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DOIS ANOS DE FÉRIAS Vol. I / Júlio Verne
DOIS ANOS DE FÉRIAS Vol. I / Júlio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DOIS ANOS DE FÉRIAS

Volume I

 

      Durante a noite de 9 de Março de 1860, as nuvens, confundindo-se com o mar, limitavam a poucas braças o alcance de vista.

      Nesse mar agitado, cujas vagas rebentavam projectando clarões lívidos, corria quase que em mastreação seca um ligeiro barquito.

      Era um iate de cem toneladas - uma escuna, nome  que se dá às galeotas na Inglaterra e na América.

      Essa escuna chamava-se Sloughi, e debalde se tentaria  ler tal nome nos alforges da popa, pois um acidente qualquer - golpe de mar ou algum abalroamento - tinha-o arrancado quase todo com parte das mesas reais.

      Eram onze horas da noite. Debaixo dessa latitude, no começo do mês de Março, as noites são ainda curtas. Os primeiros alvores do dia só deviam aparecer por volta das cinco horas da manhã. Mas os perigos que ameaçavam o Sloughi seriam menores quando o Sol iluminasse o espaço? A frágil embarcação não ficaria sempre à mercê das ondas? Com certeza; e a inquietação da mareta, a calmaria do vento eram as únicas coisas que a podiam salvar do mais horrível naufrágio - o que se dá em pleno oceano, longe de toda e qualquer praia sobre a qual os sobreviventes achariam a salvação!

      Na ré do Sloughi, três rapazes, um deles de catorze anos e os outros dois de treze. e com eles um grumete que teria quando muito doze, preto, estavam postados na roda do leme. Aí, empregavam toda a força que tinham para obstar às guinadas que ameaçavam atravessar o iate. Dura tarefa, porque a roda, girando contra vontade deles, podia perfeitamente atirá-los por cima da borda. E mesmo, um pouco antes da meia-noite, caiu uma tal força de mar sobre o costado do iate, que foi puro milagre ele não perder o leme.

      Os pequenos, que haviam sido derrubados com o choque, levantaram-se logo em seguida.

      - Dá governo, Briant? - perguntou um deles.

      - Dá, sim, Gordon - respondeu Briant, que tinha tomado novamente o seu lugar, sem perder um instante o sangue-frio.

      Depois, dirigindo-se ao terceiro:

      - Segura-te com força, Doniphan - acrescentou ele -, e não percas a coragem!... Não somos só nós, há mais gente a salvar!

      Estas poucas frases tinham sido pronunciadas em inglês, embora em Briant a acentuação denotasse origem francesa.

        Depois, este, voltando-se para o grumete:

      - Não estás ferido, Moko? - perguntou ele.

      - Não, Sr. Briant - respondeu o grumete. - O que é preciso, sobretudo, é conservar o iate aproado contra as vagas, quando não arriscamo-nos a ir a pique!

      Nesse momento, uma das escotilhas, que conduzia à coberta da escuna, abriu-se com vivacidade. Apareceram ao nível da tolda duas cabecitas, e ao mesmo tempo que estas o focinho de um cão, cujos ladridos se fizeram ouvir.

      - Briant?... Briant? - perguntou uma criança de nove anos. - Que há de novo?

      - Nada, Iverson, nada! - replicou Briant. - Vê lá se te metes já para dentro com Dole... e quanto antes

      - É porque estamos com muito medo! - acrescentou o segundo pequeno, que era um pouco mais novo.

      - E os outros?... - perguntou Doniphan.

      - Os outros também! - respondeu Dole.

      - Vá, metam-se todos para dentro, já disse! – ordenou Briant. - Agasalhem-se, metam-se debaixo dos lençóis, fechem os olhos, e verão que já não têm medo! Não há perigo nenhum!

      - Cuidado!... Lá vem outra onda! - avisou Moko.

      Sentiu-se um choque violento na proa do iate. Desta vez, o mar não embarcou - felizmente, porque, se a água tivesse penetrado no interior pela escotilha aberta, o iate, muito carregado com ela, não teria podido decerto galgar a onda.

      - Vá tudo para dentro! - mandou Gordon. - Tudo para dentro... ou se não têm de se haver comigo!

      - Vá lá, recolham-se, pequenos! - acrescentou Briant, falando-lhes em tom mais amigável.

      As duas cabeças desapareceram no momento em que outro rapaz, que acabava de se mostrar, dizia:

      - Não precisas de nós, Briant?

      - Não, Baxter - respondeu Briant. - Cross, Webb, Service, Wilcox e tu fiquem com os pequenos!... Nós quatro cá nos arranjamos!

      Baxter fechou a escotilha pelo lado de dentro.

      - Os outros também têm medo! - tinha dito Dole.

      Mas então não havia senão crianças a bordo daquela escuna, levada pela tempestade?

       - Sim, não havia lá senão crianças! E quantas estavam a bordo?

      - Quinze, contando Gordon, Briant, Doniphan e o grumete.

      - Em que circunstâncias tinham eles embarcado?

      - Saber-se-á dentro em pouco.

      E nem um homem no iate! Nem um capitão para comandá-lo? Nem um marinheiro para ajudar à manobra? Nem um timoneiro para o governo no meio daquela tempestade?

      Não!... Nem um!

      Assim, ninguém a bordo poderia dizer qual era a posição exacta do Sloughi sobre aquele oceano!... E que oceano? O mais vasto de todos! O Pacífico, que se dilata por duas mil léguas de largura, desde as terras da Austrália e da Nova Zelândia até ao litoral da América do Sul.

      Que tinha sucedido? Tinha a equipagem da escuna desaparecido em qualquer catástrofe? Tinham-na levado os piratas da Malásia, não deixando a bordo senão passageiros crianças, entregues a si mesmos, e dos quais o mais velho contava catorze anos apenas? Um iate de cem toneladas exige, pelo menos, um capitão, um mestre, cinco ou seis homens, e desse pessoal, indispensável para o manobrar, não restava senão o grumete?... Finalmente, de onde vinha aquela escuna, de que paragens, australianas, ou de que arquipélagos da Oceânia, e desde quanto tempo e para que destino? A estas perguntas, que todo o capitão teria feito se tivesse encontrado o Sloughi naqueles mares remotos, aquelas crianças teriam sem dúvida podido responder; mas não havia nenhum navio à vista, nem desses transatlânticos cujos itinerários se cruzam sobre os mares oceânicos, nem desses navios de comércio, a vapor ou à vela, que a Europa ou a América enviam às centenas para os portos do Pacífico. E, devemos dizê-lo, mesmo quando um desses navios, tão poderosos pela sua máquina ou pelo seu velame, se tivesse encontrado nessas paragens, inteiramente ocupado a lutar contra a tempestade, não teria podido socorrer o iate que o mar jogava como uma palinha!

      Entretanto, Briant e os seus camaradas cuidavam o melhor que podiam em que a escuna não guinasse a uma banda ou a outra.

      - Que se há-de fazer?... - disse então Doniphan.

      - Tudo o que for possível para nos salvar, com a ajuda de Deus! - respondeu Briant.

      Dizia isto, o pobre rapaz, e as circunstâncias eram tais que o homem mais enérgico em tal caso dificilmente poderia conservar a mínima esperança!

      Efectivamente, a tempestade redobrava de violência. O vento soprava ponteiro, em rajadas tempestuosas e curtas, como raios.

      Para mais risco ainda, havia já quarenta e oito horas que a escuna estava meio desamparada, com o mastro grande partido a quatro pés acima da carlinga; nem se lhe podia largar uma vela de capa, que permitiria governá-la com mais alguma segurança. O mastro de traquete, sem o seu mastaréu, resistia bem, mas devia prever-se o momento em que, abandonado das suas enxárcias, cairia sobre a tolda. Na proa, os farrapos da vela de estai estalavam com detonações comparáveis às de uma arma de fogo. Todo o velame se reduzia ao simples traquete ameaçando esfarrapar-se, pois os rapazitos não tinham sido capazes de rizá-lo para lhe diminuírem a superfície. Se isso viesse a suceder, não seria possível manter-se a escuna mais tempo na linha do vento, as ondas apanhá-la-iam de costado, fazendo-a adernar e metendo-a a pique, desaparecendo os seus passageiros com ela no abismo.

      E até então nem uma ilha se tinha assinalado ao largo, nem um continente havia aparecido a leste! Arribar à costa é uma eventualidade terrível, e, apesar disso, aquelas crianças não a teriam temido tanto como os furores desse mar interminável. Um litoral, qualquer que fosse, com os seus recifes, os seus baixos, os seus cachopos, o formidável marulho que o assalta, a ressaca com que as suas rochas são incessantemente batidas, esse litoral, supunham eles, teria sido a sua salvação, teria sido a terra firme, em vez daquele oceano, pronto sempre a entreabrir-se debaixo dos seus pés!

      Por isso procuravam com ânsia ver se avistavam qualquer fogacho em direcção ao qual aproassem... Nenhum clarão se divisava no meio daquela profunda noite!

      De repente, pela uma hora da manhã, um horrível estrépito dominou o sibilar das rajadas.

      - Quebrou-se o mastro de traquete!... - exclamou Doniphan.

      - Não foi! - esclareceu o grumete. - Foi a vela que se arrancou da tralha!

      - É preciso livrarmo-nos dela - disse Briant. - Gordon, fica ao leme com Doniphan, e tu, Moko, vem ajudar-me!

      Se Moko, na sua qualidade de grumete, devia ter alguns conhecimentos náuticos, Briant não era absolutamente desprovido deles. Por já ter atravessado o Atlântico e o Pacífico, quando tinha ido da Europa para a Oceânia, havia-se familiarizado um pouco com as manobras de bordo. Isto explica porque os outros rapazitos, que disso nada entendiam, se julgaram na obrigação de confiar a Moko e a ele o encargo de dirigir a escuna.

      Num instante, Briant e o grumete dirigiram-se afoitamente para a proa do iate. Para evitar que este adernasse, era preciso a todo o custo aliviá-lo imediatamente da acção do vento, arriando o traquete, que fazia fole na parte inferior e obrigava o navio a inclinar-se a ponto de ele correr o risco de soçobrar. Podia ainda ser preciso cortar o mastro de traquete pelo pé, depois de lhe ter partido os ovéns metálicos; e como é que umas crianças chegariam a consegui-lo?

      Nestas condições, Briant e Moko deram mostras de uma destreza notável. Bem resolvidos a conservar o mais pano que lhes fosse possível, a fim de manterem o Sloughi de popa ao vento e ao mar enquanto durasse a borrasca, isto é, a fim de correrem com o tempo, conseguiram arriar a adriça da verga, a qual desceu até uns cinco ou seis pés acima da tolda. Os farrapos do traquete foram arrancados à faca, os punhos inferiores, apanhados por dois amarrilhos, foram presos a cavilhas na amurada, não sem que os dois intrépidos rapazes tivessem estado por vinte vezes em risco de serem engolidos pelas ondas.

      Com o velame assim extremamente reduzido, a escuna pôde manter-se na direcção que seguia havia já tanto tempo. Bastava-lhe o casco para dar bastante presa ao vento e ela correr com a velocidade de um torpedeiro. O que importava, sobretudo, era furtar-se às vagas, fugindo mais rapidamente do que elas, a fim de não receber por cima da borda alguma onda que lhe varresse a tolda.

      Feito isto, Briant e Moko voltaram para junto de Gordon e de Doniphan, para os ajudarem na manobra do leme.

      Neste momento abriu-se pela segunda vez a escotilha. Saiu por ela uma cabecita de criança. Era Jaime, irmão de Briant, três anos mais novo do que este.

      - Que queres tu, Jaime? - perguntou-lhe o irmão.

      - Vem cá!... vem cá!... - respondeu Jaime. - A água chega à coberta!

      - Pode lá ser? - exclamou Briant.

      E, precipitando-se para a escotilha, desceu a toda a pressa.

      Estava a coberta confusamente iluminada por uma lâmpada que o balanço agitava com violência. Ao clarão dela podiam ver-se umas dez crianças estendidas pelas bancadas ou deitadas nas macas do Sloughi. Os mais pequenos - havia-os de oito a nove anos -, apertados uns contra os outros, estavam verdadeiramente cheios de pavor.

      - Não há perigo! - garantiu-lhes Briant, que pensou logo em serená-los. - Estamos nós aqui!... Não tenham medo!

      Depois, percorrendo com um archote aceso o solho da coberta, verificou que uma certa quantidade de água corria de uma banda à outra do iate.

      De onde provinha aquela água? Teria penetrado por alguma fenda no forro do casco?

      Eis o que era preciso reconhecer.

      Na coberta, para a banda da popa, havia a câmara do comandante, em seguida a esta o refeitório e depois o posto da equipagem.

      Briant atravessou estes diversos compartimentos e observou que a água não penetrava nem por cima nem por baixo da linha de flutuação. Essa água, que corria toda à popa nas submersões desta, provinha apenas da que a escuna metia em si a cada focinhada da proa, e da qual, pela escotilha mal fechada, tinha corrido alguma para o interior. Portanto, nenhum perigo havia por esse lado.

      Briant tranquilizou os camaradas quando de novo atravessou pelo meio deles e, um pouco menos inquieto, voltou a tomar o seu lugar ao leme. A escuna, solidamente construída, querenada de novo com um bom forro de cobre, não fazia água e devia estar em circunstâncias de resistir às pancadas do mar.

      Era então uma hora da manhã. No meio da noite, mais escurecida ainda pela grossura das nuvens, desencadeava-se a tempestade furiosamente. O iate navegava como se todo ele fosse mergulhado num meio líquido. Rasgavam os ares os gritos agudos das procelárias. Poder-se-ia concluir da sua aparição que a terra estivesse próxima? Não, porque frequentemente se encontram a muitas centenas de léguas das costas. Demais, impotentes para lutarem contra a corrente aérea, essas aves das tempestades seguiam-na como o fazia a escuna, à qual nenhuma força humana seria capaz de quebrar a velocidade.

      Uma hora depois, ouviu-se novo estrépito a bordo. Acabava de se fazer em bocados o resto do traquete que escapara e espalharam-se pelos ares pedaços de lona, semelhantes a gaivotas enormes.

      - Já não temos vela - exclamou Doniphan - e é impossível largar outra!

      - Que importa! - respondeu Briant. - Podes ter a certeza de que não andaremos por isso menos depressa!

      - Boa resposta! - replicou Doniphan. - Se é esse o teu modo de manobrar...

      - Cuidado com o mar que temos pela popa! - recomendou Moko.

      - É bom amarrarmo-nos com força, para não sermos levados por ele...

      Ainda mal o grumete tinha acabado a sua advertência e já estavam emborcadas na escuna umas poucas de toneladas de água por cima da borda. Briant, Doniphan e Gordon foram atirados contra a amurada, à qual conseguiram agarrar-se. Mas o grumete tinha desaparecido no meio da onda que alagou o Sloughi de popa à proa e levou uma parte dos sobresselentes, os dois escaleres e canoa, embora tivesse havido o cuidado de os recolher no interior, muitos paus para a guindola, assim como a bitácula da agulha.

      Todavia, como a força da água foi tanta que abriu os portalós, escoou-se ela facilmente e com rapidez, o que salvou o iate do perigo de soçobrar debaixo daquela enorme sobrecarga.

      - Moko!... Moko!... - tinha gritado Briant, logo que se viu em estado de falar.

      - Talvez tenha sido arremessado ao mar!... – sugeriu Doniphan.

      - Não!... Não se vê... não se ouve! - disse Gordon, que acabava de se debruçar na borda.

      - É preciso salvá-lo... Atirar-lhe uma bóia... um cabo! - gritou Briant.

      E, com uma voz que ressoou com força durante alguns segundos de quietação, exclamou de novo:

      - Moko!... Moko!...

      - Acudam-me!... Acudam-me... - respondeu o grumete.

      - Não está no mar - afirmou Gordon. - A voz dele vem do lado da proa!...

      - Vou salvá-lo! - declarou com fogo Briant.

      E ei-lo que principia a correr de rastos a tolda, evitando conforme lhe era possível o choque do polcame a balouçar-se dos cabos, garantindo-se das quedas que o balanço tornava quase Inevitáveis no chão escorregadio.

      A voz do grumete atravessou ainda mais uma vez o espaço. Depois tudo se calou.

      Entretanto, à custa dos maiores esforços, Briant tinha chegado a alcançar o gurupés.

      Chamou...

      Nenhuma resposta.

      Moko teria sido arrebatado por algum novo golpe de mar depois de ter soltado o seu último grito? Nesse caso o infeliz rapaz devia estar longe, agora, bem longe, por que a mareta não podia transportá-lo com uma velocidade igual à da escuna.

      E, então, estava perdido...

      Não! Um grito mais fraco chegou até Briant, que se precipitou para avante da abita onde fica a trempe do gurupés. Aí, as suas mãos encontraram um corpo que se debatia...

      Era o grumete, entalado no ângulo que formavam os patarrases do gurupés, no ponto em que amarram ao costado. Uma adriça, que os seus esforços tornavam de cada vez mais intensa, apertava-o pelo pescoço. Depois de ter sido amparado por essa adriça, no momento em que a onda enorme o ia tragar, iria agora morrer por estrangulamento?

      Briant pegou na faca e a muito custo conseguiu cortar o cabo que estrangulava o grumete.

      Moko foi desse modo salvo e, logo que recuperou forças para falar, agradeceu:

      - Obrigado, Sr. Briant, obrigado!

      Daí a pouco retomou o seu lugar ao leme, e todos quatro se amarraram, a fim de resistir às vagas enormes que se levantavam a barlavento do Sloughi.

      Contrariamente ao que  tinha suposto Briant, a velocidade do iate tinha diminuído um pouco com a desaparição do resto do traquete - o que constituía um perigo novo. Com efeito, as ondas, correndo mais depressa do que ele, podiam assaltá-lo pela popa e alagá-lo. Mas que fazer? Era totalmente impossível largar o mínimo bocado de vela.

      No hemisfério austral, o mês de Março corresponde ao mês de Setembro do hemisfério boreal, e as noites têm apenas uma duração média. Ora, como eram proximamente quatro horas da manhã, o horizonte não devia tardar a branquejar-se a leste, isto é, por cima da parte do oceano para onde a tempestade impelia o Sloughi. Talvez com o nascer do dia a borrasca perdesse parte da sua violência! Talvez, também, a terra estivesse à vista, e talvez a sorte daquela equipagem de crianças estivesse para se decidir em alguns minutos! Ver-se-ia isso quando a alvorada tingisse os longes do céu.

      Pelas quatro horas e meia, alguns clarões difusos se estenderam até ao zénite. Por infelicidade as brumas limitavam ainda o raio visual a menos de um quarto de milha. Via-se que as nuvens passavam com uma velocidade espantosa. O furacão não tinha perdido nada da sua força, e, ao largo, o mar desaparecia sob a espuma de uma rebentação. A escuna, ora levantada sobre a crista de uma vaga, ora precipitada no fundo de um abismo, teria soçobrado vinte vezes se de alguma se atravessasse.

      Os quatro rapazes olhavam para esse caos de ondas desenfreadas. Percebiam bem que, se a borrasca tardasse a acalmar-se, a sua situação seria desesperada. Nunca o Sloughi resistiria vinte e quatro horas mais aos golpes de mar, que acabariam por desfazê-lo.

      Foi então que Moko exclamou:

      - Terra!... Terra!...

      Por entre uma clareira das brumas, o grumete julgava ter distinguido os contornos de uma costa para leste. Não se enganava ele? Nada mais difícil de reconhecer do que esses vagos lineamentos que tão facilmente se confundem com volutas de nuvens.

      - Terra?... - tinha perguntado Briant.

      - Sim... - repetiu Moko. - Terra... a leste!

      E indicava um ponto do horizonte agora oculto pela massa do nevoeiro.

      - Estás certo disso?... - Insistiu Doniphan.

      - Sim!... sim!... certíssimo!... - respondeu o grumete. – Se o nevoeiro tornar a abrir, olhem bem... para ali... um pouco à direita do mastro de traquete... Lá está!... Lá está!...

      As brumas, que acabavam de entreabrir-se, principiavam a separar-se do mar para subirem para mais elevadas zonas. Alguns instantes depois, o oceano tornou a aparecer no espaço de muitas milhas pela frente do iate.

      - Sim!... Terra!... É terra!... - exclamou Briant.

      - E terra muito baixa! - acrescentou Gordon, que acabava de observar mais atentamente o litoral designado.

      Desta vez, não havia que duvidar. Terra, continente ou ilha, se desenhava a cinco ou seis milhas num largo segmento do horizonte. Com a direcção que seguia e de que o temporal lhe não permitia afastar-se, o Sloughi não podia deixar de ser arremessado sobre ela em menos de uma hora. Era para temer que ele fosse ali despedaçar-se, sobretudo encontrando recifes que o detivessem antes de alcançar a terra franca. Mas os rapazes nem nisso pensavam. Naquela terra, que se apresentava inopinadamente aos seus olhos, não viam, não podiam ver senão a salvação.

      Nesse instante, recomeçou o vento a soprar com mais furor.

      O Sloughi, levado como uma pena, precipitou-se para a costa, que se recortava com a nitidez de um traço a tinta sobre o fundo esbranquiçado do céu. No segundo plano destacava-se uma penedia, cuja elevação não devia exceder cento e cinquenta a duzentos pés. Adiante estendia-se um areal amarelado, servindo-lhe de moldura, à direita, massas arredondadas que pareciam pertencer a uma floresta do interior.

      Ah! se o Sloughi pudesse alcançar aquela praia areenta sem encontrar um banco de recifes, se a foz de um rio lhe oferecesse refúgio, talvez aqueles jovens passageiros escapassem sãos e salvos!

      Enquanto Doniphan, Gordon e Moko se conservavam à roda do leme, Briant fora colocar-se à proa e olhava a terra, que se aproximava a olhos vistos, de tal modo era considerável a velocidade. Mas em vão procurava ele qualquer ponto onde o iate pudesse acostar em condições mais favoráveis. Não se via nem uma embocadura de rio ou de regato, nem mesmo uma tira de areia sobre a qual teria sido possível encalhar de um só impulso. Efectivamente, para aquém da praia estendia-se uma linha de recifes, cujos cabeços negros emergiam das ondulações da arrebentação, e que eram batidos incessantemente por uma ressaca monstruosa. Ali, aos primeiros choques, o Sloughi seria feito em pedaços.

      Briant lembrou-se então de que mais valia ter todos os seus camaradas na tolda, no momento em que se desse o encalhe; e, abrindo a escotilha, gritou:

      - Para cima, todos!

      O primeiro a subir foi o cão, seguido logo por uns dez rapazes, que se dirigiram para a popa do iate. Os mais pequenos, à vista das ondas que o baixio tornava mais temíveis, soltaram gritos de espanto...

      Um pouco antes das seis horas da manhã, o Sloughi tinha chegado à proximidade do banco.

      - Segurem-se bem!... Segurem-se bem! - recomendou Briant.

      E, tendo despido parte da sua roupa, pôs-se pronto para socorrer aqueles que a ressaca levasse, porque, com toda a probabilidade, o iate ia ser atirado para cima dos recifes.

      De súbito, fez-se sentir um primeiro abalo. O Sloughi acabava de ser açoutado pela popa; mas, embora todo o casco gemesse, a água não conseguiu romper-lhe o costado.

      Erguido por segunda vaga, esta atirou-o uns cinquenta metros para diante, sem mesmo o ter feito aflorar as rochas, cujas pontas se descobriam em mil partes. Depois, inclinado a bombordo, ficou imóvel no meio dos fervores da ressaca.

      Se não estava já em pleno mar, estava ainda a um quarto de milha da praia.

     

      Neste momento, o espaço, desembaraçado da sua cortina de brumas, permitia que a vista se dilatasse por um vasto raio em torno da escuna. As nuvens corriam sempre com extrema rapidez, e a borrasca ainda nada havia perdido do seu furor. Contudo, talvez fossem esses os últimos golpes com que ela feria aquelas paragens desconhecidas do oceano Pacífico.

      Era de esperar, porque a situação oferecia tantos perigos como durante a noite, em que o Sloughi se debatia contra as violências do mar largo. Reunidos uns perto dos outros, aqueles rapazitos deviam imaginar-se perdidos quando alguma vaga rebentava por cima das trincheiras e os cobria de espuma. Os choques eram rudes, sem a escuna lhes poder fugir. Contudo, se a cada embate estremecia até ao cavername, não parecia que se lhe tivesse desunido qualquer parte do forro ou do cintado, nem quando galgou o pontalete dos recifes, nem no momento em que, por assim dizer, se foi encaixar entre os cabeços das rochas. Briant e Gordon, depois de terem descido à coberta e ao porão, tinham verificado que a água não penetrava no Interior do barco por nenhum lado.

      Tranquilizaram, pois, o melhor que puderam, os seus camaradas - principalmente os pequenos.

      - Não tenham medo!... - repetiu muitas vezes Briant. – O iate é sólido!... A costa não está longe!... É esperar mais algum tempo e havemos de alcançar a praia!

      - E porque é preciso esperar?... - perguntou Doniphan.

      - Sim... porquê?... - interrogou, por sua vez, outro rapaz, de uma dúzia de anos, chamado Wilcox. - Doniphan tem razão... Porque é preciso esperar?

      - Porque o mar está muito grosso ainda e atira-nos para cima das rochas! - explicou Briant.

      - E se o iate se despedaçar? - insistiu outro rapaz, chamado Webb, que era aproximadamente da mesma idade que Wilcox.

      - Não creio que haja a temer isso - respondeu Briant -, pelo menos enquanto a maré baixar. Quando ela se tiver afastado, tanto quanto o permitir o vento, trataremos de nos salvar!

      Briant tinha razão. Ainda que as marés sejam relativamente pouco consideráveis no oceano Pacífico, podem contudo produzir uma diferença de nível bastante importante entre as preia-mares e as baixa-mares. Haveria, portanto, vantagens em esperar algumas horas, sobretudo se o vento viesse a abrandar. Talvez a vazante pusesse a seco uma parte do banco de recifes. Seria menos perigoso então deixar a escuna e mais fácil transpor o quarto de milha que a separava da praia.

      No entanto, apesar de ser tão razoável o conselho, Doniphan e mais dois ou três não se mostravam dispostos a segui-lo. Formaram um grupo à proa e conversaram em voz baixa. O que se mostrava claramente já é que Doniphan, Wilcox, Webb e outro rapaz, chamado Cross, não mostravam boas disposições para se entenderem com Briant. Durante a longa travessia do Sloughi, se tinham consentido em obedecer-lhe, era porque Briant, como dissemos, tinha alguma prática de navegação. Mas tinham conservado sempre o seu pensamento reservado de retomarem a liberdade de acção logo que se vissem em terra - principalmente Doniphan, que, quanto a instrução e inteligência, se julgava superior a Briant, bem como a todos os seus camaradas.

      Demais, o ciúme de Doniphan para com Briant datava já de longe e, pelo facto mesmo de este ser francês, os moços ingleses deviam ser pouco propensos a suportarem a sua preponderância.

      Era, pois, de recear que semelhantes disposições aumentassem a gravidade de uma situação tão inquietante.

      Entretanto, Doniphan, Wilcox, Cross e Webb olhavam para aquela toalha de espuma, semeada de redemoinhos, cortada por correntes diversas, que parecia perigosíssima de atravessar. O mais hábil nadador não teria resistido à ressaca da maré vazante, que o vento batia de revés. Era, pois, mais que justificado o conselho de esperar algumas horas. Foi preciso que Doniphan e os seus camaradas se rendessem à evidência e, finalmente, voltaram para a popa, onde estavam os mais novos.

      Briant estava então dizendo a Gordon e a alguns dos que o rodeavam:

      - Sobretudo, não nos separemos!... Conservemo-nos juntos, ou estamos perdidos!...

      - Tu queres dar-nos leis? - exclamou Doniphan, que acabava de ouvi-lo.

      - Eu não quero nada - retorquiu-lhe Briant -, a não ser que trabalhemos unidos e de acordo para a salvação de todos!

      - Briant tem razão! - afirmou Gordon, rapaz frio e sério, que nunca falava sem ter reflectido bem.

      - Sim!... sim!... - exclamaram dois ou três dos mais pequenos, a quem um instinto secreto aconselhava a aproximarem-se de Briant.

      Doniphan não replicou; mas os seus camaradas e ele persistiram em se conservar afastados, enquanto esperavam a ocasião de se proceder ao salvamento.

      E, agora, que terra era aquela? Pertencia a uma das ilhas do oceano Pacífico ou a qualquer continente? Essa questão não podia ser resolvida, visto o Sloughi estar muito perto do litoral, de modo que não era permitido observar este num perímetro suficiente. A sua concavidade, formando uma ampla baía, terminava por dois promontórios, um bastante elevado e cortado a pique do lado do norte, o outro aguçado em ponta para o sul. Mas, para além desses dois cabos, o mar arredondar-se-ia de maneira a banhar os contornos de uma ilha? Eis o que Briant tentou debalde reconhecer empregando um dos óculos de bordo.

      Efectivamente, no caso em que aquela terra fosse uma ilha, como se conseguiria sair dela, se fosse impossível desencalhar a escuna, que a maré alta não tardaria a despedaçar, arrastando-a para cima dos recifes? E se essa ilha fosse deserta - como há muitas nos mares do Pacífico - como é que essas crianças, reduzidas aos seus próprios recursos, não tendo para se sustentar senão as provisões que pudessem salvar do iate, haviam de ocorrer às necessidades da existência?

      Num continente, pelo contrário, as possibilidades de salvação teriam aumentado de modo notável, pois que esse continente não teria podido ser senão o da América do Sul. Aí, através dos territórios do Chile ou da Bolívia, achar-se-ia auxílio, senão imediatamente, pelo menos alguns dias depois de se ter posto pé em terra. É verdade que, neste litoral vizinho dos Pampas, havia a recear um grande número de maus encontros. Mas, nesse momento, do que se tratava era de alcançar a terra.

      O tempo estava bastante claro e deixava-lhe ver todos os pormenores. Distinguia-se nitidamente o primeiro plano da praia, a penedia que a emoldurava pela retaguarda, assim como os maciços de árvores agrupadas na sua base. Briant assinalou mesmo a embocadura de um rio à direita da praia.

      Em suma, se o aspecto dessa costa se não podia chamar bastante atraente, a cortina de verdura indicava uma certa fertilidade, comparável à das zonas de latitude média. Sem dúvida, para lá da terra escarpada, ao abrigo dos ventos do largo, a vegetação, encontrando um solo mais favorável, devia desenvolver-se com algum proveito.

      Quanto a ser habitada, não parecia que essa parte da costa o fosse. Não se via ali sinal de casa ou de cabana, nem mesmo na foz do rio. Talvez que os indígenas, se lá os havia, residissem de preferência no interior do país, onde estavam menos expostos aos ataques brutais dos ventos de oeste.

      - Não noto o mínimo fumo! - disse Briant, abaixando o óculo.

      - E não há nem uma embarcação na praia! - fez observar Moko.

      - Como era possível havê-la, se não há porto?... – replicou Doniphan.

      - Não é preciso para isso haver porto - retorquiu Gordon. - Barcos de pesca podem encontrar refúgio na entrada de um rio, e seria possível que a tempestade os tivesse obrigado a recolherem-se para o interior.

      A observação de Gordon era acertada. Como quer que fosse, ou por uma razão ou por outra, não se descobriu nenhuma embarcação, e, na realidade, essa parte do litoral parecia ser absolutamente desprovida de habitantes. Seria ela habitável, no caso em que os jovens náufragos aí tivessem de persistir algumas semanas? Eis aquilo de que eles tinham que se preocupar principalmente.

      Entretanto, a maré retirava-se a pouco e pouco – muito lentamente, é verdade, porque o vento do largo lhe fazia obstáculo, embora começasse a abrandar, inflectindo-se para noroeste. Importava, pois, estarem prontos para o momento em que o banco de recifes oferecesse uma passagem praticável.

      Eram perto de sete horas. Cada um tratou de trazer para a tolda do iate os objectos de primeira necessidade, reservando-se o recolher os outros quando o mar os arrojasse à costa.

      Tanto os mais pequenos como os maiores meteram ombros a esse trabalho. Havia a bordo uma grande provisão de conservas, bolacha, carnes salgadas e de fumeiro. Fizeram-se fardos com essas provisões, destinados a serem repartidos pelos maiores, aos quais incumbiria o cuidado de os transportar para terra.

      Mas, para que esse transporte se pudesse efectuar, era preciso que o banco de recifes se pusesse a enxuto. Sucederia isso na maré baixa, e o refluxo bastaria para descobrir as rochas até à praia?

      Briant e Gordon aplicaram-se a observar cuidadosamente o mar. Com a modificação na direcção do vento, a calma fazia-se sentir e os fervores da ressaca principiavam a serenar. Tornava-se pois fácil notar o decrescimento das águas ao longo das pontas emergentes. E, demais, a escuna ressentia os efeitos desse decrescimento, descaindo de modo mais acentuado para bombordo. Era mesmo para recear, se a sua inclinação aumentasse, que ela se deitasse de flanco, porque era muito fina de formas, tendo as cavernas aprumadas e uma grande altura de quilha, como os iates de grande andamento. Neste caso, se a água lhe invadisse o convés antes de o poderem abandonar, a situação seria extremamente grave.

      Como todos lastimavam agora que os escaleres tivessem sido levados durante a tempestade! Com aquelas embarcações, capazes de os conter a todos, Briant e os seus camaradas teriam podido desde a escuna tentar alcançar a costa. Depois, que facilidade para estabelecer uma comunicação entre o litoral e a escuna, para transportar tantos objectos úteis que seria preciso momentaneamente deixar a bordo!

      E, na noite próxima, se o Sloughi se despedaçasse, para que serviriam os seus restos, quando a ressaca os tivesse arrastado através dos recifes? Poder-se-ia utilizá-los ainda? Não estariam absolutamente avariadas as provisões que sobrassem? Os pobres náufragos não se veriam em breve reduzidos apenas aos recursos que aquela terra lhes fornecesse?

      Era uma circunstância bem desagradável não haver uma embarcação para operar o salvamento!

      De repente, soltaram-se exclamações à proa. Baxter acabava de fazer uma descoberta que tinha a sua importância.

      A pequena canoa da escuna, que se julgava perdida, encontrava-se engasgada entre os cabrestos do gurupés. É verdade que essa canoa apenas podia levar cinco a seis pessoas; mas, como estava intacta - o que se verificou logo que conseguiram içá-la para a tolda -, não seria impossível utilizá-la no caso em que o mar não consentisse transpor os recifes a pé enxuto. Convinha, portanto, esperar que a maré estivesse em baixa-mar completa, e, contudo, levantou-se a este respeito uma viva discussão, na qual Briant e Doniphan mais uma vez se pegaram de razões.

      Efectivamente, Doniphan, Wilcox, Webb e Cross, depois de terem agarrado a canoa, preparavam-se para arriá-la para o mar, quando Briant se lhes chegou.

      - Que pretendem fazer?... - perguntou ele.

      - O que é da nossa vontade!... - respondeu Wilcox.

      - Embarcar na canoa?...

      - Exactamente - replicou Doniphan -, e não hás-de ser tu quem nos há-de Impedir disso!

      - Pois hei-de ser eu - volveu Briant -, eu e todos aqueles a quem pretendes abandonar!...

      - Abandonar?... Onde vês tu isso? - retorquiu Doniphan, com altivez. - Eu não quero abandonar ninguém, entendes tu?... Uma vez na praia, um de nós voltará a trazer a canoa...

      - E se ela não puder voltar - exclamou Briant, que dificilmente se continha -, e se ela se despedaçar sobre estas rochas...

      - Embarquemos!... Embarquemos! - respondeu Webb, que acabava de empurrar Briant.

      Depois, ajudado por Wilcox e por Cross, levantou a embarcação a fim de descê-la para o mar.

      Briant agarrou-a por um dos extremos.

      - Não hão-de embarcar! - disse ele.

      - Isso é o que havemos de ver! - volveu Doniphan.

      - Não hão-de embarcar! - repetiu Briant, bem decidido a resistir, no interesse comum. - A canoa deve ser reservada primeiro para os mais pequenos, se ficar água suficiente na baixa-mar para se poder alcançar a praia...

      - Deixa-nos sossegados! - exclamou Doniphan, a quem a cólera arrebatava. - Repito-te, Briant, não és tu quem nos há-de impedir de fazer o que quisermos!

      - E eu repito-te - bradou Briant - que não to hei-de deixar fazer, Doniphan.

      Os dois rapazes estavam quase a atirar-se um ao outro. Nesta briga, Wilcox, Webb e Cross iam naturalmente tomar partido por Doniphan, ao passo que Baxter, Service e Garnett se poriam do lado de Briant. Podiam, pois, resultar consequências deploráveis, quando Gordon interveio.

      Gordon, o de mais idade e também o mais senhor de si, compreendendo bem o que um tal precedente teria de lastimoso, teve o bom senso de se interpor a favor de Briant.

      - Vamos! vamos! - disse ele -, um bocado de paciência, Doniphan! Bem vês que o mar está muito grosso ainda, e que nos arriscávamos a perder a canoa.

      - Não quero - exclamou Doniphan - que Briant nos dê leis assim como se acostumou a fazê-lo há algum tempo para cá!

      - Não!... Não!... - apoiaram Cross e Webb.

      - Eu não pretendo dar leis a ninguém - respondeu Briant -, mas também não deixarei que outrem as dê, quando se tratar do interesse de todos!

      - Temos tanto cuidado nos mais novos como tu! – respondeu Doniphan. - E agora, que estamos em terra...

      - Ainda não, infelizmente - tornou Gordon. - Doniphan, não teimes, e esperemos um momento favorável para empregar a canoa!

      Muito a propósito, Gordon acabava de desempenhar o papel de moderador entre Doniphan e Briant - o que lhe tinha sucedido mais de uma vez já - e os seus camaradas renderam-se à sua observação.

      A maré tinha então baixado dois pés. Existiria algum canal entre os recifes? Era isso que seria muito útil reconhecer.

      Briant, pensando que poderia pôr-se melhor ao facto da posição das rochas observando-as do mastro de traquete, dirigiu-se para a proa do iate, agarrou-se aos ovéns de estibordo e, à força de pulso, subiu até aos vaus.

      Através do banco de recifes, desenhava-se uma passagem cuja direcção era marcada pelas pontas que emergiam de cada lado, e que conviria seguir se se tentasse alcançar a praia embarcando na canoa. Mas, a essa hora, havia ainda muitos redemoinhos e turbilhões à superfície dos cachopos e não era possível aproveitar a passagem com êxito. Sem nenhuma dúvida, teria sido arremessada para cima de alguma ponta e aí se faria em pedaços num Instante. Assim, mais valia esperar, para o caso em que o retraimento do mar deixasse uma passagem praticável.

      Do alto dos vaus sobre os quais ele se tinha escarranchado, Briant pôs-se a tomar um conhecimento mais exacto do litoral. Percorreu com o seu óculo ao longo da praia e até ao pé da penedia. A costa parecia ser absolutamente desabitada entre os dois promontórios, que uma distância de oito a nove milhas separava.

      Depois de ter estado meia hora em observação, Briant desceu outra vez e veio dar conta aos seus camaradas do que tinha visto.

      Se Doniphan, Wilcox, Webb e Cross afectaram ouvi-lo sem nada dizer, não aconteceu o mesmo a Gordon, que lhe perguntou:

      - Quando o Sloughi encalhou, Briant, não eram pouco mais ou menos seis horas da manhã?

      - Eram.

      - E quanto tempo é preciso para haver baixa-mar?

      - Cinco horas, creio. Não é verdade, Moko?

      - Sim... de cinco para seis horas - respondeu o grumete.

      - Será então lá para as onze horas - replicou Gordon -, o momento mais favorável para tentarmos alcançar a costa?...

      - Foi isso que eu calculei - explicou Briant.

      - Pois bem - observou Gordon -, ponhamo-nos prontos para esse momento, e comecemos por tomar algum alimento. Se nos virmos obrigados a deitar-nos à água, ao menos só o faremos passadas algumas horas depois da comida.

      Bom conselho, que devia provir naturalmente desse prudente rapaz.

      Tratou-se logo do primeiro almoço, composto de conservas e de bolacha. Briant teve o cuidado de tratar particularmente dos mais pequenos. Jenkins, Iverson, Dole, Costar, com a imprevidência natural na sua idade, começaram a tranquilizar-se e teriam talvez comido sem nenhuma reserva, pois, por assim dizer, havia vinte e quatro horas que nada tomavam. Mas tudo correu bem, e algumas gotas de brandy, destemperadas com uma pouca de água, forneceram uma bebida reparadora.

      Feito isto, Briant voltou para a proa da escuna e daí pôs-se de novo a observar os recifes.

      Com que lentidão se efectuava a descida da maré! Era manifesto, entretanto, que o nível do mar baixava, pois que se acentuava a inclinação do iate. Moko, tendo lançado à água uma sonda, reconheceu que ainda havia pelo menos oito pés de água sobre o banco. Ora, poder-se-ia esperar que esta ainda descesse tanto que o deixasse enxuto?

      Moko não o supunha e julgou devê-lo dizer a Briant, em segredo, para não assustar ninguém.

      Briant foi então falar com Gordon a esse respeito.

      Ambos compreendiam bem que o vento, apesar de ter voltado um pouco ao norte, Impedia que o mar baixasse tanto quanto o teria feito com tempo calmo.

      - Que partido se há-de tomar? - inquiriu Gordon.

      - Não sei!... não sei!... - respondeu Briant. - E que infelicidade não saber e sermos apenas umas crianças, quando era preciso sermos homens!

      - A necessidade nos há-de ensinar! - replicou Gordon. – Não desesperemos, Briant, e procedamos com prudência!...

      - Sim, façamos alguma coisa, Gordon! Se não tivermos abandonado o Sloughi antes de a maré começar a encher, se temos ainda de ficar uma noite a bordo, estamos perdidos...

      - Isso é mais do que evidente, porque o iate será feito em bocados! Por isso devemos a essa hora tê-lo deixado a todo o custo...

      - Sim, a todo o custo, Gordon!

      - Não te parece que não seria fora de propósito construir uma espécie de jangada, ou um vaivém!

      - Já tinha pensado nisso - respondeu Briant. – Por infelicidade, quase todos os sobresselentes foram levados pelo temporal. Para fazer a jangada são precisas tantas coisas, que já não há tempo! Resta, portanto, a canoa, da qual nos não podemos servir, porque o mar está muito forte! Não! O que se poderia tentar seria levar um cabo através do banco de recifes e amarrá-lo pelo extremo à ponta de uma rocha. Talvez então nos conseguíssemos alar até perto da praia.

      - E quem irá levar esse cabo?

      - Eu - respondeu Briant.

      - Eu irei ajudar-te!... - disse Gordon.

      - Não, eu vou só!... - replicou Briant.

      - Serves-te da canoa?

      - Isso seria arriscarmo-nos a perdê-la, Gordon, e mais vale conservá-la como último recurso!

      Contudo, antes de pôr em execução esse perigoso projecto, Briant quis tomar uma precaução útil, a fim de prevenir todas as eventualidades.

      Havia a bordo alguns cintos de salvação, com os quais ele obrigou os pequenos a munirem-se imediatamente. No caso em que tivessem de deixar o iate, quando a água fosse tão profunda ainda que não encontrassem pé, esses aparelhos sustê-los-iam, e os maiores haviam de procurar então impeli-los para a praia, alando-se eles mesmos pelo rabo.

      Eram então dez horas e um quarto.

      Antes de quarenta e cinco minutos, a maré teria atingido a sua mais baixa depressão; na roda da proa do Sloughi não se contavam já senão uns quatro a cinco pés de água, mas não parecia que o mar tivesse de descer dessa conta mais do que algumas polegadas. A umas sessenta jardas o fundo, em verdade, subia sensivelmente - o que se podia reconhecer pela cor denegrida da água e pelas numerosas pontas de rocha que emergiam ao longo da praia. A dificuldade estava, pois, em transpor as profundidades que o mar acusava à proa do iate.

      Todavia, se Briant conseguisse passar um cabo nesta direcção, e fixá-lo solidamente a uma das rochas, esse cabo, logo que fosse repuxado de bordo por meio do cabrestante, permitiria alcançar qualquer ponto onde se tivesse pé. E, mais ainda, fazendo-os escorregar por esse cabo, os fardos contendo as provisões e os utensílios indispensáveis chegariam a terra sem dano.

      Por muito perigosa que pudesse ser a sua tentativa, Briant não consentiria em deixar a ninguém o encargo de substituí-lo, e tomou as suas disposições nessa conformidade.

      Havia a bordo alguns desses cabos, de uns cem pés de comprido, que se empregavam como espias para amarrações ou reboques. Briant escolheu um de grossura média, que lhe pareceu conveniente, e do qual amarrou a ponta à sua cintura, depois de se ter despido.

      - Vamos, os outros todos - gritou Gordon -, fiquem aí para arriarem o cabo!... Venham para a proa!

      Doniphan, Wilcox, Cross e Webb não podiam recusar o seu concurso a uma operação cuja importância compreendiam. Por isso, quaisquer que fossem as suas disposições, prepararam-se para desenrolar o cabo, que seria necessário ir cedendo e aliviando a pouco e pouco para poupar as forças de Briant.

      No momento em que este descia para o mar, o irmão dele, aproximando-se, exclamou:

      - Meu irmão!... meu irmão!...

      - Não tenhas medo, Jaime, não tenhas medo por minha causa! - aconselhou Briant.

      Um instante depois via-se este à superfície da água, nadando com vigor, enquanto o cabo se desenrolava atrás dele.

      Ora, mesmo com o mar tranquilo, esta manobra teria sido difícil, porque a ressaca batia com violência ao longo do banco de rochedos. Correntes e contracorrentes impediam o arrojado rapaz de se manter em linha recta, e, quando o envolviam, sentia ele dificuldade extrema em desembaraçar-se.

      Contudo, Briant ia ganhando a pouco e pouco a praia, enquanto os seus camaradas lhe iam largando o cabo à medida.

      Mas era visível que as suas forças principiavam a esgotar-se, embora ele não estivesse ainda senão a uns cinquenta pés da escuna.

      Diante dele cavava-se uma espécie de redemoinho, produzido pelo encontro de duas correntes contrárias. Se conseguisse torneá-lo, talvez atingisse o seu fim, porque para lá estava o mar mais quieto.

      Tentou, portanto, dirigir-se para a esquerda por um violento esforço. Mas a sua tentativa tinha de ser infrutífera. Um nadador vigoroso, em toda a força da idade, não teria podido consegui-lo. Apanhado pelo encontro das águas, Briant foi irresistivelmente atraído para o centro do redemoinho.

      - Socorro!... Alem!... Alem!... - teve ainda força para gritar, antes de desaparecer.

      A bordo do iate não podia ser maior o pavor.

      - Alem!... - ordenou friamente Gordon.

      E os seus camaradas alaram o cabo para bordo com toda a pressa que puderam, a fim de trazerem Briant para o navio antes de ele ser asfixiado por uma imersão excessivamente longa.

      Em menos de um minuto estava Briant sobre a tolda – é verdade que sem sentidos; mas voltou prontamente a si nos braços de seu irmão.

      Estava malograda, pois, a tentativa que tivera por fim estabelecer um cabo na superfície do banco de recifes.

      Nenhum outro a poderia recomeçar de novo com esperança de êxito.

      Esses infelizes rapazes estavam pois reduzidos a esperar... Esperar o quê?... Um socorro?... E de que lado, e por via de quem lhes poderia ele vir?

      Era então mais de melodia. A maré já se fazia sentir, e a ressaca aumentava. E até mesmo, como era lua-nova, a onda devia ser mais forte que na véspera. Assim, por pouco que o vento recaísse da banda do largo, a escuna arriscava-se a ser levantada do seu leito de rochas... Depois, joguete das ondas, seria ali despedaçada na superfície do recife!...

      Ninguém sobreviveria a esse desenlace do naufrágio! E não havia nada a fazer, absolutamente nada!

      Na popa, todos, os mais pequenos rodeados pelos maiores, olhavam para o mar, que crescia, à medida que os cabeços das rochas desapareciam um após outro. Por infelicidade, o vento tinha voltado a oeste, e, como na noite precedente, batia com toda a fúria a terra.

      Com a água mais profunda, as vagas mais altas cobriam o Sloughi com a sua espuma e não tardariam a rebentar de encontro a ele.

      Só Deus podia vir em auxílio dos jovens náufragos. As suas preces misturavam-se com os seus gritos de terror.

      Um pouco antes das duas horas, a escuna, endireitada pela maré, não tombava já para bombordo; mas, em consequência do balouço de popa a proa, esta batia contra o fundo, enquanto que na popa o cadaste se mantinha ainda pegado ao leito das rochas.

      Em breve os choques de água sucederam-se sem descanso, e o Sloughi tombava de uma a outra banda, de modo que as crianças tiveram de se agarrar umas às outras ao serem violentamente arremessadas por cima da borda.

      Nesse momento uma montanha de espuma, vinda do mar alto, ergueu-se a dois comprimentos de amarra do iate. Dir-se-ia a enorme vaga de um macaréu, cuja altura excedia vinte pés. Chegou com a fúria de uma torrente, cobriu completamente o banco de recifes, levantou o Sloughi, arrastou-o por cima das rochas, sem o casco sequer ao menos roçar por elas.

      Em menos de um minuto, no meio dos fervores daquela massa de água, o Sloughi, levado até ao meio da praia, foi parar de encontro a uma elevação de areia, a duzentos pés na frente das primeiras árvores, apertadas de encontro umas às outras na falda da penedia.

      E aí ficou imóvel - desta vez sobre a terra firme -, enquanto o mar, retirando-se, deixava a praia toda a Salvo.

     

      Nessa época o Colégio Chairman era um dos mais estimados da cidade de Auckland, capital da Nova Zelândia, importante colónia inglesa do Pacífico. Contavam-se nele uns cem alunos, pertencentes às melhores famílias do país. Os Maores, que são os indígenas daquele arquipélago, não podiam fazer admitir lá os seus filhos, para os quais, aliás, foram reservadas outras escolas. Não havia no Colégio Chairman senão alunos ingleses, franceses, americanos, alemães, filhos dos proprietários, rendeiros, negociantes ou funcionários do país. Recebiam estes ali uma educação muito completa, idêntica à que era dada nos estabelecimentos análogos do Reino Unido.

      O arquipélago da Nova Zelândia compõe-se de duas ilhas principais: ao norte, Ika-Na-Mawi, ou ilha do Peixe, ao sul, Tawai-Ponamu, ou Terra das Esmeraldas. Separadas pelo estreito de Cook, ficam entre o trigésimo quarto e o quadragésimo quinto paralelo sul - posição equivalente à que ocupa, no hemisfério boreal, a parte da Europa que compreende a França e o Norte da África.

      A ilha de Ika-Na-Mawi, muito recortada ao sul, forma uma espécie de trapézio irregular, que se prolonga para o noroeste, seguindo uma curva terminada pelo cabo Van-Diémen.

      É proximamente no começo dessa curva, num ponto onde a península mede unicamente algumas milhas, que está edificada Auckland. A cidade está pois situada como o está Corinto, na Grécia - o que lhe valeu o nome de Corinto do Sul, Possui dois portos abertos, um a oeste, o outro a leste. Este último, no golfo Hauraki, é pouco profundo e foi preciso projectar alguns desses longos cais piers, à moda Inglesa, onde podem acostar os navios de tonelagem média. Entre outros alonga-se o cais do Comércio, “Commercial-pier”, ao qual vem dar a Rua da Rainha, “Queens-street”, uma das ruas principais da cidade.

      Era pouco mais ou menos ao meio dessa rua que ficava o Colégio Chairman.

      Ora, a 15 de Fevereiro de 1860, passado o meio-dia, saíram do dito colégio de pensionistas uns cem rapazitos, acompanhados por seus pais ou parentes próximos, de ar satisfeito, de aspecto jovial - pássaros a quem acabava de ser aberta a gaiola.

      Com efeito, era o começo das férias. Dois meses de independência, dois meses de liberdade. E, para um certo número desses alunos, havia também a perspectiva de uma viagem pelo mar, da qual se falava havia muito tempo no colégio Chairman. É inútil acrescentar o entusiasmo que excitava aqueles a quem a sua boa fortuna ia permitir o tomarem passagem a bordo do iate Sloughi, que se preparava para visitar as costas da Nova Zelândia numa viagem de circum-navegação.

      Aquela bonita escuna, fretada pelos pais dos alunos, tinha sido preparada para um passeio de seis semanas. Pertencia o navio ao pai de um deles, Mr. William E. Garnett, antigo capitão de marinha mercante, em quem se podia ter toda a confiança. Uma subscrição, repartida pelas diversas famílias, devia cobrir as despesas da viagem, a qual se efectuaria nas melhores condições de segurança e de conforto. Era, pois, uma alegria para aqueles rapazitos, e seria difícil empregar melhor algumas semanas de férias.

      Nos colégios ingleses, a educação difere muito sensivelmente da que é dada nos colégios de França. Ali deixa-se aos alunos mais iniciativa e, por conseguinte, uma liberdade relativa, que influi com muita felicidade no futuro deles. Ficam menos tempo crianças. Numa palavra, a educação caminha ali de par com a instrução. Daí provém que, pela maior parte, os rapazes ingleses são polidos, atenciosos, cuidadosos no seu vestuário e - o que é digno de ser notado - pouco propensos a empregarem a dissimulação ou a mentira, mesmo quando se trata de se subtraírem a algum castigo justo. É preciso observar igualmente que, nesses estabelecimentos escolares, os rapazinhos são menos adstritos às regras da vida comum e às leis do silêncio que delas derivam. Geralmente, ocupam quartos separados, tomam aí algumas refeições, e, quando se sentam à mesa de um refeitório, podem conversar em completa liberdade.

      Os discípulos são divididos em classes, segundo as idades. No Colégio Chairman havia cinco classes. Se na primeira e na segunda os pequenos ainda beijavam a cara aos pais, na terceira já substituíam o beijo filial pelo aperto de mão de homens feitos. Não havia prefeito para os vigiar, era permitida a leitura de romances e de jornais, os feriados eram frequentes, as horas de estudo muito restritas, exercícios de corpo muito úteis, ginástica, boxe e jogos de toda a espécie. Mas, como correctivo a esta independência da qual os discípulos não abusavam senão raras vezes, os castigos corporais eram usados, principalmente o açoite. Além disso, ser açoitado não é desonra para os jovens anglo-saxónicos e eles submetem-se a esse castigo sem protestar, quando reconhecem que o mereceram.

      Os Ingleses, ninguém o ignora, respeitam as tradições, tanto na vida privada como na vida pública, e essas tradições não são menos respeitadas - mesmo quando são absurdas – nos estabelecimentos escolares, onde não se parecem nada com as usanças francesas. Se os antigos são encarregados de proteger os novos, é com a condição de estes lhes prestarem, em troca, alguns serviços domésticos, aos quais não podem subtrair-se. Esses serviços, que consistem em levar o almoço ao quarto, escovar o fato, engraxar os sapatos, fazer alguns recados, são conhecidos pelo nome de “fagismo”, e os rapazes que os desempenham chamam-se fags. São os mais pequenos, os das primeiras classes, que servem de fags aos discípulos das classes superiores, e, se recusassem obedecer, os outros tornar-lhes-iam a vida pouco agradável. Mas nenhum deles pensa tal, e isso habitua-os a submeterem-se a uma disciplina que não se encontra nos liceus franceses. Além disso, a tradição assim o exige, e, se há um país que a respeita verdadeiramente, é com certeza o Reino Unido, onde ela se impõe tanto ao mais ínfimo cokney da rua, como aos pares da Câmara dos Lordes.

      Os discípulos que deviam tomar parte na excursão do Sloughi pertenciam às diversas classes do Colégio Chairman. Como já se pode ter notado, a bordo da escuna havia-os desde os oito anos até aos catorze. E estes quinze rapazes, contando com o grumete, iam ser envolvidos, para longe e por muito tempo, em aventuras terríveis!

      É necessário dar a conhecer os seus nomes, a idade, as suas aptidões, os seus caracteres, a situação das suas famílias e as relações que existiam entre eles no estabelecimento que acabavam de deixar na época habitual das férias.

      À excepção de dois franceses, os irmãos Briant, e de Gordon, que é americano, os restantes são de procedência inglesa.

      Doniphan e Cross pertencem a uma família de ricos proprietários que ocupam o primeiro lugar na sociedade da Nova Zelândia. Têm treze anos e alguns meses, são primos, e ambos fazem parte da quinta classe. Doniphan, elegante e vestido com esmero, é, sem contradição, o discípulo mais distinto. Inteligente e estudioso, conserva-se sempre no primeiro lugar, tanto por vontade de se instruir como pelo desejo de sobressair entre os seus camaradas. Um certo orgulho aristocrático fez com que lhe pusessem a alcunha de “Lord Doniphan”, e o seu carácter imperioso leva-o a querer dominar em toda a parte onde se acha. Provém daí, entre Briant e ele, a rivalidade que dura há muitos anos e que se acentuou desde que as circunstâncias aumentaram a influência de Briant sobre os seus camaradas. Quanto a Cross, é um discípulo muito medíocre, mas admirando perpetuamente tudo o que pensa, diz ou faz seu primo Doniphan.

      Baxter, da mesma classe, rapaz de treze anos, frio, concentrado, trabalhador, muito engenhoso, com muita habilidade para tudo, é filho de um comerciante de fortuna bastante modesta.

      Webb e Wilcox, de doze anos e meio, pertencem aos discípulos da quarta classe. De inteligência medíocre, muito obstinados e de génio bulhento, mostraram-se sempre exigentes na observação dos deveres do “fagismo”.

      As suas famílias são ricas e ocupam um lugar elevado entre a magistratura do país.

      Garnett, da terceira classe, assim como o seu amigo Service - ambos de doze anos - são filhos, um, de um capitão de marinha reformado, e o outro de um colono abastado, os quais habitam o North-Shore, na costa setentrional do porto de Waitemata. As duas famílias dão-se muito, e essa intimidade deu em resultado Garnett e Service tornarem-se inseparáveis. Têm bom coração, mas pouco amor ao trabalho, e, se lhes dessem liberdade completa, não deixariam de fazer uso dela. Garnett adora - paixão deplorável - o acordeão, tão estimado na marinha inglesa. Por isso, na sua qualidade de filho de marinheiro, toca nas horas vagas, e trouxe para bordo do Sloughi o seu instrumento predilecto. Quanto a Service, é o mais alegre, o mais estouvado do rancho, o verdadeiro bobo do Colégio Chairman, não pensando, além disso, senão em aventuras de viagem, e sabendo de cor o Robinson Crusoe e o Robinson Suíço, que constituem a sua leitura favorita.

      Devemos citar agora outros dois rapazes, de nove e nove anos e meio de idade. O primeiro, Jenkins, é filho do director da Sociedade de Ciências, a New Zealand Royal Society, o outro, Iverson, é filho do cura da igreja metropolitana de São Paulo. Apesar de estarem ainda na terceira e na segunda classe, contam-nos no número dos bons discípulos do colégio.

      Há ainda mais duas crianças, Dole, oito anos e meio, e Costar, oito anos, ambos filhos de oficiais do exército anglo-zelandês, que habitam a pequena cidade de Ouchunga, a seis milhas de Auckland, sobre o litoral do porto de Manukau. Destes pequerruchos não há nada a dizer, a não ser que Dole é muito cabeçudo e Costar muito guloso. Se não brilham nada na primeira classe, não deixam por isso de se julgar muito adiantados pelo facto de saberem ler e escrever - o que na idade deles não é para admirar.

      Como se vê, estas crianças pertencem todas a famílias respeitáveis, estabelecidas há muito tempo na Nova Zelândia.

      Resta-nos falar dos outros três rapazes embarcados na escuna, o americano e os dois franceses.

      O americano é Gordon, rapaz de catorze anos. A sua figura e o seu rosto apresentam já uma certa rudeza ianque. Apesar de ser um pouco desjeitoso e brusco, é evidentemente o mais ajuizado dos discípulos da quinta classe. Se não tem nada de brilhante, como o seu camarada Doniphan, possui um espírito justo, um bom senso prático, do qual muitas vezes tem dado provas. Gosta de coisas sérias, sendo de carácter observador, temperamento frio, metódico até à minuciosidade, tendo as Ideias em ordem no cérebro, como os objectos na sua secretária, onde tudo está alinhado, com rótulos e assente num caderno especial. Os seus camaradas estimam-no, reconhecem as suas qualidades, e, apesar de não ser inglês de nascença, sempre se têm dado bem com ele. Gordon é natural de Boston; não tem pai, nem mãe, nem outros parentes além do seu tutor, antigo agente consular, o qual, depois de ter enriquecido, se estabeleceu na Nova Zelândia, e já há alguns anos que habita uma das bonitas casas de campo espalhadas nas alturas, próximo da vila do Mount-Saint-John.

      Os dois jovens franceses, Briant e Jaime, são filhos de um engenheiro distinto que viera - havia dois anos e meio – tomar a direcção de grandes trabalhos de esgotamento nos pântanos do centro de Ika-Na-Mawi. O mais velho tem treze anos. Pouco trabalhador, apesar de muito inteligente, a maior parte das vezes é um dos últimos da quinta classe. Contudo, quando quer, com a sua facilidade de assimilação, a sua memória notável, eleva-se ao primeiro lugar, e é disso que Doniphan tem mais inveja. Briant e ele nunca puderam viver em boa harmonia no Colégio Chairman, e já se viram as consequências dessa desunião a bordo do Sloughi. E depois, Briant é audacioso, intrépido, ágil nos exercícios de coro, vivo e engraçado na réplica, e, de mais a mais, serviçal, bom rapaz, não tendo nada de orgulhoso, como Doniphan; é, porém, um pouco desleixado, devemos confessá-lo, no vestuário e nas maneiras - numa palavra, um francês, e, por isso mesmo, muito diferente dos seus camaradas de origem inglesa. Além disso, tem protegido muitas vezes os mais fracos contra os mais velhos que abusavam da sua força, e pela sua parte, nunca quis submeter-se às obrigações do “fagismo”. Daí resistências, lutas, batalhas, das quais, graças ao seu vigor e à sua grande coragem, saía vencedor, a maior parte das vezes. Assim, é geralmente estimado e, quando se tratou da direcção do Sloughi, os seus camaradas, com poucas excepções, não hesitaram em obedecer-lhe - tanto mais que, como se sabe, Briant adquirira alguns conhecimentos náuticos durante a sua viagem da Europa à Nova Zelândia.

      Quanto ao mais novo, Jaime, fora considerado até então o mais travesso da terceira classe - e mesmo de todo o Colégio Chairman, sem exceptuar Service -, inventando constantemente diabruras novas, fazendo partidas impossíveis aos seus camaradas, e sendo castigado mais do que o razoável. Mas, como se verá, o seu carácter modificara-se absolutamente desde a partida do iate, sem que ninguém soubesse o motivo.

      Tais são os rapazes que a tempestade acaba de lançar para uma das terras do oceano Pacífico.

      Durante este passeio de algumas semanas ao longo das costas da Nova Zelândia, o Sloughi devia ser comandado pelo seu proprietário, o pai de Garnett, um dos mais arrojados yachtmen das paragens da Austrália. Quantas vezes a escuna tinha aparecido sobre o litoral da Nova Caledónia, da Nova Holanda, desde o estreito de Torres até às pontas meridionais da Tasmânia, e até nos mares das Molucas, das Filipinas e das Celebes, tão funestos, às vezes, aos navios de maior tonelagem! Mas era um iate solidamente construído, muito marinheiro, e que aguentava o mar admiravelmente, mesmo com o mau tempo.

      A tripulação compunha-se de um mestre, seis marinheiros, um cozinheiro e um grumete - Moko, um preto de doze anos, cuja família estava, havia muito tempo , ao serviço de um colono da Nova Zelândia. Deve-se mencionar também um bonito cão de caça, “Phann”, de raça americana, que pertencia a Gordon, e nunca se separava do dono.

      O dia 15 de Fevereiro fora indicado para a partida.

      Entretanto, o Sloughi conservava-se amarrado pela ré na extremidade do “Commercial-pier”, e, por consequência, muito ao largo do porto.

      A tripulação não estava a bordo quando, no dia 14 á noite, os moços passageiros embarcaram. O capitão Garnett não devia chegar senão no momento de aparelhar. Só o mestre e o grumete é que receberam Gordon e os seus camaradas - pois os homens tinham ido beber o último copo de whisky. E até, depois de todos estarem instalados e deitados, o mestre julgou poder ir reunir-se à tripulação em uma das tabernas do porto, cometendo a falta imperdoável de se demorar aí até horas adiantadas da noite. Quanto ao grumete, tinha-se acomodado no seu lugar para dormir.

      Que se passou então? Provavelmente, nunca o saberiam. O certo é que a amarra do iate foi largada, por descuido ou por maldade... A bordo ninguém deu por isso.

      Uma escuridão profunda envolvia o porto e o golfo Hauraki. O vento de terra fazia-se sentir com força e a escuna, tomada de revés por uma corrente de refluxo que avançava para o largo, pôs-se a navegar sem governo para o alto mar.

      Quando o grumete acordou, o Sloughi arfava como se tivesse sido balouçado por um marulho que não se podia confundir com a ressaca habitual. Moko subiu para a ponte a toda a pressa... O iate perdera o governo!

      Aos gritos do grumete, Gordon, Briant, Doniphan e alguns outros, atirando-se abaixo das suas macas, saíram pela escotilha da coberta para a tolda. Debalde chamaram em seu socorro! Não distinguiam já nem uma só das luzes da cidade ou do porto. A escuna encontrava-se em pleno golfo, a três milhas da costa.

      No começo, seguindo os conselhos de Briant, ao qual se juntou o grumete, os rapazitos diligenciaram largar uma vela, a fim de voltarem ao porto, por meio de uma bordada. Mas, pesada de mais para ser orientada convenientemente, essa vela não teve outro efeito senão de os arrastar para mais longe, dando pega ao vento de oeste.  Sloughi dobrou o cabo Colville, transpôs o estreito que o separa da ilha da Grande Barreira e achou-se em breve a umas poucas de milhas da Nova Zelândia.

      Compreende-se a gravidade de uma tal situação. Briant e os seus camaradas não podiam já esperar nenhum socorro de terra. No caso em que algum navio do porto saísse em sua procura, passar-se-iam muitas horas antes de ele os poder alcançar, admitindo mesmo que fosse possível encontrar a escuna no meio daquela escuridão profunda. E mesmo, vindo o dia, como se descobriria um navio tão pequeno, perdido no alto mar? Quanto a livrarem-se apenas pelos seus esforços, como é que as crianças o conseguiriam? Se o vento não mudasse, deveriam renunciar a voltar para a terra.

      É verdade que restava ainda a alternativa de serem encontrados por um navio que se dirigisse para um dos portos da Nova Zelândia. Foi por isso que, apesar de ser fraca essa esperança, Moko se deu pressa em içar um farol no alto do mastro de traquete. Depois disto, só faltava esperar o amanhecer.

      Quanto aos pequenos, como o tumulto os não tinha acordado, tinha parecido bom deixá-los dormir. O susto deles não teria feito outra coisa senão lançar a desordem a bordo.

      Contudo, fizeram-se ainda muitas tentativas para meter o Sloughi na linha do vento. Mas ele descaía logo e esgarrava-se para leste com rapidez.

      De repente, avistou-se um fogacho a duas ou três milhas. Era uma luz branca, no alto de um mastro - o que é sinal distintivo dos vapores em andamento. Em breve as duas luzes de posição, vermelha e verde, apareceram, e, como eram visíveis ao mesmo tempo, devia concluir-se que esse vapor se dirigia direito sobre o iate.

      Os rapazitos debalde soltaram gritos de aflição. A bulha das vagas, o silvar do vapor que saía pelos tubos de descarga das caldeiras, o vento que se tornara mais violento ao largo, tudo se reunia para que as vozes deles se perdessem no espaço. Contudo, se não podiam ouvi-los, talvez ao menos os marinheiros de quarto distinguissem o farol do Sloughi? Era uma esperança ainda.

      Por infelicidade,, porém, num dos balanços quebrou-se a adriça, o farol caiu ao mar, e nenhuma coisa indicou mais a presença do Sloughi, sobre o qual o vapor corria com uma velocidade de doze milhas por hora.

      Em alguns segundos, o iate foi abalroado e teria soçobrado no mesmo instante se tivesse sido apanhado de través: mas a colisão produziu-se simplesmente à popa, e não demoliu senão os alforges de um dos lados e parte das mesas, sem ofender o casco.

      O choque tinha sido tão fraco, em suma, que, deixando o Sloughi à mercê de um temporal muito próximo, o vapor continuou a sua marcha.

      Muitas e muitas vezes, os capitães não se preocupam nada em prestar socorro ao navio que abalroaram. Esse procedimento é muito criminoso, e dele há numerosos exemplos. Mas, no caso presente, era muito admissível que a bordo do vapor nada se tivesse percebido da colisão com aquele iate, o qual nem sequer tinha sido entrevisto na sombra.

      Então, arrebatados pelo vento, os rapazitos julgaram-se perdidos de todo. Quando rompeu o dia, a imensidade estava deserta. Nessa região pouco frequentada do Pacífico os navios que vão da Austrália para a América, ou da América para a Austrália, seguem rumos mais meridionais ou mais setentrionais. Nem um passou à vista do iate. Chegou a noite, cada vez pior, e, se algumas vezes acalmou a rajada, não deixou o vento de soprar de oeste.

      Quanto teria de durar essa travessia é o que nem Briant nem os camaradas podiam saber. Em vão pretenderam manobrar para reconduzir a escuna para as paragens neozelandesas! Faltava-lhes o saber para modificarem a sua andadura, assim como a força para instalarem as velas.

      Foi nessas condições que Briant, desenvolvendo uma energia muito superior à sua idade, começou a tomar sobre os seus camaradas uma influência que o próprio Doniphan teve de suportar. Se, ajudado nisso por Moko, não conseguiu reconduzir o iate para as paragens do oeste, ao menos empregou o pouco que sabia em mantê-lo em condições de navegabilidade. Não se poupou, velou dia e noite, percorrendo obstinadamente o horizonte com os seus olhares, a fim de procurar aí uma esperança de salvação. Ao mesmo tempo, fez deitar ao mar algumas garrafas que encerravam um documento relativo ao Sloughi. Fraca esperança, mas que ele não quis desprezar.

      Contudo, os ventos de oeste continuavam a impelir o iate através do Pacífico, sem que fosse possível deter-lhe a marcha ou sequer diminuir-lhe a velocidade.

      Sabe-se o que se tinha passado. Alguns dias depois de a escuna ter sido arrastada para fora dos estreitos canais do golfo Hauraki, levantou-se uma tempestade, e durante duas semanas desencadeou-se com uma impetuosidade extraordinária.

      Assaltado por vagas monstruosas, depois de ter estado cem vezes a ponto de ser despedaçado por enormes golpes de mar – o que teria sucedido se não fossem a sua construção sólida e as suas qualidades náuticas - o Sloughi acabou por dar à costa numa terra desconhecida do Pacífico.

      E, agora, qual seria a sorte daquele colégio de náufragos arrastados para mil e oitocentas léguas da Nova Zelândia? De que lado lhes chegaria um socorro que eles não poderiam achar em si mesmos?...

      Em todo o caso as suas famílias tinham sobejo motivo para os supor engolidos com a escuna.

      Eis porquê...

      Em Auckland, quando se deu pela desaparição do Sloughi na própria noite de 14 para 15 de Fevereiro, preveniu-se o capitão Garnett e as famílias das infelizes crianças. É inútil insistir sobre o efeito que um tal acontecimento produziu na cidade, onde a consternação foi geral.

      Mas, se a amarra tinha rebentado ou partido, talvez que a perda do governo não tivesse atirado a escuna para o largo do golfo. Talvez fosse possível encontrá-la, embora o vento de oeste, que estava tomando força, fosse de natureza a inspirar inquietações mortais.

      Por isso, sem perder um instante, o director do porto tomou as suas disposições para socorrer o iate. Dois vaporzinhos foram empregados em pesquisas num espaço de muitas milhas para fora do golfo Hauraki. Durante toda a noite percorreram essas paragens onde o mar começava a tornar-se mais grosso. E chegado o dia, quando entraram de novo no porto, foi para tirar toda a esperança às famílias, feridas por essa espantosa catástrofe.

      Com efeito, se não tinham encontrado o Sloughi, esses vapores tinham, pelo menos, achado alguns fragmentos dele. Eram os bocados de guarnição do casco que tinham caído ao mar depois do abalroamento com o vapor peruviano Quito - abalroamento de que este navio nem mesmo tivera conhecimento.

      Sobre esses restos liam-se ainda três ou quatro letras do nome do Sloughi. Pareceu, portanto, certo que o iate tinha sido despedaçado por algum choque de água e que, em consequência desse acidente, se havia perdido totalmente a uma dúzia de milhas ao largo da Nova Zelândia.

     

      A costa era deserta, como Briant tinha verificado quando estivera em observação nas barras do mastro de traquete. Havia uma hora que a escuna estava encalhada na praia, na sua cama de areia, e nenhum indígena dera ainda sinal de si. Nem debaixo das árvores, que se agrupavam diante dos rochedos, nem nas margens do rio, cujas águas subiam, pois estava a maré a encher, se conseguia ver uma casa, uma cabana, uma choça. Nem mesmo se descobriam vestígios de pés humanos na superfície da areia, que os refluxos do mar cercavam de um longo cordão de algas. Na embocadura do rio não se via nenhuma embarcação de pesca. Finalmente, não aparecia nenhuma espiral de fumo, torcendo-se no ar, em todo o perímetro da baía compreendido entre os dois promontórios do sul e do norte.

      A primeira ideia de Briant e de Gordon foi embrenharem-se através dos grupos de árvores, a fim de alcançarem os rochedos e treparem por eles, sendo possível.

      - Estamos em terra, já não é mau! - observou Gordon. – Mas que terra será esta, que parece desabitada?...

      - O principal é que não seja inabitável - respondeu Briant.

      - Temos provisões e utensílios para algum tempo!... Falta-nos só um abrigo, e é preciso encontrá-lo... quando mais não seja senão para os pequenos... Eles primeiro que tudo!

      - Sim... tens razão!... - concordou Gordon.

      - Quanto a saber onde estamos - tornou Briant -, teremos tempo de pensar nisso, quando tivermos tratado do mais urgente! Se for um continente, talvez haja probabilidade de sermos socorridos! Se for uma ilha!... Uma ilha desabitada... Isso depois veremos! Anda, Gordon, vamos à exploração!

      Alcançaram ambos rapidamente o limite das árvores que se desenvolvia obliquamente entre os rochedos e a margem direita do rio, trezentos ou quatrocentos passos para cima da embocadura.

      Neste bosque não havia o mais ligeiro vestígio da passagem do homem, nem um atalho, nem uma abertura. Velhos troncos, abatidos pela idade, jaziam estendidos no solo, e Briant e Gordon enterravam-se até ao joelho no tapete de folhas secas. Contudo, os pássaros fugiam receosos, como se já tivessem aprendido a desconfiar dos seres humanos. Era, portanto, provável que a costa, no caso de não ser habitada, recebesse acidentalmente a visita dos indígenas de algum território próximo.

      Em dez minutos, os dois rapazes tinham atravessado o bosque, cuja espessura aumentava nas proximidades da costa de rochedos, que se erguia a prumo, como uma muralha, sobre uma altura média de cento e oitenta pés. Se a parte da costa apresentasse alguma anfractuosidade na qual fosse possível encontrar abrigo, seria uma fortuna. Efectivamente, aí, uma caverna protegida contra o vento do largo pelo maciço de árvores, e fora do alcance do mar, proporcionaria um refúgio excelente. Os moços náufragos poderiam instalar-se ali provisoriamente, enquanto não faziam uma exploração mais séria, que lhes permitisse dirigirem-se com segurança para o interior do país.

      Infelizmente, naquela costa, tão direita como uma muralha de fortaleza, Briant e Gordon não descobriram nenhuma gruta, nem mesmo uma fenda pela qual pudessem subir até à parte mais elevada. Para alcançarem o interior do território era preciso, provavelmente, contornar aqueles rochedos, cuja disposição Briant reconhecera quando os observava das barras do Sloughi.

      Durante meia hora, pouco mais ou menos, desceram ambos para o sul, ao longo da base dos rochedos. Chegaram então à margem direita do rio, que se dirigia sinuosamente para leste. Se esta margem era sombreada por árvores magníficas, a outra costeava uma região de aspecto muito diferente, sem verdura, sem acidentes de terreno. Parecia um vasto pântano que se estendia até ao horizonte do sul.

      Com as esperanças perdidas, não tendo conseguido elevar-se ao cume dos rochedos, de onde, sem dúvida, lhes seria permitido observar o território muitas milhas em redor, Briant e Gordon voltaram para o Sloughi.

      Doniphan e alguns outros passeavam nas rochas, enquanto Jenkins, Iverson, Dole e Costar se divertiam a apanhar conchas.

      Numa conversa que tiveram com os mais velhos, Briant e Gordon deram a conhecer o resultado da sua exploração.

      Enquanto não se levavam mais longe as investigações, pareceu, portanto, conveniente não abandonar a escuna. Esta, apesar de estar arrombada no fundo e de ter levado uma forte pancada a bombordo, podia servir de habitação provisória naquele mesmo lugar onde encalhara. Se o convés se entreabrira na frente, por cima do postilhão, o salão e as câmaras da ré apresentavam, ao menos, um abrigo razoável contra as grandes rajadas de vento. Quanto à cozinha, não sofrera nada com o encalhe nos recifes - com grande satisfação dos mais pequenos, a quem a questão da comida interessava particularmente.

      Na verdade era uma fortuna que os rapazes não tivessem sido obrigados a transportar para a praia os objectos indispensáveis para a sua instalação. Admitindo que o conseguissem, a que dificuldades, a que fadigas não se teriam exposto? Se o Sloughi tivesse soçobrado nos primeiros rochedos, como teriam eles podido salvar o material? Não seria o iate destruído rapidamente pelo mar, e, dos objectos espalhados na areia, conservas, armas, munições, vestuário, roupas de cama, utensílios de toda a espécie, o que se teria salvo? Felizmente, o encontro de duas correntes lançara o Sloughi para além do banco de recifes. Se estava incapaz de navegar, ao menos era habitável, porque as suas cobertas tinham resistido em primeiro lugar à borrasca; em segundo ao choque, e nada poderia arrancá-lo daquela Camada de areia onde a quilha se enterrara. É verdade que, com os ataques sucessivos do sol e da chuva, acabaria por se deslocar, a sua borda cederia, o convés entreabrir-se-ia mais e o abrigo que se apresentava agora tornar-se-ia insuficiente. Mas, até lá, ou os moços náufragos teriam chegado a alguma cidade, a alguma aldeia, ou, se a tempestade os tivesse arremessado a uma ilha deserta, teriam descoberto alguma gruta nos rochedos do litoral.

      Portanto, o melhor era ficar, provisoriamente, a bordo do Sloughi. Foi o que se fez nesse mesmo dia. Uma escada de corda, colocada a estibordo, do lado onde o iate dera a pancada, permitiu, tanto aos maiores como aos pequenos, alcançar os anteparos do convés. Moko, que sabia alguma coisa de cozinha, na sua qualidade de grumete, e ajudado por Service, que gostava de fazer guisados, foi preparar uma refeição. Todos comeram com apetite, e Jenkins, Iverson, Dole e Costar chegaram a estar bastante alegres. Só Jaime Briant, outrora o revolucionário do colégio, continuava a conservar-se muito sério. Uma tal mudança no seu carácter, nos seus hábitos, era de causar admiração; mas Jaime, que se tornara muito taciturno, esquivava-se sempre às perguntas que os seus camaradas lhe faziam a esse respeito.

      Afinal, muito fatigados depois de tantos dias e tantas noites passados no meio de mil perigos da tempestade, não pensaram senão em dormir. Os mais pequenos repartiram-se pelas câmaras do iate, onde os outros foram, em breve, fazer-lhes companhia. Contudo, Briant, Gordon e Doniphan quiseram ficar de vigia, cada um por sua vez. É certo que tinham motivo para temer a aparição de alguns animais ferozes ou de um bando de Indígenas, não menos temíveis.

      Mas não houve nada. A noite passou-se toda sem novidade, e, quando o Sol tornou a aparecer, todos os rapazes, depois de fazerem oração, foram tratar dos trabalhos exigidos pelas circunstâncias.

      Primeiro, foi necessário inventariar as provisões do iate, depois o material, compreendendo armas, instrumentos, utensílios, roupas, ferramentas, etc. A questão do alimento era a mais grave, em consequência de a costa parecer deserta. Os recursos limitar-se-iam aos produtos da pesca e da caça, se, por acaso, houvesse alguma. Até agora, Doniphan, que era um caçador muito hábil, ainda não distinguira senão bandos numerosos de voláteis à superfície dos recifes e dos rochedos da praia. Mas verem-se reduzidos a alimentar-se de aves aquáticas seria triste. Era necessário, portanto, saber quanto tempo podiam durar as provisões da escuna, governando-as cuidadosamente.

      Ora, exceptuando a bolacha, da qual havia uma porção considerável, conservas, presunto, pastéis de carne – feitos de farinha de primeira qualidade, carne de porco picada e pão-de-ló-, corn-beef, peixe salgado, caixas de temperos, tudo isto não podia durar mais de dois meses, ainda que se economizasse muito. Assim, combinou-se logo recorrer às produções do território, a fim de se conservarem as provisões para o caso de ser necessário transpor algumas centenas de milhas para atingir os portos do litoral ou as cidades do interior.

      - Deus queira que parte destas conservas não esteja estragada! - observou Baxter. - Se a água do mar penetrou no porão depois de encalharmos...

      - É o que vamos ver, abrindo as caixas que parecerem avariadas... - respondeu Gordon. - Talvez que, tornando a cozer o seu conteúdo, pudesse servir?...

      - Encarrego-me eu disso - declarou Moko.

      - E não te demores com o trabalho - tornou Briant -, porque, durante os primeiros dias, seremos obrigados a viver das provisões do Sloughi.

      - E por que razão - lembrou Wilcox - não se hão-de visitar já hoje as rochas que se elevam no norte da baía, e apanhar ovos bons para se comerem?

      - Sim!... Sim!... - apoiaram Costar e Dole.

      - E por que não se há-de pescar? - acrescentou Webb. – Pois não há linhas a bordo e peixe no mar? Quem quer vir à pesca?

      - Eu!... Eu!... - gritaram os pequenos.

      - Bom!... Bom!... - disse Briant. - Mas não se trata agora de brincar. Não damos linhas senão aos pescadores sérios!

      - Está descansado, Briant! - disse Iverson. - Faremos isto como uma obrigação...

      - Muito bem, mas comecemos por inventariar o que contém o nosso iate - propôs Gordon. - Não se deve pensar só na comida...

      - Podíamos ir sempre apanhando alguns moluscos para o almoço! - observou Service.

      - Pois sim! - respondeu Gordon. - Vão três ou quatro dos pequenos! Moko, hás-de acompanhá-los.

      - Sim, Sr. Gordon.

      - E toma muito sentido neles! - recomendou Briant.

      - Não tem dúvida, fique descansado!

      O grumete, com quem se podia contar, rapaz muito serviçal, muito destro, muito corajoso, devia prestar grandes serviços aos moços náufragos.

      Tinha uma dedicação particular por Briant, o qual, pela sua parte, não ocultava a simpatia que lhe inspirava Moko - simpatia de que os seus camaradas anglo-saxónicos decerto se envergonhariam.

      - Partamos! - exclamou Jenkins.

      - Não os acompanhas, Jaime? - perguntou Briant, dirigindo-se ao irmão.

      Jaime respondeu negativamente.

      Jenkins, Dole, Costar e Iverson partiram, conduzidos por Moko, e subiram ao longo dos recifes que o mar acabava de deixar a seco. Talvez nos interstícios das rochas pudessem apanhar uma boa provisão de moluscos, mexilhões, amêijoas, até ostras, e esses mariscos, cozidos ou crus, seriam uma parte valiosa do almoço. Iam saltando, alegres, vendo mais prazer do que utilidade nesta excursão. Era próprio da sua idade, e mal se recordavam dos perigos que tinham passado. Quanto aos do futuro, não pensavam neles.

      Logo que o pequeno rancho se afastou, os mais velhos foram começar as investigações a bordo do iate. Doniphan, Cross, Wilcox e Webb, por um lado, fizeram o recenseamento das armas, das munições, da roupa de vestir e de cama, das ferramentas e dos utensílios de bordo, enquanto Briant, Garnett, Baxter e Service estabeleciam a conta das bebidas, vinhos, cerveja, brandy, whisky, gin, encerradas no fundo do porão em barris de dez a quarenta galões de capacidade cada um. À medida que cada objecto era inventariado, Gordon assentava-o no seu caderno de algibeira. Este caderno estava, além disso, cheio de notas relativas à ordem e à carregação da escuna. O metódico americano - que fazia contas de nascença, pode-se dizer - possuía já um estado geral do material, e parecia que não era preciso mais do que verificá-lo.

      Primeiro, verificou-se que havia um jogo completo de velas de reserva e de aprestos de toda a espécie, filaça, estopa, cabos, espias, etc. Se o iate estivesse ainda em estado de navegar, não lhe faltava nada para o aparelhar inteiramente. Mas, se essas velas de primeira qualidade, esses cabos novos, não deviam tornar a servir para o aparelho do iate? Utilizar-se-iam quando se tratasse da instalação. Alguns utensílios de pesca, redes de mão e linhas de deitar ou de arrastar figuravam também no inventário. Estes objectos eram preciosos, por pouco que o peixe abundasse naquelas paragens.

      Pelo que respeita a armas, eis o que foi assente no caderno de Gordon: oito espingardas de caça, de percussão central, uma de reparo, de grande alcance, e uma dúzia de revólveres. Quanto a munições, contaram trezentos cartuchos de metal para as armas de carregar. pela culatra, dois tonéis de pólvora de vinte e cinco libras cada um e bastante quantidade de chumbo, granalha e balas. Estas munições, destinadas às caçadas durante as paragens do Sloughi nas costas da Nova Zelândia, empregar-se-iam mais utilmente nesta costa para prover à vida comum - e permitisse o Céu que não fosse para a defender! O paiol continha também uma certa quantidade de foguetes, destinados às comunicações nocturnas, uns trinta cartuchos e projécteis para o municiamento de dois pequenos canhões do iate, dos quais era de esperar que não se faria uso para repelir um ataque de indígenas.

      Quanto aos objectos de toilette e utensílios de cozinha, eram suficientes para as necessidades dos jovens náufragos - mesmo no caso de prolongarem a sua residência ali. Apesar de uma parte da baixela se ter quebrado com o choque do Sloughi contra os recifes, ficara bastante para o serviço da mesa e da copa. Mesmo esses objectos não eram de necessidade absoluta. Seria melhor que a roupa de flanela, de pano, de algodão ou de linho fosse em quantidade suficiente para se poder mudar dela segundo as exigências dos climas. Com efeito, se aquela terra se achava na mesma latitude que a Nova Zelândia - o que era possível, porque, desde a sua partida de Auckland, a escuna fora sempre impelida pelo vento de oeste -, deviam-se esperar grandes frios durante o Inverno. Felizmente, a bordo havia fartura de roupas, que são indispensáveis para uma excursão de muitas semanas, porque a roupa nunca é de mais no mar. Além disso, os cofres da tripulação forneceram calças, camisolas de lã, capotes de oleado, mantas espessas, que seria fácil adaptar ao corpo dos grandes e dos pequenos - o que lhes permitiria afrontar os rigores da estação invernal. É inútil dizer que, se as circunstâncias os obrigassem a abandonar a escuna, para irem instalar-se em um lugar mais seguro, cada um levaria a sua roupa de cama completa, pois os catres estavam bem fornecidos de cobertores, de lençóis, de almofadas, de cobertas, e, tendo cuidado neles, esses objectos podiam durar muito tempo...

      Muito tempo!... Palavras que poderiam, talvez, dizer sempre!

      Aqui está agora o que Gordon assentou no seu caderno no artigo dos instrumentos de bordo: dois barómetros aneróides, um termómetro centígrado de espírito de vinho, dois relógios marítimos, muitas dessas trombetas ou cornetas de cobre, que servem quando há nevoeiros, e que se fazem ouvir a grandes distâncias, três óculos de pequeno e de grande alcance, uma bússola de bitácula e outras duas de modelo reduzido, um storm-glass para indicar a aproximação das tempestades e, finalmente, uns poucos de pavilhões do Reino Unido, sem falar em toda a série de pavilhões que permitem a comunicação, no mar, de um navio para o outro. Havia também um desses halketts-boats, canoazinhas de borracha que se dobram como uma mala e servem para atravessar um rio ou um lago.

      Quanto às ferramentas, o cofre do serralheiro continha um bom sortimento delas, não contando os sacos de pregos, de parafusos e de roscas, ferragens de toda a espécie para os pequenos consertos do iate. Também não faltavam botões, linhas e agulhas, porque, prevendo rasgões frequentes, as mães das crianças tinham tomado as suas precauções. Não estavam em risco de se verem privados de lume: com uma farta provisão de fósforos, as iscas e as pederneiras seriam suficientes durante muito tempo; podiam estar descansados a este respeito.

      A bordo havia também mapas em grande escala, mas eram relativos às costas do arquipélago neozelandês - inúteis, por consequência, nestas paragens desconhecidas.

      Felizmente, Gordon trouxera um desses atlas gerais que compreendem a geografia do Antigo e do Novo Mundo, e precisamente o Atlas de Stieler, que parece ser o que a geografia moderna conta de mais perfeito neste género. Além disto, a biblioteca do iate possuía um certo número de obras de bons autores ingleses e franceses, principalmente narrações de viagens, e alguns livros de ciência, não esquecendo os dois famosos Robinsons que Service salvou, como outrora Camões salvou os seus Lusíadas - e como Garnett, pela sua parte, conservou o famoso acordeão, que escapou são e salvo dos choques do Sloughi. Finalmente, além do necessário para ler, havia também o necessário para escrever, penas, lápis, tinta, papel, e também um calendário do ano de 1860, ficando Baxter encarregado de acompanhar sucessivamente cada dia decorrido.

      - Foi a 10 de Março - disse ele - que o nosso pobre Sloughi foi arremessado à costa!... Risco, pois, este 10 de Março, assim como todos os dias de 1860 que o precederam.

      Deve-se mencionar também uma soma de quinhentas libras em ouro que foi encontrada no cofre forte do iate. Talvez esse dinheiro fosse de muita utilidade se os pequenos náufragos conseguissem chegar a algum porto, onde poderiam obter os meios de regressar à sua pátria.

      Gordon tratou então de verificar minuciosamente a conta dos barris guardados no porão. Muitos desses barris, cheios de gin, de cerveja ou de vinhos, tinham-se arrombado durante o arrastar contra os recifes, e o seu conteúdo entornara-se pelas tábuas desconjuntadas. Era uma perda irreparável, e tornava-se necessário economizar o resto tanto quanto fosse possível.

      Enfim, no porão da escuna havia ainda cem galões (O galão inglês vale aproximadamente quatro litros e meio) de Bordéus e de sherry, cinquenta galões de gin, de brandy e de whisky, e quarenta tonéis de cerveja, de vinte e cinco galões de capacidade cada um -, e mais uns trinta frascos de licores diversos, os quais, bem embrulhados na sua camisa de palha, tinham podido resistir ao choque dos recifes.

      Assim, durante um certo tempo, pelo menos, os quinze náufragos do Sloughi podiam estar tranquilos pelo que dizia respeito à vida material. Restava ver se o território fornecia alguns recursos que lhes permitissem economizar as reservas. Realmente, se a tempestade os tinha lançado a uma ilha, não podiam esperar sair dela, a não ser que aparecesse algum navio naquelas paragens, e pudessem dar-lhe a conhecer a sua presença.

      Consertar o iate, restabelecer o cavername estalado no fundo, fazer cintas novas, isso exigia um trabalho superior às forças deles e o emprego de ferramentas que não tinham à sua disposição. Quanto a construir uma embarcação nova com os destroços da antiga, não podiam pensar em tal, e, além disso, não estando ao facto das coisas de navegação, como poderiam atravessar o Pacífico a fim de alcançarem a Nova Zelândia?

      Entretanto, com as embarcações da escuna, não seria possível chegar a algum outro continente, a alguma outra ilha, se os houvesse a pouca distância naquela parte do Pacífico? Mas as duas canoas tinham sido arrebatadas pelas ondas, e a bordo já não havia senão a mais pequena de todas, que podia servir, quando muito, para navegar ao longo da costa.

      Perto do meio-dia, os pequenos, guiados por Moko, voltaram para o Sloughi. Tinham-se tornado verdadeiramente úteis, tomando o trabalho a sério. Por isso traziam uma boa provisão de mariscos, que o grumete tratou de arranjar. Quanto aos ovos, devia havê-los em grande quantidade, pois Moko verificara a presença de inumeráveis pombos bravos de espécie comestível, os quais tinham ninho nas altas cavidades dos rochedos.

      - Sim? - disse Briant. - Pois, uma manhã destas, havemos de organizar uma caçada, que talvez seja muito proveitosa!

      - Com certeza - respondeu Moko -, três ou quatro tiros de espingarda dar-nos-ão desses pombos às dúzias. A respeito dos ninhos, içando-nos por uma corda talvez não seja difícil apanhá-los.

      - Está dito - disse Gordon. - Entretanto, se Doniphan quiser começar a caçada amanhã?

      - Não quero outra coisa! - replicou Doniphan. - Webb, Cross e Wilcox vêm comigo, não é verdade?...

      - Decerto - responderam os três rapazes, encantados por poderem atacar os milhares de voláteis.

      - Mas - observou Briant - recomendo-lhes que não matem muitos pombos! Podemos recorrer a eles quando precisarmos. O que é importante é não desperdiçar inutilmente o chumbo e a pólvora.

      - Bem!... Bem!... - respondeu Doniphan, que não suportava observações, sobretudo quando partiam de Briant. - Não é o primeiro tiro que damos, e dispensamos os conselhos!

      Uma hora depois, veio Moko anunciar que o almoço estava pronto. Todos entraram apressadamente a bordo da escuna e tomaram lugar na sala de jantar. Em consequência da deformação do iate, a mesa inclinava-se sensivelmente para bombordo. Mas isso não era coisa que incomodasse rapazes acostumados aos balanços do navio. Os mariscos, principalmente os mexilhões, agradaram muito; todos os pequenos os acharam excelentes, posto que o tempero deixasse muito a desejar. Mas, naquela idade, não é o apetite o melhor condimento? Bolacha, uma boa porção de corn-beef, água fresca, tirada da embocadura do rio na ocasião da baixa-mar, a fim de não ter o gosto a sal, tudo isto, adicionado com algumas gotas de brandy, constituiu uma refeição muito aceitável.

      A tarde foi empregada em diversos trabalhos no porão e em separar os objectos que tinham sido inventariados. Durante esse tempo, Jenkins e os seus camaradas pequenos entretinham-se a pescar no rio, onde abundavam peixes de diferentes espécies. Em seguida, depois da ceia, foram todos descansar, à excepção de Baxter e de Wilcox, que deviam ficar de vigia até pela manhã.

      Assim se passou a primeira noite naquela terra do oceano Pacífico.

      Enfim, os quinze rapazes não estavam desprovidos dos recursos que muitas vezes faltam aos náufragos em paragens desertas! No estado em que eles se achavam, homens válidos e industriosos tinham muitas probabilidades de tornar a sua situação menos má. Mas eles, tendo o mais velho apenas catorze anos, se fossem condenados a ficar muitos anos nestas condições, conseguiriam prover às necessidades da sua existência?... Havia razão para duvidar!

     

      Ilha ou continente, eis a grande questão que preocupava sempre Briant, Gordon e Doniphan, cujos caracteres e inteligências os tornavam verdadeiramente chefes do rancho. Pensando no futuro, quando os mais novos não cuidavam senão do presente, conversavam muitas vezes a esse respeito. Em todo o caso, aquela terra, fosse insular ou continental, era evidente que não pertencia à zona dos trópicos. Conhecia-se isso pela vegetação, carvalhos, faias, bétulas, amieiros, pinheiros de diferentes espécies, mirtáceas ou saxífragas numerosas, que não são as árvores ou os arbustos espalhados nas regiões centrais do Pacífico. Parecia mesmo que aquele território devia estar um pouco mais alto em latitude que a Nova Zelândia, e, por consequência, mais próximo do pólo austral. Portanto, era de recear que os Invernos fossem ali muito rigorosos. Agora mesmo, já um espesso tapete de folhas secas cobria o solo no bosque que se estendia ao pé dos rochedos. Só os pinheiros tinham conservado os seus ramos, que se renovam todas as estações, sem se despojarem nunca.

      - Eis o motivo - observou Gordon, no dia seguinte àquele em que o Sloughi tinha sido transformado em habitação sedentária - por que me parece prudente não nos instalarmos definitivamente nesta parte da costa.

      - É também a minha opinião - respondeu Doniphan. – Se esperarmos pelo mau tempo, será demasiado tarde para atingirmos algum lugar habitado, por poucas centenas de milhas que tenhamos de percorrer!

      - Paciência! - replicou Briant. - Estamos ainda em meados do mês de Março!

      - Pois sim - tornou Doniphan -, o bom tempo pode durar até ao fim de Abril, e em seis semanas percorre-se muito caminho...

      - Quando o há - replicou Briant.

      - E porque não há-de haver?

      - Decerto! - respondeu Gordon. - Mas, havendo um, sabemos aonde ele nos conduz?

      - Não sei senão uma coisa - replicou Doniphan -  é que seria absurdo não deixar a escuna antes de chegar a estação do frio e da chuva, e para isso é preciso não ver dificuldades a cada passo!

      - É melhor vê-las - tornou Briant - do que aventurarmo-nos como doidos através de um país que não conhecemos...

      - És muito pronto - respondeu Doniphan, com azedume – em chamar doidos aos que não aprovam as tuas ideias!

        A resposta de Doniphan ia, talvez, provocar algumas palavras desagradáveis do seu camarada e fazer degenerar a conversa em desordem, quando Gordon interveio.

      - Não serve de nada questionar - afirmou ele - e para resolvermos as dificuldades é preciso começar por nos entendermos. Doniphan tem razão em dizer que, se estamos perto de um país habitado, é necessário procurar chegar lá sem demora. Mas será isso possível? É a resposta de Briant, que também tem razão respondendo assim!

      - Que diabo, Gordon! - replicou Doniphan. - Subindo para o norte, descendo para  o sul, dirigindo-nos para leste, por força que havemos de chegar...

      - Sim, se estivermos num continente - objectou Briant -, mas se estivermos numa ilha e se essa ilha for deserta?

      - É por isso - respondeu Gordon - que convém reconhecer o que é. Quanto a abandonar o Sloughi, sem nos certificarmos se existe ou não um mar para leste...

      - Se o não abandonarmos, seremos abandonados por ele! - exclamou Doniphan, sempre obstinado nas suas ideias. – Não poderá resistir ao mau tempo nesta praia!

      - Tens razão - respondeu Gordon -; não obstante, antes de nos aventurarmos no interior, é indispensável saber aonde vamos!

        Gordon tinha tanta razão no que dizia que Doniphan foi obrigado a calar-se, com vontade ou sem ela.

      - Eu estou pronto a ir à descoberta - declarou Briant.

      - Também eu - ajuntou Doniphan.

      - Todos nós o estamos - acrescentou Gordon -, mas, como seria imprudente levar os pequenos para uma exploração que pode ser longa e penosa, basta que vão dois ou três dos maiores, creio eu.

      - É pena - observou Briant - que não haja uma colina elevada, do alto da qual pudéssemos ver o território. Infelizmente, estamos numa terra baixa, e, de longe, não vi uma única montanha, mesmo no horizonte. Parece que não há elevações além dos rochedos que se erguem por trás da praia. Para lá decerto que há florestas, planícies, pântanos, pelo meio dos quais corre o rio cuja embocadura explorámos.

      - Contudo, era útil reconhecer este território – ponderou Gordon -, antes de dar a volta em torno dos rochedos onde Briant e eu procurámos debalde uma caverna!

      - Não podemos dirigir-nos para o norte da baía? – perguntou Briant. - Parece-me que, subindo ao cabo que a termina, se veria ao longe...

      - Também estava pensando isso - respondeu Gordon.

      - Sim! esse cabo, que pode ter duzentos e cinquenta a trezentos pés, deve dominar os rochedos.

      - Ofereço-me para ir lá - disse Briant.

      - Para quê? - respondeu Doniphan. - Que se pode ver lá de cima?

      - O quê?... O que há! - replicou Briant.

      Efectivamente, na extremidade da baía erguia-se um montão de rochas, uma espécie de outeiro, cortado a prumo, e que, do outro lado, parecia reunir-se aos rochedos. A distância entre o Sloughi e este promontório não excedia sete ou oito milhas, seguindo a curvatura da praia, e cinco, quando muito, a voo de abelha, como dizem os americanos. Ora Gordon não devia errar muito calculando em trezentos pés a altura do promontório acima do nível do mar.

      Esta altitude seria suficiente para a vista poder abranger bem o território? Não se apresentaria, para leste, algum obstáculo que impedisse o olhar de percorrer todo o país? Em todo o caso, sempre se veria o que havia para além do cabo, isto é, se a costa se prolongava indefinidamente para o norte, ou se era envolvida pelo oceano. Portanto, era conveniente ir até à extremidade da baía, e fazer esta ascensão. Por pouco território que se descobrisse para leste, a vista devia abranger uma extensão de muitas milhas.

      Ficou decidido que o projecto seria posto em execução.

      Posto que Doniphan não visse grande utilidade nele – sem dúvida por causa de ser uma ideia apresentada por Briant – os outros rapazes esperavam que desse resultados excelentes.

      Ao mesmo tempo, resolveu-se seriamente não abandonar o Sloughi enquanto não se soubesse com certeza se estava ou não encalhado no litoral de um continente - o qual não podia pertencer senão ao continente americano.

      Contudo, a excursão não pôde ser empreendida durante os cinco dias que se seguiram. O tempo estava outra vez brusco, e, de quando em quando, caía uma chuva miudinha. Se o vento não mostrasse tendências para aumentar, os vapores que obscureciam o horizonte tornariam inútil a excursão projectada.

      Estes cinco dias não se passaram sem fazer nada. Foram empregados em trabalhos diversos. Briant tratava das crianças, vigiando-as continuamente, como se fosse uma necessidade da sua natureza prodigalizar essa afeição paternal. A sua preocupação constante era trazê-las tão bem tratadas quanto as circunstâncias o permitiam. Por isso, como a temperatura parecia querer baixar, obrigou-as a vestir um fato mais quente, arranjando para o corpo delas a roupa que estava nas caixas dos marinheiros. Foi um trabalho de alfaiate, em que a tesoura trabalhou mais do que a agulha, e para o qual Moko, que sabia coser, na sua qualidade de grumete para todo o serviço, mostrou muita habilidade.

      Dizer que Costar, Dole, Jenkins e Iverson ficaram elegantemente vestidos com aquelas calças e aquelas camisolas muito largas, mas com as pernas e as mangas diminuídas em excesso, seria faltar à verdade. Pouco importava! Não sentiam frio, podiam mexer-se bem, e depressa se acostumaram ao seu vestuário.

      Os pequenos também não estavam ociosos. Vigiados por Baxter ou por Garnett, iam todos os dias apanhar mariscos, ou pescar com redes ou linhas no leito do rio, o que era divertimento para eles e proveito para todos. Entretidos assim com um trabalho que lhes agradava, não pensavam na sua situação, cuja gravidade não poderiam compreender. É verdade que a lembrança da família os entristecia, como entristecia os seus camaradas. Mas a ideia de que nunca mais tornariam a vê-la talvez nunca lhes ocorresse!

      Quanto a Gordon e a Briant, não deixavam quase nunca o Sloughi e faziam-lhe os consertos que podiam. Service também os acompanhava algumas vezes, e, sempre jovial, era ao mesmo tempo muito útil. Gostava de Briant e nunca pertencera ao grupo dos seus camaradas que faziam sociedade com Doniphan. Por isso, Briant era-lhe muito afeiçoado.

      - Vamos, isto não vai mal! - repetia muitas vezes Service. - Realmente o nosso Sloughi foi deposto na praia muito a propósito por uma onda condescendente, que não o prejudicou muito!... Aqui está uma fortuna que nem o Robinson Crusoe nem o Robinson Suíço tiveram na sua ilha imaginária!

      E Jaime Briant? Se ajudava seu irmão nos diversos trabalhos de bordo, Jaime mal respondia às perguntas que lhe faziam e apressava-se em desviar os olhos quando o fitavam.

      Briant não deixava de se inquietar seriamente com esta mudança de Jaime. Como era mais velho do que ele quatro anos, exercera sempre no seu espírito uma Influência real. Ora, depois da partida da escuna, como já se tem notado, Jaime parecia uma criança cheia de remorsos. Teria cometido alguma falta grave - falta que não se atrevia a confessar, nem mesmo a seu irmão? O que é certo é que mais de uma vez os seus olhos vermelhos davam bem a conhecer que tinha chorado.

      Briant chegou a recear que a saúde de Jaime estivesse alterada. Se o pobre pequeno adoecesse, como seria tratado? Que cuidados poderiam restituir-lhe a saúde? Isto inquietava-o muito e obrigava a interrogar seu irmão sobre o que sentia, mas este nunca respondia senão:

      - Não tenho nada... Não. Não... não tenho nada!

      E não era possível obter-lhe outra resposta.

      Durante o tempo que decorreu entre 11 e 15 de Março, Doniphan, Wilcox, Webb e Cross andaram caçando os pássaros que tinham ninhos nas rochas. Andavam sempre juntos e procuravam, visivelmente, fazer rancho à parte. Gordon não via isto sem inquietação. Logo que se apresentava ocasião, intervinha junto de uns e de outros, diligenciando fazer-lhes compreender que a união era necessária. Mas Doniphan, sobretudo, respondia com tanta aspereza aos seus conselhos que ele achava prudente não insistir.

      Contudo, não perdia a esperança de destruir estes germes de dissidência, que podiam tornar-se tão funestos, e, além disso, talvez os factos trouxessem uma reconciliação que os seus conselhos não podiam obter.

      Durante esses dias de nevoeiro, que impediram a excursão projectada ao norte da baía, as caçadas foram muito frutuosas. Doniphan, apaixonado pelos exercícios do desporto, era realmente muito hábil em manejar a espingarda. Extremamente orgulhoso com a sua habilidade - mesmo mais do que era suportável -, mostrava um desdém profundo pelos outros utensílios de caça, tais como laços ou redes, aos quais Wilcox dava a preferência. Assim, era provável que, nas circunstâncias em que se achavam os seus camaradas, este rapaz lhes prestasse maiores serviços do que ele. Webb atirava bem, mas sem pretender, de forma alguma, igualar Doniphan.

      Quanto a Cross, não tinha o fogo sagrado e contentava-se com aplaudir as façanhas de seu primo. Deve-se igualmente mencionar o cão “Phann”, que se distinguia nessas caçadas e não hesitava em lançar-se no meio das ondas para trazer a caça que caía para além dos recifes.

      É preciso confessar que, no número das peças mortas pelos pequenos caçadores, achavam-se muitas aves marinhas, das quais Moko não podia fazer nada: alcatrazes, gaivotas, guinchos, mergulhões.

      Em compensação, era grande a abundância de pombos de rocha, de gansos e de patos, cuja carne foi muito apreciada. Estes gansos eram de uma espécie particular, e, pela direcção que tomavam quando as detonações os faziam voar rapidamente, era de crer que habitassem o interior do país.

      Doniphan matou também alguns desses ostreiros que vivem geralmente de moluscos, de que são muito gulosos, tais como lapas, mexilhões, etc. Enfim, havia por onde escolher; mas essa caça exigia quase sempre uma certa preparação a fim de perder o sabor oleoso, e, apesar da sua boa vontade, Moko nem sempre se saía dessa dificuldade com satisfação geral. Contudo, não se podia ser exigente, segundo repetia muitas vezes o previdente Gordon, e era preciso economizar as conservas do iate, gastando à vontade a bolacha, da qual havia uma provisão abundante.

      Todos esperavam com impaciência que se fizesse a ascensão do cabo - ascensão que resolveria, talvez, a importante questão de ilha ou continente. Dessa questão dependia o futuro, e, por consequência, a instalação provisória ou definitiva naquela terra.

      No dia 15 de Março, o tempo pareceu tornar-se favorável à realização deste projecto. O céu libertara-se, durante a noite, dos espessos vapores que a calma dos dias precedentes tinha acumulado. O vento de terra tinha-os dissipado em algumas horas. Alguns raios de sol douraram a crista dos rochedos. Podia-se esperar que, à tarde, quando fosse iluminado obliquamente, o horizonte de leste aparecesse com a limpidez suficiente, e era esse horizonte que se tratava de observar. Se uma linha de água contínua se estendesse para esse lado, a terra era uma ilha, e não se podiam esperar socorros senão de algum navio que aparecesse naquelas paragens.

      Como já se disse, a ideia da excursão ao norte da baía partira de Briant, e este tinha resolvido empreendê-la só. É certo que não lhe desagradava ir na companhia de Gordon. Mas abandonar os seus camaradas, sem deixar este junto deles para os vigiar, inquietá-lo-ia muito.

      No dia 16, à noite, depois de se ter certificado de que  o barómetro marcava bom tempo fixo, Briant preveniu Gordon de que partiria no dia seguinte, ao alvorecer.

      Transpor uma distância de dez a onze milhas – compreendendo ida e volta - não era coisa que embaraçasse um rapaz vigoroso, que não olhava a fadigas. O dia inteiro bastar-lhe-ia, com certeza, para dar conta da sua exploração e Gordon podia esperar o seu regresso antes da noite.

      No dia seguinte, de madrugada, Briant partiu, sem ter comunicado aos outros a sua resolução. Levava apenas um cajado e um revólver, para o caso de encontrar algum animal feroz, posto que os caçadores não tivessem achado vestígios deles nas suas excursões precedentes.

      A estas armas defensivas juntara Briant um instrumento que devia facilitar-lhe o trabalho quando estivesse na ponta do promontório. Era um dos óculos do Sloughi - óculo de grande alcance e de uma clareza notável. Num saquinho preso à cintura, levava bolacha, um bocado de carne salgada, uma cabaça com algumas gotas de brandy, enfim, o suficiente para um almoço e, em caso de necessidade, para um jantar, se algum Incidente retardasse o seu regresso à escuna.

      Briant, caminhando a passos largos, seguiu primeiro o contorno da costa, cercado, no limite interior dos recifes, por longo cordão de limos, ainda húmidos das águas do mar. Depois de curta marcha, tinha passado o ponto extremo atingido por Doniphan e pelos seus companheiros, quando iam caçar os pombos da rocha. Estes voláteis não tinham nada a recear de Briant naquele momento. Ele não queria perder tempo, a fim de chegar o mais depressa possível ao cabo. O tempo estava claro, o céu inteiramente limpo de nevoeiro, era necessário aproveitar. Se, para a tarde, os vapores se acumulassem para os lados de leste, o resultado da exploração seria nulo.

      Durante a primeira hora, Briant pudera caminhar com bastante rapidez, e já tinha transposto metade do caminho. Se não se apresentasse algum obstáculo, contava chegar ao promontório antes das oito horas da manhã. Mas, à medida que os rochedos se aproximavam do banco de recifes, o solo da praia tornava-se mais áspero. A camada de areia diminuía tanto mais quanto os recifes ganhavam terreno. Em lugar do solo elástico e firme que se estendia entre o bosque e o mar, nas proximidades do rio, Briant foi obrigado a aventurar-se sobre rochas escorregadias, sargaças viscosas, no meio de charcos que era preciso atravessar, e de pedras vacilantes, que apresentavam ponto de apoio insuficiente. Isto deu em resultado uma marcha muito penosa e - o que era ainda pior - um atraso de duas horas.

      - O principal é chegar ao cabo antes que a maré encha! - dizia Briant. - Esta parte da praia foi coberta pela última preia-mar, e a que vier agora cobri-la-á, decerto, até à base dos rochedos. Se for obrigado a retroceder ou a refugiar-me sobre alguma rocha, chegarei demasiado tarde! Vejamos, pois, se é possível passar, a todo o custo, antes que as ondas tenham invadido a praia!

      E o corajoso rapaz, não querendo ceder à fadiga que começava a tolher-lhe os membros, procurou tomar o caminho mais curto. Em muitos sítios teve de descalçar as botas e as meias, a fim de atravessar grandes lagos com água até ao meio da perna; depois, quando se achava à superfície dos cachopos, aventurava-se a caminhar sobre eles, não sem se expor a algumas quedas, que não pôde evitar senão à força de destreza e de agilidade.

      Como o nosso explorador teve ocasião de ver, era precisamente naquela parte da baía que havia mais abundância de caça aquática. Os pombos, os ostreiros e os patos eram aos milhares. Dois ou três casais de focas descansavam nas pontas dos recifes, sem darem mostras de susto e sem procurarem esconder-se debaixo da água: Podia-se concluir daqui que, se estes anfíbios não desconfiavam do homem, é porque julgavam nada ter a recear dele, e, portanto, havia muitos anos, pelo menos, que nenhum pescador vinha dar-lhes caça.

      Entretanto, reflectindo bem, Briant concluiu, da presença de focas, que a costa devia ser mais elevada em latitude do que ele pensara, mais meridional, por consequência, do que o arquipélago neozelandês. Portanto, a escuna devia ter inclinado notavelmente para o sueste durante a sua travessia do Pacífico. E isto pareceu confirmar-se ainda mais quando Briant, chegando finalmente ao promontório, distinguiu um bando de patos marinhos, hóspedes habituais dessas paragens antárcticas. Esvoaçavam aos centos, agitando pesadamente as asas, que lhes servem mais para nadar do que para voar. Contudo, não podia fazer nada dele, porque a sua carne tem sabor a ranço e é oleosa.

      Eram dez horas da manhã. Vê-se o tempo que Briant levou a percorrer as últimas milhas. Extenuado, cheio de fome, pareceu-lhe conveniente restaurar as  forças antes de tentar a ascensão do promontório, cujo cimo se elevava a trezentos pés acima do nível do mar:

      Briant sentou-se, pois, numa rocha, ao abrigo da maré, que já chegava ao banco dos recifes. Com certeza que uma hora mais tarde não teria podido passar entre os cachopos e a parte mais baixa dos rochedos, sem se arriscar a ser envolvido pelo fluxo. Mas isso agora já não o inquietava, e, à tarde, quando a vazante levasse toda essa água para o mar, acharia outra vez a passagem livre.

      Um bom pedaço de carne, alguns golos de brandy, não era preciso mais para lhe saciar a fome e a sede, enquanto alguns momentos de descanso lhe restabeleciam as forças. Enquanto comia, ia reflectindo. Só, longe dos seus camaradas, procurava encarar friamente a situação, decidido a prosseguir até ao fim a obra de salvação comum, tomando nela a maior parte. Se a atitude de Doniphan e de alguns outros, a seu respeito, não deixava de o preocupar, é porque via nisso o prenúncio de uma desunião muito desagradável. Estava resolvido, contudo, a opor uma resistência absoluta a qualquer acto que lhe parecesse dever arriscar os seus companheiros: Pensava também em seu irmão Jaime cujas maneiras lhe inspiravam sérios cuidados.  Parecia-lhe que esta criança ocultava alguma falta que tinha cometido - provavelmente antes da partida - e prometia a si mesmo instar tanto com ele a este respeito que Jaime seria obrigado a responder-lhe.

      Briant deixou-se estar a descansar durante uma hora, a fim de recuperar todas as suas forças. Levantou então o saco, atirou-o para os ombros e começou a trepar as primeiras rochas.

      O promontório, situado mesmo na extremidade da baía e terminado por uma ponta aguda, apresentava uma formação geológica muito singular. Dir-se-ia uma cristalização de origem ígnea, que tivesse sido formada pela acção das forças plutónicas. Este cabeço, ao contrário do que parecia visto de longe, não estava ligado aos rochedos.

      Além disso, diferia absolutamente deles pela sua natureza, pois era composto de rochas graníticas, em vez dessas estratificações calcárias, semelhantes às que cercam a Mancha, no oeste da Europa.

      Isto foi o que Briant pôde observar, e notou também que o promontório era separado dos rochedos por um canal estreito. Adiante, para o lado do norte, a praia estendia-se a perder de vista. Mas, enfim, visto o cabeço dominar as alturas a uma centena de pés, pouco mais ou menos, a vista poderia abranger uma grande extensão de território. Era o mais importante.

      A ascensão foi muito difícil. Era preciso içar-se de uma rocha para a outra - rochas tão altas, às vezes, que Briant não alcançava a borda superior senão com muita dificuldade. Contudo, como ele pertencia a essa categoria de crianças que se poderia classificar na ordem dos trepadores, como sempre mostrara, desde muito pequeno, uma predilecção extraordinária pelas escaladas, como adquirira nelas uma audácia, uma agilidade e uma destreza pouco vulgares, conseguiu pôr os pés no cume, depois de ter evitado mais de uma queda que poderia ser mortal.

      A primeira coisa que fez foi levar o óculo aos olhos e dirigir estes para leste.

      A região era plana até onde a vista podia alcançar. Os rochedos constituíam a sua principal elevação e o seu planalto baixava ligeiramente para o interior. Para diante, o solo apresentava algumas tumescências, que não modificavam sensivelmente o aspecto do país. Nessa direcção cobriam-no vastas florestas, ocultando debaixo dos seus maciços, amarelados pelo Outono, o leito dos rios que deviam espraiar-se para o litoral. Era uma superfície plana até ao horizonte, cuja distância podia ser calculada em uma dezena de milhas. Daquele lado, o território parecia não ser cercado pelo mar, e, para se saber com certeza se era um continente ou uma ilha, era preciso organizar uma excursão mais longa na direcção de oeste.

      Efectivamente, para o norte, Briant não distinguia a extremidade do litoral desenvolvido em uma linha recta de sete a oito milhas. Em seguida, para além de um novo cabo muito alongado, esse litoral tornava-se côncavo, formando uma imensa praia arenosa, que dava ideia de um vasto deserto.

      Para o sul, atrás do outro cabo adelgaçado na extremidade da baía, a costa corria de nordeste para sudeste, limitando um vasto pântano, que contrastava com as praias desertas do norte.

      Briant percorrera atentamente, com a objectiva do seu óculo, todos os pontos daquele grande perímetro. Estava numa ilha, estava num continente?... Não poderia dizê-lo. Em todo o caso, se era uma ilha, tinha uma grande extensão: eis tudo o que podia afirmar.

      Voltou-se então para o lado de oeste. O mar resplandecia sob os raios oblíquos do Sol, que declinava lentamente para o horizonte.

      De repente, Briant, levando o óculo aos olhos com vivacidade, dirigiu-o para a linha extrema do largo.

      - Navios... - exclamou ele - navios que passam!

      Efectivamente, na periferia das águas cintilantes apareciam três pontos negros, a uma distância que não poderia ser inferior a quinze milhas.

      Que perturbação se apoderou de Briant! Seria vítima de uma ilusão? Estaria realmente vendo três navios?

      Briant baixou o óculo, limpou-lhe a ocular, que o seu hálito embaciara, olhou novamente...

      Na verdade, aqueles três pontos pareciam mesmo ser navios, dos quais se distinguissem apenas os cascos. Quanto à mastreação, não se via nenhuma, e não se distinguia fumo que indicasse serem steamers em movimento.

      Briant pensou então que, se fossem navios, estavam tão distantes que os seus sinais não podiam ser distinguidos. Ora, como era muito admissível que os seus camaradas não tivessem visto aquelas embarcações, o melhor era voltar quanto antes para o Sloughi, a fim de acender uma grande fogueira na praia, e então... depois do sol-posto...

      Sempre reflectindo, Briant não deixava de observar os três pontos negros. Qual foi, porém, o seu desapontamento quando reconheceu que não mudavam de lugar!

      Assestou novamente o óculo e durante cinco minutos conservou-se no campo da objectiva... Não tardou em reconhecê-lo: eram três ilhotas pequenas, situadas a oeste do litoral, próximo das quais a escuna devia ter passado quando a tempestade a arrastava para a costa, mas que tinham ficado Invisíveis no meio do nevoeiro.

      A decepção foi grande!

      Eram duas horas. O mar começava a retirar-se, deixando a descoberto o cordão de recifes do lado dos rochedos. Briant, achando que era tempo de voltar para o Sloughi, preparou-se para descer do promontório.

      Contudo, quis percorrer ainda uma vez o horizonte de leste. Em consequência da oposição oblíqua do Sol, talvez distinguisse algum outro ponto do território que não tivesse podido ver até àquele momento.

      Dirigiu, pois, o olhar para esse lado com uma atenção minuciosa, e não teve de se arrepender desse cuidado.

      Efectivamente, no ponto mais distante que a sua vista podia alcançar, para diante do último maciço de verdura, distinguiu perfeitamente uma linha azulada, que se prolongava do norte para o sul, em uma extensão de muitas milhas, e cujas extremidades se perdiam atrás da massa confusa do arvoredo.

      - O que será? - disse ele.

        Tornou a olhar com mais atenção ainda.

      - O mar!... Sim! É o mar!

      E quase que deixou cair o óculo das mãos.

      Se o mar se estendia para leste, já não havia que duvidar!

      Não era num continente que o Sloughi estava encalhado, era numa ilha, uma ilha isolada naquela imensidade do Pacífico, uma ilha da qual era impossível sair!...

      E todos os perigos se apresentaram então como uma visão rápida ao espírito do moço náufrago. O seu coração oprimia-se, a ponto de não o sentir bater!... Mas, resistindo a essa fraqueza involuntária, compreendeu que não devia entregar-se ao desespero, por muito assustador que fosse o futuro!

      Um quarto de hora depois, Briant estava na praia e, tomando o caminho que seguira pela manhã, antes das cinco horas chegava ao Sloughi, onde os seus camaradas esperavam com impaciência o seu regresso!

     

      Nessa mesma noite, depois da ceia, Briant comunicou aos mais velhos o resultado da sua exploração. Esta resumia-se no seguinte: na direcção de leste, para além da zona das florestas, distinguira visivelmente uma linha de água que se desenhava do norte ao sul. Era um horizonte de mar, não podia haver dúvida a esse respeito.

      Portanto, era numa ilha e não num continente que o Sloughi encalhara com tanta infelicidade!

      Gordon e os outros receberam com grande comoção as primeiras palavras do seu camarada. O quê! estavam numa ilha, e faltavam-lhes todos os meios para saírem dela! Era preciso, então, renunciar ao projecto que tinham formado de ir procurar, para leste, o caminho que os levasse a um continente! Estavam reduzidos a esperar a passagem de algum navio que se avistasse da costa! Era, então, certo ser essa a única probabilidade de salvação que lhes restava?...

      - Mas talvez Briant se enganasse na sua observação – sugeriu Doniphan.

      - Efectivamente, Briant - acrescentou Cross -, o que te pareceu mar não podia ser muito bem uma barra de nuvens?

      - Não - respondeu Briant -, tenho a certeza de que não me enganei! O que eu vi a leste era uma linha de água que se arredondava no horizonte!

      - A que distância?... - perguntou Webb.

      - A seis milhas do cabo, pouco mais ou menos.

      - E para diante - insistiu Webb -, não havia montanhas ou terras elevadas?

      - Não!... não havia nada!

      Briant falava com tanta certeza que não seria razoável conservar a mínima dúvida a este respeito.

      Contudo, como sucedia sempre que discutia com Briant, Doniphan continuou com a sua ideia.

      - E eu repito - teimou ele - que Briant pode ter-se enganado e, enquanto não tivermos visto com os nossos olhos...

      - E o que havemos de fazer - respondeu Gordon -, porque não se pode ficar nesta incerteza.

      - E eu acho que não temos um dia a perder - disse Baxter -, se quisermos partir antes do mau tempo, no caso de estarmos em um continente!

      - Amanhã, se o tempo o permitir - replicou Gordon -, empreenderemos uma excursão, que durará, decerto, muitos dias. Isto é, se estiver bom tempo, porque aventurarmo-nos através dessas florestas espessas do interior com o tempo mau seria a maior loucura.

      - Está dito, Gordon - concordou Briant -, e quando tivermos chegado ao litoral oposto da ilha...

      - Se for uma ilha!... - exclamou ainda Doniphan, encolhendo os ombros.

      - É, com certeza! - replicou Briant, com um gesto de impaciência. - Não estou enganado!... Distingui perfeitamente o mar na direcção de leste!... Doniphan gosta de me contradizer, segundo o seu costume...

      - Olha que não és infalível, Briant!

      - Não! Bem sei que não sou! Mas, desta vez, veremos se foi engano meu! Eu próprio irei reconhecer aquele mar, e, se Doniphan quiser acompanhar-me...

      - Quero, já se vê!...

      - E nós também! - exclamaram três ou quatro dos maiores.

      - Bem!... Bem!... - interveio Gordon. - Moderemo-nos, camaradas! Apesar de sermos uns pequenos, tratemos de proceder como homens! A nossa situação é grave e uma imprudência pode torná-la mais grave ainda. Não! Não devemos arriscar-nos todos através dessas florestas. Em primeiro lugar, os mais pequenos não podiam seguir-nos, e havíamos de deixá-los sós no Sloughi? Doniphan e Briant vão tentar a excursão, acompanhados por outros dois...

      - Eu! - disse Wilcox.

      - E eu! - disse Service.

      - Pois seja - anuiu Gordon. - Quatro, não é preciso mais. Se se demorarem muito, podem ir alguns ao seu encontro, enquanto os outros ficam na escuna. Não se esqueçam de que é aqui o nosso acampamento, a nossa casa, o nosso home, e não devemos abandoná-lo enquanto não tivermos a certeza de estarmos em um continente.

      - Estamos numa ilha! - assegurou Briant. - Afirmo-lhes que é uma ilha!...

      - Havemos de ver isso! - replicou Doniphan.

      Os bons conselhos de Gordon puseram fim à desinteligência entre os dois rapazes. Evidentemente - e Briant era o primeiro a reconhecê-lo -, era necessário fazer uma diversão através das florestas do centro a fim de atingir a linha de água avistada por ele. Além disso, admitindo que fosse efectivamente um mar que se estendesse para leste, não podia dar-se o caso de, nessa mesma direcção, haver outras ilhas, separadas unicamente por um canal que talvez se pudesse atravessar? Ora, se essas ilhas faziam parte de um arquipélago, se apareciam elevações no horizonte, não era isso o que se devia verificar antes de se tomar uma resolução da qual podia depender a salvação dos moços náufragos? O que era certo é que não havia nenhuma terra para oeste, desde aquela parte do Pacífico até às paragens da Nova Zelândia. Portanto, não podia haver probabilidade de chegar a um país habitado, senão procurando-o do lado onde o Sol nascia.

      Entretanto, não era prudente tentar esta exploração não estando o tempo bom. Assim como Gordon tinha dito, não deviam raciocinar nem proceder como crianças, mas sim como homens. Nas circunstâncias em que se achavam, perante as eventualidades ameaçadoras do futuro, se a inteligência dos rapazinhos não se desenvolvesse prematuramente, se a irreflexão, a inconsequência própria da sua idade não fosse reprimida, se, além disso, a desunião lavrasse entre eles, comprometer-se-ia absolutamente uma situação já muito crítica.

      Era por isso que Gordon estava resolvido a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance a fim de manter a ordem entre os seus camaradas.

      Contudo, apesar da pressa com que Briant e Doniphan tinham de começar a exploração, uma mudança de tempo obrigou-os a adiar a partida. Logo no dia seguinte, começou a cair, de quando em quando, uma chuva fria. O abaixamento contínuo do barómetro indicava um período de borrascas, cuja duração não se podia prever. Seria demasiado temerário aventurarem-se em tão más condições.

      Afinal, era o caso para lastimar? Não, decerto. Que todos - não falando nos pequenos - tivessem pressa de saber se o mar os cercava por todos os lados, compreende-se. Mas, mesmo que tivessem a certeza de estar num continente, haviam de lançar-se no interior de um país que não conheciam, e isto quando o mau tempo ia chegar? Se o caminho que tinham a percorrer fosse de centenas de milhas, poderiam eles suportar as fadigas? O mais vigoroso de entre eles teria força para chegar ao fim? Não! Para ter bom resultado, essa empresa devia

      ser adiada para a estação dos dias grandes, quando já não se receassem as intempéries do Inverno. Por consequência, era preciso resignarem-se a passar a estação dos frios no acampamento do Sloughi.

      Entretanto, Gordon procurava reconhecer em que parte do oceano naufragara a escuna. O Atlas de Stieler, que pertencia à biblioteca do iate, continha uma série de cartas do Pacífico. Ora, procurando fixar o caminho seguido desde Auckland até ao litoral da América, não se notava para o norte, para diante do grupo das Pomotu, senão a ilha da Páscoa e aquela ilha João Fernandes onde Selkirke - um Robinson verdadeiro - passara uma parte da existência. Ao sul, nem uma terra até aos espaços sem limites do oceano Antárctico. Para leste, não havia senão os arquipélagos das ilhas Chiloe ou da Madre de Deus, espalhados nas margens da Patagónia, e, mais para baixo, os do estreito de Magalhães e da Terra de Fogo, contra os quais vão despedaçar-se os terríveis mares do cabo Horn.

      Portanto, se a escuna tivesse sido arremessada a uma das ilhas desertas que confinam com os pampas patagónios, seria necessário percorrer centenas de milhas para chegar às províncias do Chile, da Prata ou da República Argentina.

      E que socorro se podia esperar no meio dessas imensas solidões, onde o viajante é ameaçado por perigos de toda a espécie?

      Em vista de tais eventualidades, convinha proceder com extrema prudência e não se arriscarem a morrer miseravelmente, aventurando-se através do desconhecido.

      Era isto que pensava Gordon. Briant e Baxter eram da mesma opinião. Doniphan e os outros acabariam por se convencer.

      O projecto de ir reconhecer o mar avistado a leste durava ainda. Mas, durante os quinze dias que se seguiram, foi impossível executá-lo. O tempo tornou-se abominável, dias chuvosos desde pela manhã até à noite, tempestades que se desencadeavam com uma violência assustadora. O caminho através das florestas devia estar impraticável. Foi, pois, necessário retardar a exploração, apesar de todos desejarem resolver essa importante questão.

      Durante esses dias de tempestade, Gordon e os seus camaradas conservaram-se a bordo, mas não estiveram desocupados. Sem falar nos cuidados que exigia o material, era preciso estar a reparar incessantemente as avarias do iate, que sofria muito com estas intempéries. A borda começava a abrir-se no lado mais alto, e o convés já não estava impermeável. Em alguns sítios, a chuva passava por entre as costuras; a estopa desfiava-se a pouco e pouco, e era preciso calafetá-las sem cessar.

      De modo que o mais urgente era procurar um abrigo menos incómodo. Admitindo que se pudesse subir para leste, não era possível fazê-lo antes de passarem cinco ou seis meses, e com certeza o Sloughi não durava até esse tempo. E, se fosse necessário abandoná-lo no meio do Inverno, onde se encontraria um refúgio, visto que o lado de trás dos rochedos, exposto a oeste, não apresentava nem uma anfractuosidade que pudesse ser utilizada? Era, portanto, para a encosta contrária, ao abrigo do vento do largo, que convinha empreender novas pesquisas, e, em caso de necessidade, construir uma habitação onde coubesse o rancho todo.

      Entretanto, a carregação estava dividida em pacotes assentes, por sua ordem, na carteira de Gordon, a fim de, num caso urgente, serem transportados com mais rapidez para debaixo das árvores.

      Quando o tempo abrandava durante algumas horas, Doniphan, Webb e Wilcox iam caçar os pombos bravos, que Moko tratava, com melhor ou pior êxito, de preparar de diferentes maneiras. Por outro lado, Garnett, Service e Cross, ajudados pelos mais pequenos, e às vezes por Jaime, quando o Irmão deste o exigia absolutamente, entregavam-se à pesca. Naquelas paragens piscosas, o que a baía dava com abundância, no meio dos limos agarrados aos primeiros recifes, era exemplares do género notolhenia e badejos de grandes dimensões. Entre as fileiras dos fucos gigantescos, desses kelps que chegam a ter quatrocentos pés de comprimento, agitava-se um número prodigioso de peixinhos que se podiam apanhar à mão.

      Os pequenos soltavam mil exclamações quando içavam as redes ou as linhas para a borda do banco de recifes.

      - Cá vêm!... Cá vêm!... - exclamava Jenkins. - Como são grandes!

      - E os meus... ainda são maiores do que os teus! – bradava Iverson, pedindo auxílio a Dole.

      - Ai! que vão fugir! - gritava Costar.

        E os outros corriam a ajudá-lo.

      - Cuidado!... Cuidado!... - repetiam Garnett e Service, dirigindo-se aos pequenos - e, sobretudo, levantem as redes depressa!

      - Mas é que não posso!... - repetia Costar, arrastado pelo peso do fardo.

        E todos, reunindo os seus esforços, conseguiram trazer as redes para a praia.

      Era tempo, porque, no meio das águas claras, havia bastante quantidade de hyxines, lampreias ferozes que devoravam facilmente o peixe preso nas malhas. Posto que deste modo se perdessem muitos, o resto era mais que suficiente para as necessidades da mesa. Os badejos, principalmente, forneciam uma carne excelente, quer se comessem frescos, quer se conservassem em sal.

      Quanto à pesca na embocadura do rio, não dava senão espécimes medíocres de alaxias, espécie de ruivacos, dos quais Moko se via obrigado a fazer fritadas.

      No dia 27 de Março, uma captura mais importante ocasionou um incidente bastante cómico.

      De tarde, tendo parado a chuva, os pequenos dirigiram-se para o rio com os utensílios de pesca.

      De repente, ouviram-se gritos - gritos de alegria, é verdade - e, contudo, os rapazinhos pediam socorro.

      Gordon, Briant, Service e Moko, que tinham ficado na escuna, largaram o trabalho e, lançando-se na direcção de onde vinham os gritos, percorreram num momento os quinhentos ou seiscentos passos que os separavam do rio.

      - Venham!... venham!... - exclamava Jenkins.

      - Venham ver Costar e o seu corcel! - Dizia Iverson.

      - Mais depressa, Briant, mais depressa, quando não ele foge-nos! - repetia Jenkins.

      - Basta!... Basta!... Quero descer!... Tenho medo!... - gritava Costar, fazendo gestos de desespero.

      - Upa!... Upa!... - gritava Dole, que tomara lugar atrás de Costar sobre uma massa em movimento.

      Esta massa era uma tartaruga de grandes dimensões, um desses enormes quelónios que se encontram, a maior parte das vezes dormindo, à superfície do mar. Desta vez, surpreendida na praia, diligenciava alcançar o seu elemento natural.

      Os pequenos, depois de lhe terem passado uma corda à roda do pescoço, que estava estendido fora da concha, esforçavam-se por conter o vigoroso animal. Este continuava a mover-se e, apesar de não caminhar com rapidez, avançava com uma força irresistível, arrastando consigo todo o bando. Por travessura, Jenkins tinha empoleirado Costar em cima da concha, e Dole, escarranchado atrás, amparava o rapazito, que não cessava de soltar gritos de terror, tanto mais agudos quanto mais a tartaruga se aproximava do mar.

      - Agarra-te bem!... Agarra-te bem!... Costar – recomendou Gordon.

      - E vê lá se o cavalo toma o freio nos dentes! – exclamou Service.

      Briant não pôde deixar de rir, porque o pequeno não corria o menor perigo. Logo que Dole o largasse, não precisava mais do que deixar-se escorregar, e não sofreria senão o susto.

      Mas o mais importante era capturar o animal. Era evidente que, mesmo que Briant e os outros juntassem os seus esforços aos dos pequenos, não conseguiriam detê-lo. Tratava-se, portanto, de achar o meio de lhe suspender a marcha, antes que desaparecesse debaixo das águas, onde estaria em segurança.

      Os revólveres de que Gordon e Briant se tinham munido ao deixar a escuna não podiam servir-lhes, porque a concha das tartarugas é à prova de bala, e, se a atacassem a golpes de machado, ela encolhia a cabeça e as patas de modo que não pudessem fazer-lhe mal.

      - Há apenas um meio - disse Gordon -: é deitá-la de costas!

      - E de que maneira? - perguntou Service. - Este animal pesa pelo menos, trezentos quilos, e não poderemos nunca...

      - Espeques!... Espeques!... - lembrou Briant.

      E, seguido por Moko, correu â toda a pressa para o Sloughi.

      Naquele momento, a tartaruga estava apenas a uns trinta passos do mar. Por isso, Gordon apressou-se em pôr no chão Costar e Dole, que estavam agarrados à concha. Em seguida, todos eles, apoderando-se da corda, puxaram-na o mais que puderam, sem conseguir deter a marcha do animal, que tinha força bastante para levar a reboque todo o Colégio Chairman.

      Felizmente, Briant e Moko voltaram antes que a tartaruga tivesse atingido o mar.

      Passaram-lhe então dois espeques por debaixo do esterno e, por meio dessas alavancas, conseguiram, não sem grandes esforços, virá-la de costas. Depois disto, estava definitivamente prisioneira, porque lhe era impossível tornar a pôr-se direita.

      Além disso, no momento em que ia encolher a cabeça, Briant acertou-lhe com o machado tão bem que ela perdeu a vida quase no mesmo instante.

      - Então, Costar, ainda tens medo deste enorme bicho? - perguntou Briant ao pequenito.

      - Agora não!... Já está morto...

      - Sim... - exclamou Service - mas aposto que não te atreves a comê-lo?

      - Pois isto come-se?

      - Come-se, sim!

      - Nesse caso comerei, se for bom! - retorquiu Costar, lambendo já os beiços.

      - É excelente - respondeu Moko, que não exagerava afirmando que a carne da tartaruga é muito delicada.

      Como não era possível transportar aquela massa até ao iate, foi necessário cortá-la em pedaços mesmo ali. Era muito repugnante, mas os pequenos náufragos começavam a habituar-se às necessidades, por vezes muito desagradáveis, daquela vida de Robinsons. O mais difícil foi quebrar a couraça, cuja dureza metálica embotaria o fio de um machado. Sempre se conseguiu, introduzindo uma tesoura nos interstícios das chapas. Em seguida, a carne, cortada em bocados, foi transportada para o Sloughi. E nesse dia todos puderam convencer-se de que o caldo de tartaruga era delicioso, sem falar nas fatias grelhadas, que foram devoradas com sofreguidão, apesar de Service as ter deixado queimar um pouco sobre as brasas demasiado ardentes. O próprio Phann deu a conhecer, a seu modo, que os restos do animal não desagradavam nada à raça canina.

      Esta tartaruga tinha fornecido mais de cinquenta arráteis de carne - o que ia permitir que economizassem as conservas do iate.

      O mês de Março passou-se nestas condições. Durante estas três semanas, depois do naufrágio do Sloughi, todos tinham trabalhado com afinco, prevendo uma prolongação de residência naquela parte da costa. Restava agora, antes que aparecesse o Inverno, resolver definitivamente a importante questão do continente ou ilha.

      No dia 1 de Abril percebeu-se que o tempo não tardaria em modificar-se. O barómetro subia lentamente e o vento mudava de direcção, com uma certa tendência para abrandar.

      Não podia haver engano com estes sintomas de calma próxima e talvez de longa duração. As circunstâncias prestavam-se, pois, a uma exploração no interior do país.

      Nesse dia, os mais velhos conversaram a este respeito, e, depois de se discutir o que convinha resolver, fizeram-se os preparativos para uma expedição cuja importância ninguém ignorava.

      - Parece-me - disse Doniphan - que coisa alguma nos impede de partir amanhã?

      - Assim o espero - admitiu Briant -, e é necessário estarmos prontos para o romper do dia.

      - Segundo escrevi na minha carteira - disse Gordon -, a linha de água que avistaste a leste achava-se a seis ou sete milhas do promontório.

      - Sim - respondeu Briant -, mas, como a baía descreve uma curva muito profunda, é possível que essa distância seja menor a partir do nosso acampamento.

      - E nesse caso - tornou Gordon - talvez não se demorem mais de vinte e quatro horas?

      - Sim, Gordon, se pudermos caminhar directamente para Leste. Mas, teremos a certeza de encontrar passagem através das florestas, quando tivermos dado a volta à roda dos rochedos?

      - Oh! não é essa a dificuldade que nos há-de deter! - observou Doniphan.

      - Seja - concordou Briant -, mas o caminho pode ser impedido por outros obstáculos, um curso de água, um pântano, mil coisas, enfim. Parece-me, pois, conveniente ir-se prevenido de víveres, contando com uma viagem de alguns dias.

      - E de munições - acrescentou Wilcox.

      - Isso já se sabe - respondeu Briant -, e, ouve, Gordon, se não tivermos regressado dentro de quarenta e oito horas, não estejas inquieto...

      - Inquieto, estou, mesmo que se demorem apenas meio dia - declarou Gordon. - Mas não é disso que se trata. Já que se decidiu esta expedição, é necessário fazê-la. E parece-me que ela não deve ter por fim, unicamente, atingir o mar avistado a leste. É importante, também, reconhecer o território para além dos rochedos.

      Deste lado não achámos nenhuma caverna, e, quando abandonarmos o Sloughi, é para transportar o nosso acampamento para um sítio onde esteja ao abrigo do vento.

      Passar o Inverno nesta praia parece-me inaceitável.

      - Tens razão, Gordon - aprovou Briant -, procuraremos um lugar conveniente onde seja possível Instalarmo-nos...

      - A não ser que se possa deixar definitivamente esta pretendida ilha! - observou Doniphan, que continuava agarrado à sua ideia.

      - Já se sabe, apesar de a estação não se prestar a isso, por ir já muito adiantada! - respondeu Gordon. - Enfim, há-de ser o que Deus quiser. E, está decidido, é amanhã a partida!

      Os preparativos não levaram muito tempo a fazer-se. Víveres para quatro dias, guardados em sacos que seriam levados a tiracolo, quatro espingardas, quatro revólveres, dois machados de bordo, uma bússola de algibeira, um óculo por meio do qual se podia observar o território a umas três ou quatro milhas em roda, coberturas de viagem e, além dos utensílios de algibeira, iscas, pederneiras, fósforos, tudo isto parecia suficiente para as necessidades de uma expedição curta, mas não sem perigo. Por isso, Briant e Doniphan, assim como Service e Wilcox que os acompanhavam, deviam ter muita prudência, não avançar senão com extrema circunspecção e nunca se separarem.

      Gordon pensava, e com razão, que a sua presença não seria inútil entre Briant e Doniphan. Mas pareceu-lhe mais razoável ficar no Sloughi, para cuidar dos seus camaradas mais novos. Na véspera da partida, chamou Briant de parte, e obteve dele a promessa de evitar todos os motivos de desacordo ou de disputa.

      Os prognósticos do barómetro haviam-se realizado. As últimas nuvens desapareceram para o ocidente, antes do pôr do Sol. A linha do mar arredondava-se a oeste, num horizonte puríssimo. As magníficas constelações do hemisfério austral cintilavam no firmamento, e, entre elas, o esplêndido Cruzeiro do Sul, que brilha no pólo antárctico do Universo.

      Gordon e os seus camaradas, na véspera da separação, sentiam o coração oprimido. Que iria suceder durante uma expedição sujeita a tantas eventualidades graves? Os pobres náufragos, dirigindo os olhos para o céu, pensavam em seus pais, nas suas famílias, no seu país, que talvez nunca mais tornassem a ver!...

      Ajoelharam, então, defronte do Cruzeiro do Sul, como o teriam feito diante de uma capela! Não lhes dizia ele que dirigissem as suas preces ao Criador todo poderoso daquelas maravilhas celestes, e que tivessem esperança.

     

      Briant, Doniphan, Wilcox e Service tinham deixado o acampamento do Sloughi às sete horas da manhã. O Sol, subindo num horizonte sem nuvens, anunciava um desses dias esplêndidos que o mês de Outubro reserva às vezes, aos habitantes das zonas temperadas, no hemisfério boreal. Não havia que recear o calor nem o frio. Se algum obstáculo atrasasse ou impedisse a marcha, seria devido unicamente à natureza do solo.

      Os pequenos exploradores dirigiram-se, primeiro, em sentido oblíquo, através da praia, de maneira que atingissem a base dos rochedos. Gordon aconselhara-lhes que levassem Phann, cujo instinto podia ser-lhes muito útil, e eis o motivo por que o inteligente animal fazia parte da expedição.

      Um quarto de hora depois da partida, os quatro rapazes tinham desaparecido debaixo do copado bosque, que foi transposto rapidamente. Por baixo das árvores esvoaçava alguma caça miúda. Mas, como não se tratava de perder tempo a persegui-la, Doniphan, resistindo aos seus instintos, teve a prudência necessária para se abster disso. O próprio Phann acabou por compreender que as suas idas e vindas eram inúteis, e conservou-se perto dos donos, sem se afastar mais do que convinha ao papel de explorador.

      O plano consistia em ladear a parte inferior dos rochedos até ao cabo situado ao norte da baía, se, antes de chegar à extremidade, tivesse sido impossível transpô-la. Dirigir-se-iam então para a linha de água indicada por Briant.

      Este itinerário, apesar de não ser o mais curto, tinha a vantagem de ser o mais seguro. Quanto a percorrer uma ou duas milhas, não era Isso coisa que assustasse rapazes vigorosos e ágeis.

      Quando chegaram aos rochedos, Briant reconheceu o lugar onde Gordon e ele tinham parado durante a sua primeira exploração. Como naquela porção de muralha calcária não havia passagem alguma descendo para o sul, era para o norte que se devia procurar um caminho praticável, ainda que se subisse até ao cabo. Para isso era preciso, decerto, um dia inteiro; mas não se podia proceder de outro modo, no caso de ser impossível transpor os rochedos, na parte ocidental.

      Foi o que Briant explicou aos seus camaradas, e Doniphan, depois de ter diligenciado, inutilmente, trepar por um dos declives do talude, não pôs nenhuma objecção. Todos quatro seguiram então a base dos rochedos orlada pela última fila de árvores.

      Caminharam durante uma hora, pouco mais ou menos, e, como era necessário, decerto, ir até ao promontório, Briant estava ansioso por saber se a passagem seria livre. Não estaria a praia já coberta pela maré? Nesse caso era quase meio dia perdido, à espera de que a vazante deixasse o banco de recifes a descoberto.

      - Aviemo-nos - disse ele, depois de ter explicado o interesse que havia em preceder a chegada do fluxo.

      - Ora! - respondeu Wilcox - o mais que nos pode suceder é molharmos os calcanhares!

      - Os calcanhares, e depois o peito, e depois as orelhas! - replicou Briant. - O mar sobe cinco a seis pés, pelo menos. Realmente, parece-me que teríamos feito melhor dirigindo-nos directamente ao promontório.

      - Devias tê-lo proposto - resmungou Doniphan. - És tu, Briant, que nos serves de guia, e, se estamos atrasados, tu é que tens a culpa!...

      - Pois seja assim! Em todo o caso, não percamos um instante. Onde está Service?

        E chamou:

      - Service?... Service?...

        O rapazinho já não estava ali. Depois de se ter afastado com o seu amigo Phann, acabava de desaparecer por detrás de um ângulo dos rochedos, a uns cem passos á direita.

      Mas, quase em seguida, ouviram-se gritos e os latidos do cão.

      Achar-se-ia Service em frente de algum perigo?

      Briant, Doniphan e Wilcox correram a reunir-se ao seu camarada, que estava parado defronte de um desmoronamento parcial de rochedos - desmoronamento de antiga data. Em consequência de infiltrações, ou simplesmente das intempéries, que tinham desagregado a massa calcária, desde o alto da parede até ao chão formara-se uma espécie de meio funil. Na parede a pique, abria-se uma garganta troncocónica, cujas paredes interiores não apresentavam declives de mais de quarenta a cinquenta graus. Além disso, as suas irregularidades apresentavam uma espécie de pontos de apoio, pelos quais era fácil trepar. Rapazes, ágeis e robustos, deviam poder, sem muito custo, atingir a aresta superior, se não provocassem algum novo desmoronamento.

      Doniphan foi o primeiro a lançar-se para o montão de pedras acumuladas na base.

      - Espera!... Espera!... - gritou Briant. - É inútil fazer uma imprudência!

      Mas Doniphan não lhe deu ouvidos, e, como o amor-próprio o fazia desejar adiantar-se aos seus camaradas - a Briant, principalmente -, depressa chegou à metade da altura do funil.

      Os outros rapazes tinham-no imitado, evitando colocarem-se directamente por baixo dele, a fim de não lhes caírem em cima os destroços que se separavam do maciço e rolavam até ao chão.

      Tudo se passou bem, e Doniphan teve a satisfação de pôr os pés na crista dos rochedos antes dos outros, que chegaram pouco depois.

      Doniphan já tirara o óculo do estojo e percorria com ele a superfície das florestas, que se estendiam a perder de vista na direcção do leste.

      Era o mesmo panorama de verdura e de céu que Briant observara do alto do cabo - um pouco menos profundo, porque o cabo era mais alto do que os rochedos talvez uns cem pés...

      - E então? - perguntou Wilcox. - Não vês nada?...

      - Absolutamente nada! - respondeu Doniphan.

      - Deixa-me ver se eu descubro alguma coisa - pediu Wilcox.

      Doniphan entregou o óculo ao seu camarada, com ar de satisfação e de triunfo.

      - Não distingo a mínima linha de água! - declarou Wilcox, passados alguns instantes.

      - Provavelmente - respondeu Doniphan -, a razão disso é não haver nenhuma. Podes ver, Briant, e hás-de confessar que te enganaste...

      - Inútil! - volveu Briant. - Tenho a certeza de que não me enganei!

      - Isso agora é de mais!... Pois se não vemos nada...

      - Não admira, porque os rochedos são menos elevados do que o promontório - o que diminui o alcance da vista. Se estivéssemos na altura em que eu estava colocado, a linha azul havia de aparecer a uma distância de seis a sete milhas. Veriam então que é certo ela estar onde eu indiquei e que é impossível confundi-la com uma barra de nuvens!

      - É fácil de dizer!... - observou Wilcox.

      - E não menos de verificar - respondeu Briant. - Passemos o planalto dos rochedos, atravessemos as florestas, e andemos para a frente até chegarmos...

      - Ora! - protestou Doniphan. - Isso pode levar-nos longe, e não sei se realmente vale a pena.

      - Fica, Doniphan - aconselhou Briant, que, fiel aos conselhos de Gordon, se continha, apesar da má vontade do seu camarada. - Fica... Irei eu com Service...

      - Nós vamos! - afirmou Wilcox. - Vá, Doniphan, a caminho!

      - Antes do almoço é que não! - declarou Service.

      Efectivamente, era preciso renovar as forças antes de partir. Em meia hora comeram e descansaram o suficiente; em seguida, puseram-se de novo a caminho.

      A primeira milha foi percorrida rapidamente. O solo, herboso, não apresentava dificuldades. Aqui e ali viam-se pequenas tumescências pedregosas, cobertas de musgo e de líquenes. De espaço a espaço, agrupavam-se alguns arbustos - aqui fetos arborescentes ou licopódios; ali, urzes, espins, ramos de acrifólio de folhas picantes, ou maciços desses bérberis de folhas coriáceas, que se multiplicam mesmo nas latitudes mais altas.

      Não foi sem custo que Briant e os seus companheiros, depois de terem transposto o planalto superior, conseguiram descer o lado oposto dos rochedos, quase tão elevado e tão direito como do lado da baía. Sem o leito quase seco de uma torrente, cujas sinuosidades compensavam a escabrosidade dos declives, teriam sido obrigados a voltar para trás até o promontório.

      Chegados à floresta, a marcha tornou-se mais difícil sobre um solo cheio de plantas vigorosas, coberto de ervas elevadas. Árvores derrubadas obstruíam, frequentes vezes, o caminho, e o mato era tão espesso que se tornava necessário abrir uma passagem. Os rapazes manejavam então o machado, como os sapadores que se arriscam através das florestas do Novo Mundo. A cada movimento era preciso fazer paragens, durante as quais os braços se fatigavam mais do que as pernas. Isto causava grande perda de tempo e o caminho percorrido desde pela manhã até à noite não excederia três a quatro milhas.

      Realmente, parecia que nunca seres humanos tinham penetrado no interior daqueles bosques. Pelo menos, não se notava o menor vestígio deles. A mais estreita vereda seria suficiente para testemunhar a sua passagem, mas não existia nenhuma. Aquelas árvores tinham sido derrubadas pelo tempo ou por alguma borrasca, e não pelas mãos dos homens. As ervas, pisadas em alguns sítios, indicavam apenas a passagem recente de animais de tamanho médio, alguns dos quais foram vistos, mas fugiram sem se reconhecer a que espécie pertenciam. Em todo o caso, deviam ser pouco temíveis, visto que se afastavam tão rapidamente.

      O impaciente Doniphan estava morto por pegar na espingarda e fazer fogo sobre aqueles tímidos quadrúpedes! Mas conseguiu dominar-se, e Briant não teve de intervir para impedir o companheiro de cometer uma imprudência, revelando a sua presença por meio de um tiro.

      Entretanto, se Doniphan não tivesse compreendido que devia impor silêncio à sua arma favorita, as ocasiões de fazer uso dela teriam sido frequentes. A cada passo voavam bandos de perdizes da espécie dos tinamus, que têm um sabor muito delicado, ou outras da espécie das endromies, mais conhecidas pelo nome de gaivões; havia também tardos, gansos bravos, grous, sem contar grande número de voláteis que seria fácil matar aos centos. Enfim no caso de virem residir para esta região, a caça podia fornecer alimento com abundância. Foi o que Doniphan se limitou a verificar desde o começo da exploração, consolando-se com a ideia de se compensar mais tarde da reserva que as circunstâncias lhe impunham.

      Estas florestas compunham-se mais particularmente de diversas variedades de bétulas e de faias, que desenvolviam os seus ramos, de um verde suave, até a cem pés acima do solo. Entre as outras árvores figuravam ciprestes bem medrados, mirtáceas de tronco avermelhado e muito denso, e grupos magníficos desses vegetais chamados winters, cuja casca exala um aroma que se assemelha ao da canela.

      Eram duas horas quando se fez uma segunda paragem, no meio de uma pequena clareira atravessada por um rio pouco profundo - o que na América do Norte se chama um creek. As águas deste creek, perfeitamente límpidas, corriam mansamente sobre um leito de rochas denegridas. O seu curso tranquilo e pouco profundo, que não era ainda embaraçado por madeira seca nem ervas vogando ao sabor da corrente, fazia crer que a sua origem não devia estar longe. Quanto a atravessá-lo, não havia nada mais fácil, passando por cima das pedras que o salpicavam. Havia até um sítio em que estavam pedras lisas justapostas com bastante simetria para atrair a atenção.

      - É singular, isto é! - notou Doniphan.

      Efectivamente era como que uma espécie de estrada, estabelecida de uma margem para a outra.

      - Parece uma ponte! - exclamou Service, dispondo-se a atravessá-la.

      - Espera!... Espera!... - advertiu Briant. - É preciso examinar a disposição destas pedras!

      - Não é natural - acrescentou Wilcox - que fossem elas que se colocassem assim!

      - Não - concordou Briant - quis estabelecer uma passagem neste ponto do rio... Vejamos mais de perto.

      Examinaram então cuidadosamente cada pedra daquela ponte estreita, que emergia apenas algumas polegadas, e devia ser inundada durante a estação da chuva.

      Como se podia saber se era a mão do homem que tinha disposto aquelas pedras através do rio? Não era melhor supor que a violência da corrente na época das cheias as tivesse amontoado a pouco e pouco, formando uma ponte natural?

      Era mesmo a maneira mais simples de explicar a existência daquela ponte, e foi a que Briant e os seus companheiros adoptaram, depois de um exame minucioso.

      Deve-se acrescentar que nem a margem direita nem a esquerda apresentavam outros indícios e que coisa alguma provava que pés humanos tivessem pisado o solo da clareira.

      Quanto ao creek, o seu curso dirigia-se para o nordeste, em sentido oposto à baía. Lançar-se-ia no mar que Briant afirmava ter distinguido do alto do cabo?

      - A não ser - sugeriu Doniphan - que este rio seja afluente de outro mais importante que se dirija para poente.

      - Teremos ocasião de ver isso - respondeu Briant, que achou inútil recomeçar uma discussão a esse respeito. - Contudo, enquanto ele correr para leste, parece-me que faremos bem em segui-lo, se não der muitas voltas.

      Os quatro rapazes puseram-se a caminho, tendo tido o cuidado de atravessar o creek por cima da ponte de pedras - a fim de não serem obrigados a atravessá-lo contra a corrente e talvez em condições menos favoráveis.

      Foi muito fácil seguir a margem, excepto em alguns pontos onde grupos de árvores mergulhavam as raízes nas águas vivas, enquanto que os ramos se reuniam de um lado do rio ao outro. Posto que o creek formasse, às vezes, um ângulo brusco, a sua direcção geral, regulada pela bússola, era sempre para leste. Quanto à embocadura, devia estar ainda longe, porque a corrente não aumentava em velocidade, nem o leito em largura.

      Perto das cinco horas e meia, Briant e Doniphan tiveram de reconhecer, não sem pesar, que o curso do creek se dirigia francamente para o norte. Isto podia levá-los muito longe, se continuassem a segui-lo como um fio condutor, e numa direcção que, evidentemente, os afastava do seu fim. Concordaram, portanto, em abandonar a margem e tomar novo caminho, para leste, no ponto em que as bétulas e as faias eram mais espessas.

      A marcha era extremamente penosa! No meio das ervas, que às vezes lhes passavam para cima das cabeças, eram obrigados a chamar-se uns aos outros para não se perderem totalmente de vista.

      Como, depois de um dia de marcha, não havia nada que indicasse a proximidade de uma corrente de água.

      Briant começava a estar inquieto. Teria sido vítima de uma ilusão quando observara o horizonte de cima do cabo?...

      - Não!... Não!... - repetia ele consigo mesmo. - Não me enganei!... Não pode ser!

      Como quer que fosse, às sete horas da tarde ainda não tinham atingido o limite da floresta, e a escuridão, já bastante profunda, não permitia que continuassem a andar. Briant e Doniphan resolveram fazer alto e passar a noite ao abrigo das árvores. Com um bom pedaço de carne fria, não sentiriam fome. Cobertos com boas mantas, não sentiriam frio. Além disso, poderiam acender uma fogueira de ramos secos, se essa precaução, excelente contra os animais, não fosse perigosa no caso de algum indígena se aproximar durante a noite.

      - É melhor não nos arriscarmos a ser vistos – observou Doniphan.

      Todos foram da mesma opinião, e não se tratou de mais nada senão da ceia. Não era o apetite que lhes faltava. Depois de terem devorado uma boa parte das provisões de viagem, dispunham-se a estender-se debaixo de uma bétula enorme, quando Service mostrou, a alguns passos dali, uma mata espessa.

      Dessa mata - segundo o que se podia distinguir na escuridão - saía uma árvore de altura medíocre, cujos ramos inferiores se dobravam até ao chão. Foi aí que todos quatro se deitaram, sobre um montão de folhas secas, depois de se terem embrulhado nas mantas. Na idade deles, o sono não se faz esperar. Por isso, adormeceram profundamente, e Phann, apesar de estar encarregado de ficar de sentinela, imitou os donos.

      Contudo, o cão fez ouvir, uma ou duas vezes, um rosnar prolongado. Era evidente que alguns animais ferozes, ou de qualquer espécie, andavam em roda da floresta; mas não se aproximavam do acampamento.

      Eram perto de sete horas quando Briant e os outros acordaram. Os raios oblíquos do Sol iluminavam, ainda vagamente, o lugar onde eles tinham passado a noite.

      Service foi o primeiro a sair da mata e, então, ouviram-se os seus gritos ou, antes, exclamações de surpresa.

      - Briant!... Doniphan!... Wilcox!... Venham!... Venham depressa!

      - Que há de novo? - perguntou Briant.

      - Sim, o que há? - perguntou Wilcox. - Service mete-nos cada susto com a sua mania de gritar!...

      - Bem... bem! - respondeu Service. - Ora venham ver onde nós dormimos!

      Não era uma mata, era uma cabana de folhagens, uma dessas grutas a que os índios chamam “ajupas” e que são feitas de ramos entrelaçados. Esta choça devia ser de construção antiga, porque o tecto e as paredes não se sustentavam de pé senão graças à árvore a que se encostavam, a qual cobria com os seus ramos a gruta, semelhante às que costumam construir os indígenas na América do Sul.

      - Há então habitantes?... - inquiriu Doniphan, olhando rapidamente em torno de si.

      - Ou, pelo menos, já os houve - respondeu Briant -, porque esta cabana foi construída por alguém!

      - Isto explica a existência da ponte de pedras que atravessa o creek! - observou Wilcox.

      - Pois ainda bem! - exclamou Service. - Se há habitantes, são boas pessoas, visto que edificaram esta cabana expressamente para aqui passarmos a noite!

      Mas não era nada certo que os indígenas daquele país fossem boas pessoas, como afirmava Service.  O que era evidente era alguns indígenas frequentarem ou terem frequentado aquela parte da floresta numa época mais ou menos afastada. Ora esses indígenas não podiam ser senão índios, se aquele território pertencesse ao Novo Continente, ou polinésios e até canibais, se estivessem numa Ilha que fizesse parte de um dos grupos da Oceânia!...

      Esta última eventualidade apresentava muitos perigos, e tornava-se urgente resolver a questão.

      Doniphan dispunha-se a partir quando Briant propôs que visitassem minuciosamente a cabana, que parecia ter sido abandonada havia muito tempo.

      Efectivamente, talvez encontrassem um objecto qualquer, um utensílio, um instrumento, uma ferramenta, cuja origem fosse possível reconhecer..

      A cama de folhas secas, estendida no chão da cabana, foi virada cuidadosamente, e Service apanhou a um canto um fragmento de barro, que devia pertencer a uma tigela ou a uma bilha... Novo indício de trabalho humano, mas que não adiantava nada. Portanto, o que restava era porem-se a caminho.

      Eram sete horas e meia quando os quatro rapazes, de bússola na mão, se dirigiram francamente para leste, sobre um solo ligeiramente inclinado. Caminharam assim durante duas horas, devagar, muito devagar, no meio de ervas emaranhadas e de arbustos, e, por duas ou três vezes, tiveram de abrir passagem a machado.

      Finalmente, um pouco antes das dez horas, um novo horizonte substituiu a interminável cortina de árvores. Para além da floresta estendia-se uma vasta planície, semeada de lentiscos, de tomilho e de urzes. A meia milha para leste, era cercada por uma barra de areia, a qual era mansamente batida pela ressaca do mar avistado por Briant, e que se espraiava até aos limites do horizonte.

      Doniphan conservava-se calado. Era com pesar que este vaidoso rapaz reconhecia que o seu camarada não se tinha enganado.

      Ao norte, a costa, iluminada pelos raios do Sol, curvava-se um pouco para a esquerda.

      Ao sul, o mesmo aspecto, havendo só a diferença de o litoral formar uma curva mais pronunciada:

      Agora já não havia que duvidar! Não era num continente, era numa ilha que os moços náufragos estavam prisioneiros, e não podiam ter a mais leve esperança de sair dela se não lhes viessem socorros de alguma parte.

      Mas não se avistava outra terra ao longe. Aquela ilha parecia estar isolada e como que perdida no meio das Imensidades do Pacífico!

      Entretanto, Briant, Doniphan, Wilcox e Service, depois de atravessarem a planície, que se estendia até à praia, tinham descansado ao pé de um montículo de areia. A sua intenção era voltarem outra vez pela floresta, depois de terem almoçado. Talvez, andando depressa, não lhes fosse impossível chegar ao Sloughi antes do anoitecer.

      Durante a refeição, que foi muito triste, trocaram apenas algumas palavras.

      - Partamos.

      E, depois de terem contemplado aquele mar mais uma vez, dispunham-se a atravessar a planície, quando Phann deitou a correr para o lado da praia.

      - Phann!... Já aqui, Phann! - gritou Service.

      Mas o cão continuou em larga correria, farejando a areia húmida. Depois, lançando-se, de um pulo, no meio das pequenas ondas da ressaca, principiou a beber com excessiva vontade.

      - Está a beber!... Está a beber!... - exclamou Doniphan.

      E, atravessando a praia, levou aos beiços algumas gotas da água que Phann bebia com tanta sofreguidão... Era água doce!

      Era um lago que se estendia até ao horizonte, a leste... Não era um mar.

     

      Assim, a importante questão, da qual dependia a salvação dos moços náufragos, não estava definitivamente resolvida. Que aquele suposto mar era um lago, não havia dúvidas a este respeito. Mas não podia ser que esse lago pertencesse a uma ilha? Prolongando a exploração para diante, não se descobriria um verdadeiro mar - um mar que não pudesse atravessar-se de modo nenhum?

      Contudo, aquele lago mostrava ser de dimensões bastante consideráveis, visto que sobre três quartas partes do seu perímetro - observou Doniphan - se desenhava um horizonte de céu. Era muito admissível, portanto, que estivessem em um continente, e não em uma ilha.

      - Nesse caso naufragámos no continente americano! – disse Briant.

      - A minha ideia foi sempre essa - respondeu Doniphan -, e parece que não me enganava!

      - Em todo o caso - tornou Briant -, o que eu tinha distinguido a leste sempre era uma linha de água...

      - Pois sim, mas não é um mar!

      Esta resposta era dada por Doniphan com um prazer que indicava mais vaidade do que bom coração. Briant não insistiu. Para o interesse comum, melhor era que ele se tivesse enganado. Entretanto, era necessário esperar uma época mais favorável para empreender uma viagem para leste. As dificuldades experimentadas só para vir do acampamento ao lago, percorrendo-se apenas algumas milhas, seriam muito maiores quando se tratasse de caminhar por muito tempo, com o rancho completo.

      Estava-se já no princípio de Abril, e o Inverno austral é mais precoce do que o da zona boreal. Não se podia pensar em partir antes de voltar o bom tempo.

      Contudo, naquela baía do oeste, batida incessantemente pelo vento do largo, a situação não podia ser durável. Antes do fim do mês seria necessário abandonar a escuna.

      Por isso, já que Briant e Gordon não tinham podido descobrir uma caverna na base ocidental dos rochedos, era preciso verificar se poderiam estabelecer-se em melhores condições para a banda do lago. Convinha, portanto, ir examinar cuidadosamente aqueles sítios. Esta exploração era indispensável, ainda que fosse necessário demorarem-se mais um ou dois dias. É verdade que isso ia causar vivas inquietações a Gordon; mas Briant e Doniphan não hesitaram. As suas provisões podiam durar ainda quarenta e oito horas, e nada fazia prever uma mudança de tempo; resolveu-se, portanto, descer para o sul, seguindo a margem do lago.

      Havia ainda outro motivo que obrigava a levar mais longe as investigações.

      Era incontestável que aquela parte do território tinha sido habitada ou, pelo menos, frequentada pelos indígenas. A ponte que atravessava o creek, a choça, cuja construção traía a presença do homem numa época mais ou menos recente, eram outras tantas provas que deviam ser completadas antes de se proceder a nova instalação para o Inverno. Talvez aparecessem outros indícios mais Importantes do que estes. A falta de indígenas, não era possível que algum náufrago tivesse vivido ali até poder chegar a uma das cidades daquele continente?

      Em todo o caso, não se perdia nada em prolongar a exploração pelas proximidades do lago.

      A questão era esta: Briant e Doniphan deviam dirigir-se para o sul ou para o norte? Como, descendo para o sul, se aproximavam do Sloughi, resolveram tomar esta direcção. Mais tarde ver-se-ia se seria conveniente tornar a subir para a extremidade do lago.

      Às oito horas e meia puseram-se todos quatro a caminho, costeando as dunas cheias de erva que salpicavam a planície, limitada a oeste por maciços de verdura.

      Phann ia adiante, farejando, e fazia levantar voo a bandos de tinamus, que iam pôr-se ao abrigo dos ramos de lentiscos ou de fetos. Havia também maciços de uma espécie de arandano encarnado e branco, e plantas de aipo bravo, das quais se podia fazer um uso muito higiénico. Mas as espingardas não se deviam ouvir, porque era possível que os arredores do lago fossem visitados por tribos indígenas.

      Seguindo a margem, ora ao longo das dunas, ora pela cinta de areia, os quatro rapazes puderam percorrer umas dez milhas durante aquele dia, sem se fatigarem muito. Não tinham achado vestígio algum de indígenas. Não aparecia fumo por cima dos maciços de árvores. Não se viam nenhuns sinais de passos na areia, molhada pelas ondulações daquela massa de água, da qual não se descobriam os limites. Apenas a margem esquerda parecia desviar-se para o sul, como para se fechar nessa direcção. Além disso, estava absolutamente deserta. Não aparecia uma vela no horizonte, nem uma piroga à superfície da água. Se aquele território tinha sido habitado, agora já não o era, segundo parecia.

      A respeito dos animais ferozes ou ruminantes, não apareceu nenhum. À tarde, por duas ou três vezes apareceram alguns voláteis à entrada da floresta, mas não foi possível aproximarem-se deles. O que não impediu Service de exclamar:

      - São avestruzes!

      - Avestruzes muito pequenos, nesse caso - observou Doniphan -, porque são de estatura medíocre!

      - Se são avestruzes - replicou Briant - e se estamos num continente...

      - Pois ainda duvidas? - replicou ironicamente Doniphan.

      - Deve ser o continente americano, onde se encontra grande número desses animais - respondeu Briant. - Era isto simplesmente que queria dizer!

      Pelas sete horas da noite fez-se alto. O dia seguinte, no caso de não haver obstáculos imprevistos, seria empregado em voltar para Sloughi-bay (baía Sloughi) - nome que deram à parte do litoral onde se perdera a escuna.

      Além disso, naquela noite não teria sido possível ir mais longe na direcção do sul. Naquele sítio corria um dos rios pelos quais se espalhavam as águas do lago, e que seria preciso atravessar a nado. Demais, a escuridão não deixava observar a disposição dos lugares, e a margem direita daquele curso de água parecia ser cercada de rochedos.

      Briant, Doniphan, Wilcox e Service, depois de terem ceado, não pensaram senão em descansar - desta vez ao ar livre, à falta de cabana. Mas eram tão cintilantes as estrelas que brilhavam no firmamento, enquanto a Lua ia desaparecendo no poente do Pacífico!

      No lago e na praia tudo estava tranquilo. Os quatro rapazes, aninhados entre as raízes enormes de uma faia, adormeceram tão rapidamente que o ruído do trovão não os teria despertado. Nem eles nem Phann ouviram uns latidos muito próximos, que deviam ser de chacal, nem uns uivos mais afastados, que deviam ser uivos de animais ferozes. Nestas regiões, onde os avestruzes viviam em estado selvagem, podia-se temer a aproximação de jaguares ou de cuguardos, que são o tigre e o leão da América meridional. Mas a noite passou-se sem incidentes. Contudo, pelas quatro horas da manhã, antes que a aurora começasse a aclarar o horizonte por cima do lago, Phann deu sinais de agitação, rosnando surdamente e farejando o solo como se quisesse pôr-se em busca.

      Eram perto de sete horas quando Briant acordou os seus camaradas, que se conservavam enovelados dentro das mantas.

      Todos se puseram em pé imediatamente, e, enquanto Service trincava um bocado de biscoito, os outros três foram observar a região para além do rio.

      - Realmente - exclamou Wilcox - fizemos muito bem em não tentarmos atravessar este rio! Teríamos caído no meio de um pântano!

      - Efectivamente - confirmou Briant -, é um pântano que se estende para o sul, e não lhe vejo o fim!

      - Olhem! - exclamou Doniphan. - Olhem para os bandos de patos, de cercetas e de narcejas que voam à superfície dele! Se pudéssemos instalar-nos aqui para o Inverno, teríamos a certeza de não nos faltar a caça!

      - Talvez seja possível - admitiu Briant, que se dirigiu para a margem direita do rio.

      Para trás erguiam-se uns rochedos altos, terminados por um contraforte cortado a pique.

      Estes rochedos seriam os mesmos que cercavam Sloughi-bay, prolongando-se para nordeste. Era o que não se ia saber antes de se ter feito uma exploração mais completa.

      Quanto ao rio, se a margem direita, da largura de uns vinte pés, corria ao longo da base das alturas próximas, a margem esquerda, muito baixa, distinguia-se a custo dos entalhes, das escavações, das cortaduras da planície pantanosa que se estendia a perder de vista para o sul.

      Para determinar a direcção do rio, era necessário trepar aos rochedos, e Briant tencionava fazê-lo antes de tomar o caminho de Sloughi-bay.

      Em primeiro lugar tratava-se de examinar o rio no ponto em que as águas do lago se derramavam no seu leito. Aí media apenas uns quarenta pés de largo, mas devia aumentar, tanto em largura como em profundidade, à medida que se aproximava da embocadura, em consequência de algum afluente que recebesse, quer do pântano, quer dos planaltos superiores.

      - Vejam, vejam! - exclamou Wilcox, no momento em que acabava de chegar à parte inferior do contraforte.

      O que lhe atraiu a atenção era um monte de pedras, formando uma espécie de dique - disposição análoga à que já se tinha observado na floresta.

      - Desta vez não há que duvidar! - disse Briant.

      - Não, com certeza! - respondeu Doniphan, mostrando uns destroços de madeira na extremidade do dique.

      Esses destroços eram, decerto, os de uma canoa; entre outros, havia uma peça de madeira, meio podre e coberta de musgo, que, pela curva, mostrava ser um pedaço de roda de proa, e à qual estava ainda presa uma argola de ferro, coberta de ferrugem.

      - Uma argola!... uma argola!... - exclamou Service.

      E olhavam, imóveis, para todos os lados, como se o homem que se servira daquela embarcação, que construíra aquele dique, lhes fosse aparecer de repente!

      Não!... Não apareceu ninguém, decerto, decorridos muitos anos depois que aquela canoa fora abandonada na margem do rio. O homem que tinha vivido ali, ou tornara a ver os seus semelhantes, ou terminara a sua existência miserável naquela terra, sem ter podido deixá-la.

      Compreende-se a comoção dos jovens náufragos à vista daquelas provas de uma intervenção humana que já não era possível contestar!

      Foi então que notaram os movimentos singulares do cão. Phann tinha descoberto uma pista, com certeza. Endireitava as orelhas, agitava a cauda, farejava o solo, metendo-se por entre ervas.

      - Reparem em Phann! - disse Service.

      - Descobriu o quer que seja! - afirmou Doniphan, dirigindo-se para o cão.

      Phann tinha parado, com uma pata no ar e o focinho estendido. Depois arremessou-se bruscamente para um maciço de árvores que se agrupavam no sopé dos rochedos, do lado do lago.

      Briant e os seus companheiros seguiram-no. Alguns momentos depois, detinham-se em frente de uma velha faia, em cujo tronco estavam gravadas duas letras e uma data, dispostas da seguinte maneira:  F B 1807.

      Briant, Doniphan, Wilcox e Service teriam ficado durante muito tempo imóveis defronte desta inscrição se Phann, retrocedendo, não tivesse desaparecido no ângulo do contraforte.

      - Aqui, Phann, aqui!... - gritou Briant.

      O cão não voltou, mas fez-se ouvir ladrando com precipitação.

      - Cautela! - disse Briant. - Não nos separemos e tenhamos muito cuidado!

      Efectivamente, toda a circunspecção era pouca. Talvez algum bando de indígenas estivesse ali perto, e a sua presença era mais para temer do que para desejar se fossem desses índios ferozes que infestam os pampas da América do Sul.

      As espingardas foram armadas, os revólveres empunhados, prontos para a defesa.

      Os quatro rapazes dirigiram-se para a frente, depois de passarem o contraforte, deixaram-se escorregar ao longo da estreita margem do rio. Ainda não tinham dado vinte passos quando Doniphan se curvou para apanhar um objecto que estava no chão.

      Era uma enxada, com o cabo meio apodrecido - uma enxada de origem americana ou europeia, e não uma dessas ferramentas toscas fabricadas por selvagens da Polinésia. Estava profundamente oxidada, como a argola da embarcação, e parecia ter sido abandonada naquele lugar havia muitos anos.

      Na parte inferior dos rochedos, viam-se também vestígios de cultura, alguns regos traçados irregularmente, um quadrado de inhames que se tinham tornado bravos à falta de cuidados.

      De repente, um latido lúgubre atravessou os ares. Logo em seguida, Phann reapareceu, num estado de agitação ainda mais inexplicável. Corria ao encontro dos donos, olhava para eles, chamava-os, parecia dizer-lhes que o seguissem...

      - Há, por força, o quer que seja de extraordinário! – disse Briant, que diligenciava, debalde, sossegar o cão.

      - Vamos ver aonde ele nos leva! - decidiu Doniphan, fazendo sinal a Wilcox e a Service para o seguirem.

      A dez passos dali, Phann parou defronte de um maciço de arbustos e de sarças, cujos ramos se entrelaçavam mesmo na base dos rochedos.

      Briant adiantou-se, para ver se aquele maciço ocultava o cadáver de algum animal, ou mesmo de um homem, cuja pista Phann tivesse descoberto... E, ao afastar os ramos, dá com uma abertura estreita.

      - Há uma caverna aqui! - exclamou ele, recuando alguns passos.

      - É provável - admitiu Doniphan. - Mas o que há nessa caverna?

      - Sabê-lo-emos! - disse Briant.

      E, com a sua enxada, Pôs-se a deitar abaixo os ramos que obstruíam o orifício. Escutaram em silêncio, mas não ouviram nenhum ruído suspeito.

      Service já se dispunha a deixar-se escorregar pela abertura, quando Briant lhe disse:

      - Vejamos primeiro o que faz o cão.

      Phann continuava a soltar latidos surdos, que não eram nada tranquilizadores.

      Contudo, se na caverna estivesse oculto algum ser vivo, já teria saído dela!

      Era necessário averiguar o caso. Como a atmosfera podia estar viciada no interior da caverna, Briant atirou pela abertura um punhado de ervas secas que acabava de acender. Estas ervas, espalhando-se pelo solo, arderam vivamente, prova de que o ar era respirável.

      - Entramos?... - perguntou Wilcox.

      - Entramos, sim - respondeu Doniphan.

      - Esperem! É preciso não andar às escuras – recomendou Briant.

      E, depois de ter cortado um ramo resinoso a um dos pinheiros que cresciam à borda do rio, acendeu-o; a seguir, imitado pelos seus companheiros, deixou-se escorregar por entre os ramos.

      À entrada, o orifício media cinco pés de altura sobre dois de largura, mas alargava-se bruscamente, formando uma escavação de uns dez pés de altura com o dobro de largura, e o solo era formado por uma areia muito seca e muito fina.

      Wilcox, que ia adiante, esbarrou com um banco de madeira, colocado ao pé de uma mesa, sobre a qual estavam alguns utensílios domésticos, um cântaro de loiça, grandes conchas, que deviam ter servido de pratos, uma faca de lâmina ferrugenta, dois ou três anzóis, uma tigela de folha-de-flandres, vazia como o cântaro. Arrumada à parede oposta, estava uma espécie de arca, feita de tábuas toscamente unidas, e que continha restos de vestuário em farrapos.

      Portanto, era certo aquela escavação ter sido habitada. Mas em que época, e por quem? O ser humano que vivera ali estaria prostrado a algum canto?

      Ao fundo havia uma enxerga miserável, coberta com uma manta esfarrapada. À cabeceira, em cima de um banco, estava outra tigela e um candeeiro de pau, em cujo bocal estava um resto de torcida carbonizada.

      Os quatro rapazes recuaram, lembrando-se de que aquela manta podia ocultar algum cadáver.

      Briant, vencendo a repugnância, levantou-a...

      A enxerga estava vazia.

      Um momento depois, muito impressionados, tinham-se reunido a Phann, que, tendo ficado de fora, continuava os seus latidos lúgubres.

      Desceram então a margem do rio, e, tendo dado uns vinte passos, pararam bruscamente. Um sentimento de horror conservou-os imóveis durante alguns instantes!

      Ali, entre as raízes de uma faia, estavam os restos de um esqueleto, espalhados pelo solo.

      Morrera ali o desgraçado que tinha vivido naquele continente, durante muitos anos, decerto, e a caverna que lhe servia de morada não lhe pudera servir de túmulo!

     

      Briant, Doniphan, Wilcox e Service conservavam-se silenciosos. Quem era o homem que tinha vindo morrer ali? Era um náufrago a quem faltaram socorros até ao último instante de vida? A que nação pertencia? Chegara ainda moço àquele continente? Tinha morrido já velho? Como pudera prover às suas necessidades? Se fora um naufrágio que o lançara àquele território, os seus companheiros tinham sobrevivido à catástrofe? Ficara ele só depois da morte dos seus companheiros de infortúnio? Os objectos achados na caverna vinham na sua embarcação, ou fora ele próprio que os fabricara?

      Entre estas questões, que talvez nunca se pudessem resolver, a mais grave era a seguinte: se aquele homem tinha achado refúgio num continente, porque não alcançara alguma cidade do interior, algum porto do litoral? A recondução à pátria apresentava tantas dificuldades, tantos obstáculos, que não pudera vencê-los? A distância que precisaria percorrer era tão grande que tivera de renunciar a transpô-la? A verdade é que aquele desgraçado caíra, enfraquecido pela doença ou pela idade, não tivera forças para voltar para a caverna, e morrera ao pé daquela árvore!... E, se ele não conseguira ir buscar a salvação ao norte ou a leste daquele território, consegui-lo-iam os pequenos náufragos do Sloughi?

      Fosse como fosse, era necessário examinar a caverna com o maior cuidado. Quem sabe se encontrariam um documento que desse alguns esclarecimentos acerca daquele homem, da sua origem, do tempo que durou a sua residência naquele lugar!...

      Por outro lado, era conveniente verificar se poderiam instalar-se ali durante o Inverno, depois de abandonar o iate.

      - Venham! - disse Briant.

      E, seguidos por Phann, deixaram-se escorregar pelo orifício, iluminados por outro ramo resinoso.

      Um dos primeiros objectos que distinguiram, em cima de uma prateleira pregada na parede da direita, foi um pacote de velas, feitas de sebo, e um cordão de estopa. Service acendeu uma destas velas, que colocou no candeeiro de madeira, e as pesquisas começaram.

      Primeiro que tudo, era conveniente examinar a disposição da caverna, visto já não haver dúvidas a respeito da sua habitabilidade. Era uma grande cavidade, que devia datar da época das formações geológicas. Não apresentava vestígio algum de humidade, apesar de não receber ar senão pelo orifício aberto na margem do rio. As paredes estavam tão secas como se fossem de granito, sem nenhum vestígio dessas infiltrações cristalizadas, desses rosários de gotas que, em algumas grutas de pórfiro ou de basalto, formam estalactites. Além disso, a sua orientação colocava-a ao abrigo do vento do mar. É certo que a claridade penetrava ali a muito custo; mas, fazendo uma ou duas aberturas na parede, seria fácil remediar esse inconveniente. e fazer entrar o ar suficiente para quinze pessoas.

      Quanto às dimensões - vinte pés de largura e trinta de comprimento -, aquela caverna era decerto insuficiente para servir, ao mesmo tempo, de dormitório, de refeitório, de armazém e de cozinha. Enfim, tratava-se de passar ali apenas cinco ou seis meses de Inverno - depois do que se dirigiriam para nordeste a fim de chegarem a alguma cidade da Bolívia ou da República Argentina. Evidentemente, no caso de ser necessário instalarem-se de maneira definitiva, procurar-se-ia ficar mais à vontade cavando o maciço, que era um calcário muito brando. Mas tinham de contentar-se com aquela escavação tal como era, até voltar a estação do estio.

      Briant fez um inventário rigoroso dos objectos que ela continha. Realmente eram bem poucos! Aquele desgraçado devia ter chegado ali desprovido das coisas mais necessárias. Que lhe restara do naufrágio? Nada, a não ser objectos disformes, mastros partidos, fragmentos de cintas do navio, que lhe tinham servido para fabricar aquela mesa, a arca, o banco, os escabelos - única mobília da sua habitação miserável. Menos favorecido do que os sobreviventes do Sloughi, não tivera um material completo à sua disposição. Algumas ferramentas, uma enxada, um machado, dois ou três utensílios de cozinha, um barril pequeno que devia ter contido aguardente, um martelo, dois escopros e uma serra - foi tudo o que se achou primeiro. Estes utensílios haviam sido salvos, decerto, na embarcação cujos destroços se achavam espalhados junto ao dique do rio.

      Era nisto que Briant pensava, e explicava-o aos seus companheiros. E então, depois do sentimento de horror que tinham sentido ao ver o esqueleto, lembrando-se de que talvez estivessem destinados a morrer no mesmo abandono, ocorreu-lhes a ideia de que não lhes faltava coisa alguma do que faltara àquele desventurado, e sentiram-se mais dispostos a ter confiança no futuro.

      Mas quem era aquele homem? Que origem era a sua? De que época datava o seu naufrágio? Com certeza que tinham decorrido muitos anos depois que ele sucumbira. O estado dos ossos achados junto da árvore provava-o claramente! E, depois, o ferro da enxada e a argola da embarcação, cheios de ferrugem, a espessura do mato que obstruía a entrada da caverna não demonstravam que a morte do náufrago datava de longe?

      Além disto, não apareceria algum indício que permitisse mudar esta hipótese em certeza!

      Continuaram as pesquisas, e acharam mais alguns objectos - outra faca, com a lâmina partida em vários sítios, um compasso, uma panela, uma cavilha de ferro e um passador, espécie de ferramenta de marinheiros. Mas não havia nenhum instrumento de marinha, nem óculos, nem bússola, nem uma arma para caçar, para se defender dos animais ou dos indígenas!

      Aquele homem devia ter sido obrigado a armar laços, para poder viver. Esta questão foi esclarecida quando Wilcox gritou:

      - Que é isto?

      - Isto? - disse Service.

      - É um jogo de bolas - explicou Wilcox.

      - Um jogo de bolas! - exclamou Briant, muito surpreendido.

      Mas reconheceu imediatamente para que serviam as duas pedras redondas que Wilcox acabava de apanhar. Era uma dessas armadilhas, chamadas “bolas”, que se compõem de duas bolas ligadas uma à outra por uma corda, e muito usadas pelos índios da América do Sul. Essas bolas, lançadas por mão hábil, enrolam-se em volta das pernas do animal, cujos movimentos são paralisados, o que o põe facilmente à disposição do caçador.

      Era evidente que fora o habitante da caverna o fabricante daquela armadilha, e também de um lazzo, correia de couro comprida que se maneja como as bolas, mas a menor distância.

      Tal foi o inventário dos objectos achados na caverna, e, a este respeito, Briant e os seus camaradas estavam incomparavelmente mais ricos. É verdade que eram ainda umas crianças, e o outro era um homem.

      Este homem era um simples marinheiro, ou um oficial que pudera aproveitar a inteligência previamente desenvolvida pelo estudo? Isto teria sido difícil de resolver sem uma descoberta que os fez avançar com mais segurança no caminho das certezas.

      À cabeceira do leito, debaixo de uma prega da manta levantada por Briant, descobriu Wilcox um relógio suspenso de um prego que estava fixado na parede.

      Este relógio, menos vulgar do que os relógios de marinheiro, era de fabricação muito fina e compunha-se de uma caixa de prata dupla, da qual pendia uma chave segura por uma cadeia do mesmo metal.

      - A hora!... Vejamos a hora! - exclamou Service.

      - A hora não adianta nada - observou Briant. – Provavelmente este relógio parou muitos dias antes da morte daquele desgraçado!

      Briant abriu a caixa, não sem custo, porque as junturas estavam oxidadas, e pôde ver que os ponteiros marcavam três horas e vinte e sete minutos.

      - Mas - fez notar Doniphan - este relógio tem um nome... Assim podemos saber...

      - Tens razão - concordou Briant.

      E, examinando o interior da caixa, conseguiu ler estas palavras, gravadas na chapa:

       “Delpeuch, Saint-Malo” - o nome e morada do fabricante.

      - Era um francês, um compatriota meu! - exclamou Briant, comovido.

      Já não havia que duvidar: naquela caverna vivera um francês, até à hora em que a morte viera pôr termo às suas misérias!

      A esta prova veio juntar-se outra, não menos decisiva. Doniphan, que tinha arredado o leito, apanhou no chão um caderno cujas páginas amarelecidas estavam cobertas de linhas traçadas a lápis.

      Por infelicidade, a maior parte dessas linhas era quase ilegível. Contudo, puderam decifrar-se algumas palavras, e, entre outras, as seguintes: Francisco Baudoin.

      Dois nomes, e eram deles as iniciais que o náufrago tinha gravado na árvore! Aquele caderno era o jornal quotidiano da sua vida desde o dia em que fora parar àquele território! E em fragmentos de frases que o tempo não apagara completamente Briant pôde distinguir mais estas palavras: Duguay Trouin - evidentemente o nome do navio que se perdera naquelas paragens longínquas do Pacífico.

      No começo, tinha uma data: 1807 - a mesma que estava inscrita por baixo das iniciais, e, decerto, a do naufrágio!

      Havia, portanto, cinquenta e três anos que Francisco Baudoin abordara àquele litoral, e durante cinquenta e três anos não recebera nenhum socorro!

      Ora, se Francisco Baudoin não tinha podido transportar-se para qualquer outro ponto do continente, tê-lo-iam impedido obstáculos insuperáveis?

      Os pequenos náufragos pensaram, mais do que nunca, na gravidade da sua situação. Como fariam eles o que um homem, um marinheiro acostumado a trabalhos rudes e a grandes fadigas, não tinha podido fazer?...

      Além disso, um último achado ia mostrar-lhes que era inútil qualquer tentativa para abandonarem aquela terra.

      Folheando o caderno, Doniphan descobriu um papel dobrado entre as páginas. Era um mapa, traçado com uma espécie de tinta, feita provavelmente de água e fuligem.

      - Um mapa! - exclamou ele.

      - Provavelmente desenhado pelo próprio Francisco Baudoin! - lembrou Briant.

      - Parece, então, que esse homem não era um simples marinheiro - observou Wilcox -, mas sim um dos oficiais do Duguay Trouin, visto que sabia traçar um mapa...

      - Será por acaso?... - exclamou Doniphan.

      Sim! Era o mapa daquele território! Logo à primeira vista se reconhecia Sloughi-bay, o banco de recifes, a praia onde se estabelecera o acampamento, o lago a cuja margem ocidental Briant e os seus companheiros acabavam de descer, as três ilhotas situadas ao largo, a penedia que descrevia uma curva até à borda do rio, as florestas que cobriam toda a região central!

      Para além da margem oposta do rio, eram mais florestas, que se estendiam até à extremidade de um outro litoral, e esse litoral... era banhado pelo mar em todo o seu perímetro...

      Assim caíam por terra os projectos de ir procurar a salvação para leste! Briant tivera razão contra Doniphan! O mar cercava por todos os lados aquele pretendido continente... Era uma ilha, e eis a razão por que Francisco Baudoin não pudera sair dali.

      Era fácil ver naquele mapa que os contornos gerais da ilha tinham sido reproduzidos com muita exactidão. Decerto que as distâncias tinham sido calculadas pelo tempo gasto em percorrê-las e não por medidas de triangulação; mas, a julgar pelo que Briant e Doniphan conheciam já da parte compreendida entre Sloughi-bay e o lago, os erros não deviam ser importantes.

      Estava demonstrado, além disso, que o náufrago percorrera toda a sua ilha, porque notara os principais pormenores geográficos, e tanto a choça como a ponte do creek deviam ser obra sua.

      Eis as disposições que apresentava a ilha tal como Francisco Baudoin a desenhara:

      Era de forma oblonga e assemelhava-se a uma grande borboleta com as asas abertas. Estreitando na parte central, entre Sloughi-bay e uma outra baía cavada a leste, apresentava ainda outra, muito mais larga na parte meridional. No meio de vastas florestas estendia-se o lago, que tinha dezoito milhas de comprimento, pouco mais ou menos, e cinco de largura - dimensões demasiado consideráveis para não serem distinguidas por Briant, Doniphan, Service e Wilcox das margens do norte, do sul e do leste.

      Isto explicava o motivo por que, à primeira vista, o haviam tomado por um mar. Deste lago saíam uns poucos de rios, o mais importante dos quais era o que corria em frente da caverna e ia banhar Sloughi-bay, muito próximo do acampamento.

      A única elevação importante da ilha parecia ser os rochedos, dispostos obliquamente desde o promontório, ao norte da baía, até à margem direita do rio. Quanto à região setentrional, estava indicada no mapa como árida e arenosa,. enquanto que para além do rio se estendia um pântano imenso, que se alongava para o sul, formando um cabo agudo. A nordeste e a sudeste estendiam-se grandes filas de dunas, que davam àquela parte do litoral um aspecto muito diferente do que apresentava Sloughi-bay.

      Finalmente, a julgar pela escala traçada na parte inferior do mapa, a ilha devia ter cinquenta milhas de comprimento, do norte ao sul, e vinte e cinco de largura, de oeste para leste.

      Metendo em conta as irregularidades da sua configuração, era um desenvolvimento de cento e cinquenta milhas de circunferência.

      Quanto a saber a que grupo da Polinésia pertencia a ilha, se se achava ou não isolada no meio do Pacífico, era impossível formular conjecturas sérias a este respeito.

      Fosse como fosse, era uma instalação definitiva, e não provisória, que se impunha aos náufragos do Sloughi.

      E, visto que a caverna apresentava um refúgio magnífico, era conveniente transportar para lá o material, antes que os primeiros temporais do Inverno acabassem de demolir a escuna.

      Tratava-se agora de voltar ao acampamento e sem demora. Gordon devia estar muito inquieto - tinham decorrido três dias depois da partida de Briant e dos seus camaradas - e podia recear que lhes tivesse sucedido alguma desgraça.

      Por conselho de Briant, decidiu-se efectuar a partida nesse mesmo dia, às onze horas da manhã. Era inútil subir os rochedos, porque o mapa indicava que o mais simples era seguir a margem direita do rio que corria de leste para oeste... Até à baía eram, quanto muito, sete milhas, que podiam ser percorridas em algumas horas.

      Mas, antes de partir, os quatro rapazes quiseram prestar as últimas homenagens ao náufrago francês. A enxada serviu para cavar uma sepultura mesmo ao pé da árvore onde Francisco Baudoin tinha gravado as letras do seu nome, e nesse lugar colocou-se uma cruz de madeira.

      Terminada esta cerimónia piedosa, voltaram todos quatro para a caverna e taparam-lhe a entrada, para os animais não poderem penetrar lá. em seguida, depois de terem acabado o resto das provisões, desceram a margem direita do rio, costeando a base dos rochedos. Uma hora depois chegavam ao ponto onde o maciço se desviava, tomando uma direcção oblíqua para o nordeste.

      Enquanto seguiram o curso do rio, a marcha foi bastante rápida, porque a praia estava quase nua de árvores, de arbustos e de ervas.

      À medida que caminhavam, calculando que o rio servia de comunicação entre o lago e Sloughi-bay, Briant não cessava de examiná-lo com atenção. Pareceu-lhe que, pelo menos na parte superior do curso, uma embarcação qualquer, ou uma jangada, podia ser alada a cabo ou impelida a croque - o que facilitava o transporte do material, com a condição de se utilizar a maré, cuja acção se fazia sentir até ao lago. O mais importante era que o curso não se transformasse em catadupas, e que a falta de profundidade ou de largura não o tornasse impraticável. Não era assim, felizmente, e, em um espaço de três milhas, desde a saída do lago, o rio pareceu estar em excelentes condições de navegabilidade. Contudo, pelas quatro horas da tarde, o caminho da praia teve de ser abandonado. A margem direita era cortada por um grande pântano, sobre o qual não podiam aventurar-se sem risco. Por isso o mais prudente foi dirigirem-se para o meio da floresta.

      Briant, de bússola na mão, dirigiu-se para o nordeste a fim de chegar a Sloughi-bay pelo caminho mais curto. Houve então demoras consideráveis, porque as ervas, muito altas, formavam montões inextricáveis à superfície do solo. Além disso, sob a abóbada espessa de bétulas, de pinheiros e de faias, a escuridão sucedeu logo ao pôr do Sol.

      Foram percorridas duas milhas nestas condições fatigantes. Depois de ter contornado o pântano, que se estendia profundamente para o norte, o melhor, decerto, era tornar a seguir o curso do rio, visto que este, segundo as indicações do mapa, ia precipitar-se em Sloughi-bay. Mas a volta era tão grande que Briant e Doniphan não quiseram perder tempo a tomar novamente a sua direcção. Continuaram a caminhar através do bosque, e, pelas sete horas da noite, obtiveram a certeza de que se tinham perdido.

      Ver-se-iam então obrigados a passar a noite debaixo das árvores? E ainda o mal não seria grande se as provisões não se tivessem acabado, no momento em que a fome se fazia sentir vivamente.

      - Vamos sempre andando - disse Briant. - Caminhando do lado de oeste, havemos de chegar por força ao acampamento...

      - A não ser que o mapa nos desse indicações falsas – sugeriu Doniphan - e que este rio não seja o que vai desaguar na baía?

      - Porque havia de estar errado esse mapa, Doniphan?

      - E porque não havia de ser assim, Briant?

      Evidentemente, Doniphan, que não se conformara com o seu engano, obstinava-se em não ter grande confiança no mapa do náufrago.

      No entanto, não tinha razão, porque, na parte da ilha já reconhecida, o trabalho de Francisco Baudoin tinha sido feito com exactidão rigorosa.

      Briant achou inútil discutir sobre o caso, e puseram-se resolutamente a caminho.

      Às oito horas era impossível distinguir coisa alguma, tão profunda era a escuridão. E o limite daquela interminável floresta não se avistava!

      De repente, por uma abertura das árvores apareceu um vivo clarão que se propagava através do espaço.

      - Que é isto?... - perguntou Service.

      - Uma estrela cadente, decerto! - respondeu Wilcox.

      - Não, é um foguete de pólvora!... - explicou Briant. – Um foguete que foi deitado do Sloughi.

      - E, por consequência, é um sinal!... - exclamou Doniphan, que respondeu com um tiro de espingarda ao sinal de Gordon.

      No momento em que um segundo foguete subia nas trevas, Briant e os seus camaradas tomaram para ponto de referência uma estrela e, dirigindo-se por ela, três quartos de hora depois chegavam ao acampamento do Sloughi.

      Fora Gordon, efectivamente, que, receando que eles se tivessem perdido, se lembrara de atirar alguns foguetes a fim de lhes indicar a posição da escuna.

      Excelente ideia, sem a qual, nessa noite, Briant, Doniphan, Wilcox e Service não teriam podido descansar das suas fadigas nas camas do iate.

     

      É fácil imaginar como Briant e os seus três companheiros foram recebidos no Sloughi. Gordon, Cross, Baxter, Garnett e Webb abriram-lhes os braços, enquanto os mais pequenos lhes saltavam ao pescoço. Foi uma troca de gritos de alegria e de apertos de mão afectuosos. Phann tomou parte nesta recepção cordial e juntou os seus latidos aos hurras das crianças. A ausência parecera tão grande!

      - Perder-se-iam... Cairiam nas mãos dos indígenas?... Seriam atacados por alguns carnívoros?... - eis os pensamentos dos que tinham ficado no acampamento do Sloughi.

      Mas Briant, Doniphan, Wilcox e Service haviam regressado, e já não se tratava de saber os incidentes da expedição.

      Contudo, como estavam muito fatigados por um dia inteiro de marcha, adiou-se a narração para o dia seguinte.

      - Estamos numa ilha!

      Foi tudo o que Briant pôde dizer, e era o suficiente para o futuro aparecer com todas as suas eventualidades inquietadoras. Gordon, contudo, recebeu a notícia sem mostrar grande desânimo.

      - Já o esperava - parecia dizer - e não é coisa que me embarace muito!

      No dia seguinte - 5 de Abril -, ao amanhecer, Gordon, Briant, Doniphan, Baxter, Cross, Wilcox, Service, Webb, Garnett - e Moko também, que era bom conselheiro - reuniram-se na proa do iate, enquanto os outros dormiam ainda. Briant e Doniphan tomaram a palavra, cada um por sua vez, e puseram os camaradas ao facto do que se passara. Disseram como uma ponte de pedra que atravessava um regato e os restos de uma choça oculta sob um arvoredo espesso lhes tinham feito crer que o território era ou tinha sido habitado. Explicaram que a vasta porção de água, que primeiro haviam tomado por um mar, era apenas um lago, e como novos indícios os tinham conduzido à caverna, próximo do sítio em que o rio saía do lago; como os restos de Francisco Baudoin, francês de origem, tinham sido descobertos, e finalmente, como o mapa, desenhado pelo náufrago, indicava que o território onde o Sloughi se perdera era uma ilha.

      Esta narração foi feita minuciosamente, pois Briant e Doniphan não esqueceram o mínimo pormenor. E todos, agora, contemplando aquele mapa, compreendiam bem que a salvação não podia vir-lhes senão de fora!

      Contudo, posto que o futuro se apresentasse com as cores mais sombrias e os moços náufragos já não pudessem ter esperança senão em Deus, quem se assustou menos – convém insistir neste ponto - foi Gordon. O moço americano não tinha família que o esperasse na Nova Zelândia.

      Por isso, com o seu espírito prático, metódico, organizador, o trabalho de fundar, por assim dizer, uma pequena colónia não tinha nada de assustador para ele. Via nisso uma ocasião de exercer os seus gostos naturais, e não hesitou em animar os seus camaradas, prometendo-lhes uma existência suportável se quisessem auxiliá-lo.

      E, em primeiro lugar, visto que a ilha apresentava dimensões bastante consideráveis, parecia impossível que não estivesse indicada no mapa do Pacífico, nas proximidades do continente sul-americano. Contudo, depois de o examinar, reconheceu-se que o Atlas de Stieler não indicava nenhuma ilha de alguma importância fora dos arquipélagos, os quais compreendem as terras fueguianas ou magalânicas, as da Desolação, da Rainha Adelaide, de Clarence, etc. Ora, se a ilha fizesse parte desses arquipélagos, que não são separados do continente senão por canais estreitos, Francisco Baudoin tê-lo-ia decerto indicado no mapa - o que ele não fizera. Portanto, era uma ilha isolada, e devia concluir-se daí que se achava mais ao norte ou mais ao sul daquelas paragens. Mas, sem os dados suficientes, sem os instrumentos necessários, era impossível determinar-lhe a situação no Pacífico.

      Por consequência, não havia coisa alguma mais a fazer senão instalarem-se ali definitivamente, antes que o mau tempo o impedisse.

      - O melhor é escolhermos para morada a caverna que descobrimos nas margens do lago - propôs Briant. - É um abrigo excelente.

      - Tem o tamanho suficiente para nos alojar a todos? - perguntou Baxter.

      - Não, com certeza - respondeu Doniphan -, mas creio que será possível fazê-la maior, abrindo outra cavidade no maciço! Temos ferramentas...

      - Primeiro, aceitemo-la assim como está - replicou Gordon -, mesmo que fiquemos apertados...

      - E, sobretudo - acrescentou Briant -, tratemos de transportar tudo para lá o mais depressa possível!

      Era urgente.

      A escuna, segundo observou Gordon, tornava-se menos habitável de dia para dia. As últimas chuvas, às quais devia suceder um calor fortíssimo, tinham aberto as costuras do casco e da coberta. As velas esfarrapadas deixavam penetrar o ar e a água no interior. Além disso, no porão formavam-se algumas escavações, através da areia da praia corriam infiltrações, e o costado do iate acentuava-se, ao mesmo tempo que se enterrava visivelmente no solo, que se tornara muito móvel. Se uma tempestade como as que se produzem no período do equinócio, o qual ainda durava, se desencadeasse naquela costa, o Sloughi estava arriscado a ser feito em pedaços em poucas horas.

      Tratava-se, portanto, não só de o abandonar sem demora, mas também de o demolir metodicamente, de maneira que se pudesse tirar dele tudo o que fosse útil, traves, pranchas, ferro, cobre, para a instalação em French-Den (Gruta Francesa) – nome que deram à caverna como recordação do náufrago francês.

      - E enquanto não pudermos ir para lá - perguntou Doniphan - onde  viveremos?

      - Debaixo de uma tenda - respondeu Gordon -, uma tenda que havemos de erguer na margem direita do rio, entre as árvores.

      - É o melhor que há a fazer - aprovou Briant -, e sem perda de uma hora!

      Efectivamente, a demolição do iate, a descarregação do material e das provisões, a construção de uma jangada para transportar a carga, tudo isto exigia um mês de trabalho, pelo menos, e, antes de se abandonar Sloughi-bay, chegariam os primeiros dias de Maio, que correspondem aos primeiros dias de Novembro no hemisfério boreal, isto é, ao princípio do Inverno.

      Gordon tivera razão em escolher a margem direita do rio para estabelecer o novo acampamento, porque assim o transporte devia efectuar-se por mar. Não havia outro caminho mais direito nem mais cómodo. Acarretar através da floresta ou pela praia tudo o que ficasse do iate depois da demolição era uma tarefa quase irrealizável.

      Pelo contrário, aproveitando, durante umas poucas de marés, o fluxo que se fazia sentir até ao lago, far-se-ia chegar uma jangada ao seu destino, sem muito custo.

      Como se sabe, o rio não apresentava obstáculo algum no seu curso superior, nem catadupas, nem barreiras. Fez-se com a canoa nova exploração, com o fim de reconhecer o curso inferior desde o pântano até à embocadura. Briant e Moko puderam certificar-se de que esse curso era igualmente navegável. Portanto, estava indicado o meio de comunicação entre Sloughi-bay e French-Den.

      Os dias seguintes foram empregados em dispor o acampamento na margem do rio. Os ramos inferiores de duas faias, ligados por grandes varas aos ramos de uma outra, serviram de apoio à grande vela sobresselente do iate, deixando-a cair dos lados até ao chão. Foi para debaixo desta tenda, presa solidamente por amarras, que se transportaram as camas, os utensílios de mais necessidade, as armas, as munições e os pacotes de provisões. Como a jangada devia ser construída com os destroços do iate, era preciso esperar que a demolição estivesse concluída.

      O tempo auxiliou os náufragos, conservando-se seco.

      Quando havia algum vento, era de terra, e o trabalho pôde fazer-se em boas condições.

      No dia 15 de Abril já não estava nada a bordo da escuna, a não ser os objectos muito pesados, que não se podiam retirar senão depois da demolição - entre outros, as barras de chumbo que serviam de lastro, os tanques de água introduzidos no porão, o cabrestante e a cozinha, muito pesados para serem removidos sem um aparelho. Quanto ao aparelho do navio, mastro de traquete, vergas, ovéns e brandais de ferro, cadeias, âncoras, cordames, amarras, cabos e outros objectos, dos quais havia uma provisão considerável, tudo fora transportado para as proximidades da tenda.

      É inútil dizer que, embora o trabalho fosse urgente, não se esqueciam de prover às necessidades diárias. Doniphan, Webb e Wilcox consagravam algumas horas à caça dos pombos bravos e dos outros voláteis que vinham do pântano.

      Os pequenos entretinham-se a apanhar moluscos, logo que a maré deixava o banco de recifes a descoberto. Jenkins, Iverson, Dole e Costar corriam e mexiam-se como uma ninhada de pintos pelo meio das poças de água. Às vezes molhavam-se até à cintura - pelo que eram repreendidos pelo severo Gordon, enquanto que Briant os desculpava o melhor que podia.

      Jaime também trabalhava com os seus camaradas, mas sem tomar parte nas suas gargalhadas.

      Tudo corria bem, e com um método onde se sentia a intervenção de Gordon, cujo bom senso prático não errava nunca.

      Doniphan admitia-lhe o que não admitiria a Briant nem a nenhum dos outros. Enfim, a união reinava entre os pequenos náufragos: era o principal.

      Entretanto era necessário apressarem-se. A segunda quinzena de Abril foi  menos agradável. A temperatura baixou sensivelmente e muitas vezes, pela manhã, a coluna termométrica desceu a zero. O Inverno aproximava-se, e com ele o seu cortejo de granizo, de neve, de rajadas de vento, tão temíveis nas paragens altas do Pacífico.

      Por precaução, vestiram-se todos mais confortavelmente, com as meias fortes, as calças de pano grosso e as camisolas de lã, arranjadas para um Inverno rigoroso.

      Não foi preciso mais do que consultar a carteira de Gordon para se saber onde estavam os vestuários, classificados segundo a qualidade e o tamanho.

      Com os mais novos, sobretudo, é que Briant se preocupava. Evitava, sempre que podia, que eles tivessem os pés frios ou se expusessem ao ar quando estavam banhados em suor. A mais leve constipação, obrigava-os a deitarem-se ao lado de um braseiro que estava aceso de dia e de noite.

      Dole e Costar estiveram encerrados, por várias vezes, na tenda, à falta de quarto, e Moko não poupou as tisanas, cujos ingredientes eram fornecidos pela farmácia de  bordo.

      Logo que se tirou do iate tudo o que ele continha, atacou-se o casco, que já estalava por todos os lados.

      As folhas do forro de cobre foram tiradas com cuidado a fim de servirem para a instalação em French-Den. Em seguida, as tenazes, as pinças e o martelo fizeram o seu ofício para arrancarem as cintas que os pregos e as cavilhas prendiam ao cavername. Foi um trabalho rude para aquelas mãos inexperientes e para aqueles braços ainda pouco vigorosos.  Por isso a demolição fazia-se lentamente, quando, a 25 de Abril, sobreveio uma borrasca que auxiliou os trabalhadores.

      Durante a noite, apesar de já ter chegado a estação fria, desencadeou-se uma tempestade muito violenta, que tinha sido anunciada pela perturbação do storm-glass. Os raios abrasaram o espaço, o estampido dos trovões não cessou desde a meia-noite até ao romper do dia - com grande susto dos mais pequenos. Não choveu, felizmente, mas foi necessário, por duas ou três vezes, defender a tenda das fúrias do vento.

      Contudo, se ela resistiu, graças às árvores entre as quais estava amarrada, não sucedeu o mesmo ao iate, exposto directamente ao vento do largo e açoutado pelas ondas embravecidas.

      A demolição foi completa.

      As cintas do casco foram arrancadas, as cavernas deslocadas, a quilha despedaçada por algumas pancadas violentas do leme.

      Não houve nada a lastimar, porque as ondas, ao retirarem-se, não arrastavam senão uma parte destes objectos, e esses mesmos foram detidos pelos recifes. Quanto às ferragens, não era difícil achá-las debaixo da areia.

      Foi a esse trabalho que se entregaram nos dias seguintes.

      Os barrotes, as pranchas, as barras do porão, os objectos que não se tinham podido arrancar estavam espalhados na praia. Tratava-se apenas de transportá-los para a margem direita do rio, a alguns passos da tenda.

      Trabalho penoso, é verdade; mas com o tempo e muita fadiga, conseguiu-se terminá-lo.

      Era curioso vê-los todos agarrados a uma peça de madeira, alando ao mesmo tempo, e animando-se uns aos outros com mil gritos. Serviram-se de espeques, que faziam as vezes de alavancas e de bocados de madeira redondos, que facilitavam o rodar das peças maiores e mais pesadas.

      O pior foi conduzir ao seu destino o cabrestante, o forno da cozinha e os tanques de folha de ferro para água, cujo peso era bastante considerável.

      Se aquelas crianças fossem guiadas por um homem prático! Se tivessem ao seu lado o pai de Briant e o de Garnett, o engenheiro e o capitão, teriam evitado muitos erros que elas cometeram e que deviam ainda cometer.

      Contudo, Baxter, que era muito inteligente para tudo o que dizia respeito à mecânica, auxiliou os outros com a sua habilidade. Foi ele quem, aconselhado por Moko, fixou poleames em estacas enterradas na areia - o que duplicou as forças àquela equipagem de rapazes e lhes permitiu que acabassem o trabalho.

      No dia 28, à noite, tudo o que restava do Sloughi tinha sido levado para o lugar do embarque. E o mais difícil estava feito, porque o rio é que ia encarregar-se de transportar todo o material para French-Den.

      - Amanhã - disse Gordon - começamos a tratar da construção da nossa jangada...

      - Sim - apoiou Baxter -, e para não termos o trabalho de deitá-la à água, é melhor construí-la à superfície do rio...

      - Não deve ser cómodo! - observou Doniphan.

      - Não tem dúvida, experimenta-se! - volveu Gordon.

      - Dá-nos mais trabalho a construir, mas em compensação não temos de pensar em deitá-la à água.

      Efectivamente, era o melhor que tinham a fazer, e eis como no dia seguinte se começou a construção da jangada, a qual devia ter as dimensões suficientes para receber uma carregação pesada e volumosa.

      As traves arrancadas à escuna, a quilha partida em dois bocados, o mastro de traquete, o resto do mastro grande, quebrado três pés acima da coberta, as barras pequenas e a viga mestra, o mastro da proa, a verga de traquete, a retranca da mezena, a carangueja, tudo foi  transportado para um ponto da praia que não era coberto pelo mar senão à hora da maré cheia.

      Esperou-se esse momento e, quando o fluxo ergueu estas peças, foram lançadas para a superfície do rio. Aí, as mais compridas, reunidas umas às outras pelas mais pequenas atravessadas por cima, foram amarradas solidamente.

      Obteve-se assim uma embarcação sólida, com perto de trinta pés de comprimento e quinze de largura. Trabalhou-se sem descanso durante todo o dia, e quando veio a noite estava a embarcação concluída.

      Briant teve o cuidado de amarrá-la às árvores da praia, a fim de que a maré, ao encher, não pudesse arrastá-la para cima, para o lado de French-Den, nem a vazante, para baixo, para o lado do mar. , Exaustos, depois de um dia tão trabalhoso, cearam com um apetite formidável e dormiram profundamente até pela manhã.

      No dia seguinte, 30, ao amanhecer, todos voltaram ao trabalho. , Tratava-se agora de construir a plataforma da jangada. Para isso serviram as pranchas da coberta e as cintas do costado do Sloughi.

      Alguns pregos, enterrados a martelo, e cordas, ligadas debaixo das traves, formaram amarras sólidas que fortaleceram o todo.

      Empregaram-se três dias neste trabalho, apesar de todos se apressarem, porque não havia uma hora a perder.

      Já apareciam algumas cristalizações à superfície dos charcos, entre os recifes e nas margens do rio. O abrigo da tenda começava a ser insuficiente, apesar do calor do braseiro.

      Gordon e os seus companheiros chegavam-se uns para os outros e embrulhavam-se nas mantas, a fim de combaterem o abaixamento da temperatura, o que já era difícil.

      Portanto, era necessário activar a tarefa para começar a instalação definitiva em French-Den. Aí talvez fosse possível afrontar os rigores do Inverno, tão rude naquelas latitudes.

      É inútil dizer que a plataforma fora construída o melhor possível, para não se desmanchar no caminho - o que faria perder o material no leito do rio. Assim, para evitar essa catástrofe, antes demorar a partida vinte e quatro horas.

      - Contudo - observou Briant -, é conveniente não esperar mais do que até 6 de Maio.

      - Porquê? - perguntou Gordon.

      - Porque depois de amanhã é lua-nova - explicou Briant – e as marés vão crescer durante alguns dias. Ora, sendo elas mais fortes, ajudar-nos-ão melhor a subir o curso do rio. Ora pensa bem, Gordon! Se fôssemos obrigados a alar a jangada a cabo ou a empurrá-la a croque, nunca chegaríamos a vencer a corrente!...

      - Tens razão - concordou Gordon -, é necessário partir daqui a três dias, o mais tardar!

      Todos concordaram em não descansar antes de concluir a tarefa.

      No dia 3 de Maio tratou-se da carregação, que era necessário arrumar com cuidado, a fim de que a jangada fosse equilibrada convenientemente.

      Todos se empregaram nesse trabalho, cada um segundo as suas forças.

      Jenkins, Iverson, Dole e Costar foram encarregados de transportar os objectos miúdos, utensílios, ferramentas, instrumentos, para a plataforma, onde Briant e Baxter os dispunham metodicamente segundo as indicações de Gordon.

      Quanto aos objectos de peso mais considerável, o fogão, os tanques da água, o cabrestante, as ferragens, as cintas do forro e, depois, o resto dos fragmentos do Sloughi, as cavernas, as cintas do casco, as barras da coberta – foi aos mais velhos que pertenceu o trabalho de embarcar tudo isto, assim como os pacotes de provisões, os barris de vinho, de cerveja e de aguardente, não esquecendo muitas sacas de sal, que tinha sido apanhado entre as rochas da baía.

      Para facilitar o embarque, Baxter ergueu dois espeques, sustentados por quatro cordas. Na extremidade desta espécie de cabrilha, ajustou-se uma roldana, devidamente gornida por um cabo, o qual ia passar numa polé, pertencente a um pequeno sarilho do iate - sendo assim os objectos levantados do chão e colocados sem choque na plataforma.

      Todos trabalharam com tanta prudência e tanto zelo que no dia 5 de Maio, à tarde, cada objecto estava no lugar que lhe pertencia. Faltava só largar as amarras da jangada. Isso far-se-ia no dia seguinte de manhã, pelas oito horas, logo que a maré cheia se manifestasse na embocadura do rio.

      Os pequenos náufragos imaginavam que, estando o trabalho terminado, iam gozar até à noite um descanso bem merecido. Mas não foi assim: uma proposta de Gordon deu-lhes ainda ocupação para o resto do dia.

      - Meus amigos - disse ele -, como vamos para longe da baía, não podemos observar tão bem o mar, e, se aparecesse algum navio deste lado da ilha, não podíamos fazer-lhe sinais. Parece-me, pois, conveniente colocar um mastro na penedia, e içar aí um dos nossos pavilhões.

      É bastante para atrair a atenção dos navios que passarem ao largo.

      Todos aceitaram a proposta, e o mastro da gávea da escuna, que não tinha sido empregado na construção da jangada, foi arrastado para junto da penedia, cujo talude, próximo da margem do rio, apresentava um declive muito praticável. Contudo, tiveram de empregar os maiores esforços para transpor o cerro tortuoso que ia ter ao cume.

      Quando chegaram lá, enterraram o mastro no chão, solidamente. Em seguida, Baxter içou o pavilhão inglês, por meio de uma driça, no momento em que Doniphan o saudava com um tiro de espingarda.

      - Olha - disse Gordon a Briant -, Doniphan acaba de tomar posse da ilha, em nome da Inglaterra!

      - Se ela não lhe pertencesse já é que seria para admirar! - respondeu Briant.

      Gordon não pôde deixar de fazer um gesto de aborrecimento, porque, pelo modo como ele falava às vezes da “sua ilha”, parecia que já a considerava americana.

      No dia seguinte, ao nascer do Sol, todos estavam de pé. Tratou-se de desmanchar a tenda e de transportar as camas para a jangada, onde se estenderam velas para as protegerem até ao seu destino. Do tempo não parecia haver nada a recear. Contudo, uma mudança na direcção do vento podia trazer para a ilha os vapores do largo.

      Às sete horas estava tudo concluído.

      Os objectos tinham sido colocados na plataforma, de maneira que os pequenos náufragos pudessem instalar-se aí por dois ou três dias, sendo necessário.

      Quanto às provisões de boca, Moko pusera de parte o suficiente para a travessia, sem que fosse preciso lume.

      Às oito horas e meia todos entraram para a jangada. Os mais velhos iam na proa, armados de croques e de espeques – único meio que tinham de dirigi-la porque um leme não teria acção na corrente.

      Um pouco antes das nove horas, quando a maré começava a encher, sentiu-se um estalido no madeiramento da jangada, cujas peças balouçavam dentro das amarras. Mas, depois deste primeiro esforço, não houve mais nada a recear.

      - Atenção! - gritou Briant.

      - Atenção! - repetiu Baxter.

      Estavam ambos pegando nas amarras que seguravam a jangada pela proa e pela ré.

      - Estamos prontos! - gritou Doniphan, que estava ao lado de Wilcox na parte anterior da plataforma.

      Em seguida, depois de ter verificado que a jangada derivava sob a acção da maré:

      - Larga! - ordenou Briant.

      A ordem foi executada imediatamente, e o aparelho, depois de livre, subiu lentamente entre as duas margens, arrastando a canoa que levava a reboque.

      Foi uma alegria geral quando todos viram a pesada máquina em movimento.

      Se tivessem construído um navio de alto bordo, não estavam mais satisfeitos! Perdoe-se-lhes este pequeno sentimento de vaidade!

      Como se sabe, a margem direita, orlada de árvores, era muito mais elevada do que a margem esquerda, a qual não era mais do que uma passagem estreita que se estendia ao longo do pântano próximo. Briant, Baxter, Doniphan, Wilcox e Moko empregaram todos os seus esforços para afastarem dela a jangada – porque a profundidade da água permitia que seguissem a margem oposta do rio.

      A jangada conservou-se, portanto, tanto quanto foi possível, junto da margem direita, ao longo da qual a corrente do fluxo corria mais directamente, e que podia apresentar um ponto de apoio aos croques.

      Duas horas depois da partida, o caminho percorrido podia calcular-se em uma milha, pouco mais ou menos. Não tinha havido o mínimo choque, e, nestas condições, a embarcação devia chegar sem dano a French-den.

      Todavia, segundo o cálculo feito anteriormente por Briant, como, por um lado, aquele curso de água devia medir seis milhas desde o lago até à sua embocadura em Sloughi-bay, e, por outro, a jangada não podia percorrer senão duas milhas enquanto durava a maré cheia, ser-lhes-iam precisas umas poucas de marés para chegarem ao seu destino.

      Efectivamente, pelas onze horas, a vazante começou a levar as águas para baixo, e tratou-se imediatamente de amarrar a jangada, a fim de não a deixar derivar para o mar. Poderiam continuar a avançar quando a maré da noite   começasse a encher; mas seria aventurarem-se no meio da escuridão.

      - Isso parece-me muito importante - observou Gordon -, porque a jangada expor-se-ia a choques que podiam demoli-la. Na minha opinião, é melhor esperarmos até amanhã, para se aproveitar a maré do dia!

      Esta proposta não podia deixar de merecer a aprovação geral.

      Mesmo que se precisasse de mais vinte e quatro horas, essa demora era preferível ao risco de comprometer a segurança da preciosa carregação entregue à corrente do rio.

      Portanto, era necessário passarem o resto do dia e a noite toda naquele lugar. Por isso Doniphan e os seus companheiros de caça habituais, acompanhados por Phann, desembarcaram na margem direita, prometendo que voltariam antes da noite.

      Gordon recomendara-lhes que não se afastassem muito, o que eles prometeram. Quando voltaram, traziam dois casais de abetardas bem gordas e uma enfiada de tinamus magníficos.

      Por conselho de Moko, guardou-se esta caça para a primeira refeição, almoço, jantar ou ceia, que houvesse no refeitório de French-den.

      Doniphan não descobrira, durante a sua excursão, indício algum que revelasse a presença, antiga ou recente, de seres humanos naquela parte da floresta. A respeito de animais, tinha avistado alguns voláteis de grande estatura que fugiam por entre o arvoredo, mas não pudera reconhecer a que espécie pertenciam.

      Passou o dia, e durante a noite Baxter, Webb e Cross estiveram de vigia, prontos, conforme o caso, ou a apertar as amarras da jangada, ou a alargá-las um pouco, no momento da transposição da maré.  Tudo correu bem. No dia seguinte, pelas nove horas e três quartos, logo que a maré começou a encher, a navegação continuou nas mesmas condições da véspera. A noite estivera fria. O dia esteve do mesmo modo.

      Já era tempo de chegarem ao seu destino. O que seria feito da jangada se as águas do rio gelassem, se alguns pedaços de gelo, vindos do lago, se dirigissem para Sloughi-bay?

      Era isto um motivo de inquietação, de que não podiam ver-se livres senão depois da chegada a French-den.

      E, entretanto, era Impossível Ir mais depressa do que o fluxo; também era impossível vencer a corrente quando a maré começava a descer; por consequência não se podia transpor mais de uma milha em cada hora e meia, e foi o que se percorreu naquele dia.

      Pela uma hora da tarde pararam à altura do barranco que Briant contornara para regressar a Sloughi-bay. Aproveitou-se a ocasião para explorar a parte marginal desse barranco.

      Durante milha e meia, a canoa, onde iam Moko, Doniphan e Wilcox, dirigiu-se para o norte, e não parou senão no momento em que lhe faltou a água. O barranco era como que um prolongamento do pântano que se estendia para além da margem esquerda, e parecia ter caça aquática em abundância.

      Doniphan matou algumas narcejas, que foram juntar-se às abetardas e aos tinamus na despensa de bordo.

      A noite foi tranquila, mas glacial, com uma brisa áspera, que soprava através do vale. Formaram-se até alguns pedaços de gelo flutuantes, que se quebravam ou dissolviam ao mínimo choque.

      Apesar de todas as precauções, e de cada um se agachar debaixo das velas, não se estava bem na jangada. Alguns dos mais pequenos, Jenkins e Iverson, principalmente, não puderam vencer o mau humor, e lastimaram-se por terem deixado o acampamento do Sloughi. Foi preciso Briant incutir-lhes coragem com palavras animadoras.

      Finalmente, no dia seguinte, de tarde, com o auxílio da maré, que durou até às três horas e meia da noite, a jangada chegou ao lago e atracou junto da praia, em frente da porta de French-den.

     

      O desembarque fez-se no meio dos gritos de alegria dos mais pequenos, para quem todas as mudanças na vida ordinária equivaliam a um brinquedo novo. Dole saltava na praia como um cabrito, Iverson e Jenkins corriam ao lado do lago, enquanto Costar, chamando Moko de parte, dizia:

      - Olha que nos prometeste um bom jantar, grumete!

      - Pois há-de passar sem ele, Sr. Costar - respondeu Moko.

      - Porquê?

      - Porque hoje não tenho tempo para lhes dar de jantar!

      - O quê, não se janta?...

      - Não, mas ceia-se, e as abetardas não são piores à ceia!

      E Moko ria, mostrando os dentes brancos e polidos.

      O pequeno, depois de lhe ter dado um empurrão de amizade, foi juntar-se aos camaradas. Briant ordenara-lhes que não se afastassem, a fim de poder tomar sentido neles.

      - Não vais também?... - perguntou ele a seu irmão.

      - Não! Gosto mais de ficar aqui! - respondeu Jaime.

      - Era melhor que fizesses algum exercício - tornou Briant. - Não estou satisfeito contigo, Jaime!... Escondes-me seja o que for... Ou então estás doente?

      - Não, não tenho nada!

      Sempre a mesma resposta, que não podia satisfazer Briant, muito resolvido a esclarecer aquele caso - ainda que fosse à custa de uma cena com o pequeno obstinado.

      Entretanto, se quisessem passar aquela noite em French-den, não havia uma hora a perder.

      Primeiro, tratava-se de mostrar a caverna aos que ainda não a conheciam. Por isso, logo que a jangada foi amarrada solidamente à praia, no meio de um redemoinho, fora da corrente do rio, Briant pediu aos camaradas que o acompanhassem. O grumete levava na mão um farol de bordo, cuja chama, aumentada pelo poder das lentes, dava uma luz muito viva.

      Tratou-se, primeiro, de destapar o orifício. Os ramos estavam exactamente como Briant e Doniphan os tinham colocado. Portanto, nenhum ser humano, nenhum animal tentara penetrar em French-den.

      Depois de terem afastado os ramos, deixaram-se escorregar pela abertura. A luz do farol dava muito mais claridade à caverna do que poderia dar a luz dos ramos resinosos ou a das velas toscas do náufrago.

      - Olá! Vamos ficar muito apertados aqui! - observou Webb, que acabava de medir a profundidade da caverna.

      - Ora adeus! - exclamou Garnett. - Pondo as camas umas por cima das outras, como num beliche...

      - Para quê? - replicou Wilcox. - É bastante colocá-las no chão, em fila...

      - Pois sim! E resignarmo-nos a não andar para cá e para lá; e pronto! - observou Briant. - Tens alguma coisa melhor para nos oferecer, Webb?

      - Não, mas...

      - Mas - interrompeu Service - o principal é ter um abrigo razoável! Creio que não esperavas achar aqui uns aposentos completos, com salão, casa de jantar, quarto de cama, vestíbulo, gabinete de fumo, sala de banho...

      - Não - disse Cross. - Mas é preciso que haja um lugar onde se possa cozinhar...

      - Cozinha-se lá fora - sugeriu Moko.

      - Isso é muito incómodo quando houver temporal – observou Briant. - Parece-me que devemos trazer para aqui, hoje mesmo, o fogão do Sloughi.

      - O fogão... na cavidade onde comemos e onde dormimos! - objectou Doniphan, com ar de repugnância.

      - Ora essa! Respira sais, lord Doniphan! - exclamou Service, dando uma gargalhada.

      - Se isso me convier, bicho da cozinha! - replicou o orgulhoso rapaz, franzindo as sobrancelhas.

      - Bem!... bem!... - acudiu Gordon, para acabar a questão. - Quer seja agradável, quer não seja, é preciso que nos resignemos a principiar assim! Além disso, o fogão, ao mesmo tempo que serve para cozinhar, deve aquecer o interior da caverna. Quanto a abrir outros quartos no maciço para ficarmos mais à vontade, temos todo o Inverno para esse trabalho, se for possível fazê-lo. Mas, primeiro, aceitemos French-den assim como está, e instalemo-nos o melhor possível.

      Antes do jantar, as camas foram transportadas e postas em linha na areia. Ficaram unidas umas às outras, mas os pequenos, acostumados aos beliches estreitos da escuna, não se importaram com isso.

      Este trabalho durou até ao fim do dia. A mesa grande do iate foi colocada no meio da caverna, e Garnett, ajudado pelos mais pequenos, que lhe traziam os diferentes utensílios de bordo, encarregou-se de pôr a mesa para a ceia.

      Moko, ajudado por Service, também se tornara muito útil. Alimentou uma fogueira, disposta entre duas grandes pedras, ao pé do contraforte da penedia, com ramos secos que Webb e Wilcox tinham ido apanhar debaixo das árvores da praia. Pelas seis horas, a carne seca - que era suficiente submeter a uma ebulição de alguns minutos - fumegava, espalhando um aroma delicioso. Ao mesmo tempo, uma dúzia de tinamus enfiados num espeto, depois de convenientemente depenados, assavam-se defronte de um lume crepitante, por cima de um molho onde Costar desejava muito ensopar os dedos. E enquanto Dole e Iverson desempenhavam conscienciosamente o ofício de ajudantes de cozinheiro, Phann seguia-lhes todos os movimentos com um interesse muito significativo.

      Antes das sete horas estavam todos reunidos na única sala de French-den - refeitório e dormitório, ao mesmo tempo. Os escabelos, os bancos de dobrar e as cadeiras de vime do Sloughi tinham sido transportados, assim como os bancos da tripulação.

      Os pequenos convivas, servidos pelo grumete e por eles mesmos, comeram com apetite uma ceia substancial. Sopa fervida, um pedaço de carne salgada, o assado de tinamus, bolacha em lugar de pão, água fresca com algumas gotas de brandy, um bocado de Chester e alguns copos de sherry à sobremesa compensaram-nos das refeições medíocres dos últimos dias. Apesar da gravidade da situação, os mais pequenos entregaram-se à alegria da sua idade, e Briant, longe de os reprimir, alegrou-se com as suas gargalhadas.

      O dia tinha sido trabalhoso. Depois da fome satisfeita, ninguém pensava senão em ir descansar. Mas, antes disso, Gordon, guiado por um sentimento religioso, propôs aos seus camaradas irem fazer uma visita à sepultura de Francisco Baudoin, cuja morada ocupavam agora.

      A noite sombreava o horizonte do lago, e as águas já não reflectiam os últimos raios do dia. Os pequenos náufragos, depois de terem passado o contraforte, pararam junto de uma pequena elevação do solo, sobre a qual se erguia uma cruz de madeira. Então, os mais novos de joelhos e os outros curvados diante daquela sepultura, dirigiram a Deus uma prece por alma do náufrago.

      Às nove horas já as camas estavam ocupadas, e todos, apenas se embrulharam nas cobertas, adormeceram profundamente. Wilcox e Doniphan, a quem pertencia ficar de guarda, acenderam, à entrada da caverna, uma grande fogueira, que devia servir para afastar os visitantes perigosos, ao mesmo tempo que aquecia o interior.

      No dia seguinte, 9 de Maio, e durante os três que se seguiram, a descarregação da jangada exigiu todos os braços. Os vapores ,já persistiam em acumular-se com o vento de oeste, anunciando um período de chuva ou mesmo de neve. Efectivamente, a temperatura não excedia o zero do termómetro, e as zonas elevadas deviam ter arrefecido muito. Portanto, era necessário levar tudo o que pudesse estragar-se, munições, provisões sólidas ou líquidas, para o interior de French-den.

      Durante estes dias, como o trabalho era urgente, os caçadores não se afastaram. Mas, como a caça aquática era em abundância, quer à superfície do lago, quer por cima do pântano, na margem esquerda do rio, Moko nunca deixou de ter que fazer. Narcejas, patos e cercetas deram ocasião a Doniphan de se servir bastantes vezes da espingarda.

      Contudo, Gordon não podia ver sem pesar gastar tanto chumbo e tanta pólvora com a caça - mesmo quando esta era produtiva. Desejava, sobretudo, poupar as munições, cujas quantidades exactas estavam assentes na sua carteira. Por isso recomendou muito a Doniphan que economizasse os tiros.

      - É preciso pensar no futuro - advertiu ele.

      - De acordo - respondeu Doniphan -, mas é preciso também não gastar as conservas todas! Arrepender-nos-íamos de o ter feito, se aparecesse algum meio de deixarmos a ilha...

      - Deixar a ilha?... - estranhou Gordon. - Pois nós somos capazes de construir uma embarcação que possa aguentar o mar?...

      - Porque não, Gordon, se perto daqui houver algum continente?... Em todo o caso, eu não desejo morrer aqui, como o compatriota do Briant!...

      - Pois sim - respondeu Gordon -, mas, antes de pensar em partir, acostumemo-nos à ideia de sermos, talvez, obrigados a viver neste território anos e anos.

      - Isso é mesmo de Gordon! - exclamou Doniphan. - Tenho a certeza de que estás encantado com a ideia de fundar uma colónia...

      - Decerto, se não puder fazer outra coisa!

      - Pois não me parece que arranjes muitos partidários da tua mania - nem mesmo o teu amigo Briant!

      - Temos tempo para discutir isso - volveu Gordon. - E, a propósito de Briant, devo dizer-te que és injusto para com ele, Doniphan. É um bom camarada, que nos tem dado provas de dedicação...

      - Ora essa, Gordon! - replicou Doniphan, com o ar de desdém que lhe era natural -, Briant tem todas as qualidades! É um herói...

      - Não, Doniphan, também tem defeitos, como nós. Mas os teus sentimentos a seu respeito podem ser a causa de uma desunião que tornaria a nossa situação ainda mais penosa! Briant é estimado por todos...

      - Oh! por todos!

      - Ou, pelo menos, pela maior parte dos seus camaradas. Não sei por que razão Wilcox, Cross, Webb e tu não querem ouvir falar nele! Digo-te isto de passagem, Doniphan, e tenho a certeza de que hás-de reflectir...

      - Já reflecti, Gordon!

      Gordon viu bem que o orgulhoso rapaz estava pouco disposto a fazer caso dos seus conselhos - o que o inquietava, porque previa questões sérias para o futuro.

      Como se disse, a descarga completa da jangada levara três dias. Faltava apenas demolir o madeiramento e a plataforma, cujas pranchas podiam ser empregadas no interior de French-den.

      Infelizmente o material não coubera todo na caverna, e, se não se conseguisse tornar esta maior, seria necessário construir um alpendre, debaixo do qual os pacotes estariam ao abrigo do mau tempo.

      Entretanto, por conselho de Gordon, os objectos amontoaram-se no ângulo do contraforte, cobertos com lonas alcatroadas; que serviam para proteger as clarabóias e os anteparos do iate.

      No dia 18, Baxter, Briant e Moko procederam à instalação do fogão, que foi preciso arrastar sobre cilindros até ao interior de French-den. Aí encostaram-no à parede da direita, perto da entrada, de maneira que a tiragem pudesse fazer-se em melhores condições. Quanto ao tubo que devia conduzir para fora os produtos da combustão, a sua colocação promoveu algumas dificuldades. Contudo, como o calcário do maciço era mole, Baxter conseguiu fazer um buraco, através do qual passou o tubo, saindo assim o fumo para o exterior. De tarde, quando o grumete acendeu o fogão, teve o prazer de verificar que funcionava convenientemente. Portanto, mesmo com o mau tempo, a cocção dos alimentos estava certa.

      Durante a semana seguinte, Doniphan, Webb, Wilcox e Cross, aos quais se juntaram Garnett e Service, puderam satisfazer os seus gostos de caçadores. Um dia, embrenharam-se na floresta de bétulas e de faias, a meia milha de French-den, do lado do lago. Em alguns pontos apareceram indícios muito visíveis do trabalho do homem. Eram covas, feitas no solo, cobertas de ramos, e bastante profundas para que os animais que caíssem nelas não pudessem sair de lá. Mas o estado dessas covas indicava que datavam de muitos anos, e uma delas continha ainda os restos de um animal, cuja espécie não se podia reconhecer.

      - Esses ossos são de um animal de grande estatura! - observou Wilcox, que se deixara logo escorregar até ao fundo da cova e tirara de lá as ossadas, já muito embranquecidas pelo tempo.

      - E era um quadrúpede; aqui estão os ossos das suas quatro patas - acrescentou Webb.

      - A não ser que haja aqui animais de cinco patas – gracejou Service -, e então este não podia ser senão um carneiro ou um veado fenómeno!

      - Sempre gracejos, Service! - disse Cross.

      - Não é proibido rir! - replicou Garnett.

      - O que é certo - tornou Doniphan - é que este animal devia ser muito vigoroso. Vejam o tamanho da cabeça e da mandíbula, ainda armada de presas! Service que brinque, se isso o diverte, com os seus carneiros de arlequim e os veados de feira! Mas se este quadrúpede ressuscitasse, parece-me que ninguém teria vontade de rir ao pé dele!

      - Bem respondido! - exclamou Cross, sempre disposto a achar excelentes as réplicas de seu primo.

      - Julgas então - perguntou Webb a Doniphan - que esses restos pertencem a um carnívoro?

      - Sim, tenho a certeza...

      - Um leão?... Um tigre?... - perguntou Cross, que não parecia estar muito satisfeito.

      - Sim - respondeu Doniphan -, ou, pelo menos, a um jaguar ou a um cuguardo!

      - É preciso estarmos de prevenção!... - advertiu Webb.

      - E não nos afastarmos para muito longe! – acrescentou Cross.

      - Ouves, Phann - disse Service, voltando-se para o cão -, há animais ferozes por aqui!

      Phann respondeu com um latido alegre que não mostrava inquietação.

      Os pequenos caçadores dispuseram-se então a voltar para French-den.

      - Uma ideia - disse Wilcox. - Se nós cobríssemos esta cova com outros ramos?... Talvez algum animal se deixasse apanhar.

      - Como quiseres, Wilcox - respondeu Doniphan. - Mas eu prefiro matar a caça em liberdade a assassiná-la no fundo de uma cova!

      Era o sportsman que falava assim; mas, afinal, Wilcox, com o seu gosto natural, mostrava-se mais prático do que Doniphan.

      Por isso, apressou-se em executar a sua ideia. Os seus camaradas ajudaram-no a cortar ramos nas árvores próximas; em seguida, colocaram os mais compridos em cima da cova, e a sua folhagem dissimulou completamente a abertura. Laço muito rudimentar, é certo, mas empregado muitas vezes, com êxito, pelos caçadores dos Pampas.

      Wilcox deu alguns cortes nos troncos das árvores até à entrada da floresta, a fim de se reconhecer o lugar onde estava a cova, e voltaram todos para French-den.

      Estas caçadas, em todo o caso, não deixavam de ser produtivas. A caça de pena abundava. Sem falar nas abetardas e nos tinamus, via-se grande número de gaivotas, cujas penas, salpicadas de branco, faziam lembrar as das galinhas-da-índia, de pombos dos bosques, que voavam aos bandos, de patos antárcticos, que são muito bons para comer, depois de despojados, pela cocção, do seu sabor oleoso. Quanto à caça de pêlo, era representada por tuco-tucos, espécie de roedores que podem substituir vantajosamente o coelho nos fricassés, marás, lebres de um pardo-arruivado, com um crescente preto na cauda, tendo todas as qualidades comestíveis da cutia, pichis, do género tatu, mamíferos de concha escamosa, cuja carne é excelente, pecaris, que são javalis pequenos, e guaçulis, semelhantes aos veados e tão desembaraçados como eles.

      Doniphan pôde matar alguns destes animais; mas, como eles dificilmente se aproximavam, os resultados obtidos não correspondiam ao consumo da pólvora e do chumbo, com grande pesar do moço caçador. Isto deu causa a algumas observações da parte de Gordon - observações que os partidários de Doniphan não receberam melhor do que ele.

      Foi também durante uma destas excursões que se fez boa colheita das duas plantas preciosas descobertas por Briant no dia da primeira expedição ao lago. Era aipo bravo, que crescia em abundância nos terrenos húmidos, e agrião, cujos rebentos formam um antiescorbútico excelente, quando começam a sair da terra. Estes vegetais entraram em todas as refeições, por precaução higiénica.

      Além disso, como o frio ainda não congelara a superfície do lago e do rio, apanharam-se algumas trutas ao anzol, assim como uma espécie de lúcio, muito saboroso, mas que era preciso comer com cuidado, por causa da grande quantidade de espinhas. Finalmente, um dia Iverson regressou à caverna mostrando com orgulho um salmão de bom tamanho, com o qual lutara durante muito tempo, com risco de partir a linha. Portanto se na época em que estes peixes subiam a embocadura do rio se conseguisse arranjar uma boa provisão deles, seria uma reserva preciosa para o Inverno.

      Entretanto, faziam-se frequentes visitas à cova preparada por Wilcox; mas nenhum animal se deixara apanhar, apesar de um grande pedaço de carne, que podia atrair algum carnívoro.

      Contudo, no dia 17 de Maio, sobreveio um incidente.

      Nesse dia, Briant e alguns dos outros tinham ido à floresta, para os lados da penedia. Tratava-se de indagar se, nas proximidades de French-den, se acharia alguma outra  cavidade natural que servisse de armazém para alojar o resto do material.

      Então, ao aproximarem-se da cova, ouviram gritos roucos que saíam de lá.

      Briant dirigiu-se para aquele lado e foi logo seguido por Doniphan, que não queria ficar para trás. Os outros seguiram-nos a alguns passos de distância, com as espingardas ao ombro, e Phann caminhava ao lado deles, com as orelhas fitas e a cauda retesada.

      Estavam a uns vinte passos da cova quando os gritos redobraram. No meio dos ramos apareceu então uma grande abertura, que devia ter sido produzida pela queda de algum animal.

      De que espécie era esse animal ninguém podia dizê-lo. Em todo o caso, deviam avançar com prudência.

      - Vai, Phann, vai!... - gritou Doniphan.

      O Cão deitou a correr imediatamente, ladrando, mas sem mostrar inquietação.

      Briant e Doniphan correram para a cova e, logo que olharam para dentro:

      - Venham!... Venham! - gritaram eles.

      - Não é um jaguar?... - perguntou Webb.

      - Nem um cuguardo?... - acrescentou Cross.

      - Não - respondeu Doniphan. - É um animal de dois pés, um avestruz!

      Efectivamente, era um avestruz, e era uma felicidade que esses animais andassem pelas florestas do interior, porque a carne deles é excelente - sobretudo na parte gorda que lhes guarnece o peito.

      Contudo, se era decerto um avestruz, o seu tamanho medíocre, a cabeça semelhante à dos patos, as penas curtas que lhe envolviam o corpo todo, de uma cor parda-esbranquiçada, faziam-no entrar na espécie dos nandus, tão numerosos no meio dos Pampas da América do Sul. Posto que o nandu não possa ser comparado com o avestruz africano, não deixava de dar honra à fauna do país.

      - É preciso apanhá-lo vivo! - recomendou Wilcox.

      - Já se vê! - exclamou Service.

      - Não deve ser fácil! - respondeu Cross.

      - Experimentemos! - disse Briant.

      Se o vigoroso animal não pudera livrar-se, é porque as asas não o deixavam elevar-se até ao nível do solo, e os pés não tinham apoio nas paredes verticais. Wilcox foi, portanto, obrigado a deixar-se escorregar para o fundo da cova, com risco de receber algumas bicadas que podiam feri-lo gravemente. Contudo, como conseguiu atirar a camisola à cabeça do avestruz, envolvendo-a nela, reduziu-o assim à mais completa imobilidade. Foi, então, fácil ligar-lhe os pés com dois ou três lenços atados uns aos outros, e todos os pequenos, reunindo os seus esforços, uns em baixo, outros em cima, conseguiram tirá-lo da cova.

      - Até que enfim, é nosso! - exclamou Webb.

      - Que faremos dele?... - perguntou Cross.

      - É muito simples! - replicou Service, que nunca tinha dúvidas. - Conduzimo-lo a French-den, domesticamo-lo, e serve-nos para montar! Eu me encarrego disso tudo, como o meu amigo Jack, do Robinson Suíço.

      Era muito contestável poder utilizar-se o avestruz desta maneira, apesar do precedente invocado por Service. Em todo o caso, como não havia inconveniente em conduzi-lo a French-den, foi o que se fez.

      Quando Gordon viu aparecer o nandu, assustou-se um pouco por ter mais uma boca a sustentar. Mas, lembrando-se de que erva e folhas eram o suficiente para a sua alimentação, fez-lhe bom acolhimento. Quanto aos mais pequenos, foi uma alegria para eles admirarem aquele animal, aproximaram-se dele - não muito, ainda assim -, depois de o verem preso com uma corda comprida. E, quando souberam que Service tencionava domá-lo, para o poder montar, obrigaram-no a prometer-lhes que os levaria na garupa.

      - Pois sim, sim, se tiverem juízo, bebés! – prometeu Service, que os pequenos consideravam já como um herói.

      - Havemos de ter! - exclamou Cross.

      - Pois tu, Costar, também te atreves a montar neste animal?... - Perguntou Service.

      - Atrás de ti... e agarrando-te bem... atrevo-me!

      - Lembra-te do susto que apanhaste quando estavas nas costas da tartaruga!

      - Não é a mesma coisa - volveu Costar. - Este animal, ao menos, não vai para dentro de água!...

      - Não, mas pode ir para os ares! - Preveniu Dole.

      Os dois pequenos calaram-se e ficaram pensativos ouvindo estas palavras.

      Depois da instalação definitiva em French-den, Gordon e os seus camaradas tinham organizado a vida quotidiana de um modo regular. Quando a instalação estivesse completa, Gordon tencionava dirigir o melhor possível as ocupações de cada um, e, sobretudo, não deixar os mais novos entregues a si mesmos. É verdade que eles gostavam de se aplicar ao trabalho comum na proporção das suas forças; mas, porque não se continuariam as lições começadas no Colégio Chairman?

      - Temos livros com os quais poderemos continuar os nossos estudos - lembrou Gordon -, o que nós aprendemos, e o que havemos de aprender, é justo que o ensinemos aos nossos camaradas pequenos.

      - Sim - aprovou Briant -, tratemos de não perder o nosso tempo; talvez um dia se possa deixar esta ilha, e tornemos a ver as nossas famílias!

      Combinou-se redigir um programa; depois, quando o tivessem submetido à aprovação geral, tratar-se-ia de o aplicar escrupulosamente.

      Efectivamente, quando viesse o Inverno, devia haver muitos dias durante os quais nem os mais velhos nem os pequenos poderiam sair da caverna, e era necessário que esses dias não decorressem sem proveito. Entretanto, o que, sobretudo, incomodava os hóspedes de French-den era a exiguidade da sala única onde todos estavam acumulados. Por consequência, era preciso tratar, sem demora, dos meios de dar à caverna dimensões suficientes.

     

      Durante as últimas excursões, os pequenos caçadores tinham examinado, várias vezes, a penedia, com a esperança de acharem outra escavação. Se a descobrissem, transformá-la-iam em armazém geral e meter-lhe-iam dentro o resto do material que tinha ficado fora. Ora, como as pesquisas tinham sido inúteis, voltou-se novamente ao projecto de aumentar a morada actual, abrindo um ou mais quartos contíguos à caverna de Francisco Baudoin.

      No granito, este trabalho seria impraticável; mas naquele calcário, que a picareta ou a enxada encetariam facilmente, não devia sê-lo. O tempo que duraria pouco importava. Teriam com que se entreter nos compridos dias de Inverno, e podiam concluí-lo antes de voltar o bom tempo, se não houvesse desmoronamento nem infiltração - o que era para recear.

      Além disso, não era necessário empregar a mina. As ferramentas deviam servir, porque tinham sido suficientes quando se tratara de furar a parede para deixar passar o tubo do fogão. Baxter já conseguira, não sem custo, alargar a abertura de French-den, de maneira a poder adaptar-lhe, com as suas ferragens, uma das portas do Sloughi. Além disso, à direita e à esquerda da entrada, tinham-se aberto na parede duas janelas estreitas, ou, antes, duas espécies de seteiras - o que permitia que a luz e o ar circulassem mais livremente no interior.

      O mau tempo fizera a sua aparição havia uma semana. Desencadeavam-se tempestades violentas sobre a ilha; mas, graças à sua orientação ao sul e ao leste, French-den  não era atacada directamente. As bátegas de chuva e de neve passavam estrondosamente, rente ao cume da penedia. Os caçadores já não perseguiam a caça senão nas proximidades do lago: patos bravos, narcejas, pavões, francolins, galinholas e alguns desses bicos-em-bainha, mais conhecidos pelo nome de pombos brancos nas paragens do Sul do Pacífico. Se o lago e o rio não estavam ainda gelados, bastava uma noite para gelarem com os primeiros frios secos que deviam suceder às tempestades.

      Encarcerados a maior parte das vezes, os moços náufragos podiam empreender o trabalho de alargamento, e meteram mãos à obra no dia 27 de Maio.

      A parede da direita foi a primeira a ser atacada.

      - Cavando em direcção oblíqua - observara Briant -, talvez se vá desembocar do lado do lago e se arranje assim outra entrada para French-den. Isso permitiria que vigiássemos melhor as proximidades, e, se o mau tempo nos impedisse de sair por um lado, podíamos sair pelo outro.

      Era, como se vê, uma disposição muito vantajosa para as necessidades da vida comum, e não parecia impossível que tivesse bom resultado.

      Efectivamente, no interior, quarenta ou cinquenta pés, quando muito, separavam a caverna da contracosta oriental. Era bastante, pois, abrir uma galeria nesta direcção, depois de a ter marcado com a bússola. Durante este trabalho devia haver cuidado, sobretudo em não provocar algum desmoronamento. Além disso, antes de dar à nova escavação a altura que devia ter mais tarde, Baxter propôs que se abrisse uma passagem estreita, que se faria mais larga quando a sua profundidade parecesse suficiente. Os dois quartos de French-den seriam então reunidos por um corredor, que poderia fechar-se nas extremidades, e no qual se abriria lateralmente uma ou duas adegas escuras.

      Este plano era, evidentemente, o melhor, e, entre outras vantagens, tinha a de se poder sondar prudentemente o maciço, e abandonar o trabalho a tempo, se se produzisse alguma infiltração repentina.

      Durante três dias, de 27 a 30 de Maio, o trabalho fez-se em condições muito favoráveis. Aquela massa calcária abria-se, por assim dizer, à faca. Por isso foi necessário consolidá-la com um forro de madeira interior - o que não deixou de ser muito difícil. Os desaterros eram transportados para fora imediatamente, para não estorvarem. Apesar de não se poderem empregar todos os braços nesta tarefa, por falta de espaço, nenhum deles estava sem fazer nada. Quando a chuva e a neve deixaram de cair, Gordon e os outros tratavam de desmanchar a jangada, a fim de que as peças da plataforma e do vigamento pudessem ser empregadas na nova instalação.

      Também vigiavam os objectos amontoados no ângulo do contraforte, porque os oleados não os garantiam bem contra as rajadas.

      O trabalho avançava a pouco e pouco, não sem grandes esforços, e a passagem tinha já um comprimento de quatro a cinco pés, quando sobreveio um incidente muito Inesperado na tarde do dia 30.

      Briant, agachado ao fundo, como um mineiro que abre uma galeria de mina, julgou ouvir uma espécie de ruído surdo no interior do maciço.

      Suspendeu o trabalho a fim de escutar mais atentamente... O ruído chegou-lhe, de novo, aos ouvidos.

      Sair do corredor, ir ter com Gordon e com Baxter, que estavam na abertura, dar-lhes parte do incidente, foi tudo obra de alguns momentos.

      - Ilusão! - respondeu Gordon. - Julgaste ouvir...

      - Vai para o meu lugar, Gordon - recomendou então Briant -, encosta o ouvido à parede, e escuta!

      Gordon introduziu-se na passagem estreita, e tornou a aparecer alguns instantes depois.

      - Não te enganaste!... - disse ele. - Ouvi uma espécie de bramidos, ao longe!

      Baxter foi também ouvir, e saiu, perguntando:

      - Que será isto?

      - Não posso imaginá-lo! - respondeu Gordon. - É necessário prevenir Doniphan e os outros...

      - Os pequenos, não! - acrescentou Briant. – Podiam assustar-se!

      Neste momento entravam todos para jantar, e os pequenos souberam o que se passava. Isto não deixou de lhes causar algum susto.

      Doniphan, Wilcox, Webb e Garnett foram, sucessivamente, escutar ao corredor. Mas o ruído cessara, porque não ouviram nada, o que lhes fez crer que os outros se tinham enganado.

      Em todo o caso, decidiu-se que o trabalho não fosse interrompido, e, depois do jantar, deitaram novamente mãos à obra.

      Ora, durante parte da noite não se ouviu nenhum ruído, mas pelas nove horas distinguiram-se perfeitamente os mesmos bramidos através da parede.

      Neste momento, Phann, que correra para a abertura, saiu de lá com o pêlo eriçado, dando sinais incontestáveis de irritação e ladrando furiosamente, como se quisesse responder aos bramidos que vinham do interior do maciço.

      E então, o que, nos pequenos, não passara de um susto e alguma admiração, tornou-se em verdadeiro terror. A imaginação das crianças inglesas é constantemente alimentada com lendas comuns aos países do Norte, e nas quais os gnomos, os duendes, as valquírias, os silfos, as ondinas, os génios de toda a espécie vagueiam à roda dos berços. Por isso Dole e Costar, até Jenkins e Iverson, não puderam ocultar que estavam mortos de medo. Depois de tentar, em vão, sossegá-los, Briant obrigou-os a meterem-se na cama, onde acabaram por adormecer. Mas, ainda assim, sonharam com fantasmas, espectros, seres sobrenaturais que habitavam o interior da penedia - enfim, todas as angústias do pesadelo.

      Gordon e os outros continuaram a conversar em voz baixa acerca daquele fenómeno extraordinário. Puderam verificar, por umas poucas de vezes, que não deixava de se produzir, e que Phann continuava a mostrar uma irritação realmente singular.

      Afinal, sentindo-se fatigados, foram todos deitar-se, exceptuando Briant e Moko. Depois, até amanhecer, reinou silêncio profundo em French-den.

      No dia seguinte todos se levantaram cedo. Baxter e Doniphan foram, de rastos, até ao fundo da abertura... Não ouviram ruído algum. U cão andava de cá para lá sem mostrar inquietação e já não tentava lançar-se contra a parede como tinha feito na véspera.

      - Continuemos o trabalho - disse Briant.

      - Sim - respondeu Baxter. - Sempre é tempo de parar, se se ouvir algum ruído suspeito.

      - Não seria possível - observou então Doniphan - que aquele barulho fosse o de alguma fonte que passasse em borbotões através do maciço?...

      - Nesse caso, ouvi-la-íamos - observou Wilcox -, e já não se ouve nada!

      - É justo - afirmou Gordon -, eu estou mais disposto a crer que o vento se introduz por alguma fenda no cume da penedia...

      - Subamos ao planalto - propôs Service -, talvez lá se descubra...

      A proposta foi aceite.

      A uns cinquenta passos, descendo a praia, havia um atalho sinuoso, pelo qual se podia chegar à aresta superior do maciço. Baxter e dois ou três dos outros subiram esse atalho em alguns momentos e chegaram mesmo acima de French-den. Este trabalho foi inútil. Não acharam naquela superfície, revestida de uma erva curta e espessa, nenhuma fenda por onde se pudesse introduzir uma corrente de ar ou um fio de água.

      Quando desceram não sabiam nada acerca daquele fenómeno estranho, que os mais pequenos explicavam ingenuamente pelo sobrenatural.

      Entretanto, o trabalho de perfuração continuou-se até ao fim do dia. Não se ouviram os bramidos da véspera, posto que, segundo observou Baxter, a parede, cujo som tinha sido cheio até àquele dia, começasse a soar oco. Haveria, naquela direcção, alguma cavidade natural onde a passagem fosse desembocar? E não seria nessa cavidade que se produzia o fenómeno? A hipótese de outra escavação não tinha nada de inadmissível, e era para desejar que assim fosse, porque poupava muito trabalho na obra de alargamento.

      Todos empregaram um ardor extraordinário, e aquele dia foi um dos mais fatigantes que tinham suportado até então. Contudo, passou-se sem incidente algum notável, a não ser à noite, quando Gordon reparou que o cão tinha desaparecido.

      Phann, à hora das refeições, ia sempre sentar-se ao pé do banco do dono, e naquela noite o seu lugar estava vazio.

      Chamaram-no... Phann não respondeu.

      Gordon foi à entrada da caverna. Tornou a chamar... Silêncio completo.

      Doniphan e Wilcox correram, um para a margem do rio, e o outro para as proximidades do lago... Não havia vestígios do cão.

      Procuraram, debalde, até algumas centenas de passos de French-den!... Não foi possível achar Phann.

      Era evidente que o cão não podia ouvi-los, porque nesse caso teria respondido à voz de Gordon. Ter-se-ia perdido?... Era inadmissível. Teria caído em poder de algum carnívoro?... Isso podia ser, e era o que explicava melhor a sua desaparição.

      Eram nove horas da noite. O lago e a penedia estavam envolvidos numa escuridão profunda. Tiveram de resolver-se a abandonar as pesquisas para voltarem a French-den.

      Entraram todos muito inquietos - e não só inquietos, mas também tristes, lembrando-se de que o inteligente animal tinha desaparecido, talvez para sempre!

      Uns foram estender-se em cima das camas, outros sentaram-se à roda da mesa, não pensando, sequer, em dormir. Parecia-lhes que estavam mais sós, mais abandonados, mais afastados ainda do seu país e das suas famílias!

      De repente, no meio do silêncio, ouviram-se novos bramidos. Desta vez eram uivos, seguidos de gritos de dor, que se prolongaram durante perto de um minuto.

      - É dali... É dali que vêm! - exclamou Briant, correndo para a abertura.

      Todos se tinham levantado, como se esperassem alguma aparição. Os mais novos, cheios de terror, escondiam a cabeça debaixo das coberturas...

      Quando Briant voltou:

      - Por força que há ali - disse ele -, uma cavidade cuja entrada deve ser na parte inferior da penedia...

      - E na qual é provável que se refugiem alguns animais durante a noite! - acrescentou Gordon.

      - Deve ser isso - admitiu Doniphan. - Portanto, amanhã iremos ver...

      Neste momento, ouviu-se um latido, que vinha, como os uivos, do interior do maciço.

      - Phann estará ali - exclamou Wilcox -, lutando com algum animal?...

      Briant, que tornara a entrar na abertura, escutava, com o ouvido encostado à parede do fundo... Não ouviu mais nada!... Mas, ou Phann estivesse ali ou não estivesse, era certo existir outra escavação, a qual devia comunicar com o exterior, provavelmente por algum buraco perdido no meio das brenhas enredadas na base da penedia.

      Passou-se a noite sem que os bramidos e os uivos se tornassem a ouvir.

      Ao romper do dia, as pesquisas feitas, tanto nas proximidades do rio como nas do lago, não deram mais resultado do que na véspera, no cume do maciço.

      Phann, apesar de o terem procurado e chamado pelos arredores de French-den, não aparecera ainda.

      Briant e Baxter voltaram de novo ao trabalho. A enxada e a picareta não tiveram descanso. Naquela manhã a abertura aumentou quase dois pés em profundidade. De quando em quando paravam, escutavam atentamente... Não ouviam nada.

      O trabalho, interrompido pelo almoço do meio-dia, recomeçou uma hora depois. Tinham-se tomado todas as precauções para o caso de uma enxadada, ao abrir a parede, dar passagem a algum animal. Os pequenos tinham sido levados para o lado da praia. Doniphan, Wilcox e Webb, de espingardas e revólveres na mão, estavam prontos para qualquer eventualidade.

      Perto das duas horas da tarde, Briant soltou uma exclamação. A picareta acabava de atravessar o calcário, que se desmoronara, deixando ver uma grande abertura.

      Briant foi logo ter com os camaradas, que não sabiam o que haviam de pensar...

      Mas, antes que ele tivesse tempo de abrir a boca, sentiu-se um roçar rápido nas paredes da abertura, e um animal arremessou-se, de um pulo, na caverna...

      Sim, Phann, que se precipitou logo para um balde cheio de água, pondo-se a beber avidamente. Em seguida, agitando a cauda e sem mostrar nenhuma irritação, começou a saltar à roda de Gordon.

      Era evidente que não havia nada a recear.

      Briant pegou numa lanterna e introduziu-se na abertura. Gordon, Doniphan, Wilcox, Baxter e Moko seguiram-no. Um momento depois transpunham o orifício produzido pelo desmoronamento e achavam-se no meio de uma escavação sombria onde não penetrava um raio de luz do exterior.

      Era outra caverna, tendo em altura e largura as mesmas dimensões que French-den, mas muito mais profunda e com o solo coberto de areia fina numa superfície de cinquenta jardas quadradas.

      Como esta cavidade parecia não ter comunicação alguma com o exterior, temia-se que o ar fosse impróprio para a respiração. Mas se a lanterna ardia a toda a luz é porque o ar se introduzia ali por uma abertura qualquer. Não sendo assim, como podia Phann ter entrado nela?

      De repente, Wilcox deu com o pé num corpo inerte e frio, o que percebeu apalpando-o com a mão.

      Briant aproximou a lanterna.

      - É o corpo de um chacal! - declarou Baxter.

      - É!... Um chacal que o nosso valente Phann estrangulou! - respondeu Briant.

      - Aqui está a explicação do que não podíamos compreender! - acrescentou Gordon.

      Mas, se um ou muitos chacais tinham feito daquela caverna o seu covil habitual, por onde entravam eles? Era preciso absolutamente esclarecer este caso.

      Por isso, depois de ter saído de French-den, Briant foi costear a penedia, do lado do lago. Ao mesmo tempo dava gritos, aos quais responderam, afinal, outros gritos do interior. Foi desta maneira que descobriu entre as brenhas e rente ao solo uma abertura estreita, por onde passavam os chacais. Mas, depois que Phann os seguira, houvera um desmoronamento parcial que fechara a abertura, como em breve se reconheceu.

      Portanto, tudo se explicava: os bramidos dos chacais e os latidos do cão que, durante vinte e quatro horas, estivera impossibilitado de sair dali.

      Que alegria para os náufragos! Além de recuperarem Phann, quanto trabalho poupavam com aquela descoberta! Tinham ali “já feita”, como disse Dole, uma vasta cavidade, de cuja existência o náufrago Baudoin nunca suspeitara. Alargando-se o orifício, obtinha-se outra porta aberta do lado do lago, o que facilitava muito o serviço interior. Assim, os seis rapazes, reunidos na segunda caverna, deram hurras, acompanhados pelo ladrar alegre de Phann.

      Com que ardor se continuou o trabalho a fim de transformar a abertura num corredor praticável! A segunda escavação, à qual deram o nome de hall, justificava-o pelas suas dimensões. Enquanto não se dispunham as adegas laterais, o material foi transportado para este hall. Devia servir também de dormitório e de casa de trabalho, e a primeira caverna seria reservada para cozinha, despensa e refeitório. Mas, como da segunda se tencionava fazer também armazém geral, Gordon propôs que se chamasse Store-room, o que foi adoptado.

      Em primeiro lugar, tratou-se de transportar as camas, que foram dispostas simetricamente sobre a areia do hall, onde não havia falta de espaço. Em seguida, transportou-se a mobília do Sloughi, os divãs, as poltronas, as mesas, as estantes, etc., e - o que era importante - os fogões do quarto e o do salão do iate, que foram instalados de modo que pudessem aquecer a caverna. Ao mesmo tempo, arranjou-se a entrada do lado do lago, a fim de lhe adaptar uma das portas da escuna - trabalho que Baxter conseguiu fazer, não sem algum custo. Além disso tendo-se aberto duas janelas de cada lado da porta, entrava bastante luz no hall, que, à noite, era iluminado por uma lanterna suspensa da abóbada. Estes arranjos levaram uns quinze dias. Era tempo de estarem concluídos, porque, depois de um intervalo de sossego, o tempo tornara a modificar-se. O frio não era extremo, mas as rajadas tornaram-se tão violentas que era impossível sair de French-den.

      Efectivamente, a força do vento era tal que, apesar do abrigo da penedia, agitava as águas do lago como se fosse um mar. As ondas batiam na praia com estrondo, e decerto que uma embarcação qualquer, chalupa de pesca ou piroga de selvagem, ter-se-ia perdido ali. A canoa fora puxada para terra, porque corria o risco de ser arrebatada. De vez em quando, as águas do rio, repelidas em sentido contrário à corrente, cobriam a praia e ameaçavam galgar até ao contraforte. Felizmente, nem Store-room nem o hall estavam expostos directamente aos ataques da borrasca, porque o vento soprava de oeste. De modo que os fogões da sala e o da cozinha, alimentados com ramos secos, de que havia grande provisão, funcionaram convenientemente.

      Era uma felicidade ter-se achado um abrigo seguro para tudo o que se salvara do Sloughi. As provisões já não tinham nada a recear da inclemência do tempo. Gordon e os seus camaradas, obrigados, pelo mau tempo, a estar encarcerados, tiveram ocasião de se instalar mais confortavelmente. Alargaram o corredor e cavaram dois subterrâneos profundos, um dos quais, fechado por uma porta, foi destinado para as munições, de maneira a evitar qualquer perigo de explosão. Finalmente, posto que os caçadores não pudessem aventurar-se pelos arredores de French-den, o alimento estava certo com as aves aquáticas, preparadas por Moko, que nem sempre conseguia tirar-lhes o sabor pantanoso - o que provocava protestos e caretas. É inútil dizer que se tinha reservado um lugar para o nandu num canto de Store-room, enquanto não se lhe construía um recinto fora da caverna.

      Gordon teve então a ideia de redigir um programa, ao qual todos deviam submeter-se quando o tivessem aprovado. Depois da vida material, era necessário pensar na vida espiritual. Sabia-se, por acaso, o tempo que se devia estar na ilha? E, se viessem a deixá-la, que satisfação seria terem aproveitado bem o tempo! Com alguns livros fornecidos pela biblioteca da escuna, os mais velhos podiam aumentar a soma dos seus conhecimentos, dedicando-se, ao mesmo tempo, à instrução dos pequenos. Trabalho excelente, que devia entreter útil e agradavelmente as compridas horas do Inverno! Contudo, antes de se redigir esse programa, tomou-se outra medida nas circunstâncias seguintes.

      Na noite de 10 de Junho, depois da ceia, estando todos reunidos em torno dos fogões, lembraram-se alguns de dar nomes às principais disposições geográficas da ilha.

      - É muito útil e muito prático - disse Briant.

      - Sim, nomes... - exclamou Iverson - e que sejam bonitos!

      - É o que os Robinsons reais ou imaginários têm feito sempre! - replicou Webb.

      - E, realmente - disse Gordon -, nós não somos outra coisa...

      - Um colégio de Robinsons! - exclamou Service.

      - Além disso - tornou Gordon -, dando nome à baía, aos rios, às florestas, ao lago, à penedia, aos pântanos e aos promontórios, teremos mais facilidade em os reconhecer!

      A proposta foi adoptada, e tratava-se apenas de puxar pela imaginação para achar nomes convenientes.

      - Já temos Sloughi-bay, onde o nosso iate veio encalhar - disse Doniphan -, e parece-me conveniente conservar-lhe este nome, ao qual já estamos acostumados!

      - Decerto! - respondeu Cross.

      - Do mesmo modo que conservaremos o nome de French-den à nossa morada - acrescentou Briant -, em memória do náufrago que viemos substituir!

      Ninguém se opôs a isto, nem mesmo Doniphan, apesar de a observação ser feita por Briant.

      - E agora - disse Wilcox - como se há-de chamar o rio que banha Sloughi-bay?

      - O rio Zealand - propôs Baxter. - Este nome faz-nos recordar o do nosso país!

      - Adoptado!... Adoptado!... - exclamaram todos.

      - E o lago?... - perguntou Garnett.

      - Já que o rio tem o nome da nossa Zelândia - disse Doniphan -, dêmos ao lago um nome que nos recorde as nossas famílias: chamemos-lhe Family-lake (lago da Família)!

       Foi admitido por aclamação.

      Como se vê, todos estavam de acordo, e foi debaixo da influência dos mesmos sentimentos que se deu à penedia o nome de Auckland-hill (colina de Auckland). Quanto ao cabo que a terminava - esse cabo onde Briant subira e do alto do qual julgava ver um mar, a leste - propôs Briant que lhe chamassem False-Sea-point (cabo do Mar Falso).

      Os outros nomes, que foram adoptados sucessivamente, foram os seguintes:

      Denominou-se Traps-woods (bosques das Armadilhas) a parte da floresta onde se tinham descoberto as covas - Bog-woods (bosque do Barranco), a outra parte, situada entre Sloughi-bay e a penedia-, South-moor (pântano do Sul), o pântano que cobria toda a parte meridional da ilha -, Dike-creek (regato da Calçada), o regato atravessado pela calçada de pedra -, Wreck-coast (costa da Tempestade), a costa da ilha onde o iate encalhou -, finalmente, Sport-terrace (terraço do Desporto), o lugar limitado pelas margens do rio e do lago, formando em frente do hall uma espécie de prado que seria destinado aos exercícios indicados no programa.

      Pelo que dizia respeito aos outros pontos da ilha, nomear-se-iam à medida que fossem reconhecidos e segundo os incidentes de que fossem teatro.

      Entretanto, pareceu conveniente dar ainda um nome aos promontórios principais marcados no mapa de Francisco Baudoin. Assim denominou-se North-cape o cabo que ficava ao norte da ilha, South-cape, o do sul. Finalmente, todos concordaram em dar aos três cabos que se projectavam a oeste sobre o Pacífico as denominações de French-cape, British-cape e American-cape, em honra das três nações, francesa, inglesa e americana, representadas na pequena colónia.

      Colónia! Sim! Adoptou-se esta palavra a fim de recordar a todos que a instalação já não tinha carácter provisório. E isto foi devido, principalmente, à iniciativa de Gordon, sempre mais preocupado com a ideia de organizar a vida naquele novo domínio do que com a de procurar sair dele. Aqueles rapazes já não eram os náufragos do Sloughi, eram os colonos da ilha...

      Mas de que ilha? Era preciso baptizá-la também.

      - Olhem!... Eu bem sei que nome devíamos pôr-lhe!... - exclamou Costar.

      - Sabes isso... tu? - volveu Doniphan.

      - Está muito adiantado, o Costarzinho! - exclamou Garnett.

      - Com certeza que vai chamar-lhe a ilha Bebé! – gracejou Service.

      - Vamos! Não envergonhem Costar - interveio Briant -, e vejamos a sua ideia!

        O pequeno, muito confuso, calava-se.

      - Fala, Costar - tornou Briant, animando-o com o gesto. - Tenho a certeza de que a tua ideia é boa!...

      - Pois então - disse Costar -, visto que somos alunos do Colégio Chairman, chamemos-lhe a ilha Chairman!

      Efectivamente, a ideia não podia ser melhor. O nome foi logo adoptado no meio dos aplausos gerais, que encheram Costar de orgulho.

      A ilha Chairman! Realmente, este nome tinha um certo ar geográfico e podia figurar convenientemente nos atlas do futuro.

      Terminada a cerimónia - com satisfação geral -, chegara o momento de descansar, quando Briant pediu a palavra.

      - Camaradas - lembrou ele -, agora, já que demos um nome à nossa ilha, não seria conveniente escolher um chefe para a governar?

      - Um chefe!?... - exclamou vivamente Doniphan.

      - Sim, parece-me que tudo iria melhor - tornou Briant – se um de nós tivesse autoridade para governar os outros! O que se faz em todos os países não deve fazer-se também na ilha Chairman?

      - Sim!... um chefe... Nomeemos um chefe! - exclamaram todos ao mesmo tempo.

      - Nomeemos um chefe - admitiu então Doniphan -, mas com a condição de ser por um tempo determinado... Um ano, por exemplo!...

      - E de poder ser reeleito - acrescentou Briant.

      - De acordo!... Quem há-de ser nomeado? – perguntou Doniphan, com ar ansioso.

      O invejoso rapaz parecia não recear senão uma coisa: era que, a não ser ele, os seus camaradas escolhessem Briant. Foi logo desenganado a esse respeito.

      - Quem?... - respondeu Briant. - O mais ajuizado de todos... o nosso camarada Gordon!

      - Sim!... Sim!... Hurra por Gordon!

      Ao princípio, Gordon queria recusar a honra que lhe concediam, gostando mais de organizar que de comandar. Contudo, lembrando-se de que as paixões, quase tão ardentes naqueles rapazes como se fossem homens, podiam causar grandes desarmonias no futuro, pensou que a sua autoridade não seria inútil!

      E eis como Gordon foi proclamado chefe da pequena colónia da ilha Chairman.

     

      A partir do mês de Maio, o período invernoso estabelecera-se definitivamente nas paragens da ilha Chairman. Quanto tempo duraria? Cinco meses, pelo menos, se a ilha se achasse mais alta em latitude do que a Nova Zelândia. Por isso Gordon ia tomar todas as precauções a fim de se prevenir contra as eventualidades temíveis de um Inverno extenso e rigoroso.

      Eis o que o moço americano notara já entre as suas observações meteorológicas: o Inverno começara com o mês de Maio, isto é, dois meses antes do Julho da zona austral, que corresponde a Janeiro na zona boreal. Podia-se, portanto, calcular que acabaria dois meses depois, isto é, por meados de Setembro. Todavia, além deste período, era preciso contar com as tempestades, que são tão frequentes durante o equinócio. Por consequência, era provável que os moços colonos estivessem encerrados em French-den até aos primeiros dias de Outubro, sem poderem empreender nenhuma excursão através ou em torno da ilha Chairman.

      Assim, para organizar a vida interior nas melhores condições, Gordon tratou de elaborar um programa de ocupações diárias.

      É inútil dizer que os costumes do “fagismo”, de que já se tratou a propósito do Colégio Chairman, não foram adoptados na Ilha deste nome. Todos os esforços de Gordon tinham por fim acostumar aqueles rapazes à ideia de que eram quase homens, a fim de procederem como homens. Portanto, não haveria fags em French-den, isto é, os mais novos não seriam obrigados a servir os mais velhos. Mas, a não ser isto, respeitar-se-iam as tradições – essas tradições que são, como notou o autor da Vida de colégio em Inglaterra, “a maior razão das escolas inglesas”.

      Neste programa houve a parte dos pequenos e a parte dos mais velhos, que não podiam deixar de ser muito desiguais. Como a biblioteca de French-den continha apenas um certo número de livros de ciência, além dos de viagens, os mais velhos não podiam continuar os seus estudos senão em certos limites. É verdade que as dificuldades da existência, a luta que era preciso sustentar para prover a todas as necessidades, a obrigação de exercitar o pulso ou a imaginação na presença de eventualidades de toda a espécie ensinar-lhes-iam seriamente a viver. Por consequência, indicados naturalmente para educadores dos seus pequenos camaradas, era para eles um dever instruí-los enquanto estivessem ali.

      Contudo, longe de sobrecarregar os pequenos com um trabalho excessivo para a sua idade, aproveitar-se-iam todas as ocasiões de lhes exercitar o corpo, tanto como a inteligência. Quando o tempo o permitisse, e com a condição de estarem bem agasalhados, fá-los-iam sair, correr ao ar livre, e até trabalhar manualmente, no limite das suas forças.

      O programa foi redigido segundo estes princípios, que são a base da educação anglo-saxónica:

      “Sempre que uma coisa vos assustar, fazei-a.”

      “Não percais nunca a ocasião de fazer um esforço possível”.

      “Não desprezeis fadiga alguma, porque não há nenhuma inútil.”

      “Pondo estes preceitos em prática, o corpo torna-se sólido e a alma também.”

      Eis o que ficou resolvido, depois de receber a aprovação da pequena colónia:

      Duas horas pela manhã e duas à noite, haveria trabalho em comum no hall. Briant, Doniphan, Cross e Baxter, da quinta classe, Wilcox e Webb, da quarta, dariam lição, cada um por sua vez, aos seus camaradas da terceira, segunda e primeira classe. Ensinar-lhes-iam matemática, geografia, história, com o auxílio de algumas obras da biblioteca e dos seus conhecimentos anteriores. Era também a maneira de não se esquecerem do que já sabiam. Além disso, haveria uma conferência duas vezes por semana, ao domingo e à quinta-feira, isto é, seria dado para ordem do dia um assunto de ciência, de história, ou mesmo de actualidade, relacionado com os factos quotidianos. Os mais velhos inscrever-se-iam a favor ou contra, e discutiriam, tanto para se instruírem como para distracção geral.

      Gordon, na qualidade de chefe da colónia, devia fazer com que o programa fosse observado à risca, e não consentir modificações senão no caso de novas eventualidades.

      Primeiro tomou-se uma medida que dizia respeito ao tempo. Havia o calendário do Sloughi, mas era preciso apagar regularmente cada dia que decorresse. Havia também os relógios de bordo, mas era necessário dar-lhes corda regularmente, a fim de indicarem a hora exacta.

      Dois dos mais velhos foram encarregados desse serviço, Wilcox para os relógios, Baxter para o calendário, e podia-se contar com o cuidado de ambos. Quanto ao barómetro e ao termómetro, foi Webb quem se incumbiu de anotar as suas indicações diárias.

      Decidiu-se também fazer um jornal com tudo o que se passara e o que viria a passar-se durante a residência na Ilha Chairman. Baxter ofereceu-se para esse trabalho, e, graças a ele, o «Jornal de French-den» ia ser feito com uma exactidão minuciosa.

      Um trabalho não menos importante, e que devia ser feito sem demora. era a lavagem de roupa branca, para a qual, felizmente, não faltava sabão, e Deus sabe se, apesar das recomendações de Gordon, os pequenos se sujavam, quando iam brincar para Sport-terrace ou pescar para a borda do rio. Por isso, quantas vezes tinham sido repreendidos e ameaçados de castigo! Moko entendia-se perfeitamente com o trabalho da lavagem - mas ele só não podia fazê-lo todo, e os mais velhos, apesar do seu pouco gosto pela barrela, foram obrigados a ajudá-lo, a fim de conservarem a roupa branca de French-den em bom estado.

      O dia seguinte era exactamente um domingo, e todos sabem com que rigor se observam os domingos na Inglaterra e na América. A vida é como que suspensa, nas cidades, vilas e aldeias. Nesse dia, todas as tradições, todos os divertimentos são proibidos pelo uso. Toda a gente deve, não só estar aborrecida, como também parecer que o está, e este preceito é imposto tão estritamente às pessoas crescidas como às crianças. As tradições! Sempre as famosas tradições.

      Contudo, na ilha Chairman diminuiu-se um pouco esta severidade, e naquele domingo os moços colonos fizeram uma excursão às margens de Family-lake. Mas, como o dia estava extremamente frio, depois de um passeio de duas horas, seguido de uma luta de velocidade, na qual os pequenos tomaram parte no prado de Sport-terrace, todos se sentiram satisfeitos por acharem uma boa temperatura no hall, e em Store-room um jantar bem quente, cuja ementa tinha sido organizada cuidadosamente pelo hábil cozinheiro de French-den.

      A noite terminou por um concerto onde o acordeão de Garnett serviu de orquestra, enquanto os outros cantavam mais ou menos desafinados, com uma convicção perfeitamente saxónica. O único que possuía bonita voz era Jaime.

      Mas, com as suas inexplicáveis disposições de espírito, já não tomava parte nas distracções dos seus camaradas, e, naquela ocasião, apesar de muito rogado, recusou-se a cantar uma dessas canções de crianças de que ele era pródigo no Colégio Chairman.

      Aquele domingo, que começara por uma pequena alocução do “reverendo Gordon”, como dizia Service, acabou por uma oração feita em comum. Perto das dez horas, todos dormiam profundamente, guardados por Phann, em quem podiam confiar, dado o caso de aproximação suspeita.

      Durante o mês de Junho, o frio foi sempre aumentando. Webb verificou que o barómetro se encontrava acima de vinte e sete polegadas, enquanto que o termómetro centígrado marcava dez ou doze graus abaixo do ponto de congelação. Logo que o vento, que soprava do sul, virava para oeste, a temperatura subia um pouco, e os arredores de French-den cobriam-se de neve espessa.

      Os moços colonos deram algumas batalhas com bolas de neve mais ou menos comprimidas, que são tão usadas em Inglaterra. Algumas cabeças foram levemente maltratadas, e até, certo dia, um dos que sofreram mais foi Jaime, que, contudo, não assistia àqueles brinquedos senão como espectador.

      Uma bola atirada vigorosamente por Cross bateu-lhe com violência, apesar de não lhe ser dirigida, e fez-lhe soltar um grito de dor.

      - Não foi de propósito! - desculpou-se Cross, o que é quase sempre a resposta dos desastrados.

      - Com certeza! - replicou Briant, que correu ao campo da batalha, atraído pelo grito de seu irmão. - Contudo fizeste mal em atirar a bola com tanta força!

      - Também, se Jaime não quer brincar - replicou Cross -, para que estava aqui?

      - Tantas palavras - exclamou Doniphan - por causa de uma arranhadura!

      - Pois sim!... Bem sei que não é grave! - respondeu Briant, percebendo que Doniphan não queria senão poder intervir na discussão. - Entretanto, peço a Cross que não torne a fazer o mesmo!

      - Para que pedes isso... - tornou Doniphan, com ar zombeteiro - se ele não o fez de propósito?...

      - Não sei para que te metes nisto, Doniphan! – volveu Briant. - O caso é só com Cross e comigo...

      - E comigo também, Briant, já que respondes nesse tom! - redarguiu Doniphan.

      - Como quiseres... e quando quiseres! - replicou Briant, cruzando os braços.

      - Imediatamente! - exclamou Doniphan.

      Neste momento chegou Gordon, muito a propósito para impedir que a questão acabasse por pancadas. Além disso, repreendeu Doniphan. Este teve de submeter-se, e voltou para French-den, resmungando. Mas era para recear que algum outro incidente pusesse os dois rivais em contenda!

      A neve não deixou de cair durante quarenta e oito horas. Para divertir os mais pequenos, Service e Garnett formaram um boneco, com uma grande cabeça, um nariz enorme, uma boca desmedida - uma espécie de Croque mitaine. E deve-se confessar que Costar e Dole, apesar de se atreverem a atirar-lhe bolas durante o dia, não olhavam para ele sem medo quando a escuridão lhe dava proporções gigantescas.

      - Poltrões! - exclamaram então Iverson e Jenkins, que se faziam valentes, sem estarem muito mais descansados do que os seus camaradas.

      Pelos fins de Junho, foi preciso renunciar a estes divertimentos. A neve, que tinha três ou quatro pés de espessura, tornava a marcha impraticável. Se se aventurassem algumas centenas de passos fora de French-den, corriam o risco de não poderem entrar para lá.

      Os moços colonos estiveram, portanto, encerrados durante quinze dias - até 9 de Julho. Os estudos não sofreram com isso; pelo contrário. O programa diário era observado rigorosamente. As conferências fizeram-se nos dias marcados, com verdadeiro prazer de todos, principalmente de Doniphan, que, com o seu desembaraço e a sua instrução já muito adiantada, teve sempre o primeiro lugar. Mas para que andava ele tão orgulhoso? Este orgulho fazia esquecer todas as suas brilhantes qualidades.

      Apesar de se passarem no hall as horas de recreio, a saúde geral não sofreu com isso, graças à ventilação que se fazia de um quarto para o outro, através do corredor.

      Esta questão de higiene era das mais importantes. Se alguma daquelas crianças adoecesse, como seria possível dar-lhe os cuidados necessários? Felizmente, não sofreram mais do que algumas constipações e dores de garganta, que o descanso e as bebidas quentes fizeram desaparecer prontamente.

      Foi então necessário resolver outra questão. A água que se gastava em French-den era quase sempre tirada do rio, quando estava a maré baixa, a fim de não ser salobra. Mas, quando a superfície do rio estivesse completamente gelada, tornar-se-ia impossível proceder desse modo. Gordon conferenciou com Baxter, «seu engenheiro ordinário», acerca das medidas que convinha tomar. Baxter, depois de reflectir, propôs que se estabelecesse um cano, debaixo da praia, que trouxesse a água do rio para Store-room. Quanto à iluminação, havia ainda bastante azeite para alimentar as lanternas; mas, depois do Inverno, era necessário fazer provisão dele ou pelo menos fabricar velas com sebo, que Moko punha de parte.

      O que deu também algum cuidado durante este período foi a alimentação da pequena colónia, porque a caça e a pesca já não forneciam o tributo do costume. É verdade que alguns animais, impelidos pela fome, foram vaguear mais de uma vez por Sport-terrace. Mas eram apenas chacais que Doniphan e Cross afastavam a tiros de espingarda. Um dia chegaram a vir em bando - uns vinte -, sendo necessário barricar solidamente as portas do hall e de Store-room. Uma invasão daqueles carnívoros, que as privações tinham tornado ferozes, era temível. Contudo, como Phann deu sinal a tempo, não conseguiram entrar em French-den.

      Nestas condições pouco favoráveis, Moko foi obrigado a servir-se de algumas provisões do iate, que todos desejavam economizar tanto quanto fosse possível. Gordon não dava ordem para se dispor delas senão a muito custo, e não era sem pesar que via a coluna das despesas aumentar, na sua carteira, enquanto que a das receitas se conservava estacionária.

      Entretanto, como havia uma grande reserva de patos e de abetardas, que tinham sido fechados hermeticamente em barris, depois de meia cocção, Moko pôde aproveitá-los, assim como uma certa quantidade de salmões conservados na salmoura. Ora é preciso não esquecer que em French-den havia quinze bocas para sustentar e apetites de oito a catorze anos para satisfazer!

      Apesar disso, durante este Inverno, não foram totalmente privados de carne fresca. Wilcox, muito entendido em tudo o que dizia respeito a armadilhas de caça, armara algumas na praia. Eram simples laços, presos por bocados de pau em forma de 4, mas a caça miúda deixava-se apanhar neles muitas vezes.

      Com o auxílio dos seus camaradas, Wilcox estabeleceu também armações na borda do rio, empregando para esse fim as redes de pesca do Sloughi, estendidas em varas muito altas. As aves do South-moor caíam, em grande número, nas malhas daquelas compridas teias de aranha, quando passavam de uma margem para a outra. Se a maior parte delas puderam livrar-se daquelas malhas, muito pequenas para uma pesca aérea, houve alguns dias em que se apanharam bastantes para ocorrer às duas refeições do costume.

      O nandu é que deu muito trabalho a sustentar! E deve-se confessar que a domesticação daquele animal selvagem não fazia nenhuns progressos, apesar do que dizia Service, que se encarregara especialmente da sua educação.

      - Há-de ser um corcel magnífico! - repetia muitas vezes, posto que não percebesse muito bem como conseguiria montá-lo.

      Entretanto, como o nandu não é carnívoro, Service era obrigado a ir buscar a provisão diária de ervas e raízes, debaixo de dois ou três pés de neve. Mas o que não faria ele para dar bom alimento ao seu favorito? Se o nandu emagreceu um pouco durante aquele Inverno interminável, não foi certamente por culpa do seu guarda fiel, e era de esperar que, quando viesse a Primavera, o animal recuperasse a sua gordura habitual.

      No dia 9 de Julho, pela manhã, indo Briant a sair de French-den, verificou que o vento acabava de virar, repentinamente, para o sul. O frio era tanto que Briant teve de tornar a entrar imediatamente no hall, onde deu parte desta modificação da temperatura a Gordon.

      - Era de esperar - respondeu Gordon -, e não admira que tenhamos de suportar ainda alguns meses de Inverno muito rigoroso!

      - Isto prova - observou Briant - que o Sloughi foi arrastado mais para o sul do que supúnhamos!

      - Decerto - tornou Gordon -, e, contudo, o nosso atlas não tem nenhuma ilha no limite do mar antárctico!

      - É inexplicável, Gordon, e não sei para que lado devíamos dirigir-nos, se conseguíssemos sair da ilha Chairman...

      - Deixar a nossa ilha! - exclamou Gordon. - Ainda pensas nisso, Briant?

      - Penso sempre, Gordon. Se pudéssemos construir uma embarcação que aguentasse o mar, melhor ou pior, eu não hesitava em partir!

      - Ah!... Bem!... - respondeu Gordon, - Não há pressa!... Organizemos primeiro a nossa pequena colónia...

      - Meu caro Gordon - replicou Briant -, esqueces que temos família...

      - Decerto... Briant... decerto! Mas, enfim, não estamos muito mal aqui! Isto vai andando... e não sei, mesmo, o que nos falta!

      - Muitas coisas, Gordon - respondeu Briant, que achou conveniente não prolongar a conversa a este respeito. - Olha, o combustível, por exemplo, está quase acabado...

      - Ainda não se queimaram todas as florestas da ilha!...

      - Não, Gordon! Mas é tempo de fazermos nova provisão de lenha, que está no fim!

      - Pois seja hoje! - concordou Gordon. - Vejamos o que marca o termómetro!

      O termómetro, colocado em Store-room, marcava apenas cinco graus acima de zero, apesar de o fogão estar em plena actividade. Mas quando o colocaram contra a parede exterior, não tardou em marcar dezassete graus abaixo de zero.

      Era um frio intenso, e que ia, decerto, aumentar, se o tempo se conservasse claro e seco durante algumas semanas. Apesar do calor dos dois fogões de sala e do fogão da cozinha, a temperatura já baixara sensivelmente no interior de French-den.

      Pelas nove horas, depois do primeiro almoço, decidiu-se ir a Traps-woods, a fim de trazer de lá uma carregação de lenha.

      Quando a atmosfera está serena, podem suportar-se impunemente as temperaturas mais baixas. O que é muito doloroso é o nordeste áspero que corta o rosto e as mãos, e do qual é muito difícil preservar-se. Felizmente, naquele dia o vento era extremamente fraco, o céu de uma pureza perfeita, como se o ar tivesse sido gelado.

      Assim, em lugar daquela neve mole, onde, ainda na véspera, se enterravam até à cintura, os pés encontravam um solo de uma dureza metálica. Portanto, com a condição de firmar o passo, podia caminhar-se por cima dele, assim como pela superfície do Family-lake ou do rio Zealand, que estavam inteiramente gelados.

      Com alguns pares dessas raquetas de que se servem os indígenas das regiões polares, ou mesmo com um trenó puxado por cães ou rangíferos, podia percorrer-se o lago em toda a sua extensão, do sul para o norte, em algumas horas.

      Mas, neste momento, não se tratava de uma expedição tão longa. Ir à floresta próxima, para fazer nova provisão de combustível, eis o que era de necessidade imediata.

      Contudo, o transporte para French-den de uma quantidade de lenha suficiente era um trabalho penoso, porque não podia ser efectuado senão a braços e às costas. Moko teve então uma boa ideia, que foi logo posta em prática enquanto se não construía um veículo qualquer com as pranchas do iate. A grande mesa de Store-room, que estava construída solidamente e tinha doze pés de comprido sobre quatro de largo, não seria bastante para transportar a lenha, voltando-a com os pés para o ar e arrastando-a pela superfície da camada de gelo? Decerto que era, e foi isso que se fez. Em seguida, quatro dos mais velhos atrelaram-se com cordas àquele veículo um pouco primitivo, e, por volta das dez horas, partiram na direcção de Traps-woods.

      Os mais pequenos, com o nariz vermelho e as faces crestadas, saltavam, adiante, como cabritos, e Phann dava-lhes o exemplo. Às vezes saltavam para dentro da mesa, não sem disputas e socos, arriscando-se a algumas quedas, que, ainda assim, não podiam ser graves. Os seus gritos vibravam com uma intensidade extraordinária no meio daquela atmosfera seca e fria. Realmente, era divertido ver aquela pequena colónia cheia de saúde e de bom humor! Tudo estava completamente branco entre Auckland-hill e Family-lake. As árvores, com os troncos cobertos de gelo, os ramos carregados de cristais cintilantes, acumulavam-se ao longe, como no plano posterior de uma vista mágica. Os pássaros voavam à superfície do lago, aos bandos, até à borda da penedia. Doniphan e Cross não se tinham esquecido de levar as espingardas. Precaução muito acertada, porque se viram pegadas suspeitas, que não eram de chacais nem de coguardos ou jaguares.

      - Talvez sejam desses gatos bravos que se chamam paperos - lembrou Gordon - e que não são menos temíveis!

      - Gatos temíveis? - respondeu Costar, encolhendo os ombros.

      - Olha que os tigres também são gatos! - replicou Jenkins.

      - É verdade, Service? - perguntou Costar. - Aqueles gatos são maus?

      - São, sim - explicou Service -, e trincam crianças como se elas fossem ratos!

      Esta resposta deixou Costar um tanto inquieto.

      A meia milha entre French-den e Traps-woods foi percorrida rapidamente, e os pequenos rachadores de lenha meteram mãos à obra. Não deitaram o machado senão a árvores de certa grossura, que foram despegadas dos ramos miúdos, a fim de fazerem provisão, não desses feixes que ardem num momento, mas de achas que pudessem alimentar convenientemente o fogo da cozinha e os outros dois. A mesa-trenó recebeu uma carga pesada; mas deslizava pela neve com tanta facilidade, e era puxada por todos com tanto ardor, que antes do meio-dia já fizera duas viagens.

      Depois do almoço continuou-se o trabalho, que não foi suspenso senão perto das quatro horas, quando o dia começou a declinar.

      Todos estavam muito fatigados, e, como não havia necessidade de fazer as coisas com excesso, Gordon adiou a tarefa para o dia seguinte. Ora, quando Gordon mandava era preciso obedecer.

      Logo que regressaram a French-den, trataram de serrar as achas, juntá-las e guardá-las no armazém; isto tudo durou até à hora de se deitarem.

      O transporte continuou-se sem descanso durante seis dias, o que assegurou combustível para um espaço de muitas semanas. É Inútil dizer que esta provisão não coubera em Store-room; mas não havia inconveniente em deixá-la exposta ao ar livre, ao pé do contraforte.

      O dia 15 de Julho, segundo marcava o calendário, era dia de São Swithin. Ora, em Inglaterra, São Swithin corresponde, em data, a São Medard em França.

      - Então - observou Briant -, se chove hoje, vamos ter chuva durante quarenta dias!

      - Ora - volveu Service -, não é grande coisa, visto que estamos no Inverno. Ah! se fosse Verão!...

      E, realmente, os habitantes do hemisfério austral não têm de inquietar-se de modo algum com a influência que podem ter São Medard ou São Swithin, que são santos de Inverno para os países antípodas.

      No entanto, a chuva não persistiu, o vento voltou-se para sueste, e houve ainda tanto frio que Gordon não permitiu aos mais pequenos que saíssem de French-den.

      Efectivamente, no meio da primeira semana de Agosto, a coluna termométrica desceu até vinte e sete graus abaixo de zero. O hálito condensava-se em neve, por pouco que se expusessem ao ar exterior. As mãos não podiam pegar num objecto de metal sem sentirem uma dor aguda, semelhante à das queimaduras. Foi preciso tomarem-se as precauções mais minuciosas para que a temperatura Interna se conservasse num grau razoável.

      Houve quinze dias muito difíceis de passar. Todos sofriam mais ou menos com a falta de exercício. Briant não via sem inquietações os rostos pálidos dos pequenos, cujas boas cores tinham desaparecido. Contudo, graças às bebidas quentes, que não faltavam, e à parte um certo número de constipações ou de bronquites inevitáveis, os moços colonos atravessaram sem grande dano aquele período arriscado.

      Pelo dia 16 de Agosto, o estado da atmosfera tendeu a modificar-se com o vento, que virou para oeste. Assim, o termómetro marcou doze graus abaixo de zero – temperatura suportável, em consequência da serenidade do ar.

      Doniphan, Briant, Service, Wilcox e Baxter lembraram-se então de fazer uma excursão até Sloughi-bay. Partindo pela manhã cedo, podiam regressar ainda nessa mesma noite.

      Tratava-se de reconhecer se a costa era frequentada por grande número daqueles anfíbios hóspedes habituais das regiões antárcticas, e dos quais já se tinham visto alguns exemplares na época do encalhe. Ao mesmo tempo substituir-se-ia a bandeira, que devia estar esfarrapada, depois dos temporais do Inverno.

      Em seguida, por conselho de Briant, pregar-se-ia uma tabuinha no mastro de sinais, indicando a situação de French-den no caso de alguns marinheiros desembarcarem na praia, depois de terem avistado de longe o pavilhão.

      Gordon deu o seu consentimento, não sem recomendar que regressassem antes de anoitecer, e o rancho partiu na manhã de 19 de Agosto, apesar de ainda não ser dia. O céu estava puro, e a Lua iluminava-o com os pálidos raios do seu quarto-minguante. Seis milhas a percorrer até à baía não era coisa que assustasse pernas bem folgadas.

      O trajecto foi transposto rapidamente. O pântano de Bog-woods estava gelado, não sendo preciso contorná-lo, o que abreviou a marcha.

      Assim, antes das nove horas da manhã, Doniphan e os camaradas chegaram à praia.

      - Ali está um bando de voláteis! - exclamou Wilcox.

      E mostrava alguns milhares de aves, pousadas nos recifes: pareciam patos muito grandes, com bico estendido como uma casca de mexilhão, e davam gritos tão penetrantes como desagradáveis.

      - Parecem soldados à espera que o general lhes passe revista! - comentou Service.

      - São apenas pinguins - esclareceu Baxter -, não merecem um tiro de espingarda!

      Aqueles estúpidos voláteis, que se conservavam numa posição quase vertical, devido a terem as patas colocadas muito atrás, não pensaram, sequer, em fugir, e podiam ser mortos a pau. Doniphan talvez sentisse desejos de fazer essa carnificina inútil; mas como Briant teve a prudência de não se opor a ela, as alças ficaram em paz.

      Além disso, se aquelas aves não tinham utilidade alguma, havia ali grande número de outros animais cuja gordura serviria para a iluminação de French-den durante o Inverno próximo.

      Eram focas, de uma espécie chamada focas trombudas, que se divertiam em cima dos recifes. Mas, assim que Briant e os seus camaradas se aproximaram, elas fugiram, dando saltos extraordinários, e desapareceram debaixo da água.

      Era preciso organizar, mais tarde, uma expedição especial para a captura daqueles anfíbios.

      Depois de terem almoçado frugalmente algumas provisões que tinham levado, os cinco rapazes foram observar a baía em toda a sua extensão.

      Desde a embocadura do rio Zealand até ao promontório False-Sea-point estendia-se uma toalha completamente branca.

      A não ser os pinguins e as aves aquáticas, tais como procelárias e gaivotas, os outros voláteis pareciam ter abandonado a praia, a fim de irem para o interior da ilha procurar alimento. A praia estava coberta por dois ou três centímetros de neve, e o que restara dos destroços da escuna tinha desaparecido debaixo daquela camada espessa. Os sargaços, detidos para cá dos recifes, indicavam que Sloughi-bay não tinha sido invadida pelas marés do equinócio.

      Quanto ao mar, estava sempre deserto até ao limite extremo daquele horizonte que Briant não tornara a ver havia três meses. E para lá, a centenas de milhas, estava essa Nova Zelândia que ele ainda esperava tornar a ver.

      Baxter tratou de içar o pavilhão novo que trouxera, e de pregar a tabuinha, indicando a situação de French-den, a seis milhas, subindo o curso do rio. Em seguida, perto de uma hora depois do meio-dia, voltaram pela margem esquerda.

      Pelo caminho, Doniphan matou um casal de pavões que esvoaçava à superfície do rio, e pelas quatro horas, no momento em que o dia começava a escurecer, os seus camaradas e ele chegavam a French-den. Aí, puseram Gordon ao facto do que se passara, e, como Sloughi-bay era frequentada por grande número de focas, decidiram ir caçá-las logo que o tempo o permitisse.

      Efectivamente, o mau tempo ia acabar. Durante a última semana de Agosto e a primeira semana de Setembro, o vento do mar voltou outra vez. Grandes correntes quentes, trazidas do largo, fizeram subir rapidamente a temperatura. A neve dissolveu-se imediatamente, e a superfície do lago quebrou-se com um estrondo de ensurdecer. Os pedaços de gelo que não se derreteram envolveram-se na corrente do rio, juntando-se uns por cima dos outros, e houve uma acumulação que não se desfez completamente senão no dia 10 de Setembro.

      Assim decorreu este Inverno. Graças às precauções que se tomaram, a pequena colónia não sofrera muito. Todos se tinham conservado com saúde, e, como os estudos eram seguidos com zelo, Gordon não tinha sido obrigado a usar do seu poder contra recalcitrantes.

      Um dia, contudo, foi necessário castigar Dole, que, pelo seu procedimento, merecia uma punição exemplar.

      O teimoso negara-se, umas poucas de vezes, a fazer o seu tema, e Gordon repreendera-o sem que ele fizesse caso das suas observações. Se não foi posto a pão e água - o que não entra no sistema das escolas anglo-saxónicas -, foi condenado a ser açoitado.

      Os pequenos ingleses, como já se fez notar, não sentem a repugnância que os franceses sentiriam por este género de castigo. Naquela ocasião, Briant teria protestado contra esta maneira de castigar se não devesse respeitar as decisões de Gordon. Além disso, em lugar de se envergonhar, como o estudante francês, o inglês não tem pejo senão de parecer que teme uma correcção corpórea.

      Dole recebeu, portanto, os açoites de chibata que lhe aplicou Wilcox, designado pela sorte para exercer as funções de executor público, e o exemplo foi tal que o caso não tornou a repetir-se.

      No dia 10 de Setembro perfazia-se seis meses que o Sloughi se perdera nos recifes da ilha Chairman.

     

      Com o bom tempo, que ia começar, os moços colonos poderiam realizar os projectos concebidos durante os compridos serões do Inverno.

      Para o oeste era evidente não haver terra alguma próxima da ilha. Aquela ilha faria parte de algum arquipélago ou de um grupo do Pacífico? Não, decerto, a julgar pelo mapa de Francisco Baudoin. Contudo, podia haver algumas terras naquelas paragens sem que o náufrago as tivesse visto, por não ter óculo nem binóculo, e do alto de Auckland-hill o olhar abrangia apenas um horizonte de algumas milhas. Os moços náufragos, que tinham instrumentos necessários para observar o mar ao longe, talvez descobrissem o que o sobrevivente do Duguay-Trouin não conseguira avistar.

      A ilha Chairman não media mais de doze milhas na parte central, a leste de French-den. No lado oposto a Sloughi-bay o litoral era muito recortado, e convinha ir explorar para esse lado.

      Mas, antes de visitar as diversas regiões da ilha, tratava-se de explorar o território compreendido entre Auckland-hill, Family-lake e Traps-woods. Quais seriam os seus recursos? Teria abundância de árvores ou de arbustos, dos quais se pudesse tirar proveito? Foi para saber isso que se decidiu fazer uma expedição, nos primeiros dias de Novembro.

      Contudo, se a Primavera ia começar astronomicamente, a ilha Chairman, situada numa latitude muito elevada, não lhe sentia ainda a influência. Durante o mês de Setembro e metade de Outubro foram ainda perseguidos pelo mau tempo. Houve frios muito intensos, que não duraram porque as direcções do vento se tornaram extremamente variáveis. Durante este período de equinócio, manifestaram-se perturbações atmosféricas com uma violência extraordinária - semelhante à que arrastara o Sloughi através do pacífico. O maciço de Auckland-hill estremecia todo com a força das borrascas. Quando as rajadas do sul passavam rente do South-moor, que não lhes opunha obstáculo algum, traziam consigo as intempéries glaciais do mar antárctico. Era um trabalho rude impedi-las de entrar em French-den. Arrombaram mais de vinte vezes a porta que dava acesso a Store-room, e penetraram, pelo corredor, até ao hall. Nestas condições, sofreu-se mais do que na época dos frios intensos, que tinham feito descer a coluna termométrica a trinta graus abaixo do zero centígrado. Era preciso lutar, não só contra as rajadas, mas também contra a chuva e o granizo.

      Para cúmulo de infelicidade, a caça parecia ter desaparecido, como se tivesse ido refugiar-se nas partes da ilha menos expostas ao equinócio - e os peixes também, assustados, decerto, pela agitação da água que bramia ao longo das margens do lago.

      Entretanto, em French-den ninguém estava ocioso. Como a mesa já não podia servir de veículo, porque a camada de neve endurecida tinha desaparecido, Baxter lembrou-se de fabricar um aparelho próprio para transportar objectos pesados.

      Para Isso, lembrou-se de aproveitar duas rodas, de tamanho igual, que pertenciam ao cabrestante da escuna. Este trabalho não se fez sem muitas hesitações, que um homem de ofício teria evitado. As rodas eram dentadas, e, depois de tentar, em vão, quebrar-lhes os dentes, Baxter teve de encher os intervalos com cantos de madeira muito unidos e cercados por uma cinta metálica. Em seguida, depois de reunir as duas rodas por uma barra de ferro, assentou neste eixo um vigamento sólido. Era um veículo muito rudimentar, mas, assim mesmo, devia prestar e prestou grandes serviços. É escusado dizer que, à falta de cavalo, de mula ou de burro, os mais vigorosos da colónia atrelar-se-iam ao dito veículo.

      Ah! se conseguissem apanhar quadrúpedes e ensiná-los para esse fim, quantas fadigas se evitavam! A fauna da ilha Chairman, à parte alguns carnívoros cujos vestígios se tinham encontrado, parecia ser mais rica de voláteis que de ruminantes!

      E, a julgar pelo avestruz de Service, poder-se-ia esperar que eles se domesticassem?

      Efectivamente, o nandu não perdera nada do seu carácter selvagem. Não deixava ninguém aproximar-se dele sem se defender com o bico e com as patas, diligenciava quebrar a corda que o prendia, e, se pudesse, já tinha desaparecido por entre as árvores de Traps-woods.

      Service, contudo, não desanimava. Tinha posto ao nandu o nome de “Brausewind”, que era o nome do avestruz de Jack do Robinson Suíço. Apesar dos seus esforços para domesticar o rebelde animal, o bom ou mau tratamento não faziam nada.

      - E, contudo - disse ele um dia, referindo-se ao romance de Wyss, que não se cansava de ler -, Jack conseguiu fazer do seu avestruz uma cavalgadura ligeira!

      - Decerto - respondeu Gordon. - Mas entre ti e o teu herói, Service, há a mesma diferença que entre o avestruz dele e o teu!

      - Que diferença é essa, Gordon?

      - É simplesmente a diferença que separa a imaginação da realidade!

      - Não importa! - replicou Service. - Hei-de fazer o que quero do meu avestruz... ou ele dirá por que não!

      - Sim! - respondeu Gordon, rindo. - Admira-me menos que ele te responda do que te obedeça!

      Apesar dos gracejos dos seus camaradas, Service estava resolvido a montar no seu nandu, logo que o tempo o permitisse. Assim, imitando sempre o seu tipo imaginário, fez-lhe uma espécie de arreios de lona e um capuz com antolhos móveis. Jack não dirigia o seu favorito, baixando os antolhos, ora um, ora outro, sobre o olho esquerdo ou sobre o direito? Se este rapaz conseguiu isto, por que motivo não o conseguiria o seu imitador? Service fez até uma coleira de corda, que conseguiu pôr ao pescoço do animal - o qual dispensava perfeitamente este ornato. Quanto ao capuz, foi possível pôr-lho na cabeça.

      Assim se passavam os dias em trabalhos de instalação que tornaram French-den mais confortável. Era a melhor maneira de empregar as horas que não podiam utilizar-se lá fora, não tirando nada às que deviam ser consagradas ao trabalho.

      Além disso, o equinócio estava no fim. O Sol tomava força, e o céu tornava-se sereno. Estava-se em meados de Outubro. O solo comunicava o seu calor aos arbustos e às árvores, que se preparavam para reverdecer.

      Agora era permitido deixar French-den durante dias inteiros. O vestuário de abafar, calças de pano grosso, meias e camisolas de lã, tinha sido escovado, consertado, dobrado e guardado cuidadosamente nas caixas. Os moços colonos, mais à vontade no seu fato ligeiro, tinham saudado com alegria o regresso do bom tempo. E, depois, tinham uma esperança que não os abandonava - a esperança de fazerem alguma descoberta que modificasse aquela situação. Durante o Verão talvez algum navio visitasse aquelas paragens. E, se passasse, por um acaso qualquer, defronte da ilha Chairman, por que não aportaria aí, vendo o pavilhão que flutuava no cume de Auckland-hill?

      Durante a segunda quinzena de Outubro, tentaram-se várias excursões sobre um raio de duas milhas em torno de French-den. Só os caçadores é que tomaram parte nelas. O alimento habitual sentiu-se com isto, posto que, pela recomendação de Gordon, a pólvora e o chumbo fossem severamente economizados. Wilcox armou laços, onde caíram alguns casais de tinamus e de abetardas, e até de umas lebres marás, que se assemelham à cutia. Estes laços eram visitados umas poucas de vezes por dia, porque os chacais e os pareros não hesitavam em preceder os caçadores para lhes destruírem a caça. Realmente, era de enraivecer trabalhar para o proveito destes carnívoros, que não eram poupados quando se apresentava ocasião. Apanharam-se, até, alguns destes animais maléficos nas armadilhas antigas, que tinham sido arranjadas, e nas novas, estabelecidas à entrada da floresta. Quanto aos animais ferozes, acharam-se mais vestígios deles, sem ser preciso repelir-lhes os ataques, contra os quais se estava sempre prevenido.

      Doniphan matou também alguns pecaris e guaçulis, javalis e veados pequenos-, cuja carne era saborosa.

      Quanto aos nandus, ninguém lastimou não poder apanhá-los, pois o pouco êxito de Service na sua experiência de domesticação não era animador.

      E isto viu-se bem quando, na manhã do dia 26, o teimoso rapaz quis montar no avestruz, que tinha sido arreado, não sem algum custo.

      Foram todos para Sport-terrace, a fim de assistirem a esta experiência interessante. Os mais pequenos olhavam para o seu camarada com uma certa inveja e alguma inquietação. No momento decisivo, hesitavam em pedir a Service que os levasse na garupa. Os mais velhos, esses encolhiam os ombros. Gordon tinha querido dissuadir Service de tentar uma experiência que lhe parecia arriscada; mas ele obstinara-se, e Gordon resolveu não se opor à sua ideia.

      Enquanto Garnett e Baxter seguravam no animal, que tinha os olhos tapados com os antolhos do capuz, Service, depois de muitas tentativas infrutíferas, conseguiu saltar-lhe para as costas. Em seguida, com a voz pura e firme:

      - Larguem! - gritou.

      O nandu, privado do uso da vista, ficou, primeiro, imóvel, detido pelo rapazito, que o apertava vigorosamente entre as pernas. Mas, logo que os antolhos foram levantados por meio da corda que servia, ao mesmo tempo, de rédeas, deu um salto prodigioso e partiu na direcção da floresta.

      Service já não era senhor do fogoso animal, que corria com a rapidez de uma flecha. Tentou detê-lo, tapando-lhe, novamente, os olhos; mas em vão. O nandu, sacudindo a cabeça, deitou para trás o capuz, que lhe escorregou para o pescoço, ao qual Service se agarrava com toda a força. Em seguida, uma sacudidela violenta desmontou o pobre cavaleiro, que caiu no momento em que o animal ia desaparecer por entre as árvores de Traps-woods.

      Os camaradas de Service chegaram junto dele quando o avestruz já tinha desaparecido.

      Felizmente, Service caíra sobre uma erva espessa, e não lhe sucedeu mal algum.

      - Que estúpido animal... - exclamou ele, muito envergonhado. - Ah! se torno a apanhá-lo!...

      - Não tornas, não! - assegurou Doniphan, que ria às gargalhadas da aventura do seu camarada.

      - Decididamente - disse Webb -, o teu amigo Jack era melhor cavaleiro do que tu!

      - É porque o meu nandu ainda não estava bem domesticado!... - respondeu Service.

      - Nem podia estar! - replicou Gordon. - Consola-te, Service, olha que nunca podias fazer nada daquele animal, e não esqueças que no romance de Wyss há verdades e invenções!

      Eis como acabou a aventura, e os pequenos não se arrependeram de não terem montado no avestruz.

      Nos princípios de Novembro, o tempo pareceu favorável para uma expedição de alguns dias, cujo fim seria reconhecer a margem ocidental de Family-lake até à extremidade do norte.

      O céu estava puro, o calor era ainda muito suportável, e não havia inconveniente em passar algumas noites ao ar livre. Fizeram-se, portanto, todos os preparativos necessários.

      Os caçadores da colónia deviam tomar parte nesta expedição, e, desta vez, Gordon julgou conveniente ir com eles. Quanto aos que ficavam em French-den, estariam sob a protecção de Briant e de Garnett. Mais tarde, antes do fim do Verão, Briant empreenderia outra excursão com o fim de visitar a parte inferior do lago, ou percorrendo-o ao longo das margens, dentro da canoa, ou atravessando-o, porque, segundo o mapa, o lago não media mais de quatro ou cinco milhas à altura de French-den.

      As coisas estavam assim combinadas quando, na manhã de 5 de Novembro, Gordon, Doniphan, Baxter, Wilcox, Webb, Cross e Service partiram, depois de se terem despedido dos seus camaradas.

      Em French-den não devia alterar-se, em nada, a vida do costume. Durante as horas que não fossem consagradas ao trabalho, Iverson, Jenkins, Dole e Costar continuariam, como de costume, a pescar nas águas do lago e do rio - o que constituía o seu recreio favorito. Mas, segundo dizia Service, por Moko não acompanhar os moços exploradores, não se imagine que estes teriam a comida mal cozinhada! Não ia Service, que, muitas vezes, ajudava o grumete nas suas operações culinárias? Por isso ele fizera valer a sua habilidade a fim de fazer parte da expedição. Quem sabe se era a esperança de achar o avestruz? Gordon, Doniphan e Wilcox iam armados com espingardas, e, além disso, todos levavam um revólver à cinta. Levavam também facas de caça e dois machadinhos. Sendo possível, não deviam fazer uso do chumbo ou da pólvora senão para se defenderem, se fossem atacados, ou para matar a caça, no caso de não poderem apanhá-la de um modo mais económico. Baxter levava, para esse fim, o lazzo e as bolas, que ele tinha posto em estado de servirem, e que aprendia a manejar havia algum tempo. Era um rapaz de pouco espalhafato, este Baxter, mas muito hábil, e aprendeu rapidamente a servir-se destes engenhos. É verdade que, até ali, não tivera por alvo senão objectos imóveis, e não sabia se teria o mesmo resultado com um animal correndo à desfilada. Ver-se-ia depois.

      Gordon lembrou-se também de levar o halkett-boat de cauchu, que era muito portátil, porque se fechava como uma mala e pesava apenas umas dez libras. O mapa, efectivamente, marcava dois cursos de água, tributários do lago, e o halkett-boat servia para atravessá-los, no caso de não poderem ser passados a vau.

      A julgar pelo mapa de Baudoin, de que Gordon levava uma cópia, a fim de poderem consultá-lo ou verificá-lo conforme o caso, a margem ocidental do Family-lake desenvolvia-se numa extensão de dezoito milhas, pouco mais ou menos, dando o desconto à curvatura. A exploração exigia três dias para ida e volta, se não houvesse algum atraso.

      Gordon e os seus companheiros, precedidos por Phann, deixaram Traps-woods à esquerda, e começaram a marcha sobre o solo arenoso da praia.

      Para além das duas milhas tinham excedido a distância a que até então se haviam alargado as excursões desde a instalação em French-den.

      Neste ponto cresciam umas ervas muito altas, chamadas cortaderas, que estão agrupadas em maciços, e entre as quais os mais velhos desapareciam até à cabeça.

      Assim a marcha foi um pouco demorada; mas não se perdeu com isso, porque Phann parou diante dos orifícios de meia dúzia de tocas abertas no solo.

      Era evidente que Phann farejava ali algum animal, que seria fácil matar no covil. Doniphan preparava-se para fazer pontaria, quando Cross o deteve.

      - Economiza a pólvora, Doniphan - recomendou-lhe ele -, economiza-a, peço-te!

      - Quem sabe, Gordon, se o nosso almoço estará ali dentro? - respondeu o moço caçador.

      - E o jantar também!... - acrescentou Service, curvando-se para a toca.

      - Se estiverem lá - respondeu Wilcox -, fá-los-emos sair sem isso nos custar um grão de chumbo.

      - De que maneira?... - perguntou Webb.

      - Enchendo estas tocas de fumo, como se faz às das doninhas e das raposas!

      Entre os maciços de cortaderas, o solo estava coberto de ervas secas que Wilcox acendeu no orifício das tocas. Um minuto depois aparecia uma dúzia de roedores meio sufocados, que tentaram, em vão, fugir. Eram coelhos tucotucos; Service e Webb mataram alguns casais a golpes de machado, enquanto Phann estrangulava três com três dentadas.

      - Deve-se fazer deles um assado excelente!... – disse Gordon.

      - Encarrego-me disso - exclamou Service, que tinha pressa de desempenhar as suas funções de cozinheiro. - Imediatamente, se quiserem...

      - Na primeira paragem que se fizer! - respondeu Gordon.

      Foi precisa meia hora para sair daquela floresta em miniatura. Para diante, tornou a aparecer a praia, acidentada de compridas filas de dunas, cuja areia, de uma finura extrema, se soltava à mínima aragem.

      A esta altura, o revés de Auckland-hill ficava a mais de duas milhas para trás, a oeste. Isto explicava-se pela direcção oblíqua da penedia desde French-den até Sloughi-bay.

      Toda esta parte da ilha era oculta pela espessa floresta que Briant e os seus camaradas tinham atravessado durante a primeira expedição ao lago, e que era banhada pelo regato a que tinham posto o nome de Dike-creek.

      Este creek corria para o lago, como o mapa indicava.

      Ora, foi exactamente à embocadura deste regato que os sete rapazes chegaram, pelas onze horas da manhã, tendo percorrido seis milhas depois da partida. Pararam neste lugar, junto de um soberbo pinheiro guarda-sol. Acenderam uma fogueira de lenha entre duas grandes pedras. Alguns momentos depois, dois dos tucotucos, esfolados e arranjados por Service, assavam-se a um lume crepitante. É inútil dizer que, enquanto o cão, sentado diante da fogueira, aspirava aquele perfume delicioso, o pequeno cozinheiro voltava o assado e tornava a voltá-lo, com o maior cuidado.

      Todos almoçaram com apetite, sem terem de se queixar muito da primeira experiência culinária de Service.

      Os tucotucos foram suficientes, e não foi preciso tocar nas provisões que iam nas sacolas, excepto na bolacha, que substituía o pão. E essa mesma foi economizada, porque havia bastante carne - carne saborosa, com o perfume das plantas aromáticas com que os roedores se alimentam.

      Em seguida, atravessou-se o creek, e, como puderam  passá-lo a vau, não foi necessário empregar a canoa de cauchu, o que teria levado mais tempo.

      A margem do lago tornava-se, a pouco e pouco, pantanosa, o que os obrigou a retroceder para a entrada da floresta, prontos a voltar para leste quando o estado do solo o permitisse. Eram sempre as mesmas essências, as mesmas árvores de aspecto soberbo, faias, bétulas, carvalhos, pinheiros, de diferentes espécies. Grande número de pássaros encantadores esvoaçavam de ramo em ramo;  picanços pretos de crista encarnada, papa-moscas de poupa branca, carriças da espécie dos citalopes, milhares de trepadores que gorjeavam sob a folhagem, enquanto os tentilhões, as cotovias e os melros cantavam ou assobiavam com toda a força. Ao longe, nos ares, pairavam condores,  urubus e alguns casais de caracarás, águias vorazes que frequentam as paragens da América do Sul.

      Service, lembrando-se de Robinson Crusoé, calculou que a família dos papagaios não estivesse representada na ornitologia da ilha.

      Não pudera domesticar um avestruz, mas talvez alguma destas aves tagarelas se mostrasse menos rebelde. Não viu, porém, nem uma.

      Enfim, a caça era abundante; eram marás, pichis e principalmente grusos, que são muito semelhantes aos galos de charneca. Gordon não pôde recusar a Doniphan o prazer de atirar a um pecari de tamanho medíocre, que serviria para o almoço do dia seguinte, se não servisse para o jantar daquela tarde.

      Além disso, não foi necessário embrenharem-se pela floresta, onde a marcha seria mais penosa. Era suficiente caminhar ao longo da orla, e foi o que fizeram até às cinco horas da tarde. O segundo curso de água, da largura de uns quarenta pés, veio então impedir a passagem.

      Era um dos exutórios do lago, e ia desaguar no Pacífico, para diante de Sloughi-bay, depois de ter contornado o norte de Auckland-hill.

      Gordon resolveu parar nesse sítio. Doze milhas a caminhar era bastante para um dia. Entretanto, pareceu conveniente dar um nome àquele curso de água, e, como acabavam de parar nas margens dele, chamaram-lhe Stop-river (rio da paragem).

      Estabeleceu-se o acampamento debaixo das primeiras árvores da praia. Os tucotucos formaram o prato principal, porque os grusos tinham sido reservados para o dia seguinte, e Service tornou a desempenhar convenientemente as suas funções. Além disso, a necessidade de dormir era maior do que a de comer, e se as bocas se abriam com fome, os olhos fechavam-se com sono. Assim, acendeu-se uma grande fogueira, à roda da qual se estenderam todos, depois de se terem embrulhado nos seus cobertores. A viva luz desta fogueira, ateada por Wilcox e Doniphan, alternadamente, devia ser suficiente para afastar os carnívoros.

      Finalmente, não houve nenhum alarme, e, ao romper do dia, todos estavam prontos para marchar.

      Entretanto, não bastava ter dado um nome ao rio, era preciso atravessá-lo, e, como ele não era vadeável, foi necessário empregar o halkett-boat. Esta frágil embarcação não podia transportar mais que uma pessoa de cada vez: teve pois de fazer sete vezes a travessia da margem esquerda para a margem direita de Stop-river, o que levou mais de uma hora. Pouco importava, desde o momento em que, graças a ela, as provisões e as munições não se molharam.

      Quanto a Phann, que não se importava de molhar as patas, deitou-se a nado, e, em alguns momentos, passou para a outra margem.

      Como o terreno já não era pantanoso, Gordon dirigiu-se para a margem do lago, aonde chegaram antes das dez horas. Depois de almoçarem alguns bocados de pecari assado na grelha, tomaram a direcção do norte.

      Nada indicava ainda que a extremidade do lago estivesse próxima, e o horizonte de leste era sempre circunscrito por uma linha circular de céu e de água, quando, pelo meio-dia, Doniphan, assestando o óculo, comunicou:

      - Ali está a outra margem!

      Todos olharam para aquele lado e viram alguns cimos de árvores que começavam a aparecer por cima da água.

      - Não paremos - ordenou Gordon - e tratemos de chegar antes da noite.

      Para o norte, a perder de vista, estendia-se uma planície árida, semeada de grandes dunas e de alguns maciços de caniços e de juncos. Na parte setentrional, a ilha Chairman não apresentava senão grandes espaços arenosos, que contrastavam com as florestas verdejantes do centro, e aos quais Gordon deu, muito acertadamente, o nome de Sandy-desert (deserto de areia).

      Pelas três horas, a margem oposta, que se avistou a menos de duas milhas a nordeste, apareceu-lhes distintamente.

      Esta região parecia estar abandonada de todos os seres vivos, a não ser das aves marinhas, alcatrazes, procelárias e grebes, que passavam em direcção às rochas do litoral.

      Realmente, se o Sloughi tivesse encalhado naquelas paragens, os moços náufragos, vendo um terreno tão estéril, julgar-se-iam privados de todos os recursos! Debalde teriam procurado no meio daquele deserto uma morada tão confortável como a de French-den! Quando o abrigo da escuna faltasse, não teriam onde se refugiar! Era necessário, agora, avançar mais naquela direcção, reconhecer inteiramente aquela parte da ilha que parecia inabitável?

      Não seria talvez melhor adiar para segunda expedição a exploração da margem direita do lago, onde podia haver outras florestas que apresentassem novas riquezas? Sim, decerto. Além disso, era nas paragens do leste que devia achar-se o continente americano, se a ilha Chairman estivesse próxima dele.

      Contudo, por conselho de Doniphan, resolveu-se alcançar a extremidade do lago, que não devia estar longe, porque a curvatura dupla das suas margens acentuava-se cada vez mais.

      Foi o que fizeram, e ao anoitecer pararam junto de uma pequena enseada que se abria no ângulo norte de Family-lake.

      Nesse lugar não havia uma árvore, nem sequer um maciço de ervas, de musgo ou de líquenes secos. À falta de combustível, foi necessário contentarem-se com as provisões que iam nos sacos, e, à falta de abrigo, com o tapete de areia, em cima do qual estenderam as cobertas.

      Durante esta primeira noite, o silêncio de Sandy-desert não foi perturbado.

     

      A duzentos passos da enseada erguia-se uma duna, da altura de uns cinquenta pés - observatório indicado para Gordon e os seus camaradas poderem reconhecer melhor a região.

      Logo que nasceu o Sol, subiram pela duna até ao cume.

      Daquele ponto, o óculo foi assestado na direcção do norte.

      Se o vasto deserto arenoso se prolongava até ao litoral, como indicava o mapa, era impossível distinguir-lhe o fim, porque o horizonte de mar devia achar-se a mais de doze milhas para o norte e a mais de sete para o leste.

      Portanto, era inútil avançar mais na parte setentrional da ilha Chairman.

      - Então - perguntou Cross - que vamos fazer agora?

      - Voltar para trás - respondeu Gordon.

      - Não antes do almoço! - replicou imediatamente Service.

      - Põe a mesa! - recomendou Webb.

      - Já que é preciso voltar para trás - observou então Doniphan -, não poderíamos tomar outro caminho para regressar a French-den?

      - Experimenta-se - respondeu Gordon.

      - Parece-me até - acrescentou Doniphan - que a nossa exploração seria completa se contornássemos a margem direita de Family-lake.

      - Isso era muito complicado - volveu Gordon. - Segundo as indicações do mapa, seria necessário percorrer trinta a quarenta milhas, o que exigiria quatro ou cinco dias, e ainda no caso de não se apresentar algum obstáculo no caminho! Em French-den estariam inquietos, e é melhor não lhes dar essa preocupação!

      - Contudo - tornou Doniphan -, mais cedo ou mais tarde, há-de ser necessário reconhecer esta parte da ilha!

      - Decerto - concordou Gordon -, e eu tenciono organizar uma expedição para esse fim.

      - Então - disse Cross - Doniphan tem razão. Era melhor não voltarmos pelo mesmo caminho...

      - Com certeza - respondeu Gordon -, proponho que se siga a margem do lago até Stop-river, e, em seguida, se caminhe directamente para a penedia, ao longo da base.

      - E para que havemos de descer a margem que já seguimos? - perguntou Wilcox.

      - Efectivamente, Gordon - acrescentou Doniphan -, por que não iremos pelo caminho mais curto, através desta planície de areia, a fim de chegarmos às primeiras árvores de Traps-woods, que não estão a mais de três ou quatro milhas a sudoeste?

      - Porque seremos sempre obrigados a atravessar Stop-river - respondeu Gordon. - Ora, nós temos a certeza de podermos passar por onde passámos ontem, enquanto que, mais para baixo, podíamos ter grandes embaraços se o rio se tornasse torrencial. Portanto, parece-me acertado não nos aventurarmos pela floresta senão depois de termos pisado a margem esquerda de Stop-river.

      - Sempre prudente, Gordon! - exclamou Doniphan, com ar levemente irónico.

      - Nunca é de mais, a prudência! - rematou Gordon.

        Todos se deixaram, então, escorregar pelo talude da duna, voltaram ao ponto da paragem, engoliram um bocado de bolacha e de carne fria, embrulharam as coberturas, pegaram nas armas e marcharam pelo caminho da véspera.

      O céu estava magnífico. Uma brisa ligeira enrugava, apenas, as águas do lago. Podia contar-se com um dia esplêndido. Que o tempo se conservasse assim durante trinta e seis horas era o que Gordon desejava, porque contava chegar a French-den na noite do dia seguinte.

      Desde as seis horas da manhã até às onze percorreram-se sem custo as nove milhas que separavam a ponta do lago de Stop-river. Não houve acidentes no caminho; na proximidade do rio, Doniphan matou duas grandes abetardas de poupa e penas pretas, com malhas encarnadas por cima e brancas por baixo – o que o pôs de bom humor, assim como a Service, sempre pronto para depenar, arranjar e assar um volátil qualquer.

      E foi o que ele fez, uma hora mais tarde, depois de todos terem atravessado sucessivamente o curso de água no halkett-boat.

      - Eis-nos no bosque - declarou Gordon - e espero que Baxter terá ocasião de fazer uso do lazzo ou das bolas!

      - O que é verdade é que, até aqui, não tem feito grande coisa com elas! - observou Doniphan, que desprezava todos os instrumentos de caça que não fossem a espingarda ou a carabina.

      - O que podia eu fazer contra as aves? - retorquiu Baxter.

      - Aves ou quadrúpedes, Baxter, não tenho confiança no teu lazzo!

      - Nem eu! - acrescentou Cross, sempre pronto a auxiliar o primo.

      - Esperem, ao menos, que Baxter tenha ocasião de se servir dele, para manifestarem a vossa opinião! - aconselhou Gordon.

      - Eu tenho a certeza de que há-de fazer alguma coisa. Se as munições podem faltar um dia, o lazzo e as bolas não faltarão nunca!...

      - O caso é eles apanharem a caça!... - tornou o incorrigível rapaz.

      - Veremos! - replicou Gordon. - E, entretanto, vamos almoçar!

      Mas os preparativos levaram muito tempo, porque Service quis que a sua abetarda fosse assada com perfeição. E se este volátil satisfez o apetite daqueles estômagos, é porque, realmente, era de bom tamanho.

      Efectivamente, aquela espécie de abetardas, que pesam umas trinta libras e medem quase três pés desde o bico até à cauda, pertence aos exemplares maiores da família dos galináceos. E verdade que esta foi devorada até ao último bocado, e até ao último osso, porque Phann, a quem coube o esqueleto, não deixou mais do que deixaram os donos.

      Acabado o almoço, os sete rapazes entraram na parte ainda desconhecida de Traps-woods, que Stop-river atravessava antes de ir desaguar no Pacífico. O mapa indicava que o seu curso se desviava para noroeste, contornando a extremidade da penedia, e que a sua embocadura estava situada para além do promontório do False-Sea-point.

      Assim, Gordon resolveu abandonar a margem do Stop-river, porque, continuando a segui-la, seria levado para uma direcção oposta a French-den. O que ele queria era chegar pelo caminho mais curto às primeiras carreiras de pedras de Auckland-hill, a fim de costear a base, descendo para o sul.

      Depois de se ter orientado com a sua bússola, Gordon dirigiu-se francamente para oeste. As árvores, mais espaçadas do que na parte sul de Traps-woods, deixavam a passagem livre num solo menos cheio de ervas e de sarças.

      Entre as bétulas e as faias abriam-se, às vezes, clareiras, por onde os raios do Sol penetravam a jorros. As flores bravas misturavam as suas cores frescas com a verdura dos arbustos e do tapete de erva. Em diversos sítios, tasneirinhas soberbas balouçavam-se na ponta das hastes, da altura de dois a três pés. Colheram-se algumas destas flores, com que Service, Wilcox e Webb ornaram os casacos.

      Foi então que Gordon, cujos conhecimentos de botânica deviam aproveitar bastantes vezes à pequena colónia, fez uma descoberta útil. Atraíra-lhe a atenção um arbusto muito copado, com as folhas pouco desenvolvidas, e cujos ramos, eriçados de espinhos, tinham uns pequenos frutos avermelhados, da grossura de uma ervilha.

      - Aqui está o trulca, se não me engano - exclamou ele -, é uma fruta de que os índios fazem muito uso!...

      - Se se come - respondeu Service -, vou comê-lo, já que não nos custa nada!

      E, antes que Gordon pudesse impedi-lo, Service trincou dois ou três daqueles frutos.

      Que careta, e como os seus camaradas acolheram o seu desapontamento às gargalhadas, enquanto ele expelia a saliva abundante que a acidez da fruta acabava de produzir-lhe nas papilas da língua!

      - E dizias tu que isto se comia, Gordon! - exclamou Service.

      - Eu não disse que se comia - rectificou Gordon. - Se os índios fazem uso desta fruta, é para fabricar um licor que obtêm por meio de fermentação. Parece-me que esse licor deve ser para nós um recurso precioso, quando , a provisão de brandy estiver esgotada, com a condição de desconfiarmos dele, porque sobe à cabeça. Levemos um saco cheio destes trulcas para fazermos a experiência em French-den.

      Era difícil colher o fruto no meio dos espinhos que o rodeavam. Mas, sacudindo os ramos, Baxter e Webb fizeram cair no solo grande quantidade deles, com que encheram uma das bolsas, e continuaram a marcha.

      Mais longe apanharam algumas vagens de outro arbusto, natural das terras próximas da América do Sul.

      Eram vagens de alfarroba, cujo fruto dá, também por fermentação, um licor muito forte. Desta vez Service absteve-se de trincá-lo, e fez bem, porque, se a alfarroba ao princípio é açucarada, depois deixa na boca uma secura muito dolorosa, e, por falta de hábito, não se podem trincar-lhe impunemente as pevides.

      Finalmente, de tarde, um quarto de milha antes de se chegar à base de Auckland-hill, fez-se outra descoberta não menos importante. O aspecto da floresta modificara-se. Com o ar e o calor, que penetravam mais abundantemente no meio das clareiras, os vegetais desenvolviam-se de um modo soberbo. A sessenta ou oitenta pés, as árvores lançavam os seus largos ramos, debaixo dos quais gralhava uma multidão de aves palradoras. Entre as mais belas espécies distinguia-se a faia antárctica, que conserva em todas as estações o verde-claro da sua folhagem. Alguns zuinters um pouco menos elevados, mas ainda assim magníficos, cresciam em grupos. A casca deste arbusto pode substituir a canela - o que era bom para o cozinheiro de French-den temperar os seus molhos.

      Gordon reconheceu entre estes vegetais o pernettia, a árvore do chá, da família das vaciniáceas, que se encontra mesmo nas latitudes altas, e cujas folhas aromáticas dão, por meio da infusão, uma bebida muito salutar.

      - Aqui está o que pode substituir a nossa provisão de chá! - informou Gordon. - Apanhemos algumas mãos-cheias destas folhas, e, mais tarde, viremos fazer colheita para todo o Inverno.

      Eram quatro horas, pouco mais ou menos, quando chegaram à extremidade norte de Auckland-hill. Neste lugar, apesar de parecer menos alto do que nos arredores de French-den, era impossível subir pela muralha, que se erguia verticalmente. Pouco importava, porque se tratava apenas de segui-la voltando para o rio Zealand.

      Duas milhas mais longe ouviu-se o murmúrio de uma torrente que espumava através de uma abertura estreita da penedia, e que foi fácil atravessar a vau.

      - Deve ser o rio que descobrimos durante a nossa primeira expedição ao lago - observou Doniphan.

      - O que era atravessado pela calçada de pedra?... - perguntou Gordon.

      - Exactamente - respondeu Doniphan - e que, por essa razão, denominámos Dike-creek.

      - Muito bem, acampemos na margem direita - tornou Gordon. - Já são cinco horas, e como é preciso passar ainda uma noite ao ar livre, é melhor fazê-lo próximo deste creek, ao abrigo das árvores. Amanhã, à noite, se não houver obstáculos, espero que dormiremos nas nossas camas do hall!

      Service tratou então do jantar, para o qual se tinha reservado a segunda abetarda. Era assado, e sempre assado, mas seria injusto censurar Service, que não podia variar mais.

      Durante este tempo, Gordon e Baxter tinham entrado na floresta, um à procura de novos arbustos ou novas plantas, o outro com Intenção de utilizar o seu lazzo e as suas bolas - ainda que não fosse senão para pôr termo aos gracejos de Doniphan.

      Tinham ambos dado uns cem passos através do bosque quando Gordon chamou Baxter com a mão, e mostrou-lhe um grupo de animais que estavam brincando em cima da erva.

      - Cabras? - disse Baxter, em voz baixa.

      - Se não são, parecem-se com elas! - respondeu Gordon. - Tratemos de apanhá-las...

      - Vivas?

      - Sim, Baxter, vivas, e é uma felicidade Doniphan não estar aqui, porque já teria morto uma com um tiro de espingarda e posto as outras em fuga! Aproximemo-nos devagar, sem que elas nos vejam!

      Os graciosos animais, em número de meia dúzia, não tinham dado pelos dois rapazes. Contudo, pressentindo algum perigo, uma das cabras - mãe, decerto - farejava o ar e estava à escuta, pronta para retirar-se com o seu rebanho.

      De repente ouviu-se um silvo. As bolas acabavam de soltar-se das mãos de Baxter, que já estava apenas a uns vinte passos do grupo. Lançadas com vigor e destreza, enrolaram-se à roda de uma das cabras, enquanto as outras desapareciam no interior da floresta.

      Gordon e Baxter precipitaram-se para a cabra, que diligenciava, debalde, livrar-se das bolas. Foi agarrada e impossibilitada de fugir, e, com ela, apanharam-se também dois cabritos que o instinto conservava junto da mãe.

      - Hurra! - exclamou Baxter, a quem a alegria tornava expansivo. - Hurra! São cabras?...

      - Não - respondeu Gordon. - Parece-me que são vicunhas!

      - E dão leite estes animais?...

      - Exactamente como as cabras!

      - Bem, então vivam as vicunhas!

      Gordon não se enganava. As vicunhas, apesar de se parecerem com as cabras, :têm as patas ossudas, a lã curta e fina como seda, e a cabeça pequena e desprovida de chifres. Estes animais habitam, principalmente, os pampas da América do Sul e até os territórios do estreito de Magalhães.

      Imagina-se facilmente como Gordon e Baxter foram recebidos quando voltaram ao acampamento, um puxando a vicunha pela corda das bolas, o outro levando um cabrito debaixo de cada braço. Como a mãe ainda os alimentava, é provável que pudesse criá-los sem muito custo. Talvez eles fossem o princípio de um rebanho futuro, que se tornasse muito útil à pequena colónia...

      Doniphan decerto que lastimou ter perdido aquela ocasião de disparar um bom tiro de espingarda; mas teve de concordar que, quando se tratava de apanhar a caça viva, e não de a matar, as bolas valiam mais do que as armas de fogo.

      Jantou-se, ou, antes, ceou-se alegremente. A vicunha, presa a uma árvore, não se recusou a pastar, enquanto os cabritos saltavam à roda dela.

      A noite, contudo, não foi tão sossegada como tinha sido nas planícies de Sandy-desert. Essa parte da floresta era visitada por animais mais temíveis que os chacais, cujos gritos se conhecem bem, porque são uivos e latidos ao mesmo tempo. Assim, pelas três horas da manhã, houve grande alarme, devido a rugidos, verdadeiros desta vez, que ressoavam nas proximidades.

      Doniphan, de guarda ao pé do fogo, com a espingarda ao alcance da mão, julgou não dever prevenir logo os camaradas.

      Contudo, os rugidos tornaram-se tão violentos que Gordon e os outros acordaram.

      - Que há de novo?... - Perguntou Wilcox.

      - Deve ser um bando de carnívoros que vagueia aqui pelos arredores - disse Doniphan.

      - Provavelmente são jaguares ou cuguardos! - sugeriu Gordon.

      - Quaisquer deles são bons!

      - Não, Doniphan, o cuguardo é menos perigoso do que o jaguar! Mas, em bando, são carnívoros muito temíveis.

      - Estamos prontos para recebê-los! - Respondeu Doniphan. E pôs-se em defensiva, enquanto os seus camaradas se armavam com revólveres.

      - Não disparem senão pela certa! - recomendou Gordon. – Além disso, parece-me que o lume deve impedir estes animais de se aproximarem.

      - Já não estão longe! - exclamou Cross.

      Efectivamente, o bando devia estar muito próximo do acampamento, a julgar pelo furor de Phann, que Gordon segurava com algum custo. Mas era impossível distinguir uma forma qualquer no meio da escuridão profunda do bosque.

      Aqueles carnívoros costumavam, decerto, ir de noite matar a sede àquele sítio. Achando o local ocupado manifestavam o seu descontentamento por meio de rugidos assustadores.

      Mas ficariam eles por aí, e não seria necessário repelir uma agressão cujas consequências podiam ser graves?...

      De repente, a menos de vinte passos, apareceram uns pontos claros e movediços. Quase em seguida ressoou uma detonação.

      Doniphan acabava de disparar um tiro de espingarda, ao qual responderam rugidos ainda mais violentos. Os seus camaradas e ele, de revólver em punho, estavam prontos a fazer fogo se os carnívoros se precipitassem no acampamento.

      Então Baxter, pegando num archote aceso, atirou-o vigorosamente para o lado onde tinham aparecido aqueles olhos, brilhantes como brasas.

      Um momento depois, os carnívoros, um dos quais devia ter sido atingido pelo chumbo de Doniphan, deixaram o lugar e perderam-se nas profundezas de Traps-woods.

      - Foram-se! - exclamou Cross.

      - Boa viagem! - acrescentou Service.

      - Não voltarão?... - perguntou Cross.

      - Não é provável - afirmou Gordon -, mas estejamos de guarda até amanhecer.

      Deitou-se lenha na fogueira, que se conservou acesa até aos primeiros raios da aurora. Então levantou-se o acampamento, e os sete rapazes embrenharam-se na floresta para ver se algum daqueles animais tinha sido morto pelo tiro.

      A vinte passos dali o solo apresentava uma grande mancha de sangue. O animal pudera fugir, mas seria fácil encontrá-lo lançando-lhe Phann no rasto, se Gordon não achasse inútil aventurarem-se mais profundamente através da floresta.

      Portanto, a questão de saber se se tratava de jaguares, de cuguardos ou de outros carnívoros não menos perigosos não pôde ser esclarecida. Em todo o caso, o principal era Gordon e os seus camaradas estarem sãos e salvos.

      Partiu-se às seis horas da manhã. Não havia tempo a perder se se quisessem transpor num dia as nove milhas que separavam Dike-creek de French-den.

      Service e Webb encarregaram-se das duas lindas vi cunhas, e a mãe não se fez rogada para seguir Baxter, que a levava pela corda.

      O caminho que costeava Auckland-hill era pouco variado. À esquerda estendia-se um renque de árvores ora dispostas em maciços quase impenetráveis, ora agrupadas na margem de clareiras. À direita erguia-se uma muralha a pique, listrada de camadas de seixos acumuladas no calcário, e cuja altura aumentava à medida que se desviava para o sul.

      Às onze horas, primeira paragem para o almoço; e, desta vez, a fim de não se perder tempo, gastou-se da reserva dos sacos e continuou-se a marcha.

      Esta era rápida, e parecia que nada iria interrompê-la, quando, três horas depois do meio-dia, se ouviu outro tiro de espingarda debaixo das árvores.

      Doniphan, Webb e Cross, acompanhados por Phann, achavam-se a uns cem passos adiante, e os seus camaradas já não podiam distingui-los, quando se ouviram estes gritos: Cuidado! Cuidado!

      Estes gritos teriam por fim advertir Gordon, Wilcox, Baxter e Service de algum perigo iminente?

      De repente, do interior do mato, apareceu um animal de grande estatura.

      Baxter, que acabava de desenrolar o lazzo, atirou-o, depois de o ter balouçado por cima da cabeça.

      Isto foi feito tanto a tempo que o nó corredio da comprida correia foi enrolar-se no pescoço do animal, que diligenciou, debalde, livrar-se dele. Mas, como o animal era vigoroso, teria arrastado Baxter se Gordon, Wilcox e Service não tivessem logo agarrado a extremidade do lazzo, que conseguiram enrolar à roda de um tronco de árvore.

      Quase em seguida, Webb e Cross saíram do bosque, seguidos por Doniphan, que exclamou, num tom revelador de mau humor:

      - Maldito animal!... Como ele pôde escapar-me!

      - Mas não escapou a Baxter - respondeu Service -, e apanhámo-lo vivo e bem vivo!

      - Isso não quer dizer nada, porque há-de ser preciso matá-lo! - replicou Doniphan.

      - Matá-lo - tornou Gordon -, matá-lo, quando ele vem tanto a propósito para nos servir de besta de tiro!

      - Este animal? - exclamou Service.

      - É um guanaco - informou Gordon - e os guanacos fazem muito boa figura nas coudelarias da América do Sul.

      Doniphan, em todo o caso, lastimou não ter morto o guanaco, por muito útil que ele fosse. Mas não disse nada, e foi examinar aquele belo exemplar da fauna chairmanita.

      Apesar de, na história natural, o guanaco estar incluído na família dos camelos, não se parece com o animal deste nome, tão vulgar na África setentrional. Este, com o seu pescoço delgado, a sua cabeça fina, as suas pernas altas e um pouco franzinas - o que indicava um animal muito ágil -, a sua pele fulva, com malhas brancas, não era decerto inferior aos mais formosos cavalos da raça americana.

      Com certeza que poderia ser empregado em carreiras rápidas, se se conseguisse prendê-lo primeiro e em seguida domesticá-lo, e parece que isso é o que se faz facilmente nas fazendas dos pampas argentinos.

      Afinal o guanaco é muito tímido, e este nem sequer tentou debater-se. Logo que Baxter alargou o nó corrido que o estrangulava, foi fácil conduzi-lo pelo lazzo como por uma arreata.

      Decididamente, esta excursão ao norte de Family-lake ia ser proveitosa à colónia. O guanaco, a vicunha e os dois filhos, a descoberta da árvore do chá e da alfarroba, tudo isto merecia que se fizesse bom acolhimento a Gordon e, sobretudo, a Baxter, que não era vaidoso, como Doniphan, nem se enchia de orgulho com os seus sucessos.

      Em todo o caso, Gordon ficou muito satisfeito por ver que as bolas e o lazzo deviam prestar grandes serviços. Doniphan era, decerto, um caçador muito hábil, com quem se devia contar; mas a sua habilidade custava sempre alguma carga de pólvora e de chumbo. Por isso, Gordon animou os seus camaradas a servirem-se, de preferência, daqueles instrumentos de caça, de que os índios fazem tanto uso.

      Segundo as indicações do mapa, era necessário percorrer ainda quatro milhas para chegar a French-den e caminhar depressa a fim de lá estar antes da noite.

      A Service não faltava vontade de se escarranchar no guanaco e fazer a sua entrada em cima daquele «magnífico corcel». Mas Gordon não o permitiu. Era melhor esperar que o animal estivesse ensinado para servir de montada.

      - Parece-me que não há-de recalcitrar muito - disse ele. - Além disso, no caso de não se poder cavalgá-lo, é preciso que consinta em puxar o carro! Portanto, tem ciência, Service, e não te esqueças da lição que recebeste do avestruz!

      Pelas seis horas, chegaram a Frenchden.

      O pequeno Costar, que brincava em Sport-terrace, anunciou a chegada de Gordon.

      Briant e os outros correram imediatamente, e festejaram com alegres hurras o regresso dos moços exploradores, depois de alguns dias de ausência.

 

                                                                          CONTINUA

 

                      

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