Steerforth e piscando‑me os olhos, encantada com o que acabava de relatar.

‑ Ah! ‑ recomeçou ela ‑ por estes sítios não pedem muitas coisas deste género. Isto obriga‑me a partir. Não vi uma única mulher bonita desde que estou aqui, Jimmy!

‑ Palavra?

‑ É o que lhe digo.

‑ Podíamos mostrar‑lhe uma em carne e osso ‑ sugeriu Steerforth, olhando para mim. ‑ Que tal, Bonina?

‑ Realmente...

‑ Oh!‑exclamou a senhora Mowcher, que me lançou uma olhadela. Depois curvou‑se a fim de olhar Steerforth de baixo para cima.‑Hum...

A primeira exclamação tinha o aspecto de ser uma pergunta feita a nós dois, a segunda dirigia‑se somente a Steerforth. Como nos calássemos, ela continuou a friccionar, de cabeça à banda e um dos olhos erguido ao tecto, como se dali viesse a explicação das suas dúvidas.

‑ É sua irmã, essa beldade? ‑ indagou a senhora Mowcher, depois de um silêncio e sempre na mesma atitude. ‑ Hem, senhor Copperfield?

‑ Não ‑ replicou Steerforth, sem me dar tempo a esclarecê‑la. ‑ Pelo contrário, Copperfield, se não me engano, era outrora um dos seus admiradores.

‑ O quê? Já não a admira? Oh, é assim tão volúvel? Anda de flor em flor, sugando‑as e mudando de contínuo, até que Polly lhe retribua a paixão? Chama‑se Polly?

Interpelou‑me com uma vivacidade de duende, acompanhada de um olhar inquisitorial. Por instantes, fiquei desconcertado.

‑ Não ‑ respondi. ‑ Chama‑se Emily.

‑ Ah! Senhor Copperfield, sou uma verdadeira matraca, não sou?

No tom de voz e no olhar houve qualquer coisa que me desagradou, tanto mais que se tratava da minha querida Emily. Redargui:

‑ Trata‑se de uma rapariga tão virtuosa quanto bonita: está noiva de um homem digno, que a merece e que pertence ao seu meio. Aprecio‑lhe tanto o bom senso como a sua beleza.

‑ Muito bem dito! ‑ interveio Steerforth.‑Agora vou satisfazer a curiosidade desta senhora, revelando‑lhe tudo. Está presentemente como aprendiza, no estabelecimento Omer e Joram, capelistas, chapeleiros, etc., etc., nesta mesma cidade. Há, pois, como acaba de dizer o meu amigo, uma promessa de casamento entre ela e o primo cujo nome de baptismo é Ham e cujo apelido é Peggotty. O rapaz trabalha nos estaleiros navais desta cidade, a rapariga vive com um tio: não sei qual é o primeiro nome, mas o apelido também é Peggotty; profissão, pescador. Ela é a pequena mais linda e sedutora que eu conheço. Admiro‑a deveras, como acontece ao meu companheiro. Se eu não tivesse medo de denegrir o noivo (o que sei que desagradaria a Copperfield) acrescentaria que a Emily malbarata as suas qualidades, pois que poderia conseguir coisa melhor. Palavra de honra que a considero nascida para ser uma senhora da sociedade.

A senhora Mowcher, de cabeça à banda e uma vista alçada ao tecto, escutou estas palavras com atenção e pareceu procurar uma resposta. Quando Steerforth se calou, ela readquiriu de súbito a costumada viveza e tagarelou com uma loquacidade surpreendente.

‑ Ah! Aí temos a história completa ‑ exclamou enquanto aparava as suíças de Steerforth com uma tesoura que lhe cintilava de roda da cabeça. ‑ Muito bem, muito bem. Contos largos... Isso devia acabar com o infalível «Viveram felizes muitos anos...» Não é verdade? Como é aquele jogo das prendas? Amo‑a com um E porque é Encantadora, detesto‑a com um E porque já está Empenhada... Levei‑a a uma Estalagem e propus‑lhe um Embarque. Mora para as bandas do Este... O seu nome é Emily. Ah, ah, ah! Não sou divertida, senhor Copperfield?

Olhou‑me com ar extraordinariamente ladino e, sem aguardar resposta, prosseguiu de um fôlego:

‑ Se jamais um birbante se aperfeiçoou ao máximo, esse foi o senhor, caro Steerforth; e se jamais houve uma cabeça em que eu possa ler à vontade, essa é a sua. Percebe o que lhe digo, meu menino? Conheço‑o ‑ continuou ela inclinando‑se para lhe observar o nariz. ‑ Agora pode retirar‑se, como se diz no tribunal. Se o senhor Copperfield se digna tomar‑lhe o lugar, eu operarei nele em seguida.

‑ Que te parece, Bonina? ‑ perguntou‑me Steerforth, rindo e oferecendo‑me o lugar. ‑ Queres que te embelezem?

‑ Obrigado, senhora Mowcher. Hoje, não.

‑ Não diga não ‑ replicou a anã, olhando‑me com ar entendido.‑ Um pouco mais de sobrancelhas?

‑ Agora, não, obrigado.

‑ Posso alongá‑las um nadinha para as fontes ‑ propôs a senhora Mowcher. ‑ Consegue‑se em quinze dias.

‑ Não, obrigado. Para outra vez.

‑ E quanto a um par de suíças? ‑ insistiu ela.

Recusei, mas não pude deixar de corar, porque aí é que era o meu ponto fraco. Enfim, a senhora Mowcher, vendo que eu não estava disposto a aproveitar‑me dos seus artifícios, declarou que seria então da próxima vez e, pedindo‑me lhe estendesse a mão para a ajudar a descer da mesa, saltou para o chão com grande presteza e em seguida começou a atar as fitas do chapéu sob o queixo.

‑ Quanto devo? ‑ perguntou Steerforth.

‑ Cinco xelins ‑ respondeu a senhora Mowcher ‑ e é de graça. Não sou estouvada, senhor Copperfield?

Repliquei com um «não, senhora», mas pensei que ela o era na verdade vendo‑a atirar ao ar as duas meias coroas, como um cozinheiro faz às panquecas, e tornar a apanhá‑las, insinuando‑as depois na algibeira, sobre que deu umas pancadinhas vigorosas.

‑ É o cofre!‑‑elucidou.

Estava de novo diante da cadeira e repunha na bolsa todos os objectos que de lá havia tirado.

‑ Não perdi nenhuma das minhas armadilhas? Parece que não. Não se trata de ser como o grande Ned Beadwood, que levaram à igreja para o «casar com alguém» (é ele quem o diz), mas esqueceram‑se da noiva. Ah, ah, ah, que maroto, esse Ned! Mas ridículo. Bem sei que lhes vou causar enorme desgosto, no entanto previno‑os de que me despeço. Sejam corajosos, e suportem esta dor. Adeus, senhor Copperfield. Trate de si, Jockey de Norfolk. Já falei de mais. Os senhores são os responsáveis. Mas perdoo‑lhes. Bom suar!, como dizem os ingleses que começam a aprender francês. Bom suar, amiguinhos.

Falando sempre, com a bolsa enfiada no braço, a senhora Mowcher encaminhou‑se para a porta, bamboleando‑se. Aí se deteve para inquirir se queríamos uma madeixa dos seus cabelos. «Não sou estouvada?», acrescentou, como apreciação da sua própria pessoa. E, pondo o dedo no nariz achatado, foi‑se embora.

Steerforth riu tanto que eu não resisti a acompanhá‑lo nessa expansão de hilaridade; mas creio que o não teria feito, se ele me não provocasse. Depois de rirmos bastante, comentou‑me o meu amigo que a senhora Mowcher conhecia uma porção de gente, a quem prestava serviços de toda a ordem. Muitas vezes não a tomavam a sério, considerando‑a uma excêntrica, mas na verdade ela tinha rara finura e espírito muito observador. Se os braços eram curtos, a cabeça era bem avantajada. Disse‑me ainda que a poderíamos julgar com poder de ubiquidade, pois estava em todos os lados ao mesmo tempo, na capital como na província, onde obtinha sempre novos clientes. Perguntei‑lhe qual seria, afinal, o seu carácter: se na realidade malévolo, ou se benigno. Fiz esta pergunta duas ou três vezes, mas, não conseguindo interessá‑lo no assunto, renunciei ao caso ou esqueci‑me de insistir mais. Em vez de me informar cabalmente a esse respeito, Steerforth elogiou a perícia da senhora Mowcher e falou‑me dos lucros que auferia, tudo isto numa dissertação muito rápida. E acabou declarando‑me que, se eu precisasse dela, até podia aproveitá‑la na aplicação de ventosas.

Este assunto continuou toda a noite; ao separarmo‑nos, Steerforth atirou‑me um bom suar do alto da escada, quando eu já me encontrava na porta da rua.

Quando cheguei a casa do senhor Barkis, admirei‑me de aí ver o Ham a passear cá e lá diante da entrada, e mais admirado fiquei ao saber que a Emily se achava no interior da residência. Perguntei‑lhe, naturalmente, por que se mantinha cá fora.

‑ É que ‑ replicou, hesitante ‑, Emily está em conversa com alguém...

‑ Suporia que essa razão fosse ainda maior para você se encontrar a seu lado...

‑ Sim, senhor Davy, noutra ocasião assim seria. Mas, bem vê ‑ esclareceu Ham, baixando a voz ‑, é uma rapariga com quem a Emily se dava... mas que não deve continuar a dar‑se...

A estas palavras lembrei‑me da pessoa que os seguira horas antes, e principiei a compreender.

‑ Trata‑se de uma pobre criatura, senhor Davy. Toda a gente daqui lhe cai em cima... Não há cadáver no cemitério que provoque maior repulsa.

‑ Será a que eu vi na praia, esta tarde? Logo depois de nos termos cruzado...?

‑ Seguia‑nos, não é verdade? ‑ observou Ham. ‑ Devia ser ela. Eu ignorava a sua presença, mas um pouco mais tarde a rapariga descobriu luz na janela de Emily e, aproximando‑se, disse assim: «Emily, por amor de Deus, condói‑te! Eu já fui como tu.» Ah, senhor Davy, que impressão fazia ouvir estas palavras!

‑ Realmente, Ham ‑ retorqui. ‑ E que fez a Emily?

‑ A Emily disse: «És tu, Martha? Oh, Martha, será possível que sejas tu?», porque elas tinham trabalhado juntas no senhor Omer, durante muito tempo.

‑ Agora me recordo! ‑ exclamei, lembrando‑me de uma das duas raparigas que eu vira aquando da minha primeira visita.

‑ Lembro‑me muito bem!

‑ É Martha Endell ‑ explicou Ham. ‑ É mais velha dois ou três anos que a Emily, mas andaram juntas na escola.

‑ Não lhe conhecia o nome. Mas estava a dizer que...

‑ Senhor Davy, quase toda a história se resume nisto: «Emily, Emily, por amor de Deus! Condói‑te de mim. Eu já fui como tu.» Queria falar à Emily, mas a Emily não podia falar‑lhe lá em casa, porque o nosso querido tio já havia voltado e não gostaria que... Não, senhor Davy ‑ prosseguiu Ham, cheio de convicção

‑ ele não gostaria, apesar de tão bondoso, de as ver juntas, nem por todos os tesouros escondidos no mar!

Compreendi perfeitamente. Sentia, nesse instante, o mesmo que o noivo de Emily.

‑ Então ‑ continuou este ‑ a Emily escreveu umas palavras a lápis, num pedacinho de papel, que ela deitou pela janela à Martha, para que o trouxesse cá. «Mostra isto à senhora Barkis, minha tia», disse Emily, «e, quando o meu tio sair, irei ter contigo.» Em seguida, contou‑me o que acabo de repetir, senhor Davy, e pediu‑me que a acompanhasse até aqui. Que podia eu fazer? Ela não deve dar‑se com uma rapariga dessa ordem, mas não podia recusar, vendo‑a com as lágrimas nos olhos.

Enfiou a mão pelo interior da camisola e retirou, com muitas precauções, uma bonita bolsa encarnada.

‑ Como se eu pudesse dizer que não, vendo‑a chorar, senhor Davy!‑ acrescentou Ham, pondo a bolsa carinhosamente na palma da mão rude. ‑ E como recusar‑lhe quando me confia isto e quando eu sei a razão por que traz a bolsa? É verdade que tem dentro pouco dinheiro... Querida Emily!

Depois de a haver guardado na algibeira, apertei‑lhe calorosamente a mão, gesto preferível às palavras. Durante uns minutos, passeámos na rua em silêncio. Então abriu‑se a porta e apareceu ao limiar a Peggotty, que fez sinal ao Ham para entrar. Quis ficar de parte, mas a minha velha criada pediu‑me que entrasse também. Preferiria, ao menos, não comparecer no quarto onde estavam reunidos, mas como se encontravam precisamente na cozinha e a porta de entrada dava logo para lá, achei‑me no meio deles antes de ter tempo de me compenetrar do facto.

A rapariga, que era na verdade a que eu vira na praia, estava sentada no chão, defronte da lareira, com a cabeça e os braços apoiados num banco. Pela sua atitude, calculei que Emily ocupara pouco antes esse banco e que a cabeça da infeliz devia então repousar‑lhe nos joelhos. Vi mal o rosto da pobre criatura, porque o cabelo, desatado (dir‑se‑ia que a própria o despenteara), lho ocultava em parte; mas percebi que era de pele fresca e ar juvenil. A Peggotty tinha chorado, e Emily chorara também. Quando entrámos, ninguém falou e, neste silêncio, o tiquetaque do relógio colocado perto do aparador parecia fazer duas vezes mais barulho que de costume.

Foi Emily quem falou em primeiro lugar:

‑ Martha quer ir a Londres ‑ disse ela ao noivo.

‑ A Londres porquê?

O rapaz estava entre ambas. Nunca esqueci a expressão do seu olhar: fitava compadecido a infeliz que se lhe amarfanhava aos pés, mas ao mesmo tempo experimentava ciúmes pelo facto de ela ser amiga da sua amada. Os dois exprimiam‑se como se se tratasse de uma doente, em voz baixa, sufocada, quase num murmúrio, mas no entanto distinguia‑se bem o que diziam.

‑ Mais vale que eu esteja em Londres do que nesta terra ‑ redarguiu Martha, que continuava imóvel. ‑ Lá, ninguém sabe quem eu sou, mas aqui todos me conhecem.

‑ Para fazer o quê? ‑ perguntou Ham.

Martha alçou a vista e lançou‑lhe um olhar sombrio; depois tornou a baixá‑la e passou o braço direito de roda do pescoço, no gesto doloroso de uma mulher ferida ou torturada pela febre.

‑ Esforçar‑se‑á por se comportar bem ‑ esclareceu Emily. ‑ Tu não sabes o que ela nos contou. Não é verdade, tia, que ele não sabe... que eles não sabem?

Peggotty, condoída, meneou a cabeça.

‑ É verdade ‑ disse Martha. ‑ Tentarei, se fizerem o favor de me valer. Já não posso fazer pior do que fiz. Devo portar‑me melhor. Oh! ‑ acrescentou num arrepio de medo ‑, ajudem‑me a deixar estas ruas onde todos me conhecem desde pequena!

Emily estendeu a mão a Ham e viu que este lhe entregava uma bolsinha. Pensando que era a sua, Emily aceitou‑a e deu uns passos, mas, notando o engano, voltou‑se para o rapaz (que recuara para o meu lado) e mostrou‑lhe o que tinha na mão. Ouvi o Ham responder:

‑ Pertence‑te, minha querida. Tudo o que é meu também é teu. Aos olhos de Emily afloraram novas lágrimas. Virou‑se para

Martha e deu‑lhe qualquer coisa, ignoro o quê: só vi que no corpete da amiga deslizavam moedas. Murmurou umas palavras e inquiriu:

‑ Chega?

‑ É de mais ‑ respondeu a outra, beijando‑lhe a mão. Então Martha levantou‑se, envolveu‑se no xaile, cobriu com ele a cara e, soluçando alto, dirigiu‑se lentamente, para a porta. No limiar, parou um instante como se quisesse retroceder ou dizer qualquer coisa, mas não proferiu uma só palavra. E saiu, soltando sempre o mesmo gemido sufocado, lúgubre, lamentoso.

Logo que a porta se fechou, Emily deitou‑nos um olhar rápido e, apoiando a cabeça nas mãos, principiou a soluçar.

‑ Não chores, Emily ‑‑ disse Ham, tocando‑lhe ao de leve no ombro. ‑ Não chores, minha querida.

‑ Oh, Ham! ‑ exclamou ela, chorando cada vez mais. ‑ Não sou tão boa como devia ser. Sei que no meu coração não existe o reconhecimento que devia haver.

‑ Ora se existe!‑replicou Ham.

‑ Não, não e não!‑soluçava ela, abanando a cabeça. ‑ Estou muito longe de ser tão boa como devia. Muito longe!‑E continuou a chorar como se o coração lhe estalasse. ‑ Ponho o teu amor exposto a uma prova rude ‑ prosseguiu Emily. ‑ Às vezes ando de mau humor, e caprichosa contigo. Por que razão procedo assim, se a minha obrigação era mostrar‑me sempre grata e fazer‑te feliz?

‑ Tornas‑me sempre feliz, minha querida ‑ insistiu Ham. ‑ Basta‑me ver‑te para o ser. Sou feliz o dia inteiro, só por pensar em ti!

‑ Não basta ‑ replicou ela. ‑ É por seres bom e não por eu ser boa. Oh, caro Ham, como teria valido mais que fosse outra a amar‑te! Uma rapariga mais sensata, mais digna de ti, que te pertencesse toda inteira. Nunca uma pessoa tão fútil e volúvel como eu.

‑ Este coraçãozinho...‑comentou Ham em voz baixa. ‑ Martha transtornou‑o.

‑ Peço‑lhe tia ‑ disse Emily. ‑ Venha cá, deixe‑me descansar a cabeça no seu regaço. Sinto‑me tão infeliz esta noite! Tia, eu não sou tão boa como devia ser. Sei bem que não sou.

Peggotty foi sem demora sentar‑se perto do lume, e Emily, ajoelhando diante dela, passou‑lhe os braços de roda do pescoço, fitando‑a com olhos suplicantes.

‑ Socorra‑me, tia, peço‑lhe. Meu caro Ham, socorre‑me também. E o senhor Davy igualmente, em nome da nossa velha amizade, por favor! Eu queria ser melhor, cem vezes melhor! Queria compreender que é uma bênção ser a mulher dum rapaz digno e levar uma vida tranquila.

Escondeu a cara nos joelhos da minha velha criada, e, cessando esse apelo cujos acentos de dor dilacerante eram tanto de criança como de mulher (como, aliás, toda a sua maneira de ser), principiou num choro silencioso, enquanto Peggotty a acalentava como se faz a um nené.

Sossegou a pouco e pouco e nós tratámos de a consolar prodigalizando‑lhe incitamentos e chegando a gracejar. Por fim Emily ergueu a cabeça, sorriu e acabou rindo: endireitou‑se, ainda um pouco confusa, e Peggotty compôs‑lhe o cabelo desmanchado, enxugou‑lhe os olhos, tudo de modo que o tio, à volta, não perguntasse se aquela sobrinha querida havia chorado.

Nessa noite vi‑a fazer uma coisa que nunca tinha visto antes. Beijou castamente a face do noivo e cingiu‑se ao corpo dele, como a um apoio natural. Quando se afastaram, sob o luar, segui‑os com os olhos, comparando essa partida à de Martha, e notei que ela lhe agarrava o braço com as duas mãos e o apertava fortemente.

 

CONCORDO COM O SENHOR DICK E ESCOLHO UMA PROFISSÃO

Na manhã seguinte, ao acordar, pensei muito em Emily e na sua comoção da véspera, após a partida de Martha. Parecia‑me ser da minha obrigação guardar fielmente o segredo daquela cena íntima de abandono e ternura e que seria mal feito, da minha parte, contar fosse a quem fosse, mesmo a Steerforth. Por ninguém deste mundo experimentava eu sentimentos mais ternos do que por essa deliciosa criaturinha que fora outrora minha companheira de jogos e que (estava persuadido de que o seria até à morte) eu amava então com tamanho enlevo. Achava ser uma acção vil e indigna de mim, indigna da nossa infância tão pura (e cuja claridade parecia ainda aureolar‑me), repetir, mesmo a Steerforth, o que a rapariga não conseguira dissimular quando o acaso me permitira ler‑lhe no coração. Resolvi, por consequência, guardar tudo isso para mim, e a imagem de Emily assumiu até novo encanto.

Íamos tomar o primeiro almoço quando me trouxeram uma carta da tia Betsey. Nela se tratava de um assunto em que Steerforth me poderia aconselhar tão bem como outrem, e eu rejubilei à ideia de o consultar; deliberei, pois, falar‑lhe durante a nossa viagem de regresso: por então havia muito ainda que fazer, pois devíamo‑nos despedir de todos os amigos. O senhor Barkis não era o último (longe disso) a lamentar a nossa partida, e bem me parece que extrairia mais um guinéu do seu baú se assim nos pudesse reter por umas vinte e quatro horas em Yarmouth. A nossa ausência ia mergulhar na desolação toda a família Peggotty. A casa Omer & Joram, patrões e empregados, veio em peso dizer‑nos adeus; na ocasião de colocar a bagagem na diligência, os marítimos acorreram em tão grande número, para oferecer benevolamente os seus serviços a Steerforth, que mesmo que tivéssemos dez vezes mais de malas não deixaríamos de encontrar portador. Em suma, partimos no meio das saudades e da admiração de todos, deixando atrás de nós muitos corações alanceados.

‑ Ainda se demora muito, Littimer? ‑ perguntei ao criado, quando ele assistia à nossa partida.

‑ Não, senhor ‑ respondeu. ‑ Não é provável.

‑ Não poderá dizer‑observou Steerforth. ‑ Sabe o que tem de fazer, e cumprirá o encargo.

‑ Não duvido ‑ acrescentei.

Littimer tirou o chapéu como para me agradecer a minha frase justa; voltou a tirá‑lo para nos desejar boa viagem, e ficou lá especado, no meio da rua, tão misterioso e respeitável como uma pirâmide do Egipto.

Por momentos não trocámos palavra. Steerforth estava anormalmente silencioso; quanto a mim, pensava quando tornaria a ver a minha terra natal e nas alterações que, ela e eu, sofreríamos até esse momento. Por fim Steerforth, de novo alegre e falador (tinha o dom de mudar subitamente de disposição), puxou‑me por um braço e disse:

‑ Que fizeste da língua, David? Que há acerca dessa carta de que me falaste ao almoço?

‑ Ah, a carta da tia Betsey!‑repliquei, tirando o papel da algibeira.

‑ E que há aí de tão importante?

‑ Minha tia, Steerforth, recorda‑me que empreendi esta viagem no propósito de observar e reflectir um pouco.

‑ Naturalmente foi o que fizeste.

‑ Talvez não... A bem dizer, parece que me esqueci disso.

‑ Pois emenda‑te da tua negligência ‑ volveu Steerforth. ‑ Olha à direita e verás um país plano e muito pantanoso; olha à esquerda, é a mesma coisa. Olha em frente e atrás... e é sempre o mesmo.

Respondi‑lhe, rindo, que a paisagem, decerto em razão da sua lisura, me não sugeria a ideia de qualquer profissão que me conviesse.

‑ E que diz a tua tia? ‑ perguntou Steerforth, lançando uma olhadela à carta que eu conservava na mão. ‑ Tem alguma ideia?

‑ Tem. Quer saber se me agradaria ser solicitador. Que te parece?

‑ Sei lá ‑ retorquiu pacificamente. ‑ Ou isso ou outra coisa. Não pude coibir‑me de rir de novo e observei‑lhe que, para ele,

Steerforth, todas as profissões se equivaliam. E acrescentei:

‑ Em suma, que é isso de solicitador?

‑ É uma espécie de advogado. Trabalha num tribunal prestes a desaparecer, que funciona nos Doctor's Commons, lugar sossegado, perto do cemitério de São Paulo. Serviço semelhante ao de tribunal de Justiça. Essa função já devia estar extinta há mais de cem anos. Aí se aplica o Direito Canónico e se lida com os Actos do Parlamento, verdadeiros monstros pré‑históricos que a população quase ignora por completo ou julga que se desenterraram, como fósseis, no tempo dos descendentes do rei Eduardo. É aí também que, em virtude de um antigo privilégio, se dirimem questões relativas a testamentos, contratos de casamento, e processos marítimos.

‑ Que disparate, Steerforth ‑ exclamei. ‑ Não me digas que há relação entre os processos eclesiásticos e os marítimos!

‑ Não é bem assim, meu caro. Digo apenas que tudo isso está nos Doctor's Commons. Se lá fores vê‑los‑ás percorrer metade das páginas do Dicionário de Young em cata de termos náuticos por causa do abalroamento do Nancy com o Sarah Jane, ou porque o senhor Peggotty e os barqueiros de Yarmouth lançaram um cabo, em ocasião de tempestade, ao Nelson, paquete da carreira das índias, que estava em perigo. Noutra ocasião vê‑los‑ás entregues ao estudo dos depoimentos, favoráveis ou desfavoráveis, acerca de um ministro da Igreja cujo comportamento levantou dúvidas, É possível que o juiz esteja ocupado do processo marítimo e o causídico do processo eclesiástico, ou vice‑versa. São como os actores, tanto fazem um papel como outro. Mudam continuamente. Mas é sempre uma espécie de teatro apresentado a um auditório selecto.

‑ Então solicitador e advogado não vem a dar no mesmo? ‑ indaguei um tanto perplexo.

‑ Não. Os advogados tiraram carta na Universidade (o que explica a razão de eu estar tão ao facto disto). Os solicitadores aproveitam‑se dos advogados. Uns e outros são bem pagos e formam um grupo muito próspero. Em resumo, David, se devo dar‑te um conselho, decide‑te pelos Doctor's Commons. Acrescentarei se te apraz, que os solicitadores não se envergonham nada da sua profissão.

Sem desprezar a ironia com que Steerforth tratara o assunto, lembrei‑me da gravidade solene desse «lugar sossegado perto do cemitério de São Paulo» e achei que a proposta da senhora Trotwood me não desagradava de todo. Aliás, a tia deixava‑me a maior liberdade na decisão e não escondia que tal ideia lhe ocorrera recentemente quando fora a esse tribunal consultar o seu procurador a fim de testar a favor da minha pessoa. Comuniquei isto a Steerforth.

‑ É em todo o caso, muito louvável da sua parte ‑ opinou o meu amigo ‑ e merece ser atendido. Bonina, aconselho‑te os Doctor's Commons.

A decisão estava tomada. Expliquei a Steerforth que a tia me esperava em Londres (como já se via pelo carimbo da carta): reservara aposentos por uma semana na Lincoln's Inn Fields, estalagem que tinha a vantagem de uma escada de serviço e porta de acesso fácil para o telhado. A tia estava persuadida de que todas as casas desse género, em Londres, podiam de um momento para outro ser pasto das chamas.

O resto da jornada decorreu agradavelmente. De vez em quando tornávamos a falar da profissão escolhida, pensando nos tempos ainda distantes em que eu seria solicitador. Steerforth aludia ao caso de forma tão cómica que nos fazia rir a bandeiras despregadas. Quando chegámos ao termo da viagem, Steerforth foi para a sua residência, prometendo ir visitar‑me no dia seguinte, e eu tomei um trem para a Lincoln's Inn Fields, onde a tia me esperava para jantar.

Se eu tivesse dado a volta ao mundo, desde que nos víramos pela última vez, não seria maior o prazer que sentimos com o reencontro. A tia chorou beijando‑me, e disse, com ar de riso, que se a minha mãe fosse viva não teria igualmente deixado de chorar.

‑ Com que então ‑ observei ‑ a tia abandonou o senhor Dick? Janet ‑ acrescentei, dirigindo‑me à criada ‑ como vai isso?

Janet fez uma vénia e estimou que eu estivesse de saúde. Notei nessa ocasião que o rosto da senhora Trotwood tomava um aspecto taciturno.

‑ Estou desolada ‑ declarou. ‑ Desde que aqui cheguei não tenho um momento de descanso. ‑ Antes que eu pudesse indagar a causa do seu desassossego, ela continuou: ‑ Creio que o nosso Dick não tem jeito para escorraçar os burros. Estou convencida de que esse homem é um fraco. Devia ter deixado Janet no seu lugar, e talvez me encontrasse agora mais tranquila. Se alguma vez um burro me pisou a relva ‑ sentenciou martelando as palavras‑ foi esta tarde às quatro horas. Fui tomada de um arrepio dos pés à cabeça, e fiquei com a firme impressão de que fora um burro.

Tentei, baldadamente, acalmá‑la.

‑ Era um burro ‑ insistiu ela ‑ e com certeza o burro de cauda cortada que montava aquela irmã do Murdstone ou lá como se chama ele. Se há burro em Dover mais atrevido, juro que é o tal!

Janet ousou observar que a tia talvez se inquietasse sem razão; que em seu parecer o dito burro se ocupava agora no transporte de areia e cascalho, e não estava, portanto, disponível. Mas a tia não lhe deu ouvidos.

Os aposentos escolhidos na estalagem eram no andar mais elevado, naturalmente para se achar mais perto do telhado, em caso de incêndio. O jantar foi bem servido; compunha‑se de galinha cozida, bife, legumes, tudo excelente. A tia, que tinha ideias pessoais quanto à alimentação de Londres, comeu por isso mesmo muito pouco.

‑ Esta pobre galinha ‑ disse ela ‑ nasceu nalguma cave, onde foi criada. Quanto ao bife, espero que seja de vaca, mas tenho pouca confiança. Em minha opinião só é autêntica, nesta cidade, a lama.

‑ Não acha possível, tia ‑ redargui ‑ que a galinha viesse do campo?

‑ Com certeza que não. Que prazer teria um londrino em vender uma coisa pelo que ela é realmente?

Não procurei contradizê‑la, mas jantei oplparamente, com grande satisfação da tia. Uma vez levantada a mesa, Janet ajudou a patroa a pentear‑se, a pôr a touca de dormir (mais elegante que do costume, para a hipótese do incêndio, explicou ela) e a colocar‑lhe o vestido, dobrado, em cima dos joelhos, tudo preparativos usuais destinados a aquecê‑la antes de se deitar. Depois ocupei‑me do copo de vinho com água quente, consoante as regras imutáveis de que jamais nos devíamos afastar, assim como da torrada, que cortava sempre em tiras compridas: a tia, olhando‑me com ternura, sob os folhos da touca, principiou a tomar o vinho, no qual molhava as tiras de torrada.

‑ Ora muito bem, Trot, que dizes à ideia de fazer de ti um solicitador? Talvez ainda não reflectisses no caso...

‑ Reflecti bastante, tia Betsey, e falei disso ao Steerforth. A proposta é sedutora.

‑ Ainda bem. Estimo muito que te agrade.

‑ Só tenho uma objecção...

‑ Diz lá ‑ replicou a tia.

‑ É esta: gostava de saber se essa carreira, tão reservada, lhe vai custar um preço excessivo.

‑ O estágio custa exactamente mil libras.

‑ Já vê como isso me preocupa ‑ insisti, aproximando a cadeira.‑ É muito dinheiro! Já gastou tanto comigo, em matéria de educação, além das despesas que a sua generosidade a tem obrigado a fazer. Deve haver outra profissão menos dispendiosa, em que eu poderia iniciar‑me com menos gastos mas na qual triunfasse à custa de boa vontade e coragem. Não acha que seria preferível? Está certa de que dispõe de tão elevada importância? A senhora tem sido para mim uma segunda mãe e eu peço‑lhe que reflicta no assunto.

A senhora Trotwood, fitando‑me, acabou o bocado de pão que estava a comer, descansou o copo na prateleira do fogão e, cruzando as mãos sobre o vestido dobrado, respondeu‑me nestes termos:

‑ Trot, meu filho, só tenho um fim na vida: é o de fazer de ti um homem bom, sensato e feliz. Insisto nisso, assim como o senhor Dick. Gostaria que certas pessoas que eu conheço escutassem as conversas de Dick a este respeito. Que extraordinária sagacidade! Infelizmente, apenas eu estou ao par dos recursos do seu intelecto.

Interrompeu‑se um instante e tomou a minha mão entre as suas.

‑ É inútil ‑ continuou ‑ recordar o passado, a não ser que influencie o presente. Talvez eu me entendesse melhor com o teu pai. Talvez pudesse entender‑me melhor com a tua pobre mãe, mesmo depois da decepção que me causou tua irmã Betsey Trotwood. Devo ter pensado em tudo isto quando chegaste à minha casa, como um fugitivo, coberto de poeira e extenuado. Desde então, Trot, só me tens dado satisfação, tens sido o meu orgulho e alegria... Ninguém se arroga direitos aos meus bens, pelo menos ...‑ Aqui, com surpresa minha, hesitou e pareceu constrangida. ‑ Não, ninguém se arroga direitos, salvo tu, e és meu filho adoptivo. Contenta‑te com ser afectuoso para mim, na minha velhice, e tolera‑me os caprichos e manias. Agradarás a uma velha cuja mocidade não foi tão venturosa nem tão triste quanto poderia ser, e farei o que nenhuma outra fez por ti.

Era a primeira vez que eu ouvia a senhora Trotwood aludir ao seu passado, e isto de uma forma tão nobre, tão calma e simples ‑ como se falasse de uma vez para sempre ‑ que maior seria o meu respeito e afecto se não fossem tão grandes.

‑ Fica, pois, entendido e combinado entre nós, Trot ‑ concluiu a tia. ‑ Não falemos mais no caso. Beija‑me, e amanhã de manhã, depois do almoço, iremos aos Doctor's Commons.

Conversámos ainda um bom bocado ao canto do fogão, antes de nos irmos deitar. O meu quarto era no mesmo andar do da tia, que me acordou várias vezes durante a noite batendo‑me à porta sempre que ouvia o rumor de carruagens... para me perguntar se havia incêndio. De manhã, porém, sossegou e deixou‑me dormir em paz.

Pelo meio‑dia, encaminhámo‑nos para o escritório dos doutores Spenlow e Jorkins, advogados. A tia, que abundava na ideia geral de que todos os transeuntes eram carteiristas, confiou‑me a bolsa, na qual guardava dez libras esterlinas e moedas de prata.

Detivemo‑nos em frente de uma loja de brinquedos de Fleet Street para ver os gigantes da igreja de São Dustano martelar nos sinos do relógio (fizéramos de maneira a estar ali ao meio‑dia em ponto); depois continuámos o nosso caminho em direcção a Ludgate Hill, quando notei que a senhora Trotwood apressava o passo e parecia alarmada. Vi ao mesmo tempo um homem pobremente vestido e de mau aspecto, que parara (tendo antes olhado uns momentos para nós); em seguida o sujeito principiou a seguir‑nos de tão perto que roçava quase a saia da tia.

‑ Trot, querido Trot ‑ disse ela, num murmúrio de terror, apertando‑me o braço ‑ não sei que hei‑de fazer!

‑ Esteja tranquila ‑ retorqui. ‑ Não há motivo para ter medo. Entre numa loja e eu tratarei de a livrar do homenzinho.

‑ Não, não, filho! Peço‑te que não lhe fales. Ordeno‑te.

‑ Meu Deus, tia, é apenas um mendigo mais descarado.

‑ Não o conheces. Não sabes quem é. Não sabes o que dizes. Exprimindo‑nos deste modo, parámos sob uma porta. O desconhecido fez o mesmo.

‑ Não olhes para ele ‑ disse a tia, quando me virara com ar indignado ‑, mas chama um trem e vai esperar por mim no cemitério de São Paulo.

‑ Esperá‑la? ‑ repeti.

‑ Sim, convém que eu vá sozinha. Tenho de ir com ele.

‑ Só com ele, tia? Com este homem?

‑ Sei o que digo. Tenho de ir com ele. Chama um trem!

Por maior que fosse a minha estupefacção, compreendi que não tinha o direito de recusar‑me a obedecer a uma ordem tão peremptória. Dei uns passos rápidos e fiz sinal a uma carruagem vazia que passava. Mal abaixara o degrau, a tia precipitou‑se, seguida pelo homem: esboçou um gesto para me afastar e entrou no veículo, dizendo ao cocheiro que seguisse não sei para onde, e o trem partiu imediatamente, subindo a rua íngreme. Eu fiquei e fui ter ao cemitério, conforme o combinado, onde esperei cerca de meia hora. Então vi aparecer o trem, que parou onde eu me encontrava; a tia estava só lá dentro.

Lembrei‑me do que me dissera o senhor Dick a respeito de uma pessoa misteriosa que vagueara de noite pelos arredores da vivenda. Supusera eu, então, que fosse ilusão da sua parte. Quem podia ter tanto ascendente sobre ela? O caso é que ainda não estava refeita da comoção sofrida. Entretanto pediu‑me que subisse e ordenou ao cocheiro que desse uma voltinha.

‑ Meu filho, nunca me perguntes quem era nem faças nenhuma alusão ao incidente.

Não disse mais nada até ao momento em que, recobrando a calma, me declarou que já se sentia bem e que nos podíamos apear. Entregou‑me outra vez a bolsa, para que eu pagasse a corrida. O ouro havia desaparecido todo: só restavam as moedas de prata.

Entrava‑se nos Doctor's Commons por uma porta abobadada. Mal déramos uns passos na rua que para lá se abria, sentimos atenuar‑se o rumor da cidade, transformando‑se num zumbido longínquo. Atravessámos uma série de pátios melancólicos e corredores estreitos e achámo‑nos diante da banca dos advogados Spenlow e Jorkins. No átrio desse templo em que os fiéis eram admitidos sem se anunciar, trabalhavam três ou quatro escreventes. Um deles, pequenino e magro, cuja peruca tesa e acastanhada parecia um pão de espécie, levantou‑se para receber a minha tia e introduziu‑nos no gabinete do doutor Spenlow.

‑ O senhor doutor está no tribunal, minha senhora ‑ disse o escrevente. ‑ É dia de audiência. Mas como é aqui perto, vou já mandar‑lhe recado.

Deixou‑nos, e eu aproveitei a oportunidade para deitar uma vista de olhos derredor. O mobiliário da sala era antiquado e estava coberto de pó. O pano verde da secretária apresentava‑se desbotadíssimo, e na dita secretária só se viam maços de papéis em que se lia Alegações ou Libelos, uns pertencentes a um juízo, outros a juízo diferente. Quanto tempo me seria necessário para compreender tudo isso? Havia vários autos de depoimentos, solidamente unidos e cosidos, formando um livro para cada processo, e cada processo devia ser uma história em dez ou vinte volumes. Quanto não custaria aquilo? Eis o que me dava uma ideia agradável da profissão de solicitador! Olhava em volta de mim, com satisfação crescente, quando ressoaram passos rápidos no átrio e o doutor Spenlow, de toga preta adornada de arminhos, entrou à pressa no gabinete, tirando a gorra.

Era um homenzinho loiro, impecavelmente calçado, com gravata branca e colarinho engomado maravilhosamente. A casaca estava abotoada até ao pescoço; as suíças, frisadas com esmero, deviam dar‑lhe imenso trabalho. Tinha uma corrente de relógio tão maciça que imaginei ser preciso, para a puxar, uma daquelas mãos douradas que servem de insígnia nas lojas dos batedores de ouro. Pareceu‑me rígido ao máximo, pois mal se podia curvar; uma vez sentado, tinha de desmanchar toda a rima de documentos para poder tirar este ou aquele.

A tia Betsey apresentou‑me e ele acolheu‑me cheio de cortesia, dizendo:

‑ Com que então, senhor Copperfield, deseja entrar para o foro? Já informei a senhora Trotwood, quando tive o gosto de a receber aqui outro dia, que havia cá uma vaga. A senhora Trotwood dignou‑se comunicar‑me a existência de um sobrinho por quem se interessava muito e que pretendia estabelecer uma carreira decente. É a esse sobrinho, calculo, que tenho o prazer de...

Inclinou‑se, e eu fiz o mesmo, à laia de aquiescência. Depois expliquei que, de facto, a minha tia me dissera haver uma vaga e que o lugar me agradava. Que a profissão condizia com as minhas preferências e que aceitara logo a sugestão. Gostaria, porém, de a conhecer melhor. E que, embora fosse apenas uma formalidade, esperava me dessem o ensejo de me certificar de que a carreira me convinha, antes de a abraçar irrevogàvelmente.

- Oh, sem dúvida, sem dúvida! ‑ exclamou o doutor Spenlow. ‑ Aqui propomos sempre um mês de estágio. Por mim achava preferível dois ou três meses, ou mais ainda, mas tenho um sócio, o doutor Jorkins ...

‑ E o preço da admissão é de mil libras? ‑ indaguei.

‑ Sim, senhor, mil libras, incluindo os direitos de inscrição ‑ replicou o doutor Spenlow. ‑ Como já notei à senhora Trotwood, eu não estou interessado. Poucos o estão menos do que eu. Mas o doutor Jorkins tem as suas ideias a esse respeito e eu devo acatá‑las. Na realidade, o meu colega acha que as mil libras é pouco ...

‑ Não sei, senhor doutor ‑ atalhei, querendo defender sempre os interesses da minha tia ‑, se é costume, aqui, ao admitir um empregado que se torne particularmente útil e fique logo dentro dos segredos do ofício... ‑ Não pude coibir‑me de corar, pois tinha o aspecto de que me gabava‑ ... não sei se é costume conceder‑lhe ...

O doutor Spenlow, com grande esforço, conseguiu desembaraçar a cabeça do colarinho, para a abanar, e não me deixou acrescentar à minha frase a palavra «gratificação».

‑ Não ‑ declarou ele. ‑ Não quero dizer que, pessoalmente, eu não considerasse a justiça do caso, senhor Copperfield, se tivesse as mãos livres. Mas o doutor Jorkins é inabalável nesse ponto.

Senti‑me apavorado à ideia desse terrível Jorkins, mas vim depois a verificar que se tratava de um homenzinho brando, melancólico, cujo papel consistia em manter‑se à parte e ser constantemente citado como o mais duro, o mais impiedoso dos homens. Se um praticante pedia aumento de ordenado, o doutor Jorkins não queria saber nada disso; se um constituinte tardava em pagar a conta de honorários, o doutor Jorkins exigia a sua satisfação; e embora isto fosse penoso para o compassivo doutor Spenlow (como acontecia sempre), o doutor Jorkins é que não perdoava. O bondoso Spenlow estava sempre pronto a todas as condescendências, mas o perverso Jorkins cortava‑lhe de contínuo as vazas. Mais tarde conheci muitos estabelecimentos que funcionavam segundo o princípio Spenlow‑Jorkins.

Ficou combinado que eu podia começar o estágio quando quisesse e que a tia Betsey não seria obrigada a permanecer em Londres até esse início da minha carreira, nem precisaria de voltar à capital, porque facilmente lhe mandariam o contrato para assinar. Após isto, o doutor Spenlow prontificou‑se a levar‑me sem demora ao tribunal para eu fazer uma ideia do que era e, como eu o desejasse com ardor, aí fomos, abandonando a senhora Trotwood, a quem todos os tribunais produziam o efeito de minas que poderiam rebentar de um momento para outro.

O advogado conduziu‑me por um pátio lajeado, com austeras construções de tijolos em toda a volta. Supus, vendo os nomes que encimavam todas as portas, serem residências oficiais dos doutores eminentes de quem Steerforth me falara. Em seguida introduziu‑me numa sala vasta, que se me afigurou uma capela: a extremidade da sala era dividida por uma barra, e aí, nos dois lados de um estrado em forma de ferradura, estavam sentados em poltronas confortáveis vários senhores de peruca branca e toga encarnada ‑ precisamente os doutores da Lei. A meio da ferradura, um senhor de olhos piscos ocupava uma espécie de cátedra: se o tivesse visto numa gaiola decerto o tomaria por um mocho, mas afinal informaram‑me que era o presidente do tribunal. Na mesma parte, mas um pouco mais abaixo, isto é, ao nível do estrado, os colegas do doutor Spenlow, revestidos como ele de toga ornada de arminhos, sentavam‑se a uma mesa comprida coberta de baeta verde. Usavam gravata rígida e mostravam um ar altivo, mas depois verifiquei ser má interpretação minha, porque a uma pergunta do presidente, dois ou três responderam com inesperada humildade. O público compunha‑se de um rapaz, com um lenço de lã ao pescoço, e de um sujeito que comia às escondidas bocados de pão que tirava da algibeira do sobretudo: ambos se aqueciam junto do fogão que ocupava o meio da sala.

A tranquilidade embaladora do local era perturbada pelo crepitar do lume e pela voz de um dos advogados; este dava a impressão de que passeava ao longo de uma biblioteca de provas testemunhais, e que parava, de vez em quando, à beira de uma estalagem de debates, no decurso da sua jornada. Em resumo, nunca na minha vida eu assistira a uma pequenina reunião de família tão íntima, tão sonolenta, tão arredada do mundo, e pensei que seria um delicioso soporífero fazer parte dela sob qualquer título, excepto o de litigante.

Satisfeitíssimo com a atmosfera de sonho desse retiro, declarei ao doutor Spenlow que já vira o suficiente, e nós voltámos para o lado da senhora Trotwood, em cuja companhia cedo deixei os Doctor's Commons. Ao abandonar o escritório dos advogados, senti‑me infinitamente remoçado: nessa altura os escreventes deram cotoveladas uns nos outros, indicando‑me com as penas que empunhavam.

Chegámos sem novidade à Lincoln's Inn Fields, não falando no espectáculo de um pobre burro atrelado à carroça de um vendedor de hortaliça, que despertou as recordações da tia Betsey. Uma vez dentro da estalagem, repisámos o assunto da minha carreira e, como eu sabia que a senhora Trotwood tinha pressa de regressar à sua vivenda, e que não podia gozar Londres à vontade por causa dos incêndios, da comida e dos ladrões, roguei‑Lhe que não se preocupasse comigo e me deixasse desenvencilhar sozinho.

‑ Desde que estou aqui ‑ disse ela ‑ tenho pensado também na tua instalação. Há uns aposentos mobilados, agora vagos, em Adelphi. Estão mesmo a calhar para ti, meu caro Trot.

Com isto, extraiu da algibeira um anúncio, que recortara cuidadosamente do jornal. Os aposentos ficavam na Buckingham Street, com vista para o rio, tudo muito agradável e próprio para um cavalheiro novo, um membro do tribunal, etc. Podiam ser ocupados imediatamente. Preço módico. Cediam‑se, querendo, só por um mês.

‑ É uma pechincha, tia! ‑ exclamei, corado de prazer pela ideia de ter a minha instalação condigna.

‑ Nesse caso, vamos ver ‑ ripostou ela, tornando a pôr o chapéu que pouco antes tirara.

Eis‑nos, pois, de novo a caminho. O anúncio dizia que se dirigissem ao local, à senhora Crupp. Tocámos à porta de serviço, supondo que a campainha iria soar no alojamento da referida dama, mas tivemos de o fazer duas e três vezes antes que esta se dignasse responder. Por fim apareceu. Era uma mulher opulenta, de saia de folhos, de flanela, e corpete de algodão amarelo.

‑ Podemos dar uma vista de olhos ao apartamento? ‑ perguntou‑lhe a tia.

‑ É para este senhor? ‑ retorquiu a senhora Crupp, procurando as chaves na algibeira.

‑ Sim, é para o meu sobrinho.

‑ Aposentos lindíssimos para um rapaz! ‑ comentou a dona da casa.

Subimos. Os quartos ficavam no último andar, o que para a minha tia representava grande vantagem, pela proximidade do telhado em caso de incêndio. Compunha‑se de uma antecâmara um tanto escura, um gabinete, também sombrio, e um quarto de dormir. A mobília estava um bocado velhota, mas razoável para mim e, efectivamente, o rio deslizava defronte das janelas.

Como eu me mostrasse encantado, a tia e a senhora Crupp retiraram‑se para o escritório, a fim de discutir o preço, enquanto eu ficava sentado no canapé da sala, mal me atrevendo a acreditar que iria viver nessa residência soberba. Voltaram por fim (após se haverem defrontado em combate singular durante uns bons minutos) e eu li‑lhes na fisionomia, com imenso gáudio, que o negócio fora concluído.

‑ São os móveis do último locatário? ‑ inquiriu a senhora Trotwood.

‑ São ‑ respondeu a senhora Crupp.

‑ Que é feito dele?

A senhora Crupp, tomada de uma tosse impertinente, mal pôde articular:

‑ Adoeceu aqui... e morreu.

‑ Ah, sim? E de quê?

‑ Morreu por beber de mais ‑ confidenciou a dona da casa. ‑ E também por causa do fumo.

‑ Fumo? Refere‑se à chaminé?

‑ Não, senhora. Refiro‑me a charutos e cachimbo.

‑ Seja como for, não me parece contagioso ‑ sentenciou a tia. ‑ Que achas, Trot?

‑ Com efeito, não deve ser...

Em suma, vendo quanto o apartamento me agradava, a tia arrendou‑o por um mês, com a faculdade de renovar a locação após aquele prazo. A senhora Crupp deveria fornecer a roupa de cama e fazer a comida. Quanto ao resto, eu já tinha tudo o que era necessário. A senhora Crupp prometeu tratar de mim como de um filho. Ficou estabelecido que me instalaria no dia seguinte. A dona da casa deu graças a Deus por haver encontrado alguém por quem se interessasse.

No regresso, a tia disse‑me estar inteiramente convencida de que a nova vida me daria a firmeza e confiança em mim, que me faltavam ainda. Repetiu‑o no dia seguinte, enquanto tomávamos providências para mandar buscar os livros e roupa que eu deixara em casa do doutor Wickfield; a este respeito escrevi uma extensa carta a Agnes e aproveitei a ocasião para lhe descrever como passara as férias. A tia, que devia partir no dia seguinte, incumbiu‑se de levar a carta. Para não me alargar em pormenores, acrescentarei apenas que ela me brindou com todo o dinheiro de que eu podia necessitar durante o mês de estágio; que tivemos pena de não ver aparecer Steerforth antes da partida; que fui acompanhar a tia e Janet à diligência de Dover, onde a deixei exultando à ideia de que os jumentos vagabundos iriam ser em breve desbaratados; e que, uma vez em marcha a diligência, me dirigi para Adelphi, pensando no tempo em que errava sob aquelas arcadas subterrâneas e nas mudanças felizes que me haviam trazido à superfície.

 

A MINHA PRIMEIRA DISSIPAÇÃO

Era uma coisa extraordinária possuir para meu uso aquele castelo altaneiro e experimentar a sensação de Robinson Crusoe quando se recolhia por trás das suas muralhas e retirava a escada. E que coisa também extraordinária passear pela cidade, com a chave no bolso, e saber que podia convidar quem quisesse sem receio de incomodar fosse quem fosse! Que maravilha ter o direito de entrar e sair, ir e vir, sem dar contas a ninguém! E de tocar a campainha quando precisava da senhora Crupp e vê‑la chegar ‑ se estava disposta a isso ‑ vinda das profundezas da terra, ofegante da caminhada! Na verdade, eram coisas maravilhosas... mas devo confessar igualmente que havia ocasiões em que não era assim tão agradável.

Tudo corria bem de manhã, sobretudo se estava bom tempo. De dia, a vida era tão pura, tão livre, e ainda mais pura e livre quando o sol brilhava; mas, à hora crepuscular, a vida parecia declinar também e, não sei porquê, a minha instalação perdia todo o seu encanto à luz das velas. Desejaria ter alguém com quem falasse. Agnes fazia‑me falta. Sem tão graciosa confidente, à minha volta criava‑se o vácuo. Achava que a senhora Crupp vivia em cascos de rolhas. Lembrava‑me do meu predecessor no alojamento, esse que morrera por excesso de bebidas e tabaco: mais valia que ainda estivesse neste mundo e não me incomodasse com a recordação da sua morte.

Após dois dias e duas noites, considerei que já habitara nesses aposentos cerca de um ano, e afinal eu não envelhecera nada, a minha extrema juventude continuava a arreliar‑me!

Como ainda não houvesse recebido a visita do Steerforth, pensei que ele estivesse doente e, no terceiro dia, deixei mais cedo os Doctor's Commons para me dirigir a Highgate. A senhora Steerforth ficou encantada por me ver: segundo me explicou, o filho partira com um dos seus amigos de Oxónia em visita a um camarada que habitava nos arredores de St. Albans; mas esperava que regressasse no dia seguinte. A amizade que eu dedicava a Steerforth era tão grande que cheguei a ter ciúmes desses amigos da Universidade.

Insistiu em que eu ficasse para jantar. Aceitei. Creio que, durante todo o tempo, James foi o nosso único tema de conversa. Contei‑lhe quanto o estimavam em Yarmouth e como ali se mostrara simpático. A senhora Dartle não se esqueceu de fazer insinuações e perguntas misteriosas. A nossa estada na minha terra natal pareceu interessá‑la deveras. O caso é que conseguiu fazer‑me falar e eu disse tudo o que ela queria saber. A sua aparência era a mesma que já descrevi depois de a ver pela primeira vez, porém a companhia das duas senhoras pareceu‑me tão agradável e consoladora que senti certa afeição pela senhora Dartle. Por várias vezes no decurso do serão (e sobretudo ao voltar para casa, em plena noite), não me coibi de pensar quanto me seria grata a presença da senhora Dartle nos meus aposentos de Buckingham Street.

Tomava eu o meu café da manhã, antes de ir ao trabalho (devo observar que esse café não passava de uma água de castanhas) quando apareceu Steerforth em carne e osso, o que me causou imensa alegria.

‑ Meu caro! ‑ exclamei ‑ começava a supor que não te veria mais!

‑ Cheguei e vim logo visitar‑te, Bonina. Tens uma instalação famosa!

Fiz‑lhe as honras da casa, mostrando‑lhe todas as minhas comodidades. Steerforth apreciou‑as.

- Não sei se sabes ‑ acrescentou ele ‑ que vou servir‑me dos teus aposentos como minha aposentadoria da cidade, até que me expulses de vez.

Que prazer ouvir uma coisa destas! Declarei‑lhe que podia dispor eternamente do que era meu.

‑ Agora vais almoçar ‑ ajuntei, dispondo‑me a tocar a sineta. ‑ A senhora Crupp far‑te‑á café. Tenho aqui uma grelha, arranjar‑te‑ei um pedaço de toucinho.

‑ Não, não, não toques! É impossível. Combinei almoçar com um dos meus colegas, que se hospedou no Piazza Hotel, de Covent Garden.

‑ Mas ao menos vens jantar?

‑ Também é impossível, apesar do prazer que teria nisso. Tenho de ficar com eles. Somos três, e amanhã pomo‑nos a caminho.

‑ Trá‑los aqui. Achas que aceitariam?

‑ Não se fariam rogados ‑ disse Steerforth. ‑ Todavia não quero que te incomodes. Mais vale que venhas jantar connosco a qualquer parte.

Recusei com energia, porque me lembrei que era a única oportunidade de lhes oferecer a minha casa. Steerforth gostara da instalação, o que me envaidecera, e eu ansiava por exibir o conforto de que dispunha. Obriguei‑o, pois, a prometer que traria os dois amigos. O jantar seria às seis horas.

Depois da partida dele, toquei a campainha e comuniquei à senhora Crupp o meu audacioso projecto. A senhora Crupp começou por me dizer que, é claro, se não podia contar com ela para servir à mesa, mas que conhecia um rapaz desembaraçado que, parecia‑lhe, se desempenharia da função mediante cinco xelins e o mais que eu lhe quisesse dar.

Respondi que iria certamente precisar desse rapaz. Declarou em seguida a dona da casa que, não podendo estar em toda a parte ao mesmo tempo (observação que achei justa), me conviria dispor de uma rapariga que, postada no gabinete, fosse lavando os pratos, à luz de uma vela. Indaguei quais seriam as pretensões dessa rapariga e ela explicou‑me que aí uns dezoito dinheiros não me deixariam arruinado. Repliquei que pensava o mesmo, e o acordo fez‑se logo. A senhora Crupp atacou a seguir a questão da ementa.

O operário que instalara o fogão da senhora Crupp fora realmente de uma imprevidência inacreditável, pois era impossível cozer aí outra coisa além de costeletas e puré de batata. Aludi a peixe: a senhora Crupp propôs‑me, à laia de resposta, que eu fosse à cozinha deitar uma vista de olhos ao forno. Seria uma coisa decisiva. Desejava eu ir ver? Como não adiantava nada esse exame, declinei o convite e renunciei ao peixe. «Por que não há‑de ter ostras à mesa, já que estamos na estação?», sugeriu a senhora Crupp. O assunto ficou arrumado. Depois a senhora Crupp aconselhou‑me a ementa seguinte: dois frangos assados, vindos da casa de pasto, um prato de carne de vaca e legumes, também da mesma proveniência, mais dois pratos, um de pastelão, outro de rins, idem, idem. E uma torta, ou creme, por exemplo, igualmente da casa de pasto. Isto, notou ela, deixar‑lhe‑ia plena liberdade para concentrar a atenção nas batatas, e servir o queijo e a salada à sua vontade.

Segui os conselhos da senhora Crupp e fui eu próprio fazer a encomenda na casa de pasto. Um pouco mais tarde, passeando pela Strand, descobri na montra de uma salsicharia um bloco estriado como mármore e com o letreiro «Para sopa falsa de tartaruga». Entrei e adquiri um pedaço que julguei suficiente para quinze pessoas. A senhora Crupp consentiu, depois de muito rogada, aquecer aquela substância, que assim se reduziu a estado líquido e que chegou exactamente para quatro pessoas, como observou à mesa James Steerforth.

Terminados que foram estes preparativos, fui comprar fruta ao mercado de Covent Garden e encontrei num retalhista da vizinhança uma quantidade razoável de vinho. Quando entrei em casa, de tarde, vi as garrafas alinhadas em ordem de batalha, no chão do gabinete, onde ocupavam enorme espaço, apesar de faltarem duas (o que contrariou muito a senhora Crupp).

Um dos colegas de Steerforth chamava‑se Grainger, e o outro Markham. Ambos eram alegres e animados. Grainger seria um pouco mais velho do que James, Markham aparentava ter quando muito vinte anos. Notei que este último falava sempre de si de forma indefinida, dizendo em geral «a gente», e raras vezes empregava a primeira pessoa do singular.

- A gente contentava‑se com um alojamento destes, senhor

Copperfield ‑ disse ele, querendo significar «eu contentava‑me».

‑ Está bem situado ‑ repliquei ‑ e é muito prático.

‑ Espero que vocês venham ambos com excelente apetite ‑ observou Steerforth.

- Palavra de honra ‑ afirmou Markham ‑ que a cidade nos põe sempre de estômago vazio. Sente‑se fome todo o tempo. Passa‑se o dia a comer.

Como, de início, me achasse um pouco intimidado e me considerasse novo de mais para presidir, cedi o meu lugar a Steerforth e sentei‑me defronte dele. O jantar foi estupendo. O vinho correu com abundância e Steerforth desenvolveu tamanha jovialidade que do princípio ao fim estivemos sempre alegres. O que me aborreceu um tanto foi que, estando de frente para a porta, me distraía com as idas e vindas do criado: o rapaz saía a todo o instante ao corredor e eu via na parede projectar‑se a sua sombra, com uma garrafa à boca. A criada também me causava certa inquietação. Esquecia‑se de lavar os pratos e, pior do que isso, quebrava‑os. De seu natural curiosa, e incapaz de se confinar, conforme a ordem que lhe fora dada, no meu gabinete, a rapariga passava o tempo a nos lançar olhadelas furtivas: vendo‑se descoberta, recuava por cima dos pratos (que dispusera cuidadosamente no soalho) e provocava uma hecatombe.

Isto, porém, era de tão pouca importância que eu esqueci logo que levantaram a mesa para servir o vinho. Percebemos então que o criado desembaraçado perdera o uso da fala. Aconselhei‑o discretamente a descer as escadas e a ir ter com a senhora Crupp, levando ao mesmo tempo consigo a criada ‑ e então abandonei‑me por completo à orgia.

De começo mostrei uma alegria descuidosa; voltavam‑me à memória todas as coisas meio olvidadas. Discursei como jamais fizera até aí. Chegava a rir das minhas próprias pilhérias, assim como das dos outros. Chamara à ordem Steerforth, porque ele não passava a garrafa de vinho. Prometi‑lhes, por várias vezes, que iria visitá‑los a Oxónia; disse‑lhes que tencionava oferecer jantares desse género uma vez por semana, e tive até a imprudência de tirar tão grande pitada de rapé da tabaqueira de Grainger que precisei de me refugiar no gabinete a fim de espirrar à vontade durante dez minutos.

Em seguida, principiei a passar o vinho cada vez mais depressa. Munido de saca‑rolhas, estava sempre a abrir uma garrafa nova, muito antes de ser necessário. Propus que se bebesse à saúde de Steerforth, meu amigo querido, protector da minha infância, companheiro da mocidade. Disse quanto me sentia feliz brindando por ele, que a minha dívida para com tal camarada nunca poderia ser paga, que a minha admiração era sem limites, e terminei exclamando: «À saúde de Steerforth, que Deus o proteja, hurra!»

Esvaziámos três vezes os copos, e depois mais uma, e outra para acabar. Quebrei o meu copo e dei volta à mesa para apertar a mão de Steerforth. Bradei: «Steerforth, és a estrela que guia a minha existência!»

Descobri de súbito que estava alguém a cantar. Era Markham, que entoava Quando o coração humano sofre de inquietação. Logo que terminou, propôs brindar pela Mulher. Objectei a isto, aleguei que não o permitiria. Disse que não achava coisa respeitosa, que jamais consentiria num brinde desses em minha casa, que ele devia ser substituído por este: «Às senhoras!» Fui em extremo acalorado, tanto mais que percebi que Steerforth e Grainger se riam de mim, ou de Markham, ou de ambos. Markham replicou que «a gente» não recebia ordens de ninguém. Insisti. E ele ripostou que não «se» queria ser ofendido. Redargui que nesse ponto o amigo tinha razão: jamais seria insultado debaixo do meu tecto, onde os deuses lares eram sagrados e a hospitalidade soberana. Ele concordou que não «se» perdia a dignidade confessando que eu era um tipo realmente fixe. Logo eu propus que se bebesse à sua saúde.

Alguém fumava. Fumávamos todos. Eu fumava e fazia esforços para contrariar os arrepios que me tomavam o corpo. Steerforth dissera qualquer coisa em meu louvor e eu quase fiquei de olhos arrasados de lágrimas. Agradeci‑lhe e exprimi o desejo de que viessem todos três jantar comigo no dia seguinte e no outro, e às cinco horas para termos uma noite mais comprida e podermos gozar as delícias da conversa e do convívio. Achei‑me obrigado a beber à saúde de alguém e propus‑lhes: «A minha tia Betsey Trotwood, glória do seu sexo!»

Certa pessoa, debruçada à janela do meu quarto de dormir, apoiava, para a refrescar, a cabeça escaldante à pedra fria do peitoril. Essa pessoa era eu. Falava comigo mesmo. Dizia: «Copperfield, por que tentaste fumar? Bem sabes que isso te faz mal.» Depois alguém, vacilando, examinou‑se no espelho: esse alguém fui eu. Parecia muito pálido, tinha os olhos vagos, e o cabelo ‑ só o cabelo, nada mais ‑ apresentava o aspecto da embriaguez.

Alguém propôs: «Vamos ao teatro, Copperfield.» Já não vi o meu quarto, mas outra vez a mesa cheia de copos que se entrechocavam, tilintando. E a luz. E os que me rodeavam, Grainger e Markham. E Steerforth, que se encontrava defronte de mim. Mas tudo isto entre nevoeiro, como que distante. Ir ao teatro? Por que não? Excelente ideia! A caminho! Mas que me permitissem ser o último a sair, para apagar as velas... por causa dos incêndios.

Era impossível dar com a porta, na escuridão. Procurava‑a nas cortinas das janelas quando Steerforth, rindo e pegando‑me por um braço, me colocou no verdadeiro trilho. Descemos os degraus uns atrás dos outros. Nos últimos, alguém tropeçou e caiu, rolando até ao patamar. Pretenderam que fosse Copperfield; indignei‑me por ser caluniado dessa forma, mas, achando‑me depois estirado na entrada, e de costas, acabei por pensar que afinal tinham razão.

Lá fora havia névoa cerrada, e os lampiões estavam rodeados de grandes círculos luminosos. Ouvi dizer, vagamente, que chovia, mas pessoalmente tinha a impressão de que gelava. Steerforth compôs‑me o fato, à luz de um candeeiro, e enfiou‑me o chapéu, que alguém lhe apresentou, vindo misteriosamente não sei donde, pois antes não o tinha na cabeça. Em seguida perguntou: «Como vai isso, Copperfield?» e eu respondi que ia o melhor possível.

Um homem sentado atrás de um cubículo, surgiu no meio do nevoeiro. Aceitou dinheiro de um de nós e indagou se eu estava com os outros, e pareceu hesitar (a custo o percebi) na recepção da importância relativa ao meu lugar. Pouco depois, achámo‑nos sentados na parte mais alta de um teatro supinamente aquecido, dominando uma plateia vasta, que se me afigurou repleta de fumo, porque mal se distinguiam as pessoas que ali se encontravam. Havia ainda um palco imenso, que parecia liso como as ruas que acabávamos de atravessar. Nesse palco falavam pessoas umas com as outras, não se sabia de quê. Notava‑se profusão de luzes, música, senhoras em camarotes, e tudo mais! A sala inteira portava‑se de modo tão incompreensível, quando tentei observá‑la, que tive a impressão de que todos aprendiam a nadar.

Por proposta de não sei quem, resolvemos descer aos camarotes da primeira ordem, onde havia damas. De passagem, vi um cavalheiro, de binóculo na mão, sentado num sofá, e vi também a minha própria figura, reflectida dos pés à cabeça, num espelho. Depois empurraram‑me para dentro de um desses camarotes; quando me sentei devia ter dito qualquer coisa, porque me impuseram silêncio e as senhoras me lançaram olhares indignados. Oh, mas que surpresa! Ali estava Agnes, instalada defronte de mim, no mesmo camarote, entre um senhor e uma dama, pessoas que eu não conhecia. Hoje evoco a sua imagem nesse momento, talvez com maior nitidez, e não esquecerei o espanto doloroso com que ela me contemplou.

‑ Agnes! ‑ murmurei em tom rouco. ‑ Deus me acuda! Agnes!

‑ Cale‑se, por favor ‑ retorquiu ela, sem que eu percebesse a razão. ‑ Está a incomodar a assistência. Olhe para o palco.

Acedendo a este pedido, tentei fixar o cenário e perceber alguma coisa do que se passava entre os actores, mas foi tudo em vão. Tornei a olhar para Agnes e vi‑a encafuar‑se num canto, levando à testa a mão enluvada.

‑ Agnes! ‑ disse. ‑ Está indisposta?

‑ Sim, estou, mas não se preocupe comigo, Trotwood. Oiça: vai sair já?

‑ Se vou sair já? ‑ repeti.

Tinha o desejo estúpido de lhe explicar que tencionava acompanhá‑la no fim do espectáculo e devo ter conseguido fazê‑lo, bem ou mal, porque ela me fitou, pareceu compreender e respondeu em voz baixa:

‑ Estou certa de que me obedecerá em tudo o que eu pedir, Trot. Pois vá‑se embora imediatamente. Faça isso por mim. Peça aos seus amigos que o levem.

A sua presença já de si me era salutar, embora me sentisse melindrado com ela, e enchi‑me de vergonha pela minha situação. Depois de haver murmurado um rápido «boa noite», levantei‑me e saí. Os outros seguiram‑me, e eu tive a impressão de passar directamente do camarote para o meu quarto, onde vi apenas Steerforth, que me ajudava a despir. Contei‑lhe que Agnes era minha irmã e roguei‑lhe que me fosse buscar o saca‑rolhas para abrir outra garrafa.

Em seguida, alguém deitado na minha cama (transformada em mar agitado), passou a noite a evocar, febrilmente, confusamente, tudo o que havia sucedido. E então esse alguém, retomando lenta consciência, principiou a arder de sede; tinha a pele endurecida como se fosse de cartão, a língua era como o fundo de uma cafeteira vazia, coberta de sarro, que continuasse a aquecer a fogo brando; as palmas das mãos pareciam folhas de metal escaldante, que nem o gelo poderia refrescar.

Que dor, que remorsos, que vexame experimentei no dia seguinte, quando voltei a mim. Com que pavor recordei as mil tolices que devia ter cometido, de que já me esquecera e que nada poderia ressalvar! E os olhos que Agnes me lançara! A impossibilidade em que me achava de comunicar com ela ainda mais me torturava, pois nem sabia o que Agnes fazia em Londres nem onde se hospedava. Causava‑me náuseas a simples visão da sala em que decorrera a minha orgia. Toda ela cheirava a tabaco. E aquele espectáculo de copos vazios... Ah, que nem me apetecia sair, nem sequer levantar‑me... Doía‑me a cabeça... Que dia aquele, o da véspera!

E que serão o meu, agora, sentado ao canto do lume, com um caldo morno à minha frente. Não me iria acontecer o mesmo que ao meu antecessor nos aposentos? Seria eu herdeiro do seu destino inglório? Quase desejava regressar a toda a pressa a Dover e contar tudo à minha tia. Quando a senhora Crupp veio buscar o prato do caldo e apresentar‑me um resto de rins (tudo quanto ficara do festim!), que vontade eu tive de me atirar ao seu peito e dizer, soluçando: «Que mísero sou!» Mas desconfiei, mesmo nesse instante crítico, que a senhora Crupp não era a confidente de que eu precisava.

 

ANJOS BONS E MAUS

Na manhã que se seguiu a esse dia de enxaqueca, de dores no estômago e de remorsos, vinha eu a descer a escada, com uma noção assaz confusa quanto à data do meu malfadado jantar, quando encontrei a meio caminho um portador munido de uma carta. Como me visse olhá‑lo do patamar, o homem correu para mim e, ofegante, perguntou‑me, tocando com a bengala na aba do chapéu:

‑ É o senhor T. Copperfield?

A custo confessei que era esse o meu nome, tão persuadido estava de que a carta procedia de Agnes Wickfield. Entretanto assegurei ser essa a minha identidade; o portador, acreditando‑me, deu‑me a carta e declarou que esperaria pela resposta. Fi‑lo esperar à porta e reentrei em casa tão agitado que tive de pôr a missiva em cima da mesa para me familiarizar com o sobrescrito e me resolver a rasgar a obreia.

Abrindo‑o, vi que eram breves linhas do punho de Agnes, sem a mínima alusão ao estado em que eu me apresentara no teatro. Eis o teor:

 

«Caro Trotwood

«Estou neste momento em casa do correspondente do papá, o senhor Waterbrook, em Ely Place, Holborn. Quer vir visitar‑me hoje à hora que lhe agrade marcar?

«Sua afeiçoada

Agnes.»

 

Gastei tanto tempo a encontrar uma resposta que fosse satisfatória que o portador decerto julgou estar eu aprendendo a escrever. Na realidade, comecei várias. A primeira iniciava‑se deste modo: «Jamais poderei apagar da sua lembrança, querida Agnes, a impressão de revolta que...» Mas isto não me agradou, e eu rasguei a folha. Outra principiava assim: «Shakespeare notou, querida Agnes, ser deveras estranho que a gente introduza um inimigo na própria boca...» Mas isto também não servia, porque me fez lembrar Markham, e suspendi o período. Comecei mesmo uma epístola em verso: «Oh, esquece, esquece...», o que se me afigurou, afinal, absurdo. Após todos estes ensaios, escrevi: «Querida Agnes, a sua carta reflecte a signatária: que mais poderei dizer como elogio? Irei às quatro horas. Saudades do T. C.» Foi com esta resposta que o portador partiu, embora eu, mal a entreguei, tivesse desejado retê‑la.

Se esse dia fosse tão terrível para algum profissional dos Doctor's Commons como o foi para mim, creio sinceramente que ele o teria expiado nesse queijo podre que era o Tribunal Eclesiástico. Se bem que saísse de lá às três horas e meia e começasse minutos depois a rondar as imediações de Ely Place, já trazia um bom quarto de hora de atraso, pelo relógio de Santo André, em Holborn, quando, levado pelo desespero, me atrevi finalmente a puxar a sineta particular colocada à esquerda da porta do senhor Waterbrook.

O rés‑do‑chão da casa era consagrado aos negócios e o andar superior às obrigações mundanas (estas em grande número). Introduziram‑me numa sala bonita mas um tanto atravancada de móveis e lá se me deparou Agnes Wickfield entretida a fazer um saco de rede.

Agnes tinha um ar tão calmo e bondoso, recordou‑me tanto os bons tempos descuidados da minha estada em Cantuária (em contraste com a atmosfera brumosa, saturada de álcool, do festim da véspera), que eu, achando‑me assim a sós com ela, me abandonei aos remorsos e à vergonha... e me portei como um idiota. Confesso que verti lágrimas, e não sei ainda se isso foi o que podia fazer de mais sensato ou de mais ridículo.

‑ O que me aflije, Agnes, é o facto de a haver encontrado lá. Tinha de ser você! Oh, bem me parece que mais valia ter morrido.

A rapariga descansou um instante a mão no meu braço (essa mão cujo contacto não tinha par) e eu senti‑me de tal modo aliviado e confortado que não resisti à tentação de a levar aos lábios e de a beijar, cheio de gratidão.

‑ Sente‑se ‑ disse ela jovialmente. ‑ Não esteja aborrecido, Trotwood. Se não pudesse ter confiança em mim, em quem mais, pois, a poderia ter?

‑ Ah, Agnes, você é o meu anjo bom!

Ela sorriu, um pouco melancolicamente, segundo se me afigurou, e abanou a cabeça.

‑ Se na verdade o fosse, Trotwood, haveria uma coisa que eu tomaria muito a peito.

Interroguei‑a com o olhar, mas já pressentia o que ela queria dizer.

‑ Seria ‑ continuou, fitando‑me ‑, pô‑lo de sobreaviso contra o seu anjo mau!

‑ Querida Agnes, se se refere a Steerforth...

‑ Nem mais, Trotwood.

‑ Pois nesse caso está a ser injusta. Ele, o meu anjo mau... ou seja lá de quem for! Ele que foi sempre o meu guia, o meu sustentáculo, o meu grande amigo! Querida Agnes, não será impróprio da sua pessoa fazer esse juízo só pela maneira como o viu na outra noite?

‑ Não é por aí que eu o julgo.

‑ Então?

‑ Por certas coisas... talvez insignificantes em si mesmas, mas que reunidas podem adquirir importância. Julgo em parte pelo que você me disse dele e também pela influência que exerce no seu carácter, Trotwood.

Aquela voz branda tinha o condão de fazer vibrar em mim a corda sensível. Em geral era grave, porém quando era assim grave, como naquele momento, acrescentava‑se de um frémito que me submetia. Quando Agnes se curvou de novo sobre o seu trabalho, demorei‑me a contemplá‑la, supondo ainda que a estava a ouvir. E, apesar de todo o meu entusiasmo por Steerforth, a sua imagem enublou‑se diante de mim.

‑ Isto pode ser arriscado ‑ disse ela, erguendo a vista ‑ tanto mais que sempre vivi afastada e mal conheço a sociedade. Mas sei, Trotwood, que esta opinião se consolidou pela lembrança dos anos que vivemos juntos e pelo interesse que tomo por tudo quanto lhe respeita. É o que me torna tão ousada. Estou certa de que não me engano. Penso que não sou eu quem fala, mas outrem que o previne contra um amigo tão perigoso.

Mais uma vez a observei, crendo ainda escutá‑la, embora Agnes já se tivesse calado. E mais uma vez, embora tão fiel eu fosse à amizade de Steerforth, a imagem deste se entenebreceu aos meus olhos.

‑ Não sou tão insensata ‑ disse ela daí a pouco, com a sua voz habitual ‑, para supor que você queira ou possa mudar de um instante para o outro de sentimento, sobretudo quando esse sentimento está tão radicado e se liga a todas as fibras da sua natureza confiante. Não deve modificar‑se levianamente. O que lhe peço Trotwood, é que se jamais pensar em mim... quero dizer ‑ acrescentou com um sorriso calmo, vendo que eu a ia interromper e Agnes sabia porquê ‑ ... quero dizer que de cada vez que pensar em mim não se esqueça de pensar nos meus conselhos. Espero que me perdoe...

‑ Perdoar‑lhe‑ei quando fizer justiça a Steerforth e o estimar tanto quanto eu o estimo.

‑ Só então? ‑ perguntou.

Notei‑lhe uma sombra no rosto, mas Agnes sorriu e a nossa confiança restabeleceu‑se por completo.

‑ E quando me perdoa, a mim, o meu procedimento do outro dia?

‑ Quando o recordar.

Gostaria ela de mudar de assunto, mas eu andava tão imbuído dele que não lho podia consentir, e insisti em lhe contar como chegara a cobrir‑me assim de opróbrio e por que série de acasos havíamos acabado por ir ao teatro. Aliviava‑me a ideia de repisar o reconhecimento que devia a Steerforth pelos cuidados que o amigo me dispensara, quando eu já não estava capaz de tomar conta de mim.

‑ Lembre‑se ‑ atalhou Agnes, passando tranquilamente a outro tema ‑, que tem obrigação de me revelar não só os seus aborrecimentos como também os seus amores. Quem sucedeu à menina Larkins, Trotwood?

‑ Ninguém.

‑ Mente! Com certeza que há outra... ‑ volveu sorrindo e ameaçando‑me com o dedo.

‑ Não, Agnes, juro‑lhe. Há, por exemplo, em casa da senhora Steerforth, uma pessoa muito inteligente, com quem eu gosto de conversar... a senhora Dartle... mas não a amo.

Agnes riu‑se da sua própria sagacidade e disse‑me que, se eu continuasse a fazer‑lhe fielmente as minhas confidências, ela organizaria um registo das minhas paixões, com datas, duração e fim de cada uma, como a relação dos reis e rainhas de Inglaterra. Depois perguntou‑me se eu tinha visto Uriah.

‑ Uriah Heep? Não. Está em Londres?

‑ Vem todos os dias ao escritório do rés‑do‑chão deste prédio. Chegou uma semana antes de mim, creio que para um assunto desagradável.

‑ Um assunto que a inquieta, Agnes. Bem o percebo. Que é, afinal?

A rapariga descansou o trabalho e, cruzando as mãos, respondeu‑me com um olhar pensativo.

‑ Suponho que vai ser sócio do papá.

‑ O quê? Uriah? Esse ente abjecto e servil, que rasteja como um verme, pretende semelhante promoção? ‑ exclamei indignadíssimo. ‑ Você não opôs objecções, Agnes? Lembre‑se o que podem vir a ser tais relações! Deve falar, impedir essa loucura do seu pai. E isto enquanto é tempo...

De olhos sempre fixos em mim, Agnes abanou a cabeça e sorriu um pouco da minha veemência. Respondeu então:

‑ Recorda‑se da nossa última conversa a respeito do papá? Foi dias depois que ele me falou do projecto. Quanto confrangia vê‑lo debater‑se entre o desejo de me levar a crer que tomava essa decisão de livre vontade e a sua impotência em esconder‑me que ela lhe era imposta! Fiquei tão condoída!

‑ Imposta, Agnes? Quem a impunha?

‑ Uriah ‑ declarou após um momento de hesitação ‑, tornou‑se indispensável ao papá. É manhoso e observador. Adivinhou todas as fraquezas do seu chefe, anima‑se e tira partido delas ao ponto de (se quer saber tudo o que penso) o papá ter medo dele.

Agnes podia continuar. Conhecia mais coisas, ou suspeitava‑as, isso via‑se bem. Mas não quis causar‑lhe maior dor interrogando‑a, pois sabia que se calava para poupar a honra do pai. Compreendi que há muito tempo as coisas haviam tomado esse caminho; portanto, guardei silêncio.

‑ O seu ascendente sobre o papá ‑ prosseguiu ‑ é muito grande. Mostra‑se humilde e reconhecido (ao menos espero que seja sincero), mas na realidade é todo poderoso e eu temo que ele abuse desse poderio.

Declarei que o considerava um cachorro, o que por momentos me deu grande satisfação. Agnes acrescentou:

‑ Quando o papá me falou, Uriah dissera‑lhe que o ia deixar, que o fazia com pena e de má vontade, mas que lhe tinham oferecido um lugar melhor. O papá estava então muito deprimido e cheio de preocupações, como você nunca o vira antes, nem eu. Assim, a ideia de tomar Uriah como sócio pareceu aliviá‑lo, apesar de o facto o ferir e vexar.

‑ E você que lhe disse, Agnes?

‑ Penso ter agido pelo melhor. Convencida de que o sacrifício era necessário ao repouso do papá, pedi‑lhe que levasse isso a efeito. Observei‑lhe que lhe mitigaria o mal‑estar (creio que não me enganei) e que essa solução permitiria que estivéssemos mais tempo juntos. Oh, Trotwood ‑ e Agnes escondeu a cara nas mãos, porque as lágrimas lhe deslizavam pelas faces ‑ tenho quase a impressão de ter actuado mais como inimiga do papá do que como filha amantíssima. Eu sei como a sua ternura por mim o transformou, quanto ele comprimiu o círculo das suas relações e dos seus deveres para concentrar em mim todos os seus pensamentos. Sei de quantas coisas se privou por minha causa, sei que a sua inquietação quanto a mim lhe diminuiu as forças, fazendo convergir a energia sempre para o mesmo ponto. Se eu pudesse reparar tudo isto! Se pudesse levar‑lhe a cura, depois de haver sido a causadora involuntária do seu declínio!

Eu nunca vira Agnes chorar: vira, sim, lágrimas nos seus olhos quando me cobria de louros na escola, e na última vez que faláramos do doutor Wickfield; e reparara que ela desviara o rosto quando disséramos adeus; mas jamais a tinha visto desolar‑se daquela maneira. Senti tanta mágoa que não pude deixar de balbuciar tolamente:

‑ Ó Agnes, não chore! Querida irmã!

Mas, como agora sei e então ignorava, Agnes era‑me muito superior quanto a vontade e energia; não precisava, pois, das minhas súplicas. Essa bela tranquilidade que a extrema tanto nas minhas recordações reapareceu como reaparece o céu azul após a passagem da nuvem.

‑ Temos poucas ocasiões de estar sós ‑ disse‑me ela. ‑ De maneira que, aproveitando esta, lhe peço que seja amável com Uriah. Não o repila. Não se irrite (pois creio que tem propensão para tal) com o que lhe é antipático na pessoa dele.

Não sabemos se o homem é realmente mau, e podemos estar a ser injustos. Em todo o caso, pense mais em mim e no papá.

Agnes não teve tempo de prosseguir, porque se abriu a porta e entrou, majestosamente, a senhora Waterbrook. Era uma dama imponente (ou pelo menos vestida com imponência; não cheguei a destrinçar o que, no caso, pertencia mais à portadora ou ao vestido). Eu tinha a vaga ideia de a ter visto no teatro, mas a senhora parecia recordar‑se perfeitamente de mim e desconfiar que me encontrava ainda no mesmo estado de embriaguez.

Convencendo‑se, porém, de que não bebera e (atrevo‑me a supô‑lo) de que se encontrava diante de um rapaz educado, a senhora Waterbrook abrandou consideràvelmente a sua prevenção e perguntou‑me, em primeiro lugar, se eu ia muito aos parques, e, em segundo lugar, se frequentava a sociedade. Parece‑me que a resposta negativa que dei às suas perguntas me fez descer de novo na sua estima, mas dissimulou, complacente, o facto e convi dou‑me para jantar no dia seguinte. Aceitei o convite e despedi‑me, mas, ao sair, passei no escritório para visitar Uriah; como o não encontrasse, deixei‑lhe um bilhete.

Logo que, na tarde seguinte, cheguei para jantar, e, uma vez transposta a entrada, me senti mergulhado num banho de vapor de perna de carneiro, percebi que não era o único conviva; com efeito, reconheci sem dificuldade o portador da carta disfarçado de lacaio para ajudar o criado da casa e colocado ao pé da porta para me anunciar. Tomou, ao perguntar‑me confidencialmente o nome, o ar de quem nunca me vira antes, embora já fôssemos conhecidos.

O senhor Waterbrook, pessoa de idade madura, tinha o pescoço curto, com um colarinho postiço muito largo; só lhe faltava o nariz preto para ser o vivo retrato de um buldogue. Disse‑me que experimentava grande prazer com a minha presença; depois, feitos os meus cumprimentos à dona da casa, ele apresentou‑me cerimoniosamente a uma dama de aspecto rebarbativo, vestido de veludo negro e com um imenso chapéu de veludo da mesma cor. Dava a impressão (tanto quanto me lembro) de ser parente próxima do Hamlet, algo como sua tia.

Esta senhora era casada com o doutor Henry Spiker, que também se encontrava lá: homem tão frio que a cabeça, em vez de cabelos brancos, me pareceu estar polvilhada de gelo. Todos testemunhavam grande respeito aos Spikers, e isto porque (explicou‑me Agnes) ele era advogado de qualquer coisa ou de alguém (esqueci quem ou quê) vagamente relacionado com a Fazenda Pública.

Entre os convivas figurava Uriah Heep, vestido de preto e nimbado de humildade. Quando lhe apertei a mão, declarou‑se orgulhoso da deferência que eu lhe fazia e muito grato pela minha condescendência. Gostaria de o ver menos reconhecido, pois, na sua gratidão, rodou à minha volta toda a noite. E, sempre que eu dizia qualquer coisa a Agnes, tinha a certeza de ver atrás de nós o seu rosto cadavérico e os olhos cavos e sem pestanas.

Havia outras pessoas, todas geladas para o banquete, como se faz ao vinho. Uma, porém, atraiu‑me a atenção antes que entrasse, porque ouvi proferir o nome: o senhor Traddles! Evoquei logo o internato de Salem; talvez fosse Tommy, pensei, esse que costumava desenhar esqueletos.

Esperei pelo senhor Traddles com enorme curiosidade. Era um rapaz de ar sério, com modos circunspectos, cabelo um tanto esquisito e olhos esbugalhados. Depressa se encafuou num canto sombrio, onde eu mal o distinguia. Por fim consegui extremá‑lo, e, se o olhar me não atraiçoava, tratava‑se realmente do infeliz Traddles.

Aproximei‑me do senhor Waterbrook e disse‑lhe que julgava ter o gosto de conhecer um dos meus antigos camaradas de curso.

‑ Palavra? ‑ replicou, surpreendido. ‑ Mas o senhor é muito novo para ter andado no liceu com o doutor Henry Spiker.

‑ Não falo desse. Refiro‑me ao senhor Traddles.

‑ Ah, ah... Realmente?‑volveu com interesse mais comedido. ‑ É possível.

‑ Caso seja ele de facto, conhecemo‑nos no internato de Salem. Era excelente rapaz.

‑ Sim, sim. Traddles é bom rapaz ‑ respondeu o dono da casa, meneando a cabeça com indulgência. ‑ Traddles é bom rapaz.

‑ Que estranha coincidência!

‑ Com efeito, é uma coincidência encontrar aqui o Traddles, pois só o convidei esta manhã, quando se verificou que o lugar destinado à mesa ao irmão da senhora Spiker não podia ser ocupado por este, devido a uma indisposição. Homem deveras notável, o irmão da senhora Spiker...

Murmurei uma confirmação, bastante sentida se se pensar que não sabia nada a seu respeito, e inquiri qual era a profissão do senhor Traddles.

‑ Estudante de Direito. Ah, sim, excelente rapaz. Só faz mal a si mesmo.

‑ Como? ‑ retorqui, penalizado.

O senhor Waterbrook mordeu os lábios, brincou com a corrente do relógio, cheio de tranquila satisfação, e disse:

‑ Creio que é desses que se prejudicam a si próprios. Não me parece que venha a ganhar algum dia mais de quinhentas libras. Foi‑me recomendado por um colega. Não há dúvida que tem talento para redigir sumários e expor claramente um caso. Estou até disposto a dar‑lhe, este ano, qualquer coisa para experimentar... qualquer coisa importante.

O senhor Waterbrook lembrava não digo já um homem que nascera com uma barra de oiro no berço mas pelo menos com um escadote com que podia subir aos píncaros da existência; de maneira que lhe era agora fácil contemplar, do alto das muralhas, com o olhar protector de um filósofo, os infelizes que tinham ficado no fosso.

Prosseguia eu nestas cogitações quando anunciaram o jantar. O dono da casa ofereceu o braço à tia de Hamlet; o doutor Henry Spiker à senhora Waterbrook; Agnes, que eu tanto desejaria conduzir, teve de se deixar acompanhar por um indivíduo de sorriso pateta e pernas flácidas. Uriah, Traddles e eu, por sermos os mais novos, fomos os últimos a descer para a sala da refeição, sem qualquer ordem estabelecida. Compensou‑me a perda de Agnes o facto de poder falar com Traddles, que ficou encantado com o nosso reencontro. Uriah, durante este tempo, torcia‑se com um misto de tão evidente satisfação e humildade que me apetecia atirá‑lo por cima do corrimão da escada.

Ao jantar sentámo‑nos nos dois extremos da mesa, ele faiscando ao lado de uma senhora vestida de veludo encarnado e eu à sombra da tia de Hamlet. O banquete foi demorado e a conversa versou sobre Aristocracia e Sangue. Por várias vezes nos disse a senhora Waterbrook que, se tinha um fraco, esse era o Sangue.

Se fôssemos menos distintos talvez nos houvéssemos aborrecido menos. Mas, sendo de uma distinção absoluta, os nossos temas forçosamente que resultaram limitados. Estavam presentes uns esposos Gulpidges, ligados de certa maneira (pelo menos ela) ao contencioso bancário; e assim, com os Bancos e a Fazenda Pública, nós formávamos um círculo bastante fechado. Ainda por cima, a tia de Hamlet fora atacada da mania dos solilóquios e começou a falar com desenvoltura de todos os assuntos que vinham à balha. Estes eram poucos, sem dúvida, e como recaíamos sempre no tema do Sangue, ela encontrou largo campo para especulações abstractas, no género do seu sobrinho. Até nos poderiam tomar por uma família de vampiros, tão sanguinária se tornou a nossa conversa.

‑ Confesso que sou da opinião de minha mulher ‑ disse o dono da casa, com o copo de vinho em riste. ‑ Há muitas coisas dignas de atenção, mas nenhuma como o Sangue.

‑ Não há nada tão consolador ‑ observou a tia de Hamlet ‑ nada que seja tão beau ideal de..., enfim, do que estamos a dizer. Há espíritos bastante vulgares (felizmente em pequeno número) para preferirem curvar‑se diante do que chamarei os ídolos. Sim, verdadeiros ídolos: do Trabalho, da Inteligência... Mas isto são coisas impalpáveis, o que não acontece com o Sangue. O Sangue vê‑se no nariz, vê‑se no queixo, podemos dizer: «cá está!» A sua presença é inegável.

O jovem idiota de pernas flácidas, que conduzira Agnes à casa de jantar, resolveu a questão, em meu parecer, de forma definitiva.

‑ Diabos me levem ‑ começou ele, circunvagando a vista pela mesa com um sorriso parvo ‑, o Sangue é coisa a que não se pode renunciar. Precisamos dele. Há rapazes cuja educação e comportamento deixam muito a desejar quando se pensa na classe a que pertencem... Mas diabos me levem se não é consolador saber que têm sangue azul! Eu, por mim, prefiro ser derrubado por um homem que tenha sangue azul a ser levantado por um que o não tenha.

Esta opinião, que resumia tão eloquentemente o problema, causou grande contentamento e pôs em evidência o seu autor até à altura de as senhoras se retirarem da sala. Notei então que os senhores Gulpidge e Spiker, até aí reservados, formaram uma espécie de aliança defensiva contra o inimigo comum, isto é, contra nós, e trocaram através da mesa um diálogo misterioso destinado a confundir‑nos e perder‑nos.

‑ Esse caso das primeiras obrigações de quatro mil e quinhentas libras não deu o resultado que se esperava ‑ observou Gulpidge.

‑ Refere‑se à operação D. de A.?

‑ AC. de B.

Spiker alçou as sobrancelhas e pareceu contrariado.

‑ Quando a questão foi apresentada a Lorde...‑explicou Gulpidge. Mas deteve‑se, sem terminar a frase.

‑ Bem sei, Lorde N. ‑ disse Spiker. O outro prosseguiu, com ar soturno:

‑ Quando a questão lhe foi apresentada, ele respondeu: «Ou o dinheiro, ou tribunal.»

‑ Meu Deus!‑exclamou Spiker. E Gulpidge repetiu com firmeza:

‑ Ou o dinheiro ou tribunal. Então o fiador responsável...

‑ K. ‑ declarou Spiker, no tom de quem esperava o pior.

‑ Recusou‑se terminantemente a assinar, embora esperassem por ele em New Market, para esse mesmo fim.

Spiker estava tão atento que parecia petrificado.

‑ E assim estão as coisas neste momento ‑ concluiu Gulpidge, reclinando‑se no espaldar da cadeira. ‑ O nosso amigo Waterbrook desculpar‑me‑á se não sou mais explícito, mas atendendo à magnitude dos interesses que isto envolve...

O senhor Waterbrook mostrava‑se felicíssimo, segundo se me afigurou, pelo facto de se falar à sua mesa de tão grandes interesses e tão grandes nomes. Tomou um ar sombrio e compreensivo (embora percebesse tanto do assunto como eu) e concordou plenamente com a discrição observada pelos seus convivas. Depois de haver sido objecto de tamanha confiança, o doutor Spiker quis naturalmente retribuir a cortesia do seu amigo, e por isso o diálogo foi seguido de outro, durante o qual chegou a vez a Gulpidge de ficar embasbacado. E assim por diante, sucedendo‑se os diálogos no mesmo teor, enquanto o nosso anfitrião nos considerava com orgulho, a nós, vítimas de salutaríssimo temor e espanto.

Foi um alívio quando subi mais tarde e reencontrei Agnes, a quem apresentei Traddles, que era tímido mas simpático e tão bom rapaz como outrora. Como tinha de se retirar cedo, porque partia no dia seguinte, não pude conversar com ele demoradamente como desejava; mas tomámos nota dos respetivos endereços e prometemos encontrar‑nos na sua volta a Londres. Ficou contente por saber que eu estivera com Steerforth, a quem se referiu com entusiasmo; pedi‑lhe então que repetisse a Agnes o que pensava do nosso amigo comum, mas a rapariga limitou‑se a olhar enquanto ele falava e a oscilar levemente a cabeça quando eu era o único a observá‑la.

Tive a impressão de que Agnes não se sentia muito à vontade naquela casa, e assim rejubilei quando soube que regressava à sua dentro de poucos dias, embora por outro lado lastimasse separar‑me dela. Esta perspectiva aconselhou‑me a ser o último a sair: a sua presença recordava‑me com delícia a minha existência feliz na austera mansão de Cantuária, que Agnes soubera tão bem aformosear; seria capaz de permanecer assim o resto da noite, mas como não tinha explicação para a minha demora e os convivas se haviam retirado já, despedi‑me constrangido, sentindo mais do que nunca que ela era o meu anjo bom.

Disse que todos haviam partido, porém devia abrir uma excepção para Uriah Heep, que não deixava de nos rondar. Desceu comigo e saiu a meu lado, enfiando os longos dedos de esqueleto nos dedos, mais compridos ainda, de um par de luvas à Guy Fawkes [3]. Não era que me tentasse a companhia de Uriah, mas, lembrando‑me do pedido de Agnes, tolerei a sua presença e perguntei‑lhe se queria tomar café na minha casa.

‑ Ah, menino David... perdão, queria dizer senhor Copperfield... mas o hábito, não é verdade? Não quero que se sinta na obrigação de convidar uma pessoa tão humilde como eu...

‑ Não se trata de obrigação. Quer vir?

‑ Teria imenso prazer...

‑ Nesse caso, venha.

Não podia evitar falar‑lhe em tom seco, mas o homem pareceu que não dava conta disso. Seguimos pelo caminho mais curto, sem dizer nada de importante durante o trajecto. Aquelas luvas de espantalho causavam‑lhe tão humilde respeito que ele ainda estava a enfiá‑las e realmente não fizera grandes progressos quando chegámos ao meu prédio.

Guiei‑o pela escada escura, para impedir que esbarrasse em qualquer obstáculo; mas senti a impressão de pegar numa rã quando lhe toquei na mão fria e húmida. Até me apeteceu largá‑la e fugir! A ideia de Agnes e os deveres da hospitalidade dominaram, porém, e eu introduzi‑o na minha saleta e indiquei‑lhe o canto do lume. Quando acendi as velas, Uriah desfez‑se em exclamações quanto à excelência da minha instalação. E, ao aquecer café num modesto recipiente de zinco que a senhora Crupp usava para esse efeito (pela razão de que, sendo para a barba, lhe era inútil nesse aspecto, e que uma boa cafeteira podia enferrujar), o meu hóspede enterneceu‑se tanto que eu de boa vontade o teria escaldado entornando‑lhe por cima o líquido fervente.

‑ Oh, menino David... isto é, senhor Copperfield... como poderia eu imaginar que me serviria assim algum dia? Mas acontecem‑me tantas coisas, que eu jamais esperaria na minha humildade... Parece que chovem bênçãos sobre mim! Suponho que ouviu falar da mudança de situação ocorrida na minha existência, menino David... isto é, senhor Copperfield...

Vendo‑o sentado no meu sofá, com os joelhos pontudos sob a xícara do café, e o chapéu e as luvas no chão, à sua beira, e a colher girando lentamente, e os olhos avermelhados (que pareciam ter queimado as pestanas) fixos nos meus, sem todavia me verem, e as narinas arfantes, e todo o corpo agitado, desde o queixo aos pés, numa espécie de ondulação, vendo‑o dessa maneira senti quanto o detestava, do mais profundo do coração. Indignava‑me tê‑lo por convidado, porque eu era novo e não sabia ainda dissimular uma aversão tão forte como a que ele me inspirava.

‑ Suponho que ouviu falar da mudança de situação... ‑ repetiu Uriah.

‑ De facto...

‑ Ah, já calculava que a menina Agnes soubesse ‑ observou pacificamente. ‑ Agrada‑me verificar que ela sabe. Obrigado, menino Da... senhor Copperfield.

Ter‑lhe‑ia com prazer atirado à cara a calçadeira (que estava no tapete) por me haver apanhado em qualquer coisa relativa a Agnes, por menos importante que fosse. Mas contentei‑me com levar à boca o resto do café.

‑ O senhor foi bom profeta ‑ continuou ele. ‑ Realmente, que bom profeta! Não se lembra decerto, mas disse‑me um dia que eu seria sócio do doutor Wickfield e que a firma apresentaria esta constituição: Wickfield & Heep. Talvez já se esquecesse... Mas, quando se é humilde como eu, menino David, fixam‑se preciosamente palavras destas...

‑ Recordo‑me, na verdade, de ter falado disso. Mas nessa altura não acreditava.

‑ E quem poderia acreditar, senhor Copperfield! ‑ exclamou fervoroso. ‑ Eu não, pelo menos. Lembro‑me de lhe ter respondido que me sentia muito humilde, e nisto é que eu cria a valer.

Olhava para o fogão, com um sorriso maquinal estampado nos lábios. Eu, por meu turno, olhava para ele.

‑ Mas os entes mais humildes, menino David ‑ recomeçou daí a pouco ‑ podem tornar‑se instrumentos de felicidade. Alegro‑me ao pensar que pude ser o instrumento da felicidade do doutor Wickfield, e que ainda posso tornar a sê‑lo. Que homem digno, esse senhor! Mas que imprudente também!

‑ Lamento muito ‑ repliquei. E não pude deixar de aduzir: ‑ Por tudo.

‑ Exactamente, senhor Copperfield, por tudo. E sobretudo no que se refere à menina Agnes. O senhor já se esqueceu das palavras eloquentes que pronunciou, mas eu recordo‑me bem de lhe ouvir dizer um dia que toda a gente devia admirá‑la e dos agradecimentos que lhe fiz a esse respeito. Com certeza que se esqueceu, menino David.

‑ Não ‑ declarei secamente.

‑ Oh, ainda bem! Pensar que o senhor foi o primeiro a provocar a faísca da ambição no meu peito humilde e que não se esqueceu desse facto! Oh!... Atrever‑me‑ei a pedir‑lhe mais café?!

A ênfase que deu àquela frase e o olhar que me deitou fizeram‑me estremecer como se a tal faísca se houvesse transformado em labareda. Recaindo em mim, ao ouvir o último pedido formulado noutro tom, aproximei da sua xícara a vasilha de aquecer a água da barba, usada mais vulgarmente para o café; mas foi com mão trémula que o fiz, pensando ser incapaz de competir com ele e cheio de apreensão pelo que poderia seguir‑se. Uriah devia fatalmente reparar na minha excitação, todavia calou‑se e remexeu infindavelmente a bebida, tomou um gole, tacteou devagar o queixo com a mão ossuda, mirou o lume, circunvagou a vista pelo quarto, sorriu‑me de uma orelha à outra, encolheu‑se com obsequiosa deferência, tornou a açucarar e a mexer o café, mas por fim deixou‑me o cuidado de renovar a conversa. Para dizer alguma coisa, observei:

‑ Com que então, o doutor Wickfield, que vale por quinhentos homens como o senhor... ou eu ‑ não resisti a cortar em duas a minha frase ‑, foi, em sua opinião, imprudente, senhor Heep?

‑ Ah, sim, muito imprudente. Mas preferia que me tratasse por Uriah, se não se importa, como costumava...

‑ Está bem, Uriah ‑ retorqui, proferindo esse nome com dificuldade.

‑ Obrigado ‑ sacudiu caloroso. ‑ Oh, muito obrigado, menino David! Sinto soprar as auras de outrora e soar os sinos desse tempo, quando diz Uriah! Desculpe... falava de...?

‑ O senhor falou‑me do doutor Wickfield.

‑ Ah, sim, é verdade. Uma grande imprudência, menino David. Este assunto não o quereria aflorar com mais ninguém. Se outrem estivesse no meu lugar, durante todos estes anos, há muito que teria o doutor Wickfield... apesar de tão digno homem!... fechado na sua mão. Na sua mão ‑ repetiu lentamente, estendendo a dextra cruel por cima da mesa, até que esta tremeu, fazendo estremecer a casa.

Creio que não o detestaria mais se o tivesse visto colocar o pé chato sobre a cabeça do doutor Wickfield.

‑ Pois, menino David ‑ continuou em voz branda, contraste evidente com a acção do punho, de que não diminuía a pressão.

‑ Não há dúvida. Ele conheceria a ruína, a desonra e sabe Deus que mais! O doutor Wickfield não o ignora. Sou o instrumento humilde que humildemente o serviu; por isso me eleva a uma posição eminente que não poderia esperar atingir. Quanto reconhecimento lhe devo!

Dizendo estas palavras, de cara virada para mim, mas sem me olhar, Uriah retirou o dedo adunco do ponto da mesa em que o pusera, e devagar, com ar pensativo, coçou o queixo magro como se estivesse a barbear‑se.

Lembro‑me da cólera que me fez bater o coração quando lhe percebi no rosto manhoso, em que tão bem acertava o reflexo vermelho do lume, que ele ainda tinha qualquer coisa de reserva.

‑ Menino David, naturalmente quer dormir...

‑ Não. Em geral deito‑me tarde.

‑ Obrigado, menino David. Ergui‑me acima da minha condição humilde desde a primeira vez que me viu, isso é verdade. Mas sou ainda humilde e espero sê‑lo sempre. Não duvidará da minha humildade se eu lhe fizer uma pequena confidência?

‑ Não ‑ respondi com esforço.

‑ Obrigado.

Tirou o lenço e começou a enxugar a palma das mãos.

‑ A menina Agnes...

‑ E então, Uriah?

‑ Oh, que prazer ouvi‑lo chamar‑me Uriah, espontaneamente

‑ exclamou dando um pulo convulsivo. ‑ Achou‑a bonita esta noite, não é verdade?

‑ Achei‑a como sempre: superior em todos os aspectos aos que a rodeavam.

‑ Obrigado! Como isso é verdadeiro! Oh, obrigado por essas boas palavras.

‑ Mas porquê? ‑ volvi desdenhoso. ‑ Não tem nada que me agradecer.

‑ Tenho, menino David, é justamente a confidência que tomo a liberdade de lhe fazer. Por mais humilde que eu seja ‑ enxugava as mãos com maior energia e olhava alternadamente as palmas e o fogo ‑, e por mais humilde que sempre fosse a nossa casa, pobre mas honesta, a imagem da menina Agnes habita o meu coração há muitos anos. Não hesito, menino David, em confiar‑lhe o meu segredo, porque me inspirou grande simpatia desde o momento em que o vi pela primeira vez na carruagem da senhora Trotwood. Oh, quanto amo a menina Agnes! Até o chão que ela pisa...

Creio que tive, por momentos, a ideia louca de agarrar no atiçador, que estava ao rubro, e de traspassar com ele o meu convidado. Esta ideia, porém, atravessou‑me o espírito como um relâmpago. Mas a imagem de Agnes, ultrajada pelos pensamentos daquele animal de cabeça ruiva, ficou fixada na minha mente e, quando o tornei a olhar, sentado acolá, de lado, como se a sua alma vil lhe torcesse o corpo, senti uma vertigem e julguei vê‑lo inchar sob os meus olhos. Os ecos da sua voz pareceram encher o quarto e apoderou‑se de mim o sentimento estranho de que tudo aquilo se passara já, numa época indeterminada.

Li‑lhe a tempo, no rosto, a consciência que ele tinha do seu poder e isto obrou mais que todos os esforços para acatar os rogos de Agnes. Perguntei‑lhe, com o ar calmo que um minuto antes eu acharia impossível, se comunicara os seus sentimentos à filha do doutor Wickfield.

‑ Oh, não! Isso não! A ninguém excepto ao menino David. Bem compreende, eu acabo de sair da minha humilde condição. Conto muito com a circunstância de que ela avaliará o bem que faço ao pai, pois que lhe espero ser útil; verá como sei aplanar as dificuldades e encaminhá‑lo pela boa via. A menina Agnes é muito afeiçoada ao pai... e que bela coisa esse amor filial! Talvez isso me seja favorável...

Medi a profundeza das maquinações daquele patife e compreendi a razão das suas revelações.

‑ Se fizer o favor de guardar este segredo ‑ prosseguiu Uriah ‑ e evitar prejudicar‑me, ficar‑lhe‑ei profundamente reconhecido. Não há‑de querer a minha infelicidade. Sei que tem um coração de ouro. Mas como só me conheceu na minha condição humilde (ou mais humilde, porque humilde sempre sou) poderia empecer‑me junto da minha Agnes. Chamo‑lhe minha Agnes, imagine, menino David!

Querida Agnes, tão bondosa, tão dedicada para todos! Estaria destinada a ser a mulher daquele miserável?

‑ Por enquanto não há pressa, menino David ‑ continuou Uriah, com o seu tom melifluo, enquanto eu, preocupado com as ideias que ele me sugeria, me limitava a contemplá‑lo. ‑ A minha Agnes é ainda muito nova, e eu e a minha mãe teremos de conquistar a nossa posição e fazer preparativos antes que isso seja possível. Terei assim tempo de me familiarizar a pouco e pouco com as minhas esperanças conforme se for apresentando ocasião. Ah, quanto lhe agradeço haver‑me facilitado esta confidência! Se soubesse que alívio é para mim saber que compreende a nossa situação e que (naturalmente desejoso de evitar dissabores à família) não tentará com certeza prejudicar‑me.

Pegou‑me na mão, que não ousei recusar‑lhe, e, após um aperto húmido, consultou o seu relógio.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou‑já passa da uma hora! Os minutos correm tão depressa quando se evocam os bons tempos antigos, menino David!

Respondi que pensava ser mais tarde, não que realmente acreditasse em tal mas porque estava esgotado o meu poder dialogador.

‑ Meu Deus! ‑ repetiu, com ar perplexo. ‑ A casa em que me hospedei, uma espécie de hotel ou de pensão familiar, perto de New River Head, já deve ter fechado as portas há duas horas.

‑ Lastimo que não haja aqui mais nenhuma cama e que eu...

‑ Oh, não fale de cama, menino David ‑ respondeu cheio de beatitude. ‑ Aborrecer‑se‑ia muito que eu passasse a noite deitado diante do fogão?

‑ Se é isso ‑‑ repliquei ‑ peço‑lhe então que se sirva do meu leito e serei eu quem ficará aqui.

O excesso de surpresa e a sua humildade impuseram‑lhe recusa a esta oferta feita numa voz quase estridente para atingir os ouvidos da senhora Crupp, que estaria a dormir, suponho, nalgum quarto distante. Nenhuma das razões que invoquei, no meu susto, conseguiram decidir o modesto Uriah a aceitar a minha alcova, de maneira que o tive de instalar como pude numa cama improvisada diante do fogão. O colchão do sofá (demasiado curto para aquele grande corpo magro), as almofadas do mesmo, o pano da mesa, uma toalha limpa e um sobretudo serviram, pois, para esse efeito. Emprestei‑lhe um barrete de dormir, que ele enfiou logo e com o qual ficou tão feio que resolvi nunca mais o usar.

Jamais esquecerei essa noite. Jamais esquecerei como a passei, a atormentar‑me e a revolver‑me na cama, a pensar em Agnes e naquela criatura, a perguntar o que devia e podia fazer, sem chegar a qualquer conclusão além desta: para a tranquilidade de Agnes, o melhor seria não fazer nada e guardar para mim o que sabia. Se adormecia por uns minutos, o rosto da rapariga, com os seus olhos meigos, e o do pai olhando‑a com ternura, como eu vira tantas vezes, apareciam‑me suplicantes e enchiam‑me de terrores inominados. Quando despertava, a ideia de que Uriah dormia no quarto contíguo insistia em mim como um pesadelo e oprimia‑me como se eu tivesse por hóspede um demónio da pior espécie.

O atiçador do fogão não me saía do pensamento. Na minha vaga sonolência, julgava‑o ainda ao rubro e cria que o arrancara do lume para traspassar com ele Uriah Heep. Esta lembrança acabou por me obcecar ao ponto que, embora sabendo‑a absurda, me vi forçado a ir ao quarto contíguo para observar o hóspede. Aí o vi deitado de costas, com as pernas infinitamente compridas, gorgolejos na garganta, roncos no nariz, e a boca aberta como um marco de correio. Ainda se me afigurou mais feio na realidade do que na minha imaginação doentia, e a repulsa que me inspirou exerceu em mim tamanha atracção mórbida que não pude deixar de aí vir de meia em meia hora, para deitar uma vista de olhos. A noite imensa parecia‑me tão triste, tão desesperadora! No céu torvo não surgia a mínima claridade.

Quando o senti descer a escada, de manhã cedinho (pois, graças a Deus, não quis ficar para almoçar), tive a impressão de que a noite desaparecia com ele; e quando fui ao tribunal, recomendei com insistência à senhora Crupp que abrisse as janelas de par em par para me arejar o gabinete e o expurgar da presença de Uriah.

 

TORNO‑ME CATIVO

Não voltei a encontrar Uriah Heep até ao dia em que Agnes deixou Londres. Topei‑o no escritório da diligência, onde fora despedir‑me da minha amiga e vê‑la partir. O homem achava‑se lá, para o regresso a Cantuária, e devia tomar o mesmo veículo. Experimentei certo consolo ao descobri‑lo empoleirado no último degrau da imperial, com um guarda‑sol que parecia uma barraca e um sobretudo violáceo, curto de ombros e de cintura, ao passo que Agnes ocupava, naturalmente, o interior da diligência. Esta recompensa bem a mereci pelos esforços que fiz para ser amável com ele sob os olhos de Agnes. Lá no alto do seu poleiro, como no jantar da outra noite, Uriah parecia pairar sobre nós, a todo o momento, como um abutre enorme, fartando‑se de cada sílaba que eu e ela trocávamos.

Na perturbação que as confidências de Uriah me haviam lançado, eu pensara por mais de uma vez no que me dissera Agnes acerca da associação do pai com Uriah Heep: «Fiz o que devia fazer; persuadida de que este sacrifício era necessário ao repouso do papá, pedi‑lhe que acedesse.» Pressentia tristemente que ela cederia também ao mesmo sentimento e que acharia nele a força necessária para realizar qualquer outro sacrifício em favor do pai. Isto, desde então, oprimia‑me sem cessar. Sabia quanto Agnes o estimava, sabia de quanta dedicação era capaz, sabia (por a ter ouvido dizer) que se considerava causadora involuntária das fraquezas do doutor Wickfield. Sentia‑se devedora para com ele de um débito de que desejava ardentemente descartar‑se. Não experimentei nenhuma consolação ao vê‑la tão diferente desse detestável patife do sobretudo violáceo, pois achava que essa mesma diferença entre a abnegação de uma alma pura e a baixeza sórdida de Uriah constituía o perigo principal. Tudo isto ele o sabia muito bem e sem dúvida que a sua manha pesara maduramente as consequências. E todavia eu estava convencido de que a perspectiva, mesmo longínqua, de semelhante sacrifício destruiria qualquer possível felicidade para Agnes; a sua atitude provava‑me absolutamente que ainda a não visitara a sombra de uma apreensão desse género: ser‑me‑ia mais fácil causar‑lhe mal do que preveni‑la do que a esperava. Foi assim que nos separámos, sem nenhuma explicação. Ela agitava a mão e sorria‑me à portinhola da diligência, e o seu génio mau contorcia‑se na imperial como se já a tivesse, triunfante, nas suas garras. Custou muito a esquecer esta visão do adeus. Quando Agnes escreveu anunciando a sua chegada sem incidentes, fiquei tão triste como na ocasião em que a vi partir. De cada vez que me entregava a estes pensamentos, o caso nunca deixava de se apresentar, redobrando o mal‑estar que eu sentia. Tornara‑se parte integrante da minha vida, um órgão vital inseparável dela.

Tive oportunidade de requintar esta minha inquietação, pois Steerforth estava em Oxónia, conforme me escreveu, e eu vivia muito só quando não me encontrava no estágio. Creio que já experimentava surda desconfiança quanto a Steerforth. Respondi‑lhe com afecto, mas no fundo considerava‑me contente por sabê‑lo então longe de Londres. Na verdade, eu suspeitava a verdade: que a influência de Agnes se exercia em mim quando ele não estava presente, e isto em grande escala pelo facto de ela ocupar nessa altura lugar vasto nos meus pensamentos e cuidados.

Entretanto passavam‑se os dias e as semanas. Eu firmara o meu contrato com Spenlow e Jorkins. A tia deveria dar‑me noventa libras anuais, sem falar do alojamento nem de outras coisas anexas. O meu apartamento estava alugado por um ano; e embora achasse as noites longas e tristes, podia abandonar‑me às delícias da melancolia e do café, de que (bem me recordo) consumia enormes quantidades por essa época. Foi também por essa altura que fiz três descobertas: primeira, que a senhora Crupp era vítima de um mal estranho, a que chamava «espasmos». Era geralmente acompanhado de uma inflamação nasal e precisava de ser tratado regularmente com mentol. Segunda: a temperatura da minha despensa fazia estalar as rolhas das garrafas de aguardente. Terceira: eu estava só no mundo e muito inclinado a proclamá‑lo em numerosos exercícios de versificação inglesa.

A assinatura do meu contrato não teve celebração especial, além das sanduíches e do xerez que levei para o escritório, para oferecer aos escreventes, e da minha ida solitária ao teatro, à noite. Fui ver representar O Estrangeiro, peça que achei apropriada a um estagiário de Leis; saí tão perturbado que mal me reconheci no espelho, ao chegar a casa. Na ocasião da assinatura, o doutor Spenlow declarou que teria muito gosto em receber‑me na sua residência de Norwood, para comemorar o facto, se a sua vida familiar não estivesse tão desorganizada, pois a filha deveria chegar em breve de Paris, onde terminava a sua educação. Mas deu‑me a entender que, uma vez normalizada a sua existência, ele não dispensaria a minha presença. É claro que respondi aceitar com grande prazer; sabia que o doutor Spenlow era viúvo e que só tinha aquela filha.

Não faltou à sua palavra. Uma ou duas semanas depois, lembrou‑me aquela promessa e disse‑me que, se eu realmente quisesse dar‑lhe a honra de o visitar no fim de semana, ele ficaria reconhecido; e, como eu anuísse de bom grado, combinou‑se que me levaria consigo e me traria na segunda‑feira na sua carruagem.

Quando chegou o dia assinalado, o meu próprio saco de viagem foi objecto de veneração dos escreventes, para quem a casa de Norwood constituía um mistério sagrado. Um deles contou que o doutor Spenlow (segundo lhe constara) comia em baixela de ouro, prata e porcelana; outro fez‑se eco de que à mesa tomavam champanhe como quem toma cerveja, do princípio ao fim das refeições. O velho da peruca, cujo nome era Tiffey, fora lá várias vezes fazer recados relativos à profissão e, de cada vez, entrara na casa de jantar. Descreveu‑a como uma sala verdadeiramente sumptuosa. Tinham‑lhe oferecido xerez da roda [4], tão precioso que fazia a gente piscar os olhos.

Nesse dia julgava‑se uma causa no tribunal, respeitante a um padeiro que devia ser excomungado por ter feito objecções, em plena sacristia, contra certo imposto. E como o processo tinha a extensão de páginas do Robinson Crusoe, só muito tarde é que ficámos livres. Em todo o caso, aplicou‑se ao homem a excomunhão de seis semanas e pagamento das custas. Por fim o advogado do réu, o juiz e os outros intervenientes de ambas as partes (que eram todos aparentados) deixaram o edifício, e eu e o doutor Spenlow tomámos a carruagem deste último ‑ um faetonte luxuoso, cujos cavalos arqueavam o pescoço e levantavam as patas como se pertencessem também ao nosso digno tribunal. Os membros deste rivalizam, aliás, em equipagens de ostentação; no entanto, creio que a sua maior rivalidade, nesse tempo, era o emprego da goma nos colarinhos: faziam tal uso dela que só o podia limitar a tolerância da natureza humana nesse aspecto. Pelo caminho conversámos agradavelmente, e o doutor Spenlow deu‑me algumas indicações acerca da minha profissão. Disse‑me que eu escolhera a mais perfeita do mundo e que não se devia confundir de modo nenhum com a do advogado: era realmente outra coisa, muito mais exclusiva, menos maquinal e mais rendosa. As coisas, nos Doctor's Commons, decorriam com mais facilidade do que noutro lado, o que nos constituía uma classe à parte. Seria impossível negar o facto (aliás pouco simpático) de serem os advogados quem nos fornecia as causas, mas quanto a este ponto soube tranquilizar‑me por completo.

Perguntei ao doutor Spenlow o que é que ele considerava o género de processo mais interessante para nós. Respondeu‑me que o de um testamento contestado, de bens de trinta a quarenta mil libras, era decerto o que havia de melhor, porque trazia excelentes proveitos durante todas as fases do processo, em razão das muitas tricas que se podiam fazer e das inúmeras deposições, interrogatórios e mais chicanas, como pelos recursos a interpor e apelos para as instâncias superiores. As duas partes, convictas dos seus direitos, não olhavam a despesas. Depois iniciou o elogio do nosso tribunal especial. A sua maior vantagem residia nas convenções entre partes. Não havia outro mais bem organizado em todo o mundo. Era o ideal do sistema prático. Por exemplo, supondo que se intentava uma acção de separação ou de indemnização em primeira instância. Aquilo decorria como um jogo de cartas em família. Mas, admitindo que a sentença nos não agradava, passava‑se então ao tribunal arquiepiscopal. De que se compunha este? Ora, dos mesmos elementos, mas com um juiz diverso, podendo o do julgamento anterior vir agora agir como advogado, em qualquer dia da audiência. Assim recomeçava o jogo familiar. Não se estava ainda contente? Muito bem. Que se fazia? Recorria‑se para os desembargadores eclesiásticos. E quem eram estes? Eram os que assistiram como espectadores aos debates precedentes, que viam baralhar e dar as cartas, que discutiam com os jogadores e que, ao presente, muito frescos, podiam regularizar as coisas com geral satisfação. Os descontentes estavam no seu direito de falar da corrupção dos Doctor's Commons, do seu anacronismo, da necessidade da sua reforma, concluiu gravemente o doutor Spenlow; mas fora quando o preço do trigo por alqueire estivera mais elevado que esse tribunal tivera mais que fazer. E, pondo a mão na consciência, podia‑se proclamar ao mundo inteiro: «Tocai no Commons e vereis o que será do país!»

Escutei tudo isto com a máxima atenção. E embora não estivesse tão persuadido como o doutor Spenlow de que o país dependia desse tribunal, aprovei respeitosamente a sua conclusão. Disse apenas, com modéstia, que essa história do preço do trigo ultrapassava a minha competência, e este final sanou em definitivo a questão. Ainda hoje não consigo perceber isso do preço do trigo: toda a vida o tenho visto reaparecer, para minha confusão, e a propósito de não sei quê. O certo é que sempre que o caso ressuscita, eu considero a batalha perdida.

Isto, porém, foi uma digressão. Eu não era pessoa para derrubar os Commons nem para causar a ruína do país. Exprimi docilmente, com o silêncio, o meu assentimento a tudo quanto acabara de ouvir da boca desse homem, meu superior pela idade e pelo saber, e falámos então de teatro, do Estrangeiro, dos dois cavalos que tiravam a carruagem, até à altura em que chegámos ao portão da residência do doutor Spenlow.

Rodeava‑a um jardim magnífico e, embora a estação fosse mal escolhida para o ver, achava‑se tão bem tratado que me encantou. Havia um relvado delicioso, grupos de árvores, alamedas que se entreviam na obscuridade e que eram cobertas de arquinhos e de pérgulas em que no Verão desabrochavam flores.

«É aqui», pensei, «que o doutor Spenlow passeia sozinho.»

Entrámos na casa, que estava brilhantemente iluminada. No vestíbulo vi uma quantidade de chapéus, bonés, sobretudos, mantas, luvas, chicotes e bengalas.

- Onde está a menina Dora? ‑ perguntou o doutor Spenlow a um criado.

«Dora!», disse de mim para mim. «Que lindo nome!»

A sala contígua devia ser a de jantar, a tal que o xerez tornara célebre. Ouvi uma voz que dizia:

‑ Senhor Copperfield, apresento‑o à minha filha e à sua dama de companhia.

Era decerto a voz do doutor Spenlow, mas não a reconheci e não me importei com o facto. Aquilo fora num relance. O meu destino estava marcado. Tornara‑me cativo, era escravo. Amava Dora Spenlow até à loucura.

Pareceu‑me sobre‑humana, uma fada, uma sílfide, a incarnação de tudo o que nunca se viu e que se deseja ver. Fiquei preso num abismo de amor. Fora impossível olhar para outro lado qualquer: desapareci de cabeça para baixo antes sequer de ter a ideia de dirigir uma só palavra à rapariga.

‑ Quanto a mim ‑ observou uma voz já escutada outrora, quando me inclinei murmurando qualquer coisa ‑, já conheço o senhor Copperfield.

Não era Dora quem falava. Não, era a dama de companhia: a senhora Murdstone em carne e osso!

Não julgo que me tivesse admirado muito. Tanto quanto posso saber, não estava capaz de me admirar. O universo material não continha nada que valesse a pena uma pessoa admirar‑se, além de Dora Spenlow.

‑ Ah, como passa, senhora Murdstone? ‑ repliquei. ‑ Bem, espero...

‑ Muito bem.

‑ E como vai o seu irmão?

‑ Está ainda robusto, obrigada.

O doutor Spenlow, surpreendido, suponho, por nos termos reconhecido, declarou então:

‑ Rejubilo, Copperfield, por ver que já se conhecem.

‑ Convivi com o senhor Copperfield ‑ explicou a senhora Murdstone com austera tranquilidade ‑ ainda na sua infância. Mais tarde, as vicissitudes separaram‑nos. Não o teria reconhecido.

Respondi que, fosse onde fosse, não me passaria despercebida. O que era a pura verdade!

‑ A senhora Murdstone fez o favor ‑ disse o doutor Spenlow ‑ de aceitar as funções, se assim as posso qualificar, de confidente da minha filha Dora. Dora, que infelizmente já não tem mãe, encontrou na senhora Murdstone a sua companheira e protectora.

Atravessou‑me o espírito a ideia de que a senhora Murdstone, como certas armas classificadas de defensivas, servia mais para atacar do que para proteger. Mas como eu só tinha pensamentos erradios para tudo o que não fosse Dora, voltei‑me depressa para esta. Estava a pensar, vendo no seu semblante adorável um ar de aborrecimento, que decerto essa rapariga poucas confidências se disporia a fazer à sua dama de companhia, quando soou uma sineta. O dono da casa explicou‑me que era o primeiro sinal para o jantar, e conduziu‑me ao quarto para que me vestisse.

Imaginar, no estado em que me encontrava, que devia mudar de fato ou fazer fosse o que fosse pareceu‑me coisa deslocada. No entanto sentei‑me diante do fogão, empunhando a chave da mala e pensando nos olhos daquela Dora tão delicada e enfeitiçadora. Que figura, que rosto, que graciosidade, que encanto! A sineta tocou pela segunda vez: arranjei‑me à pressa (pondo de lado a operação cuidadosa a que tencionava proceder), e desci a escada. Havia outros convidados. Dora falava com um senhor de idade, e, por mais velho que se me afigurasse, não deixei de experimentar ciúmes furiosos.

Que belo estado em que me achava, francamente! Tinha ciúmes de todos. Não podia suportar a ideia de que uma pessoa qualquer conhecesse o doutor Spenlow melhor do que eu. Representava para mim uma tortura ouvi‑los falar de assuntos a que eu não estava ligado. Quando um senhor muito cortês, de crânio calvo e polido como um espelho, me perguntou se fora a primeira vez que eu tivera oportunidade de ver o parque, sei lá que horrível vingança me passou pelo espírito!

Não me recordo de nenhum dos comensais, salvo Dora. Nem do que houve ao jantar, excepto Dora. Creio ter jantado exclusivamente da sua pessoa e ter recusado, sem lhes tocar, meia dúzia de pratos. Encontrava‑me instalado perto de Dora. Conversei com ela. A rapariga tinha a vozita mais delicada, o risinho mais alegre, as maneiras mais agradáveis e sedutoras que jamais reduziram um pobre mancebo a uma escravidão sem esperança. Era fina em tudo, e, pensei, o mais preciosa que podia ser.

Quando saiu da sala na companhia da senhora Murdstone (não havia outras damas), fiquei mergulhado num devaneio, perturbado apenas pela apreensão cruel de ser denegrido junto dela pela Murdstone. O cavalheiro amável, de crânio polido, contou‑me uma história sem fim, que tratava, suponho, de jardinagem. Parece‑me que o ouvi dizer, por várias vezes, «o meu jardineiro». Eu fingia prestar‑lhe a mais profunda atenção, mas na realidade vagueava nos jardins do Éden ao lado de Dora Spenlow.

A ideia de ser caluniado junto do objecto do meu único amor reavivou‑se quando entrámos na sala de visitas em consequência do aspecto carrancudo da dama de companhia. Mas senti‑me aliviado de uma maneira inesperada, porque ela me chamou para o vão de uma janela e me disse:

‑ Não tenciono reviver histórias de família, é um assunto pouco tentador.

‑ A quem o diz! ‑ retorqui.

‑ Tem razão ‑ continuou a senhora Murdstone. ‑ Não desejo ressuscitar velhas querelas nem ofensas antigas. Fui insultada por uma pessoa (uma mulher, custa‑me dizê‑lo, porque tenho muita honra no nosso sexo), da qual não se pode falar sem desprezo nem aversão. Por consequência, prefiro não a nomear.

Esta alusão à minha tia enfureceu‑me. Mas limitei‑me a responder que seria realmente preferível que a senhora Murdstone a não nomeasse, pois eu não admitiria que, na minha presença, se lhe faltasse ao respeito, caso fosse a pessoa que eu pensava.

A minha interlocutora fechou os olhos, inclinou a cabeça, e depois, reabrindo‑os com lentidão, prosseguiu:

‑ David Copperfield, não tentarei explicar que não concebi opinião desfavorável a seu respeito, no tempo da sua meninice. Seria injustificada? Talvez você já não a merecesse. Mas isso agora não importa. Pertenço a uma família que se notabilizou, creio, pela sua firmeza. Posso ter a opinião que quiser acerca dos outros. E você pode ter a opinião que lhe apetecer quanto a mim.

Foi a minha vez de inclinar a cabeça.

‑ Mas não é necessário ‑ continuou a senhora Murdstone ‑ que estas opiniões entrem aqui em conflito. Dadas as circunstâncias que sabemos, é muito melhor que assim seja. Como os azares da vida nos puseram de novo frente a frente, proponho que nos apresentemos como simples conhecidos. É o que exigem as nossas histórias familiares. Que utilidade haverá em qualquer de nós fazer reflexões acerca do outro? Concorda?

‑ Eu penso que a senhora e o seu irmão procederam muito mal comigo, e que a senhora tratou minha mãe com crueldade. Não mudarei de parecer quanto a isto, mas aceito sem reservas o que me sugere.

A senhora Murdstone tornou a fechar os olhos e a curvar a cabeça. Em seguida, tocando com os dedos frios e duros as costas da minha mão, afastou‑se compondo as cadeiazinhas metálicas que lhe fechavam o pescoço e os pulsos ‑ os mesmos ornamentos, suponho, da última vez que eu a vira. Esses ornamentos, atendendo ao carácter da senhora Murdstone, evocaram‑me as correntes que envolvem as portas das prisões e que, logo de entrada, nos previnem de que lá dentro não há nenhuma esperança.

Tudo o que sei do resto do serão é que ouvi cantar a minha deusa, em francês, acompanhando‑se a um belo instrumento que devia ser viola: eram baladas perturbantes, cujo sentido geral seria este: aconteça o que acontecer, devemos sempre dançar, trá lá lá, trá lá lá. Sentia‑me tomado de um delírio benéfico. Recusei todas as bebidas, e particularmente o ponche. Quando a senhora Murdstone levou Dora sob a sua custódia, esta estendeu‑me, com um sorriso, a mão pequenina. Vi‑me num espelho: tinha o ar perfeitamente imbecil, idiota.

Fui deitar‑me num estado de embriaguez sentimental e levantei‑me numa crise de paixão louca.

Estava um tempo óptimo, era cedo e eu resolvi ir passear sob aqueles caramanchéis e aí nutrir o amor com o pensamento de Dora. Ao atravessar o vestíbulo, descobri um cãozito a que chamavam Jip (diminutivo de Gipsy). Aproximei‑me com ternura (a minha paixão estendia‑se até ele), mas o animal mostrou‑me os dentes, refugiou‑se debaixo de uma cadeira e não consentiu em familiaridades.

No jardim não estava ninguém e havia fresco. Andei cá e lá imaginando a minha ventura se me casasse um dia com aquela beldade. Nessas questões de dinheiro e matrimónio eu devia ser tão inocentemente cândido como no tempo em que amava a pequena Emily. Ter o direito de lhe chamar Dora, de lhe escrever e de a adorar, ter motivos para crer que pensaria em mim, no meio de tantas outras pessoas, eis o que se me afigurava o cúmulo da felicidade humana ou em todo o caso o fastígio da minha. Eu seria, sem qualquer dúvida, um tolo sentimental; mas a pureza da minha paixão era tal que, embora hoje me ria ao pensar nela, não vejo razão para me desdenhar.

Não havia ainda muito tempo que começara a passear quando, ao voltar de uma alameda, me surgiu Dora. Estremeço da cabeça aos pés ao recordar‑me desse instante, e a pena vibra‑me na mão.

‑ Está... levantada... desde muito cedo...? ‑ observei à rapariga.

‑ É tão estúpido permanecer em casa, e a senhora Murdstone é tão antipática! ‑ retorquiu a filha do doutor Spenlow. ‑ Conta tantas parvoíces. Acha que só se deve sair depois de o dia... arejado!‑ Ao dizer isto, Dora soltou uma risada cristalina. ‑ Ao domingo de manhã tenho de fazer qualquer coisa, por isso disse ontem ao papá que hoje precisava de sair, já que não estudava. Demais a mais, agora é o momento mais agradável do dia, não lhe parece?

Ousei responder (sempre balbuciando) que a manhã estava, com efeito, radiante, embora um pouco antes estivesse nublada.

‑ É um cumprimento? ‑ perguntou Dora. ‑ Ou, na verdade, o tempo mudou assim tão depressa?

Expliquei, gaguejando um pouco, que dissera a pura verdade, sem intenção de ser amável, se bem que não houvesse notado qualquer alteração atmosférica. A mudança operara‑se apenas nos meus sentimentos.

Eu nunca vira caracóis de cabelo ‑ e como poderia ver semelhantes? ‑ como os que ela agitou para esconder o rubor das faces. Quanto ao chapéu de palha e às fitas azuis que coroavam aqueles caracóis, se ao menos os pudesse pendurar no meu quarto da Buckingham Street, que tesouro inestimável seriam para mim!

‑ Vem de Paris? ‑ inquiri.

- Venho. Já esteve lá?

‑ Nunca estive.

- Oh, espero que aí vá mais dia menos dia. Haveria de gostar

deveras!

No rosto estampou‑se‑me profunda angústia. Ela esperava que eu fosse a Paris! Julgava‑o possível! Essa ideia foi‑me insuportável. Comecei a denegrir Paris, a denegrir a França e a declarar que nada deste mundo me poderia arrancar de Inglaterra. Não, nada me faria resolver a tal coisa. A rapariga agitava outra vez os caracóis quando o cãozito chegou a correr.

Ficou ciumentíssimo por me ver e principiou a ladrar. Dora tomou‑o nos braços (ó céus!) e acariciou‑o; mas o animal continuou ladrando. Não consentia que eu lhe tocasse, quando tentava estender para ele a mão. Nessa altura a dona ralhou‑lhe e castigou‑o, e o meu sofrimento aumentou com o espectáculo dessas pancadinhas que ela lhe dava, à maneira de punição, no focinhito achatado, enquanto Jip piscava os olhos e lhe lambia os dedos, rosnando ainda em surdina. Por fim sossegou, e não poderia fazer menos, porque Dora poisara a covinha do queixo na cabeça do bicho. Fomos depois visitar uma estufa.

‑ Não é muito íntimo da senhora Murdstone? ‑ perguntou a menina Spenlow. ‑ Querido! ‑ esta última expressão dirigia‑se ao cachorro, não a mim, infelizmente.

‑ Não sou ‑ repliquei. ‑ Mesmo nada.

‑ É uma pessoa aborrecida.‑ continuou Dora, fazendo trombas.‑ Não sei o que imaginou o papá quando escolheu uma mulher tão impertinente para tomar conta de mim. Preciso eu de ser protegida? A verdade é que não. O Jip melhor me protegerá do que a senhora Murdstone, não é verdade, queridinho?

O interpelado limitou‑se a semicerrar preguiçosamente os olhos.

‑ O papá chama‑lhe minha confidente, mas posso afirmar que não é nada disso. Hem, Jip? Quem vai confiar‑se a criaturas tão azedas? Eu e o Jip tencionamos confiar apenas em amigos que nós mesmos escolheremos. Não é assim, Jip?

O cãozito respondeu com um rumor de satisfação, algo como o chiar de uma cafeteira. Mas, para mim, cada palavra de Dora rebitava‑me mais os grilhões.

‑ É triste, quando não se tem mãe, ser‑se obrigado a suportar uma solteirona triste e mal humorada, como a senhora Murdstone, sempre a vigiar a gente. Não é verdade, Jip? Deixá‑la! Não se lhe farão confidências. Pelo contrário, há‑de arreliar‑se ainda mais aquela maçadora. Hem, Jip?

Se isto houvesse durado mais tempo, julgo que não deixaria de cair de joelhos no saibro, aos pés dela, com grande possibilidade de me esfolar e, ainda por cima, de ser posto na rua. Felizmente que a estufa não estava longe. E já chegávamos lá.

Continha uma colecção de belíssimos gerânios, que apreciámos sem nos deter, excepto quando Dora queria admirar de mais perto uma flor e eu a imitava nesse particular. A rapariga erguia puerilmente o cão para o fazer cheirar as plantas, e ria com gosto. Se estivéssemos no país das fadas, a coisa não seria diversa. Ainda hoje o odor de uma folha de gerânio me faz sorrir, divertido; então revejo um chapéu de palha e fitas azuis, caracóis de cabelo e um cãozinho levantado em dois braços frágeis salientando‑se num fundo vegetal.

A senhora Murdstone veio à nossa procura; descobriu‑nos e ofereceu a Dora as faces enrugadas, para que ela as beijasse. E, metendo o braço da pupila no seu, arrastou‑a para a casa de jantar como se nos levasse para um enterro.

Não saberei dizer quantas xícaras de chá eu tomei só por haver sido feito por Dora. Lembro‑me perfeitamente que fiquei a sorvê‑lo, a tal ponto que o meu sistema nervoso (se o tivesse nessa época) seria afectado com certeza. Pouco depois fomos à igreja. A senhora Murdstone sentou‑se no banco, entre mim e Dora: esta cantou e tudo desapareceu da minha vista. Houve um sermão (acerca de Dora, naturalmente), e é tudo quanto me recordo do ofício divino.

Passámos um dia muito calmo. Não vieram visitas. Um passeio, um jantar em família (quatro pessoas) e um serão ocupado com livros, cujas gravuras folheei na companhia de Dora, sob a vigilância da senhora Murdstone. O dono da casa, sentado defronte de mim, estava longe de pensar com que ternura de genro eu o abraçava em imaginação. Estaria também longe de pensar, quando me despedi para me ir deitar, que acabava de dar o seu consentimento aos meus esponsais com Dora e que eu invocara para ele todas as bênçãos do Céu.

Partimos de manhã cedo, porque tínhamos um caso de direito marítimo que exigia conhecimentos especiais de navegação; como não se podia esperar que fôssemos muito versados no assunto, o juiz convocara para a audiência dois velhos mestres de barca para o ajudarem a solucionar a querela. Apesar da hora matinal, Dora compareceu à mesa do primeiro almoço para tornar a fazer o chá. Já dentro do faetonte, tirei o chapéu, saudando‑a, quando ela surgiu na escadaria, com o Jip nos braços, para nos dizer adeus.

Não dei grande importância ao processo, que se me afigurou cada vez mais absurdo conforme se ia desenrolando. Via o nome de DORA no remo de prata, espécie de maça que se coloca em cima da mesa do tribunal quando se discutem casos ligados ao Almirantado e é o emblema daquela alta jurisdição. O doutor Spenlow voltou para casa (desta vez sem mim) e eu imaginei‑me como um marinheiro que vê partir o navio a que pertence depois de o deixar abandonado numa ilha deserta. Não farei todavia vãos esforços para descrever tudo isto. Se esse velho tribunal, sempre sonolento, pudesse despertar e denunciar os sonhos que à sua sombra sonhei a propósito de Dora, então nesse momento é que se conheceria a verdade!

Não quero falar dos sonhos que engendrei não só nesse dia como nos seguintes, de semana a semana e de trimestre a trimestre. Ia às audiências, não para ouvir o que ali se passava mas para evocar a minha Dora. Se jamais prestava atenção aos processos que se discutiam na minha presença era apenas para me assombrar (nos casos de divórcio) de que pessoas casadas pudessem deixar de ser felizes, ou, quando se tratava de heranças, para perguntar a mim mesmo (se o dinheiro me fosse legado) como é que o empregaria em favor de Dora. Durante a primeira semana da minha paixão, comprei intencionalmente quatro coletes sumptuosos e usei luvas de camurça amarelas, com que passeei pelas ruas, e comprei calçado com que preparei o advento de futuros calos. Se as botas que estreei nessa ocasião fossem comparadas com o tamanho dos meus pés, ter‑se‑ia aí a explicação do estado a que chegara.

E contudo, por mais doloridos que tivesse os pés sacrificados ao altar do amor, eu percorria diariamente vários quilómetros na esperança de encontrar Dora. Não só comecei a ser conhecido na estrada de Norwood pelos carteiros que aí faziam serviço, como estendi a minha deambulação à própria Londres. Errava pelas ruas em que se situavam as melhores lojas de modas, frequentava o Bazar como uma alma penada, percorria o Parque de diante para trás e de trás para diante e ficava estafadíssimo. Às vezes avistava Dora, em raras ocasiões; ora agitava a luva à portinhola de uma carruagem, ora conseguia acompanhá‑la uns metros, junto da senhora Murdstone. Nesta última circunstância, sentia‑me infelicíssimo depois de a deixar: pensava que não lhe dissera nada que pudesse melhorar‑me aos seus olhos, ou então desconfiava que a rapariga ignorava tudo, até a minha predilecção por ela, ou que lhe era completamente indiferente. Esperava todos os dias novo convite do doutor Spenlow, e a decepção repetia‑se, porque esse convite não chegava.

A senhora Crupp devia ser mulher extremamente perspicaz. O meu afecto datava ainda de poucas semanas e eu nem tivera coragem de escrever a Agnes, acerca do assunto, senão que «a família do doutor Spenlow compõe‑se apenas de uma filha», e já a minha hospedeira adivinhara tudo. Uma noite em que me sentia abatido, ela veio procurar‑me para me perguntar (estava nessa altura sujeita aos acessos de que falei) se lhe podia ceder um pouco de «tintura de cardamomo e ruibarbo perfumada de sete gotas de essência de cravinho», que era o remédio de que necessitava; como não estivesse munido de tal coisa, achei que um cálice de conhaque serviria para o efeito, e ofereci‑lho.

A senhora Crupp começou a tomar o conhaque na minha presença, não fosse eu supor que o queria para outro uso...

‑ Anime‑se!‑disse ela. ‑ Custa‑me vê‑lo assim acabrunhado. Eu também sou mãe.

Não percebi a razão por que me dizia aquilo, mas sorri, tanto quanto me foi possível fazê‑lo em semelhante ocasião.

‑ Desculpe ‑ continuou ‑ mas eu sei qual é o seu mal. Aí anda mulher!

‑ Oh, senhora Crupp! ‑ exclamei, ruborizado.

‑ Não se preocupe ‑ volveu, com um sorriso de incitamento. ‑ Não se deixe esmorecer. Se ela o não quiser, outras não lhe faltarão. O senhor foi feito para agradar às damas; tem de aprender a saber quanto vale.

‑ Porque pensa que há mulher no caso? ‑ retorqui.

‑ Eu também sou mãe ‑ repetiu ela, em tom de pessoa convicta.

Por momentos, a senhora Crupp pôs a mão no corpete e sorveu mais um pouco do remédio que eu lhe oferecera, a fim de resistir a qualquer novo acesso da doença. Em seguida prosseguiu:

‑ Quando a sua digna tia reservou este quarto, eu disse‑lhe que teria daí por diante alguém a quem estimar. O senhor não come o suficiente, e não bebe nada.

‑ É nisso que fundamenta a sua suspeita, senhora Crupp?

‑ Senhor Copperfield ‑ replicou com uma voz que chegava a ser severa‑ eu lavei muita roupa a outros rapazes antes do senhor. Um moço precisa de andar bem cuidado, mas há ocasiões em que se desleixa. Deve pentear‑se, mas às vezes aparece desgrenhado. Há ocasiões em que usa o calçado muito grande para o seu pé, e noutras muito pequeno. Tudo depende do carácter do moço em questão; mas, sempre que se verifica um ou outro destes extremos, é que existe rapariga no caso. ‑ A senhora Crupp abanou a cabeça com ar tão decidido que eu me senti abalado na minha resistência. ‑ Não é necessário ir mais longe, basta o exemplo do rapaz que ocupou estes aposentos antes do senhor. Apaixonou‑se por uma empregada de botequim. Não tardou a ver‑se obrigado a mandar encurtar os fatos, apesar de inchado como andava por causa da bebida.

‑ Senhora Crupp, peço‑lhe que não compare a menina que me interessa com uma criada de botequim!

‑ Também sou mãe ‑ insistiu a senhora Crupp ‑ mas não costumo intrometer‑me nos negócios alheios. Por nada deste mundo quererei impor‑me! Mas o senhor é novo, e o conselho que lhe dou é de retomar coragem, de tornar a ser quem é, de não se deixar abater. Trate de se prender a qualquer coisa, ao jogo do chinquilho, por exemplo, que é saudável. Há‑de ver que o faz mudar de ideia e o torna feliz.

Com estas palavras, a senhora Crupp (afectando não querer abusar do meu conhaque) agradeceu‑me com uma vénia majestosa, e retirou‑se. No momento em que o seu vulto se apagou na sombra do vestido, tive a impressão de que os conselhos dados representavam excessiva liberdade da sua parte; mas, ao mesmo tempo, agradou‑me tê‑los recebido: homem prevenido vale por dois e eu, de futuro, procuraria guardar melhor o meu segredo.

 

TOMMY TRADDLES

Talvez em consequência dos conselhos que me dera a senhora Crupp, veio‑me à ideia, no dia seguinte, ir visitar Tommy Traddles, que habitava numa travessa perto da Escola de Medicina Veterinária, em Camden Town. Como me disse um dos escreventes da banca em que eu trabalhava, ali viviam sobretudo estudantes que compravam burros vivos para fazerem depois exames anatómicos nesses quadrúpedes. Depois de me inteirar do trajecto para chegar à dita escola, pus‑me a caminho naquela tarde a fim de procurar o meu antigo camarada.

Descobri logo que a rua não era tão apropriada a Traddles como eu desejaria. Os habitantes parece que tinham por hábito atirar para o chão todos os detritos, e assim ela exalava mau cheiro e estava coberta de folhas de couve. As imundícies não pertenciam todas ao reino vegetal: ao verificar os números de polícia, para encontrar o de Traddles, dei conta de um sapato, uma frigideira velha, um chapéu preto e um guarda‑chuva, tudo isto em vários graus de decomposição. O aspecto geral do sítio recordou‑me o tempo em que eu morava com o casal Micawber, e a casa que me interessava acentuou esta semelhança, graças ao seu tom de elegância pelintra que a distinguia das outras, embora fossem todas do mesmo modelo e parecessem construídas por um arquitecto amador. Cheguei à porta ao mesmo tempo que o leiteiro da tarde, o que me trouxe de novo à lembrança a época dos Micawbers.

‑ A respeito da minha conta? ‑ perguntou o leiteiro a uma criada bastante nova.

‑ O patrão diz que vai tratar disso ‑ respondeu a rapariga. O homem, que lançava olhares furibundos para o corredor da casa, não fez caso da resposta e retorquiu de maneira a ser ouvido por mais alguém do que a criada:

‑ É que essa continha já data de há muito tempo! Não estou disposto a esperar mais.

E pensar que ele, em seguida, serviu um produto tão inofensivo como é o leite! Se ao menos fosse o rapaz do talho ou o fornecedor do vinho...

E então o distribuidor, olhando pela primeira vez directamente para a rapariga e pegando‑lhe no queixo, perguntou:

‑ Gosta de leite?

‑ Se gosto!

‑ Pois amanhã já não terá nem uma gota!

Pareceu‑me que ficara aliviada pelo facto de já o ter para aquele dia. O leiteiro considerou‑a com um sinistro mover de cabeça, largou‑lhe o queixo e mediu de mau modo a quantidade habitual no cangirão que ela lhe apresentara. Depois foi‑se embora resmungando e lançou o seu pregão, com estridor vingativo, defronte do prédio contíguo.

‑ O senhor Traddles mora aqui? ‑ indaguei nesse momento. Do fundo do corredor respondeu afirmativamente uma voz misteriosa, e a criada repetiu a declaração ouvida.

‑ E ele está? ‑ insisti.

Replicou a mesma voz misteriosa, dizendo que sim, e de novo a criada se fez eco. Com isto, dei uns passos, seguido da rapariga, e encaminhei‑me para a escada. Quando passei por uma porta tive a impressão de que me espiava um olhar misterioso, decerto pertencendo à voz misteriosa.

Ao chegar acima (a casa era só de rés‑do‑chão e primeiro andar), Traddles estava no patamar à minha espera. Ficou encantado por me ver, saudou‑me com muita cordialidade e entrámos no seu quartinho, cuja janela deitava para a rua; era asseado, mas tinha pouca mobília: havia um divã, a escova dos sapatos misturava‑se com os livros, na última prateleira da estante, por trás de um dicionário. A mesa cobria‑se de papéis. Traddles ocupava‑se de qualquer coisa, embrulhado num sobretudo velho, mas, ao sentar‑me, descobri o desenho de uma igreja, junto do tinteiro. O meu camarada havia feito vários arranjos engenhosos para esconder a cómoda, os sapatos, o espelho da barba, etc. Lembrei‑me desse Traddles que outrora construía enormes caixas de cartão para aprisionar moscas e que se consolava do seu mau passadio com as obras de arte que já atrás mencionei. Um canto do quarto ocultava não sei quê por baixo de um grande pano branco.

‑ Traddles ‑ comecei, apertando‑lhe outra vez a mão ‑, quanto prazer tenho em ver‑te!

‑ O prazer é todo meu, Copperfield. Palavra que estou contentíssimo. Por isso, e por crer que também te agradava tornar a ver‑me, é que outro dia, em Ely Place, te dei esta direcção em vez de ser a do meu escritório.

‑ Ah, tens um escritório?

‑ Tenho... isto é, a quarta parte de uma sala e de um corredor, e também de um empregado. Juntei‑me a três colegas para alugar o escritório mobilado (o que dá mais a nota) e, quanto ao servente, partilhamo‑lo entre nós. Custa‑me meia coroa por semana.

Reencontrava assim a sua antiga simplicidade, o seu velho optimismo e algo da sua pouca sorte no sorriso que acompanhou aquelas explicações.

‑ Não é nada por orgulho, bem me compreendes, Copperfield ‑ acrescentou ele ‑, que em geral não dou este endereço, mas há pessoas que me procuram e preferem não estar aqui. Quanto a mim, debato‑me contra as dificuldades para abrir caminho neste mundo. Seria ridículo da minha parte pretender o contrário.

‑ Estudaste Direito, segundo me disse o senhor Waterbrook...

‑ É verdade ‑ confirmou Traddles, esfregando lentamente as mãos. ‑ Estudei Direito. Para falar verdade, acabo de me inscrever no foro, porque terminei o estágio há já algum tempo, mas custou‑me reunir as cem libras da inscrição. Custou muito ‑ repetiu, fazendo uma careta, como se lhe arrancassem um dente.

‑ Sabes em que estive a pensar, Traddles, enquanto olhava para ti?

‑ Não.

‑ No fato azul‑celeste que usavas.

‑ Tens razão! ‑ exclamou, rindo. ‑ Um pouco curto de mangas e de calças, lembras‑te? Meu Deus, que bons tempos esses...

‑ Parece‑me que o director podia tê‑los tornado melhores, sem nos arreliar tanto ‑ redargui.

‑ Com certeza, Copperfield. Em todo o caso, divertimo‑nos bastante. Recordas‑te dos serões no dormitório? Quando ceávamos? E quando tu contavas histórias? Ah, ah, ah! E o dia em que fui castigado porque chorei pela partida do senhor Mell? Aquele velho Creakle... Também gostava de o tornar a ver.

‑ Comportou‑se contigo como um selvagem, Traddles ‑ bradei indignado, por que o seu bom humor provinha das evocações, e eu recordo‑me, como se fosse na véspera, de ter visto o director açoitá‑lo.

‑ Parece‑te? Talvez, no fim de contas. Mas foi há tanto tempo! Aquele velho Creakle...

‑ Era um tio teu que te custeava a educação?

‑ Era. Esse a quem eu estava sempre para escrever, sem nunca chegar a escrever... Ah, ah! Pois é verdade, nessa altura tinha um tio. Morreu pouco depois de eu sair do colégio. Negociava em fazendas, tecidos, panos... Quando cresci, começou a antipatizar comigo.

‑ Falas a sério? ‑ perguntei.

Mostrava‑se tão sereno que julguei que era brincadeira o que dizia.

‑ Pois, Copperfield! Falo muito a sério. Declarou que eu não dera aquilo que ele esperava de mim... e casou com a governanta.

‑ E então que fizeste?.

‑ Nada de especial. Vivi com eles, aguardando melhores dias, até que o reumatismo gotoso lhe atingiu o coração. Morreu, e a viúva passou a segundas núpcias com um rapaz. Foi assim que me encontrei desamparado.

‑ Não recebeste nada, no fim de contas?

‑ Recebi cinquenta libras. Não aprendera nenhuma profissão e não sabia que fizesse. Por fim liguei‑me ao filho de um advogado, que estivera no internato de Salem, aquele Yawler que tinha o nariz torto. Não te lembras?

- Não. Não foi no meu tempo. Nessa época todos os narizes eram direitos.

- Não importa ‑ disse Traddles. ‑ Comecei, com o seu auxílio, a copiar escrituras. A coisa não rendia muito. Então principiei a resumir os processos, para eles, e a fazer outros trabalhos do género. Sabes como sou trabalhador. Aquilo deu‑me a ideia de estudar Direito, e deste modo gastei o resto das cinquenta libras. Yawler recomendou‑me entretanto em dois ou três escritórios, o do senhor Waterbrooks entre outros, e eu achei assim ocupação. Tive a sorte de encontrar uma pessoa relacionada com livros e que preparava a edição de uma enciclopédia: deu‑me trabalho. Aliás ‑ acrescentou, deitando uma vista de olhos à mesa ‑ trabalho neste momento para ela. Não sou mau compilador, como sabes, Copperfield ‑ disse com o mesmo ar de segurança jovial ‑, mas faltava‑me por completo a imaginação. Acho que nunca houve ninguém menos original do que eu!

Traddles parecia esperar a minha concordância, como uma circunstância natural. Fiz um sinal de cabeça e ele continuou, sempre com a sua paciência risonha (não saberei definir melhor o temperamento de Traddles).

‑ Assim, a pouco e pouco, vivendo com parcimónia, consegui finalmente obter as cem libras de que precisava. Mas posso dizer que foi duro ‑ observou com nova careta, como se lhe arrancassem outro dente. ‑ Cá vou vivendo graças ao trabalho de que falei, e espero relacionar‑me por estes dias com um jornal, o que será o caminho da sorte. Agora, como já não posso ocultar‑te nada, ajuntarei que estou noivo!

«Noivo! Oh, minha Dora!», pensei.

‑ Ela é filha de um sacerdote de Devonshire. São dez irmãos. Sim ‑ acrescentou, vendo‑me lançar uma olhadela involuntária ao desenho junto do tinteiro ‑ esta é a igreja. Volta‑se aqui, à esquerda, sai‑se por esta porta, mesmo no ponto em que tenho agora a pena, e eis a casa. Defronte da igreja, naturalmente.

A satisfação com que ele entrava em todos estes pormenores não me impressionou por então, enlevado como estava, egoistamente, nas minhas recordações: traçava em pensamento o plano da casa e do jardim do doutor Spenlow.

‑ É tão bonita! ‑ disse Traddles. ‑ Um pouco mais velha do que eu, mas encantadora. Não te informei ainda de que vou deixar Londres? Estive lá, fui a pé e voltei a pé, e passei momentos deliciosos. O nosso noivado será longo, porém adoptámos a divisa «Espera e confia», que repetimos sempre. E ela esperará, Copperfield, até aos sessenta anos por mim; até qualquer idade!

Traddles levantou‑se e, com um sorriso triunfante, pôs a mão no invólucro branco de que falei.

‑ E contudo ‑ continuou ele ‑ não se pode dizer que não começássemos a montar a casa. Pois já começámos! A pouco e pouco, mas começámos. Eis ‑ retirou o pano, orgulhosamente, com muitas precauções ‑, dois móveis para principiar. Este vaso de porcelana e a sua base foram comprados por ela. Põe‑se isto diante da janela da sala ‑ replicou, recuando um passo para o admirar ‑ com uma planta dentro... hem? Esta mesinha redonda de tampo de mármore (tem uns setenta centímetros de circunferência) foi adquirida por mim. Apetece pôr‑lhe um livro em cima. Ou, se se recebe alguém e se precisa de lugar para as xícaras de chá... pronto! Trabalho admirável, firme como rocha.

Elogiei tudo e Traddles tornou a colocar a cobertura com o mesmo cuidado que dispendera ao tirá‑la.

‑ Isto ainda não é bastante para uma casa ‑ disse ele ‑, mas assim é que se começa. ‑ Toalhas, fronhas e todas as coisas deste género, eis o que me apavora mais, Copperfield! E então a quinquilharia, candeeiros, castiçais, grelhas, todos estes objectos indispensáveis. São precisos tantos e custam tão caro! Enfim, é necessário esperar e confiar. Afirmo‑te que ela é uma rapariga estupenda.

‑ Não duvido, Traddles.

‑ Entretanto ‑ prosseguiu o meu amigo, voltando a sentar‑se ‑, safo‑me o melhor que posso, para acabar de falar de mim. Não ganho muito mas também não gasto em excesso. Geralmente entendo‑me, para a pensão, com os inquilinos cá de baixo. O senhor e a senhora Micawber têm muita experiência e são um casal simpático a valer.

‑ Meu caro Traddles ‑ interrompi ‑, que é que me estás a dizer?

Traddles olhou‑me, como se não percebesse de que é que eu lhe falava. Acrescentei:

‑ Os Micawbers? São pessoas da minha intimidade!

Duas pancadinhas à porta vieram dissipar quaisquer dúvidas que ainda subsistissem no meu espírito quanto ao facto de que se tratava dos meus velhos amigos, porque depois da minha longa experiência em Windsor Terrace, ninguém, salvo Micawber, podia bater daquela forma. Pedi ao Traddles que convidasse o seu senhorio a entrar, e o senhor Micawber, sempre igual a si mesmo, penetrou no quarto com o seu ar distinto e juvenil. As calças justas, a bengala, o colarinho, o monóculo, nada nele havia mudado.

‑ Desculpe, senhor Traddles ‑ disse o recém‑chegado, suspendendo o que vinha a cantarolar. ‑ Ignorava que tivesse visitas no seu santuário.

E Micawber inclinou‑se perante mim, de leve, endireitando o colarinho.

‑ Como passou, senhor Micawber? ‑ perguntei‑lhe.

‑ É muito amável ‑ replicou ele. ‑ Eu estou in statuo quo.

‑ E a sua esposa?

‑ Ela também, graças a Deus, in statuo quo.

‑ E os seus filhos, senhor Micawber?

‑ Posso felizmente informá‑lo de que estão de perfeita saúde.

Durante este diálogo, o senhor Micawber não me havia reconhecido, embora se conservasse à minha frente. Mas, de súbito, vendo‑me sorrir, examinou‑me com mais atenção, recuou, e disse:

‑ Será possível? Tenho o prazer de reencontrar Copperfield? E apertou‑me as duas mãos efusivamente.

‑ Meu Deus, senhor Traddles, quem havia de supor que conhecia o amigo da minha mocidade, o companheiro dos velhos tempos! Emma! ‑ gritou no patamar, enquanto Traddles parecia (e com razão) deveras perplexo com o que ouvira. ‑ O senhor Traddles tem uma visita que ele gostaria de te apresentar! ‑ Reapareceu em seguida e apertou de novo a minha mão.

‑ E como vai o nosso amigo doutor e toda a gente de Cantuária? ‑ indagou.

‑ As notícias que tenho são boas ‑ redargui.

‑ Folgo muito, Copperfield. A última vez que nos vimos foi em Cantuária. À sombra (se assim me posso exprimir simbolicamente) desse edifício sagrado, que Chaucer imortalizou e que foi outrora o ponto de reunião de peregrinos idos de todos os cantos mais afastados... em suma ‑ concluiu ‑ na vizinhança muito próxima da Catedral.

Respondi que era assim mesmo. Micawber continuou a falar com toda a volubilidade que eu lhe conhecia, mas não sem deixar entender, por certo constrangimento, que ouvia a senhora Micawber lavar as mãos num quarto não muito distante e abrir ou fechar precipitadamente gavetas um tanto emperradas.

‑ Você encontra‑nos, Copperfield ‑ disse Micawber, sem perder de vista Traddles ‑, presentemente estabelecidos no que podemos designar por uma situação modesta e despretenciosa. Mas não ignora que no decurso da minha carreira tenho superado grandes dificuldades e vencido inúmeros obstáculos. Bem sabe que houve momentos na minha vida em que fui obrigado a aguardar que os ventos mudassem; em que me foi necessário recuar antes de fazer aquilo a que tenho o direito de chamar um salto em frente. A situação actual é um desses instantes decisivos na vida de uma pessoa. Surpreende‑me, Copperfield, no acto de recuo para dar o salto vigoroso que tudo resolverá.

Estava eu preparando‑me para lhe manifestar a minha satisfação quando entrou a senhora Micawber. Vinha um pouco menos arranjada que antigamente (pelo menos assim me pareceu) mas em todo o caso vestira‑se para a ocasião e até calçara um par de luvas.

‑ Querida Emma ‑ disse‑lhe o marido, trazendo‑a ao meu encontro ‑ aqui tens um senhor chamado Copperfield, que deseja renovar conhecimento contigo.

Mais valia tê‑la preparado, para evitar a surpresa brusca, pois a senhora Micawber (que se achava então no estado interessante) ficou perturbadíssima e perdeu os sentidos. Ele então precipitou‑se para o tonel de água da chuva do pátio e voltou com uma selhazinha cheia para banhar a testa da mulher. Esta recobrou consciência e mostrou grande contentamento por me ver. Conversámos por cerca de meia hora, todos quatro. Pedi ao casal notícias dos gémeos: tinham‑se tornado «dois rapagões», conforme explicou a mãe; quanto à menina e ao menino Micawber, esses eram «dois gigantes». Mas desta vez não apareceram em cena.

O senhor Micawber quis reter‑me para jantar. Eu não teria inconveniente em aceitar se não percebesse o olhar alarmado da dona da casa. Pretextei, pois, um compromisso e, notando quanto ela se sentia aliviada, resisti a toda a insistência do marido.

Todavia declarei à senhora Micawber e a Traddles que os não deixava sem que prometessem vir jantar comigo noutro dia qualquer. As obrigações de Traddles forçaram‑me a marcar uma data muito afastada, mas, enfim, fixámos a ocasião e eu despedi‑me.

Micawber, com a desculpa de me ensinar um caminho mais curto, acompanhou‑me até à esquina da rua. Precisava de dizer umas palavras em particular a um velho amigo como eu.

‑ Meu caro Copperfield, não tenho necessidade de lhe manifestar o prazer que sinto em recebê‑lo sob o meu tecto, assim como ao seu amigo Traddles. Não imagina quanto a companhia deste é para nós consoladora, pois os nossos vizinhos são uma lavadeira, que expõe caramelos à janela, para venda, e, no prédio fronteiro, um guarda policial. Por agora ocupo‑me em colocar trigo à comissão. Não é negócio muito compensador e dele resultam embaraços momentâneos de ordem financeira. Todavia estou esperançado em qualquer coisa, não posso dizer ainda o quê, capaz de providenciar, de forma permanente, às minhas necessidades e do seu amigo Traddles, por quem sinceramente me interesso. Você não se admirará de saber que o estado de saúde de minha mulher torna provável uma nova adição a esses penhores do afecto... em suma, ao número dos filhos! A família dela teve a amabilidade de nos insinuar o seu descontentamento perante esta situação. Limito‑me a replicar que o caso lhe não diz respeito e que repudio com desprezo semelhante opinião.

Com isto, Micawber apertou‑me novamente a mão e foi‑se embora.

 

O DESAFIO DE MICAWBER

Até ao dia em que devia obsequiar os meus velhos amigos reencontrados, vivi principalmente de Dora e de café. O meu desespero amoroso tirava‑me o apetite. Isso, porém, tornava‑me feliz, porque seria uma traição a Dora sentir a mínima vontade de comer. Por mais exercícios físicos que executasse, o fastio continuava, porque àqueles contrabalançava‑os a minha decepção. Aliás, gostaria de saber, se uma disposição normal será capaz de se conservar num ente humano submetido à tortura perpétua das botas apertadas. Não creio nessa capacidade: quando as extremidades não estão à vontade, como pode funcionar bem o estômago?

Para esse segundo jantar não procedi aos preparativos do primeiro. Forneci‑me apenas de dois linguados, uma perna de carneiro e um pastelão de pombo. A senhora Crupp revoltou‑se quando lhe perguntei timidamente se poderia cozer o peixe e a carne; respondeu‑me com ar de dignidade ofendida:

- Não, não, senhor Copperfield! Conhece‑me bem para supor que eu iria fazer fosse o que fosse contrariada.

Chegámos no entanto a um compromisso: a senhora Crupp consentiu em prestar‑me aquele favor com a condição de eu jantar fora durante os quinze dias que se seguiriam.

Seja permitido anotar aqui quanto a tirania daquela senhora me fez passar por grandes tormentos. Nunca tive tanto medo de ninguém. Com ela tudo se terminava por compromissos. Se eu hesitava, vinha‑me uma dessas indisposições, sempre à espreita em qualquer parte do corpo e prestes a atacar‑lhe os órgãos vitais. Se eu tocava a campainha, cautelosamente, em chamadas tímidas e infrutíferas, e se a senhora Crupp acabava por comparecer (o que nem sempre acontecia), mostrava um ar de censura, punha a mão no corpete e sentia‑se tão doente que o meu desejo era desembaraçar‑me da criatura a todo o custo, fosse com o sacrifício do meu conhaque ou de outra coisa qualquer. Se achava desagradável que me fizessem a cama às cinco horas da tarde, um gesto da sua mão para o dito corpete bastava para que eu apresentasse todas as desculpas possíveis. Em resumo, estava pronto a fazer tudo só com o fim de evitar ofender a senhora Crupp, que era o imenso terror da minha existência.

Para esse jantar comprei um mòvelzito onde pudesse colocar a loiça, dispensando assim o criado, pois que, dias após o primeiro jantar, o encontrei vestido com um dos meus coletes, precisamente aquele de que dera por falta, e, quanto à criada, tornei a contratá‑la, mas estipulando bem que se limitaria a trazer a comida e a retirar‑se em seguida para o patamar, onde lhe seria permitido fungar à vontade sem ser ouvida pelos meus convidados e onde não teria possibilidade material de me espezinhar os pratos.

Preparei os ingredientes necessários ao ponche do senhor Micawber, adquiri um frasco de água‑de‑colónia para a senhora Micawber, assim como duas velas, alfinetes de vários tamanhos e uma pregadeira, para facilitar o seu arranjo pessoal, acendi o fogão do meu quarto, estendi a toalha na mesa com as minhas próprias mãos e, com a máxima compostura, aguardei o resultado dos meus esforços.

À hora aprazada, chegaram juntos os meus três convidados. O senhor Micawber vinha de colarinho postiço mais alto que o habitual e usava no monóculo um cordão novo. A senhora Micawber trazia o chapéu na cabeça e a touca num embrulho de papel, que Traddles sobraçava, ao mesmo tempo que dava o braço à dama. Todos três manifestaram a admiração que lhes causou o meu apartamento. Quando levei a senhora Micawber ao toucador que lhe destinara, e ela viu os preparativos feitos em sua honra, ficou sinceramente deslumbrada e chamou o marido para que apreciasse também.

‑ Meu caro Copperfield ‑ disse este ‑ eis o que eu chamo luxo! Semelhante modo de vida faz‑me lembrar o meu tempo de solteiro, quando ainda não solicitara Emma a empenhar a sua palavra no altar do himeneu!

‑ Solicitada por ele, é o que quer dizer. Não pode responder pelos outros.

‑ Minha querida ‑ retorquiu Micawber com súbita seriedade ‑, não desejo responder pelos outros. Compreendo muito bem que, ao ligares o teu destino ao meu, os desígnios insondáveis da Providência juntaram‑te a um ente destinado a ser, após luta prolongada, vítima de embaraços pecuniários complicados. Percebi a tua alusão, minha amiga, lastimo‑a, mas não posso tolerá‑la.

‑ Micawber ‑ exclamou a mulher, lacrimosa ‑ por acaso mereço isto? Eu que nunca te abandonei, nem te abandonarei jamais!

‑ Meu amor ‑ atalhou ele, comovido ‑ perdoa‑me, e você, Copperfield, velho amigo, perdoe também a amargura momentânea de uma alma ulcerada, mais sensível agora pela colisão recente com um dos esbirros do Poder; por outras palavras, com um grosseiro funcionário das águas.

Então beijou ternamente a mulher e apertou a minha mão, deixando assim entender que a companhia lhe cortara o fornecimento da água por falta do respectivo pagamento.

Para distrair o espírito do senhor Micawber desse assunto penoso, participei‑lhe que contava com ele para a confecção de um ponche, e instalei‑o diante dos limões. O abatimento, para não dizer o desespero, imediatamente lhe desapareceu. Nunca vi ninguém tão feliz no meio do perfume da casca de limão, do açúcar, dos vapores do rum e da água fervente, como o senhor Micawber naquele instante. Era um prazer admirar‑lhe a fisionomia radiante através da nuvem ténue desses vapores aromáticos, enquanto ele mexia, misturava e provava com tanto ardor como se estivesse a fazer não um ponche mas o horóscopo da família até uma posteridade longínqua. Quanto à senhora Micawber, ou fosse o efeito do chapéu, da água‑de‑colónia, dos alfinetes ou do calor das velas, o caso é que saiu do meu quarto quase bonita. E jamais uma cotovia foi mais alegre do que essa excelente criatura.

Suponho ‑ não me atrevi a averiguar, é só suposição ‑ que a senhora Crupp, depois de ter frigido os linguados, se sentiu mal, porque daí em diante nada correu bem. A perna de carneiro chegou vermelha por dentro e muito pálida no exterior, e, pior ainda, polvilhada de uma substância estranha e estaladiça, como se houvesse caído nas cinzas daquela famosa lareira. O molho não nos permitiu esclarecer este ponto, porque a criada o espalhou por todos os degraus, enquanto subia, numa longa esteira que só os passos acabaram por apagar. O pastelão não estava mau, mas era uma ilusão: a crosta, na verdade, assemelhava‑se a esses crânios que enganam os frenólogos por serem cobertos de protuberâncias e bossas sem nada de particular no meio. Em suma, o festim foi verdadeiro malogro, e eu ficaria deveras infeliz se os meus convivas não salvassem a situação com o seu bom humor e o senhor Micawber com uma ideia genial.

‑ Meu caro Copperfield ‑ disse ele ‑ os acidentes ocorrem nas famílias mais bem organizadas; e naquelas em que falta esta influência poderosa que santifica enquanto engrandece o... em suma, a influência da Mulher, no elevado papel de esposa, eles aparecem inevitavelmente e são suportados com filosofia. Ora, se me permite observar que há poucas iguarias mais delicadas, no seu género, do que os grelhados, e que é possível, dividindo o trabalho, fazer um deles, uma vez que a juvenil pessoa que nos serve consiga arranjar uma grelha, parece que poderíamos remediar este inconveniente com a maior facilidade...

Havia no escritório uma grelha em que se preparava a fatia de toucinho do meu primeiro almoço. Fui buscá‑la e começámos a pôr em prática a ideia de Micawber. A divisão do trabalho, a que ele fizera alusão, consistiu no seguinte: Traddles cortava o carneiro em fatias; Micawber (especialista neste género de coisas) cobria‑as de pimenta branca e preta, mostarda e sal; eu punha‑as na grelha, voltava‑as com um garfo e retirava‑as sob as instruções daquele grande entendido; e, enfim, a senhora Micawber aquecia‑as num tacho com o molho de cogumelos que ela mexia de contínuo. Quando havia número suficiente de fatias, nós atacávamo‑las, de mangas arregaçadas, enquanto outras fatias continuavam a chiar e a tostar ao lume e a nossa atenção se repartia entre o carneiro que tínhamos no prato e o que estava ainda na grelha. A novidade e excelência desta cozinha, as idas e vindas que provocava, a nossa azáfama, as faces coradas pelo fogo, os risos, tudo isto misturado com os odores e os ruídos tão apetitosos levaram‑nos a devorar a perna de carneiro até ao osso. O apetite voltara‑me como por milagre. É vergonha confessá‑lo, mas creio que me esqueci de Dora durante uns momentos. Os Micawbers gozavam tanto com o banquete como se tivessem vendido uma cama para o pagar. Quanto a Traddles, ria quase sem cessar, com tão boa vontade como trabalhava e comia. Aliás, todos fazíamos o mesmo. E jamais um jantar obteve êxito mais completo.

A nossa alegria chegara ao auge e estávamos ocupados com as últimas fatias de carneiro, quando dei fé de uma presença estranha na sala. Era Littimer, que se apresentava defronte de mim, de chapéu na mão.

‑ Que há? ‑ perguntei involuntariamente.

‑ Desculpe ‑ volveu ele ‑, mas mandaram‑me entrar. O meu patrão está aqui?

‑ Não.

‑ O senhor não o viu?

‑ Não. Não é ele quem o envia?

‑ Ao certo, não. Mas calculo que ele apareça cá amanhã, se não veio hoje.

‑ Volta de Oxónia?

‑ Peço‑lhe, senhor Copperfield, que se sente e me deixe fazer esse trabalho.

Assim falando, tirou‑me o garfo da mão e debruçou‑se sobre a grelha com uma atenção que parecia absorvê‑lo todo.

Se fosse o próprio Steerforth que ali surgisse, talvez não nos perturbássemos muito. Mas a entrada do respeitabilíssimo criado lançou‑nos em certa confusão. Micawber começou a cantarolar, para se fingir à vontade, e deixou‑se cair na cadeira, escondendo o garfo no colete, o que podia dar a impressão de que acabava de se apunhalar. A senhora Micawber calçou as luvas e tomou um ar de indiferença elegante. Traddles, depois de passar as mãos engorduradas no cabelo, fitou a toalha com ar embaraçado. Quanto a mim, tinha o aspecto de uma criança à minha própria mesa, e a custo me atrevia a erguer a vista para aquele símbolo da respeitabilidade, vindo sabe Deus de onde, para restabelecer a ordem na minha residência.

Littimer retirara já o carneiro do lume e apresentava‑no‑lo com toda a solenidade. Cada um de nós tirou uma fatia, mas o apetite abandonara‑nos e nós mal comemos. Quando depusemos o garfo e a faca, o digno homem, silenciosamente, mudou‑nos os pratos e talheres e serviu‑nos queijo. Depois procedeu de igual forma, terminada que foi esta fase, levantou a mesa, empilhou a loiça na mesita, trouxe copos de vinho, e, sempre de sua iniciativa, empurrou a dita mesa para o outro quarto. Desempenhou‑se de todas estas funções com extrema perfeição, sem nunca levantar os olhos do trabalho. E contudo, mesmo quando estava de costas, parecia‑me dizer sempre que me considerava ainda muito infantil.

‑ Precisa de mais alguma coisa, senhor Copperfield? Agradeci‑lhe e perguntei se não queria comer também.

‑ Não, senhor Copperfield. Estou‑lhe muito reconhecido.

‑ O senhor Steerforth chega de Oxónia?

‑ Não compreendo...

‑ Se o senhor Steerforth regressa de Oxónia?

‑ Suponho que estará aqui amanhã. Até pensei que fosse hoje. Mas deve ter sido engano meu.

‑ Se lhe falar antes de mim... ‑ repliquei.

‑ Queira desculpar, mas não julgo que seja o primeiro a vê‑lo.

‑ Mas caso tal suceda, diga‑lhe que lastimo não viesse cá hoje, tanto mais que encontraria um antigo condiscípulo.

‑ Certamente ‑ retorquiu, e fez uma vénia em que me envolvia a mim e ao Traddles, com uma olhadela rápida para este último.

Dirigiu‑se lentamente para a porta quando eu o chamei, na esperança vã de dizer a esse homem qualquer coisa natural.

‑ Littimer!

‑ Senhor Copperfield.

‑ Ficou muito tempo em Yarmouth, daquela vez?

‑ Não muito, senhor Copperfield.

‑ Viu a conclusão do barco?

‑ Sim, senhor. Fiquei mesmo para isso.

‑ Bem sei ‑ aduzi. Littimer ergueu a vista, respeitosamente, e eu continuei: ‑ O senhor Steerforth ainda não viu o barco?

‑ Ao certo não posso dizer. Parece‑me... mas ao certo não sei. Boa noite, senhor Copperfield.

Englobou todos os circunstantes na saudação respeitosa que se seguiu a estas palavras, e desapareceu. Os meus convidados respiraram mais livremente depois da sua partida, e eu próprio me senti aliviado. Além do constrangimento que me inspirava sempre a ideia de fazer triste figura em presença desse homem, a consciência nunca deixara de me insinuar que eu duvidara do seu patrão: não podia evitar o vago receio de que ele desconfiara. Então por que motivo, não tendo eu na realidade nada que me acusasse, andava sempre com a impressão de que esse indivíduo respeitável me apanhava em flagrante?

O senhor Micawber arrancou‑me a estas reflexões (misturadas do temor, ditado pelo remorso, de ver chegar o próprio Steerforth) fazendo o elogio do ausente, que achou ser um criado estupendo.

Devo observar que Micawber aceitara a sua parte na saudação geral feita por aquele e a retribuíra com muita condescendência.

‑ O ponche, caro Copperfield ‑ disse ele, provando‑o ‑ é como o tempo e a maré, não espera por ninguém. Nesta ocasião, ele está mesmo uma delícia! Meu amor, não me dás a tua opinião?

A senhora Micawber declarou que o ponche estava excelente.

‑ Então, se o meu amigo Copperfield mo permite, vou beber pelos tempos idos, em que ele e eu éramos mais novos e lutávamos lado a lado para abrir caminho na vida. Posso dizer de nós dois, citando estes versos que já cantámos em coro, que

Percorremos as colinas, Colhendo lindas boninas,

isto, é claro, em sentido figurado. Não sei ao certo ‑ prosseguiu ele, com a sua voz arrastada e o indescritível ar de distinção ‑ que boninas seriam essas, mas posso afirmar que eu e Copperfield as colheríamos aos molhos, se fosse exequível.

E Micawber, nesse mesmo instante, «colheu» um trago de ponche. Todos lhe seguimos o exemplo. Traddles cogitava em que época recuada poderia eu ter travado batalha contra a vida, ao lado de Micawber.

‑ Hum ‑ murmurou este, para clarear a voz, aquecendo‑se sob a acção combinada do ponche e do lume. ‑ Vai mais um copo, querida Emma?

A senhora Micawber respondeu que tomava apenas um dedal; não quisemos, porém, consentir‑lhe semelhante coisa e ela esvaziou um copo grande.

‑ Como estamos em família, senhor Copperfield ‑ disse ela ‑ e visto que o senhor Traddles faz parte da nossa casa, gostaria de saber o que pensa das probabilidades do meu marido; pois, como já lhe disse várias vezes, o comércio do trigo está próspero mas não é muito remunerador. Uma comissão de dois xelins e nove dinheiros por quinzena, por mais modestos que sejamos, não pode ser considerada suficiente.

Concordámos com ela.

‑ Então ‑ prosseguiu a senhora Micawber, que fazia gala em ver as coisas com clareza e manter no bom caminho o marido, pelo tacto feminino, sempre que ele mostrava tentação para se extraviar ‑, então eu faço a mim mesma esta pergunta: se não se pode contar com o trigo, com que é que se pode contar? Com o carvão? Não, decerto. Experimentámos isso, a conselho da minha família, e vimos a sua ineficácia.

Micawber, recostado na cadeira e de mãos nos bolsos, olhava‑nos de soslaio e meneava a cabeça, como para significar que o problema estava bem apresentado.

- O trigo e o carvão ‑ continuou a senhora Micawber ‑ estão,

pois, fora de questão, e eu lanço a vista derredor e inquiro: em que terá probabilidades de vencer um homem tão bem dotado como Micawber? Ponho de lado tudo o que se resume a comissões, por não serem seguras. Ora, convencida estou de que o melhor para o temperamento dele deve ser algo de seguro.

Eu e Traddles exprimimos por um sussurro lisonjeiro a verdade dessa grande descoberta.

‑ Não lhe ocultarei, meu caro senhor Copperfield, que desde há muito tenho a impressão de que a cerveja seria o expediente ideal para Micawber. Veja Barclay & Perkins! Veja Truman, Hanbury & Baxton! Só num negócio desta envergadura é que ele teria possibilidade de brilhar (conheço‑o bem para o saber) e não ignoro que os lucros são enor‑mes! Todavia, se Micawber não pode entrar nestas firmas, que lhe recusam a proposta quando ele lhes oferece os seus serviços, mesmo para um emprego inferior às suas capacidades... de que vale insistir nesse sentido? De nada! Estou convencida de que as boas maneiras de Micawber...

‑ Oh, Emma, então?! ‑ acudiu o marido.

‑ Cala‑te, meu amor ‑ retrucou a mulher, pondo‑lhe a mão enluvada no braço. ‑ Estou convencida, senhor Copperfield, de que as maneiras de Micawber o recomendam particularmente para o comércio bancário. Se eu própria tivesse qualquer depósito num banco, as maneiras de Micawber, uma vez representante desse banco, me inspirariam confiança e favoreceriam os negócios. Mas se os bancos negam a Micawber o direito de se lhes associar, desdenhando as suas propostas, para que pensar nessa hipótese? Quanto a fundar um banco novo, é certo que alguns membros da minha família o poderiam fazer, se quisessem colocar o seu dinheiro nas mãos do meu marido. Se, porém, se negam a isso, para que tentar mais uma vez o projecto? No fim de contas, não adiantámos nada...

Abanei a cabeça e disse «Realmente...» E Traddles fez o mesmo gesto e repetiu idêntica palavra.

‑ Que conclusão se há‑de extrair de tudo isto? ‑ prosseguiu a senhora Micawber, sempre com o ar de expor claramente o assunto. ‑ Que conclusão, caro senhor Copperfield? Não tenho razão se disser que é necessário viver?

‑ Absoluta ‑ retorqui inconscientemente. E acrescentei: ‑ Viver ou morrer!

‑ É a pura verdade ‑ atalhou a senhora Micawber. ‑ E o facto está em que não podemos continuar a viver se não aparecer em breve qualquer coisa decisiva. Ora estou persuadida, e já o notei várias vezes a Micawber, que não devemos ficar de braços caídos, à espera de uma oportunidade que nos caia do céu.

Precisamos de a provocar. Talvez me engane, mas esta é a conclusão a que cheguei.

Eu e o Traddles concordámos sem reservas.

‑ Óptimo. Então que hei‑de recomendar? Temos aqui Micawber com o seu talento e uma infinidade de aptidões...

‑ Oh, filha!

‑ Peço‑te, meu caro, que me deixes acabar. Temos aqui Micawber, dizia eu, dotado de aptidões variadíssimas, com grande talento, que poderei classificar de génio... a não ser que se trate de uma cegueira conjugal...

Eu e Traddles protestámos:

‑ Não, não!

‑ E eis Micawber sem situação nem emprego que lhe convenha. A quem cabe a responsabilidade? Evidentemente que à sociedade. Pois eu gostaria de intimar a sociedade a pôr cobro a essa injustiça. Parece‑me, caro senhor Copperfield ‑ acrescentou com energia‑‑que a Micawber só resta lançar a luva e dizer: «Quem a levanta? Esse que avance!»

Tomei a liberdade de perguntar à senhora Micawber o que era necessário para realizar aquele desafio.

‑ Precisamos de anúncios nos jornais. Julgo que Micawber, por amor a si mesmo, à família, e (vou ao ponto de o proclamar) à sociedade, que até este momento o tem ignorado, devia anunciar em todos os jornais, descrever‑se tal como é, dotado destas e daquelas qualidades, e concluir assim: «Deseja emprego adequado. Resposta a WM. Posta Restante. Camden Town.»

‑ A ideia de minha mulher, meu caro Copperfield ‑ interveio ele, endireitando as pontas do colarinho e olhando‑me de revés ‑ é na realidade o famoso passo em frente de que falei no nosso último encontro.

‑ Os anúncios custam muito caro ‑ observei timidamente.

‑ Isso é certo ‑ exclamou a senhora Micawber, com a mesma aparência de lógica.‑É muito certo, caro senhor Copperfield. Fiz o mesmo reparo ao meu marido. E é justamente por essa razão que ele deveria, parece‑me (por amor a si mesmo, à família, à sociedade, repito) levantar determinada importância por meio de uma letra.

Micawber, reclinado na cadeira, brincava com o monóculo e contemplava o tecto. Mas supus vê‑lo relancear Traddles, que olhava para o lume.

‑ Se algum membro da minha família ‑ ajuntou a senhora Micawber ‑ não tiver a generosidade suficiente para negociar essa letra... creio que há um termo mais técnico para exprimir o que quero dizer...

‑ Descontar ‑ sugeriu o marido, de olhos sempre fitos no tecto.

- Para descontar essa letra, então sou de opinião que Micawber vá à City, se dirija a um banco e trate de conseguir o que pretende. Se lhe exigirem um grande sacrifício, será com eles e a sua consciência. Eu vejo a coisa como um investimento. Aconselho meu marido a fazer como eu, a considerar um investimento seguro e a se resignar seja a que sacrifício for.

Senti, não sei porquê, que era muita abnegação da parte da senhora Micawber e murmurei não sei quê nesse sentido. Traddles, imitando‑me, fez o mesmo, sem desviar a vista do fogão. ‑ Não desejo ‑ concluiu ela, terminando o ponche e puxando o xaile para os ombros, a fim de se retirar para o meu quarto ‑ não desejo prolongar estas reflexões acerca da situação financeira de Micawber. Na sua casa, senhor Copperfield, e em presença do senhor Traddles, que sendo embora amigo mais recente é todavia um dos nossos, não pude coibir‑me de dar a conhecer o processo que aconselho a Micawber. Entendo que chegou o momento de ele se mexer, direi mesmo de se afirmar, e parece‑me que indiquei o meio. Sou apenas uma mulher, e, em geral, prefere‑se o juízo de um homem em semelhante matéria, mas em todo o caso não esqueço que o meu pai, quando eu vivia com ele, repetia frequentemente: «Emma é frágil, mas a sua compreensão dos assuntos não é inferior à dos outros.» Bem sei que o papá era muito indulgente, mas o meu amor filial e a minha razão proíbem‑me de duvidar da sua sagacidade.

Com estas palavras e resistindo às nossas solicitações para uma última rodada de ponche, a senhora Micawber retirou‑se para o meu quarto. E eu senti que ela era realmente uma mulher nobre, da raça das matronas romanas, capaz de todas as acções heróicas em tempos de calamidade pública. Imbuído destes sentimentos, felicitei o senhor Micawber pelo tesouro que possuía. Traddles seguiu‑me o exemplo. Então Micawber estendeu‑nos a mão e levou à cara o lenço, que, Deus me perdoe, me pareceu mais sujo de rapé do que ele suporia. Em seguida voltou ao ponche, já num estado de extrema jovialidade.

De súbito, tornou‑se eloquentíssimo. Deu‑nos a entender que revivíamos nos nossos filhos e que, sob o peso das dificuldades materiais, qualquer aumento da prole era ainda mais apreciado. A senhora Micawber, ao que parece, tivera dúvidas a este respeito, pouco tempo antes, mas ele dissipara‑as e tranquilizara‑a. Quanto à família dela, era na verdade indigna de Emma; Micawber troçara da opinião desse clã: bem podiam ‑ cito as palavras do meu conviva ‑ ir todos para o Inferno.

Em seguida, Micawber enveredou por um elogio entusiástico de Traddles. Declarou que o rapaz possuía qualidades sólidas, às quais ele (Micawber) não podia aspirar, mas que, louvado Deus!, sabia compreender. Fez uma alusão comovida à menina que Traddles honrava com o seu afecto, e bebeu à saúde da homenageada. Imitei‑o, e Traddles agradeceu‑nos dizendo numa simplicidade e franqueza que me encantaram:

‑ Estou imensamente grato e posso afirmar que é a rapariga mais gentil que há!

Micawber aproveitou a ocasião que se lhe oferecia para aludir também, com muito tacto e cerimónia, ao estado do meu próprio coração. Declarou que só uma negação formal proferida por mim o impediria de acreditar que o seu amigo Copperfield amava e era amado. Depois de certo constrangimento e confusão, de muitos rogos, balbuciações e negativas, acabei por dizer, erguendo o copo: «Nesse caso, à saúde de Dora!» Isto comoveu tanto Micawber, que se precipitou no meu quarto, de copo em riste, para que a mulher pudesse beber também à saúde de Dora; fê‑lo com tanto entusiasmo, que a sua voz aguda chegou do fundo do aposento: «Bravo, óptimo, caro Copperfield, estou satisfeitíssima.» E bateu na parede, à laia de aplauso.

A nossa conversa tomou daí por diante um aspecto mais prosaico. Micawber explicou achar Camden Town pouco prática; a primeira coisa que faria quando os seus anúncios produzissem efeito seria mudar de domicílio. Falou de uma rua transversal a Oxford Street, defronte de Hyde Park, a qual ele namorava há muito. Não a esperava conseguir imediatamente, porque na tal casa necessitaria de muitos criados. Haveria sem dúvida um período de transição, durante o qual ele se contentaria com a parte superior de um prédio de comércio respeitável, ou seja, em Piccadilly, bairro agradável para a senhora Micawber. Aí, mercê de vários pequenos arranjos (abririam, por exemplo, uma janela de sacada ou aumentariam mais um andar) habitariam confortável e dignamente por mais uns anos. Mas, fosse o que fosse o que o destino lhe reservava, e fosse onde fosse que estabelecesse a sua residência, nós poderíamos estar certos de uma coisa: teriam sempre um quarto para Traddles e um talher para mim. Agradecemos‑lhe a sua generosidade, e ele pediu lhe desculpássemos esta pequena incursão comezinha, embora admissível e natural num homem prestes a mudar completamente o seu género de vida.

A senhora Micawber, batendo outra vez na parede para saber se o chá estava pronto, interrompeu a nossa conversa. Serviu‑nos delicadamente o chá e, de cada vez que eu me aproximava dela, passando as xícaras e as fatias de pão, perguntava‑me num sussurro se Dora era loira ou morena, alta ou baixa, etc., e não há dúvida que isso me dava prazer. Depois do chá, aflorámos diante do fogão toda a espécie de assuntos, e a senhora Micawber teve a amabilidade de cantar (com voz fraca e triste, que eu na infância consideraria a própria perfeição da arte musical) as suas baladas favoritas do Sargento Arrojado e do Pequeno Tafflin. Estas duas canções haviam sido o triunfo da senhora Micawber quando vivia em casa dos pais.

Contou‑nos o marido que, da primeira vez que a vira no lar paterno, se sentira tão atraído ao ouvi‑la entoar o Sargento Arrojado, que se resolvera a tê‑la por mulher ou a morrer por ela.

Das dez para as onze horas, a senhora Micawber levantou‑se para guardar a touca e tornar a pôr o chapéu. Micawber aproveitou a oportunidade de Traddles enfiar o sobretudo para me insinuar uma carta, murmurando‑me ao ouvido que a lesse quando tivesse tempo. Servi‑me também do ensejo em que conservava na mão o castiçal (a fim de os alumiar na escada) para reter Traddles um instante no patamar e lhe dizer em segredo:

‑ Ouve, o homem não tem más intenções, coitado, mas, no teu lugar, eu não lhe emprestaria nada.

‑ Meu caro Copperfield ‑ replicou‑me sorrindo ‑ não tenho nada que empreste.

‑ Tens o teu nome, em todo o caso.

‑ Achas que é coisa que se possa emprestar?‑volveu Traddles com ar sonhador.

‑ Certamente!

‑ Ah, sim, tens razão. Agradeço‑te muito, Copperfield... mas já está feito.

‑ A letra...?

‑ Não, não foi isso. Só agora é que ouvi falar dela, e até pensei que, no regresso, ele me pediria a assinatura. Não. Trata‑se de outra.

‑ Oxalá não te traga aborrecimentos.

‑ Creio que não. Disse‑me que tinha cobertura. Foi mesmo a expressão que empregou.

Micawber ergueu nessa ocasião a vista para nós, e eu só tive de repetir o meu aviso; Traddles agradeceu‑me e desceu os degraus. Vendo, porém, a docilidade com que ele seguia, dando o braço à senhora Micawber e segurando o embrulho do chapéu, receei que o meu amigo se deixasse levar sem resistência para o mundo financeiro...

Voltei para o canto do lume e pensei, com gravidade matizada de ironia, no carácter de Micawber e nas nossas relações de outrora. Nessa altura ouvi um passo rápido na escada. Julguei de começo que fosse Traddles que viesse buscar qualquer coisa esquecida pela senhora Micawber; mas, quando os passos se aproximaram, reconheci‑os e senti o coração bater‑me com força e o sangue subir‑me à cara, pois que o visitante era James Steerforth.

Eu nunca me esquecia de Agnes, que jamais deixava, se ouso expressar‑me assim, o santuário do meu pensamento, onde desde o início a colocara. Mas quando Steerforth entrou e me apareceu de mão estendida, não tive dúvida de que este também era um amigo predilecto. Até me envergonhei de haver suspeitado dele.

Quanto a Agnes, considerava‑a sempre o meu anjo bom, um anjo cheio de doçura e indulgência. Não lhe censurava nada, mas, no respeitante ao meu amigo, arrependia‑me de o haver agravado em espírito e gostaria de reparar a ofensa se soubesse como fazê‑lo.

‑ Pois, Bonina, meu caro, ficaste mudo! ‑ disse Steerforth rindo e sacudindo‑me cordialmente a mão. ‑ Vejo que tiveste um banquete, meu sibarita! Vocês lá dos Doctor's Commons são os mais divertidos de Londres e batem aos pontos a rapaziada de Oxónia!

O seu olhar brilhante circunvagava jovialmente a sala, enquanto ele se sentava diante de mim, no sofá que a senhora Micawber acabava de deixar. Ao mesmo tempo espevitava o lume.

‑ Realmente fiquei surpreendido ‑‑ respondi por fim, com toda a cordialidade que me assistia. ‑ Até me faltou o fôlego para te saudar.

‑ É que a minha vista é benéfica aos olhos fatigados, como dizem os escoceses, e a tua também é, Bonina, minha flor. Como passas, com as tuas bacanais?

‑ Muito bem, mas não houve bacanal nenhuma, apesar de terem estado aqui três convidados.

‑ Que eu acabo de encontrar, tecendo em voz alta os teus louvores. Quem era aquele homem de calças cingidas?

Descrevi‑lhe, o melhor que pude, o senhor Micawber. Steerforth riu com vontade do meu esboço Imperfeito e declarou que lhe interessava conhecer o homem.

‑ E quem julgas que era o outro? ‑ perguntei.

‑ Sei lá! Espero que não fosse um maçador, embora tivesse esse aspecto.

‑ Era Traddles! ‑ bradei triunfante.

‑ Traddles? Quem é? ‑ inquiriu Steerforth, com ar indiferente.

‑ Não te lembras? Aquele que ficava no nosso dormitório, no internato de Salem.

‑ Ah, esse?! ‑ replicou, batendo com o atiçador num bocado de carvão.‑Continua estúpido? Onde diabo o desencantaste?

Procedi ao elogio de Traddles, pois vi que Steerforth o não apreciava como devia. Por fim participou‑me que realmente o desejava tornar a ver, porque esse rapaz sempre fora um patusco. Depois, mudando de assunto, com um movimento de cabeça e um sorriso, perguntou‑me se eu não tinha nada que se comesse. Durante todo este diálogo, Steerforth falara com animação um tanto estranha, e acabara por tornar a partir carvões no fogão. Notei que continuava a fazer o mesmo enquanto eu lhe trazia restos de pastelão e outras coisas.

- oh, Bonina, isto é uma ceia principesca! ‑ exclamou quebrando bruscamente o silêncio e sentando‑se à mesa. ‑ Vou fazer‑lhe as devidas honras, porque chego de Yarmouth.

- Julguei que era de Oxónia ‑ observei.

‑ Ah, não. Estive no mar. É ocupação mais agradável.

‑ Littimer veio cá hoje informar‑se de ti ‑ observei‑lhe ‑, e supus que te encontrasses na Universidade, se bem que, pensando melhor, ele se não referisse a tal coisa.

‑ Se veio com essas intenções, é mais estúpido do que eu julgava ‑ redarguiu Steerforth, servindo‑se de um copo de vinho. ‑ Quanto a compreendê‑lo, Bonina, serias mais esperto do que ninguém.

‑ Isso é verdade ‑ concordei, aproximando a minha cadeira da mesa. ‑ Com que então estiveste em Yarmouth ‑ acrescentei, ansioso de saber tudo a este respeito. ‑ Demoraste‑te muito por lá?

‑ Não, uns oito dias.

‑ E como vão eles? A pequena Emily ainda não se casou, naturalmente...

‑ Ainda não. Será em breve, penso. Dentro de semanas... ou de anos... ou qualquer coisa assim. Vi‑os poucas vezes. Ah, a propósito ‑ e descansou o garfo e a faca a fim de procurar nas algibeiras ‑ trouxe uma carta para ti.

‑ De quem?

‑ Da tua velha criada ‑ esclareceu Steerforth, tirando papéis do bolso interior do casaco. ‑ Não, isto é a conta do albergue. Paciência, hei‑de achar. O velhote não vai bem e suponho que é por isso que ela te escreve.

‑ Referes‑te a Barkis?

‑ Sim ‑ confirmou, sempre a procurar nas algibeiras. ‑ Receio que o pobre Barkis não dure muito, segundo depreendi da conversa com um médico, ou cirurgião, ou boticário, que teve a honra de te pôr neste mundo. Verifica aí no bolso de dentro do sobretudo, ali na cadeira. Encontraste?

‑ Ei‑la!

‑ Óptimo.

Era realmente uma carta da Peggotty, menos legível ainda que de costume, e muito breve. Anunciava‑me o estado desesperado do marido e, em termos velados, dizia que ele se mostrava cada vez mais «apertado» e que ela tinha maior dificuldade em tratá‑lo como devia. Não falava da sua fadiga nem das vigílias e, piedosamente, chegava a elogiar o enfermo. Terminava essa missiva familiar e simples chamando‑me, como sempre, «seu menino querido».

Enquanto eu decifrava estas linhas, Steerforth continuava a comer e a beber.

‑ É uma história triste ‑ disse‑me por fim. ‑ Mas a todo o instante morre gente, de maneira que não nos devemos assustar com um destino que nos é comum. Se perdêssemos a coragem, por ter ouvido esses passos que se aproximam de cada qual, na sua hora, todas as alegrias do mundo nos fugiriam. Não, para a frente! Com energia, se for necessário. Mais devagar, se for suficiente. Mas sempre para diante! Saltemos por cima de todos os obstáculos, para ganhar a corrida.

‑ Que corrida?

‑ Aquela em que nos empenhámos. Para a frente! Lembro‑me de que, no momento em que se calou, fitando‑me, com a cabeça reclinada e de copo na mão, descobri no seu rosto queimado do ar marítimo sinais de cansaço que não tinha anteriormente. Pensei que ele se houvesse entregado a um desses transportes, habituais na sua pessoa, de entusiasmo que uma vez desencadeado não conhecia freio. Preparava‑me para lhe dirigir censuras pela força desesperada que punha na busca de todas as suas fantasias ‑ como, por exemplo, afrontar as ondas e desafiar os elementos arrebatados ‑ mas os meus pensamentos retrocederam ao assunto principal da nossa conversa.

‑ Escuta ‑ principiei. ‑ Tenciono ir visitar a minha antiga criada. Não que lhe possa levar qualquer bem nem lhe prestar os mínimos serviços, mas a Peggotty estima‑me tanto que a visita lhe há‑de fazer o efeito de uns e outros. Ficará tão reconhecida e sem dúvida achará na minha presença conforto e auxílio. É o que posso fazer a essa criatura que me foi sempre tão dedicada. Se estivesses no meu lugar, não farias essa curta viagem, apenas de vinte e quatro horas?

O rosto de Steerforth tornou‑se sério. O meu amigo reflectiu um instante antes de replicar em voz baixa:

‑ Fazes bem, vai.

‑ Apesar de que voltas de lá, sou capaz de te propor que me acompanhes. Queres?

‑ De facto ‑ respondeu Steerforth ‑, devo ir para Highgate esta noite. Há muito que não vejo a minha mãe, e a consciência acusa‑me desse desleixo. Não é pouco ser amado como ela ama o seu filho pródigo! Espera... contas partir amanhã?‑pondo‑me cada uma das mãos nos ombros.

‑ Conto, sim.

‑ Pois então vai só depois de amanhã. Tencionava pedir‑te que fosses passar uns dias à minha casa. Foi para isso que vim cá. Mas falas‑me de uma escapadela a Yarmouth!

‑ Ora, quem mais do que tu se escapa... sempre na mira de novas aventuras...

Olhou‑me um momento calado; depois, segurando‑me ainda nos ombros e sacudindo‑me um pouco, ripostou:

‑ Espera até depois de amanhã e passa entretanto umas horas comigo em Highgate. Quem sabe quando nos voltaremos a ver? Hem, está combinado? Preciso da tua presença entre mim e Rosa Dartle.

- Amar‑se‑iam tanto se eu lá não estivesse?

‑ É verdade, a menos que nos odiássemos ‑ declarou rindo -, Aliás, pouco importa. Então até depois de amanhã!

Concordei, ele vestiu o sobretudo, acendeu um charuto e preparou‑se para regressar a casa, a pé. Vendo que era essa a sua intenção, enfiei também o sobretudo (mas sem acender charuto, porque já tinha a minha conta por algum tempo), e acompanhei‑o até à estrada real, sítio pouco agradável à noite. Foi muito animado todo o caminho e, quando nos separámos e o vi seguir com ar desembaraçado, vieram‑me à memória as suas palavras: «Saltemos por cima de todos os obstáculos, para ganhar a corrida.» E, pela primeira vez, desejei que ele tivesse uma boa corrida para ganhar.

Ao despir‑me, a carta do senhor Micawber caiu‑me da algibeira, o que me recordou a sua existência. Rasguei a obreia e li o que se segue. (Não sei se disse que Micawber, quando se achava nalguma crise, usava uma espécie de fraseologia jurídica. Talvez supusesse que isso equivalia a resolver as dificuldades.)

«Amigo e senhor Copperfield (porque não me atrevo a chamar‑lhe «meu caro») convém que o informe de que o abaixo assinado está vencido. É crível que note nele, hoje, esforços intermitentes para evitar um conhecimento prematuro da sua situação irremediável; todavia desapareceu qualquer esperança e o abaixo assinado está vencido.

«A presente comunicação é escrita na vizinhança pessoal (não ouso dizer na companhia) de um indivíduo cujo estado confina com a embriaguez e que é empregado de um corretor de câmbios. Esse indivíduo está na posse legal da minha habitação, por falta de pagamento da renda. O seu inventário compreende não só os bens móveis de todo o género pertencentes ao abaixo assinado, na qualidade de inquilino, mas também os que são propriedade do senhor Thomas Traddles, seu sublocatário, membro da digna corporação do Foro.

«Se faltasse uma gota de amargura à taça de fel já a transbordar e que (para retomar a expressão de um escritor imortal) se «dirige» agora aos lábios do abaixo assinado, bastaria o facto de o dito senhor Thomas Traddles ser fiador de uma letra do abaixo assinado, da importância de vinte e três libras, quatro xelins e nove dinheiros e para a qual NÃO há cobertura, e também o facto de que as responsabilidades do abaixo assinado irão, segundo todas as leis da natureza, ser aumentadas com uma nova vítima inocente. Em números redondos, pode‑se calcular a expiração do prazo máximo do pagamento em seis lunações, a partir de hoje.

«Com estas premissas, seria supérfluo acrescentar que o pó e a cinza cobrem para sempre a cabeça de Wilins Micawber.»

Coitado do Traddles! Eu conhecia já suficientemente Micawber para saber que, ele pelo menos, se restabeleceria do infortúnio. Mas o meu sono, nessa noite, foi tristemente perturbado pela ideia de Traddles e da filha do sacerdote ‑ uma das dez filhas desse digno homem ‑ e que a amorosa rapariga esperaria pelo noivo (ó ominoso elogio!) até aos sessenta anos, senão mais!

 

FAÇO NOVA VISITA A CASA DE STEERFORTH

Pedi ao doutor Spenlow que me desse licença para me ausentar por pouco tempo, e como, não recebendo vencimento, era bem visto do doutor Jorkins, a autorização foi depressa concedida. Aproveitei o ensejo para exprimir ao advogado a esperança de que sua filha se encontrasse de boa saúde, coisa que eu fiz com voz sufocada e certa perturbação no olhar. O doutor Spenlow replicou, tão calmamente como se falasse de um ente qualquer, que Dora estava bem e que me ficava muito agradecido.

Nós os estagiários éramos tratados com tanta consideração que eu quase dispunha de mim a qualquer hora. Como, porém, não desejava chegar a Highgate antes da uma ou duas daquele dia, e como tínhamos outro caso, aliás simples, de excomunhão naquela manhã (requerida por Topkins contra Bullock, para emenda da sua alma), aconteceu que passei uns momentos agradáveis a trabalhar com o doutor Spenlow. Tratava‑se de uma questão entre dois sacristãos, um dos quais empurrara o outro contra uma bomba; ora como o braço da dita bomba embatera na parede duma escola, construída sob a empena da igreja, o delito caía debaixo da jurisdição eclesiástica. Era um caso divertido. Enquanto ia para Highgate, ao lado do cocheiro da diligência, eu continuava a pensar naquele tribunal e na opinião do doutor Spenlow quanto ao perigo que havia em extingui‑lo.

A senhora Steerforth ficou muito contente por me ver, assim como Rosa Dartle. A ausência de Littimer constituiu para mim uma surpresa agradável: o serviço era feito por uma criadinha tímida, de touca ornamentada de fitas azuis e olhar simpático, muito menos desconcertante do que aquele criado respeitabilíssimo. Mas o que me impressionou de forma particular, antes mesmo de haver decorrido uma hora na casa, foi a atenção com que a senhora Dartle me espiava e a maneira como parecia comparar, disfarçadamente, o meu semblante com o de James Steerforth. Dir‑se‑ia não perder nada do que se passava entre nós. De cada vez que a olhava, estava certo de ver esse rosto ardente e esses olhos escuros voltados para mim, ou fugindo rápidos para James, ou ainda envolvendo‑nos ao mesmo tempo. Muito longe de atenuar essa fixidez de lince, quando percebia que eu a observava, ela manifestava ainda maior curiosidade. Embora me considerasse inocente de todos os malefícios que a solteirona pudesse suspeitar, aqueles olhos estranhos perturbavam‑me e eu sentia‑me absolutamente incapaz de suster o seu esplendor feroz.

Todo o dia dominou na casa inteira. Se eu falava com Steerforth no quarto dele, escutava‑lhe o rumor das saias na galeria anexa. Quando iniciávamos uma das nossas deambulações predilectas, no relvado atrás da casa, eu via a cara de Rosa ora numa janela ora noutra, vigiando‑nos, como uma luz que se acendesse e apagasse. E, ao irmos todos quatro passear à tarde, agarrou‑me no braço, para que eu recuasse, enquanto Steerforth e a mãe se afastavam para fora do alcance da nossa voz; e disse‑me:

‑ Esteve muito tempo sem aparecer. É porque a sua profissão o absorve tanto? Pergunto isto por gostar sempre de saber o que ignoro. Que me responde?

Expliquei que a profissão me não desagradava, mas que em todo o caso não estava assim tão absorvido por ela.

‑ Ah, quanto estimo saber! É tão bom ser‑se elucidado!‑exclamou Rosa Dartle. ‑ Acha então que é uma carreira um tanto árdua?

‑ Talvez seja...

‑ E por essa razão prefere mudar, distrair‑se com outras coisas? Muito bem. Mas, quanto a ele, não será um pouco porque...

Um relance para o lado de Steerforth, que seguia levando a mãe pelo braço, indicou‑me a quem ela se referia. Escapava‑me, porém, o significado da conversa. E foi decerto o espanto o que Rosa leu no meu rosto.

‑ Não acha... não digo que seja assim, pergunto simplesmente... que isso o absorve muito? que o torna ainda mais negligente nas visitas àquela que o adora? Hem?

E lançou outro olhar rápido na mesma direcção, depois fez igual coisa a mim, e eu senti‑me como que traspassado.

‑ Senhora Dartle ‑ respondi ‑ peço‑lhe que... não vá imaginar...

‑ Não imagino nada. Oh, meu Deus, não suponha que imagino seja o que for. Não apresento uma opinião. A minha opinião fundamentar‑se‑á no que me responder. Ah, então é que me enganei. Tanto melhor!

‑ O que não é verdade ‑ declarei ‑ é que eu seja responsável pela ausência prolongada de James. Até ignorava isso que acaba de me dizer. Não o tornara a ver, e só anteontem é que...

‑ Palavra?

‑ Palavra de honra.

Rosa olhava‑me bem de frente. Vi‑a empalidecer, e a cicatriz que lhe desfigurava o lábio superior começou a alongar‑se, atravessando‑lhe o outro lábio e vindo cortar de lado o queixo. Experimentei genuína impressão de pavor. O olhar tornou‑se‑lhe mais intenso quando inquiriu, sem desviar a vista:

‑ Mas então que faz ele?

Repeti a frase, mais para mim do que para ela, pois estava perplexo.

- sim, que faz ele? ‑ insistiu Rosa, com uma angústia que parecia consumi‑la como fogo. ‑ Que ajuda encontra nesse homem que nunca me olha sem uma expressão de impenetrável falsidade? Se você é sincero e leal ao seu amigo, não lhe peço que o atraiçoe. Mas diga‑me apenas isto: é a cólera, ou o ódio, ou o orgulho, ou a inquietação, ou algum capricho estranho, ou o amor... mas que é que o domina?

‑ Minha senhora ‑ redargui ‑, como posso demonstrar‑lhe que não acho nenhuma diferença no meu amigo? Não lhe noto mudança desde a última vez que estive cá. Creio absolutamente em que não há nada. Nem chego a perceber as suas insinuações...

Ela continuava a fitar‑me e eu então vi uma espécie de contracção ou frémito (que não pude evitar de atribuir a doença) passar naquela extensa cicatriz e erguer o lábio superior num jeito de escárnio ou de piedade desdenhosa. Levou logo, precipitadamente, a mão à boca, essa mão tão frágil e delicada que, a primeira vez que a vi defronte do lume do fogão, se me afigurou feita de porcelana. Depois respondeu‑me com brusquidão apaixonada: «Está bem, mas jure‑me guardar segredo de tudo isto!» E não acrescentou nem mais uma palavra.

A senhora Steerforth parecia em especial muito feliz com a presença do filho, e este testemunhava‑lhe mais atenção e respeito que em geral. Agradou‑me vê‑los juntos, por causa daquela afeição mútua e também pela grande semelhança que existia entre ambos: a altivez e impetuosidade de James, temperadas nela pela idade e o sexo, tornavam‑se numa dignidade cheia de encanto. Contemplando‑os, por mais de uma vez pensei quanto era bom que nunca surgisse entre eles nenhuma razão grave de dissentimento, pois essas duas naturezas (ou melhor, esses dois aspectos da mesma natureza) seriam mais difíceis de reconciliar do que se fossem absolutamente opostas. Devo confessar, aliás, que esta ideia não se originou na minha própria clarividência, foi‑me sugerida por uma observação de Rosa Dartle, que disse à mesa:

‑ Gostava tanto de saber! Todo o dia tenho pensado nisso...

‑ Saber o quê, Rosa? ‑ perguntou a senhora Steerforth. ‑ Peço‑te que não sejas tão dada a mistérios...

‑ Mistérios? Acha‑me realmente com propensão para eles?

‑ Passo o tempo, Rosa, a pedir‑te que sejas natural e que fales de uma maneira simples.

‑ Julga que esta maneira não é natural em mim? Ora, responda com paciência, pois eu gostava naturalmente de saber. Nunca nos conhecemos bem.

‑ Em ti isso tornou‑se uma segunda natureza ‑ replicou a senhora Steerforth, sem a menor irritação. ‑ Mas eu lembro‑me (como tu também, suponho) do tempo em que as tuas maneiras, Rosa, eram menos circunspectas e mais confiantes.

‑ Creio que tem razão ‑ volveu a senhora Dartle. ‑ É assim que se criam maus hábitos! Com que então menos circunspectas e mais confiantes? Como poderei ter mudado assim, sem dar por isso? É muito estranho. Farei o possível para voltar a ser o que era.

‑ Dar‑me‑ias grande satisfação ‑ declarou, sorrindo, a dona da casa.

‑ Pois é a minha intenção. Vou tomar lições de franqueza com... ah, com o James!

‑ Não podes aprender franqueza ‑ ripostou novamente a senhora Steerforth, porque havia sempre um tom de sarcasmo em Rosa Dartle, embora, como neste caso, pudesse ser inconsciente ‑ com melhor professor do que James.

‑ Também o julgo ‑ afirmou a dama de companhia com fervor. ‑ Se tenho a certeza de alguma coisa, é dessa efectivamente.

Achei que a senhora Steerforth se arrependera de se ter melindrado um pouco, pois retorquiu muito amável:

‑ Então, querida Rosa, ainda não disseste o que desejavas saber.

‑ O que desejava saber? ‑ repetiu a outra, com uma tranquilidade exasperante. ‑ Ah, era apenas isto: se as pessoas que têm o mesmo temperamento... será este o termo adequado?

‑ É tão bom como outro ‑ atalhou Steerforth.

‑ Obrigada. Repito: se as pessoas que têm o mesmo temperamento estão em maior perigo do que as outras, no caso de surgir entre elas dissentimento grave, que as encolerize e separe?

‑ Parece‑me que sim ‑ observou Steerforth.

‑ Parece‑lhe? Meu Deus, admitamos (por absurdo) que surgia uma coisa dessas entre você e a sua mãe.

‑ Querida Rosa ‑ acudiu a senhora Steerforth, rindo com bonomia ‑ procura outro exemplo. Eu e James sabemos na perfeição, creio eu, o que devemos um ao outro.

‑ Isso é verdade! ‑ comentou Rosa Dartle, meneando a cabeça com ar pensativo. ‑ Isso é verdade. Mas bastará para impedir tudo? Sim, naturalmente... Pois bem, alegro‑me por ter sido bastante tola para levantar esta questão. Agrada tanto saber que a afeição recíproca impedirá tudo! Fico reconhecidíssima.

Devo notar também outro episódio relativo à senhora Dartle. Tive oportunidade de o recordar mais tarde, quando o passado irremediável já nada apresentava de misterioso. Todo o dia, sobretudo após esse momento, Steerforth pôs em jogo toda a sua habilidade (e com um à‑vontade perfeito) para conquistar aquela criatura estranha e transformá‑la numa companheira sorridente e simpática. Não me admirei que ele o conseguisse. Também não me admirei de que ela começasse por resistir à influência fascinadora da sua arte subtil (ou antes, como cria então da sua natureza subtil) pois eu sabia‑a por vezes azeda e perversa. Vi que mudava de expressão e de modos, vi que o olhava com admiração crescente, vi‑a tentar, cada vez mais debilmente, mas sempre com azedume, como se condenasse a própria fraqueza, vi‑a tentar, repito, opor‑se ao poder de sedução de que James era dotado; e, finalmente, vi‑a dulcificar os olhares e o sorriso, e assim desapareceu o receio que me inspirara durante todo o dia. Instalámo‑nos em volta do fogão, conversando e rindo com tão pouca cerimónia como se fôssemos crianças.

Seria por estarmos na casa de jantar há tanto tempo, ou porque Steerforth não quis perder a vantagem que alcançara, a verdade é que não ficámos ali mais de cinco minutos depois que Rosa Dartle se ergueu e saiu.

‑ Toca harpa ‑ confidenciou‑me Steerforth à porta da sala ‑ mas penso que só minha mãe a tem ouvido, de há três anos a esta parte.

Pronunciou estas palavras com um sorriso estranho, que imediatamente se dissipou. E nós entrámos na sala, onde ela se achava só.

‑ Não se levante ‑ pediu Steerforth, mas Rosa já estava de pé. ‑ Seja amável, minha boa Rosa, e cante‑nos uma balada irlandesa.

‑ Como se você se importasse com baladas irlandesas! ‑ exclamou ela.

‑ Muito mais ‑ volveu Steerforth ‑ do que com outra coisa qualquer. Olhe, o Bonina adora a música. Cante‑lhe pois uma ária irlandesa, Rosa! E deixe‑me escutá‑la como antigamente.

Não lhe tocou, não se aproximou da cadeira que a senhora Dartle acabava de deixar. Mas sentou‑se perto da harpa. Rosa ficou de pé um Instante, ao lado do seu instrumento, estranhamente irresoluta, com a mão direita nas cordas mas sem as fazer vibrar. Por fim sentou‑se, puxou a harpa com um movimento brusco e principiou a cantar, acompanhando‑se a si mesma.

Não sei o que havia no seu tocar ou no seu cantar, mas pareceu‑me a coisa mais fantástica que ainda ouvi ou sequer imaginei. Assustava pela sua força evocadora, e era também assustador na sua realidade. Dir‑se‑ia nunca haver sido escrito ou posto em música, mas surgir espontaneamente de uma paixão interior que achava expressão imperfeita nos sons graves da voz e depois recolher, quando a cantora se calava. Não pude dizer nada no momento em que Rosa Dartle terminou e, apoiada à harpa, manteve a mão direita sobre as cordas, sem as fazer ressoar.

Só um minuto - depois saí da minha estupefacção. Steerforth levantara‑se, aproximou‑se dela e, rindo, passou‑lhe o braço de roda da cintura.

‑ Então, Rosa ‑ disse ele ‑ vamos ser, de futuro, bons amigos?

Ela, porém, repeliu‑o com a fúria de um gato bravo e precipitou‑se para fora da sala.

‑ Que aconteceu a Rosa? ‑ perguntou a senhora Steerforth, que entrava nessa ocasião.

‑ Minha mãe, a Rosa foi um anjo durante uns momentos e, para se desforrar, passou de súbito para o extremo oposto.

‑ Devias ter cuidado em não a irritar, James. Tem‑se tornado azeda e convém não a contrariar.

A senhora Dartle não voltou, e ninguém mais se lhe referiu até ao instante em que fui dar boa noite ao meu amigo, no seu quarto. Ele então riu‑se da dama de companhia da mãe e quis saber se eu já vira criatura mais brusca e incompreensível.

Comuniquei‑lhe o meu espanto e mostrei curiosidade pela causa de um mau humor tão exagerado e repentino.

‑ Sabe‑se lá! ‑ disse Steerforth. ‑ Tudo o que quiseres... ou mesmo nada. Faz passar tudo sob a mó, incluindo‑se a si própria. É um instrumento afiado, com que se há‑de lidar cautelosamente. Um perigo constante! Boa noite.

‑ Boa noite ‑ repliquei. ‑ Amanhã, quando acordares, já eu terei partido.

James não queria separar‑se de mim e, como fizera no meu quarto, colocou‑me as duas mãos nos ombros, para me reter.

‑ Bonina ‑ murmurou, sorrindo. ‑ Bem sei que não foi este o nome que os teus padrinhos te deram... mas é aquele que eu prefiro conceder‑te... Quem me dera que me pudesses também tratar assim!

‑ Nada o impede, se eu quiser.

‑ Bonina, se jamais alguma coisa nos apartar, lembra‑te só do meu lado bom. Façamos uma combinação. Promete recordares‑te apenas do meu lado bom, se as circunstâncias nos separarem!

‑ Para mim, Steerforth, não tens lados bons nem maus. Aprecio‑te em conjunto, como um bloco.

Experimentei tamanhos remorsos por haver duvidado dele, mesmo em pensamentos informes, que a confissão me subiu aos lábios. Mas, não querendo atraiçoar a confiança de Agnes, o que fatalmente sucederia se abrisse a boca para me ocupar do assunto, calei‑me por então: James não me deixou, todavia, falar antes que eu dominasse a minha indecisão, porque disse: «Deus te abençoe, Bonina.» E acrescentou: «Boa noite.» Por isso nos separámos, depois de havermos apertado a mão.

Levantei‑me de madrugada e, após me ter vestido em silêncio, penetrei no quarto do meu amigo, que dormia com a cabeça recostada num braço, como o vira fazer tantas vezes no colégio.

Não me restava muito tempo. Nada lhe perturbou o repouso, enquanto eu o contemplava. Deixei‑o dormir, e saí sem fazer barulho. Nunca mais eu haveria de tocar aquela mão inerte num gesto de amizade fraternal. Nunca, nunca mais!



 

[1]Escocês. Significa old long since (há muito tempo).

[2]No texto, proctor e doctor, portanto mais fácil a confusão

[3]Conspirador inglês, enforcado em 1605, acusado de, com outros, pretender matar o rei e fazer explodir o Parlamento.

[4] Xerez que era mandado à índia e de lá voltava, «amadurecendo» na viagem à roda dos continentes

                                                                                         

 

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