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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NÃO MATEM AS FLORES / J. M. Simmel
NÃO MATEM AS FLORES / J. M. Simmel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NÃO MATEM AS FLORES

Livro I

 

— Você tem de vir a Viena imediatamente — disse Da­niel.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Por telefone, não — disse ele. — Preciso falar com você de qualquer jeito. O mais depressa possível. Já me infor­mei. Ainda sai um avião de Paris para Viena esta noite. Euro-Air. Assim que você chegar em Viena, venha ao escritório. Vou trabalhar a noite toda.

— E se o avião estiver lotado? — perguntei. — Se eu não conseguir mais lugar?

— Então pegue um aviãozinho charter! Sempre há des­ses. Estou lhe dizendo, tenho necessidade absoluta de lhe falar o mais depressa possível, sem falta, entende, Charles?

— Sim, entendo — disse eu, já desabotoando a camisa do meu smoking. Pelas altas janelas abertas do escritório en­trava, doce e pesado, o aroma dos arbustos floridos do Jardin du Ranelagh, do outro lado do parque. Morávamos num pe­queno palácio na Alameda Pilatre de Rozier, no 16º Distrito. Meu escritório ficava no primeiro andar. O sol baixava no oeste, mergulhando tudo numa luz dourada e cintilante. O dia fora muito quente. Uma brisa fresca vinha do parque.

Daniel era o advogado vienense Dr. Daniel Mann. Depois de tantos anos de trabalho em comum, eu confiava nele cega­mente — e ele em mim. Algo muito grave acontecera, para ele falar desse jeito. Devia se relacionar com algum cliente comum. Tínhamos alguns, e muito importantes.

— Eu iria ao aeroporto apanhar você — disse ele. — Mas não posso sair daqui. Trabalho demais. E preciso aguardar dois telefonemas.

— Tudo bem — disse eu. — Estou indo. Linha ou charter. Telefonarei de Orly.

— Obrigado — disse ele. — Pegue um táxi até o meu escritório na cidade. — Ele tinha o escritório numa velha casa no Graben, 1º Distrito. Eu já estivera lá duas vezes. — O portão estará trancado. Bata três vezes: longo... breve... lon­go.

— Sim, Daniel — respondi.

— Muito incômodo para você, não?

— Bem, tínhamos um convite. Do Embaixador inglês.

— Lamento, Charles, mas você tem de vir a Viena.

— Tudo bem — disse eu. — Logo terá notícias minhas. Tchau, Daniel.

Desliguei. Os raios do sol poente caíam obliquamente na sala. O tráfego bramia ao longe. Nossa rua era quieta. Depois telefonei para o balcão da Euro-Air em Orly. Ainda tinham lugar no vôo das 22h45min.

— Mas é um lugar na segunda classe. A primeira está lotada, maître — disse a voz de moça. Na França, notários e advogados são chamados de “maître”.

— Não importa, mademoiselle.

— E por favor, esteja aqui uma hora antes da partida, maître.

— Sou pontual — disse eu, e desliguei outra vez. Depois peguei o casaco de smoking branco que estava pendurado numa cadeira e fui ao quarto de vestir. Ficava no outro ex­tremo do andar, junto ao quarto de dormir e ao banheiro. Espelhos cobriam todas as paredes do quarto sem janelas, com oito cantos. Atrás dos espelhos havia grandes armários e as portas dos dois banheiros, bem como a porta do corredor. Ao lado do banheiro de minha mulher havia ainda uma sala de maquilagem. A porta estava aberta. Yvonne estava sentada diante do espelho emoldurado por canos de luz. Sua mesa de maquilagem transbordava de tubos, potes, cadinhos, frasquinhos e pentes, bem como as muitas prateiras de vidro da parede.

Ela vestia um leve penhoar. Estava se preparando há ho­ras para aquela festa. Primeiro, estivera ali o cabeleireiro, com uma manicure. Os dois sempre vinham à nossa casa; Yvonne odiava ir ao cabeleireiro. Também vinha um massagista a cada dois dias.

Minha mulher estava colando longos cílios postiços na pálpebra direita, o que exigia toda a sua atenção. Viu e ouviu que eu chegava, mas não podia falar. Eu disse então:

— Sinto muito, mas tenho de ir imediatamente a Viena. Daniel telefonou. Muito urgente.

Cinco segundos de silencio.

Então ela se dominara. Sua voz soou metálica:

— Você está brincando!

— Não — respondi. — Lamento. Tenho de ir a Viena. Imediatamente.

Agora os longos cílios postiços estavam colados na pálpe­bra direita, a esquerda parecia nua. Era cômico.

— E a nossa festa?

Atirei a camisa do smoking e abri a calça.

— Vou telefonar e explicar tudo ao Embaixador. Você terá de ir sozinha, Yvonne.

— Não vou sozinha, e você sabe disso!

— Mas não... Mas você conhece todas as pessoas que estarão lá.

— Mas você não estará lá.

— Santo Deus, Yvonne, tenho de ir a Viena, por favor! É muito importante, senão Daniel não teria telefonado.

— Não vou sozinha. O que vai parecer? Todas as mulhe­res com seus maridos, e eu sozinha. Você não acredita que eu iria sozinha.

Não, eu não acreditava. Apesar de toda a sua aparente independência, Yvonne sempre fora insegura em sociedade. Adorava festas, ocasiões de gala e grandes reuniões — era a sua vida —, mas só ao meu lado. Só quando eu estava lá. Não necessariamente ao seu lado.

Apenas presente. Então ela brilhava. Ficava no seu ele­mento. Mas eu tinha de estar lá. Quando eu não a acompa­nhava, ela sentia medo, eu sabia. Como isso era singular em uma mulher para quem a sociedade (e ela era extremamente esnobe), a opinião pública, as câmeras, os flashes, as colunas sociais e as pessoas famosas significavam tudo. Por mais que, com os anos, me detestasse, para isso, para a sua verdadeira vida, ela ainda precisava de mim, mais do que nunca.

Eu estava ali parado, de meias e cuecas, escolhendo outra roupa de baixo e um terno azul leve. Eu sabia o que viria agora. Apesar de toda a repulsa, sentia pena dela.

— Seu cafajeste — disse dona Yvonne.

Tratei de enfiar meu terno azul.

— Você nem tem de ir a Viena. Só quer encontrar uma puta qualquer. Uma das suas putas. Há muito tempo você vinha premeditando isso. Porque eu estava tão contente com esta noite. Naturalmente tinha de estragar a minha alegria. Seu cafajeste, seu miserável, você estraga todas as minhas alegrias!

Não respondi.

A tempo vi que ela pegava da mesa de maquilagem um pesado pote de creme e o arremessava em mim. Agachei-me como um raio. O projétil de creme acertou o grande espelho de parede atrás de mim estilhaçando-o à altura de minha cabeça. Se eu não tivesse me abaixado, o pote teria batido na minha têmpora. Yvonne muitas vezes atirava coisas em mim, quando estava furiosa. Eu precisava tomar cuidado. E tomava cuidado, embora em todos esses anos estivesse muito perto do fim. Se ela me tivesse acertado, talvez toda aquela desgraça já tivesse acabado.

— Diga alguma coisa! — berrou ela. Os cílios postiços na pálpebra direita tinham escorregado, pendiam parcialmente soltos no ar. Yvonne chorava. Maquilagem, sombra de pálpebras e ruge escorriam na grossa camada de base que lhe cobria o rosto; as cores se misturavam, ela parecia um palhaço. Eu era dez anos mais velho do que ela, mas depois de uma bem-sucedida plástica ela parecia ainda muito mais jovem. E era uma beldade — embora não naquele momento. Ainda tinha aquele corpo esbelto que um dia tanto me excitara, as pernas longas, os seios firmes, a pele alva. Seu cabelo era de um negro azulado, os olhos brilhantes, grandes olhos oblíquos. O rosto de altas maçãs era regular. Muitos homens se voltavam na rua para vê-la, muitos a contemplavam ávidos, ah, sim. Só eu não mais, não, eu não mais.

— Estou me preparando metade do dia para essa noite — e aí vem você e me diz que tem de ir para Viena? De propósito, você faz isso de propósito! — Agora chorava muito. As cores em seu rosto se misturavam cada vez mais. Estava a um tempo trágica e ridícula.

Abri outra porta de espelho, peguei uma mala e juntei algumas coisas que queria levar para Viena.

— Perdeu a fala? — gritou Yvonne. — Não pode mais falar comigo, é? — O penhoar escorregou-lhe dos ombros. Nua, só com a calcinha cor de salmão e chinelos de salto alto, parada ali, no quarto de vestir, ofegante, os seios subindo e descendo rapidamente.

— Responda!

— O que quer que eu responda?

— Que fez isso de propósito! Mais uma vez! Para me atormentar. Para me fazer chorar.

Não respondi. Coloquei na mala camisas, meias, roupa de baixo, um terno. Como eu conhecia bem tudo aquilo, e há quanto tempo. Ela que chorasse, gritasse, me amaldiçoasse. Tudo bem!

Ela foi até a mesa de maquilagem, fora de si.

— Você... Você... Como te odeio! Agora conseguiu mais uma vez. Mas Deus é justo. Deus é justo! Não permitirá uma coisa dessas. Não para sempre! — Virou o pé num dos chinelos, jogou-o longe e gritou:

— Você vai pagar por tudo isso! Pagar, sim! Quero que você morra, cachorro! Morra! Morra! E logo! Vou ficar feliz se você morrer breve! — Arremessou também o segundo chi­nelo e saiu correndo da sala de maquilagem, atravessou o banheiro e entrou no quarto de dormir, batendo a porta atrás de si.

Nunca mais vi minha esposa Yvonne.

 

— Quer que o leve ao aeroporto, maître? — perguntou Emile.

Estávamos parados no caminho de cascalho do jardim, diante de nosso palácio branco, onde meu carro estava estacio­nado. Emile Rachet, o concièrge, levara a mala para baixo. O mordomo era um homem aplicado e hábil, que sabia simples­mente tudo. Era eletricista, lanterneiro, pintor, pedreiro e jar­dineiro. Não havia trabalho que não soubesse fazer. Morava há dezoito anos na mansarda sobre a garagem nos fundos do jardim — desde que eu morava na Alameda Pilatre de Rozier.

— Não — respondi cansado, pois a briga com minha mulher me abalara mais do que eu queria admitir. — Chame um táxi, Emile. Obrigado.

Eu também me desculpara por telefone com o Embai­xador britânico: precisava ir urgente a Viena, e Yvonne não se sentia bem, aquele calor. E ele fora especialmente amável, desejara melhoras rápidas a minha mulher, e, para mim, um bom vôo.

— Sempre demora até chegar um táxi aqui — disse Emi­le. Era da minha altura e da mesma idade. Usava um chapéu de palha de abas largas com a camisa branca, calças brancas, e avental azul.

— Sim, muito trânsito essa noite — disse eu, olhando para o parque com seus muitos arbustos e flores. Vermelhas, azuis, amarelas e lilás, que brilhavam na luz do sol poente. As folhas verdes das árvores estavam lustrosas. Ainda fazia muito calor.

Emile me encarou:

— Sinto tanto.

— O quê?

— Ah, monsieur — suspirou. — Madame tem voz alta. A cozinheira a ouviu. E a criada e o criado também. Eles me contaram.

— Tudo bem — respondi. — Tudo bem, Emile.

— Nada está bem — disse ele, baixo.

Emile Rachet era um homem simples. Gostava do grande jardim e de sua liberdade de trabalhar como julgava certo — uma liberdade que eu lhe concedia com prazer. Quando Yvonne gritava com ele, sua resposta era sempre:

— Sou empregado de seu marido, madame, e não seu empregado. — Por isso ela em geral o deixava em paz.

De mim ele recebera licença de cultivar um pedaço de terra num recanto afastado do jardim. Emile, que cuidava das árvores, das flores e arbustos, plantava no seu recanto toma­tes, feijões e verduras para nosso consumo e para suas pró­prias necessidades.

Das muitas coisas que amava, o que mais amava era aquele pedacinho de terra. Era solteiro, e tinha algo de esquisitão, mas um esquisitão amável.

Emile parecia sofrer porque eu estava pálido e calado, e pensava intensamente em como poderia me alegrar. Pigarreou nervoso. Aparentemente, tivera uma idéia.

— Quanto tempo fica em Viena, monsieur?

— Não sei. Provavelmente amanhã à noite já estarei aqui. Por quê? — Tive de pensar na frase do filósofo Ernest Bloch, que escreveu: “O ser humano precisa pelo menos de uma pequena visão de algo apaziguador que lhe traga ale­gria.” Simplesmente tem de ter alguma coisa, ou não conse­guirá viver.

— Já tenho tomates lindos, monsieur — anunciou Emile. — Também rabanetes e pepinos. Quando monsieur voltar, teremos Salat Nicoise. Está bem?

— Ótimo — respondi. Visão através de uma “porta pelo menos entreaberta”, escrevera Bloch, e todas as portas ao meu redor estavam cerradas há muito, muito tempo.

— Vou falar com a cozinheira. Ela tem todo o necessário — disse Emile. — Atum, ovos, sardinhas, azeitonas. — E riu na esperança de me dar uma alegria. — Monsieur terá uma ótima Salat Nicoise!

Fiz o que ele queria, ri também.

— Não esqueça do alho! — disse eu. No “princípio espe­rança” de Bloch ninguém passava. Eu não tinha nenhuma, nenhuma esperança mais. Há muito tempo não a tinha.

Emile riu de novo; agora parecia feliz.

— Alho, sim — disse Emile. — E mostarda, e ervas frescas.

— E os ovos cortados em quatro — disse eu. “Desespe­rança”, escrevia Bloch, “é a coisa mais insustentável, é a coisa absolutamente intolerável para as necessidades humanas.”

— Em quatro, como sempre — disse Emile rindo. Depois assustou-se. — Monsieur está chorando!

— Besteira — disse eu. — Foi só um mosquito que en­trou no meu olho. — Limpei os olhos com o lenço. — Mal­dição, essas moscas de merda.

— É, essas moscas — disse Emile, com ar perdido.

Diante do portão do parque parou um táxi, o motorista desceu. Emile pegou a mala e a levou até o carro. Dei-lhe a mão. Ele a apertou, enquanto tirava o chapéu de palha.

— O senhor é muito infeliz, monsieur — disse ele, bai­xinho, quando entrei no fundo quente do carro.

— Pare com isso! — disse eu. — Muito rabanete na salada, cortado bem fininho.

— Bem fininho. Ah, monsieur — disse ele, amargurado, e fechou a porta.

Desesperança era a coisa mais insustentável, coisa absolutamente insuportável para as necessidades humanas...

O motorista enfiou-se atrás do volante.

— Para onde, ‘sieur?

— Orly — disse eu. — Aeroporto.

Partimos. Fui comprimido contra o assento e olhei em torno. Emile estava parado na rua, chapéu de palha apertado ao peito.

O aroma dos arbustos floridos e das flores entrava no carro, pesado e doce.

Nunca mais vi Emile.

 

Então a aeromoça loura trouxe o uísque que eu pedira, peguei o copo e disse:

— Obrigado, Monique. — Eu voava com freqüência nos aviões da Euro-Air, e sabia o nome de muitas aeromoças. Tivera um caso com várias delas, com a bela Monique, por exemplo, que nem sabia que iria morrer em poucas horas.

— Foi um prazer, maître — disse ela, e sorriu.

Naquela vez, naquela noite, eu ainda me chamava Char­les Duhamel. Cardíaco. Angina pectoris, sob tratamento de­morado, com preparados à base de nitro. Antes da partida, por segurança, eu engolira uma cápsula de um preparado de nitro de efeito rápido, pois de modo algum queria ter um ataque a dez mil metros de altura. Eu tomava uma dessas cápsulas antes de cada decolagem. Nunca sofrera um ataque num avião.

Sou um homem feio. Meu nariz é grande demais, torto, a boca muito carnuda, o queixo recuado, a testa alta demais. Sou muito alto, e sempre fiquei de pé, andei e me sentei um pouco curvado, de modo que dava facilmente a impressão de ser corcunda. Como o Rei Ricardo II de Shakespeare, eu não era feito “para representar farsas nem para namorar diante de espelhos enamorados”. Tinha consciência de minha aparência — feia, como que aleijado, com barba curta e cabelo castanho comprido, penteado para trás, para tapar as orelhas um pouco salientes. Eu me achava deformado como o Rei Ricardo, “pre­maturamente enviado a este mundo de respiração”. Com efei­to, eu era prematuro de sete meses, embora assim tão alto.

Contudo, jamais tivera a menor dificuldade em encontrar as mulheres que quisesse. Todas se jogavam para mim. Elas deviam sentir alguma coisa. Com Monique fora certa vez numa cabine do banheiro dos homens no aeroporto de Orly. Antes disso eu apenas lhe dissera baixinho no balcão da Euro-Air: “Quero você”. Fora o bastante. Depois disso, ela saíra do banheiro, eu atrás. Até ali não tínhamos trocado uma palavra. Desde então, sempre que Monique me via, parecia contente; portava-se com absoluta naturalidade.

Coisas semelhantes aconteciam a toda hora. Essa maneira de possuir mulheres me excitava muito. E também excitava muito às mulheres, inacreditável, mas verdade: eu jamais le­vara um tapa; apenas em duas ocasiões a mulher se afastara sem dizer nada. Mas todas as outras... Fizera amor com elas à noite nos corredores dos vagões de trens, enquanto o trem trovejava pela escuridão, em umbrais de casas, em automó­veis, lavanderias e banheiros de casas estranhas onde era hós­pede, no cinema, no convés de um iate, uma vez até num vagão cheio de gente do metrô. Eu — e as mulheres — ficá­vamos especialmente excitados quando havia a possibilidade de alguém chegar e descobrir o que fazíamos. Confesso que há anos essas aventuras eram as que mais me agradavam.

Relendo as últimas linhas, assusto-me porque o que es­crevi foi a pura verdade. Naquele tempo, era assim a minha vida. Era tudo o que eu tinha de amor e relacionamento com mulheres. E ainda me sentia bem. Não, não é verdade. Não me sentia bem. Nunca me sentia bem. Muitas vezes pensava em me suicidar. Mas era covarde demais.

 

Você certamente já ouviu falar, meu bem, do homem que dobrou a esquina depressa para comprar cigarros. Foi... e nunca mais voltou.

Esses homens — e mulheres — existem às dezenas e mi­lhares anualmente nos Estados Unidos, e na Europa também. Essas pessoas desertam. Cansaram-se de sua velha vida. Têm saudades de uma nova, que podem iniciar na mesma hora, no primeiro minuto depois de dobrarem a esquina. Há estatísticas sobre esses “desembarcados”. Uma informação da Delegacia Criminal Federal de Wiesbaden diz que em 1980, na Repú­blica Federal da Alemanha, desapareceram exatamente 3.509 homens e 1.735 mulheres. São 14 pessoas por dia. Cinqüenta e um por cento foram encontrados em três dias. Mas os outros — 2.570 homens e mulheres — nunca mais apareceram, e por isso é de supor que realmente conseguiram começar uma nova vida.

Para mim, essa saída de minha existência se tornara uma idéia fixa. Eu não podia evitar, tinha de pensar constante­mente neles, nos que dobram a esquina, nos que vão comprar cigarros. Também naquela bela noite de verão, no vôo de Paris a Viena, no Boeing 727 da Euro-Air, eu pensava neles, copo de uísque na mão; além da janela à minha esquerda um céu cheio de estrelas. Minha vida se tornara tão insuportável quanto a minha profissão.

Minha profissão!

Que ideais elevados eu tivera na juventude! Com que de­cência, inteligência e cultura eu sonhava viver como defensor do Direito e de todos os que lutam pelo seu direito. Eu queria servir à Justiça com toda a minha inteligência e força. Infeliz­mente, ainda me lembrava muito bem desse sonho juvenil, pois isso tornava a coisa ainda mais difícil.

O que acontecera? Eu estudara na pobreza, uma pobreza inimaginável, lavara louça em hotéis, lavara macacões de me­cânico imundos, lavara até cadáveres; fora motorista de táxi, pedreiro, trabalhara até depois da meia-noite em gigantescas galerias, o ventre de Paris. Vivera num quartinho minúsculo, nunca tinha o suficiente para comer.

Dominado por meus ideais, eu finalmente chegara diante da Justiça, como defensor. Defendi gente boa, gente simples. Gente injustamente acusada. Resultado? Meu escritório era miserável, eu mesmo tinha uma vida miserável. E depois, mais por acaso, por descuido, quase um erro, um grande patife, um canalha responsável pela derrocada de muitas vidas, contratou meus serviços de advogado.

E daí?

Eu conseguira livrar o cara. Foi a sensação em Paris. De um dia para outro eu tinha um círculo de clientes inteiramente novo. E estava feliz, muito feliz.

E por isso a partir de então, com toda a minha força e inteligência, cacei dinheiro e glória, sem escrúpulos. Nos meus processos sensacionalistas, não recuava diante de nenhum ble­fe, nenhum truque, nenhuma manobra ousada, quando se tratava — novamente o Rei Ricardo — “de perjúrio, perjúrio no mais alto grau, assassinato, cruel assassinato no mais terrí­vel grau, qualquer pecado executado em todos os graus”. Em mim eles encontravam o seu grande protetor, os criminosos, mesmo os piores. Todos os assassinos se julgavam felizes quando eu os defendia. Sim, desse modo me tornei um astro da advocacia, admirado e desprezado, não importa, desejado! Eu ganhava uma fortuna, tinha um pequeno palácio no bairro mais chique de Paris, um Rolls-Royce, uma casa de campo, um barco no Sul, dúzias de conhecidos: belos, ricos e famosos.

Amigos?

Não.

Um dia eu tivera muitos amigos, e bons, mas fazia muito tempo. Minha mulher Yvonne tinha ciúmes de meus amigos, e medo deles também, com razão e com instinto certo. Pois meus amigos me perguntaram uma vez, há muitos anos, como eu casara com uma mulher daquela: bonita, brava e burra. E se ofereceram mais tarde para me ajudar na tentativa de aban­donar Yvonne. Não foi possível. Eu não podia. E enquanto o tempo passava, minha mulher afugentou meus amigos de casa, e eu me calava com medo das suas cenas: eram tragé­dias antigas. E eu estava cheio de medo e covardia, covardia e medo.

Houve só um que desafiou os insultos de Yvonne, todas as suas perversidades: meu colega de estudos, advogado, meu colega de profissão, o bom Jean Balmoral. Tínhamos nos co­nhecido na Universidade, depois estivéramos um ano inteiro juntos no Instituí d’études judiciaires. Já naquele tempo ele era ligado a mim, nunca me abandonava, me era devotado. Bem, eu redigira quase toda a sua tese de doutorado. O bom Jean Balmoral. Meu amigo íntimo. O único.

E eu? Por que não abandonava aquela mulher bela, brava e burra?

Já disse: não era possível. Eu não podia. Quando tomei Yvonne como minha mulher há vinte e um anos, eu era des­conhecido e pobre, e o pai dela era rico; ela trouxe dinheiro para o casamento, muito dinheiro. Portanto, separação de bens. Separação de bens segundo o contrato de casamento realizado antes mesmo da própria cerimônia do casamento.

Se eu quisesse me divorciar de Yvonne, ficaria financeira­mente arruinado. Naturalmente não era bem assim, mas eu me dizia isso sempre, pois amava o bem-estar. E era covarde, muito covarde.

É verdade que todos os homens são covardes quando se trata de dizer a verdade, separar-se, divorciar-se. Como são diferentes as mulheres, como são audaciosas! O que arriscam os homens? Nada.

Você vai perguntar, meu bem, por que casei com uma mulher assim.

Bem, eu estava apaixonado, não é? Não notei que ela era brava e burra, vi apenas que era linda, tão linda. E éramos jovens, eu vinte e oito anos, ela apenas dezoito. Meus amigos perceberam tudo. Acaso dei ouvidos a um só de todos os que me preveniram? Não. Todos os avisos foram em vão. Pois havia mais uma coisa: estávamos realmente amarrados... como se diz. Estávamos loucos um pelo outro, como animais... e assim foi por sete anos. Depois a embriaguez terminou. E aí notei que Yvonne era burra, burra e brava. Mas era tarde. Pois aí há muito eu começara a minha carreira, e já era fa­moso.

Tomei um grande gole de uísque, e olhei-me na vidraça espelhada. Minha mulher tinha um amante. O jovem bonito, com pele de pêssego e longos cílios sedosos sobre os olhos escuros, chamava-se Paul Perrier. Era amante de Yvonne de maneira absolutamente oficial. Em Paris, meu bem, pode-se fazer essas coisas, e eu também estava muito ocupado com minhas damas. Para poder agüentar a vida eu me dizia que tinha de carregar um carma. A idéia desse carma, desse im­portante conceito religioso do hinduísmo e budismo, diz que o destino de um homem depois da morte depende de como ele viveu. Segundo seus atos, o morto vai para o céu, para o inferno, ou na Terra assume a forma de um ser humano, bicho ou planta. O carma é por assim dizer o pagamento por ações boas ou más. Segundo ele, eu devia ter feito coisas muito ruins na outra vida, e o carma, o pagamento, era Yvonne. Era a minha dívida de vida, da qual jamais me livraria.

Quem de nós nunca pensou “Agora vou dobrar a esquina, comprar cigarros, agora vou sair de toda essa porcaria, de toda a mentira, covardia e perversidade, e começo uma nova vida, bem diferente”? Quem nunca pensou nisso? Ah, era o jogo que todos jogavam em pensamento, só que ninguém fa­lava nele. Esvaziei o copo e refleti: Quanto tempo ainda posso viver com quarenta e nove? Um ano? Dez? Vinte? Ou só um minuto? Se eu morresse aqui e agora, pensei, o que se diria de minha vida? Só isso: totalmente sem valor, sem sentido.

 

— Mais um uísque por favor, Monique.

— Imediatamente, maître. — Ela se foi apressada.

Então desta vez eu estava na segunda classe, embora sem­pre voasse de primeira. O avião viera de Londres, e Paris era só uma escala. A primeira classe estava ocupada pelos mem­bros de uma comissão do governo israelense. Em Viena da­riam prosseguimento, com o Chanceler Kreisky, a conferên­cias iniciadas em Londres sobre o problema palestino. Ele se oferecera como intermediário diante de Yasser Arafat. Monique me contara isso depois da decolagem. Antes eu ainda telefonara a Daniel Mann em Viena.

— Tudo OK, velho. Vou pela Euro-Air. Chegaremos em Viena aos trinta e cinco minutos da madrugada.

— Ótimo, então pela uma e meia você está aqui.

— Sim — respondi. — Então, até uma e meia, Daniel.

Era apertado na segunda classe. Minhas pernas compri­das doíam porque não podia esticá-las. O homem ao meu lado me observava há muito tempo. Então se atreveu.

— Excusez-moi, monsieur, infelizmente je parle français très mal...

— Fala alemão? — indaguei.

— Também entende alemão?

— Sim.

— Fantástico. — Fungou, comovido. Estava muito gri­pado. — O senhor é o famoso advogado Duhamel, não é?

— Ora, famoso...

— Sim, sim. Vi seu rosto... em jornais alemães há três semanas, quando o senhor libertou aquele homem... Kro... Kur...

— Krupinski.

— Sim, Krupinski! Fantástico! — Olhou-me radiante como uma criança contemplando uma árvore de Natal. — Se o senhor não tivesse cuidado do caso dele, teria sido pena má­xima, não é?

— Muito provável.

— Guilhotina, não é? — ele espirrou.

— Não, isso não. Agora com Mitterrand e os socialistas no leme, vão acabar com a pena de morte, senhor...

— Bosnick, doutor. Harald Bosnick. Com ck. Arquiteto.

— Prazer.

— Então, não a guilhotina, mas duas vezes prisão per­pétua, não? — perguntou o sr. Bosnick com ck, e assoou-se generosamente num lenço. — Inocente e atrás das grades a vida toda... terrível pensar nisso!

— Sim, não é mesmo? — respondi.

Ah, eu me sentia desgraçado. Como estava saturado de tudo aquilo. Stanislav Krupinski, metalúrgico. Claro que era culpado, aquele animal obtuso. Esquartejara bestialmente os dois velhos a machado. Seu lucro foram cinqüenta francos. Sim, mas foi um processo baseado puramente em indícios. Nem uma só testemunha. E eu destruíra, anulara um indício após o outro. Pobre promotor: minhas poses grandiosas, meu hábil tratamento psicológico dos jurados, ele não estava à al­tura de tudo aquilo. Dois dos jurados choraram quando o juiz pronunciou a absolvição... “por inocência comprovada”.

Não por falta de provas, não: por inocência comprovada. Quero ver se alguém me imita. Antigamente, há muito tempo, em momentos desses, eu tinha sentimentos de felicidade, ale­gria, triunfo. Mas isso faz muito tempo. Nem mesmo senti satisfação. Rotina, pura rotina, nada mais.

— O senhor faria... o senhor poderia... posso pedir-lhe um autógrafo, doutor? — Ele me estendia um bloco e uma esferográfica dourada. Escrevi meu nome atravessado na pá­gina aberta. Foi a última vez, por muito tempo, que escrevi meu nome.

O sr. Bosnick assoou-se estrondosamente no lenço.

— Obrigado! Quando eu contar a minha mulher... fan­tástico!

— Seu uísque, maître.

— Obrigado, Monique. — Olhei-a. Ela piscou os olhos rapidamente, o que queria dizer: Se quiser, estou pronta. Re­solvi aproveitar a primeira oportunidade no aeroporto de Vie­na. Talvez isso afugentasse momentaneamente a minha me­lancolia.

Tomei um grande gole, depois não consegui mais escapar ao arrebatado sr. Bosnick.

— O senhor fala alemão muito bem, doutor. Realmente, sem sotaque algum.

— Meus pais eram de Alsácia. Nasci em Strasburgo e passei minha juventude lá.

— Entendo — disse ele.

Naturalmente não entendia nada. Não podia entender. Nada sabia de mim. Meu pai morreu quando eu tinha três anos, e não me lembro dele. Minha mãe era muito bonita. A casa em que vivíamos era dela. Ali ela mantinha uma pape­laria. Chegou a guerra, o ano de 1940, a ocupação alemã. Eu tinha oito anos. Os nazistas haviam mandado para a Alsácia-Lorena seus piores fanáticos para “germanizar” o mais possí­vel aquele país que no curso da história mudou tantas vezes de nacionalidade. Portanto, um país sob terror. Um país com medo. Era preciso falar alemão. Todos os nomes franceses foram germanizados. Passei a me chamar Karl. Na escola, tí­nhamos de rezar por Adolf Hitler todas as manhãs.

Um alemão alojou-se em nossa casa. No começo minha mãe ficou paralisada de medo e susto. Todos sabiam que ale­mães vinham para a Alsácia-Lorena. Mas o alemão que mo­rava conosco era um bom homem. Para ele, era perigoso ser bom. Certa vez mamãe o apanhou ouvindo a rádio de Lon­dres. Esse alemão — eu só o chamava pelo nome: Heinz — teve grande medo de que mamãe o traísse. O medo virou con­fiança, a confiança, amor. O amor proibido entre um alemão e uma francesa.

De repente eu voltara a ter um pai. Sim, Heinz era como um verdadeiro pai para mim. Também nós nos amávamos. Eu o admirava desmedidamente. Era tão sensato, tinha tanto hu­mor. E me deu de presente um livro maravilhoso: os Contos de Fadas dos irmãos Grimm, cheio de lindas ilustrações. Eu lia aquilo com a cabeça em fogo. Logo tinha um conto de fadas predileto. Ainda hoje, depois de tantos anos, quase o sei de cor...

“Antigamente, quando ainda adiantava sonhar, viveu um rei cujas filhas eram muito lindas, mas a mais moça era tão bela que até o sol, que já viu tanta coisa, se admirava sempre que via seu rosto...”

Assim começava o conto de fadas “O Rei Sapo, ou Hen­rique de Ferro”.

Heinz me deu muitos outros livros. Foi ele quem desper­tou em mim o amor pelos livros, e me transformou num leitor apaixonado. Também foi ele quem me fez falar alemão sem sotaque. Com ele aprendi que na Alemanha há pessoas boas e más, como em qualquer outro país do mundo.

Assim que a guerra terminasse, diziam mamãe e Heinz, eles iam casar e morar em Brêmen. Heinz era de lá. Alegra­va-me muito com esse misterioso país, a Alemanha. Mas em 1943 Heinz nos deixou e foi ao front leste. Nunca mais ouvi falar nele. Um ano depois nossa casa foi destruída por um bombardeio americano e minha mãe foi morta. Colocaram-me num asilo.

— Senhoras e senhores, aqui fala o Comandante. Esta­mos sobrevoando o Reno...

 

Para que você, meu bem, possa ter uma idéia do ponto a que cheguei, tenho de lhe contar de meu monstruoso cansaço. Nos primeiros anos de nosso casamento eu quase nem dormia. Dormíamos, Yvonne e eu, na mesma cama, e passávamos a noite ocupados um com o outro. Muitas vezes isso ia até o amanhecer. Naquele tempo três ou quatro horas de sono me bastavam; depois disso eu estava absolutamente capacitado a resolver qualquer tarefa intelectual. Seguiu-se um longo perío­do em que à noite eu chegava em casa tão exausto dos acon­tecimentos no escritório e no Tribunal que só conseguia dor­mir com remédios fortes, e mesmo assim mal. Na terceira fase eu estava há um ano quando voei a Viena.

Eu dormia, e dormia, e dormia. Nos domingos e feriados nem saía da cama. Só dormia, sem remédios, catorze, dezes­seis, dezoito horas: um sono profundo, sereno, e com belos sonhos. Há muito eu tinha meu próprio quarto de dormir. Yvonne, que nutria grande desinteresse e desprezo pela minha profissão, só ficou nervosa quando cheguei à terceira fase: o sono compulsivo. Acho que encontrei a palavra certa: compulsão de sono, como um alcoólatra pela garrafa e o morfinômano pela injeção. Sempre fui noctívago. Agora eu já me deitava às nove quando era possível. Os documentos mais im­portantes para o dia seguinte eram lidos com negligência, e eu me preparava insuficientemente para o Tribunal. Adormecia de imediato, e — era isso o desagradável — de manhã não conseguia sair dos lençóis. Sabia que tinha de me levantar, que tinha compromissos e horários, mas ficava na cama e dormia... por vezes até o meio da tarde. Naquele tempo deixei estourarem debates importantes no Tribunal, e fui objeto da ira dos juizes normalmente tão benévolos. Isso não podia con­tinuar. Por fim encarreguei um jovem que me assessorava para aparecer todos os dias úteis às sete e me tirar da cama, a pau se fosse preciso. Nossa criadagem fora escolhida por Yvonne, exceto o concièrge, e por isso não merecia minha confiança.

Portanto, meu jovem assessor, que recebera a chave da casa, aparecia todos os dias úteis no meu quarto e precisava de toda a persuasão, e muitas vezes até de força física, para me tirar da cama e cuidar para que eu não me refugiasse outra vez nos travesseiros. Com corpo de chumbo e a cabeça zonza como se tivesse farreado a noite toda, eu ia ao banheiro, to­mava uma ducha gelada, até estar semi-acordado, bebia imen­sas quantidades de café preto forte, e conseguia chegar a um estado em que podia pensar claro e trabalhar. Fazia então o que nunca fizera: dormia à tarde no escritório... e mais uma vez tinha de ser retirado do sofá à força pelo jovem, para quem tudo aquilo era horrivelmente constrangedor, e ser arrastado até a escrivaninha, porque já havia clientes espe­rando. Em minhas horas de vigília, quando fazia minhas de­fesas e escrevia textos complicados, tinha apenas um desejo: dormir. Dormir e não acordar nunca mais. Emagreci muito naquele tempo, e tinha o aspecto devastado. Fui a um médico conhecido. Examinou-me, olhou minhas mãos sempre trêmu­las, e disse:

— O senhor está absolutamente saudável fisicamente. Mas psiquicamente... hum...

— O que quer dizer hum?

— Psiquicamente a coisa com o senhor é a seguinte: o senhor não pára de dormir porque se rebela com todas as forças contra a vigília e o trabalho ordenado e pontual. O senhor não trabalha só para si. Também para a sua esposa. Ela tem um amante, não é?

— Sim — respondi.

— Bem, então o senhor também está trabalhando para ele. Para sua esposa e para ele. E é isso que o senhor não quer mais fazer. Chama-se a isso fuga no sono. O estado vai piorar. O senhor será assaltado por várias enfermidades inofensivas, que pelo menos o prenderão na cama... Depois vai se refugiar na doença. Os problemas psicossomáticos que o senhor sente podem e vão em breve se transformar em verdadeiras doenças graves. Quando chegar a esse ponto, nem médico nem o me­lhor psiquiatra poderão ajudar. O senhor precisa se separar da sua mulher imediatamente.

— Não posso.

— Então vai morrer miseravelmente — disse ele.

Pensei nessa conversa quando o avião começou a baixar e ouvi Monique falar. Ela falava ao microfone, e sua voz soava pelo alto-falante de bordo.

— Senhoras e senhores, em poucos minutos aterrissare­mos no Viena-Schwechat. Pedimos que coloquem os cintos de segurança e não fumem. — Repetiu as frases em alemão e inglês e, diante de mim, no teto da cabine, acendeu-se uma inscrição luminosa que pedia a mesma coisa em dois idiomas.

Peguei o cinto e coloquei-o sobre o ventre. E parecia afivelado mas na verdade nunca fechava o cinto, nem no avião nem no carro. Simplesmente não podia. Tinha um medo pâ­nico da sensação de estar afivelado. Enquanto sobrevoáva­mos a Viena noturna, vi muitas luzes cintilantes. O aparelho fez uma curva fechada. Logo estávamos tão baixo que se po­diam ver os sinais luminosos da pista. O avião desceu ainda mais. Senti um suave solavanco quando os pneus tocaram o solo. Depois tudo foi rápido como um raio. Lembrei-me de ter visto um relâmpago passar à minha frente no avião, um relâmpago de uma claridade cegante, nunca vista. Depois, um estrondo terrível, que fazia doer os ouvidos. A pressão do ar me levantou do assento, e foi o fim. Perdi a consciência.

 

Eu estava em outro país.

Lá corria um grande rio, e eu estava sentado à sua mar­gem. O ar era doce, o céu infinitamente amplo e alto. A água abaixo de mim cantava baixinho, e desse rumorejar destaca­va-se uma melodia, a mais bela que jamais ouvi, doce e melan­cólica, mas cheia de esperança. E tudo era melodia e harmo­nia, e todas as minhas preocupações, medos e dores haviam acabado.

Depois voei sobre uma grande cidade em direção a imen­sos vinhedos e por cima destes vi o belo rosto sorridente de uma jovem de cabelos castanhos e enormes olhos castanhos; o rosto se aproximava mais e mais, e por fim era como se eu mergulhasse nesse rosto, rodeado de segurança.

E havia florestas com árvores antiqüíssimas, muito altas, e eu passava por uma catedral iluminada, formada por essas árvores, e ao meu lado ia aquela mulher, e senti com grande emoção que pertencíamos um ao outro, assim como podem se pertencer um homem e uma mulher. E de repente havia uma praia infinita e alva, palmeiras curvando-se ao vento de verão, o mar azul, as ondas brilhando em coroas de espuma. A luz era diferente nesse país, indescritível, uma luz supraterrestre de grande intensidade. E vi uma caveira e um relógio de areia vazio, e uma vela queimada e um livro desfolhado, e outros sinais de deterioração, e de repente adivinhei: era o país dos mortos. E vi muitas crianças brincando, e um ancião de rosto curtido de sol. Estava sentado numa mesinha tocando citara e cantava uma bela canção antiga.

E vi uma aldeia muito pequena no meio de prados intermináveis, e por toda parte nesses prados saltavam fontes como chafarizes da terra, e aquela mulher e eu pairávamos sobre os prados e fontes como se fôssemos enfeitiçados e unidos por todos os tempos. E aquela maravilhosa melodia continuava soando, o seu eco refratando-se por toda parte, pois o país dos mortos era grande como um universo, infinitamente grande.

E continuei voando com essa mulher sobre vales e flores­tas, rios e montanhas. E havia uma menininha que mancava e ria e acenava para nós, e a seu lado vi um ancião de cabelo branco, e fiquei tão feliz como nunca fora em vida.

Depois repentinamente vi um riacho e nele boiava um morto, e eu sabia que o matara, mas não me importava, uma Madona me olhava sorrindo, a mim, ao assassino, e à jovem ao meu lado.

Depois voamos subindo pelo céu luminoso, mais alto e mais alto, girávamos numa dança, até que subitamente a cla­ridade se transformou em treva, e comecei a cair, cair, cair, e a melodia linda se transformou em um uivo sinistro, e por fim eu estava deitado em grande treva e solidão, e demorou muito tempo até eu reconhecer que eram os uivos das sirenes.

Aquele maravilhoso mundo dos mortos me rejeitara, eu estava novamente no lamentável mundo dos vivos com seu frio e sua desgraça. O uivo das sirenes ficou mais baixo, por fim era um só... e eu, em algum lugar, em nenhum lugar, não sei onde. E pensei que não era a morte que resolvia todas as coisas. Não, era a vida que punha um fim em tudo, a grande felicidade e o grande amor. E fiquei muito triste.

Ainda havia uma sirene uivando.

 

Uma sirene uivava. Depois eram duas.

Depois, três.

Depois não pude mais contá-las. Meus ouvidos zumbiam e estalavam.

Movi cautelosamente um braço, uma perna, a cabeça. Achei que estava deitado sobre alguma coisa dura e espinhenta. Rolei de lado e caí sobre grama úmida, o rosto para baixo. Agora ouvi além do uivo das sirenes gritos agudos, de pessoas em grande sofrimento, em grande tormento. Depois ouvi con­fusão de muitas vozes, e ruído de motores. E por fim chegou ao meu ouvido o som crepitante de labaredas. Lentamente rolei de costas.

O céu de verão recurvava-se por cima de mim, com suas estrelas infinitamente distantes, infinitamente indiferentes. Sentei-me com cuidado. Parecia não estar ferido. Só sentia dor de cabeça. Vi onde estivera deitado: uma sebe bem aparada, como se plantavam junto das pistas. Hesitante, forcei-me a olhar alguma coisa clara, com chamas cor de laranja, e a alguma distância vi a ruína ardente do avião partido em que eu estivera sentado. Obviamente partira-se ao meio na porta de emergência, e eu provavelmente sentara lá. E assim fui arremessado longe. E você foi jogado longe porque não pren­deu o cinto, pensei. Refleti muito tempo nisso. Tinha grande dificuldade em raciocinar. Bobalhão, pensei por fim, porque não se afivelou, foi cuspido longe. Seu medo de se afivelar lhe salvou a vida.

Os gritos eram pavorosos.

Deviam ser passageiros feridos, pensei. Homens de aven­tal branco corriam de um lado para o outro, ajoelhados diante dos corpos que se retorciam. Da metade dianteira do aparelho restava apenas a parte superior em fogo; o resto se fora. Havia destroços por toda parte, destroços em chamas. E sem­pre aqueles gritos agudos. Chegaram ambulâncias, bombeiros do aeroporto. Levantei-me apoiando-me numa das mãos. Es­tava muito tonto. Minha cabeça ainda doía. O que aconte­cera? Tínhamos caído? Mas já avistara as luzes da pista, sen­tira o primeiro contato das rodas no chão. O que acontecera? Quis andar até aquela ruína em chamas, e notei que só con­seguia tropeçar. As pernas falhavam. Parei. Não, não para lá, pensei. E se os destroços explodirem? Cambaleei em direção oposta. Depois caí, praguejando. No momento seguinte, uma dor aguda no lado esquerdo do peito. De susto, parei de res­pirar. Se eu tivesse um ataque agora... um ataque agora...

Fiquei deitado na terra, imóvel, esperando. O ataque não veio.

Levantei-me e continuei cambaleando.

Uma rua ao longe.

Carros da polícia, de bombeiros e mais ambulâncias vi­nham chegando com luzes ligadas e sirenes uivando. As luzes azuis giravam. Pessoas gritavam como animais carneados. O edifício do aeroporto era rodeado de uma alta cerca de arame farpado; vi que estava aberto em vários lugares, para que os veículos de salvamento pudessem chegar diretamente na pista.

O primeiro carro da polícia passou por mim. Recuei tro­peçando, assustado. Seguiram-se muitos outros carros, verme­lhos, brancos, em ziguezague sobre a pista. Eu me virava, como se a pressão do ar me sugasse. Tudo se via apenas como silhuetas na claridade do fogo: carros, pessoas, os restos do avião. Aproximei-me devagar. Outro veículo me ultrapassou, buzinando forte. Eram carros particulares e um grande cami­nhão. Vi um emblema e li: TELEVISÃO AUSTRÍACA.

Os carros pararam. Homens com câmeras saltaram deles, correram, fotografaram, filmaram. Intensos holofotes acende­ram-se no teto do caminhão e erraram sobre a pista. Vi dois homens ao lado dos holofotes, câmeras manuais apertadas ao ombro. O caminhão adiantou-se. Os homens continuavam fil­mando. Dos carros de polícia agora desciam bandos de poli­ciais que se separaram rodeando e fechando o local do aci­dente num grande círculo. Ouvi gritos de comando e sempre aqueles berros. Eu dera talvez uns dez passos, com muito esforço, quando ocorreram duas fortíssimas explosões. Joguei-me no chão e encolhi a cabeça dolorida. A terra tremia como num bombardeio. Torrões de terra choveram à minha volta, alguns caíram era minhas costas. Ergui a cabeça cautelosamente. Os tanques de combustível do avião tinham explodido. Gigantescas labaredas ergueram-se no céu noturno.

Vi os vultos de alguns homens com câmeras diante do mar de chamas. Atreviam-se a chegar bem perto. Também o carro da televisão foi direto para a parede de fogo. Continuei cambaleando. Agora, o local do sinistro estava bem ilumi­nado. Vi pedaços de metal branco em brasa. Vi médicos em aventais brancos e enfermeiros em uniformes cinzentos ajoe­lhados diante dos feridos, e vi pedaços de corpos humanos queimando, espalhados num grande círculo. Nunca vira nada tão horrendo. Agora que chegava perto, vi o rosto dos policiais de mãos dadas fechando uma imensa parte da pista, dentro da qual o inferno se desencadeara. Havia pessoas que os empur­ravam. A fila de policiais ondulava. Devem ser parentes, pen­sei, abalado. Pessoas que estavam esperando por nós. Havia ambulâncias atrás do cerco. Homens vieram correndo com uma maca. Nela jazia um pedaço de carne sangrenta, que fora um ser humano. Dois enfermeiros carregaram a maca, um terceiro corria do lado. Segurava no ar um frasco de soro. Um cano ligava o soro e a veia do ferido grave. A garrafa reluziu, vermelha. A maca foi rapidamente enfiada na ambulância, os homens saltaram atrás, as portas fecharam-se depressa, a luz azul começou a girar, o carro disparou por uma passagem que os policiais tiveram de abrir à força entre as pessoas. E ho­mens com outra maca correram para a ambulância seguinte. Os policiais usavam capacetes. Continuei cambaleando em di­reção às pessoas diante do cerco. Elas — homens e mulheres — tentavam romper o cordão policial e chegar até os feridos. Não conseguiam.

Uma voz reboou num megafone:

— Aqui fala a polícia! Por favor, recuem! Não atrapa­lhem o salvamento! Os que ainda vivem estão gravemente fe­ridos e precisam ser operados imediatamente. Recuem! Re­cuem!

Isso ajudou. Lentamente as pessoas recuaram. Agora eu chegava até elas. Muitas choravam, atônitas.

— Meu marido estava no avião...

— O meu também...

— E minha mãe...

— O que aconteceu, inspetor? O que aconteceu?

Um policial alto respondeu, arquejante:

— Ataque terrorista. Bomba-relógio a bordo. Explodiu na hora do contato com o solo.

— Muitos sobreviventes?

— Talvez uma dúzia. Gravemente feridos. Todos os ou­tros, mortos.

— Mortos! — guinchou uma mulher.

Afastei-me do local do acidente e entrei na escuridão. Na minha cabeça dolorida continuava a soar: Mortos! Mortos! Mortos!

Também eu deveria estar morto ou gravemente ferido. Mas vivia, e intacto, porque não me afivelara. Isso tinha de ter um significado. Com toda a força, obriguei-me a pensar.

Embora!

Eu queria ir embora, embora dali.

Embora? Para onde?

Você foi lançado fora de sua vida antiga, pensei, com o maior esforço. Minha cabeça agora doía mais. Lançado fora de sua vida antiga. Pode começar uma nova vida. Sem Yvonne. Sem patifaria. Uma vida bem nova. Você é capaz? Isso é possível?

E uma idéia foi tomando forma em mim, lenta e pesada, meu cérebro ainda não funcionava direito. Poderoso era ape­nas o desejo de sair, sair dali, sair, sair. Caminhei arrastando os pés cautelosamente para um portão aberto na alta cerca de arame farpado. Embora, embora dali! Meus joelhos tremiam. Eu cambaleava. Pé direito. Pé esquerdo. Pé direito. Sair! Não olhar para trás. Sair dali, sair.

Eisenbeiss.

Minha consciência nevoenta fechou-se subitamente sobre essa palavra.

Meu velho conhecido Eisenbeiss.

Só ele podia me ajudar agora.

Ajudar em quê?

Fui tropeçando, terno sujo, sangue na cara, sangue quen­te e grudento.

Ajudar em quê?

No meu caminho para uma nova vida?

 

O gigantesco saguão do aeroporto estava quase vazio. To­dos os que tinham estado ali esperando estavam agora lá fora na pista. Meus passos pareciam reboar. Eu tinha medo de chamar atenção de alguém. Não podia ser visto agora, se ainda quisesse desaparecer e começar uma nova vida. Estava infinitamente abalado. Uma idéia me fascinava, uma idéia...

No saguão havia cabines telefônicas e catálogos. De re­pente, de um momento para outro, me lembrara daquele ho­mem. Precisava dele agora. Será que ainda vivia? E se esti­vesse morto? Morto... bastava que não estivesse registrado no catálogo telefônico, ou se tivesse mudado para outra cidade.

Minhas mãos tremiam, tremiam como as de um velho beberrão quando folheei as páginas do catálogo buscando o nome dele.

Eisenaber... Eisenach... Eisenau... Eisenbeiss!

Emanuel Eisenbeiss.

Enfiei a mão no bolso procurando moedas para o tele­fone. Havia só francos. Um franco. Dois francos. Cinco fran­cos. Dez francos. Meti a mão depressa no outro bolso, sem sentido, por que eu teria dinheiro austríaco? Praguejei, joguei as moedas francesas no aparelho... Caíram todas para fora outra vez.

Mas tinha de telefonar!

E ali, onde acontecera o acidente, eu não podia pedir a ninguém que trocasse dinheiro francês, se queria sumir, pas­sar para a nova vida. Furioso, arranquei a página do catá­logo e pus no bolso. Quando me virei para sair da cabine, havia um policial parado diante de mim. Tive de abrir a porta. Tive de passar por ele. Tinha de abrir a porta. Tinha de passar por ele. Mas o homem não se afastou.

— Então! — disse ele.

— Pois não? — Fim. Fim. Tudo acabado. Breve sonho, aquele.

— Então, que tal?

Eu o encarava.

— O aparelho funciona? Depois da explosão todas as linhas ficaram mudas. Santo Deus, falei — berrou ele. — O aparelho funciona?

— Não.

— Com quem pretendia falar?

— Minha mulher. Nosso filho estava no avião. — Quem estava falando? Era eu? Eu estava falando, eu?

— O senhor tem passe?

Acabado. Tudo acabado.

— Sim... sim, claro.

Pena pela bela idéia.

— Vai precisar quando voltar para a cidade.

— Por quê?

Seu aparelho de rádio começou a coaxar. Colocou-o no ouvido. Ouvi: “Sol... aqui fala Sol... Todos a postos. Encon­tramos uma linha. Fim.”

Ele saiu correndo, e gritou sobre o ombro:

— As saídas para a cidade estão controladas! Barreiras nas ruas! Preparativos contra outro atentado a bomba.

Limpei meu terno com as mãos, passei cuidadosamente o lenço no rosto, e tratei de sair do saguão, imerso num silêncio de morte. Fora. Fora daqui! Tropecei ao longo da cerca de arame até um portão aberto. Uma ambulância veio em minha direção, com faróis altos e sirene uivando. Abri os braços e parei no meio da passagem. O carro freou. Corri para a porta direita e abria-a num arranco. O jovem enfermeiro ao volante me encarou atônito.

— O que foi? Ficou maluco? — ele tentava fechar a porta, mas agarrei-me ao trinco. Vi dois médicos de avental branco na parte de trás do carro, separado do assento da fren­te por um vidro leitoso meio aberto. Lá jazia junto um homem todo sujo de sangue, o pé direito apoiado no alto. Tudo se pas­sou muito depressa. Vi que tinham tirado as calças do homem. A perna direita estava com um torniquete de borracha à altura da coxa, e tremia. Era apenas uma massa sangrenta de mús­culos e tendões, mas ele estremecia, violentamente. O rosto do homem estava azulado. Ele estava preso a um frasco de san­gue. Um dos médicos tinha um microfone diante da boca.

— ...Walter Sessler, Wienzeile quinze... idade cinqüenta e quatro... — Interrompeu-se e me olhou furioso.

— Feche a porta!

— Deixe-me ir junto!

— De jeito nenhum. Fora. Hans, vá em frente!

O enfermeiro pisou no acelerador. O carro passou pela porta. Ele tinha de passar para a outra pista. Foi minha sorte. O motorista não podia acelerar direito, primeiro tinha de ver se a pista estava livre.

— Eu lhe suplico... o médico disse que posso ir junto.

— Mas quem é o senhor?

— Irmão dele.

— Como se chama?

Vida nova...

— Sessler! — gritei. — Esse é meu irmão.

— Pra dentro! — gritou o médico.

— Obrigado!... — gaguejei. — Obrigado... — Deixei-me cair no assento ao lado do motorista e bati a porta. A ambu­lância foi em direção da cidade por uma rua larga. A agulha do velocímetro subiu muito depressa. Oitenta... cem... cento e vinte... a sirene uivava.

O médico continuava falando ao microfone:

— Coxa direita... amputação necessária... para onde, Central... para onde, Central...

Nova vida...

— Meu Deus, amputar... — gemi. — Bom Pai do céu, Santa Maria... amputar... bom Deus, por favor, ajude... — Eu precisava parecer desesperado, ou eles teriam suspeitas e me jogariam fora do carro. Afinal, era meu irmão... Uma voz masculina soou no rádio: “Aqui Central... carro vinte e dois... carro vinte e dois... Hospital Geral lotado... Francisco José idem... Vá ao Hospital Rodolfo... repito... Hospital Ro­dolfo... Compreendeu, câmbio?”

— Compreendido, Central. Vamos ao Rodolfo. Fim.

Eu ainda olhava fixamente para trás.

— Meu irmão... — disse eu. — Meu irmão...

O médico fechou a janela de vidro fosco. Nova vida...

Olhei para diante. A listra amarela que dividia a estrada em duas pistas voava em nossa direção. Estávamos a cento e trinta por hora. Alguns minutos depois apareceram luzes ver­melhas. O motorista tirou o pé do acelerador e freou. Era a primeira barreira. Tochas de querosene ardiam na beira da estrada. Vi meia dúzia de policiais, todos com pistolas auto­máticas assestadas. Atrás deles, à direita e à esquerda, veí­culos de ataque, estacionados de modo a só se conseguir pas­sar bem devagar, em fila indiana.

— Tudo bem — exclamou um dos policiais, que também usavam capacetes. — Prossiga!

O motorista passou pela barreira e imediatamente vol­tou a pisar no acelerador. No Cemitério Central topamos com a segunda barreira. Também aqui nos mandaram passar. O motorista não falava uma palavra. Olhava a estrada. A janela do seu lado estava abaixada, e eu sentia o vento quente. Não foi só em Paris que o dia esteve incrivelmente quente, pensei. Você jamais teria passado pelas barreiras sem mostrar seu passaporte, jamais.

A ambulância dobrou à direita, com pneus guinchando, e entrou numa estrada lateral. Depois perdi a orientação. Di­reita. Esquerda. Esquerda. Direita. Nisso apareceu uma imen­sa construção. Ao lado da entrada principal li uma grande placa esmaltada:

HOSPITAL FUNDAÇÃO RODOLFO

CIDADE DE VIENA

Entramos em curva num pátio lateral. Diante da entrada iluminada vi homens de branco esperando. A ambulância parou. A porta traseira abriu-se num arranco. A maca com o ferido foi colocada numa armação com rodas de borracha e sumiu imediatamente, os dois médicos junto.

O enfermeiro desligou o motor e disse:

— Seu irmão já está na sala de operação. A Central avi­sou os cirurgiões pelo rádio. — Ele desembarcou. Também saí do carro, e fui atrás dele no corredor iluminado.

— Não pode vir junto — disse ele diante de um elevador. — Tem de esperar.

— Esperar... Como esperar? Quanto tempo?

— Pode levar horas.

Como eu conseguiria alguns xelins? Não podia pedir a ninguém ali que trocasse dinheiro francês. E tinha de telefonar a Eisenbeiss!

— Onde devo esperar?

— No banco lá atrás, no caminho da capela.

O elevador chegou, entrei e me despedi com um sinal de cabeça. Andei pelo corredor, de repente senti cheiro de in­censo. No mesmo momento, tive aquela idéia. Lá havia uma pequena capela. Um homem saiu de lá e passou por mim. Pensei que a gente também pode ir à igreja aqui nesse hospital durante a noite rezar pela vida de uma pessoa ou pela própria.

Entrei na capela. Uma lamparina eterna ao lado do altar era a única iluminação. Ao lado, algumas flores em vidros de geléia. Havia velas enfiadas nos espinhos de uma armação de ferro com muitos braços, velas grandes e pequenas. Não es­tavam acesas. Só do corredor entrava alguma luz. Meus olhos levaram tempo para se habituarem à penumbra. Depois vi o que procurava. Debaixo da Madona com a criança havia, nu­ma coluna, uma caixa de madeira do tamanho de uma caixa de charutos. Podia-se jogar dinheiro ali dentro através de uma fenda. Tirei a caixinha do gancho, e coloquei-a no chão de pedra. Escutei cautelosamente. Não se ouvia passo algum. Pi­sei com força na portinha primitiva na frente da caixa, que saiu dos gonzos com um rangido. Senti uma pontada de dor aguda, como se tivesse dado um pontapé no meu próprio peito. Um ataque? Logo agora? Não, não, não... nada de ataque, por favor. Fiquei bem quieto e esperei. O suor me corria da testa. Não veio ataque algum. Ajoelhei-me. Não se via nada no chão. Afastei a portinhola quebrada e apalpei moedas e notas. Deixei as notas, peguei todas as moedas que encontrei e meti-as no bolso. Depois recoloquei a caixa na coluna e enfiei duas notas de cinco francos na fenda.

Ouvia-se o uivar de sirenes. Certamente outro transporte de feridos chegando.

Saí depressa da capela e quase me choquei com duas mulheres que queriam entrar.

— Também se pode viver com uma perna — disse uma delas. — Podia ter sido pior, Matilde.

— Por que teve de acontecer isso com o rapaz? — per­guntou a outra, chorando. — Sou tão velha, estou esperando a morte, e a morte não vem. Antes Ele me tivesse deixado morrer, poupando essa desgraça ao pobre Walter.

— Nas mãos de Deus, Matilde — disse a primeira. — Estamos todos nas mãos de Deus.

Mal passara pelas duas, comecei a correr.

Estavam tirando outro ferido grave de uma ambulância e colocando-o na cama de rodas. Ergui os olhos para as paredes do pátio. Todas as janelas bem iluminadas, cheias de pessoas com camisolas e pijamas. Devem ser doentes, pensei. Olhavam para baixo, nervosos e excitados e lascivos, comprimindo-se nas janelas, homens de um lado do pátio, mulheres do outro.

Eu podia ver os rostos deles nos dois andares inferiores, e pensei nas maldosas caricaturas de Honoré Daumier. Um carro parou ao meu lado. Um homem de calça e camiseta saltou dele.

— Doutor Demel! — chamou uma voz.

— Estou indo!

— Venha logo!

— Acabei de fazer um plantão de quarenta e oito horas, diabos!

— Eu também! — gritou a voz. — Depressa!

O médico correu pelo pátio e desapareceu na entrada iluminada. Cheguei perto do carro cuja janela da frente estava abaixada. Vi a chave na ignição, abri depressa a porta, enfiei-me atrás do volante e dei a partida. O pátio era grande, fácil de manobrar. Quando saí para a rua, escutei homens e mulhe­res gritando numa confusão. Afundei o pé no acelerador. Em­bora! Tinha de ir embora dali também! Para sair completa­mente da minha vida antiga... e talvez, se tivesse sorte, entrar numa vida nova, melhor.

O relógio do painel marcava duas e cinco. De repente lembrei-me de Daniel Mann, o advogado, por causa de quem eu estava ali. Ele já devia estar esperando por mim em seu escritório no Graben... em vão, pois eu não iria para lá, na minha vida antiga, e com certeza não na nova vida. Por isso, nunca saberia o que era tão incrivelmente importante para nós dois, tão desmedidamente significativo que ele ainda tivesse que me ver naquela noite. Não, eu nunca saberia. Uma sen­sação sinistra foi me invadindo, de estar me equilibrando como um acrobata entre duas vidas.

Errei em ziguezague por ruas laterais apertadas, e quase morri de praguejar. Não encontrava mais a rua principal. E não se via ninguém. Minhas mãos ficaram úmidas. Eu suava. Estava a- ponto de parar o carro e descer quando finalmente avistei uma cabine telefônica. Parei junto dela, remexi no bol­so direito do casaco, pesado de moedas da capela, achei um xelim, e joguei-o na fenda do aparelho. Depois, do bolso es­querdo tirei a página do catálogo telefônico que arrancara em Schwechat.

Eisenbeiss... lá estava ele.

Disquei depressa.

Soou o chamado. Ninguém atendeu. Não está em casa, pensei em pânico. Viajou. Ou morreu? Não, então não estaria mais na lista telefônica. Ou sim, o catálogo só saía uma vez ao ano. Ele bem podia estar morto...

— Que diabo, quem é? — A voz dele...

Recostei-me na parede de vidro da cabine e senti um grande alívio.

— Alô! Alô! Fale, seu porco!

Eu esquecera de apertar o botão de falar.

— Emanuel — disse eu. — Aqui é Charles.

— Charles! De onde está falando? Paris?

— Não, Viena.

— Como, Viena?

— Explico depois. Posso ir até aí agora?

— Sim, claro, naturalmente... onde está?

— Dapontegasse catorze — respondi. Li numa plaquinha esmaltada sobre o aparelho.

— De carro?

— Sim.

— Em direção de um parque?

— Sim.

— Então tem de virar o carro. Volte até a primeira trans­versal. É a Ungargasse. Entre pela Ungargasse à esquerda. Vai dar direto na Rennweg. Desça a Rennweg até a Schwarzenbergplatz. Conhece o Ritz?

— Sim. — Eu sempre fiquei no Ritz quando estava em Viena. Hoje também tinha uma suíte reservada lá. Entre­tanto não iria mais para lá. Tudo era diferente agora.

— Suba o Ring até a Ópera. Conhece também, não é?

— Sim, conheço.

— Bom. Estacione direto diante do Hotel Bristol, espere diante dele. Vou apanhá-lo lá. Não leva cinco minutos, OK?

— OK. — Desliguei, corri até o carro e virei-o. Depois fiz como Eisenbeiss me explicara. Alguns minutos depois che­guei ao Ring. Subi por ele, passando pelo Ritz. Perto do Bris­tol, entrei numa lateral, entrei num estacionamento, desci e simplesmente deixei o carro ali, depois de trancar todas as portas e colocar a chave no assento dianteiro. Tinha de cuidar para que ele não fosse realmente roubado. Depois andei até o Bristol e esperei por Emanuel Eisenbeiss. Conhecia-o há anos e sabia muita coisa a seu respeito, muita coisa mesmo...

 

Num belo dia de maio de 1956 um senhor elegante de boa aparência, com uns quarenta anos, estava sentado no Café de la Paix em Paris, lendo atentamente a parte local do Figaro. Até então esse cavalheiro agira nas metrópoles da Europa e da América sob vinte e seis nomes e com vinte e seis rostos dife­rentes. A polícia não conseguira uma só vez prendê-lo por vigarice, logro ou falsificação de recibos bancários, embora o distinto senhor de personalidade encantadora fosse culpado por esses e outros delitos. No momento chamava-se Jacques Delorme, e todos os seus documentos, perfeitos, feitos por ele próprio, atestavam isso. Seu nome verdadeiro era Emanuel Eisenbeiss.

Do outro lado da mesinha sentava-se um jovem que até ali vivera com três nomes e três identidades. Eisenbeiss estava convencido de ter descoberto um talento que justificava as mais belas esperanças. O jovem chamava-se Pierre Fontaine. Eisenbeiss deu-lhe o jornal e indicou uma coluna. Fontaine leu que a Torre Eiffel estava num estado lamentável e tinha de ser totalmente renovada, trabalho que custaria tanto ao Es­tado que haveria protestos perguntando se não seria melhor — e sobretudo mais barato — derrubar a Torre.

— Você leu, Pierre? — perguntou o elegante Eisenbeiss.

— Sim — disse seu discípulo Fontaine.

— Então, vamos pôr mãos à obra.

— Que obra?

— Vender a Torre Eiffel — respondeu Emanuel Eisen­beiss, aliás, Jacques Delorme.

— Mas é impossível!

— Não totalmente — disse Eisenbeiss. — Precisamos é de licenças do governo e de papel de carta timbrado da Admi­nistração Pública de Parques e Construções. Tenho modelos. O resto é ninharia. — Eisenbeiss tinha em Marselha uma oficina perfeita de falsificações, que já funcionara durante a Segunda Guerra. Fizera inúmeros passaportes falsos, livros de soldo e atestados de liberação da Wehrmacht alemã.

No mesmo dia voou com seu discípulo a Marselha e pas­sou dois dias em grandes atividades. Quatro dias depois os cinco maiores negociantes de sucata de Paris receberam cartas oficiais da Administração de Parques e Edifícios Públicos. Nessas cartas “estritamente confidenciais”, pedia-se aos cava­lheiros que comparecessem na sexta-feira seguinte, às quinze horas, no apartamento 312 do Hotel George V. Tratava-se de uma missão do governo. Assinado: Paul Rebout, Diretor.

O diretor Paul Rebout recebeu os cinco cavalheiros. Tam­bém os apresentou a seu colaborador René Noilly. Os dois pareciam-se mesmo com o verdadeiro diretor Rebout e seu assistente Noilly — Eisenbeiss era famoso por sua arte de maquilador, e levava o trabalho muito a sério. “Nunca seja relaxado”, era o seu lema. Aquele criminoso cavalheiro, já legendário, modelo de muitos companheiros de corporação, era também um homem de extraordinários dotes psicológicos. Transformava em vantagens os pontos mais fracos dos seus golpes.

— Senhores — disse andando de um lado para outro com passo comedido —, certamente estão admirados pensando por que os recebo aqui e não em meu escritório. Bem, natural­mente isso tem seus motivos, e quero ser bem honesto com os senhores. Vejam, nós, funcionários públicos, mesmo nos mais altos postos, levamos uma vida difícil. Temos de estar sempre muito bem-vestidos, temos de representar o governo... e sem­pre nos perguntamos: com que dinheiro? Nossos ordenados são tão modestos, senhores, que meus amigos e eu simples­mente não temos outra solução para nossos problemas senão a de... hum... não recusarmos uma ajuda amigável.

— Quer dizer: os senhores se deixam subornar — disse agressivamente um dos sucateiros.

— Na sua profissão estão acostumados a uma lingua­gem... digamos, um tanto rude, senhor — respondeu o diretor Rebout puxando o bigode (colado). — Mas aceito a formulação. Por motivos de discrição, pois, é que os recebemos aqui, e não oficialmente. Compreendem?

— Não somos idiotas — disse o segundo sucateiro, e Rebout conseguiu conter sua hilaridade diante da frase. — Assim acontece em todos os setores públicos. Então, vamos ao assunto!

— O assunto — disse Rebout — é que eu os introduzirei em um segredo, senhores, que além de nós dois só o Presi­dente e o Primeiro-Ministro conhecem. Portanto, preciso pedir sua palavra de honra de que não falarão sobre o caso com ninguém... repito, ninguém... — Uma pausa artificial, e tea­tral, e depois: — O governo mandará vender a Torre Eiffel como ferro velho.

Os cinco fizeram caras solenes. Era realmente um belo naco.

— Certamente — prosseguiu Rebout — os cavalheiros leram sobre os altos custos dos consertos que a Torre exigiria. Na verdade a Torre do Senhor Eiffel foi imaginada apenas como a sensação da Exposição Mundial de 1889, e depois devia ter sumido. Muitas pessoas sempre a consideraram uma deformidade na paisagem de nossa cidade. E ficarão satis­feitos agora.

No curso da tarde, Rebout visitou a Torre com os se­nhores, explicou-lhes profissionalmente detalhes da construção e o peso de cada peça, e disse que a construção da torre custara mais de sete milhões de francos:

— Em 1889, sete milhões de francos ainda eram sete milhões de francos... uma soma monstruosa.

Indagado, disse que eram sete mil toneladas de ferro mui­to valioso que seria vendido como sucata. Depois pediu aos senhores que mandassem ofertas em envelopes fechados ao seu apartamento do George V até segunda-feira ao meio-dia, e insistiu mais uma vez em que se tratava de um segredo de Estado, que teriam de tratar com absoluto sigilo.

Sozinho com seu discípulo, Eisenbeiss declarou a Fontaine, mudo de admiração e respeito, que se informara exata­mente sobre os cinco sucateiros antes de os convidar.

— Por isso também já sei a quem venderemos a Torre Eiffel — disse ele.

— Mas como...?

— Psicologia, meu jovem amigo, psicologia é tudo. Qua­tro dos cavalheiros receberam sua empresa do pai. São cida­dãos ricos. Um deles porém é novo no ramo, vem do interior, e comprou a empresa. Seu nome é monsieur Tessier.

— E por que logo ele?

— Ah — disse Emanuel Eisenbeiss, que no momento se chamava Paul Rebout —, por que será? Porque nosso amigo Tessier é dominado pela ambição de entrar na boa sociedade parisiense, mas ainda não o conseguiu. A compra da Torre Eiffel o lançaria por assim dizer dentro dessa boa sociedade parisiense, não é mesmo?

Chegaram as ofertas. A do camponês Tessier foi a mais alta. Paul Rebout mandou seu discípulo telefonar a Tessier e participar-lhe que ele seria o feliz dono da Torre Eiffel, assim que o contrato estivesse escrito e houvesse um cheque da soma oferecida. O diretor Rebout aguardava no George V.

— Mas um cheque não é perigoso demais? — perguntou o jovem Fontaine. — Por que não o mandamos trazer dinheiro vivo?

— Meu jovem amigo que ainda tem muito a aprender, dinheiro vivo é ordinário. Não se aceita dinheiro. Aceitam-se cheques. Em caso de suborno seria diferente. Aí um cheque seria errado. Suborno, só em dinheiro vivo.

— E se Tessier começar a contar logo que comprou a Torre Eiffel, talvez o tenhamos recém-depositado em nosso banco, e ele ainda o possa mandar bloquear.

— Ele jamais faria isso.

— Por que não?

— Por que eu o convocaria, por sua palavra de honra de francês, a calar-se sobre a compra enquanto o governo julgar conveniente. Não imagina, caro amigo, como há cidadãos bonzinhos que dão sua palavra de honra como franceses.

No outro dia apareceu o monsieur Tessier, deu sua pa­lavra de honra de francês, assinou um contrato, recebeu o original assinado por Rebout, deu o cheque e, enquanto se remexia para um lado e outro de constrangimento, deixou transparecer que trouxera um pequeno suborno para os so­fridos funcionários... em moeda sonante.

— Não se envergonhe, meu caro — disse Rebout cordial­mente. — Acaso nós nos envergonhamos? — E acariciando o bigode (colado), aceitou o gordo maço de notas que lhe era dado pelo feliz comprador da Torre Eiffel. Quatro dias depois o gigantesco pagamento do cheque de Tessier era descontado e colocado numa conta de Emanuel Eisenbeiss. Depois este foi com seu colaborador para a Itália, gozar férias. Lia diaria­mente os jornais parisienses. Seis semanas depois, disse a Fontaine:

— Tessier não fez queixa contra nós. Sem dúvida tem medo de que a sociedade parisiense ria dele. Então podemos vender a Torre uma segunda vez.

 

Eu acabava de passar pela terceira vez diante do Hotel Bristol e me virava nos saltos dos sapatos quando vi Emanuel Eisenbeiss diante de mim, braços abertos. Com seus sessenta e cinco anos, era um homem alto e esbelto, o mesmo charme invencível de sempre, responsável por cinqüenta por cento de sua “ferramenta de trabalho”. Todos lhe dariam cinqüenta anos. Seus olhos brilhavam, o cabelo ainda era basto e preto, tinha a agilidade e os movimentos silenciosos de um gato. Parecia todo bondade. Bondosos eram seus olhos, o contorno de sua boca, seus gestos. Bondosa a sua voz. Abraçamo-nos e nos batemos nas costas. Depois Eisenbeiss teve de se assoar, tão comovido estava, e também fiquei emocionado. Eu tinha a especial honra e alegria de não só conhecer aquele homem, um dos últimos grandes gângsteres, mas de, na única vez em que ele apareceu diante de um tribunal, tê-lo defendido e conseguido sua absolvição. Fora em 1973, há oito anos, em Paris, por causa de um golpe de milhões com ações falsas. O que o protegera por tanto tempo — seus muitos nomes, sua capaci­dade quase ilimitada de aparecer cada vez com nova máscara e novos disfarces — também me ajudara. Suas vigarices esten­diam-se por vários países da Europa, em toda parte se conhe­cia Eisenbeiss sob outros nomes e com outra aparência. A polícia sabia: tinha agarrado o homem certo, mas era quase impossível prová-lo. E exatamente por esse “quase”, eu a der­rotei. Também conheço uma porção de bons truques. Desde o momento de sua absolvição, Eisenbeiss tinha obsessão em me fazer um favor, sempre me visitava em Paris, me assegurando que bastava eu procurá-lo se algum dia estivesse em apuros. Não havia o que ele não fizesse por mim. Bem, agora chegara a oportunidade.

— Acabo de me lembrar da sua Operação Torre Eiffel — disse eu.

Riu:

— Não foi nada de especial — disse.

Não sei, meu bem, por que naquela hora pensei na histó­ria da Torre Eiffel. Certamente porque na sua encantadora insolência ela fosse tão típica de Eisenbeiss, e talvez isso que escrevi aqui lhe dê uma leve idéia desse homem genial.

Tínhamos nos cumprimentado na sombra, ao lado da en­trada do hotel. Agora a luz de um lampião da rua caíra sobre mim.

— Charles, pelo amor de Deus, o que aconteceu? — Ei­senbeiss me olhava horrorizado. — Você está branco como a morte. Tem sinais de sangue no rosto, a camisa rasgada.

— Só um arranhão — disse eu. — Tive sorte. Uma sorte inacreditável.

— Mas o que aconteceu?

— Aqui não — disse eu, subitamente nervoso e inquieto. — Vamos embora daqui, depressa. Em sua casa lhe contarei tudo.

— Está bem, Charles, está bem.

Passamos depressa pela Ópera, pela Philarmonikerstrasse no Hotel Sacher, atravessamos a praça Albertina, chegamos à Augustinerstrasse, passamos pela Josefsplatz, e chegamos à redonda Michaelerplatz, com a parte dos fundos do Hofburg, suas fontes e grandes estátuas de pedra. Não vimos ninguém.

No centro de Viena há incontáveis “casas de passagem”, que por assim dizer ligam uma ruela a outra, com uma passa­gem através da própria casa. Uma dessas casas, ao lado da Michaelerkirche, levava do Kohlmarkt à Habsburgergasse. Eisenbeiss parou mais ou menos no meio dessa passagem, entre lojas e entradas de casas, e abriu um pesado portão. Numa escadaria pintada de branco vi a gaiola de arame de um velho elevador de madeira, que rangia e estalava enquanto subíamos ao quinto andar. Eisenbeiss morava ali. Embora me tivesse visitado tantas vezes em Paris, eu nunca estivera na casa dele, e a beleza de seu apartamento decorado em estilo barroco me deixou muito impressionado.

— Maria está dormindo — disse ele. — Uma boa mu­lher, nunca fala com ninguém sobre mim e meus hóspedes. — Eu sabia que Maria era sua governanta há muitos anos. — Vamos até a biblioteca.

Lá todas as paredes estavam repletas de livros até o teto, as lombadas reluzindo magicamente, vermelhas, azuis, mar­rons e douradas, quando Eisenbeiss acendeu um abajur.

— Sente-se, Charles. O que quer beber? Conhaque? Uís­que?

— Conhaque, por favor.

Tirou de um armariozinho dois grandes cálices bojudos, acendeu a chama de um pequeno aquecedor a álcool, aque­ceu cuidadosamente os copos, e só então derramou o conha­que neles.

E estendeu-me um.

— Salut, Charles!

— Salut, Emanuel — disse eu.

Sentou-se:

— Então, o que aconteceu?

E contei-lhe tudo. Nem um músculo se moveu em seu rosto. O tom de sua voz não se modificou um pouco que fosse; quando por fim me calei, ele se levantou.

— Vamos ouvir rádio. A televisão não está mais funcio­nando a essa hora.

Os aparelhos eram embutidos em uma das estantes de livros.

No rádio ouviu-se a voz do locutor:

— ...iniciou-se uma grande caçada aos terroristas, em Londres, Paris e Viena... — E depois de uma pausa: — Aqui é a Rádio Austríaca com seu terceiro programa. Repetimos uma informação: Na linha habitual Londres-Paris-Viena, da Euro-Air, vôo sete cinco três, realizou-se um brutal ataque terrorista. O aparelho saiu de Paris às vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos. Exatamente aos trinta e cinco mi­nutos da madrugada os pneus do avião tocaram a pista em Schwechat. No outro segundo explodiu uma bomba-relógio escondida a bordo. O resultado foi um terrível banho de san­gue. O aparelho quebrou-se em duas partes. Segundo as últi­mas informações, oitenta e um passageiros morreram, in­cluindo toda a tripulação. Dos quinze feridos graves que fo­ram levados imediatamente a vários hospitais e submetidos a intervenções cirúrgicas, nove estão em perigo de vida. A bordo do aparelho, na primeira classe, havia dezesseis membros de uma comissão do governo de Israel a caminho de Viena para conferências com o Chanceler Kreisky. Os dezesseis israelenses estão entre as vítimas fatais. A bomba estava presa debaixo da cabine de primeira classe, no setor de cargas. Um porta-voz da organização secreta palestina “Areias Negras” disse a uma agência de imprensa na Áustria por telefone que assume a responsabilidade do ato...

— Homens — disse Eisenbeiss — lobos dos homens.

— ...Devido à nova ameaça de bombas do “Areias Ne­gras”, iniciou-se imediatamente uma grande perseguição aos terroristas em Londres, Paris e Viena... — Mais uma pausa, e depois: — Aqui é a Rádio Austríaca em seu terceiro pro­grama. Estamos dando informações constantes sobre o ataque terrorista a um aparelho da Euro-Air, ocorrido hoje à primeira hora da madrugada...

Eisenbeiss desligou o rádio e disse:

— Termine o seu conhaque.

Bebi. Ele tirou o copo de minha mão, aqueceu-o outra vez, e serviu mais conhaque.

— Emanuel — disse eu, rouco —, sou o único que esca­pou ileso da catástrofe. E ninguém sabe disso, além de nós dois.

— Vamos brindar a isso — disse ele.

— Você me conhece. E conhece minha mulher...

— Aquela fera — disse ele. — Aquela peste.

— Emanuel — gaguejei —, com tantas vítimas... Se eu não aparecer mais. Se desaparecer, apagar toda a minha exis­tência... Então vão acreditar que estou entre as vítimas. Eu as vi! Em pedaços, calcinadas, não poderão ser identificadas... — Agora, uma represa se rompia. Eu falava cada vez mais depressa. No silêncio e na paz daquela biblioteca, com meu velho e bom conhecido Eisenbeiss, depois da fuga do inferno, depois de meu caminho aventuresco até ali, finalmente minha idéia fixa entrava no terreno das possibilidades. E eu disse, gaguejando, precipitadamente: — Estou morto, Emanuel... Para o mundo, estou morto... Mas estou vivo, Emanuel, ainda vivo!... Está me compreendendo? Compreende?

— Sim, Charles, claro!

— Não agüento mais a minha vida antiga! Não só por causa de Yvonne... Não, não é só ela... Também por causa de tudo o que faço diante do tribunal... como uma estrela da advocacia... como estrela da advocacia! Essa vida se tornou absolutamente insuportável!... Mas agora posso começar uma segunda vida... Uma segunda vida! E nova. Totalmente no­va!... Uma vida bonita, livre... Emanuel!

— Sim — acalmou-me ele. — Sim, Charles, sim.

— Vai me ajudar a começar essa nova vida?

— Claro — disse ele. — E estou feliz por ter chegado a hora de mostrar minha gratidão.

— Quanto tempo vai levar?

— Três dias. E o senhor precisará de mais do que apenas um passaporte novo.

— Três dias — disse eu. — Três dias... — Não pude mais falar. Uma nova sensação me dominava. Tive de me esforçar por respirar quando entendi que emoção era essa. Era felicidade. Felicidade. O “princípio esperança” agora valeria para mim também. Agora eu tinha esperança, muita, muita esperança.

E você desce as escadas, e diz que vai só dobrar a es­quina, e comprar cigarros...

Comprar cigarros...

Eu já dobrara a esquina. Comecei a rir, uma risada rou­ca, primeiro baixinho, depois cada vez mais alto.

Emanuel ria comigo.

— Obrigado! — exclamei. — Obrigado, Emanuel! Obri­gado, obrigado.

Ah, belo mundo! Ah, bela vida nova!

O choque veio de repente, com atraso. Calei-me de re­pente.

Deixei cair o precioso cálice, que se partiu, derramando conhaque no tapete. Meu corpo todo começou a tremer. Os dentes batiam.

— Charles! — exclamou Eisenbeiss.

— Eu devia estar morto — gaguejei. — Devia estar mor­to. Como é que estou aqui, vivo? Mas estou mesmo vivo? Não será tudo um sonho, e eu já bati as botas?... O fogo, Ema­nuel, o fogo, o relâmpago, aquele relâmpago horrível... Não quero estar morto... Não quero... Não quero... — Lágrimas me corriam pelo rosto. As mãos tremiam tão violentamente que pareciam esvoaçar. Eisenbeiss saiu da sala correndo e voltou com um copo contendo um líquido amarelo.

— Beba isso!

— Não posso... Não posso...

— Vamos, beba!

— Não, Emanuel, estou com medo... Os braços... as per­nas... o sangue por toda parte...

Ele fechou meu nariz. Abri a boca para respirar e ele despejou o conteúdo do copo em minha garganta. Engoli e tossi fortemente. Depois senti calma e calor se espalharem por meu corpo. O medo cedeu. Eisenbeiss colocou minhas pernas sobre o sofá e tirou meus sapatos. Enfiou uma almofada de­baixo de minha cabeça.

— Você vai dormir agora — disse ele. — Vou pegar um cobertor para que não sinta frio. — Afrouxou o nó de minha gravata e abriu o colarinho da camisa. — Está tudo bem, Charles, tudo bem... — E acariciou meu cabelo. Depois saiu para pegar o cobertor. Quando voltou, eu já dormia profunda­mente. Deve ter me dado um remédio muito forte.

Tive muitos sonhos, todos ruins. O pior deles ainda recor­do. Eu estava deitado na sarjeta, o rosto para baixo sobre um ralo, e um besouro pesado, quase metade do meu tamanho, sentado sobre as minhas costas. Ele usava um casaco anti­quado, um chapéu redondo duro, e um pincenê, e dizia sem­pre a mesma coisa: “Eles vão te pegar, eles vão te pegar”. E durante todos esses sonhos, senti um medo horrível.

Quando acordei, era no meio da tarde. As venezianas estavam cerradas. Da rua vinham vozes fracas e o ruído do trânsito. Levantei-me e fui até a janela. Lá fora, vi pelas ve­nezianas, ardia o sol. Na biblioteca estava escuro e fresco. Quando me virei da janela, vi Eisenbeiss. Estava sentado numa poltrona perto do sofá onde eu dormira.

— O que está fazendo aqui, Emanuel?

— Preciso cuidar de você — disse ele. — Dormiu muito mal. Uma vez rolou do sofá, e tive de colocá-lo de novo no lugar e o cobrir.

— Mas você também precisa dormir!

— Ontem fui para cama cedo, e já dormira umas horas quando você telefonou. Não preciso de mais do que algumas horas de sono. Sou um velho. — Fez um gesto de negativa quando quis interrompê-lo. — Um velho, é verdade. O aparta­mento tem dois banheiros. Venha, vamos nos arrumar! Infe­lizmente não posso lhe oferecer outra roupa de baixo nem outro terno... você é maior do que eu.

Tomei um banho demorado. Lavei a poeira do corpo e os sinais de sangue seco do rosto. A água quente era agradável. Fui me sentindo melhor. Minha nova vida, como seria? Pensei nas muitas possibilidades de organizar essa minha nova vida, e depois pensei novamente que nenhuma dessas possibilidades era realista. Fiquei deitado quieto na banheira, e por fim não pensei em nada mais. Uma grande paz me dominava.

Depois me vesti contrariado. Já usara aquelas roupas no corpo na noite anterior, e me lembravam minha velha vida. O colarinho estava rasgado, e quando peguei o casaco caíram do bolso algumas das moedas que eu roubara no Hospital Ro­dolfo. Tirei todas do bolso e levei-as na palma da mão à sala onde Eisenbeiss me esperava. Ele vestia um terno de verão claro e leve. Na mesa onde se sentava estava servida uma farta refeição.

— O que é isso?

Contei-lhe o que era e de onde vinham. E coloquei as moedas na mesa, à frente dele.

— Vou dar tudo a Maria — disse ele. — Ela as gastará. Não foi muito inteligente de sua parte meter duas notas de cinqüenta francos na caixinha.

— Não acha que me encontrarão por causa disso?

— Você deixou uma pista. Não se deve deixar pistas. — Sorriu, apaziguadoramente. — Não se preocupe. Isso é ma­nia profissional minha. Você deve estar com uma fome de lobo, Charles. Sente-se! — E serviu café. — Coma bastante, os frios estão excelentes. Maria foi fazer compras.

— Onde está ela?

— Na cozinha. Não a verá. Não quer ser indiscreta.

— Mas, Emanuel, por favor...

— Não, é melhor assim. — Empurrou um jornal em mi­nha direção. — Saiu há uma hora. Edição extra do Kurier.

Peguei o jornal de seis páginas e desdobrei-o. A metade do jornal era ocupada por fotos tecnicamente excelentes e, por isso, particularmente cruas do local do acidente. Numa mol­dura grande, os nomes dos mortos, numa bem pequena os dos feridos graves, um dos quais morrera à noite.

Li rapidamente os nomes. Monique Monet. Olhei o nome. O que eram vida e morte? Ninharias. Morria-se... vivia-se. Procurei o homem com quem conversara, o Sr. Harald Bosnick com ck, tão gripado. Lá estava o seu nome. Morto. Esti­vera sentado ao meu lado. Com cinto de segurança fechado. Se não se, tivesse afivelado, talvez estivesse vivo, como eu. Ou não. Não haveria acasos? Seria tudo predeterminado? Em nosso mundo as maiores e as menores coisas ocorreriam se­gundo um plano irrefutável?

Logo depois vi o retrato de Monique numa página cheia de fotos dos mortos. Havia retratos de todos os membros da tripulação, retratos dos dezesseis israelenses, de um tenor da ópera alemã no Reno... e depois me vi a mim mesmo: ESTRE­LA DA ADVOCACIA PARISIENSE CHARLES DUHAMEL. Devia ser uma foto de arquivo. Sim, lá estava em letras pe­quenas: FOTO FRANCE SOIR. Li que os corpos de muitos passageiros estavam tão despedaçados que sua identificação seria impossível. Tinham-se baseado na lista de Paris para ver quem estava a bordo.

Larguei a edição extra.

— Acredita no acaso, Emanuel? — perguntei.

— Não — respondeu ele. — Não existe acaso. Essa é a minha crença particular, que não se pode provar cientifica­mente. Tudo o que acontece neste mundo é determinado. Você vive porque devia continuar vivendo — para bem ou mal, isso também já foi constatado. Pense em Goethe! — Ele citou: — “A Deus pertence o Oriente! A Deus o Ocidente! As terras do Norte e Sul estão em paz nas Suas mãos!” — Voltou a sor­rir. — Depois de velho ainda por cima fiquei crente. O camembert também está excelente — disse depois. — Coma!

Então peguei o queijo e pensei: Que singular, se Eisenbeiss tiver razão, então desde sempre esteve determinado que Daniel Mann me telefonasse ontem à noite pedindo com ur­gência que eu viesse a Viena, e eu voasse com aquele aparelho acidentado. Predeterminada estava também a morte de tantas pessoas estranhas umas às outras, e determinada estava nova vida... logo para mim! Sim, se Eisenbeiss tivesse razão. Eu não acreditava em Deus. Mas naquilo naturalmente gostava de acreditar. O camembert era realmente muito bom.

 

Meia hora depois meu velho conhecido disse:

— Vamos?

— Aonde?

— Mas eu não trabalho aqui.

— Ah, sim. O Museu. Eu tinha esquecido.

Ele balançou a cabeça:

— Apenas direi a Maria que estarei lá por uns dias... com licença! — Saiu depressa, e me levantei. Então descobri numa pequena moldura um recorte de jornal já amarelado, atrás de um vidro, um retrato em que aparecíamos nós dois: Eisenbeiss e eu, rindo felizes depois da absolvição. Debaixo da foto havia um vaso de cristal estreito, sobre o console, com uma rosa vermelha fresca.

Eisenbeiss voltou.

— Desculpe, Charles. Telefonei para o meu alfaiate e minha camisaria. Você precisa de roupas. Meu alfaiate é rápi­do. — Riu baixinho. — Em uma hora tirará suas medidas.

Saímos do apartamento. Na casa de passagem estava um calor insuportável.

— Ora, eu tinha esquecido completamente. — Eisenbeiss meteu um maço de notas na minha mão.

— O que é isso?

— Dinheiro austríaco. Para os próximos dias. Não deve trocar dinheiro francês.

— Mas, Emanuel...

— Calma — disse ele. — Pegue!

Obedeci e continuamos depressa até a Habsburgergasse. Lá havia um Cadillac Seville estacionado. Eisenbeiss ligou imediatamente o ar condicionado, e quando partimos em direção noroeste estava agradavelmente fresco lá dentro. Eu co­nhecia Viena bastante bem. No viaduto da ferrovia, Eisenbeiss dobrou à esquerda. Então perdi a orientação, porque o carro rodava por ruas de mansões novas, até chegarmos a uma rua larga, que subia suave mas constantemente. As casas foram ficando para trás. Vi prados floridos e campos cultiva­dos, e uma floresta escura ao longe. Passamos por um lugar de banhos públicos. Vi a grande piscina e muitas pessoas semi­nuas. A rua ficou mais estreita. Li a placa: CAMINHO DA UTOPIA. O carro parou diante de uma bela mansão em estilo art nouveau.

— Pronto. Estamos no Schafberg — disse Eisenbeiss. — Saia, meu caro!

Desci para a rua arenosa. A casa tinha um anexo baixo, de concreto. Eisenbeiss dirigiu-se para lá, enfiou uma chave na fechadura do pilar de concreto, e uma porta de garagem abriu-se sem ruído; o Cadillac sumiu. Ouvi o “plop” abafado quando Eisenbeiss fechou a porta do carro. Voltou; o portão abaixou e fechou-se atrás dele. A cidade estava a nossos pés. Milhares, centenas de milhares de vidraças brilhavam ao sol da tarde. Havia fábricas, igrejas, o mar de casas de Viena. Reconheci a Stephansdom e a roda gigante do Prater. O Donau era largo, sua água, chumbo derretido. Bem ao longe vi as montanhas distantes num nevoeiro azul. Deviam ser os Cárpatos.

Eisenbeiss abriu o portão de um grande jardim selvagem com florestas de todas as cores. Depois entramos na casa fresca. Também era mobiliada em estilo art nouveau. Quando Eisenbeiss abriu algumas venezianas, vi móveis bege e lilás, sobre tapetes de cores delicadas.

— Muitas vezes venho para cá e fico vários dias — disse ele.

— Para trabalhar?

— Quase não trabalho mais, Charles. Realmente, é mui­to raro.

— O que faz então?

— Refletir.

— Em quê?

— Em nós, seres humanos. E simplesmente gosto de fi­car sozinho. Venha! — Desceu ao porão e acendeu luzes por toda parte.

— O Museu? — perguntei.

— Sim, o Museu. — Abriu uma porta e também ali premiu um comutador. Estávamos num quarto muito grande, onde tudo brilhava de alvura: o chão de azulejos, o aparelho que mantinha a umidade do ar, as muitas prateleiras e armá­rios de rodas. Eisenbeiss andou por ali, abriu alguns armários, indicou milhares de papéis guardados neles, e parou diante de uma prateleira em cujas tábuas empilhavam-se muitos do­cumentos.

— Isso aqui — disse ele, baixinho — talvez seja a maior coleção de formulários e falsificações da Europa, ou de todo o mundo. São trabalhos meus e de outros. Colecionei-os durante decênios; também há impressos virgens para todos os assuntos que possa imaginar — roubados em todos os países do mundo, inclusive a China Vermelha e a União Soviética, e que com­prei. Aqui, Charles, diante de você, está tudo o que uma pessoa precisa para viver e morrer. — Parou diante de um armário. — Fico emocionado quando vejo isso.

— O que é?

— Trabalhos do tempo da Segunda Guerra. Você co­nhece a minha vida. Aqui! Livros de soldo, papéis de libe­ração... mais tarde os seus donos, agradecidos, os devolveram.

— Você salvou a vida de muita gente.

— Ah, sim. — Pegou alguns passaportes com cartas ane­xas. — Os sobreviventes escreveram de Israel, Estados Uni­dos, América do Sul e Canadá. Ajudei sempre que pude. Dos ricos tirava muito dinheiro; para os pobres, em compensação, trabalhava de graça.

— Você é um bom homem.

— Sim, eu sei. Da melhor qualidade. Aqui, veja, cartões para alimentos! Centenas de páginas. Eram fáceis de falsi­ficar. Ah — disse ele, nostálgico —, como era belo o meu mercado negro! Isso nunca mais vai se repetir. — Foi até uma parede e abriu uma porta de correr. Acendeu-se a luz num segundo aposento, igualmente grande. — E aqui está o resto.

— Santo Deus! — disse eu. — E a polícia? Ela nunca se interessou por essa coleção?

— Eu a convidei de todos os modos. — Eisenbeiss sorriu o seu famoso sorriso.

— Convidou?

— Para verem a minha coleção — com fins didáticos. Depois de minha morte tudo isso será da Polícia de Viena. Pelo menos duas vezes ao mês chegam funcionários. Muitas vezes trazem colegas do estrangeiro. Então lhes explico as suti­lezas da falsificação... não só das minhas, mas também das dos outros. Ah, as autoridades me respeitam, Charles. E me pedem conselhos quando não sabem o que fazer. E com que respeito me tratam! Você não faz idéia. Os cavalheiros estão firmemente convencidos de que há muito tempo me aposentei. Estou na idade de viver de rendas. Tenho bastante dinheiro. E cada folha aqui está registrada. Realmente me retirei dos ne­gócios. Só algumas vezes ainda trabalho... como agora, no seu caso.

— Mas você disse que cada folha está registrada...

— E está. Apesar disso, nunca falta uma peça. Tenho ainda uma segunda coleção. Dessa, a polícia nada sabe. Assim, sempre posso trabalhar. Nenhum funcionário da dele­gacia de crimes jamais viu isso aqui. — Empurrou uma vareta oculta em uma tábua, e toda uma parte da prateleira recuou, mostrando uma abertura na parede. — Entre, e seja bem-vindo — prosseguiu ele. Atrás da passagem havia um terceiro aposento, menor, igualmente de um branco imaculado, tam­bém bastante iluminado. Vi uma grande mesa cheia de vidros com tinta e aquarela, sinetes, carimbos e caixinhas, e outros vidros cheios de pincéis, canetas, lápis de todo tipo, e caixas com grampos e muitos pequenos objetos que eu não conhecia. Vi empilhadas certamente cinqüenta diferentes máquinas de escrever portáteis. Havia lupas, microscópios, um fogão elé­trico, ligação de água quente e fria, a porta para uma câmara escura, um grande aparelho de fotografia de madeira, preso a um tripé...

— Deus do céu... — disse eu, e caí numa poltrona, arre­batado.

— Pois é — disse Eisenbeiss. — Está vendo que ao menos não defendeu um joão-ninguém. Mas agora, ao tra­balho, ao trabalho! Posso pedir que tire gravata, camisa e casaco?

— Para quê?

— Preciso mudar seu rosto antes de fazer fotos para pas­saporte, carteira de motorista e identificação pessoal.

— Mudar meu rosto?

— Mas claro, Charles, para uma nova vida precisa-se de um novo rosto.

 

Eu estava parado diante de um espelho olhando minha cara.

Passara meia hora. Eu não tinha mais barba, nem bi­gode, o cabelo comprido que tapava minhas orelhas de abano desaparecera. Tinha um corte de cabelo bem curto e usava um par de óculos de aro de tartaruga modernos, de armação pe­sada e escura, e vidro comum.

Eisenbeiss tirara minha barba com infinito cuidado, e depois com muito capricho ensaboara e barbeara duas vezes meu rosto. Com o mesmo cuidado lidara com o meu cabelo. Cobrira com maquilagem o arranhão na testa. No quarto ao lado — eu o seguira — escolheu entre um número incontável de óculos aquele que mais modificava meu rosto. Agora, do espelho me encarava um homem desconhecido. Era sinistro. Nada mais em meu rosto lembrava Charles Duhamel. As ore­lhas destacadas agora eram vistas claramente, o queixo re­cuado, as faces pálidas há pouco cobertas de barba. Não ficara mais bonito: mas era outro homem.

Uma luz vermelha se acendeu.

— Vista sua camisa, Charles — disse Eisenbeiss. — E subiu depressa as escadas. Enfiei minha camisa e ouvi passos, e logo Eisenbeiss apareceu diante de mim com um homem que parecia um estadista inglês muito pequeno.

— Caro Charles, este é meu velho amigo Josef Kratchowil — disse Eisenbeiss. — Conheço algumas pessoas nas quais confio plenamente. Kratchowil é uma dessas. Podemos falar abertamente diante dele. É o melhor alfaiate da Europa. E o mais rápido. — Kratchowil quis protestar, mas Eisenbeiss não lhe deu a palavra. — Nada de falsa modéstia! — E prosse­guiu, virado para mim: — O sr. Kratchowil e eu nos conhe­cemos há muito tempo. Ele me prestou valiosa ajuda em in­contáveis casos em que se tratava de rapidez e qualidade. E já trouxe tecidos para escolha. — O sr. Kratchowil depôs na mesa um pesado livro de amostras. — Naturalmente, só coisas de primeira classe.

— No, to se rozumny, naturalmente — disse o sr. Krat­chowil. — É verão, muito quente. Trouxe ótimos tecidos finos que não amassam, ou o milostpan poderia suar. — Mostrou um tecido num tom cinza claro. — Então, senhores gostam muito de usar isso, por exemplo... — Amassou o tecido entre dois punhos, esfregou um no outro. E largou o tecido. — No prosim, senhor, está vendo, não amarrota. Ou tem alguma coisa amassada aí? Nada, milostpan, está vendo! — Ele pegou outra amostra, um azul claro. — Nebo é bom isso, prosim, também pedem muito isso...

— Por enquanto você precisa só de dois, três ternos — disse Eisenbeiss. — Mais tarde mande fazer quantos quiser. — Escolhi três tecidos, um cinzento, um bege e um azul. O alfaiate tcheco, baixinho mas muito aplicado, já começara a tomar medidas. Precisava de uma cadeira porque eu era alto demais para ele. Enquanto a toda hora corria para a sua agenda anotando números e murmurando, Eisenbeiss, que passeava à nossa frente, foi dizendo:

— Até onde sei, você fala espanhol, alemão e inglês perfeitamente. Esta noite já andei compondo o novo homem que você vai ser agora.

— Sto deset, oms osmdesat, devadesat dva — murmu­rava o sr. Kratchowil, enquanto rabiscava na agenda e voltava para junto de mim.

— Temos aí um senhor argentino falecido, que tinha a sua idade, a quem roubaram todos os papéis e me ofereceram para comprar. Sempre compro, os ladrões sabem disso. E pago decentemente, é claro que nada de preços fantásticos. Vou lhe dizer agora quem você é, meu caro. Tendo objeções ou perguntas, pode me interromper, por favor. O sr. Krat­chowil pode escutar, ele é um túmulo. Que histórias já ouviu aqui, hein, sr. Kratchowil?

— Ah, Jesus-Maria, romances inteiros! O cavalheiro quer fazer o favor de ficar bem retinho agora e não dobrar os joelhos? Dekuji, obrigado...

— Então, Charles. Você tem quarenta e nove anos. Nas­ceu em 1932 em Leipzig, filho de um fabricante de conservas.

— Por que conservas?

— ...osmdesat pet, devadesat pet... milostpan natural­mente quer bainhas nas calças. Quer que deixe alguma coisa para encompridar? Uns cinco centímetros chega? Obrigado, muito amável... talk pet...

— Você entenderá logo. Tudo foi destruído em 1945. Aí mudaram-se para o oeste, Frankfurt.

— Por que Frankfurt?

— Porque tenho registros para Frankfurt.

— E por que Leipzig?

— Porque fica na Alemanha Oriental, e as autoridades de lá não dão informações. Portanto, reforma monetária e no lado ocidental. Sobem do nada. Então subitamente morre seu pai, em 1950. Enfarte.

— Por que, para isso você também tem documento?

— Exato. Você tinha acabado de terminar o Liceu. O irmão de sua mãe tem grandes propriedades perto de Buenos Aires. E enormes rebanhos de gado. Oferece a sua mãe que se mudem para lá. Vocês desfazem sua casa, vendem o negócio, mudam-se para a Argentina. Ainda tenho as passagens de navio no Correo Santos. Na Argentina, você trabalha duro nos rebanhos de seu tio. A carne vai para fábricas de conservas. Entende agora? Em 1954 morre seu tio, em 1956, sua mãe. Agora você dirige o negócio sozinho.

— Tak milostpane, pronto.

— Muito bem, sr. Kratchowil. E fará três ternos em três dias?

— Muito pouco, sr. Eisenbeiss.

— Sr. Kratchowil!

— Eu só disse... Três dias, claro... mas temos de expe­rimentar pelo menos duas nebo três vezes...

— Tudo bem, Kratchowil. Tantas provas quantas quiser. O senhor ficará alojado como de costume, já sabe de tudo...

— Sei de tudo. Vou telefonar sempre meia hora antes, para ver se está bem, depois venho. Muito honrado, senhor, prazer, milostpane, na shledanou... — Meteu o caderninho no bolso e colocou o livro de amostras debaixo do braço. Eisen­beiss levou-o até a porta. Quando voltou, ouvi um motor sendo ligado lá em cima.

— Um sujeito e tanto — disse Eisenbeiss. — Ah, e eu as esqueci completamente!

— O quê?

— As etiquetas do alfaiate argentino. — Foi no quarto ao lado e voltou logo com várias tirinhas de pano de diversas cores, nas quais se lia, em bordado vermelho e dourado, em espanhol, que o sr. Martinez de Irala, Buenos Aires, era cria­dor dos ternos que o sr. Kratchowil aprontaria rapidamente em Viena.

— Você lhe entregará essas na primeira prova, sim?

Meti as etiquetas no bolso da calça.

— Bom, e aí você ficou bem sozinho... com operários fiéis, claro. Trabalhava de manhã à noite, o trabalho era duro, muito duro. Você ganhava bem, mas sua saudade da Alema­nha foi aumentando cada vez mais! — Deu uma risada. — Isso combina com sua juventude! Você, com seu pai substituto ale­mão! E tudo o que ele lhe falava da pátria. — Eisenbeiss conhecia meu passado, eu lhe contara de Strasburgo, da ocupa­ção nazista, do pobre Heinz. — Você fala alemão sem sotaque! Deve isso ao seu segundo pai. Uma sorte dos diabos! Presente do céu, eu ter exatamente o passaporte e todos os outros papéis de um alemão para você! — Riu outra vez. — Bom, e como sua saudade da Alemanha aumentava mais e mais, um dia você vendeu tudo, meteu seus objetos em grandes caixas que vieram de navio, e você veio de avião. As caixas se perderam. Você armará uma briga, mas não adiantará nada. As caixas nunca mais aparecerão. Infelizmente você também fez um seguro muito baixo. Seu dinheiro... perdão, você tem dinheiro?

— Sim.

— Muito?

— Mais ou menos.

— Quero dizer, dinheiro que possa manejar embora mor­to?

— Já entendi. Sim.

— Maravilha. Você vai pegar o dinheiro quando souber onde vai morar definitivamente. Claro que com os novos docu­mentos poderá ir aonde quiser. Não precisa ser a Alemanha. Talvez tenha saudades da América, como posso saber? Apenas tenho aqui um lindo passaporte da República Federal da Ale­manha, no qual teremos de modificar muito pouca coisa.

— Já entendi. De onde vem essa massa de documentos?

Ele deu seu brando sorriso.

— Antigamente isso era um artesanato e tanto, Charles. Os mestres entre os vigaristas e falsários — modestamente posso me incluir entre os mestres — trocavam documentos entre si. Eram documentos perdidos, ou de mortos, mas sobre­tudo roubados. Naturalmente o principal era roubado por fun­cionários, os pequenos funcionários eram os maiores ladrões... como sempre. Obtenho constantemente material do mundo in­teiro. Compreende? Último amor de um velho... — Ergueu as mãos e baixou-as de novo. — Esse é seu passaporte — disse, e ergueu um passaporte verde. Era de um tal Peter Raut. Mor­to. — Como eu já disse: os papéis roubados não são mais procurados. Tenho um atestado de conclusão do Liceu, uma carteira de motorista, bem como atestado de nascimento e batismo nesse nome. E ainda papéis dos queridos pais. Quase não se precisa mudar nada. Um bom especialista falsifica o menos possível. O R em Raut eu poderia transformar num K, o a num e...

— Kent — disse eu. — Mudar o u em n... é tudo.

— Então, Kent. Alegra-me que você tenha entendido tão depressa, Charles.

A luz vermelha acendeu outra vez.

— Camisas e roupa de baixo — disse Eisenbeiss. Ele saiu e pensei como era lógico e sensato ter papéis de um morto na minha segunda vida. Eu também precisara morrer primeiro para poder ressuscitar. Eisenbeiss voltou com um homem moço, muito suado. O homem, que também era do círculo dos homens de confiança de Eisenbeiss, trazia cinco grandes caixas.

A maior parte das camisas e roupas de baixo era pequena demais.

— Eu disse no telefone que o cavalheiro é muito grande. Tamanho cinqüenta e quatro ou cinqüenta e seis — disse Ei­senbeiss.

— Deixe aqui essa camisa, que serve — pedi. — Quero tirar a velha.

— Pois não, cavalheiro.

Vesti a camisa nova e joguei a outra num cesto de papel.

— Então, camisas e roupas de baixo maiores — disse Ei­senbeiss ao jovem. — Lamento, terá de voltar aqui, sr. Franz. Mas não para cá, e sim em...

— Hietzing como sempre, já sei — disse o sr. Franz. — E como está de gravatas e sapatos?

— Também precisaremos. Tamanho do sapato? — Ei­senbeiss olhou para mim.

— Quarenta e quatro — respondi.

— Para segurança, é melhor experimentar — disse Eisen­beiss. — Quando pode ser isso?

— Amanhã de manhã?

— OK, então, amanhã de manhã. Mande as contas para mim. — Protestei, mas Eisenbeiss fez um gesto negativo. — Para mim. Venha, sr. Franz, eu o levo até a porta. — Ouvi-o dizer na escada: — Não esqueça de tirar todos os alfinetes das camisas, os grampos de plástico, os estofamentos de espuma, e o papelão do colarinho. Essas são as etiquetas de um magazine de homens em Buenos Aires. Tire as suas e costure essas... — Ao voltar, disse: — Precisarei de três dias e três noites para ter tudo pronto. Preciso trabalhar o tempo todo, e quando faço esse tipo de trabalho não durmo. É cansativo demais, e exige a maior concentração. E como estou trabalhando para você, Charles...

— Onde vou morar, Emanuel?

— Tenho uma amiga muito boa e devotada. Meu Deus, eu a conheço há séculos! Ela me ajuda, eu a ajudo. Ela tem uma mansão linda em Hietzing... conhece Hietzing? Na Maxingstrasse, logo na entrada do parque do castelo de Schönbrunn. Chama-se sra. Klosters. Ana Klosters. Eventualmente ela oferece comida e alojamento a senhores que envio. Maxingstrasse 15, A. Você vai gostar. Tudo muito cuidado e lim­po. E se quiser terá boa companhia. Ana também se dá muito bem com a polícia, o que é importante no nosso caso. Está bem?

— Naturalmente.

— Então telefonarei a ela e depois a avisarei que você vai. Agora, se quiser, podemos tirar as fotos.

 

Ele tirou muitas fotos, pois queria ter um bom sortimento. Eisenbeiss era profissional. Cada vez ajeitava minha cabeça um milímetro, antes de sumir debaixo do pano preto atrás da velha e bela câmera de madeira. Mudava a toda hora o foco de luz e cantarolava baixinho. Eu conhecia esse cacoete dele. Durante o processo, sentado atrás de mim, ele muitas vezes cantarolara assim durante o julgamento. E isso me deixara muito nervoso.

Falei com ele sobre isso.

— Sim —, disse ele —, é sempre assim quando me con­centro. Eu nem noto. Pode-se dizer que nessas fases meu corpo fica independente, meus dedos são mais inteligentes que eu.

Afinal ele ficou satisfeito e levou as placas de vidro ex­postas em suas caixas de madeira para a câmara escura. Es­tava diferente, fechado, inatingível. Pensei que era melhor dei­xá-lo sozinho, e disse-lhe isso.

— Sim, Charles, por favor. Eu mesmo ia lhe pedir isso. Agora começa para mim o tempo mais difícil. Fico totalmente voltado para mim mesmo, preciso ser assim, não pense que é falta de cortesia minha. Preste atenção: vou telefonar à sra. Tiller. Ela e seu marido têm uma locadora de automóveis. Pode-se confiar sempre nos dois. Subiu comigo e discou um número de telefone.

A sra. Tiller atendeu. Eisenbeiss disse que estava em sua casa no Schafberg, e pediu que viesse apanhar um visitante e levá-lo a Hietzing.

— Quanto tempo levará até aqui em cima, meu bem? Vinte minutos? Muito bom. O senhor esperará por você lá na frente na esquina da Buchleitengasse. É muito alto e chama-se Peter Kent. Vai dizer seu nome. E o carro?... O Mercedes branco, claro que o conheço. Obrigado, Renate, querida. — Desligou. — Você ouviu: um Mercedes branco. O cabelo da sra. Tiller é castanho, os olhos também. Ela tem dentes bo­nitos, e é muito bonita... um tipo suave e calmo. Você vai gostar. Aqui está meu número de telefone, um número se­creto. Vou passar a ligação imediatamente para o porão. Ao menor motivo de inquietação, telefone. — Deu-me o pedaço de papel. — Vou passar os próximos dias lá embaixo. Não posso mudar de lugar enquanto trabalho, você sabe. Concen­tração, concentração... E com a idade isso vai ficando mais difícil. Ainda temos algum tempo até a sra. Tiller chegar. Que me diz da decisão de rearmamento? A loucura continua, Charles, continua. Se arrasarem a terra, em nenhum lugar haverá tantos mortos como na pequena República Federal. Foi leviandade minha lembrá-lo de sua grande saudade da Ale­manha. Agora você está sentado num barril de pólvora.

— Você acha que a coisa vai estourar mesmo?

— Onde existem armas, elas acabam sendo usadas. Real­mente, Charles, devia estar louco quando lhe falei na Ale­manha. Vá para o Canadá, Estados Unidos, esqueça a Eu­ropa! Embora...

— Embora?

— Conhece a história da Morte em Samarra?

— Não.

— Uma lenda oriental muito sábia. Um comerciante incrivelmente rico de Bagdá é prevenido por uma vidente: a Morte está a caminho, vem pegar o homem mais rico, ainda esta noite. Em Bagdá. O homem rico pega seu melhor cavalo e foge... para Samarra. Quando chega lá, totalmente exausto, avista a Morte. “Eu estava esperando por ti”, diz a Morte. “Chegaste atrasado. Vem comigo...” Não se pode escapar. Ninguém, para lugar algum. Quando chegar tua hora, morrerás como foi determinado. Realmente, você mesmo tem de decidir onde quer viver, caro Charles.

Conversamos ainda quinze minutos sobre a crítica situa­ção mundial, e Eisenbeiss estava muito pessimista.

— Falam de certos ratos e também dos grandes bandos de baleias que aparentemente se deixam levar para a praia a fim de morrerem juntas. Grande idiotice, imputar isso aos animais.

— Imputar o quê?

— Dirigirem-se voluntária e conscientemente para a mor­te. — Encolheu os ombros. — Isso vale para nós, homens. Nós é que queremos a morte. Não uns querendo a morte dos outros. Não, escolhemos um suicídio coletivo, calculado e planejado.

— Mas por quê?

— Porque nós homens — inconscientemente — não te­mos mais esperanças no futuro. O futuro, este nós destruímos, e sabemos disso. Então queremos conseguir pelo menos um suicídio coletivo perfeito. — Olhou o jardim por uma janela. — Tão belo é o mundo... mas nós o destruiremos e morrere­mos todos.

Deixei o meu salvador e perambulei pelo caminho da Uto­pia entre campos floridos e jardins coloridos até chegar lá em cima na Buchleitengasse. Dali também se podia ver toda Vie­na. Soprava um vento leve, e apesar do calor na cidade, lá em cima estava agradável e fresco. Virei meu rosto para o vento e pensei que a sra. Renate Tiller seria a primeira pessoa es­tranha que eu encontraria para quem seria Peter Kent. Fiquei assim parado algum tempo. Nos jardins das mansões e nas hortas brincavam crianças. Seus gritos enchiam o claro ar de verão. Vozes de uma tarde de junho...

Um Mercedes branco subiu pela Buchleitengasse. Fui para o outro lado da rua. A mulher na direção meteu a mão pela janela e acenou. O carro parou a meu lado. A mulher usava blusa branca e saia azul. Tinha cabelos castanhos, olhos castanhos, e dentes muito bonitos. Também dava a impressão de ser suave e calma. Abri a porta direita da frente, sentei-me ao lado dela e disse:

— Bom-dia, sra. Tiller. Sou Peter Kent.

— O que significa isso? — disse a jovem.

— O que significa o quê? — perguntei. — O sr. Eisenbeiss lhe telefonou e disse que eu estaria aqui parado, sra. Tiller.

— Eu não sou a sra. Tiller — disse a jovem com sotaque da Alemanha do Norte. — E não conheço nenhum Peter Kent.

 

— Mas a senhora acenou para mim.

— Sim, acenei.

— Por quê?

— Porque estou perdida. Não sou daqui e queria pergun­tar o caminho.

— Caminho para onde?

— Para a Höhenstrasse.

— Também não sou daqui.

Ela começou a rir:

— Mas de onde é?

— De Buenos Aires — disse eu.

E rimos os dois. Entreolhamo-nos e de repente paramos de rir e continuamos nos olhando. Os olhos castanhos dela estavam muito abertos, com um brilho úmido. Os meus ar­diam, e senti o coração pulsar. Pensei: isso não existe. Nunca na vida. Nem mesmo em romances. Mas eu estava sentindo intensamente, e nunca tivera aquela sensação. Não, nunca.

Ficamos calados, nossos olhares não se afastavam um do outro. Os olhos dela agora estavam muito escuros, a boca um pouco entreaberta. Eu estava como paralisado, incapaz do menor movimento, e não sei como teria continuado aquilo se uma voz não me tivesse perguntado:

— Posso ajudar?

Ela virou-se para a janela lateral. Lá fora estava um ho­mem moço e amável, e via-se que acabava de sair do banho. Segurava uma bicicleta pelo guidom.

— Sim — disse a mulher. Teve de começar a frase duas vezes, pois sua voz estava embargada. — Eu queria ir até a Höhenstrasse.

— Ai, ai — disse o rapaz, rindo. — Então a senhora se perdeu mesmo! Como foi que chegou aqui em cima?

— Vim da Pötzleinsdorfer Strasse — disse ela, com a voz ainda rouca. — Aí dobrei na Schafberggasse.

— Pois isso foi errado — disse o rapaz, que tinha cabelo louro e duro e usava óculos. — Precisa voltar. Sabe descer?

— Foram tantas ruas — disse a jovem —, mas acho que sim.

— Se não souber, pergunte pela Pötzleinsdorfer Strasse. Precisa voltar para lá. Do ponto onde dobrou. Tem de seguir mais um pouco pela Pötzleinsdorfer Strasse, depois subir à direita na Khevenhüllrstrasse até uma rua chamada Neustift em Walde; siga sempre por ela, que ali começa a se chamar Hameaustrasse. No fim da Hameaustrasse começa a Höhenstrasse. A senhora vai ver as placas, e seu marido também ouviu tudo, não foi?

Fiz que sim.

— Então — disse ele, e subiu no selim. — Bom-dia — e saiu pedalando.

Entreolhamo-nos e tive a sensação de conhecer há anos aquela jovem.

— Não quero parecer malcriado — disse. — Realmente não. Mas posso acompanhá-la?

Ela concordou com a cabeça, sem dizer nada. Vi sua mão tremer no volante. Ela disse:

— O senhor poderia... poderia dirigir, por favor?

— Com prazer — disse eu. — Por quê?

— Meus joelhos estão tremendo. Não consigo deixar o pé quieto no acelerador.

Então ela também sente, pensei. Ela também sente.

Desci e rodeei o carro, e ela deslizou para o meu assento. Entrei do lado dela, e pensei mais uma vez que tudo aquilo não existia, e que eu só estava sonhando. Estivera na iminên­cia de um enfarte, com fortes dores de cabeça, talvez até uma comoção cerebral, depois de ter sido jogado fora do aparelho. Mas agora, há muito não sentia mais dores. Apesar disso... não entendia a mim mesmo. Lá estava uma bela mulher, uma mulher excitante. Deixara-me entrar em seu carro. Estava tão confusa e excitada quanto eu. Por que eu não pegava no seio dela? Por que não enfiava a mão debaixo da sua saia? Por que não agia como costumava agir? Estava dominado por uma grande inibição. Aquela mulher quase não usava maquilagem, tinha uma pele linda, e o cabelo castanho se ajustava à cabeça como um capacete.

— Então, voltar à Pötzleinsdorfer Strasse — disse eu. — A senhora me indica o caminho. Se não souber seguir adiante, perguntaremos.

— Sim — disse ela numa voz quase inaudível.

O carro era automático, e eu queria ligar a alavanca no D, mas coloquei no R. Quando acelerei, o Mercedes disparou um pedaço para trás, e mal pude frear em tempo. Ela deu um grito.

— Perdão — disse eu. — Que coisa aborrecida!

— Pensei que o senhor soubesse dirigir!

— E sei — disse eu. — Só estou confuso, totalmente confuso, desculpe! — Eu desligara o motor por engano. Ago­ra, tentava dar a partida outra vez. O motor não pegava.

— Santo Deus — disse a moça. — O senhor tem de pôr a alavanca em P, se quiser dar a partida, sr. Kent!

— Claro. Obrigado pelo aviso, minha senhora. — Co­loquei a alavanca em P e olhei para a moça, que devolveu meu olhar, e mais uma vez tive aquela sensação estranha, e vi que as mãos dela tremiam, colocadas sobre os joelhos. Por um momento tive o arrebatador desejo de puxar o rosto dela para mim e beijá-la demoradamente na boca. Não fiz isso. Por que não? Pelo menos isso eu sempre fazia em tais situações. Não, pensei, numa situação daquelas eu jamais estivera. Os lábios carnudos dela ainda estavam um pouco entreabertos, e aquilo me deixava quase louco.

— Então, sr. Kent, o que foi? —perguntou ela, séria. — Acha que pode dirigir agora sem matar a nós ou a gente inocente?

— Acho que sim — disse eu.

— Então quem sabe quer dar a partida? Rosner. Meu nome é Andréia Rosner.

— Sim, srta. Rosner.

Dei a partida. O sol me ofuscou quando dirigi para um trecho de campo aberto, e o perfume do prado florido entrou no carro. Era verão, um verão quente, e pensei que nunca na vida fora realmente feliz, e agora era... era feliz, muito.

 

Encontramos a Höhenstrasse e seguimos por ela. Por mui­to tempo não dissemos palavra. Apenas nos entreolhávamos, mudos. A Höhenstrasse corre nas encostas da Floresta Vienen­se, e vimos a cidade aos nossos pés.

— Ponha o cinto de segurança — disse ela.

— Nunca ponho cinto de segurança. Tenho medo de fi­car afivelado.

— Mas que bobagem. Se sofrer um acidente, é muito mais fácil escapar ileso com cinto. Por que está rindo?

Eu disse:

— Porque estou feliz. — Mas não coloquei o cinto. Fo­mos de Cobenzl ao Kahlenberg, e ela ligou o rádio do carro.

— Um pouco de música — disse, mas a primeira coisa que ouvimos foram notícias sobre o acidente no aeroporto. Morrera mais um dos feridos graves, e apesar de todos os esforços dos médicos legistas, era muito difícil identificar as partes calcinadas dos mortos.

— Horrível — disse ela, e procurou uma estação com música. Alguém tocava Pour Elise, de Beethoven, provavel­mente Richard Cleyderman. — Desde quando está em Viena?

— Desde esta noite — disse eu sem refletir.

— Veio direto de Buenos Aires?

— Sim — disse eu, e como o dissera, tornou-se verdade para mim.

— Essas linhas transcontinentais todas terminam em Pa­ris. Ou Zurique, Londres ou Frankfurt — disse ela. — De onde veio a Viena? De Paris?

— Sim — disse eu.

— Meu Deus, poderia ter estado naquele aparelho. E estaria morto agora. Puro acaso. — Ela estremeceu.

— Não — disse eu, pensando em Eisenbeiss. — Não devo estar morto. Tinha de conhecer você. O acaso não existe. Tudo está predeterminado. Também que eu visitasse um ami­go no Schafberg, também que você se perdesse, para que nos encontrássemos... tudo predeterminado.

— Fala sério?

— Muito sério — disse eu, e vi que ela mordia os lábios.

Do Kahlenberg voltei a Cobenzl, pois lá vira junto à flo­resta um grande prado florido. Quando perguntei se não queria descansar um pouco, ela concordou. Então estacionei o carro na praça ao lado do bar redondo, de vidro. Andréia Rosner usava sapatos de saltos altos, de modo que lhe dei a mão enquanto andávamos pela relva. Havia abelhas zumbin­do, e vi muitas borboletas coloridas.

Tirei meu casaco e ela se deitou em cima. Logo eu estava deitado ao lado dela, e estava tudo tão quieto que ouvimos um pica-pau bem longe na mata. Mais ao longe jazia a imensa cidade, com seu rio e as montanhas azuis no horizonte.

Por muito tempo nenhum de nós disse nada.

Depois eu disse:

— Andréia...

— Sim?

— Posso chamá-la Andréia?

— Sim — disse ela baixinho, e depois mais baixo ainda: — Sim, Peter.

— Tenho uma sensação tão forte, Andréia. Desde que nos vimos. Na mesma hora. Uma sensação tão forte...

— Eu também — disse ela. — Também tenho uma sen­sação forte. E também a senti logo que nos encontramos, quando você disse as primeiras palavras. — Encarou-me com olhos enormes. — Não conheço você. Nunca nos vimos antes. Isso não existe! É coisa de cinema! — disse ela, rouca. — É cinema, não é?

— Sim — disse eu. — Não... — disse eu. — Não, não é cinema.

— Então é loucura.

— Então é loucura. Deixe que seja loucura, enquanto for maravilhoso para nós dois.

— Certo — disse ela. — Deixemos que seja loucura, que diabos! Você é esperto, Peter.

— Ah, sim, muito — respondi, e me sentei. Vi a cidade luminosa lá embaixo.

— Fale-me de você — disse ela, e cruzou os braços atrás da cabeça.

Contei a história que Eisenbeiss inventara para mim, e senti como se tudo fosse verdade. Depois me calei, pois um esquilo saltara de repente de uma árvore e estava sentado à nossa frente, farejando. Não nos mexemos. Depois chegou ou­tro esquilo, saltitando, e os dois nos encararam, sérios. Ti­nham olhos lustrosos e moviam os pequenos focinhos, fare­jando. De repente, fugiram num salto. O primeiro correu por um tronco acima, o outro disparou galho acima, galho abaixo, atrás dele.

— Esse gatão — disse Andréia —, como persegue a po­bre menina! Olhe só o jeito dele! — Os dois animaizinhos disparavam como raios pela galharia da velha árvore. — En­tendo a linguagem dos esquilos — disse Andréia. — Sei o que ele disse ao seu gatão.*

* Em alemão, Kater é o macho de alguns animais, e também, mais comumente, “Gato”. (N. da T.)

 

— Então?

— Às vezes, disse a esquilinha ao seu namorado, quan­do olho para as pessoas, quase penso que sabem falar como nós.

— Hum, hum — disse eu. — Também sei esquilês. Mas sei de verdade. A esquilinha disse ao seu gato: olhe só aqueles dois, meu gato. Como se querem bem! Tanto quanto nós. E todo mundo sabe, disse eu, que entre os animais são os esqui­los que sentem o maior amor.

— Todo mundo sabe disso?

— Qualquer criança sabe.

— Peter?

— Sim?

— Nada — disse ela.

— A Höhenstrasse é impressionante — disse eu.

— Peter, por favor.

— Não, é verdade. Estou muito impressionado. Por que queria subir logo por aqui?

— Prometi aos meus amigos — disse ela.

— Que amigos?

— Os donos do Mercedes. Trabalham num jornal. Ela faz moda, ele, cartuns políticos. Emprestaram-me o carro; não tenho um Mercedes. Nem poderia comprar um: sou pobre como um ratinho de igreja.

— E por que logo a Höhenstrasse, seu ratinho de igreja?

— São coisas que se precisa ver — disse ela. — Cobenzl e Kahlenberg. Os vinhedos. E por fim, o Heurigen.

— E aonde vai por fim?

— Segredo. Só lhe direi quando chegar a hora.

— De onde você vem afinal? — perguntei.

— Hamburgo.

— E o que faz em Hamburgo?

— Bibliotecária.

— Não! — Levei um susto.

— Sim, o que há de tão estranho nisso?

“Estranho” não é a palavra certa, pensei arrebatado. “Si­nistro” seria melhor. Andréia lidava com livros! Livros — e eu fora louco por livros a vida toda, desde que Heinz, meu se­gundo pai, aquela vez em Strasburgo me dera um maravilhoso livro de contos de fadas dos irmãos Grimm. A guerra. A ocupação. Minha mãe. Heinz. Minha singular ligação com a Alemanha. Era como se toda a vida se tivesse girado num gigantesco círculo. Acaso? Não, não havia o acaso.

Ouvi a voz de Andréia ao longe:

— ... perguntei: O que há de tão estranho em ser biblio­tecária?

— Não sei — disse eu, abalado. — ... não a posso ima­ginar como bibliotecária. Pensei que era pediatra, coisa assim.

— Realmente, lido muito com crianças — disse Andréia. — Na verdade, comecei aprendendo num sortiment.

Apoiei-me num cotovelo e olhei para ela. Nossos rostos estavam bem próximos. O pica-pau continuava suas batidas na floresta. Um avião passava silencioso sobre a cidade.

— O que é isso, sortiment?

— Uma livraria bem pequena, ao contrário de uma gran­de casa de comércio livreiro. Depois de dois anos praticando, estudei para ser bibliotecária. Agora estou empregada na Bi­blioteca Pública, seção infantil. Sempre desejei isso.

— Gosta de crianças?

— Muito! E me dou bem com elas. Tenho vinte e nove anos, mas elas me tratam como se eu tivesse a idade delas. Além disso, crianças são seres bondosos e amáveis. São como nós fomos um dia.

E já tenho quarenta e nove, pensei, e disse:

— Bem, tão boazinhas elas não são. Brigam a socos e fazem barulho, mentem, e quebram tudo.

— Na nossa biblioteca elas não são tão ruins — disse ela. — Naturalmente, crianças também são gente. Mas ainda são as melhores pessoas.

Meu corpo sentia-se bem, aquecido pelo sol. Erguendo a cabeça, vi as primeiras árvores da grande floresta, e refleti sobre quando me deitara pela última vez num prado florido, olhando florestas, mas nem me lembrei, tanto tempo já fazia. E pensei em Eisenbeiss, que depois de velho voltara a acredi­tar em Deus e na “paz em Suas mãos”, nas quais jaziam “as terras do Norte e do Sul”, e enquanto isso ouvia Andréia, que contava que seu chefe fora convidado para um congresso em Viena, mas dera o convite a ela...

— ... porque ele queria me dar uma alegria, sabe, Peter. Naturalmente fiquei muito feliz. Vão me pagar a viagem. Hos­pedagem e comida não, por isso moro com meus amigos. Es­tou aqui há cinco anos; esta tarde o congresso terminou, e meus amigos me deram o carro para eu poder ver um pouco de Viena... e agora nos encontramos, e... — de repente ela se calou. Os dois esquilos tinham voltado. Sentados na grama, olhavam-nos com ar crítico.

— Ora — perguntei —, estão de acordo conosco?

Um dos animais pôs as patinhas diante do ventre.

— Está vendo — disse Andréia —, a esquilinha está aplaudindo.

— Não é a esquilinha, é o gatão.

— Como sabe disso?

— O rabo — disse eu. — A gente sabe pela cauda. O macho tem uma cauda mais bonita e peluda.

— Mesmo?

— Mesmo — disse eu.

— Você é o máximo — disse ela. — Sabe de tudo. Não sei nada.

— Sim, que pena — disse eu. — Pobres crianças de Hamburgo. Você nem deve saber lhes dizer qual o nome do veado.

— Ora, pare com isso — disse ela.

— Eu disse que você não sabia.

— Muito bem, não sei. Como é o nome do veado?

— Purê de batatas.

O riso dela assustou os dois animaizinhos, que dispara­ram árvore acima.

Vi o rosto radiante de Andréia, a boca aberta, os belos dentes e os olhos brilhantes, as muitas ruguinhas nos cantos externos, que vinham do riso, curvei-me e beijei-a. Beijei-a com força e apertei-a contra mim. Ela fechara depressa os lábios, e tentei abri-los. Podia ouvir o coração dela batendo. De repente ela abriu os lábios, e sua cabeça caiu sobre a grama. O beijo foi demorado.

— Ah, querido, querido — disse ela por fim —, como é doce o seu beijo.

— Não — disse eu. — O seu é que é doce.

— Gatão — disse ela. — Você é meu Gatão, sim?

— Sim — disse eu —, sim, Esquilinha.

Beijamo-nos outra vez, e o hálito dela era fresco e puro como o aroma de leite fresco, e de repente pensei na noite passada. Agora eram seis e meia da tarde, há dezessete horas o avião explodira lá fora, em Schwechat, e tudo estivera cheio de sangue, de feridos e de corpos em chamas. Fazia só dezes­sete horas. Dezessete horas entre o horror e o amor. Não, não existe o acaso.

— O Heurigen! — exclamou Andréia de repente.

— Ah, sim, o Heurigen! — disse eu. — Você ainda tem de ir até lá! Quem é o Heurigen, Esquilinha? Por favor, me diga logo, não agüento mais essa incerteza.

— Meus amigos me disseram que lá onde começa a Höhenstrasse, em Grinzing, há muitos pequenos restaurantes e jardins onde se serve vinho novo. Isso se chama Heurigen, e dizem que preciso beber um copo, não mais, porque tenho de dirigir. Lamentaram terem de trabalhar tanto à noite, e não poderem vir comigo. Os restaurantes lá têm sobre a entrada lindas ramadas folhudas...

— Ah, não!

— Fique quieto! Velhas e folhudas ramagens de um pi­nheiro ou conífera; de qualquer modo, uma árvore espinhosa.

— Quem diz isso?

— As pessoas, Gato. As pessoas daqui dizem isso. As pessoas que bebem o Heurigen.

— Mas não pode ser vinho novo, ainda não existe disso agora.

— Foi o que eu disse, e meus amigos disseram que é o vinho novo, do ano passado. O legítimo vinho novo só lá no fim do outono e no inverno. Eles o fazem de uvas que crescem ali naquelas encostas. Venha, temos de ver isso, seria uma falta de cultura não ver.

Então nos levantamos, vesti meu casaco, e descemos pelo prado até a entrada. Quando a atravessamos, vimos, nas en­costas da metade do caldeirão onde ficava Viena, os vinhedos: centenas de milhares. Tinham uvas ainda verdes e pequenas, mas já eram uvas de verdade. Ao longo do nosso lado do caldeirão viam-se muitos quilômetros de vinhas nos postes em que estavam amarradas. E agora vermelhas e douradas, como fogo, brilhavam a cidade e o grande rio.

Eu estava parado atrás de Andréia, que se apoiou em mim. Ficamos calados por longo tempo; depois ela disse:

— Mais uma vez o demônio o levou consigo para um monte muito alto e lhe mostrou todos os reinos do mundo e sua glória e lhe disse: Tudo isso te darei se caíres de joelho e me adorares.

Abracei-a e disse:

— Não tenho os reinos do mundo nem sua glória. Mas se eu fosse o demônio... você não teria de se ajoelhar diante de mim para conseguir toda a glória. Eu me ajoelharia diante de você, e a adoraria, e lhe daria tudo.

 

Entre as últimas palavras e estas há um espaço de cinco dias. Tive um ataque. Você sabe, meu bem, como sou doente. Logo depois de ter escrito a última frase, tive um ataque. Por sorte o médico veio imediatamente. Esse foi pior, muito pior que os outros. Depois fiquei deitado na cama, e devia dormir, mas não pude porque pensava todo o tempo: meu relatório para você, meu relatório para você, para que você saiba como tudo aconteceu. Precisa saber, meu bem, preciso escrever a verdade, toda a verdade, maravilhosa e terrível. Você ainda é jovem demais e não me entenderia. Dei ordens de que só receba esse manuscrito quando tiver dezoito anos. Então es­tará adulta e experiente o bastante para compreender tudo. Por isso me permito escrever com toda a liberdade.

Bem, nos cinco dias que passaram, duvidei de poder cum­prir o que desejava. Fico muito nervoso pensando na história desses últimos anos, e naturalmente sempre ficarei, quanto mais me adiantar e aprofundar em todas as tramas e terríveis situações que levaram ao assassinato: sim, ao assassinato.

Se eu te pudesse ver, meu coração! Se eu te pudesse ver um minuto apenas. Mas sempre que falo nisso, recusam: fora de cogitação. Cedo demais. O senhor ficaria nervoso demais, mais tarde sim, mais tarde certamente. Precisa esperar, ter paciência. Escreva, ocupe-se. O senhor precisa anotar o que aconteceu.

Está vendo, meu bem, também eles dizem que tenho de fazer isso.

Portanto, continuo escrevendo, lenta e constantemente. Frase a frase, levará muito tempo ainda, mas não eterna­mente. Nada dura muito tempo, também isso aprendi.

 

“Se queres me dar teu coração, começa em segredo, para que ninguém possa adivinhar os nossos pensamentos,” can­tava o velho. Estava sentado sozinho numa mesinha no grande jardim, no qual havia muitas mesas compridas e estreitas com longos bancos dos dois lados. O velho tinha uma cítara à frente, e dedilhava suas cordas. A voz era agradável e pro­funda.

Estávamos sentados a certa distância, numa das mesas compridas, lado a lado; diante de nós, uma garrafa e dois copos. O sol já estava oblíquo no céu, seus raios dourando tudo. Ainda estava muito quente depois daquele dia de verão escaldante.

Um verão glorioso.

Mais uma vez tive de pensar no Rei Ricardo II de Shakespeare, aquele patife com quem por muitos anos me sentira tão ligado.

“Agora o inverno da nossa desgraça se transformou num glorioso verão através do sol de York; as nuvens todas, que ameaçavam nossa casa, estão enterradas no fundo regaço do oceano.”

Sim, de repente eu vivia num glorioso verão, todo o meu passado sujo estava enterrado no fundo regaço do oceano. Não, pensei, nada mais liga você com o Rei Ricardo, você já não é seu irmão em espírito, não na sua nova vida, não desde que encontrou Andréia. Eu segurava a mão dela, e ela pusera a dela sobre as nossas duas, a cabeça encostada na minha. Nunca na vida me sentira tão sereno. Aspirava o aroma da pele e do cabelo de Andréia, que tinham um cheiro maravi­lhoso, ainda um odor de terra e prado.

“O amor dos dois terá de ficar oculto para sempre. Por isso, guarda no teu coração as grandes alegrias,” cantava o velho, e uma mulher com lenço na cabeça chegou até nossa mesa e perguntou se queríamos beber mais alguma coisa. An­dréia disse que sim, e que desse também um copo ao velho, e a mulher do lenço afastou-se novamente.

Andréia passou o braço nos meus ombros e aconchegou-se bem a mim.

— Meu querido — disse ela. — Meu amado. Santo Deus, amo você.

— E eu a você — respondi. — Muito. Nós dois sentimos, você e eu, lá em cima no Schafberg, quando nos vimos pela primeira vez, quando trocamos as primeiras palavras. Não é verdade que você também sentiu?

— Sim — disse ela. — Sinistra, uma coisa dessas, não é? Sinistra.

— É maravilhoso.

— Nunca pensei que existisse uma coisa assim.

— Provavelmente é muito rara — disse eu. — E nós dois a experimentamos.

— Sim — disse ela. — Beije-me, meu Gato!

Beijei-a, e o velho tocava citara e cantava. Quando passei os dois braços por Andréia, soube de repente onde já a vira e por que desde o primeiro instante ela me parecera tão fami­liar. Fora na noite anterior, lá fora no aeroporto, depois que eu fora arremessado do aparelho explodido e ficara deitado nos arbustos baixos ao lado da pista, meio inconsciente. Sim, quando eu vira o país dos mortos, quando estivera entre ele e o país dos vivos. Havia aquela mulher de cabelo castanho e grandes olhos castanhos, com a qual eu voava sobre monta­nhas e florestas, prados floridos e profundos abismos, com a qual eu entrava no céu dançando, no sonho em que eu me sentira tão infinitamente feliz com aquela mulher que era sim­plesmente Andréia. Oh Deus, pensei, e tinha havido também aquele tocador de citara, cantando e tocando, também a ele eu já vira no sonho com o maravilhoso país dos mortos.

— O que foi, querido? — a voz de Andréia soava junto ao meu ouvido.

Vi-a diante de mim, bem perto. Ela me encarava séria, como me fitara no sonho.

— Querido, o que foi?

Voltei de muito longe para junto dela.

— Nada — respondi. — Nada, meu doce amor. Estava pensando em como tudo isso é inconcebível.

— Inconcebível, sim — disse ela. — Ah, você é tão amado.

— E você é o primeiro amor de minha vida — disse eu. — Nunca amei outra mulher. — E mais uma vez pensei em como a vira naquela noite pela primeira vez: seu belo rosto, imenso, gigantesco no céu infinito do país dos mortos.

— Nunca amou outra mulher? Ora, meu Gato, isso não é verdade!

— Sim.

— Mentiroso — disse ela. — Meu mentiroso querido.

— É verdade — peguei seu rosto nas duas mãos. — Você tem de acreditar. Acredita em mim?

Ela me fitou, séria, e calou-se, e o velho continuou to­cando, mas já não cantava mais.

— Por favor — disse eu. — Por favor, acredite em mim. — E pensei que nunca na vida falara assim com uma mulher. Mas, pensei, aquela era minha nova vida. A outra morrera. E na minha vida antiga eu realmente nunca amara uma mulher, nem mesmo Yvonne nos nossos primeiros tempos, aquilo fora diferente, bem diferente.

— Acredito — disse ela. — Você é bom.

— Não — disse eu. — Mas gostaria de ser.

Ela pegou minha mão e beijou a palma.

— Meu amado — disse. — Estou tão feliz por nos termos encontrado!

— Não tanto quanto eu — afirmei. — Até agora levei uma vida bastante ruim. Também com mulheres, especialmen­te com elas. E nem uma vez amor, nem uma só vez. Só... você sabe...

— Sim — disse ela —, sei.

E ergueu seu copo, e ambos bebemos olhando-nos sem parar, e o velho começou a cantar outra vez. Cantava sobre o mar e uma moça, mas estávamos tão embevecidos um no outro que eu ouvia as palavras mas não entendia o significado.

— Sabe — disse Andréia —, houve um homem a quem amei muito. Vivemos juntos por três anos, e ele disse que só amaria a mim. Depois foi embora, viver com outra. Por favor, não faça isso! Está ouvindo? Não faça isso. Não quero passar por uma coisa dessas mais uma vez. Foi horrível. — Ela sorriu, timidamente. — Perdoe!

— Perdoar o quê?

— O que acabei de dizer. Sabe, sou um pouquinho lou­ca. Você decerto já notou. Só um pouquinho maluca. Mas leve sempre isso em consideração. Desde que esse homem me deixou tive três homens, mas não foi amor.

— Eu sei — respondi.

— Você sabe. Você é maravilhoso.

— Não — disse eu. — É você que é maravilhosa. Eu, eu não valia nada, assim como toda a minha vida. Até hoje. Agora, quero tentar valer alguma coisa.

— Meu Gato — disse ela. — Não vou deixar que você se vá, nunca.

— Minha Esquilinha — disse eu. — Venha, vamos beber mais um pouco.

Esvaziamos os copos.

— Você teve muitas mulheres, não foi, meu Gato?

— Qual nada...

— Nada de mentiras, por favor! Muitas, não foi?

— Alguém com a minha cara...

— Exatamente por isso. Exatamente por isso. Então, muitas, não?

— Sim — respondi. — Mas sem amor. Amor, nunca. Juro.

— Você é maravilhoso, simplesmente maravilhoso, sabe disso?

Pus a mão no joelho dela.

— Não — disse ela.

— Sim, por favor!

— Por favor, não, Gato. Temos um amor tão bonito, e temos todo o tempo do mundo. Quero que tudo aconteça com cuidado, suave e lentamente.

— Todo o tempo do mundo? — perguntei. — Quando tem de voltar a Hamburgo, Esquilinha?

Ela me olhou, calada.

— Esquilinha?

— Sim — disse ela. — Tenho de voltar amanhã de ma­nhã. Amanhã, Gatão.

A mulher com lenço na cabeça voltou com outra garrafa cheia de vinho e dois copos novos, e agradecemos.

— Não esqueceu o velho? — perguntou Andréia.

— Não — disse a mulher do lenço.

E quando olhamos para o tocador de citara, ele riu e ergueu seu copo cheio. Também erguemos os nossos, que a mulher do lenço voltara a encher, e fizemos um brinde com ele. Depois ele recomeçou a tocar e a cantar.

— Amanhã de manhã — disse eu, baixinho.

— Sim — disse ela. — E então?

— Então o quê?

— Você me disse que voltou da Argentina porque tinha saudade da Alemanha. Então venha comigo para Hamburgo.

— Ah — disse eu. — Então vou com você a Hamburgo.

Ela bebeu.

— Isso é maravilhoso para mim — disse —, mas há uma coisa que não entendo.

— O que você não entende, Esquilinha?

— Que alguém ponha fim a uma vida segura num belo país em outro continente, para voltar logo agora para a Ale­manha.

— Bem, na Argentina as coisas não são tão belas e segu­ras — respondi. — E o que significa “logo agora”?

— Na Alemanha temos cada vez mais medo de uma nova guerra, de bombas atômicas e foguetes nucleares. Há tantos deles que se pode matar trinta e seis vezes cada pessoa. Cha­mam a isso overkill. Que palavra! Pense, pode-se matar cada pessoa trinta e seis vezes. E isso ainda não basta! Porque os soviéticos armam cada vez mais foguetes, Reagan também quer colocar mais foguetes e bombas de nêutrons na Alema­nha Ocidental. E por mais que os aliados americanos e russos se insultem, numa coisa concordam: quando a coisa estourar, a Alemanha será o campo de batalha. Você não sabia disso realmente, Gatão?

— Sim — disse eu. — Claro.

— E apesar disso tinha saudades da Alemanha?

— Sim — disse eu, e nem ao menos era mentira.

— E não tinha medo?

— Medo e saudade — respondi. — Mas muito mais sau­dades do que medo. E agora naturalmente, sei por que tanta saudade.

E pensei em Eisenbeiss, que me arranjara um passaporte alemão, mas também dissera que aquela idéia de saudades da Alemanha fora loucura, que eu devia ir para outro lugar, Estados Unidos ou Canadá. Mas agora eu queria ir para a Alemanha, por causa de Andréia.

— E você acha realmente que a Alemanha entrará numa nova guerra?

— Santo Deus, que pergunta! Provavelmente a Europa toda! Mas a Alemanha, com certeza. Acha que os russos e os americanos vão destruir seus próprios países? Talvez da outra vez. Mas na primeira será a Alemanha!

— Então ao menos estaremos juntos — disse eu.

— Ah, eu te amo tanto. Sabe que isso é um grande con­solo para mim? Não quero mais viver sem você.

— Talvez nem haja guerra.

— Mas parece que vai haver.

— Talvez tenhamos sorte.

— Hoje em dia há pouca sorte no mundo!

— Bem, nós dois acabamos de ter uma sorte imensa.

— Sim — disse ela. — Muito, muito grande. Sou uma mulher boba por falar nisso logo agora. Me perdoa?

— Não há o que perdoar. Eu também tenho medo.

— Todo mundo tem medo — disse ela. — Isso é terrível.

— Mas agora temos um ao outro — disse eu.

— Sim, isso é bom — disse ela. — É maravilhoso. Tam­bém já não tenho medo, nenhum medo... Santo Deus, eu queria não ter mais medo algum.

— A gente pode morrer em qualquer lugar — disse eu, pensando na noite anterior e no aeroporto. — Tudo está deter­minado: o lugar, o dia, a hora...

Notei que o velho se aproximara da nossa mesa. Cumpri­mentou-nos sorrindo, e pedimos que sentasse, enchemos outra vez o copo dele e os nossos, para brindarmos e bebermos com ele.

— Estranhos aqui em Viena? — perguntou o velho.

— Sim — disse eu.

— Foram umas canções tão bonitas — disse Andréia.

— Conheço muitas canções bonitas — disse o velho. — Mas toquei essas porque sabia, aí estão dois que se amam. Tive de olhar para vocês o tempo todo. Mais tarde virão mui­tas pessoas, aí tudo fica cheio e tenho de tocar outras canções, essas que os fregueses gostam de ouvir, não as de que eu gosto, como essas.

— Obrigado — disse Andréia.

— E obrigado pelo vinho — disse o velho. — Que o bom Deus os proteja.

— Sim, que nos proteja — disse Andréia gravemente, e pensei, que bom para esses dois, acreditarem em Deus.

— O senhor tem uma mulher bonita — disse-me o velho. Seu cabelo grisalho ainda era basto, e, embora certamente tivesse bem mais de setenta, parecia muito mais jovem. Ao sorrir, mostrava magníficos dentes postiços.

— Sim, sei — disse eu. — Ela é linda.

— Querem que eu leia as cartas? — perguntou direta­mente o velho, e que eu já vira no país dos mortos, quando estava meio desmaiado.

— Para mim, não, por favor — disse eu. — Não gosto dessas coisas.

— Mas para mim sim — disse Andréia.

Estávamos sentados debaixo de um grande castanheiro. O velho tirou do bolso um baralho de cartas e colocou-as com o anverso para cima na mesa diante de Andréia.

— Misture — disse ele.

Andréia misturou e largou as cartas outra vez.

— Agora — disse o velho —, separe dois montinhos desse grande, com a mão esquerda e na direção do coração,

Andréia obedeceu.

O velho colocou os três montinhos uns sobre os outros em ordem diversa e rapidamente formou quatro fileiras de treze cartas, colocando-as abertas sobre a mesa estreita.

— Dama de copas — disse o velho para Andréia. — E o senhor seria o rei de copas — disse para mim. — Agora, me deixe ver. — Esfregou o queixo e contemplou longamente as cartas. — Bem — disse por fim —, a senhora está muito feliz, moça, mas muitas vezes será ainda mais feliz...

— Com um homem?

— Sim, com um homem. — Andréia me beijou na face. — A senhora tem um grande desejo... que vai se realizar, em breve... e vai se casar... Vejo uma doença, mas não tem de ser com a senhora... Vejo muitas crianças ao seu redor, serão ainda mais... terá muita alegria na vida... mais tarde terá de tomar cuidado...

— Mais tarde quando?

— Talvez em meio ano. Ou mais ainda... Cuidado, por favor... na rua... no trânsito... Há um homem, ou mulher, uma pessoa que terá um papel muito importante na sua vida... Essa pessoa é muito religiosa... e há um perigo ligado a isso...

— Com a religião? Mas como é possível?

— Não sei. As cartas dizem... Decerto esse perigo não se relaciona à senhora, mas ao senhor...

A coisa prosseguiu assim, e Andréia estava muito excitada, pois quase todas as coisas que o velho profetizava eram boas. Quando acabou, ele tomou um gole.

— E o senhor, não quer mesmo? — perguntou-me.

— Ora, vamos, Gatão — disse Andréia.

— Por mim... — disse eu.

Ele recolheu as cartas, e cortei o baralho como Andréia fizera. Mais uma vez ele espalhou quatro vezes treze cartas abertas. Contemplou-as e ficou muito sério.

— Coisa ruim? — perguntou Andréia.

— Ruim não... mas estranha... O senhor andou doente ultimamente?

— Não, por quê?

— As cartas dizem. Não diretamente... é muito singular. Sua vida, está vendo, acaba totalmente aqui, depois recomeça e continua. O senhor sofre do coração, não é?

— Um pouco — disse eu, e para Andréia: — Nada de grave. Já tenho isso há anos, e tenho um remédio muito bom para controlar. Meu médico disse que vou até os cem anos.

— Seu médico em Buenos Aires?

— Naturalmente irei a um médico em Hamburgo.

— Buenos Aires? — perguntou o velho. — O senhor vem de lá?

— Sim — respondeu Andréia em meu lugar.

— Hum... ah, sim, o senhor acaba de fazer uma viagem... Mas tão longa? Bom, às vezes isso parece assim... O senhor também será muito feliz, mas depois... — interrompeu-se.

— “Mas depois” o quê?

— Não, nada — disse ele. — Meus olhos andam ruins, devo ter visto mal.

— O senhor não viu mal — disse eu. — O que foi que viu?

— Um homem — disse ele. — Precisa tomar cuidado com ele... ele ameaça com grande perigo... Aí está ele de novo, o devoto!... E outro... mas esse não é tão perigoso... nesse o senhor dará um jeito depressa... Já foi casado?

— Não — disse eu, aborrecido por ter concordado em que ele lesse as cartas.

— Não mesmo, Gatão?

— Ora, pare com isso — disse eu.

— Mas estou vendo uma mulher... — Ele fitou Andréia. — Não pode ser a senhora... — Ele debruçou-se e vi que não apenas seu rosto, braços e mãos eram curtidos do sol, como couro, mas também a nuca. Certamente trabalhara duro mui­tos anos nos vinhedos. Suas unhas eram curtas e, apesar disso, quebradiças. — Uma mulher muito má... Precisa tomar cui­dado com ela porque vai persegui-lo... e um dia... E...

Misturei as cartas todas.

— Obrigado, isso basta.

— O senhor ficou aborrecido comigo? — disse ele. — Não queria isso. Ler as cartas é assim... às vezes elas nem estão certas... quer dizer, as boas sempre estão certas.

— Claro — disse eu.

— Não, é verdade.

— Por favor, Gatão! — disse Andréia, e seu olhar dizia: Não magoe o velho!

— Não quis ofender — disse eu. — Venha, vamos beber mais um pouco.

Então bebemos os três, e o velho tocou mais canções de amor antigas na citara. Senti que amaria Andréia desmedida­mente, e ela a mim, e senti medo de tudo o que me esperava e que eu não sabia porque misturara as cartas. Mas logo pensei que o velho só queria predizer coisas boas, e que tudo aquilo não passava de tolice.

 

Estava quase escuro, passava das nove quando voltamos para a cidade. Naturalmente tínhamos bebido muito mais do que um copo, mas Andréia dirigia calma e segura. Seus ami­gos moravam em Dobling, na Billrothstrasse 29, e no caminho Andréia ficou perguntando sobre minha doença do coração, e eu dizia que era coisa inofensiva, e ela dizia que eu tinha de jurar pelo nosso amor que realmente era insignificante. Foi péssimo porque eu não queria inquietá-la; portanto, jurei que era ninharia, e pensei em procurar imediatamente um espe­cialista em Hamburgo que pudesse continuar o tratamento prolongado com preparados de nitro e me orientar direito. Esperei que minha mentira não tivesse conseqüências funestas, mas há mentiras necessárias para poupar sofrimento a outras pessoas, e estas, esperava eu, não têm maus resultados.

Uma rua larga saía em curva fechada da Billrothstrasse para a direita, e Andréia dirigiu o carro por ela, parando ao lado de um posto de gasolina já fechado, debaixo de velhas árvores.

— Esta é a Gymnasiumstrasse — disse ela. — Sempre temos de estacionar aqui. Lá na frente, na Billrothstrasse, passa o bonde, e é proibido estacionar, você sabe.

— Ahá — disse eu.

— Não se ria de mim!

— Não estou rindo — disse eu. — Mas, Esquilinha, como pode pensar uma coisa dessas!

Ela suspirou, depois me beijou, e a doçura desse beijo afastou todos os meus pensamentos negros. Andréia segurou meu rosto nas mãos e disse:

— Também sempre vou dizer a verdade e nunca mentir para você nem magoar você, querido, mas tem de ser bom comigo e perdoar muita coisa, porque sou um pouco louca, não é verdade?

— Não mais do que eu — respondi.

— Por isso nos entendemos tão bem — disse ela. — E agora os dois estamos tristes porque precisamos dizer adeus. Mas você irá logo a Hamburgo, não é?

— Sim — disse eu, e de repente estava realmente triste. — Ainda tenho algumas coisas a resolver em Viena, mas em três, quatro dias estarei com você.

— Que bom, que bom, querido. — Abriu a bolsa e tirou um bloco, uma esferográfica e um par de óculos de aros de tartaruga, lentes grandes e redondas. Colocou-os no rosto e ficou muito excitante, e disse:

— Bem, sabe, eu odeio ser o looser.

O quê?

— O looser, o perdedor. Já fui uma vez, e não quero ser isso com você. Logo com você, não. Por isso, pense bem se quer mesmo ir para Hamburgo. Se disser não agora, não vai me doer tanto.

— Diabos! — disse eu. — Quero ir para Hamburgo.

— Ah, então fico contente — disse ela apertando minha mão com força. Pensei se deveria lhe dizer a verdade sobre mim, mas afastei o pensamento, porque não sabia como ela iria reagir se eu lhe dissesse que era casado.

Ela apoiou o bloco no volante, acendeu a iluminação in­terna do carro, e em letras graúdas escreveu seu nome, o endereço em Hamburgo, o endereço da Biblioteca Pública onde trabalhava, e ainda o endereço de seus amigos de Viena e todos os telefones.

— Você tem astigmatismo?

— Sim — disse ela. — Quando leio e escrevo e quero ver coisas de perto preciso dos óculos. Não gosta deles?

— Não gosto? Eu os adoro! Adoro tudo em você, Esquilinha.

— Tenho outros mais bonitos — disse ela. — Com aros de ouro. Quero dizer, parecem ouro. Este primeiro telefone aqui é o da minha casa. — Sublinhou-o. — Você vai tele­fonar?

— Todos os dias — disse eu. — À noite, se você estiver em casa.

— Estarei sempre em casa à noite esperando seu tele­fonema.

Pensei: como são os apaixonados! Por exemplo, decidem pensar um no outro numa certa hora. Nenhum deles o faz, mas cada um fica feliz por ver que o outro está tão apaixo­nado. Naturalmente conosco era tudo diferente.

— E onde é que você mora? — indagou ela.

— Em casa de amigos — disse eu. — Em Hietzing. Não sei o telefone de cor. Mas vou telefonar esta noite para a casa dos seus amigos e lhe direi o número. E amanhã à noite tele­fono para Hamburgo, e depois todas as noites, até estar com você.

— Ah, sim, por favor, obrigada — disse ela.

— Boa-noite, minha amada Esquilinha.

— Boa-noite, meu Gato. Sabe que você é muito amado? — Beijamo-nos demoradamente.

Depois desembarcamos. Ela trancou o carro e andamos de mãos dadas a Billrothstrasse, atravessando o trilho do bon­de. Ela parou diante da segunda casa, de número 29. Tirou uma chave da bolsa e abriu a porta de entrada, que era de ferro batido e vidro. A luz acendeu-se no vestíbulo, e a vi subir uma escada. Esperei que desaparecesse. No portão dessa casa ficava um depósito de carvão, a placa da firma estava toda preta. Tirei um pouco da fuligem e esfreguei atrás da orelha. Depois bati forte contra a porta da casa. Andréia voltou, e fiz sinais para que abrisse. Quando a vi diante de mim, perplexa, passei fuligem na ponta do seu nariz, nas duas faces e na testa. Apontei para a placa da carvoaria, e ela riu, depois ficou séria, puxou-me para o vestíbulo da casa e me beijou mais uma vez. Eu podia sentir nossos corpos ardendo debaixo do tecido das roupas, como se o sol sob o qual estivéramos deitados ainda os aquecesse.

— Boa-noite, Esquilinha — disse eu. — Tenha belos sonhos.

— Você também, Gato — disse ela. — Telefone quando chegar em casa!

Esperei que ela trancasse outra vez a porta e desapare­cesse. Depois atravessei a rua, segui algumas casas adiante, onde havia um ponto de táxi, entrei num deles e disse:

— Maxingstrasse 15. — O motorista virou-se, olhou para mim e deu uma risadinha idiota.

— Qual é a graça? — perguntei.

— Nada. Por quê?

— Porque você deu um sorriso tolo.

— Perdão, senhor — disse ele —, não sorri.

Ele dirigia depressa demais, mas eu não disse nada, e enquanto o táxi disparava pelo Gürtel, pensei novamente no velho cartomante. Não importa o que me acontecer, pensei, o fato de ter misturado todas as cartas não vai mudar nada.

A casa na Maxingstrasse era uma mansão belíssima, num grande jardim. Paguei o motorista e esperei que partisse. De­pois toquei a campainha do portão de entrada, e uma moça de avental branco e touquinha de rendas apareceu, dizendo:

— Boa-noite.

— Estão esperando por mim.

— Naturalmente, senhor. — Abriu o portão e fomos até a casa, andando numa trilha de lajes brancas colocadas no chão de grama. A moça disse que madame viria logo, e sumiu. O grande vestíbulo era decorado em vermelho, ouro e branco. Pensei que não tinha nem mesmo uma escova de dentes, muito menos pijama; nisso ouvi uma voz falando alto e alegremente, e logo uma moça ruiva descia a escada curva.

— Somos do regimento de infantaria — cantava a moça, que usava botas e um tschako colorido com plumas, e era só o que usava. Tinha uma das mãos espalmadas sobre o tschako, levantava muito as pernas, e cantava:

— Soldado número quatro... — Então me viu e emude­ceu. A moça era extraordinariamente bonita, uma ruiva legí­tima, o que pude ver nitidamente agora que estava parada bem perto de mim.

— Meu Deus — disse a beldade ruiva, tirou o tschako e cobriu-se com ele. — Ah, meu Deus, mas que desagradável! — Não devia ter mais de vinte anos. Nisso abriu-se uma porta e apareceu uma senhora idosa e delicada num vestido de noite preto e um colar de pérolas de muitas voltas.

— Simone — disse ela, em tom de censura. — O que é isso?

— Peço perdão, madame — gaguejou Simone —, pensei que fosse o General. Ele sempre quer ser saudado dessa ma­neira. — Ela me fitou. — Desculpe-me o senhor também.

— Vá para o seu quarto, Simone — disse a velha dama severamente.

— Pois não, madame. — Simone pôs novamente o tscha­ko na cabeça e fez continência. Depois subiu a escada balan­çando o traseiro.

E desapareceu atrás de uma porta junto de um pilar.

Só quando se ouviu a porta bater com força, a velha senhora perguntou:

— Sr. Peter Kent?

— Sim.

— Boa-noite, sr. Kent. Sou a sra. Klosters, Ana Klosters. Estávamos muito preocupados com o senhor. Mas onde esteve tanto tempo?

— É uma história complicada, sra. Klosters. Eu...

— Por favor, telefone imediatamente ao sr. Eisenbeiss — interrompeu ela. — Siga-me, por favor... — A sra. Klosters era muito baixinha e seu cabelo prateado tinha um leve tom azulado. Seguiu à minha frente para uma sala mobiliada em estilo Biedermeier. As paredes estavam cobertas com papel listrado com pequenas flores; um grande lustre de cristal pen­dia do teto. Numa frágil mesinha havia um telefone cor-de-rosa. Tirei do bolso o papel que Eisenbeiss me dera, e disquei seu número secreto; depois sentei-me numa precária cadeira.

Ele atendeu.

— Emanuel, aqui é...

— Puxa, até que enfim! — a voz dele demonstrava alí­vio. — Por que não esperou pela sra. Tiller?

— Emanuel — disse eu. — Eu me apaixonei.

Ele deu um gemido.

— Não gema, é uma mulher maravilhosa, ela lhe vai...

— Você certamente esqueceu que está havendo uma grande caçada aos terroristas — interrompeu ele. — Se um policial tivesse pedido a sua identidade...

— Lamento muito, Emanuel. Desculpe. Foi falta de res­ponsabilidade minha. Mas quando vir a moça...

— Ora, pare com isso! — disse ele, furioso.

— Emanuel, você sabe o que é o amor?

— Não — disse ele. — Nunca ouvi a palavra.

— Ela mora em Hamburgo. Vou para Hamburgo, Ema­nuel.

— Pode fazer o que quiser. Corra para a desgraça, corra! Mas enquanto não tiver documentos, não saia mais dessa casa, entendido? Ou paro de trabalhar. Afinal, também pre­ciso pensar em mim.

Prometi ser obediente e ele foi se acalmando aos poucos. Depois quis falar com sua amiga. Dei o telefone à sra. Klosters, que disse quase só “sim” e “está bem, Emanuel”. De­pois, desligou.

— Venha, vou lhe mostrar o seu apartamento. — Ela seguiu à minha frente, subindo a larga escada curva para o primeiro andar. Passamos por uma fileira de portas com pai­néis forrados de vermelho-escuro, de modo que só aparecia uma moldura branca trabalhada. Os trincos eram dourados. Ouvi risadas atrás de algumas portas. Vozes de homens e de mulheres.

Eu disse:

— Agora entendo por que meu motorista de táxi riu de um jeito tão tolo quando lhe dei o endereço.

A sra. Klosters, que sem dúvida sabia muito bem quem eu era — Eisenbeiss devia ter-lhe dito, mas ela não deixava transparecer nada, para ela eu era Peter Kent —, brincou com suas pérolas:

— Bordéis são proibidos em Viena. Uma medida real­mente idiota. Mas o sofrimento de uns é a alegria de outros.

— Sua alegria, madame.

— Não imagina como esta casa floresce! E há mais vinte mansões dessas. Nossos serviços são excelentes. O senhor está vindo pela primeira vez. Vou lhe mostrar álbuns de fotogra­fias, e o senhor se decidirá. Depois chamarei a moça pelo telefone. Em meia hora no máximo ela estará aqui. A casa acaba de ser reformada, como está vendo. Temos aparta­mentos com decoração antiga e moderna. Naturalmente, todas as refeições são no quarto.

— Claro.

— Criadagem seleta. Só mulheres, exceto o cozinheiro. Tive experiências ruins com empregados. Acham que podem roubar tudo de uma mulher sozinha. — Durante essa conversa ela me levara a um apartamento todo decorado em verde-mar, constando de quarto de dormir, sala e banheiro. Era de de­coração moderna. Nem no Ritz era mais elegante. Elogiei Ma­dame, e ela inclinou a cabeça, contente.

— Esta casa poderia lhe contar um romance, meu caro. Foi construída em 1910 pelo notário do Imperador. O pobre morreu durante a... ahnnn... inauguração, com sua amiga. O filho era oficial de carreira, por isso a mansão se tornou local de repouso íntimo de oficiais austro-húngaros com seus convi­dados dos países da velha monarquia do Danúbio. Imagine que nacionalidades se reuniam aqui! Desde Carcóvia até Trieste! Durante a guerra, a casa foi oficialmente o maior e mais apreciado palácio para cavalheiros, de capitão para cima. De­pois da guerra, três vencedores continuaram administrando a casa: primeiro um austríaco, depois um italiano, por fim um alemão. Santo Deus! Dizem que naqueles tempos a coisa aqui era estranhíssima! Vulgar. Eram arrivistas. Quando os tempos melhoraram, um francês comprou a casa e trouxe clientela internacional. Depois da grande queda da Bolsa em 1929, na Sexta-Feira Negra, ele perdeu toda a fortuna e matou-se com um tiro. Aliás, foi aqui neste quarto.

— Encantador.

— Isso traz sorte, senhor. Seguiu-se o Príncipe Starremberg. Ele precisava de um lugar de distração para si e seus amigos — foi antes de seu tempo com Nora Gregor. Depois os bonzos do front pátrio assumiram a casa, e, pode ter certeza, não era um ambiente muito católico. Depois vieram os bonzos nazistas, que também foram muito aplicados, segundo me contaram. Em 1945 vieram os russos e requisitaram a casa para seus oficiais. Depois vieram os ingleses, e depois um comerciante do mercado negro. Só assumi a mansão depois do acordo oficial. Antes era muito inseguro. Naquele tempo eu dirigia a melhor casa do tipo, o “Buraco de Ouro”, no Judenplatz. Mas tinha um mau pressentimento naquela época, e com efeito, mais tarde bordéis foram proibidos em Viena. Eu mal conseguira me salvar e passar para cá. Pode-se dizer que desde seu início a casa nunca ficou vazia. Pense nos bandos que se entretiveram aqui.

— Sim — disse eu. — Realmente impressionante.

— E o que se deduz disso, senhor? Que as pessoas tre­pam a qualquer tempo! Gostaria de jantar?

— Não, madame, obrigado.

— Então quem sabe a casa pode lhe oferecer companhia feminina?

Eu disse que essa hospitalidade tão amável me comovia, mas que não a pretendia usar, e perguntei se havia pijama e objetos de toalete.

— Mas claro. Sempre temos todas essas coisas de reserva — disse a dama. — Aliás, nem calcula que coisas temos aqui de reserva! Precisamos estar preparados para qualquer caso, e para os mais estranhos desejos. Por isso, cobramos caro.

— Naturalmente — disse eu. Estendeu-me a mão em despedida, e beijei obedientemente as pontas dos seus dedos. Depois chegou uma moça com roupa tipo coelhinho da Play-boy e me entregou um pijama e objetos de toalete. Saiu mas voltou trazendo um balde de gelo com uma garrafa de cham­panha e copos.

— Com os cumprimentos de Madame — disse ela. — Madame manda perguntar se não deseja mais alguma coisa.

— Não sei o quê...

— Eu, por exemplo. — Encarou-me interrogativamente, as sobrancelhas arqueadas.

— Obrigado. Talvez noutra ocasião. Estou um pouco cansado.

— Que pena. — Desta vez ela fez uma mesura, e en­quanto abria a garrafa, expôs generosamente tudo o que tinha na frente e atrás.

— Pena mesmo — disse eu.

Ela saiu cantarolando.

Bebi um copo de champanha, enchi o copo outra vez, e liguei a televisão da saleta. Imediatamente, o rosto de minha mulher Yvonne dominou a tela.

 

— Meu marido não está morto — dizia Yvonne em fran­cês, e sobre sua voz ouvia-se outra, uma voz feminina falando a mesma coisa simultaneamente em alemão. — Não tenho a menor prova. Mas sinto com absoluta segurança. Meu marido não está morto. Meu marido vive!

Lentamente larguei o copo de champanha e me inclinei para a frente. O cabelo negro-azulado de Yvonne estava impecavelmente penteado. Seus olhos escuros mal se viam por causa das lágrimas (ela conseguia chorar a qualquer hora con­forme seu desejo), os lábios cheios tremiam. Mais uma vez, uma grande hora para ela: sentada diante de uma câmera! No curso dos anos já fizera isso algumas vezes, na série da tele­visão francesa “Uma mulher ao lado dele”. Além disso, dava entrevistas a todos os repórteres que chegassem perto dela. Nunca lhes dava folga. Tinham de entrevistá-la. Eu ficava de mãos úmidas sempre que sabia disso, porque naturalmente os jornalistas a faziam de boba. Na sua modesta capacidade inte­lectual, ela nunca percebia isso, achava excelentes as reporta­gens que eram publicadas, por mais cínicas e alusivas que fossem. Para Yvonne, eram maravilhosas. Ver seu nome im­presso era para ela sempre sinal de distinção.

Além da sua coleção de recortes de jornal, com os anos ela organizara uma pequena videoteca com as entrevistas gra­vadas. Ficava horas a fio, sozinha e sonhadora diante da te­levisão, olhando para si mesma. Sem dúvida aquela entrevista também estava sendo gravada.

Agora uma voz feminina perguntou em alemão (Yvonne tinha um botão branco no ouvido e assim podia escutar a tradução simultânea, mas não falava uma palavra de alemão):

— Perdão, mas como pode supor isso, madame Duhamel? Conhecemos os nomes de todos os feridos. Seu marido não está entre eles.

— Porque nem ao menos está ferido — disse Yvonne. Não havia no mundo alguém com fala mais afetada do que minha mulher. E ela acentuava isso com gestos de suas finas e alvas mãos, que esvoaçavam como pássaros. Havia fundas sombras debaixo de seus olhos. Certamente fora maquilada daquele jeito: “a desesperada”. Eu podia imaginar Yvonne instruindo a maquiladora, pois aquela idiota nada entendia de maquilagem; Yvonne precisava lhe ensinar os conhecimentos técnicos.

— Eu sei — dizia ela agora, e mais uma vez a voz da tradutora recobria a sua —, parece absurdo o que digo. Não tenho provas. Só o meu instinto. Quando se vive tanto tempo com uma pessoa a quem se ama tanto como amo meu marido, desenvolve-se um sexto sentido para esse tipo de coisas; a gente simplesmente sabe. — Secou os olhos com um lenço de seda.

Yvonne trazia um costume preto muito elegante, de cetim brilhante, e cruzava as pernas para que se pudesse admirar sua coxa, através da fenda na saia. E, como sempre, usava jóias demais. Com os dedos de uma mão apoiava o queixo. Os _._ anéis de brilhantes faiscavam. Yvonne copiara a pose de uma estrela de cinema, e desde então era a sua postura preferida diante das câmeras. E a ponta de sua língua deslizava sobre os dentes, como também fazia a atriz.

A câmera recuou.

Yvonne estava sentada num divã; ao lado dela, também vestindo negro, Paul Perrier, o belo rapaz com pele de pêssego e cílios longos e sedosos sobre seus olhos-de-quarto-de-dormir. Então Yvonne tivera a incrível falta de tato de o trazer a Viena, pois a entrevista estava sendo feita em Viena, agora vi isso. Era a minha suíte do Ritz. A suíte que eu sempre ocupa­va. Yvonne estava em Viena! Esvaziei meu copo depressa.

— Mas Madame, onde está ele, se ainda vive e não está ferido?

— Meu Deus, não sei. — Agora certamente ficaria his­térica, a voz já estava aguda. — Talvez tenha motivos para se esconder. Não sei qual, mas talvez tenha algum. Sempre foi uma pessoa muito estranha.

Paul, o belo, murmurou alguma coisa que parecia: não fique nervosa.

Em vez disso ela falou mais alto ainda:

— Fique quieto! Tenho de ficar nervosa. — O diálogo não foi traduzido, mas traduziram o que seguiu: — Monsieur Perrier é nosso melhor amigo. Faz parte da família.

— O que pensa dessa certeza de Madame, monsieur Perrier?

O rapaz de ouro remexeu-se no assento:

— O que posso dizer... Madame e monsieur estavam liga­dos por um amor muito grande... um amor único... — Yvonne levou novamente o lenço aos olhos e abafou um soluço. Senti-me todo solene diante de tanto teatralismo. — Madame não consegue se conformar com a idéia de que monsieur esteja morto... Por isso, talvez — desculpe, Yvonne — por isso, talvez, ela diga que monsieur está vivo... porque deseja tanto que esteja... Pobre, pobre Yvonne... — E beijou-lhe a mão. Graças àquele menininho suave o diálogo voltava a ser inofen­sivo, e não se levaria a sério o rompante de Yvonne.

— O senhor não crê nisso, monsieur Perrier?

— Claro que não. Perdão, Yvonne! Mas como é que eu poderia, como pode acreditar que o pobre Charles ainda esteja vivo? Ele está morto, e temos de nos conformar com isso, querida Yvonne.

— Nunca me conformarei, nunca! — Grande cena! Ela tinha nova oportunidade para isso. — Sofri uma crise ner­vosa... Dois médicos tomaram conta de mim, o gerente do hotel insistiu nisso. Só me mantenho em pé com comprimidos e injeções... Jamais, jamais acreditarei que meu amado Char­les está morto... Ele está vivo... vivo! — Agora ela realmente desmoronou diante das câmeras, tapou o rosto com as mãos, virou a cabeça para o lado e o corpo inteiro tremia. A imagem se apagou.

Apareceu um locutor diante de um fundo neutro.

— Essa foi madame Duhamel, esposa do conhecido de­fensor que também viajava no aparelho acidentado. Ela estava em companhia de um amigo de confiança, Paul Perrier. — O meu “amigo de confiança”. Santo Deus! — Senhoras e senho­res, falamos com outro amigo do advogado. Também é advo­gado, e chama-se Jean Balmoral.

Nova imagem.

Era Jean, o único amigo que me restava. Yvonne afu­gentara todos os demais. Só ele enfrentara as suas insolências. Lá estava ele diante de uma janela do café do Ritz, e por trás da vidraça viam-se passantes. Um jovem repórter tinha um microfone na mão.

— Monsieur Balmoral, o grande advogado Charles Duhamel era seu amigo...

— Desde nosso tempo de estudantes. — Balmoral tinha um aspecto horrível, mas não era uma dor pintada como a de Yvonne. Estava pálido, boca trêmula, olhos em fundas covas. — Por isso vim imediatamente de avião a Viena, assim que ouvi falar do atentado. Esperava vê-lo ainda uma vez, certa­mente morto, mas ao menos isso. Infelizmente muitas vítimas não poderão ser identificadas. Eu mesmo tentei... impossí­vel... — Passou a mão na testa. — Pobre Charles. Isso é muito ruim para mim. Perdi meu melhor amigo...

Melhor amigo, pensei. Bem, acho que sim. Eu era o seu melhor amigo. Não escrevera apenas a tese de doutorado de Jean, mas em outras ocasiões ele seguidamente me pro­curara pedindo que o ajudasse quando estava em alguma en­rascada. E com freqüência estava metido em alguma. Não era um herói brilhante, mas quem o é? É preciso todo tipo de gente para povoar o mundo. O bom Jean.

— Ele era o homem mais generoso, leal e decente que conheci — dizia ele na tela.

— Madame Duhamel, em sua dor, manifestou a desespe­rada suspeita de que seu marido não está morto, que ainda vive, incólume e escondido...

— Isso é... — Jean controlou-se no último momento, via-se que tinha uma palavra dura na boca. — Naturalmente, sinto muito, mas é tolice. Pode-se explicar com a... hum... grande sensibilidade de madame...

— Monsieur Balmoral, obrigado. — A imagem sumiu. Mais uma vez, via-se o locutor.

— Já chegaram a Viena muitos parentes dos mortos e feridos graves, de outros países, para ajudar nas tentativas de identificação e tomar parte na cerimônia fúnebre de amanhã. Além disso, muitos vienenses choram a perda de seus paren­tes. Falamos com a sra. Ami Pichler...

Desliguei, fui ao telefone e disquei nove. Madame dissera que nove era a central. Uma voz de moça atendeu e pedi que madame viesse me ver. Ela apareceu imediatamente. A man­são agora estava bastante agitada.

— Os negócios estão florescendo — disse eu.

— Ainda bem, sr. Kent. Nesses tempos difíceis de re­cessão mundial, é sempre uma alegria ter uma das profissões fundamentais.

— Profissões fundamentais?

— Sim, claro, como padeiro, cabeleireiro, armador fu­nerário e nós. Come-se pão enquanto há pão, também se pre­cisa ir ao cabeleireiro, amor se faz sempre, e todos um dia vão precisar de um caixão. Apenas pergunto quanto tempo conse­guiremos manter o nível de nossos serviços. No pior dos casos, teremos que trabalhar num sistema popular e barato, como fazem ás editoras com seus livros. As mocinhas então não se entregarão ao ofício com o mesmo fervor. O que posso fazer pelo senhor?

— A senhora viu a televisão agora? As entrevistas com os parentes...

— ...das vítimas do acidente do avião? Sim, comoventes.

— Sra. Klosters, a senhora poderia ir de carro ao Ritz amanhã... Naturalmente, irá de táxi.

— Por que táxi? Tenho o meu Porsche.

— Então, por favor, pegue o seu Porsche e vá ao Ritz. A cerimônia é à tarde. Veja se consegue encontrar o cavalheiro que se apresentou como melhor amigo do sr. Duhamel, aquele monsieur Balmoral, o senhor que estava no Café.

— Ah, sim, naturalmente. — O rosto dela estava imper­turbável.

— Peça-lhe que venha para cá sem falta. Não com a senhora, porque poderiam ser seguidos. Dê-lhe o endereço e diga que o esperam sem falta. Uma coisa dessas tem de ser feita por uma verdadeira dama. Quer me ajudar?

— Com prazer, sr. Kent. Quando quer que ele venha?

— Assim que puder. Se possível, ainda antes da cerimô­nia.

— Estarei às nove e meia no hotel.

— Obrigado.

— Não tem de quê. Boa-noite.

— Boa-noite.

Retirou-se. Tirei do bolso o bilhete com os telefones de Andréia e disquei o número de seus amigos.

— Família Angerer!

— Boa-noite, Esquilinha. Ainda está sozinha?

— Você sabe que os dois trabalham até tarde.

Pedi que anotasse o número de telefone que havia sobre o disco do meu aparelho.

— Gatão, fiquei tão nervosa!

— Por quê?

— Assisti à televisão. Agora estão fazendo entrevistas com os familiares das pessoas que morreram no acidente de avião, sabe?

— E daí?

— Bem, eles falaram com a viúva de um advogado de Paris... parece que se chama Duhamel... e a pobre chorou tanto. Está realmente arrasada... porque amava tanto o ma­rido... Ela disse que ele está vivo! Claro que é impossível, mas ela disse isso, na sua dor... E de repente imaginei que você era esse Duhamel e tinha caído com o avião e...

— Esquilinha!

— Sei que é maluquice. Mas o que posso fazer, meu Gato?

— Mas agora está tudo bem de novo, não é?

— Si... i... im.

— Minha esquilinha corajosa.

— Gatão, eu te amo tanto, tanto.

— Estou abraçando você com toda força.

— E você vai ao médico em Hamburgo, por causa do seu coração?

— Logo.

— Não é nada grave?

— Não é nada grave.

— Com certeza?

— Com certeza.

— Não — disse ela —, isso não me basta. Não agora, que vi essa mulher. Você nunca me diria se fosse grave, eu sei.

— Sim!

— Não, Gato. Agora já conheço essas coisas! Você teria medo de me causar medo. Mas tenho de saber. Se eu souber, não será tão terrível. Você entende que preciso ver isso, não é?

— Sim, Esquilinha. Mas realmente não é nada grave.

— Diga: sou Peter Kent. Venho de Buenos Aires. Meu médico de lá me disse que isso com meu coração não é peri­goso.

— Sou Peter Kent. Venho de Buenos Aires. Meu médico de lá me disse que isso com meu coração não é perigoso.

— E você jura por tudo isso.

— Juro por tudo isso.

— Jura pela minha vida.

Aquilo era muito grave. Eu tivera a sensação, o tempo todo, de que alguma coisa parecida ia me acontecer. E agora acontecera. O que eu poderia fazer? Contar a Andréia toda a verdade sobre mim? Admitir que mentira, só mentira até ago­ra... em tudo? Impossível.

Eu disse:

— Pela sua vida.

— Diga direitinho, diga: juro pela sua vida!

— Juro pela sua vida.

De repente senti-me nauseado até a morte. Eu jurara. Pela vida dela! Diabos, o que poderia fazer? Mas, e se alguma coisa horrível lhe acontecesse? Se acontecesse alguma coisa com ela? Pela vida dela! Talvez devesse ter lhe dito que tenho angina pectoris. Não seria agradável, mas eu poderia ter dito. Ela teria de se conformar com isso. E teria se conformado. Mas e o resto? Como eu poderia dizer agora que não era Peter Kent, mas um homem bem diferente, aquele Charles Duhamel cuja viúva ela acabara de ver? Como poderia lhe ter dito que nunca estivera em Buenos Aires? Como poderia lhe ter dito que era um homem que pretendia começar nova vida com nome e papéis falsos? Não podia. Era demais. Pensei: mas você jurou falso. Alguma coisa vai acontecer. Pois você jurou pela vida dela. E ela vai morrer...

— Agora estou mais calma, Gatão, finalmente. Agora sei que não há nada de grave com seu coração. Perdoe por tê-lo feito jurar. Santo Deus, como estou contente!

Consegui despedir-me dela normalmente, e quando ela desligou tive a impressão de que estava calma e consolada.

Então esvaziei a garrafa de champanha e encomendei ou­tra, e continuei bebendo. Mas não adiantou, fiquei cada vez mais desesperado. Por fim estava bêbado, e tirei a roupa e tomei um banho quente, e a toda hora pensava que Andréia ia morrer. Depois fiquei deitado na cama e pensei a mesma coisa. Não agüentei mais, levantei-me e fui ao telefone para falar com ela e dizer-lhe a verdade. Não só sobre meu coração: toda a verdade, que eu realmente era Charles Duhamel, como ela imaginara na sua confusão, que minha esposa estava dor­mindo no Ritz, que eu escapara milagrosamente do atentado, que estavam falsificando novos documentos para mim, que eu estava decidido a deixar Charles Duhamel morto. Tudo, tudo, para desfazer aquele juramento.

Fiquei sentado diante do telefone e não tive coragem de tirar o fone do gancho. Por fim peguei-o e disquei, mas quan­do Andréia atendeu, perdi a coragem e desliguei. Era impossí­vel, impossível. Ela não devia saber que eu era casado. Não podia saber que eu queria desaparecer. Eu a perderia se ela soubesse de tudo aquilo. Certamente a perderia.

Portanto, voltei a beber e pensei que já na volta para a Billrothstrasse Andréia me pedira que jurasse que a enfermi­dade de meu coração era inofensiva, e que eu jurara pelo nosso amor. E por isso também nosso amor teria um fim terrível, pensei, agora já muito embriagado, e quis mais uma vez tele­fonar para Andréia e lhe confessar tudo para afastar a des­graça... mesmo que então tudo acabasse.

Mas o fone caiu de minha mão, e não consegui mais discar o número; adormeci na poltrona. O relógio de pulso indicava três e vinte quando acordei com frio. Meu corpo doía. Primeiro não sabia onde estava. Por fim recordei, e de repente pensei quantas vezes na minha vida profissional já jurara falso. Tinham sido perjúrios, e sempre acabara tudo bem. Eu até sobrevivera a uma explosão de avião que tinha matado tanta gente. Essa explosão teria sido uma oportunidade mara­vilhosa para o destino finalmente me cobrar todos os perjúrios. Mas eu não morrera por vingança. E se jurava pela vida de outras pessoas, isso não tinha efeito algum, não, desde que fosse por amor e por necessidade. E fora necessário jurar falso pela vida de Andréia por causa do nosso amor. Voltei para a cama e adormeci imediatamente.

 

Pela primeira vez em mais de um ano acordei cedo e repousado, e me levantei imediatamente. Reconheci que era o sinal mais seguro de que me transformara em outra pessoa. Quanto ao juramento falso pela vida de Andréia, lembrei-me nitidamente de minhas últimas reflexões e fiquei bem calmo. Nada aconteceria, nada.

Quando estava sentado junto à janela tomando café, vi a sra. Klosters sair em disparada num Porsche cinza-prateado. Passava um pouquinho das nove. O telefone tocou. O sr. Kratchowil, o alfaiate, perguntou se eu podia experimentar às dez, e respondi que sim. Ele chegou pontualmente e anunciou outra prova para o mesmo dia, e lhe dei as etiquetas argen­tinas de Eisenbeiss para costurar nas roupas. Ele carregava os ternos em uma grande mala preta de diplomata. Mal aca­bou de sair, entrou outro cavalheiro com duas grandes malas pretas de diplomata. Era o sr. Franz, trazendo camisas, roupas de baixo, gravatas, meias e sapatos. Escolhi roupas de baixo e camisas; as meias e sapatos não serviram, mas o sr. Franz prometeu que não tinha importância, ele voltaria.

Eu acabara de vestir roupa de baixo e camisa novas quan­do bateram à porta. A sra. Klosters apareceu dizendo:

— Monsieur Balmoral chegou.

— Faça-o entrar!

No momento seguinte meu velho amigo apareceu diante de mim, branco de susto. Balmoral era menor do que eu, esbelto, rosto regular, belos olhos negros e cabelo preto curto.

— Charles! — Ele não conseguia se mover.

— Meu bom velho! Controle-se! Sou eu sim, estou vivo. Como vê, minha querida esposa tinha razão.

— Aquela peste! Mas como...

Contei como estava vivo e o que pretendia fazer.

Ele se acalmou.

— Posso entender — disse. — Muito bem até. Deus, como estou contente por você se livrar daquela bruxa. Não imagina como se porta mal no Ritz.

— Ela se porta mal em toda parte.

— Desta vez, mais ainda. Acessos de choro no saguão. Atormenta as camareiras, os porteiros e garçons.

— Sim — disse eu —, como sempre, não?

— E não imagina como se portou no Instituto Médico-Legal!

— Como?

— Ora, gritaria, acessos, ataques de nervos.

— Ah, é?

— Aí até que simpatizei com ela. Essa tentativa de iden­tificação com ajuda dos parentes... é preciso ter estômago!

— Por quê?

— A polícia mandou levar para o Instituto tudo o que sobrou dos mortos. Tudo está ali, no gelo. Acredite, os porões estão cheios! Mais de oitenta pessoas, ou melhor, pedaços de mais de oitenta pessoas. Tudo numa pressa louca. O calor. Tudo tem de ser colocado depressa nos caixões. Os parentes são interrogados sobre sinais, por exemplo, cicatrizes. Ou o nome dos dentistas dos mortos. Naturalmente isso só pode ser com as vítimas que eram de Viena. Então vêm os dentistas e olham uma porção de crânios, para ver se conhecem as denta­duras. Ou os datiloscopistas procuram nas casas sinais digitais e os comparam com os dos mortos, caso as pontas dos dedos não estejam queimadas. Quando estive lá para procurar você, mostraram até torsos e membros de mortos, para ver se con­seguiam identificar os estrangeiros. Acho que estão exage­rando.

— E Yvonne?

— Essa só gritava. Não desceu ao porão. O gigolô dela teve de ir. E voltou com a cara verde. Mostraram-lhe uma porção de coisas. Eu lhe digo, é bárbaro. Também encon­traram alguns passaportes em casacos meio queimados, mas não há muito o que fazer. Falei com um médico. Ele foi muito pessimista. Se fossem seis ou nove mortos... mas mais de oi­tenta! O médico me disse que nem ao menos teriam sabido o número exato de mortos se não tivessem a lista de passageiros. Mais de oitenta mortos, deve ser fácil não encontrarem um ou dois.

— É bom ouvir isso — disse eu.

— E porque Perrier não conseguiu identificar ninguém, Yvonne deduziu, na sua burrice, que você está vivo.

— Não. Pense que estamos tratando com uma verdadeira histérica, uma legitima! Pense em tudo que ela agora vai her­dar: o palácio, o escritório, as contas bancárias, tudo. Agora também poderá viver com Perrier, se quiser.

— Mas as lágrimas, os acessos...

— Sim — disse eu —, ainda há um aspecto. Aquilo na televisão não foi teatro! Pouco antes de minha partida para Viena ela fez uma cena terrível. Por fim me amaldiçoou e desejou minha morte. “Morra!” foi o que gritou. “Morra, morra!” Você sabe como é com pessoas que se deixam levar a esses extremos. Se a morte acontece mesmo, quase enlouque­cem de medo e remorso. Yvonne também. Ainda por cima, uma autêntica histérica. E burra. Está com um medo enorme. Se não tivesse desejado a minha morte! Tudo, menos isso. Suas maldições não podem ter se concretizado, não posso ter morrido. Portanto, tenho de estar vivo. Entende isso? Então ela tem medo de que eu possa me vingar pela sua perversi­dade... e isso ainda vai acontecer, preste atenção, vai! É assim que funciona: a burrice, a superstição, a consciência suja, o medo. E mais uma coisa: num aspecto naturalmente eu lhe farei falta. O público. Você sabe como ela sem a minha com­panhia sempre se sente perdida em sociedade. Com todo o seu dinheiro, insegura como é, ficará agressiva, se portará mal. Medo e remorso certamente a estão atormentando muito. Ela realmente se portou muito mal no fim. Suas lágrimas diante da câmera não foram tão falsas. O medo! O medo!

— Pois que tenha medo — disse Balmoral. — Pois que trema de medo, aquela bruxa.

Um avião passou sobre a mansão, e pensei que era o avião no qual Andréia voltava para casa.

— Ouça, Jean — disse eu. — Como lhe disse, agora vou a Hamburgo, assim que meus documentos estiverem prontos.

— Sim, e daí? Santo Deus, Charles, você está vivo, como estou contente!

— E eu então, meu velho! Mas preciso de dinheiro. Todo o que houver. Todo o que economizei nesses anos. O que está na conta bancária de Zurique.

Nessa conta de um banco suíço havia mais de dois mi­lhões e meio de francos suíços. Eu não podia mais retirá-los, estava morto. Mas Jean Balmoral podia. Também tinha uma conta daquelas, e para caso de necessidade tínhamos dado um ao outro plenos poderes sobre elas. Apesar disso, havia um problema: fazer meu dinheiro entrar legalmente na República Federal da Alemanha.

— É muito simples — disse ele. — Você vem de Buenos Aires, não é?

— Sim.

— Muito bem. Trabalho há vinte anos por correspondên­cia com um advogado em Buenos Aires, chama-se Miguel Martinez. Sujeito muito decente. Então, Charles... ah, você se chama Peter agora, Peter Kent, preste atenção, Peter: assim que abrir uma conta em Hamburgo, você me telefona para Paris e me diz qual o banco e o número da conta. Então vou a Zurique e dou ordem de passarem para a conta argentina do sr. Miguel Martinez tudo o que houver na sua conta. Isso se faz com telex e contas bancárias fechadas. Assim que a ordem chegar a Martinez — eu lhe telefonarei antes —, ele passará tudo para a sua nova conta em Hamburgo. Tudo perfeito para os impostos. Você vem da Argentina e mandou que um banco enviasse a sua fortuna para outro banco. OK?

— OK — disse eu, satisfeito. — O que quer beber?

— Um uísque duplo pelas suas exéquias esta tarde — disse meu amigo Jean Balmoral.

 

Foi novamente um dia muito quente, mas na grande mansão estava fresco, porque era rodeada de velhas árvores que davam sombra. Fui passear no jardim, e tudo ao meu redor me pareceu absolutamente irreal. Tive de me sentar num banco. Simplesmente não podia entender que um homem que estivera tão perto do fim tivesse recebido novamente uma chance daquela. O que acontecera ontem me parecia um so­nho. Desde ontem havia Andréia, que me amava.

O sr. Franz veio de tarde com novos sapatos e as meias. Estava pálido, o rosto molhado de suor. Desta vez tudo serviu, e escolhi três pares de sapatos e dez pares de meias. O sr. Franz me disse que recebera de Eisenbeiss a ordem de levar tudo para a casa dele e comprar duas malas grandes.

Mais tarde chegou o sr. Kratchowil, para novas provas dos três ternos, que estavam bem adiantados. Chegou exata­mente às quatro, quando a televisão transmitia a cerimônia fúnebre de um grande hangar do aeroporto de Schwechat.

— Precisa esperar, sr. Kratchowil, quero ver esse pro­grama.

— Impossível — disse ele. — Não posso esperar. Não fica pronto. Agora cada meia hora é importante. Por mim pode ficar olhando a televisão, mas precisa ficar em pé para eu poder trabalhar.

— Tudo bem — respondi, e plantei-me diante do apare­lho.

Um locutor anunciou que haviam conseguido identificar mais onze mortos; agora havia quarenta e seis caixões em várias filas na tela. Era sinistro. Flores e coroas, sem fitas, eram colocadas diante dos caixões. Pelo menos cem pessoas em trajes de luto se comprimiam no grande hangar. A tele­visão trabalhava com várias câmeras; muitas vezes focaliza­vam-se os rostos pálidos e exaustos dos parentes. Muitos cho­ravam.

Além do Chanceler Kreisky, viera o prefeito de Viena, como representante da cidade responsável pela cerimônia. Iam de um enlutado a outro, apertavam todas as mãos, diziam a cada um algumas palavras. O prefeito e o chanceler tinham gotas de suor na testa.

O locutor disse que os quarenta e seis caixões com os restos dos mortos que não tinham podido ser identificados seriam enterrados em sepultura comum no Cemitério Central de Viena.

Embora tivesse muita pressa, também o sr. Kratchowil toda hora espiava o televisor enquanto prendia novamente, com precisão, as calças e paletós que tive de vestir, para que ficassem perfeitos. Trabalhava com alfinetes na boca. Eu es­tava de camisas e cuecas.

— Que desgraça — disse o sr. Kratchowil. — Imagine que calor está fazendo no hangar. Por isso é que estão apres­sando tanto a cerimônia e o enterro. Por que está tão quente, têm de fazer depressa, senão... Fique bem firme, milostpane... Essa calça ainda está um pouquinho comprida, mas veja, prosim, como o tecido cai bem. Maravilha, não é?

Um padre católico, com roupagem pomposa, dera início à bênção.

— É o Cardeal König, Arcebispo de Viena, prosim — disse o sr. Kratchowil. — Um senhor importante! Os evangé­licos também têm um senhor muito importante; os judeus chamaram um judeu muito importante, ouvi dizer no rádio quando fui para Hietzing...

— Senhor, dai-lhes o descanso eterno, e a luz eterna os ilumine. Amém. O justo continua vivo na memória eterna, não precisa mais temer mensageiros de desgraças — dizia o Car­deal, e o sr. Kratchowil disse ao mesmo tempo, mas não muito claramente porque tinha muitos alfinetes na boca:

— O ombro esquerdo é um pouco mais alto, temos de levantar e forrar um pouco o outro, prosim...

— Nós Vos pedimos, Senhor, tende piedade da alma de Vosso servo — rezava o Cardeal.

— Não, não vamos fazer a dobra mais larga, isso agora é moda nova, o colarinho bem estreito — disse o sr. Kratchowil.

— Nós Vos pedimos, Deus Todo-Poderoso: concedei per­dão e paz eterna à alma de vossos servos que partiram deste mundo libertos de todo o pecado, por Nosso Senhor, amém.

— Fico horrorizado com tudo isso — disse o sr. Kra­tchowil. — Aí na gola tem ainda uma preguinha, vamos ajei­tar logo...

Depois do Cardeal falou um pastor protestante, depois um rabino.

— Tantos valores para a mesma coisa — disse o sr. Kratchowil. — Os lados vamos deixar bem frouxos, assim o milostpan pode engordar um pouquinho. Mas tenho de me elogiar, as costas estão tão bem, é uma alegria de ver. Cai tão liso, olhe no espelho, senhor, prosim, nem uma ruguinha.

Estávamos parados na sala. O sr. Kratchowil abrira um armário no quarto, em cujo interior havia um espelho alto. Olhei rapidamente e elogiei o sr. Kratchowil.

Lá estava Yvonne! Bem grande na tela. Três homens a rodeavam — decerto os dois médicos e Paul Perrier. Usava um vestido negro, chique, modelado no corpo, sapatos negros, meias negras, um chapeuzinho coquete, e imensos óculos pre­tos. Seu rosto tremia.

— Não — disse o sr. Kratchowil. — Não?

Naturalmente Eisenbeiss lhe dissera quem eu era na ver­dade. Kratchowil era dessas pessoas nas quais ele podia con­fiar cem por cento. Yvonne deu um grito repentino, que su­perou até o cântico lamentoso do rabino, que emudeceu de susto. O diretor da transmissão reagiu como um raio no seu monitor, filmando a imagem de Yvonne que gritava. Ela viu uma câmera trabalhando à sua frente com a luz vermelha. Sabia que estava sendo filmada,

— Não, não, não! — gritou, em francês. — Quero sair daqui! O que estou fazendo aqui? Meu marido não está nesses caixões! Meu marido está vivo, vivo, vivo...

Na verdade, uma grande histérica! E ainda por cima a consciência suja, e o medo que a dominava porque era tão burra. E, naturalmente, havia a câmera...

O locutor precisou de alguns segundos para se controlar, depois traduziu depressa as palavras de Yvonne. Enquanto isso, ela desmaiara. Os três homens a afastaram cuidadosa­mente dos caixões e a levaram embora do hangar.

— Acabo de saber — disse o locutor — que esta senhora é a viúva do advogado parisiense Charles Duhamel. Desde ontem ela está sob cuidados médicos, porque a morte do ma­rido lhe provocou grande abalo nervoso.

A câmera seguiu os três homens que arrastavam Yvonne para a saída e sumiram com ela.

— Ai, que dor — disse o sr. Kratchowil enquanto o ra­bino recomeçava seu cântico lamentoso. — Pobre senhora. Foi demais para ela, prosim. Desmaiou. Agora vão levá-la para a enfermaria, vão lhe dar amoníaco para cheirar e um copo com uma bebida forte. Espero que não seja um colapso. Com essas coisas não se brinca, milostpane. Quando eu era menino em Praga, no bairro morava uma senhora casada com um jorna­lista, e me disseram que ela o traía há muitos anos, e ele não notava nada, o burro, e um belo dia morreu. E aí, na missa, que demorou muito mais do que essa bênção, uma missa de verdade, na missa pelo marido que ela tinha traído, a pobre senhora ficou tão nervosa que, prosim, se atirou em cima do caixão, prosim, e logo depois teve um colapso, e ficou ali como morta. Depois também lhe deram uma bebidinha, mas infeliz­mente, que tristeza, prosim, três dias depois o colapso foi fatal, porque era inverno, e deitada ali no caixão a senhora pegou pneumonia. Espero que isso não aconteça com essa dama francesa... Espere, senhor, agora preciso só prender as mangas e estamos prontos.

 

— Esquilinha querida!

— Meu Gatão adorado! Obrigada pelas rosas. É a pri­meira vez que recebo flores pela Fleurop.

— Não!

— Sim! Quero dizer, já me trouxeram flores muitas ve­zes, mas nunca pela Fleurop. Você é maluco. Vinte e uma rosas vermelhas... uma fortuna! Você não deve esbanjar assim!

— Sim, titia. Não faço mais isso. O vôo foi bom?

— Muito interessante. Ao meu lado viajou um jornalista polonês. Naturalmente falamos sobre o Solidariedade, e eu lhe disse que todos admiramos os poloneses e seu líder operário Lech Walesa, e a grande coragem com que fundaram o sindi­cato livre contra a vontade do partido.

— Sim — disse eu. — Muita coragem. Eu tenho tanta saudade de você, Esquilinha.

— E eu só penso em você, Gatão, só em você! E o jor­nalista se alegrou e eu também lhe disse que temos medo de que na Polônia aconteça o mesmo que em Budapeste e em Praga, porque os russos simplesmente terão de intervir se o Solidariedade conseguir mais liberdades, pois isso se espalha­ria para os outros estados no bloco oriental e aí não haveria mais bloco oriental.

— E o que foi que ele respondeu?

— Que os russos simplesmente não podem se dar o luxo de intervir porque não querem desencadear uma guerra atô­mica, e Reagan os ameaça com isso o tempo todo. Eu te amo, Gato, te amo, isso é o mais importante, que nos amamos. Mas como nos amaremos se realmente caírem bombas? Deus, meu bom Deus, nos dê tempo para o nosso amor, por favor! Reagan é mais perigoso do que Nixon e Carter juntos, disse esse jornalista. E com uma guerra atômica o mundo vai rebentar. Não necessariamente, disse eu, Reagan julga possível uma guerra atômica que rebente só com a Alemanha e a Polônia, e talvez toda a Europa, mas não o mundo todo. Ah, Gatão, isso é horrível. Eu só quis falar de amor, só de amor, e só falo de bombas atômicas e guerra. Porque isso me comove muito. Entende isso, não é?

— Claro — disse eu.

— Ah, você é tão formidável, Gato, simplesmente fantás­tico! Obrigada. Não posso esperar até você estar aqui comigo. E depois esse jornalista repetiu o que o ministro do Exterior, Gromyko, acaba de dizer: uma intervenção de forças de com­bate soviéticas na Polônia só acontecerá, aspas, em circunstân­cias extremamente favoráveis, aspas.

Agora eu esquecia que era uma conversa de apaixonados, e exclamei:

— Gromyko nunca disse isso!

— Pois é isso! — disse Andréia. — É isso, Gato! Está vendo, esse jornalista queria me lograr... não, não lograr, ele queria me explicar uma coisa. Não foi Gromyko quem disse isso, mas o ministro do Exterior americano Haig, referindo-se à América Latina. Lá há as piores ditaduras militares, mas as tropas americanas não intervêm para derrubá-las. E “circuns­tâncias extremamente favoráveis” não haverá, disse o jorna­lista. Você também acredita nisso?

— Se me deixar dizer isso, acho que nunca uma esqui-linha foi tão amada por um gato como certa esquilinha por certo gato. E também acredito nisso de circunstâncias, disse eu, mentindo.

— Era um jornalista muito moço e muito patriota, sabe. Por exemplo, estava convencido de que poloneses jamais atira­riam em poloneses. Não estou tão convencida disso, mas natu­ralmente não disse nada. Ah, querido, querido, o que você disse antes é tão doce! Precisa me perdoar realmente, sabe, sou um pouquinho maluca.

— O mundo em que vivemos é maluco. E todos os seus grandes líderes. Mas que diálogo, Esquilinha, que diálogo!

— Ah, querido, temos de viver nesse mundo! Não pode­mos simplesmente fechar olhos e ouvidos.

— Não, não podemos. Acha que apaixonados poderiam simplesmente amar, sem medo de guerra e morte?

— Não sei. É uma época ruim para apaixonados.

— Ora — disse eu —, o que quer dizer, época ruim? Nós todos somos a época, são as pessoas que fazem uma época. E nós estamos fazendo uma época ruim.

— O que farão as pessoas contra os poderosos?

— Tudo bem, Esquilinha — disse eu —, tudo bem. Não quis dizer isso. Mas estou tão amargurado!

— Quando você estiver aqui, tudo ficará bem — disse ela.

— Tudo — disse eu. — E falaremos só de amor.

— Gato, meu Gato. Ah, lembrei-me de uma coisa!

— O quê?

— Você me disse que estava visitando um amigo no Schafberg e que chamou um táxi.

— Certo — disse eu. — Mas você veio mais cedo e vimos logo que nos amávamos, e por isso fui com você.

— E o pobre motorista?

— Meu amigo pagou a ele, não se preocupe, Esquilinha.

— Estava bem preocupada, sabe. Fico muito contente por seu amigo ter pago o motorista. Eu teria me sentido muito mal. Agora vamos terminar, esse telefonema vai ficar muito caro. Até amanhã à noite, Gatão!

Pausa.

Eu disse:

— O que foi, Esquilinha?

— Eu estava esperando que você desligasse. Você tem que desligar primeiro e desfazer a ligação. Eu não posso.

— Esquilinha, você é maluca.

— Eu avisei.

— Mas uma doce maluquinha — disse eu, e desliguei. Durante o telefonema eu olhara pela janela aberta, para o jardim escuro, e uma vez tivera a impressão de sentir vento encanado. Quando me voltei, Paul Perrier, o belo rapaz com pele de pêssego e longos cílios sedosos, estava diante de mim.

Trazia uma mala preta como a que o sr. Franz e o sr. Kratchowil tinham usado, e parecia querer chorar. Mas de repente tinha uma pistola na mão livre. Vira demasiados fil­mes de Belmondo. E disse com um sinal de cabeça:

— Sente-se na poltrona, mãos nos joelhos! Se fizer um movimento em falso, isto aqui estoura!

Quis saltar sobre ele e tirar a pistola, mas então vi que o rapaz a destravara. Era perigoso demais tirar a pistola, então me sentei na poltrona e coloquei as mãos nos joelhos como ele mandara. Deixou cair a grande mala de diplomata e espiou no banheiro e no quarto, para ver se havia alguém escondido. Depois voltou, sentou-se diante de mim e apontou aquela coisa para a minha cabeça.

— Quem é você?

— Meu nome... — comecei, e no último momento me interrompi. Quase dissera Peter Kent. Meu erro fora eu andar reagindo direito o tempo todo, embora ele falasse em francês.

— Vamos!

— Nada.

— Não quer me dizer seu nome? — Brandiu a pistola, e pensei desesperadamente que aquele imbecil destravara a pis­tola, certamente por engano, porque não entendia nada de armas.

— Não. Quem é o senhor?

— Meu nome é Paul Perrier — disse ele. — E você é Charles Duhamel. Reconheci quando falou. Não modificou a sua maneira de falar, maître Duhamel. Estou certo?

— Sim, Paul, você está certo — respondi. — E agora pelo amor de Deus, levante a trave de segurança desse canhão.

Ele olhou a arma e levantou a alavanca, depois ficou cinzento e disse:

— Santo Deus, então Yvonne tem razão! — Foi demais para ele. Também teve de se sentar. Suas mãos tremiam tanto que ele mal podia segurar a pistola. — Então o senhor ainda está vivo, e sem ferimentos.

— Paul — disse eu —, como chegou aqui?

Ele respondeu, solícito:

— Ontem de manhã uma senhora foi ao Ritz e falou com seu amigo Balmoral.

— E você viu isso?

— Vi. E quando Balmoral pegou um táxi e partiu, pe­guei outro e fui atrás dele.

— Por quê?

Ele disse, em tom de choro:

— O senhor sabe como a gente fica nervoso com a sua Yvonne.

— Sua Yvonne — corrigi eu.

— Nossa Yvonne — disse ele. Nunca tivera humor. — Ela com essa encenação de que o senhor ainda está vivo, não só diante das câmeras ou dos caixões, mas também diante de mim, sem parar, quando estamos sozinhos. E tenho de acal­má-la e pedir desculpas aos outros o tempo todo pelas suas ofensas. Eu estava casualmente no café quando Balmoral fa­lou com a velha e depois saiu. Pensei, quem sabe descubro alguma coisa. Por isso fui atrás dele. E não tinha idéia de que o senhor estava vivo.

— Que mais?

— Mais? — disse ele. — Vi Balmoral entrar aqui, depois sair... ele não me viu. Depois vi dois homens, que chegaram com malas como aquela. E pensei, se esses entram aí com essas malas de diplomata, também entrarei. Portanto comprei uma mala e a pistola.

— Onde comprou a pistola?

— Por que mandou chamar Balmoral?

— Onde comprou a pistola?

— Não, o senhor me responda. O que queria de Balmo­ral?

— Vê-lo e dizer que estou vivo. É o meu único amigo.

— Mais alguém sabe disso?

— Ninguém. Só você e Balmoral. Onde comprou a pis­tola?

— No Westbahnhof. Muito simples. Lá se compram ar­mas à vontade. Hoje em dia é assim em todas as estações de trens.

— E depois?

— Yvonne teve um ataque hoje no aeroporto, os médicos lhe deram comprimidos para dormir, para que finalmente fi­casse quieta. Coisa forte. Vai dormir até amanhã de manhã. Então vim para cá e toquei a campainha. Mostrei a mala para a moça que abriu, não sei falar alemão, mas bastou. Ela me trouxe logo para diante da porta do seu quarto. Bati, o senhor não ouviu, então simplesmente entrei.

Depois se calou e enfiou dois dedos no colarinho como se de repente estivesse apertado, abriu o botão de cima e afrouxou a gravata. Ainda estava cinzento e parecia doente.

Eu disse devagar:

— É óbvio que você não sairá daqui vivo. — Depois gri­tei, olhando por cima do ombro dele: — Agora!

Um truque antiqüíssimo, mas Paul virou-se. Saltei da poltrona e imediatamente tirei-lhe a arma. Ele arquejava. Dei-lhe um empurrão, ele caiu numa poltrona, e mais uma vez parecia querer chorar. Puro teatro de bulevar — se tanta coisa não estivesse em jogo para mim.

— E agora? — perguntei ao belo rapaz que tinha um caso com minha querida esposa Yvonne.

— Isso foi maldade — gaguejou ele. — O senhor me en­ganou...

Era como no jardim de infância.

— E você não me enganou? — perguntei; parei ao lado dele e apertei o cano da pistola no seu peito. — Seu sujeitinho de merda, seu bebezinho mijado, seu filho da puta cagado, você não quis me enganar, hein?

— Tire essa pistola daí! — disse ele.

— Por que eu faria isso?

Ele disse:

— O senhor não pode me matar. No hotel eu disse que ia para a Maxingstrasse 15.

— Ora, merda.

— Verdade! Eu disse isso!

— Disse uma bosta. Fez tudo em segredo. Ninguém sabe aonde você foi. Ninguém saberá onde procurar você, seu por­caria, seu miserável!

Mas eu me sentia muito desconfortável, era tudo fita mi­nha. Não podia deixá-lo sair agora que ele me sabia vivo; e por outro lado não era fácil matá-lo.

— O senhor tem a pistola, mas ainda está em minhas mãos — disse.

Dei uma risada:

— Nas suas mãos, hein? Vai contar a todo mundo que estou vivo, é?

— Isso... e outra coisa — disse ele, birrento.

— O que significa “outra coisa”? Por que veio aqui, afi­nal?

— Por causa de sua conta bancária — disse ele, e mais uma vez tive a impressão de que havia vento encanado.

— Por quê?

— Não se faça de besta! Sua conta em Zurique. Onde colocou todo o dinheiro desviado. O Fisco vai adorar isso.

— Não sei do que está falando.

— Não sabe do que estou falando — disse ele irônico. — Mas eu sei, e sua mulher sabe. Foi ela quem me contou, há muito tempo. Ela sabe da sua conta.

Era pior do que eu pensara. Há anos eu dissera alguma coisa a Yvonne sobre a conta, depois que ela remexera meus bolsos e encontrara uma carta do banco. Eu simplesmente não pudera negar. E ela então contara ao menino. Beleza, beleza. E agora?

— Já lhe disse, não tenho conta na Suíça.

— Bom, então vou procurar a polícia e dizer que o se­nhor está vivo, maître. — Atirou-se para a porta e abriu-a num arranco. Saltei para diante e pude puxá-lo para trás no último momento e jogá-lo na poltrona outra vez. Guardei a pistola e esbofeteei-o com as duas mãos, com toda a força. Ele tentou defender o rosto com os punhos, de modo que muitos golpes não acertaram.

Tudo isso não faz sentido, pensei, e fui para a minha poltrona.

— Escute, seu puto — disse eu. — Muito bem, tenho uma conta na Suíça. E com dinheiro. Muito. Minha mulher sempre fala a verdade. E você é inteligente. Então, me diga como posso pegar o dinheiro, se estou morto. Não entende? Um morto não pode ir ao banco.

— E se eu disser que o senhor está vivo?

— Então naturalmente eu lhe farei o favor de ir para Zu­rique com os fiscais do Imposto e lhe darei todo o dinheiro, Paul.

Novamente, silêncio. Ele refletia. Não tinha muita coisa na cabeça, suas qualidades ficavam em outro lugar. Yvonne também não tinha muito na cabeça. Par ideal, pensei, e de­pois refleti: tente mais uma vez!

— Mas você é tão burro que preciso lhe explicar que presente do céu será para você a minha morte?

— Como? — perguntou ele. — E por que quer estar morto?

— Isso não lhe interessa merda nenhuma — respondi. — Mas quanto ao presente do céu: esqueceu que Yvonne é minha herdeira universal? Esqueceu tudo o que ela vai herdar agora? De repente você é o fodedor de uma das mais ricas viúvas de Paris, seu burro. Não posso lhe entregar minha con­ta na Suíça, mesmo que queira. Temos de desistir disso, nós dois. Mas com nossa querida Yvonne você pode ordenhar como nunca ordenhou mulher alguma.

Ele me encarou, iluminado. Assim deve ter sido Moisés vendo a Terra Prometida. Paul disse, respeitosamente:

— Merde alors, se o senhor não tem razão, maître.

— Você é um idiota. Diga: “Sou um idiota”.

— Sou um idiota. Santo Deus, como sou idiota. Maître Duhamel, peço desculpas. O que fiz foi infame.

— Ora, cago em cima disso. — Graças a Deus, ele mor­dera a isca! — Você quis tentar, não foi? Certamente não teria dito nada à nossa Yvonne se eu lhe pudesse dar o dinheiro da conta suíça, hein?

— Maître, o senhor não sabe realmente como é sua mu­lher. Não é fácil para mim, acredite. Tenho de amar muito Yvonne para agüentar isso, especialmente agora.

— Muito bem, então ame-a bastante — disse eu. — Pense sempre que ela é minha herdeira universal, e será fácil amá-la ainda muito mais! E não lhe teria falado sobre o dinheiro daquela conta se eu lhe pudesse dar tudo. Tenho razão?

— Uma mulher não precisa saber de tudo, não é?

— Certo.

— Quero dizer... eu realmente amo Yvonne, perdão, maître.

— Nada a perdoar.

— E falei umas coisas de Yvonne há pouco. Uma mulher realmente boa. Só os nervos são ruins. Mas sei disso, tolero isso. Não me importa nem um pouco.

— Especialmente agora, que é minha herdeira universal.

— Maître, as circunstâncias impedem... mas de resto... acho que poderíamos ter sido bons amigos.

— Está vendo, seu filho da puta. Estou só querendo o seu bem. Ordenhe bastante agora, essa é a única coisa certa. E só poderá fazer isso se calar o bico sobre o que sabe de mim. No momento em que disser que estou vivo, o sonho acaba. E ainda poderei me desculpar com uma comoção cerebral, não me acontecerá nada, mas se eu voltar a viver será duro para você.

— O senhor não pretende voltar, maître? Por favor, o senhor não pretende aparecer outra vez? Por favor, não me olhe assim! Sei que sou um porco, mas não me olhe desse jeito, por favor!

— O que foi? — disse eu. — Estou olhando para você com ternura. Como a um filho. E desejo-lhe tudo de bom.

— Ao senhor também, maître. Desejo-lhe toda a felici­dade do mundo.

— Então vai ficar de bico fechado?

— Como um túmulo. Ainda que venham com tenazes de ferro em brasa... não direi que o senhor está vivo. Enquanto continuar morto. Quero dizer, seria horrível se de repente re­solvesse voltar a viver.

— Não pretendo — retorqui. — Você é um sortudo. Nin­guém pode ter tanta sorte assim.

Riu como uma criança:

— Sou um sortudo, sou um sortudo! — Levantou-se e estendeu-me um braço. — Posso apertar sua mão, maître?

E apertou-a com firmeza, olhando bem nos meus olhos, de cabeça erguida.

— Sua mala — disse eu. — E a pistola. Jogue-a fora, ou ainda vai arranjar alguma encrenca. — Fiz saltar uma bala da arma, tirei o pente, e lhe entreguei tudo. — O melhor é jogá-la num bueiro.

— Imediatamente, maître. E tim-tim pela sua nova vida.

— Tim-tim pela sua — disse eu, e ainda o levei até a porta. Acenou, devolvi-lhe o aceno e fechei a porta. Depois, tudo começou.

 

A primeira ferroada de dor veio como um raio das costas ao peito. Caí numa poltrona. Então veio a segunda ferroada, ainda pior. Saiu do coração e irradiou-se pelo braço esquerdo. Virei-me de lado com esforço e tirei do bolso o frasquinho com o remédio à base de nitro. Minhas mãos tremiam tanto que mal pude abrir a tampinha de plástico. Arquejava. Por fim o frasquinho estava aberto. Meti uma cápsula entre os dentes e mordi-a. Um gosto amargo encheu minha boca. Engoli a cáp­sula mastigada. Tomara que faça efeito, pensei. Eu estava suando, na testa, no corpo todo. Gemia de dor.

Agora meu tórax estava metido num torno, que se fe­chava devagar, impiedosamente, sempre mais, apertando meu peito. O medo me assaltou. Pensei muito tempo em como poderia descrever esse medo. Aniquilamento. Era medo de ser aniquilado. Implacavelmente. Aniquilado, sim, aniquilado. A dor varou meu peito de novo. Era tão terrível que gritei alto. A cápsula não adiantara. Rapidamente meti outra entre os lá­bios e mordi, e logo fiz o mesmo com uma terceira. O gosto do remédio era nojento. Quase vomitei. Agora a dor era cons­tante, não mais ferroadas, mas uma dor permanente. E medo mortal, puro medo mortal. Acabado. Eu ia morrer.

Mas não morri.

A dor aumentava cada vez mais.

Gritei novamente.

— Deus! Deus do céu! Faça passar logo! Me deixe viver!

Sim, agora eu rezava para um Deus em quem não acre­ditava. Quem pode entender isso? Pessoas com a minha doença entendem. Num acesso de angina pectoris acredita-se em Deus. Vou dizer a todo mundo que você existe, e que têm de acreditar em você, mas ajude-me agora Deus do céu. Por favor, por favor, por favor! Não agüento isso. Me ajude, Deus! Faça alguma coisa! Não me deixe morrer desse jeito! Faça alguma coisa para que isso pare! Oh, Deus, por que não faz nada? Não agüento mais. Se não faz nada, ao menos me faça morrer. Mas não esse aniquilamento, esse aniquilamento não. Escute-me, Deus, meu querido Deus, me ajude, me ajude!

O torno fechou-se mais. Escorreguei da poltrona para o tapete. Gritei uma terceira vez.

A porta abriu-se num impulso.

A sra. Klosters estava no umbral, mocinhas comprimiam-se atrás dela.

— Por amor de Deus, o que foi, sr. Kent?

— Coração... coração... — eu só conseguia balbuciar. Depois, nova ferroada nas costas, e gritei outra vez.

Madame saiu correndo, as mocinhas atrás, outras fica­ram paradas olhando para mim. E eu ali deitado no tapete, contorcendo-me de dor. E cada vez menos ar. Comecei a arquejar. Não podia mais respirar.

Não quero morrer. Não agora, que tenho Andréia...

A vara de ferro!

Alguém enfiara no meu coração uma vara de ferro pesada e movia-a para lá e para cá. Era insuportável. Eu não agüen­tava, ninguém agüentaria aquilo.

Uma das mocinhas disse uma coisa a outra, e todas sumi­ram. A porta fechou-se. Fechou-se! E eu ali, encerrado, cada vez menos ar, o remédio não adiantava... mas sempre adian­tara, sempre... Achei três cápsulas no tapete e mordi as três. Lá estava outra vez a vara de ferro. Alguém remexia dentro do meu peito com ela. Não agüentei, era horrível demais. O torno fechou-se ainda mais. Quando ia quebrar minhas costelas? Quando ia esmagar o coração?

O quarto desapareceu diante de meus olhos. Véus e fitas coloridas giravam diante de mim, lentos, rápidos, como pássa­ros esvoaçando ao meu redor... pássaros coloridos... não, ago­ra eram negros... Tinham vindo pássaros negros... Então vie­ram me buscar...

Aniquilamento, essa a palavra. Um medo horrível do aniquilamento me dominava.

— Ei! Está me ouvindo? — apertei os olhos e vi um homem debruçado sobre mim. Um homem idoso de óculos. Um homem de terno cinza. Boca pequena, olhos pequenos.

— Está com angina pectoris?

— Sim...

O que é que ele vai fazer agora? Abre uma bolsa preta ao lado dele no tapete. Pega uma injeção, uma ampola com um líquido escuro.

Em pânico, pensei: ele vai me dar uma injeção, vou per­der a consciência, e vão me levar para o hospital de ambulân­cia! Mas não tenho meus documentos novos! Ainda tenho meu passaporte velho! Ainda sou Charles Duhamel... Acabou, aca­bou, tudo vai acabar se você deixar esse sujeito chegar perto...

— Não...

— Eu sou médico. Quero ajudar!

Ele puxava meu casaco, tentando tirá-lo. Reconheci a sra. Klosters atrás dele.

— Não... — De repente, eu podia falar. — O senhor não vai tocar em mim... de jeito nenhum... eu lhe proíbe.. o senhor sabe que não pode me tocar se eu não permitir...

E outra vez o torno e a vara de ferro, terríveis como nunca. Eu rolava no tapete e gritava. O médico ainda tentava tirar meu casaco. Dei pontapés selvagens no vazio, na barriga dele.

— Mas tenha juízo! Vou lhe dar uma injeção, depois vai acabar tudo, acredite em mim!

— Nada de injeção! — gaguejei, saliva escorrendo da boca. — Não me toque! — De repente vi os dois esquilos lá em cima na beira da floresta em Cobenzl. Andréia deitada ao meu lado, rindo. Gaguejei:

— Não ria... Você nem sabe... A corça... vou me ajoe­lhar à sua frente... oh... oh... oh não... — A dor pavorosa. Eu berrava sons desconexos, e dei mais pontapés no médico. Este disse à sra. Klosters, e ouvi tudo:

— Assim não é possível. Posso telefonar?

— Lá está o telefone, doutor.

Agora ele vai ao telefone. Pega o fone. Disca. Fala. A dor me quebra, me rasga. Ouço apenas farrapos do que o médico diz:

— ...se nega... muito estranho... não é só o ataque... confuso, totalmente confuso... Maxingstrasse 15, A... obri­gado... — Desligou e disse alguma coisa à sra. Klosters. Juntei todas as minhas forças, tinha de ouvir o que ele dizia: — Falei com a polícia, sra. Klosters. O estado do cavalheiro é muito grave... Realmente não posso tocar nele num estado desses... mas espere, sra. Klosters, logo chegará um médico da polícia, que pode fazer isso... Não se assuste, virão também dois agen­tes criminais. É sempre assim, o médico vem com dois poli­ciais... — Ele saiu do quarto, a sra. Klosters atrás.

De repente o torno afrouxou um pouco. Só um pouco. Só um pouco, mas afrouxou. A vara de ferro não se mexe mais. Tento me sentar, e consigo. Tento me levantar e consigo, em­bora minhas pernas tremam tanto que tenho de me segurar para não cair. E começa a dor de cabeça intensa, enfim começa! Esperei tanto por ela... A dor de cabeça significa que o remédio de nitro está fazendo efeito.

A porta se abre num arranco.

A sra. Klosters aparece, pálida.

— Tenho de sair daqui — digo. — Antes que chegue o médico da polícia com os dois agentes.

Então, caio numa poltrona, minhas pernas não me sus­tentam mais.

 

O médico da polícia chega com dois agentes criminais.

Essa frase me dá forças para me levantar de novo. Minha cabeça dói, eu me sentia cansado, esgotado, e meus membros pesados. Eisenbeiss! Tinha de falar com ele! Onde estava o papel? Ali! Disquei seu número secreto com dedos trêmulos, e lhe disse o que tinha acontecido.

— Saia daí, Charles! Recuperou-se o suficiente para po­der andar e falar sem problemas?

— Sem problemas não. Ainda estou muito fraco, e com muito medo, e dores fortes. Mas tem de dar.

— Bom. Já teve dois ataques um depois do outro?

— Sim, algumas vezes.

— Tem medo de um segundo ataque?

— Horrível. Nunca tive um tão forte. Tenho um medo horrível de que aconteça outro.

— Vá de táxi ao Westbahnhof. Depois mude de táxi e vá ao Schottentor. Lá há cabines de telefone, e você me liga outra vez. Até lá certamente terei encontrado uma solução. Mas agora saia daí, o mais depressa possível. — Enquanto eu tele­fonava a delicada dama já juntara meu pijama e os objetos de toalete.

— Isso tem de sumir... venha comigo... pode andar?

Fui atrás dela. Tudo girava ao meu redor.

O vestíbulo estava vazio. Desci os degraus tropeçando. Ouviam-se vozes e risos.

— Finni!

A criada que ontem abrira o portão do jardim para mim saiu de um dos quartos do térreo.

— Madame?

— Este senhor precisa ir ao ponto de táxi lá na igreja. Não se sente bem. Acompanhe-o e volte imediatamente.

— Sim, madame. — Finni tirou a touca e o avental, e depois tudo ocorreu muito depressa, depressa demais para mim. Eu estava com Finni no jardim. Na rua, de repente, tive de me segurar na grade da cerca, tão tonto estava. Adiante! A qualquer momento chega o médico da polícia, e se eu ainda estiver aqui...

— Está se sentindo mal demais? Vamos voltar?

— De jeito nenhum! — Pus o braço em torno do ombro dela para me apoiar. — Está dando passos grandes demais para mim. Não, continue andando como estava.

Fui cambaleando, e o pequeno trajeto até a igreja e a entrada do parque Schönbrunn me pareceu ter quilômetros.

— Logo estaremos lá — disse Finni.

Chegamos à praça diante da velha e antiga igreja da Natividade de Maria, e lá estava o ponto de táxi, com um único carro esperando. Comecei a cambalear mais depressa, tinha de alcançar aquele táxi. Um jovem correu do Park Hotel Hübner e atravessou a rua, correu até o táxi, abriu a porta e ati­rou-se no fundo. O táxi partiu. Dei um gemido.

Nada de táxi.

Nada de táxi.

 

Havia um banco na sombra da igreja.

Caí sobre ele.

— O que faremos agora? — Finni estava atarantada.

— Você volta — disse eu, com a sensação de que o banco oscilava como um bote numa tempestade. — Você nunca me viu.

— Não, senhor. Nunca o vi. E boa sorte! — Ela correu para a Maxingstrasse. Fiquei sentado no banco, esperando. Havia castanheiros rodeando a praça. A luz dos lampiões caía entre suas folhas. Uma campainha soou aguda. Estremeci. Havia uma caixa metálica presa em uma das árvores. Custei para entender que era o telefone do ponto de táxi. Alguém precisava de um carro. O som morreu outra vez.

Ouvi a sirene de um camburão, cada vez mais alto. Não pude ver o veículo, que passava pela outra rua. Era o médico policial e seus acompanhantes. Não me encontrando na casa procurariam nas redondezas, pois eu não poderia estar longe. E logo pensariam que eu estivesse no ponto de táxi. E se me encontrassem pediriam para eu mostrar minha identidade. E ainda havia a caça aos terroristas. E se...

Um táxi dobrou na esquina da igreja e parou. O telefone tocou novamente. O motorista, um rapaz de jeans e camisa, desceu e quis atender.

— Não! — gritei e consegui me levantar. — Estou espe­rando há tempo aqui! Por favor, venha!

Ele hesitou.

Abri a porta do seu carro e caí no assento traseiro. Ele voltou e enfiou-se atrás da direção.

— Westbahnhof, por favor — disse eu.

— O senhor tem pressa, moço, tem pressa mesmo.

Não respondi. Agora, até os dentes me doíam.

Seguimos ao longo do trajeto do bonde até o Castelo Schönbrunn, depois à esquerda, e mais uma vez à direita até a Mariahilfer Strasse. Uma voz de mulher dava ininterruptamen­te endereços e números pelo rádio, e vozes masculinas respon­diam.

— Gumpendorfer!

— Doze catorze.

— Doze catorze: Gumpendorfer Strasse quarenta e um, Viskotschek.

— Gumpendorfer quarenta e um, Viskotschek.

— Certo.

— Peter Jordan! Peter Jordan!

— Trinta e quatro zero cinco.

— Trinta e quatro zero cinco: rua Peter Jordan vinte e quatro. Tocar a campainha no Kindler.

— Peter Jordan vinte e quatro. Tocar no Kindler.

— Certo.

Agora meus membros estavam tão pesados como quando se tem uma gripe muito forte. O ar estava abafado e sufo­cante depois do dia quente. Eu só conseguia respirar com dificuldade.

— Hadik! Hadik!

— Vinte e quatro catorze.

— Vinte e quatro catorze: Hadikgasse sete. Passageiro parado na rua.

— Hadik sete. Passageiro na rua.

— Certo.

Minha cabeça doía a ponto de estourar. Sentia constantes ferroadas pequenas e breves na região do coração.

O táxi parou diante dos grandes portões de vidro do Westbahnhof. Precisei de toda a minha força para desembar­car. Os joelhos eram como geléia. Eu tremia, em pé.

— Quanto é?

— Quarenta e dois xelins.

Dei-lhe uma nota de cinqüenta.

— Muito obrigado.

De repente fiquei tão tonto que tive medo de cair, e me segurei na capota do carro. O motorista me examinou:

— Sentindo alguma coisa?

— Um pouco enjoado.

Vi uma longa fila de táxis do outro lado da grande praça.

— O senhor parece bem ruinzinho, senhor, bem ruinzinho. Quer que eu pegue um médico na estação? Lá sempre tem um!

— Que nada, obrigado — disse eu. — Comi fruta e bebi água. E agora estou me sentindo mal. Boa-noite.

— Boa-noite. — Ele rodou para o cruzamento da Mariahilfer Strasse. Esperei que sumisse, e depois cambaleei pela grande praça até os táxis, e a cada passo tinha medo de cair. Lutava para respirar, mas quase sufocava.

Naquela noite quente os motoristas estavam parados fora dos carros conversando. Ergui uma das mãos.

— O da frente! — gritou uma voz masculina.

Chegou o motorista, um velho careca, que abriu cortes-mente a porta traseira. Caí literalmente no carro, só não desa­bei no chão porque me segurei na porta aberta.

— Epa! Bebeu demais, hein?

— É, um pouco. — Meu coração latejava.

Ele meteu-se atrás do volante. — Para onde?

— Schottentor. O cruzamento grande. Lá onde tem as cabines telefônicas.

— Tudo bem. — Deu partida.

Também no seu carro se ouviam as vozes dos colegas e da mulher na central.

— Praterstrasse!

— Trinta e dois doze.

— Trinta e dois doze: Praterstrasse. Café Astor. Pergun­tar pelo sr. Koller.

O motorista repetiu o recado.

— Spinnerin am Kreuz... Spinnerin am Kreuz... Spinnerin am Kreuz...

Nenhum motorista respondeu.

Outro ataque chegando?

Por favor, não.

— Quarenta e dois quinze.

— Quarenta é dois quinze: direto no monumento. Uma mulher.

— Spinnerin am Kreuz, direto no monumento, uma mu­lher.

— Certo.

Passamos pela Mariahilfer Strasse e atravessamos o Ring, passando pelo Parlamento e o teatro. O sinal no Schottentor estava vermelho. Paguei depressa e desci. Mais uma vez quase caí, pois minhas pernas cederam. Alcei-me para cima no carro. O sinal mudou para verde. O caminho para as cabines telefônicas foi um pesadelo. Eu não tinha onde me segurar. Agora vou cair, pensei, agora, agora, agora...

Mas não caí. Cheguei às cabines e entrei em uma delas. Quando tirei trocado do bolso, todas as moedas caíram no chão. Impossível me abaixar. O suor escorria pelo meu corpo. Meus joelhos se dobravam. Recostei-me pesadamente na pare­de da cabine e pus o dinheiro, depois disquei o número de Eisenbeiss.

Ele atendeu imediatamente.

— Está no Schottentor?

— Sim... — A cabine estava quente e abafada. Com um braço trêmulo abri a porta.

— A sra. Klosters disse ao primeiro médico que você era um cliente novo e que, mal chegando, já começara a ter o ataque. Todos estão colaborando em Hietzing. A polícia não sabe o seu nome. — Dei um gemido. — Está passando muito mal, não é?

— Infelizmente, Emanuel, infelizmente. E agora?

— Temos de arriscar, não há outro jeito.

— Que jeito? — Eu tentava convulsivamente respirar fundo ao menos uma vez, e não conseguia.

— Você tem que ir ao Ritz — disse Emanuel Eisenbeiss.

 

Alô, Charles! Charles, está me ouvindo?

Agora eu sentia ferroadas ininterruptas na região do co­ração. Minha cabeça reboava.

— Sim, estou. Você ficou louco, Emanuel.

— É o único jeito. Você disse que algumas vezes teve um segundo ataque. O que pode acontecer se hoje for assim? Para cá não pode vir. Não pode ir para nenhum lugar onde cha­mem um médico caso venha outro ataque, certo?

Não pude responder. As ferroadas, as pontadas...

— Certo?

— Sim...

— Tenho seu passaporte pronto. Os outros papéis ainda não, mas o passaporte está pronto. Com ele pode entrar no Ritz. Ninguém vai pensar que você é Charles Duhamel. Pre­cisa ir ao Ritz, Charles. A sua maldita mulher está sob cuida­dos de dois médicos, eu os vi na televisão, e os conheço. Um é o médico do Ritz, Dr. Moser. Conheço-o só de vista. Mas com o outro me dou tão bem como com a sra. Klosters ou Kratchowil, entende o que quero dizer. Chama-se Dr. Harald Schubert.

— Depressa, Emanuel, não posso ficar em pé muito tempo.

— O Dr. Schubert está todo o tempo no hotel agora porque tem de acompanhar sua mulher. Quer dizer que tem o apartamento ao lado do dela. Porta de comunicação aberta. Sua mulher insistiu. Já falei pelo telefone com ele e expliquei tudo. Podemos contar com ele, se acontecer de novo, Charles. O único médico que você pode deixar se aproximar se tudo piorar e tiver de ir para uma clínica... o Dr. Schubert tem alguns leitos numa clínica particular.

— Loucura.

— Tem solução melhor?

Fiquei calado, tentando respirar, e o ar era tão pouco. Meu corpo todo estava ensopado de suor.

— Você pega um táxi agora no Schottentor e vai até a Bräuhausgasse 20. Anote isso: Bräuhausgasse 20. Repita!

— Bräuhausgasse 20. O que faço lá?

— É a casa de Kratchowil; ele o espera no portão, que já está aberto. Tem um terno pronto. Maria levou roupas de baixo, sapatos e camisas até lá, numa mala cheia. A sra. Tiller esteve aqui, pegou seu passaporte. Ela vai à casa de Kratcho­wil. Você muda de roupa, deixa as coisas velhas com Kra­tchowil, e vai com a sra. Tiller e a mala ao Ritz. Já telefonei para lá apresentando-me como seu secretário em Viena. Seu avião de Madri via Zurique chega em meia hora. Avisei na recepção do Ritz que você teve de vir a Viena inesperadamente a negócios. E passou por uma doença muito grave, isso eu também disse... para alguma emergência.

Fui escorregando pela parede da cabine até quase tocar o chão, mas consegui me levantar outra vez com as últimas forças.

— Tudo isso não pode ser — gemi.

— É o único meio — disse ele. — Coragem, meu caro! Pegue agora um táxi, e até a Bräuhausgasse 20! Por favor, Charles! Pense nas situações malucas que já superei na vida. Então, sim?

— Sim — disse eu, e em vez de desligar deixei cair o fone. Eram quase cem passos até o táxi. Quando cheguei ao primei­ro carro, tive de me enfiar atrás e depois puxar as pernas para dentro, pois não conseguia mais levantar os pés.

— Noite, senhor.

— Boa-noite. Bräuhausgasse 20, por favor.

— Tudo bem. — Desta vez era um motorista muito ve­lho, de cabeça pequena e um corpo curto que mal via por cima do volante. Certamente estava sentado em uma almofada. E nesse carro também soava o rádio.

— Währinger!

— Sete dezoito.

— Sete dezoito: Währingerstrasse trinta e cinco. No Braun.

— Währinger trinta e cinco, no Braun.

— Certo.

E assim continuava, sem interrupção. E me deixava lou­co. O tempo todo apertava meus dentes doloridos. Você tem de imaginar isso, meu bem: uma pessoa acreditando quase uma hora inteira que a qualquer segundo vai morrer.

O motoristazinho passou por uma zona da cidade onde eu nunca estivera. Curvas fechadas, era um motorista audacioso, o velhinho. A cada curva eu era jogado para os lados. Passamos uma igreja, e aí aconteceu.

— Atenção, colegas, atenção! A polícia pede a nossa co­laboração na caça aos terroristas. Procura-se urgentemente um senhor de cinqüenta anos... — Tirei meus óculos de­pressa — ...nome desconhecido... — Meus lábios retorceram-se num sorriso. — O homem provavelmente tomou um táxi há quarenta minutos em Hietzing, na praça diante da igreja da Natividade de Maria. É muito alto, nariz grande, testa alta, cabelo bem curto. Usa óculos escuros, terno azul-claro, gra­vata azul e camisa branca. Parece doente e deve estar fraco. Teve um ataque cardíaco. Por favor, avisar quem leva ou levou esse homem no carro. Ele não poderá reagir muito de­pois do ataque. Se ainda tiver esse homem no carro, pare e diga exatamente sua localização. O carro da polícia chegará imediatamente. Fim. Repito, colegas: a polícia pede a nossa colaboração! Procura-se um homem de uns cinqüenta anos, nome desconhecido...

Vi o olhar do pequeno motorista no retrovisor. Ele riu:

— Se o senhor não tivesse entrado no Schottentor ou usasse óculos, eu jurava que era o senhor!

Rimos os dois, eu com grande esforço. A dupla troca de carros me salvara. Eisenbeiss pensava em tudo. Também no Hotel Ritz nada me aconteceria, eu agora acreditava firme­mente nisso. O primeiro motorista só podia dizer que eu de­sembarcara no Westbahnhof.

Imediatamente ouvi sua voz.

— Quarenta e dois zero quatro! Central, aqui Pummerer. Levei esse homem!

— Quarenta e dois zero quatro! A descrição realmente se ajusta ao seu homem?

— Posso jurar! Ele estava muito nervoso e apressado. E parecia doente. Não disse uma palavra.

— Obrigada, quarenta e dois zero quatro. A polícia ou­viu isso... Tuchlauben... Tuchlauben...

— Doze oitenta e quatro.

A ladainha continuou.

Eu me deixara cair para trás no assento e estava imensa­mente aliviado. Também me sentia muito melhor. Conversei com o pequeno motorista, porque não falara uma palavra com os dois primeiros. E aos poucos minha fraqueza cedeu quase completamente.

Passamos por feias ruelas. Uma vez vi dois gatos se perse­guindo, outra vez passamos por um trecho pobre onde duas putas envelhecidas acenaram e levantaram as saias. Depois o baixinho parou.

— Pois não, senhor, Bräuhausgasse 20. Estão esperando. — Vi o sr. Kratchowil impecavelmente vestido no portão da casa.

— Quanto lhe devo?

— Sessenta.

Dei oitenta xelins, ele agradeceu enfaticamente e até me ajudou a desembarcar. Agora eu caminhava com mais facili­dade. Ainda estava com as pernas bambas, mas melhor do que há quinze minutos. O táxi partiu.

Kratchowil apertou minha mão:

— Muito malzinho, senhor?

— Mais ou menos, sr. Kratchowil.

— A sra. Tiller já está aqui.

Só então vi o Mercedes branco estacionado.

— Entre! Moro no mezanino. — Precisei subir apenas alguns degraus. Consegui. Não havia placa na porta, nem eu vira nenhuma na parede da casa. Perguntei por quê.

— Tenho muitos clientes que sabem onde moro. Outros é melhor que não saibam. Com licença, milostpan. — Abriu a porta de seu apartamento e entrei numa sala decorada à an­tiga maneira alemã, com um monstruoso bufê.

Kratchowil, que andava à minha frente, deu um grito:

— O que foi que você fez, seu idiota?

Agora eu via uma porta de banheiro aberta ao fundo da sala. Um rapaz em mangas de camisa inclinava-se desampa­rado sobre uma mulher que jazia soluçando no chão. Levei um susto. A mulher parecia um fantasma. Sua camisola estava erguida, as pernas tão magras que eram puro osso. No rosto pálido, só os olhos viviam, e deles corriam lágrimas. Tinha cabelo grisalho e fino, com madeixas caindo na testa. Ao lado dela, uma cadeira de rodas.

Kratchowil esquecera-se de mim. Correu até a mulher. O rapaz defendeu-se:

— Não tenho culpa. Ela tocou a campainha quando o senhor saiu. Então eu a trouxe aqui e a coloquei no vaso. De­pois, ao levantar-se, ela deu um passo sozinha e caiu. Realmen­te não tenho culpa!

Kratchowil falava com a mulher:

— Não chore, Marenka, não chore, tudo está bem. Você se machucou, ora. Olhe, estou aqui outra vez, e vou levar você de volta para sua bela cama. Quer um pedaço de chocolate, Marenka, meu benzinho? Vou lhe dar um pedaço bem grande e bonito, minha querida. Não, agora não dói mais, não é? — Enquanto falava, colocara a mulher na cadeira de rodas e acariciava seu cabelo ralo. No rosto dele estampava-se todo o amor do mundo. — Então, venha, meu anjo, vamos. — Ele se virou. Deve ter me esquecido por completo; agora se lembrava de mim. — Desculpe, milostpane. Vá na frente, prosim. Volto logo. — E de novo dirigindo-se à mulher na cadeira de rodas: — Não chore, Marenka, não chore. O seu Josef está aqui agora. Olhe para mim, Marenka, olhe para mim! — E disse para si mesmo, amargurado: — Não me conhece mais... não me conhece mais... — E empurrou a cadeira de rodas do­brando um canto da sala.

O rapaz veio até mim e disse:

— Não imagina quantas vezes isso já aconteceu quando o sr. Kratchowil não estava em casa. Sempre temos um medo terrível. É uma coisa pavorosa.

— Quem é a mulher? — perguntei enquanto ele abria outra porta.

— Dele, ora. — O rapaz me levou por uma grande sala que era uma alfaiataria. Havia mais dois homens em mangas de camisa trabalhando. Cumprimentaram cortesmente, mas ostensivamente não me olharam. Notei que havia barbantes com sininhos que vinham do corredor, passavam por aquela sala e levavam à outra, onde o rapaz me introduziu.

— Espere aqui um momento, senhor — disse o rapaz, e desapareceu.

De trás da pilha de peças de tecido apareceu uma mulher jovem e bonita com cabelos e olhos castanhos, um pouco pare­cida com Andréia.

— Sra. Tiller? — perguntei.

— Sim, sr. Kent. Boa-noite.

— Tenho de lhe pedir mil desculpas. Foi má-criação de minha parte.

Ela riu:

— Está perdoado! O sr. Eisenbeiss me explicou o motivo. Felicitações. Trouxe uma coisa para o senhor. — Deu-me um passaporte um pouco gasto, da República Federal da Ale­manha. Abri-o. Lá estava o meu retrato. Comecei a sentir calor.

— Excelente, não? — disse a sra. Tiller.

— Sim, é verdade — respondi.

Ela contou há quanto tempo conhecia Eisenbeiss, depois disse como estava feliz na sua profissão, embora o sr. Eisen­beiss não quisesse que ela trabalhasse.

— Mas eu gosto tanto de dirigir! É o que mais gosto. E a gente conhece pessoas tão interessantes.

Contou quem já tinha levado no carro, gente famosa, muitas das quais bastante amáveis e bem naturais, o que mui­to impressionou a sra. Tiller. Depois Kratchowil entrou na sala atulhada. Seu rosto ainda estava triste ao entrar, mas tão logo fechou a porta começou a rir.

— Ah, já se conhecem. — E ficou embaraçado. — Aqui é que trabalho, prosim.

— Por que diz isso tão embaraçado?

— Logo percebi o seu jeito. Onde trabalho tem de ser assim. Ou não encontro as minhas coisas. Agora, primeiro uma bebida, milostpane, e vai se sentir melhor. — Ele pro­curou num armarinho.

— Sr. Kratchowil — disse eu —, que há com sua esposa?

— Paralisada até os quadris. Acidente de carro. Um des­ses porcos malditos entrou no nosso carro. Bêbado. Do lado dela. Também fui atingido, mas não tanto. Fiquei no hospital quatro semanas, e a minha pobre Marenka, três anos. Depois disseram que não havia mais o que fazer. O médico vem, e uma enfermeira, injeções e massagens. O que lhe posso dizer? Ultimamente ela está melhorando! — Ele não notou o jeito com que a sra. Tiller me encarou. Certamente nada estava melhorando, pensei. Mas provavelmente ele só podia viver e suportar tudo aquilo inventando coisas. E acreditava nelas. Acreditava? — Só os olhos dela têm problemas. Às vezes não me conhece. Eu disse ao médico, tive medo de que fosse uma coisa na cabeça, mas ele disse que não, um grande médico, só chamo os melhores, custe quanto custar. “Não”, disse ele, “são apenas problemas de visão, sr. Kratchowil, que vão pas­sar.” Esse maldito porco bêbado! Pegou um ano, mas o que é um ano, prosim? Diga-me, milostpane, onde está a justiça?

— Quando foi que aconteceu? — perguntei.

— Há oito anos.

— Sua mulher está assim há oito anos...

— Sim, horrível, não? Minha pobre, boa Marenka. Sem­pre a chamo de Marenka. Na verdade o nome é Mitzi, é vie­nense. Era a moça mais bonita do distrito quando nos casa­mos, to je pravda. E acontecer uma coisa dessas! O senhor me perguntou, milostpane, por que trabalho aqui sem placa e tudo. Bem, quando isso aconteceu, eu ainda tinha minha loja na cidade velha, em Tuchlauben. Loja grande, bonita. Tudo se foi com o hospital e os doutores, prosim. Tive de vender a loja e vir para cá e trabalhar aqui. A maior parte dos meus ve­lhos clientes continuou fiel, graças a Deus, milostpane. Veja o sr. Eisenbeiss! Embora eu não seja barateiro — nem posso ser com esse médico que vem agora, e as injeções e massagens. Trabalho até cair de cansado. E agora finalmente ela vai me­lhor, a minha Marenka. Sabe, milostpane — a senhora tam­bém ainda não sabe, sra. Tiller, a grande alegria: agora em se­tembro a minha Marenka e eu vamos de férias para Altaussee. Sim! O sr. doutor disse que pode ser. Com automóvel. Eu a ponho lá dentro, e a cadeira de rodas atrás. Não imagina como Marenka está contente! Sair desse apartamento! Ela sempre deitada e sentada, não é? Preciso cuidar dela dia e noite. Os rapazes ajudam quando saio. O senhor viu como! Eu mesmo tenho de fazer tudo. Lavar Marenka e dar banho e cozinhar para ela, e sentá-la na cama por causa da circulação e para não ter pneumonia de tanto ficar deitada, ou uma trombose. O doutor dá uma injeção contra isso todo dia. E ela também não pode sair sozinha da cama. Naturalmente às ve­zes se suja um pouco quando não a levo depressa ao banheiro. Não me importo nem um pouco! Minha Marenka! E sempre tem dores, sempre, mas é como um anjo, tão boazinha, como um anjo, Deus é que sabe. — Ele encontrara a garrafa, pe­gou um copo de uma gaveta e o encheu. — Aqui, beba, se­nhor, é Slibowitz legítimo, eslovaco. Vai ver como melhora logo. Na zdravi!

Esvaziei o copo de um gole e me sacudi. O Slibowitz queimava meu estômago, mas senti um calor bom me invadir.

— Mais um copo — disse Kratchowil. — Agora, golinhos.

— Sr. Kratchowil, sua mulher não estaria melhor num sanatório?

— Depois de todo aquele tempo no hospital? Nunca, nunca! Eu tenho tanto trabalho! Só poderia visitá-la muito pouco, nebo? Ela estaria sempre sozinha. Não, não, aqui co­migo ela tem tudo, e estou sempre aqui de noite, sempre. Cuido dela. Tenho sinetas num barbante por toda parte, olhe, milostpane, ela só precisa puxar o fio. Nada lhe falta. De noite, quando não pode dormir, eu me sento junto dela e falamos sobre como está melhorando... então ela fica contente, a minha Marenka... E isso com os olhos são realmente só perturbações da visão, o médico me explicou... E agora, nem imagina, milostpane, como ela já se alegra com nossa viagem, a primeira desde o acidente... Vamos ter uns dias lindos... vai ser ótimo... Eu aqui falando e falando, e o senhor tem de telefonar para o sr. Eisenbeiss! — Ele fez aparecer um tele­fone. — Enquanto isso vamos para a outra sala — disse ele, e sumiu com a sra. Tiller. Fiquei sozinho e disquei.

Eisenbeiss atendeu.

— Então, conseguiu chegar ao Kratchowil!

— Sim.

— Então vai chegar ao Ritz também.

— Emanuel, o passaporte é maravilhoso... Nem sei como agradecer... Você é um verdadeiro salvador dos aflitos...

— Fim, pare com essa conversa fiada — disse ele, alto. — Telefonei mais uma vez ao Dr. Harald Schubert. Tua velha bruxa está dormindo, vai dar trégua por algum tempo. Des­crevi seu estado ao médico e ele disse que vai ajudar imedia­tamente. Não tenha medo, medo produz novo ataque. Ele o aguardará no saguão. Vocês são velhos conhecidos. Ele irá logo com você ao quarto.

— Obrigado, Emanuel, obrigado.

— Ora, merda. Mais uma coisa importante, para que não se assuste: na maior parte dos hotéis você tem de preencher todo o registro. No Ritz basta dar o endereço e assinar. O resto a recepção arruma. Mas terá de deixar o passaporte com eles, de manhã estará no seu escaninho, na portaria.

— Que endereço devo dar?

— Anote. Olhei o mapa de Buenos Aires. Vou soletrar. — Soletrou: Avenida Martin Garcia, 34. — Fica na zona oeste. Endereço chique. Ninguém tem nada a ver com o que você faz em Viena.

— Não.

— Agora mude de roupa depressa e vá para o hotel! Telefone quando o Dr. Schubert vir você. Tchau. — Desligou.

Chamei o sr. Kratchowil. Ele veio, sem a sra. Tiller.

— Aqui está a peça, prosim — disse ele estendendo-me um terno azul-claro. — Uma sorte que pelo menos um está pronto. A sra. Maria me trouxe malas cheias de roupa. Milostpan, vá se trocar; escolhi camisa e gravata, por favor.

Tirei minhas coisas velhas e vesti as novas. Tudo combi­nava maravilhosamente, as etiquetas do alfaiate argentino e do magazine de artigos masculinos. Olhei-me no espelho. O sr. Kratchowil estava parado ao meu lado, radiante: — Então, que terno, não é?

— Sr. Kratchowil — disse eu —, tive certamente um dos melhores alfaiates de Paris... mas não era tão bom. O senhor é um mestre!

— Bem, por isso o sr. Eisenbeiss me manda fazer tudo aqui, há séculos.

Tirei tudo dos bolsos do terno velho e passei para o novo.

— Amanhã chegam mais malas com roupa de baixo e sapatos e os dois outros ternos, prosim. Diga no hotel que por engano as malas foram descarregadas em Zurique, e foram de avião para o Tenerife, e só agora chegaram.

— O que devo pagar?

— Nada. O sr. Eisenbeiss paga tudo.

— Mas isso é impossível.

— Nada impossível. Não se preocupe. O senhor está tão branco de repente. Sra. Tiller! — chamou ele. Ela chegou, e também admirou o terno novo. Eu voltara a sentir pontadas na região do coração.

— Agora, gostaria de ir depressa ao Ritz — disse eu.

Imediatamente começaram a tocar todos os sininhos.

— É Marenka! — Ele parecia eletrizado. — Tenho de ir lá depressa. Até logo, sra. Tiller, até logo, milostpane! Des­culpe, prosim! Um dos rapazes o levará até embaixo! — Saiu correndo, um homenzinho corajoso, que amava tanto sua mu­lher doente. A porta bateu atrás dele. Logo depois abriu-se de novo e ele espiou mais uma vez:

— Arranhe um pouco os sapatos novos no calçamento, para não parecerem tão novos! — exclamou, e sumiu.

Um dos ajudantes de alfaiate nos levou até o portão da casa e abriu a chave. Levou a mala até o carro da sra. Tiller. Esfreguei os sapatos novos no chão. O jovem alfaiate se des­pediu.

A sra. Renate Tiller era uma excelente motorista, Elo­giei-a e ela ficou contente. Logo chegamos ao Ring, e em segui­da ela estacionou diante da entrada do Hotel Ritz. Fui ao saguão, ereto e rápido. As grandes portas de vidro estavam abertas por causa do calor. À esquerda ficava o balcão do por­teiro, à direita, a recepção. Senhores amáveis em ternos escu­ros, camisas brancas e gravatas prateadas me cumprimentaram tão cordialmente como se eu desembarcasse no Ritz há anos — o que fizera mesmo, mas como outro homem.

A sra. Tiller era conhecida ali, certamente com freqüên­cia conduzia hóspedes do hotel. Sua presença ajudou a fazer parecer normal a minha presença naquela hora tardia. Despe­di-me dela, entreguei meu passaporte, assinei o registro e co­loquei meu pretenso endereço de Buenos Aires. Depois um dos senhores da recepção se adiantou para me levar ao meu apar­tamento, e no mesmo momento alguém exclamou alegre:

— Peter!

E de uma segunda sala, muito maior, anexa ao vestíbulo, chegou um homem jovem e esbelto, de braços abertos, a quem eu já vira na televisão, quando Yvonne desmaiara na cerimô­nia no hangar.

— Harald! — por sorte Eisenbeiss me dissera seu pri­meiro nome. — Ora, mas que surpresa! Como vai você?

— Bem. E você? Mas o que o traz a Viena? — perguntou o Dr. Schubert. Falávamos como velhos conhecidos.

Os senhores da recepção nos olhavam sorrindo. Sabia fin­gir bem, esse Dr. Schubert. Disse que tinha muita coisa a me contar e dispunha de tempo, de modo que entrou também no grande elevador e subiu conosco. O apartamento que recebi ficava no quarto andar. O senhor da recepção me levou pelos quartos, acendeu luz por toda parte, mostrou-se como regular o ar condicionado. Meti uma nota em sua mão, ele desejou-me uma boa estada e sumiu.

— Tire o casaco e arregace a manga da camisa — disse o Dr. Schubert.

— Um momento — disse eu, pois um criado trazia mi­nha mala.

Depois que ele desapareceu com uma gorjeta, tranquei a porta e fiz o que Schubert pedira. Ele pegou um fio de bor­racha para fazer um torniquete no braço, um brilhante apa­relho de injeção e uma ampola, tudo dos bolsos do terno, e deitei-me na cama. Aplicou-me rápida e habilmente uma in­jeção na veia.

— É um remédio muito forte — disse ele. — Estou fa­zendo por profilaxia. Tire a roupa agora e vá imediatamente para a cama. Também lhe trouxe comprimidos para dormir. Se ficar inquieto, disque 222, é o ramal do meu quarto. Mas depois dessa injeção nada vai inquietá-lo, pode ficar des­preocupado.

Apertou minha mão e se foi.

Alguns minutos depois eu estava na cama. Olhei o relógio de pulso novo que Eisenbeiss mandara com a mala. Eram onze e dez. Telefonei para ele.

— Então — disse ele. — Não lhe disse que tudo ia dar certo? Um pouco de risco faz parte da vida. Pense na Torre Eiffel. Isso, agora está rindo outra vez. Durma bem! — Hesi­tei, mas meu desejo foi mais forte e telefonei para Andréia. O telefone tocou algumas vezes, por fim ela atendeu em voz so­nolenta:

— Rosner.

— Aqui é o seu Gato — disse eu.

Ela acordou imediatamente.

— Gato! Aconteceu alguma coisa?

— Nada, nada, minha Esquilinha.

— Claro que aconteceu! Você tem de me dizer, Gatão. Por que está telefonando?

— Não aconteceu nada. Só não agüentava mais sem você, queria ao menos ouvir a sua voz.

— Ao menos a minha voz... — Suspirou. — Ah, meu Gato, que coisa terrível, hoje em dia a gente sempre acha que aconteceu alguma coisa ruim quando a pessoa mais amada do mundo nos telefona.

— Sempre houve gente que quase morre de susto ao re­ceber um telegrama — disse eu. — Não devemos culpar os tempos por todas as coisas ruins.

— Não, não devemos. Você é tão inteligente. Tenho um Gato tão ajuizado. What a sophisticated cat! Queria ver o que acontece com o meu Gato se telefono no meio da noite sem avisar, hein?

— Bem — disse eu —, você está outra vez bem animada.

— Ah, Gato, depois de amanhã, a essa hora, você já estará comigo em Hamburgo.

— Fico muito excitado com essa idéia.

— Temos um amor bem grande, não é mesmo?

— Sim.

— Então precisamos cuidar muito dele. Com grandes amores facilmente acontece alguma coisa.

— Como sabe disso?

— Leio isso em tantos livros. Você já notou que quase todas as histórias de amor têm um fim triste? Há alguns dias li um romance.

— E...?

— Também acabou mal, os dois morreram.

— Bem, isso foi um happy-end. Um vivo e outro morto, isso teria sido terrível.

— Eu não tinha pensado nisso. Desde que te conheço acho que não vou morrer nunca!

— Isso é muito bom — disse eu, sentindo que o remédio começava a fazer efeito. — E se quiser falar comigo, agora estou no Hotel Ritz. — Dei o número do telefone que estava afixado no cartão ao lado do aparelho. — Agora, continue dormindo! Também vou dormir, só quero lhe dizer o quanto amo você.

— E eu muito mais a você, Gato.

Então apaguei a luz, fechei os olhos e pensei em muitas coisas, e quando adormeci sonhei com elefantes. Vinham da floresta aproximando-se por um largo caminho de areia. Vie­ram muitos elefantes e ficamos todos deitados no caminho de areia, ao sol. Eram elefantes muito amáveis.

 

Dormi até as onze da manhã e acordei repousado e bem disposto. O sol brilhava outra vez implacavelmente lá fora, mas o ar condicionado mantinha o quarto fresco. Tomei ba­nho e pedi o café e todos os jornais de Viena. Um velho garçom trouxe o carrinho com o café. Tomei chá e comi pãezinhos com muita calma. Nos jornais, o ataque terrorista ainda era tema central. A polícia parecia não ter qualquer rastro ou pista. O Dr. Schubert chegou e me examinou, assegurando que tudo estava bem, eu ainda devia me poupar nesse dia. Mas perguntei pela minha mulher, e ele disse que ela estava de partida. Ia pegar um avião para Paris...

— ...Monsieur Perrier a acompanhará. Em alguns minu­tos o senhor poderá descer despreocupado. Dê um pequeno passeio! Preciso ir ao meu consultório.

Portanto, vesti-me e desci ao saguão com o elevador. O porteiro-chefe, que estava de serviço diurno — vi rostos dife­rentes —, deu-me o passaporte quando lhe disse meu no­me. Saí para a rua, onde o calor me envolveu, e fui até a Schwarzenbergplatz. Meu coração trabalhava normalmente, e fiquei muito contente. Enquanto fiz uma volta ao redor do hotel, um homem veio falar comigo. Era pálido e muito ma­gro, e me pediu dinheiro. Fora despedido por medida de eco­nomia, e não encontrava trabalho. Dei-lhe cinqüenta xelins e ele me pediu que não o levasse a mal, era seu primeiro dia como pedinte, e envergonhava-se terrivelmente, mas precisava de dinheiro, tinha mulher e dois filhos. Acreditei nele. Na esquina da Schwarzenbergplatz com o Ring fui a uma agência de viagens e comprei uma passagem de avião para Hamburgo para sexta-feira, 19 de junho de 1981. Era quinta-feira, e Eisenbeiss queria estar com tudo pronto naquela mesma noite. Preferi comprar eu mesmo a passagem para que ninguém sou­besse aonde eu ia.

Depois voltei ao Ritz, para telefonar a Eisenbeiss, no Schafberg, e lhe dizer que eu estava bem. Havia quatro ca­bines telefônicas num corredor curto ao lado da portaria. O gerente aproximou-se de mim no saguão e me cumprimentou cordialmente, perguntando se estava tudo em ordem, e eu disse que sim, e fiquei muito aliviado porque todo o pessoal, os porteiros, o garçom, os recepcionistas e o gerente já me tinham visto muitas vezes e falado comigo quando eu vinha a Viena e morava no Ritz. Mas ninguém me reconheceu. Com a ajuda de Eisenbeiss eu realmente tinha um rosto diferente. O que mais me transformava eram os grandes óculos. O gerente falou espanhol comigo, muito mal, mas elogiei-lhe e ele ficou radiante. Depois do almoço dormi duas horas, e ao anoitecer desci novamente ao saguão com o gigantesco lustre, e tomei um pouco de uísque. O Dr. Schubert não voltara mais ao hotel. Lembrei-me de que não lhe pagara, e fiquei a um tempo envergonhado e comovido. Bebi mais um pouco de uísque e refleti sobre o uísque e seu sabor agradável. Fiz uma refeição leve e subi ao meu apartamento para ver televisão, só o noti­ciário. O mundo estava numa situação péssima, a evolução dos acontecimentos na Polônia fazia temer que o Exército Ver­melho interviesse logo.

Depois telefonei para Eisenbeiss.

— Caro Charles, terminei. Acho que consegui tudo muito bem. Vou à cidade agora. Um homem lhe levará a segunda mala dentro de uma hora. Acho que não será bom nos encon­trarmos agora. Depois de tudo o que aconteceu, o mínimo que podemos imaginar é que minha amiga e eu estamos sendo observados.

— Mas tenho de ver você, Emanuel! Devo-lhe tanto! Assim que tiver dinheiro...

— Nunca mais diga essa palavra — disse ele. — O que você recebeu é presente de um velho conhecido que terá sem­pre uma dívida de gratidão para com você. Adeus, Peter... o telefone também é suspeito. Desejo-lhe toda a sorte do mundo, a você e ao seu amor. Quando sai o avião?

— Amanhã às dez e vinte, via Frankfurt.

— Então a sra. Tiller esperará às nove diante do hotel e o levará ao aeroporto.

— Emanuel — disse eu —, você sabe o que me deu de presente. Não posso parar de agradecer.

— Agradecer por nada — disse ele. — Onde pretende morar em Hamburgo?

— No Atlantic.

— Vou mandar reservar um apartamento para você.

— Obrigado, Emanuel. Seja feliz, se puder — disse eu.

— Espere! — exclamou ele.

— Que foi?

— O minuto — disse ele, sério. — Esqueceu o minuto?

— Ah, sim, claro, o minuto — respondi, e sentei-me com o fone no ouvido.

O minuto era o seguinte: na velha Rússia (talvez ainda hoje, quem sabe?) era costume, especialmente no campo, to­dos ficarem quietos um minuto na casa quando alguém ini­ciava uma grande viagem. Nesse minuto os outros pensavam nele, rezando para que nada de mal lhe acontecesse, para que ele não ficasse doente e sua viagem fosse bem-sucedida, e também os que não rezavam lhe desejavam isso.

Eisenbeiss tinha mãe russa, e sempre que estávamos jun­tos e nos separávamos lembrava-se do “minuto”. Ouvi Eisen­beiss respirar, e vi que estava rezando por mim. Lembrei-me de Howard Hughes, o misterioso multimilionário americano. Além de muitas outras coisas, ele também tivera uma porção de cassinos em Las Vegas. Quando morreu, fizeram um minuto de silêncio em todos os cassinos, e em todas as salas de jogos que tinham pertencido a Hughes tudo parou por sessenta segun­dos. Todos imóveis, e quando os sessenta segundos passaram, um crupiê gritou: “OK, joguem os dados! Ele já teve o seu minuto!”

Pensei que aquele minuto era realmente o último que ainda me ligava de alguma forma com minha vida antiga, e quando Eisenbeiss disse “Acabou”, eu soube que começara o primeiro minuto de minha nova vida.

— Tchau, Emanuel — disse eu.

— Tchau, Peter — respondeu ele, e ouvi sua branda ri­sada; depois desligou.

Com efeito, em meia hora a segunda mala foi entregue ao porteiro e trazida ao meu apartamento por um carregador. Quando fiquei sozinho abri-a. Lá estavam os dois outros ter­nos, e roupas de baixo, e em cima um grande envelope com todos os documentos que Eisenbeiss falsificara de maneira extraordinária. Quando ele morresse, teria morrido um dos últimos grandes gângsteres-cavalheiros. Essa idéia me entris­teceu, e pensei como é curta uma vida humana, e como é limitado o tempo de cada pessoa. Quando somos jovens não ligamos para isso. Na minha idade o tempo começa a correr mais depressa; finalmente dispara. Pensei no processo em que defendera Eisenbeiss, e pareceu ter acontecido há meses ape­nas, quando na verdade eram oito anos. Oito anos, passados como um dia ou uma vigília noturna. Fiquei cada vez mais triste; portanto telefonei para Andréia, e sua voz me alegrou. Eu disse que estaria em Hamburgo no dia seguinte às 13h45min, num aparelho da Lufthansa.

— E você vem me ver logo?

— Só deixarei minha bagagem no Atlantic, minha Esquilinha.

— Ah, Gato. Mas eu tenho de trabalhar sábado e do­mingo!

— Grande — disse eu.

— Querido, como a vida pode ser bonita!

— Sim — disse eu. — Linda mesmo. — Mas tão breve, pensei outra vez. Tão curta.

 

— Os apóstolos do overkil não têm nada a ver com o Evangelho de Cristo, porque Ele não era assassino! — gritava uma mulher no rádio do carro, quando entrei no táxi.

Eu aterrissara no Hamburgo-Fuhlsbüttel às 13h45min e sentira muito medo durante o vôo — lembrando-me do último vôo que fizera. Minhas duas malas tinham sido colocadas no bagageiro por um carregador, e eu estava sentado no banco de trás.

— Quem é que está falando? — perguntei ao motorista de cabelos brancos, rosto amável, óculos de aro niquelado.

— É a professora Uta Ranke-Heinemann, em seu ser­mão. Temos agora um programa “Congresso da Igreja”, sabe. Já faz meia hora. Para onde?

— Hotel Atlantic — disse eu.

— Hotel Atlantic — repetiu meu motorista, que ajudara o carregador. Começou a descer a Zeppelinstrasse. No aeroporto eu trocara meu dinheiro francês e o dinheiro austríaco de Eisenbeiss por cinco mil marcos.

— Estamos tendo um congresso da Igreja Evangélica — disse o motorista. Entrara num novelo de ruas por cima das quais passava a grande Alsterkrugchassee, sempre repleta, indo para o norte. O velho tinha olhos claros e alertas, observei pelo retrovisor.

— Ninguém deve comparar o Kremlin ao Vaticano! — ex­clamava agora um homem no rádio. Ouviram vaias e assobios agudos.

— Fora com o Apel! Fora com o Apel!

— É nosso ministro da Defesa — disse o motorista. — Eles o detestam.

Atravessou a rua principal e foi direto pela Senglmannstrasse. À direita ficavam velhas casernas onde agora moravam pessoas idosas, “os senhores”, como se dizia na Alemanha. Muitas vezes estivera ali a serviço, e conhecia bem Hamburgo.

— Vai ser uma boa, rapaz — disse eu.

— Não é ao vivo — disse ele. — É uma montagem. Tudo gira em torno do rearmamento. Todo o Congresso Eucarístico, se me perguntar. Mais armas ainda para a República Federal.

Claro! Eu estava na República Federal, e logo começava a sentir isso intensamente.

Um locutor disse que tinham jogado ovos no ministro da Defesa. Jovens haviam sujado suas camisetas de sangue de animais, e o diabo estava solto na grande Feira de Hamburgo.

De repente, retumbaram fanfarras, dominando mesmo os gritos mais enlouquecidos. O locutor disse que as fanfarras eram idéia do moderador daquele congresso-monstro, um juiz do Tribunal Federal. Agora também se ouviam vozes can­tando. Os cristãos evangélicos acompanhavam as fanfarras do coral “Em Ti está nossa alegria”.

Agora passávamos pela ponte do Alsterkanal. Logo de­pois entramos na Rathenaustrasse, que só tinha construções à esquerda. À direita, nas belas margens do canal, viam-se videiras e arbustos nas encostas. Enxuguei o suor da testa. Ali era ainda mais quente do que em Viena.

Agora ouviam-se outros coros de vozes no rádio:

— Não queremos desculpas! Não queremos desculpas!

— Está vendo — disse o motorista. — Cara esperto, esse juiz. Como domina a turma!

Por fim deixaram Apel falar, e quando ele gritou: “Nunca mais deverá partir guerra do solo alemão!”, até aplaudiram. Não, a maior parte dos ouvintes parecia não querer apenas fazer confusão. Simplesmente eram contra o rearmamento do qual Andréia me falara. E eram muitos.

Dobramos à esquerda da Hindemburgstrasse e passamos pelo viaduto do trem da estação Alsterdorf. Antigamente ha­via hortas por ali. Agora, atrás dos blocos de apartamentos, erguiam-se os gigantescos escritórios da City-Nord, grandes silos de concreto arquitetonicamente audaciosos e fantasiosos, um amontoado de burocracia, à noite uma sinistra cidade-fantasma, pois ali não havia uma só moradia, não residia uma só pessoa.

— Tirem o brinquedo de guerra dos velhos senis do Kremlin e da Casa Branca! — quem gritava isso era Petra Kelly, da direção nacional dos “Verdes”, disse o locutor, e falou em uma “sala de silêncio”, na qual centenas de pessoas se sentavam mudas no chão, meditando e escrevendo em bi­lhetes o que queriam dizer, prendendo-os nas paredes. O locutor leu alguns dos textos: “...filhinha, quanto tempo ainda lhe darão de vida? ...Não queremos mais suicídio a pres­tação... Então, Deus, você está demorando demais com essa paz mundial...” E por baixo, disse o locutor, alguém escrevera com grandes letras: “Não, nós é que estamos demorando de­mais com a paz mundial, nós, homens!”

Ah, Andréia, pensei, ah, morte em Samarra...

— Vamos para a rua gritar: Fogo, fogo, nossa terra está queimando! — cantava um coro.

— Cara, se você não sabe dirigir pegue um ônibus — disse o meu motorista. Um carro diante de nós freava a toda hora, o homem no volante parecia inseguro.

Passamos pelo Jahnring e atravessamos o grande parque da cidade. À direita o sol chamejante do Plantário, por toda parte grandes árvores e arbustos de rododendros. Muitas pes­soas sentavam-se à sombra das velhas árvores nos lugares de piquenique tomando cerveja. Eu também gostaria de beber alguma coisa.

— Se os manifestantes pegaram o lema NÃO TENHA MEDO, pode-se ver como a teologia cristã está sendo corrom­pida com o zelo político — exclamou apaixonadamente uma voz masculina, que, como disse o locutor, pertencia ao bispo de Hamburgo, Hans-Otto Wölber. — Depois vão nos con­vencer também de que o perdão dos pecados não é válido porque pode ser interpretado como apaziguamento.

— O senhor não estava aqui, não pode entender — disse o motorista. — NÃO TENHA MEDO é o lema do Congresso Eucarístico. Eles têm um cartaz com um toco desses que tem no cais para amarrar navios. Mas há um cartaz de oposição. Em vez do toco, uma grossa cruz feita de duas bombas atô­micas, e por cima escrito: TENHAM MEDO! A MORTE ATÔMICA NOS AMEAÇA A TODOS!

Ainda atravessávamos o parque. Todas as janelas do táxi estavam abaixadas e um vento quente entrava no carro. Onde o sol batia não se podia pôr a mão, tão quente estava o couro.

Uma voz feminina soou no rádio:

— Junto de vocês tenho uma sensação maravilhosa na barriga. Tudo tão teórico e tão bonito. Mas quando eu voltar ao cotidiano, terá acabado. Tenho medo.

Depois uma voz muito aguda:

— Sr. Schmidt, tenho medo da sua política! — O locutor disse que um rapaz de dezessete anos tinha gritado isso ao Chanceler.

— É, vieram cento e trinta mil pessoas — disse o velho no volante. — Temos o grande movimento pacifista no país, não é? — Ele fez uma manobra. — O pacifismo alemão oci­dental é tão variado: há os ativistas da DKP, que amaldiçoam os foguetes americanos e justificam os foguetes soviéticos. De­pois temos os alternativistas, portanto os “Verdes”, que consi­deram americanos e russos criminosos sádicos. Depois há o ministro da paz, que louva Mahatma Gandhi e Martin Luther King e canta: “Paz sem armas!” Sem esquecer aquele que joga pedras em policiais. Depois os negativistas radicais, que vêem até nos reservistas uma espécie de serviço de defesa. E há muitos generais que querem uma defesa federal com arma­mentos convencionais, mas recusam qualquer coisa atômica. Sem falar nos pseudopacifistas fiéis a Moscou, que gritam que a Alemanha Ocidental tem de se desarmar, não importa o que faz o lado oriental, e que o Afeganistão foi uma medida asseguradora de paz. E há milhões e milhões que têm realmente um medo horrível, e rezam pela paz e a desejam. Eu sou um deles, e o senhor também parece ser.

— Não — disse eu. — Sou a favor da bomba atômica. Quero que caia direto na minha cabeça.

— Está vendo — disse ele, sorrindo para mim no retro­visor. — Logo vi.

Mal tinham acabado as árvores do parque, já estávamos em Winterhude, densamente povoado, e agora, ladeados por edifícios de apartamentos de ambos os lados, descemos uma longa rua para Uhlenhorst, até que vi a estação Mündsburg, e à esquerda, na Hamburgerstrasse, um complexo de edifícios parecendo um gigante dos oceanos, um imenso centro comercial com torres de escritórios que se erguiam no céu como enormes chaminés.

— E o senhor sempre foi motorista de táxi? — indaguei.

— Não — disse ele.

— O que era então?

— Professor assistente na Universidade. História Antiga.

— E o que aconteceu?

— Sabe — disse ele —, os pacifistas bem grandes, e bons, nunca tiveram sorte conosco na Alemanha. Pense na Primeira Guerra Mundial. Karl Liebknecht. Que homem! E daí? Assassinado. O que fizeram com Nada de novo no front, de Remarque? O que fizeram com Tucholsky? — Meu moto­rista era um ancião culto, defensor da justiça. E como a maioria dos velhos, falava demais. — Erich Kästner — disse ele. — “Conheces a terra onde florescem os canhões?”. Quem não co­nhece esse poema? E quando, e onde, jamais adiantou entre nós? A ninguém, infelizmente, temos de dizer. Quantos paci­fistas foram mortos nos campos de concentração ou mais tarde difamados! Kästner e Tucholsky, Remarque e Liebknecht e tantos outros, o que conseguiram? Hein?

O velho me interessava:

— Assistente de História Antiga? — perguntei.

— Sim.

— E o que aconteceu?

— Ora, esqueça — disse ele.

O locutor anunciou no rádio o cabaretista Hans Dieter Hüsch com um poema para a chamada defesa pública dos que negavam o serviço militar comum, escrito por Wolfgang Borchert.

— Pobre do Borchert — disse o meu singular motorista. — Também é um dos bons. O chanceler chamou os pacifistas de “infantilizados”, e o ministro da Defesa chama-os “baila­rinos do sonho”.

“— Oh, homem da máquina” — soou a voz de Hüsch — “és homem da oficina: se amanhã mandarem que não faças mais canos de água e panelas de cozinha, mas capacetes de aço e pistolas automáticas, há só uma coisa a fazer: dizer não!”

— Qual é a sua história? — perguntei ao motorista.

— Esqueça isso por favor, senhor! — disse ele baixinho.

Um rapaz disse no rádio:

— Paz sem armas, como está escrito aqui por toda parte, bom, acho que isso foge à realidade! — Recebeu aplausos e assobios, porém mais aplausos.

— Tudo isso é muito difícil — disse o motorista. — Mas me pergunto, não se pode ser pela paz e contra o rearma-mento? — Agora, ele falava depressa: — Não me entenda mal, por favor. Não sou dos que dizem que os foguetes dos americanos são maus, e os dos russos bons. Mas não é por acaso que esse congresso eucarístico trata de paz e de loucura do rearmamento. O que assusta as pessoas — as nossas e igualmente as do outro lado, só que os do Leste não podem dizer isso, têm de calar a boca, os pobres porcos —, o que assusta as pessoas é o estado do mundo, que, pensando de maneira totalmente objetiva e lúcida, se tem de achar doido. Li que neste ano os custos do armamento serão no mundo inteiro de mil bilhões de dólares. Mil bilhões de dólares! No ano passado, o Ano Internacional da Criança, morreram de fome no mundo todo doze milhões de crianças!

Fazia um calor terrível, eu escorregava de um lado para outro no assento de couro, tirara o casaco, e do rádio soava outra vez a voz do locutor, dizendo que agora falava o Presi­dente Carstens, que já dissera em Brêmen: “O Sermão da Montanha com a bênção dos pacíficos é um comovente aviso que cada um de nós deveria assumir pessoalmente. Mas é uma questão muito diferente se esse Sermão também vale para aqueles que têm responsabilidades sobre outras pessoas.” A voz do Presidente soou:

— ...No Sermão da Montanha diz-se por exemplo que não se deve resistir a quem nos fizer mal. Se isso deve valer para os homens e mulheres que a 20 de julho de 1944 tenta­ram eliminar o ditador Hitler, que odiava a humanidade e exterminava homens, então devemos questionar se talvez não infringiram os Mandamentos do Sermão da Montanha, mas com justificativa moral. Ou, em outras palavras: os povos da União Soviética, com toda a repulsa por Stálin que, sabe Deus, fez coisas terríveis — que sob as ordens de Stálin se reuniram para resistirem ao ataque de Hitler — eles resisti­ram àquele que lhes fazia mal. Sem dúvida, não no sentido do Sermão da Montanha. Apesar disso, estavam justificadamente resistindo a Hitler.

Passamos agora pelo Mündsburger Damm em direção da Aussen-Alster.

Um canto soou no rádio acompanhado por uma orques­tra: “Há medo no ar! Grande medo, pequeno medo, o meu medo... o teu medo!”

— Certamente — gritou uma voz aguda —, os russos também têm medo! Destruímos sua terra até perto de Moscou. Tiveram vinte milhões de mortos.

— É verdade — disse o motorista de táxi. — Medo, medo, medo, todos o temos, nós os pequenos. E há vários bilhões como nós! — No painel do carro havia a fotografia de uma menininha, numa moldura dourada, protegida por plás­tico. Uma menininha bonita, com longos cabelos louros e olhos azuis, que sorria. Meu motorista acariciou ternamente o retrato com a mão direita. Sua mão era áspera, com veias saltadas no dorso.

— Fico pensando e pensando, senhor. Vou fazer sessenta e cinco anos, e penso em minha netinha. Aí está ela, no re­trato. — Passou um dedo pela moldura. — Sou tudo o que ela tem. E ela é tudo o que tenho no mundo. — O rosto da me­nininha era cheio de inocência e graça. Já se viam os primeiros barcos a vela no Aussen-Alster.

— Como é o nome dela? — perguntei.

— Patrícia. Mas todos a chamam Patty. Uma boa crian­ça! Vai fazer oito anos. Eu a levo para a escola e a apanho lá. À tarde ela fica com tia Andréia.

— Onde? — perguntei depressa.

— Tia Andréia, numa biblioteca pública.

— Andréia Rosner? — perguntei inclinando-me para a frente.

— Sim, mas como? Conhece?

— E como!

— Não é possível!

— Estou lhe dizendo! Mas isso não existe!

Passamos pela bela enseada Schwanenwik e, sempre à direita de Aussen-Alster, fomos em direção do Hotel Atlantic.

Ele disse:

— Agora vou lhe contar. A srta. Andréia me falou do senhor, e que chegaria hoje às treze e quarenta e cinco com o avião da Lufthansa. Ela está tão nervosa! Perguntou se eu não podia ir ao Fuhlsbüttel apanhá-lo e depois logo o levar ao Atlantic: “Claro”, disse eu. Em Fuhlsbüttel reconheci-o ime­diatamente pela descrição, quando saiu pela barreira. Eu mandara o carregador ir ao seu encontro e levá-lo ao meu táxi. Portanto vou esperar pelo senhor diante do Atlantic, se quiser.

— Claro que quero!

— Meu nome é Hernin. Walter Hernin. — Estendeu para trás a mão direita, e eu a apertei.

— E meu nome é...

— Peter Kent — disse ele. — Está voltando da Argen­tina, porque tinha muita saudade da Alemanha. Eu sei, eu sei. O senhor escolheu a melhor época para voltar, sr. Kent. — Acariciou outra vez a foto no painel. — Sim, minha Patty também está com a srta. Andréia. Às seis da tarde eu a apanho. Então ficamos juntos até ela ir para a cama. São as nossas melhores horas. Toda a minha felicidade é essa meni­ninha, sr. Kent. Tenho vários táxis, sabe? Seis ao todo. A empresa vai muito bem... por enquanto. Agora, com a crise, não se sabe o que vai ser. Trabalhei muito tempo até chegar onde estou. — Acariciou o retrato mais uma vez. — Minha Patty, minha corajosa, minha bela. Seus pais morreram em um acidente de carro. — Pigarreou, pois sua voz ficara embar­gada. — Por isso é que penso, e penso, e tenho tanto medo. Pois quero proteger Patty de todo o mal. — Quis perguntar como pretendia fazer isso se chegassem os foguetes, mas não consegui, e disse:

— Seis táxis, Santo Deus. Então tem uma empresa imen­sa. O senhor é um homem rico!

— Mais ou menos — disse ele.

— Mas por que ainda dirige? O senhor é o chefe!

— Tenho de dirigir — disse ele. — Preciso trabalhar. Isso me mantém saudável. Quando não trabalhar mais, ficarei doente... e o que será de Patty? Não, não, tenho de dirigir, sempre. O medo — disse Walter Hernin, depois calou-se e escutamos outra vez as vozes do rádio, altas e baixas, iradas e brandas, e ouvimos fanfarras e cantos. — O grande medo — disse Walter Hernin. — Onde poderei arranjar um lugar se­guro para a minha Patty quando a coisa estourar? O senhor também não sabe, hein?

— Não — respondi. — Também não sei.

 

Eu já morara muitas vezes no Atlantic. Ninguém me re­conheceu como Charles Duhamel ou me olhou intrigado. Fi­quei definitivamente tranqüilizado. No meu apartamento en­contrei flores e champanha do gerente, e ao lado um ramo de flores do campo. Nesse vaso havia um envelope. Abri e li:

BEM-VINDO AO PAÍS DOS ESQUILOS,

MEU GATO AMADO!

Fui ao banheiro, tomei uma ducha rápida, vesti apenas outra calça e uma camisa branca e limpa. Estava um calor terrível, e todos os homens andavam só de calça e camisa, e também o meu motorista. Tratei de descer outra vez, porque ele esperava diante do hotel no carro.

— Temos de ir para Eimsbüttel, na Waterloostrasse — disse Hernin. — Lá fica a Biblioteca.

Passou pela ponte Kennedy, sobre cuja irmã mais velha, que corria paralela, a Lombardsbrücke, ficavam os belos can­delabros históricos. As pontes separavam Binnen-Alster e Aussen-Alster. Fomos para oeste. No caminho Hernin me con­tou que havia em Hamburgo bibliotecas grandes e pequenas. Só as grandes tinham também uma seção infantil.

Encontrou um lugar para estacionar diante da entrada. No térreo, a biblioteca se parecia com todas as demais biblio­tecas públicas. Vários rapazes e moças trabalhavam ali. Usuá­rios devolviam livros e tomavam outros novos emprestados. Outros sentavam-se lendo. Hernin cumprimentou para todos os lados, eu também. Descemos uma escada em caracol para o subsolo. Lá era mais fresco. Vi paredes cobertas de livros, e crianças — certamente uma dúzia delas, sentadas em banque-tinhas ou no chão, brincando ou lendo, algumas lendo alto para as outras. Havia entre elas crianças muito pequenas, e a mais velha teria uns catorze anos, meninos e meninas. Então vi Andréia. Acabara de emprestar um livro, estava parada diante do arquivo fazendo o registro. Então ela me viu tam­bém, e veio rindo ao meu encontro. Hernin afastara-se um pouco.

— Gato!

— Esquilinha!

Para trabalhar ela usava os grandes óculos redondos que eu já conhecia. Quando a quis beijar, recuou depressa.

— Hum, hum — fez, e me puxou para trás de uma alta prateleira. — O que é que as crianças vão pensar, rapaz? — Beijamo-nos generosamente atrás da parede de livros. — Ah, Gato, como estou contente por você estar aqui! Nem posso acreditar. — De repente, ela tinha lágrimas nos olhos, e tirou os óculos. Limpou as faces com um lenço. — Sou uma boba — disse ela. — Mas a gente fica tão nervosa, não é, Gatão?

— Claro — disse eu, e beijei-a mais uma vez, e toda a dor que sentira alguma vez na vida, toda a mágoa que jamais sofrera, foram esquecidas.

— Tia Andréia! — chamou uma voz infantil. — De­pressa! O hamster finalmente está comendo as cenouras!

— Venha — disse Andréia, que usava calças compridas brancas e uma blusa sem mangas, amarrada na frente. Fui atrás dela até as crianças, num aposento com janelas bem altas. Havia móveis pequenos, e brinquedos, e caixotes com muitos livros para olhar e ler. Tudo muito colorido e alegre, desenhos de crianças pendurados nas paredes. O assoalho es­tava coberto por um grande tapete vermelho, como um forro macio, pois provavelmente os menorezinhos caíam muitas ve­zes quando corriam ou estavam excitados. Num poleiro havia um papagaio, que me disse: “Bom-dia!”, e vi uma grande gaiola com um coelhinho branco, e ao lado devia estar o hams­ter, porque todas as crianças se tinham reunido lá. Andréia abriu caminho e ajoelhou-se. Sobre as cabeças das crianças vi uma gaiola de arame, e dentro dele um gordo hamster com orelhas redondas e grandes bochechas. Tinha pêlo amarelo-avermelhado, uma mancha amarela no ombro, pescoço branco e dois pronunciados dentes incisivos. Em sua casinha via-se uma porção de grãos, e ele estava sentado nas patas traseiras, segurando uma cenoura nas patinhas dianteiras, roendo. As crianças o contemplavam atentas, quase sem respirar. Andréia ajoelhou-se no meio delas, e depois de as acalmar um pouco, disse-lhes que havia também hamster bem pequenos, hamsters anões, e hamsters dourados, mas que aquele era chamado hamster do campo. As crianças o acariciaram com muita cau­tela, e o bichinho continuou comendo, enquanto o papagaio gritava sem parar: Bom-dia, bom-dia, bom-dia!

Perguntei:

— Mas vocês têm licença de ter bichos aqui?

Andréia respondeu sobre o ombro:

— Não, claro que não.

— E como é que eles estão aqui?

Andréia ergueu-se e saiu do meio das crianças, aproxi­mando-se de mim. Estava afogueada, e linda.

— Por causa do bom sr. Gerber — disse.

— Quem é esse?

— O bom sr. Gerber é um homem rico — disse ela. — Mora em Harvestehude, no Aussen Alster, num bairro muito mais chique do que este. Ele tem muitas lojas na Alemanha, onde se vendem animais, toda a sorte de animais. Ele os im­porta e exporta, e gosta de crianças e de bichos. Por isso pagou toda essa bela acomodação para nós aqui embaixo. Tudo o que você vê aqui é presente dele, também o papagaio, o hamster, o coelhinho. Porque crianças pequenas são loucas por bichos pequenos. O sr. Gerber também gastou muito di­nheiro para que pudéssemos comprar novos livros infantis. Nosso orçamento é muito limitado, você sabe. E aí natural­mente veio a Secretaria de Saúde e disse: “Os bichos têm de sair daqui!” E o sr. Gerber disse: “Mas as crianças adoram os animais. São só animais inofensivos. Nada de cobras ou cro­codilos.” “Não importa”, disse a Secretaria da Saúde. “Tire os bichos daqui, sr. Gerber!” E o sr. Gerber disse: “Muito bem, vou tirar os animais, mas também tiro tudo que mandei colocar aqui. E quero de volta o dinheiro que gastei, se as crianças não puderem ficar com os bichos, quero de volta todo o dinheiro que gastei.” — Ela se calou.

— E daí?

— Daí nada — disse Andréia. — Apenas temos de lavar bem as mãos e manter os animais limpos. Não é uma história com moral?

— Moral incrível — disse eu, e ela se inclinou para mim, me beijou, e apertou minha mão.

— Ah, querido, você está comigo. Você veio realmente. Hoje é o dia mais importante de minha vida. — Enganchou-se no meu braço e começou a passear pelo subsolo comigo. “Someday he’ll come along” — disse. — “Um dia ele virá, the man I love, o homem que amo.” Sei que você sabe inglês. Quando eu ainda nem ia para a escola, nem tinha noção de inglês, essa já era minha canção predileta. Minha mãe a can­tava com freqüência. Ela a conhecia dos grandes tempos dos americanos, pelo rádio. É uma canção bem antiga, de...

— Gerschwin — disse eu.

— Sim — disse ela. — Você naturalmente a conhece.

— Conheço tudo dele — disse eu. — Adoro Gerschwin.

— Como eu. Gerschwin. Rhapsody in Blue. O Concerto em Fá. Tantas canções. Meu Deus, ele morreu com trinta e nove anos, de um tumor no cérebro. Que lindas músicas ainda poderia ter escrito.

— Sim — disse eu. — Você gosta de Hemingway?

— Por quem os sinos dobram! — disse ela.

— Meu livro preferido — disse eu.

— Meu também.

— Foi o maior — disse eu. — Hemingway foi o maior de todos.

— E nós dois gostamos dele — disse ela. — Como de Gerschwin.

— Gostamos das mesmas pessoas, mesmos livros, mesma música e mesmas coisas — disse eu. — E é por isso que nos amamos, Esquilinha.

— “Someday he’ll come along, the man I love...” — cantou Andréia baixinho. — Agora ele está aqui. Sempre pen­sei nessa canção, meu Gato. Quando estava sozinha, e com saudades. — Ela cantou: — ... “and he’ll be big and strong, the man I love...”

— Não sou grande e forte — disse eu.

— Sim, você é muito grande e muito forte.

— Sou grande, mas forte não, nada forte. Tenho medo.

— Medo eu também tenho. E por isso também amo você, Gatão. — Cantou: — ...”and when he comes my way, I’ll do my best to make him stay...” Gatão — disse ela. — Meu Gatão.

Estávamos perto de um menino graúdo, que lia para duas menininhas as seguintes frases:

— “Como podemos ficar alegres se nos pegam na gar­ganta?, disse a gata. Porque estou ficando velha, meus dentes embotados, e prefiro ficar sentada atrás do fogão meditando em vez de caçar ratos o dia todo, eles querem me afogar! Fugi, mas agora não sei o que fazer.” “Venha conosco!, disse o galo. Em toda parte encontraremos algo melhor do que a morte...” — O menino ergueu os olhos para nós.

— Ali, você faz isso muito bem — disse Andréia.

— Ele lê muito melhor do que os outros meninos — disse uma das meninas.

— Ouviu isso, Ali? — disse Hernin, que se aproximara.

— E também fala alemão melhor do que a maioria.

— Obrigado, sr. Hernin — disse o menininho, que se levantou e fez uma mesura diante do motorista.

— Por que fala alemão melhor? — perguntei baixinho a Andréia.

— Porque é turco — disse ela quando fomos adiante. — Seus pais trabalham na Alemanha há muitos anos, e Ali nas­ceu aqui.

— Muitos operários moram em Eimsbüttel — disse Her­nin.

— Vovô! — chamou uma menina.

— Patty! — exclamou Hernin.

Uma menininha bonita, cujo rosto eu conhecia do retrato no táxi, veio em nossa direção. Mancava acentuadamente. Hernin nos apresentou, e Patty apertou minha mão, rindo. Depois abraçou e beijou Hernin, que se curvara sobre ela. Era uma criança muito doce.

Em Viena eu dissera a Andréia que crianças faziam baru­lho, quebravam tudo, brigavam o tempo todo, e ela respon­dera: “As nossas não são tão ruins assim”. Agora, eu via que era verdade. Tudo me pareceu mais uma vez absolutamente irreal, pois, para dizer a verdade, eu nunca suportara crian­ças. E agora me agradavam tanto. Fiquei imaginando a que se deveria isso. Até ali eu nunca observara direito crianças, por­que as rejeitava. Mas agora, não estava ali nem uma hora e escutara atentamente o pequeno Ali lendo, observando-o com cuidado. E havia ali tanta seriedade e compreensão pela afli­ção de um ser vivo, ainda que fosse uma velha gata, tanta compaixão e compreensão. O menino lera com a maior con­centração para suas amiguinhas, e não era o idioma que seus pais falavam. E as menininhas, por sua vez, não conheciam os preconceitos dos adultos, achavam o menino turco fabuloso. Estavam tão sérias e concentradas quanto ele, e igualmente comovidas com o destino do animal. Então pensei que todas as outras crianças que eu observava se portavam de maneira bem parecida. Eram “pessoas melhores”, como Andréia dissera em Viena. E naturalmente era o bom espírito de Andréia e seu amor por crianças que se notavam ali... no comportamento das crianças. E entendi também por que de repente eu estava gostando de crianças. Tudo era obra de Andréia.

Procurei por Patty, e quando me notou ela imediatamente riu para mim, deu dois passos em minha direção, mancando.

— Escute — disse eu —, você também está com tanto calor?

— Sim — disse ela.

— A gente devia tomar sorvete quando está tão quente, não é?

— É, devia — disse ela, piscando os olhos.

Convidei alto:

— Quem gostaria de tomar sorvete?

Todas as crianças berraram:

Eu!

Encarei Andréia, que fez que sim, e tirei do bolso uma nota de vinte marcos. Andréia disse:

— Sugiro que Ali e mais um de vocês vão aqui ao lado e coloquem os copos de papel nessa caixa de papelão aí — levantou uma caixa vazia —; assim será fácil de carregarem em dois. Quem quer ir com Ali?

Novamente todas as crianças gritaram:

Eu!

— Todos não dá — disse Andréia —, senão a pobre senhora da sorveteria vai ter um ataque, com esse monte de crianças entrando. Querem que Patty vá com Ali?

Todos concordaram, e os dois se foram.

— Está vendo — disse Andréia baixinho —, aqui é uma honra poder fazer compras ou brincar com um estrangeiro. Temos mais outras três crianças turcas. Aquela ali é Ayfe, o menino brincando com o coelho é Osman, e o menino deitado de barriga lendo é Ahmet. E se há racismo em todo o mundo, aqui jamais haverá!

Um menino maiorzinho chegou e devolveu A história infi­nita, de Michael Ende. Andréia perguntou se gostara do livro.

— Uma loucura — disse o menino. — Simplesmente uma loucura. O mais bonito que li na vida. Esse escritor é um cara e tanto.

— Você gostaria de ler Momo, dele?

— Gostaria — disse o menino, hesitante.

— Mas?

— Bom, tenho medo, sabe?

— Medo de quê?

— Ora, um livro tão fantástico como A história infinita. Tenho medo de que um escritor não consiga escrever dois livros tão bons. Naturalmente eu gostaria muito de ler Momo. Mas não pode ser tão bom quanto o outro. E então prefiro não ler, para não começar a comparar, entende?

— Entendo — disse Andréia. — Pode levar Momo, por­que é tão bom quanto o outro.

— Tem certeza?

— Palavra de honra! Li os dois e, acredite, os dois são de primeira.

— Bom, então, por favor, Momo — disse o menino. — E obrigado por me dizer isso. Agora não preciso ter medo de uma decepção, porque acredito em você.

— Venha, o livro está lá atrás — disse Andréia, e foi com o menino até a prateleira, enquanto eu perguntava a Hernin:

— Mas o que há com Patty?

Ele disse baixinho:

— Ela teve inflamação da medula do osso. Gripe, sabe, e andou de esqui, e um menino a atropelou, um dos esquis pegou o osso. Todo o pus no tornozelo. Primeiro trataram dela de modo errado, depois tiveram de operá-la, e a deixaram oito meses no gesso, pobrezinha. E ela é tão comportada, nunca chorou. Tive de carregá-la por toda parte, e ela sempre rindo. E me consolou quando a perna ficou mais curta e não cresceu, e começou a mancar. “Isso vai ficar bom, com certeza”, dizia ela, e ainda hoje diz. O que lhe parece?

— Quando foi que aconteceu?

— Há dois anos.

— Certamente a perna ainda vai crescer — disse eu, mas não pude acreditar. Depois de tanto tempo, ela não se iguala­ria mais à outra. — Com certeza — acrescentei.

— Os médicos dizem que não, que com certeza não — disse ele, preocupado. — Tenho tanto medo de que ela fique manca quando crescer. E ainda por cima, uma moça bonita e manca.

Afastamo-nos um pouco para não atrapalharmos as crian­ças, e ouvi um dos maiores dizer ao amigo:

— É assim que funciona a bomba de nêutrons, entende? Poupa a casa mas mata a vovozinha.

Andréia e o menino voltaram com o livro Momo. Ele apertou a mão dela gravemente e disse:

— Obrigado. — Depois, sumiu.

Andréia veio até nós.

Ouvimos Patty chamar:

— O sorvete chegou! — e já vinha ela descendo a escada em caracol com Ali, segurando à frente a grande caixa de papelão repleta. Nas escadas quase não se notava seu defeito. Mas ela não vai subir e descer escadas a vida toda, pensei. Houve um tumulto até Andréia e eu distribuirmos os sorvetes, e quando todos tinham o seu, houve um silêncio solene, como numa igreja, por longo tempo. Ouviu-se o hamster grunhir, e uma menininha disse:

— Podem dizer o que quiserem, mas framboesa com cho­colate é o melhor!

Apertei a mão de Andréia e disse:

— Amo você muito, muito, Esquilinha.

— E eu a você então, Gato — disse ela. — Ah, e eu a você.

 

Walter Hernin disse que precisava trabalhar até as seis, depois viria apanhar Patty. Antes de sair beijou-a. Fiquei com Andréia olhando-a brincar com as crianças, emprestar livros ou receber os que eram devolvidos. Fiquei sentado em uma banqueta azul, num canto, admirando o belo andar de An­dréia, e seu sorriso quando falava, sua maneira de jogar a cabeça para trás, simplesmente tudo nela. Seu cachorro de sorte, pensei. Você é realmente um cachorro de sorte. Andréia sentou-se ao meu lado.

— Gosta daqui?

— Muito, Esquilinha.

— Pode entender que eu ame minha profissão?

— Sim.

— Hernin é um grande sujeito — disse ela.

— Sim — disse eu. — Mas o que aconteceu com ele? Não quis falar a respeito.

— Acho que só contou para mim. Ninguém mais conhece a sua história. Mas você e eu agora somos um só, por isso posso confiá-la a você. Escute: Eu ainda não tinha nascido e Hernin já era um professor assistente de primeira na Univer­sidade. Já dava seminários sobre História Antiga, e os profes­sores o apreciavam muito. Depois vieram os nazistas. Houve resistência na Alemanha, isso é certo. Hernin é socialista, um dos bons, da velha cepa. Foi escolhido pela SPD secreta para salvar vidas humanas no papel de grande homem na SS.

— Mas como foi possível? — perguntei, olhando as crianças que brincavam, e segurando a mão de Andréia.

— Ele se apresentou voluntariamente em 1942. E os nazis­tas estavam esperando exatamente um homem assim. Logo se tornou chefe de Tropa de Assalto, algo como um Major, me disse ele. Havia muitos que não gostavam de ser soldados, e muitos odiavam os nazistas e simplesmente não conseguiam ficar de bico calado na Wehrmacht ou nas fábricas. Iam parar nos batalhões de punição, ou eram condenados à morte. Bem, Hernin escolheu gente de confiança e conseguiu um comando especial, que caçaria na Alemanha todas as pessoas contrárias a Hitler. Naturalmente fez isso só para manter uma aparência, e sem nenhum sucesso. Mas estava numa posição — imagine, em 1944, quando tudo estava desmoronando — de poder salvar aqueles homens e mulheres que contavam com a pena de morte certa. Espere aí, Gatão querido.

Uma menininha chegou pedindo O Urso Pu para seu irmãozinho, que trazia pela mão, e para si mesma pediu Os meninos da rua Paulo, de Ferenc Molnar.

— Bem, continuando — disse Andréia quando os dois se foram. — O movimento de resistência de seu partido proibido transmitia todo o tempo a Hernin novos nomes de gente con­denada à morte, e também os locais das prisões. Ele tinha um monte de papéis falsificados, e quando chegava com seus homens numa prisão, agia com muita severidade, por exem­plo, dizendo que tinha de levar para outra prisão o soldado Meier, condenado à morte, sentado ali atrás. Para isso tinha sempre papéis falsos confirmando o que dizia. E assim tirou da cela muitos homens e mulheres, e a organização os fazia desaparecer de circulação imediatamente. Hernin salvou a vida de muitos, e com isso sempre arriscou a própria, pois naturalmente seus superiores não eram idiotas, e a Gestapo estava atrás do misterioso chefe da SS que aparecia por toda parte e sumia como um raio.

Um menininho saiu do banheiro, com a calça aberta, e veio até nós nas duas perninhas tortas, pedindo:

— Por favor, tia Andréia, feche as minhas calças! — Quando ela as fechou, ele agradeceu gravemente e foi ver o coelho.

— Mas um dia — disse Andréia — aconteceu algo horrí­vel, Hernin me contou tudo com detalhes, porque sempre se atormenta muito com isso. Cada palavra pronunciada aquela vez está gravada a fogo em seu cérebro, em sua memória. Havia um ferroviário que seria condenado à morte, pois tinha colado à noite panfletos contra Hitler em paredes e muros. O homem chamava-se Hans Taler, e estava na prisão de Kufstein; por isso, Hernin foi com sua gente até lá. Pediram que lhes entregassem o tal de Taler, e os funcionários assustados, o entregaram imediatamente, e Hernin lhes deu como recibo a ordem de transferência, com assinatura falsa. Depois partiram em três automóveis o mais depressa possível, pois era sempre o momento mais perigoso, você sabe. Foram até Hallein, que fica em Salzburgo. Era noite alta e nevava muito, e em Hal­lein, na saída da cidade, vivia um marceneiro sozinho com a mulher, e faziam parte da organização, e aquele Taler de­veria ficar escondido lá até a noite seguinte. Depois os homens o levariam para a segurança nas montanhas. Bem, chegaram em Hallein, e à casa do marceneiro, e entraram com Taler, só dois ficaram fora, de guarda. Taler não dissera nada o tempo todo, e pensavam que estava abalado demais, e mesmo agora, na sala aquecida do marceneiro...

 

“...ele não disse uma palavra.

Era um homem bem-nutrido, de trinta e oito anos, ao menos era o que diziam os papéis que Hernin tinha, e usava um terno amassado. Durante a viagem tinham lhe dado um cobertor que ele pusera nos ombros. E agora estavam todos na sala do marceneiro, e esse Hans Taler parado no meio, tre­mendo, dentes batendo, muito pálido.

— O que há com você? — perguntou o marceneiro. — O que foi? Ainda com medo de ser condenado à morte?

E a mulher dele, que ia ter um filho e já estava barri­guda, perguntou.

— Está se sentindo mal, Taler? Quer um gole de bebida?

— Não — disse ele —, não quero beber.

— Mas então, o que foi?

— Eu é que pergunto — disse ele. — Quem são vocês? O que vai acontecer comigo agora, Comandante? O que vão fa­zer comigo? Isso é desumano, Comandante! O que significa, condenado à morte? Suplico-lhe! Alguns anos, sim, isso eu mereço, mas não a morte... pobre da minha mulher, dos meus filhos... — E caiu numa cadeira junto da grande mesa, pôs a cabeça nos braços e chorou.

E os homens e mulheres se entreolharam perplexos, e Hernin teve a sensação sinistra de que alguma coisa saíra erra­da. Um dos seus homens berrou com Taler, que chorava, dizendo que se controlasse e parasse com a choradeira, e se levantasse. O homem de terno amassado, mãos ainda nas al­gemas, levantou-se obediente e ficou ali parado, tremendo.

— Não recebeu a mensagem de que íamos soltar você?

— Não recebi mensagem nenhuma. Não sei de nada — gaguejou o gordo, desesperado. — Por que me tiraram da prisão? Por que querem me matar?

— Não queremos te matar, os nazistas é que querem, por isso o tiramos de lá, seu idiota!

Hernin, parado no fundo da sala, mandou o seu homem calar-se imediatamente.

Então tomou a palavra.

— Você se chama Hans Taler?

— Sim, Comandante.

— Por que foi preso?

— Por vender no mercado negro — disse Hans Taler, lágrimas rolando nas faces. — Mas por isso não podem me matar, por amor de Cristo, eu lhe suplico, senhor Coman­dante!

E não obteve resposta.

De repente, fez-se um silêncio mortal na grande sala cheia de gente, todos paralisados de horror. Agora estava tudo claro: tinham libertado o homem errado.

 

“Levaram-no à oficina e o prenderam pelas algemas num cano de calefação. Ele exclamava aos soluços:

— Soltem-me, soltem-me! Por que fizeram isso? Agora, se me apanharem vou ser enforcado de verdade. Quero vol­tar, quero voltar, quero voltar para a prisão! Juro que não digo uma palavra sobre vocês. Não vou trair ninguém. Mas me deixem na frente da prisão, e direi que me jogaram do carro.

— Isso é estupidez, cara! — disse um dos homens.

Estavam todos muito nervosos.

— Então, imaginem outra coisa... qualquer coisa... só quero dizer que não vou trair ninguém, dizer a ninguém aonde me trouxeram e como vocês são, se me perguntarem... Dei­xem-me voltar para a prisão, por favor, por favor. Imagino quem vocês são e o que aconteceu, mas nunca vou trair vocês... — Chorava. — Minha mulher e meus filhos...

Então amordaçaram-no.

Voltaram à sala e sentaram-se, refletindo. A Central co­metera um erro. Hans Taler não era nome raro. Aquele Taler a quem a morte ameaçava estava noutra prisão; um erro terrí­vel fora cometido. Os homens ficaram calados longo tempo, e a mulher grávida rezava baixinho. Lá fora o vento noturno uivava, a neve caía em densos redemoinhos.

— O que fazemos com o sujeito? — perguntou um dos homens finalmente. — Diabos, o que fazemos com ele? Não podemos soltá-lo aqui.

— Não podemos soltá-lo em parte alguma. Pois ele vai correr imediatamente ao primeiro posto de polícia, contar tudo.

— Ele jurou que não ia dizer nada.

— Merda — disse o marceneiro. — O que querem que ele faça? Tem de ir para algum lugar. Talvez queira ir para casa. Mas também não pode fazer isso, se os vizinhos o virem vão acusá-lo imediatamente, pois sabem que está metido no mercado negro.

— Ele quer voltar para a prisão, e jurou que não ia nos trair.

— Não trair no cu — disse um homem com ódio contido. — Como imagina isso, cara? Ele vai tocar a campainha e dizer, bom-dia, voltei mas não digo quem me trouxe? Se esse desgraçado aparecer em qualquer lugar, a Gestapo estará em cima dele na hora. E a Gestapo anda atrás de nós. Atrás de um comandante da Tropa de Assalto, e de uma dúzia de pessoas com as quais a toda hora ele aparece e some.

— Ele nos viu... e a vocês dois também — disse outro ho­mem ao marceneiro e sua mulher.

— E acham que ele vai ficar de bico calado na Gestapo? — perguntou um terceiro, sarcástico. — Na Gestapo? Se o interrogarem de verdade? Começa a falar quando mal enxer­gar os instrumentos deles. Só há uma solução.

— Qual?

— Temos de acabar com ele, imediatamente — disse o homem.

Os outros concordaram.

Só Hernin discordou.

— Talvez ele realmente cale a boca na Gestapo.

— Nem você mesmo acredita nisso.

— Mas não podemos matar o cara! — disse Hernin, hesi­tante. Diabos, pensava, diabos!

— Temos de fazer isso, Hernin! Temos! — disse um dos homens. — Não há escolha. Não se trata só de nós, do marce­neiro e de sua mulher. Se ele der com a língua nos dentes... e vai fazer isso assim que começarem as torturas — vão nos pegar primeiro, pela descrição dele. Então terão o misterioso comandante de Tropas de Assalto e seus homens. Mas, e de­pois? Quando nos interrogarem? Eu lhes digo, não há heróis que calem a boca diante da Gestapo e não revelem nada. Isso não existe. No fim todo mundo fala... e com isso toda a orga­nização vai pelos ares. Pensem em quantas pessoas estão em perigo mortal por causa desse sujeito de merda! Centenas! Milhares! A Gestapo vai matar todas, todas! Não, ele tem de morrer, imediatamente! — O homem deu um soco na mesa. — Hernin, exijo que ele seja morto imediatamente. Temos de pensar em todas as outras pessoas!

Ele recebeu apoio de muitos.

— Certo!

— Matem o cara logo!

— O que mais podemos fazer?

— Quem sabe os camaradas o levam para as montanhas amanhã e o escondem para não nos trair?

— É loucura. Ele vai berrar tanto que vai juntar Salzburgo inteira! E também não podemos deixá-lo inconsciente a pauladas, porque ele teria de caminhar escalando montanhas!

— Agora temos de pensar em nós e nos muitos que for­mam a organização!

— Isso.

— Trata-se de nos matarem ou continuarmos nosso tra­balho.

Hernin começou a tirar a roupa.

— Empreste-me um terno — disse ao marceneiro, que tinha o tamanho dele —, um chapéu e um manto!

— O que quer fazer?

— Dar uma chance a ele.

— Que chance?

— Vou simular um interrogatório da Gestapo com ele — disse Hernin. — Vou mudar de roupa e pôr o chapéu. Ele mal me avistou. Vou dizer que sou de um comando da Gestapo e que ele tem de me dizer o que sabe.

— Tempo perdido.

— Mas ele tem de ter uma chance! — disse Hernin veemente. — Cada pessoa tem de ter a sua chance! Não o conhecemos. Às vezes os mais medrosos são os de maior co­ragem.

— Você não pode simplesmente dar ordens nesse caso, Hernin. Todos aqui temos o mesmo direito de falar. Trata-se da vida de todos nós.

— Então votamos. O marceneiro e sua esposa também — disse Hernin. — Quem aceitar minha sugestão levante o braço.

Fizeram a votação.

A sugestão de Hernin foi aceita por um voto a mais. A mulher do marceneiro votara a favor dele.

 

“Em traje civil e um longo manto por cima, chapéu puxa­do no rosto e na mão uma grande pistola do exército, modelo 8, calibre 9, Hernin foi à oficina. Vendo-o, o traficante ge­meu de susto.

— Gestapo — disse Hernin brutalmente, disfarçando a voz. — Ora, quem é esse? — Ele tirou a mordaça da boca do falso Taler e livrou-o das algemas. — O que aconteceu com você? — disse, esforçando-se para ser muito brutal. — Dei­xaram para trás, hein? Não tenha medo, nós os pegamos, está tudo trancado, alarme máximo. Nunca vão conseguir escapar.

Antes que Hernin fosse à oficina sua gente arranjara tudo, correndo para os três automóveis, praguejando alto, e partindo com os pneus cantando. Meia hora depois tinham voltado, fazendo uivar os motores antes de desligá-los, e de­pois entrando novamente na casa do marceneiro.

— Como é seu nome? — perguntou Hernin.

— Hans Taler...

— Levante-se! — berrou Hernin.

Taler levantou-se tremendo.

— Vire-se! Rosto para a parede! Testa grudada na pa­rede!

Taler obedeceu.

Hernin parou atrás dele. Assim ele não vê meu rosto, pensou; fingiu carregar a arma e pressionou a boca do cano na nuca de Taler.

— Quem foi que te amarrou?

— Não sei. — Ele já levara dois fortes pontapés na bunda.

— Não sei mesmo! — exclamou Taler desesperado. — Foram uns homens estranhos, que me prenderam aqui.

— Por quê?

— Não sei. — Taler tinha suor na testa.

— Que homens eram?

— Nem idéia.

— De onde é você, seu porco?

— Kufstein. Eles me tiraram da prisão.

— Você estava na prisão em Kufstein?

— Eu já disse...

— Por quê?

— Mercado negro.

— Agora, vai me dizer o que quero saber. A verdade, isso você vai me dizer. Se não, rebento sua cabeça, seu cagão. Que pessoas eram essas?

— Não sei, de verdade...

— Como era a cara deles?

Nada de resposta.

A pressão da pistola na nuca ficou mais forte.

— Então, vai ser logo? Como era a cara deles!

— A iluminação era ruim em Kufstein. E aqui eles logo me meteram na oficina.

— Cara, atiro se continuar assim mais um segundo.

O homem com terno amassado tremia.

— Foram soldados...

— Que uniformes?

— Da SS.

— Quem era o chefe? — perguntou Hernin com voz mu­dada.

— Não sei... não sei de verdade...

— Quantos eram?

— Seis... não, oito com o chefe...

— Então havia um, seu porco!

— Sim, sim... por favor, me deixe viver... não atire... Não atire... Tenho mulher e dois filhos pequenos...

— Você vai bater as botas tão depressa que nem vai no­tar. Seu cérebro vai grudar na parede, seu porco. Que chefe era esse? Está ouvindo? — A pistola enfiou-se mais na nuca.

— Os outros o chamavam de Comandante...

Não, pensou Hernin, por favor, não...

— Como era ele, esse Comandante?

— Grande... forte... rosto estreito... olhos cinzentos...

— E os outros?

— Eram tantos...

— Pense!

— Tinha um de rosto largo, com nariz quebrado... e um forte e comprido... e um gordo muito alto, que dirigia...

— Quantos carros eram?

— Três... por favor, me deixe viver! Vou lhe dizer tudo.

— Então diga tudo!

— Eles me tiraram da prisão, mas foi engano. Só aqui notaram isso. Queriam tirar um Hans Taler que ia ser conde­nado à morte, e por engano foram a Kufstein e me pegaram, eu era o homem errado...

— Homem errado? Então eles fizeram isso outras vezes, é?

— Acho que sim... o Comandante berrou com os funcio­nários... todos tinham medo dele... e ele mostrou documentos, dizendo que tinha de me transferir para outra prisão... os funcionários não podiam fazer nada e me entregaram... ao Comandante da tropa...

— Você o reconheceria se o visse?

— Claro...

— E os outros também, se os mostrarmos?

— A maioria, claro... Posso me lembrar de quase to­dos... Lá na sala estava claro... Primeiro fomos para lá... E também me lembro do marceneiro e de sua mulher... ela está grávida... e se vocês interrogarem a todos eles...

A mão de Hernin tremia.

— Vou dizer tudo. Agora me lembro de tudo... bem di­reitinho... Mas me deixe viver, por favor, me deixe viver...

O rosto de Hernin estava branco como cal.

Afastou-se e destravou a arma.

Seu dedo dobrou-se no gatilho.

E um tiro reboou.”

 

Bom-dia, bom-dia! — gritou o papagaio.

— Que coisa terrível — disse eu.

— Sim, terrível — disse Andréia, que me contara tudo o que acabo de escrever. — Mas Hernin não tinha mesmo outra escolha, se não quisesse que a sua gente, mais o marceneiro e a mulher, e todas as pessoas da organização, e ele próprio, fossem entregues à Gestapo, não é?

— Não — disse eu.

— Enterraram o falso Taler na mesma noite. Por sorte nevava muito. E depois trataram de desaparecer. Tiveram sor­te. A Gestapo não os pegou. O marceneiro e sua mulher ainda hoje vivem em Hallein. Ele e uma porção de gente que Hernin salvou depuseram em favor dele depois da guerra, num tri­bunal americano, e naturalmente ele foi libertado na hora. Aliás, o julgamento nem se teria realizado se Hernin não ti­vesse insistido nisso.

— Por que fez isso?

— Para justificar-se diante da mulher do homem a quem tivera de matar, essa sra. Taler com seus dois filhinhos. E eles o perdoaram.

— Mas se tudo acabou assim, não entendo...

— Espere — disse Andréia. — A história não acabou ainda. Os americanos — Hernin vivia em Frankfurt — lhe deram a missão de iniciar imediatamente a construção de uma nova escola superior, no meio dos escombros, em 1945, ainda no outono. Simplesmente não havia nada, disse-me Hernin, a terra era só escombros e cinzas, as pessoas moravam nos po­rões das ruínas, não havia nada ou bem pouco para comer, e quando o inverno chegou, foi o pior inverno de que mesmo os mais velhos se lembravam. E não havia nada para se aquecer, muita gente ficou congelada, muita gente morreu, e não havia remédios, os hospitais eram lugares onde as pessoas só iam para morrer — especialmente os de crianças. Lá era pior, os pequenos precisariam urgentemente de vitaminas e comida substancial, mas não existia nada disso. Hernin tinha um amigo, chefe de uma grande clínica pediátrica, sabe. Por isso sempre via aquela miséria horrível... crianças textualmente morrendo de fome. Naturalmente os americanos mandavam pacotes de comida, mas muitas vezes nem chegava até aquele hospital, e era pouco, muito pouco. Alguns dos homens que tinham estado com Hernin na guerra agora trabalhavam como civilian guards, nas tropas de proteção civil em instalações americanas, e depois que outra menininha morreu de fome na clínica de seu amigo, Hernin teve uma idéia. Três de seus companheiros de guerra pertenciam à Proteção Civil num an­tigo hangar de montagem de aviões, no qual os americanos armazenavam víveres para as tropas...

 

“Era uma noite escura de lua nova em um gélido janeiro de 1946. O hangar de montagem erguia-se imenso diante de Her­nin e seus amigos. Os quatro estavam deitados no chão gelado cortando o arame farpado que rodeava o complexo. Era um buraco tão grande que puderam rastejar um atrás do outro. Usavam roupas claras para não serem vistos facilmente na neve.

Diante do hangar de montagem havia numa imensa praça, chamada truck pool, filas de pesados caminhões do exército. Hernin sabia de seus amigos que eles já estavam carregados com açúcar, farinha, carne e outros alimentos. Na manhã seguinte os caminhões iriam para várias unidades ame­ricanas entregar os víveres. Isso se fazia três vezes por semana, e os civilian guards ajudavam a carregar.

A paisagem ampla era iluminada por holofotes, mas entre os caminhões era escuro, e Hernin e seus três amigos correram para lá, agachados. Depois cada um saltou para o assento de um caminhão, os pesados motores foram ligados, e sem luz saíram em disparada, um atrás do outro, em direção da saída, fortemente vigiada por soldados americanos.

Tudo se passou muito depressa.

O primeiro caminhão chegara à casinha da guarda e à barreira, o motorista afundou o pé no acelerador, madeira e metal se estilhaçaram, a barreira se rompeu, o caminhão dis­parou pela noite. O segundo foi atrás. Da casinha da sentinela saíram correndo soldados americanos, com pistolas automá­ticas. Primeiro correram atrás dos dois caminhões, depois vol­taram-se para os dois outros, que ainda estavam ali. O pára-brisa estourou com ruído na cara de Hernin, pedaços de vidro entraram em suas orelhas. Ele se agachou o mais que pôde, para conseguir ver um pouco, e pisou no acelerador. O carro diante dele começou a derrapar, mas foi dominado e disparou sobre os americanos, que recuaram horrorizados.

Então um holofote se acendeu numa torre de vigia, tão forte que ele ficou imobilizado pelo ofuscamento. Arquejante, pegou da jaqueta a velha pistola do exército alemão, modelo 80, calibre 9. Não a devolvera, embora soubesse que quem não devolvesse as armas seria punido com pena de morte. Ergueu o cano e atirou naquele holofote implacável. Esvaziou o pente, enquanto disparava com o caminhão, e os soldados ameri­canos alvejavam o veículo. Ouvia balas passarem perto, sibilando, algumas enterrando-se no caminhão. O holofote em que ele acertara apagou-se. Mas devia ter acertado em mais alguma coisa, porque uma grande sombra despencou da torre de vigia. Hernin agachou-se mais, e saiu disparando com o caminhão pela barreira arrebentada, perdendo-se na noite.

Cinco horas depois, a polícia militar americana o pren­dia.”

 

— Um de seus amigos fora atingido pelas balas ameri­canas e estava num hospital com ferimentos graves... um hos­pital americano, porque os enfermeiros tinham visto a estrela branca no caminhão atravessado numa rua do subúrbio, onde foi encontrado por homens que iam trabalhar no primeiro turno. Um homem estava caído sobre o volante. Estava des­maiado e perdera muito sangue. Cirurgiões americanos o ope­raram logo, salvando-lhe a vida. Não tinha documentos, mas agentes da CID, a polícia criminal do exército, o identifi­caram. Pouco depois sabiam quem era o homem: um colaborador do famoso Walter Hernin, que no tempo do nazismo salvara tantas vidas humanas. Esse homem e dois outros ami­gos de Hernin foram encontrados pelos agentes da CID na lista de pagamento dos civilian guarás do depósito de alimen­tos. Prenderam os homens, que admitiram tudo. Então os agentes também prenderam Hernin, que também admitiu tudo. E dessa vez se deu mal, embora mais uma vez só qui­sesse fazer o bem — contou Andréia.

— Por quê? — perguntei. — Um assalto desses não é bonito, mas...

— Não foi só o assalto — disse Andréia. — Na torre havia um alemão, outro civilian guard, de serviço, manejando o holofote, e Hernin lhe acertou um tiro no pulmão.

— Pulmão?

— O homem não morreu, graças a Deus, mas Hernin foi parar novamente diante de um tribunal militar. Teve um de­fensor americano muito bom, por isso os americanos apenas o condenaram a trinta anos.

— Ele foi para a prisão? — perguntei horrorizado.

— Estou lhe dizendo.

— “A cozinheira preta está aí?” — cantavam as crian­ças. — “Sim, sim, sim! O que fizeram com ela...?”*

* Cantiga infantil. (N. da T.)

 

— Em 1956 as autoridades alemãs o libertaram depois de dez anos, e ele foi morar com o filho. Quando me contou sua história disse que sua pena elevada fora correta, pois matara um ser humano. E objetei que o homem se salvara. “Por sorte”, disse, “senão seriam dois.” Referia-se ao outro, o falso Hans Taler, a quem raptara da prisão de Kufstein com seus amigos e tivera de matar. Disse-lhe que se não tivesse feito isso talvez tivessem sido assassinadas mil pessoas, e ele respondeu: “É verdade. Mas matei uma pessoa. E quem mata um ser humano destrói um mundo inteiro.”

— ...“alguém a matou” — cantavam as crianças.

— Agora fora punido. Perdera dez anos, e não se podia mais pensar em carreira na Universidade — disse Andréia. — E demorou muito até finalmente conseguir uma concessão de táxi. Esta é a história de Walter Hernin, que foi um bom homem em tempos ruins.

— “...você tem culpa, tem culpa, tem a maior culpa!” — cantavam as crianças.

 

Naquela noite sentamo-nos num restaurante lá fora em Blankenese. O restaurante ficava junto de um rio, e eu sabia que era o Elba, mas tinha a sensação de já ter estado um dia sentado junto de um rio assim, grande e escuro, que não era o Elba... em algum lugar, não lembrava onde. Comemos peixe e bebemos vinho branco, e ficamos ali sentados quietos olhando um para o outro. Andréia tinha um Volkswagen velhíssimo, e tínhamos vindo com ele. Estávamos sentados ao ar livre, debaixo de velhas árvores, e ainda estava muito quente depois daquele dia tórrido.

Quando fizemos o pedido, Andréia colocou os óculos re­dondos. Eu sempre me comovia vendo-a com aqueles óculos imensos, e pensei no quanto a amava. Assim que não pre­cisou mais dos óculos, ela os tirou.

— Amanhã é sábado — disse ela. — Posso tomar café na cama e vagabundear. Sempre me alegro muito com fins de semana.

E pensei em como eu temera e odiara os fins de semana, e como no último ano quase não saíra da cama, dormindo mui­tas horas, o tempo todo para não ter mais de ver nem ouvir Yvonne. Yvonne, Paris, minha vida antiga... Como tudo es­tava longe! Parecia fazer anos, e eram apenas dias. Um navio bem-iluminado deslizava na água escura do rio, em direção do mar, e pensei que também desejava viajar com Andréia.

— Não temos uma vida boa, querido? — perguntou ela, olhos iluminados.

— Maravilhosa — disse eu. — Beba mais um pouco de vinho! — Enchi o copo dela, e ela bebeu. — Ponha os óculos — disse eu.

— Não, Gatão, por favor.

— Por favor! Você fica tão excitante de óculos. Tão imensamente desejável.

— Então tenho de colocá-los — disse ela, e os colocou. — Estou intensamente desejável agora, Gatão?

— Desmedidamente.

— Então está bem. Vou pôr os óculos sempre que nós... Meu Deus, vai ser divertido! — disse ela.

— Exatamente nessa hora você deve colocá-los, Esquilinha — disse eu.

— Você é um pervertido.

— Graças a Deus. Espero que você também seja.

— Sou completamente devassa — respondeu.

— Sim, já notei — disse eu. — Vamos beber mais um pouco, sra. Esquilo?

— Não nos fará mal algum, sr. Gato — disse ela, e bebemos outra vez.

— Em que está pensando? — perguntei.

Ela estremeceu:

— Como? Como sabe que estou pensando numa coisa?

— De repente você ficou com um olhar tão alheado e feliz...

— Eu estava realmente pensando numa coisa, Gatão.

— Em mim?

— Não.

— Quem então?

— No sr. Osterkamp.

— Quem é ele, sra. Esquilo? Não gosto de saber que a senhora conhece tantos homens.

— Primeiro, caro sr. Gato, não são tantos, e segundo, nem conheço o sr. Osterkamp.

— Mas como pode pensar nele?

— Ele não me sai do pensamento.

— Isso é incrível.

— O sr. Osterkamp tem setenta e um anos, e perdeu a mulher há um ano. Ela morreu tranqüilamente, dormindo, disse o sr. Langenau.

— Mais um homem na sua vida!

— Sim, tenho de admitir. Eu escondera isso até agora, mas preciso dizer. O sr. Langenau é um antiqüíssimo amigo meu. Saúde, sr. Kent!

Ela bebeu.

E eu também bebi.

— Estou vendo que está ficando impaciente, sr. Gato, por isso quero avisar: tive dois grandes desejos na vida. Um se realizou quando o encontrei. O segundo desejo, caro sr. Kent, ainda não se realizou.

— E qual é, cara sra. Esquilo?

— Uma livraria minha — disse ela encarando-me pelos vidros redondos dos óculos. — E esse sr. Langenau é livreiro do sr. Osterkamp, o que significa algo que o senhor certa­mente já entendeu — o sr. Osterkamp tem uma livraria. Na Tornquiststrasse. Não é muito grande, é média, exatamente como a sra. Esquilo deseja. E ela também economizou vinte e cinco mil marcos, mas naturalmente isso é muito pouco. — Colocou a mão na boca, assustada.

— O que foi? — perguntei.

— Ora, sou realmente um horror! Mal consigo você, e já começo a falar nisso! Deus, isso é horrível! Agora você vai pensar que sou uma mulher gananciosa, que quer explorar e lograr você. Santo Deus, o que fui fazer!

— Ora, acalme-se — disse eu, mas ela não se acalmou, e tive de me levantar, sentar-me junto dela e abraçá-la. Ela não quis mais falar no assunto, e tive de insistir uns dez minutos até ela concordar.

— Mas você jurou que não vai me considerar astuta e mesquinha, Gatão, você jurou. Diga que jurou, ou temos de nos separar.

— Sim, jurei! E agora, afinal, continue falando!

Então eu soube que o sr. Osterkamp sempre fora livreiro independente e por isso não conseguia pensão de empregado. Por isso tinha de trabalhar tanto, apesar dos setenta e um anos.

— Não é brincadeira — disse Andréia. — Sua mulher também tinha ajudado, e o sr. Langenau, e mais uma outra livreira, e um apre.

— Um o quê?

— Um apre. É abreviatura de aprendiz, um rapaz que está estagiando como livreiro, entende, Gatão?

— Entendo.

— Pois é, mas agora que a mulher dele morreu, chama­va-se Erna, o sr. Osterkamp não está conseguindo tocar a livraria. Há muito não consegue manter a loja direito, e seu sortimento de livros, quer dizer, os livros que tem a oferecer... está antiquado. Muito ruim... Ele mal conseguia um movi­mento de quinhentos mil marcos ao ano quando a sua Erna morreu, Gatão, e seu movimento decresce cada vez mais, em­bora as despesas aumentem. Depois de pagar as contas, os ordenados e o resto, sobram-lhe sessenta a setenta mil marcos ao ano, sobre os quais ele precisa pagar imposto. Pode calcular o que lhe sobrava e à sua Erna? Demais para morrer, de menos para viver. Isto é, com a sua Erna não era demais. Não ria, seu brutamontes!

De repente, trazida pelo vento, soou bem longe a Marselhesa.

— Casa das Barcas de Schulau — disse Andréia. — Fica bem ali na frente, sabia?

— Sim, mas por que a Marselhesa?

— Porque o navio que passou por nós era francês. A Casa das Barcas de Schulau é um restaurante que tem uma instalação para saudar navios. Chama-se “Boas-vindas”. To­dos os navios acima de quinhentas toneladas são saudados com o seu hino nacional, ao chegar ou partir, se passam por esse canal... Na verdade, o sr. Osterkamp é um bom livreiro, mas o tempo passou por ele... Detesto hinos nacionais, mas...

— Eu também. Se pudesse, proibiria imediatamente to­dos os hinos nacionais — disse eu.

— A Marselhesa não.

— Também.

— Não, por favor, é tão bonita.

— Não importa, eu proibiria todos os hinos nacionais e aposentaria todos os generais, para criarem rosas e não fa­zerem bobagens. Acho que nos desviamos do assunto. E esta­mos bebendo de menos. Vamos tomar mais um traguinho, cara senhora.

Então bebemos mais um, e Andréia disse:

— Ah, como meu espírito está claro outra vez, caro se­nhor. Bem, o sr. Osterkamp ainda tem um certo capital, de um seguro de vida, mas já gastou boa parte. Morrer é caro, e ele preparou um lindo enterro para a sua Erna, porque a amava tanto, tanto...

— Esquilinha!

— Sim, sim, o disco estava riscado. Um enterro lindo, e agora ele está vendo que terá de vender a loja. E talvez o dinheiro dê para seus últimos anos. O dinheiro do seguro de vida e o que vai receber pela loja. Se você entendeu tudo, claro e nítido, diga sim!

— Sim — disse eu.

— Bravo — elogiou ela, enquanto eu fazia ao garçom um sinal para trazer outra garrafa de vinho. — O Gatão entendeu tudo. Bom, e o resto? O resto é que o sr. Osterkamp ofereceu primeiro a loja ao seu livreiro, o sr. Conrad Langenau. Eu já disse que o sr. Langenau é livreiro na loja do sr. Osterkamp?

— Já, cara senhora.

— Bom, e o sr. Langenau não tem dinheiro suficiente e não quer fazer empréstimo por ter medo de não poder pagar os altos juros do empréstimo com uma receita tão pequena...

O garçom trouxe outra garrafa, encheu nossos copos e disse:

— Bom proveito!

— Obrigado — disse eu.

— Receita, você sabe, é o que ele realmente ganharia na livraria.

— Ahá — disse eu. — É mesmo? — E amei-a muito porque queria me explicar o que era receita. — Vamos tomar mais um traguinho?

— Assim seja, cavalheiro.

Bebemos.

— E agora — continuou Andréia —, meu querido Ga­tão, todos do ramo sabem como eu gostaria de ter uma livra­ria, com uma seção infantil, e aí eu poderia fazer tudo como eu acho certo, não como a Biblioteca e o Município pensam. Como todos os colegas livreiros sabem disso, e também meu velho conhecido sr. Langenau, ele me contou sobre o sr. Os­terkamp tudo o que vos enunciei há pouco, ilustríssimo... Lá vem um americano.

A saudação distante tocava o hino americano.

— Home of the Brave — disse Andréia. — Pátria dos Bravos, diz o texto.

— Você é corajosa.

— Não — disse ela. — Mas gostaria de ser. É uma oca­sião única, meu Gato.

— Bom, então, saúde — disse eu.

— Bom, então, saúde — disse ela. — Me transforme numa beberrona, e vai ver que bonito quando entro em delirium tremens... Uma ocasião única, porque Eimsbüttel é um bairro muito povoado, com muitas crianças, muitos filhos de operários estrangeiros; lá ainda há dessas lojinhas-da-tia-Ema*, sabe Gatão, tudo muito aconchegante. Três grandes colégios perto, algumas casas adiante fica um lar de crianças deficientes. Eu poderia cultivar maravilhosamente livros infan­tis e juvenis!

* Lojinhas que vendem quinquilharias. (N. da T.)

 

— Você poderia fazer o quê maravilhosamente com livros de crianças e jovens, querida?

— Cultivar. Pode rir de mim! Langenau já me disse que ficará comigo se eu assumir a livraria. Esse Langenau é de Innsbruck, no Tirol, e o Tirol fica na Áustria, e Langenau é livreiro há trinta e cinco anos, e não há nada que ele não saiba sobre o negócio, e ele é muito religioso.

— Ele é o quê?

— Olhe, o americano! — disse Andréia, apontando para o Elba. Um navio muito grande aproximava-se lentamente, bastante iluminado.

— Religioso — disse Andréia.

— Religioso o quê?

— Esse Langenau. Por quê?

— Por que o quê?

— Por que você perguntou isso tão assustado, Gatão?

— Ora, é de assustar. Quem é que ainda é religioso hoje em dia?

— Você nem imagina! Naturalmente você não é, seu pagão, já notei isso há muito tempo. Não pense que pode es­conder de mim. Não., você não é religioso, não acredita em nada, mas se algum dia chegar diante do trono de Deus, vai sujar as calças.

— Você é vulgar.

— Sim. E pervertida. Mas tenho o meu bom Deus. Não acredito tanto nele como o sr. Langenau, mas de maneira normal. E não só quando preciso dele. O sr. Langenau é tão religioso, e uma pessoa tão boa, um homem de fé. Você não tem nada contra pessoas de fé?

— Nada, Esquilinha. Também tenho fé.

— Em quê?

— Em você.

— Ah, Gatão.

— Sabe de uma coisa, cara sra. Esquilo — disse eu —, nós dois vamos comprar a livraria do sr. Osterkamp.

Ela me fitou através dos enormes óculos, e o lábio inferior começou a tremer, e lhe dei meu lenço e coloquei outra vez meu braço ao redor dela, pois ainda estávamos sentados lado a lado. Ela tinha os olhos úmidos e engoliu em seco de nervo­sismo. Limpava as lágrimas com meu lenço e dizia:

— Mas são de felicidade, só de felicidade, Gatão!

Alguns fregueses nos observavam. Possivelmente pensa­vam que eu era daqueles que em casa surram a mulher e que estava sendo mau com Andréia. Por isso eu disse bem alto, já muito pouco lúcido:

— E de felicidade, senhores, minha mulherzinha chora de felicidade. Não é isso, mulherzinha?

E Andréia balançou a cabeça e exclamou:

— Sim, é isso! — e assoou-se no lenço, como uma salva de canhões ao longe, e disse: — Cavalheiro, por quem me toma? Eu jamais aceitaria um pfennig do senhor, sou uma mulher decente.

— Não quero que aceite um pfennig de mim, mas uma pequena fortuna. E não ganhará o dinheiro assim no mais, nós dois é que vamos comprar essa livraria do sr. Osterkamp. Também quero ter uma livraria.

Ela me abraçou, beijou-me fortemente na boca, e depois de muitos beijos pequenos, virou-se para os outros fregueses, abriu os braços e disse:

— Que foi que eu lhes disse? Só de felicidade, senhores. Só de felicidade. — Alguns fregueses riram, outros voltaram ostensivamente as costas para nós.

— Quanto que o sr. Osterkamp quer pela sua bodega? — perguntei, e Andréia disse:

— Ah, um absurdo.

E perguntei:

— Quanto, cara senhora?

E Andréia disse:

— Trezentos mil marcos.

— Ai, ai, ai — disse eu.

— Mas é como base da negociação, Gato! Mais do que cento e oitenta mil ele não ganhará nunca, e sabe disso. Pois temos de reformar tudo e renovar, sem falar na sala para as crianças. Naturalmente eu só tenho vinte e cinco mil marcos. Mas você diz que quer participar. Como meu sócio?

— Sim, como sócio.

— Ah, você é um gatão muito bonzinho!

— O melhor que há — disse eu.

— E atraí você para uma armadilha, uma doce armadi­lha. A tender trap. E agora está preso nela. Acredita nisso, não é?

— Claro que acredito, sua pestezinha refinada — disse eu beijando-a outra vez. Nisso os óculos dela e os meus se enredaram e foi um teatro e tanto até conseguirmos nos li­bertar. Depois, de repente, Andréia saltou da cadeira e disse:

— Deixe-me passar, Gatão, depressa, depressa!

— Pipi?

— Que nada, pipi! Tenho de telefonar imediatamente a Langenau e dizer que vamos comprar a livraria, e que ele avise o sr. Osterkamp para não vender a loja a outra pessoa!

— Agora, no meio da noite?

— Claro — disse ela. — Dê-me um marco, Gatão! — Pegou-o e saiu correndo, e fiquei olhando a torrente escura e pensei novamente no meu sonho, com os muitos elefantes amáveis vindo da floresta em minha direção numa trilha de areia, e pensei que também eu queria ser amável com todas as pessoas, e pensei como deixara Andréia feliz, e como eu pró­prio estava feliz, e então me ocorreu uma frase que lera certa vez num livro: “Se cada pessoa do mundo quisesse fazer feliz só uma única outra pessoa, o mundo todo seria feliz.”

 

Naquela noite estávamos os dois levemente embriagados. Andréia mais do que eu, por isso sentei-me na direção do seu Volkswagen. Lembrei-me que tinha no bolso uma bela carteira falsificada de motorista da Argentina, mas não me preocupei, e não tive medo da polícia nem do teste alcoólico. No longo caminho de Blankenese, li quando chegamos ao porto algo escrito em imensas letras brancas no muro do cais:

POR FAVOR DEIXEM-NOS VIVER EM PAZ!

Poucos segundos mais tarde li o que alguém escrevera em outro muro do cais com tinta spray:

MATEM OS TURCOS A PAU!

Errei o caminho porque dei ouvidos às indicações de An­dréia e dobrei à esquerda e à direita sempre que ela assim me mandava. Perdi-me cada vez mais. Por fim comecei a fazer o contrário do que ela dizia, e de repente entrei numa rua cuja placa dizia TORNQUISTSTRASSE.

— Olha aí, não orientei você lindamente? — perguntou Andréia contente. — Nunca desista, pergunte ao seu esquilo.

— Qual é o número da livraria?

— Cento e trinta e seis. Você tem de descer a rua, co­nheço esta região como meu próprio apartamento.

Por isso, fiz a curva rapidamente na rua deserta e segui em direção contrária, e cheguei ao número cento e trinta e seis. Parei e Andréia disse:

— Ora, por favor, sem mim você teria se perdido. Olhe, querido, a nossa livraria! Venha, vamos dar uma olhada nela.

Desembarcamos e fomos de mãos dadas até a loja diante da qual um lampião da rua balançava levemente ao vento. A livraria não era muito atraente. Na única vitrine havia muitos livros, e Andréia me disse que todos os livros da lista de best-sellers estavam lá, mas que naquela vitrine antiquada não se podia vê-los direito. A moldura de madeira da vitrine estava podre e consumida pelo tempo, assim como a da porta da entrada. Não havia iluminação para a vitrine, só iluminada pela luz da rua. Sobre a loja havia uma placa que outrora deve ter sido branca, onde se via em letras pretas LIVRARIA OSTERKAMP. O fundo branco estava sujo, e a tinta preta já descascara das letras. A placa era realmente feia.

— Naturalmente tudo isso tem de ser mudado — disse Andréia pendurada no meu braço. — Por dentro e por fora. Sei como está tudo lá dentro. Nem me pergunte! Tão triste quanto aqui fora. Mas vamos simplesmente reformar a loja.

— Simplesmente reformar — disse eu.

— Só o nome fica.

— Que nome?

— Livraria Osterkamp — disse Andréia. — As pessoas da região conhecem o nome, que para elas é um conceito do tempo em que aqui havia uma boa livraria. Acredite, Gatão, um nome desses vale muito. Ele tem de ficar.

— Tudo bem — disse eu —, então ele fica.

— Vamos para o outro lado da rua, Gatão.

— Por quê?

— Quero ver como é a nossa livraria do outro lado. — Atravessamos a rua e ela disse:

— Daqui parece ainda pior.

— Por sorte não se pode ver muita coisa — disse eu.

— Temos de colocar cores contrastantes — disse An­dréia. — E à noite a vitrine tem de ficar iluminada, e o cartaz ali em cima também. E é preciso organizar a vitrine em de­graus, para que se vejam bem todos os livros. Já tenho tudo aqui na minha cabeça. Sabe, eu teria dado uma excelente arquiteta.

— Claro — disse eu.

— O bom é que a livraria da Waterloostrasse não fica muito longe e que lá não se vendem livros, só se emprestam — disse ela. — Todas as minhas crianças virão à minha livraria e muitas crianças das três escolas grandes aqui perto, e lá em cima, três casas adiante, ficar o lar de crianças deficientes. Na hora da reforma temos de pensar em fazer com que pos­sam entrar com cadeiras de rodas.

— Você realmente acha que as crianças aleijadas virão?

— Nós as convidaremos — disse Andréia. — Quero que perto de mim todas as crianças sejam alegres e felizes, e tam­bém as deficientes. Venha, vamos passear um pouco na frente da nossa loja.

Então fomos passear, de braços dados, olhando a velha e decadente livraria, que ambos já imaginávamos reformada e bonita.

— Estou vendo tudo direitinho — disse Andréia. — Um dia esta loja será uma mina de ouro. — Encarou-me. — E agora vamos passar mais uma vez como pessoas que não têm nada a ver com ela. — Portanto voltamos, e ela disse:

— Olhe só, marido, aquela livraria tão chique ali do ou­tro lado. Olhe, acaba de aparecer um novo Stefan Heym, dizem que é a melhor obra dele, e gosto tanto de Heym. Vamos comprar o novo Heym?

— Tudo bem, mulher — disse eu. — Você compra o novo Heym, e eu, alguns livros de bolso.

— Livros de bolso — disse Andréia, e parou.

— Ora, claro — disse eu.

— Você é livreiro e não me disse nada, confesse!

— Mas por quê?

— Porque tudo combina direito. O velho Osterkamp naturalmente também tem livros de bolso, mas escondidos bem atrás na loja, segundo disse o sr. Langenau. Mas é preciso colocar as prateleiras de livros de bolso bem na frente, para as pessoas tropeçarem nelas ao entrar; todo mundo agora compra livro de bolso. Nós, nós vamos ter uma grande seção de livros de bolso, querido, uma maravilhosa seção de livros de bolso!

— Mas a gente ganha pouco com livros de bolso — disse eu.

— O que importa é a quantidade, querido burrinho — disse ela. — E agora quero ir para casa. Moro na Alsterdorfer Strasse. Quer me levar até o carro, Conde Öderland?

Atravessamos a rua em passos de dança como pessoas do tempo do rococó. Eu tinha uma das mãos às costas, a outra sobre Andréia, que se segurava nela e girava sobre si mesma ao andar, e fazia pequenas mesuras. Ajudei-a a entrar no assento da frente do velho Volkswagen e fiz uma funda me­sura, tranquei a porta e me enfiei atrás do volante. Depois rodamos outra vez e Andréia disse:

— Estamos muito bem dispostos, senhor Conde.

— Gosto de ouvir isso, caríssima — disse eu.

Ela ronronou alto e disse:

— Não dê atenção, é o meu gato, um bicho muito mal­criado. Ele quer me fazer um filho e me lançar na desgraça. À direita agora.

Portanto, dobrei à esquerda por uma larga rua em di­reção ao norte, e segui por cerca de dez minutos. Estávamos calados, e Andréia acariciava meu rosto.

— Agora à esquerda — disse ela por fim.

Dobrei à direita e disse:

— Esquilinha, hoje vi como você lida com crianças. Nun­ca gostei de crianças. Desde esta tarde acho que não há nada melhor do que crianças. Agora, direita?

— Agora esquerda — disse ela.

Entrei numa rua à direita. Era a Alsterdorfer Strasse, e tive de subir um pouco por ela. Parei diante de uma casa enfeitada de estuque e disse, desligando o motor:

— Por isso tenho um grande desejo. Quero que tenhamos um filho.

— Ah, querido — disse ela, ofegante. — Querido, que­rido, querido!

— O que foi?

— Uma vez eu me descuidei e o homem logo disse: tire a criança! Os homens logo dizem, tire a criança! Ah, Deus, e agora vem um que diz que quer um filho! Ah, meu querido! — E ela me abraçou e me beijou loucamente. — Vamos ter um filho nosso. Menino ou menina?

— Não importa, desde que seja com você — disse eu.

— Também não me importo — disse ela. — Um filho é bom, por causa do medo. É uma idéia horrivelmente egoísta, não é? E será bom para a criança? Será que a gente deve ter filhos agora? Nesses tempos? Podemos nos responsabilizar por isso?

— Não sei se nos podemos responsabilizar — disse eu. — Mas gostaria de ter um filho. Essa criança teria uma bela vida, pelo menos seríamos sempre bondosos com ela.

— Sempre — disse Andréia. — Sim, sim, vamos ter um filho. Quero tanto um... de você. Venha, querido.

Ela abriu a porta.

— Para onde?

— Venha, suba comigo — disse ela. — Temos de pensar na criança.

Desci do carro e abracei-a.

— Não vou subir com você, Andréia — disse eu. — Não esta noite. Nós dois bebemos demais. Você sabe agora que vou comprar a livraria. Não quero que alguém sequer pense que você me aceita só por isso.

— Nenhum homem jamais falou assim comigo — disse ela. — Eu queria muito, mas também queria esperar mais um pouco. Você entende, não é? Só um pouco.

— Sim — respondi; tranquei as portas do carro e entre­guei-lhe as chaves. — Agora, suba depressa, ou todos os nos­sos nobres pensamentos se vão para o diabo. E chame um táxi para mim, por favor.

— Bom — disse ela. — Mas não vou olhar pela janela enquanto você estiver aqui, senão desço outra vez e venho te buscar. — Abriu a porta da casa. — E quero lhe dizer mais uma coisa: não vamos nos despedir.

— Por quê?

— Porque não quero me separar de você nem um segun­do — respondeu, e a porta da casa fechou-se atrás dela. Ouvi quando a trancou. Saí para a rua e algum tempo depois uma luz acendeu-se em duas janelas do segundo andar. Ali todas as casas eram de dois andares, e tinham sido construídas na virada do século. Via-se que nelas haviam morado cidadãos ricos e agora certamente ainda moravam cidadãos ricos nas casas poupadas pela guerra. Ergui os olhos para o céu, com muitas estrelas brancas e frias, e pensei que teríamos um filho. Alguns minutos depois chegou um táxi. Embarquei e dei ao motorista o nome do meu hotel.

 

Você conhece Pinneberg, que fica a noroeste de Hambur­go, e conhece Friedrichsruh, em Sachsenwald. E entre Friedrichsruh e Pinneberg passa a S2, atravessando a grande cidade de Hamburgo. E a sudeste de Hamburgo, algumas estações adiante de Friedrichsruh, fica Reinbeck, e é de Reinbeck que quero lhe falar agora, meu bem.

Sábado de manhã Andréia me telefonou por volta das onze horas e disse que já vagabundeara bastante e estava com saudades de mim, queria ir a Reinbeck, era o seu lugar predi­leto para passeios no fim de semana, e aquele era um fim de semana especialmente bonito, particularmente quente.

— O sr. Gato desejaria ir até lá e comer um pouco lá fora?

— Com prazer, sra. Esquilo — disse eu.

— Então apanharei o sr. Gato em dez minutos no hotel. Peço a ele que vista roupas bem esportivas, e sapatos confortá­veis, para que não comece logo a reclamar que seus pés doem.

Vesti um par de sapatos cômodos que vinham de Viena — ainda não tinha outros —, deixei o casaco do terno azul e peguei uma camisa azul. Estava saindo do Atlantic quando o Volkswagen apareceu. Tinha mossas e manchas de ferrugem por toda parte, o motor retinia e batia de meter medo. Lá estava pois o velho Volkswagen, e Andréia sentada ao vo­lante, linda e sem pintura. O porteiro alto abriu a porta para mim, embolsou a nota de cinco marcos, e de repente ficou todo feliz. Perguntei a Andréia, que também o notara, por que o cara estava tão contente.

— Por nossa causa — disse ela. — Quem olhar para nós tem de ficar feliz. — Pisou no acelerador e o Volkswagen começou novamente a retinir e bater.

Naquele dia Andréia usava um vestido azul com gola branca e sandálias brancas. Foi apenas até a entrada da es­tação, depois estacionamos. Ela me dissera que com o trem era muito mais cômodo e rápido, e tinha razão. Em menos de meia hora estávamos em Reinbeck. Fiquei parado com An­dréia diante da pequena estação, piscando no sol claro, e res­pirei fundo. Deixamos para trás o centro da aldeia e chegamos a um castelo, uma construção renascentista com três alas, em tijolos, feito à maneira holandesa com dois tipos de telhas, e Andréia me explicou que há setecentos anos havia ali um mos­teiro, que fora destruído, e em seu lugar o Duque Adolfo Obturado construíra mais tarde o seu castelo.

Passamos por uma verdadeira paisagem campestre. Um riozinho, que Andréia chamava de alegrezinho, acumulava-se diante de uma represa formando um laguinho cheio de som­bras, muito escuro, e aparentemente bem fundo. O sol ardia, os campos de trigo estavam cheios de papoulas como no qua­dro de Monet, só que aquelas papoulas verdadeiras me pare­ceram muito mais artificiais do que as do quadro de Monet. Andávamos devagar. Encontramos pouquíssimas pessoas. O chão era arenoso e macio. Passamos por aconchegantes casinholas de camponeses com grossos telhados de palhas, e des­cemos uma encosta num vale entre prados, matas e um pân­tano. Não pronunciamos palavra, e muitas vezes ficávamos lon­go tempo parados, quando víamos veados pastando ou coelhos apressados. Pássaros aquáticos gritavam sobre o pântano. Se­guimos adiante e entramos numa grande mata. Raios de sol oblíquos cortavam os troncos altos. Era como numa catedral de árvores e luz, e pensei que uma vez já estivera em uma catedral dessas, mas não podia recordar o lugar e o tempo. Assim chegamos a uma funda garganta, meio oculta pelos arbustos como uma grande banheira. Lá a relva era macia. Andréia me pegou pela mão, e saltamos naquela garganta. Rodeou-me com os braços e disse, em tom quase inaudível:

— Vem agora, vem!

 

Na meia hora seguinte o inferno se desencadeou.

Tentei tudo, mas em vão. Por fim rolei de costas e olhei as copas das árvores lá em cima.

— Nunca, nunca na vida me aconteceu isso — disse eu.

Estávamos nus os dois. Andréia tinha belas pernas com­pridas, ventre achatado e pequenos seios firmes.

— Estou feliz por isso, querido — disse ela.

— Feliz?

— Sim. Porque isso mostra que você me ama muito. Quando um homem ama muito uma mulher, acontecem essas coisas.

— Mas quero mostrar o quanto amo você — disse eu. — Estou quase louco de desejo de lhe mostrar isso.

— Pois é isso — disse ela. — Você está excitado demais, querendo demais. Se soubesse como fico feliz com isso! E nunca lhe aconteceu antes?

— Não, nunca.

— Maravilhoso. Então sou a primeira mulher a quem você ama.

— Não agüento. É de enlouquecer. Tentamos tudo, e não dá.

— Pare de falar nisso — disse ela e me acariciou. — Pare com isso, querido. Eu lhe disse que é tudo maravilhoso para mim, maravilhoso. O que você fez comigo nenhum outro ho­mem fez com tanta ternura, tanto amor, tanto cuidado. Todos sempre eram apressados e só pensavam em si próprios. E eu fingia que também era bom para mim, Gatão, mas não era. Eu ficava só esperando que eles acabassem, para poder ir ao banheiro dizendo que ia me lavar, e então eu mesma tinha de fazer aquilo...

— Não é verdade, você só quer me consolar.

— Juro. Pelo nosso amor. Você é o primeiro que conse­guiu com ternura que isso funcionasse em mim, só com ter­nura. E nunca na vida foi tão forte como agora, meu querido. E você conseguiu isso só com ternura...

E então, enquanto ela me acariciava outra vez, subita­mente tudo foi como sempre era quando eu estava com uma mu­lher. Deitei-me sobre ela e voltei a ser homem, e ela gemia e di­zia palavras de amor, e me mordeu no ombro até o sangue cor­rer pelo meu peito e pingar no dela. Nossos corpos se moviam sempre mais depressa, mais fortemente. Ela passou braços e pernas em redor de mim, e gritou logo antes do clímax. Mas a coisa continuou, uma segunda vez, e uma terceira. Eu nunca experimentara algo assim, nossos corpos sempre voltavam a se lançar um contra o outro. Depois fiquei deitado ao lado dela, de mãos dadas, e por longo tempo não dissemos nada.

Por fim, ela disse:

— Fiz tudo como você queria?

— Tudo, querida, tudo.

— Você sempre deve me dizer se quer que eu faça algo diferente, ou se deseja outra coisa. Farei tudo o que você quiser. Por isso você nunca vai precisar de outra mulher, não é?

— E você de nenhum outro homem.

— Nenhum outro homem, não. Deixe a mão aí!

— Você é maravilhosa!

— Não é arte nenhuma ser maravilhosa com um homem a quem se ama tanto — disse ela. — E por favor, não tire a mão daí!

 

— Estou com fome — disse ela mais tarde. — Sempre fico faminta depois. Uma fome horrível.

— Eu também — concordei.

— Não é maravilhoso? Fomos feitos um para o outro. Pena não nos termos encontrado antes.

— Não — disse eu —, foi o momento certo.

— Conheço um restaurante barato e muito bom — disse ela, enquanto nos vestíamos. — Santo Deus — disse ela, e cambaleou. Teria caído se eu não a amparasse. — Deus, como você me fez amor. Meus joelhos estão bambos.

— Os meus também. É longe, até esse restaurante?

— Talvez quinze minutos a pé — disse ela.

— Santo Deus!

— Vamos nos apoiar um no outro, e andar devagar como dois guerreiros depois do combate.

— Suas comparações são esquisitas.

— Sim — disse ela. — Você tem de me perdoar. Pense sempre que sou um pouco maluca. Um pouco muito maluca. — Depois me abraçou, e me beijou nos olhos, na testa, e longa­mente na boca, e eu agradeci àquilo em que acreditava, agra­deci ao nada, ao nul, ao nothing por uma felicidade tão grande.

No restaurante também serviam no jardim. Lá havia som­bra e estava fresco, e comemos uma especialidade da região, chamada Labskaus, uma espécie de purê de carne, peixe e batatas. Antes comemos sopa hamburguesa de enguias, e por fim rote Grütze. E depois da comida fiquei tão cansado que pegamos duas espreguiçadeiras e adormeci logo. Quando acor­dei eram cinco e meia, e Andréia ainda dormia. Estava enroscada na cadeira como uma gata; no chão jazia um jornal que ela devia ter lido antes de adormecer, e os grandes óculos estavam tortos em seu nariz. Tirei-os com cuidado para não caírem e quebrarem. Andréia não notou nada, de modo que me deitei outra vez, esperando que ela acordasse. Não olhei para ela enquanto isso, porque não se deve contemplar pessoas adormecidas. Depois de algum tempo ela se espreguiçou e bocejou, e disse:

— Santo Deus, como doem meus ossos! E quem fez isso? Foi o meu querido Gato com a sua cantoria.

— Também não estou muito animado — disse eu. — Pense só, um senhor idoso que se desgasta desse jeito.

— E eu, pobre virgem delicada — disse ela. — Agora estou com sede.

— Eu também, mas isso não é nada. Sempre tenho sede, só que às vezes tenho mais.

Fui ao restaurante, pedi duas garrafas de cerveja, e um garçom sorridente com avental branco as trouxe com dois co­pos e uma mesinha para o jardim. Riu para Andréia e voltou para a casa.

— Simpático — disse eu.

— Sim — disse ela. — E nos serviu a comida, recorda? Realmente um sujeito simpático. Gosta dele?

— Não — respondi.

 

Naquela noite mudei-me do Atlantic para a casa de An­dréia na Alsterdorfer Strasse. A escada era estreita e muito íngreme. Não havia elevador, e cheguei lá ofegante, depois de arrastar minhas duas malas para o segundo andar. Em cada an­dar vi duas portas. O apartamento de Andréia tinha quatro apo­sentos grandes e outras dependências. Nunca na vida eu vira tantos livros numa casa. A maior parte das paredes estava co­berta de prateleiras. Entre elas, belos móveis antigos. Em lugar algum vi iluminação no teto, só abajures e lampiões de mesa.

— O aluguel deve ser caríssimo! — disse eu.

— A casa é minha — disse ela. — Falei-lhe do homem que queria me amar para sempre. Fez isso durante três anos, depois foi para outra mulher. Este apartamento era dele, e ele me deu de presente... por assim dizer como um pedido de desculpas. Foi muito amável da parte dele, não é? Aliás, era um homem muito amável.

— Você quase não fala dele, e quando fala, é sempre bem.

— Por que falaria mal? Foi bonito enquanto durou. — De repente ela me abraçou como doida. — Mas você não vai me abandonar nunca, Gatão!

— Eu já lhe disse uma porção de vezes!

— Nunca se sabe — disse ela. — Mesmo que a gente fale sério. Nunca se sabe em que situações se pode cair. Diga-me sempre e de novo, de tempos em tempos, quero dizer, quando tiver vontade.

— Não vou abandonar você nunca — disse eu.

— Tudo bem. É bom ouvir isso, meu Gato amado.

As janelas de três dos quartos davam para um grande jardim selvagem, com árvores altas e velhas. Havia uma ca­deira de balanço diante de uma janela.

— Você sempre senta aí?

— Ah, sim — disse ela. — Sempre me sento aqui quando estou triste, ou sozinha... e quando não consigo dormir.

— Agora não precisa mais fazer isso.

— Vamos nos sentar juntos aqui às vezes e olhar as ve­lhas árvores, sim? Árvores são uma coisa linda. São quietas e fortes e com raízes fundas. Eu também queria ser assim, quie­ta e forte e com fundas raízes. Somos ruidosos e fracos e vivemos tão pouco, e nem temos raízes. Somos como diz o spiritual: “Stand still, Jordan!” Não se pode pedir que um rio pare de correr. E pense só, Gatão, quanto tempo uma árvore vive. Se fôssemos árvores plantadas perto um do outro, com quatrocentos anos ainda não seríamos muito velhos.

Diante da cadeira de balanço havia um quadro escuro na parede. Mostrava uma caveira e uma ampulheta esvaziada, uma vela consumida, um livro gasto e outros sinais de decom­posição. Andréia notou que eu olhava o quadro e disse:

— Foi Adrian van Utrecht quem pintou. No século dezes­sete. Naturalmente, é uma reprodução.

— Conheço esse tipo de quadro — disse eu. — Chama-se Vanitas. Porque na Bíblia diz: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.

— No livro está escrito: “Memento Mori”, quer dizer, “Lembra-te da Morte!” São chamados também de quadros memento-mori. Pendurei-o ali de propósito, Gato. Para poder vê-lo quando olho muito tempo para as árvores. — Abraçou-me outra vez e disse: — Porque nós pessoas temos tão pouco tempo, querido. Não é uma coisa horrível?

Passamos pelos outros quartos e ajeitei minhas coisas num armário grande, e disse que tinha entregado algumas caixas de navio em Buenos Aires, que decerto demorariam um pouco para chegar no porto de Bremen. Era mentira, mas des­de aquela noite em Viena, na qual eu estivera tão desesperado porque jurara pela vida de Andréia que meu coração estava bem, sempre que tinha de mentir eu pensava nas mentiras e perjúrios profissionais em que incorrera porque eram necessá­rios, sem qualquer conseqüência ruim. Assim seria com An­dréia, pensei. São mentiras necessárias. E com estas nada acon­tece. Em Viena eu me embebedara, com medo de que Andréia morresse por causa de meu juramento falso. E tudo isso acabara.

Também o quarto de dormir dela transbordava de livros. Até a parede onde ficava a cama estava cheia de prateleiras, nas quais sobrara lugar apenas para a cama. Era uma cama muito larga, e Andréia disse que no quarto ao lado também havia uma cama...

— ...Talvez você prefira dormir sozinho.

Pensei: dormi sozinho por quase quinze anos, mas agora tudo é diferente.

— Quero dormir ao seu lado — disse eu. — Há lugar suficiente, ou não?

— Vamos tentar — disse ela.

Tirei os sapatos e deitei-me ao lado dela.

— Excelente — disse eu. — E a gente pode dormir de lado, aí nos deitamos como duas colheres numa gaveta.

— Ah! — disse Andréia. — Eu queria tanto que você desejasse dormir comigo, Gatão. Ou ficaríamos separados um terço de nossas vidas.

— Sim — disse eu, pensando que já vivera dois terços da minha vida, e pensei nas maravilhosas árvores e no quadro memento-mori.

— Só quando um de nós estiver doente dormirá sozinho — disse Andréia. — E o outro vai cuidar dele. Incrível como de repente tenho idéias burguesas. Sinistro, não?

— Sim — respondi. — Realmente sinistro.

— Hoje vamos dormir cedo, pois amanhã de manhã va­mos encontrar o sr. Langenau, e, de tarde, o sr. Osterkamp.

Tomamos banho juntos em uma grande banheira e la­vamos as costas um do outro. Depois naturalmente ficamos muito excitados e nos amamos mais uma vez, mas com muito cuidado. Andréia adormeceu imediatamente. Fiquei acordado. Tive de pensar na minha grande felicidade, e em que consistia aquilo: Felicidade. Era tudo tão calmo com Andréia. Tão quieto, tão silencioso, os nervos se relaxavam assim que se che­gava perto dela. Lembrei-me de um desenho de Zille, de que gosto muito. Um menininho com nariz escorrendo e calças curtas, no mato, diz a uma jovem professora: “Ora, fessora, aqui tem um cheiro tão bom... de nada!” A felicidade é algo negativo, pensei. O que eu fizera na minha vida antiga? Como agira mal muitas vezes em meus processos. Que inferno fora minha vida doméstica. Como no fim eu estivera arrasado, a ponto de só dormir, só querer dormir, dormir, dormir. Como estivera isolado do mundo. Acabado. E para quê? Para per­manecer nas manchetes de jornais, para que Yvonne e seu gigolô tivessem uma boa vida. Não era bonito olhar para trás, esquecer era muito difícil. Tinha acontecido coisas que eu esperava nunca mais lembrar. E agora, lembrava-me delas. Sentia minha felicidade tão intensamente porque estava grato por tudo o que não existia mais. Vista assim, a felicidade é realmente algo negativo.

E pensei na chance que eu tinha em minha segunda vida, e no que pretendia fazer. Mas também tive de pensar que Andréia era vinte anos mais jovem do que eu. Em dez anos eu teria cinqüenta e nove, e ela, apenas trinta e nove. E seria pior quanto mais velhos fôssemos ficando. Não, pensei, não vai ser pior, porque junto dela certamente ficarei muito mais tempo mais jovem do que realmente sou.

Ela respirava fundo a meu lado, e fiquei deitado de cos­tas, pensando em minha juventude, e nos altos ideais que tivera. Bem podia concretizá-los na minha nova vida! Queria ser leal e verdadeiro com toda a minha força e inteligência, amável e cheio de boa vontade para com todas as pessoas, não cometer injustiças e não prejudicar ninguém, e sim ajudar a todos e ser justo para com todas as pessoas.

Estava claro, e muitos pássaros cantavam atrás da casa no jardim dos fundos quando finalmente adormeci.

 

Uns quinze minutos depois de conhecer o livreiro Conrad Langenau, perdi um dos molares.

Langenau morava à beira da Kaiser-Friedrich, ao lado do Canal de Isebek. Fomos caminhando pela rua porque Andréia queria me mostrar a casa de Langenau, que nos sugerira apa­nhá-lo em frente à igreja; ia à missa todas as manhãs de domingo. Andréia me explicou que a casa era um prédio novo de quatro andares, cujas dependências eram praticamente ape­nas escritórios e consultórios de advogados, médicos e de um coletor de impostos; Langenau era o único inquilino que per­manecia no prédio durante a noite, sem se incomodar com o vazio em que ficava após o expediente normal dos escritórios.

— Estou bem, sozinho — dissera uma vez a Andréia. — E de resto há um guarda de segurança cuidando de mim.

Notei que no muro junto à entrada haviam escrito com spray algumas palavras em letras grandes. Aproximando-me li:

Langenau — Porca Mãe dos Turcos

— Ah, meu Deus — exclamou Andréia. — De novo!

— O que significa isso?

— Ele defendeu os trabalhadores turcos no país — expli­cou Andréia, que se detivera para olhar demoradamente as palavras. — É membro da Liga de Defesa Social dos Traba­lhadores Turcos, em Hamburgo, e também se preocupa com os outros trabalhadores estrangeiros. Há muita injustiça, e Langenau não tolera injustiça. Por isso sempre se mete em con­fusão. Os covardes devem ter feito isso ontem à noite. Meses atrás escreveram aí uma coisa parecida com essa.

— E agora, o que foi que houve?

— Langenau deu parte à polícia, eles registraram a de­núncia e o estão ajudando a acabar com essa sujeira. Toda noite uma radiopatrulha passa por aqui algumas vezes, e aí não se vê mais nada.

— E Langenau não tem medo?

— Medo? — perguntou Andréia. — Ele nunca soube o que é isso!

Logo me convenci disso. Quando chegamos à igreja cató­lica a missa estava acabando, e os fiéis saíam para a rua. Um jovem padre dava a mão a todos. Era uma comunidade pe­quena.

— Lá está ele — disse Andréia. Tínhamos descido do carro, e um homem ainda maior que eu veio ao nosso encon­tro, atravessando a pista. Ria e acenava. Langenau parecia um boxeador: ombros largos, quadris estreitos, uma boca sensível, olhos azuis amáveis, cabelo e uma grande barba castanhos.

Andréia nos apresentou e ele apertou minha mão com força. Embora estivesse na Alemanha há muito tempo, ainda falava com o sotaque gutural e rouco de sua pátria tirolesa.

— Depois da missa vou ali à taverna — disse ele. — Tomar uma cerveja com alguns amigos. Venham comigo!

— Com prazer — disse Andréia.

A taverna era grande e cheia de mesas de madeira clara escovada. Atrás do balcão niquelado ficava um taverneiro gor­do com o rosto roxo e uma barriga gigantesca. Se não tivesse cirrose adiantada, minha mulher Yvonne era um anjo de bon­dade, pensei. O local estava repleto.

Langenau foi até uma mesa onde estavam sentados três turcos. Apresentou-nos, os homens cumprimentaram educada­mente. Falavam alemão muito bem, e tomavam apenas suco de maçã, pois sua religião proibia o álcool. O ar estava azul da fumaça dos cigarros. Langenau começou imediatamente a fa­lar sobre o jogo de futebol do Hamburger SV contra Eintracht Frankfurt, que se realizara no sábado à tarde, e disse que os de Frankfurt tinham gente muito boa, e os de Hamburgo tinham alguns pernas-de-pau. Os turcos lhe deram razão, mas pareciam inibidos e nervosos. Langenau virou-se e olhou uma grande mesa redonda num canto, para a qual os turcos ti­nham olhado algumas vezes timidamente. Nessa mesa havia seis homens para os quais um sétimo lia alguma coisa em voz alta. Os seis sacudiam-se em risadas estentóreas, mas era um riso mau, não de alegria.

Muitos fregueses ficaram constrangidos e olhavam a toda hora para a nossa mesa e os turcos. Ouvi a voz do homenzinho que estava lendo. Era magro, tinha um bigode fino e uma voz aguda.

— ...Zuleica, mulherzinha, eu não trabalhar mais na construção. Muitos colegas demitidos. Mestre dizer, não mais dinheiro no caixa. Mas não pensar que é ruim, eu estar con­tente e animado, porque Alá não me condenar. Ontem eu estar na Delegacia de Trabalho...

O gordo taverneiro apareceu, cumprimentou e perguntou o que queríamos beber. Concordamos em cerveja do barril e Steinheger. Enquanto isso, o magricela continuava lendo:

— ...eu ainda ter um ano de trabalho, por isso não voltar logo para casa. Não poder entrar em mesquita e templo, mos­trar papel em Delegacia de Trabalho... fazer botar carimbo. Aqui tudo parecer esquisito: eu só dormir, e dinheiro aumen­tar. E certamente no inverno Delegacia de Trabalho me pa­gar dinheiro por crianças...

Gritaria, risadas.

Langenau perguntou ao taverneiro:

— Mas quem são essas pessoas?

— Nunca vi — disse o taverneiro, preocupado. — É a primeira vez que vêm aqui.

O baixinho leu na mesa redonda, quando os relinchos pararam:

— Eu já estar longe três anos. Talvez você ainda ter filhos aí? O que eu não saber não me importar. Você precisa só me dizer quantas crianças ser...

— Para mim, como taverneiro, é muito difícil — disse o gordo com ar infeliz. — Também são meus fregueses, bebem e pagam. O que posso fazer?

O do bigodinho continuava:

— ...e mandar depressa papel carimbado pelo Ministé­rio, você ver que lucros subir e impostos baixar.

Novamente, gritaria. A hilaridade cheia de ódio da mesa redonda aumentava cada vez mais. Agora os sete homens olhavam para nós e os três turcos, e a maioria dos fregueses fazia o mesmo.

— Por favor, sr. Langenau — disse o taverneiro —, não crie problemas. Pela nossa amizade, sr. Langenau, eu lhe peço!

O magrinho do bigode continuou lendo:

— ...Hoje dentista dizer que até segunda com certeza eu ter nova dentadura. Talvez se Alá quiser até quarta eu ter óculos...

— Seus porcos! — disse Langenau em voz alta.

— Sr. Langenau, por favor — disse um dos turcos. — Vamos embora! Isso não faz sentido. Não devemos nos meter em brigas, o senhor sabe.

— ...tudo isso me divertir muito porque a Previdência Social pagar tudo...

Novo ataque de hilaridade na mesa redonda. Também alguns fregueses riram, outros gritaram:

— Parem com isso! — e todos no restaurante olhavam para a nossa mesa.

Langenau ergueu-se, os turcos o seguraram.

— Sr. Langenau! Por favor, não! O senhor sabe como isso acaba. Nós sempre levamos a culpa, por favor!

Langenau sentou-se novamente.

— ...Quando a vovó vier na Páscoa diga que eu cuidar para ela também ter dentes tão bonitos...

As mãos de Langenau fecharam-se em punhos.

— Venha, vamos embora! — disse-lhe Andréia.

Ele sacudiu a cabeça.

— ...para não ter de esperar com a comida até o vovô ter acabado de comer...

Gritaria cheia de ódio.

— ...porque ser melhor cada um ter sua dentadura...

Agora vários fregueses também riam. Os homens na mesa redonda estavam com rostos rubros, pelo esforço das risadas e a excitação do ódio. Tive de pensar em certas pinturas chine­sas sobre panos, mostrando rostos desfeitos para que se veja como o ódio consome as forças.

— ...aqui nós ser uma pequena colônia e muitas vezes jogar cartas até de manhã. Alemanha país mais bonito do mundo... não trabalhar e muito dinheiro. Eu morar em casa muito bonito com água, luz elétrica e vaso que faz plumps...

Langenau levantou-se outra vez.

— Por favor, não! — implorou Andréia.

— Lamento, srta. Rosner — disse ele —, mas assim não pode ser.

— ...quartinho ser meio pequeno — dizia o magricela com voz mais aguda —, mas eu me sentir bem, como em casa. E dono da casa me deixar até ter coelhinhos. Esta manhã um deles estar doente, eu tirar ele do guarda-roupa...

— Há, há, há!!!

— ...cuidar dele o dia todo e de noite ter de carnear. Vender logo para um amigo também operário estrangeiro...

Langenau atravessou a taverna até a mesa redonda. En­quanto isso, o baixinho continuou mais alto ainda:

— ...e quando contrato aqui acabar, eu voltar para casa com pensão. Acabou fome e pobreza...

Langenau chegara à mesa, e disse calmamente para o baixinho:

— Pare imediatamente com isso!

— Espere aí — disse o outro —, espere aí. O que é que você tem com isso? Quem é você afinal?

— Meu nome é Conrad Langenau. Pare com essa leitura odiosa!

— Isso não lhe interessa merda nenhuma — disse um terceiro. — Estamos sentados aqui calmamente com nossa cervejinha e nos divertindo. Não estamos incomodando nin­guém. Ou sim? — gritou ele, olhando em torno. — Estamos incomodando alguém?

Alguns fregueses gritaram:

— Sim! — Mas a maioria ficou quieta. Aliás, de repente tudo ficou muito quieto na grande taverna.

— Então, está vendo! — disse o segundo. — Agora, dei­xe-nos em paz. O que é que está pensando? Acaso você é a favor desses turcos de merda e de toda essa laia?

— Sim — disse Langenau.

— Meu Deus — disse Andréia.

— O quê? — perguntou o da mesa redonda, com fingido espanto, pois vira Langenau sentado conosco e com os turcos.

— Eu disse sim — disse Langenau, bem devagar.

— Então você é um cu — disse o homem. Os demais na mesa estavam calados, apenas ouvindo. Langenau rodeou a mesa até ficar diante do homem, que era robusto, e pergun­tou:

— Já ouviu falar alguma vez em Constituição?

— Ora, deixe-nos em paz, seu sabichão de merda!

Langenau disse:

— No artigo três da Constituição lê-se: “Todos os seres humanos são iguais perante a lei”.

— Deixe-nos em paz, que diabo!

— E diz mais ainda: “Homens e mulheres têm os mes­mos direitos...”

— Suma daqui, cara! — cacarejou o magricela.

— “Ninguém pode ser relegado ou preterido por causa de seu sexo, raça, idioma, pátria e origem, sua fé e crenças religiosas ou políticas.”

— Pois então, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo — disse um da mesa.

— Olha aqui, cara — exclamou outro —, você é alemão como nós! Temos quatro milhões e meio desses merdas por aqui! E mais de um quarto de milhão de alemães estão de­sempregados. Esses porcos têm de sair do país.

— Está correto — disse Langenau. — O governo come­teu um erro antigamente, deixando entrar no país tantos tra­balhadores estrangeiros. Mas eram necessários para o milagre econômico. Sem eles não teria havido milagre. O Ministério das Finanças os elogiou como multiplicadores do nosso bem-estar. Vi na televisão o milionésimo trabalhador estrangeiro, era um português. Deram-lhe flores e uma moto; e um diretor-geral lhe deu a mão, palmadinhas no ombro e um gordo cha­ruto. E se agora temos operários estrangeiros em demasia, dirijam-se ao governo, mas deixem os trabalhadores que ele chamou em paz!

— E acaso eles nos deixam em paz? — gritou um dos homens. — Nossas mulheres não têm mais coragem de sair na rua à noite! Cara, essa tropa de criminosos vai acabar mais numerosa do que o nosso povo!

— Primeiro lhe aconselho a ser mais cauteloso com suas palavras. Segundo, eles não nos superarão. Mas ninguém ten­tou tirar os trabalhadores estrangeiros de seus guetos e aceitá-los em nossa sociedade.

— Bom, isso seria o máximo! — gritou um deles. — Toda essa mistura de raças, esses subomens, serem aceitos na nossa sociedade alemã? Maravilhoso, cara, maravilhoso. Então digo logo: boa-noite, Alemanha!

— Pense na situação desses trabalhadores estrangeiros — disse Langenau. — Têm outra língua, outra religião, outra apa­rência, diferentes das nossas. Muitos de nós não gostamos disso. Portanto, eles são odiados, desprezados, maltratados, explorados. É preciso limpar uma latrina? Chamem os caras! Para eles fica todo o trabalho sujo para o qual nos achamos finos demais, e eles precisam aceitá-lo, ainda por cima ficar contentes por conseguirem trabalho. Há um enorme desemprego entre eles. As autoridades nem sabem o que fazer, pois já têm bastantes problemas com os desempregados alemães. Mas os estrangeiros também são gente! Também têm filhos! Também têm dívidas! Também têm preocupações! As mesmas que a nossa gente! Mas ninguém se interessa por isso. Ne­nhum de vocês percebe que aqui há em funcionamento uma bomba-relógio social?

— Seu comunista de merda — disse o maior e mais forte do grupo. — Vá para a Alemanha Oriental, se não gosta daqui.

— Não sou comunista — disse Langenau. — Vou lhes dizer mais uma vez: parem com essa instigação. Deixem os turcos em paz. Os três estão no restaurante e são meus con­vidados. Não permito que ofendam meus convidados.

— Estou cagando para isso — disse o homem. — Suma daqui, e nos deixe em paz!

— Alemanha ser país mais bonito do mundo, onde gente ganhar dinheiro pela preguiça! — cacarejou, rindo, o magricela sentado ao lado do grandão.

Langenau arrancou o papel da mão dele e contemplou-o.

— Isso estava por toda parte em nossa fábrica na sexta-feira! — exclamou o pequeno.

Langenau virou o panfleto e leu alto:

— Contra a exploração e luta de classes, a favor das comunidades dos povos! Movimento Socialista Popular da Ale­manha. Bem, então os nazistas voltaram! — Langenau ergueu a folha. Nela via-se dois homens elegantes, com a mesma aparência dos vigorosos SA de Hitler, figuras robustas e herói­cas, e entre elas uma águia, incrivelmente semelhante à águia nazista, uma cruz nas garras. Quem não olhasse direito pen­saria tratar-se de uma cruz suástica.

— Ora, seja bonzinho — disse o grande e forte. — Vou lhe contar uma piada: qual a diferença entre judeus e turcos? É que os judeus já passaram pela coisa!

Risadas estrondosas. Langenau estava imóvel.

— Você não acha graça não? — perguntou o baixinho.

— Não — disse Langenau. — Nem um pouco.

— Bom, então, tem de ser mesmo — disse o grandalhão forte; levantou-se e deu um soco na cara de Langenau. Depois disso, a coisa explodiu violentamente. Langenau pareceu não ter sentido nada, e devolveu o soco. O magricela lhe deu um pontapé na barriga, dois homens saltaram sobre Langenau por trás. Ele os jogou de lado com violentos golpes. Depois a mesa caiu, copos se quebraram, cerveja e cachaça escorreram no chão. Todos os sete agora saltaram sobre Langenau, atrapa­lhando uns aos outros, mas aplicavam-lhe golpes terríveis.

Mulheres guinchavam, homens urravam, e o gordo taverneiro correu para o telefone. Chamava a polícia, que mais poderia ser? Langenau era muito forte mas não tinha chance contra aquele número tão superior. Agora estavam pateando em cima dele.

Saí correndo para ajudá-lo.

— Gato! — gritou Andréia, desesperada. E ainda gritava quando alcancei os sujeitos. Arranquei alguns de cima de Lan­genau, segurando-os pelos ombros, e dei-lhes uns socos na cara. Recuaram. Langenau levantou-se e começou a socá-los como uma máquina. Recebi um pontapé nas costas e voei contra a parede. Um dos homens saltou sobre mim e me deu um soco no baixo-ventre. Doeu horrivelmente e ele só parou quando consegui dar-lhe um pontapé nos ovos. Ele se sentou, sangrando convulsivamene suas partes. E pensei em como de­cidira ser amável com todas as pessoas.

Imediatamente apareceram outros dois batendo em mim, com um prazer assassino nos olhos. Langenau conseguiu tam­bém ficar de costas contra a parede. Tinha uma força de gigante. Levantou o magricela baixinho no ar e jogou-o por metade da sala. Tentei me aproximar de Langenau, mas uma perna de cadeira me acertou na cabeça e caí, recebendo uma porção de pontapés. Depois levantei-me novamente e peguei aquele que me socara no baixo-ventre. Agora pude me vingar amplamente. De repente seu punho acertou meu queixo, e senti algo estalar. Eu sabia que era um dente, e cuspi-o, com uma porção de sangue, na cara do meu adversário. As dores eram bastante fortes, mas agora eu estava tão furioso quanto Langenau, e bati como ele. Estávamos costas a costas. Sete homens são muitos contra dois, mesmo dois que lutem tanto, e fiquei com medo de que tudo tivesse um mau fim para nós, mas então ouvi uma sirene ao longe. Diante disso o segundo homem jogou notas de dinheiro no balcão do taverneiro, e os sete trataram de sumir da taverna o mais depressa possível. Também vi os três turcos fugindo: eles não podiam estar ali quando a polícia chegasse, e ela entraria a qualquer momento. Langenau parou recostado na parede, arquejando, e eu me jogara numa poltrona. Os policiais já conheciam o livreiro.

— Ah! O nosso sr. Langenau — disse o primeiro policial. — Sempre incansável a serviço dos trabalhadores estrangeiros, mesmo no domingo?

Langenau abaixou-se e pegou o panfleto sujo com os ca­maradas em posição de sentido, a águia e o poeminha insti­gador.

— Quem sabe dão isso ao promotor — disse ele. — Ele que se interesse um pouco pelo Movimento Socialista Popular antes que se torne poderoso demais.

— Sr. Langenau, sr. Langenau, escute: não passa de um grupo muito pequeno de malucos, não é movimento algum! Não há nenhuma ameaça!

— Os nazistas também começaram como um grupo bem pequeno — disse Langenau. — Vocês me conhecem e sabem que sou um papista porco, por isso posso dizer: vocês cuidam dos radicais da esquerda, mas são cegos no olho direito.

— Não é verdade.

— E que tal a bomba no Oktoberfest, e o grupo Hoffmann?

O taverneiro gordo de rosto ciclâmen chegou dizendo que os sete homens daquela mesa tinham estado ali pela primeira vez, e que o sr. Langenau era um freguês habitual, bom e muito estimado, que não se deixava provocar facilmente. Al­gumas pessoas disseram: “Isso mesmo!”, e outras gritaram: “A conta!”

O taverneiro disse que não se considerava prejudicado, mas os policiais quiseram um protocolo para o Distrito, e como soubessem nome e endereço de Langenau, pediram só a minha identificação. Mostrei meu passaporte falsificado, e um segundo policial perguntou:

— Onde mora, Sr. Kent?

Dei o endereço de Andréia e senti uma ferroada no peito. Encostei-me na parede esperando que não viesse nenhum ata­que. Fora uma briga louca, e eu me esgotara.

— Faz tempo?

— Desde ontem.

— Já se apresentou?

— Não, ainda não.

Outra ferroada. O ataque estava vindo.

— O passaporte é do Consulado-Geral da Alemanha em Buenos Aires — disse o segundo policial, espantado... — É de lá que o senhor vem?

— Sim.

— Desde quando está em Hamburgo?

— Anteontem.

— Se continuar assim, vai ser uma beleza. Por que vol­tou?

— Porque eu tinha muita saudade da Alemanha — disse eu, e causei um enorme acesso de hilaridade. Todos riram, os policiais, o gordo taverneiro, os fregueses, Andréia, sim, até eu tive de rir, apesar da boca dolorida, e sujei minha camisa, porque enquanto eu ria o sangue pingou. Justifiquei-me:

— Tive de ajudar o sr. Langenau, eram sete contra um.

— Naturalmente os heróis se mandaram — disse Lan­genau, entregando-me seu lenço para eu limpar o sangue da boca, e quando ele tirou o lenço do bolso algo caiu no chão.

— O que é isso? — perguntou um policial.

— Um rosário — disse Langenau, e apanhou-o do chão.

— Sr. Langenau, o senhor é tão bom católico! Mas mal acabou de cantar, rezar e escutar o padre, vem para cá e começam as brigas.

— Eu não comecei. Todo mundo viu isso — disse Langenau. — Eu não comecei.

— Conhecemos essa sua cabeça dura de tirolês. Feita de concreto. Mas agora naturalmente haverá outra queixa contra o senhor. E o senhor também — disse o segundo policial, olhando para mim.

— E escreveram de novo com spray na minha parede — disse Langenau. — Ainda não tive tempo de apresentar queixa. Tive de ir à igreja. — Tinha uma voz gutural, sin­gular, muito áspera, em contraste com o dialeto dos policiais. — Portanto, apresento queixa agora, e peço que alguém venha me ajudar a limpar a sujeira. Isso dá uma impressão muito ruim diante de estranhos, entendem.

— Sr. Langenau, nós entendemos. Mas o senhor também tem de entender os muitos alemães que são contra os traba­lhadores estrangeiros. Dizem que em Berlim muitas escolas já têm setenta por cento de estrangeiros, sr. Langenau.

— Estive em Berlim. Pessoas no distrito de Kreuzberg a chamam de Pequena Istambul. Muito engraçado. Como os alemães se afastam em toda parte onde moram estrangeiros, criam-se os guetos. Portanto, isolamento social, o que impossi­bilita a convivência normal. Os alemães não precisam amar os estrangeiros, mas também não chegar ao ponto de odiá-los. Por que nunca podemos ter um meio-termo sensato neste país?

— Sr. Langenau, o senhor tem uma paixão: caga no pró­prio ninho sempre que possível, e nem faz tanto tempo que é cidadão alemão.

— E daí? Acho que ainda é melhor cagar no próprio ninho do que no alheio! — disse Langenau. — Eu lhes digo, nesses apertados bairros de estrangeiros, há cada vez mais e mais material combustível.

— Claro — disse o primeiro policial. — Por isso também o problema está mais perto do gueto do que do bairro das mansões. Sabe como é incrivelmente alta a criminalidade entre os estrangeiros? E aumenta cada vez mais.

— Do jeito que as coisas estão — disse Langenau — seria incompreensível que a criminalidade entre os estrangeiros não aumentasse. Jovens estrangeiros que muitas vezes vivem na Alemanha há bastante tempo não acreditam mais na justiça desta sociedade. Para eles, a criminalidade é uma boa forma de adaptação.

— Sr. Langenau, seu senso de justiça é louvável — disse o segundo policial —, mas não deve se portar como fez há pouco. É impossível. E isso vale para o senhor também — disse para mim.

Mal pude mexer a boca ao dizer ao taverneiro:

— Um conhaque duplo, por favor. Agora ainda por cima tenho de ir ao dentista. Um deles arrancou meu molar a socos.

— Se a raiz estiver boa — disse o primeiro policial —, vão lhe colocar um pivô.

 

Andréia primeiro levou o sr. Langenau para casa, pois ele tinha ido a pé à igreja e estava todo sujo da briga. Nós dois tínhamos levado muitos golpes, e nossos rostos estavam in­chando. Andréia disse que as contusões e os galos logo se transformariam em um verdadeiro arco-íris.

O Opel Rekord do sr. Langenau estava perto da entrada da casa, e quando ele quis desembarcar, apontou-nos o ho­mem da segurança de quem falara a Andréia, e que estava mesmo saindo do edifício. Combinamos um encontro para quinze e cinqüenta e cinco diante da Livraria Osterkamp, na Tornquiststrasse, pois às quatro o velho estaria à nossa espera. Combinara ao telefone com Langenau que devíamos visitar a livraria imediatamente.

Minhas roupas do corpo, todas de Viena, estavam total­mente sujas, e quando me sentei na banheira Andréia me ajudou a me ensaboar. Mais tarde, enquanto colava um esparadrapo numa ferida sobre meu olho direito, ela disse:

— Estou muito orgulhosa de você, Gatão, porque lutou tão corajosamente com o sr. Langenau contra aqueles sujeitos baixos, e contra a injustiça. Faça isso no futuro também, mas se possível, por favor, não com muita freqüência.

Estava tão quente como nos dias anteriores. Quando che­gamos com o velho Volkswagen na Tornquiststrasse deserta, vimos dois homens solitários parados diante da livraria: eram o robusto Langenau e um senhor baixinho e magro, o sr. Osterkamp, cujos olhos deviam ser muito ruins, porque usava óculos especiais. Com eles e seu rosto enrugado, parecia Jean-Paul Sartre.

Estávamos em mangas de camisa, pois de outro modo não se agüentaria o calor; Andréia usava um vestido bem leve e fino. Langenau nos apresentou. Tinha um esparadrapo sobre o olho esquerdo. Estávamos com uma aparência horrível. Lan­genau já explicara ao sr. Osterkamp o que acontecera. O velho encarou Andréia em seu vestido branco como se ela fosse uma aparição celestial, e imediatamente demonstrou encantamento por ela. Enquanto ele abria a porta da loja, Andréia sussurrou para mim e Langenau:

— Deixem-me agir. Vou me entender maravilhosamente com ele. Ficou louco por mim.

Eu disse baixinho:

— Você é vulgar.

— E pervertida e desavergonhada — disse ela num sus­surro, e sorriu para o velho Osterkamp quando este se virou para nos olhar. O sorriso dela teve grande efeito. Osterkamp, que acabava de abrir a porta e andava à nossa frente para nos deixar entrar, tropeçou, em seu encantamento, e quase caiu de nariz.

— Estão vendo — sussurrou Andréia. Era realmente ver­gonhoso o jeito dela sorrir a toda hora para o velhote. Mas afinal tratava-se do negócio. Olhamos as prateleiras com li­vros, e Andréia disse que tudo era antigo e que os livros novos, que eram essenciais, não estavam ali. Osterkamp fazia que sim, como se dissesse sim e amém a tudo, e olhava apenas para ela. Uma escada em caracol, enferrujada, levava da loja a um grande porão, onde havia pilhas de livros. Junto do porão havia um quartinho anexo. Andréia estava encantada. Naturalmente continuou criticando tudo diante de Osterkamp, mas disse baixinho para mim:

— Se tirarmos essa parede, teremos um lugar ainda mui­to maior do que o nosso subsolo da Biblioteca Pública, rapaz!

Em cima havia um banheiro e uma espécie de escritório onde era possível descansar e falar com visitantes. Vi algumas cadeiras, um sofá velho, uma poltrona de veludo e uma mesa com um fogãozinho, panelas e xícaras. Na parede, um pe­queno armário aberto, com latas de chá e café. Logo me apai­xonei pelo quarto. Imaginei tudo limpo e novo, depois de fechar a livraria, ou quando não houvesse nada a fazer, eu poderia tomar um uísque ali com Andréia e o sr. Langenau (naturalmente de preferência só com Andréia). Esta adivinhou imediatamente o meu pensamento, e disse:

— Caso acertemos o negócio, este canto se chamará Cat’s Corner. — E depois explicou a Langenau e Osterkamp por que tinha de haver ali um Canto do Gato.

O velho mostrou também a entrada dos fundos, que dava para o pátio. No escritório havia uma geladeira com uma por­ção de garrafas de Coca-Cola. O líquido castanho estava tão frio que os dentes da gente doíam ao beber, e naturalmente depois sentíamos mais calor ainda. Entretanto, vendo que Os­terkamp tinha pressa em fechar o negócio, limpamos a mesa e pegamos cadeiras. Andréia colocou seus óculos imensos, que me deixavam tão louco, e o velho tirou pilhas de papéis de um armário, e então começamos.

Como advogado eu estava habituado a muita coisa rela­cionada a esse tipo de negócio, mas nunca vira um exame como o que Andréia fez. Era como no interrogatório feito por um promotor. Ela perguntou simplesmente tudo, não afrou­xou, calculava e avaliava tudo o que podia ser avaliado: ba­lanço de fim de ano, dos três últimos anos, movimento de capital dos últimos cinco anos, fornecedores, grandes clientes, estoque de livros escolares e seu desconto, novas instalações da cidade, centros comerciais, lojas, magazines, ligações com o centro (“por causa do fluxo de compradores”, disse ela), instalações da loja, livros, assinaturas de revistas e estrutura da clientela.

Bem, falaram na verdade quatro horas e meia, tudo tinha de ser dito, e depois disso chegaram a um preço, mas não definitivo, claro. Quando o velho Osterkamp disse que queria duzentos e cinqüenta mil pela loja, as instalações, os livros e o bom velho nome Osterkamp, Andréia endireitou-se, levantou os óculos e disse:

— Olhe aqui, sr. Osterkamp! Nós achamos o senhor muito simpático, mas quando se trata de negócios a gente tem de ser sincero, não é? Portanto, falando franco: o que o senhor está pretendendo, os seus duzentos e cinqüenta mil marcos, não vai ganhar nunca! Por favor, deixe-me concluir, depois o senhor fala. É claro que, se comprarmos sua loja, nós a tere­mos de reformar totalmente, pois nos últimos dez anos, o senhor mesmo disse, não pôde investir um triste marco nela. Tudo está velho, a instalação, a contabilidade, o estoque. Te­mos de renovar tudo, se quisermos aumentar o movimento e a receita a um nível decente. — Respirou fundo, recolocou os imensos óculos no nariz, e de repente fiquei muito excitado, pois a via nua diante de mim com aqueles óculos, e ouvia-a dizer:

— Naturalmente também penso numa razoável amorti­zação do capital investido... — Essas palavras me derruba­ram. Quem falava ali era uma experiente e fria mulher de negócios... e essa mulher estivera macia e terna nos meus braços, ainda esta noite, sem falar em ontem! Senti um res­peito enorme por Andréia e, graças a Deus, o velho Oster­kamp também sentiu. Langenau provavelmente já conhecia esse lado dela e apenas estremeceu de leve quando ela en­cerrou:

— ...e por todos esses motivos, não temos mais a lhe oferecer do que cem mil marcos, o que já é uma boa oferta.

Diante disso Osterkamp começou um lamento incrível, dizendo que então era bom encerrarem a conversa ali, e An­dréia realmente se levantou. Mas ele ficou sentado e disse:

— Ora, ora, senhorita, podemos falar.

Portanto continuaram falando mais duas horas, e então adiaram para a tarde de segunda, às quatro horas, na livraria.

Na volta para casa, Andréia disse:

— Aposto que conseguiremos cento e cinqüenta mil!

— Não aposto com você, Esquilinha, jamais!

— Vamos ter de negociar mais duas ou três vezes, depois eu o amacio, Gatão. Vamos apostar o quê?

— Não sei.

— Eu sei. Quem perder terá de fazer o outro feliz, duas vezes seguidas?

— Vá mais depressa, Condessa — disse eu. — Já perdi.

 

                                                                                            CONTINUA

 

 

                      

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