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MUNDO SEM FIM - P2 / Ken Follett
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MUNDO SEM FIM

Parte II

 

Junho de 1338 a maio de 1339

O mês de junho de 1338 foi seco e ensolarado, mas a Feira do Velocino foi uma catástrofe... para Kingsbridge em geral e para Edmund Wooler em particular. No meio da semana, Caris já sabia

Os habitantes da cidade já esperavam que seria um período difícil e haviam feito o que era possível para se preparar. Encarregaram Merthin de construir três balsas grandes, para serem impulsionadas com varas através do rio, a fim de complementar a barcaça movimentada pelo boi e o barco de Ian. Ele poderia ter construído mais, mas não haveria espaço suficiente nas margens. O terreno do priorado foi aberto um dia antes, e as embarcações trabalharam durante a noite inteira, à luz de tochas. Persuadiram Godwyn a permitir que os mercadores de Kingsbridge atravessassem o rio para vender seus produtos na fila, na esperança de que a cerveja de Dick Brewer e os pães de Betty Baxter apaziguassem as pessoas à espera.

Não foi suficiente.

Menos pessoas do que o habitual compareceram à feira, mas as filas foram piores do que nunca. As balsas extras foram insuficientes, mas mesmo assim as praias nos dois lados ficaram tão lamacentas que carroças atolavam a todo instante e tinham de ser rebocadas por parelhas de bois. Pior ainda, era difícil manobrar as balsas, e em duas ocasiões ocorreram colisões, com os passageiros caindo na água, embora felizmente sem que ninguém se afogasse.

Alguns mercadores previram esses problemas e se mantiveram a distância. Outros voltaram ao verem a extensão da fila. Dos que se dispuseram a esperar meio dia para entrar na cidade, alguns só conseguiram efetuar negócios tão insignificantes que partiram depois de um ou dois dias. Na quarta-feira, a barcaça levava mais pessoas embora do que trazia.

Naquela manhã, Caris e Edmund fizeram uma excursão pelas obras da ponte com Guillaume de Londres. Guillaume não era um cliente tão bom quanto Buonaventura Caroli, mas era o melhor que tinham naquele ano. Por isso, faziam questão de agradar-lhe. Era um homem alto e corpulento, usando um manto vermelho, do mais caro tecido italiano.

Tomaram emprestada a balsa de Merthin, que tinha um deque levantado e um guincho embutido, para o transporte de materiais de construção. O jovem ajudante de Merthin, Jimmie, conduzia a balsa.

As pilasstras no meio do rio, que Merthin construíra com tanta rapidez em dezembro do ano anterior, ainda estavam cercadas pelas barragens. Ele explicara a Edmund e Caris que as manteria ali até que a ponte estivesse quase pronta, a fim de proteger as colunas de pedra de danos acidentais causados por seus próprios trabalhadores. Quando removesse as barragens, poria em seu lugar uma pilha de pedras soltas, o que se chamava de enrocamento, que segundo ele impediria que a correnteza minasse as pilastras.

As maciças colunas de pedra haviam agora crescido, como árvores, estendendo suas arcadas para os lados, na direção de pilastras menores, perto das margens. Essas também projetavam arcadas para os lados, na direção das pilastras centrais e de outros suportes nas margens. Uma dúzia ou mais de pedreiros trabalhavam em andaimes elaborados, que aderiam às colunas de pedras como ninhos de águia num penhasco.

Desembarcaram na ilha do Leproso e encontraram Merthin com irmão Thomas, supervisionando os pedreiros que construíam o suporte do qual a ponte saltaria pelo canal norte da ilha. O priorado ainda possuía e controlava a ponte, muito embora a terra estivesse arrendada à guilda da paróquia e a construção fosse financiada por empréstimos de habitantes da cidade. Thomas da com freqüência aos locais da obra. O prior Godwyn demonstrava um interesse de proprietário pela obra, em particular pela aparência da ponte, evidentemente sentindo que seria uma espécie de monumento a ele.

Merthin fitou os visitantes com seus olhos castanho-dourados, e o coração de Caris pareceu bater mais depressa. Quase não se viam agora, e quando conversavam era sempre sobre trabalho; mas ela ainda se sentia estranha em sua presença. Tinha de fazer um esforço para respirar normalmente, para fitá-lo nos olhos com uma indiferença simulada, e controlar a fala para um tom moderado.

Nunca haviam superado a briga. Ela nada lhe falara sobre o aborto, e por isso Merthin não sabia se fora espontâneo ou provocado. Nenhum dos dois se referia a isso. Em duas ocasiões desde então, ele a procurara, solene, e suplicara para reatarem. Nas duas vezes, Caris respondera que nunca amaria outro homem, mas não tinha a menor intenção de passar o resto de sua vida como esposa de alguém e mãe de seus filhos.

- Como então quer passar sua vida? - indagara Merthin.

Ela respondera simplesmente que não sabia. Merthin já não se mostrava tão irrequieto e ansioso como antes. Mantinha os cabelos e a barba sempre bem aparados, pois era agora um cliente regular de Matthew Barber. Vestia uma túnica castanho-avermelhada, como os pedreiros, mas usava uma capa amarela com orla de pêlo, um sinal de sua condição de mestre, e um gorro com uma pena, que o fazia parecer um pouco mais alto.

Elfric, cuja hostilidade persistia, protestara por Merthin se vestir como um mestre, sob a alegação de que ele não era membro de qualquer guilda. Merthin respondera que era de fato um mestre, e a solução para o problema seria sua admissão em alguma guilda. E a situação continuava sem ser resolvida.

Merthin ainda tinha apenas vinte e um anos. Guillaume fitou-o e comentou:

- Ele é muito jovem.

Caris disse, defensiva:

- É o melhor construtor da cidade desde que tinha dezessete anos. Merthin conversou mais um pouco com Thomas, antes de se aproximar.

- Os suportes de uma ponte em terra precisam ser pesados, com fundações profundas - informou ele, explicando a coluna maciça que estava construindo.

- Por que, meu jovem? - indagou Guillaume.

Merthin já estava acostumado a ser tratado com condescendência, e não se incomodou. Com um pequeno sorriso, ele respondeu:

- Deixe-me mostrar. Fique com os pés tão separados quanto puder... assim. Merthin demonstrou e Guillaume imitou-o, depois de um momento de hesitação.

- Seus pés dão a impressão de que podem escorregar e se afastarem ainda mais, não é?

- É, sim.

- E as extremidades de uma ponte tendem a se abrir, como seus pés. Isso exerce uma pressão na ponte, como a tensão na virilha que está sentindo neste momento.

Merthin reassumiu uma postura normal e encostou a bota que calçava no sapato de couro macio de Guillaume, com uma pressão firme.

- Agora seu pé não pode mais se deslocar e a pressão na virilha diminuiu, não é mesmo?

- É, sim.

- O suporte tem o mesmo efeito de meu pé para aliviar a tensão e manter o equilíbrio.

- Muito interessante... - murmurou Guillaume, pensativo, enquanto retomava a posição normal. Caris compreendeu que ele estava dizendo a si mesmo para não subestimar Merthin.

- Deixe-me mostrar tudo - sugeriu Merthin.

A ilha mudara completamente nos últimos seis meses. Todos os sinais da antiga colônia de leprosos haviam desaparecido. Boa parte da terra rochosa servia agora como depósito: pilhas de pedras, barris de cal, madeiras, rolos de corda. A ilha ainda era infestada de coelhos, que agora competiam pelo espaço com os construtores. Havia uma oficina em que um ferreiro consertava ferramentas velhas e forjava novas; vários telheiros de pedreiros; e a casa nova de Merthin, pequena mas construída com o maior cuidado, de proporções perfeitas. Carpinteiros, pedreiros e fabricantes de argamassa trabalhavam sem cessar para abastecer os homens nos andaimes.

- Parece haver mais homens trabalhando do que o habitual - murmurou Caris no ouvido de Merthin.

Ele sorriu.

- Pus tantos homens quanto era possível nas posições mais visíveis. Quero que todos os visitantes reparem como estamos trabalhando depressa para construir a nova ponte. Precisam acreditar que a feira voltará ao normal no próximo ano.

Na extremidade oeste da ilha, longe das pontes gêmeas, havia depósitos e armazéns em terrenos que Merthin alugara para os mercadores de Kingsbridge.

Embora os aluguéis fossem mais baratos do que os que os locatários teriam de pagar dentro das muralhas da cidade, Merthin já estava ganhando muito mais do que a quantia simbólica que devia pagar todos os anos pelo arrendamento.

Ele também se encontrava muito com Elizabeth Clerk. Caris achava que ela não prestava, mas era a única outra mulher na cidade com inteligência suficiente para desafiar Merthin. Ela tinha uma pequena caixa de livros que herdara do pai, o bispo, e Merthin passava as noites em sua casa, lendo. Se acontecia mais alguma coisa entre os dois, Caris não sabia.

Quando a excursão terminou, Edmund levou Guillaume através do rio. Caris ficou na ilha, para conversar com Merthin.

- Bom cliente? - indagou ele, enquanto observava a balsa se afastar.

- Acabamos de lhe vender dois sacos de lã barata por menos do que pagamos. Um saco eqüivalia a 364 libras (165 quilos) de lã, lavada e seca. Naquele ano, a lã barata estava sendo vendida a trinta e seis shillings por saco, enquanto a lã de qualidade valia o dobro.

- Por quê?

- Quando os preços estão caindo, é melhor ter dinheiro na mão do que lã.

- Mas deviam prever uma feira inferior.

- Não esperávamos que fosse tão ruim assim.

- Estou surpreso. No passado, seu pai sempre teve uma capacidade excepcional para prever as tendências.

Caris hesitou.

- O problema é a combinação de redução da demanda e a falta de uma ponte. Na verdade, ela também ficara surpresa. Observara o pai comprar lã na mesma quantidade de sempre, apesar das perspectivas desfavoráveis, e especulara por que ele não assumira uma posição cautelosa, fazendo menos aquisições.

- Imagino que tentarão vender o que sobrar na Feira de Shiring - disse Merthin.

- É o que o conde Roland quer que todos façam. Só que não somos os mercadores regulares ali. Os locais ficam com os melhores negócios. É o que acontece em Kingsbridge. Meu pai e dois ou três outros fecham os grandes negócios com os maiores compradores, deixando os menores e os forasteiros disputarem as sobras. Tenho certeza de que os mercadores de Shiring fazem a mesma coisa. Podemos vender alguns sacos ali, mas não há a menor possibilidade de nos livrarmos de tudo o que compramos.

- O que vão fazer?

- Foi por isso que fiquei para conversar com você. Talvez tenhamos de suspender o trabalho na ponte.

Merthin ficou aturdido e murmurou: -Não é possível...

- Lamento muito, mas meu pai não tem o dinheiro. Investiu tudo em lã que não consegue vender.

Merthin dava a impressão de que fora esbofeteado. Depois de um momento, ele murmurou:

- Temos de encontrar outro meio.

Caris sentiu um aperto no coração por ele, mas não podia encontrar nada de esperançoso para dizer.

- Meu pai se comprometeu a investir setenta libras na ponte. Já deu a metade. O resto, infelizmente, está em sacos de lã no nosso depósito.

- Ele não pode estar completamente sem dinheiro.

- Quase isso. E o mesmo acontece com vários outros cidadãos que prometeram dinheiro para a ponte.

- Posso diminuir o ritmo do trabalho - sugeriu Merthin, desesperado. - Dispensar alguns operários, e esgotar o estoque de materiais antes de comprar mais.

- Neste caso, a ponte não ficaria pronta para a feira do próximo ano, o que tornaria o problema ainda pior.

- É melhor do que interromper o trabalho completamente.

- Tem toda razão, Merthin. Mas não faça nada por enquanto. Pensaremos de novo quando a feira acabar. Eu só queria que você soubesse qual é a situação.

Merthin ainda estava pálido.

- Obrigado.

A balsa já voltara, e Jimmie esperava para levá-la de volta. Enquanto se encaminhava para a balsa, Caris perguntou, em tom de indiferença:

- E como vai Elizabeth Clerk?

Merthin fingiu que ficava um pouco surpreso com a pergunta.

- Muito bem, eu acho.

- Parece que a tem visitado com freqüência.

- Nem tanto assim. E sempre fomos amigos.

- É verdade - concordou Caris.

Não era bem assim. Merthin ignorara Elizabeth durante quase todo o último ano, quando passava a maior parte do tempo em companhia de Caris. Mas seria indigno contestá-lo, e por isso ela não disse mais nada.

Entrou na balsa, e acenou em despedida. Jimmie partiu. Merthin tentava dar a impressão de que seu relacionamento com Elizabeth não era um romance. Talvez fosse verdade. Ou talvez ele se sentisse embaraçado em admitir para Caris que estava apaixonado por outra. De uma coisa ela tinha certeza: era um romance para Elizabeth. Dava para perceber apenas pela maneira como Elizabeth olhava para ele. Elizabeth podia ser uma donzela de gelo, mas se derretia para Merthin.

A balsa alcançou a margem oposta. Caris desembarcou e subiu a encosta para o centro da cidade.

Merthin ficara profundamente abalado com a notícia. Caris teve vontade de chorar ao recordar o choque e a consternação no rosto dele. Era assim que Merthin ficava quando ela se recusava a reatar o relacionamento dos dois.

Caris ainda não sabia como passaria o resto de sua vida. Sempre presumira que viveria numa casa confortável, paga pelo dinheiro de um negócio lucrativo, independentemente do que fizesse. Agora, até mesmo esse terreno parecia balançar sob seus pés. Ela vasculhou o cérebro à procura de uma saída para a situação crítica. O pai se mostrava estranhamente sereno, como se ainda não tivesse absorvido a escala dos prejuízos; mas ela sabia que era preciso fazer alguma coisa.

Ao subir pela rua principal, ela passou pela filha de Elfric, Griselda, levando no colo seu bebê de seis meses. Era um menino, e ela lhe dera o nome de Merthin, uma censura permanente ao Merthin original por rejeitar o casamento. Griselda ainda mantinha uma farsa de inocência injuriada. Todos os outros aceitavam agora que Merthin não era o pai, embora uns poucos ainda pensassem que ele deveria ter casado com Griselda mesmo assim, já que deitara com ela.

O pai saía quando Caris chegou em casa. Ela ficou atônita. Edmund usava apenas o calção de baixo e uma camiseta.

- Onde estão suas roupas, papai?

Ele olhou para baixo e soltou um grunhido contrariado.

- Estou ficando distraído - murmurou Edmund, tornando a entrar em casa. Ele devia ter tirado as roupas para ir à privada, pensou Caris, e depois esquecera de vesti-las.

Seria apenas a idade? O pai só tinha quarenta e oito anos; e, além do mais, aquilo parecia pior do que mero esquecimento. Ela ficou nervosa.

O pai voltou, vestido normalmente. Atravessaram a rua principal juntos, e entraram no terreno do priorado. Edmund perguntou:

- Falou com Merthin sobre o dinheiro?

- Falei. Ele ficou bastante chocado.

- E o que ele disse?

- Que poderíamos gastar menos se diminuíssemos o ritmo da construção.

- Mas neste caso não teríamos a ponte preparada a tempo para a feira do próximo ano.

- Mas, como Merthin disse, seria melhor do que abandonar a ponte pela metade.

Os dois chegaram ao estande de Perkin Wigleigh, que vendia galinhas poedeiras. Sua filha que gostava de flertar, Annet, carregava uma bandeja com ovos, presa numa tira em torno do pescoço. Por trás do balcão, Caris viu sua amiga Gwenda, que agora trabalhava para Perkin. Grávida de oito meses, com os seios estufados e a barriga imensa, Gwenda mantinha uma das mãos no quadril, na pose clássica da gestante que sente dor nas costas.

Caris lembrou que também estaria agora com oito meses de gravidez, se não tivesse tomado a poção de Mattie. Depois do aborto, seus seios haviam vazado leite, e ela não podia deixar de sentir que era a censura do corpo pelo que fizera. Sofria pontadas de arrependimento, mas sempre que pensava a respeito de uma maneira lógica sabia que faria a mesma coisa se tivesse de voltar no tempo.

Gwenda fitou Caris e sorriu. Apesar de parecer quase impossível, Gwenda conseguira o que queria: Wulfric era seu marido. Ele estava ali agora, forte como um cavalo e duas vezes mais bonito do que antes, levantando uma pilha de engradados de madeira para uma carroça. Caris sentiu-se emocionada por Gwenda.

- Como se sente hoje? - perguntou ela.

- Passei a manhã inteira com dor nas costas.

- Não deve faltar muito para o parto.

- Acho que duas semanas.

- Quem é ela, minha querida? - perguntou Edmund.

- Não se lembra de Gwenda, papai? Ela foi hóspede em sua casa pelo menos uma vez por ano durante os últimos dez anos.

Edmund sorriu.

- Não a reconheci, Gwenda... deve ter sido por causa da gravidez. Mas você parece estar muito bem.

Os dois seguiram adiante. Wulfric não recebera sua herança, Caris sabia: Gwenda fracassara em seu empenho. Caris não sabia exatamente o que acontecera em setembro último, quando Gwenda fora suplicar a Ralph por ”Wulfric. Ao que parecia, Ralph fizera uma promessa, que depois repudiara. O fato é que agora Gwenda odiava Ralph com uma intensidade que era quase assustadora.

Ali perto havia uma fileira de estandes em que mercadores de tecidos locais vendiam burel marrom, o tecido de trançado largo que todos compravam - com exceção dos ricos - para fazer as roupas que usavam em casa. Pareciam estar fazendo bons negócios, ao contrário dos mercadores de lã. A lã bruta era um negócio de atacado, e a ausência de uns poucos grandes compradores podia arruinar o mercado. Mas o tecido era varejo. Todos precisavam, todos compravam. Talvez um pouco menos quando os tempos eram difíceis, mas ainda assim as pessoas precisavam de roupas.

Um pensamento vago começou a se delinear no fundo da mente de Caris. Quando os mercadores não conseguiam vender a lã, às vezes trançavam e tentavam vender como tecido. Mas exigia muito trabalho, e não havia grandes lucros no burel. Todos compravam o mais barato, e os vendedores tinham de manter o preço baixo. Ela passou a observar os estandes de tecidos com novos olhos.

- Fico me perguntando o que dá mais dinheiro - murmurou ela.

O burel custava doze pennies por metro. Era preciso pagar a metade dessa quantia para que o tecido fosse engrossado por batidas na água, e ainda mais por outras cores que não o marrom opaco natural. O estande de Peter Dyer oferecia tecido em verde, amarelo e rosa, a dois shillings - vinte e quatro pennies - por metro, embora as cores não fossem muito brilhantes.

Ela virou-se para o pai, a fim de relatar a idéia que começava a se formar em sua mente; mas, antes que pudesse falar, aconteceu uma coisa que desviou sua atenção.

A presença na Feira do Velocino lembrava Ralph, de uma forma desagradável, do mesmo evento no ano anterior. Ele tocou no nariz deformado. Como aquilo acontecera? Começara com seu flerte inofensivo com a jovem camponesa, Annet, para depois dar uma lição de respeito a seu rude namorado; mas, de alguma forma, terminara em humilhação para Ralph.

Ao se aproximar do estande de Perkin, ele consolou-se ao pensar no que ocorrera desde então. Salvara a vida do conde Roland depois do desabamento da ponte; agradara ao conde por seu comportamento decidido na pedreira; e finalmente fora promovido a cavaleiro, embora tivesse recebido apenas a pequena aldeia de Wigleigh. Matara um homem, Ben Wheeler... um carroceiro, o que significava que não havia honra nisso, mas mesmo assim provara para si mesmo que seria capaz de fazê-lo.

Até fizera as pazes com o irmão. A mãe forçara, convidando os dois para o almoço no dia de Natal, e insistindo para que trocassem um aperto de mão. Era um infortúnio, dissera o pai, que servissem a superiores que eram rivais, mas cada um tinha o dever de fazer o melhor que pudesse, como soldados em lados opôstos numa guerra civil. Ralph ficara satisfeito, e achava que Merthin sentira a mesma coisa.

Conseguira se vingar de uma maneira satisfatória de Wulfric, negando sua herança e ao mesmo tempo tirando sua namorada. A atraente Annet estava agora casada com Billy Howard, enquanto Wulfric tinha de se contentar com a feia embora ardente Gwenda.

Era uma pena que Wulfric não parecesse mais abalado. Circulava pela aldeia empertigado e orgulhoso, como se fosse ele e não Ralph quem possuía Wigleigh. Todos os vizinhos gostavam dele, e a esposa grávida o idolatrava. Apesar das derrotas que Ralph lhe infligira, Wulfric emergira de certa forma como o herói. Talvez fosse porque sua esposa era tão sensual.

Ralph bem que gostaria de contar a Wulfric sobre a visita que Gwenda lhe fizera na Bell. ”Deitei com sua esposa”, ele tinha vontade de dizer. ”E ela gostou.” Isso acabaria com a expressão orgulhosa de Wulfric. Mas, neste caso, Wulfric também saberia que Ralph fizera uma promessa e vergonhosamente deixara de cumpri-la... o que faria com que Wulfric se sentisse superior de novo. Ralph estremeceu ao pensar no desprezo que Wulfric e os outros sentiriam por ele se descobrissem sobre essa traição. Seu irmão Merthin, em particular, o desprezaria por isso. Sua aventura com Gwenda tinha de permanecer em segredo.

Estavam todos no estande. Perkin foi o primeiro a ver Ralph se aproximar. Cumprimentou seu senhor, subserviente como sempre.

- Bom-dia, lorde Ralph - disse ele, fazendo uma reverência.

A esposa, Peggy, atrás dele, também fez uma reverência. Gwenda estava ali, esfregando as costas, como se sentisse dor. E, depois, Ralph avistou Annet, com sua bandeja com ovos. Recordou a ocasião em que tocara em seu seio pequeno, redondo e firme como os ovos na bandeja. Ela percebeu que Ralph a observava e baixou os olhos, recatada. Ele tinha vontade de tocar naquele seio de novo. Por que não? Afinal, era o seu senhor... pensou ele. Avistou Wulfric no fundo do estande. O garoto estava levantando engradados para uma carroça, mas agora permanecia imóvel, olhando fixamente para Ralph. Mantinha o rosto inexpressivo, mas o olhar era firme e direto. Não podia ser chamado de insolente, mas para Ralph não havia qualquer equívoco na ameaça. Não poderia ser mais clara se Wulfric dissesse: Toque nela e eu o matarei.

Talvez eu devesse fazer isso, pensou Ralph. Deixá-lo me atacar. E liquidá-lo com a espada. Estaria no meu direito, um senhor se defendendo de um camponês enfurecido pelo ódio. Sem desviar os olhos de Wulfric, ele ergueu a mão para acariciar o seio de Annet... e foi nesse instante que Gwenda soltou um grito estridente de dor. Todos os olhos se viraram em sua direção.

Caris ouviu um grito de dor, e reconheceu a voz de Gwenda. Sentiu uma pontada de medo. Havia alguma coisa errada. Em poucos passos apressados, ela voltou ao estande de Perkin.

Gwenda estava sentada num banco, muito pálida, o rosto contorcido numa expressão de dor, a mão outra vez no quadril. E tinha o vestido molhado. A esposa de Perkin disse, incisiva:

- A bolsa de água arrebentou. O trabalho de parto está começando.

- Ainda é cedo - murmurou Caris, nervosa.

- O bebê virá mesmo assim.

- O que é perigoso. - Caris tomou uma decisão. - Vamos levá-la para o hospital.

As mulheres normalmente não davam à luz no hospital, mas aceitariam Gwenda se Caris insistisse. Um bebê antes do tempo podia ser vulnerável; todos sabiam disso.

Wulfric adiantou-se. Caris ficou mais uma vez impressionada com sua juventude. Ele tinha dezessete anos e estava prestes a se tornar pai.

- Estou me sentindo um pouco tonta - murmurou Gwenda. - Mas já vou melhorar.

- Eu a carregarei - declarou Wulfric, levantando-a sem qualquer esforço.

- Venha comigo. - Caris seguiu à frente entre os estandes, gritando para as pessoas: - Fiquem de lado... dêem passagem, por favor!

Logo chegaram ao hospital. A porta estava aberta. Os visitantes da noite haviam saído horas antes, e os colchões de palha estavam empilhados contra uma parede. Vários empregados e noviços lavavam o chão, com esfregões e baldes. Caris dirigiu-se à mulher mais próxima, de meia-idade, descalça.

- Depressa, chame Old Julie... diga a ela que Caris a mandou.

Caris pegou um colchão relativamente limpo e estendeu-o no chão, perto do altar. Não tinha certeza sobre a eficiência dos altares na ajuda aos pacientes, mas seguia as convenções. Wulfric pôs Gwenda no colchão, com todo cuidado, como se ela fosse de vidro. Ela ergueu os joelhos e abriu as pernas.

Old Julie chegou poucos momentos depois. Caris pensou que muitas vezes sua vida fora confortada por aquela freira, que provavelmente não tinha muito mais que quarenta anos, mas parecia mais velha.

- Esta é Gwenda Wigleigh - disse Caris. - Ela pode estar bem, mas o bebê vai nascer com várias semanas de antecedência, e achei que trazê-la para cá era uma precaução sensata. De qualquer maneira, estávamos aqui perto, na feira.

- Era mesmo o melhor a fazer. - Gentilmente, Julie afastou Caris e ajoelhouse ao lado da cama. - Como se sente, minha cara?

Enquanto Julie conversava com Gwenda, em voz baixa, Caris olhou para Wulfric. O rosto jovem e bonito se contraía em ansiedade. Caris sabia que ele nunca tencionara casar com Gwenda... que sempre quisera Annet.

Agora, porém, ele parecia tão preocupado com Gwenda como se a amasse havia anos. Gwenda soltou outro grito de dor.

- Calma, calma... - murmurou Julie.

Ela ajoelhou-se entre os pés de Gwenda e levantou o vestido, para acrescentar em seguida:

- O bebê nascerá em breve.

Outra freira apareceu. Caris reconheceu Mair, a noviça com cara de anjo, que perguntou:

- Devo chamar madre Cecilia?

- Não precisa incomodá-la - respondeu Julie. - Vá até o depósito e traga a caixa de madeira com a palavra ”Nascimento” escrita na tampa.

Mair afastou-se apressada. Gwenda balbuciou:

- Oh, Deus, como dói...

- Continue a fazer força - recomendou Julie.

- Pelo amor de Deus, qual é o problema? - indagou Wulfric

- Não há nenhum problema - garantiu Julie. - Tudo isso é normal. É assim que as mulheres dão à luz. Você deve ser o mais jovem de sua família, caso contrário já teria visto sua mãe assim.

Caris também era a filha mais nova. Sabia que o parto era doloroso, mas nunca assistira a nenhum. Ficou chocada ao descobrir como era terrível.

Mair voltou e pôs uma caixa de madeira no chão, ao lado de Julie.

Gwenda parou de gemer. Fechou os olhos. Quase parecia estar dormindo. Mas tornou a gritar poucos minutos depois. Julie disse para Wulfric:

- Sente ao lado dela e segure sua mão.

Ele obedeceu no mesmo instante. Julie ainda olhava por baixo do vestido de Gwenda.

- Pare de fazer força agora - disse ela, depois de algum tempo. - Respire como se estivesse ofegante, uma porção de vezes.

Ela ofegou para mostrar o que queria. Gwenda obedeceu, e isso pareceu aliviar seu sofrimento por alguns minutos. Mas logo ela gritou outra vez.

Caris mal conseguia se manter de pé. Se aquilo era normal, como seria o parto quando havia dificuldades? Ela perdeu a noção do tempo: tudo estava acontecendo muito depressa, mas o tormento de Gwenda parecia interminável. Caris experimentou o sentimento de impotência que tanto detestava, o mesmo que a dominara quando a mãe morrera. Tinha vontade de gritar, mas não sabia o que fazer. Isso a deixou tão ansiosa que mordeu o lábio até sentir o gosto de sangue.

- Aí vem o bebê - anunciou Julie.

Ela se inclinou entre as pernas de Gwenda. O vestido desceu pelas coxas, e Caris pôde ver a cabeça do bebê, o rosto virado para baixo, coberto de cabelos úmidos, saindo por uma abertura que parecia dilatada a um ponto impossível.

- Deus nos ajude! exclamou ela, horrorizada. - Não é de admirar que doa tanto!

Julie sustentou a cabeça com a mão esquerda. O bebê virou de lado, lentamente, e os ombros saíram. A pele estava escorregadia, com sangue e outro fluido.

- Relaxe agora - murmurou Julie. - Já está quase acabando. O bebê é lindo.

Lindo?, pensou Caris. Para ela, parecia horrível.

O tronco do bebê saiu, com um cordão grosso, azulado, pulsando, ligado ao umbigo. Depois, as pernas e os pés também saíram, num súbito ímpeto. Julie pegou o bebê com as duas mãos. Era pequeno, a cabeça não muito maior do que a palma de Julie.

Havia alguma coisa errada. Caris compreendeu que o bebê não estava respirando.

Julie aproximou o rosto do bebê do seu e soprou pelas narinas em miniatura.

O bebê abriu subitamente a boca, ofegou para respirar, e gritou.

- Louvado seja Deus! - murmurou Julie. ’ Ela limpou o rosto do bebê com a manga de seu hábito. Com extrema ternura, limpou também em torno dos ouvidos, olhos, nariz, boca. Depois, aconchegou o recém-nascido contra o peito e fechou os olhos. Nesse instante, Caris percebeu uma vida inteira de abnegação. O momento logo passou, e Julie ajeitou o bebê no peito de Gwenda.

- É menino ou menina? - perguntou Gwenda, baixando os olhos.

Caris compreendeu que nenhuma delas verificara. Julie inclinou-se e afagou os joelhos do bebê.

- Um menino.

O cordão azulado parou de pulsar, murchou e embranqueceu. Julie tirou da caixa dois pedaços curtos de barbante e amarrou no cordão umbilical. Pegou uma faca pequena e afiada e cortou o cordão entre os dois nós.

Mair pegou a faca e estendeu uma pequena manta. Julie pegou o bebê, envolveu-o com a manta, e devolveu-o à mãe. Gwenda empurrou para baixo a gola do vestido, pôs para fora o seio intumescido. Ofereceu o mamilo para o bebê, que começou a sugar. Depois de um minuto, ele parecia ter adormecido.

A outra metade do cordão umbilical ainda pendia do corpo de Gwenda. Mexeu-se alguns minutos mais tarde e uma massa informe e avermelhada saiu: eram as secundinas. O sangue encharcou o colchão. Julie levou a massa, entregou a Mair, e determinou:

- Queime isto.

Julie examinou a área pélvica de Gwenda e franziu o rosto. Caris seguiu seu olhar, e constatou que o sangue ainda saía. Julie limpou as manchas do corpo de Gwenda, mas as listras vermelhas reapareceram no instante seguinte. Quando Mair voltou, Julie disse:

- Chame madre Cecilia, por favor. Peça a ela para vir o mais depressa que puder.

- Algum problema? - indagou Wulfric

- A hemorragia já deveria ter cessado - explicou Julie.

Houve uma súbita tensão no ar. Wulfric ficou assustado. O bebê chorou, e Gwenda tornou a lhe dar o mamilo. Ele sugou por um instante e dormiu de novo. Julie olhava para a porta a todo instante. Madre Cecilia finalmente apareceu. Examinou Gwenda e perguntou:

- A placenta já saiu?

- Há poucos minutos.

- Pôs o bebê no seio?

- Assim que cortamos o cordão umbilical.

- Vou chamar um médico.

Cecilia afastou-se apressada. Voltou em poucos minutos. Trazia um pequeno frasco de vidro, contendo um líquido amarelo.

- O prior Godwyn receitou isto. Caris ficou indignada.

- Ele não quer examinar Gwenda?

- Claro que não - respondeu Cecilia, em tom brusco. - Ele é um padre, além de monge. Homens assim não examinam as partes íntimas de uma mulher.

- Podex... - murmurou Caris, desdenhosa.

Era a palavra latina para idiota. Cecilia fingiu não ouvir. Ajoelhou-se ao lado de Gwenda.

- Beba isto, minha querida.

Gwenda tomou a poção, mas continuou a sangrar. Estava pálida, e parecia ainda mais fraca do que logo depois do nascimento. O bebê dormia contente em seu seio, mas todas as outras pessoas estavam apavoradas. Wulfric levantava e sentava a todo instante. Julie limpava o sangue das coxas de Gwenda, e dava a impressão de que começaria a chorar a qualquer momento. Gwenda pediu alguma coisa para beber, e Mair trouxe um copo de cerveja. Caris levou Julie para o lado e disse, num sussurro:

- Ela vai sangrar até a morte!

- Já fizemos tudo o que podíamos.

- Já viu casos assim antes?

- Três casos.

- Como acabaram?

- As mulheres morreram. Caris soltou um grunhido baixo de desespero.

- Deve haver alguma coisa que possamos fazer!

- Ela está nas mãos de Deus agora. Você pode rezar.

- Não é o que pensei quando falei em fazer alguma coisa.

- Tome cuidado com o que diz.

Caris sentiu-se culpada no mesmo instante. Não queria brigar com uma pessoa tão gentil quanto Julie.

- Desculpe, irmã. Não tive a intenção de negar o poder da oração.

- Espero que não.

- Mas ainda não estou disposta a deixar Gwenda nas mãos de Deus.

- O que mais se pode fazer?

- Vamos descobrir.

Caris saiu correndo do hospital. Empurrou impaciente as pessoas à sua frente na feira. Parecia espantoso que ainda houvesse pessoas comprando e vendendo quando um drama de vida e morte se desenrolava a poucos metros de distância. Mas podia se lembrar das muitas ocasiões em que soubera que uma mulher entrara em trabalho de parto, mas não interrompera o que fazia. Limitara-se a desejar que tudo corresse bem e continuara em sua atividade.

Ela deixou o terreno do priorado e correu pelas ruas da cidade até a casa de Mattie Wise. Bateu na porta e abriu-a. Para seu alívio, descobriu que Mattie se encontrava ali.

- O bebê de Gwenda acaba de nascer - disse Caris.

- E qual é o problema?

- O bebê está bem, mas Gwenda continua a sangrar.

- A placenta já saiu? ,,

-Já

- A hemorragia deveria ter cessado.

- Pode ajudá-la?

- Talvez. Tentarei.

- Depressa, por favor!

Mattie tirou um caldeirão do fogo e calçou os sapatos. As duas saíram. Mattie trancou a porta. Caris declarou, veemente:

- Juro que nunca terei um bebê!

Correram para o priorado e entraram no hospital. Caris notou o cheiro forte de sangue. Mattie teve o cuidado de cumprimentar Old Julie.

- Boa-tarde, irmã Juliana.

- Olá, Mattie. - A expressão de Julie era de desaprovação. - Acha mesmo que pode ajudar esta mulher, quando o remédio receitado pelo santo prior não foi abençoado com o sucesso?

- Se orar por mim e pela paciente, irmã, quem sabe o que pode acontecer? Era uma resposta diplomática, e Julie abrandou.

Mattie ajoelhou-se ao lado da mãe e da criança. Gwenda ficava cada vez mais pálida. Mantinha os olhos fechados. O bebê procurou sem ver pelo mamilo, mas Gwenda parecia exausta demais para ajudá-lo.

- Ela tem de continuar a beber - disse Mattie. - Mas não pode ser uma bebida forte. Por favor, traga um jarro de água morna, com um pequeno copo de vinho misturado. Depois, pergunte ao cozinheiro se tem uma sopa rala. Não pode ser muito quente.

Mair olhou inquisitiva para Julie, que hesitou por um instante, e depois acenou com a cabeça.

- Pode ir... mas não conte a ninguém que está atendendo a um pedido de Mattie.

A noviça saiu apressada. Mattie levantou o vestido de Gwenda ao máximo possível, expondo todo o abdômen. A pele toda esticada poucas horas antes estava agora flácida e cheia de dobras. Mattie examinou a área, comprimindo os dedos na barriga, gentil mas firme. Gwenda soltou um grunhido, mas era um som de desconforto, não de dor. Mattie disse:

- O útero está mole. Não foi capaz de se contrair. É por isso que ela continua a sangrar.

Wulfric, que parecia à beira das lágrimas, indagou:

- Pode fazer alguma coisa para ajudá-la?

- Não sei. - Mattie começou a fazer uma massagem, os dedos aparentemente pressionando o útero de Gwenda, através da pele e da carne da barriga. - Às vezes isso faz o útero encolher.

Todos ficaram observando, em silêncio. Caris tinha quase medo de respirar. Mair voltou com a mistura de água e vinho.

- Dê um pouco para ela, por favor - pediu Mattie, sem interromper a massagem.

Mair estendeu o copo para os lábios de Gwenda, que bebeu sofregamente.

- Não demais - advertiu Mattie.

Mair afastou o copo. Mattie continuou a massagear, olhando de vez em quando para a pélvis de Gwenda. Os lábios de Julie se moviam numa prece silenciosa. O sangue fluía sem parar.

Com uma expressão preocupada, Mattie alterou a posição. Pôs a mão esquerda na barriga de Gwenda logo abaixo do umbigo, depois a mão direita por cima da esquerda. Empurrou para baixo, aumentando a pressão pouco a pouco. Caris teve medo de que isso pudesse machucar a paciente, mas Gwenda parecia apenas semi-inconsciente. Mattie inclinou-se ainda mais sobre Gwenda, até que parecia estar aplicando todo o seu peso nas mãos.

- Ela parou de sangrar! - exclamou Julie. Mattie não alterou sua posição.

- Alguém pode contar até quinhentos?

- Eu conto - murmurou Caris.

- Devagar, por favor.

Caris começou a contar em voz alta. Julie tornou a limpar o sangue do corpo de Gwenda. Desta vez, as listras não reapareceram. Ela começou a rezar em voz alta:

- Santa Maria, Mãe do Senhor Jesus Cristo...

Todos mantinham-se imóveis, como um grupo de estátuas: a mãe e o bebê no colchão, a curandeira pressionando a barriga da mãe; o marido, a freira rezando, e Caris contando:

- Cento e onze, cento e doze...

Além de sua própria voz e da de Julie, Caris podia ouvir os sons da feira lá fora, a confusão de centenas de pessoas falando ao mesmo tempo. O esforço de pressionar começou a transparecer no rosto de Mattie, mas ela não mudou. Wulfric chorava silenciosamente, as lágrimas escorrendo no rosto queimado pelo sol.

Quando Caris chegou a quinhentos, Mattie começou a diminuir a pressão no abdômen de Gwenda. Todos olhavam para sua vagina, com medo de que o sangue voltasse a sair.

O que não aconteceu.

Mattie deixou escapar um longo suspiro de alívio. Wulfric sorriu. E Julie exclamou:

- Louvado seja Deus!

- Dê mais água com vinho para ela, por favor - pediu Mattie.

Mair tornou a encostar o copo nos lábios de Gwenda, que abriu os olhos e bebeu tudo.

- Obrigada - sussurrou Gwenda, e tornou a fechar os olhos. Mattie olhou para Mair.

- Talvez seja melhor você ir buscar aquela sopa. A mulher precisa recuperar as forças, senão o leite secará.

Mair acenou com a cabeça e se afastou.

O bebê chorou. Gwenda pareceu ressuscitar. Transferiu o filho para o outro seio e ajudou-o a encontrar o mamilo. Depois, olhou para Wulfric e sorriu.

- E um menino bonito - disse Julie.

Caris tornou a olhar para o bebê. Pela primeira vez, viu-o como um indivíduo. Como ele seria... forte e correto como Wulfric, ou fraco e desonesto como o avô Joby? Não parecia com nenhum dos dois, pensou ela.

- Com quem ele parece?

- Tem a aparência da mãe - comentou Julie.

Era verdade, pensou Caris. O bebê tinha cabelos escuros e pele bege, enquanto Wulfric tinha a pele clara e cabelos louros. O rosto do bebê lembrava-lhe alguém, e depois de um momento ela compreendeu que era Merthin. Um pensamento absurdo aflorou a sua mente, e ela descartou-o no mesmo instante. Mesmo assim, a semelhança era inegável.

- Sabem quem ele me lembra?

Subitamente, ela percebeu a reação de Gwenda. Seus olhos se arregalaram, uma expressão de pânico estampou-se no rosto, e ela balançou a cabeça, de uma forma quase imperceptível. Desapareceu no instante seguinte, mas a mensagem era inconfundível: Cale-se! Caris tratou de cerrar os dentes.

- Quem? - indagou Julie, inocente.

Caris hesitou, pensando desesperadamente em alguma coisa para dizer. E teve uma inspiração.

- Philemon, o irmão de Gwenda.

- É isso mesmo - concordou Julie. - Alguém deve avisá-lo, para que venha conhecer o sobrinho.

Caris sentia-se aturdida. Então o bebê não era de Wulfric? Neste caso, de quem seria? Não podia ser de Merthin. Ele poderia ter deitado com Gwenda não restava a menor dúvida de que era vulnerável à tentação - mas nunca seria capaz de esconder de Caris depois. Se não era de Merthin...

Um pensamento terrível ocorreu a Caris. O que acontecera naquele dia em que Gwenda fora suplicar a Ralph pela herança de Wulfric? O bebê poderia ser de Ralph? Era uma possibilidade sinistra demais para admitir.

Ela olhou para Gwenda, depois para o bebê e Wulfric. E Wulfric sorria de alegria, o rosto molhado de lágrimas. Não desconfiava de nada.

-Já pensaram no nome do bebê? - perguntou Julie.

- Já, sim - respondeu Wulfric. - Quero que ele se chame Samuel. Gwenda acenou com a cabeça, olhando para o rosto do bebê.

- Samuel... - murmurou ela. - Sammy... Sam...

- Em homenagem a meu pai - arrematou Wulfric, feliz.

Um ano depois da morte de Anthony, o priorado de Kingsbridge era um lugar diferente, pensou Godwyn com satisfação, parado na catedral no domingo, depois da Feira do Velocino.

A principal diferença era a separação entre monges e freiras. Eles não se misfuravam mais nos claustros, na biblioteca ou no scriptorium. Até mesmo na igreja, uma nova tela com um carvalho pendendo no centro do coro os impedia de olharem uns para os outros durante o culto. Apenas no hospital eles eram forçados a se encontrar algumas vezes.

Em seu sermão, o prior Godwyn disse que a queda da ponte no ano anterior fora a punição de Deus para a displicência dos monges e das freiras, e para o pecado entre os moradores da cidade. O novo espírito de rigor e pureza no priorado, e de piedade e submissão na cidade, levaria a uma vida melhor para todos, neste mundo e no que viria.

Depois ele jantou com o irmão Simeon, o tesoureiro, na casa do prior. Philemon serviu-lhes enguia cozida e sidra.

- Quero construir uma nova casa para o prior - disse Godwyn. O rosto longo e magro de Simeon pareceu ficar maior.

- Alguma razão em particular?

- Tenho certeza de que sou o único prior em Christendom que mora numa casa como a de um curtidor de couro. Pense nas pessoas que se hospedaram aqui nos últimos doze meses... o conde de Shiring, o bispo de Kingsbridge, o conde de Monmouth... Esta construção não é apropriada para gente como eles. Dá a impressão de que somos pobres, assim como nossa ordem. Precisamos de uma construção magnífica, que reflita o prestígio do priorado de Kingsbridge.

- Você quer um palácio - retrucou Simeon.

Godwyn percebeu um tom de desaprovação na voz de Simeon, como se no fundo Godwyn quisesse louvar a si mesmo, em detrimento do priorado.

- Chame de palácio, se assim o desejar - ele disse, rispidamente. - Bispos e priores vivem em palácios. Não para seu conforto, mas para o dos convidados, e pela reputação da instituição que representam.

- É claro - disse Simeon, desistindo daquela argumentação -, mas você não tem condições financeiras para isso.

Godwyn franziu a testa. Em tese, os monges sêniores eram encorajados a debater com ele, mas a verdade é que detestava ser confrontado.

- Isto é ridículo - ele acrescentou. - Kingsbridge é um dos mosteiros mais ricos do mundo.

- É o que se diz até hoje. E realmente possuímos vastos recursos. Mas o preço da lã caiu este ano, pelo quinto ano seguido. Nossos rendimentos estão diminuindo.

De repente, Philemon interveio:

- Dizem que os mercadores italianos estão comprando velo na Espanha. Philemon estava mudando. Desde que realizara sua ambição de se tornar um noviço, perdera a aparência de garoto desajeitado e ganhara autoconfiança, a ponto de tomar parte numa conversa entre o prior e o tesoureiro... e dar uma contribuição interessante.

- Pode ser - disse Simeon. - Além do mais, a Feira do Velocino tornou-se menor, porque não há ponte, então recebemos muito menos em pedágios e tributos do que costumamos receber.

- Mas controlamos milhares de acres de terras produtivas - disse Godwyn.

- Nesta parte do país, onde a maioria de nossas terras está, a colheita foi fraca no ano passado, depois de tanta chuva. Muitos de nossos servos lutaram para sobreviver. É difícil forçá-los a pagar o arrendamento quando estão com fome.

- Eles devem pagar, do mesmo modo - rebateu Godwyn. - Monges também sentem fome.

- Se o bailiff de uma aldeia diz que um servo deixou de pagar o arrendamento ou que parte da terra não está alugada, portanto nenhum arrendamento é devido, você não tem como averiguar se a história é verdadeira. Bailiffs podem ser subornados por servos - falou Philemon.

Godwyn sentiu-se frustrado. Ele tivera no último ano inúmeras conversas como esta. Estava determinado a endurecer o controle sobre as finanças do priorado, mas toda vez que tentava mudar as coisas encontrava resistência.

- Você tem alguma sugestão? - perguntou, irritado, a Philemon.

- Mande um inspetor visitar as aldeias. Deixe-o falar com bailiffs, examinar a terra, entrar nas casas dos servos que afirmam passar fome.

- Se o bailiff pode ser subornado, o inspetor também pode.

- Não se for um monge. Que apego temos ao dinheiro?

Godwyn se lembrou da velha inclinação de Philemon para os roubos. Era verdade que os monges não se apegavam ao dinheiro, ao menos em teoria, mas isto não significava que eram incorruptíveis. Entretanto, uma visita do inspetor do prior certamente deixaria os bailiffs em estado de alerta.

- É uma boa idéia - afirmou Godwyn. - Você gostaria de ser o inspetor?

- Seria uma honra.

- Então está decidido - Godwyn virou-se para Simeon. - Apesar de tudo, ainda temos uma renda expressiva.

- E custos enormes - replicou Simeon. - Pagamos subvenção ao nosso bispo. Alimentamos, vestimos e abrigamos vinte e cinco monges, sete noviços e dezenove pensionistas do priorado. Empregamos trinta pessoas como faxineiros, cozinheiros, cavalariços e assim por diante. Gastamos uma fortuna com velas. Mantos dos monges...

- Tudo bem, compreendi seu argumento - disse Godwyn, impaciente. - Mas ainda quero construir um palácio.

- Onde você vai arrumar o dinheiro, então? Godwyn suspirou.

- No lugar de sempre, afinal. Pedirei a madre Cecilia.

Ele a viu alguns minutos mais tarde. Normalmente teria pedido que viesse até ele, como sinal da superioridade do homem dentro da igreja; nessa ocasião, porém, achou melhor adulá-la.

A casa da prioresa era a cópia exata da do prior, mas tinha um estilo diferente. Nela havia almofadas e tapetes, flores num vaso na mesa, quadros bordados na parede ilustrando passagens da Bíblia, e um gato adormecido em frente à lareira. Cecilia terminava de jantar carneiro assado e vinho tinto. Colocou um véu quando Godwyn chegou, seguindo a regra que ele introduzira para as ocasiões em que os monges tinham de falar com as freiras.

Ele achava difícil desvendar Cecilia, com ou sem véu. Ela tinha apoiado formalmente sua eleição como prior, e tinha concordado com suas regras severas em relação à separação de monges e freiras, fazendo apenas a esporádica observação prática quanto ao funcionamento eficiente do hospital. Nunca se opusera a ele; contudo, Godwyn sentia que ela não estava realmente a seu lado. Parecia que não era mais capaz de cativá-la. Quando mais jovem, tinha conseguido fazê-la rir como uma garota. Agora ela não era suscetível - ou talvez ele tivesse perdido o jeito.

Era difícil conversar com uma mulher de véu, portanto ele foi direto ao assunto:

- Acho que devíamos construir duas casas novas para entreter convidados nobres e de alta posição - disse ele. - Uma para homens, outra para mulheres. Poderiam chamar-se casa do prior e casa da prioresa, mas seu propósito principal seria o de acomodar visitantes no estilo a que estão acostumados.

- É uma idéia interessante - disse Cecilia. Como sempre, ela foi condescendente, sem se entusiasmar.

- Devemos ter construções de pedra impressionantes - prosseguiu Godwyn.

- Afinal, você é prioresa aqui há mais de uma década... você é uma das freiras mais antigas do reino.

- Queremos que os convidados se impressionem não com a nossa riqueza, mas com a santidade do priorado e a devoção dos monges e freiras, é claro - disse ela.

- De fato... mas as construções devem simbolizar a grandeza, assim como a catedral simboliza a majestade de Deus.

- Onde você acha que as novas construções devem se situar?

Isso era bom, pensou Godwyn. Ela já começava a entrar nos detalhes.

- Próximas ao local em que estão as velhas casas - respondeu ele.

- Então, a sua ficaria perto da saída leste da igreja, próxima à sede, e a minha, aqui abaixo, ao lado dos lagos de peixes.

Godwyn teve a impressão de que ela zombava dele. Não conseguia ver sua expressão. Impor véu às mulheres tinha suas desvantagens, refletiu.

- Talvez você prefira uma nova localização - disse.

- Sim, talvez.

Houve um breve silêncio. Godwyn encontrava dificuldade para abordar o problema do dinheiro. Ele teria de mudar a regra do véu - abrir uma exceção para a prioresa, talvez. Era realmente muito difícil negociar dessa forma.

Ele se viu forçado a mergulhar de novo no assunto:

- Infelizmente, eu não poderia dar nenhuma contribuição para os custos da construção. O mosteiro é muito pobre.

- Para o custo da casa da prioresa, você quer dizer? Não esperaria tal coisa ela retrucou.

- Não, na verdade eu me referia ao custo da casa do prior.

- Oh. Então você quer que as freiras paguem por sua nova casa, assim como pela minha.

- Lamento ter de pedir isso a você, mas sim. Espero que não se importe.

- Bem, se for para o prestígio do priorado de Kingsbridge...

- Eu sabia que você compreenderia.

- Deixe-me ver... Neste momento estou construindo novos claustros para as freiras, já que não nos misturamos mais com os monges.

Godwyn não fez nenhum comentário. Ele estava irritado por Cecilia ter contratado Merthin para construir os claustros, em detrimento de Elfric, cuja mãode-obra era mais barata. Era uma extravagância, mas aquele não era o momento mais apropriado para dizer isso.

Cecília prosseguiu:

- E quando essa obra estiver concluída, precisarei construir uma biblioteca para as freiras e comprar alguns livros para abastecê-la, pois não podemos mais usar a biblioteca de vocês.

Godwyn bateu os pés, com impaciência. Aquilo parecia irrelevante.

- E então precisaremos de um corredor coberto para a igreja, já que agora seguimos por um caminho diferente do dos monges, e não temos proteção alguma em caso de mau tempo.

- Muito razoável - comentou Godwyn, embora quisesse na verdade dizer: ”Pare de perturbar!”

- Então - disse ela com ar de decisão -, acho que podemos contemplar esta proposta dentro de três anos.

- Três anos? Eu quero começar agora!

- Oh, não acho que possamos deliberar sobre isso agora.

- Por que não?

- Temos um orçamento para as construções, você sabe.

- Mas isto não é mais importante?

- Temos de nos ater ao orçamento.

- Por quê?

- Para que permaneçamos financeiramente fortes e independentes - disse ela, para completar enfaticamente: - Não gostaria de ficar mendigando.

Godwyn não sabia o que dizer. Pior, ele tinha a horrível sensação de que ela estava rindo dele atrás do véu. Ele não podia suportar que rissem dele. Ele se levantou abruptamente e disse, com frieza:

- Obrigado, madre Cecilia. Conversaremos sobre isto de novo.

- Sim. Daqui a três anos. Aguardarei ansiosamente.

Agora Godwyn tinha certeza de que ela zombava dele. Ele se virou e saiu o mais rápido que pôde.

De volta a sua casa, ele se jogou numa cadeira, esbravejando.

- Eu odeio aquela mulher - disse a Philemon, que ainda estava lá.

- Ela negou?

- Ela disse que consideraria a proposta dentro de três anos.

- É pior do que um não - emendou Philemon. - É um não i longo prazo, por três anos.

- Nós sempre estaremos em seu poder, porque ela tem dinheiro.

- Eu escuto as conversas dos homens mais velhos - acrescentou Philemon, de forma aparentemente irrelevante. - É surpreendente como você aprende.

- Aonde você quer chegar?

- Quando o priorado construiu pela primeira vez moinhos e lagos de peixes e cercou as coelheiras, os priores fizeram uma lei que permitia aos moradores da cidade usar sua infra-estrutura pagando por ela. Eles não podiam moer seus grãos em casa ou engrossar o tecido no processo de fulling por conta própria, tampouco podiam ter seus próprios lagos e coelheiras. Eles tinham de comprar de nós. A lei garantia que o priorado recebesse o dinheiro investido de volta.

- Mas a lei caiu em desuso?

- Ela mudou. Em vez de proibição, as pessoas foram autorizadas a usar seus próprios mecanismos se pagassem um tributo. Então aquilo caiu em desuso, no tempo do prior Anthony.

- E agora existe um moinho manual em cada casa.

- E todos os peixeiros têm lagos, há meia dúzia de coelheiras e os tintureiros fazem o fulling com a ajuda de suas mulheres e filhos, em vez de trazerem o tecido para o moinho de fulling do priorado

Godwyn vibrava.

- Se todas essas pessoas pagassem um tributo pelo privilégio de possuir seus próprios mecanismos...

- Daria um bom dinheiro.

- Eles guinchariam feito porcos - Godwyn franziu a testa. - Podemos provar o que dizemos?

- Há muitas pessoas que se lembram dos tributos. Mas isto está prestes a ser escrito nos arquivos do priorado, em algum lugar... provavelmente no Livro de Timothy.

- É melhor você descobrir qual era o exato valor dos tributos. Se tivermos um precedente, deveremos fazer a coisa direito.

- Se me permite uma sugestão...

- É claro.

- Você poderia anunciar o novo regime no domingo de manhã, do púlpito da catedral. Isto serviria para frisar que se trata da vontade de Deus.

- Boa idéia - concordou Godwyn. - Farei exatamente isto.

Encontrei a solução - anunciou Caris ao pai. Ele recostou-se na enorme cadeira de madeira, à cabeceira da mesa, com um sorriso descontraído. Caris conhecia aquela expressão. Era cética, embora ele se dispusesse a ouvir.

- Pode falar.

Ela sentia-se um pouco nervosa. Tinha certeza de que sua idéia daria certo salvaria a fortuna do pai e a ponte de Merthin -, mas conseguiria convencer Edmund?

- Pegamos a lã que nos sobra, fiamos para fazer tecido e tingimos. Caris prendeu a respiração, à espera da reação do pai.

- Os comerciantes de lã costumam tentar esse tipo de coisa quando estão em dificuldades - ele disse. - Mas me diga por que você acha que isso daria certo. Quanto custaria?

- Para limpar, fiar e tecer, quatro shillings por saca.

- E que quantidade de pano isso renderia?

- Uma saca com lã de baixa qualidade, pela qual se pagam trinta e seis shillings, e mais a tecelagem, por mais quatro shillings, renderiam quarenta e quatro metros de pano.

- Que venderíamos por...?

- Sem tingir, o burel marrom é vendido a um shilling por metro, o que dá um total de quarenta e oito shillings... oito a mais do que ganharíamos.

- Não é muita coisa, considerando o trabalho que teríamos.

- Mas isso não é o melhor de tudo.

- Continue.

- Os tecelões vendem o burel porque têm pressa em receber o dinheiro. Mas se você gastar outros vinte shillings para engrossar o tecido, no processo conhecido como fulling, tingi-lo e rematá-lo, pode obter o dobro do preço... dois shillings por metro, noventa e seis shillings pelo lote inteiro... trinta e seis shillings a mais do que pagou!

Edmund ainda parecia em dúvida.

- Se é tão fácil, por que não há mais pessoas fazendo isso?

- Porque não têm o dinheiro necessário para investir.

- Também não tenho.

- Você tem as três libras que recebeu de Guillaume de Londres.

- E fico sem nada para comprar lã no ano que vem?

- A esses preços, é melhor sair do negócio. Edmund riu.

- Por todos os santos, você tem razão. Muito bem, vamos experimentar com uma coisa barata. Tenho cinco sacos da lã de Devon que os italianos nunca querem comprar. Eu lhe darei um saco, e vamos descobrir se consegue fazer o que diz.

Duas semanas depois, Caris descobriu Mark Webber a quebrar seu moinho manual.

Ficou chocada ao se deparar com um homem pobre destruindo um equipamento valioso... a tal ponto que, por um momento, esqueceu seus próprios problemas.

O moinho manual consistia de dois discos de pedra, cada disco um pouco áspero num dos lados.

O disco menor assentava sobre o maior, numa depressão rasa, lado áspero em contato com lado áspero. Uma alça de madeira saliente permitia que a pedra de cima fosse girada, enquanto a inferior permanecia imóvel. Espigas de trigo colocadas entre as duas pedras seriam rapidamente moídas em farinha.

A maioria das pessoas de classe mais baixa de Kingsbridge possuía um moinho manual. Os muito pobres não tinham condições de ter e os mais prósperos não precisavam... podiam comprar a farinha de trigo já moída de um moleiro. Mas para famílias como a de Webber, que precisavam de cada penny que ganhavam para alimentar as crianças, o moinho manual era uma dádiva divina para poupar dinheiro.

Mark pôs seu moinho no chão, na frente da casa pequena. Tomara emprestado de alguém um malho de ferro, com o cabo de madeira comprido. Dois de seus filhos assistiam, uma menina magricela, com um vestido esfarrapado, e um garoto de dois ou três anos, nu. Ele levantou o malho acima da cabeça e desferiu o golpe num arco comprido. Era uma visão e tanto: Mark era o maior homem em Kingsbridge, com ombros da largura de um cavalo de carga. A pedra partiu-se como uma casca de ovo, os pedacinhos voando para todos os lados.

- O que está fazendo? - perguntou Caris.

- Devemos moer o trigo nos moinhos de água do prior, e entregar um saco em cada vinte e quatro como tributo.

Mark parecia fleumático, mas ela ficou horrorizada.

- Pensei que as novas regras só se aplicavam a moinhos de vento e moinhos de água não-licenciados.

- Amanhã tenho de sair com John Constable para revistar as casas das pessoas e quebrar os moinhos manuais ilícitos. Não posso deixar que digam que também tenho um. É por isso que estou destruindo o meu na rua, onde todos poderão ver.

- Não sabia que Godwyn tencionava tirar o pão da boca dos pobres - murmurou Caris, sombria.

- Sorte nossa que ainda temos a tecelagem... graças a você. Caris tratou de se concentrar em seu próprio negócio.

- Como está o trabalho?

- Já acabei.

- Foi bem rápido!

- Demora mais no inverno. Mas durante o verão, com dezesseis horas de ciaridade por dia, posso tecer seis metros num dia, com a ajuda de Madge.

- Maravilhoso!

- Entre que lhe mostrarei.

Sua esposa, Madge, estava parada ao lado da lareira, nos fundos da casa de um único cômodo, com um bebê num braço e um menino tímido a seu lado. Madge era mais baixa do que o marido, em mais de um palmo, mas seu corpo era largo. Tinha um busto grande e um traseiro saliente, e fazia Caris pensar num pombo gorducho. O queixo pontudo proporcionava-lhe uma aparência de agressividade, que não era de todo enganadora. Embora combativa, tinha um bom coração. Caris gostava dela. Madge ofereceu um copo de sidra, que Caris recusou, sabendo que a família não tinha condições de dispensar.

O tear de Mark era uma estrutura de madeira, com mais de um metro quadrado, numa plataforma. Ocupava boa parte do espaço. Por trás, perto da porta dos fundos, havia uma mesa e dois bancos. Era evidente que todos dormiam no chão, em torno do tear.

- Faço o dúzia estreito - explicou Mark. - É um tecido com um metro de largura e doze metros de comprimento. Não posso fazer o tecido largo porque não tenho espaço suficiente para um tear maior.

Havia quatro rolos do burel marrom encostados na parede.

- Um saco de lã dá quatro do dúzia estreito - acrescentou Mark.

Caris trouxera os velos num saco de lã comum. Madge cuidara para que a lã fosse limpada, cardada e fiada. A fiação era feita pelas mulheres pobres da cidade, e a lavagem e cardagem, pelas crianças.

Caris apalpou o tecido. Sentia-se bastante animada. Completara o primeiro estágio de seu plano.

- Por que este tecido está tão frouxo? - perguntou ela. Mark ficou irritado.

- Frouxo? Meu burel é a trama mais apertada de Kingsbridge!

- Sei disso... e não tive a intenção de criticá-lo. Mas o tecido italiano parece muito diferente... e, no entanto, eles usam a nossa lã.

- Em parte depende da força do tecelão, como ele pode pressionar para compactar a lã.

- Não creio que todos os tecelões italianos sejam mais fortes do que você.

- Então é por causa das máquinas. Quanto melhor o tear, mais firme a tecedura.

- Era o que eu receava.

A implicação era a de que Caris não podia competir com a lã italiana de alta qualidade se não comprasse teares italianos, o que parecia impossível.

Um problema de cada vez, ela disse a si mesma. Pagou a Mark os quatro shillings combinados, dos quais ele teria de dar a metade às mulheres que haviam feito a fiação. Teoricamente, Caris tinha um lucro de oito shillings. O que não pagaria muita coisa do trabalho na ponte. E naquele ritmo levaria anos para tecer todo o excesso de lã que o pai acumulara.

- Há alguma maneira de produzirmos o tecido mais depressa? - perguntou ela a Mark.

Foi Madge quem respondeu:

- Há outros tecelões em Kingsbridge, mas quase todos já estão comprometidos a trabalhar para os mercadores de tecidos atuais. Posso arrumar outros fora da cidade. As aldeias maiores costumam ter um tecelão com um tear. De um modo geral, ele faz o tecido para os aldeões, de seu próprio fio. Esses homens poderiam trocar de trabalho, se o dinheiro fosse vantajoso.

Caris fez um esforço para ocultar sua ansiedade.

- Pensarei a respeito e avisarei quando decidir. Enquanto isso, pode entregar esses rolos a Peter Dyer?

- Claro. Levarei agora mesmo.

Caris foi para casa almoçar, absorta em seus pensamentos. Para fazer uma diferença real, teria de gastar a maior parte do dinheiro que restava a seu pai.

Se alguma coisa saísse errada, ficariam numa situação ainda pior. Mas qual era a alternativa? Seu plano era arriscado, sem dúvida, mas ninguém mais tinha qualquer plano.

Ao chegar em casa, ela encontrou Petranilla servindo um ensopado de cordeiro. Edmund sentava à cabeceira da mesa. O revés financeiro da Feira do Velocino afetara-o mais profundamente do que Caris poderia esperar. A exuberância normal do pai desaparecera, e muitas vezes ele se mantinha pensativo, para não dizer distraído. Caris sentia-se cada vez mais preocupada com o pai.

- Vi Mark Webber quebrando seu moinho manual - comentou ela, ao sentar.

- Que sentido há nisso?

Petranilla assumiu uma expressão altiva.

- Godwyn está absolutamente dentro de seus direitos.

- Esses direitos estão ultrapassados... não vigoram há anos. Onde mais um priorado faz essas coisas?

- Em St. Albans - respondeu Petranilla, triunfante.

- Já ouvi falar da situação em St. Albans - disse Edmund. - Os habitantes se rebelam periodicamente contra o mosteiro.

- O priorado de Kingsbridge tem o direito de recuperar o dinheiro que gastou na construção dos moinhos - argumentou Petranilla. - Assim como você, Edmund, quer recuperar o dinheiro que investiu na ponte. Como reagiria se alguém construísse uma segunda ponte?

Edmund não respondeu. Foi Caris quem tomou a iniciativa:

- Dependeria do prazo em que isso acontecesse. Os moinhos do priorado foram construídos há centenas de anos, assim como as coelheiras e os lagos para os peixes. Ninguém tem o direito de reprimir o crescimento da cidade para sempre.

- O prior tem o direito de cobrar o que lhe é devido - insistiu Petranilla, obstinada.

- Pois, se ele continuar assim, daqui a pouco não terá mais de quem cobrar. As pessoas se mudarão para Shiring. Os moinhos manuais são permitidos ali.

- Será que você não compreende que as necessidades do priorado são sagradas? - indagou Petranilla, furiosa. - Os monges servem a Deus! Em comparação com isso, as vidas das pessoas são insignificantes.

- É nisso que seu filho Godwyn acredita?

- Claro.

- Era o que eu receava.

- Não acredita que o trabalho do prior é sagrado?

Caris não tinha resposta para isso, e limitou-se a dar de ombros. Petranilla se mostrou outra vez triunfante.

O almoço estava bom, mas Caris sentia-se tensa demais para comer muito. Assim que os outros acabaram, ela disse:

- Tenho de sair para falar com Peter Dyer. Petranilla protestou:

- Vai gastar ainda mais? Já deu a Mark Webber quatro shillings do dinheiro de seu pai.

- Isso mesmo... e o tecido vale doze shillings a mais do que a lã. Portanto, ganhei oito shillings.

- Não, não ganhou - alegou Petranilla. - Porque ainda não vendeu o tecido.

A tia expressava dúvidas que Caris partilhava, em seus momentos mais pessimistas, mas mesmo assim foi espicaçada a negar.

- Mas venderei... ainda mais se estiver tingido de vermelho.

- E quanto Peter cobrará para tingir quatro rolos de dúzia estreito?

- Vinte shillings... mas o tecido vermelho valerá o dobro do burel marrom. Com isso, ganharemos mais vinte e oito shillings.

- Se vender. E se não conseguir vender?

- Tenho certeza de que venderei. O pai interveio:

- Deixe-a em paz, Petranilla. Eu disse a ela que podia tentar.

O castelo de Shiring ficava no alto de uma colina. Era a casa do xerife do condado. Na base da colina ficava a forca. Sempre que havia uma execução, o prisioneiro descia do castelo numa carroça, para ser enforcado na frente da igreja.

A praça em que ficava a forca era também o local do mercado. A Feira de Shiring era realizada ali, entre a casa da guilda e um prédio de madeira conhecido como Bolsa da Lã. O palácio do bispo e numerosas tavernas também se situavam em torno da praça.

Naquele ano, por causa dos problemas em Kingsbridge, havia mais estandes do que nunca. A feira transbordava para as ruas que partiam da praça. Edmund trouxera quarenta sacos de lã em dez carroças, e poderia mandar vir mais de Kingsbridge, antes do final da semana, se fosse necessário.

Para consternação de Caris, não foi necessário. Ele vendeu dez sacos no primeiro dia, e mais nada até o final da feira, quando vendeu mais dez, baixando o preço além do que pagara. Caris não podia se lembrar de ter visto o pai tão deprimido.

Ela pôs as quatro peças de tecido vermelho opaco no estande do pai, e vendeu três das quatro, metro por metro, ao longo da semana.

- Pense da seguinte maneira - disse ela ao pai, no último dia da feira. - Antes, você tinha um saco de lã invendável e quatro shillings. Agora, você tem trinta e seis shillings e uma peça de tecido.

Mas sua animação era apenas em benefício do pai. Também sentia uma profunda depressão. Gabara-se bravamente de que poderia vender todo o tecido. O resultado não era um completo fracasso, mas também não era um triunfo. Se não era capaz de vender o tecido por mais do que o custo, então não tinha a solução para o problema. O que faria agora? Ela deixou o estande e foi pesquisar entre os outros vendedores de tecidos.

O melhor tecido vinha da Itália, como sempre. Caris parou no estande de Loro Fiorentino. Mercadores de tecido como Loro não eram compradores de lã, embora pudessem trabalhar em estreita ligação com os compradores. Caris sabia que Loro entregava seus lucros ingleses a Buonaventura, que usava o dinheiro para pagar os mercadores ingleses pela lã crua. Quando a lã chegava a Florença, a família de Buonaventura a vendia e entregava o dinheiro devido à família de Loro.

Dessa maneira, todos evitavam o risco de transportar moedas de ouro e prata através da Europa.

loro só tinha dois rolos de tecido em seu estande. As cores eram muito mais brilhantes do que qualquer coisa que os locais podiam produzir.

- Isso é tudo o que trouxe? - perguntou Caris.

- Claro que não. Já vendi o resto. Ela ficou surpresa.

- Todos dizem que a feira está péssima.

Loro deu de ombros.

- O melhor tecido sempre vende.

Uma idéia começou a se delinear na mente de Caris.

- Quanto custa o escarlate?

- Apenas sete shillings por metro.

Ou seja, sete vezes mais do que o preço do burel.

- Mas quem tem condições de comprar?

- O bispo levou muito tecido vermelho, lady Philippa comprou azul e verde. Também vendi para algumas filhas de cervejeiros e padeiros da cidade, alguns senhores das aldeias ao redor... Mesmo quando os tempos são difíceis, há alguém prosperando. Este vermelhão ficará muito bem em você.

Com um movimento rápido, ele desenrolou uma parte do rolo e estendeu o tecido no ombro de Caris.

- Maravilhoso! Repare como todos já estão olhando para você. Ela sorriu.

- Posso entender agora por que vende tanto.

Caris passou a mão pelo tecido. A trama era apertada. Já tinha um manto escarlate italiano que herdara da mãe. Era o seu traje predileto.

- Que tintura eles usam para obter essa tonalidade de vermelho?

- Garancina, a mesma que todo mundo.

- Mas como conseguem fazer com que fique tão brilhante?

- Não é segredo. Usam alume. Realça a cor e também serve para fixá-la, a fim de que não desbote. Uma manta desta cor para seu uso ficaria maravilhosa, uma alegria para sempre.

- Alume... - repetiu Caris. - Por que os tintureiros ingleses não usam?

- Porque é bastante caro. Vem da Turquia. É um luxo exclusivo para mulheres especiais.

- E o azul?

- Como seus olhos.

Os olhos de Caris eram verdes, mas ela não o corrigiu.

- É uma cor profunda.

- Os tintureiros ingleses usam ísatis, mas nós temos o índigo de Bengala. Os mercadores mouros levam o índigo da índia para o Egito, e os mercadores italianos compram em Alexandria. - Loro sorriu. - Pense em toda a distância que teve de viajar... só para complementar sua extraordinária beleza.

- Vou pensar... - murmurou Caris.

A oficina à beira do rio de Peter Dyer era uma casa tão grande quanto a de Edmund, mas era feita de pedras e não tinha piso nem paredes internas... era apenas a casca. Dois caldeirões de ferro estavam suspensos sobre enormes fogueiras. Ao lado de cada caldeirão havia um guincho, como os que Merthin fazia para os trabalhos de construção. Eram usados para levantar os enormes sacos de lã ou tecido e baixá-los para os caldeirões. O chão era permanentemente úmido e o ar, denso de tanto vapor. Os aprendizes trabalhavam descalços, em roupas de baixo, por causa do calor. O suor escorria pelos rostos, os cabelos brilhavam com a umidade. Havia um cheiro acre que ardeu no fundo da garganta de Caris. Ela mostrou a Peter a peça de pano que não vendera.

- Quero o escarlate brilhante dos tecidos italianos - disse ela. - É o que vende melhor.

Peter era um homem lúgubre, que parecia sempre injuriado, não importava o que você dissesse a ele. Agora, balançou a cabeça, sombrio, como se reconhecesse uma crítica justificada.

- Tingiremos de novo com garancina.

- E com alume, para fixar a cor e torná-la mais brilhante.

- Não usamos alume. Nunca usamos. E não conheço ninguém que use. Caris censurou-se silenciosamente. Não pensara em verificar isso. Presumira que um tintureiro saberia tudo sobre tinturas.

- Não pode experimentar?

- Não tenho nenhum.

Caris suspirou. Peter parecia ser um daqueles artesãos para os quais tudo era impossível, a menos que já tivessem feito antes.

- E se eu trouxesse algum?

- De onde?

- Winchester, eu acho. Ou Londres. Talvez até de Melcombe.

Era o grande porto mais próximo. Navios vinham de toda a Europa para Melcombe.

- Se eu tivesse algum, não saberia como usar.

- Não pode descobrir?

- Com quem?

- Neste caso, eu mesma tentarei descobrir. Ele sacudiu a cabeça, pessimista.

- Não sei...

Caris não queria discutir com ele: era o único tintureiro em grande escala na cidade.

- Cruzaremos essa ponte quando a alcançarmos - disse ela, num tom conciliador. - Não tomarei seu tempo discutindo sobre este assunto agora. Primeiro, preciso saber se posso obter o alume.

Ela deixou-o. Quem na cidade poderia saber alguma coisa sobre alume? Caris desejou agora ter feito mais perguntas a Loro Fiorentino. Os monges deviam saber de coisas como essa, mas não podiam mais conversar com mulheres. Caris decidiu procurar Mattie Wise. Afinal, Mattie estava sempre misturando ingredientes estranhos... talvez o alume fosse um deles.

Mais importante ainda, se ela não soubesse, admitiria sua ignorância, ao contrário de um monge ou boticário, que podia inventar alguma coisa por medo de parecer ignorante. As primeiras palavras de Mattie foram:

- Como vai seu pai?

- Ficou um pouco abalado pelo fracasso da Feira do Velocino. - Era típico de Mattie saber o que a preocupava, pensou Caris. - Está se tornando esquecido. E parece mais velho.

- Cuide bem dele, Caris. Seu pai é um bom homem.

- Sei disso. - Ela não tinha certeza sobre o que Mattie queria dizer.

- Petranilla é uma vaca egocêntrica.

- Também sei disso.

Mattie moía alguma coisa, com um pilão. Empurrou a tigela na direção de Caris.

- Se fizer isso por mim, eu lhe servirei um copo de vinho.

- Obrigada.

Caris começou a moer. Mattie despejou o vinho amarelo de um jarro de pedra em dois copos de madeira.

- Por que veio aqui? Você não está doente.

- Sabe o que é alume?

- Sei. Usamos em pequenas quantidades como adstringente, para fechar feridas. Também pode deter a diarréia. Mas é venenoso em grandes quantidades. Como a maioria dos venenos, faz a pessoa vomitar. Havia alume na poção que lhe dei no ano passado.

- O que é? Uma erva?

- Não. É uma terra. Os mouros extraem na Turquia e África. Os curtidores utilizam às vezes na preparação do couro. Imagino que você queira usá-lo na tintura de tecido.

- Isso mesmo.

Como sempre, a capacidade de adivinhação de Mattie era fantástica.

- Age como um mordente, ligando o corante à fibra.

- E onde você consegue?

- Eu compro em Melcombe.

Caris fez a viagem de dois dias a Melcombe, onde já estivera várias vezes antes. Foi acompanhada por um dos empregados do pai, como guarda-costas. Encontrou no porto um mercador que negociava com especiarias, aves, instrumentos musicais, e todos os tipos de produtos exóticos das mais remotas partes do mundo. Ele vendeu-lhe tanto a tintura vermelha feita com a raiz da planta chamada garança, cultivada na França, e um tipo de alume conhecido como Spiralum, que ele disse ser procedente da Etiópia. Cobrou sete shillings por um pequeno barril de garancina e uma libra por um saco de alume. Caris não tinha a menor idéia se pagava preços justos ou não.

O mercador vendeu todo o seu estoque, e prometeu que obteria mais no próximo navio italiano que chegasse ao porto. Ela perguntou que quantidade de tintura e alume deveria usar, mas o homem não sabia.

Quando chegou em casa, Caris começou a tingir pedaços do tecido que não vendera em um caldeirão da cozinha. Petranilla protestou contra o cheiro, e Caris decidiu acender uma fogueira no quintal dos fundos. Sabia que tinha de pôr o tecido numa solução de tintura e deixar ferver. Peter Dyer informara a proporção correta da solução de tintura. Mas ninguém sabia quanto de alume seria necessário, ou como se deveria usá-lo.

Ela iniciou um frustrante processo de tentativa e erro. Experimentou encharcar o tecido em alume antes de tingi-lo; pôs o alume ao mesmo tempo em que a tintura; e ferveu o tecido tingido numa solução de alume depois. Experimentou usar a mesma quantidade de alume e tintura, depois mais, depois menos. Por sugestão de Mattie, experimentou com outros ingredientes: cecídios de carvalho, giz, água de cal, vinagre, urina.

Havia uma escassez de tempo. Em todas as cidades, só os membros das guildas podiam vender tecidos... exceto durante uma feira, quando as regras normais eram suspensas. E todas as feiras eram realizadas no verão. A última era a Feira de St. Giles, realizada nas dunas a leste de Winchester, no Dia de St. Giles, 12 de setembro. Como era meados de julho, ela só dispunha de oito semanas.

Começava cedo pela manhã e trabalhava até muito depois do escurecer. Mexer o tecido no caldeirão sem parar, levantá-lo e tirá-lo do caldeirão deixavam suas costas doloridas. As mãos ficaram vermelhas e feridas de manipular as substâncias químicas. Os cabelos começaram a cheirar mal. Apesar da frustração, no entanto, sentia-se ocasionalmente feliz. Às vezes cantarolava enquanto trabalhava, melodias antigas, cujas letras mal podia se lembrar da infância. Os vizinhos, em seus próprios quintais dos fundos, observavam-na curiosos, por cima das cercas.

De vez em quando um pensamento aflorava à mente de Caris: ”É esse o meu destino?” Mais de uma vez, dissera que não sabia o que fazer com sua vida. Mas podia não ter a liberdade para decidir. Não tinha permissão para ser médica; tornar-se uma mercadora de lã parecia uma péssima idéia; não queria se escravizar a um marido e filhos... mas nunca sonhara que pudesse acabar como uma tintureira. Quando pensava a respeito, sabia que não era aquilo que queria fazer. Já que começara, estava determinada a ir até o fim... mas não seria seu destino.

A princípio, só conseguiu fazer com que o tecido se tornasse de um vermelhoacastanhado ou de um rosa claro. Quando começou a se aproximar da tonalidade certa de escarlate, descobriu angustiada que ela desbotava quando secava ao sol, ou saía quando lavava. Tentou a tintura dupla, mas o efeito foi apenas temporário. Peter lhe disse, de uma forma um tanto tardia, que o material absorveria melhor a tintura se trabalhasse com o fio antes de ser tecido, ou mesmo com a lã bruta. Isso melhorou a tonalidade, mas não a rapidez.

- Só há uma maneira de aprender a tingir, que é a de ter aulas com um mestre - dissera Peter, várias vezes.

Todos pensavam assim, compreendeu Caris. O prior Godwyn aprendera a medicina através da leitura de livros que tinham centenas de anos, e receitava medicamentos sem sequer examinar um paciente. Elfric punira Merthin por esculpir a parábola das virgens de uma nova maneira.

Peter nunca sequer tentara tingir tecidos de escarlate. Só Mattie baseava suas decisões no que podia ver pessoalmente, não em alguma autoridade venerada.

A irmã de Caris, Alice, observou-a num final de tarde, com os braços cruzados, os lábios comprimidos. Enquanto a escuridão estendia-se pelos cantos do quintal, a luz da fogueira de Caris avermelhava o rosto desaprovador de Alice.

- Quanto do dinheiro de nosso pai você já gastou nessa insensatez? - perguntou ela.

Caris fez os cálculos.

- Sete shillings para a garancina, uma libra para o alume, doze shillings para o tecido... trinta e nove shillings.

- Deus nos ajude!

Alice estava horrorizada. A própria Caris sentia-se preocupada. Era mais que os salários em um ano da maioria das pessoas em Kingsbridge.

- É bastante dinheiro, mas ganharei muito mais. Alice estava furiosa.

- Você não tem o direito de gastar o dinheiro de nosso pai dessa maneira!

- Não tenho o direito? Ora, ele me deu sua permissão... o que mais preciso?

- Ele apresenta sinais de velhice. Seu julgamento já não é mais como antes. Caris fingiu que não sabia disso.

- O julgamento dele é bom... e muito melhor do que o seu.

- Está gastando a nossa herança!

- É isso que a incomoda? Não se preocupe. Estou ganhando dinheiro para você.

- Não quero correr esse risco.

- Não é você quem corre risco, mas papai.

- Ele não deveria desperdiçar o dinheiro que ficará para nós.

- Diga isso a ele.

Alice foi embora, derrotada. Mas Caris não se sentia tão confiante quanto aparentava. Talvez nunca descobrisse a proporção correta. E, neste caso, o que ela e o pai fariam?

Quando finalmente encontrou a fórmula certa, descobriu que era de uma incrível simplicidade: uma onça (28 gramas) de garancina e duas onças de alume para cada três onças de lã. Fervia a lã no alume primeiro, depois acrescentava a garancina no caldeirão, sem tornar a ferver a mistura. O ingrediente extra era água de cal. Ela mal pôde acreditar no resultado. O sucesso era maior do que imaginara. O vermelho era brilhante, quase como o vermelho italiano. Tinha certeza de que desbotaria, e traria outro desapontamento; mas a cor persistiu através da secagem, segunda lavagem e fulling.

Ela forneceu a fórmula a Peter. Sob sua supervisão, ele usou todo o alume que restava para tingir doze metros de tecido de lã da melhor qualidade em um de seus enormes caldeirões. Quando ficou pronto, Caris pagou um acabador para prender os fios soltos com uma carda e reparar pequenos defeitos.

Foi para a Feira de St. Giles com um fardo de perfeito tecido vermelho brilhante.

Ao desenrolá-lo num estande, foi abordada por um homem com sotaque de Londres.

- Quanto custa?

Caris fitou-o. Suas roupas eram caras, sem serem ostentosas. Ela concluiu que o homem era rico, mas não um nobre. Com um esforço para controlar o tremor na voz, ela respondeu:

- Sete shillings o metro. É o melhor...

- Quero saber o custo de todo o tecido.

- São doze metros, o que daria oitenta e quatro shillings. Ele esfregou o tecido entre o indicador e o polegar.

- Não é tão bem trançado quanto o tecido italiano, mas não é nada mau. Eu lhe darei vinte e sete florins de ouro.

A moeda de ouro de Florença era de uso comum, porque a Inglaterra não tinha uma moeda de ouro. Valia cerca de três shillings, trinta e seis pennies de prata ingleses. O londrino propunha comprar todo o tecido por apenas três shillings a menos do que ela conseguiria se vendesse metro a metro. Mas Caris sentiu que o homem não era de barganhar, caso contrário teria começado por oferecer um preço menor.

- Não - respondeu ela, surpresa com a própria temeridade. - Quero o preço total.

- Está bem - concordou o homem, confirmando o instinto dela.

Caris observou, emocionada, enquanto ele pegava a bolsa. Um momento depois, ela tinha em sua mão vinte e oito florins de ouro.

Examinou uma das moedas com todo cuidado. Era um pouco maior que um penny de prata. Tinha num lado a efígie de São João Batista, o padroeiro de Florença, e no outro, a flor de Florença. Ela pôs numa balança para comparar o peso com o florim recém-cunhado que o pai guardava para esse propósito. A moeda era boa.

- Obrigada - disse ela, mal ousando acreditar em seu sucesso.

- Sou Harry Mercer, de Cheapside, Londres. Meu pai é o maior mercador de tecidos da Inglaterra. Quando tiver mais desse escarlate, pode nos procurar em Londres. Compraremos tudo o que puder nos levar.

- Vamos tecer tudo! - disse ela ao pai, quando voltou para casa. - Ainda lhe restam quarenta sacos de lã. Vamos transformar tudo em tecido vermelho.

- É um empreendimento e tanto - murmurou o pai, pensativo. Caris tinha certeza de que seu plano daria certo.

- Há muitos tecelões aqui, e todos são pobres. Peter não é o único tintureiro em Kingsbridge. Podemos ensinar outros a usarem o alume.

- Outros copiarão, depois que o segredo for revelado.

Caris sabia que o pai tinha o direito de pensar em empecilhos, mas mesmo assim sentia-se impaciente.

- Deixe que copiem. Os outros também podem ganhar dinheiro. Edmund não se deixaria pressionar a fazer qualquer coisa.

- Vai cair o preço se houver muito tecido assim à venda.

- Terá de cair muito antes que o negócio deixe de ser lucrativo. O pai acenou com a cabeça.

- É verdade. Mas seria possível vender tanto em Kingsbridge e Shiring? Não há tantas pessoas ricas por aqui.

- Neste caso, levarei para Londres.

- Está bem. - Edmund sorriu. - Sua determinação me impressiona. É um bom plano... mas mesmo que não fosse, você encontraria uma maneira de fazer com que desse certo.

Caris foi até a casa de Mark Webber e contratou-o para começar a trabalhar em outro saco de lã. Também contratou Madge para levar uma das carroças puxadas por boi de Edmund, transportando quatro sacos de lã, para procurar tecelões nas aldeias vizinhas.

Mas o resto da família de Caris não se sentia nem um pouco satisfeita. Alice foi almoçar na casa do pai no dia seguinte. Ao sentarem, Petranilla declarou a Edmund:

- Alice e eu achamos que você deve reconsiderar seu projeto de fazer tecido. Caris queria que o pai dissesse que a decisão já estava tomada e que era tarde demais para voltar atrás. Em vez disso, no entanto, ele respondeu, com a voz suave:

- É mesmo? Explique por quê.

- Arriscará todos os pennies que possui!

- A maior parte já está em risco agora - disse Edmund. - Tenho um armazém cheio de lã que não posso vender.

- Mas poderia piorar ainda mais uma situação que já é ruim.

- Decidi correr esse risco. Alice interveio:

- Não é justo comigo!

- Por que não?

- Caris está gastando minha herança!

O rosto de Edmund assumiu uma expressão sombria.

- Ainda não morri.

Petranilla tratou de se calar, percebendo o tom ameaçador na voz do irmão. Mas Alice não notou que o pai estava furioso, e decidiu continuar:

- Temos de pensar no futuro. Por que Caris pode ter permissão para gastar o que é meu por direito hereditário?

- Porque ainda não é seu, e talvez nunca será.

- Você não pode desperdiçar o dinheiro que vou herdar.

- Ninguém vai me dizer o que fazer com meu dinheiro... muito menos minhas filhas.

A voz era tão tensa de raiva que até Alice notou. Mais contida, ela murmurou:

- Não tive a intenção de deixá-lo nervoso.

Edmund soltou um grunhido. Não chegava a ser um pedido de desculpa, mas ele nunca podia permanecer irritado por muito tempo.

- Vamos almoçar, sem tratar mais deste assunto.

Caris compreendeu que seu projeto sobrevivera por mais um dia. Depois do almoço, ela procurou Peter Dyer, para avisá-lo sobre a grande quantidade de trabalho que estava prestes a receber.

- Não será possível - disse ele.

A resposta pegou Caris de surpresa. Ele sempre se mostrava sombrio, mas costumava fazer o que ela queria.

- Não se preocupe, que não terá de tingir tudo. Darei uma parte do trabalh a outros.

- O problema não é a tintura, mas o processo de fulling.

- Por quê?

- Não temos mais permissão para fazer isso diretamente. O prior Godwyn lançou um novo édito. Temos de usar o moinho de fulling do priorado.

- Pois então vamos usá-lo.

- É lento demais. As máquinas são velhas e quebram a todo instante. Já foram consertadas tantas vezes que a madeira é uma mistura de nova e antiga, o que nunca resulta num bom trabalho. Não é mais rápido do que um homem andando na água e pisando no tecido. E só há um sistema em funcionamento. Mal dá para absorver o trabalho normal dos tecelões e tintureiros de Kingsbridge.

Era uma situação irritante. Seu plano não podia fracassar por causa de uma decisão estúpida do primo Godwyn, não é mesmo? Caris declarou, indignada.

- Mas se o moinho de fulling do priorado não pode realizar todo o trabalho, o prior deve permitir que outros façam isso!

Peter deu de ombros.

- Diga isso a ele.

- É o que farei!

Ela seguiu para o priorado. Mas antes de chegar lá, pensou duas vezes. A sala da casa do prior era usada para suas reuniões com os habitantes da cidade, mas mesmo assim não seria apropriado uma mulher ir até lá sozinha, sem hora marcada, ainda mais porque Godwyn se mostrava cada vez mais suscetível nessas questões. Além disso, talvez uma confrontação direta não fosse a melhor maneira de fazê-lo mudar de idéia. Caris compreendeu que seria melhor pensar com todo cuidado. Ela voltou para casa e sentou na sala para conversar com o pai.

- O jovem Godwyn está pisando num terreno perigoso neste caso - comentou Edmund, sem hesitar. - Nunca houve uma cobrança pelo uso do moinho de fulling. Segundo a história que nos chegou, o moinho foi construído por um habitante da cidade, Jack Builder, para o grande prior Philip; e quando Jack morreu, Philip concedeu à cidade o direito de usar o moinho em perpetuidade

- Por que as pessoas pararam de usar?

- O sistema teve problemas, e acho que houve uma discussão sobre quem deveria pagar o custo da manutenção. Não se chegou a uma conclusão e as pessoas voltaram a preparar seus próprios tecidos em casa.

- Ora, neste caso, ele não tem o direito de cobrar uma taxa, nem de obrigar as pessoas a usar seu moinho.

- Não, não tem.

Edmund enviou uma mensagem ao priorado, indagando qual o momento mais conveniente para Godwyn recebê-lo. A resposta foi imediata: o prior estava livre naquele momento. Edmund e Caris atravessaram a rua e foram até a casa do prior.

Godwyn mudara muito em um ano, pensou Caris. Perdera a ansiedade infantil que demonstrava antes. Parecia cauteloso, como se esperasse que eles fossem agressivos.

Caris já começava a especular se ele tinha a força de caráter necessária para ser prior.

Philemon também estava presente, numa ansiedade patética, como sempre, a puxar cadeiras e servir bebidas, mas com um novo toque de segurança em seu comportamento, a aparência de alguém que sabia que pertencia àquele lugar.

- Então agora você é tio, Philemon - comentou Caris. - O que acha de seu sobrinho, Sam?

- Sou um noviço - declarou ele, afetado. - Temos de renunciar a todas as relações deste mundo.

Caris deu de ombros. Sabia que Philemon gostava da irmã Gwenda, mas não da discutir se ele preferia fingir que não se importava. Edmund expôs o problema de maneira objetiva.

- O trabalho na ponte terá de ser interrompido se os mercadores de lã de Kingsbridge não puderem melhorar sua situação. Felizmente, encontramos uma nova fonte de receita. Caris descobriu como produzir tecido escarlate de alta qualidade. Só uma coisa atrapalha o sucesso desse novo empreendimento: o moinho de fulling.

- Por quê? - indagou Godwyn. - Vocês podem usar o moinho de fulling do priorado.

- Parece que não. É velho e ineficiente. Mal consegue cuidar da produção de tecido existente. Não tem capacidade para extra. Ou você constrói um novo moinho...

- Não há a menor possibilidade - interrompeu Godwyn. - Não tenho dinheiro de sobra para esse tipo de coisa.

- Neste caso, terá de permitir que as pessoas preparem o tecido à maneira antiga, pondo na água e pisando com os pés descalços - declarou Edmund.

Caris conhecia a expressão que se estampou no rosto de Godwyn. Era composta de ressentimento, orgulho injuriado, e obstinação irredutível. Na infância, ele ficava assim sempre que alguém se opunha ao que queria fazer. Indicava que tentaria forçar as outras crianças à submissão; e se não conseguisse, bateria o pé e voltaria para casa. Querer impor sua vontade era apenas parte do jogo. Ele parecia se sentir humilhado com a divergência, pensou Caris, como se a idéia de que alguém pudesse considerá-lo errado fosse angustiante demais para suportar. Qualquer que fosse a explicação, ela compreendeu, ao ver essa expressão, que o primo não seria razoável.

- Eu sabia que você se oporia a mim - disse ele a Edmund, petulante. - Parece pensar que o priorado existe em benefício de Kingsbridge. Terá de compreender que é exatamente o contrário.

Edmund ficou exasperado.

- Não percebe que dependemos um do outro? Pensamos que compreendia esse inter-relacionamento... foi por isso que o ajudamos a ser eleito.

- Fui eleito pelos monges, não pelos mercadores. A cidade pode depender do priorado, mas já havia um priorado aqui antes que surgisse uma cidade. Podemos continuar a existir sem vocês.

- Talvez possam mesmo, mas como um lugar isolado, não como o coração pulsando de uma dinâmica cidade.

Caris interveio:

- Você deve querer que Kingsbridge prospere, Godwyn... por que outro motivo teria ido a Londres para se opor ao conde Roland?

- Fui ao tribunal real para defender os direitos antigos do priorado... como estou tentando fazer aqui e agora.

Edmund protestou, indignado:

- Isso é traição! Nós o apoiamos para prior porque nos levou a acreditar que construiria uma ponte!

- Não lhe devo nada. Minha mãe vendeu sua casa para me enviar à universidade. Onde estava meu tio rico na ocasião?

Caris ficou espantada ao constatar que Godwyn ainda se mostrava ressentido pelo que acontecera dez anos antes. A expressão de Edmund se tornou hostil e fria.

- Acho que você não tem o direito de obrigar as pessoas a usarem seu moi nho de fulling.

Caris compreendeu, pelo olhar que Godwyn e Philemon trocaram, que eles sabiam disso. Godwyn disse:

- Pode ter havido ocasiões em que o prior generosamente permitiu que os habitantes da cidade usassem o moinho de fulling sem cobrar.

- Foi um presente do prior Philip à cidade.

- Nunca soube disso.

- Deve haver um documento no priorado. Godwyn ficou irritado.

- Os habitantes da cidade permitiram que o moinho caísse em péssimo estado. O priorado teve de pagar para endireitar tudo. Isso é suficiente para analar qualquer presente.

Edmund tinha razão, pensou Caris: Godwyn pisava em terreno instável. Sabia que o prior Philip dera o moinho de fulling de presente aos habitantes da cidade, mas tencionava ignorar o fato. Edmund tentou de novo:

- Não podemos chegar a um acordo?

- Não revogarei meu édito - declarou Godwyn. - Faria com que eu parecesse fraco.

Era isso o que realmente o incomodava, refletiu Caris. Ele receava que as pessoas de Kingsbridge o desrespeitassem se mudasse de idéia. Sua obstinação, paradoxalmente, derivava do medo.

- Nenhum de nós dois gostaria de incorrer de novo no trabalho e despesa de um recurso ao tribunal real - comentou Edmund.

Godwyn se enfureceu.

- Está me ameaçando com o tribunal real?

- Gostaria de evitar, mas...

Caris fechou os olhos, rezando para que os dois homens não levassem a discussão a um ponto sem volta. Sua prece não foi atendida.

- Mas o quê? - indagou Godwyn, em tom de desafio. Edmund suspirou.

- Mas farei isso se você obrigar as pessoas de Kingsbridge a fazerem o fulling em seu moinho e não em casa, ao estilo tradicional. Apelarei ao rei.

- Pode apelar.

Acerva era jovem, um ou dois anos apenas, esguia, musculosa sob a pele macia. Estava no outro lado da clareira, esticando o pescoço comprido através dos galhos de um arbusto para alcançar uma área de relva clara. Ralph Fitzgerald e Alan Fernhill estavam a cavalo, o barulho dos cascos de suas montarias abafado pelo tapete das folhas úmidas do outono, os cães treinados a se manterem em silêncio. Por causa disso - e talvez porque estivesse concentrada demais em alcançar a forragem - a cerva não ouviu a aproximação, até que já era tarde demais.

Ralph avistou primeiro, e apontou através da clareira. Alan levava seu arco na mão esquerda, a mesma que segurava as rédeas. Com a rapidez da longa prática, prendeu uma flecha na corda e atirou.

Os cachorros foram mais lentos. Só reagiram quando ouviram a vibração da corda e o zunido da flecha voando pelo ar. Barley, a cadela, ficou imóvel, a cabeça erguida, as orelhas levantadas; e Blade, seu filhote, agora crescido, maior do que a mãe, emitiu um rosnado baixo e surpreso.

A flecha tinha um metro de comprimento, com penas de cisne. A ponta era de cinco centímetros de ferro sólido, com uma depressão em que se encaixava a haste. Era uma flecha de caça, com a ponta afiada: uma flecha de batalha teria uma ponta quadrada, para poder penetrar numa armadura sem ser desviada.

O disparo de Alan foi bom, mas não perfeito. Atingiu a cerva na base do pescoco. Ela saltou, as quatro patas deixando o solo, presumivelmente chocada pela pontada de dor súbita e agoniante. A cabeça se elevou acima da moita. Por um insrante, Ralph pensou que a cerva cairia morta. No momento seguinte, porém, ela começou a se afastar. A flecha ainda estava cravada em seu pescoço, mas o sangue escorria em vez de esguichar do ferimento. O que significava que devia ter acertado nos músculos, sem romper qualquer veia importante.

Os cachorros saltaram para a frente, como se também tivessem sido disparados de arcos. Ralph montava Griff, seu cavalo de caça predileto. Sentiu o fluxo de excitamento pelo qual tanto ansiava. Era uma comichão nos nervos, uma pressão na garganta, um impulso irresistível de gritar o mais alto possível; uma sensação tão parecida com o excitamento sexual que ele mal podia dizer qual era a diferença.

Homens como Ralph existiam para lutar. O rei e seus barões promoviam-nos a lordes e cavaleiros, davam-lhes aldeias e terras para controlarem, por uma única razão: para que fossem capazes de ter cavalos, pajens, armas e armaduras sempre que o rei precisasse de um exército. Mas não havia uma guerra todos os anos. Às vezes, dois ou três anos se passavam sem que houvesse sequer uma pequena ação policial nas fronteiras do rebelde País de Gales ou contra os bárbaros da Escócia. Os cavaleiros precisavam de alguma coisa para fazer nos intervalos. Tinham de se manter em boa forma física, os cavalos preparados, e a sede de sangue sempre atiçada, o que talvez fosse o mais importante.

Os soldados precisavam matar, e seu desempenho era melhor quando ansiavam por isso.

A caçada era a solução. Todos os nobres, do rei aos pequenos senhores, como Ralph, caçavam sempre que tinham a oportunidade, até várias vezes por semana. Adoravam o exercício, que garantia que estivessem prontos para a batalha sempre que eram chamados. Ralph caçava com o conde Roland em suas freqüentes visitas a Earlscastle; e também participava das caçadas de lorde William em Casterham. Quando estava em sua própria aldeia, Wigleigh, saía com seu pajem, Alan, para caçar nas florestas ao redor. Em geral matavam javali: não havia muita carne nos javalis, mas as caçadas eram sempre emocionantes, porque o animal oferecia a maior resistência. Ralph também caçava raposas e de vez em quando era raro -, um lobo. Mas o cervo era o melhor alvo: ágil, veloz, e cinqüenta quilos de boa carne para levar para casa.

Agora, Ralph ficou emocionado ao sentir Griff por baixo, o peso e a força do cavalo, a ação poderosa de seus músculos, as batidas firmes dos cascos no solo. A cerva desapareceu na vegetação, mas Barley sabia para onde ela fora. Os cavalos seguiram os cachorros. Ralph segurava uma lança na mão direita, uma haste comprida de freixo, a ponta endurecida no fogo. Enquanto Griff desviava-se e pulava os obstáculos, Ralph abaixava-se para evitar os galhos mais baixos. Balançava aos movimentos do cavalo, as botas firmes nos estribos, mantendo-se na sela sem esforço, pela pressão dos joelhos.

No mato baixo, os cavalos não eram tão ligeiros quanto a cerva, e logo ficaram para trás; os cachorros, no entanto, tinham alguma vantagem, e logo Ralph ouviu latidos frenéticos, quando os animais se aproximaram da presa. Até que houve um hiato. Um momento depois, Ralph descobriu o motivo: a cerva saíra da vegetação densa e encontrara uma trilha, por onde seguia agora, deixando os cachorros para trás. Ali, no entanto, os cavalos levavam vantagem; e num instante passaram os cachorros e começaram a se aproximar da cerva.

Ralph percebeu que a cerva enfraquecia. Viu sangue em sua anca, e deduziu que fora mordida por um dos cachorros. Sua postura foi se tornando mais e mais irregular, à medida que se esforçava para escapar. Era um animal feito para disparadas súbitas e curtas, mas incapaz de manter um ritmo vertiginoso por muito tempo.

O sangue passou a correr mais depressa nas veias de Ralph à medida que se aproximava da presa. Apertou a lança ainda mais. Era preciso muita força para enfiar uma ponta de madeira no corpo duro de um animal grande: a pele era resistente, os músculos eram compactos, os ossos firmes. O pescoço era o alvo mais macio, se o caçador conseguisse evitar as vértebras e atingir a jugular. Era preciso escolher o momento certo, e arremessar a lança com toda a sua força.

Ao perceber os cavalos quase em cima, a cerva desviou-se entre as moitas, desesperada. Isso lhe proporcionou uma folga de alguns segundos. Os cavalos diminuíram a velocidade ao pisar nas moitas, sobre as quais a cerva saltava sem alterar o ritmo. Mas os cachorros tornaram a se aproximar, e Ralph compreendeu que a cerva não poderia agüentar por muito mais tempo.

Em geral, os cachorros infligiam mais e mais ferimentos, retardando a presa, até que os cavalos chegassem perto, e o caçador poderia desfechar o golpe fatal. Naquela ocasião, porém, houve um acidente.

Quando os cachorros e os cavalos estavam quase em cima, a cerva desviou-se para o lado. Blade, o cão mais novo, foi atrás, com mais entusiasmo do que bomsenso, e passou pela frente de Griff. O cavalo galopava depressa demais para conseguir parar ou mesmo se desviar, e atingiu Blade com uma pata dianteira. O cachorro era um mastim, pesando quase quarenta quilos; o impacto fez o cavalo tropeçar.

Ralph foi projetado da sela. Largou a lança enquanto voava. Seu maior medo, naquele instante, foi o de cair por baixo do cavalo. Mas viu, um momento antes de bater no chão, que Griff conseguira recuperar o equilíbrio.

Ralph caiu numa moita de espinhos. Ficou com as mãos e o rosto bastante arranhados, mas a moita amorteceu a queda. Mesmo assim, sentiu-se furioso.

Alan puxou as rédeas de seu cavalo. Barley continuou atrás da cerva, mas não demorou a voltar; era evidente que a presa escapara. Ralph fez um esforço para se levantar, praguejando. Alan alcançou Griff. Desmontou em seguida, segurando os dois cavalos pelas rédeas.

Blade estava imóvel sobre as folhas mortas, o sangue gotejando da boca. Fora atingido na cabeça pela ferradura de ferro de Griff. Barley foi até lá, farejou, cutucou-o com o focinho, lambeu o sangue, e depois virou-se, atordoado. Alan empurrou o cachorro com a ponta da bota. Não houve reação. Blade não respirava.

- Morreu - murmurou Alan.

- O desgraçado do cachorro merecia mesmo morrer - resmungou Ralph. Eles foram andando pela floresta, puxando os cavalos, à procura de um lugar

para descansar. Ralph ouviu um barulho de água correndo. Seguiu o som e encontrou um córrego de correnteza rápida. Reconheceu o lugar: estavam um pouco além dos campos cultivados de Wigleigh.

- Vamos descansar um pouco - disse ele.

Alan amarrou os cavalos. Tirou de seu alforje um jarro tampado, dois copos de madeira, e um saco de lona com comida.

Barley foi até o córrego e bebeu sedento a água fria. Ralph sentou na margem, encostado numa árvore. Alan sentou ao seu lado e entregou-lhe um copo com cerveja e uma fatia de queijo. Ralph aceitou a cerveja, mas recusou o queijo.

Alan sabia que seu senhor estava de mau humor. Por isso, não disse nada, enquanto Ralph bebia. Sempre que o copo de Ralph ficava vazio, ele tornava a enchê-lo, em silêncio. Logo ouviram uma voz de mulher. Alan fitou Ralph com as sobrancelhas elevadas. Barley rosnou. Ralph levantou-se, fazendo o cachorro se calar, e seguiu na direção do som. Alan foi atrás.

Ralph parou alguns metros adiante, olhando através da vegetação. Algumas mulheres da aldeia lavavam roupa na margem próxima do córrego, onde a água corria mais depressa, sobre rochas. Era um dia úmido de outubro, fresco, mas não frio. Elas tinham as mangas enroladas e as saias levantadas até as coxas, para não molhar.

Ralph observou-as, uma a uma. Lá estava Gwenda, antebraços e pernas musculosos, com seu bebê - agora com quatro meses de idade - pendurado nas costas. Ele identificou Peg, a mulher de Perkin, esfregando as ceroulas do marido com uma pedra.

Sua própria criada, Vira, também estava ali, uma mulher de rosto duro, em torno dos trinta anos, que o fitara com tanta indiferença quando acariciara sua bunda que ele nunca mais a tocara. A voz que ouvira antes pertencia à viúva Huberts, uma grande hiladeira, sem dúvida porque morava sozinha. A viúva estava parada no meio do córrego, gritando para as outras, numa conversa a distância.

E lá estava Annet.

Em cima de uma rocha, Annet lavava um traje pequeno. Inclinava-se para molhar no córrego e se erguia para esfregar. Tinha pernas compridas e brancas, que desapareciam de uma maneira encantadora no vestido levantado. Cada vez que se inclinava, o decote se abria, para revelar os frutos claros dos seios pequenos, pendendo como tentações de uma árvore. Os cabelos louros estavam molhados nas pontas, e havia uma expressão petulante em seu rosto bonito, como se pensasse que não havia nascido para aquele tipo de trabalho.

Ralph calculou que as mulheres já se encontravam ali há algum tempo, e sua presença poderia passar despercebida se a viúva Huberts não tivesse elevado a voz. Ele abaixou-se por trás de um arbusto, e espiou através dos galhos sem folhas. Alan agachou-se ao seu lado.

Ralph gostava de espionar mulheres. Fazia isso com freqüência quando era adolescente. As mulheres se coçavam, deitavam no chão com as pernas abertas, e falavam sobre coisas que nunca abordariam se soubessem que havia um homem escutando. Na verdade, comportavam-se como homens.

Ele regalou os olhos com a visão das mulheres de sua aldeia, que não desconfiavam de sua presença. Fez um esforço para ouvir o que diziam. Observou Gwenda, o corpo pequeno e forte, recordou-a nua, ajoelhada na cama, reviveu a sensação de segurá-la pelos quadris e puxá-la ao encontro de seu pênis. E recordou também como a atitude dela mudara. A princípio, Gwenda mantivera-se passiva e fria, fazendo um esforço para esconder o ressentimento e o desagrado pelo que estava fazendo; e, depois, ocorrera uma lenta alteração. A pele no pescoço ficara avermelhada, o peito traíra a respiração excitada, e ela baixara a cabeça, no que lhe parecera uma mistura de vergonha e prazer. A lembrança fez com que Ralph respirasse mais depressa, e provocou uma camada de suor na sua testa, apesar do ar fresco do outono. Não pôde deixar de imaginar se teria outra chance de repetir o ato com Gwenda.

Pouco depois, as mulheres se prepararam para ir embora. Dobraram as roupas molhadas e as ajeitaram em cestos ou as envolveram em trouxas para equilibrar na cabeça. Começaram a se afastar pela trilha à beira do córrego. Houve uma discussão acalorada entre Annet e a mãe. Annet lavara apenas a metade das roupas que trouxera. Propunha levar de volta para casa a metade suja da roupa. Ao que tudo indicava, Peg insistia que a filha ficasse e lavasse o resto da roupa. No final, Peg partiu, furiosa, e Annet ficou, num evidente mau humor.

Ralph mal podia acreditar em sua sorte. Disse em voz baixa para Alan:

- Vamos nos divertir um pouco com ela. Dê a volta e corte o caminho de fuga.

Alan desapareceu.

Ralph observou Annet mergulhar o resto da roupa suja na água, sem qualquer cuidado. Em seguida, ela sentou na margem, olhando irritada para o córrego.

Quando calculou que as outras mulheres não poderiam ouvir mais nada e Alan já alcançara a posição combinada, Ralph levantou-se e adiantou-se.

Annet ouviu-o se aproximar entre as moitas e virou-se para olhar, surpresa. Ralph gostou de ver a expressão dela passar da surpresa e curiosidade para o medo, ao compreender que se encontrava sozinha com ele na floresta. Ela levantou-se de um pulo. A esta altura, porém, Ralph já se encontrava a seu lado. Segurou-a pelo braço, num aperto gentil, mas firme.

- Olá, Annet. O que está fazendo aqui... sozinha?

Ela olhou por cima de seu ombro... na esperança, Ralph adivinhou, de que pudesse haver outros homens ali, o que o levaria a se conter. Seu rosto registrou consternação quando só avistou Barley.

- Tenho de ir para casa - disse ela. - Minha mãe acaba de sair daqui.

- Não precisa correr. Você fica muito atraente assim, com os cabelos molhados e os joelhos à mostra.

Ela tentou baixar a saia. Com a mão livre, Ralph segurou seu queixo e levantou-o, para que o fitasse.

- Que tal um sorriso? Não precisa ficar tão preocupada. Eu não lhe faria mal... sou seu senhor.

Annet esboçou um sorriso.

- Estou apenas um pouco afobada. Levei um susto com sua chegada inesperada.

Ela recuperou um pouco do coquetismo habitual e acrescentou, com um sorriso afetado:

- Talvez devesse me acompanhar até em casa. Uma jovem precisa de proteção na floresta.

- E pode ter certeza de que a protegerei. Cuidarei de você muito melhor do que aquele idiota do Wulfric, ou do que seu marido.

Ralph tirou a mão do queixo de Annet e pegou o seio. Era como recordava, pequeno e firme. Soltou o braço para poder usar as duas mãos, uma em cada seio.

Mas Annet fugiu assim que ele a largou. Ralph riu, enquanto ela corria pela trilha e se embrenhava entre as árvores. Um momento depois, ouviu-a soltar um grito de choque. Permaneceu onde estava, enquanto Alan trazia Annet de volta, o braço torcido para as costas, de tal forma que os seios projetavam-se para a frente, sedutores. Ralph pegou a adaga afiada, com uma lâmina de mais de um palmo.

- Tire o vestido.

Alan largou-a, mas ela não obedeceu de imediato.

- Por favor, milorde. Sempre demonstrei todo o respeito e...

- Tire o vestido, ou cortarei seu rosto e a deixarei com uma cicatriz para sempre. Era uma ameaça bem escolhida para uma mulher vaidosa, e Annet cedeu.

Começou a chorar enquanto tirava pela cabeça o vestido marrom de lã. A princípio, manteve o vestido amarrotado na sua frente, cobrindo a nudez, mas Alan arrancou-o e jogou-o para o lado.

Ralph ficou olhando para o corpo nu. Annet mantinha os olhos abaixados, as lágrimas escorrendo pelas faces. Ela tinha quadris estreitos e uma moita proeminente de cabelos louros.

- Wulfric nunca a viu assim, não é mesmo? - indagou Ralph.

Annet sacudiu a cabeça em negativa, sem levantar os olhos. Ralph enfiou a mão entre suas pernas.

- Alguma vez ele a tocou aqui?

- Por favor, milorde. Sou uma mulher casada...

- Melhor assim... não tem uma virgindade para perder, nada com que se preocupar. Deite-se.

Annet recuou, mas esbarrou em Alan, que a derrubou, fazendo-a cair de costas. Ralph segurou-a pelos tornozelos, para que ela não pudesse se levantar. Annet contorceu-se, desesperada.

- Segure-a - disse Ralph a Alan.

Alan forçou a cabeça de Annet para baixo, pôs os joelhos sobre seus braços, as mãos nos ombros.

Ralph puxou o pênis e esfregou-o, para que ficasse mais duro. Depois, ajoelhou-se entre as coxas de Annet.

Ela começou a gritar, mas ninguém ouviu.

Por sorte, Gwenda foi uma das primeiras pessoas a ver Annet depois do incidente.

Gwenda e Peg levaram a roupa lavada para casa e a penduraram para secar, em torno do fogo na cozinha. Gwenda ainda trabalhava para Perkin, mas agora, no outono, quando havia menos coisas a fazer nos campos, ela ajudava Peg nas tarefas domésticas. Toda a roupa pendurada, elas começaram a preparar a refeição do meio-dia para Perkin, Rob, Billy Howard e Wulfric. Depois de uma hora, Peg indagou:

- O que pode ter acontecido com Annet?

- Vou procurá-la.

Antes de sair, Gwenda verificou o bebê. Sammy estava deitado num berço de vime, envolto por uma velha manta marrom, os olhos escuros alertas observando a fumaça que se elevava do fogo e se enroscava sob o teto. Ela beijou-o na testa e foi procurar Annet.

Voltou pelos campos, em que o vento soprava. Lorde Ralph e Alan Fernhill passaram a galope, a caminho da aldeia, a caçada do dia aparentemente interrompida antes do tempo normal. Gwenda entrou na floresta e seguiu pela trilha até o ponto em que as mulheres da aldeia costumavam lavar roupa. Antes de chegar lá, deparou-se com Annet, voltando para a aldeia.

- Você está bem? - perguntou Gwenda. - Sua mãe ficou preocupada.

- Estou ótima.

Mas Gwenda percebeu que havia alguma coisa errada.

- O que aconteceu?

- Nada... - Mas Annet não era capaz de fitá-la nos olhos. - Não aconteceu nada. Deixe-me em paz.

Gwenda postou-se na frente de Annet, e estudou-a de alto a baixo. O rosto de Annet revelava de uma maneira inconfundível que ocorrera alguma calamidade. A primeira vista, ela não parecia estar fisicamente machucada - embora a maior parte do corpo estivesse coberta pelo vestido comprido - mas depois Gwenda percebeu manchas que pareciam ser de sangue no vestido. E se lembrou que Ralph e Alan haviam passado a galope.

- Lorde Ralph fez alguma coisa com você?

- Quero ir para casa.

Annet tentou passar por Gwenda, que a segurou pelo braço. Não apertou com força, mas mesmo assim Annet soltou um grito de dor, levando a mão à parte superior do braço.

- Você está machucada! - exclamou Gwenda.

Annet desatou a chorar. Gwenda passou o braço por seus ombros.

- Vamos para casa. Conte tudo à sua mãe. Annet sacudiu a cabeça.

- Não contarei a ninguém.

Tarde demais para isso, pensou Gwenda.

Enquanto levava Annet para a casa de Perkin, Gwenda projetou em sua mente todas as possibilidades. Era evidente que Annet sofrera alguma espécie de agressão. Podia ter sido atacada por um ou mais viajantes, embora não houvesse nenhuma estrada nas proximidades. Os fora-da-lei sempre eram uma possibilidade, embora nenhum deles fosse avistado há muito tempo nas proximidades de Wigleigh. Portanto, os suspeitos mais prováveis eram Ralph e Alan.

Peg assumiu um comportamento decidido. Sentou Annet num banco e baixou o vestido dela pelos ombros. Os braços exibiam equimoses vermelhas e inchadas.

- Alguém a segurou - disse Peg, furiosa. Annet manteve-se calada. Peg insistiu:

- Estou certa? Responda, criança, ou terá de enfrentar um problema ainda maior. Alguém a segurou?

Annet acenou com a cabeça.

- Quantos homens? Ande logo, diga o que aconteceu. Annet não falou, mas levantou dois dedos.

Peg ficou vermelha de raiva.

- Eles deitaram com você?

Annet acenou novamente com a cabeça.

- Quem eram eles? Annet balançou a cabeça.

Gwenda sabia por que ela não queria contar. Era perigoso para qualquer servo acusar o senhor de um crime. Ela informou a Peg:

- Vi Ralph e Alan se afastando a galope. Peg virou-se para Annet.

- Quer dizer que foram eles... Ralph e Alan?

Annet tornou a acenar com a cabeça. A voz de Peg baixou para quase um sussurro:

- Imagino que Alan a segurou enquanto Ralph fazia. Annet tornou a acenar com a cabeça.

Peg abrandou, agora que conhecia a verdade. Passou os braços em torno da filha e aconchegou-a.

- Pobre criança... minha pobre filha... Annet começou a chorar.

Gwenda se retirou.

Os homens voltariam em breve para a refeição do meio-dia, e descobririam que Ralph estuprara Annet. O pai de Annet, o irmão, o marido e o ex-namorado ficariam loucos de raiva. Perkin era velho demais para cometer qualquer insensatez, Rob faria o que Perkin mandasse, e Billy Howard provavelmente não teria coragem suficiente para criar problemas... mas Wulfric ficaria descontrolado. E mataria Ralph.

E depois seria enforcado.

Gwenda tinha de alterar o curso dos acontecimentos; se não fizesse isso, perderia o marido. Ela atravessou a aldeia apressada, sem falar com ninguém, seguindo direto para a casa senhorial. Esperava ser informada, ao chegar ali, de que Ralph e Alan haviam terminado de almoçar e saído de novo; mas era um pouco cedo e ela descobriu consternada que os dois ainda se encontravam em casa.

Encontrou-os no estábulo por trás da casa, examinando o casco infeccionado de um cavalo. Em circunstâncias normais, ela se sentiria embaraçada na presença de Ralph ou Alan, pois tinha certeza de que os dois recordavam, sempre que a viam, da cena em que se ajoelhara nua na cama, na Bell em Kingsbridge. Hoje, porém, esse pensamento mal passou por sua cabeça. Precisava encontrar alguma maneira de persuadi-los a sair da aldeia... agora, antes que Wulfric descobrisse o que haviam feito. O que poderia dizer?

Por um momento, ela ficou atordoada. Depois, em desespero, declarou:

- Senhor, um mensageiro do conde Roland esteve à sua procura. Ralph ficou surpreso.

- Quando foi isso?

- Há cerca de uma hora.

Ralph olhou para o cavalaríço que segurava a pata do cavalo para inspeção.

- Ninguém esteve aqui - informou o homem.

Era natural que um mensageiro fosse até a casa e falasse com os criados do senhor. Ralph perguntou a Gwenda:

- Por que ele transmitiu a mensagem a você? Ela improvisou, desesperada:

- Encontrei-o na estrada, nos arredores da aldeia. Ele perguntou por lorde Ralph e informei que milorde havia saído para caçar e só voltaria na hora do almoço. O mensageiro não queria esperar.

O que era um comportamento insólito para um mensageiro, que costumava parar, para comer, beber e descansar o cavalo.

- Por que ele estava com tanta pressa? - perguntou Ralph. Gwenda respondeu, inventando mais uma desculpa extemporânea:

- Tinha de chegar a Cowford antes do pôr-do-sol... não tive a ousadia de perguntar por quê.

Ralph soltou um grunhido. A última parte era plausível. Não era provável que um mensageiro do conde Roland se sujeitasse a ser interrogado por uma camponesa.

- Por que não me avisou antes?

- Atravessei os campos à sua procura, mas milorde não me viu e passou a galope.

- Acho que a vi... mas não importa. Qual era a mensagem?

- O conde Roland pede que vá a Earlscastle o mais depressa possível. Gwenda respirou fundo e acrescentou outra camada de implausibilidade: - O mensageiro disse que não deveria esperar para terminar de almoçar, mas sim pegar cavalos descansados e partir imediatamente.

Era pouco verossímil, mas ela precisava afastar Ralph antes que Wulfric aparecesse.

- É mesmo? Ele disse por que precisa de mim com tanta pressa?

- Não.

- Hum...

Ralph ficou pensativo, sem dizer nada por alguns momentos.

- Vai partir agora? - perguntou Gwenda, ansiosa.

- Isso não é da sua conta - respondeu ele, irritado.

- Não quero que digam depois que não deixei bem claro que era urgente.

- Você não quer? Ora, não me importa o que você possa querer ou deixar de querer. Saia agora.

Gwenda tinha de ir embora.

Voltou para a casa de Perkin. Chegou no momento em que os homens retornavam dos campos. Sam continuava quieto e feliz em seu berço. Annet sentava no mesmo lugar, o vestido abaixado para mostrar as equimoses nos braços. Peg indagou, em tom de acusação:

- Onde você estava?

Gwenda não respondeu. A atenção de Peg foi desviada pela chegada de Perkin, que perguntou assim que entrou em casa:

- Mas o que é isso? O que aconteceu com Annet?

- Ela teve o infortúnio de se encontrar com Ralph e Alan quando estava sozinha na floresta - respondeu Peg.

O rosto de Perkin se contraiu em fúria.

- Por que ela estava sozinha?

- A culpa é minha - murmurou Peg, começando a chorar. - Ela estava preguiçosa demais na lavagem da roupa, como sempre, e mandei que ficasse e terminasse o serviço quando as outras voltaram para casa. Foi quando aqueles animais apareceram.

- Vimos quando eles passaram a cavalo há pouco, através de Brookfied disse Perkin. - Deviam ter acabado de partir.

Ele fez uma pausa. Parecia assustado.

- Isso é muito perigoso... o tipo de coisa que pode arruinar uma família.

- Mas nós não fizemos nada de errado! - protestou Peg.

- A culpa de Ralph fará com que ele nos odeie por nossa inocência.

O que provavelmente era verdade, compreendeu Gwenda. Perkin era astuto, por trás de seu comportamento subserviente.

O marido de Annet, Billy Howard, entrou na casa, limpando as mãos enlameadas na camisa. O irmão, Rob, veio logo atrás. Billy olhou para as equimoses da esposa e perguntou:

- O que aconteceu com você?

Peg respondeu por ela:

- Foram Ralph e Alan.

Billy tornou a olhar para Annet, aturdido.

- O que eles fizeram com você? Annet baixou os olhos e não disse nada.

- Matarei os dois - disse Billy, furioso.

Mas era evidente que não passava de uma ameaça vã: Billy era um homem delicado, franzino, e nunca se envolvera em qualquer briga, nem mesmo quando estava embriagado.

Wulfric foi o último a entrar. Tarde demais, Gwenda compreendeu como Annet parecia atraente naquele momento. Tinha pescoço comprido e ombros lindos, com o alto dos seios à mostra. Wulfric contemplou-a com uma admiração indisfarçada... nunca fora capaz de esconder seus sentimentos. Depois de um momento, ele notou os machucados, e franziu o rosto.

- Eles a estupraram? - perguntou Billy.

Gwenda observava Wulfric. Ao absorver o significado da cena, sua expressão registrou choque e consternação, a pele clara ficou vermelha de emoção.

- Estupraram, mulher? - insistiu Billy.

Gwenda sentiu um ímpeto de compaixão pela desagradável Annet. Por que todos achavam que tinham o direito de fazer perguntas angustiantes?

Annet finalmente respondeu à pergunta de Billy com um aceno de cabeça silencioso. O rosto de Wulfric estava dominado por uma raiva sinistra.

- Quem? - resmungou ele.

- Isso não é da sua conta, Wulfric - declarou Billy. - Vá para sua casa. Perkin murmurou, trêmulo:

- Não quero problemas. Não devemos deixar que isso nos destrua. Billy olhou furioso para o sogro.

- O que está querendo dizer? Que não devemos fazer nada?

- Se fizermos de lorde Ralph um inimigo, poderemos sofrer pelo resto de nossas vidas.

- Mas ele estuprou Annet!

- Ralph fez isso? - indagou Wulfric, incrédulo.

- Deus o punirá - declarou Perkin.

- E eu também, por Cristo! - exclamou Wulfric.

- Por favor, Wulfric, não! - suplicou Gwenda.

Ele encaminhou-se para a porta.

Gwenda foi atrás, frenética de medo. Segurou-o pelo braço. Só uns poucos minutos haviam se passado desde que ela transmitira a falsa mensagem a Ralph. Mesmo que ele acreditasse, Gwenda não sabia até que ponto levaria a sério a recomendação de urgência. Havia uma boa possibilidade de que Ralph ainda não tivesse deixado a aldeia.

- Não vá até o solar - suplicou ela. - Por favor. Wulfric desvencilhou-se, bruscamente.

- Fique longe de mim!

- Olhe para seu filho! - gritou ela, apontando para Sammy no berço. - Vai deixá-lo sem um pai?

Wulfric saiu.

Gwenda seguiu-o, e os outros homens foram atrás. Wulfric atravessou a aldeia, como o anjo da morte, os punhos cerrados nos lados do corpo, o olhar fixo à frente, o rosto contraído num ricto de fúria. Outros aldeões, a caminho de casa para o almoço, falaram com ele, mas não obtiveram resposta. Alguns decidiram acompanhá-lo. Nos poucos minutos necessários para chegar ao solar, Wulfric atraiu uma pequena multidão. Nathan Reeve saiu de sua casa e perguntou a Gwenda o que estava acontecendo, mas ela só foi capaz de dizer:

- Alguém precisa detê-lo, por favor!

Era inútil: ninguém ali seria capaz de deter Wulfric, mesmo que ousasse tentar. Ele abriu a porta do solar e entrou. Gwenda estava logo atrás, seguida pela multidão. A criada, Vira, protestou indignada:

- Você deveria bater!

- Onde está seu senhor? - perguntou Wulfric. Vira viu a expressão de Wulfric e ficou assustada.

- Ele foi ao estábulo. Está prestes a partir para Earlscastle.

Wulfric passou por ela e atravessou a cozinha. Quando ele e Gwenda passaram pela porta dos fundos, avistaram Ralph e Alan montando. Gwenda poderia ter gritado... os dois estavam bastante perto para ouvi-la!

Wulfric saltou para a frente. Com uma inspiração desesperada, Gwenda estendeu o pé e prendeu-o no tornozelo de Wulfric.

Ele caiu de cara na lama.

Ralph não os viu. Bateu com os calcanhares no cavalo, que saiu trotando do pátio. Alan viu, percebeu a situação no mesmo instante, decidiu evitar problemas, e seguiu Ralph. Ao deixarem o pátio, Alan pôs seu cavalo para galopar. O cavalo de Ralph, ansioso, resolveu acompanhar o galope.

Wulfric levantou-se de um pulo, praguejando, e saiu em perseguição. Gwenda também correu. Ele não poderia alcançar os cavalos, mas Gwenda ficou com medo de que Ralph olhasse para trás, e parasse o cavalo para descobrir o que estava acontecendo.

Mas os dois homens desfrutavam o vigor de cavalos descansados, e dispararam pela estrada que deixava a aldeia, sem olharem para trás. Desapareceram em poucos segundos.

Wulfric arriou de joelhos na lama.

Gwenda alcançou-o. Passou o braço em torno dele para ajudá-lo a se levantar. Wulfric empurrou-a para o lado, com tanta força que ela cambaleou e quase caiu. Ficou chocada: nunca ele fora tão rude com ela.

- Você me fez tropeçar - disse ele, enquanto se levantava sem qualquer ajuda.

- Salvei sua vida.

Wulfric fitou-a com ódio nos olhos.

- Nunca lhe perdoarei por isso.

Quando chegou a Earlscastle, Ralph foi informado de que Roland não mandara chamá-lo, muito menos com urgência. As gralhas nas ameias riram dele, desdenhosas. Alan aventou uma explicação:

- Tem a ver com Annet. No momento em que partíamos, vi Wulfric saindo pela porta dos fundos do solar. Não me importei com isso na ocasião, mas talvez ele quisesse confrontá-lo.

- Aposto que era isso mesmo. - Ralph levou a mão para a adaga no cinto. Você deveria ter me avisado... seria uma boa desculpa para enfiar a faca em sua barriga.

- E não resta a menor dúvida de que Gwenda sabia o que da acontecer. Por isso, inventou a desculpa para afastá-lo de seu marido assassino.

- É isso mesmo - concordou Ralph. - Explicaria por que ninguém mais viu o tal mensageiro... ele nunca existiu. Uma vaca astuciosa.

Ela deveria ser punida, mas isso poderia ser difícil. Gwenda provavelmente diria que fizera o que achava melhor, e Ralph não poderia alegar que ela errara ao impedir que o marido atacasse o senhor de Wigleigh. Pior ainda: se o seu protesto fosse aberto, chamaria a atenção para o fato de que ela o enganara. Portanto, não poderia haver nenhuma punição formal... mas ele poderia encontrar uma maneira extra-oficial de castigá-la.

Já que estava em Earlscastle, ele resolveu aproveitar a oportunidade para caçar com o conde e os homens de sua corte. Esqueceu Annet... até o final do segundo dia, quando Roland chamou-o para um encontro em sua sala particular. Somente o secretário do conde, padre Jerome, estava em sua companhia. Roland não convidou Ralph a sentar.

- O padre de Wigleigh está aqui - anunciou ele. Ralph ficou surpreso.

- O padre Gaspard? Em Earlscastle?

Roland não se deu o trabalho de responder a essas perguntas retóricas.

- Ele se queixa de que você estuprou uma mulher chamada Annet, esposa de Billy Howard, um de seus servos.

O coração de Ralph quase parou. Não imaginara que os camponeses tivessem coragem de se queixar ao conde. Era muito difícil para um servo acusar um senhor num tribunal. Mas eles podiam ser astuciosos, e alguém em Wigleigh fora bastante hábil para persuadir o padre a apresentar a queixa. Ralph assumiu uma expressão de indiferença.

- Isso é uma bobagem. Deitei com a mulher, é verdade, mas porque ela estava disposta. - Ele lançou para Roland o chamado olhar de homem para homem.

- Mais do que disposta.

Uma expressão de aversão estampou-se no rosto de Roland, que se virou para o padre Jerome, com um olhar inquisitivo.

Jerome era instruído e ambicioso, um tipo que Ralph detestava. Exibia uma expressão presunçosa quando disse:

- A garota está aqui. Mulher, eu deveria dizer, embora tenha apenas dezenove anos. Tem os braços bastante machucados e o vestido manchado de sangue. Diz que o encontrou na floresta e que seu pajem se ajoelhou sobre os braços dela, para imobilizá-la. E um homem chamado Wulfric também veio, para informar que você foi visto se afastando a galope do local.

Ralph calculou que fora Wulfric quem persuadira o padre Gaspard a vir a Earlscastle.

- Não é verdade - declarou ele, tentando imprimir um tom de indignação à sua voz.

Jerome mostrou-se cético.

- Por que ela mentiria?

- Talvez alguém nos tenha visto e contou ao marido. Imagino que foi ele quem a deixou machucada. A mulher gritou que fora estuprada para que ele não continuasse a espancá-la. E depois manchou o vestido com sangue de galinha.

Roland suspirou.

- É um tanto exagerado, não é, Ralph?

Ralph não tinha certeza do que isso significava. O conde esperava que seus homens se comportassem como monges?

- Fui advertido de que você poderia se comportar dessa maneira - acrescentou Roland. - Minha nora sempre disse que você me traria problemas.

- Philippa?

- Lady Philippa para você.

Ralph compreendeu tudo de repente e disse, incrédulo:

- Foi por isso que não me promoveu logo depois que salvei sua vida... porque uma mulher era contra mim? Que tipo de exército terá se deixar que as mulheres escolham seus homens?

- Você tem razão, é claro, e foi por isso que fui contra o julgamento dela no final. O que as mulheres jamais compreendem é que um homem sem um pouco de fúria só serve para arar a terra. Não podemos levar os fracos para a batalha. Mas ela tinha razão quando advertiu que você me causaria problemas. Não queremos ser incomodados, em tempos de paz, por padres se queixando de que esposas de servos foram estupradas. Não faça isso de novo. Não me importo se você deita com as camponesas. Por falar nisso, também não me importo se deitar com homens. Mas se quiser deitar com a esposa de um homem, disposta ou não, deve estar preparado para compensar o marido de alguma maneira. A maioria dos camponeses pode ser comprada. Apenas não deixe que isso vire um problema meu.

- Certo, milorde.

- O que devo fazer com Gaspard? - perguntou Jerome.

- Deixe-me ver... - Roland pensou por um momento. - Wigleigh fica na beira do meu território, não muito longe das terras do meu filho William, não é mesmo?

- É, sim - respondeu Ralph.

- A que distância você estava da fronteira quando encontrou a tal garota?

- Cerca de um quilômetro e meio. Foi nos arredores de Wigleigh.

- Não importa. - O conde virou-se para Jerome. - Todos saberão que é apenas uma desculpa, mas diga ao padre Gaspard que o incidente ocorreu no território de lorde William, e por isso não posso fazer um julgamento.

- Está bem, milorde.

- E se eles forem falar com William? - perguntou Ralph.

- Duvido muito que isso aconteça. Mas, se eles insistirem, você deve chegar a um acordo com William. Os camponeses acabarão se cansando de protestar.

Ralph acenou com a cabeça, aliviado. Por um momento, sentira o medo de ter cometido um terrível erro de julgamento, e que no final das contas poderia ter de pagar o preço por estuprar Annet. Mas acabara escapando impune, como esperava.

- Obrigado, milorde.

Ele se perguntou o que seu irmão diria. O pensamento encheu-o de vergonha. Mas talvez Merthin nunca descobrisse.

- Devemos nos queixar a lorde William - disse Wulfric, quando voltaram a Wigleigh.

Toda a aldeia estava reunida na igreja, para discutir o problema. O padre Gaspard e Nathan Reeve estavam ali, mas Wulfric parecia ser o líder, apesar de sua juventude. Fora para a frente da igreja, deixando Gwenda e o bebê Sammy no meio da multidão.

Gwenda rezava para que decidissem abandonar o caso. Não era porque quisesse que Ralph permanecesse impune... ao contrário, gostaria de vê-lo fervido vivo. Ela própria matara dois homens por apenas ameaçá-la de estupro, algo de que se lembrou algumas vezes durante a discussão, sempre com um sobressalto. Mas não queria que Wulfric assumisse um papel de destaque. Era em parte porque ele era impulsionado pela chama que não se extinguira de seu sentimento por Annet, o que magoava e entristecia Gwenda. Ainda mais importante, porém, era o fato de que temia por ele. A hostilidade entre o marido e Ralph já custara a herança de Wulfric. Que outra vingança Ralph poderia desfechar?

- Sou o pai da vítima, e não quero mais criar problemas por isso - declarou Perkin. - É muito perigoso se queixar das ações de um senhor. Ele sempre encontra uma maneira de punir os queixosos, quer estejam certos ou errados. Vamos abandonar o caso.

- É tarde demais para isso - argumentou Wulfric. -Já nos queixamos, ou pelo menos nosso padre se queixou. Nada temos a ganhar se recuarmos agora.

- Fomos muito longe - insistiu Perkin. - Ralph ficou embaraçado na presença de seu conde. Sabe agora que não pode fazer o que bem quiser aqui.

- Ao contrário - disse Wulfric - Ele acha que escapou impune. Receio que fará de novo. Nenhuma mulher da aldeia estará segura.

A própria Gwenda já apresentara a Wulfric todos os argumentos que Perkin agora expunha. Wulfric não respondera. Mal falava com ela desde que o fizera tropeçar junto da porta dos fundos do solar. A princípio, Gwenda dissera a si mesma que ele apenas estava de mau humor porque se sentia um tolo. Esperava que ele tivesse esquecido o ressentimento ao voltar de Earlscastle. Mas se enganara. Wulfric não a tocava mais, na cama ou fora dela, havia uma semana; quase nunca a fitava nos olhos; e lhe falava apenas em monossílabos e grunhidos. O que começava a deixá-la deprimida.

- Você nunca vencerá Ralph - interveio Nathan Reeve. - Os servos sempre perdem para os senhores.

- Não tenho tanta certeza assim - respondeu Wulfric. - Todos têm inimigos. Talvez não sejamos as únicas pessoas que gostariam de ver Ralph contido. Talvez não seja possível obter sua condenação num tribunal... mas devemos lhe infligir o máximo de problemas e embaraço, se quisermos que ele hesite antes de fazer a mesma coisa de novo.

Alguns aldeões acenaram com a cabeça em concordância, mas nenhum se manifestou em apoio a Wulfric. Gwenda começou a acalentar a esperança de que ele perderia a discussão. Seu marido, no entanto, era acima de tudo determinado. Virou-se agora para o padre.

- O que acha, padre Gaspard?

Gaspard era jovem, pobre e muito sério. Não tinha medo da nobreza. Não era ambicioso - não queria se tornar um bispo e se juntar à classe dominante - e por isso não sentia necessidade de agradar a aristocracia.

- Annet foi violada com toda crueldade, a paz de nossa aldeia foi criminosamente destruída, e lorde Ralph cometeu um pecado infame, que deve confessar e do qual deve se arrepender. Pelo bem da vítima, mas também por nosso auto-respeito, e para salvar lorde Ralph das chamas do inferno, devemos procurar lorde William.

Soaram murmúrios de concordância.

Wulfric olhou para Billy Howard e Annet, sentados lado a lado. Em última análise, pensou Gwenda, as pessoas provavelmente fariam o que Annet e Billy quisessem.

- Não queremos problemas - disse Billy. - Mas devemos terminar o que começamos, pelo bem de todas as mulheres da aldeia.

Annet não levantou os olhos do chão, mas balançou a cabeça em assentimento. Gwenda compreendeu, consternada, que Wulfric prevalecera.

- Você conseguiu o que queria - comentou ela, ao deixarem a igreja. Wulfric limitou-se a responder com um grunhido. Gwenda insistiu:

- Suponho que agora continuará a arriscar sua vida pela esposa de Billy Howard, enquanto se recusa a falar com sua própria esposa.

Ele não disse nada. Sammy sentiu a hostilidade e começou a chorar.

Gwenda estava desesperada. Movera céus e terras para conquistar o homem que amava, casara com ele e tivera um filho, e agora era tratada como uma inimiga. O pai nunca se comportara daquela maneira com sua mãe... não que o comportamento de Joby fosse um exemplo para qualquer um. Mas ela não tinha a menor idéia de como lidar com Wulfric Tentara usar Sammy, segurando-o em um dos braços enquanto tocava o marido com a outra mão, numa tentativa de recuperar sua afeição por se associar com o menino que ele tanto amava; mas Wulfric apenas se afastara, rejeitando ambos. Até tentara o sexo, pressionando os seios contra suas costas à noite, passando a mão por sua barriga, segurando o pênis, mas de nada adiantara... como ela poderia adivinhar, ao recordar a resistência dele no verão passado, antes do casamento de Annet com Billy. Agora, com frustração, Gwenda gritou:

- O que há de errado com você? Tentei salvar sua vida!

- Não deveria ter feito aquilo.

- Se eu deixasse que matasse Ralph, você seria enforcado!

- Não tinha o direito.

- Que importa se eu tinha o direito ou não?

- Essa é a filosofia de seu pai, não é mesmo? Gwenda ficou surpresa.

- Como assim?

- Seu pai acredita que não importa se ele tem ou não o direito de fazer alguma coisa. Se é para melhor, ele faz. Como vendê-la para alimentar a família.

- Eles me venderam para ser estuprada. Eu fiz com que tropeçasse para salvado da forca. É completamente diferente.

- Enquanto continuar a dizer isso para si mesma, nunca poderá compreendedo, nem a mim.

Gwenda concluiu que não conseguiria recuperar sua afeição ao tentar provar que ele estava errado.

- Eu... não compreendo.

- Você me tirou o poder de tomar minhas próprias decisões. Tratou-me como seu pai a tratava, como uma coisa a ser controlada, não como uma pessoa. Não importa se estou certo ou errado. O que importa é que cabe a mim decidir, não a você. Mas não pode perceber isso, assim como seu pai também não percebeu o que tirou de você quando a vendeu.

Gwenda ainda achava que as duas coisas eram completamente diferentes, mas não insistiu no argumento, porque começava a entender o que o deixara tão furioso. Wulfric era zeloso de sua independência... algo que ela podia entender, porque sentia a mesma coisa. E privara-o disso. Ela murmurou, hesitante:

- Eu... acho que entendo.

- Entende mesmo?

- De qualquer forma, tentarei nunca mais fazer isso.

- Ótimo.

Ela só meio acreditava que errara, mas sentia-se tão ansiosa em encerrar a guerra entre os dois que disse:

- Desculpe.

- Está bem.

Wulfric não estava falando muita coisa, mas ela sentiu que ele podia estar abrandando.

- Sabe que não quero que se queixe a lorde William sobre Ralph... mas se está mesmo determinado, não tentarei impedi-lo.

- Fico contente.

- Na verdade, posso até ajudá-lo.

- É mesmo? Como?

A residência de lorde William e lady Philippa, em Casterham, fora outrora um castelo. Ainda havia uma torre de pedra redonda, com ameias, embora estivesse em ruínas e fosse usada agora como um estábulo. A muralha em torno do pátio estava intacta, mas o poço secara, e o terreno na encosta remanescente era usado para o cultivo de legumes e árvores frutíferas. Onde antes havia uma ponte levadiça, uma simples rampa levava agora à casa da guarda.

Gwenda, com Sammy no colo, passou sob a arcada da casa da guarda, junto com o padre Gaspard, Billy Howard, Annet e Wulfric. Um jovem homem de armas sentava descontraído num banco, mas viu o hábito do padre e não os deteve. O clima relaxado encorajou Gwenda. Esperava ter uma audiência particular com lady Philippa.

Entraram na casa pela porta principal e se descobriram num grande salão tradicional, com janelas como as de uma igreja. Parecia ocupar a metade do espaço total da casa. O resto, podia-se presumir, seria de aposentos pessoais, à maneira moderna, que enfatizava a privacidade da família nobre, em detrimento das defesas militares.

Um homem de meia-idade, usando um gibão de couro, sentava a uma mesa, contando entalhes numa talha. Levantou os olhos para fitá-los, concluiu a contagem, e escreveu uma anotação numa lousa, antes de dizer:

- Bom-dia, estranhos.

- Bom-dia, mestre bailiff- disse Gaspard, deduzindo a ocupação do homem.

- Viemos falar com lorde William.

- Ele deve voltar até a hora do almoço - informou o bailiff polido. - Posso perguntar sobre o que desejam falar com ele?

Gaspard começou a explicar, e Gwenda se esgueirou para os fundos da casa.

Deu a volta para a entrada dos criados. Havia ali uma extensão de madeira, que ela calculou ser a cozinha. Uma criada sentava num banco ao lado da porta da cozinha, com um saco de repolhos, tirando a lama numa enorme bacia com água. Era jovem e olhou com uma expressão afetuosa para o bebê.

- Que idade ele tem?

- Quatro meses, quase cinco. Seu nome é Samuel. Nós o chamamos de Sammy ou Sam.

O bebê sorriu e a jovem murmurou:

- Que lindo... Gwenda disse:

- Sou uma mulher comum, como você, mas preciso falar com lady Philippa. A jovem franziu o rosto, aflita.

- Sou apenas a criada da cozinha.

- Mas deve vê-la de vez em quando. Poderia interceder por mim.

A criada olhou para trás, como se estivesse preocupada com a possibilidade de ser ouvida.

- Não gostaria de fazer isso. Gwenda compreendeu que poderia ser mais difícil do que previra.

- Não poderia apenas transmitir uma mensagem minha?

A criada sacudiu a cabeça em negativa. E foi nesse instante que uma voz indagou do interior da casa:

- Quem quer me enviar uma mensagem?

Gwenda ficou tensa, pensando que poderia ter se metido em alguma encrenca. Olhou para a porta da cozinha.

Um momento depois, lady Philippa apareceu.

Não chegava a ser uma linda mulher, mas era atraente. Tinha o nariz reto, queixo saliente, olhos verdes grandes e claros. Não estava sorrindo, até franzia um pouco as sobrancelhas, mas ainda assim havia alguma coisa cordial e compreensiva em seu rosto.

- Sou Gwenda de Wigleigh, milady.

- Wigleigh... - O rosto de Phillipa ficou todo franzido. - E o que tem para me dizer?

- É sobre lorde Ralph.

- Era o que eu receava. Vamos entrar e aquecer o bebê junto do fogo da cozinha. Muitas damas da nobreza teriam se recusado a falar com alguém tão insignificante quanto Gwenda, mas ela calculara que Philippa tinha um enorme coração por trás do exterior um tanto intimidativo. Entrou na cozinha. Sammy começou a fazer caretas, e ela deu-lhe o seio.

- Pode sentar - disse Philippa.

E isso era ainda mais inesperado. Uma serva costumava ficar de pé ao falar com uma dama. Philippa estava sendo gentil por causa do bebê, concluiu Gwenda.

- Muito bem, pode começar a falar - disse Philippa. - O que Ralph fez?

- Talvez se lembre, milady, de uma briga na Feira do Velocino de Kingsbridge no ano passado.

- Claro que lembro. Ralph acariciou uma camponesa, e seu belo e jovem noivo quebrou o nariz dele. O garoto não deveria ter feito isso, é verdade, mas Ralph é um bruto grosseiro.

- E é mesmo. Na semana passada, ele encontrou na floresta a mesma garota, Annet. Seu pajem a imobilizou para Ralph estuprá-la.

- Deus nos guarde! - Philippa parecia consternada. - Ralph é um animal, um porco selvagem. Eu sabia que ele nunca deveria ser promovido a lorde. Bem que disse a meu sogro para não promover.

- Uma pena que o conde não tenha seguido seu conselho.

- E suponho que o noivo agora quer justiça.

Gwenda hesitou. Não tinha certeza do quanto deveria contar da complicada história. Mas sentiu que seria um erro omitir qualquer coisa.

- Annet casou, milady, mas com outro homem.

- E quem foi a moça afortunada que casou com um rapaz tão bonito?

- Wulfric acabou casando comigo.

- Meus parabéns.

- Embora Wulfric esteja aqui, junto com o marido de Annet, para ser testemunha.

Philippa fitou Gwenda atentamente. Parecia prestes a fazer um comentário, mas mudou de idéia.

- Por que vieram até aqui? Wigleigh não fica no território de meu marido.

- O incidente foi na floresta, e o conde diz que foi em terra de lorde William. Por isso, ele não pode julgar.

- É apenas uma desculpa. Roland julga qualquer coisa que quiser. Só não quer punir um homem que foi promovido há pouco tempo.

- Seja como for, o padre de nossa aldeia está aqui para relatar o que aconteceu a lorde William.

- E o que quer que eu faça?

- É uma mulher e pode compreender. Sabe como os homens inventam desculpas para o estupro. Dizem que a mulher devia estar flertando, ou fazendo alguma provocação.

- Tem razão.

- Se Ralph escapar impune, pode fazer de novo... talvez comigo.

- Ou comigo - disse Philippa. - Devia ver a maneira como olha para mim... como se fosse um cachorro olhando para um ganso no lago.

Isso era animador.

- Talvez possa fazer com que lorde William compreenda como é importante que Ralph não escape impune.

- Acho que posso.

Sammy parara de mamar e adormecera. Gwenda levantou-se.

- Obrigada, milady.

- Fico contente por você ter me procurado.

Lorde William chamou-os para uma reunião na manhã seguinte. O encontro foi no grande salão. Gwenda ficou satisfeita ao ver lady Philippa sentada ao lado do marido. Ela ofereceu um olhar cordial para Gwenda, que torceu para que isso significasse que já conversara com o marido.

William era alto e tinha cabelos pretos, como seu pai, o conde, mas estava começando a ficar careca. O domo por cima da barba e sobrancelhas escuras sugeria um tipo mais ponderado de autoridade, o que combinava com sua reputação. Examinou o vestido manchado de sangue e as equimoses de Annet, roxas agora, em vez do vermelho intenso original.

Mesmo assim, provocaram uma expressão de fúria no rosto de lady Philippa. Gwenda adivinhou que não era tanto pela severidade das lesões, mas pela imagem sinistra que projetavam, de um pajem musculoso ajoelhado sobre os braços de uma jovem, a fim de imobilizá-la, enquanto outro homem a estuprava.

- Você fez tudo corretamente até agora - declarou lorde William para Annet.

- Seguiu imediatamente para a aldeia mais próxima, mostrou os ferimentos aos homens de reputação aqui presentes, e deu o nome do atacante. Agora, tem de apresentar uma imputação a um juiz de paz no tribunal do condado de Shiring.

Ela se mostrou ansiosa.

- O que isso significa?

- É uma acusação, escrita em latim.

- Não sei escrever em inglês, milorde, muito menos em latim.

- O padre Gaspard pode fazer isso por você. O juiz encaminhará a imputação a um júri de indiciamento. Você terá de contar aos jurados o que aconteceu. Pode fazer isso? Eles talvez perguntem sobre alguns detalhes embaraçosos.

Annet acenou com a cabeça, determinada.

- Se acreditarem em você, os jurados mandarão o xerife convocar lorde Ralph ao tribunal, um mês depois, para ser julgado. Neste caso, você vai precisar de dois fiadores, pessoas que depositem uma quantia em dinheiro para garantir sua presença no tribunal.

 

- Mas quem seriam meus fiadores?

- Padre Gaspard pode ser um deles, e eu serei o outro. Entrarei com o dinheiro.

- Obrigada, milorde.

- Agradeça à minha esposa, que me persuadiu a não permitir que a paz do rei seja violada em meu território por um ato de estupro.

Annet lançou um olhar agradecido para Philippa.

Gwenda olhou para Wulfric. Relatara ao mando sua conversa com a esposa de lorde William. Agora, ele fitou-a nos olhos e fez um aceno de cabeça quase imperceptível, em agradecimento. Sabia que fora ela quem conseguira aquilo. Lorde William continuou:

- No julgamento, terá de contar a história de novo. Seus amigos terão de se apresentar como testemunhas. Gwenda dirá que a viu sair da floresta com o vestido ensangüentado. Padre Gaspard dirá que você lhe contou o que aconteceu. Wulfric dirá que viu Ralph e Alan se afastando a galope do local.

Todos acenaram com a cabeça, solenes.

- Só mais uma coisa. Depois que se começa uma coisa assim, não se pode mais parar. Retirar uma acusação é um crime e você seria punida com a maior severidade... para não falar da vingança de Ralph.

- Não mudarei de idéia - garantiu Annet. - Mas o que vai acontecer com Ralph? Como ele será punido?

- Só há uma penalidade para o estupro - respondeu lorde William. - Ele será enforcado.

Todos dormiram no grande salão do castelo, com os servos, pajens e cavalos de William, envoltos por seus mantos e estendidos em esteiras de juncos no chão. A medida que diminuía a claridade das brasas na imensa lareira, Gwenda procurou hesitante pelo marido. Pôs a mão em seu braço, esfregou a lã de seu manto. Não faziam amor desde o estupro, e ela sentia-se insegura, sem saber se Wulfric a queria ou não. Enfurecera-o demais ao estender o pé para fazê-lo tropeçar. Agora, ele achava que sua intervenção junto a lady Philippa compensara isso?

Wulfric reagiu de imediato à sua iniciativa, puxando-a e beijando-a nos lábios. Ela relaxou agradecida em seus braços. Acariciaram um ao outro durante algum tempo. Gwenda sentia-se tão feliz que teve vontade de chorar.

Esperou que Wulfric rolasse para cima dela, mas isso não aconteceu. Podia dizer que ele queria, pois estava sendo muito afetuoso, e tinha o pênis duro em sua mão; mas talvez ele hesitasse porque havia muitas pessoas ao redor. As pessoas faziam sexo em salões como aquele, é claro; era normal e ninguém se importava. Mas talvez Wulfric se sentisse inibido.

Gwenda, no entanto, estava determinada a sacramentar o restabelecimento do amor. Depois de algum tempo, subiu em cima dele, puxando o manto para cobri-los. Ao começarem a mexer juntos, ela percebeu que um adolescente os observava, de olhos arregalados, a poucos metros de distância. Os adultos olhavam polidamente para o outro lado, é claro, mas aquele garoto alcançara uma idade em que o sexo é um mistério cativante, e era óbvio que não conseguiria desviar os olhos. Gwenda sentia-se tão feliz que mal se importou. Olhou para o garoto e sorriu, sem parar de se mexer. Ele ficou boquiaberto, em choque, dominado por um embaraço angustiante. Mortificado, deitou de costas e cobriu os olhos com o braço.

Gwenda puxou o manto por cima de sua cabeça e da cabeça de Wulfric, comprimiu o rosto contra o pescoço dele, e se entregou ao prazer.

Caris sentia-se confiante na segunda vez em que compareceu ao tribunal real. O vasto interior de Westminster Hall não mais a intimidava, nem a massa de pessoas ricas e poderosas que se agrupavam em torno dos juizes. Já passara por aquilo antes, conhecia os trâmites; tudo o que parecera estranho um ano atrás era agora familiar. Até usava um vestido à moda de Londres, verde no lado direito e azul no esquerdo. Gostava de estudar as pessoas ao seu redor, de interpretá-las através de suas expressões: presunçosas ou desesperadas, atordoadas ou insidiosas. Podia reconhecer as pessoas que eram novas na capital por seus olhos arregalados e suas atitudes de incerteza, o que lhe proporcionava um sentimento agradável de percepção e superioridade.

Se ela sentia quaisquer apreensões, era por causa de seu advogado, Francis Bookman. Ele era jovem e bem informado, além de parecer muito seguro... o que acontecia com a maioria dos advogados, pensou Caris.

Um homem pequeno, com cabelos louro-avermelhados, de movimentos rápidos e sempre preparado para uma discussão, ele a fazia pensar num passarinho insolente no peitoril de uma janela, bicando as migalhas e afugentando agressivamente os rivais. Garantira que o caso deles era incontestável.

Godwyn contratara Gregory Longfellow, como era de se esperar. Gregory vencera o processo contra o conde Roland, e Godwyn não podia deixar de lhe pedir que representasse o priorado de novo. Ele já demonstrara sua competência, enquanto Bookman era uma incógnita. Mas Caris contava com um trunfo especial, uma coisa que seria um choque para Godwyn quando fosse apresentada.

Godwyn não tinha a menor noção de que traíra Caris, seu pai e toda a cidade de Kingsbridge. Sempre se apresentara como um reformador, impaciente com as posições reacionárias do prior Anthony, interessado nas necessidades da cidade, ansioso pela prosperidade tanto dos monges quanto dos mercadores. Mas um ano depois de se tornar prior, ele mudara para o lado oposto, e se tornara um tradicionalista ainda maior do que Anthony. E parecia não ter a menor vergonha. Caris sentia uma raiva intensa cada vez que pensava a respeito.

Ele não tinha o direito de obrigar os habitantes da cidade a usarem o moinho de fulling. Suas outras imposições - a proibição de moinhos manuais para os grãos, as multas por viveiros de peixes e coelhos particulares - eram corretas em termos técnicos, embora de um rigor absurdo. Mas o moinho de fulling devia ser gratuito, e Godwyn sabia disso. Caris especulava se ele acreditava mesmo que qualquer fraude era perdoável, desde que fosse efetuada em nome da obra de Deus. Os homens de Deus não deveriam ser mais escrupulosos em questões de honestidade do que os leigos, não menos?

Ela apresentou o argumento, enquanto esperavam no tribunal pelo início do julgamento. Edmund disse:

- Nunca confio em ninguém que proclama sua moralidade do púlpito. O homem que apregoa seus elevados princípios sempre pode encontrar um pretexto para violar suas próprias regras. Prefiro fazer negócios com um pecador comum, que provavelmente acha que é uma vantagem sua, a longo prazo, dizer a verdade e cumprir suas promessas. Não é provável que ele mude de idéia a respeito.

Em momentos como aquele, quando o pai se mostrava como era antigamente, é que Caris mais compreendia o quanto ele mudara. Hoje em dia Edmund já não era mais tão sagaz, com a mente tão ágil. Era mais comum que estivesse distraído e esquecido. Caris desconfiava de que o declínio começara meses antes de ela ter sequer notado, e provavelmente explicava seu fracasso desastroso em prever o colapso do mercado de lã.

Depois de vários dias de espera, eles foram chamados para comparecer à presença de Sir Wilbert Wheatfield, o juiz de rosto rosado e dentes podres que decidira a favor do priorado, contra o conde Roland, um ano antes. A confiança de Caris começou a se desvanecer no momento em que o juiz sentou à sua bancada, junto da parede leste. Era assustador que um mero mortal tivesse tanto poder. Se ele tomasse a decisão errada, o novo empreendimento de fabricação de tecidos de Caris seria sufocado, o pai ficaria arruinado, e ninguém teria condições de pagar a nova ponte.

Mas depois, quando seu advogado começou a falar, ela passou a se sentir melhor. Francis iniciou por um relato sobre o moinho de fulling, dizendo como fora inventado pelo lendário Jack Builder, que construíra o primeiro, e como o prior Philip dera-o aos habitantes da cidade, para que pudessem usá-lo sem pagar nada.

Em seguida, o advogado de Caris tratou dos argumentos contrários de Godwyn, refutando o prior antes mesmo de seu ataque.

- É verdade que o moinho está em péssimas condições, é lento e propenso a quebrar com freqüência - disse ele. - Mas como o prior pode argumentar que as pessoas perderam o direito de usá-lo? O moinho é propriedade do priorado, e cabe ao priorado cuidar de sua manutenção. O fato de não ter cumprido seu dever não faz diferença. O povo não tem o direito de reparar o moinho, e também não tem a obrigação de fazê-lo. A doação do prior Philip não foi condicional.

A esta altura, Francis apresentou sua arma secreta.

- Caso o prior tente alegar que a doação foi condicional, convido o tribunal a ler esta cópia do testamento do prior Philip.

Godwyn ficou atônito. Tentara insistir que o testamento se perdera. Mas Thomas Langley concordara em procurá-lo, como um favor para Merthin, e o tirara às escondidas da biblioteca por um dia, o tempo suficiente para Edmund copiá-lo.

Caris não pôde deixar de exultar com a expressão de choque e indignação no rosto de Godwyn ao descobrir que sua fraude fora frustrada. Ele adiantou-se e indagou, furioso:

- Como isso foi obtido?

A questão era reveladora. Ele não perguntou ”Onde foi encontrado?”, o que seria a indagação lógica se o documento estivesse realmente perdido.

Gregory Longfellow parecia irritado e acenou para que ele se calasse. Godwyn fechou a boca e recuou, compreendendo que revelara sua manobra... mas já era tarde demais, pensou Caris. O juiz deve ter percebido que a única razão para Godwyn estar furioso era o fato de saber que o documento favorecia os habitantes da cidade, e por isso tentara suprimi-lo.

Francis concluiu rapidamente depois disso... uma boa decisão, pensou Caris, pois assim a duplicidade de Godwyn estaria recente na mente do juiz, enquanto seu advogado apresentasse a argumentação da defesa.

Mas a alegação de Gregory pegou a todos de surpresa. Ele adiantou-se e disse:

- Senhor, Kingsbridge não é um burgo com carta regia.

Ele parou por aí, como se isso fosse tudo o que precisava dizer. Era verdade, de um ponto de vista técnico. A maioria das cidades tinha uma carta regia que concedia o direito de comerciar e realizar mercados sem obrigações com o conde ou barão local. Seus cidadãos eram homens livres, só devendo fidelidade ao rei. Mas umas poucas cidades, como Kingsbridge, permaneciam como propriedade de um suserano, em geral um bispo ou um prior: St. Albans e Bury St. Edmunds eram exemplos. A posição dessas cidades era menos clara.

- Isso faz uma diferença - declarou o juiz. - Somente homens livres podem apelar para o tribunal real. O que tem a dizer sobre isso, Francis Bookman? Seus clientes são servos?

Francis virou-se para Edmund. Em voz baixa e urgente, ele perguntou:

- Os habitantes da cidade já apelaram ao tribunal real antes?

- Não. O prior apelou...

- Mas não a guilda da paróquia? Mesmo antes de seu tempo?

- Não há registro...

- Portanto, não podemos alegar um precedente. Droga!

Francis tornou a se virar para o juiz, a expressão passando de preocupada a confiante num relance, e ele falou como se fosse condescendente com alguma coisa trivial:

- Senhor, os habitantes da cidade são livres. Desfrutam as condições de um burgo.

Gregory apressou-se em dizer:

- Não há um padrão universal das condições de burgo. Significa coisas diferentes em lugares diferentes.

- Há uma declaração de costumes escrita? - perguntou o juiz. Francis olhou para Edmund, que sacudiu a cabeça em negativa.

- Nenhum prior jamais concordaria que essas coisas fossem escritas - murmurou ele.

Francis tornou a se virar para o juiz.

- Não há declaração escrita, senhor, mas é evidente...

- Então este tribunal deve decidir se vocês são ou não homens livres - declarou o juiz.

Edmund dirigiu-se diretamente ao juiz:

- Senhor, os cidadãos têm o direito de comprar e vender suas casas.

Era um direito importante, não concedido aos servos, que precisavam da permissão de seus senhores.

- Mas continuam a ter obrigações feudais - insistiu Gregory. - Devem usar os moinhos e viveiros de peixes do prior.

Sir Wilbert interveio:

- Esqueça os viveiros de peixes. O fator básico é o relacionamento dos cidadãos com a justiça real. A cidade admite livremente o xerife do rei?

Foi Gregory quem respondeu:

- Não. Ele deve pedir permissão para entrar na cidade.

- É uma decisão do prior, não nossa! - protestou Edmund, indignado.

- Vamos continuar - disse Sir Wilbert. - Os cidadãos servem em júris reais, ou alegam isenção?

Edmund hesitou. Godwyn exultou. Servir em júris reais era uma tarefa que exigia muito tempo e que todos evitavam, se pudessem. Depois de uma pausa, Edmund respondeu:

- Alegamos isenção.

- Neste caso, o problema está resolvido - declarou o juiz. - Se vocês recusam esse dever sob a alegação de que são servos, não podem apelar acima de seu senhor para a justiça real.

Gregory pediu, triunfante:

- A luz do que foi dito aqui, solicito que seja indeferida a ação dos habitantes da cidade.

- Assim está decidido - declarou o juiz. Francis ficou revoltado.

- Senhor, posso falar?

- Claro que não.

- Mas, senhor...

- Outra palavra e mandarei prendê-lo por desacato. Francis fechou a boca e franziu a testa.

- Próximo caso - disse Sir Wilbert. Outro advogado começou a falar. Caris estava atordoada.

- Deveriam ter me informado de que eram servos! - disse Francis a Edmund, em tom de protesto.

- Não somos.

- O juiz decidiu que são. Não posso ganhar um processo se as informações são apenas parciais.

Caris decidiu não discutir com ele. Era o tipo de jovem que não podia admitir um erro.

Godwyn sentia-se tão satisfeito consigo mesmo que dava a impressão de que poderia estourar de tanto orgulho. Ao se retirar, não pôde resistir a uma farpa. Acenou um dedo para Edmund e Caris, e declarou, solene:

- Espero que, no futuro, compreendam a sabedoria de se submeter à vontade de Deus.

- Não me amole! - exclamou Caris, virando-lhe as costas. Uma pausa e ela comentou com o pai:

- Isso nos deixa completamente impotentes. Provamos que tínhamos o direito de usar o moinho de fulling de graça, mas ainda assim Godwyn pode nos negar esse direito.

- É o que parece - murmurou Edmund. Caris virou-se para Francis, ainda furiosa.

- Deve haver alguma coisa que possamos fazer.

- Podem converter Kingsbridge num burgo, com uma carta regia fixando seus direitos e liberdades. Neste caso, teriam acesso ao tribunal real.

Caris percebeu um vislumbre de esperança.

- O que temos de fazer para conseguir isso?

- Devem solicitar ao rei.

- E ele aceitaria?

- Se argumentarem que precisam disso para pagar seus impostos, tenho certeza de que o rei escutaria.

- Então devemos tentar.

- Godwyn ficará furioso - advertiu Edmund.

- Pois que fique - murmurou Caris, sombria.

- Não subestime o desafio - insistiu o pai. - Sabe como ele é implacável, até mesmo nas pequenas disputas. Uma coisa assim pode levar a uma guerra total.

- Pois que assim seja. Teremos uma guerra total.

- Oh, Ralph, como você foi capaz de fazer isso? - indagou a mãe.

Merthin estudava o rosto do irmão, à luz fraca na casa dos pais. Ralph parecia dividido entre a negativa pura e simples e a tentativa de se justificar. Ao final, ele murmurou:

- Ela me levou a isso.

Maud estava mais angustiada do que zangada.

- Mas ela é a esposa de outro homem, Ralph!

- A esposa de um camponês.

- Mesmo assim.

- Não se preocupe, mãe, que nunca condenarão um senhor pela palavra de uma serva.

Merthin não tinha tanta certeza. Ralph era um lorde de menor importância, e parecia ter atraído a hostilidade de William de Caster. Não havia como prever qual seria o resultado do julgamento. O pai interveio, rigoroso:

- Mesmo que não o condenem... e rezo por isso... pense um pouco na vergonha. Você é filho de um cavaleiro... como pôde esquecer isso?

Merthin estava horrorizado e perturbado, mas não surpreso. Aquela veia de violência sempre fora parte da natureza de Ralph. Na infância, ele sempre se mostrava ansioso por uma briga, e Merthin muitas vezes tivera de interferir para evitar uma confrontação física, com uma palavra conciliadora ou uma piada. Se qualquer outro que não seu irmão tivesse cometido aquele horrível estupro, Merthin torceria para que fosse enforcado.

Ralph olhava a todo instante para Merthin. Estava preocupado com a desaprovação do irmão... talvez mais do que com a reação da mãe. Ralph sempre se importara com a opinião do irmão mais velho a seu respeito. Merthin gostaria de que houvesse alguma maneira de manter Ralph acorrentado para impedi-lo de atacar as pessoas, agora que não estava mais por perto para livrá-lo dos problemas.

A discussão com seus pais transtornados continuaria por mais algum tempo, se não houvesse uma batida na porta da casa modesta. Caris entrou. Sorriu para Gerald e Maud. Seu rosto mudou quando viu Ralph. Merthin calculou que ela viera à sua procura. Levantou-se.

- Não sabia que já havia voltado de Londres.

- Acabei de chegar. Podemos conversar?

Merthin pôs um manto e saiu com ela para a claridade cinzenta de um dia frio de dezembro. Um ano se havia passado desde que terminara o caso de amor entre os dois. Merthin sabia que a gravidez acabara no hospital, e adivinhara que ela provocara o aborto deliberadamente. Duas vezes, nas semanas subseqüentes, pedira-lhe que voltasse para ele, mas Caris recusara. Era desconcertante: Merthin sabia que Caris ainda o amava, mas mesmo assim ela se mantinha intransigente.

Perdera toda e qualquer esperança, e presumira que sua dor passaria com o tempo. Até agora, isso não acontecera. Seu coração ainda batia mais depressa quando a via, e sentia-se mais feliz ao conversar com ela do que a fazer qualquer outra coisa no mundo.

Seguiram para a rua principal e entraram na Bell. Ao final da tarde, a taverna estava sossegada. Pediram vinho quente temperado.

- Perdemos o caso - informou Caris. Merthin ficou chocado.

- Como é possível? Vocês tinham o testamento do prior Philip...

- Não fez a menor diferença.

O desapontamento de Caris era profundo e amargo, Merthin percebeu. Ela explicou:

- O esperto advogado de Godwyn argumentou que os habitantes de Kingsbridge são servos do prior, e os servos não têm o direito de apelar ao tribunal real. O juiz encerrou o processo.

Merthin ficou furioso.

- Mas isso é uma estupidez! Significa que o prior pode fazer qualquer coisa que quiser, independentemente de leis e cartulários...

- Sei disso.

Merthin compreendeu que Caris estava impaciente porque ele dizia coisas que ela já repetira muitas vezes para si mesma. Por isso, conteve sua indignação e tentou ser pragmático.

- O que pretende fazer?

- Solicitar uma carta regia de burgo. Isso livraria a cidade do controle do prior. Nosso advogado acha que temos boas possibilidades. Mas também não vamos esquecer que ele estava convencido de que venceríamos no caso do moinho de fuiling. Seja como for, o rei está desesperado por dinheiro, por causa da guerra com a França. Precisa de cidades prósperas para pagar seus impostos.

- Quanto tempo seria preciso para obter a carta regia? ;

- Essa é a má notícia... pelo menos um ano, talvez mais.

- E durante esse tempo você não pode fabricar os tecidos escarlates.

- Não com o velho moinho de fulling.

- Portanto, tempos de parar o trabalho na ponte.

- Não vejo outra saída.

- Droga!

Parecia um absurdo. Tinham ao seu alcance os meios para restaurar a prosperidade da cidade, mas a teimosia de um homem os impedia.

- Como todos nós julgamos Godwyn da maneira errada... - comentou Merthin.

- Não me lembre.

- Temos de escapar de seu controle.

- Sei disso.

- Mas tem de ser mais cedo do que um ano.

- Eu bem que gostaria que houvesse um meio.

Merthin vasculhou o pensamento. Ao mesmo tempo, estudava Caris. Ela usava um vestido novo de Londres, em cores diferentes, o que lhe proporcionava uma aparência alegre, embora estivesse solene e ansiosa. As cores, verde profundo e azul intermediário, pareciam fazer seus olhos cintilarem e tornar a pele mais brilhante. Isso acontecia com freqüência. Absorto em conversa com ela sobre algum problema relacionado à ponte - quase nunca falavam de qualquer outra coisa Merthin refletia de repente como ela era adorável.

Mesmo enquanto pensava sobre isso, a parte de sua mente que solucionava problemas aventou uma proposta.

- Devemos construir nosso próprio moinho de fulling. Caris sacudiu a cabeça.

- Seria ilegal. Godwyn ordenaria que John Constable o destruísse.

- E se construíssemos fora da cidade?

- Na floresta? Também seria ilegal. Os couteiros do rei não permitiriam. Os couteiros tomavam conta das florestas reais.

- Neste caso, não na floresta. Em algum outro lugar.

- Em qualquer lugar, precisaríamos da permissão de algum lorde.

- Meu irmão é um lorde.

Uma expressão de aversão estampou-se no rosto de Caris à menção de Ralph, mas logo mudou quando ela pensou na sugestão.

- Construir um moinho de fulling em Wigleigh?

- Por que não?

- Há ali algum rio de correnteza rápida para girar a roda do moinho?

- Acho que sim... mas se não houver, poderemos usar um boi, como fizemos com a balsa no rio.

- Ralph concordaria?

- Claro. Ele é meu irmão. Se eu pedir, Ralph dirá sim.

- Godwyn ficará furioso.

- Ralph não se importa com Godwyn.

Merthin podia perceber que Caris estava satisfeita e excitada; mas quais eram os sentimentos dela em relação a ele? Caris estava contente por ter uma solução para o problema que enfrentavam e ansiosa em ser mais esperta do que Godwyn; além disso, porém, ele não podia sequer imaginar o que ela pensava.

- Vamos pensar em tudo antes de nos regozijarmos - disse ela. - Godwyn criará uma norma proibindo que o tecido saia de Kingsbridge para o processo de fulling. Há muitas cidades que possuem leis similares.

- Seria muito difícil para ele impor o cumprimento dessa lei sem a cooperação de uma guilda. E mesmo que ele consiga isso, você pode dar um jeito de se esquivar. A maior parte do tecido está sendo produzida nas aldeias, não é?

- É, sim.

- Basta não trazer para a cidade. Mande os tecelões direto para Wigleigh. Tinja ali, faça o fulling no novo moinho, e mande para Londres. Godwyn não terá qualquer jurisdição.

- Quanto tempo levaria para construir um moinho? Merthin pensou um pouco.

- O prédio de madeira pode ser erguido em dois dias. As engrenagens também serão de madeira, mas exigirão mais tempo, já que devem ser medidas com absoluta precisão. Eu poderia ter tudo pronto uma semana depois do Natal.

- Isso é maravilhoso. Vamos começar a providenciar.

Elizabeth rolou os dados e deslocou o último disco para a posição final no tabuleiro.

- Ganhei! - exclamou ela. - São três em três. Você tem de pagar. Merthin entregou um penny de prata. Só duas pessoas conseguiam vencê-lo no jogo de gamão: Elizabeth e Caris. Ele não se importava de perder. Sentia-se grato por uma adversária valiosa.

Ele recostou-se e tomou um gole do vinho de pêra. Era uma tarde fria de sábado, em janeiro, e já estava escuro. A mãe de Elizabeth dormia numa cadeira perto do fogo, roncando baixinho, a boca entreaberta. Ela trabalhava na Bell, mas sempre ficava em casa quando Merthin visitava a filha. Ele preferia assim. Significava que nunca tinha de decidir se devia ou não beijar Elizabeth. Era uma questão que não queria confrontar. Teria gostado de beijá-la, é claro. Podia lembrar o contato de seus lábios frescos e a firmeza dos seios. Mas beijá-la seria admitir que seu romance com Caris acabara para sempre, e ele ainda não estava preparado para isso.

- Como está o novo moinho em Wigleigh? - perguntou Elizabeth.

- Pronto e funcionando - respondeu Merthin, orgulhoso. - Caris vem fazendo o fulling de seu tecido ali há uma semana.

Elizabeth elevou as sobrancelhas.

- Pessoalmente?

- Não. Foi apenas uma maneira de falar. Mark Webber está operando o moinho, mas prepara alguns homens da aldeia para assumirem o comando.

- Será bom para Mark se ele se tornar o segundo no comando de Caris. Ele tem sido pobre durante toda a sua vida... essa é uma grande oportunidade.

- O novo empreendimento de Caris será bom para todos nós. Vai me permitir terminar a ponte.

- Ela é muito inteligente - comentou Elizabeth, a voz calma. - Mas o que Godwyn disse?

- Nada. Não tenho certeza se ele já sabe.

- Mas ele vai descobrir.

- Não creio que ele possa fazer qualquer coisa.

- Godwyn é um homem orgulhoso. Nunca o perdoará por ter sido mais esperto do que ele.

- Posso conviver com isso.

- E como está a ponte?

- Apesar de todos os problemas, o atraso no cronograma é de apenas duas semanas. Tive de gastar mais dinheiro para acelerar o trabalho, mas poderemos usar a ponte, com um leito de madeira provisório, na próxima Feira do Velocino.

- Você e Caris salvaram a cidade.

- Ainda não... mas vamos salvar.

Houve uma batida na porta. A mãe de Elizabeth despertou, com um sobressalto.

- Quem poderia ser? - indagou ela. - Está escuro lá fora. Era um dos aprendizes de Edmund.

- Mestre Merthin está sendo chamado para a reunião da guilda da paróquia.

- Para quê? - indagou Merthin.

- Mestre Edmund pediu para dizer que está sendo chamado para a reunião da guilda da paróquia.

Era evidente que ele decorara a mensagem e não sabia de mais nada.

- Alguma coisa sobre a ponte, espero - comentou Merthin com Elizabeth. Estão preocupados com o custo.

Ele pegou o manto, enquanto acrescentava:

- Obrigado pelo vinho... e pelo jogo.

- Jogarei com você sempre que quiser.

Merthin foi andando ao lado do aprendiz para a casa da guilda, na rua principal. Era uma reunião de trabalho, não um banquete. Cerca de vinte das pessoas mais importantes de Kingsbridge sentavam a uma mesa de cavalete comprida, algumas tomando cerveja ou vinho, falando em voz baixa. Merthin sentiu tensão e raiva, e ficou apreensivo.

Edmund sentava à cabeceira da mesa. O prior Godwyn sentava ao seu lado. O prior não era um membro da guilda: sua presença sugeria que a suposição de Merthin era certa, e a reunião seria sobre a ponte. Mas Thomas, o matriculário, não estava presente, embora Philemon ali estivesse. O que era estranho.

Merthin tivera há pouco tempo uma pequena disputa com Godwyn. Seu contrato fora de um ano a dois pennies por dia, mais o arrendamento da ilha do Leproso. A renovação teria de ser feita agora, e Godwyn propusera continuar a pagar dois pennies por dia. Merthin insistira em quatro pennies. Ao final, Godwyn cedera. Teria se queixado disso à guilda? Edmund falou num tom brusco característico:

- Chamamos você aqui porque o prior Godwyn quer dispensá-lo da função de mestre construtor da ponte.

Merthin experimentou a sensação de que levara um soco na cara. Não esperava por isso.

- Mas como? - indagou ele. - Foi Godwyn quem me designou!

- E, portanto, também tenho o direito de dispensá-lo - declarou Godwyn. -Mas por quê?

- O trabalho está atrasado e acima do orçamento.

- Está atrasado porque o conde fechou a pedreira... e acima do orçamento porque tive de gastar mais dinheiro para recuperar o tempo perdido.

- Desculpas.

- Estou inventando a morte de um carroceiro?

- Morto por seu próprio irmão! - retrucou Godwyn.

- O que isso tem a ver com qualquer coisa?

Godwyn ignorou a indagação.

- Um homem que foi acusado de estupro!

- Não pode dispensar um mestre construtor por causa do comportamento de seu irmão.

- Quem é você para dizer o que posso fazer?

- Sou o construtor de sua ponte!

Foi nesse momento que ocorreu a Merthin que a maior parte de seu trabalho como mestre construtor já fora concluída. Projetara todas as partes mais complicadas e fizera moldes de madeira para orientar os pedreiros. Construíra as ensecadeiras, que ninguém mais sabia como fazer. E construíra os guindastes e guinchos flutuantes de que precisava para levar as pesadas pedras para o meio da correnteza. Qualquer outro construtor poderia agora concluir a ponte, compreendeu ele, consternado.

- Não há garantia de renovação de seu contrato - disse Godwyn.

Era verdade. Merthin correu os olhos pela sala, em busca de apoio. Ninguém fitou-o nos olhos. E ele concluiu que já haviam discutido o assunto com Godwyn. O desespero dominou-o. Por que aquilo estava acontecendo? Não era porque a construção da ponte atrasara e tinha o custo acima do orçamento... o atraso não era culpa de Merthin, e de qualquer forma ele vinha recuperando o tempo perdido. Qual era a verdadeira razão? Assim que formulou a pergunta, a resposta afiorou a sua mente.

- Tudo isso é por causa do moinho de fulling em Wigleigh! Godwyn disse, afetado:

- As duas coisas não estão necessariamente ligadas. Edmund disse, em voz baixa mas distinta:

- Monge mentiroso! Philemon falou pela primeira vez:

- Tome cuidado, regedor!

Edmund não lhe deu a menor atenção.

- Merthin e Caris foram mais espertos do que você, não é mesmo, Godwyn? O moinho em Wigleigh é absolutamente legítimo. Você atraiu a derrota por sua ganância e teimosia. E essa é a sua vingança.

Edmund tinha razão. Ninguém era um construtor tão competente quanto Merthin. Godwyn devia saber disso, mas era evidente que não se importava.

- Quem vai contratar para o meu lugar? - Uma pausa e Merthin respondeu à sua própria pergunta: - Elfric, é claro.

- Isso ainda será decidido.

- Outra mentira - resmungou Edmund. Philemon falou de novo, a voz ainda mais estridente:

- Você pode ser levado a um tribunal eclesiástico por falar assim! Merthin especulou se aquilo não poderia ser mais um movimento no jogo, uma manobra para Godwyn renegociar seu contrato. Ele perguntou a Edmund:

- A guilda da paróquia está de acordo com o prior nessa questão?

- Não cabe à guilda concordar ou discordar! - protestou Godwyn. Merthin ignorou-o, e continuou a fitar Edmund, em expectativa. Edmund se

mostrou envergonhado.

- Não se pode negar que o prior tem o direito. Os homens da guilda estão financiando a ponte, por empréstimos. Mas o prior é o senhor da cidade. Isso foi reconhecido desde o início.

Merthin virou-se para Godwyn.

- Tem alguma coisa a me dizer, lorde prior?

Ele aguardou, com a esperança no fundo do coração de que Godwyn apresentasse suas verdadeiras exigências. Mas o prior disse apenas:

- Não.

- Então, boa-noite. Merthin esperou por mais um segundo. Ninguém disse nada. O silêncio idicava que tudo acabara.

E Merthin se retirou.

Fora da casa da guilda, ele respirou fundo o ar frio da noite. Mal podia acreditar no que acontecera. Não era mais o mestre da ponte.

Foi andando pelas ruas escuras. Era uma noite clara, e dava para divisar o caminho à luz das estrelas. Passou pela casa de Elizabeth; não queria conversar com ela. Hesitou diante da casa de Caris, mas também seguiu adiante. Desceu até a beira do rio. Seu pequeno barco estava amarrado bem na frente da ilha do Leproso. Ele embarcou e foi remando até lá.

Ao alcançar sua casa, parou e contemplou as estrelas, fazendo um esforço para reprimir as lágrimas. A verdade era que, no final, não fora mais esperto do que Godwyn... o inverso acontecera. Subestimara o que o prior era capaz de fazer para punir aqueles que se opunham a ele. Merthin julgara-se esperto, mas Godwyn fora mais esperto do que ele, ou pelo menos mais implacável. Estava disposto a prejudicar a cidade e o priorado, se fosse necessário, para se vingar de uma afronta a seu orgulho. E isso era sua vitória.

Merthin entrou em casa e deitou, sozinho e derrotado.

Ralph ficou acordado durante toda a noite anterior a seu julgamento. Já vira muitas pessoas morrerem na forca. Todos os anos, vinte ou trinta homens e umas poucas mulheres saíam na carroça do xerife da prisão no castelo de Shiring e desciam a colina até a praça do mercado, onde a forca esperava. Era uma ocorrência comum, mas os homens permaneceram na memória de Ralph, e naquela noite voltaram para atormentá-lo.

Alguns haviam morrido depressa, o pescoço estalando na queda, mas não muitos. A maioria era estrangulada lentamente. Esperneavam, se debatiam, escancaravam a boca em gritos silenciosos e ofegantes. Mijavam e cagavam. Ele recordou-se de uma velha condenada por bruxaria: quando caíra, mordera a língua e a cuspira; a multidão em torno da forca recuara apavorada, enquanto o pedaço de carne voava pelo ar e caía no chão poeirento.

Todos diziam que Ralph não seria enforcado, mas ele não conseguia se livrar do pensamento. Alegavam que o conde Roland não permitiria que um de seus cavaleiros fosse enforcado pela palavra de uma serva. Mas até agora o conde não fizera nada para interferir.

O júri preliminar apresentara um indiciamento contra Ralph ao juiz de paz de Shiring. Como todos os júris, era formado na maioria por cavaleiros do condado, que deviam fidelidade ao conde Roland. Apesar disso, no entanto, aceitaram os depoimentos dos camponeses de Wigleigh. Os homens - nunca havia mulheres no júri, é claro - não evitaram o indiciamento de um dos seus. Na verdade, os jurados haviam demonstrado, por suas perguntas, uma certa aversão pelo que Ralph fizera... e vários se recusaram a apertar sua mão depois.

Ralph planejara impedir que Annet testemunhasse, no julgamento propriamente dito, deixando-a prisioneira em Wigleigh antes de partir para Shiring. Mas, quando fora à sua casa para detê-la, descobrira que Annet já partira. Ela devia ter previsto sua manobra e viajara mais cedo, a fim de frustrá-lo.

Hoje, um novo júri decidiria o caso. Para consternação de Ralph, no entanto, quatro homens haviam participado também do júri preliminar. Como as evidências dos dois lados deviam ser exatamente as mesmas, ele não podia imaginar que esse grupo apresentaria um veredicto diferente, a menos que houvesse alguma pressão sobre os jurados... e era cada vez mais tarde para isso.

Ele levantou-se à primeira claridade do amanhecer e desceu para o andar térreo da Courthouse Inn, na praça do mercado de Shiring. Encontrou um trêmulo menino quebrando o gelo no poço no quintal dos fundos, e mandou-o buscar pão e cerveja. Depois, foi para o dormitório coletivo e acordou o irmão, Merthin.

Sentaram juntos na sala fria, impregnada pelo ranço da cerveja e vinho servidos na noite anterior. Ralph disse:

- Estou com medo de que me enforquem.

- Eu também - murmurou Merthin.

- Não sei o que fazer.

O menino trouxe duas canecas e metade de um pão. Ralph pegou sua caneca com a mão trêmula e tomou um gole que parecia interminável.

Merthin comeu um pouco de pão, automaticamente, o rosto franzido, olhando para cima pelo canto dos olhos, como sempre fazia quando vasculhava o cérebro à procura de uma idéia.

- A única idéia que me ocorre é tentar persuadir Annet a retirar a acusação e fazer um acordo. Você terá de oferecer alguma compensação.

Ralph sacudiu a cabeça.

- Ela não pode mais recuar... não é permitido. Será punida se desistir agora.

- Sei disso. Mas ela pode deliberadamente prestar um testemunho fraco, deixando margem para dúvidas. Creio que é assim que costumam fazer.

A esperança fez o coração de Ralph palpitar.

- Eu me pergunto se ela consentiria.

O menino trouxe um punhado de lenha, e ajoelhou-se diante da lareira para acender o fogo. Merthin indagou, pensativo:

- Quanto dinheiro você pode oferecer a Annet?

- Tenho vinte florins.

Isso eqüivalia a três libras de pennies de prata ingleses. Merthin passou a mão pelos cabelos ruivos desgrenhados.

- Não é muita coisa.

- É muito para uma camponesa. Por outro lado, sua família é rica, para camponeses.

- Wigleigh não proporciona muito dinheiro?

- Tive de comprar uma armadura. Quando você é um cavaleiro, precisa estar preparado para a guerra.

- Eu poderia lhe emprestar dinheiro.

- Quanto você tem?

- Treze libras.

Ralph se sentiu tão espantado que por um momento esqueceu seus problemas.

- Onde conseguiu tanto dinheiro? Merthin ficou um pouco ressentido.

- Trabalho muito e sou bem pago.

- Mas foi despedido da função de mestre construtor da ponte.

- Tenho muitos outros trabalhos. E alugo terrenos na ilha do Leproso. Ralph estava indignado.

- Então um carpinteiro é mais rico do que um lorde!

- Sorte sua, no final das contas. Quanto você acha que Annet vai querer? Ralph pensou de novo em seu problema, e voltou a ficar desanimado.

- A decisão não será dela, mas de Wulfric Ele é o cabeça de tudo isso.

- Eu sei. - Merthin passara bastante tempo em Wigleigh, enquanto construía o moinho de fulling, e sabia que Wulfric só casara com Gwenda depois que fora rejeitado por Annet. - Vamos conversar com ele.

Ralph achava que seria em vão, mas também nada tinha a perder.

Saíram para um dia cinza e desolado, encolhendo-se dentro dos mantos contra o vento gelado de fevereiro. Atravessaram o mercado e entraram na Bell, onde as pessoas de Wigleigh estavam hospedadas... as despesas pagas, Ralph presumia, por lorde William, sem cuja ajuda o processo não seria iniciado. Mas Ralph não tinha a menor dúvida de que Philippa, a esposa sensual e insidiosa de William, era sua verdadeira inimiga. Ela parecia odiá-lo, muito embora - ou talvez por causa disso - Ralph a achasse atraente, fascinante.

Wulfric já acordara, e encontraram-no comendo mingau com bacon. Quando viu Ralph, ele se levantou, com uma expressão sombria.

Ralph estendeu a mão para o cabo da espada, pronto para lutar. Mas Merthin adiantou-se, estendendo as mãos abertas à sua frente, num gesto conciliador.

- Vim como amigo, Wulfric. Não perca o controle, ou acabará em julgamento no lugar de meu irmão.

Wulfric permaneceu de pé, as mãos nos lados do corpo. Ralph ficou desapontado; a agonia do suspense seria atenuada por uma luta. Wulfric cuspiu no chão um pedaço de casca de bacon, engoliu o resto, e perguntou:

- O que vocês querem, se não vieram provocar uma encrenca?

- Queremos fazer um acordo. Ralph está disposto a pagar a Annet dez libras como compensação pelo que fez.

Ralph se surpreendeu com a quantia. Merthin teria de pagar a maior parte... mas não demonstrara a menor hesitação.

- Annet não pode retirar a acusação... não é permitido - disse Wulfric

- Mas ela pode alterar seu depoimento. Se dissesse que a princípio consentiu, depois mudou de idéia, quando já era tarde demais, o júri não condenaria Ralph.

Ralph observava o rosto de Wulfric na maior ansiedade, à procura de um sinal de boa vontade. Mas a expressão permaneceu impassível e ele disse:

- Quer dizer que estão oferecendo um suborno para Annet cometer perjúrio? Ralph começou a se desesperar. Podia perceber que Wulfric não queria que Annet recebesse dinheiro. A vingança era seu objetivo, não a compensação. Ele queria um enforcamento. Merthin insistiu:

- Estou lhe oferecendo um tipo diferente de justiça.

- Está tentando livrar seu irmão de uma situação crítica.

- Você não faria a mesma coisa? Já teve um irmão.

Ralph recordou que o irmão de Wulfric morrera junto com os pais, quando a ponte desabara. Merthin acrescentou:

- Não tentaria salvar sua vida... mesmo que ele tivesse feito alguma coisa errada?

Wulfric se mostrou surpreso por esse apelo ao sentimento de família. Era evidente que nunca lhe ocorrera pensar em Ralph como alguém que tinha uma família que o amava. Mas ele se recuperou depois de um momento e argumentou:

- Meu irmão David nunca teria feito o que Ralph fez.

- Claro - concordou Merthin, apaziguador. - Mesmo assim, você não pode me culpar por querer encontrar uma maneira de salvar Ralph, ainda mais se puder fazer isso sem cometer uma injustiça com Annet.

Ralph admirava a maneira suave com que o irmão falava. Merthin era capaz de persuadir um passarinho a sair de uma árvore, pensou ele. Só que Wulfric não se deixava persuadir com facilidade.

- Os aldeões querem ver Ralph pelas costas. Têm medo de que ele possa fazer a mesma coisa de novo.

Merthin tratou de se esquivar desse aspecto.

- Talvez você deva transmitir a oferta a Annet. A decisão deve ser dela, é claro.

Wulfric pensou por um momento.

- Como poderíamos ter certeza de que você pagaria?

O coração de Ralph bateu mais depressa. Wulfric começava a ceder. Merthin respondeu:

- Entregaremos o dinheiro a Caris Wooler antes do julgamento. Ela pagará a Annet depois que Ralph for declarado inocente. Você confia em Caris, e nós também.

Wulfric acenou com a cabeça.

- Como você disse, a decisão não é minha. Falarei com Annet.

Ele subiu para o segundo andar. Merthin deixou escapar um longo suspiro.

- Pelos céus, aí está um homem furioso.

- Mas você conseguiu convencê-lo - disse Ralph, com evidente admiração.

- Ele só concordou em transmitir uma mensagem.

Os dois sentaram à mesa que Wulfric desocupara. Um ajudante de cozinha perguntou se queriam comer alguma coisa, mas ambos recusaram. Havia muittos hóspedes ali, pedindo presunto, queijo e cerveja. As estalagens estavam apinhadas de pessoas que vinham para as audiências do tribunal. A menos que tivessem uma boa desculpa, todos os cavaleiros do condado eram obrigados a comparecer, assim como a maioria dos outros homens proeminentes: os clérigos mais importantes, mercadores ricos, e qualquer um com uma renda superior a quarenta libras por ano. Lorde William, o prior Godwyn e Edmund Wooler sempre vinham. O pai de Ralph e Merthin, Sir Gerald, era um freqüentador regular antes de cair em desgraça. Tinham de se oferecer como jurados e tratar de outros assuntos, como o pagamento de tributos e a eleição dos Membros do Parlamento. Além disso, havia vários acusados, vítimas, testemunhas e fiadores. As audiências de um tribunal sempre traziam muitos negócios às estalagens de uma cidade.

A espera foi se prolongando. Ralph perguntou:

- O que você acha que estão discutindo lá em cima?

- Annet pode estar propensa a aceitar o dinheiro. O pai a apoiaria nesse ponto, talvez o marido também, Billy Howard. Mas Wulfric é do tipo que acha que dizer a verdade é mais importante do que o dinheiro. Sua esposa, Gwenda, o apoiará por lealdade; e o padre Gaspard fará a mesma coisa por princípio. Mais importante ainda, eles terão de consultar lorde William, que fará o que lady Philippa quiser. E odeia você, por alguma razão. Por outro lado, é mais provável que uma mulher opte pela conciliação em vez da confrontação.

- Então o resultado pode ser qualquer um.

- Isso mesmo.

Os fregueses da estalagem terminaram de comer e começaram a sair, atravessando a praça a caminho da Courthouse Inn, onde a sessão seria realizada. Muito em breve seria tarde demais. Wulfric finalmente voltou.

- Ela disse não - anunciou ele, sem qualquer preâmbulo, virando-se em seguida.

- Ei, espere um pouco!

Wulfric não deu atenção ao apelo de Merthin; tornou a subir a escada, desapareceu num instante. Ralph praguejou. Por um momento, acalentara a esperança de uma salvação. Agora, estava outra vez nas mãos do júri.

Ele ouviu o som de uma sineta sendo vigorosamente sacudida lá fora. Um assistente do xerife convocava todos os envolvidos a comparecerem ao tribunal. Merthin levantou-se. Relutante, Ralph seguiu o exemplo.

Voltaram ao prédio que servia como tribunal e foram para a sala grande nos fundos. No outro lado ficava a ”bancada” do juiz, em cima de uma plataforma, Embora sempre chamada de bancada, era na verdade uma cadeira de madeira, feita como um trono. O juiz ainda não sentara, mas seu escrivão já se instalara em uma mesa na frente da plataforma, e lia um manuscrito.

Havia dois bancos compridos para os jurados num lado. Não havia nenhum outro lugar para sentar na sala: todos os outros ficariam de pé, onde quisessem. A ordem era mantida pelo poder da justiça de condenação imediata de qualquer um que se comportasse de maneira indevida: não havia necessidade de julgamento para um crime que o próprio juiz testemunhara. Ralph avistou Alan Fernhill, com uma expressão apavorada, e foi se postar ao seu lado, sem dizer nada.

Ralph começou a pensar que nunca deveria ter vindo. Poderia ter inventado uma desculpa: doença, um mal-entendido sobre datas, um cavalo estropiado na estrada. Mas isso só acarretaria um adiamento. Mais cedo ou mais tarde, o xerife partiria à sua procura, com assistentes armados, e o prenderia; e se tentasse escapar, seria declarado um fora-da-lei.

Mas mesmo isso era melhor do que ser enforcado. Ele especulou se deveria fugir agora. Era bem provável que pudesse lutar e sair da taverna. Mas não chegaria muito longe a pé. Seria perseguido por metade da cidade; e se não o alcançassem, os assistentes do xerife o seguiriam a cavalo. Sua fuga seria considerada como uma admissão de culpa. Na situação atual, ele ainda tinha uma possibilidade de absolvição. Annet podia se sentir intimidada demais para prestar um depoimento objetivo. Talvez as testemunhas principais não comparecessem. E poderia haver uma intervenção no último minuto do conde Roland.

O tribunal foi se enchendo: Annet, os aldeões, lorde William e lady Philippa, Edmund Wooler e Caris, o prior Godwyn e seu infame assistente Philemon. O escrivão bateu na mesa para impor silêncio, e o juiz entrou por uma porta lateral. Era Sir Guy de Bois, um grande proprietário de terras. Era calvo e tinha uma enorme barriga. Era um antigo companheiro de armas do conde, o que poderia ser um fator favorável a Ralph; mas, no outro lado da balança, era tio de lady Philippa, que poderia muito bem ter soprado palavras maldosas em seu ouvido. Ele exibia o rosto corado de um homem que acabara de fazer uma refeição de carne salgada e cerveja forte. Sentou, soltou um peido sonoro, suspirou de satisfação, e declarou:

- Muito bem, vamos começar.

O conde Roland não estava presente.

O caso de Ralph foi o primeiro: era o que mais interessava aos presentes, inclusive ao juiz. O indiciamento foi lido e Annet, chamada para prestar depoimento.

Ralph descobriu que era estranhamente difícil se concentrar. Já ouvira tudo antes, é claro, mas deveria prestar atenção para encontrar qualquer discrepância na história que Annet contaria hoje, perceber qualquer sinal de incerteza, qualquer hesitação ou vacilo. Mas sentia-se fatalista. Seus inimigos atacavam com toda força. Seu único amigo poderoso, o conde Roland, não comparecera. Só o irmão mantinha-se a seu lado, e Merthin já tentara o melhor que podia para ajudar, mas fracassara. Ralph estava condenado.

As testemunhas falaram em seguida: Wulfric, Peg, Gaspard. Ralph pensara que tinha poder absoluto sobre aquelas pessoas, mas de certa forma haviam-no vencido. O primeiro jurado, Sir Herbert Montain, fora um dos que haviam se recusado a apertar a mão de Ralph.

Ele fez perguntas que pareciam ter a intenção de enfatizar o horror do crime: A dor foi intensa? Houve muito sangue? Ela gritara?

Quando chegou sua vez de falar, Ralph contou a história que fora rejeitada pelo júri de indiciamento. Falou em voz baixa, tropeçando nas palavras. Alan Fernhill saiu-se melhor, dizendo com firmeza que Annet se mostrava ansiosa em deitar com Ralph, e que os dois amantes haviam lhe pedido para sumir, enquanto desfrutavam os favores um do outro, ao lado do córrego. Mas o júri não acreditou nele: Ralph pôde perceber por suas expressões. Começou a se sentir quase entediado com o julgamento, desejando que acabassem logo com aquilo, e que seu destino fosse sacramentado.

Enquanto Alan recuava, Ralph percebeu que um novo vulto surgia junto de seu ombro. Uma voz baixa lhe disse:

- Preste atenção.

Ralph olhou para trás e deparou-se com o padre Jerome, o secretário do conde; e passou-lhe pela cabeça que um tribunal como aquele não tinha poder sobre os padres, mesmo que eles cometessem crimes.

O juiz virou-se para o júri e pediu o veredicto.

Padre Jerome murmurou:

- Seus cavalos estão lá fora, selados e prontos para partir. Ralph ficou paralisado. Teria ouvido direito? Virou-se e indagou:

- Como?

- Corram para pegá-los.

Ralph olhou para trás. Uma centena de homens barravam o caminho para a porta, muitos armados.

- Não é possível.

- Use a porta lateral.

Com uma ligeira inclinação da cabeça, Jerome indicou a porta pela qual o juiz entrara na sala. Ralph constatou que apenas as pessoas de Wigleigh se interpunham entre ele e aquela porta.

O primeiro jurado, Sir Herbert, levantou-se, pomposo. Ralph olhou para Alan Fernhill, parado ao seu lado. Alan ouvira tudo e se mantinha em expectativa.

- Vá agora! - sussurrou Jerome. Ralph pôs a mão na espada.

- Consideramos lorde Ralph de Wigleigh culpado de estupro - declarou o primeiro jurado.

Ralph desembainhou a espada. Brandiu-a no ar e correu para a porta.

Houve um segundo de silêncio atordoado, e depois todos gritaram ao mesmo tempo. Mas Ralph era o único homem na sala com uma arma na mão, e sabia que os outros levariam algum tempo para desembainhar suas espadas.

Só Wulfric tentou detê-lo, avançando para seu caminho, temerário, sem sequer parecer assustado, apenas determinado. Ralph ergueu a espada e baixou-a com toda força, querendo acertar no meio do crânio de Wulfric, com a intenção de parti-lo em dois. Mas Wulfric esquivou-se, com extrema agilidade, para trás e para o lado. Mesmo assim, a ponta da espada cortou sua face esquerda, abrindo-a da têmpora ao queixo.

Wulfric gritou em súbita agonia, levando as mãos ao rosto; e, no instante seguinte, Ralph passou por ele.

Ralph abriu a porta, saiu, e virou-se. Alan Fernhill passou por ele. O primeiro jurado vinha logo atrás de Alan, a espada erguida. Ralph experimentou um momento de pura exultação. Era assim que os problemas deveriam ser resolvidos... através de uma luta, não de uma discussão. Para ganhar ou perder, ele preferia assim.

Com um grito inebriado, ele atacou Sir Herbert. A ponta da espada tocou no peito do primeiro jurado, passando pela túnica de couro; mas o homem estava distante demais para que o golpe penetrasse entre as costelas, e apenas cortou a pele, antes de resvalar no osso. Mesmo assim, Herbert gritou - mais de medo do que de dor - e cambaleou para trás, colidindo com as pessoas que o seguiam. Ralph bateu a porta.

Descobriu-se num corredor que se estendia ao longo de todo o prédio, com uma porta que dava para a praça do mercado numa extremidade, e a porta no outro lado levando ao estábulo. Onde estavam os cavalos? Jerome dissera apenas que esperavam lá fora. Alan já corria para a porta dos fundos, e Ralph seguiu-o. Ao saírem para o pátio, o alarido lá atrás indicou que a porta da sala fora aberta e a multidão vinha em seu encalço.

Não havia sinal de seus cavalos no pátio.

Ralph parou sob a arcada que levava à frente do prédio.

E deparou-se com a cena mais acolhedora do mundo: seu cavalo de caça, Griff, selado e escarvando o solo, impaciente, ao lado de Fletch, o cavalo de dois anos de Alan. Ambos eram seguros por um cavalariço descalço, com a boca cheia de pão.

Ralph pegou as rédeas e montou. Alan fez a mesma coisa. Bateram nos flancos dos animais para partir, no momento em que a multidão do tribunal passava pela arcada. O cavalariço saiu correndo, apavorado. Os cavalos dispararam.

Alguém na multidão arremessou uma faca. Ela entrou no flanco de Griff por um centímetro e caiu, servindo apenas para estimulá-lo a correr ainda mais.

Galoparam pelas ruas, afugentando as pessoas à frente, indiferentes aos homens, mulheres, crianças e animais. Cruzaram um portão na velha muralha e passaram pelas casas suburbanas, entre hortas e pomares. Ralph olhou para trás. Não havia nenhum perseguidor à vista.

Os homens do xerife viriam atrás, é claro, mas primeiro tinham de pegar e selar seus cavalos. Ralph e Alan já se encontravam a um quilômetro e meio da praça do mercado, e seus cavalos não demonstravam o menor sinal de cansaço. Ralph foi dominado por uma profunda exultação. Cinco minutos antes aceitara a perspectiva de ser enforcado. Agora, era outra vez um homem livre!

A estrada bifurcava. Escolhendo ao acaso, Ralph seguiu para a esquerda. Mais um quilômetro e meio através dos campos e ele pôde avistar a floresta. Assim que a alcançasse, poderia deixar a trilha e desaparecer.

Mas o que faria depois?

O conde Roland foi esperto - comentou Merthin com Elizabeth Clerk. Permitiu que a justiça seguisse seu curso quase até o fim. Não subornou o juiz, nem influenciou o júri, nem intimidou as testemunhas. Também evitou uma briga com o filho, lorde William. Mas escapou da humilhação de ter um de seus homens enforcado.

- Onde está seu irmão agora?

- Não tenho a menor idéia. Não falo com ele, nem mesmo o vejo, desde aquele dia.

Os dois sentavam na cozinha de Elizabeth, na tarde de domingo. Ela fizera o jantar para Merthin: presunto cozido, com maçãs assadas e ervilhas, e uma pequena jarra de vinho que sua mãe comprara - ou talvez roubara - na estalagem em que trabalhava.

- O que vai acontecer agora? - perguntou Elizabeth.

- A sentença de morte ainda paira sobre ele. Não pode voltar a Wigleigh, nem aparecer em Kingsbridge, sem ser preso. Para todos os efeitos, ele se declarou um fora-da-lei.

- E não há nada que ele possa fazer?

- Pode obter um perdão do rei... mas isso custa uma fortuna, muito mais dinheiro do que ele ou eu podemos levantar.

- E como você se sente em relação a ele? Merthin estremeceu.

- Ralph merece punição pelo que fez, é claro. Mesmo assim, não posso querer que ele seja enforcado. E torço para que esteja bem, onde quer que se encontre.

Ele relatara a história do julgamento de Ralph muitas vezes nos últimos dias, mas Elizabeth fizera as perguntas mais perceptivas. Era inteligente e compreensiva. E passou pela cabeça de Merthin que não seria muito difícil passar todas as tardes de domingo daquela maneira.

A mãe dela, Sairy, cochilava junto ao fogo, como sempre. Mas abriu os olhos de repente e exclamou:

- Por minha alma! Esqueci o pastelão! - Ela levantou-se, alisando os cabelos grisalhos desgrenhados. - Prometi que pediria a Betty Baxter para fazer um pastelão de presunto e ovos para a guilda dos curtidores de couro. Vão realizar seu jantar antes da Quaresma na Bell amanhã.

Ela ajeitou um manto em torno dos ombros e saiu. Os dois quase nunca ficavam a sós, e Merthin sentiu-se um pouco embaraçado. Mas Elizabeth parecia bastante relaxada.

- O que você pretende fazer agora que não trabalha mais na ponte? - indagou ela.

- Estou construindo uma casa para Dick Brewer, entre outras coisas. Dick está prestes a se aposentar e entregar o negócio ao filho. Mas diz que nunca vai conseguir parar de trabalhar se continuar a morar na Copper. Por isso, quer uma casa com um jardim fora dos muros da cidade velha.

- É aquele prédio em construção depois de Lovers’ Field?

- Isso mesmo. Será a maior casa de Kingsbridge.

- Nunca falta dinheiro a um cervejeiro.

- Gostaria de ver?

- O local?

- A casa. Ainda não está pronta, mas já tem quatro paredes e um teto.

- Agora?

- Ainda resta uma hora de claridade do dia.

Elizabeth hesitou, como se pudesse ter outros planos, mas acabou aceitando:

- Eu adoraria.

Os dois vestiram mantos grossos, com capuz, e saíram. Era o primeiro dia de março. Flocos de neve perseguiram-nos ao longo da rua principal. Pegaram a barcaça para o outro lado do rio.

Apesar dos altos e baixos do negócio de lã, a cidade parecia crescer um pouco a cada ano. O priorado convertia mais e mais de seus pastos e pomares em terrenos para locação. Merthin calculava que devia haver pelo menos cinqüenta habitações que não existiam quando ele chegara em Kingsbridge, aos doze anos de idade.

A nova casa de Dick Brewer era uma estrutura de dois andares, afastada da estrada. Como ainda não tinha janelas e portas, as aberturas nas paredes eram cobertas temporariamente por armações de madeira com juncos trançados. A entrada da frente estava bloqueada dessa maneira, mas Merthin levou Elizabeth para os fundos, onde havia uma porta de madeira provisória, com uma tranca.

Jimmie, o assistente de Merthin de dezesseis anos, estava na cozinha, protegendo a casa em construção contra os ladrões. Era um garoto supersticioso, sempre fazendo o sinal-da-cruz e jogando sal para trás, por cima do ombro. Sentava num banco, na frente de um fogo alto, com uma expressão ansiosa.

- Olá, mestre. Agora que está aqui, posso sair para buscar meu almoço? Lol Turner deveria trazer, mas ainda não apareceu.

- Só quero que volte antes do escurecer.

- Obrigado.

Jimmie saiu apressado. Merthin entrou na casa.

- Há quatro cômodos aqui embaixo. Elizabeth ficou incrédula.

- Para que eles precisam de tudo isso?

- Cozinha, sala de visita, sala de jantar e vestíbulo.

Ainda não havia uma escada, mas Merthin subiu para o segundo andar por uma escada de mão. Elizabeth seguiu-o.

- Quatro quartos - informou Merthin, lá em cima.

- Quem vai morar aqui?

- Dick e a esposa, o filho Danny e sua esposa, com a filha deles, que provavelmente não vai permanecer solteira para sempre.

A maioria das famílias de Kingsbridge vivia em um único quarto, todos dormindo no chão, lado a lado: pais, crianças, avós, parentes afins. Elizabeth comentou:

- Esta casa tem mais quartos do que um palácio!

Era verdade. Um nobre com um grande entourage ainda vivia em dois comodos: um quarto para ele e a esposa, um salão enorme para todos os outros. Mas Merthin já projetara várias casas para ricos mercadores de Kingsbridge, e o luxo pelo qual todos ansiavam era a privacidade. Uma nova tendência, pensou ele.

- Imagino que terá vidro nas janelas - disse Elizabeth.

- Claro.

Era outra tendência. Merthin podia se lembrar do tempo em que não havia vidraceiro em Kingsbridge, apenas um itinerante, que aparecia uma ou duas vezes por ano. Agora a cidade tinha um vidraceiro residente.

Desceram para o primeiro andar. Elizabeth sentou no banco que Jimmie ocupava, na frente do fogo, e esquentou as mãos. Merthin sentou ao seu lado.

- Um dia ainda construirei uma casa assim para mim - comentou ele. - Com um jardim grande e árvores frutíferas.

Para sua surpresa, Elizabeth encostou a cabeça em seu ombro e murmurou:

- Um lindo sonho...

Os dois ficaram olhando para o fogo. Os cabelos de Elizabeth faziam cócegas no rosto de Merthin. Depois de um momento, ela pôs a mão em seu joelho. No silêncio, ele podia ouvir a respiração de Elizabeth e a sua, o crepitar do fogo.

- Em seu sonho, quem está na casa? - indagou ela.

- Não sei.

- Típico de um homem. Não posso ver minha casa, mas sei quem está lá dentro: um marido, algumas crianças, minha mãe, um parente idoso de meu marido, e três empregadas.

- Homens e mulheres têm sonhos diferentes. Elizabeth levantou a cabeça, fitou-o, e tocou em seu rosto.

- E quando se juntam os dois, você tem uma vida.

Ela beijou-o na boca. Merthin fechou os olhos. Lembrava o suave contato daqueles lábios, de anos passados. A boca de Elizabeth prolongou o beijo por um momento, antes de se retirar.

Merthin sentia-se estranhamente desligado, como se estivesse observando a si mesmo de um canto da cozinha. Não sabia como se sentia. Fitou-a e constatou mais uma vez como ela era adorável. Perguntou-se o que havia de tão admirável em Elizabeth, e compreendeu no mesmo instante que era a harmonia de tudo, como as partes de uma bela igreja. A boca, o queixo, as faces e a testa eram exatamente como ele desenharia se fosse Deus criando uma mulher.

Ela também fitou-o, com seus serenos olhos azuis. Abriu o manto e murmurou:

- Quero que me acaricie.

Merthin passou a mão pelos seios, gentilmente. Lembrava de ter feito isso também. Os seios eram firmes e cheios contra sua palma. O mamilo endureceu ao contato, contradizendo o comportamento sereno.

- Quero estar na casa dos seus sonhos - sussurrou ela, tornando a beijá-lo. Ela não agira por um súbito impulso; Elizabeth nunca fazia isso. Vinha pensando sobre aquilo havia bastante tempo. Enquanto Merthin visitava-a pelo prazer de sua companhia, sem pensar mais adiante, ela já imaginava a vida conjugal.

Talvez tivesse até planejado aquela cena. Isso explicaria por que a mãe se retirara de repente, com a desculpa de um pastelão. Merthin quase estragara o plano ao propor a visita à casa de Dick Brewer, mas ela improvisara.

Não havia nada de errado com aquele apelo emocional. Ela era uma pessoa racional, uma das coisas que Merthin apreciava. Sabia que, apesar disso, as paixões ardiam por baixo da superfície.

O que parecia errado era a falta de sentimento dele. Não costumava ser frio e racional em relação às mulheres... muito pelo contrário. Quando se apaixonara, o amor o dominara, fazendo-o sentir raiva e ressentimento, além de desejo e ternura. Agora, sentia-se interessado, lisonjeado e excitado, mas não fora de controle.

Elizabeth sentiu que o beijo dele era morno e recuou. Ele viu o fantasma de uma emoção naquele rosto, reprimida com vigor; e compreendeu que havia medo por trás da máscara. Ela era tão contida, por natureza, que devia ter lhe custado muito ser ousada àquele ponto, e agora temia a rejeição.

Ela levantou-se e ergueu a saia. Tinha pernas compridas e bem torneadas, cobertas por cabelos louros quase invisíveis. Embora fosse alta e esguia, o corpo se alargava nos quadris, em fascinantes contornos femininos. O olhar de Merthin perdurou desamparado no delta de seu sexo. Os cabelos ali eram tão claros que dava para ver a suave saliência dos lábios e a delicada linha a separá-los.

Merthin levantou o rosto para fitá-la nos olhos, e percebeu o desespero ali. Ela tentara tudo, e descobria agora que não funcionara.

- Sinto muito - balbuciou Merthin. Ela baixou a saia.

- Eu acho... Elizabeth interrompeu-o:

- Não fale. - O desejo dela começava a se transformar em raiva. - Qualquer coisa que você disser agora será uma mentira.

Ela tinha razão. Merthin pensara em dizer alguma meia verdade tranqüilizadora: não estava se sentindo bem ou Jimmie poderia voltar a qualquer momento. Mas Elizabeth não queria ser apaziguada. Fora rejeitada, e desculpas ineficazes só fariam com que sentisse que era tratada com condescendência.

Fitou-o atentamente, a dor lutando contra a raiva no campo de batalha de seu lindo rosto. Lágrimas de frustração surgiram em seus olhos.

- Por que não?

Mas quando Merthin abriu a boca para responder, ela acrescentou:

- Não responda! Não seria a verdade!

E outra vez ela tinha razão. Foi até a porta, mas virou-se antes de sair.

- É Caris. - O rosto exibia toda a emoção. - Aquela bruxa lançou um encantamento em você. Não quer casar com você, mas também não permite que outra case. Ela é má!

Elizabeth abriu a porta e saiu. Ele ouviu um soluço. Olhou para o fogo e murmurou:

- Oh, que inferno...

- Há uma coisa que preciso lhe explicar - disse Merthin a Edmund, uma semana depois, quando deixavam a catedral.

O rosto de Edmund assumiu uma expressão um pouco divertida. Merthin já a conhecia, e sabia que dizia: Sou trinta anos mais velho. Você é que deveria me escutar, não me dar lições; mas gosto de seu entusiasmo juvenil. Além disso, não estou tão velho que não possa aprender alguma coisa.

- Está bem - disse ele. - Mas explique tudo na Bell. Quero tomar um vinho. Entraram na taverna e foram sentar perto do fogo. A mãe de Elizabeth trouxe o vinho, mas empinou o nariz e não disse nada.

- Sairy está zangada com você ou comigo? - perguntou Edmund.

- Isso não importa. Já esteve alguma vez na beira do oceano, os pés descalços na areia, e sentiu as ondas passarem por cima dos dedos?

- Claro. Todas as crianças brincam na água. Até eu já fui menino um dia.

- Lembra como a ação das ondas, indo e vindo, parece remover a areia de baixo das beiras dos pés, formando um pequeno canal?

- Lembro, sim. Já se passou muito tempo, mas creio que compreendo o que está dizendo.

- Foi o que aconteceu com a velha ponte de madeira. A correnteza do rio levou a terra por baixo da pilastra central.

- Como sabe?

- Pelo padrão das rachaduras na madeira pouco antes do desabamento.

- Aonde está querendo chegar?

- O rio não mudou. Vai solapar a nova ponte como fez com a antiga... a menos que possamos prevenir.

- Como?

- Em meu projeto, indiquei uma pilha de pedras grandes e soltas em torno de cada pilastra da nova ponte. Vai bloquear a correnteza e reduzir seu efeito. É a diferença entre sentir cócegas de um fio solto e ser açoitado por uma corda trançada.

- Como sabe?

- Conversei com Buonaventura a respeito logo depois que a ponte desabou, antes de sua volta para Londres. Ele disse que já havia visto essas pilhas de pedras em torno de pilastras de pontes na Itália, e muitas vezes especulara para que serviam.

- Fascinante. Está me dizendo isso como um esclarecimento geral ou com um propósito mais específico?

- Pessoas como Godwyn e Elfric não compreendem isso, e não me dariam atenção se eu lhes dissesse. É apenas uma precaução para o caso de Elfric não querer seguir meu projeto exatamente. Quero ter certeza de que pelo menos uma pessoa na cidade saberá para que serve a pilha de pedras.

- Mas uma pessoa já sabe... você.

- Estou deixando Kingsbridge.

A revelação foi um choque para Edmund.

- Você vai embora?

Caris apareceu nesse momento.

- Não demore muito, papai. Tia Petranilla está aprontando o almoço. Quer almoçar conosco, Merthin?

Edmund anunciou:

- Merthin está deixando Kingsbridge. Caris empalideceu.

Ao ver sua reação, Merthin sentiu um ímpeto de satisfação. Ela rejeitara-o, mas ficava consternada ao saber que ele da embora. No instante seguinte, Merthin envergonhou-se da emoção indigna. Gostava demais de Caris para querer que ela sofresse. De qualquer forma, sabia que se sentiria pior se ela recebesse a notícia com a maior serenidade.

- Por quê?

- Não há nada para mim aqui. O que vou construir? Não posso trabalhar na ponte. E a cidade já tem uma catedral. Não quero fazer apenas casas de mercadores pelo resto de minha vida.

- Para onde vai? - perguntou Caris, a voz contida.

- Florença. Sempre desejei conhecer os prédios da Itália. Pedirei cartas de apresentação a Buonaventura Caroli. Posso até viajar com uma de suas cargas.

- Mas você tem uma propriedade aqui em Kingsbridge.

- Eu queria mesmo conversar com você sobre isso. Poderia administrá-la para mim? Cobraria os aluguéis, tiraria sua comissão, e entregaria o saldo a Buonaventura. Ele pode transferir o dinheiro para Florença por carta.

- Não quero comissão nenhuma - murmurou Caris, a voz rouca. Merthin deu de ombros.

- É trabalho, e você deve receber um pagamento por isso.

- Como pode ser tão frio? - A voz de Caris era agora estridente. Várias pessoas na Bell olharam. Ela não deu atenção. - Vai deixar todos os seus amigos!

- Não estou sendo frio. Os amigos são maravilhosos. Mas eu gostaria de casar.

Edmund interveio:

- Muitas garotas em Kingsbridge casariam com você. Não é bonito, mas é próspero, e isso vale mais do que a boa aparência.

Merthin sorriu, irônico. Edmund podia ser franco de uma maneira desconcertante. Caris herdara essa característica.

- Por algum tempo, pensei que poderia casar com Elizabeth Clerk - disse ele.

- Também pensei que esse casamento sairia - acrescentou Edmund.

- Ela é fria e antipática - protestou Caris.

- Não é, não. Mas quando ela me pediu, recuei.

- Ahn... então é por isso que ela anda tão mal-humorada ultimamente comentou Caris.

- E por isso sua mãe não olha para Merthin - lembrou Edmund.

- Por que você a recusou? - perguntou Caris.

- Só há uma mulher em Kingsbridge com quem eu poderia casar... e ela não quer ser a esposa de ninguém.

- Mas ela não quer perdê-lo. Merthin ficou furioso.

- O que devo fazer? - Sua voz era alta e as pessoas ao redor interromperam suas conversas para ouvir. - Godwyn me dispensou, você me rejeitou, e meu irmão é um fora-da-lei. Em nome de Deus, por que eu deveria continuar aqui?

- Não quero que você vá embora.

- Isso não é suficiente!

Havia silêncio na sala agora. Todos ali os conheciam: o dono da taverna, Paul Bell, e sua filha cheia de curvas, Bessie; a empregada Sairy, de cabelos grisalhos, mãe de Elizabeth; Bill Watkin, que se recusara a empregar Merthin; Edward Butcher, o notório adúltero; Jake Chepstow, o locatário de Merthin; frei Murdo; Matthew Barber; e Mark Webber. Todos conheciam a história de Merthin e Caris, e todos estavam fascinados pela discussão.

Merthin não se importava. Que todos escutassem. Ele disse, cada vez mais furioso:

- Não passarei a vida atrás de você, como seu cachorro Scrap, suplicando por atenção. Serei seu marido, mas não seu cachorrinho de estimação.

- Está bem - murmurou ela, num fio de voz.

A súbita mudança de tom surpreendeu-o; e ele não tinha certeza do que a resposta significava.

-Está bem o quê?

- Casarei com você.

Por um momento, Merthin sentiu-se atordoado demais para responder. Depois indagou, desconfiado:

- Fala sério?

Caris fitou-o nos olhos nesse instante, com um sorriso tímido.

- Claro que falo. Basta me pedir.

- Está bem. - Merthin respirou fundo. - Quer casar comigo?

- Quero. Edmund gritou:

- Hurra!

Todos na taverna aplaudiram. Merthin e Caris começaram a rir.

- Quer mesmo? - insistiu ele.

- Quero.

Eles se beijaram. Merthin abraçou-a e apertou-a com toda a força de que era capaz. Quando a largou, viu que ela chorava.

- Um vinho para a minha noiva! - gritou ele. - Mais do que isso... um barril, para que todos possam beber à nossa saúde.

- É para já! - disse Paul Bell. E todos aplaudiram de novo.

Uma semana depois, Elizabeth Clerk tornou-se uma noviça.

Ralph e Alan estavam desesperados. Viviam de carne de veado e água fresca, e Ralph descobriu-se a sonhar com alimentos que normalmente desprezaria: cebolas, maçãs, ovos, leite. Dormiam em lugares diferentes todas as noites, sempre acendendo uma fogueira. Tinham bons mantos para aquecê-los, mas isso não era suficiente ao ar livre, e todas as manhãs acordavam tremendo de frio. Roubavam qualquer pessoa vulnerável que encontravam na estrada, mas a maior parte do roubo era insignificante ou inútil: roupas esfarrapadas, forragem para animais e dinheiro, que não serviria para comprar nada na floresta.

Houve uma ocasião em que roubaram um enorme barril de vinho. Rolaramno pela floresta por cem metros, beberam tanto quanto podiam, e pegaram no sono. Quando acordaram, de ressaca e mal-humorados, compreenderam que não poderiam levar o barril, ainda com três quartos do vinho, e por isso deixaram-no ali.

Ralph pensava nostálgico em sua vida anterior: o solar, o fogo aceso na lareira, os servos, as refeições. Em seus momentos realistas, no entanto, sabia que também não queria essa vida. Era monótona demais. Provavelmente fora por isso que estuprara a jovem. Precisava de excitamento.

Depois de um mês na floresta, Ralph decidiu que tinham de se organizar. Precisavam de uma base em que pudessem construir alguma forma de abrigo e guardar comida. E tinham de planejar os assaltos para que os itens roubados fossem realmente valiosos para eles, como roupas quentes e alimentos frescos.

Mais ou menos na ocasião em que chegava a essas conclusões, suas andanças levaram-nos a uma série de colinas a alguns quilômetros de Kingsbridge. Ralph recordou que as encostas das colinas, desoladas e vazias no inverno, eram usadas como pastagem de verão pelos pastores, que haviam construído abrigos de pedras na área. Quando adolescentes, ele e Merthin haviam descoberto essas toscas construções enquanto caçavam. Acendiam fogueiras ali, para cozinhar os coelhos e perdizes que abatiam com suas flechas. Já naquele tempo, recordou Ralph, ele ansiava pela emoção da caçada: perseguir e abater uma criatura aterrorizada, liquidá-la com uma faca ou um porrete... o sentimento extasiado de poder que experimentava ao tirar uma vida.

Ninguém apareceria na região até que a relva da nova estação estivesse crescida e densa. O dia tradicional era o domingo de Pentecostes, quando também ocorria a abertura da Feira do Velocino. Ainda faltavam dois meses para isso. Ralph escolheu um abrigo que parecia mais resistente, e se instalaram ali. Não havia portas ou janelas, apenas uma entrada baixa, com um buraco no teto para a saída da fumaça. Acenderam uma fogueira e dormiram aquecidos, pela primeira vez em um mês.

A proximidade com Kingsbridge proporcionou a Ralph outra idéia brilhante. O melhor momento para assaltar as pessoas, ele refletiu, era quando estivessem a caminho do mercado. Levavam queijos, garrafas com sidra, mel, bolos de aveia: todas as coisas que eram produzidas pelos aldeões e necessárias para os habitantes da cidade... e para os homens que viviam à margem da lei.

O mercado de Kingsbridge era num domingo. Ralph perdera a noção dos dias da semana, mas descobriu ao perguntar a um frade itinerante, antes de lhe roubar três shillings e um ganso. No sábado seguinte, ele e Alan armaram acampamento não muito longe da estrada de Kingsbridge. Passaram a noite acordados, ao lado da fogueira. Ao amanhecer, foram até a beira da estrada e ficaram esperando.

O primeiro grupo a aparecer trazia uma carga de forragem. Kingsbridge tinha centenas de cavalos e bem pouco capim; por isso, a cidade precisava constantemente de cargas de feno. Só que isso não tinha qualquer utilidade para Ralph: Griff e Fletch tinham pastagem de sobra na floresta.

Ralph não se sentia entediado na espera. Preparar uma emboscada era como espiar uma mulher se despir. Quanto maior a expectativa, mais intensa a emoção

Pouco depois eles ouviram o canto. Os cabelos na nuca de Ralph se arrepiaram: parecia um coro de anjos. A manhã era enevoada; e quando ele os avistou, os cantores pareciam ter halos. Alan, obviamente pensando da mesma maneira que Ralph, até deixou escapar um soluço de medo. Mas era apenas o sol fraco do inverno iluminando a neblina, por trás dos viajantes. Eram camponesas, cada uma carregando um cesto com ovos... não valia a pena roubar. Ralph deixou-as passar, sem revelar sua presença.

O sol começou a subir pelo céu. Ralph ficou preocupado, pensando que dali a pouco a estrada estaria tão movimentada que seria difícil roubar alguém. Apareceu uma família: um homem e uma mulher na casa dos trinta anos, com dois filhos adolescentes, um rapaz e uma moça. Eram vagamente familiares: sem dúvida ele os vira no mercado de Kingsbridge durante os anos em que vivera ali. O marido carregava nas costas um enorme cesto com legumes; a esposa equilibrava no ombro uma vara comprida, com várias galinhas vivas penduradas, todas amarradas; o rapaz levava no ombro um presunto imenso; e a moça carregava um pote que devia conter manteiga salgada. Ralph ficou com água na boca ao pensar em comer o presunto.

Seu excitamento aumentou, e ele acenou com a cabeça para Alan.

Quando a família chegou perto, Ralph e Alan saíram correndo de trás das moitas.

A mulher soltou um berro estridente e o rapaz gritou de medo.

O homem tentou se desvencilhar do cesto. Mas antes que caísse de seus ombros, Ralph atacou-o, a espada penetrando no abdômen do homem, por baixo das costelas, e subindo em seguida. O grito de agonia foi interrompido abruptamente quando a ponta da espada alcançou o coração.

Alan foi até a mulher e cortou quase todo o pescoço dela, e então o sangue jorrou de sua garganta num abrupto jato vermelho.

Exultante, Ralph virou-se para o filho. O rapaz reagiu depressa: já largara o presunto e empunhava uma faca. Enquanto a espada de Ralph ainda subia, o rapaz avançou e golpeou-o. Foi um golpe de amador, desferido ao acaso, sem possibilidade de causar maiores danos. A faca errou por completo o peito de Ralph, mas a ponta atingiu a parte superior do braço direito. A dor súbita e intensa obrigou-o a largar a espada. O rapaz virou-se e correu, na direção de Kingsbridge.

Ralph olhou para Alan. Antes de se virar para a moça, Alan liquidou a mãe. O atraso quase lhe custou a vida. Ralph viu a moça jogar o pote de manteiga em Alan. Por precisão ou sorte, o pote acertou-o em cheio atrás da cabeça. Alan caiu, como se tivesse sido atingido por uma maça.

No instante seguinte, ela saiu correndo atrás do irmão.

Ralph inclinou-se, pegou sua espada com a mão esquerda, e partiu em perseguição.

Eles eram jovens e velozes, mas ele tinha pernas compridas. Não demorou a alcançá-los. O rapaz olhou para trás e viu Ralph se aproximando. Para espanto de Ralph, o rapaz parou, virou-se, e veio correndo em sua direção, gritando, a faca erguida.

Ralph parou de correr e levantou a espada. O rapaz avançou... até que parou também, fora do alcance da espada. Ralph adiantou-se e desferiu um golpe, mas era uma finta. O rapaz esquivou-se; e depois, pensando que Ralph estava desequilibrado, adiantou-se para apunhalá-lo de perto. Mas era exatamente isso o que Ralph esperava. Recuou com a maior agilidade, ergueu-se na ponta dos pés, e enfiou a espada na garganta do rapaz, empurrando-a, até que ela saiu pelo outro lado.

O rapaz caiu morto. Ralph retirou a espada, satisfeito com a precisão e eficiência do golpe fatal.

Levantou os olhos para ver a moça desaparecendo na distância. Compreendeu no mesmo instante que não teria a menor possibilidade de alcançá-la a pé; e, quando voltasse para pegar seu cavalo, ela já teria chegado em Kingsbridge.

Ele virou-se e olhou para trás. Surpreso, descobriu que Alan se levantava, com alguma dificuldade.

- Pensei que ela o tinha matado - disse Ralph.

Ele limpou a espada na túnica do rapaz morto, meteu-a na bainha e comprimiu com a mão esquerda o ferimento no braço direito, na tentativa de estancar a hemorragia.

- Minha cabeça dói como Satã - resmungou Alan. - Matou todo mundo?

- A garota escapou.

- Acha que ela nos conhecia?

- Pode me conhecer. Eu já tinha visto sua família antes.

- Neste caso, estamos marcados agora como assassinos. Ralph deu de ombros.

- E melhor ser enforcado do que morrer de fome. - Ele olhou para os três corpos. - Mesmo assim, vamos tirar esses camponeses da estrada antes que mais alguém apareça.

Com a mão esquerda, ele arrastou o homem para a beira da estrada. Alan levantou o corpo e jogou-o para trás das moitas. Fizeram a mesma coisa com a mulher e o rapaz. Ralph não tinha certeza se os cadáveres estariam ou não visíveis para quem passasse. O sangue na estrada já começara a escurecer, para a cor da lama que encharcara.

Ralph cortou um pedaço do vestido da mulher e amarrou-o em torno do ferimento no braço. Ainda doía, mas o fluxo de sangue era menor. Ele sentia a ligeira depressão que sempre se segue a uma luta, como a tristeza depois do sexo. Alan começou a recolher os despojos.

- Uma boa carga. Presunto, galinha, manteiga... - Ele deu uma olhada no cesto que o homem carregava. - ... e cebolas! Do ano passado, é claro, mas ainda boas.

- Cebolas velhas têm um gosto melhor do que nenhuma cebola. Minha mãe sempre diz isso.

Ao se abaixar para pegar o pote de manteiga que derrubara Alan, Ralph sentiu uma ponta de ferro afiada ser comprimida contra seu traseiro. Alan estava na» sua frente, lidando com as galinhas amarradas. Ralph murmurou:

-Mas quem...?

- Não se mexa - disse uma voz áspera. : Ralph nunca obedecia a instruções desse tipo. Saltou para a frente, longe da

voz, e virou-se. Seis ou sete homens haviam surgido do nada. Ele ficou aturdido, mas conseguiu desembainhar a espada, com a mão esquerda. O homem mais próximo - provavelmente aquele que o cutucara - ergueu sua espada para lutar, mas os outros preferiram disputar o butim, agarrando as galinhas e brigando pelo presunto. A espada de Alan subiu em defesa de suas galinhas, enquanto Ralph se preparava para o combate com seu antagonista. Compreendeu que outro bando fora-da-lei tentava roubá-lo. Foi dominado pela indignação: matara pessoas por aquelas coisas, e agora queriam lhe tirar tudo! Não sentia medo, apenas raiva. Atacou o oponente com a energia do protesto, apesar de ser obrigado a lutar com a mão esquerda. Foi nesse instante que uma voz autoritária interveio:

- Baixem as espadas, seus idiotas!

Todos os desconhecidos ficaram imóveis. Ralph manteve a espada de prontidão, desconfiado de um truque, e olhou na direção da voz. Viu um homem bonito, na casa dos vinte anos, com alguma coisa da nobreza. Usava roupas que pareciam dispendiosas, mas que estavam muito sujas: um manto de escarlate italiano coberto de folhas e gravetos, um rico colete de brocado com manchas que deviam ser de comida, um calção de couro marrom, todo arranhado e enlameado.

- Sempre me diverte roubar de ladrões, porque não é um crime - comentou ele.

Ralph sabia que se encontrava numa situação crítica, mas mesmo assim sentiu-se intrigado.

- Você é o homem que chamam de Tam Hiding?

- Já havia histórias sobre Tam Hiding quando eu era pequeno - respondeu o homem. - Mas de vez em quando alguém aparece para assumir o papel, como um monge personificando Lúcifer numa peça de mistério.

- Você não é o tipo comum de fora-da-lei.

- Nem você. Imagino que seja Ralph Fitzgerald. Ralph confirmou com um aceno de cabeça.

- Já tinha ouvido falar de sua fuga, e me perguntava quando o encontraria. Tam olhou para um lado e outro da estrada. - Por acaso testemunhamos sua ação. O que o fez escolher este lugar?

- Em primeiro lugar, escolhi o dia e a hora. É domingo, e a esta hora os camponeses estão levando seus produtos para o mercado em Kingsbridge, que fica no fim desta estrada.

- Boa idéia. Há dez anos que vivo à margem da lei, e nunca pensei em fazer isso. Talvez devêssemos nos aliar. Vai ou não guardar sua arma?

Ralph hesitou, mas Tam estava desarmado. Por isso, ele não podia ver nenhuma desvantagem. De qualquer forma, ele e Alan estavam em inferioridade, a tal ponto que era melhor evitar uma luta. Lentamente, ele guardou a espada.

- Assim é melhor.

Tam passou o braço pelos ombros de Ralph, que percebeu que os dois eram da mesma altura. Não eram muitos os homens tão altos quanto Ralph. Tam levou-o pela floresta, dizendo:

- Os outros trarão os despojos. Venha comigo. Temos muito o que conversar, você e eu.

Edmund bateu na mesa.

- Convoquei esta reunião de emergência da guilda da paróquia para discutir o problema dos bandidos. Mas como estou ficando velho e preguiçoso, pedi à minha filha para resumir a situação.

Caris pertencia à guilda agora, em virtude de seu sucesso como fabricante de tecido escarlate. O novo negócio salvara a fortuna de seu pai. Numerosas outras pessoas de Kingsbridge também prosperavam por causa disso, em particular a família Webber. O pai fora capaz de cumprir o compromisso de emprestar dinheiro para a construção da ponte; e na melhoria geral das circunstâncias, outros mercadores haviam feito a mesma coisa. A construção da ponte continuava num ritmo firme... agora sob a supervisão de Elfric, não de Merthin, infelizmente.

O pai tinha pouca iniciativa agora. Os momentos em que manifestava sua personalidade antiga, de perspicácia e agilidade mental, se tornavam cada vez mais raros. Caris preocupava-se com ele, mas não havia nada que pudesse fazer. Ela sentia a mesma raiva que a dominara durante a doença da mãe. Por que não havia como ajudá-lo? Ninguém compreendia o que estava errado; ninguém era capaz de sequer atribuir um nome à doença. Diziam que era velhice, mas ele ainda não tinha cinqüenta anos!

Caris rezava para que o pai vivesse para testemunhar seu casamento. Casaria com Merthin na catedral de Kingsbridge, no domingo depois da Feira do Velocino, dentro de um mês apenas. O casamento da filha do regedor da cidade seria um grande acontecimento. Haveria um banquete na casa da guilda para os cidadãos mais eminentes, e um piquenique em Lovers’ Field para centenas de outros convidados. Havia dias em que o pai passava horas planejando os cardápios e a diversão, só para esquecer tudo o que dissera e recomeçar do zero no dia seguinte.

Ela tratou de tirar isso da mente, para se concentrar no problema que esperava ser mais fácil de resolver.

- Durante o último mis houve um aumento nos ataques dos bandidos. Ocorreram quase sempre ;ios domingos, e as vítimas são invariavelmente as pessoas que trazem seus produtos para Kingsbridge.

Ela foi interrompida por Elfric:

- É o irmão de seu noivo quem está fazendo isso. Fale com Merthin, não conosco.

Caris reprimiu um ímpeto de exasperação. O marido de sua irmã nunca perdia uma oportunidade de criticá-la. Ela tinha uma noção angustiada do provável envolvimento de Ralph. Era uma causa de agonia para Merthin. E que Elfric adorava.

- Acho que é Tam Hiding - sugeriu Dick Brewer.

- Talvez sejam os dois - disse Caris. - Creio que Ralph Fitzgerald, que tem algum treinamento militar, pode ter se aliado a um bando que já existia, e deu um jeito para que eles se tornassem mais organizados e efetivos.

A gorda Betty Baxter, a padeira mais bem-sucedida da cidade, interveio:

- Quem quer que sejam, acabarão arruinando a cidade. Ninguém mais vem para o mercado.

Era um exagero, embora o comparecimento ao mercado semanal estivesse mesmo caindo de forma drástica. Os efeitos já eram sentidos por quase todos os estabelecimentos comerciais da cidade, de padarias a bordéis.

Mas essa não é a pior parte - continuou Caris. - Dentro de quatro semanas teremos a Feira do Velocino. Várias pessoas aqui investiram enormes quantias na nova ponte, que deve estar pronta para ser usada, com um leito de madeira provisório, para a abertura. A maioria depende dessa feira anual para a prosperidade. Pessoalmente, tenho um depósito cheio de caríssimo tecido escarlate para vender. Se por acaso se espalhar a notícia de que as pessoas que vierem para Kingsbridge podem ser assaltadas pelos bandidos, não teremos mais compradores.

Caris sentia-se ainda mais preocupada do que deixava transparecer. Nem ela nem o pai tinham qualquer dinheiro de sobra. Tudo fora investido na ponte ou em lã crua e tecido escarlate. A Feira do Velocino era a oportunidade de recuperar o dinheiro. Se o comparecimento fosse mínimo, enfrentariam as maiores dificuldades. Entre outras coisas, quem pagaria o casamento?

Ela não era a única pessoa preocupada. Rick Silvers, o chefe da guilda dos joalheiros, disse:

- Seria o terceiro ano ruim consecutivo. - Era um homem afetado e meticuloso, sempre vestido de forma impecável. - E acarretaria o fim para alguns dos nossos. Realizamos a metade dos negócios na Feira do Velocino.

- Acabaria com esta cidade - declarou Edmund. - Não podemos permitir que isso aconteça.

Vários outros se manifestaram. Caris, que presidia a reunião extra-oficialmente, deixou que formulassem seus protestos. Um sentimento acentuado de urgência deixaria todos predispostos a aceitarem a solução radical que ela da propor.

- O xerife de Shiring deve tomar alguma providência - disse Elfric. - Afinal, ele não é pago para manter a paz?

- Ele não pode vasculhar toda a floresta - explicou Caris. - Não tem homens suficientes para isso.

- O conde Roland tem.

Era uma pretensão inviável, mas Caris deixou a discussão prosseguir. Assim, quando propusesse sua solução, todos estariam conscientes de que não havia alternativas. Edmund respondeu a Elfric:

- O conde não vai nos ajudar... já pedi a ele.

Caris, que escrevera uma carta de Edmund para Roland, acrescentou:

- Ralph era um homem do conde... e ainda é. Já devem ter notado que os bandidos não atacam as pessoas que vão para o mercado de Shiring.

Elfric declarou, indignado:

- Aqueles camponeses de Wigleigh nunca deveriam ter apresentado uma queixa contra um homem do conde... quem eles pensam que são?

Caris já da responder, numa indignação ainda maior, quando Betty Baxter se antecipou:

- Você acha então que os lordes devem ter permissão para estuprarem quem eles quiserem?

Edmund interveio, incisivo, demonstrando um pouco de sua antiga autoridade:

- Essa é uma questão diferente. Já aconteceu, e Ralph está agora se vingando em nós. O que vamos fazer? O xerife não pode nos ajudar... e o conde não quer ajudar.

- E lorde William? - indagou Rick Silvers. - Ele tomou partido das pessoas de Wigleigh... é por sua causa que Ralph se tornou um fora-da-lei.

- Também pedi sua ajuda - informou Edmund. - Ele respondeu que não estamos em seu território.

- É esse o problema de ter o priorado como seu suserano... de que adianta um prior quando você precisa de proteção? - indagou Rick.

- É outra razão para estarmos solicitando uma carta regia de burgo - respondeu Caris. - Passaríamos a contar com a proteção real.

- Temos o nosso chefe da guarda - disse Elfric. - O que ele está fazendo? Mark Webber, que era um dos ajudantes de John Constable, declarou:

- Estamos prontos para fazer qualquer coisa que for necessária. Basta pedirem.

- Ninguém duvida de sua coragem - disse Caris. - Mas seu papel é lidar com as pessoas que causam problemas na cidade. John Constable não tem a menor experiência em caçar bandidos.

Mark, muito ligado a Caris porque dirigia seu moinho de fulling em Wigleigh, protestou com alguma irritação:

- Quem tem então?

Caris vinha esperando que a discussão chegasse a essa pergunta.

- Já que estamos falando nisso, há um soldado experiente que está disposto a nos ajudar. Tomei a liberdade de convidá-lo para vir aqui esta noite. Ele espera na capela. - Ela alteou a voz: - Thomas, pode se juntar a nós?

Thomas Langley saiu da pequena capela no final do salão. Rick Silvers murmurou, cético:

- Um monge?

- Antes de ser monge, ele era um soldado - explicou Caris. - Foi assim que perdeu o braço.

Elfric resmungou, irritado:

- Os membros da guilda deveriam ter sido consultados antes que ele fosse convidado.

Ninguém deu a menor atenção a seu protesto, Caris ficou satisfeita ao constatar: estavam interessados demais para saber o que Thomas tinha a dizer.

- Vocês precisam formar uma milícia - começou Thomas. - Pelas informações que temos, há vinte ou trinta bandidos no bando. Não são tantos assim. A maioria dos homens da cidade é capaz de usar um arco com eficiência, graças aos treinamentos nas manhãs de domingo. Cem homens, bem preparados e com um comando competente, poderiam derrotar os bandidos com a maior facilidade.

- Isso parece ótimo - disse Rick Silvers. - Mas teríamos de descobrir onde eles estão.

- Tem toda razão - respondeu Thomas. - Mas tenho certeza de que há alguém na cidade que sabe onde os bandidos podem ser encontrados.

Merthin pedira ao mercador de madeira, Jake Chepstow, que lhe trouxesse um bloco de ardósia de Gales... o maior que pudesse encontrar. Jake voltara de sua expedição a Gales para buscar madeira com um bloco fino de ardósia cinzenta, com cerca de três metros quadrados. Merthin encaixara-o numa armação de madeira e usava-o para desenhar projetos.

Naquela noite, enquanto Caris participava da reunião da guilda, Merthin estava em sua casa, na ilha do Leproso, trabalhando num mapa da ilha. Alugar terrenos na ilha para cais e depósitos era a menor de suas ambições. Previa uma rua inteira de estalagens e lojas cruzando a ilha de uma ponte a outra. Ele próprio construiria os prédios e os alugaria para mercadores empreendedores de Kingsbridge. Sentia-se animado ao pensar no futuro da cidade e imaginar os prédios e ruas de que precisaria. Era o tipo de coisa que o priorado deveria fazer se tivesse uma liderança mais competente.

O planejamento incluía uma casa nova para ele e Caris. Aquela pequena seria aconchegante quando casassem, mas logo precisariam de mais espaço, especialmente se tivessem filhos. Já reservara um terreno na praia do sul, onde teriam o ar fresco do rio. A maior parte da ilha era rochosa, mas o lugar escolhido tinha uma pequena área de solo cultivável, onde ele poderia plantar algumas árvores frutíferas. Enquanto planejava a casa, ele exultou com a imagem dos dois morando ali, dia após dia, para sempre.

Seu sonho foi interrompido por uma batida na porta. Ficou surpreso. Ninguém costumava visitar a ilha à noite... com exceção de Caris, que não bateria.

- Quem é? - perguntou ele, nervoso. Thomas Langley entrou.

- Os monges deveriam estar dormindo a esta hora - comentou Merthin.

- Godwyn não sabe que estou aqui. - Thomas olhou para a placa de ardósia.

- Você desenha com a mão esquerda?

- Esquerda ou direita, não faz diferença. Gostaria de tomar um vinho?

- Não, obrigado. Terei de me levantar para a matina dentro de poucas horas, e não quero ficar sonolento.

Merthin gostava de Thomas. Havia um vínculo entre os dois desde aquele dia, doze anos antes, em que prometera que, se Thomas morresse, levaria um padre ao lugar em que a carta fora enterrada. Mais tarde, quando haviam trabalhado juntos em reparos na catedral, Thomas sempre fora claro e objetivo em suas instruções, gentil com os aprendizes. Conseguia ser sincero em sua vocação religiosa sem ser orgulhoso: todos os homens de Deus deveriam ser assim, pensava Merthin.

Ele indicou a Thomas uma cadeira ao lado do fogo.

- O que posso fazer por você?

- Vim falar sobre seu irmão. Ele deve ser detido.

Merthin estremeceu, como se sentisse uma súbita pontada de dor.

- Se eu pudesse fazer qualquer coisa, pode ter certeza de que não hesitaria. Mas não o tenho visto; e se encontrá-lo, não sei se ele me ouvirá. Houve um tempo em que ele me procurava em busca de orientação, mas esses dias já passaram.

- Acabo de sair de uma reunião da guilda da paróquia. Pediram-me para organizar uma milícia.

- Não espere que eu participe.

- Não vim com esse propósito. - Thomas deu um sorriso irônico. - Para ser franco, seus muitos talentos espantosos não incluem as habilidades militares.

Merthin acenou com a cabeça, pesaroso.

- Obrigado.

- Mas há uma coisa em que poderia me ajudar, se quisesse. Merthin sentiu-se apreensivo.

- O que é?

- Os bandidos devem ter um esconderijo em algum lugar não muito distante de Kingsbridge. Quero que você pense sobre o lugar em que seu irmão possa estar. Provavelmente é um lugar que ambos conhecem... uma caverna, talvez, ou uma cabana de guarda abandonada na floresta.

Merthin hesitou. Thomas insistiu:

- Sei que você detestaria traí-lo. Mas pense na primeira família que ele atacou: um camponês decente e trabalhador, sua linda esposa, um rapaz de quatorze anos e uma menina. Agora, três estão mortos e a menina não tem pais. Mesmo que você ame seu irmão, tem de nos ajudar a pegá-lo.

- Sei disso.

- Pode imaginar onde ele está escondido? Merthin ainda não se sentia disposto a responder.

- Vão capturá-lo vivo?

- Se puder.

Merthin sacudiu a cabeça.

- Não é suficiente. Preciso de uma garantia. Thomas permaneceu calado por um longo momento.

- Está bem. Eu o capturarei vivo. Não sei como, mas encontrarei um jeito. Prometo.

- Obrigado.

Merthin ainda hesitava. Sabia que tinha de fazer aquilo, mas seu coração se rebelava. Depois de um momento, ele forçou-se a falar:

- Quando eu tinha treze anos, costumávamos sair para caçar, em geral com garotos mais velhos. Passávamos o dia inteiro caçando e cozinhávamos o que abatíamos. Às vezes subíamos até as Chalk Hills e encontrávamos as famílias que passavam o verão ali, as ovelhas pastando. As pastoras tendiam a ser alegres e fáceis... algumas deixavam você beijá-las.

Ele fez uma pausa, sorrindo à recordação.

- No inverno, quando os pastores não estavam lá em cima, usávamos suas cabanas como abrigo. Talvez seja o lugar em que Ralph está escondido.

- Obrigado - disse Thomas, levantando-se.

- Lembre-se de sua promessa.

- Não esquecerei.

- Confiou-me um segredo há doze anos.

- Sei disso.

- Nunca o traí.

- É verdade.

- Agora, estou confiando em você.

Merthin sabia que suas palavras podiam ser interpretadas de duas maneiras: ou como uma súplica de reciprocidade ou como uma ameaça velada. Não tinha problema. Que Thomas interpretasse como quisesse. Thomas estendeu a mão e Merthin apertou-a.

- Cumprirei minha palavra - murmurou o monge, antes de se retirar.

Ralph e Tam cavalgavam lado a lado, subindo a colina, seguidos por Alan Fernhill em seu cavalo, depois o resto do bando a pé. Ralph sentia-se bem: fora outro trabalho proveitoso na manhã de domingo. A primavera chegara, e os camponeses começavam a levar os produtos da nova estação para o mercado. Os membros do bando carregavam meia dúzia de ovelhas, um pote com mel, outro com creme, e vários odres de vinho. Como sempre, os bandidos haviam sofrido apenas pequenos ferimentos, uns poucos talhos e equimoses, infligidos por suas vítimas mais temerárias.

A parceria de Ralph com Tam fora um sucesso extraordinário. Duas ou três horas de luta fácil proporcionavam tudo o que precisavam para uma semana de vida no luxo. Passavam o resto do tempo caçando durante o dia e bebendo à noite. Não havia servos rústicos para importuná-los com disputas sobre limites de terras, ou para roubá-los no arrendamento. Só faltavam mulheres, e hoje haviam resolvido esse problema ao seqüestrarem duas irmãs gorduchas, de treze e quatorze anos.

Seu único pesar era o de nunca ter lutado pelo rei. Fora sua ambição desde menino, e ainda sonhava com isso. Ser um fora-da-lei era muito fácil. Ele não podia se orgulhar de matar servos desarmados. O menino nele ainda ansiava pela glória. Nunca provara, para si mesmo e para os outros, que tinha a alma de um verdadeiro cavaleiro.

Mas não permitiria que esse pensamento o deixasse deprimido. Enquanto subia pela encosta que escondia o pasto no alto das colinas, onde ficava o esconderijo, ele aguardava ansioso por um banquete naquela noite. Assariam uma ovelha no espeto e comeriam creme com mel. E as garotas... Ralph decidira que ficariam deitadas lado a lado, para que cada uma visse a irmã sendo violada por um homem depois de outro. O pensamento fez seu coração bater mais depressa.

Já podiam avistar os abrigos de pedra. Não seriam capazes de usá-los por muito mais tempo, pensou Ralph. A relva estava crescendo e os pastores subiriam em breve. A Páscoa caíra cedo naquele ano, e por isso o Domingo de Pentecostes viria logo depois do Primeiro de Maio. Os bandidos teriam de procurar outra base.

Quando se encontrava a cinqüenta metros da cabana mais próxima, Ralph ficou aturdido ao ver alguém sair de lá.

Ele e Tam pararam os cavalos, e os outros bandidos se agruparam ao redor, as mãos em suas armas.

O homem aproximou-se, e Ralph constatou que era um monge. Tam, ao seu lado, disse:

- Mas o que, em nome dos céus...?

Uma das mangas do monge balançava vazia. Ralph reconheceu-o como o irmão Thomas, de Kingsbridge. Thomas alcançou-os, como se fosse um encontro casual na rua principal da cidade.

- Olá, Ralph - disse ele. - Lembra de mim?

Thomas adiantou-se, pelo lado direito do cavalo de Ralph. Estendeu o braço direito bom para um aperto de mão. O que ele estava fazendo ali? Por outro lado, que mal podia causar um monge com um braço só? Aturdido, Ralph apertou a mão estendida. Thomas subiu a mão pelo braço de Ralph e pegou seu cotovelo.

Pelo canto dos olhos, Ralph percebeu um movimento nas proximidades das cabanas de pedra. Ao virar o rosto para ver melhor, avistou um homem passar pela porta da cabana mais próxima, logo seguido por outro, por mais três; e reparou também que havia homens saindo de todas as cabanas... e que ajustavam flechas nos arcos que carregavam. Compreendeu que ele e seu bando haviam sido emboscados... mas nesse momento a mão em seu cotovelo aumentou a pressão, e ele foi arrancado do cavalo com um puxão vigoroso.

Um grito estrondoso se elevou dos bandidos. Ralph caiu no chão, batendo de costas. Seu cavalo, Griff, pulou para o lado, assustado. Quando Ralph fez menção de se levantar, Thomas jogou-se em cima dele, pesado como uma árvore, espremendo-o contra a terra; e permaneceu por cima, como um amante.

- Fique quieto e não morrerá - disse ele no ouvido de Ralph.

No instante seguinte, Ralph ouviu o som de dezenas de flechas sendo disparadas ao mesmo tempo, com zunidos inconfundíveis, como o vento repentino de uma tempestade de raios.

O barulho era tremendo... devia haver pelo menos cem arqueiros, pensou ele. Era evidente que haviam aguardado nos abrigos. O ato de Thomas ao segurar seu braço podia ter sido o sinal para que saíssem e atirassem.

Ralph ainda pensou em empurrar Thomas para o lado, mas depois mudou de idéia. Podia ouvir os gritos dos outros bandidos ao serem atingidos pelas flechas. Do chão, não dava para ver muita coisa, mas ele percebeu que alguns de seus homens desembainhavam as espadas. Só que estavam longe demais dos arqueiros: se corressem ao encontro do inimigo, seriam abatidos pelas flechas antes de conseguirem alcançá-los. Era um massacre, não uma batalha. Cascos ressoaram na terra, e Ralph especulou se Tam atacava os arqueiros, ou fugia.

A confusão foi terrível, mas não durou muito tempo. Em poucos momentos, ele compreendeu que os bandidos tentavam fugir.

Thomas saiu de cima dele, tirou uma adaga comprida de baixo do hábito de beneditino, e disse:

- Nem sequer pense em pegar sua espada.

Ralph levantou-se. Olhou para os arqueiros e reconheceu muitos: o gordo Dick Brewer, o rude Edward Butcher, o jovial Paul Bell, o mal-humorado Bill Watkin... todos cidadãos tímidos e respeitadores da lei de Kingsbridge. Fora capturado por mercadores. Mas isso não era o mais surpreendente. Olhou para Thomas, curioso.

- Você salvou minha vida, monge.

- Só porque seu irmão me pediu - respondeu Thomas, irritado. - Se dependesse de mim, você estaria morto antes mesmo de bater no chão.

A cadeia de Kingsbridge ficava no porão da casa da guilda. Tinha as paredes de pedra, o chão sujo e nenhuma janela. Não havia fogo, e os prisioneiros de vez em quando morriam de frio no inverno; mas era o mês de maio, e Ralph contava com um manto de lã para mantê-lo aquecido durante a noite. Também tinha uns poucos móveis - uma cadeira, um banco, e uma pequena mesa - alugados de John Constable e pagos por Merthin. No outro lado da porta de carvalho ficava a sala de John Constable. Nos dias de mercado e durante a feira, ele e seus ajudantes sentavam ali, esperando o chamado para acabarem com brigas.

Alan Fernhill estava na cela com Ralph. Um arqueiro de Kingsbridge atingira-o com uma flecha na coxa. Embora o ferimento não fosse grave, ele não pudera correr. Mas Tam Hiding conseguira escapar.

Aquele era o último dia que passariam ali. O xerife deveria chegar ao meiodia para levá-los para Shiring. Já haviam sido condenados à morte, em ausência, pelo estupro de Annet e pelos crimes cometidos no tribunal, testemunhados pelo juiz: ferir o primeiro jurado, ferir Wulfric, e fugir. Seriam enforcados quando chegassem em Shiring.

Uma hora antes do meio-dia, os pais de Ralph trouxeram o almoço: presunto quente, pão fresco e um jarro de cerveja forte. Merthin os acompanhava, e Ralph presumiu que era o momento da despedida. O pai confirmou ao anunciar:

- Não vamos acompanhá-lo até Shiring.

A mãe acrescentou:

- Não queremos vê-lo...

A frase foi interrompida, mas Ralph sabia o que ela queria dizer. Não iriam a Shiring para testemunhar seu enforcamento.

Ralph tomou a cerveja, mas teve dificuldade para comer. da para a forca, e a comida parecia ser uma inutilidade. De qualquer forma, não sentia o menor apetite. Alan aproveitou: parecia não ter a menor noção da tragédia que o aguardava.

A família sentou num silêncio constrangedor. Embora fossem os últimos minutos que passariam juntos, ninguém sabia o que dizer. Maud chorava baixinho, Gerald exibia uma expressão furiosa e Merthin mantinha a cabeça nas mãos. Alan Fernhill parecia apenas entediado.

Ralph tinha uma pergunta para o irmão. Parte dele não queria fazê-la, mas ele compreendeu que aquela seria sua última oportunidade.

- Quando o irmão Thomas me arrancou do cavalo, protegendo-me das flechas, agradeci a ele por salvar minha vida. - Ele fitou o irmão e acrescentou: Thomas disse que fez isso por você, Merthin.

Merthin limitou-se a acenar com a cabeça.

- Você pediu a ele?

- Pedi.

- Então sabia o que da acontecer.

- Sabia.

- Mas... como Thomas sabia onde me encontrar?

Merthin não respondeu.

- Você contou a ele, não é? - indagou Ralph. O pai ficou chocado.

- Merthin! - exclamou ele. - Como pôde fazer isso?

- Seu porco traiçoeiro! - gritou Alan Fernhill. Merthin disse a Ralph:

- Você estava assassinando pessoas! Camponeses inocentes, suas esposas e crianças! Tinha de ser detido!

Ralph não ficou com raiva, o que o deixou um tanto surpreso. Tinha a sensação de que sufocava. Engoliu em seco.

- Mas por que pediu a Thomas para poupar minha vida? Foi porque preferia me ver enforcado?

- Ralph, não... - balbuciou Maud, para depois começar a chorar.

- Não sei - respondeu Merthin. - Talvez eu apenas quisesse que você vivesse mais um pouco.

- Mas você me traiu. - Ralph descobriu que estava à beira de sofrer um colapso. As lágrimas pareciam se acumular por trás dos olhos, e a pressão na cabeça era cada vez maior. - Você me traiu.

Merthin levantou-se e disse, furioso:

- Por Deus, você merecia!

- Não briguem... - suplicou Maud. Ralph balançou a cabeça.

- Não vamos brigar. Esses dias passaram.

A porta foi aberta. John Constable entrou para anunciar:

- O xerife está lá fora.

Maud abraçou Ralph e apertou-o, chorando. Depois de alguns momentos, Gerald desvencilhou-a, gentilmente.

John deixou a cela e Ralph foi atrás. Estava surpreso por não ter sido amarrado ou acorrentado. Já fugira uma vez antes... não tinham medo de que fizesse a mesma coisa de novo? Ele atravessou a sala de John e saiu do prédio. A família veio atrás.

Devia ter chovido pouco antes, pois agora o sol forte refletia-se na rua molhada. Ralph teve de contrair os olhos contra a claridade. Enquanto ajustava a vista, reconheceu seu cavalo, Griff, selado e pronto para partir. A presença alegrou seu coração. Ele pegou as rédeas e murmurou no ouvido do cavalo:

- Você nunca me traiu, não é mesmo, menino?

O cavalo soltou um bufido e bateu com os cascos, satisfeito por ter seu dono de volta.

O xerife e vários assistentes esperavam, montados e armados até os dentes: deixariam Ralph seguir a cavalo até Shiring, mas não queriam correr qualquer risco. Não haveria fuga desta vez, compreendeu ele.

Ralph correu os olhos ao redor. O xerife estava ali, mas os outros cavaleiros armados não eram seus ajudantes. Eram homens do conde Roland. E lá estava o próprio conde, cabelos pretos, barba preta, montando um cavalo de batalha tordilho. O que ele fazia ali?

Sem desmontar, o conde inclinou-se e entregou um pergaminho enrolado a John Constable.

- Leia isso, se puder - disse Roland, falando pelo canto da boca, como sempre. - É um mandado do rei. Todos os presos do condado estão perdoados e devem ser libertados... sob a condição de me acompanharem para se juntarem ao exército do rei.

- Hurra! - gritou Gerald.

Maud desatou a chorar. Merthin olhou por cima do ombro de John e leu o documento. Ralph olhou para Alan, que lhe perguntou:

- O que isso significa?

- Significa que estamos livres! John Constable disse:

- É verdade, se li direito. - Ele olhou para o xerife. - Você confirma isso?

- Confirmo - respondeu o xerife.

- Então não há mais nada a dizer. Estes homens estão livres e podem acompanhar o conde.

John enrolou o pergaminho. Ralph olhou para o irmão. Merthin estava chorando. Seriam lágrimas de alegria ou de frustração? Só que ele não teve mais tempo para especular.

- Vamos embora - disse Roland, impaciente. - Agora que concluímos as formalidades, temos de partir. O rei está na França... uma longa viagem!

Ele esporeou o cavalo e partiu a galope pela rua principal. Ralph bateu nos flancos de Griff, que seguiu o conde.

Você não pode vencer - disse Gregory Longfellow ao prior Godwyn, sentado na cadeira grande, na sala da casa do prior. - O rei vai conceder a carta regia de burgo a Kingsbridge.

Godwyn ficou aturdido. Aquele era o advogado que ganhara dois casos para ele no tribunal real, um contra o conde e outro contra o regedor. Se alguém tão competente declarava-se vencido, então a derrota devia ser mesmo inevitável.

O que era inadmissível. Se Kingsbridge se tornasse um burgo real, o priorado ficaria em segundo plano. Há centenas de anos o prior decidia tudo em Kingsbridge. Aos olhos de Godwyn, a cidade existia apenas para servir ao priorado, que servia a Deus. Agora, o priorado seria apenas uma parte da cidade controlada por mercadores, servindo ao deus Dinheiro. E o Livro da Vida mostraria que fora Godwyn o prior que deixara isso acontecer. Consternado, ele perguntou:

- Tem certeza?

- Sempre tenho certeza.

Godwyn sentiu a maior irritação. A atitude presunçosa de Gregory era ótima quando ele escarnecia de seus oponentes, mas quando se virava contra você era angustiante. Furioso, Godwyn indagou:

- Veio até Kingsbridge só para me dizer que não pode fazer o que pedi?

- E para cobrar meus honorários - declarou Gregory, com um sorriso de satisfação.

Godwyn desejou poder jogá-lo no viveiro de peixes com suas roupas de Londres.

Era o sábado da semana de Pentecostes, o dia anterior à abertura da Feira do Velocino. Lá fora, no pátio gramado no lado oeste da catedral, centenas de mercadores armavam seus estandes. As conversas e gritos de uns para os outros combinavam-se num estrondo que podia ser ouvido na sala da casa do prior, onde Godwyn e Gregory sentavam às extremidades da mesa de refeições. Philemon, sentado no banco do lado, pediu a Gregory:

- Poderia explicar ao lorde prior como chegou a essa conclusão pessimista? Ele vinha desenvolvendo um tom de voz que era meio subserviente, meio desdenhoso. Godwyn não tinha certeza se gostava. Gregory não reagiu ao tom.

- Claro. O rei está na França.

- Já está na França há quase um ano e não aconteceu muita coisa - comentou Godwyn.

- Tomará conhecimento da ação neste inverno. -Por quê?

- Deve ter ouvido falar dos ataques franceses a nossos portos no Sul.

- Já me contaram - disse Philemon. - E também soube que os marujos franceses estupraram freiras em Canterbury.

- Sempre alegamos que o inimigo estuprou freiras - declarou Gregory, condescendente. - Encoraja as pessoas comuns a apoiarem a guerra. Mas eles incendiaram Portsmouth. E houve sérios prejuízos para a navegação. Talvez tenham notado uma queda no preço da lã inglesa.

- Claro que notamos.

- Isso se deve em parte à dificuldade de embarcá-la para Flandres. E o preço pago pelo vinho de Bordeaux subiu pelo mesmo motivo.

Não podíamos comprar vinho nem pelos preços antigos, pensou Godwyn; mas ele não disse isso. Gregory continuou:

- Esses ataques parecem ser apenas preliminares. Os franceses estão reunindo uma frota de invasão. Nossos espiões dizem que já há mais de duzentos navios ancorados na foz do rio Zwyn.

Godwyn notou que Gregory falava de ”nossos espiões” como se fosse parte do governo. Na realidade, ele estava apenas repetindo rumores que ouvira. Só que parecia convincente.

- Mas o que a guerra francesa tem a ver com o fato de Kingsbridge se tornar ou não um burgo?

- Impostos. O rei precisa de dinheiro. A guilda da paróquia argumentou que a cidade será mais próspera e pagará mais impostos se a cidade se livrar do controle do priorado.

- E o rei acredita nisso?

- Já foi provado antes que é verdade. É por isso que o rei cria burgos. Os burgos geram comércio, e o comércio produz receita de impostos.

Dinheiro de novo, pensou Godwyn, repugnado.

- Não há nada que possamos fazer?

- Não em Londres. Aconselho-o a se concentrar no lado de Kingsbridge. Pode persuadir a guilda da paróquia a retirar o pedido? Como é o velho regedor? Ele pode ser subornado?

- Meu tio Edmund? Ele tem uma saúde precária, que se deteriora mais e mais. Mas sua filha, minha prima Caris, é a verdadeira força propulsora por trás dele.

- Lembro dela do julgamento. Achei-a um tanto arrogante. O roto falando do esfarrapado, pensou Godwyn, irônico.

- Ela é uma bruxa - murmurou ele.

- É mesmo? Isso pode ajudar.

- Não falei literalmente. Philemon interveio:

- Por falar nisso, lorde prior, tem havido rumores. Gregory alteou as sobrancelhas.

- Interessante...

- Ela é muito amiga de uma mulher chamada Mattie, que prepara poções para as pessoas crédulas da cidade.

Godwyn já da manifestar seu desdém por essa idéia de bruxaria, mas decidiu se calar. Qualquer arma que pudesse liquidar a idéia de converter Kingsbridge num burgo com carta regia só poderia ter sido enviada por Deus. E talvez Caris usasse mesmo a bruxaria, pensou ele; quem sabe?

- Vejo que hesita - comentou Gregory. - Claro, se gosta de sua prima...

- Gostava quando éramos mais jovens. - Godwyn sentiu uma pontada de pesar pela simplicidade antiga perdida. - Mas lamento dizer que ela não cresceu para se tornar uma mulher temente a Deus.

-Neste caso...

- Devo investigar os rumores - murmurou Godwyn.

- Permite que eu faça uma sugestão? - indagou Gregory. Godwyn já se cansara das sugestões de Gregory, mas não tinha coragem de dizer isso.

- Claro - concordou ele, com uma polidez um tanto exagerada.

- As investigações de heresia podem ser... sórdidas. Não deve sujar suas próprias mãos. E as pessoas podem ficar nervosas ao falar com um prior. Delegue a tarefa a alguém que seja menos intimidativo. Este jovem noviço, por exemplo. Ele indicou Philemon, que exultou de prazer. - A atitude dele me parece... sensata.

Godwyn recordou que fora Philemon quem descobrira a fraqueza do bispo Richard... sua ligação com Margery. Era sem dúvida o homem certo para qualquer trabalho sujo.

- Está bem - disse ele. - Veja o que consegue descobrir, Philemon.

- Obrigado, lorde prior. Nada me daria mais prazer.

Na manhã de domingo, as pessoas ainda chegavam a Kingsbridge. Caris observou-as passarem pelas duas pontes largas de Merthin, a pé, a cavalo, em carroças de duas ou quatro rodas puxadas por cavalos, em carros de boi, trazendo mercadorias para a feira. A cena animava seu coração. Não houvera uma grande cerimônia de inauguração - a ponte ainda não estava realmente pronta, mas já dava para ser usada, graças a um leito de madeira temporário -, mas mesmo assim espalhara-se a notícia de que estava aberta e as estradas estavam a salvo dos salteadores. Até mesmo Buonaventura Caroli viera.

Merthin sugerira uma maneira diferente de recolher o pedágio, e a guilda da paróquia adotara a proposta no mesmo instante. Em vez de uma única cabine na extremidade da ponte, criando um gargalo, havia dez postos de cobrança provisórios na ilha do Leproso. A maioria das pessoas podia entregar seu penny sem nem mesmo parar.

- Não há sequer uma fila - murmurou Caris para si mesma.

E o tempo era ensolarado e ameno, sem o menor sinal de chuva. A feira seria um sucesso.

E dali a uma semana ela casaria com Merthin.

Ainda sentia apreensões. A idéia de perder a independência e se tornar a propriedade de alguém não cessara de apavorá-la, mesmo sabendo que Merthin não era o tipo de homem capaz de explorar e controlar a esposa. Nas raras ocasiões em que confessara seus sentimentos - para Gwenda, por exemplo, ou para Mattie Wise

- fora informada de que pensava como um homem. Mas era assim que se sentia.

Só que a perspectiva parecia ainda mais desoladora. O que lhe restaria, exceto um negócio de fabricar tecidos que não lhe proporcionava nenhuma inspiração? quando Merthin finalmente anunciara sua intenção de deixar a cidade, o futuro parecera vazio. E ela compreendera que a única coisa pior do que casar com ele podia ser não casar com ele.

Pelo menos era o que ela dizia a si mesma em seus momentos mais positivos. Mas às vezes, quando se descobria acordada de madrugada, via-se a recuar no último minuto, talvez no meio do casamento, recusando-se a prestar os votos e saindo em disparada da igreja, para consternação da congregação.

O que era um absurdo, ela sentiu agora, à luz do dia, com tudo correndo tão bem. Casaria com Merthin e seria feliz.

Caris deixou a margem do rio e atravessou a cidade até a catedral, já apinhada de fiéis à espera do serviço da manhã. Recordou como Merthin a acariciara por trás de um pilar. Sentiu saudade da paixão insensata do início do relacionamento; as conversas longas e profundas, os beijos roubados.

Encontrou-o perto da frente da congregação, estudando a nave sul do coro, a parte da catedral que desabara diante de seus olhos, há dois anos. Recordou que subira com Merthin para o espaço abobadado, e ouvira a terrível conversa entre irmão Thomas e sua esposa separada. Fora essa conversa que cristalizara seus medos e a levara a rejeitar Merthin. Caris tratou de afastar o pensamento de sua mente.

- Os reparos parecem estar resistindo - comentou ela, adivinhando o que Merthin pensava.

Ele parecia em dúvida.

- Dois anos é muito pouco tempo na vida de uma catedral.

- Não há sinal de deterioração.

- É o que torna o problema tão difícil. Uma fraqueza invisível pode efetuar seu trabalho de desgaste por anos, sem que ninguém desconfie, até que ocorra um desabamento.

- Talvez não haja nenhuma fraqueza.

- Tem de haver - insistiu Merthin, com alguma impaciência. - Houve uma razão para que o desabamento ocorresse há dois anos. Nunca descobrimos qual era. Por isso, não fizemos o reparo direito. E se não foi direito, a fraqueza ainda persiste.

- Pode ter ocorrido uma correção espontânea.

Caris estava apenas sendo argumentativa, mas ele levou a sério.

- Os prédios não costumam se reparar por si mesmos... mas você tem razão, é possível. Pode ter havido um vazamento de água, por exemplo, de alguma gárgula obstruída. E a água encontrou um caminho menos pernicioso para se desviar.

Os monges começaram a entrar, em procissão e cantando. A congregação ficou silenciosa. As freiras vieram de sua entrada separada. Uma das noviças levantou os olhos, um rosto pálido e bonito na fileira de cabeças encapuzadas. Ela viu Merthin e Caris juntos. O súbito brilho de rancor fez Caris estremecer. No instante seguinte, Elizabeth baixou a cabeça e tornou a desaparecer em seu uniforme anônimo.

- Ela odeia você - murmurou Merthin.

- Pensa que o impedi de casar com ela.

- Ela está certa.

- Não, não está... você poderia casar com quem quisesse!

- Mas só queria você.

- Brincou com os sentimentos de Elizabeth.

- Deve ter parecido assim para ela - comentou Merthin. - Mas eu apenas gostava de conversar com Elizabeth, ainda mais depois que você se transformou em gelo.

Caris sentia-se contrafeita.

- Sei disso. Mas Elizabeth acha que foi enganada. E a maneira como olha para mim me deixa nervosa.

- Não tenha medo. Ela é uma freira agora. Não pode lhe fazer qualquer mal. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, de pé, lado a lado, os ombros

se tocando em intimidade, enquanto assistiam ao ritual. O bispo Richard sentava no trono no lado leste, presidindo o serviço. Merthin gostava daquele tipo de coisa, Caris sabia. Sempre se sentia melhor depois, e dizia que era isso que freqüentar a igreja deveria fazer pelas pessoas. Caris comparecia à igreja porque as pessoas n                                              otariam se ela não fosse, mas tinha dúvidas sobre tudo aquilo. Acreditava em Deus , mas não tinha ce   rteza se Ele revelava seus desejos exclusivamente para homens como seu primo Godwyn. Por que um deus haveria de querer louvores, por exemplo? Reis e condes queriam ser venerados; e quanto mais insignificantes fossem, mais deferência exigiam. Parecia-lhe que um Deus TodoPoderoso não se importaria se as pessoas de Kingsbridge lhe entoassem louvores, assim como ela não se importava se o veado na floresta a temia ou não. Expressava essas idéias de vez em quando, mas ninguém a levava a sério.

Seus pensamentos desviaram-se para o futuro. Eram boas as perspectivas de que o rei concedesse uma carta regia de burgo a Kingsbridge. Seu pai provávelmente seria o primeiro prefeito, se recuperasse a saúde. Seu negócio de tecido continuaria a crescer. Mark Webber ficaria rico. Com a crescente prosperidade, a guilda da paróquia poderia construir uma Bolsa de Lã, para que todos pudessem fazer seus negócios com conforto, mesmo no mau tempo. Merthin projetaria o prédio. Até mesmo o priorado ficaria numa situação melhor, embora Godwyn nunca fosse lhe agradecer por isso.

O serviço terminou, e os monges e freiras começaram a se retirar. Um noviço desligou-se dos outros, e entrou na área destinada à congregação. Era Philemon. Para surpresa de Caris, ele abordou-a e perguntou:

- Posso conversar com você?

Ela reprimiu um sobressalto. Havia alguma coisa repulsiva no irmão de Gwenda.

- Sobre o quê? - murmurou ela, quase impolida.

- Quero lhe pedir um conselho. - Philemon fez uma tentativa de sorriso encantador. - Conhece Mattie Wise.

- Conheço.

- O que acha de seus métodos?

Caris fitou-o com expressão dura. Aonde ele estava querendo chegar? Ela decidiu que era melhor, de qualquer forma, defender Mattie.

- Ela nunca estudou os textos dos antigos, é claro. Apesar disso, seus remedios funcionam... às vezes melhor que os remédios dos monges. Creio que isso acontece porque ela baseia seus tratamentos no que deu certo antes, em vez de se ater à teoria dos humores.

As pessoas paradas nas proximidades escutavam com a maior curiosidade. Algumas resolveram participar da conversa mesmo sem serem convidadas.

- Ela deu à nossa Nora uma poção que baixou sua febre - comentou Madge Webber.

John Constable acrescentou:

- Quando quebrei o braço, seu medicamento tirou a dor enquanto Matthew Barber consertava o osso.

- E que tipo de encantamentos ela pronuncia quando está fazendo suas misturas? - perguntou Philemon.

- Não há nenhum encantamento! - protestou Caris, indignada. Ela diz às pessoas para rezarem ao tomarem seus medicamentos, porque só Deus pode curar... é o que ela sempre diz.

- Mattie poderia ser uma bruxa?

- Claro que não! Isso é uma idéia absurda!

- Mas uma queixa foi apresentada ao tribunal eclesiástico. Caris sentiu um calafrio.

- Por quem?

- Não posso dizer. Mas fui incumbido de investigar.

Caris ficou atordoada. Quem poderia ser o inimigo de Mattie? Ela disse a Philemon:

- Logo você, entre todas as pessoas, deveria conhecer o valor de Mattie... ela salvou a vida de sua irmã quando Sam nasceu. Gwenda teria sangrado até a morte se não fosse por Mattie.

- É o que parece.

- Parece? Gwenda está viva, não é?

- Claro. Então você tem certeza de que Mattie não invoca o demônio? Caris notou que ele elevara um pouco a voz ao fazer a pergunta, como se quisesse ter certeza de que as pessoas ao redor ouviriam. Ela ficou perplexa, mas não tinha qualquer dúvida sobre sua resposta.

- Claro que tenho! Posso prestar um juramento, se você quiser.

- Não é necessário. Obrigado por sua orientação.

Philemon inclinou a cabeça, numa espécie de reverência, e afastou-se. Caris e Merthin encaminharam-se para a saída.

- Mas que absurdo! - exclamou Caris. - Mattie uma bruxa! Merthin parecia perturbado.

- Era de se esperar que Philemon quisesse provas contra ela, não é?

- Claro.

- Então por que ele a procurou? Poderia ter imaginado que você, entre todas as pessoas, negaria a acusação. Por que ele se mostraria tão ansioso em inocentá-la?

- Não sei.

Os dois passaram pelo enorme portão de oeste, e saíram para o pátio gramado. O sol brilhava sobre centenas de estandes, com mercadorias coloridas.

- Não faz sentido - disse Merthin. - E isso me perturba.

- Por quê?

- É como a causa da fraqueza na nave sul. Se você não pode ver, talvez esteja provocando um desgaste invisível... e você não sabe até que tudo desaba.

O tecido escarlate no estande de Caris no mercado não era tão bom quanto o que era vendido por Loro Fiorentino, embora só quem tivesse olho atento para lã poderia perceber a diferença. A trama não era tão justa porque os teares italianos eram de alguma forma superiores. A cor tinha o mesmo brilho, mas não era tão uniforme por toda a peça porque os tintureiros italianos eram mais experientes. Em conseqüência, ela cobrava um décimo a menos que Loro.

Mesmo assim, era de longe o melhor escarlate inglês que já fora visto em Kingsbridge, e os negócios se multiplicaram. Mark e Madge vendiam no varejo, por metro, medindo e cortando para os clientes individuais. Caris lidava com os compradores por atacado, negociando reduções para uma peça ou seis com negociantes de tecidos de Winchester, Gloucester, até mesmo de Londres. Por volta de meio-dia da segunda-feira ela já sabia que venderia tudo antes do final da semana.

Quando o movimento diminuiu, na hora do almoço, ela deu uma volta pela feira. Experimentava um profundo senso de satisfação. Triunfara sobre a adversidade, e Merthin também fizera a mesma coisa. Ela parou no estande de Perkin para conversar com as pessoas de Wigleigh. Até mesmo Gwenda triunfara. Ali estava ela, casada com Wulfric - algo que parecia impossível no passado - e cuidando do filho. Sammy, um menino de um ano, sentava no chão, gordo e feliz. Annet vendia ovos em uma bandeja, como sempre. E Ralph fora para a França, a fim de lutar pelo rei; talvez nunca mais voltasse.

Mais adiante, ela avistou Joby, o pai de Gwenda, vendendo suas peles de esquilo. Era um homem infame, sem escrúpulos. Mas parecia ter perdido o poder de fazer mal a Gwenda.

Caris parou no estande do pai. Persuadira-o a comprar lã em quantidades menores naquele ano. O mercado internacional de lã não podia prosperar quando franceses e ingleses atacavam portos uns dos outros, queimavam navios.

- Como estão os negócios, papai?

- Mais ou menos. Acho que calculei certo.

O pai esquecera que a avaliação fora de Caris, não dele, que aconselhara cautela. Mas isso não tinha importância.

A cozinheira, Tutty, apareceu com o almoço de Edmund: ensopado de cordeiro numa panela, pão e um jarro de cerveja. Era importante parecer próspero, mas não demais. Edmund explicara a Caris, muitos anos antes, que os clientes precisavam acreditar que estavam comprando de um negócio bem-sucedido, mas ficariam ressentidos em contribuir para a riqueza de alguém que aparentava nadar em dinheiro.

- Está com fome? - perguntou ele a Caris.

- Muita.

Edmund levantou-se para pegar a panela do ensopado. Foi nesse instante que cambaleou, deixou escapar um som estranho, entre um grunhido e um grito, e caiu no chão.

A cozinheira berrou.

- Pai! - chamou Caris.

Mas ela sabia que Edmund não responderia. Dava para perceber que estava inconsciente, pela maneira como batera no chão, inerte, como se fosse um saco de cebolas. Caris resistiu ao impulso de gritar. Ajoelhou-se ao lado do pai. Ele continuava vivo, a respiração rouca. Caris sentiu seu pulso: as batidas eram fortes, mas lentas. O rosto parecia corado. Era sempre avermelhado, mas agora parecia mais do que o normal.

- O que aconteceu? - perguntou Tutty. Caris forçou-se a falar calmamente:

- Ele teve um desmaio. Chame Mark Webber. Ele pode carregar papai para o hospital.

A cozinheira saiu correndo. Pessoas dos estandes vizinhos se agruparam ao redor. Dick Brewer aproximou-se e disse:

- Pobre Edmund... o que posso fazer?

Dick era muito velho e gordo para levantar Edmund.

- Mark está vindo para carregá-lo até o hospital. - Caris começou a chorar.

- Espero que ele fique bom.

Mark chegou. Levantou Edmund com facilidade, ajeitando-o gentilmente em seus braços fortes. Seguiu para o hospital, abrindo caminho através da multidão:

- Saiam da frente, por favor! Estou levando um homem ferido para o hospital! Caris seguiu-o, transtornada. Mal podia ver através das lágrimas, e por isso permaneceu próxima das costas largas de Mark. Chegaram ao prédio do hospital e entraram. Caris sentiu-se agradecida ao deparar com o rosto rude de Old Julie.

- Chame madre Cecilia, o mais depressa que puder! - pediu ela.

A idosa freira afastou-se apressada. Mark ajeitou Edmund num colchão perto do altar.

Edmund ainda permanecia inconsciente, os olhos fechados, a respiração ofegante. Caris sentiu sua testa: não estava quente nem fria. O que causara aquilo? Fora muito repentino. Num momento ele falava normalmente, no seguinte, caía no chão inconsciente. Como uma coisa assim podia acontecer?

Madre Cecilia veio. Sua eficiência alvoroçada era tranqüilizadora. Ajoelhou-se ao lado da enxerga e sentiu o coração de Edmund, depois o pulso. Prestou atenção à respiração e tocou em seu rosto.

- Vá buscar um travesseiro e um cobertor - disse ela para Julie. - Depois, chame um dos monges médicos.

Ela levantou-se e olhou para Caris.

- Seu pai teve um ataque. Pode se recuperar. Tudo o que podemos fazer agora é deixá-lo confortável. O médico pode recomendar uma sangria, mas afora isso o único tratamento é a oração.

Isso não era bastante bom para Caris.

- Vou chamar Mattie - disse ela.

Ela saiu correndo do hospital. Esgueirou-se pela feira, lembrando que fizera a mesma coisa um ano antes, correndo para chamar Mattie quando Gwenda sangrava para a morte. Desta vez era seu pai, e ela sentia um tipo diferente de pânico. Ficara desesperadamente preocupada com Gwenda, mas agora era como se o mundo estivesse desmoronando. O medo de que o pai pudesse morrer lhe proporcionava o sentimento horrível que às vezes se insinuava em seus sonhos, quando se descobria no telhado da catedral de Kingsbridge sem ter como descer, a não ser pulando.

O esforço físico de correr pelas ruas acalmou-a um pouco. Já mantinha o controle de suas emoções quando chegou à casa de Mattie. Tinha certeza de que Mattie saberia o que fazer. Ela diria: ”Já vi isso antes. Sei o que acontecerá em seguida, e este é o tratamento que ajuda.”

Caris bateu na porta. Como não ouviu uma resposta imediata, experimentou a porta, e descobriu que não estava trancada. Entrou correndo.

- Mattie, você tem de ir ao hospital agora mesmo! É meu pai!

A sala da frente estava vazia. Caris puxou a cortina que protegia a cozinha. Mattie também não se encontrava ali. Caris disse, em voz alta:

- Por que você tinha de sair de casa neste exato momento?

Ela olhou ao redor, em busca de alguma indicação sobre o paradeiro de Mattie. Foi então que notou que a pequena cozinha estava diferente. Todos os pequenos potes e vidros haviam desaparecido, deixando as prateleiras vazias. Não havia nenhum dos pilões que Mattie costumava usar para moer ingredientes, nenhuma das pequenas panelas para derreter e ferver, nenhuma das facas para cortar ervas. Caris voltou à metade da frente da casa de Mattie e constatou que os pertences pessoais também haviam desaparecido: a caixa de costura, os copos de madeira envernizados para o vinho, o xale bordado pendurado na parede como decoração, o pente de osso todo lavrado que era tão apreciado.

Mattie recolhera suas coisas e fora embora.

E Caris podia adivinhar o motivo. Mattie devia ter ouvido falar das perguntas de Philemon na catedral no dia anterior. Tradicionalmente, o tribunal eclesiástico realizava uma sessão no sábado da semana da Feira do Velocino. Apenas dois anos antes os monges haviam aproveitado a ocasião para o julgamento de Crazy Nell, sob a acusação absurda de heresia.

Mattie não era herege, é claro, mas era difícil provar isso, como muitas mulheres mais velhas já haviam descoberto. Devia ter calculado suas chances de sobreviver a um julgamento, e chegara à conclusão de que a resposta era assustadora. Sem dizer nada a ninguém, pegara seus pertences e deixara a cidade. Provavelmente encontrara um camponês voltando para casa, depois de vender seus produtos na feira, e o persuadira a levá-la em seu carro de boi. Caris imaginou sua partida ao amanhecer, a caixa ao seu lado na carroça, o capuz do manto puxado para a frente, a fim de esconder o rosto. Ninguém poderia sequer adivinhar para onde ela fora.

- O que vou fazer? - indagou Caris para a casa vazia.

Mattie sabia melhor do que qualquer outra pessoa em Kingsbridge como ajudar um doente. Era o pior momento possível para seu desaparecimento, quando Edmund se encontrava inconsciente no hospital. Caris sentia-se desesperada.

Ela sentou na cadeira de Mattie, ainda ofegante do esforço de correr. Queria voltar ao hospital, mas não havia sentido. Não poderia ajudar o pai. Ninguém podia.

A cidade precisava de uma curandeira, pensou ela; alguém que não dependa apenas de orações e água benta, nem de sangrias, mas use tratamentos simples, de sucesso comprovado. E sentada ali, na casa vazia, ela compreendeu que havia alguém que podia preencher o papel, alguém que conhecia os métodos de Mattie e acreditava em sua filosofia prática. Essa pessoa era a própria Caris.

O pensamento aflorou com a luz ofuscante de uma revelação. Ela ficou imóvel, aturdida com as implicações. Conhecia as receitas das principais poções de Mattie: uma para atenuar a dor, uma para causar vômito, uma para lavar ferimentos, uma para baixar a febre. Conhecia os usos de todas as ervas comuns: o endro para indigestão, funcho para febre, arruda para flatulência, agrião para infertilidade. Conhecia os tratamentos que Mattie nunca prescrevia: cataplasmas feitos com estrume, medicamentos contendo ouro e prata, versos escritos em pergaminho, que era amarrado na parte doente do corpo.

E possuía um instinto para isso. Fora o que madre Cecilia dissera, quase suplicando para que Caris se tornasse uma freira. Não da ingressar no priorado, mas talvez pudesse tomar o lugar de Mattie. Por que não? O negócio de tecido poderia ser dirigido por Mark Webber... que já estava mesmo cuidando da maior parte do trabalho.

Procuraria outras curandeiras - em Shiring, em Winchester, talvez em Londres - e conversaria sobre seus métodos, em que tinham sucesso e em que fracassavam. Os homens eram reservados sobre suas habilidades no ofício - seus ”mistérios”, assim chamavam, como se houvesse alguma coisa sobrenatural em curtir couro ou fazer ferraduras -, mas as mulheres em geral se mostravam dispostas a partilhar seus conhecimentos com outras mulheres.

Poderia até ler alguns dos textos antigos dos monges. Talvez encontrasse alguma verdade neles. Era possível que o instinto que Cecilia lhe atribuíra há algum tempo pudesse ajudá-la a peneirar as sementes do tratamento prático no refugo confuso dos textos clericais.

Caris levantou-se e deixou a casa. Foi andando devagar, com receio do que poderia encontrar no hospital. Sentia-se fatalista agora. Ou o pai estaria bem ou não estaria. Tudo o que podia fazer naquele momento era levar sua resolução para o futuro, a fim de ter certeza, quando as pessoas que amava ficassem doentes, de que estava fazendo tudo o que podia para ajudá-las.

Ela fez um esforço para reprimir as lágrimas ao atravessar a feira e entrar no hospital. Mal teve coragem de olhar para o pai. Aproximou-se da enxerga, cercada por várias pessoas: madre Cecilia, Old Julie, irmão Joseph, Mark Webber, Petranilla, Alice, Elfric

O que tem de ser, será, pensou Caris. Tocou no ombro da irmã, Alice, que se afastou para lhe dar espaço. Caris finalmente olhou para o pai.

Ele estava vivo e consciente, embora parecesse pálido e cansado. Tinha os olhos abertos. Fitou-a, com um sorriso triste.

- Acho que lhe dei um susto. Desculpe, minha querida.

- Graças a Deus!

E Caris desatou a chorar.

Na manhã de quarta-feira, Merthin foi ao estande de Caris, na maior consternação.

- Betty Baxter acaba de me fazer uma estranha pergunta - disse ele. - Queria saber quem será o adversário de Elfric na eleição para regedor.

- Que eleição? Meu pai é o regedor... essa não!

Ela compreendeu o que devia estar acontecendo. Era evidente que Elfric vinha dizendo às pessoas que Edmund estava muito velho e doente para continuar no cargo, e que a cidade precisava de alguém novo. E ele se apresentava como candidato.

- Devemos informar a papai imediatamente.

Caris e Merthin deixaram o terreno da feira e atravessaram a rua principal, até a casa. Edmund deixara o hospital no dia anterior, dizendo - corretamente - que não havia nada que os monges pudessem fazer para ajudá-lo além de aplicar sangrias, o que fazia com que se sentisse ainda pior. Fora carregado para casa, onde haviam aprontado uma cama na sala no primeiro andar.

Naquela manhã ele estava recostado ali, numa pilha de travesseiros. Parecia tão fraco que Caris hesitou em perturbá-lo com a notícia. Mas Merthin sentou ao lado da cama e contou tudo.

- Elfric tem razão - disse Edmund, quando Merthin terminou. - Olhem para mim. Mal consigo sentar direito. A guilda da paróquia precisa de uma liderança forte. não é um trabalho para um homem doente.

- Mas você vai melhorar em breve! - protestou Caris.

- Talvez. Mas estou envelhecendo. Já devem ter notado como me tornei distraído. Esqueço as coisas. E tive uma lentidão fatal para reagir à queda no mercado de lã crua... perdi muito dinheiro no ano passado. Graças a Deus, conseguimos recuperar nossa fortuna com o tecido escarlate... mas foi você quem fez isso, Caris, não eu.

Ela sabia de tudo isso, é claro, mas ainda assim sentia-se indignada.

- Vai simplesmente deixar que Elfric assuma o controle?

- Claro que não. Ele seria um desastre. É dominado por Godwyn. Mesmo depois de nos tornarmos um burgo, ainda precisaremos de um regedor que possa enfrentar o priorado.

- Quem mais poderia assumir o cargo?

- Conversem com Dick Brewer. É um dos homens mais ricos da cidade, e o regedor tem de ser rico, para merecer o respeito dos outros mercadores. Dick não tem medo de Godwyn ou de qualquer dos monges. Seria um bom líder.

Caris descobriu-se relutante em fazer o que o pai sugeria. Parecia a aceitação de que ele da morrer. Ela não podia se lembrar de uma ocasião em que o pai não fora o regedor.

Não queria que seu mundo mudasse. Merthin podia compreender sua relutância, mas exortou a:

- Temos de aceitar isso. Se ignorarmos o que está acontecendo, podemos acabar com Elfric no comando. Ele seria um desastre... pode até retirar o pedido de carta regia de burgo.

Foi o fator decisivo para Caris.

- Tem razão. Vamos conversar com Dick.

Dick Brewer tinha várias carroças em diferentes pontos da feira, cada uma com um imenso barril de cerveja. Seus filhos, netos e parentes afins vendiam cerveja tão depressa quanto podiam servir. Caris e Merthin encontraram-no dando o exemplo, tomando uma caneca de sua própria cerveja, enquanto observava a família ganhando dinheiro para ele. Levaram-no para um canto e explicaram a situação. Dick perguntou a Caris:

- Quando seu pai morrer, a fortuna dele será dividida igualmente entre você e sua irmã?

- Isso mesmo.

Edmund já informara a Caris que era isso que seu testamento determinava.

- Quando a herança de Alice for acrescentada à riqueza que Elfric já possui, ele será um homem muito rico.

Caris compreendeu que metade do dinheiro que vinha ganhando com o tecido escarlate poderia ir para a irmã. Não pensara nisso antes, porque não pensara na possibilidade de o pai morrer. Foi um choque. O dinheiro por si mesmo não era importante para ela, mas não queria ajudar Elfric a se tornar o regedor.

- Não é apenas uma questão de quem é o homem mais rico - declarou ela. Precisamos de alguém que possa defender os mercadores.

- Neste caso, devem apresentar um candidato rival - disse Dick.

- Você não quer ser esse candidato? - perguntou Caris. Ele sacudiu a cabeça.

- Não perca tempo em tentar me persuadir. Ao final desta semana, passarei o comando ao meu filho mais velho. Planejo passar o resto de meus dias consumindo cerveja, em vez de fabricar.

Ele tomou um longo gole da caneca, e soltou um arroto satisfeito. Caris compreendeu que teria de aceitar sua posição; ele parecia irredutível.

- Quem você acha que deveríamos procurar?

- Só há uma pessoa com possibilidades reais. Você. Caris ficou espantada.

- Eu? Por quê?

- Você é a força propulsora por trás da campanha para a carta regia de burgo. A ponte de seu noivo salvou a Feira do Velocino, e seu negócio de tecido recuperou a prosperidade da cidade, depois do declínio no mercado de lã. É a filha do atual regedor; embora o cargo não seja hereditário, as pessoas acham que líderes geram líderes. E estão certas. Você vem atuando como a regedora de fato há quase um ano, desde que a capacidade de seu pai começou a se deteriorar.

- A cidade já teve uma mulher como regedora?

- Não, pelo que eu saiba. Nem alguém tão jovem quanto você. Esses dois fatores são negativos. Não estou lhe dizendo que vai vencer, mas apenas que ninguém tem mais chance de derrotar Elfric

Caris teve um momento de vertigem. Seria possível? Poderia exercer o cargo a contento? E sua decisão de se tornar uma curandeira? Não haveria muitos homens na cidade que poderiam se tornar um competente regedor?

- O que me diz de Mark Webber? - indagou ela.

- Ele é bom, ainda mais com aquela esposa esperta ao seu lado. Mas as pessoas na cidade continuarão a pensar em Mark como um tecelão pobre.

- Ele é próspero agora.

- Graças a seu tecido escarlate. Mas as pessoas desconfiam de dinheiro novo. Diriam que Mark não passa de um tecelão presunçoso. Querem alguém de uma família próspera... alguém cujo pai foi rico, e de preferência o avô também.

Caris queria derrotar Elfric, mas não tinha certeza de sua capacidade. Pensou na paciência e astúcia do pai, sua cordialidade exuberante, energia inesgotável. Teria essas qualidades? Ela olhou para Merthin, que disse:

- Você seria melhor do que qualquer outro regedor.

Essa confiança sem hesitação de Merthin levou-a a tomar a decisão.

- Está bem. Serei candidata.

Godwyn convidou Elfric para almoçar com ele na sexta-feira da semana da feira. Encomendou uma refeição cara: ganso com gengibre e mel. Philemon serviu-os, e depois sentou à mesa, para comer junto.

Os cidadãos haviam decidido eleger um novo regedor, e num prazo muito curto dois candidatos se destacaram como os principais concorrentes: Elfric e Caris.

Godwyn não gostava de Elfric, mas ele era útil. Não era um construtor dos melhores, mas conseguira se insinuar nas boas graças do prior Anthony, e com isso obtivera o contrato para os reparos na catedral. Quando se tornara prior, Godwyn vira em Elfric um sicofanta subserviente e o mantivera. Elfric não era muito apreciado na cidade, mas empregava ou subcontratava a maioria dos profissionais e fornecedores, e por isso era cortejado por quem queria trabalho. Depois de conquistarem sua confiança, todos queriam que ele continuasse numa posição em que poderia dispensar favores, o que lhe proporcionava uma certa base de poder.

- Não gosto de incerteza - declarou Godwyn.

Elfric provou o ganso e soltou um grunhido de satisfação.

- Em que contexto?

- A eleição de um novo regedor.

- Por sua natureza, uma eleição é incerta... a menos que só tenha um candidato.

- O que seria minha preferência.

- A minha também, desde que eu fosse esse candidato.

- É o que estou sugerimlo. Elfric levantou os olhos do prato.

- É mesmo?

- Diga-me uma coisa, Elfric... até onde vai seu desejo de ser o regedor?

- Quero muito. - A voz saiu um pouco rouca e ele tomou um gole de vinho. Um tom de indignação insinuou-se em sua voz quando acrescentou: - Eu mereço. Sou tão bom quanto qualquer um deles, não é mesmo? Por que não deveria ser o regedor?

- Manteria o pedido de carta regia de burgo?

Elfric fitou-o atentamente, antes de indagar, pensativo:

- Está me pedindo para retirá-lo? ,,

- Estou, se for eleito regedor.

- Isso significa que me ajudaria a ser eleito?

- Exatamente.

- Mas como?

- Eliminando a candidata rival. Elfric mostrou-se cético.

- Não sei como poderia conseguir isso.

Godwyn acenou com a cabeça para Philemon, que disse:

- Creio que Caris é uma herege. Elfric largou a faca.

- Vai julgar Caris como uma bruxa?

- Não deve contar isso a ninguém - declarou Philemon. - Se ela souber antes, pode fugir.

- Como fez Mattie Wise.

- Deixei algumas pessoas na cidade acreditarem que Mattie foi presa, e que será ela que vamos julgar no sábado, no tribunal eclesiástico. Mas outra pessoa será acusada no último momento.

Elfric acenou com a cabeça.

- E como se trata de um tribunal eclesiástico, não há necessidade de indiciamento ou júris, o que é muito conveniente. - Ele olhou para Godwyn. - E você será o juiz.

- Infelizmente, não - respondeu Godwyn. - O bispo Richard presidirá o julgamento. Por isso, teremos de provar nossas alegações.

- Tem alguma prova? - perguntou Elfric, cético.

- Algumas, mas gostaríamos de ter mais. O que temos neste momento seria suficiente se a acusada fosse alguma velha sem família e sem amigos, como Crazy Nell. Mas Caris é muito conhecida e pertence a uma família rica e influente, como não preciso lhe dizer.

Philemon interveio:

- É bastante afortunado que o pai esteja tão doente que não pode deixar a cama... Deus assim decidiu, para que ele não possa defendê-la.

Godwyn balançou a cabeça.

- Mesmo assim, ela tem muitos amigos. Por isso, nossas provas devem ser fortes.

- Em que está pensando? - perguntou Elfric. Foi Philemon quem respondeu:

- Seria útil se uma pessoa da família se apresentasse para dizer que ela invocou o demônio, virou um crucifixo de ponta-cabeça, ou falou com alguma entidade numa sala vazia.

Por um momento, Elfric deu a impressão de que não entendera; depois, a luz raiou.

- Ahn... está se referindo a mim?

- Pense com todo cuidado antes de responder.

- Está me pedindo para ajudar a mandar minha cunhada para a forca.

- Sua cunhada, minha prima. Isso mesmo.

- Muito bem. Estou pensando.

Godwyn viu a ambição, ganância e vaidade no rosto de Elfric, e mais uma vez ficou impressionado com a maneira pela qual Deus usava até as fraquezas dos homens para realizar seus sagrados desígnios. Podia adivinhar o que Elfric pensava. A posição de regedor era um encargo oneroso para um homem altruísta como Edmund, que exercia seu poder em benefício dos mercadores da cidade; mas para alguém que só queria se aproveitar, oferecia possibilidades intermináveis de lucro e poder.

Philemon acrescentou, numa voz suave e firme:

- Se você nunca testemunhou nada de suspeito, então é claro que o assunto termina aqui. Mas peço que procure em sua memória com todo cuidado.

Godwyn registrou de novo o quanto Philemon aprendera nos últimos dois anos. O desajeitado servo do priorado desaparecera. Ele falava como um arquidiácono.

- Podem ter ocorrido incidentes que pareceram na ocasião perfeitamente inofensivos, mas que assumem um aspecto sinistro à luz do que lhe foi dito hoje. Numa reflexão madura, daria para perceber que esses eventos não foram tão inocentes quanto pareciam.

- Já entendi o que está querendo dizer, irmão - declarou Elfric.

Houve um longo silêncio. Nenhum dos três estava comendo. Godwyn esperou, paciente, pela decisão de Elfric. Philemon acrescentou:

- E é claro que se Caris estivesse morta, toda a fortuna de Edmund iria para a outra filha, Alice... sua esposa.

- Também pensei nisso - murmurou Elfric.

- E então? - insistiu Philemon. - Pode pensar em alguma coisa que nos ajude?

- Claro. Posso pensar numa porção de coisas.

Caris não conseguiu descobrir a verdade sobre Mattie Wise. Algumas pessoas diziam que ela fora presa e estava trancada numa cela no priorado. Outras achavam que ela havia sido julgada em ausência. Uma terceira corrente de opinião alegava que outra pessoa seria julgada por heresia.

Godwyn recusou-se a responder às perguntas de Caris, e os outros monges não sabiam de nada.

Caris foi para a catedral na manhã de sábado determinada a defender Mattie, quer ela estivesse ou não presente, ou qualquer outra pobre mulher que fosse o alvo daquela acusação absurda. Por que os monges e padres odiavam tanto as mulheres? Idolatravam sua Virgem Abençoada, mas tratavam todas as outras mulheres como uma encarnação do demônio. O que havia com eles?

Num julgamento secular, haveria um júri de indiciamento e uma audiência preliminar. Caris poderia assim saber com antecedência quais eram as provas contra Mattie. Mas a Igreja tinha suas próprias normas.

Independentemente do que alegassem, Caris diria alto e bom som que Mattie era uma curandeira genuína, uma mulher que usava ervas e drogas, que sempre dizia às pessoas que deveriam rezar a Deus para recuperarem a saúde. Algumas das muitas pessoas da cidade ajudadas por Mattie com certeza falariam em sua defesa.

Caris ficou ao lado de Merthin no transepto norte. Recordou o sábado, dois anos antes, em que Crazy Nell fora julgada. Caris declarara ao tribunal que Nell era louca, mas inofensiva. Não adiantara.

Hoje, como naquela ocasião, havia uma enorme multidão de habitantes da cidade e visitantes na catedral, esperando pelo drama: acusações, contra-acusações, discussões, ataques histéricos, imprecações, e o espetáculo de uma mulher sendo açoitada através das ruas, e depois enforcada em Gallows Cross. Frei Murdo estava presente. Sempre aparecia nos julgamentos sensacionais. Era uma oportunidade para fazer o que melhor sabia: incitar a histeria numa congregação.

Enquanto esperavam pelos monges, a mente de Caris vagueou. Amanhã, naquela catedral, casaria com Merthin. Betty Baxter e as quatro filhas já estavam ocupadas a preparar os pães e doces para a festa. Na noite de amanhã, Caris e Merthin dormiriam juntos na casa dele, na ilha do Leproso.

Parara de se preocupar com o casamento. Tomara sua decisão, e teria de assumir as conseqüências. Na verdade, sentia-se muito feliz. Às vezes se perguntava por que ficara com tanto medo. Merthin não era capaz de transformar qualquer pessoa em escrava... não estava em sua natureza. Era gentil até mesmo com seu jovem ajudante, Jimmie.

Acima de tudo, ela adorava a intimidade sexual dos dois. Era a melhor coisa que já lhe acontecera. Agora, ansiava por morarem na mesma casa, dormirem na mesma cama. Poderiam fazer amor sempre que quisessem, antes de dormir ou logo depois de acordar, no meio da noite, ou até mesmo no meio do dia.

Os monges e freiras finalmente entraram, à frente o bispo Richard e seu assistente, arquidiácono Lloyd. Depois que todos se acomodaram, o prior Godwyn levantou-se e disse:

- Estamos reunidos aqui hoje para julgar a acusação de heresia contra Caris, filha de Edmund Wooler.

A multidão deixou escapar um murmúrio de espanto. Merthin gritou:

-Não!

Todos se viraram para Caris. Ela sentiu-se nauseada de tanto medo. Era como se tivesse levado um golpe inesperado no escuro. Não desconfiara de que aquilo poderia acontecer. Atordoada, ela indagou:

- Por quê? Ninguém respondeu.

Ela recordou a advertência do pai, de que Godwyn teria uma reação extremada à ameaça de uma carta regia de burgo. ”Sabe como ele é implacável, até mesmo nas pequenas disputas. Uma coisa assim pode levar a uma guerra total.” Caris estremeceu agora ao recordar sua resposta: ”Pois que assim seja. Teremos uma guerra total.”

Mesmo assim, a chance de sucesso de Godwyn seria mínima se o pai estivesse com uma boa saúde. Edmund lutaria contra Godwyn até o fim, e provavelmente o destruiria. Mas Caris sozinha ficava numa situação diferente. Não tinha o poder, autoridade, ou apoio popular do pai... ainda não. Sem Edmund, ela se tornara vulnerável.

Notou a tia Petranilla na multidão. Ela era uma das poucas pessoas que não olhavam para Caris. Como ela podia permanecer em silêncio? Claro que apoiava o filho Godwyn, de um modo geral... mas tentaria impedi-lo de condenar Caris à morte, não é mesmo? Dissera uma ocasião que queria ser como uma mãe para Caris. Ainda se lembraria disso? Caris teve certeza de que não. A devoção de Petranilla ao filho era grande demais. Era por isso que não podia fitar Caris nos olhos. Já tomara a decisão de não se opor a Godwyn. Philemon levantou-se:

- Milorde bispo... - disse ele, formal, dirigindo-se ao juiz, mas logo depois se virando para a multidão. - Como todos sabem, a mulher chamada Mattie Wise fugiu, assustada demais e culpada, não querendo ser julgada. Caris foi uma visitante freqüente da casa de Mattie durante alguns anos. E há poucos dias defendeu a mulher aqui na catedral, na presença de testemunhas.

Então fora por isso que Philemon lhe fizera perguntas sobre Mattie, compreendeu Caris. Ela olhou para Merthin. Ele ficara preocupado por não descobrir qual era a intenção de Philemon. Acertara ao se preocupar. Agora sabiam.

Ao mesmo tempo, parte da mente de Caris espantou-se com a transformação de Philemon. O garoto desajeitado e infeliz era agora um homem confiante e arrogante, de pé na frente do bispo, do prior e dos habitantes da cidade, tão cheio de rancor quanto uma cobra prestes a dar o bote. Philemon continuou:

- Ela se ofereceu para declarar sob juramento que Mattie não é bruxa. Por que faria isso... a não ser para encobrir sua própria culpa?

Merthin gritou:

- Porque ela é inocente, seu hipócrita mentiroso, e Mattie também!

Ele poderia ser posto no tronco por causa disso, mas outros gritavam ao mesmo tempo, e seu insulto passou sem comentários. Philemon acrescentou:

- Há pouco tempo Caris conseguiu milagrosamente tingir a lã na tonalidade exata do escarlate italiano, uma coisa que os tintureiros de Kingsbridge nunca conseguiram. Como ela conseguiu isso? Por um encantamento mágico!

Caris ouviu o rumor da voz de baixo de Mark Webber:

- Isso é uma mentira!

- Não podia fazer isso à luz do dia, é claro. Acendeu uma fogueira à noite no quintal dos fundos de sua casa, como foi testemunhado por pessoas que vivem nas proximidades.

Philemon fora meticuloso, refletiu Caris, com um mau presságio. Entrevistara seus vizinhos.

- E entoava estranhas cantigas. Por quê?

Caris cantava para si mesma, por tédio, enquanto fervia as misturas e mergulhava o tecido. Mas Philemon tinha a capacidade de converter atos triviais inocentes em evidências diabólicas. Ele baixou a voz para um sussurro teatral para dizer:

- Porque ela invocava a ajuda secreta do Príncipe das Trevas... - A voz se elevou para um grito: - ... Lúcifer!

A multidão soltou um grunhido de medo.

- Aquele tecido é o escarlate de Satã!

Caris olhou para Merthin, que estava consternado e comentou:

- Os idiotas começam a acreditar nele! A coragem de Caris começou a voltar.

- Não se desespere. Ainda não falei. Merthin pegou sua mão.

- Esse não é o único encantamento que ela usou - continuou Philemon, em tom mais normal. - Mattie Wise também fazia poções do amor.

Ele correu os olhos pela multidão, com uma expressão acusadora.

- Pode até haver mulheres depravadas nesta catedral que já usaram os poderes de Mattie para enfeitiçar um homem.

Inclusive sua própria irmã, pensou Caris. Philemon sabia disso?

- Aquela noviça poderá testemunhar - acrescentou Philemon.

Elizabeth Clerk levantou-se. Falou com voz contida, os olhos baixos, a própria imagem do recato sacerdotal.

- Eu digo isso sob juramento, pois espero ser salva. Eu era noiva de Merthin Builder.

- Mentirosa! - protestou Merthin.

- Estávamos apaixonados e éramos muito felizes - continuou Elizabeth. Mas de repente ele mudou. Parecia um estranho para mim. Tornou-se frio.

- Notou mais alguma coisa fora do comum, irmã? - perguntou Philemon.

- Notei, sim, irmão. Eu o vi segurar sua faca com a mão esquerda.

Um murmúrio de espanto percorreu a multidão. Era um sinal reconhecido de enfeitiçamento... embora, como Caris sabia, Merthin fosse ambidestro.

- E depois ele anunciou que da casar com Caris - arrematou Elizabeth.

Era espantoso, pensou Caris, como a verdade podia ser apenas um pouco distorcida para parecer sinistra. Ela sabia o que havia realmente acontecido. Merthin e Elizabeth eram apenas amigos, até que Elizabeth deixara bem claro que queria mais do que amizade. A essa altura, Merthin lhe dissera que não partilhava seus sentimentos, e haviam se separado. Mas um encantamento satânico dava uma história muito melhor.

Elizabeth podia ter se convencido de que dizia a verdade, mas Philemon sabia que era mentira. E Philemon era um instrumento de Godwyn.

Como Goilwyn era capaz de conciliar sua consciência com aquele nível de iniqüidade? Kstaria dizendo a si mesmo que qualquer coisa era justificada a serviço do priorado?

- Eu nunca poderia amar outro homem - concluiu Elizabeth. - Foi por isso que decidi entregar minha vida a Deus.

Ela sentou. Era um depoimento poderoso, refletiu Caris, sua consternação cada vez mais sombria, como um céu de inverno. O fato de Elizabeth ter se tornado uma freira proporcionava credibilidade às suas palavras. Ela fazia uma espécie de chantagem sentimental: Como podem não acreditar em mim depois que fiz tamanho sacrifício?

Os habitantes da cidade estavam mais quietos agora. Aquele não era o espetáculo de uma velha louca sendo condenada. Assistiam à batalha pela vida de uma companheira de todos. Philemon disse:

- O mais condenador de tudo, milorde bispo, é o depoimento final, de uma pessoa da própria família da acusada: seu cunhado, Elfric Builder!

Caris soltou um grito de espanto. Fora acusada por seu primo, Godwyn; pelo irmão de sua melhor amiga, Philemon; e por Elizabeth... mas aquilo era ainda pior. O marido de sua irmã falar contra ela era uma traição inominável. Ninguém mais respeitaria Elfric. Ele levantou-se. A expressão de desafio em seu rosto dizia a Caris que ele se envergonhava de si mesmo.

- Digo isso sob juramento, pois espero ser salvo.

Caris olhou ao redor, à procura da irmã Alice, mas não a viu em parte alguma. Se estivesse presente, teria detido Elfric. Com toda certeza, Elfric ordenara que ela ficasse em casa, sob algum pretexto. Era bem provável que Alice não tivesse conhecimento do que estava acontecendo.

- Caris fala com presenças invisíveis em cômodos vazios - declarou Elfric.

- Espíritos? - incitou Philemon.

- Receio que sim.

Um murmúrio de horror espalhou-se pela multidão.

Caris sabia que muitas vezes falava sozinha. Sempre pensara que era um hábito inofensivo, embora um pouco embaraçoso. O pai lhe dissera que todas as pessoas imaginativas faziam isso. Agora, o fato era usado para condená-la. Ela reprimiu um protesto. Era melhor deixar a acusação seguir até o fim, para depois refutar as alegações, uma a uma.

- Quando ela faz isso? - perguntou Philemon.

- Quando pensa que está sozinha.

- E o que ela diz?

- É difícil entender as palavras. Pode estar falando uma língua estrangeira.

A multidão reagiu a isso também; diziam que bruxas e suas entidades usavam uma linguagem própria, que ninguém mais podia entender.

- O que ela parece dizer?

- A julgar por seu tom de voz, está pedindo ajuda, suplicando por boa sorte, praguejando contra as pessoas que lhe causam infortúnio, esse tipo de coisas.

Merthin protestou:

- Isso não é prova! - Todos olharam para ele. - Elfric admitiu que não entendia as palavras... está apenas inventando!

Os cidadãos mais sensatos murmuraram algumas palavras de apoio, mas não suficientemente altas ou inteligentes quanto Caris gostaria que fossem. O bispo Richard falou pela primeira vez:

- Fique quieto. Os homens que interromperem o julgamento serão expulsos pela guarda. Continue, por favor, irmão Philemon, mas não peça a testemunhas para inventarem evidências depois que elas admitiram que não conhecem a verdade.

Isso era pelo menos imparcial, pensou Caris. Richard e sua família não morriam de amor por Godwyn depois da confusão pelo casamento de Margery. Por outro lado, era possível que Richard, como clérigo, não quisesse que a cidade saísse do controle do priorado. Talvez pelo menos ele se mantivesse neutro. A esperança de Caris aumentou um pouco.

- Acha que as entidades com quem ela fala a ajudaram de alguma maneira? perguntou Philemon a Elfric

- Claro que sim - respondeu Elfric. - Os amigos de Caris, aqueles que ela favorece, são afortunados. Merthin tornou-se um construtor bem-sucedido, embora nunca tivesse concluído seu aprendizado como carpinteiro. Mark Webber era um homem pobre, mas agora ficou rico. A amiga de Caris, Gwenda, casou com Wulfric, embora Wulfric estivesse noivo de outra. Como essas coisas puderam acontecer, senão através de ajuda antinatural?

- Obrigado. Elfric recuou.

Enquanto Philemon resumia as evidências, Caris lutou contra um crescente sentimento de terror. Tentou apagar de sua mente a imagem de Crazy Nell sendo açoitada atrás de uma carroça. Fez um esforço para se concentrar no que deveria dizer em sua defesa. Podia ridicularizar todos os depoimentos contra ela, mas talvez isso não fosse suficiente. Precisava explicar por que as pessoas haviam mentido a seu respeito e quais eram seus motivos.

Quando Philemon acabou, Godwyn perguntou se ela tinha alguma coisa a dizer. Numa voz que soava mais confiante do que se sentia, Caris declarou:

- Claro que tenho!

Ela foi para a frente da multidão. Não deixaria que seus acusadores monopolizassem a posição de autoridade. Não se apressou, deixando todos à espera. Aproximou-se do trono e fitou Richard nos olhos.

- Milorde bispo, digo isso sob juramento, pois espero ser salva... - ela virou-se para a multidão e acrescentou: -... e notei que Philemon não disse isso.

Godwyn interrompeu-a:

- Como monge, ele não precisa fazer o juramento. Caris alteou a voz:

- E é uma boa coisa para ele, caso contrário arderia no inferno pelas mentiras que disse hoje!

Um ponto para mim, pensou Caris, sua esperança aumentando mais um pouco.

Ela se dirigia à multidão. A decisão seria tomada pelo bispo, mas ele se deixaria influenciar pela reação dos habitantes da cidade. Não era um homem de elevados princípios.

- Mattie Wise curou muitas pessoas nesta cidade - começou ela. - Neste mesmo dia de sábado, há dois anos, quando a ponte desabou, ela foi incansável no tratamento dos feridos, trabalhando junto com madre Cecilia e as outras freiras. Hoje, correndo os olhos ao redor, vejo muitas pessoas que se beneficiaram de seus cuidados naquele momento terrível. Alguém ouviu-a invocar o demônio naquele dia? Se ouviu, que fale agora!

Ela fez uma pausa, para deixar que o silêncio impressionasse a multidão. Depois, apontou para Madge Webber.

- Mattie lhe deu uma poção que baixou a febre de seu filho. O que ela lhe disse? Madge parecia assustada. Ninguém se sentia à vontade ao ser chamado para

testemunha de defesa num julgamento de bruxaria. Mas Madge devia muito a Caris. Ergueu os ombros, assumiu uma expressão de desafio e respondeu:

- Mattie me disse: ”Reze a Deus, pois só Ele pode curar.” Caris apontou para o chefe da guarda.

- John, ela atenuou sua dor enquanto Matthew Barber consertava os ossos quebrados. O que ela lhe disse?

John estava acostumado a ser testemunha de acusação, e também se mostrou apreensivo, mas declarou em voz firme:

- Ela disse: ”Reze a Deus, pois só Ele pode curar.” Caris virou-se para a multidão.

- Todos sabem que Mattie não era uma bruxa. Neste caso, indaga o irmão Philemon, por que ela fugiu? Uma pergunta fácil. Ela tinha medo de que dissessem mentiras a seu respeito... como disseram a meu respeito. Qual de vocês mulheres, se falsamente acusada de heresia, se sentiria confiante em provar sua inocência num tribunal de padres e monges?

Ela tornou a correr os olhos ao redor, fixando-se nas mulheres mais proeminentes da cidade: Lib Wheeler, Sarah Taverner, Susanna Chepstow.

- Por que eu misturava as tinturas à noite? - continuou ela. - Porque os dias eram curtos! Como aconteceu também com muitos de vocês, meu pai não conseguiu vender toda a lã que comprou no ano passado. Eu queria transformar a lã crua em alguma coisa que pudesse oferecer no mercado. Era muito difícil desçobrir a fórmula, mas eu consegui, pelo trabalho árduo, ao longo de muitas horas, dia e noite... mas sem a ajuda de Satã.

Ela fez uma pausa para respirar. Quando recomeçou, usava um tom de voz diferente, mais jovial:

- Sou acusada de enfeitíçar Merthin. Tenho de admitir que o argumento contra mim é forte. Olhem para a irmã Elizabeth. Levante-se, por favor, irmã.

Relutante, Elizabeth levantou-se.

- Ela não é linda? - disse Caris. - É também inteligente. E filha de um bispo. Oh, perdoe, milorde bispo. Não tive a intenção de ser desrespeitosa.

A multidão riu da farpa impudente. Godwyn parecia indignado, mas o bispo Richard reprimiu um sorriso.

- Irmã Elizabeth não pode entender por que qualquer homem poderia me preferir em vez dela. Também não posso. Inexplicavelmente, Merthin me ama, feia como sou. Não posso explicar.

Houve mais risos.

- Lamento que Elizabeth esteja tão zangada. Se vivêssemos nos tempos do Antigo Testamento, Merthin poderia ter duas esposas, e todos seriam felizes.

As pessoas riram alto ao ouvir isso. Caris esperou que o som se desvanecesse antes de acrescentar:

- Mas o que mais lamento é que o ciúme comum de uma mulher desapontada tenha se tornado o pretexto, na boca de um monge noviço indigno de confiança, para uma acusação tão grave quanto a de heresia.

Philemon levantou-se para protestar contra a acusação de indigno de confiança, mas o bispo Richard acenou com a mão e disse:

- Deixe-a falar.

Caris decidiu que já argumentara o suficiente em relação a Elizabeth e seguiu adiante.

- Confesso que às vezes uso palavras vulgares quando estou sozinha... especialmente se dou uma topada. Mas podem perguntar por que meu próprio cunhado testemunha contra mim, dizendo que meus murmúrios são invocações dos espíritos do mal. - Ela fez uma pausa, antes de acrescentar, solene: - Meu pai está doente. Se ele morrer, sua fortuna será dividida entre mim e minha irmã. Mas se eu morrer primeiro, minha irmã ficará com tudo. E minha irmã é a esposa de Elfric

Ela fez outra pausa, correndo os olhos pela multidão com uma expressão irônica.

- Estão chocados? Eu também estou. Mas homens matam por menos dinheiro do que isso.

Ela recuou, como se tivesse acabado. Philemon levantou-se do banco. Caris virou-se e lhe disse, em latim:

- Caput tuum in ano est.

Os monges riram alto. Philemon ficou vermelho. Caris olhou para Elfric.

- Você não compreendeu, não é mesmo, Elfric?

- Não - respondeu ele, irritado.

- Talvez seja por isso que pensou que eu usava alguma sinistra língua de bruxaria. - Caris olhou para Philemon. - Irmão, sabe que língua usei, não é mesmo?

- Latim - respondeu Philemon.

- Talvez possa nos explicar o que acabei de dizer.

Philemon fitou o bispo, num apelo silencioso. Mas Richard estava achando muito engraçado e disse:

- Responda à pergunta. Furioso, Philemon obedeceu.

- Ela disse: ”Você tem a cabeça no ânus.”

Os espectadores caíram na gargalhada, enquanto Caris voltava ao seu lugar. Quando o barulho cessou, Philemon começou a falar, mas Richard interrompeu-o.

- Não preciso ouvir mais nada de você. Fez uma forte acusação, e ela apresentou uma vigorosa defesa. Alguém mais tem alguma coisa a dizer sobre essa acusação?

- Eu tenho, milorde bispo.

Frei Murdo adiantou-se. Algumas pessoas aplaudiram, outras protestaram: Murdo despertava reações contrárias.

- A heresia é um mal - disse ele, modulando a voz para um tom de pregação.

- Corrompe as almas das mulheres e dos homens...

- Obrigado, irmão, mas sei o que é heresia - disse Richard. - Tem mais alguma coisa a dizer? Se não...

-Apenas isso. Concordo e reitero...

- Se já foi dito antes...

- ... seu comentário de que a acusação é forte e a defesa também. -Neste caso...

- Tenho uma solução a propor.

- E que solução é essa, irmão Murdo? Com um mínimo de palavras.

- Ela deve ser examinada para se descobrir se tem a Marca do Demônio. O coração de Caris quase parou.

- Claro - concordou o bispo. - Pelo que me lembro, fez a mesma sugestão num julgamento anterior.

- É verdade, milorde, porque o demônio suga o sangue quente de seus acólitos através de um mamilo especial, assim como um bebê recém-nascido suga os seios intumescidos...

- Obrigado, irmão. Não preciso de detalhes adicionais. Madre Cecilia, pode levar a acusada, junto com outras duas freiras, para um lugar reservado e examiná-la?

Caris olhou para Merthin. Ele estava pálido de horror. Ambos pensavam a mesma coisa.

Caris tinha uma verruga.

Era pequena, mas as freiras a encontrariam... no lugar em que pensavam que o demônio estava mais interessado: no lado esquerdo da vulva, próxima da fenda. Era marrom escura e os cabelos dourado-vermelhos não a escondiam. Merthin gracejara na primeira vez em que a vira:

- Frei Murdo a chamaria de bruxa... é melhor não deixar que ele veja isso. E Caris rira e respondera:

- Nem que ele fosse o último homem no mundo.

Como poderiam ter falado a respeito de uma maneira tão despreocupada? Agora, ela seria condenada à morte por isso.

Caris olhou ao redor, desesperada. Teve vontade de fugir, mas estava cercada por centenas de pessoas, algumas das quais não hesitariam em detê-la. Viu a mão de Merthin na faca em seu cinto; mas mesmo que a faca fosse uma espada e ele fosse um grande espadachim - o que não era - não conseguiria abrir caminho através de uma multidão tão grande.

Madre Cecilia adiantou-se e pegou sua mão.

Caris decidiu que fugiria assim que deixasse a catedral. Poderia se desvencilhar com facilidade ao atravessar o claustro. Mas Godwyn interveio:

- John Constable, leve um de seus homens e escolte a mulher até o lugar de exame. Fique de guarda na porta.

Cecilia não poderia conter Caris, mas dois homens a subjugariam sem qualquer dificuldade.

John olhou para Mark Webber, normalmente sua primeira escolha entre os ajudantes. Caris sentiu uma tênue esperança: Mark era um amigo leal.

Mas John aparentemente teve o mesmo pensamento, pois desviou os olhos de Mark e apontou para Christopher Blacksmith.

Cecilia deu um puxão gentil na mão de Caris.

Como se fosse uma sonâmbula, Caris permitiu que madre Cecilia a tirasse da catedral. Saíram pelo portão norte, acompanhadas por irmã Mair e Old Julie, com John Constable e Christopher Blacksmith logo atrás. Atravessaram o claustro, entraram nos alojamentos das freiras e foram para o dormitório. Os dois homens permaneceram do lado de fora.

Cecilia fechou a porta.

- Não precisam me examinar - murmurou Caris, atordoada. Tenho uma marca.

- Sabemos disso - declarou Cecilia. Caris franziu o rosto.

- Como descobriram?

- Nós a lavamos. - Ela indicou Mair e Julie. - Todas as três. Quando esteve no hospital, há dois Natais. Tinha comido alguma coisa estragada.

Cecilia não sabia, ou fingia não ter adivinhado, que Caris tomara uma poção para acabar com a gravidez. Ela continuou:

- Estava vomitando e defecando, com uma hemorragia lá embaixo. Teve de ser lavada várias vezes. E todas nós vimos a verruga.

O desespero irremediável envolveu Caris como uma onda irresistível. Ela fechou os olhos.

- E agora serei condenada à morte - balbuciou ela, a voz tão baixa que era quase inaudível.

- Não necessariamente - disse Cecilia. - Pode haver outra solução.

Merthin estava transtornado. Caris estava acuada. Seria condenada à morte, e não havia nada que ele pudesse fazer. Não seria capaz de salvá-la, mesmo que fosse Ralph, com seus ombros largos, habilidade na espada, e prazer pela violência. Ficou olhando, horrorizado, para a porta pela qual Caris saíra. Sabia onde ficava a verruga de Caris, e tinha certeza de que as freiras a encontrariam... era o tipo de lugar em que procurariam com mais atenção.

Ao seu redor, os sons de conversas excitadas elevavam-se da multidão. As pessoas argumentavam a favor ou contra Caris, discutindo detalhes do julgamento. Mas ele parecia estar dentro de uma bolha, e mal ouvia o que os outros diziam. Em seus ouvidos, as conversas soavam como batidas irregulares de uma centena de tambores.

Descobriu-se a olhar para Godwyn, especulando o que ele estaria pensando. Merthin podia compreender os outros - Elizabeth era corroída pelo ciúme; Elfric, dominado pela ganância; e Philemon era pura malevolência -, mas o prior deixava-o aturdido. Godwyn fora criado com a prima Caris e sabia que ela não era uma bruxa. Mesmo assim, mostrava-se disposto a determinar sua morte. Como podia cometer tamanha iniqüidade? Que desculpa ele apresentava para si mesmo?

Achava que era tudo pela glória de Deus? Houvera uma época em que Godwyn parecera ser um homem esclarecido e decente, o antídoto para o conservadorismo estreito do prior Anthony. Mas agora se revelava pior do que Anthony: mais implacável na busca dos mesmos objetivos obsoletos.

Se Caris morrer, pensou Merthin, terei de matar Godwyn.

Seus pais se aproximaram. Estavam na catedral desde o início do julgamento. O pai disse alguma coisa, mas Merthin não entendeu.

- Como? - indagou ele.

Foi nesse instante que o portão norte foi aberto. A multidão se calou. Madre Cecilia entrou sozinha na catedral e fechou o portão. Houve um murmúrio de curiosidade. O que aconteceria agora?

Cecilia foi até o trono do bispo.

- E então, madre prioresa? - indagou Richard. - O que tem a dizer ao tribunal? Cecilia falou devagar:

- Caris confessou...

Houve um rumor chocado da multidão. Cecilia elevou a voz:

- ... confessou seus pecados.

Todos se calaram de novo. O que isso significava?

- Recebeu a absolvição...

- De quem? - interrompeu Godwyn. - Uma freira não pode conceder absolvição!

- Do padre Joffroi.

Merthin conhecia Joffroi. Era o padre de St. Mark, a igreja cujo telhado ele consertara. Joffroi não gostava de Godwyn.

Mas o que estava acontecendo? Todos ficaram esperando que Cecilia explicasse. E ela acrescentou:

- Caris solicitou seu ingresso como noviça aqui no priorado...

Ela foi interrompida de novo por gritos da multidão, mas arrematou ainda mais alto:

- ... e eu aceitei!

O tumulto foi enorme. Merthin pôde ver que Godwyn berrava a plenos pulmões, mas suas palavras se perdiam na confusão. Elizabeth estava furiosa; Philemon olhava para Cecilia com um ódio venenoso; Elfric se mostrava atordoado; Richard parecia se divertir. A mente de Merthin era um turbilhão com as implicações. O bispo aceitaria aquilo? O julgamento terminara? Caris fora salva da execução?

O tumulto não demorou a cessar. Assim que pôde ser ouvido, Godwyn perguntou, o rosto branco de fúria:

- Ela confessou ou não a heresia?

- O confessionário é sagrado - respondeu Cecilia, imperturbável. - Não sei o que ela disse ao padre... e se soubesse, não poderia contar a você nem a qualquer outra pessoa.

- Ela tem a marca de Satã?

- Não a examinamos. - A resposta era evasiva, Merthin compreendeu, mas Cecilia apressou-se em acrescentar: - Não era necessário depois que ela recebeu a absolvição.

- Isso é inaceitável! - berrou Godwyn, abandonando a farsa de que Philemon era o acusador. -A prioresa não pode frustrar os procedimentos do tribunal dessa maneira!

O bispo Richard interveio:

- Obrigado, padre prior...

- A ordem do tribunal deve ser cumprida! Richard alteou a voz:

-Já chega!

Godwyn abriu a boca para continuar a protestar, mas mudou de idéia. Richard continuou:

- Não preciso ouvir mais nenhum argumento. Tomei uma decisão, e agora anunciarei o resultado do julgamento.

Todos ficaram em silêncio.

- A proposta de que Caris tenha permissão para ingressar no convento é muito interessante. Se ela for uma bruxa, não poderá causar qualquer mal na santidade do priorado. O demônio não pode entrar aqui. Por outro lado, se ela não for uma bruxa, nós seremos salvos do erro de condenar uma mulher inocente. Talvez o convento não fosse a escolha de Caris como uma maneira de viver, mas seu consolo será uma existência dedicada a servir a Deus. Em suma, acho que é uma solução satisfatória.

- O que acontece se ela deixar o convento? - perguntou Godwyn.

- Bem lembrado - disse o bispo. - É por isso que vou condená-la à morte formalmente, mas suspender a sentença por todo o tempo em que ela permanecer uma freira. Se ela algum dia renunciar a seus votos, a sentença será cumprida.

Então é isso, pensou Merthin, desesperado, uma sentença perpétua; e ele sentiu lágrimas de raiva e frustração aflorarem a seus olhos. Richard levantou-se. Godwyn declarou:

- O julgamento está encerrado!

O bispo se retirou, acompanhado pelos monges e freiras em procissão. Merthin foi andando, atordoado. A mãe lhe falou, em tom de conforto, mas ele ignorou-a. Deixou que a multidão o levasse para o portão oeste da catedral. Saiu para o pátio gramado. Os mercadores guardavam as mercadorias que haviam sobrado e desmontavam os estandes: a Feira do Velocino terminava por mais um ano. Godwyn conseguira o que queria, refletiu ele. Com Edmund agonizante e Caris fora do caminho, Elfric se tornaria o novo regedor e o pedido de carta regia de burgo seria retirado.

Merthin olhou para as paredes cinzentas de pedras dos prédios do priorado: Caris se encontrava em algum lugar por ali. Ele virou-se, contra a onda da multidão, e seguiu para o hospital.

Estava vazio. Fora varrido, e os colchões de palha para os visitantes noturnos haviam sido empilhados contra as paredes. Uma vela ardia no altar, no lado leste. Merthin percorreu devagar toda a extensão da vasta sala, sem saber o que faria em seguida.

Recordou, do Livro de Timothy, que seu ancestral, Jack Builder, se tornara um noviço, por um breve período. O autor insinuara que Jack fora um recruta relutante, e não aceitara facilmente a disciplina monástica; de qualquer forma, o noviciado terminara de forma abrupta, em circunstâncias sobre as quais Timothy estendera um véu de tato.

Mas o bispo Richard declarara que a sentença de morte seria aplicada se Caris algum dia deixasse o convento. Uma jovem freira entrou no hospital. Ficou assustada ao reconhecer Merthin.

- O que você quer aqui? ,,

- Preciso falar com Caris.

- Perguntarei se é possível.

A freira retirou-se, apressada. Merthin olhou para o altar, o crucifixo, o triptico na parede mostrando Elizabeth da Hungria, a padroeira dos hospitais. Um painel mostrava a santa, que fora uma princesa, usando uma coroa e alimentando os pobres; o segundo mostrava-a construindo seu hospital; e o terceiro ilustrava o milagre em que a comida que ela carregava por baixo do manto se transformara em rosas. O que Caris faria naquele lugar? Ela era uma cética, duvidava de quase tudo que a Igreja ensinava. Não acreditava que uma princesa fosse capaz de transformar pão em rosas.

- Como eles sabem disso?

Era o que ela sempre dizia sobre as histórias que todos os outros aceitavam sem qualquer questionamento, como Adão e Eva, a Arca de Noé, Davi e Golias, até mesmo a Natividade. Caris se sentiria como uma gata selvagem enjaulada.

Ele precisava conversar com Caris, para descobrir o que ela estava pensando. Caris devia ter algum plano, que ele não era capaz de adivinhar. Esperou, impaciente, pela volta da freira. Mas isso não aconteceu. Em vez disso, foi Old Julie quem apareceu.

- Graças aos céus! - exclamou Merthin. - Preciso falar com Caris, Julie, o mais depressa possível.

- Lamento muito, jovem Merthin, mas Caris não quer falar com você.

- Não diga bobagem. Estamos noivos... devemos casar amanhã. Ela tem de falar comigo!

- Ela é agora uma noviça. Não vai mais casar. Merthin elevou a voz:

- Se isso é verdade, não acha que ela deve me dizer pessoalmente?

- Não posso falar por ela. Mas Caris sabe que você está aqui e não quer vê-lo.

- Não acredito em você!

Merthin adiantou-se e passou pela porta através da qual a velha freira entrara no hospital. Descobriu-se numa pequena sala. Nunca estivera ali antes: poucos homens jamais ingressavam nas áreas do priorado reservadas às freiras. Ele passou por outra porta e entrou no claustro das freiras. Havia várias ali, algumas lendo, outras caminhando de um lado para outro, em meditação, algumas conversando em voz baixa.

Ele correu ao longo da arcada. Uma freira avistou-o e gritou. Merthin ignorou-a. Viu uma escada, subiu correndo, e entrou no primeiro cômodo. Era um dormitório. Havia duas fileiras de colchões, com cobertores em cima, dobrados com todo cuidado. Não havia ninguém ali. Ele deu mais alguns passos pelo corredor, e tentou abrir outra porta. Estava trancada.

- Caris! - gritou ele. - Você está aí dentro? Fale comigo!

Merthin bateu com o punho na porta. Arranhou a pele das articulações e começou a sangrar, mas não sentiu qualquer dor.

- Deixe-me entrar! - berrou ele. - Deixe-me entrar! Uma voz por trás disse:

- Eu o deixarei entrar.

Ele virou-se para se deparar com madre Cecilia.

Ela tirou uma chave do cinto e calmamente destrancou a porta. Merthin empurrou-a. Era um cômodo pequeno, com uma única janela. Havia prateleiras ao longo das paredes, cheias de roupas dobradas.

- É aqui que guardamos nossas roupas de inverno - explicou Cecilia. - É um depósito.

- Onde ela está?

- Num quarto com a porta trancada, a seu próprio pedido. Não encontrará o quarto... e se encontrar, não poderá entrar. Ela não quer falar com você.

- Como posso saber que ela não está morta?

Merthin percebeu que sua voz tremia de emoção, mas não se importava.

- Você me conhece. Ela não está morta. - Cecilia olhou condoída para a mão dele. - Você se machucou. Venha comigo e passarei um ungüento nos cortes.

Ele olhou para sua mão e depois para Cecilia.

- Você é um demônio!

Merthin saiu correndo, de volta pelo caminho por que viera. Atravessou o hospital, passando pela assustada Julie, e saiu para o ar livre. Percorreu o caos de fim de feira na frente da catedral, e foi para a rua principal. Pensou em conversar com Edmund, mas decidiu contra: era melhor deixar que outra pessoa revelasse a terrível verdade para o pai doente de Caris. Em quem podia confiar? Pensou em Mark Webber.

Mark e a família haviam se mudado para uma casa grande na rua principal, com um enorme depósito de pedra para os tecidos no térreo. Não havia tear na cozinha agora: toda a tecelagem era feita por outros, que eles organizavam. Mark e Madge estavam sentados num banco, com expressões solenes. Quando Merthin entrou, Mark levantou-se de um pulo.

- Falou com ela? - perguntou Mark.

- Não me deixaram.

- Isso é um absurdo! - exclamou Mark. - Não têm o direito de impedi-la de falar com o homem com quem ela deveria casar!

- As freiras dizem que ela não quer falar comigo.

- Não acredito nelas.

- Nem eu. Entrei e procurei Caris, mas não consegui encontrá-la. Há muitas portas trancadas.

- Ela deve estar em algum lugar por lá.

- Sei disso. Pode me acompanhar e levar um malho, para arrombar todas as portas, até encontrá-la?

Mark ficou embaraçado. Por mais forte que fosse, detestava a violência. Merthin acrescentou:

- Tenho de encontrá-la... ela pode estar morta! Antes que Mark pudesse responder, Madge interveio:

- Tenho uma idéia melhor. Os dois a fitaram.

- Irei até o convento. As freiras não ficarão tão nervosas com a presença de uma mulher. Talvez possam persuadir Caris a conversar comigo.

Mark acenou com a cabeça em concordância.

- Pelo menos saberemos assim se ela continua viva.

- Mas... preciso saber mais do que isso - murmurou Merthin. - O que ela está pensando? Vai esperar até que a confusão seja esquecida para depois fugir? Devo tentar tirá-la à força de lá? Ou devo apenas aguardar... e neste caso, por quanto tempo? Um mês? Um ano? Sete anos?

- Perguntarei a ela, se me deixarem entrar. - Madge levantou-se. - Espere aqui.

- Não - disse Merthin. - Irei com você. E esperarei lá fora.

- Neste caso, Mark, por que não vem também, para fazer companhia a Merthin?

Para impedir que Merthin se meta em alguma encrenca, ela queria dizer. Mas ele não fez qualquer objeção. Pedira ajuda. E sentia-se grato por ter ao seu lado duas pessoas em quem confiava.

Seguiram apressados para o priorado. Mark e Merthin esperaram do lado de fora do hospital, enquanto Madge entrava. Merthin viu que o velho cachorro de Caris, Scrap, estava sentado na porta, esperando a volta de sua dona. Meia hora depois da entrada de Madge, Merthin comentou:

- Acho que a deixaram entrar, caso contrário ela já teria voltado a esta altura

- Saberemos em breve.

Eles observaram os últimos mercadores empacotarem suas coisas e partirem, deixando o pátio da catedral como um mar de lama revolvida. Merthin andou de um lado para outro, enquanto Mark permanecia sentado, como uma estátua de Sansão. Uma hora se seguiu a outra. Apesar de sua impaciência, Merthin sentiu-se contente pela demora, pois significava que Madge conseguira se encontrar com Caris.

O sol já mergulhava no lado oeste da cidade quando Madge finalmente voltou. Tinha uma expressão solene, o rosto manchado de lágrimas.

- Caris está viva - anunciou Madge. - E não há nada de errado com ela, na parte física e mental. Mantém um juízo perfeito.

- O que ela disse? - perguntou Merthin, ansioso.

- Eu lhe direi cada palavra. Vamos para a horta.

Os três foram para a horta. Sentaram no banco de pedra que havia ali, de frente para o pôr-do-sol. A serenidade de Madge deixava Merthin com um mau presságio. Preferiria se ela estivesse fervendo de raiva. Sua atitude indicava que a notícia era ruim. Ele perdeu toda e qualquer esperança.

- É verdade que Caris não quer falar comigo? Madge suspirou.

- É, sim.

- Mas por quê?

- Perguntei isso. Ela disse que partiria seu coração.

Merthin começou a chorar. Madge continuou, a voz baixa e clara:

- Madre Cecilia deixou-nos a sós, para que pudéssemos conversar com franqueza, sem que mais ninguém ouvisse. Caris acha que Godwyn e Philemon estão determinados a se livrar dela, por causa do pedido da carta regia de burgo. Ela está segura no convento, mas será caçada e morta se algum dia sair.

- Ela poderia fugir e eu a levaria para Londres! - exclamou Merthin. Godwyn nunca nos encontraria lá!

Madge balançou a cabeça em concordância.

- Eu disse isso a ela. Conversamos a respeito por algum tempo. Caris acha que vocês dois seriam fugitivos pelo resto da vida. E não quer condená-lo a isso. Seu destino é ser o maior construtor de sua geração. Será famoso. Mas se ela estiver com você, sempre terá de mentir sobre sua identidade e se esconder da luz do dia.

- Não me importo!

- Caris previu que você diria isso. Mas acha que você se importaria... que deve se importar. Seja como for, ela se preocupa. Não quer privá-lo de seu destino, mesmo que você peça.

- Ela poderia me dizer isso pessoalmente!

- Tem medo de que você possa persuadi-la.

Merthin sabia que Madge dizia a verdade. Cecilia também dissera a verdade. Caris não queria falar com ele. Ele sentiu que sufocava de angústia. Engoliu em seco, limpou as lágrimas do rosto com a manga, e fez um esforço para falar:

- Mas o que ela vai fazer?

- Tirar o melhor proveito da situação. Tentará ser uma boa freira.

- Ela odeia a Igreja!

- Sei que ela nunca foi muito respeitosa com os clérigos. Nesta cidade, isso não chega a surpreender. Mas acha que pode encontrar algum conforto numa vida dedicada a curar as outras mulheres e os homens.

Merthin pensou a respeito. Mark e Madge observavam-no em silêncio. Ele podia imaginar Caris trabalhando no hospital, cuidando dos doentes. Como se sentiria por ter de passar a metade da noite cantando e rezando?

- Ela pode se matar - murmurou ele, depois de uma longa pausa.

- Não creio - disse Madge, com absoluta convicção. - Ela está muito triste, mas não a vejo optando por essa saída.

- Ela pode matar alguém.

- Isso é mais provável.

- E ela pode até encontrar uma certa felicidade - acrescentou Merthin, falando devagar e relutante.

Madge não disse nada. Merthin fitou-a nos olhos. Ela acenou com a cabeça. Era a terrível verdade, refletiu Merthin. Caris poderia ser feliz. Estava perdendo sua casa, a liberdade e o quase marido, mas no final ainda poderia ser feliz. Não havia mais nada a dizer. Merthin levantou-se.

- Obrigado por serem meus amigos. Ele começou a se afastar.

- Para onde você vai? - perguntou Mark.

Merthin parou e virou-se. Havia um pensamento se agitando em sua cabeça, e ele esperou que se tornasse nítido. Ficou espantado quando isso aconteceu. Mas compreendeu no mesmo instante que era a idéia certa. E não apenas certa... perfeita.

Ele limpou as lágrimas do rosto e fitou Mark e Madge à claridade avermelhada do sol poente.

- Vou para Florença. Adeus.

 

março de 1346 a dezembro de 1348

A irmã Caris deixou o claustro das freiras e entrou no hospital, apressada. Havia três pacientes deitados ali. Old Julie estava agora lffSSLtmSi nito enferma para comparecer aos serviços, ou subir a escada para o dormitório das freiras. Bella Brewer, a esposa de Danny, filho de Dick Brewer, recuperava-se de um parto complicado. E Rickie Silvers, de treze anos, tinha um braço quebrado, que Matthew Barber consertara. Duas outras pessoas sentavam num banco no lado, conversando: uma noviça chamada Nellie, e um servo do priorado, Bob.

O olhar experiente de Caris esquadrinhou a sala. Havia um prato sujo ao lado de cada cama ocupada. A hora do almoço há muito se passara.

- Bob! - Ele se levantou de um pulo e Caris ordenou: - Tire esses pratos. Aqui é um mosteiro, e a higiene é uma virtude. Depressa!

- Desculpe, irmã.

- Nellie, você já levou Old Julie à latrina?

- Ainda não, irmã.

- Ela sempre precisa ir depois do almoço. A mesma coisa acontecia com minha mãe. Leve-a depressa, antes que ocorra um acidente.

Nellie começou a levantar a velha freira.

Caris vinha tentando desenvolver a qualidade da paciência, mas depois de sete anos como freira ainda não conseguira. Sentia-se frustrada por ter de repetir as instruções muitas e muitas vezes. Bob sabia que deveria levar os pratos sujos assim que os pacientes acabavam de comer... Caris lhe dissera isso inúmeras vezes. Nellie conhecia as necessidades de Julie. Apesar disso, ficavam sentados num banco, conversando, até que Caris os surpreendia com uma inspeção inesperada.

Ela pegou a tigela com a água que fora usada para lavar mãos e percorreu toda a extensão da sala para jogar fora. Um desconhecido urinava na parede externa do prédio. Caris calculou que era um viajante na expectativa de um lugar para dormir.

- Na próxima vez, use a latrina atrás do estábulo - disse ela, ríspida.

Ele lançou-lhe um olhar desdenhoso, com o pênis na mão, e indagou, insolente:

- E quem é você?

- Sou a encarregada deste hospital, e você terá de melhorar suas maneiras se quiser passar a noite aqui.

- Do tipo mandona, hem?

Ele não se apressou, sacudindo as últimas gotas.

- Guarde o seu patético membro, ou não terá permissão para passar a noite nesta cidade, muito menos no priorado.

Caris jogou a água da tigela em cima dele. O homem pulou para trás, aturdido, o calção encharcado.

Ela tornou a entrar e encheu a tigela na fonte. Havia um cano subterrâneo que passava por baixo do priorado, trazendo água limpa do rio, captada de um ponto acima da cidade. Alimentava as fontes nos claustros, nas cozinhas e no hospital. Uma ramificação separada da corrente subterrânea lavava as latrinas. Caris queria construir um dia uma nova latrina, ao lado do hospital, para que os pacientes senis, como Julie, não precisassem ir tão longe. O estranho entrou no hospital.

- Lave as mãos - disse-lhe Caris, estendendo a tigela com água.

Ele hesitou, mas pegou a tigela. Caris examinou o estranho. Ele devia ter mais ou menos a sua idade, vinte e nove anos.

- Quem é você? - perguntou ela.

- Gilbert de Hereford, um peregrino. Vim reverenciar as relíquias de St. Adolphus.

- Neste caso, será bem-vindo para passar a noite aqui no hospital, desde que me fale com o devido respeito... e com qualquer outra pessoa aqui, diga-se de passagem.

- Está bem, irmã.

Caris voltou ao claustro. Era um dia ameno de primavera. O sol brilhava nas velhas pedras lisas do pátio. No lado oeste, irmã Mair ensinava um novo hino às meninas da escola. Caris parou para observar. As pessoas diziam que Mair parecia com um anjo: ela possuía uma pele alva, olhos brilhantes e uma boca que parecia um arco. A escola, pelas normas, era uma das responsabilidades de Caris, pois tinha o comando de todas as pessoas que vinham do mundo exterior para o convento. Ela própria cursara aquela escola, há quase vinte anos.

Havia dez alunas, dos nove aos quinze anos de idade. Algumas eram filhas de mercadores de Kingsbridge, outras, de nobres. O hino, com o tema de que Deus é bom, chegou ao final. Uma das meninas perguntou:

- Irmã Mair, se Deus é bom, por que ele deixou meus pais morrerem?

Era a versão pessoal da criança de uma indagação clássica, formulada por todas as crianças inteligentes, mais cedo ou mais tarde. Como as coisas ruins podiam acontecer? Caris também perguntara isso. Ela olhou com interesse para a menina que fizera a pergunta. Era Tilly Shiring, sobrinha de doze anos do conde Roland, uma menina com uma expressão travessa que Caris apreciava. A mãe de Tilly sangrara até a morte quando a filha nascera, e o pai quebrara o pescoço num acidente de caçada, não muito tempo depois. Por isso, ela fora criada na casa do conde.

Mair deu uma resposta insossa sobre os misteriosos caminhos de Deus. Tilly não ficou satisfeita, mas era incapaz de articular suas dúvidas, e resolveu se calar. A questão ressurgiria, Caris tinha certeza.

Mair mandou que as meninas recomeçassem a cantar o hino, antes de se afãstar para falar com Caris.

- Uma menina inteligente - comentou Caris.

- A melhor da turma. Dentro de um ou dois anos ela estará argumentando comigo com o maior vigor.

- Ela me lembra alguém - murmurou Caris, franzindo o rosto. - Estou tentando recordar sua mãe...

Mair tocou de leve no braço de Caris. Os gestos de afeição eram proibidos entre as freiras, mas Caris não era rigorosa nessas coisas.

- Ela lhe lembra você mesma.

Caris riu.

- Nunca fui tão bonita.

Mas Mair tinha razão: mesmo quando criança, Caris já fazia perguntas céticas. Mais tarde, quando se tornara uma noviça, iniciava uma discussão em cada aula de teologia. Dentro de uma semana, madre Cecilia fora obrigada a ordenar que ela se mantivesse calada durante as aulas. Depois, Caris começara a violar as regras do convento; e reagia à correção com o questionamento da razão por trás da disciplina do convento. Mais uma vez, o silêncio lhe fora imposto.

Não demorara muito para que madre Cecilia propusesse um acordo. Caris poderia passar a maior parte de seu tempo no hospital - uma parte do trabalho de freira em que ela acreditava - e se abster dos serviços sempre que necessário. Em troca, Caris tinha de parar de escarnecer da disciplina e guardar para si mesma suas idéias teológicas. Caris concordara, relutante e contrariada, mas Cecilia era esperta, e o arranjo dera certo. Ainda dava, pois Caris agora passava a maior parte de seu tempo supervisionando o hospital. Faltava a mais da metade dos serviços, e quase nunca dizia ou fazia qualquer coisa que fosse abertamente subversiva.

Mair sorriu.

- Você é linda agora. Ainda mais quando ri.

Caris descobriu-se momentaneamente fascinada pelos olhos azuis de Mair. E foi nesse instante que ouviu um grito de criança.

Virou-se. O grito não partira do grupo no claustro, mas sim do hospital. Ela seguiu apressada até lá. Christopher Blacksmith entrava no hospital com uma garota de oito anos no colo. A criança, que Caris reconheceu como a filha dele, Minnie, gritava de dor.

- Deite-a num colchão - instruiu Caris. Christopher obedeceu.

- O que aconteceu?

Christopher era um homem forte em pânico. Falou numa voz estranhamente estridente:

- Ela tropeçou em minha oficina e caiu com o braço numa barra de ferro em brasa. Faça alguma coisa por ela depressa, irmã. Nunca vi tanta agonia!

Caris tocou no rosto da criança.

- Calma, Minnie, calma... Já vamos aliviar a dor.

Extrato de semente de papoula era muito forte, pensou ela: poderia matar uma criança tão pequena. Ela precisava de uma poção mais leve.

- Nellie, vá até minha farmácia e pegue o pote que tem a indicação de ”Essência de cânhamo”. Ande depressa, mas não corra... se tropeçasse e quebrasse o pote, levaria horas para preparar uma nova poção.

Nellie afastou-se apressada. Caris estudou o braço de Minnie. A queimadura era horrível, mas se limitava ao braço. Não era tão perigosa quanto as queimaduras no corpo todo que as pessoas sofriam nos incêndios de suas casas. Havia enormes bolhas avermelhadas sobre a maior parte do antebraço, e no meio a pele fora queimada para revelar a carne chamuscada por baixo. Caris procurou por ajuda e avistou Mair.

- Vá até a cozinha e me traga um quartilho de vinho e a mesma quantidade de azeite, em dois jarros separados. Ambos devem estar mornos, mas não quentes.

Mair se retirou. Caris disse para a criança:

- Minnie, você precisa parar de gritar. Sei que dói, mas tem de me escutar. Já vou lhe dar um remédio para aliviar a dor.

Os gritos diminuíram de intensidade, e começaram a se transformar em soluços. Nellie voltou com a essência de cânhamo. Caris despejou um pouco numa colher, enfiou na boca de Minnie, e tapou o nariz. A criança engoliu. Gritou de novo, mas depois de um minuto começou a se acalmar.

- Dê-me uma toalha limpa, Nellie.

Elas usavam muitas toalhas no hospital. O armário por trás do altar estava sempre cheio de toalhas, por determinação de Caris.

Mair chegou com o azeite e o vinho. Caris pôs a toalha no chão, ao lado do colchão de Minnie. Ajeitou o braço queimado em cima da toalha.

- Como se sente? - perguntou ela.

- Dói muito.

Caris acenou com a cabeça em satisfação. Eram as primeiras palavras coerentes que a paciente pronunciava. O pior já passara. Minnie começava a ficar sonolenta, à medida que o cânhamo fazia efeito. Caris disse:

- Vou pôr uma coisa em seu braço para fazê-lo melhorar. Tente mantê-lo imóvel, está bem?

Minnie acenou com a cabeça.

Caris despejou um pouco do vinho morno no pulso da menina, onde a queimadura não era tão grave. Minnie se encolheu toda, mas não tentou tirar o braço. Encorajada, Caris lentamente subiu o jarro pelo braço, despejando o vinho sobre o pior da queimadura, para limpar. Depois, fez a mesma coisa com o azeite, que também aliviaria a dor no local e protegeria a carne das influências ruins no ar. Finalmente, ela pegou outra toalha para envolver o braço, sem apertar, a fim de impedir o pouso de moscas.

Minnie estava gemendo, mas meio adormecida. Caris olhou ansiosa para sua pele. A menina tinha o rosto rosado, corado da tensão. O que era ótimo: se ela estivesse pálida, seria um sinal de que a dose fora muito forte.

Caris sempre ficava nervosa com as drogas. A força variava de uma poção para outra, e ela não tinha uma maneira precisa de medir. Quando fraco, o medicamento era ineficaz; quando forte, perigoso. Sentia-se especialmente preocupada em dar uma dose exagerada a crianças, embora os pais sempre a pressionassem a dar uma dose forte, porque ficavam transtornados com a dor dos filhos.

Irmão Joseph entrou no hospital. Estava velho agora - próximo dos sessenta anos - e todos os dentes haviam caído, mas ainda era o melhor monge médico do priorado. Christopher Blacksmith levantou-se de um pulo.

- Oh, irmão Joseph, graças a Deus está aqui! Minha menina sofreu uma terrível queimadura!

- Vamos dar uma olhada - disse Joseph.

Caris recuou, escondendo sua irritação. Todos achavam que os monges eram médicos competentes, capazes de realizar quase milagres, enquanto as freiras apenas alimentavam e limpavam os pacientes. Caris há muito deixara de lutar contra essa atitude, mas ainda ficava irritada.

Joseph tirou a toalha e examinou o braço da paciente. Tocou na carne queimada com as pontas dos dedos. Minnie choramingou no sono drogado.

- Uma queimadura grave, mas não fatal. - O monge virou-se para Caris. Faça um cataplasma de três partes de gordura de galinha, três partes de esterco de cabra, e uma parte de chumbo branco. Cubra a queimadura com isso. Vai tirar o pus.

- Está bem, irmão.

Caris tinha dúvidas sobre o valor de cataplasmas. Já observara que muitos ferimentos curavam sem que o pus saísse, embora os monges considerassem que o pus era um sinal saudável. Em sua experiência, os ferimentos ficavam infeccionados por baixo desses cataplasmas. Mas os monges discordavam... exceto por irmão Thomas, que estava convencido de que perdera o braço por causa do cataplasma prescrito pelo prior Anthony, quase vinte anos antes. Mas essa era outra batalha que Caris desistira de travar. As técnicas dos monges tinham a autoridade de Hipocrates e Galeno, os autores antigos da medicina, e todos concordavam que eles deviam estar certos.

Joseph saiu. Caris providenciou para que Minnie estivesse confortável, e tranqüilizou o pai.

- Ela terá muita sede ao acordar. Cuide para que tenha o bastante para beber... cerveja fraca ou vinho aguado.

Caris não tinha pressa para fazer o cataplasma. Daria a Deus umas poucas horas para trabalhar sem ajuda, antes de iniciar o tratamento de Joseph. A probabilidade de o monge médico voltar mais tarde para verificar a paciente era minima. Ela mandou Nellie buscar esterco de cabra na horta a oeste da catedral, e depois foi para sua farmácia.

Ficava ao lado da biblioteca dos monges. Infelizmente, ela não tinha janelas grandes, como havia na biblioteca. A sala era pequena e escura. Mas tinha uma bancada para trabalhar, prateleiras para os potes e frascos, e uma pequena lareira para esquentar os ingredientes.

Ela guardava um pequeno livro de anotações no armário. O pergaminho era caro e um bloco de folhas idênticas só era usado para as sagradas escrituras. Mas Caris recolhera sobras de tamanhos irregulares e as juntara por uma costura. Mantinha um registro de cada paciente com um problema sério. Registrava a data, o nome do paciente, os sintomas e o tratamento dispensado; mais tarde, acrescentava os resultados, sempre anotando com precisão quantas horas ou dias haviam se passado antes que o paciente melhorasse ou piorasse.

Verificava os casos passados com freqüência, a fim de refrescar a memória sobre a eficiência de diferentes tratamentos.

Quando anotou a idade de Minnie, ocorreu-lhe que sua própria criança teria oito anos agora, se não fosse pela poção de Mattie Wise. Sem qualquer bom motivo, ela achava que seria uma menina. Especulou como reagiria se sua própria filha sofresse um acidente. Seria capaz de lidar com a emergência com tanta calma? Ou ficaria quase histérica de medo, como Christopher Blacksmith?

Acabara de registrar o caso quando soou o sino para a Véspera. Foi para o serviço. Depois, as freiras jantavam. E iam para a cama, pois tinham de se levantar às três horas da madrugada para a Matina.

Em vez de se deitar, porém, Caris foi para a farmácia, a fim de preparar o cataplasma. Não se importava com o esterco de cabra... qualquer pessoa que trabalhava num hospital via coisas piores. Mas não entendia como Joseph podia imaginar que era uma coisa para pôr em carne queimada.

Agora, não poderia fazer a aplicação até o dia seguinte. Minnie era uma criança saudável: sua recuperação já estaria bem adiantada até lá.

Enquanto ela trabalhava, Mair entrou na sala. Caris fitou-a, curiosa.

- O que está fazendo fora da cama?

Mair parou ao lado da bancada de trabalho.

- Vim ajudá-la.

- Não há necessidade de duas pessoas para preparar um cataplasma. O que irmã Natalie disse?

Natalie era a vice-prioresa, no comando da disciplina; ninguém podia deixar o dormitório à noite sem a sua permissão.

- Ela está num sono profundo. Você acha mesmo que não é bonita?

- Saiu da cama para me perguntar isso?

- Merthin devia achar que era. Caris sorriu.

- É verdade.

- Sente saudade dele?

Caris terminou de misturar o cataplasma e virou-se para lavar as mãos numa tigela.

- Penso em Merthin todos os dias. Ele é agora o arquiteto mais rico de Florença.

- Como sabe?

- Tenho notícias dele quase todos os anos, na Feira do Velocino, através de Buonaventura Caroli.

- Merthin recebe notícias suas?

- Que notícias? Não há nada para contar. Sou uma freira.

- Ainda o deseja?

Caris virou-se para fitar Mair nos olhos.

- As freiras são proibidas de desejar os homens.

- Mas não as mulheres - murmurou Mair, inclinando-se para beijá-la na boca. Caris ficou tão surpresa que se manteve paralisada por um instante. Mair

insistiu no beijo. O contato dos lábios de uma mulher era suave, diferente do beijo de Merthin.

Caris sentiu se chocada, mas não horrorizada. Há sete anos que ninguém a beijava, e compreendeu de repente o quanto sentia falta.

No silêncio, ouviram um ruído alto na biblioteca ao lado. Mair afastou-se num movimento brusco, tremendo de culpa.

- O que foi isso?

- Soou como uma caixa caindo no chão.

- Quem poderia ser?

- Não deve haver ninguém na biblioteca a esta hora da noite. Os monges e freiras já estão na cama.

Mair parecia assustada.

- O que devemos fazer?

- É melhor darmos uma olhada.

Deixaram a farmácia. Embora a biblioteca ficasse ao lado, elas tinham de atravessar o claustro das freiras e passar pelo claustro dos monges para alcançar sua porta. Era uma noite escura, mas as duas viviam ali há muitos anos, e podiam encontrar o caminho de olhos vendados. Quando chegaram a seu destino, viram uma luz brilhando pelas janelas altas. A porta, normalmente trancada à noite, estava entreaberta.

Caris empurrou-a.

Por um momento, não pôde entender o que estava olhando. Via uma porta de armário aberta, uma caixa em cima da mesa, uma vela acesa ao lado, e um vulto escuro. Depois de um momento, ela compreendeu que era o armário do tesouro, onde cartulários e outros documentos valiosos eram guardados. A caixa era a arca que continha os ornamentos de ouro e prata, com pedras preciosas, usados na catedral para os serviços especiais. O homem tirava objetos da caixa e os metia num saco.

Ele levantou os olhos, e Caris reconheceu o rosto. Era Gilbert de Hereford, o peregrino que chegara naquele dia. Só que ele não era um peregrino, e provavelmente nem era de Hereford. Era um ladrão.

Os dois se fitaram por um momento, sem qualquer movimento.

Até que Mair gritou.

Gilbert apagou a vela.

Caris fechou a porta, para retardá-lo por um momento a mais. Depois, correu pelo claustro e entrou num recesso, puxando Mair.

Estavam ao pé da escada que levava ao dormitório dos monges. O grito de Mair deveria tê-los acordado, mas talvez eles fossem lentos para reagir.

- Conte aos monges o que está acontecendo! - gritou Caris para Mair. Corra!

Mair subiu a escada. Caris ouviu um rangido, e adivinhou que a porta da biblioteca fora aberta. Ficou atenta ao som de passos nas pedras do claustro. Mas Gilbert devia ser um ladrão experiente, pois caminhava em silêncio. Ela prendeu a respiração, e tentou ouvir a respiração dele. E foi então que irrompeu um barulho lá em cima.

O ladrão deve ter compreendido que só tinha uns poucos segundos para escapar, pois desatou a correr. Caris podia agora ouvir os passos.

Não se importava muito com os preciosos ornamentos da catedral, achando que ouro e pedras preciosas provavelmente agradavam ao bispo e ao prior mais do que a Deus; mas ela sentira uma aversão a Gilbert, e detestava a perspectiva de o homem enriquecer com o roubo do priorado. Por isso, ela saiu de seu recesso.

Mal podia ver, mas não havia como se equivocar sobre os passos em disparada, vindo em sua direção. Ela estendeu os braços para se proteger, e no instante seguinte houve a colisão. Caris ficou desequilibrada, mas agarrou as roupas do ladrão. Os dois caíram no chão. Ocorreu o maior estardalhaço quando o saco escapuliu da mão de Gilbert, crucifixos e cálices batendo nas pedras do calçamento.

A dor da queda enfureceu Caris, que largou as roupas do homem, e estendeu as mãos na direção em que julgava estar seu rosto. Encontrou pele e cravou as unhas, rasgando fundo. O ladrão berrou de dor, enquanto ela sentia o sangue escorrer por seus dedos.

Mas ele era mais forte. Agarrou-a e montou por cima. Uma luz apareceu no alto da escada dos monges. Subitamente, ela pôde ver Gilbert... e ele também a viu. Ajoelhado por cima, acertou um soco no rosto de Caris, primeiro com o punho direito, depois com o esquerdo, e outra vez com o direito. Ela gritou em agonia.

Havia mais luz agora. Os monges desciam a escada. Caris ouviu Mair gritar:

- Deixe-a em paz, seu demônio!

Gilbert levantou-se de um pulo e estendeu a mão para o saco. Mas já era tarde demais: subitamente, Mair voou para cima dele, com algum objeto rombudo na mão. Ele recebeu um golpe na cabeça, virou-se para revidar, e caiu sob uma avalanche de monges.

Caris levantou-se. Mair foi ao seu encontro e as duas se abraçaram. Mair perguntou:

- O que você fez?

- Fiquei na frente para fazê-lo tropeçar, e depois arranhei seu rosto. com que você bateu nele?

- Com a cruz de madeira do dormitório.

- Nem pensar em oferecer a outra face... - murmurou Caris.

Gilbert de Hereford foi julgado pelo tribunal eclesiástico, considerado culpado e condenado, pelo prior Godwyn, a uma punição apropriada para quem roubava igrejas: seria esfolado vivo. A pele seria removida enquanto ele estivesse consciente, e o deixariam sangrar até a morte.

No dia do esfolamento, Godwyn teve sua reunião semanal com madre Cecilia. Seus assistentes também estariam presentes: o vice-prior Philemon e a vice-prioresa Natalie. A espera na sala de sua casa pela chegada das freiras, Godwyn disse a Philemon:

- Temos de persuadi-las a construir um novo tesouro. Não podemos mais manter nossos objetos mais valiosos numa caixa na biblioteca.

Philemon pensou por um momento.

- Seria um prédio partilhado?

- Tem de ser. Não temos condições de pagar a construção de um prédio só nosso.

Godwyn pensou pesaroso nas ambições que outrora acalentara, quando jovem, de reformar as finanças do mosteiro e torná-lo rico de novo. Isso não acontecera, e ele ainda não entendia o motivo. Fora rigoroso, obrigando os moradores da cidade a usar e pagar os moinhos do priorado, os viveiros de peixes e coelhos. Mas parecia que eles sempre encontravam uma maneira de se esquivar de suas regras... como a construção de moinhos nas aldeias vizinhas. Impusera sentenças rigorosas aos homens e mulheres que eram apanhados a caçar ilegalmente ou derrubar árvores nas florestas do priorado. E resistira às adulações daqueles que queriam tentá-lo a gastar o dinheiro do priorado com a construção de moinhos, ou desperdiçar a madeira do priorado com a licença para funcionamento de carvoarias e fundições de ferro. Tinha certeza de que seus métodos eram certos, mas ainda não conseguira a receita que achava que merecia.

- Portanto, vai pedir o dinheiro a Cecilia - comentou Philemon, pensativo. Pode haver vantagens em manter nossas riquezas no mesmo lugar em que as freiras.

Godwyn percebeu onde a mente insidiosa de Philemon queria chegar.

- Mas não diríamos isso a Cecilia.

- Claro que não.

- Muito bem. Farei a proposta.

- Enquanto esperamos...

- O que é?

- Há um problema na aldeia de Long Ham de que você precisa tomar conhecimento.

Godwyn acenou com a cabeça. Long Ham era uma das dezenas de aldeias que prestavam homenagem - e pagavam taxas de feudalidade - ao priorado. Philemon explicou:

- Tem a ver com as terras de uma viúva, Mary-Lynn. Quando o marido morreu, ela concordou que um vizinho, John Nott, cultivasse a terra. Agora, a viúva casou outra vez, e quer a terra de volta para que seu novo marido possa cultivá-la.

Godwyn ficou perplexo. Era uma típica disputa de camponeses, trivial demais para exigir sua intervenção.

- O que o bailiff disse?

- Que a terra deveria reverter para a viúva, já que o acordo proposto sempre foi provisório.

- Então é isso o que deve acontecer.

- Há uma complicação. Irmã Elizabeth tem um meio-irmão e duas meiasirmãs em Long Ham.

-Ahn...

Godwyn devia ter adivinhado que havia uma razão para o interesse de Philemon. Irmã Elizabeth, que antes era Elizabeth Clerk, era a matricularia dasfreiras, encarregada de seus prédios.

Era jovem e inteligente, e com certeza subiria na hierarquia. Podia ser uma aliada valiosa.

- São os seus únicos parentes, a família que ela tem, além da mãe, que trabalha na Bell - continuou Philemon. - Elizabeth gosta dos parentes camponeses, que por sua vez a reverenciam como a única santa na família. Quando vêm a Kingsbridge, eles trazem presentes para o convento... frutas, mel, ovos, essas coisas.

-E...?

- John Nott é o meio-irmão de Elizabeth.

- Elizabeth pediu a você para interferir?

- Pediu. E também pediu que eu não contasse nada a madre Cecilia. Godwyn sabia que isso era o tipo de coisa que Philemon apreciava. Adorava ser considerado como uma pessoa poderosa, que podia usar sua influência para favorecer um lado ou outro numa disputa. Essas coisas alimentavam seu ego, que nunca se sentia satisfeito. E ele era atraído por qualquer coisa clandestina. O fato de que Elizabeth não queria que sua superiora soubesse do pedido deixava Philemon exultante. Significava que conhecia um segredo vergonhoso dela. Guardaria a informação como o ouro do avarento.

- O que você quer fazer? - perguntou Godwyn.

- A decisão é sua, mas sugiro que deixe John Nott ficar com a terra. Elizabeth seria nossa devedora, e é inevitável que isso nos será útil em algum momento no futuro.

- É duro para a viúva - murmurou Godwyn, ainda em dúvida.

- Concordo. Mas isso deve ser comparado com os interesses do priorado.

- E a obra de Deus é mais importante. Muito bem. Pode falar com o bailiff.

- A viúva receberá sua recompensa no outro mundo.

- É verdade.

Houvera um tempo em que Godwyn hesitava em autorizar os esquemas escusos de Philemon, mas isso acontecera há muito tempo. Philemon provara ser útil... como a mãe de Godwyn, Petranilla, previra há tantos anos.

Houve uma batida na porta. Petranilla entrou na sala.

Ela vivia agora numa casa pequena e confortável em Candle Court, perto da rua principal. Edmund deixara-lhe um legado generoso, o suficiente para durar pelo resto de sua vida. Tinha cinqüenta e oito anos, o corpo alto agora encurvado e frágil, e andava com uma bengala. Mas ainda tinha a mente igual a uma armadilha de urso. Como sempre, Godwyn sentiu-se satisfeito ao vê-la, mas também apreensivo, com receio de ter feito alguma coisa que pudesse desagradá-la.

Petranilla era a chefe da família agora. Anthony morrera no desabamento da ponte, e Edmund morrera há sete anos. Assim, era a única sobrevivente de sua geração. Nunca hesitava em dizer o que Godwyn deveria fazer. E fazia a mesma coisa com a sobrinha, Alice. O marido de Alice, Elfric, era o regedor, mas ela também lhe dava ordens. Sua autoridade estendia-se até a neta indireta, Griselda. Aterrorizava o filho de Griselda, o pequeno Merthin, agora com oito anos. Seu julgamento continuava tão firme quanto antes, e as pessoas quase sempre lhe obedeciam. Se por alguma razão ela não assumia o comando, as pessoas mesmo assim pediam sua orientação. Godwyn não sabia como poderia passar sem a mãe.

E nas raras ocasiões em que não seguira seus conselhos, fizera tudo para esconder o fato. Caris era a única que a enfrentava.

- Não ouse me dizer o que fazer - declarara ela a Petranilla, mais de uma vez.

- Você teria deixado que me matassem.

Petranilla sentou e olhou ao redor.

- Isto não é bastante bom - comentou ela.

A mãe era brusca com freqüência, mas mesmo assim Godwyn ficava nervoso quando ela falava dessa maneira.

- Como assim?

- Você deve ter uma casa melhor. -

- Sei disso.

Oito anos antes, Godwyn tentara persuadir madre Cecilia a pagar um palácio novo. Ela prometera que daria o dinheiro três anos depois, mas dissera que mudara de idéia quando o momento chegara. Godwyn tinha certeza de que a causa da recusa fora o que ele fizera com Caris. Depois do julgamento de heresia, seu charme deixara de funcionar com Cecilia. Tornara-se difícil lhe arrancar algum dinheiro. Petranilla acrescentou:

- Você precisa de um palácio para receber bispos e arcebispos, barões e condes.

- Quase não temos esses visitantes hoje em dia. O conde Roland e o bispo Richard permaneceram na França durante a maior parte dos últimos anos.

O rei Edward invadira o Nordeste da França em 1339 e passara todo o ano de 1340 ali; depois, em 1342, levara seu exército para o Noroeste da França, e lutara na Bretanha. Em 1345, tropas inglesas haviam travado uma batalha no distrito vinícola de Sudoeste, na Gasconha. Agora, Edward retornara à Inglaterra, mas já começara a recrutar outro exército de invasão.

- Roland e Richard não são os únicos nobres - insistiu Petranilla, impaciente.

- Os outros nunca vêm aqui. A voz da mãe endureceu:

- Talvez seja porque você não pode acomodá-los no estilo que eles esperam. Precisa de um salão de banquetes, uma capela particular, e quartos espaçosos.

Ela passara a noite inteira acordada a pensar isso, adivinhou Godwyn. Era a sua maneira: remoía as coisas e depois disparava suas idéias, como flechas. Ele especulou o que a levara àquele protesto em particular.

- Parece muito extravagante - murmurou ele, tentando ganhar tempo.

- Não pode compreender? - indagou Petranilla, ríspida. - O priorado não é tão influente quanto poderia ser simplesmente porque você nunca recebe os homens poderosos da Inglaterra. Quando tiver um palácio, com lindos quartos, eles virão.

Provavelmente ela tinha razão. Os mosteiros ricos, como Durham e St. Albans, jamais se queixavam do número de visitantes nobres e reais que eram obrigados a receber.

- Ontem foi o aniversário da morte de meu pai.

Então era isso o que provocara aquela conversa, pensou Godwyn: a mãe estivera recordando a carreira gloriosa do avô.

- Você é prior há quase nove anos - continuou Petranilla. - Não quero que fique empacado aqui. Os arcebispos e o rei deviam estar considerando-o para um bispado, uma grande abadia como Durham, ou uma missão junto ao papa.

Godwyn sempre presumira que Kingsbridge seria seu trampolim para coisas mais altas, mas compreendia agora que deixara sua ambição definhar. Parecia-lhe que fora há pouco tempo que ganhara a eleição para prior. Sentira na ocasião que chegara ao topo. Mas a mãe tinha razão: já haviam se passado mais de oito anos, e ele continuava no mesmo lugar.

Por que não estão pensando em você para postos mais importantes? - indagou a mãe, retórica. - Porque não sabem que você existe! É o prior de um grande mosteiro, mas não contou a ninguém. Demonstre sua pompa! Construa um palácio. Convide o arcebispo de Canterbury para ser seu primeiro hóspede. Dedique a capela ao santo predileto dele. Avise ao rei que construiu aposentos reais, na esperança de que ele o visite.

- Espere um instante - protestou Godwyn. - Uma coisa de cada vez. Eu adoraria construir um palácio, mas não tenho dinheiro.

- Então trate de arrumar.

Ele queria perguntar como, mas nesse momento as duas líderes do convento entraram na sala. Petranilla e Cecilia se cumprimentaram com uma cortesia cautelosa, e depois Petranilla se retirou.

Madre Cecilia e irmã Natalie sentaram. Cecilia tinha cinqüenta e um anos agora, cabelos grisalhos e vista deficiente. Ainda circulava apressada por toda parte, como um passarinho irrequieto, dando instruções para freiras, noviças e criadas; mas abrandara ao longo dos anos e agora procurava evitar os conflitos. Cecilia trazia um pergaminho.

- O convento recebeu um legado - anunciou ela, depois que sentou. - De uma devota de Thornbury.

- Quanto? - perguntou Godwyn.

- Cento e cinqüenta libras em moedas de ouro.

Godwyn ficou espantado. Era uma quantia fabulosa, o suficiente para construir um palácio modesto.

- Foi o convento que recebeu... ou o priorado?

- O convento - disse Cecilia, firme. - Este pergaminho é nossa cópia de seu testamento.

- Por que ela deixou tanto dinheiro para o convento?

- Ao que parece, cuidamos dela quando caiu doente ao voltar para casa, depois de uma visita a Londres.

Natalie, uns poucos anos mais velha do que Cecilia, rosto redondo, sempre afável, interveio nesse instante:

- Nosso problema é o seguinte: Onde vamos guardar o dinheiro? Godwyn olhou para Philemon. Natalie lhes dera uma abertura para o assunto que tencionavam levantar.

- O que vocês fazem atualmente com o dinheiro?

- Fica no quarto da prioresa, que só pode ser alcançado através do dormitório. Como se pensasse nisso pela primeira vez, Godwyn sugeriu:

- Talvez devêssemos gastar um pouco desse legado na construção de um novo tesouro.

- Acho que é mesmo necessário - concordou Cecilia. - Um prédio de pedra simples, sem janelas, com uma resistente porta de carvalho.

- Não levaria muito tempo para construir - comentou Godwyn. - E não deve custar mais do que cinco ou dez libras.

- Por uma questão de segurança, achamos que deve ser parte da catedral. Então era por isso que as freiras queriam tratar do assunto com Godwyn.

Não precisariam consultá-lo sobre uma nova construção dentro de sua área do priorado, mas a igreja era comum para monges e freiras.

- Poderia ser junto da parede da catedral, no canto formado pelo transepto norte e o coro. O acesso seria apenas pelo interior da catedral.

- Isso mesmo... é o tipo de coisa em que pensei.

- Falarei com Elfric hoje, se você quiser. Pedirei a ele que nos dê uma estimativa do custo.

- Faça isso, por favor.

Godwyn ficou feliz por arrancar de Cecilia uma fração do legado, mas ainda não se sentia satisfeito. Depois da conversa com a mãe, ele ansiava em conseguir mais. Gostaria de ficar com tudo. Mas como seria possível?

O sino da catedral repicou. Os quatro se levantaram e saíram.

O condenado esperava lá fora, na extremidade oeste da igreja. Estava nu, amarrado pelos pés e mãos a um retângulo de madeira vertical, como uma estrutura de porta. Cerca de uma centena de pessoas se encontravam ali, para testemunhar a execução. Os monges e freiras comuns não haviam sido convidados: era considerado impróprio que eles vissem o derramamento de sangue.

O carrasco era Will Tanner, um homem em torno dos cinqüenta anos, curtidor de couro, como seu nome indicava, a pele marrom de seu ofício. Usava um avental de lona limpo. Mantinha-se ao lado de uma pequena mesa, onde ajeitara suas facas. Afiava uma delas numa pedra, e o rangido do aço no granito fez Godwyn estremecer.

Godwyn disse várias orações, terminando com uma súplica extemporânea, em inglês, para que a morte do ladrão servisse a Deus, evitando que outros cometessem o mesmo pecado. Depois, ele acenou com a cabeça para Will Tanner.

Will postou-se atrás do ladrão amarrado. Pegou uma faca pequena, com ponta afiada, e inseriu-a no meio do pescoço de Gilbert, para depois descer numa linha reta e comprida até a base da espinha. Gilbert berrou de dor. O sangue começou a sair do talho. Will fez outro corte, através dos ombros do ladrão, formando a letra T.

Ele mudou de faca, selecionando uma de lâmina comprida e fina. Inseriu-a com todo cuidado no ponto em que os dois cortes se encontravam, e levantou um canto da pele. Gilbert gritou de novo. O canto da pele seguro pelos dedos da mão esquerda, Will começou a remover a pele com o maior cuidado.

Gilbert desatou a berrar sem parar.

Irmã Natalie soltou um grito estrangulado, virou-se, e correu de volta para o priorado. Cecilia fechou os olhos e começou a rezar. Godwyn sentiu-se nauseado.

Alguém na multidão caiu no chão, desmaiado, com um baque surdo. Somente Philemon permaneceu inabalado.

Will trabalhou depressa, a faca afiada cortando pela gordura subcutânea para revelar os músculos trançados por baixo. O sangue fluía abundante, e ele parava a intervalos de poucos segundos para limpar as mãos no avental. Gilbert gritava numa agonia indescritível a cada corte. Não demorou muito para que a pele nas costas pendesse em duas abas largas.

Will ajoelhou-se, os joelhos numa poça de sangue, e começou a trabalhar nas pernas.

Os gritos cessaram de repente: Gilbert parecia ter desmaiado. Godwyn ficou aliviado. Queria que o homem sofresse uma agonia por tentar roubar a catedral

- e queria que outros testemunhassem o tormento de um ladrão - mas mesmo assim descobrira que era difícil escutar aqueles gritos.

Will continuou a trabalhar, impassível, aparentemente sem se preocupar se a vítima estava consciente ou não, até que toda a pele de trás - costas, braços e pernas - foi arrancada. Depois, ele foi para a frente do homem. Cortou em torno dos pulsos e tornozelos, separou a pele, para que pendesse dos ombros e quadris. Trabalhou de baixo para cima, através da pélvis, e Godwyn compreendeu que ele tentaria arrancar a pele inteira, num único pedaço. E logo não havia mais pele presa no corpo, exceto na cabeça.

Gilbert ainda respirava.

Will fez uma série de cortes cuidadosos em torno do crânio. Largou as facas e tornou a limpar as mãos no avental. Pegou a pele de Gilbert nos ombros e deu um puxão para cima. A pele do rosto e do couro cabeludo se soltou da cabeça, mas continuou ligada ao resto.

Will levantou a pele ensangüentada de Gilbert, como se fosse um troféu de caça, e a multidão aplaudiu.

Caris sentia-se apreensiva com a perspectiva de guardar o novo tesouro junto com os monges. Tanto importunou Beth com perguntas sobre a segurança do dinheiro que ela a levou para inspecionar o lugar.

Godwyn e Philemon estavam na catedral na ocasião, como que por acaso; viram as freiras e seguiram-nas.

Elas passaram por uma nova arcada na parede sul do coro, entraram num pequeno saguão, e pararam diante de uma formidável porta tachonada. Irmã Beth tirou do bolso uma enorme chave de ferro. Era uma mulher humilde e despretensiosa, como a maioria das freiras.

- Esta chave é nossa - disse ela a Caris. - Podemos entrar no tesouro a qualquer momento em que quisermos.

- Não poderia ser de outra forma, já que fomos nós que pagamos - comentou Caris, incisiva.

Entraram numa pequena sala quadrada. Continha uma mesa, com uma pilha de pergaminhos em cima, alguns bancos, e uma enorme arca reforçada com ferro.

- A arca é grande demais para ser levada pela porta - ressaltou Beth.

- Então como a puseram aqui dentro? - indagou Caris.

- Em pedaços - respondeu Godwyn. - O carpinteiro montou-a aqui dentro. Caris lançou um olhar frio para Godwyn. Aquele homem tentara matá-la.

Desde o julgamento por bruxaria ela só o fitava com evidente aversão e evitava falar com ele, sempre que possível. Agora, Caris disse, decidida:

- As freiras vão precisar de uma chave da arca.

- Não há necessidade - declarou Godwyn. - Ela contém os ornamentos com pedras preciosas da catedral, aos cuidados do sacnstão, que é sempre um monge.

- Mostre-me - pediu Caris.

Ela percebeu que Godwyn sentiu-se ofendido com seu tom e pensou em recusar, mas queria parecer acessível e inocente, e por isso concordou. Ele tirou uma chave da bolsa no cinto e abriu a arca. Além dos ornamentos da catedral, continha dezenas de pergaminhos, que eram os cartulános do priorado.

- Portanto, a arca não contém apenas os ornamentos - disse Caris, suas suspeitas confirmadas.

- Os registros também estão aqui.

- Inclusive os cartulános das freiras.

- Isso mesmo.

- Neste caso, devemos ter uma chave.

- Minha idéia é copiar todos os cartulános, e manter as cópias na biblioteca. Sempre que precisarmos examinar um cartuláno, poderemos ler a cópia na biblioteca, para que os preciosos originais possam permanecer trancados.

Beth detestava conflito e interveio, nervosa:

- Parece-me uma idéia bastante sensata, irmã Caris. Caris admitiu, relutante:

- Desde que as freiras sempre tenham acesso a seus documentos de alguma forma.

Os cartulános eram uma questão secundária. Ela se dirigiu a Beth, mais do que a Godwyn, ao acrescentar:

- Mais importante ainda, onde guardamos o dinheiro?

- Em cofres escondidos no chão - respondeu Beth. - São quatro, dois para os monges, dois para as freiras. Se olhar com atenção, poderá perceber as pedras soltas.

Caris estudou o chão, antes de comentar:

- Eu não teria percebido se não tivesse me dito. Mas posso perceber agora. É possível trancar esses cofres?

- Creio que sim - respondeu Godwyn. - Mas neste caso seria óbvio onde estão, o que anularia nosso propósito ao escondê-los por baixo das lajes.

- Mas neste caso os monges e freiras têm acesso ao dinheiro uns dos outros. Philemon interveio, fitando Caris com olhar acusador:

- Por que você está aqui? É a responsável pelos visitantes... não tem nada a ver com o tesouro.

A atitude de Caris em relação a Philemon era de total aversão. Achava que ele não era plenamente humano. Parecia não ter noção do certo ou errado, não ter princípios nem escrúpulos. Enquanto

desprezava Godwyn como um homem iníquo, que sabia quando se entregava ao mal, sentia que Philemon era mais como um animal desvairado, com cão raivoso ou um porco selvagem.

- Tenho um olho para os detalhes - declarou ela.

- Você é muito desconfiada - resmungou ele, ressentido. Caris soltou uma risada sem humor.

- Partindo de você, Philemon, isso é irônico. Ele fingiu que ficou magoado.

- Não sei o que está querendo insinuar com isso.

Beth tornou a interferir, num esforço para manter a paz:

- Eu só queria que Caris viesse dar uma olhada porque ela fez perguntas que eu não sabia responder.

- Por exemplo, como podemos ter certeza de que os monges não tiram o dinheiro das freiras? - indagou Caris.

- Vou mostrar - respondeu Beth.

Ela pegou uma vara de carvalho resistente, pendurada num gancho na parede. Usou-a como uma alavanca para levantar uma laje. Por baixo havia um espaço vazio, contendo uma arca reforçada com ferro.

- Mandamos fazer arcas do tamanho certo para caber nos espaços.

Beth abaixou-se e removeu a arca. A tampa era presa por dobradiças, com um cadeado de ferro.

- Onde compramos esses cadeados? - perguntou Caris.

- Foram feitos por Christopher Blacksmith.

Ainda bem, pensou Caris. Christopher Blacksmith era um cidadão respeitavel de Kingsbridge, e não arriscaria sua reputação com a venda de cópias das chaves para ladrões.

Caris não conseguiu encontrar nenhum defeito nas disposições. Talvez sua preocupação fosse desnecessária. Ela virou-se para ir embora. Foi nesse instante que Elfric apareceu, acompanhado por um ajudante com um saco na mão.

- Posso pendurar o aviso agora? - perguntou Elfric.

- Pode, sim, por favor - respondeu Philemon.

O ajudante de Elfric tirou do saco o que parecia ser um couro enorme.

- O que é isso? - indagou Beth.

- Espere um instante que já vai descobrir - disse Philemon. O aprendiz levantou o couro contra a porta.

- Eu só estava esperando secar - explicou Philemon. - E a pele de Gilbert de Hereford.

Beth soltou um grito de horror.

- É repulsivo - murmurou Caris.

A pele estava se tornando amarelada e os cabelos caíam, mas dava para distinguir o rosto: as orelhas, dois buracos para os olhos, a abertura da boca, dando a impressão de que estava contraída num sorriso.

- Isso deve afugentar os ladrões - comentou Philemon, com evidente satisfação.

Elfric pegou um martelo e começou a pregar a pele na porta do tesouro.

As duas freiras se retiraram. Godwyn e Philemon esperaram que Elfric concluísse a tarefa macabra, depois tornaram a entrar no tesouro.

- Creio que estamos seguros agora - comentou Godwyn. Philemon acenou com a cabeça.

- Caris é uma mulher desconfiada, mas todas as suas perguntas foram respondidas de maneira satisfatória.

-Neste caso...

Philemon fechou e trancou a porta. Depois, levantou o bloco de pedra de um dos dois cofres da freira e tirou a arca.

- Irmã Beth guarda uma pequena quantidade de dinheiro para as necessidades do dia-a-dia em algum lugar dos aposentos das freiras - explicou ele. - Ela só entra aqui para retirar ou depositar quantias maiores. E sempre abre o outro cofre, que contém principalmente as moedas de prata. Ela quase nunca abre esta arca, que guarda o legado.

Ele virou a arca e verificou as dobradiças. Estavam presas na madeira por quatro pregos. Philemon tirou do bolso uma talhadeira fina de aço e um alicate. Godwyn especulou onde ele arrumara aquelas ferramentas, mas não perguntou. Às vezes era melhor não saber de muitos detalhes.

Philemon empurrou a beira da talhadeira sob a dobradiça de ferro e empurrou. Foi forçando, com o maior cuidado e paciência, para que as marcas na madeira não ficassem visíveis a um olhar descuidado. Pouco a pouco, a placa da dobradiça foi se afastando da madeira, os pregos saindo. Quando havia espaço suficiente, ele usou o alicate para puxar os pregos. Levantou a tampa.

- Aqui está o dinheiro da devota de Thornbury - murmurou ele. Godwyn olhou para a arca. O dinheiro era em ducados venezianos. As moedas de ouro mostravam o doge de Veneza ajoelhado diante de São Marcos; no outro lado, a Virgem Maria estava cercada por estrelas, para indicar que se encontrava no céu. Os ducados eram equivalentes aos florins de Florença, e tinham o mesmo tamanho, peso e pureza do metal. Valiam três shillings, ou trinta e seis pennnies de prata ingleses. A Inglaterra tinha agora suas próprias moedas de ouro, uma inovação do rei Edward - nobre, meio nobre e quarto de nobre mas elas circulavam há apenas dois anos, e ainda não haviam suplantado as moedas de ouro estrangeiras.

Godwyn tirou cinqüenta ducados, que valiam sete libras e dez shillings. Philemon tornou a fechar a arca. Envolveu cada prego com um pedaço fino de couro, para que ficassem bem justos, e prendeu a dobradiça. Pôs a arca de volta no cofre, e baixou o bloco de pedra.

- Claro que eles vão notar a falta, mais cedo ou mais tarde - comentou ele.

- Talvez não percebam nada durante anos - disse Godwyn. - E vamos deixar para cruzar essa ponte quando a alcançarmos.

Os dois saíram. Godwyn trancou a porta e disse:

- Procure Elfric e encontrem-se comigo no cemitério.

Philemon se afastou. Godwyn foi para a extremidade leste do cemitério, logo depois da atual casa do prior. Era um dia de maio com muito vento, que fazia o hábito esvoaçar em torno de suas pernas.

Uma cabra solta pastava entre os túmulos. Godwyn observou-a, pensativo.

Sabia que estava se arriscando a uma briga terrível com as freiras. Calculava que elas nada descobririam por um ano pelo menos, mas não podia ter certeza. Quando descobrissem, haveria o maior clamor. Mas o que exatamente elas poderiam fazer? Ele não era como Gilbert de Hereford, roubando dinheiro para si mesmo. Apropriara-se do legado de uma devota para propósitos sagrados.

Ele pôs as preocupações de lado. Sua mãe tinha razão: precisava glorificar seu papel como prior de Kingsbridge se quisesse realizar um progresso adicional. Quando Philemon apareceu com Elfric, Godwyn disse:

- Quero construir o palácio do prior aqui, a leste da residência atual. Elfric acenou com a cabeça, em concordância.

- Uma excelente localização, lorde prior, se me permite dizer... perto do capítulo e na extremidade leste da catedral, mas separada do mercado pelo cemitério. Terá assim privacidade e sossego.

- Quero um salão grande para banquetes - continuou Godwyn. - Com cerca de trinta metros de comprimento. Deve ser um salão imponente, apropriado para receber a nobreza, talvez mesmo a realeza.

- Excelente.

- E uma capela no lado leste do andar térreo.

- Mas estará a poucos passos da catedral.

- Os hóspedes nobres nem sempre querem se expor ao povo. Devem ter a possibilidade de fazer o culto em particular, se assim desejarem.

- E no segundo andar?

- Os aposentos do prior, com uma sala para um altar e uma escrivaninha. E três quartos grandes para hóspedes.

- Esplêndido!

- Quanto custará?

- Mais de cem libras... talvez duzentas. Farei um projeto e apresentarei uma estimativa mais precisa.

- Não deixe passar de cento e cinqüenta. Isso é tudo o que posso gastar. Elfric pode ter especulado onde Godwyn conseguira de repente obter cento e cinqüenta libras, mas não perguntou.

- É melhor começar a estocar as pedras o mais depressa possível. Pode me dar algum dinheiro para as primeiras aquisições?

- Quanto precisaria... cinco libras?

- Dez seria melhor.

- Eu lhe darei sete libras e dez shillings em ducados.

Godwyn entregou as cinqüenta moedas de ouro que tirara das reservas das freiras.

Três dias depois, quando monges e freiras saíam da catedral, depois do serviço da Nona, irmã Elizabeth falou com Godwyn.

Freiras e monges não deviam conversar uns com os outros, e por isso ela teve de arrumar um pretexto. Um cachorro aparecera na nave e latira durante o serviço.

Havia sempre cachorros entrando na catedral para perturbar os serviços, mas em geral eram ignorados. Elizabeth, no entanto, decidiu se desligar da procissão para afugentar o cachorro. Era obrigada a atravessar pela fileira de monges, e calculou o momento para passar na frente de Godwyn. Ofereceu um sorriso contrafeito.

- Peço perdão, padre prior. - Ela baixou a voz para acrescentar: - Encontre-se comigo na biblioteca, como se fosse por acaso.

Intrigado, Godwyn foi para a biblioteca. Sentou para ler a regra de São Bento. Elizabeth apareceu pouco depois e pegou o Evangelho de São Mateus. As freiras haviam construído sua própria biblioteca, depois que Godwyn assumira o papel de prior, a fim de aumentar a separação entre homens e mulheres. Mas depois que retiraram todos os seus livros da biblioteca dos monges, o lugar ficara tão vazio que Godwyn revogara sua decisão. O prédio da biblioteca das freiras era agora usado como sala de aula quando fazia frio.

Elizabeth sentou de costas para Godwyn, a fim de que ninguém desconfiasse, ao entrar ali, de que estavam conspirando. Mas ficou bastante perto para que ele pudesse ouvir com clareza.

- Há uma coisa que devo contar - sussurrou Elizabeth. - Irmã Caris não gosta da idéia de guardar o dinheiro das freiras no novo tesouro.

- Eu já sabia disso.

- Ela persuadiu irmã Beth a contar o dinheiro, para ter certeza de que tudo continua ali. Achei que deveria saber... para o caso de ter tomado algum dinheiro emprestado.

O coração de Godwyn quase parou. Uma verificação revelaria que faltavam cinqüenta ducados. E ele ainda precisaria do resto para construir seu palácio. Não esperava que a descoberta pudesse ocorrer tão cedo. Amaldiçoou Caris. Como ela fora capaz de adivinhar o que ele fizera com tanto sigilo?

- Quando? - indagou ele, com a voz um pouco trêmula.

- Hoje. Não sei a que hora... pode ser a qualquer momento. Mas Caris foi bastante enfática ao dizer que você não deveria ser avisado com antecedência.

Godwyn teria de pôr os ducados de volta na arca, o mais depressa possível.

- Muito obrigado pela informação - murmurou ele.

- Fiz isso porque você favoreceu minha família em Long Ham.

Elizabeth levantou-se e saiu. Godwyn também saiu, depois de um momento. Que sorte Elizabeth se sentir em dívida com ele! O instinto de Philemon para a intriga era mesmo valioso. Enquanto pensava nisso, avistou Philemon no claustro.

- Pegue aquelas ferramentas e se encontre comigo no tesouro! - sussurrou ele.

Godwyn saiu do priorado. Atravessou apressado o pátio gramado e seguiu pela rua principal. A esposa de Elfric, Alice, herdara a casa de Edmund Wooler, uma das maiores da cidade, junto com todo o dinheiro que Caris ganhara com seus tecidos tingidos. Elfric vivia agora no maior luxo.

Godwyn bateu na porta e entrou. Alice sentava à mesa, em meio ao resto do almoço. Com ela estava a enteada, Griselda, e o filho de Griselda, o Pequeno Merthin. Ninguém acreditava agora que Merthin Fitzgerald fosse o pai do menino; ele era a cara do antigo namorado fugido de Griselda, Thurstan. Griselda casara com um dos empregados de seu pai, Harold Mason. As pessoas polidas chamavam o menino de oito anos de Merthin Haroldson, enquanto as outras referiam-se a ele como Merthin Bastardo.

Alice levantou-se de um pulo quando viu Godwyn.

- É um prazer tê-lo em nossa casa, primo prior. Aceita um copo de vinho? Godwyn ignorou a hospitalidade polida.

- Onde está Elfric?

- Lá em cima, tirando um cochilo, antes de voltar ao trabalho. Sente na sala de visitas enquanto vou chamá-lo.

- O mais depressa possível, por favor.

Godwyn foi para a outra sala. Havia cadeiras confortáveis ali, mas ele ficou andando de um lado para outro. Elfric apareceu pouco depois, esfregando os olhos.

- Desculpe a demora, mas eu estava...

- Os cinqüenta ducados que lhe dei há três dias - interrompeu-o Godwyn. Preciso que me devolva.

Elfric ficou surpreso.

- Mas o dinheiro era para as pedras!

- Sei para que era. Mas preciso ter o dinheiro de volta imediatamente.

- Já gastei uma parte, com o compromisso de pagar carroceiros para trazerem as pedras da pedreira.

- Quanto?

- Cerca da metade.

- Pode cobrir essa parte com seus próprios recursos, não é?

- Não quer mais um palácio?

- Claro que quero. Mas preciso desse dinheiro. Não me pergunte por quê, apenas devolva o dinheiro.

- O que farei com as pedras que encomendei?

- Pode guardá-las. Terá o dinheiro de volta. Só preciso dele por alguns dias. Depressa!

- Está bem. Espere aqui, por favor.

- Não irei a lugar nenhum enquanto não me entregar o dinheiro.

Elfric saiu. Godwyn especulou onde ele guardaria o dinheiro. Sob as pedras da lareira era o lugar mais comum. Mas Elfric, por ser um construtor, podia ter um esconderijo mais astucioso. Onde quer que fosse, ele não demorou a voltar.

Contou cinqüenta moedas de ouro. Godwyn disse:

- Eu lhe dei ducados... e algumas destas moedas são florins.

O florim era do mesmo tamanho, mas tinha imagens diferentes: João Batista de um lado, uma flor no outro.

- Não tenho mais as mesmas moedas. Já expliquei que gastei algumas. Mas valem a mesma coisa, não é?

Era verdade. As freiras notariam a diferença?

Godwyn guardou as moedas na bolsa e saiu sem dizer mais nada.

Retornou apressado a catedral. Encontrou Philemon no tesouro, e explicou, ofegante:

- As freiras vão fazer uma verificação. Preciso devolver o dinheiro que dei a Elfric. Abra aquela arca.

Philemon levantou o bloco de pedra, tirou a arca, removeu os pregos. Ergueu a tampa.

Godwyn vasculhou as moedas. Todas eram ducados.

Mas não havia mais nada que ele pudesse fazer agora. Largou as moedas na arca, empurrando os florins para o fundo.

- Pode fechar e guardar de volta no lugar. Philemon assim o fez.

Godwyn experimentou um momento de alívio. Seu crime fora em parte encoberto. Pelo menos agora não seria tão clamorosamente evidente.

- Quero estar presente quando for feita a contagem - disse ele a Philemon. Estou preocupado com a possibilidade de notarem que há agora alguns florins no lugar de ducados.

- Sabe quando elas tencionam vir? -Não.

- Porei um noviço para varrer o coro. Ele nos avisará assim que Beth aparecer. Philemon contava com um pequeno círculo de noviços admiradores que

fariam qualquer coisa para agradá-lo.

Mas não houve necessidade de usar o serviço de um noviço. Irmã Beth e irmã Caris apareceram quando eles deixavam o tesouro. Godwyn fingiu estar no meio de uma conversa sobre contas.

- Teremos de procurar num rolo de conta anterior, irmão - disse ele a Philemon. - Oh, bom-dia, irmãs.

Caris abriu os cofres das freiras e tirou as duas arcas.

- Posso ajudá-las em alguma coisa? - perguntou Godwyn. Caris ignorou-o. Beth respondeu:

- Estamos apenas querendo verificar uma coisa, mas obrigada, padre prior. Não vamos demorar.

- Podem continuar, podem continuar... - murmurou ele, benevolente, embora o coração batesse forte dentro do peito.

- Não há necessidade de se desculpar por nossa presença aqui, irmã Beth disse Caris, irritada. - É nosso tesouro e nosso dinheiro.

Godwyn abriu um rolo de conta ao acaso. Fingiu estudá-lo, junto com Philemon. Beth e Caris contaram as moedas de prata na primeira arca: farthings (moedas de um quarto de penny), meios pennies, pennies, e uns poucos Luxembourgs, pennies falsificados, feitos com prata adulterada, e umas poucas moedas de ouro, florins, ducados, além de genovinos de Gênova e reales de Nápoles, assim como moutons franceses e os novos nobres ingleses. Beth confrontou os totais com seus registros. Ao terminarem, ela disse:

- Absolutamente certo.

Elas guardaram todas as moedas na arca, trancaram, e guardaram-na de volta no cofre no chão.

Começaram a contar as moedas de ouro na outra arca, fazendo pilhas de dez. Quando se aproximavam do fundo da arca, Beth franziu o rosto e soltou um murniúrio de perplexidade.

- O que foi? - perguntou Caris.

Godwyn sentiu uma pontada de medo culpado. Beth explicou:

- Esta arca contém apenas o legado da devota de Thornbury. Eu o deixo separado.

- E daí?

- O marido dela tinha negócios em Veneza. Eu tinha certeza de que toda quantia era em Ducados. Mas também há alguns florins aqui.

Godwyn e Philemon ficaram imóveis, escutando.

- Isso é estranho - comentou Caris.

- Talvez eu tenha me enganado.

- Mas é um pouco suspeito.

- Nem tanto - declarou Beth. - Os ladrões não põem dinheiro em seu tesouro, não é?

- Tem razão - admitiu Caris, relutante.

Elas terminaram de contar. Tinham cem pilhas de dez moedas, no valor de cento e cinqüenta libras.

- É a quantia exata em meus registros - anunciou Beth.

- Então todos os pennies e libras estão corretos - disse Caris.

- Como eu disse.

Caris passou muitas horas pensando em irmã Mair. Ficara surpresa com o beijo, mas ainda mais com sua própria reação. Fora excitante. Até agora, não se sentira atraída por Mair ou qualquer outra mulher. Na verdade, havia apenas uma pessoa que já a fizera ansiar em ser acariciada, beijada e penetrada, e essa pessoa era Merthin. No convento, aprendera a viver sem contato físico. A única mão que a tocava sexualmente era a sua, na escuridão do dormitório, quando se lembrava dos dias de namoro; e comprimia seu rosto contra o travesseiro, para que as outras freiras não ouvissem sua respiração ofegante.

Não sentia por Mair o mesmo desejo feliz que Merthin lhe inspirava. Mas Merthin se encontrava a mil e quinhentos quilômetros de distância e a sete anos no passado. E ela gostava de Mair. Era alguma coisa relacionada com seu rosto angelical, com os olhos azuis, uma reação a seu comportamento gentil no hospital e na escola.

Mair sempre falava doce com Caris; e quando ninguém olhava, tocava em seu braço, em seu ombro, até em seu rosto. Caris não a repelia, mas evitava uma reação. Não era porque pensasse que seria um pecado.

Tinha certeza de que Deus era sensato demais para fazer uma regra contra as mulheres proporcionarem um prazer inofensivo umas às outras. Mas é que sentia medo de desapontar Mair. O instinto lhe dizia que os sentimentos de Mair eram fortes e definidos, enquanto os seus eram incertos. Ela é apaixonada por mim, pensava Caris, mas eu não sou por ela. Se beijá-la de novo, ela pode acalentar a esperança de que nós duas seremos almas irmãs pelo resto da vida, e não posso prometer isso.

Por isso ela não fez nada, até a semana da Feira do Velocino.

A feira de Kingsbridge recuperara-se do desastre de 1338. O comércio de lã crua ainda sofria a interferência do rei, e os italianos só apareciam de dois em dois anos, mas isso era compensado pelo novo negócio de tecido tingido. A cidade ainda não era tão próspera quanto poderia ser, pois a proibição do prior Godwyn ao funcionamento de moinhos particulares afastara a indústria da cidade e a levara para as aldeias ao redor; mas a maior parte do tecido ainda era vendida no mercado, e se tornara conhecido como Escarlate de Kingsbridge. A ponte de Merthin fora concluída por Elfric, e as pessoas atravessavam sua larga extensão com cavalos de carga e carroças.

Por isso, na noite de sábado, antes da abertura oficial da feira, o hospital se encontrava lotado de visitantes.

E um deles estava doente.

Seu nome era Maldwyn Cook, e seu negócio era fazer pequenas iguarias salgadas, com farinha de trigo e pedaços de carne ou peixe. Eram fritadas na manteiga numa fogueira, vendidas a seis por um farthing. Pouco depois de chegar, ele sentiu uma súbita e violenta dor de barriga, seguida por vômito e diarréia. Não havia nada que Caris pudesse fazer para ajudá-lo, a não ser providenciar uma cama perto da porta.

Há muito ela desejava dotar o hospital com sua própria latrina, a fim de poder supervisionar sua higiene. Mas essa era apenas uma das melhorias que esperava. Precisava de uma nova farmácia, ao lado do hospital, uma sala espaçosa e bem iluminada, onde poderia preparar os medicamentos e escrever suas anotações. E também queria encontrar uma maneira de proporcionar mais privacidade aos pacientes. No momento, todos ali podiam ver uma mulher dando à luz, um homem tendo um ataque, uma criança vomitando. As pessoas doentes deveriam ter espaços reservados, em sua opinião, como as capelas laterais numa igreja grande. Mas não sabia como poderia conseguir isso: o hospital não era bastante grande. Tivera várias conversas com Jeremiah Builder - que há muitos anos fora o aprendiz de Merthin tratado por Jimmie - mas não haviam encontrado uma solução satisfatória.

Na manhã seguinte, mais três pessoas tinham os mesmos sintomas de Maldwyn Cook.

Caris serviu a primeira refeição aos visitantes e mandou que fossem para o mercado. Só os doentes podiam permanecer no hospital. O chão do hospital estava mais sujo do que o habitual, e ela ordenou que fosse varrido e limpado com esfregão. Depois, foi para o serviço na catedral.

O bispo Richard não estava presente. Fazia companhia ao rei, que preparava uma nova invasão à França.

Richard sempre considerara que o bispado era apenas um meio de sustentar seu estilo de vida aristocrático. Em sua ausência, a diocese era comandada pelo arquidiácono Lloyd, que coletava os dízimos e arrendamentos do bispo, batizava crianças e conduzia serviços com uma eficiência determinada, mas nem um pouco imaginativa... uma característica que ele demonstrou naquela manhã com um tedioso sermão sobre o motivo pelo qual Deus era mais importante do que o dinheiro, um estranho tema na inauguração de uma das grandes feiras comerciais da Inglaterra.

Apesar disso, todos se mostravam animados, como sempre, no primeiro dia. A Feira do Velocino era o ponto alto do ano para os habitantes da cidade e os camponeses das aldeias ao redor. As pessoas ganhavam dinheiro na feira e perdiam jogando nas estalagens. Jovens robustas das aldeias deixavam-se seduzir por insinuantes rapazes da cidade. Prósperos camponeses pagavam às prostitutas por serviços que não ousavam pedir às esposas. Com bastante freqüência, ocorria um assassinato.

Caris distinguiu o vulto corpulento e bem vestido de Buonaventura Caroli na congregação, e seu coração disparou. Ele podia ter notícias de Merthin. Ela passou pelo serviço distraída, murmurando os salmos. Na saída, ela conseguiu atrair a atenção de Buonaventura, que lhe sorriu. Ela tentou indicar, com um aceno de cabeça, que queria conversar com ele mais tarde. Não teve certeza se a mensagem foi entendida.

Foi para o hospital - o único lugar do priorado em que uma freira podia se encontrar com um homem do mundo exterior - e Buonaventura entrou ali pouco depois. Usava um casaco azul luxuoso e sapatos pontudos.

- Na última vez em que a vi - comentou ele -, você acabava de ser ordenada freira pelo bispo Richard.

- Sou agora a responsável pelos visitantes.

- Meus parabéns! Nunca pensei que pudesse se sair tão bem com a vida no convento.

Buonaventura a conhecia desde que ela era uma criança.

- Nem eu - respondeu Caris, rindo.

- O priorado parece estar prosperando.

- Por que diz isso?

- Soube que Godwyn está construindo um novo palácio.

- É verdade.

- Ele deve estar prosperando.

- Creio que sim. Mas como você está? Os negócios vão bem?

- Temos alguns problemas. A guerra entre Inglaterra e França afetou o transporte, e os impostos de seu rei Edward fazem com que a lã inglesa seja mais cara do que a espanhola. Mas é também de melhor qualidade.

Os mercadores sempre se queixavam dos tributos. Caris foi direto ao assunto que realmente a interessava:

- Alguma notícia de Merthin?

- Tenho, sim. - Embora o comportamento de Buonaventura permanecesse afável, Caris notou uma certa hesitação, enquanto ele acrescentava: - Merthin se casou.

Caris teve a sensação de que fora atingida por um golpe violento. Nunca esperara por isso, nem sequer pensara na possibilidade. Como Merthin podia fazer aquilo? Ele era... Eles eram...

Não havia qualquer motivo para que ele não se casasse, é claro. Caris rejeitara-o mais de uma vez; e na última vez tornara a rejeição definitiva ao ingressar no convento. Apenas era extraordinário que ele esperasse tanto tempo. Ela não tinha o direito de se sentir magoada. Forçou um sorriso.

- Mas isso é maravilhoso! Por favor, transmita a ele minhas congratulações., Quem é a moça? , ,

Buonaventura fingiu não notar a consternação de Caris.

- Seu nome é Silvia - disse ele, como se estivesse contando uma fofoca inofensiva. - E a filha mais jovem de um dos cidadãos mais proeminentes da cidade, Alessandro Christi, um mercador de especiarias orientais que possui vários navios.

- Que idade? Ele sorriu.

- Alessandro? Deve ter mais ou menos a minha idade...

- Não zombe de mim! - Ela sentiu-se grata a Buonaventura por ter abrandado o tom. - Qual é a idade de Silvia?

- Vinte e três anos.

- Seis anos mais moça do que eu.

- Uma linda jovem...

Caris sentiu a restrição tácita.

-Mas...?

Ele inclinou a cabeça para o lado.

- Ela tem uma reputação de língua afiada. As pessoas dizem todos os tipos de coisas, é claro... mas talvez seja por isso que ela permaneceu solteira durante tanto tempo... as moças em Florença costumam se casar antes dos dezoito anos de idade.

- Tenho certeza de que os comentários sobre a língua afiada são verdadeiros. As duas únicas jovens que Merthin apreciava aqui em Kingsbridge eram Elizabeth Clark e eu... e ambas sempre fomos de falar muito, verdadeiras megeras.

Buonaventura riu.

- Nem tanto, nem tanto...

- Quando foi o casamento?

- Há dois anos. Logo depois que a vi pela última vez.

Caris compreendeu que Merthin permanecera solteiro até que ela fosse ordenada como freira. Devia ter tomado conhecimento, através de Buonaventura, que ela dera o passo final. Ela pensou em Merthin a esperar e acalentar uma esperança, por mais de quatro anos, em outra terra... e sua fachada de animação começou a se desfazer.

- E eles têm uma criança, uma menina chamada Lona - acrescentou Buonaventura.

Era demais. Toda a dor que Caris experimentara sete anos antes - a angústia que pensara ter desaparecido para sempre - voltou de repente. Não o perdera então refletiu ela. Merthin permanecera fiel à memória dela por anos. Mas perdera-o agora, finalmente, para sempre.

Ela foi sacudida por um acesso, e compreendeu que não poderia se controlar por muito mais tempo. Trêmula, ela murmurou:

- Foi um prazer tornar a vê-lo e saber das novidades, mas tenho de voltar ao meu trabalho.

O rosto de Buonaventura demonstrou preocupação.

- Espero não tê-la deixado muito transtornada. Pensei que você gostaria de saber.

- Não seja gentil comigo... não posso suportar.

Caris afastou-se. Baixou a cabeça para esconder o rosto, enquanto deixava o hospital e entrava no claustro. A procura de um lugar para ficar sozinha, ela subiu correndo a escada para o dormitório. Não havia ninguém ali durante o dia. Ela começou a soluçar enquanto percorria o dormitório vazio. O quarto de madre Cecilia ficava na outra extremidade. Ninguém tinha permissão para entrar ali sem convite, mas Caris entrou assim mesmo e bateu a porta. Jogou-se na cama, sem se importar quando a touca de freira caiu. Comprimiu o rosto contra o colchão de palha e chorou.

Depois de algum tempo, sentiu uma mão em sua cabeça, afagando os cabelos curtos. Não ouvira a pessoa entrar no quarto. E não se importava com quem era. Mesmo assim, pouco a pouco, foi se acalmando. Os soluços já não eram tão desesperados, as lágrimas secaram, a tempestade de emoções começou a amainar. Ela rolou na cama e olhou para a pessoa que a confortava. Era Mair.

- Merthin se casou... e tem uma filha - murmurou Caris, recomeçando a chorar. Mair deitou ao lado e aninhou a cabeça de Caris em seus braços. Caris comprimiu o rosto contra os seios macios de Mair, deixando que o hábito de lã absorvesse as lágrimas.

- Calma, calma... - sussurrou Mair.

Caris se acalmou. Estava esgotada demais para sentir mais pesar. Pensou em Merthin segurando no colo uma criança italiana de cabelos escuros, e percebeu como ele seria feliz. Ficou contente por isso, e mergulhou num sono de exaustão.

            A doença que começara com Maldwyn Cook espalhou-se como fogo de verão pela multidão na Feira do Velocino. Na segunda-feira, passou do hospital para as tavernas, e na terça-feira, dos visitantes para os habitantes da cidade. Caris anotou as características em seu livro: começava com dores no estômago, logo levava a vômito e diarréia, e durava entre vinte e quatro e quarenta e oito horas. Os adultos se recuperavam, mas a doença matava os velhos e bebês.

Na quarta-feira, atingiu as freiras e as crianças na escola. Mair e Tilly foram afetadas. Caris saiu para falar com Buonaventura, na Bell, e perguntou-lhe, preocupada, se os médicos italianos tinham tratamento para aquela doença.

- Não há cura - disse ele. - Ou pelo menos nenhuma que funcione, embora os médicos quase sempre receitem alguma coisa, só para arrancar mais dinheiro das pessoas.

Mas alguns médicos árabes acham que é possível retardar a disseminação da doença.

- É mesmo? - Caris estava interessada. Os mercadores diziam que os médicos muçulmanos eram superiores aos cristãos, embora os médicos monges negassem isso com veemência. - Como?

- Eles acham que a doença é adquirida quando uma pessoa doente olha para você. A vista funciona como raios que saem dos olhos e tocam nas coisas que você vê... como estender um dedo para sentir se alguma coisa é quente, dura, ou seca. Mas os raios podem também projetar doenças. Assim, você pode evitar a doença se nunca ficar na mesma sala que um doente.

Caris não achava que a doença pudesse ser transmitida pelo olhar. Se isso fosse verdade, depois de um serviço importante, todos na congregação contrairiam qualquer doença que o bispo tivesse. Sempre que o rei tivesse alguma doença, contagiaria as centenas de pessoas que o viam. E com certeza alguém já teria notado isso.

Mas a noção de que não se devia partilhar um cômodo com alguém que estava doente parecia convincente. Ali, no hospital, a doença de Maldwyn parecia se espalhar de um sofredor para as pessoas nas camas próximas.

Ela também já observara que certos tipos de doenças - problemas de estômago, tosses e resfriados, pústulas de todos os tipos - pareciam aumentar durante as feiras e mercados; portanto, parecia óbvio que eram passadas de uma pessoa para outra da mesma maneira.

Na noite de quarta-feira, durante o jantar, metade das pessoas no hospital já contraíra a doença; na manhã de quinta-feira, todas estavam infectadas. Vários empregados do priorado também caíram doentes, e Caris não contava com pessoal suficiente para a limpeza.

Ao observar o caos na hora da primeira refeição, madre Cecilia sugeriu o fechamento do hospital.

Caris estava disposta a considerar qualquer coisa. Sentia-se consternada por sua impotência para combater a doença, e arrasada pela imundície do hospital.

- Mas onde as pessoas dormiriam? - indagou ela.

- Mande-as para as tavernas.

- As tavernas estão com o mesmo problema. Podemos deixá-las na catedral. Cecilia sacudiu a cabeça.

- Godwyn não admitiria camponeses na nave durante os serviços.

- Onde quer que as pessoas durmam, devemos separar as que estão doentes. É a maneira de retardar a disseminação da doença, segundo Buonaventura.

- Faz sentido.

Uma idéia nova aflorou de repente à mente de Caris. Parecia uma providência óbvia, embora nunca tivesse pensado a respeito antes.

- Talvez não devêssemos apenas melhorar o hospital. Seria melhor construir um novo hospital apenas para os doentes, e manter o prédio antigo para os peregrinos e outros visitantes saudáveis.

Cecilia assumiu uma expressão pensativa.

- Pode ser muito caro.

- Temos cento e cinqüenta libras. - A imaginação de Caris começou a funcionar. - Podemos ter uma nova farmácia. E quartos particulares para as pessoas que têm doenças crônicas.

- Descubra quanto custaria. Pode perguntar a Elfric

Caris odiava Elfric. Já o detestava antes mesmo de Elfric prestar depoimento contra ela. Não queria que ele construísse seu novo hospital.

- Elfric anda muito ocupado com a construção do novo palácio de Godwyn. Prefiro consultar Jeremiah.

- Está bem.

Caris sentiu um ímpeto de simpatia por Cecilia. Embora fosse rigorosa na disciplina, ela dava espaço para as ajudantes tomarem suas próprias decisões. Sempre compreendera as paixões conflitantes que impulsionavam Caris. Em vez de tentar reprimir essas paixões, Cecilia encontrara meios de aproveitá-las. Dera um trabalho que interessava a Caris e providenciara caminhos para que extravasasse sua energia rebelde. Aqui estou eu, pensou Caris, incapaz de lidar com a crise atual, mas minha superiora me diz calmamente para começar a cuidar de um projeto a longo prazo.

- Obrigada, madre Cecilia.

Mais tarde, ainda naquele dia, ela circulou pelo terreno do priorado com Jeremiah e explicou suas aspirações. Ele continuava supersticioso como antes, vendo a ação de anjos e demônios nos mais triviais incidentes cotidianos. Apesar disso, era um construtor imaginativo, aberto a idéias novas: aprendera com Merthin. Não demoraram a determinar o melhor local para o novo hospital, ao sul do atual bloco de cozinha. Seria afastado dos outros prédios, para que as pessoas doentes tivessem menos contato com as saudáveis, mas a comida não teria de ser levada por uma longa distância. Além disso, teria a conveniência de fácil acesso através do claustro das freiras. Com a farmácia, as novas latrinas, e um andar superior com aposentos particulares, Jeremiah calculou que a obra custaria cem libras... a maior parte do legado.

Caris conversou sobre a localização com madre Cecilia. Era um terreno que não pertencia aos monges nem às freiras, e por isso elas foram falar com Godwyn.

Encontraram-no no local de seu próprio projeto de construção, o novo palacio. A parte externa estava pronta e o telhado, instalado. Caris não visitava o local há algumas semanas, e ficou surpresa com o tamanho, pois seria tão grande quanto seu novo hospital. Compreendeu por que Buonaventura o considerara impressivo: o salão de jantar seria maior do que o refeitório das freiras. O local enxameava de trabalhadores, como se Godwyn tivesse pressa de acabar. Os pedreiros ajustavam um chão de ladrilhos coloridos num padrão geométrico, vários carpinteiros faziam portas, e um vidraceiro usava uma fornalha para produzir os vidros. Godwyn estava gastando muito dinheiro.

Ele e Philemon mostravam o prédio ao arquidiácono Lloyd, o assistente do bispo. Godwyn se afastou quando viu as freiras. Cecilia disse:

- Não precisa interromper sua conversa. Mas quando acabar, poderá se encontrar conosco junto do hospital? Temos uma coisa para lhe mostrar.

- Claro - respondeu Godwyn.

Caris e Cecilia voltaram, passando pela área do mercado, na frente da catedral. Sexta-feira era o dia de barganha na Feira do Velocino, quando os mercadores vendiam os estoques restantes a preços reduzidos, para não terem de levar o que não fora vendido. Caris avistou Mark Webber, de rosto redondo e agora barrigudo, usando um casaco escarlate. Os quatro filhos ajudavam-no no estande. Caris gostava muito de Doris, agora com quinze anos, uma jovem que tinha a confiança esfuziante da mãe, num corpo mais esguio.

- Você está parecendo próspero - comentou Caris com Mark, sorrindo.

- A riqueza deveria ser sua. Foi você quem inventou a tintura. Eu apenas fiz o que mandou. Quase sinto que a enganei.

- Você foi recompensado por seu trabalho árduo.

Caris não se importava que Mark e Madge tivessem se saído tão bem com a sua invenção. Embora sempre apreciasse o desafio de fazer negócios, nunca dera muita importância ao dinheiro... talvez porque nunca tivera de se preocupar com isso, criada na casa de um pai rico. Qualquer que fosse o motivo, não sentia o menor pesar pelo fato de os Webbers estarem ganhando uma fortuna que poderia ser sua. Não se importava com a vida sem dinheiro no priorado. E se sentia emocionada por ver as crianças Webber saudáveis e bem vestidas. Ainda lembrava a época em que todos disputavam espaço para dormir no chão de um único cômodo, a maior parte do qual era ocupada por um tear.

Ela e Cecilia foram para a extremidade sul do terreno do priorado. A terra em torno dos estábulos parecia um pátio de fazenda. Havia uns poucos prédios: um pombal, um galinheiro e um barracão para guardar ferramentas. Galinhas eiscavam na terra, e porcos fossavam o lixo da cozinha. Caris ansiava em cuidar logo de tudo.

Godwyn e Philemon apareceram pouco depois, acompanhados por Lloyd. Cecilia indicou o terreno ao lado das cozinhas e disse:

- Vou construir um novo hospital, e deve ser aqui. O que vocês acham?

- Um novo hospital? - repetiu Godwyn. - Por quê?

Caris achou que ele parecia nervoso, o que a deixou surpresa.

- Queremos um hospital para os doentes e uma casa de hóspedes separada para as pessoas saudáveis - explicou Cecilia.

- Uma idéia extraordinária.

- Foi por causa da doença de estômago que começou com Maldwyn Cook. É um exemplo bastante virulento, mas as doenças muitas vezes surgem nos mercados e se espalham depressa em parte porque as pessoas doentes e saudáveis comem juntas, dormem juntas, e vão às latrinas juntas.

Godwyn parecia ofendido.

- Então as freiras se tornaram médicas agora?

Caris franziu o rosto. Esse tipo de atitude desdenhosa não era o estilo de Godwyn. Ele usava o charme para conseguir o que queria, ainda mais com pessoas poderosas como Cecilia. Aquela demonstração de ressentimento visava a esconder alguma coisa.

- Claro que não - respondeu Cecilia. - Mas todo mundo sabe que algumas doenças espalham-se de uma pessoa afetada para outra... isso é óbvio.

Caris interveio:

- Os médicos muçulmanos acham que a doença é transmitida ao se olhar para uma pessoa doente.

- E mesmo? Muito interessante! - O sarcasmo de Godwyn era agora profundo. - Aqueles que passaram sete anos estudando medicina na universidade ficam contentes em ouvirem preleções sobre doença de jovens freiras que mal saíram do noviciado.

Caris não ficou intimidada. Não tinha a menor disposição para demonstrar respeito por um mentiroso hipócrita que tentara assassiná-la.

- Se não acredita na transmissão da doença, por que não prova sua sinceridade ao passar a noite no hospital, dormindo entre uma centena de pessoas que sofrem de náusea e diarréia?

- Irmã Caris! - exclamou Cecilia. - Já chega! Ela virou-se para Godwyn.

- Perdoe-a, padre prior. Não era minha intenção levá-lo a uma discussão com uma simples freira. Só quero ter certeza de que não faz nenhuma objeção à escolha do lugar.

- De qualquer forma, não podem construir agora - declarou Godwyn. Elfric está muito ocupado com o palácio.

- Não queremos Elfric - interveio Caris de novo. - Vamos usar Jeremiah. Cecilia fitou-a, severa.

- Fique calada, Caris. Lembre-se de seu lugar. Não interrompa outra vez minha conversa com lorde prior.

Caris compreendeu que não estava ajudando Cecilia. Contra sua inclinação, baixou a cabeça e murmurou:

- Desculpe, madre prioresa. Cecilia acrescentou para Godwyn:

- A questão não é quando vamos construir, mas onde.

- Lamento, mas não posso aprovar.

- Onde prefere que o novo hospital seja construído?

- Acho que vocês não precisam de um novo hospital.

- Perdoe-me, mas estou no comando do convento - declarou Cecilia, ríspida.

- Não pode me dizer como devo gastar nosso dinheiro. Mas como costumamos consultar um ao outro antes de erguer novos prédios... embora tenha esquecido de cumprir essa pequena cortesia quando planejou seu palácio. Mesmo assim, decidi consultá-lo, mas apenas sobre a questão do local.

Ela olhou para Lloyd e acrescentou:

- Tenho certeza de que o arquidiácono concorda comigo neste ponto.

- Deve haver um acordo - sugeriu Lloyd, sem se comprometer.

Caris franziu o rosto, aturdida. Por que Godwyn se importava? Ele estava construindo seu palácio no lado norte da catedral. Não faria diferença para ele se as freiras erguessem um novo prédio ali no lado sul, onde os monges quase não iam. Por que ele se mostrava tão preocupado?

- Estou dizendo que não aprovo a localização nem o prédio - declarou Godwyn. - A conversa está encerrada.

Caris compreendeu subitamente, num lampejo de inspiração, a razão para o comportamento de Godwyn. Ficou tão chocada que não pôde se conter:

- Você roubou nosso dinheiro!

- Caris! - protestou Cecilia. -Já lhe disse...

- Ele roubou o legado da devota de Thornbury! - gritou Caris, prevalecendo sobre a indignação de Cecilia. - Foi de lá que ele tirou o dinheiro para o palácio. E agora tenta nos impedir de construir porque sabe que encontraremos nosso tesouro vazio.

Ela se sentia tão indignada que tinha a sensação de que poderia explodir a qualquer instante.

- Não seja ridícula! - gritou Godwyn.

Como resposta, aquilo era tão irrelevante que Caris teve certeza de que acertara em cheio. A confirmação deixou-a ainda mais furiosa.

- Pois então prove! - Ela forçou-se a falar mais calmamente. - Vamos até o tesouro agora para verificar os cofres. Não tem objeções, não é, padre prior?

Philemon interveio:

- Seria uma atitude de absoluta indignidade, e o prior não vai se submeter a isso.

Caris ignorou-o.

- É claro que as freiras vão verificar de qualquer maneira, agora que a acusação foi feita. - Ela olhou para Cecilia, que acenou com a cabeça, em concordância. - Portanto, se o prior prefere não estar presente, tenho certeza de que o arquidiácono ficará feliz em comparecer como testemunha.

Lloyd dava a impressão de que preferia não se envolver naquela disputa, mas era difícil recusar o papel de árbitro.

- Se puder ajudar os dois lados, é claro... A mente de Caris estava em disparada.

- Como abriu a arca? Christopher Blacksmith fez o cadeado, e ele é honesto demais para dar uma duplicata da chave e ajudar a roubar o dinheiro. Vocês devem ter arrombado a arca de alguma maneira, e depois consertado para que ninguém percebesse. O que vocês fizeram? Tiraram uma dobradiça?

Ela viu Godwyn lançar um olhar rápido para o vice-prior, e acrescentou, triunfante:

- Então foi Philemon quem tirou a dobradiça. Mas o prior pegou o dinheiro e entregou a Elfric

- Não foi roubo - declarou Godwyn.

Todos olharam para ele. Houve um silêncio chocado.

- Você está admitindo! - exclamou Cecilia.

- Não foi roubo - repetiu ele. - O dinheiro está sendo usado em benefício do priorado e pela glória de Deus.

- Não faz diferença - protestou Caris. O dinheiro não era seu.

- É dinheiro de Deus - insistiu Godwyn, obstinado.

- Foi deixado para o convento - disse Cecilia. - Você sabia. Viu o testamento.

- Não sei de nenhum testamento.

- Claro que sabe. Eu lhe dei para fazer uma cópia e... Cecilia parou de falar de repente. Godwyn reiterou:

- Não sei de nenhum testamento.

- Ele destruiu o testamento - declarou Caris. - Disse que faria uma cópia e guardou o documento numa arca no tesouro... e depois o destruiu.

Cecilia olhava boquiaberta para Godwyn.

- Eu deveria saber. Depois do que tentou fazer com Caris... eu nunca mais deveria ter confiado em você. Mas pensei que sua alma ainda poderia ser salva. Estava enganada.

- Ainda bem que fizemos uma cópia do testamento antes de entregá-lo murmurou Caris, uma invenção desesperada.

- Uma falsificação, é claro - disse Godwyn.

- Se o dinheiro era mesmo seu, não precisaria arrombar a arca para pegá-lo

- comentou Caris. - Vamos examiná-la. Isso resolverá o problema, de um jeito ou de outro.

- O fato de alguém ter mexido na dobradiça não prova nada - interveio Philemon.

- Portanto, eu estava certa! - gritou Caris. - Como sabe da dobradiça? Irmã Beth não abriu o cofre desde a última verificação, e a arca estava intacta na ocasião. Você mesmo deve tê-la tirado do cofre, se sabe o que foi mexido.

Philemon parecia atordoado. Não disse mais nada. Cecilia olhou para Lloyd:

- Arquidiácono, é o representante do bispo. Acho que é seu dever ordenar que o prior devolva o dinheiro às freiras.

Lloyd estava preocupado. Perguntou a Godwyn:

- Sobrou alguma coisa do dinheiro? Caris declarou, furiosa:

- Quando se pega um ladrão, não se pergunta a ele se pode abrir mão de uma parte dos ganhos desonestos!

- Mais da metade já foi gasta no palácio - respondeu Godwyn.

- A construção deve ser interrompida imediatamente - disse Caris. - Os homens devem ser dispensados hoje mesmo, o prédio deve ser demolido e os materiais de construção devem ser vendidos. Tem de devolver até o último penny. O que não puder pagar em dinheiro, depois que o palácio for demolido, deve compensar em terras ou outros bens.

- Eu me recuso a fazer isso - declarou Godwyn. Cecilia tornou a se dirigir a Lloyd:

- Arquidiácono, cumpra o seu dever, por favor. Não pode permitir que um subordinado do bispo roube de outro, não importa se ambos realizam a obra de Deus.

- Não posso julgar essa disputa pessoalmente - disse Lloyd. - É grave demais.

Caris não conseguia falar de tanta fúria e consternação pela fraqueza de Lloyd. Cecilia protestou:

- Mas deve!

Ele parecia acuado, mas ainda assim sacudiu a cabeça em negativa, obstinado.

- Acusações de roubo, destruição de um testamento, acusação de falsificação... Cabe ao bispo decidir pessoalmente.

- Mas o bispo Richard está a caminho da França... e ninguém sabe quando ele voltará! - alegou Cecilia. - Enquanto isso, Godwyn continuará a gastar o dinheiro roubado!

- Lamento muito, mas não posso fazer nada - murmurou Lloyd. - Devem apelar para Richard.

- Está bem. - Caris falou com tanta determinação que todos olharam para ela.

- Neste caso, só nos resta uma coisa a fazer. Vamos procurar nosso bispo.

Em julho de 1346, o rei Edward III reuniu em Portsmouth a maior frota de invasão que a Inglaterra já vira, formada por quase mil navios. Ventos desfavoráveis atrasaram a armada, mas finalmente veio a partida, a 11 de julho, o destino mantido em segredo.

Caris e Mair chegaram a Portsmouth dois dias depois, perdendo por pouco o bispo Richard, que zarpara junto com o rei.

Elas decidiram seguir o exército até a França.

Não fora fácil obter aprovação até mesmo para a viagem até Portsmouth. Madre Cecilia convidara as freiras em capítulo para discutirem a proposta. Algumas acharam que Caris correria perigo físico e moral. Mas as freiras deixavam seus conventos, não apenas em peregrinações, mas também para tratar de negócios, em Londres, Canterbury e Roma. E as irmãs de Kingsbridge queriam de volta seu dinheiro roubado.

Caris, no entanto, não tinha certeza se receberia aprovação para cruzar o Canal da Mancha. Por sorte, não tinha como perguntar.

Ela e Mair não podiam seguir o exército imediatamente, mesmo que soubessem qual era o destino do rei, porque todas as embarcações em condições de navegar, na costa sul da Inglaterra, haviam sido requisitadas para a invasão. Por isso, elas esperaram por notícias, impacientes, num convento nos arredores de Portsmouth.

Caris soube mais tarde que o rei Edward e seu exército desembarcaram numa praia larga em St.-Vaast-la-Hogue, na costa norte da França, perto de Barfleur. Mas a frota não voltara em seguida. Em vez disso, os navios seguiram para leste, ao longo da costa, por duas semanas, acompanhando o exército invasor até Caen. Ali, carregaram os porões com despojos: jóias, tecidos caros, ouro e prata, tudo o que fora saqueado pelos soldados de Edward dos prósperos burgueses da Normandia. Só depois os navios retornaram à Inglaterra.

Um dos primeiros foi o Grace, um navio de carga, com a proa e a popa arredondadas. Seu comandante, um marujo de rosto curtido chamado Rollo, tinha os maiores elogios para o rei.

Recebera um preço ínfimo pelo uso do navio e da tripulação, mas fora premiado com uma boa parcela dos despojos.

- O maior exército que já vi - garantiu ele, exultante.

Seu palpite era o de que havia pelo menos quinze mil homens, cerca da metade de arqueiros, e provavelmente cinco mil cavalos.

- Vocês terão muito trabalho para alcançá-los - advertiu ele. - Eu as levarei até Caen, o último lugar em que sei que eles estiveram. Dali por diante, terão de seguir a trilha. Qualquer que seja o rumo que tenham seguido, estarão uma semana à frente de vocês.

Caris e Mair negociaram o preço da passagem com Rollo, e depois embarcaram no Grace, levando dois pôneis resistentes, Blackie e Stamp. Não seriam capazes de correr mais do que os cavalos militares, mas o exército precisava parar e lutar a intervalos, o que lhes permitiria alcançá-lo.

Quando chegaram à costa francesa e entraram pelo estuário do Orne, no início de uma manhã ensolarada de agosto, Caris farejou a brisa e sentiu o cheiro desagradável de cinzas antigas. Ao estudar a paisagem, nos dois lados do rio, constatou que os campos cultiváveis estavam pretos. Parecia que as colheitas haviam sido incendiadas ainda no solo.

- É a prática normal - explicou Rollo. - O que o exército não pode levar deve ser destruído, para não beneficiar o inimigo.

Ao se aproximarem do porto de Caen, passaram pelos cascos de vários navios incendiados, presumivelmente pelo mesmo motivo.

- Ninguém conhece o plano do rei - informou Rollo. - Ele pode seguir para o sul e avançar contra Paris, ou virar para nordeste, até Calais, na esperança de se encontrar com os aliados flamengos. Mas vocês poderão seguir a trilha da marcha. Basta se manterem atentas aos campos queimados nos dois lados.

Antes de desembarcarem, Rollo ofereceu-lhes um presunto.

- Obrigada, mas levamos peixe defumado e queijo duro em nossos alforjes respondeu Caris. - E temos dinheiro... podemos comprar qualquer coisa que precisarmos.

- O dinheiro pode não ser de muito proveito aqui. Talvez não haja nada para comprar. Um exército é como uma praga de gafanhotos, devasta toda a terra. Levem o presunto.

- É muito gentil. Adeus.

- Reze por mim, se puder, irmã. Cometi alguns pecados terríveis ao longo de minha vida.

Caen era uma cidade com vários milhares de casas. Como Kingsbridge, suas duas partes, Cidade Velha e Cidade Nova, eram divididas por um rio, o Odon, atravessado pela Ponte de São Pedro. Na margem do rio, perto da ponte, alguns pescadores vendiam seus peixes. Caris perguntou o preço de uma enguia. Teve dificuldade para entender a resposta: o pescador falava um dialeto do francês que ela nunca ouvira. Quando finalmente entendeu o que ele queria dizer, o preço deixou-a atordoada. A comida se tornara tão escassa que era agora mais cara do que pedras preciosas. E sentiu-se grata pela generosidade de Rollo.

As duas haviam decidido que diriam que eram freiras irlandesas a caminho de Roma se fossem detidas e interrogadas. Agora, porém, ao se afastarem do rio, Caris especulou muito nervosa se os locais perceberiam pelo sotaque que ela era inglesa.

Mas não havia muitos locais para serem encontrados. Portas arrombadas e janelas quebradas revelavam casas vazias. Reinava um silêncio espectral... sem vendedores apregoando suas mercadorias, sem crianças brincando, sem sinos de igreja repicando, A batalha ocorrera há mais de uma semana, mas pequenos grupos de homens sombrios ainda tiravam cadáveres de prédios e os empilhavam em carroças. Parecia que o exército inglês massacrara homens, mulheres e crianças. Elas passaram por uma igreja. Um enorme buraco fora escavado no cemitério, e corpos eram jogados numa sepultura coletiva, sem caixões e até mesmo sem mortalhas, enquanto um padre entoava um rito fúnebre incessante. O mau cheiro era insuportável.

Um homem bem vestido fez uma reverência para as duas e perguntou se elas precisavam de ajuda. Seu comportamento decidido sugeria que era um eminente cidadão, sem a menor intenção de fazer mal a duas visitantes religiosas. Caris recusou a oferta de ajuda, notando que o francês normando do homem não era muito diferente do usado por um nobre na Inglaterra. Talvez, pensou ela, todas as classes inferiores tivessem diferentes dialetos locais, enquanto a classe dominante falava com um sotaque internacional.

As duas freiras saíram da cidade e seguiram pela estrada para leste, contentes por deixarem para trás as ruas mal-assombradas. Os campos também estavam desertos. Caris sentia na ponta da língua, o tempo todo, o gosto amargo de cinza. Muitas plantações e pomares nos dois lados da estrada haviam sido incendiados. A intervalos de poucos quilômetros, elas passavam por ruínas calcinadas do que fora outrora uma aldeia. Os camponeses haviam fugido à aproximação do exército, ou morrido nos incêndios, pois havia pouca vida ao redor: apenas passarinhos, uns poucos porcos e galinhas esquecidos pelos saqueadores do exército. Às vezes avistavam também um cachorro, farejando atordoado pelos escombros, tentando encontrar o cheiro de seu dono numa pilha de brasas frias.

O destino imediato das duas era um convento a meio dia de viagem de Caen. Sempre que possível, passavam a noite numa casa religiosa - convento, mosteiro, ou hospital - como haviam feito no percurso de Kingsbridge para Portsmouth. Conheciam os nomes e locais de cinqüenta e uma instituições desse tipo, entre Caen e Paris. Se pudessem encontrá-las, enquanto seguiam a trilha de devastação do rei Edward, teriam acomodações e comida de graça. Além disso, ficariam a salvo de ladrões... e, madre Cecilia acrescentaria, das tentações da carne, como uma bebida forte e a companhia masculina.

Os instintos de Cecilia eram aguçados, mas ela não percebera que havia um tipo diferente de tentação entre Caris e Mair. Por causa disso, Caris recusara a princípio o pedido de Mair para acompanhá-la. Estava empenhada em avançar o mais depressa possível, e não queria complicar sua missão com o início de um envolvimento apaixonado... ou pela recusa em fazê-lo. Por outro lado, precisava de uma pessoa corajosa e engenhosa como sua companheira de viagem.

Agora, sentia-se contente pela escolha: entre todas as freiras, Mair era a única com coragem para seguir o exército inglês através da França.

Caris planejara ter uma conversa franca antes da partida, dizendo que não deveria haver afeição física entre as duas durante a viagem. Além de todo o resto, poderiam se meter numa terrível encrenca se fossem vistas. Mas, por algum motivo, ela nunca chegara a ter a conversa franca. Por isso, estavam na França com a questão ainda em suspenso, sem ser mencionada, como um terceiro viajante a se interpor entre as duas, num cavalo silencioso.

Pararam ao meio-dia num córrego à beira de um bosque, onde havia uma campina não-queimada para os pôneis pastarem. Caris cortou fatias do presunto dado por Rollo, enquanto Mair tirava do alforje um pão velho de Portsmouth. Beberam a água do córrego, embora tivesse o gosto de cinzas.

Caris reprimiu sua ansiedade em continuar, e forçou-se a deixar que os animais descansassem durante a hora mais quente do dia. Depois, quando se preparavam para partir, ela ficou surpresa ao descobrir que alguém a observava. Permaneceu imóvel, com o presunto numa das mãos e a faca na outra.

- O que foi? - perguntou Mair.

Ela acompanhou o olhar de Caris e também viu. Havia dois homens a poucos metros de distância, à sombra das árvores. Pareciam jovens, mas era difícil ter certeza, pois tinham os rostos cobertos de fuligem e as roupas imundas. Depois de um momento, Caris decidiu lhes falar, em francês normando:

- Deus os abençoe, minhas crianças.

Eles não responderam. Caris calculou que não sabiam o que fazer. Mas que possibilidades estariam considerando? Roubo? Estupro? A aparência era de predadores.

Ela sentia-se apavorada, mas se obrigou a pensar com calma. Independentemente do que queriam, refletiu, os dois deviam estar famintos. Ela disse para Mair:

- Dê-me depressa duas fatias desse pão.

Mair cortou duas fatias grossas. Caris cortou pedaços do presunto. Pôs o presunto no pão, e disse para Mair:

- Entregue um pão a cada um.

Mesmo apavorada, Mair atravessou a área relvada em passos firmes e ofereceu a comida aos homens.

Ambos agarraram com movimentos bruscos, e começaram a devorar. Caris agradeceu à sua estrela da sorte por ter adivinhado corretamente.

Guardou o presunto no alforje e a faca no cinto, para depois montar em Blackie. Mair seguiu seu exemplo, guardando o pão e montando em Stamp. Caris sentiu-se mais segura em cima do cavalo.

O mais alto dos dois homens adiantou-se, em passos rápidos. Caris sentiu-se tentada a bater no pônei e partir, mas não houve tempo, pois no instante seguinte o homem segurava as rédeas. Falou com a boca cheia de comida, com o forte sotaque local:

- Obrigado.

- Agradeça a Deus, não a mim - disse Caris. - Ele me mandou para ajudá-lo. E observa você neste momento. Ele vê tudo.

- Tem mais carne em sua bolsa.

- Deus me dirá a quem devo dar.

Houve uma pausa, enquanto o homem pensava a respeito, até que murmurou:

- Dê-me sua bênção.

Caris relutava em estender a mão direita no gesto tradicional de bênção... pois assim afastaria a mão da faca no cinto. Era apenas uma faca de comida, de lâmina curta, do tipo que todos os homens e mulheres levavam, mas era suficiente para cortar o dorso da mão que segurava as rédeas e obrigar o homem a largalas. Mas, de repente, ela teve uma inspiração.

- Está bem. Ajoelhe-se. O homem hesitou.

- Deve se ajoelhar para receber minha bênção - insistiu ela, elevando um pouco a voz.

Lentamente, o homem ajoelhou-se, ainda com o pão e o presunto na mão.

Caris olhou para o outro homem. Depois de um instante, ele fez a mesma coisa.

Caris abençoou-os, depois bateu com os calcanhares em Blackie e partiu a trote. Olhou para trás. Mair acompanhava-a de perto. Os dois homens famintos olhavam aturdidos para elas.

Caris refletiu sobre o incidente, na maior ansiedade, enquanto cavalgavam ao longo da tarde. O sol brilhava alegremente, como num belo dia no inferno. Em alguns lugares, a fumaça se elevava de um trecho do bosque, ou de algum celeiro incendiado. Mas os campos não estavam totalmente desertos, como ela foi percebendo pouco a pouco. Avistou uma mulher grávida colhendo vagens de uma plantação que escapara das tochas inglesas; os rostos assustados de duas crianças espiando das pedras enegrecidas de um solar; e vários grupos pequenos de homens, em geral à beira dos bosques, movendo-se com a determinação alerta de animais de carniça. Os homens preocupavam-na. Pareciam famintos, e homens famintos eram sempre perigosos. Ela especulou se não deveria parar de se afligir com a rapidez, e em vez disso passar a se preocupar com a segurança.

Encontrar o caminho para as casas religiosas em que planejavam parar também seria mais difícil do que Caris imaginara. Não previra que o exército inglês deixaria tamanha devastação em sua esteira. Presumira que por toda parte encontraria camponeses para orientá-la. Já podia ser bastante difícil em tempos normais extrair informações de pessoas que nunca viajavam além da cidade-mercado mais próxima. Agora, seus interlocutores seriam também esquivos, apavorados e predadores.

Caris sabia pelo sol que seguia para leste. Calculou, pelos sulcos profundos das rodas de carroças na lama ressequida, que se encontrava na estrada principal. O destino daquela noite era uma aldeia chamada Hôpital-des-Soeurs, pelo convento que ficava no meio. A medida que a sombra à sua frente se alongava, ela olhava ao redor com crescente urgência, à procura de alguém que pudesse orientá-la.

As crianças fugiam à sua aproximação, com medo. Caris ainda não se sentia bastante desesperada para correr o risco de chegar perto dos homens que pareciam famintos.

Não havia mulheres jovens em parte alguma, e Caris teve uma terrível suspeita do destino que podiam ter encontrado nas mãos dos invasores ingleses. De vez em quando avistava a distância uns poucos vultos solitários, cuidando de alguma colheita que não fora queimada; mas relutava em se afastar demais da estrada.

Até que finalmente encontraram uma velha encarquilhada, sentada sob uma macieira, ao lado de uma casa de pedra de tamanho considerável. Comia pequenas maçãs, arrancadas da árvore antes de ficarem maduras. Parecia aterrorizada. Caris desmontou, para não se mostrar tão intimidativa. A velha tentou esconder a miserável refeição nas dobras do vestido, sem forças para fugir. Caris disse, polida:

- Boa-tarde, mãe. Posso perguntar se esta estrada leva para Hôpital-desSoeurs?

A mulher conseguiu se controlar. Apontou na direção para onde elas seguiam e disse, de forma inteligível:

- Através do bosque e no outro lado do morro.

Caris viu que ela não tinha dentes. Devia ser quase impossível comer aquelas maçãs ainda por amadurecer com as gengivas, pensou ela, compadecida.

- A que distância?

- Muito longe.

Todas as distâncias eram longas na idade da mulher.

- Podemos chegar lá antes do anoitecer?

- A cavalo, podem. .

- Obrigada, mãe.

- Eu tinha uma filha - murmurou a velha. - E dois netos. Quatorze e dezesseis anos. Bons rapazes.

- Lamento saber disso.

- Os ingleses... que todos eles possam arder no inferno.

Era evidente que não lhe ocorria que Caris e Mair pudessem ser inglesas. Isso esclarecia a dúvida de Caris: os locais não podiam determinar a nacionalidade de estrangeiros.

- Quais eram os nomes dos rapazes, mãe?

- Giles e Jean.

- Rezarei pelas almas de Giles e Jean. -Tem pão?

Caris olhou ao redor, para ter certeza de que não havia ninguém espreitando nas proximidades, prestes a atacar. Mas estavam sozinhas. Ela acenou com a cabeça para Mair, que tirou o resto de pão do alforje e ofereceu à velha.

A mulher agarrou o pão ansiosamente e começou a roê-lo com as gengivas.

Caris e Mair se afastaram.

- Se continuarmos a dar nossa comida, vamos passar fome - comentou Mair.

- Sei disso - respondeu Caris. - Mas como podemos recusar?

- Não poderemos cumprir nossa missão se morrermos.

- Mas somos freiras declarou Caris, com alguma rispidez. - Devemos ajudar os necessitados, e deixar que Deus decida o momento de nossa morte.

Mair ficou surpresa.

- Nunta ouvi você falar assim antes..

- Meu pai detestava as pessoas que pregavam sobre moralidade. Somos todos bons quando nos convém, ele dizia: isso não conta. É quando você quer demais fazer alguma coisa errada... quando está prestes a ganhar uma fortuna de um negócio desonesto, ou beijar os lábios adoráveis da mulher de seu vizinho, ou dizer uma mentira para se livrar de uma terrível encrenca... é nesse momento que você precisa das regras. Sua integridade é como uma espada, ele dizia você não deve brandi-la até se submeter ao teste. Não que ele soubesse qualquer coisa sobre espadas...

Mair ficou calada por algum tempo. Podia estar remoendo o que Caris dissera, ou apenas desistira da discussão: Caris não sabia.

Os comentários sobre Edmund sempre faziam Caris compreender o quanto sentia saudade do pai. Depois da morte da mãe, Edmund se tornara a pedra fundamental de sua vida. Sempre estivera presente, ao seu lado, à disposição quando ela precisava de solidariedade ou compreensão, de um conselho esperto ou apenas de informação: ele conhecia muita coisa do mundo. Agora, quando ela se virava nessa direção, deparava-se apenas com um espaço vazio.

Elas passaram por um trecho de bosque e depois subiram um morro, como a velha previra. Lá de cima, viram um vale raso, com outra aldeia queimada, exceto por um agrupamento de prédios de pedra, que parecia um pequeno convento.

- Deve ser o Hôpital-des-Soeurs - comentou Caris. - Graças a Deus.

Ela refletiu, ao se aproximarem, como se tornara acostumada à vida no convento. Ao descerem a encosta, descobriu-se a aguardar ansiosa pelo ritual de lavar as mãos, uma refeição feita em silêncio, a hora de deitar ao anoitecer, até mesmo o sossego sonolento da Matina, às três horas da madrugada. Depois do que vira naquele dia, a segurança daquelas paredes cinzentas de pedra era atraente. Ela incitou Blackie para um trote.

Não havia qualquer movimento ali, mas isso não chegava a surpreender: era um convento pequeno numa aldeia, e não se podia contar com a atividade incessante de um priorado como Kingsbridge. Ainda assim, deveria haver, àquela hora do dia, uma coluna de fumaça se elevando do fogo na cozinha, enquanto a refeição da noite era preparada. Ao se aproximar, ela divisou outros sinais sinistros, e foi dominada por um sentimento de consternação. O prédio mais próximo, que parecia uma igreja, não tinha telhado. As janelas eram buracos vazios, carecendo de venezianas e vidros. Algumas paredes de pedras estavam enegrecidas, talvez por fumaça.

O lugar era silencioso: não havia sinos tocando, gritos de cavalanços ou empregadas da cozinha. Um convento deserto, compreendeu Caris, desolada, ao parar o cavalo. E fora incendiado, como todos os outros prédios da aldeia. A maioria das paredes de pedra continuava de pé, mas os telhados de madeira haviam desabado, portas e janelas estavam destruídas pelo fogo, os vidros, estilhaçados com o calor. Mair murmurou, incrédula:

- Eles incendiaram um convento?

Caris também se sentia chocada. Acreditava que os exércitos invasores mvanavelmente deixavam intactos os prédios eclesiásticos. Era uma regra inviolável, diziam as pessoas.

Um comandante não hesitaria em condenar à morte um soldado que violasse um lugar sagrado. Ela sempre aceitara isso sem questionar.

- O cavalheirismo não existe mais.

Elas desmontaram e foram andando, cautelosas onde pisavam, através das vigas queimadas e escombros calcinados. Ao se aproximarem da porta da cozinha, Mair soltou um grito estridente.

- Oh, Deus, o que é aquilo? Caris sabia a resposta.

- É uma freira morta.

O cadáver estava nu, mas tinha os cabelos rentes de uma freira. O corpo sobrevivera de alguma forma ao incêndio. A mulher devia estar morta há uma semana. Aves de carniça já haviam devorado os olhos, e partes do rosto tinham sido roídas por outros animais.

E os seios tinham sido cortados com uma faca.

- Os ingleses fizeram isso? - indagou Mair, aturdida.

- Não foram os franceses.

- Nossos soldados têm estrangeiros lutando juntos, não é? Galeses, alemães, c assim por diante. Talvez tenham sido eles.

- Estão todos sob as ordens de nosso rei - comentou Caris, com uma sombria desaprovação. - Foi ele quem os trouxe para cá. E tudo que seus homens fazem é responsabilidade dele.

Ficaram olhando em silêncio para a cena macabra. Um camundongo saiu da boca do cadáver. Mair soltou um grito e virou-se. Caris abraçou-a.

- Fique calma - disse ela, firme, afagando as costas de Mair para confortá-la. Depois de um momento, Caris murmurou: - Vamos sair daqui.

Voltaram aos cavalos. Caris resistiu ao impulso de sepultar a freira morta: se demorassem, ainda estariam ali quando a noite caísse. Mas para onde iriam? Haviam planejado passar a noite naquele convento.

- Vamos voltar até a velha na macieira - decidiu Caris. - Sua casa é o único prédio intacto que encontramos desde que deixamos Caen.

Ela olhou ansiosa para o sol poente, antes de acrescentar:

- Se pressionarmos os cavalos, podemos chegar lá antes do escurecer. Voltaram pela estrada. Bem à frente, o sol mergulhava depressa demais para a linha do horizonte. A última claridade do dia se desvanecia quando alcançaram a casa ao lado da macieira.

A velha mostrou-se feliz ao vê-las, na esperança de que partilhassem sua comida, o que foi feito. Comeram no escuro. Seu nome era Jeanne. Não acenderam uma fogueira, mas o tempo era ameno, e as três deitaram lado a lado, enroladas em seus cobertores. Sem confiarem plenamente na anfitriã, Caris e Mair deitaram com os alforjes em que guardavam a comida.

Caris permaneceu acordada por algum tempo. Sentia-se satisfeita por estar em movimento, depois da longa espera em Portsmouth. Haviam feito um bom progresso nos últimos dois dias. Se conseguisse encontrar o bispo Richard, tinha certeza de que ele obrigaria Godwyn a devolver o dinheiro das freiras. O bispo não era um paradigma de integridade, mas tinha a mentalidade aberta e, à sua maneira indiferente, dispensava justiça com imparcialidade.

Godwyn não conseguira todas as coisas que queria, nem mesmo no julgamento de bruxaria. Caris tinha certeza de que poderia persuadir Richard a lhe dar uma carta ordenando que Godwyn vendesse bens do priorado para devolver o dinheiro roubado.

Mas também se preocupava com sua segurança e a de Mair. A suposição de que os soldados não fariam nada contra freiras fora errada: o que haviam visto em Hôpital-des-Soeurs deixava isso bem claro. Ela e Mair precisavam de um disfarce.

Quando acordou, à primeira claridade do amanhecer, Caris perguntou a Jeanne:

- Seus netos... ainda guarda as roupas deles? A velha abriu uma arca de madeira.

- Pode levar o que quiser. Não tenho ninguém para dar essas roupas.

Ela pegou um balde e saiu para buscar água. Caris começou a examinar as roupas. Jeanne não pedira um pagamento. Roupas tinham pouco valor monetário depois da morte de tantas pessoas, refletiu Caris.

- O que está querendo fazer? - perguntou Mair.

- As freiras não estão seguras. Vamos nos tornar pajens a serviço de um pequeno senhor... Pierre, sieur de Longchamp, na Bretanha. Pierre é um nome bastante comum e deve haver muitos lugares chamados Longchamp. Nosso senhor foi capturado pelos ingleses e nossa senhora nos mandou procurá-lo, para negociar o resgate.

- Está bem - concordou Mair, ansiosa.

- Giles e Jean tinham quatorze e dezesseis anos. Com um pouco de sorte, suas roupas caberão em nós.

Caris pegou uma túnica, calção e capa com capuz, tudo na lã marrom sem ser tingida. Mair encontrou um traje similar em verde, com mangas curtas e uma camisa de baixo. As mulheres não usavam roupas de baixo, ao contrário dos homens. Por sorte, Jeanne lavara todas as roupas de sua falecida família. Caris e Mair poderiam continuar com seus sapatos, pois os calçados práticos das freiras não eram muito diferentes do que os homens usavam.

- Vamos trocar de roupa agora mesmo? - propôs Mair.

Elas tiraram os hábitos de freiras. Caris nunca vira Mair despida, e não pôde resistir a uma espiada. O corpo nu da companheira deixou-a sem fôlego. A pele de Mair parecia luzir como uma pérola rosada. Os seios eram generosos, com mamilos claros de menina, os pêlos púbicos exuberantes. Caris teve uma súbita noção de que seu corpo não era tão bonito. Desviou os olhos, e se apressou em vestir as roupas que havia escolhido.

Ela meteu a túnica pela cabeça. Era como um vestido de mulher, só que terminava nos joelhos, em vez de descer até os tornozelos. Vestiu as roupas de baixo, e os calções compridos. Calçou os sapatos e ajeitou o cinto.

- Como estou? - perguntou Mair.

Caris estudou-a. Mair tinha um gorro de menino por cima dos cabelos louros curtos, um pouco inclinado. Exibia um sorriso de satisfação.

- Você parece tão feliz! - exclamou Caris, surpresa.

- Sempre gostei de roupas de meninos. - Mair desfilou de um lado para outro. - É assim que eles andam. Sempre ocupando mais espaço do que precisam.

Era uma imitação tão precisa que Caris desatou a rir. Um pensamento lhe ocorreu.

- Teremos de urinar de pé?

- Posso fazer isso, mas não com a roupa de baixo... ficaria toda molhada. Caris riu.

- Não podemos tirar a roupa de baixo, porque uma súbita rajada de vento poderia expor... nossa farsa.

Mair também riu. Depois, passou a olhar para Caris de uma maneira estranha, que não chegava a ser totalmente desconhecida, de alto a baixo, fitando-a nos olhos.

- O que está fazendo? - perguntou Caris.

- É assim que os homens olham para as mulheres, como se nos possuíssem. Mas tome cuidado... se fizer isso com um homem, ele se torna agressivo.

- Pode ser mais difícil do que eu imaginava.

- Você é bonita demais, Caris. Precisa de um rosto sujo.

Mair foi até a lareira, e enegreceu a mão com fuligem. Passou no rosto de Caris. O contato foi como uma carícia. Meu rosto não é bonito, pensou Caris; ninguém jamais o julgou assim... exceto Merthin, é claro...

- Tem demais - disse Mair, um momento depois, limpando um pouco com a outra mão. - Assim está melhor.

Ela passou fuligem na mão de Caris e acrescentou:

- Agora é a minha vez.

Caris espalhou um pouco de fuligem nas faces e garganta de Mair, como se fosse uma barba incipiente. Era uma sensação de intimidade, olhar atentamente para aquele rosto, tocar de leve na pele. Ela também sujou a testa de Mair. Agora, Mair parecia um menino bonito... mas não uma mulher.

Estudaram uma à outra. Um sorriso se insinuou no arco vermelho que eram os lábios de Mair. Caris experimentava um senso de expectativa, como se alguma coisa da maior importância estivesse prestes a acontecer. E foi nesse instante que uma voz indagou:

- Onde estão as freiras?

As duas se viraram, culpadas. Jeanne estava parada na porta, segurando um pesado balde com água, uma expressão assustada.

- O que vocês fizeram com elas?

Caris e Mair desataram a rir. Jeanne reconheceu-as.

- Como vocês mudaram! - exclamou ela.

Elas beberam a água fresca. Caris partilhou o resto do peixe defumado na primeira refeição. Era um bom sinal, pensou ela, enquanto comiam, que Jeanne não as tivesse reconhecido. Se tomassem cuidado, talvez tudo desse certo.

As duas se despediram de Jeanne e partiram. Ao subirem o morro antes de Hôpital-des-Soeurs, o sol brilhava bem à frente, projetando uma claridade avermelhada sobre o convento. A impressão era a de que as ruínas ainda ardiam.

Caris e Mair passaram a trote pela aldeia, tentando não pensar no cadáver mutilado da freira no meio dos escombros, e seguiram para o sol nascente.

Na terça-feira, 22 de agosto, o exército inglês batia em retirada. Ralph Fitzgerald não sabia como isso acontecera. Haviam avançado pela Normandia de oeste para leste, saqueando e incendiando, sem que ninguém fosse capaz de resistir. Ralph estava em seu elemento. Na guerra, um soldado podia se apropriar de qualquer coisa que quisesse - comida, jóias, mulheres - e matar qualquer homem que tentasse se opor. Era assim que a vida deveria ser vivida.

O rei era um homem que fazia gosto ao coração de Ralph. Edward III adorava lutar. Quando não estava em guerra, passava a maior parte do tempo organizando justas elaboradas, dispendiosas encenações de batalhas, com exércitos de cavaleiros em uniformes especialmente desenhados. Em campanha, sempre se mostrava disposto a comandar uma incursão ou uma expedição de ataque, arriscando a própria vida, sem se dar o trabalho de comparar os riscos com os benefícios, como fazia um mercador de Kingsbridge. Os cavaleiros mais velhos e os condes comentavam sua brutalidade. Haviam protestado contra os incidentes e o estupro sistemático das mulheres de Caen. Mas Edward não se importara. Ao saber que alguns cidadãos de Caen haviam atirado pedras em soldados que saqueavam suas casas, ele ordenou que todos os habitantes da cidade fossem mortos. Só suspendeu a ordem depois de vigorosos protestos de Sir Godfrey de Harcourt e outros.

As coisas haviam começado a sair erradas quando alcançaram o rio Sena. Em Rouen, encontraram a ponte destruída, e a cidade no outro lado da água - muito fortificada. O rei Philippe VI da França estava ali em pessoa, com um poderoso exército.

Os ingleses marcharam rio acima, à procura de um lugar para efetuar a travessia. Mas descobriram que Philippe se antecipara, e uma ponte depois de outra estava fortemente defendida ou em ruínas. Chegaram até Poissy, a pouco mais de trinta quilômetros de Paris. Ralph pensou que atacariam a capital... mas os homens mais velhos sacudiram a cabeça, sensatos, alegando que isso era impossível. Paris era uma cidade de cinqüenta mil homens, e a esta altura eles já deviam ter recebido as notícias de Caen. Por isso, se mostrariam dispostos a lutar até a morte, sabendo que não poderiam contar com qualquer misericórdia.

Se o rei não tencionava atacar Paris, especulou Ralph, qual seria seu plano? Ninguém sabia, e Ralph desconfiou que Edward não tinha qualquer plano, exceto a destruição de tudo que encontrasse pela frente.

A cidade de Poissy fora evacuada. Os engenheiros ingleses conseguiram reconstruir sua ponte - ao mesmo tempo em que repeliam um ataque francês - e o exército finalmente cruzou o rio.

A esta altura, era evidente que Philippe reunira um exército muito maior do que o inglês. Edward decidiu desviar-se para o norte, com o objetivo de se encontrar com uma força anglo-flamenga que desfechara uma invasão por nordeste.

Hoje, os ingleses estavam acampados ao sul de outro grande rio, o Somme. Os franceses efetuavam as mesmas manobras que haviam usado no Sena. Patrulhas de reconhecimento informavam que todas as pontes haviam sido destruídas e as cidades à margem do rio, fortificadas. Ainda mais sinistro, um destacamento inglês avistou, na outra margem, a bandeira do mais famoso e assustador aliado de Philippe, John, o rei cego da Boêmia.

Edward começara com quinze mil homens no total. Em seis semanas de campanha, milhares haviam tombado e outros desertaram, voltando para casa com alforjes cheios de ouro. Restavam cerca de dez mil homens agora, pelos cálculos de Ralph. Informações de espiões sugeriam que em Amiens, poucos quilômetros rio acima, Philippe tinha agora sessenta mil soldados de infantaria e doze mil cavaleiros montados, uma vantagem esmagadora em números. Ralph ficou mais preocupado do que em qualquer outra ocasião desde que chegara à Normandia. Os ingleses estavam numa situação crítica.

No dia seguinte, desceram pelo rio até Abbeville, o local da última ponte antes de o Somme se alargar num estuário; mas os burgueses da cidade haviam gastado muito dinheiro, ao longo dos anos, fortalecendo as muralhas. Os ingleses compreenderam que a cidade era inexpugnável. Os cidadãos sentiam-se tão seguros e arrogantes que enviaram uma grande força de cavaleiros para atacar a vanguarda do exército inglês. Houve um violento combate, até que os locais se retiraram de volta para sua cidade murada.

Quando o exército de Philippe deixou Amiens e começou a avançar do sul, Edward descobriu-se acuado na ponta de um triângulo: o estuário à direita, o mar à esquerda, e por trás o exército francês, clamando pelo sangue dos invasores bárbaros.

Naquela tarde, o conde Roland foi falar com Ralph.

Há sete anos Ralph lutava com Roland. O conde não mais o considerava um garoto inexperiente. Roland ainda dava a impressão de que não gostava muito de Ralph, mas sem dúvida o respeitava. Sempre o usava para reforçar um ponto fraco em sua linha, ou comandar uma incursão. Ralph perdera três dedos da mão esquerda e claudicava quando cansado, desde que o chuço de um francês entrara em sua canela nos arredores de Nantes, em 1342. Mesmo assim, o rei ainda não armara Ralph como cavaleiro, uma omissão que lhe causava um amargo ressentimento. Apesar de todo o saque que acumulara - a maior parte aos cuidados de um ourives de Londres - Ralph ainda não se sentia realizado. Sabia que o pai também se mostraria insatisfeito. Como Gerald, Ralph lutava pela honra, não por dinheiro; mas durante todo esse tempo não escalara nem um único degrau na escada da nobreza.

Quando Roland apareceu, Ralph estava sentado numa plantação de trigo amadurecendo, pisoteada pelo exército. Tinha a companhia de Alan Fernhill e meia dúzia de outros, comendo uma refeição desoladora, de sopa de ervilha e cebola: a comida era escassa e não restava qualquer carne.

Ralph sentia a mesma coisa que os outros homens, cansaço das marchas constantes, desânimo pelas pontes destruídas e cidades bem defendidas. E medo pelo que aconteceria quando o exército francês os alcançasse.

Roland era agora um velho, os cabelos e a barba grisalhos, mas ainda andava empertigado e falava com autoridade. Aprendera a manter uma expressão impassível, de tal maneira que as pessoas mal notavam que o lado direito do rosto era paralisado. Ele disse:

- O estuário do Somme é invadido pelo mar. Na maré baixa, a água fica rasa em vários pontos. Mas o fundo é tão lamacento que se torna intransponível.

- Então não podemos cruzá-lo.

Mas Ralph sabia que o conde não viera apenas para lhe dar a má notícia, e sentiu-se otimista.

- Pode haver um vau... um ponto em que o fundo é mais firme - continuou Roland. - Se há mesmo, os franceses devem saber.

- E quer que eu descubra.

- Tão depressa quanto puder. Há alguns prisioneiros no campo ao lado. Ralph sacudiu a cabeça.

- Os soldados podem ter vindo de qualquer lugar da França, ou mesmo de outros países. Só os locais terão a informação.

- Não quero saber quem você vai interrogar. Só quero que leve a resposta à tenda do rei até o anoitecer.

Roland afastou-se. Ralph esvaziou sua tigela de sopa e levantou-se de um pulo, contente por ter alguma coisa agressiva para fazer.

- Selem os cavalos, pessoal.

Ele ainda montava Griff. Milagrosamente, seu cavalo predileto sobrevivera a sete anos de combates. Griff era um pouco menor que um cavalo de guerra, mas tinha mais vigor que os animais enormes que a maioria dos cavaleiros preferia. Era agora experiente em batalha, e suas ferraduras de ferro proporcionavam uma vantagem extra a Ralph nos combates. Ralph gostava mais de seu cavalo do que da maioria de seus companheiros humanos. Na verdade, a única criatura viva a que ele se sentia mais ligado era o irmão, Merthin, a quem não via há sete anos... e poderia nunca mais ver, pois Merthin fora para Florença.

Seguiram para nordeste, na direção do estuário. Todos os camponeses que moravam a meio dia de caminhada deviam saber onde ficava o vau, se é que havia algum, calculou Ralph. Deviam usá-lo com freqüência, atravessando o rio para comprar e vender animais, comparecer a casamentos e funerais de parentes, ir a mercados, feiras e festas religiosas. Relutariam em fornecer a informação aos invasores ingleses, é claro, mas ele sabia como resolver esse problema.

Afastaram-se do exército, embrenhando-se por um território que ainda não sofrera com a passagem de milhares de homens, onde havia ovelhas nos pastos e colheitas amadurecendo nos campos. Chegaram a uma aldeia de onde se podia avistar o estuário à distância. Avançaram a galope pela trilha relvada que levava à aldeia. As choupanas de um ou dois cômodos dos servos fizeram Ralph se lembrar de Wigleigh. Como esperava, os camponeses fugiram em todas as direções, as mulheres carregando bebês e crianças, a maioria dos homens segurando um machado ou uma foice.

Ralph e seus companheiros já haviam passado por aquela tirania vinte ou trinta vezes nas últimas semanas. Eram especialistas em coletar informações. Em geral, os líderes do exército queriam saber onde os locais guardavam seus estoques de alimentos. Quando descobriam que os ingleses se aproximavam, os astuciosos camponeses levavam vacas e ovelhas para as florestas, enterravam sacos de farinha de trigo, e escondiam fardos de feno no campanário da igreja. Sabiam que provavelmente passariam fome depois se revelassem tudo, mas sempre acabavam contando, mais cedo ou mais tarde. Em outras ocasiões, o exército precisava de uma orientação, talvez para uma cidade importante, uma ponte estratégica, ou uma abadia fortificada. Os camponeses em geral respondiam a indagações desse tipo sem qualquer hesitação. Mas era preciso ter certeza de que não mentiam. Os mais astutos podiam tentar enganar o exército invasor, sabendo que os soldados não poderiam voltar para puni-los.

Ralph e seus homens, enquanto perseguiam os camponeses em fuga pelos campos, ignoraram os homens e se concentraram em mulheres e crianças. Ralph sabia que os maridos e pais fariam qualquer coisa para recuperar as que fossem capturadas.

Ele alcançou uma garota em torno dos treze anos. Galopou a seu lado por alguns segundos, observando sua expressão aterrorizada. Tinha os cabelos escuros, a pele também escura, rosto feio, jovem mas com o corpo arredondado de uma mulher... o tipo que ele apreciava. Lembrava-o de Gwenda. Em circunstâncias um pouco diferentes, teria se aproveitado dela sexualmente, como fizera com várias outras, ao longo das últimas semanas.

Mas hoje tinha outras prioridades. Virou Griff para bloqueá-la. Ela tentou desviar, tropeçou nos próprios pés, e caiu num canteiro de hortaliças. Ralph saltou do cavalo e agarrou-a, antes que ela tivesse tempo de se levantar. A garota gritou e arranhou seu rosto, o que obrigou Ralph a dar um soco em sua barriga para aquietá-la. Segurou-a pelos cabelos compridos. Voltou para o cavalo e começou a levá-la para a aldeia. A garota cambaleou e caiu, mas Ralph continuou a andar, arrastando-a pelos cabelos; ela fez um esforço para se levantar, chorando de dor. Depois disso, não caiu de novo.

Eles se reuniram na pequena igreja de madeira. Os oito soldados ingleses haviam capturado quatro mulheres, quatro crianças e dois bebês de colo. Obrigaram todas a sentar no chão, na frente do altar. Poucos momentos depois, um homem entrou correndo na igreja, balbuciando no francês local, suplicante. Quatro outros apareceram em seguida.

Ralph ficou satisfeito.

Foi se postar junto do altar, que era apenas uma mesa de madeira pintada de branco.

- Quietos! - Todos silenciaram quando ele brandiu a espada. Apontou para um jovem. - O que você é?

- Um homem que trabalha com couro, senhor. Por favor, não faça mal à minha esposa e filho, que nada fizeram de errado.

Ralph apontou para outro homem.

- E você?

A garota capturada reprimiu um grito, levando Ralph a concluir que eram parentes, talvez pai e filha.

- Sou apenas um pobre vaqueiro.

- Um vaqueiro? - Isso era ótimo. - E com que freqüência leva o gado através do rio?

- Uma ou duas vezes por ano, senhor, quando vou ao mercado.

- E onde fica o vau? i •’ O homem hesitou.

- Vau? Não há nenhum vau. Temos de atravessar a ponte em Abbeville.

- Tem certeza?

- Tenho, senhor. Ralph olhou ao redor.

- Pergunto a todos vocês... isso é verdade? Todos acenaram com a cabeça em confirmação.

Ralph pensou um pouco. Estavam assustados - apavorados - mas ainda assim talvez estivessem mentindo.

- Se eu trouxer o padre com uma Bíblia, todos poderão jurar por suas almas imortais que não há vau através do estuário?

- Sim, senhor.

Mas isso levaria muito tempo. Ralph olhou para a garota que capturara.

- Venha até aqui.

Ela deu um passo para trás. O vaqueiro caiu de joelhos.

- Por favor, senhor, não faça mal a uma criança inocente. Ela tem apenas treze anos...

Alan Fernhill pegou a garota como se fosse um saco de cebolas e a levou até Ralph, que a segurou.

- Estão mentindo para mim, todos vocês. Há um vau, tenho certeza. Só preciso saber onde fica exatamente.

- Está bem - concordou o vaqueiro. - Eu lhe direi. Mas deixe a criança em paz.

- Onde fica o vau?

- A um quilômetro e meio de Abbeville, rio abaixo.

- Qual é o nome da aldeia?

O vaqueiro ficou confuso por um instante, mas logo respondeu:

- Não há nenhuma aldeia, mas pode-se ver uma estalagem no outro lado.

O homem mentia. Nunca viajara, e por isso não sabia que havia sempre uma aldeia ao lado de um vau.

Ralph levantou a mão da garota e colocou-a no altar. Tirou a faca da bainha. Com um movimento rápido, decepou um dedo da garota. A pesada lâmina cortou com facilidade os ossos pequenos. Ela gritou em agonia, e o sangue esguichou vermelho sobre a mesa pintada de branco. Todos os camponeses gritaram em horror. O vaqueiro deu um passo à frente, furioso, mas foi detido pela ponta da espada de Alan Fernhill.

Ralph continuou a segurar a garota com uma das mãos. Ergueu o dedo decepado na ponta da faca.

- Você é o demônio em pessoa - balbuciou o vaqueiro, tremendo de choque.

- Não sou, não. - Ralph já ouvira essa acusação antes, mas ela ainda o incomodava. - Estou salvando as vidas de milhares de homens. E se for necessário, cortarei os outros dedos, um a um.

- Não! Não!

- Então me diga onde fica o vau.

Ralph tornou a erguer a faca. O vaqueiro gritou:

- Blanchetaque! É chamado de Blanchetaque! Por favor, deixe-a em paz!

- Blanchetaque?

Ralph simulava ceticismo, mas a perspectiva parecia promissora. Era uma palavra desconhecida, mas dava a impressão de que podia significar uma plataforma branca. Não era o tipo de coisa que um homem apavorado poderia inventar num súbito impulso.

- Sim, senhor. Chamam-no assim por causa das pedras brancas no fundo do rio que permitem a passagem por cima do lodo.

Ele estava em pânico, as lágrimas escorrendo pelas faces; portanto, era quase certo que dizia a verdade, pensou Ralph, satisfeito. O vaqueiro acrescentou:

-As pessoas dizem que as pedras foram postas ali pelos romanos, nos tempos antigos. Por favor, deixe minha filha ir embora.

- Onde fica?

- A quinze quilômetros de Abbeville, rio abaixo.

- Não a um quilômetro e meio?

- Estou dizendo a verdade desta vez, senhor, pois espero ser salvo.

- E o nome da aldeia?

- Saigneville.

- O vau é sempre transponível, ou apenas na maré baixa?

- Só na maré baixa, senhor, ainda mais com gado ou uma carroça.

- Mas você conhece as marés.

- Conheço.

- Agora, só tenho mais uma pergunta, mas é muito importante. Se eu sequer desconfiar que está mentindo, cortarei toda a mão de sua filha. - A garota gritou, enquanto Ralph acrescentava: - Sabe que falo sério, não é mesmo?

- Sei, sim, senhor. Eu lhe direi qualquer coisa.

- Quando é a maré baixa, amanhã?

Uma expressão de pânico estampou-se no rosto do vaqueiro.

- Ahn... ahn... deixe-me calcular!

O vaqueiro estava tão apavorado que não conseguia pensar direito. O homem que trabalhava com couro interveio:

- Posso dizer. Meu irmão passou pelo vau ontem, e por isso eu sei. A maré baixa amanhã será na metade da manhã, duas horas antes do meio-dia.

- Isso mesmo! - exclamou o vaqueiro. - Eu só tentava calcular. Na metade da manhã, ou pouco depois. E outra vez ao final da tarde.

Ralph continuava a segurar a mão sangrando da garota.

- Até que ponto tem certeza?

- Oh, senhor, tanta certeza quanto tenho do meu próprio nome, eu juro!

Era bem provável que o vaqueiro não fosse capaz de dizer seu nome direito naquele momento, de tão transtornado pelo terror. Ralph olhou para o homem que trabalhava com couro. Não havia sinal de impostura em seu rosto, nada de desafio ou ansiedade em agradar na sua expressão. Apenas parecia envergonhado, como se tivesse sido forçado, contra sua vontade, a fazer uma coisa errada. É a verdade, pensou Ralph, exultante. Eu consegui.

- Blanchetaque. A quinze quilômetros de Abbeville, rio abaixo, na aldeia de Saigneville. Pedras brancas no fundo do rio. Maré baixa no meio da manhã.

- Isso mesmo, senhor.

Ralph largou o pulso da garota. Ela correu chorando para o pai, que a abraçou. Ralph olhou para a poça de sangue na mesa branca do altar. Havia muito sangue para uma garota tão franzina.

- Muito bem, homens - disse ele. - Já acabamos aqui.

As trombetas acordaram Ralph à primeira claridade do amanhecer. Não havia tempo para acender uma fogueira, ou comer alguma coisa. O exército precisava levantar acampamento imediatamente. Dez mil homens, a maior parte a pé, tinham de percorrer dez quilômetros até a metade da manhã.

A divisão do príncipe de Gales seguiu na frente, acompanhada pela divisão do rei, depois a caravana de bagagem e a retaguarda. Batedores foram enviados para verificar a que distância se encontrava o exército francês. Ralph da na vanguarda, com o príncipe de dezesseis anos, que tinha o mesmo nome do pai, Edward.

Esperavam surpreender os franceses com a travessia do Somme no vau. O rei dissera na noite passada:

- Bom trabalho, Ralph Fitzgerald.

Ralph há muito aprendera que essas palavras nada significavam. Cumprira numerosas missões úteis e de extrema bravura para o rei, o conde Roland e outros nobres, mas até agora não fora armado cavaleiro. Hoje, no entanto, não acalentava qualquer ressentimento. Sua vida corria perigo, e sentia-se tão contente por ter encontrado um caminho de fuga para si mesmo que mal se importava se alguém lhe dava crédito ou não por salvar todo o exército.

Enquanto marchavam, dezenas de oficiais reais patrulhavam toda a área, orientando o exército na direção certa, mantendo a formação correta, providenciando para que as divisões continuassem separadas, e trazendo de volta os extraviados. Eram todos nobres, pois precisavam de autoridade para dar ordens. O rei Edward era obcecado pela ordem durante as marchas.

Seguiram para o norte. O terreno se elevava numa encosta suave até uma crista, de onde podia-se avistar o brilho distante do estuário. Desceram através dos trigais. Ao passarem por aldeias, os oficiais reais impediram os saques, porque não queriam bagagem extra na travessia do rio. Também se abstiveram de incendiar as plantações, com receio de que a fumaça pudesse denunciar sua posição exata para o inimigo.

O sol já estava prestes a nascer quando os líderes chegaram a Saigneville. A aldeia ficava num penhasco, a cerca de dez metros acima do rio.

Da margem, Ralph contemplou um formidável obstáculo: mais de dois quilômetros de água e terreno pantanoso. Podia ver as pedras esbranquiçadas no fundo, indicando o vau. No outro lado do estuário havia uma colina verde. Enquanto o sol surgia, à sua direita, ele avistou na encosta distante um brilho de metal e um relance de cor. Seu coração se encheu de consternação.

O aumento da claridade confirmou sua suspeita: o inimigo esperava por eles. Os franceses sabiam onde ficava o vau, é claro, e um comandante sensato previra a possibilidade de os ingleses descobrirem a localização. Portanto, a manobra não seria uma surpresa.

Ralph olhou para a água. Corria para oeste, demonstrando que a maré estava baixando; mas ainda era fundo demais para um homem vadear. Teriam de esperar.

O exército inglês continuava a se concentrar na margem, mais centenas de homens chegando a cada minuto. Se o rei tentasse agora fazer o exército voltar, a confusão seria um pesadelo.

Um batedor retornou, e Ralph ouviu a notícia quando era relatada ao príncipe de Gales. O exército do rei Philippe deixara Abbeville e se aproximava daquela margem do rio.

O batedor foi despachado para determinar a rapidez com que o exército francês se deslocava.

Não havia como voltar atrás, compreendeu Ralph, com medo no coração; os ingleses tinham de cruzar o estuário de qualquer maneira.

Ele estudou o outro lado, tentando calcular quantos franceses havia na margem norte. Mais de mil, pensou. Mas o perigo maior era o exército de dezenas de milhares de homens que vinha de Abbeville. Ralph aprendera, em muitos combates com os franceses, que eles tinham uma bravura extraordinária - às vezes eram até temerários -, mas também eram indisciplinados. Marchavam em desordem, desobedeciam ordens, e podiam até atacar, para provar seu valor, quando seria mais sensato esperarem. Mas se fossem capazes de superar seus hábitos desordenados e chegassem ali nas próximas horas, pegariam o exército do rei Edward no meio do estuário. Com o inimigo nas duas margens, os ingleses podiam ser exterminados.

E depois da devastação que haviam promovido nas últimas seis semanas, não poderiam esperar misericórdia.

Ralph pensou numa armadura. Tinha uma armadura que tirara de um cadaver francês em Cambrai sete anos antes, mas estava numa carroça na caravana de bagagem. Além disso, não sabia se conseguiria vadear por dois quilômetros e meio de água e lama sob o peso de uma armadura. Usava um capacete de aço e uma cota de malha curta, que era tudo o que podia levar numa marcha. Teria de se contentar com isso. Os outros tinham uma proteção leve similar. A maioria dos soldados de infantaria carregava o capacete pendurado no cinto, só o pondo na cabeça quando se aproximava do inimigo. Mas ninguém marchava com uma armadura completa.

O sol foi subindo a leste. O nível da água baixou, até ficar na altura dos joelhos. Os nobres do círculo do rei deram as ordens para o início da travessia. O filho do conde Roland, William de Caster, trouxe instruções para o grupo de Roland.

- Os arqueiros seguem na frente, e começam a atirar assim que chegarem perto do outro lado.

Ralph fitava-o impassÍvel. Não esquecera que William tentara enforcá-lo pelo que metade do exército inglês fizera durante as últimas seis semanas.

- Depois, quando chegarem à praia, os arqueiros se dispersam para a esquerda e direita, a fim de permitir a passagem de cavaleiros e homens de armas acrescentou William.

Parecia bastante simples, pensou Ralph; era o que sempre acontecia com as ordens. Mas seria uma batalha sangrenta. O inimigo estava bem posicionado, na encosta acima do rio, para liquidar os soldados ingleses que atravessassem o estuário desprotegidos.

Os homens de Hugh Dispenser seguiram na frente, com seu estandarte distintivo, em preto-e-branco. Os arqueiros entraram no vau com seus arcos acima da água, acompanhados pelos cavaleiros e homens de armas. Os homens de Roland foram atrás. Não demorou muito para que Ralph e Alan estivessem cavalgando através da água.

Dois quilômetros e meio não eram uma distância muito grande para percorrer a pé, mas eram uma longa distância para vadear, até mesmo para um cavalo, como Ralph compreendia agora. A profundidade variava: em alguns trechos, eles caminhavam sobre terreno pantanoso por cima das pedras, enquanto em outros a água alcançava a cintura da infantaria. Homens e animais cansavam-se depressa. O sol de agosto batia inclemente em suas cabeças, enquanto os pés molhados tornavam-se dormentes de frio. E durante todo o tempo, olhando para a frente, podiam ver mais e mais claramente o inimigo à espera na margem norte.

Ralph estudou as forças opostas com crescente apreensão. A linha da frente, ao longo da praia, era formada por arqueiros. Ele sabia que não eram franceses, mas sim mercenários italianos, sempre chamados de genoveses, mas na verdade procedentes de várias partes da Itália. Usavam bestas, que eram um pouco mais lentas do que os arcos ingleses, mas os genoveses teriam bastante tempo para recarregar, enquanto os alvos avançavam com dificuldade pela água rasa. Por trás dos arqueiros, na encosta verde, havia soldados de infantaria e cavaleiros montados prontos para atacar.

Ao olhar para trás, Ralph avistou milhares de ingleses atravessando o rio. Mais uma vez, voltar não era uma opção; na verdade, os que vinham por trás pressionavam a vanguarda, e não deixavam alternativas para os líderes.

Agora ele podia ver com nitidez as fileiras inimigas. Ao longo da praia, havia pesados escudos de madeira, chamados de pavises, usados pelos arqueiros. Assim que os ingleses estivessem ao alcance, os genoveses começariam a atirar.

A uma distância de trezentos metros, a mira era inacurada, e as flechas caíram com uma força reduzida. Mesmo assim, alguns cavalos e homens foram atingidos. Os feridos caíram e foram arrastados pela correnteza para se afogarem. Os cavalos atingidos debateram-se na água, tornando-a ensangüentada. O coração de Ralph começou a bater mais depressa.

A medida que os ingleses se aproximavam da margem, a precisão dos genoveses melhorou e as flechas tiveram mais impacto. A besta era lenta, mas disparava uma flecha de ponta de aço com uma força terrível. Ao redor de Ralph, homens e cavalos caíam. Alguns tinham morte instantânea.

Não havia nada que ele pudesse fazer para se proteger, compreendeu Ralph, min a apreensão de um condenado: ou teria sorte, ou morreria. O ar ressoava com os terríveis ruídos da batalha: o zunido das flechas fatais, as imprecações dos feridos, os relinchos dos cavalos em agonia.

Os arqueiros à frente da coluna inglesa também atiraram. Os arcos compridos, com dois metros, afundavam na água, e por isso eles precisavam erguê-los em ângulos insólitos, além de o fundo do rio ser escorregadio. Mas eles fizeram o melhor que podiam.

As flechas disparadas por bestas podiam penetrar em armaduras quando disparadas de perto, mas nenhum inglês usava uma armadura completa naquele dia. Com exceção do capacete, eles tinham pouca proteção contra a salva mortífera.

Ralph teria se virado e fugido, se pudesse. Mas por trás dele havia dez mil homens e pelo menos cinco mil cavalos pressionando para avançar: ele seria pisoteado e morreria afogado se tentasse voltar. Não tinha alternativa senão baixar a cabeça para junto do pescoço de Griff e exortá-lo a continuar.

Os sobreviventes entre os arqueiros ingleses na vanguarda finalmente alcançaram águas rasas, e começaram a usar seus arcos com mais eficácia. Atiravam em trajetória, por cima dos pavises. Depois que começaram, os arqueiros ingleses podiam disparar doze flechas por minuto. As hastes eram de madeira - geralmente de freixo -, mas tinham pontas de aço; quando caíam como uma chuva, eram aterradoras. Subitamente, o inimigo já não disparava tantas flechas. Alguns escudos caíram. Os genoveses recuaram, e os ingleses começaram a chegar à praia.

Assim que deixaram o vau, os arqueiros dispersaram-se para a esquerda e direita, deixando o caminho livre para os cavaleiros, que investiram das águas rasas para as linhas inimigas. Ralph, ainda vadeando o rio, já vira batalhas suficientes para saber qual deveria ser a tática francesa naquele momento: precisavam manter sua linha e deixar que os arqueiros continuassem a massacrar os ingleses, na praia e na água. Mas o código de cavalaria não permitia que a nobreza francesa se escondesse por trás de arqueiros de origem humilde. Por isso, eles romperam sua linha para atacar os cavaleiros ingleses... perdendo assim grande parte dos benefícios de sua posição. Ralph sentiu um vislumbre de esperança.

Os genoveses recuaram. A confusão na praia era total. O coração de Ralph vibrava de medo e excitamento. Os franceses ainda dispunham da vantagem do ataque encosta abaixo e do uso de armaduras completas; e massacraram os homens de Hugh Dispenser. A vanguarda da investida alcançou as águas rasas, abatendo os homens que ainda não haviam concluído a travessia.

Os arqueiros do conde Roland alcançaram a beira do rio um pouco à frente de Ralph e Alan. Os sobreviventes se dividiram. Ralph achava que os ingleses estavam condenados, e tinha certeza de que morreria. Mas não havia para onde ir, exceto para a frente, e de repente ele se descobriu atacando, a cabeça inclinada pelo pescoço de Griff, a espada erguida, direto para a linha francesa. Esquivou-se de um golpe de espada e alcançou terra seca. Golpeou inutilmente um capacete de aço. Griff esbarrou em outro cavalo. O animal francês era maior, embora mais jovem: tropeçou e jogou seu cavaleiro na lama. Ralph virou Griff, voltou, preparou-se para atacar de novo.

Sua espada tinha um uso restrito contra armadura, mas ele era um homem enorme num cavalo lodoso; sua melhor esperança era derrubar da sela os cavaleiros inimigos. Atacou de novo. Já não sentia mais medo àquela altura de uma batalha. Em vez disso, era dominado por uma fúria inebriante, que o levava a matar tantos inimigos quanto podia. Em batalha, o tempo parecia parar, e ele vivia de um momento para outro. Mais tarde, quando a ação terminasse, se ainda estivesse vivo, ficaria espantado ao constatar que o sol se punha no horizonte e descobrir que um dia inteiro se passara. Agora, ele atacou os franceses, muitas e muitas vezes, esquivando-se das espadas, golpeando sempre que tinha uma oportunidade; nunca diminuía o ritmo, pois isso seria fatal.

Em algum momento - pode ter sido depois de alguns minutos, ou de algumas horas - ele percebeu, com a maior incredulidade, que os ingleses não estavam mais sendo massacrados. Na verdade, pareciam estar conquistando terreno e ganhando esperança. Ralph afastou-se da confusão. Parou por um instante, ofegante, para avaliar a situação.

A praia estava coberta de cadáveres, mas havia tantos franceses quanto ingleses. Ralph percebeu a loucura da carga francesa. Assim que os cavaleiros dos dois lados se encontraram em combate, os arqueiros genoveses pararam de atirar, com medo de atingir seus próprios homens. Por isso, o inimigo não tinha mais condições de acertar os ingleses na água, como patos num lago. Desde então, os ingleses vinham saindo do estuário em hordas, todos seguindo as mesmas ordens: os arqueiros dispersavam-se para a esquerda e direita, os cavaleiros e infantes avancavam, de tal forma que os franceses foram sufocados pelo peso dos números. Ao olhar para a água, Ralph verificou que a maré começava a subir. Os ingleses ainda no rio estavam desesperados para sair, qualquer que fosse o destino que pudesse aguardá-los na praia.

Enquanto Ralph recuperava o fôlego, os franceses perderam a disposição. Rechaçados da praia, perseguidos pela encosta acima, pressionados pelo exército que saía da água, eles começaram a bater em retirada. Os ingleses continuaram a avançar, mal podendo acreditar em sua sorte; e, como acontecia com freqüência, não demorou muito para que a retirada francesa se transformasse numa debandada geral, cada um por si.

Ralph olhou para o estuário. A caravana de bagagem estava no meio, cavalos e bois puxando as pesadas carroças através do vau, chicoteados por condutores frenéticos em alcançar a margem. Havia algum combate na outra margem agora. A vanguarda do exército do rei Philippe devia ter chegado e atacava alguns extraviados. Ralph pensou ter reconhecido, à luz do sol, as cores da cavalaria ligeira da Boêmia. Mas chegara tarde demais.

Ele arriou na sela, com uma súbita fraqueza de alívio. A batalha terminara. Por mais incrível que pudesse parecer, contra todas as expectativas, os ingleses haviam escapado da armadilha francesa.

Por hoje, estavam seguros.

Caris e Mair chegaram aos arredores de Abbeville no dia 25 de agosto. Ficaram consternadas ao descobrirem que o exército francês já se encontrava ali. Dezenas de milhares de infantes e arqueiros haviam acampado nos campos ao redor da cidade. Na estrada, ouviram não apenas sotaques franceses regionais, mas também as línguas de lugares mais distantes, como Flandres, Boêmia, Itália, Savóia, Majorca.

Os franceses e seus aliados perseguiam o rei Edward da Inglaterra e seu exército... assim como Caris e Mair. Caris se perguntou como poderia se antecipar na corrida.

Ao passarem pelos portões e entrarem na cidade, ao final da tarde, encontraram as ruas apinhadas de nobres franceses. Caris nunca vira tamanha exibição de roupas de luxo, boas armas, cavalos magníficos e sapatos novos, nem mesmo em Londres. A impressão era a de que toda a aristocracia francesa se concentrara ali. Os estalajadeiros, padeiros, artistas de rua e prostitutas da cidade trabalhavam sem parar, a fim de atender às necessidades dos ilustres visitantes. Cada taverna estava repleta de condes, e cada casa tinha cavaleiros dormindo no chão.

A abadia de São Pedro figurava na lista de instituições religiosas em que Caris e Mair planejavam se abrigar. Mas mesmo que ainda estivessem vestidas como freiras teriam dificuldade para encontrar um lugar nos aposentos para hóspedes: o rei da França estava ali, e sua comitiva ocupava todo o espaço disponível. As duas freiras de Kingsbridge, disfarçadas agora como Christophe de Longchamp e Michel de Longchamp, foram orientadas para a enorme igreja da abadia, onde centenas de pajens, cavalariços e outros servidores do rei dormiam à noite, no frio chão de pedra da nave. Mas o oficial no comando ali disse às duas que não havia mais espaço disponível, e que elas teriam de dormir nos campos, como todas as outras pessoas de baixa extração.

O transepto norte era um hospital para os feridos. Na saída, Caris parou para observar um cirurgião costurar um talho profundo no rosto de um soldado que não parava de gemer. O cirurgião foi rápido e eficiente; quando acabou, Caris não pôde deixar de comentar, em tom de admiração:

- Fez um bom trabalho.

- Obrigado. - O médico fitou-a. - Mas como sabe disso, rapaz?

Caris sabia porque observara Matthew Barber em ação muitas vezes. Mas também sabia que tinha de inventar uma história.

- Em Longchamp, meu pai é cirurgião para o sieur.

- E você está com o sieur agora?

- Ele foi capturado pelos ingleses e minha ama me mandou, junto com meu irmão, para negociar o resgate.

- Talvez seja melhor seguir direto para Londres. Se ele já não está lá agora, chegará em breve. Mas já que está aqui, poderia ganhar uma cama para passar a noite se me ajudasse.

-Terei o maior prazer.

-Já viu seu pai lavar ferimentos com vinho morno?

Caris era capaz de lavar ferimentos mesmo dormindo. Poucos momentos depois, ela e Mair estavam fazendo o que melhor sabiam: cuidar de doentes. A maioria dos homens fora ferida no dia anterior, numa batalha no vau do rio Somme. Os nobres feridos haviam sido atendidos primeiro, e agora o cirurgião cuidava dos soldados comuns. As duas trabalharam sem parar pelas horas seguintes. A longa tarde de verão tornou-se crepúsculo, e velas foram acesas. Finalmente, todos os ossos quebrados haviam sido encanados, as extremidades esmagadas foram amputadas, e os ferimentos, costurados. Martin Chirurgien, o medico, levou-as para o jantar no refeitório.

Elas foram tratadas como parte da comitiva real, e comeram ensopado de cordeiro com cebolas. Há uma semana que não comiam carne. Serviram até um bom vinho tinto. Mair bebeu com evidente satisfação. Caris sentia-se contente pela oportunidade de recuperarem as energias, mas ainda continuava ansiosa em alcançar os ingleses. Um cavaleiro à mesa comentou:

- Sabiam que na sala de jantar do abade, aqui ao lado, há quatro reis e dois arcebispos comendo? - Ele contou nas pontas dos dedos. - Os reis da França, Boêmia, Roma e Majorca, os arcebispos de Rouen e Sens.

Caris decidiu que tinha de ver isso. Saiu do refeitório pela porta que levava à cozinha. Viu servos carregando travessas para a sala de jantar. Olhou pela porta.

Os homens ao redor da mesa eram sem dúvida ocupantes de altos cargos. A mesa estava repleta de aves assadas, imensos pedaços de vaca e ovelha, pastelões apetitosos, frutas doces. O homem à cabeceira devia ser o rei Philippe, de cinqüenta e três anos, um punhado de fios brancos na barba loura. Ao lado, um homem mais jovem, parecido com ele, estava falando, o rosto vermelho de fúria:

- Os ingleses não são nobres. São como ladrões, que roubam à noite e depois fogem.

Martin apareceu ao lado de Caris, e murmurou em seu ouvido:

- Esse é meu senhor... Charles, conde de Alençon, irmão do rei. Uma voz diferente disse:

- Discordo. - Caris percebeu no mesmo instante que o homem era cego, e concluiu que devia ser o rei Jean da Boêmia. - Os ingleses não podem fugir por muito mais tempo. Estão com pouca comida e cansados.

- Edward quer juntar forças com o exército anglo-flamengo que invadiu o nordeste da França, a partir de Flandres - comentou Charles.

Jean balançou a cabeça.

- Descobrimos hoje que o exército bateu em retirada. Creio que Edward terá de parar em algum momento e lutar. E do ponto de vista dele, quanto mais cedo, melhor, pois seus homens ficarão mais e mais desanimados à medida que os dias passarem.

Charles disse, muito excitado:

- Neste caso, devemos enfrentá-los amanhã. Depois do que fizeram na Normandia, todos devem morrer... cavaleiros, nobres, até mesmo o próprio Edward!

O rei Philippe pôs a mão no braço de Charles, silenciando-o.

- A ira de nosso irmão é compreensível. Os crimes dos ingleses são repulsivos. Mas não se esqueçam: quando enfrentarmos o inimigo, o mais importante é pôr de lado as divergências que podem existir entre nós... esquecer as brigas e ressentimentos... e confiar uns nos outros, pelo menos durante a batalha. Temos uma enorme superioridade numérica e devemos vencer com facilidade... mas precisamos lutar juntos, como um único exército. Vamos beber à nossa união.

Era um brinde interessante, decidiu Caris, enquanto se retirava, discretamente. Era evidente que o rei não podia ter certeza de que seus aliados agiriam como uma equipe unida. Mas o que a preocupava na conversa era a probabilidade de ocorrer uma batalha em breve, talvez no dia seguinte. Ela e Mair teriam de tomar cuidado para não se envolverem. Ao voltarem ao refeitório, Martin comentou:

- Como o rei, você tem um irmão turbulento.

Caris viu que Mair estava se embriagando. Exagerava em seu papel masculino, sentada com as pernas abertas e os cotovelos em cima da mesa.

- Por todos os santos, o ensopado estava muito gostoso, mas me faz peidar como um demônio - disse a freira de rosto doce em roupas de homem. - Lamento pelo fedor, pessoal.

Ela tornou a encher o copo com vinho e bebeu. Os homens riram, indulgentes, divertidos com a cena de um garoto se embriagando pela primeira vez, sem dúvida recordando incidentes embaraçosos de seu passado. Caris pegou Mair pelo braço.

- Já está na hora de você ir para a cama, irmão caçula. Vamos embora. Mair foi sem reclamar.

- Meu irmão se comporta como uma velha - declarou ela antes de se retirar.

- Mas ele me ama... não é mesmo, Christophe?

- Claro, Michel. Eu amo você.

Os homens riram de novo. Mair apoiou-se nela, enquanto a levava de volta à igreja, até o lugar em que haviam deixado os cobertores. Fez Mair deitar e cobriu-a.

- Dê-me um beijo de boa-noite, Christophe - pediu Mair. Caris beijou-a nos lábios.

- Você está de porre. Trate de dormir. Temos de levantar cedo amanhã de manhã.

Caris passou mais algum tempo acordada, na maior preocupação. Sentia que estava com muito azar. Quase haviam alcançado o exército inglês e o bispo Richard... mas fora nesse momento exato que os franceses também apareceram. Deveria se manter à distância do campo de batalha. Por outro lado, se ela e Mair ficassem retidas na retaguarda do exército francês, talvez nunca conseguissem alcançar os ingleses.

Em suma, refletiu ela, o melhor era partir bem cedo, e tentar se antecipar ao exército francês. Afinal, um exército daquele tamanho não poderia se deslocar muito depressa: levaria horas só para as tropas entrarem em formação de marcha. Se ela e Mair fossem rápidas, poderiam se manter à frente. Era arriscado... mas não haviam feito outra coisa que não assumir riscos desde a partida de Portsmouth.

Ela caiu no sono. Despertou quando o sino tocou para a Matina, pouco depois de três horas da madrugada. Acordou Mair, e não se mostrou nem um pouco compadecida quando ela se queixou de dor de cabeça. Enquanto os monges cantavam salmos na igreja, Caris e Mair foram para os estábulos e encontraram seus cavalos. O céu era claro, e elas podiam se orientar pela luz das estrelas.

Os padeiros da cidade haviam trabalhado durante a noite inteira, e por isso puderam comprar pão para a viagem. Mas os portões da cidade ainda estavam fechados: tiveram de esperar, impacientes, até o amanhecer, tremendo no ar frio, comendo o pão.

Finalmente deixaram Abbeville, por volta de quatro e meia. Seguiram para noroeste, ao longo da margem direita do Somme, a direção seguida pelo exército inglês.

Haviam se afastado menos de meio quilômetro quando as trombetas soaram no toque de despertar, dentro das muralhas da cidade. Como Caris, o rei Philippe decidira começar cedo. Nos campos, os soldados e homens de armas começaram a se levantar. Os oficiais reais deviam ter recebido ordens na noite anterior, pois pareciam saber o que fazer. Não demorou muito para que uma parte do exército se juntasse a Caris e Mair na estrada.

Caris ainda esperava alcançar os ingleses antes daquelas tropas. Era evidente que os franceses teriam de parar e se reagrupar antes do início da batalha. Isso deveria proporcionar a Caris e Mair tempo suficiente para alcançar seus conterrâneos e encontrar um lugar seguro além do campo de batalha. Ela não queria ser apanhada entre os dois lados. Já começava a pensar que fora temerária ao partir naquela missão. Sem saber nada de guerra, não fora capaz de imaginar as dificuldades e os perigos. Mas era tarde demais agora para qualquer arrependimento. E haviam chegado até ali sem sofrerem qualquer mal.

Os soldados na estrada não eram franceses, mas italianos. Levavam bestas de aço e feixes de flechas de ferro. Eram cordiais, e Caris conversou numa mistura de francês normando, latim e o italiano que aprendera com Buonaventura Caroli. Disseram que em batalha sempre formavam a linha de frente, e disparavam de trás de pesados pavises de madeira, que no momento vinham nas carroças que os acompanhavam. Protestaram contra a refeição apressada ao acordarem, menosprezaram os cavaleiros franceses como impulsivos e belicosos, e falaram com admiração de seu líder, Ottone Doria, que podia ser visto uns poucos metros à frente.

O sol foi subindo pelo céu e todos ficaram com calor. Como sabiam que podiam entrar em batalha naquele dia, os arqueiros usavam grossos casacos, capacetes de ferro e proteção para os joelhos, além das bestas e flechas. Perto de meio-dia, Mair declarou que desmaiaria se não parasse para descansar um pouco. Caris também sentia-se exausta cavalgavam desde o amanhecer - e sabia que os cavalos precisavam de um repouso. Por isso, contra toda a sua inclinação, ela foi obrigada a parar, enquanto milhares de arqueiros as ultrapassavam.

Caris e Mair deixaram os animais beber no Somme e comeram um pouco mais do pão. Quando tornaram a partir, descobriram-se no meio de cavaleiros e homens de armas franceses. Caris reconheceu o colérico Charles, irmão de Philippe, à frente do grupo.

Estava no meio do exército francês, mas não havia nada que pudesse fazer a não ser seguir em frente e torcer por uma oportunidade para se distanciar.

Uma ordem percorreu a linha pouco depois de meio-dia. Os ingleses não se encontravam a oeste, como antes se acreditava, mas sim ao norte; e o rei francês ordenara que seu exército se desviasse nessa direção, não em uma coluna, mas todos ao mesmo tempo. Os homens em torno de Caris e Mair, liderados pelo Conde Charles, deixaram a estrada à beira do rio e seguiram por um caminho estreito através dos campos. Caris foi atrás, com um aperto no coração.

Uma voz familiar chamou-a. Um momento depois, Martin Chirurgien estava ao seu lado.

- Isto é o caos - comentou ele, sombrio. - A ordem na marcha foi completamente rompida.

Alguns homens em cavalos rápidos apareceram no outro lado dos campos e saudaram o conde Charles.

- São os batedores - informou Martin.

Ele se adiantou para ouvir as informações. Os pôneis de Caris e Mair foram atrás, com o instinto natural dos cavalos para se manterem agrupados.

- Os ingleses pararam - informou um homem. - Assumiram uma posição defensiva num penhasco perto da cidade de Crécy.

Martin disse:

- Aquele é Henri le Moine, um velho companheiro do rei da Boêmia. Charles ficou satisfeito com a notícia.

- Então teremos uma batalha hoje!

Os cavaleiros ao seu redor gritaram em aclamação. Henri ergueu a mão, num gesto de cautela:

- Estamos sugerindo que todas as unidades parem e se reagrupem.

- Parar agora? - berrou Charles. - Quando os ingleses finalmente se mostram dispostos a lutar? Vamos atacá-los agora!

- Nossos homens e cavalos precisam de descanso. O rei está bem atrás, na retaguarda. Devemos lhe dar a chance de nos alcançar e avaliar o campo de batalha. Ele poderá tomar as disposições hoje para um ataque amanhã, quando os homens estarão descansados.

- Ao inferno com as disposições. Só há uns poucos milhares de ingleses. Vamos passar por cima deles.

Henri fez um gesto impotente.

- Não cabe a mim comandá-lo, milorde. Mas pedirei a seu irmão, o rei, que me dê as ordens.

- Isso mesmo, peça a ele! - gritou Charles, seguindo em frente. Martin comentou com Caris:

- Não sei por que meu senhor é tão intempestivo.

- Acho que ele tem de provar que é bastante bravo para reinar, embora por um acaso de nascimento não seja o rei - comentou Caris, pensativa.

Martin fitou-a atentamente.

- Você sabe demais para um rapaz tão simples.

Caris evitou os olhos dele, e jurou que não mais esqueceria sua falsa identdade. Não havia hostilidade na voz de Martin, mas ele estava desconfiado. Como cirurgião, conhecia as sutis diferenças nas estruturas ósseas de homens e mulheres. Poderia ter notado que Christophe e Michel de Longchamp eram anormais Mas, felizmente, ele não insistiu no assunto.

O céu começou a ficar nublado, mas o ar ainda era quente e úmido. Havia muitas árvores à esquerda, e Martin informou a Caris que ali era a Floresta d Crécy. Não podiam estar longe dos ingleses... mas agora Caris especulava como poderia se desligar dos franceses e se juntar aos ingleses, sem ser morta por nenhum dos dois lados.

O efeito da floresta era comprimir o flanco esquerdo do exército em marcha de tal forma que o caminho estava atulhado de homens, as divisões se misturan do de uma maneira irremediável.

Mensageiros percorreram a linha com novas ordens do rei: o exército deveria parar e montar acampamento. Caris sentiu sua esperança renovada: teria agora uma oportunidade de seguir à frente do exército francês. Houve uma discussão entre Charles e um mensageiro. Martin foi para o lado de Charles, a fim de descobrir o que estava acontecendo. Voltou com uma expressão de incredulidade.

- O conde Charles se recusa a obedecer às ordens!

- Por quê? - indagou Caris, consternada.

- Ele acha que o irmão é cauteloso demais. Diz que ele, Charles, não será covarde para se deter diante de um inimigo tão fraco.

- Pensei que todos obedecessem ao rei em batalha.

- E deveriam. Mas nada é mais importante para os nobres franceses do que seu código de cavalaria. Eles preferem morrer a assumir uma atitude que possa parecer covardia.

O exército continuou a marcha, desafiando as ordens.

- Fico contente que vocês dois estejam aqui - comentou Martin. - Precisarei de ajuda de novo. Ganhando ou perdendo, haverá muitos feridos ao pôr-do-sol.

Caris compreendeu que não poderia escapar. Mas, por algum motivo, não queria mais se afastar. Na verdade, sentia uma estranha ansiedade. Se aqueles homens eram bastante loucos para mutilarem uns aos outros com espadas e flechas, ela podia pelo menos ajudar os feridos.

Não demorou muito para que o líder dos arqueiros, Ottone Doria, se aproximasse a cavalo - com alguma dificuldade, de tão compacta que era a multidão

- para falar com Charles de Alençon.

- Pare seus homens! - gritou ele para o conde. Charles mostrou-se ofendido.

- Como ousa me dar ordens?

- As ordens vieram do rei... mas meus homens não podem parar porque os seus estão pressionando por trás!

- Pois então que eles marchem em frente.

- Estamos à vista do inimigo. Se continuarmos, teremos de entrar em batalha.

- Pois que assim seja.

- Mas meus homens marcharam durante o dia inteiro. Estão exaustos, com lome e sede. E meus arqueiros estão sem os pavises.

- São covardes demais para lutarem sem escudos?

- Está chamando meus homens de covardes?

- Se eles não lutarem, estou.

Ottone ficou calado por um momento. Depois, falou numa voz tão baixa que Caris mal conseguiu ouvir:

- Você é um tolo, Alençon. E estará no inferno ao cair da noite.

O italiano virou seu cavalo e afastou-se. Caris sentiu água pingando no rosto, e levantou os olhos. Começava a chover.

Oaguaceiro foi forte, mas de curta duração. Quando clareou, Ralph olhou para o vale e viu, com um ímpeto de medo, que o inimigo chegara.

Os ingleses ocupavam uma crista que se estendia de sudoeste para nordeste. Por trás, para noroeste, havia uma floresta. A frente e nos lados, a encosta descia íngreme. O flanco direito dava para a cidade de Crécy-en-Ponthieu, aninhada no vale do rio Maye.

 

Os franceses aproximavam-se pelo sul.

Ralph estava no flanco direito, com os homens do conde Roland, comandados pelo jovem príncipe de Gales. Mantinham a formação compacta de forcado, que provara ser tão eficaz diante dos escoceses. A esquerda e direita, destacavam-se formações triangulares de arqueiros, como os dois dentes de um forcado. Entre os dentes, bem recuados, havia homens de armas e cavaleiros desmontados. Era uma inovação radical, a que muitos cavaleiros ainda resistiam: gostavam de seus cavalos e sentiam-se vulneráveis a pé. Mas o rei fora implacável: todos a pé. No terreno à frente dos cavaleiros, os homens haviam cavado buracos com trinta centímetros de profundidade, para que os cavalos franceses tropeçassem e caíssem.

A direita de Ralph, na extremidade da crista, havia uma novidade: três máquinas novas, chamadas de bombardas, ou canhões, que usavam pólvora explosiva para disparar enormes pelouros de pedra. Haviam sido arrastadas através da Normandia, mas nunca usadas antes. Ninguém tinha certeza se funcionariam. Hoje, o rei Edward precisava usar todos os recursos à sua disposição, pois a superioridade do inimigo situava-se em algum ponto entre quatro contra um e

sete contra um.

No flanco esquerdo dos ingleses, os homens do conde de Northampton usavam a mesma formação de forcado. Por trás das linhas de frente havia um terceiro batalhão de reserva, comandado pelo rei. Por trás do rei, havia duas posições de recuo. As carroças de bagagem constituíam a primeira, dispostas num círculo, com os não-combatentes - cozinheiros, sapadores, cavalariços - ali dentro, com os cavalos.

A segunda posição era a própria floresta, para onde os remanescentes do exército inglês poderiam fugir, no caso de uma derrota fragorosa. Os cavaleiros franceses teriam dificuldades para segui-los.

Postavam-se ali desde o início da manhã, sem nada para comer além de sopa de ervilha com cebola. Ralph usava sua armadura, e suava com o calor; por isso, a chuva fora bem-vinda. Também deixara enlameada a encosta pela qual os franceses teriam de atacar, o que tornaria a aproximação escorregadia e traiçoeira.

Ralph podia adivinhar qual seria a tática francesa. Os arqueiros genoveses atirariam de trás de seus escudos, a fim de reduzir a resistência da linha inglesa. Depois, quando já tivessem causado bastantes estragos, tratariam de se deslocar para o lado, para que os cavaleiros franceses avançassem, em seus cavalos de batalha.

Não havia nada tão apavorante quanto essa carga. Chamada de furor franciseus, era a suprema arma da nobreza francesa. O código de honra fazia com que ignorassem a própria segurança. Aqueles enormes cavalos, com cavaleiros tão blindados que pareciam homens de ferro, passavam por cima de arqueiros, escudos, espadas e homens de armas.

Claro que nem sempre dava certo. A carga podia ser rechaçada, em particular quando o terreno favorecia os defensores, como acontecia ali. Mas os franceses não desanimavam com facilidade: atacariam de novo. E tinham tanta superioridade em números que Ralph não podia imaginar como os ingleses seriam capazes de detê-los indefinidamente.

Sentia medo, mas mesmo assim não se arrependia de estar com o exército. Há sete anos que levava a vida de ação que sempre desejara, em que os homens fortes eram reis e os fracos não contavam para nada. Tinha vinte e nove anos, e os homens de ação raramente sobreviviam para chegar à velhice. Ele cometera terríveis pecados, mas fora absolvido de todos, o mais recente naquela manhã, pelo bispo de Shiring, que agora se postava ao lado do pai, o conde, armado com uma maça de aparência assustadora... os sacerdotes não deveriam derramar sangue, uma regra a que davam um reconhecimento superficial pelo uso de armas rombudas no campo de batalha.

Os arqueiros em seus casacos brancos estendiam-se até a base da encosta. Estavam sentados, os arcos fincados na terra, à sua frente. Começaram a se levantar agora, ajustando as cordas. Ralph calculou que a maioria sentia a mesma coisa que ele, uma mistura de alívio, porque a longa espera terminara, e de medo, ao pensamento de tudo o que poderia lhes acontecer.

Ralph pensou que ainda havia bastante tempo. Podia ver que os genoveses não traziam os pesados escudos de madeira, que eram um elemento essencial de sua tática. E tinha certeza de que a batalha não começaria até que os escudos chegassem.

Por trás dos arqueiros, milhares de cavaleiros despejavam-se pelo vale, procedentes do sul. Espalhavam-se para a esquerda e direita, próximos dos arqueiros. O sol apareceu de novo, iluminando as cores vibrantes de seus estandartes e as proteções de malha dos cavalos. Ralph reconheceu o brasão de Charles, conde de Alençon, irmão do rei Philippe.

Os arqueiros pararam na base da encosta. Havia milhares. Como se a um sinal, todos soltaram um grito terrível. Alguns pularam. Trombetas soaram.

Era seu grito de guerra, visando a apavorar o inimigo, e podia dar certo com alguns. Mas o exército inglês era formado por guerreiros experientes, ao final de uma campanha de seis semanas, e seria preciso mais do que gritos para assustalos. Todos se mantiveram impassíveis.

E no instante seguinte, para espanto total de Ralph, os genoveses levantaram suas bestas e começaram a atirar.

O que estavam fazendo? Não tinham escudos!

O som foi súbito e aterrador, cinco mil flechas de ferro voando pelo ar. Mas os arqueiros ingleses estavam fora de alcance. Talvez não levassem em consideração o fato de que atiravam encosta acima; e o sol da tarde, por trás das linhas inglesas, devia ofuscar seus olhos. Qualquer que fosse a razão, as flechas caíram muito antes do alvo.

Houve um clarão de chama e um estrondo que parecia uma trovoada, no meio da linha de frente inglesa. Aturdido, Ralph viu a fumaça se elevar do lugar em que estavam as bombardas. O som era impressionante; mas quando tornou a olhar para o inimigo, Ralph constatou que os danos eram mínimos. Muitos arqueiros genoveses, no entanto, ficaram bastante chocados para interromper a recarga.

Nesse momento, o príncipe de Gales gritou a ordem para que seus arqueiros começassem a atirar.

Dois mil arcos compridos foram erguidos. Como sabiam que se encontravam muito distantes para dispararem em linha reta, paralela ao solo, os arqueiros ingleses apontaram para o céu, intuitivamente procurando uma trajetória em curva para suas flechas. Todos os arcos foram puxados ao mesmo tempo, como hastes de trigo numa plantação se inclinando a uma repentina brisa de verão; depois, as flechas foram lançadas, com um som coletivo, que parecia um sino de igreja repicando. Num vôo mais rápido que a mais veloz das aves, as flechas subiram pelo ar, viraram para baixo, e caíram como uma tempestade de granizo sobre os genoveses.

As fileiras inimigas eram compactas, e as cotas dos genoveses não proporcionavam muita proteção. Sem os escudos, eles se tornavam horrivelmente vulneráveis. Centenas caíram mortos ou feridos.

Mas isso era apenas o começo.

Enquanto os genoveses sobreviventes rearmavam suas bestas, os arqueiros ingleses dispararam outras vezes. Eram necessários apenas quatro ou cinco segundos para pegar uma flecha no chão, ajustá-la, puxar o arco, mirar, atirar, e pegar outra flecha. Arqueiros experientes podiam ser ainda mais rápidos. No prazo de um minuto, vinte mil flechas caíram em cima dos genoveses desprotegidos.

Era um massacre, e a conseqüência foi inevitável: eles se viraram e fugiram.

Em poucos momentos, os genoveses estavam fora do alcance. Os ingleses suspenderam os disparos, rindo de seu triunfo inesperado e escarnecendo do inimigo. Mas depois os arqueiros ingleses se defrontaram com outro perigo. Os cavaleiros franceses começaram a avançar. Uma densa multidão de genoveses em fuga esbarrou nos cavaleiros concentrados, ansiosos por uma carga. Por um momento, houve o caos.

Ralph ficou espantado ao perceber que os inimigos começavam a lutar entre si. Os cavaleiros desembainharam suas espadas e passaram a golpear os genoveses, que descarregaram suas flechas neles e passaram a lutar com suas facas. Os nobres franceses deveriam tentar conter a carnificina, mas aqueles que usavam as armaduras mais caras e montavam os cavalos maiores eram, até onde Ralph podia ver, os que se destacavam na luta, atacando os próprios aliados com uma fúria cada vez maior.

Os cavaleiros empurraram os genoveses de volta à encosta, até que ficaram de novo ao alcance dos arqueiros ingleses. Mais uma vez, o príncipe de Gales deu a ordem para que seus homens atirassem. Agora, a saraivada de flechas caiu em cima de genoveses e cavaleiros. Em sete anos de guerra, Ralph nunca vira nada parecido. Centenas de inimigos estavam estendidos no chão, mortos e feridos, sem que um único soldado inglês estivesse sequer arranhado.

Os cavaleiros franceses finalmente bateram em retirada e os genoveses sobreviventes se dispersaram. Deixaram a encosta por baixo da posição inglesa coberta de cadáveres. Soldados galeses e córnicos, armados com facas, começaram a liquidar os franceses ainda vivos. Também recolhiam as flechas intactas para serem reaproveitadas, e com certeza aproveitavam para roubar os cadáveres. Ao mesmo tempo, ajudantes correram para buscar novos estoques de flechas nas carroças, levando-as para a linha de frente.

Houve uma pausa, mas não durou muito tempo.

Os cavaleiros franceses reagruparam-se, reforçados por recém-chegados, que apareciam às centenas e aos milhares. Ao correr os olhos pelas fileiras, Ralph constatou que as cores de Alençon eram agora acompanhadas pelas cores de Flandres e Normandia. O estandarte do conde de Alençon deslocou-se para a frente, as trombetas soaram, e os cavaleiros começaram a avançar.

Ralph baixou a viseira e desembainhou a espada. Pensou na mãe. Sabia que a mãe rezava por ele cada vez que da à igreja, e sentiu um momento de terna gratidão. Depois, observou o inimigo.

Os imensos cavalos eram lentos para começar, estorvados pelos cavaleiros com armaduras. O sol poente cintilava nas viseiras francesas, as bandeiras estalavam à brisa vespertina. Pouco a pouco, as batidas dos cascos foram se tornando mais altas e o ritmo da carga aumentou. Os cavaleiros gritavam palavras de exortação para suas montarias e uns para os outros, acenando com suas espadas e lanças. Eram como uma onda numa praia, parecendo cada vez maior à medida que se aproximava. A boca de Ralph ficou seca e o coração batia como um tambor alto.

Chegaram ao alcance dos arqueiros, e mais uma vez o príncipe deu a ordem para atirar. Outra vez as flechas subiram pelo ar e caíram como uma chuva mortífera.

Os cavaleiros atacantes estavam blindados, e só por sorte as flechas atingiam os pontos fracos entre as placas. Mas os cavalos tinham apenas viseiras e capas de malha. Por isso, eram vulneráveis. Quando as flechas penetraram em suas espáduas e ancas, alguns pararam, alguns caíram, alguns viraram e tentaram fugir. Os relinchos dos animais em dor povoaram o ar. Colisões entre cavalos fizeram com que mais cavaleiros caíssem, juntando-se aos corpos dos arqueiros genoveses.

Os cavaleiros por trás vinham com muita pressa para tentar uma ação evasiva, e passaram por cima dos caídos.

Mas havia milhares de cavaleiros, e continuaram a investir.

A distância para os arqueiros diminuiu, e a trajetória das flechas mudou. Quando a carga se encontrava a cem metros de distância, eles passaram a usar um tipo diferente de flecha, com a ponta de aço rombuda para provocar um impacto na armadura, em vez de pontiaguda. Agora, podiam matar os cavaleiros, embora derrubar os cavalos fosse também eficiente.

O terreno já estava encharcado da chuva, e agora a carga alcançou os buracos escavados antes pelos ingleses. O impulso dos cavalos era tão grande que poucos podiam pisar numa depressão de trinta centímetros sem tropeçar. Muitos caíram, derrubando seus cavaleiros no caminho dos cavalos.

Os cavaleiros atacantes tentaram se desviar dos arqueiros. Como os ingleses haviam planejado, a carga entrou num funil estreito, um verdadeiro matadouro, as flechas disparadas da esquerda e direita.

Essa foi a chave para a tática inglesa. A esta altura, a sabedoria de obrigar os cavaleiros ingleses a desmontarem tornou-se evidente. Se estivessem a cavalo, não poderiam resistir ao impulso de atacar... e neste caso os arqueiros teriam de parar de atirar, por receio de matar os próprios companheiros. Mas como os cavaleiros e homens de armas continuavam em suas fileiras, os arqueiros podiam disparar à vontade contra o inimigo, sem baixas no lado inglês.

Mas não era suficiente. Os franceses eram muito numerosos e bravos. Continuaram a atacar, e finalmente alcançaram a linha dos homens de armas e cavaleiros ingleses desmontados, entre as duas massas de arqueiros. O combate de fato começou.

Os cavalos pisotearam os primeiros ingleses, mas o ímpeto da carga fora reduzido pela encosta enlameada. Os franceses foram detidos pela compacta linha inglesa. Ralph se descobriu no meio da batalha, esquivando-se dos golpes desferidos de cima para baixo, golpeando com a espada as pernas dos cavalos, querendo inutilizar os animais pelo método mais fácil e mais confiável, que era o de cortar os tendões do jarrete. A luta era encarniçada os ingleses não tinham para onde ir, e os franceses sabiam que teriam de passar de novo pela chuva letal de flechas se recuassem.

Homens caíam ao redor de Ralph, retalhados por espadas e machados, pisoteados pelos poderosos cascos com ferraduras de ferro dos cavalos de batalha. Ele viu o conde Roland cair, atingido por uma espada francesa. O filho de Roland, bispo Richard, golpeou com a maça para proteger o pai, mas um cavalo empurrou-o para o lado e pisoteou o conde.

Os ingleses foram forçados a recuar, e Ralph compreendeu que os franceses tinham um alvo: o príncipe de Gales.

Ralph não sentia qualquer afeição pelo privilegiado herdeiro de dezesseis anos do trono, mas sabia que seria um golpe devastador para a moral inglesa se o príncipe fosse capturado ou morto. Ralph recuou e deslocou-se para a esquerda, juntando-se a vários outros que engrossavam o escudo de guerreiros em torno do príncipe. Mas os franceses intensificaram seus esforços, com a vantagem de estarem a cavalo.

Logo Ralph lutava ombro a ombro com o príncipe, que podia reconhecer pelo manto com flores-de-lis sobre um fundo azul e os leões heráldicos em vermelho. Um momento depois, um cavaleiro francês acertou o príncipe com um machado, derrubando-o.

Foi um momento terrível.

Ralph pulou para a frente e golpeou o atacante, a espada comprida acertando a junção entre placas, na axila. Ele teve a satisfação de sentir a ponta penetrar na carne, e viu o sangue esguichar do ferimento.

Alguém se postou por cima do príncipe caído e girou uma espada enorme, que segurava com as duas mãos, contra homens e cavalos. Ralph viu que era o porta-bandeira do príncipe, Richard FitzSimon. Ele largara a bandeira em cima de seu senhor, caído de costas. Por alguns momentos, Richard e Ralph lutaram desesperados para proteger o filho do rei, sem saber se ele estava vivo ou morto.

Os reforços chegaram. O conde de Arundel apareceu com um enorme contingente de homens de armas, todos descansados. Os recém-chegados entraram na batalha com o maior vigor, e inverteram a situação. Os franceses começaram

a recuar.

O príncipe de Gales ficou de joelhos. Ralph levantou a viseira e ajudou-o a ficar de pé. O garoto parecia ferido, mas sem gravidade. Ralph virou-se e continuou a lutar.

Um momento depois os franceses desistiram. Apesar da loucura de sua tática, a coragem quase lhes permitira romper a linha inglesa... mas não conseguiram. Fugiram agora, muitos mais caindo enquanto corriam entre os arqueiros, descendo pela encosta ensangüentada de volta às suas linhas; e gritos de alegria ressoaram entre os ingleses, exaustos, mas exultantes.

Mais uma vez, os galeses circularam pelo campo de batalha, cortando a garganta dos feridos e recolhendo milhares de flechas. Os arqueiros também pegaram novas flechas, para reabastecer seus estoques. Da retaguarda vieram cozinheiros, com jarros de cerveja e vinho. Os cirurgiões começaram a tratar dos nobres feridos.

Ralph viu William de Caster inclinar-se sobre o conde Roland. O conde ainda respirava, mas mantinha os olhos fechados, e parecia à beira da morte.

Ralph limpou a espada ensangüentada na terra e levantou a viseira para poder tomar uma caneca de cerveja. O príncipe de Gales aproximou-se e perguntou:

- Qual é o seu nome?

- Ralph Fitzgerald de Wigleigh, milorde.

- Lutou com extrema bravura. Vai se tornar Sir Ralph amanhã, se o rei me escutar.

Ralph ficou radiante de prazer.

- Obrigado, milorde.

O príncipe acenou com a cabeça, cordial, e afastou-se.

Caris observou os primeiros estágios da batalha do outro lado do vale. Viu os arqueiros genoveses tentarem fugir, apenas para serem retalhados por cavaleiros de seu próprio lado. Depois, assistiu à primeira grande carga, com as cores de Charles de Alençon levando milhares de cavaleiros e homens de armas.

Nunca testemunhara uma batalha, e ficou angustiada. Centenas de cavaleiros foram derrubados por flechas inglesas, e pisoteados pelos cascos dos enormes cavalos de guerra. Ela estava muito longe para poder acompanhar os combates corpo a corpo, mas viu espadas faiscarem e homens caírem. Teve vontade de chorar. Como freira, já vira ferimentos graves - homens que caíam do alto de um andaime, que se machucavam com ferramentas afiadas, sofriam acidentes em caçadas - e sempre sentia a dor e o desperdício de uma mão perdida, uma perna esmagada, um cérebro lesionado. E ficava revoltada ao constatar que homens infligiam esses ferimentos uns aos outros intencionalmente.

Por um longo tempo, parecia que o combate podia pender para qualquer dos lados. Se estivesse em sua terra, ao ouvir notícias da guerra distante, poderia torcer por uma vitória inglesa; mas depois do que vira nas duas últimas semanas, sentia uma espécie de neutralidade repugnada. Não podia se identificar com ingleses que assassinavam camponeses e queimavam colheitas. Não fazia diferença para ela que tivessem cometido essas atrocidades na Normandia. Claro que diriam que os franceses mereciam o que recebiam por terem incendiado Portsmouth, mas essa era uma maneira estúpida de pensar... tão estúpida que levava a cenas de horror como aquela.

Os franceses recuaram. Ela presumiu que se reagrupariam e se reorganizariam, esperando pela chegada do rei para desenvolver um novo plano de batalha. Ainda tinham uma superioridade esmagadora em números, Caris podia perceber: havia dezenas de milhares de soldados franceses no vale e mais continuavam a chegar.

Mas os franceses não se reagruparam. Em vez disso, cada novo batalhão chegado no vale seguia direto para o ataque, lançando-se em carga suicida contra a posição inglesa no alto da encosta. A segunda carga e as subseqüentes sofreram conseqüências ainda piores do que a primeira. Algumas foram dizimadas pelos arqueiros antes mesmo de alcançarem as linhas inglesas; as outras foram repelidas pelos ingleses a pé. A encosta cintilava com sangue derramado de centenas de homens e cavalos.

Depois da primeira carga, Caris só olhava de vez em quando para a batalha. Estava ocupada demais a cuidar dos franceses feridos que tiveram bastante sorte para escapar do campo de batalha. Martin Chirurgien descobrira que Caris era uma cirurgiã tão competente quanto ele. Concedera-lhe livre acesso a seus instrumentos, e deixara-a trabalhar independente, junto com Mair. As duas lavaram ferimentos, costuraram e puseram bandagens, hora após hora.

Notícias de baixas proeminentes vieram da linha de frente. Charles de Alençon foi a primeira fatalidade importante. Caris não pôde deixar de sentir que ele merecera seu destino.

Testemunhara seu entusiasmo insensato e a indisciplina irresponsável. Horas depois, veio a notícia de que o rei Jean da Boêmia também morrera. Ela não pôde deixar de especular sobre a loucura que levava um cego a se lançar numa batalha.

- Em nome de Deus, por que eles não param? - indagou ela, quando Martin levou-lhe uma caneca de cerveja para restaurar as energias.

- Por medo - respondeu ele. - Estão apavorados com a possibilidade de caírem em desgraça. Deixar o campo de batalha sem ter sofrido qualquer golpe seria vergonhoso. Eles preferem morrer.

- Muitos deles já tiveram esse desejo atendido - comentou Caris, sombria. Ela esvaziou a caneca de cerveja e voltou ao trabalho. Seu conhecimento e

compreensão do corpo humano aumentavam aos saltos, refletiu ela. Via cada parte interna de um homem vivo: o cérebro por baixo de crânios fraturados, o tubo da garganta, os músculos dos braços cortados, o coração e os pulmões dentro de caixas torácicas esmagadas, o emaranhado de intestinos, a articulação dos ossos nos quadris, joelhos e tornozelos. Descobria mais em uma hora no campo de batalha do que em um ano inteiro no hospital do priorado. Fora assim que Matthew Barber aprendera tanto, compreendeu ela. Não era de admirar que ele se sentisse tão confiante.

A carnificina continuou até que a noite caiu. Os ingleses acenderam tochas, com medo de um ataque furtivo durante a escuridão. Mas Caris poderia tê-los avisado que se encontravam sãos e salvos. Os franceses estavam irremediavelmente derrotados. Dava para ouvir os gritos de soldados franceses à procura de parentes e companheiros no campo de batalha. O rei, que chegara a tempo de participar de uma das últimas cargas desesperadas, deixara o local. Depois disso, a debandada fora geral.

Um nevoeiro se elevou do rio, espalhou-se pelo vale e ocultou as fogueiras distantes. Mais uma vez, Caris e Mair trabalharam à luz do fogo, pela noite afora, cuidando dos feridos. Todos os que podiam andar, mesmo mancando, trataram de partir, ansiosos em ficarem o mais distante possível dos ingleses, a fim de escaparem da inevitável e sangrenta operação de limpeza que ocorreria no dia seguinte. Quando terminaram de fazer tudo o que podiam pelos feridos, Caris e Mair escapuliram.

Aquela era sua chance.

Encontraram seus pôneis e levaram-nos para a frente à luz de uma tocha. Alcançaram o fundo do vale e se descobriram na terra de ninguém. Ocultas pelo nevoeiro e a escuridão, tiraram as roupas de homem. Por um momento, sentiram-se extremamente vulneráveis, duas mulheres nuas no meio de um campo de batalha. Mas ninguém podia vê-las, e no segundo seguinte meteram o hábito de freira pela cabeça. Guardaram os trajes de homem, para o caso de precisarem deles de novo; afinal, seria longa a viagem de volta para casa.

Caris decidiu abandonar a tocha, com receio de que um arqueiro inglês resolvesse atirar para a luz primeiro e só depois fazer perguntas. De mãos dadas, para não se separarem, elas seguiram em frente, ainda puxando os cavalos. Não podiam ver nada; o nevoeiro obscurecia qualquer claridade que pudesse vir da lua ou das estrelas.

Subiram a encosta, na direção das linhas inglesas. O lugar cheirava como um matadouro. Havia tantos corpos de homens e cavalos espalhados pelo chão que não dava para contorná-los. Elas rangiam os dentes e pisavam em cima. Não demorou muito para que os sapatos ficassem cobertos de uma mistura de sangue e lama.

A quantidade de cadáveres foi diminuindo, e logo não havia mais nenhum à frente. Caris começou a experimentar um sentimento de alívio ao se aproximar do exército inglês. Ela e Mair haviam percorrido centenas de quilômetros, enfrentado as maiores dificuldades, e arriscado a vida por aquele momento. Quase esquecera o roubo ultrajante do prior Godwyn, que tirara cento e cinqüenta libras do tesouro das freiras... a razão para a viagem. De certa forma, parecia menos importante, depois de todo aquele derramamento de sangue. Mesmo assim, apelaria para o bispo Richard e obteria justiça para o convento.

A caminhada parecia mais longa do que Caris calculara ao olhar através do vale à luz do dia. Especulou, nervosa, se teria ficado desorientada. Poderia ter se desviado por uma direção errada e passado além dos ingleses. Talvez o exército estivesse agora por trás dela. Esforçou-se para ouvir alguma coisa - dez mil homens não podiam se manter em silêncio absoluto, mesmo que a maioria mergulhasse num sono de exaustão -, mas o nevoeiro abafava os sons.

Apegou-se à convicção de que deveria se aproximar se continuasse a subir, já que o rei Edward posicionara suas forças no ponto mais alto. Mas a cegueira era enervante. Se houvesse um precipício por ali, poderia cair de repente.

A claridade do amanhecer transformava o nevoeiro em cor de pérola quando ela ouviu uma voz. Parou no mesmo instante. Era um homem falando num murmúrio baixo. Mair apertou sua mão, nervosa. Outro homem falou. Caris não entendeu a língua. Sentiu medo de ter dado uma volta completa e retornado para o lado dos franceses.

Virou-se na direção da voz, ainda segurando a mão de Mair. O clarão vermelho de chamas tornou-se visível através do nevoeiro cinzento. Seguiu nessa direção, agradecida. Ao se aproximar, pôde ouvir melhor, e compreendeu com imenso alívio que os homens falavam em inglês. Um momento depois, divisou um grupo de homens em torno de uma fogueira. Vários dormiam, envoltos por cobertores, mas três estavam sentados no chão, de pernas cruzadas, olhando para as chamas enquanto conversavam. Caris logo avistou um homem de pé, esquadrinhando o nevoeiro, presumivelmente no serviço de sentinela. O fato de não ter notado a aproximação dela provava que a missão era impossível.

Para atrair a atenção do grupo, Caris disse, em voz baixa:

- Deus os abençoe, homens da Inglaterra.

Eles ficaram assustados. Um deles soltou um grito de medo. O sentinela indagou, atrasado:

- Quem vem lá?

- Duas freiras do Priorado de Kingsbridge - respondeu Caris.

Os homens fitaram-na com um medo supersticioso, e ela compreendeu que poderiam pensar que era uma aparição.

- Não se preocupem. Somos de carne e osso, assim como nossos pôneis.

- Você disse Kingsbridge? • indagou um deles, em surpresa. O homem levantou-se. - Sei quem você é. Já a vi mies.

Caris reconheceu-o.

- Lord William de Caster.

- Sou o conde de Shiring agora. Meu pai morreu dos ferimentos sofridos há uma hora.

- Que sua alma descanse em paz. Viemos até aqui para falar com seu irmão, o bispo Richard, que é nosso abade.

- Chegou atrasada. Meu irmão também morreu.

Mais tarde, ainda naquela manhã, quando o nevoeiro se dissipou e o campo de batalha parecia um matadouro iluminado pelo sol, o conde William levou Caris e Mair para falar com o rei Edward.

Todos se espantaram com a história das duas freiras que haviam seguido o exército inglês por toda a Normandia. Soldados que haviam enfrentado a morte no dia anterior se mostraram fascinados por suas aventuras. William disse a Caris que o rei queria ouvir seu relato pessoal.

Edward III era rei há dezenove anos, mas ainda tinha apenas trinta e três anos de idade. Alto e de ombros largos, era imponente em vez de bonito, com um rosto que poderia ter sido moldado para o poder: nariz grande, malares salientes, cabelos compridos que começavam a recuar no alto da testa. Caris compreendeu por que as pessoas o chamavam de leão.

Sentava num banco na frente de sua tenda, vestido com elegância, em calção de duas cores e uma capa com a borda recortada em concha. Não usava armadura nem estava com armas: os franceses haviam desaparecido, e uma força de; ingleses vingativos fora enviada para caçar e matar os extraviados. Havia alguns barões de pé ao seu redor.

Enquanto relatava como ela e Mair haviam procurado comida e abrigo na paisagem devastada da Normandia, Caris especulou se o rei se sentiria criticado pela descrição das dificuldades. Mas o rei não parecia pensar que os sofrimentos das pessoas pudessem se refletir sobre ele. Ficou maravilhado com as façanhas das freiras, como se ouvisse alguém falar de sua bravura durante um naufrágio.

Ela terminou com um comentário sobre seu desapontamento ao descobrir, depois de tantas dificuldades, que o bispo Richard, de quem esperava justiça, havia morrido.

- Suplico à Sua Majestade que ordene que o prior de Kingsbridge devolva o dinheiro que roubou das freiras.

Edward sorriu, pesaroso.

- É uma brava mulher, mas não sabe nada sobre política - disse ele, condescendente. - O rei não pode se envolver numa disputa eclesiástica como essa. Teríamos todos os bispos batendo em nossa porta em protesto.

Era bem possível, refletiu Caris, mas isso não impedia que o rei interferisse na Igreja quando era conveniente a seus propósitos. Mas ela não disse nada.

Edward acrescentou:

- E seria prejudicial à sua causa. A Igreja ficaria tão indignada que todos os clérigos do país se oporiam à nossa decisão, independentemente de seus méritos.

Pode haver alguma procedência nisso, concluiu Caris. Mas ele não era tão impotente quanto pretendia se mostrar.

- Sei que vai se lembrar das freiras enganadas de Kingsbridge - disse ela. Quando designar o novo bispo de Kingsbridge, conte por favor nossa história.

- Claro - concordou o rei.

Mas Caris teve o pressentimento de que ele esqueceria. A entrevista parecia encerrada, mas William disse:

- Sua Majestade, agora que confirmou tão generosamente minha elevação ao condado de meu pai, resta decidir quem será o novo lorde de Caster.

- Ah, sim. Nosso filho, o príncipe de Gales, sugere Sir Ralph Fitzgerald, que foi armado cavaleiro ontem, por salvar sua vida.

- Oh, não! - murmurou Caris.

O rei não a ouviu, mas William ouviu, e obviamente pensava a mesma coisa. Não foi capaz de esconder sua indignação quando disse:

- Ralph era um fora-da-lei, culpado de numerosos assaltos, assassinatos e estupros, até que obteve um perdão real para se juntar ao exército de Sua Majestade.

O rei não ficou tão impressionado quanto Caris esperava.

- Mesmo assim, Ralph luta conosco há sete anos - disse ele. - Merece uma segunda oportunidade.

- Tem razão - admitiu William, diplomático. - Mas por causa dos problemas que tivemos com ele no passado, eu gostaria de vê-lo assentar pacificamente, por um ou dois anos, antes de ser elevado à nobreza.

- Como será o suserano de Ralph, terá de lidar com ele - concedeu Edward.

- Não devemos impô-lo contra a sua vontade. Mas o príncipe está ansioso para que ele tenha alguma recompensa.

O rei pensou por um longo momento, para depois acrescentar:

- Você não tem uma prima em condições de casar?

- Tenho. Seu nome é Matilda. Nós a chamamos de Tilly. Caris conhecia Tilly. Ela estudava na escola do convento.

- Essa mesma - confirmou Edward. - Ela era pupila de Roland, seu pai. Pelo que me lembro, o pai da jovem tinha três aldeias perto de Shiring.

- Sua Majestade tem boa memória para os detalhes.

- Case lady Matilda com Ralph e dê a ele as aldeias que pertenciam ao pai dela.

Caris ficou consternada. Não pôde se conter:

- Mas ela só tem doze anos!

- Cale-se! - ordenou William.

O rei Edward fitou-a com uma expressão fria.

- As crianças da nobreza devem crescer depressa, irmã. A rainha Philippa tinha quatorze anos quando casei com ela.

Caris sabia que devia se manter calada, mas não podia.

Tilly era apenas quatro anos mais velha do que a filha que ela poderia ter, se tivesse dado à luz a criança de Merthin.

- Há uma enorme diferença entre doze e quatorze anos - declarou ela, desesperada.

O jovem rei tornou-se ainda mais frio.

- Na presença real, as pessoas só dão sua opinião quando são convidadas. E o rei quase nunca pede a opinião de mulheres.

Caris compreendeu que seguira pelo rumo errado. Sua objeção ao casamento não se baseava na idade de Tilly, mas sim no caráter de Ralph.

- Conheço Tilly - murmurou ela. - Não pode casá-la com aquele bruto do Ralph.

Mair interveio, com um sussurro assustado:

- Caris! Lembre-se com quem está falando! Edward olhou para William.

- Tire-a daqui, Shiring, antes que ela diga alguma coisa que não poderá ser ignorada.

William pegou o braço de Caris e afastou-a com firmeza da presença real. Mair foi atrás. Caris ainda ouviu o rei comentar:

- Posso entender agora como ela sobreviveu na Normandia... deve ter deixado os locais apavorados.

Os nobres ao seu redor caíram na gargalhada.

- Você deve estar louca! - exclamou William.

- É mesmo? - Estavam agora longe dos ouvidos do rei e Caris elevou a voz.

- Nas últimas seis semanas, o rei causou a morte de milhares de homens, mulheres e crianças, incendiou suas colheitas, queimou suas casas. E eu tentei salvar uma menina de doze anos do casamento com um assassino. Qual de nós é louco, lorde William?

Os camponeses de Wigleigh tiveram uma péssima colheita no ano de 1347. Os aldeões fizeram o que sempre faziam nessas ocasiões: comeram menos, adiaram a compra de chapéus e cintos, e passaram a dormir juntos pelo calor. A velha Viúva Huberts morreu mais cedo do que se esperava; Janey Jones sucumbiu a uma tosse a que poderia ter sobrevivido num ano bom; e o bebê de Joanna David, que poderia de outra forma ter uma chance, não chegou a seu primeiro aniversário.

Gwenda vigiava ansiosa os dois filhos. Sam, de oito anos, era grande para sua idade, bastante forte: tinha o físico de Wulfric, as pessoas diziam, embora Gwenda soubesse que ele era parecido com o verdadeiro pai, Ralph Fitzgerald. Mesmo assim, Sam estava visivelmente mais magro em dezembro. David, que ganhara o nome do irmão de Wulfric, morto no desabamento da ponte, tinha seis anos.

Parecia com Gwenda, pequeno e moreno. A Jieta deficiente enfraquecera-o, e durante todo o outono ele sofrera com pequenos problemas: um resfriado, depois erupções na pele, uma tosse persistente.

Mesmo assim, ela levava os meninos quando da com Wulfric terminar de semear o trigo de inverno na terra de Perkin. Um vento muito frio soprava pelos campos abertos. Ela largava as sementes nos sulcos. Sam e David corriam atrás, afugentando as aves que queriam pegar o trigo antes que Wulfric as cobrisse com terra. Enquanto corriam, pulavam e gritavam, Gwenda se admirava por aqueles dois seres humanos em miniatura, em perfeito funcionamento, terem saído de seu corpo. Os meninos transformavam o esforço em afugentar as aves em alguma espécie de jogo competitivo, deixando Gwenda maravilhada com o milagre de suas imaginações. Antes uma parte dela, podiam agora acalentar pensamentos que ela ignorava por completo.

A lama aderia a seus pés enquanto andavam de um lado para outro. Um córrego de águas rápidas margeava o campo. Na outra margem ficava o moinho de fuiling que Merthin construíra oito anos antes. O rumor distante das batidas de madeira acompanhava o trabalho da família. O moinho era operado por dois irmãos excêntricos, Jack e Eli - ambos solteiros e sem terras - e um sobrinho que era o aprendiz. Eram os únicos aldeões que não haviam sofrido por causa da péssima colheita: Mark Webber lhes pagara os mesmos salários durante todo o inverno.

Foi um curto dia de inverno. Gwenda e sua família terminaram de semear no momento em que o céu cinzento começava a escurecer. O crepúsculo trouxe uma neblina dos bosques distantes. Todos sentiam-se exaustos.

Restava meio saco de sementes, e eles decidiram levá-lo de volta à casa de Perkin. Ao se aproximarem, avistaram Perkin vindo da direção oposta. Ele andava ao lado de uma carroça em que viajava a filha Annet. Haviam ido a Kingsbridge para vender as últimas maçãs e peras do ano das árvores de Perkin.

Annet ainda conservava o corpo de menina, embora estivesse agora com vinte e oito anos e uma criança. Chamava a atenção para sua juventude por um vestido muito curto e os cabelos desarrumados de uma forma encantadora. Parecia ridícula, pensava Gwenda, uma opinião partilhada por todas as mulheres da cidade, mas por nenhum dos homens.

Gwenda ficou chocada ao descobrir que a carroça de Perkin continuava cheia de frutas.

- O que aconteceu? - perguntou ela. A expressão de Perkin era sombria.

- As pessoas de Kingsbridge enfrentam um inverno tão difícil quanto o nosso. Não têm dinheiro para comprar maçãs. Teremos de fazer sidra com todo esse carregamento.

O que era lamentável. Gwenda nunca soubera de Perkin voltar do mercado com tanto produto sem vender.

Annet parecia despreocupada. Estendeu a mão para Wulfric, que a ajudou a descer da carroça. Ao pisar no chão, ela tropeçou e caiu em cima de Wulfric, estendendo a mão para seu peito.

- Epa! - exclamou Annet.

Ela sorriu ao recuperar o equilíbrio. Wulfric corou de satisfação.

Seu idiota cego, pensou Gwenda.

Todos entraram. Perkin sentou à mesa. Sua mulher, Peggy, serviu-lhe uma tigela de potagem. Ele cortou uma grossa fatia de pão. Peggy serviu sua própria família em seguida. Annet, o marido Billy Howard, o irmão de Annet, Rob, e a mulher de Rob. Deu um pouco para a filha de quatro anos de Annet, Amabel, e para os dois filhos pequenos de Rob. Depois, convidou Wulfric e sua família a sentarem.

Gwenda tomou a potagem com a maior voracidade. Era mais espessa do que a potagem que ela fazia; e Peggy serviu pão dormido, enquanto na casa de Gwenda o pão nunca durava o suficiente para ficar dormido. A família de Perkin tomou cerveja, mas nenhuma foi oferecida a Gwenda e Wulfric: a hospitalidade não da muito longe em tempos difíceis.

Perkin era jovial com os fregueses, mas afora isso era um homem azedo; por esse motivo, o ambiente em sua casa era sempre mais ou menos melancólico. Ele falou em tom desanimado sobre o mercado em Kingsbridge. A maioria dos comerciantes tivera um péssimo dia. Os únicos que ainda faziam negócios eram os que vendiam produtos essenciais, como trigo, carne e sal. Ninguém estava comprando o Escarlate de Kingsbridge, o tecido agora famoso.

Peggy acendeu um lampião. Gwenda queria ir para casa, mas ela e Wulfric esperavam pelos salários. Os meninos começaram a se comportar mal, correndo de um lado para outro, esbarrando nos adultos.

- Está na hora de levá-los para a cama - disse Gwenda, embora não fosse o caso.

Wulfric finalmente disse:

- Se pagar nossos salários, Perkin, poderemos ir embora.

- Não tenho dinheiro - anunciou Perkin.

Gwenda ficou espantada. Perkin nunca dissera isso nos nove anos em que ela e Wulfric trabalhavam em suas terras.

- Temos de receber nossos salários - insistiu Wulfric. - Precisamos comer.

- Vocês têm alguma potagem, não é? - murmurou Perkin. Gwenda ficou indignada.

- Trabalhamos por dinheiro, não por potagem!

- Mas acontece que não tenho dinheiro - reiterou Perkin. - Fui ao mercado para vender minhas maçãs, mas ninguém comprou. Agora, temos mais maçãs do que podemos comer, mas nenhum dinheiro.

Gwenda estava tão chocada que não sabia o que dizer. Nunca lhe ocorrera que Perkin pudesse deixar de pagar seus salários. E sentiu uma pontada de medo ao compreender que não havia nada que ela pudesse fazer. Wulfric disse, bem devagar:

- O que podemos fazer? Voltar a Long Field para tirar as sementes da terra?

- Ficarei devendo os salários desta semana - declarou Perkin. - Pagarei assim que as coisas melhorarem.

- E na próxima semana?

- Também não terei dinheiro na próxima semana... de onde você pensa que o dinheiro poderia vir?

- Vamos falar com Mark Webber - interveio Gwenda. - Talvez ele possa nos contratar no moinho de fulling.

Perkin sacudiu a cabeça.

- Falei com ele ontem, em Kingsbridge, e perguntei se podia contratá-los. Ele disse que não. Não está vendendo bastante tecido. Continuará a empregar Jack, Eli e o garoto, a estocar o tecido, até o comércio se recuperar. Mas não pode contratar nenhum empregado extra.

Wulfric estava atordoado.

- Como vamos viver? Como você poderá ter a aradura da primavera?

- Podem trabalhar por comida - sugeriu Perkin.

Wulfric olhou para Gwenda. Ela reprimiu uma resposta sarcástica. Sua família se encontrava numa situação crítica, e aquele não era o momento de hostilizar ninguém. Ela pensou depressa. Não tinham muita opção: comer ou passar fome.

- Trabalharemos por comida, e você ficará nos devendo o dinheiro - declarou Gwenda.

Perkin sacudiu a cabeça.

- O que está sugerindo pode ser justo...

- É justo.

- Está bem, é justo, mas mesmo assim não posso concordar. Não sei quando terei dinheiro. Poderia estar devendo uma libra na Semana de Pentecostes. Podem trabalhar por comida, ou não trabalhar.

- Terá de alimentar nós quatro.

- Está certo.

- Mas apenas Wulfric vai trabalhar.

- Não sei...

- Uma família quer mais do que comida. Crianças precisam de roupas. Um homem deve ter botas. Se não pode me pagar, terei de encontrar alguma outra maneira de conseguir essas coisas.

- Como?

- Não sei. - Gwenda fez uma pausa. A verdade era que não tinha a menor idéia. Fez um esforço para reprimir o pânico. - Posso perguntar a meu pai como ele consegue.

Peggy interveio:

- Eu não faria isso, se fosse você... Joby lhe dirá para roubar.

Gwenda ficou irritada. Que direito Peggy tinha de assumir aquela atitude arrogante? Joby nunca empregara pessoas para depois dizer no fim da semana que não tinha dinheiro para pagar. Mas ela mordeu a língua e comentou apenas:

- Ele me alimentou ao longo de dezoito invernos, embora no final tenha me vendido para os bandidos.

Peggy sacudiu a cabeça e começou abruptamente a recolher as tigelas da mesa. Wulfric disse:

- Vamos embora.

Gwenda não se mexeu. Qualquer vantagem que pudesse obter tinha de ser conquistada agora. Depois que saíssem daquela casa, Perkin consideraria que fora feito um acordo que não poderia ser renegociado. Ela pensou por um momento. Recordou como Peggy servira cerveja apenas para sua própria família e declarou:

- Não vão nos enganar com peixe do dia anterior e cerveja aguada. Devemos comer exatamente a mesma coisa que você e sua família... carne, pão, cerveja, qualquer outra coisa que seja servida.

Peggy deixou escapar um grunhido de desaprovação. Ao que parecia, planejava fazer o que Gwenda temia.

- Isto é, se quiser que Wulfric faça o mesmo trabalho que você e Rob. Todos sabiam muito bem que Wulfric fazia mais trabalho do que Rob e duas vezes mais do que Perkin.

- Está bem - concordou Perkin.

- E isso é estritamente um acordo de emergência. Assim que você tiver dinheiro, terá de nos pagar de novo, ao preço antigo... um penny por dia para cada um.

- Certo.

Houve um breve momento de silêncio.

- Isso é tudo? - perguntou Wulfric.

- Acho que sim - respondeu Gwenda. - Você e Perkin devem trocar um aperto de mão para fechar o acordo.

Foi o que eles fizeram.

Gwenda e Wulfric se retiraram, levando os meninos. A escuridão era total agora. Nuvens escondiam as estrelas, e eles tinham de se orientar apenas pelas réstias de luz que passavam pelas portas e janelas fechadas das casas. Por sorte, já haviam percorrido mil vezes o caminho entre a casa de Perkin e a deles.

Wulfric acendeu o lampião e armou o fogo na lareira, enquanto Gwenda punha os meninos para dormir. Embora houvesse quartos lá em cima - ainda viviam na casa grande que fora ocupada pelos pais de Wulfric - todos dormiam na cozinha por causa do calor.

Gwenda sentia-se deprimida ao envolver os filhos com cobertores e acomodalos perto do fogo. Crescera com a determinação de não viver como a mãe, em constante preocupação e necessidade. Sonhara com a independência: uma terra para cultivar, um marido trabalhador, um senhor razoável. Wulfric ansiava em voltar à terra que seu pai cultivara. Mas os dois haviam fracassado em todas essas aspirações. Ela era pobre e o marido, um trabalhador sem terra, cujo empregador não podia sequer pagar um penny por dia. Acabara exatamente como a mãe, pensou Gwenda, amargurada demais para lágrimas.

Wulfric pegou uma botija de barro numa prateleira e despejou cerveja num copo de madeira.

- Trate de aproveitar - murmurou Gwenda, amarga. - Não poderá comprar sua própria cerveja durante algum tempo.

- É espantoso que Perkin não tenha dinheiro - comentou Wulfric. - Ele é o homem mais rico da aldeia, depois de Nathan Reeve.

- Perkin tem dinheiro - garantiu Gwenda. - Há um pote cheio de pennies de prata por baixo da lareira. Eu já vi.

- Então por que ele não quer nos pagar?

- Não quer tirar dinheiro de suas economias. Wulfric se mostrou confuso.

- Mas ele poderia nos pagar, se quisesse?

- Claro.

- Então por que tenho de trabalhar por comida?

Gwenda deixou escapar um grunhido impaciente. Wulfric era lento para compreender as coisas.

- Porque a alternativa era não ter qualquer trabalho. Wulfric sentia que haviam sido enganados.

- Devíamos ter insistido no pagamento.

- Por que você não fez isso?

- Não sabia do pote com pennies debaixo da lareira.

- Pelo amor de Deus! Acha que um homem tão rico quanto Perkin poderia ficar pobre porque não conseguiu vender as maçãs de uma carroça? Ele cultiva mais terras do que qualquer outro em Wigleigh desde que ficou com as terras que eram de seu pai, há dez anos. É claro que ele tem economias!

- Compreendo isso agora.

Gwenda ficou olhando para o fogo enquanto o marido terminava de tomar a cerveja. Wulfric abraçou-a, e ela encostou a cabeça em seu peito. Mas não queria fazer amor. Sentia-se furiosa demais. Disse a si mesma que não deveria descarregar no marido; fora Perkin quem os deixara numa situação difícil, não Wulfric. Mas ela também estava com raiva de Wulfric. Enquanto o sentia mergulhar no sono, compreendeu que a irritação não era pelos salários. Era o tipo de infortúnio que afligia a todos de vez em quando, como o mau tempo e o mofo da cevada.

O que era então?

E ela lembrou a maneira como Annet caíra em cima de Wulfric ao descer da carroça. Pensou no sorriso coquete de Annet e no rubor de satisfação de Wulfric, e teve vontade de esbofeteá-lo. Estou zangada com você, pensou ela, porque aquela idiota imprestável e de cabeça vazia ainda pode fazer com que banque o idiota.

No domingo antes do Natal foi realizada uma sessão do tribunal da aldeia, na igreja, depois da missa. Fazia frio e os aldeões se agasalhavam com mantas e cobertores. Nathan Reeve estava no comando. O senhor do solar, Ralph Fitzgerald, não aparecia em Wigleigh há anos. Melhor assim, pensou Gwenda. Além do mais, ele era Sir Ralph agora, com três outras aldeias em seu feudo. Por isso, não tinha muito interesse por parelhas de bois e pastos para as vacas.

Alfred Shorthouse morrera durante a semana. Era um viúvo sem filhos, com dez acres.

- Ele não tem herdeiros naturais - declarou Nate Reeve. - Perkin deseja assumir sua terra.

Gwenda ficou surpresa. Como Perkin podia pensar em assumir mais terra? O espanto foi tão grande que ela demorou a reagir. Aaron Appletree, o tocador de gaita-de-foles, foi o primeiro a falar:

- Alfred tinha problemas de saúde desde o verão. Não arou o solo no outono e não semeou o trigo do inverno. Todo esse trabalho terá de ser feito agora. Perkin ficará com as mãos cheias.

Nate perguntou, agressivo:

- Está pedindo a terra para você? Aaron sacudiu a cabeça.

- Dentro de mais alguns anos, quando meus filhos estiverem bastante crescidos para ajudar, eu não perderia esta oportunidade. Mas agora não teria condições de cuidar da terra sozinho.

- Eu posso cuidar - garantiu Perkin.

Gwenda franziu o rosto. Era evidente que Nate queria que Perkin ficasse com a terra. Sem dúvida fora prometido um suborno. Ela sabia o tempo todo que Perkin tinha dinheiro. Mas tinha pouco interesse em denunciar a duplicidade de Perkin. Queria apenas encontrar uma maneira de aproveitar aquela situação e tirar sua família da pobreza.

- Você pode contratar outro trabalhador, Perkin - sugeriu Nate.

- Espere um instante - interveio Gwenda. - Perkin não pode pagar os trabalhadores que ele tem agora. Como poderia cuidar de mais terra?

Perkin ficou consternado, mas não podia negar o que Gwenda dizia. Por isso, preferiu se calar.

- Quem mais poderia cuidar da terra? - indagou Nate. Gwenda apressou-se em declarar:

- Nós poderíamos.

Nate ficou surpreso. Ela acrescentou:

- Wulfric está trabalhando por comida. Eu não tenho trabalho. Precisamos de terra.

Gwenda notou que várias cabeças acenavam em concordância. Ninguém na aldeia gostara do que Perkin fizera. Todos temiam que um dia pudessem acabar na mesma situação. Nate percebeu o perigo de seu plano ser frustrado.

- Vocês não têm condições de pagar a taxa.

- Pagaremos um pouco de cada vez. Nate sacudiu a cabeça.

- Quero alguém que possa pagar imediatamente.

Ele correu os olhos pelos aldeões reunidos. Ninguém se apresentou como voluntário.

- David Johns?

David era um homem de meia-idade cujos filhos tinham suas próprias terras.

- Eu diria sim no ano passado. Mas a chuva na época da colheita me derrubou. A oferta de dez acres extras teria provocado, em circunstâncias normais, uma acirrada disputa entre os aldeões mais ambiciosos. Mas fora um péssimo ano. A situação de Gwenda e Wulfric era diferente. Por um lado, Wulfric nunca deixara de ansiar por sua própria terra. Os acres de Alfred não eram um direito de herança de Wulfric, mas eram melhores do que nada. De qualquer forma, Gwenda e Wulfric estavam desesperados. Aaron Appletree disse:

- Dê a terra para Wulfric, Nate. Ele é um bom trabalhador, e vai arar tudo num instante. E ele e a esposa merecem um pouco de sorte... já tiveram mais do que sua quota justa de azar.

Nate parecia contrariado, mas havia murmúrios baixos de concordância entre os camponeses. Wulfric e Gwenda eram bem respeitados, apesar de sua pobreza.

Aquela era uma excepcional combinação de circunstâncias que poderiam levar Gwenda e sua família a enveredarem pela estrada para uma vida melhor. Ela sentia um crescente excitamento, pois isso começava a parecer possível. Nate, no entanto, ainda tinha restrições.

- Sir Ralph odeia Wulfric.

Wulfric levou a mão ao rosto, tocando na cicatriz deixada pela espada de Ralph.

- Sei disso - respondeu Gwenda. - Mas Ralph não está aqui.

52

Quando o conde Roland morreu, um dia depois da batalha de Crécy, várias pessoas subiram um degrau na escada. Seu filho mais velho, William, tornou-se o conde, suserano do condado de Shiring, responsável perante o rei. Um primo de William, Sir Edward Courthose, tornou-se lorde de Caster, e assumiu o controle de quarenta aldeias daquele feudo, como vassalo do conde, mudando-se para a antiga casa de William e Philippa, em Casterham. E Sir Ralph Fitzgerald tornou-se lorde de Tench.

Durante os dezoito meses seguintes, nenhum deles foi para casa. Todos estiveram ocupados, a viajar com o rei e matar franceses. Até que em 1347 a guerra chegou a um impasse. Os ingleses capturaram e mantiveram a preciosa cidade portuária de Calais, mas afora isso havia pouco a mostrar por dez anos de guerra... exceto, é claro, uma grande quantidade de despojos.

Em janeiro de 1349, Ralph tomou posse de sua nova propriedade. Tench era uma aldeia grande, com uma centena de famílias de camponeses. Ele tinha também duas aldeias menores nas proximidades, além de conservar Wigleigh, que ficava a uma distância de meio dia de viagem.

Ralph experimentou uma intensa emoção de orgulho ao cavalgar através de Tench. Aguardara ansioso por aquele momento. Os servos se curvaram em revêrência e as crianças ficaram olhando impressionadas. Ele era o senhor de todas as pessoas ali, o proprietário de todas as coisas.

A casa ficava num compound, um conjunto de construções cercado por uma muralha. Ralph seguiu na frente, acompanhado por uma carroça repleta de despojos franceses. Ele percebeu logo que as muralhas há muito não eram reparadas. Perguntou-se se não deveria restaurá-las. Os burgueses da Normandia haviam negligenciado suas defesas, de um modo geral, e isso permitira que Edward III os derrotasse com relativa facilidade. Por outro lado, a probabilidade de uma invasão do Sul da Inglaterra era agora muito pequena. No início da guerra, a maior parte da frota francesa fora destruída no porto de Sluys.

Depois disso, os ingleses passaram a controlar o Canal da Mancha, que separava os dois países. A não ser por pequenos ataques de piratas mercenários, todas as batalhas desde Sluys haviam sido travadas em solo francês. Em suma, parecia que não valia a pena reconstruir aquelas muralhas.

Vários cavalariços se adiantaram para cuidar dos cavalos. Ralph deixou Alan Fernhill a supervisionar a descarga e se encaminhou para sua nova casa. Claudicava ao andar: a perna ferida sempre doía depois de longas horas a cavalo. Tench Hall era um solar de pedra. Era impressivo, notou Ralph com satisfação, embora precisasse de reparos... o que não era de surpreender, pois permanecera desocupado desde a morte do pai de lady Matilda. Mas tinha um projeto moderno. Nas casas antiquadas, os aposentos privados do senhor eram insignificantes, quase um acréscimo ao vasto salão que era a coisa mais importante. Mas Ralph percebeu, pelo lado de fora, que ali os aposentos domésticos ocupavam a metade do prédio.

Ele entrou no grande salão e ficou irritado ao se deparar com o conde William.

Na outra extremidade do salão havia uma cadeira grande, feita de madeira escura, toda esculpida, com símbolos de poder: anjos e leões no encosto e nos braços, cobras e monstros nas pernas. Era obviamente a cadeira do senhor do solar. Mas William estava sentado nela.

Grande parte do prazer de Ralph evaporou. Não podia desfrutar o domínio de seu novo solar sob o olhar atento de seu suserano. Seria como ir para a cama com uma mulher enquanto o marido escutava do outro lado da porta.

Mas ele disfarçou sua insatisfação e cumprimentou formalmente o conde William. O conde apresentou o homem de pé ao seu lado.

- Este é Daniel, que é o bailiff aqui há vinte anos e tem feito um bom trabalho, por conta de meu pai, durante a minoridade de Tilly.

Ralph cumprimentou o bailiff, com alguma frieza. A mensagem de William era clara: queria que Ralph deixasse Daniel continuar no cargo. Mas Daniel fora um homem do conde Roland e agora seria um homem do conde William. Ralph não tinha a menor intenção de permitir que seu domínio fosse administrado por um homem do conde. Seu bailiff tinha de ser leal apenas a ele.

William esperou que Ralph dissesse alguma coisa sobre Daniel. Ralph, no entanto, não tinha a menor intenção de entrar nessa discussão. Dez anos antes teria reagido com veemência, mas aprendera muita coisa no tempo que passara com o rei. Não era obrigado a ter a aprovação do rei para sua escolha do bailiff, e por isso não a pediria. Não diria nada até que William fosse embora, e depois comunicaria a Daniel que ele seria transferido para outras funções.

Tanto William quanto Ralph permaneceram num silêncio obstinado por algum tempo, até que o impasse foi rompido. A porta no lado doméstico do salão foi aberta e lady Philippa entrou, alta e elegante. Fazia muitos anos que Ralph não a via, mas sua paixão juvenil voltou no mesmo instante, com um choque que parecia um golpe violento, deixando-o sem fôlego. Ela estava mais velha - beirando os quarenta anos, calculou Ralph -, mas continuava exuberante. Talvez um pouco mais corpulenta do que ele lembrava, os quadris mais arredondados, os seios mais cheios; mas tudo isso contribuía para aumentar ainda mais sua fascinação. Ainda andava como uma rainha. Como sempre, sua presença fez com que Ralph se perguntasse, ressentido, por que não podia ter uma esposa assim.

No passado, Philippa mal se dignava a reconhecer sua presença, mas hoje ela sorriu, apertou sua mão e disse:

Já conversou com Daniel?

Ela também queria que Ralph mantivesse o homem de confiança do conde... e era por isso que se mostrava tão cortês. Mais razão ainda para se livrar do homem, pensou Ralph, com uma satisfação secreta.

- Acabei de chegar - informou ele, não querendo se comprometer. Philippa explicou o motivo da presença deles:

- Queríamos estar presentes quando você conhecesse a jovem Tilly... ela é parte de nossa família.

Ralph ordenara que as freiras do Priorado de Kingsbridge levassem sua noiva para Tench, para encontrá-lo ali hoje. Intrometidas, elas deviam ter comunicado ludo ao conde William.

- Lady Matilda era pupila do conde Roland, que sua alma descanse em paz ressaltou Ralph, enfatizando que a tutela acabara com a morte de Roland.

- É verdade... e eu esperava que o rei transferisse a tutela para meu marido, como herdeiro de Roland.

Era evidente que Philippa teria preferido isso.

- Mas ele não o fez - lembrou Ralph. - E entregou-a a mim em casamento. Embora a cerimônia ainda não tivesse ocorrido, a jovem passara a ser responsabilidade de Ralph. Em termos estritos, William e Philippa não tinham por que estar ali hoje, como se desempenhassem o papel de pais de Tilly. Mas William era suserano de Ralph, e, assim, podia visitá-lo sempre que quisesse.

Ralph não queria discutir com William. Era muito fácil para William tornar difícil a vida de Ralph. Por outro lado, o conde exorbitava de sua autoridade ali... provavelmente pressionado por Philippa. Mas Ralph não se deixaria intimidar. Os últimos sete anos haviam lhe proporcionado a confiança necessária para defender a independência a que tinha direito.

De qualquer forma, ele gostava de um duelo verbal com Philippa, pois lhe oferecia a oportunidade de contemplá-la. Ele concentrou sua atenção na linha determinada do queixo e nos lábios cheios. Apesar de sua altivez, Philippa era obrigada a fitá-lo. E aquela seria a conversa mais longa que já tivera com Ralph.

- Tilly é muito jovem - comentou ela.

- Terá quatorze anos este ano - respondeu Ralph. - Era a idade que nossa rainha tinha quando casou com nosso rei... como o próprio rei fez questão de lem brar, a mim e ao conde William, depois da batalha de Crécy.

- A esteira de uma batalha não é necessariamente o melhor momento para decidir o destino de uma jovem - murmurou lady Philippa.

Ralph não podia deixar isso passar sem uma resposta.

- Falando por mim, sinto-me na obrigação de cumprir as decisões de Sua Majestade.

- Como todos nós - garantiu ela.

Ralph sentiu que a vencera. Foi uma sensação sexual, quase como se a tivesse levado para a cama. Satisfeito, ele virou-se para Daniel.

- Minha futura esposa deve chegar a tempo para o jantar. Providencie um banquete.

- Já cuidei disso - anunciou Philippa.

Ralph virou lentamente a cabeça até que seus olhos se encontraram com os dela. Philippa ultrapassara os limites da cortesia ao entrar em sua cozinha e dar ordens. Ela compreendia isso, e ficou vermelha.

- Não sabia a que horas você chegaria.

Ralph não disse nada. Philippa não pediria desculpa, mas ele sentia-se contente por tê-la forçado a se explicar... um constrangimento para uma mulher tão orgulhosa.

Houve um breve momento de silêncio, com o barulho de cavalos lá fora. Os pais de Ralph entraram no salão. Ele não os via há alguns anos, e se adiantou para abraçá-los.

Os dois estavam na casa dos cinqüenta anos, mas a mãe parecia ter envelhecido mais depressa. Os cabelos eram brancos e o rosto ficara enrugado. Estava um pouco encurvada, como as mulheres idosas. O pai parecia mais vigoroso. Era em parte pelo excitamento do momento: tinha o rosto vermelho de orgulho e apertou a mão de Ralph como se estivesse bombeando água de um poço. Mas não havia fios brancos em sua barba ruiva, e o corpo esguio ainda era empertigado. Os dois usavam roupas novas, adquiridas com o dinheiro que Ralph mandara. Sir Gerald exibia um pesado casaco de lã, enquanto lady Maud ostentava um manto de pele.

Ralph estalou os dedos para Daniel.

- Traga vinho.

Por um instante, o bailiff deu a impressão de que poderia protestar por ser tratado como um criado; mas depois engoliu o orgulho e seguiu apressado para a cozinha. Ralph disse:

- Conde William, lady Philippa, quero apresentar meu pai, Sir Gerald, e minha mãe, lady Maud.

Ele receava que William e Philippa menosprezassem seus pais, mas os dois os cumprimentaram com a devida cortesia. Gerald comentou com o conde:

- Fui companheiro de armas de seu pai; que sua alma descanse em paz. Para ser franco, conde William, eu o conheci quando era menino, embora não deva se lembrar de mim.

Ralph desejou que o pai não chamasse a atenção para seu passado glorioso. Só servia para enfatizar o quanto ele caíra. Mas William pareceu não notar.

- Acho que me lembro. - Era provável que ele estivesse apenas sendo gentil, mas Gerald ficou satisfeito. - Pelo que me recordo, parecia um gigante com mais de dois metros de altura.

Gerald, que era baixo, riu deliciado. Maud correu os olhos ao redor e comentou:

- É uma boa casa, Ralph.

- Quero decorá-la com todos os tesouros que trouxe da França. Mas ainda não tive tempo, pois acabei de chegar.

Uma garota da cozinha trouxe vinho e taças numa bandeja. Todos beberam. O vinho era um excelente Bordeaux, Ralph notou, claro e doce. Tinha de dar um credito a Daniel por manter a casa bem abastecida, pensou ele a princípio; mas depois refletiu que durante muitos anos não houvera ninguém ali para tomar vinho... exceto Daniel, é claro. Ele perguntou à mãe:

- Alguma notícia de meu irmão, Merthin?

- Ele está ótimo - respondeu Maud, orgulhosa. - Casado, com uma filha, e rico. Está construindo um palácio para a família de Buonaventura Caroli.

- Mas ainda não o fizeram conte, não é mesmo?

Ralph fingiu estar gracejando, mas queria ressaltar que Merthin, apesar de todo o seu sucesso, não obtivera um título de nobreza; e que era ele, Ralph, quem realizava as esperanças do pai, ao levar a família de volta à nobreza.

- Ainda não - disse o pai, jovial.

Era como se ele pensasse que havia uma possibilidade concreta de Merthin se tornar um conde italiano, o que deixou Ralph irritado, mas apenas por um momento. Sua mãe perguntou:

- Podemos ver nossos aposentos?

Ralph hesitou. O que ela estava querendo dizer com ”nossos aposentos”? Aflorou à sua mente o pensamento terrível de que os pais podiam estar pensando que morariam ali. Era uma coisa que Ralph não podia admitir: eles seriam um lembrete constante dos anos de vergonha da família. Além do mais, a presença dos pais seria um estorvo para seu estilo de vida. Por outro lado, ele compreendeu agora, também seria vergonhoso para um nobre deixar que os pais continuassem a morar numa casa de um único cômodo, como pensionistas de um priorado. Teria de pensar mais a respeito. Por enquanto, disse apenas:

- Ainda não tive a oportunidade de ver nem mesmo meus aposentos pessoais. Espero que possam ficar confortáveis por algumas noites.

- Algumas noites? - repetiu a mãe. - Vai nos mandar de volta para a choupana em Kingsbridge?

Ralph ficou mortificado pelo fato de a mãe tratar desse assunto na presença de William e Philippa.

- Acho que não há espaço para vocês morarem aqui.

- Como sabe se ainda não viu os aposentos? Daniel interveio:

- Um aldeão de Wigleigh está aqui, Sir Ralph... o nome é Perkin. Quer apresentar seus respeitos e discutir um problema urgente.

Em circunstâncias normais, Ralph teria repreendido o homem por se intrometer na conversa, mas naquele momento sentiu-se grato pela diversão.

- Dê uma olhada nos aposentos, enquanto eu converso com esse camponês. William e Philippa saíram com os pais dele para inspecionarem os aposentos domésticos. Daniel levou Perkin até a mesa. Perkin mostrou-se tão subserviente quanto sempre.

- É um prazer vê-lo inteiro, são e salvo, depois das guerras francesas, milorde. Ralph olhou para sua mão esquerda, onde faltavam três dedos.

- Quase inteiro.

- Todos os habitantes de Wigleigh lamentam por seus ferimentos, milorde, mas estão felizes com as recompensas! Um título de cavaleiro, mais três aldeias, e lady Matilda em casamento!

- Obrigado pelas felicitações, mas qual é o assunto urgente que o trouxe até aqui?

- Não levarei muito tempo para explicar, milorde. Alfred Shorthouse morreu sem deixar um herdeiro natural para seus dez acres. Ofereci-me para ficar com a terra, embora os tempos sejam difíceis, depois das tempestades em agosto...

- O tempo não importa.

- Tem toda razão. Para resumir, Nathan Reeve tomou uma decisão que acho que milorde não aprovaria.

Ralph estava impaciente. Não queria saber que camponês cultivaria os dez acres de Alfred.

- O que Nathan decidiu...

- Ele entregou a terra a Wulfnc -Ahn...

- Alguns aldeões disseram que Wulfnc merecia, já que ele não tinha terra. Mas Wulfnc não pode pagar toda a taxa e de qualquer maneira...

- Não precisa me convencer - interrompeu-o Ralph. - Não permitirei que aquele desordeiro ocupe qualquer terra em meu território.

- Obrigado, milorde. Devo dizer a Nathan Reeve que deseja que eu fique com os dez acres?

- Claro. - Ralph viu o conde e a condessa voltarem dos aposentos particulares, com seus pais a reboque. - Irei até lá para confirmar pessoalmente nas próximas duas semanas.

Ele dispensou Perkin com um aceno de mão. E foi nesse momento que lady Matilda chegou.

Ela entrou no salão com uma freira de cada lado. Uma delas era a antiga namorada de Merthin, Caris, que tentara dizer ao rei que Tilly era jovem demais para casar. No outro lado estava a freira que viajara com Caris até Crécy, uma mulher com rosto de anjo cujo nome Ralph não conhecia. Por trás delas, presumivelmente servindo como guarda, vinha o monge de um braço só, que capturara Ralph com tanta astúcia nove anos antes, irmão Thomas.

E no meio Tilly. Ralph percebeu no mesmo instante por que as freiras queriam protegê-la do casamento. Seu rosto exibia uma expressão de inocência infantil. Tinha sardas no nariz e uma abertura entre os dois dentes da frente. Olhou ao redor, assustada. Caris aumentara a aparência infantil ao vesti-la com um hábito branco de freira e uma touca simples. Mas o tecido não era suficiente para ocultar as curvas de mulher por baixo. Era evidente que Caris queria realçar que Tilly era jovem demais para a vida conjugal. O efeito sobre Ralph foi o opôsto do pretendido.

Uma das coisas que Ralph aprendera no serviço do rei era que, em muitas situações, um homem podia assumir o comando se falasse primeiro. Ele disse, alto:

- Venha até aqui, Tilly.

A garota adiantou-se. Sua escolta hesitou, mas permaneceu onde estava.

- Sou seu marido, Tilly. Meu nome é Sir Ralph Fitzgerald, lorde de Tench. Ela parecia apavorada.

- Prazer em conhecê-lo, senhor.

- Esta é a sua casa agora, como foi no tempo em que era pequena e seu pai era o senhor aqui. É agora a lady de Tench, como sua mãe também foi. Está feliz em voltar para a casa de sua família?

- Estou, milorde.

A garota parecia qualquer coisa, menos feliz.

- Tenho certeza de que as freiras lhe disseram que deve ser uma esposa obediente e fazer tudo o que puder para agradar seu marido, que é seu amo e senhor.

- Claro, milorde.

- E aqui estão meu pai e minha mãe, que agora são seus pais também. Ela fez uma pequena reverência para Gerald e Maud. Ralph acrescentou:

- Chegue mais perto.

Ralph estendeu as mãos. Num impulso automático, Tilly também estendeu as mãos, mas depois viu a mão esquerda mutilada. Soltou um grunhido de repulsa e recuou.

Uma imprecação furiosa aflorou aos lábios de Ralph, mas ele reprimiu-a. Com alguma dificuldade, forçou-se a falar num tom descontraído:

- Não precisa ter medo de minha mão ferida. Deveria se orgulhar. Perdi os dedos a serviço do rei.

Ele manteve os braços estendidos, em expectativa. Com um esforço, ela pegou suas mãos.

- Agora pode me beijar, Tilly.

Ralph estava sentado, a garota de pé na sua frente. Ela inclinou-se, oferecendo o rosto. Ele pôs a mão atrás de sua cabeça e virou o rosto, para beijá-la nos lábios. Sentiu a incerteza, e adivinhou que Tilly nunca fora beijada por um homem antes. Deixou que o beijo se prolongasse, em parte porque era muito doce, em parte para enfurecer as pessoas que observavam. Depois, com uma lenta deliberação, acariciou os seios da garota com a mão boa. Eram cheios e redondos. Não era mais uma criança. Ralph soltou-a e deixou escapar um suspiro de satisfação.

- Devemos casar logo. - Ele olhou para Caris, que reprimia a raiva com evidente dificuldade. - Na Catedral de Kingsbridge, daqui a quatro semanas, a contar do domingo.

Ele virou-se para Philippa, mas dirigiu-se a William:

- Como estamos casando pelo desejo expresso de Sua Majestade, o rei Edward, eu me sentiria honrado se comparecesse, conde William.

William acenou com a cabeça, num movimento brusco. Caris falou pela primeira vez:

- Sir Ralph, o prior de Kingsbridge envia saudações, e diz que se sentirá honrado em celebrar a cerimônia, a menos, é claro, que o novo bispo deseje fazê-lo.

Ralph concordou, generoso, com um aceno de cabeça. Uma pausa, e Caris acrescentou:

- Mas todas as pessoas que tomaram conta desta criança acham que ela ainda é jovem demais para manter relações conjugais com o marido.

- Eu concordo - declarou Philippa. O pai de Ralph sugeriu:

- Sabe, filho, esperei anos para casar com sua mãe. Ralph não queria ouvir essa história de novo.

- Ao contrário de você, pai, recebi uma ordem do rei para casar com lady Matilda.

- Talvez devesse esperar, filho - disse a mãe.

- Já esperei mais de um ano! Ela tinha doze anos quando o rei determinou o casamento.

Caris interveio:

- Case com a criança, com a devida cerimônia... mas depois deixe-a voltar ao convento por mais um ano. Espere que ela desenvolva toda a sua feminilidade antes de levá-la para casa.

Ralph soltou uma risada desdenhosa.

- Posso estar morto daqui a um ano, ainda mais se o rei decidir voltar à França. Antes disso, os Fitzgeralds precisam de um herdeiro.

- Ela é uma criança...

Ralph interrompeu Caris, elevando a voz:

- Não, não é uma criança... olhem só para ela! Esse estúpido hábito de freira não pode disfarçar seus seios.

- Uma criança gorda...

- Ela já tem pêlos de mulher? - perguntou Ralph.

Tilly soltou um grito de espanto à franqueza grosseira, as faces vermelhas de vergonha.

Caris hesitou.

- Talvez minha mãe devesse examiná-la por mim e depois me informar acrescentou Ralph.

Caris sacudiu a cabeça.

- Isto não será necessário. Tilly tem pêlos onde uma mulher tem e uma criança não tem.

- Eu sabia disso. Já vi... - Ralph parou de falar, pois não queria que todos ali soubessem em que circunstâncias ele vira os corpos nus de garotas da idade de Tilly. Apressou-se em corrigir, evitando os olhos da mãe: -Adivinhei, por seu corpo.

Um tom suplicante, quase nunca ouvido, insinuou-se na voz de Caris:

- Mas ela ainda é uma criança em sua mente, Ralph.

Não me importo com sua mente, pensou Ralph. Mas ele não disse isso.

- Ela tem quatro semanas para aprender o que não sabe. - Ele lançou um olhar sugestivo para Caris. - Tenho certeza de que você pode lhe ensinar tudo.

Caris corou. As freiras nada deviam saber sobre intimidade conjugal, mas ela fora namorada do irmão de Ralph. A mãe murmurou:

- Talvez um acordo...

- Você não compreende, não é, mãe? - indagou Ralph, interrompendo-a bruscamente. - Ninguém está preocupado com a idade dela.

Se eu fosse casar com a filha de um açougueiro de Kingsbridge ninguém se importaria se ela tivesse nove anos. Não percebe que as objeções são apenas porque Tilly teve um nascimento nobre? Eles acham que são superiores a nós!

Ele sabia que estava gritando, e podia ver as expressões espantadas de todos os presentes, mas não se importava.

- Não querem que uma prima do conde de Shiring case com o filho de um cavaleiro empobrecido. E tentam adiar, na esperança de que ele morra em batalha antes que o casamento seja consumado.

Ralph limpou a boca e continuou:

- Mas esse filho de um cavaleiro empobrecido lutou na batalha de Crécy e salvou a vida do príncipe de Gales. E é isso o que importa para o rei.

Ele fez uma pausa, fitando cada um: o altivo William, a desdenhosa Philippa, a furiosa Caris, e seus pais atônitos.

- Portanto, é melhor aceitarem os fatos. Ralph Fitzgerald é um cavaleiro e um lorde, um companheiro de armas do rei. E vai casar com lady Matilda, a prima do conde... quer vocês gostem ou não!

Ralph virou-se para Daniel.

- Pode servir o jantar agora.

Na primavera de 1348, Merthin despertou de um pesadelo de que não conseguia se lembrar direito. Sentia-se assustado e fraco. Abriu os olhos para um quarto de barras de um sol brilhante, passando pelas venezianas meio abertas. Avistou um teto alto, paredes brancas, ladrilhos vermelhos. O ar era ameno. A realidade voltou lentamente. Era seu quarto, sua casa, em Florença. Estivera doente.

A doença foi a primeira coisa de que recordou. Começara com erupções na pele, manchas púrpura-pretas no peito, depois nos braços, por toda parte. Surgira um caroço doloroso na axila, um bubo. Tivera febre, suando na cama, emaranhando os lençóis ao se contorcer. Vomitara e tossira sangue. Pensara que iria morrer. O pior de tudo era a sede, terrível, insaciável, que o fazia ter vontade de se jogar no rio Arno com a boca escancarada.

Não era o único sofredor. Milhares de italianos haviam caído doentes com aquela peste, dezenas de milhares. Metade dos trabalhadores de suas obras havia desaparecido, assim como a metade dos empregados de sua casa. Quase todas as pessoas que contraíam a doença morriam em cinco dias. Chamavam de da moria grande, a grande morte.

Mas ele estava vivo.

Teve a sensação persistente de que tomara uma decisão da maior importância enquanto estava doente, mas não conseguia se lembrar qual era. Concentrou-se por um momento. Quanto mais pensava a respeito, no entanto, mais esquiva a memória se tornava, até que desapareceu por completo.

Merthin sentou na cama. Os braços e pernas estavam fracos, a cabeça girou por um momento. Usava um camisolão de linho limpo, e se perguntou quem o teria vestido nele. Depois de um momento, levantou-se.

Tinha uma casa com quatro andares e um pátio. Ele mesmo a projetara e construíra, com uma fachada lisa, em vez dos tradicionais andares salientes. Havia detalhes arquitetônicos interessantes, como as arcadas de janelas redondas e as colunas clássicas. Os vizinhos chamavam-na de palagetto, um pequeno palacio. Isso acontecera há sete anos. Vários prósperos mercadores florentinos haviam lhe pedido que construísse palagetti, e fora assim que sua carreira deslanchara.

Florença era uma república, sem um príncipe ou duque reinante, dominada por uma elite de famílias de mercadores em permanente conflito. A cidade era povoada por milhares de tecelões, mas eram os mercadores que ganhavam fortunas. Gastavam seu dinheiro com a construção de casas grandiosas, o que fazia da cidade um lugar perfeito para um jovem e talentoso arquiteto prosperar. Merthin foi até a porta do quarto e chamou a esposa:

- Silvia! Onde você está?

Era com a maior naturalidade que ele falava agora o dialeto toscano, depois de nove anos na cidade.

Lembrou-se no instante seguinte. Silvia também ficara doente. E o mesmo acontecera com a filha, que tinha apenas três anos. Seu nome era Laura, mas haviam adotado a maneira infantil como ela se referia a si mesma, Lolla. O coração de Merthin foi dominado por um medo terrível. Silvia estaria viva? E Lolla?

A casa estava quieta. E a cidade também, ele percebeu subitamente. O ângulo dos raios do sol entrando pelas janelas indicava que era o meio da manhã. Deveria estar ouvindo naquele momento os gritos dos vendedores ambulantes das ruas, o ressoar dos cascos dos cavalos, o ranger das rodas de madeira das carroças, o murmúrio ao fundo de mil conversas... mas não havia nada.

Ele subiu a escada. Em sua fraqueza, o esforço deixou-o ofegante. Abriu a porta do quarto da filha. Parecia vazio. Um suor de medo espalhou-se por seu corpo. Lá estava a cama de Lolla, um pequeno baú para suas roupas, uma caixa com brinquedos, uma mesa em miniatura, com duas cadeiras pequenas. E depois ele ouviu um barulho. Ali, no canto, avistou Lolla, sentada no chão, usando um vestido limpo, a brincar com um cavalo de madeira que tinha pernas articuladas. Merthin soltou um grito estrangulado de alívio. A menina ouviu-o e levantou os olhos.

- Papai... - murmurou ela, num tom de voz distraído. Merthin adiantou-se para pegá-la no colo e apertá-la.

- Você está viva! - exclamou ele, em inglês.

Houve um som no quarto ao lado. Um momento depois, Maria apareceu. Era uma mulher de cabelos grisalhos, na casa dos cinqüenta anos, a babá de Lolla.

-Amo! Levantou-se finalmente... está melhor?

- Onde está sua ama?

O rosto de Maria murchou.

- Sinto muito, amo. A ama morreu.

- Mamãe foi embora - disse Lolla.

Mertlnn sentiu o choque como se fosse um golpe poderoso. Entregou Lolla a Maria Em movimentos lentos e cuidadosos, virou-se e deixou o quarto. Desceu a escada para o piano nobile, o andar principal. Olhou para a mesa comprida, as cadeiras vazias, os tapetes no chão, os retratos nas paredes. Parecia a casa de outra pessoa.

Parou na frente de um quadro da Virgem Maria com sua mãe. Os pintores italianos eram superiores aos ingleses ou quaisquer outros, e aquele dera a Santa Ana o rosto de Silvia. Era uma beleza orgulhosa, com a pele azeitonada impecável e as feições nobres, mas o pintor percebera a paixão sexual fumegando naqueles olhos castanhos distantes.

Era difícil compreender que Silvia não mais existia. Ele pensou no corpo esguio, recordou como admirara, muitas e muitas vezes, os seios perfeitos. Aquele corpo, com o qual tivera uma intimidade total, estava agora no fundo da terra, em algum lugar. Quando imaginou isso, as lágrimas finalmente afloraram a seus olhos, e ele soluçou em desespero.

Onde seria a sepultura? Merthin lembrou que os funerais haviam cessado em Forença: as pessoas tinham pavor de sair de suas casas. Limitavam-se a levar os cadáveres para fora, deixando-os nas ruas. Os ladrões, mendigos e bêbados da cidade haviam adquirido uma nova profissão: eram chamados de carregadores de cadáveres, os becchini, e cobravam preços exorbitantes para levar os corpos e sepultá-los em covas coletivas. Talvez Merthin nunca descobrisse onde Silvia fora enterrada.

Haviam casado quatro anos antes. Olhando para seu retrato, com o vestido vermelho tradicional de Santa Ana, Merthin sofreu um acesso de honestidade angustiada. Perguntou-se se realmente a amara. Gostava muito de Silvia, mas não era uma paixão devastadora. Ela tinha um espírito independente e uma língua afiada, e ele era o único homem em Florença com coragem para cortejá-la, apesar da riqueza de seu pai. Em troca, ela lhe dera uma devoção absoluta. Mas Silvia avaliara com precisão a qualidade do amor do marido.

- Em que você está pensando? - indagava ela de vez em quando. Merthin tinha um sobressalto de culpa, porque estivera se lembrando de Kingsbridge. Não demorava muito para que Silvia mudasse a pergunta:

- Em quem você está pensando?

Ele nunca enunciara o nome de Caris, mas Silvia dizia:

- Deve ser em uma mulher. Dá para perceber pela expressão em seu rosto. Pouco depois ela passara a falar sobre ”sua jovem inglesa”. Silvia dizia:

- Está se lembrando de sua jovem inglesa.

E ela sempre tinha razão. Mas parecia aceitar. Merthin lhe era fiel. E adorava Lolla.

Depois de algum tempo, Maria serviu-lhe sopa e pão.

- Que dia é hoje - perguntou Merthin.

- Terça-feira.

- Há quanto tempo estou na cama?

- Duas semanas. Ficou muito doente.

Ele se perguntou por que sobrevivera. Algumas pessoas nunca sucumbiam à doença, como se tivessem uma proteção natural; aqueles que pegavam a peste, quase sempre morriam. Mas a pequena minoria que se recuperava da peste era duplamente afortunada, pois ninguém jamais contraíra a doença pela segunda vez.

Quando acabou de comer, ele sentiu-se mais forte. Tinha de reconstruir sua vida, pensou. Desconfiava que já tomara essa decisão antes, durante a doença, mas outra vez foi atormentado pelo fio de memória que escapava do seu alcance.

A primeira tarefa agora era descobrir o quanto de sua família restara.

Ele levou os pratos para a cozinha, onde Maria alimentava Lolla com pão embebido em leite de cabra.

- O que pode me dizer dos pais de Silvia? - perguntou ele. - Ainda estão vivos?

- Não sei. Só tenho saído de casa para comprar comida.

- É melhor eu descobrir.

Merthin vestiu-se e desceu. O andar térreo da casa era uma oficina, com o pátio nos fundos usado para estocar madeira e pedra. Não havia ninguém trabalhando, dentro ou fora da casa.

Ele saiu. Os prédios ao redor eram quase todos de pedra, alguns espetaculares. Kingsbridge não tinha residências que pudessem se comparar. O homem mais rico de Kingsbridge, Edmund Wooler, residia numa casa de madeira. Ali, em Florença, só os pobres viviam em casas desse tipo.

A rua estava deserta. Merthin nunca a vira assim, nem mesmo durante a noite. O efeito era sinistro. Ele se perguntou quantas pessoas teriam morrido: um terço da população? A metade? Seus fantasmas ainda estariam à espreita nas vielas e cantos escuros, observando invejosos os sobreviventes afortunados?

A casa de Christi ficava na rua seguinte. O sogro de Merthin, Alessandro Christi, fora o seu primeiro e melhor amigo em Florença. Um colega de escola de Buonaventura Caroli, Alessandro oferecera a Merthin seu primeiro trabalho na cidade, a construção de um armazém simples. Ele era o avô de Lolla.

A porta do palagetto de Alessandro estava trancada. O que era muito estranho. Merthin bateu na madeira e esperou. Depois de algum tempo, a porta foi aberta por Elizabetta, uma mulher pequena e gorducha que era a lavadeira de Alessandro. Ela fitou-o em choque.

- Você está vivo!

- Olá, Betta. Fico contente em ver que você também está viva. Ela virou-se e gritou para o interior da casa:

- É o lorde inglês!

Merthin dissera que não era um lorde, mas os criados não haviam acreditado. Ele entrou: -Alessandro? Elizabetta balançou a cabeça e começou a chorar.

- E sua ama?

- Os dois morreram.

A escada levava do vestíbulo ao andar principal. Merthin subiu devagar, surpreso ao descobrir como ainda se sentia fraco. Sentou na sala principal para recuperar o fôlego.

Alessandro fora um homem rico, e aquela sala era um mostruário de tapetes e tapeçarias, quadros, ornamentos com pedras preciosas, livros.

- Quem mais está aqui? - perguntou ele a Elizabetta.

- Apenas Lena e suas crianças.

Lena era uma escrava asiática, um caso excepcional mas não exclusivo nas prósperas famílias florentinas. Tinha duas crianças pequenas de Alessandro, um menino e uma menina. O pai sempre os tratara como sua prole legítima. Silvia até comentara que ele os mimava mais do que jamais fizera com ela e o irmão. O arranjo era considerado excêntrico em vez de escandaloso pelos sofisticados fiorentinos. Merthin perguntou:

- O que pode me dizer sobre o Signor Gianni? Gianni era o irmão de Silvia.

- Ele morreu. E a esposa também. A criança está aqui comigo.

- Santo Deus!

Betta indagou, hesitante:

- E sua família, milorde?

- Minha esposa morreu.

- Sinto muito.

- Mas Lolla está viva.

- Graças a Deus!

- Maria tem cuidado dela.

- Maria é uma boa mulher. Gostaria de beber alguma coisa? Merthin acenou com a cabeça, e Betta se retirou.

As crianças de Lena entraram na sala para vê-lo: um menino de olhos escuros de sete anos que parecia com Alessandro, e uma linda menina de quatro anos, com os olhos asiáticos da mãe. Um momento depois, a própria Lena apareceu, uma linda mulher na casa dos vinte anos, com a pele dourada e os malares salientes. Trazia uma taça de prata com um vinho tinto toscano escuro e uma bandeja com amêndoas e azeitonas.

- Vai morar aqui, milorde?

Merthin ficou surpreso com a indagação.

- Acho que não. Por que pergunta?

- A casa é sua agora. - Ela acenou com a mão para indicar a riqueza da família Christi. - Tudo é seu.

Merthin refletiu que ela tinha razão. Era o único parente adulto sobrevivente de Alessandro Christi. Isso o tornava o herdeiro... e o guardião de três crianças, além de Lolla.

- Tudo - repetiu Lena, fitando-o nos olhos.

Merthin sustentou seu olhar expressivo, e compreendeu que ela estava se oferecendo.

Considerou a perspectiva. A casa era linda. Era o lar para as crianças de Lena, um lugar familiar para Lolla e até mesmo para o bebê de Gianni: todas as crianças seriam felizes ali. Ele herdara dinheiro suficiente para viver sem trabalhar pelo resto da vida. Lena era uma mulher de inteligência e experiência, e ele podia imaginar com facilidade os prazeres de desfrutar de sua intimidade.

Ela leu seus pensamentos. Pegou sua mão e apertou-a contra os seios. Eram macios e quentes, como ele pôde sentir através do vestido leve de lã.

Mas não era isso o que ele queria. Merthin puxou a mão de Lena e beijou-a.

- Providenciarei para que você e suas crianças tenham tudo o que precisarem

- disse ele. - Não se preocupe.

- Obrigada, milorde.

Mas Lena parecia desapontada. Alguma coisa em seus olhos dizia a Merthin que a oferta não fora apenas pelo arranjo prático. Ela esperava sinceramente que Merthin pudesse se tornar mais do que apenas seu novo dono. Mas isso era parte do problema. Ele não podia imaginar fazer sexo com uma mulher que possuía. A idéia era desagradável ao ponto da repulsa.

Ele tomou um gole do vinho e sentiu-se mais forte. Se não se sentia atraído por uma vida fácil de luxo e pela satisfação sensual, o que ele queria? Sua família quase desaparecera: só restava Lolla. Mas ainda tinha o trabalho. Em diferentes lugares da cidade havia três projetos seus em construção. Não tinha a menor intenção de renunciar ao trabalho que amava. Não sobrevivera à grande morte para se tornar um ocioso. Recordou sua ambição juvenil de construir o prédio mais alto da Inglaterra. Recomeçaria de onde parara. Haveria de se recuperar da perda de Silvia ao se empenhar em seus projetos de construção. Merthin levantou-se para ir embora. Lena abraçou-o.

- Obrigada - murmurou ela. - Obrigada por dizer que vai cuidar das minhas crianças.

Ele afagou as costas de Lena.

- São filhos de Alessandro. - Em Florença, os filhos de escravas não eram escravos. - Quando crescerem, eles serão ricos.

Merthin afastou os braços de Lena, gentilmente, e desceu a escada. Todas as casas estavam trancadas, as janelas fechadas. Ele viu em algumas portas mortalhas envolvendo o que presumiu serem cadáveres. Havia umas poucas pessoas nas ruas, mas quase todas eram pobres. A desolação era angustiante. Florença era a maior cidade do mundo cristão, uma ruidosa metrópole comercial, que produzia milhares de metros do melhor tecido de lã todos os dias, um mercado em que vastas somas de dinheiro eram pagas por não mais que a garantia de uma carta de Antuérpia ou a promessa verbal de um príncipe. Caminhar por aquelas ruas silenciosas e vazias era como ver um cavalo ferido que caíra e não podia se levantar: uma imensa força subitamente virava o nada. Ele não encontrou ninguém de seu círculo de conhecidos. Presumiu que os amigos preferiam ficar dentro de casa... os que ainda continuavam vivos.

Ele seguiu primeiro para uma praça próxima, na antiga cidade romana, em que estava construindo um chafariz para a municipalidade. Projetara um sistema elaborado para reciclar quase toda a água durante os secos e prolongados verões de Florença.

Quando chegou à praça, porém, ele constatou no mesmo instante que não havia ninguém trabalhando ali. Os canos subterrâneos haviam sido instalados e cobertos antes que ele caísse doente. Além disso, já havia sido assentada a primeira fileira de pedras para o plinto em degraus ao redor do poço.

Mas a aparência empoeirada e negligenciada das pedras indicava que nenhum trabalho era feito ali há dias. Pior ainda, uma pequena pirâmide de argamassa, numa tábua, endurecera para uma massa sólida, de onde se soltou alguma poeira quando ele deu um chute. Havia até algumas ferramentas espalhadas pelo chão. Era um milagre que não tivessem sido roubadas.

O chafariz seria espetacular. Na oficina de Merthin vinha trabalhando o melhor escultor de pedra da cidade, preparando a peça central... ou estivera. Merthin ficou desapontado ao descobrir que o trabalho fora interrompido. Não era possível que todos os construtores da cidade tivessem morrido, não é mesmo? Talvez estivessem apenas esperando para saber se Merthin se recuperaria.

Aquele era o menor de seus três projetos, embora fosse de grande prestígio. ele deixou a praça e seguiu para o norte, a fim de inspecionar outro. Mas começou a ficar mais e mais preocupado enquanto andava. Ainda não encontrara ninguém com conhecimentos suficientes para lhe dar uma perspectiva mais ampla. O que restara do governo da cidade? A peste estava diminuindo ou piorando? E o que acontecera no resto da Itália?

Uma coisa de cada vez, ele disse a si mesmo.

Também estava construindo uma casa para Guelielmo Caroli, o irmão mais velho de Buonaventura. Seria um verdadeiro palazzo, uma casa com fachada dupla, projetada em torno de uma escada espetacular, mais larga do que algumas ruas da cidade. O andar térreo já estava todo de pé. A fachada inclinava-se para trás e para cima, a partir do solo, a ligeira projeção dando uma impressão de fortificação; mas, por cima, havia duas janelas elegantes, em arcadas pontudas, com um infólio. O projeto dizia que as pessoas lá dentro eram ao mesmo tempo poderosas e refinadas, e era isso que a família Caroli queria.

O andaime para o segundo andar fora erguido, mas não havia ninguém trabalhando. Deveria haver pelo menos cinco pedreiros assentando as pedras. Mas a única pessoa no local era um velho que servia como zelador e morava numa cabana de madeira nos fundos do terreno. Merthin encontrou-o cozinhando uma galinha sobre uma fogueira. O idiota usara caríssimos blocos de mármore para servir como lareira.

- Onde estão todos? - perguntou Merthin, abruptamente. O zelador levantou-se de um pulo.

- O Signor Caroli morreu, e seu filho Agostino não quis pagar os homens. Por isso, todos foram embora... isto é, aqueles que não tinham morrido.

Era um tremendo golpe. A família Caroli era uma das mais ricas de Florença. Se eles achavam que não podiam mais arcar com os custos da construção, então a crise era mesmo grave.

- Quer dizer que Agostino está vivo?

- Está, sim, amo. Eu o vi esta manhã.

Merthin conhecia o jovem Agostino. Não era tão esperto quanto o pai ou o tio Buonaventura, por isso procurava agir com uma cautela extrema e uma atitude comedida. Não recomeçaria a construção enquanto não tivesse certeza de que as finanças da família haviam se recuperado dos efeitos da peste.

Mas Merthin tinha certeza de que seu terceiro e maior projeto continuaria a ser executado. Estava construindo uma igreja para uma ordem de frades muito favorecida pelos mercadores da cidade. O local ficava ao sul do rio, e por isso ele atravessou a ponte nova.

A ponte fora concluída apenas dois anos antes. Merthin até realizara algum trabalho ali, sob a orientação do principal projetista, o pintor Taddeo Gaddi. A ponte tinha de resistir à correnteza rápida do rio, como sempre acontecia quando as neves do inverno derretiam. Merthin ajudara a projetar as pilastras. Agora, ao passar pela ponte, ele ficou consternado ao constatar que todas as pequenas lojas de ourives na ponte estavam fechadas... o que era outro mau sinal.

A Igreja de Santa Anna dei Frari era o seu projeto mais ambicioso até agora. Era uma igreja enorme, mais como uma catedral - os frades eram ricos -, embora nem um pouco parecida com a catedral de Kingsbridge. A Itália tinha catedrais góticas, a de Milão sendo uma das maiores, mas os italianos de mentalidade moderna não gostavam da arquitetura da França e Inglaterra: consideravam as janelas imensas e as arcadas que se projetavam pelo teto como um fetiche estrangeiro. A obsessão pela claridade, que fazia sentido no sombrio noroeste da Europa, parecia uma distorção na ensolarada Itália, onde as pessoas procuravam sombra e frescura. Os italianos identificavam-se com a arquitetura clássica da Roma Antiga, cujas ruínas podiam ser vistas por toda parte ali. Gostavam de empenas e arcadas redondas, e rejeitavam as paredes externas muito esculpidas e ornamentadas, em favor de padrões decorativos de pedras e mármores de cores diferentes.

Mas Merthin surpreenderia até mesmo os florentinos com aquela igreja. O projeto era de uma série de quadrados, cada um encimado por um domo, cinco seguidos e dois em cada lado da interseção. Ele já ouvira falar de domos quando ainda vivia na Inglaterra, mas nunca vira nenhum até visitar a Catedral de Siena. Não havia nenhum domo em Florença. O clerestório seria formado por uma fileira de janelas redondas, ou óculos. Em vez de colunas estreitas que se projetavam em ansiedade para o céu, aquela igreja teria círculos, completos em si mesmos, com a aparência de auto-suficiência ligada à terra, que caracterizava o povo comercial de Florença.

Ele ficou desapontado, mas não surpreso, ao descobrir que não havia pedreiros nos andaimes, nenhum trabalhador deslocando as enormes pedras, nem as mulheres que preparavam a argamassa com suas imensas pás. O local da obra estava tão quieto e silencioso quanto os outros dois. Naquele caso, porém, ele sentia-se confiante de que logo poderia reiniciar a execução do projeto. Uma ordem religiosa tinha uma vida própria, independente dos indivíduos. Ele deu a volta pela obra e entrou no mosteiro dos frades.

O lugar também estava silencioso. Os mosteiros deveriam ser sempre assim, é claro, mas havia uma qualidade naquele silêncio que o deixou nervoso. Merthin passou do vestíbulo para a sala de espera. Havia em geral um irmão de serviço ali, estudando as escrituras nos intervalos do atendimento aos visitantes. Hoje, no entanto, aquela sala estava vazia. Com uma sombria apreensão, Merthin passou por outra porta e descobriu-se no claustro. Não havia ninguém no pátio.

- Olá! - gritou ele. - Tem alguém aqui?

Sua voz ressoou pelas arcadas de pedra. Ele revistou o mosteiro. Todos os frades haviam desaparecido. Na cozinha, encontrou três homens sentados à mesa, comendo presunto e bebendo vinho. Usavam as roupas caras dos mercadores, mas tinham os cabelos emaranhados, as barbas não aparadas, as mãos sujas: eram pobres que usavam as roupas de mortos. Quando ele entrou na cozinha, os homens exibiram expressões de culpa, mas também de desafio.

- Onde estão os santos irmãos? - perguntou Merthin.

- Todos morreram - respondeu um dos homens.

- Todos?

- Todos, sem exceção. Eles cuidavam dos doentes, e por isso pegaram a doença. O homem estava bêbado, Merthin percebeu. Mas parecia dizer a verdade.

Aqueles três pareciam muito à vontade, sentados no mosteiro, comendo a comida dos frades, bebendo seu vinho. Era evidente que sabiam que não restara ninguém para protestar.

Merthin retornou à obra da nova igreja. As paredes do coro e dos transeptos já haviam sido levantadas, os óculos no clerestório eram visíveis. Ele sentou no meio da interseção, entre pilhas de pedras, olhando para sua obra. Por quanto tempo o projeto seria retardado? Se os frades estavam mortos, quem providenciaria o dinheiro? Até onde ele sabia, aqueles frades não faziam parte de uma ordem maior. O bispo podia reivindicar a herança, talvez até o próprio papa. Havia um emaranhado legal ali que poderia levar anos para ser resolvido.

Naquela manhã, ele decidira se empenhar no trabalho, como uma maneira de curar a ferida da morte de Silvia. Agora, era evidente que não teria trabalho, pelo menos por algum tempo. Desde que começara a reparar o telhado da igreja de St. Mark, em Kingsbridge, dez anos antes, tivera sempre pelo menos um projeto de construção em andamento. Sem isso, ficaria perdido. E o pensamento deixou-o em pânico.

Acordara para descobrir toda a sua vida em ruínas. O fato de que se tornara muito rico de repente só servia para aumentar ainda mais a sensação de pesadedo. Lolla era a única coisa de sua vida que lhe restava.

Nem sequer sabia para onde ir naquele momento. Voltaria para casa, mais cedo ou mais tarde. Mas não podia passar o dia inteiro brincando com a filha de três anos e conversando com Maria. Por isso, permaneceu onde estava, sentado num disco de pedra esculpido que seria usado numa coluna, olhando para o lugar que seria a nave.

Enquanto o sol descia pela curva da tarde, Merthin começou a recordar sua doença. Tivera certeza de que morreria. Tão poucos sobreviviam que ele não tinha qualquer esperança de se descobrir entre os afortunados. Em seus momentos mais lúcidos, revisara sua vida, como se estivesse se aproximando do fim. Chegara a alguma conclusão da maior importância, ele sabia, mas desde que se recuperara não conseguia se lembrar qual era. Agora, na tranqüilidade da igreja inacabada, ele recordou que cometera um único grande erro em sua vida. Qual teria sido? Brigara com Elfric, fizera sexo com Griselda, rejeitara Elizabeth Clerk... Todas essas decisões haviam causado problemas, mas nenhuma podia ser considerada como o erro de uma vida inteira.

Estendido na cama, suando, tossindo, atormentado pela sede, ele quase desejara morrer; mas não de todo. Alguma coisa o mantivera vivo... e agora lhe ocorreu o que fora.

Queria voltar a ver Caris.

Era essa a sua razão para viver. Em seu delírio, vira o rosto de Caris. Chorara de desespero ao pensar que poderia morrer ali, a milhares de quilômetros de Caris. O grande erro de sua vida fora deixá-la.

Ao recuperar finalmente a memória esquiva, ao compreender a verdade ofuscante da revelação, ele foi dominado por uma estranha espécie de felicidade.

Não fazia sentido, refletiu Merthin. Ela ingressara no convento. Recusara-se a vê-lo, a dar qualquer explicação. Mas a alma dele não era racional, e lhe dizia que deveria ficar no mesmo lugar em que Caris se encontrava.

Merthin se perguntou o que Caris estaria fazendo naquele instante, enquanto ele sentava numa igreja inacabada, numa cidade quase destruída pela peste. A última notícia que recebera de Kingsbridge era a de que ela fora ordenada pelo bispo. A decisão era irrevogável... ou pelo menos era o que as pessoas diziam. Mas Caris nunca aceitava o que os outros lhe diziam que eram as regras. Por outro lado, depois que tomava uma decisão, era quase impossível fazê-la mudar de idéia. Não podia haver a menor dúvida de que ela se empenhava em sua nova vida com uma dedicação total.

Não fazia diferença. Ele queria vê-la de novo. Não fazer isso seria o segundo maior erro de sua vida.

E agora ele estava livre. Todos os seus vínculos com Florença haviam sido interrompidos. Sua esposa morrera, assim como todos os parentes pelo casamento, exceto por três crianças. A única família que ele tinha ali era sua filha, Lolla, e poderia levá-la. Ela era tão pequena que nem perceberia que viajara.

Seria uma mudança radical, ele disse a si mesmo. Primeiro, teria de aprovar o testamento de Alessandro e tomar as providências necessárias para as crianças... Agostino Caroli o ajudaria nisso. Depois, teria de converter sua fortuna em ouro, e cuidar para que fosse transferido para a Inglaterra. A família Caroli também poderia cuidar disso, se sua rede internacional ainda estivesse intacta. E o mais assustador, teria de realizar a viagem de quase dois mil quilômetros desde Florença, atravessar a Europa, até chegar a Kingsbridge. E tudo isso sem ter a menor idéia de como Caris o receberia.

Era uma decisão que exigia, é claro, muito pensamento, ponderações cuidadosas.

Mas ele decidiu em poucos momentos.

Voltaria para sua terra.

Merthin deixou a Itália em companhia de uma dúzia de mercadores de Florença e Lucca. Pegaram um navio de Gênova para o antigo porto francês de Marselha. De lá, viajaram por terra para Avignon, a sede do papado durante os últimos quarenta anos ou mais, a corte mais suntuosa da Europa... e a cidade mais malcheirosa que Merthin já conhecera. Ali, receberam a companhia de um grupo grande de clérigos e peregrinos de volta ao norte.

Todos viajavam em grupo; quanto maior, melhor. Os mercadores levavam dinheiro e produtos caros, e contratavam homens de armas para defendê-los dos bandidos. Ficavam felizes em ter companhia: hábitos sacerdotais e emblemas de peregrinos podiam dissuadir os assaltantes. Até mesmo os viajantes comuns, como Merthin, podiam ajudar, pelo simples aumento dos números.

Merthin confiara a maior parte de sua fortuna à família Caroli, em Florença. Seus parentes na Inglaterra lhe dariam o dinheiro. Os Carolis sempre realizavam esse tipo de transação internacional. Merthin usara seus serviços nove anos antes, ao transferir uma fortuna menor de Kingsbridge para Florença. Mesmo assim, ele sabia que o sistema não era completamente infalível: as famílias podiam ir à falência, ainda mais quando se envolviam em empréstimos para homens que não mereciam qualquer confiança, como reis e príncipes. Era por isso que ele levava uma grande quantia em florins de ouro costurados na camisa de baixo.

Lolla gostou da viagem. Como única criança na caravana, era mimada por todos. Durante as longas cavalgadas, ela sentava na sela na frente de Merthin, que a envolvia com seus braços, enquanto as mãos seguravam as rédeas. Ele entoava cantigas infantis, contava histórias, e falava sobre as coisas que viam, como árvores, moinhos, pontes, igrejas. Era provável que ela não entendesse a metade do que o pai dizia, mas o som de sua voz deixava-a feliz.

Nunca antes Merthin passara tanto tempo com a filha. Ficavam juntos durante o dia inteiro, todos os dias, semana após semana. Ele torcia para que essa intimidade compensasse em parte a perda da mãe. O inverso também acontecia, com toda certeza: sem a filha, ele sentiria uma terrível solidão. Não falava mais com Lolla sobre a mãe, mas de vez em quando ela o enlaçava pelo pescoço e apertava com força, em desespero, como se tivesse medo de que ele também partisse.

Ele só sentiu pesar quando parou na frente da grande catedral de Chartres, a cem quilômetros de Paris. Havia duas torres no lado oeste. A torre norte estava inacabada, mas a torre sul erguia-se por cento e sete metros de altura. Lembroulhe que outrora sonhara em projetar prédios assim. Era improvável que realizasse essa ambição em Kingsbridge.

Merthin passou duas semanas em Paris. A peste não chegara até ali, e foi um imenso alívio observar a vida normal de uma vasta cidade, pessoas comprando e vendendo, andando de um lado para outro, em vez de ruas vazias e cadáveres na frente das casas. Ele se sentiu animado, e só então percebeu como ficara abalado com o horror que deixara para trás, em Florença. Estudou as catedrais e os palácios de Paris, fazendo desenhos dos detalhes que o interessavam.

Tinha um pequeno livro de anotações, feito de papel, um novo material para se escrever, bastante popular na Itália.

Ao deixar Paris, ele acompanhou uma família nobre que voltava para Cherbourg. Ao ouvirem Lolla falar, as pessoas presumiam que Merthin era italiano. Ele não contestava, pois os ingleses eram muito odiados no norte da França. Com a família e seu séquito, Merthin atravessou a Normandia sem pressa, com Lolla na sela à sua frente e seu cavalo de carga puxado pela rédea. Estudou as igrejas e abadias que haviam sobrevivido à devastação da invasão do rei Edward, quase dois anos antes.

Poderia viajar mais depressa, mas disse a si mesmo que estava aproveitando ao máximo uma oportunidade que poderia não se repetir, a chance de conhecer uma ampla variedade de arquitetura. Mas nos momentos em que era franco consigo mesmo, tinha de admitir que sentia medo do que poderia descobrir ao chegar a Kingsbridge.

Estava voltando para Caris, mas não seria a mesma Caris que deixara há nove anos. Ela podia ter mudado, em termos físicos e mentais. Algumas freiras se tornavam muito gordas, a comida sendo seu único prazer na vida. Era mais provável, no entanto, que Caris tivesse assumido uma magreza etérea, passando fome no êxtase da abnegação. A esta altura, ela podia estar obcecada pela religião, rezando durante o dia inteiro, empenhada em se infligir flagelações por pecados imaginários. Ou podia ter morrido.

Esses eram seus pesadelos mais delirantes. No fundo do coração, porém, sabia que ela não se tornara gorda demais nem uma fanática religiosa. E se tivesse morrido, ele seria informado, da mesma forma como tomara conhecimento da morte de seu pai, Edmund. Encontraria a mesma Caris, pequena e impecável, a mente ágil, organizada, determinada. E como Caris se sentiria em relação a ele depois de nove anos? Pensava nele com indiferença, como uma parte de seu passado remota demais para se importar, da maneira como ele pensava, por exemplo, em Griselda? Ou ainda ansiava por ele, em algum lugar no fundo de sua alma? Merthin não tinha a menor idéia, e essa era a verdadeira causa de sua ansiedade.

Ele e Lolla navegaram para Portsmouth e viajaram com um grupo de mercadores. Deixaram o grupo em Mudeford Crossing, os mercadores seguindo para Shiring, enquanto Merthin e Lolla vadeavam o rio raso a cavalo e pegavam a estrada para Kingsbridge. Era uma pena, pensou Merthin, que não houvesse uma placa visível para indicar o caminho para Kingsbridge. Ele especulou quantos mercadores continuavam a viagem para Shiring apenas porque não sabiam que Kingsbridge ficava mais perto.

Era um dia quente de verão. O sol brilhava quando se aproximaram de seu destino. A primeira coisa que ele avistou em Kingsbridge foi o topo da torre da catedral, visível acima das árvores. Pelo menos não desabara, pensou Merthin: os reparos de Elfric resistiam há onze anos. Era uma pena que a torre não pudesse ser vista de Mudeford Crossing... faria uma enorme diferença no número de pessoas que visitariam a cidade.

Ao chegarem mais perto, ele começou a sentir uma estranha mistura de excitamento e medo que o deixou nauseado.

Por uns poucos momentos, teve receio de ser obrigado a desmontar para vomitar. Tentou se manter calmo. O que poderii acontecer? Mesmo que Caris se mostrasse indiferente, ele não morreria.

Viu diversos prédios novos no subúrbio de Newtown. A esplêndida casa que construíra para Dick Brewer não ficava mais na beira de Kingsbridge, pois a cidade a ultrapassara.

Ele esqueceu por um momento a apreensão ao ver sua ponte. Erguia-se numa curva graciosa da margem do rio e da pousar com toda a elegância na ilha no meio da correnteza. No outro lado da ilha, a ponte tornava a subir sobre o segundo canal. As pedras faiscavam ao sol. Pessoas e carroças atravessavam a ponte nas duas direções. A cena fez seu coração inflar de orgulho. Era tudo o que ele esperava que seria: linda, útil e forte. Eu fiz essa ponte, pensou ele, e é uma coisa boa.

Mas ele sofreu um choque quando chegou mais perto. O trabalho de alvenaria no arco mais próximo estava avariado em torno da pilastra central. Dava para ver as rachaduras, tudo reparado com cintas de ferro de uma maneira inepta, a marca típica de Elfric Ele ficou consternado. Manchas marrons de ferrugem escorriam dos pregos que fixavam as horrendas cintas na alvenaria. A cena levouo de volta ao passado, onze anos atrás, aos reparos de Elfric na velha ponte de madeira. Todos podem cometer erros, pensou Merthin, mas as pessoas que não aprendem com seus erros tornam a cometê-los.

- Idiotas desgraçados! - exclamou ele, em voz alta.

- Idiotas desgraçados - repetiu Lolla, que começava a falar inglês.

Ele entrou na ponte. Ficou feliz ao verificar que o leito da estrada fora feito direito. Também se sentiu satisfeito com o parapeito, uma barreira vigorosa, com as lajes de cabecinha que lembravam as molduras na catedral.

A ilha do Leproso continuava infestada de coelhos. Merthin ainda mantinha o arrendamento da ilha. Em sua ausência, Mark Webber recebia os aluguéis dos ocupantes, e todos os anos pagava o arrendamento para o priorado. Tirava a comissão por seus serviços e mandava o saldo para Merthin em Veneza, através da família Caroli. Depois de todas as deduções, era uma quantia mínima, mas aumentava a cada ano.

A casa de Merthin na ilha tinha uma aparência de ocupada, as janelas abertas, o pátio varrido. Ele combinara que Jimmie moraria ali. O garoto devia ser um homem agora, pensou.

Na extremidade mais próxima do segundo vão da ponte havia um velho que Merthin não reconheceu, sentado ao sol, recebendo o pedágio. Merthin pagouj lhe um penny. O velho fitou-o atentamente, como se tentasse recordar onde já o vira antes, mas não disse nada.

A cidade era ao mesmo tempo familiar e estranha. Porque era quase a mesma, as mudanças impressionavam Merthin e pareciam milagrosas, como se tivessem ocorrido da noite para o dia: uma fileira de choupanas fora derrubada e substituída por boas casas; uma movimentada estalagem onde antes havia uma casa grande e sombria ocupada por uma viúva rica; um poço que secara e fora tapado; uma casa cinzenta pintada de branco.

Ele foi para a Bell Inn, na rua principal, ao lado dos portões do priorado. Permanecia inalterada: uma taverna em localização tão boa provavelmente duraria centenas de anos.

Deixou os cavalos e a bagagem com um cavalariço e entrou, segurando a mão de Lolla.

A Bell era como as tavernas em toda parte: uma sala grande na frente, com toscas mesas e bancos, e uma área nos fundos, onde eram guardados os barris de cerveja e vinho e se preparava a comida. Porque era popular e lucrativa, a palha no chão era mudada com freqüência, as paredes pintadas de branco. No inverno, um fogo imenso ardia na lareira. Agora, no calor do verão, todas as janelas estavam abertas, e uma suave brisa soprava pela sala da frente.

Depois de um momento, Bessie Bell veio da sala dos fundos. Nove anos antes, era uma jovem cheia de curvas; agora, era uma mulher voluptuosa. Fitouo sem reconhecê-lo, mas Merthin percebeu que ela avaliou suas roupas e considerou-o um freguês próspero.

- Bom-dia, viajante. O que posso fazer para que você e sua criança fiquem confortáveis?

Merthin sorriu.

- Eu gostaria de ir para seu quarto particular, por favor, Bessie. Ela o reconheceu ao ouvi-lo.

- Por minha alma! - exclamou Bessie. - É Merthin Bridger!

Ele estendeu a mão para um aperto, mas Bessie se adiantou para envolvê-lo num abraço. Sempre sentira uma atração por Merthin. Ela soltou-o e estudou seu rosto.

- Deixou crescer a barba. Eu o teria reconhecido antes se não fosse por isso. É sua filha?

- O nome dela é Lolla.

- Mas que linda criança! A mãe deve ser muito bonita.

- Minha esposa morreu.

- O que é muito triste. Mas Lolla é bastante pequena para esquecer. Meu marido também morreu.

- Não sabia que tinha casado.

- Conheci-o depois que você foi embora. Richard Brown, de Gloucester. Perdi-o há um ano.

- Lamento muito.

- Meu pai foi para Canterbury numa peregrinação, e por isso estou cuidando sozinha da taverna.

- Sempre gostei de seu pai.

- E ele também gostava de você. Ele sempre se afeiçoou a homens com um pouco de espírito. Nunca teve muita simpatia pelo meu Richard.

- Ahn... - Merthin sentiu que a conversa se tornara muito íntima, depressa demais. - Tem notícias de meus pais?

- Eles não estão mais em Kingsbridge. Foram para a nova casa de seu irmão, em Tench.

Merthin soubera, através de Buonaventura, que Ralph se tornara lorde de Tench.

- Meu pai deve estar muito satisfeito.

- Orgulhoso como um pavão. - Ela sorriu, para depois assumir uma expressão preocupada. - Você deve estar faminto. Mandarei os garotos levarem sua bagagem para o quarto, e depois servirei potagem e uma caneca de cerveja.

Bessie virou-se para voltar à sala dos fundos.

- É muita gentileza sua, mas... Bessie parou na porta.

- Se quiser dar um pouco de sopa a Lolla, ficarei agradecido. Há uma coisa que tenho de fazer agora.

Bessie acenou com a cabeça.

- Claro. - Ela abaixou-se para falar com Lolla. - Quer vir com tia Bessie? Espero que possa comer um pedaço de pão. Gosta de pão fresco?

Merthin traduziu a pergunta para o italiano. Lolla balançou a cabeça, feliz. Bessie olhou para Merthin.

- Vai procurar a irmã Caris, não é?

Ele sentiu-se culpado, o que era um absurdo.

- Isso mesmo. Quer dizer que ela ainda está aqui?

- Claro. É agora a mestra dos hóspedes no convento. Não ficarei surpresa se ela se tornar a prioresa um dia.

Bessie pegou a mão de Lolla e levou-a para a sala dos fundos. Olhou para trás antes de desaparecer e disse:

- Boa sorte.

Merthin saiu. Bessie podia ser um pouco sufocante, mas sua afeição era sincera. O coração de Merthin se animou por ser recebido com tanto entusiasmo. Ele entrou no terreno do priorado. Parou para olhar a fachada oeste da catedral. Tinha quase duzentos anos agora, e ainda continuava impressionante como sempre.

Ele notou um novo prédio de pedra ao norte da catedral, além do cemitério. Era um palácio de tamanho médio, com uma entrada imponente e um andar superior. Fora construído perto do lugar em que ficava a antiga casa de madeira do prior. Portanto, podia-se presumir que substituíra o prédio modesto como residência de Godwyn. Ele se perguntou de onde Godwyn teria tirado o dinheiro.

Merthin chegou mais perto. O palácio era imponente, mas ele não gostou do projeto. Nenhum dos níveis se relacionava de qualquer forma com a catedral que assomava por cima. Os detalhes eram descuidados. O alto da porta ostentosa bloqueava uma parte da janela superior. Pior ainda, o palácio fora construído num eixo diferente da catedral, e por isso se destacava num ângulo desfavorável.

Era uma obra de Elfric, com toda certeza.

Um gato gordo sentava na porta, ao sol. Era preto, com uma ponta branca no rabo. Lançou um olhar malévolo para Merthin.

Ele virou-se e foi andando devagar para o hospital. O pátio gramado da catedral estava deserto e silencioso: não havia mercado hoje. O excitamento e a apreensão tornaram a deixar seu estômago embrulhado. Podia se encontrar com Caris a qualquer momento. Ele entrou no hospital. A sala comprida parecia mais clara e com um cheiro melhor do que recordava: tudo dava a impressão de ter sido lavado e esfregado. Havia umas poucas pessoas deitadas em colchões no chão, quase todas idosas. Diante do altar, uma jovem noviça dizia orações em voz alta.

Merthin esperou que ela acabasse. Sua ansiedade era tão grande que tinha certeza de que se sentia mais doente do que os pacientes nos colchões. Percorrer quase dois mil quilômetros para aquele momento. Teria sido uma viagem desper diçada?

A noviça finalmente disse ”Amém” pela última vez e virou-se. Merthin não a conhecia. Ela se aproximou e murmurou, polida:

- Que Deus o abençoe, estranho. Merthin respirou fundo.

- Eu gostaria de falar com irmã Caris.

As reuniões do capítulo das freiras ocorriam agora no refeitório. No passado, ela partilhavam com os monges a elegante casa octogonal do capítulo, no canto nordeste da catedral. Lamentavelmente, a desconfiança entre monges e freiras er agora tão grande que as freiras não queriam correr o risco de que os monges ficassem atentos no outro lado da porta para tomarem conhecimento de sua deliberações. Por isso, elas se reuniam na sala grande e despojada em que faziam suas refeições.

As autoridades do convento sentavam por trás de uma mesa, com madre Cecilia no meio. Não havia vice-prioresa: Natalie morrera poucas semanas antes aos cinqüenta e sete anos de idade, e Cecilia ainda não a substituíra. À direita de Cecilia sentava a tesoureira, Beth, e sua matricularia, Elizabeth. A esquerda de Cecilia, sentavam Margaret, a despenseira, responsável por todos os suprimentos, e sua subordinada Caris, a mestra dos hóspedes. Trinta freiras sentavam nas fileiras de bancos à frente.

Depois da oração e das leituras, madre Cecilia apresentou os comunicados.

- Recebemos uma carta do milorde bispo em resposta à queixa de que o prior Godwyn roubou nosso dinheiro.

Houve um murmúrio de expectativa das freiras. A resposta demorara a chegar. O rei Edward levara quase um ano para substituir o bispo Richard. O conde William pressionara por Jerome, o competente administrador de seu pai. No final, porém, Edward escolhera Henri de Mons, um parente de sua esposa di Hainault, no Norte da França. O bispo Henri viera à Inglaterra para a cerimônia depois viajara para Roma, a fim de ser confirmado pelo papa, voltara e se instalara em seu palácio em Shiring, antes de responder à carta formal de queixa de Cecilia. Ela acrescentou:

- O bispo recusa-se a tomar qualquer providência em relação ao roubo, ale gando que os fatos ocorreram no tempo do bispo Richard, e que o passado é pas sado.

As freiras soltaram gritos de espanto. Haviam aceitado a demora com a maior paciência, confiantes de que no final teriam justiça. Aquela rejeição era chocante

Caris vira a carta antes. Não estava tão espantada quanto as outras freiras. Não era tão extraordinário assim que o novo bispo não quisesse iniciar o exercício de suas funções com uma briga com o prior de Kingsbridge.

A carta indicava que Henri seria um bispo pragmático, não um homem de princípios. Não era diferente, sob esse aspecto, da maioria dos homens que eram bem-sucedidos na política da Igreja.

Mas ela não se sentia menos desapontada por não ter se surpreendido. A decisão significava que tinha de abandonar, pelo menos no futuro previsível, seu sonho de construir um novo hospital, onde as pessoas doentes poderiam ficar isoladas dos hóspedes saudáveis. Disse a si mesma que não devia lamentar: o priorado existia há centenas de anos sem esse luxo; portanto, podia esperar uma década ou mais. Por outro lado, irritava-a ver a rápida disseminação de problemas como a doença do vômito, que Maldwyn Cook trouxera para a Feira do Velocino, no ano antes do último. Ninguém compreendia direito como essas coisas eram transmitidas - ao se olhar para uma pessoa doente, pelo contato físico, ou apenas pela presença no mesmo lugar -, mas não podia haver a menor dúvida de que muitas doenças pulavam de uma vítima para a seguinte e que a proximidade era um fator. Mas ela teria de esquecer tudo isso por enquanto.

Um rumor de murmúrios ressentidos elevou-se das freiras nos bancos. A voz de Mair soou mais alta do que as outras.

- Os monges vão cantar de galo, exultantes.

Ela tinha razão, pensou Caris. Godwyn e Philemon haviam escapado impunes de um roubo escancarado. Sempre alegavam que não era roubo os monges usarem o dinheiro das freiras, pois era tudo pela glória de Deus, no final das contas, e agora considerariam que o bispo os justificara. Era uma derrota amarga, especialmente para Caris e Mair. Mas madre Cecília não tinha a menor disposição para perder tempo com lamentações.

- Não é culpa de nenhuma de nós, exceto talvez minha. Fomos confiantes demais.

Você confiou em Godwyn, mas eu não, pensou Caris, optando por permanecer calada. Ela esperou para ouvir o que Cecília diria em seguida. Sabia que a prioresa tencionava promover mudanças na direção do convento, mas ninguém sabia o que ela decidira.

- Contudo, devemos ser mais cuidadosas no futuro. Construiremos um tesouro nosso, a que os monges não terão acesso. Na verdade, espero que eles nem sequer saibam onde fica. Irmã Beth vai deixar o cargo de tesoureira, com nossos agradecimentos pelos longos e fiéis serviços. Irmã Elizabeth assumirá seu lugar. Tenho fé absoluta em Elizabeth.

Caris tentou controlar a expressão para que sua repulsa não ficasse evidente. Elizabeth testemunhara que Caris era uma bruxa. Acontecera há nove anos, e Cecília perdoara Elizabeth; mas Caris nunca a perdoaria. Mas essa não era a única razão para a antipatia de Caris. Elizabeth era amarga e com a mente distorcida, os ressentimentos pessoais interferindo em seu julgamento. Pessoas assim nunca podiam merecer confiança, na opinião de Caris: eram sempre propensas a tomar decisões baseadas em seus preconceitos. Cecília continuou:

- Irmã Margaret pediu permissão para deixar suas funções, e irmã Caris assumira seu lugar, como a nova despenseira.

Caris ficou desapontada. Esperava se tornar vice-prioresa, a segunda depois de Cecília. Tentou sorrir, como se estivesse satisfeita, mas teve alguma dificuldade.

Era evidente que Cecilia não pretendia designar uma vice-prioresa. Teria duas subordinadas rivais, Caris e Elizabeth, e deixaria que as duas brigassem. Caris virou-se para Elizabeth, e percebeu um ódio mal reprimido em seus olhos. Cecilia acrescentou:

- Sob a supervisão de Caris, irmã Mair será a nova mestra dos hóspedes. Mair ficou radiante de prazer. Sentia-se contente por ter sido promovida e ainda mais feliz porque trabalharia sob a supervisão de Caris, que também gostou da decisão. Mair partilhava sua obsessão por higiene e a desconfiança pelos remédios que os monges receitavam, em particular a sangria.

Caris não conseguira o que queria, mas tentou parecer feliz, enquanto Cecilia anunciava diversas designações menores. Quando a reunião terminou, ela foi agradecer a Cecilia.

- Não imagine que foi uma decisão fácil - declarou a prioresa. - Elizabeth tem inteligência e determinação, e se mostra firme quando você é instável. Mas você é imaginativa, e consegue tirar o melhor das pessoas. Preciso das duas.

Caris não podia contestar a análise sua que Cecilia fizera. Ela realmente me conhece, pensou Caris, pesarosa; melhor do que qualquer outra pessoa no mundo, agora que meu pai morreu e Merthin foi embora. Ela sentiu um ímpeto de afeição. Cecilia era como uma ave-mãe, sempre em movimento, sempre ocupada, tomando conta de suas crias.

- Farei tudo o que puder para corresponder às suas expectativas - prometeu Caris.

Ela deixou o refeitório. Precisava dar uma olhada em Old Julie. Não importava o que dissesse às freiras mais jovens, o fato é que ninguém cuidava de Julie como ela. Era como se acreditassem que uma velha desamparada não precisasse ser mantida em conforto. Somente Caris cuidava para que Julie tivesse um cobertor quando fazia frio, recebesse alguma coisa para beber quando tinha sede, e fosse levada às latrinas quando tinha necessidade. Caris decidiu levar uma bebida quente, uma infusão de ervas que parecia animar a velha freira. Ela foi para a farmacia e pôs no fogo uma pequena panela com água para ferver. Mair entrou e fechou a porta.

- Não é maravilhoso? Continuaremos a trabalhar juntas!

Ela enlaçou Caris e beijou-a nos lábios. Caris retribuiu o abraço, mas depois se desvencilhou.

- Não me beije assim.

- É porque eu amo você.

- Também amo você, mas não da mesma maneira.

Era verdade. Caris gostava muito de Mair. Haviam se tornado muito íntimas na França, quando arriscaram a vida juntas. Caris até se descobrira atraída pela beleza de Mair. Uma noite, numa taverna em Calais, quando as duas partilhavam um quarto com uma porta que podia ser trancada, Caris finalmente sucumbira aos avanços de Mair. Mair acariciara e beijara Caris nos lugares mais íntimos, e Caris fizera a mesma coisa com Mair. Depois, Mair dissera que fora o dia mais feliz de sua vida. Infelizmente, Caris não sentira a mesma coisa. A experiência fora agradável para ela, mas não emocionante, e ela não queria repeti-la.

- Está bem - disse Mair. - Desde que você me ame, mesmo que apenas um pouco, já me sinto feliz. Você nunca pára, não é?

Caris despejou a água fervendo nas ervas.

- Quando você for tão velha quanto Julie, prometo que servirei uma infusão para mantê-la saudável.

Lágrimas afloraram aos olhos de Mair.

- É a coisa mais linda que alguém já me disse.

Caris não quisera que fosse uma jura de amor eterno.

- Não seja sentimental - murmurou ela, gentilmente. Ela coou a infusão num copo de madeira. - Vamos ver como Julie está.

Elas atravessaram o claustro e entraram no hospital. Um homem de barba ruiva estava parado perto do altar.

- Deus o abençoe, estranho - disse Caris.

Ele parecia familiar. Não respondeu à saudação, mas fitou-a com olhos castanho-dourados intensos. E, de repente, Caris reconheceu-o. Largou o copo.

- Oh, Deus! - gritou ela. - Você!

Os poucos momentos antes que ela o visse ali foram excepcionais, e Merthin compreendeu que os recordaria com carinho pelo resto de sua vida, independentemente de tudo o mais que pudesse acontecer. Contemplou ansioso o rosto que não via há nove anos. Recordou, com um choque que era como mergulhar no rio gelado num dia quente, como aquele rosto lhe fora querido. Caris quase não mudara: todos os seus receios haviam sido infundados. Nem mesmo parecia mais velha. Estaria com trinta anos agora, calculou ele, mas parecia tão esguia e empertigada quanto era aos vinte anos. Avançou em passos rápidos pelo hospital, com um ar de autoridade firme, carregando um copo de madeira com algum medicamento; até que o fitou, parou, e largou o copo. Ele sorriu, sentindo-se feliz.

- Você está aqui! - exclamou Caris. - Pensei que estivesse em Florença!

- Estou muito satisfeito por ter voltado.

Ela baixou os olhos para o líquido derramado no chão. A freira a seu lado disse:

- Não se preocupe com isso. Limparei tudo. Vá conversar com ele.

A segunda freira era bonita e tinha lágrimas nos olhos, notou Merthin; mas sentia-se excitado demais para dispensar muita atenção. Caris perguntou:

- Quando voltou?

- Cheguei há uma hora. Você parece bem.

- E você parece... um homem. Merthin riu.

- O que o levou a tomar a decisão de voltar?

- É uma longa história... mas eu adoraria lhe contar tudo.

- Vamos sair.

Caris tocou de leve em seu braço e os dois deixaram o hospital. As freiras não deveriam tocar nas pessoas, nem ter conversas particulares com homens, mas para Caris essas regras sempre haviam sido opcionais.

Merthin sentiu-se contente por ela não ter adquirido um respeito pela autoridade nos últimos nove anos. Ele apontou para o banco junto da horta.

- Sentei aqui com Madge e Mark Webber no dia em que você ingressou no convento. Madge me disse que você se recusava a falar comigo.

Ela acenou com a cabeça em confirmação.

- Foi o dia mais infeliz de minha vida... mas eu sabia que um encontro com você o tornaria ainda pior.

- Senti a mesma coisa, só que eu queria vê-la de qualquer maneira, por mais que isso me deixasse desesperado depois.

Ela fitou-o, os olhos verdes com manchas douradas tão francos quanto sempre.

- Isso parece um pouco com uma repreensão.

- Talvez seja mesmo. Fiquei furioso com você. Não importava o que decidira fazer, achei que me devia uma explicação.

Merthin não desejava levar a conversa por esse rumo, mas descobriu que não podia evitar. Ela não se desculpou.

- É muito simples. Eu mal suportava deixá-lo. Se fosse obrigada a conversar com você, acho que teria me matado.

Ele ficou atordoado. Durante nove anos pensara que Caris fora egoísta naquele dia da separação. Agora, parecia que o egoísta fora ele, ao fazer a reivindicação. Caris sempre tivera essa capacidade de fazê-lo revisar suas atitudes, recordou ele. Era um processo aflitivo, mas muitas vezes ela tinha razão.

Não sentaram no banco. Em vez disso, foram andando pelo pátio gramado da catedral. O céu ficara nublado, e o sol desaparecera.

- Há uma peste terrível na Itália - disse Merthin. - É chamada de la noria grande.

-Já ouvi falar. Não alcançou também o Sul da França? Parece uma coisa horrorosa.

- Peguei a doença, mas me recuperei, o que quase nunca acontece. Mas Silvia, minha mulher, morreu.

Caris ficou chocada.

- Sinto muito. Você deve estar desesperado.

- Toda a família também morreu. O mesmo aconteceu com todos os meus clientes. Achei que era um bom momento de voltar para casa. E você?

- Acabo de ser promovida a despenseira - informou Caris, com um orgulho evidente.

Para Merthin, isso parecia trivial, ainda mais depois da mortandade que testemunhara. Mas essas coisas eram importantes na vida no convento. Ele olhou para a catedral.

- Florença tem uma catedral magnífica, com muitos padrões de pedras coloridas. Mas prefiro esta, com as formas esculpidas, tudo na mesma tonalidade.

Enquanto ele estudava a torre, pedra cinzenta contra céu cinzento, começou a chover.

Entraram na catedral em busca de abrigo. Havia uma dúzia ou mais de pessoas espalhadas pela nave: visitantes admirando a arquitetura, devotos locais rezando, dois noviços varrendo o chão.

- Lembro de acariciá-la atrás daquela coluna - murmurou Merthin, sorrindo.

- Também me lembro - disse Caris, mas sem fitá-lo.

- Ainda sinto por você a mesma coisa que sentia naquele dia. E é esse o verdadeiro motivo da minha volta.

Caris virou-se e fitou-o, com raiva nos olhos.

- Mas você casou.

- E você se tornou uma freira.

- Mas como pôde casar com ela... Silvia... se me amava?

- Pensei que poderia me esquecer de você. Mas jamais consegui. E depois, quando pensei que da morrer, compreendi que nunca poderia esquecê-la.

A raiva de Caris desapareceu tão depressa quanto surgira. Lágrimas afloraram a seus olhos.

- Sei disso - murmurou ela, desviando os olhos.

- Você sente a mesma coisa.

- Nunca mudei.

- Mas tentou? Caris fitou-o nos olhos.

- Há uma freira...

- Aquela bonita que estava com você no hospital?

- Como adivinhou?

- Ela chorou quando me viu. Especulei por quê.

Caris parecia culpada. Merthin concluiu que ela se sentia como ele quando Silvia dizia ”Você está pensando em sua jovem inglesa”.

- Gosto muito de Mair. E ela me ama. Mas...

- Mas você não me esqueceu.

- Não, não esqueci. Merthin sentiu-se triunfante, mas fez um esforço para não deixar transparecer.

- Neste caso, você deve renunciar a seus votos, deixar o convento, e casar comigo.

- Deixar o convento?

- Precisará primeiro obter o perdão pela condenação por bruxaria, sei disso. Mas tenho certeza de que é possível... vamos subornar o bispo e o arcebispo, até mesmo o papa, se for necessário. Tenho condições...

Caris não tinha certeza se seria tão fácil quanto ele imaginava. Mas não era o seu problema principal.

- Não posso dizer que não me sinto tentada. Mas prometi a Cecilia que justificaria sua fé em mim... tenho de ajudar Mair a assumir as funções de mestra dos hóspedes... precisamos construir um novo tesouro... e sou a única que cuida direito de Old Julie...

 

Merthin estava aturdido.

- Tudo isso é tão importante?

- Claro que é! - respondeu ela, irritada.

- Pensei que o convento era apenas um lugar para velhas fazerem orações.

- E curar os doentes, alimentar os pobres, administrar milhares de acres de terras. É pelo menos tão importante quanto construir pontes e igrejas.

Merthin não previra isso. Sempre fora cético em relação à observância religiosa. Caris fora para o convento sob pressão, quando era a única maneira de salvar a própria vida. Mas agora parecia que ela passara a amar sua punição.

- Você é como uma prisioneira que reluta em deixar a masmorra mesmo quando a porta está escancarada - comentou ele.

- A porta não está escancarada. Eu teria de renunciar a meus votos. Madre Cecilia...

- Teremos de resolver todos esses problemas. E podemos começar agora mesmo.

Caris estava angustiada.

- Não tenho certeza...

Ela parecia dividida. O que o deixou espantado.

- É mesmo você? - indagou Merthin, incrédulo. - Odiava a hipocrisia e a fal sidade que via no priorado. Preguiçosos, gananciosos, desonestos, tirânicos... i

- Isso ainda é verdade quanto a Godwyn e Philemon.

- Então saia.

- Para fazer o quê?

- Casar comigo, é claro.

- Isso é tudo?

Mais uma vez, ele ficou aturdido.

- É tudo o que eu quero.

- Não é, não. Você também quer projetar palácios e castelos. Quer construir o prédio mais alto da Inglaterra...

- Se você precisa de alguém para cuidar...

- Como?

- Tenho uma filha pequena. Seu nome é Lolla. Ela tem três anos. Caris se controlou. Soltou um suspiro.

- Sou uma das autoridades num convento de trinta e cinco freiras, dez noviças e vinte e cinco empregados, com uma escola, um hospital e uma farmácia... e você me pede para largar tudo isso e cuidar de uma criança que não conheço.

Merthin desistiu de argumentar.

- Tudo o que sei é que a amo e quero ficar junto de você. Ela riu, sem qualquer humor.

- Se você dissesse isso e nada mais, poderia ter me convencido.

- Estou confuso, Caris. Está me recusando ou não? -Não sei...

Merthin permaneceu acordado durante grande parte da noite. Acostumara-se a dormir em tavernas e os sons de Lolla no sono serviam para embalá-lo; naquela noite, porém, não conseguia parar de pensar em Caris.

Sentia-se chocado com a reação dela à sua volta. Compreendia agora que nunca pensara de uma forma lógica sobre o que Caris sentiria quando o visse de novo. hntregara-se a pesadelos irrealistas sobre como ela poderia ter mudado, e no fundo de seu coração acalentara a esperança de uma alegre reconciliação. Claro que ela não o esquecera; mas podia ter imaginado que Caris não passaria nove anos lamentando por sua ausência, pois não era desse tipo.

Mesmo assim, nunca pensara que ela poderia se sentir tão empenhada em seu trabalho como freira. Caris sempre fora mais ou menos hostil à Igreja. Considerando como era perigoso criticar a religião de qualquer forma, ela bem que poderia ter escondido a verdadeira profundidade de seu ceticismo até mesmo dele. Por isso, era um terrível choque descobri-la relutante em deixar o convento. Merthin previra o medo dela da sentença de morte decretada pelo bispo Richard, ou a ansiedade sobre a permissão para renunciar a seus votos, mas não desconfiara que ela poderia ter encontrado uma vida tão satisfatória no convento a ponto de agora hesitar em sair para se tornar sua esposa.

Sentia-se irritado com Caris. Gostaria de ter dito: ”Viajei quase dois mil quilômetros para pedir que se case comigo... como pode dizer que não tem certeza?” Pensou em uma porção de comentários mordazes que poderia ter feito. Talvez tivesse sido melhor que não lhe ocorressem na ocasião. A conversa terminara com Caris lhe pedindo tempo para superar o choque de seu súbito retorno e pensar no que queria fazer. Ele consentira - não tinha alternativa -, mas isso deixara-o suspenso em agonia, como um homem crucificado.

Ao final, ele caiu num sono irrequieto.

Lolla acordou-o cedo, como sempre. Desceram para comer um mingau. Merthin reprimiu o impulso de seguir direto para o hospital e falar de novo com Caris. Ela pedira tempo, e não o ajudaria se começasse a assediá-la. Ocorreu-lhe que poderia haver mais choques à sua espera, e que era melhor tentar descobrir tudo o que acontecera em Kingsbridge. Por isso, depois da primeira refeição, ele saiu à procura de Mark Webber.

A família Webber vivia na rua principal, numa casa grande comprada logo depois que Caris a pusera para trabalhar na fabricação de tecido. Merthin ainda podia se lembrar do tempo em que o casal e os quatro filhos viviam num único cômodo, que não era muito maior do que o tear em que Mark trabalhava. A nova casa tinha um andar térreo de pedra, usado como depósito e oficina. Os aposentos eram no andar superior, de madeira. Ele encontrou Madge na oficina, verificando o tecido escarlate que acabara de chegar numa carroça de um de seus teares fora da cidade. Ela tinha quase quarenta anos agora, com fios brancos nos cabelos escuros. Era baixa e engordara bastante, com um busto proeminente e um vasto traseiro. Fazia Merthin pensar num pombo, mas agressivo, por causa do queixo saliente e comportamento assertivo.

Com ela estavam dois jovens, uma linda moça em torno dos dezessete anos e um rapaz robusto, dois ou três anos mais velho. Merthin se lembrava das duas crianças mais velhas - Dora, uma garota magricela, num vestido esfarrapado, e John, um menino tímido - e compreendeu que eram os mesmos, só que crescidos.

Agora, John levantava os rolos de tecido sem o menor esforço, enquanto Dora os contava, fazendo entalhes numa pequena vara. Aquilo fez com que Merthin se sentisse velho. Estou apenas com trinta e dois anos, pensou ele; mas parecia um velho quando olhava para John.

Madge soltou um grito de surpresa e prazer quando o viu. Abraçou-o e beijou as faces barbudas, e fez a maior festa para Lolla.

- Pensei em trazê-la para brincar com suas crianças - disse Merthin, pesaroso. - Mas é claro que as crianças estão agora velhas demais para isso.

- Dennis e Noah estão na escola do priorado - disse Madge. - Eles têm treze e onze anos. Mas Dora pode ficar com Lolla... ela adora crianças.

A jovem pegou Lolla no colo.

- A gata na casa ao lado teve filhotes. Quer vê-los?

Lolla respondeu com um fluxo de italiano, que Dora tomou como assentimento. As duas saíram. Madge deixou John cuidando da descarga da carroça e subiu com Merthin.

- Mark foi a Melcombe. Devemos exportar uma parte do nosso tecido para a Bretanha e Gasconha. Ele deve voltar ainda hoje, ou o mais tardar amanhã.

Merthin sentou na sala e aceitou um copo de cerveja.

- Kingsbridge parece estar prosperando - comentou ele.

- O comércio de lã crua declinou, por causa dos impostos para a guerra. Tudo tem de ser vendido através de um punhado de grandes mercadores, para que o rei possa cobrar sua parte. Ainda há uns poucos grandes vendedores aqui em Kingsbridge... Petranilla cuida dos negócios que Edmund deixou... mas já não é mais como antigamente. Por sorte, o comércio de tecido cresceu para substituir o de lã crua, pelo menos nesta cidade.

- Godwyn ainda é o prior?

- Ainda, infelizmente.

- E ainda cria dificuldades?

- Ele é muito conservador. Protesta contra qualquer mudança e veta todo progresso. Por exemplo, Mark propôs abrir o mercado também no sábado, além do domingo, como uma experiência.

- Que possível objeção Godwyn pode ter a isso?

- Ele alegou que permitiria que as pessoas viessem ao mercado sem irem à igreja, o que seria uma coisa ruim.

- Algumas pessoas poderiam ir à igreja no sábado também.

- O copo de Godwyn está sempre meio vazio, nunca meio cheio.

- Mas a guilda da paróquia não se opõe a ele?

- Não com freqüência. Elfric é o regedor agora. Ele e Alice ficaram com quase tudo que Edmund deixou.

- O regedor não precisa ser o homem mais rico da cidade.

-Mas geralmente é. Lembre-se que Elfric emprega muitos artesãos... carpinteiros, pedreiros, os que preparam argamassa, constróem andaimes... e compra de todo mundo que negocia com materiais de construção. A cidade tem muitas pessoas que se sentem mais ou menos na obrigação de apoiá-lo.

- E Elfric sempre foi ligado a Godwyn.

- Exatamente. Ele cuida de todo o trabalho de construção do priorado... o que significa todo projeto público.

- E ele é um construtor tão medíocre!

- Estranho, não é mesmo? - murmurou Madge, pensativa. - Era de se pensar que Godwyn quisesse o melhor homem para o trabalho. Mas não é o que acontece. Para ele, é tudo uma questão de quem será dócil, quem obedecerá a seus desejos sem questionar.

Merthin sentiu-se um pouco deprimido. Nada mudara: seus inimigos ainda se mantinham no poder. Talvez fosse difícil para ele retomar sua antiga vida.

- Essas não são boas notícias para mim. - Ele levantou-se. - É melhor eu dar uma olhada em minha ilha.

- Tenho certeza de que Mark vai procurá-lo assim que voltar de Melcombe. Merthin foi buscar Lolla na casa ao lado, mas ela se divertia tanto que ele decidiu deixá-la com Dora. Atravessou a cidade até a beira do rio. Deu outra olhada nas rachaduras em sua ponte, mas não precisou estudá-las por muito tempo: a causa era óbvia. Depois, deu uma volta pela ilha do Leproso. Pouco mudara: havia alguns cais e armazéns de pedra, no lado oeste, e apenas uma casa, a que emprestara para Jimmie, no lado leste, ao lado da estrada que levava de um vão a outro da ponte.

Ele tinha planos ambiciosos para desenvolver a ilha quando tomara posse. Nada fora feito, é claro, durante seu exílio. Agora, pensou Merthin, poderia fazer alguma coisa. Ele andou de um lado para outro, calculando medidas aproximadas, visualizando prédios e até mesmo ruas, até chegar a hora da refeição do meio-dia.

Foi buscar Lolla e voltou à Bell. Bessie serviu um ensopado de porco saboroso, engrossado com cevada. A taverna estava com pouco movimento, e Bessie sentou à mesa para comer com eles, trazendo um jarro do seu melhor vinho tinto. Depois de comerem, Bessie serviu-lhe outro copo de vinho. Merthin falou de seus planos.

- A estrada através da ilha, de uma ponte a outra, é um lugar ideal para construir lojas - comentou ele.

- E tavernas - acrescentou Bessie. - A Bell e a Holly Bush são as estalagens de maior movimento na cidade apenas porque estão mais perto da cidade. Qualquer lugar por onde as pessoas sempre passam é muito bom para uma taverna.

- Se eu construísse uma taverna na ilha do Leproso, você poderia administrá-la. Ela fitou-o nos olhos.

- Poderíamos administrar juntos.

Merthin sorriu. Sentia-se satisfeito com sua boa comida e vinho, e tinha certeza de que qualquer homem ficaria feliz em ir para sua cama e desfrutar aquele corpo macio e cheio de curvas; mas não podia acontecer com ele.

- Eu gostava muito de Silvia, minha esposa. Mas continuei a pensar em Caris durante todo o casamento. E Silvia sabia disso.

Bessie desviou os olhos.

- É muito triste.

- Tem toda razão. E nunca mais farei a mesma coisa com outra mulher. Não pretendo me casar de novo, a menos que seja com Caris. Não sou um bom homem, mas também não sou tão mau assim.

- Caris talvez case com você.

- Sei disso.

Bessie levantou-se e pegou as tigelas.

- Você é um bom homem... bom demais.

Merthin pôs Lolla na cama para tirar um cochilo. Sentou num banco na frente da taverna. Olhava para a ilha do Leproso e desenhava numa lousa, ao sol de setembro. Não conseguiu fazer muita coisa, pois várias pessoas pararam e lhe deram as boas-vindas de volta; perguntaram o que fizera durante os últimos nove anos.

Ao final da tarde, ele avistou a figura maciça de Mark Webber subir pela encosta, dirigindo uma carroça com um barril. Mark sempre fora um gigante, mas agora, Merthin notou, tornara-se um gigante gordo.

Merthin apertou sua mão enorme.

- Estive em Melcombe - informou Mark. - Vou até lá a intervalos de poucas semanas.

- O que tem no barril?

- Vinho de Bordeaux, direto do navio... que também trouxe notícias. Sabia que a princesa Joan estava a caminho da Espanha?

- Sabia.

Todas as pessoas bem informadas da Europa sabiam que a filha de quinze anos do rei Edward casaria com o príncipe Pedro, herdeiro do trono de Castela. O casamento forjaria uma aliança entre a Inglaterra e o maior dos reinos ibéricos. Assim, Edward poderia se concentrar em sua interminável guerra contra a França, sem se preocupar com qualquer interferência do sul.

- Mas Joan morreu da peste em Bordeaux.

Merthin ficou duplamente chocado: em parte porque a posição de Edward na França se tornara subitamente precária, mas também por saber que a peste já se espalhara tão longe.

- Eles estão com a peste em Bordeaux?

- Há corpos empilhados nas ruas, pelo que disseram os marujos franceses. Merthin sentiu-se nervoso. Pensara que deixara da moria grande para trás.

Mas não poderia chegar na Inglaterra, não é mesmo? Não tinha medo por si mesmo: ninguém jamais pegava a doença duas vezes, e por isso ele estava seguro. Lolla, por sua vez, era uma das pessoas que por alguma razão não eram afetadas pela peste. Mas ele tinha medo por todos os outros... especialmente por Caris. Mas Mark estava preocupado com outras coisas.

- Você voltou no momento certo. Alguns dos mercadores mais jovens estão cansados de aturar Elfric, o regedor. Na maioria das vezes ele é apenas um lacaio de Godwyn. Planejo desafiá-lo. E você pode ser influente. Há uma reunião da guilda da paróquia esta noite... compareça e será admitido imediatamente.

- Não faz diferença que eu nunca tenha concluído o período de aprendizado?

- Depois de tudo o que construiu, aqui e no exterior? Claro que não.

- Está bem.

Merthin precisava ser um membro da guilda se queria desenvolver a ilha. As pessoas sempre encontravam razões para protestar contra novas construções, e ele podia ter de apoiar a si mesmo.

Mas não se sentia tão confiante de sua aceitação quanto Mark.

Mark levou o barril para casa e Merthin entrou para dar o jantar a Lolla. Ao pôr-do-sol, Mark voltou à Bell, e Merthin seguiu com ele pela rua principal, enquanto a tarde quente se transformava numa noite fria.

A casa da guilda parecia um prédio espetacular para Merthin anos antes, quando entrara ali para apresentar seu projeto da ponte à guilda da paróquia. Agora, no entanto, parecia um prédio feio e acanhado, depois que conhecera os imponentes prédios públicos da Itália. Perguntou-se o que homens como Buonaventura Caroli e Loro Fiorentino deviam pensar de sua tosca cripta de pedra, onde ficavam a cozinha e a prisão, e do salão principal, com uma fileira de colunas irregulares sustentando o telhado.

Mark apresentou-o a alguns homens que haviam chegado a Kingsbridge ou adquirido proeminência durante a ausência de Merthin. Mas a maioria dos rostos era familiar, embora mais velhos. Merthin cumprimentou os poucos que ainda não havia encontrado durante os dois últimos dias. Um deles era Elfric, usando um casaco de brocado ostentoso, com fios de prata. Não demonstrou surpresa - era evidente que alguém já lhe dissera que Merthin voltara -, mas fitou-o com uma expressão irritada, uma indisfarçável hostilidade.

Também estavam presentes o prior Godwyn e o vice-prior, irmão Philemon. Godwyn, aos quarenta e dois anos, parecia cada vez mais com o tio Anthony, observou Merthin, com os sulcos de descontentamento e ressentimento descendo pelos lados da boca. Assumira uma farsa de afabilidade, que poderia enganar alguém que não o conhecesse. Philemon também mudara. Não era mais magro e desajeitado. Tornara-se corpulento, como um próspero mercador, e exibia um ar arrogante de segurança... embora Merthin imaginasse que ainda podia perceber, por trás da fachada, a ansiedade e o ódio de si mesmo do canalha bajulador. Philemon apertou a mão dele como se estivesse segurando uma cobra. Era deprimente compreender que os ódios antigos persistiam por tanto tempo.

Um rapaz bonito e de cabelos escuros fez o sinal-da-cruz quando viu Merthin, para depois revelar que era seu antigo protegido, Jimmie, agora conhecido como Jeremiah Builder. Merthin ficou satisfeito ao descobrir que Jimmie se saíra tão bem que agora pertencia à guilda da paróquia. Mas parecia que ele ainda era tão supersticioso quanto antes.

Mark deu a notícia sobre a princesa Joan para todas as pessoas com quem falou. Merthin respondeu a umas poucas perguntas ansiosas sobre a peste, mas os mercadores de Kingsbridge estavam mais preocupados com a possibilidade de que o colapso da aliança com Castela pudesse prolongar a guerra francesa, o que seria péssimo para os negócios.

Elfric sentou na cadeira grande na frente da enorme balança para pesar sacos de lã e abriu a reunião. Mark propôs no mesmo instante que Merthin fosse admitido como membro. Elfric protestou, o que não chegava a ser uma surpresa.

- Ele nunca foi um membro da guilda porque nunca concluiu seu aprendizado.

- Não concluiu porque não quis casar com sua filha - disse um dos homens.

Todos riram. Merthin levou um momento para identificar quem falara: Bill Watkin, o construtor de casas, os cabelos pretos em torno do domo careca agora se tornando grisalhos.

- Porque ele não é um artesão com o padrão exigido - insistiu Elfric, obstinado.

- Como pode dizer isso? - protestou Mark. - Ele tem construído casas, igrejas, palácios...

- E a nossa ponte, que está rachando depois de apenas oito anos.

- Foi você quem a construiu, Elfric.

- Segui exatamente o projeto de Merthin. É evidente que as arcadas não são bastante fortes para suportarem o peso do leito da estrada e do tráfego em cima. As cintas de ferro que eu instalei não foram suficientes para evitar que as rachaduras se alargassem. Por isso, proponho reforçar as arcadas, nos dois lados da pilastra central, com uma segunda fileira de alvenaria, dobrando sua espessura. Pensei que o assunto poderia ser discutido esta noite, e por isso preparei estimativas de custo.

Elfric devia ter planejado aquele ataque no momento em que descobrira que Merthin estava na cidade. Sempre vira Merthin como um inimigo: nada mudara nesse ponto. Mas ele não fora capaz de compreender o problema com a ponte, o que oferecia uma oportunidade a Merthin. Ele falou para Jeremiah em voz baixa:

- Poderia me fazer um favor?

- Depois de tudo o que fez por mim? Qualquer coisa!

- Corra até o priorado e peça para falar com irmã Caris com urgência. Diga a ela para procurar o desenho original que fiz para a ponte. Deve estar na biblioteca do priorado. Traga para cá o mais depressa possível.

Jeremiah saiu, enquanto Elfric continuava a falar:

- Devo lhes dizer, homens da guilda, que já conversei a respeito com o prior Godwyn, que me disse que o priorado não tem condições de pagar esse reparo. Teremos de financiá-lo, como financiamos o custo original da construção da ponte, nosso pagamento efetuado através dos pennies do pedágio.

Todos resmungaram. Seguiu-se uma longa e irritada discussão sobre quanto dinheiro caberia a cada membro da guilda. Merthin podia sentir que aumentava a hostilidade contra ele. Fora essa, sem qualquer dúvida, a intenção de Elfric. Merthin olhava para a porta a todo instante, torcendo para que Jeremiah voltasse logo. Bill Watkin disse:

- Talvez Merthin deva pagar os reparos, se a culpa é de seu projeto. Merthin não podia protelar a discussão por mais tempo. Resolveu abandonar a cautela.

- Eu concordo.

Houve um silêncio surpreso.

- Se meu projeto causou as rachaduras, farei os reparos na ponte à minha própria custa.

Era uma proposta temerária. As pontes eram custosas: se ele estivesse enganado sobre o problema, poderia lhe custar a metade de sua fortuna.

- Uma honesta decisão - disse Bill.

- Mas tenho uma coisa a dizer primeiro, se os homens da guilda me permitirem.

Merthin olhou para Elfric, que hesitou, obviamente pensando numa maneira de recusar. Mas Bill declarou

- Deixe-o falar.

Houve um coro em concordância. Elfnc acenou com a cabeça, ainda relutante.

- Obrigado - disse Merthin. - Quando uma arcada é fraca, racha num padrão característico. As pedras por cima da arcada são pressionadas para baixo, de tal maneira que as beiras inferiores se separam, e aparece uma rachadura no intradorso . a parte de baixo da arcada.

- Isso é verdade - comentou Bill Watkin. - Já vi esse tipo de rachadura muitas vezes. Geralmente não é fatal.

Merthin continuou

- Esse não é o tipo de rachadura que estamos vendo na ponte. Ao contrário do que Elfric disse, as arcadas são bastante fortes: a espessura da arcada é de um vigésimo de seu diâmetro na base, que é a proporção padrão, em todos os países.

Os construtores na sala acenaram com a cabeça; todos conheciam essa proporção.

A coroa está intacta. Mas há rachaduras horizontais no ponto de nascença de cada arcada, nos dois lados da pilastra central.

- Às vezes se vê isso nas abóbadas quadripartidas - comentou Bill Watkin.

- O que não é o caso da ponte - ressaltou Merthin. - As abóbadas são simples.

- Então o que está causando as rachaduras?

- Elfric não seguiu meu projeto original.

- Segui, sim!

- Especifiquei uma pilha grande de pedras soltas nas extremidades das pilastras.

- Uma pilha de pedras? - repetiu Elfnc, sarcástico. - E você diz que era isso que mantinha sua ponte de pé?

- Exatamente.

Merthin percebeu que até os outros construtores partilhavam o ceticismo de Elfnc Mas nada sabiam sobre pontes, que eram diferentes de qualquer outro tipo de construção, porque ficavam na água.

- As pilhas de pedras eram uma parte essencial do projeto - acrescentou ele.

- Não apareciam nos desenhos.

- Gostaria de nos mostrar meus desenhos, Elfnc, para provar seu argumento?

- Os desenhos no chão há muito desapareceram.

- Fiz um desenho em pergaminho. Deve estar na biblioteca do priorado. Elfnc olhou para Godwyn. Naquele momento, a cumplicidade entre os dois foi clamorosa. Merthin torceu para que o resto da guilda também percebesse. Godwyn disse.

- Os pergaminhos são caros. O desenho foi raspado e o pergaminho, usado em outra coisa há muito tempo.

Merthin acenou com a cabeça, como se acreditasse em Godwyn. Ainda não havia sinal de Jeremiah. Merthin podia ter de ganhar a discussão sem a ajuda do desenho original.

- As pedras teriam evitado o problema que está agora causando as rachaduras - disse ele.

Philemon interveio:

- Insiste em dizer isso, não é? Mas por que devemos acreditar em você? E apenas a sua palavra contra a de Elfric

Merthin compreendeu que teria de se expor. Era tudo ou nada, pensou.

- Explicarei qual é o problema, e provarei para todos, à luz do dia, se quiserem se encontrar comigo amanhã à beira do rio, ao amanhecer.

A expressão de Elfric indicava que ele queria recusar o desafio, mas Bill Watkin declarou:

- Nada mais justo. Estaremos lá.

- Bill, pode providenciar dois rapazes sensatos, que sejam bons nadadores e mergulhadores?

- Claro.

Elfric perdera o controle da reunião. Godwyn decidiu interferir, mostrando que era o homem que controlava o fantoche.

- Que tipo de escárnio está planejando? - indagou ele, furioso. Mas era tarde demais. Todos estavam curiosos agora.

- Vamos deixá-lo fazer o que propõe - disse Bill. Se é mesmo um escárnio, saberemos amanhã.

Foi nesse instante que Jeremiah voltou. Merthin ficou satisfeito ao observar que ele trazia uma armação de madeira com um pergaminho esticado. Elfric olhou para Jeremiah, aturdido. Godwyn empalideceu e perguntou:

- Quem lhe deu isso?

- Uma pergunta reveladora - comentou Merthin. - O lorde prior não pergunta o que o desenho mostra, nem de onde vem... parece já saber disso. Apenas indaga quem o entregou.

- Isso não importa - declarou Bill. - Mostre-nos o desenho, Jeremiah. Jeremiah foi se postar na frente da balança. Virou a armação, para que todos pudessem ver o desenho. E ali, nas extremidades das pilastras, estavam as pilhas de pedras a que Merthin se referira.

- Amanhã de manhã explicarei para que servem essas pedras - disse Merthin, levantando-se.

O verão se transformava em outono, e fazia frio na margem do rio ao amanhecer. Espalhara-se a notícia de que alguma coisa muito importante aconteceria ali. Além dos membros da guilda da paróquia, havia duzentas ou trezentas pessoas esperando para ver o desenlace do confronto entre Merthin e Elfric. Até mesmo Caris comparecera. Não era mais uma simples discussão sobre um problema de engenharia, compreendeu Merthin. Ele era o novilho desafiando a autoridade do velho touro, e o rebanho percebia isso.

Bill Watkin apresentou dois garotos de doze ou treze anos, só com o calção de baixo, ambos tremendo de frio. Eram Dennis e Noah, os filhos mais novos de Mark Webber.

Dennis, de treze anos, era baixo e atarracado, como a mãe. Tinha cabelos ruivo-castanhos, da cor das folhas no outono. Noah, dois anos a menos, era mais alto, e provavelmente cresceria para ser tão grande quanto Mark. Merthin identificou-se com o ruivo mais baixo. Especulou se Dennis sentia-se embaraçado, como acontecia com ele naquela idade, por ter um irmão mais jovem que era maior e mais forte.

Merthin pensou que Elfric trataria de protestar pelo fato de os mergulhadores serem filhos de Mark, sob a alegação de que poderiam ter sido instruídos antes pelo pai sobre o que dizer. Mas Elfric não disse nada. Mark era de uma honestidade tão evidente que ninguém poderia desconfiar que ele fosse capaz de cometer essa farsa. Talvez Elfric compreendesse isso... ou, o mais provável, Godwyn compreendesse. Merthin explicou aos garotos o que deveriam fazer:

- Nadem até a pilastra central e mergulhem quando chegarem ali. Descobrirão que a pilastra é lisa por uma longa extensão. Depois, verão a fundação, uma grande massa de pedras mantidas juntas com argamassa. Quando alcançarem o leito do rio, tateiem por baixo da fundação. Provavelmente não poderão ver qualquer coisa... a água estará lamacenta demais. Mas prendam a respiração por tanto tempo quanto puderem e verifiquem com todo cuidado em torno da base. Depois, voltem à superfície e nos contem tudo que encontrarem.

Os dois entraram na água e começaram a nadar. Merthin dirigiu-se às pessoas ao redor:

- O leito deste rio não é rochoso, mas lamacento. A correnteza turbilhona em torno das colunas de uma ponte e remove o lodo por baixo, deixando uma depressão que fica cheia apenas de água. Foi o que aconteceu com a velha ponte de madeira. As pilastras de carvalho não estavam mais fincadas no leito do rio, mas suspensas da superestrutura. Foi por isso que a ponte desabou. Para evitar que a mesma coisa acontecesse com a ponte nova, especifiquei pilhas de pedras grandes em torno da base das pilastras. Essas pedras seriam um obstáculo para a correnteza, tornando sua ação fraca e acidental. Mas as pilhas de pedras não foram instaladas, e por isso as pilastras foram solapadas. Não estão mais sustentando a ponte, mas penduradas... e é por isso que as rachaduras aparecem nos pontos em que as pilastras se juntam às arcadas.

Elfric soltou uma risada cética, mas os outros construtores se mostravam curiosos. Os dois garotos alcançaram o meio do rio, tocaram na pilastra, respiraram fundo, e desapareceram. Merthin acrescentou-.

- Quando voltarem, eles nos dirão que a pilastra não está fincada no leito do rio, mas suspensa sobre uma depressão, cheia de água, grande o suficiente para um homem entrar ali.

Ele torcia para estar certo.

Os garotos permaneceram debaixo da água por um prazo surpreendentemente longo. Merthin descobriu que começava a ficar sem fôlego, em empatia por eles. Até que finalmente uma cabeça de cabelos ruivos aflorou à superfície, logo acompanhada por outra de cabelos castanhos. Os dois conversaram por um instante, como se confirmassem que ambos haviam encontrado a mesma coisa. Depois, nadaram para a margem.

Merthin não tinha certeza absoluta de seu diagnóstico, mas não podia pensar em qualquer outra explicação para as rachaduras. E sentira a necessidade de demonstrar uma confiança total. Se agora fosse comprovado que se enganara, pareceria ainda mais tolo.

Os meninos aproximaram-se da praia. Vadearam pelos últimos passos, ofegantes. Madge entregou-lhes cobertores, que eles ajeitaram em torno dos ombros trêmulos. Merthin esperou por um momento que eles recuperassem o fôlego, antes de perguntar:

- E então... o que encontraram?

- Nada - respondeu Dennis, o mais velho.

- Nada? Como assim?

- Não há nada ali, na base da pilastra. Elfric assumiu uma expressão triunfante.

- Apenas o leito do rio, é claro.

- Não! - exclamou Dennis. - Nada de lama... apenas água.

- Há um buraco em que se pode entrar... com a maior facilidade! - acrescentou Noah. - Aquela enorme pilastra está suspensa na água, sem nada por baixo.

Merthin fez um esforço para não parecer aliviado. Elfric gritou:

- Não há nenhuma autoridade para garantir que uma pilha de pedras soltas teria resolvido o problema!

Mas não havia mais ninguém para lhe prestar qualquer atenção. Aos olhos da multidão, Merthin provara seu argumento. Todos se reuniram ao seu redor, comentando, fazendo perguntas. Depois de um momento, Elfric afastou-se, sozinho.

Merthin sentiu uma momentânea pontada de compaixão. Mas depois recordou como Elfric agredira-o, batendo com uma vara em seu rosto, quando ele era aprendiz; e a compaixão se evaporou no ar frio da manhã.

Um monge foi procurar Merthin na Bell na manhã seguinte. Quando tirou o capuz, Merthin não o reconheceu de imediato. Mas depois reparou que o braço esquerdo do monge terminava no cotovelo, e compreendeu que era o irmão Thomas, agora na casa dos quarenta anos, com a barba grisalha, rugas profundas em torno da boca e dos olhos. O segredo dele ainda seria perigoso depois de tantos anos?, especulou Merthin. A vida de Thomas ainda correria perigo, mesmo agora, se a verdade viesse à tona? Mas Thomas não viera falar sobre isso.

- Você tinha razão sobre a ponte - comentou ele.

Merthin acenou com a cabeça. Havia uma amarga satisfação na questão, mas o prior Godwyn despedira-o, e em conseqüência sua ponte nunca seria perfeita.

- Eu quis explicar a importância das pedras soltas na ocasião da construção, mas sabia que Elfric e Godwyn nunca me dariam crédito. Por isso, falei com Edmund Wooler. Mas ele morreu logo depois.

- Deveria ter me falado.

- Eu bem que gostaria de ter feito isso.

- Venha comigo até a catedral. Já que pode descobrir tantas coisas de umas poucas rachaduras, eu gostaria de lhe mostrar um problema, se puder.

Ele levou Merthin para o transepto sul. Ali e na nave sul do coro, onde Elfric reconstruíra as arcadas, depois do desabamento parcial, onze anos antes, Merthin percebeu no mesmo instante o que preocupava Thomas: as rachaduras haviam reaparecido.

- Você disse que voltariam - comentou Thomas.

- A menos que se descobrisse antes a verdadeira causa do problema.

- Mas você tinha razão. Elfric errou duas vezes.

Merthin sentiu um lampejo de excitamento. Se houvesse necessidade de reconstruir a torre...

- Você compreende isso... mas será que Godwyn também compreende? Thomas não respondeu à pergunta.

- O que você acha que é a causa básica?

Merthin concentrou-se no problema imediato. Pensara a respeito, volta e meia, ao longo dos anos.

- Esta não é a torre original, não é mesmo? Segundo o Livro de Timothy, foi reconstruída e se tornou mais alta.

- Isso mesmo, há cerca de cem anos... quando o negócio de lã crua era mais próspero. Acha que fizeram uma torre alta demais?

- Depende das fundações.

O terreno da catedral tinha uma inclinação suave para o sul, na direção do rio, o que podia ser um fator. Ele passou pela interseção, por baixo da torre, até o transepto norte. Parou junto do pilar maciço no canto nordeste da interseção. Olhou para a arcada que se estendia por cima de sua cabeça, através da nave norte do coro, até a parede.

- É com a nave sul que estou preocupado - disse Thomas, um pouco impaciente. - Não há problemas aqui.

Merthin apontou.

- Há uma rachadura no lado inferior da arcada... o intradorso... na coroa. Isso acontece numa ponte, quando as pilastras não têm os fundamentos apropriados e começam a se deslocar.

- O que está querendo dizer... que a torre está se afastando do transepto norte?

Merthin voltou à interseção e olhou para a arcada que se estendia para o lado sul.

- Aqui também tem rachadura, mas no lado superior, o extradorso... pode ver? A parede por cima também está rachada.

- Não são rachaduras muito grandes.

- Mas nos indicam o que está acontecendo. No lado norte, a arcada é esticada, enquanto no lado sul é apertada. Isso significa que a torre se inclina para o sul.

Thomas levantou os olhos, cauteloso.

- Parece reta.

- Não dá para ver a olho nu. Mas se subir na torre e largar um fio de prumo do alto de uma das colunas da interseção, logo abaixo do ponto de nascença da arcada, vai descobrir que ao chegar ao chão estará vários centímetros afastado, para o sul. E à medida que a torre se inclina, vai se afastando da parede do coro, o lugar em que os danos são mais patentes.

- O que se pode fazer?

Merthin teve vontade de dizer: Você tem de me contratar para construir uma torre nova. Mas isso seria prematuro.

- E preciso investigar mais, antes de iniciar qualquer construção - disse ele, reprimindo o excitamento. - Já determinamos que as rachaduras apareceram porque a torre está se inclinando... mas qual o motivo para isso?

- Como podemos descobrir?

- Cavando um buraco.

No final, Jeremiah cavou o buraco. Thomas não queria empregar Merthin diretamente. Já foi bastante difícil, explicou ele, arrancar o dinheiro de Godwyn para a investigação, pois o prior parecia nunca dispor de qualquer quantia de sobra. Mas ele também não podia entregar o trabalho a Elfric, que diria que não havia nada para investigar. Por isso, o meio-termo foi contratar o antigo aprendiz de Merthin.

Jeremiah aprendera com seu mestre e gostava de trabalhar depressa. No primeiro dia, levantou as pedras do chão do transepto sul. No dia seguinte, seus homens começaram a escavar a terra em torno do imenso pilar no sudeste da interseção.

A medida que o buraco se tornava mais fundo, Jeremiah instalou um guincho de madeira para retirar as cargas de terra. Na segunda semana, ele teve de construir escadas nos lados do buraco, para que seus trabalhadores pudessem descer até o fundo.

Enquanto isso, a guilda da paróquia deu a Merthin o contrato para o reparo da ponte. Elfric foi contra a decisão, como não podia deixar de ser, mas não estava em condições de alegar que era o melhor homem para o trabalho, e não se deu o trabalho de argumentar.

Merthin começou a trabalhar com rapidez e energia. Construiu ensecadeiras em torno das duas pilastras problemáticas, esvaziou as represas, e começou a encher os buracos por baixo das pilastras com pedras e argamassa. Em seguida, cercaria as pilastras com as pilhas de pedras soltas que projetara desde o início. Ao final, removeria as feias cintas de ferro de Elfric, e encheria as rachaduras com argamassa. Se as fundações recuperadas permanecessem firmes, as rachaduras não reabririam.

Mas o trabalho que queria mesmo era a reconstrução da torre.

Não seria fácil. Teria de dar um jeito para que o projeto fosse aprovado pelo priorado e a guilda da paróquia, sob o comando de seus dois piores inimigos, Godwyn e Elfric. E Godwyn ainda teria de arrumar o dinheiro.

Como primeiro passo, Merthin encorajou Mark a se apresentar como candidato a regedor, para substituir Elfric. O regedor era eleito todos os anos, no Dia de Todos os Santos, 1°. de novembro. Na prática, a maioria dos regedores era eleita sem oposição, até se aposentar ou morrer.

O próprio Elfric apresentara sua candidatura enquanto Edmund Wooler ainda era vivo.

Mark não precisou de muito estímulo. Estava ansioso em acabar com o regime de Elfric. Afinal, Elfric era tão ligado a Godwyn que não havia muito sentido em ter uma guilda da paróquia. A cidade era na verdade dirigida pelo priorado... tacanho, conservador, desconfiado de idéias novas, indiferente aos interesses dos habitantes da cidade.

Os dois candidatos começaram a procurar apoio. Elfric tinha seus seguidores, quase todos homens que empregava ou de quem comprava materiais de construção. Mas ele perdera muito prestígio na discussão sobre a ponte. Seus seguidores estavam desanimados. Os partidários de Mark, em contraste, estavam na maior animação.

Merthin visitava a catedral todos os dias e examinava as fundações das poderosas colunas, à medida que eram expostas pela escavação de Jeremiah. As fundações eram feitas da mesma pedra que o resto da catedral. As pedras eram dispôstas em fileiras com argamassa, mas aparadas com menos cuidado, já que não seriam visíveis. Cada fileira era um pouco maior que a de cima, num formato de pirâmide. A medida que a escavação aprofundava, ele examinava cada camada à procura de fraquezas, sem encontrar nenhuma. Mas sentia-se confiante de que acabaria encontrando.

Merthin não dizia a ninguém o que tinha em mente. Se suas suspeitas fossem corretas, e a torre do século XIII fosse pesada demais para as fundações do sécudo XII, a solução seria drástica: a torre teria de ser demolida... e uma nova, construída. E a nova torre poderia ser a mais alta da Inglaterra..Um dia, em meados de outubro, Caris apareceu na escavação. Era o início da manhã, e um sol de inverno brilhava através da grande janela de leste. Ela parou na beira do buraco, o capuz em torno da cabeça, como um halo. O coração de Merthin bateu mais depressa. Talvez Caris tivesse uma resposta para ele. E subiu a escada, na maior ansiedade.

Ela estava linda, como sempre, embora ao sol forte Merthin pudesse perceber as pequenas diferenças que nove anos haviam criado em seu rosto. A pele já não era tão lisa, e havia agora pequenas rugas nos cantos dos lábios. Mas os olhos verdes ainda faiscavam com a inteligência alerta que ele tanto amava.

Foram andando juntos pela nave sul. Pararam perto do pilar que sempre o lembrava da maneira como outrora a acariciara ali.

- Fico contente em vê-la - murmurou ele. - Esteve se escondendo.

- Sou uma freira. Não devo me exibir por toda parte.

- Mas está pensando em renunciar a seus votos.

- Ainda não tomei uma decisão. Merthin ficou desolado.

- De quanto tempo ainda precisa?

- Não sei.

Ele desviou os olhos. Não queria mostrar como se sentia magoado pela hesitação. Não disse nada. Poderia argumentar que ela estava sendo irracional, mas de que adiantaria?

- Imagino que vai visitar seus pais em Tench, mais cedo ou mais tarde - disse Caris.

Merthin acenou com a cabeça em confirmação.

- Muito em breve... eles gostarão de conhecer Lolla.

Ele também sentia-se ansioso em rever os pais. Só protelara a visita por estar absorvido demais no trabalho na ponte e na torre.

- Neste caso, eu gostaria que conversasse com seu irmão sobre Wulfric em Wigleigh.

Merthin queria falar sobre ele próprio e Caris, não sobre Wulfric e Gwenda. Sua reação foi fria.

- O que você quer que eu diga a Ralph?

- Wulfric está trabalhando sem ganhar qualquer dinheiro... apenas por comida... porque Ralph não lhe concede sequer um acre para cultivar.

Merthin deu de ombros.

- Wulfric quebrou o nariz de Ralph.

Ele pressentiu que a conversa começava a descambar para uma briga, e se perguntou por que estava tão irritado. Caris não falava com ele há semanas, mas rompera o silêncio em defesa de Gwenda. No fundo, ele compreendeu, ressentia-se pelo lugar de Gwenda no coração de Caris. O que era uma emoção indigna, disse a si mesmo, embora não fosse capaz de evitá-la. Caris ficou vermelha de fúria.

- Isso aconteceu há doze anos! Não é tempo de Ralph parar de puni-lo? Merthin esquecera as discussões furiosas que costumava ter com Caris.

Agora, reconheceu aquele atrito como familiar. E falou como se quisesse encerrar o assunto:

- Claro que ele deveria parar... na minha opinião. Mas é a opinião de Ralph que conta.

- Pois então tente fazê-lo mudar de idéia. Merthin também se ressentiu da atitude imperiosa.

- Estou às suas ordens - murmurou ele, jovial.

- Por que a ironia?

- Porque não estou às suas ordens, mas você parece pensar o contrário. E me sinto um idiota por concordar sempre.

- Ora, pelo amor de Deus! Sente-se ofendido porque eu lhe fiz um pedido? Por alguma razão, Merthin teve certeza de que ela já tomara a decisão de rejeita-do e continuar no convento. Fez um esforço para controlar suas emoções.

- Se fôssemos um casal, você poderia me pedir qualquer coisa. Mas enquanto mantém em aberto a opção de me rejeitar, parece um pouco de presunção de sua parte.

Ele sabia que parecia pomposo, mas não podia se conter. Desataria a chorar se revelasse seus verdadeiros sentimentos. Mas Caris estava envolvida demais em sua indignação para notar a aflição de Merthin.

- Mas não é por mim que estou pedindo!

- Sei que é sua generosidade de espírito que a leva a fazer isso, mas ainda sinto que está me usando.

- Então não faça nada!

- Claro que farei.

Subitamente, Merthin não podia mais se conter. Virou-se e afastou-se. Tremia com alguma paixão que não podia identificar. Enquanto caminhava pela nave da vasta catedral, fez um novo esforço para se controlar. Aquilo era uma estupidez. Ele parou e olhou para trás. Caris havia desaparecido.

Foi até a beira do buraco e ficou olhando para o fundo, à espera de que a tempestade interior se dissipasse.

Depois de algum tempo, compreendeu que a escavação alcançara um ponto crucial. Dez metros abaixo, os homens haviam passado pela fundação de alvenaria e começavam a revelar o que havia por baixo. Não havia mais nada que ele pudesse fazer em relação a Caris naquele momento. Seria melhor se concentrar no trabalho. Ele respirou fundo, engoliu em seco, e desceu a escada.

Aquele era o momento da verdade. Sua angústia por Caris começou a se desvanecer enquanto observava os homens escavarem ainda mais. A pesada lama era removida, pazada após pazada. Merthin estudou a camada de terra revelada abaixo da fundação. Parecia uma mistura de areia e cascalho. Enquanto os homens removiam a lama, essa mistura caía no buraco.

Merthin ordenou que parassem de escavar.

Ajoelhou-se e pegou um punhado do material arenoso. Não era nem um pouco parecido com o solo ao redor. Não era natural dali; portanto, devia ter sido posto pelos construtores. O excitamento pela descoberta dominou-o, prevalecendo sobre a angústia por Caris.

-Jeremiah! - chamou ele. - Procure o irmão Thomas... e traga-o até aqui, o mais depressa que puder!

Ele mandou que os homens continuassem a cavar, mas fizessem um buraco mais estreito: àquela altura, a escavação poderia se tornar perigosa para a estrutura. Depois de algum tempo, Jeremiah voltou com Thomas. Os três ficaram observando enquanto os homens aprofundavam o buraco. A camada de areia logo terminou. A camada seguinte era da terra lamacenta local.

- Não sei o que é essa areia - comentou Thomas.

- Acho que eu sei.

Merthin fez um esforço para não parecer triunfante. Previra anos antes que os reparos de Elfric de nada adiantariam, a menos que a causa do problema fosse descoberta. Acertara em cheio, mas nunca era sensato alegar ”Eu não disse?”.

Thomas e Jeremiah fitaram-no em expectativa.

- Quando se escava um buraco de fundação, cobre-se o fundo com uma mistura de cascalho e argamassa. Depois, assenta-se o trabalho de alvenaria por cima. É um sistema perfeito, desde que as fundações sejam proporcionais à construção por cima.

Thomas interveio, impaciente:

- Sabemos disso.

- O que aconteceu aqui foi que ergueram uma torre muito mais alta sobre fundações que não foram projetadas para isso. O peso extra, pressionando por uma centena de anos, esmagou essa camada de cascalho e argamassa, transformando-a em areia.

A areia não tem coesão, e sob a pressão espalhou-se para os lados, pelo solo ao redor, permitindo que a alvenaria por cima afundasse. O efeito é pior no lado sul apenas porque o terreno tem uma inclinação natural nesse sentido.

Merthin sentia uma profunda satisfação por ter chegado a essa conclusão. Os outros ficaram pensativos. Depois de algum tempo, Thomas murmurou:

- Neste caso, teremos de reforçar as fundações. Jeremiah sacudiu a cabeça.

- Antes de acrescentarmos qualquer reforço por baixo do pilar, teríamos de retirar o material arenoso, o que deixaria as fundações sem apoio. A torre cairia.

Thomas estava perplexo.

- Então o que podemos fazer?

Ambos olharam para Merthin, que respondeu:

- Construir um telhado provisório sobre a interseção, erguer andaimes, e desmontar a torre, pedra por pedra, para depois reforçar as fundações.

- Neste caso, teríamos de construir uma torre nova.

Era o que Merthin queria, mas ele não o disse. Thomas poderia desconfiar que seu julgamento fora influenciado pela aspiração.

- Receio que sim - confirmou ele, com uma expressão simulada de pesar.

- O prior Godwyn não vai gostar.

- Sei disso - declarou Merthin. - Mas acho que ele não tem opção.

No dia seguinte, Merthin deixou Kingsbridge, com Lolla na sela à sua frente. Enquanto atravessavam a floresta, ele repassou obsessivo seu atrito com Caris. Sabia que fora hostil. Uma atitude insensata, quando tentava reconquistar seu amor. O que dera nele? O pedido de Caris fora absolutamente razoável. Por que não podia prestar um pequeno serviço à mulher com quem queria casar?

Mas Caris não concordara em casar com ele. Ainda se reservava o direito de rejeitá-lo. Era essa a fonte de sua raiva. Caris exercia o direito de uma noiva sem assumir o compromisso.

Ele podia compreender agora que fora mesquinharia de sua parte protestar sob essa alegação. Uma estupidez, convertendo em briga o que poderia ser um momento de maravilhosa intimidade.

Por outro lado, a causa latente de sua aflição era bastante real. Por quanto tempo Caris contava que ele esperaria por uma resposta? E por quanto tempo ele estava disposto a esperar? Não gostava de pensar a respeito.

De qualquer forma, ele se sentiria bem se conseguisse persuadir Ralph a deixar de perseguir o pobre Wulfric

Tench ficava no outro lado do condado. No caminho, Merthin passou a noite em Wigleigh, onde ventava muito. Encontrou Wulfric e Gwenda muito magros, depois de um verão chuvoso e da segunda colheita ruim consecutiva. A cicatriz de Wulfric parecia sobressair ainda mais num rosto encovado. Os dois filhos pequenos estavam magros, nariz escorrendo, feridas nos lábios.

Merthin deu-lhes um pernil de cordeiro, um barril pequeno de vinho, e um florim de ouro, alegando que eram presentes de Caris. Gwenda cozinhou o pernil. Kstava dominada pela raiva, e discorreu sobre a injustiça de que eram vítimas.

- Perkin explora quase a metade das terras da aldeia! Só consegue cuidar de tudo porque conta com Wulfric, que faz o trabalho de três homens. Mas ele sempre exige mais e nos mantém na pobreza.

- Lamento que Ralph ainda guarde um ressentimento - comentou Merthin.

- O próprio Ralph provocou aquela briga! - exclamou Gwenda. - Até mesmo lady Philippa disse isso.

- Brigas antigas... - murmurou Wulfric, filosófico.

- Tentarei fazer com que ele veja a luz da razão - prometeu Merthin. - Na hipótese improvável de que ele me escute, o que vocês querem dele?

- Ahn... - Wulfric exibia uma expressão sonhadora, o que era excepcional. Rezo todos os domingos para recuperar as terras que meu pai cultivava.

- Isso nunca vai acontecer - garantiu Gwenda. - Perkin tem uma posição firme. E se por acaso morrer, tem um filho e uma filha casada esperando para herdar, além de dois netos que se tornam maiores a cada dia. Mas gostaríamos de ter nossa própria terra. Durante os últimos onze anos, Wulfric tem trabalhado para alimentar os filhos de outros homens. É tempo de usufruir um benefício de seu próprio trabalho.

- Direi a meu irmão que já o puniu por tempo demais.

No dia seguinte, Merthin e Lolla seguiram de Wigleigh para Tench. Ele sentia-se mais determinado do que nunca a fazer alguma coisa por Wulfric. Não era apenas porque queria agradar Caris, e tomar uma iniciativa para expiar seu comportamento rabugento. Também sentia-se triste e indignado porque duas pessoas honestas e trabalhadoras como Gwenda e Wulfric eram pobres e magras, seus filhos doentes, só por causa da sede de vingança de Ralph.

Seus pais moravam numa casa na aldeia, não em Tench Hall. Merthin ficou chocado ao descobrir o quanto a mãe envelhecera, embora ela se mostrasse animada ao ver Lolla. O pai parecia melhor.

- Ralph é muito bom para nós - declarou Gerald, num tom defensivo que fez Merthin pensar que acontecia o oposto.

A casa era bastante aconchegante, mas era evidente que eles prefeririam viver no solar com Ralph. Merthin calculou que o irmão não queria que a mãe testemunhasse tudo o que ele fazia. Depois que lhe mostraram a casa, Gerald perguntou como estavam as coisas em Kingsbridge.

- A cidade continua a prosperar, apesar dos efeitos da guerra francesa do rei

- respondeu Merthin.

- Mas Edward deve lutar por seus direitos. Afinal, ele é o herdeiro legítimo do trono da França.

- Isso não passa de um sonho, pai. Não importa quantas vezes o rei invada a França, a nobreza francesa nunca aceitará um inglês como seu rei. E um rei não pode governar sem o apoio de seus condes.

- Mas temos de acabar com os ataques franceses aos portos da costa sul.

- Isso não tem sido um problema desde a batalha de Sluys, quando destruímos a frota francesa... o que aconteceu há oito anos.

Seja como for, queimar ascolheitas dos camponeses não vai deter os piratas... e pode até aumentar seus números.

- Os franceses apoiam os escoceses, que continuam a invadir nossos condados do norte.

- Não acha que o rei poderia lidar melhor com as incursões escocesas se estivesse no Norte da Inglaterra, em vez de ir para o Norte da França?

Gerald parecia aturdido. Provavelmente nunca lhe ocorrera questionar a sabedoria da guerra.

- Ralph foi armado cavaleiro - disse ele. - E trouxe para sua mãe um castiçal de prata de Calais.

Isso dizia tudo, pensou Merthin. A verdadeira razão para a guerra era a conquista da glória e de despojos.

Seguiram a pé para o solar. Ralph havia saído para uma caçada, em companhia de Alan Fernhill. Havia no salão uma enorme cadeira toda esculpida, obviamente usada pelo lorde. Merthin viu uma jovem grávida que presumiu ser uma camponesa. Ficou consternada quando ela foi apresentada como a esposa de Ralph, Tilly. Ela foi até a cozinha para buscar vinho.

- Que idade ela tem? - perguntou Merthin à mãe, durante sua ausência.

- Quatorze anos.

Não era incomum que jovens engravidassem aos quatorze anos, mas mesmo assim Merthin achava que pessoas decentes se comportavam de uma maneira diferente. Esse tipo de gravidez precoce costumava ocorrer nas famílias reais, em que havia uma pressão intensa para produzir herdeiros, e entre as classes mais baixas e os camponeses ignorantes, que não tinham normas de comportamento. As classes médias mantinham padrões superiores.

- Não acha que ela é um pouco jovem? - indagou ele, em voz baixa.

- Todos pedimos a Ralph para esperar, mas ele não quis - respondeu Maud, deixando evidente que também desaprovava.

Tilly voltou com uma serva, trazendo um jarro de vinho e uma tigela com maçãs. Ela poderia ser bonita, pensou Merthin, se não parecesse tão esgotada. O pai dirigiu-se a ela com uma jovialidade forçada:

-Ânimo, Tilly! Seu marido deve chegar em casa a qualquer momento... e não vai querer recebê-lo com essa cara triste.

- Estou cansada de ficar grávida. Gostaria que o bebê nascesse o mais depressa possível.

- Não deve demorar muito agora - disse Maud. - Três ou quatro semanas, no máximo.

- Parece uma eternidade. Ouviram o barulho de cavalos lá fora.

- Deve ser Ralph - murmurou Maud.

A espera do irmão que não via há nove anos, Merthin tinha sentimentos contraditórios, como sempre. Sua afeição pelo irmão era sempre contaminada pelo conhecimento de todo o mal que Ralph fizera. O estupro de Annet fora apenas o começo. Durante os seus dias como fora-da-lei, Ralph assassinara homens, mulheres e crianças inocentes.

Merthin ouvira relatos, enquanto viajava pela Normandia, das atrocidades cometidas pelo exército do rei Edward. Embora não soubesse expressamente o que Ralph fizera, seria insensatez imaginar que ele se mantivera alheio à orgia de estupros, incêndios criminosos, saques e matanças. Por outro lado, Ralph era seu irmão.

Ralph também tinha sentimentos contraditórios, pensou Merthin. Poderia não ter perdoado Merthin por revelar seu esconderijo quando era um fora-da-lei. E embora Merthin tivesse exigido de Thomas a promessa de não matar Ralph, era de se esperar que o irmão fosse enforcado ao ser capturado. E ele não podia esquecer as últimas palavras que Ralph lhe dissera, na cadeia no porão da casa da guilda, em Kingsbridge: ”Você me traiu.”

Ralph entrou, acompanhado por Alan, todo enlameado da caçada. Merthin ficou chocado ao descobrir que ele claudicava. Ralph demorou um pouco para reconhecer Merthin, mas depois deu um sorriso jovial e exclamou, efusivo!

- Meu irmão grande!

Era uma piada antiga: Merthin era o mais velho, mas há muito que era o menor.

Os dois se abraçaram. Merthin sentiu um ímpeto de afeto, apesar de tudo. Pelo menos os dois continuavam vivos, pensou ele, apesar da guerra e da peste. Quando haviam se separado, ele tinha dúvidas se algum dia tornariam a se encontrar. Ralph foi sentar em sua enorme cadeira.

- Traga cerveja - disse ele a Tilly. - Estamos morrendo de sede. Não haveria recriminações, concluiu Merthin.

Ele estudou o irmão. Ralph mudara desde aquele dia em 1339 em que partira para a guerra. Perdera alguns dedos da mão esquerda, presumivelmente em batalha. Tinha uma aparência dissoluta: o rosto com veias saltadas de beber, a pele seca e flácida.

- Teve uma boa caçada? - perguntou Merthin.

- Trouxemos uma cerva tão gorda quanto uma vaca - respondeu Ralph, na maior satisfação. - Comerá seu fígado hoje.

Merthin perguntou sobre a luta no exército do rei, e Ralph relatou alguns dos pontos altos da guerra. O pai se mostrou entusiasmado e declarou: :

- Um cavaleiro inglês vale dez franceses! A batalha de Crécy provou isso! A resposta de Ralph, surpreendentemente, foi comedida.

- Um cavaleiro inglês não é muito diferente de um cavaleiro francês, em minha opinião. Mas os franceses ainda não compreenderam nossa formação de combate, com arqueiros nos dois lados de homens de armas e cavaleiros desmontados. Ainda desfecham ataques suicidas, e isso pode continuar por mais algum tempo. Mas um dia vão tirar conclusões sobre o combate nessas circunstâncias e mudar a tática. Enquanto isso, somos quase invencíveis na defesa. Infelizmente, porém, a formação em forcado é irrelevante para o ataque, e por isso acabamos sem ganhar quase nada.

Merthin ficou impressionado ao constatar como o irmão amadurecera. A guerra lhe proporcionara uma profundidade e uma sutileza que não possuía antes.

Por sua vez, Merthin falou sobre Florença: o incrível tamanho da cidade, a riqueza dos mercadores, as igrejas e palácios. Ralph demonstrou um fascínio especial pela existência de escravas.

A escuridão caiu. Os servos trouxeram lampiões e velas, depois o jantar. Ralph bebeu muito. Merthin notou que ele mal falava com Tilly. O que talvez não fosse surpreendente. Ralph era um soldado de trinta e um anos que passara a metade de sua vida adulta no exército, enquanto Tilly era uma garota de quatorze anos criada num convento. Sobre o que os dois poderiam conversar?

Mais tarde, depois que Gerald e Maud foram para sua casa e Tilly foi deitar, Merthin decidiu abordar o assunto que Caris lhe pedira. Sentia-se mais otimista do que antes, porque Ralph apresentava sinais de maturidade. Perdoara Merthin pelo que acontecera em 1339, e sua análise objetiva das táticas dos ingleses e franceses não tinha o ranço do chauvinismo tribal.

- Passei a noite em Wigleigh na vinda para cá.

- Aquele moinho de fulling continua em atividade.

- O tecido escarlate tornou-se um bom negócio para Kingsbridge.

Ralph deu de ombros.

- Mark Webber paga o arrendamento dentro do prazo.

Estava abaixo da dignidade dos nobres conversar sobre negócios.

- Estive com Gwenda e Wulfric Você sabe que Gwenda é amiga de Caris desde a infância.

- Ainda me lembro daquele dia em que nos encontramos com Sir Thomas Langley na floresta.

Merthin lançou um olhar rápido para Alan Fernhill. Todos haviam mantido os juramentos infantis, e não haviam falado a ninguém sobre o incidente. Merthin queria que o sigilo persistisse, pois sentia que era importante para Thomas, embora não tivesse a menor idéia do motivo. Mas Alan não teve a menor reação: bebera muito vinho, e não tinha ouvidos para insinuações. Mesmo assim, Merthin apressou-se em acrescentar:

- Caris me pediu para falar com você sobre Wulfric. Ela acha que você já puniu-o bastante por aquela briga. E eu concordo.

- Ele quebrou meu nariz!

-Já esqueceu que eu estava presente? Não se pode dizer que você foi inocente na briga. - Merthin tentou tratar do assunto de uma maneira jovial. - Acariciou sua noiva... como era mesmo o nome dela?

- Annet.

- Se os peitos dela não valiam um nariz quebrado, você é o único culpado. Alan riu, mas Ralph não achava a menor graça.

- Wulfric quase conseguiu fazer com que lorde William me enforcasse, depois que Annet alegou que eu a estuprei.

- Mas você não foi enforcado. E cortou o rosto de Wulfric com a espada quando fugiu do tribunal. Foi um ferimento terrível... dava para ver os dentes dele. Ele nunca perderá a cicatriz.

- Ainda bem.

- Há onze anos você pune Wulfric. Sua esposa emagreceu muito e as crianças estão doentes. Não acha que já foi o suficiente, Ralph?

-Não.

- Como assim?

- Não é suficiente.

- Por quê? - indagou Merthin, na maior frustração. - Não consigo compreendè-lo.

- Continuarei a punir Wulfnc e impedir que ele melhore na vida. Faço quêstão de humilhar Wulfnc e suas mulheres.

Merthin ficou surpreso com a franqueza de Ralph.

- Pelo amor de Deus, com que finalidade?

- Normalmente eu não responderia a essa pergunta. Aprendi que quase nunca adianta dar explicações. Mas você é meu irmão grande, e desde a infância sempre precisei de sua aprovação.

No fundo, compreendeu Merthin, Ralph realmente não mudara, mas apenas parecia conhecer e compreender a si mesmo de uma maneira que jamais ocorrera quando era mais jovem.

- A razão é simples - continuou Ralph. - Wulfnc não tem medo de mim. Não se assustou naquele dia na Feira do Velocino, e ainda não me teme, apesar de tudo o que fiz com ele. É por isso que ele deve continuar a sofrer.

Merthin estava horrorizado.

- Isso é uma sentença perpétua!

- No dia em que eu perceber o medo em seus olhos quando me fitar, Wulfnc terá qualquer coisa que quiser.

- É tão importante assim para você? - indagou Merthin, incrédulo. - Que as pessoas tenham medo de você?

- É a coisa mais importante do mundo.

A volta de Merthin afetou toda a cidade. Caris observou as mudanças com espanto e admiração. Começou com sua vitória sobre Elfnc na guilda da paróquia. As pessoas compreenderam que a cidade poderia ter perdido sua ponte por causa da incompetência de Elfnc, e isso provocou um sobressalto que as tirou da apatia. Mas todos sabiam que Elfnc era um instrumento de Godwyn, e por isso o priorado se tornou o foco supremo do ressentimento.

E a atitude das pessoas em relação ao priorado começava a mudar. Havia um clima de desafio. Caris sentia-se otimista. Mark Webber tinha boas possibilidades de vencer a eleição, marcada para o primeiro dia de novembro, e tornar-se o regedor. Se isso acontecesse, o prior Godwyn não poderia mais fazer tudo à sua maneira. Talvez assim a cidade pudesse começar a crescer: mercados nos sábados, novos moinhos, tribunais independentes em que os mercadores poderiam acreditar.

Mas ela passava a maior parte do tempo pensando em sua própria situação. A volta de Merthin era um terremoto que sacudira as fundações de sua vida.

Sua reação inicial fora a de horror pela perspectiva de abandonar tudo aquilo por que trabalhara durante os últimos nove anos; sua posição na hierarquia do convento; a maternal Cecilia, a afetuosa Mair, e a enferma Old Julie; e acima de tudo seu hospital, muito mais limpo, eficiente e acolhedor do que era antes.

Mas à medida que os dias se tornaram mais frios e mais curtos, enquanto Merthin fazia os reparos na ponte e abria a rua em que pretendia construir novos prédios, na ilha do Leproso, começou a enfraquecer a determinação de Caris de permanecer freira. As restrições da vida monástica, que deixara de notar depois de algum tempo, passaram a afligi-la de novo. A devoção de Mair, que fora uma diversão romântica agradável, agora se tornava irritante. E ela começou a pensar no tipo de vida que poderia levar como esposa de Merthin.

Pensava muito em Lolla e na criança de Merthin que poderia ter tido. Lolla tinha olhos escuros e cabelos pretos, presumivelmente como a mãe italiana. A filha de Caris poderia ter os olhos verdes da família Wooler. A idéia de renunciar a tudo para cuidar da filha de outra mulher deixara Caris consternada em teoria; mas ela mudara de mentalidade assim que conheceu a menina.

Não podia conversar com ninguém no priorado a respeito, é claro. Madre Cecilia lhe diria que devia cumprir seus votos; Mair suplicaria para que ela ficasse. Por isso, ela se angustiava sozinha, à noite.

Sua discussão com Merthin por causa de Wulfric levara-a ao desespero. Depois que ele se afastou, Caris foi para a farmácia e chorou. Por que as coisas eram tão difíceis? Ela queria apenas fazer a coisa certa.

Enquanto Merthin estava em Tench, ela confidenciou tudo a Madge Webber.

Dois dias depois da partida de Merthin, Madge entrou no hospital logo depois do amanhecer, quando Caris e Mair faziam a ronda.

- Estou preocupada com meu Mark - disse ela. Mair informou a Caris:

- Fui vê-lo ontem. Ele foi a Melcombe e voltou com febre e dor na barriga. Não falei nada porque achei que não era grave.

- Agora ele está tossindo muito e cuspindo sangue - explicou Madge.

- Vou vê-lo - decidiu Caris.

Os Webbers eram amigos antigos; ela preferia cuidar de Mark pessoalmente. Pegou uma sacola com alguns medicamentos básicos e acompanhou Madge até a casa, na rua principal.

A área residencial era no segundo andar, por cima da loja. Os três filhos de Mark esperavam ansiosos na sala de refeições. Madge levou Caris para um quarto que tinha um cheiro horrível. Caris já se acostumara ao odor de um quarto de doente, uma mistura de suor, vômito e dejetos humanos. Mark estava deitado num colchão de palha, suando. A imensa barriga estufada, cheia de ar, dava a impressão de gravidez. A filha, Dora, mantinha-se de pé ao lado.

Caris ajoelhou-se junto de Mark e perguntou:

- Como se sente?

- Muito mal - murmurou Mark, a voz rouca. - Pode me dar alguma coisa para beber?

Dora entregou um copo de vinho a Caris, que o levou aos lábios de Mark. Achou estranho ver um homem tão grande em tamanho desamparo. Mark sempre parecera invulnerável.

Era angustiante, como encontrar um carvalho que estivera ali durante toda a sua vida, mas fora subitamente derrubado por um raio.

Ela tocou na testa de Mark. Ele ardia em febre: não era de admirar que sentisse tanta sede.

- Deixem ele beber tanto quanto quiser - recomendou Caris. - Uma cerveja fraca é melhor do que vinho.

Ela não disse a Madge que se sentia perplexa e preocupada com a doença de Mark. A febre e a dor na barriga eram sintomas rotineiros, mas a tosse com sangue era um sinal perigoso.

Caris tirou um frasco com água-de-rosas da bolsa, encharcou um pedaço de tecido de lã, e lavou o rosto e o pescoço de Mark. Serviu para acalmá-lo no mesmo instante. A água esfriava o rosto quente e o perfume de rosa disfarçava os cheiros ruins do quarto.

- Eu lhe darei um pouco de água-de-rosas de minha farmácia - disse ela a Madge. - Os médicos receitam para cérebro inflamado. A febre é quente e úmida, enquanto as rosas são frias e secas, alegam os monges. Qualquer que seja a razão, servirá para aliviá-lo um pouco.

- Obrigada.

Mas Caris não conhecia nenhum tratamento eficaz para o catarro com sangue. Os monges médicos diagnosticariam um excesso de sangue, e recomendariam uma sangria... mas era o que receitavam para quase tudo, e Caris não acreditava na eficiência.

Ao lavar o pescoço de Mark, ela notou um sintoma que Madge não mencionara. Havia erupções purpuras escuras no pescoço e peito de Mark.

Era uma doença que ela nunca observara antes, o que a deixou aturdida. Mas decidiu não dizer isso a Madge.

- Venha comigo para pegar a água-de-rosas.

O sol começava a subir pelo céu quando elas seguiram da casa para o hospital.

- Você tem sido muito boa com a minha família - comentou Madge. - Éramos as pessoas mais pobres da cidade, até que você começou a fabricar o escarlate.

- O sucesso foi uma conseqüência da energia e dedicação de vocês. Madge balançou a cabeça. Sabia o que fizera.

- Mesmo assim, não teria ocorrido sem você.

Num súbito impulso, Caris decidiu levar Madge pelo claustro das freiras até a farmácia, a fim de poderem conversar em particular. Pessoas laicas não tinham normalmente permissão para entrar ali, mas havia exceções; e Caris tinha agora a autoridade necessária para saber quando podia ignorar as regras.

Ficaram sozinhas na sala apertada. Caris encheu um jarro com água-de-rosas e cobrou seis pennies de Madge, para depois comentar:

- Estou pensando em renunciar a meus votos.

Madge acenou com a cabeça, sem demonstrar qualquer surpresa.

- Todo mundo quer saber o que você vai fazer.

Caris ficou chocada ao descobrir que as pessoas especulavam a seu respeito.

- Como sabem de meu dilema?

- Não é preciso ser clarividente Você só entrou no convento para escapar de uma sentença de morte por bruxaria. E depois do trabalho que realizou aqui, deve merecer um perdão. Você e Merthin eram apaixonados, e sempre pareceram certos um para o outro. Agora, ele voltou. É natural supor que você pense pelo menos em casar com Merthin.

- Mas não sei como seria a minha vida como esposa de alguém. Madge deu de ombros.

- Talvez um pouco parecida com a minha. Mark e eu cuidamos juntos de negócio de tecido. Tenho também de cuidar da casa... todos os maridos contam com isso... mas não é tão difícil assim, ainda mais quando se tem dinheiro para pagar empregados. E as crianças sempre serão uma responsabilidade da mãe, não do pai. Mas dou um jeito em tudo, e tenho certeza de que você faria a mesma coisa.

- Da maneira como você fala, não parece muito excitante. Madge sorriu.

- Presumo que você já sabe das partes boas: sentir que é amada e adorada; saber que há uma pessoa no mundo que estará sempre ao seu lado; ir para a cama todas as noites com alguém forte e terno, que quer fazer sexo com você... isso é felicidade para mim.

As palavras simples de Madge descreviam uma imagem muito nítida, e Caris foi dominada de repente por um anseio que era quase insuportável. Sentiu que mal podia esperar pelo momento de deixar a vida fria, dura e sem amor do priorado, em que o maior pecado era ter um contato físico com outro ser humano. Se Merthin entrasse na farmácia naquele instante, ela arrancaria suas roupas e o possuiria ali mesmo, no chão.

Percebeu que Madge a observava com um pequeno sorriso, lendo seus pensamentos. E não pôde deixar de corar.

- Não se preocupe. Eu compreendo. - Madge pôs seis pennies de prata na bancada e pegou o jarro. - É melhor eu voltar logo para casa e cuidar de meu homem.

Caris recuperou o controle.

- Tente mantê-lo confortável, e venha me chamar imediatamente se houver alguma mudança em seu estado.

- Obrigada, irmã - murmurou Madge - Não sei o que faria sem a sua ajuda.

Merthin manteve-se pensativo durante a viagem de volta para Kingsbridge. Nem mesmo a conversa animada e sem nexo de Lolla conseguiu tirá-lo de seu ânimo. Ralph aprendera muita coisa, mas no fundo não mudara. Ainda era um homem cruel. Negligenciava a esposa-criança, mal tolerava os pais, e era vingativo ao ponto da obsessão. Gostava de ser um lorde, mas sentia pouca ou nenhuma obrigação de cuidar dos camponeses sob seu poder. Via tudo ao seu redor, inclusive as pessoas, como existindo apenas para sua gratificação.

Merthin, no entanto, sentia-se otimista em relação a Kingsbridge. Tudo indicava que Mark seria eleito regedor no Dia de Todos os Santos, e isso poderia ser o início de um surto de prosperidade.

Merthin voltava para a cidade no último dia de outubro, a véspera do Dia de Todos os Santos. Era uma sexta-feira naquele ano, e por isso não havia o fluxo de multidões que iam para Kingsbridge quando a noite dos espíritos do mal caía num sábado, como acontecera no ano em que Merthin tinha onze anos e conhecera Caris, com dez anos. Mesmo assim, as pessoas estavam nervosas. Todo mundo planejava ir se deitar antes do escurecer. Na rua principal, ele encontrou o filho mais velho de Mark Webber, John.

- Meu pai foi para o hospital - informou o rapaz. - Está com febre.

- E uma péssima ocasião para cair doente - comentou Merthin.

- Um dia fatídico.

- Não falei por causa da data. Mark deve estar presente na reunião da guilda da paróquia amanhã. Um regedor não pode ser eleito se estiver ausente.

- Acho que ele não terá condições de ir a qualquer reunião amanhã.

O que era preocupante. Merthin levou os cavalos para a Bell e deixou Lolla aos cuidados de Bessie.

Ao entrar no terreno do priorado, ele se deparou com Godwyn e sua mãe. Calculou que haviam jantado juntos, e agora Godwyn a acompanhava até o portão. Estavam absorvidos numa conversa ansiosa, e Merthin refletiu que deviam estar preocupados com a possibilidade de seu lacaio Elfric perder a eleição para regedor. Pararam abruptamente quando o viram. Petranilla disse, untuosa:

- Lamento saber que Mark não está passando bem.

Com um esforço para se mostrar cortês, Merthin comentou:

- É apenas uma febre.

- Vamos orar para que ele se recupere depressa.

- Obrigado. Merthin entrou no hospital. Encontrou Madge transtornada.

- Ele não pára de tossir sangue. E não consigo saciar sua sede.

Ela levou um copo de cerveja aos lábios do marido. Mark tinha erupções roxas no rosto e nos braços. Suava muito, e o nariz sangrava.

- Não se sente muito bem hoje, Mark? - perguntou Merthin. Mark deu a impressão de que não o ouvia. Apenas balbuciou:

- Tenho muita sede.

Madge tornou a levar o copo a seus lábios, enquanto murmurava:

- Por mais que ele beba, está sempre com sede.

Ela falou num tom de pânico que Merthin nunca ouvira antes em sua voz.

Merthin sentiu um medo súbito e intenso. Mark fazia viagens freqüentes a Melcombe, onde tinha contato com marujos procedentes de Bordeaux, uma cidade infestada pela peste.

A reunião da guilda da paróquia no dia seguinte era agora a menor das preocupações de Mark. E a menor das de Merthin também.

O primeiro impulso de Merthin foi o de anunciar para todo mundo que um perigo mortal ameaçava a cidade. Mas tratou de se manter de boca fechada.

Ninguém daria atenção a um homem em pânico, e além do mais ainda não tinha certeza. Assim que estivesse convencido, conversaria a sós com Caris, de uma forma calma e lógica. Mas teria de ser o mais depressa possível.

Caris banhava o rosto de Mark com um líquido de cheiro agradável. Exibia uma expressão impassível, que Merthin reconheceu: ela ocultava seus sentimentos. Era evidente que tinha noção da gravidade da doença de Mark.

Mark agarrava uma coisa que parecia um pedaço de pergaminho. Merthin calculou que tinha uma oração escrita, ou um versículo da Bíblia, talvez mesmo um encantamento mágico. Devia ser idéia de Madge, pois Caris não tinha a menor fé em textos escritos para ajudar na cura.

O prior Godwyn entrou no hospital nesse momento, acompanhado como sempre por Philemon.

- Fiquem longe da cama! - exclamou Philemon no mesmo instante. - Como o homem vai melhorar se não puder ver o altar?

Merthin e as duas mulheres recuaram. Godwyn inclinou-se sobre o paciente. Tocou na testa e no pescoço de Mark, depois sentiu sua pulsação.

- Mostrem-me a urina - pediu ele.

Os monges médicos davam a maior importância ao exame da urina do paciente. O hospital tinha recipientes de vidro apropriados para isso, chamados de urinóis. Caris entregou um urinol a Godwyn. Não era preciso ser um experto para constatar que havia sangue na urina de Mark. Godwyn devolveu o urinol.

- Este homem está sofrendo de sangue superaquecido. Deve receber uma sangria, e depois ser alimentado com maçãs azedas e tripas.

Merthin sabia, por sua experiência da peste em Florença, que Godwyn dizia uma besteira, mas não fez qualquer comentário. Em sua mente, não havia mais muito espaço para dúvidas sobre a doença de Mark. As erupções na pele, o sangue, a sede: era a doença que ele próprio tivera em Florença, a que matara Silvia e toda a sua família. Era mesmo da moria grande.

A peste chegara a Kingsbridge.

Enquanto a escuridão aumentava, na véspera do Dia de Todos os Santos, a respiração de Mark Webber foi se tornando mais e mais difícil. Caris observava-o enfraquecer. Sentia a impotência furiosa que a dominava sempre que se descobria incapaz de ajudar um paciente. Mark passou para um estado de inconsciência perturbada. Suava e ofegava muito, os olhos fechados, sem qualquer sinal de percepção. A uma sugestão discreta de Merthin, Caris tateou as axilas de Mark e encontrou enormes caroços, parecidos com furúnculos. Não perguntou a Merthin o significado daquilo: deixaria para interrogá-lo mais tarde. As freiras rezavam e entoavam hinos, enquanto Madge e os quatro filhos permaneciam ao redor, desesperados e desamparados.

Ao final, Mark teve convulsões, e o sangue esguichou de sua boca, num subito fluxo. Depois, ele caiu para trás, ficou imóvel e parou de respirar.

Dora soltou um gemido alto. Os três filhos estavam atordoados, fazendo um esforço para conter as lágrimas, porque chorar não era coisa de homem. Madge chorava amargamente.

- Ele era o melhor homem do mundo - balbuciou ela para Caris. - Por que Deus tinha de levá-lo?

Caris precisava reprimir sua dor. A perda que experimentava não era nada em comparação com a deles. Não entendia por que Deus, com tanta freqüência, levava as melhores pessoas, e deixava as iníquas para continuarem a fazer maldades. Toda a idéia de uma divindade benevolente, velando sobre todos, parecia inacreditável em momentos como aquele. Os padres diziam que a doença era uma punição pelo pecado. Mark e Madge amavam um ao outro, dedicavam-se aos filhos, e trabalhavam com afinco: por que deveriam ser punidos?

Não havia respostas para as questões religiosas, mas Caris tinha algumas indagações práticas urgentes para fazer. Sentia uma profunda preocupação com a doença de Mark, e não tinha a menor dúvida de que Merthin sabia alguma coisa a respeito. Ela reprimiu as lágrimas.

Primeiro, mandou Madge e os filhos para descansar em casa, e determinou que as freiras preparassem o corpo para o sepultamento. Depois, disse para Merthin:

- Quero conversar com você.

- E eu com você.

Ela notou que Merthin parecia assustado. O que era raro. Seu medo se aprofundou.

- Vamos para a catedral. Poderemos conversar em particular ali.

Um vento de inverno soprava pelo pátio gramado. Era uma noite clara, e eles podiam ver o caminho à luz das estrelas. No coro, os monges preparavam-se para o serviço da madrugada do Dia de Todos os Santos. Caris e Merthin foram para o canto noroeste, longe dos monges, para que ninguém pudesse ouvi-los. Caris estremeceu e aconchegou-se no hábito, enquanto perguntava:

- Você sabe o que matou Mark? Merthin respirou fundo, trêmulo.

- Foi a peste. da moria grande.

Caris acenou com a cabeça. Era o que receava. Mesmo assim, tratou de contestá-lo:

- Como sabe?

- Mark da a Melcombe e conversava com marujos de Bordeaux, onde os corpos são empilhados nas ruas.

- Ele acaba de voltar. - Mas ela não queria acreditar em Merthin. - Como pode ter certeza de que é a peste?

- Os sintomas são os mesmos: febre, manchas purpuras, hemorragia, bubos nas axilas, e a sede acima de tudo. Lembro muito bem, por Cristo, porque fui um dos poucos que se recuperaram. Quase todos morrem num prazo de cinco dias, às vezes até menos.

Caris tinha o sentimento de que o Dia do Juízo Final chegara. Ouvira as histórias terríveis sobre os acontecimentos na Itália e no Sul da França: famílias inteiras exterminadas, corpos apodrecendo sem enterro em palácios vazios, crianças pequenas órfãs vagueando em lágrimas pelas ruas, gado morrendo por falta de cuidados em aldeias fantasmas. Isso aconteceria também em Kingsbridge?

- O que os médicos italianos faziam?

- Rezavam, cantavam hinos, tiravam sangue, prescreviam suas panacéias prediletas, e cobravam uma fortuna. Tudo o que tentavam era inútil.

Os dois estavam bem juntos, falando em voz baixa. Caris podia ver o rosto dele à tênue claridade das velas distantes dos monges. Merthin fitava-a com uma estranha intensidade. Dava para perceber que ele estava profundamente comovido, mas não parecia ser de dor pela perda de Mark.

- Como são os médicos italianos em comparação com os ingleses?

- Depois dos muçulmanos, os médicos italianos são considerados os mais competentes do mundo. Até retalham os cadáveres para saberem mais sobre as doenças. Mas nunca conseguiram curar um único paciente com a peste.

Caris recusava-se a aceitar o desamparo total.

- Não podemos ficar absolutamente impotentes.

- Tem razão. Não podemos curar ninguém com peste, mas algumas pessoas acham que podem escapar.

- Como? - indagou Caris, ansiosa.

- Parece que a peste é transmitida de uma pessoa para outra. Caris acenou com a cabeça em concordância.

- É o que acontece com muitas doenças.

- Em geral, quando uma pessoa pega a peste, toda a sua família também pega. A proximidade é o fator fundamental.

- Faz sentido. Algumas pessoas dizem que você cai doente de olhar para pessoas doentes.

- Em Florença, as freiras nos aconselhavam a permanecer em casa tanto quanto possível, evitar as reuniões sociais, os mercados, as assembléias de guildas e conselhos.

- E as missas?

- Elas não diziam nada a respeito, mas muitas pessoas deixaram de freqüentar as igrejas.

Isso combinava com o que Caris vinha pensando há anos. Talvez seus métodos pudessem prevenir a peste.

- O que me diz das freiras e dos médicos, as pessoas que tinham de se encontrar e tocar nos doentes?

- Os padres recusavam-se a ouvir as confissões em sussurros, para não terem de chegar muito perto. As freiras usavam máscaras de linho sobre a boca e o nariz, a fim de não respirarem o mesmo ar. Algumas lavavam as mãos com vinagre cada vez que tocavam num paciente. Os sacerdotes médicos diziam que nada disso adiantava, mas a maioria preferiu deixar a cidade.

- E essas precauções ajudaram?

- É difícil dizer. Nada disso foi feito até que a peste se espalhasse por toda a cidade. E não era sistemático... todos tentavam coisas diferentes.

- Mesmo assim, devemos fazer o esforço. Depois de uma pausa, Merthin disse:

- Mas há uma precaução que é segura.

- Qual?

- Fugir da cidade.

Era isso o que ele esperava para dizer, compreendeu Caris. Merthin acrescentou:

- O ditado é o seguinte: ”Saia cedo, para bem longe, e se mantenha distante por muito tempo.” As pessoas que fizeram isso escaparam da peste.

- Não podemos fazer isso.

- Por que não?

- Pense um pouco. Há seis ou sete mil pessoas em Kingsbridge... não é possível que todos deixem a cidade. Para onde iriam?

- Não estou falando sobre os outros... apenas sobre você. Pode ou não ter pegado a peste de Mark. Madge e os filhos certamente devem ter pegado, mas você passou menos tempo com ele. Se ainda está bem, podemos escapar. Partiríamos hoje mesmo, você, eu e Lolla.

Caris sentia-se atordoada pela maneira como ele presumia que a peste já se espalhara àquela altura. Ela já estaria condenada?

- Mas... para onde iríamos?

- Gales ou Irlanda. Precisamos encontrar uma aldeia remota onde não aparecem estranhos por mais de um ano.

- Você teve a doença. E me disse que as pessoas não pegam duas vezes.

- Nunca. E algumas pessoas não pegam nem a primeira vez. Lolla deve ser assim. Se ela não pegou da mãe, não é provável que pegue de qualquer outra pessoa.

- Então por que você quer ir para Gales?

Merthin fitou-a com a mesma intensidade que exibira antes, e Caris compreendeu que o medo que ele sentia era por ela. Merthin tinha pavor de que ela pudesse morrer. Caris recordou as palavras de Madge: ”Saber que há uma pessoa no mundo que estará sempre ao seu lado.” Merthin tentava cuidar dela, não importava o que ela fizesse. Caris pensou na pobre Madge, atormentada pela dor de ter perdido o homem que sempre estivera do seu lado. Como ela, Caris, podia pensar em rejeitar Merthin? Mas foi o que ela fez.

- Não posso deixar Kingsbridge. Em qualquer outro momento seria possível, menos agora. As pessoas contam comigo se caírem doentes. Quando a peste se espalhar, todos vão me procurar em busca de ajuda. Se eu fugisse... ora, não sei explicar.

- Creio que compreendo. Seria como um soldado que foge quando a primeira flecha é disparada. E se sentiria uma covarde.

- Isso mesmo... e também seria uma fraude, depois de tantos anos como freira, dizendo que vivo para servir os outros.

- Eu sabia que se sentiria assim, Caris. Mas tinha de tentar. - A tristeza na voz de Merthin quase partiu o coração de Caris, enquanto ele acrescentava: - E suponho que isso significa que não renunciará a seus votos em um futuro previsível.

- Não posso fazê-lo. O hospital é o lugar para onde as pessoas vêm em busca de ajuda. Tenho de estar aqui, no priorado, para desempenhar meu papel. Tenho de ser uma freira.

- Está bem.

- Não fique tão desolado.

Com um pesar irônico, ele perguntou:

- E por que eu não deveria ficar?

- Não disse que a peste matou a metade da população de Florença?

- Mais ou menos isso.

- Portanto, a metade das pessoas não pegou a doença.

- Como Lolla. Ninguém sabe por quê. Talvez tenham alguma força especial Ou talvez a peste ataque ao acaso, como as flechas disparadas contra as fileiras inimigas, matando alguns, poupando outros.

- De qualquer forma, há uma boa possibilidade de que eu escape da doemça.

- Uma chance em duas.

- Como jogar uma moeda para o alto.

- Cara ou coroa - murmurou Merthin. - Vida ou morte.

Centenas de pessoas compareceram ao funeral de Mark Webber. Ele fora um dos cidadãos mais eminentes da cidade, mas era mais do que isso. Diversos pobres vieram das aldeias ao redor, alguns tendo de caminhar por horas. Ele era um homem muito amado, refletiu Merthin. A combinação do corpo de gigante e do temperamento gentil projetava um encantamento especial.

Era um dia de chuva e as cabeças descobertas de ricos e pobres estavam encharcadas, enquanto se postavam em torno da sepultura. A chuva fria misturava-se com as lágrimas quentes nos rostos de todos. Madge mantinha braços estendidos pelos ombros dos filhos mais novos, Dennis e Noah. Eram flanqueados pelo filho mais velho, John, e pela filha, Dora, ambos muito mais ali do que a mãe. Até pareciam os pais das três pessoas mais baixas no meio.

Merthin especulou, sombrio, se Madge seria a próxima a morrer... ou uma das crianças.

Seis homens fortes grunhiram com o esforço de baixar o caixão muito pesado para a sepultura. Madge chorava desesperada, enquanto os monges entoavam o último hino. Depois, os coveiros começaram a jogar a terra encharcada na sepultura. A multidão se dispersou.

Irmão Thomas aproximou-se de Merthin, o capuz levantado para evitar q a chuva molhasse seu rosto.

- O priorado não tem dinheiro para reconstruir a torre - informou ele Godwyn incumbiu Elfric de demolir a torre antiga e apenas fazer um telhado na interseção.

Merthin afastou a mente dos pensamentos apocalípticos da peste.

- Como Godwyn pagará a Elfric por isso?

- As freiras darão o dinheiro.

- Pensei que elas odiavam Godwyn.

- Irmã Elizabeth é a tesoureira. Godwyn tem o cuidado de ser gentil con a família dela, que trabalha em terras do priorado. Quase todas as outras freiras odeiam, é verdade... mas precisam da catedral.

Merthin não podia desistir de sua esperança de reconstruir a torre mais alta do que antes.

- Se eu conseguisse levantar o dinheiro, o priorado construiria uma nova torre?

Thomas deu de ombros.

- É difícil dizer.

Naquela tarde, Elfric foi reeleito regedor da guilda da paróquia. Encerrada a sessão, Merthin procurou Bill Watkin, o maior construtor da cidade, depois de Elfric.

- Depois que as fundações da torre forem reparadas, seria possível reconstruí-la ainda mais alta do que antes - declarou ele.

- Não vejo motivo por que não - concordou Bill. - Mas qual seria o sentido?

- Para que pudesse ser vista de Mudeford Crossing. Muitos viajantes... peregrinos, mercadores, e assim por diante... perdem a estrada para Kingsbridge e seguem direto para Shiring. A cidade perde muitos negócios dessa maneira.

- Godwyn dirá que não tem condições de pagar.

- Pense no seguinte: a nova torre não poderia ser construída da mesma maneira que a ponte? Os mercadores da cidade adiantariam o dinheiro, e seriam pagos com o pedágio da ponte.

Bill coçou a franja de cabelos grisalhos, igual a um monge. Era um conceito insólito.

- Mas a torre não tem nada a ver com a ponte.

- Isso importa?

- Acho que não.

- Os pedágios da ponte seriam apenas uma maneira de garantir o pagamento do empréstimo. ;

Bill considerou seus interesses pessoais.

- Eu seria encarregado de uma parte do trabalho?

- É um projeto grande... todos os construtores da cidade teriam de participar.

- Seria ótimo.

- Se eu projetasse uma torre grande, você me apoiaria na próxima reunião da guilda da paróquia?

Bill parecia em dúvida.

- Não é provável que os membros da guilda apoiem uma extravagância como essa.

- A torre não precisa ser extravagante, apenas alta. Se fizermos um domo sobre a interseção, posso construir sem gastos absurdos.

- Um domo? É uma idéia nova.

- Vi vários domos na Itália.

- Tem razão, isso reduziria o gasto.

- E a torre pode ser encimada por uma agulha fina de madeira, o que também pouparia dinheiro, além de ficar maravilhoso.

-Já tinha pensado em tudo, não é?

- Nem tanto. Mas a idéia se mantém no fundo de minha mente desde que voltei de Florença.

- Parece muito bom... bom para os negócios, bom para a cidade.

- E bom para nossas almas eternas.

- Farei o melhor que puder para ajudá-lo.

- Obrigado.

Merthin refletia muito sobre o projeto da torre enquanto cuidava de outros trabalhos, como o conserto da ponte e a construção das novas casas na ilha do Leproso. Ajudava-o a desviar sua mente das visões angustiantes e obsessivas de Caris doente com a peste. Pensava com freqüência na torre sul de Chartres. Era uma obra-prima, embora um pouco antiquada, construída há cerca de duzentos anos.

O que Merthin mais apreciara nessa torre, ele podia recordar com nitidez, era a transição da torre quadrada para a octogonal por cima. No topo da torre, em cada um dos quatro cantos, havia pináculos virados em diagonal para fora. No mesmo nível, em pontos intermediários de cada lado do quadrado, havia águas-furtadas similares na forma aos pináculos. Essas oito estruturas se harmonizavam com os oito lados inclinados da torre se erguendo por trás, de tal forma que o olho mal notava a mudança de forma do quadrado para o octogonal.

Chartres, no entanto, era desnecessariamente atarracada para os padrões do século XIV. A torre de Merthin teria colunas mais esguias e enormes aberturas de janelas, para atenuar o peso sobre os pilares por baixo, e também para reduzir o estresse, ao permitir a passagem do vento.

Ele fez um chão de traçado de projetos em sua oficina na ilha. Gostava de planejar os detalhes, dobrando e quadruplicando as arcadas pontiagudas da velha catedral, modernizando os conjuntos de colunas e capiteis.

Hesitava sobre a altura. Não tinha como calcular quão alta precisaria ser para se tornar visível de Mudeford Crossing. Isso só poderia ser determinado pela prática. Quando acabasse a torre de pedra, teria de erguer uma agulha provisória, depois ir até Mudeford num dia claro, para verificar se poderia avistá-la. A catedral fora construída numa elevação, e em Mudeford a estrada subia por uma encosta, pouco antes de descer para a travessia do rio. O instinto lhe dizia que se fizesse a torre um pouco mais alta que a de Chartres - acima de cento e vinte metros - isso seria suficiente.

A torre da Catedral de Salisbury tinha cento e vinte e três metros.

Merthin planejava erguer a sua por uma altura de cento e vinte e quatro metros.

Enquanto ele se inclinava sobre o chão de traçado, desenhando os pináculos da torre, Bill Watkin apareceu.

- O que você acha? - perguntou Merthin. - A torre precisa de uma cruz por cima, apontada para o céu? Ou de um anjo, velando por nós?

- Nenhuma das duas coisas - disse Bill. - A torre não será construída. Merthin empertigou-se, com uma régua na mão esquerda e uma agulha de ferro para desenhar na direita.

- O que o faz dizer isso?

- Recebi uma visita do irmão Philemon. Ele queria me dar um conselho, para meu próprio bem. Disse que não seria sensato da minha parte apoiar qualquer plano para uma torre projetada por você.

- Por que não?

- Porque isso irritaria o prior Godwyn, que não vai aprovar seus planos, independentemente de qualquer coisa.

Merthin não podia ficar surpreso. Se Mark Webber tivesse sido eleito regedor, o equilíbrio de poder na cidade teria mudado, e Merthin poderia obter a incumbência de construir a nova torre. Mas a morte de Mark invertera a situação, contra ele. Mesmo assim, apegara-se à esperança. Agora, sentia um profundo desapontamento.

- Devo supor que ele vai contratar Elfric?

- Foi essa a insinuação.

- Será que Godwyn nunca vai aprender?

- Quando um homem é orgulhoso, isso conta mais do que o bom senso.

- A guilda da paróquia pagará por uma torre baixa e atarracada construída por Elfric?

- Provavelmente. Os mercadores podem não ficar muito satisfeitos, mas arrumarão o dinheiro. Orgulham-se de sua catedral, apesar de tudo.

- A incompetência de Elfric quase lhes custou a ponte! - exclamou Merthin, indignado.

- Eles sabem disso.

Merthin permitiu que sua mágoa aflorasse.

- Se eu não tivesse diagnosticado o problema, a torre teria desabado... e talvez derrubasse toda a catedral.

- Eles também sabem disso. Mas não querem brigar com o prior só porque ele é injusto com você.

- Nem deveriam.

Merthin falou como se pensasse que isso era perfeitamente razoável, mas estava escondendo sua amargura. Fizera mais por Kingsbridge do que Godwyn, e sentia-se magoado porque os moradores da cidade não lutavam por ele. Mas também sabia que a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, agia de acordo com seus interesses pessoais imediatos.

- As pessoas são ingratas - comentou Bill. - Sinto muito.

- Não se preocupe.

Merthin fitou Bill, depois desviou os olhos, largou seus implementos de desenho, e deixou a oficina.

Durante o serviço de Laudes, antes do amanhecer, Caris ficou surpresa ao olhar pela nave e avistar uma mulher no lado norte, na frente de um quadro na parede de Cristo Ressuscitado. Havia uma vela ao seu lado; à luz da chama, Caris reconheceu o corpo roliço e o queixo projetado de Madge Webber.

Madge permaneceu ali ao longo de todo o serviço, sem prestar qualquer atenção aos salmos, aparentemente absorvida em oração.

Talvez estivesse pedindo a Deus para perdoar os pecados de Mark e que o deixasse descansar em paz... não que Mark tivesse cometido muitos pecados, até onde Caris sabia. Era mais provável que Madge estivesse pedindo a Mark para lhe enviar boa sorte do mundo dos espíritos. Madge continuaria a cuidar do negócio de tecido escarlate, com a ajuda dos dois filhos mais velhos. Era o que costumava acontecer quando um mercador morria, deixando viúva e um empreendimento próspero. Mesmo assim, não podia haver a menor dúvida de que ela sentia a necessidade da bênção do marido morto para seus esforços.

Mas essa explicação não chegava a ser satisfatória para Caris. Havia uma certa intensidade na postura de Madge, alguma coisa em sua imobilidade que sugeria um profundo fervor, como se estivesse suplicando aos céus que lhe concedesse uma dádiva da maior importância.

Quando o serviço terminou e os monges e freiras começaram a sair da catedral, Caris desligou-se da procissão e se encaminhou pela escuridão da nave para o brilho distante da vela.

Madge levantou-se ao ouvir o som de passos. Quando reconheceu Caris, ela disse, em tom de acusação:

- Mark morreu da peste, não é? Então era isso.

- Acho que sim.

- Você não me disse.

- Não tinha certeza, e não queria assustá-la... para não mencionar toda a cidade... com base num palpite.

- Ouvi dizer que a peste chegou a Bristol.

Então as pessoas da cidade já começavam a falar a respeito.

- E a Londres - acrescentou Caris, que recebera essa informação de um peregrino.

- O que acontecerá com todos nós? A tristeza apertou o coração de Caris.

- Não sei.

- Ouvi dizer que a peste se espalha de uma pessoa para outra.

- É o que acontece com muitas doenças.

A agressividade desapareceu do rosto de Madge, substituída por uma expressão suplicante, que partiu o coração de Caris. Num quase sussurro, ela perguntou:

- Meus filhos morrerão?

- A esposa de Merthin pegou a peste. Ela morreu, assim como toda a sua família. Mas Merthin recuperou-se, e Lolla nem pegou.

- Quer dizer que meus filhos ficarão bem? Não fora isso que Caris quisera dizer.

- Podem ficar. Ou alguns podem pegar e outros podem escapar.

Isso não satisfez Madge. Como a maioria dos pacientes, ela queria certezas, não possibilidades.

- O que posso fazer para protegê-los? Caris olhou para a imagem de Cristo.

- Você está fazendo tudo o que pode.

Ela começou a perder o controle. E quando um soluço subiu por sua garganta, virou-se para esconder seus sentimentos, e deixou a catedral em passos apressados.

Sentou no claustro das freiras por alguns minutos, recuperando o controle.

Depois, foi para o hospital, como sempre fazia àquela hora.

Mair não estava ali. Devia ter saído para cuidar de uma pessoa doente na cidade. Caris assumiu o comando, supervisionando a distribuição da primeira refeição para hóspedes e pacientes, providenciando a limpeza, examinando os doentes. O trabalho atenuou sua aflição por Madge. Leu um salmo para Old Julie. Depois de cumpridas todas as tarefas, como Mair ainda não tivesse aparecido, Caris deixou o hospital para procurá-la.

Encontrou-a no dormitório, estendida na cama, de barriga para baixo. O coração de Caris disparou.

- Mair! Você está bem?

Mair rolou na cama. Estava pálida e suando. Tossiu, mas não disse nada. Caris ajoelhou-se ao lado e pôs a mão em sua testa.

- Você está com febre - disse ela, reprimindo o medo que aflorou em sua barriga, como uma náusea. - Quando começou?

- Eu estava tossindo ontem. Mas dormi bem, e levantei esta manhã sem sentir nada. Depois, quando desci para comer, senti de repente que da vomitar. Fui até a latrina, voltei para o dormitório, e deitei. Acho que dormi... Que horas são?

- O sino para a Terça está prestes a tocar. Mas você está dispensada.

Podia ser apenas uma doença comum, disse Caris a si mesma. Ela tocou no pescoco de Mair, e depois baixou seu hábito. Mair ofereceu um sorriso desanimado.

- Está tentando ver meu peito?

- Isso mesmo.

- Vocês, freiras, são todas iguais.

Não havia erupções, até onde Caris pôde determinar. Talvez fosse apenas um resfriado.

- Alguma dor?

- Há um ponto extremamente sensível em minha axila.

Isso não dizia muita coisa a Caris. As inchações dolorosas nas axilas e virilha eram características também de outras doenças, não apenas da peste.

- Vamos descer para o hospital.

Quando Mair levantou a cabeça, Caris viu manchas de sangue no travesseiro.

Sentiu o choque como se fosse um golpe físico. Mark Webber tossira sangue. E Mair fora a primeira pessoa a cuidar de Mark, no início de sua doença... fora até a casa um dia antes de Caris.

Caris ocultou seu medo e ajudou Mair a levantar. Lágrimas afloraram a seus olhos, mas ela se controlou. Mair passou o braço pela cintura de Caris e encostou a cabeça em seu ombro, como se precisasse de amparo para andar. Caris passou o braço pelos ombros de Mair. Juntas, desceram a escada, e atravessaram o claustro das freiras, até o hospital.

Caris levou Mair para um tolclião perto do altar. Foi buscar um copo de água fresca da fonte no claustro. Mair bebeu, sôfrega. Caris lavou seu rosto e pescoço com água-de-rosas. Depois de algum tempo, Mair pareceu adormecer.

O sino para a Terça tocou. Normalmente, Caris era dispensada desse serviço; mas agora ela sentia necessidade do isolamento. Ingressou na procissão de freiras e entrou na catedral. As velhas pedras cinzentas pareciam frias e inóspitas hoje. Ela entoou os hinos de uma forma automática, enquanto uma tempestade agitava seu coração.

Mair estava com a peste. Não havia erupções, mas ela tinha a febre, sentia muita sede, e tossira sangue. Provavelmente morreria.

Caris foi dominada por um terrível sentimento de culpa. Mair a amara com devoção. Caris nunca fora capaz de retribuir o amor de Mair, não da maneira por que Mair ansiava. Agora, Mair estava morrendo. Caris desejou que pudesse ter sido diferente. Devia ter sido capaz de fazer Mair feliz. Deveria ser capaz de salvar sua vida. Ela chorou, enquanto entoava o salmo, esperando que se alguém reparasse nas lágrimas, pensasse que era êxtase religioso.

Ao final do serviço, uma noviça esperava-a ansiosa fora da porta do transepto sul.

- Há alguém no hospital pedindo para falar com você com urgência. Caris encontrou Madge Webber ali, o rosto branco de medo.

Caris não precisava perguntar o que Madge queria. Pegou a bolsa de medicina e as duas saíram apressadas. Atravessaram o pátio gramado da catedral num instante, sob o vento gelado de novembro. Foram para a casa dos Webbers, na rua principal. Lá em cima, os filhos de Madge esperavam na sala. Os dois mais velhos sentavam à mesa, parecendo assustados; os meninos estavam deitados no chão.

Caris examinou-os rapidamente. Todos os quatro estavam febris. A moça sangrava pelo nariz. Os três meninos tossiam.

Todos tinham manchas purpuras espalhadas pelos ombros e pescoço. Madge disse:

- É a mesma coisa, não é? Foi disso que Mark morreu. Eles estão com a peste.

Caris acenou com a cabeça em confirmação.

- Sinto muito.

- Espero morrer também - murmurou Madge. - Assim poderemos ficar juntos no céu.

No hospital, Caris adotou as precauções de que Merthin lhe falara. Cortou tiras de linho para as freiras cobrirem a boca e o nariz enquanto cuidavam de pessoas que tinham a peste. E obrigava a lavarem as mãos com vinagre e água sempre que tocavam em um paciente. Todas as freiras ficaram com as mãos esfoladas.

Magge levou os quatro filhos para o hospital, e depois também ficou doente. Old Julie, que estivera deitada perto de Mark Webber enquanto ele morria, também sucumbiu. Havia bem pouco que Caris podia fazer por qualquer paciente.

Lavava seus rostos para baixar a febre, dava água fresca para beber da fonte no tlaustro, limpava o vômito ensangüentado, e esperava que morressem.

Fstava ocupada demais para pensar em sua própria morte. Observava uma certa admiração assustada nos olhos dos habitantes da cidade quando a viam afagar os rostos das vítimas infecciosas da peste, mas não se sentia uma mártir altruísta. Considerava-se apenas como o tipo de pessoa que detestava ficar remoendo e preferia agir. Como todos os outros, era obcecada pela indagação: Quem será o próximo? Mas, com toda firmeza, tirava o pensamento de sua mente.

O prior Godwyn foi examinar os pacientes. Recusou-se a usar a máscara no rosto, alegando que isso não passava de bobagem de mulher. Fez o mesmo diagnóstico de antes, sangue superaquecido, e prescreveu sangria e uma dieta com maçãs azedas e tripas de carneiro.

Não importava muito o que os pacientes comiam, já que eles vomitavam tudo no final; mas Caris tinha certeza de que tirar o sangue fazia com que a doença piorasse. Já sangravam demais: tossiam e cuspiam sangue, vomitavam sangue, urinavam sangue. Mas os monges eram os médicos treinados, e por isso tinha de seguir suas instruções. Não tinha tempo para ficar furiosa sempre que via um monge ou freira ajoelhado ao lado de um paciente, mantendo um braço esticado, cortando a veia com uma pequena faca afiada, e mantendo o braço erguido, enquanto meio litro de sangue precioso escorria para uma bacia.

Caris sentou com Mair ao final, segurando sua mão, sem se importar com que alguém pudesse desaprovar. Para atenuar seu tormento, deu-lhe uma pequena quantidade da droga eufórica que Mattie a ensinara a fazer, com papoulas. Mair ainda tossiu, mas já não doía tanto. Depois de um acesso de tosse, sua respiração se tornava mais fácil por algum tempo, e ela conseguia falar.

- Obrigada por aquela noite em Calais - sussurrou ela. - Sei que você não gostou muito, mas foi o paraíso para mim.

Caris teve de fazer um esforço para não chorar.

- Lamento muito não poder ser o que você queria.

- Mas você me amava, à sua maneira. Sei disso.

Ela tossiu de novo. Quando o acesso acabou, Caris limpou o sangue dos lábios de Mair.

- Eu amo você - balbuciou Mair, antes de fechar os olhos.

Caris deixou que as lágrimas escorressem, sem se importar com quem visse, nem com o que as pessoas pudessem pensar. Ficou olhando para Mair, através das lágrimas, e viu-a se tornar mais e mais pálida, a respiração cada vez mais superficial, até que cessou por completo.

Caris permaneceu onde estava, no chão, ao lado do colchão, segurando a mão do cadáver. Mair ainda era linda, mesmo assim, branca, imóvel para sempre. Ocorreu a Caris que apenas uma outra pessoa a amava tanto quanto Mair, e essa pessoa era Merthin. Como era estranho que ela tivesse também rejeitado o amor dele.

Havia alguma coisa errada com ela, pensou; alguma deformação da alma que a impedia de ser como as outras mulheres e de aceitar o amor com a maior alegria.

Mais tarde, naquela noite, os quatro filhos de Mark Webber morreram; e Old Julie também.

Caris estava perturbada. Não havia nada que ela pudesse fazer? A peste espalhava-se depressa e matava todo mundo. Era como viver numa prisão e especular qual dos presos seria o próximo a ir para a forca. Kingsbridge estava condenada a ser como Florença e Bordeaux, com corpos empilhados nas ruas? No domingo seguinte haveria mercado no pátio gramado junto da catedral. Centenas de pessoas das aldeias ao redor viriam comprar e vender, confraternizar com os moradores da cidade nas igrejas e tavernas. Quantas voltariam para casa com a doença fatal? Quando se sentia assim, numa angustiante impotência contra forças terríveis, Caris compreendia por que as pessoas erguiam as mãos e diziam que tudo era controlado pelo mundo dos espíritos. Mas ela nunca fora assim.

Quando uma pessoa do priorado morria, sempre havia um serviço fúnebre especial, com a participação de todos os monges e freiras e orações extras pela partida da falecida. Tanto Mair quanto Old Julie eram muito amadas: Julie, por seu coração gentil; Mair, por sua beleza. Muitas freiras choraram. Os filhos de Madge foram incluídos no funeral, e por isso várias centenas de moradores da cidade compareceram. Madge estava doente demais para deixar o hospital.

Todos se reuniram no cemitério, sob um céu cor de chumbo. Caris teve a impressão de sentir o cheiro de neve no vento frio que soprava do norte. O irmão Joseph disse as orações à beira dos túmulos, e seis caixões foram baixados para as sepulturas. Uma voz na multidão fez a pergunta que prevalecia na mente dos presentes:

- Vamos todos morrer, irmão Joseph?

Joseph era o mais popular dos monges médicos. Agora perto dos sessenta anos, era um intelectual, mas tinha o comportamento afetuoso de alguém à cabeceira de um doente.

- Vamos todos morrer, meu amigo, mas nenhum de nós sabe quando - respondeu ele. - É por isso que devemos estar sempre preparados para o encontro com Deus.

Betty Baxter interveio, sempre inquisitiva, querendo chegar à verdade:

- O que podemos fazer contra a peste... porque é a peste, não é mesmo?

- A melhor proteção é a oração - declarou Joseph. - E caso Deus tenha decidido levá-la, deve ir logo à igreja para confessar seus pecados.

Betty não deixava para trás uma questão com tanta facilidade.

- Merthin disse que em Florença as pessoas permaneciam em casa para evitar o contato com os doentes. Isso é uma boa idéia?

- Não creio. Os florentinos escaparam da peste?

Todos olharam para Merthin, que estava com Lolla no colo.

- Não, não escaparam - respondeu ele. - Mas talvez muitos mais teriam morrido se não fosse por isso.

Joseph sacudiu a cabeça.

- Se você ficar em casa, não pode ir à igreja. E a santidade é o melhor remédio.

Caris não podia mais se manter calada.

- A peste passa de uma pessoa para outra - disse ela, furiosa. - Se você ficar longe das outras pessoas, tem mais chance de escapar da infecção.

O prior Godwyn interveio:

- Então as mulheres são médicas agora? Caris ignorou-o.

- Devemos cancelar o mercado. Pouparia muitas vidas.

- Cancelar o mercado! - exclamou ele, desdenhoso. - E como faríamos isso? Mandaríamos mensageiros para todas as aldeias?

- Basta fechar os portões da cidade - argumentou Caris. - Bloquear a ponte. Manter todos os estranhos fora da cidade.

- Mas já há pessoas doentes na cidade.

- Fechar todas as tavernas. Cancelar as reuniões de todas as guildas. Proibir convidados nos casamentos.

- Em Florença, eles suspenderam até as reuniões do conselho da cidade informou Merthin.

- Então como as pessoas podem fazer negócios? - indagou Elfric

- Se faz negócios, você morre - respondeu Caris. - E matará também sua esposa e filhos. A decisão é sua.

- Não quero fechar minha loja... perderia muito dinheiro - declarou Betty Baxter. - Mas farei isso para salvar minha vida.

Caris sentiu-se mais esperançosa, mas no instante seguinte Betty acrescentou:

- O que dizem os médicos? Eles sabem mais do que todo mundo. Caris soltou um grunhido de protesto. O prior Godwyn disse:

- A peste foi enviada por Deus para nos punir por nossos pecados. O mundo se tornou iníquo. Heresia, lascívia e desrespeito vicejam por toda parte. Os homens questionam a autoridade, as mulheres exibem seus corpos, as crianças desobedecem aos pais. Deus está furioso e sua ira é terrível. Não tentem fugir de sua justiça. Haverá de encontrá-los, não importa onde se escondam.

- O que devemos fazer?

- Se querem viver, devem ir à igreja, confessar seus pecados, orar, e levar uma vida melhor.

Caris sabia que era inútil argumentar, mas mesmo assim ainda tentou:

- Um homem faminto deve ir à igreja, mas deve também comer. Madre Cecilia interveio:

- Irmã Caris, não precisa dizer mais nada.

- Mas podemos salvar tantas... -Já chega.

- É uma questão de vida e morte! Cecilia baixou a voz:

- Mas ninguém dá atenção ao que você diz. É melhor se calar.

Caris sabia que Cecilia tinha razão. Por mais que argumentasse, as pessoas acreditariam nos monges, não nela. Caris mordeu o lábio e não disse nada.

Blind Carlus começou a entoar um hino, e os monges voltaram em procissão para a catedral. As freiras foram atrás. A multidão se dispersou.

Quando passavam da catedral para o claustro, madre Cecilia espirrou.

Todas as noites, Merthin punha Lolla na cama, em seu quarto na Bell. Cantava para ela, recitava poemas, ou contava histórias. Era o momento em que a filha conversava com ele, fazendo perguntas estranhamente inesperadas para uma criança de três anos, algumas profundas, algumas hilariantes.

Naquela noite, enquanto ele cantava um acalanto, Lolla desatou a chorar.

Merthin perguntou qual era o problema.

- Por que Dora morreu?

Então era isso. A filha de Madge, Dora, adorava Lolla. Passavam bastante tempo juntas, brincando e trançando os cabelos uma da outra.

- Ela pegou a peste - respondeu Merthin.

- Mamãe teve a peste. - Lolla passou para o italiano, que não esquecera por completo. - da moria grande.

- Eu também tive, mas fiquei bom.

- Libia teve a peste.

Libia era a boneca de madeira que ela trouxera de Florença.

- Libia também?

- Também. Ela espirrou, ficou quente, e teve manchas, mas uma freira fez Libia ficar boa.

- Fico satisfeito. Isso significa que ela está segura. Ninguém pega a peste duas vezes.

- Você está seguro, não é?

- Estou. - Parecia um momento propicio para encerrar a conversa. - Trate de dormir agora.

- Boa-noite.

Merthin encaminhou-se para a porta.

- Bessie está segura? - perguntou a filha.

- Durma agora.

- Eu amo Bessie.

- Isso é ótimo. Boa-noite.

Merthin fechou a porta. Lá embaixo, a taverna estava vazia. As pessoas sentiam-se apreensivas com aglomerações. Apesar do que Godwyn dissera, a mensagem de Caris surtira efeito.

Ele sentiu o cheiro apetitoso de uma sopa. Foi até a cozinha. Bessie mexia uma panela no fogo.

- Sopa de vagem com ervilha - informou ela.

Merthin sentou à mesa com o pai dela, Paul, um homem enorme, na casa dos cinqüenta anos. Cortou uma fatia de pão, enquanto enchia sua caneca com cerveja. Bessie serviu a sopa.

Bessie e Lolla gostavam cada vez mais uma da outra, pensou Merthin. Ele contratara uma babá para tomar conta de Lolla durante o dia, mas Bessie muitas vezes ficava com a menina à noite. Lolla a adorava.

Merthin tinha uma casa na ilha do Leproso, mas era pequena, ainda mais em comparação com o palagetto em Florença a que se acostumara.

Estava feliz por deixar que Jimmie continuasse a morar ali. Sentia-se confortável na Bell. O lugar era aconchegante e limpo, havia sempre muita comida e boa bebida. Ele pagava a conta todos os sábados, mas sob outros aspectos era tratado como uma pessoa da família. Não tinha pressa em se mudar para uma casa sua.

Por outro lado, também não podia viver ali para sempre. E quando saísse, Lolla podia ficar perturbada por se afastar de Bessie. Muitas pessoas em sua vida já haviam desaparecido. Ela precisava de estabilidade. Talvez fosse melhor se mudar agora, antes que ela ficasse afeiçoada demais a Bessie.

Depois que comeram, Paul foi deitar. Bessie serviu mais cerveja para Merthin. Sentaram ao lado do fogo.

- Quantas pessoas morreram em Florença? - perguntou ela.

- Milhares. Provavelmente dezenas de milhares. Ninguém conseguiu contar.

- Eu pergunto quem será o próximo em Kingsbridge.

- Penso nisso o tempo todo.

- Talvez seja eu.

- Infelizmente, é possível.

- Eu gostaria de deitar com um homem mais uma vez, antes de morrer. Merthin sorriu, mas não disse nada.

- Não tenho um homem desde que meu Richard morreu. Já tem mais de um ano.

- Sente saudade dele.

- E você? Há quanto tempo não tem uma mulher?

Merthin não fazia sexo desde que Silvia caíra doente. Ao lembrá-la, ele sentiu uma pontada de pesar. Não fora grato como deveria pelo amor de Silvia.

- Mais ou menos o mesmo tempo.

- Foi com sua esposa?

- Foi... que sua alma descanse em paz.

- É muito tempo para passar sem amar.

- Também acho.

- Mas você não é do tipo que vai para a cama com qualquer mulher. Quer alguém para amar.

- Acho que tem razão.

- Também sou assim. É maravilhoso deitar com um homem, a melhor coisa do mundo, mas apenas se amarem um ao outro de verdade. Só tive um homem, meu marido. Nunca fui para a cama com nenhum outro.

Merthin especulou se isso seria mesmo verdade. Não podia ter certeza. Bessie parecia sincera. Mas era o tipo de coisa que uma mulher diria de qualquer maneira.

- E você? Quantas mulheres teve?

- Três.

- Sua esposa, Caris antes, e... quem mais? Ah, lembrei agora... Griselda.

- Não falei quem foram.

- Não precisa se preocupar. Todo mundo sabe.

Merthin sorriu, pesaroso. Claro que todos sabiam. Talvez não tivessem certeza, mas adivinhavam, e em geral as pessoas adivinhavam certo.

- Que idade teria o filho de Griselda agora... sete anos? Oito?

- Dez anos.

- Tenho joelhos gordos. - Bessie levantou a saia para mostrar. - Sempre detestei meus joelhos, mas Richard gostava.

Merthin olhou. Os joelhos eram roliços e tinham covinhas. Ele podia ver as coxas brancas.

- Richard sempre beijava meus joelhos. Era um homem doce.

Bessie ajustou o vestido, como se o esticasse, mas levantou-o, e por um momento Merthin pôde ver a mancha escura convidativa entre as coxas.

- Às vezes ele me beijava toda, especialmente depois do banho. Eu gostava disso. Gostava de tudo. Um homem pode fazer o que quiser com uma mulher que vive com ele. Não concorda?

Aquilo já fora longe demais. Merthin levantou-se.

- Acho que provavelmente você tem razão. Mas esse tipo de conversa só leva para um caminho, e prefiro ir para a cama antes de cometer um pecado.

Bessie deu um sorriso triste.

- Durma bem. E se por acaso se sentir solitário, estarei aqui, ao lado do fogo.

- Não me esquecerei.

Puseram madre Cecilia numa cama, não num simples colchão, junto do altar, o lugar mais sagrado do hospital. As freiras entoavam hinos e rezavam em torno da cama durante todo o dia e toda a noite, em turnos. Havia sempre alguém para lavar seu rosto com água-de-rosas fresca, sempre um copo com água fresca da fonte ao seu lado. Nada disso fez qualquer diferença. Ela declinou tão depressa quanto as outras pessoas, sangrando pelo nariz e vagina, a respiração mais e mais entrecortada, a sede insaciável.

Na quarta noite, depois de espirrar, ela mandou chamar Caris.

Caris estava num sono pesado. Seus dias eram extenuantes, com o hospital superlotado. Sonhava que todas as crianças em Kingsbridge tinham a peste. Enquanto corria pelo hospital, tentando cuidar de todas, descobriu subitamente que também pegara a doença. Uma das crianças puxava sua manga, mas ela ignorava, enquanto tentava imaginar, desesperada, como poderia lidar com todos os pacientes se estivesse doente... e foi nesse instante que compreendeu que alguém sacudia seu ombro, com crescente urgência, dizendo:

 

- Acorde, irmã, por favor! A madre prioresa precisa de sua ajuda!

Caris despertou. Olhou para a noviça ajoelhada ao lado da cama, com uma vela na mão.

- Como ela está?

- Piorando mais e mais, mas ainda consegue falar, e pediu para chamá-la. Caris levantou-se. Calçou as sandálias. Era uma noite de frio intenso. Ela vestia o hábito de freira, e pegou o cobertor para se agasalhar. Desceu correndo a escada de pedra.

O hospital estava repleto de pessoas morrendo. Os colchões no chão haviam sido dispostos como espinhas de peixe, para que os pacientes capazes de sentar pudessem ver o altar.

Famílias agrupavam-se em torno dos colchões. Havia um cheiro forte de sangue. Caris pegou uma tira limpa de linho, de um cesto ao lado da porta, e prendeu-a para cobrir a boca e o nariz.

Quatro freiras ajoelhavam-se ao redor da cama de Cecilia, cantando. Cecilia mantinha os olhos fechados, e Caris receou a princípio ter chegado tarde demais. Mas depois a velha prioresa pareceu sentir sua presença. Virou a cabeça e abriu os olhos.

Caris sentou na beira da cama. Mergulhou um pano numa tigela de água-de-rosas e limpou uma mancha de sangue do lábio superior de Cecilia.

A respiração de Cecilia era torturada. Nos intervalos entre os ofegos, ela balbuciou: .

- Alguém sobreviveu a essa terrível doença?

- Só Madge Webber.

- A que não queria viver.

- Todos os seus filhos morreram.

- Também morrerei em breve.

- Não diga isso.

- Você esqueceu que as freiras não têm medo da morte. Durante toda a nossa vida ansiámos pela união com Jesus no paraíso. E quando a morte chega, devemos acolhê-la com satisfação.

O longo discurso deixou-a extenuada. Ela teve uma tosse convulsiva. Caris limpou o sangue de seu queixo.

- É verdade, madre prioresa. Mas as pessoas que ficam aqui podem chorar.

As lágrimas afloraram aos olhos de Caris. Perdera Mair e Old Julie, e agora estava prestes a perder Cecilia também. ,

Não chore. Isso é para as outras. Você tem de ser forte.

- Não sei por quê.

- Acho que Deus tem você em mente para assumir meu lugar, como a nova prioresa.

Neste caso, ele fez uma estranha opção, pensou Caris. Deus em geral escolhe pessoas cujas opiniões a seu respeito são mais ortodoxas. Mas ela aprendera há muito que não havia sentido em dizer essas coisas.

- Se as irmãs me escolherem, farei o melhor que puder.

- Acho que elas vão escolher você.

- Tenho certeza de que a irmã Elizabeth vai querer ser considerada.

- Elizabeth é inteligente, mas você é afetuosa.

Caris baixou a cabeça. Cecilia provavelmente tinha razão. Elizabeth seria rigorosa demais. Caris era a mais indicada para dirigir o convento, muito embora fosse cética sobre a utilidade de passar a vida em orações e canto de hinos. Mas acreditava na escola e no hospital. Seria terrível se Elizabeth controlasse o hospital.

- Há mais uma coisa. - Cecilia baixou a voz, e Caris teve de se inclinar ainda mais. - Algo que o prior Anthony me contou quando estava morrendo. Ele guardou o segredo até o final, e agora tenho de revelá-lo também.

Caris não tinha certeza se queria arcar com o fardo de um segredo. Mas os últimos momentos de uma pessoa pareciam prevalecer sobre seus escrúpulos.

- O velho rei não morreu de uma queda - murmurou Cecilia.

Caris ficou chocada. Acontecera há mais de vinte anos, mas ela ainda se lembrava dos rumores. Matar um rei era o pior crime que se podia imaginar, uma dupla atrocidade, combinando assassinato com traição, dois crimes capitais. Até mesmo saber de algo assim era um perigo. Não era de admirar que Anthony tivesse mantido isso em segredo.

- A rainha e seu amante, Mortimer, queriam tirar Edward II do caminho continuou Cecilia. - O herdeiro do trono era um menino. Mortimer se tornaria rei para todos os efeitos, menos no nome. Ao final, não demorou tanto tempo quanto ele devia esperar... o jovem Edward III cresceu muito depressa.

Ela tossiu de novo, ainda mais fraca.

- Mortimer foi executado quando eu era adolescente.

- Mas o próprio Edward não queria que ninguém soubesse o que acontecera com seu pai. Por isso, o segredo foi guardado.

Caris sentia-se apavorada. A rainha Isabella ainda vivia, em condições suntuosas, em Norfolk, a mãe reverenciada do rei. Se as pessoas descobrissem que tinha o sangue do marido nas mãos, haveria um terremoto político. Caris sentia-se culpada só por saber.

 

- Quer dizer que ele foi assassinado? - perguntou ela.

Cecilia não respondeu. Caris fitou-a atentamente. A prioresa mantinha-se imóvel, os olhos abertos fixados no teto. Estava morta.

Um dia depois da morte de Cecilia, Godwyn convidou irmã Elizabeth para almoçar com ele.

Aquele era um momento perigoso. A morte de Cecilia desequilibrava a estrutura de poder. Godwyn precisava do convento, porque o mosteiro sozinho não era viável: ele nunca tivera êxito em suas tentativas de melhorar as finanças. Mas a maioria das freiras estava agora furiosa por causa do dinheiro que ele tirara de seu tesouro, exibindo uma hostilidade amarga. Se caíssem sob o controle de uma prioresa empenhada em vingança - Caris, por exemplo -, isso poderia acarretar o fim do mosteiro.

Ele também se sentia apavorado com a peste. E se a pegasse? E se Philemon morresse? Esses lampejos de pesadelo deixavam-no angustiado, mas sempre dava um jeito de relegá-los para o fundo de sua mente. Estava determinado a não permitir que a peste o desviasse de seu propósito a longo prazo.

A eleição da prioresa era um perigo imediato. Godwyn teve visões do mosteiro fechado, ele próprio deixando Kingsbridge em desgraça, obrigado a se tornar um monge comum em outro lugar, subordinado a um prior que o disciplinaria e humilharia. Se isso acontecesse, ele pensou, poderia até se matar.

Por outro lado, havia ali uma oportunidade, não apenas uma ameaça. Se manipulasse a situação com todo cuidado, poderia ter uma prioresa simpática a ele,

alguém que ficaria contente em deixá-lo assumir o comando. E Elizabeth era sua melhor aposta.

Ela daria uma líder autoritária, alguém que saberia resguardar sua dignidade. Mas Godwyn poderia trabalhar com ela. Elizabeth era pragmática: demonstrara isso, na ocasião em que o alertara de que Caris pretendia efetuar uma auditoria no tesouro. E seria sua aliada.

Elizabeth entrou na sala de cabeça erguida. Sabia que se tornara subitamente importante, e gostava dessa circunstância, compreendeu Godwyn. Ele se perguntou, ansioso, se Elizabeth concordaria com o plano que da propor. Talvez precisasse manipulá-la com todo cuidado. Ela correu os olhos pelo salão de jantar e comentou:

- Construiu um esplêndido palácio.

Era um lembrete de que o ajudara a conseguir o dinheiro. Elizabeth nunca estivera ali antes, embora o palácio já estivesse pronto há mais de um ano. Ele preferia evitar a presença de mulheres na parte do priorado reservada aos monges. Só Petranilla e Cecilia haviam sido admitidas ali até agora.

- Obrigado. Creio que nos faz merecer o respeito dos nobres e poderosos. Já recebemos aqui o arcebispo de Monmouth.

Godwyn usara os últimos florins das freiras para comprar tapeçarias, com cenas das vidas dos profetas. Ela estudou uma imagem de Daniel na cova dos leões.

- É muito boa.

- Veio de Arras.

Elizabeth elevou uma sobrancelha.

- É seu gato que está debaixo do aparador? Godwyn soltou um grunhido de desaprovação. Mentiu:

- Não consigo me livrar dele.

Ele afugentou o gato para fora da sala. Os monges não deveriam ter animais de estimação, mas ele achava que a presença do gato era tranqüilizante.

Sentaram à extremidade de uma longa mesa de jantar. Godwyn detestava ter uma mulher ali, sentando para comer, como se fosse tão boa quanto um homem; mas disfarçou seu desconforto.

Encomendara um prato requintado, porco cozido com gengibre e maçãs. Philemon serviu um vinho da Gasconha. Elizabeth provou o porco e comentou:

- Uma delícia.

Godwyn não se interessava por comida, exceto como um meio de impressionar as pessoas, mas Philemon pôs-se a comer com voracidade. Godwyn decidiu tratar logo dos negócios:

- Como planeja ganhar a eleição?

- Creio que sou melhor candidata do que a irmã Caris.

Godwyn percebeu a emoção reprimida com que ela pronunciou o nome. Era evidente que ainda se sentia furiosa por Merthin tê-la rejeitado em favor de Caris. Agora, ela estava prestes a entrar em outra competição com sua antiga rival. Seria capaz de matar para ganhar desta vez, pensou ele.

O que era ótimo.

- Por que acha que é melhor? - perguntou Philemon.

- Sou mais velha do que Caris. Sou freira há mais tempo, e ocupo um cargo superior no priorado. Além disso, nasci e fui criada numa família profundamente religiosa.

Philemon sacudiu a cabeça, desdenhoso.

- Nada disso fará qualquer diferença. - . Elizabeth alteou as sobrancelhas, surpresa com a franqueza brusca. Godwyn

torceu para que Philemon não se mostrasse brutal demais. Precisamos que ela se mantenha dócil, ele teve vontade de sussurrar. Não a faça resistir. Mas Philemon continuou, implacável:

- Você só tem um ano de experiência a mais do que Caris. E seu pai, o bispo... que sua alma descanse em paz... contará contra você. Afinal, os bispos não deveriam ter filhos.

Ela corou.

- Os priores não deveriam ter gatos.

- Não estamos discutindo o prior - disse Philemon, impaciente.

Seu comportamento era insolente, e Godwyn estremeceu. Godwyn era eficiente ao disfarçar sua hostilidade e exibir uma fachada de charme cordial, mas Philemon nunca aprendera essa arte. Elizabeth, no entanto, reagiu com frieza.

- Portanto, convidaram-me para almoçar só para me dizer que não posso vencer? - Ela olhou para Godwyn. - Sei que não é de cozinhar com o dispendioso gengibre apenas pelo prazer.

- Tem toda razão - declarou Godwyn. - Queremos que se torne prioresa, e faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudá-la.

Philemon interveio:

- E vamos começar por uma avaliação realista de suas perspectivas. Caris é apreciada por todos... freiras, monges, mercadores e nobreza. Seu trabalho é uma grande vantagem para ela. A maioria dos monges e freiras, além de centenas de habitantes da cidade, estiveram no hospital, com diversas enfermidades, e receberam sua ajuda. Em contraste, quase ninguém vê você. É a tesoureira, considerada fria e calculista.

- Agradeço sua franqueza - disse Elizabeth. - Talvez eu devesse desistir agora.

Godwyn não pôde determinar se ela estava sendo irônica.

- Você não pode vencer - declarou Philemon. - Mas ela pode perder.

- Não seja enigmático, pois acaba se tornando cansativo - protestou ela, rispida. - Basta me dizer em palavras simples o que estão planejando.

Dá para entender por que ela não é popular, pensou Godwyn. Philemon fingiu não notar o tom de irritação.

- Sua tarefa nas próximas semanas é destruir Caris. Tem de transformá-la, na mente das freiras, de uma irmã simpática, trabalhadora e compadecida, num autêntico monstro.

Um brilho de ansiedade surgiu nos olhos de Elizabeth.

- Isso é possível?

- Com a nossa ajuda, é, sim.

- Continue.

- Ela ainda está ordenando que as freiras usem máscaras de linho no hospital?

- Está.

- E que lavem as mãos?

- Também.

- Não há base para essas práticas em Galeno ou qualquer outra autoridade médica, muito menos na Bíblia. Parece uma mera superstição.

Elizabeth deu de ombros.

- Aparentemente os médicos italianos acreditam que a peste se espalha através do ar. Pega-se ao olhar para pessoas doentes, tocar nelas, ou respirar sua respiração. Não sei como...

- E de onde os italianos tiraram essa idéia?

- Talvez apenas pela observação dos pacientes.

- Soube que Merthin comentou que os médicos italianos são os melhores... depois dos árabes.

Elizabeth acenou com a cabeça.

- Também ouvi.

- Portanto, todo esse negócio de usar máscaras provavelmente vem dos muçulmanos.

- É possível.

- Em outras palavras, é uma prática pagã.

- Creio que sim.

Philemon recostou-se, como se tivesse comprovado um argumento. Elizabeth ainda não havia entendido.

- Portanto, podemos vencer Caris ao dizer que ela introduziu uma superstição pagã no convento?

- Não exatamente - disse Philemon, com um sorriso astuto. - Vamos dizer que ela está praticando bruxaria.

Elizabeth compreendeu tudo.

- Mas é claro! Eu quase tinha esquecido.

- Você testemunhou contra ela no julgamento!

- Aconteceu há muito tempo.

- Era de se esperar que você jamais esquecesse que sua inimiga foi outrora acusada desse crime - comentou Philemon.

O próprio Philemon certamente nunca esquecia essas coisas, refletiu Godwyn. Sua especialidade era conhecer as fraquezas das pessoas e explorá-las sem o menor escrúpulo. Godwyn às vezes sentia-se culpado pela profundeza da maldade de Philemon. Mas essa maldade era tão útil para Godwyn que ele sempre reprimia as apreensões. Quem mais poderia ter imaginado aquela maneira de envenenar as mentes das freiras contra a amada Caris?

Um noviço trouxe maçãs e queijo. Philemon serviu mais vinho. Elizabeth disse:

- Tudo isso faz sentido. Já pensaram, em detalhes, como devemos abordar a questão?

- É importante preparar o terreno - disse Philemon. - Você nunca deve fazer uma acusação como essa formalmente, até que haja muitas pessoas que acreditem.

Philemon era muito competente nessas coisas, pensou Godwyn, com admiração. Elizabeth perguntou:

- E como sugere que consigamos isso?

- Ações são melhores do que palavras. Recuse-se pessoalmente a usar a mascara. Quando perguntarem, diga calmamente que ouviu falar que é uma prática muçulmana e que prefere os meios cristãos de proteção. Estimule suas amigas a também recusarem a máscara, como um sinal de apoio a você. E também não lave as mãos com freqüência. Quando notar pessoas seguindo as recomendações de Caris, pode franzir o rosto em desaprovação... mas não diga nada.

Godwyn acenou com a cabeça em concordância. A astúcia de Philemon beirava o nível da genialidade.

- Não devemos sequer mencionar heresia?

- Fale tanto quanto quiser, mas não ligue diretamente a Caris. Diga que ouviu falar de uma herege que foi executada em outra cidade, ou uma adoradora do diabo que depravou um convento inteiro, talvez na França.

- Eu não gostaria de dizer qualquer coisa que não fosse verdade - ressaltou Elizabeth, tensa.

Philemon às vezes esquecia que nem todos eram tão inescrupulosos quanto ele. Godwyn apressou-se em interferir:

- Claro que não... Philemon apenas quis dizer que você deve repetir essas histórias se e quando ouvi-las, para lembrar as freiras do perigo permanente.

- Está bem. - O sino para a Nona tocou, e Elizabeth levantou-se. - Não devo perder o serviço. Não quero que alguém note a minha ausência, e adivinhe que estive aqui.

- Tem toda razão - concordou Godwyn. - De qualquer forma, já combinamos nosso plano.

Elizabeth acenou com a cabeça.

- Nada de máscaras.

Godwyn percebeu que ela ainda acalentava uma dúvida.

- Não imagina que sejam eficazes, não é?

- Claro que não. Como poderiam ser?

- É isso mesmo.

- Obrigada pelo almoço.

Ela saiu. Aquele encontro correra bem, refletiu Godwyn, mas ele ainda estava preocupado. Ansioso, comentou com Philemon:

- Elizabeth sozinha pode não conseguir convencer as pessoas de que Caris ainda é uma bruxa.

- Concordo. Mas podemos ajudar no processo.

- Talvez com um sermão?

- Exatamente.

- Falarei sobre a peste do púlpito da catedral. Philemon ficou pensativo.

- Talvez seja perigoso atacar Caris diretamente. Pode ter um efeito contrário ao desejado.

Godwyn concordava. Se houvesse uma luta aberta entre Garis e ele, era provável que os moradores de Kingsbridge a apoiassem.

- Não mencionarei seu nome.

- Apenas lance as sementes da dúvida, e deixe as pessoas tiraram suas próprias conclusões.

- Farei acusações de heresia, adoração do diabo e práticas pagãs.

A mãe de Godwyn, Petranilla, entrou nesse instante. Estava bastante encurvada, e só andava com a ajuda de duas bengalas, mas a cabeça grande ainda se projetava para a frente, numa postura agressiva, sobre os ombros ossudos.

- Como foi o encontro? - perguntou ela.

Petranilla recomendara que Godwyn atacasse Caris, e aprovara o plano de Philemon.

- Elizabeth fará exatamente o que desejamos.

Godwyn sentiu-se satisfeito, pois gostava de dar boas notícias à mãe.

- Isso é ótimo. Agora, quero conversar sobre outra coisa. - Ela olhou para Philemon. - Não precisamos de você.

Por um momento, Philemon mostrou-se magoado, como uma criança que leva uma palmada inesperada. Podia ser de uma agressividade brutal, mas se magoava com facilidade. Mas sempre se recuperava depressa, e fingiu não ficar perturbado, mas um pouco divertido com a arrogância de Petranilla.

- Claro, madame - disse ele, com uma deferência exagerada.

- Pode dirigir a Nona por mim? - pediu Godwyn.

- Claro.

Depois que ele se retirou, Petranilla sentou à mesa grande e comentou:

- Sei que fui eu quem recomendou que estimulasse os talentos desse rapaz, mas tenho de admitir que hoje em dia ele me deixa toda arrepiada.

- Ele é mais útil do que nunca.

- Nunca se pode confiar por completo num homem implacável. Se ele trai os outros, por que não trairia você também?

- Eu me lembrarei disso. - Godwyn achava que estava tão ligado a Philemon agora que seria difícil operar sem ele. Mas não queria dizer isso à mãe. E decidiu mudar de assunto. - Gostaria de tomar um copo de vinho?

Ela sacudiu a cabeça, em negativa.

- Já tenho propensão para cair mesmo sem tomar vinho. Sente e me escute.

- Está bem, mãe. Godwyn sentou ao lado dela.

- Quero que você deixe Kingsbridge antes que a peste se torne ainda pior.

- Não posso partir agora. Mas você deveria...

- Não se preocupe comigo. Morrerei em breve de qualquer maneira. O pensamento deixou Godwyn em pânico.

- Não diga isso!

- Não seja estúpido. Tenho sessenta anos. Olhe para mim... não consigo nem me manter empertigada. Chegou o meu tempo. Mas você só tem quarenta e dois anos... e tem muita coisa pela frente! Pode se tornar bispo, arcebispo, até mesmo cardeal.

Como sempre, a ambição ilimitada da mãe para ele deixava Godwyn atordoado. Ele seria mesmo capaz de se tornar um cardeal? Ou era apenas uma cegueira de mãe? Ele não sabia.

- Não quero que você morra da peste antes de alcançar seu destino.

- Mãe, você não vai morrer.

- Esqueça o que pode acontecer comigo! - exclamou ela, furiosa.

- Não posso deixar a cidade. Preciso ter certeza de que as freiras não escolherão Caris para prioresa.

- Pois então dê um jeito para que eles façam a eleição o mais depressa possível. Se não conseguir, saia da cidade de qualquer maneira, e deixe a eleição nas mãos de Deus.

Godwyn tinha pavor da peste, mas também temia o fracasso.

- Eu poderia perder tudo se elas elegerem Caris. A voz de Petranilla abrandou:

- Preste atenção, Godwyn. Só tenho um filho, que é você. Não suportaria perdê-lo.

A súbita mudança de tom chocou-o para o silêncio. A mãe acrescentou:

- Por favor, eu suplico, saia desta cidade e vá para algum lugar onde a peste não poderá alcançá-lo.

Ele nunca a ouvira suplicar. Era angustiante. Deixou-o apavorado. Só para detê-la, Godwyn murmurou:

- Deixe-me pensar a respeito.

- Essa peste é como um lobo na floresta. Quando você o vê, não pensa duas vezes... trata de fugir.

Godwyn fez o sermão no domingo antes do Natal.

Era um dia seco, com nuvens altas e claras cobrindo a abóbada do céu. A torre central da catedral parecia um ninho de ave, com os andaimes e cordas que Elfric usava para demoli-la, de cima para baixo. No mercado, no pátio gramado, os mercadores trêmulos faziam poucos negócios, com uns poucos fregueses preocupados. Além do mercado, a relva congelada do cemitério era marcada por retângulos marrons, de mais de uma centena de sepulturas recentes.

Mas a catedral estava lotada. A geada que Godwyn notara nas paredes internas durante a Prima já havia sido dissolvida pelo calor de milhares de corpos quando ele entrou na catedral para o serviço de Natal. Todos se mantinham juntos, em seus casacos e mantos cor de terra, parecendo gado num curral. Ali estavam por causa da peste, ele sabia. A congregação de milhares de habitantes da cidade fora aumentada por outras centenas de moradores dos campos ao redor, todos em busca da proteção de Deus contra uma doença que já atacara pelo menos uma família em cada rua da cidade e aldeia rural. Godwyn sentia-se compadecido. E até vinha rezando com mais fervor ultimamente.

Em circunstâncias normais, apenas as pessoas na frente acompanhavam o serviço. Os que ficavam mais atrás conversavam com os amigos e vizinhos, enquanto os jovens se divertiam nos fundos. Mas hoje havia pouco barulho na catedral.

Todas as cabeças estavam voltadas para os monges e freiras, com uma atenção excepcional, enquanto desempenhavam os rituais. A multidão murmurava os responsos com o maior cuidado, todos desesperados para adquirir o máximo possível de santidade defensiva. Godwyn estudou os rostos, lendo as expressões. E o que viu em todos foi o medo. Como ele, todos especulavam apavorados quem seria o próximo a espirrar, a pôr sangue pelo nariz, ou exibir manchas purpuras.

Bem na frente, ele viu o conde William com a esposa, Philippa, os dois filhos crescidos, Roland e Richard, e a filha muito mais jovem, Odila, que tinha quatorze anos. William comandava o condado no mesmo estilo do pai, Roland, com ordem e justiça, a mão firme que podia às vezes se tornar cruel. Parecia preocupado: uma erupção da peste em seu condado era uma coisa que não podia controlar, por mais rigoroso que fosse. Philippa passava o braço em torno da menina, como se a protegesse.

Ao lado deles estava Sir Ralph, lorde de Tench. Ralph nunca fora capaz de ocultar seus sentimentos, e agora se mostrava apavorado. A esposa-criança tinha o filho no colo, ainda bebê. Godwyn batizara o menino há pouco tempo, com o nome de Gerald, em homenagem ao avô, parado próximo, com a avó, Maud.

Os olhos de Godwyn deslocaram-se para o irmão de Ralph, Merthin. Quando Merthin voltara de Florença, Godwyn torcera para que Caris renunciasse a seus votos e deixasse o convento. Achava que ela poderia ser um estorvo menor como a mera esposa de um cidadão. Mas isso não acontecera. Merthin segurava a mão de sua pequena filha italiana. Ao lado, estava Bessie, da Bell Inn O pai de Bessie, Paul Bell, já sucumbira à peste.

Não muito longe estava a família que Merthin rejeitara: Elfric, com a filha, Griselda, o menino que recebera o nome de Merthin - agora com dez anos - e Harry Mason, o homem com quem Griselda casara depois de perder a esperança de ficar com o Merthin original. Ao lado de Elfric estava sua segunda esposa, Alice, prima de Godwyn. Elfric olhava para cima a todo instante. Construíra um teto provisório sobre a interseção, enquanto demolia a torre, e admirava sua obra... ou se preocupava a respeito.

Uma ausência conspícua era o bispo de Shiring, Henri de Mons. O bispo normalmente fazia o sermão do Dia de Natal. Mas ele não viera. Tantos clérigos haviam morrido da peste que o bispo andava muito ocupado, em visitas frenéticas a paróquias, em busca de substitutos. Já se falava em reduzir as exigências para sacerdotes, em ordenar homens com menos de vinte e cinco anos, até mesmo em aceitar filhos ilegítimos.

Godwyn adiantou-se para falar. Tinha uma tarefa delicada. Precisava atiçar o medo e o ódio contra a pessoa mais popular em Kingsbridge, e tinha de fazer isso sem mencionar seu nome; mais do que isso, sem sequer deixar as pessoas perceberem que era hostil a ela. Deviam voltar sua fúria contra ela; mas quando isso acontecesse, precisariam acreditar que a idéia era delas, não uma sugestão sua.

Nem todos os serviços tinham um sermão. Só nas grandes solenidades, com a presença de uma enorme multidão, é que ele se dirigia à congregação; e nem sempre era uma pregação. Com bastante freqüência, havia apenas comunicados, mensagens do arcebispo ou do rei sobre eventos de importância nacional...

vitórias militares, tributos, nascimentos e mortes na família real. Mas hoje era um dia especial.

- O que é a doença? - indagou ele.

Já havia silêncio na catedral, mas agora a congregação ficou imóvel. Ele fizera a indagação que se encontrava na mente de todos.

- Por que Deus manda doenças e pestes para nos atormentar e matar?

Seus olhos fixaram-se na mãe, parada atrás de Elfric e Alice; e ele lembrou-se subitamente da previsão de Petranilla de que morreria em breve. Por um momento, ficou paralisado pelo medo, incapaz de falar. Os fiéis mudaram de posição, irrequietos, em expectativa. Como sabia que perdia a atenção das pessoas, Godwyn entrou em pânico, o que tornou a paralisia ainda pior. Mas o momento logo passou.

- A doença é uma punição para o pecado - continuou ele.

Ao longo dos anos, Godwyn desenvolvera um estilo de pregação. Não era pomposo, como frei Murdo. Falava mais em tom de conversa, como um homem racional, em vez de um demagogo. Não sabia até que ponto isso seria apropriado para atiçar o tipo de ódio que queria que as pessoas sentissem. Mas Philemon dizia que isso fazia com que parecesse mais convincente.

- A peste é uma doença especial, e por isso sabemos que Deus está nos infligindo uma punição especial.

Houve um som baixo coletivo da multidão, entre um murmúrio e um gemido. Era isso o que eles queriam ouvir. Godwyn sentiu-se estimulado.

- Devemos nos perguntar que pecados cometemos para merecer tal punição. Ao dizer isso, ele notou Madge Webber, sozinha. Na última vez em que viera à catedral, ela tinha um marido e quatro filhos. Godwyn pensou em dizer que ela enriquecera usando tinturas criadas por bruxaria, mas decidiu contra essa tática. Madge era muito apreciada e respeitada.

- Digo a vocês que Deus está nos punindo pela heresia. Há pessoas no mundo... nesta cidade... até mesmo nesta catedral hoje... que questionam a autoridade da santa Igreja de Deus e de seus ministros. Duvidam que o sacramento transforme pão no verdadeiro corpo de Cristo; negam a eficácia das missas para os mortos; alegam que é idolatria rezar diante das estátuas de santos.

Essas eram as heresias habituais, debatidas pelos estudantes de teologia em Oxford. Poucas pessoas em Kingsbridge se importavam com essas discussões, e Godwyn percebeu o desapontamento e tédio nos rostos da multidão. Sentiu que as perdia de novo, e seu pânico aumentou. Desesperado, ele acrescentou:

- Há pessoas nesta cidade que praticam bruxaria.

Isso atraiu outra vez as atenções. Houve um murmúrio coletivo de espanto.

- Devemos estar vigilantes contra a falsa religião. Lembrem-se de que só Deus pode curar a doença. Oração, confissão, comunhão, penitência... esses são os remédios sancionados pelo cristianismo. - Ele elevou um pouco a voz. - Todo o resto é blasfêmia!

Godwyn decidiu que isso não era bastante claro. Precisava ser mais específico.

- Pois se Deus nos manda uma punição e tentamos escapar, não estamos desafiando sua vontade? Devemos rezar para que ele nos perdoe.

E talvez em sua sabedoria ele cure nossa doença. Mas as curas heréticas só servirão para agravar a situação.

A audiência estava fascinada, e Godwyn se entusiasmou.

- Eu advirto! Os encantamentos mágicos, os apelos a duendes e fadas, as ntlações não-cristãs, e especialmente as práticas pagãs... tudo isso é bruxaria, tudo proibido pela santa Igreja de Deus.

Sua verdadeira audiência naquele dia era formada pelas trinta e duas freiras por trás dele, no coro da catedral. Até agora, apenas umas poucas haviam mannifestado sua oposição a Caris e o apoio a Elizabeth, recusando-se a usar a máscara contra a peste. Nas circunstâncias atuais, Caris ganharia facilmente a eleição na próxima semana. Ele precisava transmitir às freiras a mensagem clara de que as teorias médicas de Caris eram heréticas.

- Qualquer pessoa que seja culpada dessas práticas... - Ele fez uma pausa, ra aumentar o efeito. Inclinou-se para a frente, correndo os olhos pela congregação. - ... qualquer pessoa na cidade...

Godwyn olhou para trás, na direção dos monges e freiras no coro. -... ou mesmo no priorado... - Ele tornou a se virar. -... qualquer pessoa culpada dessas práticas deve ser escorraçada. Outra pausa, pelo efeito.

- E que Deus tenha misericórdia de sua alma.

aul Bell foi enterrado três dias antes do Natal. Todos os que se postaram à beira de sua sepultura, no frio de dezembro, foram convidados a tomar um drinque na Bell em sua memória. A filha, Bessie, era agora a dona da taverna. Não queria lamentar sozinha, e por isso serviu generosamente a sua melhor cerveja. Donie Fiddler tocou melodias tristes em seu instrumento de cinco cordas. Os convidados foram se tornando mais lacrimosos e sentimentais à medida que se ibriagavam.

Merthin sentou no canto com Lolla. Comprara no mercado, no dia anterior, passas de Corinto... um luxo dispendioso. Partilhava-as com Lolla, ao mesmo tenpo em que lhe ensinava os números. Contou nove passas para si mesmo; mas quando contou as passas para Lolla, começou a saltar os números:

- Um, três, cinco, sete, nove.

- Não! - exclamou a menina. - Isso não está certo! Lolla ria, sabendo que era apenas brincadeira do pai.

- Mas eu contei nove para cada um - alegou Merthin.

- Mas você ficou com mais!

- Como isso aconteceu?

- Não contou direito, seu bobo.

- Neste caso, você pode contar, para ver se consegue fazer melhor.

Bessie sentou com os dois. Usava o seu melhor vestido, que estava um pouco justo.

- Posso comer algumas passas? - perguntou ela.

- Pode, sim - respondeu Lolla. - Mas não deixe papai contar.

- Não se preocupe - declarou Bessie. - Conheço os truques dele.

- Tome aqui - disse Merthin a Bessie. - Uma, três, nove, treze... mas treze é demais! Preciso tirar algumas.

Ele tirou três passas.

- Doze, onze, dez. Pronto, agora você tem dez passas. Lolla estava achando a brincadeira histericamente engraçada.

- Mas ela só tem uma!

- Contei errado de novo?

- Contou! - A menina olhou para Bessie. - Conhecemos os truques dele.

- Então conte você.

A porta foi aberta, deixando passar uma lufada de ar gelado. Caris entrou, envolta por um grosso manto. Merthin sorriu; cada vez que a via, sentia-se contente por ela ainda estar viva. Bessie fitou-a com uma expressão cautelosa, mas deu-lhe as boas-vindas.

- Olá, irmã. É muito gentil de sua parte ter se lembrado de meu pai.

- Lamento muito que você o tenha perdido. Ele era um bom homem. Caris também mantinha uma polidez formal. Merthin compreendeu que aquelas duas mulheres se consideravam rivais em sua afeição. Não sabia o que fizera para merecer tanta devoção.

- Obrigada - disse Bessie a Caris. - Quer tomar um copo de cerveja?

- É muita gentileza sua, mas não vou beber Preciso conversar com Merthin. Bessie olhou para Lolla.

- Vamos assar algumas castanhas no fogo?

- Claro!

Bessie afastou-se com Lolla.

- Elas se dão muito bem - comentou Caris. Merthin balançou a cabeça.

- Bessie tem um coração afetuoso, e não teve filhos. Caris fez uma cara de triste.

- Também não tenho filhos... mas talvez eu não tenha um coração afetuoso. Merthin tocou em sua mão.

- Sei que não é bem assim. Você tem um coração tão afetuoso que cuida não apenas de uma ou duas crianças, mas de dezenas de pessoas.

- É gentileza sua pensar assim.

- É a pura verdade, mais nada. Como estão as coisas no hospital?

- Insuportáveis. O hospital está cheio de pessoas doentes, e não posso fazer nada, a não ser enterrá-las.

Merthin sentiu um ímpeto de compaixão. Caris era sempre tão competente, tão confiável, mas a tensão cobrava seu tributo. Agora, ela estava disposta a se abrir para ele, embora para ninguém mais.

- Você parece cansada.

- Deus sabe o quanto me sinto exausta.

- Suponho que também se preocupa com a eleição.

- Vim pedir sua ajuda para isso.

Merthin hesitou. Era dividido por sentimentos contraditórios. Por um lado, queria que Caris realizasse sua ambição e se tornasse prioresa. Mas, neste caso, ela poderia algum dia se tornar sua esposa? Ele acalentava a esperança, vergonhosamente egoísta, de que Caris perdesse a eleição e renunciasse a seus votos. Mesmo assim, queria proporcionar qualquer ajuda que ela pedisse, apenas porque a amava.

- Está bem.

- O sermão de Godwyn ontem me prejudicou bastante.

- Será que nunca vai se livrar da velha acusação de bruxaria? É tão absurda!

- As pessoas são estúpidas. O sermão teve um grande impacto sobre as freiras.

- Como era o objetivo, com toda certeza.

- Não tenho a menor dúvida quanto a isso. Poucas acreditaram em Elizabeth quando ela disse que minhas máscaras de linho eram pagãs. Só suas maiores amigas descartaram as máscaras: Cressie, Elaine, Jeannie, Rosie e Simone. Mas a situação mudou quando as outras ouviram a mensagem do púlpito da catedral. Todas as irmãs mais impressionáveis também descartaram as máscaras. Umas poucas evitam tornar sua escolha óbvia, mas também nunca vão ao hospital. Só um punhado ainda usa máscara: eu e mais quatro a quem estou muito ligada.

- Eu já receava que isso acontecesse.

- Agora que madre Cecilia, Mair e Old Julie morreram, há apenas trinta e duas freiras com direito a voto. Dezessete votos eram tudo o que se precisava para vencer. Elizabeth tinha no início apenas cinco partidárias comprometidas. O sermão lhe deu mais onze votos. Com seu próprio voto, ela chega a dezessete. Só tenho cinco votos garantidos. E mesmo que todas as indecisas viessem para o meu lado, ainda assim eu perderia.

Merthin ficou furioso por ela. Devia ser angustiante ser rejeitada daquela maneira, depois de tudo o que Caris fizera pelo convento.

- O que posso fazer?

- O bispo é minha última esperança. Se ele se manifestar contra Elizabeth e anunciar que não ratificará sua eleição, algumas de suas partidárias podem mudar de idéia. Com isso, eu teria uma chance.

- Como você poderia influenciá-lo?

- Eu não posso, mas você poderia... ou pelo menos a guilda da paróquia.

- É possível.

- Há uma reunião esta noite. Imagino que você vai comparecer.

- Claro que vou.

- Pense a respeito. Godwyn já mantém a cidade num estrangulamento. É muito ligado a Elizabeth... a família dela é arrendatária de terras do priorado. Godwyn sempre teve o cuidado de favorecer esses parentes. Se ela se tornar prioresa, será tão dócil quanto Elfric. Godwyn não terá mais qualquer oposição, dentro ou fora do priorado. Será a morte de Kingsbridge.

- Tem toda razão. Mas não sei se os homens da guilda concordarão em interferir junto ao bispo...

Caris parecia de repente muito desanimada.

- Apenas tente. Se eles rejeitarem, tudo bem.

O desespero de Caris deixou-o comovido. Desejou poder ser mais otimista.

- Claro que tentarei.

- Obrigada. - Ela levantou-se. - Você deve ter sentimentos conflitantes a respeito. Obrigada por ser um amigo de verdade.

Merthin sorriu, amargurado. Queria ser o marido, não um amigo. Mas aproveitaria o que pudesse obter.

Ela saiu para a noite fria.

Merthin juntou-se a Bessie e Lolla à beira do fogo. Provou as castanhas assadas. Estava preocupado. A influência de Godwyn era maligna, mas mesmo assim seu poder nunca parava de crescer. Por que isso acontecia? Talvez porque ele era um homem ambicioso e sem consciência... uma combinação poderosa.

Enquanto a escuridão se aprofundava, ele levou Lolla para a cama. Pagou à filha de um vizinho para tomar conta da menina. Bessie deixou Sairy, a empregada, tomando conta da taverna. Os dois, usando mantos pesados, subiram juntos pela rua principal até a casa da guilda. Era a noite da reunião do meio do inverno da guilda da paróquia.

No fundo da sala comprida havia um barril de cerveja para os membros. O clima de festa parecia ser compulsivo naquele Natal, pensou Merthin. Muitos haviam bebido bastante no velório de Paul Bell, e alguns dos que entraram junto com Merthin apressaram-se em encher suas canecas, como se não tomassem cerveja há uma semana. Talvez bebessem assim para não pensarem na peste.

Bessie estava entre os quatro novos membros da guilda. Os outros três eram filhos mais velhos de eminentes mercadores que haviam morrido. Godwyn, como suserano dos habitantes da cidade, devia estar satisfeito com o aumento de seus rendimentos através da taxa de herança, refletiu Merthin.

Depois de tratados os assuntos de rotina, Merthin levantou a questão da eleição da nova prioresa.

- Isso não é da nossa conta - declarou Elfric no mesmo instante.

- Acontece justamente o contrário, porque o resultado afetará o comércio em nossa cidade por muitos anos, talvez por décadas - argumentou Merthin. - A prioresa é uma das pessoas mais ricas e poderosas de Kingsbridge, e devemos fazer tudo o que pudermos para eleger alguém que não fará nada para restringir os negócios.

- Mas não há nada que possamos fazer... não temos direito a voto.

- Temos influência. Podemos fazer uma petição ao bispo.

- Nunca foi feita antes.

- Isso não chega a ser um argumento. Bill Watkin interveio:

- Quem são as candidatas?

- Desculpem - disse Merthin. - Pensei que todos já soubessem. Irmã Caris e irmã Elizabeth. Acho que devemos apoiar Caris.

- Claro que você a apoia - declarou Elfric. - E todo mundo sabe por quê! Houve uma onda de risadas. Todos sabiam da antiga e intermitente paixão entre Merthin e Caris. Merthin sorriu.

- Continuem a rir... não me importo. Mas não se esqueçam de que Caris foi criada no negócio de lã e ajudava o pai. Por isso, ela compreende os problemas e desafios que os mercadores enfrentam... enquanto sua rival é filha de um bispo e provavelmente simpatiza com o prior.

Elfric tinha o rosto vermelho... em parte por causa da cerveja que tomara, pensou Merthin, mas acima de tudo pela raiva.

- Por que você me odeia, Merthin? - indagou ele. Merthin ficou surpreso.

- Pensei que era o contrário.

- Você seduziu minha filha, e depois se recusou a casar com ela. Tentou me impedir de construir a ponte. Pensei que havíamos nos livrado de você, mas voltou e me humilhou por causa das rachaduras na ponte. Só estava aqui há poucos dias quando tentou me derrubar do cargo de regedor e pôr seu amigo Mark no meu lugar. Até insinuou que as rachaduras na catedral eram culpa minha, embora ela tenha sido construída antes mesmo do meu nascimento. Repito, por que você me odeia?

Merthin não sabia o que dizer. Como Elfric podia deixar de saber o que fizera com Merthin? Mas Merthin não queria entrar nessa discussão na presença da guilda da paróquia... parecia infantil.

- Não o odeio, Elfric. Foi um mestre cruel quando eu era seu aprendiz e é um construtor desleixado, além de ser um bajulador de Godwyn. Mas não o odeio.

Um dos novos membros, Joseph Blacksmith, perguntou:

- É isso o que fazemos na guilda da paróquia... temos discussões estúpidas? Merthin sentiu-se atingido. Não fora ele quem introduzira a questão pessoal.

Mas dizer isso seria considerado como uma continuação da discussão. Por isso, ele preferiu se manter calado, mas refletiu que Elfric era sempre astucioso.

- Joe tem razão - declarou Bill Watkin. - Não viemos até aqui para escutar uma discussão entre Elfric e Merthin.

Merthin sentiu-se perturbado pela disposição de Bill de situá-lo no mesmo nível de Elfric. De um modo geral, os homens da guilda gostavam dele e demonstravam alguma hostilidade a Elfric, desde a disputa sobre as rachaduras na ponte. Na verdade, teriam derrubado Elfric se Mark não tivesse morrido. Mas alguma coisa mudara. Merthin disse:

- Podemos voltar à questão em discussão, que é a petição ao bispo a favor de Caris como prioresa?

- Sou contra - declarou Elfric. - O prior Godwyn quer Elizabeth. Uma nova voz se manifestou:

- Estou com Elfric. Não podemos brigar com o prior.

Era Marcel Chandler, que tinha o contrato de fornecimento de velas de cera para o priorado. Godwyn era seu maior cliente. Merthin não se surpreendeu.

Mas a intervenção do orador seguinte deixou-o chocado. Era Jeremiah Builder, que disse:

- Acho que não devemos favorecer uma pessoa que foi acusada de heresia. Ele cuspiu no chão, duas vezes, à esquerda e à direita, para depois fazer o sinal-da-cruz. Merthin ficou surpreso demais para responder.

Jeremiah sempre fora supersticioso ,do eximiu», mas Merthin nunca imaginara que isso o levaria a trair seu mentor. Coube a Bessie defender Caris.

- Essa acusação sempre foi absurda - disse ela.

- Mas nunca foi desmentida - insistiu Jeremiah.

Merthin virou-se para ele, mas Jeremiah recusou-se a fitá-lo nos olhos.

- O que deu em você, Jimmie? - indagou Merthin.

- Não quero morrer da peste. Ouviu o sermão. Toda e qualquer prática de remédios pagãos deve ser proibida. Estamos falando em pedir ao bispo para torná-la prioresa... isso não é escorraçá-la!

Houve murmúrios de concordância, e Merthin compreendeu que a maré de opinião mudara. Os outros não eram tão crédulos quanto Jeremiah, mas partilhavam seu medo. A peste assustara a todos, afetando a racionalidade. O sermão de Godwyn fora mais eficaz do que Merthin imaginara.

Ele já estava prestes a desistir... até que pensou em Caris, como ela parecia cansada e desmoralizada, e resolveu fazer mais uma tentativa.

- Já passei por tudo isso em Florença. E devo adverti-los agora: padres e monges não salvarão ninguém da peste. Entregarão a cidade a Godwyn numa bandeja a troco de nada.

- Isso parece horrivelmente próximo da blasfêmia - comentou Jeremiah. Merthin olhou ao redor. Os outros concordavam com Jeremiah. Estavam assustados demais para pensar direito. Não havia mais nada que ele pudesse fazer.

A guilda decidiu que não teria qualquer participação na eleição para prioresa. A reunião foi encerrada pouco depois, num clima de mau humor. Os membros pegaram tições em brasa para iluminar o caminho de volta para casa.

Merthin decidiu que era tarde demais para comunicar o resultado da reunião a Caris: as freiras, como os monges, deitavam ao anoitecer e se levantavam ainda de madrugada. Mas deparou-se com um vulto envolto por um enorme manto à sua espera nas proximidades da casa da guilda. Para sua surpresa, a tocha em sua mão iluminou o rosto perturbado de Caris.

- O que aconteceu? - perguntou ela, ansiosa.

- Fracassei. Sinto muito.

A luz da tocha, ela se mostrava magoada.

- E o que eles disseram?

- Não querem interferir. Acreditaram no sermão.

- Idiotas!

Juntos, eles foram andando pela rua principal. Quando alcançaram o portão do priorado, Merthin disse:

- Deixe o convento, Caris. Não por mim, mas por você. Não pode trabalhar sob o comando de Elizabeth. Ela a odeia, e bloqueará tudo o que quiser fazer.

- Ela ainda não venceu.

- Mas vai vencer... você mesma disse isso. Renuncie a seus votos e case comigo.

- O casamento é um voto. Se eu quebrar meu voto a Deus, por que confiaria em mim para manter minha promessa a você?

Merthin sorriu.

- Correrei o risco.

- Deixe-me pensar a respeito.

- Vem pensando a respeito há meses - disse Merthin, ressentido. - Se não sair agora, nunca mais sairá.

- Não posso sair agora. As pessoas precisam de mim mais do que nunca. Ele começou a se irritar.

- Não continuarei a pedir para sempre.

- Sei disso.

- Para ser franco, não pedirei de novo, depois desta noite. Caris começou a chorar.

- Sinto muito, mas não posso abandonar o hospital no meio de uma peste.

- O hospital...

- E as pessoas da cidade.

- Mas o que me diz de você?

A chama da tocha fazia as lágrimas de Caris faiscarem.

- As pessoas precisam desesperadamente de mim.

- São ingratas, todas elas... freiras, monges, os moradores da cidade. E, por Deus, falo com conhecimento!

- Não faz diferença.

Merthin acenou com a cabeça, aceitando a decisão de Caris e reprimindo sua raiva egoísta.

- Se é assim que você se sente, deve cumprir seu dever.

- Obrigada por compreender.

- Eu gostaria que o resultado fosse diferente.

- Eu também.

- É melhor você levar a tocha.

- Obrigada.

Ela pegou a tocha e afastou-se. Merthin observou-a, pensando: É assim que termina? Isso é tudo? Caris seguia à sua maneira característica, em passos determinados e confiantes, mas mantinha a cabeça baixa. Passou pelo portão e desapareceu.

As luzes da Bell brilhavam alegremente através das aberturas nas janelas e na porta. Ele entrou.

Os últimos clientes despediam-se, meio embriagados. Sairy recolhia as canecas e limpava as mesas. Merthin foi ver Lolla, que estava num sono profundo. Pagou a garota que ficara tomando conta dela. Pensou em se deitar, mas sabia que não conseguiria dormir. Estava transtornado demais. Por que perdera a paciência logo naquela noite, não em qualquer outra ocasião? Ficara furioso. Mas sua raiva vinha do medo, ele compreendeu agora, enquanto se acalmava. Por trás de tudo, havia o pavor de que Caris pegasse a peste e morresse.

Ele sentou num banco da taverna e tirou as botas. Permaneceu ali, olhando para o fogo, especulando por que não podia ter a coisa que mais queria na vida.

Bessie também voltou e pendurou seu manto. Sairy foi embora. Bessie trancou tudo. Foi sentar na frente de Merthin, ocupando a cadeira grande que seu pai sempre usava.

- Lamento muito pelo que aconteceu na guilda - disse ela. - Não tenho certeza de quem está certo, mas sei que você ficou desapontado.

- De qualquer forma, obrigado por me apoiar.

- Sempre o apoiarei.

- Talvez seja tempo de eu parar de lutar as batalhas de Caris.

- Concordo. Mas posso ver que isso o deixa triste.

- Triste e furioso. Tenho a sensação de que desperdicei a metade de minha vida esperando por Caris.

- O amor nunca é desperdiçado.

Ele levantou os olhos, surpreso. Depois de um momento, murmurou:

- Você é uma pessoa sensata.

- Não há mais ninguém aqui além de Lolla. Todos os hóspedes do Natal já foram embora. - Bessie levantou-se e foi se ajoelhar na frente dele. - Eu gostaria de confortá-lo... de qualquer maneira que puder.

Merthin contemplou seu rosto redondo e cordial. Sentiu que seu próprio corpo se agitava em resposta. Há muito tempo não tinha em seus braços o corpo macio de uma mulher. Mas sacudiu a cabeça.

- Não quero usá-la. Ela sorriu.

- Não estou pedindo para casar comigo. Nem mesmo estou pedindo para me amar. Acabei de enterrar meu pai, enquanto você ficou desapontado com Caris. Ambos precisamos de alguém para nos consolar.

- Para atenuar a dor, como um jarro de vinho. Bessie pegou a mão de Merthin e beijou a palma.

- Melhor do que vinho...

Ela comprimiu a mão dele contra o seio, grande e macio. Merthin suspirou enquanto o acariciava. Bessie ergueu o rosto, ele inclinou-se e beijou-a nos lábios. Ela soltou um gemido de prazer. Foi um beijo delicioso, como uma bebida gelada num dia quente, e ele não queria mais parar.

Bessie acabou recuando, ofegante. Levantou-se e tirou o vestido de lã pela cabeça. O corpo nu parecia rosado à luz do fogo. Ela era toda feita de curvas: quadris redondos, barriga redonda, seios redondos. Ainda sentado, Merthin pôs as mãos em sua cintura e puxou-a. Beijou a pele quente da barriga, depois as pontas rosadas dos seios. Levantou os olhos para o rosto corado de Bessie.

- Não quer subir? - murmurou ele.

- Não - respondeu ela, ofegante. - Não posso esperar tanto tempo.

A eleição para prioresa foi realizada no dia seguinte ao Natal. Naquela manhã, Caris sentia-se tão deprimida que mal foi capaz de sair da cama. Quando soou o sino para a Matina, de madrugada, ela sentiu a forte tentação de enfiar a cabeça sob as cobertas e alegar que não se sentia bem.

Mas não podia se omitir, quando tantas pessoas estavam morrendo. Ao final, fez um esforço para se levantar.

Arrastou-se pelas geladas lajes de pedra do claustro, ao lado de Elizabeth, as duas à frente da procissão para a igreja. Esse protocolo fora combinado porque nenhuma das duas sentia-se disposta a ceder precedência à outra, enquanto estivessem em disputa na eleição. Mas Caris não se importava. O resultado era inevitável. Ela bocejou e tremeu de frio no coro, durante os salmos e as leituras. Estava furiosa. Mais tarde, naquele dia, Elizabeth seria eleita prioresa. Caris acalentava um ressentimento contra as freiras por rejeitarem-na, odiava Godwyn por sua hostilidade, e desprezava os mercadores da cidade por se recusarem a interferir.

Experimentava a sensação de que sua vida fora um fracasso. Não construíra o novo hospital com que sonhara, e agora nunca mais o faria.

Também ressentia-se de Merthin, por fazer um oferecimento que ela não podia aceitar. Ele não era capaz de compreender. Para Merthin, o casamento teria de substituir o trabalho a que ela se dedicara. Fora por isso que ela vacilara durante tantos anos. Não porque não o desejasse. Ansiava por ele com uma fome que mal conseguia suportar.

Ela murmurou os últimos responsos e depois deixou a catedral, em passos mecânicos, à frente das freiras. Ao contornarem de novo o claustro, alguém por trás dela espirrou. Sentia-se desanimada demais para sequer olhar e descobrir quem fora.

As freiras subiram a escada para o dormitório. Quando entrou ali, Caris ouviu uma respiração pesada, e compreendeu que alguém ficara no dormitório. Sua vela revelou que era a mestra das noviças, irmã Simone, uma mulher melancólica de meia-idade, normalmente meticulosa, que nunca se fingia de doente para se esquivar dos serviços. Caris prendeu uma máscara de linho no rosto e foi se ajoelhar ao lado de Simone, que suava bastante e exibia uma expressão assustada.

- Como se sente? - perguntou Caris.

- Horrível... - balbuciou Simone. - Tive sonhos estranhos.

Caris tocou em sua testa. Ela ardia em febre. Simone perguntou:

- Posso beber alguma coisa?

- Claro.

- Espero que seja apenas um resfriado.

- Está com febre.

- Mas não peguei a peste, não é? Não me sinto tão mal assim.

- Seja como for, vamos levá-la para o hospital. Pode andar?

Simone fez um esforço para se levantar. Caris pegou um cobertor na cama e ajeitou-o em torno dos ombros de Simone.

Enquanto se encaminhavam para a porta, Caris ouviu um espirro. Desta vez pôde constatar que era de irmã Rosie, a gorda matricularia. Caris olhou atentamente para Rosie, que parecia assustada. Caris escolheu outra freira ao acaso.

- Irmã Cressie, leve Simone para o hospital, enquanto examino Rosie. Cressie pegou Simone pelo braço e desceu com ela.

Caris aproximou sua vela do rosto de Rosie. Ela também suava. Caris puxou para baixo a gola do hábito. Havia uma erupção de pequenas manchas purpuras nos ombros e seios.

-Não... - Não pode ser, or favor!

- Pode não ser nada grave - mentiu Caris.

- Não quero morrer da peste! - exclamou Rosie, a voz trêmula.

- Fique calma e venha comigo.

Caris pegou firme o braço de Rosie, que resistiu.

- Não! Ficarei bem aqui!

- Tente fazer uma oração. Ave Maria...

Rosie começou a rezar. Um momento depois, Caris conseguiu levá-la sem resistência.

O hospital estava apinhado, com pessoas morrendo e suas famílias, a maioria acordada, apesar da hora. Havia um forte odor de corpos suados, vômito e sangue. A iluminação era difusa, de lampiões de sebo e velas no altar. Algumas freiras cuidavam dos pacientes, servindo água e limpando tudo. Algumas usavam a máscara, outras, não.

O irmão Joseph estava ali, o mais velho dos monges médicos e o mais respeitado. Estava dando a extrema-unção a Rick Silvers, o chefe da guilda dos joalheiros. Inclinava a cabeça para ouvir a confissão sussurrada, os dois cercados pelos filhos e netos de Rick.

Caris arrumou um lugar para Rosie e persuadiu-a a deitar. Uma das freiras trouxe-lhe um copo de água limpa da fonte. Rosie ficou imóvel, mas os olhos deslocavam-se angustiados para um lado e outro. Conhecia seu destino agora e estava com medo.

- O irmão Joseph virá examiná-la daqui a pouco - prometeu Caris.

- Você estava certa, irmã Caris - murmurou Rosie.

- Como assim?

- Simone e eu estávamos entre as amigas originais de irmã Elizabeth que se recusaram a usar a máscara... e veja o que aconteceu conosco.

Caris não pensara nisso. A prova de que estava certa seria a morte terrível das pessoas que haviam discordado? Ela preferia estar errada.

Ela foi examinar Simone, que estava deitada, segurando a mão de Cressie. Simone era mais velha e mais calma do que Rosie, mas havia medo em seus olhos, e ela apertava a mão de Cressie com toda força.

Caris olhou para Cressie. Havia uma mancha escura por cima do lábio dela. Caris estendeu o braço e limpou-a com a manga.

Cressie também pertencia ao grupo original que abandonara a máscara. Ela olhou para a marca na manga.

- O que é isso?

- Sangue - respondeu Caris.

A eleição foi realizada no refeitório, uma hora antes do momento de servir o almoço. Caris e Elizabeth sentaram lado a lado por trás de uma mesa, numa extremidade da sala, com as freiras sentadas em fileiras de bancos à frente.

Tudo mudara. Simone, Rosie e Cressie continuavam no hospital, acometidas pela peste.

Ali, no refeitório, as outras duas que haviam recusado originalmente a máscara, Elaine e Jeannie, exibiam os primeiros sintomas. Elaine espirrava a todo momento e Jeannie suava muito. O irmão Joseph, que vinha cuidando das vítimas da peste sem máscara desde o início, finalmente sucumbira. Todas as outras freiras haviam retomado o uso das máscaras no hospital. Se a máscara ainda era um sinal de apoio a Caris, ela vencera.

Todas estavam tensas e agitadas. Irmã Beth, a antiga tesoureira e agora a freira mais velha, leu uma oração para abrir a reunião. Quase antes mesmo que ela acabasse, várias freiras falaram ao mesmo tempo. A voz que prevaleceu, entre todas, foi a de irmã Margaret, a antiga despenseira:

- Caris estava certa e Elizabeth estava errada! As que se recusaram a usar máscaras estão agora morrendo!

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

- Eu gostaria que fosse diferente - declarou Caris. - Preferia que Rosie, Simone e Cressie estivessem sentadas aqui neste momento, votando contra mim.

Ela falava sério. Cansara de ver pessoas morrendo. Fazia-a pensar como todas as outras coisas eram triviais. Elizabeth levantou-se.

- Proponho que adiemos a eleição. Três freiras já morreram e mais três se encontram no hospital. Devemos esperar até que a peste termine.

A proposta pegou Caris de surpresa. Pensara que não havia nada que Elizabeth pudesse fazer para evitar a derrota... mas se enganara. Ninguém votaria agora em Elizabeth, mas suas partidárias poderiam optar por não escolher ninguém.

A apatia de Caris desapareceu. Recordou subitamente todas as razões pelas quais queria ser prioresa: melhorar o hospital, ensinar mais meninas a ler e escrever, ajudar a cidade a prosperar. Seria uma catástrofe se Elizabeth fosse eleita em vez dela. Mas Elizabeth recebeu o apoio imediato da velha irmã Beth.

- Não devemos realizar a eleição numa situação de pânico, e fazer uma escolha de que poderemos nos arrepender mais tarde, quando as coisas se acalmarem.

Sua declaração parecia ensaiada: era evidente que Elizabeth planejara aquilo. Mas o argumento não era absurdo, pensou Caris, com alguma apreensão. Margaret protestou, indignada:

- Beth, você só diz isso porque sabe que Elizabeth vai perder.

Caris absteve-se de falar, com medo de acarretar o mesmo argumento contra ela. Irmã Naomi, que não tinha compromissos com qualquer dos lados, interveio nesse instante:

- O problema é que não temos uma líder. Madre Cecilia, que sua alma descanse em paz, nunca designou uma vice-prioresa depois que Natalie morreu.

- Isso é tão ruim assim? - indagou Elizabeth.

- É, sim! - exclamou Margaret. - Não conseguimos nem sequer tomar uma decisão sobre quem deve ser a primeira na procissão!

Caris decidiu correr o risco de abordar um problema prático.

- Há uma longa lista de decisões que precisam ser tomadas, especialmente sobre a herança de propriedades do convento cujos ocupantes morreram da peste. Seria difícil continuar por muito mais tempo sem uma prioresa.

Irmã Elaine, uma das cinco amigas originais de Elizabeth, agora argumentou contra o adiamento.

- Detesto eleições. - Ela espirrou, mas logo continuou: -Jogam irmã contra irmã e causam hostilidades. Quero acabar logo com isto, para que possamos nos unir diante desta terrível peste.

Isso acarretou um coro de aplausos.

Elizabeth olhou furiosa para Elaine, que a fitou e acrescentou:

- Como podem ver, não posso nem sequer fazer um comentário pacífico como esse sem que Elizabeth olhe para mim como se eu a tivesse traído.

Elizabeth baixou os olhos. Margaret disse:

- Vamos votar. Quem é a favor de Elizabeth, diga ”Sim”.

Por um momento, ninguém falou. Depois, Beth murmurou:

-Sim.

Caris esperou que mais alguém falasse, mas Beth foi a única.

O coração de Caris bateu mais depressa. Estaria prestes a realizar sua ambição?

- Quem é a favor de Caris? - indagou Margaret.

A resposta foi imediata. Houve um grito quase coletivo de ”Sim!”. Caris teve a impressão de que todas as freiras votavam a seu favor.

Consegui, pensou ela. Sou a prioresa. Agora podemos realmente começar.

- Neste caso...

Margaret não pôde continuar, porque uma voz de homem interrompeu-a:

- Esperem!

Várias freiras soltaram murmúrios de espanto, e uma delas gritou. Todas olharam para a porta. Philemon estava parado ali. Ele devia estar escutando do outro lado da porta, refletiu Caris.

- Antes de continuarem...

Caris não podia permitir aquilo. Levantou-se, furiosa.

- Como ousa entrar no convento? Você não tem permissão e não é bemvindo aqui! Fora!

- Fui enviado pelo lorde prior...

- Ele não tem o direito...

- É o religioso mais graduado em Kingsbridge, e tem autoridade sobre as freiras na ausência de uma prioresa ou vice-prioresa.

- Não estamos mais sem uma prioresa, irmão Philemon. - Caris avançou em sua direção. - Acabo de ser eleita.

As freiras odiavam Philemon, e todas aplaudiram.

- O padre Godwyn se recusa a permitir essa eleição - insistiu Philemon.

- Tarde demais. Diga a ele que madre Caris está agora no comando do convento... e que ela o expulsou.

Philemon recuou.

- Você não é a prioresa até que a eleição seja ratificada pelo bispo!

- Fora! - exclamou Caris. As freiras entoaram em coro:

- Fora! Fora! Fora!

Philemon sentia-se intimidado. Não estava acostumado a ser desafiado. Caris deu outro passo para a frente, e ele deu outro passo para trás. Parecia espantado pelo que estava acontecendo, mas também assustado. O coro se tornava mais e mais alto. Abruptamente, ele virou-se e saiu correndo.

As freiras riram e aplaudiram.

Mas Caris compreendeu que o comentário final de Philemon era procedente. Sua eleição teria de ser ratificada pelo bispo Henri.

E Godwyn faria tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir que isso ocorresse.

Uma equipe de voluntários da cidade abriu uma clareira de um acre na mata no outro lado do rio, e Godwyn iniciara o processo de consagrar a terra como o novo cemitério. Todos os cemitérios de igreja dentro das muralhas da cidade já estavam plenamente ocupados, e quase não restava espaço no cemitério da catedral.

Godwyn caminhava pelos limites do terreno, sob um vento gelado, salpicando água benta, que congelava ao bater no chão, enquanto monges e freiras marchavam em sua esteira, cantando um salmo. Embora o serviço ainda não tivesse terminado, os coveiros já haviam começado a trabalhar. Havia montes de terra ao lado de buracos com os lados retos, tão próximos dos outros quanto possível, para poupar espaço. Mas um acre não seria suficiente por muito tempo, e já havia homens trabalhando para abrir outro espaço na mata.

Em momentos assim Godwyn tinha de fazer o maior esforço para manter o controle. A peste era como uma vasta onda, submergindo a todos em sua passagem, incontrolável. Os monges haviam enterrado uma centena de pessoas durante a semana antes do Natal, e os números continuavam a subir. O irmão Joseph morrera no dia anterior, e mais dois monges estavam agora doentes. Onde acabaria? Todas as pessoas no mundo morreriam? O próprio Godwyn morreria?

Ele sentia-se tão assustado que parou de repente, olhando aturdido para o aspersório de ouro com que salpicava a água benta, sem ter a menor idéia de como ele fora parar em sua mão. Por um momento, ficou tão dominado pelo pânico que não foi capaz de se mexer. Até que Philemon, à frente da procissão, empurrou-o gentilmente por trás. Godwyn cambaleou para a frente e reiniciou a marcha. Tinha de afastar da mente aqueles pensamentos assustadores.

Ele concentrou o cérebro no problema da eleição das freiras. A reação ao sermão fora tão favorável que ele pensara que a vitória de Elizabeth estava garantida. A maré virara com uma rapidez chocante, e a irritante recuperação da popularidade de Caris pegara-o de surpresa. A intervenção de Philemon no último minuto fora uma medida desesperada, mas tomada tarde demais. Quando pensava a respeito, Godwyn tinha vontade de gritar.

Mas ainda não acabara. Caris escarnecera de Philemon, mas a verdade é que ela não podia considerar sua posição segura até a aprovação do bispo Henri.

Infelizmente, Godwyn ainda não tivera uma oportunidade de se insinuar nas boas graças de Henri. O novo bispo, que não falava inglês, visitara Kingsbridge apenas uma vez. Porque ele era novo no cargo, Philemon ainda não descobrira se tinha uma fraqueza fatal. Mas era um homem e um sacerdote, e por isso deveria ficar do lado de Godwyn contra Caris.

Godwyn escrevera para Henri, dizendo que Caris enfeitiçara as freiras, levando-as a pensar que poderia salvá-las da peste. Detalhara a história de Caris:

acusação de heresia, o inquérito, e a condenação há oito anos, o resgate por Cecilia. Esperava que Henri chegasse a Kingsbridge com um firme preconceito contra Caris.

Mas quando Henri viria? Era extraordinário para o bispo perder o serviço de Natal na catedral. Uma carta do eficiente e pouco imaginativo arquidiácono Lloyd explicara que Henri estava ocupado a designar clérigos para substituir os que haviam morrido da peste. Lloyd podia ser contra Godwyn: era um homem do conde William, devendo seu cargo ao falecido irmão de William, Richard; e o pai de William e Richard, conde Roland, odiava Godwyn. Só que a decisão não seria de Lloyd, mas sim de Henri. Era difícil prever o que poderia acontecer. Godwyn sentia que perdera o controle. Sua carreira era ameaçada por Caris e sua vida era ameaçada pela peste inexorável.

Uma pequena nevasca começou a cair quando a cerimônia de consagração se aproximava do fim. Um pouco além do terreno, sete procissões fúnebres esperavam que o cemitério ficasse disponível. A um sinal de Godwyn, todas se adiantaram. O primeiro corpo estava num caixão, mas os outros vinham em mortalhas ou em estrados de madeira. Mesmo nas melhores ocasiões, os caixões eram um luxo para os mais prósperos; mas agora que a madeira se tornara muito cara e os fabricantes tinham excesso de trabalho, só os muito ricos podiam ser enterrados num caixão.

A frente da primeira procissão vinha Merthin, com flocos de neve nos cabelos e barba avermelhados. Trazia a filha pequena no colo. A pessoa rica dentro do caixão devia ser Bessie Bell, deduziu Godwyn. Bessie morrera sem parentes e deixara a taverna para Merthin. O dinheiro gruda nesse homem como folhas úmidas, pensou Godwyn, amargurado. Merthin já tinha a ilha do Leproso e a fortuna que ganhara em Florença. Agora, possuía também a taverna mais movimentada de Kingsbridge.

Godwyn sabia do testamento de Bessie porque o priorado tinha direito a uma taxa de herança, e recebera uma considerável porcentagem sobre o valor da propriedade. Merthin pagara em florins de ouro, sem a menor hesitação.

A única boa conseqüência da peste era o fato de o tesouro do priorado estar agora cheio de dinheiro.

Godwyn conduziu o serviço fúnebre para todos os sete corpos. Essa era a norma agora: um funeral pela manhã e outro à tarde, independentemente do número de mortos. Não havia padres suficientes em Kingsbridge para enterrar cada pessoa em separado.

Esse pensamento renovou o sentimento de apreensão de Godwyn. Ele se atrapalhou nas últimas palavras do serviço, imaginando-se em uma das sepulturas; mas logo conseguiu se controlar e chegou ao final sem maiores tropeços.

O serviço concluído, ele levou a procissão de monges e freiras de volta à catedral. Entraram e suspenderam a formação. Os monges retornaram para seus deveres normais. Uma noviça aproximou-se de Godwyn, bastante nervosa, e disse:

- Padre prior, pode fazer o favor de ir até o hospital?

Godwyn não gostava de receber recados autoritários através de noviças.

- Para quê? - indagou ele, ríspido.

- Desculpe, padre, mas não sei... só me mandaram vir chamá-lo.

- Irei assim que puder - resmungou Godwyn, irritado.

Ele não tinha nada de urgente para fazer, mas se demorou na catedral, falando com irmão Eli sobre os hábitos dos monges, só para marcar sua posição.

Poucos minutos depois, atravessou o claustro e entrou no hospital.

Havia freiras agrupadas em torno de uma cama que fora instalada na frente do altar. Deve ser um paciente importante, pensou Godwyn. E se perguntou quem seria. Uma das freiras virou-se para ele. Usava uma máscara de linho sobre o nariz e a boca, mas ele reconheceu os olhos verdes com manchas douradas que toda a sua família partilhava: era Caris. Embora pudesse ver bem pouco de seu rosto, percebeu uma estranha expressão em seu olhar. Esperava aversão e desprezo, mas em vez disso viu compaixão.

Chegou mais perto da cama, com um sentimento de apreensão. Quando as outras freiras o viram, trataram de se afastar, deferentes. No instante seguinte, ele viu a pessoa deitada na cama.

Era sua mãe.

A cabeça grande de Petranilla repousava sobre um travesseiro branco. Ela suava bastante. Um filete de sangue escorria de seu nariz. Uma freira limpou o sangue, mas o fluxo logo voltou. Outra freira ofereceu à paciente um copo com água. Havia uma fileira de manchas roxas na pele enrugada do pescoço de Petranilla.

Godwyn soltou um grito, como se tivesse sido golpeado. Ficou olhando, dominado pelo horror. A mãe fitou-o com uma expressão de sofrimento. Não havia a menor margem de dúvida: ela se tornara uma vítima da peste.

- Não! - gritou ele. - Não! Não!

Sentiu uma dor insuportável no peito, como se tivesse sido apunhalado. Ouviu Philemon, ao seu lado, dizer em voz assustada:

- Tente permanecer calmo, padre prior.

Mas Godwyn não podia se conter. Abriu a boca para gritar, mas nenhum som saiu. Sentiu-se de repente desligado do próprio corpo, sem controle sobre seus movimentos. E, depois, uma névoa preta se elevou do chão e engolfou-o, subindo por seu corpo até cobrir o nariz e a boca, a tal ponto que não podia respirar. Alcançou os olhos, deixando-o cego. E, finalmente, ele perdeu os sentidos.

Godwyn passou cinco dias na cama. Não comia nada e só bebia quando Philemon levava um copo a seus lábios. Não conseguia pensar direito. Não podia se mexer, pois parecia que não era capaz de decidir o que fazer. Chorava e dormia, para depois acordar e chorar de novo. Teve uma vaga noção de um monge pondo a mão em sua testa, recolhendo uma amostra de urina, diagnosticando febre cerebral, e fazendo uma sangria.

E depois, no último dia de dezembro, o apavorado Philemon trouxe a notícia de que sua mãe havia morrido.

Godwyn levantou-se. Fez a barba, vestiu um hábito novo, e foi para o hospital.

As freiras haviam lavado e vestido o corpo. Os cabelos estavam escovados e Petranilla usava um caro vestido de lã italiana. Ao vê-la daquela maneira, com a palidez da morte no rosto e os olhos fechados para sempre, Godwyn sentiu um retorno do pânico que o dominara; mas desta vez ele conseguiu reprimi-lo.

- Levem o corpo para a catedral - ordenou ele.

Normalmente, a honra de um velório na catedral era reservada aos monges, freiras, clérigos mais importantes e aristocracia; mas Godwyn sabia que ninguém ousaria contestá-lo.

Depois que o corpo foi levado para a catedral e posto na frente do altar, Godwyn ajoelhou-se ao lado e rezou. A oração ajudou a acalmar seu terror. Pouco a pouco, ele decidiu o que fazer. Quando se levantou, ordenou que Philemon convocasse uma reunião imediata na casa do capítulo.

Sentia-se abalado, mas sabia que tinha de se controlar. Sempre fora abençoado com o poder da persuasão. Agora, teria de aproveitá-lo ao máximo possível.

Assim que os monges se reuniram, Godwyn leu para eles o Livro do Gênesis:

- Depois que essas coisas aconteceram, Deus tentou Abraão. Chamou-o: Abraão. E Abraão respondeu: Eis-me aqui, Senhor. E Deus disse pegue seu filho Isaque, seu único filho, a quem tanto amas, e leve-o para a terra de Mona. Ali, deve oferecê-lo em holocausto numa montanha que indicarei. Abraão levantou-se bem cedo, selou seu jumento, e partiu, levando seu filho Isaque e dois servos. Rachou lenha para o holocausto e subiu pela montanha indicada.

Godwyn levantou os olhos da Bíblia. Os monges observavam-no atentamente. Todos conheciam a história de Abraão e Isaque. Estavam mais interessados nele, Godwyn. E mantinham-se alertas, cautelosos, especulando sobre o que viria em seguida.

- O que a história de Abraão e Isaque nos ensina? - indagou ele, retórico. Deus diz a Abraão para matar seu filho... não apenas o filho mais velho, mas o único filho, nascido quando ele tinha cem anos. Abraão protestou? Suplicou por misericórdia? Argumentou com Deus? Ressaltou que matar Isaque seria assassinato, infanticídio, um terrível pecado?

Godwyn deixou a indagação pairar por um momento, antes de baixar os olhos para a Bíblia e ler:

-Abraão levantou-se bem cedo, selou seu jumento... Ele tornou a levantar os olhos.

- Deus também pode nos tentar. Ele pode nos ordenar que façamos uma coisa que pode parecer errada. Talvez nos diga para fazer uma coisa que pode parecer um pecado. Quando isso acontece, devemos nos lembrar de Abraão.

Godwyn falava no que sabia ser o seu estilo de pregação mais persuasivo, ritmado, mas coloquial. Dava para perceber que tinha a atenção extasiada de todos, no silêncio da casa octogonal do capítulo; ninguém se mexia, sussurrava, ou arrastava os pés.

- Não devemos questionar. Não devemos argumentar. Quando Deus nos leva, devemos segui-lo... por mais insensatos, pecaminosos ou cruéis que seus desejos possam parecer a nossas débeis mentes humanas. Somos fracos e humildes. Nossa compreensão é falível. Não nos é dado tomar decisões ou fazer opções. Nosso dever é simples. É obedecer.

Depois, ele disse aos monges o que tinham de fazer.

O bispo chegou depois do escurecer. Era quase meia-noite quando a comitiva entrou no priorado, depois de cavalgar à luz de velas. Quase todo o priorado já estava deitado há horas. Mas havia um grupo de freiras trabalhando no hospital, e uma delas foi acordar Caris.

- O bispo chegou - anunciou ela.

- Por que ele quer falar comigo? - perguntou Caris, sonolenta.

- Não sei, madre prioresa.

Claro que ela não sabia. Caris levantou-se e pôs um manto.

Parou por um instante no claustro. Bebeu água e respirou fundo o ar frio da noite, clareando a mente dos resquícios do sono. Queria causar uma boa impressão ao bispo, para que não houvesse qualquer problema na ratificação de sua eleição para prioresa.

O arquidiácono Lloyd estava no hospital, com um ar de cansado, a ponta do nariz comprido vermelha do frio.

- Venha cumprimentar seu bispo - disse ele, irritado, como se ela tivesse a obrigação de ficar acordada para esperar.

Caris seguiu-o. Um servo esperava do lado de fora da porta, com uma tocha acesa. Atravessaram o pátio até o lugar em que o bispo se encontrava, ainda em seu cavalo.

Era um homem pequeno, usava um chapéu enorme, e parecia irritado. Caris disse, em francês normando:

- Seja bem-vindo ao Priorado de Kingsbridge, milorde bispo.

- Quem é você? - perguntou Henri, impaciente.

Caris já o vira antes, mas nunca falara com ele.

- Sou a irmã Caris, a prioresa eleita.

- A bruxa.

Caris sentiu um aperto no coração. Godwyn já devia ter tentado envenenar a mente de Henri contra ela. O que a deixou indignada.

- Não, milorde bispo. Não há bruxas aqui. - Ela falou com mais amargura do que prudência. - Apenas um grupo de freiras comuns fazendo o melhor que podem por uma cidade que foi atacada pela peste.

Ele ignorou o comentário.

- Onde está o prior Godwyn?

- Em seu palácio.

- Não está, não.

O arquidiácono Lloyd explicou:

- Já estivemos lá. O prédio está vazio.

- É mesmo?

- É, sim - confirmou o arquidiácono, irritado.

Nesse momento, Caris avistou o gato de Godwyn, com a ponta branca do rabo. Os noviços chamavam-no de Arcebispo.

Atravessou a fachada oeste da catedral e olhou para os espaços entre os pilares, como se procurasse por seu dono. Caris ficou consternada.

- Que coisa estranha... Talvez Godwyn tenha decidido dormir no dormitório com os outros monges.

- E por que ele faria isso? Espero que não esteja ocorrendo nenhuma impropriedade. Caris sacudiu a cabeça, descartando essa possibilidade. O bispo desconfiava de falta de castidade, mas Godwyn não era propenso a esse tipo de pecado.

- Ele reagiu muito mal quando a mãe pegou a peste. Teve alguma espécie de colapso e desmaiou. Ela morreu hoje.

- Se ele se sentia indisposto, ainda mais razão para dormir em sua própria cama.

Qualquer coisa poderia ter acontecido. Godwyn ficara bastante perturbado com a doença de Petranilla.

- Milorde bispo não gostaria de conversar com um dos seus assistentes? Henri respondeu com uma crescente irritação:

- Se puder encontrar algum, claro que sim!

- Eu poderia levar o arquidiácono Lloyd até o dormitório... -Agora mesmo!

Lloyd pegou a tocha que um servo segurava. Caris conduziu-o através da catedral até o claustro dos monges. O lugar estava silencioso, como costumava acontecer com os mosteiros àquela hora da noite. Chegaram ao pé da escada que levava ao dormitório. Caris parou.

- É melhor subir sozinho - disse ela a Lloyd. - Uma freira não deve ver monges na cama.

- Tem toda razão.

O arquidiácono subiu com a tocha, deixando-a na escuridão. Ela esperou, curiosa. Ouviu-o gritar:

-Olá?

O estranho silêncio persistiu. Depois de mais alguns momentos, Lloyd chamou-a, com uma voz diferente:

- Irmã?

- Pois não?

- Pode subir.

Aturdida, Caris subiu a escada e entrou no dormitório. Parou ao lado de Lloyd olhou ao redor, à luz trêmula da tocha. Os colchões de palha dos monges estavam em seus lugares, nos dois lados do dormitório... todos desocupados.

- Não há ninguém aqui - murmurou Caris.

- Nem uma única alma. O que pode ter acontecido?

- Não sei, mas posso adivinhar.

- Então me esclareça, por favor.

- Não é óbvio? Eles fugiram.

 

                                                                                            CONTINUA

 

 

                      

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