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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME II / X.M.
OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME II / X.M.

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS FANTOCHES DE MADAME DIABO

VOLUME II

Primeira Parte

 

AGRAVA-SE A SITUAÇÃO

A grande mesa de ébano que ocupava o centro da sala que servia de biblioteca ao palácio de Gordes, estava carregada de atlas, de cartões, de fotografias, e de obras antigas e modernas de todas as espécies.

Destacavam-se dentre essas obras os magníficos volumes que Raul mandara vir de Paris para satisfazer a fantasia da cunhada, que mostrou desejos de estudar a flora dos trópicos no jardim de inverno, enriquecido com os mais belos e preciosos exemplares.

Um dos volumes estava aberto, e a perfeição das suas figuras coloridas à aquarela por especialistas chamava a atenção.

Genoveva foi direita à mesa, tomou o livro, folheou algumas páginas, e colocando o dedo sobre uma gravura, disse ao doutor:

— Olhe, senhor Máximo... Oh! não há nada mais parecido do que isto! Eu, apesar de ser uma pobre mulher ignorante, dei logo com o que era à primeira vista...

Máximo olhou, e reconheceu também o arbusto, cuja seiva corrosiva lhe abrasava ainda a extremidade do dedo e a língua.

O que Genoveva chama ingenuamente uma coisa parecida, era a reprodução exata como uma fotografia do tanglin de Madagascar.

A legenda explicativa enumerava as propriedades tóxicas do arbusto, descrevia os sintomas característicos do envenenamento, resultante da seiva ou da infusão das flores, e indicava os remédios empregados pelos indígenas de Madagascar para combater esse veneno.

— Ah! aqui encontra-se tudo que lá está no jardim... acrescentou Genoveva; não falta nenhum...

E folheando outra vez o livro, a fiel serva mostrou a Máximo a gravura que representava o eufórbio da Abissínia, o pendanus de Java, todos os arbustos enfim cujos troncos apresentavam ligeiros golpes ou leves incisões.

Possuíam todos propriedades terríveis;na hierarquia dos venenos vegetais tinham lugar proeminente.

Máximo sentiu-se gelado de horror.

O pensamento que lhe acudiu ao espírito causava-lhe indizível assombro, e baldadamente tentava, senão expulsá-lo, ao menos combatê-lo. Mas esse pensamento vencia o seu propósito, perseguia-o implacavelmente, impunha-se tiranicamente.

Não tardou muito que o terrível pensamento se manifestasse nas suas palavras...

— Genoveva, perguntou ele em voz baixa, após largo silêncio, sabe se havia estes livros na biblioteca antes do casamento de Gordes?

— Não, senhor, respondeu sem hesitar a digna camarista de Joana.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Em que firma as suas convicções?

— O senhor Conde mandou-os buscar ao caminho de ferro, a Orleans... Vieram de Paris, num caixote... por sinal que era muito pesado...Foi o Justino quem o abriu com toda a cautela... ainda ontem de tarde falamos disso, porque o pobre homem feriu um dedo nos pregos... Já, senhor Máximo, que posso ter a vaidade de não me enganar...

— Há quanto tempo vieram os livros?

— Há quinze dias ou três semanas, pouco antes da senhora Condessa adoecer.

Máximo teve um calafrio.

 

A luz fazia-se gradualmente.

O assassino premeditara as coisas e não perdera o tempo. Apenas se ocultara nas sombras do mistério! — O crime tornava-se inverossímil à força de imprudência, mas os grandes criminosos têm por vezes audácias felizes que os salvam, colocando-os habilmente ao abrigo dás suspeitas.

— Genoveva, replicou o doutor, quais foram as circunstâncias que obrigaram a sua atenção a fixar-se nas coisas suspeitas que se passavam aqui?

— Parece que o bom Deus me tomou pela mão e me guiou, respondeu ela. No dia em que vim procurar o senhor Conde da parte da senhora, vi de longe as estampas desses livros, e pareceram-me curiosas... No dia seguinte voltei para as ver à minha vontade, enquanto a menina Renée estava acompanhando a senhora Condessa e o senhor Conde tinha saído.

— Julguei reconhecer algumas folhas dás pintadas nas estampas pela semelhança que tinha com as que vi nas plantas da estufa, porque eu adoro as flores. Quis certificar-me, desci ao jardim. Naturalmente, enquanto examinava alguns arbustos, notei os pequenos golpes que ainda há pouco lhe mostrei... Primeiramente admirei-me, depois senti uma tal qual inquietação, sobretudo pela quantidade de incisões feitas nos arbustos que o livro apresentava como destilando perigosos venenos...

Este fato impressionou-me tanto, que a imaginação não deixava de me sugerir não sei que funestas coisas... Pensei na senhora Condessa, e na sua doença singular, complicadíssima, que nem o senhor doutor, nem os seus colegas de Paris podiam compreender... Numa palavra, a idéia de um crime passou-me pela cabeça, por mais que eu dissesse a mim mesma que isto era uma tolice, uma grande loucura.,. Desviava do meu espírito os juízos temerários, as más apreensões, e por momentos senti-me liberta do pesadelo, mas voltava pouco depois, mais forte, dominando todas as minhas faculdades... Um pensamento funesto que não me deixava dia e noite; crescendo sempre; roubando-me a tranqüilidade do sono e a paz no trabalho; até que, por fim, senhor, cheguei a ponto de me sentir asfixiada se não lhe dissesse este mau estar... Fiz bem, senhor doutor?

— Sim, fez bem, replicou Máximo; Deus a recompensará.

— Então perguntou Genoveva, consinta que lhe pergunte se se convence de haver verdade nas minhas suposições?

Máximo hesitou; não teve ânimo de responder.

Sem dúvida partilhava a opinião da boa criatura, mas não queria deixar-lhe ver claramente a convicção de que estava possuído, temendo que da sua parte houvesse alguma imprudência, e desejando dar ao sei espírito tempo preciso para refletir e tomar uma resolução definitiva.

Para iludir Genoveva no que respeitava às suas intenções, replicou de maneira ambígua:

— Quer saber o que penso de tudo isto, Genoveva? Dir-lhe-ei que estou e não estou convencido do envenenamento... Isto é realmente singular!

A dedicada serva volveu-lhe um olhar de profundo espanto.

— Torno a repetir o que há pouco disse, continuou ele, as coisas que estão sucedendo nesta casa inspiram as maiores suspeitas... A existência do crime parece, infelizmente, senão certa, pelo menos provável, mas o crime é por tal modo monstruoso, que para acreditar nele, para que possa formular, sobretudo, uma acusação positiva contra o suposto assassino, tenho necessidade de novas provas, mais evidentes, mais convincentes do que as que me fornecem as investigações que fizemos... As aparências são fulminantes, convenho, mas o erro e possível, e sabe Deus quantos inocentes têm sido condenados por falsas aparências!... Compreende o que quero dizer, Genoveva?

— Perfeitamente, senhor. Contudo, o livro, as incisões, os venenos, o estado desesperado da senhora Condessa, tudo isso é evidente...

— Evidentíssimo, por desgraça nossa! Mas admitido o crime, quem é o criminoso? Ignoramos, e é precisamente o que importa saber...

— Sim, senhor doutor...

— Para chegar a descobri-lo, a Genoveva pode ser-me útil...

— Senhor, estou pronta para tudo... Ordene... Que devo fazer?

— Tem confiança em mim, Genoveva?

—Como em Deus! exclamou a reconhecida criatura. A quem poderia eu confiar este segredo senão ao senhor?

— Seguirá os meus conselhos?

— Obedecerei a todas as suas ordens...

— Em primeiro lugar, Genoveva, não deve dizer a ninguém uma única palavra do que me contou...

— Oh! não, creia... Viu como hesitei... como estava assustada... Tinha medo de que me julgassem doida...

— Continue como se não tivesse desconfiança nem suspeitas... Seja o que for antes de descobrir este terrível crime...

— Mas, senhor doutor, balbuciou a pobre mulher, consentir que envenenem friamente aos meus olhos a senhora Condessa? A Senhora dos Aflitos me valha! Todas as vezes que tenha de dar-se-lhe uma colher, um copo de qualquer remédio, por minha mão ou pela da menina Renée, sentir-me-ei transida de horror e susto, e perguntarei a mim mesma se o que ela vai beber será o último veneno.

— Descanse, sossegue o seu espírito atribulado, minha boa Genoveva... Tomarei as precauções convenientes... descanse. Tem sido a Genoveva que até hoje preparou todas as bebidas que receitei?

— Sim, senhor...

— Só?

— A menina Renée algumas vezes me ajudou...

— E alguns dos criados?

— Nunca.

— A porta da botica é costume estar aberta?

— Não; mas a chave fica na fechadura... Quem quiser pode entrar... É preciso tirar a chave?

— É inútil... Deixe as coisas como até hoje têm estado... Onde colocava as poções e tisanas preparadas?

— Nos primeiros dos dois gabinetes de toilette que ficam entre os aposentos da senhora Condessa e os da menina Renée...

— Sempre aí?

— Sempre por uso e costume.

— A esse gabinete ia mais alguma criada ou criado?

— Desde que a senhora Condessa adoeceu, ninguém lá entrava, â exceção do senhor Conde, a menina Renée, o senhor doutor e eu...

— O senhor Gordes ia lá muitas vezes?

— Algumas.

— Viu que ele mexesse nos frascos ou nas garrafas?

— Não me recordo... Dava tão pouca importância a essas coisas! Contudo, parece-me que uma vez vi o senhor Conde agarrar numa garrafa e levantá-la à altura dos olhos, defronte da janela, como para -verificar a maior ou menos transparência do líquido.

— De hoje em diante a senhora Condessa não tomará beberagem alguma sem que eu primeiramente prove... disse Máximo; o essencial porém é que a minha vigilância passe desapercebida.

— Mesmo do senhor Conde e da menina Renée? perguntou Genoveva.

— Tanto da parte deles como de outras quaisquer pessoas.

— Tenciona então não lhe revelar coisa alguma do que se passa?

— O mais rigoroso silêncio... por enquanto... É preciso que o segredo fique unicamente entre nós, minha boa Genoveva, para que o criminoso não desconfie...

Tem razão, senhor doutor; agora, que sabe de onde o mal parte, será possível combatê-lo e salvar a pobre senhora Condessa?

E a boa e fiel criada, falando assim, juntava as mãos numa atitude suplicante.

— Ah! como seria feliz se o pudesse dizer! respondeu dolorosamente o dedicado médico; temo que a obra maldita da perversidade vá muito adiantada para que a salvação seja possível... O que neste momento sei, não passa de conjeturas... mas a certeza não tardará!... Então, tudo que humanamente depender das forças do homem, farei com a maior dedicação, e com o auxílio de Deus, talvez consiga...

— Deus o abençoará, senhor Máximo, porque a minha querida senhora é um anjo!

Máximo deixou Genoveva recomendando-lhe silêncio.

Foi experimentar e analisar as beberagens receitadas, nas quais não encontrou nada de suspeito; verificou que a situação da enferma não tivera modificações, depois voltou ao seu gabinete a fim de refletir, porque a mais absoluta desordem reinava-lhe no cérebro e perturbava-lhe a razão...

 

QUEM SERIA O CRIMINOSO?

Máximo Giraud, repetimos, não podia agora conservar a sombra de uma dúvida sobre a terrível gravidade da situação. O envenenamento tornava-se indiscutível. A sua grande preocupação era descobrir o assassino.

A quem atribuir a sinistra malvadeza? Não sabia, mas alastrando as suas suspeitas, fazendo raciocínios, chegou a formular de uma maneira instintiva esta acusação pungentíssima:

— O Conde de Gordes é um assassino!

A lógica dos fatos, com efeito, expunha Raul a toda a luz das suspeitas. As circunstâncias que relatamos no capítulo antecedente formavam para o marido de Joana um núcleo de presunções quase equivalentes a provas.

A idéia que determinava o crime não se desenhava distintamente, é verdade, e o doutor achava-se a braços com as mais intrigantes conjeturas. mas a reflexão e mesmo o passado do Conde, davam a essas conjeturas o cunho especial de uma espantosa probabilidade.

Máximo sabia, como todos no país, que o senhor de Gordes saíra de França com uma senhora, cujo marido tinha gravemente ferido num duelo.

Essa senhora morrera numa cidade de Itália, longe do seu país, longe de sua família, e ninguém, que ele conhecesse, teve o menor interesse em informar-se da natureza da doença, e das circunstâncias que precederam a morte da esposa adúltera...

Quem sabe se o Conde, pouco mais ou menos convicto da importunidade, teria despedaçado por um crime, uma ligação que se lhe tornava importuna?...

Regressando à França, apaixonara-se loucamente por Joana, ou pelo menos julgou que o estava... E talvez que o amor, ou o que ele lhe pareceu ser amor bem fundo e íntimo, apenas sobrevivesse alguns meses à posse do objeto amado...

Então, sem dúvida, Raul refletira que dando o seu nome a uma pobre menina de origem burguesa e sem dote, tinha cometido a parvoíce de manchar os seus pergaminhos com uma aliança desvantajosa..

Admitindo, pois, que a natureza do senhor de Gordes era daquelas que podem ser instintivamente classificadas de perversas, audaciosamente celeradas, que se encontram no estado de exceção em todas as classes da sociedade, este terrível fantasma do amor devia ter a terrível idéia de despedaçar os laços, núpcias por meio dos processos sumários que já empregara com bom êxito, graças aos quais quebrara irremissivelmente a cadeia adúltera, e o assassino de Julieta tornava-se o de Joana...

Máximo dizia, pensava estas coisas entre convulsões de horror!...

Havia momentos em que admitia, sem discussão, a culpabilidade de Raul, mas uma reação brusca, repentina, operava-se nele e revoltava-se contra a fácil credulidade que se apresentava nas brumas do pensamento o espectro de um crime...

— Não! não é possível! murmurava ele tremendo de frio. Uma tal infâmia seria monstruosa! A fisionomia do senhor Conde tem o quer que seja de iniludível de homem honesto!... Nas suas afeições abatidas está gravado o sulco de uma agudíssima dor... Vi os seus olhos inundados de lágrimas... Para julgá-lo, para condená-lo, esperarei Uma prova decisiva, material, esmagadora, perante a qual a razão se curve vencida... Mas se ele é inocente, quem será então o criminoso?

Máximo passou largas horas debatendo-se nestas amargas lutas contra si mesmo.

Terminava sempre por ficar prostrado, mas fugia-lhe a luz que procurava; as trevas envolviam-no como quando se sentiu mordido pela víbora da suspeita.

À noite, ao chá, achou-se só com Raul.

Renée quis ser servida no quarto da enferma, que de modo algum queria abandonar.

O doutor aproveitando o ensejo, rivalizou em habilidade com o mais sagaz juiz ou comissário de policia, e o senhor de Gordes foi sitiado por um verdadeiro interrogatório, a que se prestou sem a menor desconfiança.

As suas respostas firmes, simples, espontâneas, destruíram quase totalmente as suspeitas de Máximo.

Havia no seu olhar tanta limpidez e melancólica ternura, e quando falava de Joana eram tão comoventes, tão manifestamente repassadas de mágoa que lhe golpeava o coração, o seu enternecimento tão dilacerante que chegou a uma crise dolorosa, cruel, despedaçadora; que Máximo comoveu-se profundamente e pensou.

— São os soluços e a dor do desespero, e não do remorso... O Conde não é o criminoso... É preciso descobri-lo...

O chá terminou sem incidentes.

Pelas dez horas da noite, Máximo voltou ao seu gabinete, e como O Édipo interrogando a esfinge, dispôs-se novamente a arrancar o segredo do indecifrável enigma.

Sabia que o estado de agitação moral em que se achava, a febre física que o abrasava não lhe permitiria conciliar o sono; não se despiu, ora de pé, ora sentado, passeava de uma a outra extremidade do quarto, cansava-se, caia inerte sobre uma cadeira, e procurava, procurava sempre, constantemente, mas sem resultado a solução do problema.

No relógio do castelo soava meia-noite; Máximo estremeceu,, acordou da sua letargia, e as vibrações das badaladas distraíram-no um instante do seu formidável e inútil pensar.

Tinha o cérebro incandescido, o sangue corria-lhe nas veias aos golfões, a atmosfera pesava-lhe, asfixiava-o. Abriu uma janela, encostou-se ao parapeito de pedra esculturada, e apresentou a fronte incendiada às carícias doces e refrescantes da noite.

A noite estava serena, tranqüila, bela, mas sem lua. Milhões de estrelas tremeluziam na pura vastidão do céu.

A sombria ramagem dos renques de faias traçavam sinuosas linhas de um profundo escuro até o horizonte. Dos lagos levantava-se um nevoeiro transparente, e ao fundo pardacento dessa neblina os grandes carvalhos isolados, e os velhos e corpulentos castanheiros desenhavam o intrincado recorte e a meada embaraçada dos seus enormes troncos negros como tinta.

Máximo pensou que seria para o seu espírito atribulado um grande alívio físico e moral passear, errar durante uma ou duas horas no meio do silêncio dessas trevas, sob as abobadas das imensas áleas, e penetrar no fascinante mistério noturno das brumas opacas.

As três salas que compunham os seus aposentos eram situadas no segundo andar, no ângulo esquerdo do edifício.

Um corredor largo como uma galeria conduzia à grande escada do palácio.

Máximo conhecia perfeitamente a disposição interior do palácio para dispensar o auxílio da luz.

Meteu apenas uma caixa de fósforos na algibeira, percorreu o corredor de alcatifa indiana, desceu a escada revestida de espesso tapete de Smyrna, que abafava o ruído dos passos, e achou-se no "rez-de-chaussée".

A grande entrada do vestíbulo era sòlidamente fechada e trancada, por uso e costume, ao cair da noite; Máximo, porém, sabia que existia uma pequena porta também fechada, cuja chave ficava na fechadura.

Abriu-a, cerrou-a sobre si, desceu os degraus largos e polidos, e em lugar de seguir pela álea circular, dirigiu-se para o imenso tabuleiro de relva, em forma de estrela, úmido do relento da noite.

 

Quando percorreu certa distância voltou-se para abranger, num lance de vista, a vasta fronteira do silencioso palácio, onde a única mulher que amou, a única que ele amaria na vida, se definhava lentamente, sem que pudesse salvá-la mesmo a custa da própria existência.

A monumental fachada do palácio principesco estava completamente imergida nas trevas, exceto duas janelas do andar nobre em cujas vidraças ondulava um pálido clarão.

Eram as janelas da alcova de Joana.

Máximo transportou-se pelo pensamento ao interior dessa alcova, o seu espírito pairou em roda do grande leito à luís XVI, sustentado sobre um estrado apoiado em dois degraus, quase envolvido numa finíssima onda de brocatel azul celeste, trabalhada a ponto de Inglaterra.

A loura cabeça e o pálido e simpático rosto da jovem moribunda como que lhe apareceram distintamente, quase mergulhada nas rendas das almofadas.

Pareceu-lhe ver o Conde de Gordes e Renée, sentados a um e outro lado do fúnebre tálamo, escutando a respiração difícil, embora suave, de Joana, e perguntando-se com angústia se cada hálito da meiga e doce criatura, seria o último sopro de vida que lhe fugia para sempre.

Uma lâmpada Carcel, colocada sobre um móvel e velada por amplo abajur, iluminava esta cena profundamente triste, e tingia as vidraças de reflexos lácteos e oscilantes, que Máximo contemplava de longe...

O coração do pobre doutor estalava nas garras de uma dor agudíssima...

Baixou pouco a pouco os olhos úmidos, e de repente estremeceu e fez um gesto de surpresa, como se alguma coisa de estranho e singular lhe tivesse passado ao alcance da vista.

Da posição em que se achava neste momento, Máximo avistava perfeitamente o perfil das construções do jardim de inverno, continuando a asa esquerda do edifício, como um palácio de cristal soldado ao flanco de um palácio de granito.

O cintilar intermitente das estrelas refletia-se nas vítreas transparências das elegantes cúpulas das estufas, orlando-as de arabescos de vagas claridades.

Ora, o doutor interviu nas estufas, quase ao nível do solo, uma pequenina luz, comparável de longe ao clarão fosforescente de um fugaz meteoro.

Esta luz ia, vinha, girava sobre si mesma, desaparecia, reaparecia, permanecia imóvel durante alguns segundos, depois entrava novamente em movimento.

Quem seria que a essa hora noturna, quando todos deviam dormir no palácio, passeava no recinto das estufas? qual seria o fim desse passeio a horas mortas? que significava essa luzinha irrequieta, denotando a atividade da pessoa que a levava?

Máximo formulou a série de perguntas que acabamos de indicar, e resolveu a questão de um modo inteiramente favorável às preocupações em que andava embrenhado.

— É Deus que me envia a prova material que lhe solicitava! disse ele com exaltação. O assassino vai cair em meu poder

Que outra pessoa poderia ser, com efeito, senão o envenenador, que a essas horas da noite percorria as solidões do jardim de inverno, fazendo a infernal colheita de venenos?...

Ninguém!...

O doutor mudou de rumo a sua divagação, dirigiu-se para o palácio, ou antes para o ângulo esquerdo onde estavam situadas as salas de recepção que se comunicavam com o jardim de inverno.

À medida que se aproximava, o pequeno clarão vagabundo tornava-se mais distinto, mas, ao mesmo tempo, mais insólito. Apresentava a irradiação pálida e extravagante de uma lanterna entre um nevoeiro pouco denso.

Enfim Máximo atingiu os largos socos de cantaria sobre que assentava a armadura metálica das imensas estufas.

Estendendo a mão podia tocar as vidraças.

Nada seria mais fácil do que ver o que se passava no âmbito do círculo luminoso, descrito pela lanterna do lado oposto àquele de que se aproximou.

A decepção, porém, não tardou e foi esmagadora.

O doutor compreendeu logo o efeito da irradiação alvacenta de que falamos. A tépida exalação vaporosa do interior, condensando-se no cristal, roubava-lhe a transparência. Descobria-se apenas um ponto luminoso, mas nem contornos, nem formas, ou linhas precisas se acentuavam.

— É preciso entrar! pensou o médico, e começou a procurar as janelas das estufas, que era costume abrirem-se quando a temperatura era tépida e suave.

Estavam corridas.

Os jardineiros quando acabavam o trabalho, ao anoitecer, fechavam-nas por dentro.

Máximo fez um gesto de raiva...

Sentia-se perto do miserável que desejava surpreender e desmascarar; estava separado dele por uma fraca barreira, uns frágeis vidros, mas essa barreira era tão sólida como se fossem de bronze!

Teve a idéia de despedaçar a vidraça, embora dilacerasse as mãos e rasgasse o rosto, e penetrar no silencioso âmbito da estufa.

Mas a reflexão obstou ao seu propósito. Se o levasse a efeito seria avisar o assassino. Ao ruído dos vidros quebrados, o infame apagaria a lanterna denunciante, e desapareceria nas trevas internando-se depois nas espessuras do parque onde todo o vestígio ficaria perdido.

Máximo tomou apressadamente a direção da porta por onde tinha saído, e foi pensando:

— Para qualquer parte do palácio para onde o malvado queira ir, terá de atravessar os salões e de passar pelo vestíbulo... Irei adiante para o espreitar... A obscuridade protege-me, o som dos passos adverti-me-á da sua aproximação, e quando passar por diante de mim ver-lhe-ei o rosto...

 

A SURPRESA

Poucos momentos depois, Máximo chegava à porta e subia rapidamente os degraus.

Fechou-a sobre si e parou para escutar; só ouviu o ruído da sua respiração ofegante, e as precipitadas pulsações do seu coração.

O vestíbulo do palácio de Gordes era tão vasto como o hall das habitações aristocráticas de Inglaterra.

A sua altura tornava-o sonoro como a nave de uma catedral gótica.

Troféus de caça e panóplias enfloravam o centro de grandes painéis forrados de velho couro de Córdova com arabescos de flores em relevo, sobressaindo o fundo dourado um pouco esbatido.

Em frente de cada panóplia, erguiam-se armaduras completas sobre socos de ébano. Eram cavaleiros da Idade Média, e guerreiros dos tempos homéricos, cobertos de aço, viseira caída, adaga ao lado, e lança em riste, espécie de imóveis alabardeiros fazendo guarda de honra à entrada da escada senhorial.

A pálida claridade das estrelas, espalhando-se pelas largas janelas, polvilhava e refrangia-se nas arestas dó metal polido, em vagos e oscilantes lampejos.

Máximo ocultou-se por detrás de um dos simulacros, e esperou...

Esperou talvez cinco ou seis minutos, que lhe pareceram intermináveis.

Ao cabo desse tempo, abriu-se uma porta lateral, e uma luz tremulante descreveu uma mancha branca num círculo de sombra sobre o lajedo do vestíbulo.

Máximo sentiu comprimir-se-lhe o coração, e um suor frio, gelado, molhar-lhe a fronte.

E com efeito, como sonhar uma situação mais pungente?

Aquele que, de um momento para outro ia transpor essa porta, fosse quem fosse, seria o assassino.

A luz aumentou de intensidade, e Máximo a custo reteve uma exclamação de horror prestes a fugir-lhe dos lábios.

É que Raul de Gordes, saindo do salão, apareceu na penumbra, e a sua presença neste lugar a esta hora da noite, não podia atribuir-se a qualquer circunstância fortuita mais ou menos explicável...

Não!... A dúvida era impossível; o Conde vinha do jardim de inverno; uma prova material depunha contra ele no tribunal dá consciência de Máximo Giraud...

Na mão direita segurava uma pequena lanterna de furta-fogo. No braço esquerdo sobraçava uma porção de flores tropicais, escolhidas dentre as mais brilhantes e formosas, e sem dúvida das mais venenosas...

Lentamente, de cabeça baixa, o rosto sombrio, e o olhar fixo de lady Macbeth, limpando continuamente a sua mão patrícia para apagar a mancha sangüínea, a mancha indelével, atravessou o vestíbulo.

Passou muito próximo de Máximo, sem suspeitar da sua presença, embora os raios luminosos da lanterna se projetassem sobre o vulto da sua figura, e subiu como um sonâmbulo, inconsciente, os degraus da majestosa e deserta escada...

Confirmadas desta maneira repentina, e ao mesmo tempo incontestáveis as suspeitas até então combatidas com todas as forças da sua alma, o doutor sentiu-se literalmente tomado de vertigem, e durante um instante a revelação íntima que se lhe operou nele quase que o transformou em estátua.

Quando saiu desse estado de imbecilidade, quando o deslumbramento passou e a razão recobrou as suas faculdades, quando o sentimento da assombrosa realidade se tornou nítido e distinto, já o Conde de Gordes tinha transposto o último lance da escada e dirigia-se para os aposentos da moribunda enferma...

— Ele! Era ele! balbuciou entre lágrimas o atribulado doutor. Ah! infame!...

E, por sua vez, galgou dois a dois os degraus da escada para agarrar o assassino.

 

Júlio Leroux, na extensa carta que os leitores tiveram conhecimento, anunciara a Lazarine que o médico assistente do Príncipe Totor, na câmara aérea do castelo de cartas de Ville d'Avray, não somente respondia pela vida do ferido, mas autorizava o regresso dele para Paris no dia seguinte.

O ex-banqueiro falava a verdade, e as afirmações do príncipe da ciência deviam de converter-se em realidade.

O jovem Príncipe estava livre de perigo na ocasião da visita de Godefroy e de Júlio Leroux, e a datar dessa visita ia de melhor a melhor, num restabelecimento que tinha o seu quê de prodigioso.

É que a influência da moral sobre o físico produz muitas vezes, mesmo quase sempre, resultados miraculosos que desconcertam todas as suposições, e anulam todas as probabilidades.

O melhor dos pais, noticiando ao videvant Bégourde a precipitada partida da senhora de La Tour-du-Roy, e as causas dessa partida, ajuntou também que a Marquesa fora inquieta, e que ia tranquilizá-la escrevendo-lhe nesse dia, dizendo-lhe que a ferida, que a princípio parecia ser tão grave, não teria conseqüências funestas.

Júlio Leroux vertia liberalmente no coração do Príncipe a cornucópia das consolações.

Lembram-se também os nossos leitores, que Heitor lançara ao pai de Lazarine um olhar tão repleto de reconhecimento, que o velho vivant, a respeito do seu robusto e incomparável egoísmo, sentiu-se vivamente comovido.

Três quartos de hora depois da partida de Godefroy e de Júlio Leroux, o criado particular de Heitor entrou nas pontinhas dos pés, e vendo que o amo estava acordado, disse-lhe entregando um bilhete de visita:

— Está lá embaixo o senhor que trouxe este bilhete... Não pede para ser recebido, mas disse que voltaria mais vezes para saber notícias do estado de saúde de vossa excelência...

Heitor leu o nome gravado sobre o velino.

— Marcel Laugier... disse ele baixinho. O procedimento é de um chic perfeito! Muito chic, muito galante, este hussardo, palavrinha de Totor! Desça imediatamente, prosseguiu dirigindo-se ao criado, e diga ao senhor Laugier que lhe estou infinitamente agradecido pela sua solicitude.

— Sim, senhor Príncipe.

— Diga-lhe mais, que regresso brevemente para o meu palácio na rua Francisco I, em Paris, e que terei o maior prazer em pagar-lhe pessoalmente a sua amável delicadeza.

— Sim, senhor Príncipe.

O criado retirou-se.

— Doutor, volveu Heitor dirigindo-se ao médico com um sorriso, adivinha quem é o visitante...

— Como poderei adivinhar?

— Nada menos do que o gentleman a quem devo este magnífico golpe de espada que pós diante os olhos a vida eterna... A propósito doutor, são poucos os elogios que possa fazer à sua habilidade; à sua vitoriosa ciência... Obrigado! Por enquanto prefiro a vida humana às glórias da vida celeste...

O médico saudou com a falsa modéstia de um personagem eminente que se julga merecedor dos encômios que lhe dirigem.

- Marcel Laugier, prosseguiu Heitor em quem a corda do entusiasmo vibrava facilmente, Marcel Laugier procede galantemente, como um cavalheiro, porque enfim nada há mais simples no mundo do que vir i Ville d'Avray para um duelo, mas o que é muito menos pies, i, que £ enorme, prodigioso, monumental, e de um relevo finíssimo, e voltar para saber notícias do adversário que ficou vencido!

Pelas seis horas e meia vieram prevenir o médico de que o esperava o jantar.

O príncipe da ciência desceu.

O criado particular ficou só com o amo.

— Vossa excelência abusou hoje tanto das suas forças, disse o servo desejoso de agradar, que me consideraria um imperdoável transgressor das ordens do médico, se não tivesse de dar a vossa excelência uma notícia que, segundo toda a aparência, o interessará vivamente...

— De que se trata? disse Heitor.

— Na noite do duelo, quando o senhor Príncipe, no meio do delírio e da febre perdeu os sentidos, veio de Paris alguém...

— Quem? interrompeu o convalescente.

— Uma senhora...

— Uma senhora! repetiu o ex-Bégourde. Uma senhora! aqui? neste quarto?

— Sim, meu senhor... Essa senhora insistiu tanto... pareceu-me tão aflita e desesperada, que foi de todo impossível negar-lhe a entrada... O médico tinha primeiramente concedido uma pequenina entrevista...

— Conheceu quem era?

— Não disse o nome, mas com certeza era pessoa de grande tom. Conhecia-se pela sua irrepreensível elegância.

— Uma pessoa de grande tom, calculou o Príncipe, não podia ser madame Bobino... Teria gritado e berrado com todos os diabos, e a sua elegância é espaventosa... Só se fosse... Ora adeus! pensar em semelhante coisa é loucura rematada...

E ajuntou, elevando a voz:

— Germano, faça a descrição dessa pessoa.

O criado empertigou-se, recolheu-se como para condensar as suas recordações, e respondeu:

— Alta e delgada, um porte como raras vezes aparece; modo de andar ligeiro, ondulante, denotando que costuma andar mais de trem do que a pé, tacões de botinas justíssimas, impróprias para caminhar, vestido preto, de cauda, e um imenso véu, uma toilette das que custam mais de mil escudos, e que uma burguesa rica acharia muito simples, trazia o véu às ondas, sobre a cabeça e descendo sobre o rosto como uma máscara, luvas pretas de seis botões, mãos de duquesa, nem uma única jóia, uma trança de cabelos soltava-lhe o véu e caia-lhe sobre os ombros...

— Uma trança de cabelos! interrompeu Heitor arquejando de emoção. De que cor eram os cabelos?

— Cor da moda, senhor Príncipe, replicou Germano. Há pessoas que não gostam da nuance desses cabelos... Eu acho-a absolutamente formosa... Sempre gostei muito dos cabelos que parecem ler reflexos de ouro!

O Príncipe ergueu-se a meio sobre a cama como para melhor ouvir a resposta do criado; deixou-se cair, rolando a cabeça nas almoçadas e levando a mão ao peito como para dominar o coração que pulsava numa emoção sobreumana.

— Ela! balbuciou ele com embriaguez. Era ela! Era Lazarine... Veio aqui de noite, sozinha... Pobre mulher! querido anjo! Que coragem! que heroísmo! Adora-me, não há que ver... Que mais brilhante e positiva prova podia dar-me para me convencer?! Ah! como sou feliz! sim... feliz...

— O senhor Príncipe reconheceu a pessoa pelo retrato que tive a honra de esboçar timidamente? perguntou com ares curiosos, mas -respeitosamente, o criado.

— Ah! sim, reconheci!

— Ficou contente com a minha indiscrição?

— Infinitamente; nado em alegria...

— Nesse caso, fiz bem em falar, a despeito da ordem formal do médico que proibiu tudo que o pudesse agitar?

— Sim, Germano, fez bem... Estou encantado com você,... É um servo modelo...

— Oh! meu senhor, confunde-me com tanta honra! Fiz o meu dever, conforme sei... Sou muito dedicado... muito dedicado ao senhor Príncipe...

— Germano... Lembra-te amanhã, quando chegar a Paris, porque resolvi dar-te cinqüenta luises em testemunho da minha satisfação...

— Oh! de certo, não me esquecerei! A benevolência do senhor Príncipe não tem igual no mundo!

A noite foi tranqüila.

Se o jovem Príncipe de Castel-Vivant dispusesse das suas forças, talvez a alegria tivesse expulsado o sono; mas a fraqueza contribuiu para que dormisse até de manhã um bom sono, reparador e ininterrupto.

Pelas dez horas, um landau com um macio colchão e flácidas almofadas de penas de ave, chegava a Ville-d'Avray.

Heitor, condenado a absoluta dieta desde muitos dias, morria literalmente de fome. O doutor autorizou uma pequena colação, com' posta de costeleta e ovos frescos, e um cálice de velho vinho de Bordéus.

_ A conta da hospedaria foi solvida com principesca largueza, depois ajudaram o Príncipe a subir para o landau, aconchegaram-no, resguardaram-no com uma esplêndida pele de tigre, e os cavalos destilaram caminho de Paris...

 

O ENCONTRO

O trajeto de Ville d'Avray a Paris efetuou-se lentamente, mas sem dificuldade.

Realizaram-se as previsões do médico; não só a breve viagem; não agravou o estado do ferido, mas contribuiu para lhe alegrar o espírito e renovar bom ar os pulmões do enfermo.

Às duas horas, passava o landau à porta do elegante palacete da rua Francisco I, onde todos os criados esperavam o Príncipe, que nos primeiros dias julgaram ter falecido.

Heitor foi retirado da carruagem com precauções infinitas, depois deitado sobre uma chaise-longue, e dois criados de bom pulso, vigiados pelo doutor e por Germano, transportaram-no até ao seu quarto, e daí para o leito.

— Ah! como é bom estar em nossa casa! exclamou ele olhando enternecidamente em volta de si, e abrangendo nesse olhar as douraduras, os móveis esquisitos, os quadros, os objetos de arte, as mil e uma galantes fantasias que ele esteve ameaçado de não tornar a ver. Parece-me que aqui, meu caro doutor, a minha convalescença irá com a velocidade do caminho de ferro... O trem da mala das índias! ajuntou rindo-se.

— Diz perfeitamente e com a melhores razões, Príncipe, replicou o médico. Não precisa mais do que descanso, uma alimentação tônica, em que predominem as matérias nutritivas em pequeno volume, sono tranqüilo e nada de sensações... Com esse regimem simples recuperará rapidamente o vigor perdido...

— Posso receber os meus amigos e conversar com eles?

— Não há dúvida, mas com moderação... Quando se conversa sobrevém uma certa animação e igualmente fadiga... Lembre-se sobretudo que, até nova ordem, proíbo de maneira absoluta toda a visita feminina... Esta ordem é formal e não comporta exceções... Alguns amigos, seja! mulheres, nem uma!

Que importava esta proibição a Heitor, se a senhora de La Tour-du-Roy não estava em Paris.

— Descanse, doutor, volveu ele com um sorriso. As suas prescrições serão religiosamente cumpridas. Não espero ninguém do sexo-frágil.

— Então, tudo irá bem. — Posso escrever?

— Não.

— Algumas linhas somente...

— Antes de quarenta e oito horas, não... Não lhe consinto se não a posição horizontal, exceto nas ocasiões de se alimentar, por ser de pouca duração... Quando a cicatriz estiver completamente fechada, veremos então o que convém fazer... Deixe ver o pulso, Príncipe... Bem, regularmente. Depois de amanhã voltarei. Recomendo-lhe prudência, sem o que toda a cura é impossível...

O doutor despediu-se, chamando de parte Germano, a quem recomendou que não consentisse visitas femininas fosse qual fosse o pretexto.

Nesse dia Heitor recebeu apenas a visita de seu pai adotivo, mas o velho egoísta de Godefroy de Castel-Vivant veio por conveniência, e não se demorou mais do que dez minutos...

A noite foi boa, e o sono tão reparador e tranqüilo como o da véspera. No dia seguinte, de manhã, quando o Príncipe acordou, sentiu-se bem disposto e alegre, julgando completamente reparadas as suas forças.

— De hoje a três dias, murmurou ele, poderei sair de carruagem... para a semana, provavelmente, estarei em estado de passear.a cavalo...

Pelas nove horas Germano entrou no quarto, trazendo numa salva de prata dourada uma carta com a marca do correio de Orleans.

Era a carta escrita por Lazarine, e que os nossos leitores conhecem.

 

Com que embriaguez amorosa, com que transporte de louca alegria Heitor leu e releu dez vezes consecutivas a epístola maravilhosamente hábil, parece-nos supérfluo dizê-lo. Quando julgou reconhecer a Marquesa através do vago esboço delineado pela prosa encomiástica de Germano, não se iludira, não! Era ela! A Marquesa, a vaporosa e tentadora Lazarine adorava-o!.. Queria ser esposa dele no mais breve espaço possível! Propunha-lhe abandonar a França com ele, ir para muito longe, onde ninguém importunasse a sua felicidade, casar no estrangeiro!... Céus! não era isto uma prova de confiança tão infinita como o amor que lhe consagrava?!

Devemos declarar aqui que, depois do incidente da provocação no teatro das Variedades, passava-se no espírito de Heitor um fenômeno singularíssimo, muito difícil de explicar claramente, e ele mesmo surpreendera-o de um modo muito imperfeito, sem saber a que atribuí-lo...

O seu ódio permanecia vivo e intenso para com o ex-oficial de quem a Marquesa se queixava, e se colocava entre ela e ele como um obstáculo poderoso, mas não chegava a fazer idéia de que este ser odioso e Marcel Laugier fossem uma e mesma pessoa...

Detestava um com todas as forças da sua alma, enquanto que o outro lhe parecia absolutamente simpático.

Teria alegremente matado o primeiro, teria cordialmente estendido a mão ao segundo.

Esta dupla impressão acentuou-se mais vivamente, após a leitura da carta de Lazarine.

Foram inúteis as tentativas que fez para analisar o que se passava no seu ânimo. Cansado de querer arrancar o segredo do fenômeno, renunciou à preocupação, porque a tensão do espírito acarretava-lhe a fadiga formalmente proibida pelo médico.

— Palavra de honra, dizia consigo mesmo, que não compreendo nada disto!... Parece-me inadmissível que um rapaz de fisionomia tão franca e leal seja um miserável, porque o homem que sem direitos sobre uma mulher, se lhe impõe pela ameaça e intimidação, é o último dos vilões... e contudo é positivo, porque a Marquesa não saberia mentir... Não há dúvida que estou apreciando as qualidades do meu adversário através de um prisma favorável... O seu ar de cavalheiresca lealdade é seguramente o verniz artificioso da hipocrisia... As minhas apreciações estão, de mais a mais, prejudicadas pelo pouco tempo que o conheço... Se tornar a encontrá-lo, se se deparar ocasião de palestrar seriamente com ele, hei de estudá-lo bem, descobrir o que oculta, e não tornarei a cair na tolice de tomar a mascam pelo rosto... Enganado por um amigo, seja, mas iludido por um inimigo, Irra!

O resultado destas reflexões foi que Heitor estendeu o braço e descansou o dedo sobre o botão do timbre colocado ao alcance da mão. Germano apareceu logo, perfilou-se em frente do amo na atitude discreta de um servo que espera ordens.

— Antes de ontem, depois de se retirarem os senhores Príncipe de Castel-Vivant e Leroux, disse o ex-Bégourde, foi que trouxe este cartão?...

— Sim, senhor Príncipe.

— Lembra-se do nome gravado no bilhete?

— Perfeitamente... Mr. Marcel Laugier... É o fidalgo que teve a honra de se bater com meu amo...

— Desça ao porteiro... replicou o filho adotivo de Godefroy. É possível que o senhor Laugier viesse pessoalmente saber notícias minhas...

É mesmo provável que viesse... Dê ordem para lhe dizerem, no caso que ele volte, que terei a maior satisfação em o receber... É bastante que me previnam da sua chegada com duas badaladas na sineta do portão... Você, Germano, receba-o com a máxima distinção, e introduza-o imediatamente...

— Sim, senhor Príncipe...

Pelas quatro horas da tarde ressoaram duas badaladas na sineta.

— Por esta não esperava eu! Pensou o principezinho. Deve ser o meu hussardo...

E com efeito era ele.

Poucos minutos depois abria-se a porta, e o criado anunciava:

— O senhor Marcel Laugier.

— Seja bem vindo, senhor... disse Heitor, e ajuntou: Germano ofereça uma poltrona a este senhor, e dê-me aquelas almofadas...

O criado obedeceu e retirou-se.

Marcel permaneceu de pé junto do leito, e parecia não embaraçado, mas comovido.

— Em primeiro lugar, senhor, disse ele com dignidade, permita-me que lhe afirme que atendendo à nossa recíproca posição, não teria a indiscrição de me apresentar, se não me prevenissem de que seria recebido...

— No que realmente tenho muita satisfação... interrompeu Heitor.

— Eis porque me apressei a subir, acabou Marcel, e teria grande honra, creia, consentindo que lhe aperte a mão...

— São os meus desejos, cavalheiro... acudiu o Príncipe. O ex-oficial prosseguiu sorrindo:

— É a de um adversário que pede para ser amigo...

— Mais de uma amizade tem começado por um duelo, observou Heitor para evitar resposta positiva.

Trocou-se um aperto de mão caloroso. Marcel assentou-se.

— Estou satisfeitíssimo, replicou ele, por ver com os meus próprios olhos os rápidos progressos da sua convalescença. O seu parecer está longe de revelar a grande perda de sangue que deveria ter sofrido... Creio que em poucos dias o verei de pé...

— Assim diz o doutor e é surpreendente, ponderou o Príncipe, porque o seu bote foi de mestre, e contava estar crucificado na cama seis semanas ou dois meses, sem falar das probabilidades de deixar eternamente este mundo ingrato...

— Durante um dia e uma noite cheguei a persuadir-me de que ° teria matado... continuou Marcel. Asseguro-lhe sob palavra, que me possuí de um profundo desgosto... Ficaria para sempre pesando na minha consciência essa fatalidade que surgiu inopinadamente diante de mim, e o Príncipe, de certo, confessará a minha inocência e justiça.

— Sim, não há culpabilidade alguma num combate leal... disse Heitor aconchegando a colcha de damasco bordada a cetim branco.

— Sem dúvida; mas não é tudo que pretendo dizer... replicou Marcel. Refiro-me à causa que deu origem ao duelo... A minha consciência está tranqüila, não o provoquei... Podia acaso declinar o encontro que a sua vivacidade tornou inevitável?

— Seguramente não...

Graças ao céu o desenlace não foi funesto... Tudo é bom quando acaba bem, e eis-nos conversando amigavelmente, depois de termos feito o possível para nos desfazermos um do outro... Permita-me, pois, que tente agora esclarecer um ponto que, em todo este negócio, permaneceu obscuro para mim?

— Com a melhor vontade... Qual é o ponto obscuro...

— O ponto de partida...

— Não compreendo bem, creia...

— Vou explicar-me, interrompe Marcel com delicadeza. Da sua persistência originou-se uma discussão inconveniente entre nós, e logo depois do nosso encontro casual no teatro, um pouco mais de sangue frio, surpreendeu-me a fatalidade da pendência que se liquidaria no dia seguinte... Por que? Confesso-lhe que a causa de tudo isto parecia-me extraordinária...

— Realmente! obtemperou Heitor.

— Meu Deus, sim! extraordinária, com efeito... Fiz toda a espécie de conjeturas, e não lhe oculto o desejo de saber, se a que eu imagino como mais provável dentre todas, tem algum fundamento...

— Imaginou, talvez, interrompeu o Príncipe com vivacidade, que o conhecia, embora não tivéssemos nenhum gênero de relações, e que procurava um pretexto qualquer, a propósito de uma rivalidade a vingar, de uma intriga galante?

— De modo nenhum... replicou Marcel num tom grave. Não poderia supor semelhante coisa...

— Por que?

— Por motivos que me são pessoais e que vai saber: Ainda que novo e sem fazer profissão de moral austera, vivo inteiramente afastado do mundo das aventuras amorosas... Entreguei-me todo a um "único amor... pertenço a uma única mulher, e essa não faz parte do número das que possam originar uma rivalidade banal...

Marcel referia-se a Lazarine.

O principezinho esteve a ponto de gritar:

— Essa mulher não o ama! Nunca, nunca o amou! Nunca o amara!... O senhor é o seu flagelo, o seu inimigo, o seu verdugo, e foi para a livrar das suas perseguições que o provoquei, e lastimo não lhe ter atravessado o peito com a ponta do sabre!...

Mas tinha jurado silêncio. Recordou-se desse juramento e murmurou:

— Continuo não compreendendo... Se não fosse isso, que podia então ser? Qual foi a sua suposição?

 

EXPLICAÇÕES

— Foi o primeiro duelo que teve, Príncipe? perguntou Marcel Laugier.

— Foi, respondeu Heitor.

— Cheguei a duvidar, prosseguiu o ex-oficial sorrindo. Supus que desejava bater-se não se importando com quem, fosse qual fosse o pretexto, e que a minha aparência militar, o meu bigode, e a minha fitinha -vermelha, designavam-me naturalmente como o adversário que lhe convinha, e fez-me a honra de me provocar para se estrear no jogo das armas... Acertei?

— Não direi positivamente que não... replicou o adotivo de Godefroy, ocultando o melhor que pôde o seu embaraço crescente, porque lhe repugnava mentir.

— Estou encantado de que assim fosse... continuou Marcel tomando por adesão formal esta resposta um pouco vaga. Fez o seu débito com sangue frio, como se fosse senhor da situação, e com uma delicadeza acima de todo o elogio... Fui eu que lhe ministrei o batismo de sangue, e agora coisa alguma impede que uma sólida e boa afeição substitua, naturalmente, o mau humor de inimigos que nos levou a cruzar armas... Se a simpatia que me inspira é recíproca, posso afirmar que deixaremos desde este momento de sermos indiferentes um para o outro...

Não se apresse a exaltar os meus votos... A amizade não se improvisa, sei... Tem a minha, esperarei sem impaciência, porque, ou mais tarde ou mais cedo virá, estou certo...

Redobrava o embaraço de Heitor.

Estava verdadeiramente numa posição falsa.

Estas palavras cuja franqueza era manifesta, iam-lhe direitas ao coração.

De boa vontade teria estendido ambas as mãos a Marcel dizendo lhe:

— Sejamos amigos desde já!

Mas por motivos que conhecemos tratava de esmagar esse impulso, e não queria ver no homem que lhe falava senão o perseguidor da senhora de la Tour-du-Roy.

Balbuciou algumas palavras confusas, algumas expressões de banal delicadeza, que Marcel interpretou de modo lisonjeiro e favorável, O ex-oficial continuou após breve pausa:

— Se não tivesse prazer inesperado de vê-lo hoje, receberia amanhã carta minha...

— Mas se tem alguma coisa a dizer-me... insinuou o jovem príncipe.

— Tentava justificar-me antecipadamente de um crime de lesa cortesia, que embora não fosse, teria todas as aparências desse delito... A contar de amanhã em diante, ser-me-á impossível vir aqui, mesmo mandar saber notícias suas.

— Por que? fez o príncipe mordido por súbito pressentimento.

— Pela melhor de todas as razões...

— Qual?

Saio de Paris...

Amanhã?....

Amanhã; aproveito o primeiro trem da manhã.

— Vai viajar?

— Não direi uma viagem, ausento-me. — Ausência muito demorada?

— Não posso precisamente dizer; eu mesmo ignoro...

O príncipe não podia avançar mais sem incorrer em manifesta indiscrição e risco de comprometer o segredo que a todo o custo queria guardar, mas apoderou-se-lhe da alma pungente angústia, e esta angústia era seguramente legítima.

O pobre apaixonado pensava:

— Que significa isto?... Lazarine parte, sai de Paris, e este homem também!... Meditará ele uma nova perseguição?... Gomo hei de saber, e, sobretudo, como impedir e obter a que aquele pobre anjo seja vítima deste implacável flagelador?... Ah! que se não estivesse pregado na cama por causa deste maldito ferimento!...

A questão formulada in mente ficava naturalmente sem solução.

A partir desse momento o embaraço e a preocupação de Heitor tornavam-se manifestos, e Marcel Laugier notou que se passava no espírito do seu interlocutor alguma coisa de insólito.

Levou à conta de fadiga a brusca transição, inexplicável para ele de outra maneira, e acusando-se de ser a causa principal dessa fadiga, levantou-se e apertou a mão do mancebo que ficou considerando daí por diante como amigo.

Bégourde experimentava um sentimento de violenta repulsão, mas receava trair-se recusando-se apertar a mão que se lhe estendia, e foi muito fria e reservadamente que correspondeu à calorosa manifestação, mas não escandalizado, atribuindo com mais visos de probabilidade o extravagante e pouco afável humor do seu adversário ao estado febril de um convalescente.

Apenas o ex-oficial saiu do quarto de Heitor, este carregou duas vezes o botão no timbre com extrema vivacidade.

Germano correu logo.

— Papel, pena, tinta... tudo que é preciso para escrever... já, ordenou o Príncipe num tom muito sacudido.

E como o criado ficasse imóvel, a juntou com desabrimento:

— Não ouviu?

— O senhor Príncipe quer escrever? perguntou Germano no mais humilde tom.

— Está claro, quero!

— Permita-me, senhor Príncipe, que respeitosamente lhe lembre que o médico proibiu de modo formal e...

— Que me importa as proibições do médico!

— Contudo...

— Obedeça, ou despeço-o já do meu serviço.

— Peço ao senhor Príncipe se digne acreditar na minha profunda dedicação...

— A dedicação é de certo uma coisa excelente, interrompeu o Príncipe, mas é preciso não abusar... Faça o que lhe ordenei...

— Apresso-me a cumprir as vossas ordens...

Dois minutos depois o filho adotivo de Godefroy, sentado sobre o leito e na posição mais cômoda, reclinado sobre os joelhos cruzados, de pena na mão, traçava estas melífluas palavras:

.... "Lazarine adorada."

Percebeu logo que seria mais difícil do que julgava levar a cabo o intentado desejo. Agitava-lhe a mão um tremor nervoso causado pela debilidade. Desenrolava-se-lhe ante os olhos o denso véu de um nevoeiro. Ressoava-lhe no ouvido uns sons confusos, atordoantes, que lhe roubavam a audição das coisas; miríades de borboletinhas negras enxameavam desenvoltas por sobre o papel.

O Príncipe porém sabia encontrar na sua vontade, quando queria, uma notável energia.

Reagiu contra o desfalecimento do corpo, è a força de vontade venceu.

Refez-se de firmeza a mão inerte; dissipou-se a névoa que lhe toldava a vista, extinguiram-se os rumores, voaram e desapareceram as borboletinhas como por encanto. Tornou-se possível para a inteligência abalada de Heitor coordenar as idéias, e após as doces palavras: "Lazarine adorada", escreveu as linhas seguintes, um pouco febris, um pouco desordenadas, e muito mais empoladas de que era preciso, não há ouvida, mas que traduziam em suma, tudo o que queria dizer.

"A vossa querida carta, que aperto, ora contra os lábios, ora contra o coração, tornou-me um homem completamente feliz! — Muito melhor que os médicos, muito melhor que os cuidados de que me têm rodeado, contribuiu, creia, para a minha salvação, para o meu restabelecimento...— É a ela que devo as forças que me voltam tão depressa, e que brevemente terei de todo recuperado.

"Adivinhei já, querida Lazarine!

"Aquela mulher heróica, aquela encarnação da tocante ternura e da santa caridade que me apareceu na hora terrível em que, prostrado pela agonia, eu estava quase riscado do mundo dos vivos, o instinto do meu amor bradara-me que era Lazarine.

"Não me enganava:... A sua carta veio provar-mo!

"Toda a minha vida seria pouca para lhe testemunhar o meu reconhecimento! para vos restituir essa felicidade, toda a felicidade que da senhora recebo.

"Quando for a minha esposa idolatrada, quando se chamar a princesa de Castel-Vivant, juro que lhe pagarei a minha vida...

"Mas devo parar nesta senda... Se quisesse pintar-lhe sequer a milionésima parte dos meus transportes, não acabaria, e no fim de levar anos a escrever, não teria ainda dito tudo.

"Devo preveni-la de uma coisa séria e talvez grave. Importa que a saiba quanto antes. — Se os pressentimentos não me enganam, ameaça-a um perigo.

"Eis os fatos:

"O meu adversário, o homem cujo nome não quero aqui traçar, parece que entendeu que praticava um ato de cavalheirismo perfeito vindo saber de mim em Ville d’Avray. Entregavam-me o seu bilhete no mesmo dia em que seu pai, na companhia do príncipe Godefroy, fazia a honra de me visitar no meu leito ensangüentado.

"Hoje, sabendo que o médico permitira que me trouxessem para Paris, esse homem apareceu-me em casa...

"O instinto de que eu lhe falava há pouco, e que não me engana quando se trata da senhora, aconselhou-me a que o tratasse bem, e que do meu diálogo com ele resultaria alguma coisa útil.

"Vai ver, querida Lazarine, como fiz bem em escutar o instinto.

"O flagelo de que não o puderam livrar, nem a minha má estréia, nem a minha falta de habilidade, deixa amanhã Paris, donde a senhora mesma saiu há quinze dias apenas...

"É segui-la de bem perto!...

"Aonde vai ele?

"Ignoro-o, mas receio adivinhá-lo... Receio que lhe vá no seguimento, e aproveitando o seu completo isolamento no fundo de uma província e numa grande vivenda, tente impor-se-lhe novamente pelas ameaças, pela intimidação, finalmente por todos os meios infames, diante dos quais ele não recusa.

"E eu aqui! longe da senhora, incapaz de a proteger! impotente para a defender!...

"Ah! semelhante pensamento faz-me febre! mata-me!

"Lazarine adorada, se não quer que morra de inquietação e de angústia, é preciso conceder-me o perdão que imploro, a graça que solicito de joelhos...

"As forças aumentam-me repentinamente, repito-lhe. — Dentro de dois dias devo estar de pé, conheço, toda a vez que a influência perniciosa do moral sobre o físico não se torne obstáculo ao meu restabelecimento completo; mas da senhora depende o deixar-me a imaginação em paz.

"Eis o que é preciso fazer para isso.

"Se o homem de que se trata aparecer nos arredores de La Tour-du-Roy, a senhora depressa o saberá, isto é. daqui a dois ou três dias... Escreva-me no mesmo instante, ou melhor, envie-me telegrama e sem perda de um minuto partirei para o Loiret...

"Não receie da minha parte nenhuma expansão, nenhuma loucura. Serei a discrição em pessoa, a prudência encarnada. Nem irei vê-lo se me ordenar que me conserve afastado, mas ao menos não estarei longe, e terá, em caso de necessidade, uma dedicação absoluta ao seu dispor.

"Não pergunte onde poderei instalar-me na sua vizinhança sem atrair a atenção dele sobre a minha pessoa... Um acaso inverossímil, à força de ser feliz, vem milagrosamente em meu auxílio.

"Imagine que na época em que eu era artista, antes de ser Príncipe, fiz alguns desenhos para um dos milionários, e por certo um dos mais simpáticos dos grandes editores de Paris... um exímio entendedor em coisa de arte...

Heitor arrastado pela força do hábito ia acrescentar: o único ave sempre de boa vontade me adiantava dois ou três luíses; refletiu porém que falando com a Marquesa, uma tal recordação era intempestiva...

"Absteve-se, pois. e continuou:

"Este homem amável possui ao lado de Olivet, por conseguinte não longe de La Tour-du-Roy, uma bela vivenda, o castelo de la Grand Cour...

“Neste momento não está lá; mas tenho a certeza absoluta de que amavelmente porá a sua residência. e os seus criados, à minha disposição por todo o tempo que me convier.

Ja vê que não há nada mais simples, nem menos comprometedor...

Depressa, querida Lazarine, uma carta ou despacho telegráfico, e parto.

"Não tenho necessidade de lhe dizer que a adoro, não é assim? E, contudo, digo-lhe e repito-lhe, e repetir-lho-ei toda a minha vida sem nunca me fatigar.

"Heitor."

O principezinho meteu a folha de papel dentro do envelope, escreveu a direção, selou-a com um grande sinete de lacre vermelho com as armas dos Castel-Vivant, e deu ordem a Germano que mandasse "um criado deitar a carta no correio.

Depois, prostrado de fadiga por um trabalho muito superior às suas forças, deixou-se cair sobre o travesseiro, adormeceu profundamente, sonhou que se tornava a bater com Marcel Laugier, e que daquela vez o atravessava de lado a lado.

 

NOVOS CRIMES EM PROJETO

Como sabemos, Lazarine escrevera três cartas: uma ao pai, a segunda a Laugier, e a terceira ao príncipe Totor.

As duas últimas foram expostas à vista dos leitores, no momento em que a pena da Marquesa corria sobre o papel.

Foi depois de saborear a carta da jovem viúva, que o ex-tenente se apresentou em casa de Heitor.

Marcel, em seguida à visita a que assistimos, voltou para casa b respondeu à Marquesa.

Dizia-lhe em algumas linhas, que em a noite do dia seguinte deveria chegar à estalagem do tio Ricardo, vulgarmente conhecida por Cavalo Branco, com toda a sua bagagem de paisagista-excursionista; ajuntava mais que, em cada dia, da uma hora da tarde em diante, iria com o seu cavalete, guarda-sol, caixa de tintas e pincéis, estudar conscienciosamente a paisagem e copiar, après-nature o grande carvalho, o patriarca da arborização dos arredores, e que, compreendendo bem mie alguns obstáculos invencíveis restringiam a liberdade de ação da senhora de La Tour-du-Roy, tais como a doença da Condessa, e a sua posição excepcionalmente delicada, esperaria com a maior resignação a chave do paraíso.

Lazarine que se preparava para partir para Gordes, recebeu o mesmo tempo as cartas de Heitor e de Marcel Laugier.

Leu a primeira com inquietação, e a segunda com cólera.

— Vamos! murmurou ela, amarrotando desesperada as cartas dos apaixonados rivais, e atirando-as para o fogão onde o lume crepitava vivamente, porque as manhãs eram frias e úmidas, — é impossível fazer alguma coisa destes dois homens, que já se conhecem, e em quem a febre do combate sucedeu à das relações de cortesia...

E volveu um olhar para o fogão onde se estorciam as cinzas negras das cartas dos dois rivais, a alguns fragmentos volitavam nas ondulações de rápidas chamas; depois replicou cruzando os braços:

— De hoje em diante será loucura querer acirrar o Príncipe contra este hussardo de má morte! Teriam fatalmente uma explicação antes do novo duelo, e as primeiras palavras todos os meus projetos ficariam reduzidos ao nada! Compreendo perfeitamente que um duelista vá deixar o seu bilhete de visita ao adversário vencido, mas por que razão este absurdo Heitor recebeu os cumprimentos pessoais do espadachim? Estúpido Príncipe! Eis o que a todo o custo quis evitar! Agora tudo está perdido, nem eu mesmo sei como sair desta meada!

O Príncipe, sabendo da partida de Marcel, adivinha que ele vem para aqui, e se não descubro um meio de salvação, de um momento para outro, vejo-me a braços com o Príncipe! É positivamente insensato tudo isto! Se este modo de vida continua por muito tempo endoideço, não há que ver... Estou cansada de intrigar à porta fechada!... É preciso acabar com o hussardo... Acabar! acabar! Como?

E pela vigésima vez talvez, depois da tentativa abortada, este terrível ponto de interrogação surgia diante de Lazarine.

O mais urgente, o mais importante, era cortar pela raiz toda a idéia da viagem de Heitor.

A Marquesa lançou mão da pena e escreveu este bilhete lacônico:

"Em nome do céu, querido Príncipe, não se inquiete, e livre-se de cometer a loucura com que me ameaça!...

"Não tenho nada que temer, absolutamente nada; os seus terrores não passam de uma desordem de imaginação. Valha-o Deus. Heitor!

"Ignoro se o personagem em que me fala saiu ou não de Paris para me perseguir; mas sei. perfeitamente, que estou fora do alcance dessas perseguições, e que a empresa dele naufraga de encontro à maior das decepções... Daqui a dez minutos saio de La Tour-du-Roy, vou para Gordes, acompanhar minha irmã, cujo estado se agrava de momento para momento, e passarei alguns dias com meu cunhado. Já vê que não há proteção mais assídua e eficaz.

O seu adversário sabe muito bem que as portas do palácio de Gordes estão fechadas para todo o sempre para ele: creia que não tentará a loucura de imaginar que se abrem para o receber.

Desde o momento que seja prevenida. — e tratarei de me informar bem, — de que esteja em La Tour-du-Roy, ou arredores, compro meto formalmente a minha palavra em adverti-lo, e combinaremos então no procedimento a seguir.

Mas ate o dia em que não receba carta minha, dizendo-lhe: — Venha! Necessito do senhor! — viva em plena tranqüilidade moral e sem outro cuidado senão o de apressar a sua convalescença e recobrar as forças que perdeu, reconstituindo nas veias o sangue que derramou por mim, porque esse sangue pertence-me pelo mesmo título porque me pertence o seu coração, o seu nome...

Depois de escrever e de mandar a carta para o correio, a Marquesa subiu para o trem e partiu.

Parece-nos supérfluo, ajuntar que ela esperava regressar ao cair da tarde desse dia para La Tour-du-Roy, e que, falando da sua demora em Gordes, era na intenção de iludir o Príncipe, arrebatando-lhe o ensejo de que ele, de um momento para o outro, aparecesse inesperadamente em Grand-Cour.

 

Vimos Máximo Giraud cair aniquilado, sucumbir ao assombro e ao espanto do fato que presenciou, reagir contra o desfalecimento do seu espírito, e galgar a grande escadaria do palácio para surpreender o senhor de Gordes que saía do jardim de inverno de noite no meio do silêncio e do mistério das horas mortas, levando uma braçada de arbustos e flores venenosas.

O Conde adiam ara-se muito durante as hesitações do pobre médico.

Tinha já transposto a galeria que comunica com o primeiro andar, quando Máximo empurrou violentamente o batente.

O Conde acabava de entrar nos aposentos de Joana, aposentos-compostos de uma antecâmara, de uma sala, de uma alcova e gabinete de toilette.

O senhor de Gordes parou um instante na antecâmara para depor sobre um aparador a lanterna de que se servira e agora lhe era inútil.

Bastava o clarão sereno e brando que se espalhava através da lente para o alumiar na sala, que recebia também um jato de luz que se escoava pela porta entreaberta da alcova de Joana.

O conde não fechou a porta da sala..

Máximo veio pé ante pé atrás dele e conseguiu entrar também,, parando a dois passos da sala em que Raul acabava de penetrar com precaução.

— Foi Deus que me permitiu surpreender este homem e vai entregar-mo nas minhas mãos! Daqui a um instante, quando estiver preparando o veneno, quando toda a negação for impossível, entrarei, e lançar-lhe-ei o negro crime nas faces. Oh! então, ficará cumprida a minha missão, e começará a da justiça!

Máximo estremeceu, como se as últimas palavras que pronunciou-fossem ditas em alta voz, acordando ecos sinistros que ainda ressoassem aos seus ouvidos.

— A justiça! repetiu ele. Será possível?... A prisão deste miserável mataria Joana repentinamente como se o raio a fulminasse... É preciso que a pobre criança espere em paz, solte o último alento sem saber que aquele a quem ama é o seu assassino!...

Quando a sua alma angélica descansar no seio do Senhor, será, então tempo de ajustar estas terríveis contas...

Agora o mais urgente é impedir que o criminoso continue a ministrar-lhe mais veneno... e vou fazê-lo... oh! sim! juro quo o farei sem demora!

O doutor, imóvel na sala, deu dois passos mal seguros, encostou-se à ombreira da porta, porque através da abertura podia ver e ouvir as coisas de que a alcova ia ser teatro, e que pressentia serem terríveis.

Com grande surpresa sua, no momento em que o senhor de Gordes entrava, a voz de Joana elevou-se muito débil, quase indistinta, mas sempre doce e ainda harmoniosa.

— És tu, Raul? perguntou a voz.

— Sou eu, queridinha..

— Vens do jardim de inverno?

— Sim... cumpri os teus desejos...

— Como és bom! Trazes as flores?

— Um grande ramo...

— Onde estão?

— Aqui...

— Espalha-as depressa sobre a cama... Quero vê-las. respirá-las, tocar as minhas famosas flores... São as amigas da minha alma que vou deixar para sempre... Quero dizer-lhes adeus, como a tudo que amo... Ai, que saudade!

— Minha adorada filha, murmurou o Conde, suplico-te pelo teu amor, por piedade, que não fales assim... Fazes-me um mal horroroso...

— Sofro muito mais por te ver sofrer, respondeu a jovem moribunda; mas é necessário que te vás habituando à idéia de uma separação eterna... Ah! essa separação está próxima, sinto... Despeço-me de ti, meu pobre e bom amigo.....Não são já os dias contados, são as horas da vida da tua dedicada Joaninha... Amanhã irás dizer ao nosso bom prior que o espero... Na véspera de comparecer perante Deus que me chama, quero que a minha alma vá pura de toda a mácula, e abençoada pelas mãos do seu representante visível na terra, como no dia do meu batismo... Raul, peço-te, não chores... Bem vês que estou resignada... Deixa-me com esta coragem que me inspira o meu anjo da guarda... Fechemos os olhos a esses tristes pensamentos, escutemos tudo que vem do céu... e dá-me essas flores...

O senhor de Gordes impôs silêncio aos soluços e à dor que o dilacerava, e como a condessinha pedia, espalhou-se sobre a colcha e o travesseiro a viridente e balsâmica colheita.

Máximo, invisível testemunha desta cena dilacerante, Máximo, que sentia rasgarem-se-lhe as fibras, e com os olhos arrasados de lágrimas, sem embargo do que sofria, passava por um alivio imenso.

O senhor de Gordes, fora é verdade, ao jardim de inverno, para satisfazer aos desejos da Condessa...

Esta ação, estranhamente suspeita na aparência, não provava nada contra ele... Toda a medalha tem o seu reverso. A sua inocência tornava-se possível.

Pensando estas coisas. Máximo respirava mais livremente.

Resolveu, contudo, tentar sem demora uma experiência, cujo resultado acabaria talvez por esclarecê-lo sobre a situação em que se achava.

Retrocedeu até à porta da galeria, e bateu docemente duas ou três vezes à da câmara.

O rumor, embora muito fraco, era assaz distinto no silêncio da noite para atrair a atenção.

O senhor de Gordes saiu da alcova, atravessou a sala e perguntou "baixinho:

— Quem está aí?

Eu, senhor Conde, respondeu Máximo aparecendo.

— O doutor, disse Raul com sobressalto. A esta hora aqui!... Mas por que inexplicável acaso?

— Não é puro acaso, senhor Conde, volveu Máximo. Como padeço de insônias, saí do palácio, e quando me dirigia para o parque vi luz nas estufas...

— Essa luz... interrompeu o marido de Joana, era eu que a levava...

E Raul explicou a razão da sua visita ao jardim de inverno.

— Ignorava tudo isso, replicou Máximo, e voltei logo ao palácio, vagamente inquieto...

— Por que?

— O mistério preocupou-me sempre... O que não compreendo assusta-me; ora a presença de um desconhecido nas estufas, a horas adiantadas da noite, pareceu-me misteriosa e incompreensível, e por conseqüência, suspeita...

Máximo fitou o seu olhar perscrutador na fisionomia de Raul, e prosseguiu:

O senhor Conde sabe perfeitamente que o jardim de inverno está povoado de vegetações tropicais, tão fecundas em venenos subtilíssimos como os laboratórios dos químicos...

— Não, respondeu o senhor de Gordes sem que nenhuma das suas feições tivesse a menor alteração, não ignoro... Mas que importa?...

— O crime é fácil desde o momento que não há dificuldade era praticá-lo!

— A que vem agora a estranha idéia de um crime? perguntou vivamente o Conde. Assassina-se por ódio, por vingança, por interesse... Onde encontra aqui essas circunstâncias que determina um acontecimento dessa ordem?...

— Pois bem; mas em lugar de um crime improvável, admitamos imprudência...

— Uma imprudência! Como assim?

— Eh! meu Deus... uma imprudência da sua parte... Não conheço outra mais grave do que a que acaba de cometer...

— Doutor, explique-se...

— O senhor Conde trouxe para o quarto de uma enferma, e espalhou sobre a cama dela uma grande quantidade de flores cujas emanações venenosas constituem um perigo terrível... A senhora de Gordes está num tal estado de fraqueza que essas emanações podem matá-la...

Uma palidez mortal cobriu as feições contraídas de Raul, e um tremor convulsivo agitou-lhe todo o corpo.

— Desgraçado que sou! balbuciou ele com voz quase extinta. Quer a fatalidade que eu seja o assassino da minha bem amada Joaninha! Doutor... meu caro doutor, se não me tivesse prevenido, que desespero, meu Deus! que remorso... Há cinco minutos que cheguei, o mal não pode ser grande, e talvez ainda tenha remédio... Doutor, entre, depressa... Faça compreender à Condessa que é preciso a todo o custo tirar de lá essas flores funestas... Veja, estou num estado de susto, trêmulo, sem saber que hei de fazer... Na desordem de todo o meu ser e da minha cabeça, nem mesmo sei exprimir-me bem... Venha quanto antes...

Raul dirigiu-se para a alcova.

— A hipocrisia pode chegar a este ponto?... Não, o Conde não é criminoso... e apesar de tudo, duvido ainda...

 

A EXPERIÊNCIA

Um esplêndido dia de outono sucedeu a esta comprida noite, cujas principais peripécias temos contado.

Acabavam de dar duas horas da tarde.

A Marquesa de La Tour-du-Roy, Raul e o doutor, achavam-se na alcova da enferma, à direita e à esquerda do leito.

Genoveva, sentada no limiar do gabinete, de toilette, costurava, mas a fadiga da pobre mulher era tal, tantas tinham sido as noites passadas em branco, que de momento a momento fechava os olhos e a cabeça descaía-lhe sobre o peito, e assim ia lutando com o sono, algumas vezes vencida, a maior parte vencedora.

A condessinha, chegada ao último período de enfraquecimento,, abandonava uma das mãos ao marido, outra a Lazarine, e com as pálpebras meio cerradas, sorria com a doçura de uma criança que está para adormecer.

Uma hora antes o cura de Gordes tinha chegado.

Escutou com a maior devoção o que Joana chamava sua confissão, e profundamente tocado pela breve e simples narrativa desta existência sem mácula, absolveu das imaginárias faltas a meiga e virtuosa agonizante; aproximou a hóstia santa de seus lábios puros, e talvez que o Deus vivo, o Deus redentor, nunca tivesse descido a santuário mais digno de recebê-lo.

Então a senhora de Gordes erguendo-se com algum esforço, e chamando seu marido para junto de si, mais com o gesto de que com a palavra, murmurou a seus ouvidos este tocante perdão.

— Se alguma vez te ofendi, querido Raul, perdoa-me... Se alguma coisa de mau, sem querer e sem saber, pratiquei contra ti, perdoa-me... perdoa-me...

Raul, cingindo Joana nos braços, e cobrindo-lhe os cabelos de lágrimas e de beijos, diligenciou responder, mas não pôde; as lágrimas estrangulavam-lhe a voz na garganta.

Joana balbuciou descaindo docemente a cabeça nas almofadas:

— Que Deus tome à sua conta a minha alma... Estou pronta...

Renée entrou na alcova.

— Doutor, disse ela, pouco mais são de duas horas. É tempo de dar o remédio a Joana?

— Estava para dizer a Genoveva que me trouxesse o poção. Tenha a senhora a bondade de ma alcançar, replicou Máximo.

— A mesma dose?

— Sim, minha senhora.

E saiu por onde entrou. O doutor deu dois passos como para seguir, mas a meio caminho parou. Renée reapareceu trazendo um copo de mousseline quase cheio de um líquido cor de opala, e dirigiu-se para o leito.

Máximo embargou-lhe o passo.

— Perdão, minha senhora... disse ele, digne-se esperar um instante...

— Para que? perguntou Renée.

Em lugar de responder, Máximo chamou:

— Genoveva!

— Senhor doutor? replicou a boa serva levantando-se logo.

— Dê-me uma colher...

— Sim, senhor doutor...

Renée, franzindo o sobrolho, repetiu:

— Uma colher? Para que lhe é preciso a colher?

— Para provar o remédio, simplesmente. Desejo certificar-me de que não existe o amargo de que ontem e esta manhã se queixou a senhora de Gordes.

— Tem razão, doutor. Aqui está o copo...

Máximo estendeu a mão, mas o frágil recipiente, que ele chegou a tocar, escorregou dentre os dedos de Renée e partiu-se no tapete.

— Ah! doutor! isso faz-se?! insinuou ela com ironia.

— Receba a senhora as minhas sinceras desculpas, murmurou ele num tom cheio de humildade.

— Enfim a desgraça não é grande... replicou Renée. A garrafa tem bastante e vou buscar outro copo...

— É mil vezes bondosa...

O pretendido desastre do doutor remediou-se prontamente, e o copo de mousseline passou, sem incidente, das mãos de Renée para a sua...

Genoveva trouxera a colher.

Máximo bebeu algumas gotas do líquido.

— Estou persuadido, disse ele, que desta vez a senhora de Gordes não achará mau sabor...

E deu o copo a Renée, que o apresentou desde logo à irmã... A condessinha esgotou o conteúdo com visível satisfação.

— Então? disse o doutor.

— Bom... fresco... respondeu Joana. Consola e reanima...

Máximo voltou-se bruscamente para a segunda filha de Júlio Leroux.

— Que tem na mão, minha senhora? perguntou ele. Feriu-se?

Uma tira de linho e uma banda de seda preta cruzada, enrolava "um dos dedos de Renée.

— Não é nada... respondeu ela empalidecendo e corando de repente.

— Por muito pouco que seja, é alguma coisa.

— Queimei-me.

— Como?

— Esta manhã, lacrando uma carta para meu pai, estava tão distraída que deixei cair dois pingos de lacre sobre este dedo.

— Más queimaduras são essas... observou Máximo. Deve sofrer muito...

— Alguma coisa, mas a culpa foi minha. Não tenho de quem me queixar.

— Que fez para se aliviar?

— Remédio caseiro; meti a mão em água fria.

— Insuficiente e inútil. Devia chamar-me. A inflamação é grande?

— Creio que não.

— Vejamos sempre...

— Para que?

— Peço-lhe...

— Seja, uma vez que quer. Afianço-lhe, porém, que não vale-a pena...

— Permita-me que nestas matérias me considere juiz mais competente...

 

Renée fazia esforços inúteis para dominar a cólera surda que lhe revolvia o interior. Cerrava os olhos que despendiam centelhas, mal continha o estremecimento das narinas e as vibrações dos nervos prestes a despedaçarem-se.

Desatou, ou para melhor dizer rasgou as duas bandas coladas ao dedo, estendeu a mão nua.

Máximo tinha num momento adivinhado o que ia ver; estava absolutamente senhor de si, e coisa alguma, salvo a sua lívida palidez, despercebida para as testemunhas desta cena, traiu o formidável arrepio que lhe correu o corpo de alto a baixo.

As falanges inferiores dos dois dedos de Renée apresentavam vestígios irrecusáveis de queimaduras, mas de queimaduras de gênero especial, e que pareciam produzidas por matéria cáustica de grande violência. Em volta das partes molestadas da epiderme havia manchas de um pardo escuro, semelhantes às que resultam da aplicação do nitrato de prata sobre a pele.

O exame de Máximo prolongou-se muito mais do que ela esperava, de modo que, tornando-se incapaz de constranger-se, retirou violentamente a mão.

— Então, doutor, parece-lhe que o perigo é eminente? perguntou ela com um risinho forçado. Será preciso amputar o dedo para evitar complicações, como os senhores médicos dizem a propósito da mais insignificante coisa?

Máximo ergueu a fronte, fitou bem de frente Renée, e respondei! no tom mais natural:

— Tem razão, minha senhora, não é nada... Aplique sobre a queimadura um pouco de algodão embebido em fenol diluído em água e amanhã de manhã estará curado o dedo...

Ouvindo estas palavras, muito simples e simplesmente ditas, Renée sossegou instantaneamente, e sobre o rosto crispado espalhou-se um certo bem estar.

— Agradecida, doutor. O conselho é bom e vou executá-lo sem demora... Na farmácia haverá fenol?

— Há, minha senhora.

— Vou buscá-lo, ou antes corro a buscá-lo, porque realmente começo a sentir dores...

E Renée saiu vivamente.

— Que tem minha irmã, meu caro doutor? perguntou Lazarine. Pareceu-me um pouco contrariada... Apostaria, de boa vontade, em como não tarda meia hora sem um ataque de nervos. Ela tem passado incomodada Conde?

— Não! exclamou Raul. Para que ela assim esteja, é preciso realmente que o incômodo seja grande.

— A pobre menina deve estar extenuada... murmurou a senhora de Gordes. Sempre de dia e de noite sem me deixar!

— Efetivamente, tem os nervos irritados, replicou Máximo, e explica-se facilmente porque... As queimaduras não tem gravidade, mas são dolorosíssimas... Descansem, porém, que não há motivo para inquietação... Amanhã desaparecerá todo o incômodo com o que mandei aplicar.

Passou o resto do dia sem incidente.

Joana adormeceu num sono profundamente tranqüilo, como desde muitos dias não gozava, e que não apresentava o característico pesado e febril de uma sonolência habitual.

Lazarine voltou para la Tour-du-Roy.

— Senhor Conde, disse Máximo a Raul, preciso de Genoveva por uma hora... Peço-lhe que não se retire daqui durante o minha ausência...

— Ah! fique tranqüilo, doutor! replicou o senhor de Gordes. O sono da nossa querida enferma ficará bem vigiado... Receita alguma coisa?

— Desta vez o receituário é negativo, senhor Conde. Se a senhora Condessa acordar e quiser tomar ou beber alguma coisa, não ceda de modo nenhum a esse desejo antes de eu voltar... É indispensável que nenhum liquido lhe perturbe o estômago, porque iria alterar a natureza do remédio....

— Vá descansado, doutor, vá descansado... Obedecerei como o soldado obedece à ordem.....

Máximo saiu em companhia de Genoveva. Dirigiu-se para o seu gabinete e disse-lhe, depois de ter fechado a porta à chave para evitar qualquer surpresa: Não se admire das perguntas que vou fazer-lhe, Genoveva... Não tente mesmo adivinhar o fim que me proponho... Responda sem compreender... Promete?

— Farei tudo o que quiser, senhor Máximo...respondeu a pobre mulher.

— Sabe que existe no palácio uma caixa de cartas para o serviço particular dos habitantes da casa? começou Máximo.

— Sei, sei, senhor doutor. A caixa está no pátio interior, à esquerda do portão, e representa a cabeça de uma fera...

— Quem abre a caixa todos os dias?

— O criado particular do senhor Conde; é ele quem tem a chave. Abre-a quando o correio vem trazer a correspondência, e faz-se a troca.

— A que horas?

— Do meio dia para a uma hora.

— Genoveva, preciso absolutamente saber se a menina Renée escreveu esta manhã uma carta... Preciso saber e previno-a de que depende disto talvez a salvação de sua ama!

— Será satisfeita a sua vontade, senhor Máximo...

— Sobretudo, seja cautelosa e discreta! Ninguém deve suspeitar do que se trata, em nome do interesse de sua ama, e por minha ordem...

— Executarei as suas recomendações...

— Quando poderei saber o que pretendo?

— Ao cair da noite prometo-lhe... Como se trata de salvar a minha boa senhora, compreendo que os minutos valem horas! Confie em mim, senhor Máximo, confie na minha absoluta dedicação...

— Bem, confiarei em si...

Genoveva despediu-se de Máximo Giraud...

 

AGRAVAM-SE OS INDÍCIOS

Ficando só, Máximo acendeu a luz, e tirando um bocado de lacre apresentou-o ao fogo, e com estóica coragem deixou cair sobre a palma da mão esquerda dois ou três pingos ferventes, sem que a intensidade da dor determinasse uma contração de músculos no rosto.

Dir-se-ia um cirurgião operando sobre um cadáver.

Terminada a estranha operação, levantou com a unha as gotas arrefecidas, arrancando a epiderme a que tinham aderido.

— Convencera-me antecipadamente! murmurou ele, verificando de visu que nenhum circulo de bistre se traçara em roda da carne despojada de pele pelo contato do líquido incandescente.

As queimaduras não tinham relação alguma com as que Renée atribuía à causa idêntica.

O doutor examinou a extremidade do dedo anular da mão direita.

É conveniente lembrar que foi com esse dedo que o doutor tocou a seiva venenosa que escorria da incisão do tanglin de Madagascar.

A mancha escura, que parecia resultante de cauterização da pedra infernal, era exatamente semelhante às pequenas chagas dos dedos de Renée.

— Bastava isto para quase me dar a certeza... prosseguiu Máximo, o veneno vegetal mordendo a carne delicada de uma mulher de dezenove anos, desorganizou os tecidos como se fosse um cáustico violento... Contudo, isto poderia ser simples, de uma absoluta inocência e perfeito acaso, mas a miserável criatura traiu-se pela mentira... O copo quebrado é mais uma prova... Renée assassina a irmã!... Donde pode provir esse ódio por aquele anjo?... A que causa atribuir o monstruoso crime?... Por mais que procure, que me canse em conjeturas, não descubro nada... A razão perde-se neste escuro dédalo de acontecimentos... É realmente para endoidecer!

O doutor arremessou-se para um cadeira, apertou entre as mãos a cabeça esvaída, onde a tempestade das hipóteses se envolviam em turbilhões, como a folhagem seca das árvores nas rajadas cortantes de novembro.

Uma ligeira pancada na porta fê-lo estremecer.

— Entre... disse ele. Genoveva apareceu.

— Então? perguntou vivamente Máximo. Sabe alguma coisa?

— Sei, senhor doutor, e não tenho de que me gabar... O criado particular do senhor Conde abriu diante de mim a caixa...

— Encontraram alguma carta da menina Renée?

— Nem dela, nem de pessoa alguma... O correio não levou correspondência, porque na caixa não havia nada...

A convicção de Máximo estava formada; isto confirmava-a.

Passando um instante, Genoveva perguntou:

— Precisa de mim, senhor doutor?

— Agora mais que nunca! —Estou às suas ordens...

— Genoveva, replicou o doutor após breve silêncio, guiado pela sua dedicação, iluminado pela luz divina e misteriosa que só para a senhora brilhava e lhe deixava ver coisa que eu não alcançava... chegou a adivinhar o crime que se praticava na pessoa mais querida desta casa... Procurou, tentou descobrir o crime, e veio ter comigo... pois bem; quero primeiro agradecer-lhe, boa Genoveva, de todo o meu coração, de toda a minha alma...

— Ah! senhor... volveu a fiel serva com simplicidade, o que fiz é bem pouco... Não era unicamente o crime que importava descobrir, o principal era o criminoso...

— Começou, é bastante... prosseguiu o doutor; continuaremos agora. Caminharei nos quase imperceptíveis vestígios com que deparamos... O crime é evidente, já não tenho dúvidas...

Genoveva cruzou as mãos, passou-lhe uma labareda por diante dos olhos, uma ardente vermelhidão afogueou-lhe o rosto que tomou uma expressão sublime.

— Sabe já quem é o assassino? balbuciou ela com voz entrecortada pela aflição.

— Creio pelo menos conhecê-lo.

— Quem?

— Uma mulher...

— Uma mulher! repeliu Genoveva, uma mulher!... Mas quem é então que se tem aproximado da senhora? Quem? À exceção da menina Renée e eu... Mais ninguém! São as únicas mulheres que entram no quarto...

E interrompeu-se, extremamente pálida, numa grande tremura, e replicou com ímpeto:

— Não! não! é impossível!... Senhor Máximo, em nome do céu, diga-me que estou doida! Diga que compreendi mal... que não pode ser sua irmã!

O doutor respondeu lentamente, e quase sufocado:

— Compreendeu bem... É sua irmã...

A pobre mulher estorceu os braços num gesto de horrível assombro, e sacudiu a cabeça num movimento tão repentino, que as trancas soltaram-se desenrolando-se sobre as costas. As mãos estavam convulsas. Os dentes rangiam com desespero.

Maquinalmente os lábios murmuram:

— A irmã! O senhor diz que é sua irmã?...

— Sim...

—Tem a prova?

— Tenho...

— Que prova?... Em nome do céu, que prova?...

— Tranqüilize-se, Genoveva tranqüilize-se e ouça...

— Bem vê que estou tranqüila, senhor Máximo, e que o escuto.... replicou a pobre mulher sempre trêmula e caindo sobre uma cadeira, por já não ter forcas para se sustentar.

O doutor referiu-lhe então tudo quanto sabemos; deu-lhe as provas terríveis cuia evidência esmagava qualquer dúvida.

Enquanto falava, os olhos de Genoveva abriam-se desmesuradamente, e as pupilas dilatavam-se num paroxismo de horror.

Quando Máximo terminou, perguntou:

— Está convencida?

A serva levantou-se de um salto.

— Venha! disse ela.

E dirigiu-se para a porta.

— Onde vai? perguntou o doutor segurando-a pelo braço.

— Onde vou? replicou ela! Quero ir para onde é o meu lugar... Quero ir para onde é o seu, para junto de meu amo! Ai, triste dele! Quero dizer-lhe, agarrando a miserável e pisando-a a pés juntos: — "Aqui tem o assassino da senhora Condessa... É a irmã que abre a sepultura da irmã! Aqui tem a perversa! Mate-a, esmague-a! Vingue-se!..." — Senhor Máximo, o tempo corre, e a envenenadora não descansa... Venha! venha sem demora!

Pela segunda vez o doutor segurou com força Genoveva, que se debatia e tentava desfazer-se do obstáculo que a retinha.

— Genoveva, disse ele, suplico-lhe, ordeno-lhe que esteja tranqüila...

— Ah! senhor, que diz uma blasfêmia!... Posso estar tranqüila quando tenho um inferno na alma! Envenenam a minha santa ama. Por que esperou até agora para prevenir o senhor Conde? Já deveria te-lo feito.

— As coisas não podiam ser desse modo, Genoveva...

— Por que?

— Por muitíssimas razões...

— Quais?... Perdoe-me, senhor Máximo se ouso interrogá-lo, mas realmente não sei onde tenho a cabeça... Desejava saber... Queria que me dissesse...

— Não tenho que perdoar-lhe, e vou respondeu-lhe... A revelação do crime, deve compreender, será para o senhor de Gordes um golpe terrível...

— Terríveis, sim, mas inevitável...

— O Conde surpreendido com este fato monstruoso, recusar-se-ia em aceitá-lo como verdadeiro...

— Convencê-lo-á com as provas que me deu...

— Não acreditará; lutará contra a própria evidência.

— Acabará por convencer-se, insistiu então Genoveva.

— Sem dúvida; mas se não quiser travar luta...

— Não sei então que pretende fazer!

— Levar a convicção ao espírito dele, pelo fato, e não por palavras. Tudo pode discutir-se, salvo o delito flagrante. Quero que a lua surja com a claridade fulminante do raio! Por muito escura que seja a noite, o relâmpago triunfa das trevas... Não farei acusações, mostrarei a envenenadora em ação...

— Como?

— Não sei nada... Aproveitarei a ocasião.

— E se demorar muito?

— Não, não pode tardar... As dificuldades agora são menores porque sabemos o caminho que tomar... A infame Renée julga-se segura pela inverosimilhança do crime... Surpreendê-la-emos... Prepararei o estratagema... Mas para temporizar temos motivos mais fortes e talvez mais ponderosos que estes... Em primeiro lugar, não é da salvação da Condessa que deve atender-se de preferência?

— Precisamente, senhor! Para salvar a senhora Condessa, daria de boa vontade e sem hesitar, alegremente, o sangue, a minha vida! Sabe-o Deus, senhor Máximo. Se eu morresse, a senhora tomaria conta dos meus orfãozinhos... E morreria tranqüila e satisfeita por ela!

— Genoveva, não pretendo dar-lhe esperanças talvez impossíveis de realizarem-se; mas a única probabilidade de salvação, reside exclusivamente no caso de poder conhecer o veneno que mata a senhora de Gordes...

— Pois o senhor não conhece os venenos do jardim de inverno? exclamou ela.

— Eh! minha pobre Genoveva, conhecer nenhum... qual deles empregará a envenenadora?

— É verdade, como poderá saber? Quem lhe dirá o que ignora?

— O flagrante delito...

— Como?

— Tenho um plano, veremos se vinga... É preciso esperar, ter confiança...

— Senhor Máximo, creio no senhor tanto como em mim mesmo... Calarei os meus desejos, suprimirei o meu pensamento, domarei as minhas impaciências, para me entregar absolutamente nas suas mãos... Dirija-me... Obedecerei sem procurar compreender...Que é preciso fazer?

— Em primeiro lugar tranqüilidade de espírito, e voltar aos modos, fisionomia habituais... Impor no rosto a impassibilidade da máscara... Esconder de todos os olhos o asco e o horror que inspira essa infame Renée...

— Tentarei, senhor Máximo...

— Tentar, não; é preciso que seja assim...

— Mas se essa criatura me dirigir a palavra?

— Responde-a como de costume...

— Oh! não poderei... é impossível!...

— Nesse caso, prevenirá a criminosa com uma suspeita, e é bastante para talvez tornar impossível a salvação da Condessa.

Genoveva curvou a cabeça.

— Obedecerei... murmurou ela. Que mais?

— Ser a sombra da envenenadora! continuou o doutor... Não a perder de vista nem de dia nem de noite... Aproveitar a hora do jantar, para com uma verruma fazer um orifício na porta da alcova dela... Poderá espiar as suas ações e informar-me depois... Passarei a noite no jardim de inverno. Quem sabe se ela irá fazer nova colheita de venenos!... É provável que o diabo queira a sua perda e aí a conduza!

Máximo fez à Genoveva outras recomendações ainda, multiplicadas e minuciosas, em que não podemos entrar; e assim terminou a confidencia do médico e da fiel serva com as mesmas palavras da conversação precedente.

— Senhor Máximo, tenha confiança na minha dedicação! disse Genoveva.

E Máximo replicou:

— Confiarei em você!...

 

AS EXCURSÕES DA MARQUESA

Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, Lazarine sincera e profundamente aflita, deixou o palácio de Gordes.

Não levava esperança alguma, e não duvidava de que, antes de findar a semana, teria de vestir-se de luto pela morte da irmã.

A estes tristes pensamentos acudiram também as preocupações pessoais da Marquesa, enquanto a carruagem a conduzia para La Tour-du-Roy.

Pensou durante o caminho que, talvez nesse momento, Marcel Laugier descesse na estalagem do Cavalo Branco, que no dia seguinte teria de vê-lo, falar-lhe, e que o ex-tenente, que no decurso da sua vida lhe aparecera primeiro como um instrumento, convertera-se depois em obstáculo, inspirando-lhe profunda repulsa misturada de medo.

O fiasco da tentativa que urdira tão pacientemente, desanimou-a sentia-se como que desarmada contra este homem que arrogando-se sobre ela direitos de senhor sobre o escravo, lhe proibia o amor e o casamento, se não fosse ele o amante ou o marido...

Nenhum plano de conduta racional e prática se apresentava ao seu espírito habitualmente fértil em recursos...

Todas as coisas empreendidas, por ela até agora lhe tinham sido adversas e prejudiciais aos seus fins.

Marcel, saindo são e salvo do duelo, ia tornar-se mais exigente e mais tirânico do que no passado.

O único fim da Marquesa, atraindo ao Loiret o ex-tenente, era impedir uma aproximação entre ele e o príncipe Totor.

Inútil e perigosa idéia! Essa aproximação tivera lugar apesar de tudo, e Marcel seria agora mais incômodo, mais comprometedor, e mil vezes mais importuno na Tour-du-Roy do que em Paris.

Lazarine pensava, dizia tudo isto, mas era muito tarde.

Urgia tomar um partido... Qual? Livrar-se do ex-tenente a todo o custo e por todos os meios, eis o objetivo da viúva do Marquês Roberto... Suprimir o obstáculo, eis o fim... Porém, como? Por que meio?...

E a odiosa necessidade de fingir, mentir, com o ódio no coração e a amargura nos lábios; a aviltante comédia da ternura, como uma cortesã que atraiçoa um velho imbecil, impunha-se-lhe agora mais que nunca!

Se ao menos uma solução possível se deixasse vagamente entrever, mesmo num futuro remoto...

Mas nada...

Lazarine, saciada de fel, abatida pela obcecação de um problema que não sabia resolver, revoltava-se baldadamente contra o sentimento da sua impotência.

E arrepelava-se, rasgando nervosamente a delicada renda do lenço que enrolava nas mãos dizendo:

— Ah! como as mulheres dos tempos da Veneza dos Doges eram felizes! Bastava um pouco de ouro para armar o braço de um bravo!...

A orgulhosa Marquesa, perante a qual todos se curvavam até á hora em que Marcel se lhe impôs, e que tinha agora de curvar-se ao peso da sua autoridade despótica, sofria horrivelmente.

A noite foi má. Dormiu pouco e agitada, e às oito horas da manhã, impacientada pela febre que lhe abrasava a cabeça, desejosa do movimento, com o apetite de ver gente e de falar para se distrair, chamou a sua camareira, vestiu um robe-chambre de cetim branco, e deu ordem para que Domingos, que exercia as funções importantíssimas de mordomo do palácio, viesse falar-lhe.

O velho servo correu imediatamente.

— A senhora Marquesa dignou-se mandar-me chamar? perguntou ele.

— Preocupada como estou desde que cheguei pela doença de minha irmã, respondeu a senhora de la Tour-du-Roy, não tive tempo de me informar do estado de minha casa, e de saber se as cocheiras e cavalariças podem satisfazer às minhas exigências. Pode informar-me?

— Sim, minha senhora. Felizmente, tratei de tudo, e verifiquei com os meus próprios olhos... replicou Domingos. Poderei responder de maneira satisfatória ao que a senhora houver de perguntar...

— Fez bem, Domingos... A égua Norah está em estado de sair?

— A favorita da senhora foi objeto dos particulares cuidados dos moços de cocheira... Está uma lindeza! Deram-se-lhe passeios todos os dias no parque, e no picadeiro quando o tempo não estava seguro... Posso assegurar que não há em todo o mundo animal que se lhe compare...

— Estou satisfeita... Mande selar Norah... Sairei daqui a meia hora...

— Quem a acompanha?

— Um dos "grooms".

— Qual

— Qualquer um contanto que possa acompanhar Norah.

— Vou cumprir as vossas ordens.

Domingos retirou-se e correu às cocheiras com toda a ligeireza das suas velhas pernas.

— Traga-me um chapéu de amazona, ordenou Lazarine à camareira.

— A senhora Marquesa quer almoçar antes de sair? perguntou Mariette voltando com um costume de amazona.

— Não.

— Como devo pentear a senhora?

— Deixe os cabelos soltos.

Meia hora depois, Norah escarvava impacientemente o mosaico do grande pátio interior do nobre palácio de la Tour-du-Roy, e Lazarine saltava ligeira no selim dirigindo esta pergunta ao velho e reverencioso Domingos:

— A porta do parque defronte do chalet está fechada à chave?

— Não, minha senhora, tem o ferrolho corrido. — Sairei por aí.

A gentil amazona enrolou a rédea na mão, e Norah arqueou-se num meio galope brilhante.

Em cinco ou seis minutos alcançou a porta designada.

 

O "groom" apeou-se, correu o ferrolho, e Lazarine achando-se em plena floresta e para além do muro do recinto, largou rédeas e deu liberdade à sua faquinha estremecida de galgar a galope uma larga rua, que se perdia numa reta imensa, ladeada de faias seculares.

Correu assim mais de uma hora, embriagando-se na velocidade, aturdindo-se com o estalejar das folhas e ramos secos que crepitavam debaixo das patas de Norah, deliciando-se enfim na indizível voluptuosidade de sentir a brisa da manhã refrescar-lhe o rosto e levantar como uma onda de seda os seus formosos e compridos cabelos de reflexos metálicos.

Norah, branca de espuma, entusiasmava-se, trespassava-se do prazer da cavaleira; a intrépida amazona tinha necessidade, não de excitá-la, mas de sofreá-la, e o cavalo do "groom", um grande cavalo inglês, forte e vigoroso, dificilmente a acompanhava.

A Marquesa acabou por se fatigar nesta carreira, louca, sopeou a égua, levou-a por gradações quase insensíveis ao pequeno trote, e depois a passo.

Então, voltando sobre si, fez sinal ao "groom", para se aproximar.

— A que distância estamos do palácio? perguntou ela.

— Mais de vinte e quatro quilômetros, se tivéssemos vindo caminho direito, respondeu o empertigado "groom", mas a senhora Marquesa deu uma grande volta pela esquerda, de modo que estamos na estrada real... Daqui à Tour-du-Roy não são mais do que oito quilômetros... Em meia hora de caminhada como esta podemos estar no palácio, se a senhora quer voltar já...

— Por que caminho?

— Pelo o que onde estamos...

Lazarine tocou com o chicotinho a fina Norah, e o "groom" imóvel no meio da estrada esperou que a amazona se adiantasse para tomar a distância devida à sua posição.

Em menos de três quartos de hora a Marquesa descobriu na extremidade de uma abertura de floresta, uma aglomeração de casas e a grimpa da torre da igreja.

Parou, e o "groom" chamado por um gesto acudiu de novo.

— Estamos na Tour-du-Roy! disse a viúva designando a casaria e a torre.

— Sim, senhora Marquesa.

— Teremos de atravessar a aldeia para ir para o palácio? — Sim, minha senhora.

Isto contrariava singularmente Lazarine.

Desagradava-lhe imenso, com efeito, passar diante da estalagem do Cavalo Branco; quem sabe se Marcel estaria à janela ou através da vidraça, e a visse passar!

A Marquesa replicou:

— Não há outra estrada?

— Sim, minha senhora; há um atalho que vai da aldeia ao casal des Malvignotes... Vai desembocar em frente da porta por onde saiu do parque, mas é o dobro do caminho...

— Onde está o atalho?

— A duzentos passos daqui, à direita na orla da floresta...

— Hop! Norah! fez Lazarine, e o veloz animal desfilou a pequeno galope.

O atalho que o "groom" indicou era estreito, mal gradado e pedregoso. Os cavaleiros nunca transitavam por ele. A Marquesa meteu a égua a passo.

A meio caminho, entre a aldeia e o muro do recinto do parque, na orla da floresta, a amazona ficou surpreendida de ver uma construção singular e um pouco ridícula, cuja existência não suspeitava.

Num largo de quinhentos ou seiscentos metros quadrados, em forma de jardim inglês, levantava-se um pequeno edifício construído de materiais ligeiros e afetando castelo roqueiro da Idade Média, tal como se vê nas estampas coloridas que ainda hoje se observam em quadros nas paredes das antigas casas da burguesia, na província.

Não faltava nada, nem a porta ogival, nem as janelas divididas em quatro pela cruz latina, nem a torre com seteiras, os revelins e contrafortes nos ângulos, com guaritas para vigia.

Tudo isto, repetimos, muito semelhante a um pequeno castelo da pesada fantasia alemã, ou a uma decoração de pano de fundo do teatro; de edifício sério, grave, mesmo artístico, não possuía nada. Unicamente a pintura de que estavam revestidas as paredes dava-lhes a aparência da cantaria enegrecida pelo tempo, sendo mais escura, e com laivos semelhando a musgo, nas junturas das seteiras, nos enviezamentos das pedras, e nas aberturas estreitas das vigias. As esculturas, ornamentos e emblemas guerreiros, estavam abaixo da crítica.

Esta vivenda gótica não deveria ter mais do que duas salas, não muito vastas, uma ao "rez-de-chaussée", outra no primeiro pavimento.

Que não nos acusem de fantasia de romancista... Sem muito custo, encontraremos nos arrabaldes de Paris muitas quintas burguesas cujas habitações são do mesmo estilo, tão pretensiosas e exíguas como esta.

Por sobre a porta de óculo, estava uma tabuleta ordinária, com esta inscrição em letras maiúsculas:

 

CASA PARA VENDER OU ALUGAR

MOBILIADA OU NÃO MOBILIADA

TRATA-SE AQUI DO AJUSTE

 

Lazarine sopeou a égua e dirigiu-se ao "groom".

— Que vem a ser isto? perguntou ela.

— A casa do senhor Bréchu, minha senhora, respondeu ele.

 

CONTINUAÇÃO

— Bréchu? Não conheço; quem é? prosseguiu a nervosa viuvinha.

— Um velho capitão reformado, senhora Marquesa, um bravo homem... replicou o "groom". Quando deixou o serviço militar veio para aqui viver, porque, ao que parece, esta é a terra da sua naturalidade... Comprou esta terra e mandou fazer, a casa segundo as suas idéias... É solteiro e sem família, à exceção de uma velha tia de Pithiviers, e vivem ali ambos.

— Mas parece que ele não gosta da casa, porque se resolveu a vendê-la ou alugá-la... observou a Marquesa.

— Há ainda outra razão, senhora Marquesa, uma razão interessante por sinal.

— Qual?

— Bréchu morreu há seis meses. Por testamento, legou a casa à velha parenta que veio de Pithiviers unicamente para tomar conta da herança. De modo que reside aqui provisoriamente.

O "groom" dizia a verdade. A razão era peremptória e interessantíssima.

Enquanto a senhora de la Tour-du-Roy se informava, uma mulher idosa, burguesa dos quatro costados, trajando luto carregado, vendo uma senhora distinta e garbosa amazona parada na estrada, saiu precipitadamente do pseudo-castelo, atravessou o jardim, abriu a porta encimada por um óculo com o vidro partido, fez uma reverência cerimoniosa e disse:

— A senhora quer entrar para ver a casa? Não é grande, mas é confortável e famosamente arranjada por meu infeliz sobrinho que tinha para estas coisas um gosto perfeito... como ninguém) Como casa de campo não há outra por aí, pequenina sim, mas bonita, lá isso não... Queira entrar para se certificar, minha senhora... custa pouco...

A despeito da sua tristeza e das preocupações de todo o gênero, Lazarine não se conteve que não sorrisse.

A tia Pithiviers esperava encontrar na Marquesa de la Tour-du-Roy um comprador ou locatário para a sua grotesca habitação, que sem embargo de lhe parecer cômica, achava-a ao mesmo tempo muito agradável para casa de campo.

A Marquesa ia para declinar a palavroso oferecimento, e continuar o seu caminho, quando lhe atravessou o espírito, modificando-lhe as disposições, uma. idéia repentina.

Com profunda surpresa do "groom", replicou:

— Sim, minha senhora, terei muita satisfação em ver a casa, que me parece original, e dá idéia da engenhosa habilidade de quem a mandou construir...

Ao mesmo tempo saltava em terra, atirava com as rédeas ao braço do criado, apanhava a longa cauda do seu vestido de amazona e lançava-a sobre o braço esquerdo, e entrava na casa da herdeira do falecido Bréchu.

Esta continuava a apologia da propriedade com a ingênua exageração dos campônios que pretendem fazer bom negócio.

— A casa é lindíssima, dizia ela, foi riscada pelo melhor mestre de obras que há em Orleans. Veja, minha senhora... O jardim é uma beleza... é o que se pode chamar um jardim inglês... estando as árvores crescidas, só por gosto se pode passar aqui uma tarde de verão... A sombra deve ser magnífica... Como estas tangerinas estão viçosas, louvado seja Deus! A terra é muito boa. Não há por aí outra que lhe faça afronta... É um beijinho! O ano passado teve o meu infeliz sobrinho uma colheita como por aqui não houve, frutas, legumes, laranjas... tudo bom e abundantíssimo... Para quem gostar de caça, não há sítio melhor... e sobretudo daquele parque reservado... Onde há do bom e do melhor... Meu sobrinho, que Deus tem, sem sair de casa, sentava-se à porta, e mesmo da janela, não havia perdiz, narceja, pato bravo, que não caísse... O bom é no parque... Eu não quero dizer, nem pretendo inculcar, que meu sobrinho fosse por uso e costume caçar na propriedade alheia, isso não... que ele era homem honrado às direitas... Aproveitava-se, aproveitava-se... Que há de fazer um homem que tem uma boa caçadeira nas mãos, e vê saltar uma lebre ou um láparo, ainda mesmo que seja na fazenda do vizinho? Não se pode resistir, está claro!...

Lazarine não se atreveu a contradizer a herdeira da falecido Bréchu, embora o aforismo lhe parecesse discutível.

Estas coisas de modo algum lhe interessavam, escutou-as com indiferença, e apressou-se, por motivos que não tardaremos a explicar, a conhecer o interior da casa anunciada para venda.

Enfim, a tia de Pithiviers chegou à porta ogival, afastando-se então um pouco para dar passagem à visitante.

Como as dimensões do edifício deixavam adivinhar, o "rez-de-chaussée" compunha-se de uma única peça' de jantar e cozinha ao mesmo tempo.

O chão era ladrilhado.

A um dos lados, uma pequena lareira em que o fogo crepitava. Neste momento, uma suculenta sopa de feijão com couve fervia na panela, saturando a atmosfera de fortes emanações.

Por cima da ladeira, no pano da chaminé, estava dependurada uma espingarda de dois canos, sistema antigo, com todos os petrechos de caçador.

Era esta sem dúvida a arma terrível que, outrora no manejo do falecido Bréchu, dava cabo das perdizes e dos láparos que surgiam... nas fazendas alheias, sem ofensa da sua memória.

Por mobília, uma mesa quadrada, algumas cadeiras de verga com o fundo arrombado, bancos de pinho, e dois armários velhos, como se encontram muitos nas casas dos aldeões.

A louça ordinária, ostentava a sua violenta pintura azul, com uma bonecagem emaranhada, à sombra de uma árvore que enchia o fundo dos pratos e a tampa das terrinas.

Nas paredes, forradas a papel, figurando paisagens e cenas campestres, viam-se quatro litografias representando batalhas e vim pequeno troféu, composto de duas dragonas cujo metal começava a oxidar-se e duas espadas de oficial cruzadas, presas por uma larga fita vermelha e a cruz da legião de honra.

Nas janelas, bambinelas de cassa branca com bordaduras amarelas.

O vão da escada constituía um espécie de arrecadação, pejada de utensílios domésticos, objetos e instrumentos de jardinagem, além de uma porção de achas de pinho, lenha, carqueja e carvão, tudo o que era necessário para fazer lume.

Um fósforo, uma fagulha, pensou Lazarine, e esta ridícula casa arderia como um rastilho de pólvora... Dorme-se aqui sobre um vulcão...

A senhora acaba de ver que a mobília não é rica, mas conveniente... observou a tia do defunto Bréchu. Oh! meu sobrinho era muito asseado e arranjadinho... Isto ainda não é nada; no primeiro andar é o melhor...

— Realmente! replicou a Marquesa, conservando a seriedade de uma maneira admirável.

— Queira subir, a escada, da qual os degraus balouçavam como um trampolim sob os seus pés ligeiros.

Na casa do primeiro andar o capitão tinha feito prodígios.

O digno homem, apaixonado pela Idade Média como qualquer artista desgrenhado e romântico de 1830, sonhava com mobília de época, mas não possuindo dinheiro necessário para a realização desse sonho, quis, ao menos, procurar o máximo número de ilusões, fazendo executar sob sua direção, por um marceneiro da aldeia, um leito de colunas e de dossel. cadeiras em forma de genuflexório, cofres e apara-dores do estilo gótico, tudo isso de madeira de pinho!...

Dificilmente se imagina o efeito dessa mobília original e ultra-ridícula.

Não haveria cabeça de idiota que se lembrasse de semelhante coisa.

As paredes eram forradas de papel pintado imitando tapeçarias.

As armações da cama, orladas de um silvado de verduras, assim como as janelas, imprimiam à casa um aspecto sombrio e extravagante.

A senhora de la Tour-du-Roy quando parou à porta desta alcova sem igual, julgou estar vendo o palco da Ponte Saint-Martin ou do Ambigu, em alguns daqueles dramas soberbos da infância pretensiosa da arte, em que os heróis não tinham parecenças com as criações humanas, nem mesmo um fragmento de senso comum.

— Agrada-lhe, minha senhora? perguntou a herdeira desvanecida no mais legítimo orgulho.

— Tudo isto é perfeito... admirável e perfeitíssimo... respondeu a Marquesa com seriedade inaudita.

— Quanto estimo! Bem se vê que sabe dar valor a estas preciosas coisas... Pela minha parte, confesso, é com o maior desgosto que sou obrigada a vender a casa e a mobília por uma bagatela... apenas dez mil francos...

É dada. Concederei todas as facilidades no pagamento se o comprador as desejar, e oferecer sólidas garantias de solvabilidade, bem entendido... No caso de se apresentar pessoa de bons costumes, entende-se também, que queira habitar a casa com mobília, pedirei sessenta francos por mês, — outra bagatela, — pagos adiantadamente, com a condição de que o arrendamento seja feito por trimestre.. Entender-nos-íamos amigavelmente com respeito a roupa e a cozinha, por negócio fora parte... Parece-me razoável...

— Muito razoável, atalhou Lazarine. não pode exigir menos...

— Porque vejo então, a senhora está disposta a comprar ou arrendar?

— Não, nem um nem outra coisa...Contento-me em admirar... Mas se encontrar alguém a quem convenha esta agradável vivenda, indicar-lhe-ei, e estou certa que não deixará de se aproveitar de tantas vantagens...

A velha tia do falecido Bréchu expressou em muitos bons termos o seu reconhecimento pela promessa e acompanhou a bela visitante, em continuadas reverências, até à porta.

A senhora de la Tour-du-Roy saltou ligeiramente no pequenino selim da impaciente Norah, e vinte minutos depois apeava-se em frente das magníficas cocheiras do palácio.

Depois de ter feito a toilette, almoçou, percorrendo distraidamente os jornais que o correio trouxera durante o passeio, e pondo-o de parte sem os abrir todos, foi pouco a pouco caindo numa meditação profunda e de natureza particularmente sombria, a julgar pela contração das suas negras sobrancelhas, e pela expressão dura e quase feroz do seu olhar.

Na véspera, ao anoitecer, Marcel Laugier chegando de Orleans num trem de aluguel, como da primeira vez, apeava-se na estalagem do Cavalo Branco.

Julgamos inútil afirmar que o pai Ricardo fez entusiástica recepção a este hóspede, que não olhava a despesas, apreciador de alta cozinha, e alie, provavelmente, vinha com disposições de se demorar bastante tempo.

O ex-oficial, levando até ao escrúpulo e obediência às vontades de Lazarine, não se informou se a Marquesa estava na Tour-du-Roy ou se residiria no palácio de Gordes com seu cunhado.

— Como ela me ordenou que partisse, pensou ele, é porque tem tanta necessidade de mim como eu desejos de vê-la. Posso esperar tranqüilo e sem impaciência... Logo que lhe seja possível uma entrevista, tenho a convicção de que não demorará a hora...

Só um homem loucamente apaixonado, inteiramente domado, fascinado por uma mulher, como Marcel Laugier estava, é que se convenceria de que poderia permanecer tranqüilo e paciente. Iludia-se na melhor boa fé, mas enfim iludia-se.

A noite do ex-tenente foi agitada, febril; as horas de insônia pareceram-lhe intermináveis.

De madrugada, a cama tornou-se-lhe impossível. Tudo eram espinhos. Vestiu-se. Projetou sair e dirigiu-se para o Patriarca, mas para que?

Se a Marquesa lhe destinava a suprema alegria de lhe aparecer nesse dia, não seria de certo a essa hora, mas sim depois do meio dia...

Marcel disse e repetiu isto vinte vezes, cem vezes, sem contudo deixar de ir ao local convencionado às onze menos um quarto, instalando-se a distância conveniente da árvore-colosso com o seu enorme chapéu, o cavalete, o quadro, e a caixa de tintas.

Uma vez no seu posto, tratou de matar o tempo.

Em conseqüência do que, meteu ombros à empresa, mas ao passo que ia esboçando a lápis as soberbas linhas de um tronco nodoso, e o intrincado labirinto de ramagens gigantescas, volvia dez vezes por segundo os olhos para o lado de onde esperava que Lazarine lhe aparecesse.

Soaram as doze badaladas do meio dia no campanário do presbitério.

— Este relógio por força que anda muito atrasado... murmurou ele.

E tirou da algibeira do colete o seu cronômetro para verificar.

— Ah! apenas faltavam cinco minutos para que as duas agulhas convergissem sobre o algarismo dose.

Julgou primeiramente que estivesse parado e aplicou ao ouvido; o tic-tac regular convenceu-o do erro.

Então recordou-se que já uma vez experimentara uma sensação idêntica quando esperava a senhora de la Tour-du-Roy, de noite, em. frente do n.° 5 da avenida da Rainha Hortense.

— Que singular e extravagante animal é o homem? perguntou ele a si mesmo sorrindo; porque é que todas as coisas lhe parecem deslocadas, fora do seu curso natural, se uma mulher amada se demora mais de dez segundos à entrevista prometida?

Súbito, o seu coração cessou de pulsar.

O ligeiríssimo rumor de umas botinas que mal pisavam as folhas-secas chegou-lhe aos ouvidos num arfar da aragem, e depois um vulto esbelto e gracioso projetou-se por detrás de um renque de faias de opulentíssima ramaria.

 

RECOMEÇA O IDÍLIO

Marcel Laugier, tremendo de emoção, reconheceu de longe a senhora de la Tour-du-Roy, e fez um movimento repentino para se levantar e correr ao seu encontro.

Lazarine suspendeu-o com um gesto.

Este gesto equivalia à ordem de ficar assentado e imóvel.

Marcel obedeceu.

A Marquesa trocara sua toilette de amazona por outra inteiramente preta, de absoluta simplicidade.

Não trazia chapéu. Um véu de renda lançado sobre os cabelos, como uma mantilha andaluza, dava ao seu adorável rosto, mais pálido do que de ordinário, um delicioso cunho de originalidade.

As fulvas trancas de seus cabelos desdobravam-se, mal contidas no véu, sobre as costas, e reduziam em mil reflexos da cobre e ouro.

Nunca Marcel a viu tão formosa e tentadora.

Caminhava a passos pequeninos, como uma mulher que veio ao acaso, sem fim assentado, e um pouco distraída por algum devaneio.

De tempos a tempos, afrouxava mais o seu modo de andar, embora, lento, e voltava-se, na aparência, para desprender a cauda do vestido de algum arbusto ou tronco espinhoso de uma silva ou tojo, mas na realidade para se certificar de que não era seguida, e de que a solidão era completa.

Enfim, chegou próximo do volumoso tronco do Patriarca, parou por detrás de Marcel, e tomou a pose de uma mulher examinando com interesse o trabalho de um artista.

— Continue a desenhar, ou pelo menos finja mie trabalha... disse ela; desta maneira poderemos conversar, e se alguém nos vê de longe o que me parece pouco provável, passarei simplesmente por curiosa sem ficar comprometida...

— Obedeço, replicou o ex-tenente. Mas por que, querida Lazarine, receia tanto comprometer-se no campo, quando em Paria arriscava as mais imprudentes aventuras?

— Oh! a diferença é muita... Enquanto que os provincianos notam tudo, comentam tudo, e tudo os admira, em Paris quase estávamos isolados, inteiramente perdidos na imensa, multidão indiferente.

— Em qualquer lugar que esteja a Marquesa de la Tour-du-Roy, o mundo conceder-lhe-á atenção, não cuidará de outra coisa senão de vê-la. A prova é que uma carta anônima, como me disse, revelou-lhe que era seguida, espiada...

— Estamos aqui para discutir? interrompeu Lazarine sem disfarçar a sua impaciência.

— Não, de certo! acudiu Marcel com exaltação. Vim aqui para lhe dizer que a amo, e esperava-a para lhe ouvir responder que me amava igualmente...

— A hora e o sítio parecem-me mal escolhidos para um diálogo desse gênero! murmurou a Marquesa num tom irônico mal dissimulado, que não escapou ao ex-tenente, mas que não o surpreendeu, porque a senhora de la Tour-du-Roy o habituara aos caprichos do seu fino e suscetível gênio.

— Seja assim, minha adorada Marquesa, respondeu ele com ri-sonha galanteria, indique-me a hora e o lugar em que possamos gorjear um duo de amor, há tanto tempo interrompido...

Lazarine colocada por detrás de Marcel, podia dar expansão larga aos seus verdadeiros sentimentos, e possuía toda a liberdade de os traduzir, na fisionomia ou na atitude.

Teve um risinho de compaixão, e fez um movimento de ombros soberbamente desdenhoso.

— Noutra ocasião falaremos disso, volveu ela; primeiro que tudo, quero repreendê-lo e censurá-lo a propósito desse absurdo duelo...

— Repito o que lhe escrevi; era impossível evitá-lo.

— É fato que escreveu, mas é igualmente verdade que não acreditei.

— Pois não há coisa mais verdadeira!. Fui provocado sem o menor motivo, sem o mais leve pretexto, e provocado de modo gravíssimo. Queria que recusasse? À menor hesitação da minha parte, teria por mim, desprezo, e era justo...

— O seu adversário foi então o provocador, e é ele o responsável?...

— Tudo partiu dele, tudo! absolutamente tudo, desde a primeira até à última inconveniência! Tenho íntima certeza de que não me iludo afirmando semelhante fato, embora quase sempre sejamos péssimos juízes em coisa própria...

— Nesse caso, esse rapaz, filho adotivo do velho Godefroy, é indigno de todo o interesse... replicou a Marquesa. Como é porém que note que as informações são de meu pai, numa carta que recebi esta manhã, como é porém que o meu amigo passa a vida em casa desse principezinho ridículo, desse personagem das óperas de Offenbach? Sei que ainda ontem esteve em casa dele, apesar de lhe pedir formalmente que não recebesse nem visitasse ninguém em Paris antes da sua partida...

Marcel Laugier purpureou-se como uma criança surpreendida em flagrante pelo professor severo.

— É um equívoco da parte do senhor Leroux... balbuciou ele.

— Acusa meu pai de mentir? exclamou Lazarine.

— Não me atrevo a tanto... mas um equívoco...

— Esse mas é singular, senhor Laugier! interrompeu a Marquesa. A verdade é uma só... Esteve ou não esteve ontem em casa do príncipe de Castel-Vivant?... Esta é que é a questão...

— Estive, confesso.

— Ah! ora aí está! exclamou Lazarine em tom de triunfo.

— É porém de notar, observou delicadamente Marcel, que o senhor Leroux não poderia informá-la do que ele mesmo ignorava... A minha visita era pura e simplesmente uma conveniência, uma atenção; apenas deixei um cartão em casa do meu adversário... Nada mais. Não há ninguém que se preze de verdadeiro gentleman, que procedesse de outro modo... O Príncipe, que aliás desejava receber-me, deu ordem para que me introduzissem no quarto dele, apenas me apresentasse... Podia eximir-me aos desejos de um ferido? Cem vezes não!... Eu mesmo não estou arrependido de ter acompanhado o criado que me transmitiu os desejos do amo, porque o ilustre principezinho de Castel-Vivant é um rapaz encantador, e sempre se ganha em conhecer de perto um personagem daquele feitio...

— O qual, para ser dos seus amigos, replicou Lazarine com ironia, foi preciso que ele o provocasse, insultando-o, a fim de escreverem com armas na mão, um pacto de amizade!... Enfim, pode saber-se o que lhe disse esse rapaz encantador?

— Coisa alguma que valha a pena ser repetido... Coisa insignificantes...

— Eis aí uma visita justificadíssima! É mesmo o mais natural ir-se visitar um inimigo para lhe ouvirmos coisas insignificantes...

— E contudo é a verdade...

— Ouso esperar, ao menos que não pronunciasse o meu nome?

— Tenho necessidade de jurar-lhe?...

— Para que? acredito-o, e perdôo-lhe ter-me desobedecido, atendendo a que a desobediência foi involuntária...

Lazarine ficou silenciosa durante um ou dois segundos, para deixar tempo a que Marcel saboreasse a indulgência cuja prova acabava de dar-lhe, e replicou:

— Pouco faltou, afianço-lhe para que a sua viagem fosse completamente inútil...

— Por que? Como? perguntou o ex-tenente inquieto.

— Pela melhor de todas as razões... Refleti que, quando lhe escrevi dizendo-lhe que viesse, fiz tolice, atendendo que me seria impossível ir vê-lo à estalagem do Cavalo Branco, onde todos sabem quem eu sou... impossível igualmente recebê-lo no palácio, porque talvez Domingos o reconhecesse, e, por último, conversando e encontrado-nos em pleno campo ou no meio da floresta, como agora, arrisco, a minha reputação, comprometo-me de uma maneira abominável e irreparável...

Marcel não pôde reprimir um gesto de impaciência, cujo resultado se traduziu por um rasgão na tela feito pelo pincel, e a aparição de uma enorme mancha de um verde carregado no esboço do Patriarca,

— Que tem? perguntou Lazarine. Que foi que o incomodou?

— Julga que posso ouvi-la a sangue frio falar-me em comprometer-se irreparavelmente?... Realize as minhas mais queridas ambições, consinta em ser minha esposa; a maledicência não terá o que dizer...

Se Marcel no momento em que pronunciava estas palavras pudesse ver o rosto de Lazarine, teria estremecido, tal era a expressão de fria cólera e de profundo desprezo, que tornava horroroso esse rosto formosíssimo, tal era o ódio que, mim relâmpago ameaçador, fulgiu nos olhos dessa mulher sedutora.

Apesar da violência do seu amor cuja conseqüência natural era a cegueira quase completa, não seria preciso mais para que caíssem num' abismo as suas mais obstinadas ilusões...

Nós, graças aos privilégios únicos do romancista, sabemos, porém, que ele estava de costas voltadas para a Marquesa.

— Decididamente, não perdeu ainda a mania de me falar em casamento! replicou ela com um risinho em falsete. Esqueceu-se de que tratávamos de coisas de todo o ponto diversos... Falaremos nesse assunto quando... quando me parecer conveniente...

— Seja! exclamou Marcel; mas peço-lhe que não torne a dizer me que se compromete...

— Olhe, meu amiguinho, atalhou Lazarine, falemos mais baixo... e que importam os meus receios, se o acaso, que o protege de um modo evidente, me enviou senhor precisamente no momento em que pensava... em que pensava um meio qualquer para remediar tudo.

— Seriamente? perguntou com viveza e interesse o ex-tenente.

— Ofende-me!

— Perdão! E esse meio...

— Pegue no seu lápis e escreva na sua tela estas duas palavras: casa Bréchu...

— Cá escrevi, mas não compreendo nada.

— Mais tarde compreenderá... Arranje a sua bagagem, volte para o Cavalo Branco, meta vinte luíses na sua bolsinha, e diga a um garoto qualquer que lhe ensine onde é a casa Bréchu.

— Mas que vem a ser a casa Bréchu?

— Um castelo de cartas que dá vontade de rir... Um castelo feudal tal como vemos pintado na louça antiga, situado na orla do bosque, a quarto de hora distante daqui, pouco mais ou menos...

— Bem, que hei de fazer desse castelo de papelão?

— Ouça... Há de encontrar a herdeira do falecido Bréchu, que lhe contará em muito boas palavras a história da herança; na sua qualidade de conhecedor das coisas raras, há de apreciar as conveniências da minha idéia; alugue a casa por três meses, mediante a soma de nove luíses, pagos adiantadamente, e veja se faz negócio com a tia de Pithiviers pelo que respeita a roupas e a bateria de cozinha.

— Escuto-a, murmurou Marcel estupefato, e quase estou tentado a acreditar que zomba de mim! Que quer que faça do castelo Bréchu a sessenta francos por mês, não me dirá?

— Irá para aí habitar...

— Só?

— Bem entendido, porque é o completo isolamento da sua situação um título que o torna precioso para mim... O estalajadeiro do Cavalo Branco fornecerá almoço e jantar... Mande chamar um serralheiro e fazer uma outra chave, da qual serei possuidora...

— E servir-se-á dessa chave?

— Tolíssima pergunta, meu caro amigo! Desculpe a franqueza. Se não houvesse de servir-me dela, para que a quereria?... De tempos a tempos, das onze para a meia noite, quando a escuridão for profunda, ouvirá o ruído da chave girando na fechadura e o ruge-ruge de um vestido... Uma mulher entrará... Serei eu...

— É um sonho! murmurou Marcel; um belo sonho, mas... nada mais de que um sonho...

— Como?

— Estou certo que não terá coragem para atravessar, alta noite, o parque deserto e uma parte da floresta, para ir ter comigo...

_— Engana-se, meu amigo... Sou forte, corajosa. Tudo isto por aqui e sossegado, e a gente boa e honesta; de mais, levarei comigo um pequenino revólver, e com essa companhia não terei medo de pessoa alguma...

— Se fizer assim, balbuciou Marcel tomado de súbito transporte, enlouquece-me de felicidade!

— Farei; à fé de Lazarine, prometo fazê-lo...

— Quando?

— Logo que tenha a chave...

— Tê-la-á amanhã...

 

A INSTALAÇÃO DE MARCEL

As coisas passaram-se exatamente como a Marquesa desejava:

Marcel Laugier, ébrio de alegria pelas perspectivas que a decisão de Lazarine lhe descerrava, voltou apressadamente ao Cavalo Branco, largou a bagagem artística, e chamou um garotinho que, a troco de uma gorjeia, o acompanhou à casa Bréchu.

O castelinho feudal pareceu-lhe, como à Marquesa, uma coisa que dava vontade de rir, pelo extravagante da forma e ornamentação.

A palradora ama de Pithiviers, farejando um locatário ou comprador, recebeu-o às mil maravilhas, e cansou-se de lhe enumerar as belezas do interior.

Sobretudo o leito, aquele leito que os nossos leitores não esqueceram, com as suas colunas de rosca, de madeira pintada a branco, com os seus embutidos de carvalho, lembrou-lhe vagamente o esplêndido leito de Luiz XIII, do palácio de Orleans, e pareceu-lhe bom presságio.

— Tudo isto é magnífico... disse ele em tom sério e ar convicto. Acabo de verificar que não me exageram o mérito da propriedade... Não a comprarei agora, porque não sei se me convirá fixar aqui definitivamente a minha residência, mas alugo-a da melhor vontade. Quais as condições, minha querida senhora?

A herdeira do falecido Bréchu repetiu textualmente o que tinha dito a Lazarine na manhã desse dia.

— Pois sejam sessenta francos por mês, e três meses adiantados, replicou Marcel empilhando nove peças de ouro sobre a mesa.

— Poderemos também fazer negócio com a bateria de cozinha e roupas? perguntou a proprietária da casa com o mais amável desvanecimento.

— Com muito gosto, senhora.

— Mais três luises pelos três meses... creio que é muito em conta...

— Ei-los.

— Agora, vou dar-lhe o recibo... As roupas estão neste armário... Toalhas, guardanapos, panos de cozinha, não falta nada, e do melhor, graças a Deus... Ah! é verdade... o senhor, querendo, pode também utilizar-se da espingarda de meu defunto sobrinho...

— Onde está, minha senhora?

— Na casa do primeiro andar, por cima da chaminé, com a bolsa e polvorinho bem fornecido... quanto à pólvora e chumbo, é questão de mais uns tantos réis... O senhor compreende que... et coetra e adiante. Além disso se for bom caçador, como suponho, indenizar-se-á facilmente, porque não faz idéia do enxame de perdizes e coelhos que ao cair da tarde saem do parque fronteiro...

— Decididamente, esta casa é um céu aberto... disse Marcel sorrindo.

— Exato, diz muito bem senhor... Meu sobrinho, que Deus tem, dizia que esta casa era a perfeita imagem do paraíso sobre a terra... o que não obstou a que ele fosse desta para a outra que ninguém sabe, e o que foi mais depressa do que queria.

— Quando poderei tomar posse da casa?

— Já, quando quiser... Agora, só preciso reforçar o estômago com o meu caldinho e um pedacito de carne... Sempre conchega para a viagem... É verdade, perdão! ainda não lhe ofereci do meu modesto jantar...

— Agradecida, minha senhora; aceitaria da melhor vontade, mas almocei muito tarde...

— Tenho pena.

A herdeira do defunto Bréchu assinou o escrito de arrendamento; absorveu com uma voracidade canina uma enorme quantidade de sopa e caldo capaz de saciar um regimento de dragões; arranjou as malas e exclamou com a valentia de quem sua caldo por todos os poros:

— Pronta! Foi num abrir e fechar de olhos.

— A casa tem duas chaves? perguntou Marcel.

— Não, senhor, uma só! Ignoro se meu falecido sobrinho possuía outra... Só encontrei essa na porta.

 

Cinco minutos depois a tia de Pithiviers, de massadora memória, afastava-se em companhia do garoto, que uma segunda gorjeta de Marcel tornara lesto e alegre como um pássaro.

O ex-tenente não tardou em segui-los.

Foi primeiro à oficina do serralheiro da aldeia, encomendou-lhe uma segunda chave para a casa Bréchu, oferecendo-lhe o duplo do custo se lha entregassem em duas horas.

O bravo artista prometeu e cumpriu a palavra.

Marcel, ainda que estivesse convencido de que Lazarine não lhe apareceria na noite seguinte na casa Bréchu, tinha desejos de lá pernoitar. Parecia-lhe que assim se aproximava da sua amante, indo habitar a casa que ela tinha visitado, e onde iria para o ver.

— Meu caro hospedeiro, deixo-o... disse ele ao afanado pai Ricardo.

— Como? Essa é que eu não esperava! Como, deixa-me? exclamou o estalajadeiro assombrado com a notícia. Então o senhor chegou para partir? Por duas vezes já que começo a ter esperanças de se realizar a honra de te-lo por uma temporada, vai senão quando... foge-me que nem um pardalito!

— Há circunstâncias atenuantes... replicou Marcel rindo. Deixo-o, é verdade, mas não vou para longe, e espero até que se encarregue quotidianamente de me fornecer almoço e jantar...

— Farei o melhor que puder, e creia que será bem tratado... Mas para onde vai? perguntou mestre Ricardo com devoradora curiosidade,

— Para a casa Bréchu... — Alugou?

— Por três meses.

— É uma idéia de artista... Muito melhor estaria aqui... Enfim, é a sua vontade...

— Gosto da solidão...

— Por esse lado não podia escolher melhor; acertou. O sítio é um deserto! Apenas assoma o inverno, é frio de rachar ossos, lobos por dá cá aquela palha, e a respeito das noites não lhe conto nada!... Bonita sociedade para uma pessoa distinta, sim, senhor! Como é a sua vontade, seja feita... Mandarei então o almoço e jantar a horas competentes, mas por mais cuidados que haja, chegará tudo frio...

— É o mesmo, aquentarei a comida...

— Muito bem... o senhor é um filósofo, mas deixe-me dizer-lhe como se diz cá na arte, — e olhe que é uma verdade que vale quanto pesa: Um jantar requentado perde todo o seu valor... Quem disse estas palavras de ouro tinha o seu bocado de cabeça...

Marcel encaixotou alguns objetos indispensáveis que faltavam certamente no prédio do falecido capitão reformado, entre os quais dois pacotes de estearina, e, pelas dez horas da noite, instalou-se na casa Bréchu com toda a sua bagagem de "touriste" e paisagista.

Quando se achou só nesta casa, sua nova habitação, tudo lhe pareceu mortalmente triste.

Ao por do sol levantara-se um pé de vento, que pressagiava tempestade.

A frágil construção de madeira, sonora como um contrabaixo, ressoava e enchia-se de singulares ruídos e de vibrações inquietadoras.

O castelinho gótico tremia e rangia como um navio sacudido pela tormenta.

— As rajadas do vendaval são capazes de atirar aos ares com esta gaiola... pensou o ex-hussardo. O falecido Bréchu, contando provavelmente passar aqui larga vida, era um homem paradoxal!...

Quando o vento acalmava um pouco, quando esta miniatura «esquisita de casa cansava alguns momentos de estremecer e ranger, o piar das aves noturnas vibrava nos ares como gritos de dor e aflição, e acordava ecos nas espessuras da floresta agitada.

Apesar da vigorosa tempera do seu caráter, apesar das suas esperanças de felicidade, que não tardariam em realizar-se, Marcel Laugier ressentiu-se da influência do meio quase sinistro em que se achava. Tornou-se nervoso e melancólico. Assaltaram-no negros pressentimentos que não podia expulsar da imaginação.

— Palavra de honra, dizia ele olhando em volta de si, não me surpreenderia se me acontecesse alguma fatalidade. Eu, que me sentia perfeitamente tranqüilo e indiferente em frente das baterias prussianas, estou, pela primeira vez na minha vida, inquieto e assustado, tenho até vergonha de dizê-lo! Sinto flutuar em roda de mim um perigo, um não sei que de desgraça. Que perigo? Donde vem! Não sei, mas o perigo existe...

 

O ex-tenente pusera as velas de estearina nos castiçais de cobre que lhe deixara a senhoria da casa. Tomou um desses castiçais, desceu ao "rez-de-chaussée", tirou a espingarda, certificou-se de que estava carregada e tinha espoleta, levou-a para o primeiro andar e colocou-a, engatilhada, ao alcance da mão, fechou a porta à chave, deitou-se e apagou a luz.

Adormeceu imediatamente, mas o sono foi perturbado por incessantes pesadelos.

Lá fora, o vendaval desencadeara-se com uma fúria enorme, formidável, rugia como uma fera que quisesse devorar a frágil casa, que estremecia até nos alicerces. O céu estava revolto, profundamente negro, iluminando-se de vez em quando com as sinistras claridades do relâmpago; e nessas ocasiões em que os clarões elétricos rasgavam as trevas, parecia que o céu, o mundo, se deslocavam repentinamente, e Marcel despenhava-se num abismo sem fim, no meio -de um estampido enorme.

Uma vez, afigurava-lhe que o castelinho feudal era um pequeno navio de que só ele era o único passageiro, flutuando sobre as vagas azuladas e lívidas, rolando, arfando na espumosa convulsão das -ondas, recebendo água a jorros pelas escotilhas escancaradas, enchendo-se a ponto de não poder com o peso, e soçobrando lentamente, pouco a pouco.

Marcel sentia a água glacial assoberbá-lo, subir em volta de si, trepar-lhe aos ombros, marinhar-lhe até à boca, depois ao nariz, submergi-lo, sufocá-lo, afogá-lo...

Outras vezes era um ranger horrível, diabólico, uma espécie de descarga de canhão monstruoso, que enchia o espaço de pavores, uma nuvem de densíssima poeira que obscurecia totalmente a luz do dia, um estremecimento medonho produzindo o desabamento da frágil construção, sepultando Marcel no fundo escombro dessas ruínas cavadas pelo gênio da destruição e do mal...

Tudo isto, porém, não se podia comparar com os aflitivos pesadelos que depois sucederam a este.

Lazarine tinha chegado... A noite de Orleans ia começar! Subitamente, a juvenil fada dos seus devaneios, transformava-se... Em lugar das formas aéreas e perfumadas dessa sereia de cabelos cor de fogo, Marcel apertava nos seus braços nervosos e frementes o corpo viscoso de uma serpente... Soltava um grito estridente, grito de angústia... queria fugir... mas não podia, sentia-se preso, algemado... Os gélidos anéis do réptil enroscavam-se nos seus membros, paralisavam-lhe os movimentos, e apertando-se cada vez mais,, estreitando-se no amplexo, multiplicando-se nas voltas e asfixiavam-no...

Contudo, um pouco depois de romper a alvorada, os fantasmas da noite desapareceram, e o locatário da casa Bréchu dormiu durante duas horas o sono profundo dos felizes, sem que os maus sonhos o perturbassem.

Quando acordou, os raios do sol entravam em risonhas ondas pelas duas janelas, restituindo ao papel de que as casas eram forradas as cores imitantes das tapeçarias, e à mobília pseudo-gótica, a sua honesta aparência de decoração teatral, vista de dia.

Marcel zombou então de si mesmo; recordando os negros pressentimentos que o assaltaram, sorriu, e não achou coisa alguma que justificasse as lúgubres impressões da noite.

Pelas dez horas e meia, uma das criadas do Cavalo Branco chegou com um grande cabaz à cabeça, com o almoço e meia dúzia de garrafas de vinho de Touraine.

Marcel almoçou bem e com apetite.

Sentiu-se alegre e satisfeito.

Talvez a estrela Vênus, a estrela dos amantes felizes, luzisse para ele nas primeiras horas da próxima noite.

Esta esperança, ou para melhor dizer, esta possibilidade, causava-lhe um inebriamento real, e a transformação da Marquesa em serpente parecia-lhe um ridículo disparate da imaginação enferma.

Ao meio dia e um quarto, ele e a sua indispensável bagagem estavam a postos, à sombra do frondente Patriarca.

A senhora de La Tour-du-Roy não se fez esperar. Apareceu, exatamente ao dar o meio dia.

O diálogo foi breve e incisivo.

— Então? perguntou Lazarine.

— Dito e feito... respondeu Marcel.

— Já alugou a casa?

— Dormi Já esta noite...

— O que lhe parece essa casinhola absurda?

— Parece-me excelente, uma vez que prometeu ir...

— Arranjou a chave?

— Fi-la. Vai esta noite?

— Não posso responder precisamente.

— Por que?

— Vou para Gordes...

— Espera lá ficar?

— Não sei; depende do estado em que encontrar minha irmã...

— Quer dizer que não devo esperá-la?

— Espere-me sempre, e não me espere a tal ou tal hora... Quando puder ir irei... Isto está dito de uma vez para sempre... Tenho a chave, é o principal; vá para casa, deite-se, durma sem escrúpulo, e pode muito bem ser que, quando menos me esperar,. vá acordá-lo... Sonhe comigo... Bem, por hoje não posso demorar-me mais... Mandei por a carruagem, e os criados devem estar à minha espera...

— Até breve, sim?

— Sim, até breve.

— Diga-me ao menos... que me ama...

— Deixe-me rir! Estaria aqui se não o amasse? Viria eu aqui, se não lhe tivesse muito amor e dedicação?

Marcel quis beijar a pequenina e branca mão que se lhe retirou vivamente; depois Lazarine. deslizando para a algibeira a dupla chave da casa Bréchu, tomou rapidamente o caminho do palácio, e partiu verdadeiramente para Gordes...

 

PREPARA-SE O DESENLACE

No palácio de Gordes, Máximo Giraud passara toda a noite oculto entre a ramagem das árvores, espionando o jardim de inverno.

Renée não tinha descido.

Genoveva, fiel às ordens do doutor, praticara aberturas quase-invisíveis nas portas dos aposentos de Renée, e espiava-a igualmente.

Não observara coisa alguma que lhe parecesse suspeito.

— Não há que ver, a envenenadora desconfiou... murmurou Máximo quando a admirável criatura o informou da -sua inútil espionagem.

Pensou talvez que o vidro quebrado, e as queimaduras que tinha nas mãos pelos sucos venenosos, me despertaram suspeitas... Hesita... tem medo... mas vendo que não a persigo, quer primeiro certificar-se antes de recomeçar... Pois é preciso não lhe dar tempo...

— Senhor Máximo, que espera fazer nestas circunstâncias? perguntou Genoveva.

— Por hoje nada, replicou ele. Pedi ao Conde que pusesse à minha disposição uma carruagem... Vou a Orleans... Trarei substâncias que naturalmente me serão necessárias, e que não existem na farmácia do palácio...

— Partir, senhor Máximo, afastar-se daqui no momento do perigo!... exclamou a boa serva empalidecendo. — Por algumas horas somente.

— Mas, prosseguiu Genoveva, durante a sua ausência, a envenenadora voltará à sua audácia! Lembre-se que o senhor Conde não sabe nada... que está de boa fé, e que ela tem a confiança plena e inteira do meu pobre amo!... Que posso eu fazer?

— Tudo. Primeiramente, antes de partir, darei à senhora de Gordes um remédio que acabo de preparar. Em seguida, e na sua presença, Genoveva, direi ao Conde que a nossa querida enferma na minha ausência, não deve beber nem tomar coisa alguma, e que eu a encarrego de a acordar quando for preciso. Tomando conta desta ordem formal e absoluta, e apoiada na minha autoridade de médico, vigiará para que tudo se cumpra como determino; e se a miserável Renée quiser transgredir, — o que não acredito, — fica com o direito de lhe dizer: O doutor proibiu! o Conde dirá o mesmo, e não há que recear...

— Se assim for...

— Assim será.

— Senhor Máximo, restitui-me a coragem perdida... Fortaleça-me ao menos o ânimo abatido, dizendo-me quando acabaremos com a envenenadora...

— Amanhã...

Um relâmpago de alegria fulgiu nos olhos da fiel serva, mas depressa se apagou.

— Amanhã... balbuciou ela, daqui até lá, tantas horas...

— A justiça tem também a sua hora, respondeu Máximo, mas chega sempre...

— Às vezes muito tarde... balbuciou Genoveva.

Meia hora depois de trocadas estas palavras, os dois mais ligeiros trotadores das cavalariças do palácio de Gordes conduziam «o médico a Orleans; Genoveva foi para a alcova da enferma, sentou-se à cabeceira com a firme resolução de não se levantar senão depois de Máximo regressar.

Este último não se iludia quanto às inquietações de Renée.

Desde a véspera que um desespero mordente, uma aflição surda, baldadamente combatida, se apoderara dela e lhe roubara a tranqüilidade.

Admirava-se que ele tivesse aceitado a explicação pouco verossímil que lhe deu, da proveniência das queimaduras que tinha na mão...

— Decididamente, ele não sabe nada, e quando muito terá uma levíssima suspeita, pensava Renée, mas está em caminho de as ter, e o diabo é um traidor que pode descobrir tudo! Desde o primeiro dia, desde a hora em que o médico de aldeia pôs pés nesta casa, tive o pressentimento de que me havia de ser funesto!... Preciso reaver o tempo perdido, acabar com isto sem hesitações, agarrar a ocasião pelos cabelos e descarregar o último golpe...

Sabemos já que a ocasião ansiosamente esperada pela filha de Leroux não era ainda desta feita.

Máximo Giraud, forçado a demorar-se mais do que esperava em Orleans pelas complicadas manipulações que mandou operar na sua presença na primeira farmácia da cidade, não regressou a Gordes senão depois das onze horas da noite.

Trocou-se entre ele e Genoveva um rápido olhar.

Nesse olhar havia uma interrogação do médico.

— Que fez a envenenadora?

E a boa e fiel serva respondeu:

— Absolutamente nada...

Máximo, não obstante estar muito fatigado e incomodado, não quis que fosse só Genoveva a única que velasse o sono de Joana.

Reclinou-se num sofá da sala que precedia a alcova da enferma, enquanto que Genoveva colocou uma chaise longue entre a porta do gabinete de toilette, impedindo deste modo a passagem de Renée.

O médico e a dedicada serva decidiram que cada um deles se renderiam de duas em duas horas. Decorrido esse tempo, o que não dormisse despertaria o outro, o qual descansaria durante um lapso de tempo igual.

Esta prescrição cumpriu-se religiosamente, e a noite correu tranqüila e sossegada.

Enfim, as estrelas começaram a empalidecer, a sumir-se na brancura azulada do céu; uma larga faixa de um rosado desvanecido surgiu na orla do horizonte, sobre o céu ainda sombrio...

Era a aurora do dia nascente, desse dia trágico, que devia trazer frente a frente dois formidáveis adversários, um que se chamava crime, outro que se chamava dedicação.

— Hoje, pensava Renée, acabarei com a minha rival...

— Hoje, dizia Máximo no silêncio da sua meditação, acabarei com a envenenadora...

Soava a hora de se travar o mais implacável duelo que havia memória...

A quem devia pertencer o triunfo?

 

Pelas nove horas da manhã, o criado particular de Raul preveniu-o de que Máximo Giraud lhe solicitava uma entrevista.

— Mande entrar o doutor... respondeu o Conde.

E foi vivamente ao encontro do jovem médico, mas parou e tornou-se pálido no momento em que cruzava a porta.

É que a fisionomia de Máximo era a do homem portador de más novas. As suas feições irregulares, mas profundamente simpáticas exprimiam, no seu conjunto, a desolação da tristeza, a compaixão sem limites, a angústia moral atingindo o paroxismo da energia indomável.

— Que sucedeu, doutor? Ah! meu Deus! balbuciou o Conde. Sabe, doutor? assustou-me imensamente! Ainda há uma hora, se tanto, que a minha querida Joaninha me pareceu melhor... Enganei-me? Está pior...

— Não, respondeu Máximo. Por muito crítico que seja o estado da senhora de Gordes, há dois dias que não piorou, graças a Deus.

— Nesse caso, meu bom doutor, que má notícia me trás, por que as suas feições transtornadas prestam-se às mais negras conjeturas? Veja, estou trêmulo, cheio de medo... Se não se trata da condessinha, nenhuma outra dor pode ferir-me...

— Está convicto do que diz, senhor Conde? replicou o médico.

— Mais do que convicto; tenho a certeza matemática. — Talvez se iluda.

Raul sorriu e encolheu os ombros.

— Não! Não! Não me iludo! replicou ele. Não sendo Joana a causa, tudo o mais que existe no mundo pouco me importa, ou para melhor dizer, não existe para mim... Nenhuma tristeza poderia atravessar a couraça da minha indiferença...

— É fácil dizer-se, prosseguiu Máximo, e afinal, a couraça estala ao primeiro choque...

— Conhece-me e avalia-me mal, caro doutor... Se me disserem: "Está completamente arruinado! responderia: "Que importa?

— Ah! se não se tratasse senão de ruína, murmurou o médico.

Raul estremeceu.

— Se se tratasse só de ruína! repetiu ele. É então muito grave?

— Cem vezes mais grave do que tudo que a sua imaginação poderia sonhar...

— Doutor, tenho-o na conta de homem sério... Sei que não fala senão com a maior circunspeção... Costuma pesar as palavras... Não adivinho qual seja o golpe com que me ameaça, mas sinto medo... Palavra de honra! tenho medo...

— E com razão, porque o golpe será rude...

— Pois bem; como tem de ser, seja. Vamos direitos ao fim, sem preâmbulos e sem reticências... Terei força e coragem...

— De que realmente necessita muito...

— Terei tanta quanto for necessária... Doutor queira dizer...

— Primeiramente, estamos sós?

— Inteiramente sós...

— Permita-me que me certifique...

E Máximo percorreu a sala, levantou os reposteiros e bambinelas, viu o desvão das janelas e fechou as portas à chave. Estas delongas, evidentemente calculadas, tinham um duplo fim.

Máximo aproximou-se do Conde.

— Então? Perguntou este cuja impaciência e ansiedade eram manifestas. Por quê espera agora?

— Mais nada...

— Nesse caso, fale; suplico-lhe que fale!

— Dê-me primeiro a sua palavra de honra de que ficará tranqüilo, de que procederá assisadamente, conforme lhe disser, e falarei...

— Pois bem; dou-lhe a minha palavra de cavalheiro...

— Obrigado. Queira ouvir...

 

A SURPRESA

Raul, tomado do vago assombro, que ia crescendo de momento para momento, fitou em Máximo um olhar desvairado, e esperava arquejante de angústia as primeiras palavras.

— Invoque toda a coragem de que é dotado, senhor Conde! repetiu o doutor. Cinja-se na armadura do valor moral! O golpe e terrível, a revelação que vou fazer-lhe é espantosa!...

— Fale sem hesitação e sem receio, doutor... A coragem não me faltará nesta ocasião, creia...

— Até a esta hora, prosseguiu o médico, atribuíamos, ambos, a estranha e misteriosa doença da senhora Condessa a causas naturais...

— Exato... era a minha opinião, com a qual o doutor concordava...

— Não há dúvida, respondeu Máximo; há três dias era essa a

minha opinião também...

— É hoje?

— Deus permitiu que se fizesse luz em volta de nós... senhor Conde, comete-se um crime nefando em sua casa, debaixo dos seus tetos...

— Um crime... repetiu Raul fazendo-se lívido.

— O mais infame e covarde de todos os crimes... Assassina-se a senhora de Gordes!... Matam-na, envenenando-a!...

— Não acredito, exclamou o fidalgo. Não, não posso acreditá-lo, porque é impossível o que diz! O seu pensamento deriva-se de aparências que embora não conheça, não hesito em declarar falsas e ilusórias... Um crime cometido aqui, aos meus próprios olhos!... Por quem seria cometido esse crime, e com que fim, não me dirá? Não, doutor! Cem vezes não! E sem falar da impossibilidade moral, que dirá da impossibilidade material de levar a cabo semelhante ato? Joana está rodeada de pessoas que da melhor vontade dariam a vida para a salvar... Se a amam tanto! Renée e eu não a temos deixado um momento... O doutor tem estado quase sempre junto a nós... A dedicação de Genoveva é incomparável, como sabe... Como possível transpor estas barreiras vivas, iludir estas afeições vigilantes?... E não esqueça, doutor, que é Renée quem dá à irmã os medicamentos que tem receitado, e que são na maior parte das vezes, preparados por Genoveva, na sua presença...

Raul, que sustentava com ardor as suas convicções, ia continuar. Máximo não lhe deu tempo.

— Sei tudo isso... interrompeu ele. É inútil essa argumentação, e recorde-se o senhor Conde que lhe pedi se revestisse de toda a sua coragem. Perguntou qual era a mão que lhe ministrava o veneno? O senhor Conde respondeu a si mesmo, pronunciando o nome da envenenadora...

— Quem?... balbuciou Raul; Genoveva?!

— Não, replicou Máximo, Renée...

— A irmã de Joana!

— Sua irmã.

No começo desta cena, o senhor de Gordes sentara-se, ou antes deixara-se cair sobre uma cadeira. Uma onda de sangue refluiu-lhe do peito ao rosto, e coloriu de púrpura as suas feições macilentas.

Levantou-se de repelão, e agarrando com força nos dois pulsos de Máximo, penetrou com o olhar profundo o olhar do doutor, transmitindo-lhe por assim dizer a labareda que a revelação lhe ateou no espírito, e disse-lhe com a voz baixa, rouca, quase ameaçadora:

— Ah doutor, doutor, que não o vejo bem! Tome cautela, não abuse assim da minha generosidade... O que acabou de dizer é uma loucura, é uma demência rematada... O doutor está doido... a sua cabeça anda desvairada!... Felizmente, ninguém mais do que eu o ouviu! Semelhante acusação, lembre-se, audaciosamente articulada, é mais do que uma imprudência...

— Seria um crime, bem sei, se não pudesse prová-lo! interrompeu de novo Máximo. Pois julga que é uma suposição o que lhe disse?

— O doutor sustenta a acusação? exclamou Raul.

— Se a sustento? Ora essa, sustento e provo...

— Pode provar o crime?

— Posso...

— Faça-o!

Estas provas, de que as mãos do doutor estavam cheias, estas provas terríveis, luminosas, indiscutíveis, sabemos quais eram.

Lenta e minuciosamente, com um sangue frio de que naquele momento se não julgava dotado, o doutor desenrolou o longo sudário dessas fulminantes provas aos olhos do Conde.

A evidência não se discute; o senhor de Gordes não discutiu.

Escutou de cabeça pendida, o rosto sombrio, os olhos ora afogados em lágrimas, ora ardentes em chamas de desespero.

A mão direita, crispada, convulsa, como que comprimia as palpitações do coração. Mas a angústia que interiormente o dilacerava era tanta, que não tardou muito em cravar as unhas no peito, retirando-as manchadas de sangue, que se alastrou depois em pequeninas gotas no peitilho luzente da camisa.

— Está convencido? perguntou Máximo; serão precisas mais provas?

Raul respondeu por um gesto de muda eloqüência.

— Sua irmã!... balbuciou ele em seguida como se falasse consigo mesmo. Sua irmã!... Oh! meu Deus! Mas por que? Assassinava Joana, que a amava... assassinava Joana que lhe sorria recebendo a morte de suas mãos...

Ergueu a fronte, que a luz que entrava pela janela em dourados raios de sol iluminou, deixando ver as suas feições horrivelmente alteradas e contraídas,, e prosseguiu:

— É impossível... É pois verdade... e Deus permite que assim seja!... Há no mundo monstros de rosto humano, mil vezes piores do que as feras dos sertões da África... A raça de Caim não se extinguiu...Revive inteira em Renée... Renée, que é mais infame do que o próprio Caim... Abel não abraçava Caim no momento da fratricídio... A um beijo de Abel, e perante o seu sorriso, Caim talvez tivesse-hesitado... E Renée não hesitou.

As mãos do Conde estorceram-se numa violenta convulsão. O' corpo tremia sacudido por fortes abalos. As lágrimas caiam-lhe abundantemente, e secavam-se nas ardências das faces. A sua fisionomia tomou, pouco a pouco, a formidável expressão do ódio e da ameaça.

— Para semelhante crime, que expiação será bastante? prosseguiu ele com a voz cada vez mais rouca. O cadafalso é ainda pouco! Venha, doutor venha...

— Aonde? perguntou Máximo; onde quer ir, e o que quer fazer?

— Quero estrangular a miserável... arrastá-la desta casa onde se realiza o seu infamíssimo plano... Arrastá-la por minhas próprias mãos, pelos cabelos, ser seu carcereiro, até à hora em que a justiça lhe tome conta do corpo...

— A justiça! repetiu Máximo. A justiça não tem nada que fazer aqui... O senhor Conde não lhe entregará a irmã de sua mulher, bem sabe...

— Mas é preciso que a miserável seja castigada...

— Quem lhe diz que não o será, e que o castigo não seja terrível?...

— O nosso dever é desmascará-la!

— O nosso primeiro dever é o silêncio...

— O silêncio? repetiu o Conde estupefato.

— Sim.

— Parece-lhe, então, que devemos mostrar completa ignorância de tudo?

— É precisamente o que pretendo.

— Explique-se, doutor, não compreendo...

— É simples; tornarei a repetir o que há poucos dias disse a Genoveva, que como o senhor, queria desmascarar, no mesmo instante, a infame; sabemos hoje quem é a envenenadora, mas não conhecemos o veneno, e tenho necessidade de saber de qual se serve, para ter uma fraca probabilidade de salvar a senhora de Gordes...

— Obrigaremos essa mulher a falar...

— Como?

— Por todos os meios...

— E que meios julga ter à sua disposição, senhor Conde?

— Em primeiro lugar a intimidação...

— Renée Leroux não é mulher que tenha medo de alguma coisa neste mundo... A prova está patente...

— Nesse caso lançaremos mão da violência...

— Expediente indigno do senhor Conde, e completamente inútil... Renée negará o crime, se negar, com uma audácia diabólica; e ainda que lhe aplicassem as torturas do inferno não falaria...

— Mas é necessário que fale!... balbuciou cruzando as mãos num gesto suplicante... É preciso que fale, porque, como diz o doutor, depende da confissão dela a única esperança de salvar-se a minha querida Joaninha...

— Tem confiança em mim? perguntou Máximo ao senhor de Gordes no mesmo tom em que fizera igual pergunta a Genoveva.

— Como em Deus... respondeu o Conde.

— Pois bem! se me permite dirigi-lo nestas horas de aflição, consinta fazer unicamente o que os meus conselhos lhe ditarem, e creio poder afirmar-lhe que a envenenadora falará...

— Entrego-me nas suas mãos, doutor... respondeu o senhor de Gordes, tão simplesmente, tão ingenuamente como Genoveva respondera na véspera. Abdico da minha vontade, faça o que quiser... Que hei de fazer?

Máximo explicou nalgumas palavras o seu plano.

Conheceremos esse plano pelos seus resultados... É portanto inútil que os nossos leitores saibam desde já qual é.

— Acredita no êxito, senhor Conde? perguntou o doutor quando terminou.

— Absolutamente... replicou Raul. Máximo carregou o botão da campainha elétrica. Apareceu logo um criado.

— Onde está a irmã da senhora Condessa perguntou o Conde.

— A senhora está no terraço...

— Diga-lhe que lhe peço a fineza de chegar aqui...

— Sim, senhor Conde.

— Mande por um trem, para o doutor sair logo que almoce... Depressa!

O criado desempenhou-se das ordens sem perda de tempo.

Renée, pensativa, passeava a passos lentos, de modo automático no terraço do palácio, entre um renque de laranjeiras seculares e as mitológicas estátuas de Constou e Pigalle.

De momentos a momentos parava, sem a consciência de fazê-lo, interrogava com o olhar vago os longínquos horizontes do parque, ou volvia os olhos, abstratos, desvairados para as flores dos açafates que cingiam as árvores.

Em que pensava esta odiosa mulher?

A resposta podem dá-la os nossos leitores tão bem como nós. Renée, desde muito tempo, não tinha senão um pensamento, uma idéia fixa, em que se resumia toda a vida do seu cérebro.

Quando o criado lhe disse que o cunhado lhe desejava falar sem demora, Renée teve um calafrio; franziu as negras sobrancelhas, e uma titilação nas narinas indicou uma súbita comoção.

— Que quererá ele? pensava Renée.

Durante vim ou dois segundos procurou responder a si mesma sem achar a solução do enigma que se lhe apresentava; de repente, fez um gesto que significava claramente; — Adivinhe quem puder! — e dirigiu-se para os aposentos do conde de Gordes.

 

UMA CILADA

Renée, quando abriu a porta do gabinete, e se encontrou com o Conde estava talvez mais pálida do que de costume, mas resoluta e perfeitamente senhora de si.

A presença do doutor e a atitude de Raul causaram-lhe alguma surpresa e desconfiança, que soube ocultar com o maior sangue frio.

Fez uma ligeira inclinação de cabeça a Máximo, que tratava sempre de modo desdenhoso, e dirigindo-se ao Conde disse-lhe estendendo-lhe a mão:

— Bons dias, meu irmão... Preveniram-me de que desejava falar-me... Supus, naturalmente, que me procurando, como é o seu costume, e querendo que eu viesse, se tratava de alguma coisa importante e urgente. Não perdi um momento e eis-me aqui.

Foi preciso a Raul um grande esforço, uma grande força de vontade, para não deixar trair a profundíssima revolta de todo o seu ser, no momento em que a cunhada se aproximou.

Contraíram-se os músculos do rosto; ateou-se sombrio fogo nos seus olhos, mas baixou as pálpebras como se não quisesse expandir os relâmpagos da tempestade que se refletiam neles, as suas feições readquiriram a sua habitual expressão de melancolia funda, e a sua mão gélida tocou a ponta dos dedos da cunhada.

— Obrigado, minha irmã, replicou ele com a voz abafada, numa rouquidão que a tornava quase desconhecida, trata-se efetivamente de uma coisa importante, de uma resolução grave, que deve saber sem maior demora... Mas, diga-me, está incomodada? levantou-se doente esta manhã?

— Por que me pergunta isso? murmurou Renée.

— As suas faces tem a brancura do mármore, os seus olhos estão arroxeados, em toda, fisionomia há um não sei que de mal estar... São sintomas que desgraçadamente não enganam...

— Mas enganam hoje... Estou simplesmente fatigada, confesso, mas não doente...

— A sua extremosa dedicação, minha irmã, custa-lhe o sacrifício da saúde... replicou o senhor de Gordes. A missão de enfermeira a que se impôs com a mais dedicada coragem, é superior às suas forças...

Renée relanceou ao cunhado um olhar em que transluzia a suspeita.

Parecia-lhe que as últimas palavras que acabava de ouvir eram pronunciadas com um acento estranho, mas pensou que se enganava, de certo, porque a alteração da voz era a única causa dessas singulares entonações.

— Dedicação e coragem! respondeu ela! eis aí duas grandes palavras que traduzem virtudes que não tenho... Unicamente a ternura dita a minha obrigação... Amo Joana, daria a minha vida para a salvar... Não daria coisa em que tivesse apreço, porque a minha vida pouco importa... Deixemos porém de tratar de mim... De que me quer o Conde falar?

— De Joana...

— Adivinhei... Que tem a dizer-me da pobre condessinha?

— Notou, sem dúvida, como o doutor, e eu, replicou Raul, que há dois dias não há melhoras positivas no estado da nossa enferma, embora não se tenha agravado... O mal parece ter-se concentrado e estacionou... É muito pouco, é quase nada, mas é bastante...

— Observei igualmente essa fase da doença, atalhou Renée, e contudo não ousei esperar...

— Por que? A esperança é o supremo recurso.

— Seguramente... Mas se essa ilusória esperança pode muito bem ser uma breve trégua da doença... O mal descansando um momento, começará de novo o seu caminhar implacável... Que profunda amargura sucederia a essa esperança risonha! Pense, meu irmão, pense!

Raul sentia as forças abandonarem-no.

Em lugar de responder, ocultou o rosto entre as mãos.

Máximo tomou então a palavra.

— Com o auxilio da Providência, e para evitar a imensa decepção a que a senhora se refere, resolvemos, ou antes, resolveu o senhor Conde, que me honra com a confiança que prezo de ter conquistado à custa do meu zelo, resolveu o senhor Conde, conforme ia dizendo, tentar uma experiência que lhe aconselhei...

— Que experiência é? perguntou Renée com a inflexão quase irônica.

— Creio, firmemente, prosseguiu Máximo, que no estado quase desesperado em que a senhora Condessa está, o ar do campo far-lhe-á pior, e agora muito mais, porque se aproxima o inverno... Numa palavra, parece-me indispensável a mudança do clima.

— Esquece-se, senhor doutor, que essa mudança de clima é impossível... replicou Renée com amargura.

— Quem o diz? interrogou Máximo.

— Em primeiro lugar, é possível transportar-se Joana?

— Sim, minha senhora.

— É uma loucura, exclamou Renée. Como é que a nossa doentinha, que desmaia quando a mudam de uma para a outra cama, que chegou a um deplorável estado de fraqueza, poderá suportar as fadigas da viagem? Apenas tivesse percorrido três ou quatro léguas estaria morta!

— Permita-me que lhe desvaneça os seus receios, aliás justificados e naturais, minha senhora... Ao ponto em que chegamos, é preciso arriscar tudo para conseguir alguma coisa, e a audácia que vamos cometer seria uma imprudência imperdoável noutras circunstâncias. É urgente ir, sem hesitações, até onde vemos brilhar um clarão de esperança, por muito fraco e vago que seja, embora, mas é a única luz que nos indica no meio destas trevas o caminho e a salvação...

— Em resumo, atalhou bruscamente Renée, resolveram levar minha irmã, não é assim?

— Exatamente, minha senhora.

— Aonde?

— A Nice.

— Quando?

— Amanhã...

— Bem, não serei eu que os demore; os meus preparativos fazem-se de um para outro momento.

O senhor de Gordes ergueu a fronte.

— Não arranje coisa alguma, minha irmã, disse ele com a mesma voz rouca e cavernosa. Exceto eu e o doutor, ninguém mais acompanhará a Condessa...

O rosto de Renée alentou-se de maneira horrível, enquanto que vibrava sobre Raul um olhar cuja expressão era feroz.

— Não compreendi bem... balbuciou ela. Devo supor que determinaram partir sem mim?

— Perdoe-me, René perdoe-me... replicou o Conde. Foi isso mesmo que resolvemos...

— Pois querem separar-me de Joana?

— Assim é preciso...

— Por que?... Mereço essa injúria? Não me consagrei a toda a minha irmã, noite e dia, sem descanso, sem o menor descuido da minha parte, desde o começo da doença?... Quem teria forças para fazer mais do que eu fiz? Quem teria feito tanto?

— Ninguém de certo teria feito mais e melhor do que minha irmã fez! respondeu o Conde. Sei, e é por isso mesmo que recuso levá-la. Se Deus entendeu dever ferir-me sem piedade... se a suprema tentativa é baldada... se a minha adorada Joana deve morrer... basta esse luto na família... Não me esqueço de que me foi confiada por seu pai à minha ternura fraternal, e sou responsável pela sua vida...

— Meu irmão, suplico-lhe...

— Não suplique! interrompeu Raul; seria inútil...

— Será preciso pedir-lhe de joelhos...

— Do mesmo modo inútil... tomei uma resolução irrevogável, e disse-lhe já os motivos porque...

— Mas recorde-se do que terei de sofrer separada da minha querida Joana... Morrerei de inquietação e de tristeza!

— Oh! não se morre de tristeza, morre-se de esgotamento de força...

— Que será de mim, sozinha aqui?

— Oh! não ficará só... Vou mandar um criado à Tour-du-Roy com uma carta para Lazarine. Amanhã de manhã virá, naturalmente, despedir-se de Joana, e a minha irmã poderá ficar aqui com ela, senão preferir ir para Paris juntar-se a seu pai... Já vê que no seu isolamento não tem que recear...

Renée levou o lenço aos olhos, de onde brotavam relâmpagos de cólera, e não lágrimas.

— Seja! disse ela. Cumprir-se-á a sua vontade, ou antes, obedecerei à sua ordem, mas torno a repetir que, separando-me de minha irmã, causa-me um desgosto imenso... Oh! Raul, Raul, nunca o julguei capaz de tão inútil crueldade!

— E, atalhou Máximo, inútil será dizer que não recusará os seus preciosos cuidados à nossa querida enferma até o momento da partida... E tanto conto com a sua dedicação, minha senhora, que especialmente hoje, necessito do seu valioso concurso...

Renée, afastando o lenço que velava os olhos secos e áridos, e ao mesmo tempo que deixava de soluçar, olhou atentamente para Máximo, que prosseguiu no tom mais natural e afável:

— Parto ao meio dia para Rancey, onde vou abraçar minha mãe, que não tornarei a ver tão cedo... Voltarei esta noite a hora muito adiantada... Deixo pronto um medicamento, uma bebida fortificante, sobre os efeitos da qual tenho a mais lisonjeira esperança... A senhora de Gordes vai tomar metade do remédio, e ouso pedir-lhe, minha senhora, se digne ministrar-lhe o resto três horas depois da minha partida...

Renée, curvando a cabeça para não deixar perceber a sombria chama que brilhava nas pupilas dos seus olhos inquietos, respondeu com voz que quis tornar firme, mas um pouco trêmula:

— Fez bem em contar comigo, doutor; sabe que cumprirei a missão de que me encarrega com a maior solicitude e dedicação... três horas depois do primeiro copo, sim?

— Precisamente, minha senhora; três horas depois...

— Serei pontual. Onde está o remédio?

— No laboratório.

— Bem; tem mais alguma recomendação a fazer?

— Uma... apenas uma... Não dirá nada a sua irmã da projetada viagem.

— Ah! ela não sabe?

— Como poderia saber se o senhor Conde e eu tomamos agora mesmo semelhante resolução? Ora, eu creio que a senhora é profundamente prudente, e evitará qualquer agitação moral, sendo conveniente que a senhora Condessa seja apenas informada do nosso projeto horas antes da partida.

— Fique tranqüilo, doutor, guardarei silêncio.

O criado particular do Conde cortou a conferência, anunciando que o almoço estava pronto.

Finda a refeição matinal. Máximo preparou o medicamento que dividiu em duas porções iguais, das quais Joana bebeu uma.

Em seguida subiu para a vitória que na véspera o transportara a Orleans, e os cavalos partiram a trote rasgado.

Máximo saltou em terra e entrou furtivamente no parque, enquanto que os cavalos, tocados pelo pingalete do cocheiro voltavam rápida, mente, e tomavam por um ramal da estrada o caminho de Vertes-Feuilles.

Quando a carruagem voltou o ângulo da estrada, o cocheiro parou a parelha.

 

A MULHER DE GELO

Na véspera desse dia, saindo de Gordes para regressar à Tour-du-Roy, Lazarine tinha resolvido não ir nessa noite à casa Bréchu.

Pelas nove horas recolheu-se aos seus aposentos, e tratou do filho de uma maneira extremamente sumária, durante alguns minutos; despediu a ama do menino, chamou a sua aia particular, que também despedia, logo que acabou a sua toilette da noite; depois envolvida num largo penteador branco, bordado a matriz, e com os cabelos soltos, deixou-se cair sobre uma cadeira que estava junto da cama,

Marcel Laugier, chamado por ela, esperava-a e esperá-la-ia todas as noites. Contava com o cumprimento de uma promessa que parecia ser feita livre e espontaneamente; Marcel não podia suspeitar que o único fim da Marquesa, atraindo-o ao Loiret, era afastá-lo do móvel Príncipe de Castel-Vivant... Na melhor boa fé, julgava-se amado, e outro qualquer, em caso análogo, julgar-se-ia do mesmo modo possuidor do coração desta mulher fatal...

Lazarine podia sem dúvida retardar a entrevista; a doença de Joana fornecia-lhe pretexto para temporizar, mas, mais tarde ou mais cedo, não poderia deixar de servir-se da chave que tinha exigido.

Se se demorasse muito, Marcel Laugier, cuja natureza impetuosa e desconfiada conhecia, inquietar-se-ia, suspeitaria de traição, trataria de vigiá-la, e se a sua amante, impacientemente esperada, tardasse muito, não hesitaria apresentar-se no triste solar de la Tour-du-Roy.

Era isto que a Marquesa queria evitar, custasse o que custasse.

O único meio era cumprir a palavra dada; mas a idéia desse encontro alterava o sangue da nossa boa Marquesa...

O ex-tenente, de noite, numa casa perdida do fundo de um bosque fechado, só com uma mulher adorada até o delírio, quereria tomar inteira e plena posse desses direitos que ele julgava imprescritíveis e inalienáveis...

Que fazer?

Suplicar a Marcel, falar-lhe ao coração, esperar tudo da sua generosidade, pedir-lhe mesmo que se sacrificasse a favor da liberdade daquela que ele amava.

De súbito, repentinamente, levantou-se, e disse quase em alta voz:

— Esta noite resolverei o problema, e se o meu perseguidor se tomar inflexível, pois bem! farei o que entender... Será a guerra... guerra sem trégua nem quartel!...

E baixando a voz, como se tivesse medo de ser ouvida, com uma expressão de ódio que durante um segundo transtornou a formosura da sua fisionomia, ajuntou:

— Que daria eu a quem me libertasse deste homem?! Lazarine segurou com ambas as mãos a sua brilhante cabeleira, dividiu-a em três opulentas trancas, enrolou-as no alto da cabeça e prendeu-as com um pente em que refulgiam diamantes da mais pura água.

Vestiu-se com um precioso robe-chambre de cachemira escura.

Lançou sobre a cabeça uma mantilha de rendas, que lhe caia até os ombros.

Meteu numa algibeira o pequeno e luzente revólver em que falara a Marcel, arma elegantíssima, de coronha de marfim, verdadeiro brinco de mulher caprichosa, mas brinco suficiente para matar um homem,; meteu noutra algibeira a chave da casa Bréchu e Uma caixinha de prata cinzelada delicadamente, tendo fósforo de cera; depois tomou um castiçal, desceu ao "rez-de-chaussée" por uma escada de que se ela se servia, apagou a luz e achou-se na vastidão do parque.

E sem hesitar, internou-se na atalho da floresta.

Durante alguns segundos a noite profunda inquietou-a.

Pareceu-lhe caminhar com uma venda nos olhos.

Hesitava quanto à direção a seguir, e receava, a cada passo, esbarrar num obstáculo invisível.

Mas não tardou que os seus olhos se costumassem às trevas.

A escuridão, a princípio tão opaca, tomou para ela uma espécie de relativa transparência, e tornou-se-lhe possível reconhecer o caminho que ia seguindo.

O caminho era aliás o mais simples do mundo.

Bastava-lhe meter-se na alameda coberta costeando a parede do parque, e segui-la até à portinha, não longe, do pavilhão rústico onde se efetuara a entrevista de Marcel e de Lazarine, quase sete meses depois da morte do Marquês de la Tour-du-Roy.

Davam onze horas exatamente no momento em que a Marquesa chegava à portinha fechada do lado do parque.

Puxou o fecho.

— Para ir aonde quero, disse ela, bastam-me vinte minutos... E sem hesitar embrenhou-se no caminho da floresta.

Como sabemos, Lazarine levava a ousadia até à audácia. Facilmente se gabava de não ter medo de nada.

Apesar de tudo, mentiríamos se disséssemos que um vago terror não lhe fez passar o coração por mais de uma vez, durante a sua excursão noturna.

Por três ou quatro vezes parou, julgando-se seguida, e levou a mão à coronha do revólver, e mais perturbada do que queria a si própria confessar, pôs o ouvido à escuta.

Mas tranquilizava-se imediatamente, demonstrando a si própria que os ruídos que a assustavam, eram produzidos pela queda de alguma lebre assustada.

Punha-se novamente a caminho, e o seu passo, que por momentos afrouxara-se tornava-se rápido.

No fim de um quarto de hora, achou-se fora da floresta, seguindo pelo caminho que a costeava.

Ao fim de outros dez minutos, chegou em frente da casa Bréchu, havendo percorrido, em menos de meia hora, o espaço que a separava do solar.

Ergueu então os olhos para o solar feudal de teatro.

Na janela gótica do primeiro andar brilhava uma luz.

Lazarine disse consigo:

— Espera por mim, apesar de lhe haver dito que, segundo todas as aparências, não viria esta noite...

A jovem levantou o fecho, atravessou o jardim inglês, cujas árvores, segundo a tia Pithiviers, deviam dar sombra quando estivessem crescidas, e chegando à porta da casa, quis abri-la com a chave que tirou da algibeira.

Ofereceu-se uma dificuldade.

Durante a sua curta visita à residência do defunto capitão, Lazarine não reparara na posição da fechadura.

Procurou-a na escuridão, não a achou, e sem querer fez algum ruído.

Impaciente com aquela demora quando chegava ao termo da excursão, ia acender um fósforo.

Não foi preciso, porque a porta abriu-se de repente.

Marcel, trazendo uma luz na mão esquerda, apareceu no limiar da porta.

Com o braço direito e sem proferir uma palavra, cingiu Lazarine e puxou-a para dentro.

Depois de fechar a porta, murmurou com voz trêmula de comoção:

— Com que então, minha querida, sempre veio! Vejo-a e não quero crer! Parece-me estar sonhando, e que é impossível que aí esteja. Com uma noite tão fria podia, mas não ousara esperá-la. Dizia comigo: "É possível haver alguma mulher capaz de arrostar as trevas e afrontar a solidão aterradora da mata"? E respondia: "Não." E contudo, Lazarine veio! Pois não teve medo, Lazarine adorada?

— Disse-lhe que era valente... replicou a Marquesa.

— Isso é mais que valentia! é heroísmo! exclamou Marcel.

— Bem, admitamos, se quiser, que sou uma heroína... exclamou Lazarine num tom quase zombeteiro. Mas não fiquemos aqui, esta casa é de uma tristeza mortal... Subamos.

— Tome o meu braço...

— A escada é muito estreita para irmos a par. Subirei muito bem sozinha... Vá adiante e alumie-me.

Marcel obedeceu.

Apoderava-se dele uma grande tristeza, substituindo sem transição a imensa alegria com que contara.

Lazarine estava ali, é verdade, mas a rigidez da sua atitude, a sequidão da sua voz, lançavam uma ducha de água gelada sobre o entusiasmo do ex-oficial.

Mas enquanto subia de recuo os degraus vacilantes da escada para alumiar a visitante, serenou um pouco.

— A senhora de La Tour-du-Roy pensou, sofreu fatalmente a impressão desagradável que se desprende da solidão e dias trevas... Esta irritada, enervada, e mais de um homem cheio de energia o havia de estar assim, se se achasse no lugar dela; mais isto há de lhe passar depressa... Dentro de alguns instantes tornará ao seu estado normal, isto é, voltará ao seu amor do qual me dá, ao vir aqui, a prova mais brilhante e a menos discutível...

Marcel e Lazarine entraram no quarto da Idade Média de que fizermos uma descrição exuberante.

A jovem deixou-se cair numa das grandes poltronas em forma de genuflexório, e desprendeu com mão impaciente a mantilha de renda que trazia na cabeça, porque depois da rápida caminhada sentia o rosto em brasa.

Coloria-lhe a epiderme aveludada das faces um rosado muito vivo.

As pupilas cintilavam como esmeraldas sob a dupla franja das compridas pestanas.

Quando tirara o véu, soltara "um pouco os cabelos, e as suas ondas sedosas inundavam o peito e os ombros.

Nunca Marcel a vira mais sedutora, e para nos servirmos da frase de Renée, mais capitosa.

Profundamente comovido, agitado o coração e agitados os sentidos, ajoelhou diante dela, pegou-lhe nas mãos descalças, deslumbrantes de anéis, e quis chegá-las aos lábios.

Com um movimento repentino, Lazarine retirou-as.

—Que faz? perguntou com um modo irritado.

— Já não me é permitido beijar as mãos?... balbuciou. É vulgar na sociedade, um estranho, um indiferente, beijar a mão de uma mulher... É apenas uma simples galanteria. e menos ainda um ato de delicadeza...E eu não sou para a senhora nem um estranho, nem um indiferente, creio...

A senhora de La Tour-du-Roy compreendeu que se quisesse ter algumas probabilidades de êxito, não devia ofender o ex-hussardo.

— Tendes cem vezes razão, meu amigo, disse, e eu não tenho, reconheço... Mas sede indulgente comigo... é preciso e deve sê-lo. Não vim aqui procurar demonstrações de ternura, mas consolações. Sofro muito, afianço... Estou triste... Sou infeliz...

— Valha-me Deus, exclamou Marcel, que tem?...

— O estado da Condessa de Gordes é gravíssimo, e não estaria aqui neste momento se não me faltasse a coragem de assistir à sua agonia...

— Oh! que diz!

— Bem vê. Marcel, tenho a alma imersa numa tristeza de morte... É portanto preciso ser para mim um amigo, um verdadeiro amigo, apenas, um amigo...Está por isto, não está?

Era rude o desengano, mas o pedido baseava-se num motivo a tal ponto respeitável, que seria brutal não ceder.

Marcel respondeu documente, embora sem a menor convicção.

— Estou pelo que a senhora quiser.

— E aproveitaremos o seu bom senso para conversarmos muito a sério...

Isto foi dito pela Marquesa com um sorriso melancólico.

 

CONTINUAÇÃO

— Aproveitaremos o seu bom senso para conversarmos a sério, dissera a Marquesa de La Tour-du-Roy.

Estas palavras causaram a Marcel uma vaga inquietação.

Apesar de loucamente apaixonado por Lazarine, não tinha ilusões a respeito dela.

Sabia que era leviana e frívola, doida pelo luxo sob todos os aspectos, amiga do prazer sob todas as formas, mas nada séria.

Por isso as expressões de que ela acabava de se servir, e que achar ria muito naturais na boca de outras mulheres, pareceram-lhe de mau agouro.

Concluiu que a Marquesa ia encetar algum assunto desagradável para ele.

Desejoso de saber imediatamente se os seus pressentimentos não o enganavam, sorriu constrangidamente e perguntou:

— Vamos então ter uma conversa muito a sério?

— Pudera!... Parece que lhe causa admiração?

— Por que me havia de admirar?... A conversa deve ser conforme a disposição de espírito em que a vejo...

— Pois não hei de estar profundamente triste quando minha irmã está moribunda?

A sua tristeza é tão legítima quanto pode sê-lo, e, por desgraça, não está na minha mão proporcionar-lhe consolações... Minha bem amada, que tem a dizer-me?

O tema de Lazarine estava preparado de antemão.

Pelo caminho viera ensaiando.

Por isso, principiou sem hesitação, com uma voz que parecia comovida:

— Se há uma coisa no mundo de que lhe seja impossível duvidar, Marcel, é da minha ternura... Tenho-lhe dado muitas provas dela...

— E essas provas fizeram de mim o mais feliz dos homens, exclamou o ex-tenente, e a minha vida inteira seria muito curta para lhe pagar em gratidão a felicidade infinita que lhe devo!...

— E eu partilhei essa felicidade, voltou a senhora de La Tour-du-Roy. Era grande, mas era lima felicidade criminosa, e como nunca deveria ter principiado, também não deve durar sempre.

— Tudo isso quer dizer que já não me ama? exclamou Marcel com vivacidade, estupefato daqueles aforismos de moralidade banais tão diferentes da linguagem habitual de Lazarine.

— Não, meu amigo, retorquiu Lazarine, e enganar-se-ia redondamente interpretando por esse modo as minhas palavras. Não sou nem esquecida, nem inconstante, mas acho-me na idade em que a razão deve ser escutada...

— Mas Lazarine não tem vinte anos! interrompeu o mancebo.

— Que importa, pois que a experiência do mundo supre em mim o número dos anos? A sorte funesta da minha pobre irmã acaba de me abrir os olhos. A vida é um tesouro frágil cuja duração é muito incerta... Há tal, que conta com um longo futuro, e tem, talvez, um pé no túmulo... O dever não é uma palavra vã. Há desgraça para quem transgride as leis da moral eterna, e não se arrepende! Na verdade, eu sabia dessas coisas, mas mal as compreendia, e nunca pensava nelas.

— Por que pensa então? perguntou Marcel com amargura.

— A luz fez-se em mim à cabeceira do leito da Condessa de Gordes... Vendo-a morrer como uma santa depois de ter vivido como um anjo, refleti... replicou Lazarine.

— Numa palavra, exclamou o mancebo estremecendo, ou eu a compreendo mal, ou é um rompimento que deseja?

— Valha-me Deus, não desejo semelhante coisa! exclamou a Marquesa com vivacidade... A minha consciência proíbe-me que eternize uma ligação criminosa, ora aí está... e eu obedeço à minha consciência com dolorosa resignação.

— Uma ligação criminosa, repetiu Marcel.

— De certo.

— Criminosa em que?

— Pergunta-me!

— Se o ignoro.

— Não temos direito de nos amarmos, e de pertencermos um ao outro, bem sabe...

— O contrário é o que sei... A senhora é absolutamente livre e eu também... Onde está o obstáculo? Onde está a falta?

Lazarine acabava de seguir uma senda errada.

Ela assim compreendeu e mordeu os lábios, mas já era tarde.

Após um instante de silêncio, Marcel redarguiu:

— Não imagine sequer que eu pretenda combater as suas novas idéias... Aprovo-as... partilho-as... Sim, tem muita razão!... Uma ligação clandestina é indigna da senhora! Comprometi nisso a sua honra, a sua dignidade! Arrisca-se a perder o respeito dos mais! Uma mulher honesta não deve ter amantes, e a senhora é uma mulher honesta...

Lazarine olhou com assombro para quem lhe falava por semelhante modo.

Esperava ver-lhe uma fisionomia zombeteira.

Não sucedia assim! Marcel falava evidentemente com sinceridade. Continuou:

— Permita-me que volte a uma questão que por mais de uma -vez, e ainda esta manhã, a senhora sofismou, que já nos dividiu, mas que espero firmemente não nos tornará a dividir, porque a senhora, decentemente, não poderá tomar senão um partido, o que lhe ofereço... Cesse de ser minha amante, querida Lazarine, seja minha mulher perante Deus e perante os homens!

— Nunca! murmurou a Marquesa, em quem a proposta de Marcel, como sabemos, desencadeava tempestades, e já não se podia constranger.

Em lugar de se irritar, o mancebo sorriu.

— Nunca! repetiu ele. A senhora já um dia proferiu semelhante palavra... Lançou-me em rosto um dia com raiva, quase com desprezo, e cometi o erro de lhe responder pela violência, pela ameaça... Mas são ofensas recíprocas, senão esquecidas, pelo menos perdoadas há muito tempo...

— Ah! pensou Lazarine, nem esquecidas, nem perdoadas!...

— Hoje estamos ambos serenos, — continuou Marcel, e sinto-me capaz de lhe provar que eu era culpado, mas só na forma... — Respondi-lhe então que não podia pertencer senão a mim, e que em virtude dos direitos adquiridos, eu me imporia à senhora ou como amante, ou como marido. Era brutal, e brutalmente formulado, não digo que não, mas ao mesmo tempo era verdade, e a minha opinião não mudou... Não mudará nunca, posso afirmar-lho.

A senhora de La Tour-du-Roy. Ah! com que boa vontade ela mataria aquele homem que lhe dizia tais coisas sem nada perder do seu inalterável sangue frio.

— Querida Lazarine, volveu o ex-tenente sorrindo de novo, fique convencida que dentro de seis meses estaremos casados, e isto pela melhor de todas as razões, é que uma pessoa não pode subtrair-se ao seu destino, e o destino da senhora é ser minha mulher...

Lazarine fez um movimento.

— Valha-me Delis, bem sei que é preciso deixar o título e o nome de Marquesa de La Tour-du-Roy, para passar a chamar-se muito vulgarmente a senhora Marcel Laugier, e descer assim da nobreza à burguesia, mas graças a Deus, que isso não passa de um pesar de pura vaidade, desses de que a gente se consola depressa!

Em troca do sacrifício que fizer em meu favor, prometo-lhe tanta felicidade quanto uma mulher pode desejar neste mundo... Adoro-a, tem a certeza disso, mas não a fatigarei com a minha adoração.., Está consumada à liberdade, deixá-la-ei livre, porque sei muito bem que não abusará de uma confiança tão honrosa para o marido como para a mulher... A senhora é muito rica, mas eu também sou rico, e não só disporá de toda a sua fortuna como lhe aprouver, mas disporá da minha à sua vontade, sem constrangimento.

Para mim pouco reservarei, afianço-lhe! Não tenho necessidades... Que me é preciso?... Um cavalo de sela e algumas caixas de charutos... Não é dispendioso! O seu luxo será a minha alegria... À sua divina beleza é preciso um quadro digno dela... Quanto mais esplêndido for o quadro, mais orgulhoso estarei... Lazarine, minha querida Lazarine, um tal futuro pode assustá-la?

— Confesso que seria sedutor para outra qualquer, murmurou a Marquesa, mas resolvi conservar-me viúva.

— Conservar-se viúva na sua idade! exclamou Marcel com amargor renascente. Ora! Bem sabe que é impossível, e diz isso para ganhar tempo!... Como já não me ama, quer fugir-me!... Mas creia, é inútil! Não me fugirá... Não me fugirá nunca!... As suas repulsas, os seus desdéns, não me desanimarão. A minha hora há de chegar fatalmente... Esperarei que ela chegue... Ah! se entre nós houvesse só as recordações de um amor, vivo do meu lado, morto do seu, talvez renunciasse a esta perseguição que a irrita cada vez mais, e mudará a sua indiferença em ódio... Ah! mas não tenho o direito de abandonar a praça, de desistir da partida. O laço que nos une é mais forte, é indissolúvel... É o nosso filho... É o seu filho...

Lazarine levantou a cabeça.

— O meu filho, exclamou, é o filho do Marquês Roberto de La Tour-du-Roy!

— Legalmente, bem sei! retorquiu Marcel. E sossegue, não tanto pelo mundo, como por ele, não trairei nunca este segredo; mas tenho o direito de amar o meu filho, e de lhe dizer que o amo, de velar por ele, de o proteger, de o educar, de fazer dele um homem, no dia em que eu for o marido de sua mãe. Eis porque persistirei até ao fim, inflexível na minha vontade! Queira ou não, Lazarine, será minha mulher, para que meu filho tenha um pai!... Compreende?...

A senhora de La Tour-du-Roy olhou fito para Marcel.

— Compreendo, respondeu.

— E, perguntou o mancebo com vivacidade, consente?

— Para que, respondeu a Marquesa com uma voz lenta e abafada, se o senhor apesar de tudo imporá a sua vontade? O meu consentimento é inútil...

— Considerar-me-ia tão feliz se o obtivesse. Por que se mostra tão irritada? Que lhe fiz eu? Ofendi-a, mas por excesso de amor, porque tratando do nosso filho, e ainda da senhora, é sempre da senhora que trato Lazarine, querida Lazarine, diga-me que consente...

— Responderei mais tarde.

— Por que adia?

— Preciso refletir...

— Serão muito demoradas as suas reflexões?

—— Não posso saber.

— Como poderei obter a sua resposta?

— Virei trazê-la.

— Brevemente? — Amanhã?

— Não. Amanhã ficarei, com certeza, no palácio de Gordes. Por tanto, não me espere amanhã... E agora, Adeus!

— O que! já se vai! Mal acaba de chegar... Lazarine sem responder levantou-se, embuçou-se na mantilha de renda e deu alguns passos.

— Permite-me que a acompanhe? perguntou Marcel. — Pelo contrário, proíbo-lho.

— Se soubesse o que eu sofro sabendo que vai só pela floresta.

— Faz mal porque não tenho nada a recear...

A jovem desceu, estendeu a mão com frieza e Marcel, que a alumiava, abriu a porta do jardim, e embrenhou-se nas trevas...

 

O INCÊNDIO

Lazarine saiu do jardim da casa Bréchu, e tomou a passo impetuoso o caminho do palácio.

Em presença do ex-oficial mostrara boa cara, mas o completo insucesso da sua diligência causava-lhe uma espécie de atordoamento.

A sua última esperança de liberdade reconquistada, acabava de se desvanecer.

A cadeia que lhe parecia tão pesada, estava presa mais solidamente que nunca.

Sentia a cabeça mim vulcão; os seus pensamentos confusos redemoinhavam e batiam uns nos outros dentro do seu cérebro, como as alucinações de um doente de febre.

Em menos de cinco minutos chegou ao lugar em que o caminho mal conservado, depois de costear a floresta, se embrenhava pelo arvoredo; percorreu mais dez ou doze metros, depois parou repentinamente pondo o ouvido à escuta.

Atrás dela ouviam-se, sobre a terra dura, passos de homem.

Assim que ela parou, os passos deixaram de se ouvir.

Tornou a pôr-se caminho; os passos fizeram-se ouvir novamente.

Era fora de dúvida que a seguiam.

Lazarine encolheu os ombros, compreendendo perfeitamente que aquele guarda invisível não era outro se não Marcel Laugier, que apesar da sua proibição formal, se obstinava em a escoltar nas trevas para a defender se fosse preciso.

Apossou-se-lhe do espírito um louco terror.

A sua mão direita apertou maquinalmente a coronha. do revólver.

— Se fosse direita a este homem, disse ela consigo, e lhe metesse uma bala na cabeça, ficaria livre!... Por que não hei de fazer? Contra um inimigo implacável servimo-nos de todos os meios... É este o verdadeiro caso de legítima defesa!...

E a Marquesa, engatilhando o revólver, voltou para trás e dirigiu-se para Marcel que as trevas então lhe ocultavam.

A reflexão deteve-a.

— Não, tornou, seria insensato... Por justa que fosse a minha vingança, teria as aparências de um crime... Amanhã encontrariam um cadáver na floresta. A justiça havia de querer saber quem era a vítima, e descobrir o assassino. Fariam averiguações... Investigariam o passado... Saberiam que eu conhecia Marcel Laugier. Eu não poderia explicar porque, recebendo-o em Paris, não o recebia na Tour-du-Roy. A sua chegada misteriosa neste local, no momento em que eu mesmo aqui chegava, poria na pista a polícia. Apanharia talvez as cartas perigosas que tive a loucura de escrever. Provar-se-ia, sem dificuldade, que só eu poderia ter interesse na morte de meu amante. Daí a acusarem-me só haveria um passo. Esse passo seria depressa transposto, e procurando a salvação teria encontrado a perda. Não pensemos mais nisso.

Convencida pela lógica inatacável destes raciocínios, Lazarine tornou a meter a arma na algibeira, girou sobre os calcanhares, continuou o seu caminho para os lados do seu palácio, aonde chegou sem novidade.

Ninguém percebeu que ela acabava de passar mais de duas horas fora dos seus aposentos.

Prostrada de fadiga, deitou-se, e apesar das suas preocupações, não tardou a adormecer.

O sono é Um onipotente ditador. Acalma as febres do espírito, do mesmo modo que acalma as do corpo.

A Marquesa acordou, pela manhã, mais sossegada; a situação que na véspera à noite lhe parecia desesperada, achava-a. agora, menos comprometedora. Refletiu que nada lhe estorvava a realização do plano esboçado por ela na sua carta ao príncipe Totor.

Até acolheu com um sorriso a idéia de deixar Marcel Laugier aborrecer-se na casa Bréchu, ao mesmo tempo que, desaparecendo de repente sem deixar vestígios, iria esposar no estrangeiro o filho adotivo de Godefroy.

Logo que fosse Princesa de Castel-Vivant, o que poderia contra ela o ex-tenente?

Denunciá-la ao marido?

Apesar de odiar Marcel com todas as suas forças, Lazarine não podia deixar de o apreciar.

Considerava-o perfeitamente incapaz de uma denúncia deste gênero, e demais, para que lhe serviria semelhante declaração, quando daí por diante nada poderia modificar os fatos consumados.

Além disso, a bonita viúva contava tomar sobre o príncipe Totor um império absoluto, e tornar o marido cego e surdo, se tanto fosse preciso.

Toda a manhã se passou nesta inesperada calma. À hora habitual, isto é, no fim do almoço, Domingos trouxe os jornais e as cartas.

Deitando um olhar para estas últimas antes de as abrir, a senhora de La Tour-du-Roy estremeceu:

Reconhecia as armas e a letra do principezinho.

Era muito natural que Heitor lhe escrevesse, e, contudo, sentiu-se inquieta, e foi com mão quase trêmula que rasgou o sobrescrito.

Antes de reproduzir textualmente a carta que ela devorou, pedimos novamente aos nossos leitores a sua indulgência para o estilo epistolar singularmente atacável do ex-Bégourde, cuja pro.t:a passamos a expor:

"Lazarine adorada.

"Cada vez me sinto melhor, e posso até dizer que me sinto completamente bom, no físico entende-se, porque no moral estou bem doente, e a senhora é a causa indiretamente disso.

"Fez quanto pôde para me tranqüilizar com a sua estimada carta do outro dia, a propósito da retirada inesperada do meu adversário, mas quando uma pessoa tem, como eu, a cabeça à razão de juros, e o coração a transbordar de amor, não se tranqüiliza facilmente, sobretudo quando uma estocada põe momentaneamente o pobre namorado na impossibilidade de velar pelo seu tesouro.

"Eu desejava acreditar, afianço-lhe, que o ex-hussardo renunciava ao seu vil papel de perseguidor, mas não pude.

"Sem o querer, não me convencia disso, e o caso incomodava-me tanto, que resolvi sair das dúvidas, e saber positivamente o que devia pensar.

"Tenho um criado de quarto muito inteligente, uma espécie de Frontino da boa escola, que acha tanta dificuldade em fazer e desfazer um intruja, como qualquer criado de comédia.

Bastou-me dizer-lhe que, por certas razões por mim conhecidas, desejaria saber onde estava Marcel Laugier, com quem tive a honra de me bater, e que tinha deixado Paris na terça-feira passada.

“O meu Mascarille pôs-se logo em campo.

"Encontrou o criado incumbido pelo amo de mandar o guarda--portão da rua de Amsterdam buscar um trem.

"Interrogou o porteiro...

"Descobriu o cocheiro do trem, e soube por esse funcionário da estrada de ferro que recebeu ordem de fazer registrar as bagagens para Orleans.

É claro ou não?

"O hussardo não correu a Orleans senão para se aproximar da senhora.

"Com certeza que não o viu ainda, mas fique certa de que ele se oculta nos arredores do palácio de La Tour-du-Roy, e a espreita coma o caçador espreita a perdiz.

"Um dia ou outro, quando menos o esperar, aparecer-lhe-á, como o mono surge da caixa de surpresa.

"Participou-me Lazarine que o seu cunhado, o conde de Gordes a protegeria muito seriamente se isso se tornasse indispensável.

"Não duvido de que a proteção desse cavalheiro, não seja muito eficaz, mas nestas matérias delicadas compreende muito bem, adorada Lazarine, que uma pessoa não deve se fiar somente em si...

"Perco o apetite, perco o sono, perco a cabeça!

"Se esta situação se prolongar, com certeza que endoidecerei.... Por fortuna não se prolongará. Eu me encarrego de a por em boa. ordem.

"O médico acaba de me dar a certeza de que o meu duplo ferimento estando quase completamente cicatrizado, permite-me, sem grande inconveniente, levantar amanhã e voltar ao meu modo de vida habitual.

"Ora, depois de amanhã partirei para Orleans, e de Orleans darei um pulo até La Tour-du-Roy.

"Na Grand Cour estaria muito longe.

"Sossegue, não a comprometerei.

"Irei aí sob o véu de um pseudônimo que, pelo caminho, irei escolhendo.

"Terei todo o cuidado de não me apresentar no palácio.

"Lembro-me perfeitamente de que existe na aldeia uma hospedaria, e se a memória não me falha, esta aldeia tem por tabuleta um Cavalo Branco, de um desenho exótico, e de um colorido espantoso.

"É aí que me instalarei sob um pretexto engenhoso.

"Vigiarei dessa posição os arredores, e se precisar de mim para por um termo a pretensões insolentes, bastar-lhe-á fazer um sinal. Em dez minutos estarei junto da senhora."

A carta de Heitor acabava por frases apaixonadas que é escusado reproduzir.

A senhora de La Tour-du-Roy quando concluiu, fez um gesto de desânimo.

Uma espécie de fatalidade parecia tomar a peito aniquilar, uns após outros, os seus planos mais bem concedidos.

A louca deliberação do príncipe ia transtornar tudo.

Chegando ao Cavalo Branco, Heitor não podia deixar de averiguar que o seu rival acabava de deixar esta hospedaria para ir instalar-se na casa Bréchu.

Exasperado com as diligências audaciosas de Marcel, queria provocá-lo novamente, mas desta vez sem ocultar os seus motivos.

Do encontro dos dois resultaria forçosamente uma explicação, e então, adeus os milhões, adeus título de príncipe.

— Pois hei de ficar vencida? perguntou Lazarine; e respondeu a si própria: — Não! Lutarei até ao fim!

Domingos entrava neste momento na sala de jantar.

— Mande por o trem ordenou. Depressa!

— Mas que trem, senhora Marquesa? perguntou o velho criado de quarto.

— Um coupé.

Lazarine voltou para o seu quarto; substituiu o penteador por um traje escuro; pegou numa folha de papel, e escreveu as seguintes e poucas palavras:

 

"Príncipe Heitor de Castel-Vivant, rua Francisco I, Paris. "Não parta. Vou aí.

"Lazarine."

 

A Marquesa subiu para a carruagem e disse ao cocheiro:

— Para Orleans!

Lazarine ia a Orleans expressamente para entregar ao telégrafo o despacho que ela não queria confiar ao criado.

Às seis horas estava de volta.

A noite pareceu-lhe de um comprimento mortal.

Agitavam-se no seu espírito projetos contraditórios de toda a espécie.

Finalmente, resolveu que no dia seguinte faria a Joana a sua última visita, e que, de Gordes, iria diretamente a estrada de ferro onde tomaria um comboio da noite para Paris.

A ama do filho e a criada de quarto iriam, no dia seguinte, ter com ela ao palácio da rua Murillo.

Um pouco antes da meia noite, no momento em que ia meter-se na cama, as suas idéias modificaram-se de novo, pelo menos parcialmente.

— Vou fazer junto de Marcel um esforço supremo, pensou ela. O que ontem me recusava, obtê-lo-ei hoje talvez. Dir-lhe-ei, encostando ao peito o cano do meu revólver: — "Já não o amo; a vida ao meu lado parecer-lhe-ia um suplício pior do que a morte... Restitua-me a liberdade, ou então, sob os seus olhos, neste mesmo instante, mato-me"! Há de ter medo... Ceder!

Tomada esta resolução, não perdeu um instante para a executar.

Como na véspera, à noite, pôs na cabeça uma mantilha de renda, e meteu na algibeira uma caixa de fósforos de cera, a chave da casa Bréchu, e a arma indispensável ao lance teatral em que fundava as suas esperanças.

Depois saiu com as mesmas precauções da véspera.

Dava meia hora depois da meia noite, no momento em que saía da floresta para entrar no caminho descoberto que ia dar à casa do defunto capitão.

A admirável pureza do céu matizado de inúmeras estréias tornava a noite quase transparente.

Os mochos chamavam-se, e respondiam-se nos bosques, pelos arredores do grotesco castelo.

Estes lamentos quebrando o silêncio profundo eram tão lúgubres, que a Marquesa sentiu um calafrio nervoso percorrer-lhe as carnes, mas inacessível a todos os receios supersticiosos, não afrouxou o passo.

Chegando ao muro do jardinzinho, ergueu os olhos.

Como na noite precedente, brilhava uma luz por trás dos vidros do primeiro andar.

— Vela, pensou a Marquesa. Sabe que não devo vir, mas sempre me espera.

Se a paixão é sempre assim, mais vale mil vezes não ser amada!

— Atravessou o jardim, tirou a chave da algibeira, abriu, daquela vez sem dificuldade e sem ruído, a porta da casa Bréchu, achou-se no quarto do "rez-de-chaussée", fechou a porta após si.

Rodeava-a uma profundo escuridão.

Marcel nada ouvia, e não se mexia porque o sobrado sonoro denunciaria o seu mais pequeno movimento.

— Surpreendê-lo-ei, disse Lazarine. Tanto melhor... Mais viva será a comoção produzida pela minha ameaça.

Não podia orientar-se em meio das trevas.

A chama de um fósforo alumiou frouxamente o quarto inferior.

Aquela claridade bastou à jovem para subir a escada, cujos primeiros degraus ela trepou lentamente.

O fósforo quase consumido queimou-lhe os dedos.

Deitou-o fora para pegar noutro.

Os restos mal apagados caíram fora dos degraus sobre um montão de aparas juntos com molhos de lenha, que havia num vão da escada.

As delgadas tiras de madeira flamejaram logo como se fossem pólvora, despedindo faíscas sobre as matérias combustíveis que lhe tocaram quase.

Lazarine assustada tornou o descer a toda a pressa para extinguir aquele começo de incêndio, mas o resto das aparas e a lenha já crepitavam.

A senhora de La Tour-du-Roy compreendeu a grandeza do perigo.

Abriu a boca para bradar:

— Fogo, Marcel, fogo! salve-se!

Mas precisamente naquele momento como na véspera, perpassou-lhe pelo espírito um pensamento diabólico. Murmurou:

— Não sou eu quem o suprime... é o destino! Este homem pode morrer... lavo daí as minhas mãos.

Sem proferir uma palavra, sem fazer ouvir um apelo, Lazarine saiu do quarto inferior, já invadido pelo fumo, e donde saíam grandes clarões intermitentes.

Fechou a porta à chave, tendo o cuidado de deixar a chave na fechadura, atravessou o jardim, alcançou a estrada e afastou-se; mas depois de ter dado cinqüenta passos, parou para olhar.

Em poucos minutos o incêndio, alimentado pelos molhos de lenha e pela escada de pinho, tinha-se alastrado por aquele cubículo todo de madeira.

Os vidros acabavam de estalar.

As chamas flamejavam de dentro da casinhola. O "rez-de-chaussée" era apenas uma fornalha. Não demorou a vez do primeiro andar.

Bastou um instante para o aniquilar. Um molho de palha não ardia em menos tempo.

Ouviu-se uma derrocada.

Uma nuvem de fogo subiu para o céu.

O telhado pontiagudo acabava de desabar.

Em seguida, abateu tudo.

Do castelo feudal só restava um montão de destroços fumegantes.

Enquanto a casa Bréchu se conservara de pé, não se notara nenhum movimento no interior.

De certo que a morte fulminadora surpreendera Marcel no seu primeiro sono.

Lazarine estava pálida, mas uma expressão de alegria cruel iluminava-lhe o rosto.

— Livre! disse ela. Livre finalmente!

E deitou a correr em direção a Tour-du-Roy.

 

COMBATES DA CIÊNCIA

Deixamos Máximo Giraud no momento em que se introduzia a furto no parque de Gordes, depois no palácio, enquanto a carruagem que o devia conduzir a Rancey continuava o caminho do lado de Vertes-Feuilles.

Genoveva esperava-o à porta de serviço pela qual entrou.

Trocaram-se breves palavras entre a criada e o doutor.

— Nada de novo? perguntou o doutor. — Nada, senhor Máximo.

— A senhora de Gordes?

— Continua a dormir muito sossegada.

— É o efeito da poção... Contava com isso...Onde está o Conde?

— Ao lado da senhora.

— Só?

— Só. A envenenadora ainda não apareceu.

— Daqui a pouco há de prevenir o Conde de que voltei e quando ele vier ter comigo, não deixará a senhora um momento.

— Fique sossegada, senhor Máximo.

— E sobretudo, continuou o médico, não deixe a irmã dar-lhe cuidados suspeitos.

Genoveva fez um gesto enérgico, e a sua fisionomia habitualmente tão meiga, tomou uma expressão ameaçadora.

—Não, oh não! replicou. Vigiarei de perto a envenenadora! A minha querida senhora não tem nada a temer hoje! Será bem guardada, respondo por isso... Tenho a minha faca...

Nada de loucuras. Genoveva! acudiu o jovem com vivacidade.

— Não receie nada, senhor Máximo. A sentinela tem a sua arma, e, contudo, não se serve dela senão quando a atacam. Também sou uma sentinela... Sou um soldado.

— Sim, o soldado da dedicação! Vou ao quarto do senhor de Gordes. Preceda-me, abra as portas... Se a infernal criatura soubesse que estou no palácio, adivinharia uma cilada, e tudo ficaria comprometido.

— Nada saberá.

A criada de quarto serviu de explorador a Máximo, o qual, por escadas de serviços e corredores particulares, chegou até ao quarto do Conde, sem ter pelo caminho encontrado vivalma...

Fechou-se no gabinete de trabalho de Raul, e esperou: No fim de meia hora, o senhor de Gordes bateu de vagar à porta deste gabinete, e disse em voz baixa:

— Sou eu, querido doutor... Máximo abriu a porta no mesmo instante. Raul estava pálido, tinha as mãos trêmulas. O que tem? perguntou-lhe o médico.

— Estou muito comovido... volveu o senhor de Gordes.

— Coragem e confiança!

— Coragem, tenho-a... Confiança também... Confiança em Deus... confiança no senhor... mas a meu pesar sinto uma profunda angústia... Em menos de duas horas, considere, decidir-se-á a sorte da mulher muita amada!! Sair-nos-emos bem?

— Temos todas as probabilidades em nosso favor.

— E depois de nos sairmos bem, — se assim suceder, — continuou Raul depois da miserável ficar confundida, depois de conhecermos o veneno, será tempo de salvar Joana?

— Deus, a esse tempo, há de ter-nos fornecido uma arma para a luta, não nos abandonará... Na minha alma e consciência, senhor Conde, tenho fé no êxito. Do fundo do coração lhe digo: Espere.

O senhor de Gordes apertou as mãos de Máximo.

— Ah! que bem me faz em falar assim, exclamou. O senhor sustenta-me ampara-o tão firme, torno-me um homem Doutor, dar-lhe-ei a vida, porque se Joana morresse, conheço que não quereria viver!

Após um ou dois minutos de silêncio, o conde prosseguiu:

— Está habilitado, não é verdade?

— Tanto quanto é possível. Tenho estudado a fundo os venenos vegetais que dimanam dos arbustos golpeados por ela. Fiz preparar em Orleans, à minha vista, os antídotos. Seja qual for o veneno, posso imediatamente combatê-lo.

— Mas, tornou o Conde, como é que Joana, cuja vida era todos os dias atacada nas suas próprias origens, não sucumbiu há muito? É inexplicável. Parece-me que participo do prodígio...

— Vou explicar-lhe o que penso, parece inverossímil, quase impossível. Graças a Deus, a irmã da Condessa é profundamente ignorante em toxicologia. Quis ao mesmo tempo desnortear as suspeitas da ciência e apressar os resultados da sua terrível empresa, variando os venenos. Mas, graças a Deus, também ia por esta forma diretamente contra os seus fins.

— De que modo?

— De modo mais simples. Os venenos, contrariando-se uns aos outros, atenuaram mutuamente os seus efeitos mórbidos. Se a infame Renée não tivesse ministrado senão um só, sempre o mesmo, nada teria estorvado a marcha rápida do mal, e a senhora condessa de Gordes já não existiria.

Raul elevou as mãos e a alma num ímpeto de reconhecimento.

— Tem razão, doutor! murmurou. Deus cegou a envenenadora; ele não quis que ela pudesse realizar completamente o seu intento. Salvaremos Joana.

— Agora, senhor Conde, tornou o médico, volte para junto da nossa querida Joana.

— Dormia ainda quando a deixei.

— Não tarda que a desperte. O efeito da bebida que lhe promove este sono é limitado, e chega ao seu termo. Não esqueça nada que está combinado...

— Sossegue... Sairei do quarto um pouco antes das três horas, anunciando que virei só para o jantar.

— É indispensável. A envenenadora, acreditando na sua ausência como na minha, e não receando nenhuma vigilância importuna, sentir-se-á senhora do terreno. Não tenho medo, não terá hesitações. Aproveitará, tenhamos disso a certeza ,esta ocasião única, — a última, — e teremos conseguido o nosso fim.

Assim me parece, e nisso, como em tudo o mais, deixo-me guiar pelo doutor.

O senhor de Gordes tornou a apertar as mãos de Máximo e voltou para o quarto da condessinha.

Eram duas horas e um quarto.

Renée, meio deitada numa chauffeuse aos pés da cama, numa atitude lânguida, e com uma fisionomia melancólica, tinha nas mãos um jornal aberto que não lia.

Genoveva, sentada no vão de uma janela, tinha em cima dos joelhos uma costura, na qual trabalhava tanto como Renée lia.

Estava com a cabeça baixa e as pálpebras quase fechadas.

Era para julgar que sucumbindo à fadiga dormia, mas o seu olhar penetrante como a ponta de uma espada, não se despregava do rosto da envenenadora.

Quando o senhor de Gordes abriu a porta, Renée voltou-se para ele, pondo um dedo nos lábios.

Este gesto significava:

— Não faça ruído... Joana dorme.

O Conde respondeu com um gesto, e dominando a sua repulsão. contendo o seu ódio, dissimulando o horror que o dominava, foi sentar-se ao lado da jovem.

Esta inclinou-se para ele,, e disse-lhe baixinho:

— Depois que o senhor daqui saiu, Joana não se mexeu.

A cabeça da condessinha descansava sobre a almofada, no ninho dos seus cabelos de ouro.

O rosto meigo e encantador daquele anjo conservava a palidez da cera; continuava a rodear-lhe as pálpebras transparentes uma auréola azulada; os lábios continuavam descorados, nas não se via nas feições, como nos dias precedentes, aquele cunho indefinível e sinistro que parece o precursor da agonia próxima.

A fisionomia tocante de Joana adormecida, exprimia uma tranqüilidade profunda.

O seu sono era o de uma criança.

Por seu turno, Raul inclinou-se para a cunhada:

— Vim preveni-la que vou deixá-la só. E murmurou-lhe estas palavras ao ouvido.

Renée estremeceu. Aquela chama estranha de que falamos acendeu-se-lhe nos olhos.

— Aonde vai? perguntou sem olhar para o Conde.

— Dar aos meus fazendeiros ordens e instruções que uma mudança imprevista torna necessárias.

— Será longa a sua ausência?

— Voltarei para o jantar, não antes.

— Quando Joana acordar, o que se deverá dizer-lhe?

— Apenas que saí e voltarei de um momento para o outro.

— Está bom.

— Não esqueça a recomendação do doutor relativamente à poção.

— Fique descansado... Às três em ponto irei buscar o poção no laboratório, e Joana bebê-la-á até a última gota... Pois não é preciso que a pobre criança tenha forças para partir amanhã? Deus é testemunha que desejo bem enganar-me, mas esta viagem inquieta-me... não agouro nada bom.

— Por que?

— No estado de fraqueza em que minha irmã se acha. a viagem aconselhada pelo médico parece-me perfeita loucura! Ah! o senhor Máximo Giraud assume uma terrível responsabilidade!...

A envenenadora ia continuar. Não teve tempo.

A condessinha fez um ligeiro movimento.

— Lá vai acordar, exclamou o senhor de Gordes.

Abriu os grandes olhos, em que o azul puro do céu parecia refletir-se.

Acudiu-lhe aos lábios um sorriso.

Ergueu-se um pouco, balbuciando a princípio com voz fraca, mas que se foi tornando mais firme:

— Como dormi e tive um bom sonho...

— Que sonho, minha querida filha? perguntou-lhe Raul cobrindo-lhe de beijos as faces pálidas, e arranjando-lhe as almofadas debaixo dos ombros.

— Imaginei que estava restabelecida. Era na primavera. O sol tépido brilhava no firmamento puro. Toda a natureza revivia, e como as arvores, como as flores, também tinha o meu quinhão da seiva, renascente... Caminhávamos ambos no meio de uma paisagem encantadora. Dizias-me: "Encosta-te a mim, querida... quero amparar-te..." — E eu respondia-te rindo: — Receava quase voar.. Tu gritavas-me: "Volta"! Eu obedecia alegre; estendias-me os brancura criança, antes de te conhecer, antes de te amar. Sentia-me tão forte e tão leve, que me parecia que tinha asas. Receava quase voar. Tu gritavas-me: "Volta"! Eu obedecia alegre; estendias-me os braços, e eu arremessava-me sobre o teu coração, murmurando: "Amo-te"! Ah! eu estava bem, viva e bem alegre também! Que belo sonho, querido Raul. Ah! demasiado belo, talvez.

Joana inclinou a cabeça, e seus olhos tornaram-se úmidos.

O senhor de Gordes sem lhe responder, apertou-a contra si e saiu do quarto dizendo a Renée:

— Não se esqueça!

Eram três menos um quarto.

 

A CILADA

O senhor de Gordes voltou para o seu quarto, e transpôs o limiar do gabinete onde Máximo o esperava.

Os dois não trocaram palavra. Raul estendeu a mão para a pêndula, e o doutor por única resposta inclinou a cabeça.

Estavam ambos em pé, e seguiam com o olhar os ponteiros sobre o mostrador de esmalte.

O ponteiro preto estava quase a chegar ao algarismo III, e o grande ao algarismo XII.

Decorreram cinco minutos.

— É tempo... Venha.

E Máximo preferiu estas palavras com uma voz tão baixa, que Raul mais adivinhou que ouvi estas palavras.

O Conde e o doutor, abafando o ruído dos passos sobre o tapete espesso da galeria, chegaram a uma das portas do quarto de dormir de Joana.

Esta porta, fechada pelo Conde quando ele saíra, estava agora entreaberta.

Máximo que ia adiante, empurrou-a cautelosamente, e deitou um rápido olhar para o interior do quarto.

— Ninguém, murmurou voltando-se. Senhor Conde, podemos entrar.

A Condessa estava só.

Iam dar três horas.

Renée acabava de se dirigir ao laboratório para ai procurar o veneno.

Genoveva seguiu-a ocultamente, depois de haver entreaberto a porta que dava para a galeria.

Máximo aproximou-se precipitadamente do leito.

Joana acolheu-o com um sorriso.

— Já de volta, querido doutor, principiou; porque, segundo creio, estava ausente?

O mancebo, em vez de responder, tirou da algibeira uma caixa de cartão e abriu-a.

Da caixa tirou um lenço de fina cambraia, no qual deitou algumas gotas do líquido contido num frasquinho microscópico.

— Senhora Condessa, disse apresentando o lenço a Joana, respire isto, peço-lhe.

— Obedeço sempre, bem sabe, murmurou a meiga doente.

Máximo encostou-lhe ao nariz o tecido ligeiramente úmido.

Ao mesmo tempo espalhava-se pelo quarto o perfume sui generis que trai a presença do clorofórmio.

No fim do quarto de um segundo as pálpebras de Joana principiaram a tremer, e a sua mão desfalecida cessou de apertar o lenço.

— Ampare-a! disse Máximo a Raul. É completa a anestesia. Poderia raio cair neste quarto que a Condessa não o ouviria.

O senhor de Gordes, apressou-se a meter o braço por baixo dos ombros de Joana, cuja cabeça tornou a depor no travesseiro, brandamente, com infinitas precauções.

Se não fosse a respiração igual da condessinha, podê-la-iam julgar morta, tão estranhos e inquietadores eram os seus olhos fixos e muito abertos, sem verem.

Vendo-a assim, Raul sentiu perpassar-lhe pelas carnes um calafrio.

— No há perigo imediato, jura-o, doutor? perguntou com voz trêmula.

— Palavra de honra que não há! respondeu Máximo. Enquanto se passava isto no quarto da cama, Renée com o passo lento e automático de uma sonâmbula, dirigia-se para o quarto que servia de farmácia, e que chamava laboratório.

Esta sala, num pavimento um pouco baixo, fora dividida em duas, havia anos, para se abrir uma escada de serviço, e era alumiada por uma janela que deitava para o parque.

Em frente da janela havia uma clarabóia que dava um pouco de luz para um corredor escuro, onde ninguém punha os pés, porque a construção da escada reduzia-o a condição de corredor sem saída.

Renée entrou.

Nunca a sua admirável cabeça de camafeu fora mais trágica.

Os seus grandes olhos de pupilas sombrias exprimiam uma resolução ao mesmo tempo triste e feroz.

Tinha as narinas dilatadas. Os lábios levantados por uma espécie de ritus inconsciente, deixavam adivinhar o esmalte dos dentes deslumbrantes.

O todo daquela esplêndida mulher era então sinistro.

Aproximou-se da mesa colocada no meio do laboratório.

Sobre esta mesa via-se uma garrafa pequena contendo a poção preparada algumas horas antes por Máximo, e ao lado da garrafa uma chávena de velho Saxe e uma colher de prata dourada.

A irmã de Joana fechou a porta após si, e fez girar duas vezes a chave na fechadura para evitar toda a surpresa, apesar da ausência simultânea do doutor e do Conde tranquilizá-la a tal respeito.

Se se lembrasse de olhar para a clarabóia, veria vagamente, ou melhor adivinharia, detrás dos vidros empoeirados, um rosto pálido de olhos ameaçadores, — o rosto de Genoveva...

Mas não levantou a cabeça, e com mão firme, com a precisão resultante do hábito, realizou o seu intento.

Primeiramente agitou a garrafa e encheu três quartas partes da chávena.

Abriu, em seguida, a parte superior do corpo do vestido.

Metendo agilmente os dedos entre os dois seios, retirou deste asilo, inviolável para o casto rei Luiz XIII, um estreito frasco de cristal, fechado com rolha esmerilada, e que outrora havia contido sais ingleses inofensivos.

Este frasquinho estava quase cheio de um líquido incolor, e de uma transparência imperfeita.

Renée desarrolhou e deitou na taça quase tudo o que ele continha; mexeu com a colher, e enxugou, em seguida, a colher cujo metal acabara de ser atacado por um ácido.

Depois, tornou a por o frasco no mesmo lugar recompôs o corpete e dispôs-se a sair do laboratório.

Com uma das mãos pegou da taça.

Com a outra abriu a porta e saiu.

Depois, com o seu mesmo passo automático e lento, com o seu passo de sonâmbulo, dirigiu-se para o seu quarto que precisava atravessar, para chegar em linha reta ao da irmã.

Quando ia andando, repetia talvez pela milésima vez:

— Joana tudo me roubou, o nome, o título, a fortuna, e o coração... Primeiramente tiro-lhe o nome, a fortuna, o título... Mais tarde, quando for a mulher de Raul, tirar-lhe-ei também o coração!...

Atravessou a sua saleta, o seu quarto de dormir, o gabinete de toilette, contíguo ao quarto de dormir.

Todas as portas estavam abertas diante dela.

Um silêncio profundo, um silêncio de morte reinava no palácio.

— Dentro de uma hora, estará tudo acabado, pensava Renée, não a tornará a ver com vida.

Entre ela e o quarto de Joana não havia senão um reposteiro. Abriu-o e transpôs o limiar. Mas não pôde ir mais longe. Dois braços estendidos impediram-lhe o caminho. — À sua esquerda achava-se Raul; — à direita Máximo. O senhor de Gordes agarrou na taça, que no primeiro momento de perturbação Renée lhe deixou agarrar.

Ao mesmo tempo o doutor dizia:

— A dose é, desta vez, bastante forte para acabar com isto, não é assim?

Renée cambaleou como um duelista que acaba de receber uma ferida de morte. Todo o sangue refluiu para o coração, e a palidez mate das suas faces tomou uns tons lívidos e esverdeados.

Não era contudo rapariga para se confessar vencida sem lutar, e demais, a partida, apesar de aparentemente bem comprometida, podia talvez ainda ser ganha.

De certo que aqueles dois homens sabiam alguma coisa.

Era disso prova indiscutível, o laço que acabavam de lhe armar, fazendo-a crer na sua ausência simulada.

Mas o que sabiam eles?

Tinham apenas suspeitas ou alguma certeza.

Eis o que importava verificar sem demora.

Renée mostrou-se firme.

Olhou sucessivamente para o cunhado e para o doutor com uma expressão de profunda admiração, e replicou em tom firme:

— Não sei se sonho. Que se passa? Julgava-os ambos longe daqui e eis que me estão impedindo o caminho com umas caras de meter medo... Não percebo o que me querem dizer, senhor Máximo... E o senhor Raul, porque é que me tira a taça?

— Pergunta-me por que? exclamou o Conde.

— Já se vê, porque o ignoro.

— Eu lho vou dizer! acudiu o doutor. É para entregar aos peritos nomeados pela justiça, e dos quais faço parte, o veneno que deveria dar cabo de sua irmã...

— O veneno? repetiu Renée esforçando-se por se conter, mas já ofegante como a fera apanhada no laço e conhece que é impossível a fuga. O veneno? Percebi bem a monstruosa acusação que as suas palavras parecem denunciar?

— Compreendeu, e a acusação é tão formal como o crime é flagrante...

— Infâmia!

— Atreve-se a negar?

— Se me atrevo a negar? Sim, com certeza, nego! Nego com todas as forças da minha indignação, e só respondo com n desprezo aos covardes que insultam uma mulher!

— Pretende que está inocente? Então prove-o?

— Como?

— Bebendo este veneno.

Sem hesitar, sem refletir sequer, Renée replicou:

— Estou pronta...

Máximo tomara a taça das mãos de Raul.

Estendeu-a para a jovem que lhe deitou a mão, levou-a penosamente aos lábios, absorveu o conteúdo até à última gota, e vazia deixou-a cair aos pés.

— Estão contentes? perguntou com uma risada terrível de ver, terrível de ouvir.

— Sim. replicou o doutor. Estou contente, porque a justiça está feita! A dose enorme que a senhora deitou nesta bebida, atuará de uma maneira rápida no seu corpo virgem de todo o veneno! Dentro de uma hora estará morta, e vamos mantê-la à vista!

 

O DESENLACE FATAL

Renée, ouvindo estas palavras, recuou sem ter a consciência disso.

As pernas dobravam-se-lhe; agarrou-se com ambas as mãos aos panos do reposteiro.

Mas o seu desfalecimento físico e moral teve apenas a duração de um relâmpago.

— Venha, continuou Máximo agarrando-lhe o braço. Soltou-se com um movimento impetuoso e perguntou.

— Aonde me quer conduzir?

— Ao seu quarto.

— Não preciso que me amparem. Irei só.

A passo firme dirigiu-se para a saleta, onde se deixou cair num assento.

Como Raul e o doutor a tinham seguido, ela continuou:

— Não querem ficar aí, parece-me?

— Preveni-a há pouco de que a guardaríamos à vista, replicou Máximo friamente.

— Fiquem, e sejam carcereiros de uma mulher, tanto tempo quanto lhes aprouver.

Um olhar de ódio e de provocação acompanhou estas palavras, depois estabeleceu-se um prolongado silêncio:

Renée sentada, imóvel e muda, com os braços cruzados sobre o peito, a fronte erguida, a fisionomia desdenhosa, os olhos fixos, parece transformada numa estátua.

Decorreram dez minutos.

— Não era veneno, bem vêem! disse de repente a jovem. Se tivesse bebido veneno sofreria, e bem vêm que não sofro!

— Paciência, respondeu Máximo. Esperamos.

Renée tornou a mergulhar no seu silêncio e na sua imobilidade,.

Tornou a passar um quarto de hora, comprido com um século.

O médico cravava o olhar no rosto da irmã de Joana.

De repente estremeceu.

Apareceram certos sintomas, vagos ainda, apenas perceptíveis, mas para os quais não havia ilusão possível.

Na fronte de Renée borbulhava o suor, o círculo azulado que lhe esfumava as pálpebras alargava; as pupilas iam-se dilatando pouco a pouco.

Agitavam-lhe as cartilagens do nariz um pequeno tremor nervoso; os lábios contraiam-se e parecia tornar-se mais delgados.

Evidentemente Renée lutava com sobrehumana energia contra os primeiros dilaceramentos de uma dor intolerável.

Como o filho de Esparta, deixava, sem proferir palavra, que penetrantes garras lhe dilacerassem as entranhas; como ele, ordenava ao rosto que ficasse impassível, e notando que o exame de Máximo redobrava de intensidade, sorriu com desprezo e murmurou por segunda vez:

— Bem vêem que não sofro.

— Paciência! repetiu o doutor.

O que pode a vontade mais forte, que pode a mais firme coragem contra o veneno que dilacera e queima, quando o terrível trabalho da desorganização começa, quando braseiro interior consome a carne palpitante?

Um súbito e violento acesso triunfou do estoicismo de Renée.

A infeliz levou as mãos ao peito e deitou a cabeça para trás, soltando um gemido abafado.

Raul, estremecendo, desviou os olhos.

Máximo, sem piedade para aquela que tinha sido desapiedada,. perguntou friamente:

— Dirá ainda que não sofre?

Renée respondeu simplesmente com um gesto de desdém.

Dava-se momentânea calma no seu suplício: aproveitava-se para lutar novamente contra si própria, e contra aqueles que a fizeram prisioneira do seu crime.

O sofrimento não tinha feito tréguas senão para voltar as assalto com forças novas, com força indizível.

A envenenadora sentiu de repente as veias arrastarem chumbo derretido, os músculos corroerem-se, os nervos retesarem-se, os ossos desfazerem-se sob línguas de fogo, sem cessar, renascentes...

Os seus gemidos, fracos a principio, mudaram-se em clamores selvagens.

Dilacerava o rosto com as unhas, mordia os punhos; o sangue corria-lhe pelos dedos crispados.

— Matem-me balbuciou entre duas crises. Imploro-lhes em nome de Joana! Acabem-me imediatamente! Não me deixem sofrer assim.

Raul louco de horror, tapava os ouvidos para não ouvir.

— Acaba de nos pedir em nome de sua irmã! disse Máximo. Em nome de sua irmã pede a morte! Pois em nome de sua irmã ofereço-lhe a vida...

Renée olhou para o médico com o olhar espantado como que uma louca. Com delírio olha para o seu guarda.

— A vida? repetiu.

— Sim, a vida. Diga-me o nome do veneno que ministrava à senhora de Gordes durante as últimas semanas, do veneno que devia hoje matá-la e que a mata, e juro pela minha honra, acrescentou Raul, não a entregar à justiça, não levado de uma compaixão de que é indigna, mas para poupar o cadafalso à irmã de minha mulher.

— Se falar, salvará Joana? perguntou Renée.

— Creio que sim, com o auxílio de Deus, volveu Máximo.

— Então não falarei. Venha a morte... Morrerei contente. Joana há de sobreviver-me tão pouco...

— Que lhe fez a infeliz e meiga criança para a odiar assim? balbuciou o Conde.

— Eu o amava, e ela roubou-me o seu coração... vingo-me!

— Miserável criatura, exclamou Raul ameaçador, cala-te!

— Sim, calar-me-ei, porque o meu silêncio é a sentença de morte de minha irmã.

Renée queria efetivamente calar-se.

Estava convencida de que até ao fim se imobilizaria na sua teima feroz e bestial.

Mas não contara com a nova crise que a prostrou, fazendo de cada febre do seu corpo um foco de sofrimento capaz de fazer esquecer os tormentos da Idade Média.

Durante alguns segundos debateu-se como uma serpente lançada sobre uma chapa de ferro em brasa, as articulações estalavam-lhe prestes a dilacerarem-se.

— Sinto-me vencida... murmurou finalmente com uma voz que já não tinha nada de humano. Salvem-me. Rendo-me.

— O nome do veneno? exclamou Máximo.

— O eufórbio da Abissínia.

— Era o suco do eufórbio que ministravas à Condessa?

— Sim, havia quinze dias, e foi isso que bebi. Salvem-me, que o juraram.

— E se Deus o permitir cumprirei então o meu juramento.

O doutor correu para fora do salão, onde a miserável criatura sofria o seu justo martírio.

Quem seria capaz de a reconhecer naquele momento, aquela Renée tão bela e tão moça?

Já não tinha idade.

O seu rosto de linhas tão puras, cinzeladas em mármore de Carrara, era agora uma máscara terrível, lívida, maculada de manchas azuladas.

Os dentes batiam uns nos outros, sob os lábios arregaçados.

Os olhos revirados nas órbitas só deixavam ver glóbulos injetados de estrias ensangüentadas.

Uma respiração ofegante, intermitente, semelhante ao sopro de um fole de ferreiro, agitava-lhe violentamente o peito, e cravava-lhe as ilhargas.

De instante a instante, a jovem lanceada por uma dor mais aguda, erguia-se um pouco, e da garganta agitada escapava-lhe um rugido rouco, que terminava por um estertor abafado.

Era um espetáculo sinistro.

O senhor de Gordes, único espectador daquela terrível agonia, sentia calafrios que o gelavam completamente.

Aquele monstro que dizia te-lo amado, meteu-lhe medo.

Foi curta a ausência de Máximo.

No fim de cinco minutos o jovem tornou a aparecer trazendo um copo cheio até cima de um líquido transparente semelhante a vinho de Xerez.

Apresentou o copo a Renée.

— Beba! gritou-lhe, é a vida!

Galvanizada pela esperança de salvação, a envenenadora levantou-se.

Pegou no copo com mão trêmula. Chegou-o aos lábios. Bebeu avidamente um gole. Era já tarde.

A sua garganta, contraída como a de um animal atacado de hidrofobia, deitou fora o líquido.

Fez segunda tentativa.

A mão cada vez lhe tremia mais.

O copo quebrou-se-lhe de encontro aos dentes, e o inútil contraveneno manchou-lhe o peito.

Renée compreendeu então que tudo estava acabado.

Não podia beber. Não podia falar. Não podia amaldiçoar.

Levantou os braços ao céu com um gesto de ódio e de ameaça.

O seu rosto de espectro, tomou uma expressão aterradora.

Viram-lhe os lábios agitarem-se numa maldição suprema, mas apenas se lhe ouviu um som vago, um assobio de réptil esmagado.

Era o fim.

A envenenadora caiu de costas, com os braços em cruz, os olhos abertos.

Durante um ou dois segundos, agitaram-lhe o corpo fracos estremecimentos, depois inteiriçou-se e não se mexeu mais.

— Está morta? perguntou Raul.

— Está morta, respondeu Máximo. É a justiça de Deus!

— Nós tínhamos perdoado!

— Deus é que não perdoara!

— E agora, murmurou o conde com uma voz suplicante, agora salvará Joana? Salvará? Promete-me salvá-la?

— A existência da senhora de Gordes está nas mãos de Deus... replicou o mancebo. Mas já não tinha esperança, e agora tenho-a.

 

CONTINUAÇÃO

Como Máximo Giraud acabara de lhe dizer, Deus fizera justiça fulminando a miserável para quem a mais horrenda agonia era ainda um suplício muito suave.

Mas o fim trágico de Renée colocava o senhor do Gordes numa posição muito difícil sob diferentes pontos de vista.

Em primeiro lugar, sob pena de dirigir a Joana um golpe perigoso e mortal, era preciso até ao seu restabelecimento completo, admitindo a possibilidade desse restabelecimento, ocultar-lhe a morte de Renée. Ora, para chegar a esse resultado, o que fazer?

Em seguida, convinha evitar que a justiça, achando, com razão, suspeita a morte de uma jovem de dezenove anos que não estava doente, se lembrasse de intervir e de operar uma inquirição, para saber como as coisas se tinham passado.

Máximo e o senhor de Gordes conferenciaram logo a este respeito, e encontraram a solução do duplo problema.

Genoveva, chamada logo, acudiu ansiosa e pálida à saleta, enquanto o Conde a substituía junto de Joana.

Assustada a princípio à vista do cadáver, depois feliz e triunfante quando soube que Renée moribunda revelara o seu segredo, a fiel serva murmurou:

— Li num livro santo estas palavras de Deus: — "Aquele que fere com o ferro, pelo ferro perece!" — E isto significa também: — "Aquela que se serve do veneno, pelo veneno perece." — Eis de certo uma terrível prova da eterna verdade. Quando a gente se lembra de que, viva, a irmã da senhora era tão bela, e agora é um monstro! O seu rosto é semelhante ao que era a sua alma!

Genoveva despiu, não sem custo, o corpo disforme e inteiriçado pelas convulsões supremas.

Com o auxílio de Máximo, estendeu a morta no seu leito, e ocultou-lhe o rosto sob o lençol.

Não pôde porém resolver-se a pôr-lhe um crucifixo sobre o peito como lhe pedia o doutor.

Exclamou:

— Nunca! Faça o senhor isso, eu recuso fazê-lo. Seria um sacrilégio.

O mancebo não julgou dever insistir.

Genoveva tornou passado um minuto:

— O que se deve dizer à criadagem?

— Nem palavra, retorquiu o médico. Toda a gente, até nova ordem, deve ignorar o que se passou, e ninguém entrará neste aposento cujas portas ficarão fechadas.

— Bem, senhor Máximo...

Combinadas estas coisas, o mancebo dirigiu-se para o laboratório, e Genoveva voltou para o quarto da senhora de Gordes.

Joana, que já não estava sob a ação do clorofórmio, ia a pouco e pouco saindo do seu estado de torpor profundo e de completa insensibilidade.

Abriu os olhos e deitou lentamente em roda dela um olhar vago e por assim dizer deslumbrado.

O despertar do espírito fazia-se esperar mais tempo que o despertar do corpo.

Finalmente, como se evapora um nevoeiro sob os raios do sol nascente, dissipou-se a nevoa densa do pensamento. Joana sorriu a Raul.

— Dormi um sono estranho, exclamou. Sobreveio-me de uma maneira inesperada, quando me achava bem desperta. Parece que me ordenaram que dormisse. Quanto tempo durou este sono?

O senhor de Gordes olhou para a pêndula.

— Uma hora quase.

— Parecia-me que tinha passado um dia inteiro. Onde está o doutor?

Foi Genoveva quem respondeu:

— O senhor Máximo está na farmácia, senhora, e prepara uma tisana que trará não tarda nada.

— O que foi feito da poção que eu devia tomar às três horas?

— Sucedeu um acidente. Quebrei o frasco com a minha falta de jeito. Peço à senhora Condessa que me desculpe.

— É uma pequena catástrofe que graças ao senhor Máximo será prontamente reparada, disse Joana sorrindo. Portanto não se aflija boa Genoveva.

A criada de quarto pegou com uma ternura tímida e respeitosa a mão delicada e magra da ama, e beijou-a.

No fim de alguns segundos a condessinha continuou:

— Não vejo Renée. Onde está ela?

A esta pergunta que a tornava a colocar por pensamentos em presença do cadáver horrendo, Genoveva estremeceu dos pés à cabeça.

Raul, num tom que se esforçava por tornar sossegado e natural, replicou:

— Perguntas pela Renée? Não a verás hoje, minha queridinha.

— Por que?

— Está deitada.

— Está doente? perguntou Joana muito inquieta.

— Doente, não, mas incomodada. Esta tarde estava com alguma febre, e como neste momento reina uma epidemia de bexigas na aldeia e nos arredores, é preciso prudência. O doutor recomendou a tua irmã que se metesse na cama. Ela recusava, eu insisti e obedeceu.

— Mas não será nada, afianças?

— Oh! com certeza.

— E amanhã verei minha irmã?

— É provável... Salvo se as bexigas se declararem, o que não é impossível.

— Meu Deus! murmurou a senhora de Gordes. Mas as bexigas é coisa perigosa!

— Qual! Ninguém morre por isso. É apenas contagioso, o que torna necessário e até indispensável, durante alguns dias um completo isolamento.

Neste momento entrou Máximo, trazendo uma bebida à condessinha.

Depois de beber, Joana apressou-se a interrogar.

O doutor confirmou o que o Conde acabava de dizer.

E acrescentou que diversos sintomas do estado da menina Leroux faziam-lhe considerar como muito provável a aparição das bexigas no palácio; que, por conseguinte, a senhora de Gordes andaria prudentemente conformando-se de antemão com a idéia de se ver, durante uma semana, e até mais, separada da irmã.

O doutor teve de repetir por dez vezes que o mal em questão era dos mais benignos.

Joana resignou-se, e, no dia seguinte, com pesar, mas sem espanto, que as bexigas estavam declaradas, que Renée não podia declarar-se, e que as recomendações do doutor impediriam que o próprio Raul fosse em pessoa saber notícias da cunhada.

Ao romper do dia o senhor de Gordes fez aparelhar o melhor e o mais vigoroso dos seus cavalos de caça, e partiu a toda brida para Orleans, aonde chegou em menos de uma hora.

Deixou numa cavalariça de hospedaria o seu corcel, branco de espuma, e dirigiu-se, não ao palácio da justiça, mas ao domicílio particular do procurador da república.

Este era um jovem magistrado perfeitamente distinto, muito instruído, muito trabalhador, e de uma inteligência fora do comum.

Camarada de Raul no colégio, conservara com ele relações cordiais; amava-o e estimava-o muito, e antes da doença de Joana, era dos visitantes mais assíduos e mais estimados do palácio de Gordes.

Raul mandou-lhe o seu cartão de visita; apesar de impróprio da hora, foi imediatamente recebido.

— Que motivo o traz tão cedo, querido Conde exclamou o procurador da república apertando a mão do recém-chegado. Espero que esse motivo, seja ele qual for, não terá nada de desagradável.

— Não é ao magistrado que me dirijo, é ao amigo, replicou o senhor de Gordes, e venho pedir-lhe a honra de duas famílias sobre as quais recairia uma imerecida vergonha...

— Trata-se então de coisa bem grave?

— De uma coisa terrível!... de um crime!

— Tome cuidado! interrompeu o mancebo com vivacidade. Nada no mundo, nem a própria amizade pode suspender a ação da justiça.

— O grande juiz já evocou a cousa ao seu tribunal, pronunciou a sentença, disse Raul. Desde ontem que o crime está expiado. O criminoso está morto.

— Quem o matou?

— Deus.

Após um momento de silêncio, o senhor de Gordes fez ao seu ouvinte a narração do terrível drama que nos é conhecido em todas as suas particularidades.

O procurador da república, ao ouvir esta narrativa, estava mais pálido que de costume, e não conseguia ocultar a pungente comoção que o dominava.

 

Concentrou-se um instante depois do Conde concluir, e replicou:

— Teve razão em vir e retirar-se-á tranqüilo. Conheço-o muito bem, para ter a certeza de que tudo que acaba de me dizer é verdade absolutamente. O senhor o disse, o grande juiz que nos há de julgar a todos fez já o que lhe cumpria. A morte da envenenadora desarma-nos, e a justiça humana já nada tem que ver nesta tragédia de família. Não haverá inquérito. Deixe correr o boato da morte natural da sua cunhada. Preceda sem receio à inumação. Salve a senhora de Gordes, e ponha a seus pés a expressão do meu respeito sem limites.

Raul manifestou toda a sua gratidão ao magistrado, cuja benevolência inteligente o tirava de um embaraço que facilmente poderia se tornar sério, e tornou, sempre com a mesma impetuosa rapidez, o caminho do palácio.

Chegou no momento em que o doutor acabava de anunciar a Joana que Renée tinha bexigas.

O Conde receava muito a visita de Lazarine naquele dia.

Se a senhora de La Tour-du-Roy viesse a Gordes, como o anunciara, o que dizer-lhe?

Como explicar-lhe a seqüestração de Renée no seu quarto por motivo de doença tão repentina como inverossímil.

Sobretudo, como convencê-la?

Se, a despeito de tudo, ela insistisse para ver a irmã, de que modo dissuadi-la?

Seria preciso recomeçar, por causa dela, a terrível narrativa feita ao magistrado algumas horas antes?

Felizmente as suas preocupações não tinham razão de ser.

Perto do meio dia chegava um picador a toda a brida.

Trazia um bilhete da Marquesa.

Este bilhete, dirigido a Raul, era concebido nos seguintes termos:

"Querido irmão:

'"Uma circunstância muito importante, que ninguém no mundo podia prever, e levaria muito tempo a explicar-lhe, leva-me a tornar a partir no mesmo instante para Paris, sem me deixar sequer tempo de passar pelo palácio de Gordes.

"A carruagem está à minha espera. Abrace por minha conta a minha querida Joana; abrace também Renée, e lembre-se de que preciso notícias de Joana todos os dias.

"Lazarine."

 

A senhora de La Tour-du-Roy não viria.

Tudo se aplanava portanto.

Raul soltou um suspiro de alivio.

Uma hora depois, Genoveva contava na cozinha que a menina Renée, na véspera, à noite, tinha caído doente, que o seu estado inspirava alguns cuidados ao doutor, e que era preciso isolá-la completamente, porque a sua doença era contagiosa.

À noite, sempre no dizer de Genoveva, a doença tinha feito progressos terríveis, e o doutor perdia a esperança de salvar a jovem...

Na manhã seguinte, ficou surpreendido ao saber que a menina Leroux sucumbira durante noite, e que ocultavam a sua morte à senhora de Gordes, muito fraca para suportar semelhante golpe.

Ninguém amava Renée.

Os numerosos criados não se deram ao incômodo de fingir a comédia da dor.

Genoveva foi quem preparou o cadáver, e quis com as suas próprias mãos coser a mortalha que ocultava o rosto corroído e enegrecido pelo veneno.

O enterro fez-se sem solenidade, quase sem testemunhas.

Não houve convites.

Os cânticos da igreja não acompanharam o féretro na Sua saída do palácio. O silêncio era necessário, Joana nada devia saber.

A meiga criança tudo ignorava efetivamente, e todos os d;as ela pedia notícias da irmã.

— Vai melhor, mas há de levar tempo, respondia invariavelmente o doutor.

A convalescença da Condessa começara.

Uma vez que não havia complicações imprevistas, acidentes improváveis, a cura devia ser certa.

 

A APARIÇÃO

Lazarine, como o anunciara no seu bilhete de quatro linhas, dirigido ao senhor de Gordes. tinha partido para Paris no dia seguinte ao do incêndio.

Não podia nem queria ficar uma hora mais no palácio de La Tour-du-Roy, agora odioso para ela, por efeito de um terror supersticioso.

Durante toda a noite julgava ver ao pé da cama o fantasma do seu amante queimado em vida.

Fazia inúteis esforços para provar a si própria que estava inocente.

Debalde repetia que um acaso independente da sua vontade se encarregara de deitar o fogo...

Respondia-lhe a consciência, que não soltando nenhum grito de alarme, não despertando Marcel adormecido, tornar-se-ia cúmplice das chamas devorando a casa de Bréchu, e que perpetrara um bárbaro assassino sem a menor circunstância atenuante.

Daí a sua partida, ou antes a sua fuga; mas visto o caráter da Marquesa, a impressão que nela causara o drama em questão, devia, embora profunda, desvanecer-se logo que se visse longe do teatro do drama e sentisse, em toda a plenitude, a sensação do libertamento.

Como Marcel Laugier desaparecera do seu caminho, já nenhum obstáculo podia impedir que ela esposasse, em breve prazo, Heitor de Castel-Vivant.

A viúva do Marquês Roberto ia finalmente atingir o fim deslumbrante da sua ambição.

O seu orgulho insofrido, a sua ilimitada avidez nada mais teriam a desejar, e a realidade excederia aos seus sonhos.

Já se ouvia chamar: princesa.

Tá via a coroa fechada nas portinholas do seu trem.

Já de antemão se proclamava rainha do luxo e da alta vida, graças ao poder do Demônio Ouro, já se via a enterrar as mãos num cofre inexaurível entornando ouro em deslumbrantes jorros sobre Paris maravilhada.

Compreende-se que em presença de tais miragens, o espectro do ex-oficial devia rapidamente desvanecer-se...

A senhora de La Tour-du-Roy chegou naquela noite ao hotel da rua Murillo.

No dia seguinte, pelo meio dia, escreveu estas poucas palavras.

 

"Não sairei hoje e só receberei o senhor.

"Venha. Sua.

Lazarine."

 

E fez levar à ma de S. Francisco o bilhete lacônico.

Por volta das duas horas o principezinho acudiu.

Estava ainda um pouco pálido, porque tinha perdido muito sangue; salvo isto, estava com o seu aspecto do costume e sentia-se quase tão forte como antes do encontro de Ville d'Avray.

Os nossos leitores adivinham sem dificuldade o que devia ser e o que foi a entrevista.

Heitor mostrou-se sinceramente e ingenuamente apaixonado.

Lazarine representou o melhor do mundo a comédia da ternura.

Sabemos que ela era grande atriz em casa, e também sabemos que o príncipe lhe agradava, o que tornava o seu papel extremamente fácil.

O Bégourde de outrora desejou conhecer as causas de um regresso que ele não ousava esperar tão pronto.

— Pergunte isso ao meu coração respondeu a Marquesa baixando os olhos com adorável requebro. Não fiz senão obedecer-lhe.. Viver mais tempo longe daquele a quem amo, parecia-me impossível. Eis por que voltei.

Heitor, a quem uma tal resposta embriagava como era natural, devorou com beijos as formosas mãos da sereia.

— E não ouviste falar além do perseguidor? perguntou em seguida.

— Nem uma vez sequer! respondeu Lazarine. O seu criado de quarto enganado, por falsas informações, fez cair o meu príncipe em erro... Duvido muito que o senhor Laugier aparecesse nos arredores de La Tour-du-Roy. Se ele tivesse aparecido, eu sabê-lo-ia... No campo tudo se sabe...

— Fez bem! exclamou o Príncipe, se fosse preciso, chamá-lo outra vez a campo, estou certo de que eu tiraria a minha desforra.

A conversa continuou ,e tornou-se séria.

Havia já muito que o casamento estava resolvido em princípio; faltava fixar a época.

Esta questão foi tratada a fundo.

Heitor muito enamorado, e, por conseguinte, muito apressado, queria logo no dia seguinte principiar a anunciá-lo para se casar no prazo legal.

Lazarine, como já não tinha motivos de inquietação e, portanto, de mostrar grande pressa, insistiu para que se adiasse dali a um mês a celebração do casamento.

O filho adotivo de Godefroy discutiu por muito tempo e cedeu,, com grande custo.

— Mas ao menos, perguntou, receber-me-á todos os dias?

— Isso prometo-lhe, disse a Marquesa sorrindo.

— E todo o dia?

— Ah! isso é que não! Basta que seja das duas às sete horas.

— Basta à senhora, mas não me basta a mim. Mal terei tempo para lhe fazer a corte. Deixa-me ao menos julgar algumas vezes, consigo?

— Não, querido Príncipe.

— Nem uma vez só?

— Nem uma.

— Por que?

— Porque seria pouco conveniente.

— O que nos importa isso? interrompeu Heitor.

— É que pertencemos a uma roda em que as conveniências devem ser respeitadas, concluiu Lazarine.

— Mas ao menos a sua porta há de estar fechada para todos quando eu aqui estiver.

— Deseja muito isso?

— Se desejo!...

— Darei então aos meus criados a ordem que deseja.

— E permite-me vir depois do jantar, passar a noite em intimidade?

Lazarine fez um gesto negativo sorrindo.

— Por que? repetiu o ex-Bégourde.

— Porque não me passa pela idéia quebrar as minhas relações com a sociedade, e fechando as portas aos meus amigos durante o dia, reabrir-lhas-ei de noite.

— Mas visto que recebe os seus afeiçoados, não poderei vir com os demais? Eu também sou seu afeiçoado, que demônio! e dentro de um mês serei seu marido.

— Oh! querido Príncipe, venha quantas vezes quiser; fique porém prevenido de que se eu tiver vinte pessoas na minha sala, será do senhor que me ocuparei menos.

— É o mesmo, basta que, de tempos a tempos, me envie ao canto onde eu estiver um sorriso e um olhar.

— Pois seja o sorriso e o olhar.

— "É um anjo!

—Bem sei.

— E o enxoval? Quando nos ocuparemos do enxoval?

— Não se ocupará de semelhante coisa.

Heitor teve um sobressalto.

— O que! exclamou, não quer?

— Oh! sim, querido Príncipe, quero e até acho muito belo.

— Mas então! Para isso é preciso comprá-lo. Simplesmente, continuou a Marquesa, não será o senhor quem o comprará.

— Então quem?

— Eu gostaria tanto de fazer compras e correr os estabelecimentos por sua causa! murmurou tristemente o príncipe Totor.

— Os homens não entendem nada de toilettes de senhoras. O senhor não conhece o meu gosto. Sou original, e até excêntrica, convenho. O que agrada a todos, desagrada-me a mim. O senhor cometeria muitos erros, sob o meu ponto de vista particular. Comprarei as bonitas coisas que tem idéia de me oferecer, mas fique certo de que terá a alegria de pagar as minhas contas.

— Isso consola-me um pouco, disse Heitor. Resignar-me-ei até, mas com uma condição.

— Qual?

— É que há de gastar muito, muito, muito.

Lazarine pôs-se outra vez a rir.

— Sossegue, disse, por esse lado há de ficar contente.

— Assim espero, e pelas palavras: muito dinheiro, entendo quantias enormes.

— Afianço-lhe que a cifra não deixará nada a desejar. Agora, querido Príncipe, vai dar-me o prazer de se ir embora.

Heitor deu um pulo.

— Ir-me embora! Replicou, a senhora não pensa em tal.

— Pelo contrário, penso muito seriamente.

— Então anda com má fé! A senhora disse-me: das duas às sete horas. e são apenas cinco horas.

— Falei pelo futuro. A nossa convenção não me compromete senão a partir de amanhã. Hoje estou fatigada da minha viagem e tenho grande precisão de descanso. Já vê que para não ser ferozmente egoísta deve deixar-me de boa vontade.

— Parto, disso o príncipe com vivacidade. — Heitor, o senhor é gentil.

— Então, deixe-me beijar-lhe as mãos, minha adorada senhora,

— Eis as minhas faces.

O pequeno Castel-Vivant, exaltado até ao delírio pelo favor que a senhora de La Tour-du-Roy lhe concedia pela primeira vez, tomou uns ares de triunfo, saindo da sala onde não devia aparecer senão no dia seguinte às duas horas em ponto.

Lazarine, pretextando a sua fraqueza para abreviar a conversa, não mentia.

Estava verdadeiramente prostrada, mas muito menos pela viagem que pela terrível tarde e cruel noite da antevéspera.

Às seis, jantou ligeiramente; às sete meteu-se na cama,.dormiu profundamente, não sendo perturbada por sonhos desagradáveis, nem aparições assustadoras.

Quando se levantou por volta das dez horas da manhã, descansada, fresca, adoravelmente linda, a sua criada de quarto entregou-lhe um ramalhete esplêndido que vinham trazer da parte, do Príncipe.

Digamos, uma vez por todas, que a partir daquele dia Heitor não deixou de enviar todas as manhãs à futura princesa um ramalhete de vinte e cinco luíses.

Júlio Leroux, prevenido de véspera, veio almoçar com Lazarine.

Depois de perguntar com muito interesse notícias da condessinha, o melhor dos pais soube da boca de Lazarine o seu próximo casamento, e felicitou-a com entusiasmo.

— Mais de um milhão de rendas exclamou, é absolutamente confortável e de um cunho muito superior. Além disso, princesa, o que é ouro sobre azul, embora, aqui entre nós, o Bégourde de outros tempos me pareça um príncipe de opereta.

Em todo o caso, bonito rapaz! Como prever o destino desse rapaz, no tempo, por sinal não muito longe, em que eu o punha na rua? Porque o pus no olho da rua, redondamente, sem estar com cerimônias. Em todo o caso não lhe quero mal por isso.

E após um momento de silêncio:

— A propósito, não ouviste por lá falar em Marcel Laugier? Deixou repentinamente Paris, assim que tu partistes, e imaginei que tinha ido atrás de ti.

Lazarine não respondeu.

Às duas menos um quarto, Júlio Leroux deixou a filha, para dar lugar a Heitor, cuja exatidão nos parece desnecessário afirmar.

No dia seguinte, uma carta do conde de Gordes trouxe a notícia da morte repentina de Renée, atribuindo essa morte a uma febre cerebral.

Raul acrescentou que, graças ao céu, Joana ia muito melhor, e que o doutor Máximo Giraud principiava a conceber sérias esperanças.

A Marquesa ficou mais admirada do que aflita pelo acontecimento, a sua afeição pela irmã Renée nada tinha de expressivo.

Derramou algumas lágrimas oficiais e de alta conveniência, tomou luto e não pensou mais nisso.

 

Haviam decorrido quinze dias.

O ex-Bégourde enviara quotidianamente o seu ramo de vinte e cinco luíses.

Desde a véspera os nomes do Príncipe Heitor de Castel-Vivant e de Lazarine Leroux, viúva do Marquês de La Tour-du-Roy, ostentavam-se sob a pequena rede de arame, do oitava circunscrição.

Os jornais anunciavam, à porfia, este casamento do high-life, extasiados ante a prodigiosa beleza da princesa futura, e os numerosos milhões do par feliz.

Acabava de dar quatro horas da tarde.

Os criados sabiam que a Marquesa não recebia quando o Príncipe se achava presente, e que, para essa ordem, não havia exceções.

Heitor, sentado aos pés de Lazarine, segurava numa das mãos fidalgas da amante, cujos cinco dedos e rosadas tinhas beijava, fazendo madrigais por aí além.

De súbito, os amantes fizeram um momento de surpresa e despeito.

Dava-se um fato incrível.

Acabava de se abrir a porta da sala, e o criado de quarto, por quem não tinham chamado, aparecia no limiar da porta.

A Marquesa ia interpelá-lo a esse respeito de um modo severo.

Não teve tempo para isso.

O criado de quarto afastando-se para deixar passar um visitante, anunciou com uma voz sonora:

— O senhor Marcel Laugier!

 

O QUE DISSE O FANTASMA

O criado de quarto da senhora de La Tour-du-Roy, anunciando de repente Marcel Laugier, produziu um desses efeitos muito queridos dos autores dramáticos, e que fazem romper em aplausos uma sala inteira cheia de espectadores.

Lazarine, levantada como um autômato pelo impulso de poderosa mola, achou-se em pé, tão pálida na sua toilette de luto como uma escultura de mármore branco, com a boca entreaberta, mãos trêmulas, olhos muito abertos, e dirigidos para a porta.

Um grande artista que quisesse revestir de forma palpável o horror unido ao assombro, não desejaria mais perfeito modelo.

Heitor, sempre sentado e nada compreendendo da súbita manifestação daquele prodigioso terror, olhava para Lazarine com extremo assombro, e dizia baixinho:

— É na verdade prodigiosa a imprudência deste hussardo! mas por que treme tanto a Marquesa? O que tem ela de recear estando eu aqui?

A curta cena muda que precede, passara-se em muito menos tempo do que nós levamos a contar.

Marcel entrou muito sossegado, nada terrível, e a fisionomia mais zombeteira que ameaçadora.

Cumprimentou Lazarine, depois Heitor, com perfeita tranqüilidade, como cavalheiro que transpõe a entrada de uma sala que lhe é familiar, e vendo a impressão fulminante que a sua presença produzira na dona da casa, disse-lhe sorrindo:

— Um fantasma causa algum terror, não é verdade, senhora Marquesa? E nestes tempos de ceticismo que vão correndo, estamos pouco costumados a ouvir anunciar espetros. Tranqüilize-se, pois, a alma do outro mundo porta-se às mil maravilhas. A culpa não é sua, bem sei, mas que quer? As coisas são como são...

Lazarine, a quem faltava completamente a presença de espírito no absoluto transtorno das suas idéias, não achou nada a responder e ficou silenciosa, aterrada, adivinhando instintivamente que era inevitável uma catástrofe.

Heitor levantara-se enquanto Marcel falava.

Torceu nervosamente o macio bigode, encarou o recém-chegado com um olhar provocante, e exclamou:

— Finalmente, senhor explicar-me-á?

O ex-tenente interrompeu-o:

— Explicar-lhe-ei tudo o que o senhor quiser; mas, primeiramente, peço-lhe dois minutos da atenção, e há de ter pena se não mos conceder, porque as coisas que vou dizer são para o senhor do mais vivo interesse.

— Entretanto, principiou o principezinho.

Marcel, por segunda vez, cortou-lhe a palavra e continuou:

— Ignora, meu estimado adversário, que eu tinha a insigne honra de ser do número dos íntimos desta senhora, e não adivinhei, com vergonha o confesso, que a senhora Marquesa, engenhosa e prática, se servira do senhor contra mim, como um espadachim que procura questão e joga a espada por um preço combinado. Com a diferença essencial, porém, de que o senhor trabalha de graça... pela honra, ou antes pelo amor...

— Não compreendo, e peço explicação do enigma... exclamou Heitor extraordinariamente perturbado, porque as palavras que acabava de ouvir eram muito certeiras.

— A explicação do enigma? repetiu Marcel. Sossegue, vai ver... Existe entre mim e a Marquesa, umas pequenas contas a ajustar. Esse ajuste far-se-á na sua presença. Não estou aqui para outra coisa, e vim porque tinha a certeza de o encontrar.

Lazarine recuperara alguma energia.

Quis jogar as últimas.

— Heitor, murmurou com voz suplicante, bem sabe que este homem é meu inimigo... Bem sabe que ele quer perder-me. Se me ama, imponha-lhe silêncio.

O Bégourde de outros tempos tomou a fisionomia agressiva de um galo de combate que se ergue nos seus esporões.

Ia intervir.

Marcel precedeu-o.

— Todas as provocações do mundo seriam inúteis neste momento, exclamou, guarde-as para depois. Devo falar e hei de falar! A senhora Marquesa não tem senão um meio de me impor silêncio, é de me mandar por na rua pelos seus criados...

— É bom o conselho e vou segui-lo, disse Lazarine dirigindo-se para uma mesa sobre a qual se achava uma campainha.

— Má idéia e muito perigosa, disse Marcel tranqüilamente. Porque é que me obriga a confiar à justiça certos segredos comprometedores. Não despertemos o magistrado que dorme!

A Marquesa deteve-se.

— Tenha a certeza disso! volveu o ex-hussardo. E continuou passado um instante:

— Ei-lo razoável e podemos conversar. O meu papel é difícil, é quase odioso, nunca, em caso algum, — e não ignoro, — um cavalheiro deve trair o segredo de uma mulher, sob pena de faltar à honra.

— Ah! exclamou Lazarine, concorda.

— Perfeitamente.

— Cale-se então.

Marcel cumprimentou sorrindo, e continuou como se não tivesse sido interrompido:

— Por isso, apesar das promessas e das ameaças de que falarei o menos possível, teria visto talvez sem pestanejar o Príncipe de Castel-Vivant desposar a Marquesa de La Tour-du-Roy, mas a minha consciência de homem de bem, proíbe-me que deixe um cavalheiro a quem estimo, — e que por pouco não matei em combate leal, casar com uma pessoa, — aliás adorável. — que queima os seus íntimos em vida quando os seus íntimos a incomodam!

Heitor fez um gesto de horror e de incredulidade.

O ex-tenente esperava ver Lazarine aniquilada humilhar-se e pedir perdão.

Não sucedeu tal.

Pelo contrário, a jovem ergueu-se perante acusação, como réptil a quem ferem.

— Mentira atrevida, disse, e infame calúnia! Príncipe, consente que me ultrajem na sua presença? Defenda-me, ande! Vingue-me!...

Para excitar o Bégourde de outros tempos, não era preciso tanto.

Muito pálido, as sobrancelhas contraídas, a pupila inflamada, aproximou-se de Marcel, e fitando-o, lançou-lhe estas palavras ao rosto:

— O que insulta assim uma mulher, é um covarde! Fica dito! A senhora Marquesa de La Tour-du-Roy será dentro de quinze dias Princesa de Castel-Vivant! A sua honra é a minha honra, e peço-lhe uma satisfação pelas suas calúnias!

— Sim, dar-lhe-ei não uma, mas dez em vez de uma! replicou o oficial sem nada perder do seu sangue frio. E bater-nos-emos tanto quanto quiser, até que um de nós tenha suprimido o outro! Está resolvido, está combinado, espero as suas testemunhas esta noite mas escutar-me-á primeiro que tudo, porque quero que saiba a fundo porque é que nos espadeiramos, e quando o souber, empunharemos o ferro, se teimar, do que eu duvido um pouco! Procedamos por ordem. Acusei a senhora Marquesa de me haver querido queimar vivo... A senhora Marquesa teima em negar as minhas palavras?

— Com toda a força da minha indignação! exclamou Lazarine. O senhor é um doido ou um infame! Mentiu!

— Então é preciso que eu prove? perguntou Marcel.

— Desafio-o a que prove.

— Muito obrigado, senhora Marquesa. A senhora põe-me à vontade, e o meu papel torna-se aceitável! Não torno a acusar... justifico-me.

O mancebo puxou pela sua carteira, abriu-a, deu-a a Heitor e disse-lhe:

— Leia.

O principezinho estremeceu reconhecendo a letra de Lazarine.

— Leia! repetiu Marcel.

Heitor devorou as quatro páginas da carta escrita pela Marquesa ao seu antigo amante, convidando-o a vir a Tour-du-Roy.

Esta carta, como o leitor há de estar lembrado, terminava por estas palavras pouco ambíguas:

"Durante o tempo que vai medear entre a recepção da minha carta e a sua retirada de Paris, — tempo que será curto, parece-me — não fale a ninguém, — evite o meu próprio pai. Sobretudo não fale de mim. A sua voz treme quando profere o meu nome, e essa perturbação trair-nos-ia.

"Não lhe digo nada dos meus sentimentos.

"A minha deliberação de hoje é muito mais significativa que as frases mais eloqüentes.

"Não partilho a sua alegria a respeito da salvação inesperada do seu adversário.

"Esse doido atrevido podia matá-lo... Merecia pois morrer."

— Então? perguntou Marcel depois de Heitor concluir, é claro? O principezinho sem responder, e com os olhos baixos, restituiu a carta a Marcel.

Este tornou a tomar a palavra.

Contou, em poucas palavras, a sua chegada à estalagem do Cavalo Branco, a sua entrevista com Lazarine, o aluguel da casa Bréchu, e prosseguiu nestes termos:

— A segunda noite, a senhora Marquesa não devir vir... Ela afirmara-o. Por isso não a esperava, mas não podia dormir, e fatigado, enervado pelo piar lúgubre das aves noturnas que se agitavam em roda da minha residência, peguei na espingarda da casa Bréchu, e fui emboscar-me no bosque vizinho, muito desejoso de abater algum morcego ou mocho, e afugentar, assim, todos os mais.

"No fim de uma hora passada inutilmente à espera, regressei.

"Ia aparecer. Um clarão vivo que saía das janelas do "rez-du-chaussé" atraiu a minha atenção.

"Estava a arder a casa.

"A senhora Marquesa deu uns cem passos, depois, voltando-se, parou e bem convencida de que eu dormia no primeiro andar, pôs-se a ver com todo o sossego o incêndio consumir e devorar.

"Quando a casa era apenas um montão de ruínas, a senhora Marquesa, livre de um infortúnio, ou, o que vinha a dar na mesma, julgando-se livre, tornou a tomar, com o coração alegre, o caminho do palácio.

Estava salvo e fingi-me morto.

Era o único meio de saber que motivos imperiosos levavam a gentil castelã a tomar tão rigorosas medidas contra mim.

Queria sabê-lo, e soube-o.

"A senhora de La Tour-du-Roy desejava dotar-se com um título de princesa, e juntar aos seus numerosos milhões os milhões mais numerosos ainda do senhor de Castel-Vivant.

"Ora, perfeitamente convencido de que, enquanto eu estivesse no mundo não poderia esposar ninguém, a senhora tomara o partido de me suprimir.

"Estava tudo combinado com mão de mestre. Infelizmente o acaso tudo transtornou.

"Cometo a inconveniência de ainda existir.

"Será exato, querida senhora?

"Serei ainda um caluniador? Inventei o crime?

— Ah! balbuciou Lazarine, as aparências acusam-me, bem sei, mas não deitei fogo voluntariamente... juro.

— Mas deixou-o atear-se persuadida de que eu lá estava, sem me dar sinal de alarma! A senhora não foi o assassino, bem! Foi o cúmplice, vem a ser a mesma coisa.

A senhora de La Tour-du-Roy voltou-se para o principezinho.

— Heitor, disse-lhe ela com o tom da paixão, e o rosto banhado de lágrimas, se alguém no mundo não tem direito de me condenar, é o senhor! Esse homem, este perseguidor, colocava-se entre nós. Quis destruir o obstáculo. Se cometi um crime, foi por sua causa. Amo-o, Heitor.

— Ora, adeus! interrompeu Marcel encolhendo os ombros. Ama-o como me amava em Orleans, quarenta e oito horas depois da morte do Marquês Roberto. No seu coração não há lugar senão para o culto do milhão. O Demônio Ouro é o seu sedutor! Acabe com uma inútil comédia, e se a sua consciência lho permite, viva em paz. Adeus, minha senhora.

E voltando-se para Heitor acrescentou:

— Príncipe, agora que sabe tudo, vem comigo ou fica aqui?...

 

A FORTUNA QUE FOGE

Heitor não respondeu logo.

— Hesita, pensou Lazarine. — Fica!

Na verdade o mancebo hesitava.

Servindo-nos de um termo do calão que constituía o fundo da sua antiga linguagem, estava, se não seriamente apaixonado, estava pelo menos embeiçado.

O ex-tenente acabava de lhe provar, de um modo peremptório e indiscutível, a que ponto a senhora de La Tour-du-Roy era indigna da ternura de um cavalheiro.

O principezinho compreendia isto muito bem, mas o amar, para certos amantes mediocremente dotados de senso moral, não era absolutamente incompatível com o desprezo.

Heitor amara a senhora Bobino, por quem ele com certeza não tinha nenhuma estima; somente, entre a pseudo-comediante e o pintor mediava uma ligação toda fantasista, principiada pelo acaso, continuada por hábito, e fácil de romper ao primeiro sintoma de mútuo aborrecimento.

Com a Marquesa não sucedia nada parecido.

Não se tratava de um capricho, mas de um casamento.

Ora, o peralvilho o mais frívolo, considera duas vezes antes de casar com uma mulher que, quando está fatigada de um homem, o queima na sua residência sem o menor escrúpulo.

Um noivo, descobrindo de repente umas tais excentricidades no passado daquela a quem adora, torna-se fatalmente cismador e pergunta com um pequeno calafrio:

— Será prudente casar com ela?

E noventa e nove vezes contra cem, responderá negativamente.

Foi esta a resposta que o príncipe deu a si mesmo, depois de percorrer em poucos segundos toda a gama de reflexões rapidamente analisadas nas precedentes linhas.

Mas ao tomar a sua decisão sentiu apertar-se-lhe o coração; pareceu-lhe que alguma coisa se despedaçava dentro dele.

Entretanto fez boa cara, e como Marcel continuava a interrogá-lo com o olhar, foi com toda decisão que respondeu:

— Ah! com a fortuna, parece-me que efetivamente parto com o senhor! Os processos empregados com o senhor parecem-me, na verdade, muito sumários. Não tenho vocação para passar pela prova de fogo. Graças à sua boa estrela, o senhor saiu incólume. A mim não me sucede talvez, o mesmo. Não querendo correr o risco, depondo aos pés da senhora Marquesa os meus adeuses e os meus respeitos.

Heitor cumprimentou Lazarine, travou do braço a Marcel Laugier e saiu com ele,

A senhora de La Tour-du-Roy, só no seu salão, em meio das. ruínas das suas esperanças, ficou, a princípio, aterrada.

À sua prostração do primeiro momento sucedeu um acesso de raiva, que foi de curta duração.

A jovem foi colocar-se diante de um grande espelho e mirou-se de cima a baixo, como nunca deixava de fazer quando queria reanimar a sua confiança que desfalecia.

Os seus olhos fitos na sua imagem foram serenando gradualmente:

Murmurava:

— Com uma beleza como a minha, por muito comprometida que esteja uma partida, ainda se pode tornar a ganhar. Heitor seguiu Marcel, mas ainda torna a vir. O amor próprio, arrebata-mo hoje.... o amor o tornará a trazer amanhã.

E no dia seguinte Lazarine cheia de confiança, pôs-se a esperar. Heitor não apareceu, nem tampouco no dia seguinte. Ao terceiro dia Júlio Leroux apareceu, e eis as suas primeiras palavras:

— Olá, pequena, que há de novo? Rompeste as relações com Bégourde?

— Por que me pergunta isso? retorquiu então a Marquesa.

— Porque o teu príncipe de contrabando acaba de partir para Mônaco, em companhia da pequena K. dos Butos, uma garota menos má. Príncipe de opereta, cantora de opereta, não se sai da opereta. Mas uma pessoa não se porta assim quando já está pregoada. Este Bégourde é um velhaquete. Nunca variei de opinião a seu respeito e gabo-me disso. Conheço os homens!

Lazarine encolheu os ombros sem responder.

Só o seu orgulho recebia uma ferida penetrante.

Em tudo isto o seu coração não desempenhava papel algum.

— Perco um príncipe, disse ela, príncipe de contrabando como poucos. Que me importa! Sou assas formosa para alcançar um rei! Quem sabe?

Na semana seguinte, a gorda e garrida ama normanda que passava uma parte das tardes no Parque-Monceau com o marquezinho seu amo, não se recolheu à hora costumada.

Como era então natural, supôs-se que os galantes requebros de algum bonito militar lhe faziam esquecer a hora.

Mandaram procurar.

Tinha desaparecido.

Grande comoção no palácio da rua Murillo.

Lazarine teve ataques de nervos, soltou gritos agudos, declarou que ia enlouquecer.

O comissário prevenido imediatamente, oficiou à prefeitura.

A polícia de segurança, a maravilhosa polícia que segundo a expressão popular encontra agulha em palheiro, pôs-se logo em campo e revolveu Paris.

As suas pesquisas não deram resultado.

A ama e o herdeiro do Marquês Roberto não puderam ser encontrados.

Lazarine redigiu e mandou a todos os jornais um anúncio prometendo cem mil francos a quem desse noticias da ama e da criança.

Esta quantia relativamente enorme, despertava grande cobiça.

Ninguém foi capaz de a ganhar, dando qualquer esclarecimento.

Finalmente, oito dias depois da desaparição, um desconhecido, que não era nenhum moço de recados, entregou na rua Murillo uma carta sem assinatura cuja letra a senhora de La Tour-du-Roy reconheceu logo do primeiro relance.

A carta vinha de Marcel Laugier e eis o que ela dizia:

"Não procure meu filho. Apoderei-me dele. Era o meu dever, senão o meu direito. Tinha para o arrebatar imperiosos motivos. Não quero que ele possua uma fortuna roubada pelo seu nascimento, e que honradamente não lhe podia pertencer. Sou bastante rico para que ele seja rico, e se lhe interessa a sua felicidade, afirmo-lhe que há de ser feliz. O que faria dele? Um peralvilho. Eu farei um homem.

"Vivo no estrangeiro com meu filho, ao abrigo de todas as pesquisas. Não tenho necessidade de lhe recomendar a respeito desta carta um prudente silêncio.

"É o seu interesse calar.-se. A senhora não poderia divulgar o nome do raptor, senão traindo um segredo que mais que ninguém tem interesse em guardar.

"Demais, que lhe importa a criança, visto que lhe fica o dinheiro?"

Lazarine teve todo o cuidado de não divulgar o que ela acabava de saber.

Continuou a fingir a dor, e a prometer por meio dos jornais recompensas cada vez maiores.

No fundo sentia-se perfeitamente sossegada e couraçada de filosofia.

Marcel tivera razão. Ficava-lhe o dinheiro, que lhe importava o filho!

 

O inverno estacava acabado.

A convalescença de Joana fora demorada.

Não era sem dificuldade que os cuidados mais ternos, mais assíduos, mais acertados, tinham triunfado das devastações causadas no organismo delicado da condessinha pelos venenos da flora oriental, mas o êxito coroava finalmente tantos esforços, e a lenta e difícil convalescença chegava ao seu termo.

Soavam duas horas da tarde no relógio de Gordes.

Um alegre sol de primavera iluminava a atmosfera tépida.

Por toda a parte começavam a abrir os rebentos repletos de seiva.

Os insetos zumbiam sobre os tabuleiros de relva. As andorinhas voejavam à flor dágua.

Pela primeira vez, via-se Joana fora do seu quarto e do palácio.

Tinha podido descer lentamente a escada principal amparada de um lado pelo marido, do outro por Genoveva.

Agora, reclinada numa ampla poltrona ao pé do prado esmaltado de flores recém-abertas, embriagava-se com o ar puro, o sol e os perfumes.

A condessinha tornara-se encantadora como antes da sua doença, e talvez ainda mais.

O sangue recomeçava a correr rico e quente nas veias, e coloria de cor de rosa a epiderme das carnes delicadas.

A magreza desaparecera.

Só o olhar se conservava triste, e o sorriso apresentava ainda uma expressão melancólica.

Por quê?

As vestes negras de Joana respondiam a esta pergunta.

A senhora de Gordes sabia, há algumas semanas, que Renée morrera, e que durante alguns meses lhe tinham ocultado esse fato, mas ignorando e devendo ignorar sempre as horríveis causas da sua morte, chorava, a mais querida e mais dedicada das irmãs, a infame criatura de que fora vítima.

Máximo Giraud, cuja presença já não era precisa no palácio de Gordes, tinha, havia dois meses, regressado a Rancey.

Raul suplicara-lhe, de mãos postas, que aceitasse a recompensa merecida pelo valioso serviço que lhe prestara salvando a condessinha.

As suas súplicas tinham sido baldadas, perante a resistência inflexível do jovem doutor.

— Não tenho necessidade de riqueza para ser médico dos pobres, senhor Conde, respondera ele. Deixa-me a imensa alegria de haver salvo a Condessa de Gordes com o auxílio de Deus, e de não haver aceitado por honorários senão a vossa estima e o vosso reconhecimento, se entender que mos deve. Acredite-me, estou muito bem Pago.

E Máximo afastara-se, dizendo baixinho:

— Agora coragem! Já não tenho direito de me queixar. Se não fosse eu, Joana teria morrido, tive a minha porção de felicidade.

Raul quase ajoelhado, tinha entre as suas uma das mãos da esposa.

Joana sorria, e fez-lhe sinal que se inclinasse para ela, e quando os seus lábios, que se tinham tornado purpúreos, tocaram quase no ouvido do Conde, murmurou:

— É então verdade que eu estou restabelecida! É então verdade que eu viverei! Eu sabia que estava condenada, e o meu coração despedaçava-se. Não era a morte que me desesperava, era o deixar-te, e eu ocultava o meu desespero para não ocultar o teu. Oh! abençôo esses sofrimentos. Se eu tivesse sofrido menos, saberia menos quanto tu me amas, saberia menos quanto te adora! É tão agradável viver quando imaginávamos que morreríamos... e quando se é amada, Raul, querido Raul, Deus é bom.

Lágrimas de comoção deslizaram então pelas faces de Joana.

Os lábios de Raul as enxugaram.

No fim de uma hora a condessinha ainda fraca, sentindo-se um pouco cansada, quis deitar-se.

O senhor de Gordes e Genoveva conduziram-na ao seu quarto e meteram-na na cama, onde ela adormeceu quase imediatamente, com esse sono reparador que se segue às primeiras fadigas da convalescença.

Raul fez sinal a Genoveva para que o seguisse ao seu quarto.

— Boa Genoveva, disse-lhe ele, a sua presença na minha casa foi uma bênção. A senhora é o modelo da dedicação e da coragem. Viu o que ninguém via, teve uma grande parte na salvação da Condessa. Contraí para consigo uma dívida imensa, é chegado o momento de a pagar.

— O senhor não me deve nada, balbuciou a criada de quarto. Amando a minha querida senhora, não fazia mais do que o meu dever. O reconhecimento é tão natural, que não chega a ser uma virtude.

— Quero que sejas rica, continuou Raul.

— Rica, para que? interrompeu Genoveva.

— Para não depender de ninguém, para não ter precisão de trabalhar.

— Mas eu quero trabalhar! quero depender da senhora, exclamou a admirável criatura. Não me ofereça dinheiro, senhor Conde, suplico-lhe, recusaria, apesar de todo o meu respeito pela sua vontade. Por acaso a dedicação e a ternura podem pagar-se com dinheiro? Não! Não! Se quer por força recompensar-me, apesar de eu nada ter feito para isso, permita conservar-me aqui sempre.

— Sim, sempre, sempre, prometo-lhe, juro-lhe, replicou Raul muito comovido, não me deixará nunca!

Após um momento de silêncio, acrescentou: — Genoveva, tem dois filhos?

— Sim, senhor Conde, estão na herdade. Com o tempo hão de vir a ser lavradores laboriosos, e sabendo bem da sua ocupação.

— Melhor do que isso, Genoveva. Hão de vir a ser homens instruídos, homens úteis ao seu país, homens talvez acima do comum. Amanhã já deixarão a herdade, para começarem sérios estudos. De amanhã em diante ficarão cem mil francos depositados em seu nome em casa do meu tabelião, e cada um deles receberá metade desta quantia no dia da sua maioridade.

Genoveva, caindo a soluçar aos pés do senhor de Gordes, pegou-lhe nas mãos, e quis beijar-lhas balbuciando:

— Ah! senhor Conde, senhor Conde, tudo isso pelos filhos de uma pobre criada, é muito, é muitíssimo.

Raul fê-la levantar.

— Já não é uma criada, Genoveva, disse-lhe ele, é da família. E em voz baixa acrescentou:

— Oh! povo, como és grande, quando és bom!

 

Os nossos leitores contam de certo que lhes vamos dizer em poucas linhas, o que depois destes acontecimentos foi feito de Raul e de Joana, de Lazarine, do príncipe Totor, de Júlio Leroux e de Godefroy de Castel-Vivant.

Teremos todo o cuidado de não lhes satisfazer a curiosidade, se é que a sentem.

A razão é a seguinte:

Os personagens de que acabamos de escrever os nomes, hão de reaparecer dentro em pouco noutra narração.

 

A AGÊNCIA

No porão de uma casa de sofrível aparência da rua de la Victoire, em duas tabuletas de mármore negro, uma em cada ombreira, lia-se o seguinte, em letras de cobre dourado:

 

MALPERTUIS

DEMANDAS — COBRANÇAS

 

O escritório de Malpertuis gozava de grande fama em Paris.

As duas tabuletas de mármore não alardeavam pretensões, mas na sua simplicidade estudada quantos significados ocultos não havia.

O diretor do escritório ocupava-se não só de cobranças e de demandas, mas de negócios de usura, de casamentos ricos, de empréstimos de dinheiro, de adiantamentos sobre títulos, sobre direitos de sucessão, sobre simples declarações assinadas, sobre pensões civis e militares, de comissões de dívidas, de colocação de capitais, de vendas de propriedades no campo e na cidade, de papéis de comércio e bolsa, de informações comerciais, de informações confidenciais (no interesse das famílias), de busca de devedores, de tudo, finalmente de tudo, e ainda de algumas outras coisas mais! De omni re scibili, et quibusdam aliis!

O referido portão dava ingresso, por um corredor de abóbada, para um grande pátio formando um quadrado perfeito.

Em cada face deste quadrado havia um corpo de edifício tendo a altura de cinco andares.

O escritório Malpertuis (dizia-se escritório e não agência), era situado no corpo do fundo.

Ocupava todo o primeiro andar, e compunha-se do escritório propriamente dito e dos aposentos particulares do agente.

Uma vasta antecâmara precedia o escritório, pelo qual era preciso passar para chegar ao gabinete, mas algumas grades forradas de percalina verde não deixavam os empregados verem os visitantes e vice-versa.

Os empregados, em número de seis, eram muito ativos e recomendavam-se pela sua aparência decente. Nada, na rua de la Victoire, dava indícios de uma agência em más circunstâncias, destinadas fatalmente a acabar em polícia correcional depois da completa vaporização.'as finanças dos seus empregados.

Estava tudo mobiliado, se não com luxo, pelo menos com comodidade. Nem plaques nem peles ordinárias. Mogno maciço e vitela verde.

Poltronas confortáveis, de uma solidez a toda prova, guarneciam a antecâmara metamorfoseada em sala de espera.

Um contínuo, de fato pardacento com botões de prata, recebia os clientes e introduzia-os, ou à presença do empregado principal, ou no gabinete de M. Malpertuis.

As portas tinham guarda-vento estofado.

Qualquer palavra proferida em voz alta numa sala não podia ser ouvida na que lhe estava próxima.

O escritório teria podido tomar por divisa, como outrora as mesas públicas de certos escreventes, estas palavras:

Túmulo dos segredos!...

Na antecâmara e nos escritórios viam-se papeleiras sobrepostas, como em casa de um advogado, ou de um tabelião.

Cartazes de toda espécie ocupavam os lugares vazios, anunciando venda por motivo de falecimento, vendas sobre licitações, vendas por mandado de justiça, chamada de acionistas, etc, etc.

O gabinete do diretor, severo e até um pouco sombrio, era mobiliado de madeira polida de escuro e esculpida.

As cortinas e os reposteiros, de veludo preto, caiam em pesadas pregas.

Um espesso tapete felpudo, de uma cor sóbria, cobria o sobrado.

Uma guarnição de fogão, de estilo sofrível, quatro quadros de mestre, antigos, alguns bronzes, e uma grande secretária coberta de papéis, uns em maços, outros espalhados, completavam a mobília.

Dissemos mais acima que o escritório ocupava seis empregados.

Além deste pessoal interior, Malpertuis tinha agentes por fora e correspondentes no estrangeiro, agentes e correspondentes em grande número, e não tardaremos a saber porque.

O escritório que abria às nove horas da manhã, fechava às cinco da tarde, mas Malpertuis só era visível, pela manhã das nove às onze, e de tarde, das quatro às cinco.

Só ele tratava dos negócios importantes.

O seu empregado principal, o seu chefe de escritório, por outras palavras, privado de toda a iniciativa, devia limitar-se a tomar notas e a executar religiosamente as ordens do patrão.

Acabavam de dar nove horas e meia.

Os empregados trabalhavam silenciosamente.

Nenhum cliente tinha ainda aparecido.

Malpertuis, só no seu gabinete, abriu uma volumosa correspondência. Este personagem era um homem de uns trinta e sete anos, mas que parecia um pouco mais adiantado na idade.

Ás peripécias de uma existência um pouco tempestuosa tinham deixado no seu rosto, aliás sofrivelmente agradável, vestígios visíveis.

O cabelo castanho ia rareando no alto da cabeça e branqueando nos lados.

Sulcavam-lhe a fronte rugas mais numerosas que profundas.

Pés de galinha avincavam-lhe o ângulo exterior das pálpebras, rodeadas de um círculo violáceo.

Na cor do rosto, absoluta falta de frescura; os olhos, de um azul desvanecido, eram velados.

O conjunto da fisionomia parecia sério e meditabundo, mas a grossura dos lábios dava à parte inferior do rosto um cunho particularmente sensual e denunciava o homem dado a todos os prazeres, o amigo de gozar.

Malpertuis usava suíças compridas, à inglesa, pelas quais passava, duas ou três vezes, em cada quarto de hora, um pequenino pente de tartaruga.

Tomava com toda a sua pessoa um cuidado extremo, e sabia dar um cunho de elegância britânica ao traje invariavelmente negro que a gravidade profissional lhe impunha.

As cartas, que ele percorria de um relance ou lia atentamente, eram, umas atiradas para o cesto dos papéis, outras, classificadas e numeradas, segundo a maior ou menor importância do seu conteúdo.

O agente de negócios chegava ao fim da sua tarefa.

Só lhe faltava examinar três ou quatro autos.

Aquele em que ele pegou ao acaso tinha a marca de Nova York.

Cortou com o canivete o envelope, depois deitou para o conteúdo da carta um olhar sem animação.

Mas assim que percorreu as primeiras linhas, a expressão da sua fisionomia modificou-se repentinamente; brilharam-se os olhos velados e um vago sorriso entreabriu-lhe os lábios.

Doze milhões! — murmurou com um leve tom alegre de mofa, piscando as pálpebras frouxas. — Uma herança pertencente a uma mulher cujos vestígios se perderam!... Bonita continha!!... Que pechincha para o escritório.

Isto é que vai engrossar de grande as contas de César.

E continuou.

Depois de acabar pegou numa folha de papel em branco no qual -escreveu as seguintes palavras:

"Correspondente de Nova York: — James Elliot. Edgard Sidney. — Doze milhões a Amélia Gonthier. "Encontrar esta mulher se for viva, ou os seus herdeiros se tiver falecido.

Feito isto, Malpertuis juntou o apontamento à carta e meteu as duas coisas num envelope de papel pardacento, sobre o qual trocou a. seguinte indicação:

Herança Sidney

Depois ocupou-se das últimas cartas.

Neste momento um coupé particular, muito simples, puxado por um cavalo de quinhentos luises, parou em frente da casa da rua dela Victoire.

As almofadas do trem não tinham armas, mas apenas uma cifra pintada tendo por cima uma coroa de marquês.

Uma mulher perfeitamente elegante, de um donaire irrepreensível e de uma indiscutível mocidade, apesar de ocultar o rosto com um véuzinho espesso, apeou-se, meteu-se pelo corredor de abóbada, passou rapidamente sem perguntar nada ao guarda-portão, atravessou o pátio e subiu pela escada que ia ter ao escritório Malpertuis.

Uma chapa de cobre, na porta, tinha o nome do agente e por baixo umas iniciais, abreviatura da frase: Tende a bondade de levantar o fecho.

A recém-chegada, conformando-se com a frase, assim fez e entrou.

O contínuo do escritório, sentado a uma pequena secretaria, ocupava-se em meter prospectos em envelopes administrativos.

Ao ruído que fez a porta ao abrir-se, ergueu a cabeça.

— O que deseja, minha senhora? perguntou.

— Falar ao sr. Malpertuis. — Pode-se-lhe falar?

— Parece-me... Tem a bondade de me dizer o seu nome?

A visitante puxou pela sua carteirinha de marfim esculpida.

Pegou num bilhete e deu-o ao empregado do escritório.

O empregado olhou para o bilhete, em seguida para a recém-chegada, inclinou-se respeitosamente e disse:

— Tenha a bondade de se sentar, senhora Marquesa. Vou prevenir o sr. Malpertuis...

Depois desapareceu pela porta do escritório. A jovem a quem ouvimos tratar por senhora Marquesa, deixou-se cair numa cadeira, com uma graça indolente.

O empregado, depois de atravessar as duas primeiras salas, bateu discretamente à porta do gabinete.

A ordem de entrar foi-lhe transmitida por um toque de campainha elétrica, porque a voz não podia atravessar o estofo, e penetrou, no aposento de Malpertuis.

— O que é? perguntou este em tom breve.

— Sr. diretor, uma dama.

— Quem?

— Eis o seu bilhete.

E apresentou ao patrão o cartão porcelana.

Malpertuis leu o nome da aristocrática dama. Novo sorriso lhe entreabriu os lábios.

— Devo mandar entrar?

— Imediatamente... Depois tocarei para prevenir... O empregado saiu.

Malpertuis atirou o bilhete para cima de um maço de papéis e aproximando-se de uma papeleira abriu-a com a chave que trazia suspensa da corrente do seu relógio.

Tirou uma cartonagem colocada na quarta prateleira; meteu a mão na abertura e apoiou o dedo sobre um botão para ocultar o qual estava ali de propósito a cartonagem.

Decorreram alguns segundos, depois ouviu-se um toque de campainha elétrica junto à secretaria.

— César está cá! pensou Malpertuis. Tudo vai bem! Aproximando então o rosto da abertura momentânea, proferiu por um modo muito distinto as seguintes palavras:

— A Marquesa de La Tour-du-Roy está aqui... Uma voz bem timbrada respondeu-lhe logo:

— Bem, espera meio minuto...

Malpertuis não fechou o móvel, deixou a cartonagem sobre a cadeira onde a tinha posto e voltou para o seu lugar.

— Decididamente, murmurou, é uma bela invenção o telefone.

Ocultou com um jornal vários papéis que lhe atulhavam a secretaria, penteou cuidadosamente as suíças, depois tocou duas vezes de seguida uma campainha.

Passado um instante a porta abriu-se e o empregado introduziu a Marquesa Lazarine de La Tour-du-Roy, que ergueu o véu ao mesmo tempo que entrou.

O dono do escritório deu alguns passos para a nobre visitante,, cumprimentou-a de um modo muito correto, nem muito humilde, nem muito altivo, ofereceu-lhe uma cadeira próximo da poltrona que ele ocupava e disse.

— Peço que me perdoe, senhora Marquesa, alguns minutos que esperou contra minha vontade... era preciso despedir um cliente, o que eu me apressei a fazer...

— Já está perdoado, senhor, replicou Lazarine, sorrindo, eu sei o quanto o senhor tem que fazer e esperava sem impaciência... Demais, esperei pouco.

A jovem viúva do Marquês de La Tour-du-Roy tinha no muito, vinte e cinco anos; — é escusado dizer que a sua beleza, incomparável e quase célebre, estava no seu apogeu...

O corpete-couraça do seu vestido de faile preta, bordado de vidrilhos, desenhava um tronco redondo e delicado, quebrado e flexível,, os contornos preciosos de um busto de estátua e umas anquinhas de um desenho arrojado.

Cabelos ondeados abundantes, de um tom de cobre avermelhado, enastravam-se sob o chapelinho negro, absolutamente simples, que não podia ocultar-lhes a sedosa opulência.

Brincavam-lhe na fronte alguns caracolinhos, e cinco ou seis trancas brilhantes, inundando-lhe os ombros, desciam-lhe até à cintura.

O rosto, de feições delicadas e corretas, sem a frieza clássica, e de uma originalidade provocante, apresentava a deslumbrante carnação das ruivas. As sobrancelhas cor de castanha, as pestanas negras, formando um contraste brilhante com as rosas maceradas da cútis e o tom ardente dos cabelos, davam aos grandes olhos de um verde sombrio a expressão quase oriental que as mulheres do teatro obtêm com o auxílio do cobalto.

A boca era pequena, os lábios cor de sangue e os dentes como pérolas.

Este rosto radiante, este corpo de jovem ninfa, formavam um conjunto de uma incomparável elegância. Cada movimento denunciava uma graça. Nada poderia dar idéia da sedução do olhar e do encanto capitoso do sorriso.

 

LAZARINE

No momento em que esta criatura deliciosa transpunha a entrada do gabinete do agente, a sua fisionomia expressiva estava velada por uma nuvem de tédio ou antes de tristeza.

Malpertuis contemplou a bela visitante por espaço de um segundo, com manifesta admiração.

Depois de Lazarine se sentar no "fauteuil" que lhe designava sentou-se ele também.

— A senhora Marquesa vem saber o resultado das diligências de que me fez a honra de me encarregar,, perguntou o agente.

— Sim, senhor, respondeu a jovem; pediu-me um mês, e o trigésimo dia expirou ontem...

— Por isso a esperava, senhora, e se não viesse esta manhã, julgar-me-ia obrigado a apresentar-me de tarde em sua casa...

— Tem alguma boa notícia a dar? Foi mais hábil ou mais feliz do que a polícia, que vai para quatro anos não pode descobrir onde o tenente demissionário, Marcel Laugier, oculta o filho que me roubou?...

Malpertuis abanou a cabeça.

—Infelizmente! não, senhora Marquesa, ainda não... murmurou ele com uma humildade fingida.

— O quê! exclamou Lazarine num tom em que a admiração se confundia com o despeito, pois não encontraram nada?...

— Nada... Os nossos agentes de Paris, — e são numerosos! — têm revolvido a grande cidade mas debalde; os nossos agentes da província não têm tirado melhor resultado... Quanto aos nossos correspondentes do estrangeiro, apesar da sua atividade, do seu zelo e da sua inteligência, não tem podido ministrar-nos nenhuma informação.

É um cheque completo, visto isso!

— Até nova ordem, decerto, sou obrigado a convir; mas não me envergonho deste contratempo... O meu grande erro foi querer terminar num mês uma empresa em que a polícia oficial nada consegue há quatro anos... Demais, a última palavra ainda não foi proferida... Ontem ainda mandei para toda a parte novas instruções e espero mais que nunca...

— Em que se f ia?...

— Num feliz acaso, numa circunstância inesperada que se pode apresentar de um momento para o outro. Os melhores polícias do mundo devem as três quartas partes dos seus triunfos ao acaso que os serve num dado momento... Fique certa de que o ex-tenente Marcel Laugier não está na França... Uma queixa apresentada pela senhora sujeitá-lo-ia ao juízo de um tribunal... Isto importa para ele uma condenação a trabalhos forçados...; vive no estrangeiro sob um nome suposto; é por isso que momentaneamente não se lhe pode deitar a mão...

— Ora! volveu a Marquesa com impaciência, muda-se o nome, não se muda o rosto. Eu dei-lhe uma fotografia do tenente...

— Que eu fiz reproduzir em grande número pelo meu fotógrafo... Todos os meus agentes estão munidos dela... Todos os meus correspondentes têm um exemplar em seu poder... Devemos conseguir e conseguiremos, tenho a convicção absoluta disso... É negócio de tempo...

Lazarine bateu com o pé no chão.

— E durante esse tempo, ao qual o senhor não designa limites, eu conservo-me escrava! exclamou ela. Investida pela lei e pela vontade do falecido Marquês de La Tour-du-Roy, da tutela do meu filho, administro os bens cujo usufruto me pertence até a maioridade desse filho se ele viver, e de quem herdo se morrer...; não posso, portanto, nada empreender ,nada decidir, nada concluir sem saber se a criança existe...; não posso tomar nenhuma determinação e tenho necessidade de ser livre.

— Senhora Marquesa, exclamou Malpertuis com uma voz insinuante. fez-me a honra de me conceder a sua confiança; e não se arrependerá... Compreendi que um segredo muito grave, cuja natureza não me é muito difícil adivinhar, existe, ou pelo menos existia entre a senhora e o tenente Marcel Laugier... Eu sei já muitas coisas, mas tenho necessidade de saber ainda mais para lhe poder dar certos conselhos úteis... Permita-me que lhe faça ainda algumas perguntas?...

— De certo, apenas me reservo o direito de não responder se elas me parecerem indiscretas, e não seguir qualquer conselho sem conhecimento de causa...

O agente inclinou-se.

— É muito justo! Replicou ele sorrindo, mas não tenha receio! serei discreto... Qual é a sua fortuna pessoal, senhora Marquesa?

— Um milhão, que me foi designado como dote no meu contrato de casamento.

— Que fortuna possuía o senhor Marquês?

— Seis milhões, o mínimo.

— Nas suas disposições testamentárias, o senhor Marquês designou à senhora Marquesa a propriedade de alguns desses milhões?

— Não!... Tutora, devo dispor do total dos rendimentos até o dia da maioridade de meu filho, repito... Chegado que seja esse dia, apenas conservarei um terço dos rendimentos.

— Nenhuma outra liberalidade?

— Nenhuma.

— Atualmente, em quem tem à sua disposição o mais amplo uso-fruto, a senhora Marquesa faz economias?

— Não me é possível. A minha casa é importante, e tenho o orgulho de sustentar a minha posição.

— Portanto, quando esse usufruto for reduzido a dois terços, a senhora Marquesa ficará vivendo com dificuldade...

— Mais do que isso, ficarei na miséria.

— Miséria um pouco dourada, há de convir...

— Miséria absoluta, em vista dos meus hábitos e das minhas tendências...

— É verdade, senhora Marquesa, ponderou Malpertuis com uma convicção aparente e num tom comovido, é verdade que a sua situação é desagradável sob muitos pontos de vista... Impõe-lhe uma circunspeção que não está no caráter da senhora Marquesa... Obriga-a a cálculos que não são da sua idade... Impõe-lhe uma responsabilidade pesada, em proveito de uma criança que lhe foi roubada, que é criada longe da senhora Marquesa, que se acostuma de certo a odiar sua mãe, e que só tornará a aparecer para lhe exigir contas e despojá-la. De tudo isto resultam embaraços tanto mais inoportunos quanto a senhora Marquesa tem necessidade de se ver livre e isenta de todas as preocupações, no momento em que um casamento principesco pode modificar o seu futuro.

Lazarine estremeceu, um assombro que não era fingido manifestou-se-lhe no rosto.

— O quê! exclamou; sabe?...

— Que a sua união com o príncipe Emanuel de Brada é possível, é provável? Sim, senhora...

— Mas quem disse? Malpertuis pôs-se a rir.

— Como, senhora Marquesa, replicou o agente, dirige-se a mim persuadida de que eu sou o homem mais hem informado de Paris, e quer que eu ignore uma matéria desta importância!

— Pois ninguém a conhece, nem as pessoas da minha intimidade, e esse casamento está resolvido há três dias, o muito...

— Pois, como vê, foi quanto bastou para eu estar informado.

— Vejo e não compreendo... Mas aonde quer chegar?

— A que a senhora Marquesa não quer passar além, sem saber se seu filho está vivo ou morto, porque, se ele caísse morto, resta uma arma contra a senhora nas mãos de Marcel Laugier, de quem a senhora Marquesa tem medo e que pode promover um escândalo.

— Um escândalo? repetiu a Marquesa. Mas como? Se ele se atrevesse a aparecer, ficaria perdido!

— Com a mão na consciência, senhora Marquesa, julga que ele seja homem para recuar diante do perigo quando instigado por qualquer interesse de ódio ou de vingança?

Lazarine refletiu durante um segundo e respondeu:

— Não, não, creio. Ardor de ódio ou sede de vingança torná-lo-iam capaz de todas as imprudências, de todas as loucuras... Era capaz de se deitar a perder sem hesitar, se tanto fosse preciso para me arrastar ao abismo...

Após um momento de silêncio acrescentou com voz abafada:

— Ah! como eu pagaria por bom preço a notícia da sua morte!...

— Há outra notícia que a havia de interessar ainda mais, volveu Malpertuis, e que, por conseguinte, a senhora Marquesa poderia pagar mais caro ainda.

Madame de La Tour-du-Roy deitou-lhe um olhar interrogador.

— A da morte de seu filho... prosseguiu ele no tom mais sereno. Lazarine sentiu um calafrio passar-lhe pelas carnes.

— Ah! exclamou, o senhor sabe alguma coisa a respeito de Marcel Laugier e de meu filho, e quer vender as suas informações pelo que entende que elas valem... Bem! estabeleça o seu preço... não regatearei...

— Nada sei, senhora, replicou o agente; mas repito-lhe, não suspenderei as minhas pesquisas enquanto não tiver conseguido o meu fim... A vida de uma criança é frágil. A morte de seu filho dar-lhe-á seis milhões e despedaçaria nas mãos de Marcel Laugier a arma que a assusta, senhora Marquesa... A quem lhe apresentasse a certidão da morte de Raul de La Tour-du-Roy poderia sem pena abandonar uma boa parte da herança...

A Marquesa levantou-se.

— Senhor Malpertuis, disse a Marquesa, ponhamos as cartas na mesa... Sim, o senhor adivinhou, quero a todo o custo a liberdade e a fortuna... a todo o custo, entende-me bem? Em outros tempos arranjei a Marcel Laugier um duelo em que ele devia sucumbir... ele bem o sabe... Ateei com as minhas próprias mãos um incêndio para o queimar vivo e ele bem o sabe!... Odeio-o, odeio a criança que me deve enriquecer e cujo nascimento inútil iludiu os meus cálculos e arruinou as minhas esperanças... Daria quinhentos mil francos pela prova da morte de Marcel Laugier... Daria um milhão pela certidão da morte da criança.

Um clarão de cobiça brilhou sob as pálpebras frouxas do agente.

— Um milhão e quinhentos mil francos ao todo... observou ele.

— Sim.

— E a senhora não se desdiria?

— Não, juro!

— Assiná-lo-ia?

— Sim... Estou pronta a assinar... Fale pois e apresse-se!... Estou sobre brasas, bem vê...

— Senhora Marquesa, repito-lhe que não sei nada ainda, mas tenho um pressentimento de que bem depressa...

— O que quer dizer que antes de falar, o senhor exige que eu me obrigue, não é verdade?

— Tenho a honra de observar à senhora Marquesa que a proposta partiu da senhora e eu nada pedi...

— É justo... eu ofereci... Bem, redija quanto antes a obrigação que eu assino.

— É indispensável que esta obrigação, ou melhor dizendo, estas obrigações, sejam escritas pelo próprio punho da senhora Marquesa.

— Bem... escreverei.

— Aqui estão duas folhas de papel selado. Tome o meu lugar, senhora Marquesa. Estará aí mais à vontade.

Lazarine, dominada por uma agitação febril, instalou-se numa poltrona que o agente acabava de deixar, molhou uma pena em tinta e disse:

— Espero...

— É muito simples, e não leva muito tempo. Malpertuis ditou:

"Eu abaixo assinada, Marquesa de La Tour-du-Roy, prometo pagar a Frederico João Malpertuis, antigo procurador, a soma de quinhentos mil francos por despesas, adiantamentos, diligências de toda a espécie, e remuneração legítima dos seus trabalhos e incômodos, dentro de quarenta e oito horas, depois do dia em que ele me trouxer a prova da morte de Marcel Laugier, oficial demissionário."

— Mais nada?

— Nada mais. Date e assine.

— Pronto. Agora?

— A redação do segundo documento vai diferir um pouco da do primeiro, mas não lhe levará mais tempo.

E o agente tornou a ditar:

"Eu abaixo assinada, Marquesa dela Tour-du-Roy, prometo pagar ao senhor Frederico João Malpertuis, antigo procurador, a soma de um milhão de francos por despesas, adiantamentos, diligências de toda a espécie, e remuneração legítima dos seus trabalhos e incômodos, dentro dos quinze dias que se seguirem àquele em que eu for empossada da herança de meu filho Raul Henrique Roberto de La Tour-du-Roy."

Lazarine escrevera, datara e assinara.

— Pode falar agora, dissera-lhe ela apresentando a Malpertuis os papéis selados. Tenho que lhe pagar já as duas quantias, ou somente uma?

— Não, minha senhora, ainda não; mas não duvidará agora do meu zelo, porque a minha fortuna depende do êxito.

— A minha assinatura na parte inferior destas obrigações não poderá comprometer?

— De modo nenhum. Em primeiro lugar não lhe serão apresentados senão à senhora, e em segundo lugar o seu teor nada apresenta de ilegal... O juiz de instrução mais meticuloso nada acharia que lhe dizer. Não se trata agora de suprimir uma criança e um homem, (porque um tal gênero de operações não é da minha especialidade), mas abrir um inquérito e obter informações. Ora na época em que vivemos, as informações estão acima de todo o preço...

— O que sucederá se não se sair bem?

— Restituir-lhe-ei estes papéis inúteis, e reclamar-lhe-ei simplesmente os meus honorários, cuja cifra será modesta. Saindo-me mal. não poderei ser exigente.

— Que tempo lhe é preciso para se por em campo?

— Um mês, senhora Marquesa.

— Bem, dentro de um mês voltarei aqui.

— Terei a honra de a esperar, e conto com a extrema alegria de lhe dar boas notícias.

Lazarine já se levantara.

Deixou cair outra vez o véu que lhe ocultava o rosto.

 

NOVA INTRIGA

Bateram de manso à porta do gabinete.

Maupertuis carregou no botão de uma campainha elétrica, dando assim ordem de entrar.

A porta abriu-se, e o contínuo do escritório apareceu com um bilhete na mão.

O agente pegou no bilhete.

— Acompanhe essa senhora, e volte, disse em seguida.

A Marquesa de La Tour-du-Roy saiu do gabinete, depois de haver respondido com uma ligeira inclinação de cabeça ao cumprimento de Malpertuis.

O agente depois de se fechar a porta, aproximou-se da papeleira na qual descobrira uma abertura, e dirigindo-se ao seu ouvinte invisível, perguntou:

— Ouviste?

— Sim, respondeu uma voz. Obra limpa, colega! Daqui a pouco conversaremos. Quem vais receber?

Malpertuis deitou um olhar para o bilhete e leu em voz alta:

— O Conde de Vergis.

— O Conde de Vergis! repetiu a voz em tom de surpresa; que demônio vem ele fazer aqui?

— Em cinco minutos o saberemos.

— Não abandono o meu posto.

Um toque de campainha chamou o contínuo do escritório.

— Miguel, perguntou o agente, há muitos clientes na antecâmara?

— Só dois, o sujeito de quem o senhor tem o bilhete, e o senhor Fernando Volnay, o ator do teatro Belleville, para quem ontem à noite eu deitei no correio a carta que o senhor escreveu depois de fechados os escritórios.

— Ah! ah! está aí esse rapazola, esse D. João dos arrabaldes, esse Melingue do futuro! Que espere.

— Manda entrar o senhor Conde Vergis.

— Sim, senhor. Miguel ia sair.

Parou.

— Esquecia-me uma coisa, disse. — O que?

— O senhor Stanislau Picolet regressou das suas voltas e tem muita precisão de falar com o senhor.

— Mais tarde. Quando puder ouvi-lo, prevenirei.

O empregado retirou-se.

 

— Quem é esse Fernando Volnay, do teatro Belleville? perguntou a voz oculta.

— É o homem das duas letras. O negócio do nosso correspondente de Marselha.

— Bem, aí vou.

— O que se deverá fazer dele?

— Assustá-lo. Vendo-se num in pace achará de certo meio de se desentalar.

A porta abriu-se.

A voz calou-se.

Um personagem de uns sessenta e cinco anos foi introduzido por Miguel.

O recém-chegado, cavalheiro da cabeça aos pés, e com a roseta da Legião de Honra, era alto e delgado, elegante, sem afetação, e parecia apesar da idade, mais fresco que muitos rapazes.

Uns cabelos brancos de neve, espessos e cortados rente, coroavam um rosto de olhos vivos, de feições corretas e simpáticas, emolduradas por uma barba grisalha.

A sua fisionomia respirava inteligência e lealdade.

Reconhecia-se logo o cavalheiro de boa raça e digno dela.

Malpertuis inclinou-se diante do recém-chegado.

— É com senhor Conde de Vergis que tenho a honra de falar?

— Sim, senhor. Se não me engano, estou falando com o senhor Malpertuis?

— Em pessoa. Queira sentar-se. O Conde sentou-se.

Parecia embaraçado.

Corava e empalidecia alternadamente. Era fora de dúvida que se travava dentro dele uma grande luta.

O agente olhava para ele atentamente, esperava que se explicasse, e não dizia palavra.

O senhor de Vergis, triunfando finalmente da sua timidez, tomou a palavra.

— Venho ter com o senhor para negócio muito particular, principiou.

— Talvez colocação de fundos? perguntou.

— Não, senhor.

— Informações sobre alguma sociedade industrial que se está formando?

— Também não.

— Faça-me, pois, senhor Conde, a honra de se explicar, e creia que seja qual for o negócio de que me venha falar, estou absolutamente às suas ordens.

O seu embaraço aumentava.

Uma ardente vermelhidão invadia-lhe a fronte e as faces, mas. No fim de dois ou três segundos, dominou por segunda vez a perturbação que se apoderava dele, e principiou com uma voz trêmula, que não tardou que se tornasse firme.

— Não é uma questão de interesse que me traz aqui. Tenho» muitas vezes ouvido falar do senhor... da sua agência.

— Escritório, retificou Malpertuis.

— Afirmaram-me que o seu maquinismo funcionava de um modo excepcional.

O diretor inclinou-se com fingida modéstia.

— Opinião muito benévola, murmurou. Aceito-a, contudo, na esperança de me tornar digno dela. Doutor em direito, antigo empregado de um advogado, parece-me conhecer o fraco e o forte da nossa legislação. São-me familiares todos os segredos da chicana... Sou. perito em desembrulhar os mais inextricáveis fios. Gabo-me de haver feito ganhar muitos processos considerados como perdidos.

— Não se trata de processos, interrompeu o conde, e a legislação nada tem que ver com o motivo da minha visita.

— Mais uma vez peço tenha a bondade de mo dizer, voltou Malpertuis muito intrigado.

— Sei que se pode contar com a sua discrição.

— Tanto mais que uma simples imprudência, bastaria para desacreditar o meu estabelecimento.

— Dispõe, pelo menos assim se afirma, de uma polícia secreta, tão bem, se não melhor organizada que a da Prefeitura...

— Dispondo de agentes hábeis e delicados a quem pago muito' bem, que me obedecem cegamente, e por quem respondo como por mim mesmo.

— Quando põe em campo essa gente, é que tem certeza de que obtém resultado?

— Até a certeza absoluta. Nunca errei nos meus cálculos. Um grande conhecimento do que se chama os bastidores do mundo, habilitam-se a dirigir uma matilha, e a perseguir perfeitamente a. caça. Vem pedir-me alguma coisa nesse gênero?

— Venho pedir-lhe a explicação de um enigma.

— Sob que forma se apresenta o enigma?

— Sob a de uma carta anônima...

— Ah! exclamou Malpertuis, a causa dos miseráveis que querem insultar, mas não ousam fazê-lo de rosto descoberto. O envenenamento moral, à distância, com a impunidade provável! O autor de uma carta anônima é o mais cobarde dos criminosos. É preciso abandoná-lo ao desprezo que merece, e calcar aos pés as suas delações, quase sempre caluniosas...

— Diz-se isso, replicou o Conde, mas apesar de tudo quer-se indagar a verdade. A gota de veneno derramada na cabeça ou no coração corrói e queima. Não se acredita, mas fica-se na dúvida, e a dúvida é um suplício que faz da vida um inferno. Mais vale a. certeza.

— Tem razão, senhor Conde. Vejamos essa carta.

O senhor de Vergis tirou da carteira uma folha de papel azulado, dobrada em quatro.

Deu-a ao homem de negócios, que a desdobrou e leu em voz alta as seguintes frases melodramáticas:

"Senhor Conde:

"O seu nome, o grande nome dos seus antepassados, conservara-se puro até hoje.

"A traição de uma mulher bastaria para lançar no brasão dos Vergis a mancha indelével do ridículo e da vergonha...

"A sua honra está em perigo, senhor Conde... A bom entender...

"Vele!

"Um amigo."

 

— A mancha indelével do ridículo e da vergonha! repetiu o senhor de Vergis, com o rosto contraído e os olhos fulgurantes. Leu bem... Está escrito! Compreende?

— Começo a compreender... Mas para compreender completamente tenho precisão de alguns esclarecimentos.

— Interrogue-me... disse o visitante com uma voz abafada.

— O senhor é casado, vê-se por essa carta anônima.

— Sim, senhor.

— Que idade tem a senhora Condessa?

— Vinte e dois anos, e eu tenho sessenta e cinco. É portanto minha mulher quem acusam... a evidência impõe-se.

— Ora! uma carta anônima não é um acusador sério. Sob isso pode ocultar-se um pensamento odiento contra o senhor.

— Não conheço inimigos, interrompeu o Conde.

— Ou da vingança contra a senhora Condessa... continuou Malpertuis.

— Contra a Condessa?

— Já se vê.

— Por que motivo?

— Por causa de alguma ferida no amor próprio de algum adorador desprezado. Tenho conhecido certos velhacos que não perdoavam a uma mulher os seus desdéns, e cujo amor se transformava em ódio.

— Sim, murmurou o conde, pode ser isso. A senhora de Vergis era pobre, órfã. Amei-a, ofereci-lhe um belo nome, uma grande fortuna, uma posição importante. Aceitou sem constrangimento. Apesar da diferença de idade, tomou-me por marido de muito boa vontade. É impossível desconfiar dela. Sei... tenho a certeza... Ia jurar, por Deus, pela minha honra, que eu tenho em mais conta do que a própria vida!

— Ama a senhora Condessa? perguntou Malpertuis.

— Adoro-a! e ela merece-o. É um anjo! O covarde que me escreveu esta carta deve ter feito a corte a Maria, e desdenhosamente repelida por ela, procurou lançar no meu coração o germe da desconfiança! O miserável quer vingar-se de uma mulher honesta, empeçonhando a velhice de um homem de bem. É monstruoso! Mas sai-se de um modo desgraçado. Não acredito na acusação. Maria é pura. Não ama senão a mim. ü pensamento do adultério nunca lhe perpassou pelo espírito. Desconfiar dela seria odioso... Não desconfio... tenho fé.

Dizendo isto o senhor de Vergis levantara-se.

Deu alguns passos pelo gabinete.

Os seus lábios repetiam maquinai, quase automaticamente:

— Não desconfio... não desconfio.

De repente deixou-se cair numa cadeira, ocultou o rosto lívido nas mãos contraídas e balbuciou:

— Sim, é verdade, não desconfio, mas tenho medo... tenho medo!...

Incomodava ver o fidalgo.

As mãos tremiam-lhe, agitavam-lhe os ombros grandes sobressaltos, tinha na cabeça um vulcão.

Depois de haver respeitado durante um instante o doloroso silêncio do seu novo cliente, Malpertuis aventurou estas palavras:

— Não me parece que o senhor Conde tenha revelado esta carta a senhora Condessa?

O senhor de Vergis levantou a cabeça com vivacidade.

— Mostrar-lhe que a acusam, exclamou, deixar-lhe ver um segundo que fosse que suspeito dela. Ah! nunca! nunca!

— O senhor Conde permite-me que lhe diga humildemente a minha opinião? perguntou o agente olhando fito para o seu interlocutor.

— Permito-lhe e peço-lhe...

— Bem! desista de todo o projeto de investigação a respeito de uma falta que não deve existir, que não existe. Rasgue essa carta e esqueça o seu conteúdo.

Na verdade o senhor Malpertuis era um homem hábil, sabia bem do seu ofício, e melhor que ninguém tinha artes para atingir o seu fim por caminhos desviados.

O Conde de Vergis estremeceu escutando-o, e exclamou:

— Rasgar essa carta!

— Por certo.

— Esquecer o seu conteúdo!

— É o mais prudente.

— Mas não pense nisso!

— Penso muito bem, pelo contrário, não hesito em dar-lhe um conselho absolutamente contrário aos interesses do meu escritório.

— Reconheço o seu desinteresse, e aprecio-o, mas esse conselho é insensato!

— Por que, se me, faz favor.

— Porque não tenho direito de deixar impune o crime, seja ele qual for! O meu dever é castigar o adultério ou a calúnia! Creio a Condessa inocente, repito-lhe, mas quero saber dia a dia, hora a hora, o que faz da liberdade ilimitada que lhe dou. Quero ter a certeza de que não sou vítima... Depois que recebi essa carta maldita, preocupa-me uma idéia fixa, a febre escalda-me, a cabeça desvaira-me. Se um tal estado de agonia se prolongasse, endoidecia. Recuso abaixar-me até à espionagem, e demais espionaria mal, porque a dissimulação causa-me horror. É preciso pois que outros espionem em meu lugar, é preciso que agentes sutis se encarreguem ,da causa da minha honra ameaçada. Venho rogar-lhe que me forneça agentes e pessoalmente os dirija. Está por isto?

 

CONTINUAÇÃO

Não faremos por certo pasmar o leitor, dizendo-lhe que a resolução do agente estava de antemão tomada.

Pareceu, contudo, refletir antes de responder.

— Farei o que deseja, apesar de ser delicada a tarefa, respondeu finalmente. Estou convencido de que havemos de obter a prova de que a senhora de Vergis é digna de todo o seu respeito, e de todo o seu amor, e de que lhe entregarei o desprezível autor da carta anônima que tão infeliz o torna.

— Alcance esse resultado, exclamou o conde, e o meu reconhecimento...

— Não me deverá nenhum, interrompeu Malpertuis, os inquéritos do gênero de que se trata são uma das especialidades da agência, e os seus incômodos e diligências têm uma remuneração.

— Boa remuneração, prometo-lhe. Parece-me que é inútil recomendar-lhe a maior circunscrição...

— Absolutamente inútil. Tenho a honra de lhe repetir que deposito toda a confiança nas pessoas que emprego. Falta-me dirigir-lhe algumas novas perguntas, e tomar notas indispensáveis. Isto levara pouco tempo. Recebe uma grande roda?

— Muito grande.

— Como me disse, a senhora Condessa goza de uma grande liberdade?

— Sem limites, como era, como é ainda, a minha confiança nela. Sabe talvez que me ocupo em trabalhos científicos?

— Ninguém o ignora. Tornaram célebre o seu nome.

— Esses trabalhos absorvem-me muito... Uma parte da minha existência passa-se no meu gabinete... Não podia condenar numa mulher nova a partilhar o meu voluntário seqüestro... Dei por isso à senhora de Vergis uma completa liberdade de ação. Uma independência tão ilimitada devia ser, na minha opinião, uma garantia de fidelidade.

Uma índole franca e leal revolta-se com razão contra a suspeita injusta e por isso mesmo injuriosa, e causa-lhe horror a de covarde atraiçoar a confiança que inspira.

Queria que a minha mulher fosse feliz, e nunca se arrependesse de me haver esposado, apesar da minha idade. Amo-a tanto! Ah! seu soubesse como a amo!

O Conde de Vergis, proferindo estas palavras, levou disfarçadamente a mão aos olhos para limpar uma lágrima furtiva.

Malpertuis continuou:

— Dá soirées e bailes?

— Sim, senhor, no inverno.

— No verão, que faz?

— Quando não viajo, vamos passar alguns meses no Loiret, no meu palácio de Epines Blanches, situado entre Orleans e as propriedades da senhora Marquesa de La Tour-du-Roy!

— Ah! disse Malpertuis num tom indiferente. Conhece a senhora de La Tour-du-Roy?

— Temos essa honra; mas porque me faz uma tal pergunta?

— É puramente acidental. Tive ocasião de me ocupar dos negócios do seu defunto marido. Deixa-me continuar. Recebe no seu castelo do Loiret?

— Os nossos amigos mais íntimos, e os nossos vizinhos de campo.

— Muitos rapazes?

— Alguns.

— Se não me engano, disse-me que a senhora Condessa era bonita?

— Mais que bonita, é adorável.

— O senhor conde conhece muito bem o mundo, para não saber que uma mulher adorável tem adoradores, por muito bem estabelecida que seja a sua reputação de virtude. Falo, bem entendido, de adoradores platônicos...

— Fazem à Condessa, como a toda a gente, uma corte discreta e respeitosa, contra a qual um marido não tem direito de se formalizar...

— Entre esses cortesãos discretos e respeitosos, não há algum que se mostre mais discreto do que os outros?

— Não tenho observado coisa que se pareça com isso. A senhora de Vergis é alegre e viva, mas não leviana. Não admitiria assiduidades muito significativas.

— Mas a quem atribuir a carta anônima, senão a algum namorado mal recebido?

— Não sei, e debalde procuro. — A senhora é religiosa?

— Sim, mas sem ostentação.

— Que prazeres prefere?

— A dança, o teatro, a equitação.

— Monta a cavalo?

— Quase todos os dias.

— O senhor acompanha-a?

— Raras vezes.

— Na sua ausência, a quem incumbe a vigilância da senhora condessa nos seus passeios?

— Em primeiro lugar, a Jacques Sureau, antigo educador de cavalos, para corridas, antigo picador do Duque de la R., e muito bom cavaleiro. Deposito nele a maior confiança.

— Quando viaja, leva consigo a senhora Condessa?

— Habitualmente não a levo.

— Por que?

— As minhas excursões são geralmente feitas com fins científicos, e seriam portanto enfadonhas e fatigantes para uma mulher.

— E a senhora de Vergis, nessas ocasiões, fica em Paris ou no campo?

— Sim, senhor.

— A que época remonta a sua última ausência?

— A uns seis meses atrás... Regressei há dois meses.

— É tudo quanto queria saber. Peço-lhe me deixe o bilhete anônimo... tenho precisão de estudar a letra.

— Eis a infame carta... Uma coisa me preocupa, senhor. — O que?

— Os homens de que se serve, hão de ter precisão de entrar em minha casa.

Malpertuis abanou a cabeça e respondeu:

— De modo algum. Os meus agentes hão de ficar desconhecidos mesmo para o senhor Conde.

— Mesmo para mim! repetiu o conde estupefato.

— E isto deve dar-lhe idéia do misterioso impenetrável que há de rodear os seus passos.

— Queira agora dizer-me qual a cifra dos seus honorários.

— O senhor Conde a fixará depois do êxito.

— Mas o senhor tem de fazer adiantamentos?

— De certo.

— Quero já pagar, pelo menos as primeiras despesas.

— Como lhe aprouver.

— O senhor de Vergis tirou da algibeira um certo número de notas de banco, que pôs em cima da mesa do escritório, dizendo:

— Isto é um adiantamento. Quando quiser dinheiro, bastará sacar sobre mim á vista. As suas letras serão bem recebidas.

Malpertuis inclinou-se, meteu as notas numa gaveta sem as contar, e perguntou:

— O senhor Conde quer um recibo?

— É escusado...

— Outra coisa... Tenho precisão do endereço do senhor Conde, e o cartão que há pouco recebi não faz menção da morada.

— Avenida de Villars, n.° ***

O agente tomou apontamento e levantou-se.

— Quando principia? Continuou então o senhor de Vergis.

— Amanhã, ou talvez ainda hoje... Nada vai ser desprezado.-. creia, para chegar ao fim do mais breve prazo.

— Conto com isso...

Malpertuis tocou a campainha, e o rapaz reconduziu o visitante. Mal acabava a porta do gabinete de se fechar, trabalhou novamente o fonógrafo.

Ouviram-se estas palavras:

— Mande depressa embora o ator de Belleville, e saiba o que Estanislau Picolet trás de interessante.

— Temos que conversar seriamente.

— A que respeito? perguntou o diretor do escritório aproximando-se da abertura.

— A respeito de diversas coisas importantes e urgentes.

— Bem!

Fernando Volnay, o futuro Melingue, foi introduzido sem demora,

Era um belíssimo rapaz de vinte e três ou vinte e quatro anos, que reunia às graças do Baccho Indiano a musculatura do Hercules Farnesio.

Estatura mais que mediana, tinha uma cor de bronzeado claro como a de um mestiço, uma espessa cabeleira de um negro azulado, anelada naturalmente, uns olhos negros, e antes joviais que trágicos sob sobrancelhas bem arqueadas; uma boca encantadora, sombreada por um bigode fino, negro, luzidio, e que, sorrindo, mostrava duas fileiras de dentes deslumbrantes, tal era o tipo do nosso ator.

Fernando Volnay estava vestido, calçado e enluvado com irrepreensível elegância.

Nunca houve elegante mais correto na sua apresentação, e contudo o que quer que fosse de indefinível nos seus modos, e no caráter da sua beleza, denunciava o artista boêmio, o engodo das freqüentadoras das frisas, o oráculo do botequim, e não permitia tomá-lo por um cavalheiro.

Na véspera, à noite, Fernando Volnay recebera no teatro uma carta muito concisa, em que lhe rogavam que no dia seguinte aparecesse no escritório Malpertuis para negócio do seu interesse.

ü mancebo, muito intrigado, cogitava debalde qual seria o fim daquele convite, ao qual teve o cuidado de não faltar, como se acabava de ver, e a curiosidade atingia nele o seu paroxismo no momento em que chegou à rua da Victoria.

Miguel introduziu-o no gabinete, cujo limiar transpôs com uma desenvoltura estudada e garridices de comediante.

Malpertuis não era falto de perspicácia, e além disso era observador.

Bastou-lhe um lance de vista para avaliar o personagem.

— Soberbo rapazola, pensou, e homem querido das damas. Este sujeito é enfatuado e deve sem escrúpulo recorrer à bolsa das amantes.

Após estas breves reflexões, mediu-o de alto a baixo com um ar profundamente desdenhoso, e disse-lhe com voz breve e tom seco:

— O senhor chama-se Fernando Volnay?

A rudeza, para não dizer a malevolência evidente deste acolhimento, perturbou o comediante, apesar dele mostrar na prática da vida um aprumo a toda a prova.

Foi por isso quase timidamente que respondeu:

— Sim, senhor... Fernando... primeiro galã no teatro de Belleville.

Malpertuis, indicando uma cadeira, tornou brutalmente:

— Pode sentar-se.

Fernando sentia-se cada vez menos à vontade.

Porque era aquele tom áspera e a cara insolente do homem de negócios?

Para que era aquela atitude agressiva que devia ser o presságio de algum contratempo?

Os numerosos pecadilhos que alastravam o passado de Fernando Volnay deixavam o campo livre a conjeturas.

O ator dissimulou o melhor que pode a sua inquietação, e com o seu chapéu de seda novinho em folha na mão, e a sua bengala de castão de prata dourada — uma dádiva de amor — deixou-se cair numa cadeira; depois sem ter sequer consciência disso, tomou uma atitude cínica.

Malpertuis não olhava e folheava um maço.

— Finalmente, senhor, principiou Fernando Volnay, que, julgava comprometida a sua dignidade, estou surpreendido...

O agente, levantando a cabeça, interrompeu-o por estas palavras:

— Há quanto tempo está o senhor no teatro de Belleville?

— Há dois meses, respondeu Fernando.

— Donde vem?

— De fazer uma digressão na província com uma companhia que representava Ruy Blas. Enquanto espero uma escritura no teatro de Paris, escritura que não deve tardar, represento em Belleville.

— Representou em Marselha durante dois anos?

Por natural que esta pergunta parecesse, Fernando que de certo não a esperava, estremeceu.

Sob o tom bronze claro, a epiderme do seu rosto empalideceu.

Mas o jovem estróina não ficava menos perfeitamente senhor de si.

Bom ator no teatro, era-o também fora dele.

— Em Marselha? repetiu com aprumo. Nunca, Senhor, nunca!

Malpertuis fitou-o.

Fernando suportou aquele olhar sem se perturbar.

Nos grossos lábios do agente esboçou-se um sorriso de singular expressão.

— Não me enganaram, disse ele. É de uma grande farça! Mas aqui, querido senhor, a farça não serve de nada... Neste estabelecimento não se representa. Somos pessoas muito sérias que não se governam com visagens. Convido-o pois a suprimir as suas.

O primeiro galã bem desconfiava de que andava mouro na costa, mas não sabia que qualidade de mouro era.

Julgou portanto oportuno tomar uns ares de dignidade ofendida, e respondeu:

— Se eu tivesse podido prever este desagradável acolhimento, não seria eu que viria ao seu chamamento. Há entre nós um mal entendido, com certeza... Estais enganado com o meu nome, e não sabe com quem fala.

— Comédia! sempre comédia! repetiu ele friamente. Não há o menor equivoco, e sei que falo ao senhor Júlio Marly.

 

O COMEDIANTE

O comediante tornou a estremecer, e desta vez por um modo bem visível.

— Júlio Marly, balbuciou para ter tempo de procurar resposta.

— Sim, tornou Malpertuis. Não negará, suponho, que usou deste pseudônimo no teatro Valete, onde, durante dois anos, desempenhou o papel de primeiro galã. Não negará tampouco que deixou repentinamente Marselha deixando aí muitos logrados, e várias dívidas, algumas das quais são de natureza e levaram-no muito longe.

Fernando Volnay compreendeu.

De pálido que estava, tornou-se lívido.

O agente continuou:

— Portanto, deixemo-nos de comédias, de mentiras escusadas! Fugindo de Marselha, — porque a sua retirada clandestina não foi mais que uma fuga, — achou cômodo mudar de nome, esperando por este modo pôr-se a salvo de perseguições. Estou ou não exatamente informado?

O futuro Melingue já nem procurava fazer boa cara.

Agitava-lhe as narinas um tremor nervoso.

Na raiz dos cabelos negros borbulhavam-lhe gotas de suor.

— Concordo com isso tudo, balbuciou ele com agitação. Efetivamente deixei algumas dívidas em Marselha; mas tenho desculpa. Ia atrás do gozo, e compreendia mal a importância de certos fatos que hoje têm direito de me censurarem. Não sabe o que é a vida de teatro para um homem muito novo. Uma pessoa tem amor próprio, quer ter um guarda-roupa elegante... é obrigado a fazer despesas no café com os amigos. Vai atrás do prazer, e quando está até o pescoço, já não sabe como sair. Os meus credores acharam a minha pista, e encarregaram-no de obter o pagamento dos seus créditos. Nada mais natural e mais justo. Pagarei... em prestações, é verdade, mas pagarei... dou-lhe a minha palavra de honra.

A atitude do ator tinha-se absolutamente modificado.

A sua altivez de empréstimo fora sucedida por uma extrema baixeza.

Tinha lágrimas na voz.

Era sempre comédia, mas de um gênero muito diferente.

Depois de ter representado a dignidade ofendida, representava agora o arrependimento, prestes a desempenhar o desespero se preciso for.

Por segunda vez, Malpertuis encolheu os ombros.

— A sua palavra de honra, repetiu ele num tom desdenhoso. Quanto pode isso valer? Paga, diz o senhor.

— Sim, senhor... tudo.

— E com que? Com os seus honorários? Dez francos por dia! Bonita quantia! Com o produto dos caprichos que a sua desenvoltura de comediante desperta em roda de si? Oh! nós conhecêmo-lo, senhor Fernando Volnay, estróina de baixa esfera, recorrendo sempre a expedientes, desempenhando ao natural, cá fora, com certas garotas, um personagem que o senhor tem fingido no teatro, o personagem do homem que vive à custa da mulher.

— Senhor! exclamou Fernando Volnay, procurando reagir sob a chicotada daquela injúria.

— Ah! cale-se, interrompeu o agente, e escute-me... não foi por causa das suas dívidas que o chamei, mas a propósito de um crime que o senhor cometeu.

— Um crime! balbuciou o comediante.

— Não retiro a palavra. O senhor comprou um par de brincos a um joalheiro de Marselha, dando uma pequena prestação, e duas letras a curto prazo de quatrocentos e cinqüenta francos cada uma, assinadas por Júlio Marly. Este nome não é seu, portanto fez uma letra falsa, fraude de pouca importância, convenho, se tivesse pago no dia do vencimento, mas quando lhe quiseram apresentar as letras, o senhor tinha-se retirado sem dizer nada para onde ia, depois de ter posto os brincos no montepio e vendido a cautela. Júlio Marly voltava a ser Fernando Volnay! a intenção fraudulenta salta aos olhos,, e o senhor tem crime grave.

O galã de Belleville estava agora seriamente assustado.

— Senhor, senhor, disse pondo as mãos, não me perca! Tenha dó de mim, peço-lhe. Pois o senhor tinha a coragem de me entregar à justiça por uma loucura de mocidade que é mais uma imprudência que um crime, porque em suma o nome de Júlio Marly, considerava-o com o meu, porque o usava no teatro, e parecia-me que me podia servir dele sem grande culpa. Meu pai tinha uma reputação sem mancha, minha mãe era uma santa mulher, o senhor não há de querer manchar a sua memória, desonrar-me, destruir o meu futuro, porque eu tenho futuro, senhor, ninguém duvida disso, e muitos jornais sérios já anunciaram que eu havia de ocupar no teatro uma bela posição.

Depois de ter conquistado o meu futuro pagarei tudo, e habilitarei o meu passado. Não me leve ao desespero, de joelhos lhe peço! Se não tem misericórdia comigo, só me resta morrer, compreende! Quer condenar-me à morte?

— Muito patética e muito bem recitada essa tirada! replicou o agente com ironia. Mas tudo isso são palavras deitadas ao vento. Não sou mais que um mandatário; recebi instruções e não devo afastar-me delas. O senhor Hirsch, seu credor, deu-me ordem para cobrar a letra, ou levar o negócio para o tribunal. E é o que farei se não receber dinheiro.

— Não, senhor, não... volveu Fernando Volnay, não fará tal. Antes de me perder, hesitará. Permita-me que escreva ao senhor Hirsch.

— Para que?

— Para lhe pedir perdão

— Sei que recusará, está desesperado, tem razão de o estar.

— Bem, senhor, pagarei.

— Quando?

— Dentro de dois ou três dias, amanhã talvez..,

— Como?

— Tenho um parente... um primo, um bom rapaz, que tem algumas economias. Irei ter com ele, contar-lhe-ei tudo com toda a franqueza. Eu já lhe prestei alguns serviços, e tenho a certeza de que ele me adiantará o dinheiro necessário para me salvar. Dê-me tempo para lhe falar.

— Quimera! volveu Malpertuis. Lance tirado de um velho repertório!

— Senhor, juro-lhe que existe, e que digo a verdade. O meu primo chama-se Jacques Sureau. É o primeiro cocheiro do senhor conde de Vergis, cujo palácio é situado na avenida de Villars.

Ouvindo proferir o nome de Jacques Sureau, Malpertuis, pusera o ouvido à escuta.

— Ah! disse ele em tom menos sacudido ao ator desesperado. O seu primo pertence à casa do senhor Conde de Vergis?

— Sim, senhor. Antes de ser picador, ensinador de cavalos e cocheiro, foi escudeiro num circo. Gosta dos artistas e sempre se mostra muito amigo. Creio poder contar absolutamente com ele. Permita-me que o vá procurar.

O agente ia responder. Não teve tempo para isso.

Uma espécie de assobio abafado, saindo da papeleira, suspendeu-lhe as palavras nos lábios.

Compreendeu a significação daquele ruído inesperado, e apressou-se a responder:

— Neste momento não tomo resolução alguma. Preciso de consultar o senhor Hirsch, meu mandatário. Conceder-lhe-á ele uma moratória, ou será inflexível, é o que não sei. Hoje mesmo telegrafarei para Marselha.

— Posso em todo o caso dirigir-me ao meu primo?

— Não empreenda qualquer coisa sem me tornar a falar.

— E quando torno a falar-lhe, senhor?

— Amanhã pela manhã, aqui, às dez horas em ponto.

— Poderei pelo menos ter a esperança de...

— Nada sei, e nada mais tenho a dizer-lhe. Vá-se.

Fernando Volnay percebendo que seria baldada toda a teima, cumprimentou sem acrescentar palavra, dirigiu-se para a porta e saiu.

Malpertuis seguira-o até ao limiar da porta, e antes que esta se fechasse, chamou:

— Senhor Picolet!

Estanislau Picolet, a quem por abreviatura chamavam geralmente Sta-Pi, não se fez esperar e acudiu logo.

Este personagem, a quem mais de uma vez pusemos em cena nas nossas precedentes obras deixara e agência Roch e Fumei para entrar para o escritório Malpertuis, onde utilizavam com êxito incontestável o seu talento de polícia particular.

Era sempre o mesmo indivíduo magro e delgado, cujo rosto chupado apresentava uma expressão espirituosa, astuciosa e cínica.

Os seus cabelos sal e pimenta continuavam a desenhar sobre as fontes caracolinhos muito bem untados de pomada.

O seu bigodinho de pelos eriçados continuavam a eriçar-se debaixo do nariz arrebitado, de narinas móveis.

Sem ostentar a menor pretensão à elegância, Sta-Pi vestia-se tom mais apuro do que em outros tempos.

Entrou, trazendo na mão alguns papéis.

— O senhor fez-me a honra de chamar? perguntou curvando a magra espinha.

— Senhor Sta-Pi, volveu Malpertuis. Miguel disse-me que precisava de me falar.

— O senhor incumbira-me de uma investigação a respeito da família do duque de Chaslin,

— Já concluiu a investigação?

— Sim, senhor, e vou entregar-lhe o meu relatório.

— A fortuna chega ao que supúnhamos?

— Excede um pouco. — A quanto então?

— A nove milhões e quinhentos mil francos.

— Compreendendo nisso a fortuna pessoal da Duquesa?

— Já se vê. A senhora de Chaslin, casada sob o regime dotal, possui à sua parte dois milhões líquidos, que devem depois da sua morte, tocar aos seus dois filhos o marquês Roger de Chaslin de Kervilliers, e sua irmã a menina Helena, assim como o palácio que eles habitam, avaliado em oitocentos mil francos.

— O duque tem pois sua parte, sete milhões?

— Em números redondos. O meu relatório menciona todos os valores móveis e imóveis de que essa fortuna se compõe.

— Às mil maravilhas!

— O filho do senhor de Chaslin em seguida a um ataque cerebral e a uma violenta discussão com o pai, alistou-se por dois anos num regimento de lanceiros, onde é quartel-mestre. Dentro de alguns meses ficará livre.

— Sabia disso.

— Quanto à menina Helena, é educada em Besançon por uma das tias do lado materno, e raras vezes vem a Paris.

— As informações não nos faltavam a esse respeito. Era principalmente da fortuna que convinha indagar.

— Tratei de o fazer minuciosamente.

Sta-Pi depôs os papéis em cima da secretária de Malpertuis e perguntou:

— O senhor tem novas ordens a dar-me?

— Imediatamente não, mas não se afaste do escritório. Esta noite hei de dar-lhe que fazer de certo.

— Bem, senhor.

A conversa estava terminada.

Sta-Pi continuou porém perfilado nas suas magras pernas e nos seus amplos pés chatos, em frente da secretária do agente. Este olhou para ele com impaciência mal dissimulada.

— Tem mais alguma coisa a dizer-me? exclamou.

Sta-Pi cocou na orelha, hesitante.

— Vejamos, tornou Malpertuis, que espera? Fale. Sabe muito bem que o meu tempo é precioso.

— Senhor, atreveu-se a dizer o agente perturbado, com um ar tímido, e com uma voz que a comoção tornava um pouco trêmula, tendo hoje uma pequena conta a ajustar na tasca onde como, vejo-me embaraçado e tenho muita precisão...

— De vinte francos, não é verdade? concluiu o agente sorrindo, mau grado seu.

— Deve-se-lhe alguma coisa do seu mês?

— Ai, senhor! nem um sou!

— Bem sabe que não gosto do sistema de adiantamentos.

— Bem sei, mas a circunstância é excepcional, e afianço-lhe que tenho na verdade precisão de vinte francos.

— Ei-los.

Sta-Pi, radiante, guardou na algibeira o luiz que o patrão lhe dava, testemunhou a sua gratidão, cumprimentou e saiu.

Miguel esperava-o ao pé da porta.

— Senhor Picolet, disse-lhe, eis uma carta para o senhor.

— Uma carta para mim! repetiu o pobre diabo com admiração. Sim, palavra, e uma carta de um chic. Papel do melhor, perfumado a água de Lubin! Sinete de lacre com uma coroa! quem trouxe isto?

Um moço de recados...

— Não disse nada?

Disse que estava pago e era urgente.

— Obrigado.

 

UMA SURPRESA

O polícia fingido abriu a carta com presteza.

Continha apenas as seguintes linhas:

''O senhor Estanislau Picolet lembra-se de um nadador com quem se encontrou em pleno braço do cena, há quatro anos e meio defronte da ilha da Grande Jatte?

"Esse nadador manda os seus cumprimentos ao senhor Estanislau Picolet, e espera-o no pequeno café da rua da Victoria, n.° ***"

Sta-Pi com os olhos muito abertos, já não lia, mas olhava para o papel com um ar idiota, e invocava as suas recordações repetindo em voz baixa:

— Um nadador... em pleno rio... há quatro anos e meio... em frente da ilha da Grande Jatte... Que chalaça esta?

De repente soltou uma exclamação de alegria dando uma palmada na testa.

— Já sei... murmurou em seguida. É o antigo pintor Bégourde, a quem a agência Roch e Fumel perseguia para lhe meter não sei quantos milhões na algibeira, e que hoje é Príncipe de Castel-Vivant!... Não se esqueceu de mim! Espera-me na tasca da rua da Victoria!... Na minha tasca! que sorte!

E pondo na cabeça o seu chapéu mole um pouco deformado por um longo uso, deitou a correr como um doido pela porta fora.

Deixá-lo-emos correr à entrevista, e voltaremos ao gabinete de Malpertuis.

Este, assim que se achou só, levantou-se da sua poltrona e foi correr os fechos da porte que comunicava com os escritórios.

Deu-se então um fenômeno singular.

O móvel donde ouvimos, por mais de uma vez, sair a voz de um interlocutor invisível, girou sobre si mesmo, e descobriu uma abertura cuja existência era impossível supor.

O reposteiro de estojo espesso que fechava a abertura ergueu-se.

Apareceu um homem, e avançando no gabinete disse ao ex-advogado:

— Os meus cumprimentos, querido sócio... Estou contente contigo!

Este personagem, que se chamava, ou pelo menos se fazia chamar, barão de Fossaro, — e a quem os papéis de família davam origem genovesa, parecia ter uns quarenta anos de idade.

Era de medíocre estatura, mas bem feito.

Tinha um todo elegante e maneiras simples e distintas.

O seu cabelo espesso e frisado, tão negro como a do ator Fernando Volnay, coroava um rosto de feições acentuadas e regulares, de um tom pálido e mate.

O desenvolvimento quase anormal da fronte junta das fontes, indicava uma inteligência rara.

Os olhos muito grandes e brilhantes, apresentavam a estranha particularidade de que um deles parecia imobilizado na sua órbita, e que a direção do seu olhar nunca mudava.

César de Fossaro tinha pés e mãos de mulher, mas apesar do seu aspecto gracioso e quase delicado, gozava de um vigor muscular fora do comum.

Muito apurado na sua pessoa e no seu toilette, podia dizer-se dele que ia adiante da moda, apesar de não lhe adotar as excentricidades.

Nunca houve cavalheiro mais correto.

O barão genovês era sócio de Malpertuis, como acabamos de o saber da sua própria boca, mas sócio anônimo, sem escritura.

Nenhum dos empregados do escritório o conhecia, e, contudo, o diretor oficial nada fazia, nunca tomava determinação de alguma importância, sem o consentimento do seu altar ego.

César era a cabeça que pensa, o homem da intriga, o farejador dos negócios, o autor dos planos mais complicados e menos atrevidos, o senhor enfim, o dono absoluto.

O papel de Malpertuis limitava-se a maior parte das vezes à obediência passiva. Aceitava-a de muito boa vontade, e reconhecia tão bem a brilhante superioridade de César, que não pensava sequer em subtrair-se ao seu domínio, apesar de não o desejar.

Mais tarde saberemos de que natureza eram os laços sólidos que ligavam estes dois personagens.

O chefe incontestado da associação misteriosa não aparecia nunca no gabinete de Malpertuis, sem que previamente se tomassem todas as precauções contra todas as surpresas possíveis.

Fora do escritório, Malpertuis e César de Fossaro giravam em sociedades absolutamente diferentes, em que não tinham a menor probabilidade de se encontrarem.

O diretor ostensivo convivia com homens de negócio, personagens da bolsa, especuladores de dinheiro, industriais de reputação um pouco duvidosa, e senhoritas de terceira categoria.

O senhor de Fossaro pertencia, pelo contrário, ao que se chama o grande mundo.

Fazia parte das três sociedades bem acreditadas, em que não se admitia o primeiro que aparecesse.

Bom número de casas das mais respeitáveis do mundo aristocrático e do mundo financeiro, acolhiam-no benevolamente.

Apesar de não ser jogador, jogava como cavalheiro, e perdia quase sempre sem que o azar obstinado alterasse o seu bom humor habitual.

Tinha a sua cadeira em todas as primeiras representações dos teatros elegantes, não faltava a uma corrida, e as bonitas pequerruchas tinham-no em grande estima, porque seguia literalmente o exemplo de Júpiter em casa de Danae, de galante memória.

César de Fossaro era um homem amável, — tinha dinheiro, — ostentava um luxo em relação com o seu nome, e nada, absolutamente nada, parecia suspeito na sua existência pública ou particular.

Donde provinha e sobre que bases sólidas assentava a sua fortuna?

Ninguém se preocupava com isso.

Um belo dia, — por volta de 1871, — chegara a Paris com muitas notas de banco e cartas de recomendações para dois ou três cavalheiros da melhor sociedade.

Muito apreciado por eles, e estreando-se sob os seus auspícios, o recém-chegado tinha-se acreditado imediatamente.

Como dissemos, o Barão de Fossaro passava à grande.

Arrendara a longo prazo um palacete muito garrido na rua da Provence.

Este palacete, com "rez-de-chaussée" e um só andar, era precedido por um pátio separado da rua por um grande muro que cortava pelo meio o portão.

À direita do pátio achavam-se as cocheiras, à esquerda as cavalariças.

Um cocheiro, um groom, um criado de quarto e uma cozinheira compunham o pessoal do barão, pessoal mais que suficiente para homem só; na cocheira duas carruagens, na cavalariça três cavalos.

Os fundos do palacete eram juntos ao segundo corpo de uma casa de cinco andares da rua da Victoria.

O escritório de Malpertuis ocupava o primeiro andar deste cordo de edifício.

Os nossos leitores compreendem, ou antes adivinham, que o acaso nem por sombras presidira à instalação de Fossaro.

Concluída a instalação, uma porta secretamente aberta e habilmente dissimulada no muro de permeio pusera em comunicação o palacete e o gabinete de Malpertuis; os móveis, as campainhas elétricas e o telefone, desempenhavam, tanto de um lado como do outro, o papel que sabemos.

Isto posto, vamos novamente ter com os dois amigos.

— Os meus cumprimentos! dissera Fossaro, estou contente.

— Ouviste? perguntou o ex-solicitador.

— Sem perder uma palavra, e esta manhã aproxima-nos do fim que queremos alcançar.

— Lembras-te do que eu te predizia há oito anos quando me fazia teu sócio?

— Que em menos de dois anos seriamos muitas vezes milionários. Não é verdade?

— Exatamente.

— Não temos ainda os milhões.

— Longe disso.

— De acordo, mas há oito anos vivemos como se cada um de nós tivesse cento e cinqüenta libras de renda, o que já é uma conta bonita, e aproxima-se o momento em que possuiremos o capital destes rendimentos.

— Veremos.

— Há oito anos que ando preparando o terreno. Temos sem descanso lavrado o solo fértil, e lançamos a semente que deve dar-nos a dourada colheita. O grão está maduro, é preciso colhê-lo. Tens disso a prova, porque a colheita começou esta manhã.

— Começou? repetiu Malpertuis em tom interrogador.

— De certo, pois não temos os contratos da Marquesa de La Tour-du-Roy.

— Contratos condicionais.

— Não te inquietes, as condições serão cumpridas, respondo por isso, e as quantias prometidas darão entrada na nossa caixa. Ocupemo-nos agora de reunir certos materiais de que tenho precisão. Trata-se de proceder por ordem. Escreve o que vou ditar-te. São os totais das diversas fortunas.

Malpertuis sentou-se à sua carteira, tomou uma folha de papel em branco e molhou uma pena.

— Fossaro perguntou:

— Pronto?

— Pronto.

— Eu dito; alinha os algarismos para facilitar a soma. Dizíamos pois:

"Marquesa de La Tour-du-Roy e herança do defunto Marquês 7.000:000 francos.

"Duque de Chaslin, segundo o relatório de Sta-Pi. 7.000.000 francos.

"Príncipe Heitor de Castel-Vivant 10.000:000 francos. Quanto ao conde de Vergis, faltam-me as notas; mais tarde nos ocuparemos dele. Soma 24.000:000 francos."

— Vinte e quatro milhões, disse Malpertuis, e a essa cifra já muito redonda vou acrescentar outra não menos redonda.

— Farejas algum novo negócio?

— Sim, e talvez o melhor de todos. Recebi esta manhã uma carta do nosso correspondente de New York.

— E então?

— Essa carta informa-me que um certo Edgard Sydney, possuidor de doze milhões, acaba de morrer deixando toda a sua fortuna a uma francesa, alguma atriz que foi outrora sua amante, e de quem tivera uma filha. Essa atriz voltou a Paris. Há muito tempo de certo que ela já não pensa no seu antigo amante, e ei-la, sem o saber, herdeira de uma fortuna enorme.

César de Fossaro sorriu.

— O nome dessa atriz? perguntou.

— Amélia Gonthier.

— Amélia Gonthier! repetiu o barão. A fortuna de Edgard Sidney não lhe servirá de proveito.

— Por que?

— Morreu há oito anos.

— Tens a certeza disso?

— Toda a certeza. Conhecia-a, e os jornais tornaram a falar dela quando acabava de se finar em plena miséria.

Amélia Gonthier, outrora soberba criatura e singularmente original, fizera boa figura como comediante nas Variedades e no teatro Dejazet, e tivera fora do teatro ainda melhor fortuna como mulher bonita. Dizia-se entre o público que comia ao almoço fricassés de pérolas finas, e que dormia em lençóis de cetim negro.

— Bem, morreu, observou Malpertuis, mas o testamento de Edgard Sydney, previu o caso, e sua filha Lúcia Gonthier herda em seu lugar.

— Essa filha é viva ou morta?

— Não sei, mas sabê-lo-emos em breve.

— Em caso de morte de Lúcia Gonthier, para quem vão os milhões?

— Para os hospitais americanos.

— Muito bem, se Lúcia existe, encontrá-la-emos, e eu me encarrego dela.

— Suponhamo-la viva, e acrescenta à tua lista doze milhões, o que, se não me engano, nos dá um total de 36.000:000 francos. Que dizes a isto?

— Repito que estas riquezas não nos pertencem.

— De certo; mas aqueles que as possuem serão nossos tributários, isto é, a Marquesa de La Tour-du-Roy, o Duque de Chaslin, o Príncipe Heitor de Castel-Vivant, o Conde de Vergis, Lúcia Gonthier, deitarão, em pouco, nos nossos cofres uma parte dos seus milhões, e palavra de Fossaro. essa parte não há de ser pequena!

Dizendo isto, o Barão animara-se, e um dos seus olhos, aquele que não parecia atacado de doença crônica, lançava fulvos clarões.

— Para chegar a um tal resultado, há de ser preciso lutar muito, murmurou o ex-solicitador.

— Bem, lutaremos, per Baccho! Já tenho de antemão a certeza de vencer. Antes de dar princípio à partida, baralharei as cartas.

— Como, pelo crime?

— Não, meu caro, pelo amor. Temos mulheres no nosso jogo. Servir-me-ei delas para levar as mulheres ao ponto onde quero que elas cheguem. E se o amor as conduz ao crime, o que por minha fé é muito possível, não seremos responsáveis por isso Lavaremos daí as mãos.

— Explica-te melhor.

— Isso levaria muito tempo. Os fatos falarão em meu lugar. Voltemos à vaca fria. São completas as informações relativas à Marquesa Lazarine de La Tour-du-Roy?

— Eis os documentos, respondeu Malpertuis, pondo a mão sobre um maço bastante volumoso.

— Está aqui tudo o que diz respeito a Marcel Laugier.

— Tudo absolutamente. É mesmo verdadeiramente a parte curiosa e interessante destes autos.

 

TRABALHOS SUBTERRÂNEOS

— O ex-tenente continua a viver na Suíça? perguntou César de Fossaro.

— Sim, respondeu Malpertuis, comprou um chalet nas margens do lago, junto de Genebra, em Versoix. É ali conhecido pelo nome de Marcel Aubertin.

— Bem.

— Os seus hábitos, como os do filho da Marquesa, foram minuciosamente estudados. O relatório é muito explícito.

— Passamos a outro. Conheço muito bem o Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant, alcunhado o príncipe Totor; sou até seu amigo, mas tenho precisão de ser iniciado em certas particularidades da sua vida passada, de que ele não fala...

— Eis todos os documentos que lhe dizem respeito.

— Entrega-me agora tudo quanto diz respeito à família do Duque de Chaslin, as notas de Sta-Pi sobre o mesmo assunto, e dá-me a carta anônima escrita ao Conde de Vergis. Não percas um momento, e põe os nossos em campo. Do teu diálogo com o marido resulta para mim a convicção, a certeza, de que a mulher tem um amante. Entrevejo nisto uma mina de ouro a explorar.

— Eis a carta junta às minhas notas.

— Ocupa-te de Lucia Gonthier... é preciso encontrá-la se ela estiver viva, e saber o mais depressa possível tudo quanto lhe diz respeito.

— Deveremos lançar Picolet nesta pista?

— Não. Esse rapaz é inteligente, mas, às vezes, falador. Este negócio deve ser conduzido muito em segredo. Confia-o ao mais discreto dos teus homens.

— Encarregarei Bijou.

— A carta do correspondente de New York diz-te que se procedia a investigações oficiais imediatas, para se encontrar a herança de Edgard Sydney.

— O correspondente afirma-me, pelo contrário, que o procurador não fará principiar as investigações senão depois do preenchimento das formalidades do costume. Isto dá-nos um avanço de três meses.

— É mais tempo do que precisamos. Sem dificuldade encontrará algum empregado do antigo teatro Dejazet de que Amélia Gonthier fez parte durante muito tempo, e por ele obter-se-á alguma informação. Em todo o caso fio-me na tua habilidade.

— Farei quanto puder.

— Passemos a Fernando Volnay.

— Tu interrompeste-me no momento em que a minha conversa com esse garoto pretensioso. aliás bem bonito, chegava ao seu desenlace. Compreendi que tinhas uma idéia, e mandei-o embora sem concluir.

— Fernando Volnay é primo de Jacques Sureau o primeiro co-cheiro do conde de Vergis, aquele que acompanha a Condessa nos seus passeios a cavalo?

— Sim.

Esse comediante pode ser-nos útil. Quero que fique à nossa discrição. Para isso bastará conservar sobre a sua cabeça a espada de Damocles sempre prestes a feri-1o. Manda, dentro de uma hora, ao joalheiro de Marselha, por meio de um vale telegráfico, o total da sita dívida, e amanhã pela manhã, diz ao senhor Fernando Volnay que o senhor Heirsch, a pedido teu, consente em não te perseguir para não destruir irremediavelmente o seu futuro. Mas que, para obrigar a entrar no bom caminho, lhe recusa todo o imediato reembolso, e pretende conservar as letras falsas, das quais fará uso se lhe for preciso. O sujeito é preguiçoso, orgulhoso, pervertido até à medula, tem já um pé no crime... Encantado de não ter dinheiro a dar, aceitará alegremente a lição. As mulheres hão de perdê-lo de todo, e teremos nele um instrumento flexível e dócil. Não deixes de lhe fazer escrever e assinar uma pequena declaração do seu pecadilho de Marselha.

— Está dito. Tens visto estes dias Genoveva?

— Ora, ainda ontem.

— Sempre o mesmo?

— O que perguntas, meu caro, não tem senso comum. Tu bem sabes que tenho Genoveva segura, como vamos ter seguro o comediante de Belleville, e mais ainda oficial, por vontade minha, do principezinho de Castel-Vivant, um boneco de engonços a quem ela puxa os arames, ela porá a sua influência ao serviço da nossa fortuna...

— E da sua, bem entendido.

— Nós somos cavalheiros, meu caro, deixar-lhe-emos parto do bolo, mas teremos todo o cuidado de que essa parte não seja tal que diminua muito a nossa.

A estas últimas palavras seguiu-se um momento de silêncio.

Depois, Malpertuis perguntou:

— Como vai Branca?

A este nome de Branca, César de Fossaro estremeceu.

— Não a vejo desde a semana passada, respondeu, mas se ela estivesse doente, eu seria informado. Leva uma vida sossegada e monótona na casinha onde a instalei com Margarida há dois anos. Hei de visitá-la um dia destes, porque ela deve também servir aos nossos projetos.

— Ela! Tua filha! murmurou o ex-solicitador com um movimento de surpresa.

— Minha filha... repetiu o barão de Fossaro, cujo rosto se obscureceu, e cujo olho único se velou. Será minha filha?

— Como? exclamou Malpertuis, duvidas? Mas isso é pura doidice. Quando Clara Gaillet principiou a ser tua amante, tinha dezesseis anos apenas. Ela tinha juízo... amava-te. Só deixou a casa paterna para te seguir aos primeiros sintomas de gravidez... ela nunca te enganou.

— Por que a matei então? volveu César com voz sufocada. Não te lembras? Suspeitei dela... te acusei. Ela defendeu-se mal, e nada me prova que eram infundadas as minhas suspeitas.

— Também nada os confirmou. Feriste num momento de cólera cega, de raiva louca; mas depois do assassinato reconsideraste, e lembro-me que já não duvidavas da inocência de Clara. Como prova disso, bastou-me ver os cuidados que, por tua ordem, houve com a educação de Branca, depois que fostes para fora; a tua alegria quando a vieste encontrar crescida e formosa como sua irmã; os teus sacrifícios para se lhe dar uma instrução completa, e dotes de primeira ordem. Tens-lhe amor, finalmente, tens-lhe amor. Ah! ela é, na verdade, tua filha, se é! Parece-se contigo pela vontade, pela inteligência, pelos instintos.

César de Fossaro tornara-se pensativo.

— Sim, é verdade, disse ele lentamente, Branca parece-se comigo pela vontade, pelos instintos, pelas inclinações. Tem como eu os devaneios do orgulho, da riqueza. As suas aspirações impelem-na para a vida ativa febril, acidentada, estranha e cheia de imprevisto. Sei isso, não que ela mo tenha confessado, porque tem medo de mim; domino-a a tal ponto, que treme na minha presença, e não se atreveria a tomar-me por confidente dos seus desejos.

— De certo, confirmou Malpertuis.

— Duvido que trasborde na sua alma a ternura por mim; mas tenho a certeza de que nunca se lembrará de me desobedecer. Esse terror e essa obediência devem servir-me. Ela é minha filha, bem, Admiti-lo-ei se quiseres, mas que importa. Não o sabe. Ignorá-la-á sempre. Nenhum ato legal me impõe esse título... Julga que a recolhi ainda criança, que tudo me deve, pois que eu nada lhe devia, e talvez que seja reconhecida por isso, mas não o afirmaria. Branca será rica, porque trabalhará para si enriquecendo-nos. É por intermédio de Branca que a fortuna do Duque de Chaslin virá a ser nossa.

— Que projetas então? perguntou Malpertuis estremecendo mau grado seu.

— Acabar os dias na pele de um milionário, bem o sabes, respondeu César, e quando principiar a chuva de ouro, por-te-ás por baixo da goteira para receber o teu quinhão de jorro benéfico. Portanto, não te inquietes com coisa alguma, não duvides de nada, e deixa-me seguir o caminho misterioso que a mim próprio tracei. Eu levo toda esta papelada: vou estudá-la cuidadosamente, ainda esta noite porei mãos à obra. Dentro de seis meses teremos conseguido o nosso fim. Vive, pois, em paz, e dá-me vinte e cinco mil francos...

Malpertuis não fez nenhuma objeção.

Abriu o cofre colocado a um ângulo do gabinete, 'tirou do cofre vinte e cinco notas de banco, e deu-as a César de Fossaro.

Este dobrou-as, guardou-as na algibeira, meteu debaixo do braço toda a papelada, e retirou-se pela saída misteriosa que conduzia ao seu palacete de Provence.

Malpertuis fez girar sobre os gonzos o móvel destinado a dissimular a porta, tornou o por a pasta no lugar vazio, e esperando pela hora do almoço, dispôs-se a preparar os trabalhos para os empregados do escritório.

Tornemos a Stanislau Picolet.

O polícia particular, depois de tomar conhecimento da carta que os nossos leitores conhecem, dirigiu-se para o pequeno café da rua da Victoria.

Este café, de triste aparência, tanto por fora como por dentro„ era quase uma tasca de ordem ínfima.

Um homem muito alto poderia tocar no teto com a mão.

A pequena vidraça deixava entrar a luz suficiente para se poder ler alguns jornais que andavam por cima das mesas empoeiradas.

Três consumidores, sentados em bancos com o couro já roto,, povoavam aquele recinto duvidoso.

A patroa do estabelecimento, mulher de uns quarenta anos, dizendo-se viúva de um marido que ninguém conhecera, empertigou-se detrás do seu balcão devorando um romance cortado dos folhetins do Petit Journal.

Um dos três consumidores fizera-se servir um copo de chartreuse verte que deixava intato diante de si.

Segurava na mão um jornal que não lia, e tinha quase constantemente os olhos fixos na porta do botequim.

Este personagem, que parecia ter uns vinte e sete ou vinte e oito anos, apresentava o tipo completo dos janotas de alto coturno.

Nada de mais irrepreensível que a elegância do seu trajo completo de manhã.

O seu rosto bonito, um pouco empalidecido pela fadiga da grande vida, apresentava uma expressão risonha.

Era Eleitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant.

A porta abriu-se de repente, com estrondo.

Stanislau Picolet entrou como uma bomba, arrancando a patroa repentinamente às comoções lacrimosas de uma narrativa do maior interesse.

O recém-chegado lançou os olhos em roda da sala.

Ao primeiro olhar reconheceu o Príncipe, que tendo-o também reconhecido por seu turno, fez-lhe sinal com a mão.

Sta-Pi correu para ele.

— Não, graças a Deus, exclamou com uma voz agitada, a minha memória não me enganava! Eu acertara. O nadador da Grande Jatte era o senhor Príncipe de Castel-Vivant!

— Sim, senhor Sta-Pi, volveu Heitor sorrindo, a vossa memória é excelente, como também a minha. Bem vê que me lembrei do senhor. É esquisito como os nomes se me gravam na memória.

— O senhor pensou em mim! Ficarei reconhecido até à morte! Em todo o caso não me admira muito que o senhor se lembre de mim. A circunstância era muito singular, e devia fazer época na sua vida.. Era preciso constrangê-lo, mau grado seu, a não repelir os adiantamentos da fortuna!

— A coisa na verdade era de meter os tampos dentro. Não podia imaginar que se trata de arrecadar milhões. Não imaginava senão que os meus credores me davam caça. Felizmente que o senhor veio filar-me em pleno rio com umas artes todas misteriosas! Foram monumentais os seus movimentos na água, palavra de honra. Ainda estou a rir.

— É muita honra que me faz.

— Mas sente-se.

— Ao lado do Príncipe! exclamou Sta-Pi.

— Por que não? Que toma?

O agente de Malpertuis respondeu instalando-se:

— Ainda não almocei. Aceitaria de boa vontade um copo de Madeira.

Heitor mandou vir.

Um criado que dormitava para um canto, levantou-se e serviu o vinho pedido.

Sta-Pi saboreou com manifesta voluptuosidade a deplorável bebida que acabavam de colocar diante dele.

Enquanto o saboreava aos golinhos, olhava dissimuladamente para o príncipe que escolhia um regalia bretania na sua charuteira.

— O Príncipe permite-me, disse ele de repente, que lhe pergunte o motivo do rendez-vous que me fez a honra de aprazar?

— Pois não lhe passa pela idéia?

— Suponho que se trata de uma informação de que o príncipe tem precisão.

— Disso primeiramente, em seguida de uma tarefa séria e difícil.

Sta-Pi estremeceu de alegria.

Um trabalho sério e difícil empreendido por conta do Príncipe de Castel-Vivant, devia ser a galinha dos ovos de ouro.

Heitor continuou:

— E se me dirijo ao senhor Sta-Pi, é porque guardei a melhor recordação da tenacidade e da inteligência de que me deu provas com um chic de primeira força.

— Príncipe é de uma bondade...

— Sou apenas justo. O seu processo natatório era um perfeito poema, e o senhor suportou a minha escapadela com um chic supremo... Ora como o negócio de que lhe quero falar exige uma habilidade excepcional, procurei-o, porque não quis fiar-me em ninguém mais.

Sob esta catadupa de cumprimentos, o polícia não cabia em si de contentamento.

Contudo respondeu com fingida modéstia:

— Na verdade o Príncipe enche-me de favores!

 

O NEGÓCIO DO PRÍNCIPE

Tive grande dificuldade para o encontrar, senhor Sta-Pi, voltou Heitor.

— O senhor foi de certo procurar-me à agência Roch e Fumei?

— Onde me responderam com muito mau modo que não sabiam o que era feito de semelhante indivíduo. À força de diligências descobri dois outros escritórios, também um pouco tenebrosos, por onde o senhor apenas passara. Finalmente, soube ontem que o senhor tinha entrado para o escritório de Malpertuis...

— Estou lá há uns oito meses.

— Está satisfeito?

— Hum! Hum! apreciam-me, mas o patrão ê uma raposa! É sujeito que não gasta muito mel com as suas moscas!

Bem, apanhei-o, é o principal, e vamos conversar bastante rápido porque sou esperado.

Compreenderei o senhor em poucas palavras.

— Não lhe será proibido, creio, ocupar-se fora do escritório de um negócio especial, que lhe pode dar grandes lucros?

— Isso pelo contrário é-me absolutamente proibido e transgredindo as ordens do patrão, arrisco-me a perder o meu lugar. Mas para ser agradável ao Príncipe, estou pronto a cometer todas as contravenções, tanto mais que não me parece fácil o patrão desconfiar. Podemos guardar o negócio em segredo.

— Tenho até grande interesse nisso, disse o Príncipe; qualquer palavra imprudente bastaria para fazer desconfiar alguém que eu sei. Genoveva é nervosa, muito nervosa. Boa rapariga, muito pândega, mas ciumenta como uma pantera de Java, e de um gênio de ir tudo pelos ares.

— Essa pessoa de mau gênio é, por certo, a favorita do Príncipe? arriscou Sta-Pi.

— Sim, favorita no título, e não sem parceiras, respondeu Heitor rindo; é mulher que me ama de um modo bem incomodativo. A menor suspeita que lhe açode, faz-me cenas de um chiquismo monumental. Ora, ela é criatura que tem suspeitas todo o dia e de noite também. Boa carraça, senhor Sta-Pi! Portanto, é preciso que ela não desconfie...

— Que se trata de uma intriga de amor? — Exatamente.

— Eis que temos negócio da minha especialidade... Negócios de mulher é o meu forte. Não seria capaz de encontrar em Paris quem me levasse a melhor na especialidade. Falemos um pouco da rival da menina Genoveva.

— Uma adorável criança! uma loura espiga que me transtorna a cabeça.

— Tem juízo?

— Não sei.

— Saber-se-á. Mas isso não o deve inquietar. Olhe, em virtudes é coisa que eu não creio.

— O senhor Sta-Pi é cético.

— Ora! que quer, senhor, tenho visto que as mais ferozes deixam-se sempre domesticar pelo papel de banco.

— Prodigalizá-lo-ei.

— A resistência não há de ser longa. Em que campo vegeta a tal espiga loura?

— Se soubesse, não precisaria do senhor.

— O seu nome, pelo menos?

— Ignoro.

— Mas ao menos, senhor, descreva-me, se faz favor.

— Isso é fácil. Um anjo! Cabelos doirados, olhos azuis, lábios de coral, faces de lírio, um talhe de ninfa como diziam os clássicos.

— E mais nada? Nem um sinal particular?

— Nenhum, pelo menos visível.

— Então, a tarefa é impossível! Nada conseguirei.

— Por que?

— Há em Paris milhares de raparigas louras e bonitas.

— A tal é a mais bonita de todas!

— Aos seus olhos, Príncipe, e de certo que também na realidade; mas não posso fazer desfilar uma por uma diante de mim as pessoas amáveis que dêm pelo sinal.

— Não fera precisão disso. Vou mostrar-lha.

— Perfeitamente.

Heitor tirou da algibeira uma carteira, e da carteira uma fato-grafia que apresentou a Sta-Pi.

— Um retrato! exclamou este.

— E não está bom? Olhe para este garbo! para estes olhos! para estes lábios! para esta cintura!

— Parece-lhe ainda que exagerava?

— Palavra que não murmurou Picolet com um verdadeiro entusiasmo, a rapariga é digna de um Príncipe!

— Agora que a conhece, encontrá-la-á sem dificuldade, não é assim? Um rosto tão radiante não poderia escapar às suas pesquisas...

— O rosto de nada me serviria, senhor. Como é que eu havia de ir de porta em porta mostrar o retrato, e perguntar a cada porteiro: Tem isto cá no prédio? Mas o nome do fotógrafo me guiará...

— Bravo! muito bem! É uma idéia! Não pensara nisso! O fotógrafo deve saber onde mora a maravilha cujas feições reproduziu. Dar-vos-á ou vender-vos-á a morada e então...

— Oh não vamos tão depressa, interrompeu Stanislau Picolet. Quando conhecermos o ninho da bela, veremos o que se há de fazer. O senhor permite-me que lhe faça uma pergunta?

— Com certeza! Onde é que o senhor viu a jovem, e como é que este retrato se acha em seu poder?

— Vi a adorável criança no teatro da Porta de Saint-Martin. Estava eu numa frisa de boca com a carraça. Representava-se não sei o que. Eu estava muito aborrecido. De repente deixei de me aborrecer. Acabava de avistar a minha bela desconhecida, defronte de mim, no balcão.

— Só?

— Em companhia de uma mulher de idade, de aparência bastante respeitável. Era sua mãe, talvez, parecia divertir-se muito.

— Muito bem. Mas a fotografia? Não foi ela quem lha deu, imagino.

— Não foi, foi o acaso! Um acaso todo mistério, apesar de no fundo a coisa ser a mais natural possível. Durante um entreato sai, com o fim aparente de ir comprar umas passas.

— Para a carraça... murmurou Sta-Pi?

— Perfeitamente. Comecei por me munir da caixa das passas para o que desse e viesse. Depois meti-me pelo corredor das cadeiras, esperando ver de mais perto a loura criança, e encontrar talvez ocasião de lhe falar, porque, aqui para nós, a timidez não é o meu defeito predominante, mas devia desconfiar de Genoveva, que daria uma enchente em pleno teatro.

— Credo!

— Quando chegava à porta do balcão, esta abriu-se, e a minha desconhecida saiu, mil vezes mais bonita do que me aparecera através dos dois canos do meu binóculo vienense de doze vidros. Ia correr ao seu encontro e dirigir-lhe a palavra sob um pretexto qualquer, ou até sem o menor pretexto.

— O que lhe ia dizer?

— Simplesmente isto: — "Sou o Príncipe de Castel-Vivant; tenho doze milhões; — adoro-a — onde a posso ver?"

Sta-Pi aprovou com a cabeça.

Curto, mas bem redigido... murmurou. Príncipe e doze milhões! é isso que faz a fortuna de um homem! E suspirou. Heitor prosseguiu:

Não tive tempo de me aproximar dela. Uma segunda jovem, que em qualquer outra ocasião me teria parecido bonita, corria não sei donde, abraçava a minha desconhecida, e inundava-a de beijos, soltando gritos alegres. Safa! que eu não desgostaria de estar no seu lugar! Interromper o seu "tête-à-tête" seria shoking! Esperei, olhando para a tala pela porta entreaberta, mas só olhava com um olho, e dirigia o outro para as duas amigas. A minha loura ideal tirou da algibeira um envelope, e do envelope o retrato que aqui está. "Bem vês, disse ela, cumpro a minha palavra, e trago-te o meu retrato." Oh! senhor Sta-Pi! que voz! uma música! uma viola! um bandolim! um sonho! Parece-me ainda ouvi-la. A amiga pegou na fotografia dizendo: "Muito obrigada!" Novos abraços seguidos de um diálogo animado. Eu era todo ouvidos. Esperava apanhar de passagem uma indicação, um nome de rua, alguma coisa enfim. Só apanhei um nome de batismo. A minha loura idolatrada chama-se Lúcia. Não se esqueça senhor Sta-Pi!

— A campainha anunciando o fim do entreato veio por termo à conversa. As raparigas separaram-se. Lúcia voltou para o seu lugar, e a sua amiga dirigiu-se para as cadeiras.

— Era preciso segui-la.

— Foi o que fiz.

— Interrogá-la. Tendo uma, tinha a outra.

— Era claro, e ia pôr-me em ação quando a jovem se deteve para procurar a senha na algibeira. Tirou o lenço e não reparou que deixava cair a fotografia que a adorável Lúcia acabava de lhe entregar. Depois, encontrando o que procurava, desapareceu. Abaixei-me, apanhei a preciosa imagem, coloquei-a sobre o coração, isto é, na algibeira esquerda da minha sobrecasaca, e ia pôr-me novamente em perseguição, quando surgiu diante de mim, impedindo-me o caminho... Adivinhe quem, senhor Sta-Pi?

— Ora, quem havia de ser? A carraça.

— Olha lá! adivinhou à primeira. Espantoso! Monumental! chic a mais não poder ser! Sim, era a carraça, que não me vendo voltar com as passas suspeitava e dava-me caça. O resto adivinha-se. Genoveva deu logo ali uma enchente, quis deixar a sala, e constrangeu-me a segui-la, o que não ousei fazer com receio de escândalo. Esperava voltar antes do fim do espetáculo. Impossível! Quando consegui escapar e cheguei de fronte do teatro, o gás já estava apagado, e os bombeiros safavam-se. Que azar! Estas coisas sucedem a mim!

— Príncipe, sossegue esses nervos. O que se adiou, não se perde por isso. Espero dentro em pouco trazer-lhe a morada da formosa Lúcia.

— Nesse dia, senhor Sta-Pi, dar-lhe-ei uma recompensa. Afinal, quanto quer que lhe dê?

Após um momento de reflexão, Picolet balbuciou, não sem visível embaraço:

— O príncipe é tão rico, e a jovem tão bonita... parece-me que uma letrinha de mil francos...

— Dar-lhe-ei duas, interrompeu Heitor, ou ainda três letras.

— Finalmente, vou conhecer a opulência! pensou o pobre diabo cujo rosto se dilatou.

Depois, em voz alta, acrescentou:

— Como a história era muito interessante, fez-me muita sede. Aceitarei de boa vontade outro copo de Madeira.

O príncipe mandou vir.

— E com o vinho um biscoito, disse Stanislau num tom particular.

À palavra biscoito, sublinhada de certo modo pela acentuação, a caixeira levantou a cabeça e olhou para Sta-Pi, sorrindo.

Depois, largando a leitura dos seus folhetins, foi procurar no seu livro de receitas uma folha de papel estreita e comprida, coberta de letras e de algarismos.

O criado serviu.

Picolet molhou o seu biscoito no copo de Madeira e engoliu-o de um trago.

— Uma pequena informação, perguntou em seguida. Onde poderei fazer saber ao príncipe o resultado das minhas pesquisas?

— Ora, no meu palácio da rua Francisco I.

— O príncipe não receia?

— O que?

— Que a carraça não intercepte a minha carta, ou não se inquiete com a minha pessoa?

— A coisa não chega a tanto. Genoveva graças ao céu, não vive comigo. Vá lá ou escreva sem receio.

— Muito bem. Se o príncipe tem precisão de se corresponder comigo, peço-lhe que me mande as cartas aqui.

E Sta-Pi bateu na mesa, como para sublinhar aqui, da mesma forma que sublinhara a palavra biscoito.

Isto devia ser um sinal, porque o único criado do estabelecimento largou logo do balcão e dirigiu-se para a mesa onde Stanislau conversava com o Príncipe.

Tinha na mão o papel comprido e estreito tirado do livro de receitas.

—Senhor Picolet, disse a patroa que, como tem amanhã um grande pagamento a fazer, toma a liberdade de lhe mandar a sua continha.

O polícia particular franziu o sobrolho e replicou num tom duro: Não é agora, que estou tratando com um sujeito da boa sociedade, que a sua patroa deve tomar a liberdade de mandar-me a conta. Demais, ela sabe muito bem que não recebo senão no fim do mês o meu vencimento. Acho muito fora de propósito que me façam semelhante ofensa, por uma miséria. Trinta e sete francos e dez cêntimos. É um despropósito, e se os tivesse comigo...

Heitor interrompeu este furibundo sermão, atirando para cima da pedra da mesa uma nota de cem francos.

— Leve isto, disse ao criado, e também a importância da conta de Picolet.

— Mas não, isso é que não, exclamou Sta-Pi, com ares de dignidade; seria para mim uma contrariedade.

— E eu não admito recusas. Portanto, aceite, ou zangar-nos-emos. O rapaz pegou na nota, e voltou para o balcão rindo à socapa.

 

O AJUSTE

— Demais, as nossas contas estão justas, acrescentou o Príncipe Totor baixando a voz. Guardará o dinheiro que lhe vão restituir, e eis uma segunda nota de cem francos. É um adiantamento por conta dos seus primeiros passos.

— O Príncipe enche-me de benefícios, disse Sta-Pi. Demonstrar-lhe-ei o meu reconhecimento pelo meu zelo.

— Conto com isso, e deixo-o. Genoveva espera-me há uma hora, e deve estar em brasa... A cena há de ser monumental. Até breve senhor Sta-Pi.

— De hoje em diante, senhor, ponho-me em campo.

Heitor saiu do botequim no momento em que o rapaz trazia o dinheiro.

Picolet meteu-o precipitadamente na algibeira, e dirigiu-se para a dama que estava no balcão.

— Muito bem, Stanislau, murmurou com o sorriso mais gracioso, a conta está paga.

— Graças à sua inteligência, ó Palmyra. Por isso amanhã ofereço-lhe ostras. Quanto ao meu coração, já o tem.

— Stanislau, o senhor há de acabar por me comprometer. Que dirá o mundo?

— Dirá o que quiser. Amamo-nos, Palmyra, e quando a gente se ama- ri-se dos papalvos. No amor cifra-se tudo.

Os nossos leitores compreenderam a comédia da nota.

Renovava-se em circunstâncias idênticas, todas as vezes que a ocasião parecia favorável, e a quadragenária tendo um fraco pelo Picolet, prestava-se a isso com a melhor vontade do mundo.

O polícia extra-oficial, ia voltar para o escritório, onde talvez tinham precisão dele, quando a porta do botequim se abriu para dar ingresso a um indivíduo de cinqüenta e cinco anos a sessenta anos.

— Espera, é o senhor Daniel Gaillet! exclamou Sta-Pi dirigindo-se para o recém-chegado, a quem estendeu a mão. Bons dias, senhor Gaillet. Que vem o senhor procurar nestas paragens?

— O senhor mesmo, respondeu o recém-chegado. Procurei-o em casa de Malpertuis, e um dos seus colegas mandou-me aqui. Tenho que lhe falar.

— Vamos, sentemo-nos.

— Que lhe posso oferecer?

— Tomarei um copo de Madeira e um biscoito.

Os dois homens instalaram-se ao recanto mais sombrio do estabelecimento.

Daniel Gaillet era de estatura mediana, magro, vivo.

Tinha olhos espertos, palavra breve, fisionomia inteligente, mas repassada de profunda melancolia.

As rugas da fronte, o rictus cheio de amargura dos lábios, pareciam denunciar uma dor moral incurável.

— E, perguntou Sta-Pi para principiar a conversa por uma pergunta banal, a saúde continua a ser boa?

— Sim, continua, parece-me que não envelheço.

— E contudo o oficio é duro.

— De certo, mas é a minha vida. Nada me cansa. Naquilo em que outros se extenuariam, eu adquiro forças. Preciso de atividade, de movimento, preciso de andar de um lado para o outro, de furar, de farejar como um cão de caça. Quanto mais tenho o espírito preocupado, mais sinto o corpo ágil. Quanto maior número de problemas tenho a resolver, mais lúcido se me torna o cérebro.

— Nessa faina o senhor gastar-se-á, meu caro Gaillet. Dá-se bem com isso. Eu, no seu lugar, pensaria em me reformar.

— Tenho apenas cinqüenta e cinco anos,, trabalharei mais cinco, e quem sabe se mesmo então me reformarei!

— Como! pois com sessenta anos continuará a pertencer à brigada de segurança?

— Servirei a prefeitura até ao dia em que tiver vingado minha filha! volveu Gaillet com voz sombria.

— Sempre essa recordação! murmurou Sta-Pi.

— Sempre! retorquiu o agente cujas pálpebras se umedeceram. Não posso esquecer, não esquecerei nunca! Fizeram-me muito mal! Considere! Alinha filha, uma criança de dezesseis anos, meiga, encantadora e casta, que eu amava profundamente, e cem vezes mais que a própria vida. seduzida e perdida a princípio, assassinada depois! O meu amor de pai, a minha felicidade, as minhas alegrias, as minhas esperanças, aniquiladas por um miserável que não respeitou nem a pureza da virgem, nem a vida da criança desonrada por ele! Esquecer isso, senhor Picolet! Ora! isso é lá possível?

Daniel Gaillet ocultou o rosto nas mãos com um gesto de feroz desespero.

— Mas a justiça encarregou-se de o vingar, replicou Stanislau. Lembro-me desse crime, eu, apesar disso ter já sucedido há uns quatorze anos.

— Quatorze anos! repetiu Gaillet, sim, há quatorze anos que sofro, que choro, e que o espectro da minha filha todas as noites me visita em sonhos. A vingança que os juízes me deram! Que irrisão! Cinco anos de trabalhos forçados ao miserável que matou minha filha? Chama isso uma vingança? Eu, não! preciso de outra! Um dia hei de encontrar Pedro Carnot, e só nesse dia é que minha filha ficará vingada! Há nove anos que procuro o infame!

— Depois de que recuperou a liberdade, visto isso? perguntou Sta-Pi.

— Sim.

— Estava sob a vigilância da alta polícia. Não sabe que cidade lhe foi designada para residência ao sair das galés?

— Nimes, no departamento do Gord. Então?

— Nunca lá pôs os pés. Deixando Toulou, onde as galés ainda existiam naquela época, Pedro Carnot desapareceu.

— Foi de certo para o estrangeiro?

Daniel Gaillet abanou a cabeça e respondeu-lhe então:

— Não creio, deve estar na França, em Paris.

— Em Paris! Parece-lhe?

— Sim, por que não? Não é Paris o local no mundo, onde apesar da polícia, qualquer se esconde melhor? É tão fácil quando se é hábil, tomar outro nome, arranjar outra cara, e tornar-se difícil de ser encontrado no meio de um tal formigueiro humano... Pedro Carnot seria um homem superior se os seus instintos o não levassem para a senda do crime. Era um espírito diabólico, e as galés não terão feito senão comprometê-lo. Só Paris pode parecer um teatro digno dele.

— É uma suposição, senhor Gaillet, porque finalmente o senhor nunca o encontrou.

— Encontrei... uma vez...

— Tem a certeza de que era ele?

— Podia porventura enganar-me? Conheço-o muito bem.

— É exato, e depois há 'uma particularidade nele que torna- difícil qualquer erro. Se tenho boa memória, falta-lhe um olho.

— Sim. Numa rixa entre presos, na Grande Roquette, recebeu. no olho esquerdo uma picada com um furador.

— Onde o viu?

— Na praça da Bastilha.

— Há muito?

— Há uns seis anos; eu ia atrás de um indivíduo... Pedro Carnot, vestido como um agente de câmbios, passou a dez passos de mim...

— A pé?

— Em carruagem particular, puxada por um cavalo que ia com uma rapidez infernal. Era-me impossível segui-lo; mas eu reconheci-o perfeitamente...

— Reparou na falta do olho?

— Então, meu caro senhor Gaillet, pode muito bem ter-se enganado. Quando Pedro Carnot foi condenado, tinha vinte e cinco anos. Julgou vê-lo oito anos depois; ora, oito anos sobre a cabeça de um homem transtornam-no muito, sobretudo quando sobre os oito anos tem mais cinco de galés.

— Não era com certeza o seu rosto pálido, as suas feições acentuadas, o seu aspecto altivo... Porque me havia de ter enganado então, se tenho a prova de que estava em Paris há dois anos ainda?

— A prova?

— Sim

— Bem, tenho toda a vontade de o acreditar. Mas que pode contra ele? Pagou a sua dívida. Fazê-lo condenar por evasão... Seria uma deplorável vingança...

— Por isso não me contentarei com ela...

— Que quer então?

— Investigar a sua vida depois que recuperou a liberdade.

— Sabe se ele cometeu algum novo crime?

— Se as informações fornecidas são exatas, está sob a ação da lei. Um homem daquela tempera, instruído e inteligente como ele, não se condena a cobrir-se de farrapos, a vadiar pelas estalagens, a dormir nos fornos de cal, a fazer parte de uma quadrilha que deve fatalmente cedo ou tarde cair nas nossas mãos... Tirou, de certo, partido, da sua educação e da sua prática do mundo... deve ser hoje um desses cavalheiros de indústria que se tornam legendários.

— Talvez.

— Julgo impossível que no espaço de nove anos esse homem não tenha acumulado crimes sobre crimes. Vingarei minha filha entregando-o aos juízes, que desta vez não terão piedade da sua mocidade, e não lhe concederão circunstâncias atenuantes.

— Meu querido senhor Daniel, murmurou Picolet com um ar compassivo, asseguro-lhe que faz mal em nutrir o espírito com essa ideia fixa. Isso pode prejudicá-lo.

— Pode endoidecer-me, não é verdade?

— Não disse isso.

— Mas pensou-o, o que vem a dar na mesma, replicou Gaillet passando a mão pela fronte, não falemos, pois, mais nisso...

Não falemos... Conversemos do que o traz aqui.

— O que me traz aqui refere-se ainda a Pedro Carnot.

— Como?

— Vai sabê-lo...

Daniel Gaillet interrompeu-se, depois, após um momento de silêncio, disse de repente, olhando bem de frente para o seu interlocutor:

— O senhor Sta-Pi é um espertalhão...

O polícia tomou uma fisionomia modesta, desmentida pela expressão triunfante do seu sorriso, e respondeu:

— O senhor aprecia-me com um excesso de benevolência, querido confrade. Aqui para nós, creio que não tenho ainda a mioleira muito danificada.

— Conheço investigações suas muito notáveis, retorquiu Gaillet, e por mais de uma vez, como sabe, tenho querido agregá-lo aos servidos regulares da prefeitura...

— O que muito lhe agradeço, creia, mas prefiro a minha independência. Operar por conta dos particulares, agrada-me e rende-me mais.

— Por isso não tenho teimado... Mas se eu lhe viesse propor trabalhar para a polícia, sem tratar com ela, teria melhor acolhimento do que das outras vezes?

— Conforme...

— O que?

— Se é para lhe ser pessoalmente agradável auxiliando-o em alguma empresa, se compreende as minhas aptidões, pode dispor absolutamente de mim.

— Em casa de Malpertuis, como em casa de Roch e Fumei, tem a especialidade das mulheres, não é verdade? perguntou Gaillet.

— Valha-me Deus, faço um pouco de tudo no escritório, mas a verdade é que o artigo mulher pertence à minha especialidade. As minhas aptidões impelem-me para esse lado.

— Pode então obter-me as informações de que tenho precisão.

— É provável, para não dizer certo.

— O senhor sabe como eu procedo sob o ponto de vista da remuneração do serviço prestado quando o negócio vale a pena?

— Paga o êxito por quinhentos francos.

— Convém-lhe?

— Perfeitamente.

— Estamos então de acordo... Tome notas. Picolet tirou da algibeira uma carteirinha, passou o bico do lápis pela língua, e aguardou.

— Há três anos, em 1876, portanto, principiou Daniel, uma jovem criada de quarto, de vinte e cinco anos, muito bonita, chamada Fanny Vernaut, estava ao serviço de uma professora de Courbevoie.

— Fanny Vernaut, repetiu Picolet. Está escrito.

— A professora chamava-se madame Dubief.

— Bem.

— À 22 de dezembro de 1877, a criada de quarto desapareceu.

— Bem.

— Há um mês, o jardineiro da senhora Dubief, arrancando uma árvore morta no jardim do colégio, achou ao pé dessa árvore os ossos de uma criança nascida viva. Fez-se a toda a pressa a declaração daquela descoberta sinistra, e a senhora Dubief, lembrando-se dos modos misteriosos de Fanny Vernaut, dos seus freqüentes incômodos que ela não podia completamente disfarçar, finalmente, da sua fuga inexplicada, não deixou de suspeitar daquela rapariga.

"A justiça informada do negócio, deu ordem de procurar Fanny Vernaut na sua terra, isto é, em Seulis.

"Havia muito que ela ali não tinha reaparecido.

"Resulta de certas informações que a antiga criada de quarto deve estar hoje em Paris, sob um nome suposto, e sustentada com muita riqueza por um ou por diversos imbecis.

"É preciso encontrá-la.

 

O AGENTE EM AÇÃO

Picolet continuava a escrever.

— Indagou-se que relações tinha Fanny Vernaut nessa época? perguntou ele continuando a escrever.

— Sim, respondeu Daniel Gaillet; mas essas indagações só deram como resultado extraviar-nos.

— Como assim?

— Falava-se de um primo em Bois Colombes. a casa do qual Fanny se dirigia todos os dias: Aquele primo não passava de um ente imaginário. Servia de pretexto para Fanny ir ver o amante.

— E desse amante não existe vestígio algum?

— A senhora Dubief, novamente interrogada, supõe que o parente de algum dos seus discípulos, impressionado pela beleza da criada de quarto que às vezes levava as pensionistas às suas famílias, a seduzira ou violentá-las.

— As suas suspeitas convergem sobre alguém particularmente?

— Sim, mas de um modo muito vago. Ela designa um chamado Pedro Redon.

— Tornaram a encontrá-lo??

— Não, respondeu Gaillet com um tremor na voz. Ele também tinha desaparecido sem deixar vestígios; mas esse Pedro Redon, facilmente reconhecível pela falta do olho esquerdo, não era outro senão Pedro Carnot, o antigo forçado, o sedutor e o assassino de minha filha.

— Ele! exclamou Sta-Pi. Julga?...

— Tenho a certeza, porque o miserável, para transviar a justiça, tomara o nome da mãe que se chamara Mathilde Redon. Eis porque lhe dizia há pouco que esse homem está em Paris, e que novos crimes me darão ensejo de o agarrar.

— Que ia ele fazer ao colégio de Courbevoie?

— Visitar uma jovem que ali tinha colocado.

— Quem era ela?

— Uma órfã, dizia ele, que um dos seus amigos lhe confiara à hora da morte.

— Mas tudo isso é um romance! exclamou Picolet muito interessado.

— Creio antes que é um drama terrível

— Eram freqüentes as visitas de Pedro Redon?

— Apenas o viam duas vezes por ano.

— Como se chama a órfã?

— Branca Renée.

Não tem nome de família?

— Não.

— Que foi feito dela?

— Não se sabe. Pedro Redon retirou-a do colégio há anos, e os seus vestígios desapareceram.

— Safa! murmurou Sta-Pi. Eis um negócio estranhamente misterioso, e que não será fácil tirar a limpo. Em suma, espero que Fanny Vernaut ser tornará a encontrada. Se a ex-criada de quarto se acha no estado maior da alta galanteria, fique sossegado... sou bom de caça, e o meu faro conduzir-me-á ao galinheiro da estróina.

— O senhor ter-me-á a par dos seus passos.

— Todos os dias, se quiser.

— Não, mas avise-me assim que se julgar numa pista, e então combinaremos os nossos esforços. Lembre-se de que essa mulher nos pode por na pista de Pedro Carnot... No dia em que me disser: Apanhei-a! Prometo-lhe uma gratificação!

Esta última palavra recordou a Picolet as suas preocupações habituais, um momento esquecidas.

O agente de segurança, Daniel Gaillet, conhecia-o há muito.

Não podia, pois, com ele fazer funcionar o seu expediente da conta a pagar; contudo, sempre queria um pequeno adiantamento.

— Bem sabe o que é uma diligência que se quer realizar com perfeição, meu querido colega, observou ele num tom tímido. É preciso falar a este, meter os pés na algibeira àquele. É um absinto à direita, um vermute à esquerda. É um nunca acabar... está-se sempre de "porte-monaie" na mão.

Gaillet não o deixou continuar.

— Sim, sim, bem sei, exclamou, os preparos são consideráveis. Eis um adiantamento para essas despesas.

E tirando cinco peças de ouro do bolso, meteu-as na mão de Picolet, que as guardou na algibeira com um trejeito de satisfação.

— Safa! pensava ele. Isto é que foi um belo dia! Estarei eu em caminho de fazer lima boa fortuna?

E acrescentou em voz alta:

— Tenho as minhas notas. Esta noite já me ponho em campo. Daniel Gaillet, tornou a tomar o caminho da repartição, e Sta-Pi voltou para a agência.

 

Como sabemos, César Fossaro levara para casa os autos entregues por Malpertuis.

Fechou-os numa gaveta da sua secretária, que uma fechadura de segredo tornava inviolável, e em seguida o seu criado de quarto veio preveni-lo que o almoço o esperava, e foi sentar-se à mesa.

O barão, apesar de ter uma cozinheira de grande mérito, só almoçava em casa.

Jantava, ou num dos três clubs de que ele fazia parte, ou nas casas para onde o convidavam, ou em algum restaurante de primeira ordem.

O sócio de Malpertuis pagava liberalmente aos seus criados, mas em troco impunha-lhes um regulamento muito severo.

As relações de boa vizinhança, e os pagodes entre criados de uma mesma casa, eram-lhe absolutamente interditos sob pena de expulsão imediata.

Os ordenados eram grandes, o serviço muito suave, e por isso obedeciam religiosamente.

O cocheiro, de origem italiana, falava mal francês.

César dava provas de uma grande circunspecção na sua vida íntima.

Nunca se via um papel de natureza comprometedora sobre qualquer móvel.

Nunca ficava uma chave na fechadura de um móvel.

O gabinete onde se achava a porta de comunicação que nós conhecemos, encerrava uma biblioteca cheia de livros raros.

Ninguém se admirava de que, na ausência do Barão, não se pudesse transpor o limiar daquele gabinete.

Uma estante, movediça como a papeleira de Malpertuis, tapava a porta e o telefone.

O toque muito fraco da campainha elétrica não podia ser ouvido senão por César, sempre só no recinto de que falamos, onde se encerrou depois de se levantar da mesa, e de dar ordem de não o incomodarem sob pretexto algum.

Tirou os papéis da gaveta, e deu-os atentamente uns após outros, tomando notas, escrevendo frases descosidas, incompreensíveis para toda a gente e numeradas.

Este trabalho durou quase três horas.

No fim deste tempo o barão esfregou as mãos, e a sua fisionomia tornou-se radiante.

Estava satisfeito com os resultados já obtidos, e sobretudo com os que entrevia num futuro próximo.

— Tenho-os todos seguros! murmurou. O duque de Chaslin há de certo resistir mais do que os outros, mas Branca há de ser nas minhas mãos um instrumento dócil, e graças a ela hei de triunfar.

Após aquele pequeno monólogo, César de Fossaro fechou a papelada na gaveta, e chamou o criado de quarto.

— Fritz, disse ele ao criado, que era alsaciano, prepara tudo para à minha toilette.

— O senhor Barão sai de trem? Devo dar ordem para por o trem?

— Sairei a pé...

Meia hora depois César deixava o palacete da rua de Provence. e dirigiu-se para o "boulevard".

Era a hora do absinto, tão apreciada dos freqüentadores do "boulevard" e naquela magnífica tarde de outono, uma multidão ruidosa de consumidores enchiam os terraços dos cafés.

O barão de Fossaro diminuiu o passo ao chegar próximo do café da Paz.

Trocou alguns cumprimentos, deu alguns apertos de mão. entrou numa das salas do estabelecimento quase no interior.

A um canto dessa sala, um homem de idade indecisa, que podia ter de quarenta a quarenta e cinco anos, escrevia a sua correspondência.

De estatura mediana e um pouco nutrido, grisalho, quase calvo, encarquilhado como uma maçã reineta depois do inverno, este sujeito, apesar do seu aspecto, mediocremente sedutor, denunciava-se homem decente.

Compridas suíças sal e pimenta, emolduravam-lhe o rosto redondo, corado, em que, apesar de vestígios de fadigas de mais de um gênero, se notava uma expressão de espiritual bonomia.

Sinais particulares: uma gravata branca, uma luneta de tartaruga, e a fita da legião de Honra na botoeira da sua ampla sobrecasaca negra.

Diante dele havia uma pasta e um tinteiro.

À esquerda, um copo com água e açúcar, meio vazio.

César, todo risonho, dirigiu-se para ele e estendeu-lhe a mão, dizendo:

— Bons dias, doutor.

O doutor levantou a rabeca, apertou a mão que lhe estendiam e replicou:

— Bons dias, Barão. Vai bem, Barão?

— Muito bem, muito obrigado, e o senhor?

— Oh! estou esfalfado...

— Trabalha muito?

— Trabalho um pouco, mas não é isso.

— O que é então?

— Não durmo bastante... Imagine que a noite passada, na rua Francisco I, fizemos o diabo.

— Em casa do príncipe Heitor?

— Exato!... Ceamos... fizemos dançar as raparigas... armou-se joguinho...

Numa palavra, ainda lá estávamos às seis horas da manhã. Todos contavam com o senhor. Por que não apareceu?

— Um obstáculo absoluto...

— Histórias de mulheres, hem, Barão?

— Talvez, exclamou César sorrindo.

— Ah, garoto! Sempre fortunas novas!

O doutor molhou os lábios no líquido axaropado que tinha no copo.

— O que está a beber? perguntou Fossaro.

— Água com açúcar, com uma gota de flor de laranja.

— Deplorável bebida!

— Insípida! concordo, deploravelmente insípida! Mas é por sistema. Divido a existência em duas partes... De dia, uma sobriedade de gazela... lima castidade de ingênua! em suma, todas as virtudes!

— Por isso, à noite, que desforra!

— À noite, é verdade, é outra coisa. Assim que o gás se acende, o meu organismo vulcânico predomina, torno-me um pândego amável e entrego-me sem resistência aos mais interessantes excessos. Isto não me faz muito bem. Decaio, esgoto-me. e vai ver um destes dias o pândego enterrar o ingênuo.

— Ora, o amigo tem muito que viver.

— Não sei, Barão, não sei.

— Eram muitos, a noite passada?

— Doze ou catorze.

— E as raparigas?

— Sempre as mesmas. As amigas de Genoveva. Estava ontem bonita a Genoveva! Sabe, recomeçaremos esta noite... Genoveva, na sua qualidade de pseudo-dona da casa, convidou tudo para jantar. Eu, infelizmente, janto no palácio de Chaslin. Mas pelas dez horas apareço na rua Francisco I. Vai lá, Barão?

Ao ouvir proferir o nome de Chaslin, o Barão fizera um movimento de alegria.

O doutor chegava de per si aonde ele o queria levar.

— A Condessa continua sempre doente? — Sempre... pobre mulher!

— Conta com um restabelecimento próximo?

— Nem por sombras.

— É então muito grave o seu estado?

— Incurável. Doença do coração.

— Que idade tem a Duquesa?

— Quarenta e cinco anos.

— Pode ainda viver uns dez anos?

— Isso é que não! Se lhe conceda dois anos, é uma coisa por demais, e não ficarei surpreendido se ela se for de um momento para o outro. Bastaria, para produzir a rutura, da aorta, uma comoção muito viva.

— Numa palavra, a senhora de Chaslin parece-lhe condenada?

— Sem apelo.

— O duque espera uma catástrofe próxima?

— Não pude ocultar-lhe, completamente, a gravidade da situação. Importa, no seu próprio interesse, que ele saiba o que tem a esperar... Compreende?

 

CONTINUAÇÃO

Após um instante de silêncio, César de Fossaro continuou:

— O senhor de Chaslin ama ainda a mulher?

— Ama, respondeu o doutor; depois a Duquesa ainda é muito formosa.

— É mais velho do que ela?

— Uns vinte anos pelo menos, porque já tem mais de sessenta; mas bem conservado, são como um pero, direito como um fuso. Muito fresco, numa palavra. Aqui para nós, parece-me que ele ainda é homem para as ocasiões. Não o conhece?

— Tenho-o encontrado mais de lima vez na sociedade, mas nunca lhe fui apresentado.

— Quer sê-lo? Eu me encarrego disso.

— Para que? Na sua idade e posição, o Duque não pode ter os meus hábitos e inclinações.

— Efetivamente, vive muito retirado, e imagino que às vezes esta existência patriarcal parece-lhe um pouco enfadonha. Uma eterna convivência com um doente, é pouco agradável!

— Bem, e os seus filhos? Porque ele tem dois filhos, parece-me.

— Não, um filho e uma filha.

— Não vivem junto da mãe?

— Não. A jovem Helena, uma bonita rapariga de dezenove anos, está em Besançon em casa de uma das suas velhas tias, doente há muito. O filho, Roger de Chaslin de Kervillieres, é quartel-mestre num regimento de lanceiros, em Verdum, está alistado.

— Lembro-me que me contaram isso... Uma cabeçada do rapaz, que não anda às boas com o pai. Vi-o muitas vezes na roda das bonitas pequenas. Não lhe parece singular que a jovem esteja na província, em casa de uma parenta afastada, em lugar de estar junto da sua pobre mãe tão gravemente afetada?

— Questão de dinheiro, meu caro. Há uma grande herança a recolher.

— Os Chaslin são ricos?

— Muito ricos, mas a herança da tia há de ser considerável, e não querem que passe para as colaterais. A menina Helena deve esposar um primo afastado o visconde Renée de Logeryl, substituto do procurador da república em Paris. Este casamento foi arranjado pela tia velha que gosta muito do mancebo. Ela prometeu garantir toda a sua fortuna aos futuros esposos, com a condição de que a menina Helena vivesse junto dela durante alguns anos. Eis a razão porque, depois da doidice do filho, o Duque vive só com a mulher.

— Parecia-me ter ouvido dizer que a Duquesa tinha uma criada grave?

— Não se engana. Uma encantadora inglesa. Mas a mãe dessa jovem morreu, deixando vários orfãozinhos, e foi-lhe preciso voltar para Londres com grande pesar seu, porque gostava muito da senhora de Chaslin, que é a melhor das senhoras, e muito amável para os que a rodeiam.

— Um pouco ciumenta do marido, disseram-me.

— Que quer? É um fraco involuntário que se lhe deve perdoar, porque ela é a primeira a sofrer com ele.

— E esses ciúmes fundam-se em sérios motivos?

— Em nenhuns. O Duque é um marido modelo.

— Contudo a bonita inglesa?...

— Nada, meu caro Barão, absolutamente nada! A Duquesa preocupou-se sem razão. Uma simples cisma, o Duque zangou-se seriamente, depois tudo se acomodou, e voltou a tranqüilidade. Contudo a Duquesa, apesar de sossegada, viu ir-se embora a inglesa sem grande pena.

— O que faz com que, provavelmente, não tome outra.

— Assim queria, mas é impossível. O isolamento é muito completo. Numa palavra, estão procurando outra jovem.

— Parece-me que é fácil encontrar.

— Não é tanto assim. É um emprego de alta confiança! Lembre-se de que é preciso uma pessoa bem educada, instruída, tocando bem, sabendo o suficiente de inglês, para responder à Duquesa, que gosta de conversar nesta língua. Finalmente, de irrepreensível moralidade. Todas estas qualidades são raras, principalmente quando é preciso reuni-las. Tinham-me pedido que tratasse disso, e fizesse uma escolha. Ficavam-se absolutamente em mim. Tirei informações. Consultei os meus amigos, e afinal, não deparei com a fênix que se deseja no palácio de Chaslin.

— Meu querido doutor, é que procurou mal. A fênix, como diz, não é criatura que não se possa achar.

— Se a conhece, indique-ma. Sobre sua recomendação aceito-a de olhos fechados, e hoje mesmo ao jantar falarei nisso ao Duque e à Duquesa.

— Não entendo disso. As raparigas honestas não são a minha especialidade, respondeu César sorrindo, mas posso indicar-lhe uma casa que descobrirá, sem a menor dúvida, a ave rara em quarenta e oito horas.

O doutor fez um anui o muito pronunciado.

— Uma agência, perguntou ele, mau negócio, encontram-se aí coisas muito duvidosas.

— Falo-lhe, meu caro amigo, de uma casa responsável, que de certo conhece de reputação, cuja lealdade escrupulosa é proverbial, falo do escritório Malpertuis.

— Malpertuis! repetiu o doutor. Espera, de fato, tem razão! Casa conhecida e muito estimada, um dos meus amigos o Conde de Rouvay, ai pediu uma professora para a sua filha. Forneceram-lhe uma de que ficou maravilhado.

— Já vê...

— Onde é o escritório?

— Rua da Victoria n.°...

— É muito tarde para ir lá hoje, mas irei lá amanhã muito cedo. Pensa que o senhor Malpertuis terá o nosso negócio em vista?

— As suas relações são imensas. Se não tem à mão o que queremos, depressa a achará.

— Obrigado, meu querido Barão, até à vista, e safo-me. No palácio de Chaslin janta-se às sete horas, <e é preciso que eu vá me vestir.

— Não se esqueça de vir à rua Francisco I, quando se levantar da mesa.

— Aí estarei por volta das dez horas.

O doutor meteu num envelope a carta que ele escrevia no momento de chegar César, fez o sobrescrito, meteu o envelope numa carteira, pôs o chapéu, lançou o casaco por cima dos ombros, e deixou o café da Paz.

 

Seguiremos o seu exemplo, e conduziremos os nossos leitores a casa do Duque de Chaslin.

O palácio de Chaslin era situado na rua do Faubourg Saint Honoré, entre um grande pátio e um imenso jardim.

Dois portões, dando acesso ao pátio, permitiam às carruagens entrarem e saírem em fila nas noites de recepção.

O jardim estendia-se até aos Campos Elísios ,dos quais o separava uma grade.

Exatamente ao lado, à direita, achava-se o palácio do Visconde Armando de Grandlieu, cuja história trágica narramos há tempos.*

*Veja-se “Tragédias de Paris”, romance publicado por esta empresa.

 

Desde que a senhora de Chaslin fora acometida da terrível doença de que acabamos de ouvir o doutor falar ao Barão, o Duque cessara de receber visitas.

A ida de Helena para Besançon. o alistamento de Roger num regimento de cavalaria, tinham tornado ainda mais espessa e sombria a atmosfera de tristeza que pesava sobre o palácio.

A Duquesa, que se tornara muito nervosa, muito impressionável,, desejava a solidão, e já não se interessava com as elegantes frivolidades do mundo, conhecido perfeitamente que não tornaria a aparecer nele.

Alguns velhos amigos ainda sabiam, contudo, o caminho da casa consternada, vinham de tempos a tempos passar uma hora com o Duque.

A vida que passavam, forçosamente muito simples, já não lhes tornava necessária uma criadagem numerosa.

Era muito restrito agora o seu pessoal.

Compunha-se unicamente de um cocheiro, um criado de quarto. "m cozinheiro e urna mulher de idade, (a ama de Helena), servindo de criada de quarto á Duquesa uma segunda criada de quarto, e finalmente do porteiro.

Sabemos que a Duquesa pedira ao doutor que lhe encontrasse uma dama de companhia.

O doutor possuía toda a confiança e todas as simpatias da família Chaslin.

Parece-nos chegado o momento de entrar a este respeito em alguns pormenores.

De quase quarenta e cinco anos, instruído, inteligente, filho de um professor distinto da faculdade de medicina, Antonino Frébault, doutorado aos vinte e dois anos, estabelecera-se em Paris com uma clientela já criada, a que lhe deixara o pai.

O médico compreendeu que a fortuna não podia sorrir-lhe senão com a condição de ser pontual, trabalhador, e passar por 'um homem sério.

Mas ele era de temperamento sensual, e como se dizia no século XVIII, de compleição amorosa.

Dispôs habilmente as coisas de modo que perfeitamente conciliasse os seus gostos com as exigências do seu estado e os interesse do seu futuro.

De dia mostrava-se rígido e puritano nos seus discursos, na sua conduta, apesar de risonho e encantador para os seus doentes.

Das sete horas da manhã às sete da noite, entregava-se corajosamente aos seus deveres profissionais.

Terminado o seu dia, principiava vida nova; vida desregrada, com certeza mortífera para qualquer outro que tivesse constituição menos vigorosa.

Gozava, ou antes abusava de tudo, e, muitas vezes, depois de uma noite bem empregada, era com dificuldade que se tinha em pé.

Bastava-lhe uma hora para restabelecer o equilíbrio, pelo menos na aparência, e estróina desregrado, cedia a vez ao médico grave. Antonino Frébault estava talhado para viver cem anos.

Contudo, com aquela existência dos diabos, comprometia a sua saúde robusta, e de dia para dia perdia um pouco da solidez de que tinha orgulho.

Apressemo-nos a acrescentar que ele bem o sabia, apesar de muitas vezes fingir que gracejava a tal respeito.

Fora condecorado em 1871, depois de grandes serviços prestados nas ambulâncias durante a guerra e a comuna.

Vinte anos antes sucedendo ao pai, tornara-se a princípio médico, depois amigo da família de Chaslin.

Afora a sua mentira perpétua exigida pelo duplo modo de vicia que levava, o doutor era a franqueza em pessoa.

Sempre alegre e amável, mesmo nas suas horas de puritanismo oficial.

Uma vez por semana, jantava no palácio de Chaslin.

Era, na verdade, um sacrifício para ele que preferia grandemente à mesa aristocrática, um gabinete particular, ou companhia galante; mas, tomado o lugar, não podia subtrair-se ao que ele chamava o seu jantar de penitência.

Devem estar lembrados de que o ano de 1879 foi um ano terrível.

O verão fora um continuo dilúvio.

No outono, contudo, a inclemente natureza resolvera-se a conceder alguns belos das, depois as chuvas tornando o começar, trouxeram novamente as tardes frias e as noites glaciais.

Um lume vivo crepitava no fogão da grande sala do palácio de Chaslin.

A Duquesa estava meio deitada sobre uma chaise-longue colocada muito próximo do fogão, porque o doutor Frébault recomendava para a doente uma temperatura de estufa.

Como sabemos, a senhora de Chaslin tinha apenas quarenta e cinco anos, e também sabemos que. apesar dos seus sofrimentos resultantes da doença do coração, era ainda formosa.

O seu rosto de uma palidez mate, e feições regulares, de expressão melancólica e resignada, apresentava, no mais alto ponto, o tipo fidalgo.

Uma cabeleira sedosa e abundante, de um castanho claro, coroava o seu rosto emagrecido, em que brilhavam de um modo estranho, por efeito da febre, os grandes olhos de um azul sombrio.

Um grande véu de renda branca, posto na cabeça e atado por baixo do queixo com graciosa negligência, dava à sua cabeça esse aspecto vaporoso e poético procurado pela senhora de Mirbel nas suas miniaturas célebres.

Um penteador de cachemira branco guarnecido de renda de Alençon envolvia-lhe o corpo outrora merecedor de servir de modelo a um estatuário, e cuja beleza plástica era unicamente diminuída pelo emagrecimento.

O duque estava sentado defronte dela.

Apesar dos seus sessenta e cinco anos, do cabelo rente, e do comprido bigode, mais branco que grisalho, parecia dez anos mais novo do que realmente era.

Apenas algumas rugas imperceptíveis lhe sulcavam o rosto um pouco corado, e iluminado por cintilantes pupilas de um tom escuro com cintilantes de ouro.

A sua fisionomia muito viva devia ser expressiva.

Por pouco observador que se fosse, bastaria deitar-lhe um só olhar para se conhecer que, a despeito da sua idade, o Duque conservara a tríplice mocidade do cérebro, do coração e dos sentidos, e que as tempestades da paixão podiam desencadear-se debaixo dos seus cabelos brancos.

Nas casas velhas ateiam-se, às vezes, os mais terríveis incêndios.

 

PAI E MÃE

— Não sou da sua opinião, minha querida Joana, dizia o Duque continuando uma conversação começada, sustento que Helena estaria mais perfeitamente no seu lugar junto de vós, que junto da sua avó. Por que não havemos de a fazer voltar, em lugar de procurar por toda a parte uma dama de companhia tão difícil de encontrar?

— O afastamento de Helena é útil ao seu futuro, bem o sabe, meu amigo, respondeu a senhora de Chaslin, Conhece as vontades da minha tia Marta... Helena e Armando de Logeryl serão seus herdeiros, com a condição de que a neta não os deixará. Há dois anos a querida octogenária possuiu-se de uma apaixonada ternura por Helena, cuja presença parece prolongar a vida. Chamar a nossa filha neste momento seria cruel.

— Mas a senhora sofre com essa ausência.

— Às vezes, concordo, parece-me penosa e quase insuportável. Mas a reflexão tranqüiliza-me, e o meu pesar desvanece-se. Graças a Deus não sou egoísta, e prefiro o interesse de Helena à minha satisfação pessoal.

— Que importa a fortuna de madame de Rancey? Somos bastantes ricos para dotar largamente a nossa filha.

— De certo, mas devemos pensar também em Logeryl, Armando, noivo de Helena, terá metade da herança da tia. Chamar Helena seria talvez fazer cair sobre ele o justo ressentimento da senhora de Rancey. Demais, tenho outra razão, e muito forte, para não chamar Helena.

— Que razão?

— A querida criança, que sabe que eu estou doente, julgaria com certeza que eu tinha piorado de repente. A minha tia não deixaria de partilhar esta suposição, e a impressão poderia abreviar-lhe a existência. A gente velha toma medo quando vê os mais novos irem adiante.

— A minha querida mulher tem todas as delicadezas possíveis, murmurou o Duque; depois acrescentou: Que a sua vontade seja feita. Deixemos, pois, Helena em Pesançon, e continuemos a procurar uma dama de companhia. O doutor trata disso, parece-me.

— Sim, talvez nos diga esta noite que conseguiu.

— Desejo-o bastante por sua causa, Joana.

— Oh! exclamou a Duquesa sorrindo, sou paciente. Outra coisa, escreveu a Rogério, como lhe disse?

— Sim, esta manhã.

— Alguma carta comprida?

— Muito comprida.

— Não o assusta de certo com a minha situação doentia?

— Digo-lhe que está em plena via de convalescença, o que é verdade.

— Querido filho, exclamou Joana cujos olhos umedeceram. Não tarda que o vamos ver.

— Sim, não tarda.

— Estimará muito o seu regresso, não é verdade, Henrique?

— Não deve duvidar disso, observou o Duque comovido.

— Longe de mim o pensamento de lhe fazer uma censura, continuou a senhora de Chaslin estendendo para o marido a mão branca e aristocrática que apertou contra os lábios, mas se "Rogério partiu, o senhor teve um pouco a culpa.

— Não o ignoro, e tenho-o por mais de uma vez lastimado, bem sabe, apesar da minha dignidade paternal não permitir que eu, diante dele, concorde nisso.

— Rogério, continuou a Duquesa, tem como o senhor uma índole orgulhosa, altiva, toda de primeiros impulsos. Aos vinte anos era já um homem, e o senhor tratava-o muito como criança. Tinha feito loucuras, contraído dívidas, que sei eu? Oh! meu Deus, era da sua idade! Não foi também jovem? A sua grande culpa foi responder com muita vivacidade às suas repreensões muito severas. Mas como ele deplorava, no dia seguinte, o seu ímpeto... É um bom filho, ama seu pai profundamente. Dou-me por feliz com o seu regresso, porque firmemente creio que para o futuro não se levantará entre ambos a sombra de uma dúvida.

— Querida Joana, prometo-lhe...

— Depois, a vida militar deve ter-lhe sido útil. Afirmam que a disciplina abranda os caracteres mais rebeldes. Rogério está tocando nos seus vinte e quatro anos. É a idade de homem. Quando voltar, casá-lo-emos.

— Quer dizer que ele mesmo se casará.

— O que está dizendo? Não supõe de certo que ele queira subtrair-se à nossa influência em tão grave assunto?

— Tem idéias muito definidas, bem sei. Não admite os casamentos de conveniência em que de parte a parte o amor não existe. Quer amar a mulher com quem casar, e quer ser amado por ela.

_— Tem razão talvez. Todas as conveniências se podem achar "reunidas mim casamento de amor.

— Nós somos disso a prova, apoiou o senhor de Chaslin. Amávamo-nos quando nos casamos, e ainda nos amamos...

Neste momento a campainha do palácio soou, anunciando uma visita, e no fim de meio minuto, o criado de quarto introduziu Antônio Frébault.

O senhor de Chaslin deu alguns passos para o doutor, e apertou-lhe a mão.

O singular personagem cuja quase dupla existência conhecemos, aproximou-se de Joana, cumprimentou-a respeitosamente e disse-lhe.

— Oh! está me parecendo, senhora Duquesa, que vamos hoje muito bem.

— Sim, querido doutor, replicou a doente. Passei um dia muito sossegado, as palpitações deixaram-me quase de todo. Sério, isto vai melhor, não é assim?

— Vai de tal modo melhor, que é chegado o momento em que não a virei ver senão como amigo.

— Que receita?

— Continuar a tomar as pílulas de digitalina.

— Mais nada?

— Mais nada.

— Tratamento fácil! Doutor, tratou do que lhe pedi, da minha aia?

— Pedia-a a todos os ecos.

— E os ecos o que lhe responderam?

— Nada, por enquanto; mas tenho a firme esperança, senão a certeza absoluta, de que responderão amanhã.

— Num sentido favorável?

— Com certeza.

— Assim que tiver conseguido alguma coisa, virá avisar-me.

— Sem perda de um minuto. A senhora Duquesa pode contar com isso.

— Doutor, o senhor é o homem mais amável do mundo. Esta noite há de demorar-se muito conosco, sim?

— Eu queria, senhora Duquesa, poder responder-lhe de um modo afirmativo, mas prometi achar-me às dez horas em casa de um dos meus doentes.

— Em suma, será nosso até às nove horas e meia, disso o senhor de Chaslin. Não se deve exigir mais de um homem carregado de trabalho.

— Efetivamente estou doente, mal pude tomar algum repouso a noite passada. Os deveres profissionais trouxeram-me a pé até ao romper do dia.

— Pobre doutor! Que coragem! Mata-se para salvar os outros! Na verdade é heroísmo!

Antonino Frébault fazia cumprimentos sobre cumprimentos, murmurou:

— Que bondade, senhora Duquesa! Mil vezes muito bondosa! A porta da sala abriu-se outra vez, e o criado de quarto anunciou:

— O senhor Visconde de Logeryl...

Armando de Logeryl, substituto do procurador da República e noivo de Helena era um rapaz de vinte e sete a vinte oito anos, bonito, distinto, e de fisionomia séria.

De boa família, muito bem aparentado, mas sem fortuna, o seu casamento com a menina de Chaslin e a sua parte da herança futura da senhora de Roncey, deviam dar-lhe uma grande situação pecuniária.

Não deixava por isso de trabalhar com afinco, como se o seu futuro só dependesse do seu acesso na magistratura.

No seu rosto um pouco pálido viam-se-lhe vestígios de fadiga. O Duque notou-lhe isso, após a troca de um certo número de banalidades afetuosas.

— É verdade, replicou o substituto sorrindo, que neste momento estamos muito carregados no tribunal. Os crimes abundam.

— Conte-nos algum crime interessante, Armando, disse a Duquesa; adoro as histórias terríveis e as comoções que elas produzem.

— Comoções que lhe proíbo absolutamente! interrompeu o doutor. Sossego, sossego e mais sossego, eis a minha receita. Nem alegria, nem pesar, nem surpresa, nem medo... a mais absoluta monotonia mesmo um pouco de tédio e tudo irá bem. Peço-lhe. pois, meu caro substituto, emprazo-o até, se tanto for preciso, que se abstenha de qualquer narrativa um pouco comovente.

— Meu querido doutor, volveu Armando com um sorriso, conte com a minha obediência.

— Em todo o caso, sempre queria saber em que alturas vai esse negócio muito curioso de que Armando nos falava há algum tempo, retorquiu a Duquesa.

— Que negócio? perguntou o Visconde.

— Ah! nem uma palavra mais, interrompeu Frébault.

— Não há que receitar comoção alguma, afianço-lhe, doutor, retorquiu a senhora de Chaslin. Um mistério a penetrar, mais nada. Referia-me ao negócio de Courbevoie...

— Fanny Vernaut, a infanticida? exclamou o substituto.

— Sim, isso. Há mais alguma novidade?

— Não, minha querida tia, mas pode ser que não tarde. — Como?

— Lançamos a polícia na pista de um certo Pedro Redon, que decerto nos poderá dar a esse respeito informações úteis.

Esse Pedro Redon está também comprometido neste negócio?

— Não, pelo menos até agora. Só o que se supõe é que, entre ele e Fanny Vernaut, existiam relações muito íntimas.

— A polícia descobri-la-á?

— Se não deixou Paris, por que não? Os agentes da segurança são hábeis e descobrem geralmente o que procuram. Depois nada prova que Pedro Redon tenha interesse em se ocultar.

— Há de trazer-me a par de tudo, sim?

— Prometo-lhe.

A conversa foi interrompida.

Apareceu o criado de quarto fazendo as funções de mordomo, o qual proferiu a frase sacramentai:

— A senhora está servida!

 

Deixemos os convivas do Duque de Chaslin, passar à sala de jantar e roguemos aos nossos leitores que nos acompanhem, por volta das dez da noite, à rua de Francisco I. ao palácio de Heitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant.

Uns quinze convivas, entre os quais se achavam cinco ou seis mulheres, acabavam de deixar a mesa hospitaleira e luxuosamente servida, cujas honras tinham sido feitas por Genoveva, a ciumenta amante de Heitor.

Digamos de passagem que Genoveva era uma bonita rapariga de quase vinte e seis anos, cujos cabelos eram negros por natureza, mas se tinham tornado ruivos, graça são emprego de uma tintura inglesa muito conhecida e muito estimada.

Sob aquela trunfa de esquilo estopentado, os seus olhos negros, cintilantes e as suas sobrancelhas pretas bem arqueadas produziam o efeito mais original e mais picante que é possível imaginar-se.

Aquele contraste tornava-a esquisita, dava-lhe um chic, um relevo de arromba, como dizia, então, o príncipe Totor.

O coral dos lábios servia de estojo a trinta e duas pérolas deslumbrantes.

O talhe esbelto. a garganta firme e saliente, as ancas fortes, completavam Um todo cheio de provocação.

Só os pés e mãos mostravam grande falta de delicadeza e denunciavam ausência de raça.

Genoveva substituía o espírito que lhes faltava por um imperturbável aprumo e uma tagarelice às vezes garota.

Trajava, com elegância natural e um chic indiscutível, às mais excêntricas toilettes.

O ouro e as notas de banco volatilizavam-se-lhe literalmente entre os dedos, sem que depois fosse possível dizer em seguida por onde tinham passado, porque não ficavam restos.

Porém, um tão furioso gosto pelo gastar, só podia fazer 'uma insignificante brecha nos milhões do principezinho.

Durante o jantar não se dera incidente algum digno de menção, salvo uma cena de ciúme de Genoveva, rebentando como uma bomba sob um pretexto bem simples.

Esta cena, acolhida por Heitor com um estoicismo que se parecia muito com a indiferença, fizera extraordinariamente franzir o sobrolho a um dos convivas do Príncipe.

Acabavam, como dissemos, de sair da sala de jantar e transpor a entrada da sala de fumar, onde deviam tomar o café antes de se instalarem para o resto da noite à mesa de bacarat preparada na sala principal.

A sala de fumar forrada de couro fulvo e alumiada pelas cem velas de um lustre de ferro forjado, era mobiliada com assentos de couro semelhante ao forro das paredes.

Quatro móveis de ferro esculpido, tendo pouco mais ou menos o feitio de estantes de livros, continham em lugar de livros, caixas de charutos das grandes marcas de Havana.

 

HEITOR NA SUA VIDA ÍNTIMA

Nas almofadas que ficavam entre os móveis de ébano ostentavam-se panóplias muito curiosas, compostas de armas de toda a espécie, algumas das quais eram bastante raras para fazerem inveja ao museu de artilharia.

Havia ali espadas antigas de todos os países; folhas florentinas e folhas de Toledo, adagas cinzeladas e damasquinadas, durindanas de um comprimento inverossímil, estiletes triangulares, e punhais de misericórdia, cimitarras e kandjiars; — armas de fogo de várias proveniências; mosquetes, bacamartes, espingardas, pistolas, revólveres, carabinas, rifles americanos, armas orientais de bainhas incrustadas de pedras preciosas, armas inglesas, espanholas, russas; kriss, yatagans, arcos de grandes dimensões, flechas ornadas com penas de cores brilhantes, etc, etc.

Debaixo das panóplias havia divans forrados de couro.

Quando davam dez horas, a chegada do doutor Antonino foi acorda pelas alegres exclamações das mulheres, e os cordiais apertos de mão dos homens.

Passando do palácio do Duque de Chaslin ao do Príncipe Heitor, o médico transfigurara-se completamente.

A gravidade profissional, a austeridade emprestada tinham desaparecido.

O seu rosto redondo e rubro estava radiante.

Nos seus olhos esmerilados refulgia o espírito gaulês.

Os lábios sorriam-lhe com uma expressão alegremente rabelesiana.

No meio das ágapes da sociedade onde a gente se diverte, o bom doutor via-se no seu elemento.

Para respirar desafogadamente tinha necessidade de uma atmosfera adensada pelo fumo dos charutos e o perfume das mulheres.

César de Fossaro aproximou-se dele.

— Então, caro doutor, perguntou, como vai a Duquesa.

— Exatamente o mesmo, respondeu Antonino. Nenhuma modificação se produziu num ou noutro sentido.

— O seu estado continua a parecer-lhe muito grave?

— Mais do que nunca. Na minha opinião não há probabilidades de salvamento. Para salvar a Duquesa seria preciso um milagre. Ora nós vivemos num século de ceticismo em que os milagres já não são moda. A existência da senhora de Chaslin pode prolongar-se ainda por algum tempo, mas torna-se inevitável um desenlace fatal.

— Ela falou-lhe na missão de que o encarregara? Relativamente a uma aia?

— Falou, e fiado na informação que o senhor me deu, entendi que podia prometer-lhe lima solução favorável em breve prazo.

— Podia fazê-lo afoitamente, verá que sou homem de bom conselho.

— Amanhã irei fazer uma visita ao escritório Maupertuis. Portanto, amanhã os negócios sérios, e esta noite toca para a alegria!

No momento em que se trocavam estas palavras entre os dois homens, Genoveva julgou conveniente dar sinal de si com um novo aranzel.

Heitor sem ser por mal, e por simples hábito de galanteria, acabava de beijar os ombros nus de uma jovem que lhe apresentava uma chávena de café sorrindo.

Na verdade, este pecado venial merecia indulgência.

Genoveva não entendendo assim, achou conveniente ter uma explosão, e fê-lo com energia pouco comum.

Heitor acolheu os seus clamores ciumentos com uma gargalhada zombeteira.

Exasperada, ou fingindo estar, Genoveva berrou::

Ah! principiam por me insultar, e depois zombam de mim! Pois muito pior, porque vou fazer uma desgraça.

Correu para uma das panóplias, agarrou numa flecha indiana, e brandindo-a, ameaçou a sua rival.

— Safa! minha querida, nada de brincadeiras! gritou Heitor fazendo-se pálido! Larga esse bonito! Isso morde! Uma simples picada, e vão-se desta para melhor!

Estas palavras sossegaram Genoveva como por encanto. Sentou-se toda trêmula num divãn, deixando cair a flecha que o principezinho apanhou precipitadamente.

— Então essas armas estão envenenadas? perguntou o Barão Fossaro.

— Sim, meu caro, respondeu o ex-Bégourde, o amigo que mas trouxe há alguns dias, dos países os mais selvagens, disse-me que as pontas de aço postas em brasa eram imersas no curare, um veneno de um chic colossal. Uma simples arranhadura que não vale nada, e zás era uma vez!

— E o seu amigo falou verdade?

— Aqui para nós, duvidava um pouco, mas já não duvido. Fiz uma experiência.

— E sobre quem, santo Deus?

— Num cão das minhas cavalariças... Ah! afianço-lhes que o pobre totó nada sofreu. Mal o piquei, foi-se.

— Nada mais verdadeiro, confirmou o doutor. O curar,: é fulminante, e os índios são considerados mestres na arte de envenenar as suas flechas.

— Pode acontecer um acidente, meu bebe, exclamou Genoveva, não pensando já no seu ciúme. Dá ordem para suprimir esses horrores?

— Seria pena, replicou o Príncipe, estas flechas são de um chic enorme, mas eu mandarei por umas rolhas de cortiça nas extremidades.

César de Fossar tinha escutado com muita atenção tudo o que precede.

Quando a conversa mudou de assunto, passou a mão sobre a fronte e fez a Genoveva um sinal imperceptível.

A jovem pegou numa caixa de charutos, aproximou-se dele com um sorriso e disse:

— Meu querido Barão, aceite um destes regalios britannica. Afirmam-me que são deliciosos.

César enquanto escolhia um charuto, murmurou em voz muito baixa:

— Tenho que te falar, minha pequena. Amanhã às onze horas da manhã, procurar-te-ei.

— Onde?

— Em tua casa.

— Mas se fico aqui esta noite! replicou Genoveva no mesmo tom.

— É preciso não ficares.

— Então é coisa séria?

— Muito séria.

— Trata-se do Príncipe?

— Trata.

— Aposto que me engana?

— Amanhã to direi.

Tomado o café, o jogo reclamava os seus fiéis.

Passaram para o salão, onde a mesa do bacará foi logo rodeada.

— Aposto quinhentos luíses, disse Heitor.

Pelas três horas da manhã, César de Fossaro, com cem luíses de ganho, deixou a rua Francisco I, e voltou para o palácio da rua de Provence.

O seu criado de quarto, conforme as ordens, não o esperando, deitou-se e adormeceu profundamente, mas com a firme intenção de despertar às sete horas.

Efetivamente a esta hora abriu os olhos, saltou da cama abaixo, chamou o criado e tratou da sua toilette à qual dava cuidados minuciosos.

Pegou, em seguida, numa folha de papel, e escreveu as seguintes linhas:

"Hoje de manhã o doutor Antonino Frébault, apresenta-se de certo do escritório.

"Importa fingir que estás ausente, e não o receberás senão depois de teres falado comigo."

Assinou com as duas iniciais P. C, e meteu a carta no envelope, subscritor para Malpertuis, com a declaração: muito urgente; abriu uma gaveta do escritório, e tirou um molho de chaves e um número do Gaulois, e meteu tudo nas algibeiras do seu "pardessu".

Fritz, chamado por um toque de campainha, acudiu.

— Almoço fora, disse-lhe César, avisa a cozinheira.

— O senhor Barão sai a pé?

— Saio. Dá ordem a João para se achar às duas horas em ponto como o coupé na rua Francisco I, à porta do palácio do Príncipe de Castel-Vivant, se eu até essa hora não tiver voltado.

— Bem, senhor Barão...

 

O senhor de Fossaro deixou no porteiro da rua da Victoria o bilhete lacônico destinado a Malpertuis, seguiu a rua de Provence até à rua de Lafayette, subiu para um trem de praça que passava vazio, e disse ao cocheiro:

— Rua de la Chapelle, n.° 44.

— Às horas ou por corrida, freguês?

— Por corrida, e bate bem. Boa gorjeta!

O cavalo estava folgado, e partiu a grande trote.

O maior número dos nossos leitores ignoram de certo que as primeiras casas da rua la Chapelle, do lado dos números pares, tem duas entradas, e, por conseguinte, duas saídas, uma para a rua de la Chapelle, outra para a rua de Philippe de Girard.

Estas casas de construção já antiga, têm, na maioria, pátios, rodeados de grandes edifícios.

Os peões que desejam evitar uma grande volta para irem da rua de la Chapelle à rua Philippe de Girard, e vice-versa, atravessam os pátios com perfeita sem-cerimônia, aceite aliás pelos proprietários e pelos porteiros.

Estes, habituados ao vai-vem que principia por volta das sete horas da manhã e termina de noite, não dão nenhuma atenção aos indivíduos que entram por 'um lado para saírem pelo outro.

A carruagem que conduzia César de Fossaro, parou no número indicado.

O Barão pagou ao cocheiro, e penetrou no corredor de abóbada que conduzia a um dos vastos pátios de que falamos.

Os corpos do edifício que rodeavam este pátio tinham grande número de escadas designadas pelas letras do alfabeto.

César subiu a escada D, estreita e sombria, e não parou senão no terceiro andar.

Começava num comprido corredor escuro, para o qual deitavam muitas portas numeradas.

Dirigiu-se à do fundo, que tinha o número 12, tirou da algibeira o molho de chaves, escolheu uma, introduziu-a na fechadura, abriu,, entrou, e fechou rapidamente a porta sobre si.

Decorreram vinte minutos.

No fim deste tempo a porta número 12 girou novamente sobre os gonzos, e um homem saiu.

Parecia ter uns cinqüenta anos.

Tinha cabelos castanho claro e suíças da mesma cor.

O seu rosto de tons acobreados, tinha uma expressão brutal.

Um só olho, de estranha mobilidade, brilhava naquele rosto.

A órbita do outro estava vazia, sanguinolenta e horrível.

O traje daquele estranho personagem, que muito vagamente lembrava César de Fossaro, era de um simples empregado, que vivesse remediadamente, e que saia com certeza desses alfaiates em que a negligência do acabamento, denuncia a modicidade do preço.

Tinha na cabeça um chapelinho redondo e trazia um guarda chuva. ,

— O cego de um olho fechou a porta, meteu o molho de chaves na algibeira, desceu a escada, atravessou o pátio, e dirigiu-se para a saída da rua Filippe de Girard.

Seguiu esta rua até ao Square de la Chapelle, onde se acha uma estação de carruagens. Tomou ali um trem.

— Aonde vamos? perguntou o cocheiro.

— A Belleville.

— Que rua?

— Rua da Criméa. Deixar-me-á à entrada, junto do Square. Às oito horas o trem parava no local indicado.

O cego de um olho dirigiu-se a pé para a rua Compans, situada na vertente oeste das alturas de Belleville.

Costeou-a durante cinco minutos, e chegou em frente de um muro bastante elevado, coroado de era.

Por cima da muralha avistavam-se as copas de velhas árvores, que as compridas noites de outono principiavam a amarelecer.

Uma porta de um só batente, pintada de escuro, abria-se na parte central do muro.

O cego agitou duas vezes seguida a corrente da campainha, e ouviu-se um toque no jardim.

O toque, repetido duas vezes, devia então ser um sinal.

O ruído de uma porta que se abria e fechava, e o de um passo rápido fazendo ranger a areia de um jardim, chegaram sucessivamente ao ouvido do visitante.

Ouviu-se um correr de fechos, a porta entreabriu-se, e uma mulher de cinqüenta para cinqüenta e cinco anos, magra, má cor, mal encarada, apareceu no limiar da porta.

— Olá! é o senhor Pedro! exclamou a mulher fazendo uma careta à maneira de sorriso. Já de volta!

— Sim, Margarida.

— Não o esperávamos tão cedo.

— Não me impeça o caminho. Margarida, peço-lhe, e feche a porta atrás de mim.

 

A FASCINAÇÃO

Margarida obedeceu.

— Branca está levantada? perguntou Pedro.

— Ainda não, senhor Pedro. A pobre menina esteve ontem um pouco doente e quis que ela hoje descansasse.

— Está ao menos acordada?

— Ah! quanto a isso, sim.

— Bem, previna-a de que estou aqui e que peço me receba. Tenho que falar com ela.

— Bem, senhor Pedro, aí vou.

— Um instante... que se tem passado no chalet há mais de oito dias?

— Nada absolutamente.

— Que fez Branca?

— O que ela faz sempre. Leu, cultivou as suas flores, pintou, repenicou no piano e cismou muito.

— Não houve cóleras sem motivos? crises nervosas? maus humores?...

— Não, senhor Pedro. De tempos a tempos uma pouca de melancolia, mais nada.

Trocando estas palavras os nossos dois personagens seguiam uma rua areada, que descrevia graciosos meandros em roda de um tabuleiro de relva ensombrado por grandes árvores.

Num e noutro ponto ocultavam maciços de arbustos e caixas de flores.

No fundo do jardim via-se um bonito "chalet" minúsculo composto de um "rez-de-chaussée" e de um primeiro andar, parecendo uma destas curiosidades de mesa de sala que se fabricam às grosas na pátria de Guilherme Tell.

Margarida abriu a porta do "chalet" arredou-se para deixar passar o visitante, fechou a porta atrás deles e perguntou:

— Almoça com a menina?

— Não, pouco posso demorar-me aqui. Apresse-se para avisar Branca.

Enquanto Margarida subia a escada que conduzia ao primeiro andar, o cego sentou-se e deitou em roda um olhar investigador.

Achava-se numa espécie de saleta mobiliada com uma simplicidade que não excluía a elegância.

Um piano carregado de músicas, uma aquarela quase acabada em cima de uma mesa, um esboço, muito vigoroso de tons, colocado num cavalete, em plena luz, denunciavam o gosto e as inclinações de artista do habitante do "chalet".

No fim de menos de um minuto, Margarida tornou a aparecer.

Disse logo:

— Achei a menina já levantada; ao toque da campainha espreitou por entre as cortinas. Reconheceu-o e preparou-se logo para o receber.

— Ela parece satisfeita com a minha visita matinal?

— Não sei se está contente, o que sei é que treme segundo o costume... é que o senhor mete-lhe medo, e quando olha para ela com o seu olho bom, já não sabe onde se há de meter.

— Posso subir?

— Pode, porque Branca espera-o.

O cego subiu e parou em frente de uma porta.

Bateu.

A porta abriu-se e deixou ver a mais deliciosa criatura que é possível imaginar-se.

Era uma criança de dezenove anos, delgada, mas não magra, de contornos delicados e cheios de promessas, de rosto um pouco sério.

Os grandes olhos de um azul sombrio, animados de uma chama muito viva, pareciam cismadores e olhavam com franqueza.

A boca de uma frescura de rosa que acaba de entreabrir, o nariz reto e delgado de cartilagens nervosas, a fronte bem desenvolvida mas um pouco baixa, como a das estátuas antigas, e coroada de uma espessa e macia cabeleira de um louro cinzento, fino e suave quanto podia ser, flutuavam-lhe sobre os ombros, completando um todo delicioso.

Naquele momento a fisionomia de Branca exprimia a timidez, mas sem custo se adivinhava que também podia exprimir a cólera e a energia.

Acrescentemos que um escultor se entusiasmaria, pelas extremidades finas e fidalgas daquela sedutora criatura, e teremos esboçado o retrato de Branca Renée, a filha de Clara Gaillet.

Era falando de Branca que o Barão de Fossaro dizia na véspera a Malpertuis:

— Posso ter a certeza de ser seu pai?

A jovem envolvia-se num comprido penteador de cachemira branca que a tornava adorável, desenhando-lhe as formas nascentes.

Esperava ver o cego, e contudo, exatamente no momento em que lhe apareceu, a pobre menina tornou-se um pouco pálida, e um calafrio passou-lhe pela epiderme aveludada.

— Bom dia, senhor Pedro, disse ela baixando os olhos sob o olhar do visitante.

— Bons dias, Branca, volveu Pedro. Bons dias.

Vendo-o avançar para ela, ouvindo-lhe a voz breve e sacudida, a jovem deu involuntariamente um passo para trás.

Depois, como fascinada pelo olhar do único olho que se fixava nela, parou palpitante, quase desfalecida.

O cego pegou numa das mãos que sentiu tremer na sua.

Inclinou-se para ela. e pousou-lhe os lábios na fronte.

Sob a impressão daquele beijo glacial, o coração de Branca deixou de bater durante um segundo.

Pedro não notou, ou pelo menos não pareceu notar, aquela visível comoção.

— Margarida preveniu-a de que teríamos de conversar?

E Pedro fez esta pergunta, transpondo o limiar de um bonito quarto virginal, forrado de azul e branco.

— Sim, senhor.

— Sente-se e escute-me.

Branca pareceu recuperar "um pouco o sangue frio. Ofereceu uma cadeira ao recém-chegado, sentou-se também e balbuciou:

— A sua ausência durou pouco tempo, senhor Pedro?

— Não me ausentei.

— Mas o senhor tinha-me falado muna viagem...

— Que não se efetuava, interrompeu Pedro. Não deixei Paris, onde me ocupei da senhora.

A jovem levantou a cabeça e olhou para o seu interlocutor, ousando pela primeira vez arrostar a fixidez do olhar que a assustava.

— De mim, o senhor ocupou-se de mim?

— Sim, a menina tem dezenove anos. Está na idade de me compreender e de me ajudar. Conheço-a bem, conheço-a melhor do que se conhece a si mesma.

Branca fez um gesto de assombro. Pedro continuou:

— O fundo do seu caráter é a energia, apesar de tremer na minha presença. Meto-lhe medo. Donde provém esse medo que o procedimento não justifica? Ignoro-o e não procuro sabê-lo. Obedece-me, e obedecer-me-á sempre, é o que quero, porque da sua obediência depende o futuro que lhe preparo, e que a senhora não se atreve a imaginar, futuro de grandeza, de riqueza, de luxo, de prazer.

Branca já não tremia.

Escutava o seu interlocutor com ardente atenção, sem baixar os olhos sob aquele olhar fixo; uma nuvem cor de rosa subia-lhe às faces; as narinas palpitavam-lhe. No azul das suas pupilas acendia-se uma chama de cobiça.

Observando o efeito que as suas palavras produziam, o cego sorriu.

— O que lhe digo não lhe causa admiração? perguntou.

— Não, respondeu Branca.

— Por que?

— Porque sei que lê no meu íntimo como no fundo da minha alma, e que os meus sonhos e aspirações nada têm de oculto para o senhor. B por isto que tenho medo do senhor, ou antes porque receio a sua perspicácia terrível, porque me é impossível por em dúvida a sua dedicação, e da mesma forma o seu desejo de assegurar a minha felicidade.

— Compreende-me então? exclamou Pedro. — Parece-me que sim.

Esperava-o sem ter a certeza disso, volveu o cego. Agora tenho uma prova. Sim, leio na sua alma, sim, compreendo os seus gostos, os seus instintos, os seus desejos, e é o que tornará o acordo entre nós bem fácil. Desde que a estudo, à medida que a criança se transformava em menina, observava-lhe o desenvolvimento de uma imaginação ardente, de um espírito inquieto e investigador, de uma alma apaixonada, ávida de prazer, disposta para se apropriar, no mundo, de um bom lugar, e viver nele como uma rainha. É verdade isto ou não?

Branca inclinou a cabeça e respondeu:

— É verdade.

Pedro sorrindo novamente, continuou:

— Em lugar de reprimir esses instintos que podiam tornar a sua alma indomável, fazendo-a um foco de desejos, alimentei-os falando-lhe das alegrias da vida parisiense, dos seus esplendores, dos seus amores... Desenrolei diante dos seus olhos romances cheios de quadros ardentemente coloridos, de pinturas violentas mas exatas do meio onde aspira a viver. Hoje, sem nunca ter deixado a sua solidão, nada a assombra! Conhece já o mundo que ainda não viu. Organização excepcionalmente dotada, tem todas as intuições, a do bem, a do mal... teria até. se preciso fosse, a do crime.

Branca não pestanejou; mas por segunda vez, desde o princípio da conversa, passou-lhe pela epiderme um calafrio, e as pálpebras tremeram-lhe.

Pedro prosseguiu:

—Se tivesse empreendido domá-la, não teria conseguido da senhora senão revolta, revolta silenciosa, talvez, mas invencível. Talvez tentasse destruir o jugo. Hoje não o tentará sabendo aonde quero conduzi-la. Quando a recolhi ainda criança adivinhava futuro que a esperava. Deve-me muito, e ainda me há de dever mais. Abandonada por mim, caída, em mãos indignas, tornar-se-ia fatalmente uma dessas criaturas perdidas, que são ricas enquanto formosas, e por quem espera o hospital, ou os quartos de uma casa de doidos.

Branca fez um gesto de surpresa.

Pedro prosseguiu:

— A educação não pôde mudar o sangue que lhe corre nas veias, mas aprendeu ao menos a dominar o ímpeto dos seus pensamentos, a calcular, a refletir, a servir-se finalmente da sua inteligência, para contrabalançar os seus instintos. Se quisesse fazer da senhora uma atriz, sem custo alcançaria a proeminência, porque esse rosto sabe exprimir comoções que não sente, e a sua voz é sublime na tradução dessas comoções. É um dom precioso que lhe há de servir. Será comediante fora do teatro, no palco do mundo. Diga-me que a avaliei hem, que é tal qual a veio, ou a creio ver, e abrirei a seus olhos os mágicos horizontes que lhe aparecem em sonhos. Fale, que estou ouvindo.

Pedro calou-se.

Branca, pálida agora, os lábios cerrados, as mãos crispadas sobre os joelhos, olhava com verdadeiro terror para o homem que assim lhe lia na alma.

Metia-lhe medo, não por conhecê-la tão bem, mas porque não compreendia que misteriosa intuição lhe fazia adivinhar tudo aquilo.

A palavra: Fale! produziu nela o efeito de uma comoção elétrica. A sua verdadeira índole logrou manifestar-se. Dominou a comoção, e sem hesitar respondeu com uma voz vibrante:

— Julgou-me bem. Sou tal qual me vê. Orgulhosa, ambiciosa, tenho sede de todas as ostentações do luxo, de todos os triunfos. Sufocava-me nesta habitação, ou antes nesta prisão, e se não me queixo, é porque pensava em fugir. A vida tranqüila e banal, rotineira e monótona, é um suplício para mim. Careço da existência ardente, aventurosa. A obscuridade asfixia-me! Quero a luz! Aspiro às grandes comoções, sobretudo às coisas extraordinárias. Hei de deixar ficar muito para trás as pálidas heroínas dos romances que tenho lido. Os homens, tais quais os meus livros mos fizeram conhecer, inspiram-me uma piedade desdenhosa. O meu ideal é dominá-los, avassalá-los, o que será fácil, porque sou bela, e fazer da sua credulidade, da sua fraqueza, dos seus vícios, degraus para atingir os cumes do mundo. Chega a tempo, meu mestre, porque a minha paciência está esgotada. Mostre-me os caminhos que conduzem ao fim desejado, e eu os seguirei até ao fim, sem uma hesitação, sem um desfalecimento. Estou pronta, estou forte, estou armada. Há de ficar satisfeito comigo.

Branca calou-se, ofegante.

— Crês-te forte, e com efeito o és! disse o cego tratando pela primeira vez a sua pupila por tu. Mas toma cuidado.

— Em que?

Podes encontrar no caminho certo escolho que te faca tropeçar.

— Qual?

— O amor.

A jovem encolheu os ombros.

— O amor! repetiu em tom de desprezo. Não será para mim nem um obstáculo, nem um instrumento. Inspirá-lo-ei, não sentirei. Amar-me-ão de um modo mortal, e eu não amarei ninguém.

— Tens a certeza de sempre dominar o teu coração?

— O meu coração! repetiu Branca com um sorriso intraduzível.

O senhor que lê em mim, bem sabe que não o tenho. Faça um sinal e eu caminharei. Que espera de mim? que me oferece?

— Espero uma obediência absoluta. Ofereço-te em troca uma coroa de duquesa e milhões.

 

CONTINUAÇÃO

Branca estremeceu. Os olhos cintilaram-lhe.

— Uma coroa de duquesa, repetiu. Milhões! É possível!

— Há pouco falava em escalar o mundo. Dizias: Mostre-me o caminho! Bem, mostro-to.

— Como chegar lá?

— Por um casamento que te deixará em pouco livre e rica.

— Parece-me um sonho!

— É contudo a realidade!

— Onde me espera esse casamento?

— No palácio do Duque de Chaslin.

— Que devo fazer?

— Obedecer-lhe passivamente, cegamente, repito.

— Obedecerei.

— É preciso lutar.

— Lutarei.

— É preciso mentir, por a máscara, desempenhar um papel. Branca sorriu.

— Poderia ser comediante, uma das principais, volveu. O senhor o disse. Sei o que valho, e sinto-me capaz de enganar os mais perspicazes. Que tenho a fazer?

— Atear uma paixão louca no coração de um velho.

Branca agarrou com as mãos os seus cabelos flutuantes, e passou-os para o peito.

— Não tenho vinte anos, disse, e sou bonita. Será fácil. Esse velho com certeza é o Duque de Chaslin?

— É.

— É viúvo?

— Casado, mas depressa será viúvo.

— É então da mulher que tomarei o lugar?

— Exato. A duquesa Chaslin, atacada de uma doença que checa ao seu último período, está condenada irremediavelmente pelos médicos.

— Que tempo lhe resta de vida?

— Algumas semanas, alguns meses, o muito. Demais, se isto se prolongasse muito, veríamos o que se havia de fazer.

O sinistro sentido destas últimas palavras não passou desapercebido de Branca e fê-la estremecer, mas reagiu depressa contra esta comoção puramente nervosa.

— Depois?

— Há dois herdeiros, um filho e uma filha. A todo o custo lhes deve captar as simpatias.

— Hão de amar-me, se eu quiser que me amem, e hei de querer, porque assim é preciso.

— Ainda não é tudo. A filha do Duque tem um noivo, o Visconde de Logery. Este pode tornar-se perigoso, porque, na sua qualidade de substituto do procurador da república, deve ser desconfiado, senão perspicaz.

— Encarrego-me de lhe por, como nos de mais, uma venda nos olhos. Onde é que o Duque me encontrará?

— No palácio de Chaslin, onde vais ser dama de companhia da Duquesa.

Branca fez um gesto de profunda repugnância.

— Criada! exclamou, nunca!

— Já uma resistência! disse o cego num tom ameaçador. Não foi isso que me prometeste?

— O meu orgulho revolta-se. Estou pronta para tudo, menos para me humilhar.

— Pode-se Curvar a cabeça, quando se tem a certeza de bem depressa a tornar a levantar. Hoje serva, serás amanhã Duquesa e milionária.

— Bem, tornou a jovem, após um momento de silêncio. Submeto-me. É o senhor que me introduz no hotel do velho Duque?

— Não sou eu. Tu nunca me viste. Nunca existi para ti.

— Então quem há de ser?

— Que te importa?

— É justo. Sob que nome sou apresentada?

Pedro tirou da algibeira uma carteira, e escolheu vários papéis que deu a Branca.

— Eis a minha resposta, disse. Olhe...

Branca deitou os olhos para os papéis que o cego lhe apresentava.

— Duas certidões de óbito... murmurou. Urna certidão de nascimento, a de Adriana Maria, filha legítima do Conde Heitor de Lasseny, e de Luciana Aurelia de Pont-Landry.

Depois, de ler, olhou para o cego como para o interrogar. Esta certidão de nascimento é tua, replicou. Mas tu serás conhecida a princípio sob o nome de Adriana, mais nada. Então para que servem esses papéis?

— Num dado momento hão de te servir.

— Essas certidões são falsas, não é verdade?

— Autênticas.

— Pois eu sou verdadeiramente filha do Conde de Lasseny?

— Ainda não chegou o momento de responder a essa pergunta. Ninguém no mundo te pode contestar a situação de filha nobre e de órfã... Bastar-te-á isso para seres duquesa.

— Que o Conde de Lasseny seja ou não meu pai, passarei por sua filha. Mas...

— Mas o que?

— Podem interrogar-me. Devo conhecer a sua história.

— É muito simples. O Conde Heitor, possuidor de uma bela fortuna, ostentava em Paris grande luxo. Jogava na bolsa e figurava nas corridas. Arruinado repentinamente em 1852 pela quebra do seu banqueiro, coincidindo tudo isto com uma baixa repentina dos fundos públicos, e perseguido pelos seus credores, refugiou-se em Londres, onde o seguiu a mulher, e onde viveram numa mediocridade próxima da miséria. O Conde morreu em 1860 deixando a mulher grávida. A Condessa deu à luz uma filha, Adriana, e morreu também. A filha foi recolhida por um excelente homem, um amigo do Conde Heitor, que a colocou num colégio como pensionista, e no qual recebeu uma bela educação. Adriana chegava aos dezessete anos, quando o seu protetor, James Scoot, fez saltar os miolos, levado a isso por maus negócios. A jovem ficou sem outros recursos mais que os da sua instrução, e sem outro sustentáculo além de uma velha francesa chamada Genoveva,. criada de James Scoot.

Branca escutava com a maior curiosidade e assombro.

 

O tentador prosseguiu:

— Deixou Londres e veio a Paris, esperando ali encontrar meios de viver, dando lições ou obtendo um emprego de dama de companhia; alugou a casinha onde estamos, e Cujo aluguel não é caro, e fez-se inscrever, pedindo qualquer ocupação decente, na agência Malpertuis, o honesto agente da rua da Vitória. Isto não tem nada de complicado; nada mais terás a dizer se te interrogarem; e aqui estão papéis e cartas, que juntas às certidões autênticas de óbito e nascimento, confirmarão, se for preciso, as tuas afirmações.

Vês que o caminho da fortuna é fácil de seguir! continuou o cego depois de entregar a Branca um grande maço cheio de documentos diversos. Quero fazer de ti uma mulher feliz, uma mulher invejada; quero realizar os teus sonhos e os meus, mas lembra-te de que, à menor fraqueza, ao menor desânimo que nos pudesse comprometer, eu despedaçar-te-ia como se despedaça um instrumento que se tornou perigoso!

A jovem encolheu os ombros.

— Ah! volveu, não receie nada! Não mostrarei nem fraqueza nem desânimo.

— Assim espero, disse Pedro sorrindo, conheço quanto vales, mas desejava avisar-te. Agora faz-me a fineza de assinar isto.

E o cego puxando pela sua carteira inesgotável, tirou uma folha de papel selado, perfeitamente virgem, e pô-la em cima da mesa onde havia papel, penas e tinta.

Branca olhou para a folha de papel com uma comoção instintiva e um receio involuntário.

— Assinar o que? perguntou; não há nada escrito.

— Justamente... É a tua assinatura em branco que me convém.

— O que quer fazer dela?

— Ligar-te por um modo indissolúvel à execução dos projetos, que imaginei.

— O que vai escrever por cima do meu nome?

— O que me parecer conveniente.

— Não posso saber?...

— Nada absolutamente. És muito curiosa, minha filha!

— Contudo...

— Basta... é demais até! cala-te, pega nesta pena e assina.

Estas palavras foram proferidas com uma voz tão dura, tão imperiosa, que no espírito de Branca se desvaneceu toda a veleidade de resistência.

Agarrou na pena com mão febril.

— O que é preciso escrever? perguntou...

— Aí, na parte inferior da página estas quatro palavras: Aprovo-o que está acima escrito!

Branca hesitou novamente.

 

MAIS UMA METAMORFOSE

Com as palavras que lhe ordenava traçasse, ele ficava senhor absoluto do seu futuro, da sua vida. Dali em diante deixava de ser senhora de si; seria um instrumento de que ele poderia dispor a seu bel-prazer.

Trêmula, quase desfalecida, voltou os olhos para o seu senhor.

Aterraram-na a expressão de ameaça e desafio que lhe viu no. rosto, o fulgor sombrio que lhe brilhava na pupila úmida.

Molhou a pena na tinta e escreveu rapidamente a fórmula sacramentai que lhe ditavam.

— Bem! disse Pedro, agora assina.

— Com que nome!

— Com o teu, ora essa!

— Branca Renée?

— Já não te chamas assim. Chamas-te Adriana de Lasseny. É preciso não te esqueceres.

Branca assinou: Adriana de Lasseny.

— Às mil maravilhas!

O cego deixou secar a tinta ainda fresca, dobrou a folha de papel, meteu-a na carteira, levantou-se, encostou friamente os lábios à fronte da jovem, como fizera no momento da chegada, e dirigiu-se para a porta.

Próximo da porta voltou-se.

— Até à vista, Duquesa de Chaslin, disse ele.

E saiu.

Quando a porta se fechou, Branca que parecia aniquilada, levantou-se de um pulo, e uma expressão de sombrio triunfo se lhe retratou no rosto.

— Julga-me sua escrava! murmurou. Como se engana! Obedecerei a princípio, porque isso me conduz ao fim deslumbrante, mas quando vier o dia, quando soar a hora, por muito sólida e bem segura que esteja a cadeia, encarrego-me de a quebrar!

Pedro fora ter com Margarida.

Em poucos minutos pôs essa mulher ao fato do pouco que devia saber; anunciou-lhe que acabava de obter para Branca uma colocação de dama de companhia em condições particularmente vantajosas, mas não acrescentou palavra que lhe fizesse suspeitar os seus projetos.

Depois desta confidencia incompleta deixou o "chalet", dirigiu-se à rua de Paris, depois à estação próxima da igreja, tomou um trem, e fez-se conduzir ao Square de la Chapelle.

Entrou pela rua Philippe de Girard na casa donde saíra uma hora antes, trepou a escada D, seguiu o corredor escuro que conduzia ao quarto n. 12, e tornou a fechar-se nesse quarto.

No fim de vinte minutos a porta tornou a abrir-se, e em lugar do cego de um olho, foi César Fossaro que saiu, com dois olhos tão brilhantes um como o outro, mas dos quais o esquerdo parecia imobilizado.

Os nossos leitores devem ter compreendido que o misterioso sócio de Malpertuis servia-se deste quarto para se transformar antes de se apresentar a Branca, que não supunha que o seu protetor pertencia ao high-life parisiense, dando-se, com direito ou sem ele, o título de Barão, e o nome de Fossaro.

Outro trem, alugado na rua de la Chapelle, reconduziu-o à rua Provence.

— Como! exclamou Fritz, é o senhor Barão! O senhor Barão quer almoçar?

— Não. Dê ordem a Benedetto para por o trem. Benedetto era o cocheiro italiano, — o seu nome o indica, — e mal falava francês.

César dirigiu-se ao gabinete de trabalho, cuja chave nunca O deixava, e onde se achava por trás de uma estante movediça, a porta secreta que conhecemos.

Fechou-se, pôs em movimento um aparelho elétrico, fez girar uma mola, abriu o orifício do telefone e pôs o ouvido à escuta.

No fim de um segundo, soaram estas palavras:

— Estou só, e as precauções estão tomadas. Podes vir!

Um instante depois a estante deslocava-se, girando sobre os gongos; do outro lado passava-se fato idêntico, e Fossaro transpunha o limiar do gabinete do agente.

— Recebeste o meu bilhetinho? perguntou a Malpertuis.

— Recebi, li e queimei.

— O doutor Frébault ainda não veio?

— Não.

— Tanto melhor.

— Por que tanto melhor?

— Porque, agora que me falaste, podes recebê-lo quando ele se apresentar. Até te recomendo que imediatamente dês ordem para o mandar esperar, se ele por acaso chegar enquanto eu aqui estou.

 

AS ALTAS COMBINAÇÕES DO BARÃO

Malpertuis saiu do gabinete para se conformar com o conselho, ou antes com a ordem de César. Quando voltou, disse:

— Peço a explicação do enigma... O que é que Frébault vem cá fazer?

— Pedir-te uma menina capaz de ser dama de companhia.

— Sabes muito bem que não disponho agora de nenhuma.

— Pelo contrário. Tens uma que reúne justamente todas as condições requeridas.

— Onde paira essa ave rara? — Na rua Compans.

— O que? exclamou Malpertuis olhando para o seu interlocutor com uma fisionomia que o espanto tornava cômica.

— Sim, na rua Compans, em Belleville... retorquiu César.

— Branca Renée?

— Perfeitamente.

— Branca a servir! Branca feita criada grave!

— Por que não, e o que haverá nisso de espantoso?

— Estás doido ou gracejas?

— Estou com a minha razão perfeitamente clara e não brinco.

— E é Antonino Frébault, esse sujeito de dupla face, tartufo de dia, freqüentador de casas equívocas de noite, que encarregas de colocar Branca?

César de Fossaro, risonho, bateu no ombro do sócio.

— Com a idade, meu bom amigo, disse-lhe ele, vais-te tornando muito ingênuo, e até um pouco parvinho. Que fizeste da perspicácia transcendente, da qual, com razão, te orgulhavas outrora? Não te lembras das informações que me deste relativamente à dama de companhia, que há algumas semanas partiu para Inglaterra?

Malpertuis passou repentinamente do espanto ao assombro.

— E é no palácio Chaslin que queres colocar Branca?

— Junto da Duquesa, e portanto juntos do Duque, Compreendes?

— Sim, pudera! e dirijo-te os meus cumprimentos sinceros. És de uma grande força!...

— Bem sei, replicou César tornando a sorrir. Agora, escuta-me. Vou-te dizer o que se deve responder ao doutor quando ele vier...

— Fala... Sou todo ouvidos.

E o agente recebeu a lição, tomando notas explicativas, e o senhor de Fossaro voltou para casa.

Dali a dez minutos subia para o coupé.

— Aonde vai o senhor Barão? perguntou Benedetto em italiano.

— Boulevard Malesherbes, n.°... Toca o Dick que tenho pressa. Dick era um bom trotador.

No fim de um espaço extremamente curto, a carruagem parava no número indicado, em frente de uma casa de grande estilo.

César atravessou o vestíbulo sem falar ao guarda-portão que respeitosamente o cumprimentou na passagem, subiu ao primeiro andar, e carregou no botão de cobre que fazia tocar uma campainha.

Uma criadinha de cara velhaca, — provocante e bonita, como. diziam os antigos, — abriu a porta e sorriu-lhe com os olhos e os lábios.

O senhor de Fossaro não pôs dúvida em lhe pegar no queixo, apesar disto já não ser moda, e disse-lhe:

— Bons dias, Julieta Está cá a senhora?

— Sim, senhor Barão, e até espera pelo senhor. — Então, posso entrar?

— De certo. O senhor Barão encontrará a senhora no pequeno boudoir. O senhor Barão conhece o caminho?

— Era capaz de la ir de olhos fechados... César entrou no quarto.

A criada seguiu-o com o olhar.

— É um rapaz bem bonito... pensava ela. Que pena que um dos olhos não mecha... Sempre desejava saber se é um olho de vidro!

Chegado ao boudoir, depois de atravessar uma enfiada de quartos mobiliados com mais luxo que gosto, César levantou o reposteiro e bateu.

— Entre, respondeu uma voz de mulher. O senhor de Fossaro abriu e entrou.

 

Genoveva, a amante de Heitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant, estava estendida numa chaise-longue e fumava um cigarro.

Um penteador de manhã, negligentemente apertado na cintura, denunciava nitidamente as formas elegantes.

Flutuavam-lhe sobre os ombros os cabelos soltos de um louro veneziano.

— Seja benvindo, disse a jovem estendendo a mão para César. Esperava-te com impaciência. Sou curiosa, e o que tu tens a dizer-me de muito particular e importante, intriga-me de tal modo que tenho febre. Senta-te já, e conta-me o que tens a dizer-me.

— Minha querida filha, vou ralhar contigo, replicou o visitante.

— Seriamente?

— Sim, muito seriamente. Estou descontente contigo.

— Por que?

— Por causa do principezinho, e da maneira como te portas com ele.

— Mas eu porto-me de uma maneira exemplar! exclamou Genoveva. Mal o engano.

— Valia mais enganá-lo muito, — sem que ele suspeitasse, já se vê, — e não o quizilares como estás sempre a fazer com as tuas cenas continuadas.

— É culpa minha se sou ciumenta?

— Não podes ter ciúmes, visto que não amas.

— Ora nisso é que te enganas, meu rapaz. Para haver ciúme não é preciso existir o amor. Está em mim a prova disso.

— Ninguém diria!

— Tenho a minha vaidade como qualquer outra. Sei o que valho, e apesar de no fundo zombar de Heitor, como de qualquer esquisito, não quero que ele faça de mim debique, e ande por todos os lados a dar cheques à primeira rata pelada que lhe deita de passagem o luzio. Ora, como eu sei que é essa a sua mania, aí está a que me faz mal aos nervos, e por isso armo batalha. Depois, estas coisas estimulam o meu Totor. Ama-me mais ainda. As zangas são uma coisa que prende os homens.

— Enganas-te, replicou César. O príncipe vai vendo que te" tornas numa carraça.

— Disse-te isso?

— Dí-lo a quem o quer ouvir.

— Ah! brejeiro! se não fossem os seus milhões, como não o mandaria passear.

— E olha que iria, exclamou César rindo. — Mas, continuou Genoveva, tem milhões.

— Anda pois com juízo para não afugentares o Príncipe, que depressa te esqueceria, e poria à disposição de alguma ou algumas das tuas rivais os milhões de que falas.

A rapariga pôs-se em pé de um salto, e o rosto transtornou-se-lhe.

— Disseste as minhas rivais! exclamou; tenho-as então com certeza?

— Ora essa! Tens como rivais, senão de fato, pelo menos de intenção, todas as mulheres da roda onde vives, e muitas outras. Os milhões atraem as raparigas, como o espelho atrai as cotovias, e os príncipes milionários não podem passar sem amantes, como não podem passar sem cavalos. Depois de ti, outra, dez, cem...

— Pois bem, que Heitor me deixe dando-me cinqüenta mil libras de renda.

— Tu contentavas-te com essa miséria, quando podemos apanhar tudo?

— Tudo? repetiu Genoveva olhando para César com espanto,

— Tudo absolutamente, apoiou o senhor de Fossaro.

— Como é que Heitor me daria esse enorme futuro?

— Por testamento.

Genoveva estremeceu.

Apesar porém da sua comoção, replicou:

— É muito inverossímil isso, visto dizeres que ele se vai despegando de mim. Depois não se herda senão dos mortos, e bem sabes que o príncipe é tão morto como eu.

— Ouve-me com atenção, e trata de compreender por poucas palavras. No princípio da vossa ligação Heitor esteve apaixonado... muito apaixonado. Não tinhas inaugurado o período tempestuoso do teu reinado. Não te tratava de carraça...

A rapariga fez beicinho. César continuou:

— Nessa época Heitor escreveu um testamento...

— Julgas?...

— Tenho a certeza... e sei que esse testamento é todo em teu favor.

Pelos olhos deslumbrados de Genoveva passou uma miragem de ouro.

— O que te faz supor isso? murmurou:

— A lógica. O Príncipe está privado absolutamente de família, e não tem amigos Íntimos, portanto quando teve a idéia de dispor da sua fortuna, foi para enriquecer a mulher amada. Ora, naquele momento, a mulher amada eras tu...

— De acordo, mas visto que já não sou eu, rasgará o testamento.

— É provável, é até certo, e tornará a fazê-lo em proveito de outrem.

Genoveva franziu as sobrancelhas, e crispou os dedos cintilantes de anéis.

— Se tu me indicas o mal, volveu ela no fim de um segundo,, como não és homem que deites palavras ao vento, é porque existe remédio.

— Existe um.

— Qual?

— Torna-te meiga e conciliadora com Heitor como nas primeiras belas noites dos vossos amores. Deixa-o, até, se ele quiser, fazer por aí moeda falsa, fingindo não dares por isso. Adormecerá nas delícias dessa Cápua novamente encontrada, e ele nada rasgará, visto que não tem a formular novas disposições.

— Muito bem. Mas isso poderá durar sempre assim?

— Não de certo! Somente é escusado que dure sempre, e eu chego ao fim da minha visita. Se te trouxesse a prova de seres legatária universal, e se promovesse a abertura do testamento, que farias?

Genoveva tornou-se um pouco pálida.

— Promover a abertura do testamento, disse ela. Isso só será possível depois da morte do príncipe.

— De certo...

— Metes-me medo. Que meditas, pois?

— Não medito coisa alguma que não seja correto. O acaso pode abreviar a vida de Heitor.

—E tu mandas no acaso?

— Às vezes.

Genoveva ocultou o rosto nas mãos.

— Um crime! balbuciou. Mais um ainda!

César encolheu os ombros.

— Por que é esse melodrama, minha querida? perguntou num tom zombeteiro. Quem te fala de crime? Porventura a gente é culpada ou responsável por um acidente fortuito? Nunca! Não percamos a cabeça. No dia em que acordasses milionária doze vezes, qual seria a minha parte da herança?

— A tua parte? respondeu Genoveva, a tua parte seria a herança toda inteira, se quisesses fazer-me Baronesa de Fossaro. Que-rias?

— Já tinha pensado nisso, esperava, contava com esse impulso do teu coração. Tens o meu consentimento, serás baronesa...

A frase que acabamos de reproduzir foi proferida num tom indefinível, meio séria, meio zombeteira.

Após um curto silêncio, o Barão acrescentou:

— Portanto, aceitaria a tua bonita mãozinha cheia de milhões; mas não houve já um rei que escreveu num vidro com um diamante, que a mulher é muito inconstante, e a gente não se deve fiar nela?

— Tu bem me conheces, César... principiou Genoveva. Bem sabes...

— Bem sei, interrompeu o senhor de Fossaro, que tu és das que mudam! O teu espírito, lindinha, é fantasioso e cheio de caprichos. Acrescenta a isto que a senhora Fortuna te fará virar a cabeça, e julgo-te muito capaz de esquecer aquele que ta deu. Nos tempos em que vivemos, não se vêem senão ingratidões.

— Juro-te...

— Por que? Juramentos de mulher... não acredito neles...

— Indica-me pois o meio de te convencer.

— De que transação se trata entre nós, minha bela?

— De um casamento.

— Sim, mas esse casamento é um negócio, ou melhor dizendo uma mercância. Vendo-te uma herança que te fugiria das mãos se não fosse eu...

— Queres que te faça por escrito a promessa de vir a ser tua mulher? perguntou Genoveva rindo.

— Quero efetivamente que faças uma promessa por escrito, mas não essa.

E dizendo isto (como o fizera em casa de Branca Renée, no chalet da rua Compons), puxou pela carteira, e da carteira tirou uma folha de papel selado que pôs em cima de uma jardineira de laça vermelha.

— Papel selado! exclamou Genoveva, fingindo uma indignação cômica: — Ui! que horror... Esconde isso bem depressa! A simples vista desse papel faz-me mal aos nervos!!

 

A RECORDAÇÃO DO CRIME

— Acalma os nervos, replicou César; pega numa pena e escreve.

— O quê? perguntou a amante de Heitor.

— O que te vou ditar.

— Talvez um donativo de cinco ou seis milhões, a receber no tabelião do príncipe de Castel-Vivant, no dia em que eu ficar possuidora da herança?

— Os meus cumprimentos, querida beldade! disse o barão sorrindo:és perspicaz como um velho advogado!

— Não admira; cursei direito na rua das Escolas, com um estudante de sétimo ano. Julgas seriamente que seja tão tola que escreva semelhante coisa?

— Julgo-te bastante inteligente para não me regateares a minha parte na fortuna que te fugiria se não fosse eu, e quero uma garantia para o caso em que deixasse de ter a idéia de vires a ser Baronesa de Fossaro.

— Prometi, cumprirei, mas contenta-te com a minha palavra, porque não assinarei nada.

— É essa a tua idéia?

— Com certeza.

— Então vamos conversar!

— Para quê? O que tu podes dizer-me, sei-o tão bem como tu.

— Em todo o caso tornarás a ouvi-lo, e depois ainda não sabes tudo. Há três anos, minha pobre filha, o que eras tu?

— Criada de quarto, por acaso, num colégio de Courbevoie, depois de ter sido lavadeira no bairro latino. É a antiga história!

— Chamavas-te então Fanny Vernaut.

— Como tu tinhas o nome de Pedro Redon...

— Enquanto engomavas as camisas das discípulas do estabelecimento, sonhavas com o luxo, as mobílias chiques, os cavalos enfeitados, as carruagens e tudo o mais que é correlativo.

— Parece-me que o meu sonho se realizou.

— Graças a quem?

— Graças à minha beleza, meu querido. Parece-me que com uns olhos, uns dentes, e uns cabelos como os meus, sem falar no mais, com certeza que um dia ou outro se consegue alguma coisa.

César encolheu os ombros.

— Efetivamente é bonita! volveu ele, mas o teu rosto bonito levarte-ia direitinha ao hospital, se o acaso, ou antes a tua boa sorte, não me tivesse feito colocar no colégio de Courbevoie uma menina que fora confiada por seu pai, um homem rico... Tu agradaste-me... Achei meio de to dizer. Não eras cruel, e aproveitaste os teus dias de licença para me vires ver em Bois Colombes, num cochicholo expressamente alugado para isso.

— E depois?

— Um dia anunciaste-me uma gravidez, da qual, segundo me dizias, eu era o autor.

"Exatamente nesse momento reclamavam-me a jovem que me fora confiada; fui levá-la à família, e estive muitos meses fora da França.

— Abandonavas-me friamente, sem me deixares notícias tuas! exclamou Genoveva.

— Que queres? era indispensável a minha partida, e receava comprometer-te, escrevendo-te...

"Assim que voltei lembrei-me de ti e da criança que devia ter nascido...

"Fui perguntar por ti ao colégio de Courbevoie.

"Disseram-me que tinhas desaparecido uma bela manhã, ou uma bela noite, e que se ignorava o que fora feito de ti...

"Passados três meses, encontrando-te num baile público, onde a tua dança excêntrica obtinha um verdadeiro êxito, levei-te comigo para te interrogar a respeito das coisas que me importava conhecer.

"Quiseste mentir... Não insisti, mas conhecendo o teu fraco, ofereci-te de cear. O vinho de champanhe desembaraçou-te a língua, e arranquei-te a tua confissão palavra por palavra...

"Depois de teres ocultado a tua gravidez, deitaste ao mundo ocultamente uma criança cheia de vida, e estrangulaste-a muito bem estrangulada, para a enterrares em seguida junto de uma árvore, no jardim do colégio.

Genoveva levantou-se de um pulo, e postando-se em frente de César, de cabeça erguida, e braços cruzados no peito, bradou-lhe num tom de raiva inexprimível:

— Por que me lembras semelhantes coisas? O que tem de comum a recordação do meu crime com a herança do príncipe de Castel-Vivant?

— Deixa-me continuar, disse César, a minha missão não é punir, e demais, tenho uma índole indulgente. Acabava de entrar na posse de uma sofrível fortuna, e de readquirir o nome de Fossaro que me pertence. Desbatizei-te. De Fanny Vernaut fiz Genoveva Leinen; lancei-te no mundo galante, e foi graças a mim, bem o sabes, que te tornaste em amante de Heitor...

— E depois? perguntou Genoveva.

— Mais nada... terminei.

— O que concluis daí? Por que ressuscitas uma passado morto e bem morto?...

— Para te lembrar que me deves a fortuna...

— Não o nego e tens a minha gratidão.

— Prova-me essa gratidão, pegando na pena e escrevendo o autógrafo pedido.

— Tudo quanto quiseres, exceto isso. Não escreverei.

César sorriu.

— Como quiseres, exclamou, depois levantando-se, foi encostar-se ao fogão, e no tom mais natural perguntou: — Lês os jornais?

Genoveva, um pouco surpreendida respondeu:

— Os jornais de modas, muitas vezes...

— Não lês outros?

— O Gaulois?

— Nunca, depois que um cronista, a propósito do Príncipe Totor, falou da minha insignificante pessoa em termos que me desagradaram. Fiquei com raiva ao jornal.

— Fazes mal.

— Por que?

— A sua leitura assídua far-te-ia saber alguma coisa que tens interesse em saber.

— O que?

César de Fossaro tirou da algibeira o número do Gaulois, de que tivera o cuidado de se munir antes de sair do palácio. Abriu-o lentamente, pôs a luneta no nariz e disse:

— Ouve a leitura desta informação... Devo prevenir-te de que tem já oito dias de data. O jornalista deu-lhe este título: O mistério de Courbevoie.

Genoveva fez-se pálida sob a camada de pós de arroz que lhe cobria as faces, e estremeceu toda.

O Barão, sem parecer dar por isso, leu em voz alta:

"A honra da povoação de Courbevoie está muito impressionada por causa de um achado sinistro que acabava de se fazer.

"Há dois dias o jardineiro de um colégio de raparigas, que não nomearemos por motivos de alta conveniência, tratava de arrancar uma árvore velha. Ao pé dessa árvore descobriu o esqueleto de uma criança. Das investigações a que habilmente a justiça procedeu, sob a direção do senhor de Logerly, substituto do procurador da república, depreende-se que a ossada devia estar ali havia dois anos.

"Pesam graves acusações sobre uma rapariga que naquela época, fazia parte do pessoal do estabelecimento em qualidade de criada de quarto.

Esta rapariga, chamada Fanny Vernaut, é procurada ativamente pela polícia. Se ela se acha em Paris, ou mesmo em França, não poderá por muito tempo subtrair-se aos fins sabujos da polícia."

Genoveva escutara com susto fácil de se compreender, a leitura daquelas linhas.

Assustada, com os olhos dilatados pelo terror, aproximou-se do senhor de Fossaro, e balbuciou:

— Está isso aí! é verdade?

Ao mesmo tempo inclinava-se para o jornal que César conservava ainda aberto.

— Lê tu, disse indicando o artigo com o dedo.

A rapariga agarrou, ou antes soletrou no número do Gaulois, a informação terrível.

Quando terminou, os dentes batiam-lhe uns nos outros, e o suor da agonia gotejava-lhe nas fontes.

Balbuciou:

— Acusam-me... Procuram-me... Achar-me-ão... Estou perdida!

César dobrou o jornal, meteu-o no algibeira e disse:

— Não é singular, minha filha, que no fim de dois anos os restos da criança estrangulada saiam da ignota cova e bradem vingança contra a mãe infame!

— Cala-te! Cala-te! exclamou Genoveva querendo tapar com a mão a boca zombeteira do Barão.

O Barão pegou naquela mãozinha, tocou-lhe com os lábios com toda a galanteria e continuou:

— Sabes qual é o desagradável da mãe infanticida, quando o júri está de mau humor? Cortam-lhe o pescoço sem mais cerimônias...

— Não te calarás! repetiu Genoveva com voz extinta. Não vês que enlouqueço! No fim de dois anos, quando já não me lembrava de coisa alguma. É horrível! Parece que já sinto o ferro da guilhotina na nuca. Porque é que suspeitam de mim? Só tu conheces o meu crime! Quem me acusa então?

— Quem te acusa? respondeu César. Não é ninguém, são os fatos. A maneira como tu deixaste o colégio, à falta de outros indícios, bastaria para criar contra ti uma suspeita esmagadora.

— Então, repito, estou perdida?

— Se te encontrarem, com certeza.

— Hão de acabar por me encontrarem... o jornal dizia-o.

A jovem curvou a cabeça, e por espaço de alguns segundos entregou-se a reflexões da mais desoladora natureza. Chorava. De repente, através das lágrimas, brilhou um fulgor no olhar.

— Mas agora penso, exclamou de repente, é Fanny Vernaut a quem procuram.

— De certo... confirmou o Barão com um ar indiferente.

— E hoje chamo-me Genoveva Leinen, parece-me que este nome escolhido por ti me deve por a salvo...

— Como hás de tu provar que és na realidade Genoveva Leinen, e não Fanny Vernaut?

— Disseste-me que possuías documentos que tornariam indiscutível esta identidade.

— É exato... Baseando-te neles poderias sustentar, a despeito de toda a acusação, de toda a confrontação, que és, na verdade, Genoveva... e Margarida Leinen, tua mãe, se apresentaria para o asseverar. Que se pode articular contra ti? Nada, senão que te pareces vagamente com Fanny... Uma semelhança não é prova.

— Ah! Respiro! murmurou a amante de Heitor. Como a minha salvação depende de ti, estou salva.

— O que?

— Dar-me-ás esses papéis.

— Não contes com isso, minha querida...

— O que! pois se tu me visses presa, recusarias vir em meu socorro?

— Exatamente!

— És então meu inimigo... meu mortal inimigo?

— Sou teu amigo; mas neste mundo cada qual por si!

— Não assinas, não te dou os papéis!

— Mas isso é uma extorsão!

— Nem por sombras! É negócio. Apenas, como a minha confiança é limitada, só faço negócio com dinheiro à vista. Estamos de acordo ou não?

— Que remédio!

— Queres partilhar comigo a fortuna do Príncipe se eu for tua herdeira?...

— Quero.

— Bem, reparti-la-ei contigo... Precisas de uma obrigação escrita e assinada por mim? tê-la-ás. Mas que Fanny Vernaut desapareça para sempre.

— Nesse caso, pega na pena...

— Dar-me-ás os papéis?

— É uma das cláusulas do nosso mercado...

— Quando nos darás?

— Logo que poderem ser-te úteis.

— Por que não há de ser já?

— Porque neste momento não tens precisão deles.

— Mas...

— Oh! basta de discussões! interrompeu César. É pegar ou largar...

— Mas se me enganasses...

— O próprio teor da obrigação que vais subscrever, te garantirá a minha boa f é...

— Que papéis são esses de que falas?

— Em primeiro lugar, uma certidão de nascimento... do nascimento de Genoveva Leinen, inscrita nos registros do estado civil, e que morreu sem que se declarasse a sua morte...

— Nesse caso um crime?

— Uma mãe culpada, sim.

— E essa mãe atestaria que eu sou sua filha, se fosse preciso?

— Atestá-lo-ia... e ninguém no mundo poderia desmentir Margarida Leinen... tua mãe.

 

CONTINUAÇÃO

— Mas, observou a jovem, sabe-se que Fanny Vernaut existe?

— Que te importa, se podes provar que não és Fanny Vernaut? Genoveva sentou-se à pequena mesa sobre a qual César colocara a folha de papel selado, e pegou numa pena.

— Que elevo escrever? perguntou.

— O seguinte:

E o barão ditou:

"Eu, Genoveva Leinen, filha natural de Margarida Leinen, e de pai desconhecido, nascida em Paris, a 27 de maio de 1854, reconheço dever a soma de seis milhões ao Barão César Aníbal de Fossaro, e autorizo-o a receber essa quantia em casa de Emilio Pingue, tabelião em Paris. Estes seis milhões deverão ser levantados da totalidade da herança que por seu testamento me lega o senhor Heitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant.

"Feito em Paris aos...

"Deixa a data em branco, acrescentou César. Preenchê-la-emos mais tarde, quando a herança se abrir. Agora assina: Genoveva Leinen."

Genoveva obedeceu.

— Estás contente? perguntou.

— Estou, respondeu o Barão guardando o papel na carteira, depois de reler o que a jovem acabava de escrever. És bastante inteligente para compreenderes que este documento assim concebido me obriga no mesmo próprio interesse, a porte a salvo de todo o perigo! Hás de ser rica, para que eu o seja! Lembra-te agora que se trata de readquirir o teu império sobre Heitor, para que ele não se lembre de destruir o seu testamento. Portanto, tréguas nas cenas de ciúme... Deixe o principezinho passar em paz o pouco tempo que lhe resta a viver, e se lhe vires algum capricho em mente, fecha os olhos e previne-me.

— Fica entendido.

— Vou já daqui à rua Francisco I. Prevenirei o nosso jovem amigo de que te preguei um bom sermão... Acrescentarei que o adoras, e que daqui em diante serás de cera para ele.

César trocou com Genoveva um aperto de mão que não era bem cordial nem de um lado nem do outro, voltou para o seu coupé, e deu ordem a Benedetto que o conduzisse ao palácio do Príncipe de Castel-Vivant.

 

Precedê-lo-emos, e introduziremos os nossos leitores no gabinete de trabalho contíguo ao quarto de dormir de Heitor.

Este aposento muito vasto e alumiado por duas janelas grandes, -encerrava grande número de maravilhas artísticas, mas espantava a vista com esse luxo um pouco sarapantão que Heitor adorava, na sua qualidade de ex-colorista.

Era perto de meio dia.

O principezinho vestido com um traje completo de flanela branca debruado de cor de rosa, acabava de abrir a sua volumosa correspondência que todas as manhãs o criado de quarto punha em cima da secretária.

Sabiam que Heitor era muito rico, e de todos os lados os empreendedores, os inventores, e os especuladores, dirigiam-se a ele.

Uns pediam fundos para explorar minas de alta fantasia que deviam a crê-los, render vinte vezes o capital empregado.

Aqueles sonhavam com imensas companhias de seguros, ou com a fundação de jornais monstros, cuja menor tiragem seria de um milhão de exemplares; outros propunham a criação de bancos populares gigantescos, reservando, já se vê, a direção para si.

Depois vinham os apelos à beneficência do Príncipe.

Eram numerosos, e apresentavam-se sob as formas mais diferentes.

Muitos solicitavam modestas quantias que variavam de um luis:até cem francos, para subsistir.

Alguns reclamavam cem mil francos, a fim de salvar a honra, comercial de um industrial ameaçado de quebra.

Um maior número pintava um quadro desolador de misérias, que só na sua imaginação existiam.

Vinham depois as cartas femininas, fáceis de se conhecerem pelas garatujas dos seus sobrescritos, e pelos aromas de oponax, d'ylangylang ou de Jockey-Club, que exalavam.

Um bom número de raparigas escrevia o equivalente desta frase: — Sou muito formosa, compre-me...

Outras diziam exatamente a mesma coisa, empregando fórmulas um pouco mais delicadas.

Abundavam as declarações de amor, e os pedidos de "rendez-vous".

Finalmente, as intermediárias ofereciam virgens garantidas, puras na fatura.

Nos princípios da sua opulência, Heitor deixara-se engodar, umas vezes por outras, com propostas deste gênero, sem encontrar depois motivos para se aplaudir.

Agora contentava-se em sorrir e atirar para o cesto as cartas daquelas damas.

Desde que uma enorme fortuna lhe permitia satisfazer todas as suas fantasias, todos os seus caprichos, tinha tido numerosas amantes, cujo reinado efêmero durava o muito algumas semanas.

Por exceção, Genoveva Leinen conservava havia seis meses o seu império sobre o coração do Príncipe Totor.

Sabemos, aliás, que esse império já muito reduzido, estaria daí em diante por um fio.

Se Sta-Pi encontrasse o rasto da loura desconhecida, encontrada por Heitor na porta Saint-Martin, a influência de Genoveva desvanecer-se-ia instantaneamente, arrastando na sua queda os projetos do barão César de Fossaro.

Mas encontraria Sta-Pi o que procurava?

Esperando a solução deste enigma, o Bégourde de outrora conservava a amante a quem dava a alcunha de carraça, mas cuja beleza provocante, e elegância indiscutível, lhe lisonjeavam a vaidade.

No momento em que vemos Heitor, a abertura da correspondência chegava ao seu termo.

Concluiu-se em poucos minutos.

O Príncipe levantou-se então, pegou em três cartas de negócios que pusera de lado, tirou da algibeira um molho de chaves delicadas, e aproximando-se de um pequeno móvel florentino de ébano, incrustado de marfim gravado, abriu a gaveta de cima.

Esta gaveta encerrava papéis postos uns sobre os outros, ou reunidos em maços, e invólucros de papel escuro, contendo contas, faturas, notas de toda a espécie.

Heitor meteu as três cartas num invólucro que tinha em letras grandes esta indicação: Senhor Pinguet, tabelião, rua das Pyramides, n.° 18.

De dentro caiu um maço em que se liam estas palavras:

Isto é o meu testamento.

O príncipe apanhou-o, e conservando-o na mão, tornou a vir sentar-se à secretária, depois de ter metido o invólucro na gaveta que deixou aberta.

— Palavra de honra, disse ele, relanceando o maço que tinha na mão, é pasmoso como me fiz metódico, sério e prático! Que chic! rapazes! Os demônios me levem, se quando me chamava Heitor Bégourde simplesmente, teria classificado os meus papéis, as minhas cartas, as minhas faturas, lembrando-me de escrever as minhas últimas disposições.

Depois de um momento de silêncio, Heitor acrescentou:

— É verdade que naqueles tempos sem vintém era o meu estado normal, e só poderia deixar aos amigos algumas dívidas, o que não lhes havia de agradar. Hoje que sou príncipe e tenho dinheiro a não saber o que fazer dele, sou metódico como um lojista, e redijo testamentos.

Diverte-me! Vai para quatro anos, é o sexto. Cora, Caro, Leonidas, Branca e Anica, foram umas após outras as minhas herdeiras universais. Quanto papel selado perdido! Hoje é a vez de Genoveva. Amanhã, talvez, há de vir o da loura pequena, cujo rasto Sta-Pi procura, e que dá pelo meigo nome de Lucilia. Será o meu sétimo testamento, o último, por certo, porque me parece que amarei esta de outro modo, e mais que as outras... Finalmente, veremos... o caso é que Sta-Pi a encontre!

Heitor estava nestas alturas do seu monólogo.

Um toque de campainha que se ouviu no pátio do palácio, anunciou a chegada de um visitante.

O Príncipe levantou-se, tornou a meter o invólucro na gaveta, que empurrou; depois sem perder tempo a tirar as chaves, voltou-se para responder ao criado de quarto que entrava, e apresentando um bilhete de visita numa bandeja, perguntava:

— O senhor Príncipe recebe?

O ex-Bégourde deitou os olhos para o bilhete de visita.

— O Barão de Fossaro! Ora essa! pois não hei de receber? Mande entrar.

— Eis-me aqui, eis-me aqui, querido, Príncipe, disse César aparecendo. Seguro do seu bom acolhimento, vim entrando atrás do criado.

— Meu Barão, o senhor é um anjo! Almoça comigo, hein!

— Faço essa tenção, vim de propósito para isso. Tenho um apetite dos demônios...

— Honorato, dois talheres, e num quarto de hora. Diga ao despenseiro que traga o Chateau d'Yquem de 1858, que o Barão prefere.

O criado retirou-se.

— Querido Príncipe, venho do boulevard Malesherbes.

— De casa de Genoveva?

— Pudera! Venho de estar com a pobre pequena. Deixei-a lavada em lágrimas!

— Em lágrimas! exclamou Heitor, e por que?

— Por causa de um bom sermão que tomei a liberdade de lhe dirigir a seu respeito... Testemunha de cena da noite passada, fiz compreender à boa da pequena que as suas zangas continuadas, a fariam aborrecida, e acabaria dentro em pouco por se tornar insuportável...

— Bravo, Barão! O senhor nunca afirmou coisa mais verdadeira! Genoveva com certeza que deu pulo e se zangou.

— Nisso é que o meu Príncipe se engana. Genoveva tem um fundo excelente. Respondeu com muita doçura e humildade, que reconhecia a sua culpa, mas não tinha circunstâncias atenuantes a fazer valer, pois que o violento amor que sente pelo Príncipe, era a causa única do seu ciúme.

— O que! exclamou com manifesta satisfação, pois essa pobre pequerrucha ama-me tanto como isso?

— A pobre pequerrucha adora-o, literalmente. E a sua paixão torna-a bem infeliz.

— Sim! então por que?

— Parece-lhe que o senhor esfria. Afigura-se-lhe ver no Príncipe momentos de indiferença e veleidades de inconstância.

— Olá! querido Barão, replicou o Príncipe rindo, não sou casado, que saiba, nem tampouco cavaleiro de Malta, e não fiz voto de ser casto e fiel.

— Bem vê que Genoveva tem muito direito de ser um pouco ciosa, disse César rindo também.

— Não digo isso.

— Mas o senhor não se atreveria a dizer o contrário? Aproveite a vida e a mocidade, querido Príncipe, tem cem vezes razão. Divirta-se, saltite, pandigue, dou-lhe a minha inteira aprovação. Mas poupe um pouco Genoveva... É uma boa e bonita rapariga. Está doida pelo senhor, e corto a cabeça se ela por um milhão fosse capaz de o enganar.

— Por um milhão? exclamou Heitor radiante. Julga isso?

— Tenho a certeza.

— Mas isso é belo, Barão!

— Quer dizer que é admirável! Sabe o que Genoveva fazia esta manhã quando entrei no seu toucador?

— Não posso sequer imaginar.

— Adivinhe.

— Contemplava talvez os diamantes que tem recebido de mim?

— Não. Tinha nas brancas mãos a sua fotografia. Cobria-a de ardentes beijos e chorava.

— Chorava verdadeiras lágrimas?

— Do tamanho de pérolas.

— Pobre pequena! Hei de comprar-lhe um colar... de pérolas, mas de lágrimas.

— Deves-lho! Os seus suspiros e as suas lágrimas deram ensejo de entrar em matéria, e sabe a conclusão da conversa? Genoveva, daqui em diante, não terá para o senhor senão sorrisos, ainda que o seu coração que é todo seu, padeça com a sua inconstância.

— Não sabe, Barão, que me está comovendo!

— O contrário é que me admiraria... Também eu, apesar de pouco sentimental, me comovi, e senti umedecerem-se-me as pálpebras.

— Vê, Barão, as minhas estão molhadas... Estou satisfeito com o que me acaba de dizer, e aqui para nós, isso vem muito a propósito.

— Então por que?

— Porque embora reconheça que Genoveva é uma amante de truz, eu achava-a tão insuportável, que era iminente um rompimento.

— Pois faria semelhante coisa?

— Palavra de honra, Barão, creia-me. A carta de rompimento conteria um cheque um pouco sério.

 

UM TITULAR RATONEIRO

O senhor de Fossaro fez uma cara melancólica e replicou:

— Sei muito bem que o Príncipe fá-las de um modo esplêndido, mas o cheque em questão, por muito importante que fosse, não serviria de consolação à pobre rapariga. Não fez cálculos. Ama-o ao senhor, e não à sua fortuna.

— Contudo gasta menos mal, interrompeu Heitor sorrindo.

— É porque sabendo que o senhor é muito rico, quer fazer-lhe honra, continuou César. Mas essa prodigalidade não a torna feliz. Ainda há pouco me dizia que desejava vê-lo pobre.

— Muito obrigado, replicou o Príncipe; já conheci a pobreza, afianço-lhe que não é agradável.

— É que daria a Genoveva ensejo de lhe mostrar o seu amor. E capaz de todas as dedicações pelo senhor.

Heitor emproou-se todo.

— Então é deveras uma paixão? perguntou.

— Uma verdadeira paixão, meu amigo... amor de Marion Delorme por Didier. Se o senhor deixasse Genoveva, ela endoidecia... se o senhor morresse, ela não lhe sobreviveria.

— Tá, tá, tá, exclamou o ex-Bégourde. Isso é um romance puramente. Se eu morresse agora, afirmo-lhe que Genoveva não faria tenção de me seguir para o outro mundo.

— Por que supõe isso?

— É segredo meu... Somente, creia-me, conheço as mulheres muito bem, porque tenho lidado bastante com elas!... Por muito sério que seja o fraco que ela tenha por mim, as suas saudades não haviam de ser de morte.

Deitaria luto, teria sufocações, choros e ataques de nervos, mas não se lembraria de morrer. Aos vinte e cinco anos uma pessoa consola-se depressa, quando desperta pela manhã milionária...

Fossaro pensou:

— Não me enganava... fez um testamento em favor de Genoveva. Se eu pudesse lê-lo...

E ao mesmo tempo olhava para o móvel de ébano colocado entre as duas janelas.

O molho de chaves, esquecido por Heitor, estavam penduradas da fechadura da gaveta superior.

— É impossível tirar agora o molde, disse César consigo.

O criado de quarto veio anunciar que o almoço estava servido.

— Para a mesa, Barão! exclamou Heitor.

O senhor de Fossaro deitou um derradeiro olhar para o móvel, e seguiu o príncipe que não se lembrou sequer de tirar as chaves.

Os dois sentaram-se a um almoço de amadores. Tinham ambos fome, por isso a conversa limitou-se a princípio a algumas frases descosidas.

Quando a primeira ânsia do apetite satisfez, Heitor perguntou:

— Vem ao tiro comigo, Barão?

— É-me impossível.

— Por que?

— Tenho uma visita a fazer ao conde de Vergis, que não se encontra em casa senão por volta das duas horas.

— Espere lá! Conhece o conde?

— Muito bem.

— Visita-o muitas vezes?

— Não. A sua seriedade e as tendências do seu espírito mediocremente me atraem, mas sou assíduo junto da Condessa que é encantadora e tem muitas visitas.

— Ah! Sim, exclamou Heitor com vivacidade, bonita provocante, adorável, a condessinha! Os seus olhos, um sonho, o seu corpete, um poema! E quanto a chiquismo, é de arromba!

— Numa palavra, a senhora de Vergis agrada-lhe?

— Enormemente, mas não me atreveria a dizer-lho.

— E julga-a inexpugnável?

— Todo o mundo tem essa convicção.

— E é da opinião geral?

— Não completamente. Há pró e contra... A Condessa tem vinte e três anos, o marido já corre para os sessenta; ela passa a vida num meio mundano e um pouco leviano. Depois, tem-me parecido que ela olha com muita amabilidade para o Visconde de Chanzay. Isto nada prova, bem sei, mas...

Heitor calou-se.

— Mas? repetiu César.

— Faz cismar um pouco, concluiu o Príncipe. É da minha opinião?

— Inteiramente, respondeu o Barão encantado com o esclarecimento que acabava de obter.

Por vago que fosse o esclarecimento, Malpertuis não deixaria de o aproveitar.

Talvez houvesse ali um ponto de partida.

Trouxeram o café e os charutos, e a conversa continuou, mas mudando de assunto.

— Querido Príncipe, disse César, depois de ter saboreado uma aguardente de 1789, permite-me que lhe peça um pequeno serviço?

— Por certo! De que se trata?

— Lembrei-me, neste instante, que tinha a escrever uma carta muito urgente. Quer por à minha disposição uma folha de papel e uma pena?

— O Barão está em sua casa... Enquanto eu me visto entre para o meu gabinete... Encontrará na minha secretária tudo o que lhe for preciso.

— Muito obrigado... Vou aproveitar o seu oferecimento.

E César encantado com o êxito do seu estratagema, dirigiu-se para o gabinete de trabalho, cuja porta teve o cuidado de fechar após si.

Começou por pegar numa folha de papel para cartas, dobrou-a € meteu-a num sobrescrito que fechou com goma.

Só lhe restava traçar no sobrescrito uma direção de fantasia.

Feito isto dirigiu-se precipitadamente para o móvel de ébano.

— É nesta gaveta, murmurou, que vi o príncipe Heitor colocar o que procuro...

E abriu-a.

O primeiro objeto que lhe deu nas vistas, foi o sobrescrito com esta inscrição;

"Isto é o meu testamento."

— Aqui está! disse com alegria. Não o lacrou! A sorte favorece-me!

E pegou no envelope e tirou de dentro com um modo febril a folha de papel selado contendo as últimas disposições de Heitor.

Enquanto percorria o seu conteúdo, fulguravam-lhe os olhos de um modo estranho, e contraía-lhe os lábios um sorriso indefinível.

Prosseguiu de si para si:

— Tinha razão. Morra o Príncipe dentro de quinze dias, e os milhões ficarão para Genoveva, por conseguinte para mim! É preciso apressarmo-nos.

O testamento foi novamente metido no invólucro, e este voltou outra vez para a gaveta.

O senhor de Fossaro fechou a gaveta, tirou da algibeira uma caixinha de prata contendo uma bola de cera vermelha de modelar.

Com uma habilidade de ladrão consumado, tirou com a cera o molde da fechadura e da chave.

Depois, muito sossegado e satisfeito consigo mesmo, sentou-se novamente à secretária, molhou uma pena e escreveu o primeiro nome que lhe acudiu à idéia no sobrescrito já preparado.

Acabou no momento em que a porta do gabinete se abriu.

Apareceu Heitor e perguntou:

— Já concluiu, Barão?

— Já; novamente lhe agradeço e deixo-o.

— Decididamente não vem ao tiro?

— Hoje é impossível... Já lhe disse porque.

— Então adeus, e até breve, não é verdade?

— Querido Príncipe, até breve.

O coupé de César esperava no pátio do palácio.

 

Entrou para o coupé.

— Aonde vai o senhor Barão? perguntou Benedetto.

— Avenida de Villars.

Na altura dos cais, o senhor de Fossaro mudou de opinião.

Baixou o vidro da frente e disse ao cocheiro:

— Boulevard Saint-Michel n.°...

O principezinho, ao proferir o nome do Visconde de Chozay, despertou no espírito de César a idéia que, vamos ver, ele pôs em execução.

No número indicado, o coupé parou.

O Barão apeou-se e subiu para casa de um personagem bem conhecido, e cuja individualidade absolutamente simpática, é uma das mais pitorescas da nossa época.

Este personagem, artista distinto, escritor original, fez dar um grande passo à ciência quiromântica.

Seria o primeiro mestre de armas da nossa época se quisesse, e amigo de todos os autores dramáticos contemporâneos, tem ensaiado os melhores duelos do teatro moderno.

Chegando ao segundo andar. César tocou a campainha, entregou o seu bilhete, e foi introduzido quase imediatamente num gabinete mobiliado com muita arte, onde se achou em presença do dono da casa.

Todos conhecem este homem, de estatura mediana, vivo e vigoroso como um adolescente, apesar de não ser da primeira, nem ainda da segunda mocidade; este tipo original, de cabelos encara-colados, de olhos vivos e penetrantes e lábios risonhos.

É um pouco delgado de membros, mas tem eles a flexibilidade e a solidez do aço.

— O senhor de Fossaro? perguntou cumprimentando o Barão, depois de olhar para o bilhete que acabavam de lhe entregar.

— Sim, senhor.

— O que me proporciona a fortuna da sua visita, senhor Barão?

— Venho consultá-lo.

— Deseja que pergunte às linhas de sua mão o que lhe reserva o futuro?

— César fez um gesto enérgico de negação e respondeu:

— Entre nós não se deve tratar nem de quiromancia, nem do meu futuro.

— Então de quê?

— Afirma-se que o senhor, lendo uma carta, pode tirar o retrato físico e moral do seu autor.

O dono da casa sorriu.

— É ir um pouco longe, replicou. Mas a verdade é que, à força de estudos, tenho chegado a resultados deveras extraordinários. Tem uma carta a confiar-me?

— Sim, senhor.

— Conhece o signatário?

— Não é assinada, ignoro por quem foi escrita. E é isto justamente o que eu queria saber. Eis a carta.

O senhor de Fossaro deu ao seu interlocutor o bilhete anônimo entregue a Malpertuis pelo Conde de Vergis.

O homem de ciência pegou no bilhete, pôs a luneta, leu com profunda atenção, e voltando-se para César no fim de um minuto disse-lhe:

— É uma ignóbil denúncia.

— Como vê.

— Infelizmente nada de preciso, e por conseguinte nada de útil pode sair do estudo desta carta.

— Por que?

— Porque a letra é fingida.

— Supõe?...

— Salta aos olhos, aos meus pelo menos, apesar de ser hábil a mão por quem foram traçadas estas linhas. O escritor anônimo é hábil em caligrafia, e podia tornar-se um famoso falsário. Não recebeu uma educação bem sólida, mas, à falta de instrução, possui uma espécie de verve que só se encontra em pessoas do teatro. As frases empoladas e redundantes, denunciam o comediante. Ás palavras: "pessoas de teatro e comediante", Fossaro apurou o ouvido.

O dono da casa continuou:

— Apesar de fingida, esta letra é achatada, e por assim dizer nodosa. Parece-me indicar uma criatura de baixa origem. É mau o seu espírito, impetuosa a sua imaginação, o que se depreende da estrutura indecisa de certas letras formadas à pressa e não terminadas. A escrita descendo para o ângulo inferior da página, reflete a vida do homem que desce para o mal. As palavras, irregularmente espaçadas, denunciam uma consciência pouco escrupulosa. Os T, cortados muito acima por um traço muito comprido, revelam claramente: orgulho! O que pegava na pena não escrevia por sua própria conta.

— Tem a certeza disso? exclamou Fossaro surpreendido.

— Pelo menos assim me parece.

— Por onde conhece isso?

— Pelo grande número de interrupções em tão poucas frases. O escrevente esperava que o inspirador formulasse o seu pensamento, e depois resumia-o numa linguagem onde não se pode achar nem o estilo nem as expressões de um cavalheiro. Um homem da boa sociedade não seria capaz de mostrar semelhante coisa. É melodrama da pior escola.

 

                                                                               CONTINUA

 

                      

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