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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INESQUECIVEL / J.R. Ward
INESQUECIVEL / J.R. Ward

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Capítulo 1

A mulher surgiu das sombras, e ele a reconheceu pelo cabelo ruivo. Ela se movia devagar e deliberadamente em sua direção, e ele soltou o ar, satisfeito. Queria perguntar aonde ela foi, pois sentira sua falta.

Mas quanto mais perto ela chegava, menos ele tinha vontade de falar.

Quando ela parou à sua frente, ele estendeu uma mão e passou um dedo por seu rosto. Ela era insuportavelmente linda, em especial os olhos. Eram de um azul espetacular, um tom que complementava os cachos acaju que caíam para baixo dos ombros. Ele a queria. Não, precisava dela.

O sorriso dela aumentou, como se soubesse em que ele estava pensando, e ela inclinou a cabeça para trás. Ao olhar para aqueles lábios entreabertos em um meio sorriso, uma onda de urgência o atingiu. Entregando-se ao desejo, ele colocou as mãos nos ombros dela e a puxou para perto, querendo rapidamente tomar o que ela oferecia, antes que ela desaparecesse outra vez.

Curvando-se para ela, ele sentiu ansiedade e algo mais, algo que fez seu coração bater mais do que com mero desejo.

Os olhos de Jack Walker se abriram de súbito. Envolvido como estava com o desejo incontrolável, ele não tinha certeza se de fato acordara. Ou onde estava. Sabia que a cama não era a dele, mas nada mais.

 

 

 

 

 

 

Ele olhou ao redor para as formas negras no quarto. Depois que respirou fundo algumas vezes, as silhuetas começaram a fazer sentido. Ele estava no Hotel Plaza em Nova York, na suíte em que sempre ficava quando ia para a cidade.

E a mulher que ele ainda queria tanto tinha evaporado. De novo.

Ele olhou para as decorações do teto, frustrado. Não tinha dormido bem as duas últimas noites e precisaria de um sono decente em breve. Ele não era uma pessoa paciente, para começo de conversa, e a falta de sono certamente não estava ajudando.

Aquele sonho o estava deixando louco.

Toda vez era igual. Logo antes de beijá-la, antes de saber qual seria o gosto dela, ele acordava, molhado de suor e com um humor terrível.

Jack passou uma mão pelo cabelo. Sem um alvo adequado para sua frustração, ele fervilhou de raiva na escuridão.

Ele só tinha visto aquela mulher uma vez e não tinha imaginado que ela deixaria uma impressão tão forte nele.

Inquieto, soltou-se dos lençóis emaranhados ao redor do seu corpo nu. Quando finalmente livre, foi até as janelas e olhou para fora. Era uma vista característica de Nova York. Arranha-céus se erguendo para as nuvens, faróis piscando em um labirinto de asfalto lá embaixo. Já era tarde, mas a cidade ainda se movia.

Alguns dias antes, ele tinha saído de Boston esperando encontrar seu colega da faculdade, que era agora um consultor político de alto nível, e comprar de volta uma pintura que fora da família. Adquirir uma obsessão sexual subconsciente por uma estranha com certeza não estava no programa.

Pelo menos a reunião tinha ido bem. E ele tinha conseguido o retrato.

Na noite anterior, ele vencera o leilão no baile de gala da Hall Foundation. A pintura era uma representação magistral feita por John Singleton Copley e representava Nathaniel Walker, um herói da Guerra de Independência e proeminente ancestral de Jack. A obra custou quase cinco milhões de dólares, mas Jack teria subido ainda mais o lance. Ela jamais deveria ter deixado sua família e Jack era o único que tinha condições de resgatá-la.

O que seria uma surpresa para qualquer pessoa exceto seus parentes mais próximos.

Desde o dia em que o pai discretamente entrara em falência, Jack começara a empregar seu dinheiro arduamente ganho para proteger e fortalecer o legado da família. Para manter a herança orgulhosa e o estilo de vida luxuoso dos Walkers, um volumoso e incessante rio de dinheiro era requerido. Entre a família, no entanto, pessoas que ganhavam dinheiro estavam em falta, enquanto havia uma infinidade das que o torravam. Jack estava no primeiro grupo.

A má administração do pai e as dificuldades financeiras de manter o Parque Temático Walker garantiram que Jack não se tornasse outro aristocrata inútil. Em vez disso, ele era um filho da puta insensível e competitivo que tinha uma reputação de vencer a qualquer custo. Tinha sido uma evolução que seu pai, Nathaniel James Walker VI, nunca tinha aprovado – mas, claro, as opiniões e escolhas do pai sempre foram equivocadas, na opinião de Jack. Nathaniel VI, como fora conhecido, era a síntese do filantropo da velha guarda. Pensava que só havia uma coisa a se fazer com dinheiro: distribuí-lo. Um cavalheiro não sujava as mãos fazendo as coisas pessoalmente.

Era um jeito presumido de encarar a vida, e que fizera seu pai ser muito querido pelas universidades, bibliotecas e museus beneficiários de sua generosidade. Infelizmente, toda essa filantropia o levara à falência quando Jack tinha 25 anos. A pintura fora uma das primeiras posses vendidas para manter a farsa de uma fortuna ilimitada.

Embora estivesse morto há quase cinco anos, Jack podia claramente imaginar os sentimentos conflitantes que seu pai teria com o retorno do primeiro Nathaniel. O retrato do patriarca estava de volta à família, contudo apenas graças às mãos sujas de Jack.

Que ironia, ele pensou, apertando os lábios.

Tentando esquecer o passado, Jack pensou que não deveria estar tão satisfeito consigo mesmo. Ele conseguira a pintura, sim. E também o maldito sonho.

Ele fora ver a peça na Hall Foundation antes do leilão, esperando verificar rapidamente se seu estado era razoável e, então, ir embora. Vira o quadro, mas no processo tinha encontrado a restauradora de arte que, desde então, lhe tirara o sono.

Ele a vira pela primeira vez quando ela saía de um escritório. Ela se voltou, o cabelo vermelho voando sobre os ombros, e seus olhos se encontraram. Ele ficara intrigado, como qualquer homem ficaria, mas ela ainda não o tinha arrebatado com seu charme.

Eles foram apresentados por uma velha amiga, Grace Woodward Hall, presidente da Fundação. A mulher, Callie Burke, era uma restauradora de arte, e por mero capricho, Jack a convidara para ir com eles ver a pintura. Ele ficara impressionado com os comentários detalhados que ela fazia sobre a condição da pintura e sua avaliação do que seria necessário para cuidar dela adequadamente. Jack gostou também do jeito como ela olhou para o retrato. Os olhos de Callie Burke tinham se fixado no rosto de seu ancestral, como se ela estivesse extasiada. Quando perguntou se ela teria interesse em restaurar o quadro, no entanto, ela não demonstrou muito interesse, e cada um foi para um lado. Pelo menos até ele colocar a cabeça no travesseiro àquela noite.

A princípio, ele tinha rido do sonho, contente ao ver que, aos 38 anos, sua libido ainda estava forte como sempre. A cada noite passada, porém, perdia o senso de humor. Por fim, pensara que eventualmente se esqueceria da mulher, pois eles nunca se reencontrariam.

Entretanto, na noite anterior, após o lance vencedor no leilão, sua amiga Grace mencionou a mulher outra vez. Grace insistira para que ele chamasse a tal Callie Burke para a restauração do quadro, quase chegando ao ponto de pedir aquilo como um favor pessoal. Evidentemente, ela confiava na srta. Burke para o trabalho, e o incentivou a pesquisar o trabalho da restauradora para saber se ela era talentosa. Ao final da noite, ele concordara com o pedido, embora ainda não tivesse ideia de por que aquilo era tão importante para sua amiga.

Olhando para a cidade, Jack decidiu que no dia seguinte investigaria o trabalho da restauradora e que, então, tentaria encontrá-la e faria o pedido outra vez. Ele não era do tipo que dava segundas chances às pessoas, mas talvez fosse uma boa oportunidade para começar. Tinha de admitir que ficara tocado com o apoio ardente de Grace.

E os sonhos? Ele não se preocuparia com eles. Afinal, nem gostava de ruivas.

– Jack?

Ele se virou para a cama e olhou a silhueta escura de Blair Stanford. Sua noiva.

– Não queria acordá-la – ele disse, quando ela se sentou.

– Está tudo bem?

– Sim. Tudo certo.

Ela estendeu uma mão para ele.

– Vem pra cama.

Jack entrou embaixo dos lençóis e sentiu Blair colocar os braços ao seu redor.

– Você está tenso – ela disse suavemente, acariciando seu peito.

Ele entrelaçou seus dedos com os dela.

– Durma.

– Tem algo errado? – ela murmurou. – Esteve tão agitado nas últimas noites.

– Não há nada errado, não se preocupe.

Ele acariciou o braço dela, tentando fazê-la relaxar, mas ela ergueu a cabeça e a apoiou na outra mão.

– Jack, a gente se conhece bem demais pra manter segredos.

– Verdade. Mas quem disse que estou escondendo alguma coisa?

Ele sorriu ao ver o cabelo loiro dela espetado para todos os lados. Estendeu uma mão e o alisou, pensando que ela não teria aprovado aquela desordem se pudesse ver-se. Mesmo no meio da noite.

Blair o encarou por um longo tempo.

– Você está repensando o noivado?

– Por que diz isso?

Ela hesitou.

– Fiquei surpresa quando me pediu em casamento, e não falamos muito sobre isso desde então...

– Ambos estivemos ocupados. Não quer dizer que estou mudando de ideia.

O que Jack de fato queria dizer era que ela já deveria saber que ele não era o tipo de pessoa que “mudava de ideia”. Depois de decidir que era hora de se casar e de encontrar a mulher que queria ter como esposa, ele tomara todas as providências necessárias.

– É só que... – Blair deu de ombros. – Nunca achei que nos casaríamos. Fico me perguntando quando vou acordar do sonho.

Ele tocou o ombro dela, sentindo como estava tensa.

– De onde está vindo toda essa ansiedade?

– Nunca pensei que você fosse o tipo de homem que sossega. Teve muitas mulheres antes de mim.

– Você sabe que as histórias sobre minha vida amorosa são extremamente exageradas.

– Talvez, mas não faltaram oportunidades. E não são só as mulheres. Você é um viajante.

Jack riu e pensou em seu irmão gêmeo.

– Não, esse é o Nate. Ele já rodou o mundo quantas vezes? Quatro?

– Você sabe que não é isso que estou dizendo. Você sempre foi inquieto.

Ele pensou sobre a estranha mistura de sangue em suas veias, a combinação do DNA da aristocracia anglo-saxônica e de pescadores portugueses. Provavelmente Blair estava certa, embora ele nunca tivesse se questionado a respeito. Ele tinha a ânsia de liberdade típica de um homem do mar, assim como seu irmão, mas sempre temperara esses ímpetos com uma firme força de vontade e uma dose saudável de avareza.

– Bom, inquieto ou não, vou ficar com você – ele disse a Blair.

Ele a ouviu suspirar no escuro.

– Quero que tenha certeza.

– Você sabe como me sinto sobre você.

– Você não me ama, Jack.

As palavras sussurradas o atingiram com força. Ele abriu a boca, sem saber o que dizer, mas ela colocou um dedo fino sobre seus lábios.

– Não tem problema – ela sussurrou. – Eu sempre soube.

Ele pegou a mão dela e a beijou, querendo poder negar aquilo. Havia tantas características de Blair que ele adorava e respeitava. Ela também era um sucesso empresarial, no comando de uma empresa de decoração de interiores em ascensão. Tinha um estilo e uma elegância fantásticos. Era amorosa e compreensiva, duas coisas de que ele dependeria nos próximos doze meses. Tudo indicava que Jack se candidataria a governador do estado de Massachusetts, e ele sabia que Blair conseguiria lidar com o estresse da campanha com a mesma calma com que administrava tudo.

Ele a valorizava. Gostava de tê-la em sua vida. O fato de não a amar era a única coisa faltante, mas ele não considerava um problema. Esse tipo particular de paixão não era algo que ele era capaz de sentir. Por nenhuma mulher.

– Então talvez a questão seja mais por que você está casando comigo – ele disse.

– Porque amo você e acho que somos uma boa equipe.

– E somos mesmo.

– Então fale comigo. Qual é o problema?

Ele balançou a cabeça categoricamente. Não contaria para Blair que estivera sonhando com outra mulher.

– Blair, acredite em mim. Não há nada com que você precise se preocupar.

– Tá bom, tá bom – ela passou uma mão tranquilizadora sobre o ombro dele, como fazia com frequência. Ela tinha um jeito de lidar com Jack que ele gostava. Tranquilizador, mas não condescendente. – Mas espero que me conte em algum momento. Prefiro saber as notícias ruins cedo, não tarde.

Ela se deitou e, aos poucos, relaxou contra ele, sua respiração se tornando profunda e regular.

Jack encarou o teto enquanto ela dormia em seus braços. Quando finalmente fechou os olhos, visões da ruiva voltaram a invadir sua mente.

Era só um sonho, ele disse a si mesmo. As imagens e sensações tinham mais a ver com sua libido do que com uma mulher que vira por... quanto tempo? Dez minutos?

Além disso, ele sempre preferira loiras e tinha em seus braços uma mulher incrível e carinhosa. Era um homem com um plano e nada alteraria o curso da sua vida.


Capítulo 2

Callie Burke saiu no vento forte de outubro e ergueu o colarinho do casaco, sentindo o tecido áspero contra o pescoço. O velho casaco de lã era a sua proteção contra os invernos frios e a ventania de Nova York há anos, mais uma coisa na sua vida que ela precisava substituir e não tinha como.

Ela lançou um último olhar para a galeria de arte na qual havia trabalhado nos últimos oito meses e colocou as mãos nos bolsos, apalpando com as luvas seu último pagamento. Stanley, seu chefe – ou melhor, ex-chefe – não queria mandá-la embora. Mas os negócios andavam devagar por causa da crise na economia, e ele não teve escolha. As pessoas simplesmente não compravam como na época da bolha da internet, e a realidade financeira tinha que prevalecer sobre as relações interpessoais.

Ela gostaria de ter recebido um prévio aviso, no entanto. Naquela manhã, saíra de casa pensando que seu emprego estava seguro.

Dando um passo à frente, ela se juntou à massa de pedestres apressados.

A galeria tinha sido um bom lugar para trabalhar. Tinha lhe dado um teto, mesmo que modesto, sobre a cabeça, e a mantido no mercado de arte, mesmo não estando envolvida em nenhum projeto de restauração. Além disso, o local ficava no bairro de Chelsea, em Manhattan, a apenas alguns quarteirões do apartamento dela.

E ela gostava de Stanley, apesar dos exageros dele e de seu relacionamento codependente com Ralph, seu poodle mini. Ela não era tão fã de Ralphie. Dois quilos de mau humor somados a um latido capaz de estilhaçar vidro não era nada encantador – não importava o que dissesse Stanley.

Callie suspirou, pensando que sentiria falta do lugar, e então afastou a tentação de se afundar em autocomiseração. Ela estava com problemas financeiros reais. Mesmo com o último salário, só tinha cerca de setecentos dólares na conta e o aluguel venceria em uma semana.

Ela pensou no que poderia vender. Não havia muito no apartamento. As joias da mãe tinham sido usadas há muito tempo para pagar contas de hospital. Os móveis de Callie, que vinham de brechós e mercados de pulga, não renderiam muito. E a velha TV fora roubada meses atrás, quando invadiram o apartamento.

O fato de os ladrões não terem levado mais nada mostrava que o resto dos pertences de Callie não tinha valor. Ela considerou suas opções. O que sabia com certeza é que ainda não queria voltar para aquele buraco deprimente onde vivia. Não havia como encontrar força ou coragem lá. Ela precisava andar um pouco e tentar limpar a mente.

Enquanto andava no ar gelado e pensava sobre oportunidades de emprego, ela se perguntou por que não tinha estudado algo um pouquinho mais lucrativo. Mesmo sendo uma ótima restauradora de arte e apaixonada pela profissão, essa não era exatamente uma carreira com a qual as pessoas costumavam se sustentar. Contabilidade, Direito, Medicina: pelo menos nesses campos, consegue-se emprego em quase todo lugar, e relativamente bem remunerado.

Conseguir um emprego com restauração de arte, no entanto, era tão provável quanto ser atingido por um raio, e foi por isso que Callie acabou na galeria de Stanley. Enquanto cursava restauração na Universidade de Nova York, ela fizera um estágio no Museu de Arte Moderna e tinha ganhado muita experiência trabalhando com especialistas na área, porém, com a mãe tão doente, não quis mudar de cidade quando diplomou-se. O campo já era competitivo, para começo de conversa, e como Callie não queria se mudar, suas perspectivas eram ainda mais limitadas.

Ela parou em frente a uma das galerias mais proeminentes da cidade, perguntando-se se não precisariam de ajuda. Talvez de uma recepcionista. Ou alguém para recolher o lixo. Ela não se importava. Além do seu imperativo financeiro muito real, ela só queria estar perto da arte. Entrou na galeria, e lhe disseram que tinham demitido a recepcionista duas semanas antes. Perguntou, sem muita esperança, se eles sabiam de alguém que estava contratando, mas quando balançaram a cabeça e desviaram o olhar, ela entendeu que muitas galerias estavam na mesma condição que a de Stanley.

Só continue tentando, ela pensou quando reemergiu no frio. Pelo menos, se ficasse esgotada, dormiria à noite.

Ela estava passando por uma banca quando viu uma foto que a fez parar. Pegando o jornal, olhou para o rosto de Grace Woodward Hall.

Sua meia-irmã.

A loira deslumbrante estava em um pódio, usando um vestido longo e se dirigindo a uma plateia composta pelos personagens mais influentes da cidade. De acordo com a legenda, a foto fora tirada no baile de gala anual da Hall Foundation.

Callie ficou chocada ao ler o artigo. Um assassino tentara atacar Grace em seu escritório e ela tinha escapado graças ao guarda-costas. Além disso, parecia que seu casamento com o conde Von Sharone estava acabado, e que seu ex-marido trabalhava em um livro de revelações sobre ela.

Observando a foto, Callie ficou contente por ter finalmente se apresentado a Grace e triste pela vida da mulher estar tão tumultuada. Depois de anos lendo sobre sua meia-irmã nas colunas de fofoca da alta sociedade, Callie não esperava encontrá-la, mas as coisas mudaram quando o pai delas morreu. Ela ficou determinada a ver a meia-irmã de perto. Pelo menos uma vez.

Grace era filha de Cornelius Woodward Hall. Callie era sua filha bastarda. Quando nasceu, recebeu o sobrenome da mãe, Burke, e as mentiras que começaram com sua primeira respiração a seguiram até a idade adulta, criando uma disparidade enorme entre o tipo de vida que sua meia-irmã levava e as dificuldades pelas quais passava. Apesar de Cornelius valer bilhões de dólares, um apoio financeiro extravagante para sua filha ilegítima estava fora de questão. Quando era vivo, ele mal suportava ficar no mesmo ambiente que ela, como se Callie fosse um lembrete forte demais da vida dupla que ele levava. Qualquer coisa que chamasse a atenção para ela devia ser absolutamente evitada.

Claro que, mesmo se ele tivesse tentado ser generoso, gestos desse tipo não teriam sido aceitos. O orgulho da mãe de Callie tinha cortado muito do que Cornelius tentara dar à amante ao longo dos anos. Presentes extravagantes permaneciam fechados. Um apartamento chique ficou vazio. A única coisa que ela aceitara fora o pagamento pela faculdade e pela pós-graduação de Callie.

E algumas joias que, no fim, ajudaram a tornar sua morte menos dolorosa.

Callie continuou lendo. O artigo mencionou que, no leilão do baile, Jackson Walker tinha comprado o retrato de seu ancestral, Nathaniel Walker, herói da Guerra de Independência.

Jackson Walker.

Quando leu o nome, ela sentiu como se uma onda de ar quente atingisse sua nuca.

– Ei! Você vai comprar isso ou quer que eu traga uma cadeira? – rosnou o dono da banca.

Callie colocou o jornal de volta e continuou andando.

Ela tinha lido algo sobre Jack Walker pela primeira vez em uma coluna de fofocas, anos atrás. Ele vinha de uma das famílias mais famosas dos Estados Unidos e tinha mais dinheiro que a maioria dos países pequenos. Também era mais lindo que qualquer um tinha o direito de ser. Por anos, fora um notório bad boy e os tabloides tinham publicado histórias infinitas sobre seus casos. Ele tendia a namorar modelos, atrizes e aristocratas; normalmente, mais de uma por vez. As brigas resultantes e sua indiferença aos ataques de ciúmes provavelmente tinham vendido mais exemplares que os casos de Bill Clinton e Jennifer Lopez juntos.

Fora uma surpresa conhecê-lo pessoalmente.

Tinha ficado claro que ele e Grace eram amigos, e ele parecia o tipo de homem que Grace conheceria; tudo nele era caro. Do terno fino, feito sob medida, aos sapatos lustrados e à pasta de couro. Era óbvio que ele vinha de um mundo privilegiado.

E, com toda essa elegância, era exatamente o tipo de homem que ela evitava.

Certo, talvez evitar não fosse a palavra correta, porque ela não conhecia bilionários com muita frequência. Mas todo aquele dinheiro e confiança eram uma bandeira vermelha. Seu pai tinha ensinado tudo o que ela precisava saber sobre homens ricos e muito pouco tinha sido bom.

Mas ela tinha de admitir que Walker era atraente. Além de seus atributos físicos, ele falava com a autoridade de alguém acostumado a ser seguido, em uma voz que era sedutora mesmo quando não abordava assuntos sensuais. Ela poderia o ter ouvido por horas, suas palavras enunciadas com aquela entonação aristocrática, o brilho dourado de um anel sinete em sua mão enquanto gesticulava.

E também tinha o modo como ele a olhara. Ele tinha encarado seus olhos diretamente, e foi como se a tivesse visto de verdade. Acostumada a ser ignorada, Callie gostou de ser notada daquele jeito. Especialmente ao lado de uma mulher como Grace.

Tinha sido outra surpresa quando ele oferecera a ela o trabalho de restaurar o retrato de seu famoso ancestral. Ele tinha feito a proposta mesmo sem possuir a pintura, já imaginando que venceria o leilão. Considerando o dinheiro que ele tinha, ela supôs que nenhum preço seria alto demais.

Ela recusara a proposta, apesar de ser um trabalho tentador. Não que ela não pudesse realizar o projeto. Callie trabalhara sob a orientação de profissionais renomados na universidade e tinha feito algumas restaurações complexas. O Copley, embora precisando de uma limpeza, não era grande coisa em termos de dificuldade técnica.

Callie simplesmente não queria trabalhar para ele. Ela sabia como os Jack Walkers do mundo agiam, pois lidava com eles de vez em quando na galeria de Stanley, e era filha de um. Eles pensavam primeiro em si próprios, e isso significava que sempre haveria uma exigência. Ele provavelmente tratava os empregados como se fossem descartáveis e encontrava problemas mesmo com os trabalhos mais bem-feitos.

Talvez ela estivesse errada. Talvez Walker fosse um homem simpático, que por acaso tivesse construído um império empresarial. Talvez ele fosse honesto e franco, um poço de virtude humana em um terno Saville Row. Talvez fosse mais Nelson Mandela que Donald Trump.

Mas era mais provável que fosse um canalha em roupas de cavalheiro, alguém para quem ela não devesse trabalhar. A ideia de se envolver com Walker acendia em sua mente uma placa dizendo “Má Ideia”, mesmo que ela precisasse do dinheiro.

De repente, Callie se virou e foi para casa, pensando que caminhar sozinha pela noite fria só podia lhe render mais duas coisas que ela não estava interessada: uma pneumonia e um assalto.

Além disso, ela tinha coisas mais importantes com que se preocupar do que os defeitos de caráter reais ou imaginários de um homem que nunca veria de novo. Ela precisava se preocupar com abrigo. Comida.

Enfiando a mão no bolso, sentiu as costuras do casaco se desfazendo.

Roupas.


Capítulo 3

Jack parou em frente ao prédio decadente de seis andares e franziu o cenho. A porta de entrada estava torta, havia uma pilha de folhetos de comida chinesa em frente à entrada, e o lugar parecia prestes a desabar. Ele subiu cinco degraus de pedra e espiou o interior por um quadrado de vidro sujo. Uma lâmpada iluminava uma escada esquálida e o chão de azulejos decrépito.

Ele foi até um interfone com uma série de botões. Não havia etiquetas com nomes, então Jack apertou alguns aleatoriamente, e não ficou surpreso por não haver resposta. Não esperava que funcionasse.

Xingando, deu um passo para trás e olhou para cima outra vez. Era difícil crer que a restauradora vivia em um prédio daqueles. Conferiu outra vez o endereço que Grace lhe tinha dado, pensando que talvez aquele fosse apenas um ateliê.

Uma rajada de vento subiu a rua e Jack olhou na sua direção. Ele tentara ligar para a srta. Burke várias vezes durante o dia, mas não tinha conseguido nem falar com a secretária eletrônica. Como voltaria a Boston no dia seguinte, imaginou que sua melhor chance de falar com a mulher era aparecer em pessoa, mas, pelo visto, a não ser que estivesse disposto a arrombar a porta, ele chegara a um impasse.

Ele tentou simplesmente girar a maçaneta, caso da fechadura, como todo o resto, estar quebrada. Quando a porta se manteve firmemente fechada, decidiu que aquilo já era o bastante.

Ele não tinha mais tempo para desperdiçar. Se ela era tão difícil de encontrar, problema dela. Amassando o papel, começou a descer os degraus.

Assim que pisou na calçada, uma mulher virou a esquina do outro lado da rua. Ele estava prestes a seguir na direção oposta quando entreviu cachos ruivos que o fizeram soltar o ar em uma nuvem de névoa. Uma imagem do sonho – mãos pálidas tocando seu estômago – o deixou congelado.

Meu Deus, ele disse a si mesmo, não pense nisso.

Ele a viu se mover entre dois carros estacionados e atravessar a rua, a cabeça abaixada como se estivesse perdida em pensamentos. Só quando estava na metade do caminho, ela ergueu os olhos, viu a limusine e estacou no meio da rua.

- Olá – ele chamou, erguendo uma mão. – Você é uma mulher difícil de encontrar.

Ela franziu a testa e olhou para os dois lados.

- Você mesma – ele disse, sorrindo.

Quando ela recomeçou a andar, foi muito mais devagar.

- O que você está fazendo aqui?

Ele estreitou os olhos, examinando-a em cada detalhe. As bochechas e a ponta do nariz estavam vermelhas de frio. O cabelo, que caía para baixo dos ombros, estava bagunçado pelo vento. Seus olhos azuis o examinavam com suspeita evidente.

Ela estava tão linda como Jack se lembrava e ele não pôde deixar de imaginar se seu corpo era como ele havia sonhado. Não dava para ver nada sob o enorme casaco, que aliás surpreendeu Jack. O casaco era velho e puído, de um marrom que não acentuava em nada as cores dramáticas em seu rosto e cabelo ou as curvas de seu corpo.

– Então? – ela insistiu. – Por que está aqui?

Ele ergueu uma sobrancelha. As pessoas não costumavam falar com ele naquele tom de irritação.

– Como eu disse antes, quero que restaure minha pintura.

O olhar frio que ela lançou não era muito animador, e ele começou a se preparar para uma negociação. O que não tinha problema algum. Ele adorava uma boa barganha, fosse por uma empresa, uma posição acionária ou uma obra de arte. Quanto mais dura a batalha, mais doce era a recompensa.

Ela subiu os degraus de pedra, sem sequer olhar para ele.

– Já disse, não estou interessada.

– Acho isso difícil de acreditar – ele disse, ríspido. – Considerando como ficou olhando para o retrato.

Quando ela se voltou, Jack soube que estava louca para se livrar dele, e sua impaciência o deixou com vontade de puxar uma cadeira e passar um tempo ali.

– Não sou a pessoa certa para o trabalho.

– Então tem uma opinião muito baixa sobre suas habilidades.

– Não tem nada a ver com minhas habilidades – ela tirou um cacho de cabelo da frente dos olhos.

– Vamos lá, sei que está morrendo de vontade de trabalhar naquela pintura.

Ela pegou as chaves e se virou outra vez.

– Não estou preparada para aceitar a tarefa. Obrigada.

Ela estava pondo a mão na maçaneta quando ele subiu os degraus, dois de cada vez, e agarrou seu braço. No momento em que a tocou, sentiu-a ficar rígida sob a manga do casaco.

– Me solte. Por favor.

Ela se recusava a olhá-lo diretamente, e ele ficou curioso.

– Me diga, o que eu fiz pra merecer tanta animosidade?

Ele a soltou e abriu um sorriso.

– Bom, apareceu na minha porta sem ser convidado – ela retrucou. – Eu disse que não e você continua aí. Está claramente disposto a me pressionar para trabalhar pra você, por motivos que não consigo nem começar a imaginar. Por que eu deveria ficar contente com isso?

– Você é sempre desconfiada desse jeito?

– Quando as coisas não fazem sentido, sim.

– Como minha oferta de trabalho única não faz sentido?

– Não acredito em milagres.

– Ateísta?

– Realista.

Jack sorriu. Ele gostou da resistência dela, mais ainda porque percebia que não era tão durona quanto queria parecer. Seu rosto podia estar impassível, mas os olhos iam de um lado para o outro, passando pelo rosto dele, o nó de sua gravata, a extensão de seus ombros.

– Acho que consegue fazer o trabalho.

– Baseado em quê? Você deve aprender rápido, porque só nos vimos uma vez na vida.

– Me consideram bastante astuto.

Ela inclinou a cabeça, esperando que ele comprovasse a afirmação.

Ele deu de ombros.

– Sei que você foi a primeira da sua turma e que se formou com honras no programa de mestrado em restauração da Universidade de Nova York. É um indicador razoável de seu interesse e aptidão. Sei que seus professores gostavam de você e achavam que tinha talento e disposição para trabalhar. E pelo que entendi, fez um estágio sob Micheline Talbot e Peter Falchek em alguns projetos muito complexos.

Os olhos dela se voltaram para a porta do prédio. Ela estava obviamente ansiosa para usar as chaves que segurava.

– Como descobriu tudo isso?

– O chefe do seu departamento tem a Cadeira Walker em História da Arte. Ele ficou bem contente de falar comigo.

Ela apertou os lábios.

– Enfim, considerei esse histórico, pensei em como você tinha olhado para o meu ancestral, e cheguei à conclusão de que, estando no início da carreira, você apreciaria a chance de trabalhar com algo desse nível. É uma conclusão lógica, não acha?

O cacho estava outra vez na frente dos olhos dela. Callie empurrou o cabelo para trás, obviamente irritada.

– Veja bem, sr. Walker, sua nova aquisição é uma obra histórica extraordinária. Uma única decisão errada ou uma manobra mal executada e as perdas seriam monumentais.

– Está com medo? – ele provocou.

Ela se empertigou e ele sorriu. Estava mais do que disposto a usar o orgulho dela para vantagem própria.

– Claro que não estou com medo. Mas você precisa de alguém que...

– Se você é qualificada, capaz, e interessada no projeto, só pode significar uma coisa.

– O quê?

– Que tem algum outro motivo para recusar minha oferta. Imagino o que poderia ser.

– Não gosto de você – ela admitiu. Assim que as palavras escaparam, seu rosto ficou ainda mais vermelho. – Quer dizer...

Ele riu.

– Você não me conhece o bastante pra não gostar de mim.

– Não tenha tanta certeza – ela resmungou. – Não gosto nem um pouco de playboys.

O sorriso dele se desfez.

– O que te faz pensar que sou um playboy?

– Também me consideram bastante esperta – ela disse, levantando o queixo. – E sou ótima em julgar o caráter das pessoas.

Quando ela o encarou com mais um desafio, ele perdeu o humor. Ter de superar o seu passado estava lhe dando nos nervos ultimamente.

– Mas não fiz nada para ofendê-la, fiz? – ele perguntou. – Não fiz propostas de sexo. Não a toquei de um jeito impróprio.

Ele tinha feito amor com ela em sonhos, claro. Mas isso não contava.

Quando ela permaneceu em silêncio, ele deu um sorriso sarcástico.

– Talvez o problema seja que você se sente atraída por mim.

A boca dela se abriu em indignação.

– Claro que não!

– Então não devo pensar que você só está se fazendo de difícil com toda essa hostilidade latente?

Ela balançou a cabeça, incrédula.

– Aposto que você acha que qualquer pessoa de saia sente atração por você. O que prova que é um playboy, aliás.

Ele a olhou, impassível.

– Bom, agora que sei o que pensa de mim, vou lhe dar algo para refletir. Acho que você está procurando desculpas para não aceitar esse trabalho e seria uma pena recusar algo tão importante só porque está com medo, não acha? – ele tirou um cartão de visita do bolso e o pôs na mão dela. – Isso poderia ser uma virada na sua carreira, e você sabe disso. Me ligue amanhã com sua resposta.

– Já dei minha resposta.

– Pense a respeito.

– Já pensei.

– Então pense um pouco mais.

Ela o encarava com raiva e Jack teve certeza de que estava pensando em outro argumento. Se ela quisesse continuar com aquilo, ele estava mais do que disposto a fazer sua vontade.

Por algum motivo, a discussão o fez pensar em Blair. Quando ele se irritava, ela se tornava tranquilizadora, movendo-se como água sobre os ângulos agudos dele. Esta mulher, por outro lado, o confrontava diretamente. Diante da determinação dela, sentindo sua força, ele se sentiu extremamente vivo.

De repente, ele sorriu.

– Quer saber? Gosto de você.

– Não gosta, não – ela disse rápido, arregalando os olhos.

– Gosto, sim.

Outra rajada de vento passou pela rua, e aquele cacho voltou a bater contra o rosto da mulher. Sem pensar, Jack estendeu a mão e colocou os fios atrás da orelha dela.

Esse simples gesto interrompeu a discussão.

Ela afastou a cabeça, mas a mão dele acompanhou o movimento, seguindo as ondas sedosas do cabelo ruivo até os ombros dela.

Ele encarou seus olhos. Estavam brilhando com alarme e algo mais. Alguma coisa acalorada. Passou pela mente de Jack que ele deveria ser cuidadoso perto daquela mulher, mas daí os lábios dela se abriram e esse pensamento se perdeu. O de baixo era mais carnudo e ele sentiu uma necessidade urgente de testar a suavidade dele com o dedo. Com a própria boca.

Então, percebeu que tinha se inclinado para a frente, como se fosse beijá-la.

Rapidamente deu um passo para trás e passou uma mão pelo cabelo, percebendo que ela estava tão desconcertada quanto ele.

Apontando para o cartão, que ela apertava com força, ele disse:

– Me ligue amanhã.

E, então, saiu antes que ela pudesse lhe devolver o cartão, dando passos largos até a limusine. Assim que entrou no carro, olhou para o prédio decadente. A porta de entrada estava se fechando.

Ele xingou.

Deus, ele quase a tinha beijado!

Mais “boas ideias” como aquela e ele terminaria com sérios problemas. Ele viera fazer uma oferta de trabalho, não trair sua noiva.

– Vamos, Franky, estamos atrasados.

– Claro, sr. Walker.

A limusine partiu.

Ele tinha pouco menos de vinte minutos para chegar ao balé, onde se encontraria com Blair e o novo cliente, e agora tinha mais um motivo para não estar animado com a noite. Jack não gostava de ficar parado por tanto tempo, e a dança nunca prendia sua atenção. Podia prever que passaria umas duas horas sem nada para fazer, exceto remoer o que acontecera na entrada do prédio de Callie Burke.

Ele balançou a cabeça, dizendo a si mesmo que não deveria exagerar a situação.

Além disso, suspeitava que tinha vencido. Seus instintos diziam que Callie ligaria amanhã e aceitaria o trabalho. No fim, sua determinação e apego pela pintura ganhariam das suspeitas que ela tinha de Jack. E, como consequência do comprometimento dela, ele estaria dando uma oportunidade a alguém, algo que seu pai sempre dissera não ser do seu feitio. Também estaria atendendo a um pedido de Grace.

Portanto, ele estava fazendo a coisa certa. Apesar daquele momento de insanidade na escada.

Jack relaxou e se inclinou contra o banco de couro, dizendo a si mesmo que a única coisa com que precisava se preocupar hoje era como fingir interesse em um bando de homens com enchimento na frente do collant.

Enquanto a limusine de Jack Walker se afastava, Callie ficou parada no saguão do prédio, ciente de que estava tremendo. Ela disse a si mesma que o que estava passando por seu corpo, fosse o que fosse, não era atração. Não podia ser.

As pessoas tremem no frio, ela pensou. Deve ser isso.

Ah, droga, quem ela estava enganando?

Ela olhou para o cartão. Jackson W. Walker, CEO, Fundo Walker. Havia um endereço de Boston embaixo do nome e do título.

Até o papel era caro, ela pensou, testando sua rigidez cremosa.

Mesmo que ainda se lembrasse do cheiro bom de sua água-de-colônia, era difícil acreditar que ele tinha vindo atrás dela. Ela não teria ficado mais surpresa se Bill Gates aparecesse em frente ao seu prédio. Precisou de todo o autocontrole para ir até ele.

O homem a deixava nervosa, e por que não deixaria? Ele estava oferecendo algo que ela queria muito. Era rico, o que significava que tinha poder. E ela suspeitava que Jack Walker era o tipo de pessoa que sempre conseguia o que queria na vida – mesmo se tivesse de pagar por isso. O que basicamente descrevia seu pai.

Mas o principal motivo era que, quando estivera na frente dele, tinha sentido como se estivessem presos a cabos elétricos nos seus dedos.

Ele estava certo. Ela queria trabalhar na pintura. Desesperadamente.

Mas recusar era a coisa certa a fazer. Sua situação financeira a colocava numa posição de vulnerabilidade; ela queria acreditar em milagres porque estava precisando de um. Voltar para casa e encontrar Jack Walker com uma oferta única daquelas parecia bom demais para ser verdade.

Ou talvez ela estivesse procurando desculpas. Talvez estivesse, sim, com um pouco de medo de mexer sozinha em um retrato como aquele. E talvez a atração que sentia por Jack fosse só mais um perigo em um campo minado de complicações.

Ela enfiou o cartão dele no bolso – o bolso que não tinha um buraco – e abriu a caixa do correio. Depois de pegar duas contas vencidas, subiu os seis lances de escada até seu apartamento. A escada cheirava a comida indiana da família que morava no primeiro andar, e a aguarrás do artista que morava no segundo. Quando Callie abriu a porta do apartamento, o cachorro do outro lado do corredor começou a latir, e sua dona, uma senhora frágil, o repreendeu com uma voz surpreendentemente firme.

Callie fechou a porta e se encostou na parede. Ela podia ouvir o chuveiro pingando no banheiro.

Tirando o casaco, foi até a cama e se sentou. Olhou a cômoda que comprara por cinquenta dólares e que ela mesma pintara, o resto de carpete que tomara de Stanley quando o escritório dele foi reformado, e a mesa de cabeceira, feita de blocos de cimento e um pedaço de madeira.

Na qual ficava a velha TV.

Então olhou para o armário, o terninho Chanel pendurado na porta. Do outro lado do quarto, os botões do blazer brilhavam dourados, os dois Cs entrelaçados claramente visíveis. A peça parecia tão deslocada ali quanto a limusine que estivera na frente do prédio.

O terninho era de Grace. Callie estava encharcada no dia em que elas se conheceram, e a meia-irmã lhe emprestara a roupa. Jogando-se na cama, ela imaginou que o preço do conjunto provavelmente seria suficiente para cobrir o resto do seu aluguel e manter um teto sobre a sua cabeça por uns dois meses.

Depois de uma hora, ela começou a sentir frio e se virou de lado, puxando o cobertor sobre as pernas. Olhando para o quarto minúsculo, Callie torceu para que a solução de seus problemas aparecesse.

E que não envolvesse Jack Walker.

Eram cerca de quatro da manhã quando ela decidiu aceitar o trabalho. O fator determinante não foi o dinheiro, embora ele tivesse pesado na decisão. O retrato Walker era simplesmente tentador, e se ela recusasse a oportunidade por uma falta de fé em suas habilidades ou por uma reação hiperbólica a um homem, ela nunca se perdoaria.

Depois de tomar a decisão, Callie começou a fazer planos. Primeiro, precisaria de ajuda. Felizmente, ainda mantinha boas relações com seus professores da Universidade de Nova York, e se tivesse problemas com a restauração, sempre poderia falar com eles. Também estava certa de que poderia pedir para usar o espaço da universidade e usar um de seus microscópios. Os materiais estariam inclusos nos custos do projeto, então ela não precisaria se preocupar em gastar o próprio dinheiro, e tinha certeza de que nenhum dos cheques de Jack Walker voltaria.

Quanto a ele, Callie quase não o veria – se tudo corresse bem, só quando ele lhe entregasse a pintura e, outra vez, quando viesse apanhá-la depois que o trabalho fosse finalizado. Talvez aparecesse para uma visita no meio para monitorar o progresso dela.

Com certeza, ela conseguiria sobreviver a uma ou duas conversas.

De repente, Callie lembrou dele se inclinando, naquele momento insano em que jurava que ele iria beijá-la.

Talvez conseguisse lidar com uma ou duas conversas.

Callie ficou acordada até o sol nascer, pensando sobre as coisas que teria de comprar ou emprestar. Depois de finalmente formular um jeito de conseguir tudo de que precisaria, ela ligou para o escritório de Walker e se surpreendeu quando o telefone foi atendido por uma secretária, mesmo sendo fim de semana.

Quando ela disse seu nome, a mulher respondeu:

- Ah, bom. Ele está esperando por você.

Uma música de espera começou a tocar, algo clássico e imponente. Callie engoliu em seco.

- Bom dia, srta. Burke – a voz suave e levemente zombeteira de Walker atravessou o aparelho e desceu pela espinha dela.

- Aceito o trabalho.

Ele deu uma risada baixa de satisfação e depois assumiu um tom de negócios.

- Certo. Vamos nos encontrar às dez horas, no Plaza.

Ela franziu a testa, olhando o cartão.

- Achei que estivesse em Boston.

- Não, ainda estou aqui. Dez horas? Nos encontramos na minha suíte.

Quando ela hesitou, ele acrescentou, seco:

- Se a deixar mais confortável, arranjo um acompanhante. E me certifico de que as mordaças e as algemas estejam guardadas.

Ela apertou o telefone.

- Engraçadinho.

Callie anotou o nome da suíte e desligou, o coração batendo forte. Quando colocou a mão sobre o peito e sentiu botões, percebeu que tinha dormido de roupa.

Bom, não tinha dormido, na verdade.

Questionando o bom senso do que concordara em fazer, foi até o banheiro e ligou o chuveiro. Quando se despiu, considerou criticamente as calças pretas, a camisa branca e a blusa preta que, por acaso, usara como pijama. Eram roupas modestas, sem nada de especial. E no armário dela só havia itens assim.

Ela desejou ter algo chique para usar quando se encontrasse com Jack. Roupas que lhe dariam a coragem de que precisaria quando se sentasse em frente ao homem e tentasse fingir que era tão sofisticada quanto ele.

Ela olhou para o terninho Chanel e sorriu, imaginando que Grace provavelmente não se importaria se ela usasse a peça mais uma vez.


Capítulo 4

Callie entrou às dez em ponto no Plaza Hotel. A primeira coisa que fez foi tirar e dobrar o casaco, deixando o forro de cetim, e não o exterior peludo, à mostra. Depois que encontrou os elevadores, subiu vários andares até emergir em um corredor elegante. Uma série de placas de bronze na parede a ajudaram a se localizar.

Enquanto caminhava, uma loira em um terninho vermelho elegante, com um casaco combinando, se aproximou em uma lufada de perfume. Seu cabelo estava curto, enfatizando as bochechas esculpidas e os olhos inclinados, e as joias que usava eram discretas e caras. A mulher a avistou e sorriu, dando um aceno.

Callie imitou a inclinação impassível do queixo, pensando que precisaria se lembrar do gesto. Um pouco depois, parou em frente a portas duplas nas quais se lia “Suíte Greenough”.

Ela ergueu a mão para bater, mas uma voz a interrompeu.

- A senhora está procurando o sr. Walker?

Callie se virou. Uma arrumadeira carregando um conjunto de toalhas a examinava com curiosidade educada.

- Estou.

- Ele saiu faz uma hora. Deve voltar logo, mas não posso deixar a senhora entrar.

- Não tem problema. Posso esperar aqui.

Depois que a arrumadeira saiu, Callie se encostou na parede, segurando o casaco. Pensou sobre o que diria quando o visse e se lembrou da mulher no terninho vermelho. Como uma mulher daquelas cumprimentaria Jack Walker?

Quaisquer que fossem as palavras, elas sem dúvida causariam um efeito perfeito. Assim como as roupas e o cabelo da mulher.

- Desculpe por fazê-la esperar – a voz de Walker a surpreendeu, e ela deixou escapar um gritinho que gostaria de ter segurado. – Não quis assustá-la.

Callie abriu a boca, mas todos os pensamentos lúcidos evaporaram quando o examinou de perto. A camiseta preta e os shorts de corrida eram uma surpresa, assim como o suor sobre a pele.

Mas o corpo dele foi o que realmente atraiu sua atenção.

Meu Deus, ela pensou. Sob aqueles ternos caros havia um atleta.

Os ombros do homem eram largos e sólidos e seus braços mostravam uma rede vigorosa de veias e músculos. Ela não pôde deixar de abaixar os olhos, e notou que o abdome era tão liso quanto a parede em que estava apoiada, e que as coxas eram firmes e fortes. Ele parecia algum tipo de máquina bem-feita, partes formidáveis que tinham acabado de passar um teste rigoroso nas ruas de Nova York.

Callie desviou o olhar, percebendo que o estava encarando.

- Quer que eu volte em meia hora?

- Por quê? – ele perguntou, abrindo a porta.

- Pra você poder... ahn, se trocar.

- Não se preocupe, sou rápido no chuveiro.

Uma imagem mental que ela poderia ter recusado.

– Você vai entrar – ele perguntou quando ela ficou parada à porta – ou vamos conversar no corredor?

Callie ergueu o queixo e passou por ele.

Quando entrou na suíte, parou outra vez. Era um palácio, cômodos e mais cômodos de creme e dourado com móveis de mogno e grossas cortinas bordadas. Ela podia ver uma sala de jantar, uma sala de estar, e um bar. Em um canto, havia outras portas que provavelmente levavam a quartos.

– Pedi o café da manhã pra gente – ele disse, passando sobre um tapete oriental que complementava tanto as paredes pálidas como os móveis escuros. – Se eles vierem, você abre a porta?

Ela assentiu e pôs o casaco em uma cadeira.

Quando ouviu a porta se fechar atrás dele, Callie começou a realmente estudar a suíte. Resolveu aproveitar e dar uma boa olhada, já que não sabia se entraria em um quarto de hotel como aquele outra vez na vida. Um clarão de cor atraiu sua atenção. Sobre a superfície lustrosa de uma mesa lateral havia um cachecol de mulher, e ao lado um par de brincos de ouro maciço. Callie se aproximou para olhar melhor. Eram lindos e caros, e era fácil imaginar o tipo de mulher a quem pertenciam.

Com certeza, quem quer que ela fosse, não tinha um buraco no bolso do casaco.

Será que eram de uma namorada? Amante?

Ou ele era casado? Não, ela teria lido sobre isso nos jornais.

Outra vez, ela pensou em como ele havia tocado seu cabelo na noite anterior. Lembrando-se de como tinha se sentido, começou a acreditar em todas as histórias sobre mulheres entrando e saindo do quarto de Walker. Naquele momento, quando ele viera em sua direção, os olhos abaixados e focados nos lábios dela, o corpo largo emanando calor mesmo através das roupas, ela não tivera interesse algum em fugir. Estivera prestes a colocar as mãos naqueles ombros e puxá-lo para si.

O que provava que ele era atraente de uma forma perigosa, e que ela obviamente estava louca.

Uma campainha tocou e Callie foi abrir a porta ao garçom que trazia o café da manhã. Ela o deixou passar e o assistiu arrumar a mesa da sala de jantar. Prata, cristal, pratos de porcelana e guardanapos de linho eram dispostos com movimentos precisos e eficientes. O garçom saiu em menos de dez minutos e não esperou gorjeta – o que era bom, porque ela não tinha nada para dar.

Contente por ter algo para fazer, Callie sentou e se serviu de uma xícara de café. Estava levantando a xícara quando Walker voltou ao quarto.

- Que bom. Estou morrendo de fome.

A mão dela tremeu e um pouco de café caiu no seu prato, formando uma poça marrom. Ela xingou baixinho e ficou em dúvida entre limpar ou não enquanto ele se sentava à sua frente.

- Deixo você tão nervosa assim? – perguntou Walker naquela sua voz profunda.

Ela ergueu os olhos, mas não encarou os dele. O cabelo dele estava molhado e o colarinho da camisa branca e recém-passada estava aberto, revelando seu pescoço. Ela podia sentir o cheiro de loção pós-barba, suave e cara.

Sim, pensou.

– Não – ela disse. – Decepcionado?

Ele sorriu.

– Por que eu iria querer deixá-la desconfortável?

Ele se serviu de um pouco de café e então lhe ofereceu uma cesta de pães e doces. Callie hesitou.

– Não vai comer? – ele perguntou.

Ela pegou uma rosca de uva-passa e canela antes de perceber o que tinha escolhido. Ela odiava uva-passa, mas não devolveria a rosca.

Ele colocou um muffin no prato e alguns pedaços de fruta em uma tigela de prata.

– Fico feliz por você ter aceitado trabalhar para mim.

– Estou animada pra começar – ela disse por detrás da xícara de café.

– É mesmo? – ele perguntou, lentamente. – Ainda parece estar em dúvida.

– Por que diz isso?

– Ainda não me olhou nos olhos.

Callie franziu a testa e se forçou a encarar o olhar firme de Walker, notando pontinhos verdes e amarelos nos olhos castanhos que a olhavam de volta.

– Veja só, não foi tão ruim, foi? – ele provocou, sorrindo.

– Sr. Walker...

– Jack.

– Jack – ela repetiu –, por que não falamos sobre o trabalho?

– Você não quer que a gente se conheça um pouco?

– Não foi pra isso que vim.

Ele deu de ombros, espetando um morango com o garfo.

– E daí? Relaxe. Viva um pouco. Talvez até passe a gostar de mim se me conhecer melhor.

– Duvido – ela disse, e então balançou a cabeça. Será que um dia aprenderia a pensar antes de falar com aquele homem? – Veja, eu...

– Estou magoado, srta. Burke – ele murmurou. – Ou posso chamá-la de Callie?

Ela revirou os olhos. Ele não parecia magoado. Na verdade, parecia perfeitamente satisfeito, contanto que estivesse mastigando seu café da manhã.

Se esse cara tem um ego frágil, pensou Callie, eu sou a fada dos dentes.

Ela tentou de novo.

– Sem ofensas, mas só estou interessada na pintura.

– Bom, talvez eu queira saber um pouco mais sobre você.

– Você conhece minha experiência profissional. O que mais pode querer saber?

Ele a olhou secamente.

– Você não gosta de falar sobre si?

– Não com você.

– E por que não?

– Porque suspeito que tudo que eu disser poderá ser usado contra mim.

Ele soltou uma risada alta e genuína.

– Não sou a polícia e não sou um criminoso. Pelo menos, até onde sei.

Ele sorriu para ela, e Callie se ocupou em passar cream cheese na sua rosca.

– Então, sobre Nathaniel...

– Você está realmente determinada a não aproveitar o café da manhã comigo, não é? – ele perguntou, lacônico.

– Não consigo me imaginar aproveitando qualquer coisa com... – ela corou quando ele lhe deu um olhar incisivo. Agitando a mão, como se pudesse apagar as palavras, murmurou: – Desculpe, não devia ter dito isso.

Ele a observou por um momento.

– Você é muito honesta. E não costuma ser forçada a fazer nada, não é?

Ela quase ficou de queixo caído, tanto porque ele parecia aprovar sua sinceridade como pelo fato de que ele estava muito, muito errado.

Você não sabe de nada, ela pensou, abaixando a faca. Durante anos, ela aguentara as consequências dos ataques emocionais da mãe. Tinha aceitado ser relegada a uma nota de rodapé vergonhosa na vida do pai sem nunca desafiá-lo ou dizer a ele como aquilo doía. Sem contar como aguentava o pior da natureza irritadiça de Stanley, dia após dia, sem nunca se defender.

Mas Jack Walker não precisava saber de nada disso. E ela adoraria saborear o equívoco dele em particular.

– Por que é tão importante que eu trabalhe pra você? – ela perguntou de repente.

Ele ergueu a xícara e ela viu o brilho dourado de suas abotoaduras.

– Todo mundo precisa de uma ajuda pra começar – ele disse. – Você trabalhou duro e merece uma chance de ficar conhecida. Estagiou com alguns dos melhores profissionais na área, mas precisa de um desafio, algo que a faça ser notada. Precisa deixar sua marca.

Era um bom conselho e uma inclinação generosa da parte dele. Mas eles não se conheciam e ele não devia nada a ela, o que significava que aquelas banalidades não eram a verdadeira explicação. Será que Grace tinha falado alguma coisa? Será que ele estava fazendo aquilo como um favor à sua meia-irmã?

– O que Grace disse sobre mim? – ela perguntou.

Ele a olhou calmamente.

– Disse que vocês são amigas. Que você é talentosa. Que é importante pra ela que você tenha uma chance de trabalhar nesse projeto. Por quê?

– Nenhum motivo.

Ela tentou imaginar as implicações da intromissão de Grace em sua carreira. Callie apreciava o apoio, embora preferisse ter conseguido o trabalho pelos próprios méritos. Mas, pensando bem, talvez tenha sido dessa forma. Jack Walker não parecia o tipo de homem que contratava alguém por razões sentimentais.

E agora entendia melhor por que ele tinha ido atrás dela.

– Algum problema? – ele perguntou quando ela não disse nada.

– Só não quero ser seu projeto de caridade – ela deixou escapar.

Ele franziu a testa, e então riu.

– Então ficará feliz de saber que minha falta de interesse filantrópico é lendária. Você é qualificada e vai trabalhar por cada centavo. Meu dinheiro é importante demais para que eu faça caridade – ele indicou o terninho dela. – Além disso, se pode comprar um Chanel, não está exatamente passando fome. Embora eu tenha que admitir que fiquei surpreso por você ter um ateliê num prédio tão acabado.

– Ateliê?

Ele franziu o cenho.

– O prédio em Chelsea.

Callie quase riu. Ele pensava que ela trabalhava naquele prédio? Era compreensível, claro. Havia vários ateliês de artistas no bairro.

Ela estava prestes a corrigi-lo quando decidiu manter silêncio. Não havia motivo algum para contar sua história àquele homem, e se ele pensava que ela tinha dinheiro, isso agia em vantagem dela, colocando-os em uma posição mais igualitária.

Quando ela ficou em silêncio outra vez, ele soltou um som frustrado.

– Está bem, acabou o papo furado. Quando pode começar?

– Assim que você quiser.

– Pode estar em Boston depois de amanhã?

– Boston? – ela se empertigou.

– A pintura será despachada para minha casa na terça.

– Ah! Imaginei que ficaria aqui.

– Não moro aqui.

– Mas poderia fazer um seguro e deixar o quadro comigo – ela disse, esperançosa.

– Não era o que eu tinha em mente.

Ela percebeu que ele estava decidido.

– Isso muda tudo.

– Por quê?

– Todos os meus contatos estão aqui. Meu, ahn, ateliê. Minhas ferramentas.

– Nada disso será um problema – ele disse tranquilamente.

Talvez não para você, ela pensou.

– Arranjarei tudo pra você – ele continuou. – E gostaria que ficasse em Buona Fortuna enquanto trabalha.

– Onde?

– Minha casa. Buona fortuna significa “boa sorte” em italiano. Minha tataravó era fã do Renascimento.

Ele pegou um croissant da cesta.

– Vou lhe dar um estúdio onde trabalhar e arranjar todo o equipamento de que precisar. Você vai poder organizar tudo como quiser.

Ela se imaginou dormindo sob o mesmo teto que Jack Walker e o calor que se acomodou em seu estômago a fez querer ficar longe do homem, não se mudar para a casa dele.

– Não sei se seria uma boa ideia. A restauração pode demorar até seis semanas. É bastante tempo para receber um convidado.

– Verdade. Mas a casa é grande.

A droga da casa podia ter o tamanho de um estádio de futebol e ainda seria pequena demais, ela pensou.

– Não sei.

– Não vou cobrar pela hospitalidade – ele disse, com desaprovação. – Se é isso que a preocupa. E o pagamento continua o mesmo.

E então ele disse um valor que quase a fez cair da cadeira.

Com aquele dinheiro, ela não precisaria se preocupar com o aluguel por um ano – e mais um pouco! Poderia procurar um emprego com tranquilidade. Poderia começar um pé-de-meia.

Callie tentou manter a voz firme.

– É muito generoso da sua parte.

– É a taxa corrente de um profissional. E lembre-se, darei tudo de que precisar para trabalhar na pintura.

Ela hesitou. Não conseguia se imaginar fazendo o trabalho em uma residência. Não era impossível, mas seria complicado.

– Por que é tão importante que o trabalho seja feito na sua casa?

– Não quero que nenhum museu tenha a impressão errada de que essa pintura vai ficar pendurada em qualquer outra parede que não a minha. Já tive problemas algumas vezes, precisei lutar para levar peças embora depois de serem restauradas, mesmo que eu tivesse pago pelo serviço. Alguns restauradores e museus se afeiçoam às peças, o que é outro motivo para você ser interessante pra mim – houve uma leve pausa. – Você não é afiliada a nenhuma instituição, então não haverá mal-entendidos.

– Mas vou precisar de equipamentos que serão difíceis de conseguir ou caros demais.

– Isso não existe – ele disse, servindo-se de mais café.

Tomando um gole, ele a olhou por sobre a xícara e Callie notou o anel no seu dedo mindinho. Estava próxima o bastante para ver que havia um brasão nele, e pensou que, com o dinheiro e as conexões que tinha, provavelmente não havia nada que Jack Walker não pudesse conseguir.

Nenhum bem material, pelo menos.

– Se tiver algo que você absolutamente não possa fazer na casa, levaremos a pintura ao Museu de Belas-Artes. Já falei com o restaurador chefe de lá e ele ofereceu ajuda, mesmo que eu tenha deixado claro que uma restauradora independente fará o trabalho.

Ele limpou a boca com o guardanapo e se encostou na cadeira.

– Então, como pode ver, está tudo arranjado. Você só precisa vir.

Callie hesitou, pensando que o trabalho a estava levando em direções com as quais não estava completamente à vontade.

Com um movimento ríspido, Walker jogou o guardanapo na mesa e se levantou.

– Tenho uma reunião em dez minutos. Sei que meus termos são generosos, então não estou inclinado a negociar. Você aceita ou não?

Examinando sua expressão, Callie percebeu que ele estava preparado para ir embora, o que diminuiu um pouco sua preocupação.

Ela respirou fundo.

– Onde nos encontramos em Boston?

Sem demonstrar nenhuma reação, ele foi até uma mesa.

– Minha casa fica em Wellesley, na Cliff Road – ele se abaixou e anotou algo com uma caneta dourada. – Aqui estão meu endereço e telefone. Estarei lá sem falta às cinco horas, na terça.

Ele entregou o papel e Callie estreitou os olhos, tentando desvendar os rabiscos. A letra dele era quase ilegível.

– Isso é um nove? – ela perguntou, surpresa com a leveza que tinha aquela escrita.

Ele assentiu, sorrindo.

– Minha caligrafia sempre foi terrível. Era uma das coisas que meu pai nunca gostou. Um psicólogo provavelmente diria que minha negligência contínua é uma expressão passivo-agressiva de independência voltada a um homem morto. Mas eu rejeito essa teoria.

Os cantos da boca de Callie se ergueram, ela não conseguiu evitar.

– Você não sorri muito, não é mesmo? – ele perguntou, em voz baixa.

Ela dobrou o guardanapo e se ergueu, limpando a garganta.

– Obrigada pela oportunidade.

Walker estendeu a mão para ela e pareceu sombriamente divertido quando ela só ficou olhando. Quando Callie segurou sua mão, os dedos dele apertaram os seus e ela sentiu uma onda de calor subir pelo braço. Então puxou a mão com pressa e foi pegar o casaco na cadeira.

Ele franziu o cenho.

– Posso ajudá-la com isso? – ele murmurou.

Ela balançou a cabeça, passando o casaco por cima do braço e se virando em direção à porta.

– Callie?

Ela estacou e olhou por sobre o ombro.

Jack Walker a observou por um longo momento, os olhos pousando em seu cabelo e se movendo para baixo. Ela mudou a posição do casaco, de modo que bloqueasse a visão de seu corpo. Sentia como se estivesse sendo comparada com alguma coisa. Ela se perguntou qual seria o padrão.

Quando ele não disse nada, ela ficou impaciente.

– Até mais, sr. Walker.

– Jack. Me chame de Jack.

Ela não se deu ao trabalho de responder e saiu da suíte com pressa. No elevador, com o corpo tremendo e a cabeça enevoada, ela teve de se lembrar que sobrevivera a coisas muito piores que uma oferta única de trabalho. Só porque seu novo chefe era capaz de derreter tinta da parede com aqueles olhos castanhos, não queria dizer que ela precisasse se sentir constrangida.

Ela só precisava ser forte.

E, felizmente, treinara a vida toda para isso.

Jack ficou olhando para a porta.

Callie Burke era, de fato, muito atraente. Ele nunca acreditara muito naquele clichê da ruiva passional, mas ela realmente tinha paixão. Ele adorava como ela o desafiava e o fato de que lutava com ainda mais garra quando estava particularmente desconfortável.

Será que ela estava com alguém? Não usava aliança, mas talvez houvesse um namorado na história.

Ele franziu a testa, pensando que isso não deveria ser relevante.

O telefone tocou. Ele atendeu Grayson Bennett, seu colega de quarto da faculdade.

– Liberei minha agenda – Gray disse. – Estou pronto pra passar o próximo mês trabalhando na sua candidatura em Boston.

– Excelente. Qual o primeiro passo?

– Vamos reunir um comitê exploratório. Dez ou doze pessoas de setores diferentes do estado para fazer uma avaliação discreta do cenário. Precisamos saber quem vai apoiá-lo e quem vai dar trabalho, quanto dinheiro podemos arrecadar, e como as pessoas o veem. Isso deve levar quatro ou cinco semanas.

– Quando você vem?

– Amanhã à noite. Vou ficar no Four Seasons.

– Vai trazer companhia feminina? – quando ouviu um “não” definitivo, Jack riu. – Não está mais com a... qual é o nome dela? Sarah?

– Sophia. Não, terminamos. Ela começou a falar de alianças e, como você sabe, sou alérgico a diamantes. Ela é uma boa mulher... para outro homem.

Depois que desligaram, Jack foi até o quarto terminar de se vestir. Por muito tempo, Gray e ele haviam compartilhado a mesma visão sobre casamento: de que era algo para outras pessoas. Mas se Jack tinha mudado de ideia, Gray também poderia.

Mas não em relação a Sophia, pelo jeito.

O relógio no canto da sala começou a badalar e Jack se apressou.

Em alguns minutos, teria um encontro com dois irmãos, um médico e um engenheiro. Bryan e Kevin McKay tinham inventado um jeito novo, mais rápido e mais limpo de processar produtos derivados de sangue, como plasma e plaquetas. Eles tinham as patentes necessárias, de modo que os direitos de propriedade intelectual estavam assegurados, e, com contatos em alguns hospitais, teriam uma fonte de renda. Hoje queriam expandir sua pequena loja na Costa Oeste, e precisavam de dinheiro – muito dinheiro. Se tivessem as finanças equalizadas e algumas projeções de crescimento razoáveis, Jack achava que tinham potencial para lucrar.

Estava animado para a reunião. Para ele, não havia um jeito melhor de passar uma tarde de domingo. Uma das coisas que gostava no negócio de capital de risco era que funcionava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Não havia pausas, nenhum momento era desperdiçado, sempre havia algo a ser feito. Domingos, feriados, aniversários, casamentos. Ele estava sempre trabalhando.

Na verdade, no dia do enterro do pai, ele passara metade do velório no trabalho, preparando um financiamento para uma firma de tecnologia em Atlanta. Mas isso não foi exclusivamente por causa dos negócios. Ele tinha achado difícil lamentar a morte de alguém cuja desaprovação contínua tinha marcado sua vida de modo tão indelével, e trabalhar parecera um uso mais produtivo do seu tempo do que fingir um sofrimento que não existia.

Dinâmicas familiares disfuncionais à parte, a cada nascer do sol havia lugares aonde tinha que ir, coisas que precisava realizar, pessoas que queriam entrar em contato com ele e com seu dinheiro. Ele sabia que ser governador de Massachusetts seria igualmente complicado e exigente. E que, se um dia chegasse na Casa Branca, os riscos seriam astronômicos.

Jack passou uma gravata de seda ao redor do pescoço e encarou o espelho. Ele mal podia esperar pelo futuro.


Capítulo 5

Na terça, Callie subiu de trem pela costa de Connecticut até a Back Bay Station, de Boston, e então pegou o metrô até os subúrbios. Quando desceu em Wellesley com sua velha mala Samsonite e uma caixa cheia de ferramentas, deparou-se com uma colina íngreme, e ela entendeu por que a estrada era chamada de Cliff Road.

Quando finalmente subiu e chegou a um par de pilares de pedra com o número certo, os braços estavam adormecidos e os ombros doíam. Ela deixou cair a mala e olhou o caminho de acesso. Não havia muito para ver. A faixa de asfalto desaparecia num emaranhado de arbustos e árvores.

Ela pegou as coisas de novo e começou a última etapa da jornada, dizendo a si mesma – como fizera inúmeras vezes durante a viagem – que tudo ficaria bem. Ela faria um bom trabalho e Jack Walker não lhe incomodaria, estaria ocupado demais gerindo seu império empresarial.

E mesmo se fosse terrível, nada durava para sempre.

Quando virou uma esquina, um mal-estar a tomou como uma maldição.

Boa sorte nada, ela pensou olhando para a mansão.

A casa, cinza escura, era um mausoléu gigantesco que se erguia de uma fundação de pedra. Havia pórticos e cúpulas e uma torre no topo, e os vários beirais e cantos lançavam sombras que faziam o lugar parecer ainda mais sombrio. Os jardins também não ajudavam a suavizar o clima. Eram austeros, contendo apenas arbustos podados e canteiros de pachysandra para abrandar o efeito da mansão. Mas pelo menos havia várias grandes árvores na propriedade. Os carvalhos e bordos estendiam os braços sobre um jardim que era grande o suficiente para um jogo de futebol, e a grama era tão bem cuidada quanto a de qualquer campo.

Callie retomou o passo. O caminho de entrada tinha quase noventa metros e se dividia para cercar a casa. A parte esquerda ia até a garagem, que tinha dois andares e quatro vagas. A outra ia para baixo de um pórtico que escondia a entrada principal da mansão. Ela seguiu para a direita.

Quando chegou à pesada porta de entrada, deixou cair a mala e a caixa de ferramentas. Lembrando-se que era uma convidada, não uma intrusa, Callie bateu a aldrava de bronze.

Uma mulher de uns quarenta anos abriu a porta. Ela olhou Callie de cima a baixo, e embora seu olhar não fosse indelicado, não era exatamente caloroso, também.

– Sim? – o tom objetivo da mulher sugeria que ela trabalhava na casa, embora não usasse um uniforme.

– Sou Callie Burke.

– A restauradora? – a expressão da mulher mudou para uma de surpresa.

Callie assentiu.

– Ah... ele disse que você viria – a mulher franziu o cenho, notando a mala laranja e o casaco peludo. – A senhora Walker estava ansiosa para a sua chegada.

Senhora Walker?

– Na verdade, eu esperava encontrar o sr. Walker.

– Ele ainda não chegou. Mas ela está aqui.

Quem diria, pensou Callie. Ela não sabia que Jack Walker era casado, mas não vinha lendo os jornais tanto quanto costumava. Saber que ele tinha uma esposa a deixou mais tranquila, de certo modo.

A não ser que fosse real o quase-beijo na frente do seu prédio – nesse caso, ela se sentia pior ainda.

Um silêncio constrangedor se seguiu, até que Callie disse:

– Algum problema?

– Desculpe, eu deveria ser mais... bem-vinda a Buona Fortuna – disse a mulher, estendendo uma mão. Seus olhos ficaram mais cordiais. – Sou Elsie, a secretária da sra. Walker. Estávamos esperando alguém um pouco mais...

– Velha?

A mulher assentiu. Callie abriu um sorriso e apertou sua mão antes de entrar.

– Eu entendo.

Quando seus olhos se ajustaram ao interior, ela viu paredes de mogno polido esculpidas com entalhes profundos, uma lareira de pedra que ia do chão ao teto, e diversos móveis pesados, de estilo europeu. Era como entrar em uma sala do Renascimento em um museu.

E quase tão aconchegante quanto.

– A sra. Walker vai descer num instante. Por que não espera no solário enquanto levo sua bagagem para cima?

Callie concordou e tirou o casaco.

– Pode deixar que fico com isso. Precisa de alguma coisa?

Ela balançou a cabeça.

– Não, estou bem.

– O solário é por aqui, atravessando a biblioteca.

Quando Callie encontrou o lugar certo, o terraço arejado e ensolarado foi um alívio. O solário, com suas paredes de vidro e chão de ardósia clara, parecia ter sido decorado por outra pessoa.

Alguém que não tinha nascido um Médici no século XV.

Havia cadeiras estampadas e um sofá confortável, e sobre mesas brancas de vime ficavam lâmpadas feitas de vasos orientais. Ela respirou fundo. O ar quente e úmido cheirava às flores que cresciam pelo terraço em canteiros perfeitamente cuidados.

Ela estava olhando através do vidro para o jardim ondulante quando ouviu passos macios. Voltou-se, curiosa para ver com quem exatamente Jack Walker tinha casado, mas em vez disso encontrou os olhos profundos de um cão de caça irlandês. O cão era quase do tamanho de um pônei e coberto por uma pelugem cinza. Ele abanou o rabo, hesitante.

– Olá – ela disse baixinho, se agachando.

O cão se aproximou, com um andar lento e relaxado. Sua cabeça ficou mais alta que a dela quando Callie se ajoelhou, mas, embora seu tamanho fosse intimidante, os olhos o entregavam. Eram piscinas límpidas de amabilidade.

Ela estava afagando a cabeça dele quando uma voz atravessou o solário.

– Vejo que conheceu Arthur.

Callie ergueu os olhos e se deparou com um rosto impecavelmente envelhecido. Sua primeira impressão foi de que a mulher tinha sido incrivelmente bonita quando jovem. A segunda foi de que o olhar castanho e possessivo era tão receptivo quanto um spray de pimenta.

Meu Deus, ela pensou, não é a esposa dele.

O grande Jack Walker morava com a mãe.

Ela quis rir, mas sabia que não seria uma boa ideia. A sra. Walker tinha cara de quem não achava graça em muita coisa.

– Então você é a restauradora que meu filho escolheu – disse a mulher, entrando no solário. Seu cabelo branquíssimo estava puxado para trás e o estilo severo destacava suas espetaculares maçãs do rosto. Ela usava um terninho de tweed que tinha as linhas básicas típicas da alta-costura e várias joias pesadas ao redor do pescoço.

Era como ver uma atriz em um filme. A grande dama em quintessência.

Callie se ergueu.

– Sim, sou Callie Burke.

– Você é um pouco jovem demais pra isso, não acha?

O comentário foi seguido por um sorrisinho gélido.

– Posso fazer o trabalho, sra. Walker. E seu filho confia em mim. De outro modo, não teria me contratado.

O sorriso desapareceu.

– Você está ciente de que é uma obra de Copley?

Como se Callie pudesse ter confundido o quadro por um de LeRoy Neiman!

– É claro.

– Bem, é o dinheiro de Jack, se você falhar. Sem mencionar a perda às artes, que seria significativa. Mas tenho certeza de que fará o melhor que pode.

Callie ergueu as sobrancelhas.

Bem, pelo menos ela não tinha que procurar os insultos. A mãe de Jack só seria mais direta se enfiasse uma faca em seu peito.

Embora estivesse tentada a retrucar, Callie se forçou a ficar quieta e se surpreendeu quando o cão se encostou em sua perna. Ela o afagou atrás da orelha, apreciando o apoio.

A sra. Walker franziu a testa.

– Arthur parece gostar de você – os lábios apertados sugeriam que as virtudes que ele pudesse ter encontrado em Callie eram um mistério. – Elsie lhe mostrará seu quarto. Jack acabou de ligar e pediu que eu transmitisse suas desculpas, porque chegará atrasado hoje. Eu vou sair, então você ficará sozinha.

Bom, essas eram ótimas notícias.

A mãe de Jack se virou, mas parou na entrada para examinar Callie mais uma vez.

– Onde Jack encontrou você?

Num canil para artistas famintos, ela quis responder. Mais uma semana sem trabalho e eles iam me sacrificar. Ele salvou minha vida!

Em vez disso, ela só assistiu a mulher sair. Por mais que quisesse dizer à venerável sra. Walker o que podia fazer com sua atitude, isso só tornaria mais difíceis as próximas seis semanas. Além disso, ela já aguentara coisa pior que a mãe de Jack. Na adolescência, usara óculos grossos, aparelho e roupas ruins e seu pai nunca aparecera para o Dia dos Pais. Pessoas cruéis eram sempre as mesmas, em um pátio de escola ou em um solário.

De qualquer modo, parecia que ela não precisava fazer muito para se vingar da sra. Walker. A mera presença de Callie na casa parecia ser vingança suficiente.

Elsie voltou, parecendo tensa.

- Venha comigo, por favor.

Arthur as seguiu. Quando chegaram ao hall de entrada, em vez de subir a escadaria enorme continuaram pela sala de jantar dourada e ornada e entraram em uma cozinha que poderia ser de restaurante.

Elsie a guiou até uma escadaria apertada. Depois de dois lances de degraus, emergiram em um corredor branco com seis portas. Ao contrário do resto da casa, que estava decorado com antiguidades, não havia pinturas ou tapetes ali. Era simplesmente funcional.

Elsie abriu uma porta, revelando uma cama de solteiro, uma cômoda e uma mesa. As paredes eram brancas, o chão feito de madeira não polida e um aquecedor fazia um som sibilante sob a janela. Callie viu suas coisas em um canto.

Era um quarto de empregado.

Ela olhou para Elsie. A mulher estava claramente constrangida enquanto apontava para o corredor.

- O banheiro é a terceira porta à direita. Você vai ter de dividir com Thomas, mas não se preocupe. Ele é obcecado com limpeza, mesmo se parecendo com um Hell’s Angels.

Callie ergueu uma sobrancelha.

- Agora estou tranquila – ela murmurou, entrando e sentando na cama, que deu um rangido enferrujado. Elsie estremeceu.

Callie sorriu para a mulher. Independente de como se sentia sobre as acomodações, não seria rude com a mensageira.

- Vai servir perfeitamente bem. Estou tão cansada que poderia dormir no chão.

A cama soltou outro protesto e ela olhou para as tábuas de pinho, pensando que era possivelmente onde ela iria parar.

Elsie começou a se afastar.

- O resto dos empregados tem o dia livre. Estou saindo agora, mas volto amanhã – ela disse, como se sentisse que Callie precisasse de uma amiga na casa. – Se precisar de qualquer coisa, é só me falar. Assegurarei que tenha tudo que precisar. Ah, e está cheio de comida lá embaixo. Fique à vontade.

- Obrigada.

Elsie a olhou por mais um momento e então saiu, como se estivesse deixando um cãozinho abandonado na beira da estrada.

Callie se levantou e esticou a cabeça para o corredor, se perguntando com quem dividiria o banheiro. Combinar horários de banho na manhã não era exatamente o que ela tivera em mente. Mas alguma coisa relacionada a Jack Walker tinha ido de acordo com os planos? Não. Ela deveria se acostumar a surpresas.

Além disso, ela era só uma empregada, não uma convidada. E uma vantagem era que as chances de a sra. Walker aparecer naquela parte da casa eram praticamente nulas. Portanto, talvez fosse melhor, no final das contas.

Arthur, que perambulava pelo quarto, investigando os cantos e farejando embaixo da cama, olhou para ela como que perguntando se eles iam até a cozinha.

- Desculpe, Artie, preciso me ajeitar primeiro.

O cachorro suspirou e desabou ao pé da cama. Com a cabeça entre as patas gigantes, seus olhos a seguiram enquanto ela desfazia as malas.

Enquanto dividia seu parco guarda-roupa nas gavetas da cômoda, Callie se perguntou quanto tempo a mãe de Jack levaria para sair da casa.

Regra número um para lidar com perseguição: uma boa estratégia evasiva pode cortar vários conflitos pela raiz. Ela só teria de manter distância da sra. Walker.

Callie se lembrou do rosto arrogante e reprovador da mulher e sorriu.

Trataria ela como o faria com qualquer outro aristocrata.


Capítulo 6

Jack estacionou o Aston Martin na garagem e saiu do carro. Ele planejara chegar em casa muito mais cedo, mas as negociações que começara com os irmãos de produtos de sangue não iam tão bem quanto ele esperara. Havia alguns problemas com a estrutura de financiamento da dívida deles, o que tornaria praticamente impossível garantir uma participação grande e sem restrições na empresa. Os McKay haviam emprestado dinheiro de uma legião de membros da família, e durante a fase de pesquisa e desenvolvimento deram em troca uma quantia considerável de suas ações.

Na verdade, Jack teria sorte se conseguisse um quarto de posse da firma, o que quase não justificava o investimento de nove dígitos de que eles precisavam.

Ele aprendera há muito tempo a não investir dinheiro em algo de onde não pudesse sair. Seu pai lhe ensinara essa lição. Os primeiros 100 mil que o pai tinha “emprestado” dele tinham se esvanecido no éter. Depois disso, Jack passou a exigir alguma transferência de propriedade, fossem imóveis, joias ou arte, antes de escrever um cheque para Nathaniel VI.

Como seu pai o odiara por isso! Mas o velho Nathaniel ficava mais horrorizado ainda com a ideia de ir a um banco implorar por dinheiro a pessoas com quem ele não dividiria a mesa de jantar. Quando ele morreu, Jack tinha posse de tudo. Os carros, as casas em Wellesley, Palm Beach e nas montanhas Adirondack, a coleção de arte, as grandes joias da mãe. Seu pai, que começara com milhões de dólares nos anos 1950, tinha menos de 100 mil em seu nome quando morreu.

Jack ativou a porta automática e a ouviu fechar com um som retumbante enquanto se dirigia para o pórtico.

Ter o retrato de Copley em sua posse significava tudo para ele. Assim que a pintura fosse restaurada, ele a colocaria de volta sobre a lareira na sala de estar, onde costumava ficar quando ele e seu irmão eram crianças. Ao recuperar o primeiro Nathaniel, ele sentia que estava fechando um ciclo, e que todo o caos financeiro causado pelo pai tinha chegado ao fatídico fim.

Ele entrou na casa e chamou:

– Callie? Está aí?

Como não houve resposta, ele pôs sua maleta no chão e atravessou a sala de estar até a biblioteca, e então foi até o solário. As luzes estavam acesas em todos os cômodos, mas Callie não estava em lugar algum. Quando voltou à entrada, Jack se perguntou se deveria subir as escadas e sair à caça dela pelos quartos de hóspedes.

Imaginá-la em uma de suas camas evocou imagens em que Jack estava determinado a não pensar, e ele começou a questionar os méritos de subir ao segundo andar atrás dela quando percebeu que algo estava faltando. Onde estava Arthur? O cão normalmente o esperava na porta.

Jack foi até a cozinha. Ao lado da pia, uma tigela, prato e garfo tinham sido cuidadosamente lavados e deixados para secar, então ele sabia que ela estava na casa. Nenhuma outra pessoa teria deixado pratos fora do armário daquele jeito. Sua mãe raramente entrava na cozinha e com certeza não lavava as coisas que usava. Os empregados estavam de folga e Elsie teria ido para casa, jantar com a família.

Ele estava se resignando a uma busca pelos quartos de hóspedes quando Arthur desceu as escadas dos fundos.

– O que você estava fazendo lá? – Jack se agachou quando o cachorro foi até ele do seu jeito vagaroso e pesado.

– Ele estava comigo.

Jack imediatamente ergueu a cabeça.

Callie estava de pé nas escadas, usando jeans e um pulôver de lã azul-marinho. Seu cabelo estava solto, caindo sobre os ombros, e ele examinou os olhos dela, mais uma vez verificando se tinha acertado a cor deles, se eram realmente daquele azul tão lindo.

Eram.

Antes que o silêncio se prolongasse, ele disse:

– Desculpe pelo atraso.

Ela deu de ombros.

– Artie e eu tivemos uma ótima noite, embora eu suspeite que ele preferisse que meu jantar tivesse menos folhas. Ele não parece ser um grande fã de salada.

Jack estreitou os olhos, analisando o humor da mulher. Ela não parecia perturbada. Estava perfeitamente confortável, sozinha em uma casa desconhecida, apenas com o cachorro dele como companhia.

Então toda aquela independência não era dissimulação, ele pensou.

– Você já está arrumando seu ateliê? – ele perguntou, indicando as escadas. – Pensei que a garagem seria mais adequada às suas necessidades, mas se prefere ficar na casa, tudo bem.

Ela ergueu as sobrancelhas.

– Na verdade, estava lendo sobre Copley e tentando não cair no sono antes de sua chegada.

Ele deu uma palmadinha no flanco de Arthur e se levantou.

– Então o que estava fazendo na ala dos empregados?

– É onde fica meu quarto.

Jack franziu a testa.

– O quê...? – ele se interrompeu. Não precisava perguntar quem a pusera lá. – Você não vai ficar na ala dos empregados.

Ele e a mãe teriam uma conversinha pela manhã.

Callie colocou as mãos nos bolsos.

– Estou bem confortável lá em cima.

– Não diga absurdos. – Ele se moveu em direção às escadas. – Vamos tirar suas coisas daí.

Ela ergueu as mãos.

– Olha, eu realmente não me importo. Só preciso de um lugar pra dormir.

– Como pode dizer isso? Aposto que a última vez que ficou em um quarto como esse foi na escola preparatória.

– Não fui à escola preparatória – ela respondeu em voz baixa.

Jack parou, franziu a testa outra vez e continuou andando.

– Que seja. Vamos.

Ele passou por ela, pensando que a habilidade de sua mãe de se intrometer nas coisas era incomparável.

Quando chegou ao topo das escadas estreitas, se dirigiu para a porta aberta.

– Onde estão suas roupas?

Ela entrou no quarto e lhe deu um olhar calmo.

– Nas gavetas.

Ele olhou para a pequena cômoda.

– E mais onde?

– Em nenhum lugar – ela abriu uma gaveta, indicando as camisas e suéteres cuidadosamente dobrados lá dentro. – Só aqui.

Isso é novidade, pensou Jack.

Ele estava acostumado com mulheres que precisavam de um caminhão de mudança para uma viagem de fim de semana. Callie ficaria por um mês e meio e suas coisas cabiam em três gavetas.

– Você é econômica.

Ela deu de ombros.

– Não preciso de muito.

– E suas ferramentas?

– No armário.

– Então vamos arrumar suas coisas – ele disse, impaciente.

Ela o examinou por um momento, como se pesasse a inconveniência da mudança e ter de lidar com ele, então foi até o armário e puxou uma velha mala Samsonite que o chocou. Ele esperava um conjunto Louis Vuitton ou várias bolsas Coach. Em vez disso, a mala dela era antiga, laranja e parecia ter passado por diversos porões.

Enquanto ela mexia em suas coisas, Jack percebeu uma coisa.

Qualquer que fosse o relacionamento dela com Grace e de onde quer que aquele terninho Chanel tivesse vindo, Callie não tinha muito dinheiro. As roupas que tirava da cômoda estavam limpas e eram práticas, mas baratas. Não havia um pingo de alta-costura à vista.

Quando ela terminou, ele não conseguiu evitar que sua voz se tornasse gentil.

– Pegou tudo?

Os olhos dela se ergueram e se estreitaram, como se ela tivesse notado a mudança em sua voz e preferisse que ele tivesse mantido o tom impaciente. Ela deu um aceno firme, pegou a mala e a caixa de madeira coberta com manchas de tinta e saiu pela porta.

– Deixe-me carregar pra você – ele disse, enquanto a bagagem batia contra os lados da escada.

– Não precisa.

– Pelo menos a mala.

– Se consegui carregar tudo da Penn Station até sua casa, consigo ir até outro quarto.

Penn Station? Jack a imaginou com aquele fardo pesado, mudando de trens e andando pela Back Bay Station. Ele suspeitava que ela provavelmente não tinha tomado um táxi e que pegara o metrô até Wellesley. Isso significava que ela arrastara todo aquele peso desde o início da Cliff Road.

Que merda, ele pensou, enquanto a guiava através da cozinha e pelas escadas. Ele imaginou que ela teria vindo de avião e alugado uma limusine no aeroporto.

Ele se sentia um imbecil.

– Você devia ter me dito que precisava de transporte – ele disse. – Eu teria enviado meu avião.

Ele a ouviu parar e olhou por cima do ombro.

– Não preciso de esmola – ela disse. – Cheguei aqui perfeitamente bem sozinha.

– Não é essa a questão. Eu poderia ter facilitado pra você.

– Não estou interessada em coisas fáceis.

Ele achou que isso era óbvio, considerando a bagagem que ela estava segurando. Enquanto Callie o encarava em silêncio, sua determinação em não depender dele o irritou profundamente.

– Sofrer sem necessidade não é o único jeito de se tornar mártir – ele disse, seco. – Você poderia se flagelar e morar no topo de um pilar por um mês ou dois.

Ela pôs a bagagem no chão, o que só o lembrou de quanto ela estava carregando.

– Vamos fazer assim: quando eu precisar ser resgatada, aviso você.

Ele torceu o nariz e continuou andando, sabendo que teria que nevar na sala de estar do diabo antes que ela lhe pedisse qualquer coisa. Por que aquela resistência o incomodava tanto, ele não sabia. Talvez fosse só uma mudança tremenda em como as mulheres normalmente enxergavam ele.

Até Blair, que não era nem um pouco incapaz de se cuidar, contava com o jet dele, com seus contatos em empresas Fortune 500 e com suas conexões no mundo da arte. E ele não se importava nem um pouco. Na verdade, gostava disso.

Quando chegou ao topo da escada, virou à direita e guiou Callie até o melhor quarto de hóspedes da casa. Quando abriu a porta e acendeu as luzes, a ouviu prender a respiração.

O Quarto Vermelho era de fato uma obra-prima, e era exatamente por isso que ele a hospedaria ali. Se Callie não aceitaria sua ajuda abertamente, ele estava determinado a tomar conta dela por outros caminhos.

Ela entrou e lentamente pôs suas coisas no chão. A alegria em seu rosto fez o peito de Jack inchar de prazer: enfim tinha feito algo que a deixara feliz.

O quarto era decorado em vermelho e ouro brunido. No centro, havia uma cama com dossel gigantesca em estilo jacobino, uma coisinha que sua tataravó tinha importado de um castelo inglês. Uma lareira, feita de um rico mármore marrom-avermelhado, continha toras, e acima dela havia uma pintura da Madona com o Menino Jesus do século XVI. O melhor detalhe, no entanto, era a janela de vidro manchado que dava para o jardim da frente. Emoldurada por faixas pesadas de seda vermelha, embaixo da janela havia um banco com travesseiros de todas as formas e tamanhos.

– Meu Deus! – Callie arfou, indo até a lareira e então à janela. A próxima parada foi a cama. Ela correu os dedos pelos suportes de teca e pelas borlas de veludo que caíam do topo. – Isso é magnífico!

Enquanto suas mãos traçavam o rico tecido, Jack quis guardar na memória a imagem dela dentro do seu quarto preferido na casa.

– Vermelho combina com você – ele murmurou.

Ela voltou à lareira e seus olhos se arregalaram quando examinou a pintura.

– Isso é um Caravaggio?

Ele assentiu.

– O que acha?

Ela ficou em silêncio por um longo tempo. Quando finalmente falou, sua voz era confiante e ele sorriu, pensando que soava daquele jeito quando falava de dívida suplementar e taxas de juros.

– É magnífico, claramente do auge dele. Mas estou chocada com a posição. Essa lareira é usada?

– Não. Eu mandei selar.

– Que bom. Mudanças repetidas e radicais de temperatura são a morte para uma pintura a óleo.

Ela olhou para ele.

– Você deveria restaurar esse quadro. Quando foi a última vez que foi limpo?

– Minha tataravó o comprou na Itália nos anos vinte. Não sei se algo foi feito desde então.

Ela fez um som de desaprovação no fundo da garganta enquanto estudava o trabalho mais a fundo. Sua absorção era total; sua respiração, superficial. Ele imaginou que uma bomba podia explodir no quarto e Callie provavelmente não notaria.

Essa mulher é fantástica, ele pensou.

– Então, Callie, acho que devemos percorrer o resto da casa, e você pode me dizer quais outros itens precisam de atenção.

– Eu adoraria.

Ela foi até o banco sob duas pequenas janelas límpidas ao lado dos painéis de vidro manchado e olhou para fora. Arthur a acompanhou, como que para supervisionar, pondo duas patas nas almofadas e se inclinando para a frente, quase tão alto quanto ela. O braço de Callie abraçou seu pescoço peludo e ela afagou o ombro dele, distraída.

Olhando os dois, Jack soube que devia sair dali. Havia algo tentador demais na imagem que eles formavam.

– A pintura está atrasada – ele disse. – Deve chegar amanhã. Mas logo cedo eu posso lhe mostrar o espaço acima da garagem.

Ela olhou por sobre o ombro.

– Ótimo.

– O banheiro é por aqui – ele apontou para uma porta. – E estou do outro lado do corredor, se precisar de alguma coisa.

Ela afastou os olhos dele e se empertigou. Mais uma vez, ele teve a impressão de que Callie não bateria à sua porta, a não ser que a casa estivesse pegando fogo e ela estivesse sem água.

Ele se perguntou o que a levaria a abrir a própria porta.

– Precisa de alguma coisa? – Quando ela balançou a cabeça, ele abriu o terno e começou a afrouxar a gravata. – Olhe, sinto muito por não ter estado aqui quando você chegou.

Ela deu de ombros.

– Não foi um problema.

– Minha mãe...

– É uma senhora adorável – ela ergueu uma sobrancelha, como que o desafiando a questionar seu blefe. Obviamente ela seria delicada sobre a questão e ele a respeitava por isso.

Mas não aceitaria que ela fosse desrespeitada sob seu teto.

– Se tiver qualquer problema com ela, fale comigo.

– E por que eu teria que fazer isso? – ela retrucou suavemente.

Não ficou claro se ela estava se referindo ao mau comportamento de sua mãe ou a ir procurá-lo. Provavelmente ambos.

Houve uma longa pausa. Quando Callie olhou a cama, mais uma vez arregalando os olhos contentes, ocorreu a Jack que era bem provável que ela morasse naquele prédio em Chelsea.

E ele tinha expressado surpresa por ela ter um ateliê lá.

Deus, ele queria poder voltar no tempo e retirar esse comentário.

– Vamos, Arthur – ele disse, se virando para a porta.

O cão olhou para Callie e de volta para ele com um olhar perspicaz.

– Aqui, garoto – disse Jack, batendo na coxa.

O cão se sentou e Jack considerou a deserção com um sorriso.

– Ele gosta de você.

– Eu gosto dele.

Callie olhou para o cachorro com afeição sincera. Não havia em seu rosto nenhuma cautela, nenhuma reserva. Só um sorrisinho secreto destinado apenas a Arthur.

Não é à toa que o bicho se apaixonou por ela, pensou Jack. Qualquer homem ou cachorro ficaria encantado por um olhar daqueles.

– Boa noite, então – ele disse.

– Boa noite.

Ela ainda estava sorrindo para Arthur quando Jack fechou a porta.

Parado no corredor, ele abaixou a cabeça e olhou para os sapatos. Ele não deveria estar interessado no sorriso daquela mulher.

Na verdade, não deveria nem estar notando o sorriso dela.

Ele balançou a cabeça. Pelo menos não tivera mais aqueles sonhos. Desde que Callie concordara em vir para Boston, seu subconsciente tinha parado de passar o canal Playboy.

Infelizmente, a memória dele era muito boa.

O som da porta da frente sendo fechada o fez erguer a cabeça. Devia ser sua mãe, de volta da sinfonia. Jack desceu para a entrada, estreitando os lábios em uma linha severa.

Ela estava tirando o casaco quando o viu.

– Jackson, querido, como foi seu dia? Eu vi os Carradines...

– Em que merda você estava pensando quando a colocou na ala dos empregados?

Os olhos dela se encheram de surpresa.

– Está falando da restauradora? Querido, ela está aqui para trabalhar, não está? Não é uma convidada.

– Ela está aqui a meu convite. Vai ficar no Quarto Vermelho.

Mercedes parou e o examinou por um momento, e, então, continuou colocando o casaco no cabideiro.

– Como quiser. Minha intenção não era chateá-lo.

– Você não me chateou. Você insultou minha convidada e me irritou.

Jack se virou e começou a subir as escadas, pensando que era melhor para ambos ele se afastar. Não apreciava os joguinhos da mãe nem um pouco e estava se sentindo particularmente protetor em relação a Callie.

Provavelmente porque ela fora tão elegante ao lidar com a afronta de sua mãe.

– Jackson, não fique bravo – Mercedes chamou. – Como eu iria saber? Quer dizer, ela não parece exatamente uma convidada nossa, parece?

Jack parou e olhou por sobre o ombro.

– Ela é minha convidada. Ficando na minha casa. Então vai ser tratada corretamente.

Sua mãe perdeu um pouco da bravata.

– Jack, não tinha ideia de que ela era tão importante.

Ele se virou e continuou, não confiando em si mesmo para responder.

Depois da morte de seu pai, parecera desnecessário expulsar a mãe da casa onde vivera por quase quarenta anos. Na época, ele também pensou que mantê-la em Buona Fortuna economizaria os custos de financiar outra casa. Sem dinheiro próprio e nenhuma habilidade que pudesse oferecer ao mercado de trabalho, Mercedes não podia se sustentar sozinha, e não poderia depender do outro filho. Nate não tinha renda suficiente para manter o estilo de vida com o qual ela estava acostumada. Jack era seu ganha-pão, e os três sabiam disso.

Ele balançou a cabeça. Sua mãe era um perfeito exemplo do que uma combinação de beleza e cérebro podia fazer por uma pessoa. Ao contrário de Nathaniel VI, Mercedes não nascera em berço de ouro. Apesar dos ares arrogantes de sua mãe, ela começara a vida na cidade pesqueira de Gloucester, a quarta de seis crianças em uma família de pescadores portugueses. Seu sonho era sair pelo mundo, então aos quinze anos mudou o nome de Myrna para Mercedes e jurou encontrar seu destino em algum lugar bem distante das origens. Quando foi aceita na Smith College com uma bolsa, estava pronta para deixar sua marca no mundo.

Ou em um solteiro cobiçado, como fora o caso.

O pai de Jack tinha servido bem ao propósito, pois nascera rico e era ligado ao nome e ao legado Walker. Eles se conheceram por intermédio de amigos quando voltou de Harvard em um fim de semana de primavera, durante seu último ano de faculdade. A beleza dela atraíra sua atenção e a natureza agressiva de Mercedes garantira que ele não tivesse a oportunidade de escapar. Três meses depois, ela abandonou a faculdade e eles se casaram discretamente na igreja episcopal em Osterville, Cape Cod.

Foi uma boa combinação, Jack pensou. Seu pai não ficara nem um pouco incomodado com as origens da mulher. Na verdade, ficara mais do que feliz em levá-la pelo braço e ensiná-la tudo que não sabia. E Mercedes, sendo uma estudante excelente, absorvia as lições sobre a vida de luxo e excedia todas as expectativas. Quando chegou aos trinta, estava firmemente estabelecida na alta sociedade de Boston. Aos 45 anos, juntara-se às organizações sem fins lucrativos certas e se tornara respeitada por suas contribuições cívicas. Agora, aos setenta, era estimada pela alta sociedade, cortejada por arrivistas sociais, e em geral vista como árbitra em relação a quais festas valiam a pena.

Ela sem dúvida se orgulhava de sua ascensão, mas era apenas uma vitória de aparências. Embora sua determinação a tivesse levado a níveis de riqueza e poder social com os quais ela mal ousara sonhar quando criança, nada podia mudar suas raízes na classe trabalhadora. Jack sempre pensou que essa verdade a atormentava, embora mais ninguém parecesse pensar sobre sua origem modesta, pelo menos não na família imediata. Na verdade, Nathaniel via a esposa, que ele transformara na joia da sociedade de Boston, como uma medalha de honra.

Sinceramente, Jack não sabia como ela suportara todos aqueles anos de afeição condescendente.

A recompensa, entretanto, era um estilo de vida e tanto.

Enquanto seguia para seu quarto, Jack estava convencido de que Mercedes e Callie tinham em comum uma origem modesta. Isso o fez imaginar por que, se precisava do dinheiro, Callie recusara duas vezes sua oferta generosa.

Ele parou na frente da porta dela. Enquanto tentava ver através da madeira, a voz de sua mãe atravessou o corredor.

– O que está fazendo?

Ele queria pedir que ela o deixasse em paz. Em vez disso, foi até a própria porta e disse suavemente:

– Achei que já tínhamos dito boa noite, mãe.

– Jackson.

– O quê?

– Ela não é do seu tipo de gente.

Ele lançou um olhar duro para ela. Mercedes estava em pé sob a lâmpada no topo das escadas, sombras dramáticas envolvendo o rosto enxuto e os lábios vermelhos que estavam sempre com batom.

Quando ele não respondeu, ela falou com urgência.

– Você deve sempre se lembrar de que carrega o legado Walker.

– Não precisa me lembrar disso. Não quando sou eu que pago para manter vivo esse legado.

Ele estava abrindo a porta quando ela se aproximou.

– Ouvi sobre Blair hoje. Por que você mesmo não me contou?

Jack cruzou os braços sobre o peito, tentando pensar de quem ela poderia ter ouvido aquilo. Eles não tinham mantido o noivado um segredo, mas também não tinham feito um grande anúncio.

– Não é relevante – ele disse.

– Você vai se casar. Claro que é relevante! – os olhos dela se iluminaram com um entusiasmo que o deixou exausto. – Quando é a data?

Ah, sim, exatamente a questão que ele queria evitar. Ele disse a si mesmo que era porque não queria sua mãe se intrometendo na vida dele e de Blair, mas a imagem de Callie apareceu em sua mente e não queria sumir.

– Ainda não decidimos.

Mercedes franziu a testa.

– Já pensou no anúncio? E os jornais?

– Não os contatei.

Ela sorriu.

– Bom, não se preocupe. Amanhã vou ligar...

– Não, não vai.

– Jackson, isso...

– Não é problema seu.

Ela se empertigou e arqueou as sobrancelhas elegantes.

– Pois bem.

Jack sorriu sombriamente enquanto o silêncio se alongava entre eles.

Se ela esperava receber carta branca para o planejamento, dormiria no corredor.

O queixo de Mercedes se ergueu.

– Sem anúncio, sem data... Por que se deu ao trabalho de pedi-la em casamento?

Quando se recusou a responder à questão, ele viu um triunfo sutil nos olhos da mãe e pensou que ela tinha talento para pautar assuntos delicados. Ele supunha que todo mundo precisava de um hobby, e o favorito de sua mãe era expor as fraquezas das pessoas.

Mas era uma pena que ela não pudesse tricotar como qualquer outra senhora de 70 anos. Afinal, ela ainda estaria usando agulhas.

– Durma bem, mãe – ele disse, entrando no quarto.

– Por favor, Jack – a agressão desapareceu do rosto dela, revelando uma impotência que ela devia odiar estar sentindo. – Só quero ajudar.

– Então nos deixe lidar com tudo. Se precisarmos de sua ajuda, eu aviso.

Ele fechou a porta com força.


Capítulo 7

Callie acordou assustada e com a sensação incômoda de ser observada. Quando se virou, encontrou um rosto peludo e uma língua rosa dependurada do seu lado.

– Quê...?

Sentando-se de um pulo, ela precisou de um momento para se lembrar de onde estava e de que Arthur passara a noite ali. Ele abanava o rabo timidamente, como se estivesse confuso e um pouco chateado pela reação dela.

Ela se inclinou e colocou as mãos sob as orelhas do cachorro.

– Desculpe, Artie. Não estou acostumada a acordar do lado de alguém.

Ele balançou o rabo de um lado para o outro com mais força, enquanto se levantava nas patas traseiras e apoiava na cama a parte superior do corpo. Enquanto afagava o peito dele, Callie olhou pelas janelas. Pelo cinza pálido do céu, supôs que fossem cerca de sete horas.

– Acho que você quer sair – ela não tinha muita experiência com cachorros, mas imaginou que a visita dele à cama não era só uma formalidade.

Ela estava vestindo o jeans quando ouviu uma batida na porta.

Quando a abriu e encontrou Jack do outro lado, teve o segundo susto da manhã. Ele estava extremamente sexy. O cabelo ainda estava molhado, os cachos escuros grossos e brilhantes, e usava um suéter preto e jeans azuis. Roupas casuais ficavam bem nele.

Mas o que não ficaria?, ela pensou, observando a extensão do peito dele.

Ele sorriu e se apoiou contra o batente.

– Bom dia.

– Sim? – ela perguntou, ciente de que o encarava e incapaz de parar.

– Vim pegar meu cachorro.

– Ah. Ele está aqui.

Prestativo, Arthur apareceu na porta.

– Ele a manteve acordada? Ele costuma perseguir marmotas em sonhos.

Callie abanou a cabeça e tentou não sorrir. Caso se sentisse mais confortável com o homem, perguntaria como ele sabia que eram marmotas.

– Eu tenho sono pesado.

– É uma boa qualidade pra se ter.

A conversa estacou e Callie começou a se inquietar quando ele não parou de observá-la. Ela quebrou a cabeça tentando encontrar um jeito de fazê-lo ir embora. Tinha certeza de que havia coisas mais interessantes para o grande Jack Walker fazer, nenhuma das quais envolvia Callie parada sem jeito em uma porta tentando entabular uma conversa fiada.

– Por que não me encontra lá embaixo? – ele disse finalmente. – Vamos até a garagem e você pode organizar seu ateliê.

– Quanto mais cedo, melhor – ela murmurou.

Ambas as sobrancelhas dele se ergueram.

– Você é sempre tão focada?

– Só quero acabar esse trabalho logo – ela deixou escapar. – Quer dizer, não quero desperdiçar tempo aqui – ela balançou a cabeça. – Na verdade, o que quero dizer é...

– Devo levar sua pressa de sair daqui pro lado pessoal? – ele se endireitou com um meio sorriso. – Vamos, Arthur.

Callie observou ele e Arthur atravessarem o corredor.

Ela tinha de admitir que gostava do modo como Jack se movia. O que não gostava muito era do seu hábito de a encarar. Ela não tinha ideia do que ele achava tão fascinante.

Embora ela achasse que o problema maior era a sua reação àquilo. A sensação quente que cobria sua pele e afundava em seus ossos era desconcertante.

Principalmente porque ela não se incomodaria em se acostumar com aquilo.

Fechando a porta, Callie sabia que não podia negar a verdade. Ela se sentia atraída por Jack apesar de seu passado com mulheres e de todo o dinheiro. Parte dessa atração era física, claro, mas depois da noite passada havia algo mais. A resposta indignada dele quando viu onde a mãe a colocara mostrava que o conforto e o orgulho dela importavam para ele. Ele fora sensível de uma forma inesperada e o fato de que quisera cuidar de Callie tinha sido... apreciado, apesar de ela ter feito questão de provar sua independência.

Ela balançou a cabeça e se lembrou de quem ele era.

Uma exibição de boas maneiras não significava que ele tivesse se transformado no Príncipe Encantado. Homens impiedosos também podiam ser educados. Afinal, seu pai tinha as boas maneiras da nobreza inglesa e mesmo assim traíra a esposa por décadas. Romantizar Jack Walker não estava entre as intenções de Callie. Se realmente queria se cuidar, trabalharia longas horas e sairia daquela casa o mais rápido possível.

Então a resposta era sim: Jack certamente podia levar para o lado pessoal o desejo de Callie de terminar com rapidez o projeto.

Depois de tomar banho, ela pegou a caixa de ferramentas e desceu até a entrada, não sabendo bem onde deveria encontrar Jack. Então ouviu uma voz em algum lugar da casa. Seguindo o som, eventualmente o encontrou em seu escritório.

Ele estava em pé entre uma mesa grande e um par de portas francesas emolduradas por cortinas bordô de veludo. O cômodo era forrado com madeira escura e tinha um teto abobadado espetacular no qual foram pintados um querubim e nuvens. Do outro lado da mesa, havia um bar de mármore e uma série de televisores que silenciosamente passavam a MSNBC, a CNN e a CNBC.

Ela estava prestes a chamar a atenção de Jack quando ele rosnou no telefone:

– Não dou a mínima para o que ele disse. Ele que arranjou esses números, e eu não vou seguir com o negócio. Fale pra ele que pode procurar outro otário!

Ele estava apertando o receptor contra o ouvido, e a mão livre estava fechada em um punho.

Este, ela pensou, é o verdadeiro Jack Walker.

De repente, ele inclinou o corpo para a frente, como se estivesse enfrentando a pessoa com quem gritava.

– Olha, eu tenho meia dúzia de outros negócios, então só vou dizer uma coisa sobre este: foda-se!

Callie se sobressaltou quando ele bateu o telefone.

– Puta que o pariu!

Ele passou a mão pelo cabelo e se virou, apanhando alguma coisa na mesa.

Assim que a viu, ele limpou a garganta.

– Callie.

– É melhor eu voltar outra hora.

– Não – ele deixou cair sobre a mesa o papel que tinha pegado. – Não.

Ele colocou as mãos nos quadris e respirou longa e profundamente. Quando olhou para ela outra vez, a agressão tinha quase sumido do seu rosto.

– Vamos.

Quando Jack passou por ela, Callie lhe deu bastante espaço.

No caminho para a garagem, Jack achou difícil controlar sua raiva. Graças ao seu poder financeiro, a maioria das pessoas não tentava enganá-lo, mas o desespero e a cobiça podiam transformar qualquer um em idiota. Se ele queria se manter no topo, precisava se lembrar desse fato e não se surpreender quando alguém tentava passar a perna nele.

Mas, porra, ele tinha feito a lição de casa, dedicado recursos, gastado tempo e pensado sobre esse negócio. Descobrir no último minuto que haviam mentido para ele era um insulto. Já acontecera antes e aconteceria de novo, mas isso não queria dizer que ele gostava de ser enganado. E se sua reação fora mais esquentada que o normal, foi porque estava frustrado por nem ele nem ninguém de sua equipe ter percebido o problema antes.

Ele olhou para Callie, que estava aparentemente fascinada com o chão. Os olhos dela paravam em qualquer coisa menos nele, fazendo Jack se sentir um criminoso ou algo do gênero.

– Sinto muito por você ter visto aquilo.

Ele foi recompensado com uma rápida olhada.

– Sei que você é um empresário durão e tudo o mais, mas é difícil imaginar o que poderia incomodá-lo a esse ponto.

– Você já esteve prestes a perder 125 milhões de dólares?

Os olhos dela se arregalaram.

– Não.

– Isso deixa a pessoa meio esquentadinha, acredite.

Eles chegaram à garagem e Jack abriu a porta para ela.

– O que você faz exatamente? – ela perguntou, entrando primeiro.

Ele se esforçou para responder à questão enquanto observava o movimento dos quadris dela.

– Eu invisto em empresas privadas em troca de parte das ações. O lucro vem quando elas se tornam públicas.

– O Fundo Walker é grande coisa? Sem ofensas, mas finanças não são meu campo.

– Quando gerido adequadamente, comando mais de dez bilhões de dólares.

– Ah! – ela parou no topo das escadas, como que tentando lidar com aquele número. Quando olhou para cima, exclamou: – Isso é muito bom!

Ele perdeu os últimos resquícios de raiva quando Callie pousou a caixa de ferramentas no chão e começou a andar pelo ateliê. Havia janelas em cada lado do espaço e o teto era pontiagudo. Ele trouxera uma comprida mesa de madeira e algumas cadeiras diferentes para ela escolher. Havia também um sofá e algumas mesas de canto.

Os saltos de Callie faziam cliques pelo chão enquanto ela explorava e Jack a assistiu com uma ganância que o preocupou.

– Vai servir perfeitamente – ela disse, olhando para fora. – É bem iluminado.

– Fico contente que você tenha gostado. Quando reformei o lugar ano passado, acrescentei um banheiro com chuveiro e há um sistema de som implantado nas paredes.

– É tudo tão surpreendente! – ela disse, passando a mão pela mesa, distraída.

– O quê?

Ela virou a cabeça de repente, como se tivesse lembrado que não estava sozinha.

– Nada – ela o encarou, toda profissional. – Tenho uma lista do equipamento que vou precisar antes de começar o trabalho.

– Sem problemas. Podemos ir ao Museu de Belas-Artes hoje de manhã.

Ela assentiu e apontou para as portas duplas.

– O que tem aí dentro?

– Só um armário – ele foi até lá e abriu. Dentro havia quatro caixas e Callie as olhou com curiosidade. – Acho que as duas de baixo estão cheias de uns travesseiros bordados que minha mãe não quer. As outras contêm antigos papéis da família.

– Sério? – ela entrou e levantou a tampa da caixa de cima. – Eles foram catalogados?

– Não que eu saiba.

– Deveriam ser.

– Quer fazer isso?

Ela olhou por sobre o ombro.

– Está falando sério?

– Claro. E eu pagaria pelo trabalho.

Ela abanou a cabeça.

– De jeito nenhum. Eu gosto de transformar o caos em ordem, então isso seria uma distração pra mim. Além disso, não tenho experiência em restauração de documentos. Tudo o que poderia fazer é vasculhar uns papéis, colocar em pilhas e preparar para os cuidados de alguém que soubesse o que fazer.

Ela se ergueu na ponta dos pés e se inclinou para a frente, pondo os braços dentro da caixa. Jack ouviu papéis deslizando uns contra os outros com um som gracioso e então um som duro quando a caixa escorregou. Callie começou a cair para a frente.

Movendo-se por instinto, Jack agarrou a cintura dela por trás, puxando-a em sua direção. Seu primeiro pensamento tinha sido mantê-la em pé.

Contudo, quando o corpo dela encontrou o dele, seu cérebro desligou.

Quando fizeram contato, ele a ouviu arfar, e ele mesmo sentia-se a ponto de respirar pesado. O encaixe dela contra seus quadris era perfeito e Callie devia estar tão surpresa pela sensação quanto ele, porque não lutou, assim como Jack não se moveu.

Ele não sabia quanto tempo se passou enquanto eles estavam assim.

Agora seria uma boa hora para soltá-la, ele disse a si mesmo. Bastava deixar as mãos caírem e dar um passo para trás. Fazer algum comentário engraçadinho sobre ela se jogar no trabalho.

Em vez disso, os dedos dele se abriram sobre a cintura dela, tocando as ondulações sutis das costelas, a maciez de seu corpo. Ele sentiu o corpo dela se expandir com uma exalação. Ainda assim não se afastou, então se aproximou até que seu peito estivesse contra as costas dela.

Não faça isso, ele pensou. Pelo amor de Deus, não ouse fazer isso!

Mas seu corpo estava no comando, afogando pensamentos sãos e argumentos morais e substituindo-os pela necessidade insana de tomá-la. Ele não conseguia pensar sobre as implicações do que fazia. Tudo o que sabia era que queria Callie.

Movendo-se devagar, Jack levou a mão até o cabelo dela e o afastou para expor pele e pescoço. Daí, inclinou a cabeça, trazendo os lábios perto do ouvido dela.

– Callie.

– Me solta – ela sussurrou.

– Callie – a voz dele era baixa, vibrando com o que estava acontecendo entre os dois, enquanto ele se desculpava pelo que estava prestes a fazer. – Sinto muito.

Ele encostou os lábios na pele dela.

Ela inspirou com força e ele beijou seu pescoço outra vez, acariciando-a com a língua. Quando a cabeça de Callie caiu para trás, Jack colocou os braços ao seu redor, as mãos abertas sobre sua barriga lisa.

Quando os lábios dele baixaram mais uma vez, a cabeça dela começou a se mover, como se ela estivesse tentando se soltar. Aproveitando o momento, Jack a virou. Os olhos dela brilhavam de desejo, apesar de ele suspeitar que ela estava prestes a sair correndo.

Mantendo os olhos pregados nos dela, ele pôs os lábios em seu rosto, de leve. Eram apenas beijinhos, tanto para acalmá-la como para excitá-la, e que o levaram à boca da mulher. Ele hesitou.

No fundo, ele sabia que estava prestes a fazer algo muito errado.

Seu filho da puta, ele pensou, juntando os lábios aos dela.

A boca de Callie tremeu sob a dele quando Jack a beijou suavemente, e o suspiro que ela soltou foi toda a permissão que ele estava esperando. Ele a beijou de novo. Acariciando, persuadindo gentilmente.

Ele sabia muito bem que aquela paciência não duraria. A cada beijinho, seu autocontrole ficava mais fraco, e ele se transformava de um ser humano racional em um homem excitado que tinha nos braços exatamente o que queria.

Os lábios de Callie se abriram sem aviso e a língua dele deslizou entre eles. Ele gemeu quando sentiu outra língua, quente e úmida, e só conseguiu pensar em ter a pele dela perto de si. Tomado por desejo, apertou a mulher com mais força até que os seios dela estivessem pressionados contra seu peito.

Meu Deus!, ele pensou. Nada no sonho o havia preparado para a sensação de tê-la de verdade, e ele pensou no sofá do outro lado do ateliê. Será que tinha fechado a porta lá embaixo antes de subir as escadas? A última coisa que queria era ser interrompido.

Mas, então, ela o empurrou com um gemido e saiu cambaleante do armário.

Jack xingou quando o ar frio tomou o lugar do corpo quente de Callie e a realidade retornou com horrível clareza.

Antes de se virar, ele respirou fundo e tentou se controlar. Encará-la com uma ereção visível provavelmente não facilitaria as coisas para nenhum deles.

Puta merda, ele estragou tudo.

Ela estava andando de um lado para o outro quando ele se virou.

– Sinto muito, Callie – ele disse. – Não sei como isso aconteceu.

Na verdade, se lembrava de como havia sido, do começo ao fim. O certo seria dizer que não sabia por que tinha acontecido. Acostumar-se à monogamia com Blair tinha levado algum tempo, mas ele nunca tinha escorregado. Nem uma única vez. Ele não conseguia acreditar que acabara de quebrar aquele compromisso.

– Não posso... – Callie titubeou. – Isso não vai dar certo. Preciso ir pra casa – ela pressionou as mãos contra o rosto. – Meu Deus! Eu não devia ter deixado isso acontecer. Eu... eu nem conheço você!

Jack sentiu uma vontade absurda de recitar seus dados pessoais. Altura, peso, número de identidade, data de nascimento. Estado civil.

O último o fez estremecer.

– A culpa é minha – ele disse. – Você não fez nada de errado.

Ele viu os olhos dela se voltarem para a caixa de ferramentas e para as escadas.

– Espere aí. Não vamos exagerar – a última coisa que ele queria era que ela fosse embora. – Só porque beijei você, não quer dizer que tenha de desistir.

– Desistir? Se eu for embora, não estarei desistindo. Você tentou se aproveitar de mim!

Ele franziu a testa e falou sem pensar:

– Você não estava exatamente protestando!

Ela deixou escapar um som enojado.

– Muito obrigada por apontar esse fato. Faz com que me sinta melhor!

Jack se xingou, pensando que deveria ser mais cavalheiro.

– Desculpe. Não estou raciocinando bem agora.

Na verdade, era um milagre conseguir elaborar uma frase. A frustração sexual o estava deixando de mau humor. O pior era que, apesar de ser errado eles ficarem juntos, tudo o que ele queria era tê-la em seus braços de novo. Nua.

Ele precisou fechar os olhos quando outra onda de desejo o tomou.

Talvez ele devesse deixá-la ir. Mostrar a porta. Afastá-la de sua vida. Porque coisas como aquele beijo não aconteciam acidentalmente. Desde a conversa em frente ao prédio dela, em Chelsea, Jack estivera imaginando como seria a sensação de tê-la de verdade em seus braços. E o que acabara de acontecer entre eles era uma tragédia que superava as expectativas.

– Devo esperar que você tente me beijar de novo? – ela perguntou.

Ele abriu os olhos e gostaria muito poder dar a resposta categórica que ela esperava. Mas não se sentia particularmente firme no momento.

Ele passou uma mão pelo cabelo.

– Estou num relacionamento. Estou noivo...

– Você está noivo?! – ela disse, incrédula. – Ah, meu Deus!

As mãos dela voltaram ao rosto e por um momento Jack achou que ela quisesse vomitar, porque agora estava olhando com desespero o banheiro, em vez das escadas.

– Olha, não tenho o hábito de trair uma vez que assumo um compromisso.

– Ah, é? – ela retrucou. – Então todas aquelas histórias sobre sua vida amorosa eram invenções?

– Eu disse uma vez que me comprometo.

– Bom, você não faz isso com frequência, não é?

Ela cruzou os braços sobre o peito. Jack não podia culpá-la pelo olhar de desdém, e não foi fácil encarar diretamente seus olhos desconfiados.

– Então me conte, Jack, o que exatamente você vai dizer sobre isso à sua noiva?

Deus, ele não tinha ideia.

– Não sei.

– Provavelmente nada, não é mesmo? E é exatamente por isso que todas aquelas mulheres acabaram brigando por sua causa. Sem dúvida todas pensavam que eram únicas.

– Você não deveria acreditar em tudo o que lê.

– Se eu acreditar em um quarto do que li sobre você, já é bastante. Como aquela vez em que uma de suas namoradas perseguiu uma modelo seminua pelo saguão do Waldorf-Astoria. E o que aquela pseudoatriz estava usando mesmo? Um boá de plumas na frente dos peitos e uma cueca, né? – Callie pôs as mãos nos quadris. – Essa foi uma das minhas preferidas. Apareceu na People e no The New York Post.

Ele xingou.

– Isso foi anos atrás. E ela estava usando minhas calças, se me lembro bem.

Na época, ele tinha achado o incidente hilário. Depois que a grande perseguição começara, tinha ficado na suíte e esperado o retorno das calças ou da mulher que ele namorava há seis semanas. Agora, olhando para trás, e especialmente na frente de Callie, todo aquele escândalo pareceu imaturo.

Ele respirou fundo.

– Não sou mais aquele homem.

– Tem certeza? – ela murmurou.

– Naquela época, eu nunca teria pedido desculpas, porque não teria me sentido mal. Agora, sinto muito, de verdade. Sei que não tenho muita credibilidade com... coisas assim, mas você precisa acreditar em mim. Eu não tinha intenção de seguir esse caminho com você.

Ela o encarou, examinando-o.

– Você já a traiu antes?

– Não. E nunca pretendi fazê-lo.

Ele foi até o sofá e se sentou, apoiando os cotovelos nos joelhos.

– Me perdi no momento e cometi um erro. Não sei o que mais posso dizer.

O olhar de Callie passou para a janela, e depois de um momento pousou nele outra vez.

– Não sou como as mulheres com quem você está acostumado. Simplesmente... não sou.

Não, ele pensou, certamente não é. Ela não aceitaria ser usada e Jack não tinha a mínima vontade de tratá-la assim.

– Sei disso – ele respondeu. – Achei impossível me afastar de você. Foi uma fraqueza minha. Não foi culpa sua.

Ela abaixou a cabeça e encarou o chão por um tempo.

– Se eu ficar, vai ser pra fazer o trabalho, e não porque estou interessada em joguinhos. Não quero que você faça isso de novo.

Ele franziu a testa.

– Posso perguntar por quê?

– Que tipo de pergunta é essa?

– Quer dizer, você está saindo com alguém?

Ele não esperava que ela respondesse, mas queria saber.

– Isso é totalmente irrelevante. Mesmo se estivesse sozinha, não estaria interessada em você.

Ele teve de sorrir.

– Você deixou isso bem claro.

Aos poucos, os ombros dela relaxaram e o queixo começou a descer.

– Então, podemos ser amigos? – ele perguntou, se surpreendendo com o quanto aquilo importava.

– Não, não podemos ser amigos – os olhos dela voltaram para a janela. – Nós nunca seremos amigos.

Ele não gostou daquela resposta.

– Por que não?

– Não temos nada em comum.

– Não é verdade. Ambos gostamos de arte. Cachorros. Grace Woodward Hall. Tenho certeza que a lista continua.

Ela abanou a cabeça.

– Eu trabalho pra você. Assim como as outras centenas ou milhares de pessoas que fazem parte do Fundo Walker. Sou só mais uma entre muitos...

– Não é, não.

–... quero que continue assim.

– Você sempre preferiu o anonimato ou é um caso especial porque quer me evitar?

– Desta vez é uma escolha.

Os instintos caçadores de Jack se eriçaram.

– E quando não foi escolha sua?

Ela se virou rápido.

– Esta conversa acabou.

Callie cruzou o cômodo e apanhou a caixa de ferramentas, colocando-a na mesa com uma batida forte.

Ele a estudou por um momento, perguntando-se o que tinha causado aquele recuo. O que exatamente ela estava escondendo?

– Me diga uma coisa.

– Não.

– Você não sabe o que vou perguntar.

– E não me importo.

Com mais gentileza, ele disse:

– Só quero saber. Alguém machucou você?

Ela o encarou com os olhos brilhando de indignação.

– Você está completamente louco, sabia disso?

Ele se ergueu.

– Só achei que isso poderia explicar uma coisa.

– E o que você acha que precisa de explicação?

– Você ter me afastado.

A cor que subiu ao rosto dela era a coisa mais atraente que Jack já tinha visto. E era uma confirmação, independente de qualquer negação, de que Callie sentira o mesmo que ele naquele armário.

Ela ergueu o queixo outra vez.

– Talvez eu simplesmente não tenha gostado.

– Não foi o que eu senti.

– Então talvez você tenha aproveitado o bastante para nós dois – os olhos dela desceram para a virilha de Jack.

A ideia de que ela sentira a ereção dele o fez trincar os dentes de desejo.

Ele sabia que deveria recuar. Sabia que deveria desistir, porque se insistisse demais, ela seria perfeitamente capaz de desistir do projeto. Desistir dele.

Mas não podia. A resistência dela o cativava, fazendo a concordância das outras mulheres parecer pálida e desinteressante.

– Callie, não me importo se você me empurrou porque não gosta de mim ou porque fui inadequado ou porque agi rápido demais. Tudo isso deve ser verdade. Mas eu apreciaria um pouco de honestidade. Você gostou do beijo.

Ela bufou, indignada.

– Geralmente dá trabalho fazer esse ego caber dentro de casa?

Ele abanou a cabeça lentamente.

– Não num lugar do tamanho de Buona Fortuna. Mas provavelmente daria, se fosse num rancho ou num sobrado.

Ela abriu a boca para falar, mas um sorriso puxou seus lábios para cima, e ela se virou para a caixa de ferramentas.

Droga. Ele queria que ela tivesse compartilhado aquele sorriso com ele.

Jack deu um passo na direção dela e se forçou a parar.

– Olha, não tem nada errado em sentir prazer. A maioria das pessoas, quando tem a sorte de encontrar um pouco, não quer parar. A não ser, é claro, que já estejam com alguém, ou que tenham sido machucadas antes, o que me traz de volta ao meu ponto. Você é uma das mulheres mais defensivas e fechadas que eu já conheci. Me faz pensar que alguém a enganou no passado.

Quando ela o olhou por sobre o ombro, seu sorriso tinha esvanecido.

– Não tenho nenhuma intenção de discutir minha vida com você. Não é problema seu, uma vez que isso não tem nenhum impacto em nosso relacionamento profissional. E não sou defensiva!

Ele inclinou a cabeça e sorriu de leve.

Callie limpou a garganta e desviou o olhar.

– Talvez eu só seja cuidadosa com desconhecidos. O que é muito saudável.

– Quer dizer que, se me conhecesse melhor, não seria tão cautelosa?

Ela riu e a nota de arrependimento em sua voz foi um alívio para Jack.

– Sempre vou tomar cuidado com você.

– Callie. Olhe para mim.

Levou um momento até ela o fazer.

– Sinto muito, de verdade. Você pode confiar em mim. Com qualquer coisa. Com sua vida. Não vou machucá-la.

Ela franziu a testa e mordiscou o lábio inferior. Ver aqueles dentes brancos sobre a boca macia fez Jack esquecer suas boas intenções por um segundo.

A voz de Callie era quase um sussurro quando ela finalmente falou.

– Mas me beijou mesmo estando noivo, não beijou?

Ele fechou os olhos. Não havia como negar.

Callie começou a tirar pequenos potes da caixa de ferramentas e colocá-los sobre a mesa.

– Talvez devamos esperar a pintura antes de ir ao Museu. E eu... eu gostaria de arrumar minhas coisas agora.

Foi uma mudança de assunto efetiva e sugeriu que ela queria passar um tempo sozinha. Ele sabia que não podia insistir mais, mas torcia para que ela considerasse seriamente o que ele dissera. Apesar de suas ações.

– Vou deixá-la em paz – ele disse. – Mas quero que saiba que estou feliz que tenha ficado. Quero que isso dê certo. Para nós dois.

Quando ela não respondeu, Jack cruzou o cômodo. Parando no topo das escadas, disse:

– Callie?

Ela ergueu o olhar.

– O quê?

– Você está com alguém?

O rosto dela voltou a corar e Jack sabia que tinha ultrapassado os limites de novo.

Não tanto como quando a beijei, ele pensou secamente.

– Quer dizer, você precisa de folgas? Ou quer que alguém venha visitá-la? – ele falou casualmente, tentando disfarçar seu interesse.

Porque ele realmente tinha interesse, não estava só sendo educado.

Ela franziu a testa antes de responder:

– Estava planejando trabalhar sem interrupções.

– E visitas?

Ela voltou à caixa, tirando pedaços de madeira e tufos de algodão.

– Ah, não. Nenhuma visita.

A satisfação que Jack sentiu o fez querer xingar.

Saia daqui, seu imbecil.

Desta vez, ele fez exatamente isso.


Capítulo 8

Voltando para casa, Jack olhou para o céu cinza e nublado e soube que convencer Callie a ficar só havia resolvido parte do problema que criara.

O que ele diria para Blair? A única explicação que conseguia encontrar era que seu autocontrole tinha falhado por um momento.

O que, na verdade, não era uma explicação.

Manter-se fiel a Blair nunca fora um problema. Quando ela tinha pedido que fossem exclusivos, um ano antes, ele concordara, e foi fiel desde então. Queria que ela fosse feliz; além disso, já estava pensando em constituir uma família.

Desde que assumira esse compromisso, não faltaram oportunidades de recair em seus velhos hábitos com as mulheres. Na semana anterior, tinha recebido mais uma proposta, na verdade. Em Nova York, no baile, Candace Hanson o abordara sugerindo que fizessem bom uso do elevador. Subir todos os andares enquanto ela ficava de joelhos.

Era curioso: Candace era bonita de um jeito muito produzido, cuidadoso. E obviamente estava interessada e disposta. Também era hábil, com certeza, considerando todos os homens com quem já ficara. Mas para Jack fora ridiculamente fácil recusar a oferta.

Houve várias Candaces. Mulheres lindas com uma vasta gama de interesses e intenções, todas dispostas a lhe dar o que ele quisesse. Jack imaginara que o fato de que recusara todas provava seu compromisso com Blair. Mas, talvez, ele só não tivesse sido tentado o bastante. Mesmo assim, não conseguia entender. Depois de um ano recusando ofertas óbvias, era inacreditável que tivesse quebrado seu histórico perfeito com uma mulher que era, na melhor das hipóteses, ambivalente com relação a ele.

Não, ambivalente era a palavra errada. Callie sempre fora perfeitamente clara sobre o que pensava de Jack e tinha todo o direito de ser cautelosa. Afinal, ele não se sentia muito honrado quando estava perto dela.

Jack olhou para as nuvens e desejou não ter feito jus à sua reputação.

Talvez o noivado tivesse sido um erro. Um exercício de planejamento sobrepujando as emoções. Lembrou-se de Blair dizendo que ele não a amava e pensou que talvez tivesse cometido um erro de cálculo.

Desde o começo ele fora bem laissez-faire em relação ao noivado. Pedira Blair em casamento na frente de Grace e seu guarda-costas, o que não era nem privado nem particularmente romântico. E não tinha ficado muito entusiasmado quando ela perguntara quando eles deveriam fazer a cerimônia. Ou onde.

Quando Blair o questionou aquela noite no Plaza, ele tinha ficado defensivo, presumivelmente porque estava tão seguro de tudo. Mas talvez só não quisesse, por medo, ver o que estava acontecendo entre eles.

Blair tinha razão ao se surpreender com o pedido de casamento. No começo do relacionamento, ele recitara seu discurso anticasamento, toda uma ladainha de que se casar era apenas o primeiro passo para se divorciar e, portanto, uma proposta financeiramente desvantajosa para ele. Jack dizia não ter o menor interesse em ser roubado por uma ex – não depois de ter trabalhado tanto pelo seu dinheiro.

Sua opinião fundamental sobre o casamento tinha mudado? Provavelmente não. Mas a morte do pai o fizera pensar sobre o futuro. Sobre filhos. Pelos seus filhos e filhas não nascidos, Jack estava disposto a dar uma chance para essa instituição falida e não conhecia nenhuma esposa melhor para si. Talvez ele e Blair superassem as expectativas e ficassem juntos no longo prazo.

Talvez ele se apaixonasse por ela, um dia.

O problema era que, pensando em Blair agora, Jack não sentia nada além de culpa. Não havia nenhuma faísca, nenhuma paixão selvagem, só um afeto profundo.

Talvez o remorso quisesse dizer algo. E é claro, uma pessoa pode se sentir um imbecil completo e se arrepender mesmo sem estar apaixonada.

E Callie? A consciência de Jack o forçava a considerar a hipótese de que a resistência dela fosse o grande atrativo. Se era, ele não tinha nenhum motivo para fazer mudanças drásticas em sua vida. Ou na dela. Ou na de Blair. Se tudo aquilo com Callie se resumia ao gosto dele por uma boa perseguição, só havia um resultado possível. Ele era conhecido por conseguir o que queria e, uma vez que atingia sua meta, era questão de tempo até partir para o próximo alvo. Esse ciclo lhe rendera muito dinheiro.

E lhe dera a fama de playboy.

Jack balançou a cabeça, sabendo que precisava respirar fundo e se acalmar. Ele estava ficando fora de controle, o que era uma resposta compreensível quando sua vida saía do curso programado. Mas não precisava jogar fora todos os planos só por causa de um beijo.

Não importava o quão bom tivesse sido.

Não terminaria seu noivado. E não contaria nada a Blair.

Jack não gostava de mentir, mas não havia motivo para entristecê-la com um erro seu. Ela ficaria magoada, e como não tinha intenção de fazer aquilo de novo, ele não queria fazê-la sofrer aquela dor.

E aquilo não se repetiria. Ele não estragaria todo o compromisso apenas por gostar de uma boa perseguição. Porque o beijo certamente se resumia a isso.

E Callie?

Ele perdeu o fôlego e chegou à conclusão de que seu autocontrole precisava de ajuda. Se houvesse um modo de torná-la menos disponível...

Gray Bennett está na cidade, ele pensou. Era atraente. E solteiro.

Talvez Callie se interessasse por seu velho amigo. Se Jack conseguisse juntar os dois, estaria protegido de todos os lados.

Totalmente comprometido com sua noiva. E Callie estaria ocupada com um sedutor.

Jack voltou para a casa com um andar decidido.

Callie viu Jack parar e olhar para o céu, seu corpo formando um arco. Ele olhou para as nuvens por um momento e, depois, atravessou a entrada como que preparado a começar o dia.

Ela olhou para o armário, no qual a tampa da caixa que abrira estava no chão. Foi até lá e a apertou sobre a caixa com firmeza, tentando ignorar o simbolismo e se perguntando se fizera a coisa certa ao ficar. Relembrando a conversa deles, percebeu que Jack não tinha prometido que não a beijaria de novo. E agora ela sabia que ele tinha uma noiva, para não falar da sua péssima reputação. Com base naqueles dois fatos, ela deveria arrumar as malas e entrar em um trem o mais rápido possível.

Porque ela tinha uma sensação estranha com relação a Jack Walker.

Sim, ela disse a si mesma, e isso se chama desgosto.

– Ah, droga – ela murmurou.

Sim, desgostava do homem, mas essa não era a única coisa que sentia. Tinha de admitir de uma vez. Ele era muito sexy. E beijava extremamente bem.

Mas é claro, ela pensou, torcendo o nariz. Ele tem muita prática.

Ela voltou à janela e olhou para a mansão imponente. A ideia de que se tornara uma atriz coadjuvante em um romance gótico a fez sorrir, especialmente quando Arthur apareceu e se encostou em sua perna.

De algum modo, não seria o mesmo se ele fosse um golden retriever, ela pensou.

Enquanto afagava o pelo áspero dele, Callie tentou imaginar a situação se Jack não estivesse com outra pessoa. O que ela teria feito em tal caso?

Era uma mulher adulta. Sentia-se atraída por ele. Ideias antiquadas de romance à parte – como sexo sem amor ser apenas um exercício inútil e relativamente aeróbico –, ela teve de se perguntar por que seria tão terrível se uma série de beijos os levasse até a cama.

Não que ela tivesse alguém com quem comparar, mas sabia que ele seria um amante fantástico. Ele se movia com uma confiança lenta que ela achava incrivelmente sensual. Só de lembrar como ele afastara seu cabelo e colocara os lábios em seu pescoço foi suficiente para fazê-la reconsiderar se fizera a coisa certa ao se afastar.

Está bem, ela era pateticamente atraída por ele. Mas e se ele soubesse a verdade? O que pensaria se descobrisse que ela nunca tinha transado? Esse fato em particular já fora um problema antes.

Chegar aos 27 anos virgem não tinha sido sua meta; acontecera meio por acaso. Anos cuidando da mãe, estudando e trabalhando ao mesmo tempo praticamente acabaram com sua vida social. Ela também fora treinada desde criança para não dar nas vistas, então nunca tentara atrair atenção. E sabia que seu relacionamento com o pai também tinha a ver com isso: ela apenas não confiava em homens.

Sua única experiência sexual séria restringia-se a uns amassos desconfortáveis no escuro com um cara com quem ela saíra na faculdade. Tinha decidido transar porque gostava dele e achava que era a hora, mas as coisas pararam abruptamente quando ela explicou que ele seria o primeiro. Não foi divertido vê-lo colocar as roupas de volta como se fossem à prova de fogo e ele estivesse ao lado de um coquetel Molotov.

Mais tarde, ela descobriu que ele só saíra com ela para se vingar da mulher em quem estava realmente interessado.

Teria sido um erro fazer amor com aquele cara, mas ela sempre quis ter mais experiência. Antes, porque se sentira atrasada em relação às outras mulheres da sua idade. Agora, porque queria ter alguma perspectiva sobre como era ser beijada por Jack Walker.

Talvez o que acontecera naquele armário não tivesse sido nada de especial. Sem dúvida não fora extraordinário para ele. Ele provavelmente tinha tantas experiências eróticas quanto ela tinha noites sozinha.

Mordaças e algemas, de fato.

Ela franziu a testa, perguntando-se por que estava perdendo tempo. Jack Walker tinha alguém em sua vida. E obviamente sentia algo pela mulher, pois parecera de fato arrependido por terem ido tão longe. Talvez fosse só um bom ator, mas ela acreditou que ele se sentia mal por trair a noiva.

Eles só precisavam manter as coisas em um nível profissional. E uma vez que começasse o trabalho, os dias passariam rápido e o projeto estaria terminado antes que ela percebesse. Ele provavelmente nem pensaria de novo no beijo. Então, ela também não pensaria.

E a ideia de ser amigos? Callie duvidava que homens como Jack Walker sequer tivessem amigos, do tipo que você chama quando está com problemas ou precisa de uma risada. Ela imaginava que mesmo os ricos precisavam de apoio, mas era difícil pensar nele procurando alguém por ajuda ou conforto. Ele era simplesmente autoconfiante demais. E controlado demais.

Não que a agenda dela estivesse cheia. Callie não tinha muitas pessoas na vida, especialmente agora que fora demitida da galeria. Havia... Grace. Um primo distante ou dois. Mas para Callie, amigos eram complicados porque se envolviam na vida de uma pessoa, e na dela havia muitos pontos difíceis de explicar.

Então não, mesmo se ela não se sentisse atraída por Jack, eles não podiam ser amigos. Ele já estava fazendo perguntas e aqueles olhos castanhos astutos eram perspicazes demais para o gosto dela.

Callie franziu a testa. Um caminhão de entrega estava subindo a entrada e parando sob o pórtico. Movendo-se de um pulo, ela se sentiu reconfortada pela onda de animação que sentiu, pois desta vez não tinha nada a ver com Jack.

– Vamos dar as boas-vindas a Nathaniel – ela disse a Arthur.

O cachorro levantou as orelhas, sempre pronto para uma aventura, e correu feliz para as escadas.

O entregador estava abrindo as portas traseiras do caminhão quando ela o alcançou. Jack emergiu da casa ao mesmo tempo e Callie notou que ele tinha trocado de roupa, usando agora terno e gravata. Ela tentou se manter calma quando os olhos deles se encontraram. Como era de esperar, ele parecia totalmente à vontade.

O retrato fora enviado em um caixote de madeira e a carga foi descida do caminhão por uma paleta mecânica. Depois de deslizar o fardo para um carrinho, o entregador seguiu Jack até a garagem. Juntos, eles rolaram o caixote escada acima e o puseram na mesa de trabalho de Callie.

Assim que o homem saiu, Jack ofereceu um martelo.

- Quer ter as honras?

Ela pegou a ferramenta e começou a puxar os pregos na beirada do caixote. Quando tinha completado o perímetro, eles levantaram o topo juntos e ela tirou o material de embalagem da frente do quadro.

O rosto bonito e pensativo de Nathaniel Walker foi revelado, e Callie não conseguiu evitar que um discreto som de prazer lhe escapasse dos lábios. Com cabelo escuro e ondulado e olhos semicerrados, Nathaniel e Jack eram muito parecidos.

- É um trabalho realmente notável – ela murmurou. - Quase posso vê-lo respirar.

O líder da Guerra de Independência estava sentado em uma cadeira, a cabeça virada para fora da pintura. Usava um casaco preto e uma camisa branca larga que cobria o pescoço. O espelho prateado na mão esquerda também estava virado para o espectador, símbolo do seu trabalho como vidreiro. A outra mão estava dependurada do braço da cadeira, mostrando um trecho elegante de pele pálida. O fundo era escuro, praticamente preto, mas Callie sabia que, com uma limpeza adequada, se tornaria menos denso.

Ela estendeu a mão para a caixa de ferramentas. Colocando na cabeça uma lupa com luz embutida, começou a escanear a superfície da pintura, imediatamente identificando o padrão de craquelê, pequenas ranhuras na tinta. Essa rede complexa de pequenas ranhuras era esperada e confirmava a idade da pintura. Continuando o exame, pôde ver que o trabalho com o pincel era magistral e que as cores foram misturadas com confiança. Mal podia esperar para tirar a antiga camada de verniz que tinha amarelado e revelar os tons e matizes que Copley realmente usara.

- Você entende mesmo disso – Jack disse em voz baixa.

Ela ergueu os olhos; tinha se esquecido que ele sequer estava no quarto. Ele tinha se encostado na parede, um pé apoiado na ponta dos sapatos, os braços cruzados. Um meio sorriso tocava seus lábios e as pálpebras estavam abaixadas, sugerindo que estivera perdido em pensamentos enquanto a observava.

Sentindo-se vulnerável, Callie se lembrou que examinar a pintura era parte do trabalho, não um momento íntimo dela. Mesmo assim, era como se tivesse baixado sua guarda, e ela quis expulsá-lo da garagem.

Ela tirou a lupa, jogando-a na caixa de ferramentas.

- Parece estar em boas condições e aguentou bem a viagem. Eu gostaria de ir ao Museu agora.

- É claro.

Quando estavam quase nas escadas, ele parou.

- Estou muito feliz por você fazer isso. Gosto de como olha pra ele.

Jack continuou andando e ela seguiu mais lentamente, intrigada que um homem cujo mundo girava em torno de dinheiro tivesse um lado tão sentimental.

- O nome do seu pai era Nathaniel, certo? – ela perguntou, a mão no corrimão enquanto descia.

- Sexto, na verdade – ele abriu uma porta lateral da garagem e luzes se acenderam automaticamente enquanto passaram. Estacionados ali havia dois esportivos Jaguar, uma caminhonete e outro esportivo de algum modelo que ela nunca vira antes.

- Por que você não foi o sétimo?

Jack parou na frente do carro esportivo.

- Meu irmão nasceu antes de mim. Ele ficou com o nome.

- Não sabia que você tinha um irmão.

- Ele é muito reservado.

Jack abriu a porta para ela.

- Agora me deixou curiosa.

Ela o viu contornar o carro, um sorriso no rosto.

- Nate é uma ótima pessoa, mas não consegue parar quieto. Não o vejo tanto quanto gostaria.

Ela se sentou e sentiu que o banco fora feito sob medida para seu corpo. Impressionante, pensou.

- O que ele faz?

- É um chef.

Jack se sentou no banco do motorista.

- Parece se orgulhar dele.

- E me orgulho.

As portas se fecharam com um som quieto e Callie inspirou profundamente enquanto punha o cinto de segurança.

- Hmm. Gosto do cheiro desse carro. E todo esse couro... é lindo! Que modelo é?

- Um Aston Martin DB9.

O motor acordou com um rugido profundo que diminuiu a um ronronar suave. Quando chegaram na entrada, o som de Mozart encheu o ar e Callie acariciou o apoio de mão, suave como manteiga.

Um minuto depois estava apertando-o com toda a força.

Depois de sair correndo pela Cliff Road, Jack se lançou em meio ao tráfego da Rota 9 e começou a desviar dos outros carros como se estivesse jogando um video game. O homem era uma ameaça atrás do volante e Callie pensou que sua salvação era o fato de o carro esportivo ter air bags de primeira linha – muitos deles.

Quando desviaram de um caminhão, ela olhou alarmada para Jack. Ele estava calmo, assobiando baixinho junto com a música. Encarou-a de volta e franziu a testa.

- Está com frio? Parece desconfortável.

Ele estendeu a mão para o controle do ar.

- Não! Estou bem.

Qualquer coisa para mantê-lo com os olhos voltados para a frente e ambas as mãos na direção.

- Não parece bem.

- Medo da morte iminente me deixa assim – ela disse, sendo empurrada contra a porta quando eles ultrapassaram um fusca.

Jack assentiu.

- Demora um pouco pra se acostumar ao trânsito de Boston, mas é muito melhor que em Nova York, onde os taxistas são meio barbeiros - disse ele enquanto ultrapassava um caminhão de pão e apertava os freios com tudo em frente a um semáforo.

Callie foi empurrada para a frente e agradeceu a Deus pelo cinto que a prendia no assento. Recuperando o fôlego, olhou para Jack.

- Sabe, há um meio-termo entre o frear completamente e acelerar. Você não precisa escolher um.

Ele pareceu surpreso.

- Estou deixando você desconfortável?

- A força G não era algo que esperava experimentar num carro.

Ele deu uma risada curta enquanto a luz se tornava verde. Ela se preparou, mas ele acelerou com calma.

- Desculpe. Eu costumo dirigir sozinho.

- Provavelmente porque as pessoas têm medo de andar com você – ela disse secamente.

Ele se virou para ela. E então sorriu.

Ela corou, querendo ser indiferente a Jack, querendo que seu sorriso não a fizesse sentir como se compartilhassem algum tipo de segredo íntimo. Olhou para fora. Eles passavam por bairros e lojinhas, a rua um híbrido estranho entre uma estrada pequena e uma rua normal. Callie olhava a vista à procura de qualquer distração.

- Então, como começou a restaurar? – ele perguntou, como que percebendo o desejo dela de preencher o silêncio.

- Comecei estudando História da Arte. Amava as aulas. Ficar numa sala escura, vendo obras de arte maravilhosas na tela, a voz do professor baixa no fundo da sala... Imaginava que um dia poderia ter pinturas como aquelas que estudava. Logo descobri quanto custavam e percebi que o único jeito de chegar perto delas seria trabalhando - ela fez uma pausa. - Sabe, você tem algumas obras muito especiais na casa.

- Obrigado.

- Quer dizer, só o Canaletto na entrada já é... espetacular. E o Ticiano e o El Greco na sala de jantar, então...

Callie sentiu o olhar de Jack sobre ela.

- Viu o Rubens no meu escritório?

Os olhos dela se arregalaram.

- Não se preocupa que alguém possa roubá-los?

Ele balançou a cabeça, parando em outro semáforo.

- O cara que faz a segurança do Museu de Boston fez a da casa. As pinturas estão presas nas paredes com alarmes sensíveis a peso. Elas não vão a lugar nenhum.

- Sua família sempre colecionou?

- Sim. Minha tataravó foi a primeira a se ligar no período renascentista. Doou parte da coleção ao Museu quando morreu, e minha bisavó não achou ruim. Só encheu o espaço livre na parede outra vez. A emoção é a caça, é claro.

Callie se ajeitou no assento de couro, imaginando como seria ter tanto dinheiro. Não tinha intenção de perguntar, é óbvio, porque não queria parecer simplória. Dignidade, afinal, era um bem que tanto ricos como pobres podiam ter.

Ela franziu a testa, pensando no passado. Talvez fosse por isso, pela dignidade, que sua mãe recusara tantos presentes. O pai aparecia no apartamento e, fosse uma caixinha embrulhada em papel-alumínio ou um enorme pacote com um laço, a mãe só balançava a cabeça.

- Foi assim que você conheceu Grace? – Jack perguntou. – Pelo mundo da arte?

Callie hesitou, desejando saber mentir com mais confiança.

– Você poderia dizer que nos conhecemos pela Hall Foundation, sim.

- Ela fala muito bem de você.

- Ela tem sido muito gentil comigo.

- Grace é assim. Uma ótima pessoa.

De repente, Callie se perguntou se Jack e sua meia-irmã já tinham ficado juntos. Pareciam perfeitamente adequados um para o outro.

- Ela é maravilhosa – Callie murmurou. – Faz jus ao seu título.

- Achei que ela estivesse se divorciando do conde.

- Quis dizer o título de uma das mulheres mais lindas do mundo.

Sem sinalizar, Jack fez um retorno e entrou em um estacionamento ao lado dos prédios pálidos e baixos do Museu de Belas-Artes. Trancou o carro e soltou o cinto de segurança enquanto ela olhava para o nada.

- Callie?

- O quê? Ah... chegamos.

Ele lhe lançou um olhar estranho quando eles saíram do carro.

- Tudo bem?

- Sim, claro. Tudo ótimo.

Só que ela não era uma das mulheres mais lindas do mundo e estava se perguntando por que de repente parecia se importar com isso. Deus sabia que Callie normalmente não prestava muita atenção à aparência.

Mas Jack Walker a fazia ter todo tipo de pensamentos incomuns.

Assim que entraram no museu, as pessoas começaram a se aproximar de Jack. Ele parecia conhecer todos pelo nome e o respeito com que era tratado era um sinal do que ele e sua família deviam ter feito pela instituição.

Ela e Jack tinham acabado de guardar os casacos quando a sra. Walker entrou no saguão. Ela falava e gesticulava amplamente enquanto era seguida por um funcionário que tomava notas. A mãe de Jack usava um terninho preto e tinha um colar de pérolas primoroso ao redor do pescoço. Parecia jovem e elegante, como se tivesse saído de uma página da Vanity Fair. O funcionário só parecia cansado.

Quando parou de repente ao lado do filho, a sra. Walker dispensou o empregado com um movimento do pulso.

- Veio falar com Gerard?

Callie sabia que ela estava se referindo a Gerar Beauvais, o chefe do departamento de restauração. Ouvira falar do homem, mas nunca o conhecera. Uma lenda no mundo da arte, fora responsável por restaurar alguns dos mestres mais importantes: da Vinci, Rembrandt, Michelangelo.

Jack fez um aceno.

- Pensei que ele e Callie deviam se conhecer.

A sra. Walker levantou as sobrancelhas.

- Talvez a srta. Burke aceite a assistência dele. Se é que está aberta a uma colaboração.

Callie sentiu um nó no estômago. Jack lançou um olhar firme para a mãe.

- Mencionei que Callie trabalhou com sua amiga Micheline Talbot, na restauração do De Kooning danificado?

Os olhos da sra. Walker se arregalaram só o suficiente para demonstrar que ela se lembrava do projeto.

- Você se lembra do quadro, mãe. Está no MoMA – Jack insistiu com calma. – Você me disse que Micheline não parava de falar sobre como não poderia ter feito o trabalho sem sua assistente. Que a mulher era extremamente talentosa e que era um prazer trabalhar com ela, não era isso?

Callie segurou a respiração, desejando que ele tivesse ignorado o assunto.

- Não se lembra? Mãe...

- Sim, sim, é claro. Foi um resultado extraordinário.

- Então acho que Callie e Gerard vão se dar perfeitamente bem.

A sra. Walker levou uma mão ao cabelo, ajeitando alguns fios fora de lugar.

- Tenho certeza que sim. Agora, se me dá licença, vou pra casa. A reunião do comitê executivo demorou mais do que deveria e estou cansada.

Callie corou quando a mãe de Jack foi embora. A mulher não fizera contato visual com ela nem uma vez, como se pudesse fazê-la desaparecer ao ignorá-la.

Mas Jack tinha garantido que ela fosse notada: defendeu-a.

Ela o olhou. Ele observava, com olhos estreitos, a mãe entrar na chapelaria.

- Aquilo não era necessário – Callie disse em voz baixa.

- Era, sim.

- Sei cuidar de mim mesma.

Ele olhou para ela.

- Não tenho dúvida, mas minha mãe não será problema seu. Venha, vamos pro escritório de Gerard.

Jack os guiou além do guarda que verificava as entradas, depois por uma exposição de arte africana, até um elevador grande o bastante para estacionar um carro. Era enorme, o teto estava a uns cinco metros de altura. Enquanto eram levados para cima, Callie sentia os olhos dele sobre si.

- O quê? – ela perguntou.

Ele colocou as mãos no bolso de seu terno elegante.

- Por que não quer que eu a proteja?

- Porque eu não deveria me acostumar a depender de você para lidar com sua mãe - ela fez uma pausa. - Embora tenha sido gentil da sua parte.

- Desculpe, eu ouvi certo? Você aprova alguma coisa que eu fiz?

- Não deixe subir à cabeça – ela respondeu, disfarçando um sorriso.

Ele riu.

- Com você por perto, acho que nenhum de nós tem que se preocupar com isso.

Ela ergueu os olhos e ficou surpresa ao encontrá-lo severo.

- Me diga, Callie, o que preciso fazer pra você gostar de mim?

- Por que se importa se gosto de você ou não? – ela perguntou, surpresa pela questão e pela intensidade dele.

- Gosto de desafios – ele disse, sorrindo de novo.

- Então escale uma montanha.

Ele riu de novo.

- Acho você bem mais interessante e não gosto muito de alturas. Agora responda à questão.

- Por que você não responde à minha primeiro? – ela retrucou.

- Certo – o sorriso se manteve no lugar, mas os olhos ficaram mais sérios. – Quando lhe mostrei o quarto de hóspedes, você ficou encantada, mas sei que teria ficado sem problemas na ala dos empregados. Não me perguntou uma única vez sobre o pagamento que discutimos. E meu cachorro ama você.

- Então talvez eu seja relaxada, fiscalmente irresponsável, e tenha biscoitinhos no bolso.

- Mas o motivo principal é que você me fascina.

O elevador parou.

- Não pode estar falando sério – ela murmurou, tentando ignorar as batidas subitamente fortes no peito.

As portas se abriram e ele as segurou enquanto ela passava.

- Mas estou – ele disse, indo para o lado dela. – Você é uma mulher muito incomum.

Ela podia sentir o calor subindo pelo rosto.

- Onde é o escritório? – ela perguntou, obviamente mudando de assunto.

Foi um alívio quando ele se dirigiu para lá em silêncio.

Ela não estava com pressa de dizer que o único jeito de gostar dele seria se ele se metamorfoseasse em algo que não fosse um homem arrasadoramente bonito e rico que a beijara como ela nunca fora beijada antes.

Ele teria de se transformar, de um Aston Martin DB-qualquer-coisa para um Chevette.


Capítulo 9

Eles passaram por um labirinto de escritórios, dividido do chão ao teto por estantes cheias de livros coloridos de diversos tamanhos. Quando chegaram em frente a portas duplas, Jack tocou uma campainha. Instantes depois, os painéis de metal se abriram, revelando um homem baixo e mais velho. Sob cabelos esparsos e grisalhos, seu rosto era surpreendentemente jovem, em especial devido ao entusiasmo nos olhos.

- Jackson, como está?

A voz do homem era alta e cadenciada, marcada por um sutil sotaque francês, e as mãos que levantou para remover um par de óculos de aro de tartaruga eram tão bem cuidadas que poderiam pertencer a uma mulher.

Então este é Gerard Beauvais, Callie pensou, apertando uma daquelas mãos depois que Jack os apresentou. Ela tentou não ficar paralisada pela idolatria.

Beauvais sorriu para ela e gesticulou para o interior do escritório.

- Entrem, entrem, por favor.

Havia seis estações de trabalho na sala e, em cada uma, uma pessoa com avental se inclinava sobre uma obra de arte deslumbrante. Callie viu um Pissarro e um David pendurados com grampos e diversas pinturas deitadas sobre mesas. O lugar cheirava a produtos químicos, e quando seu nariz coçou, ela se lembrou dos seus dias na Universidade de Nova York.

Só que aquilo não era uma sala de aula.

Era onde Beauvais cuidadosamente restaurara o Fra Filippo Lippi que fora borrifado com ácido. Ele precisara de dois anos para encontrar um jeito de mitigar os estragos e recuperar o que restara da pintura, mas a espera valera a pena. Também tinha estabilizado um dos raros autorretratos de Da Vinci naquele laboratório. Devido aos experimentos de Da Vinci com pintura, seus trabalhos maravilhosos podiam às vezes descolorar e descamar. O trabalho de Beauvais sobre a composição química das pinturas a óleo do mestre tinha sido revolucionário.

– Sua mãe está sendo muito generosa – Gerard disse a Jack. – Como sempre.

Jack abriu um sorriso seco.

– Só posso imaginar.

– Quer dizer, emprestar a pintura de Walker depois da restauração é muito gentil. Vai ficar maravilhosa ao lado do Paul Revere de Copley. São companheiros perfeitos – Beauvais sorriu. – Daremos uma festa, que tal? Algo para receber Nathaniel em Boston à altura.

Callie notou os olhos de Jack se estreitarem, embora Beuavais não tenha reparado.

– E você – ele disse para ela. – O professor Melzer é um grande amigo meu. Ele fala muito bem de você, o que é uma grande recomendação. Deve estar animada para começar o trabalho.

Ela sentiu o sangue subir ao rosto. Ou talvez o formigamento significasse que o sangue na verdade saíra da sua cabeça completamente.

– Farei o meu melhor. Mas tenho que admitir que estou nervosa.

– Bom, muito bom! Deveria estar mesmo – ele gesticulou com os óculos na direção dela. – Todos devemos abordar a tela com mãos seguras, uma mente clara, e palpitações no peito. É sinal de que você entende o valor do que pode fazer por uma pintura e a destruição que pode causar se não for reverente e cuidadoso. C’est bon!

Quando ele sorriu, Callie pensou que não via seu medo com o mesmo tipo de otimismo, mas relaxou um pouco.

– Agora, me conte sobre a pintura. Já a examinou?

Olhinhos entusiasmados a encararam.

Ela assentiu e limpou a garganta, sentindo-se como se tivesse sido pega de surpresa num exame oral.

– A tela é sólida e a tinta se manteve bem, de modo geral, mas a camada de verniz está amarelada e suja. Tecnicamente não será um trabalho complicado, mas a importância da pintura torna o projeto um tanto intimidante – o entusiasmo deixou sua voz mais calorosa. – O trabalho é obviamente do período anterior à partida de Copley para Londres, porque seu estilo ainda está amadurecendo. Mesmo assim, a técnica das pinceladas e o uso de cor são incríveis. Mal posso esperar pra ver o rosto de Nathaniel sob aquele verniz antigo.

– Mais alguma coisa?

Ela olhou para o homem. O sorriso dele continuava quente, mas seus olhos tinham estreitado.

– Ainda não. – Ela hesitou. – Eu deveria estar procurando alguma coisa?

Ele deu de ombros, mas manteve a voz baixa e olhou para Jack, que estava escrutinando o David.

– Examinei a pintura uma vez, no final dos anos noventa. Depois que os Blankenbakers compraram do pai de Jack o retrato, o puseram sobre a lareira na sua casa de Newport. Vieram me procurar porque estavam preocupados sobre o efeito da flutuação de temperatura e das mudanças de umidade. Não a limpamos, então sei menos do que saberia se tivéssemos feito algum trabalho nela. Mas direi que seria prudente prestar atenção particular na textura da superfície.

Ela abriu a boca para falar, mas ele olhou passivamente para Jack, que andava em direção a eles.

– Discrição entre donos é prudente. Especialmente quando as coisas não estão claras – Gerard disse em voz baixa. Ele deu seu cartão para Callie depois de escrever algo no verso. – É meu número de casa, assim como o do laboratório. Pode me ligar se tiver dificuldades ou se quiser outro par de olhos. Particularmente se ficar tentada a mexer na camada de tinta. Como bem sabe, isso não deve ser feito levianamente.

Jack sorriu quando se aproximou.

– Queríamos saber se você poderia nos emprestar uma... que tipo de lâmpada você quer mesmo?

– Uma lâmpada de halogênio – disse Callie. – E um microscópio também, se não se importar.

Gerard sorriu, assentiu e fez milagres. Vinte minutos depois, Jack levou o Aston Martin para uma entrada dos fundos e um microscópio foi colocado no porta-malas. A lâmpada e o apoio eram grandes demais para caber no carro, então seriam entregues naquela tarde.

Quando estavam saindo, Gerard pegou as mãos de Callie nas dele e as olhou.

– Essas, junto com seus olhos, são as ferramentas mais importantes que tem. Ligue se precisar de ajuda. Não tenha medo.

Quando ele apertou suas mãos, o peso da tarefa caiu sobre Callie e ela se perguntou se estava à altura da tarefa.

– Ah, chérie, vai ficar tudo bem – ele sussurrou, como se soubesse que ela não queria que Jack o ouvisse tranquilizá-la. A cadência do sotaque de Gerard. – Já fez isso antes e fará um bom trabalho. Há amor em seus olhos quando fala da pintura, e você nunca machucaria o que ama, não é mesmo?

Ela balançou a cabeça com movimentos curtos, temendo que, se o homem fosse mais gentil, ela irromperia em lágrimas.

– Então vá, vá e faça o que você foi treinada para fazer. E saiba que, se me ligar, irei encontrá-la.

Ele apertou suas mãos outra vez e então voltou para o museu, um homem pequeno com o andar alegre de uma criança.

Depois, enquanto esperavam uma abertura no trânsito, Jack disse:

– Você está praticamente brilhando.

Ela se virou para ele.

– O quê? Ah, Gerard. Ele é incrível. E surpreendentemente humilde.

– Os grandes homens sempre são – Jack murmurou enquanto engatava a marcha e os inseria no trânsito. – O que vocês dois estavam cochichando?

– Ele só estava me dando alguns conselhos.

– Ele é bom para dar conselhos.

Ela assentiu e inclinou a cabeça na direção do porta-malas.

– É generoso também.

As sobrancelhas dele se juntaram.

– Infelizmente, terei de dissuadi-lo da ideia de que meu retrato será pendurado ao lado do Paul Revere. Droga, a habilidade da minha mãe de fazer promessas com bens alheios é incomparável. Pelo menos depois da morte de meu pai.

Callie esperou, torcendo para que ele continuasse, e ficou decepcionada quando Jack não disse mais nada. Ela dirigiu o olhar para as mãos dele e o volante. Queria pedir que se explicasse melhor, mas ele mudou de assunto.

– Aliás, queria saber se poderia apresentá-la a um amigo meu.

Ela o olhou com surpresa. Ter outro cliente privado depois de terminar a restauração do Copley seria ótimo.

– Claro. Mas tem certeza de que não quer esperar até ver meu trabalho?

– Não é sobre trabalho.

O Aston Martin entrou na frente de um caminhão e Callie apertou o apoio de mão outra vez.

– Gray foi meu colega de quarto na faculdade e é um cara ótimo. Vive em Nova York, mas estará aqui pelas próximas semanas. Acho que vocês se dariam bem.

Jack queria arranjar um encontro pra ela?

– Sem pressão, é claro – ele disse, com uma olhadela em sua direção. – Só pensei que poderíamos convidá-lo para Buona Fortuna. Você poderia conhecê-lo, ver se gosta dele.

Callie disse a si mesma que isso era normal. Era assim que as pessoas conheciam outras pessoas. Por meio de amigos. Contatos.

Parceiros de negócios.

E aquilo era prova de como Jack estava comprometido a manter as coisas entre eles... às claras.

– Ahn... certo.

Jack se focou no trânsito outra vez.

– Que bom. Ótimo.

Na manhã seguinte, Callie tinha acabado de se sentar em frente à pintura quando a porta da garagem se abriu embaixo do ateliê. Ela se levantou e foi até uma janela, bem a tempo de ver o Aston Martin sair correndo da garagem. Ela observava as luzes traseiras desaparecerem à distância quando Arthur se aproximou e cutucou sua perna com a cabeça.

Trabalho, ela pensou. Tinha trabalho para fazer.

Mas era difícil se concentrar.

Ontem, quando Jack e ela voltaram do museu, ele a ajudara a instalar o microscópio e, mais tarde, a lâmpada. Enquanto organizavam o ateliê e removiam a enorme moldura dourada do retrato, ele fizera inúmeras perguntas sobre o projeto. Queria saber quais processos de limpeza seriam aplicados. Quais tipos de solvente ela usaria para remover a sujeira e o verniz antigo. Qual tipo de novo verniz ela aplicaria no fim para proteger a frágil tinta a óleo original.

Dado o que acontecera de manhã, Callie se surpreendera com o quão confortável Jack estava perto dela. Estava engraçado e agradável, e sorrira com respeito enquanto ela respondia a cada uma de suas perguntas. E a melhor parte foi que o interrogatório parecera ser movido por curiosidade, e não por falta de confiança.

Quando ele estava de saída, ela perguntara como fazer funcionar o complicado sistema de som. Enquanto lhe mostrava, Jack descobriu que o aparelho não estava funcionando, o que o levou a subir no espaço estreito acima do teto. Callie ficara de enfermeira enquanto ele se fazia de cirurgião, batendo e movendo coisas lá em cima e tentando fazer os alto-falantes funcionar.

Os xingamentos que desceram pelo teto tinham sido impagáveis e, quando Jack reemergiu, teias de aranha no cabelo, sua bela camisa e calças sociais cobertas de poeira, ela teve de rir.

Mas, de algum modo, ele conseguira fazer a maldita coisa funcionar.

Quando finalmente voltaram para a casa, o jantar já fora servido e retirado. Jack reuniu uns restos, esquentou-os demais no micro-ondas, e eles riram enquanto tentavam mastigar o frango borrachento. Nenhum dos dois experimentou as vagens flácidas.

Por mais que não quisesse, ela tinha gostado de cada momento da companhia dele.

Callie balançou a cabeça e voltou à pintura. Realmente precisava começar.

Posicionando o microscópio sobre o canto direito superior da pintura, colocou a superfície da tinta em foco girando alguns botões. Seus olhos procuraram a craquelure, memorizando o padrão, a direção e a profundidade das ranhuras. Centímetro por centímetro, Callie examinou a superfície do retrato e meticulosamente anotou o estado do verniz, da tinta e da tela. Essa documentação, como explicara a Jack, era o primeiro passo em qualquer restauração.

Quando chegou ao espelho que Nathaniel segurava, ela franziu a testa e aproximou o microscópio da tela. A tinta estava mais grossa nessa área, sugerindo que uma camada extra fora aplicada. A craquelure mudava também, o padrão mais apertado e a direção sutilmente diferente. Ela disse a si mesma que estava imaginando coisas, mas quando examinou outra vez, confirmou o que havia chamado sua atenção. Havia algo levemente inconsistente na camada de tinta sobre o espelho, uma leve mudança na textura tanto das pinceladas como das ranhuras.

Callie se afastou e olhou o retrato a olho nu, dizendo a si mesma para não se preocupar. A diferença era sutil e podia ser explicada em função da própria tinta. O espelho era uma das poucas partes pálidas da pintura, tirando as mãos e o rosto de Nathaniel. Talvez Copley tivesse usado uma base a óleo diferente para os matizes mais claros.

Ela se debruçou e verificou a testa, as maçãs do rosto, e o queixo de Nathaniel. As ranhuras estavam todas consistentes com o resto da pintura, o que reforçou suas suspeitas ao invés de diminuí-las.

Ela recolocou o microscópio sobre o espelho.

A mudança era tão sutil que, se havia alguma alteração, fora feita há muito tempo. Ou por um especialista. E o verniz naquela parte da pintura era consistente com o resto da superfície. Ela lera recentemente, em um livro sobre Copley, que o retrato de Walker recebera uma restauração e um novo verniz cerca de 75 anos antes. A mudança, portanto, não podia ser mais recente que isso.

Callie se reclinou e olhou para o nada, se perguntando por que a inconsistência não fora notada durante a primeira restauração. O livro mencionava detalhes sobre a condição da pintura na época, mas não havia referência a nenhuma discrepância na textura.

E Gerard Beauvais tinha visto algo.

Ela se lembrou do que ele dissera sobre onde a pintura tinha sido colocada na casa dos Blankenbakers: acima de uma lareira funcional. Flutuações de temperatura poderiam ter sido o catalisador que revelou o retoque. Isso explicaria por que os primeiros restauradores não mencionaram nada.

Talvez fosse algo tão inocente como uma repintura pelo próprio Copley. Pintores, mesmo os grandes mestres, faziam isso com frequência. Não gostando de uma forma ou de um tom, pintavam sobre o trabalho que haviam realizado. Com o tempo, à medida que a camada da pintura envelhecia, essas mudanças podiam se tornar mais óbvias, aparecendo como sombras em fundos pálidos ou falhas na craquelure, como aquela sobre a superfície do espelho.

Pensando que talvez a explicação fosse simples assim, ela se lembrou de uma das lições que o professor Melzer havia inculcado nela. Quando vir cascos, não pense em zebras.

Era um bom conselho. Mas ela continuava cética.

Passou o resto do dia no exame preliminar da pintura, esquadrinhando cada centímetro quadrado, procurando áreas de lascadura ou descascamento, descoloração ou esvanecimento, ou mudanças nas pinceladas. Fez anotações tão numerosas e objetivas quanto pôde.

Quando finalmente teve de parar porque as costas doíam de tanto se debruçar sobre o microscópio, Callie se ergueu satisfeita. A pintura estava num estado decente e ela confirmara que não precisaria fazer trabalhos extensivos. A remoção do verniz antigo e uma limpeza, seguidos da aplicação de uma nova camada de verniz para proteger a superfície, seriam tudo o que Nathaniel precisaria.

Sentiu-se mais capaz de terminar o projeto e imaginou que provavelmente só precisaria de mais um dia para a documentação. E então a diversão começaria.

Saindo da garagem, decidiu não contar a Jack sobre suas suspeitas. As chances de ela estar cometendo um erro de principiante e tirando conclusões precipitadas eram muito reais. E não se diz a um homem que acabou de gastar cinco milhões de dólares em uma pintura que ela poderia ter defeito, não com base em um único exame feito antes da limpeza. É preciso esperar até ter cem por cento de certeza e o apoio de meia dúzia de profissionais da área.

Usar equipamento do esquadrão antibombas era uma boa ideia também.

No sábado, Jack desligou o telefone e se alongou na cadeira. Estava fechando um negócio com Nick Farrell, o renomado especulador corporativo. O cara estava se livrando de suas ações em um conglomerado internacional e Jack estava contente por tirá-las de suas mãos. A empresa possuía várias redes europeias de wireless e fibra óptica e combinaria perfeitamente com o portfólio privado de Jack, que incluía estações de radiodifusão e canais de TV. Farrell teria um lucro considerável e Jack estava se posicionando de modo a ser um dos maiores provedores de mídia eletrônica e serviços de internet no continente europeu. Era um ótimo negócio para ambos.

Porém, Jack não estava sentindo o triunfo que normalmente acompanhava uma aquisição. Ele se encostou na cadeira e ouviu o grande relógio de chão bater as horas do outro lado do escritório.

Cinco horas. Já podia tomar um bourbon.

Foi até o bar, se serviu de uma boa porção, e sentou atrás da mesa outra vez. O licor queimou enquanto descia pela garganta até o estômago.

Apesar do sucesso, Jack se sentia inquieto e vagamente agressivo e sabia muito bem o porquê.

Quando o telefone tocara, uma hora atrás, e o identificador de chamadas tinha mostrado o celular de Blair, Jack deixara a ligação cair na secretária eletrônica. Andava fazendo isso ultimamente e adquirira hábito de retornar a ligação mais tarde, quando sabia que ela não estaria no hotel. A decisão de não lhe contar o que acontecera com Callie era mais difícil do que ele tinha imaginado, mas sabia que não podia evitar falar com ela para sempre.

Depois de outro gole de bourbon, levantou o receptor e seus dedos digitaram um padrão familiar.

A voz de Blair estava ríspida quando atendeu.

– Alô?

– Desculpe por ter perdido a ligação.

– É você, finalmente! Um segundo. Olha aqui, Joey, preciso daquelas luminárias agora. Karl quer vê-las na suíte dele até o final da semana. Não me importo que você tenha que folheá-las a ouro pessoalmente – ela soltou uma risada. – Desculpe, Jack. As coisas estão meio loucas por aqui.

– Então Graves é tão exigente quanto eu ouvi dizer – ele ergueu o copo outra vez.

– Mas não impossível. Tem padrões altos, mas se você os alcança, ele deixa você saber.

Jack mudou a cadeira de posição e olhou para fora da janela que ficava atrás da mesa. A luz estava começando a desaparecer do céu.

– Então, como você está?

– Tirando o fato de não dormir? Vou sobreviver, de algum modo... Ei, espera aí! Não! Quero o verde-escuro em veludo. Ouro só no brocado! – ela gritou para alguém.

– Você parece ocupada.

– Estou – ela disse, soando cansada. – Sabia que redecorar o Cosgrove Hotel seria um projeto grande, mas Graves adiantou a data de reabertura. Só tenho alguns meses pra fazer o que normalmente levaria um ano.

– Se ele deixar você cansada demais, é só falar e eu tomo um pedaço dele. Eu e uns amigos podemos fazer uma aquisição hostil da empresa e jogá-lo na rua em um segundo.

Ela riu.

– Obrigada.

– Quando você vem pra casa?

Ela hesitou.

– Na verdade, estava pensando em ficar na cidade pelas próximas semanas, talvez até a Ação de Graças. Estamos escolhendo cores e tecidos e tenho que falar com Karl quando consigo. A agenda dele é ridícula, mas ele insiste em ter a última palavra sobre tudo. Me ofereceu uma suíte no hotel.

Jack disse a si mesmo que aquela sensação no estômago era o bourbon, não alívio porque Blair ficaria em Nova York.

– Faz sentido.

Um movimento lá fora atraiu sua atenção. Ele viu Arthur correndo atrás de algo e se perguntou como o cachorro tinha saído da casa.

Quando Callie apareceu no jardim, Jack se inclinou na direção da janela.

– Certeza de que não se incomoda? – Blair perguntou. – Vai demorar até nos vermos de novo.

– Não tem problema. Sério.

Arthur correu de volta para Callie, jogou um galho a seus pés e se afastou, preparado para correr. Ela pegou o pedaço de madeira e estendeu o braço atrás de si. Com um único movimento forte e fluido, fez o galho voar, atirando-o a uma distância tremenda. O cachorro saiu correndo, a cabeça inclinada para o céu.

Enquanto Callie assistia Arthur correr, uma rajada de vento atirou alguns fios de cabelo em seu rosto e, rindo, ela puxou as ondas ruivas para trás e as enfiou no colarinho da blusa de lã. Depois se agachou enquanto o cachorro corria de volta.

– Jack?

Ele despertou.

– Sim?

– Prometo que não vou perder a festa de Ação de Graças. Ainda vai dar o festão de sempre, né?

– Sim.

Ele trocou o telefone de orelha e tentou pensar em algo para dizer a Blair. Normalmente não era difícil.

– Jack? Tem certeza que não tem problema eu ficar aqui? Posso ir e voltar se o incomoda de verdade.

Ele tentou convencê-la de que estava tudo bem, mas sua voz devia ter revelado alguma coisa.

– Jack, está tudo bem? A pintura chegou em ordem?

– Nathaniel está em Boston, são e salvo.

– E a restauradora chegou?

– Sim, ela veio.

– Mal posso esperar para conhecê-la. Vi Grace ontem e ela me disse que Callie é adorável. Ei, sabia que Grace está saindo com alguém? Ela não teve tempo de me dar detalhes, mas parece feliz. A gente o conheceu em Newport.

Jack franziu a testa.

– O guarda-costas? Jesus. Ele era meio rude.

– Bom, Grace está apaixonada por ele. Não conseguia parar de sorrir. Estou tão feliz por ela – o som foi abafado enquanto Blair gritava mais uma série de instruções. – Olha, tenho que ir. Por que não conversamos mais hoje à noite?

– Seria ótimo.

– Amo você – ela disse antes de desligar.

Jack colocou o receptor no gancho e ficou olhando o telefone. Aquela tinha sido uma típica conversa entre eles. Fácil, afetuosa.

Plácida.

Ele se voltou para a janela e ficou vendo Callie e Arthur brincar.

Nada era fácil com Callie. Ele precisava se esforçar para merecer os sorrisos, as risadas, o respeito dela. Mas quando ela dava um daqueles sorrisos raros e largos, ele sentia que tinha sido abençoado.

Assim que terminou a bebida, Jack voltou para o bar.

É errado ele pensou. Completamente errado. Ele não deveria pensar em outra mulher e em como Blair parecia enfadonha em comparação.

Com o copo cheio outra vez, foi até a janela e viu Callie pegar o galho e jogá-lo na direção da casa. Enquanto Arthur corria pela grama, ela avistou Jack na janela e congelou. Ele levantou uma mão.

Ela acenou de volta e saiu do seu campo de visão.

Com um esforço consciente, Jack tentou pensar em todas as coisas de que gostava em Blair: o formato de seus olhos, o modo como se vestia, seu senso de estilo. Ouviu a inflexão rítmica de sua voz e o ceceio leve que marcava seus esses.

Ele não se lembrava de eles jamais terem erguido a voz um com o outro, e considerando toda a tensão em sua casa e o conflito em sua vida profissional, aquela calma fora uma mudança bem-vinda. Com Blair, tudo sempre correra tranquilamente. Suave como uma pluma.

E talvez um pouco monótono.

– Jackson – a mãe disse da porta.

Ele se virou. Ela estava usando sua marta e segurava luvas de couro finas.

– Vou sair esta noite. Thomas preparou um bufê pra você.

– Tenho certeza de que Callie e eu vamos gostar – ele disse, mexendo o bourbon.

Os lábios da mãe se estreitaram.

– Mandei que Elsie enviasse os convites para a festa de Natal hoje. Usei a lista de sempre.

Ele assentiu, mesmo que não se importasse – e que ela soubesse disso.

– Sabe, gostaria muito que você se interessasse mais por essas coisas – ela disse, enfiando uma das luvas. – Seu pai era extremamente útil. Com os convidados, a escolha do bufê. Era um mestre nessas coisas.

Jack lhe atirou um sorriso seco.

– Então não basta pagar pela festa?

Os olhos dela se ergueram das luvas.

– Realmente, Jackson, isso foi desnecessário.

– Desculpe – ele esfregou o nariz e se afundou na cadeira. – Foi um longo dia.

Ele a ouviu entrar no escritório, seus saltos batendo no chão de mármore até serem silenciados pelo tapete atrás da mesa. Quando sentiu uma mão no ombro, Jack ergueu o olhar.

– Sabe, Jack, aprecio como você trabalhou duro – os olhos dela ficaram tão gentis quanto era possível. – Seu pai pode ter sido cego a tudo o que você fez pela família, mas ele nunca soube o que era não ter dinheiro. Eu, por outro lado, nunca esqueci.

Então ela de fato se lembrava. Sua mãe, a ilusionista impassível, mantivera em si um pouco do passado.

Jack colocou a mão sobre a dela. O vínculo de trabalho, de engenhosidade, da vontade de ultrapassar os limites – porque estavam lá para ser ultrapassados – eram coisas que eles sempre compartilhariam. Sua garra e ambição foram heranças da mãe, e certamente tinham se provado mais lucrativos do que o testamento que o pai lhe deixara.

Na porta, Elsie limpou a garganta.

– Desculpem o incômodo, mas vou pra casa agora. A não ser que precisem de mais alguma coisa.

Mercedes puxou a mão de volta. Antes de se virar, seu rosto retomou a máscara elegante que ela mostrava ao mundo.

– Não, estamos bem. Tenha uma boa noite.

Elsie fez uma reverência curta e saiu.

A sra. Walker atravessou o chão de mármore outra vez.

– Aliás, você não vai acreditar com quem vou jantar – ela disse enquanto ia até a porta. – Com o senador McBride.

Mercedes acenou com uma mão enluvada e desapareceu no corredor.

Jack desejou que a mãe fosse jantar com qualquer outra pessoa na cidade. Jim McBride estava na curta lista de pessoas que seriam convidadas para fazer parte do comitê exploratório. O convite deveria ter sido enviado em algum momento naquela semana.

O que significava que, se sua mãe fizesse as perguntas certas, descobriria que Jack pensava em se candidatar nas próximas eleições.

Ela não ficaria totalmente surpresa. Jack suspeitava que ela adivinhara que ele queria experimentar a política. Ele vinha deliberadamente cultivando relações na Assembleia Legislativa de Massachusetts nos últimos anos e tinha dado muitos jantares com vereadores e lobistas importantes em Buona Fortuna. Mas não era o mesmo que saber os planos com certeza.

Para poder declarar suas intenções de modo estratégico, ele e Gray precisavam primeiro avaliar suas chances de ser nomeado e, depois, as chances de ganhar. O comitê exploratório seria responsável por classificá-lo entre a competição e devia realizar o trabalho em segredo.

O trabalho de base da sua candidatura precisava ser estabelecido em silêncio, um conceito sobre o qual sua mãe sabia pouco, senão nada. Jack só pretendia contar a ela sobre a candidatura logo antes de anunciá-la publicamente, e torceu com todas as forças para que McBride não revelasse nada, se é que soubesse de algo.

Depois que ouviu a porta da entrada fechar, ele pegou o telefone e ligou para Gray. Quando desligou, foi procurar Callie, sentindo-se aliviado e satisfeito consigo mesmo.

McBride ainda não recebera o convite, então não sabia de nada. E Gray estava mais do que disposto a conhecer uma ruiva atraente.

 

 

CONTINUA