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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DAVID COPPERFIELD p3 / Charles Dickens
DAVID COPPERFIELD p3 / Charles Dickens

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DAVID COPPERFIELD  

 

UMA PERDA

Cheguei à noite a Yarmouth e hospedei‑me na estalagem. Sabia que o quarto vazio da casa de Peggotty estava sempre à minha disposição, mas sabia também que para ela já caminhava aquela visitante perante quem todos os mortais se inclinam; assim, optei pela estalagem, onde jantei.

Às dez horas saí. Na maior parte, as lojas estavam encerradas e a cidade adormecida. Ao aproximar‑me do estabelecimento de Omer & Joram, vi que tinham colocado os taipais; no entanto, a porta achava‑se aberta. Lobriguei no interior o senhor Omer a fumar cachimbo, junto da porta do salão, e entrei para saber da sua saúde.

‑ Ora viva! ‑ exclamou ele. ‑ E como vai o senhor? Sente‑se. Espero que o fumo o não incomode.

‑ Absolutamente nada. Até me dá prazer... quando o cachimbo é alheio.

‑ E não seu, hem? Tanto melhor! Seria mau hábito para um rapaz. Mas sente‑se. Eu fumo por causa da minha asma.

O senhor Omer arranjara espaço para mim e trouxera uma cadeira. Tornou a sentar‑se na sua, ofegante, e sorveu o cachimbo como se ele contivesse a reserva daquele ar sem o qual temia não resistir.

‑ Tive o desgosto de saber ‑ comecei ‑ que o senhor Barkis se encontra mal.

O velho olhou‑me fixamente e abanou a cabeça.

‑ Como passa ele esta noite? ‑ prossegui.

‑ Era o que lhe ia perguntar se não me devesse abster; aqui está um dos inconvenientes desta profissão: se alguém adoece, não é decente que indaguemos do seu estado.

Eu nunca pensara nisso, e contudo, ao entrar ali, receara ouvir o som das marteladas do carpinteiro. Reconheci que era delicada a posição do fabricante de caixões.

‑ Compreende ‑ disse o senhor Omer. ‑ Não nos atrevemos. Imagine o que pensaria a família de um doente se lhe mandássemos este recado: «Omer & Joram apresentam os seus cumprimentos e desejam saber como se sente nesta ocasião...»

Fitámo‑nos, meneando a cabeça, e ele tornou a puxar uma fumaça, para manter o fôlego.

‑ É essa uma das considerações que nos impedem, a nós pessoas do ofício, de ter as atenções que os outros nos merecem. Veja o meu caso! Não é de ontem que eu conheço o Barkis, já há quarenta anos. Mas estou coagido neste ponto: como posso ir saber da sua saúde?

Compreendi quanto isso era melindroso, e disse‑lho.

‑ Não estou mais interessado do que outro qualquer ‑ continuou o senhor Omer. ‑ Olhe para mim. Pode faltar‑me a respiração de um momento para outro e, nestas circunstâncias, que interesse tenho eu em fabricar mais um ataúde? Até posso morrer primeiro.

‑ Com efeito ‑ redargui.

‑ É claro que não estou a queixar‑me da profissão. Não, não é isso. Há bom e mau, com certeza, em todas as profissões. Mas o que desejaria é que as pessoas tivessem mais um pouco de carácter.

O meu interlocutor, com ar complacente e amigável, puxou várias fumaças em silêncio. Em seguida voltou à vaca‑fria:

‑ De maneira que, para sabermos como vai o Barkis, temos de recorrer à Emily. Esta não ignora o motivo por que não perguntamos directamente, nem nós lhe inspiramos receio. Minnie e Joram acabam de os ir visitar. Emily ajuda um pouco a tia depois do trabalho. Assim, se quiser notícias do Barkis, espere que eles regressem. Toma qualquer coisa? Um xarope quente? Eu tomo sempre um copo antes de fumar ‑ acrescentou, levantando o seu ‑ pois dizem que adoça as vias por onde passa este maldito fôlego. Mas garanto‑lhe ‑ declarou com voz rouca ‑ que o mal não é das vias. Dêem‑me o alento, e eu acharei as vias desentupidas!

Não possuía, realmente, um fôlego por aí além, e até fazia dó vê‑lo rir. Quando foi possível reatar a conversa, disse‑lhe que agradecia o xarope oferecido, mas que o não aceitava por ter acabado de jantar pouco antes. Depois informei‑o de que esperaria pela volta da filha e do genro e perguntei como ia a pequena Emily.

‑ Gostava de a ver casada ‑ declarou‑me, tirando o cachimbo da boca para coçar o queixo.

‑ Porquê? ‑ indaguei.

‑ Porque presentemente anda inquieta. Não que não esteja bonita como sempre, até mais, palavra de honra. Também não se pode alegar que trabalhe menos. Vale por seis. Mas falta‑lhe entusiasmo. Não sei se me entende... Ora o certo é que precisava de uma sacudidela. Deve ser porque vive no meio de indecisões. Tenho falado demoradamente com o tio e com o noivo: a minha opinião é que ela precisa de «assentar». Não nos esqueçamos de que a Emily é um ente demasiado afectuoso. Aquele velho barco tornou‑se para a rapariga um lar mais querido do que todos os palácios construídos de pedra e cal.

‑ Bem me parece ‑ comentei.

‑ O amor que tem ao tio, a maneira como se prende a ele, cada vez mais, é coisa de maravilhar! Pois, quando isso acontece, dá‑se uma luta interior. Por que se há‑de prolongá‑la mais do que o necessário?

Eu escutava atento o bom do velho e concordava plenamente com as suas palavras.

‑ Por isso lhes disse que não considerassem Emily ligada pelo seu contrato de aprendizagem. Que podiam cancelá‑lo quando lhes aprouvesse. A pequena já prestou bons serviços, aprendeu depressa, Omer & Joram estão prontos a dispensá‑la. Se ainda quiser ser‑nos útil nisto ou naquilo, muito bem; se não, é livre. Não ficamos prejudicados. Bem vê ‑ continuou, tocando‑me com a ponta do cachimbo ‑ não é um velho já sem alento, e avô ainda por cima, que vai levantar dificuldades a uma florita de olhos azuis como aquela.

‑ Certamente ‑ retorqui.

‑ Muito bem. Estamos na razão. O primo... sabe que é um primo o homem com quem ela vai casar?

‑ Bem sei.

‑ Ora o primo tinha, ao que parece, amealhado uns dinheiros, e agradeceu‑me. Procede sempre de maneira muito digna. Pois com essa importância comprou uma linda vivenda, mobilou‑a de alto a baixo e, se não fosse a doença do Barkis, coitado, já eles estariam como marido e mulher. Mas tiveram de retardar o casamento.

‑ E Emily, senhor Omer? «Assentou» mais?

‑ Quanto a isso pouco se pode esperar ‑ respondeu coçando outra vez o queixo. ‑ A perspectiva da mudança, da separação, como vê, encurta‑se e alarga‑se ao mesmo tempo. A morte do Barkis resolveria tudo, mas aquela agonia prolongada...

‑ Compreendo.

‑ Emily, abatida e agitada, cada vez se apega mais ao tio, sempre com pena de nos deixar. Se lhe digo qualquer coisa, vêm‑lhe as lágrimas aos olhos. Se a visse com a minha netinha não a esqueceria mais! Deus a abençoe ‑ concluiu com ar meditativo. ‑ Como ela estima a pequena!

Aproveitando essa boa ocasião, e antes que a filha e o genro voltassem, veio‑me a ideia de perguntar ao senhor Omer o que sabia quanto a Martha.

‑ Oh! ‑ ripostou, abanando a cabeça. ‑ Nada de bom. É uma história triste. Não sabia que o senhor estivesse ao facto. Não pensava que fosse má rapariga, e não quero falar do caso diante de Minnie. Aliás, nenhum de nós...

O senhor Omer ouviu os passos da filha, tocou‑me com o cachimbo e fechou um olho, à laia de prevenção. Ela e o marido entraram daí a pouco. Disseram‑nos que Barkis ia mal, que já nem dava acordo de si, e que o doutor Chillip confessara na cozinha, antes de sair, que nem toda a Faculdade de Medicina nem a Escola de Farmácia, salvariam o doente. A primeira seria incapaz de fazer qualquer coisa e a segunda só serviria para o envenenar.

Ouvindo isto, e sabendo que o senhor Peggotty se encontrava lá, dei boa noite ao senhor Omer, assim como ao senhor e à senhora Joram, e dirigi‑me para casa dos Barkis, com uma gravidade que fazia do antigo carroceiro uma personagem nova e muito diferente. Foi o senhor Peggotty quem acudiu à pancada leve que desferi na porta. Não ficou tão surpreendido de me ver como eu esperava. A mesma reflexão fiz quanto à velha criada, quando esta compareceu: suponho que, na expectativa dessa coisa terrível que é a morte, outra qualquer mudança não surpreende ninguém.

‑ Foi muito amável em ter vindo, menino David ‑ disse o tio Peggotty.

‑ Muito amável ‑ repetiu o sobrinho.

‑ Emily, minha querida ‑ continuou o primeiro ‑ olha o menino Davy, que está aqui. Então, levanta a cabeça. Não lhe falas?

Ainda me parece ver o tremer que a tomou à primeira vista. Creio sentir a mão gelada e inerte que não se animou senão para fugir à minha; depois, passando para o outro lado do tio, inclinou a cabeça, ainda trémula, sobre o peito e continuou calada.

‑ É um coraçãozinho adorável ‑ disse o senhor Peggotty, acariciando‑lhe o cabelo espesso com a sua mão calosa. ‑ Não suporta esta mágoa. É natural nas pessoas novas, que ainda não passaram por estes dissabores, sobretudo quando são tímidas como este passarinho.

Emily cingiu‑se mais a ele, mas não ergueu a cabeça nem pronunciou uma palavra.

‑ Já é tarde, pequena ‑ continuou o tio. ‑ O Ham veio buscar‑te. Vai com esse bom rapaz. Então, Emily?

A voz dela não me alcançara os ouvidos. O tio inclinou a cabeça, escutou o que a rapariga dizia, e replicou:

‑ Que te deixe ficar comigo? Não me peças semelhante coisa. Pois se está aqui o teu futuro marido, para te acompanhar a casa! Ninguém te acreditaria, vendo uma carinha tão linda ao lado deste velho lobo‑do‑mar! ‑ exclamou ele, olhando‑nos com imenso orgulho. ‑ O mar não tem tanto sal como ela tem ternura pelo seu tio... esta tontinha da Emily!

‑ Ela tem razão, menino Davy ‑ observou Ham. ‑ E como está nervosa, e assustada, eu vou deixá‑la cá até amanhã. Eu também fico.

‑ Não, não ‑ acudiu o pescador. ‑ Tens o teu trabalho, não podes perdê‑lo. Ou bem vigias a tua noiva ou bem que vais à tua faina. Parte sozinho, se não receias que a Emily seja mal tratada.

Ham cedeu a estas instâncias e pegou no chapéu. No momento em que beijou a rapariga (vendo‑o aproximar‑se dela senti que a natureza lhe concedera uma alma de cavalheiro), Emily pareceu apertar‑se mais de encontro ao tio, como para se livrar do marido que lhe haviam destinado. Fechei a porta, depois de o rapaz sair, para que o ruído do exterior não perturbasse o silêncio que reinava. Ao voltar‑me para eles, vi o marítimo a falar com a sobrinha.

- Agora vou lá acima dizer à tua tia que o menino Davy está

aqui, o que a há‑de consolar um pouco. Senta‑te entretanto perto do lume e aquece essas mãos geladas. Não tenhas tanto medo nem te deixes abater pelo desgosto. O quê? Queres ir comigo? Se o tio fosse obrigado a dormir numa represa ‑ acrescentou o senhor Peggotty, virando‑se para mim, com o mesmo ar orgulhoso de há instantes ‑ bem me parece que ela iria atrás. Mas não falta muito que eu seja substituído por outro.

Mais tarde, quando subi, passando diante da porta do meu quartinho mergulhado na obscuridade, julguei distinguir vagamente a pequena Emily deitada no chão. Mas não sei se era ela realmente se um efeito de sombra. Depois, à lareira, tive ensejo de pensar no receio que a morte inspirava à rapariga, o que, junto às confidências do senhor Omer, me explica a razão de Emily estar tão diferente do que era; até se me ofereceu oportunidade, antes que a Peggotty descesse, de considerar nessa fraqueza com maior indulgência, enquanto contava o tiquetaque do relógio e sentia crescer à minha volta um silêncio impressionante.

A minha velha criada abriu‑me os braços, abençoou‑me, e agradeceu‑me não sei quantas vezes o conforto que eu lhe proporcionava na desgraça em que se via (foram as suas próprias palavras). Em seguida pediu‑me que subisse, acrescentando, com um soluço, que Barkis sempre me estimara e admirara; que falara muito de mim antes de entrar em estado comatoso, que se recuperasse consciência ficaria decerto contente com a minha presença, se fosse possível contentar‑se com alguma coisa neste mundo.

As possibilidades de assim suceder dissiparam‑se‑me logo que o vi. Barkis jazia no leito, com a cabeça e os braços em grande evidência e numa posição nada cómoda, meio debruçado para o baú que fora para ele causa de tantos aborrecimentos. Informaram‑me que pedira lhe colocassem aquela mala em cima da cadeira, junto da cama, uma vez que já não conseguia tocar‑lhe com a vara, como costumava fazer; desde então, com o braço, cingia‑a dia e noite e, naquele momento, repousava sobre ela. O tempo e o mundo fugiam‑lhe, mas o baú estava ali e as últimas palavras que pronunciara haviam sido estas, como que a explicar o conteúdo dele: «Roupas velhas...»

‑ Barkis, meu amigo ‑ disse a Peggotty, sem tristeza na voz e curvando‑se para o marido, enquanto eu e o irmão estávamos a seu lado. ‑ Olha o menino Davy, que nos ajudou a conhecer‑nos e por quem me enviavas recados. Não lhe queres falar?

Permaneceu tão mudo e insensível como o baú a que se agarrara.

‑ Vai‑se com a maré ‑ segredou o senhor Peggotty, atrás de mim.

Eu tinha os olhos velados de lágrimas, assim como o cunhado do moribundo, mas repeti em tom sufocado:

‑ Com a maré?

‑ Sim, morre‑se aqui na costa quando a maré desce, nasce‑se quando ela sobe. A maré é baixa às três horas e meia e demora‑se meia hora. Se ele aguentar até que ela suba, conservar‑se‑á durante a maré alta e morrerá na baixa‑mar.

Ali ficámos todos, observando‑o, durante horas. Que misteriosa influência exercia nele a minha presença, naquele estado inconsciente em que se achava? Não pretendo sabê‑lo, mas a verdade é que, ao principiar delirando, com voz surda, Barkis julgava que me conduzia à escola.

‑ Volta a si ‑ disse o senhor Peggotty. Pegou‑me no braço e murmurou com temor e respeito: ‑ Descem ambos rapidamente.

‑ Querido Barkis ‑ balbuciou a mulher.

‑ Clara Peggotty Barkis ‑ retorquiu ele debilmente. ‑ Não há melhor esposa neste mundo!

‑ Olha, está aqui o menino Davy ‑ anunciou a Peggotty, vendo‑o abrir os olhos.

Preparava‑me para lhe perguntar se me reconhecia, mas o doente tentou estender o braço e disse distintamente, sorrindo: ‑ Barkis suspira. E como era baixa‑mar, ele foi‑se com a maré.

 

UMA PERDA AINDA MAIOR

Não foi difícil Peggotty decidir‑me a ficar onde estava até que se realizasse o enterro do marido, que devia ser sepultado em Blunderstone. A minha velha criada havia comprado há muito tempo, com as suas economias, um pequeno talhão no cemitério da nossa terra, perto do jazigo da sua «querida menina», como ela sempre chamava à minha mãe. Aí devia o Barkis repousar.

Fazendo companhia à viúva, e prestando‑lhe os serviços que podia (poucos, afinal), creio ter realizado tudo quanto, mesmo hoje, gostaria de cumprir como testemunho da minha gratidão. Mas suponho haver sentido uma suprema satisfação, de natureza pessoal e profissional, ao ocupar‑me do testamento de Barkis e interpretar o seu conteúdo.

Posso reivindicar a honra de sugerir, antes de ninguém, o lugar onde o documento devia estar guardado: no célebre baú. Depois de buscas aturadas, aí o descobrimos com efeito, dentro de uma seira de cavalo, ainda com um resto de palha. Havia também o relógio de ouro que usara no dia do casamento (com a corrente e sinete) e que não mais fora visto em parte alguma; um calcador de cachimbo, de prata, em forma de perna; um limão artificial, cheio de xícaras e pires minúsculos, que julgo Barkis houvesse comprado para me oferecer, quando eu era pequeno, e depois não tivesse coragem de o perder; oitenta e sete guinéus e meio, em moedas de guinéu e de meio guinéu; duzentas e dez libras em notas novas; recibos de acções do Banco de Inglaterra; uma ferradura velha, um xelim falso, um bocado de cânfora e uma casca de ostra. Este último objecto fora polido com cuidado e reflectia todas as cores do arco‑íris, pelo que concluí que o defunto devera possuir, acerca de pérolas, vagas noções que nunca se concretizaram numa ideia segura. Durante anos, Barkis transportara aquele baú na carroça, nas suas viagens diárias. Para que passasse mais facilmente despercebido, fingira ser pertença de um «senhor Blackboy e entregue ao senhor Barkis até ser reclamado», fábula que ele inventara e escrevera cuidadosamente na tampa, em letras que por fim se tornaram ilegíveis.

Assim, não economizara em vão no decurso daqueles anos. Os seus bens móveis somavam cerca de três mil libras; da terça parte legava o usufruto vitalício ao senhor Peggotty, devendo o capital ser dividido em partes iguais entre mim, a minha criada e a pequena Emily. O resto deixava‑o à irmã, que nomeava herdeira universal e única executora da sua última vontade.

Senti‑me realmente solicitador ao ler o documento em voz alta e tão solenemente quanto possível, e ao explicar as disposições quantas vezes foram necessárias àqueles a quem diziam respeito. Começava a supor que os Doctor's Commons tinham mais importância do que eu imaginara. Examinei o testamento com profunda atenção, declarei‑o em ordem sob todos os aspectos, fiz dois ou três sinais à margem e admirei‑me de saber tanto.

Foi nesta ocupação obscura que passei a semana que precedeu o enterro, organizando para a Peggotty o inventário de tudo o que ela herdava, aconselhando‑a e esclarecendo todos os pontos necessários. Durante esse tempo não avistei Emily, mas constou‑me que se casava daí a quinze dias, na maior intimidade.

Não assisti ao funeral revestido de todos os matadores, isto é, casaco preto, nem crepes. Parti cedo para Blunderstone e achava‑me já no cemitério quando o féretro chegou, seguido apenas dos irmãos Peggottys. Na janelinha do meu antigo quarto, o louco espreitava. O filho do doutor Chillip abanava a cabeça pesada e esbugalhava os olhos para o sacerdote, por cima do ombro da ama. O senhor Omer arfava mais atrás. Não havia mais ninguém e tudo se passou com simplicidade. Passeámos por ali durante uma hora, depois de tudo haver acabado, e colhemos folhas da árvore plantada junto ao túmulo da minha mãe.

Um medo terrível se apoderara de mim. Pesa uma nuvem sobre a cidade distante, para onde me encaminho só. Temo aproximar‑me. Não suporto a ideia do que se passou nessa noite memorável, e do que deve acontecer ainda, se eu prosseguir.

Não são piores as coisas, se eu acerca delas escrever, nem serão melhores se detiver a pena. Aconteceu. Nada desfará o que está feito, nem o modificará.

A minha velha criada devia acompanhar‑me a Londres, por causa do testamento. Emily passava o dia em casa do senhor Omer. Nessa noite, devíamo‑nos reencontrar todos no barco‑residência. Eu devia voltar a pé, sem me apressar. O irmão e a irmã regressariam como tinham ido e, ao crepúsculo, esperar‑nos‑iam à lareira.

Deixei‑os à porta, onde outrora o visionário Straps descansara com a mochila de Roderick Random. Em vez de ir a direito, dei uma volta pela estrada de Lowestoft. Depois retrocedi e fui para Yarmouth. Parei para jantar numa boa estalagem, a uma ou duas milhas do barco da travessia, de que já falei uma vez. Chovia a cântaros, a noite estava lúgubre; mas a Lua brilhava por trás das nuvens e dissipava a escuridão.

Não tardou muito em distinguir as janelas iluminadas da habitação do senhor Peggotty. Calcando a areia húmida, cheguei à porta e entrei.

Estava agradável no interior. O dono da casa fumava a sua cachimbada da noite. Esperava‑nos uma ceia, o fogo brilhava, as cinzas tinham sido varridas, a caixa em que se sentava Emily aguardava a sua vinda. A Peggotty ocupava o seu lugar e, se não fosse o traje de luto, poder‑se‑ia julgar que ela nunca saíra dali. Já abrira o estojo de costura (que tinha na tampa a catedral de São Paulo) e retirara a fita métrica e o coto de vela. Nada se modificara. A senhora Gummidge, como de costume, lastimava‑se no seu canto.

‑ O menino foi o primeiro a chegar ‑ disse o senhor Peggotty, cujo rosto resplandecia. ‑ Tire o casaco, está molhado.

‑ Obrigado ‑ respondi, dando‑lhe o sobretudo para ele pendurar. ‑ Já começou a secar.

‑ Tem razão ‑ replicou, tacteando os ombros. ‑ Seco como um cavaco. Sente‑se, menino. Não há necessidade de dizer que seja bem‑vindo, mas eu digo‑o do fundo do coração.

‑ Obrigado, senhor Peggotty, não duvido. Então, Peggotty? ‑ acrescentei, beijando‑a. ‑ Como vai isso?

‑ Ah, ah! ‑ exclamou o pescador, rindo, sentando‑se a nosso lado, e esfregando as mãos, como se aliviado de ver findos os tristes acontecimentos e recuperando a cordialidade inata. ‑ Não há mulher no mundo, menino Davy, que possa ter consciência tão tranquila como a minha irmã. Fez a sua obrigação junto do defunto, assim como ele tinha feito a sua. Vai tudo bem. A senhora Gummidge gemeu.

‑ Animo, velhota! ‑ aconselhou‑lhe o senhor Peggotty. Mas abanou a cabeça, olhando para nós, como se quisesse observar que os factos recentes não podiam deixar de lhe recordar o seu velho. ‑ Não se deixe ir abaixo! Retome um pouco de coragem, um bocadinho só, e verá como o resto vem a seguir, muito naturalmente.

‑ Não, Daniel ‑ respondeu a senhora Gummidge. ‑ Para mim só é natural a solidão e o abandono.

‑ Ora ‑ volveu ele, apaziguador.

‑ É assim mesmo, Daniel. Não fui feita para viver com aqueles a quem resta um pouco de dinheiro. Mais vale que desapareça.

‑ Mas como poderei gastar esse dinheiro se não também consigo? ‑ perguntou o senhor Peggotty em tom grave, de censura. ‑ Que está a dizer? Mais do que nunca eu preciso de si.

‑ Eu sabia que nunca tinha precisado de mim, não era necessário dizer‑mo ‑ atalhou a velha, choramingando. ‑ Já devia ter percebido, porque sou uma inútil, abandonada, e incómoda ainda por cima.

O senhor Peggotty pareceu consternado por ter pronunciado palavras susceptíveis de semelhante interpretação, mas a irmã puxou‑lhe pela manga, para evitar que ele respondesse. Depois de ter contemplado uns minutos a senhora Gummidge, com um olhar compadecido, o homem voltou‑se para o relógio, levantou‑se, espevitou o morrão da vela e foi colocá‑la diante da janelinha.

‑ Pronto! ‑ disse alegremente. ‑ Aqui está, senhora Gummidge. ‑ Esta soltou um gemido débil. ‑ A luz no sítio habitual. Quer saber porquê, menino Davy? Pois saiba que é para a nossa Emily. Como vê, o caminho está escuro e, quando estou aqui à hora em que ela regressa, ponho a luz à janela. Além disso, tem outro fim ‑ acrescentou, curvando‑se para o meu lado. ‑ Ela diz consigo mesma: «Lá está a casa.» E diz também: «O tio está lá», pois, se eu não estou, ninguém mais põe a vela.

‑ Pareces uma criança! ‑ notou‑lhe a irmã, que por esta observação não queria tributar‑lhe menos estima.

‑ Sei lá! ‑ retorquiu ele, esfregando novamente as mãos e olhando ora para nós ora para o lume. ‑ Não pelo aspecto.

‑ Isso não ‑ confirmou a minha criada.

‑ Tens razão ‑ disse ele, rindo ‑, mas... na reflexão. O que para mim dá na mesma. Ah, quando contemplo a casita da nossa Emily... diabos me levem! ‑ exclamou, com súbita seriedade. ‑ Não sei dizer senão que os diabos me levem se não tenho a impressão de que aquelas pequeninas coisas são ela mesma: pego nelas e torno a descansá‑las, com tanto cuidado como se fossem a própria Emily. E igualmente quanto aos seus chapéus, e o resto. Não poderia vê‑los maltratados. Achas‑me uma criança na figura de um porco‑espinho! ‑ ajuntou o pescador, soltando uma gargalhada.

A irmã e eu rimos também, menos ruidosamente.

‑ Afigura‑se‑me ‑ continuou Peggotty, resplandecendo de satisfação e depois de haver esfregado as pernas ‑ que é por ter brincado tantas vezes com ela, fazendo de turcos, franceses e outros estrangeiros, de tubarões, leões e baleias, e não sei que mais! Nesse tempo, a Emily mal me chegava ao joelho. A gente habitua‑se, é o que é. E essa vela ‑ disse, apontando‑a ‑ eu não deixarei de a pôr ali, mesmo depois de ela ter casado e partido. Quando, à noite, estiver aqui sentado (e para onde poderei ir, mesmo depois do legado que recebi?), julgarei que ainda a espero, vendo essa luz à janela. Falam duma criança que tem aspecto de porco‑espinho... Pois bem. Nesse momento, vendo brilhar aquela chama, penso: «Emily está a vê‑la, não tarda aí...» ‑ Deteve‑se, no meio da sua jovialidade, para exclamar: ‑ Ei‑la!

Era apenas Ham. A chuva devia cair mais grossa, porque o rapaz trazia o chapéu de oleado virado sobre a testa, a pingar.

‑ Que é feito da Emily? ‑ perguntou o tio.

Ham esboçou um gesto de cabeça, como para dizer que ela estava lá fora. O senhor Peggotty levantou a vela, apagou‑a e colocou‑a em cima da mesa; estava a avivar o lume quando Ham, que não se mexera, me disse:

‑ Menino Davy, quer vir cá fora um instante ver o que eu e a Emily lhe queremos mostrar?

Saímos. Ao passar defronte dele, no limiar, notei, surpreendido e apavorado, a palidez mortal do seu rosto. Empurrou‑me vivamente e fechou a porta. Ficámos sós.

‑ Que aconteceu, Ham?

‑ Oh, menino Davy!

Pobre moço, como chorava! O espectáculo de tamanha dor fez‑me parar, e nem me lembro já do que pensei então. Não deixava de o olhar.

‑ Ham, por amor de Deus, diga‑me o que sucedeu.

‑ O meu amor, menino Davy, o orgulho e esperança do meu coração, aquela por quem teria dado a vida e por quem darei ainda... partiu!

‑ Partiu?

‑ Emily fugiu, menino Davy! É tão verdade que eu até peço a Deus que a mate (essa que eu amo mais que tudo neste mundo) em vez de a deixar cair na desgraça e na desonra!

A cara que ergueu ao céu sinistro, o estremecimento das mãos enclavinhadas, a angústia de todo o seu ser, permaneceram para sempre na minha memória. Dir‑se‑ia que evoco Yarmouth sempre com o aspecto daquela noite e Ham é a personagem única da cena.

‑ O menino é instruído ‑ disse‑me com precipitação ‑ e sabe o que está bem e o que é o melhor. Que lhes hei‑de dizer, aos dois? Como devo informar o tio, menino Davy?

Vi a porta mover‑se e, instintivamente, procurei segurar a tranqueta pelo lado exterior, a fim de ganhar tempo. Tarde de mais! O senhor Peggotty enfiou a cabeça e, ainda que eu vivesse quinhentos anos, jamais esqueceria as alterações que descobri nas suas feições. Lembro‑me de um gemido prolongado, um grito, mulheres que se acotovelavam em volta dele, de nós todos, no quarto; eu segurava um papel que Ham me dera, e o tio estava de rosto e lábios lívidos, cabelos desgrenhados, roupa desmanchada, peito manchado de sangue (que lhe escorria da boca, suponho) e olhos fitos em mim.

‑ Leia, menino ‑ pediu‑me em voz baixa e trémula. ‑ Devagar, se faz favor. Não sei se sou capaz de compreender.

No silêncio mortal que se seguiu, eu comecei a ler estas frases numa carta humedecida de lágrimas:

«Quando tu, que me estimas tanto, mais do que eu merecia, mesmo no tempo em que o meu coração era inocente, quando leres isto, eu já estarei longe.»

«Quando eu deixar a minha querida casa, oh, a minha querida casa, amanhã de manhã...»

‑ Estarei longe! ‑ repetiu lentamente o senhor Peggotty. ‑ Espera! Emily está longe. E depois?

A carta era datada da véspera à noite.

«... será para nunca mais cá voltar, a não ser que ele me traga, se fizer de mim uma senhora. Encontrarás esta à noite, muitas horas após a minha partida, em vez de me encontrarem a mim. Ah, se soubesses a angústia do meu coração! Se tu, a quem faço tanto mal e que nunca poderás perdoar‑me, chegasses a saber o que eu sofro! Sou demasiado má para me atrever a falar de mim. Consola‑te pensando na minha maldade. Por amor de Deus, diz ao tio que nunca o estimei tanto como agora. Não te lembres mais da tua afeição nem te lembres de que devíamos casar, mas procura supor que morri em pequenina e que estou enterrada algures. Pede a Deus, de quem me afasto, que tenha dó do tio. Jamais o estimei tanto como hoje. Sê o seu consolo. Ama alguma rapariga que possa ser o que eu fui outrora para o tio, que te seja fiel e te mereça. Deus vos abençoe a todos, por quem remarei de joelhos. Se ele não fizer de mim uma senhora, e eu não puder orar por mim mesma, só me restará interceder por todos. Saudades ao tio, com as minhas lágrimas e os meus últimos agradecimentos.»

Nada mais.

O senhor Peggotty ficou ainda muito tempo a olhar‑me, depois de eu me haver calado. Finalmente arrisquei‑me a pegar‑lhe na mão e a suplicar‑lhe que se conformasse. Respondeu‑me: «Obrigado», sem se mexer. Ham falou‑lhe. O tio, que compreendia o desgosto do rapaz, apertou‑lhe fortemente a dextra, mas em seguida tornou a imobilizar‑se, sem que ninguém ousasse perturbá‑lo.

Por fim, lentamente, desviou a vista da minha cara, como se despertasse de um sonho, e deixou‑a errar à sua volta. E disse então em voz baixa:

‑ Quem é ele? Quero saber o nome.

Ham fitou‑me e eu senti, de súbito, um abalo, que me fez recuar.

‑ Desconfias de alguém. Quem é?

‑ Menino Davy ‑ rogou‑me o Ham ‑ afaste‑se um pouco para eu dizer ao tio o que tenho de dizer. Não deve ouvir, menino Davy.

Senti novo abalo. Deixei‑me cair numa cadeira, tentando articular umas palavras, mas tinha a língua perra e os olhos enublados.

‑ Quero saber o nome dele ‑ ouvi outra vez o senhor Peggotty exigir do sobrinho.

‑ Havia já certo tempo que se via um criado rondar por aqui. Também se viu um senhor. Era o amo.

O pescador estava imóvel, e não largava dos olhos o noivo de Emily.

‑ Viram esse criado... com a nossa pobre pequena... ontem à noite. Esteve cá toda a semana, ou mesmo mais, sempre escondido. Julgava‑se que fora embora, mas escondia‑se. Vá‑se, menino Davy, não oiça isto.

O homem tinha‑me agarrado o pescoço, mas eu não seria capaz de mover‑me ainda que a casa se desmoronasse sobre mim.

- viram uma sege e cavalos, tudo desconhecido destes sítios, saindo da cidade, de manhãzinha, pela estrada de Norwich ‑ continuou Ham.‑O criado andou cá e lá, e, da última vez, Emily estava com ele. O outro encontrava‑se dentro da sege. Era o tal!

- Por amor de Deus! ‑ exclamou o pescador, recuando e estendendo os braços, como para repelir o objecto dos seus receios. ‑ Não me digas que era Steerforth!

- Menino Davy ‑ atalhou Ham, com voz sufocada ‑, a culpa não foi sua e eu não tenciono torná‑lo responsável, mas era esse infame do Steerforth!

O senhor Peggotty não soltou um grito, não derramou uma lágrima, não fez um só movimento até ao instante em que pareceu voltar a si: de repente, foi despendurar um gabão que estava a um canto do quarto.

- Ajuda‑me a vestir isto. Estou atordoado e não consigo ‑ disse ele, impaciente. ‑ E agora ‑ acrescentou ‑ deixa‑me ver o chapéu.

Ham perguntou‑lhe para onde é que ia.

- Vou procurar a minha sobrinha. Vou buscar a minha Emily.

Mas, primeiro, rebento o fundo a esse barco e deixo‑o afundar‑se no ponto em que afogaria aquele homem se fizesse a mínima ideia do que ele tramava. Que me matem se não é verdade que eu o afogaria, sem quaisquer remorsos! Vou buscar a minha sobrinha.

‑ Onde? ‑ ripostou Ham, barrando‑lhe o caminho da porta.

‑ Seja lá onde for! Procurá‑la‑ei por todo o mundo. Encontrá‑la‑ei na sua desgraça, e ela há‑de vir comigo. Juro que a vou buscar.

‑ Não, não ‑ bradou a senhora Gummidge, lacrimosa, erguendo‑se entre eles. ‑ Não, Daniel, nesse estado não vá. Espere um momento, meu pobre Daniel. É natural o que pretende, mas não nesse estado. Sente‑se e perdoe‑me de o ter às vezes atormentado. As minhas contrariedades... que são ao lado disto? Sente‑se e falemos um pouco do tempo em que a rapariga ficou órfã, e Ham também, e eu uma viúva infeliz, que vossemecê recolheu. Assim sossegará o seu coração, Daniel ‑ declarou, apoiando‑lhe a cabeça no ombro ‑ e assim suportará melhor a sua dor. Conhece a promessa: «O que fizerdes ao mais pequeno dos vossos irmãos, é a mim que o fazeis.» Uma promessa destas não pode falhar sob este tecto que foi o nosso abrigo durante tantos anos.

Cedeu por fim o pescador e, quando o senti chorar, o impulso que experimentei de me deitar a seus pés, pedir‑lhe perdão pelo desespero que causara e amaldiçoar Steerforth cedeu a um sentimento melhor. O coração transbordante achou o mesmo alívio e eu chorei também.

 

COMEÇO DE UMA VIAGEM LONGA

O que é natural para mim deve sê‑lo para muitos outros, suponho eu; por isso não tenho medo de escrever que nunca estimara tanto Steerforth como na ocasião em que os laços que me uniam a ele se romperam afinal. Na angústia em que a revelação da sua iniquidade me havia mergulhado, pensei mais em tudo o que ele possuía de bom, pensei mais nos seus aspectos brilhantes, enterneci‑me por tudo o que existia de belo no meu amigo, prestei maior justiça às qualidades que poderiam ter feito dessa criatura uma natureza nobre e um grande nome ‑ coisas que não me ocorriam tanto na época da minha adoração por James Steerforth. Embora profundamente sentisse a minha parte de responsabilidade na desonra que ele levara a esse lar honesto, creio que se nos pudéssemos encontrar cara a cara eu não seria capaz de proferir a mínima exprobração. Tê‑lo‑ia ainda estimado tanto ‑ se bem que já sem cegueira ‑, teria ainda experimentado tanta ternura ao lembrar‑me do meu afecto, como se fosse uma criança ferida nos seus sentimentos, apesar da certeza de uma reconciliação impossível. Como ele, admiti que estava tudo acabado entre nós. Que recordação conservou Steerforth de mim, eis o que nunca vim a saber: talvez fosse uma lembrança vaga, fácil de dissipar. Eu, porém, evoco‑o como um amigo que me fosse querido e que a morte arrebatasse.

Sim, Steerforth, tu que vais por muito tempo deixar o cenário desta história triste. A minha mágoa testemunhará decerto, involuntariamente, contra ti no Juízo Final; mas não as minhas censuras nem a minha cólera. Isto sei‑o muito bem.

A notícia do caso depressa se espalhou pela localidade. Ao atravessar as ruas, na manhã seguinte, ouvi gente que falava dele à porta de casa. Muitas pessoas condenavam severamente a pequena Emily; outras recriminavam‑no, a ele; mas, para lastimar o pai adoptivo e o noivo, as vozes eram unânimes. Em todas o que predominava era o respeito pelo desgosto de ambos, um respeito cheio de amizade e delicadeza. Quando viram os dois divagar pela praia, os marítimos ficaram de parte, em pequenos grupos, discorrendo entre si com verdadeira compaixão. Foi aí, próximo do mar, que os encontrei. Facilmente percebi que não tinham dormido em toda a noite; nem era necessário que a minha criada me houvesse dito que eles estiveram sentados onde eu os deixara, até de madrugada. Pareceram‑me cansados; a cabeça do tio Peggotty curvara‑se mais naquelas horas do que em todos os anos em que o conheci. Ambos se mostravam sérios, circunspectos, calmos como o mar então sem vagas, sob um céu sombrio no horizonte e atravessado de uma luz argêntea provinda do Sol invisível.

- Conversámos muito ‑ disse o tio, quando passeámos um momento sós ‑ acerca do que devíamos e não devíamos fazer. Mas agora vemos o caminho que temos de seguir.

O meu olhar envolveu Ham, que andava mais afastado, de olhos fitos na faixa de claridade, e uma ideia pavorosa me acudiu à mente: não que o seu rosto estivesse truculento, mas lembro‑me de que aí se lia uma resolução terrível, a de matar Steerforth se alguma vez o encontrasse.

‑ As minhas obrigações aqui já acabaram ‑ continuou o pescador.‑Vou procurar a minha... ‑ Deteve‑se, e acrescentou com voz firme:‑Vou procurá‑la. De hoje em diante o meu dever é esse.

Abanou a cabeça quando lhe perguntei onde a encontraria. Quis saber se eu voltava para Londres no dia seguinte. Expliquei que ainda não partira com medo de perder uma oportunidade de lhe ser útil, mas que estava pronto a seguir quando ele quisesse.

‑ Então irei consigo, menino Davy. Amanhã, se for da sua vontade.

Demos uns passos em silêncio.

‑ Ham ‑ continuou ele ‑ ficará no seu trabalho e irá viver com minha irmã. Quanto àquele velho barco...

‑ Vai abandoná‑lo, senhor Peggotty? ‑ objectei‑lhe com brandura.

‑ O meu lugar, menino Davy, já não é ali; e se jamais um barco naufragou na noite escura, à superfície das águas, esse foi o meu. Não, não, menino, não tenciono abandoná‑lo. Longe disso.

Andámos mais, novamente silenciosos. Peggotty explicou‑me:

‑ O que quero dizer é que, de dia como de noite, de Verão como de Inverno, ele há‑de ter o aspecto que tem desde que ela o conhece. Se ela voltar e errar por aqui, não quero que o velho barco pareça repeli‑la; pelo contrário, que pareça convidá‑la a aproximar‑se e, um pouco como um fantasma ao vento e à chuva, possa lançar‑lhe uma olhadela pela janelinha e ver o seu antigo lugar junto do fogão. Talvez que então, menino Davy, caso não descubra lá dentro senão a senhora Gummidge, tenha a coragem de entrar e de se deitar na velha cama, repousando a cabeça fatigada onde noutro tempo foi tão feliz...

Não consegui responder‑lhe, apesar dos meus esforços.

‑ Todas as noites ‑ prosseguiu o marítimo ‑ será necessário que a vela fique acesa atrás da vidraça para que, vendo‑a, ela possa julgar que a luz lhe está a dizer: «Volta, minha filha, volta.» Ham, se baterem à porta da tua tia, mesmo que seja uma pancadinha leve, não abras. Que seja ela, e não tu, quem veja a minha filha perdida.

Adiantou‑se um pouco a nós e ficou uns instantes à nossa frente. Durante este tempo, tornei a olhar para Ham e, notando‑lhe a mesma expressão nos olhos, fitos na claridade longínqua, toqueilhe no braço.

Foi preciso chamá‑lo duas vezes seguidas, no tom próprio para acordar um dorminhoco; então ouviu‑me e, quando lhe perguntei enfim o que o absorvia tanto, respondeu‑me:

‑ Veja o que se estende diante de mim, menino Davy, lá ao longe...

‑ A vida à sua frente, não é isso?

Ham fizera um gesto vago em direcção ao mar.

‑ Ah, menino Davy, não sei como explicar... mas creio vir dali... o fim de tudo. ‑ E olhou‑me como se despertasse, porém sempre com a mesma expressão nos olhos.

‑ Que fim? ‑ inquiri, de novo cheio de apreensão.

‑ Não sei ‑ respondeu pensativamente. ‑ Lembrei‑me de que principiou tudo aqui e que depois veio o final. E acabou‑se. Menino Davy ‑ continuou, replicando, suponho, ao meu olhar ‑ não tenha medo de mim. Mas as ideias embrulham‑se‑me. Não atino seja com o que for.

O tio parara, a fim de esperar por nós. Fomos ter com ele, e não tornámos a falar. Esta lembrança, reunida aos meus temores, não deixou contudo de me perseguir de tempos a tempos, até ao dia em que, à sua hora, chegou o desfecho inexorável.

Inconscientemente, fomo‑nos aproximando do barco‑residência, e entrámos. A senhora Gummidge, que deixara de gemer ao seu canto, preparava o almoço. Recebeu o chapéu do senhor Peggotty, chegou‑lhe a cadeira e falou‑lhe com voz tão reconfortante e tão meiga que eu mal a reconheci.

‑ Daniel, meu amigo, tem de comer e beber para conservar as forças, senão vai‑se abaixo com certeza. Experimente, faça‑me esse favor. Se a minha tagarelice o fatiga, eu já me calarei.

Depois de nos servir à mesa, retirou‑se para o vão da janela, onde se ocupou activamente a consertar as camisas e mais roupa do dono da casa; feito isso, dobrou tudo com cuidado e guardou num velho saco de oleado, como possuem os marítimos, sem todavia deixar de ir dizendo, na mesma voz calma:

‑ Sempre, em qualquer estação, sabe que estarei aqui, Daniel, e que tudo se fará segundo a sua vontade. Não sou muito instruída, mas escrever‑lhe‑ei nas minhas horas vagas, quando estiver longe, e mandarei as cartas ao menino Davy. Talvez o Daniel me escreva também, de vez em quando, para me dizer como passa durante as suas viagens solitárias.

‑ Temo que fique muito só, senhora Gummidge ‑ disse o pescador.

- Não, não, Daniel. Decerto que não. Não se preocupe comigo.

Terei muito em que me ocupe, a guardar aqui uma casa para quando regressarem aqueles que esperamos. Nos dias bonitos, sento‑me à porta, como de costume. Se aparecer alguém, logo verá, de longe, a velha viúva, fiel no seu posto.

Que mudança na senhora Gummidge, em tão pouco tempo! Parecia outra mulher. Mostrava‑se tão dedicada, sabia tão bem o que devia dizer e o que devia calar, esquecia‑se tanto de si mesma para só pensar nos que a rodeavam, que eu me senti tomado de grande respeito por ela. Que trabalho realizou naquele dia! Havia muitas coisas que se precisava de trazer da praia, para as conservar abrigadas no alpendre: remos, redes, velas, cordame, mastaréus, covos de lagostas, sacos de lastro, e muitas outras. Apesar das ajudas que lhe deram (não houve homem válido que não se oferecesse para ser útil a Peggotty), ela persistiu, o dia inteiro, a labutar com fardos muito pesados para o seu corpo, a ir e vir, a realizar todo o género de fainas supérfluas. Quanto aos desgostos próprios, até parecia nem se lembrar deles. Das alterações que manifestou, não foi das mais pequenas a que se refere à sua disposição: já não se lamentava; em todo o dia não lhe notei tremor na voz, nem lágrimas nos olhos, até à hora ‑ o cair da tarde ‑ em que, ficando só comigo (o dono da casa adormecera de fadiga), teve uma crise de choro e de soluços meio sufocados e me fez sinal de a seguir até à porta. Aí, murmurou: «Deus o abençoe, menino Davy, seja sempre amigo daquele pobre homem.» Em seguida foi à pressa lavar a cara, para que ele a visse trabalhar de rosto prazenteiro a seu lado, quando acordasse. Enfim, ao partir nessa noite, considerei‑a como o sustentáculo, o apoio de Daniel Peggotty na sua aflição. Que lição a tirar do seu comportamento, que novos horizontes ela me abria!

Eram quase dez horas quando cheguei à porta do senhor Omer, depois de ter atravessado melancolicamente a povoação. O velho cangalheiro tomara a coisa tão a peito, disse‑me a filha, que estivera todo o dia abatido e fora deitar‑se sem haver fumado o seu cachimbo.

‑ Que rapariga falsa, sem coração! ‑ comentou a senhora Joram. ‑ Nunca teve nada de bom.

‑ Não fale assim. Com certeza que não pensa tais coisas.

‑ Penso, sim! ‑ ripostou agastada.

‑ Não ‑ insisti.

A senhora Joram oscilou a cabeça, procurou manter uma expressão severa, mas não pôde dominar os seus bons sentimentos e começou a chorar. Eu era novo, sem dúvida, mas soube apreciar aquela atitude que tanto convinha a uma esposa e mãe virtuosa.

‑ Que vai ela fazer? ‑ balbuciou Minnie. ‑ Para onde irá? Qual será o seu destino? Como pôde ser tão cruel para si mesma e para ele?

Lembrei‑me do tempo em que Minnie era nova e bonita e agradou‑me ver que ela se recordava também com tanta comoção. ‑ A pequena Minnie ‑ recomeçou a senhora Joram ‑ está a adormecer, e, mesmo assim, ainda exige Emily, e chora. Todo o dia a menina chorou e perguntou várias vezes se a Emily era má. Que lhe posso responder? Quando penso que Emily, da última vez que aqui esteve, prendeu ao pescoço da miúda a fita que trazia no seu e ficou com a cabeça encostada ao travesseiro até que Minnie caiu no sono! A fita ainda ela a traz ao pescoço. Talvez devesse tirá‑la, mas será justo? É possível que a Emily procedesse mal, contudo estimavam‑se tanto! E a pequena não sabe nada.

A senhora Joram sentia‑se tão infeliz que o marido veio consolá‑la. Ao deixá‑los, entrei em casa da minha criada, e ia ainda mais triste, se é possível. A digna criatura, sem manifestar a mínima fadiga depois das suas angústias recentes e das noites de insónia, fora para a residência do irmão, onde devia passar a noite, e eu só encontrei uma velha que viera ocupar‑se do serviço doméstico nas últimas semanas. Como eu não precisasse dela, disse‑lhe que se fosse deitar, o que fez sem qualquer protesto, e eu fiquei um momento diante do lume, na cozinha, pensando nos acontecimentos.

Estes confundiam‑se‑me no espírito com a morte do Barkis e eu já me imaginava a partir com a maré para esses longes que Ham contemplara com tão estranha expressão naquela manhã, quando um movimento na porta me arrancou a essas visões. Havia um batente, contudo o som não procedia dali. Eram uns dedos que batiam directamente na madeira, e baixinho, como fazem as crianças.

Estremeci, fui abrir e o meu olhar poisou num imenso guarda‑chuva que parecia andar sozinho. Depressa descobri que, debaixo dele, se abrigava a senhora Mowcher. Não me achava muito disposto a um acolhimento jovial, mas a anã, saindo de sob esse chapéu que apesar de todos os esforços ela não conseguira fechar, mostrou‑me esse ar divertido que já da primeira vez me causara hilaridade. Todavia, ao fitar‑me, o rosto tornou‑se‑lhe grave e, quando a desembaracei do guarda‑chuva, contorceu as mãos de maneira tão aflitiva que eu acabei por me apiedar.

‑ Senhora Mowcher ‑ disse‑lhe após ter olhado de alto a baixo a rua deserta (sem aliás saber porquê) ‑, como se explica a sua presença aqui? Que aconteceu?

Passou rapidamente diante de mim e entrou na cozinha. Fechei a porta, segui‑a com o guarda‑chuva na mão e já a encontrei sentada ao canto do guarda‑fogo, que era baixo, com duas barras por cima para colocar os pratos, e à sombra da panela, baloiçando‑se e agitando as mãos (que descansavam nos joelhos) como uma pessoa sofredora.

Muito inquieto por ser a única testemunha dessa visitante tardia e único espectador desse comportamento alarmante, tornei a perguntar‑lhe:

- Que aconteceu? Peço‑lhe que me informe. Está doente?

- Meu caro mancebo ‑ replicou, levando as duas mãos ao

peito ‑ dói‑me aqui, aqui. Quando penso que as coisas chegaram a este ponto! E eu que as podia ter impedido, se não fosse tão desmiolada!

De novo o chapéu da cabeça (grande de mais em proporção com o corpo) se agitou com o balanço deste, projectando uma sombra que se deslocava na parede.

- Estou admirado ‑ disse‑lhe ‑ de a ver tão apoquentada...

Mas a senhora Mowcher interrompeu‑me.

‑ É sempre a mesma coisa! ‑ exclamou. ‑ Ficam sempre surpreendidos, esses moços vaidosos, quando atingem o termo da sua bela adolescência, por encontrar sentimentos naturais num ente como eu. Fazem de mim um joguete de que se servem a seu bel‑prazer e que repelem quando saciados... e ficam perplexos se verificam que tenho mais sentimentos do que um cavalo de pau ou um soldadinho de chumbo. É sempre assim!

‑ Talvez os outros façam isso ‑ repliquei. ‑ Eu, não, palavra de honra. Nem devia sequer admirar‑me de a ver como está nesta ocasião. Conheço‑a menos mal. Se disse aquilo foi sem reflectir.

‑ Que posso fazer? ‑ replicou a mulherzinha, levantando‑se. ‑ Sou como era meu pai, como é minha irmã. E o meu irmão! Trabalho para estes dois, e há muitos anos, arduamente, senhor Copperfield. O dia inteiro! Tem‑se de viver. Não faço mal a ninguém. Se há pessoas inconscientes e cruéis que se riem de mim, que hei‑de fazer se não rir também, de mim, deles e de tudo? Se assim procedo, de quem é a culpa? Minha?

Não, sua não, isso bem eu via.

‑ Se me apresentasse ao seu falso amigo com o aspecto de uma pigmeia sensível ‑ prosseguiu a senhora Mowcher, sacudindo a cabeça com uma gravidade que exprimia censura ‑, julga que ele me tinha auxiliado e protegido? Se esta anã, que não é responsável do seu tamanho, se lhe dirigisse (e aos seus iguais) falando das próprias desditas, quando supõe que lhe escutariam a voz débil? Fosse eu azeda e enfadonha, como conseguiria viver?

Tornou a sentar‑se, tirou um lenço e enxugou os olhos.

‑‑Admire o facto de eu estar alegre e resignada, sabendo bem o que sou, e isto se o senhor tem realmente bom coração. Eu, pelo menos, regozijo‑me por ser capaz de seguir o meu caminho, sem dever nada a ninguém. Se não discuto o que me falta, é melhor para mim e não prejudico os outros. Mas tratem‑me com carinho, já que sirvo de brinquedo aos gigantes.

A senhora Mowcher guardou o lenço, sem deixar de olhar para mim com a máxima atenção. E prosseguiu ainda:

‑ Vi‑o passar na rua. Compreende que não consigo andar tão depressa como o senhor, com estas perninhas e o fôlego curto, e que, por isso, o não alcancei. Mas adivinhei para onde vinha e segui‑o. Já aqui estive hoje mesmo, sem no entanto ter a sorte de encontrar a dona da casa.

‑ Conhece‑a?

‑ Ouvi falar dela no estabelecimento de Omer & Joram. Foi às sete horas da manhã. Lembra‑se do que me disse Steerforth a respeito desta infeliz rapariga, na noite em que conversámos na estalagem?

Neste momento o grande chapéu da senhora Mowcher e a sua sombra enorme na parede retomaram a sua oscilação. Recordei‑me perfeitamente do que ela sugeria, pois já tinha pensado nisso, e de tal a informei.

‑ Que o leve, a ele, o maior dos diabos! ‑ bradou a mulherzinha, erguendo um dedo à altura dos seus olhos cintilantes ‑ e leve também esse criado perverso. Mas eu julguei que era o senhor quem estava apaixonado por ela.

‑ Eu?!

‑ Pois se a elogiou tanto, e corou, e pareceu perturbado! ‑ replicou a anã, torcendo as mãos, impaciente.

Não pude negar que assim fizera, embora com intenção muito diferente.

‑ Como havia eu de saber? ‑ contraveio a senhora Mowcher, tirando outra vez o lenço e batendo com os pés a compasso sempre que, a curtos intervalos, o levava aos olhos. ‑ Eles ora o contrariavam, ora o mimavam, e o senhor Copperfield parecia moldar‑se‑lhes nas mãos. Mal eu deixei a sala, o criado disse‑me que o «inocentinho» (era o nome que lhe dava, e o senhor poderia retribuir‑lhe chamando‑lhe o «malandrão») se apaixonara pela rapariga e que esta andava tontinha e lhe queria muito, e que o patrão desejava evitar qualquer coisa mais no interesse do senhor Copperfield do que da moça, e que esta era a razão da sua presença aqui. Quem não acredita nisto? Vi Steerforth sossegá‑lo e louvar a pequena, para lhe dar gosto, a si. O senhor fora quem pronunciara primeiramente o nome dela. Confessou admirá‑la desde há muito. Tinha frio e calor sucessivamente, corava e empalidecia ao mesmo tempo. Que podia eu imaginar senão que era um moço libertino, a quem só faltava experiência, e que caíra nas mãos de pessoas experimentadas, para o dirigirem (se quisessem)? Oh, oh, oh! Tinham medo de que eu descobrisse a verdade! ‑ exclamou descendo do guarda‑fogo e dando passinhos miúdos na cozinha, com os braços erguidos, desesperada. - É que eu sou esperta... assim é preciso, se tenho de viver! Mas o caso é que me ludibriaram por completo, e entreguei à pobre pequena uma carta que (estou persuadida) a decidiu a falar com Littimer, o qual aqui permanecia para esse mesmo fim. Fiquei mudo de estupefacção perante tamanha perfídia, enquanto via a senhora Mowcher andar cá e lá até perder alento: então voltou a sentar‑se no guarda‑fogo, levou outra vez o lenço aos olhos e esteve a oscilar a cabeça sem dizer palavra.

‑ As minhas diligências, senhor Copperfield ‑ ajuntou ela ‑ conduziram‑me anteontem à noite a Norwich, e a descoberta que fiz, por acaso, das idas e vindas deles (sem a sua companhia) despertou‑me desconfianças. Tomei então a mala‑posta de Londres e cheguei cá esta manhã. Ah, era demasiado tarde!

A pobre anã, trémula dos pés à cabeça e lavada em lágrimas, deu meia volta no guarda‑fogo, pôs os pèzinhos nas cinzas, para os aquecer, e contemplou o lume numa atitude de boneca. Eu estava sentado da outra banda, numa poltrona, perdido em reflexões sombrias, também com os olhos fitos no lume e, de vez em quando, na minha companheira.

‑ Tenho de partir ‑ declarou esta, pondo‑se de pé. ‑ Já é tarde. Não suspeita de mim?

Encontrando o seu olhar, mais penetrante do que nunca, eu não pude, perante esse desafio brusco, deixar de responder «não» com absoluta franqueza.

‑ Vamos ‑ disse ela, aceitando a mão que lhe estendi para a ajudar a passar sobre o guarda‑fogo e olhando‑me com ar pensativo ‑ confesse que não desconfiaria de mim se a minha estatura fosse normal.

Senti que havia verdade nessas palavras e tive vergonha de o confirmar.

‑ O senhor é novo ‑ continuou. ‑ Oiça um bom conselho, mesmo dito por uma pessoa de palmo e meio. Evite confundir defeitos físicos com defeitos morais, a não ser que haja motivo peremptório.

A senhora Mowcher já tinha passado por cima do guarda‑fogo e eu já havia dominado a minha desconfiança. Respondi que acreditava na veracidade do que me dizia e que nós fôramos ambos tristes instrumentos em mãos pérfidas. Agradeceu‑me afirmando que eu era bom rapaz.

‑ E agora oiça ‑ acrescentou, virando‑se para trás antes de chegar à porta e, de dedo erguido, lançando‑me outro olhar perscrutante ‑, tenho razões para supor (os ouvidos estão sempre abertos, pois não desprezo nenhuma das minhas faculdades) que eles saíram de Inglaterra. Se, porém, algum dia voltarem, e eu esteja viva, é muito possível que o saiba e farei tudo para socorrer essa pobre rapariga seduzida. Creia, senhor Copperfield, que não deixarei de o informar. Quanto ao Littimer, mais vale que tenha um rafeiro às canelas do que esta anãzinha da Mowcher.

E acompanhou a declaração com um olhar tão significativo que, desta vez, me inspirou cega confiança.

‑ Não me considere nem mais nem menos do que uma mulher de estatura normal, senhor Copperfield. ‑ Dizendo isto, poisou‑me no braço uns dedos suplicantes. ‑ Se alguma vez me vir diferente do que sou e do que era na primeira que me viu, repare em que sociedade me encontro. Olhe que sou um ente minúsculo, sem defesa. Pense em mim quando regresso a casa, depois do meu dia de trabalho, para o lado de uma irmã e um irmão que me são semelhantes. Talvez então me não julgue tão severamente; não se admire de que eu possa estar séria e preocupada. Boa noite.

Estendi‑lhe a mão (modificara‑se por completo a minha opinião a seu respeito) e abri a porta para a deixar sair. Não foi muito fácil preparar‑lhe o guarda‑chuva e colocar‑lho na mão, mas por fim vi‑a afastar‑se saltitando debaixo de água, sem que parecesse haver uma pessoa sob a imensa umbela, salvo quando a descarga de alguma goteira a atingia em cheio e fazia descobrir a senhora Mowcher lutando desesperada para manter o seu abrigo em equilíbrio. Depois de ter feito duas ou três tentativas para a ir socorrer, mas inutilmente, porque o chapéu‑de‑chuva já pulava ao longe, reentrei em casa, fui deitar‑me e dormi até de manhã.

O senhor Peggotty apareceu então acompanhado da irmã, e fomos logo para o escritório da diligência, onde a senhora Gummidge e o Ham nos esperavam para se despedir de nós.

‑ Menino Davy ‑ segredou‑me o rapaz, puxando‑me para um canto no momento em que o tio acondicionava o seu saco com a bagagem ‑, a vida dele está destroçada. Não sabe para onde vai, nem o que lhe pode acontecer. Parte para uma viagem que, com interrupções, pode durar até ao fim da sua existência, a não ser que encontre o que procura. Estou convencido de que o menino lhe será o melhor amigo nestas circunstâncias.

‑ Tenha confiança em mim ‑ respondi, dando‑lhe um aperto de mão.

‑ Muito obrigado. Mais uma coisa: tenho um bom emprego e agora não preciso de gastar o que ganho. O dinheiro já não me serve de nada, senão para viver. Se quiser guardá‑lo para que sirva às despesas do meu tio, eu por mim continuarei aqui a trabalhar com coragem; não julgue que falto aos meus deveres e que não procedo sempre como um homem.

Declarei‑lhe que acreditava plenamente, e acrescentei esperar que um dia ele deixasse a vida solitária que nesse momento planeava.

‑ Não, senhor, para mim tudo acabou. Ninguém jamais poderá preencher o lugar vazio. Mas, quanto ao dinheiro, faça o que lhe peço. Que esteja sempre à disposição do tio!

Prometi‑lhe, embora lhe lembrasse que o senhor Peggotty receberia um rendimento, ainda que modesto, do legado de Barkis.

Em seguida despedimo‑nos. Não posso recordar sem um aperto de coração a dignidade da sua coragem e a extensão do seu desgosto.

Quanto à senhora Gummidge, se eu tentasse descrever como correu ao longo da rua, junto da diligência, de olhos fitos em Daniel Peggotty e gemendo todo o tempo, decerto empreenderia um trabalho difícil. Por isso mais vale deixá‑la sentada (onde por fim ficou) à porta da padaria, esbodegada e esbaforida, com o chapéu desabado e um sapato esquecido no meio da rua.

Chegados ao termo da nossa viagem, o primeiro cuidado que tivemos foi de procurar alojamento para Clara Peggotty, com um quarto para o irmão. Por sorte, descobri coisa muito capaz e barata, por cima duma mercearia, à distância de dois quarteirões da minha casa. Uma vez apalavrada esta habitação, fui comprar carnes frias a um restaurante e levei os meus companheiros à minha residência, para tomarem chá comigo, o que, lastimo dizê‑lo, não agradou à senhora Crupp, muito pelo contrário. Devo acrescentar que a ofendeu bastante ver a Peggotty, dez minutos depois de lá ter entrado, arregaçar o vestido de viúva e começar espanejando o pó do meu quarto. A senhora Crupp tomou o caso como uma impertinência, e as impertinências não as suportava nunca.

O senhor Peggotty comunicara‑me, pelo caminho, a sua intenção (não inesperada para mim) de ir primeiramente visitar a senhora Steerforth. Como eu achasse do meu dever ajudá‑lo nessa diligência, servindo de medianeiro, a fim de poupar quanto possível o amor maternal daquela dama, resolvi escrever‑lhe naquela mesma noite. Disse‑lhe, com a necessária circunspecção, quanto mal o filho fizera ao pai adoptivo de Emily e expliquei‑lhe a minha interferência no caso. Acrescentei que Daniel Peggotty era de condição humilde, mas pessoa recta, de bom carácter, e concluía esperançado de que ela se não recusasse a recebê‑lo naquele enorme desgosto por que o homem passava. Anunciei a nossa visita para as duas horas e eu próprio levei a carta à primeira mala‑posta da manhã.

À hora aprazada, estávamos à porta da residência dos Steerforths, nessa em que, dias antes, eu fora tão feliz, em que a minha confiança juvenil e os meus sentimentos se haviam expandido à vontade, mas cuja entrada ao presente me era quase interdita.

Littimer não apareceu. A figura, mais agradável, que substituíra a dele quando da minha última visita acolheu‑nos outra vez e precedeu‑nos até à porta da sala, onde se achava a senhora Steerforth. Nesse momento, Rosa Dartle deixou o canto que ocupava e passou para trás da poltrona daquela, onde ficou de pé.

Vi logo, no rosto da mãe, que ela soubera do próprio James o que este havia feito. Este rosto mostrava‑se pálido, denotando comoção mais profunda do que lhe podia ter causado a minha simples carta. Parecia‑se como nunca com o filho, e eu percebi que esta semelhança não escapara ao meu companheiro.

Encontrámo‑la sentada, muito hirta, na sua poltrona, com ar digno, tão impassível e fria que pensámos nada a poder perturbar. Olhava com fixidez para o pescador, de pé à sua frente e fitando‑a de igual modo. O olhar penetrante de Rosa Dartle envolveu‑nos a todos. Durante minutos reinou silêncio. Então a dona da casa, com um gesto, convidou Daniel Peggotty a sentar‑se, ao que ele respondeu em voz baixa:

‑ Não é natural, minha senhora, que me sente nesta casa. Prefiro estar de pé.

Seguiu‑se novo silêncio, que ela quebrou com estas palavras: ‑ Soube com profunda tristeza o motivo da sua vinda. Que exige de mim? Que quer que eu faça?

O marítimo enfiou o chapéu debaixo do braço para tirar do bolso a carta de Emily. Desdobrando‑a, apresentou‑a à senhora Steerforth.

‑ Tenha a bondade de ler, minha senhora. É da minha sobrinha. A dona da casa leu com ar calmo e digno, sem parecer impressionada com o conteúdo da carta, que restituiu.

‑ «Se ele fizer de mim uma senhora» ‑ disse Peggotty, sublinhando esta frase com o dedo. ‑ Venho saber se o seu filho cumprirá a palavra.

‑ Não cumpre.

‑ Porquê?

‑ Porque é impossível. Seria um casamento desigual. O senhor não ignora que a rapariga lhe é muito inferior.

‑ Eleve‑a até à sua classe ‑ ripostou o pescador.

‑ Não tem educação nem instrução.

‑ Talvez que sim, talvez que não. Eu creio que sim. Mas não sou bom juiz. Ensine‑lhe o que lhe falta.

‑ Visto que me obriga a pôr os pontos nos iis, o que desejava evitar, digo que a baixa condição da família torna a coisa impossível, fora o resto.

‑ Escute, minha senhora ‑ replicou ele tranquila e lentamente. ‑ Sabe o que é estimar os filhos. Eu também sei. Fosse ela cem vezes minha filha que eu a não estimava mais. A senhora não sabe o que é perder uma filha. Eu sei. Todos os tesouros do mundo, se os tivesse, eu daria para a recuperar. Mas salve‑a ao menos da desonra e nunca mais a importunaremos. Nenhum de nós, no meio de quem ela cresceu e viveu e de quem foi a razão da existência até agora, nenhum jamais tornará a ver‑lhe o rosto. Basta‑nos sabê‑la sossegada, pensar nela de longe, como se estivesse debaixo de outro sol e de outro céu. Contentamo‑nos com o facto de a confiar ao marido... aos filhos, talvez... e esperar o dia em que seremos todos iguais diante de Nosso Senhor.

Esta eloquência rude não deixou de produzir algum efeito. Sem abandonar a sua expressão orgulhosa, mas com certa doçura na voz, a senhora Steerforth respondeu:

- Não justifico nada, abstenho‑me de qualquer contestação.

Mas lamento ter de repetir: é impossível. Semelhante casamento prejudicaria irremediavelmente a carreira do meu filho e arruinar‑lhe‑ia o futuro. O casamento não se fará, nem agora nem nunca. Disso estou certa. Se outra compensação...

Mas o pescador, cujo olhar fixo se inflamara a pouco e pouco, atalhou:

‑ Estou a contemplar a imagem desse que, na minha casa, à lareira, me olhava com um sorriso mas sob o qual se escondia tal traição que só de nela pensar me enlouquece. Se a imagem desse rosto se não tornar escaldante de vergonha com a ideia de me oferecer dinheiro em troca da ruína e da desonra da minha filha adoptiva, é que não vale mais do que ele. Nem mesmo sei se, pertencendo a uma dama, não será pior...

A senhora Steerforth mudou então. Num instante, invadiu‑lhe as faces uma onda de cólera. Implacável, de mãos crispadas nos braços da poltrona, redarguiu:

‑ E que compensação podia o senhor oferecer por ter cavado um abismo entre mim e o meu filho? Que é a sua afeição comparada com a minha? Que representa a sua separação ao lado da minha?

A senhora Dartle tocou‑lhe de leve no ombro e inclinou a cabeça para lhe murmurar umas palavras ao ouvido. Mas a outra recusou‑se a escutá‑la.

‑ Não, Rosa, cala‑te! Este homem tem de ouvir o que eu quero dizer‑lhe. O meu filho, o único motivo da minha vida, a quem consagrei cada um dos meus pensamentos, cujos desejos satisfiz desde a infância, em cuja vida, desde que nasceu, eu perdi a minha... apaixonar‑se assim, de repente, por uma rapariga qualquer, e abandonar‑me! Pagar a minha confiança com dolos sistemáticos, por causa dela, por quem me trocou! Opor essa estúpida fantasia aos direitos da mãe e ao seu dever, ao respeito, amor, gratidão... Direitos que deviam fortalecer‑se a cada hora e tornarem‑se capazes de resistir a tudo! Não é isto um gravame?

Outra vez Rosa Dartle tratou de acalmar a senhora Steerforth, sem obter maior resultado.

‑ Repito‑te, Rosa: cala‑te. Se ele é capaz de apostar tudo por um assunto fútil, eu sou capaz de o fazer por um muito maior. Deixá‑lo ir aonde quiser, com os meios que o meu amor lhe garantiu. Julgará que me vence com uma ausência prolongada? Nesse caso conhece mal a própria mãe. Que renuncie desde já ao seu capricho, e será bem recebido; se o não fizer, jamais tornará a ver‑me, viva ou morta, enquanto tiver forças para o impedir, a não ser que, desembaraçado dela, venha humildemente pedir‑me perdão. É o meu direito, e exijo que ele o reconheça. Eis o abismo que se abriu entre nós. E não é isto ‑ concluiu, olhando para o visitante com o ar altivo e implacável do começo ‑ não é isto uma ofensa?

Enquanto escutava e via a mãe exprimir‑se daquela forma, parecia‑me escutar e ouvir o filho desafiá‑la. Tudo o que eu sabia do espírito inflexível e voluntarioso de James, reencontrava nela. Todo o conhecimento que eu adquirira das energias mal encaminhadas do filho ajudava‑me a compreender a mãe e a perceber que, afinal, o carácter de um e de outro era o mesmo. Voltando a achar as suas reservas primitivas, a senhora Steerforth virou‑se para mim a fim de observar, em voz alta, que não tínhamos mais nada que dizer e nos pedia que saíssemos. Levantou‑se com dignidade, para deixar a sala, mas o senhor Peggotty deu a entender que era inútil.

‑ Não receie que a importune, minha senhora, não tenho mais nada para acrescentar ‑ declarou encaminhando‑se para a porta.‑ Vim cá sem esperança e retiro‑me sem esperança. Fiz o que julguei da minha obrigação, mas nunca pensei obter qualquer coisa da minha visita. Esta casa foi demasiado funesta para mim e os meus: que podia eu esperar?

Com isto, saímos, deixando‑a de pé, bela estátua majestosa, ao lado da sua poltrona.

Precisávamos de atravessar uma varanda lajeada, de paredes e tecto de vidro, coberto de latada. As folhas já estavam verdes e, como havia sol, tinham deixado aberta a porta envidraçada que dava para o jardim. Ao aproximarmo‑nos, Rosa Dartle, que viera atrás de nós silenciosamente, disse‑me:

‑ Que boa ideia, na verdade, ter trazido aqui este homem!

A raiva e o desprezo que lhe ensombravam o rosto e se reflectiam nos olhos de azeviche eram mais intensos do que eu teria crido possível, mesmo naquela máscara. A cicatriz, como sempre que semelhante excitação lhe animava as feições, apresentava‑se mais nítida. Quando o tremor, que eu pressentia, se manifestou ali, notei que ela levara a mão à boca para a esconder.

‑ Como se atreve a protegê‑lo e a trazê‑lo cá? ‑ continuou. ‑ Realmente, podemos confiar no senhor.

‑ Minha senhora ‑ repliquei ‑ não será injustiça condenar‑me?

‑ Por que vem semear a discórdia entre esses dois impetuosos? Não sabe que ambos estão loucos de obstinação e orgulho?

‑ Tenho culpa? ‑ inquiri.

‑ Por que é que se mete nisto? Por que trouxe cá esse indivíduo?

‑ É um homem profundamente magoado, minha senhora. ‑ Talvez não saiba...

‑ O que sei ‑ declarou com a mão no peito como para aplacar a tempestade que aí se desencadeara ‑ é que James Steerforth tem o coração corrupto de um traidor. Mas a mim que me importa esse sujeito e a sua sobrinha intriguista?

- Está a aprofundar a ferida, que já era suficientemente dolorosa. Acrescentarei apenas, para acabar, que está a ser injusta para com este homem.

‑ Não estou. São todos uns refinados patifes. Gostava de a ver açoitada, a ela!

Daniel Peggotty não pronunciara palavra, e saiu à minha frente.

‑ Não tem vergonha, senhora Dartle? ‑ disse indignado. ‑ Como pode calcar aos pés uma dor tão pouco merecida?

‑ Quem me dera calcá‑los todos aos pés! Queria ver a casa deles arruinada, e ela marcada a ferro quente, depois lançada à rua, em andrajos, para aí morrer de fome. Eis o que faria, se estivesse na minha mão julgá‑la. E executaria a sentença, por mim mesma. Odeio‑a. Se pudesse exprobrar‑lhe a infâmia, iria fosse aonde fosse para o fazer. Se a pudesse perseguir até à cova, não hesitaria.. Se existisse uma palavra que a aliviasse à hora da morte, e que eu só a conhecesse, não a diria, mesmo a troco da vida.

A veemência das frases não basta para significar, senão debilmente, a paixão que a dominava e se exprimia por todo o seu ser, embora a voz, em vez de se elevar, se tornasse mais surda que de costume. As palavras são impotentes para expressar a memória que me ficou do seu arrebatamento e abandono de toda ela à cólera. Tenho visto a paixão sob muitas formas, mas nunca assim desencadeada.

Quando me reuni ao marítimo, ele descia lentamente a rua, com ar pensativo. Disse‑me logo que, tendo‑se desempenhado da missão que o trouxera a Londres, tencionava «pôr‑se a caminho» nessa mesma tarde. Perguntei‑lhe aonde queria ir: respondeu‑me só que partia em busca da sobrinha.

Alcançámos os aposentos que eles haviam tomado e aí repeti à minha antiga criada o que o irmão acabava de me participar. Por seu turno ela informou‑me que já o sabia desde a manhã. Ignorava, como eu, o destino de Daniel, mas pensava que este tinha a sua ideia. Como eu não queria deixá‑lo em semelhante conjuntura, resolvi que jantássemos todos juntos; a refeição constou de um pastelão de carne, especialidade da Peggotty, que nesse dia foi singularmente acompanhado dos aromas de chá, café, manteiga, toucinho, queijo, pão quente, lenha, velas e conserva de nozes verdes que sem cessar subiam da mercearia em baixo. Depois do jantar ficámos perto de uma hora sentados junto da janela, sem falar muito. Em seguida, Daniel levantou‑se, foi buscar o saco de oleado e o bordão e poisou os objectos em cima da mesa.

Aceitou por conta do seu legado, uma pequena importância de dinheiro (o bastante, julgo, para viver um mês). Prometeu prevenir‑me de tudo o que lhe acontecesse; e então, deitando o saco ao ombro, pegou no bordão e no chapéu e despediu‑se de nós ambos com um «até à vista».

‑ Deus te guarde em tudo, boa irmã! ‑ disse à minha criada, beijando‑a. ‑‑E a si, menino David ‑ acrescentou apertando a mão que lhe estendi. ‑ Vou procurá‑la tão longe quanto for preciso. Se ela voltar durante a minha ausência (o que, infelizmente, não é provável), ou se eu a trouxer, a minha intenção é ir viver e morrer na sua companhia, nalgum sítio onde ninguém a possa censurar. Caso me suceda qualquer desgraça, lembrem‑se de que o meu último pensamento era de amor e perdão.

Proferiu isto de cabeça descoberta, solenemente; depois, pondo o chapéu, desceu a escada e partiu. Seguimo‑lo até à porta. A tarde estava morna e poeirenta. Era a hora a que, na rua a que a nossa travessa ia dar, caía com a luz ardente essa calma momentânea que sucede ao constante deambular dos transeuntes. Daniel Peggotty dobrou, sozinho, a esquina e perdeu‑se na reverberação crepuscular.

Será difícil que eu reveja esse momento da tarde, que acorde de noite, que contemple o luar e as estrelas, que sinta cair a chuva e oiça o vento sem rever na memória esse pobre peregrino caminhando desacompanhado, e sem me lembrar destas palavras: «Caso me suceda alguma desgraça, lembrem‑se de que o meu último pensamento era de amor e perdão.»

 

FELICIDADE

Todo este tempo continuei a amar Dora, e com intensidade crescente. Pensar nela constituía o meu refúgio no meio das desilusões e tristezas, o que de certa maneira me compensou da perda do amigo. Quanto mais me lastimava, a mim ou aos outros, mais achava consolo na recordação de Dora. Quanto maior fosse a porção de mentiras e sofrimentos deste mundo, maior brilho tomava no zénite a estrela pura que se chamava Dora. Não me parece que tivesse uma ideia muito certa da natureza de Dora nem do seu parentesco com os entes siderais; mas estou convencido de que repudiaria indignado a hipótese de ela ser apenas uma criatura humana, como qualquer outra rapariga do nosso mundo.

Estava, se assim me posso exprimir, todo impregnado de Dora. Do oceano do meu amor podia tirar a água necessária para afogar quem quisesse: ainda ficaria bastante para o resto da minha vida. Desde o meu regresso que eu ia passear à noite por Norwood. Andava de roda da casa, sem lhe tocar, pensando sempre em Dora, como numa adivinha da minha infância que significava Lua. Fosse como fosse, escravo lunático de Dora, deambulava durante duas horas derredor da residência e do jardim, espreitando através das abertas da vedação, erguendo‑me nas pontas dos pés, com esforços sobre‑humanos, até aos ferros do topo, cobertos de ferrugem: dali atirava beijos às janelas iluminadas e fazia invocações românticas ao pálido planeta, rogando‑lhe que protegesse a minha Dora... não sei ao certo de quê, calculo que dos incêndios ‑ a não ser que fosse dos ratos, de que ela tinha muito medo. A minha paixão preocupava‑me a valer, e era natural que me confiasse à Peggotty. Quando a encontrava à tarde, com todos os seus utensílios, ocupada a tratar da sua roupa, não me coibia de a pôr ao facto, com muitos circunlóquios, do meu segredo. Ela ficou deveras interessada, mas não viu as coisas sob o mesmo aspecto que eu. Punha tanto ardor em elevar‑me às nuvens que não compreendia as minhas apreensões. A tal menina, dizia, devia considerar‑se venturosa em possuir semelhante pretendente. E quanto ao pai, que podia esperar ele de melhor?

Notei todavia que a toga de advogado do doutor Spenlow e a sua volta engomada sossegaram a minha velha Peggotty e lhe inspiraram maior respeito ao homem que, aos meus olhos, tomava de dia para dia uma forma mais etérea, parecendo resplender quando se sentava, hirto, no tribunal, entre os processos, tal um farol num oceano de papelada. Entre parêntese direi que me parecia muito estranho pensar que, nesse tribunal em que eu também tomava parte, todos os velhos juízes e velhos causídicos se não preocupassem com Dora se a conhecessem ou se alguém lhes propusesse casar com ela, ou que se não desviassem uma só polegada do seu caminho se a ouvissem cantar e tocar viola. Desprezava‑os a todos, sem excepção. Velhos jardineiros enregelados dos canteiros do amor! Como a magistratura se me afigurava insensível! O foro era tão destituído de poesia como o balcão de um botequim.

Tomando à minha conta, não sem orgulho, os negócios de Clara Peggotty Barkis, homologuei o testamento do marido, regularizei a questão sucessória, acompanhei‑a em todos os trâmites e em breve lhe concluí o assunto. Para variarmos destes trabalhos judiciais, fomos ver, na Fleet Street, as figuras de cera (hoje derretidas, quero crer, após estes vintes anos); visitámos a exposição da senhora Linwood [1], que me ficou na memória como um mausoléu das artes femininas, propício à introspecção e ao arrependimento; observámos a Torre de Londres; e ascendemos ao zimbório de São Paulo. Todas estas maravilhas provocaram alegria na minha criada, tanta quanta lhe era possível experimentar nesse momento; todas menos a catedral de São Paulo, que lhe pareceu inferior à imagem da tampa da sua caixa de costura, objecto de tão grande afeição.

Uma vez concluído o assunto do testamento, levei‑a uma manhã ao cartório para ela liquidar a conta. O doutor Spenlow não estava, disse‑me o velho Tiffey, pois fora ao vicariato receber o juramento de certo cavalheiro que pretendia licença de matrimónio. Mas como eu sabia que ele se não demorava, aconselhei Clara Peggotty a esperar.

Quando se tratava de homologação testamentária, nós ‑ como os agentes de serviços funerários ‑ tomávamos uma expressão mais ou menos compungida perante os clientes de luto. A mesma delicadeza nos obrigava a estar alegres quando aqueles vinham para se casar. Por isso preveni a minha criada de que não se admirasse de ver o doutor Spenlow já refeito da comoção que lhe causara a morte de Barkis. E, de facto, o advogado entrou o mais sorridente e satisfeito que era possível.

Mas nem a Peggotty nem eu lhe demos muita atenção, porque os nossos olhos se dirigiram para o homem que o acompanhava, nem mais nem menos do que o senhor Murdstone. Este mudara pouco. Os cabelos continuavam bastos e tão pretos como nunca. O olhar não inspirava mais confiança do que outrora.

‑ Ah, Copperfield ‑ exclamou o doutor Spenlow. ‑ Creio que conhece este senhor...

Fiz ao dito cavalheiro uma saudação distante, e a Peggotty fingiu não o ver. Murdstone, de princípio, pareceu desconcertado, mas não tardou em tomar uma decisão e aproximou‑se de mim.

‑ Espero que esteja bem de saúde ‑ disse ele.

‑ O que o não deve interessar ‑ ripostei. ‑ Mas, se quer realmente saber, eu estou bem.

Murdstone virou‑se para a velha criada.

‑ Quanto à senhora, acabo de ter o desgosto de ser informado da morte do seu marido...

‑ Não é o primeiro luto da minha vida, senhor Murdstone ‑ volveu Peggotty, tremendo da cabeça aos pés. ‑ Ao menos, desta vez, ninguém se pode acusar de ser responsável.

‑ Ah, é uma consolação... Cumpriu o seu dever, não é isso?

‑ Graças a Deus, não levei ninguém à sepultura, prematuramente, à força de tormentos e terrores.

Murdstone fitou‑a um instante com olhar sombrio, onde se podia ler remorso. Em seguida, voltando‑se para mim, mas sem me encarar, acrescentou:

‑ É pouco provável que nos tornemos a ver, o que será agradável para ambos. Não creio que simpatize comigo, porque sempre se revoltou contra a justa autoridade que eu exercia para seu bem e sua emenda... Esse ódio envenenou‑lhe o coração e ensombrou a vida da sua mãe. Espero que se tenha aperfeiçoado.

Este diálogo decorria em voz baixa, a um canto do cartório, e foi interrompido pela necessidade que Murdstone teve de passar ao gabinete do doutor Spenlow, onde pagou a sua licença. O advogado entregou‑lha, dobrada, apertou‑lhe a mão e desejou felicidades assim como à noiva juvenil. Com isto Murdstone saiu.

Ser‑me‑ia difícil guardar silêncio perante semelhantes palavras se devesse explicar à Peggotty (furiosa só por minha causa, coitada!) que o local era mal escolhido para uma discussão. Mas tudo terminou com um abraço entre nós dois, provocado pela evocação dos antigos sofrimentos comuns; aliás ela compreendeu a conveniência de fazer boa figura diante do advogado e dos escreventes.

O doutor Spenlow parecia desconhecer o grau de parentesco que existia entre mim e o senhor Murdstone, o que me facilitou as coisas. O que ele pensou foi que a tia Betsey era, na nossa família, chefe do partido governamental e que havia oposição de princípios. Pelo menos assim o inferi das palavras que me dirigiu, enquanto esperávamos que fizesse o recibo da Peggotty.

‑ A senhora Trotwood ‑ observou Spenlow ‑ possui muita firmeza, sem dúvida, e é incapaz de ceder à oposição. Admiro deveras esse carácter e felicito‑o, Copperfield, por estar do lado justo. Os dissentimentos entre familiares são de lastimar, embora vulgaríssimos, e o principal é estar do melhor lado.

Queria dizer, naturalmente, do lado do dinheiro.

‑ É um bom casamento ‑ acrescentou ele. ‑ Pelo menos assim me parece.

Repliquei‑lhe que não estava ao facto.

‑ Ah, sim? A avaliar pelo que me disse o senhor Murdstone fiquei com a impressão de que se tratava de um enlace vantajoso.

‑ Refere‑se a meios pecuniários? ‑ perguntei.

‑ Isso mesmo. Acho que a noiva é rica, e, ainda por cima, bonita e nova. Acaba de atingir a maioridade.

‑ Deus a guarde! ‑ comentou Clara Peggotty.

E pôs tanto fervor nesta prece inesperada que ficámos todos três desconcertados até ao momento em que Tiffey apareceu com o recibo.

O doutor Spenlow examinou‑o, com o ar de quem lastima ter forçado os outros a gastarem o dinheiro. Parecia insinuar que fora tudo obra do seu colega e sócio doutor Jorkins. O seu aspecto melancólico correspondeu, pois, a um serviço gratuito da sua parte. Agradeci‑lhe em nome da interessada e paguei em notas.

A Peggotty voltou para casa e eu acompanhei Spenlow ao tribunal, onde se julgava uma acção de divórcio, tornada possível por um engenhoso artigo da lei (hoje revogado, suponho), em virtude do qual vi desfazer vários casamentos. Eis o caso ocorrido nesse dia: o marido, cujo nome era Thomas Benjamin, requererá a licença matrimonial com o nome apenas de Thomas, suprimindo o Benjamin para a hipótese de não ser tão feliz quanto esperava. Tendo sido, na verdade, pouco feliz, ou havendo‑se cansado da mulher, vinha agora, após dois anos de casado, declarar por intermédio de um amigo que se chamava Thomas Benjamin e que, por consequência, continuava solteiro. O tribunal confirmou isto, com grande satisfação do autor. Devo dizer que tive graves dúvidas quanto à justiça desta sentença. Mas o doutor Spenlow argumentou comigo deste modo:

‑ Observe o mundo: há nele bom e mau. Veja o Direito Canónico: também tem bom e mau. Tudo faz parte do sistema. Ora aí está...

Não me atrevi a sugerir ao pai de Dora que se podia melhorar um pouco o mundo, intentando fazê‑lo desde já e com coragem, mas declarei considerar possível melhorar os Doctor's Commons. Spenlow respondeu que me aconselhava a renunciar a qualquer ideia desse género, por indigna da minha educação. Todavia não se lhe dava saber qual o melhoramento que eu antevia.

Tomando como exemplo a parte do tribunal que estava à minha vista (pois divorciado que fora o homem e encerrada a audiência, nós dirigíamo‑nos lentamente para a secção que se ocupava de matéria sucessória), opinei que achava ser aquilo uma instituição estranhamente organizada.

‑ Em quê? ‑ redarguiu Spenlow.

Expliquei que, com o devido respeito pela sua experiência (mas a qualidade de pai de Dora infundia‑me respeito maior), considerava absurdo estar o arquivo dos testamentos originais de todos os indivíduos da imensa comarca de Cantuária acumulados uns sobre os outros, desde três séculos, num edifício qualquer impróprio para esse destino, à mercê do fogo, sem a mínima ordem ou segurança. Demais a mais os escrivães encarregados do cartório extorquiam somas graúdas ao público, autênticas sinecuras que nem os obrigavam a acautelar os documentos mais importantes, ao passo que os escreventes que trabalhavam na grande sala fria e escura do andar superior tinham salários mínimos, apesar dos serviços que prestavam. E continuei neste teor, acentuando a injustiça que reinava a este respeito nos tribunais.

Spenlow sorriu vendo‑me assim entusiasmado pelo assunto, e discutiu‑o comigo como discutira outros.

‑ Que é isso, no fim de contas, senão uma questão sentimental? Que mal há em estarem os documentos mal guardados se as pessoas supõem o contrário? O sistema pode não ser perfeito (nada é perfeito neste mundo), mas eu recuso‑me a dar‑lhe o golpe.. Sob este regime processual o país conheceu a glória. A gente deve aceitar as coisas como são. Por mini acho que isto vai durar muito tempo ainda.

Sujeitei‑me à sua opinião, guardando para mim as minhas dúvidas.

Contudo ele tinha razão, porque o sistema durou e até sobreviveu a uma intervenção parlamentar de há dezanove anos: intervenção que alegou todas as objecções, pormenorizadamente, e declarou que no edifício em causa não haveria lugar para mais testamentos dentro de pouco tempo. Que fizeram deles, depois disso? Perderam‑nos? Venderam‑nos, queimaram‑nos? Ignoro. Mas regozija‑me saber que o meu lá não figura, pelo menos por enquanto.

Narrei todas estas minúcias no capítulo que intitulo de Felicidade porque é aí o seu lugar adequado. Eu e o doutor Spenlow, embalados nesta discussão, prolongámos a conversa e, a pouco e pouco, passámos a outros assuntos de ordem geral. E foi assim que ele me noticiou o próximo aniversário de Dora (oito dias mais tarde) e me disse contar comigo para um piquenique oferecido por essa ocasião. Fiquei radiante, e mais ainda quando, no dia seguinte, recebi um bilhete da rapariga a lembrar‑me o convite do pai. Passei o tempo que faltava num verdadeiro estado de imbecilidade!

Julgo que pratiquei todos os absurdos possíveis preparando‑me para tão venturoso acontecimento. Coro de vergonha ao recordar a gravata que comprei. As botas seriam dignas de um museu de instrumentos de tortura. Adquiri e mandei pela diligência de Norwood, na véspera à tarde, um lindo cabaz de doces que equivalia (em meu parecer) a uma declaração. Às dez horas, com um ramalhete na mão, montei um cavalo (que alugara para a circunstância) e trotei em direcção a Norwood.

Descobri Dora no jardim, mas fingi não a ter visto e passei sempre, como se a procurasse. Ao apear‑me, no relvado, as botas cruéis provocaram‑me dores horríveis. Ela estava sentada num banco, sob os lilases, e esvoaçavam borboletas à sua volta. Que regalo para a vista o contemplá‑la assim, com o seu chapéu branco de palha e o seu vestido de um azul celestialíssimo!

Acompanhava‑a uma dama que a seu lado parecia velha mas que teria os seus vinte anos. Chamava‑se Julia Mills. Era amiga íntima de Dora.

Jip também lá se encontrava e tornou a ladrar à minha aproximação. Quando ofereci as flores, o ciúme do cão fez‑lhe ranger os dentes. E tinha razão. Se ele soubesse quanto eu adorava a sua dona!

‑ Oh, senhor Copperfield, muito obrigada. Que flores deliciosas! ‑ exclamou Dora.

Tinha planeado dizer (e reflectira, durante três milhas, na melhor forma de o fazer) que as havia julgado belas enquanto as não vira ao lado de Dora Spenlow. Mas não o consegui. Ela estava demasiado perturbante. Fiquei embasbacado a olhar para a cena: a rapariga pusera as flores junto da face e isso bastou para que eu perdesse a eloquência. Admiro‑me de não ter declarado à senhora Mills: «Se tem coragem, mate‑me aqui, diante da minha amada!»

Em seguida Dora deu as flores a cheirar ao cão: Jip rosnou, recusando‑se a farejá‑las. A dona riu e chegou‑as mais ao animal, para o obrigar a sentir‑lhes o perfume. Jip mordiscou uma flor, Dora bateu‑lhe, fingiu‑se amuada e disse: «Oh, o meu lindo ramalhete!» com tanto dó como se o cachorro me houvese atacado.

‑ Há‑de gostar de saber ‑ participou ela ‑ que a antipática da senhora Murdstone não está cá. Foi ao casamento do irmão e não volta antes de três semanas. Não foi sorte?

Disse‑lhe que era uma grande sorte para ela e que, por isso, seria igualmente para mim. A senhora Mills escutava‑nos, sorrindo com ar superior de prudência e complacência.

‑ É na verdade a pessoa mais desagradável que tenho visto na minha vida ‑ disse Dora. ‑ Não imaginas, Julia, a que ponto ela é arreliadora!

‑ Faço ideia ‑ respondeu Julia Mills.

‑ Desculpa não ter aberto excepção para ti logo de começo. Sim, tu podes fazer ideia.

Concluí que a senhora Mills também tivera os seus dissabores no decurso de uma existência movimentada, e que isso talvez explicasse o ar prudente e condescendente de que falei. Mais tarde descobri que não me enganara: a senhora Mills fora protagonista de um amor contrariado e vivia longe da sociedade, com a terrível experiência adquirida, sem deixar de receber com tranquilo interesse as confissões amorosas da mocidade.

Nesse momento o doutor Spenlow saía da residência e Dora foi ao seu encontro, dizendo: «Veja, papá, que lindas flores!» A senhora Mills sorriu pensativamente, como se significasse: «Gozai, seres efémeros, a vossa brevidade na manhã luminosa da vida!» Então deixámos todos o relvado em direcção à carruagem que se aproximava.

Não tornarei a fazer jornada semelhante! Os três seguiam no faetonte aberto, com os cabazes (incluindo o meu) e a viola. Dora, instalada de costas para o cocheiro, ia defronte de mim, pois eu cavalgava atrás da carruagem. A minha amada depositara o ramalhete que eu lhe dera a seu lado, no assento, e não permitia que Jip se deitasse aí, para o não esmagar. Muitas vezes pegava nessas flores e aspirava‑lhes o aroma. Então os nossos olhos encontravam‑se: admiro‑me de não ter saltado pela cabeça do meu buliçoso corcel e caído dentro da carruagem.

Havia poeira, se bem me recordo. Mesmo muita. Tenho a vaga impressão de que o doutor Spenlow tentara impedir‑me de os seguir de tão perto, mas eu não via senão um halo de amor e beleza nimbando Dora e só ela. O pai levantou‑se várias vezes para me perguntar o que pensava eu da paisagem. Respondi que era arrebatadora, e estou persuadido de que sim; mas, para mim, só existia Dora. O sol doirava‑a e os pássaros teciam‑lhe louvores; a brisa embalsamava‑a com o perfume das flores silvestres. A minha consolação era que a senhora Mills me compreendia; só a senhora Mills entendia os meus sentimentos.

Não sei de quanto tempo precisámos para chegar, e ainda hoje ignoro onde chegámos. Talvez próximo de Guildford; ou então algum mágico das Mil e Uma Noites nos deparou esse sítio para término do passeio e o fechou para sempre depois da nossa retirada. Era, num outeiro, um recanto verde coberto de erva macia, com árvores frondosas, urzes, e uma paisagem deliciosa até onde a vista abrangia. Desagradou‑me encontrar ali pessoas que nos esperavam, e os meus ciúmes foram grandes, até em relação às senhoras. Quanto aos homens, esses tornaram‑se meus inimigos figadais, sobretudo um rapaz mais velho três ou quatro anos do que eu, de suíças ruivas, que o faziam de uma presunção intolerável.

Abrimos todos os cabazes e tratámos de preparar a refeição. O das suíças ruivas teve o desplante de se propor para fazer uma salada (do que duvidei) e impôs a sua atenção a toda a gente. Várias raparigas se ofereceram para lavar as alfaces, e outras, as cortaram segundo as indicações dele. Dora fazia parte deste último grupo. Senti que o destino me colocava em frente desse homem e que um de nós devia sobreviver. O caso é que fez a salada (em que eu não toquei) e em seguida arvorou‑se em guardião das garrafas e, não sendo de todo estúpido, enfiou‑as na concavidade de uma árvore. Não tardou que o visse jantar aos pés de Dora, com uma lagosta, quase inteira, no prato.

Guardo apenas uma ideia vaga do que se passou durante os instantes que se seguiram a essa descoberta fatal. Sei que me mostrei alegre, mas uma alegria pouco convincente. Apeguei‑me a uma menina vestida de cor‑de‑rosa, de olhos pequeninos, com a qual conversei de forma desesperada. Ela acolheu favoravelmente as minhas atenções, mas não sei dizer se foi por minha causa ou se por ter certas intenções acerca do ruivo.

Bebeu‑se à saúde de Dora. Fi‑lo afectando interromper o meu diálogo com a pequena, para o recomeçar logo a seguir. Encontrei o olhar de Dora no momento em que inclinava a cabeça na sua direcção, e achei‑o suplicante. Contudo, esse olhar chegou‑me por cima das suíças ruivas, e tornei‑me inflexível.

A menina de cor‑de‑rosa estava acompanhada da mãe (esta de verde), que a separou de mim creio que por motivos de alta política. Fosse como fosse, toda a gente se ergueu para acomodar os restos do piquenique e eu fui errar sozinho entre as árvores, cheio de raiva e de remorsos.

Achava‑me indeciso se pretextaria uma indisposição qualquer para me ir embora (não sei para onde) a cavalo no meu corcel fogoso quando Dora e a senhora Julia Mills se acercaram de mim. Disse esta última:

‑ Senhor Copperfield, está muito taciturno...

Que não, ripostei. Pedi desculpa e insisti em que não estava taciturno...

‑ E tu, Dora ‑ acrescentou Julia ‑ também me pareces melancólica.

‑ De modo nenhum! ‑ replicou Dora.

‑ Senhor Copperfield, e tu, Dora, não deixem que um vulgar mal‑entendido venha fazer murchar as flores primaveris, as quais uma vez abertas e fanadas não recuperam o viço. Falo por experiência ‑ prosseguiu Julia Mills ‑ experiência de um passado já distante e irrevogável. Um simples capricho pode secar as fontes borbotantes que o sol faz resplandecer. Não destruam mãos indiferentes o oásis do meio do Sara.

Eu mal dava conta de mim, ruborizado dos pés à cabeça. Mas peguei na mãozinha de Dora e beijei‑a. E ela consentiu! Beijei também a mão da senhora Mills e pareceu‑me que subíamos direitinhos ao sétimo céu, todos três.

Daí não descemos. Lá nos conservámos toda a tarde. Começámos por vaguear sob as árvores, com o braço tímido de Dora sob o meu, e, sabe Deus, embora tudo isto fosse loucura, era um destino feliz entrar bruscamente na imortalidade, com sentimentos tão delirantes, e passear ociosamente, para sempre, debaixo do arvoredo.

Mais tarde ouvimos os nossos amigos rir, tagarelar e inquirir: «Onde está Dora?» Fomos ao seu encontro e eles pediram à rapariga que cantasse. O suíças ruivas quis ir buscar a viola à carruagem, mas Dora declarou que só eu sabia o lugar onde o instrumento ficara. E foi assim que, num abrir e fechar de olhos, o ruivo foi arredado. Encaminhei‑me para o faetonte, abri a caixa, tirei a viola, vim sentar‑me ao lado da minha amada, cujas luvas e lenço segurei, e bebi cada nota da sua voz preciosa. Ela cantou para mim, que a amava; os outros podiam aplaudir quanto quisessem, mas aquilo não era com eles.

Sentia‑me embriagado de ventura. Parecia‑me tudo bom de mais para ser verdadeiro. Não iria acordar, de um instante para outro, na Buckingham Street e ouvir a senhora Crupp tilintar as xícaras na preparação do meu almoço? Mas Dora tornou a cantar. Cantaram outras pessoas. Cantou a senhora Mills acerca dos ecos adormecidos das cavernas da memória, como se tivesse cem anos de idade. Em seguida veio a noite e tomámos chá, com a chaleira posta num lume ateado entre pedras, à moda dos ciganos. A felicidade continuava! E fui mais feliz do que nunca ao terminar o piquenique e ao iniciar‑se a debandada dos outros, incluindo o suíças ruivas. Nós voltámos pelo mesmo caminho, através da paz nocturna, com os últimos revérberos e o aroma doce que se evolava das flores.

O doutor Spenlow, mais ou menos aturdido pelo champanhe (honra ao sol em que cresceram as uvas, às uvas que fizeram o vinho, ao sol que o amadureceu e ao negociante que o fabricou!), o doutor Spenlow depressa mergulhou no sono, a um canto da carruagem, e eu, cavalgando à estribeira, troquei palavras com Dora. A rapariga admirou o cavalo e afagou‑o (oh, que pequenina pareceu a mão sobre o pescoço do animal!). Às vezes o xaile escorregava‑lhe e eu estendia o braço para lho tornar a pôr aos ombros. O próprio Jip começava a compreender e a não se opor às nossas relações. E que bondosa se mostrou Julia Mills, essa reclusa amável apesar do seu cansaço, essa matriarca mau grado a pouquidão da idade, que renunciava ao mundo e que não queria despertar os ecos das cavernas da memória!

‑ Senhor Copperfield ‑ disse ela ‑ venha a este lado por um momento. Gostava de falar consigo.

E eis‑me, sobre o corcel veloz, inclinado para a senhora Mills, com a mão apoiada à portinhola.

‑ Dora há‑de ir passar uns dias comigo. Chegará depois de amanhã à minha casa. Se você quiser aparecer, estou certa de que o meu pai ficará contente por o conhecer.

Que havia de fazer senão implorar silenciosamente a bênção do céu sobre a cabeça daquela criatura e decorar o seu endereço no recanto mais seguro da minha memória? Que havia de fazer senão agradecer à senhora Mills em termos ardentes e olhares de gratidão e manifestar o apreço pela sua cumplicidade e o valor que atribuía a tão bela camaradagem?

Então a senhora Mills afastou‑me benignamente, dizendo: «Volte para Dora», e eu obedeci. Dora debruçou‑se à portinhola e nós conversámos o resto do trajecto; e tão próximo ia o meu corcel nervoso que esfolou uma pata dianteira na roda, coisa para três libras e sete xelins de prejuízo, segundo o alquilador, e que eu paguei de indemnização, achando muito barato para a satisfação íntima que sentia. Entretanto Julia Mills contemplava o luar, lembrando‑se, suponho, dos tempos em que ela e a vida terrena tinham ainda algo de comum.

Norwood estava perto e em pouco tempo alcançámos o final da digressão. Antes, porém, o doutor Spenlow havia acordado e dissera: «Copperfield, você vai entrar um bocadinho e descansar.» Assim se fez. Houve sanduíches e sangria. Na sala iluminada, o rubor de Dora oferecia um espectáculo encantador, que me prendia a vista. Admirei‑a como num sonho até ao momento em que o ressonar do dono da casa me preveniu de que eram horas de me despedir. Separámo‑nos, pois, e, até Londres, não deixei de sentir na mão o contacto da da minha amada, experimentado na ocasião do adeus. Evocava cada incidente, cada palavra, e isto inúmeras vezes. Por fim deitei‑me verdadeiramente apaixonado.

Quando despertei, no dia seguinte, estava disposto a declarar‑me a Dora e a conhecer a minha sorte. Tratava‑se da minha felicidade ou da minha desdita. Para mim não havia outro problema no mundo e só Dora poderia resolvê‑lo. Passei três dias num abismo de desânimo, torturando‑me a procurar toda a espécie de interpretações pessimistas quanto ao que se passara entre mim e a rapariga. Finalmente, equipado para a circunstância (não sem alguma despesa), fui a casa da senhora Mills, com uma declaração na ponta da língua.

Não importa, agora, saber quantas vezes subi e desci a rua e quantas vezes dei volta ao jardim, antes de poder resolver‑me a subir os degraus e bater à porta. Mesmo quando o fiz e enquanto esperava, tive a tentação idiota de perguntar a quem aparecesse se era ali que morava o senhor Blackboy (à imitação do pobre Barkis), de me desculpar e de me ir embora. Mas resisti.

O senhor Mills saíra. Já o tinha previsto. Quem é que precisava dele? E a filha? Essa estava. Muito bem, que me anunciassem à senhora Mills. Introduziram‑me numa sala do primeiro andar, onde se encontrava a dona da casa com a amiga. Jip também se achava presente. A primeira copiava música (era uma canção nova, intitulada Nénia do Amor) e Dora pintava flores. Que senti, meu Deus, ao reconhecer as minhas próprias flores, as mesmas que eu comprara na praça do Convent Garden!

Não me atrevo a afirmar que estivessem muito parecidas, mas reconheci o modelo no papel que as envolvia e que ela reproduzira com exactidão.

A senhora Mills gostou muito de me ver e lamentou que o pai tivesse saído, mas nós três suportámos essa ausência com muito animo. Durante uns minutos, ela fez as despesas da conversa; depois, descansando a pena sobre a Nénia do Amor, levantou‑se e saiu da sala.

Comecei a pensar que talvez fosse melhor transferir a declaração para o dia seguinte.

‑ Oxalá que o seu cavalo, coitado, não se esfalfasse muito no outro dia ‑ disse‑me Dora alçando para mim os olhos belos. ‑ Foi uma grande caminhada.

Voltei com a ideia atrás: a declaração seria daí a pouco.

‑ Para ele foi uma caminhada longa, porque não tinha nada que o sustivesse durante o trajecto ‑ repliquei.

‑ Não lhe deram comer, em todo o dia? ‑ perguntou Dora. Recomecei a pensar que a declaração ficava para o dia seguinte.

‑ Oh, não, pelo contrário. Cuidaram muito dele. O que quero dizer é que não experimentava a mesma felicidade que eu... que estava tão perto de si, Dora!

A rapariga curvou a cabeça sobre o desenho e, passados momentos, durante os quais ardi de febre e me conservei imóvel, observou:

‑ Em certa altura do dia, não pareceu muito consciente dessa felicidade...

Percebi logo que não convinha recuar, mas que tinha de precipitar as coisas.

‑ Não parecia nada interessado por essa felicidade ‑ insistiu ela, erguendo de leve as pálpebras e sacudindo a cabeça‑ ‑, quando se encontrava sentado junto da menina Kitt.

Kitt, devo explicar, era o nome da garota de cor‑de‑rosa e olhitos pequenos.

‑ Nem sei por que havia de se interessar nem por que chama a isso felicidade. Naturalmente, não fala a sério. Mas está no seu direito de fazer o que entender. Jip, meu mausão, anda aqui já.

Ignoro como o facto se produziu, o que sei é que foi rápido. Afastei Jip. Agarrei Dora, cingindo‑a nos braços. Transbordei de eloquência. As palavras acudiram‑me facilmente. Declarei quanto a amava, que morreria sem ela, que era o meu ídolo: durante todo este tempo o cão ladrava como um possesso.

Quando Dora, trémula, chorou, a minha eloquência atingiu o auge. Se queria que eu morresse por ela, bastava dizê‑lo. A vida sem o amor de Dora não era admissível: não podia suportá‑la, nem a suportaria. Amara‑a em cada minuto de cada dia e de cada noite, desde que a conhecera. Amava‑a agora até à loucura; amá‑la‑ia até à loucura, sempre e a todo o momento.

Havia gente que tinha amado antes de mim e haveria quem amasse depois de mim: nunca, porém, ninguém amaria como eu amava Dora. Quanto mais eu delirava, mais o Jip latia; cada um de nós, à sua maneira, de minuto para minuto, se tornava mais frenético. Fosse como fosse, o caso é que, daí a pouco, nos achávamos sentados, eu e Dora, no sofá, e mais calmos. Jip estava ao colo dela, fitando‑me sossegadamente de olhos semicerrados. Eu sentia o espírito liberto e mergulhara num êxtase profundo.

Estávamos noivos, Dora e eu.

Suponho que tínhamos a vaga ideia de que isso devia terminar por um casamento. Tenho mesmo a certeza, porque a rapariga estipulou que não casaríamos senão com o consentimento do pai. Mas, no embevecimento daquela hora, creio que não pensávamos em nada nem que aspirássemos a qualquer coisa alheia àquele instante. Devíamos guardar segredo, não revelar o caso ao senhor Spenlow, ideia que, a ter‑me realmente ocorrido, concordo que não era muito honrosa.

A senhora Mills pareceu mais grave do que nunca, quando Dora a trouxe, depois de ter ido em sua busca. Este acontecimento despertara‑lhe sem dúvida os ecos adormecidos nas cavernas da memória. Deu‑nos, contudo, a sua bênção com a declaração de amizade eterna e falou‑nos um pouco como uma voz monacal.

Que belos dias vivemos então! Que horas de deliciosa loucura! Medi o dedo de Dora para mandar fazer um anel (que devia fingir miosótis). E o ourives, a quem levei a encomenda, riu percebendo qual seria o destino dessa jóia de pedrinhas azuis e pediu‑me um preço exagerado. Ainda ontem, ao ver um anel igual no dedo da minha própria filha, como senti uma comoção que, embora passageira, foi na verdade dolorosa!

Passeei, orgulhoso do meu segredo e da minha ventura, tão compenetrado da dignidade de amar e de ser amado que, se houvesse pairado nas nuvens, não me teria julgado mais acima dos outros homens que rastejavam na terra.

Reencontrámo‑nos no jardim, sentámo‑nos no caramanchel, e eu considerei‑me tão feliz que ainda hoje adoro os pardais de Londres e suponho ver nas suas asas cobertas de fuligem a plumagem de aves raras e exóticas.

Tivemos a nossa primeira disputa (oito dias depois dos esponsais) e Dora devolveu‑me o anel dentro de uma cartinha desesperada, que dobrou em triângulo, e em que escreveu esta frase tremenda: «O nosso amor começou por uma loucura e finda na demência!» Arrepelei os cabelos e clamei que estava tudo acabado.

E, com a cumplicidade do escuro, precipitei‑me para a senhora Mills (que lobrigara no pátio da cozinha, onde havia uma máquina de calandrar) e implorei que interferisse para evitar o rompimento. Ela cumpriu a missão e voltou com Dora, exortando‑nos, do púlpito da sua amarga juventude, a fazermos concessões mútuas e a fugir ao deserto do Sara!

Chorámos, reconciliando‑nos, e ficámos outra vez tão contentes que o pátio com a sua calandra e tudo mais se nos afigurou o Templo do Amor. Ali planeámos um sistema de correspondência por intermédio de Julia Mills, o qual devia compreender pelo menos uma carta por dia, de um e outro lado.

Oh, tempo ocioso! Que dias irreais, loucos, venturosos! De todas as épocas da minha vida, a que o Tempo lançou mão, não há outra de que eu possa simultaneamente sorrir e apiedar‑me.

 

A TIA CAUSA‑ME ESPANTO

Escrevi a Agnes, logo que eu e Dora ficámos noivos. Foi uma carta extensa, na qual diligenciei fazê‑la compreender quanto era feliz e como Dora era adorável. Pedi a Agnes que não considerasse o caso como uma simples paixoneta, que pudesse ceder perante outra qualquer ou se assemelhasse aos caprichos infantis de que tanto ríramos juntos outrora. Afirmei‑lhe que o meu amor era de uma profundeza insondável e que jamais experimentara coisa que se parecesse com isso.

Redigindo a missiva a Agnes, fazia‑o numa noite agradável, perto da janela aberta, e a recordação do seu olhar calmo e franco e do seu rosto simpático infundiu‑me tamanha paz de alma (no meio da agitação em que ultimamente vivia) que me senti comovido até às lágrimas. Lembro‑me de que apoiei a cara nas mãos, a meio da escrita, imaginando vagamente que Agnes era um dos elementos naturais do meu lar, um pouco como se, no retiro de uma casa que a sua presença sagrasse, Dora e eu devêssemos ser mais felizes do que noutra parte; como se, no amor, alegrias, tristezas, esperanças ou desilusões, o meu coração voltasse espontaneamente para lá e aí encontrasse refúgio e consolo.

De Steerforth, não lhe disse nada. Limitei‑me a informá‑la de que em Yarmouth havia consternação pela fuga de Emily, e que eu lamentava duplamente o caso em consequência das circunstâncias que o acompanharam. Conhecia a sua perspicácia em descortinar sempre a verdade e sabia que ela nunca seria a primeira a pronunciar o nome de James.

Recebi resposta a esta carta na volta do correio. Parecia‑me ouvir a voz de Agnes ao ler essas linhas, uma voz amigável que me soava bem aos ouvidos. Que mais posso dizer?

Durante as minhas últimas ausências, Traddles procurara‑me por duas ou três vezes. Como encontrara a Peggotty em casa e soubera que se tratava da minha velha criada (estava sempre pronta a dar este esclarecimento), ele ficara uns momentos a conversar a meu respeito. Foi pelo menos a versão da Peggotty. Mas suponho que só ela falou, e, como de costume, imoderadamente. Era difícil interrompê‑la quando eu era o assunto da conversa. Isto faz‑me lembrar não só que esperei Traddles certa tarde fixada pelo próprio, mas também que a senhora Crupp resignara a todas as suas funções de hospedeira (excepto o pagamento da conta) até ao dia em que a Peggotty deixasse de ali comparecer. A senhora Crupp, depois de vários colóquios, na escada, com Peggotty (e em voz agudíssima), endereçou‑me uma carta em que expunha o seu ponto de vista. Começando por essa declaração universal, aplicável a todas as circunstâncias da vida, de que também era mãe, comunicava‑me que conhecera dias melhores mas que sempre experimentara repulsa instintiva quanto a espiões, intrigantes e hipócritas. Não queria nomear ninguém: quem quisesse que enfiasse a carapuça. Mas tinha por costume lançar ao desprezo essa espécie de indivíduos, em especial quando se vestiam de viúvos (estas últimas palavras estavam sublinhadas). Se algum mancebo fosse vítima dos espiões, intrigantes e hipócritas (sempre sem querer nomear ninguém) isso então seria com ele. Tinha o direito de agir à vontade. O que ela, senhora Crupp, exigia era não ter de «estar em contacto» com tais criaturas. Por isso me pedia de a isentar de qualquer serviço no andar superior, até ao dia em que tudo reentrasse na ordem, o que muito desejava. Dizia que o seu livrinho de contas seria colocado semanalmente no tabuleiro do primeiro almoço, e rogava o favor de satisfazer prontamente para assim poupar às duas partes aborrecimentos e incómodos.

Após isto, a senhora Crupp contentou‑se com armar laços na escada, sobretudo sob a forma de bilhas, incitando a Peggotty a partir aí uma perna. Achei demasiado fatigante viver em tal estado de sítio, mas tinha suficiente receio da senhoria para tentar uma escapatória.

‑ Meu caro Copperfield ‑ disse‑me Traddles ao chegar à porta, no dia e hora aprazada ‑ como vais tu, a despeito destes obstáculos?

‑ Querido Traddles, rejubilo por te ver enfim e lastimo não ter estado mais vezes em casa para te receber. Mas andei tão ocupado...

‑ Sim, sim, bem sei. A tua mora em Londres, creio eu.

‑ Que dizes?

‑ Ela, a menina Dora ‑ explicou, corando. ‑ Habita em Londres, se não me engano.

‑ É verdade. Nos arredores.

‑ A minha, deves lembrar‑te ‑ acrescentou, com ar sério ‑ vive no Devonshire. Dez irmãos! Por isso estou menos ocupado do que tu... em certo sentido.

‑ Admiro‑me como te limitas a vê‑la tão raramente.

‑ Ah! ‑ volveu Traddles, pensativo. ‑ Na verdade, custa a crer. Mas calculo, Copperfield, que é por não poder ser de outra forma.

‑ E porque tens muita constância e prudência ‑ repliquei.

‑ Meu Deus, é o efeito que te produzo? Palavra que não conhecia em mim tais qualidades. Ela, porém, é tão extraordinária que decerto me comunicou algumas das suas virtudes. Agora que me fizeste pensar nisso, já não me admiro tanto. Acredita que passa o tempo a tratar dos seus nove irmãos dos dois sexos.

‑ É a mais velha?

‑ Ah, não. A mais velha é uma beldade.

Percebeu, julgo, que eu podia rir da ingenuidade da resposta, e acrescentou, com um sorriso também no rosto cândido:

‑ Não que a minha Sophy não seja bela aos meus olhos, e mesmo aos olhos dos outros, suponho. Mas quando digo que a mais velha é uma beldade, quero significar ‑ pareceu descrever, com as duas mãos, nuvens à sua volta ‑ que é esplêndida... compreendes, hem? ‑ rematou em tom enérgico.

‑ Palavra?

‑ Afianço‑te. Duma beleza rara, na verdade. E, além disso, nascida para a vida de sociedade e de adulação. E como não goza muito essa existência, devido à situação económica da família, anda por vezes irritada, com exigências. Sophy restitui‑lhe a boa disposição.

‑ Essa tua é então a mais nova?

‑ Não é ‑ respondeu Traddles, afagando o queixo. ‑ As duas mais novas só têm nove e dez anos. Sophy é quem as educa.

‑ A segunda, nesse caso? ‑ sugeri.

‑ Não. A segunda é Sarah. Tem qualquer coisa na coluna vertebral, coitada. Há‑de passar a pouco e pouco, diz o médico, mas entretanto precisa de estar deitada. É Sophy quem trata dela. Sophy é a quarta das filhas.

‑ A mãe vive ainda?

‑ Ainda. Mulher superior. O clima húmido é que não lhe quadra... de maneira que perdeu o uso dos membros.

‑ Oh, diabo!

‑ Bastante triste, hem? Todavia, do ponto de vista puramente doméstico, a coisa não é assim tão grave. Sophy substitui‑a. É tão maternal para com a mãe como para os nove irmãos.

Senti a maior admiração pelas virtudes dessa rapariga, e, sinceramente, a fim de evitar que Traddles se deixasse iludir na sua boa fé quanto ao futuro de um e outro, indaguei o que sabia do senhor Micawber.

‑ Vai bem, Copperfield, mas agora não vivo em casa deles.

‑ Não?

‑ Olha ‑ segredou‑me ‑ ele mudou de nome, por causa das dificuldades momentâneas. Chama‑se Mortimer e só sai à noite... com óculos. Fizeram uma penhora à casa para pagar o arrendamento. A senhora Micawber achou‑se em tal estado que não pude fugir a ser fiador de uma segunda letra, de que já falámos. Imagina o meu prazer em conseguir compor as coisas e proporcionar outra vez a paz à senhora Micawber.

‑ Hum... ‑ murmurei.

‑ Não que a sua felicidade fosse duradoira, porque, infelizmente, passados oito dias, verificou‑se novo sequestro, o que fez dissolver a nossa pensão de família. Desde então vivo num quarto mobilado e os Mortimers ocultam‑se cada vez mais. Espero que não me consideres egoísta, pois com aquela falência fiquei sem a minha mesa redonda de tampo de mármore e o vaso e o seu invólucro, e a peanha.

‑ É duro! ‑ comentei.

‑ Sim, foi um tanto duro para mim ‑ disse Traddles, com a sua careta peculiar nestas circunstâncias. ‑ Não estou, todavia, a queixar‑me. Não pude resgatar esses objectos naquela ocasião, primeiro porque o juiz, percebendo que eu os queria conservar, os avaliou num valor excessivo, e depois porque... não tinha dinheiro. Mais tarde ‑ continuou, orgulhoso do seu segredo ‑ vi‑os na loja da esquina de Tottenham Court Road. Hoje vão à venda. Só os distingui do outro lado da rua, porque se o homem me descobre pede‑me um preço exagerado. Espero consintas que a tua velha criada vá lá comigo. Eu mostro a loja, a distância, e ela compra essas coisas mais barato, com certeza.

O embevecimento com que Traddles me apresentou este projecto, e a ideia que ele tinha da sua astúcia invulgar, ficaram entre as minhas recordações mais íntimas. Respondi‑lhe que a velha Peggotty teria muito gosto em o auxiliar, e que nós íamos, todos três, agir nesse sentido, mas com uma condição: a de me prometer solenemente que nunca mais emprestaria o seu nome, ou fosse o que fosse, ao senhor Micawber.

‑ Meu caro Copperfield ‑ respondeu‑me ‑ a coisa já está feita, pois começo a perceber que fui não só imprudente mas ainda deveras injusto com Sophy. Não há remédio agora. A primeira das dívidas já a liquidei. Não duvido de que o senhor Micawber pagassse se tivesse disponibilidades; mas não as tinha. Há uma coisa que apreciei no senhor Micawber: é acerca da segunda letra, cujo termo do prazo ainda não chegou. Não me disse que tinha dinheiro, o que disse foi que o teria. Acho franco e honesto da sua parte. Não me apetecia arrefecer a confiança do bom do Traddles, de maneira que aquiesci. Depois de mais uns dedos de conversa, fomos na direcção da mercearia, à cata da Pegotty. Traddles recusara passar o serão comigo, não só porque desejava ardentemente resgatar as suas coisas como porque consagrava a noite a escrever à sua mais‑que‑tudo.

Nunca esquecerei a agitação do meu camarada quando viu a Peggotty regatear com o homem da loja. Este recusara o preço oferecido, mas tornou a chamá‑la, e a minha criada retrocedeu. Enfim, o negócio ficou terminado em boas condições e Traddles não coube em si de contentamento.

‑ Fico muito grato a ambos ‑ disse Traddles, ao saber que lhe seria tudo enviado na mesma noite. ‑ Mas, se me permites, pediria mais um favor, caso não o aches absurdo, Copperfield. Antecipadamente respondi que não achava.

‑ Então, se quer ser realmente generosa ‑ acrescentou, falando à Peggotty ‑ gostaria que me fosse buscar o vaso agora mesmo. Pertence à Sophy e eu preferia levá‑lo já.

Peggotty condescendeu e foi buscar o objecto. Depois de lhe ter agradecido calorosamente, Traddles voltou para Tottenham Court Road com o vaso apertado nos braços e, no rosto, a expressão mais satisfeita que eu vira até então.

Eu e a minha criada fomos para a minha casa. Peggotty deliciava‑se na contemplação do que descobria nas lojas, e fazia‑me parar a cada passo. Quanto tempo levámos durante a passagem por Adelphi!

Ao subirmos a escada, chamei a atenção de Peggotty para o facto de já não haver as armadilhas da senhora Crupp e de serem visíveis os vestígios de passos recentes. Ficámos mais surpreendidos ainda ao verificar que a porta estava aberta e ao ouvir som de vozes.

Olhámo‑nos admirados, e em seguida entrámos na sala. Qual não foi o meu espanto ao descobrir ali a minha tia e o senhor Dick! A tia, sentada em cima de uma pilha de embrulhos, tinha o gato ao colo e duas aves à sua frente, qual um Robinson Crusoe feminino. E tomava chá. O senhor Dick apoiava‑se melancolicamente a um enorme papagaio de papel, semelhante aos que muitas vezes alteáramos, e defrontava um montão de embrulhos ainda maior que o da senhora Trotwood.

‑ Tia Betsey! ‑ exclamei. ‑ Que bela surpresa! Beijámo‑nos cordialmente, e o senhor Dick e eu trocámos um aperto de mão não menos cordial. A senhora Crupp, que se ocupava do chá e prodigalizava atenções, declarou também com prazer que bem sabia quanto o senhor Copperfield ficaria encantado por ver a sua querida família.

‑ E você, como vai? ‑ gritou a tia dirigindo‑se a Peggotty, trémula perante aquela augusta presença.

‑ Lembras‑te da minha tia? ‑ perguntei‑lhe. ‑ Hem, Peggotty?

‑ Por amor de Deus, não dês a essa mulher um nome que faz lembrar ilhas dos mares do Sul! Visto que casou e se desembaraçou desse apelido (o melhor que podia fazer), por que não a deixas aproveitar‑se dessa mudança? Como se chama agora? ‑ inquiriu a tia, evitando pronunciar o nome que lhe era desagradável.

‑ Barkis, minha senhora ‑ respondeu a interpelada, baixando a cabeça.

‑ Bem, isso já é nome de gente. Agora não dá a impressão de que necessita de um missionário. Como vai, Barkis? De saúde, não é verdade?

Animada por estas palavras amáveis e pela mão que a senhora Trotwood lhe estendia, Peggotty adiantou‑se, apertou‑lhe a mão, agradeceu e fez outra vénia.

‑ Temos envelhecido, é o caso ‑‑ observou a tia. ‑ Só nos tínhamos visto uma vez, se se recorda. E foi uma bela história! Trot, meu filho, dá‑me mais chá.

Servida respeitosamente. A tia recuperara a sua inflexibilidade e, nessa ocasião, preveni‑a de que se sentara em cima de uma caixa.

‑ Deixe‑me puxar o sofá ou a poltrona para junto da mesa. Por que se instalou tão mal, tia Betsey?

‑ Obrigada, Trot ‑ replicou ela. ‑ Prefiro um assento que me pertença. ‑ Nesse momento fitou a senhora Crupp e observou‑lhe: ‑ Já não necessitamos de a incomodar mais.

‑ Precisa de mais chá, minha senhora?

‑ Não, obrigada.

‑ Talvez seja melhor trazer‑lhe manteiga. Ou um ovo fresco? Quer que lhe prepare uma talhada de presunto? Senhor Copperfield, que mais posso fazer pela sua tia?

‑ Nada, minha senhora ‑ repetiu a tia. ‑ Isto chega, fico‑lhe muito agradecida.

A senhora Crupp, que nunca deixara de sorrir para testemunhar a sua docilidade, e de curvar a cabeça ora para um lado ora para outro, para demonstrar a debilidade da sua constituição, e de esfregar as mãos a fim de exprimir o seu desejo de ser útil, retirou‑se lentamente da sala, sorrindo, e continuando a esfregar as mãos e a pender a cabeça.

‑ Dick! ‑ exclamou a tia ‑, lembra‑se do que lhe disse acerca dos oportunistas e dos adoradores do oiro?

O senhor Dick, com o ar assustado de quem pudesse ter‑se esquecido, apressou‑se a declarar que se lembrava muito bem.

‑ Pois a senhora Crupp é dessas pessoas. Barkis, vou‑lhe pedir que me dê mais uma xícara de chá; não suportaria que aquela mulher me tornasse a servir.

Eu conhecia bem a tia para saber que tinha qualquer coisa grave para me dizer, e que a sua viagem era mais importante do que qualquer pessoa poderia supor. Notei que o seu olhar se poisava em mim sempre que ela me julgava ocupado noutro assunto; e, ainda, que os seus pensamentos pareciam afectados por qualquer hesitação estranha, apesar de a aparência da senhora Trotwood ser como sempre austera e calma. Acabei por lhe perguntar se acaso a melindrara fosse no que fosse; a consciência sugeriu‑me que ainda lhe não falara de Dora. Seria isso realmente?

Como sabia que ela só no momento próprio trataria do caso, sentei‑me à sua beira, falei das aves e brinquei com o gato, com o ar mais indiferente possível. Mas estava longe de me sentir à vontade. Além disso, o senhor Dick, apoiado ao seu enorme papagaio de papel, atrás da senhora Trotwood, procurava todas as ocasiões para, às escondidas, me indicar aquele objecto, meneando a cabeça com ar sombrio.

‑ Trot ‑ disse‑me por fim a tia, depois de acabar o chá, de alisar cuidadosamente o vestido e de enxugar os lábios. ‑ Trot, serás capaz de ser firme e de só contar com a tua pessoa? Barkis, podes ficar.

‑ Espero que sim ‑ repliquei.

‑ Então, meu filho ‑ prosseguiu ela, olhando‑me com ar grave ‑, por que pensas que eu prefiro continuar aqui sentada sobre os embrulhos?

Abanei a cabeça, incapaz de resolver aquele enigma.

‑ Porque é tudo o que possuo. Estou arruinada, meu amigo. Se a casa se desmoronasse com todos nós, sobre o Tamisa, eu não teria recebido maior abalo.

‑ Dick bem o sabe ‑ continuou a tia, poisando calmamente a mão no meu ombro. ‑ Estou arruinada, meu caro Trot. Tudo o que possuo no mundo está aqui nesta sala, exceptuando o prédio, que será arrendado. Janet encarregar‑se‑á disso. Barkis, é preciso descobrir uma cama para este senhor, esta noite mesmo. E, para comprimir despesas, talvez pudesses instalar‑me uma nesta sala. Pouco importa o conforto. É só por uma noite. Amanhã tornaremos a falar do assunto.

Saí do meu pasmo e do desgosto que sentia por causa dela (só por ela, sublinho), quando a tia se me lançou ao pescoço chorando e dizendo que só tinha pena de mim. Mas depressa reprimiu a comoção. Daí a pouco, num tom mais de triunfo do que de abatimento, declarou:

‑ Temos de arrostar com a adversidade, corajosamente, não permitindo que ela nos apavore. Temos de aprender a nos mantermos até ao fim e a vencer, meu filho!

 

DEPRESSÃO

Logo que pude recuperar a presença de espírito que me abandonara por completo com a revelação inesperada da minha tia, propus ao senhor Dick que me seguisse até à mercearia e tomasse posse da cama que Daniel Peggotty acabava de deixar livre. A mercearia situava‑se em Hungerford Market, bairro muito diferente do que é hoje. Havia diante da porta uma colunata de madeira que foi do agrado do senhor Dick. A vaidade de morar junto dessa obra-prima bastava para o compensar de alguns inconvenientes; e como estes eram poucos (à parte a variedade de odores, de que já falei, e talvez certa falta de espaço) o homem apreciou a sua instalação. A senhora Crupp, indignada, afirmara‑lhe que era tudo acanhadíssimo, mas Dick conformou‑se depressa e sentou‑se ao pé da cama, afagando as pernas.

Tentei descobrir se ele fazia alguma ideia das causas que provocaram tão grande alteração, e tão súbita, no estado financeiro da senhora Trotwood; mas, como era de calcular, Dick não sabia nada. Tudo o que pôde dizer‑me foi que, na antevéspera, a tia lhe perguntara:

‑ Você é realmente o filósofo que eu julgo? Que sim, respondera. Então ela declarara‑lhe:

‑ Dick, estou arruinada!

‑ Ah, sim? ‑ volvera o filósofo.

A seguir a sua protectora enchera‑o de elogios, com o que o agraciado se mostrou muito contente. Tinham, depois, vindo procurar‑me e, durante a viagem, comeram sanduíches e tomaram cerveja engarrafada.

Dick apresentava um ar tão satisfeito, sentado perto da cama, esfregando as pernas e contando‑me esses poucos pormenores, de olhos arregalados e o rosto banhado num sorriso de assombro, que eu (confesso penalizado) me senti disposto a explicar‑lhe que ruína significava miséria, necessidades, privações, mas fui duramente castigado da minha crueldade vendo‑o empalidecer e marejarem‑se‑lhe os olhos de lágrimas, enquanto fixava em mim um olhar tão triste que enterneceria um coração mais empedernido que o meu. Custou‑me mais a consolá‑lo do que me custara a causar‑lhe desolação. Depois compreendi (e já o devia saber de antemão) que a sua serenidade era apenas o reflexo da fé que depositava na mais extraordinária das mulheres e da confiança ilimitada nos meus recursos intelectuais. Contava com estes para todo e qualquer desastre que não fosse decididamente mortal.

‑ Que se vai fazer, Trot? ‑ perguntou. ‑ Há ainda o memorial...

‑ Com certeza ‑ repliquei. ‑ Mas, por agora, tudo o que podemos fazer, senhor Dick, é aparentar alegria e não dar a entender à senhora Trotwood que estamos a pensar no caso.

Consentiu com toda a seriedade e suplicou‑me que, se eu o visse afastar‑se, nem que fosse um nadinha, do bom caminho, o fizesse retroceder por um desses meios incomparáveis de que possuía o segredo. Mas lastimo observar que o medo que lhe incuti sublevou a todos os esforços que empreendeu para o dissimular. Toda a noite os seus olhos se poisaram na minha tia, repletos de apreensão, como se a visse desaparecer constantemente. Cônscio disto, tentou disfarçar, imobilizando‑se, porém o movimento dos olhos traía‑o a cada instante. À ceia, vi‑o contemplar o pãozinho (na verdade, de reduzidas dimensões) como se representasse o prelúdio da miséria. Quando a tia insistiu por que comesse como de costume, surpreendi‑o a guardar no bolso uma côdea e um pouco de queijo, que destinava, sem dúvida, a reanimar‑nos quando atingíssemos um estado avançado de inanição.

Pelo contrário, a senhora Trotwood continuava imperturbável, o que, bem me parece, nos serviu de lição, pelo menos a mim. Mostrou‑se simpática com a Peggotty, excepto quando eu tratava a minha criada por esse nome. Por mais deslocada que estivesse em Londres, sentia‑se perfeitamente à vontade. Devia ocupar o meu leito, e eu dormiria na sala, para lhe servir de guarda. Apreciava imensamente a proximidade do rio, para o caso de incêndio, e eu creio que ela encontrava nisso, de facto, verdadeira satisfação.

‑ Trot, meu filho ‑ disse‑me ao ver que lhe ia preparar o vinho que usualmente ingeria à noite. ‑ Não faças tal coisa.

‑ Não quer nada, tia Betsey?

‑ Vinho, não. Cerveja.

‑ Mas, aqui temos vinho. É a sua bebida costumada.

‑ Guarda‑o para a hipótese de uma doença. Não desperdicemos, Trot. Basta‑me um pouco de cerveja.

Pensei que o senhor Dick ia perder os sentidos. Mas a tia manteve‑se inabalável e eu fui buscar a cerveja. Como já era tarde, ele aproveitou a ocasião para recolher aos seus aposentos por cima da mercearia. Deixei à esquina da rua o pobre homem, genuína imagem do desespero, com o enorme papagaio de papel às costas.

Encontrei a senhora Trotwood a andar cá e lá no quarto, quando voltei, compondo com os dedos os cantos da touca de dormir. Amornei a cerveja e fiz a torrada, segundo os preceitos infalíveis e tradicionais. Uma vez tudo pronto, e ela também, com a touca na cabeça e a saia arregaçada até aos joelhos, disse‑me a tia Betsey, depois de provar a bebida:

‑ Meu filho, isto é muito melhor do que o vinho. Pelo menos, menos indigesto. ‑ Vendo o meu ar céptico, aduziu: ‑ Se não nos acontecer coisa pior, podemo‑nos considerar felizes.

‑ No que me diz respeito, acredito plenamente ‑ respondi.

‑ E por que não crês quanto ao resto?

‑ Porque nós somos muito diferentes um do outro.

‑ Ora adeus!

A tia continuou, com o seu ar de satisfação pacata, um tanto afectada (se realmente o era), a tomar a cerveja tépida às colherinhas e a molhar aí fatias de pão torrado.

‑ Trot, não gosto geralmente de caras novas, mas agrada‑me

a tua Barkis.

‑ Ouvi‑la dizer isso regozija‑me mais do que receber uma oferta de cem libras!

‑ Este mundo é esquisito ‑ retorquiu, esfregando o nariz. ‑ Não compreendo como essa mulher pôde vir a ele com semelhante nome. Seria mais fácil nascer Jackson, ou algo de parecido.

‑ Talvez seja também a opinião dela. Mas não o pôde evitar.

‑ Suponho que não ‑ concordou a tia, embora de má vontade. ‑ Mas olha que é vexatório! Enfim, agora chama‑se Barkis, sempre lhe servirá de consolação. A Barkis estima‑te deveras,

Trot.

‑ E faria tudo para no‑lo provar, tia Betsey.

‑ Acredito. A pobre criatura insistiu comigo para que aceitasse dinheiro seu, de que dispõe com abundância. Uma simplória!

As lágrimas de prazer da tia chegavam a cair no copo de cerveja.

‑ É a criatura mais ridícula que Deus deitou ao mundo ‑ prosseguiu ela. ‑ Percebi‑o logo quando a vi com essa pobre criança que era a tua mãe. Mas tem o seu lado bom, esta Barkis. ‑ Fingiu rir, e aproveitou o ensejo para levar a mão aos olhos. Depois recomeçou a comer a torrada e a expender as suas opiniões. ‑ Ah, Trot, eu sei tudo! Eu e Barkis conversámos enquanto saíste com o Dick. Sei tudo. Que julgarão poder vir a ser, essas pobres raparigas? Admiro‑me de que não quebrem a cabeça de encontro... ao fogão ‑ concluiu, ideia que lhe foi sugerida provavelmente pela contemplação do meu.

‑ Coitada da Emily! ‑ murmurei.

‑ Coitada, não. Devia ter pensado um pouco antes de se meter numa aventura dessas. Dá‑me um beijo, Trot. Lamento que conhecesses tão cedo os sofrimentos da existência.

Como eu me inclinasse, ela poisou‑me o copo nos joelhos, a fim de evitar que me fosse embora; e disse:

‑ Ah, Trot, Trot... consideras‑te assim apaixonado?

‑ Considerar‑me apaixonado? Oh, tia, amo Dora de todo o coração!

‑ Sim, amas Dora. E vais dizer‑me, naturalmente, que essa pequena é sedutora em extremo.

‑ Ninguém pode fazer ideia de como ela é.

‑ Não será patetinha?

‑ Qual!

Creio sinceramente que nunca se me formulara na mente semelhante problema. A simples ideia magoou‑me; no entanto, feriu‑me também por ser tão inesperada.

‑ Nem frívola?

‑ Frívola, minha tia?! ‑ repeti, e, com igual vigor, repudiei uma suposição tão errónea.

- Está bem, Trot. Eram apenas perguntas. Não quero diminuí‑la. Pobre casalinho! Com que então julgam‑se feitos um para o outro e destinados a se completarem na vida?

Disse‑me isto com tal expressão de bondade e doçura, meio divertida meio triste, que fiquei de todo enternecido.

‑ Somos novos e inexperientes ‑ repliquei. ‑ E sei também que pensamos e dizemos muitas tolices. Mas o nosso amor é sincero, disto é que não tenho dúvida nenhuma. Nem sei o que faria se Dora deixasse o meu amor por outro ou se tal acontecesse a mim. Enlouqueceria, parece‑me.

Abanando a cabeça, sorrindo pensativamente, a tia Betsey murmurou:

‑ Ah, Trot! Cego que és! ‑ Suspendeu‑se e daí a instantes acrescentou: ‑ Conheço alguém que, embora de carácter maleável, tem grande seriedade nas feições, o que me faz lembrar a tua mãe. Seriedade é o que a gente precisa para que se mantenha e progrida. Seriedade profunda, completa, leal.

‑ Se a tia conhecesse a seriedade de Dora... ‑ observei.

‑ Ah, Trot, cego que és ‑ repetiu. ‑ Cego!

E, sem saber porquê, senti uma impressão vaga e triste de fracasso passar sobre mim, como a sombra de uma nuvem.

‑ Não quero, todavia ‑ acrescentou ela ‑ tirar as ilusões a dois moços, nem torná‑los infelizes. Por isso, apesar de ser apenas um amor de crianças, e apesar de geralmente (atenção, não digo sempre) tais amores não conduzirem a nada, falaremos disso a sério. Esperemos, mais dia menos dia, um desfecho venturoso. Há todo o tempo para esperar.

Isto, em resumo, não era muito animador para um apaixonado como eu; mas fiquei satisfeito por ter posto a tia no segredo do caso. Pensei que estivesse fatigada e agradeci‑lhe profundamente essa prova de afecto e todas as outras atenções que tivera comigo. Depois de uma despedida terna, vi a sua touca de dormir desaparecer na obscuridade do meu quarto.

Uma vez deitado, quanta angústia sofri! Pensava e repensava na minha pobreza e no que imaginaria a esse respeito o doutor Spenlow. A verdade é que eu já não era o que julgara ser quando tinha falado com Dora: devia confessar‑lhe, cavalheirescamente, qual a minha presente situação material e restituir‑lhe a palavra, se ela o quisesse. Pensava também em como viveria até ao termo do meu estágio (visto ainda não ganhar), e no que poderia fazer para auxiliar a tia. Ficaria reduzido à última penúria, com um sobretudo esfiapado, sem possibilidade de oferecer a Dora fosse o que fosse, de montar belos cavalos, de me mostrar como até aí? Amava tanto Dora! No fundo, considerava vileza preocupar‑me mais com o meu futuro do que com a sorte da senhora Trotwood; mas o egoismo surgia‑me como inseparável da ideia da minha amada. Enfim, passei uma noite terrível. No pouco que dormi, sonhei com a miséria debaixo de todas as formas; ora, andrajoso, ia à porta da casa de Dora vender pacotes de fósforos, seis por meio dinheiro; ora, de roupão e chinelas, recebia o público na banca dos advogados Spenlow e Jorkins e era severamente admoestado pelo primeiro; ora me precipitava para apanhar as migalhas do pão quotidiano que o escrevente Tiffey comia pontualmente quando o relógio de São Paulo soava a hora do almoço; ora tentava, debalde, obter licença para desposar Dora, sem ter nada com que a pagasse senão uma luva de Uriah Heep. Mas, no meio de tudo isto, conservei sempre a consciência de estar na minha casa, agitando‑me como um navio em apuros, num mar de roupa de cama. A tia passou uma noite igualmente agitada, pois a ouvi, por várias vezes, andar de um lado para outro no quarto. De tempos a tempos, embrulhada num penteador de flanela, apareceu na sala e, como uma alma penada, aproximou‑se do sofá em que eu me deitara. Da primeira vez soergui‑me assustado: participou‑me ela, então, que certo reflexo no céu lhe fizera suspeitar que a abadia de Westminster estava em chamas; desejava consultar‑me quanto à probabilidade de o incêndio se comunicar à Buckingham Street, impelido pelo vento. Mas, como eu não tugisse nem mugisse, sentou‑se à minha beira e murmurou: «Pobre pequeno!», o que me tornou vinte vezes mais infeliz, pois via a que ponto ela se preocupava comigo, ao passo que eu, egoisticamente, só pensava em mim.

Parecia difícil acreditar que uma noite tão comprida para uns pudesse ser curta para outros. Esta reflexão trouxe‑me ao espírito uma festa em que as pessoas passassem o tempo a dançar, e isto transformou‑se, a pouco e pouco, num sonho. Ouvi música que tocava sempre a mesma coisa, e vi Dora enlevada sempre numa dança, sem me prestar a mínima atenção. O homem que toda a noite desferira as cordas da harpa tentava em vão cobrir o instrumento com um barrete de dormir. Finalmente despertei (ou melhor, renunciei a lutar contra a insónia) e dei conta de que o sol me entrava pela janela.

Havia, ao fundo de uma das ruas que dão para a Strand, uns antigos banhos romanos, de que costumava servir‑me. Depois de me vestir à pressa e de deixar à Peggotty o cuidado de se ocupar da senhora Trotwood, fui dar um mergulho na água fria desse balneário e em seguida segui para Hampstead. Esperava que aquele tratamento enérgico me refrescasse as ideias, e creio que, de facto, me fez bem, porque cheguei depressa à conclusão de que devia, em primeiro lugar, propor a anulação do meu contrato de estagiário e obter o reembolso de parte do pagamento feito. Almocei em Hampstead, encaminhei‑me para os Doctor's Commons através de ruas regadas de fresco e aromatizadas pelas flores que as revendedoras levavam à cabeça, e alcancei o cartório ‑ tão cedo ainda que tive de passear por meia hora nas imediações, antes que Tiffey (sempre o primeiro a chegar) aparecesse com a sua chave. Sentei‑me no meu canto obscuro e contemplei o sol que brilhava nas chaminés do lado fronteiro; pensava em Dora, quando vi surgir o doutor Spenlow, de ponto em branco.

‑ Bom dia, Copperfield. Que linda manhã!

‑ É verdade, senhor doutor. Permite‑me uma palavrinha antes de ir ao tribunal?

‑ Sem dúvida. Vamos para o meu gabinete.

Segui‑o até lá. O doutor Spenlow envergou a toga e fez uns últimos retoques ao traje diante de um espelhinho na parte interior da porta de um armário.

‑ Lamento informá‑lo ‑ comecei ‑ que tenho notícias desagradáveis a respeito da minha tia.

‑ Meu Deus! Espero, ao menos, que não seja paralisia.

‑ Não se referem à saúde ‑ repliquei. ‑ Acaba de perder muito dinheiro. Para dizer tudo, está arruinada.

‑ Você deixa‑me sem fôlego, Copperfield! ‑ exclamou o advogado.

‑ Pois é verdade, senhor doutor. Os negócios dela tomaram tão mau rumo que lhe pergunto se é possível... naturalmente sacrificando uma percentagem ‑ acrescentei, sob inspiração momentânea, vendo‑o mudar de expressão ‑ ... cancelar o nosso contrato...

Bem se Imagina quanto me custou propor semelhante coisa. Tanto como se pedisse, por favor, que me afastassem para sempre de Dora.

‑ Cancelar o contrato? ‑ repetiu ele.

Expliquei‑lhe então, com mais clareza, que não sabia como poderia subsistir, a não ser arranjando um emprego com que ganhasse a vida. Não receava o futuro, ajuntei, e insisti neste ponto para o fazer compreender que não deixava de ser um genro, para uma data mais ou menos próxima. Todavia, na ocasião, só me era possível contar comigo mesmo.

‑ Sinto muito saber tudo isso, Copperfield ‑ respondeu o doutor Spenlow. ‑ Sinto deveras. Não é costume cancelar um contrato por motivos dessa ordem. Foge às nossas tradições, e abrir um precedente traria inconvenientes. Entretanto...

‑ É muito bondoso, senhor doutor ‑ murmurei, na esperança de uma concessão.

‑ Nem por isso. Não vale a pena falar de mim. Entretanto, ia eu dizendo, se eu fosse só, se não tivesse um sócio... o doutor Jorkins...

Acabaram‑se‑me as esperanças. Contudo, tentei novo esforço.

‑ Não acha que, se eu falasse com o doutor Jorkins...? Spenlow oscilou a cabeça de forma desanimadora.

‑ Deus me livre, Copperfield, de agravar seja quem for... sobretudo um colega. Conheço bem o doutor Jorkins: não será pessoa para compreender uma proposta dessa natureza; é difícil fazê‑lo sair da rotina. Você sabe como ele é!

Eu, é claro, nada sabia a seu respeito, a não ser que fora o fundador daquela banca e que vivia perto do Montagu Square, num prédio muito maltratado do tempo; que chegava tarde e se demorava pouco; que ninguém parecia consultá‑lo fosse no que fosse; que o seu gabinete era um cubículo hediondo no andar de cima, onde se não resolvia nada e sobre cuja secretária existia uma agenda há vinte anos intacta.

‑ Vê algum inconveniente em que eu lhe fale? ‑ perguntei.

‑ Nenhum ‑ redarguiu Spenlow. ‑ Mas, como disse, conheço

bem o doutor Jorkins. Gostava que ele fosse diferente, porque teria prazer em conformar‑me com a sua vontade, Copperfield. Contudo, não posso objectar a que você lhe fale, se acha que isso tem alguma utilidade.

Aproveitando aquela autorização, dada com um aperto de mão caloroso, tornei a sentar‑me, pensando em Dora e olhando para o sol, que deixava as chaminés dos prédios fronteiros e descia pela parede. Assim estive até à vinda do doutor Jorkins. Subi então ao seu gabinete e causei ao advogado o maior espanto com a minha presença inesperada.

‑ É você, Copperfield!

Entrei, sentei‑me e expus o meu caso, mais ou menos nos mesmos termos com que o fizera ao sócio. Jorkins não era nada a personagem assustadora que se podia supor; tratava‑se de um senhor dos seus sessenta anos, alto e moderado, de rosto plácido, e que consumia tanto rapé que se dizia no tribunal viver ele desse estimulante: parecia não haver no seu organismo mais espaço para outro alimento.

‑ Creio que explicou isso ao doutor Spenlow ‑ observou Jorkins, depois de me ter escutado até ao fim, com certa agitação, devo acrescentar.

Respondi afirmativamente e notei que o colega me sugerira o seu nome.

‑ Disse que eu havia de me opor, não é verdade?

Fui obrigado a confessar que o doutor Spenlow achara essa opinião provável.

‑ Lamento responder‑lhe, Copperfield, que não posso concordar com o seu projecto... Mas tenho uma entrevista no Banco e peço‑Lhe me desculpe...

Com isto levantou‑se à pressa e ia a sair quando me atrevi a dizer‑lhe que, vistos os factos, não havia maneira de se arranjar a coisa...

‑ Pois não! ‑ declarou, detendo‑se à porta e abanando a cabeça. ‑ Não. Oponho‑me, como vê. ‑ E acrescentou já no corredor, lançando um olhar inquieto ao gabinete: ‑ Se o doutor Spenlow recusa...

‑ Pessoalmente não se recusa, senhor doutor.

‑ Oh, pessoalmente! ‑ repetiu Jorkins, sempre impaciente. ‑ Afianço‑lhe que há um obstáculo, Copperfield. É inútil. O que você deseja não se pode fazer... e eu agora tenho uma entrevista no Banco.

Desta vez foi‑se embora sem parar, e, se não me engano, esteve três dias sem reaparecer nos Doctor's Commons.

Ansioso por tentar tudo, esperei o regresso de Spenlow e contei‑lhe o que se passara, dando‑lhe a entender que não desesperava: talvez ele pudesse convencer o inflexível doutor Jorkins, se quisesse tomar a seu cargo essa tarefa.

‑ Copperfield ‑ respondeu Spenlow com um sorriso amável ‑ você não conhece o meu sócio tão bem como eu. Longe de mim atribuir ao doutor Jorkins a mínima astúcia. Ele o que tem é uma forma de expor as suas objecções que muitas vezes chega a iludir. Não, Copperfield ‑ concluiu, meneando a cabeça ‑ Jorkins não se deixará abalar, acredite‑me.

Entre um e outro eu perdia‑me por completo e não sabia de qual dos dois vinha afinal a oposição. Mas compreendi que a barreira era difícil de transpor e que não seria fácil reembolsar‑me das mil libras da tia Betsey. Foi mergulhado neste desânimo que abandonei nesse dia o escritório e voltei para casa.

Procurava habituar‑me ao pior e imaginar que resoluções se deviam tomar para um futuro que se antolhava tão sombrio, quando me ultrapassou um trem. Olhei para dentro do veículo, que acabava de parar, e vi que, por cima da portinhola, se me estendia uma mão delicada. Ao mesmo tempo fitava‑me o olhar de um rosto sorridente, que eu conhecia e que jamais contemplava sem um sentimento de segurança ‑ desde o dia em que se voltara para mim na velha escadaria de carvalho, de corrimão maciço, e que a sua beleza se associara no meu espírito ao vitral da igreja.

‑ Agnes! ‑ exclamei radiante de alegria. ‑ Oh, querida amiga, que prazer em vê‑la! Logo você!

‑ Palavra? ‑ disse ela com a sua voz cordial.

- Precisava tanto de falar consigo! Sinto‑me de coração aliviado só de olhar para si. Tivesse eu uma varinha de condão e formulava o desejo de a ver.

‑ Hem?

‑ É como lhe digo: mas talvez, em primeiro lugar, quisesse ver Dora ‑ confessei, corando.

‑ Agora sim ‑ replicou Agnes, rindo.

‑ Mas você em seguida. Para onde vai?

Ia visitar a minha tia. O tempo estava bonito e Agnes saiu com prazer do trem, que mandou embora, tomou‑me o braço e caminhámos juntos. Agnes era para mim a incarnação da Esperança. Considerei‑me logo outro homem.

A senhora Trotwood escrevera‑lhe uma das suas cartas estranhas e lacónicas, a que se limitava em geral o esforço epistolar que fazia: anunciava‑lhe que caíra na adversidade e que deixara Dover para sempre; todavia tomara as necessárias disposições e estava tão bem que ninguém devia incomodar‑se por sua causa. Agnes viera a Londres para a visitar, pois havia anos as ligava uma simpatia recíproca, precisamente desde a época em que eu me instalara em casa do doutor Wickfield. Não se encontrava só, acrescentou: tinha chegado com o pai e com... Uriah Heep.

‑ Ei‑los então associados! ‑ comentei. ‑ Diabos o levem!

‑ Pois é verdade ‑ confirmou Agnes. ‑ Precisavam de tratar aqui de um processo e eu aproveitei para vir também. Não julgue que a minha visita seja apenas amigável e desinteressada, Trot, pois (lamento ter certas prevenções que podem ser injustas) não gosto de deixar partir o meu pai sozinho com ele.

‑ Exerce sempre a mesma influência sobre o doutor Wickfield? Agnes fez sinal afirmativo com a cabeça.

‑ A casa mudou tanto que você não a reconheceria. Eles estão agora lá instalados.

‑ Eles quem?

‑ Heep e a mãe. Heep dorme no seu antigo quarto, Trot ‑ explicou Agnes erguendo os olhos para mim.

‑ Se ao menos eu pudesse destinar‑lhe os sonhos! ‑ murmurei. ‑ O homem não dormiria lá muito tempo.

‑ Conservei uma saleta onde dava lições. Como o tempo passa! Lembra‑se? É aquela forrada de lambrins, que liga com a sala grande...

‑ Se me lembro, Agnes! A primeira vez que a vi não foi defronte dessa porta? Você tinha o seu chaveiro...

‑ Ainda o tenho ‑ disse ela sorrindo. ‑ Foi bom ter guardado essa recordação agradável. Éramos tão felizes!

‑ É verdade.

‑ Pois conservo a tal saleta para mim. Contudo, não posso deixar a senhora Heep sempre só. Compreende, Trot? Sou obrigada a fazer‑lhe companhia, nos momentos em que preferia estar desacompanhada. Outras razões de queixa não tenho. É claro que me fatiga às vezes com os elogios que faz do filho, no entanto naturais numa mãe. Ele, afinal, é bom filho.

Ao ouvir estas palavras, olhei para Agnes, porém não lhe surprendi nenhum reflexo dos anseios de Uriah. O seu olhar suave mas sério encontrou o meu e o rosto calmo não se modificou.

‑ O inconveniente principal da presença deles lá em casa é que não posso estar com o papá tanto quanto desejo... Uriah surge sempre de permeio... Desejaria cuidar do meu pai com maior solicitude... Se tentarem qualquer traição ou dolo contra a sua pessoa, espero que o amor e a sinceridade acabem por triunfar. Creio que esse triunfo é sempre certo sobre todas as injustiças e desgraças deste mundo.

Esse sorriso radioso, que nunca vi noutro rosto senão no seu, acabou por se extinguir no próprio momento em que eu pensava quanto era bom vê‑lo e quão familiar me fora outrora. Agnes perguntou‑me, mudando bruscamente de expressão (estávamos muito perto da minha rua), se eu sabia o que originara o revés da tia Betsey. Respondi‑lhe que não, que ela ainda me não contara, e Agnes tornou‑se pensativa; pareceu‑me sentir o seu braço tremer no meu.

Encontrámos a senhora Trotwood sozinha e bastante agitada. Entre ela e a senhora Crupp levantara‑se divergência de opinião acerca de um assunto abstracto (saber se era conveniente para o sexo fraco viver em quartos mobilados), e a tia, absolutamente alheia aos espasmos da senhora Crupp, cortara cerce a conversa declarando‑lhe que ela cheirava ao rum do sobrinho (eu, evidentemente) e mandando‑a sair do quarto. Estes dois factos foram considerados insultuosos pela dona da casa, que participou a sua resolução de recorrer aos tribunais.

Entretanto a tia, acalmando‑se nesse meio‑tempo (a outra fora mostrar ao senhor Dick os soldados da polícia montada) e satisfeita por ver Agnes Wickfield, recebeu‑nos de muito bom humor, que a própria história anterior lhe devolvia fortalecido. Quando a visita pôs o chapéu em cima da mesa e se sentou ao lado da senhora Trotwood, eu não pude deixar de compreender quanto o olhar luminoso da rapariga e a sua presença gentil continham de naturalidade. Apesar de se tratar de uma pessoa tão nova, inspirava à minha tia grande confiança, acrescida dos valores da afeição e da sinceridade.

Começámos a falar da perda de dinheiro e eu contei‑lhe as minhas tentativas dessa manhã.

‑ Foste pouco sensato, mas bem intencionado ‑ observou a senhora Trotwood. ‑ És rapaz generoso (suponho que já devia dizer homem) e eu orgulho‑me de ti. Por esse lado vai tudo bem. Trot e Agnes, enfrentemos o meu caso, analisemos os factos.

Vi Agnes empalidecer, olhando atentamente para a tia Betsey. Esta, afagando o gato, olhava por seu turno para a rapariga.

‑ Eu possuía certos bens ‑ continuou. ‑ Não importa qual o valor exacto. Enfim, o bastante para viver, e até mais, porque consegui economizar. De início, comprei fundos do Estado, depois, a conselho do meu procurador, coloquei o dinheiro em hipotecas. Os juros foram compensadores. Um dia, recuperei o capital e tive necessidade de arranjar nova colocação. Como o procurador já não estava tão esperto como era (falo do teu pai, Agnes), decidi ser mais inteligente do que os homens de negócios e optei pelo mercado estrangeiro. É, aparentemente, um péssimo mercado. Perdi, de começo, nas minas, em seguida nas pescarias... pesca de tesouros, feita por mergulhadores... uma história disparatada, à Tom Tiddeler ‑ acrescentou, esfregando o nariz. ‑ E novamente perdi nas minas, e por fim, como último recurso, perdi nos Bancos. Não explico a que se elevaram os dividendos durante certo tempo, nunca menos de cem por cento, parece‑me. Mas o Banco ficava no outro extremo do mundo e, tanto quanto sei, evaporou‑se. Nunca mais pagou absolutamente nada! Ora eu tinha lá tudo quanto possuía. Pronto. Quanto menos se falar no caso, tanto melhor.

A senhora Trotwood terminou este resumo filosófico da sua situação fitando Agnes Wickfield (que retomava a pouco e pouco as cores) com um ar que se podia classificar de triunfo.

‑ Foi isso realmente o que aconteceu? ‑ perguntou a rapariga.

‑ Querida Agnes, parece‑me que chega. Se ainda houvesse dinheiro para perder, a história continuava. Eu teria descoberto nova colocação e assim se abriria outro capítulo. Mas como o dinheiro se esgotou, a história acabou‑se.

Agnes principiara por escutar com a respiração opressa. As faces empalideciam e purpurizavam‑se alternadamente, mas já não se sentia tão sufocada. Pensei que tinha receio de ouvir que o pai fosse responsável, embora em pequeno grau, pelo que acontecera à amiga. A senhora Trotwood tomou‑lhe as mãos nas suas e desatou a rir.

‑ Se foi isto, realmente? A não ser que acrescente ainda: vivi muito e fui feliz. Agora, tu, Agnes, que és pessoa de bom senso, e tu, Trot, que também és em certo sentido, embora às vezes... ‑ e a tia abanou a cabeça, fitando-me ‑ oiçam o que vou fazer. A vivenda pode render umas setenta libras por ano. Acho que é possível contar com isto. Pronto, é tudo o que me resta ‑ concluiu. Como alguns cavalos, ela tinha a particularidade de estacar quando se supunha que iam bem lançados numa corrida.

‑ E também ‑ recomeçou ela, depois dessa pausa ‑, há o senhor Dick. Recebe cem libras anuais, mas, naturalmente, para seu uso pessoal. Preferia mandá‑lo embora (se bem que eu seja o único ente que o aprecia) em vez de o conservar e gastar com ele todo o seu dinheiro. Como será que eu e Trot nos arranjaremos, com os meios de que disponho? Que te parece, Agnes?

‑ A mim parece‑me ‑ atalhei ‑ que devo fazer qualquer coisa.

‑ Alistares‑te na tropa, é o que queres dizer? ‑ acudiu ela. ‑ Ou embarcar? Não me fales disso. Serás solicitador. Na nossa família não se perde a cabeça, ouviste?

Eu ia explicar que não tencionava seguir aquela carreira quando Agnes perguntou se os meus aposentos estavam alugados por um prazo longo.

‑ Aí é que bate o ponto, minha filha ‑ disse a tia Betsey. ‑ Não podemos largá‑los antes de seis meses, a não ser que se consiga sublocá‑los, o que não espero. O último inquilino morreu aqui. Esta mulher de corpete de algodão e saia de flanela bastaria, tenho a certeza, para matar cinco pessoas ou seis. Trago um pouco de dinheiro comigo e penso, como tu, que o melhor é aguardar o termo do contrato e arranjar um quarto para Dick, nestas imediações.

Achei do meu dever aludir à guerra aberta que se estabeleceria entre ela e a senhora Crupp; mas a tia afastou esta objecção declarando que, à primeira manifestação de hostilidade, espantaria a senhora Crupp para o resto dos seus dias.

‑ Pensei, Trot ‑ observou Agnes ‑ que se você tivesse tempo...

‑ Disponho de muito tempo ‑ informei‑a. ‑ Estou sempre livre depois das quatro ou cinco horas, e de manhã cedo também. De qualquer maneira ‑ acrescentei, sentindo‑me ruborizar à ideia das minhas caminhadas pela estrada de Norwood ‑, sobra‑me bastante tempo.

‑ Sei que um lugar de secretário lhe não desagradaria ‑ replicou Agnes, aproximando‑se e falando com voz baixa tão animadora e tão delicada que ainda julgo ouvi‑la.

‑ Me não desagradaria, querida Agnes?

‑ É que o doutor Strong ‑ prosseguiu ela ‑ já se aposentou, como tencionava, e veio instalar‑se em Londres. Sei que pediu ao meu pai lhe recomendasse um secretário. Não acha que ele gostaria mais de ter consigo o seu aluno predilecto do que outro qualquer?

‑ Oh, querida Agnes! Que seria eu sem você? É sempre o meu anjo bom. Já o disse. É só nestes termos que eu me refiro a si.

Agnes respondeu‑me com o seu sorriso calmo, dizendo que bastava um único anjo bom (alusão a Dora). Depois lembrou‑me de que o doutor Strong costumava trabalhar no seu escritório de manhã cedo, e à noite: provavelmente as minhas horas vagas convir‑lhe‑iam. Agradava‑me ganhar não só na profissão como também trabalhando com o velho professor; em suma, aconselhado por Agnes, escrevi uma carta ao doutor Strong expondo‑lhe os meus desejos e a intenção de o visitar no dia seguinte, às dez horas. E dirigi a carta para Highgate (pois era nesse lugar, tão memorável para mim, que ele vivia). Sem perder um minuto, fui levar a carta ao correio.

Em qualquer parte em que Agnes se encontrasse, aí se notava um sinal agradável da sua presença silenciosa. Quando voltei, vi os pássaros da tia Betsey empoleirados, como haviam estado durante muito tempo à janela da sala de Dover. A minha poltrona figurava defronte da janela aberta, assim como a da minha tia, muito mais confortável. Até o anteparo verde (que ela trouxera) se ostentava já no peitoril. Eu sabia quem colocara ali todos estes objectos, que tinham o ar de se haverem disposto por si próprios; e adivinharia quem distribuíra, na bela ordem de outro tempo, os meus livros abandonados, ainda que julgasse estar Agnes a muitas milhas de distância.

A senhora Trotwood apreciava imensamente o Tamisa (que, na verdade, aparentava excelente aspecto aos raios solares, embora não valesse tanto como o mar em frente da vivenda de Dover), mas não podia desculpar o fumo de Londres que, segundo dizia, tinha a função de «apimentar tudo». Uma verdadeira revolução, na qual Peggotty representava o papel principal, operava‑se em todos os cantos dos meus aposentos, em consequência desses efeitos fuliginosos: e eu pensei como Peggotty parecia fazer pouco trabalho agitando‑se muito, ao passo que Agnes fazia tanto sem a menor agitação! Nesse momento bateram à porta. ‑ Deve ser o meu pai. Prometeu vir ‑ disse Agnes. Abri a porta e deixei entrar os recém‑vindos: era não só o doutor Wickfield como também Uriah Heep. Havia muito tempo que eu não via o advogado e esperava encontrá‑lo mudado, depois do que a filha me dissera; mas não pensava que fosse tanto! Não que parecesse muito envelhecido (o vestuário era sempre impecável); nem pela vermelhidão malsã que lhe coloria a cara, nem porque tivesse os olhos lacrimejantes injectados de sangue; nem pelo tremor nervoso das mãos, cuja causa eu não ignorava e que já principiara anos atrás. Também não era por ter perdido a beleza das feições ou a nobreza do porte (pois conservava uma e outra); mas o que me impressionou deveras foi ver que, mau grado os sinais ainda evidentes da sua superioridade inata, ele se submetia a esse indivíduo que representava a incarnação servil da mediocridade: Uriah Heep. A troca de posições dos dois ‑ Uriah o superior, Wickfield o inferior ‑ constituía para mim um espectáculo dos mais confrangedores. Se eu tivesse visto um homem às ordens de um macaco, isso não seria para mim mais degradante do que o caso presente.

Ele próprio parecia dar‑se conta do facto. Ao entrar, permaneceu de pé, imóvel, de cabeça curvada; isto, porém, durou só um instante. Agnes falou‑lhe brandamente:

‑ Papá! Está aqui a senhora Trotwood, com o sobrinho. Não os vê há muito tempo.

Ele então aproximou‑se, apertou com ar submisso a mão da tia Betsey e mais cordialmente a minha. Entretanto eu vira o rosto de Uriah exibir um sorriso maligno. Agnes notou‑o igualmente, suponho, porque se afastou. Quanto ao que a tia viu ou não viu, isso nem o melhor fisiognomónico do mundo poderia dizer. Creio que nunca houve semblante mais impassível que o dela. A senhora Trotwood quebrou o silêncio que se estabelecera, exprimindo‑se com a costumada brusquidão:

- Ora viva, Wickfield. (Este olhou‑a pela primeira vez.) ‑ Acabo de contar à sua filha o belo uso que fiz do meu dinheiro, depois que o senhor deixou de se ocupar disso. Deliberámos já e chegámos a uma conclusão. Agnes, em meu entender, vale por meia dúzia de advogados.

‑ Se posso dar humildemente uma opinião ‑ disse Uriah Heep ‑ é que subscrevo a da senhora Trotwood a respeito da menina Agnes. Vale a pena tê‑la como sócia!

‑ Como vai? ‑ replicou a tia. ‑ O senhor já é sócio, e isso deve bastar‑lhe.

Uriah Heep, apertando constrangido a pasta que trazia, declarou que estava bem, que agradecia o interesse da senhora Trotwood e que esperava achá‑la também da melhor saúde. E acrescentou:

‑ Quanto ao menino David... devia dizer senhor Copperfield... confio em que se encontra optimamente. Tenho muito gosto em tornar a vê‑lo, mesmo nestas tristes circunstâncias. ‑ No fundo, regozijava‑se, tenho a certeza. ‑ Mas não é o dinheiro o principal na vida, senhor Copperfield. Na realidade, as minhas modestas faculdades não me permitem explicar melhor ‑ rematou ele, ao mesmo tempo que o corpo, agitado por um abalo nervoso, tomava uma atitude servil.

Concluído o discurso, apertou a minha mão, não como toda a gente, mas sacudindo‑a a distância, de alto a baixo, como a picota de uma bomba de que se tivesse certo receio em manejar. Em seguida iniciou outra oração:

‑ Não acha o doutor Wickfield com esplêndido aspecto? Os anos passam sem deixar marca na nossa casa, senhor Copperfield, a não ser que elevam os humildes... isto é, minha mãe e eu ‑ ajuntou. ‑ E também fazem desabrochar a beleza, isto é, a menina Agnes...

Fez tal trejeito após este madrigal que a tia Betsey, que o observava, perdeu por completo a paciência.

‑ Diabos o levem! ‑ exclamou. ‑ Que é que tem? Choques eléctricos?

‑ Desculpe, senhora Trotwood ‑ respondeu Uriah. ‑ Compreendo que esteja nervosa.

‑ Deixe‑me em paz! ‑ intimou a tia Betsey, cada vez mais irritada ‑ e não torne a chamar‑me nervosa, que não sou.

Se o senhor é enguia, então proceda como uma enguia; mas, se é homem, tome cuidado com os gestos! ‑ concluiu a tia, furiosissima. ‑ Não consinto que um saca‑rolhas... ou uma serpente... me faça perder a cabeça.

Heep, como aconteceria a outro qualquer no seu lugar, ficou desconcertado com aquela explosão, cujo efeito foi ainda consideravelmente aumentado pela raiva que a tia manifestava. Betsey agitava‑se na cadeira e brandia a cabeça como se fosse atirar‑se a ele. Mas Heep chamou‑me de parte para dizer com voz humilde:

‑ Bem sei, senhor Copperfield, que a senhora Trotwood, excelente pessoa como é, possui um génio irascível. Conheci‑a antes do senhor, quando eu era modesto empregado, e não admira que a situação actual lhe provoque o mau humor. Até me espanta que não esteja pior. Vim apenas dizer que, se lhe pudermos ser úteis nas circunstâncias presentes, eu, ou minha mãe, ou o escritório de Wickfield & Heep, ficaremos muito satisfeitos. Posso falar assim, não é verdade? ‑ perguntou ao doutor Wickfield.

‑ Uriah Heep ‑ explicou este com ar constrangido ‑ desempenha na casa um papel muito activo. Apoio sem reservas o que ele acaba de dizer. Você, Trot, sabe que sempre me interessei por si e pela sua tia.

‑ Que bela recompensa ‑ comentou Uriah ‑ esta de inspirar semelhante confiança! Espero, senhor Copperfield, aliviar o doutor Wickfield de boa parte do seu trabalho.

‑ Heep é‑me deveras útil ‑ confirmou o advogado, com a. mesma voz sufocada. ‑ Descarrega‑me de um grande peso. É uma sorte ter um sócio como ele.

O astucioso Uriah forçava‑o a dizer tudo aquilo, bem o sabia eu. No seu rosto via‑lhe o sorriso mau tão meu conhecido. O homem observava‑me com a maior atenção.

‑ Vamo‑nos embora, papá? ‑ insinuou Agnes. ‑ Seguimos a pé e Trot acompanha‑nos.

Creio que o advogado consultaria o seu sócio, pelo menos com o olhar, se o outro se não adiantasse.

‑ Tenho um encontro, para tratar de negócios ‑ disse ele. ‑ Senão gostaria muito de ficar com os meus amigos. Mas deixo o doutor a representar a nossa firma. Sempre às suas ordens, menina Agnes. Senhor Copperfield, adeus, e os meus respeitos à senhora Trotwood.

Com estas palavras, Heep retirou‑se, depondo‑lhe um beijo na mão larga; e a sua expressão, quando ele nos fitou, assemelhou‑se à de uma carranca.

Demorámo‑nos uma hora ou duas a conversar acerca dos bons tempos de outrora em Cantuária. O doutor Wickfield, ao ficar só com Agnes, voltou a ser mais semelhante a si próprio, apesar de certo abatimento de que não lograva descartar‑se. Entretanto reanimou‑me e manifestou sincero prazer em ouvir‑nos recordar pequenos incidentes da nossa vida de então, de que em geral se lembrava bem. Disse‑me que equivalia regressar a essa época achar‑se sozinho comigo e a filha. Quem lhe dera, notou, que não houvesse mudado nada! Estou persuadido de que a imagem plácida de Agnes e o simples contacto da sua mão no braço do pai exerciam neste uma influência miraculosa.

A tia Betsey, ocupada todo esse tempo no outro quarto, com Peggotty, não os pôde acompanhar ao domicílio, mas insistiu comigo por que o fizesse, e eu obedeci. Jantámos juntos e, depois, Agnes sentou‑se ao lado do pai, como antigamente, e serviu‑lhe o vinho. Wickfield tomou apenas o que ela lhe deu e nada mais, e nós três ficámos a admirar, pela janela, o cair da tarde. Quando começou a escurecer, o advogado estirou‑se num canapé: de volta à janela, ainda estava luz suficiente para que eu lhe visse brilhar lágrimas nos olhos.

Peço a Deus que nunca me faça esquecer o amor e a fidelidade desta adorada rapariga, nesse período da minha existência; pois, se tal sucedesse, era que o meu fim se aproximava, e seria então a altura em que eu mais me desejaria lembrar. Agnes enchia‑me a alma de resoluções excelentes, fortificava de tal maneira a minha fraqueza com o seu exemplo, dirigia tão bem (não sei como, visto ser tão modesta para me dar conselhos frequentes) o ardor vagabundo e a energia sem fito do meu coração, que julgo poder afirmar solenemente que lhe devo o pouco de probidade de que me revesti e todo o mal de que me abstive.

Sentada no poial da janela, na obscuridade, Agnes falou‑me de Dora. Escutou os elogios que teci a respeito desta, louvou‑a por seu turno, e espalhou sobre a fadazinha alguns raios de pura luz que me fizeram considerá‑la ainda mais preciosa e mais inocente. Ó Agnes, irmã da minha infância, se eu tivesse sabido então o que soube muito tempo depois...

Quando saí, estava um pedinte na rua. Pensei nos olhos calmos e angélicos que deixava, virei a cabeça para a janela e estremeci no momento em que o mendigo murmurou, como se fosse o eco de palavras pronunciadas de manhã:

‑ Cego, cego!

 

ENTUSIASMO

Comecei o dia seguinte por outro mergulho no balneário romano; em seguida parti para Highgate. Já não estava abatido, já não tinha medo de um sobretudo esfiapado, já nem sentia saudades do corcel veloz. Mudara por completo a minha maneira de interpretar o nosso recente revés. Devia provar à tia Betsey que a sua bondade, demonstrada até aí, não fora mal aproveitada por um ser ingrato, sem coração. Precisava de me servir da triste disciplina aprendida na infância para poder trabalhar resolutamente. Necessitava de pegar no machado e abrir caminho através da floresta de dificuldades, abatendo as árvores que me separavam de Dora. E estuguei o passo, como se o andar rápido bastasse para realizar tudo isso.

Quando me achei na estrada familiar de Highgate, embrenhado num empreendimento tão diverso do giro agradável a que ela estava associada, pareceu‑me que uma alteração radical surgira na minha vida. Mas não desanimei. Com uma existência nova vinham, novos interesses, novos desígnios. Grande era o esforço, porém incalculável a recompensa, visto que Dora era essa recompensa e que se fazia mister ganhá‑la.

Acabei por me sentir arrebatado, ao ponto de ter pena de que o meu sobretudo ainda não estivesse no fio. Gostaria de cortar essas árvores da floresta das dificuldades em circunstâncias tais que se demonstrasse a minha força. Tive vontade de pedir a um operário que britava pedras no caminho que me emprestasse o martelo por momentos a fim de que eu trabalhasse uma senda que me transportasse até Dora. Esfalfava‑me e estimulava‑me a tal ponto que se me afigurou haver já obtido não sei que quantia. Foi neste estado que, descobrindo uma vivenda com o letreiro «Aluga‑se», aí entrei e a examinei meticulosamente, experimentando a necessidade de ser um homem prático. A casa serviria bem para mim e para Dora, com o seu jardinzito em que Jip poderia correr e ladrar, e o seu quarto amplo no primeiro andar para a tia Betsey. Saí de lá mais entusiasmado do que nunca e tão ágil que me precipitei para Highgate com tamanha velocidade que cheguei uma hora mais cedo. Mesmo assim retardei a marcha para me acalmar antes de me tornar apresentável.

O meu primeiro cuidado, depois destes preparativos, foi procurar a casa do doutor Strong. Não ficava na parte de Highgate em que vivia a senhora Steerforth, mas do lado oposto. Feita esta descoberta, e levado por uma força irresistível, dirigi‑me para o caminho que ladeava a residência dos Steerforths, e olhei por cima do muro do jardim. As portas da estufa estavam abertas e Rosa Dartle, em cabelo, ia e vinha em passo vivo e impetuoso por um passeio de saibro que cercava o relvado. Deu‑me a impressão de um animal selvagem movendo‑se sem descanso até ao fim da corrente que o prendia.

Deixei cautelosamente o meu posto de observação, e, abandonando o lugar (arrependido de ali haver estacionado), dei umas voltas até às dez horas: nesse tempo ainda não existia o relógio no alto do outeiro, mas uma velha casa de tijolo encarnado, se bem me recordo, que servia de escola.

Ao aproximar‑me do domicílio do doutor Strong, bonito edifício antigo que lhe devia ter custado muito dinheiro, a avaliar pelos melhoramentos acabados de realizar, vi‑o passear no jardim, com as suas polainas e o resto, como se continuasse sempre a mesma vida deste os tempos do colégio. Rodeavam‑no os companheiros de outrora: as árvores, grandes, da vizinhança, e duas ou três gralhas, tal como se as de Cantuária tivessem escrito a estas, a recomendar o amigo e a pedir que o vigiassem.

À distância a que eu estava não podia esperar que ele desse conta da minha presença, de maneira que resolvi abrir o portão e ir até onde o professor se encontrava. Quando me enfrentou, olhou‑me com ar absorto durante uns minutos, evidentemente sem pensar em mim: depois reconheceu‑me e agarrou‑me nas duas mãos.

‑ Viva, caro Copperfield! Está um homem! Como tem passado? Agrada‑me deveras tornar a vê‑lo. Mas mudou tanto... Está realmente... oh, meu Deus!

Disse‑lhe que esperava gozasse de boa saúde, assim como a esposa.

‑ Sim, sim, Annie vai bem, vai apreciar a sua visita. Você sempre foi o seu predilecto. Ainda ontem o confirmou, ao ler a sua carta. Pois, pois... Lembra‑se do Jack Maldon?

‑ Perfeitamente, senhor doutor.

‑ Pois, pois... Ele também.

‑ Também voltou?

‑ É verdade, da índia. Não pôde suportar o clima. E a senhora Markleham... não se esqueceu da senhora Markleham?

Esquecer‑me do Veterano?! Em tão pouco tempo!

‑ A senhora Markleham ‑ continuou o doutor Strong ‑ estava bastante contrariada, de forma que o mandámos buscar, e conseguimos‑lhe um emprego que lhe convirá melhor.

Eu conhecia suficientemente Jack Maldon para concluir que esse emprego devia ser uma sinecura. O professor, andando cá e lá, com a mão no meu ombro, e de rosto virado para mim, como se a animar‑me, prosseguiu:

‑ Agora, caro Copperfield, falemos dessa proposta que você me fez. É muito lisonjeira para mim e regozijar‑me‑ia a valer.

Mas não lhe parece que pode descobrir coisa melhor? Foi aluno distinto, está apto para largos voos. Tem base para arcar com maiores responsabilidades. Não será pena sacrificar a primavera da sua existência ao trabalho modesto que lhe posso oferecer?

Não perdi o entusiasmo e, num estilo que julgo ter sido declamatório em excesso, apoiei o meu requerimento com veemência, observando ao doutor Strong que já tinha uma profissão.

‑ Tem razão ‑ retorquiu ele. ‑ É certo que o facto de ter uma carreira em vista (e de em breve completar o estágio para a exercer) modifica o aspecto das coisas. Mas, meu caro e juvenil amigo, que são setenta libras por ano?

‑ Duplica os nosos rendimentos, senhor doutor.

‑ Meu Deus! Quem imaginaria isso? Não é que a soma seja essa rigorosamente, porque a minha intenção era gratificar o rapaz a quem eu desse este emprego. Sem dúvida! ‑ exclamou o professor, conduzindo‑me sempre no seu passeio, com a mão em cima do meu ombro. ‑ Sem dúvida. Sempre admiti a hipótese de uma gratificação anual.

‑ Senhor doutor ‑ redargui (já sem estilo grandiloquente) ‑ já lhe devo tantos favores...

‑ Não, não ‑ acudiu ele, cortando‑me o discurso.

‑ Se consentir em aproveitar o tempo de que disponho, isto é, as minhas manhãs e os serões, e se julgar que isso vale setenta libras por ano, prestar‑me‑á um serviço que nem sei como agradecer.

‑ Meu Deus! ‑ murmurou pensativamente o doutor Strong. ‑ Não sabia que tão pequena soma de dinheiro tinha tanto valor para alguém. Mas, se encontrar melhor, peço‑lhe que aceite. Dê‑me a sua palavra ‑ concluiu ele, retomando a forma solene de que usava para incitar a honra dos rapazes.

‑ Dou‑lhe a minha palavra ‑ respondi como no colégio.

‑ Então, está combinado ‑ disse o doutor, com uma pancadinha no meu ombro, onde deixou a mão poisada durante todo o nosso passeio.

E eu, com uma pontinha de lisonja (decerto inocente), repliquei: ‑ Serei vinte vezes mais feliz se for do dicionário que eu tenha de me ocupar.

Strong parou, tornou a dar‑me uma pancadinha no ombro, e volveu com um ar de triunfo que tanto me agradou ver – como se eu houvesse atingido o próprio fundo da sagacidade humana.

‑ Adivinhou, meu amigo, é realmente do dicionário que se trata!

Como é que poderia ser outra coisa? As algibeiras do professor estavam tão repletas como a cabeça. O dicionário transbordava‑lhe por todos os lados.

Explicou‑me que, depois de haver deixado o ensino, avançara prodigiosamente no livro. Nada lhe podia convir mais do que a minha proposta de trabalho de manhã e à noite, visto que tinha por hábito passear durante o dia, meditando. Os papéis tinha‑os um tanto em desordem, porque ultimamente Jack Maldon lhe oferecera os seus serviços uma vez por outra, como secretário, e o primo não era pessoa acostumada a uma tarefa daquela natureza; mas nós poríamos em breve a papelada em ordem e, seguidamente, tudo deslizaria como em cima de veludo. Mais tarde, quando a nossa faina cresceu, percebi que as tentativas ãe Jack Maldon haviam sido mais prejudiciais do que o supusera: não só cometera vários erros como desenhara tantas cabeças de soldados e de mulheres no manuscrito do doutor que eu, por diversas vezes, me perdi em labirintos de obscuridade.

Strong rejubilava com o facto de trabalhar nessa obra‑prima, e nós marcámos entrevista para o dia seguinte, às sete horas da manhã. Devíamo‑nos ocupar do dicionário todas as manhãs e duas ou três horas à noite, excepto ao sábado, em que eu descansaria. E, naturalmente, também no domingo. Estas condições pareceram‑me muito brandas.

Feitos estes planos para mútua satisfação, o doutor convidou‑me a entrar em casa. Encontrámos a mulher no escritório, a espanejar os livros, liberdade que ele não consentia senão à esposa, pois aqueles objectos eram‑lhe sagrados.

Por minha causa, anteciparam a hora do primeiro almoço. Sentámo‑nos os três à mesa. Mal nos instalámos, notei no rosto da senhora Strong a aproximação de alguém antes de ouvir o mínimo ruído. Chegou um cavaleiro ao portão e, com a rédea enfiada no braço, conduziu o animal para um pátio interior, como se estivesse na sua casa, e prendeu‑o na argola fixa à parede da cavalariça vazia; depois entrou na casa de jantar, ainda de chicote na mão. Era Jack Maldon. «A índia não lhe fez bem», disse de mim para mim. Deve‑se reconhecer que eu considerava com virtuosa ferocidade todos os rapazes inaptos para abater as árvores da floresta das dificuldades: por isso esta minha impressão deve ser recebida com todas as reservas.

‑ Jack ‑ disse o doutor ‑ lembra‑se do Copperfield? Maldon apertou a minha mão, porém sem entusiasmo, com uma indiferença superior que intimamente me magoou. Todavia a sua indiferença era um espectáculo digno de ser visto, só mudava de atitude quando se dirigia à prima Annie.

‑ Já almoçou? ‑ perguntou‑lhe o dono da casa.

‑ Raras vezes almoço ‑ respondeu ele, com a cabeça reclinada no espaldar da poltrona. ‑ É coisa que me enfada.

‑ Há novidades hoje?

‑ Nada, doutor. Parece que, pelo Norte, lavra a fome e o descontentamento. Mas há sempre, em toda a parte, pessoas descontentes e esfomeadas.

Strong tomou um ar grave e disse, para mudar de assunto:

‑ Com que então não há novidades. E, não as havendo, é bom sinal.

‑ Os jornais referem‑se com minúcia a um assassínio. No entanto, assassina‑se sempre este ou aquele, de maneira que não li.

Nesse tempo, a afecção de desdém pelos actos e paixões da humanidade não era considerada coisa tão distinta como hoje. Algumas senhoras elegantes adoptaram com tanto êxito esta atitude, assim como alguns senhores meus conhecidos, que bem podiam ter nascido toupeiras cegas. Mas como então era novidade para mim, fiquei impressionado, sem que todavia isso me desse melhor conceito do senhor Jack Maldon ou aumentasse a minha confiança nele.

‑ Vim saber se a Annie gostaria de ir esta noite à ópera ‑ disse Maldon, voltando‑se para a senhora Strong. ‑ Será a última récita boa da temporada. Há uma cantora que vale a pena ouvir; canta na perfeição, e, além disso, é deliciosamente feia ‑ concluiu ele, recaindo na sua indolência.

O doutor, sempre contente com tudo que pudesse agradar à mulher, virou‑se também para ela e aconselhou:

‑ Deves ir, Annie.

‑ Preferia não ir ‑ replicou Annie ‑ e ficar em casa. Gostava muito mais de ficar em casa!

Sem olhar para o primo, ocupou‑se de mim e pediu notícias de Agnes: se a veria, se havia qualquer probabilidade de ela aparecer nesse mesmo dia. E estava tão agitada que me admirei de que o marido, que nesse momento punha manteiga no pão, não desse fé do que entrava pelos olhos dentro.

Mas nada viu. Disse jovialmente que ela era nova, que se devia distrair, sem se deixar aborrecer por um velho enfadonho. Demais a mais, acrescentou, desejava ouvi‑la cantar todas as árias dessa actriz, e como poderia desempenhar‑se convenientemente do encargo sem ir à ópera? Deste modo o doutor insistiu por que a mulher aceitasse o convite e pediu a Jack Maldon que fosse jantar com eles. Daí a pouco, este último regressou ao seu emprego (suponho eu), mas a verdade é que foi a cavalo, como se não tivesse nada que fazer.

Tive curiosidade de saber, no dia seguinte, se Annie saíra. Não. Descartara‑se do convite e fora visitar Agnes, insistindo com o marido para que a acompanhasse. Tinham voltado pelo campo, contou‑me o doutor, porque a noite estava deliciosa. Pensei se, no caso de Agnes não se encontrar na cidade, ela teria ido ao teatro, e qual seria a influência que no seu espírito exercia aquela boa amiga.

Annie não mostrava aparência muito feliz, mas o rosto infundia honestidade... ou então uma impostura muito grande. Observei‑a muitas vezes, pois ficara sentada defronte da janela durante todo o tempo em que trabalhámos, e preparou‑nos o primeiro almoço, que tomámos sem largar a nossa tarefa. Às nove horas, quando parti, Annie estava ajoelhada aos pés do marido a fim de o calçar e lhe pôr as polainas. Folhas verdes, sombreando a janela aberta do quarto, davam‑lhe às faces um tom suave. Pelo caminho, vim a pensar naquela noite em que a vira contemplar o doutor enquanto ele lia.

Não me faltava ocupação. De pé logo às cinco horas, só recolhia às nove ou dez da noite. Mas experimentava imensa satisfação em estar assim ocupado. Nunca andava devagar; quanto mais me fatigasse, mais mereceria Dora, pensava. Ainda não me apresentara em casa dela no meu novo papel: como Dora devia visitar a senhora Mills daí a dias, eu retardava para essa altura o que tinha de lhe dizer, limitando‑me a anunciar‑lhe por escrito (a nossa correspondência secreta passava pelas mãos da amiga) que havia muitas coisas para contar. Entretanto, economizava o cosmético, renunciara por completo ao sabonete e à água de alfazema e vendi com prejuízo considerável três coletes, demasiado luxuosos para a minha vida austera.

Não satisfeito com todos estes sacrifícios e ansioso por fazer mais qualquer coisa, fui procurar Traddles, que morava agora nas águas‑furtadas duma casa de Castle Street, em Holborn. Levei comigo o senhor Dick, que já fora também por duas vezes a Highgate, onde reatara a sua amizade com o doutor Strong. Levei‑o, porque, impressionado com o infortúnio da tia Betsey e sinceramente persuadido de que nenhum forçado trabalhava tanto como eu, ele acabara, no meio da sua inquietação, por perder a alegria e o apetite, tanto mais que reconhecia a sua inutilidade. Nestas condições, sentia‑se incapaz de acabar algum dia o memorial; e quanto mais se encarniçava nele, mais a desgraçada cabeça de Carlos I porfiava em aí aparecer. Receando seriamente que a sua doença se agravasse se o não convencêssemos, por qualquer trapaça inocente, a crer que nos podia ser útil, decidira averiguar se Traddles nos poderia socorrer naquela conjuntura. Previamente escrevera‑lhe para o pôr ao facto do caso e ele respondera‑me com um belo testemunho de simpatia e amizade. Achámo‑lo em pleno trabalho, rodeado dos seus papéis e do tinteiro e reconfortado com a presença do vaso e da mesinha redonda, que lhe faziam companhia a um canto da modesta instalação. Recebeu‑nos muito cordialmente e mostrou‑se agradado com o senhor Dick. Este declarou‑se convencido de que já o encontrara em qualquer parte e nós ambos retorquimos que era muito provável.

O primeiro ponto sobre que desejava consultar Traddles era este. Eu ouvira dizer que muitos homens que se tinham distinguido, mais tarde, em diversas carreiras, haviam começado como redactores da Câmara dos Deputados.

Como Traddles me observasse uma vez que o jornalismo era uma das suas esperanças, eu aproximara os dois factos e dissera a Traddles, numa carta, que gostaria de saber como poderia iniciar‑me naquela profissão. Traddles comunicou‑me o resultado do seu inquérito, isto é, que a aquisição da ciência necessária para, na maior parte dos casos, vencer (ou seja, o conhecimento perfeito e completo dos mistérios da estenografia) era tão difícil como o estudo de seis línguas, mas que, à força de perseverança, seria possível obtê‑la ao fim de alguns anos. Traddles achava, pois, que o caso estava arrumado. Mas eu, vendo nisso apenas uma oportunidade de abater mais árvores da floresta das dificuldades, resolvi logo abrir caminho para Dora através dessa mata espessa, empunhando o meu machado.

‑ Agradeço‑te muito, caro Traddles ‑ respondi‑lhe. ‑ Amanhã principiarei.

Traddles pareceu admirado, e com razão. Mas é que ele não conhecia o entusiasmo que me animava.

‑ Vou comprar um livro ‑ acrescentei ‑ em que essa arte venha claramente exposta. Estudarei no tribunal, onde nem sempre tenho que fazer. Vou estenografar os discursos dos advogados, para me exercitar. Traddles, meu caro, triunfarei!

‑ Deus do Céu! ‑ exclamou o meu amigo, de olhos arregalados ‑, nunca duvidei da tua energia, Copperfield!

Pensei como é que ele tinha tanta certeza, pois para mim a coisa era inteiramente nova. Mas não insisti e trouxe à balha o senhor Dick.

‑ Bem vê ‑ disse este, com ar cobiçoso ‑ se eu também pudesse fazer qualquer coisa... nem que fosse rufar tambor ou soprar algum instrumento...

Coitado! Estou certo de que, no fundo, ele teria preferido este género de ocupação a qualquer outro. Traddles, que era incapaz de se rir, volveu calmamente:

‑ O senhor tem excelente caligrafia. Não foi o que me disseste, Copperfield?

‑ Excelente ‑ confirmei.

E era verdade, a caligrafia do senhor Dick possuía uma clareza pouco vulgar.

‑ Não lhe parece que podia fazer cópias, se eu conseguisse arranjar‑lhas?

Dick olhou‑me incrédulo. Eu abanei a cabeça, e ele pediu‑me:

‑ Fale‑lhe do memorial.

Expliquei ao Traddles que se tornava difícil impedir que o rei Carlos I invadisse o manuscrito do senhor Dick. Durante este tempo, o velhote olhava para Traddles com gravidade e respeito, mordendo o polegar.

‑ Mas as cópias a que me referi são coisas já redigidas, prontas ‑ disse Traddles após uns momentos de reflexão.

‑ O senhor Dick não teria que recear pela sua composição. Faz, pois diferença, não achas, Copperfield? Fosse como fosse, se se fizesse uma experiência, hem?

Isto deu‑nos esperança. Sob o olhar ansioso de Dick, que ficara na sua cadeira, Traddles e eu afastámo‑nos para deliberar e elaborar um projecto, em virtude do qual pusemos mãos à obra, no dia seguinte, com êxito triunfal.

Numa mesa perto da janela que dava para Buckingham Street, instalámos o trabalho que Traddles obtivera, o qual consistia em fazer não sei quantas cópias de um documento legal relativo a certo direito de passagem; e, noutra mesa, dispusemos o último manuscrito inacabado do famoso memorial. O senhor Dick devia copiar exactamente o que tinha à sua frente, sem nunca se afastar do original; e, se sentisse a mínima necessidade de aludir a Carlos I, passaria logo para a mesa do memorial. Exortámo‑lo a ser firme e deixámo‑lo sob a vigilância da tia Betsey. Esta contou‑nos depois que ele lhe parecera um tocador de timbales, dispersando a sua atenção por dois instrumentos, mas que, com o tempo, cansado com essa manobra, se aplicara apenas à cópia, deixando o memorial para ocasião mais favorável. Em resumo: embora tivéssemos o cuidado de não lhe dar mais do que ele poderia fazer, e apesar de ter começado a meio da semana, a verdade é que, no sábado à noite, já ganhara dez xelins e nove dinheiros. Jamais me esquecerei das suas idas a todas as lojas da vizinhança para trocar esses xelins por moedas de cobre e levá‑las à tia Betsey numa bandeja, distribuídas em forma de coração, com lágrimas de alegria e orgulho nos olhos.

Desde que pudera ser útil, assemelhava‑se a uma pessoa que vivesse sob o efeito de uma encantação. E esse homem de coração grato considerava a minha tia como a mais extraordinária das mulheres e eu como o mais extraordinário dos rapazes.

‑ Agora não há receio de morrer de fome ‑ declarou ele apertando a minha mão. ‑ Concorrerei para as suas necessidades, Copperfield.

Não sei quem se sentia mais contente, se Traddles se eu.

‑ Isto fez‑me esquecer o senhor Micawber ‑ disse aquele tirando uma carta da algibeira e apresentando‑ma.

A carta (Micawber nunca perdia ocasião de escrever cartas) era‑me dirigida «ao cuidado do senhor T. Traddles, estudante de Direito». Rezava assim:

 

«Meu caro Copperfield

«É possível que não conte com a notícia de que aconteceu alguma coisa. Creio ter‑lhe dito, no entanto, numa entrevista precedente, que esperava esse acontecimento.

«Estou prestes a estabelecer‑me numa cidade de província da nossa ilha afortunada, e cuja sociedade se compõe de uma mistura feliz de agricultores e eclesiásticos. Minha mulher e filhos acompanhar‑me‑ão. Num futuro mais ou menos remoto encontrarão provavelmente as nossas cinzas no cemitério anexo ao edifício venerável que celebrizou o lugar de que falo.

«Dizendo adeus à Babilónia moderna em que sofremos tantas vicissitudes, creio que, sem desfalecer, eu e minha mulher não podemos esquecer que vamos deixar talvez por anos, talvez para sempre, um ente que poderosos elos ligam ao altar da nossa vida doméstica. Se, na véspera de semelhante separação se dignar vir com o nosso amigo comum senhor Thomas Traddles à nossa residência actual, para trocarmos os votos adequados, consideraremos um favor feito àquele que será o sempre seu Wilkins Micawber».

 

Alegrou‑me verificar que o senhor Micawber acabara por encontrar qualquer coisa. Como o convite era para essa mesma tarde, declarei‑me pronto a aceitar, e nós partimos juntos para os aposentos que Micawber ocupava sob o nome de Mortimer e que ficavam situados no extremo da Gray's Inn Road.

Os recursos desse apartamento eram tão limitados que achámos os gémeos (agora de oito ou nove anos) deitados numa cama de armar, na sala de jantar da família, onde Micawber preparara num jarro de lavatório o que ele intitulava uma «fermentação» da agradável bebida em que era especialista. Tive o gosto, nessa ocasião, de renovar conhecimento com o filho mais velho, rapazinho dos seus doze anos, cheio de promessas e muito atreito àquela turbulência que é doença frequente nos da sua idade. Também reatei relações com a irmã, na qual, como dizia o senhor Micawber, a mãe reencontrava a sua mocidade.

‑ Depara‑nos ‑ disse ele ‑, em véspera de migração. Há‑de desculpar todos os pequenos inconvenientes próprios da circunstância.

Ao lançar uma olhadela circular, para corresponder à observação de Micawber, vi que as coisas de uso já estavam emaladas e que a bagagem formava um conjunto sério. Felicitei a dona da casa pela mudança iminente.

‑ Meu caro senhor Copperfield ‑ disse ela ‑ nunca duvidei do interesse que tomava pelos nossos negócios. A minha família pode considerar esta mudança como um desterro, mas a verdade é que sou esposa e mãe e jamais abandonaria o meu marido.

Traddles, a quem a senhora Micawber fez apelo com o olhar, aquiesceu com expressão convicta.

‑ Tal é pelo menos ‑ continuou ela ‑ a maneira como interpreto a obrigação que assumi ao repetir estas palavras irrevogáveis: «Eu, Emma, tomo Wilkins por esposo.» Li o ofício do matrimónio à luz da vela, na véspera do casamento, e a conclusão a que cheguei foi que nunca poderia deixar o meu marido. E ainda que me houvesse enganado nessa interpretação, não volto atrás...

‑ Querida amiga ‑ interveio Micawber com certa impaciência ‑ não julgo que te peçam semelhante coisa.

‑ Compreendo ‑ prosseguiu a senhora Micawber ‑ que estou para me estabelecer no meio de estranhos, e sei igualmente por vários membros da família a quem meu marido escreveu em termos corteses, para lhes anunciar a nossa chegada, que não prestaram a mínima atenção à comunicação feita. É possível, em suma, que eu seja supersticiosa, mas parece‑me que o meu marido está destinado a nunca receber respostas, por mais cartas que escreva. Depreendo do silêncio da família que a resolução que tomámos lhe desagrada. Mas não permitiria a ninguém que me desviasse da senda do dever, nem a meu pai ou a minha mãe, se ainda fossem vivos.

Informei‑a de que concordava com o que acabava de ouvir.

‑ Talvez seja um sacrifício isto de nos irmos enterrar numa cidade diocesana; mas, se o é para mim, muito maior será para um homem com as qualidades de Micawber.

‑ Ah, vão para a sede de uma diocese?

O marido, que nesse momento servia o ponche, explicou: ‑ Para Cantuária. Em resumo, meu caro Copperfield, fiz um contrato, pelo qual me obrigo a servir o nosso amigo Heep na qualidade de... enfim, de seu secretário particular.

Olhei espantado para Micawber, que se divertiu com a minha estupefacção.

‑ Devo confessar ‑ disse em tom solene ‑ que o hábito dos negócios e os sábios conselhos de minha mulher concorreram em grande parte para este resultado. A luva, de que ela falou noutra ocasião, foi lançada sob a forma de anúncio, e quem a levantou foi o meu amigo Heep, que é homem de grande perspicácia. Ele não fixou a minha remuneração numa categoria muito elevada, mas fez muito para me subtrair à pressão dos embaraços pecuniários em atenção ao valor dos meus serviços. E é no valor desses serviços que eu fundamento a minha confiança. Qualquer habilidade e inteligência que eu possua ‑ continuou Micawber, fingindo‑se, com a sua distinção peculiar, pouco seguro dessas qualidades ‑ pô‑las‑ei ao serviço do meu amigo Heep. Já adquiri alguns conhecimentos das leis, na defesa de processos cíveis, e vou embrenhar‑me no estudo dos comentários de um dos jurisconsultos ingleses mais famosos. Acho supérfluo notar que se trata do doutor Blackstone...

Estas observações (como todas, aliás, feitas no decurso daquele serão) foram interrompidas pela senhora Micawber, quando descobria que o filho ou estava mal sentado, ou apoiava os cotovelos na mesa ou dava pontapés, por baixo desta, em Traddles, ou praticava ainda qualquer acto contrário às boas maneiras que se devem ter em sociedade.

Ainda me sentia atordoado com as revelações de Micawber, pensando o que poderia estar ,no fundo disso, quando a mulher dele retomou o fio da conversa e me chamou a atenção.

‑ O que peço instantemente ao meu marido é que, votando‑se a esse ramo subordinado de Direito, não deixe de se elevar, no fim de contas, a voos mais altos. Estou convencida de que se distinguirá se se aplicar a uma profissão bem adaptada ao seu espírito engenhoso e facilidades de oratória. Por exemplo, senhor Traddles - rematou a senhora Micawber com ar compenetrado ‑ as funções de juiz, ou mesmo ministro da Justiça... Acha que uma pessoa que aceitou um lugar como o que vai desempenhar o meu marido renuncia voluntariamente a outras dignidades mais importantes?

‑ Querida amiga ‑ atalhou Micawber (que todavia também olhava para Traddles com ar interrogador) ‑ temos tempo suficiente para considerar esses problemas...

‑ Não, Micawber, não! O teu erro na vida foi sempre não veres suficientemente longe. Os teus deveres para com a família, senão para contigo mesmo, obrigam‑te a abranger com olhar amplo o ponto do horizonte mais afastado, aonde te poderão conduzir as tuas capacidades.

Micawber tossiu e tomou o seu ponche com ar extremamente satisfeito, olhando no entanto para Traddles, como se quisesse saber a sua opinião.

‑ Pois bem, para falar com franqueza, minha senhora ‑ disse Traddles, desejoso de lhe dar a verdade com prudência ‑ a prosaica realidade... não sei se me entende...

‑ Precisamente, caro senhor Traddles, o que pretendo é conhecer a realidade, por mais prosaica que for, acerca de um assunto tão importante.

‑ É que ‑ prosseguiu Traddles ‑ esse ramo do Direito, ainda que o senhor Micawber fosse advogado provisionário...

‑ Vá, diga. ‑ E, voltando‑se para o marido: ‑ Wilkins, estás a entortar os olhos. Como podes ver as coisas com clareza?

‑ ... não teria qualquer relação com as suas funções a que se refere. Só um advogado formado é capaz de subir a essas dignidades. E o senhor Micawber teria de estudar Direito durante cinco anos, numa Faculdade...

‑ Vejamos se o percebo bem ‑ replicou a senhora Micawber, com gravidade mas sempre afável. ‑ Ao fim desse prazo, caro senhor Traddles, o meu marido estaria apto a ser juiz ou ministro?

‑ Decerto, minha senhora.

‑ Obrigada. Se Micawber não renuncia a nenhum privilégio ao aceitar este emprego, já eu não me sinto preocupada. Falo como mulher, é evidente, porém sempre reconheci no meu marido aquilo que o meu papá classificava de espírito jurídico. Espero que ele se estreie agora numa carreira em que esse espirito se possa desenvolver e conduzi‑lo a uma situação eminente.

Creio que de facto Micawber se via já sentado na tribuna ministerial da Câmara. Passou com ar condescendente a mão pelo crânio calvo e disse com resignação que não excluía a verdade:

‑ Querida amiga, não antecipemos os decretos da Providência. Se estou destinado a usar peruca, a natureza ao menos preparou‑me para essa distinção ‑ disse ele aludindo à calvície e à cabeleira de advogado ou juiz. ‑ Não lamento a falta de cabelo, porque talvez fosse privado dele intencionalmente. Como pretendo fazer do meu filho um membro da Igreja, não nego que me seria agradável atingir uma situação elevada.

‑ Da Igreja? ‑ repeti, pensando ao mesmo tempo em Uriah Heep.

‑ Sim, senhor. Como tem boa voz, destino‑o primeiramente ao coro. A nossa residência em Cantuária e as nossas relações locais permitir‑lhe‑ão sem dúvida aproveitar a primeira vaga no magistério da Catedral.

Olhando de novo para o jovem Micawber, pareceu‑me que, pela sua expressão, se poderia supor que a voz lhe vinha detrás das sobrancelhas, donde julguei realmente que procedia quando ele nos cantou (sendo‑lhe permitido escolher entre isso e o ir para a cama) a Canção do Pica‑Pau. Seguiram‑se muitas felicitações, e depois a conversa generalizou‑se. Eu pensava tanto nos meus projectos que não resisti a revelar os percalços financeiros da minha tia. Os Micawbers regozijaram‑se com esta notícia inesperada e foi com satisfação que me encheram de consolações e me testemunharam a sua pena.

Por altura da última rodada de ponche, voltei‑me para Traddles a fim de lhe lembrar que não devíamos partir sem desejar aos nossos amigos saúde e êxito na nova residência. Pedi a Micawber que nos enchesse os copos e fiz um brinde pomposo, apertando a mão dele por cima da mesa e beijando a senhora Micawber para celebrar aquele dia memorável. Traddles imitou‑me na primeira das manifestações, mas não se considerou bastante íntimo para se permitir a segunda.

‑ Meu caro Copperfield ‑ começou Micawber levantando‑se, com um polegar enfiado em cada uma das algibeiras do colete ‑ você, o companheiro da minha mocidade, se assim me posso exprimir, e o meu estimável amigo Traddles, se me é lícito tratá‑lo deste modo, consintam que em meu nome, como no de minha mulher e da nossa prole, eu agradeça os seus votos tão calorosos e espontâneos. É natural que na véspera de uma partida que há‑de inaugurar para nós uma existência inteiramente nova ‑ dir‑se‑ia que Micawber embarcava para os antípodas ‑ dirija algumas palavras de despedida a dois amigos como os que tenho à minha frente. Mas tudo o que poderia expressar neste sentido já o fiz. Qualquer dignidade que eu atinja graças à profissão douta de que me vou tornar indigno representante, esforçar‑me‑ei por não a desmerecer, e minha mulher conta ser dela o necessário ornamento. Sob a pressão momentânea de obrigações pecuniárias, contraídas na esperança de uma liquidação imediata mas não solucionada ainda devido a um concurso de circunstâncias infelizes, vi‑me constrangido a adoptar um acessório que repugna à minha natureza (refiro‑me aos óculos) e a usar um nome a que legitimamente não aspiro. Tudo quanto quero dizer neste capítulo é que as nuvens já não obscurecem a triste paisagem e que o Sol reapareceu no alto dos montes. Na próxima segunda‑feira, ao chegar a diligência das quatro horas a Cantuária, o meu pé poisará no solo natal e o meu nome voltará a ser Micawber!

Micawber sentou‑se depois deste discurso e tomou dois copos de ponche seguidos. Então acrescentou com solenidade:

‑ Resta‑me fazer uma coisa antes desta separação, e é um acto de justiça. O meu amigo Thomas Traddles por duas vezes subscreveu (se ouso empenhar uma expressão técnica) letras de que eu era devedor. Da primeira, pagou a totalidade; da segunda o prazo ainda não expirou. ‑ Consultou cuidadosamente alguns apontamentos e disse: ‑ A soma daquela foi, se não me engano, de vinte e três libras, quatro xelins e nove dinheiros e meio. Da segunda, conforme o levantamento que fiz, é de dezoito libras, seis xelins e dois dinheiros, o que faz, quanto a ambas, um total de quarenta e uma libras, dez xelins e onze dinheiros e meio. Meu caro Copperfield, quer ter a bondade de verificar? Fiz o que me pedia e declarei que estava certo. ‑ Se eu deixasse esta metrópole e o meu amigo senhor Thomas Traddles sem me desonerar dessas obrigações, levaria um grande peso na consciência. Por isso preparei, para o amigo senhor Thomas Traddles, um documento que tenho aqui na mão e que satisfaz a intenção que pretendo, é, pois, com muito prazer que entrego ao meu amigo senhor Thomas Traddles um título de dívida de quarenta e uma libras, dez xelins e onze dinheiros e meio. Regozijo‑me por recuperar a minha dignidade moral e por saber que posso de novo seguir de cabeça erguida à frente dos meus semelhantes.

Depois destas palavras (que a ele mesmo comoveram profundamente), o senhor Micawber colocou o documento nas mãos de Traddles e desejou‑lhe felicidades em todos os empreendimentos. Estou convencido não só de que ele se julgou desonerado mas o próprio Traddles só se compenetrou da verdade depois de ter reflectido no caso.

E assim, orgulhoso da sua acção, Micawber pareceu crescer, pareceu ter o peito mais largo, quando veio ao patamar alumiar‑nos. Despedimo‑nos com muita cordialidade de parte a parte. E quando vi Traddles entrar em casa, e fiquei só, pensei, entre outras coisas estranhas e contraditórias, que devia sem dúvida à circunstância de Micawber me ter conhecido criança e eu lhe haver inspirado compaixão o facto raro de nunca me embair com negócios daquela ordem. Faltar‑me‑ia decerto a coragem moral para lhe recusar dinheiro e, digamo‑lo em seu favor, ele sabia‑o tão bem como eu.

 

UM BALDE DE ÁGUA FRIA

A minha existência nova, passada que foi uma semana, fortalecera‑me nas grandes resoluções práticas que a catástrofe económica me fizera tomar. Continuei a andar célere de um lado para o outro e a sentir que, no fim de contas, tudo ia bem. Impus‑me a obrigação de empregar todos os esforços de que era capaz e alcei‑me a uma espécie de mártir. Cheguei, por momentos, a admitir a ideia de me tornar vegetariano, levado pela impressão de que assim me sacrificava mais a Dora.

Esta, contudo, ainda ignorava a minha coragem desesperada, excepto o que pudesse depreender de vagas alusões epistolares. Mas chegou outro sábado e, nessa noite, eu devia encontrá‑la em casa da senhora Mills. Logo que o pai saísse para ir ao seu clube de whist (partida que me seria indicada pelo aparecimento de uma gaiola na janela da sala), eu devia entrar para tomar chá com elas.

Entretanto havíamo‑nos instalado todos na Buckingham Street, onde o senhor Dick prosseguia nas suas cópias, perfeitamente feliz. A tia Betsey obtivera sobre a senhora Crupp uma vitória notável: desterrou‑a para a cozinha, atirou pela janela fora a primeira bilha que a outra pôs nos degraus e protegeu‑se, à descida e subida da escada, com uma serviçal que contratou directamente. Estas providências enérgicas persuadiram a dona da casa de que a minha tia era louca, mas o caso é que a senhora Trotwood mostrava a maior indiferença pela opinião da outra e do resto do mundo, e assim a senhora Crupp, dantes tão ousada, ficou em poucos dias mansa como um cordeiro: a sua recente cobardia levava‑a a esconder‑se nas portas (deixando todavia parte da saia de fora) ou a meter‑se pelos cantos escuros à aproximação da sua inimiga. A tia ficava tão satisfeita com isto que errava de propósito pela casa, com a touca excentricamente ao lado, quando julgava provável encontrar a senhora Crupp no meu caminho.

Com o seu espírito de ordem e o seu raro engenho, a tia Betsey concorreu com tantos melhoramentos na minha instalação ‑que eu, longe de me sentir pobre, tinha a impressão de ser mais rico. Entre outras coisas, transformou‑me a despensa em quarto de vestir; e comprou‑me uma armação de cama que se parecia tanto com uma estante, de dia, quanto uma cama pode parecê‑lo. Eu era objecto da sua solicitude incansável. A minha própria mãe não gostaria mais de mim nem diligenciaria tanto para me tornar feliz.

Peggotty honrara‑se com a parte que havia tomado nestes trabalhos. Sem estar inteiramente liberta do terror que a senhora Trotwood lhe inspirava, recebera dela imensas provas de estímulo e confiança, suficientes para que as duas se tornassem excelentes amigas. Chegara, porém, a ocasião de voltar para o seu lar, a fim de cumprir as obrigações que assumira para com Ham. Isto passava‑se no sábado em que eu devia ir tomar chá a casa da senhora Mills.

‑ Até à vista, Barkis ‑ disse a tia Betsey ‑ e trate de si! Nunca pensei que pudesse vir um dia em que eu tivesse saudades de você.

Acompanhei Peggotty até à diligência, para a ver partir. Ela chorou ao deixar‑me, e, como fizera Ham, confiou o irmão aos meus cuidados. Nunca recebêramos notícias dele desde a sua partida por uma bela tarde soalheira.

‑ E agora, menino David ‑ disse a minha velha criada ‑ se precisar de dinheiro durante o estágio ou se, no fim dele, necessitar de se estabelecer (o que lhe há‑de acontecer num caso ou noutro, ou em ambos), quem mais direito terá de lhe ser útil do que eu?

Não era grande a minha independência para declarar que nunca pediria um empréstimo senão a ela; mas compreendi que aceitar de Peggotty uma boa soma seria proporcionar‑lhe uma sensação de tranquilidade.

‑ E diga à sua querida que eu daria tudo para a ver, nem que fosse por um minuto. E diga‑lhe também que, autorizada pelos dois, virei preparar‑lhes o ninho e vestir a noiva condignamente.

Assegurei‑lhe que não deixaria mais ninguém ocupar‑se dessa função, o que muito agradou a Peggotty. E assim ela partiu contentíssima.

Usei de meios vários para me distrair nesse dia no tribunal, e à noite, à hora aprazada, alcancei a rua em que habitava o senhor Mills. Este, que tinha o hábito censurável de dormir depois do jantar, ainda não saíra e não havia, portanto, gaiola à janela da sala. Fez‑me esperar tanto que desejei o multasse o clube pelo atraso. Por fim veio para a rua. Vi então a minha Dora suspender a gaiola e aparecer na varanda, para dar uma vista de olhos; vendo‑me, porém, retrocedeu logo para o interior, ao passo que Jip continuava ali, ladrando furiosamente por causa de um canzarrão do magarefe, que o teria devorado como quem engole uma pílula.

Dora veio ao meu encontro, à porta da sala, e Jip saiu a rosnar, imaginando que eu era um ladrão. Entrámos todos três tão alegremente e ternamente quanto possível; mas depressa semeei a desolação no meio da nossa alegria (sem querer) perguntando a Dora, e sem a mínima preparação, se ela poderia amar um indigente.

A minha mais‑que‑tudo ficou apavorada. A palavra, para ela, evocava apenas uma face macilenta sobreposta de um barrete de dormir, e um par de muletas ou perna de pau, com um cão de bandeja na boca ou algo deste género. Olhou‑me com um ar deliciosamente surpreendido.

‑ Como pode perguntar‑me semelhante disparate? ‑ disse com uma carinha de amuo. ‑ Amar um indigente?!

‑ Dora, querida Dora, o indigente sou eu!

‑ Não seja tontinho ‑ replicou Dora, batendo‑me na mão. ‑ Vir para aqui dizer tontices! Vou dar ordem ao Jip para que o morda.

Os seus modos infantis afiguraram‑se‑me deliciosos. Mas precisava de ser explícito. Por isso repeti solenemente:

‑ Dora, meu anjo, o teu David está arruinado!

‑ Palavra que mando o Jip dar‑lhe uma dentada ‑ insistiu ela agitando os caracóis. ‑ Deixe de ser ridículo.

Eu, porém, tinha o ar tão sério que Dora cessou de agitar os caracóis, colocou a mãozinha trémula no meu ombro, pareceu de começo assustada e inquieta e acabou por desatar num choro. Foi terrível. Caí de joelhos diante do sofá, acariciando‑a e suplicando‑lhe me não partisse o coração. Mas durante momentos a pobrezinha só pôde balbuciar: «ó meu Deus, meu Deus!» E estava tão estarrecida! Onde se teria metido Julia Mills? Esta é que poderia valer‑lhe. Sentia‑me quase fora de mim.

Finalmente, após súplicas e protestos veementes, consegui que Dora me fitasse: fê‑lo com aspecto horrorizado, mas a pouco e pouco não pôde deixar de me exprimir a sua ternura. Daí a instantes encostara à minha a face adorada. Então cingi‑a nos braços e disse‑lhe que a amava tanto, tanto, que julgava necessário restituir‑lhe a palavra dada, visto achar‑me presentemente sem recursos; que não suportava a ideia de a perder; que não temia a pobreza, se ela a não temesse também; que já trabalhava com uma coragem que só os apaixonados conhecem; que começara a ser prático e a enfrentar o futuro; que uma côdea bem ganha era melhor que um festim herdado; e muitas outras coisas deste género, que proferi numa explosão de eloquência de que eu mesmo me surpreendi, embora já pensasse em tudo isso desde o dia em que a tia Betsey me causara tanto espanto com as suas revelações.

‑ O teu coração pertence‑me sempre, querida Dora? ‑ perguntei enlevado, pois compreendia que assim era pela maneira como se apertava contra mim.

‑ Sim, sim, é só teu. Mas não me metas horror...

‑ Eu, meter horror? E a ti?

‑ Não repitas isso de ser pobre e de trabalhar sem descanso ‑ explicou Dora, cingindo‑se mais a mim. ‑ Não e não!

‑ Minha querida, uma côdea que se ganhou honestamente..

‑ Sim, bem sei. Mas não quero ouvir falar de côdeas, e o Jip tem de comer a sua costeleta de carneiro todos os dias, à hora costumada, sem o que pode morrer.

Enfeitiçava‑me aquela puerilidade encantadora. Sosseguei‑a, dizendo que o Jip teria a sua costeleta com a regularidade habitual. Descrevi‑lhe o nosso lar, ao qual o meu labor asseguraria a independência; evoquei a casita que vira em Highgate e a tia Betsey no quarto do primeiro andar.

‑ Já não causo horror? ‑ perguntei ternamente.

‑ Oh, não! ‑ respondeu Dora. ‑ Mas espero que a tua tia fique a maior parte do tempo no seu quarto e que não seja uma velha muito rabugenta.

Se era possível, creio que o meu amor ainda aumentou mais. Notei, todavia, que à rapariga faltava senso prático, e o meu ardor de neófito arrefeceu quando vi a dificuldade que havia em lho transmitir. Fiz nova tentativa. Quando ela sossegou e começou a brincar com as orelhas do cachorro, deitado a seus pés, tomei um aspecto grave e disse‑lhe:

‑ Meu amor, posso pedir‑te uma coisa?

‑ Ah, por favor, não recomeces a ser prático, é uma coisa que assusta tanto!

‑ Não há motivo para alarmes. Gostaria que aceitasses o facto de maneira diferente. Preferia que ele te desse coragem, entusiasmo...

‑ Mas horroriza tanto!

‑ Enganas‑te, minha querida. A perseverança e a força de carácter permitir‑nos‑ão suportar as coisas mais tremendas deste mundo.

‑ Essa força é que me falta ‑ declarou Dora, fazendo oscilar os caracóis. ‑ Não é verdade, Jip? Dá um beijo no Jip, e sê bonzinho.

Era impossível não beijar o cão quando ela o ergueu à minha altura, formando com a sua boca um arremedo a meio do focinho, segundo as leis da simetria. Obedeci, não sem me recompensar em seguida da minha obediência: Dora arrancou‑me às preocupações mais graves durante já não sei quanto tempo. Até que lhe disse:

‑ Eu ia falar‑te de qualquer coisa, Dora...

O mais austero dos juízes ficaria enternecido se a visse juntar as mãozinhas e levantá‑las, como que a suplicar que não voltasse a ser horroroso...

‑ Não o serei, minha querida, garanto‑te. Mas, se pudesses pensar de vez em quando (não para te desesperares, vê bem), mas se pudesses pensar, de tempos a tempos, que estás noiva de um homem pobre...

‑ Não, não, por amor de Deus! É um horror!

‑ Não é, minha filha. Se quiseres pensar uma vez por outra... e, ocupando‑te da casa de teu pai, te habituasses... a fazer contas, por exemplo...

A pobrezinha acolheu esta sugestão com algo que participava tanto do soluço como do clamor.

Mas eu persisti:

‑ Seria útil para o futuro, e ainda mais se me prometeres ler o livro de culinária que te enviarei. Se o nosso caminho através da vida, minha Dora ‑ continuei, tomando calor ‑ é presentemente rude e pedregoso, de nós depende torná‑lo liso e fácil. Precisamos de lutar e ser corajosos. Teremos obstáculos à nossa frente, e é necessário derrubá‑los.

Eis‑me lançado para diante, de punhos crispados e o rosto resplandecente de entusiasmo. Inútil, porém, continuar. Já dissera de mais. Acabara e voltara ao princípio. Dora tinha tanto medo! Mas onde estava Julia Mills? Que a levassem a Julia Mills, para terminar de vez! A minha amada assustava‑se, julguei mesmo tê‑la matado. Corri pela sala, deitei‑lhe água na cara, ajoelhei, arrepelei os cabelos. Considerava‑me um animal cheio de selvajaria. Implorei o seu perdão, roguei‑lhe que erguesse os olhos. Tendo encontrado a caixa de costura da senhora Mills quando procurava um frasco de sais, julguei havê‑lo achado e dei‑lhe a cheirar o estojo de marfim das agulhas, despejando em cima da rapariga todas as que lá se encontravam. Ameacei Jip, tão frenético como eu. Entreguei‑me a todas as excentricidades possíveis. Quando a dona da casa entrou, eu tinha há muito perdido o último vestígio do bom senso.

‑ Quem fez isto? ‑ perguntou ela, rindo em socorro da amiga.

‑ Fui eu!‑respondi. ‑ Aqui está o assassino. ‑ E escondi o rosto nas almofadas do sofá.

De começo Julia Mills supôs que tínhamos discutido e que estávamos na orla do deserto do Sara. Mas depressa compreendeu de que se tratava, pois a minha Dora exclamou, abraçando‑a, que eu era um «pobre operário». Em seguida chorou no meu peito, beijou‑me e suplicou que aceitasse todo o seu dinheiro. Finalmente curvou‑se sobre o ombro da amiga, soluçando como se tivesse o coração despedaçado.

Creio que Julia Mills nascera para fazer a nossa felicidade. Em poucas palavras lhe expliquei o sucedido, e ela consolou Dora, convencendo‑a a pouco e pouco de que não era um operário (suponho que a minha amada julgou que eu era descarregador e que passava os dias cá e lá sobre uma prancha, a empurrar um carrinho de mão), e acabou por nos reconciliar. Uma vez sossegados, Dora subiu ao seu quarto, para se recompor, e a senhora Mills tocou a sineta a fim de que servissem o chá. Aproveitei o ensejo para lhe declarar que a considerava indispensável e que preferia morrer a ser ingrato para quem nos testemunhava tanta simpatia. Ajuntei que diligenciara convencer Dora da minha situação, sem qualquer resultado; ela replicou que a cabana da ventura seria preferível ao palácio glacial do luxo e que, onde houvesse amor, existia tudo.

Concordei com isto; ninguém saberia mais do que eu quanto amava Dora‑ com um amor que nenhum mortal conhecera até esse dia. Mas a senhora Mills redarguiu, melancólica, que mais valia, para certos corações, que assim fosse, e eu apressei‑me a esclarecer que a minha observação não se aplicava aos mortais do sexo masculino.

Em seguida perguntei‑lhe se reconhecia ou não valor prático à sugestão que eu quisera fazer acerca das contas domésticas e do livro de cozinha. Após uns segundos de reflexão, respondeu:

‑ Senhor Copperfield, vou ser leal consigo. Para certas naturezas, as provações e sofrimentos morais superam a experiência dos anos. Vou‑lhe falar com tanta franqueza como se fosse a madre superiora de um convento. A sua sugestão não convém a Dora. A nossa querida Dora é uma menina mimada, é toda leviandade e alegria. Reconheço que estaria muito bem se a coisa fosse possível; mas...

E abanou a cabeça.

Esta concessão final animou‑me a perguntar‑lhe se, no caso de ter oportunidade de chamar a atenção de Dora para esses preparativos necessários a uma existência séria, ela a aproveitaria. Julia Mills anuiu de boa vontade, e eu solicitei‑lhe mais: que se encarregasse de lhe incutir a ideia do manual de culinária. Seria um grande serviço que me prestava! A amiga de Dora aceitou também esta missão de confiança, sem todavia me deixar muito esperançado.

Dora reapareceu, tão bela e adorável que eu pensei se havia realmente o direito de a importunar com pormenores comezinhos. E foi tão meiga e encantadora (sobretudo quando quis que Jip se sentasse para receber um bocado de torrada e ela fingiu esfregar‑lhe o nariz no bule para o castigar da sua recusa), que me senti um monstro transviado no bosque de uma ninfa só ao considerar que a assustara e a obrigara a verter lágrimas.

Depois do chá, tocou viola e cantou as mesmas canções francesas que celebram a impossibilidade de jamais deixar de dançar, sob qualquer pretexto, lá rá lá, lá rá lá, até que me senti mais monstro do que nunca.

Houve uma nuvem na nossa alegria. Um pouco antes da minha partida, a senhora Mills aludiu ao dia seguinte, de manhã, e eu respondi que, tendo de trabalhar a valer, me levantava agora às cinco horas. Não sei se Dora julgou que eu era guarda‑nocturno de algum armazém, mas a impressão que recebeu foi tão grande que deixou de tocar e cantar.

Pensava ainda nisso quando me despedi. Disse então com os seus modos travessos (que me faziam imaginar ser eu mesmo uma das suas bonecas):

‑ E não se levante às cinco horas, meu mauzão! É uma coisa tão estúpida!

‑ Mas, meu amor, tenho trabalho...

‑ Não o faças! Por que hás‑de trabalhar?

Era impossível convencer aquele cèrebrozinho de que precisava de trabalhar para viver. Ainda retorqui:

‑ Então como viveríamos?

‑ Como? Não importa como! ‑ disse Dora.

Parecia persuadida de ter solucionado a questão, e deu‑me um beijo tão triunfante, vindo tão directo do seu coração inocente, que eu não a desiludiria nem por um reino.

Amava‑a tanto, meu Deus! E continuei a amá‑la profundamente, inteiramente, duma forma que me absorvia todo. Mas também continuei a trabalhar com afinco e a manter ao rubro todos os ferros que nessa altura levava ao fogo. Nas noites seguintes fiquei muitas vezes à lareira, defronte da tia Betsey, pensando no medo que incutira em Dora e a cogitar em qual seria a melhor forma de atravessar a floresta das dificuldades com o estojo da viola, até ao momento em que estivesse de todo encanecido.

 

DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE

Não deixei arrefecer a minha resolução de assistir às sessões da Câmara dos Deputados. Era um dos ferros que eu começava a malhar e que continuava a aquecer e a levar à bigorna com uma perseverança de que tenho o direito de me orgulhar. Comprei um método dessa nobre ciência da estenografia e dos seus mistérios (que me custou dez xelins e seis dinheiros) e mergulhei num oceano de perplexidades que em poucas semanas me arrastou quase à loucura. As diferenças marcadas por pontos que, colocados de certa maneira, queriam dizer uma coisa e, de outra, algo de absolutamente diverso; as fantasias inconcebíveis a que se entregavam os círculos; as consequências inopinadas do emprego de simples pernas de moscas; os efeitos terríveis de uma curva mal delineada, tudo isto não só perturbava as minhas vigílias como me tirava o sono. Quando consegui avançar às cegas no meio destas complicações e dominar o alfabeto (ele só um verdadeiro templo egípcio!), vi aparecer novo cortejo de horrores qualificados de caracteres arbitrários e que eram de facto os caracteres mais tirânicos que algum dia vira. Por exemplo, um sinal que se assemelhava ao início de uma teia de aranha queria dizer expectativa, e o rabo de um foguete significava desvantagem. Depois de encaixar estes déspotas na cabeça, compreendi que eles haviam desalojado todo o resto; voltei então ao começo e foram eles, dessa vez, que me escaparam; porfiei por reencontrá‑los, mas perdi a outra parte do sistema. Em suma, era um homem desesperado. E sê‑lo‑ia até sem a ansiedade que sentia quanto a Dora, Dora o esteio e a âncora da minha barca impelida pela tempestade! Cada dificuldade do método formava um carvalho nodoso na floresta das mesmas, mas eu abatia‑os um após outro, com tamanho vigor que, ao cabo de três ou quatro meses, tive vontade de experimentar os meus conhecimentos estenografando o discurso de um dos nossos palradores do foro. Jamais esquecerei como o bacharel tomou a dianteira, sem esperar por mim, deixando o meu lápis perplexo errar no papel como se tomado de loucura.

A coisa não progredia, era evidente. Fora demasiado ambicioso e, dessa maneira, não alcançaria nada. Fui pedir conselho a Traddles e ele prontificou‑se a ditar‑me discursos a um ritmo e com as paragens adaptadas à minha fraqueza. Cheio de gratidão por essa ajuda amigável, aceitei‑lhe a proposta; e, durante muitas e muitas noites, quase ininterruptamente, formámos uma espécie de Parlamento em miniatura na Buckingham Street, quando eu regressava de casa do doutor Strong.

Era digno de ver‑se, aquele Parlamento! A tia Betsey e o senhor Dick representavam o governo ou a oposição (conforme os casos) e Traddles, munido do Orador de Enfield [2], ou de um volume de discursos parlamentares, fulminava‑os de invectivas tremendas. De pé ao lado da mesa, com o dedo sobre o livro para conservar a página aberta, e o braço direito erguido acima da cabeça, Traddles personificava os senhores Pitt, Fox, Sheridan, Burke, lorde Castlereagh, visconde Sidmouth ou o senhor Canning. Atacava com eloquência a imoralidade e a corrupção da minha tia e do senhor Dick, ao passo que eu, sentado a certa distância e com o caderno sobre os joelhos, me esforçava como podia para o seguir. A inconsistência e a audácia de Traddles não cediam em nada às de nenhum homem público. No decurso de uma semana, adoptava alternadamente todas as opiniões políticas e içava no mastro os pavilhões de todos os partidos. A tia, tão imperturbável como um ministro das Finanças, fazia de tempos a tempos a sua interrupção: «Apoiado!» ou «Não apoiado!», ou um simples «Oh» sempre que o texto o exigia, o que era repetido, como um eco, pelo senhor Dick, com o máximo vigor. Mas o senhor Dick foi acusado de tantas irregularidades no decurso da sua carreira parlamentar, e responsabilizado por consequências tão espantosas, que acabou por ficar inquieto. Creio que sentiu verdadeiro medo de haver trabalhado para o aniquilamento da constituição britânica e para a ruína do país.

Muitas e muitas vezes aconteceu prosseguirmos estes debates até o relógio soar a meia‑noite e as velas estarem todas consumidas. Mercê de um bom treino, pude a pouco e pouco seguir Traddles menos mal, e o meu triunfo teria sido completo se eu fizesse a mínima ideia do que diziam as minhas notas. Mas a verdade é que as decifrava tanto como se houvesse copiado caracteres chineses de uma vasta colecção de caixas de chá ou os signos dourados dos bocais verdes ou vermelhos das farmácias. Só me restava retroceder e principiar de novo.

Era penoso, porém resignei‑me, embora de coração amargurado, e recomecei laboriosamente pelo mesmo caminho, a fim de examinar com cuidado cada sinal, por todos os lados, fazendo esforços consideráveis, desesperados, para reconhecer à primeira vista esses caracteres desconcertantes. Fui sempre pontual no meu estágio, assim como em casa do doutor e em tudo isto trabalhei como um moiro.

Certo dia, quando chegava ao tribunal à hora costumada, encontrei à porta o doutor Spenlow, a falar só, com ar extremamente preocupado. Como em geral se queixava de dores de cabeça (tinha o pescoço curto e abusava da roupa muito engomada), pensei de início que se tratasse de uma coisa dessas, mas o advogado dissipou a minha apreensão nesse sentido.

Em lugar de corresponder aos meus bons‑dias com a afabilidade habitual, olhou‑me sobranceiro e cerimonioso e pediu‑me com frieza que o acompanhasse a um café cuja porta dava para o pátio dos Doctor's Commons, perto da entrada do cemitério de São Paulo. Obedeci, intrigado. Quando o deixei passar à minha frente, devido à estreiteza do caminho, notei que ele erguia bem a cabeça, o que não me agoirava nada de bom. E quase sucumbi à ideia de que o pai de Dora houvesse descoberto as minhas relações com a filha.

Se eu já não tivesse suspeitado isto, não poderia deixar de perceber a natureza do assunto quando entrei atrás dele numa sala do primeiro andar em que se encontrava a senhora Murdstone. Esta estendeu‑me a ponta dos dedos gelados e permaneceu rígida e severa na sua cadeira. O doutor Spenlow fechou a porta, fez‑me sinal para que me sentasse e manteve‑se de pé junto do fogão.

‑ Queira ter a bondade de mostrar ao senhor Copperfield ‑ disse ele à senhora Murdstone ‑ o que tem na sua bolsinha.

Suponho que era a mesma, de fecho de aço, que ela usava na minha infância e que se fechava como uma mandíbula. Mordendo os lábios, condoída, a solteirona abriu (não sem abrir ao mesmo tempo a boca) a dita bolsinha e exibiu a última carta que eu escrevera a Dora, epístola recheada de amor furibundo.

‑ Julgo ser a sua caligrafia, senhor Copperfield ‑ observou o advogado.

Eu estava ruborizadíssímo e a voz que ouvi proferir não a reconheci como sendo minha, quando dei esta resposta:

‑ É, senhor doutor.

‑ Se não me engano ‑ continuou ele, enquanto a senhora Murdstone tirava da bolsa um maço de cartas amarrado com uma linda fita azul ‑ tudo isto lhe pertence, não é verdade?

Peguei no maço com uma sensação de desespero e, lobrigando inícios de carta do género de «Querida e adorada», «Meu anjo amado», «Dora da minha alma», fiquei ainda mais corado, se era possível, e baixei a cabeça.

‑ Não, obrigado ‑ disse o doutor Spenlow, quando eu tentava maquinalmente devolver‑lhe o maço. ‑ Não quero privá‑lo disso. Senhora Murdstone, continue, se faz favor.

Esta adorável criatura, depois de observação demorada e meditativa do tapete exprimiu‑se nestes termos, com uma secura cheia de unção:

‑ Confesso que vinha tendo desconfianças acerca da menina Spenlow e das suas relações com o senhor David Copperfield. Espiara‑os quando do seu primeiro encontro, e a minha impressão não fora boa. É tal a perversidade do coração humano que...

‑ Agradecia‑lhe ‑ atalhou o advogado ‑ que se restringisse aos factos.

A dama baixou a vista, meneou a cabeça em sinal de protesto contra aquela interrupção descabida e prosseguiu com uma dignidade melindrada:

‑ Já que devo limitar‑me aos factos, expô‑los‑ei tão sucintamente quanto puder. Talvez se ache aceitável esta atitude. Como disse, senhor doutor, eu já suspeitava da menina Spenlow e do senhor Copperfield. Diligenciei, por várias vezes, obter a confirmação definitiva destas dúvidas, mas sem êxito. Abstive‑me, pois, de falar ao pai da menina Spenlow ‑ acompanhou a frase com um olhar severo ao interessado ‑ sabendo muito bem que se tende, em semelhante caso, a querer mal a quem pratica conscienciosamente o seu dever. Por isso a vigiei com redobrada atenção.

Querida e bela Dora, que não desconfiavas da vigilância do Dragão!

‑ Todavia ‑ concluiu a senhora Murdstone ‑ só anteontem obtive uma prova. Pareceu‑me que a menina Spenlow recebia demasiadas cartas da sua amiga Julia Mills; mas como esta era íntima com o pleno assentimento do pai ‑ outra pedra atirada ao jardim do doutor Spenlow ‑ não me competia intervir. Se não estou autorizada a aludir à perversidade do coração humano, posso ao menos, assiste‑me até o direito de alegar que a confiança está muita vez mal colocada...

O doutor Spenlow murmurou uma aquiescência contrita.

‑ Ontem à noite, depois do chá, vi o cãozinho saltar e rolar na sala, rosnando e brincando com qualquer coisa. Disse à menina: «Dora, que é que o seu cão tem na boca? Será papel?» Logo a menina Spenlow levou a mão ao vestido, soltou um grito, e precipitou‑se para o animal. Interpus‑me, dizendo: «Permita, Dora, que...»

Ó Jip! Miserável cachorro, esta catástrofe foi obra tua!

‑ A menina Spenlow tentou subornar‑me com beijos, caixas de costura e jòiazinhas, naturalmente sem resultado. Quando me aproximei, o cão enfiou para baixo do canapé e foi preciso expulsá‑lo com o atiçador do fogão. Mesmo assim, conservou a carta nos dentes e, quando procurei tirá‑la, fi‑lo devagar, com grande dificuldade. Mas consegui‑o. Depois de a ter percorrido com a vista, acusei a menina de ter em seu poder várias cartas da mesma origem, e acabei por obter dela o maço que está neste momento nas mãos do senhor David Copperfield.

Calou‑se. Fechou a bolsa, mordeu os lábios e disse:

‑ Sou de antes quebrar que torcer.

‑ Copperfield, você ouviu a senhora Murdstone ‑ recomeçou Spenlow, voltando‑se para mim. ‑ Posso perguntar‑lhe se tem alguma coisa a acrescentar?

A imagem que eu tinha diante dos olhos, a do tesouro do meu coração chorando e soluçando toda a noite, amorteceu a pouca dignidade que conseguira manter. Via‑a só, apavorada e infeliz. Tinha suplicado tão instantemente àquela mulher empedernida que lhe perdoasse, despendera vãmente os seus beijos, prometera as suas caixas de costura e os seus objectos de estimação. Estava deprimida, e tudo isto por minha causa! Suponho que fiquei trémulo por um ou dois minutos, apesar dos esforços que fizera para me dominar.

‑ Só posso dizer uma coisa, senhor doutor ‑ respondi. ‑ É que sou o único culpado. Dora...

‑ A menina Spenlow ‑ rectificou o pai, com ar majestoso.

‑ ... foi impelida por mim ‑ continuei, engolindo aquela admoestação cerimoniosa ‑ a consentir na dissimulação, o que lamento deveras.

‑ Tenho muito que lhe censurar, Copperfield ‑ disse o advogado, passeando cá e lá ao longo do fogão e acompanhando as palavras de movimentos não só da cabeça mas de todo o corpo, devido à rigidez do colarinho e da espinha. ‑ Procedeu de forma clandestina e indecorosa. Copperfield, quando acolho em minha casa um homem bem educado, tenha ele dezanove, vinte e nove ou cinquenta anos, faço‑o com toda a confiança. Se ilude essa confiança, comete um acção pouco digna.

‑ Compreendo, senhor doutor. Mas não tinha pensado nisso, francamente lho afirmo. Gosto tanto da menina Spenlow...

‑ Oh, que loucura! ‑ exclamou, purpureando‑se. ‑ Peço‑lhe, não me diga cara a cara que ama a minha filha!

‑ Que desculpa poderia ter o meu procedimento, se não fosse assim? ‑ repliquei com a maior humildade.

‑ Que desculpa? ‑ repetiu o doutor Spenlow, detendo‑se de súbito no passeio. ‑ Pensou na sua idade e na da minha filha, Copperfield? Pensou no que é destruir a confiança que devia existir entre mim e ela? Pensou na categoria a que pertence a minha filha, nos projectos que tenha podido fazer a respeito do seu futuro, nas minhas intenções testamentárias? Pensou em alguma coisa destas, Copperfield?

‑ Confesso que pouco ‑ retorqui, com o respeito que lhe tinha e o desgosto que experimentava. ‑ Mas faça‑me a justiça de crer que pensei na minha própria situação. Quando lhe participei a perda dos bens da minha tia, nós já estávamos noivos...

‑ Peço‑lhe me não fale de noivado! ‑ acudiu ele, batendo com energia as mãos uma contra a outra e com o ar mais teatral que é possível. (Por mais desesperado que eu estivesse, não pude coibir‑me de o notar.)

A senhora Murdstone saiu da sua impassibilidade para soltar um risinho desdenhoso.

‑ Quando lhe participei a alteração ocorrida na minha existência ‑ continuei, adoptando uma nova forma de expressão para substituir a que tanto lhe desagradava ‑ já havia começado a dissimulação a que infelizmente arrastei a menina Spenlow. Desde essa mudança, procurei afincadamente melhorar a minha situação. Hoje estou confiante no futuro. Conceda‑me tempo, senhor doutor, o tempo que quiser. Somos ambos tão novos, eu e ela...

- Tem razão ‑ interrompeu Spenlow com vigorosos gestos de cabeça e carregando o cenho. ‑ São ambos novos. Tudo isto é loucura. Não se fala mais do assunto. Leve essas cartas e deite‑as ao lume. Depois restitua‑me as que a minha filha lhe escreveu, para que eu as queime. Para o futuro, as nossas relações serão apenas de ordem profissional, e não se aludirá mais ao passado. Vamos, Copperfield, não lhe escasseia bom senso, e isso é a única solução sensata.

Eu é que não podia consentir em semelhante solução. Havia algo que se sobrepunha ao bom senso. O amor prevalecia sobre quaisquer outras considerações, e eu amava Dora até à idolatria, e era correspondido.

Não foi isto precisamente o que eu disse ao doutor Spenlow. Atenuei as expressões tanto quanto pude: mas foi o que lhe dei a entender, e fi‑lo de maneira categórica. Ignoro se teria sido ridículo, mas categórico fui com certeza.

‑ Muito bem, Copperfield, recorrerei à influência que tenho sobre a minha filha.

A senhora Murdstone, por uma aspiração prolongada, que não era nem suspiro nem gemido, mas partilhava dos dois, deu a entender que ele devia ter começado por ali.

‑ Experimentarei ‑ declarou Spenlow, fortalecido com este apoio ‑ usar a minha influência junto dela. Recusa‑se a levar essas cartas, Copperfield?

Disse isto porque eu as colocara em cima da mesa.

‑ Recuso‑me.

Esperava não o magoar, mas não podia aceitá‑las da mão da senhora Murdstone.

‑ Nem da minha? ‑ indagou Spenlow.

‑ Não, senhor ‑ respondi com o mais profundo respeito. ‑ Nem da sua mão.

‑ Muito bem.

No silêncio que se seguiu, eu pensava se mais valeria partir ou ficar. Decidira‑me a alcançar lentamente a porta, achando que teria tempo de dizer que a minha retirada era melhor para ele, quando Spenlow, com as mãos enfiadas nas algibeiras do casaco, e com aspecto que, em suma, qualificarei de incontestavelmente compassivo declarou:

‑ Deve saber, Copperfield, que não estou desprovido de bens terrenos e que a minha filha é o meu parente mais próximo.

Respondi que esperava não ter sido levado por ideias interesseiras quando a violência da paixão amorosa me arrastou.

‑ Não é bem o que eu quero dizer. Mais valia para todos nós que o movesse o interesse, isto é, se fosse menos infantil e um pouco mais circunspecto. O que eu queria dizer era que possuo bens que hei‑de legar à minha filha.

Ripostei que não punha em dúvida.

‑ E não há‑de supor que, com os exemplos que temos todos os dias debaixo dos olhos quanto a negligências inexplicáveis que os homens se permitem quanto às suas disposições testamentárias (o que, entre tudo, nos revela em mais alto grau e inconsequência humana), eu não tenha tomado as minhas providências...

Inclinei a cabeça em sinal de concordância.

Spenlow, baloiçando o corpo sobre a ponta dos pés ou sobre os calcanhares, prosseguiu cada vez mais compungido:

‑ Ora eu não deixarei que as disposições tomadas em favor da minha filha sejam anuladas por uma loucura da mocidade, como esta. Porque é autêntica loucura, é uma infantilidade! Daqui a tempos não restará nada dela, como se tivesse sido uma bola de sabão. Mas eu podia... podia... se se não desfizesse esta tolice... proteger a minha filha e pô‑la ao abrigo das consequências de um casamento precipitado. Por isso, Copperfield, conto que não me obrigue a tanto. Não me obrigue a cancelar coisas que estão de há muito regularizadas.

Assim falando, mostrava uma aparência de serenidade perante a qual me sentia comovido, como se diante de um ameno pôr de Sol. Via‑o tão tranquilo, tão resignado! Sem dúvida que os seus negócios estavam em perfeita ordem, metodicamente estabelecidos. Até enternecia, só de pensar! Creio mesmo que lhe notei lágrimas nos olhos, impressionado ele próprio com a regularização da sua existência.

Que podia eu, no entanto, fazer? Não ia renegar Dora nem o meu coração. Spenlow aconselhou‑me uma semana de repouso para reflectir nas suas palavras. Como recusar, ainda que soubesse de antemão que um número infinito de semanas em nada alteraria um amor como o meu.

‑ Entretanto ‑ disse ele ‑ fale de tudo isto à senhora Trotwood ou a quem tiver experiência da vida. ‑ Ajustou a gravata, com as duas mãos, e concluiu: ‑ Aproveite a semana que lhe proponho, Copperfield.

Submeti‑me. E, diligenciando dar ao rosto uma expressão de confiança desesperada, saí da sala. As sobrancelhas espessas da senhora Murdstone acompanharam‑me até à porta. (Digo sobrancelhas em vez de olhos porque elas avultam muito mais do que estes.) Achei‑a exactamente igual ao que fora, a essa mesma hora, em Blunderstone, e tanto que poderia supor que faltara de novo nas lições e que o peso morto que eu arrastava era o tremendo livro de leitura com gravuras ovais, desenhadas de tal modo que na minha imaginação surgiam como lentes de óculos.

No tribunal, isolei‑me do velho Tiffey e dos outros, e sentei‑me à minha secretária para meditar na catástrofe inesperada que se acabava de produzir, e para amaldiçoar o diabo do cachorro que a provocara. O meu tormento acerca de Dora tornou‑se de tal ordem que me admiro de não ter corrido imediatamente para Norwood. A ideia de que a assustariam, que a fariam chorar sem que eu estivesse presente para a consolar, crescia de forma tão angustiante que não me coibi de escrever uma carta desvairada ao doutor Spenlow para lhe suplicar que não descarregasse na rapariga as consequências do meu desatino. Implorei‑lhe que a poupasse, que não fizesse emurchecer uma flor frágil; enfim, falei‑lhe como se ele, em vez de ser um pai, fosse um lobo ou um dragão! Lacrei a epístola e coloquei‑a no gabinete do doutor, antes que este regressasse. E quando ele voltou, enxerguei‑o, pela porta entreaberta, a pegar na carta e a abri‑la.

Não me dirigiu a palavra durante toda aquela manhã. Mas, antes de se ir embora, à tarde, chamou‑me e disse‑me que eu não tinha necessidade de me afligir quanto à felicidade da filha. Considerava tudo aquilo puerilidade e, como pai indulgente, não voltaria a tocar‑lhe no assunto. Quanto a mim, achava que me devia abster de qualquer solicitude em relação à rapariga.

‑ Se você, Copperfield, persistisse, eu ver‑me‑ia obrigado a mandar de novo, e por algum tempo, a minha filha para o estrangeiro. Mas tenho melhor opinião a seu respeito. Espero que seja prudente. No que se refere à senhora Murdstone (eu aludira a ela na carta), respeito a sua vigilância e estou‑lhe grato; mas recomendei‑lhe que não tornasse a falar no assunto com a sua pupila. Tudo o que desejo, Copperfield, é que isto fique esquecido! A si compete principiar a esquecê‑la.

Ora eu, na carta que mandei a Julia Mills, empregava mais ou menos aqueles termos. Tudo o que devia fazer, repeti com amargo sarcasmo, era esquecer Dora. Era tudo, e tão pouca coisa, afinal! Pedia à senhora Mills que me recebesse nessa noite. Se a entrevista se não pudesse realizar com o consentimento do dono da casa, sugeria na carta um encontro clandestino no pátio onde havia a máquina de calandrar. Acrescentei que não confiava já no meu juízo e que só a amiga de Dora me poderia impedir de endoidecer de todo. Rematei assim: «O seu desesperado...» E, quando reli esta obra‑prima antes de a entregar ao portador, não deixei de pensar, sorrindo, que ela parecia saída da pena do senhor Micawber.

Todavia, despachei‑a. À noite, segui para a rua em que morava a senhora Mills e esperei até que a criada me viesse buscar, às escondidas, para me introduzir pela entrada de serviço.

Aliás, bem poderia ser recebido pela porta principal e ir até à sala se não fosse o pendor romanesco e misterioso de Julia Mills.

Nesse pátio, dei largas aos meus sentimentos. Fora ali para me tornar ridículo e tenho a certeza de que o fui. Ela recebera à última hora um bilhete garatujado à pressa por Dora, no qual participava que fora tudo descoberto. Terminava assim: «Vem depressa, Julia, vem!» Mas a destinatária, calculando que a sua presença lá não seria bem vista pelos adultos, deixara‑se ficar. E assim a noite nos envolveu, como o deserto do Sara.

Julia Mills era dotada de eloquência fora do vulgar e gostava de a expandir. Não pude impedir‑me de sentir, se bem que ela misturasse as suas lágrimas com as minhas, que extraía do nosso desgosto uma extraordinária volúpia. Saboreava‑o, acarinhava‑o por assim dizer. Um abismo, declarou, acabava de se abrir entre mim e Dora, o qual só poderia ser transposto pelo arco‑íris do amor. O amor, neste mundo triste, estava destinado ao sofrimento. Sempre assim fora, e sempre assim havia de ser. Mas que importava! Os corações aprisionados em teias de aranha libertar‑se‑iam por fim, e o amor seria vingado.

Não era grande consolo, mas a senhora Mills não queria incutir‑me vãs esperanças. Tornou‑me ainda mais infeliz do que me sentia e compreendi (como lhe disse sinceramente) que a considerava amiga verdadeira. Resolvemos que Julia Mills fosse visitar Dora no dia seguinte, de manhã cedo, e que acharia maneira de lhe garantir, por palavras ou olhares, a minha devoção e o meu desespero. Separámo‑nos acabrunhados pela dor. Creio que ela gozou essa dor até às fezes.

De regresso a casa, contei tudo à tia Betsey e, apesar dos seus lenitivos, deitei‑me desanimado. Levantei‑me ainda sob a impressão desse desânimo e fui direito ao tribunal. Era sábado.

Fiquei admirado, ao aproximar‑me da nossa banca, por ver os porteiros discutindo e meia dúzia de ociosos olhando para as janelas fechadas. Estuguei o passo e atravessando o grupo, sem compreender ainda o que acontecia, apressei‑me a entrar no edifício.

Os empregados estavam lá, mas não faziam nada. O velho Tiffey, talvez pela primeira vez na sua vida, sentara‑se na carteira de outro escrevente e esquecera‑se de pôr o chapéu no cabide.

‑ Que horrível calamidade, senhor Copperfield! ‑ disse‑me ele.

‑ Que foi? Que aconteceu?

‑ Então não sabe? ‑ exclamaram todos, rodeando‑me.

‑ Não ‑ respondi, olhando‑os sucessivamente.

‑ O doutor Spenlow... ‑ começou Tiffey.

‑ E depois?

‑ Morreu!

Julguei ver oscilar as paredes do escritório, mas um dos empregados segurou‑me. Sentaram‑me numa cadeira e trouxeram‑me água. Não sei quanto tempo durou isto.

‑ Morreu? ‑ repeti.

‑ Ontem jantou fora de casa e regressou sozinho no faetonte ‑ explicou Tiffey. ‑ Tinha mandado embora o cocheiro, pela diligência, como fazia muitas vezes.

‑ E...?

‑ A carruagem voltou vazia. Os cavalos pararam diante da porta da estrebaria. O moço saiu com uma lanterna e não viu ninguém dentro da carruagem.

‑ Os animais desbocaram‑se?

‑ Não estavam a transpirar ‑ respondeu Tiffey, pondo os óculos. ‑ Era como se tivessem andado em passo normal. As rédeas achavam‑se rebentadas, mas por se terem arrastado no chão. Acordaram toda a gente da casa, e três criados partiram para inspeccionar a estrada. Encontraram o doutor Spenlow a uma milha dali.

‑ Mais de uma milha, senhor Tiffey ‑ corrigiu um dos escreventes mais novos.

‑ Tem a certeza? Sim, deve ter razão, a mais de uma milha, perto da igreja, estendido de cara para baixo, meio na berma, meio no caminho. Foi um ataque ou foi uma queda? Ou sentiu‑se mal e apeou‑se antes? Estava morto quando o descobriram ou apenas desmaiado? Ninguém sabe. Se ainda respirava, em todo o caso perdera o uso da fala. Chamaram logo um médico, que não o pôde salvar.

Não consigo descrever o estado em que esta notícia me pôs. O abalo causado por semelhante facto, sucedido subitamente a uma pessoa com quem me encontrava mais ou menos em litígio; o vácuo terrível do gabinete que ele ainda na véspera ocupara, em que a poltrona e a secretária pareciam esperá‑lo e onde o que ele escrevera nessa altura se me afigurava já a obra de um fantasma; a impossibilidade absoluta de imaginar aquela banca sem a sua presença, e a sensação, sempre que a porta se abria, de que ele ia entrar; o silêncio e a imobilidade que reinavam no ambiente e o prazer insaciável com que os empregados contavam o caso a toda a gente de fora, que desfilava sem descanso para se refastelar de pormenores; nada disto é fácil de imaginar e muito menos de descrever. E o próprio ciúme da Morte que eu senti, pois a via expulsar‑me dos pensamentos de Dora! A inquietação ao lembrar‑me que ela chorava com outros e que outros a consolavam, o desejo avaro e egoísta de expulsar os estranhos e de ser tudo para a minha amada no momento mais inoportuno de todos os momentos!

Neste estado de espírito perturbado ‑ que espero não fosse só meu e que outros o tenham também experimentado na vida ‑ apresentei‑me naquela noite em Norwood. Sabendo por um criado, depois de haver tocado a sineta, que a senhora Mills se encontrava com a amiga, voltei a casa e pedi à tia Betsey que escrevesse uma carta, que eu próprio ditei. Nela deplorava de todo o coração a morte do doutor Spenlow. Suplicávamos a Julia Mills que comunicasse a Dora (caso esta fosse capaz de a escutar) que ele me falara sempre com muita cortesia e bondade e que pronunciara o nome da filha com a maior ternura, sem uma única palavra de exprobração. Bem sei que me impelia apenas o desejo egoísta de lhe impingir o meu nome, mas tentei persuadir‑me de que praticava um acto de justiça para com a memória do defunto.

A tia recebeu no dia seguinte umas linhas de resposta, endereçadas a ela mas na realidade destinadas a mim. Dora estava prostrada com o desgosto, e, quando a amiga lhe perguntara se não tinha nenhum recado para David Copperfield, a rapariga dissera entre lágrimas (pois não cessava de as verter): «Oh, papá querido! Coitado do papá!» Todavia não proferira a palavra «não», e eu consolei‑me com esta certeza.

O doutor Jorkins, que se instalara em Norwood logo no dia seguinte, compareceu na banca uns dias depois. Fechou‑se com Tiffey durante uns minutos, no seu gabinete, até que o velho escrevente entreabriu a porta e me chamou.

‑ Copperfield ‑ disse‑me o advogado ‑ eu e o Tiffey estamos a verificar as gavetas e as pastas do meu colega para separar os documentos e ver se, entre eles, aparece algum testamento que ele tenha feito. Mas por enquanto nem vestígios. Quer ajudar‑nos?

Eu pensava com ansiedade qual seria a situação futura de Dora, quem deveria ser o seu tutor, etc. Talvez agora soubesse de tudo isso. Recomeçámos a busca. Jorkins abria as gavetas e retirava os papéis, que dividíamos, para um lado os da profissão e para outro os pessoais (que não eram muito abundantes). Fazíamos esse trabalho com recolhimento e, sempre que topávamos alguma coisa que nos recordasse o defunto, baixávamos a voz.

Já tínhamos formado alguns maços e continuávamos a tarefa no meio do silêncio e do pó, quando Jorkins nos disse, aplicando exactamente ao seu falecido sócio as palavras que este lhe consagrara:

‑ O doutor Spenlow raras vezes se afastava do ramerrao. Você sabe como ele era. Chego a crer que não fez testamento.

‑ Sei que fez! ‑ exclamei. Pararam ambos e olharam‑me.

‑ No último dia em que lhe falei ‑ prossegui ‑ ele informou‑me de que fizera testamento e que as coisas estavam há muito tempo regularizadas.

Jorkins e Tiffey menearam a cabeça, significando comunidade de opinião.

‑ Não é animador ‑ observou o escrevente.

‑ Mesmo nada ‑ asentiu o advogado.

‑ Com certeza não duvidam de que... ‑ comecei.

‑ Caro senhor Copperfield ‑ disse‑me Tiffey, poisando‑me os dedos no braço e fechando os olhos com um gesto de cabeça ‑ se estivesse há mais tempo nos Doctor's Commons saberia que não existe assunto em que os homens sejam mais inconsequentes e tão pouco dignos de confiança.

‑ Mas, meu Deus, isso foi precisamente o comentário que ele fez! ‑ repliquei obstinado.

‑ Então é o mesmo que declarar que o caso está arrumado. Não há testamento, em minha opinião.

O facto pareceu‑me extraordinário, mas a verdade é que não havia testamento. O doutor Spenlow nunca pensara em o fazer, a avaliar pelos seus papéis, porque não se encontrou nenhuma espécie de minuta, esboço ou o que quer que fosse. E o que não me espantou menos foi estarem os seus negócios na maior desordem. Era difícil saber o que devia, e o que fora pago, e o que ele possuía à sua morte. Achou‑se provável que nem fizesse ideia muito clara desse assunto, e isso já desde há muito tempo. Tornava‑se evidente que, para manter o seu nível na rivalidade que lavrava entre a gente daquele departamento em todas as questões de aparato e elegância, despendera mais do que lhe proporcionava a profissão e assim reduzira os bens pessoais (se algum dia foram avultados, o que se afigurava pouco crível) a uma soma muito pequena. Venderam‑se os móveis de Norwood, e transferiu‑se o arrendamento. Tiffey contou‑me, sem calcular o interesse que tinha para mim, que uma vez pagas as dívidas do defunto (feita a dedução da parte que lhe competiria nos créditos da firma, alguns duvidosos e discutíveis), o activo do doutor Spenlow não ultrapassaria as mil libras.

Isto passava‑se seis semanas depois do falecimento. Eu sofrera martírio durante esse mês e meio e cheguei por vezes a pensar pôr fim aos meus dias. A senhora Mills informou‑me de que a querida Dora, reduzida ao desespero, só dizia, quando pronunciavam defronte dela o meu nome: «Oh, pobre papá! Coitado do papá!» Participou‑me também que a parentela de Dora se limitava a duas tias, irmãs do pai, solteiras e residentes em Putney, as quais desde muitos anos quase nenhumas relações tinham com o irmão. Não que tivessem brigado (acrescentou Julia Mills) mas porque, tendo sido convidadas para o copo‑d'água no dia do baptizado de Dora, não o foram para o jantar. Daí fazerem constar que, «para bem de uns e outros, mais valia conservarem‑se afastados». Depois disto, haviam seguido o seu próprio destino e o irmão seguira o dele.

Essas duas solteironas deixaram então o seu retiro e propuseram tomar conta de Dora. E Dora, agarrando‑se a elas, chorava e gemia: «Sim, sim, queridas tias! Levem‑me, e à Julia Mills, e ao Jip!» Deste modo seguiram todos para Putney, pouco tempo depois do enterro.

Nem eu sei como achava oportunidade de rondar, uma vez por outra, os arredores de Putney. A senhora Mills, para se desempenhar mais rigorosamente dos deveres da amizade, escrevia um diário. Não era raro vir ao meu encontro, à rua, para mo ler, ou (se não tinha tempo) para mo emprestar. Que tesouro para mim representava esse jornal, de que dou aqui um extracto!:

 

Segunda‑feira. A minha querida D... ainda muito abatida. Dores de cabeça. Chamei‑lhe a atenção para o pêlo sedoso de J... Ela acariciou‑o. As recordações assim despertas reabriram as comportas do desgosto. Explosão de dor. As lágrimas serão o orvalho do coração?) J. M.

 

Terça‑feira. D. adoentada e nervosa. Bela na Sua palidez. (Não será o mesmo quanto à Lua? D., J. M. e J. foram tomar ar, de carruagem. J., à portinhola, para ladrar a um varredor, provocou um sorriso nos lábios de D. (É destas frágeis malhas que se compõe a cadeia da vida!) J. M.

 

Quarta‑feira. D. relativamente alegre. Cantei‑lhe uma ária apropriada: Os Sinos da Tarde. Efeito longe de ser apaziguador. D. indizivelmente comovida. Achei‑a instantes depois, no quarto, lavada em lágrimas. Citei‑lhe versos feitos a mim e a uma Gazela, pequena. Sem êxito. É alusão à Paciência num monumento. (Pergunta: Porquê num monumento?) J. M.

 

Quinta‑feira. D. parece que melhora. Progressos à noite. Leve rubor rosado nas faces. Decidi‑me a mencionar o nome de D. C. Fi‑lo com precaução, durante um passeio. D. imediatamente agitada,. «Júlia, querida Júlia, como fui ingrata e desobediente!» Consolei‑a com afagos. Em seguida esbocei um retrato imaginário de D. C. levado à cova por desespero. D. de novo agitada. «Oh, que hei‑de fazer? Levem‑me a qualquer parte!» Muito inquieta. Desmaiou. Fui‑lhe buscar um copo de água a um café. (Afinidade poética: na porta, como emblema, um tabuleiro de xadrez. A vida humana, jogo de vicissitudes!} J. M.

 

Sexta‑feira. Dia movimentado. Aparição à porta da casinha de um homem com um saco azul para levar «sapatos de senhora a conserto». A cozinheira vai indagar, deixando o homem só com J. À volta da mulher, ele torna a insistir, mas acaba por se ir embora. J. desapareceu. D. louca de aflição. Polícia prevenida. O homem pode ser identificado assim: nariz grosso, pernas como pilares de uma ponte. Buscas em todas as direcções. Nada de J. Inconsolável, D. chora. Nova alusão à Gazela pequena. Oportuna, mas infrutífera. Pela tarde, chegada de um rapaz de nariz grosso mas sem pilares. Pede uma libra para devolver o cão. Recusa‑se a dizer mais, embora assediado de perguntas. D. entrega a libra. Ele leva a cozinheira a uma casita onde J., só, está amarrado à perna de uma mesa. Alegria de D. que dança em torno de J., enquanto este devora a sua ceia. Animada por esta mudança feliz, aproveito‑a para falar de D. C., uma vez no quarto. D. chora de novo, suplicando:

 

«Oh, não, seria mal feito pensar noutra coisa além do meu querido papá!» Beija J. e adormece a chorar. (D. C. não deveria entregar‑se aos remígios poderosos do Tempo?) J. M.

 

A senhora Mills e o seu jornal foram as únicas consolações que tive nessa época. Vê‑la, a ela que acabava de ver Dora, descobrir a inicial do nome de Dora em todas as páginas do seu relato compassivo, eis o meu único reconforto. Tinha a impressão de haver vivido num castelo de cartas, que acabava de se desmoronar, deixando apenas a mim e a Júlia Mills entre as ruínas; tinha também a impressão de que um feiticeiro cruel traçara de roda da rainha inocente do meu coração um círculo mágico, o qual só essas asas poderosas, capazes de conduzir tanta gente através das procelas, me permitiriam fazer transpor!

 

WICKFIELD & HEEP

A tia Betsey, já seriamente inquieta com o meu prolongado abatimento, achou o pretexto de me enviar a Dover para verificar se tudo corria bem na vivenda alugada e para assinar com o locatário um arrendamento a mais largo prazo. Janet entrara para o serviço da senhora Strong, e aí eu a encontrava todos os dias. Ao deixar Dover, ela pensara se deveria dar um golpe de misericórdia nessa renúncia aos homens em que fora educada, casando com um piloto. Mas não se atrevera a correr o risco: não tanto pelo princípio (suponho), porém mais exactamente pela razão de que o não amava.

Se bem me custasse separar‑me da senhora Mills, acedi de boa vontade à ideia da tia Betsey para ter oportunidade de passar umas horas tranquilas junto de Agnes. Perguntei ao doutor Strong se me concedia dispensa de três dias; ele até quis que eu lá ficasse por mais tempo, mas a minha energia não chegava para tanto. Enfim, resolvi‑me a partir. Quanto ao estágio de solicitador, não tinha de me preocupar. Para ser franco, perdíamos prestígio entre os solicitadores de primeiro plano e a nova posição tornava‑se duvidosa. A coisa não prosperara no tempo do doutor Jorkins, antes da sua sociedade com o doutor Spenlow; e, se bem que a entrada deste lhe insuflasse novo vigor, ainda a nossa posição não tomara o incremento que seria mister para resistir ao golpe desferido nela pela perda de um dos seus chefes. Rapidamente declinou. O doutor Jorkins, apesar da reputação da sua banca forense, era um desses homens negligentes, incapazes de manterem o bom nome da firma. Era agora com ele que eu devia lidar, e, quando o via tomar rapé e deixar os negócios ao deus‑dará, lastimava cada vez mais o mau emprego das mil libras da minha tia.

Mas havia pior. Existiam então nos Doctor's Commons inúmeros parasitas, que sem serem procuradores se encarregavam de casos de direito civil em nome de outros que o eram, dividindo depois os lucros. Como o nosso escritório tinha necessidade de se ocupar de processos a todo o custo, associámo‑nos àquela seita e tentámos convencer os ditos parasitas a nos confiarem os seus casos. Disputávamos todas as licenças de casamento e qualquer homologação testamentária. Isto constituía a parte mais proveitosa e a competição era grande. Angariadores e aliciadores colocavam‑se às portas do tribunal, com ordem de fazer o possível para pescar todas as pessoas de luto e toda a gente de aspecto tímido e as encaminhar para os cartórios dos respectivos patrões. E estas instruções eram tão cumpridas que eu próprio, antes de ser conhecido no local, fui por duas vezes arrastado ao cartório do nosso principal competidor. Os conflitos de interesses de tais indivíduos tornavam‑nos irritáveis, donde se originavam conflitos. E o tribunal, durante vários dias, apresentou o espectáculo escandaloso do nosso angariador deambulando com um olho negro! Nenhum desses cavalheiros hesitava em ajudar a sair da carruagem uma dama de preto, a anunciar‑lhe a morte do solicitador que ela procurava « a indicar‑lhe o seu patrão como o sucessor legitimo do defunto, arrastando a criatura (por vezes alarmada) para o escritório do referido patrão. Muitos foram os cativos que nos trouxeram desta maneira. Quanto às licenças de casamento, a rivalidade era tamanha que um pobre rapaz, se fosse tímido, ou devia entregar‑se ao primeiro engajador que lhe aparecesse ou ser joguete duma luta e tornar‑se vítima do mais forte. Um dos nossos empregados, que pertencia ao número desses parasitas, entrava no mais aceso da refrega para arrancar um desgraçado e o obrigar a apresentar‑se à nossa frente. Este sistema ainda dura, ao que suponho, pois, a última vez que lá fui, um mancebo robusto, emboscado num corredor, saltou sobre mim e segredou‑me: «Quer uma licença?» E foi com dificuldade que o persuadi a me largar o braço e a não me conduzir ao seu solicitador.

Mas deixemos esta digressão e partamos para Dover. Achei a casa em excelente estado. Tive o prazer de comunicar à minha tia, no regresso, que o inquilino lhe sucedera nas querelas e tratava com os jumentos uma guerra perpétua. Depois de haver regularizado o assunto que ali me levara e dormido lá uma noite, parti a pé para Cantuária, no dia seguinte de manhã. Voltara o Inverno e, à brisa que soprava, perante o horizonte imenso dos médãos, senti as minhas esperanças reanimarem‑se um pouco.

Ao chegar a Cantuária, divaguei uns momentos pelas ruas velhas, com uma alegria discreta que me acalmou a imaginação e aliviou a alma. Reencontrei antigas tabuletas, antigos nomes na fachada das lojas, as mesmas caras atrás dos balcões. Os meus anos de colégio pareciam‑me tão recuados que me admirei de ver a cidade tão pouco mudada, até ao instante em que reflecti quão pouco eu mesmo mudara. Coisa singular, esta paz que o meu espírito associava sempre à presença de Agnes dir‑se‑ia impregnar a própria terra que ela habitava. Nas torres venerandas da catedral, que os gritos das gralhas tornavam ainda mais recolhidas do que se o silêncio as povoasse; nos portais desfeitos, outrora ornados de estátuas (que o tempo derrubara ou desfizera em pó, como aos peregrinos que as vinham admirar); nos cantos tranquilos em que a hera secular subia pelas paredes, cobrindo‑lhes as ruínas; nas casas de outrora, no cenário pastoril dos campos, dos pomares e jardins, por toda a parte, enfim, eu senti pairar a mesma serenidade, o mesmo sopro calmo, pensativo, apaziguador.

Ao entrar na residência do doutor Wickfield, encontrei na saleta baixa do rés‑do‑chão o senhor Micawber a escrever com ar muito aplicado. Estava com um fato preto de aparência jurisdicional e enchia com a sua corpulência o compartimento exíguo.

Ficou satisfeitíssimo por me ver, mas ao mesmo tempo um tanto vexado. Desejou acompanhar‑me logo à presença de Uriah; eu declinei a oferta.

‑ Conheço a casa há muito, como sabe ‑ respondi ‑ e sei orientar‑me sozinho. Que impressão tem do Direito, senhor Micawber?

‑ Meu caro Copperfield, para uma pessoa dotada de imaginação superior, o inconveniente dos estudos jurídicos está na quantidade de minúcias que implicam. Até na nossa correspondência profissional ‑ acrescentou relanceando as cartas que redigia ‑ ao espírito escasseia liberdade de se elevar às formas mais altas da expressão. Contudo é uma bela carreira, uma belíssima carreira!

Disse‑me em seguida que ia alugar a antiga casa de Uriah Heep, e que a mulher se regozijaria muito de me receber mais uma vez sob o seu tecto.

‑ Tecto humilde ‑ sublinhou ‑ para usar uma expressão predilecta do meu amigo Heep. Mas pode tornar‑se um degrau para residência mais sumptuosa.

Perguntei‑lhe se se sentia contente com a maneira como o tratava o seu amigo Heep. Levantou‑se, para se certificar de que a porta estava bem fechada, e replicou baixando a voz:

‑ Copperfield, meu caro, uma pessoa que se debate no meio de embaraços pecuniários vê‑se num pé de inferioridade em relação à maior parte dos mortais. E essa inferioridade decerto não se atenua quando a pressão das circunstâncias acarreta um adiantamento sobre os salários, antes que os emolumentos sejam estritamente devidos e pagos. Tudo o que posso observar‑lhe é que o meu amigo correspondeu a apelos de que não necessito de precisar a natureza, fazendo igualmente honra à sua inteligência e ao seu coração.

‑ Não o julgava, a ele, tão liberal em matéria de dinheiro...

‑ Desculpe, mas falo do meu amigo Heep segundo a minha própria experiência.

‑ Rejubilo com o facto de essa experiência lhe ser favorável.

‑ Você é muito amável, meu caro Copperfield ‑ concluiu ele, trauteando.

‑ Encontra‑se muitas vezes com o doutor Wickfield? ‑ inquiri, para mudar de assunto.

‑ Não muitas ‑ volveu com ar desdenhoso. ‑ O doutor Wickfield é, não duvido, um homem cheio de óptimas intenções, mas... em suma, envelheceu.

‑ Oxalá não tenha sido obra do seu associado.

‑ Meu caro Copperfield ‑ recomeçou Micawber, após umas evoluções no tamborete, para disfarçar o constrangimento ‑ permita um comentário. Ocupo aqui um lugar de confiança. Contam com a minha discrição. Discussões sobre certos assuntos, mesmo com a minha mulher (que é no entanto companheira de tantos anos de vicissitudes e, além disso, pessoa de espírito notavelmente sagaz), discussões destas, repito, são incompatíveis, em meu parecer, com as funções que desempenho. Atrevo‑me, pois, a propor que, nas nossas relações tão amigáveis (as quais espero se mantenham), nós tracemos uma linha de demarcação. De um lado dessa linha ‑ que Micawber representou na secretária servindo‑se de uma régua ‑ haverá todo o campo das preocupações humanas, com uma única excepção, e do outro, essa única excepção, isto é, os negócios dos senhores Wickfield e Heep, com todas as suas limitações. Espero não ofender o companheiro da minha mocidade submetendo esta proposta à imparcialidade do seu julgamento.

Ainda que adivinhasse em Micawber certo mal‑estar (pois as novas funções pareciam constrangê‑lo como um fato muito apertado), achei que não tinha razão para me considerar ofendido. Ele mostrou‑se aliviado e apertou a minha mão.

‑ Que admiração eu sinto ‑ disse Micawber ‑ perante a senhora Wickfield! É mulher superior, cheia de encantos, de graças, de virtudes. Palavra de honra que me alegra prestar‑lhe esta homenagem.

‑ Aí está, ao menos, uma coisa que me dará prazer.

‑ Se você, caro Copperfield, não nos tivesse afirmado, quando passámos aquele delicioso serão em sua casa, que tinha preferência pela letra D., eu julgaria que era pela letra A.

Acontece‑nos termos às vezes a impressão de que o que estamos a fazer ou a dizer já foi por nós feito e dito noutra ocasião, que nos rodeavam nessa altura as mesmas caras e as mesmas circunstâncias; que sabemos com antecedência o que vai ser dito, como se tivéssemos uma recordação súbita do momento passado. Eu nunca experimentei aquela sensação misteriosa com tanta força como naquele instante em que falou o senhor Micawber.

Despedi‑me dele por então, encarregando‑o das minhas lembranças para todos os seus. No minuto em que o vi retomar o tamborete e a pena e ajeitar o pescoço no colarinho, como para dar à cabeça a verdadeira posição do escriba, compreendi perfeitamente que havia entre nós, desde que ele entrara nas suas novas funções, algo que nos impedia o entendimento de outrora e mudava por completo o carácter das nossas relações.

Não estava ninguém na velha sala, embora aí se notassem vestígios da passagem recente da senhora Heep. Relanceei o compartimento que Agnes reservara para si e enxerguei‑a sentada ao canto do lume, ocupada a escrever diante de uma linda secretariazinha, propriedade sua. Como eu a privasse da luz, ela ergueu a vista. Que felicidade ter sido a causa da expressão radiante que lhe apareceu no rosto e de um acolhimento tão afável!

‑ Agnes ‑ disse‑lhe após nos havermos sentado lado a lado ‑ você fez‑me tanta falta nos últimos tempos!

‑ Palavra? Outra vez? E já? Movi a cabeça afirmativamente.

‑ Não sei como isto é ‑ continuei. ‑ Julgo que me escasseia uma faculdade. Você habituara‑se a pensar por mim e eu vinha tão naturalmente buscar conselhos junto de si que me privei de certa faculdade...

‑ Qual? ‑ perguntou em tom festivo.

‑ Não sei que nome lhe dê. Acha que possuo seriedade e perseverança?

‑ Tenho a certeza ‑ replicou Agnes.

‑ E paciência? ‑ insisti hesitante.

‑ A suficiente, Trotwood.

‑ Contudo, sucede‑me ser tão infeliz e estar tão inquieto! Tudo instável e tão indeciso! Quando quero ser firme... não encontro a necessária confiança.

‑ Prefiro esse nome a outro.

‑ Pois bem, veja: você chega a Londres, eu recupero a estabilidade, defino os meus propósitos... Depois extravio‑me, venho cá, e num instante sou outro. As coisas que me atormentam não se alteraram desde que entrei nesta sala: mas nestes poucos minutos agiu sobre mim uma influência capaz de me transformar, e com que vantagem! Que é, pois? Qual é o seu segredo, Agnes?

A rapariga curvou a cabeça e olhou o lume.

‑ Não é nada de novo ‑ recomecei. ‑ Não se ria se lhe disser que sempre assim foi, tanto nas coisas grandes como nas pequenas. Os meus antigos cuidados eram apenas criancices, ao passo que presentemente são de vulto; mas, de cada vez que me afastei da minha irmã adoptiva...

Agnes levantou a vista. E que face angelical! Depois estendeu‑me a mão, que beijei.

‑ De cada vez que você não estava, Agnes, para me reconduzir ao bom caminho e me dar coragem, eu parti à aventura e deparei dificuldades de todo o género. Mas, quando voltava para junto de si, como sempre fiz, achava paz e felicidade. Eis‑me hoje de regresso, como um viajante fatigado que encontra o repouso bendito.

Sentia tão profundamente tudo quanto estava a dizer‑lhe, achava‑me tão comovido, que a voz me faltou e, escondendo a cara nas mãos, principiei a soluçar. Isto é a pura verdade. Fossem quais fossem as contradições e inconsequências da minha alma (que tantos outros também conhecem); fosse melhor ou pior o meu comportamento; fosse qual fosse a obstinação que usei por vezes em ignorar a voz do meu coração, tudo isto me passava despercebido. Sabia que experimentava sempre um sentimento profundo de descanso e de paz ao lado de Agnes; as suas maneiras plácidas e fraternais, o seu olhar cintilante, a voz branda, aquela serenidade que de todo o tempo me fizera sagrada a casa que ela habitava, depressa me arrancaram a esse desfalecimento, e eu contei‑lhe tudo o que se havia passado desde o nosso último encontro.

‑ Não há mais nada para acrescentar ‑ disse eu a Agnes, ao chegar ao fim das minhas confidências. ‑ Agora conto consigo.

‑ Mas não é comigo que deve contar, Trotwood ‑ respondeu ela com um sorriso meigo. ‑ É com outra pessoa.

‑ Dora?

‑ Certamente.

‑ É que não lhe disse ‑ ajuntei um tanto contrafeito ‑ que se torna difícil... ‑ Não queria, por nada deste mundo, confessar a impossibilidade de contar com Dora, por ser a personificação da lealdade e da pureza. ‑ Não sei como exprimir‑me... Ela é um ser tímido, fácil de se inquietar, fácil de se assustar. Há pouco tempo, antes da morte do pai, quando julguei azado falar‑lhe de... Mas vou‑lhe contar tudo, se tiver a paciência de me ouvir.

Expus então a Agnes a minha confissão, a história do livro de culinária, das contas domésticas e do resto.

‑ Oh, Trotwood! ‑ replicou, com um sorriso de censura. ‑ Isso é que é intrepidez! Nada o impedia de se resolver a um esforço para o desembaraçar na vida, sem, para tal, ter de assustar uma criança inexperiente e tímida. Coitada da Dora!

Jamais ouvi tanta indulgência expressa por alguém do que a contida nesta resposta. O efeito que me produziu foi semelhante ao que teria se a visse beijar Dora com admiração e ternura. Arrependi‑me, de facto, de haver alarmado a minha amada. Fiquei altamente reconhecido a Agnes. Via‑as, a uma e outra, reunidas num quadro encantador, amigas eleitas para se amarem mutuamente.

‑ Então que devo fazer, Agnes? Qual será a melhor solução?

‑ Penso que a maneira mais digna de proceder seria escrever às duas senhoras. Não lhe parece que estes segredinhos são desprezíveis?

‑ Decerto... visto ser a sua opinião.

‑ Não estou qualificada para ajuizar em semelhante matéria ‑ replicou ela com hesitação e modéstia ‑ mas afigura‑se‑me que... Em resumo, acho estas maneiras clandestinas e misteriosas incompatíveis com o seu carácter, Trotwood.

‑ Devido ao bom conceito que forma de mim, Agnes.

‑ Não, mas devido à sua honestidade natural. Eu própria escreverei às duas irmãs Spenlows. Pô‑las‑ei ao facto de tudo quanto se passou, e com simplicidade e franqueza. Pedirei licença para as visitar de vez em quando. Como você é novo e vai iniciar uma carreira, julgo que seria bom acrescentar que está disposto a aceitar todas as condições que elas considerem necessárias. Suplicarei que não indefiram o seu pedido sem ouvir Dora e que discutam com ela quando acharem ocasião favorável. Não serei muito veemente ‑ ajuntou Agnes com doçura ‑ nem muito imperiosa. Confiarei na minha fidelidade e perseverança, e na própria Dora.

‑ Mas se elas tornarem a meter medo à rapariga, falando‑lhe no assunto? E se Dora chorar, sem dizer nada a meu respeito?

‑ Crê nessa probabilidade? ‑ perguntou Agnes com a mesma benévola doçura de expressão.

‑ Coitada! É tão fácil de assustar como um passarinho. Sim, é provável. Ou se as duas Spenlows não forem acessíveis a um requerimento desta ordem... As velhas como elas são às vezes originais.

‑ Parece‑me, Trotwood ‑ volveu Agnes, alçando para mim os olhos ‑ que não me deterei nessas considerações. Mais vale indagar somente se se deve agir assim, e, no caso afirmativo, pôr mãos à obra.

Não duvidei mais. De coração aliviado, ainda que imbuído da responsabilidade da minha tarefa, consagrei a tarde a fazer o rascunho da carta, ocupação para que Agnes me cedera a sua secretária. Mas, primeiramente, fui visitar Wickfield e Uriah Heep.

Encontrei este último instalado num escritório novo, que ainda cheirava a estuque, construído a meio do jardim. Tinha um ar tão mesquinho entre os livros e a papelada que o rodeavam! Recebeu‑me com a afabilidade costumada e fingiu que Micawber o não prevenira ainda da minha chegada. Acompanhou‑me ao compartimento do doutor Wickfield, que já não parecia o que fora pois tinham retirado a maior parte dos móveis para adornar o do seu sócio. Este ficou de pé defronte do fogão, a aquecer as costas e a afagar o queixo com a mão ossuda, enquanto Wickfield e eu nos cumprimentávamos.

‑ Hospedar‑se‑á aqui, Copperfield, durante a sua permanência em Cantuária ‑ disse o velho advogado, não sem lançar a Uriah um olhar com que pedia aprovação.

‑ Mas tem lugar para mim?

‑ Afianço‑lhe, menino Davy... devia dizer senhor Copperfield mas isto vem instintivamente, que lhe cedo de bom grado o seu antigo quarto, se é que lhe dá gosto.

‑ Não, não ‑ acudiu Wickfield ‑ por que havia de ser você a desalojar‑se? Há outro quarto, parece‑me...

‑ Olhe que tenho o maior prazer! ‑ insistiu Heep, com um sorriso que lembrava uma careta.

Para pôr ponto final na discussão, declarei que aceitava o outro quarto, e assim ficou decidido. Depois, despedi‑me da firma até à hora do jantar, e subi a escada para voltar à saleta de Agnes. Esperava encontrá‑la sozinha, mas a senhora Heep solicitara licença para se instalar ao pé do lume com o seu trabalho de malha (lugar mais favorável, dizia, para o seu reumatismo do que a sala grande ou a casa de jantar, devido à direcção do vento). Embora eu preferisse abandoná‑la ao vento, sem remorsos, no mais alto campanário da Catedral, fiz das tripas coração e saudei‑a cortesmente.

- Humildemente lhe agradeço, senhor Copperfield ‑ disse ela respondendo às perguntas que lhe fiz acerca da sua saúde. ‑ Vou indo como posso. Já não espero muito da vida. Bastar‑me‑á ver o meu Uriah bem estabelecido para não desejar mais nada. Como o achou?

Eu achara‑o horrível como sempre, e informei‑a de que não lhe encontrara mudança.

‑ Ah, encontrou‑o na mesma? Pois rogo‑lhe humildemente perdão para discordar do seu parecer. Não se lhe afigura mais magro?

‑ Nem por isso.

‑ Deveras? É que o não vê com os olhos de uma mãe.

Esse olhar materno, por mais meigo que fosse para ele, considerei‑o o pior para as outras pessoas quando se poisou em mim. Mas creio realmente que eram muito dedicados um ao outro, mãe e filho. O dito olhar resvalou em seguida para Agnes.

‑ E a menina, não o acha mais magro e fatigado?

‑ Não ‑ replicou Agnes, que prosseguiu pacificamente no seu trabalho. ‑ A senhora apoquenta‑se em excesso quanto a ele. Em minha opinião, direi que vai bem.

A senhora Heep retomou a sua malha, fungando ruidosamente.

Nem por um minuto abandonou as agulhas ou a vigilância. Eu chegara cedo e faltavam ainda umas três ou quatro horas para o jantar: mas a criatura manteve‑se ali, trabalhando com a monotonia de uma ampulheta que deixa a areia escorrer. Estava sentada a um dos lados do fogão; eu, diante da secretária e do lume; e, um pouco mais longe, encontrava‑se Agnes. De cada vez que, no meio das minhas lucubrações epistolares, levantava a vista e deparava o rosto pensativo da filha de Wickfield a iluminar‑se e enviar‑me um olhar de incitamento, logo sentia a influência maléfica da velha sobre mim e sobre Agnes. O que era a malha que ela fazia, não sei ao certo, por ser pouco versado nessa arte: pareceu‑me uma espécie de rede. A mulher agitava as agulhas como pauzinhos de chinês, à luz das brasas, tal uma feiticeira horrenda conservada em atitude respeitosa pela fada boa que nos acompanhava, mas disposta a largar a rede à primeira oportunidade.

Durante o jantar, esses olhos que piscavam continuaram a observar‑nos. Em seguida a fiscalização coube ao filho. Quando fiquei com ele e com o doutor Wickfield, o homem fez tantas caretas e contorções que me senti fora de mim. Na sala reunimo‑nos à senhora Heep, que retomara as agulhas. Todo o tempo que Agnes tocou e cantou, a velha conservou‑se ao pé do piano, e até pediu uma balada, da qual, segundo se depreendia, o seu Uriah gostava muito. Nesse momento, o mencionado Uriah bocejava na poltrona. De vez em quando, ela voltava‑se para Agnes e dizia que o filho escutava extasiado. Nunca falava sem fazer alusão ao seu rebento. Dir‑se‑ia obedecer a uma combinação de família.

E assim foi até à hora de deitar. O facto de ter visto a mãe e o filho pairarem como dois grandes morcegos pela casa toda, escurecendo‑a com as suas sombras disformes, transtornara‑me tanto que preferiria continuar onde estava (apesar da malha e do resto) a ir enfiar‑me na cama. Quase nem dormi. No dia seguinte as agulhas e a vigilância recomeçaram e duraram até à noite.

Não tive oportunidade de ficar só com Agnes nem por dez minutos. Mal pude mostrar‑lhe a carta definitivamente redigida. Propus‑lhe ir passear comigo, mas a senhora Heep queixou‑se de se sentir cada vez pior e Agnes conservou‑se caridosamente em casa, para lhe fazer companhia. À noite saí só, pensando que partido devia tomar se não pudesse prevenir Agnes do que me dissera em Londres Uriah Heep.

Fui na direcção de Ramsgate, onde o caminho era bom: ainda não me afastara muito da cidade quando ouvi chamarem‑me atrás de mim. Apesar do escuro, o vulto desengonçado e o sobretudo encolhido eram facilmente identificáveis. Parei, esperando por Uriah.

‑ Então? ‑ murmurei.

‑ Como anda tão depressa! As minhas pernas não são curtas, mas custou‑me a alcançá‑lo.

‑ Aonde vai?

‑ Vou acompanhá‑lo, menino Davy, se me quer dar esse prazer.

‑ Uriah! ‑ disse‑lhe após um momento de silêncio, tão delicadamente quanto pude.

‑ Menino Davy?!

‑ Para falar verdade... e espero que não se ofenda... saí expressamente para estar só; já tive hoje excesso de companhia...

Lançou‑me um olhar de revés e observou com o mais cruel dos seus sorrisos:

‑ Refere‑se à minha mãe?

‑ Desculpe, mas é verdade.

‑ Como sabe, temos tamanha consciência de sermos humildes que precisamos de tomar cuidado para que não nos suplantem aqueles que o não são. Em amor todos os estratagemas servem.

Levantou as mãos enormes, tocou no queixo e esfregou‑o devagar, rindo baixinho; assemelhava‑se tanto a um babuíno perverso como o pode ser um ente humano.

‑ Compreende ‑ prosseguiu ele, continuando a sua picardia e oscilando a cabeça, enquanto me fitava. ‑ O menino é um rival perigoso. Sempre o foi.

‑ Foi então por minha causa que montou essa vigilância em volta da menina Wickfield e que tornou o seu lar insuportável?

‑ Oh, menino Davy, que palavras tão rudes!

‑ Exprimo o meu pensamento com as palavras que quiser. Sabe o que pretendo insinuar, Uriah, e sabe‑o tão bem como eu.

‑ Ah, não! Diga‑o claramente, peço‑lhe.

‑ Mas imagina ‑ retorqui, procurando manter a calma e a moderação por causa de Agnes ‑ que eu considero a menina Wickfield de outra forma diferente de uma irmã querida?

‑ Bem vê que não sou obrigado a responder a essa pergunta, menino Davy. Talvez não, talvez sim...

Nunca conheci astúcia semelhante àquela, tão abjecta. E, demais a mais, reflectida nuns olhos sem pestanas!

‑ Olhe ‑ continuei ‑ no próprio interesse da menina Wickfield...

‑ A minha Agnes! ‑ bradou ele com uma contorção de epiléptico. ‑ Tenha a bondade de lhe chamar Agnes, menino Davy.

‑ Então, no interesse de Agnes Wickfield (que Deus a proteja)...

‑ Obrigado por este voto...

‑ ... dir‑lhe‑ei o que, noutras circunstâncias, teria preferido dizer a Jack Ketch...

‑ A quem? ‑ replicou Uriah, estendendo o pescoço e pondo a mão em concha na orelha.

‑ Ao carrasco, a pessoa mais inverosímil em que eu poderia pensar... ‑ No entanto, fora a cara dele que me sugerira a comparação. ‑ Estou noivo de outra rapariga. Espero que isto o tranquilize.

‑ Jura‑mo?

Eu estava prestes a dar às minhas palavras, em tom indignado, a confirmação que ele requeria quando Uriah me agarrou a mão e a apertou.

‑ Oh, menino Davy, acaba de me honrar com as suas confidências, retribuindo assim a confiança com que lhe abri o meu coração nessa famosa noite em que o incomodei tanto, a ponto de dormir no sofá do seu escritório! Jamais duvidaria de si. Mas, seja como for, vou já desembaraçá‑lo da minha mãe, porque me sinto imensamente feliz. Estou certo que desculpará as precauções que tomei, como apaixonado ciumento. Que pena não me haver contado isso mais cedo! Não quis descer até mim, é o caso. Não ignora que a sua estima nunca igualou a que lhe dedico.

Sempre a falar, apertava a minha mão nos seus dedos húmidos e moles, embora eu fizesse mil esforços para a retirar. E não se contentou com isso mas passou o meu braço por baixo do seu e assim continuámos, unidos, o passeio.

‑ Volta‑se para trás? ‑ sugeriu Uriah, virando‑se na direcção da cidade, sobre a qual nesse momento brilhava o luar, tornando prateadas as vidraças das janelas.

‑ Antes de concluir o assunto ‑ ripostei, quebrando o silêncio que já se prolongava ‑ gostaria que compreendesse isto: considero Agnes Wickfield tão superior a Uriah Heep, tão acima dele e tão estranha a todas as suas aspirações, como esta Lua que ora admiramos.

‑ Bem se vê que nunca me estimou, menino Davy. Sempre me achou muito humilde, não é verdade?

‑ Não aprecio muito as profissões de humildade, nem, aliás, as de fé, seja de quem for.

‑ Ah, não me admira ‑ acudiu Uriah, com faces flácidas e cor de chumbo banhadas de luar. ‑ No entanto, entende mal a humildade que convém aos da minha posição, menino Davy! Eu e meu pai fomos educados numa escola de rapazes sustentada pela caridade pública, e a minha mãe, por seu lado, criou‑se num estabelecimento de beneficência. Aí, inculcavam‑nos boa dose de humildade, e só isto, desde a manhã à noite. Devíamos ser humildes perante Fulano ou Sicrano, desbarretar‑nos a este, fazer vénias àquele, estarmos sempre no nosso lugar e curvarmo‑nos diante dos superiores. Meu pai ganhou, pela humildade, uma medalha de aluno mais bem comportado. Mais tarde foi sacristão, sempre devido à sua humildade. Tinha tal reputação de bem educado que estavam resolvidos a elevá‑lo. «Sê humilde, Uriah», dizia‑me, «e desbravarás o teu caminho. Foi o que me ensinaram na escola, e a ti ensinam também. E o que convém. Sê humilde, e vencerás!» E, de facto, a coisa não tem ido mal.

Pela primeira vez me acudiu a ideia de que se tratava de um produto consumado de falsa humildade, engendrado no seio de uma família que disso tirava o seu esteio.

‑ Ainda pequeno ‑ prosseguiu Uriah ‑ compreendi a força da humildade e tomei‑lhe o gosto. Com apetite comia o pão da humildade. Detive‑me, na educação, em um nível modesto e pensei: «Já chega.» Quando me propuseram ensinar‑me latim, não me deixei tentar. «As pessoas gostam de se sentir superiores a ti», observava‑me o pai. «Evita elevares‑te.» Continuei humilde até hoje, menino Davy, mas disponho de certo poder.

Se me contava tudo aquilo (percebi‑o vendo‑lhe a cara na claridade argêntea) era para eu saber quanto estava decidido a se indemnizar usando desse poder. Nunca duvidara da sua abjecção, da sua habilidade ou da sua malícia; mas compreendi, pela primeira vez, que alma vil, impiedosa, sedenta de vingança, a sujeição da juventude criara naquele corpo.

A auto‑apologia teve ao menos a consequência agradável de o levar a retirar o braço do meu para afagar o queixo, como de costume. E eu, com o braço liberto, estava disposto a não o deixar de novo no dele ‑ e assim regressámos a casa, sem dizer mais nada de importante pelo caminho.

Não sei se Uriah se sentia exaltado pela comunicação que acabava de receber ou pela sua evocação do passado, mas havia efectivamente qualquer coisa que o entusiasmava. Durante o jantar, falou mais que de costume; perguntou à mãe (desobrigada da sua vigilância desde a nossa chegada) se não estava a tornar‑se muito velho para continuar solteiro, e lançou tal olhar a Agnes que eu teria dado tudo, nesse instante, para o esmagar ali mesmo. Quando nós três, homens, ficámos na casa de jantar, ele usou de liberdades mais audaciosas. Tomara pouco vinho, se algum tomara, de maneira que só a insolência do triunfo o excitava, acirrada ainda, suponho, pela minha presença.

Notara eu, na Véspera, que Uriah se esforçava por que o doutor Wickfield ingerisse vinho. Por isso, interpretando o olhar que Agnes me deitara ao sair da sala, não consenti que a garrafa passasse mais de uma vez de um para outro, e propus que fôssemos reunir‑nos às senhoras. Mas Uriah interrompeu‑me:

‑ As visitas do nosso hóspede ‑ disse ele dirigindo‑se a Wickfield, que, sentado no extremo da mesa, formava perfeito contraste com o sócio ‑ são tão raras que eu sugiro despejemos mais um ou dois copos em sua honra, se não vê nisso inconveniente. Senhor Copperfield, à sua saúde!

Vi‑me obrigado a aceitar a mão que me estendia. Depois, com sentimentos muito diversos, apertei a do velho advogado, agora tão deprimido.

Não me alongarei nos brindes que Wickfield propôs à saúde da minha tia, do senhor Dick, do Tribunal, de Uriah, em todos bebendo duas vezes. Não falarei também da consciência que ele tinha da sua fraqueza nem dos esforços vãos que fazia para resistir; nem da luta que nele se travava entre a vergonha que Uriah lhe inspirava e o seu desejo de a combater; nem da manifesta exaltação do velhaco, que se contorcia, agitava e impelia o velho sócio a fazer triste figura à sua frente. Tudo isto me causou náuseas e a mão recusa‑se a descrever.

‑ Meu caro sócio ‑ disse Uriah ‑ vou alvitrar outro brinde, e peço‑lhes humildemente que encham os copos, pois tenciono beber à saúde da mais divina do seu sexo.

O pai de Agnes conservava o copo vazio. Vi‑o descansá‑lo na mesa; olhar para o quadro da pessoa com quem ela tanto se parecia, levar a mão à testa e recair na cadeira.

‑ Sou muito humilde para ter lembrado isto ‑ acrescentou Uriah ‑ mas admiro‑a tanto... adoro‑a!

Creio que nenhuma dor física suportada por aquela cabeça grisalha me seria mais penosa de ver do que o sofrimento moral que Wickfield tentava comprimir, agora com as duas mãos.

‑ Agnes ‑ continuou Uriah Heep, quer fingisse não notar a atitude do advogado, quer não compreendesse a significação do gesto. ‑ Agnes Wickfield é, posso dizê‑lo sem receio, a mais divina do seu sexo. Permitem‑me que fale francamente, aqui entre amigos? Pois bem: ser pai dela é motivo de orgulho, mas ser seu marido...

Que Deus me guarde de jamais ouvir outro grito como o que soltou Wickfield, levantando‑se da mesa.

‑ Que foi? ‑ perguntou o biltre, empalidecendo horrorosamente. ‑ Espero que o senhor não tenha enlouquecido... Se digo que tenciono tornar Agnes minha mulher é que tenho tanto direito como outro qualquer. Melhor: tenho mais direito do que outro!

Eu passara o braço de roda do corpo de Wickfield e implorava‑lhe por tudo (e sobretudo por amor de Agnes) que se acalmasse um pouco. Nesse instante ele parecia doido, arrepelava os cabelos, batia na testa, procurava desembaraçar‑se de mim... Não me respondia, não olhava nem via ninguém, mas debatia‑se desesperado sem saber porquê, com a fisionomia alterada, os olhos alucinados.

Supliquei‑lhe de forma incoerente, mas com veemência, que não se entregasse àquele arrebatamento e me escutasse; que pensasse em Agnes; que não se esquecesse de que eu e ela crescêramos juntos; que a respeitava e estimava; que para ele era um motivo de orgulho e de alegria. Diligenciei impor‑lhe a ideia de Agnes fosse de que forma fosse. Cheguei a incriminá‑lo por não ter energia para ocultar da filha uma cena como aquela. Talvez lhe atingisse qualquer fibra, talvez a sua cólera esmorecesse por si mesma. O caso é que a pouco e pouco Wickfield sossegou e começou a olhar‑me, a princípio de maneira estranha, depois como se me reconhecesse. Por fim disse‑me:

‑ Bem sei, Trotwood! A minha querida filha e você... Bem sei. Mas veja‑o!

Mostrava‑me Uriah, que estava pálido e ameaçador, a um canto, evidentemente frustrado nos seus cálculos e apanhado de surpresa.

‑ Veja o meu algoz ‑ continuou o dono da casa. ‑ Cedi‑lhe o terreno passo a passo, abandonando‑lhe o meu nome, a minha reputação, o repouso e a tranquilidade, o meu tecto, o meu lar...

‑ Conservei‑lhe o nome e a reputação, a paz e a tranquilidade do tecto e do lar ‑ ripostou Uriah no tom precipitado e rabugento de um vencido. ‑ Não seja ridículo, doutor Wickfield! Se ultrapassei um pouco os limites permitidos, poderei recuar. Não há nisso nenhum mal irremediável.

‑ Empreguei‑o porque julguei que me podia ser útil ‑ volveu Wickfield. ‑ E de começo senti‑me satisfeito. Mas olhe, Copperfield, em que ele se transformou!

‑ Mais vale que o detenha, David! ‑ gritou‑me Uriah, apontando‑me o dedo magro e comprido. ‑ É capaz de dizer qualquer coisa de que mais tarde se arrependa... e que o menino lastimará ter ouvido.

‑ Direi o que me apetecer ‑ insistiu o advogado, que atingia o cúmulo do desespero. ‑ Que me importa cair sob a alçada da sociedade, se já estou debaixo da sua?

‑ Tome cuidado, repito‑lhe! ‑ Uriah voltara‑se para mim. ‑ Se não lhe fechar a boca é que não é seu amigo. Por que não está à mercê de toda a gente? Porque tem uma filha. Eu e o senhor sabemos o que sabemos, não é verdade? Ah, não acorde o cão que dorme. Para quê? Não vê que sou o mais humilde que é possível? Torno a dizer: se me excedi, lamento. Que mais quer?

‑ Oh, Trotwood, Trotwood! ‑ exclamou Wickfield, torcendo as mãos. ‑ Em que me tornei desde que o vi pela primeira vez nesta casa! Já declinava, nessa altura, mas que caminho atroz percorri depois disso! A minha queda foi provocada por uma indulgência culposa: indulgência na lembrança e indulgência no esquecimento. A dor natural pela morte da minha mulher tornou‑se uma coisa mórbida. Contaminei tudo em que pus as mãos. Causei a infelicidade do ente que tanto amo: sei‑o e você também sabe. Julguei possível amar uma única criatura no mundo, pondo de lado os demais. Julguei possível chorar um ente desaparecido, sem tomar parte no luto dos outros que choram. Assim se perverteram as lições da minha vida. Quis alimentar‑me do sofrimento lânguido do coração, e esse coração nutriu‑se de mim. Ignóbil na dor, ignóbil no amor, ignóbil na fuga cobarde para escapar às sombras de ambos, vejam a ruína que sou agora, detestem‑me, fujam!

Deixou‑se cair na poltrona e soluçou desabaladamente. Abandonara‑o a excitação em que o lançara a objurgatória de Heep. Este regressou do seu canto. Wickfield continuou, estendendo as mãos como para repelir a sua condenação:

‑ Já nem sei o que fiz na minha cegueira. Ele sabe melhor do que eu ‑ falava de Uriah ‑ porque esteve sempre a meu lado, para me aconselhar. Já se pode ver que peso tenho ao pescoço. Encontramo‑lo na casa, nos negócios. Ainda há pouco falou. Preciso de dizer mais?

‑ Não precisa de dizer tanto, nem metade, nem sequer nada ‑ observou Uriah, meio impertinente, meio obsequioso. ‑ O senhor não teria tomado as coisas dessa maneira se não fosse o vinho que bebeu. Amanhã estará mais lúcido. Se eu falei demais, ou mais do que queria, que importa? Não insisti.

Abriu‑se a porta e Agnes, entrando sem ruído, de rosto imensamente pálido, passou o braço em torno do pescoço do pai e disse‑lhe com firmeza:

‑ Papá, não se encontra bem de saúde. Venha comigo.

Wickfield apoiou a cabeça no ombro da filha, como se acabrunhado pela vergonha, e saiu com ela. O olhar de Agnes cruzou‑se com o meu, por um segundo, mas isto bastou: compreendi que não ignorava o que tinha decorrido.

‑ Não pensei ‑ observou‑me Uriah ‑ que ele tomasse a coisa tão a peito. Mas não tem importância. Amanhã reconciliar‑nos‑emos. É para seu bem. Trabalho humildemente para seu bem.

Sem responder, subi à saleta tranquila em que tantas vezes Agnes ficara a sós comigo, enquanto eu estudava. Até tarde ninguém mais entrou. Peguei num livro e comecei a lê‑lo. Ouvi os relógios soarem meia‑noite, e eu continuava a ler, sem dar fé do que fazia, quando Agnes me tocou no braço.

‑ Parte amanhã cedo, Trotwood. Vamos despedir‑nos já. ‑ Chorara, mas o rosto parecia outra vez belo e calmo. ‑ Deus o acompanhe ‑ acrescentou, com a mão estendida.

‑ Querida Agnes, vejo que não deseja que eu lhe fale desta noite... Mas não haverá outra solução?

‑ Devemos ter confiança em Deus! ‑ respondeu.

‑ E eu não poderei ser útil, eu que vim importuná‑la com os meus pequeninos dissabores?

‑ Que tornaram os meus muito mais leves!  Não, caro Trotwood.

‑ Agnes, será presunção da minha parte, porque sou tão desprovido de tudo o que constitui a sua riqueza... bondade, energia, e as mais nobres qualidades... duvidar de si ou aconselhá‑la; mas sabe quanto a estimo e quanto lhe devo. Não vai sacrificar‑se a um falso sentimento do dever, pois não?

Mais comovida nesse momento do que eu a vira em toda a vida, Agnes retirou a mão da minha e recuou um passo. Insisti:

‑ Prometa‑me que não tenciona fazer nada disso! Minha mais do que irmã! Pense no dom inestimável de um coração como o seu, de um amor como o seu!

Durante muito tempo, pela existência adiante, revi aquela face erguer‑se diante de mim, com a mesma expressão em que se não lia nem espanto, nem censura, nem pena. Por muitos anos a evoquei e a vi transformando‑se num sorriso encantador, como então, para me dizer que ela já não receava nada. Depois disso, com um adeus fraternal, Agnes desapareceu.

No dia seguinte ainda estava escuro quando subi para a imperial da diligência, à porta da estalagem. Eu pensava sempre em Agnes mas vi surgir no crepúsculo matutino a cabeça de Uriah Heep.

‑ Menino Davy ‑ disse ele num grasnar abafado, agarrando‑se ao varal do veículo ‑ pensei que gostasse de saber, antes de partir, que não houve qualquer ruptura lá em casa. Já fui procurá‑lo no seu quarto e tudo se recompôs. Meu Deus, sou tão humilde, mas não deixo de lhe ser útil. E ele compreende o seu interesse, quando não toma nada. Que homem simpático, em suma!

Forcei‑me a participar‑lhe quanto me senti feliz por saber que ele apresentara desculpas.

‑ Oh decerto! Quando se é humilde, que importância tem isso? É tão fácil! Oiça, creio que já lhe aconteceu colher uma pêra antes de estar madura, menino Davy...

‑ Julgo que sim.

‑ Foi o que eu fiz ontem. Ela, porém, há‑de amadurecer. Só precisa de cuidados. Posso esperar.

Desfazendo‑se em adeuses, Uriah desceu no momento em que o cocheiro subia. Suponho que ele comia qualquer coisa para o preservar da frescura húmida do ar; mas o queixo movia‑se como se a pêra estivesse já madura...

 

O VIANDANTE

Nessa noite, na Buckingham Street, tivemos uma conversa séria a propósito dos acontecimentos relatados no capítulo anterior. A minha tia ficou profundamente impressionada e começou a andar cá e lá no quarto, de braços cruzados, durante mais de duas horas. Sempre que estava particularmente preocupada realizava sem descanso essas proezas pedestres; e a amplidão das suas inquietações media‑se pela duração dos passeios. Desta vez o alvoroço que sentiu foi de tal ordem que ela achou necessário abrir a porta e andar também no quarto contíguo, fazendo o percurso de extremo a extremo. Enquanto eu e o senhor Dick nos conservávamos sossegados a um canto do lume, a tia não deixou de passar e repassar ao longo da sua trajectória, com a regularidade de um pêndulo.

Quando o senhor Dick se foi deitar, eu e a tia ficámos sós, de maneira que passei a limpo a carta para as duas Spenlows. A tia estava cansada de andar cá e lá: sentou‑se junto do fogão, com a saia arregaçada, como habitualmente, mas em vez de conservar o copo de vinho nos joelhos, como de costume, pô‑lo em cima da prateleira e, com o cotovelo esquerdo apoiado no braço direito e o queixo na mão esquerda, contemplou‑me com ar pensativo. Sempre que eu levantava os olhos, encontrava os seus.

‑ Gosto muito de ti ‑ observou‑me ‑ mas sinto‑me triste e inquieta.

E fez com a cabeça um gesto afirmativo. Eu, absorto no meu trabalho, nem dei pela sua saída. Afinal nem tocara na bebida quente, sua tisana nocturna! Quando lhe bati à porta, para a prevenir disto, a tia Betsey aproximou‑se e disse‑me no tom mais afectuoso que pôde: «Trot, não me apetece tomá‑la esta noite.» Abanou a cabeça e afastou‑se.

Na manhã seguinte, leu a carta que eu escrevera às senhoras Spenlows e deu‑lhe a sua aprovação. Levei a epístola ao correio e preparei‑me para aguardar a resposta com toda a paciência de que dispunha. Vivi naquela expectativa cerca de uma semana, quando certa noite de neve deixei a casa do doutor Strong e voltei para a minha a pé.

O dia fora glacial, um vento açoitante soprara todo o tempo, de nordeste. Com o declinar do dia declinara o vento, e principiara a neve, que caíra espessa, sem cessar, em flocos grossos, formando já uma camada espessíssima. O ruído das rodas e dos passos era ensurdecido como se as ruas estivessem juncadas de penas. O caminho mais curto para a minha residência (e, naturalmente, com um tempo daqueles) seria pelo Saint Martin's Lane. Ora a igreja que lhe dava o nome estava então menos desembaraçada do que é hoje: não havia largo defronte do pórtico e a travessa descia serpenteando para o Strand.

Quando passei diante dos degraus do adro, descortinei um rosto de mulher, que me olhou. Ela atravessou a via e desapareceu. Conhecia‑a. Vira‑a algures, embora não me lembrasse onde fora, mas despertou‑me certa associação de ideias que me veio direita ao coração. Todavia pensei noutra coisa e a memória confundiu‑se‑me.

Nos degraus desenhava‑se o vulto curvado de um homem que descansara um fardo em cima da neve para o repor aos ombros. Distingui‑lhe também a cara,, mas, apesar da minha surpresa, continuei a andar. O homem entretanto endireitou‑se e desceu na minha direcção. Achei‑me então frente a frente com o senhor Peggotty.

Soube nesse momento quem era a mulher: era Martha, a quem Emily dera dinheiro, certa noite, na cozinha. Martha Endell, de quem Ham dissera que o tio não queria ver acompanhar a sobrinha nem por todos os bens deste mundo.

Apertámos a mão com força. De começo não pudemos falar, até que ele exclamou:

‑ Menino Davy! Que alegria vê‑lo, que belo encontro!

‑ É verdade, meu amigo, um belo encontro.

‑ Tinha pensado ir procurà‑lo esta noite, mas ao saber que a sua tia morava consigo (pois estive em Yarmouth), tive medo de que já fosse muito tarde. Irei amanhã de manhã, antes de tornar a partir.

‑ Outra vez?

‑ Sim, senhor ‑ respondeu Peggotty oscilando a cabeça com resignação. ‑ Parto amanhã.

‑ Aonde ia agora?

‑ A qualquer parte ‑ disse ele, sacudindo a neve dos cabelos compridos. ‑ A qualquer abrigo.

Havia nesse tempo, quase defronte do lugar onde estávamos, uma porta que dava acesso ao pátio da Golden Cross, estalagem que sempre me recorda o infortúnio de Peggotty. Indiquei‑lhe a porta, tomei‑lhe o braço e passámos. Dois ou três cafés tinham entrada por este pátio. Um deles estava deserto e tinha bom lume. Convidei o meu companheiro a entrar.

Quando o vi à luz, notei que usava o cabelo mais comprido e revolto e que o rosto estava queimado do sol. Tinha algumas cãs, rugas nas faces e outras mais fundas na testa. Via‑se bem que vagabundeara sob toda a espécie de intempéries. Mas dava ao mesmo tempo uma sensação de força, como um homem protegido por uma resolução inabalável, que por nada se deixa abater.

Sacudia a neve do chapéu e do fato e enxugava a cara enquanto eu fazia estas observações. Sentou‑se defronte de mim, a uma das mesas, de costas para a porta por onde entráramos, e outra vez me estendeu a mão para apertar a minha.

‑ Vou contar‑lhe, menino David ‑ começou ‑ tudo o que apurei nos lugares onde estive. Fui muito longe, sem grande resultado. Mas vou contar.

Chamei alguém para que trouxessem qualquer bebida quente. Eu não desejava nada mais forte do que cerveja. Enquanto no‑la traziam e a punham a amornar perto do lume, ele permaneceu com ar pensativo. Via‑se‑lhe estampada no rosto uma expressão de bela gravidade, que não ousei perturbar.

‑ Quando era pequena ‑ disse erguendo a cabeça, ao ficarmos sós ‑ ela falava‑me muito do mar, dessas costas em que o mar é de um azul profundo e se estende brilhante ao sol. Devia ser pelo facto de o pai se ter afogado que se interessava tanto pelo mar. Talvez supusesse... ou esperasse... que ele tivesse sido lançado para essas regiões em que as flores estão sempre desabrochadas e os campos são tão bonitos.

‑ Coisas de criança ‑ observei.

‑ No dia em que ela... se perdeu... tive a certeza de que ele a levaria lá. Estava convencido de que lhe contara coisas extraordinárias, que a persuadira de que seria uma senhora, e que fora com esses discursos que a seduzira. Quando visitámos a mãe dele, compreendi que tivera razão. Atravessei a Mancha e desembarquei em França, como se caísse do céu.

Vi a porta mover‑se e a neve entrar. A porta abriu‑se mais, a pouco e pouco; alguém a segurava com a mão.

‑ Encontrei lá um senhor inglês, pessoa influente, e disse‑lhe que andava em procura da minha sobrinha. Deu‑me os papéis de que eu precisava (já não sei que nome tinham) e ter‑me‑ia dado dinheiro se a sorte não me houvesse favorecido com bastante. Agradeci‑lhe do fundo do coração por tudo quanto fazia por mim. «Escrevi para os lugares por onde há‑de passar», disse‑me ele, «e falarei de si aos que se encaminharem na mesma direcção; muitos saberão quem o senhor é, mesmo longe daqui, quando chegar sozinho a qualquer parte». Tornei a agradecer‑lhe e parti através da França.

‑ Só e a pé?

‑ A maior parte do tempo a pé; às vezes em carroças, com pessoas que iam às feiras, outras em diligências vazias. Calcorreei muitos quilómetros, não raramente com algum soldado que visitava a família. Não nos podíamos entender por palavras, mas fazíamos mútua companhia ao longo das estradas poeirentas.

Bastou‑me ouvir‑lhe a voz cordial para acreditar que assim fora.

‑ Quando chegava a uma cidade ‑ prosseguiu o senhor Peggotty ‑ ia em demanda de uma estalagem e esperava no pátio até que viesse alguém que falasse inglês. Acontecia sempre haver quem soubesse e então informava‑o do meu propósito e ele esclarecia‑me quanto às pessoas ali alojadas: entre as que saíam e entravam, tinha esperança de ver Emily; se não via, tornava a partir. Cedo notei que, ao entrar nalguma aldeia, a gente da terra já ouvira falar de mim. Instalavam‑me à porta das choupanas e davam‑me de comer e beber, e depois indicavam‑me o sítio onde poderia pernoitar. Quantas mulheres, menino Davy, mães de filhas da idade de Emily, me aguardavam à entrada da povoação para me ser úteis de qualquer forma! Às vezes a filha morrera, mas só Deus sabe a bondade que se albergava no coração dessas mães.

Era Martha que segurava a porta. Vi‑lhe distintamente o rosto esquivo. Só sentia um receio: que o meu companheiro voltasse a cabeça e a descortinasse também.

‑ Às vezes punham‑me nos joelhos os filhos, sobretudo as meninas ‑ acrescentou o senhor Peggotty. ‑ E havia de ver‑me, sentado às portas, ao anoitecer, com essas criancinhas como se fossem filhos da minha Emily! Coitada da Emily!

Invadido por uma onda de saudades, começou a soluçar. Pus‑Lhe a minha mão trémula sobre a mão com que ele tapara os olhos.

‑ Obrigado, menino. Não faça caso disto.

Daí a pouco retirou a mão para a enfiar na véstea, e prosseguiu a sua narrativa.

‑ Outras ocasiões, na manhã do dia seguinte, acompanhavam‑me por dois ou três quilómetros e, quando nos separávamos, eu dizia‑lhes: «Agradeço muito. Deus lhes pague!», e elas pareciam sempre compreender, porque me respondiam com afecto. Enfim, alcancei o mar. Não foi difícil para mim, como velho marinheiro, conseguir chegar à Itália. Uma vez aí, recomecei os meus passos de erradio. Eram todos pessoas bondosas e eu iria de cidade em cidade até aos confins da nação se não tivesse sabido que a rapariga fora vista nas montanhas da Suíça. Alguém que conhecia o criado lobrigara‑os a todos três. Parti para essas montanhas, menino Davy, e andei dia e noite. Quanto mais avançava mais as montanhas pareciam recuar. Finalmente atingi‑as, atravessei‑as e aproximei‑me do lugar que me tinham indicado. Ali perguntei a mim mesmo: «Que vou fazer, quando a encontrar?»

O tal rosto ansioso, insensível à noite cruel, continuava a espreitar pela porta entreaberta. Com as mãos, a criatura implorava‑me que a não mandasse embora.

‑ Nunca duvidei dela! ‑ exclamou o pescador. ‑ Não! Nunca! Que ela me veja apenas a cara, me oiça a voz, ou que a minha presença silenciosa lhe recorde o lar donde fugiu, e, ainda que se haja tornado princesa, logo cairá a meus pés. Disto tenho a certeza. Não raramente, durante o sono, lhe escutei as palavras «Meu tio!» E com frequência, também no sono, a ergui do chão onde ajoelhara e lhe disse baixinho: «Querida Emily, vim trazer‑te o perdão e levar‑te para casa.»

Deteve‑se, meneou a cabeça, e continuou com um suspiro:

‑ Ele já não me interessa. Só ela conta para mim. Tinha‑lhe comprado um vestido de aldeã, e sabia que, se a encontrasse, Emily me acompanharia pelos caminhos cobertos de pó, fosse para onde fosse, e nunca mais me deixaria. Só pensava persuadi‑la a que vestisse esse traje, em troca do que usasse, tomar‑lhe o braço, parar de vez em quando para lhe pensar os pés doridos da caminhada; eis unicamente o meu desejo, que, por infelicidade, menino Davy, ainda não se realizou. Eu chegava tarde de mais, eles já tinham partido... Para onde? Ninguém sabia dizer‑me. Ora me apontavam um sítio, ora outro, eu ia aqui e ali, e nada de Emily. Agora, estou de regresso a casa.

‑ Desde quando?

‑ Há quatro dias. Ao cair da noite surgiu‑me o velho barco e vi a luz brilhar na janelinha. Quando me acerquei, olhando através das vidraças, descobri a senhora Gummidge... santa criatura!... sentada à lareira, sozinha. «Não tenha medo», disse‑lhe, «é o Daniel». E entrei. Nunca pensei que o velho barco me parecesse tão estranho.

De um bolso interior, extraiu com cuidado um maço de papéis, que colocou em cima da mesa. Eram cartas.

‑ Esta chegou em primeiro lugar ‑ esclareceu, tirando uma do maço ‑ logo na semana seguinte à minha partida. Continha uma nota de cinquenta libras, envolta numa folha de papel, e foi introduzida debaixo da porta, durante a noite. Procurou disfarçar a letra, mas a mim não me iludiu.

Com os mesmos cuidados, pôs a carta de lado e continuou, apresentando outra:

‑ Esta veio para a senhora Gummidge há dois ou três meses. ‑ Mirou‑a por minutos e apresentou‑ma, dizendo em voz baixa: ‑ Faça favor de a ler.

É o que se segue:

 

«Quais serão os seus pensamentos ao ver esta caligrafia e ao lembrar‑se de que foi traçada por mão culposa? Mas tente, oh, tente (não por mim mas em nome da bondade do meu tio) deixar‑se comover, nem que por um instantinho! Procure, suplico‑lhe, ter dó desta rapariga infeliz e escrever num bocado de papel o que sabe a meu respeito, o que ele disse de mim, e, se à noite, à hora em que eu voltava outrora para casa, ainda o tio dá a impressão de pensar naquela que tanto estimou! O coração dilacera‑se‑me quando me lembro de tudo isso. Ajoelho diante de si para lhe pedir, rogar que não seja comigo tão cruel quanto mereço, mas tenha um poucachinho de generosidade para me falar dele e mandar‑me umas palavrinhas. Não me trate por pequena, não me trate pelo nome que desonrei, mas atenda à minha angústia e haja ao menos a compaixão de me enviar notícias desse tio que decerto nunca mais verei.

«Querida senhora Gummidge, se lhe endureci o coração, não me posso queixar; mas oiça‑me, e, se não se compadecer, consulte aquele a quem mais ofendi, aquele de quem deveria ser esposa; consulte‑o antes de se mostrar surda aos meus rogos! Se ele tiver a bondade de dizer que pode escrever‑me umas linhas (e creio que o fará); se quiser pedir‑lhe isso (pois foi sempre tão generoso, tão digno), informe‑o (mas só então) de que, ao escutar o vento à noite, tenho a impressão de que está cheio de cólera depois de ter visto o tio e ele, e que anda a acusar‑me junto de Deus. Diga‑lhe que se morrer amanhã (estivesse eu preparada, como seria feliz!) as minhas últimas palavras seriam para o abençoar, a ele e ao tio, e o meu derradeiro suspiro para rezar pela sua felicidade futura.»

Também havia dinheiro nesta carta: cinco libras. Intactas como as outras. Peggotty dobrou‑a, tal qual fizera à primeira. Seguiam‑se instruções minuciosas quanto ao endereço para a resposta; e, se bem que isto sugerisse vários intermediários e fosse difícil chegar a uma conclusão segura quanto ao sítio onde Emily se escondia, não parecia impossível que a rapariga tivesse escrito da própria povoação em que se disse que fora vista.

‑ Que lhe responderam? ‑ perguntei.

‑ Como a senhora Gummidge não é muito instruída, Ham ofereceu‑se para fazer o borrão, que ela copiou. Diziam‑lhe que eu partira em sua procura e repetiram‑lhe as minhas últimas palavras.

‑ Essa é outra carta?

‑ Não, senhor, é dinheiro ‑ replicou Peggotty, desdobrando o papel. ‑ Dez libras, como vê, acompanhadas destas palavras: De um amigo sincero, como na primeira. Mas a primeira foi introduzida por baixo da porta e esta chegou pelo correio, anteontem. Investigarei através do carimbo aqui aposto.

Mostrou‑me. Era uma cidade do Alto Reno. Em Yarmouth descobrira comerciantes estrangeiros que conheciam aquela região e lhe haviam desenhado numa folha de papel um mapa esquemático. Colocou‑o na mesa, entre nós. E, com o queixo apoiado a uma das mãos, indicou com a outra o caminho que devia tomar. Pedi informações do Ham. Peggotty abanou a cabeça.

‑ Trabalha o mais corajosamente possível. O seu nome é respeitado onde quer que ele se encontre. Nunca ninguém o ouviu lamentar‑se. Mas (aqui entre nós) a minha irmã diz que o rapaz ficou deveras abalado.

‑ Coitado do rapaz! Não me admira nada.

‑ Menino Davy ‑ prosseguiu Daniel Peggoty, em voz baixa e grave ‑ Ham expõe constantemente a vida. Quando é preciso alguém para arrostar com o mau tempo, ele é sempre o primeiro. Está à frente de todos os perigos. E, apesar disso, meigo como uma criança; aliás todas as crianças o conhecem em Yarmouth.

Recolheu as cartas, com ar apressado, alisando‑as com os dedos, pô‑las de novo sobre as outras, num maço, e guardou‑as tenazmente junto do coração. O rosto que aparecera à porta já não estava lá. A neve continuava a entrar no aposento.

‑ Pois bem ‑ disse o pescador, procurando a sacola. ‑ Agora que lhe falei, menino Davy (o que me foi tão consolador!), partirei outra vez de manhã cedo. O que me preocupa é poder morrer sem entregar este dinheiro. Se o perder, ou mo furtarem, ou desaparecer de qualquer forma, sem que se saiba que o não aceitei, creio que não aguentaria na Eternidade e que voltaria a este mundo.

Levantou‑se. Imitei‑o e apertámos pela última vez a mão, antes de sair.

‑ Andaria milhares e milhares de quilómetros, até cair exausto, só para devolver este dinheiro. Se o conseguir, se encontrar Emily, nada mais pedirei. Se a não encontrar, talvez ela saiba um dia que o tio que tanto a amou nunca deixou de a procurar senão à hora da morte. E, se bem a conheço, sei que isso basta para a reconduzir a casa.

Na ocasião em que ele saía, enfrentando a algidez da noite, vi um vulto solitário fugir diante de nós. Tratei de deter Daniel Peggotty sob não sei que pretexto até que ele tivesse desaparecido.

Falou de uma hospedaria na estrada de Dover, onde tinha a certeza de achar uma cama modesta e limpa. Acompanhei‑o até à porta de Westminster e deixei‑o na margem direita. Vendo‑o retomar a marcha, sozinho, através de neve, senti que tudo se calava por consideração para com ele.

Regressei ao pátio da estalagem e, impressionado com a lembrança do rosto entrevisto, busquei‑o com uma espécie de receio supersticioso. Não o topei. A neve cobrira os vestígios dos passos recentes, só se notava o das minhas últimas pegadas, e estas começavam a desaparecer quando voltei a cara a fim de olhar para trás.

 

AS TIAS DE DORA

Finalmente recebi resposta das duas senhoras. Apresentavam cumprimentos ao senhor Copperfield e informavam‑no de que tinham prestado à carta a atenção merecida «para a felicidade dos dois interessados», o que me pareceu expressão assaz inquietante, não só por causa do uso que dela haviam feito quando do dissentimento familiar de que já falei, como porque observara que tais fórmulas estereotipadas são uma espécie de fogo de artifício, fáceis de lançar e susceptíveis de tomar uma infinidade de formas e de cores impossíveis de prever na origem. As damas Spenlows acrescentavam ser seu desejo não se pronunciarem «em carta» acerca da comunicação que lhes fizera o senhor Copperfield; mas se o senhor Copperfield quisesse dar‑lhes a honra de as visitar em determinado dia (na companhia, se achasse preferível, de um amigo íntimo), com muito gosto discutiriam com ele o assunto.

«O senhor Copperfield» respondeu logo com os seus cumprimentos respeitosos e declarou que teria a honra de comparecer em casa das senhoras Spenlows, na data fixada, acompanhado (em virtude da amável permissão) do seu amigo senhor Thomas Traddles, estudante de Direito. Expedida que foi a missiva, o senhor Copperfield caiu num estado de grande excitação nervosa, que durou até ao citado dia.

Afligia‑me também a ideia de estar privado, nesse momento decisivo, dos serviços inestimáveis da senhora Mills. O pai dela, que passava o tempo a fazer coisas que me arreliavam, chegou ao cúmulo de projectar uma viagem à índia. Realmente, que tinha ele em vista com esta deliberação senão causar‑me transtorno? Para falar verdade, o senhor Mills não precisava de ir a parte nenhuma senão à índia, porque aí é que residiam os seus interesses comerciais. Vivera em Calcutá na sua mocidade e resolvera lá voltar, acompanhado de Julia. Por isso iniciou as despedidas à família da província, deixando na casa de Londres letreiros que anunciavam a sua venda ou aluguer. E assim me tornava eu joguete da segunda catástrofe, ainda mal refeito da primeira!

Hesitei muito quanto à escolha do fato para esse dia assinalado, indeciso entre o desejo de parecer o melhor possível e o receio de exibir qualquer coisa que pudesse vir a prejudicar‑me no espírito das Spenlows. Diligenciei encontrar um meio termo e a minha tia declarou‑se satisfeita com o resultado. No tocante ao senhor Dick, esse atirou um sapato pela escada abaixo, atrás de mim e de Traddles, para nos dar sorte, velho costume inglês usado em especial nos casamentos.

Por mais simpático que fosse Traddles e por maior amizade que eu lhe consagrasse, não me coibi de lamentar, nessa ocasião delicada, que ele usasse o cabelo tão cortado à escovinha. Isto proporcionava‑lhe um ar espantado (para não dizer de vasculho de limpa‑chaminés) e eu, no íntimo, augurava a esse propósito qualquer fatalidade. Pelo caminho, ousei comunicar‑lhe os meus temores, sugerindo‑lhe acamasse um pouco o cabelo.

‑ Meu caro Copperfield ‑ disse ele tirando o chapéu e passando a mão pela cabeça, em todas as direcções ‑ bem gostaria eu de o fazer. Mas é inútil.

‑ Não podes achatá‑lo?

‑ Não. Nada o decidiria, nem que eu transportasse um peso de cinquenta libras até Putney: logo que o retirasse, o cabelo voltaria à posição habitual. Não fazes ideia de quanto é teimoso, Copperfield. Sou um autêntico porco‑espinho.

Fiquei um tanto descoroçoado, confesso, embora o seu bom humor me fizesse sorrir. Disse‑lhe quanto apreciava aquela disposição de espírito e observei que os cabelos deviam estar carregados de toda a obstinação da sua natureza, porque no resto não havia quaisquer vestígios.

‑ Ah ‑ ripostou Traddles ‑ estes cabelos não acabam de me dar aborrecimentos. A mulher de meu tio não os suportava, e bastante me constrangeram quando me apaixonei por Sophy.

‑ Também lhe desagradavam?

‑ A ela, não, mas à irmã mais velha, a que é uma beldade. Aliás, todas as outras irmãs se divertem à custa disto. Tornou‑se objecto de chacota. Contam as raparigas que Sophy tem guardada uma madeixa, mas que precisa de a conservar dentro de um livro para evitar que se erice.

‑ A propósito, Traddles, a tua experiência pode ser‑me útil. Quando ficaste noivo dessa menina, fizeste um pedido em forma aos pais? Quer dizer, uma diligência no género da que vamos fazer hoje ‑ acrescentei ansioso.

‑ Oh! ‑ retorquiu o meu amigo, cujo rosto pensativo se ensombrou. ‑ Foi uma coisa deveras penosa para mim. Bem vês, Sophy é tão necessária à família que ninguém admitia a ideia de a poder dispensar. Até haviam decidido que ela jamais se casaria e já lhe chamavam solteirona. Foi por isso que, ao aflorar o assunto, com muitos circunlóquios, diante da senhora Crewler...

‑ É a mãe?

‑ E. O pai é o reverendo Horace Crewler. Falei, pois, com toda a circunspecção possível à senhora Crewler, e o resultado foi ela ter soltado um grito e desmaiado. Durante meses não me atrevi a tocar no assunto.

‑ E, por fim...

‑ Não fui eu, mas o reverendo Horace. Homem excelente, e exemplar a todos os respeitos. Fez‑lhe compreender que era da sua obrigação de cristã aceitar esse sacrifício (afinal tão duvidoso!) e não me querer mal. Quanto a mim, Copperfield, tive a impressão de ser uma ave de rapina introduzida naquela casa.

‑ As irmãs tomaram o teu partido, naturalmente...

‑ Não bem assim. Depois de conseguirmos que a senhora Crewler aceitasse a ideia, foi preciso prevenir Sarah. Lembras‑te de que te falei de Sarah, a que tem uma doença na coluna vertebral?

‑ Lembro‑me, sim.

‑ Pois apertou os punhos ‑ explicou Traddles, com ar consternado ‑ fechou os punhos, empalideceu e ficou hirta. Durante dois dias só comeu pão torrado e bebeu água que lhe davam com uma colherinha.

‑ Que criatura antipática ‑ exclamei.

‑ Espera, Copperfield. É uma rapariga encantadora, porém muito sensível. As outras também o são. Sophy, mais tarde, disse‑me que as palavras não exprimiriam os remorsos que sentiu quando tratou de Sarah. Até me considerei criminoso! Quando Sarah se restabeleceu, tivemos de dar a notícia do futuro casamento às outras irmãs: em todas produziu efeitos penosos, embora diferentes. As duas mais pequenas, cuja educação está a cargo de Sophy, só agora começam a gostar mais de mim.

‑ Ao menos, conto que, presentemente, se hajam habituado à ideia.

‑ Hum... Talvez estejam resignadas. A verdade é que evitamos falar do caso. E a incerteza do dia de amanhã, de mistura com a mediocridade da minha situação, serve‑lhes no fim de contas de consolo. Haverá uma cena das piores no dia em que nos casarmos! Vai parecer mais um enterro do que um casamento. Com que ódio verão levar a irmã do lar!

A modéstia do seu rosto, enquanto ele me considerava, meneando a cabeça com ar meio sério meio cómico, impressiona‑me mais agora do que me impressionou então, porque nessa altura a minha ansiedade não me deixava fixar a atenção fosse no que fosse. Ao aproximarmo‑nos da residência das irmãs Spenlows, eu tinha um aspecto tão lastimável que Traddles propôs um estimulante sob a forma prosaica de cerveja. Tomei‑a num café da vizinhança e ele encaminhou‑me, vacilante, até à porta das duas solteironas.

Quando a criada veio abrir, tive a impressão vaga de ser, por assim dizer, inspeccionado; depois, a de atravessar, cambaleando, o vestíbulo, em que havia um barómetro, para entrar enfim numa saleta muito asseada do rés‑do‑chão, que dava para um jardim bem tratadinho. Sentei‑me no sofá e vi o cabelo de Traddles eriçar‑se, agora que ele tirara o chapéu, como aqueles diabinhos das caixas de molas quando se ergue a tampa. Ouvi o tiquetaque de um relógio na prateleira do fogão e tentei acertar com esse ritmo as pulsações desordenadas do coração. Procurei em volta um sinal da presença de Dora, sem o encontrar. Julguei mesmo ter sentido ao longe

um latido do Jip, logo refreado por alguém, E acabei dando por mim a repelir Traddles para um canto, no momento em que eu saudava cheio de embaraço as duas senhoras secas e idosas, vestidas de preto e ambas semelhantes a um esboço encolhido e crestado do defunto doutor Spenlow.

‑ Faça favor de se sentar ‑ disse uma delas.

Quando, havendo tropeçado sobre Traddles, pude sentar‑me sobre outra coisa que não o gato (à primeira tentativa quase esborrachei o felino), consegui a visão suficiente para verificar que o doutor Spenlow devia ter sido o mais novo da família e que haveria uma diferença de seis a oito anos entre as duas irmãs. A menos velha pareceu‑me encarregada de orientar a conversa, pois exibia uma carta (tão familiar e todavia tão estranha aos meus olhos) e consultava‑a através da luneta de cabo. Trajavam da mesma maneira, mas esta usava o vestido mais juvenilmente que a outra e ornava‑o de uma gola suplementar, ou broche ou qualquer penduricalho que a tornava mais airosa. Conservavam‑se direitas, rígidas, cerimoniosas, dignas e calmas. A que não segurava a minha carta tinha cruzado os braços no peito, um sobre o outro, como um ídolo.

‑ É o senhor Copperfield, creio eu ‑ disse a que estava munida da epístola, voltando‑se para Traddles.

Mau começo. Traddles precisou declarar que o Copperfield era eu, e eu tive de confirmar a asserção, e elas viram‑se obrigadas a rejeitar a opinião preconcebida de que Traddles era Copperfield. Em suma, estávamos todos altamente embaraçados.

Para compor as coisas, soou distintamente o latir de Jip, por duas vezes, antes que fosse de novo sufocado.

‑ Senhor Copperfield... ‑ recomeçou a da carta.

Fiz não sei quê (provavelmente um cumprimento) e tornei‑me todo ouvidos. Mas a outra irmã interveio:

‑ Lavinia, que é mais versada nesta matéria, vai dizer‑lhe o que se nos afigura susceptível de conduzir o assunto da melhor forma para o bem dos dois interessados.

Percebi a pouco e pouco que Lavinia se tornara autoridade em coisas de coração, devido à existência pretérita de um tal senhor Pidger, que jogava ao whist e que se pressupunha ter sido seu namorado. A minha opinião pessoal é de que se trata de uma suposição gratuita e que Pidger estava de todo inocente de haver mostrado semelhantes pretensões. Contudo, Lavinia e Clarisse haviam‑se convencido de que o homem declararia o seu amor se não tivesse sido arrebatado em plena mocidade (cerca dos sessenta anos) por um pernicioso excesso de bebidas seguido, à laia de remédio, da absorção não menos excessiva de água de Bath. Chegaram a imaginar que o homem morrera de paixão solapada, embora na casa houvesse um retrato de Pidger que o representava de nariz rubicundo, o que não parecia favorável à persistência dessa hipótese romântica.

‑ Não insistiremos ‑ disse Lavinia ‑ sobre esta história passada. A morte do nosso pobre irmão Francis pôs‑lhe ponto final.

‑ Nós não mantínhamos relações frequentes com o nosso irmão Francis ‑ interveio Clarissa. ‑ Mas não havia verdadeiro desacordo nem desunião entre nós. Francis seguia o seu caminho e nós o nosso. Acháramos que era preferível para o bem‑estar de todos os interessados. E assim se fez.

Cada uma delas inclinava‑se um pouco para a frente, quando falava, sacudia a cabeça ao terminar, e endireitava‑se depois. Clarissa nunca movia os braços; às vezes dava pancadinhas nos cotovelos, com a ponta dos dedos, como se marcasse o compasso de um minuete ou de uma marcha, porém os braços, esses nunca mexiam.

‑ A posição da nossa sobrinha modificou‑se com a morte do pai ‑ disse Lavinia ‑ e é como se a opinião dele tivesse mudado também. Não temos qualquer motivo, senhor Copperfield, para duvidar das suas qualidades e honradez, nem da afeição que sente (ou que julga sinceramente sentir) pela nossa sobrinha.

Respondi, como fazia sempre que tinha oportunidade, que ninguém jamais amara como eu amava Dora. Traddles confirmou com um murmúrio aprovador.

Lavinia preparava‑se para replicar, quando Clarissa, que parecia obcecada pela tentação de falar do irmão Francis, interveio outra vez:

‑ Se a mãe de Dora houvesse dito, logo após o casamento, que não havia lugar à sua mesa para toda a família, isso teria sido melhor para todos os interessados.

‑ Mana Clarissa ‑ objectou Lavinia ‑ talvez seja supérfluo recordar agora essas coisas.

‑ Mana Lavinia, isto faz parte do assunto. Se se tratasse de matéria que só tu estás qualificada para resolver, eu não me atreveria a intervir. Mas a este respeito tenho a minha opinião e acho‑me no direito de a expor. Mais valera para a felicidade de todos os interessados que a mãe de Dora houvesse dito claramente, ao casar com o nosso irmão Francis, quais eram as suas intenções. Saberíamos então em que regime vivíamos. Ter‑lhe‑íamos pedido que nunca nos convidasse e assim se evitaria qualquer risco de mal‑entendido.

Depois de Clarissa menear a cabeça, Lavinia prosseguiu, lançando previamente um olhar à minha carta através da luneta de cabo. Notei que ambas tinham olhinhos redondos, brilhantes e piscos como os dos pássaros. Aliás, possuíam mais de uma semelhança com os indivíduos emplumados: um ar vivo, desperto, ágil, e um modo ao mesmo tempo brusco e garrido de alisar as penas, que fazia pensar nos canários.

Lavinia encetou o tema da minha visita à sua casa:

‑ O senhor pediu‑nos licença, a mim e à minha irmã, senhor Copperfield, para vir cá como pretendente oficial à mão da nossa sobrinha.

‑ Se o nosso irmão Francis ‑ acudiu Clarissa, com ar pacífico ‑ desejasse viver no mundo da magistratura, e só aí, nós não estaríamos no direito nem desejávamos contrariá‑lo. Sempre evitámos impor‑nos fosse a quem fosse. Mas por que não dizê‑lo francamente? Que o nosso irmão e a mulher tivessem os seus amigos! E eu e minha irmã os nossos! Não haveria necessidade de mais ninguém.

Como isto parecesse endereçado a mim e a Traddles, mastigámos ambos uma resposta. A de Traddles foi ininteligível. Quanto a mim, observei, suponho, que era tudo para honra dos interessados. Bem gostaria de saber o que é que eu entendia por aquilo!

‑ Mana ‑ disse Clarissa, que já desabafara suficientemente ‑ podes continuar.

Lavinia, pois continuou:

‑ Senhor Copperfield, eu e minha irmã Clarissa examinámos atentamente a sua carta e não nos esquivámos a mostrá‑la à nossa sobrinha e a discuti‑la com ela. Estamos persuadidas de que a estimamos muito.

‑ Oh, se creio! ‑ principiei, cheio de fervor. ‑ Oh!

Mas Clarissa lançou‑me um olhar perscrutante, como o de um canário, destinado a pedir‑me que não interrompesse o oráculo, e eu desculpei‑me.

‑ A afeição ‑ continuou Lavinia, procurando com a vista a aquiescência que a irmã lhe dispensava sob forma de pequenos sinais de cabeça, no final de cada frase ‑ a afeição amadurecida, feita de respeito e dedicação, não se exprime com facilidade. A voz dela é baixa, discreta, reservada: esconde‑se e espera. Eis como é o fruto realmente maduro. Às vezes a vida passa, enquanto o fruto continua a amadurecer na sombra.

Naturalmente que não percebi logo tratar‑se de uma alusão aos sentimentos imaginários do pobre Pidger. Mas, pela gravidade com que Clarissa movia a cabeça, adivinhei que ligavam grande importância àquelas palavras. Lavinia prosseguiu:

‑ As inclinações passageiras das pessoas muito novas são apenas pó em comparação com outros sentimentos que se assemelham a rochedos. Não será fácil saber‑se se duram nem se o seu fundamento é sólido, e eu e minha irmã ficámos na verdade indecisas. O senhor Copperfield, e o senhor...

‑ Traddles ‑ disse o meu amigo, vendo que esperavam declinasse o nome.

Nesse momento, embora ainda não me tivessem dado nenhum incitamento concreto, julguei discernir nas duas velhotas, em especial Lavinia, um prazer muito vivo nesse assunto cheio de novidade e fértil em sentimentalismo; deviam, calculei, preparar‑se para o avolumar e extrair dele o maior partido possível, o que me fez luzir nos olhos um brilhante clarão de esperança. Compreendi que Lavinia experimentaria imensa satisfação em vigiar dois namorados e em tomar parte na conversa deles, no seu departamento particular, quando se sentisse impelida para tanto. Isto deu‑me coragem para repetir com veemência que amava Dora mais do que o poderia dizer e do que o poderiam acreditar; que todos os meus amigos sabiam a intensidade do meu amor; que a minha tia, e Agnes, e Traddles eram testemunhas do facto e de quanto esse amor estava amadurecido. Recorri a Traddles, e Traddles, animando‑se como se fosse intervir num debate parlamentar, confirmou admiravelmente os meus protestos, sem ambiguidade, e com uma franqueza imbuída de bom senso, o que, sem dúvida, causou a melhor impressão.

‑ Falo, se me permitem, por experiência ‑ explicou ele ‑ porque estou noivo de uma menina de Devonshire, de uma família de dez irmãos, e porque não vemos, por enquanto, qualquer possibilidade de nos casarmos.

‑ Então pode corroborar o que acabo de dizer, senhor Traddles ‑ observou Lavinia com um interesse crescente ‑ quanto à afeição discreta e reservada, que sabe esperar...

‑ Absolutamente, minha senhora!

Clarissa olhou para Lavinia e moveu gravemente a cabeça. E Lavinia olhou para Clarissa com ar de circunstância, soltando um suspiro breve.

‑ Mana, tome dos meus sais ‑ recomendou Clarissa. Lavinia recompôs‑se mercê de algumas aspirações de vinagre

aromático, ao passo que eu e Traddles a envolvíamos num olhar repleto de solicitude. Ela então continuou, com voz sufocada: ‑ Eu e minha irmã hesitámos muito, senhor Traddles, quanto à atitude que deveríamos adoptar relativamente aos sentimentos, reais ou imaginários, de dois entes tão novos como o seu amigo senhor Copperfield e a nossa sobrinha.

‑ A filha do nosso irmão Francis ‑ esclareceu Clarissa. ‑ Se a mulher do nosso irmão se dignasse, durante a sua vida (embora fosse livre para agir à sua vontade), convidar a família para a sua mesa, nós conheceríamos melhor a filha do nosso irmão, neste momento. Continua, mana.

Lavinia virou a carta para a página da assinatura e examinou com a ajuda da luneta de cabo os apontamentos de letra miúda que aí escrevera.

‑ Acho prudente, senhor Traddles, submeter esses sentimentos à nossa observação pessoal. Neste instante nada sabemos quanto a eles nem estamos aptas para julgar da profundidade que possam ter. Por isso tencionamos permitir as visitas do senhor Copperfield a fim de avaliar as intenções do seu pedido.

‑ Minhas senhoras ‑ exclamei aliviado de um peso enorme ‑ jamais esquecerei a sua bondade!

‑ Mas ‑ acrescentou Lavinia ‑ preferimos considerar, por enquanto, que essas visitas nos sejam feitas e não à nossa sobrinha. Temos de evitar o reconhecimento prematuro de qualquer compromisso oficial entre o senhor Copperfield e Dora, antes de termos oportunidade de...

‑ Antes de teres oportunidade, Lavinia ‑ corrigiu Clarissa.

‑ Pois seja ‑ concordou esta, suspirando. ‑ Antes que eu tenha oportunidade de os observar.

‑ Copperfield ‑ disse‑me Traddles, voltando‑se para mim ‑ hás‑de reconhecer que não pode existir nada de mais razoável...

‑ Certamente! ‑ acudi eu. ‑ Tenho plena consciência de que assim é.

‑ Posto isto ‑ prosseguiu Lavinia, consultando outra vez os seus apontamentos ‑ e admitidas as visitas apenas nessa base, devemos rogar ao senhor Copperfield que nos dê a sua palavra de honra que não procurará ter, às ocultas, qualquer comunicação com Dora nem combinará nada com ela sem no‑lo comunicar previamente.

‑ Sem te comunicar previamente, mana ‑ emendou Clarissa.

‑ Pois seja ‑ respondeu Lavinia em tom resignado. ‑ Insistiremos neste ponto, que é primordial. Desejámos que o senhor Copperfield viesse acompanhado de um amigo íntimo ‑ fez um movimento de cabeça na direcção de Traddles, que se inclinou ‑ a fim de que não houvesse dúvidas ou mal‑entendidos acerca deste assunto. Se o senhor Copperfield ou se o senhor Traddles achar que precisa de tempo para reflectir, eu não me oponho.

Redargui, arrebatado de entusiasmo, que não precisava nem de um minuto de reflexão. Fiz a promessa requerida com solenidade e ardor. Pedi o testemunho de Traddles e declarei que seria o mais louco dos homens se algum dia faltasse à palavra dada.

‑ Espere ‑ disse Lavinia, erguendo a mão ‑ nós tínhamos decidido, antes de havermos o gosto de os receber aqui a ambos, que os deixaríamos sós um quarto de hora para meditação. Dêem‑nos licença que nos retiremos por esse prazo.

Foi em vão que repeti a desnecessidade de qualquer reflexão. Elas insistiram em sair da sala durante o tempo fixado. E assim aquelas duas criaturas se afastaram com toda a dignidade, abandonando‑me às felicitações de Traddles e à minha impressão de ser transportado para alguma região de suprema ventura. Exactamente à expiração dos quinze minutos, as Spenlows reapareceram com a mesma dignidade: tinham saído sussurrando as saias como se fossem feitas de folhas secas, e do mesmo modo regressaram.

Comprometi‑me mais uma vez a observar as condições impostas.

‑ Mana ‑ disse Lavinia ‑ o resto é contigo.

Então Clarissa, descruzando os braços pela primeira vez, pegou nos apontamentos e percorreu‑os com a vista.

‑ Teremos muito prazer ‑ declarou ‑ em receber todos os domingos, para jantar, o senhor Copperfield, se for do seu agrado. Jantamos às três horas.

Baixei a cabeça.

‑ Durante a semana teremos muito gosto em oferecer chá ao senhor Copperfield. Tomamo‑lo às seis e meia.

Inclinei‑me de novo.

‑ Será duas vezes por semana, não mais, como regra geral. Curvei‑me imediatamente.

‑ A senhora Trotwood, de que o senhor Copperfield nos fala na sua carta, far‑nos‑á uma visita. Quando as visitas concorrem para o bem de todos os interessados, consideramo‑nos felizes em as receber. Mas quando mais vale para o bem de todos os interessados que não se faça nenhuma visita (como no caso do nosso irmão Francis e da mulher), a coisa muda de figura.

Dei a entender que a minha tia se consideraria muito honrada em travar conhecimento com as senhoras Spenlows, embora no íntimo não tivesse a certeza de que se compreendessem por aí além. Combinado que foi tudo isto, agradeci‑lhes calorosamente, pegando em primeiro lugar a mão de Clarissa e depois a de Lavinia, as quais levei sucessivamente aos lábios.

Lavinia pôs‑se então de pé e, pedindo a Traddles que nos desculpasse por um minuto, convidou‑me a acompanhá‑la. Segui‑a, trémulo, a outro quarto, onde encontrei a minha querida Dora tapando as orelhas, atrás da porta, de cara voltada para a parede, e Jip encerrado numa alcofa, com a cabeça envolta num pano.

Que linda estava no seu vestido preto, e como ela chorou, como soluçou, sem querer, a princípio, sair de trás da porta! Como me regozijei quando ela consentiu, finalmente, em se aproximar de mim, e em que felicidade me senti mergulhado quando retirámos Jip da alcofa para o restituir, espirrando, à luz do dia, e nos vimos de novo todos três reunidos!

‑ Querida Dora! Enfim, agora és minha para sempre!

‑ Oh, n-ã‑o, por favor! ‑ suplicou Dora.

‑ Não és minha para sempre?

‑ Com certeza ‑ replicou. ‑ Mas tenho tanto medo!

‑ Medo, meu amor?

‑ Sim, sim. Não é a ele que eu amo. Por que não se vai embora?

‑ Quem?

‑ O teu amigo. Nada disto lhe diz respeito. Deve ser muito estúpido!

‑ Meu amor! ‑ Nunca vira nada tão encantador como a sua puerilidade. ‑ É o melhor dos homens!

‑ Não temos necessidade dos melhores dos homens ‑ retorquiu Dora, amuada.

‑ Queridíssima ‑ objectei ‑ em breve o conhecerás e hás‑de gostar muito dele. E a minha tia virá igualmente e tu gostarás também dela, quando a conheceres.

‑ Não, peço‑te, não ma tragas ‑ ordenou‑me Dora, dando‑me um beijo apressado e unindo as mãos em súplica. ‑ Estou convencida de que é uma velha má. Não a deixes vir, Doady.

Este nome era uma corruptela de David.

De nada me serviu entrar em explicações. Por isso ri, fui amável e considerei‑me feliz. Dora mostrou‑me a nova habilidade de Jip, que aprendera a estar nas patas traseiras, a um canto, durante uns segundos. Não sei quanto tempo eu seria capaz de ficar naquele quarto, esquecido do Traddles, se Lavinia não tivesse vindo buscar‑me. Esta tia estimava muito a sobrinha ‑ contou‑me que Dora era o seu vivo retrato, na mesma idade; a velha devia ter mudado bastante! ‑ e tratava‑a como a uma criancinha. Tentei decidir Dora a ir cumprimentar Traddles, mas, quando lhe falei nisso, ela fugiu para o seu quarto e lá se fechou. De maneira que fui reencontrar Traddles sem a levar comigo e daí a pouco saí com ele. Julgava‑me pairando nas nuvens.

‑ Decorreu tudo o melhor possível ‑ disse Traddles ‑ e as Spenlows são duas velhotas simpaticissimas. Não me admiraria se te visse casado muito antes de mim, Copperfield.

‑ A tua Sophy toca algum instrumento, Traddles? ‑ perguntei‑lhe envaidecido.

‑ Conhece suficientemente piano para ensinar às irmãs mais novas.

‑ E canta?

‑ Canta baladas, às vezes, para animar os outros, quando estão desmoralizados. Mas nada de perfeito.

‑ E canta acompanhando‑se à viola?

‑ Isso não!

‑ Pinta?

‑ Também não.

Prometi a Traddles que ele ouviria Dora cantar e que veria flores pintadas por ela. Respondeu‑me que gostaria muito e voltámos para casa contentíssimos, de braço dado. De caminho incitei‑o a falar‑me de Sophy. Revelou‑me quanta confiança lhe inspirava a rapariga e eu admirei‑a de antemão. Em espírito, comparei‑a a Dora, mas reconheci que para Traddles é que ela estaria a matar.

Naturalmente que participei logo à tia Betsey o desfecho feliz da entrevista e tudo quanto se tinha dito e feito durante esses momentos. Ficou satisfeita por me ver tão entusiasmado e disse‑me que iria visitar as senhoras Spenlows o mais cedo possível. Passeou tanto cá e lá no quarto, nessa noite, enquanto eu escrevia a Agnes, que eu pensei se ela continuaria assim até ao dia seguinte. A minha carta a Agnes era cheia de ardor e de gratidão. Contei‑lhe as venturosas consequências dos seus conselhos sábios, e Agnes, pela volta do correio, repetiu‑me as suas esperanças, num tom meio sério meio jovial.

Estive daí por diante mais ocupado do que nunca. Considerando as minhas idas diárias a Highgate, Putney somava uma distância razoável; eu, porém, fazia gala em lá ir tantas vezes quantas pudesse. Ao chá não me era fácil comparecer, mas obtive de Lavinia Spenlow licença para me apresentar aos sábados de tarde, sem prejuízo dos jantares dominicais. Deste modo os fins de semana se tornaram para mim um manancial de delícias, em cuja expectativa passava todo o resto do tempo.

Para meu imenso alívio, o encontro entre a minha tia e as tias de Dora produziu menos atritos do que seria de esperar. A tia fez a visita prometida uns dias depois, e, decorridos outros dias, as senhoras Spenlows retribuíram‑na com grande aparato. Em seguida foram‑se trocando atenções deste género, e com maior cordialidade, quase todos os meses. A tia Betsey escandalizou um pouco as tias de Dora com o seu desprezo das carruagens e da distinção que elas conferem, pois aparecia em Putney a pé, e a horas inconvenientes, como logo após o almoço e imediatamente antes do chá. Deploraram igualmente a sua indiferença quanto à forma de pôr o chapéu, sem se preocupar com as exigências da moda. Mas não tardaram a considerá‑la como pessoa excêntrica e um tanto masculina, sem deixar de lhe reconhecer inteligência pouco vulgar. De vez em quando as duas Spenlows arrepiavam‑se ao ver que a minha tia professava opiniões heréticas em matéria de etiqueta; contudo Betsey Trotwood estimava‑me o bastante para sacrificar uma ou outra das suas extravagâncias e manter destarte a boa harmonia geral.

O único do nosso grupo que se recusou a adaptar‑se às circunstâncias foi Jip. Perante a minha tia arreganhava sempre os dentes, metia‑se debaixo de uma cadeira e só deixava de rosnar para emitir de tempos a tempos um uivo aflitivo. Experimentaram todos os processos para o vencer, desde os castigos às lambarices, desde os ralhos às visitas à Buckingham Street (onde se precipitou logo atrás de dois gatos, com grande terror dos assistentes); nada conseguiu persuadi‑lo a tolerar a presença da senhora Trotwood. Às vezes parecia ter dominado a sua aversão mostrando‑se amável por momentos; mas em seguida, erguendo o focinho achatado, uivava tão forte que era preciso vendar‑lhe os olhos e escondê‑lo na alcofa. Dora, quando lhe anunciavam a minha tia, envolvia‑o já numa toalha e punha‑o no esconderijo.

Entretanto, quando este pacífico teor de vida se transformou em rotina, atormentei‑me um tanto por ver que tratavam Dora como um brinquedo, uma linda bonequinha. A tia Betsey, com quem ela acabou por se dar muito bem, chamava‑lhe sempre «Florinha»; e Lavinia não tinha maior gosto na vida do que servi‑la, frisá‑la, mimá‑la de todas as maneiras. E o que Lavinia fazia a irmã achava‑se na obrigação de imitar. A coisa afigurava‑se‑me deveras estranha: guardadas as proporções, faziam a Dora o que Dora por seu turno fazia ao Jip.

Resolvi‑me a chamar para isto a atenção da própria rapariga. Certo dia em que passeávamos juntos (pois, ao fim de algum tempo, Lavinia autorizou‑nos a andar sós), disse‑lhe quanto gostaria que ela as convencesse a tratá‑la de modo diverso.

‑ Porque ‑ expliquei ‑ bem sabes que já não és criança.

‑ Olá! Vais outra vez zangar‑te?

‑ Eu, meu amor, zangar‑me?

‑ Acho que são amáveis comigo e isso dá‑me prazer.

‑ Tanto melhor, Dora. Mas o prazer seria outro se procedessem contigo de forma mais sensata.

Dora lançou‑me um olhar de censura (um lindo olhar!) e começou soluçando. Se a não amava, alegou, por que motivo queria desposá‑la? E por que não a deixava já, se a não podia suportar?

Que havia eu de fazer senão secar‑lhe as lágrimas com beijos e dizer‑lhe que a adorava?

‑ Tenho a certeza de que te amo bastante, Doady! Não devias ser tão cruel para mim.

‑ Cruel, meu amor? Como poderia, como teria alma de ser cruel contigo? Nem que me dessem um império!

‑ Então não me repreendas ‑ volveu Dora, pondo a boquinha em forma de botão de rosa. ‑ E eu serei boazinha.

Fiquei encantado, daí a pouco, ao ouvi‑la pedir‑me espontaneamente que lhe desse o tal livro de cozinha de que falara um dia e que a ensinasse a fazer contas, como lhe prometera. Na visita seguinte levei‑lhe o livro (mandara‑o encadernar de forma a substituir‑lhe o ar severo por um aspecto mais garrido) e, enquanto divagávamos no passeio, mostrei‑lhe o velho caderno de despesas da tia Betsey; e ofereci‑lhe um, novo, e uma lapiseira com recarga, para ela se exercitar na sua contabilidade.

Mas o manual de culinária provocou‑lhe dores de cabeça, e os algarismos fizeram‑na chorar. Recusavam‑se às adições, declarou‑me. E, em vez de contas, desenhou raminhos de flores ou esboços do Jip e da minha pessoa naquelas folhas ainda em branco.

Procurei depois, brincando, instruí‑la em assuntos domésticos, sempre durante as nossas deambulações dos sábados à tarde. Por exemplo, ao passar defronte de um talho, observei‑lhe:

‑ Suponhamos, minha querida, que estamos casados e que tu vais comprar uma costeleta de carneiro para o jantar. Serias capaz de a escolher?

O belo rosto da minha Dora ensombrou‑se e a boca formou botão de rosa, como se desejasse fechar a minha com um beijo.

‑ Serias capaz de a comprar? ‑ insisti, disposto a ser inflexível.

Dora meditou um minuto e depois respondeu triunfante qualquer coisa neste teor:

- Ora, o cortador sabe o que vende, que necessidade tenho eu de saber comprar? Não sejas pateta!

O mesmo aconteceu no dia em que, pensando no livro de cozinha, perguntei a Dora que faria ela se estivéssemos casados e eu lhe dissesse que gostava de carne guisada. Replicou‑me:

‑ Recomendaria à cozinheira que a preparasse.

E isto foi acompanhado de uma gargalhada estrepitosa.

Assim o volume de culinária passou a servir ao Jip, que se punha em cima dele para exibir a sua última habilidade. Todavia não me arrependi de lho ter comprado, porque Dora ficava satisfeitíssima ao ver o animal naquela posição, e até lhe metia na boca, para a equilibrar, a lapiseira que eu também lhe oferecera.

Regressámos, pois, à viola, à pintura e às canções e vivemos felizes semanas inteiras. Às vezes apetecia‑me fazer compreender a Lavinia que tratava a sobrinha um pouco como uma boneca; outras, porém, surpreendia‑me a fazer coro com os demais e a tratá‑la, por meu turno, como o brinquedo que eu não queria que ela fosse. Mas isto era mais raro.

 

INJÚRIA

Embora este manuscrito seja só para meu uso pessoal, não sei se devo recordar aqui quanto trabalhei no aprendizado da estenografia, consciente das responsabilidades que assumira perante Dora e as tias. Mas acrescentarei ao que já disse da minha perseverança nessa época, e da minha energia e paciência, que olhando agora para trás reconheço estar aí a origem do meu êxito. Fui bastante afortunado quanto a resultados materiais; muita gente tem trabalhado com mais afinco do que eu e não conseguiu nem metade do que eu consegui. Contudo, nunca alcançaria esse triunfo sem os meus hábitos de pontualidade, de ordem, de presteza, sem esta decisão de concentrar os esforços num único objecto ao mesmo tempo, e sem tanta rapidez como a que despendi. Estas qualidades adquiri‑as então. Deus sabe que não escrevo isto com a ideia de me elogiar. Quem passa em revista a sua vida, como eu faço, página a página, deve na verdade ter sido perfeito para não sentir remorsos à ideia de tantos talentos desprezados, tantas oportunidades perdidas, tantos sentimentos maus e levianos sempre em guerra com o coração e sempre vencedores. Não foi, todavia, um dom natural de que eu abusasse. O que pretendo dizer é isto: tudo o que procurei fazer na vida desejei que fosse bem realizado; tenho‑me consagrado inteiramente ao meu trabalho, nas coisas grandes como nas pequenas, e fi‑lo sempre com seriedade. Nunca fui de opinião de que uma prenda, natural ou adquirida, dispensasse essas virtudes mais humildes que são a perseverança e o labor. Semelhante ambição não é deste mundo. O talento e a oportunidade podem formar os sustentáculos da escada que certos homens sobem, mas os degraus devem ser resistentes e sólidos; nada substitui a sisudez, a consciência, o ardor sincero. Agora verifico que a minha melhor regra foi não me comprometer só até meio e não afectar denegrir a tarefa, fosse esta qual fosse.

Não repetirei aqui quanto devo a Agnes ter praticado os preceitos que acabo de indicar. Estou‑lhe deveras reconhecido.

Ela veio passar quinze dias em casa do doutor Strong, de quem Wickfield era velho amigo e que desejava proporcionar‑lhe todo o bem‑estar. Pai e filha chegaram juntos. Não me surpreendi muito quando soube que Agnes resolvera arranjar alojamento na vizinhança para a senhora Heep, que precisava de mudança de ares por causa do seu reumatismo e que apreciaria fazê‑lo em tão agradável companhia. Também me não admirei de ver, no dia seguinte, Uriah: como filho dedicado acompanhava a mãe e ajudá‑la‑ia na sua instalação.

‑ Bem vê, menino David ‑ disse‑me ele, quando me impôs a sua presença numa volta pelo jardim ‑ a gente tem ciúmes sempre que se ama, pelo menos prefere conservar sob as suas vistas o objecto desse amor.

‑ De quem tem ciúmes, desta vez? ‑ perguntei.

‑ Graças a si, menino David, de ninguém em particular. De nenhum homem, neste momento.

‑ Quer dizer que tem ciúmes de uma mulher? Lançou‑me um olhar de revés, do canto dos seus olhos sinistros e avermelhados, e começou a rir.

‑ Com as suas insinuações consegue tirar‑me nabos da púcara, menino David... devia dizer senhor Copperfield, mas sei que me desculpa a liberdade que tomo, a qual se tornou num hábito... Pois bem, posso declarar ‑ acrescentou poisando na minha a sua mão gelada ‑ que de uma forma geral não simpatizo com as mulheres... em especial a senhora Strong.

Os olhos de Uriah, que me fixavam, pareciam nessa ocasião verdes, cintilando de uma malícia ignóbil.

‑ Que quer dizer?

‑ Meu Deus, menino David! Olhe que sou homem de leis ‑ replicou com um sorriso ácido. ‑ Quero dizer precisamente o que digo.

‑ E o que significa o seu olhar? ‑ volvi sem me desconcertar. ‑ O meu olhar? Oh, que astúcia! Que tem ele?

Dir‑se‑ia gozar com o caso e riu com tanta vontade quanto lho permitia a sua natureza. Depois de haver coçado o queixo, recomeçou lentamente, de olhos baixos:

‑ Quando eu era apenas um humilde empregado, ela olhava‑me com sobranceria. Convidava sempre a Agnes a visitá‑la, e a Agnes aceitava. Mas eu era muito inferior para que a senhora Strong se preocupasse comigo.

‑ E então? Trata‑se só disso?

‑ E ele também ‑ prosseguiu Uriah com voz firme, porém de ar pensativo, sempre a coçar o queixo.

‑ Não conhece suficientemente o doutor para saber que a sua existência, Uriah, lhe passaria despercebida se não estivesse em sua presença?

Lançou‑me um olhar oblíquo e encovou as faces para mais facilmente as afagar com os dedos. E respondeu:

‑ Não me refiro ao doutor. Pobre homem! Falo mas é do senhor Maldon.

O coração deixou‑me de bater. Todas as minhas suspeitas e apreensões, toda a felicidade e paz do doutor Strong, todas as possibilidades de inocência e de culpabilidade que eu era incapaz de destrinçar, tudo isso vi, num momento, à mercê daquele indivíduo.

‑ Nunca foi capaz de vir ao cartório sem me dar ordens e maçar ‑ declarou Heep. ‑ Que belo cavalheiro, hem? Mas eu era muito dócil, muito humilde... e ainda o sou. O que não gostava, nem gosto, é dessa maneira de tratar as pessoas.

Deixou de coçar o queixo e chupou mais as faces, ao ponto de quase se encontrarem interiormente. Todavia continuou a olhar‑me de través.

‑ Ela então é uma linda senhora, bem sei, mas pouco disposta a simpatizar comigo, isso vejo eu. Há‑de incutir em Agnes ideias muito elevadas. Não, menino David, não estimo as mulheres, mas tenho os olhos abertos e sei servir‑me deles há muito tempo. Em geral, nós os humildes sabemos servir‑nos dos olhos.

Diligenciei não mostrar que compreendia nem que estava inquieto. No entanto, Uriah adivinhara o que eu sentia, como bem se revelava na cara dele.

‑ Pois não tenciono deixar que me ponham os pés em cima ‑ acrescentou Uriah, com ar de triunfo cruel, erguendo a cabeça. ‑ E farei tudo para acabar com aquela amizade. A dama não me agrada. Não hesito em confessar que talvez tenha ciúmes e que pretendo manter os intrusos a distância. Evitarei o risco de se tramar qualquer coisa contra mim.

‑ Você é que está sempre a tramar qualquer coisa e julga que os outros fazem o mesmo.

‑ É possível, menino David, mas tenho um alvo, como dizia o meu sócio, e para o atingir removerei o céu e a terra. Lá porque sou humilde não consinto que me comam as papas na cabeça. Ninguém me obstruirá o caminho. Todos aqueles que o tentem fazer serão afastados.

‑ Não o compreendo, Uriah.

‑ Ah, não? ‑ replicou, com um dos seus trejeitos habituais. ‑ Pois o menino David costuma ser muito sagaz. Para outra vez procurarei ser mais explícito. Olhe, não será o senhor Maldon que chegou a cavalo e toca ao portão?

‑ Parece que é ‑ respondi, afectando a maior indiferença.

Uriah Heep dobrou o corpo, esfregou as mãos nos joelhos e começou a rir em silêncio. Tão em silêncio que não se lhe ouvia o mínimo som. A sua atitude odiosa e sobretudo aquela última manifestação repugnaram‑me a tal ponto que me afastei sem cerimónia, deixando‑o dobrado em dois, no meio do jardim, como um espantalho despegado do seu suporte.

Não foi nessa noite, mas, se bem me recordo, na seguinte, um sábado, que levei Agnes a casa de Dora. Tinha combinado a visita com Lavinia Spenlow e, assim, esperavam Agnes para o chá.

Todo eu tremia de orgulho e ansiedade; orgulho à ideia da minha querida noiva, ansiedade pelo receio de que ela não agradasse a Agnes Wickfield. Pelo caminho, indo esta dentro da diligência e eu do lado de fora, fui imaginando Dora com os atributos que eu lhe conhecia: ora em tal atitude, ora noutra, conforme pensava que lhe assentaria melhor, e tão preocupado que até me sentia doente.

Bonita deveria estar, e quanto a isto não me restavam dúvidas. Ora aconteceu que eu nunca a vira parecendo tão bem. Não se encontrava na sala quando apresentei Agnes às donas da casa, ficara timidamente escondida; mas eu sabia onde a topar, e, com efeito, descobri‑a outra vez atrás da porta, e também a tapar os ouvidos com os dedos.

De começo, recusou comparecer, depois pediu cinco minutos para se preparar; quando, por fim, enfiou o braço no meu para que eu a conduzisse à sala, aquele rosto encantador nunca se me afigurou tão belo. Mas quando empalideceu, ao entrar, ficou ainda mil vezes mais formosa. Dora tinha medo de Agnes; dissera que era «demasiado inteligente». Vendo‑a, porém, tão alegre e acolhedora, soltou uma exclamação de prazer, maravilhada, e deitou os braços ao pescoço de Agnes, beijando‑a com ternura.

Jamais fui tão feliz! Nada me dera até então tanto gosto como vê‑las ambas sentadas lado a lado. Os olhos da minha amada alçavam‑se com tanta naturalidade para os outros olhos tão cheios de bondade! E Agnes retribuía‑lhe tão enternecidamente!

Lavinia e Clarissa partilharam, a seu modo, do meu contentamento. Nunca presenciara tanta cordialidade numa mesa de chá. Clarissa fazia as honras da casa. A outra contemplava‑nos com ar de benevolência superior, como se a nossa felicidade fosse obra sua. Estávamos em absoluto satisfeitos connosco e com os demais.

A jovialidade branda de Agnes tocou‑lhes o coração. O calmo interesse que ela tomava por tudo quanto fosse do agrado de Dora, a sua maneira de travar relações com Jip (que logo a adoptou), a compreensão amável de que deu provas quando Dora hesitou em vir ocupar o seu lugar costumado junto de mim, a graça misturada de circunspecção e simplicidade que lhe valeu tímidas demonstrações de confiança da parte de Dora ‑ tudo isto dir‑se‑ia pôr excelente remate ao nosso círculo.

‑ Que bom gostar de mim! ‑ observou Dora no fim do chá, dirigindo‑se a Agnes. ‑ Nunca tive tanta necessidade de estima, depois que Julia Mills partiu!

De facto, esquecera‑me de informar que a senhora Mills havia já embarcado: eu e Dora subíramos, em Gravesend, a um grande paquete da carreira da índia para nos despedirmos dos Mills. Ali almoçáramos doce de gengibre, goiabas e outras coisas deste género, até que deixámos Julia sentada numa cadeira de bordo, lacrimosa, a contas com um álbum novo, enorme, no qual tencionava consignar as reflexões que lhe sugerisse a contemplação do oceano.

Agnes notou que eu talvez houvesse feito da sua pessoa um retrato demasiado lisonjeiro. Dora contraveio logo, sacudindo a cabeça encaracolada:

‑ Não. Mas deu‑me uma ideia tão elevada das suas opiniões que até me assustei.

‑ As minhas opiniões não podem reforçar o seu apego a certas pessoas que ele conhece. Não lhes trazem qualquer utilidade.

‑ No entanto, não se importe de as dar ‑ retorquiu Dora, com malícia.

Troçámos de Dora, que sentia necessidade de ser amada. Dora ripostou, chamando‑me pateta e declarando que não era a mim que ela amava. Enfim, aquele breve serão chegou ao termo. Aproximava‑se o instante em que devia passar a diligência que nos levaria. Eu encontrava‑me só defronte do lume quando Dora se introduziu furtivamente na sala para me dar o beijo costumado antes que eu partisse.

‑ Não te parece, Doady, que, se eu tivesse Agnes como amiga há mais tempo, seria mais inteligente? ‑ perguntou‑me Dora, de olhos brilhantes, torcendo com a mão direita um dos botões do meu casaco.

‑ Que ideia disparatada, meu amor!

‑ Achas que é disparatada? Tens a certeza?

‑ Naturalmente.

‑ Esqueci‑me de qual é o parentesco entre vocês ‑ continuou ela, torcendo sempre o botão.

‑ Não há parentesco real, mas fomos educados juntos, como irmão e irmã.

‑ Gostava de saber por que foi que gostaste de mim ‑ prosseguiu Dora, agarrando agora outro botão do casaco.

‑ Talvez porque não pude ver‑te sem te amar.

‑ Mas se nunca me tivesses visto? ‑ insistiu ela, passando ao terceiro botão.

‑ E se não tivéssemos nascido? ‑ repliquei alegremente.

Cogitei em que pensaria aquele cèrebrozinho, enquanto a via correr a mão por todos os botões do meu casaco. De cabeça apoiada ao meu peito, e de olhos baixos para seguir o movimento maquinal dos dedos, Dora esteve uns momentos sem falar, e por fim, erguendo para mim a vista, pôs‑se na ponta dos pés, com um ar mais sério que o habitual, e deu‑me finalmente o beijo do costume, que repetiu duas e três vezes. Em seguida foi‑se embora.

Voltaram juntas cinco minutos mais tarde. Desaparecera por completo o ar pensativo de Dora, tão pouco vulgar na sua pessoa. Resolveu, rindo, obrigar Jip a mostrar todas as suas habilidades, antes que passasse a diligência.

A coisa levou muito tempo (não tanto pela variedade como pela resistência que o cachorro opôs) e ainda não tínhamos chegado ao fim quando ouvimos o som da viatura. Agnes e Dora trocaram adeuses rápidos mas afectuosos: Dora escreveria a Agnes (que não devia tomar muito a sério as cartas) e a outra mandaria a resposta; ainda se despediram segunda vez à portinhola da diligência, e mais uma, a terceira, quando Dora (apesar das recomendações da tia Lavinia) tornou a sair, correndo, para lembrar a Agnes que não se esquecesse de escrever e para sacudir os caracóis olhando para a imperial, onde eu me havia sentado.

A carruagem devia deixar‑nos perto de Covent Garden, e aí tomaríamos outra para Highgate. Esperei com impaciência o curto trajecto entre as duas para ouvir o que Agnes me diria de Dora, um elogio por certo. E que elogio tão grande! Com que ternura e fervor soube ela valorizar as graças inocentes da adorada criaturinha que eu conquistara! Com que gravidade salientou (sem ter o ar de que o fazia) a minha responsabilidade perante a órfã juvenil!

Nunca, nunca eu amara Dora tão profunda nem tão sinceramente como nessa noite. Quando, depois de sair da segunda diligência, nos dirigíamos pacificamente a pé até à casa do doutor Strong, eu disse a Agnes que a considerava o anjo‑custódio da minha noiva, tanto como o meu.

‑ Pobre anjo ‑ respondeu. ‑ Mas fiel.

A voz clara de Agnes vinha‑me direita ao coração. Repliquei naturalmente:

‑ A alegria que lhe é própria (a si somente, de todos quantos conheço) pareceu‑me hoje tê‑la cumulado. Suponho que também é feliz em casa.

‑ Sou feliz interiormente. Sinto‑me feliz e de coração leve. Contemplei o rosto sereno, erguido para o céu, e imaginei que eram as estrelas que lhe davam tamanha nobreza.

‑ Não há alterações lá em casa ‑ acrescentou Agnes, daí a poucos minutos.

‑ Sem querer aborrecê‑la, aludindo outra vez ao assunto da nossa última conversa... torno no entanto a perguntar‑lhe...

‑ Repito que não há alteração.

‑ Tenho pensado tanto nisso!

‑ Pois deve pensar menos. Lembre‑se de que estou persuadida do triunfo final do amor e da rectidão. Nada receie por mim. Trotwood ‑ acrescentou daí a instantes ‑ nunca tomarei a deliberação que tanto o assusta.

Embora eu não tivesse esse receio nos meus momentos de sangue‑frio, aquela resposta trouxe‑me considerável alívio. Foi o que lhe disse, cheio de convicção:

‑ E, uma vez acabada esta visita... pois talvez não voltemos a encontrar‑nos sós... virá a Londres de novo, querida Agnes?

‑ Não tão depressa, com certeza ‑ replicou ela. ‑ Penso que será melhor, para meu pai, que fiquemos lá. Não há muita probabilidade de nos vermos, mas garanto‑lhe que serei fiel correspondente de Dora e, através dela, terá notícias minhas e vice‑versa.

Chegávamos à casa do doutor Strong. Já era tarde. Via‑se luz na janela da senhora Strong, e Agnes, indicando‑ma, despediu‑se de mim. E ajuntou:

‑ Que as nossas preocupações e azares o não inquietem mais! Nada poderá dar‑me maior satisfação do que a sua felicidade. Se eu achar que você me pode ser útil, acredite que o chamarei. Deus o proteja!

Vendo‑lhe o sorriso radiante e ouvindo‑lhe estas últimas palavras, ditas em tom prazenteiro, pareceu‑me ver e ouvir a minha Dora. Fiquei um bocado, com o coração repleto de amor e gratidão, a olhar para as estrelas, e em seguida prossegui o meu caminho. Hospedara‑me numa estalagem não muito longe daquele sítio. Quando, por acaso, me voltei para trás, distingui claridade no escritório de Strong. Senti vagos remorsos de o não ter ajudado no dicionário, em que ele naturalmente estava a trabalhar. Para me penitenciar, retrocedi, resolvido a ir dar boa‑noite ao doutor. Atravessei de mansinho o vestíbulo, abri a porta sem ruído e lancei uma vista de olhos ao quarto.

A primeira pessoa que vi (com grande surpresa minha) à luz suave do candeeiro tamisado foi Uriah Heep. Estava de pé, com uma das mãos esqueléticas tapando a boca, a outra apoiada à mesa do doutor. Este, instalado na sua poltrona, ocultava o rosto nas mãos. Wickfield, com ar embaraçado, inclinava‑se para a frente a fim de tocar timidamente no braço de Strong.

Por instantes, supus que este houvesse adoecido. Sob a influência desta impressão, dei uns passos rápidos para diante, mas, encontrando o olhar de Uriah, compreendi o que se passava. Ter‑me‑ía retirado se o dono da casa não fizesse um gesto para me deter. Por isso, fiquei.

‑ Ao menos ‑ disse Uriah ‑ podíamos conservar a porta fechada. Não precisamos de pôr toda a cidade ao facto do caso.

Assim falando, encaminhou‑se em bicos de pés para a porta (pois eu a deixara entreaberta) e fechou‑a com todo o cuidado, voltando em seguida para a posição anterior. Havia na voz dele e nas maneiras um excesso de compaixão e solicitude mais intoleráveis, em meu entender, do que qualquer outra atitude que ele pudesse tomar.

‑ Achei que era do meu dever, menino David, comunicar ao Doutor aquilo de que eu e o menino tínhamos falado. Se calhar não me compreendera bem...

Respondi‑lhe apenas com um olhar, e, aproximando‑me do meu velho professor, dirigi‑lhe palavras de consolação, a fim de o animar. Strong descansou a mão no meu ombro, como costumava fazer quando eu era criança, mas não levantou a cabeça encanecida.

‑ Como não me compreendeu, menino David ‑ recomeçou Uriah, sempre solícito ‑ tomarei a liberdade de observar, entre amigos, que chamei a atenção do senhor doutor Strong para os actos e gestos de sua esposa. Afianço‑lhes que me contraria muito intrometer‑me em histórias desagradáveis, mas a verdade é que nos vemos sempre envolvidos em coisas que nos aborrecem. Era isso o que eu queria dizer há pouco ao menino David.

Pergunto agora a mim mesmo, recordando estas palavras, por que não lhe deitei as mãos ao pescoço e lhe apertei com força o gasganete.

‑ Creio que não me expliquei bem ‑ continuou Heep ‑ mas também da sua parte não recebi uma resposta clara. Naturalmente queríamos ambos evitar este assunto. Todavia acabei por me decidir e participei ao senhor doutor Strong que... Que diz, senhor doutor?

Esta última frase endereçava‑se ao próprio Strong, que soltara um gemido ‑ um gemido que me pareceu susceptível de comover todos os corações mas que não produziu o menor efeito no de Uriah.

‑ ... participei‑lhe que toda a gente reparava na ternura manifesta com que se tratavam essas duas pessoas, o senhor Maldon e a simpática esposa do senhor doutor. Realmente chegou a ocasião (pois que já estamos intrometidos na história) de o senhor doutor saber o que era claro para todos, já antes da partida do senhor Maldon para a índia. Este, se tratou de regressar, foi só por causa disso, e para o mesmo fim é que passa aqui todo o tempo. Quando o menino David entrou, eu acabava de pedir ao meu sócio ‑ voltou‑se para Wickfield ‑ que dissesse ao senhor doutor Strong se tivera ou não quaisquer desconfianças. Então, prezado sócio? Quer ter a bondade de nos esclarecer?

‑ Por amor de Deus, caro amigo ‑ interveio Wickfield, tornando a poisar a mão indecisa no braço de Strong ‑ não ligue grande importância às suspeitas que eu pudesse ter.

‑ Ora aí está! ‑ exclamou Heep ‑ uma confirmação melancólica. E de quem? De um velho amigo! Palavra de honra, quando eu era apenas empregado de cartório, vi‑o, ao doutor Wickfield, bastante preocupado por causa deste caso, e até irritado, o que é natural, porque tem uma filha e pensava que a menina Agnes poderia ser envolvida numa história que não lhe dizia respeito.

‑ Meu caro Strong ‑ atalhou Wickfield com voz trémula ‑ meu caro amigo, não preciso dizer que tenho a mania de procurar em todas as acções humanas um móbil e de as julgar segundo um critério único e rígido. Este erro pode estar na origem das suspeitas.

‑ Você suspeitou, Wickfield ‑ redarguiu Strong, sem erguer a cabeça. ‑ Você suspeitou!

‑ Responda, caro sócio ‑ insistiu Uriah.

‑ Suspeitei em dado momento, é verdade ‑ declarou Wickfield. ‑ E, Deus me perdoe, supus que você também suspeitara.

‑ Não, não ‑ replicou Strong, cuja voz denotava uma dor pungente.

‑ Julguei até que você queria mandar o Maldon para o estrangeiro por causa disto.

‑ Não, não ‑ repetiu o doutor. ‑ Era para dar gosto à Annie, assegurando o futuro do seu amigo de infância. Nada mais.

‑ Foi o que me constou e sempre julguei que o boato fosse do seu conhecimento. Demais a mais... desculpe a estreiteza de vistas, meu pecado principal... que numa união com idades tão desproporcionadas.

‑ Eis como as coisas se apresentam, não é verdade, menino David? ‑ observou‑me Uriah, com ar de dó ao mesmo tempo obsequioso e insultante.

‑ ... a mulher, nova e sedutora, fosse impelida ao casamento... por maior respeito que dedicasse ao marido... por consideração de ordem puramente material. Não fiz caso dos sentimentos e circunstâncias várias que podiam actuar num sentido favorável. Por amor de Deus, tenha isto em conta!

‑ Como ele apresenta bem os factos! ‑ comentou Uriah, oscilando apreciativamente a cabeça.

‑ Observando apenas de um ponto de vista ‑ prosseguiu Wickfield ‑ ... e por tudo o que lhe é querido, meu bom amigo, peço‑Lhe que se lembre disto... sou levado a confessar agora, visto que não posso fazer de outro modo...

‑ Não! ‑ atalhou Uriah. ‑ Não se pode fugir à realidade, já que as coisas chegaram a este ponto.

Wickfield teve uma expressão de impotência desesperada quando olhou para o seu sócio. Mas continuou:

‑ ... sou levado a confessar que duvidei dela e achei que faltava aos seus deveres de esposa, e até às vezes me aborreceu verificar a familiaridade que entre as duas se estabelecera (refiro‑me a Agnes). Mas devia ser consequência da minha imaginação mórbida. Nunca falei disto a ninguém. Esperava que mais ninguém soubesse. Por mais desagradável que seja ouvir estas considerações, caro Strong, mais desagradável foi para mim formulá‑las...

O professor, com a sua bondade inata, estendeu‑lhe a mão, que Wickfield apertou por um momento, de cabeça baixa.

Como uma enguia, Uriah insinuou‑se no silêncio que se estabelecera e disse:

‑ Este assunto é antipático para todos nós. Mas, já que nos adiantámos tanto, parece‑me ser lícito acrescentar que David Copperfield também desconfiava.

Voltei‑me para ele e perguntei como se atrevia a falar em meu nome.

‑ Oh, menino David ‑ volveu, contorcendo‑se da cabeça aos pés ‑ é muito cortês da sua parte e só prova a bondade do seu carácter; mas bem sabe que, na outra noite, logo que abri a boca para me referir ao caso, me compreendeu antes que eu dissesse pouco nem muito. Não negue! Se o negar, é com as melhores intenções. Mas de que serve?

Vi o olhar brando do meu velho professor virar‑se para mim um momento e senti claramente que ele lia no meu rosto a confissão das minhas suspeitas. Era inútil zangar‑me, o resultado não compensaria nada: seria o mesmo que negar a evidência.

Recaímos no silêncio, até que Strong se levantou para dar por duas ou três vezes volta ao quarto. Depressa regressou à poltrona e, apoiado ao espaldar, enxugou os olhos com o lenço, o que, em minha opinião, lhe deu maior dignidade do que se se limitasse a afectar indiferença. E disse então:

‑ A culpa foi minha. Creio realmente que foi minha. Expus um ente que me é querido aos juízos e calúnias de que ele, sem mim, nunca teria sido objecto. E chamo calúnias às simples suspeitas que nem hajam saído do coração de quem as concebeu.

Uriah Heep emitiu uma espécie de fungadela, suponho que para testemunhar concordância.

‑ Sem mim ‑ repetiu Strong ‑ Annie nunca teria sido objecto de semelhante malevolência. Meus senhores, já estou velho, como sabem, e agora vejo que não tenho motivos fortes para viver. Mas constituo‑me fiador da honra e da fidelidade da minha querida mulher, que deu motivo a esta conversa.

Imagino que o protótipo da cavalaria, a incarnação do herói mais puro e romântico criado por algum pintor ou romancista, não pudesse proferir estas palavras com maior e mais comovedora nobreza do que essa com que as pronunciou o meu velho professor.

‑ No entanto ‑ prosseguiu Strong ‑ não devo negar, e até sou levado a confessá‑lo, que tenha, de certo modo, impelido essa mulher a um casamento infeliz. Falta‑me o hábito da observação, mas não posso deixar de reconhecer que a observação das outras pessoas de diferente idade e posição e tendente ao mesmo fim é certamente melhor do que a minha.

Eu muitas vezes admirara, como aliás já notei, a indulgência do doutor Strong para com a mulher; porém a ternura respeitosa que se inferia de cada uma das suas palavras proferidas

naquela ocasião, e com as quais afastou da virtude de Annie a mais leve suspeita, engrandeceu‑o verdadeiramente aos meus olhos.

‑ Casei quando ela era ainda muito nova; mal formara a sua personalidade, e a mim coube, com prazer, o encargo de a ajudar nesse sentido. Conhecia muito bem o meu sogro, e à Annie igualmente. Ensinara‑lhe o que pudera, em homenagem às nobres qualidades que o ornavam. Procedi mal (bem o receio) em me ter aproveitado, embora sem consciência disso, da sua gratidão e afecto, e do fundo da alma lhe peço me perdoe.

Atravessou o quarto, retrocedeu, e apertou o espaldar da cadeira com mão trémula, enquanto prosseguiu numa voz sufocada mas vibrante de sinceridade:

‑ Considerava‑me como um refúgio para ela, um refúgio contra os perigos e vicissitudes da existência. Persuadia‑me de que, apesar da diferença de idade, Annie viveria comigo tranquila e contente. Não cessava, todavia, de pensar no momento em que a deixaria livre, nova ainda e sempre bela mas de razão amadurecida. Juro‑lhes, meus senhores, que era assim.

A sinceridade e a generosidade dir‑se‑ia iluminarem‑lhe o rosto vulgar; e davam a cada uma das suas palavras uma força que mais nenhum dom lhe poderia conferir.

‑ A nossa vida em comum tem sido feliz. Até esta noite só tenho abençoado o dia em que casámos.

A voz tornava‑se‑lhe hesitante. Strong calou‑se por momentos, e recomeçou:

‑ Uma vez desperto do meu sonho (de qualquer maneira, só tenho sido um sonhador na vida), compreendo que ela experimente alguma saudade ao lembrar‑se deste velho companheiro. Talvez seja uma saudade inocente, pensando no que poderá ser, sem mim, a sua vida, Quantas coisas a que eu não prestei atenção suficiente me acodem agora oneradas de um sentido novo, nesta hora dolorosa! Fora disto, porém, não quero que o nome dessa querida criatura seja associado à mais pequena expressão de dúvida.

Durante um instante o olhar resplandeceu e a voz tornou‑se mais segura. Em seguida a um silêncio prolongado, continuou no mesmo tom:

‑ Só me resta suportar, com a possível resignação, o conhecimento do mal que causei. Ela é que tem razão de queixa e não eu. O meu dever é preservá‑la de qualquer interpretação injustificada e cruel que os meus próprios amigos não poderão coibir‑se de formar. Quanto mais retirados vivermos, mais fácil será para mim esse dever. E, quando soar a hora (possa vir cedo, se for do agrado de Deus!) em que a minha morte a liberte do seu constrangimento, fecharei os olhos de cara voltada para o seu rosto digno, cheio de confiança e amor, e então deixá‑la‑ei sem tristeza a uma vida mais feliz e alegre.

Mal o via através das lágrimas que me afloravam aos olhos, impressionado com tanta bondade e dedicação, realmente a carácter com a perfeita simplicidade da sua vida. Avançou até à porta e ajuntou:

‑ Meus senhores, acabei de lhes pôr a nu o meu coração. Estou certo de que respeitam estas confidências. O que dissemos não se repetirá. Wickfield, caro amigo, dê‑me o seu braço para me ajudar a subir.

Wickfield aproximou‑se logo. Sem trocar uma palavra, deixaram lentamente o quarto, sob o olhar de Uriah Heep.

‑ Pois, menino David ‑ disse‑me ele, virando‑se muito amável para mim ‑ as coisas não tomaram o curso que se poderia supor, porque este velho erudito... e, na verdade, que homem animoso!... é tão cego que não vê um palmo adiante do nariz. Mas bem me parece que é uma família liquidada.

O som daquela voz bastou para me enfurecer. A cólera que senti foi a maior da minha vida.

‑ Miserável! ‑ ripostei‑lhe. ‑ Que pretende com essa ideia de me fazer cúmplice das suas maquinações? Como se atreve, seu biltre, a pedir a minha opinião como se tivéssemos discutido o caso?

Vendo‑o à minha frente, li‑lhe com toda a clareza, no ar de triunfo que ele procurava disfarçar, o que eu já sabia muito bem: que me impunha as suas confidências apenas com o propósito de me desgostar e que, deliberadamente, me queria armar um laço. Achei aquilo intolerável. A face magra era um alvo tentador, e eu ali assentei uma bofetada tremenda com a mão bem aberta e com tal força que os dedos me ficaram a arder.

Heep agarrou‑me na mão e nós permanecemos assim, olhando‑nos por muito tempo, tanto tempo que pude presenciar a substituição da marca branca que os meus dedos lhe tinham deixado na cara por uma vermelhidão intensa.

‑ Copperfield ‑ disse por fim, sufocado de comoção ‑ deixou de conhecer o bom senso?

‑ Deixei de o conhecer a si ‑ repliquei, arrancando a minha mão da sua. ‑ Não quero saber mais de você, patife!

‑ Palavra? ‑ volveu ele. A dor obrigara‑o a levar a mão à cara. ‑ Talvez não possa proceder de outra maneira, Mas não será ingratidão da sua parte?

‑ Já lhe dei a entender várias vezes quanto o desprezo. E agora fi‑lo de uma forma irrefutável. Por que hei‑de recear outros malefícios? Não pode fazer pior do que já fez.

Heep compreendeu perfeitamente esta alusão às considerações que até esse momento me tinham obrigado a conter‑me. Creio que sem as garantias que Agnes me dera nessa noite eu não teria recorrido com tanta segurança nem à bofetada nem aos insultos.

Seguiu‑se outro silêncio, também longo.

Enquanto ele me observava, os olhos adquiriam todas as tonalidades capazes de afeiar ainda mais um indivíduo já de si feio.

‑ Copperfield ‑ disse Uriah, retirando finalmente a mão da cara ‑ tem estado sempre contra mim. Já o notara em casa do doutor Wickfield.

‑ Pense o que quiser ‑ redargui, sempre furioso. ‑ Você merecia‑o, se já não fosse verdade.

‑ No entanto sempre gostei de si.

Não me dignei responder‑lhe e, pegando no chapéu, preparava‑me para sair quando Uriah me barrou o caminho para a porta.

‑ Copperfield, para lutar é preciso haver dois. Não conte comigo.

‑ Diabos o levem!

‑ Veja como fala. Sei que se há‑de arrepender. Como lhe foi possível mostrar‑se tão inferior a mim com esta prova de mau humor? Todavia perdoo‑lhe.

‑ Perdoa‑me? ‑ repeti, no tom mais desdenhoso.

‑ Sim, senhor, e não pode evitá‑lo ‑ declarou Uriah. ‑ Pensar que se atreveu a atacar‑me deste modo, a mim que sempre fui seu amigo! Mas, como disse, para uma luta são precisos dois, e eu não serei um deles. Contra sua vontade, continuarei a ser seu amigo. E agora já sabe o que pode esperar.

A obrigação que nos impúnhamos de baixar a voz neste diálogo, a fim de não acordar os da casa a uma hora já tardia, pouco contribuiu afinal para abrandar a minha cólera. Declarando‑lhe que não esperaria dele mais do que esperara até aí, retirei‑me fechando‑Lhe a porta na cara e abandonei a residência. Mas Uriah também dormia fora, no mesmo prédio em que estava a mãe, de forma que daí a pouco ele alcançou‑me na rua.

‑ Fique sabendo, Copperfield ‑ disse‑me ao ouvido (sem que eu sequer me dignasse voltar a cabeça) ‑ que se encontra numa situação bastante falsa. ‑ Isto pareceu‑me certo, o que mais me irritou. ‑ Não pode considerar o seu acto como se fosse de bravura nem pode impedir‑me de lhe perdoar. Não tenciono falar do que aconteceu nem à minha mãe nem a ninguém. Estou resolvido a desculpá‑lo, Copperfield. O que me admira é que fosse capaz de levantar a mão para um ente tão humilde como eu.

A repulsa que a mim inspirava o meu próprio procedimento não cedia entretanto à que sentia por ele. Heep conhecia‑me mais do que me conhecia a mim mesmo. Se ele ripostasse com violência ou me exasperasse abertamente, considerar‑me‑ia justificado, o que me daria certo alívio. Mas o velhaco fazia‑me cozer a fogo brando, e eu nesse calor me revolvi toda a noite, sem poder pregar olho.

Quando saí, no dia seguinte de manhã, os sinos badalavam. Encontrei Uriah Heep, que passeava com a mãe. Dirigiu‑me a palavra como se nada fosse, e eu não tive remédio senão

responder‑lhe. Creio que a minha bofetada lhe provocara, com a força que lhe imprimi, dores de dentes, porque tinha um lenço de seda amarrado na cara. Com o chapéu desabado, o novo adorno estava longe de o embelezar. Soube pela conversa que fazia tenção de ir a Londres na segunda‑feira de manhã, para consultar o dentista. Fiz votos, intimamente, por que o dente atingido tivesse duas raízes.

Strong mandou participar que não se sentia bem, e ficou sozinho a maior parte do dia, durante todo o resto da visita dos Wickfields. Só retomámos o nosso trabalho muitos dias depois, quando havia já uma semana que Agnes e o pai tinham partido. Na véspera, o doutor entregou‑me pessoalmente um papel dobrado mas não lacrado, no qual me pedia, em termos afectuosos, que nunca aludisse ao que se passara nessa noite famosa. Eu abrira‑me apenas com a minha tia: não era assunto que pudesse discutir com Agnes e Agnes não fazia decerto a mínima ideia do que acontecera. Do mesmo modo a senhora Strong, creio eu, pelo menos nessa altura. Decorreram várias semanas sem que observasse nela a menor alteração, mas esta sempre veio, e lentamente, como uma nuvem em dia calmo. Começou por se admirar da benignidade compassiva do marido e do desejo que ele exprimiu de ver a sogra instalar‑se na residência do casal a fim de quebrar a monotonia que ali reinava. Muitas vezes, enquanto trabalhávamos e Annie se sentava perto de nós, notava que se interrompia e olhava interrogativamente para o doutor. Depois habituou‑se a levantar‑se dali e a sair do gabinete, com os olhos cheios de lágrimas. A pouco e pouco foi‑se alastrando uma sombra de melancolia na sua beleza. A senhora Markleham ocupava agora um quarto na vivenda, mas falava sem cessar e não reparava em nada. Ao passo que esta modificação se operava em Annie (outrora a alegria da casa), Strong parecia envelhecer e tornar‑se mais grave; mas a brandura do seu carácter, a delicadeza inalterável das maneiras, a solicitude para com a mulher, isto aumentou ainda mais, se possível. Certa manhã, dia dos anos dela, quando veio sentar‑se diante da janela (o que em geral fazia enquanto trabalhávamos, mas agora mais tímida e hesitante), vi‑o segurar‑Lhe a cabeça entre as mãos, beijar‑lhe a testa e sair precipitadamente, demasiado comovido para ficar. Annie permaneceu imóvel como uma estátua no lugar em que o marido a deixara, depois curvou‑se, uniu os dedos e chorou amarguradamente.

Várias vezes, depois disso, julguei que ela ia falar quando nos achávamos sós. Mas não disse palavra. O doutor tinha sempre qualquer projecto para diversão fora de casa, em que Annie participaria com a mãe, e a senhora Markleham, que se prestava voluntariamente a isso, regozijava‑se bastante com a ideia. Era, porém, triste e indiferente que a filha a acompanhava, sem tomar gosto fosse no que fosse.

Eu nem sabia que pensar. A tia Betsey também andava intrigada e, magicando no caso, dava inúmeros passeios cá e lá no quarto. O mais estranho é que o único raio de alegria que pareceu penetrar no seio destas trevas conjugais veio na pessoa do senhor Dick.

O que pensava ele ou o que havia observado, eis o que sou incapaz de explicar ao vê‑lo auxiliar‑me nesta tarefa. Mas, como relatei ao falar do tempo do colégio, a sua veneração pelo professor Strong era ilimitada; em toda a afeição sincera, mesmo da parte dos animais, há uma percepção que ultrapassa o mais apurado intelecto. Foi por essa inteligência do coração, se assim posso chamar, que a verdade penetrou directamente no senhor Dick.

Muitas vezes, nos seus momentos de ócio, ele retomara orgulhosamente o privilégio de passear no Jardim em companhia do doutor, como outrora em Cantuária. Mas, quando as coisas tomaram certo aspecto, o senhor Dick consagrou todo o seu tempo disponível a tais deambulações, chegando a levantar‑se mais cedo para não perder nem um minuto. Sempre se sentira felicíssimo quando o professor lhe fazia leitura de alguns extractos dessa obra‑prima que era o Dicionário. Mais do que nunca apreciava agora esses momentos, mas, se eu e Strong estávamos ocupados, Dick acompanhava então Annie, ajudando‑a a tratar das flores favoritas ou a sachar os canteiros. Talvez não chegasse a pronunciar uma dúzia de palavras por hora, porém a sua solicitude calma e o rosto sorridente encontravam eco nos corações do casal: cada um sabia que ele os estimava e assim Dick se tornou um elo entre ambos, o que mais ninguém até aí conseguira.

Quando o evoco, com a sua fisionomia de tão impenetrável circunspecção, divagando entre os passeios com o doutor e encantado com a revelação dos artigos eruditos do Dicionário; quando o revejo ajoujado ao peso de regadores transbordantes de água, atrás de Annie, e a ajoelhar para fazer, com as mãos enormes e enluvadas, insignificantes trabalhos de paciência no meio das folhas; quando o recordo assim tão prestável, consciente de que havia qualquer coisa que não corria bem e até já esquecido das intromissões do rei Carlos, chego a ter vergonha de haver pensado que ele não possuía o juízo todo.

‑ Só eu conheço bem este homem! ‑ dizia a senhora Trotwood, quando aludíamos ao caso. ‑ Dick acabará por se tornar célebre!

Antes de terminar o capítulo, devo aflorar outro assunto. No tempo em que Strong ainda tinha hóspedes, eu notara que o carteiro trazia todas as manhãs duas ou três cartas para Uriah Heep, e que essas cartas lhe eram endereçadas por Micawber, o qual adoptara ultimamente uma caligrafia muito no género da que usam os advogados. Por este indício, embora fraco, deduzi que

Micawber prosperava. Fiquei pois deveras surpreendido ao receber por essa altura uma carta da mulher dele, concebida nestes termos:

 

«Cantuária, segunda‑feira à noite.

«Vai ficar sem dúvida admirado, caro senhor Copperfield, de receber esta carta, e mais ainda do seu conteúdo ‑ para não falar do pedido que lhe faço de guardar de tudo absoluto sigilo. Mas os meus sentimentos de esposa e mãe precisam de ser aliviados: ora eu não quero consultar a minha família (já tão mal vista de Micawber) e não conheço mais ninguém, a quem possa com maior justiça pedir conselho que ao meu amigo e antigo locatário.

«Sabe provavelmente, caro senhor Copperfield, que entre mim e Micawber (que jamais abandonarei) sempre reinou um espírito de confiança mútua; pode acontecer que ele assine às vezes uma letra sem me consultar ou me induza em erro quanto ao termo do vencimento. Isto tem sucedido, é verdade. Mas, em geral, Micawber não tinha segredos para o objecto central da sua afeição ‑ quer dizer, a mulher ‑ e invariavelmente, quando recolhíamos ao quarto, ele passava em revista os factos ocorridos durante o dia.

«Imagine, pois, caro senhor Copperfield, qual será a acuidade da minha inquietação quando eu lhe disse que Micawber mudou por completo. É reservado. É discreto. A vida dele tornou‑se um mistério para a companheira das suas alegrias e tristezas (refiro‑me sempre à mulher), e, se lhe afirmasse que, à parte a circunstância de passar o tempo no escritório, de manhã à noite, eu sei menos a seu respeito do que acerca do homem do Sul (a respeito do qual as crianças repetem uma história tola em que há um pudim de sebo frio), não faria mais do que utilizar uma história popular para exprimir um facto verdadeiro.

«Mas não fica por aqui. Micawber anda melancólico, severo. Já não se interessa pelos filhos mais velhos nem se orgulha dos gémeos. Até lança um olhar froixo ao inocente recém‑nascido, desde há pouco membro novo da nossa família. Só a custo me concede os meios para arcar com as despesas do lar, reduzidas ao mínimo, e, com isto, faz ameaças tremendas de se estabelecer (é esta a sua expressão), recusando‑se teimosamente a dar outras explicações.

«Eis o que custa a suportar. Estou desolada. Se, conhecedor dos meus fracos recursos, me quisesse dar parecer quanto à melhor maneira de os utilizar nesta situação complicada, acrescentaria, caro senhor Copperfield, mais uma dívida de gratidão àquelas, tão numerosas, de que já é credor. Envio‑lhe saudades dos pequenos e um sorriso do nené, ainda numa inconsciência venturosa, e confesso‑me «sua dedicada Emma Micawber.»

 

Não me achei qualificado para dar a uma mulher de tanta experiência como a senhora Micawber os conselhos que ela solicitava, a não ser dizendo‑lhe que reconquistasse o coração do marido pela sua paciência e bondade (como sabia que ela era capaz). Mas esta carta mergulhou‑me em meditações profundas.

 

OUTRA RETROSPECTIVA

Permitam‑me, mais uma vez, deter‑me num instante memorável da minha vida. Que me deixem ficar de lado para ver os espectros dos dias decorridos acompanhar a minha própria sombra numa procissão indistinta.

Passam semanas, meses, estações quase como se fossem, quando muito, um dia de Verão ou uma noite de Inverno. Tão depressa o baldio em que passeio com Dora está em flor como jaz, invisível, sob uma camada espessa de neve. Num momento, o riacho que atravessa o nosso caminho brilha ao sol estival e logo arrasta pedaços de gelo flutuantes. Mais rápido que outro curso de água na sua viagem para o mar, ele cintila, ensombra‑se e desaparece.

Nada mudou na casa onde vivem as irmãs Spenlows. O relógio do fogão faz ouvir o seu tiquetaque, o barómetro continua na parede do vestíbulo. Nenhum está certo, mas apesar disso confiamos neles como se fossem exactos.

Legalmente sou maior. Mas é uma dignidade que se pode considerar aparente. Vejamos o que realizei.

Consegui dominar esse arrevesado método da estenografia. Obtenho um vencimento respeitável. Sou muito reputado pela minha habilidade em tudo o que se liga com essa arte e, com mais onze estenógrafos, comunico os debates da Câmara a um jornal da manhã. Cada noite levo ali predições que nunca se verificam, profissões de fé que não são cumpridas, explicações cujo único fim é mistificar. Espojo‑me em palavras. Britânia, essa fêmea desgraçada, está sempre sob os meus olhos, como uma galinha perra, com penas administrativas a atravessá‑la e obreias burocráticas a prendê‑la. Frequento razoavelmente os corredores para me inteirar do valor da vida política. Neste aspecto sou um infiel, incapaz de me converter.

O meu velho amigo Traddles quis experimentar a mesma carreira, mas não estava no seu feitio. Aceita o malogro com bom humor e lembra‑me que toda a vida foi preguiçoso. O mesmo jornal emprega‑o às vezes para reunir documentos relativos a assuntos áridos, que depois serão escritos com desenvolvimento e arte. Traddles é advogado. À força de trabalho e de privações, ainda conseguiu economizar cem libras para pagar o estágio num escritório. No dia em que se estreou, fê‑lo à custa de muitos cálices de Porto, consumidos sucessivamente.

Eu prosperei noutra direcção. Lancei‑me cheio de angústia na profissão de escritor. Escrevi às escondidas qualquer coisa e mandei‑a a uma revista, que a publicou. Desde então escrevo muitas caganifâncias e recebo um salário razoável. Em resumo, estou bem de meios; quando conto os meus rendimentos pelos dedos da mão esquerda, chego ao terceiro e dobro o quarto pela falangeta.

Trocámos a casa da Buckingham Street por uma vivenda agradável, próxima daquela que eu ambicionara quando me nasceu este entusiasmo. A tia Betsey vendeu por bom preço a residência de Dover, mas não conta habitar a vivenda nova: tenciona escolher outra, ainda mais pequena, todavia nas proximidades. Que pressagia tudo isto? O meu casamento? Evidentemente!

É verdade: posso casar com Dora. As senhoras Lavinia e Clarissa deram o seu consentimento, e com que alvoroço o fizeram! Lavinia encarregou‑se de superintender no enxoval da minha querida, passa o tempo a desembrulhar as encomendas e a discordar da opinião do moço respeitável que traz um fardo enorme e tem uma fita métrica no braço. Há uma costureira que dorme e come na residência e está sempre de agulha enfiada; mas, dormindo ou comendo, parece que nunca larga o dedal. Transformam a minha querida em manequim, chamam‑na continuamente para provar qualquer coisa. À noite, não podemos usufruir cinco minutos da nossa felicidade sem que venha alguém bater à porta e dizer: «Se faz favor, menina Dora, suba ao seu quarto.» Clarissa e a tia Betsey erram por toda a cidade de Londres à procura de móveis, os quais eu e Dora teremos depois de ir ver. Mais valia que comprassem logo a mobília, sem esta cerimónia da inspecção: quando vamos examinar um guarda‑fogo para a cozinha ou uma peneira, Dora descobre uma casota chinesa para o Jip, com campainhas no tecto, e dá‑lhe a sua preferência. E custa tanto habituar o cachorro à nova instalação, depois de a termos comprado! De cada vez que ele entra ou sai, as campainhas tocam e o animal assusta‑se a valer.

A Peggotty vem oferecer os seus serviços e põe imediatamente mãos à obra. A sua especialidade parece ser a de brunir tudo. Esfrega tudo quanto pode ser esfregado, até que brilhe como a sua testa luzidia, à força de perpétuas fricções. Encontro o irmão dela, que passa à noite, solitário, pelas ruas sombrias, olhando para todos os transeuntes. Nessas ocasiões nunca lhe falo; sei muito bem o que ele busca e o que ele receia.

Por que é que Traddles tem um ar tão importante quando vem ter comigo certa tarde, aos Doctor's Commons, onde eu ainda me apresento às vezes, por simples formalidade, se disponho de tempo? A realização do meu sonho da mocidade não tarda muito: vou levantar a minha licença de casamento.

É um documento pequenino mas de grande valor e Traddles contempla‑o no meu escritório com ar meio de admiração meio de temor. Eis os nossos nomes juntos como nos meus sonhos de outrora: David Copperfield e Dora Spenlow. A um canto, essa instituição tutelar, o Selo, que toma um interesse tão afectuoso pelas várias transacções da existência humana, contempla de alto a nossa união. E lá está a bênção impressa do arcebispo de Cantuária, conseguida com tão pouco dinheiro!

Entretanto vivo como num sonho agitado, feliz, febril. Custa‑me a crer que seja verdadeiro, mas também não posso coibir‑me de supor que todas as pessoas que encontro na rua hão‑de ter a sensação mais ou menos vaga de que me vou casar depois de amanhã. O substituto conhece‑me e, quando compareço para prestar juramento, faz despachar tudo com urgência, como se entre nós houvesse um entendimento maçónico. Embora não seja necessário, Traddles acompanha‑me como padrinho em todas as circunstâncias.

‑ Espero que da primeira vez que venhas cá ‑ disse‑lhe eu ‑ seja para fazer o mesmo que eu. E oxalá não tarde muito!

‑ Obrigado pelos teus votos, Copperfield ‑ respondeu‑me. ‑ Também o espero. É um consolo saber que ela aguarda essa possibilidade com tanta paciência e que é na verdade uma rapariga tão carinhosa...

‑ A que horas contas que ela chegue hoje na diligência?

‑ Às sete ‑ declarou Traddles, olhando para o velho relógio de prata, aquele de que tirara um dia, na escola, uma rodinha para fazer um moinho. ‑ Será a mesma hora a que vais esperar Agnes Wickfield?

‑ Não, essa vem um pouco mais tarde, às oito e meia.

‑ Afianço‑te, Copperfield, que me sinto quase tão feliz como se se tratasse do meu casamento. E, da tua parte, foi uma bela prova de amizade quereres que Sophy se associasse pessoalmente à tua festa, como dama de honor, juntamente com Agnes Wickfield. Estou muito reconhecido.

Oiço‑o, aperto‑lhe a mão, partimos, andamos, jantamos, movemo‑nos, sem que eu creia na realidade de tudo isto.

Sophy chega a casa das tias de Dora no momento previsto. Tem um semblante dos mais agradáveis, sem ser precisamente belo; raras vezes conheci alguém tão cordial, de trato tão simples, franco, sedutor. Traddles apresenta‑a com orgulho. Quando o tomo de parte, para um canto, a fim de o felicitar pela escolha que fez, o meu amigo esfrega as mãos durante dez minutos enquanto cada um dos cabelos se ergue individualmente no alto da cabeça.

Fui esperar Agnes à diligência de Cantuária e, pela segunda vez, a sua deliciosa figura se encontra, sorridente, entre nós. Agnes simpatiza muito com Traddles, e é um encanto vê‑los conversar.

Contudo ainda não acredito. Passamos uma noite agradabilíssima e sentimo‑nos felicíssimos. Mas ainda não creio. Tenho dificuldade em voltar à singeleza da vida, à minha roda ondula uma névoa, como se me houvesse levantado muito cedo há oito ou quinze dias e não me tivesse deitado depois. Não sei discernir o que era ontem e o que é hoje. Julgo que trago no bolso, há meses, a minha licença de casamento.

No outro dia, quando fomos todos em cortejo visitar a casa nova, a que se destinava a mim e à Dora, achei‑me absolutamente incapaz de me considerar como proprietário. Dir‑se‑ia ali estar por concessão de outrem e esperava ver surgir alguém, de um momento para outro, que me desse as boas‑vindas. Trata‑se de uma vivenda pequenina, onde tudo brilha, onde se pode supor que as flores do tapete foram colhidas nesse instante, que os ramos verdes do papel da parede acabam de crescer. As cortinas de cassa são de brancura imaculada, os móveis claros parecem ruborizar‑se. O chapéu de Dora, com a sua fita azul (como recordo o amor que ela me inspirou com um chapéu semelhante, a primeira vez que a vi!) está já pendurado no cabide. O estojo da viola sente‑se como em sua casa, aconchegado a um canto. E toda a gente tropeça no pagode de Jip, grande de mais para aquela instalação.

Mais um serão delicioso, também irreal, e entro na saleta do costume, antes de me ir embora. A minha noiva não está lá, creio que ainda não acabou as provas. Lavinia, de passagem, diz‑me misteriosamente que ela se não demora. Todavia não chega. Até que oiço um sussurro atrás da porta e alguém que bate.

Mando entrar, mas batem outra vez. Vou à porta, pensando quem seria, e vejo dois olhos brilhantes e um rosto corado: são os olhos e o rosto de Dora. Lavinia vestiu‑a com o traje de casamento, sem esquecer o toucado, para que eu a admire. Cinjo‑a ao peito e Lavinia solta um grito, porque lhe amarfanho o traje. Dora, vendo‑me contente, não sabe se ria se chore. E tudo se me afigura mais irreal do que nunca.

‑ Achas‑me bonita, Doady? ‑ pergunta.

Bonita! Quem o duvida?

‑ E tens a certeza do teu amor?

Este assunto é tão cheio de perigos para o toucado de Dora que Lavinia dá outro gritinho e me suplica que apenas contemple a noiva mas por nada deste mundo lhe toque. E Dora, confusa, fica um ou dois minutos em exposição. Em seguida foge e volta mais tarde com o vestido usual, esboçando uns passos de dança. Depois ajoelha para obrigar Jip a manter‑se nas patas traseiras, sobre o livro de cozinha, pela derradeira vez na sua existência de solteira.

Regresso a casa mais incrédulo ainda e levanto‑me cedo no dia seguinte a fim de ir ao encontro da tia Betsey na estrada de Highgate. Nunca a tinha visto daquela maneira. Veste de seda lilás, usa um chapéu branco e toda ela resplandece. Janet ajudou‑a a arranjar‑se. A Peggotty vai partir para a igreja. O senhor Dick, que levará a minha prometida ao altar, frisou o cabelo. Traddles, a quem eu marcara ponto de reunião junto da portagem, oferece um espectáculo ofuscante de tons de creme e azul‑celeste. Ele e o senhor Dick dão a impressão de estar enluvados da cabeça aos pés.

É claro que, se anoto tudo isto, é porque me lembro. Mas tenho a impressão de não ver nada. E muito menos acredito. Entretanto vamos numa carruagem descoberta e a realidade do meu casamento impõe‑se‑me por instantes, visto que me condoo dos que não participam nele, dos que varrem as lojas a essa hora, dos que seguem para as suas ocupações quotidianas.

A tia Betsey conserva em todo o percurso a minha mão na sua. Quando paramos um pouco antes da igreja, para deixar Peggotty apear‑se, a senhora Trotwood aperta‑me a dextra e dá‑me um beijo.

‑ Deus te abençoe. O meu próprio filho não me seria mais querido.

Transbordante de cordialidade, estende a mão a Traddles, que dá a sua ao senhor Dick, que me dá a sua, e eu torno a apertar a de Traddles, até que chegamos à porta da igreja. Sem dúvida que o templo é apaziguador, mas, se fosse uma fábrica em plena laboração, o efeito sobre mim seria também sedativo. Agora já não estou sujeito a semelhantes influências.

O resto decorre num sonho mais ou menos incoerente. Um sonho é a entrada de Dora e das outras pessoas. A mulher do sacristão, que nos arruma, como um sargento aos recrutas, defronte dos degraus do altar, enquanto eu penso na razão por que escolhem sempre essas mulheres entre as mais desagradáveis que possam existir; talvez seja no receio de um contágio desastroso de bom humor que colocam tais galhetas de vinagre no caminho do céu.

Um sonho: a aparição do sacerdote e do seu acólito, a entrada de alguns barqueiros e outros curiosos, a presença, atrás de mim, de um velho marinheiro, que enche a igreja do seu hálito de rum. E o ofício principia em voz grave, no meio da atenção geral.

A chegada de Lavinia Spenlow, no papel de dama de honor auxiliar: é a primeira a verter lágrimas e decerto o faz em memória de Pidger; de Clarissa Spenlow, com o seu frasquinho de sais; de Agnes, que se ocupa de Dora; da tia Betsey, que procura mostrar‑se como um modelo de austeridade, mas evidentemente chorosa; e da querida Dora, que treme a valer e murmura as respostas numa voz sufocada.

O nosso ajoelhar lado a lado (Dora treme já muito menos, mas não larga a mão de Agnes); o ofício, que prossegue calmo e solene; as fisionomias que sorriem entre o pranto, como numa manhã de Abril; a minha mulherzinha, que parece histérica na sacristia e chama pelo papá, pelo defunto e querido papá.

O regresso de Dora à jovialidade, as assinaturas dos presentes, a minha ida à tribuna buscar Peggotty, para que assine também, o seu tomar‑me de parte a fim de me beijar e me dizer que assistira ao casamento da minha mãe; a nossa partida, uma vez terminada a cerimónia.

Eu próprio a descer orgulhosamente a nave, com a graciosa esposa pelo braço, através de uma névoa de gente, púlpitos, monumentos fúnebres, bancos, pias baptismais, órgãos, vitrais, tudo entrevisto apenas e relacionado com vagas lembranças da igreja da minha infância, há tantos anos já!

O sussurro à nossa passagem, comentários acerca do par juvenil, da linda noiva...; a nossa alegria e exuberância na carruagem, de volta a casa; Sophy a contar‑nos que, ao pedir a Traddles a nossa licença, quase desmaiara, convencida de que ele a havia perdido ou deixara que lha furtassem; Agnes rindo cordialmente, e Dora tão amiga desta que nem se queria separar, sempre de mão dada...

O almoço e a abundância de vinhos e pratos, bons e substanciosos, dos quais provo como se extasiado, sem lhes sentir o gosto; só comendo e bebendo, por assim dizer, a iguaria do amor e do matrimónio e não crendo mais em alimentos do que noutra coisa qualquer.

O discurso que faço com o mesmo ar de sonâmbulo, sem ter a mínima ideia do que quero dizer, salvo o que se compreenda fora daquilo que não disse; os momentos agradáveis que decorrem nesta companhia; e Jip a mastigar bolo‑de‑noiva e a ter uma indigestão...

O aparelhamento dos dois cavalos de aluguer, e Dora a ir mudar de vestido, enquanto a tia Betsey e Clarissa ficam connosco; a nossa descida ao jardim; e a minha tia ainda contente do brinde que fez ao almoço e no qual se referiu às tias de Dora.

O regresso de Dora, já com outro vestido, e Lavinia de roda dela, saudosa daquele brinquedo que a entreteve tão deleitosamente durante semanas; Dora admirada das coisas que perdeu ou de que se esqueceu, e toda a gente a afadigar‑se derredor para as descobrir.

O círculo que se forma em torno da noiva, quando principiam as despedidas e que dá a ideia de um canteiro de flores, tal a variedade de matizes; e a minha Dora quase sufocada sob essas flores, e fugindo dali, a rir e a chorar, para se me lançar nos braços.

O meu alvitre de levar Jip ao colo (o cachorro devia acompanhar‑nos) e ela a protestar que mais ninguém faria isso senão a dona, para que ele não julgasse ser menos estimado, agora que é uma mulher casada e o animalzinho está tão comovido; a nossa partida, de braço dado, e Dora a deter‑se para gritar: «Se algum dia dei motivo de queixa, peço que me perdoem:» e rompendo numa torrente de lágrimas.

A sua mãozinha que se agita num aceno dorido, e nós parando a cada passo, e ela retrocedendo para beijar Agnes, de preferência a todos os outros; e mais beijos e adeuses...

Partimos, enfim. Eu desperto do meu sonho. Agora já acredito. É a minha querida mulherzinha que eu tenho a meu lado.

‑ Estás satisfeito, meu pateta? ‑ pergunta Dora. ‑ Tens a certeza de que não te arrependes?

Mantive‑me de parte, para ver desfilar diante de mim os fantasmas do passado. Desapareceram já, e eu retomo o fio da história.

 

O NOSSO LAR

Uma coisa que me pareceu estranha ‑ uma vez acabada a festa da boda e regressadas a casa as damas de honor ‑ foi encontrar‑me sentado com Dora na nossa vivenda; faltava‑me a ocupação habitual de fazer a corte à minha noiva, que era agora a minha esposa.

Achava tão extraordinário tê‑la acolá, para sempre, tão incrível não ser obrigado a sair para a visitar, não estar sujeito aos habituais motivos de preocupação, não dever escrever‑lhe, não engendrar pretextos para me ver a sós com ela! Às vezes, à noite, quando levantava a vista do trabalho e descobria Dora numa poltrona a meu lado, reclinava‑me na cadeira e pensava em quanto era singular que nos encontrássemos sós, como se o romance do nosso amor estivesse terminado e relegado para a prateleira. Mais ninguém a quem devesse agradar, senão nós mesmos! Agradarmo‑nos somente um ao outro, a vida inteira!

Se havia sessão na Câmara e eu voltava tarde a penates, considerava esquisito o facto de pensar, pelo caminho, que Dora me esperava no próprio lar. Que extravagante isto de, nos primeiros tempos, Dora descer ao rés‑do‑chão e conversar comigo enquanto eu ceava! Que prodígio isto de saber, com certeza, que Dora metia o cabelo em papelotes, à noite! E que surpresa vê‑la entregue a essa faina!

Não acredito que dois passarinhos pudessem ser mais ignorantes do que eu e Dora na manutenção de uma casa. Tínhamos criada, naturalmente. Ela é que dirigia a casa por nós. Ainda hoje suspeito de que fosse uma filha disfarçada da senhora Crupp, tanto essa Mary Anne nos arreliou.

O apelido era Paragon [3]. Quando a contratámos, a sua natureza já nos desmentia o nome. Apresentou‑nos informações escritas, num papel do tamanho de uma proclamação: esse documento declarava‑a apta a fazer o trivial e ainda muito mais coisas de que eu nunca ouvira falar. Era uma mulher na flor da idade, de aspecto severo, e sujeita (sobretudo nos braços) a uma espécie de rubéola ou erupção perpétua. Tinha um primo no Corpo da Guarda, de pernas tão compridas que se julgaria a sombra de alguém ao crepúsculo. O dólman era apertado de mais para ele, e ele demasiado grande para a nossa casa. Tornava o aspecto da vivenda mais pequeno devido às suas proporções exageradas.

Demais a mais, com as paredes pouco espessas, a sua presença denunciava‑se por um grunhido contínuo vindo da cozinha.

O nosso tesouro fora‑nos garantido como abstémio e honrado. Estou, pois, inclinado a crer que a rapariga teve um ataque no dia em que a descobrimos debaixo da lareira e que o desaparecimento das colheres de chá se deve ao limpa‑chaminés.

Todavia representava para nós um pesadelo. Conhecíamos a nossa inexperiência e estávamos incapazes de solucionar o problema. Ficaríamos à sua mercê se de alguma mercê ela dispusesse; mas era uma criatura terrível e foi a causa da nossa primeira disputa,

‑ Minha querida ‑ disse um dia a Dora ‑ parece‑te que a Mary Anne tem qualquer noção do tempo?

‑ Porquê, Doady? ‑ perguntou Dora, erguendo, com ar inocente, a vista do desenho que fazia.

‑ Porque são cinco horas, meu amor, e nós jantamos às quatro.

Dora consultou o relógio do fogão, pensativa, e sugeriu que ele estivesse adiantado.

‑ Pelo contrário, minha querida, está uns minutos atrasado ‑ ripostei exibindo o meu.

A linda mulherzinha veio sentar‑se nos meus joelhos, a fim de me apaziguar com as suas blandícias, e traçou‑me no nariz um risco com o lápis. Mas isso, por mais agradável que fosse, não substituia o jantar.

‑ Não achas, minha querida, que seria melhor falar à Mary

Anne?

‑ Não, por favor, Doady. Não posso.

‑ E porquê, meu amor? ‑ insisti com brandura.

‑ Porque sou tímida, e ela não o ignora. Afigurou‑se‑me este sentimento bastante incompatível com a nossa autoridade sobre a criada, e enruguei a testa.

‑ Oh, rugas na testa deste mauzão! ‑ exclamou Dora, que sempre sentada nos meus joelhos as reforçou a lápis, bafejando‑as primeiro para o risco ficar mais negro e fazendo‑o com um ar de azáfama que, apesar de tudo, me desconcertou.

‑ Ora ainda bem ‑ disse ela. ‑ O meu marido é mais bonito quando ri.

‑ Mas, minha querida...

‑ Não, não! ‑ gritou Dora, que me deu um beijo. ‑ Não sejas um infame Barba Azul, não carregues outra vez o cenho.

‑ Adorada mulherzinha ‑ retorqui ‑ convém estar carrancudo, de vez em quando. Olha, senta‑te nesta cadeira, perto de mim. Dá‑me esse lápis. Agora falemos a sério. Bem sabes, minha querida... ‑ Que mãozinha, que aliança minúscula no dedo! ‑ Bem sabes que não é agradável sair sem ter jantado. Que te parece?

‑ N...ã...o ‑ respondeu, hesitante.

‑ Por que tremes assim, meu amor?

‑ Porque estás a ralhar comigo ‑ explicou Dora, confrangida. ‑ Não, minha querida, só desejo chamar‑te à razão.

‑ Mas isso é pior do que os ralhos! ‑ bradou ela, desesperada. ‑ Não casei para que me chamem à razão. Se eram essas as tuas intenções, devias ter‑me prevenido. Ah, como és cruel!

Procurei acalmá‑la, mas Dora virou a cara, sacudiu os caracóis para a direita e para a esquerda e repetiu: «Mauzão, mauzão!», tantas vezes que eu não sabia que partido tomar. De maneira que passeei, por momentos, a minha incerteza pelo quarto, até que voltei a sentar‑me.

‑ Dora adorada!

‑ Não, não sou adorada! Tu o que estás é arrependido de ter casado comigo, senão deixar‑te‑ias desses sermões.

A falta de lógica desta acusação ofendeu‑me a tal ponto que me animei a mostrar gravidade.

‑ Espera, querida Dora, procedes como uma criança e dizes tolices. Não te esqueças de que tenho de sair depois do jantar e que, anteontem, estive doente por ter comido de afogadilho vitela meio crua. Hoje não jantarei... sem falar do tempo que estive à espera do primeiro almoço... Não quero censurar‑te, meu amor, mas isto chega a não ser agradável.

‑ Oh, que mauzão, que mauzão! Chamar‑me desagradável!

‑ Perdão, Dora, bem sabes que não te chamei tal coisa.

‑ Disseste que chegava a ser desagradável.

‑ Disse que chegava a não ser agradável.

‑ É absolutamente a mesma coisa!

E assim o acreditou, porque chorava desalmadamente.

Dei outra volta no quarto, multiplicando‑me em ternuras pela minha mulherzinha e tentado já a bater com a cabeça na porta, com os remorsos que sentia. Tornei a sentar‑me e repliquei:

‑ Não te recrimino, Dora. Ambos temos muito que aprender. Tento apenas fazer‑te compreender, minha querida, que deves... que deves realmente ‑ estava resolvido a ir até ao fim ‑ habituar‑te a vigiar a Mary Anne e a agir um pouco em teu nome e no meu.

‑ Estou deveras admirada de que te atrevas a fazer‑me discursos tão cheios de ingratidão ‑ disse ela, soluçando ‑ quando outro dia, porque observaste que não desgostavas de peixe, eu saí propositadamente e andei quilómetros para o conseguir, a fim de te causar uma surpresa.

‑ E foi muito simpático da tua parte, meu amor. Fiquei tão comovido que por nada deste mundo te notaria que compraste um salmão grande de mais para duas pessoas e que te custara uma libra e seis xelins, o que ultrapassa as nossas possibilidades económicas.

‑ Mas apreciaste o salmão ‑ volveu Dora, soluçando. ‑ E disseste que eu era um cordeirinho.

‑ Disse e repito, meu amor, um milhar de vezes!

Todavia magoara o coração terno da minha mulher e nada a podia consolar. Comoviam‑me tanto os seus soluços e gemidos que estava disposto a considerar‑me culpado. Tive de sair esbaforido. Só consegui voltar tarde, e toda a noite o remorso me pungiu. Tinha a sensação de haver cometido um crime e a mim mesmo me intitulava de assassino. Eram duas ou três horas da manhã quando entrei em casa. A tia Betsey achava‑se presente e aguardava‑me.

‑ Aconteceu qualquer coisa, tia? ‑ perguntei, inquieto.

‑ Nada, Trot. Senta‑te. O nosso botãozinho de rosa anda triste e eu fiz‑lhe companhia. Apenas isto.

Sentei‑me, com a cabeça entre as mãos; e, contemplando o fogo, sentia‑me mais desanimado do que julgaria possível em tão pouco tempo, após a realização das nossas mais caras esperanças. Quando assim meditava, encontrei o olhar da tia fixo no meu: denotava certa preocupação, mas depressa se dissiparam as nuvens.

‑ Afianço‑lhe ‑ disse eu ‑ que passei toda a noite apoquentado, imaginando que Dora também o estava. Mas afinal eu só quis falar‑lhe da nossa vida doméstica, com ternura e amor.

A tia fez um gesto de incitamento.

‑ É preciso ter paciência, Trot.

‑ Naturalmente. Deus bem sabe que não desejo ser insensato.

‑ Decerto. O nosso botãozinho de rosa é, porém, uma flor muito delicada e a aragem deve apenas bafejá‑la.

Agradeci à boa da tia, no íntimo, pelo afecto que dedicava a Dora, e ela deve‑o ter compreendido. Depois de nova contemplação do lume, perguntei‑lhe:

‑ Não acha que podia, de tempos a tempos, dar conselhos a Dora, para bem de nós dois?

‑ Não, Trot ‑ replicou a senhora Trotwood, comovida. ‑ Não me peças tal coisa.

A voz parecia tão grave que eu alcei a vista, surpreendido.

‑ Penso na minha vida, Trot, e na de pessoas, já mortas, com quem poderia ter estado em melhores relações. Se julguei com severidade os erros conjugais dos outros, era porque tinha razões amargas para julgar severamente o meu próprio casamento. Mas pouco importa. Fui durante muitos anos uma mulher caprichosa, pertinaz, obstinada. Ainda o sou e sempre o serei. Mas tu e eu só fizemos bem recíproco; pelo menos tu fizeste, Trot. Não convém que, entre nós, surjam agora querelas.

‑ Querelas... entre nós!

‑ Criança! Criança! ‑ respondeu a tia, alisando o vestido. ‑ Um profeta não saberia prever quando é que elas apareceriam, nem como eu poderia tornar infeliz o nosso botãozinho de rosa. Quero que Dora goste sempre de mim e ande tão alegre como um passarinho. Lembra‑te do teu próprio lar, quando das segundas núpcias da tua mãe, e coíbe‑te de fazer, a mim e à tua mulher, os males que acabaste de sugerir.

Compreendi imediatamente que a tia tinha razão; e compreendi também todo o alcance da sua generosidade para com minha mulher.

‑ Estás apenas no começo, Trot, e Roma e Pavia não se fizeram num dia, nem mesmo num ano. Procedeste livremente à tua escolha ‑ julguei, por instantes, ver‑lhe passar no rosto uma nuvem ‑, e escolheste uma criaturinha muito bonita e afectuosa. É do teu dever, e do teu gosto (isto eu sei bem, não te estou a pregar um sermão) apreciá‑la pelas qualidades que tem e não pelas que não possui. Estas últimas a ti compete suscitá‑las, se puderes; caso contrário, meu filho, habitua‑te a dispensá‑las. Lembra‑te, porém, que o futuro de um e outro depende de ambos. Ninguém lhes pode valer, ele será conforme vocês procederem. Assim é que é o matrimónio, Trot, e que Deus os abençoe aos dois como pobres criancinhas perdidas na floresta.

Betsey disse estas últimas palavras num tom prazenteiro e deu‑me um beijo para ratificar a sua bênção.

‑ Agora ‑ concluiu ela ‑ acende a lanterninha e conduz‑me à minha «caixa de cartão» pelo jardim. ‑ As nossas vivendas comunicavam‑se. ‑ Dá as saudades de Betsey Trotwood ao botãozinho de rosa, quando voltares a casa; faças o que fizeres, não tentes transformar a velha Betsey num espantalho, pois já é de si mesma bastante esquelética e assustadora.

Dito isto, cobriu a testa com um lenço e ficou, como de costume nessas ocasiões, metamorfoseada num embrulho informe, e eu fiz‑lhe escolta até à residência. Quando a vi no meio do seu jardim, com a lanterna erguida para me alumiar, pareceu‑me que tinha outra vez uma expressão inquieta; mas eu estava muito ocupado a reflectir no que ela me dissera e muito convicto, pela primeira vez, de que devíamos talhar o futuro por nossas próprias mãos, sem o auxílio de ninguém ‑ de modo que pouca atenção lhe prestei.

Dora desceu furtivamente, de pantufas, para vir ao meu encontro, agora que estávamos sós. Chorou no meu ombro, alegando a minha crueldade. Ripostei com termo semelhante, se me recordo. Mas reconciliámo‑nos e resolvemos que esta pequenina disputa seria a última. Não haveria mais nenhuma, ainda que vivêssemos cem anos.

A aflição que depois nos visitou pode‑se classificar de Provação das Criadas. O primo de Mary Anne desertou e veio esconder‑se na nossa carvoeira, donde foi retirado, com grande espanto da nossa parte, por um piquete dos seus irmãos de armas, que o levaram algemado, num cortejo que encheu de ignomínia o nosso jardim. Isto animou‑me a despedir Mary Anne, que partiu conformada depois de haver recebido o salário, o que me admirou ‑ até ao momento em que dei pelo desaparecimento das colheres de chá e soube de certos empréstimos que ela contraíra em meu nome entre alguns fornecedores. Após um intervalo em que tivemos ao serviço a senhora Kidgerbury, suponho que a mais velha habitante de Kentish Town, que se mostrou debilmente apta para o trabalho, descobrimos outro tesouro, talvez a mais amável das mulheres mas que ao subir e descer a escada invariavelmente se desequilibrava com o tabuleiro e vinha estatelar‑se com o bule e as xícaras na sala, como se mergulhasse numa piscina. Os prejuízos causados por esta desastrada obrigaram‑nos a mandá‑la embora. Foi seguida (com readmissões temporárias da senhora Kidgerbury) por uma série de incapazes, até à chegada de uma rapariga de aspecto elegante, que ia à feira de Greenvinch com um chapéu surripiado a Dora. Depois disto, só me lembro de uma sucessão incrível de malogros.

Os fornecedores roubavam‑nos à compita. A nossa entrada numa loja fazia surgir logo todas as mercadorias avariadas. Se comprávamos uma lagosta, ela estava cheia de água. A carne era sempre coriácea e o pão quase não tinha côdea. Para manter o princípio que devia presidir ao assado (não ficar cru nem muito queimado), recorri pessoalmente ao livro de cozinha, que prescrevia um quarto de hora de forno por libra de carne, e, quando muito, mais outro quarto. Mas, por estranha fatalidade, este princípio falhou sempre e nunca obtivemos um justo termo entre a carne em sangue e a carne carbonizada.

Tenho razões para crer que, com estes estenderetes, gastávamos muito mais do que com uma série de triunfos. Parece‑me que, compulsando as contas dos fornecedores, poderíamos ter pavimentado de manteiga todo o rés‑do‑chão, tão grande era o gasto que fazíamos deste produto. Não sei se o imposto sobre a pimenta revelou nesse período um aumento considerável; mas se o nosso consumo não afectou o mercado é que várias famílias se abstiveram por completo de usar pimenta. E o mais curioso é que nunca havia disto em casa!

Quanto à lavadeira, depois de haver empenhado a nossa roupa, veio desculpar‑se perante nós, lacrimosa, num dia de bebedeira. A coisa, é claro, podia ter acontecido a outras pessoas, assim como o fogo na chaminé, a que acudiu a bomba de incêndios da paróquia. Mas creio que fomos particularmente infelizes ao admitir uma criada que tinha um fraco pelas bebidas e que fez subir‑nos a conta da cervejaria com acrescentamentos inexplicáveis de «um quarto de grogue com rum» (Sr.a C.), «meio quarto de genebra com cravinho» (Sr.a C.), «um copo de rum com hortelã‑pimenta» (Sr.a C.). Os parênteses referem‑se a Dora, que era aparentemente a pessoa que absorvia todos estes reconstituintes.

Uma das nossas primeiras extravagâncias domésticas foi um jantar que oferecemos a Traddles. Tinha‑o encontrado na cidade e convidara‑o a acompanhar‑me a casa. Traddles aceitou logo e eu preveni Dora. O tempo estava óptimo e a minha felicidade conjugal fez, pelo caminho, as despesas da conversa. O meu amigo ficou bem inteirado a este respeito. Com uma residência como a minha, confidenciou ele, e Sophy a esperá‑lo, nada lhe faltaria para ser inteiramente venturoso.

Eu não poderia desejar esposa mais bonita à minha frente, mas decerto que gostaria de ter maior espaço, uma vez todos sentados. Não sei como isso era, porém a verdade é que, sendo apenas um casal, nos sentíamos sempre tolhidos, embora, por outro lado, a exiguidade não fosse bastante para que as coisas se não perdessem. Suspeito de que o motivo consistia em nada ter o seu lugar próprio, a não ser a casota‑pagode de Jip, que atravancava tudo. Nesse dia, Traddles estava bloqueado pela casota, o estojo da viola, os apetrechos de desenho de Dora e a minha secretária; e eu perguntei‑lhe se conseguiria realmente servir‑se do garfo e da faca. Todavia o meu amigo protestou com a sua bonomia habitual:

‑ Estou muito à vontade, Copperfield. Palavra de honra!

Também teria eu gostado que o cachorro se não habituasse a saltar para cima da mesa durante as refeições. Comecei a pensar que a sua presença acolá era de qualquer maneira coisa imprópria, ainda que ele se limitasse a pôr as patinhas no sal ou na manteiga. O animal, nesse dia, achou que devia manter Traddles em respeito, ora ladrando ao meu velho amigo ora precipitando‑se para o seu prato com tal obstinação que chamou a si as atenções gerais.

No entanto, conhecendo a sensibilidade da minha querida Dora e sabendo quanto ela se ressentia de qualquer censura feita ao seu Jip, evitei levantar a voz para objectar fosse o que fosse. Pela mesma razão não me permiti aludir aos pratos que tombavam para o chão, nem aos saleiros que corriam em debandada na mesa, nem ao bloqueio das coisas a que Traddles poderia deitar a mão. Mas, no íntimo, reflecti na circunstância de a nossa travessa de carne apresentar sempre formas tão insólitas, como se o talhante porfiasse em nos fornecer só carneiros estropiados. Em todo o caso, guardei para mim todas estas reflexões.

‑ Meu amor ‑ disse a Dora ‑ que tens nesse prato?

Não podia adivinhar a razão pela qual minha mulher fazia sinais incompreensíveis.

‑ Ostras, meu amor ‑ respondeu ela timidamente.

‑ Pois tu pensaste nisso? ‑ exclamei, entusiasmado.

‑ É verdade, Doady!

‑ Que ideia magnífica! ‑ declarei, poisando a faca e o garfo. ‑ É do que Traddles mais gosta.

‑ Pois, Doady, comprei uma boa quantidade delas, e o vendedor disse‑me que eram muito boas. Mas... receio que não seja tanto assim. Não me parecem perfeitas.

Dora sacudiu a cabeça, enquanto nos seus olhos havia um brilho de diamante.

‑ Ainda não foram abertas ‑ observei. ‑ Abre a de cima, Dora.

‑ Não se consegue ‑ respondeu ela, esforçando‑se por separar a concha.

‑ Escuta, Copperfield ‑ interveio Traddles, jovial, examinando o prato ‑, creio que é porque... Acho‑as magníficas, mas julgo que nunca foram abertas.

Realmente assim era, e nós não possuíamos faca própria. De maneira que olhámos para as ostras e devorámos o carneiro, ou pelo menos o que estava suficientemente assado. Se eu lho consentisse, Traddles teria engolido também a parte crua, para mostrar quanto lhe agradava o jantar. Todavia não permiti semelhante sacrifício no altar da amizade e, para completar a refeição, comemos presunto, de que por sorte se encontrava algum na despensa.

A minha mulherzinha aparentou tanta desolação ao supor‑me zangado e tanta alegria quando viu não ser esse o meu sentimento, que a desilusão que eu dissimulara cedo se dissipou, e passámos razoavelmente o resto do serão. Dora, sentada junto de mim e apoiada à minha poltrona, enquanto eu e Traddles tomávamos vinho, aproveitava todas as ocasiões para me segredar que eu fora muito amável em não ter sido cruel. Mais tarde, fez‑nos chá: e era tão agradável contemplá‑la nessa faina, como se lidasse com xícaras de boneca, que eu desculpei a má qualidade daquela beberagem. Em seguida jogámos às cartas, eu e Traddles, e Dora cantou acompanhando‑se à viola. Isto recordou‑me a primeira noite em que lhe ouvira a voz, no tempo em que o nosso noivado e casamento ainda figuravam no rol das coisas impossíveis.

Quando voltei à sala, depois de me ter despedido de Traddles, à porta da rua, Dora arrastou a sua cadeira até junto da minha e, sentando‑se, disse‑me:

‑ Estou penalizada. Não queres tentar ensinar‑me?

‑ Preciso também de aprender, em primeiro lugar. Sei tanto como tu, meu amor.

‑ Pois sim, mas és capaz de aprender, tu, que tens bastante inteligência.

‑ Que ideia, tontinha!

‑ Se ao menos eu fosse passar uma temporada no campo, com Agnes! ‑ replicou ela, após longo silêncio.

Tinha as mãos no meu ombro, apoiava nelas o queixo, e os olhos azuis mergulhavam o seu ardor nos meus.

‑ Porquê? ‑ indaguei.

‑ Creio que Agnes me ensinaria muita coisa...

‑ Tudo virá com tempo, minha querida. Agnes teve de cuidar do pai desde pequena, e já nessa altura ela era como é hoje.

‑ Queres chamar‑me por um nome que me soaria tão bem aos ouvidos, Doady?

‑ Que nome?

‑ Vais achá‑lo estúpido. É este: mulher‑criança... Quando eu te desiludir, dirás: «Já sabia que era uma mulher‑criança.» Quando lastimares o que eu podia ter sido e nunca serei, dirás ainda: «A minha mulher‑criança gosta de mim, apesar de tudo.» Porque te amo, Doady!

Eu não falara a sério, pois não me ocorrera até aí a ideia de que ela própria estivesse séria. Mas a sua natureza amorosa ficou tão satisfeita com o que lhe manifestei do fundo do coração, que o rosto se lhe tornou risonho antes que nos olhos brilhantes as lágrimas secassem. Não tardou a ser, de facto, a minha esposa‑criança. Sentada no chão, diante do pagode do Jip, fez soar todas as campainhas, uma a uma, para castigar o cachorro pelo seu mau comportamento, enquanto o pobre animal continuava estirado, com a cabeça fora da casota e a piscar os olhos, sonolento de mais para se sentir arreliado.

Esta súplica de Dora impressionou‑me profundamente. Evoco a época a que estas lembranças se reportam, rogo ao semblante inocente que ternamente amei o favor de sair da névoa e sombra do passado e voltar‑se para mim mais uma vez ainda; e sou capaz de repetir que o seu breve discurso está de contínuo na minha memória. Não o poderia esquecer nunca. Eu era novo e inexperiente, mas não me fiz surdo aos seus rogos ingénuos.

Dora participou‑me, tempos depois, que se ia tornar uma dona de casa modelar. Neste sentido, aparou as penas, comprou um livro de contas, consertou com esmero o volume de culinária que Jip dilacerara, e fez um esforço desesperado para ser sisuda. Mas os algarismos recusavam‑se sempre a ser somados. Depois de ela escrever laboriosamente duas ou três parcelas, Jip vinha passar por cima da página, ondulando a cauda, e enlambuzava tudo. E foi este, creio, o único resultado positivo das diligências empreendidas por essa esposa‑criança.

Às vezes, ao serão, estando eu a trabalhar (porque escrevia muito e começava a ser conhecido como autor), descansava a pena e contemplava Dora nas suas tentativas de sisudez. Começava por tirar o enorme livro de contas e pô‑lo sobre a mesa, com um suspiro fundo. Depois abria‑o no ponto em que Jip o tornara, na véspera, ilegível, e chamava o cão para lhe mostrar o que este fizera. Era o pretexto de uma diversão a favor de Jip, cujo focinho ficava sujo de tinta, em sinal de castigo. Em seguida ordenava‑lhe que se deitasse na mesa, «como um leão» (uma das suas habilidades, se bem que a semelhança não fosse muito convincente), e, se o cachorro estava bem disposto, obedecia. Então Dora pegava numa pena, principiava a escrever, e descobria nela um pêlo; punha‑a de lado, e escolhia outra, voltava à escrita e dizia em voz baixa: «Como esta pena range, vai incomodar o Doady!» Desesperada, abandonava tudo e arrumava o livro de contas, depois de ter fingido que esborrachava, com ele, o «leão» adormecido.

Ou então, se estava séria, de ar grave, instalava‑se com cadernos de apontamentos e outra papelada e esforçava‑se por realizar qualquer coisa. Comparava as notas, de testa franzida, contava pelos dedos da mão esquerda, repetidas vezes, de trás para diante e de diante para trás, até que, sentindo‑a tão infeliz, eu me aproximava devagar e lhe dizia:

‑Que há, querida Dora?

Dora erguia a vista, desanimada, e replicava:

‑ Não consigo, decididamente. E já tenho dores de cabeça.

‑ Experimentemos ambos. Eu vou mostrar‑te como se faz.

Iniciava uma demonstração prática, à qual ela prestava grande atenção durante uns cinco minutos; seguidamente começava a sentir‑se muito cansada e a distrair‑se, frisando‑me o cabelo e experimentando o efeito que me faria a gola da camisa abaixada. Se eu reprovava tacitamente aquela brincadeira, continuando a lição, Dora tomava um ar tão espantado e aborrecido que a mim próprio me repreendia, lembrando‑me da sua alegria natural e do facto de ser a minha esposa‑criança. E então depunha o lápis e pedia‑lhe que tocasse viola.

Tinha à minha conta imenso trabalho e inúmeras preocupações, mas achava que devia dissimular. Estou longe de acreditar que fazia bem procedendo assim, mas essa atitude era‑me ditada pela consideração do seu bem‑estar. Perscruto o coração e confio, sem reticências, a estas laudas, todos os segredos que averiguo. Sei que o mesmo fastio, que me atacava outrora, mantinha ainda na minha alma um pouco da sua amargura, não todavia ao ponto de me envenenar a existência. Quando passeava só, nos dias bonitos, pensando na época em que o ar se embalsamava do meu ardor juvenil, sentia confusamente que o sonho se não realizara como eu esperava. Mas reflectia em que o Passado resplandece sempre com uma luz suave que não pertence ao Presente. Teria desejado por vezes encontrar na minha mulher uma conselheira, ambicionaria achar nela mais energia e vontade para me suster e preencher o vácuo que por vezes se fazia em mim; mas parecia‑me ser isso uma aventura extraterrestre, impossível de se realizar e até de existir.

Eu próprio era um marido muito novo em idade. Não conhecera outra influência apaziguadora senão a da tristeza e das aventuras contadas nestas páginas. Se me enganei, como em geral sucede, foi por amor mal entendido e por falta de sabedoria. O que escrevo é a pura verdade. Não me serviria de nada atenuá‑la.

Foi assim que tomei sobre os meus ombros as penas e os cuidados da nossa existência, sem os partilhar com mais ninguém. Continuámos a viver como antes, quanto a dificuldades domésticas, mas fui‑me habituando e comprazia‑me com a verificação de que Dora andava menos triste; pelo contrário, mostrava‑se satisfeita, radiante ao seu modo, sempre infantil, gostava ternamente de mim e divertia‑se com as mesmas frioleiras.

Quando as sessões parlamentares eram mortalmente opressivas ‑ refiro‑me à sua extensão e não à qualidade, porque em geral esta não podia ser pior‑e eu regressava tarde a casa, Dora nunca estava deitada e até descia ao rés‑do‑chão para me receber. E se o serão não era preenchido com trabalhos para os quais me preparara com tanto custo, e escrevia obras da minha lavra, ela ficava tranquilamente sentada perto de mim, sem tomar em conta as horas, observando‑me num silêncio tão profundo que se podia supor houvesse adormecido. Mas em geral, quando eu levantava a cabeça, via‑lhe os olhos azuis fitarem‑me com a calma atenção de que já falei.

‑ Oh, pobre rapaz fatigado ‑ disse Dora uma noite, quando eu ia fechar a escrivaninha.

‑ E a pobre rapariga cansada! ‑ ripostei. ‑ É mais acertado. Vai ser preciso levar‑te para a cama, mais uma vez, meu amor. E é demasiado tarde para ti.

‑ Ah, não, não me mandes deitar ‑ suplicou Dora, chegando‑se a mim. ‑ Peço‑te que não faças tal coisa.

Com grande surpresa minha, soluçou no meu ombro.

‑ Não te sentes bem? Não és feliz?

‑ Estou muito bem e sou feliz. Mas gosto de ficar a ver‑te escrever.

‑ Que espectáculo para tão bonitos olhos, à meia‑noite!

‑ Achas que são bonitos? ‑ perguntou ela, rindo. ‑ Agrada‑me tanto sabê‑lo!

‑ Vaidosa!

Mas não se tratava de vaidade, sim de alegria inocente que lhe causava a minha admiração. Já eu o sabia muito bem, antes que ela o dissesse.

‑ Então, se os consideras bonitos, diz‑me que poderei ficar todas as noites a ver‑te escrever.

‑ Isso não lhes aumentará o brilho, suponho ‑ objectei.

‑ É que, rapaz inteligente como és, não me esquecerás quando te entregares às tuas ideias silenciosas. Não vais

aborrecer‑te se eu te contar qualquer coisa de muito estúpido? De mais estúpido que do costume? ‑ inquiriu Dora, curvando‑se‑me por cima do ombro para me observar a cara.

‑ Que é isso, afinal? Essa maravilha?

‑ Deixa‑me encarregar das tuas penas. Queria estar ligada a todas estas horas em que trabalhas. Posso?

A lembrança da sua grande satisfação, quando a autorizei a desempenhar esse serviço, faz‑me ainda hoje acudir lágrimas aos olhos. Daí por diante retomou o seu lugar junto de mim, com umas poucas de penas sobresselentes. Encantava‑a a certeza de que se misturava assim ao meu labor. A alegria que mostrava quando eu tinha necessidade de outra pena (muitas vezes pedia‑a só para lhe dar gosto) sugeriu‑me novo processo de lhe ser agradável. De tempos a tempos fingia precisar de uma cópia de duas ou três páginas do meu manuscrito. E então, para Dora, era o cúmulo do prazer. Preparava‑se demoradamente para essa grande obra, punha um avental, fazia render o tempo, interrompia‑se para se distrair com o cachorro, como se ele compreendesse alguma coisa do caso. Achava que o seu trabalho não ficaria completo se não apusesse no final a sua assinatura; e depois trazia‑mo como um exercício escolar e deitava‑me os braços à roda do pescoço quando eu a cumprimentava pela boa caligrafia. Estas recordações são para mim deveras enternecedoras e devem parecer bastante pueris ao leitor.

Pouco tempo depois, Dora tomou posse das chaves e deambulou por toda a casa, fazendo‑as tilintar amarradas à cintura delicada. Muitas vezes as fechaduras estavam abertas e as chaves serviam de brinquedos ao Jip; mas a minha mulher andava contente, e isso bastava. Persuadira‑se de que trabalhava muito, divertindo‑se assim a fazer de dona de casa; e sentia‑se tão feliz como se dirigisse uma casita de bonecas.

Passavam os dias. Dora afeiçoara‑se mais à tia Betsey e às vezes falava‑lhe do tempo em que tinha medo de que ela fosse uma «velha rabugenta». Nunca vira eu a senhora Trotwood desfazer‑se tanto da sua severidade como ao tratar com Dora; até lisonjeava Jip, embora o cachorro se não mostrasse sensível a essas deferências. Ouvira tocar viola quase o dia inteiro, sem que tivesse qualquer inclinação para a música. Dava intermináveis passeios a pé só para adquirir objectos que sabia serem do gosto da sobrinha. E nunca chegara do jardim, quando Dora não estava na sala, sem gritar do baixo da escada, com uma voz que soava jovialmente por toda a casa:

‑ Onde está o nosso botãozinho de rosa?



 

[1] Cópias de quadros célebres feitas a bordado manual.

[2] W. Enfield, autor de Speaker: Selections from the best English Writers (1832).

[3] Modelo, exemplo.

                                                                                           

 

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