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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INFERNO / Dan Brown
INFERNO / Dan Brown

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INFERNO

Primeira Parte

 

Eu sou a Sombra.

       Pela cidade atormentada, eu fujo.

       Pela eterna desolação, corro para escapar.

       Pelas margens do rio Arno, sigo desabalado, ofegante... Viro à esquerda na Via dei Castellani e sigo em direção ao norte, abrigando-me nas sombras da Galleria degli Uffizi.

       Mesmo assim eles continuam a me perseguir.

       Então, à medida que me caçam com uma determinação implacável, o som de seus passos vai ficando cada vez mais alto.

       Há anos sou perseguido por eles. Sua persistência me manteve na clandestinidade e forçou-me a viver no Purgatório, agindo embaixo da terra qual um monstro ctônico.

       Eu sou a Sombra.

       Aqui, na superfície, ergo o olhar para o norte, mas não consigo encontrar um caminho direto para a salvação, pois os montes Apeninos bloqueiam os primeiros raios de sol da alvorada.

       Passo atrás do palazzo, com sua torre ornada de ameias e seu relógio de um ponteiro só... Em zigue-zague, avanço por entre os comerciantes madrugadores na Piazza di San Firenze. Quando falam com suas vozes roucas, sinto seu hálito, que recende a lampredotto e azeitonas assadas. Atravessando em frente ao Bargello, dobro novamente à esquerda em direção à torre da Badia e me jogo com força contra o portão de ferro ao pé da escada.

       Aqui, toda e qualquer hesitação deve ser abandonada.

       Giro a maçaneta e entro no corredor. Sei que não haverá volta. Instigo minhas pernas pesadas como chumbo a galgarem a escadaria estreita, com seus degraus de mármore esburacados e gastos subindo em espiral rumo ao céu.

       As vozes ecoam lá de baixo. Suplicantes.

       Eles estão atrás de mim, irredutíveis, cada vez mais perto.

       Não entendem o que está por vir... tampouco o que fiz por eles!

       Terra ingrata!

       Enquanto subo, as visões me vêm com toda a força... os corpos libidinosos se contorcendo sob a chuva de fogo, as almas dos glutões flutuando em excremento, os traidores infames congelados nas garras gélidas de Satanás.

       Venço os últimos degraus e chego ao topo cambaleando, à beira da morte; saio para o ar úmido da manhã. Corro até o muro que se ergue à altura da minha cabeça e espio pelas frestas. Lá embaixo estende-se a cidade abençoada que tornei meu santuário contra aqueles que me exilaram.

       As vozes me chamam, aproximando-se por trás.

       – O que você fez é uma loucura!

       Loucura gera loucura.

       – Pelo amor de Deus – gritam eles –, diga-nos onde a escondeu!

       É exatamente pelo amor de Deus que não direi.

       Aqui estou, encurralado, as costas contra a pedra fria. Eles olham no fundo dos meus olhos verdes e límpidos, e seus rostos ficam carregados: sua expressão, antes persuasiva, agora é ameaçadora.

       – Você sabe que temos nossos métodos. Podemos forçá-lo a nos contar onde está.

       Por isso subi metade do caminho até o Céu.

       Sem aviso, eu me viro e ergo os braços, agarrando o parapeito alto com os dedos, içando meu corpo, ajoelhando-me às pressas em cima do muro. Depois me ponho de pé... oscilo à beira do precipício. Seja o meu guia, caro Virgílio, enquanto atravesso o vazio.

       Eles disparam à frente, incrédulos, querendo agarrar meus pés, mas temendo que eu perca o equilíbrio e caia. Com um desespero contido, começam a implorar, mas eu já lhes dei as costas. Sei o que devo fazer.

       Lá embaixo, a uma distância vertiginosa, telhas vermelhas se espalham como um mar de fogo pelo campo... iluminando a bela terra um dia povoada por gigantes... Giotto, Donatello, Brunelleschi, Michelangelo, Botticelli.

       Aproximo os dedos dos pés da beirada.

       – Desça! – gritam eles. – Ainda há tempo!

       Ó, ignorantes obstinados! Por acaso não conseguem ver o futuro? Não conseguem entender o esplendor da minha criação? Como ela é necessária?

       É com prazer que faço este derradeiro sacrifício... e com ele extinguirei suas últimas esperanças de encontrar o que buscam.

       Vocês jamais conseguirão localizá-la a tempo.

       Centenas de metros lá embaixo, a piazza de paralelepípedos me chama como um oásis de serenidade. Como eu gostaria de ter mais tempo... Porém esse é o único bem que nem mesmo minha enorme fortuna pode comprar.

       Nestes últimos segundos, baixo os olhos em direção à piazza e vislumbro algo que me deixa perplexo.

       Vejo o seu rosto.

       Em meio às sombras, você tem os olhos erguidos para mim. Estão pesarosos, mas neles também percebo reverência pelo que fui capaz de fazer. Você entende que não tenho escolha. Por amor à humanidade, devo proteger minha obra-prima.

       Neste exato momento, ela cresce... à espera... fervilhando sob as águas rubras de sangue da lagoa que não reflete as estrelas.

       Então tiro meus olhos dos seus e contemplo o horizonte. Muito acima deste mundo oprimido, faço minha última súplica.

       Queridíssimo Deus, rogo-lhe que o mundo se lembre do meu nome não como um pecador monstruoso, mas como o salvador glorioso que o Senhor sabe que na verdade sou. Rogo que a humanidade entenda o presente que deixo.

       Meu presente é o futuro.

       Meu presente é a salvação.

       Meu presente é o Inferno.

       Com essas palavras, sussurro amém... e dou o último passo para mergulhar no abismo.

 

 

       As lembranças se materializaram lentamente, como bolhas vindo à tona da escuridão de um poço sem fundo.

       Uma mulher com o rosto coberto por um véu.

       Robert Langdon olhava para ela do outro lado de um rio cujas águas agitadas corriam vermelhas, tingidas de sangue. De frente para ele, na margem oposta, a mulher o encarava, imóvel, solene. Trazia na mão uma faixa azul, uma tainia, que ergueu em homenagem ao mar de cadáveres aos seus pés. O cheiro da morte pairava por toda parte.

       Busca, sussurrou a mulher. E encontrarás.

       Langdon ouviu as palavras como se ela as tivesse pronunciado dentro de sua cabeça. Quem é você?, perguntou ele, sem que sua voz produzisse som algum.

       O tempo está se esgotando, murmurou ela. Busca e encontrarás.

       Langdon deu um passo à frente, em direção ao rio, mas então viu que as águas, além de ensanguentadas, eram profundas demais para que ele as atravessasse. Quando tornou a erguer os olhos para a mulher de véu, os corpos aos seus pés tinham se multiplicado. Eram agora centenas, milhares talvez, alguns ainda vivos, contorcendo-se de agonia, padecendo mortes inimagináveis... consumidos pelo fogo, enterrados em fezes, devorando uns aos outros. Podia ouvir os lamentos humanos ecoando acima da água.

       A mulher se moveu em sua direção com as mãos esguias estendidas, como quem pede ajuda.

       Quem é você?!, gritou Langdon dessa vez.

       Em resposta, a mulher levou a mão ao rosto e ergueu lentamente o véu. Sua beleza era arrebatadora, porém ela era mais velha do que Langdon imaginara: 60 e poucos anos talvez, altiva e forte, como uma estátua atemporal. Tinha um maxilar anguloso, de aspecto severo, olhos penetrantes e intensos e longos cabelos prateados, cujos cachos lhe caíam em cascata sobre os ombros. Um amuleto de lápis-lazúli pendia de seu pescoço – uma serpente solitária enroscada em um bastão.

       Langdon teve a sensação de que a conhecia, de que confiava nela. Mas como? Por quê?

       Ela então apontou para duas pernas que brotavam da terra, se contorcendo. Aparentemente eram de alguma pobre alma enterrada até a cintura, de cabeça para baixo. Uma letra solitária escrita com lama se destacava na coxa pálida do homem: R.

       R?, pensou Langdon, intrigado. R de... Robert?

       – Será que esse... sou eu?

       O rosto da mulher nada revelava. Busca e encontrarás, repetiu ela.

       Subitamente, ela começou a irradiar uma luz branca... cada vez mais forte. Todo o seu corpo passou a vibrar com intensidade e, então, com um estrondo repentino, ela explodiu em mil faíscas.

       Langdon acordou sobressaltado, aos gritos.

       Estava sozinho no quarto iluminado. O cheiro pungente de álcool hospitalar pairava no ar. Ali perto bipes de máquina soavam em discreta sintonia com o ritmo de seu coração. Tentou mover o braço direito, mas uma dor lancinante o impediu. Olhou para baixo e viu que um cateter intravenoso repuxava a pele de seu antebraço.

       Sua pulsação se acelerou e as máquinas acompanharam o ritmo, passando a emitir bipes mais rápidos.

       Onde estou? O que aconteceu?

       A nuca de Langdon latejava, uma dor torturante. Com cautela, ele ergueu o braço livre e tocou o couro cabeludo, tentando localizar a origem da dor de cabeça. Sob os cabelos emaranhados, encontrou as extremidades duras de uns dez pontos incrustados de sangue seco.

       Fechou os olhos e tentou se lembrar de algum acidente.

       Nada. Branco total.

       Pense.

       Apenas escuridão.

       Um homem com roupa cirúrgica entrou apressado, aparentemente alertado pela aceleração dos bipes do monitor cardíaco de Langdon. Tinha barba desgrenhada, bigode cerrado e olhos bondosos que transmitiam uma calma atenciosa por baixo das sobrancelhas revoltas.

       – O que... o que houve? – Langdon conseguiu perguntar. – Eu sofri algum acidente?

       O barbudo levou um dedo aos lábios e tornou a sair às pressas para chamar alguém no corredor.

       Langdon virou a cabeça, mas o movimento fez uma pontada de dor atravessar seu crânio. Respirou fundo várias vezes e esperou a dor passar. Então, com cuidado e de forma metódica, examinou o ambiente estéril ao seu redor.

       O quarto de hospital continha uma cama só. Não havia flores. Não havia cartões. Viu as próprias roupas em cima de um balcão próximo ao leito, dobradas dentro de um saco plástico transparente. Estavam cobertas de sangue.

       Meu Deus. Deve ter sido grave.

       Langdon girou a cabeça bem devagar em direção à janela ao lado da cama. Estava escuro lá fora. Era noite. A única coisa que ele conseguia ver no vidro era o próprio reflexo: um desconhecido pálido, exausto e abatido, ligado a tubos e fios, cercado por equipamentos hospitalares.

       Ouviu vozes se aproximando pelo corredor e tornou a olhar para o quarto. O médico voltou, dessa vez acompanhado por uma mulher.

       Ela parecia ter 30 e poucos anos. Usava roupa cirúrgica azul e tinha os cabelos louros presos em um rabo de cavalo grosso que balançava ao ritmo de seus passos.

       – Sou a Dra. Sienna Brooks – apresentou-se, abrindo um sorriso para Langdon ao entrar. – Vou trabalhar com o Dr. Marconi hoje à noite.

       Langdon assentiu com um débil meneio de cabeça.

       Alta e graciosa, a Dra. Brooks se movia com a desenvoltura assertiva de uma atleta. Mesmo com aquela roupa folgada, conservava uma elegância esguia. Por mais que Langdon não percebesse nenhum traço de maquiagem, sua pele tinha uma suavidade incomum, a única mácula era uma pinta minúscula logo acima dos lábios. Os olhos, de um tom castanho suave, pareciam estranhamente penetrantes, como se houvessem testemunhado experiências de rara profundidade para alguém tão jovem.

       – O Dr. Marconi não fala inglês muito bem, então me pediu que preenchesse sua ficha de admissão – disse ela, sentando-se ao seu lado. Voltou a sorrir.

       – Obrigado.

       – Certo – começou ela, assumindo um tom de voz sério. – Qual é o seu nome?

       Ele precisou de alguns instantes.

       – Robert... Langdon.

       Ela apontou uma lanterninha para seus olhos.

       – Profissão?

       Ele respondeu ainda mais devagar:

       – Professor universitário. História da Arte... e Simbologia. Em Harvard.

       A Dra. Brooks baixou a lanterna, mostrando-se surpresa. O médico de sobrancelhas revoltas pareceu igualmente espantado.

       – O senhor é americano?

       Langdon a encarou com um olhar intrigado.

       – É só que... – Ela hesitou. – O senhor não tinha documento nenhum quando chegou. Como estava de paletó Harris Tweed e sapatos sociais, imaginamos que fosse britânico.

       – Eu sou americano – assegurou-lhe Langdon, exausto demais para explicar sua preferência por alfaiataria de qualidade.

       – Está sentindo alguma dor?

       – Na cabeça – respondeu Langdon, o latejar em seu crânio agravado pelo brilho forte da lanterna. Felizmente, a médica a guardou no bolso e pegou seu pulso, para medir os batimentos.

       – O senhor acordou gritando – falou. – Consegue se lembrar por quê?

       Langdon voltou a ter um lampejo da estranha visão da mulher de véu, cercada de corpos em agonia. Busca e encontrarás.

       – Tive um pesadelo.

       – Sobre o quê?

       Langdon lhe contou.

       A Dra. Brooks manteve uma expressão neutra enquanto fazia anotações numa prancheta.

       – Alguma ideia do que possa ter provocado uma visão tão apavorante?

       Langdon vasculhou a memória e então balançou a cabeça, que latejou em protesto.

       – Muito bem, Sr. Langdon – disse ela, sem parar de escrever –, agora vou fazer algumas perguntas de rotina. Que dia da semana é hoje?

       Langdon pensou por alguns instantes.

       – Sábado. Eu me lembro de estar andando pelo campus hoje mais cedo... de participar de um congresso à tarde e depois... acho que essa é a última coisa de que me lembro. Eu levei um tombo?

       – Já vamos falar sobre isso. O senhor sabe onde está?

       Langdon deu seu melhor palpite:

       – No Hospital Geral de Massachusetts?

       A Dra. Brooks fez outra anotação.

       – Existe alguém para quem devamos telefonar avisando? Mulher? Filhos?

       – Ninguém – respondeu Langdon sem precisar pensar.

       Sempre gostara da solidão e da independência que sua vida de solteiro lhe proporcionava, embora precisasse admitir que, nas condições em que se encontrava, preferiria ter um rosto conhecido ao seu lado.

       – Eu poderia telefonar para alguns colegas, mas não vejo necessidade.

       Quando a Dra. Brooks terminou de verificar o pulso de Langdon, o médico mais velho se aproximou. Alisando as sobrancelhas revoltas, sacou um pequeno gravador do bolso e o mostrou à colega. Ela assentiu, indicando que entendera, e voltou a encarar o paciente.

       – Sr. Langdon, quando chegou hoje mais cedo, o senhor estava murmurando repetidamente uma coisa.

       Ela lançou um olhar ao Dr. Marconi, que ergueu o gravador digital e apertou um botão.

       Uma gravação começou a tocar e Langdon ouviu a própria voz grogue balbuciar repetidas vezes a mesma frase: “Ve... sorry. Ve... sorry.”

       – Me parece – continuou a doutora – que o senhor estava dizendo “Very sorry. Very sorry”.

       Langdon concordou, embora não se lembrasse de nada daquilo.

       A Dra. Brooks o fitou com um olhar tão intenso que chegava a ser perturbador.

       – Tem alguma ideia de por que diria isso? O que o senhor lamenta tanto?

       Enquanto se esforçava para tentar lembrar, Langdon tornou a ver a mulher de rosto velado parada à margem de um rio vermelho-sangue, cercada de corpos. Sentiu outra vez o fedor da morte.

       Foi invadido pela sensação repentina, instintiva, de que estava correndo perigo... não só ele como todos os demais. Os bipes do monitor cardíaco se aceleraram na mesma hora. Seus músculos se retesaram e ele tentou se sentar.

       A Dra. Brooks se apressou em pousar a mão com firmeza sobre seu peito, forçando-o a permanecer deitado. Então lançou um olhar rápido para o médico barbudo, que foi até um dos cantos do quarto e começou a preparar alguma coisa.

       Em pé ao lado de Langdon, a doutora voltou a falar com um sussurro:

       – Sr. Langdon, ansiedade é uma reação comum a traumatismos cranianos, mas o senhor precisa manter sua pulsação baixa. Não deve se mexer nem se agitar, apenas fique deitado e descanse. Vai ficar tudo bem. Aos poucos, vai recuperar a memória.

       O outro médico voltou com uma seringa, que entregou à Dra. Brooks. Ela injetou o conteúdo no acesso intravenoso de Langdon.

       – É só um sedativo leve para acalmá-lo – explicou – e para aliviar a dor. – Ela se levantou para ir embora. – Vai ficar tudo bem, Sr. Langdon. Agora durma. Se precisar de alguma coisa, aperte o botão ao lado da cama.

       Ela apagou a luz e se retirou junto com o médico barbudo.

       No escuro, Langdon sentiu o efeito quase imediato da medicação em seu organismo, arrastando-o de volta para as profundezas do poço do qual havia emergido. Combateu a sensação, forçando os olhos a permanecerem abertos na escuridão do quarto. Tentou se sentar, mas seu corpo parecia feito de concreto.

       Ao mudar de posição na cama, Langdon se viu outra vez de frente para a janela. As luzes estavam apagadas e, no vidro escuro, seu próprio reflexo havia desaparecido, substituído por um horizonte distante e iluminado.

       Em meio às silhuetas de torres e domos, uma fachada em especial se destacava em seu campo de visão. A construção era uma imponente fortaleza de pedra, com ameias no parapeito e uma torre de mais de 90 metros, que ficava mais larga perto do topo projetado para fora, também com ameias munidas de balestreiros.

       Langdon se sentou na cama com as costas eretas, fazendo com que a cabeça quase explodisse de dor. Lutou contra o latejar violento e fixou o olhar na torre.

       Conhecia bem aquela estrutura medieval.

       Era única no mundo.

       Infelizmente, porém, ficava a quase 6.500 quilômetros de Massachusetts.

        

       Do lado de fora, escondida nas sombras da Via Torregalli, uma mulher robusta desceu com agilidade de uma moto BMW e avançou com o andar decidido de uma pantera que persegue a presa. Tinha um olhar feroz. Os cabelos curtos e espetados se destacavam contra a gola levantada do macacão preto de couro. Ela verificou a arma equipada com silenciador que trazia nas mãos e ergueu os olhos para a janela do quarto de Robert Langdon, onde a luz acabara de se apagar.

       Mais cedo naquela noite, sua missão original dera terrivelmente errado.

       O arrulho de uma simples pomba havia mudado tudo.

       Agora ela estava lá para consertar o estrago.

 

       Estou em Florença?

       A cabeça de Robert Langdon latejava. Agora estava sentado na cama do hospital, com as costas eretas, apertando sem parar o botão para chamar ajuda. Apesar dos sedativos em seu organismo, tinha o coração acelerado.

       A Dra. Books voltou às pressas ao quarto, seu rabo de cavalo balançando.

       – Você está bem?

       Langdon fez que não com a cabeça, atordoado.

       – Eu estou... na Itália?

       – Que bom – disse ela. – O senhor está se lembrando.

       – Não! – Langdon apontou pela janela o edifício monumental que se erguia ao longe. – Reconheci o Palazzo Vecchio.

       A Dra. Brooks tornou a acender as luzes, fazendo desaparecer o horizonte de Florença. Foi até o lado da cama, sussurrando com uma voz tranquila:

       – Sr. Langdon, não precisa se preocupar. O senhor está sofrendo de uma leve amnésia, mas o Dr. Marconi já confirmou que não há nada de errado com as suas funções cerebrais.

       O médico barbudo também entrou correndo, aparentemente por ter ouvido a campainha. Conferiu o monitor cardíaco de Langdon enquanto a jovem médica falava com ele em um italiano rápido e fluente – algo sobre como Langdon tinha ficado agitato ao descobrir que estava na Itália.

       Agitado?, pensou Langdon, furioso. Eu diria estupefato! A adrenalina que inundava seu organismo agora travava uma guerra contra os sedativos.

       – O que houve comigo? – exigiu saber. – Que dia é hoje?

       – Está tudo bem – respondeu ela. – É madrugada de segunda-feira, dia 18 de março.

       Segunda-feira. Langdon forçou seu cérebro dolorido a retornar às últimas imagens de que conseguia se lembrar – fazia frio e estava escuro, ele andava sozinho pelo campus de Harvard no sábado à noite rumo a um congresso. Isso foi há dois dias? Um pânico ainda maior o dominou ao tentar se lembrar de qualquer coisa que tivesse acontecido durante o congresso ou depois dele. Nada. Os bipes do monitor cardíaco se aceleraram.

       O médico mais velho coçou a barba e continuou a ajustar os equipamentos enquanto a Dra. Brooks se sentava outra vez ao lado de Langdon.

       – O senhor vai ficar bem – disse ela, tranquilizando-o com seu tom de voz suave. – Foi diagnosticada perda de memória recente, o que é muito comum em casos de traumatismo craniano. Pode não se lembrar dos últimos dias, ou talvez suas lembranças estejam confusas, mas o senhor não deve ficar com nenhuma sequela permanente. – Ela se deteve. – Consegue se lembrar do meu primeiro nome? Eu lhe disse assim que cheguei.

       Langdon pensou por alguns instantes.

       – Sienna. – Dra. Sienna Brooks.

       Ela sorriu.

       – Está vendo? Já está criando novas lembranças.

       A dor na cabeça de Langdon era quase insuportável e seu campo visual próximo continuava embaçado.

       – O que... o que aconteceu? Como cheguei aqui?

       – É melhor o senhor descansar, depois talvez...

       – Como cheguei aqui?! – ele exigiu saber, fazendo os bipes do monitor cardíaco se acelerarem ainda mais.

       – Está bem, respire devagar – orientou a Dra. Brooks, trocando olhares nervosos com o colega. – Vou lhe contar. – Sua voz ficou claramente mais séria. – Há três horas o senhor entrou cambaleando no pronto-socorro, com um ferimento na cabeça, sangrando, e desabou no chão logo em seguida. Ninguém fazia a menor ideia de quem era ou de como tinha chegado aqui. Estava balbuciando alguma coisa em inglês, então o Dr. Marconi pediu minha ajuda. Sou do Reino Unido, mas estou trabalhando aqui por um tempo.

       Langdon teve a sensação de que havia acordado dentro de um quadro de Max Ernst. O que será que estou fazendo na Itália? Costumava visitar o país a cada dois anos, no mês de junho, para uma conferência de arte, mas agora era março.

       Os sedativos começaram a fazer mais efeito e parecia que a gravidade da Terra estava ficando mais forte a cada segundo, tentando arrastá-lo para baixo através do colchão. Langdon resistiu, erguendo a cabeça e tentando permanecer alerta.

       A Dra. Brooks se debruçou sobre ele, pairando como um anjo.

       – Por favor, Sr. Langdon – sussurrou. – O traumatismo craniano é delicado durante as primeiras 24 horas. O senhor precisa descansar ou pode causar danos graves.

       Uma voz crepitou de repente no interfone do quarto.

       – Dr. Marconi?

       – Sì? – respondeu o barbudo, apertando um botão na parede.

       A voz no interfone falou rápido, em italiano. Langdon não entendeu o que foi dito, mas notou que os dois médicos trocaram olhares de surpresa. Ou seria de temor?

       – Un minuto – disse Marconi, encerrando a conversa.

       – O que está havendo? – perguntou Langdon.

       Os olhos da Dra. Brooks pareceram se estreitar um pouco.

       – Era a recepcionista da UTI. O senhor tem uma visita.

       Um raio de esperança atravessou o estupor de Langdon.

       – Que boa notícia! Talvez essa pessoa saiba o que aconteceu comigo.

       A doutora pareceu receosa.

       – Só acho estranho alguém ter aparecido. Não sabíamos o seu nome e o senhor ainda não está registrado no sistema.

       Langdon lutou contra os sedativos e se empertigou na cama, desajeitado.

       – Se alguém sabe que estou aqui, deve saber o que aconteceu!

       A Dra. Brooks olhou para o Dr. Marconi, que balançou a cabeça e apontou seu relógio de pulso. Ela voltou a encarar Langdon.

       – Isto aqui é uma UTI – explicou. – Ninguém pode entrar antes das nove da manhã. O Dr. Marconi vai lá fora descobrir quem é essa tal visita e o que quer.

       – Mas e o que eu quero? – protestou Langdon.

       A Dra. Brooks abriu um sorriso paciente, inclinou-se mais para perto dele e disse em voz baixa:

       – Sr. Langdon, existem algumas coisas sobre a noite passada que o senhor não sabe... sobre o que lhe aconteceu. E, antes de falar com quem quer que seja, acho justo que esteja a par de todos os fatos. Infelizmente, ainda não está forte o suficiente para...

       – Que fatos?! – Langdon exigiu saber, esforçando-se para se erguer mais na cama. Sentiu uma fisgada no braço onde estava o acesso intravenoso e seu corpo pareceu pesar centenas de quilos. – Tudo que sei é que estou num hospital em Florença e que cheguei repetindo as palavras “very sorry...”

       Foi então que um pensamento aterrador lhe ocorreu.

       – Eu causei algum acidente de trânsito? – perguntou. – Machuquei alguém?

       – Não, não – respondeu ela. – Acho que não.

       – Então o que foi? – insistiu Langdon, fitando os dois médicos com um olhar furioso. – Tenho o direito de saber o que está acontecendo!

       Após um longo silêncio, o Dr. Marconi enfim assentiu com relutância para sua jovem e atraente colega. A Dra. Brooks suspirou e se aproximou da cama.

       – Está bem, vou lhe contar o que sei... e o senhor vai ouvir com calma, combinado?

       Langdon concordou com a cabeça e o movimento fez uma onda de dor atravessar seu crânio. Ele a ignorou, ansioso por respostas.

       – Para começar... o ferimento em sua cabeça não foi causado por um acidente.

       – Bem, isso é um alívio.

       – Não exatamente. Seu ferimento, na verdade, foi causado por um tiro.

       Os bipes no monitor cardíaco de Langdon se aceleraram mais uma vez.

       – Como é que é?!

       A Dra. Brooks falava com firmeza, mas depressa:

       – Uma bala atingiu de raspão a parte de trás da sua cabeça e provavelmente causou uma concussão. O senhor tem muita sorte de estar vivo. Poucos centímetros mais abaixo e... – Ela balançou a cabeça.

       Langdon a encarou, incrédulo. Eu levei um tiro?

       Vozes irritadas irromperam do corredor quando começou um bate-boca. Parecia que a tal pessoa que fora visitar Langdon não queria esperar. Logo em seguida, ele ouviu uma porta pesada na extremidade oposta do corredor se abrir com um estrondo. Ficou observando até ver um vulto se aproximar.

       A mulher estava vestida de couro preto dos pés à cabeça. Tinha um corpo forte, bem-torneado, e cabelos negros espetados. Movia-se sem esforço algum, como se seus pés não tocassem o chão, e vinha direto para o quarto de Langdon.

       Sem hesitar, o Dr. Marconi se postou no vão da porta para bloquear a passagem da visitante.

       – Ferma! – ordenou ele, estendendo a palma da mão como um policial.

       Sem diminuir o ritmo, a estranha sacou uma arma equipada com silenciador. Mirou diretamente o peito do Dr. Marconi e atirou.

       Ouviu-se um sibilo curto.

       Horrorizado, Langdon viu o Dr. Marconi cambalear de costas para dentro do quarto e cair no chão com as mãos no peito, o jaleco branco empapado de sangue.

 

 

       A 8 quilômetros da costa italiana, o iate de luxo de 229 pés de comprimento chamado Mendacium singrava a névoa pré-matinal que se erguia das ondas suaves do mar Adriático. Seu casco equipado com tecnologia antirradar era pintado de cinza-chumbo, o que lhe conferia a aura claramente hostil de uma embarcação militar.

       Avaliado em mais de 300 milhões de dólares, o iate contava com todos os confortos de praxe: spa, piscina, cinema, submarino particular e heliporto. No entanto, os luxos da embarcação pouco interessavam ao proprietário, que a comprara cinco anos antes e, sem pestanejar, havia dilapidado a maior parte desses espaços para instalar um centro de comando informatizado de nível militar, protegido por uma blindagem de chumbo.

       Servida por três links dedicados via satélite e por uma densa rede de estações de transmissão terrestres, a sala de controle do Mendacium abrigava uma equipe de uns vinte funcionários – técnicos, analistas, coordenadores operacionais –, que viviam embarcados e mantinham contato constante com os vários centros de operações da organização baseados em terra.

       A segurança interna do iate incluía uma pequena unidade de soldados com treinamento militar, dois sistemas de detecção de mísseis e um arsenal que contava com os mais modernos armamentos. Somando as equipes de apoio – cozinha, limpeza e manutenção –, havia mais de quarenta pessoas a bordo. O Mendacium era, para todos os efeitos, o prédio comercial portátil a partir do qual o proprietário comandava seu império.

       Conhecido por seus empregados apenas como “o diretor”, ele era um homem pequeno, atarracado, de pele bronzeada e olhos fundos. Seu físico nada imponente e sua franqueza pareciam combinar com alguém que havia acumulado uma grande fortuna oferecendo uma enorme gama de serviços secretos às margens obscuras da sociedade.

       Ele já havia sido chamado de várias coisas – mercenário desalmado, facilitador do pecado, agente do diabo –, mas não era nada disso. O diretor apenas dava a seus clientes a oportunidade de perseguir, sem consequências, seus desejos e suas ambições; o fato de a humanidade ser pecaminosa por natureza não era problema dele.

       Apesar dos detratores com suas objeções éticas, a bússola moral do diretor era uma estrela fixa, inabalável. Ele havia erguido sua reputação – e a do próprio Consórcio – com base em duas regras de ouro:

       Nunca fazer promessas que não possa cumprir.

       E nunca mentir para um cliente.

       Jamais.

       Ao longo de sua carreira, o diretor nunca havia quebrado uma promessa nem descumprido um acordo. Sua palavra era inquebrantável – uma garantia absoluta – e, embora ele sem dúvida se arrependesse de ter firmado certos contratos, infringi-los sempre estivera fora de cogitação.

       Nessa manhã, ao chegar à sacada de sua cabine particular no iate, o diretor olhou o mar revolto e tentou afastar a inquietação que havia se instalado dentro dele.

       As decisões do passado são os arquitetos do presente.

       Graças às decisões que havia tomado antes, o diretor estava em posição de enfrentar praticamente qualquer situação adversa e sempre sair vitorioso. Nesse dia, porém, enquanto olhava as luzes distantes da Itália, sentia uma estranha aflição.

       Um ano antes, naquele mesmo iate, ele tomara uma decisão cujos desdobramentos agora ameaçavam destruir tudo o que havia construído. Aceitei prestar serviços para o homem errado. O diretor não tinha como saber na época, mas esse erro havia provocado uma tempestade de contratempos imprevistos, obrigando-o a despachar alguns de seus melhores agentes de campo com ordens de fazer “tudo o que fosse necessário” para evitar que sua embarcação, que já adernava, naufragasse de vez.

       Nesse exato instante o diretor estava aguardando notícias de uma agente de campo em particular.

       Vayentha, pensou, visualizando a forte especialista de cabelos espetados. Vayentha, cujos serviços tinham sido perfeitos até aquela missão, cometera um erro de consequências terríveis na noite anterior. As últimas seis horas tinham sido uma confusão, uma tentativa desesperada de retomar o controle da situação.

       Vayentha alegou que seu erro tinha sido consequência de uma simples falta de sorte – o arrulho inoportuno de uma pomba.

       O diretor, no entanto, não acreditava em sorte. Tudo o que fazia era orquestrado de modo a erradicar a incerteza e impossibilitar o acaso. Controle era a sua especialidade – prever cada possibilidade, antecipar qualquer reação e moldar a realidade a fim de alcançar o resultado desejado. Ele tinha um histórico impecável de sucessos e confidencialidade que lhe garantia uma clientela impressionante: bilionários, políticos, xeques e até governos inteiros.

       A leste, os primeiros raios fracos da alvorada já começavam a consumir as estrelas mais baixas no horizonte. Parado no convés, o diretor aguardava pacientemente Vayentha entrar em contato com a notícia de que a sua missão correra conforme o planejado.

 

       Por alguns instantes, Langdon teve a sensação de que o tempo havia parado.

       O Dr. Marconi jazia imóvel no chão, com sangue jorrando de seu peito. Lutando contra os sedativos em seu organismo, Langdon ergueu os olhos para a assassina de cabelos espetados, que ainda atravessava o corredor, avançando pelos últimos metros que a separavam da porta aberta de seu quarto. Ao se aproximar do vão, ela lançou um olhar para Langdon e, no mesmo instante, apontou a arma para ele... mirando sua cabeça.

       Vou morrer, pensou Langdon. Aqui e agora.

       Houve um estrondo ensurdecedor no pequeno quarto do hospital.

       Langdon se encolheu, certo de que tinha levado um tiro, mas o barulho não viera da arma. O estrondo, na verdade, fora causado pelo baque da pesada porta de metal quando a Dra. Brooks se jogou contra ela e girou o trinco para fechá-la.

       Com os olhos arregalados de medo, a Dra. Brooks se virou imediatamente, agachando-se ao lado de seu colega ensanguentado, tentando encontrar sua pulsação. O Dr. Marconi tossiu um bocado de sangue, que escorreu por sua barba espessa. Então seu corpo ficou mole.

       – Enrico, no! Ti prego! – gritou a médica.

       Uma série de disparos explodia do lado de fora da porta de metal. Gritos alarmados inundavam o corredor.

       De alguma forma, Langdon conseguiu se mover, o pânico e o instinto enfim vencendo os sedativos. Enquanto saía desajeitadamente da cama, sentiu o antebraço direito queimar. Por um instante chegou a pensar que uma bala tivesse atravessado a porta e o atingido, mas quando olhou para baixo percebeu que o acesso intravenoso havia se soltado. O cateter de plástico despontava de um buraco de bordas irregulares em sua pele e o sangue quente escorria do tubo.

       Agora Langdon estava totalmente desperto.

       Agachada junto ao corpo de Marconi, a Dra. Brooks continuava tentando encontrar alguma pulsação. As lágrimas se acumulavam em seus olhos. Então, como se um interruptor tivesse sido acionado dentro dela, levantou-se e virou-se para Langdon. Sua expressão se transformou diante dos olhos dele: os traços jovens endureceram e assumiram toda a compostura fria de uma médica experiente diante de uma crise.

       – Venha comigo – ordenou ela.

       A Dra. Brooks agarrou o braço de Langdon e o puxou pelo quarto. Os sons dos tiros e do caos continuavam a ecoar no corredor enquanto ele se arrastava para a frente com as pernas bambas. Sua mente estava alerta, mas seu corpo dopado demorava a reagir. Ande! O piso de cerâmica estava frio sob seus pés e a fina camisola do hospital mal cobria seu 1,83 metro de altura. Ele sentia o sangue escorrer pelo braço e empoçar na palma da mão.

       As balas continuavam a atingir a maçaneta pesada e a Dra. Brooks empurrou Langdon com violência para dentro de um pequeno banheiro. Estava prestes a acompanhá-lo quando se deteve e correu de volta até o balcão para apanhar seu Harris Tweed sujo de sangue.

       Esqueça a droga do paletó!

       Ela voltou com a roupa agarrada ao peito e trancou a porta do banheiro às pressas. Nesse exato momento, a porta do quarto se abriu com um estrondo.

       Ainda no controle, a jovem médica atravessou o banheiro em direção a uma segunda porta, escancarou-a e conduziu Langdon até uma sala de recuperação contígua. Com os disparos ecoando atrás deles, a Dra. Brooks pôs a cabeça para fora do quarto para espiar e se apressou em agarrar o braço de Langdon, puxando-o pelo corredor rumo às escadas. O movimento repentino o deixou zonzo e ele teve a sensação de que poderia desmaiar a qualquer momento.

       Os quinze segundos seguintes foram um borrão... descer as escadas... tropeçar... cair. O latejar em sua cabeça era quase insuportável. Sua visão parecia ainda mais embaçada agora, os músculos pareciam anestesiados e cada movimento era como uma reação retardada.

       Então, o ar ficou frio.

       Estou na rua.

       Enquanto a Dra. Brooks o arrastava para longe do prédio por um beco escuro, Langdon pisou em algo pontiagudo e caiu com força no chão asfaltado. Ela o levantou com dificuldade, amaldiçoando em alto e bom som o fato de ele ter sido sedado.

       Quando estavam chegando ao fim do beco, Langdon voltou a tropeçar. Dessa vez ela o deixou no chão, correu até a rua e gritou para alguém ao longe. Langdon conseguiu distinguir a fraca luz verde de um táxi estacionado em frente ao hospital. O carro não se moveu – o motorista devia estar dormindo. A Dra. Brooks gritou e agitou os braços como uma louca. Por fim, os faróis do táxi se acenderam e o veículo veio lentamente em sua direção.

       No beco, uma porta se abriu com estrondo atrás de Langdon. Em seguida veio o som de passos se aproximando depressa. Ao se virar, ele deparou com o vulto escuro disparando como um meteoro em sua direção. Tentou se levantar, mas a doutora já o agarrava, forçando-o a se sentar no banco traseiro do táxi, um Fiat, com o motor ligado. Ele caiu com metade do corpo no banco e metade no chão, e a Dra. Brooks mergulhou por cima dele e puxou a porta com força.

       O motorista sonolento se virou para encarar a dupla bizarra que acabara de se jogar dentro de seu táxi: uma jovem de rabo de cavalo e roupa cirúrgica e um homem com uma camisola meio rasgada e o braço sangrando. Estava prestes a mandar aqueles dois saírem quando o espelho retrovisor se estilhaçou. A mulher vestida de couro preto vinha correndo pelo beco, com a arma em punho. A pistola tornou a sibilar no mesmo instante em que a Dra. Brooks agarrou a cabeça de Langdon e a empurrou para baixo. O vidro traseiro explodiu, cobrindo-os com uma chuva de cacos.

       O motorista não precisou de mais nenhum incentivo. Pisou fundo no acelerador e o táxi saiu em disparada.

       Langdon estava à beira da inconsciência. Alguém está tentando me matar?

       Assim que dobraram uma esquina, a Dra. Brooks se empertigou no banco e agarrou o braço ensanguentado de Langdon. O cateter despontava de sua carne, torto.

       – Olhe pela janela – ordenou ela.

       Langdon obedeceu. Lá fora, lápides fantasmagóricas cruzavam rapidamente a escuridão. De certa forma, parecia adequado que estivessem passando por um cemitério. Langdon sentiu os dedos da médica pegarem o cateter com cuidado e, então, sem aviso, ela o arrancou.

       Uma dor lancinante subiu como um raio direto para a sua cabeça. Ele sentiu os olhos revirarem e foi engolido pela escuridão.

 

       O toque estridente do celular do diretor o obrigou a afastar os olhos da névoa relaxante do mar Adriático e voltar depressa ao escritório.

       Já não era sem tempo, pensou, ansioso por notícias.

       O monitor de computador em sua mesa estava aceso e informava que a ligação vinha de um aparelho pessoal de encriptação de voz Sectra Tiger XS. A chamada tinha sido redirecionada para quatro roteadores não rastreáveis antes de ser conectada à sua embarcação.

       Ele pôs o headset.

       – Aqui é o diretor – disse ao atender, pronunciando as palavras de forma lenta e meticulosa. – Pode falar.

       – Aqui é Vayentha – respondeu a voz do outro lado.

       Havia um nervosismo incomum em seu tom. Era muito raro que agentes de campo se comunicassem diretamente com ele e ainda mais raro que continuassem no trabalho após um fracasso como o da noite anterior. Apesar disso, o diretor havia precisado de um agente in loco para remediar a crise e Vayentha era a pessoa mais indicada para o serviço.

       – Tenho novas informações – disse ela.

       O diretor ficou calado. Era a deixa para que Vayentha continuasse.

       Quando a agente falou, usou um tom impassível, numa clara tentativa de mostrar profissionalismo:

       – Langdon escapou. Ele está com o objeto.

       O diretor se sentou à sua mesa e ficou um bom tempo calado.

       – Entendido – falou enfim. – Imagino que ele vá entrar em contato com as autoridades assim que puder.

 

       Dois pisos abaixo do escritório do diretor, no centro de controle de segurança da embarcação, o facilitador sênior Laurence Knowlton estava sentado em sua saleta particular quando percebeu que a ligação encriptada do chefe havia sido encerrada. Esperava que as notícias fossem boas. Nos últimos dias, a tensão do diretor era evidente e todos a bordo pressentiam que algum tipo de operação de alto risco estava em andamento.

       Os riscos são incalculáveis e é melhor que Vayentha acerte dessa vez.

       Knowlton estava habituado a coordenar planos estratégicos cuidadosamente elaborados, mas aquele caso em especial tinha virado um caos, de modo que o próprio diretor assumira as rédeas da situação.

       Agora estamos em território desconhecido.

       Embora houvesse meia dúzia de outras missões em todo o mundo, elas vinham sendo administradas pelos vários escritórios locais do Consórcio, deixando o diretor e a tripulação do Mendacium livres para se concentrarem com exclusividade na tarefa em questão.

       Seu cliente havia saltado para a morte vários dias antes, em Florença, mas o Consórcio ainda tinha uma série de serviços pendentes em seu nome – missões específicas que o homem havia confiado à organização sob quaisquer circunstâncias. E o Consórcio, como sempre, pretendia cumpri-las sem questionamentos.

       Tenho as minhas ordens, pensou Knowlton, determinado a executá-las. Saiu de sua saleta de vidro à prova de som, passando por meia dúzia de outras iguais – algumas transparentes, outras opacas –, nas quais agentes em serviço cuidavam de outros aspectos daquela mesma missão.

       Knowlton atravessou a ar rarefeito e artificial da sala de controle principal, meneando a cabeça para a equipe técnica, e entrou na pequena caixa-forte que continha uma dúzia de cofres. Abriu um deles e retirou seu conteúdo: um cartão de memória vermelho-vivo. De acordo com a ficha anexada a ele, o cartão continha um pesado arquivo de vídeo que, segundo as ordens do cliente, deveria ser enviado a uma série de veículos de imprensa escolhidos a dedo em um horário específico da manhã do dia seguinte.

       Fazer o upload do vídeo de forma anônima seria simples, mas, de acordo com o protocolo para todos os arquivos digitais, o cronograma previa que ele fosse revisado hoje – 24 horas antes do envio –, de modo a garantir que o Consórcio tivesse tempo suficiente para executar a decriptação, a compilação ou tomar qualquer outra providência necessária antes de fazer o upload na hora marcada.

       Não deixar nada ao acaso.

       Knowlton voltou à sua saleta transparente e fechou a pesada porta de vidro, bloqueando o mundo externo.

       Acionou um interruptor na parede e, no mesmo instante, sua saleta ficou opaca. Para garantir a privacidade, todos os escritórios com paredes de vidro a bordo do Mendacium possuíam painéis equipados com “dispositivos de partículas suspensas”, ou SPD, na sigla em inglês. A transparência do vidro SPD era facilmente controlada pela ativação ou desativação de uma corrente elétrica, que enfileirava ou distribuía de modo aleatório milhões de minúsculas partículas em forma de bastões suspensas no interior do painel.

       A compartimentalização era uma das bases do sucesso do Consórcio.

       Conheça apenas a sua missão. Não compartilhe nada.

       Então, na segurança de seu espaço particular, Knowlton inseriu o cartão de memória em seu computador e clicou no arquivo para iniciar sua avaliação.

       Na mesma hora, seu monitor ficou preto e as caixas de som começaram a emitir o barulho suave de água em movimento. Pouco a pouco, uma imagem apareceu, amorfa e indistinta. Brotando da escuridão, uma cena começou a se desenhar... o interior de uma caverna... algum tipo de câmara gigante. O chão da caverna era de água, como um lago subterrâneo. Estranhamente, a água parecia estar iluminada, como se a luz viesse de dentro dela.

       Knowlton nunca tinha visto nada parecido com aquilo. Um brilho avermelhado e sinistro tingia toda a caverna, cujas paredes claras estavam cobertas de reflexos em forma de arabescos produzidos pelo ondular das águas. Que lugar é esse?

       Ainda estava ouvindo o marulho quando a imagem começou a se inclinar para baixo e descer na vertical, em direção à água, até penetrar a superfície iluminada. O barulho das ondas então desapareceu, substituído por um sinistro zumbido subaquático. Agora submersa, a imagem continuou a descer por vários metros, até que parou, mostrando de perto o solo coberto de lodo da caverna.

       Chumbada nele, uma placa retangular de titânio reluzia.

       A placa trazia uma inscrição:

        

       NESTE LOCAL, NESTA DATA,

        O MUNDO FOI TRANSFORMADO PARA SEMPRE.

         

       Um nome e uma data estavam gravados na parte inferior da placa.

       O nome era o de seu cliente.

       A data... o dia seguinte.

 

       Langdon sentiu que mãos firmes o erguiam, instigando-o a se libertar de seu torpor e ajudando-o a sair do táxi. O asfalto estava frio sob seus pés descalços.

       Parcialmente apoiado no corpo esguio da Dra. Brooks, Langdon cambaleou por uma viela deserta entre dois prédios residenciais. O vento matinal soprou mais forte, inflando sua camisola hospitalar, e Langdon sentiu o ar frio em lugares que sabia que não deveria sentir.

       O sedativo que lhe fora administrado no hospital havia deixado sua mente tão turva quanto sua visão. Ele tinha a sensação de estar debaixo d’água, tentando abrir caminho com as mãos nuas por um mundo viscoso e mal iluminado. Sienna Brooks o arrastava adiante, sustentando-o com uma força surpreendente.

       – Escadas – disse ela, e Langdon se deu conta de que eles haviam chegado à entrada de um prédio.

       Segurando o corrimão, ele subiu as escadas com dificuldade, zonzo, um degrau de cada vez. Seu corpo parecia pesar uma tonelada. A Dra. Brooks agora o empurrava. Quando chegaram ao patamar, ela digitou alguns números em um teclado velho e enferrujado e a porta se abriu com um zumbido.

       O ar no interior do prédio não estava muito mais quente, mas o piso de lajotas parecia um carpete macio contra as solas de seus pés em comparação ao asfalto áspero da rua. A Dra. Brooks conduziu Langdon até um pequeno elevador e abriu a porta pantográfica com um puxão, enfiando-o num cubículo praticamente do tamanho de uma cabine telefônica. O ar lá dentro cheirava a cigarros MS – uma fragrância agridoce tão onipresente na Itália quanto o aroma de espresso recém-preparado. O cheiro ajudou a desanuviar o raciocínio de Langdon, embora muito pouco. A Dra. Brooks apertou um botão e, em algum lugar muito acima deles, um conjunto de velhas engrenagens entrou em movimento com estalos e chiados.

       Para cima...

       A cabine decrépita sacolejou e tremeu quando começou a subir. Como as paredes não passavam de telas de metal, Langdon se viu obrigado a observar o interior do poço do elevador deslizar em um ritmo constante diante deles. Mesmo em seu estado semiconsciente, seu eterno medo de lugares fechados continuava firme e forte.

       Não olhe.

       Ele se recostou na parede do elevador, tentando recuperar o fôlego. Seu antebraço doía e, quando olhou para baixo, viu que a manga de seu Harris Tweed tinha sido amarrada de qualquer jeito em volta dele, como uma atadura. O restante do paletó se arrastava no chão, gasto e imundo.

       Ele fechou os olhos, tentando combater a dor de cabeça latejante, mas foi novamente engolido pela escuridão.

       Uma visão conhecida se materializou – a mulher de véu que parecia uma estátua, com seu amuleto e seus cachos prateados. Como das outras vezes, ela estava à margem de um rio vermelho-sangue, cercada de corpos que se contorciam. Falou com Langdon, sua voz suplicante. Busca e encontrarás!

       Ele foi dominado pela sensação de que precisava salvá-la... salvar todos eles. As pernas que brotavam da terra começavam a ficar flácidas, sem vida... uma a uma.

       Quem é você?!, gritou ele no silêncio. O que você quer?!

       Um vento quente começou a ondular os fartos cabelos cor de prata. O tempo urge, sussurrou a mulher, tocando o amuleto em seu colar. Então, de repente, ela se incendiou, formando uma coluna de fogo ofuscante que rodopiou pelo rio, engolfando eles dois.

       Langdon gritou e seus olhos se arregalaram.

       A Dra. Brooks o encarou com um olhar preocupado.

       – O que foi?

       – Continuo tendo alucinações! – exclamou Langdon. – Sempre a mesma cena.

       – A mulher de cabelos prateados? E um monte de cadáveres?

       Ele assentiu, com gotas de suor brotando da testa.

       – O senhor vai ficar bem – disse ela para tranquilizá-lo, embora sua voz soasse trêmula. – Visões recorrentes são comuns em casos de amnésia. A função cerebral que classifica e cataloga suas memórias foi temporariamente abalada, então funde tudo em uma só imagem.

       – Nada bonita, por sinal – ele conseguiu dizer.

       – Eu sei, mas até o senhor melhorar, suas memórias vão estar embaralhadas: passado, presente e imaginação, tudo misturado. O mesmo acontece nos sonhos.

       O elevador parou devagar e a Dra. Brooks abriu a porta pantográfica com um puxão. Eles recomeçaram a andar, dessa vez por um corredor escuro e estreito. Passaram por uma janela, as silhuetas nebulosas dos telhados de Florença começando a emergir na luz fraca antes do amanhecer. Na extremidade oposta do corredor, a Dra. Brooks se agachou, pegou uma chave de baixo de uma planta que parecia sedenta e destrancou a porta.

       O apartamento era minúsculo e o ar em seu interior sugeria uma batalha contínua entre uma vela com aroma de baunilha e o carpete velho. A mobília e a decoração eram, na melhor das hipóteses, escassas – como se ela tivesse comprado tudo de segunda mão em uma venda de garagem. A Dra. Brooks ajustou o termostato e os radiadores ganharam vida com um estrondo.

       Ela ficou parada por alguns instantes e fechou os olhos, expirando com força, como se tentasse se recompor. Então se virou e conduziu Langdon até uma modesta cozinha americana com uma mesa de fórmica e duas cadeiras de aparência frágil.

       Langdon se moveu em direção a uma das cadeiras na esperança de se sentar, mas a Dra. Brooks segurou seu braço com uma das mãos enquanto, com a outra, abria um armário quase vazio. Havia biscoitos, alguns pacotes de massa, uma lata de Coca-Cola e um frasco de remédio.

       Ela pegou o frasco e despejou seis comprimidos na palma da mão de Langdon.

       – Cafeína – explicou. – Para quando dou plantão à noite, como hoje.

       Langdon pôs os comprimidos na boca e olhou em volta, à procura de um pouco d’água.

       – Mastigue – disse ela. – O efeito será mais rápido e ajudará você a reagir ao sedativo.

       Langdon estremeceu assim que começou a mastigar. Os comprimidos eram amargos, claramente feitos para serem engolidos inteiros. A Dra. Brooks abriu a geladeira e passou para Langdon uma garrafa de água San Pellegrino pela metade. Ele tomou um gole generoso, sentindo-se grato.

       A médica então pegou seu braço direito e retirou a atadura que havia improvisado com o paletó, que largou sobre a mesa da cozinha. Examinou o ferimento com atenção. Enquanto ela segurava seu braço nu, Langdon pôde sentir que as mãos esguias da jovem doutora tremiam.

       – Vai sobreviver – anunciou ela.

       Langdon torceu para que ela ficasse bem. Mal conseguia compreender o que tinham acabado de passar.

       – Dra. Brooks – falou –, precisamos telefonar para alguém. O consulado... a polícia. Quem quer que seja.

       Ela concordou com a cabeça.

       – Pode parar de me chamar de Dra. Brooks... meu nome é Sienna.

       Langdon assentiu.

       – Obrigado. O meu é Robert. – Parecia que o vínculo que haviam formado ao fugir para salvar suas vidas lhes dava o direito de chamarem um ao outro pelo primeiro nome. – Você disse que é britânica?

       – Sim, nasci lá.

       – Não tem sotaque.

       – Que bom – respondeu ela. – Me esforcei bastante para perdê-lo.

       Langdon estava prestes a perguntar por quê, mas Sienna fez um gesto para que ele a acompanhasse. Ela o conduziu por um corredor estreito até um banheiro pequeno e escuro. No espelho acima da pia, Langdon vislumbrou seu próprio reflexo pela primeira vez desde que o vira na janela do quarto de hospital.

       Lamentável. Seus cabelos escuros e fartos estavam desgrenhados e os olhos pareciam injetados e exaustos. A barba por fazer cobria seu rosto como um véu.

       Sienna abriu uma torneira e puxou o braço ferido de Langdon para debaixo da água gelada. Ele sentiu uma fisgada lancinante, mas se manteve parado, fazendo uma careta de dor.

       Sienna pegou uma toalha limpa e a borrifou com sabonete líquido bactericida.

       – Talvez seja melhor você olhar para o outro lado.

       – Tudo bem. Não ligo para...

       Sienna começou a esfregar o local com violência, e uma terrível ardência subiu pelo braço de Langdon. Ele cerrou os dentes para não gritar em protesto.

       – Você não vai querer pegar uma infecção – disse ela, esfregando ainda mais forte. – Além do mais, se pretende ligar para as autoridades, é melhor que esteja mais alerta do que agora. Nada funciona melhor para ativar a produção de adrenalina do que a dor.

       Langdon aguentou aquilo pelo que pareceram dez segundos inteiros antes de desvencilhar seu braço à força. Chega! Porém, precisava admitir que se sentia mais forte e desperto; a dor no braço havia ofuscado por completo a dor de cabeça.

       – Ótimo – disse ela, fechando a torneira e secando o braço dele com uma toalha limpa.

       Sienna então aplicou um pequeno curativo sobre a ferida, mas, enquanto ela fazia isso, Langdon se viu distraído por algo que acabara de notar – algo que o deixou profundamente perturbado.

       Durante quase quatro décadas, ele havia usado um antigo relógio do Mickey Mouse, uma edição de colecionador que ganhara de presente dos pais. O rosto sorridente de Mickey e seus braços que giravam alucinados sempre lhe haviam servido como um lembrete diário para sorrir mais e levar a vida um pouco menos a sério.

       – Meu... relógio – gaguejou. – Sumiu! – Sem ele, Langdon sentia-se repentinamente incompleto. – Eu estava com ele quando cheguei ao hospital?

       Sienna o encarou com um olhar incrédulo, intrigada por ele estar preocupado com algo tão banal.

       – Não me lembro de relógio nenhum. Procure se limpar. Daqui a pouco eu volto e tentaremos descobrir como conseguir ajuda. – Ela se virou para ir embora, mas se deteve no vão da porta, cruzando olhares com ele pelo espelho. – Enquanto estiver sozinho, sugiro que pense bem por que alguém iria querer matá-lo. Imagino que essa vá ser a primeira pergunta que as autoridades lhe farão.

       – Espere aí, aonde você vai?

       – Você não pode falar com a polícia seminu. Vou tentar lhe arranjar umas roupas. Meu vizinho é mais ou menos do seu tamanho. Ele está viajando e me pediu que desse comida para seu gato. Ele me deve um favor.

       Com essas palavras, Sienna se retirou.

       Robert Langdon voltou a encarar o pequeno espelho acima da pia e mal reconheceu a pessoa que o olhava de volta. Alguém quer me ver morto. Em sua mente, tornou a ouvir a gravação de seus próprios murmúrios delirantes.

       Very sorry. Very sorry. Sinto muito.

       Vasculhou a memória em busca de alguma recordação... qualquer coisa. Encontrou apenas o vazio. Tudo o que sabia era que estava em Florença, depois de ter sofrido um ferimento à bala na cabeça.

       Enquanto fitava os próprios olhos cansados, Langdon meio que se perguntou se em algum momento iria acordar na poltrona de leitura de sua casa, com uma taça de martíni vazia em uma das mãos e um exemplar de Almas mortas na outra, apenas para lembrar a si mesmo de que gim Bombay Sapphire e Gogol eram uma péssima mistura.

 

       Langdon tirou a camisola hospitalar suja de sangue e enrolou uma toalha na cintura. Depois de jogar água no rosto, tocou com cautela os pontos na parte de trás da cabeça. A pele estava dolorida, mas, quando penteou os cabelos embaraçados, eles camuflaram a ferida, quase escondendo-a por completo. Os comprimidos de cafeína estavam fazendo efeito e ele sentiu que a névoa em sua mente enfim começava a dissipar.

       Pense, Robert. Tente se lembrar.

       De repente o banheiro sem janelas começou a lhe parecer claustrofóbico, por isso ele saiu e caminhou por instinto em direção a uma nesga de luz natural que escapava de uma porta entreaberta do outro lado do corredor. O cômodo era uma espécie de escritório improvisado, com escrivaninha barata, cadeira giratória gasta, livros diversos espalhados pelo chão e, graças a Deus... uma janela.

       Ele foi em direção à luz do dia.

       Ao longe, o sol nascente da Toscana começava a tocar as torres mais altas da cidade que despertava: o Campanile, a Badia, o Bargello. Ele encostou a testa na vidraça fria. O ar límpido e gelado de março amplificava todo o espectro da luz solar que agora despontava por sobre as colinas.

       Luz de pintor, como se dizia.

       Bem no meio do horizonte erguia-se uma cúpula descomunal de telhas vermelhas com o topo enfeitado por uma esfera dourada que reluzia como um farol. Il Duomo. Brunelleschi tinha entrado para a história da arquitetura ao projetar a imensa cúpula da basílica e agora, mais de 500 anos depois, a estrutura de quase 115 metros de altura continuava de pé, um gigante inabalável na Piazza del Duomo.

       O que estou fazendo em Florença?

       Para Langdon, que a vida inteira fora fascinado pela arte italiana, Florença havia se tornado um dos destinos preferidos na Europa. Fora nas ruas daquela cidade que Michelangelo brincara quando criança e em seus ateliês tivera início a Renascença Italiana. Aquela era Florença, cujas galerias atraíam milhões de turistas para admirar O nascimento de Vênus de Botticelli, a Anunciação de Leonardo da Vinci e o grande orgulho da cidade: Il David.

       Ao ver pela primeira vez o Davi de Michelangelo, ainda adolescente, Langdon ficara hipnotizado. Lembrava-se de entrar na Accademia delle Belle Arti, de passar lentamente pelas macabras estátuas Prigioni e então de sentir uma força inexorável atrair seu olhar para cima em direção à obra-prima de mais de 5 metros de altura. As proporções gigantescas do Davi e sua musculatura definida espantavam a maioria das pessoas que o viam pela primeira vez. Para Langdon, no entanto, o elemento mais cativante era a genialidade da pose da escultura. Michelangelo havia empregado a tradição clássica do contrapposto para criar a ilusão de que o Davi estava inclinado para a direita, como se a perna esquerda quase não sustentasse peso algum, quando na verdade ela suportava toneladas de mármore.

       Foi o Davi que despertou em Langdon a verdadeira apreciação pelo poder das grandes esculturas. Agora ele se perguntava se teria visitado a obra-prima de Michelangelo nos últimos dias, mas a única lembrança que conseguiu evocar foi a de acordar no hospital e ver um médico inocente ser assassinado diante dos seus olhos. Very sorry. Very sorry.

       A culpa que sentia era quase nauseante. O que eu fiz?

       Foi então que, parado diante da janela, vislumbrou com o canto do olho um laptop em cima da escrivaninha atrás dele. De repente, deu-se conta de que a imprensa já deveria ter noticiado o que lhe acontecera na noite anterior.

       Se eu conseguir acessar a internet, talvez encontre respostas.

       – Sienna?! – chamou, virando-se para o corredor.

       Silêncio. Ela ainda estava no apartamento do vizinho procurando as roupas.

       Certo de que ela entenderia sua indiscrição, Langdon abriu o laptop e o ligou.

       A área de trabalho de Sienna surgiu no monitor – seu fundo de tela eram as nuvens padrão do Windows. Langdon acessou imediatamente a página de busca do Google Italia e digitou Robert Langdon.

       Ah, se os meus alunos me vissem agora, pensou enquanto começava a busca. Ele sempre criticava seus alunos por pesquisarem seus próprios nomes no Google – um novo e bizarro passatempo, reflexo da obsessão doentia pela fama que parecia dominar a juventude americana.

       Uma página de resultados de pesquisa surgiu na tela: havia centenas de ocorrências relacionadas a Langdon, seus livros e suas palestras. Não é isso que estou procurando.

       Ele restringiu a busca clicando na aba “Notícias”.

       Uma nova página apareceu: Resultados de notícias para “Robert Langdon”.

       Noites de autógrafos: Robert Langdon estará presente...

       Robert Langdon fará um discurso de formatura...

       Robert Langdon lança cartilha de símbolos para...

       A lista tinha várias páginas, mas Langdon não encontrou nada que fosse recente – com certeza nada que pudesse explicar o apuro em que se encontrava. O que aconteceu ontem à noite? Continuou a pesquisa e acessou o site do The Florentine, um jornal local publicado em inglês. Correu os olhos pelas manchetes, pelo plantão e pela seção policial e encontrou matérias sobre um incêndio em um apartamento, um escândalo de corrupção no governo e várias ocorrências de pequenos crimes.

       Nada?!

       Deteve-se em uma nota do plantão sobre um funcionário público que, na noite anterior, sofrera um ataque cardíaco fulminante na praça em frente à catedral. O nome da vítima ainda não tinha sido divulgado, mas não havia suspeita de crime.

       Por fim, sem saber o que mais poderia fazer, acessou sua conta de e-mail de Harvard e checou as mensagens, imaginando se encontraria respostas ali. Havia apenas as mensagens habituais de colegas, alunos e amigos, muitas delas com referência a compromissos para a semana seguinte.

       É como se ninguém soubesse que eu não estou lá.

       Cada vez mais intrigado, Langdon desligou o computador e o fechou. Estava prestes a sair do escritório quando algo chamou sua atenção. No canto da mesa de Sienna, em cima de uma pilha de papéis e periódicos de medicina velhos, havia uma foto Polaroid. A imagem mostrava Sienna Brooks e seu colega barbudo, rindo juntos em um corredor de hospital.

       Dr. Marconi, pensou Langdon, assolado pela culpa. Pegou a foto para examiná-la.

       Ao devolver a fotografia à pilha de publicações, notou com surpresa o livreto amarelo que estava por cima – um surrado programa do teatro londrino London Globe. Segundo a capa, era de uma montagem de Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare... de quase 25 anos antes.

       No alto da primeira página havia uma mensagem escrita à mão com marcador de texto: Querida, nunca se esqueça de que você é um milagre.

       Langdon pegou o programa e vários recortes de imprensa caíram sobre a mesa. Apressou-se em tentar guardá-los de volta, mas parou assim que abriu o livreto na página amarelada em que os recortes estavam antes.

       Impressa ali havia uma foto da atriz-mirim que interpretava Puck, o espírito travesso de Shakespeare. A foto mostrava uma menininha que não poderia ter mais que 5 anos, com os cabelos louros presos em um familiar rabo de cavalo.

       O texto embaixo da foto dizia: Nasce uma estrela.

       A biografia era um relato elogioso sobre um prodígio infantil do teatro com um QI exorbitante – Sienna Brooks –, que havia decorado as falas de todos os personagens em uma só noite e, durante os primeiros ensaios, muitas vezes chegava a dar o ponto aos colegas de elenco. Entre os hobbies daquela criança de 5 anos destacavam-se violino, xadrez, biologia e química. Filha de um casal abastado do subúrbio londrino de Blackheath, a menina já era uma celebridade nos círculos científicos; aos 4 anos, havia derrotado um mestre enxadrista e já sabia ler em três idiomas.

       Meu Deus, pensou Langdon. É Sienna. Isso explica muita coisa.

       Lembrou que um dos alunos de pós-graduação mais famosos de Harvard tinha sido um menino-prodígio chamado Saul Kripke, que, aos 6 anos, aprendera hebraico sozinho e, aos 12, já havia lido a obra completa de Descartes. Também se lembrou de ter lido, mais recentemente, sobre Moshe Kai Cavalin, um jovem fenômeno que, aos 11 anos, havia se formado na universidade com a média mais alta possível e conquistado um título nacional de artes marciais, além de ter publicado, aos 14 anos, um livro intitulado We Can Do (Nós podemos).

       Langdon pegou outro recorte, um artigo de jornal com uma foto de Sienna aos 7 anos: gênio precoce tem qi de 208.

       Langdon nem sabia que o QI humano podia chegar a um valor tão alto. Segundo o artigo, além de ser uma virtuose do violino, Sienna Brooks era capaz de aprender uma nova língua em um mês e vinha estudando sozinha anatomia e fisiologia.

       Ele examinou outro recorte de um periódico de medicina: o futuro do pensamento: nem todas as mentes são iguais.

       A matéria trazia uma foto de Sienna, com uns 10 anos, talvez, e cabelos louros ainda muito claros, em pé ao lado de um enorme aparelho hospitalar. A imagem acompanhava uma entrevista com um médico, que explicava que as tomografias do cerebelo de Sienna haviam revelado que este era fisicamente diferente dos demais: no caso dela, o órgão era maior e mais funcional, capaz de manipular informações visuais e espaciais de uma forma que a maioria dos seres humanos não era nem capaz de conceber. O médico atribuía a vantagem fisiológica de Sienna a um crescimento celular mais acelerado do que o normal em seu cérebro, muito semelhante a um câncer, com a diferença de que acelerava o crescimento de tecido benéfico, e não de células nocivas.

       Langdon encontrou outro recorte de um jornal de uma cidade pequena.

       a maldição da genialidade.

       Dessa vez não havia foto, apenas a história de um gênio precoce, Sienna Brooks, que tentara frequentar escolas normais, mas se tornara alvo da zombaria dos colegas por não conseguir se adaptar. O artigo falava sobre o isolamento sentido por jovens superdotados cujas aptidões sociais não acompanhavam seu intelecto e que muitas vezes eram marginalizados.

       Segundo a matéria, aos 8 anos Sienna havia fugido de casa e sido esperta o bastante para sobreviver sozinha por dez dias, sem que ninguém a encontrasse. Fora localizada em um hotel de luxo de Londres, onde se fizera passar pela filha de um hóspede, roubara uma chave e começara a pedir serviço de quarto na conta de outra pessoa. Ao que tudo indicava, havia passado a semana lendo as quase 1.600 páginas do clássico da medicina Gray’s Anatomia. Quando as autoridades lhe perguntaram por que ela estava lendo textos médicos, a menina respondera que queria entender o que havia de errado com seu cérebro.

       Langdon se compadeceu daquela garotinha. Não conseguia sequer imaginar como deve ter sido solitário para uma criança ser tão diferente. Dobrou de novo os artigos, detendo-se por alguns instantes para dar uma última olhada na foto de Sienna, aos 5 anos, caracterizada como Puck. Teve que admitir que, a julgar pela forma surreal como a havia conhecido naquela manhã, o papel do espírito travesso que inspirava sonhos lhe parecia estranhamente adequado. Desejou apenas que ele, assim como os personagens da peça, pudesse acordar agora e fingir que suas experiências mais recentes não haviam passado de um sonho.

       Com cuidado, guardou todos os recortes na página correta e fechou o livreto, sentindo uma melancolia inesperada ao ler outra vez o recado escrito na capa: Querida, nunca se esqueça de que você é um milagre.

       Seus olhos desceram até o símbolo conhecido que enfeitava a capa do programa. Era o mesmo antigo pictograma grego que adornava quase todos os livretos daquele tipo no mundo: um símbolo de 2.500 anos que havia se tornado sinônimo das artes dramáticas.

       Le maschere.

 

       Langdon fitou os inconfundíveis semblantes da Comédia e da Tragédia, que o encararam de volta, e de repente escutou um estranho zumbido nos ouvidos – como se um cabo estivesse sendo esticado muito lentamente dentro de sua cabeça. Uma pontada de dor explodiu em seu crânio. Visões de uma máscara flutuaram diante de seus olhos. Ele arquejou e levantou as mãos, sentando-se na cadeira da escrivaninha e fechando os olhos com força enquanto pressionava o próprio couro cabeludo.

       Na escuridão, as bizarras visões voltaram com toda a força... nítidas e vívidas.

       A mulher de cabelos prateados com o amuleto chamava por ele outra vez, na margem oposta de um rio vermelho-sangue. Seus gritos desesperados rasgavam o ar pútrido, perfeitamente audíveis apesar dos sons dos torturados e moribundos que se debatiam de agonia até onde os olhos conseguiam alcançar. Langdon tornou a ver as pernas invertidas marcadas com a letra R: o corpo enterrado até a cintura pedalava no ar, em pânico.

       Busca e encontrarás!, gritava a mulher para Langdon. O tempo está se esgotando!

       Ele sentiu outra vez uma necessidade avassaladora de ajudá-la... de ajudar a todos. Desesperado, respondeu-lhe também gritando por cima do rio cor de sangue. Quem é você?!

       Mais uma vez, a mulher levou a mão ao rosto e ergueu o véu, revelando o mesmo semblante arrebatador que ele tinha visto mais cedo.

       Eu sou a vida, falou.

       De repente, uma imagem colossal se formou no céu acima dela: uma máscara apavorante, com um grande nariz em forma de bico e dois olhos verdes flamejantes que fitaram Langdon com uma expressão vazia.

       E eu... sou a morte, disse uma voz retumbante.

 

       Os olhos de Langdon se arregalaram e ele inspirou fundo, sobressaltado. Continuava sentado à escrivaninha de Sienna, com a cabeça nas mãos e o coração disparado.

       O que está acontecendo comigo?

       Continuava a ver as imagens da mulher de cabelos prateados e da máscara com um bico no lugar do nariz. Eu sou a vida. Eu sou a morte. Tentou afastar a visão, mas ela parecia estar gravada em sua mente. Na escrivaninha, as duas máscaras estampadas no programa da peça o encaravam.

       Suas memórias vão estar embaralhadas, dissera-lhe Sienna. Passado, presente e imaginação, tudo misturado.

       Langdon ficou tonto.

       Em algum lugar do apartamento, um telefone tocava. Um toque estridente, antiquado. Vinha da cozinha.

       – Sienna? – chamou ele, levantando-se.

       Não houve resposta. Ela ainda não tinha voltado. Depois de apenas dois toques, uma secretária eletrônica atendeu.

       “Ciao, sono io”, dizia Sienna com uma voz alegre na mensagem gravada. “Lasciatemi un messaggio e vi richiamerò.”

       Um bipe soou e uma mulher em pânico começou a deixar um recado com um sotaque carregado do Leste Europeu. Sua voz ecoou pelo corredor.

       “Sienna, é Danikova! Cadê você? Que horrível! Seu amigo Dr. Marconi morreu! O hospital está uma loucura! A polícia veio! Disseram que você fugiu para tentar salvar o paciente! Por quê?! Você nem o conhece! Agora a polícia quer falar com você! Pegaram sua ficha! Sei que as informações estão erradas, endereço fajuto, sem telefone, visto de trabalho falso, então eles não vão encontrar você hoje, mas daqui a pouco vão! Estou tentando avisar. Sinto muito, Sienna.”

       A ligação foi encerrada.

       Langdon foi invadido por uma nova onda de remorso. A julgar pela mensagem, o Dr. Marconi tinha permitido que Sienna trabalhasse no hospital. A presença de Langdon lhe custara a vida. E o impulso de Sienna de salvar um estranho tivera sérias consequências para o futuro dela.

       Nesse momento, uma porta se fechou com um baque do outro lado do apartamento.

       Ela voltou.

       Logo em seguida, a secretária eletrônica começou a gritar.

       “Sienna, é Danikova! Cadê você?”

       Langdon se encolheu, já sabendo o que Sienna estava prestes a ouvir. Enquanto a mensagem era reproduzida, ele devolveu o programa da peça ao seu lugar de origem e arrumou a escrivaninha. Então tornou a atravessar o corredor e entrou no banheiro, constrangido por ter bisbilhotado o passado da médica.

       Dez segundos depois, houve uma batida de leve na porta do banheiro.

       – Vou deixar as roupas penduradas na maçaneta – disse Sienna com a voz embargada de tristeza.

       – Muito obrigado – respondeu Langdon.

       – Assim que terminar, por favor vá até a cozinha – acrescentou ela. – Preciso lhe mostrar uma coisa importante antes de ligarmos para quem quer que seja.

 

       Cansada, Sienna se arrastou até o modesto quarto do apartamento. Depois de pegar uma calça jeans e um suéter na cômoda, levou as roupas até o seu banheiro.

       Com os olhos cravados nos olhos do próprio reflexo no espelho, ergueu a mão, segurou o rabo de cavalo louro e espesso e o puxou para baixo com força, fazendo a peruca deslizar do crânio calvo.

       Uma mulher careca de 32 anos a encarou de volta do espelho.

       Sienna havia enfrentado dificuldades de sobra na vida e, por mais que tivesse treinado a si mesma para confiar no intelecto sempre que precisasse superar as adversidades, seu lado emocional estava profundamente abalado pela provação que enfrentava naquele momento.

       Deixou a peruca de lado e lavou o rosto e as mãos. Depois de se secar, trocou de roupa e tornou a pôr a peruca, ajeitando-a com cuidado. Autocomiseração era um impulso que quase nunca tolerava, mas, nessa hora, com as lágrimas bro­tando do fundo de sua alma, ela soube que não tinha escolha senão deixá-las fluir.

       E foi o que fez.

       Chorou pela vida que não podia controlar.

       Chorou pelo mentor que havia morrido diante dos seus olhos.

       Chorou pela solidão profunda que enchia seu coração.

       Acima de tudo, porém, chorou pelo futuro... que de repente lhe parecia tão incerto.

 

       Na coberta do luxuoso Mendacium, o facilitador Laurence Knowlton estava sentado em sua saleta de vidro lacrada, fitando com incredulidade o monitor, depois de ter acabado de assistir ao vídeo que seu cliente lhes deixara.

       É isso que eu devo mandar para a imprensa amanhã de manhã?

       Durante seus dez anos de Consórcio, Knowlton havia executado toda sorte de tarefas estranhas que sabia que estavam em algum ponto entre o desonesto e o ilegal. Trabalhar dentro de uma zona moral dúbia era normal nessa organização, cujo único preceito ético inabalável era não medir esforços para manter uma promessa feita a um cliente.

       Nós cumprimos o combinado. Sem perguntas. Custe o que custar.

       A perspectiva de fazer o upload daquele vídeo, no entanto, o perturbava. No passado, por mais bizarras que tivessem sido suas tarefas, sempre entendera a lógica por trás delas... identificara os motivos... compreendera os resultados desejados.

       Mas aquele vídeo era desconcertante.

       Havia algo de estranho nele.

       Muito estranho.

       Knowlton reiniciou o vídeo, na esperança de que, se o visse uma segunda vez, as coisas ficassem mais claras. Aumentou o volume e se acomodou para o espetáculo de nove minutos.

       Como antes, o vídeo começou com um barulho de água na sinistra caverna onde tudo se encontrava banhado por uma luz vermelha sobrenatural. Mais uma vez, a imagem atravessou a superfície e mostrou o fundo coberto de lodo. E mais uma vez Knowlton leu o texto na placa submersa:

        

       NESTE LOCAL, NESTA DATA,

        O MUNDO FOI TRANSFORMADO PARA SEMPRE.

         

       O fato de a placa polida estar assinada pelo cliente do Consórcio era inquietante. O fato de a data ser o dia seguinte deixava Knowlton ainda mais preocupado. Mas o que vinha depois era o que realmente o deixara com os nervos à flor da pele.

       A câmera se deslocou para a esquerda, revelando um intrigante objeto suspenso debaixo d’água ao lado da placa.

       O que se via era uma esfera ondulante de plástico fino, amarrada ao solo por um fio curto. Tremulante e delicada como uma bolha de sabão gigante, a forma transparente flutuava como um balão submerso, inflado não por gás hélio, mas por algum tipo de substância gelatinosa marrom-amarelada. O saco amorfo estava dilatado e parecia ter cerca de 30 centímetros de diâmetro. Dentro de suas paredes translúcidas, a substância turva parecia rodopiar lentamente, como o olho de uma tempestade que crescesse em silêncio.

       Meu Deus, pensou Knowlton, suando frio. O saco flutuante lhe pareceu ainda mais ameaçador da segunda vez.

       Pouco a pouco, a imagem desapareceu e a tela ficou preta.

       Então uma nova imagem surgiu: a parede úmida da caverna, com os reflexos ondulantes da lagoa iluminada dançando na superfície. Uma sombra se desenhou na parede... a sombra de um homem em pé... dentro da caverna.

       A cabeça dele, porém, estava terrivelmente deformada.

       Em vez de nariz, ele tinha um bico longo... como se fosse metade pássaro.

       Quando falou, foi com a voz abafada e uma eloquência sinistra... uma cadência calculada, como se ele fosse o narrador em algum tipo de coro clássico.

       Enquanto Knowlton ficava sentado imóvel, quase sem respirar, a silhueta bicuda se pronunciou:

       Eu sou a Sombra.

       Se vocês estão assistindo a este vídeo, então minha alma finalmente descansou.

       Condenado ao subterrâneo, devo falar ao mundo das profundezas da terra, exilado nesta caverna sombria onde as águas rubras de sangue se acumulam na lagoa que não reflete as estrelas.

       Mas este é o meu Paraíso... o útero perfeito para o meu frágil rebento.

       Inferno.

       Em breve vocês saberão o que deixei para trás.

       No entanto, mesmo aqui, posso sentir os passos das almas ignorantes que me perseguem... e que tentarão impedir meus atos, sem deixar que nada as detenha.

       “Perdoe-as”, vocês talvez digam, “pois elas não sabem o que fazem”. Mas chega um momento na história em que o pecado da ignorância não pode mais ser perdoado... um momento em que só o conhecimento tem o poder da absolvição.

       Com a consciência limpa, concedi a todos vocês a dádiva da esperança, da salvação, do porvir.

       Mesmo assim houve quem me perseguisse como a um cão, impulsionado pela crença hipócrita de que sou louco. Vejam aquela beldade de cabelos prateados que ousa me chamar de monstro! Como o clero cego que defendeu a morte de Copérnico, com escárnio ela me rotula de demônio, apavorada que eu tenha vislumbrado a Verdade.

       Mas eu não sou um profeta.

       Eu sou a sua salvação.

       Eu sou a Sombra.

 

       – Sente-se – falou Sienna. – Quero lhe fazer algumas perguntas.

       Ao entrar na cozinha, Langdon sentia as pernas bem mais firmes. Estava usando o terno Brioni do vizinho, que lhe caíra particularmente bem. Até os mocassins eram confortáveis, e ele pensou que talvez fosse uma boa ideia passar a usar sapatos italianos quando voltasse para casa.

       Se é que vou voltar, pensou logo em seguida.

       Sienna parecia outra pessoa: dona de uma beleza natural, havia se trocado e vestido uma calça jeans justa e um suéter creme, as duas peças valorizando sua silhueta elegante. Os cabelos continuavam presos em um rabo de cavalo. Sem o ar de autoridade que a roupa de trabalho lhe conferia, ela parecia de certa forma mais vulnerável. Langdon notou que seus olhos estavam vermelhos, como se tivesse chorado, e mais uma vez foi invadido por uma culpa esmagadora.

       – Sienna, eu sinto muito mesmo. Ouvi a mensagem na secretária eletrônica. Não sei o que dizer.

       – Obrigada – respondeu ela. – Mas no momento precisamos nos concentrar em você. Por favor, sente-se.

       Seu tom de voz estava mais firme, lembrando a Langdon os artigos que acabara de ler sobre sua inteligência e precocidade.

       – Preciso que você pense – disse Sienna, fazendo sinal para ele se sentar. – Consegue se lembrar de como chegamos a este apartamento?

       Langdon não entendia bem qual era a relevância daquilo.

       – De táxi – respondeu, sentando-se à mesa. – Alguém estava atirando em nós.

       – Atirando em você, professor. Que fique bem claro.

       – Sim. Desculpe.

       – E você se lembra de ter ouvido algum tiro enquanto estava no táxi?

       Que pergunta estranha.

       – Sim, dois. Um atingiu o retrovisor e o outro quebrou o vidro traseiro.

       – Ótimo. Agora feche os olhos.

       Langdon percebeu que ela estava testando sua memória. Obedeceu.

       – Como estou vestida?

       Langdon conseguiu visualizá-la com perfeição.

       – Sapatos pretos sem salto, calça jeans e um suéter creme com gola em V. Seu cabelo é louro, na altura dos ombros, e está preso. Seus olhos são castanhos.

       Langdon abriu os olhos e a analisou, feliz ao ver que sua memória fotográfica continuava funcionando normalmente.

       – Ótimo. Seu registro visual-cognitivo está excelente, o que confirma que sua amnésia é retrógrada e que o seu processo de formação de memórias não sofreu nenhum dano permanente. Conseguiu se lembrar de mais alguma coisa que tenha ocorrido nos últimos dias?

       – Infelizmente, não. Mas tive outra série de visões enquanto você estava fora.

       Langdon lhe contou sobre a alucinação recorrente com a mulher de véu, com a multidão de cadáveres e com o corpo enterrado de cabeça para baixo, com as pernas se contorcendo no ar, marcadas com a letra R. Então lhe falou sobre a estranha máscara bicuda pairando no céu.

       – Eu sou a morte? – perguntou Sienna, com uma expressão aflita.

       – É, foi o que a máscara disse.

       – Tudo bem... acho que isso supera “Eu sou Vishnu, o destruidor de mundos”.

       Essas tinham sido as palavras de Robert Oppenheimer no instante em que testara a primeira bomba atômica.

       – E essa máscara bicuda... de olhos verdes? – perguntou Sienna com uma expressão intrigada. – Tem alguma ideia de por que sua mente evocou essa imagem?

       – Nenhuma, mas esse tipo de máscara era bastante comum na Idade Média. – Langdon fez uma pausa. – Chama-se máscara da peste.

       Sienna pareceu estranhamente abalada.

       – Máscara da peste?

       Langdon se apressou em explicar que, no mundo dos símbolos, o formato peculiar da máscara de bico longo era quase um sinônimo da Peste Negra, doença mortal que havia assolado a Europa no século XIV, dizimando um terço da população em algumas regiões do continente. A maioria das pessoas acreditava que o adjetivo “negra” se referisse ao escurecimento da pele das vítimas por conta das gangrenas e hemorragias subepidérmicas, mas, na verdade, a palavra “negra” era uma referência ao profundo pavor emocional que a pandemia disseminava entre a população.

       – Essa máscara de bico longo era usada pelos médicos medievais para manter a pestilência longe de suas narinas enquanto cuidavam dos infectados – explicou Langdon. – Hoje em dia, são usadas apenas como fantasia, durante o Carnevale de Veneza: um lembrete macabro de um período sombrio da história italiana.

       – E você tem certeza de que teve a visão de uma dessas máscaras? – perguntou Sienna, com a voz trêmula. – A máscara de um médico medieval que tratava a peste?

       Langdon assentiu. Uma máscara bicuda é difícil de confundir.

       Sienna franziu as sobrancelhas de um jeito que fez Langdon pensar que ela estava tentando encontrar a melhor maneira de lhe dar uma notícia ruim.

       – E a mulher ficava lhe dizendo para “buscar e encontrar”?

       – Exato. Como das outras vezes. Mas o problema é que não tenho a menor ideia do que devo procurar.

       Sienna soltou o ar longa e demoradamente; a expressão em seu rosto era grave.

       – Talvez eu saiba. E tem mais... acho que talvez você já tenha encontrado.

       Langdon se limitou a encará-la.

       – Do que você está falando?

       – Robert, ontem à noite, quando você chegou ao hospital, estava carregando uma coisa estranha no bolso do paletó. Lembra o que era?

       Langdon fez que não com a cabeça.

       – Estava carregando um objeto... um tanto surpreendente. Eu o encontrei por acaso quando estávamos limpando você. – Ela apontou para o Harris Tweed sujo de sangue estendido em cima da mesa. – Ainda está no bolso, se quiser dar uma olhada.

       Langdon lançou um olhar hesitante para o próprio paletó. Pelo menos isso explica por que ela voltou para pegá-lo. Apanhou a roupa e vasculhou todos os bolsos, um por um. Nada. Tornou a procurar. Por fim, virou-se para ela e deu de ombros.

       – Não tem nada aqui.

       – E no bolso secreto?

       – O quê? Meu paletó não tem bolso secreto.

       – Ah, não? – Ela parecia intrigada. – Quer dizer que este paletó... é de outra pessoa?

       O cérebro de Langdon tornou a ficar confuso.

       – Não. É meu.

       – Tem certeza?

       Absoluta, pensou ele. Na verdade, este era o meu Camberley preferido.

       Ele dobrou o paletó com o forro para fora e mostrou a Sienna a etiqueta que trazia seu símbolo favorito no mundo da moda: a famosa esfera da Harris Tweed, enfeitada com treze bolinhas imitando joias incrustadas e encimada por uma cruz de malta.

       Só mesmo os escoceses para invocar os guerreiros cristãos em um pedaço de tecido.

       – Olhe só – disse Langdon, apontando as iniciais R.L. bordadas à mão na etiqueta.

       Ele se dava ao luxo de comprar paletós confeccionados à mão e sempre pagava a mais para que suas iniciais fossem bordadas na etiqueta. Em um campus universitário onde centenas de paletós de tweed eram tirados e recolocados o tempo todo em refeitórios e salas de aula, ele não tinha a menor intenção de sair em desvantagem numa troca acidental.

       – Sim, eu acredito – falou Sienna, pegando o paletó. – Agora olhe você.

       Ela virou ainda mais o paletó para revelar o forro próximo da nuca. Ali, escondido de forma discreta, havia um bolso grande, feito com esmero.

       Que droga é essa?!

       Langdon tinha certeza de que nunca vira aquilo.

       O bolso consistia em uma costura invisível perfeita.

       – Isso não estava aqui antes! – insistiu ele.

       – Então suponho que nunca tenha visto... isto? – Sienna tirou lá de dentro um objeto reluzente de metal e o depositou com cuidado nas mãos de Langdon.

       Ele baixou os olhos para o objeto, totalmente surpreso.

       – Você sabe o que é isto? – perguntou Sienna.

       – Não... – gaguejou ele. – Nunca vi nada parecido.

       – Bem, infelizmente, eu sei. E tenho quase certeza de que esse é o motivo pelo qual estão tentando matá-lo.

 

       Andando de um lado para outro em sua saleta particular no Mendacium, o facilitador Knowlton sentia-se cada vez mais aflito à medida que refletia sobre o vídeo que deveria revelar ao mundo na manhã do dia seguinte.

       Eu sou a Sombra?

       Já circulavam boatos de que aquele cliente havia sofrido um surto psicótico nos últimos meses e aquele vídeo parecia confirmá-los.

       Knowlton sabia que tinha duas alternativas. Poderia preparar o vídeo para fazer o upload no dia seguinte conforme o prometido ou então poderia subir até a cabine do diretor para pedir uma segunda opinião.

       Eu já sei a opinião dele, pensou Knowlton, uma vez que nunca vira o diretor tomar qualquer atitude que não fosse fazer o que havia sido prometido ao cliente. Ele vai me mandar fazer o upload e mostrar o vídeo ao mundo, sem perguntas... e vai ficar furioso por eu ter questionado.

       Tornou a direcionar sua atenção para o vídeo, voltando-o até um trecho especialmente perturbador. Recomeçou a execução e a caverna com iluminação sinistra reapareceu, junto com o barulho da água em movimento. A sombra humanoide se assomou na parede gotejante – um homem alto com um longo bico de pássaro.

       Com a voz abafada, a sombra disforme voltou a falar:

       Esta é a nova Idade das Trevas.

       Séculos atrás, a Europa estava mergulhada em sua própria agonia – a população amontoada, faminta, chafurdando em pecado e desesperança. Era como uma floresta congestionada, sufocada pela matéria em decomposição, esperando que Deus lançasse seu raio – aquela fagulha que finalmente acenderia a chama que iria assolar a terra e desbastar a vegetação excedente e podre, devolvendo a luz do sol às raízes saudáveis.

       Expurgar é a Ordem Natural de Deus.

       Perguntem-se: o que veio depois da Peste Negra?

       Todos sabemos a resposta.

       A Renascença.

       Renascimento.

       Tem sido sempre assim. A morte é seguida pelo nascimento.

       Para alcançar o Paraíso, o homem deve atravessar o Inferno.

       Foi esse o ensinamento do mestre.

       E aquela ignorante de cabelos prateados ainda ousa me chamar de monstro? Será que ela ainda não compreende a matemática do futuro? Os horrores que ela trará?

       Eu sou a Sombra.

       Eu sou a sua salvação.

       E aqui estou, nas profundezas desta caverna, fitando a lagoa que não reflete as estrelas. Aqui, neste palácio afundado, o Inferno fumega sob as águas.

       Logo explodirá em chamas.

       E, quando isso acontecer, nada na Terra será capaz de detê-lo.

 

       O objeto na mão de Langdon parecia surpreendentemente pesado para o seu tamanho. Fino e liso, o cilindro de metal polido tinha uns 15 centímetros de comprimento e era arredondado nas pontas, como um minitorpedo.

       – Antes de manuseá-lo de forma muito brusca, talvez seja melhor dar uma olhada no outro lado – sugeriu Sienna, com um sorriso tenso. – Não disse que era professor de Simbologia?

       Langdon voltou a se concentrar no tubo, girando-o nas mãos até ver um símbolo vermelho-vivo gravado na lateral do objeto.

       No mesmo instante, seu corpo se retesou.

       Como estudioso de iconografia, Langdon sabia que pouquíssimas imagens tinham o poder de incutir medo imediato na mente humana... mas o símbolo à sua frente sem dúvida constava dessa lista. Sua reação foi visceral e instantânea: ele largou o tubo na mesa e arrastou a cadeira para trás.

       Sienna assentiu.

       – Pois é, tive a mesma reação.

       O desenho impresso no tubo era um simples ícone trilateral.

 

       Certa vez Langdon havia lido que aquele símbolo fora desenvolvido pela empresa de produtos químicos Dow Chemical na década de 1960 para substituir uma série de imagens de alerta ineficazes que eram usadas até então. Como todos os símbolos de sucesso, era simples, fácil de identificar e igualmente fácil de reproduzir. Ao evocar de forma inteligente associações que iam desde pinças de caranguejos a facas ninja de arremesso, o símbolo moderno de “risco biológico” havia se tornado uma marca global que comunicava “perigo” em todas as línguas.

       – Esse pequeno recipiente é um minitubo de material biológico – falou Sienna. – É usado para transportar substâncias perigosas. De vez em quando vemos um desses na área médica. Dentro dele há um cilindro de espuma no qual se pode inserir um tubo de coleta para ser transportado em segurança. – Ela apontou para o símbolo de risco biológico. – Suponho que esse aí contenha um agente químico letal ou talvez... um vírus? – Ela se deteve. – As primeiras amostras do vírus ebola foram trazidas da África em um dispositivo parecido com esse.

       Definitivamente, não era o que Langdon queria ouvir.

       – Mas o que isso estava fazendo dentro do meu paletó?! Sou professor de História da Arte. Por que estou carregando esse treco?!

       Imagens violentas de corpos se contorcendo lampejaram em sua cabeça... e, pairando acima delas, a máscara da peste.

       Very sorry... Very sorry.

       – Seja lá de onde tenha vindo, este é um modelo de ponta, muito sofisticado – falou Sienna. – Titânio com blindagem de chumbo. Praticamente impenetrável, mesmo por radiação. Imagino que seja coisa de algum governo. – Ela apontou para um retângulo preto do tamanho de um selo ao lado do símbolo de risco biológico. – Reconhecimento digital. Segurança para o caso de perda ou roubo. Tubos desse tipo só podem ser abertos por um indivíduo específico.

       Embora Langdon agora sentisse que sua mente funcionava na velocidade normal, ainda tinha a impressão de estar correndo atrás do tempo perdido. Eu estava carregando um cilindro com lacre biométrico.

       – Quando descobri esse cilindro no seu paletó, quis mostrá-lo ao Dr. Marconi em particular, mas não tive oportunidade antes de você acordar. Cogitei experimentar seu polegar na leitora de digital enquanto você estava inconsciente, mas não fazia ideia do que poderia haver dentro do tubo e...

       – O MEU polegar?! – Langdon balançou a cabeça. – Não há a menor chance de esta coisa estar programada para que eu a abra. Não entendo nada de bioquímica. Jamais teria um negócio desses comigo.

       – Tem certeza?

       Langdon tinha certeza absoluta. Estendeu a mão e encostou o polegar na leitora. Nada aconteceu.

       – Está vendo?! Eu disse...

       O tubo de titânio emitiu um clique alto e Langdon recolheu a mão, como se tivesse sido queimado. Puta merda. Olhou para o cilindro como se ele estivesse prestes a se desenroscar sozinho e começar a soltar um gás letal. Três segundos depois, o tubo fez outro clique, aparentemente voltando a se lacrar.

       Sem fala, Langdon se virou para Sienna.

       A jovem médica expirou, parecendo abalada.

       – Bom, acho que não resta dúvidas de que o portador deveria ser você mesmo.

       Para Langdon, nada daquilo fazia sentido.

       – Impossível. Para começo de conversa, como eu conseguiria passar pela segurança do aeroporto com esse pedaço de metal?

       – Talvez você tenha vindo de jatinho particular. Ou quem sabe recebeu o cilindro depois de chegar à Itália?

       – Sienna, tenho que ligar para o consulado. Agora mesmo.

       – Não acha que devemos abrir o tubo antes?

       Langdon já havia tomado atitudes imprudentes na vida, mas abrir um recipiente contendo material de risco biológico na cozinha daquela mulher não seria mais uma delas.

       – Vou entregar esse troço para as autoridades. Agora.

       Sienna apertou os lábios, pesando suas opções.

       – Tudo bem, mas assim que fizer essa ligação vai estar sozinho. Não posso me envolver. E você não poderá se encontrar com eles aqui, de jeito nenhum. Minha situação na Itália é... complicada.

       Langdon a encarou e falou com toda a sinceridade:

       – Tudo o que sei, Sienna, é que você salvou a minha vida. Vou lidar com a situação da maneira que você achar melhor.

       Ela assentiu, agradecida, e foi até a janela, baixando o olhar em direção à rua.

       – Tudo bem, vamos fazer o seguinte.

       Em questão de instantes, ela elaborou um plano. Simples, inteligente e seguro.

       Langdon a esperou ativar o bloqueio da identificação de seu número de celular e discar 411. Seus dedos, apesar de delicados, moviam-se com determinação.

       – Informazioni abbonati? – perguntou Sienna, falando num italiano sem sotaque. – Per favore, può darmi il numero del Consolato americano di Firenze?

       Ela aguardou e então anotou às pressas um número de telefone.

       – Grazie mille – falou, desligando em seguida.

       Sienna deslizou o número na direção de Langdon junto com o celular.

       – Sua vez. Lembra-se do que deve dizer?

       – Minha memória está ótima – declarou Langdon com um sorriso enquanto discava o telefone anotado no pedaço de papel. Logo em seguida ouviu o tom de chamada.

       Não custa nada tentar.

       Pôs o aparelho no viva-voz e o pousou na mesa para que Sienna pudesse ouvir. A ligação caiu em uma mensagem gravada com informações gerais sobre os serviços e o horário de atendimento do consulado, que só começava às oito e meia da manhã.

       Langdon conferiu o relógio do celular. Ainda eram seis horas.

       “Se for uma emergência”, dizia a gravação, “tecle sete para falar com o funcionário de plantão”.

       Langdon digitou o ramal na mesma hora.

       Ouviu mais uma vez o tom de chamada.

       – Consolato americano – atendeu uma voz arrastada. – Sono il funzionario di turno.

       – Lei parla inglese? – perguntou Langdon.

       – Claro – respondeu o homem em inglês. Parecia ligeiramente irritado por ter sido acordado. – Em que posso ajudá-lo?

       – Sou americano, estou em Florença e sofri uma agressão. Meu nome é Robert Langdon.

       – Número de passaporte, por favor. – O homem bocejou alto.

       – Perdi meu passaporte. Acho que foi roubado. Levei um tiro na cabeça. Estive internado. Preciso de ajuda.

       O funcionário acordou de repente.

       – Como é?! O senhor disse que levou um tiro? Pode repetir seu nome, por favor?

       – Robert Langdon.

       Logo ouviram um farfalhar do outro lado da linha e em seguida os dedos do homem digitando no teclado. O computador apitou. Houve uma pausa. Em seguida mais dedos no teclado. Outro bipe. Por fim, três bipes agudos.

       Seguiu-se uma pausa mais longa.

       – O nome do senhor é Robert Langdon? – perguntou o homem.

       – Sim, isso mesmo. E estou encrencado.

       – Certo, senhor, seu nome está assinalado com um alerta que me orienta a transferir sua ligação imediatamente para o assistente administrativo do cônsul. – O homem se deteve, como se ele mesmo não conseguisse acreditar naquilo. – Aguarde na linha.

       – Espere! Pode me dizer se...?

       A ligação já havia sido transferida.

       O telefone tocou quatro vezes antes de alguém atender.

       – Collins falando – disse uma voz rouca.

       Langdon respirou fundo e falou com o máximo de calma e clareza possíveis.

       – Sr. Collins, meu nome é Robert Langdon. Sou americano e estou em Florença. Fui baleado. Preciso de ajuda. Quero ir ao consulado agora mesmo. O senhor pode me ajudar?

       Sem hesitação, a voz grave respondeu:

       – Graças a Deus está vivo, Sr. Langdon. Estávamos à sua procura.

 

       O consulado sabe que estou aqui?

       A notícia provocou em Langdon uma onda de alívio imediato.

       O Sr. Collins, que havia se apresentado como o assistente administrativo do cônsul, tinha um tom firme e profissional, mas havia certa ansiedade em sua voz.

       – Sr. Langdon, precisamos conversar o mais rápido possível. E não por telefone, óbvio.

       Àquela altura, nada mais era óbvio para Langdon, mas ele não quis interromper o homem.

       – Vou mandar alguém buscá-lo imediatamente – disse Collins. – Onde o senhor está?

       Sienna se remexeu, nervosa, ao ouvir o diálogo no viva-voz. Langdon assentiu para tranquilizá-la, mais do que disposto a seguir o plano à risca.

       – Em um pequeno hotel chamado Pensione la Fiorentina – falou, lançando um olhar para o outro lado da rua em direção ao hotel fuleiro que Sienna lhe indicara pouco antes. Deu a Collins o endereço.

       – Anotado. Não saia daí. Fique no quarto. Alguém irá buscá-lo agora mesmo. Qual é o número do quarto?

       – Trinta e nove – respondeu Langdon, inventando.

       – Ok. Vinte minutos. – Collins baixou a voz. – E, Sr. Langdon, pela sua voz suponho que talvez esteja ferido e confuso, mas eu preciso saber... ainda está de posse do objeto?

       De posse. Langdon percebeu que a pergunta, embora velada, só poderia ter um significado. Seus olhos se moveram para o tubo sobre a mesa da cozinha.

       – Sim, senhor. Ainda estou de posse do objeto.

       Collins expirou de forma audível.

       – Como não tivemos notícias suas, imaginamos que... bem, para ser franco, imaginamos o pior. Estou aliviado. Fique onde está. Não saia daí. Vinte minutos. Alguém vai bater à sua porta.

       Collins desligou.

       Langdon sentiu os ombros relaxarem pela primeira vez desde que havia acordado no hospital. O consulado sabe o que está acontecendo e logo terei respostas. Fechou os olhos e expirou devagar, sentindo-se quase humano outra vez. Sua dor de cabeça havia praticamente passado.

       – Bom, tudo isso está parecendo o MI6 – falou Sienna, meio brincando, meio a sério. – Você é um espião?

       No momento, Langdon não fazia ideia do que era. Pensar que poderia perder dois dias de memória e se ver numa situação irreconhecível parecia absurdo, mas ali estava ele... a vinte minutos de um encontro com um funcionário do consulado americano num hotel caindo aos pedaços.

       O que está acontecendo aqui?

       Olhou para Sienna, dando-se conta de que os dois estavam prestes a se separar. No entanto, era como se ainda tivessem um assunto pendente. Langdon visualizou o médico barbudo no hospital, morrendo no chão diante dos olhos dela. Falou com um sussurro:

       – Sienna, o seu amigo... Dr. Marconi... Estou me sentindo péssimo.

       Ela assentiu com uma expressão vazia.

       – E sinto muito por ter arrastado você para essa confusão – continuou. – Sei que a sua situação no hospital é atípica e, se houver uma investigação... – Ele deixou a frase no ar.

       – Não tem problema – disse ela. – Estou acostumada a mudanças.

       Pelo olhar perdido de Sienna, Langdon percebeu que tudo havia mudado para ela naquela manhã. Por mais que sua própria vida estivesse caótica, sentiu pena daquela mulher.

       Ela salvou minha vida... e eu arruinei a dela.

       Ficaram sentados em silêncio por um minuto e o ar entre os dois foi se tornando pesado, como se ambos quisessem falar mas não tivessem nada a dizer. Afinal, eram dois estranhos numa breve e bizarra jornada que acabara de chegar a uma bifurcação, na qual cada um precisava seguir seu caminho.

       – Sienna – disse Langdon por fim –, depois que eu resolver essa situação com o consulado, se houver algo que eu possa fazer para ajudá-la... fique à vontade.

       – Obrigada – sussurrou ela, voltando o olhar com tristeza para a janela.

 

       Conforme os minutos passavam, Sienna Brooks ficou olhando distraída pela janela da cozinha e se perguntou aonde aquela situação iria levá-la. Qualquer que fosse seu destino, não tinha dúvidas de que, quando o dia terminasse, seu mundo seria muito diferente.

       Sabia que devia ser só a adrenalina, mas sentia-se estranhamente atraída pelo professor americano. Além de bonito, ele parecia ter bom coração. Numa vida distante e paralela, Robert Langdon talvez fosse alguém com quem ela pudesse se envolver.

       Ele nunca iria me querer, pensou. Sou uma mulher estragada.

       Enquanto ela tentava conter a emoção, algo do outro lado da janela chamou sua atenção. Ela se empertigou, colando o rosto ao vidro e olhando para a rua.

       – Robert, olhe ali!

       Langdon baixou os olhos em direção à moto BMW preta lustrosa que acabara de estacionar com um ronco em frente à Pensione la Fiorentina. A motociclista de corpo enxuto e forte usava um macacão de couro preto e capacete. Quando ela desmontou com desenvoltura e tirou o capacete preto e reluzente, Sienna percebeu que Langdon prendeu a respiração.

       Os cabelos espetados da mulher eram inconfundíveis.

       Ela sacou uma arma que lhes pareceu familiar, conferiu o silenciador e tornou a guardá-la no bolso da parte de cima do macacão. Então, movendo-se com uma graça letal, entrou sorrateiramente no hotel.

       – Robert – sussurrou Sienna com a voz tensa de pavor. – O governo dos Estados Unidos acabou de mandar alguém matar você.

 

       Parado em frente à janela do apartamento, com os olhos fixos no hotel do outro lado da rua, Robert Langdon foi tomado por uma onda de pânico. A mulher de cabelos espetados acabara de entrar lá, mas Langdon não conseguia atinar como ela havia conseguido o endereço.

       A onda de adrenalina que disparou pelo seu organismo embotou seu raciocínio.

       – Meu próprio governo mandou alguém me matar?

       Sienna parecia tão estarrecida quanto ele.

       – Robert, isso quer dizer que o primeiro atentado contra a sua vida lá no hospital também foi sancionado pelo seu governo. – Ela se levantou para conferir se a porta do apartamento estava trancada. – Se o consulado americano tem permissão para matar você... – Ela não concluiu o raciocínio, mas também não era preciso. As implicações eram aterrorizantes.

       Mas o que eles acham que eu fiz? Por que estou sendo caçado pelo governo do meu próprio país?!

       Voltou a ouvir as duas palavras que teria murmurado ao chegar cambaleando no hospital.

       Very sorry... very sorry.

       – Você não está seguro aqui – declarou Sienna. – Nós não estamos seguros aqui. – Ela gesticulou em direção à rua. – Aquela mulher nos viu fugir do hospital juntos e aposto que o seu governo e a polícia já estão tentando me localizar. Meu apartamento é sublocado de outra pessoa, mas eles vão acabar me encontrando. – Ela voltou a atenção para o tubo em cima da mesa. – Você tem que abrir isso aí agora mesmo.

       Langdon fitou o dispositivo de titânio, vendo apenas o símbolo de risco biológico.

       – Haja o que houver dentro desse tubo deve ter algum código de identificação, o adesivo de uma agência, um número de telefone, alguma coisa – falou Sienna. – Você precisa de informações. Eu preciso de informações! O seu governo matou meu amigo!

       A dor na voz de Sienna tirou Langdon de seu devaneio e ele assentiu, sabendo que ela tinha razão.

       – É, eu... sinto muito – disse Langdon, se encolhendo. Virou-se para o cilindro em cima da mesa e se perguntou que respostas ele esconderia. – Abrir isso pode ser perigosíssimo.

       Sienna refletiu por alguns instantes.

       – Não importa o que esteja aí dentro, deve estar muito bem isolado, provavelmente dentro de um tubo de ensaio de plexiglas inquebrável. O cilindro de titânio é só um revestimento para maior segurança durante o transporte.

       Langdon olhou pela janela em direção à motocicleta preta estacionada em frente ao hotel. A mulher ainda não tinha saído, mas logo perceberia que ele não estava lá. Perguntou-se qual seria seu próximo passo... e quanto tempo ela levaria para começar a esmurrar a porta do apartamento.

       Foi então que se decidiu. Pegou o tubo de titânio e, com relutância, encostou o polegar na leitora biométrica. Em poucos instantes, o cilindro apitou, emitindo um clique alto em seguida.

       Antes que o tubo voltasse a se lacrar sozinho, Langdon girou suas duas metades em direções opostas. Assim que completou um quarto de volta, o cilindro apitou uma segunda vez e ele entendeu que não havia mais volta.

       Enquanto continuava a desenroscar o tubo, sentiu as mãos suadas. As duas metades giraram com facilidade em sulcos talhados à perfeição. Ele continuou a rodá-las, sentindo-se prestes a abrir uma preciosa boneca russa, com o único porém de que não fazia a menor ideia do que poderia sair de lá de dentro.

       Depois de cinco voltas, as duas metades se soltaram. Respirando fundo, Langdon as separou com cuidado. O espaço entre elas se alargou e uma parte interna de espuma emborrachada deslizou para fora. Langdon a pousou sobre a mesa. O revestimento protetor lembrava vagamente uma bola de esponja, só que alongada.

       Não custa nada tentar.

       Ele desdobrou com cuidado uma das pontas da espuma protetora, revelando enfim o objeto aninhado lá dentro.

       Sienna baixou os olhos para o conteúdo e inclinou a cabeça de lado, parecendo intrigada.

       – Com certeza não era o que eu esperava.

       Langdon imaginava encontrar algum tipo de ampola de aspecto futurista, mas o conteúdo do tubo não tinha nada de moderno. O objeto entalhado com desenhos complexos parecia de marfim e era mais ou menos do tamanho de uma embalagem de Mentos.

       – Parece antigo – sussurrou Sienna. – Algum tipo de...

       – Selo cilíndrico – disse Langdon, enfim permitindo-se soltar o ar.

       Inventados pelos sumérios em 3500 a.C., os selos cilíndricos foram os precursores da técnica de impressão italiana conhecida como intaglio, ou talho-doce. Gravados com imagens decorativas, esses selos continham um eixo oco no qual se inseria um pino para fazer girar o cilindro entalhado, como um rolo de pintura moderno, “imprimindo” em argila úmida ou terracota uma faixa recorrente de símbolos, imagens ou textos.

       Langdon calculou que aquele selo em especial devia ser muito raro e valioso, mas ainda assim não conseguia entender por que estaria lacrado dentro de um tubo de titânio como se fosse algum tipo de arma biológica.

       Girando o selo com cuidado entre os dedos, Langdon percebeu que o desenho gravado nele era especialmente horripilante: um Satã chifrudo de três cabeças que devorava três homens ao mesmo tempo, um em cada uma de suas três bocas.

       Que agradável.

       Os olhos de Langdon se moveram para as sete letras gravadas logo abaixo do diabo. A caligrafia rebuscada estava espelhada, como em qualquer rolo de impressão, mas ele não teve dificuldade alguma para decifrar as letras: saligia.

       Sienna estreitou os olhos em direção ao texto e leu em voz alta:

       – Saligia?

       Langdon assentiu, sentindo um arrepio ao ouvir a palavra ser pronunciada.

       – É uma expressão mnemônica latina inventada pelo Vaticano na Idade Média para lembrar aos cristãos os sete pecados capitais. Saligia é um acrônimo de superbia, avaritia, luxuria, invidia, gula, ira e acedia.

       Sienna franziu a testa.

       – Soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça.

       Langdon ficou impressionado.

       – Você sabe latim.

       – Tive uma formação católica. Sei o que é pecado.

       Langdon conseguiu esboçar um sorriso enquanto desviava os olhos para o selo, mais uma vez se perguntando por que aquilo tinha sido isolado dentro de um tubo de material biológico como se fosse perigoso.

       – Pensei que fosse de marfim, mas é de osso – disse Sienna. Deslizou o artefato até onde a luz do sol batia e apontou para as linhas que havia nele. – O marfim tem hachuras cruzadas em forma de diamante, com estrias translúcidas, ao passo que os ossos têm estrias paralelas e sulcos escurecidos.

       Langdon pegou o selo com cuidado e examinou as marcações com mais atenção. Os selos sumérios originais eram entalhados com desenhos rudimentares e escrita cuneiforme. As imagens gravadas naquele ali, porém, eram muito mais elaboradas. Deviam ser medievais, supôs. Além disso, os adornos sugeriam uma relação perturbadora com as alucinações que ele vinha tendo.

       Sienna olhou para ele com uma expressão preocupada.

       – O que foi?

       – Um tema recorrente – respondeu Langdon em tom sério, indicando uma das gravuras no selo. – Está vendo este demônio de três cabeças devorador de homens? É uma imagem comum na Idade Média, um ícone associado à Peste Negra. As três bocas vorazes simbolizam a eficiência com que a peste consumia a população.

       Sienna lançou um olhar aflito para o símbolo de risco biológico no tubo.

       Alusões à peste pareciam estar surgindo naquela manhã com mais frequência do que Langdon gostaria de admitir, por isso foi com relutância que ele reconheceu a existência de mais uma ligação:

       – Saligia representa os pecados coletivos da humanidade, que, de acordo com a doutrinação religiosa medieval...

       – Foram o motivo pelo qual Deus puniu o mundo com a Peste Negra – disse Sienna, completando seu pensamento.

       – Exato.

       Langdon se deteve, perdendo por alguns instantes a linha de raciocínio. Acabara de notar algo estranho naquele objeto. Em geral, era possível olhar pelo centro oco de um selo cilíndrico como por um pedaço de cano vazio, mas o eixo do selo em questão estava bloqueado. Tem alguma coisa enfiada dentro deste osso. A ponta do objeto refletiu a luz e cintilou.

       – Tem alguma coisa dentro – disse Langdon. – E parece que é de vidro.

       Ele virou o cilindro de ponta-cabeça para conferir a extremidade oposta e, ao fazer isso, um pequeno objeto chacoalhou lá dentro, deslocando-se de uma ponta do osso até a outra, como uma bolinha de aço dentro de um tubo.

       Langdon gelou e ouviu Sienna soltar um leve arquejo ao seu lado.

       Que droga foi essa?!

       – Você ouviu esse barulho? – sussurrou Sienna.

       Langdon assentiu e espiou com cuidado pela ponta do cilindro.

       – A abertura parece estar bloqueada por... alguma coisa de metal. – A tampa de um tubo de ensaio, talvez?

       Sienna recuou.

       – Essa coisa parece estar... quebrada?

       – Acho que não.

       Quando ele tornou a inclinar com cuidado o osso para reexaminar a extremidade de vidro, ouviu o mesmo chacoalhar de antes. Instantes depois, o vidro dentro do cilindro fez algo totalmente inesperado.

       Começou a brilhar.

       Os olhos de Sienna se arregalaram.

       – Robert, pare! Não se mexa!

 

       Langdon ficou totalmente imóvel, com a mão suspensa no ar, segurando firme o cilindro de osso. Não havia dúvida de que o vidro na ponta do tubo emitia uma luz... e brilhava como se o seu conteúdo tivesse acordado de repente.

       Num piscar de olhos, a luz lá dentro tornou a se apagar.

       Sienna se aproximou, com a respiração acelerada. Ela entortou a cabeça para examinar a parte visível de vidro dentro do osso.

       – Incline outra vez – sussurrou. – Bem devagar.

       Langdon tornou a virar o osso de cabeça para baixo. Mais uma vez, um pequeno objeto chacoalhou de uma ponta a outra e parou.

       – De novo – pediu ela. – Com cuidado.

       Langdon repetiu o gesto e o tubo voltou a chacoalhar. Dessa vez, o vidro interno cintilou de leve, tornando a brilhar por um instante para então se apagar.

       – Só pode ser um tubo de ensaio com uma bolinha dentro para agitar o conteúdo – declarou Sienna.

       Langdon conhecia as bolinhas usadas para agitar latas de tinta em spray: pequenas esferas submersas que ajudavam a misturar a tinta quando a lata era sacudida.

       – Deve conter algum tipo de composto químico fosforescente – prosseguiu Sienna – ou algum organismo bioluminescente que brilha quando estimulado.

       Langdon discordava. Embora já tivesse visto bastões de luz química e até plânctons bioluminescentes que brilhavam quando algum barco agitava seu habitat, estava quase certo de que o cilindro que segurava não continha nenhuma dessas duas coisas. Tornou a inclinar o tubo várias vezes até fazê-lo reluzir, então segurou a ponta luminescente acima da palma da mão. Como imaginava, um fraco ponto de luz avermelhada se projetou em sua pele.

       Bom saber que alguém com 208 de QI também se engana de vez em quando.

       – Olhe aqui – falou, e começou a sacudir o tubo com violência. O objeto lá dentro chacoalhou de um lado para outro, cada vez mais depressa.

       Sienna deu um salto para trás.

       – O que você está fazendo?!

       Sem parar de agitar o tubo, Langdon foi até o interruptor e apagou a luz, fazendo a cozinha mergulhar em relativa escuridão.

       – Não é um tubo de ensaio aqui dentro – declarou, ainda sacudindo o cilindro com toda a força. – É um laserpoint movido a energia cinética.

       Ganhara algo parecido de um aluno: um laserpoint para professores que não gostavam de gastar inúmeras pilhas palito e não se importavam com o esforço de sacudir o objeto por alguns segundos a fim de transformar sua própria energia cinética em energia elétrica de acordo com a necessidade. Quando o aparelho era agitado, uma bolinha de metal em seu interior se deslocava de um lado para outro, passando por uma série de pás e alimentando um gerador minúsculo. Pelo jeito, alguém decidira enfiar aquele laserpoint em especial dentro de um osso oco e entalhado – um casulo milenar para proteger um brinquedo eletrônico moderno.

       A extremidade em sua mão agora brilhava intensamente, e Langdon abriu um sorriso nervoso para Sienna.

       – Hora do espetáculo.

       Apontou o dispositivo envolto em osso para um espaço vazio na parede da cozinha. Quando a parede se iluminou, Sienna arquejou, surpresa. No entanto foi Langdon quem recuou, estupefato.

       O que apareceu na parede não foi um pequeno ponto vermelho de laser, mas uma fotografia nítida, em alta definição, que emanava do tubo como de um daqueles antigos projetores de slides.

       Meu Deus! A mão de Langdon tremia um pouco enquanto ele assimilava a cena macabra projetada na parede à sua frente. Não é de espantar que eu esteja vendo imagens de morte.

       Ao seu lado, Sienna cobriu a boca e deu um passo titubeante à frente, hipnotizada pelo que via.

       A cena que se projetava do osso entalhado era uma pintura a óleo, um retrato macabro do sofrimento humano: milhares de almas suportando torturas impiedosas em diversos estágios do Inferno. O mundo inferior era representado por um corte transversal da Terra, um cavernoso poço em forma de funil, de profundezas insondáveis. Esse fosso infernal era dividido em camadas descendentes, povoadas por toda a sorte de pecadores atormentados, sua agonia ficando mais intensa a cada nível.

       Langdon reconheceu a imagem na mesma hora.

       A obra-prima à sua frente – La Mappa dell’Inferno – fora pintada por um dos gigantes da Renascença Italiana, Sandro Botticelli. Complexo diagrama do mundo inferior, aquele Mapa do Inferno era uma das visões mais aterrorizantes da vida após a morte já criadas. Escuro, sinistro e apavorante, o quadro até hoje causa espanto em quem o vê. Diferente de suas obras vibrantes e coloridas, como Primavera e O nascimento de Vênus, no Mapa do Inferno Botticelli usou uma deprimente paleta de tons de vermelho, sépia e marrom.

       Embora a esmagadora dor de cabeça de Langdon tivesse voltado de repente, pela primeira vez desde que acordara em um hospital estranho ele teve a sensação de que uma peça do quebra-cabeça se encaixava. Era óbvio que suas medonhas alucinações tinham sido induzidas pela visão daquela famosa pintura.

       Eu devia estar estudando o Mapa do Inferno de Botticelli, pensou, embora não conseguisse lembrar por quê.

       Por mais que a imagem em si fosse perturbadora, foi a procedência do quadro que começou a deixar Langdon cada vez mais inquieto. Ele sabia muito bem que a inspiração para aquela agourenta obra-prima não tivera origem na mente do próprio Botticelli, mas na de uma pessoa que vivera dois séculos antes dele.

       Uma grande obra de arte inspirada por outra.

       O Mapa do Inferno de Botticelli era na verdade um tributo a uma obra literária do século XIV que havia se tornado um dos textos mais célebres da história... uma visão notoriamente macabra do Inferno cuja influência se fazia sentir até hoje.

       O Inferno de Dante.

 

       Do outro lado da rua, Vayentha subiu em silêncio uma escada de serviço e foi se esconder no terraço da pequena e adormecida Pensione la Fiorentina. Langdon tinha dado a seu contato do consulado um número de quarto que não existia e um ponto de encontro falso – um “encontro espelhado”, como costumavam chamar no ramo: uma conhecida tática de espionagem que permitiria ao professor avaliar a situação antes de revelar onde estava de fato. Invariavelmente, a posição falsa ou “espelhada” era escolhida por proporcionar uma visão perfeita de sua verdadeira localização.

       No terraço, Vayentha encontrou um esconderijo com um ângulo privilegiado, do qual tinha uma visão panorâmica de toda a área. Sem pressa, permitiu que seus olhos subissem pela fachada do prédio residencial do outro lado da rua.

       Sua vez, Sr. Langdon.

 

       Nesse exato momento, a bordo do Mendacium, o diretor saiu para o convés de mogno e inspirou fundo, saboreando o ar salgado do Adriático. Havia muitos anos que aquela embarcação era o seu lar, mas agora os acontecimentos que se desenrolavam em Florença ameaçavam acabar com tudo o que ele havia construído.

       Vayentha, sua agente de campo, tinha colocado tudo em risco. Embora ela fosse ter de passar por um interrogatório quando a missão terminasse, por ora o diretor ainda precisava dela.

       É melhor ela retomar o controle da situação.

       Ao ouvir passos rápidos se aproximarem por trás dele, o diretor se virou e viu que uma de suas analistas vinha correndo em sua direção.

       – Senhor diretor? – disse ela, ofegante. – Temos novas informações. – Sua voz cortou o ar matinal com uma intensidade rara. – Parece que Robert Langdon acabou de acessar sua conta de e-mail em Harvard de um endereço IP aberto. – Ela se deteve, os olhos cravados nos do diretor. – Agora podemos rastrear a localização exata dele.

       O diretor ficou pasmo com o fato de que alguém pudesse ser tão idiota. Isso muda tudo. Uniu os dedos, formando um triângulo com as mãos, e lançou um olhar em direção ao litoral, refletindo sobre as implicações daquilo.

       – Sabemos qual o status da equipe de SMI?

       – Sim, senhor. Eles estão a uns três quilômetros da posição de Langdon.

       O diretor tomou sua decisão num instante.

 

       – L’Inferno di Dante – sussurrou Sienna com uma expressão deslumbrada, aproximando-se da nítida imagem do mundo inferior projetada na parede de sua cozinha.

       A visão que Dante tinha do Inferno representada em cores vivas, pensou Langdon.

       Louvado como uma das maiores obras da literatura mundial, o Inferno era o primeiro dos três livros que compunham A Divina Comédia, de Dante Alighieri – um poema épico de 14.233 versos que descreve sua brutal descida ao mundo inferior, a jornada pelo Purgatório e, por fim, a chegada ao Paraíso. Das três partes da Comédia – Inferno, Purgatório e Paraíso –, o Inferno é de longe a mais lida e a mais memorável.

       Composto por Dante Alighieri no início do século XIV, o Inferno redefiniu a percepção medieval da danação. Antes dele, a ideia do mundo inferior nunca havia fascinado as massas de forma tão arrebatadora. Da noite para o dia, a obra de Dante cristalizou esse conceito abstrato em uma visão nítida e aterrorizante – visceral, palpável, inesquecível. Como era de esperar, após a publicação do poema, houve um enorme aumento no número de fiéis da Igreja Católica, graças aos pecadores aterrorizados que buscavam evitar a versão atualizada do Inferno imaginada por Dante.

       Retratada ali por Botticelli, essa horrenda visão dantesca tinha a forma de um funil de sofrimento subterrâneo: um desgraçado submundo composto de fogo, enxofre, esgoto e monstros, com Satanás em pessoa à espera lá no centro. O fosso tinha nove níveis distintos, os nove círculos do Inferno, nos quais os condenados eram lançados de acordo com a gravidade dos seus pecados. Perto do topo, os luxuriosos, ou “malfeitores carnais”, eram fustigados por um vendaval eterno, símbolo de sua incapacidade de controlar o próprio desejo. Abaixo deles, os glutões eram obrigados a ficar deitados de bruços em um lodaçal pútrido de imundície, com a boca cheia do produto de seus excessos. Ainda mais fundo, os hereges eram confinados em caixões flamejantes, condenados ao fogo eterno. E assim por diante... cada vez pior conforme se descia.

       Nos sete séculos que se seguiram à sua publicação, a duradoura visão dantesca do Inferno inspirou tributos, traduções e variações por parte de algumas das mentes mais criativas da história. Longfellow, Chaucer, Marx, Milton, Balzac, Borges e até vários papas escreveram obras baseadas no Inferno. Monteverdi, Liszt, Wagner, Tchaikovski e Puccini criaram peças musicais baseadas na obra de Dante, assim como uma das compositoras contemporâneas prediletas de Langdon: Loreena McKennitt. Até mesmo o mundo moderno dos videogames e aplicativos para tablets oferece diversos produtos relacionados ao autor da Divina Comédia.

       Ávido por compartilhar com seus alunos a vibrante riqueza simbólica da visão de Dante, Langdon às vezes dava um curso sobre o recorrente repertório de imagens encontrado tanto na obra do autor quanto naquelas inspiradas por ela ao longo dos séculos.

       – Robert – falou Sienna, aproximando-se um pouco mais da imagem na parede. – Olhe aqui! – Ela apontou para uma área próxima à base do funil.

       A área que ela apontava era conhecida como Malebolge, cujo nome significava “valas malditas”. Era o oitavo e penúltimo círculo do Inferno, dividido em dez valas separadas, uma para cada tipo específico de fraude.

       Sienna apontou com mais entusiasmo.

       – Olhe! Você não disse que viu isto aqui na sua alucinação?

       Langdon estreitou os olhos para o ponto que Sienna indicava, mas não viu nada. A energia do miniprojetor estava acabando e a imagem começava a sumir. Ele se apressou em sacudir o dispositivo novamente, até que voltasse a emitir um brilho intenso. Então, com cautela, pousou-o mais longe da parede, na beira da bancada do outro lado da pequena cozinha, o que fez a imagem projetada ficar ainda maior. Aproximou-se de Sienna e deu um passo de lado para poder analisar o mapa reluzente.

       Sienna tornou a apontar para o oitavo círculo do Inferno, na parte inferior da imagem.

       – Olhe. Você não disse que, nas suas alucinações, duas pernas marcadas com a letra R brotavam da terra? – Ela tocou um ponto específico na parede. – Aqui estão elas!

       Como Langdon já tinha visto várias vezes naquele quadro, a décima vala do Malebolge estava repleta de pecadores enterrados de cabeça para baixo até a cintura, com as pernas para fora da terra. O estranho, porém, era que, naquela versão ali, duas delas ostentavam a letra R escrita em lama, exatamente como na sua visão.

       Meu Deus! Langdon examinou com mais atenção aquele pequeno detalhe.

       – Essa letra R... com certeza não está no original de Botticelli!

       – Tem outra letra aqui – disse Sienna, apontando.

       Langdon seguiu o dedo esticado dela até outra das dez valas no Malebolge, onde a letra E estava escrita sobre um falso profeta cuja cabeça havia sido grudada no pescoço virada para trás.

       Não acredito! O quadro foi adulterado.

       Mais letras surgiram diante dos seus olhos, escritas sobre pecadores espalhados por todas as dez valas do Malebolge. Viu um C em cima de um sedutor açoitado por demônios... outro R sobre um ladrão condenado a ser picado por cobras por toda a eternidade... um A sobre um político corrupto submerso em um lago de piche fervente.

       – Essas letras com certeza não estão no original de Botticelli – disse ele sem nenhuma dúvida. – Essa imagem foi editada digitalmente.

       Tornou a olhar para a vala mais alta do Malebolge e começou a ler as letras de cima para baixo, passando por cada uma das dez valas.

       C... A... T... R... O... V... A... C... E... R.

       – Catrovacer? É italiano? – perguntou Langdon.

       Sienna fez que não com a cabeça.

       – Nem latim. Não estou reconhecendo.

       – Será... uma assinatura, talvez?

       – Catrovacer? – Ela parecia ter suas dúvidas. – Não me parece um nome. Mas veja só. – Ela apontou para um dos vários personagens na terceira vala do Malebolge.

       Assim que os olhos de Langdon pousaram na figura, ele sentiu um arrepio. Em meio à multidão de pecadores na terceira vala estava uma imagem que era um verdadeiro símbolo da Idade Média: um homem de olhos mortiços, usando uma capa e uma máscara com um bico longo parecido com o de um pássaro.

       A máscara da peste.

       – O original de Botticelli tem algum médico da peste? – perguntou Sienna.

       – Com certeza não. Essa figura foi acrescentada.

       – E Botticelli assinou o quadro original?

       Langdon não conseguia se lembrar, mas ao olhar para o canto inferior direito, onde normalmente estaria a assinatura, entendeu o motivo da pergunta. Embora não houvesse assinatura, quase indistinguível na borda marrom-escura do quadro estava uma linha de texto em minúsculas letras de fôrma: verità è visibile solo attraverso gli occhi della morte.

       Langdon sabia o suficiente de italiano para entender o sentido geral da mensagem.

       – “A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte.”

       Sienna assentiu.

       – Que bizarro!

       Os dois ficaram parados em silêncio enquanto a imagem mórbida à sua frente desaparecia lentamente. O Inferno de Dante, pensou Langdon. Inspirando obras de arte sinistras desde 1330.

       O curso que Langdon dava sobre Dante sempre incluía um módulo inteiro acerca das célebres obras inspiradas pelo Inferno. Além do ilustre Mapa de Botticelli, havia a escultura atemporal de Rodin As três sombras, que é parte da obra A porta do Inferno; a ilustração de Stradanus que mostra Flégias remando em meio aos corpos submersos no rio Estige; os pecadores libidinosos de William Blake rodopiando em uma tempestade eterna; a visão estranhamente erótica criada por Bouguereau de Dante e Virgílio observando dois homens nus atracados em combate; as almas torturadas de Bayros encolhidas sob uma torrencial chuva de pedras escaldantes e gotículas de fogo; a excêntrica série de aquarelas e xilogravuras de Salvador Dalí; e a imensa coleção de gravuras em preto e branco de Doré, que retratava desde o túnel de entrada para o Hades até o Satã alado em pessoa.

       Agora tudo indicava que a inspiradora visão do Inferno criada por Dante havia influenciado não só alguns dos artistas mais reverenciados da história, mas também outro indivíduo: uma alma pervertida que havia adulterado digitalmente o famoso quadro de Botticelli para acrescentar dez letras e um médico com a máscara da peste e que assinara sua obra com uma frase sinistra sobre enxergar a verdade através dos olhos da morte. Esse artista então armazenara a imagem em um projetor de última geração protegido por um osso entalhado com gravuras bizarras.

       Langdon não conseguia imaginar quem teria criado aquele artefato, mas isso agora parecia estar em segundo plano diante de uma questão muito mais perturbadora:

       Por que justo eu estou carregando esse troço?

 

       Enquanto Sienna e Langdon estavam na cozinha pensando no que fazer em seguida, o rugido inesperado de um motor com muitos cavalos de potência ecoou lá embaixo na rua. Foi seguido pela explosão de pneus cantando e portas de carro batendo.

       Intrigada, ela correu até a janela.

       Uma van preta sem identificação havia parado bruscamente em frente ao prédio. Um grupo de homens desceu do veículo, todos usando uniformes pretos com medalhões verdes redondos no ombro esquerdo. Portavam rifles automáticos e se moviam com uma eficiência agressiva, militar. Sem hesitar, quatro soldados correram para a entrada do edifício residencial.

       Sienna sentiu o sangue gelar.

       – Robert! – gritou. – Não sei quem são essas pessoas, mas elas nos acharam!

 

       Lá embaixo na rua, o agente Christoph Brüder gritava ordens para seus homens, que entravam correndo no prédio. Era um homem vigoroso, que a carreira militar imbuíra de um senso de dever inabalável e de um grande respeito pela cadeia de comando. Ele conhecia sua missão e sabia o que estava em jogo.

       A organização para a qual trabalhava tinha várias divisões, mas a de Brüder – Suporte ao Monitoramento e Intervenção – só era acionada quando a situação atingia o status de “crise”.

       Enquanto seus homens desapareciam dentro do prédio, Brüder ficou de guarda em frente à porta de entrada, sacou o rádio e entrou em contato com o responsável pela operação.

       – Brüder falando – informou. – Rastreamos Langdon com sucesso pelo endereço IP. Minha equipe está entrando no local. Aviso assim que o capturarmos.

 

       Muito acima de Brüder, no telhado da Pensione la Fiorentina, Vayentha viu, com uma descrença horrorizada, os agentes invadirem o prédio.

       Que raio ELES estão fazendo aqui?!

       Passou a mão pelos cabelos espetados, compreendendo de repente as terríveis consequências de seu fracasso na noite anterior. Graças ao mero arrulho de uma pomba, tudo tinha fugido ao controle. O que começara como uma missão simples havia se tornado um pesadelo.

       Se a equipe de SMI está aqui, está tudo acabado para mim.

       Em desespero, Vayentha sacou seu Sectra Tiger XS e ligou para o chefe.

       – Diretor – disse, hesitante. – A equipe de SMI chegou! Os homens de Brüder estão invadindo o prédio do outro lado da rua!

       Esperou uma resposta, mas tudo o que ouviu foi uma série de cliques agudos seguida por uma voz eletrônica que anunciou com tranquilidade:

       – Protocolo de desvinculação iniciado.

       Vayentha baixou o telefone e olhou para a tela com uma expressão incrédula, bem a tempo de ver o aparelho se desligar sozinho.

       Todo o sangue se esvaiu de seu rosto e ela se forçou a aceitar o que estava acontecendo. O Consórcio acabara de romper toda e qualquer ligação com ela.

       Nenhuma relação. Nenhuma associação.

       Fui desvinculada.

       O choque durou apenas um instante.

       Então veio o medo.

 

       – Rápido, Robert! – instou Sienna. – Venha comigo!

       Com a mente ainda dominada pelas imagens sombrias do mundo inferior de Dante, Langdon disparou pela porta e saiu para o corredor do prédio. Até aquele momento, Sienna Brooks conseguira administrar o considerável estresse da manhã com uma espécie de indiferença calculada, mas agora sua atitude serena dera lugar a uma emoção que ele ainda não tinha visto nela: medo de verdade.

       No corredor, Sienna assumiu a dianteira e passou correndo pelo elevador que já descia, sem dúvida chamado pelos homens que agora deviam estar no saguão do prédio. Ela disparou até o fim do corredor e, sem olhar para trás, despareceu no vão da escada.

       Langdon a seguiu de perto, derrapando com o solado liso dos mocassins emprestados. No bolso da frente do terno Brioni, o pequeno projetor saltava, batendo em seu peito enquanto ele corria. Num flash, viu outra vez em sua mente as estranhas letras que adornavam o oitavo círculo do Inferno: catrovacer. Visualizou a máscara da peste e a bizarra assinatura: A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte.

       Esforçou-se para estabelecer uma ligação entre aqueles elementos discrepantes, mas por ora nada fazia sentido. Enfim parou de correr no patamar entre dois lances de escada, onde Sienna estava parada, ouvindo com atenção. Ele escutou passos firmes subindo a escada.

       – Tem alguma outra saída? – sussurrou.

       – Venha comigo – respondeu ela, tensa.

       Sienna já tinha mantido Langdon vivo uma vez naquele dia, então, sem alternativa a não ser confiar nela, ele respirou fundo e a acompanhou escada abaixo, saltando os degraus.

       Desceram um andar e o barulho das botas ficou muito próximo, ecoando apenas um ou dois andares mais abaixo.

       Por que ela está correndo na direção deles?

       Antes que Langdon pudesse protestar, Sienna agarrou sua mão e o puxou para fora da escada, por um corredor deserto – uma longa sucessão de apartamentos com as portas trancadas.

       Não há onde se esconder!

       Sienna acionou um interruptor e algumas lâmpadas se apagaram, mas a penumbra no corredor ainda não era suficiente para escondê-los. Estavam claramente visíveis ali. Agora o ribombar dos passos já estava quase em cima deles e Langdon sabia que seus perseguidores iriam surgir na escada a qualquer momento, com uma visão desimpedida do corredor.

       – Preciso do seu paletó – sussurrou Sienna, já arrancando-o de seu corpo. Em seguida forçou Langdon a se agachar atrás dela no vão recuado de uma das portas. – Não se mexa.

       O que ela está fazendo? Qualquer um pode vê-la!

       Os soldados surgiram na escada, subindo em disparada, mas pararam assim que viram Sienna no corredor mal iluminado.

       – Per l’amor di Dio! – gritou ela com um tom de voz mordaz. – Cos’è questa confusione?

       Os dois homens estreitaram os olhos, sem saber direito o que estavam vendo.

       Sienna não parava de gritar:

       – Tanto chiasso a quest’ora!

       Quanto barulho, a esta hora!

       Então Langdon viu que ela havia enrolado o paletó preto em volta da cabeça e dos ombros, como o xale de uma velha. Estava encurvada, posicionando-se de modo a não deixar que vissem Langdon agachado no escuro. Totalmente transformada, ela deu um passo cambaleante em direção aos soldados, ainda gritando como uma velha.

       Um dos homens ergueu a mão e gesticulou para que ela voltasse ao seu apartamento.

       – Signora! Rientri subito in casa!

       Sienna deu outro passo titubeante à frente e brandiu o punho com raiva.

       – Avete svegliato mio marido che è malato!

       Langdon não conseguia acreditar no que ouvia: Vocês acordaram meu marido doente?

       O outro soldado então ergueu a metralhadora e a apontou direto para ela.

       – Ferma o sparo!

       Sienna parou na mesma hora, xingando-os sem piedade enquanto cambaleava para trás, afastando-se deles.

       Os homens passaram depressa e sumiram escada acima.

       Não chegou a ser uma atuação shakespeariana, mas ainda assim foi impressionante, pensou Langdon. Pelo jeito, formação em teatro podia ser uma arma bastante versátil.

       Sienna tirou o paletó da cabeça e o jogou de volta para Langdon.

       – Pronto. Agora venha.

       Dessa vez Langdon a seguiu sem hesitar.

       Eles desceram até o patamar logo acima do saguão, onde mais dois soldados estavam entrando no elevador rumo aos andares de cima. Bem do lado de fora, outro soldado montava guarda junto à van. Seu uniforme preto se esticava por cima dos músculos. Sem fazer barulho, Sienna e Langdon desceram depressa para o subsolo.

       A garagem subterrânea estava escura e fedia a urina. Sienna correu até um canto cheio de scooters e motos. Parou diante de uma scooter prateada com duas rodas dianteiras e uma traseira – uma espécie de lambreta que parecia o deselegante resultado do cruzamento entre uma Vespa italiana e um triciclo para adultos. Ela correu a mão esguia por baixo do para-lama dianteiro e retirou dali uma pequena caixa magnetizada. Lá dentro havia uma chave, que ela inseriu no painel para dar a partida no motor.

       Segundos depois, Langdon estava sentado atrás dela na scooter. Empoleirado de forma precária no pequeno assento, tateou em volta à procura de algo em que se agarrar ou de algum ponto de apoio.

       – Não é hora para cerimônia – disse Sienna, pegando as mãos dele e passando-as em volta de sua cintura fina. – É melhor se segurar.

       E foi exatamente o que ele fez quando Sienna acelerou a scooter para subir a rampa de acesso. O veículo era mais potente do que ele havia imaginado e os dois quase saíram do chão ao dispararem pela garagem, emergindo na rua banhada pela luz da aurora a uns 50 metros da entrada do prédio. O soldado corpulento ao lado da van se virou bem a tempo de vê-los se afastar a toda a velocidade, com a scooter soltando um chiado agudo à medida que ela acelerava.

       Na garupa, Langdon olhou por cima do ombro para o soldado e o viu le­van­tar a arma e mirar com atenção. Encolheu-se. Um único tiro ecoou e ricocheteou no para-lama traseiro da scooter, errando por pouco a base da coluna de Langdon.

       Meu Deus!

       Quando chegou a um cruzamento, Sienna fez uma curva fechada à esquerda e Langdon sentiu-se escorregar no assento; teve que lutar para manter o equilíbrio.

       – Incline-se para perto de mim! – gritou ela.

       Langdon deixou o corpo pender para a frente e conseguiu se equilibrar de novo enquanto Sienna disparava por uma via mais larga. Foi preciso um quarteirão inteiro para ele voltar a respirar.

       Quem eram aqueles homens?!

       Sienna se manteve concentrada na avenida à sua frente, ziguezagueando pelo tráfego leve da manhã. Vários pedestres tiveram que olhar duas vezes ao vê-los passar, parecendo intrigados por um homem de 1,83 metro usando um terno Brioni estar montado na garupa de uma mulher esbelta.

       Langdon e Sienna haviam percorrido três quarteirões e se aproximavam de um grande cruzamento quando buzinas soaram mais à frente. Uma van preta reluzente dobrou a esquina equilibrando-se sobre duas rodas, fazendo a traseira derrapar em plena curva, e então acelerou avenida acima na direção deles. A van era idêntica à dos soldados que haviam invadido o prédio.

       Na mesma hora Sienna fez uma curva brusca para a direita e acionou os freios. O peito de Langdon bateu com força nas costas dela quando a scooter deu uma leve derrapada e parou atrás de um caminhão de entregas estacionado, sumindo de vista. Ela aproximou a scooter do para-choque traseiro do caminhão e desligou o motor.

       Será que eles nos viram?!

       Ela e Langdon se encolheram e esperaram, prendendo a respiração.

       A van seguiu em frente, sem hesitar. Aparentemente eles não tinham sido vistos. Quando o veículo passou, contudo, Langdon vislumbrou uma pessoa lá dentro.

       No banco de trás, uma mulher mais velha, atraente, estava sentada entre dois soldados, como se fosse uma refém. Tinha as pálpebras caídas e a cabeça mole, como se estivesse delirando ou talvez drogada. Usava um amuleto no pescoço e tinha longos cabelos cor de prata cujos cachos caíam em cascata.

       Por um instante, Langdon sentiu um nó na garganta e teve a impressão de estar vendo um fantasma.

       Aquela era a mulher das suas visões.

 

       O diretor saiu como um furacão da sala de controle e atravessou a passos firmes o longo convés a estibordo do Mendacium, tentando organizar os pensamentos. O que acabara de acontecer naquele prédio residencial de Florença era impensável.

       Deu duas voltas inteiras na embarcação antes de entrar em seu escritório e pegar uma garrafa de uísque single malt Highland Park 50 anos. Sem se servir de uma dose, pousou a garrafa sobre a mesa e virou as costas para ela – um lembrete pessoal de que continuava no controle da situação.

       Seu olhar se moveu por instinto para um volume pesado e deteriorado em sua estante, presente de um cliente... o mesmo cliente que ele agora desejava jamais ter conhecido.

       Um ano atrás... Como eu poderia saber?

       O diretor não costumava entrevistar pessoalmente clientes em potencial, mas aquele tinha sido indicado por alguém de confiança, então abrira uma exceção.

       O mar não poderia estar mais calmo no dia em que o cliente chegou a bordo do Mendacium em seu helicóptero particular. Figura notória em seu ramo de trabalho, o visitante era um homem de 46 anos, alinhado, muito alto, com olhos verdes penetrantes.

       – Como o senhor sabe – começara o cliente –, seus serviços me foram recomendados por um contato que temos em comum. – O homem esticou as pernas compridas, muito à vontade no luxuoso escritório do diretor. – Então deixe-me lhe dizer do que preciso.

       – Ainda não – falou o diretor, interrompendo-o para mostrar quem estava no comando. – Meu protocolo exige que o senhor não me conte nada. Vou explicar os serviços que ofereço e, se for o caso, o senhor decidirá em qual deles está interessado.

       O visitante pareceu surpreso, mas concordou e ouviu com atenção. No fim das contas, o que o recém-chegado alto e magro desejava era um procedimento muito comum para o Consórcio – basicamente, a oportunidade de se tornar “invisível” por algum tempo para poder se dedicar a um determinado propósito longe de olhares curiosos.

       Brincadeira de criança.

       Para isso, o Consórcio lhe forneceria uma identidade falsa e uma localidade secreta, fora do alcance de qualquer radar, onde poderia realizar seu trabalho – qualquer que fosse ele – em total sigilo. O Consórcio nunca perguntava por que um cliente contratava seus serviços, preferindo saber o mínimo possível sobre as pessoas para as quais trabalhava.

       Durante um ano inteiro o diretor proporcionara, a um custo espantoso, um porto seguro ao homem de olhos verdes, que acabara se revelando o cliente ideal. O diretor não tinha contato algum com ele, que sempre pagava os valores devidos no prazo.

       Então, duas semanas antes, tudo havia mudado.

       O cliente entrara em contato de repente, exigindo um encontro com ele. Levando em conta o montante que o homem já pagara, o diretor concordou.

       A figura transtornada que chegou ao iate mal lembrava o homem equilibrado e bem-apessoado com quem o diretor fizera negócio no ano anterior. Seus olhos verdes, antes incisivos, tinham agora uma expressão alucinada. Ele parecia quase... doente.

       O que aconteceu com ele? O que ele vem fazendo?

       O diretor conduziu o homem inquieto até seu escritório.

       – O demônio de cabelos cor de prata – gaguejou. – Ela está se aproximando a cada dia.

       O diretor baixou os olhos para o dossiê do cliente para ver a fotografia da atraente mulher de cabelos grisalhos.

       – Sim – falou. – O seu demônio de cabelos cor de prata. Conhecemos muito bem seus inimigos. E, por mais poderosa que ela seja, durante um ano inteiro nós a mantivemos longe do senhor... e continuaremos mantendo.

       Ansioso, o homem de olhos verdes não parava de torcer mechas de cabelos sebosos com as pontas dos dedos.

       – Não se deixe enganar por sua beleza. Ela é uma adversária perigosa.

       Verdade, pensou o diretor, ainda contrariado com o fato de o seu cliente ter chamado a atenção de alguém tão influente. Os recursos e a facilidade de acesso da mulher de cabelos prateados eram extraordinários – ela não era um tipo de oponente do qual o diretor gostasse de ter que se esquivar.

       – Se ela ou os seus asseclas me localizarem... – começou o cliente.

       – Isso não vai acontecer – garantiu-lhe o diretor. – Nós não o mantivemos escondido e fornecemos tudo o que o senhor requisitou até agora?

       – Sim – respondeu o homem. – Mesmo assim dormirei mais tranquilo se... – Ele fez uma pausa para se recompor. – Preciso ter certeza de que, se alguma coisa me acontecer, o senhor irá levar a cabo meus últimos desejos.

       – Que desejos são esses?

       O homem enfiou a mão dentro de uma bolsa e pegou um pequeno envelope lacrado.

       – O conteúdo deste envelope dá acesso a um cofre em Florença. Dentro do cofre o senhor encontrará um pequeno objeto. Se algo me acontecer, preciso que o entregue a alguém. É uma espécie de presente.

       – Muito bem. – O diretor ergueu a caneta para anotar. – E a quem devo entregá-lo?

       – Ao demônio de cabelos cor de prata.

       – Um presente para o seu maior inimigo? – perguntou o diretor, erguendo os olhos.

       – Digamos que seja uma pedra em seu sapato. – Seus olhos emitiram um brilho alucinado. – Uma pequena e engenhosa farpa feita de osso. Ela vai descobrir que é um mapa. Uma espécie de Virgílio particular que a guiará até o centro de seu inferno particular.

       O diretor o avaliou por um bom tempo.

       – Como quiser. Considere-o entregue.

       – A questão do tempo será fundamental – advertiu o cliente. – O objeto não deve ser entregue cedo demais. O senhor deve mantê-lo escondido até... – Ele fez uma pausa, subitamente perdido em pensamentos.

       – Até quando? – perguntou o diretor, instigando-o a falar.

       O homem se levantou de forma abrupta e foi para trás da mesa de seu anfitrião, onde pegou um marcador de texto vermelho e circulou uma data no calendário do diretor com um gesto frenético.

       – Até este dia.

       Cerrando os dentes, o diretor bufou, engolindo o desagrado que a petulância do homem lhe causava.

       – Entendido – falou. – Não farei nada até o dia indicado. Nessa data o objeto no cofre, seja lá o que for, será entregue à mulher de cabelos prateados. O senhor tem a minha palavra. – Ele contou os dias em seu calendário até a data circulada às pressas. – Cumprirei seu desejo exatamente daqui a ca­tor­ze dias.

       – Nem um dia antes! – alertou o cliente em um tom de voz alucinado.

       – Entendido – garantiu-lhe o diretor. – Nem um dia antes.

       Pegou o envelope, guardou-o no dossiê do cliente e fez todas as anotações necessárias para que seus desejos fossem atendidos com precisão. O cliente não tinha dado detalhes sobre o objeto guardado no cofre, mas o diretor preferia que fosse assim. A discrição era um dos pilares da filosofia do Consórcio. Forneça o serviço. Não faça perguntas. Não emita juízos.

       Os ombros do cliente relaxaram e ele suspirou com força.

       – Obrigado.

       – Mais alguma coisa? – perguntou o diretor, ansioso por se livrar daquele homem transfigurado.

       – Na verdade, sim. – Ele enfiou a mão no bolso e sacou um pequeno cartão de memória vermelho-vivo. – Isto aqui é um arquivo de vídeo. – Ele pousou o cartão de memória na mesa, em frente ao diretor. – Gostaria que fosse enviado a veículos de imprensa de todo o mundo.

       O diretor analisou o homem com curiosidade. Com frequência o Consórcio distribuía informações em massa para seus clientes, mas o pedido daquele homem tinha algo de perturbador.

       – Na mesma data? – perguntou, apontando para o círculo rabiscado em seu calendário.

       – Exatamente na mesma data – respondeu o cliente. – Nem um segundo antes.

       – Entendido. – O diretor anexou a informação ao cartão de memória vermelho. – É isso, então? – Ele se levantou, tentando pôr um fim àquela reunião.

       Mas o outro homem continuou sentado.

       – Não. Ainda resta uma última coisa.

       O diretor tornou a se sentar.

       A essa altura, uma expressão quase animalesca dominava os olhos verdes do cliente.

       – Pouco depois de o senhor divulgar o vídeo, vou me tornar um homem muito famoso.

       O senhor já é famoso, pensou o diretor, considerando os feitos impressionantes de seu cliente.

       – E o senhor irá merecer parte do crédito. O serviço que me prestou possibilitou que eu criasse minha obra-prima... algo que irá mudar o mundo. Deveria se orgulhar do seu papel.

       – Seja qual for a sua obra-prima – disse o diretor, cada vez mais impaciente –, fico feliz que tenha tido toda a privacidade necessária para criá-la.

       – Como prova da minha gratidão, eu lhe trouxe um presente de despedida. – O homem desalinhado enfiou a mão na bolsa. – Um livro.

       O diretor se perguntou se aquele livro não seria a obra secreta na qual seu cliente vinha trabalhando durante todo aquele tempo.

       – Escrito pelo senhor?

       – Não. – O homem ergueu um volume pesado, que largou em cima da mesa. – Pelo contrário... este livro foi escrito para mim.

       Intrigado, o diretor fitou a edição que seu cliente havia tirado da bolsa. Ele acha que esse livro foi escrito para ele? O volume era um clássico da literatura... do século XIV.

       – Leia – disse o cliente com um sorriso sombrio. – Vai ajudá-lo a entender o que fiz.

       Com essas palavras, o visitante se levantou, despediu-se e foi embora. O diretor ficou observando através da janela do escritório o helicóptero do cliente decolar do convés e começar sua viagem de volta rumo ao litoral italiano.

       Então voltou sua atenção para o grosso livro à sua frente. Com dedos titubeantes, abriu a capa de couro e folheou as páginas de abertura até o início. A estrofe que iniciava a obra estava escrita em uma caligrafia garrafal que ocupava toda a primeira página.

        

       INFERNO

        

       Tendo à metade desta vida chegado,

       vi-me nas entranhas de uma floresta escura,

       pois o caminho reto perdido estava.

        

       Na página em branco à esquerda, seu cliente havia escrito a seguinte dedicatória:

        

       Meu caro amigo, obrigado por me ajudar a encontrar o caminho.

       O mundo também lhe agradece.

       O diretor não fazia ideia do que significava aquilo, mas já havia lido o suficiente. Fechou o livro e o colocou na estante. Por sorte, seu relacionamento profissional com aquele homem estranho estava prestes a terminar. Mais catorze dias, pensou, virando-se para fitar o círculo vermelho traçado às pressas em seu calendário.

       Nos dias subsequentes, sentiu uma estranha aflição em relação àquele cliente. O homem parecia ter enlouquecido. Mesmo assim, apesar do seu mau pressentimento, o tempo passou sem nenhum incidente.

       Então, pouco antes da data circulada, uma sucessão de acontecimentos desastrosos havia se desenrolado em Florença. O diretor tentara conter a crise, mas ela logo fugira ao controle. Seu clímax ocorrera com a ofegante subida do cliente até o alto da torre da Badia.

       Ele pulou lá de cima... para a morte.

       Apesar do horror que lhe inspirava a perda de um cliente, sobretudo daquela maneira, o diretor manteve sua palavra. Logo começou a se preparar para cumprir a última promessa que fizera ao morto: entregar à mulher de cabelos prateados o conteúdo de um cofre localizado em Florença. E ele havia sido alertado de que o momento em que essa entrega deveria ser feita era fundamental.

       Não antes da data circulada em seu calendário.

       O diretor entregara o envelope com os códigos do cofre para Vayentha, que fora a Florença recuperar o objeto – a “pequena e engenhosa farpa”. Porém, quando Vayentha entrara em contato, suas notícias foram ao mesmo tempo espantosas e extremamente alarmantes. O conteúdo do cofre já havia sido resgatado e ela mal conseguira escapar sem ser pega. Não se sabia como a mulher de cabelos prateados tinha descoberto a existência da conta no banco e usado sua influência para ter acesso ao cofre, providenciando ainda um mandado de prisão para qualquer outra pessoa que aparecesse com a intenção de abri-lo.

       Isso fora três dias antes.

       Estava claro que o cliente pretendia que o objeto roubado fosse seu último insulto à mulher de cabelos prateados – uma voz debochada vinda do além.

       Mas agora a voz tinha falado cedo demais.

       Desde então, o Consórcio estava em polvorosa, lançando mão de todos os seus recursos para resguardar os últimos desejos do cliente, bem como sua própria integridade. Durante esse processo, a organização havia ultrapassado uma série de limites que, como o diretor sabia muito bem, seriam difíceis de restabelecer. Agora, com o degringolar da situação em Florença, o diretor fitava sua mesa de trabalho e se perguntava o que o futuro lhe reservaria.

       No calendário, o círculo maltraçado do cliente o encarava de volta – um aro frenético de tinta vermelha em volta de uma data aparentemente especial.

       O dia seguinte.

       Com relutância, o diretor fitou a garrafa de uísque na mesa à sua frente. Então, pela primeira vez em catorze anos, serviu-se de uma dose que tomou de um só gole.

 

       Na coberta da embarcação, Laurence Knowlton retirou o pequeno cartão de memória vermelho do computador e o pousou na mesa à sua frente. O vídeo era uma das coisas mais estranhas que ele já vira.

       E tinha exatos nove minutos de duração... nem um segundo a mais nem a menos.

       Tomado por um alarme que não lhe era característico, ele se levantou e pôs-se a andar de um lado para outro em sua saleta, perguntando-se mais uma vez se deveria compartilhar aquele vídeo bizarro com o diretor.

       Faça o seu trabalho e pronto, Knowlton aconselhou a si mesmo. Sem perguntas. Sem julgamento.

       Forçando-se a tirar o vídeo da cabeça, marcou a tarefa como confirmada em sua agenda. No dia seguinte, de acordo com a solicitação do cliente, enviaria o arquivo para a mídia.

 

       O Viale Niccolò Machiavelli já havia sido considerado uma das mais belas avenidas de Florença. Com suas amplas curvas que serpenteiam por paisagens viçosas de cercas vivas e árvores que perdiam as folhas no outono, a via era uma das preferidas pelos ciclistas e fãs de Ferraris.

       Sienna manobrou com habilidade a scooter de três rodas por cada curva fechada, deixando para trás a zona residencial modesta e seguindo em direção ao ar límpido e com aroma de cedro da afluente margem ocidental da cidade. Passaram por uma capela cujo relógio batia as oito da manhã naquele exato momento.

       Langdon se segurava firme, com imagens desconcertantes do Inferno de Dante fervilhando em sua mente, acompanhadas pelo rosto misterioso de uma linda mulher de cabelos prateados que ele acabara de ver sentada entre dois soldados grandes feito armários no banco de trás de uma van.

       Seja ela quem for, pensou, eles a pegaram.

       – A mulher na van – falou Sienna por sobre o barulho do motor da scooter. – Tem certeza de que é a mesma das suas visões?

       – Absoluta.

       – Então você deve ter se encontrado com ela em algum momento nos últimos dois dias. A questão é: por que continua a vê-la? E por que ela não para de lhe dizer para buscar e encontrar?

       Langdon concordava com ela.

       – Não sei... – respondeu. – Não me lembro de tê-la encontrado, mas, sempre que vejo o seu rosto, tenho a nítida sensação de que preciso ajudá-la.

       Very sorry. Very sorry.

       De repente, ele imaginou se o seu estranho pedido de desculpas não teria sido direcionado à mulher de cabelos prateados. Será que eu a decepcionei de alguma forma? Essa simples ideia lhe causou um embrulho no estômago.

       Para ele, era como se uma arma imprescindível tivesse sido extraída do seu arsenal. Perdi a memória. Desde a infância tinha memória fotográfica e essa era a faculdade intelectual na qual mais se fiava. Para um homem acostumado a se lembrar dos mínimos detalhes de tudo o que via, agir sem memória era como tentar aterrissar um avião no escuro sem radar.

       – Parece que nossa única chance de encontrar respostas é decifrar o Mappa – disse Sienna. – Seja qual for o segredo que ele oculta, esse deve ser o motivo pelo qual você está sendo caçado.

       Langdon assentiu, refletindo sobre a palavra catrovacer, formada pelas letras estampadas nos corpos agonizantes da imagem.

       De repente, um pensamento nítido surgiu na mente de Langdon.

       Eu acordei em Florença...

       Nenhuma outra cidade no mundo estava ligada a Dante Alighieri de forma tão íntima. Ali o poeta havia nascido, crescido e, segundo rezava a lenda, se apaixonado por Beatriz; e dali fora cruelmente exilado, fadado a vagar pelo interior da Itália por anos a fio enquanto sua alma ansiava por voltar ao lar.

       Deverás renunciar àquilo que mais amas, escrevera Dante sobre seu desterro. Eis a flecha primeira que lançará o arco do exílio.

       Ao recordar esses versos do Canto XVII do Paraíso, ele virou a cabeça para a direita, olhando por sobre o rio Arno em direção às torres distantes da parte antiga de Florença.

       Visualizou a planta da cidade velha – um labirinto de turistas, congestionamento e tráfego percorrendo em ritmo frenético as ruas estreitas ao redor dos famosos museus, catedrais, capelas e bairros comerciais florentinos. Suspeitava que, se ele e Sienna se livrassem da scooter, conseguiriam sumir na multidão.

       – Temos que ir para a cidade velha – declarou. – Se houver respostas, é lá que elas devem estar. Todo o mundo de Dante se resumia à Florença antiga.

       Sienna concordou com a cabeça e falou por sobre o ombro:

       – Além disso, estaremos mais seguros por lá: o que não falta são esconderijos. Vou seguir em direção à Porta Romana e, de lá, podemos cruzar o rio.

       O rio, pensou Langdon com certa apreensão. A famosa jornada de Dante rumo ao Inferno também havia começado assim, cruzando um rio.

       Sienna acelerou a scooter e, com a paisagem passando ao seu redor feito um borrão, Langdon repassou mentalmente as imagens do Inferno, os mortos e moribundos, as dez valas do Malebolge com o médico usando a máscara da peste e aquela palavra estranha: catrovacer. Refletiu sobre as palavras escritas na parte de baixo do Mappa – A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte – e se perguntou se o aforismo macabro seria uma citação de Dante.

       Não que eu me lembre.

       Langdon era bem versado na obra dantesca e sua fama como historiador da arte especializado em iconografia fazia com que fosse frequentemente chamado para interpretar a enorme variedade de símbolos que compunha a paisagem concebida pelo autor. Por coincidência, ou talvez nem tanto, ele dera uma palestra sobre o Inferno de Dante uns dois anos antes.

       “Divino Dante: Símbolos do Inferno.”

       Dante Alighieri havia se transformado em um dos verdadeiros objetos de culto da história, o que fizera surgir no mundo todo sociedades dedicadas à sua memória. Seu mais antigo ramo americano fora fundado em 1881, em Cambridge, Massachusetts, por Henry Wadsworth Longfellow. O famoso poeta da Nova Inglaterra, integrante do grupo conhecido como Fireside Poets – formado por poetas que, de tão populares, eram lidos pelas famílias em frente à lareira –, fora também o primeiro americano a traduzir A Divina Comédia. Sua consagrada tradução para o inglês continua sendo uma das mais lidas até hoje.

       Como notório estudioso da obra de Dante, Langdon fora convidado a palestrar em um evento organizado pela Sociedade Dante Alighieri de Viena, uma das mais antigas do mundo, agendado para acontecer na Academia de Ciências de Viena. Seu principal patrocinador – um cientista de grande fortuna e membro da sociedade – havia conseguido reservar o salão de conferências de dois mil lugares da academia.

       Quando Langdon chegou ao evento, foi recebido pelo diretor da conferência. Enquanto atravessavam o saguão da Academia, não pôde deixar de notar as cinco palavras pintadas em letras gigantescas na parede dos fundos: e se deus estava errado?

       – É de Lukas Troberg – sussurrou o diretor. – Nossa mais recente instalação de arte. O que o senhor acha?

       Langdon fitou o texto descomunal, sem saber ao certo o que responder.

       – Hum... ele não poupa tinta, mas seu domínio do subjuntivo deixa a desejar.

       O diretor o encarou com uma expressão confusa. Langdon torceu para sua química com a plateia ser melhor.

       Quando enfim subiu ao palco, recebeu uma vigorosa salva de palmas. O auditório estava lotado e só havia lugar em pé.

       – Meine Damen und Herren – começou ele, fazendo a voz retumbar pelos alto-falantes. – Willkommen, bienvenue, bem-vindos.

       A famosa frase do musical Cabaret arrancou risadas bem-humoradas do público.

       – Fui informado de que esta noite nossa plateia inclui não só membros da Sociedade Dante Alighieri como também diversos cientistas e estudantes que talvez estejam explorando o universo do poeta pela primeira vez. Então, para aqueles que têm andado ocupados demais estudando, sem tempo para ler épicos medievais italianos, achei que seria interessante começar com um breve resumo sobre Dante: sua vida, sua obra e por que ele é considerado uma das figuras mais influentes da história.

       Mais aplausos.

       Usando o pequeno controle remoto em sua mão, Langdon fez surgir uma série de imagens de Dante. A primeira delas foi o retrato de corpo inteiro pintado por Andrea del Castagno, que mostrava o poeta parado diante de um portal segurando um livro de filosofia.

       – Dante Alighieri, escritor e filósofo florentino, viveu entre os anos 1265 e 1321. Neste retrato, como em quase todos os demais, está usando na cabeça um cappuccio vermelho, um gorro justo, trançado, com abas nas orelhas, junto com a túnica vermelha Lucca. Essa é a imagem mais amplamente divulgada de Dante.

       Langdon avançou os slides até o retrato pintado por Botticelli e exposto na Galleria degli Uffizi que frisava os traços mais salientes do poeta: seu queixo destacado e o nariz adunco.

       – Aqui, o rosto inconfundível de Dante encontra-se mais uma vez emoldurado pelo cappuccio vermelho, mas, nessa representação, Botticelli acrescentou uma coroa de louros por sua expertise em artes poéticas. Um símbolo tradicional emprestado da Grécia Antiga e até hoje usado em cerimônias de premiação de poetas laureados e ganhadores do Prêmio Nobel.

       Langdon passou depressa por várias outras imagens, todas mostrando Dante com seu nariz proeminente, sua coroa de louros e seu gorro e túnica vermelhos.

       – E aqui, para fixar melhor a imagem de Dante, está a estátua que se pode ver na Piazza di Santa Croce... E, como não poderia faltar, o famoso afresco atribuído a Giotto, na capela do palácio Bargello.

       Langdon deixou o slide do afresco de Giotto na tela e foi até o centro do palco.

       – Como vocês já sabem, Dante é mais conhecido por sua monumental obra-prima literária, A Divina Comédia, um relato vívido e brutal de sua descida ao Inferno, de sua jornada pelo Purgatório e, por fim, de sua ascensão ao Paraíso para entrar em comunhão com Deus. Pelos padrões modernos, A Divina Comédia não tem nada de cômico. É chamada de comédia por um motivo bem diferente. No século XIV, a literatura italiana era obrigatoriamente dividida em duas categorias. A primeira, a tragédia, representava a alta literatura e era escrita em italiano formal. A outra, a comédia, representava a baixa literatura, era escrita em vernáculo e destinada a ser lida pela população em geral.

       Langdon avançou os slides até a famosa pintura de Michelino, que mostrava Dante em pé diante dos portões de Florença segurando um exemplar do seu poema épico. Ao fundo, a montanha dividida em terraços do Purgatório se erguia bem alto acima dos portões do Inferno. A pintura ficava em Florença, na catedral de Santa Maria del Fiore, mais conhecida como Il Duomo.

       – Como vocês já devem ter adivinhado pelo título – prosseguiu Langdon –, A Divina Comédia foi escrita em vernáculo, ou seja, na língua do povo. Mesmo assim, mesclava de forma brilhante religião, história, política, filosofia e análise social em uma tapeçaria ficcional que, embora erudita, não deixava de ser plenamente acessível às massas. A obra se tornou de tal forma um pilar da cultura italiana que o estilo literário de Dante foi considerado responsável pela própria codificação da língua italiana moderna.

       Langdon fez uma breve pausa dramática e então sussurrou:

       – Amigos, é impossível superestimar a influência da obra de Dante. Ao longo de toda a história, com exceção apenas das Escrituras Sagradas talvez, nenhuma obra de arte visual, musical ou literária inspirou tantos tributos, imitações, variações e comentários quanto A Divina Comédia.

       Depois de listar um extenso rol de compositores, artistas e escritores que haviam criado obras com base no poema épico de Dante, Langdon correu os olhos pela plateia.

       – Temos algum escritor aqui esta noite? – perguntou.

       Quase um terço da plateia levantou a mão. Langdon ficou chocado. Uau! Ou esta é a plateia mais bem-sucedida do mundo, ou esse tal mercado de livros digitais está mesmo começando a decolar.

       – Bem, como todos os escritores presentes estão cansados de saber, não há nada que deixe um autor mais feliz do que um elogio de capa: aquela linhazinha de aval de algum figurão que faz as pessoas quererem comprar o seu livro. Na Idade Média, não só os elogios de capa já existiam como Dante ganhou vários deles.

       Langdon trocou os slides na tela.

       – O que vocês achariam disso na capa do seu livro?

        

       O maior dos homens que já pisou nesta Terra.

       – Michelangelo

         

       Um burburinho de surpresa correu pela plateia.

       – Sim – falou Langdon –, é o mesmo Michelangelo que todos vocês conhecem por conta da Capela Sistina e do Davi. Além de ser um mestre da pintura e da escultura, Michelangelo era um exímio poeta e publicou quase trezentos poemas, entre eles um intitulado “Dante”, dedicado ao homem cujas visões desoladoras inspiraram o seu Juízo final. Se não acreditam em mim, basta que leiam o Canto III do Inferno de Dante e depois visitem a Capela Sistina; logo acima do altar, verão esta imagem familiar.

       Langdon avançou os slides até o detalhe assustador de uma montanha de músculos que brandia um remo gigante contra um grupo de pessoas encolhidas.

       – Este é Caronte, o barqueiro infernal de Dante, espancando com um remo um grupo de passageiros que havia se dispersado.

       Langdon passou para o slide seguinte, outro detalhe do Juízo final de Michelangelo, que mostrava um homem sendo crucificado.

       – E este é Hamã, o agagita, que, segundo as Escrituras, foi condenado à forca. No poema de Dante, porém, ele é crucificado. Como podem ver neste detalhe da Capela Sistina, Michelangelo preferiu a versão dantesca à bíblica. – Langdon sorriu e baixou a voz até um sussurro: – Não contem ao papa.

       A plateia riu.

       – O Inferno de Dante criou um mundo de dor e sofrimento nunca antes imaginado pelo homem e definiu nossas visões modernas do Inferno. – Ele fez uma pausa. – Podem acreditar: a Igreja Católica tem muito a agradecer a Dante. Seu Inferno aterrorizou fiéis por séculos a fio e triplicou o número de frequentadores da Igreja.

       Langdon trocou o slide.

       – O que nos leva ao motivo que nos trouxe aqui esta noite.

       Então o título de sua palestra apareceu na tela: divino dante: símbolos do inferno.

       – O Inferno de Dante é tão rico de simbolismos e iconografia que costumo lhe dedicar um curso de um semestre inteiro. Hoje, achei que não haveria melhor maneira de desvendar seus símbolos do que caminhar lado a lado com o seu autor, através dos portões do Inferno.

       Langdon foi até a beira do palco e correu os olhos pela plateia.

       – Se pretendemos dar um passeio pelo Inferno, recomendo enfaticamente que usemos um mapa. E não existe nenhum mapa do Inferno dantesco mais completo e preciso do que aquele pintado por Sandro Botticelli.

       Ele apertou um botão no controle remoto e o pavoroso Mappa dell’Inferno de Botticelli surgiu diante da plateia. Ouviram-se vários arquejos à medida que as pessoas assimilavam os diversos horrores que ocorriam na caverna subterrânea em formato de funil.

       – Ao contrário de alguns artistas, Botticelli foi extremamente fiel em sua interpretação do texto de Dante. Na verdade, ele passou tanto tempo lendo o autor que o grande historiador da arte Giorgio Vasari afirmou que a obsessão de Botticelli por Dante causou “graves distúrbios em sua vida”. De fato, Botticelli criou mais de duas dúzias de outras obras relacionadas ao poeta florentino, mas esse mapa é a mais famosa de todas.

       Então Langdon se virou, apontando o canto superior esquerdo da pintura.

       – Nossa jornada começará aqui, na superfície, onde vocês podem ver Dante, vestido de vermelho, junto de seu guia, Virgílio, em pé diante dos portões do Inferno. A partir desse ponto, desceremos pelos nove círculos infernais de Dante até enfim ficarmos cara a cara com...

       Langdon logo passou para um novo slide – uma ampliação gigante de Satanás conforme retratado por Botticelli naquele mesmo quadro: um Lúcifer horripilante de três cabeças devorando três homens diferentes, um em cada boca.

       Um sussurro de espanto ecoou pela plateia.

       – Apenas uma prévia das próximas atrações – anunciou Langdon. – Esse personagem assustador marca o fim da nossa jornada de hoje à noite. Esse é o nono círculo do Inferno, onde mora o próprio Satanás. Porém... – Langdon fez uma pausa. – Metade da graça está no caminho até lá, então vamos retroceder um pouco... de volta aos portões do Inferno, onde nossa viagem começa.

       Ele passou para o slide seguinte: uma litogravura de Gustave Doré que mostrava uma entrada escura em forma de túnel escavada na encosta de um penhasco de aspecto lúgubre. A inscrição sobre a porta dizia: abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais.

       – Então... – falou com um sorriso. – Vamos entrar?

       Em algum lugar, pneus cantaram alto e a plateia evaporou diante dos olhos de Langdon. Ele foi lançado para a frente e bateu com força nas costas de Sienna enquanto a scooter derrapava até parar no meio do Viale Machiavelli.

       Atordoado, Langdon ainda pensava nos portões do Inferno que se assomavam à sua frente. Quando recuperou a noção de tempo e espaço, viu onde estava.

       – O que está acontecendo? – perguntou.

       Sienna apontou para a Porta Romana, uns 300 metros à frente – o milenar portal de pedra que servia de entrada para a Florença antiga.

       – Robert, temos um problema.

 

       Parado no meio do apartamento humilde, o agente Brüder tentava entender o que via. Quem mora nesta espelunca? A decoração era escassa e confusa, como um quarto de alojamento universitário mobiliado com um orçamento apertado.

       – Agente Brüder? – chamou um de seus homens da outra ponta do corredor. – Acho que o senhor gostaria de ver isto aqui.

       Ao seguir pelo corredor, Brüder se perguntava se a polícia local já teria detido Langdon. Preferiria resolver aquela crise “internamente”, mas o fato de o professor ter fugido não lhe deixara alternativa senão solicitar o apoio da polícia local e montar bloqueios nas estradas. Nas labirínticas ruas de Florença, uma scooter veloz não teria a menor dificuldade para despistar as vans de Brüder, verdadeiros trambolhos, com suas pesadas janelas de policarbonato e seus grossos pneus à prova de furos. A polícia italiana era famosa por não cooperar com agências internacionais, mas a organização de Brüder tinha uma influência considerável – tanto na polícia quanto nos consulados e nas embaixadas. Quando fazemos exigências, ninguém ousa nos questionar.

       O agente entrou no pequeno escritório, onde seu subalterno estava em pé diante de um laptop aberto, digitando com luvas de látex.

       – Esta foi a máquina que ele usou – disse o homem. – Foi daqui que Langdon checou o e-mail e fez algumas pesquisas. Os arquivos ainda estão no cache.

       Brüder se aproximou da escrivaninha.

       – Não parece que o computador seja dele – continuou o técnico. – Está registrado em nome de alguém cujas iniciais são S. C. Em breve devo ter o nome completo.

       Enquanto Brüder esperava, seus olhos foram atraídos por uma pilha de papéis sobre a mesa. Ele a pegou e folheou os documentos incomuns: um velho programa do teatro London Globe e uma série de artigos de jornal. Quanto mais lia, mais seus olhos se arregalavam.

       Levando os papéis consigo, Brüder voltou ao corredor e ligou para a pessoa que estava no comando daquela operação.

       – Brüder falando – disse ele. – Acho que descobrimos quem está ajudando Langdon.

       – E quem é? – perguntou a voz do outro lado.

       Brüder expirou devagar.

       – Você não vai acreditar.

 

       A uns 3 quilômetros dali, praticamente deitada em cima de sua motocicleta BMW, Vayentha fugia da área. Viaturas de polícia passavam correndo na direção oposta, com as sirenes aos berros.

       Fui desvinculada, pensou.

       Em geral, a vibração suave do motor de quatro tempos ajudava a acalmar seus nervos. Mas não nesse dia.

       Fazia doze anos que Vayentha trabalhava para o Consórcio e havia galgado degraus desde o apoio terrestre, passando pela coordenação estratégica, até se tornar uma agente de campo de alta patente. Minha carreira é tudo o que eu tenho. Tudo relacionado aos agentes de campo era sigiloso, eles faziam viagens constantes e tinham longas missões, o que tornava impossível ter uma vida ou um relacionamento de verdade fora do trabalho.

       Passei um ano inteiro nesta missão, pensou ela, ainda sem conseguir acreditar que o diretor houvesse puxado o gatilho e a desvinculado de forma tão abrupta.

       Durante doze meses Vayentha havia supervisionado os serviços de suporte para o mesmo cliente do Consórcio: um excêntrico gênio de olhos verdes que só queria “desaparecer” por algum tempo para trabalhar sem ser incomodado por seus rivais e inimigos. Ele viajava pouco, sempre incógnito, e passava quase o tempo todo trabalhando. A natureza de seu trabalho era um mistério para Vayentha, cujo contrato determinava apenas que ela deveria mantê-lo fora do alcance dos poderosos que tentavam encontrá-lo.

       Vayentha executara o serviço com absoluto profissionalismo e tudo correra perfeitamente bem.

       Até a noite anterior.

       Desde então, tanto o estado emocional quanto a carreira de Vayentha tinham degringolado.

       Agora estou fora do jogo.

       O protocolo de desvinculação, quando acionado, exigia que o agente abandonasse a missão em curso e deixasse “a arena” – imediatamente. Caso fosse capturado, o Consórcio negaria qualquer ligação com ele. Os agentes sabiam que não era prudente abusar da sorte no que dizia respeito à organização, pois já haviam testemunhado em primeira mão sua perturbadora capacidade de manipular a realidade para adequá-la às suas necessidades, quaisquer que fossem elas.

       Vayentha só tinha conhecimento de dois agentes desvinculados. Estranhamente, nunca voltara a ver nenhum dos dois. Sempre imaginara que tivessem sido chamados para sua avaliação oficial e então demitidos, com a condição de nunca mais voltarem a entrar em contato com nenhum funcionário do Consórcio.

       Agora, porém, já não estava tão certa disso.

       Você está exagerando, tentou dizer a si mesma. O Consórcio emprega métodos muito mais elegantes do que assassinato a sangue-frio.

       Ainda assim, sentiu um arrepio atravessar seu corpo.

       Fora o instinto que a instigara a fugir escondida do terraço do hotel assim que vira a equipe de Brüder chegar. Agora se perguntava se esse instinto teria salvado sua vida.

       Ninguém sabe onde estou agora.

       Enquanto disparava rumo ao norte pelo caminho sem curvas do Viale del Poggio Imperiale, Vayentha percebeu quanta diferença havia naquelas últimas horas. Na noite passada, estava preocupada em garantir seu emprego. Agora, estava preocupada em proteger a própria vida.

 

       Antigamente Florença era uma cidade murada, cuja principal entrada era a Porta Romana, um portal de pedra construído em 1326. Embora a maior parte das muralhas tenha sido destruída séculos atrás, a Porta Romana continua de pé e, até hoje, para entrar na cidade, o tráfego tem que se afunilar pelos profundos túneis arqueados dessa fortificação colossal.

       O portal em si é uma barreira de 15 metros de altura, feita de tijolos e pedras milenares, cuja principal passagem ainda conserva as imponentes portas de madeira aferrolhadas que se encontram sempre abertas para permitir a circulação do tráfego. Seis das principais vias da cidade convergem em frente a essas portas, desembocando em uma rotatória em cujo gramado central está uma grande escultura de Pistoletto, representando uma mulher que atravessa os portais da cidade com uma gigantesca trouxa na cabeça.

       Embora hoje em dia seja mais conhecido como o palco de um engarrafamento pavoroso, no passado, o austero portal da cidade era o cenário da Fiera dei Contratti, ou Feira dos Contratos, na qual pais vendiam as filhas para casamentos arranjados, muitas vezes forçando-as a dançar de forma provocante numa tentativa de conseguir dotes mais elevados.

       Faltando centenas de metros para chegar ao portal, Sienna parou a scooter, cantando pneus, e apontou para a frente, alarmada. Na garupa, Langdon olhou na direção indicada e na mesma hora entendeu sua apreensão. Logo adiante havia uma longa fila de carros parados. O tráfego na rotatória tinha sido interrompido por uma barreira policial e mais viaturas chegavam. Agentes armados iam de carro em carro fazendo perguntas.

       Não pode ser por nossa causa, pensou Langdon. Ou pode?

       Um ciclista suado vinha na direção deles pelo Viale Machiavelli, fugindo do congestionamento. Montado em uma bicicleta reclinada, pedalava com as pernas nuas à frente do corpo.

       Sienna gritou para ele:

       – Cos’è successo?

       – E chi lo as? – gritou de volta o ciclista com uma expressão preocupada. – Carabinieri. – E foi embora às pressas, parecendo ansioso em sair dali.

       Sienna se virou para Langdon com uma expressão tensa.

       – A rua está bloqueada. Polícia militar.

       Atrás deles, sirenes ressoavam ao longe. Sienna olhou pelo Viale Machiavelli. Seu rosto agora era uma máscara de medo.

       Estamos presos bem no meio, pensou Langdon, correndo os olhos pela área em busca de alguma saída – uma rua transversal, um parque, uma via de acesso –, mas encontrando apenas edifícios residenciais à esquerda e um alto muro de pedra à direita.

       As sirenes ficaram mais altas.

       – Por ali – exortou Langdon, apontando um canteiro de obras deserto cerca de 30 metros à frente, onde uma betoneira portátil oferecia pelo menos um pouco de abrigo.

       Sienna acelerou para subir a calçada em direção ao canteiro de obras. Eles pararam atrás da betoneira, logo percebendo que o equipamento mal conseguia ocultar por completo a scooter sozinha.

       – Venha comigo – disse Sienna, correndo em direção a um pequeno barracão de ferramentas aninhado em meio aos arbustos diante de um muro de pedra.

       Isso não é um barracão de ferramentas, atinou Langdon, franzindo o nariz à medida que se aproximavam. É um banheiro químico.

       Quando chegaram diante do banheiro, ouviram as viaturas se aproximarem. Sienna puxou a maçaneta, que não cedeu. Estava presa por uma corrente grossa e um cadeado. Langdon agarrou o braço de Sienna e a puxou para trás da cabine, forçando-a a entrar no estreito espaço entre o banheiro e o muro de pedra. Os dois mal cabiam ali e o ar era fétido e pesado.

       Langdon a seguiu para trás do banheiro no mesmo instante em que um Subaru Forester preto surgiu em seu campo de visão com a palavra carabinieri gravada na lateral. O veículo passou devagar em frente ao local onde eles estavam.

       A polícia militar italiana, pensou, incrédulo. Langdon se perguntou se aqueles homens também teriam ordens para atirar primeiro e só depois fazer perguntas.

       – Alguém está muito interessado em nos encontrar – sussurrou Sienna. – E, não sei como, conseguiu.

       – GPS? – cogitou Langdon em voz alta. – Talvez o projetor tenha algum tipo de dispositivo de rastreamento embutido?

       Sienna discordou com um gesto de cabeça.

       – Acredite: se desse para rastrear esse negócio aí, a polícia já teria nos encontrado.

       Langdon remexeu o corpo alto para tentar se acomodar melhor naquele espaço apertado. Viu-se então de frente para uma série de grafites desenhados com requinte na parede traseira do banheiro químico.

       Só os italianos, mesmo.

       A maioria dos banheiros químicos nos Estados Unidos era coberta por desenhos imaturos que guardavam uma vaga semelhança com seios ou pênis desproporcionais. Os grafites daquele banheiro, no entanto, mais pareciam o caderno de esboços de um estudante de arte: um olho humano, uma mão retratada com esmero, um homem de perfil, um dragão fantástico.

       – O vandalismo na Itália nem sempre é tão bonito assim – comentou Sienna, como se tivesse lido seus pensamentos. – O Instituto de Arte de Florença fica do outro lado deste muro.

       Como para confirmar a afirmação dela, um grupo de estudantes surgiu ao longe, com pastas de desenho debaixo do braço, caminhando sem pressa em direção ao Instituto. Conversando e acendendo cigarros, os jovens pareciam intrigados com a barricada policial na Porta Romana.

       Os dois se agacharam mais para não serem vistos pelos estudantes e então Langdon foi invadido de forma inesperada por um pensamento curioso:

       Os pecadores enterrados até a cintura de pernas para cima.

       Não soube dizer se tinha sido por causa do cheiro de excrementos humanos ou por causa do ciclista montado na bicicleta reclinada, pedalando com as pernas nuas à frente do corpo, mas, qualquer que fosse o estímulo, o mundo putrefato do Malebolge e as pernas nuas brotando da terra haviam surgido em sua mente com um clarão.

       Ele se virou de repente para Sienna.

       – Na nossa versão do Mappa, as pernas de cabeça para baixo estão na décima vala, não é? No nível mais baixo do Malebolge?

       Ela o encarou com uma expressão estranha, como se o momento não fosse apropriado para aquela pergunta.

       – Sim, bem lá no fundo.

       Por uma fração de segundo, Langdon se viu de volta a Viena no dia de sua palestra. Estava no palco, a poucos instantes do grand finale, logo depois de mostrar à plateia a gravura de Doré que retratava Gerião, o monstro alado com um ferrão venenoso na cauda que vivia logo acima do Malebolge.

       – Antes de encontrarmos Satanás – dissera ele na palestra, a voz grave ressoando nos alto-faltantes –, devemos passar pelas dez valas do Malebolge, nas quais são punidos os fraudulentos, aqueles culpados de más ações deliberadas.

       Langdon avançou os slides até um detalhe do Malebolge e então foi descendo as valas uma a uma, guiando a plateia.

       – De cima para baixo, temos: os sedutores açoitados por demônios; os aduladores à deriva num mar de excrementos; os clérigos oportunistas enterrados de cabeça para baixo até a cintura, com as pernas para o ar; os feiticeiros com as cabeças torcidas para trás; os políticos corruptos atolados em piche fervente; os hipócritas usando pesados mantos de chumbo; os ladrões picados por cobras; os conselheiros traidores consumidos pelo fogo; os semeadores de discórdia destroçados por demônios; e, por fim, os mentirosos, irreconhecíveis de tão deformados pela doença. – Ele se virou para a plateia. – Dante provavelmente reservou essa última vala para os mentirosos porque foi uma série de mentiras a seu respeito que fez com que ele fosse exilado de sua amada Florença.

       – Robert? – A voz de Sienna o trouxe de volta ao presente. Ela o encarava com uma expressão intrigada. – O que foi?

       – Na nossa versão do Mappa, o quadro foi modificado! – disse ele, empolgado. Pescou o projetor do bolso do paletó e o sacudiu da melhor forma que pôde naquele espaço apertado. A bolinha que havia lá dentro chacoalhou alto, mas o som foi abafado pelas sirenes. – Quem quer que tenha criado esta imagem reordenou os níveis do Malebolge!

       Quando o dispositivo começou a brilhar, Langdon o apontou para a superfície lisa diante deles. La Mappa dell’Inferno surgiu radiante na penumbra.

       Botticelli em um banheiro químico, pensou Langdon, constrangido. Aquele devia ser o lugar menos elegante em que uma obra daquele porte já havia sido exibida. Correu os olhos de cima a baixo pelas dez valas e assentiu com animação.

       – Sim! – exclamou. – Está mesmo errado! A última vala do Malebolge deveria estar cheia de doentes, não de pessoas de cabeça para baixo. O décimo nível é reservado aos mentirosos, não aos clérigos oportunistas!

       Sienna pareceu intrigada.

       – Mas... por que alguém iria mudar isso?

       – Catrovacer – sussurrou Langdon, fitando as letrinhas acrescentadas a cada um dos níveis. – Não acho que essa seja a verdadeira mensagem.

       Apesar da lesão que havia apagado todas as suas lembranças dos últimos dois dias, ele agora podia sentir a memória funcionando à perfeição. Fechou os olhos e visualizou as duas versões do Mappa para analisar as diferenças entre elas. O Malebolge tinha sido menos modificado do que ele imaginava, mas mesmo assim foi como se um véu tivesse sido erguido de repente.

       Subitamente, tudo se tornou cristalino.

       Busca e encontrarás!

       – O que houve? – Sienna quis saber.

       Langdon sentiu a boca seca.

       – Eu sei o que estou fazendo aqui em Florença.

       – Sabe?!

       – Sim. E também sei para onde devo ir.

       Sienna agarrou seu braço.

       – Para onde?!

       Langdon teve a sensação de pisar em terra firme pela primeira vez desde que acordara no hospital.

       – Essas dez letras – sussurrou. – Na verdade, elas indicam um local específico na cidade velha. É lá que estão as respostas.

       – Onde na cidade velha?! – perguntou Sienna. – O que você descobriu?

       Do outro lado do banheiro químico veio o som de vozes e risadas. Um segundo grupo de estudantes de arte passava por ali, fazendo piadas e conversando em várias línguas diferentes. Langdon olhou com cuidado pela quina da cabine e os viu se afastar. Então correu os olhos em volta, à procura da polícia.

       – Precisamos continuar. No caminho eu explico.

       – No caminho?! – Sienna balançou a cabeça. – Nunca vamos conseguir atravessar a Porta Romana.

       – Espere aqui por trinta segundos – disse ele –, depois me siga.

       Com essas palavras, Langdon saiu de trás do banheiro, deixando sua nova amiga perplexa e sozinha.

 

       – Scusi! – Robert Langdon correu atrás do grupo de estudantes. – Scusate!

       Todos se viraram e ele fingiu olhar de um lado para outro como um turista perdido.

       – Dov’è l‘Istituto Statale d’Arte? – perguntou, em um italiano macarrônico.

       Um rapaz tatuado deu uma tragada indiferente no cigarro e respondeu de má vontade:

       – Non parliamo italiano. – Seu sotaque era francês.

       Uma das garotas censurou o amigo tatuado e indicou educadamente o longo muro que seguia em direção à Porta Romana.

       – Più avanti, sempre dritto.

       Por ali, sempre em frente, Langdon conseguiu entender.

       – Grazie.

       Aproveitando a deixa, Sienna saiu discretamente de trás do banheiro químico e andou até eles. Quando a graciosa mulher de 32 anos se juntou ao grupo, Langdon pousou a mão em seu ombro para lhe dar as boas-vindas.

       – Esta é minha irmã Sienna. Ela é professora de arte.

       – Eu bem que pegaria uma professora assim – murmurou o rapaz tatuado, fazendo seus amigos homens rirem.

       Langdon os ignorou.

       – Estamos em Florença pesquisando lugares onde poderíamos passar um ano dando aulas. Podemos ir com vocês até o instituto?

       – Ma certo – disse a garota italiana com um sorriso.

       Enquanto o grupo seguia em direção à polícia na Porta Romana, Sienna começou a conversar com os alunos e Langdon se enfiou no meio dos jovens, curvando as costas o máximo possível para tentar se esconder.

       Busca e encontrarás, pensou. Sentiu o pulso acelerar de entusiasmo ao visualizar as dez valas do Malebolge.

       Catrovacer. Essas dez letras, ele havia percebido, estavam no centro de um dos maiores mistérios do mundo da arte, uma charada de centenas de anos que nunca fora solucionada. Em 1563, tinham sido usadas para soletrar uma mensagem no alto de uma das paredes internas do famoso Palazzo Vecchio de Florença, a uns 12 metros do chão, quase invisível sem o auxílio de um binóculo. A mensagem permanecera ali durante séculos, escondida a olhos vistos, até ser descoberta na década de 1970 por um agora famoso analista de obras de arte, que então havia passado décadas tentando decifrar seu significado. Apesar de várias teorias, o sentido da mensagem permanece um mistério até hoje.

       Para Langdon, esse código era familiar – um porto seguro em meio àquele mar estranho e revolto. Afinal, história da arte e antigos segredos eram muito mais a sua praia do que tiroteios e tubos para material de risco biológico.

       Logo adiante, mais carros entravam pela Porta Romana.

       – Caramba – comentou o rapaz tatuado. – Não sei quem eles estão procurando, mas essa pessoa deve ter feito alguma coisa terrível.

       O grupo chegou à direita do portão principal do Instituto de Arte, onde uma pequena multidão de alunos estava reunida assistindo ao tumulto na Porta Romana. O malremunerado segurança da escola conferia sem muita atenção os documentos da enxurrada de jovens que entrava, mas estava claramente mais interessado em acompanhar o trabalho da polícia.

       Uma freada alta ecoou pela praça e uma van preta já bem conhecida chegou à Porta Romana cantando pneus.

       Langdon não precisou olhar duas vezes.

       Sem trocarem uma só palavra, ele e Sienna aproveitaram a oportunidade e atravessaram o portão junto com seus novos amigos.

       O caminho que conduzia ao Istituto Statale d’Arte era de uma beleza arrebatadora, quase suntuosa. De ambos os lados, enormes carvalhos se curvavam suavemente no alto, criando um dossel que enquadrava o edifício ao longe – uma estrutura imensa em amarelo desbotado, dotada de um pórtico triplo e de um amplo gramado oval.

       Langdon sabia que aquele prédio, como muitos outros na cidade, havia sido encomendado pela mesma ilustre família que dominara a política florentina durante os séculos XV, XVI e XVII.

       Os Médici.

       O simples sobrenome havia se tornado um símbolo de Florença. Durante seu reinado de três séculos, a casa real dos Médici acumulara fortuna e influência imensuráveis, produzindo quatro papas, duas rainhas da França e a maior instituição financeira de toda a Europa. Ainda hoje os bancos modernos usam um método de contabilidade criado pelos Médici: o sistema de dupla entrada para acompanhar créditos e débitos.

       O maior legado da família, porém, não foi financeiro nem político, mas artístico. Talvez os mais generosos patronos que o mundo das artes já conheceu, os Médici foram responsáveis por um fluxo constante de encomendas que sustentou a Renascença. A lista de artistas patrocinados por eles inclui Da Vinci, Galileu e Botticelli – e o mais célebre quadro deste último, O nascimento de Vênus, foi pintado sob encomenda de Lourenço de Médici, que solicitou uma imagem sexualmente provocante para ser pendurada acima do leito matrimonial de um primo como presente de casamento.

       Lourenço de Médici – conhecido na época como Lourenço, o Magnífico, por causa de sua benevolência – era ele próprio um artista e poeta de mão cheia, e dizia-se que tinha um olhar artístico aguçado. Em 1489, interessou-se pelo trabalho de um jovem escultor florentino e convidou o rapaz a se mudar para o palácio dos Médici, onde poderia praticar seu ofício cercado por obras de arte refinadas, excelente poesia e alta cultura. Sob a tutela da família, o adolescente desabrochou. Tempos depois, viria a produzir duas das mais célebres esculturas de toda a história: a Pietà e o Davi. Hoje conhecemos esse artista como Michelangelo – um gigante criativo por vezes chamado de “o maior presente dos Médici para o mundo”.

       Considerando a paixão da família pela arte, Langdon imaginou que os Médici fossem gostar de saber que o edifício que se erguia à sua frente – originalmente construído para ser seu estábulo principal – havia sido transformado em um vibrante instituto de arte. Aquele local tranquilo que agora inspirava jovens artistas fora escolhido para abrigar os estábulos por causa de sua proximidade com um dos mais belos espaços de equitação de toda Florença.

       Os Jardins de Boboli.

       Langdon olhou para a esquerda, onde uma floresta de copas de árvores despontava por cima de um muro alto. Atualmente, o vasto terreno era uma atração turística muito popular. Tinha certeza de que, se ele e Sienna pudessem chegar aos jardins, conseguiriam atravessá-los e cruzar a Porta Romana sem serem vistos. Afinal, o espaço era extenso e cheio de esconderijos: florestas, labirintos, grutas e ninfeus. Mais importante: se atravessassem os Jardins de Boboli, acabariam chegando ao Palazzo Pitti, a cidadela de pedra que um dia servira de sede ao grão-ducado dos Médici e cujos 140 aposentos eram até hoje um dos pontos turísticos mais visitados de Florença.

       Se chegarmos ao Palazzo Pitti, pensou, a ponte para a cidade velha estará a poucos metros de distância.

       Gesticulou com toda a calma possível para o muro alto que cercava os jardins.

       – Por onde se entra no jardim? – perguntou. – Adoraria mostrá-lo à minha irmã antes de fazermos nosso tour pelo instituto.

       O rapaz tatuado balançou a cabeça.

       – Não dá para passar por aqui. A entrada fica lá no Palazzo Pitti. Vocês teriam que atravessar a Porta Romana e dar a volta.

       – Deixe de conversa – disparou Sienna.

       Todos se viraram para encará-la, inclusive Langdon.

       Ela abriu um sorriso maroto para os estudantes e, enquanto alisava o rabo de cavalo, falou:

       – Querem mesmo que eu acredite que vocês não entram escondidos nos jardins para fumar maconha e dar uns amassos?

       Os jovens trocaram olhares antes de cair na gargalhada.

       A essa altura, o rapaz tatuado já parecia perdidamente apaixonado.

       – Você deveria mesmo vir dar aulas aqui. – Ele guiou Sienna até a lateral do edifício e apontou para o estacionamento dos fundos localizado depois da quina. – Está vendo aquela cabana à esquerda? Atrás dela tem uma antiga plataforma. Se vocês subirem até o telhado, vão poder saltar para o outro lado do muro.

       Sienna já estava a caminho. Olhou por sobre o ombro para Langdon e abriu um sorriso condescendente.

       – Vamos lá, mano Bob. Ou é velho demais para pular uma cerca?

 

       Dentro da van, a mulher de cabelos prateados encostou a cabeça na janela blindada e fechou os olhos. Tinha a sensação de que o mundo girava à sua volta. Os remédios que eles haviam lhe administrado embrulhavam seu estômago.

       Preciso de um médico, pensou.

       De todo modo, o guarda armado ao seu lado tinha ordens claras: as necessidades da mulher deveriam ser ignoradas até que a tarefa deles fosse concluída com sucesso. A julgar pelo caos barulhento à sua volta, isso não aconteceria tão cedo.

       A tontura agora estava aumentando e ela sentia dificuldade para respirar. Enquanto lutava contra uma nova onda de enjoo, pensou como a vida tinha sido capaz de conduzi-la até uma encruzilhada tão surreal. A resposta era complexa demais para ser decifrada naquele estado delirante, mas ela sabia muito bem onde tudo havia começado.

       Em Nova York.

       Dois anos antes.

       Ela havia embarcado para Nova York de Genebra, onde era diretora da Organização Mundial da Saúde – cargo cobiçado e prestigioso que ocupava havia quase uma década. Especialista em doenças contagiosas e epidemiologia, fora convidada pela ONU para dar uma palestra sobre o risco de pandemias em países do Terceiro Mundo. A palestra tinha sido otimista e tranquilizadora, destacando vários novos sistemas de detecção prematura e planos de tratamento desenvolvidos pela OMS e por outras agências. Ao fim, fora aplaudida de pé.

       Após a palestra, estava no corredor conversando com alguns acadêmicos quando um funcionário do alto escalão da ONU se aproximou e interrompeu o diálogo:

       – Dra. Sinskey, acabamos de ser contatados pelo Conselho de Relações Exteriores. Um membro do conselho gostaria de conversar com a senhora. Um carro está lá fora à sua espera.

       Intrigada e um pouco preocupada, a Dra. Elizabeth Sinskey pediu licença e foi buscar sua malinha de viagem. Enquanto a limusine disparava pela Primeira Avenida, começou a se sentir estranhamente nervosa.

       O Conselho de Relações Exteriores?

       Como quase todo mundo, Elizabeth Sinskey já tinha escutado os boatos.

       Fundado em 1920 como um think tank particular, a lista de ex-integrantes do CRE incluía quase todos os secretários de Estado norte-americanos, mais de meia dúzia de presidentes, a maioria dos diretores da CIA, senadores, juízes e representantes de dinastias lendárias como os Morgan, Rothschild e Rockefeller. A combinação sem paralelos de poderio intelectual, influência política e riqueza material de seus membros rendera ao Conselho a reputação de “o mais influente clube privado da Terra”.

       Como diretora da OMS, Elizabeth Sinskey estava habituada a conviver com toda a sorte de figurões. Seu longo mandato, somado a um temperamento franco e direto, havia chamado a atenção de uma revista importante que a listara como uma das vinte pessoas mais influentes do mundo. O Rosto da Saúde Mundial, dizia a legenda abaixo de sua foto, o que Elizabeth achou irônico, pois tinha sido uma criança muito doente.

       Diagnosticada com asma severa aos 6 anos, fora tratada com uma dose cavalar de um medicamento novo e promissor – o primeiro dos glicocorticoides, também conhecidos como hormônios esteroides –, que havia curado os sintomas como por milagre. Infelizmente, os efeitos colaterais inesperados só tinham vindo à tona anos mais tarde, quando a Dra. Sinskey passara pela puberdade... sem nunca menstruar. Ela jamais se esqueceria do terrível momento no consultório médico quando, aos 19 anos, fora informada de que os danos ao seu sistema reprodutor eram irreversíveis.

       Elizabeth Sinskey nunca poderia ter filhos.

       O tempo vai curar o vazio que você está sentindo, dissera o médico, tentando tranquilizá-la, mas sua tristeza e sua raiva só tinham aumentado. O mais cruel de tudo era que o medicamento havia lhe roubado a capacidade de gerar filhos, mas não o instinto maternal. Ela passara muitas décadas lutando contra a ânsia de realizar esse desejo impossível.

       Mesmo agora, aos 61 anos, ainda sentia um vazio no peito sempre que via uma mãe com seu filho.

       – É logo adiante, Dra. Sinskey – anunciou o motorista da limusine.

       Elizabeth deu uma breve ajeitada nos longos cachos prateados e olhou o rosto no espelho. Quando se deu conta, o carro já tinha parado e o motorista estava junto à porta para ajudá-la a descer na calçada de um bairro rico de Manhattan.

       – Vou esperá-la aqui mesmo – falou o motorista. – Podemos ir direto para o aeroporto quando a senhora terminar.

       A sede nova-iorquina do Conselho de Relações Exteriores era um discreto edifício neoclássico na esquina da Park Avenue com a Rua 68, antiga residência de um magnata da Standard Oil. Seu exterior se mesclava de forma perfeita à paisagem elegante ao redor, sem oferecer nenhuma indicação de seu propósito singular.

       – Dra. Sinskey – cumprimentou uma recepcionista corpulenta. – Queira me acompanhar por aqui. Ele está à sua espera.

       Tudo bem, mas quem é ele? Seguiu a recepcionista por um luxuoso corredor até uma porta fechada na qual a mulher bateu rapidamente para logo depois abri-la e fazer um gesto para que Elizabeth entrasse.

       Quando obedeceu, a porta se fechou atrás dela.

       A pequena e escura sala de reuniões estava iluminada apenas pelo brilho de um monitor de vídeo, em frente ao qual uma silhueta alta e magra encarava a doutora. Embora não conseguisse distinguir o rosto, ela pressentiu uma aura de poder.

       – Dra. Sinskey – disse uma voz incisiva de homem. – Obrigado por ter vindo. – O sotaque rígido e preciso lhe sugeriu uma origem suíça, talvez alemã. – Por favor, sente-se – continuou ele, indicando uma cadeira próxima à entrada.

       Ele não vai se apresentar?, pensou então, enquanto se sentava. A imagem bizarra projetada no monitor não ajudou em nada a acalmar seus nervos. Que porcaria é essa?

       – Assisti à sua palestra hoje de manhã – declarou a silhueta. – Vim de muito longe para isso. Foi uma apresentação impressionante.

       – Obrigada – respondeu ela.

       – Devo dizer também que a senhora é bem mais bonita do que eu imaginava... apesar de sua idade e de sua visão míope sobre a saúde mundial.

       Elizabeth ficou de queixo caído. O comentário era ofensivo sob vários aspectos.

       – Como disse? – indagou, estreitando os olhos na escuridão. – Quem é o senhor? E por que me chamou aqui?

       – Perdoe minha tentativa fracassada de ser engraçado – respondeu o vulto alto e magro. – A imagem no monitor vai lhe explicar por que está aqui.

       A Dra. Sinskey olhou em direção à cena terrível: uma pintura que mostrava um vasto mar de gente, uma multidão de pessoas doentes amontoadas umas sobre as outras em um denso emaranhado de corpos nus.

       – O grande artista Doré – anunciou o homem. – E sua interpretação incrivelmente macabra da visão do Inferno criada por Dante Alighieri. Espero que não lhe cause desconforto... pois é para isso que estamos nos encaminhando. – O vulto fez uma pausa e se aproximou dela devagar. – Deixe-me explicar por quê.

       Ele continuou a avançar em sua direção, parecendo ficar mais alto a cada passo.

       – Se pegássemos este pedaço de papel e o rasgássemos em dois... – Ele se deteve diante da mesa, pegou uma folha de papel e a rasgou ao meio, fazendo barulho. – E depois colocássemos as duas metades uma em cima da outra... – Ele fez o que dizia. – E em seguida repetíssemos tudo outra vez... – O homem tornou a rasgar e empilhar os pedaços de papel. – Produziríamos uma pilha quatro vezes mais grossa do que o papel original, correto? – Os olhos dele pareciam arder como duas brasas na escuridão da sala.

       Elizabeth não estava gostando de seu tom condescendente nem de sua postura agressiva. Ficou calada.

       – Hipoteticamente falando – prosseguiu o homem, aproximando-se ainda mais –, se a folha de papel original tivesse apenas um décimo de milímetro de espessura e nós repetíssemos esse mesmo processo... cinquenta vezes, digamos... a senhora sabe qual seria a altura da pilha resultante?

       Elizabeth ficou irritada.

       – Sei, sim – respondeu de forma mais hostil do que pretendia. – Teria uma altura de um décimo de milímetro vezes dois elevado à quinquagésima potência. Chama-se progressão geométrica. Agora posso saber o que estou fazendo aqui?

       O homem abriu um sorriso afetado e assentiu, impressionado.

       – Exatamente. E consegue imaginar o que esse valor representaria na realidade? Um décimo de milímetro vezes dois elevado à quinquagésima potência? Sabe qual é a altura da nossa pilha de papel agora? – Ele se deteve apenas por um instante. – Nossa pilha de papel, depois de ser dobrada apenas cinquenta vezes, agora chega... quase até o sol.

       Elizabeth não ficou surpresa. O poder descomunal da progressão geométrica era algo com que ela lidava o tempo todo no trabalho. Círculos de contaminação... replicação de células infectadas... estimativas de mortalidade.

       – Perdoe-me se pareço ingênua – falou, sem tentar esconder seu aborrecimento. – Mas não estou entendendo aonde o senhor quer chegar.

       – Aonde quero chegar? – Ele riu baixinho. – Quero chegar à constatação de que a história do nosso crescimento populacional é ainda mais dramática. A população da Terra, assim como a nossa pilha de papel, teve um início bastante inexpressivo, mas seu potencial é alarmante.

       Ele voltou a andar de um lado para outro.

       – Pense no seguinte: a população da Terra levou milhares de anos, desde a aurora da humanidade até o início do século XIX, para atingir um bilhão de pessoas. Então, de forma estarrecedora, precisou apenas de uns cem anos para duplicar e chegar a dois bilhões, na década de 1920. Depois disso, em meros cinquenta anos, a população tornou a duplicar para quatro bilhões na década de 1970. Como a senhora pode imaginar, muito em breve chegaremos aos oito bilhões. Só hoje, a raça humana acrescentou outras 250 mil pessoas ao planeta Terra. Um quarto de milhão. E isso acontece todos os dias. Atualmente, a cada ano, acrescentamos ao planeta um pouco mais que o equivalente a toda a população da Alemanha.

       O homem parou de andar, assomando-se diante de Elizabeth.

       – Quantos anos a senhora tem?

       Outra pergunta grosseira, mas, como diretora da OMS, ela estava acostumada a usar de diplomacia em situações como essa.

       – Sessenta e um.

       – Sabia que, se viver mais 19 anos, até os 80, verá a população triplicar ao longo da sua vida? Triplicar, no tempo de uma única vida. Pense nas implicações. Como bem sabe, a Organização Mundial da Saúde voltou a elevar as previsões, calculando que haverá algo em torno de nove bilhões de pessoas na Terra antes da metade deste século. Espécies animais estão entrando em extinção num ritmo aceleradíssimo. A demanda por recursos naturais cada vez mais escassos é astronômica. É cada vez mais difícil encontrar água potável. De acordo com qualquer parâmetro biológico, nossa espécie já excedeu sua sustentabilidade numérica. E, diante desse desastre, a Organização Mundial da Saúde, a guardiã do bem-estar do planeta, investe em coisas como a cura da diabetes, campanhas de doação de sangue, luta contra o câncer. – Ele fez uma pausa e a encarou. – Então eu trouxe a senhora aqui para lhe perguntar diretamente: por que a Organização Mundial da Saúde não tem peito para enfrentar esta questão?

       Elizabeth agora fervia de raiva.

       – Seja o senhor quem for, deve saber muito bem que a OMS leva a questão da superpopulação muito a sério. Recentemente, gastamos milhões de dólares mandando médicos para a África com a missão de distribuir preservativos gratuitos e instruir as pessoas sobre métodos anticoncepcionais.

       – Ah, sim! – zombou o homem alto e magro. – E um exército ainda maior de missionários católicos foi para lá em seguida dizer aos africanos que, se eles usassem os tais preservativos, iriam todos para o Inferno. A África agora tem um novo problema ambiental: lixões transbordando de preservativos não utilizados.

       Elizabeth obrigou-se a ficar calada. Ele estava certo nesse ponto, mas os católicos mais modernos estavam começando a contra-atacar a interferência do Vaticano em assuntos reprodutivos. Um dos exemplos mais notáveis era Melinda Gates, católica devota que tivera a coragem de se expor à ira da própria igreja ao se comprometer a doar 560 milhões de dólares para ampliar o acesso a métodos anticoncepcionais no mundo todo. Elizabeth Sinskey já havia declarado várias vezes em público que Bill e Melinda Gates mereciam ser canonizados em razão de tudo o que tinham feito por meio de sua fundação em prol da saúde mundial. Infelizmente, a única instituição capaz de conferir santidade não enxergava a natureza cristã dos esforços dos dois.

       – Dra. Sinskey – continuou o vulto –, o que a Organização Mundial da Saúde não consegue perceber é que só existe uma questão de saúde global. – Ele tornou a apontar para a imagem sinistra no monitor, um copioso e emaranhado mar de corpos humanos. – Essa aqui. – Fez uma pausa. – Entendo que, por ser cientista, a senhora talvez não tenha estudado a fundo os clássicos ou as belas-artes, então deixe-me mostrar-lhe outra imagem em uma linguagem que talvez entenda mais facilmente.

       A sala ficou escura por alguns instantes, então o monitor se reacendeu.

       Elizabeth já tinha visto essa nova imagem diversas vezes... e ela sempre lhe trazia uma sensação funesta de inevitabilidade.

        Um silêncio pesado recaiu sobre a sala.

       – Sim – disse o homem por fim. – Silêncio horrorizado é uma reação adequada a esse gráfico. Vê-lo é mais ou menos como encarar os faróis de uma locomotiva que se aproxima. – Ele se virou devagar para Elizabeth e lhe deu um sorriso tenso e condescendente. – Alguma pergunta, Dra. Sinskey?

       – Só uma: o senhor me trouxe aqui para me dar um sermão ou para me ofender?

       – Nem uma coisa nem outra. – A voz dele assumiu um tom sinistramente adulador. – Eu a trouxe até aqui para trabalhar com a senhora. Não tenho dúvidas de que entende que a superpopulação é uma questão de saúde pública. Mas temo que não compreenda que ela vai afetar a própria alma humana. Quando submetidos ao estresse da superpopulação, aqueles que nunca cogitaram roubar se tornarão ladrões para alimentar suas famílias. Aqueles que nunca cogitaram matar se tornarão assassinos para sustentar seus filhos. Todos os pecados mortais retratados por Dante começarão a vir à tona. Avareza, gula, deslealdade, assassinato, etc., todos se espalharão entre a humanidade, amplificados pelo fim de nossos confortos. Estamos enfrentando uma batalha pela própria alma do ser humano.

       – Sou bióloga. Salvo vidas, não almas.

       – Bem, posso lhe garantir que salvar vidas vai se tornar cada vez mais difícil nos anos que estão por vir. A superpopulação gera mais do que descontentamento espiritual. Há um trecho de Maquiavel...

       – Sim, eu conheço – disse ela, interrompendo-o para citar de memória o famoso trecho: – “Quando todas as províncias do mundo estiverem abarrotadas a ponto de seus habitantes não conseguirem subsistir onde estão nem migrar para outra parte... o mundo irá purificar a si mesmo.” – Ela ergueu os olhos para o homem. – Todos nós da OMS conhecemos muito bem essa passagem.

       – Ótimo, então vocês sabem que Maquiavel diz em seguida que as pragas são a maneira natural de o mundo se autopurificar.

       – Sim. E, conforme mencionei em minha palestra, estamos mais do que cientes da correlação direta entre densidade populacional e probabilidade de epidemias em larga escala, mas desenvolvemos constantemente novos métodos de detecção e tratamento. A OMS ainda está segura de que podemos evitar futuras pandemias.

       – Que pena.

       Elizabeth o encarou, incrédula.

       – Como disse?!

       – Dra. Sinskey – disse o homem com uma risada estranha –, a senhora fala sobre controlar epidemias como se isso fosse uma coisa positiva.

       Ela o encarou boquiaberta, sem acreditar no que ouvia.

       – O que mais posso dizer? – declarou o homem, soando como um advogado apresentando seus argumentos finais. – Aqui estou, diante da diretora da OMS, o melhor que essa instituição tem a oferecer. Pensando bem, é assustador. Eu lhe mostrei a imagem de um desastre iminente – disse, mais uma vez mostrando a imagem dos corpos na tela. – Lembrei à senhora do incrível poder do crescimento populacional desenfreado. – Ele apontou a pilha de papel. – Fiz questão de esclarecer que estamos à beira de um colapso espiritual. E qual foi a sua reação? – Ele se deteve, virando-se para encarar Elizabeth. – Falar sobre preservativos gratuitos para a África. – O homem riu com desdém. – É como brandir um mata-moscas para se proteger de um asteroide. A bomba-relógio não está mais em contagem regressiva. Ela já explodiu e, se não tomarmos medidas drásticas, a matemática exponencial vai se tornar nosso novo Deus... e “Ele” é um Deus vingativo. Fará com que a senhora veja o Inferno de Dante bem ali na Park Avenue... multidões chafurdando nos próprios excrementos. Um expurgo global orquestrado pela própria Natureza.

       – É mesmo? – rebateu Elizabeth, perdendo a paciência. – Então me diga, na sua visão de um futuro sustentável, qual é a população ideal da Terra? Qual é o número mágico que daria à humanidade a esperança de se sustentar de forma indefinida... e com relativo conforto?

       O homem sorriu, claramente satisfeito com aquela pergunta.

       – Qualquer biólogo ou estatístico ambiental lhe dirá que a maior chance de sobrevivência a longo prazo para a humanidade acontece com uma população global de cerca de quatro bilhões de habitantes.

       – Quatro bilhões? – repetiu Elizabeth. – Nós já estamos em sete bilhões, então é um pouco tarde para isso.

       Os olhos verdes do homem se incendiaram quando ele perguntou:

       – Será?

 

       Robert Langdon caiu com força na terra suave junto à parte interna do muro sul dos Jardins de Boboli; a vegetação ali era cerrada. Sienna saltou no chão ao seu lado e se levantou, batendo a poeira do corpo e observando o espaço à sua volta.

       Estavam em uma clareira de musgo e samambaias à beira de uma pequena floresta. Daquele ponto não dava para ver o Palazzo Pitti, e Langdon achou que aquela fosse a parte dos jardins mais afastada do palácio. Pelos menos era cedo demais para que houvesse trabalhadores ou turistas por aqueles lados.

       Langdon olhou para o gracioso caminho de cascalho que serpenteava em direção à floresta à sua frente. No ponto em que a trilha desaparecia em meio às árvores, uma estátua de mármore fora posicionada de modo que era impossível não vê-la. Langdon não ficou surpreso. Os Jardins de Boboli eram produto do excepcional talento criativo de Niccolò Tribolo, Giorgio Vasari e Bernardo Buontalenti – um coletivo de mentes brilhantes cujo virtuosismo estético havia criado naquela tela de cinco hectares uma obra-prima pela qual se podia caminhar.

       – Se seguirmos para o nordeste, vamos chegar ao palácio – disse Langdon, indicando o caminho. – Podemos nos misturar aos turistas e sair sem sermos vistos. Imagino que o palácio abra às nove.

       Langdon olhou para baixo para conferir as horas, mas viu apenas o punho nu onde costumava ficar seu relógio do Mickey Mouse. Perguntou-se, distraído, se o relógio ainda estaria no hospital com o restante de suas roupas e se algum dia conseguiria recuperá-lo.

       Sienna fincou os pés no chão com teimosia.

       – Robert, antes de darmos mais um passo que seja, quero saber para onde estamos indo. O que você descobriu antes, quando falou sobre o Malebolge? Disse que ele estava fora de ordem?

       Langdon acenou para uma área coberta de árvores logo adiante.

       – Primeiro vamos nos esconder.

       Ele a conduziu por um caminho que dobrava em direção a um recanto coberto – um “pergolado”, na linguagem do paisagismo – onde havia alguns bancos de madeira ecológica e um pequeno chafariz. O ar debaixo das árvores estava bem mais fresco.

       Langdon tirou o projetor do bolso e começou a sacudi-lo.

       – Sienna, quem quer que tenha criado esta imagem digital não só acrescentou letras aos pecadores no Malebolge, como também mudou a ordem dos pecados.

       Ele deu um pulo e ficou de pé no banco, agigantando-se diante de Sienna. Então apontou o projetor para os próprios pés. O Mappa dell’Inferno de Botticelli foi debilmente projetado na superfície plana do banco, ao lado de onde ela estava.

       Langdon gesticulou para a área em camadas na parte inferior do funil.

       – Está vendo as letras nas dez valas do Malebolge?

       Sienna as encontrou na imagem e começou a lê-las de cima para baixo.

       – Catrovacer.

       – Exato. Não quer dizer nada.

       – Então você percebeu que as dez valas tinham sido embaralhadas?

       – Na verdade, é mais simples do que isso. Se esses níveis fossem um jogo de dez cartas, ele não teria sido propriamente embaralhado, mas sim cortado uma única vez. Depois do corte, as cartas continuam na mesma ordem, só que a sequência começa errada. – Langdon apontou as dez valas do Malebolge. – Segundo o texto de Dante, nosso primeiro nível deveria ser o dos sedutores açoitados por demônios. Mas nesta versão aqui os sedutores aparecem... bem mais abaixo, na sétima vala.

       Sienna analisou a imagem que já se apagava ao seu lado e assentiu.

       – Sim, estou vendo. A primeira vala agora é a sétima.

       Langdon guardou o projetor no bolso e saltou de volta para o chão. Pegando um pequeno graveto, escreveu as letras em um pedaço de terra batida bem ao lado do caminho.

       – Aqui estão as letras conforme aparecem na nossa versão modificada do Inferno:

        

       C

       A

       T

       R

       O

       V

       A

       C

       E

       R

        

       – Catrovacer – leu Sienna.

       – Isso. E aqui é onde o “baralho” foi cortado.

       Langdon riscou uma linha debaixo da sétima letra e esperou Sienna examinar o que ele fizera.

        

       C

       A

       T

       R

       O

       V

       A

       —

       C

       E

       R

        

       – Certo – Sienna apressou-se em dizer. – Catrova. Cer.

       – Isso. E, para reordenar as cartas, basta desfazer o corte e passar a parte de baixo para cima. As duas metades trocam de lugar.

       Sienna olhou para as letras.

       – Cer. Catrova. – Ela deu de ombros. Não parecia nem um pouco impressionada. – Ainda não significa nada...

       – Cer catrova – repetiu Langdon. Fez uma pausa e tornou a dizer as palavras, pronunciando-as de uma vez só. – Cercatrova. – Por fim, voltou a dizê-las com uma pausa no meio. – Cerca... trova.

       Sienna soltou um arquejo e ergueu os olhos para encará-lo.

       – Sim – confirmou ele com um sorriso. – Cerca trova.

       As duas palavras em italiano cerca e trova significavam, literalmente, “busca” e “encontra”. Quando combinadas em uma só frase – cerca trova – eram um sinônimo do aforismo bíblico “Busca e encontrarás”.

       – As suas alucinações! – exclamou Sienna, mal conseguindo respirar. – A mulher de véu! Ficava mandando você buscar e encontrar! – Ela se levantou com um pulo. – Robert, você entende o que isso quer dizer? As palavras cerca trova já estavam no seu inconsciente! Está entendendo? Você deve ter decifrado essa expressão antes de chegar ao hospital! Provavelmente já tinha visto a imagem do projetor antes... só que não se lembrava!

       Ela tem razão, percebeu ele. Estava tão concentrado no código em si que a possibilidade de já ter feito tudo aquilo antes nem lhe passara pela cabeça.

       – Robert, você disse mais cedo que o Mappa apontava para um local específico na cidade velha. Mas ainda não entendi que local é esse.

       – Cerca trova não lhe diz nada?

       Ela deu de ombros.

       Langdon sorriu por dentro. Até que enfim, algo que Sienna não sabe.

       – Ao que tudo indica, essa expressão aponta de forma muito específica para um famoso mural que pode ser visto no Palazzo Vecchio: a Batalha de Marciano, de Giorgio Vasari, que fica no Salão dos Quinhentos. Perto do topo do quadro, Vasari pintou as palavras cerca trova em letras miúdas, quase invisíveis. Existem várias teorias que tentam explicar por que ele fez isso, mas nenhuma prova conclusiva jamais foi descoberta.

       O zunido agudo de uma pequena aeronave ecoou de repente acima de suas cabeças, vindo do nada e roçando as copas das árvores que os cobriam como um dossel. O som pareceu muito próximo e os dois ficaram petrificados enquanto a aeronave passava.

       Quando ela estava se afastando, Langdon olhou para cima e espiou por entre as árvores.

       – Um helicóptero de brinquedo – falou, respirando aliviado ao observar a aeronave de quase um metro de largura controlada por rádio se inclinar para fazer uma curva ao longe. O aparelho soava como um mosquito gigante e zangado.

       Sienna, no entanto, ainda parecia desconfiada.

       – Continue abaixado.

       O helicóptero em miniatura terminou de fazer a curva e começou a voltar, passando novamente por cima deles rente às copas das árvores e se afastando para a esquerda dessa vez, a fim de sobrevoar outra clareira.

       – Isso não é um brinquedo – sussurrou ela. – É um drone de reconhecimento. Deve ter uma câmera de vídeo embutida e está transmitindo imagens em tempo real para... alguém.

       O maxilar de Langdon se retesou enquanto ele observava o pequeno helicóptero seguir na direção de que tinha vindo, perto da Porta Romana e do Instituto de Arte.

       – Não sei o que você fez – falou Sienna –, mas está claro que há gente muito poderosa querendo encontrá-lo.

       O helicóptero fez outra curva e começou a sobrevoar devagar o muro que eles tinham acabado de pular.

       – Alguém no Instituto de Arte deve ter nos visto e dito alguma coisa – ponderou Sienna, avançando pelo caminho. – Temos que tirar você daqui. Agora mesmo.

       Enquanto o drone se afastava zumbindo em direção à extremidade oposta dos jardins, Langdon apagou com o pé as letras que havia escrito na terra batida e se apressou em acompanhar Sienna. Um turbilhão de pensamentos sobre cerca trova e o mural de Giorgio Vasari rodopiava em sua mente, bem como a revelação de Sienna de que ele já devia ter decifrado a mensagem do projetor antes: Busca e encontrarás.

       De repente, bem na hora em que eles entraram em uma segunda clareira, um pensamento surpreendente lhe ocorreu. Ele derrapou até parar no caminho cercado de árvores com uma expressão assombrada no rosto.

       Sienna também se deteve.

       – Robert? O que houve?!

       – Sou inocente – declarou ele.

       – Como assim?

       – Essas pessoas me perseguindo... imaginei que eu tivesse feito algo terrível.

       – Sim, no hospital você não parava de dizer very sorry.

       – Eu sei. Mas achamos que fosse em inglês.

       Sienna o encarou, surpresa.

       – Mas você era inglês!

       Os olhos azuis de Langdon agora estavam cheios de animação.

       – Sienna, quando fiquei repetindo very sorry, não estava pedindo desculpas. Estava balbuciando algo sobre a mensagem secreta no mural do Palazzo Vecchio! – Ainda podia ouvir a gravação da própria voz delirante. Ve... sorry. Ve... sorry.

       Sienna parecia confusa.

       – Não entendeu ainda?! – Langdon agora sorria. – Eu não estava dizendo very sorry, very sorry. Estava dizendo o nome do artista: Va... sari, Vasari!

 

       Vayentha freou bruscamente.

       A traseira da motocicleta oscilou de um lado para o outro, cantando bem alto os pneus e deixando uma longa marca no asfalto do Viale del Poggio Imperiale até enfim parar atrás de um fila inesperada de tráfego. O Viale del Poggio estava todo parado.

       Não tenho tempo para isso!

       Ela esticou o pescoço para olhar por sobre os carros, tentando ver o que estava causando o congestionamento. Já tinha sido obrigada a dar uma volta enorme para evitar a equipe de SMI e todo o caos em volta do prédio residencial, e agora precisava chegar à cidade velha para desocupar o quarto de hotel em que estivera baseada durante os últimos dias daquela missão.

       Fui desvinculada. Preciso dar o fora desta cidade!

       No entanto, parecia que sua maré de azar ainda não havia acabado. Pelo jeito, a rota que ela havia escolhido para chegar à cidade velha estava bloqueada. Sem paciência para esperar, acelerou a moto e jogou-a para um dos lados, esquivando-se do engarrafamento e disparando pelo acostamento estreito até conseguir ver o cruzamento parado. Adiante havia uma rotatória congestionada na qual convergiam seis grandes vias. Aquela era a Porta Romana, portal da cidade velha e um dos pontos de Florença com o tráfego mais pesado.

       Droga, o que está acontecendo aqui?!

       Vayentha então viu que toda a área estava apinhada de policiais – algum tipo de barricada ou posto de controle. Logo em seguida, notou algo no centro da ação que a deixou pasma: uma conhecida van preta com vários agentes vestidos de preto ao redor, gritando ordens para as autoridades locais.

       Sem dúvida aqueles homens eram da equipe de SMI, mas Vayentha não conseguia imaginar o que estavam fazendo ali.

       A menos que...

       Ela engoliu em seco, mal ousando pensar na possibilidade. Será que Langdon também escapou de Brüder? Parecia impensável; suas chances de fuga tinham sido quase nulas. Por outro lado, ele não estava sozinho e Vayentha tinha visto em primeira mão quanto aquela mulher loura podia ser engenhosa.

       Um policial apareceu perto de onde ela estava, indo de carro em carro e mostrando a foto de um homem bonito com cabelos castanhos fartos. Na mesma hora Vayentha reconheceu a imagem: era uma foto de divulgação de Robert Langdon. Seu coração pulou.

       Brüder o deixou fugir!

       Langdon continua à solta!

       Estrategista experiente, no mesmo instante ela começou a avaliar como aquele desdobramento modificava sua situação.

       Opção um: fugir conforme o planejado.

       Vayentha havia arruinado um serviço crucial e por isso o diretor a desvinculara. Se tivesse sorte, seria submetida a um inquérito formal e sua carreira chegaria ao fim. No entanto, se tivesse azar e houvesse subestimado a severidade do chefe, talvez passasse o resto da vida olhando por cima do ombro e pensando se o Consórcio não a estaria perseguindo.

       Agora tenho uma segunda alternativa.

       Concluir a missão.

       Continuar agindo feria o protocolo de desvinculação, mas, com Langdon ainda à solta, ela agora tinha a chance de dar continuidade a seu plano original.

       Se Brüder não conseguir capturar Langdon, pensou, com a pulsação acelerada. E eu sim...

       Sabia que as chances eram mínimas, mas, se Langdon conseguisse despistar Brüder definitivamente e ela ainda pudesse entrar em ação e terminar o serviço, resolveria sozinha todo o problema para o Consórcio, de modo que o diretor não teria alternativa a não ser perdoá-la.

       Vou manter meu emprego, pensou. Talvez até seja promovida.

       Num piscar de olhos, Vayentha percebeu que todo o seu futuro dependia de uma missão decisiva. Preciso localizar Langdon... antes de Brüder.

       Não seria fácil. Brüder tinha à sua disposição um efetivo inesgotável e as mais avançadas tecnologias de vigilância. Ela, por sua vez, estava trabalhando sozinha. Porém, tinha uma informação que faltava a Brüder, ao diretor e à polícia.

       Tenho um bom palpite sobre o local para onde Langdon está indo.

       Acelerando a moto BMW, ela deu um giro de 180 graus e tomou o mesmo caminho pelo qual tinha vindo. A Ponte alle Grazie, pensou, visualizando a estrutura ao norte. Havia mais de um jeito de se chegar à cidade velha.

 

       Não é um pedido de desculpas, refletiu Langdon. É o nome de um artista.

       – Vasari – gaguejou Sienna, recuando um passo na trilha. – O artista que pintou um mural e escondeu nele as palavras cerca trova.

       Langdon não pôde deixar de sorrir. Vasari. Vasari. Além de lançar um raio de luz sobre a estranha situação em que se encontrava, a revelação também significava que ele não precisava mais se perguntar que coisa terrível teria feito para lamentar tanto.

       – Robert, é óbvio que você viu essa imagem de Botticelli no projetor antes de ser ferido, e sabia que ela continha o código que apontava para o mural de Vasari. Foi por isso que ficou repetindo o nome dele sem parar!

       Langdon tentou entender o que tudo aquilo significava. Giorgio Vasari – artista, arquiteto e escritor quinhentista – era um homem a quem ele se referia muitas vezes como “o primeiro historiador de arte do mundo”. Apesar das centenas de pinturas de Vasari e das dezenas de edifícios projetados por ele, seu legado mais perene era o inspirador livro intitulado Vidas dos artistas, uma coletânea de biografias de artistas italianos que até hoje é leitura obrigatória para qualquer estudante de história da arte.

       As palavras cerca trova tinham trazido o nome de Vasari de volta ao imaginário coletivo cerca de trinta anos antes, quando a “mensagem secreta” fora descoberta no alto do vasto mural de sua autoria no Salão dos Quinhentos do Palazzo Vecchio. As letras miúdas encontravam-se em um estandarte de batalha verde, quase invisíveis em meio à caótica cena de guerra. Embora ainda não houvesse consenso quanto ao motivo para Vasari ter acrescentado essa estranha mensagem ao mural, a teoria mais aceita era de que se tratava de uma pista para gerações futuras sobre um afresco perdido de Leonardo da Vinci que estaria escondido em um vão de 3 centímetros atrás daquela parede.

       Nervosa, Sienna ergueu os olhos para as copas das árvores.

       – Ainda tem uma coisa que eu não entendo. Se você não estava dizendo que lamentava muito, então... por que estão tentando matá-lo?

       Langdon vinha se perguntando a mesma coisa.

       O zumbido distante emitido pelo drone voltava a ficar mais alto e Langdon soube que era hora de tomar uma decisão. Não entendia como a Batalha de Marciano de Vasari poderia estar relacionada ao Inferno de Dante ou ao ferimento à bala que ele sofrera na noite anterior, mas enfim conseguia ver um caminho tangível à sua frente.

       Cerca trova.

       Busca e encontra.

       Tornou a ver a mulher de cabelos prateados gritando para ele da outra margem do rio. O tempo está se esgotando! Sentia que, se houvesse respostas, elas deviam estar no Palazzo Vecchio.

       Foi então que se lembrou de um antigo provérbio grego atribuído a alguns dos primeiros mergulhadores a caçarem lagostas nas cavernas de coral das ilhas do Egeu. Quando se está nadando em um túnel escuro, chega um momento em que não se tem mais fôlego para voltar. A única alternativa é seguir nadando rumo ao desconhecido... e rezar por uma saída.

       Langdon se perguntou se eles teriam chegado a esse ponto.

       Olhou em direção ao labirinto que se estendia pelo jardim à sua frente. Se ele e Sienna conseguissem chegar ao Palazzo Pitti e sair dos jardins, estariam muito perto da cidade velha. Bastaria cruzar a mais famosa ponte de pedestres do mundo – a Ponte Vecchio. O Palazzo Vecchio ficava a apenas alguns quarteirões dali.

       O drone zumbiu mais perto e, por alguns instantes, Langdon sentiu um cansaço esmagador. Descobrir que não tinha dito very sorry o levava a questionar por que estava fugindo da polícia.

       – Sienna, alguma hora eles vão me pegar – falou. – Talvez seja melhor eu parar de fugir.

       Sienna o encarou com uma expressão alarmada.

       – Robert, é só você parar que alguém começa a atirar em você! Precisa descobrir no que está metido. Tem que ver o mural de Vasari. Talvez isso reavive a sua memória. Talvez o ajude a descobrir de onde veio esse projetor e por que você o está carregando.

       Langdon visualizou a mulher de cabelos espetados matando o Dr. Marconi a sangue-frio; os soldados disparando contra eles; a polícia militar italiana reunida diante da Porta Romana; e agora um drone de reconhecimento os perseguindo pelos Jardins de Boboli. Ficou calado e esfregou os olhos cansados, pesando suas opções.

       – Robert? – disse Sienna. – Tem mais uma coisa... Não me pareceu importante na hora, mas agora talvez seja.

       Reagindo à gravidade em seu tom de voz, Langdon ergueu os olhos.

       – Pretendia contar lá no meu apartamento, mas... – Ela não completou.

       – O que foi?

       Sienna franziu os lábios, parecendo pouco à vontade.

       – Quando você chegou ao hospital, estava delirando e tentando se comunicar.

       – Eu sei, estava murmurando “Vasari, Vasari” – disse ele.

       – Sim, mas antes disso... antes de pegarmos o gravador, assim que você chegou, eu me lembro de ouvi-lo dizer outra coisa. Foi só uma vez, mas tenho certeza de que entendi.

       – O que eu disse?

       Sienna ergueu os olhos para o drone antes de voltar a encarar Langdon.

       – Você disse: A chave para encontrá-lo está comigo... se eu fracassar, só restará a morte.

       Langdon ficou petrificado.

       Sienna prosseguiu:

       – Achei que estivesse se referindo ao objeto no bolso do paletó, mas agora já não tenho tanta certeza.

       Se fracassar, só restará a morte? As palavras atingiram Langdon como um soco. As marcantes representações da morte lampejaram diante dos seus olhos: o Inferno de Dante, o símbolo de risco biológico, o médico com a máscara da peste. Mais uma vez, o rosto da bela mulher de cabelos prateados lhe suplicava na margem oposta do rio vermelho-sangue: Busca e encontrarás! O tempo está se esgotando!

       A voz de Sienna o trouxe de volta:

       – Não sei para onde esse projetor está apontando nem o que você está tentando encontrar, mas deve ser algo muito perigoso. O fato de ter gente tentando nos matar... – A voz de Sienna falhou um pouco, e ela precisou de alguns instantes para se recompor. – Pense. Eles acabaram de atirar em você em plena luz do dia... e atiraram em mim, uma observadora inocente. Ninguém parece interessado em negociar. O seu próprio governo lhe virou as costas: você ligou pedindo ajuda e eles mandaram alguém para matá-lo.

       Langdon fitou o chão com um olhar perdido. O consulado dos Estados Unidos tanto poderia ter compartilhado sua localização com a assassina quanto sido ele próprio o responsável por enviá-la; era irrelevante. O resultado era o mesmo. Meu próprio governo está contra mim.

       Ele fitou os olhos castanhos de Sienna e viu coragem neles. Em que eu fui envolvê-la?

       – Quem me dera saber o que estamos procurando. Ajudaria a relativizar essa história toda.

       Sienna concordou com a cabeça.

       – Seja lá o que for, acho que precisamos encontrá-lo. Pelo menos nos daria alguma vantagem.

       Sua lógica era difícil de refutar. Mesmo assim, algo ainda incomodava Langdon. Se eu fracassar, só restará a morte. Ele passara a manhã inteira topando com símbolos macabros que representavam risco biológico, pestes e o Inferno de Dante. Por mais que não tivesse provas claras sobre o que estava buscando, seria ingênuo não cogitar ao menos a possibilidade de aquela situação envolver uma doença letal ou uma ameaça biológica em grande escala. Se fosse isso mesmo, então por que seu próprio governo estaria tentando eliminá-lo?

       Será que eles acham que estou envolvido num possível plano de ataque?

       Não fazia o menor sentido. Havia alguma outra coisa acontecendo ali.

       Ele tornou a pensar na mulher de cabelos prateados.

       – Não podemos esquecer a mulher das minhas visões. Tenho a sensação de que preciso encontrá-la.

       – Então confie nessa sensação – aconselhou Sienna. – Nas suas condições, sua melhor bússola é o inconsciente. É uma questão de psicologia básica: se o seu instinto lhe diz para confiar nessa mulher, então deve fazer exatamente o que ela mandar.

       – Buscar e encontrar – disseram os dois ao mesmo tempo.

       Langdon expirou, enxergando com clareza o caminho a seguir.

       Tudo o que posso fazer é seguir nadando por este túnel.

       Com determinação renovada, ele se virou e correu os olhos à sua volta, tentando se situar. Para que lado fica a saída dos jardins?

       Eles estavam parados debaixo das árvores no entorno de uma esplanada em que vários caminhos se cruzavam. Mais ao longe, à esquerda, Langdon viu uma lagoa em formato de elipse com uma pequena ilha enfeitada com limoeiros e um grupo de estátuas. O Isolotto, pensou, reconhecendo a famosa escultura de Perseu montado em um cavalo com metade do corpo submerso, saltando de dentro d’água.

       – O Palazzo Pitti fica para lá – falou, apontando para o leste, para além do Isolotto, em direção ao caminho principal do jardim: o Viottolone, que se estendia de leste a oeste por todo o terreno, largo como uma rodovia de duas pistas e ladeado por fileiras de esguios ciprestes com quatro séculos de idade.

       – Não tem proteção nenhuma – disse Sienna, lançando um olhar para a alameda a céu aberto e indicando com um gesto o drone que os sobrevoava em círculos.

       – Tem razão – disse Langdon com um sorriso malicioso. – É por isso que vamos pegar o túnel logo ao lado.

       Então apontou a cerca viva cerrada que margeava o Viottolone. Um pequeno arco de entrada fora aberto no espesso muro vegetal. Depois dele, uma trilha estreita se estendia a perder de vista – um verdadeiro túnel que corria paralelo ao Viottolone. Era fechado de ambos os lados por duas fileiras de azinheiras podadas, cuidadosamente domadas desde o século XVII para se arquear e se entrelaçar acima do caminho, criando um toldo de folhagens. O nome da trilha, La Cerchiata – literalmente, “circular” ou “arqueada” –, vinha desse dossel de árvores curvadas que parecia os aros, ou cerchi, de um barril.

       Sienna correu até a entrada em arco e espiou para dentro do caminho escuro. Na mesma hora, virou-se de volta para ele com um sorriso.

       – Melhor.

       Sem perder tempo, ela atravessou a abertura e se afastou depressa por entre as árvores.

       Langdon sempre havia considerado La Cerchiata um dos espaços mais tranquilos de Florença. Nessa hora, porém, ao ver Sienna desaparecer na penumbra do corredor, voltou a pensar nos mergulhadores gregos nadando pelos túneis de coral e rezando para encontrarem uma saída.

       Fez uma prece ligeira e partiu rapidamente atrás dela.

 

       Pouco menos de um quilômetro atrás deles, em frente ao Instituto de Arte, o agente Brüder atravessou a passos firmes um aglomerado de policiais e alunos, usando o olhar gélido para abrir caminho em meio à multidão. Foi até o posto de comando improvisado que o especialista em vigilância da sua equipe havia montado sobre o capô da van preta.

       – Imagens do drone – disse o especialista entregando-lhe um tablet. – Feitas há poucos minutos.

       Brüder examinou os stills de vídeo e se deteve na ampliação borrada de dois rostos: um homem de cabelos escuros e uma loura de rabo de cavalo, ambos encolhidos nas sombras e olhando para o céu através das copas das árvores.

       Robert Langdon.

       Sienna Brooks.

       Não havia dúvida.

       Examinou então o mapa dos Jardins de Boboli aberto sobre o capô. Péssima escolha, pensou ao ver a planta. Embora vastos e intricados, cheios de esconderijos em potencial, os jardins também pareciam cercados de muros altos por todos os lados. Eram a coisa mais próxima de uma arapuca natural que Brüder já vira em toda a sua carreira.

       Eles nunca vão conseguir sair.

       – As autoridades locais estão bloqueando todas as saídas – disse o especialista. – E iniciando uma varredura.

       – Mantenha-me informado – disse Brüder.

       Ergueu os olhos devagar para a grossa janela de policarbonato da van, através da qual pôde ver a mulher de cabelos prateados sentada no banco de trás.

       Os remédios que eles lhe deram haviam embotado seus sentidos – mais do que Brüder imaginara. Mesmo assim, ele podia notar pela expressão de medo em seus olhos que ela ainda entendia muito bem o que estava acontecendo.

       Ela não parece estar nada feliz, pensou Brüder. Mas também, por que estaria?

 

       Uma coluna de água jorrou 6 metros no ar.

       Langdon a observou recuar lentamente de volta para o chão e soube que estavam chegando perto. Haviam alcançado o fim do frondoso túnel da Cerchiata e atravessaram correndo um gramado a céu aberto em direção a um grupo de sobreiros. Agora estavam diante do mais famoso chafariz dos Jardins de Boboli – a escultura de bronze de Stoldo Lorenzi que representava Netuno com seu tridente em mãos. Chamada com irreverência pelos florentinos de “O chafariz do garfo”, aquela atração aquática era considerada o ponto central dos jardins.

       Sienna parou à beira do bosque e ergueu os olhos para espiar por entre as árvores.

       – Não estou vendo o drone.

       Langdon também não conseguia mais ouvi-lo, embora a fonte fizesse muito barulho.

       – Deve ter precisado reabastecer – sugeriu Sienna. – É a nossa chance. Para que lado?

       Langdon a conduziu para a esquerda e eles começaram a descer uma ladeira íngreme. Assim que deixaram a copa das árvores, o Palazzo Pitti surgiu à sua frente.

       – Casinha simpática – sussurrou ela.

       – Modesta, como os Médici gostavam – respondeu ele com ironia.

       Ainda a quase um quilômetro de distância, a fachada de pedra do palazzo dominava o horizonte, estendendo-se para ambos os lados. A cantaria rústica e saliente emprestava ao edifício um ar de autoridade severa que era ainda mais acentuado pela repetição impactante de janelas fechadas e vãos encimados por arcos. Tradicionalmente, palácios formais como aquele eram construídos em terrenos elevados, de modo que qualquer pessoa nos jardins tivesse de erguer os olhos para vê-los. O Palazzo Pitti, no entanto, ficava em um vale próximo ao rio Arno – portanto, se você estivesse nos Jardins de Boboli, tinha de olhar colina abaixo para avistá-lo.

       O efeito era ainda mais dramático. Certa vez, um arquiteto dissera que o palácio parecia ter sido erguido pela própria natureza, como se as imensas pedras de um deslizamento tivessem rolado pela longa escarpa até formar uma elegante pilha em forma de barricada lá embaixo. Apesar de mais difícil de defender por estar em terreno rebaixado, a sólida estrutura de pedra do Palazzo Pitti era tão imponente que Napoleão chegara a usá-lo como quartel-general quando estava em Florença.

       – Olhe – falou Sienna, apontando para as portas mais próximas do palácio. – Boa notícia.

       Langdon também tinha visto. Nessa estranha manhã, a visão mais bem-vinda não foi a do palácio em si, mas a do fluxo de turistas que saía do edifício em direção à parte mais baixa dos jardins. O palácio estava aberto, ou seja, Langdon e Sienna não teriam problemas em entrar despercebidos e atravessar o edifício para escapar dali. Uma vez fora do palácio, Langdon sabia que veriam o rio Arno à direita e, além dele, as torres da cidade velha.

       Seguiram em frente, quase trotando pela íngreme encosta. Ao descerem, passaram pelo Anfiteatro de Boboli, palco da primeira apresentação de ópera da história, aninhado como uma ferradura na lateral de um aclive. Depois cruzaram o obelisco de Ramsés II e a lamentável obra de “arte” que havia em sua base. Os guias turísticos a descreviam como “uma colossal bacia de pedra das Termas de Caracalla, em Roma”, mas Langdon sempre a vira como o que de fato era: a maior banheira do mundo. Alguém realmente precisa pôr esse troço em outro lugar.

       Enfim chegaram aos fundos do palácio e diminuíram o ritmo, passando a andar com tranquilidade e misturando-se aos primeiros turistas do dia. Seguindo contra o fluxo, desceram um túnel estreito em direção ao cortile, um pátio interno em que os visitantes tomavam seu espresso matinal no café improvisado do palácio. O cheiro dos grãos moídos na hora impregnava o ar, e Langdon sentiu uma vontade repentina de se sentar e tomar um café da manhã decente. Vai ter que ficar para outro dia, pensou enquanto seguiam, adentrando o largo arco de pedra que conduzia às portas principais do palácio.

       Ao se aproximarem da porta, Langdon e Sienna depararam com um congestionamento cada vez maior de turistas parados que pareciam reunidos no pórtico para observar algo do lado de fora. Langdon espiou pela multidão para tentar ver a área em frente ao palácio.

       A grandiosa entrada do Pitti era tão austera e pouco convidativa quanto ele se lembrava. Em vez de gramados e jardins bem-cuidados, o pátio da frente era uma vasta área pavimentada que se estendia ao longo de toda uma encosta, descendo até a Via dei Guicciardini como uma enorme pista de esqui de asfalto.

       Ao pé da colina, Langdon viu o motivo daquela multidão de curiosos.

       Mais adiante, na Piazza dei Pitti, meia dúzia de viaturas policiais acabara de chegar de todas as direções. Um pequeno exército de agentes subia a ladeira, sacando as armas e se espalhando em leque para isolar a frente do palácio.

 

       Quando a polícia entrou no Palazzo Pitti, Sienna e Langdon já batiam em retirada para dentro do palácio, mudando de direção para fugir dos agentes que se aproximavam. Atravessaram correndo o cortile e tornaram a passar pelo café onde um burburinho já se espalhava, com turistas esticando o pescoço para tentar localizar a origem de toda aquela comoção.

       Sienna ficou admirada que as autoridades os tivessem achado tão depressa. O drone deve ter desaparecido porque já nos localizou.

       Ela e Langdon encontraram o mesmo túnel estreito pelo qual tinham descido dos jardins e, sem hesitar, mergulharam nele de volta, subindo os degraus às pressas. No final, a escada dobrava à esquerda e contornava um alto muro de contenção. Enquanto corriam, acompanhando-o, a altura do muro diminuía, até toda a extensão dos Jardins de Boboli ficar visível.

       De repente, Langdon pegou o braço de Sienna e a puxou para trás, agachando-se junto ao muro para se esconder. Sienna também tinha visto.

       A uns 300 metros de distância, no aclive acima do anfiteatro, uma falange de policiais vinha descendo, vasculhando bosques, falando com turistas e se comunicando por meio de walkie-talkies para coordenar a busca.

       Estamos encurralados!

       Quando conheceu Robert Langdon, Sienna jamais teria imaginado que a situação chegaria àquele ponto. Foi muito além do que eu esperava. Ao sair com ele do hospital, pensara que eles estivessem fugindo de uma mulher armada de cabelos espetados. Agora fugiam de toda uma força militar e das autoridades italianas. Percebeu que as chances de conseguirem escapar eram quase nulas.

       – Tem alguma outra saída? – perguntou Sienna, ofegante.

       – Acho que não – respondeu Langdon. – Este jardim é uma cidade murada, igual ao... – Ele se deteve, virou-se e olhou para o leste. – Igual ao Vaticano. – Uma estranha fagulha de esperança atravessou seu rosto.

       Sienna não conseguia imaginar o que o Vaticano tinha a ver com aquela enrascada, mas Langdon começou a assentir, olhando para a parte de trás do palácio, a leste.

       – Não garanto nada – disse ele, puxando-a. – Mas talvez haja outra maneira de sair daqui.

       De repente, dois vultos contornaram o muro de contenção e se materializaram bem na sua frente, quase trombando com eles. Ambos vestiam preto e, por um instante de pavor, Sienna achou que fossem os soldados que tinham invadido seu prédio. Quando passaram, contudo, viu que eram apenas dois turistas – italianos, supôs, a julgar pela roupa estilosa de couro preto.

       Então Sienna teve uma ideia. Com o sorriso mais caloroso possível, tocou o braço de um dos turistas.

       – Può dirci dov’è la Galleria del costume? – perguntou, falando depressa em italiano, querendo saber como chegar ao famoso museu da indumentária localizado dentro do palácio. – Io e mio fratello siamo in ritardo per una visita privata. – Meu irmão e eu estamos atrasados para uma visita particular.

       – Certo! – O homem lhes sorriu, parecendo disposto a ajudar. – Proseguite dritto per il sentiero! – Virou-se e apontou para o oeste, ao longo do muro, na direção contrária à que Langdon estivera olhando antes.

       – Molte grazie! – agradeceu Sienna, abrindo outro sorriso enquanto os dois homens se afastavam.

       Langdon assentiu para ela, impressionado, parecendo entender por que tinha feito aquilo. Se a polícia começasse a interrogar os turistas, talvez fosse informada de que eles estavam a caminho do museu da indumentária, que, segundo o mapa na parede à sua frente, ficava na ponta ocidental do palácio... o extremo oposto da direção em que iriam.

       – Temos que chegar àquele caminho ali – disse ele, apontando para o outro lado de uma esplanada, em direção a uma trilha que seguia por outro declive, para longe do palácio.

       O caminho de cascalho era protegido na parte mais alta por cercas vivas imponentes, proporcionando proteção suficiente das autoridades que agora desciam a encosta a poucas centenas de metros dali.

       Sienna calculou que as chances de conseguirem atravessar a área descoberta até o caminho protegido eram mínimas. Turistas reunidos na esplanada observavam a polícia com curiosidade. Ao longe, já era possível ouvir de novo o leve zumbido do drone.

       – É agora ou nunca – falou Langdon, pegando-a pela mão e puxando-a em direção à esplanada, onde começaram a ziguezaguear por entre os turistas, cada vez mais numerosos.

       Sienna teve o impulso de sair correndo, mas Langdon a segurou firme, andando por entre a multidão a passos rápidos porém calmos.

       Quando enfim chegaram à entrada do caminho, Sienna olhou para trás por sobre o ombro para ver se alguém os localizara. Os únicos policiais à vista, virados para o outro lado, olhavam para cima, na direção do som do drone que se aproximava.

       Ela tornou a se virar e saiu correndo com Langdon pela trilha.

       Logo à sua frente, o horizonte da antiga Florença agora despontava acima das árvores. Ela viu a cúpula de telhas vermelhas do Duomo e a torre verde, vermelha e branca do campanário de Giotto. Por um instante, também conseguiu divisar as ameias da torre do Palazzo Vecchio – seu destino aparentemente inalcançável –, mas à medida que foram descendo o caminho, os altos muros de contenção voltaram a bloquear a vista.

       Quando chegaram ao pé do declive, Sienna, sem fôlego, se perguntou se Langdon saberia mesmo para onde eles estavam indo. A trilha desembocava em um jardim em forma de labirinto, mas Langdon, parecendo confiante, dobrou à esquerda em direção a um amplo pátio de cascalho e começou a contorná-lo, mantendo-se atrás de uma cerca viva à sombra das árvores mais altas. O pátio estava deserto. Era um estacionamento para funcionários, não uma área turística.

       – Para onde estamos indo? – perguntou Sienna.

       – Estamos quase lá.

       Lá onde? Todo o pátio era cercado por muros que tinham a altura de, no mínino, três andares. A única saída que ela via era uma passagem para carros à esquerda, fechada por uma enorme grade de ferro fundido que parecia remontar à época do palácio original, quando era preciso resistir aos exércitos invasores. Para além dessa grade, viu a polícia reunida na Piazza dei Pitti.

       Mantendo-se junto à vegetação que contornava o pátio, Langdon seguiu adiante, encaminhando-se diretamente para o muro à frente deles. Sienna correu os olhos pelo paredão em busca de alguma entrada, mas tudo o que pôde ver foi um nicho contendo o que devia ser a estátua mais feia que já vira.

       Meu Deus, os Médici podiam comprar qualquer obra de arte do mundo e foram escolher logo essa?

       A escultura diante deles representava um anão obeso e nu montado em uma tartaruga gigante. Os testículos do anão estavam esmagados contra o casco do animal, cuja boca babava água como se ele estivesse doente.

       – Eu sei – disse Langdon, sem diminuir o passo. – Esse daí é Braccio di Bartolo, um famoso anão da corte. Acho que eles deveriam colocá-lo dentro daquela banheira gigante.

       Langdon dobrou bruscamente à direita e seguiu em direção a um lance de escadas que Sienna não tinha visto até então.

       Uma saída?!

       Mas a esperança durou pouco.

       Assim que fez a curva e começou a descer os degraus atrás de Langdon, ela percebeu que estavam correndo rumo a um beco sem saída, só que as paredes agora eram duas vezes mais altas do que as demais.

       Além disso, Sienna notava que sua longa jornada estava prestes a terminar à entrada de uma caverna... uma funda gruta escavada naquela parede. Não é possível que ele esteja nos levando para lá!

       Sobre a entrada escancarada da caverna, portentosas estalactites se assomavam como punhais. Dentro da cavidade, formações gotejantes se contorciam e escorriam pelas paredes, como se a pedra estivesse derretendo e assumindo formas que, para espanto de Sienna, incluíam algumas que lembravam seres humanos parcialmente enterrados nas paredes, cujos corpos pareciam estar sendo consumidos pela pedra. A cena toda lhe pareceu digna do Mappa dell’Inferno de Botticelli.

       Por algum motivo, Langdon parecia inabalado e continuou correndo direto para a entrada da caverna. Mais cedo, ele tinha feito um comentário sobre a Cidade do Vaticano, mas Sienna estava certa de que não havia cavernas bizarras dentro dos muros da Santa Sé.

       Quando chegaram mais perto, os olhos de Sienna foram atraídos pelo entablamento que se estendia sobre a entrada – um conjunto fantasmagórico de estalactites e saliências rochosas indistintas que pareciam engolir duas mulheres reclinadas e ladeadas por um escudo incrustado com seis bolas ou palle: o famoso brasão da família Médici.

       Langdon dobrou à esquerda de repente, afastando-se da entrada e seguindo em direção a algo que Sienna ainda não tinha visto: uma pequena porta cinza à esquerda da caverna. Feita de madeira gasta, não parecia ter muita importância, como se fosse uma despensa ou um armário para guardar ferramentas.

       Langdon correu até a porta, claramente esperando poder abri-la, mas não havia maçaneta, apenas uma fechadura de latão. Pelo jeito, só podia ser aberta por dentro.

       – Droga! – Os olhos de Langdon brilharam de aflição. Seu ar esperançoso desaparecera quase por completo. – Eu estava torcendo para...

       De repente, o zunido penetrante do drone ecoou nas paredes altas que os cercavam. Sienna se virou e viu a aeronave se erguer bem acima do palácio e vir em sua direção.

       Langdon também o viu, óbvio, pois agarrou a mão de Sienna e disparou em direção à caverna. Os dois se agacharam no último instante, sumindo de vista sob as estalactites.

       Que final mais apropriado, pensou ela. Nós dois correndo pelos portões do inferno.

 

       Cerca de um quilômetro a leste dali, Vayentha estacionou. Ela havia chegado à cidade velha pela Ponte alle Grazie e então dera a volta até a Ponte Vecchio – a famosa ponte de pedestres que interligava o Palazzo Pitti à antiga Florença. Depois de prender o capacete na moto, atravessou a ponte e se misturou aos turistas.

       Uma brisa fresca de março soprava rio acima, agitando os cabelos curtos espetados de Vayentha e fazendo-a lembrar que Langdon conhecia sua aparência. Ela parou em uma das muitas barracas da ponte, comprou um boné de beisebol com os dizeres amo firenze e o enterrou na cabeça.

       Alisou o macacão de couro para disfarçar a pistola e se posicionou perto do meio da ponte, recostando-se de forma casual em uma coluna, de frente para o Palazzo Pitti. Dali podia ver todos os pedestres que cruzavam o Arno em direção ao centro da cidade.

       Langdon está a pé, pensou. Se ele conseguir passar pela Porta Romana, esta ponte será a rota mais lógica para chegar à cidade velha.

       Sirenes soavam a oeste, na direção do Palazzo Pitti, e ela se perguntou se isso era uma boa ou má notícia. Será que ainda estão procurando por ele? Ou já o terão encontrado? Ao aguçar os ouvidos na tentativa de obter alguma pista sobre o que estava acontecendo, escutou um novo som de repente: o zunido agudo de alguma coisa acima dela. Por instinto, seus olhos se voltaram para o céu e na mesma hora ela viu um pequeno helicóptero guiado por controle remoto sobrevoando em alta velocidade o palácio e mergulhando em direção às copas das árvores rumo ao canto noroeste dos Jardins de Boboli.

       Um drone de reconhecimento, pensou com uma onda de esperança. Se ele está no ar, Brüder ainda não encontrou Langdon.

       O drone se aproximava depressa. Parecia vasculhar o canto noroeste dos jardins, área mais próxima da Ponte Vecchio e da posição de Vayentha; isso a deixou ainda mais animada.

       Se Langdon despistou Brüder, sem dúvida deve estar vindo nesta direção.

       Enquanto ela observava, no entanto, o drone de repente deu um rasante e mergulhou atrás de um muro de pedra alto, sumindo de vista. Ela o ouviu pairar em algum ponto abaixo das copas das árvores, como se houvesse localizado algo de interessante.

 

       Busca e encontrarás, pensou Langdon, encolhido com Sienna dentro da gruta sombria. Nós buscamos uma saída... e encontramos uma porta trancada.

       O amorfo chafariz no centro da caverna proporcionava um bom esconderijo, mas, quando Langdon espiou por trás dele, percebeu que era tarde demais.

       O drone tinha acabado de mergulhar no beco sem saída rente ao muro e parado de forma abrupta diante da entrada da caverna, onde agora pairava a apenas 3 metros do chão. De frente para a gruta, emitia um zumbido forte, como um inseto furioso à espera de sua presa.

       Langdon tornou a se esconder e sussurrou para Sienna a desanimadora notícia:

       – Acho que ele sabe que estamos aqui.

       Dentro da caverna, o zumbido agudo do drone reverberando com intensidade nas paredes de pedra era quase ensurdecedor. Langdon custava a acreditar que eles estivessem reféns de um helicóptero em miniatura, mas sabia que seria inútil tentar fugir dele. E agora, o que fazer? Esperar? Seu plano de acessar o que havia atrás da pequena porta cinza tinha sido razoável, exceto pelo fato de ele não saber que a porta só abria por dentro.

       À medida que seus olhos se acostumavam com a escuridão da gruta, começou a vasculhar aquele ambiente incomum pensando se haveria outra saída. Não viu nada promissor. O interior da caverna era enfeitado com esculturas de animais e seres humanos, todas em diversos estágios de absorção pelas paredes estranhamente gotejantes. Desanimado, ele ergueu os olhos para as ameaçadoras estalactites que pendiam do teto.

       Um bom lugar para morrer.

       A gruta de Buontalenti – batizada em homenagem a seu arquiteto, Bernardo Buontalenti – talvez fosse o lugar mais curioso de Florença. Projetada como uma espécie de espaço recreativo para os jovens hóspedes do Palazzo Pitti, a caverna dividida em três câmaras era decorada com um estilo que mesclava fantasia naturalista e excesso gótico, composta do que pareciam ser massas compactas gotejantes e protuberâncias de pedras-pomes que davam a impressão de consumir ou expulsar a profusão de figuras esculpidas. Na época dos Médici, a gruta ainda era incrementada por um fluxo constante de água nas paredes internas, que servia tanto para refrescar o espaço durante os verões quentes da Toscana quanto para criar o efeito de uma caverna de verdade.

       Langdon e Sienna estavam escondidos na primeira câmara, a maior das três, atrás de um chafariz central indistinto. Estavam cercados por figuras pitorescas de pastores, camponeses, músicos, animais e até mesmo reproduções dos quatro prisioneiros de Michelangelo – todas parecendo lutar para se libertar das rochas que as engoliam. Bem lá no alto, a luz da manhã entrava por uma luneta no teto que outrora tivera uma esfera de vidro gigante cheia d’água na qual carpas vermelhas nadavam à luz do sol.

       Langdon se perguntou como os visitantes da época da Renascença teriam reagido se vissem um helicóptero de verdade – um sonho fantástico acalentado por Leonardo da Vinci – pairar na entrada da gruta.

       Foi nesse momento que o drone parou de emitir seu ruído estridente. Não foi sumindo aos poucos, apenas parou de repente.

       Intrigado, Langdon espiou de trás da fonte e viu que o drone havia pousado. Agora imóvel no pátio de cascalho, ainda estava ligado, mas parecia bem menos ameaçador – sobretudo porque as lentes semelhantes a ferrões que trazia na frente estavam viradas para longe deles e apontavam para um dos lados, em direção à pequena porta cinza.

       Sua sensação de alívio foi fugaz. Uns 100 metros atrás do drone, perto da estátua do anão com a tartaruga, três soldados fortemente armados desciam as escadas com determinação, bem na direção da gruta.

       Os homens usavam os já familiares uniformes pretos, com medalhões verdes nos ombros. O musculoso líder tinha olhos vazios que fizeram Langdon se lembrar da máscara da peste de suas visões.

       Eu sou a morte.

       Não viu em lugar nenhum a van nem a misteriosa mulher de cabelos prateados.

       Eu sou a vida.

       Quando os soldados estavam se aproximando, um deles parou ao pé da escada, deu meia-volta e se postou de costas, aparentemente para evitar que mais alguém descesse até ali. Os outros dois continuaram avançando para a gruta.

       Langdon e Sienna voltaram a se mover – embora talvez estivessem apenas adiando o inevitável: engatinharam para trás, rumo à segunda câmara, que era menor, mais profunda e mais escura. O espaço também era dominado por uma obra de arte central: a escultura de dois amantes enlaçados. Eles se esconderam atrás dela.

       Envolto em sombras, Langdon espiou com cautela por trás da base da estátua para ver os perseguidores que se aproximavam. Quando os dois soldados chegaram ao drone, um deles parou e se agachou para verificá-lo, pegando-o do chão a fim de examinar a câmera.

       Será que o aparelho nos viu?, perguntou-se Langdon, temendo já saber a resposta.

       O terceiro e último soldado, o homem musculoso de olhos frios, continuava a se mover na direção deles com uma determinação fria. O vulto se aproximou até chegar quase à entrada da caverna. Ele vai entrar. Langdon se preparou para voltar para trás da estátua e dizer a Sienna que estava tudo acabado, mas, nesse exato momento, testemunhou algo inesperado.

       Em vez de entrar na gruta, o soldado virou à esquerda de repente e sumiu de vista.

       Para onde ele está indo?! Será que não sabe que estamos aqui?

       Segundos depois, Langdon ouviu o som de batidas – um punho esmurrando madeira.

       A porta cinza, pensou. Ele deve saber onde ela vai dar.

 

       Ernesto Russo, segurança do Palazzo Pitti, sempre quisera ser jogador de futebol, mas agora, aos 29 anos e acima do peso, começava a aceitar que seu sonho de infância nunca se tornaria realidade. Fazia três anos que ele era segurança ali no palácio, sempre naquela mesma sala do tamanho de um armário, o mesmo trabalho chato.

       Já estava acostumado com os turistas curiosos que batiam na pequena porta cinza em frente à sua sala e em geral apenas os ignorava até que parassem. Nesse dia, porém, as batidas foram intensas e contínuas.

       Incomodado, ele voltou a se concentrar no aparelho de TV que transmitia a altos brados a reprise de uma partida de futebol: Fiorentina x Juventus. As batidas só fizeram aumentar de volume. Por fim, xingando os turistas, ele saiu da sala pisando firme e desceu o corredor estreito em direção ao som. A meio caminho da porta, parou diante da imensa grade de aço que permanecia trancada no meio daquele corredor, a não ser durante umas poucas horas específicas.

       Inseriu o segredo do cadeado para destrancar a grade e a puxou para um dos lados. Depois de atravessar, obedeceu ao protocolo e voltou a trancar a grade atrás de si. Então caminhou até a porta de madeira cinza.

       – È chiuso! – gritou, esperando que a pessoa atrás da porta o ouvisse. – Non si può entrare!

       As batidas continuaram.

       Ernesto trincou os dentes. Nova-iorquinos, apostou. Quando querem uma coisa, não sossegam até conseguir. O único motivo para que o New York Red Bulls estivesse tendo algum sucesso no futebol mundial era ter roubado um dos melhores técnicos europeus.

       As batidas continuaram. Ernesto destrancou a porta com relutância e a en­treabriu apenas alguns centímetros.

       – È chiuso!

       As batidas enfim pararam e ele se viu cara a cara com um soldado de olhos tão frios que o fizeram dar um passo atrás. O homem ergueu um crachá oficial com uma sigla que Ernesto não reconheceu.

       – Cosa succede?! – quis saber o segurança, alarmado. O que está acontecendo?

       Atrás do soldado, um segundo homem agachado mexia no que parecia ser um helicóptero de brinquedo. Mais longe ainda, outro soldado montava guarda diante da escada. Ernesto ouviu sirenes de polícia ao longe.

       – O senhor fala inglês? – O sotaque do soldado com certeza não era nova-iorquino. Seria de algum lugar da Europa?

       Ernesto assentiu.

       – Um pouco, sim.

       – Alguém passou por esta porta hoje de manhã?

       – No, signore. Nessuno.

       – Excelente. Mantenha-a trancada. Ninguém entra, ninguém sai. Fui claro?

       Ernesto deu de ombros. O seu trabalho era esse mesmo.

       – Sì, entendi. Non deve entrare, né uscire nessuno.

       – Mais uma coisa: esta porta é a única entrada?

       Ernesto refletiu sobre a pergunta. Tecnicamente, hoje em dia aquela porta era considerada uma saída, por isso não tinha maçaneta do lado de fora, mas ele entendeu o que o homem estava perguntando.

       – Sim, l’accesso só por esta porta. Não tem outro caminho. – Fazia muitos anos que a entrada original dentro do palácio estava condenada.

       – E existe alguma outra saída secreta dos Jardins de Boboli? Além dos portões tradicionais?

       – No, signore. Muros altos por todos os lados. Esta é a única saída secreta.

       O soldado assentiu.

       – Obrigado pela ajuda.

       Ele fez um gesto para que Ernesto fechasse e trancasse a porta.

       Intrigado, o segurança obedeceu. Então tornou a subir o corredor, destrancou a grade de aço, atravessou-a, tornou a trancá-la atrás de si e voltou para a sua partida de futebol.

 

       Langdon e Sienna viram uma oportunidade e a aproveitaram.

       Enquanto o soldado musculoso esmurrava a porta, eles haviam engatinhado mais para o fundo da gruta e estavam agora encolhidos na última câmara. O pequeno espaço era enfeitado com mosaicos e sátiros esculpidos de forma grosseira. No centro havia uma escultura em tamanho real de uma Vênus agachada na qual a deusa, de forma bem apropriada, parecia espiar nervosa por cima do ombro.

       Eles agora aguardavam escondidos atrás do estreito pedestal da estátua, de frente para a solitária estalagmite em forma de globo que escalava a parede mais profunda da gruta.

       – Bloqueio de todas as saídas confirmado! – gritou um soldado em algum lugar lá fora. Ele falava inglês com um leve sotaque que Langdon não conseguiu identificar. – Faça o drone decolar outra vez. Vou inspecionar esta caverna aqui.

       Langdon sentiu o corpo de Sienna se retesar ao seu lado.

       Logo em seguida, botas pesadas caminhavam dentro da gruta. Os passos atravessaram depressa a primeira câmara e ficaram ainda mais altos ao entrar na segunda, vindo direto para cima deles.

       Langdon e Sienna se encolheram mais ainda.

       – Ei! – gritou outra voz ao longe. – Encontramos os dois!

       Os passos pararam.

       Langdon ouviu o barulho de alguém correndo pelo caminho de cascalho em direção à gruta.

       – Eles foram vistos! – declarou a voz ofegante. – Acabamos de falar com dois turistas. Eles disseram que, há poucos minutos, o homem e a mulher perguntaram como chegar ao museu da indumentária que fica do outro lado, no extremo oeste do palazzo.

       Langdon olhou para Sienna, que lhe pareceu abrir um sorriso fraco.

       O soldado recuperou o fôlego e prosseguiu:

       – As saídas oeste foram as primeiras a serem isoladas, e estamos confiantes de que eles estejam presos dentro dos jardins.

       – Execute a missão – retrucou o soldado mais próximo. – E me avise assim que tiver sucesso.

       Houve um ruído de passos se afastando pelo cascalho, o som do drone tornando a levantar voo e, então, graças a Deus, um silêncio total.

       Langdon estava prestes a girar para o lado e espiar ao redor do pedestal quando Sienna segurou o seu braço para detê-lo. Ela levou um dedo aos lábios e indicou com a cabeça uma sombra humanoide indistinta que se destacava na parede dos fundos. O líder dos soldados continuava parado em silêncio na entrada da gruta.

       O que ele está esperando?!

       – Aqui é Brüder – disse ele de repente. – Eles estão encurralados. Devo ter uma confirmação em breve.

       A voz do homem soava assustadoramente próxima, como se ele estivesse parado bem ao lado deles. A acústica da caverna absorvia todos os sons e os concentrava no fundo.

       – E não é só isso – prosseguiu Brüder. – Acabei de receber uma atualização da equipe de criminalística. O apartamento da mulher parece ter sido sublocado: pouca mobília, sem dúvida era provisório. Localizamos o tubo, mas o projetor não estava no local. Repito, o projetor não estava no local. Supomos que Langdon ainda esteja com ele.

       Langdon sentiu um arrepio ao ouvir o soldado dizer seu nome.

       Os passos ficaram mais altos e ele percebeu que o homem entrava de novo na gruta. Sua passada não soava tão firme quanto antes e ele parecia estar apenas andando sem rumo, explorando a gruta enquanto falava ao telefone.

       – Correto – disse o soldado. – A equipe também confirmou que só uma ligação foi feita antes de invadirmos o apartamento.

       O consulado americano, pensou Langdon, lembrando-se da conversa ao telefone que resultara na chegada quase imediata da assassina de cabelos espetados. A mulher parecia ter desaparecido, substituída por uma equipe completa de soldados bem treinados.

       Não vamos conseguir fugir deles para sempre.

       O som das botas do soldado no chão de pedra agora estava a apenas uns 5 metros de distância e continuava a se aproximar. Ele havia chegado à segunda câmara e, se continuasse andando até o final, com certeza veria os dois agachados atrás do pedestal estreito da Vênus.

       – Sienna Brooks – declarou o homem de repente; suas palavras soaram claríssimas.

       Sienna se sobressaltou ao lado de Langdon e olhou para cima, obviamente esperando ver o soldado de pé, a encarando. Mas não havia ninguém ali.

       – Estão analisando o laptop dela agora – continuou a voz, a menos de 3 metros. – Ainda não recebi o relatório, mas com certeza é a mesma máquina que rastreamos quando Langdon acessou a conta de e-mail dele em Harvard.

       Assim que ouviu a notícia, Sienna se virou para Langdon, sem acreditar, encarando-o com uma expressão chocada... e depois como se tivesse sido traída.

       Langdon ficou tão pasmo quanto ela. Foi assim que eles nos rastrearam?! A possibilidade nem lhe passara pela cabeça na hora. Eu só precisava de informação! Antes que ele pudesse pensar num pedido de desculpas, Sienna já havia desviado os olhos, agora com o rosto inexpressivo.

       – Correto – falou o soldado, chegando à entrada da terceira câmara, a menos de 2 metros de Langdon e Sienna. Mais uns poucos passos e conseguiria vê-los. – Exato – disse ele, aproximando-se mais um passo. De repente, o soldado se deteve. – Espere um instante.

       Langdon congelou, preparando-se para ser descoberto.

       – Espere aí, não estou ouvindo bem – disse o soldado, recuando alguns passos em direção à segunda câmera. – O sinal ficou ruim. Prossiga... – Ficou ouvindo por alguns segundos antes de responder: – Sim, concordo, mas pelo menos sabemos com quem estamos lidando.

       Com essas palavras, seus passos se afastaram da gruta, atravessaram a superfície de cascalho e então silenciaram por completo.

       Os ombros de Langdon relaxaram e ele se virou para Sienna, cujos olhos ardiam com uma mistura de medo e raiva.

       – Você usou meu laptop?! – perguntou ela. – Para checar seus e-mails?

       – Desculpe, achei que você fosse entender. Eu precisava descobrir...

       – Foi assim que eles nos encontraram! E agora sabem o meu nome!

       – Sinto muito, Sienna. Eu não sabia que... – A culpa o torturava.

       Sienna se virou para o outro lado, fitando com uma expressão vazia a estalagmite arredondada na parede dos fundos. Os dois passaram quase um minuto calados. Langdon imaginava se Sienna ainda se lembrava dos objetos pessoais empilhados na mesa: o programa de Sonhos de uma noite de verão e os recortes de jornal sobre sua vida de criança prodígio. Será que ela suspeita que eu tenha visto essas coisas? De todo modo, não parecia disposta a questioná-lo e Langdon já estava encrencado demais com ela para tocar no assunto.

       – Eles sabem quem eu sou – repetiu Sienna, com uma voz tão baixa que Langdon mal conseguiu ouvi-la.

       Nos dez segundos seguintes, ela respirou fundo várias vezes, bem devagar, como se tentasse assimilar aquela nova realidade. Langdon sentiu que, aos poucos, isso a deixava cada vez mais decidida.

       Sem aviso, ela se levantou.

       – Temos que sair daqui – falou. – Eles não vão demorar para perceber que não estamos no museu da indumentária.

       Langdon também se levantou.

       – Sim, mas para onde vamos?

       – Para a Cidade do Vaticano?

       – Como é que é?

       – Finalmente entendi o que você quis dizer mais cedo... o que a Cidade do Vaticano e os Jardins de Boboli têm em comum. – Ela gesticulou em direção à pequena porta cinza. – A entrada é ali, não é?

       Langdon assentiu.

       – Na verdade, ali é a saída, mas achei que valia a pena tentar. Infelizmente, não dá para passar. – Ele escutara uma parte suficiente do diálogo entre o segurança e o soldado para saber que aquela porta não era uma alternativa.

       – Mas se desse para passar, você sabe o que isso significaria? – indagou Sienna, com um traço de malícia ressurgindo na voz. Um leve sorriso atravessou seus lábios. – Seria a segunda vez hoje que o mesmo artista da Renascença iria nos ajudar.

       Langdon não pôde conter uma risadinha, pois havia pensado na mesma coisa poucos minutos antes.

       – Vasari. Vasari.

       O sorriso de Sienna se abriu mais e Langdon percebeu que ela o havia perdoado, pelo menos por enquanto.

       – Acho que é um sinal divino – declarou ela, meio brincando, meio a sério. – Temos que passar por aquela porta.

       – Está bem. E o que você sugere? Que passemos tranquilamente pelo segurança?

       Sienna estalou os dedos e saiu da gruta.

       – Vou dar uma palavrinha com ele. – Ela olhou para Langdon por cima do ombro, com uma chama ardendo em seus olhos. – Acredite, professor, posso ser muito persuasiva quando preciso.

 

       Alguém voltou a esmurrar a pequena porta cinza.

       Batidas firmes, insistentes.

       Ernesto Russo resmungou, contrariado. O estranho soldado de olhos frios parecia ter voltado, mas não poderia ter escolhido hora pior. O jogo de futebol estava na prorrogação, a Fiorentina tinha um homem a menos e ia perder a partida.

       As batidas continuaram.

       Ernesto não era bobo. Sabia que estava havendo algum problema lá fora, com todas aquelas sirenes e soldados, mas nunca fora de se envolver em questões que não o afetassem diretamente.

       Pazzo è colui che bada ai fatti altrui. Melhor não meter o nariz onde não era chamado.

       Por outro lado, estava claro que o soldado era alguém importante, portanto não seria muito inteligente ignorá-lo. Ultimamente, estava difícil arrumar emprego na Itália, mesmo um emprego chato. Depois de dar uma última olhada no jogo, Ernesto foi até a porta.

       Ainda não conseguia acreditar que era pago para ficar sentado o dia inteiro naquela salinha minúscula, assistindo à TV. Umas duas vezes por dia, talvez, um grupo de VIPs aparecia por ali, depois de vir andando da Galleria degli Uffizi. Ernesto os recebia, destrancava a grade de metal e deixava os visitantes atravessarem a pequena porta cinza, onde seu tour iria terminar nos Jardins de Boboli.

       Agora, com as batidas cada vez mais fortes, Ernesto abriu o portão de aço e o atravessou, tornando a trancá-lo depois de passar.

       – Sì? – gritou mais alto do que as batidas enquanto seguia a passos rápidos em direção à porta cinza.

       Ninguém respondeu. O barulho continuou.

       Insomma! Ele finalmente destrancou a porta e a abriu, esperando ver o mesmo olhar sem vida de instantes atrás.

       Dessa vez, porém, o rosto do outro lado era muito mais atraente.

       – Ciao – disse uma loura bonita com um sorriso encantador.

       Ela estendeu-lhe um papel dobrado e, por impulso, Ernesto esticou a mão para pegá-lo. Assim que apanhou o papel e percebeu que se tratava apenas de lixo recolhido no chão, a mulher agarrou-lhe o punho com as mãos esguias e enterrou um dos polegares bem na articulação do carpo, logo abaixo da palma da mão.

       Foi como se uma faca lhe tivesse decepado a mão. A pontada lancinante foi seguida por um choque de dormência. A mulher deu um passo em sua direção e a pressão aumentou de forma exponencial, reiniciando o ciclo de dor. O segurança cambaleou para trás, tentando libertar o braço, mas suas pernas perderam a força, cederam sob o corpo e ele caiu de joelhos.

       O resto aconteceu num piscar de olhos.

       Um homem alto de terno escuro surgiu no vão da porta aberta, entrou no corredor e a fechou depressa atrás de si. Ernesto tentou pegar o rádio, mas a mulher apertou-lhe a nuca uma única vez com a mão delicada e seus músculos se contraíram, deixando-o sem ar. Ela pegou o rádio ao mesmo tempo que o homem alto se aproximava, parecendo tão alarmado pelas atitudes da companheira quanto o próprio Ernesto.

       – Dim mak – disse a loura para o homem alto em tom casual. – A técnica chinesa dos pontos de pressão. Não é à toa que ela existe há três milênios.

       O homem apenas a encarou, perplexo.

       – Non vogliamo farti del male – sussurrou a mulher para Ernesto, aliviando a pressão em seu pescoço. Não queremos machucá-lo.

       Assim que a pressão diminuiu, Ernesto tentou se desvencilhar, mas a pressão logo voltou e seus músculos tornaram a se contrair. Ele arquejou de dor, mal conseguindo respirar.

       – Dobbiamo passare – disse ela. Precisamos passar. A mulher gesticulou para o portão de aço, que Ernesto por sorte havia trancado atrás de si. – Dov’è la chiave?

       – Non ce l’ho – conseguiu dizer ele. Eu não tenho a chave.

       O homem alto passou por eles em direção à grade e examinou a tranca.

       – É um cadeado com segredo – falou para a mulher. Ele tinha sotaque americano.

       Ela se ajoelhou ao lado de Ernesto; seus olhos castanhos eram frios como gelo.

       – Qual è la combinazione? – quis saber.

       – Non posso! – respondeu ele. – Não estou autorizado a...

       Alguma coisa aconteceu no alto da sua coluna vertebral e Ernesto sentiu o corpo todo amolecer. Um segundo depois, apagou.

 

       Quando voltou a si, Ernesto percebeu que havia passado vários minutos recobrando a consciência e tornando a desmaiar. Lembrava-se de uma conversa, de novas pontadas de dor... de ser arrastado, talvez? Estava tudo embaralhado.

       Quando sua mente clareou, viu algo estranho: seus sapatos estavam largados no chão ao seu lado, sem os cadarços. Só então percebeu que mal conseguia se mover. Estava deitado de lado com as mãos e os pés amarrados nas costas, provavelmente pelos próprios cadarços. Tentou gritar, mas não conseguiu emitir som algum. Estava com uma das meias enfiada na boca. O verdadeiro momento de pavor, porém, veio logo em seguida, quando ele ergueu os olhos e viu o aparelho de TV transmitindo a partida de futebol. Estou na minha sala... do lado de DENTRO do portão?!

       Ao longe, pôde ouvir o som de passos rápidos se afastando pelo corredor, e então, pouco a pouco, os passos foram engolidos pelo silêncio. Non è possibile! De alguma forma, a loura conseguira convencê-lo a fazer a única coisa que ele não deveria fazer em hipótese alguma naquele emprego: revelar o segredo do cadeado da entrada do famoso Corredor Vasari.

 

       A Dra. Elizabeth Sinskey sentia as ondas de enjoo e tontura chegarem mais rápido agora. Estava afundada no banco de trás da van estacionada em frente ao Palazzo Pitti. O soldado ao seu lado a observava com uma preocu­pação crescente.

       Segundos antes, o rádio do soldado havia chiado, berrando algo sobre um museu da indumentária que fizera Elizabeth despertar da escuridão da própria mente, na qual ela sonhava com o monstro de olhos verdes.

       Estava de volta à sala escura no Conselho de Relações Exteriores em Nova York, ouvindo os delírios ensandecidos do misterioso estranho que a havia chamado até lá. O homem envolto em sombras andava de um lado para outro na frente da sala – uma silhueta alta e magra destacada contra a pavorosa imagem projetada no monitor: a multidão de corpos nus e moribundos inspirada pelo Inferno de Dante.

       – Alguém precisa travar essa guerra – concluiu o vulto – ou esse será o nosso futuro. Isso é matematicamente certo. A humanidade agora está vivendo em um purgatório de procrastinação, indecisão e ganância pessoal... mas os círculos do Inferno estão à espera, bem debaixo dos nossos pés, aguardando para consumir a todos nós.

       Elizabeth ainda estava atordoada com as ideias monstruosas que aquele homem havia exposto. Por fim, não pôde mais suportar e se levantou com um pulo:

       – O que está sugerindo é...

       – A única opção que nos resta – interrompeu ele.

       – Na verdade, eu ia dizer “criminoso”! – retrucou ela.

       O homem deu de ombros.

       – O caminho do Paraíso passa pelo centro do Inferno. Dante nos ensinou isso.

       – Você é louco!

       – Louco! – repetiu o homem, parecendo magoado. – Eu? Discordo. Loucura é a OMS olhar para o abismo e negar sua existência. Loucura é um avestruz enfiar a cabeça na areia enquanto é cercado por uma matilha de hienas.

       Antes que Elizabeth pudesse defender sua organização, ele mudou a imagem no monitor.

       – E, por falar em hienas – disse, apontando para a nova imagem. – Eis a matilha que rodeia a humanidade atualmente... e os animais estão se aproximando depressa.

       Elizabeth ficou surpresa ao ver a imagem conhecida. Era um gráfico divulgado pela OMS no ano anterior enumerando as questões ambientais que, segundo a organização, teriam o maior impacto sobre a saúde global.

       A lista incluía, entre outros fatores: demanda por água potável, aquecimento global, destruição da camada de ozônio, esgotamento de recursos oceânicos, extinção de espécies, concentração de gás carbônico, desmatamento e elevação do nível do mar.

       Todos esses indicadores negativos haviam aumentado ao longo do último século. Agora, porém, o ritmo de crescimento era aterrorizante.

 

       Elizabeth teve a mesma reação que sempre tinha àquele gráfico: foi invadida por uma sensação de impotência. Como cientista, acreditava na utilidade das estatísticas, e aquele gráfico pintava um quadro assustador, não de um futuro distante... mas de um futuro muito próximo.

       Muitas vezes na vida, Elizabeth Sinskey fora assombrada por sua incapaci­dade de conceber um filho, mas quando via aquele gráfico sentia-se quase aliviada por não ter posto outra vida no mundo.

       É esse o futuro que eu estaria dando ao meu filho?

       – Nos últimos cinquenta anos, nossos pecados contra a Mãe Natureza aumentaram exponencialmente – declarou o homem alto. Ele levou alguns instantes para voltar a falar: – Temo pela alma da humanidade. Quando a OMS divulgou esse gráfico, políticos, pessoas poderosas e ambientalistas do mundo inteiro organizaram conferências de emergência, todas tentando avaliar quais dessas questões eram as mais graves e quais poderíamos ter esperanças reais de solucionar. E qual foi o resultado? Escondidos, eles cobriram o rosto com as mãos e choraram. Em público, garantiram a todos que estavam buscando soluções, mas que eram questões complexas.

       – Mas essas questões são complexas!

       – Besteira! – explodiu o homem. – A senhora sabe muito bem que esse gráfico representa a mais simples das relações, uma função baseada em uma só variável! Cada linha dele sobe em proporção direta a um valor que todos têm medo de discutir. A população global.

       – Na verdade, acho que é um pouco mais...

       – Complicado? – ele interrompeu. – Não é, não! Nada poderia ser mais simples. Se quisermos ter mais água potável per capita, precisamos de menos gente no mundo. Se quisermos diminuir as emissões de gases poluentes por veículos automotores, precisamos de menos motoristas. Se quisermos que os oceanos consigam repor seus cardumes, precisamos de menos gente comendo peixe!

       Ele a fuzilou com o olhar e seu tom ficou ainda mais contundente.

       – Abra os olhos! Estamos à beira do fim da humanidade e o que nossos líderes mundiais fazem é ficar sentados em seus gabinetes encomendando estudos sobre energia solar, reciclagem e carros híbridos? Como é que a senhora, uma cientista tão instruída, não consegue enxergar a verdade? Destruição da camada de ozônio, falta d’água e poluição não são a doença... são os sintomas. A doença é a superpopulação. Ou encaramos esse problema, ou estamos só pondo um Band-Aid em cima de um tumor maligno e agressivo.

       – Você considera a raça humana um câncer? – perguntou Elizabeth.

       – Um câncer não é nada além de uma célula saudável que começa a se replicar de forma desenfreada. Estou vendo que a senhora considera as minhas ideias de extremo mau gosto, mas posso garantir que a alternativa vai lhe parecer bem mais desagradável quando chegar. Se não tomarmos medidas drásticas...

       – Drásticas?! – disparou ela. – Drásticas não é bem a palavra que o senhor está procurando. Que tal insanas?

       – Dra. Sinskey – começou o homem, sua voz agora estranhamente calma –, eu a chamei aqui porque esperava que a senhora, uma voz sábia na Organização Mundial da Saúde, talvez estivesse disposta a trabalhar comigo e estudar uma possível solução.

       Elizabeth o encarou com uma expressão incrédula.

       – Acha mesmo que a OMS vai se associar a você... para estudar uma ideia dessas?

       – Sim, acho – disse ele. – A sua organização é composta por médicos. Quando médicos veem um paciente com gangrena, não hesitam em lhe amputar a perna para salvar sua vida. Às vezes a única solução viável é o menor de dois males.

       – Mas estamos falando de uma coisa bem diferente.

       – Não. É idêntica. A única diferença é de escala.

       Elizabeth já tinha ouvido o bastante. Levantou-se abruptamente.

       – Preciso pegar um avião.

       O homem alto deu um passo ameaçador em sua direção, impedindo-a de sair.

       – Só um aviso: posso muito bem explorar esta ideia sozinho, mesmo sem a sua cooperação.

       – Só um aviso – retrucou Elizabeth. – Considero o que o senhor acabou de dizer uma ameaça terrorista e é assim que irei tratar o assunto.

       Ela sacou o celular.

       O homem riu.

       – A senhora vai me denunciar por discutir hipóteses? Infelizmente sua ligação vai ter que esperar. Esta sala tem bloqueio eletromagnético. Seu telefone está sem sinal.

       Não preciso de sinal, seu lunático. Elizabeth ergueu o celular e, antes que o homem pudesse entender o que estava acontecendo, tirou uma foto do seu rosto. O flash refletiu nos olhos verdes e, por um instante, ela pensou que ele parecia familiar.

       – Não sei quem é você – falou –, mas me chamar aqui foi um erro. Quando eu chegar ao aeroporto, já vou saber seu nome e você estará nas listas de observação da OMS e do Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos e da Europa como um bioterrorista em potencial. Pessoas irão vigiá-lo dia e noite. Se tentar comprar materiais, nós vamos saber. Se montar um laboratório, nós vamos saber. Não vai ter onde se esconder.

       O homem ficou parado por vários instantes, tenso e calado, como se fosse tentar pegar seu telefone. Por fim, relaxou e deu um passo de lado com um sorriso sinistro.

       – Então parece que nosso jogo começou.

 

       Il Corridoio Vasariano – o Corredor Vasari – foi projetado por Giorgio Vasari em 1564 a pedido do chefe da família Médici, o grão-duque Cosmo I, para servir como uma passagem segura entre sua residência no Palazzo Pitti e seus escritórios administrativos na margem oposta do rio Arno, no Palazzo Vecchio.

       Nos moldes do famoso Passetto da Cidade do Vaticano, o Corredor Vasari era uma passagem secreta no sentido mais puro do termo. Estendia-se por quase um quilômetro do canto leste dos Jardins de Boboli até o coração do velho palácio, depois de atravessar a Ponte Vecchio e de serpentear pela Galleria degli Uffizi.

       Hoje em dia, o Corredor Vasari ainda servia de porto seguro, não mais para aristocratas da família Médici, mas para obras de arte: com sua área aparentemente infinita de paredes seguras, o corredor abrigava inúmeros quadros raros – excedentes da famosa Galleria degli Uffizi.

       Alguns anos atrás, Langdon passeara com tranquilidade pelo corredor durante um tour particular. Naquela tarde, havia parado a fim de admirar seu deslumbrante acervo de quadros, que incluía a mais extensa coleção de autorretratos do mundo. Também se detivera várias vezes para espiar pelas janelas panorâmicas pelo caminho, graças às quais os visitantes podiam avaliar seu progresso ao longo do corredor elevado.

       Nessa manhã, porém, Langdon e Sienna atravessaram o corredor às pressas, querendo abrir a maior distância possível em relação a seus perseguidores na extremidade oposta. Langdon se perguntou quanto tempo o guarda amarrado levaria para ser encontrado. Vendo o túnel se estender à sua frente, sentiu que este os conduzia cada vez para mais perto do que estavam buscando.

       Cerca trova... os olhos da morte... e a revelação de quem está me perseguindo.

       A essa altura, o zumbido distante do drone de reconhecimento já estava muito longe deles. Quanto mais avançavam pelo túnel, mais Langdon se lembrava de como a sua construção havia sido uma ambiciosa façanha arquitetônica. Elevado acima da cidade por quase toda a sua extensão, o Corredor Vasari parecia uma grossa serpente que ondulava por vários edifícios desde o Palazzo Pitti, atravessava o Arno e entrava no coração da antiga Florença. A passagem estreita e caiada parecia se estender por uma eternidade, fazendo leves curvas para a esquerda ou para a direita de modo a evitar algum obstáculo, mas seguindo sempre no sentido leste... rumo ao outro lado do rio.

       O som repentino de vozes ecoou à sua frente no corredor e Sienna parou de correr. Langdon também se deteve, pousando uma das mãos no ombro dela para acalmá-la. Ele fez um gesto em direção a uma janela panorâmica perto de onde estavam.

       Turistas lá embaixo.

       Langdon e Sienna foram até a janela; ao olharem para fora, viram que estavam passando por cima da Ponte Vecchio – a estrutura de pedra medieval que permite o acesso de pedestres à cidade velha. Lá embaixo, os primeiros turistas do dia visitavam o mercado que a ponte abrigava desde o século XV. Hoje em dia os vendedores eram em sua maioria ourives e joalheiros, mas nem sempre fora assim. Originalmente, a ponte era um grande mercado de carne a céu aberto, mas os açougueiros foram banidos em 1593, depois que o odor fétido de carne estragada subiu até o Corredor Vasari e ofendeu as delicadas narinas do grão-duque.

       Em um determinado local daquela ponte, lembrou Langdon, fora cometido um dos mais conhecidos crimes de Florença. Em 1216, um jovem nobre chamado Buondelmonte havia recusado o casamento arranjado pela família por causa de seu verdadeiro amor e, por essa decisão, fora brutalmente assassinado.

       Sua morte, considerada por muito tempo “o assassinato mais sangrento de Florença”, devia essa reputação ao fato de ter sido o estopim de uma discórdia entre duas poderosas facções políticas – guelfos e gibelinos –, que, por séculos a fio, combateram uma à outra de modo implacável. Como essa disputa política fora a origem do exílio de Dante, o poeta imortalizara com amargura o ocorrido na Divina Comédia: Ó Buondelmonte, por desventura deste ouvido à voz alheia e teu noivado não honraste, causando um mal tamanho!

       Até hoje, duas placas distintas – cada uma com a citação de um verso do Canto XVI do Paraíso de Dante – podem ser vistas perto do local do crime. Uma delas, situada logo no início da Ponte Vecchio, declara em tom sombrio:

        

       Mas julgou a pedra mutilada que a ponte guarda

       Que urgia a Florença oferecer um sacrifício

       Em seu derradeiro momento de paz.

        

       Langdon desviou os olhos da ponte para as águas turvas. A leste, a torre solitária do Palazzo Vecchio parecia chamá-los.

       Embora Sienna e ele houvessem atravessado apenas metade do rio Arno, não teve dúvidas de que o ponto sem volta já ficara para trás havia muito tempo.

 

       Uns 10 metros mais abaixo, nos paralelepípedos da Ponte Vecchio, Vayentha observava ansiosa as pessoas que vinham na sua direção; jamais poderia imaginar que, segundos antes, sua única chance de redenção passava bem acima de sua cabeça.

 

       Nas entranhas do Mendacium ancorado, sentado sozinho em sua saleta, o facilitador Knowlton tentava em vão se concentrar no trabalho. Muito apreensivo, tornara a pôr o vídeo para ser reproduzido e passara a última meia hora analisando o monólogo de nove minutos que oscilava entre a genialidade e a loucura.

       Repassou o vídeo desde o início em modo acelerado à procura de alguma pista que talvez houvesse deixado escapar. Viu a placa submersa e o saco flutuante cheio daquele líquido turvo marrom-amarelado até chegar ao momento em que surgia a sombra bicuda: uma silhueta deformada projetada na parede gotejante de uma caverna e iluminada por uma tênue luz vermelha.

       Escutou a voz abafada, tentando decifrar a linguagem elaborada. Mais ou menos no meio do discurso, a sombra na parede se agigantou de repente e o som da voz se intensificou.

        

       O Inferno de Dante não é ficção... é uma profecia!

       Agonia extrema. Angústia torturante. Esse é o retrato do futuro.

       A humanidade, quando não controlada, funciona como uma praga, um câncer: nosso número se multiplica a cada geração até os confortos terrenos que um dia nutriram nossa virtude e fraternidade se reduzirem a nada, revelando os monstros que vivem dentro de nós quando somos obrigados a lutar até a morte para alimentar nossos filhos.

       É esse o Inferno de nove círculos de Dante.

       É isso que nos espera.

       Enquanto o futuro se aproxima de modo descontrolado, alimentado pela implacável matemática de Malthus, nós tentamos nos equilibrar à beira do primeiro círculo do Inferno... prestes a despencar mais depressa do que poderíamos imaginar.

        

       Knowlton pausou a gravação. Matemática de Malthus? Uma rápida busca na internet lhe informou sobre o proeminente matemático e demógrafo inglês do século XIX Thomas Robert Malthus, famoso por ter previsto que a superpopulação conduziria a um futuro colapso global.

       A biografia de Malthus incluía um trecho perturbador de seu livro Ensaio sobre o princípio da população que deixou o facilitador muito alarmado.

       O poder da população é tão superior à capacidade da Terra de produzir meios de subsistência para o homem que a morte prematura chegará, de uma forma ou de outra, à raça humana. Os vícios da humanidade agem de forma ativa e eficaz no controle da população. Eles são os precursores do grande exército da destruição e muitas vezes terminam eles próprios o terrível trabalho que iniciam. No entanto, se fracassam nessa guerra de extermínio, moléstias sazonais, epidemias e peste avançam em pavorosa sucessão, ceifando milhares, dezenas de milhares de vidas. Se mesmo assim o sucesso não é alcançado, uma fome colossal e inevitável vem em seguida, nivelando com um golpe poderoso a população mundial à quantidade de comida disponível.

        

       Com o coração aos pulos, ele tornou a olhar para a imagem imóvel da sombra bicuda.

       A humanidade, quando não controlada, funciona como um câncer.

       Quando não controlada. Isso não lhe soava nada bem.

       Com um dedo hesitante, ele descongelou a gravação.

       A voz abafada prosseguiu:

        

       Não fazer nada é o mesmo que acolher o Inferno de Dante... amontoados e famintos, chafurdando em Pecado.

       Por isso tive coragem de tomar uma atitude.

       Alguns se encolherão de horror, mas toda salvação tem seu preço.

       Um dia o mundo irá entender a beleza do meu sacrifício.

       Pois eu sou a sua Salvação.

       Eu sou a Sombra.

       Eu sou o portal que conduz à era Pós-humana.

 

       O Palazzo Vecchio parece uma peça de xadrez gigante. Com sua fachada quadrangular robusta e ameias quadradas de cantaria rústica, o enorme e bem posicionado edifício parecido com uma torre protege a extremidade sudeste da Piazza della Signoria.

       Uma solitária agulha, incomum a esse tipo de construção, ergue-se descentralizada do interior da fortaleza quadrada e traça um contorno característico no horizonte de Florença, da qual se tornou um símbolo inimitável.

       Construído como uma poderosa sede para o governo italiano, o edifício recebe seus visitantes com um conjunto intimidador de estátuas masculinas. O musculoso Netuno de Ammannati, de pé em uma plataforma sobre quatro cavalos, simboliza o domínio de Florença sobre os mares. Uma réplica do Davi de Michelangelo – talvez o nu masculino mais admirado do mundo – ergue-se, em toda a sua glória, à entrada do palazzo. Ao Davi se somam Hércules e Caco – mais dois colossais homens nus –, que, junto com o grupo de sátiros em volta de Netuno, levam a mais de uma dúzia o número total de pênis que recebem os turistas.

       Normalmente, todas as visitas de Langdon ao Palazzo Vecchio começavam ali, na Piazza della Signoria que, apesar do excesso de genitálias masculinas, sempre tinha sido uma de suas praças favoritas na Europa. Nenhuma ida à piazza estaria completa sem um espresso no Caffè Rivoire, seguido por uma visita aos leões dos Médici na Loggia dei Lanzi – a galeria de esculturas a céu aberto que ela abrigava.

       Dessa vez, no entanto, Langdon e Sienna planejavam entrar no Palazzo Vecchio pelo Corredor Vasari, como os duques da família Médici deviam fazer em sua época: sem passar pela famosa Galleria degli Uffizi, serpenteando acima de pontes e ruas e atravessando prédios até chegar ao coração do antigo palácio. Até ali, não tinham ouvido nenhum sinal de passos atrás deles, mas Langdon continuava ansioso para sair daquele corredor.

       Chegamos, percebeu, ao fitar a pesada porta de madeira à sua frente. A entrada do velho palácio.

       Apesar do considerável mecanismo de travamento, a porta era equipada com uma barra antipânico horizontal que lhe conferia as características de uma saída de emergência, mas ao mesmo tempo impedia a entrada no Corredor Vasari pelo outro lado sem um cartão magnético.

       Langdon colou a orelha à porta para escutar. Como não ouviu nada do outro lado, pôs as mãos na barra e a empurrou de leve.

       A fechadura fez um clique.

       Quando a porta de madeira se entreabriu alguns centímetros, Langdon espiou o que havia além dela. Um pequeno nicho. Vazio. Silencioso.

       Com um leve suspiro de alívio, atravessou a porta e gesticulou para que Sienna o seguisse.

       Entramos.

       Parado naquele nicho isolado dentro do Palazzo Vecchio, Langdon esperou alguns instantes e tentou se situar. À sua frente estendia-se um longo corredor perpendicular ao nicho. À esquerda, ao longe, vozes calmas e alegres ecoavam pelo corredor. Assim como o prédio do Capitólio em Washington, nos Estados Unidos, o Palazzo Vecchio era ao mesmo tempo atração turística e repartição pública. Àquela hora, as vozes que ouviam deviam ser de funcionários entrando e saindo de salas, preparando-se para o dia.

       Langdon e Sienna seguiram devagar em direção ao outro corredor e espiaram pela quina da parede. Como já era de esperar, lá no final havia um átrio no qual uns dez funcionários públicos faziam hora, bebericando seus espressi matinais e batendo papo com os colegas antes de começar o expediente.

       – Você disse que o mural de Vasari fica no Salão dos Quinhentos? – sussurrou Sienna.

       Langdon assentiu e apontou para além do átrio abarrotado em direção a um pórtico que dava para um corredor de pedra.

       – Infelizmente, temos que passar por aquele átrio.

       – Tem certeza?

       Ele assentiu.

       – Nunca vamos conseguir passar sem que nos vejam.

       – Eles são funcionários públicos. Não têm o menor interesse em nós. Basta andar como se trabalhasse aqui.

       Sienna alisou o paletó Brioni de Langdon e ajeitou seu colarinho.

       – Você está bem apresentável, Robert. – Ela lhe abriu um sorriso recatado, ajeitou o próprio suéter e saiu andando.

       Langdon partiu apressado atrás dela. Os dois caminharam a passos largos e decididos rumo ao átrio. Assim que chegaram lá, Sienna começou a gesticular de modo animado enquanto falava rapidamente em italiano – algo sobre subsídios agrícolas. Os dois se mantiveram junto à parede externa, sem chegar perto dos outros. Para espanto de Langdon, nenhum dos funcionários estranhou sua presença ali.

       Atravessado o átrio, eles seguiram depressa em direção ao corredor. Langdon se lembrou de seu personagem na peça de Shakespeare. Puck, o espírito travesso.

       – Você é uma boa atriz – sussurrou.

       – Tive que ser – disse ela em tom pensativo, com a voz estranhamente distante.

       Mais uma vez, Langdon sentiu que o passado daquela mulher guardava mais mágoas do que ele sabia, e isso o fez sentir um remorso ainda maior por tê-la envolvido naquela situação tão arriscada. Mas disse a si mesmo que agora não havia outro jeito senão ir até o fim.

       Continuar nadando pelo túnel... e rezar por uma saída.

       Quando eles se aproximaram do pórtico, ficou aliviado ao ver que sua memória não havia falhado. Uma pequena placa com uma seta apontava para além de uma curva no corredor e anunciava: il salone dei cinquecento. O Salão dos Quinhentos, pensou Langdon, perguntando-se que respostas o aguardariam lá dentro. A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte. Que significado isso pode ter?

       – O salão pode ainda estar fechado – avisou ele enquanto os dois se aproximavam da curva.

       Embora aquela fosse uma atração turística popular, o palazzo ainda não parecia estar aberto à visitação.

       – Ouviu isso? – perguntou Sienna, parando de andar.

       Langdon tinha ouvido. Um zumbido alto vinha de algum lugar logo depois da curva. Pelo amor de Deus, não me diga que tem um drone aqui dentro. Com cautela, ele espiou pela quina da parede. A porta de madeira surpreendentemente simples que dava acesso ao Salão dos Quinhentos estava a uns 30 metros de distância. Por infortúnio, bem no meio do caminho, um servente parrudo traçava círculos desanimados com uma enceradeira elétrica.

       O guardião do portal.

       Três símbolos em um letreiro de plástico junto à porta atraíram a atenção de Langdon. Decifráveis até para os simbologistas mais amadores, os ícones universais ali mostrados eram: uma câmera de vídeo cortada por um X; um copo cortado por um X; e duas figuras humanas estilizadas, uma feminina e outra masculina.

       Langdon tomou a frente e seguiu a passos largos em direção ao servente, pondo-se a trotar ao se aproximar. Sienna teve de dar uma corridinha para alcançá-lo.

       O servente ergueu os olhos, aparentando surpresa.

       – Signori?! – Ele estendeu os braços para a frente, para que Langdon e Sienna parassem.

       Langdon abriu um sorriso angustiado para o homem – mais parecia uma careta – e gesticulou para os símbolos próximos à porta, como se pedisse desculpas.

       – Toilette – declarou, com uma voz forçada. Não era uma pergunta.

       O servente hesitou por alguns instantes, parecendo determinado a negar o pedido. No entanto, depois de ver Langdon se contorcer à sua frente, acabou assentindo, solidário, e indicou com um gesto que eles podiam passar.

       Quando alcançaram a porta, Langdon deu uma piscadela para Sienna.

       – A compaixão é um idioma universal.

 

       Houve um tempo em que o Salão dos Quinhentos era o maior do mundo. Foi construído em 1494, como sala de reunião para o Consiglio Maggiore – o Conselho Maior da República Florentina, composto por exatos 500 membros, de onde veio seu nome. Alguns anos depois, sob as ordens de Cosmo I, o salão foi renovado, passando por uma ampliação considerável, e o homem mais poderoso da Itália na época escolheu o grande Giorgio Vasari como supervisor e arquiteto do projeto.

       Numa extraordinária façanha de engenharia, Vasari aumentou substancialmente o pé-direito original para permitir que a luz natural entrasse por caixilhos envidraçados altos situados nos quatro cantos do salão, transformando o recinto num elegante showroom de alguns dos mais belos exemplos de arquitetura, escultura e pintura florentinas.

       A primeira coisa a atrair o olhar de Langdon naquela sala era sempre o chão, anúncio imediato de que aquele não era um lugar qualquer. O piso de pedra vermelha imitando madeira era entrecruzado por linhas negras, o que dava ao ambiente de cerca de 1.200 metros quadrados um ar de solidez, profundidade e equilíbrio.

       Langdon ergueu os olhos devagar até a extremidade oposta do salão, onde seis dinâmicas esculturas – Os trabalhos de Hércules – margeavam a parede qual uma falange de soldados. Fez questão de ignorar a difamada Hércules e Diomedes, em que dois corpos nus se engalfinhavam em um constrangedor espetáculo de luta livre que incluía uma criativa “chave de pinto” que sempre fazia Langdon se encolher.

       Muito mais agradável aos olhos era o deslumbrante Gênio da vitória, de Michelangelo, à direita, que dominava o nicho central da parede sul. Com seus quase 2,75 metros de altura, a escultura fora encomendada para o túmulo do ultraconservador papa Júlio II – Il Papa Terribile. Langdon sempre havia considerado isso irônico, dada a posição do Vaticano em relação à homossexualidade. A estátua representava Tommaso dei Cavalieri, o rapaz por quem Michelangelo fora apaixonado durante quase a vida inteira e para quem compusera mais de trezentos sonetos.

       – Não consigo acreditar que nunca estive aqui antes – sussurrou Sienna ao seu lado, com um tom de reverência na voz. – É lindo.

       Langdon assentiu, recordando a primeira vez que visitara aquele lugar: na ocasião de um espetacular concerto de música clássica com a mundialmente renomada pianista Mariele Keymel. Embora tenha sido projetado para abrigar reuniões políticas particulares e audiências com o grão-duque, o salão agora costumava servir de palco para músicos de sucesso, palestras e jantares de gala – do historiador da arte Maurizio Seracini à festa de inauguração do Museu Gucci, repleta de astros e estrelas. Langdon às vezes se perguntava o que Cosmo acharia de compartilhar seu austero salão privado com modelos e presidentes de empresas privadas.

       Ele então olhou para cima, em direção aos enormes murais que enfeitavam as paredes, cuja bizarra história incluía uma técnica de pintura experimental fracassada de Leonardo da Vinci que resultara em uma “obra-prima derretida”. Houvera também um “confronto” artístico instigado por Piero Soderini e Maquiavel, que haviam posto no ringue dois titãs da Renascença – Michelangelo e Leonardo –, para criar murais em paredes opostas do mesmo salão.

       Nesse dia, porém, Langdon estava mais interessado em outra curiosidade histórica daquele lugar.

       Cerca trova.

       – Qual deles foi pintado por Vasari? – perguntou Sienna, percorrendo os murais com os olhos.

       – Quase todos – respondeu Langdon.

       Durante a renovação do salão, Vasari e seus assistentes haviam repintado quase tudo o que havia ali, desde os murais originais até os 39 caixotões que adornavam o famoso teto “suspenso”.

       – Mas foi aquele ali que nós viemos ver – prosseguiu, apontando para o mural mais à direita. – A batalha de Marciano.

       O confronto militar era simplesmente descomunal – tinha quase 17 metros de largura e mais de três andares de altura. Pintado em tons intensos de marrom e verde, o mural representava um violento panorama de soldados, cavalos, lanças e estandartes a se chocarem no alto de uma colina bucólica.

       – Vasari, Vasari – sussurrou Sienna. – Quer dizer que escondida em algum lugar aí tem uma mensagem secreta?

       Langdon assentiu enquanto cerrava os olhos em direção à parte superior da gigantesca pintura para tentar localizar um estandarte de batalha verde específico no qual Vasari havia escrito sua misteriosa mensagem – cerca trova.

       – É quase impossível ver daqui sem um binóculo – falou, apontando –, mas ali em cima, bem no meio, se você olhar logo abaixo das duas fazendas na encosta da colina, há um estandarte inclinado bem pequenininho e...

       – Estou vendo! – exclamou Sienna, apontando para o quadrante superior direito, exatamente onde estava a mensagem.

       Langdon desejou ter olhos mais jovens.

       Os dois se aproximaram um pouco mais da imponente pintura e ele ergueu os olhos para o seu esplendor. Enfim estavam ali. O único problema era que ele não sabia ao certo por quê. Ficou um bom tempo parado em silêncio, analisando os detalhes da obra-prima de Vasari.

       Se eu fracassar... só restará a morte.

       Uma porta se abriu com um rangido atrás deles e o servente da enceradeira espiou o interior do salão, parecendo hesitar. Sienna lhe acenou com simpatia. O servente os encarou por alguns instantes e então fechou a porta.

       – Robert, nós não temos muito tempo – disse ela, apressando-o. – Você precisa pensar. Esse quadro lhe desperta alguma lembrança?

       Langdon esquadrinhou a cena de batalha à sua frente.

       A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte.

       Achara que o mural talvez pudesse conter algum cadáver cujos olhos mortos estivessem lançando um olhar vazio para alguma outra pista na imagem, ou talvez para outra parte do salão. Para sua tristeza, agora via que o mural continha dezenas de cadáveres, nenhum particularmente digno de nota e nenhum com olhos mortos direcionados para algum ponto em especial.

       A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte?

       A cabeça de Langdon voltou a latejar enquanto ele sondava as profundezas da própria memória. Em alguma parte lá no fundo, a voz da mulher de cabelos prateados continuava a sussurrar: Busca e encontrarás.

       Encontrar o quê?!, ele teve vontade de gritar.

       Obrigou-se a fechar os olhos e expirar lentamente. Girou os ombros algumas vezes e tentou se libertar de todo e qualquer pensamento consciente, na esperança de conseguir acessar seu instinto mais básico.

       Very sorry.

       Vasari.

       Cerca trova.

       A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte.

       Seu instinto lhe dizia, sem sombra de dúvida, que ele estava no lugar certo. Além disso, embora ainda não soubesse por que, tinha a clara sensação de estar a poucos instantes de encontrar o que buscavam.

 

       O agente Brüder fitava com um olhar vazio as calças bufantes e a túnica de veludo vermelho expostas na vitrine à sua frente. Soltou um palavrão com os dentes cerrados. Sua equipe de SMI havia vasculhado o museu da indumentária de cima a baixo, e Langdon e Sienna Brooks não estavam em lugar nenhum.

       Suporte ao Monitoramento e Intervenção, pensou com raiva. Desde quando um professor universitário consegue enganar o SMI? Onde esses dois se meteram?!

       – Todas as saídas foram isoladas – insistiu um de seus homens. – A única possibilidade é que eles ainda estejam nos jardins.

       Por mais que isso parecesse fazer sentido, algo dizia a Brüder que Langdon e Sienna Brooks haviam encontrado alguma outra saída.

       – Ponham o drone no ar outra vez – ordenou ele, ríspido. – E mandem as autoridades locais ampliarem a área de busca do lado de fora dos muros.

       Filhos da mãe!

       Enquanto seus homens se afastavam às pressas, ele pegou o celular e ligou para quem chefiava a operação.

       – Brüder falando – anunciou. – Temo que estejamos com um problema grave. Vários, na verdade.

 

       A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte.

       Sienna repetia as palavras mentalmente enquanto vasculhava cada centímetro da brutal cena de batalha de Vasari, na esperança de que algo se destacasse.

       Viu olhos da morte por toda parte.

       Quais serão os que estamos procurando?!

       Pensou se talvez os olhos da morte seriam uma referência a todos os cadáveres putrefatos que a Peste Negra havia espalhado pela Europa.

       Pelo menos isso explicaria a máscara da peste...

       Do nada, uma cantiga lhe veio à mente: Um anel em volta da rosa. No bolso flores cheirosas. É pó, é pó. E vamos todos ao chão.

       Costumava recitar essa rima quando criança, na Inglaterra, até descobrir que ela remontava à Grande Peste de Londres de 1665. Supostamente, o anel em volta da rosa fazia referência ao círculo que surgia na pele ao redor de uma pústula rosada e indicava que a pessoa estava infectada. Os doentes carregavam ramalhetes de flores no bolso para tentar disfarçar tanto o cheiro dos próprios corpos em putrefação quanto o fedor da cidade em si, onde centenas de vítimas da peste morriam todos os dias e tinham os corpos cremados. É pó, é pó. E vamos todos ao chão.

       – Pelo amor de Deus – disse Langdon de repente, virando-se para a parede oposta.

       Sienna seguiu seu olhar.

       – O que houve?

       – É o nome de uma obra de arte que já foi exposta aqui. Pelo amor de Deus.

       Perplexa, Sienna o viu atravessar às pressas o salão rumo a uma pequena porta de vidro que tentou abrir. Estava trancada. Langdon colou o rosto ao vidro e levou as mãos à testa, protegendo os olhos da claridade para espiar o outro lado.

       Fosse lá o que ele estivesse buscando, Sienna torceu para que encontrasse depressa. O servente tinha acabado de reaparecer e sua expressão se tornara ainda mais desconfiada ao ver Langdon cruzar o salão para bisbilhotar através de uma porta trancada.

       Sienna acenou alegremente para o servente, mas o homem a fuzilou com um olhar frio e demorado e desapareceu em seguida.

 

       Lo Studiolo.

       Aninhada atrás de uma porta de vidro, diametralmente oposta às palavras ocultas cerca trova no Salão dos Quinhentos, havia uma minúscula câmara sem janelas. Projetada por Vasari como um ateliê secreto para Francisco I, o Studiolo retangular era coberto por um teto abobadado, dando aos seus visitantes a sensação de estarem dentro de um gigantesco baú do tesouro.

       O interior, muito apropriadamente, reluzia com lindos objetos. Mais de trinta quadros raros enfeitavam as paredes e o teto, dispostos tão perto uns dos outros que quase não restava espaço vazio nas paredes: A queda de Ícaro, Uma alegoria da vida humana, A Natureza presenteando Prometeu com joias maravilhosas.

       Enquanto espiava por trás do vidro aquele espaço deslumbrante, Langdon sussurrou para si mesmo:

       – Os olhos da morte.

       Sua primeira visita ao interior do Studiolo tinha sido durante um tour particular pelas passagens secretas do palazzo, alguns anos antes, quando ficara pasmo ao descobrir a fartura de portas, escadas e corredores ocultos espalhados pelo palácio, como os alvéolos de uma colmeia. Muitas dessas passagens secretas, inclusive, ficavam atrás dos quadros do Studiolo.

       Mas não foram essas passagens que haviam acabado de chamar sua atenção. Ele se lembrava de uma ousada obra de arte moderna que certa vez vira exposta ali intitulada Pelo amor de Deus, controverso trabalho de Damien Hirst que havia causado furor ao ser exibido no famoso Studiolo de Vasari.

       Tratava-se de uma caveira humana em tamanho real feita de platina e incrustada com mais de oito mil diamantes reluzentes. O efeito era arrebatador. As órbitas oculares vazias da caveira brilhavam de luz e vida, criando uma perturbadora sobreposição de símbolos antagônicos: vida e morte, beleza e horror. Embora a caveira de diamantes de Hirst tivesse sido removida do Studiolo tempos antes, a lembrança fizera uma ideia ocorrer a Langdon.

       Os olhos da morte, pensou ele. Uma caveira sem dúvida se encaixa nessa definição, não?

       Caveiras eram um tema recorrente no Inferno de Dante. O exemplo mais célebre era a brutal punição do conde Ugolino no círculo mais profundo do Inferno, condenado a roer por toda a eternidade o crânio de um arcebispo malvado.

       Será que estamos procurando uma caveira?

       Ele sabia que o enigmático Studiolo fora construído dentro da tradição de um “gabinete de curiosidades”. Quase todos aqueles quadros tinham dobradiças secretas e, uma vez abertos, revelavam armários ocultos nos quais o duque guardava estranhos objetos de seu interesse: amostras de minerais raros, lindas penas de aves, um fóssil perfeito da concha de um molusco e até, rezava a lenda, a tíbia de um monge decorada com prata trabalhada à mão.

       Infelizmente, desconfiava que nenhum desses objetos estivesse mais ali e nunca tinha ouvido falar de nenhuma outra caveira exposta no Studiolo a não ser a de Damien Hirst.

       Seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho alto de uma porta batendo na extremidade oposta do salão. Passos rápidos se aproximaram.

       – Signore! – gritou uma voz irritada. – Il salone non è aperto!

       Langdon se virou e viu uma funcionária marchando em sua direção. Era baixinha e tinha cabelos curtos e castanhos. Estava grávida de muitos meses. Ela cutucava o relógio e gritava alguma coisa sobre o salão ainda não estar aberto. Quando chegou mais perto, seus olhos encontraram os de Langdon e ela parou na mesma hora, cobrindo a boca de espanto.

       – Professor Langdon! – exclamou, parecendo constrangida. – Eu sinto muito! Não sabia que o senhor estava aqui! Bem-vindo de volta!

       Langdon gelou.

       Tinha certeza absoluta de que nunca vira aquela mulher.

 

       – Quase não o reconheci, professor! – disse a mulher, animada, num inglês com sotaque. – É por causa da roupa. – Ela deu um sorriso caloroso e meneou a cabeça para o terno Brioni que ele estava usando, como se aprovasse sua escolha. – Na última moda. Está quase parecendo italiano.

       Langdon sentiu a boca ficar seca, mas conseguiu abrir um sorriso educado enquanto a mulher chegava ao seu lado.

       – Bom... bom dia – gaguejou. – Como vai?

       Ela riu e segurou a barriga.

       – Exausta. A pequena Catalina passou a noite inteira chutando. – Correu os olhos pelo salão, intrigada. – Il Duomino não comentou que o senhor viria hoje. Suponho que ele esteja com o senhor, não?

       Il Duomino? Langdon não fazia ideia de quem ela estava falando.

       A mulher pareceu notar sua confusão e deu uma risadinha para tranquilizá-lo.

       – Tudo bem, todo mundo em Florença o chama pelo apelido. Ele não se importa. – Ela tornou a olhar ao redor. – Ele autorizou sua entrada?

       – Autorizou – disse Sienna, vindo do outro lado do salão. – Mas tinha uma reunião no café da manhã. Disse que a senhora não se importaria se ficássemos para dar uma olhada. – Sienna estendeu a mão, animada. – Sienna. Sou irmã de Robert.

       A mulher apertou a mão de Sienna com uma formalidade exagerada.

       – Marta Alvarez. Que sorte a sua... ter o professor Langdon como guia particular.

       – Pois é – concordou Sienna, mal conseguindo conter um revirar de olhos. – Ele é tão inteligente!

       Houve um silêncio constrangedor enquanto Marta avaliava Sienna.

       – Que engraçado, não estou vendo semelhança nenhuma – comentou. – Exceto talvez a estatura.

       Langdon pressentiu um desastre iminente. É agora ou nunca.

       – Marta – interrompeu, esperando ter entendido direito o nome dela. – Sinto muito incomodá-la, mas, bom... acho que você deve imaginar por que estou aqui.

       – Na verdade, não – respondeu ela, estreitando os olhos. – Não faço ideia.

       A pulsação de Langdon se acelerou. No silêncio constrangedor que se seguiu, ele percebeu que estava prestes a ser desmascarado. De repente, Marta abriu um sorriso largo e gargalhou.

       – Estou brincando, professor! É claro que posso adivinhar por que voltou. Para ser franca, não entendo o que achou de tão fascinante, mas como o senhor e il Duomino passaram quase uma hora lá em cima ontem à noite, imagino que tenha voltado para mostrar à sua irmã, não foi?

       – Isso... – ele conseguiu dizer. – Exatamente. Eu adoraria mostrar para Sienna, se não for... se não for muito incômodo.

       Marta ergueu os olhos para o balcão do andar superior e deu de ombros.

       – Não vejo problema. Estava indo lá para cima agora mesmo.

       O coração de Langdon quase explodiu dentro do peito quando ele olhou para o balcão nos fundos do salão. Eu fui lá em cima ontem à noite? Não se lembrava de nada. Além de estar na mesmíssima altura das palavras cerca trova, o balcão, ele sabia, também servia de entrada ao museu do palazzo, que costumava visitar sempre que ia lá.

       Marta estava prestes a conduzi-los até o outro lado do salão quando se deteve, como se tivesse pensado melhor.

       – Na verdade, professor, tem certeza de que não podemos encontrar algo menos sinistro para mostrar à sua bela irmã?

       Langdon não soube como responder.

       – Estamos indo ver algo sinistro? – perguntou Sienna. – O que é? Ele não me contou.

       Marta abriu um sorriso tímido e olhou para Langdon.

       – Professor, quer que eu conte para a sua irmã? Ou prefere contar o senhor mesmo?

       Langdon quase deu um pulo para agarrar a oportunidade.

       – Por favor, Marta, por que você não conta?

       A mulher se virou para Sienna, agora falando bem devagar:

       – Não sei quanto seu irmão lhe contou, mas nós vamos até o museu para ver uma máscara muito incomum.

       Os olhos de Sienna se arregalaram um pouco.

       – Que tipo de máscara? Uma daquelas horrorosas máscaras da peste que as pessoas usam aqui durante o Carnevale?

       – Bom palpite – disse Marta –, mas não, não é uma máscara da peste. É de outro tipo bem diferente. Chama-se máscara mortuária.

       A revelação fez Langdon soltar um arquejo audível e Marta lhe fez uma cara severa, talvez achando que ele estivesse exagerando no drama para assustar a irmã.

       – Não dê atenção a ele – falou. – Máscaras mortuárias eram uma prática muito comum no século XVI. São basicamente moldes de gesso do rosto de uma pessoa, feitos logo após a morte.

       A máscara da morte. Langdon teve seu primeiro momento de lucidez desde que havia acordado em Florença. O Inferno de Dante... cerca trova... enxergar através dos olhos da morte. A máscara!

       – E que rosto serviu de molde para essa máscara? – perguntou Sienna.

       Langdon pousou a mão em seu ombro e respondeu com a maior calma que conseguiu.

       – O de um famoso poeta italiano: Dante Alighieri.

 

       O sol forte do Mediterrâneo iluminava os múltiplos conveses do Mendacium embalado pelas ondas do Adriático. Sentindo-se esgotado, o diretor acabou seu segundo uísque e lançou um olhar vazio pela janela do escritório.

       As notícias de Florença não eram nada boas.

       Talvez porque houvesse muito tempo que não bebia álcool, sentia-se estranhamente desorientado e impotente... como se a embarcação tivesse perdido os motores e vagasse sem rumo, ao sabor da maré.

       Era uma sensação estranha para o diretor. Em seu mundo, sempre havia uma bússola confiável – o protocolo – que jamais deixava de indicar o caminho a seguir. Era o protocolo que lhe permitia tomar decisões difíceis sem nunca olhar para trás.

       Fora o protocolo que exigira a desvinculação de Vayentha e o diretor o seguira sem titubear. Lidarei com ela depois que esta crise passar.

       Era o protocolo que exigia que o diretor soubesse o mínimo possível sobre todos os seus clientes. Ele decidira muito tempo antes que o Consórcio não tinha nenhuma responsabilidade ética de julgá-los.

       Forneça o serviço.

       Confie no cliente.

       Não faça perguntas.

       Assim como os diretores da maioria das empresas, ele simplesmente oferecia serviços partindo do pressuposto de que estes seriam implementados dentro dos limites definidos pela lei. Afinal de contas, a Volvo não era responsável por garantir que as mães respeitassem os limites de velocidade nas áreas escolares, assim como a Dell não podia ser responsabilizada se alguém usasse um de seus computadores para hackear uma conta bancária.

       Agora, porém, com a situação fugindo ao controle, ele amaldiçoava em silêncio o contato de confiança que havia indicado aquele cliente ao Consórcio.

       – Ele não vai dar trabalho e vai render um bom dinheiro – garantira-lhe a tal pessoa. – É um homem brilhante, uma celebridade em sua área, e é podre de rico. Só precisa desaparecer por um ou dois anos. Quer ficar um tempo fora do ar para trabalhar em um projeto importante e está disposto a pagar por isso.

       O diretor concordara sem pensar muito no assunto. Realocações de longo prazo sempre significavam dinheiro fácil e ele confiava nos instintos de seu contato.

       Como esperado, o trabalho tinha mesmo rendido um dinheiro muito fácil.

       Até a semana anterior.

       Agora, na esteira do caos criado por aquele homem, o diretor andava em círculos ao redor de uma garrafa de uísque e contava os dias até suas responsabilidades para com o cliente terminarem.

       O telefone em sua mesa tocou e ele viu que era Knowlton, um de seus principais facilitadores, ligando do nível inferior.

       – Pois não – atendeu.

       – Diretor – havia aflição na voz de Knowlton. – Detesto incomodá-lo com isso, mas, como o senhor deve saber, estamos programados para divulgar um vídeo para a imprensa amanhã.

       – Sim – respondeu o diretor. – O arquivo está pronto?

       – Está, mas achei que talvez o senhor fosse querer dar uma olhada antes do upload.

       O diretor passou alguns instantes sem responder, intrigado com o comentário.

       – O vídeo menciona o nome da nossa organização ou nos compromete de alguma forma?

       – Não, mas o conteúdo é um tanto perturbador. O cliente aparece na tela e diz...

       – Pode parar – ordenou o diretor, indignado que um facilitador sênior tivesse o descaramento de sugerir uma quebra de protocolo tão grave. – O conteúdo é irrelevante. Independentemente do que diga, esse vídeo teria sido divulgado com ou sem a nossa ajuda. O cliente poderia muito bem ter enviado o arquivo por meios eletrônicos, mas preferiu contratar a nós. Foi a nós que ele pagou. Foi em nós que confiou.

       – Sim, diretor.

       – Você não foi contratado para ser crítico de cinema – disse o diretor em tom de censura. – Foi contratado para cumprir promessas. Faça o seu trabalho.

 

       Vayentha esperava na Ponte Vecchio, os olhos aguçados esquadrinhando as centenas de rostos que passavam. Ela ficara atenta e estava certa de que Langdon ainda não tinha aparecido por ali, mas o drone havia silenciado. Seus serviços de rastreamento não pareciam mais necessários.

       Brüder deve tê-lo capturado.

       Com relutância, ela começou a pensar na desanimadora perspectiva de ser interrogada pelo Consórcio. Ou coisa pior.

       Tornou a se lembrar dos dois agentes que tinham sido desvinculados... e nunca mais vistos. Eles simplesmente mudaram de ramo, pensou, tentando se tranquilizar. Mesmo assim, não conseguia deixar de pensar que talvez fosse melhor partir para as colinas da Toscana, sumir do mapa e usar suas habilidades para começar uma vida nova.

       Mas por quanto tempo eu conseguiria me esconder deles?

       Inúmeros alvos haviam aprendido na pele que, quando se entrava na mira do Consórcio, a privacidade se tornava uma ilusão. Era apenas uma questão de tempo.

       Será que a minha carreira vai mesmo acabar assim?, perguntou-se, ainda incapaz de aceitar que o vínculo de doze anos com o Consórcio fosse ser rompido por causa de uma série de acasos desfavoráveis. Não tive culpa por ele ter se jogado daquela torre... mas parece que estou caindo junto.

       Sua única chance de se redimir era ser mais esperta do que Brüder, mas desde o início ela sabia que suas chances eram mínimas.

       Tive minha última oportunidade na noite passada e fracassei.

       Quando Vayentha tornou a se virar para a moto, relutante, notou um som distante... um zumbido agudo familiar.

       Intrigada, olhou para cima. Para sua surpresa, o drone de reconhecimento havia acabado de alçar voo novamente, dessa vez perto do extremo oposto do Palazzo Pitti. Ficou observando a minúscula aeronave começar a sobrevoar o palazzo em círculos desesperados.

       A decolagem do drone só podia significar uma coisa.

       Eles ainda não encontraram Langdon!

       Onde ele se meteu?

 

       O zumbido penetrante que vinha do céu tornou a despertar a Dra. Elizabeth Sinskey de seu delírio. O drone está no ar outra vez? Mas eu achei que...

       Ela se remexeu no banco de trás da van, onde o mesmo agente jovem continuava sentado ao seu lado. Voltou a fechar os olhos, tentando combater a dor e o enjoo. Mais do que tudo, porém, lutava contra o medo.

       O tempo está se esgotando.

       Embora seu inimigo tivesse saltado para a morte, em seus sonhos Elizabeth ainda via a silhueta dele dando-lhe um sermão na penumbra do Conselho de Relações Exteriores.

       É fundamental que alguém tome medidas drásticas, afirmara ele, seus olhos verdes faiscando. Se não formos nós, quem vai ser? Se não for agora, quando?

       Elizabeth sabia que deveria tê-lo impedido naquele momento, quando teve oportunidade. Jamais esqueceria como, depois de sair como um furacão daquele encontro, havia se sentado espumando de raiva no banco de trás da limusine para atravessar Manhattan em direção ao aeroporto internacional JFK. Ansiosa para saber quem poderia ser aquele maluco, ela sacara o celular para analisar a foto que havia tirado dele de surpresa.

       Ao ver a imagem, soltou um arquejo de espanto. Sabia exatamente quem era aquele homem. A boa notícia era que seria muito fácil rastreá-lo. A má era que ele era um gênio em sua área de atuação – alguém que poderia ser muito perigoso se quisesse.

       Nada é mais criativo ou destrutivo do que uma mente brilhante com um propósito.

       Meia hora depois, quando chegou ao aeroporto, ela já havia telefonado para sua equipe e acrescentado aquele homem às listas de observação de bioterroristas de todas as agências relevantes do mundo: CIA, CDC (Centro de Prevenção e Controle de Doenças), ECDC (Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças) e todas as outras organizações do gênero.

       É tudo o que posso fazer até chegar a Genebra, pensou.

       Exausta, levou sua bagagem de mão até o balcão de check-in e entregou o passaporte e a passagem para a atendente.

       – Ah, Dra. Sinskey – disse-lhe a mulher com um sorriso. – Um cavalheiro muito simpático acabou de deixar um recado para a senhora.

       – Perdão? – Até onde Elizabeth sabia, ninguém tinha acesso às informações do seu voo.

       – Um homem alto – falou a atendente. – De olhos verdes.

       Elizabeth deixou a mala cair no chão. Ele está aqui? Como?! Girou nos calcanhares para examinar os rostos atrás de si.

       – Ele já foi, mas pediu que lhe entregássemos isto aqui – disse a atendente, estendendo-lhe um pedaço de papel dobrado.

       Trêmula, Elizabeth desdobrou o papel e leu o recado escrito à mão.

       Era uma citação famosa inspirada na obra de Dante Alighieri.

        

       Os lugares mais sombrios do Inferno são reservados

       àqueles que se mantiveram neutros

       em tempos de crise moral.

 

       Marta Alvarez lançou um olhar cansado para o alto da escada íngreme que subia do Salão dos Quinhentos até o museu no primeiro piso.

       Posso farcela, pensou. Eu consigo.

       Como administradora de arte e cultura do Palazzo Vecchio, Marta havia galgado aquela escada inúmeras vezes, mas, nos últimos tempos, com mais de oito meses de gravidez, vinha achando a subida bem mais árdua.

       – Marta, tem certeza de que não quer pegar o elevador? – Com uma expressão preocupada, Robert Langdon gesticulou para o pequeno elevador de serviço ali perto, instalado para os deficientes físicos.

       Marta abriu um sorriso agradecido, mas fez que não com a cabeça.

       – Como falei na noite passada, meu médico disse que exercício é bom para o bebê. Além do mais, professor, sei que o senhor é claustrofóbico.

       Langdon pareceu estranhamente espantado com aquele comentário.

       – Ah, sim. Tinha me esquecido que já mencionei isso.

       Como assim, esquecido? pensou Marta. Foi há menos de doze horas e conversamos um bom tempo sobre o incidente de infância que criou essa fobia.

       Na noite anterior, enquanto seu companheiro obeso, il Duomino, subia de elevador, Langdon havia acompanhado Marta pelas escadas. No caminho, fizera-lhe uma vívida descrição da queda em um poço abandonado que sofrera quando criança e que lhe incutira um medo quase incapacitante de lugares fechados.

       Agora, com a “irmã mais nova de Langdon” subindo na frente, saltando os degraus, com o rabo de cavalo louro a balançar atrás de si, ele e Marta avançavam escada acima de forma metódica, parando várias vezes para a italiana recuperar o fôlego.

       – Estou surpresa que o senhor queira ver a máscara de novo – disse ela. – Considerando todas as obras de arte que Florença tem a oferecer, ela me parece uma das menos interessantes.

       Langdon deu de ombros, evasivo.

       – Voltei mais para que Sienna pudesse vê-la. Aliás, obrigado por nos deixar entrar outra vez.

       – Não há de quê.

       Na noite anterior, a reputação de Langdon em si teria bastado para convencer Marta a lhe abrir a galeria, mas o fato de ele estar acompanhado por il Duomino significara que ela realmente não tinha escolha.

       Ignazio Busoni – conhecido como il Duomino – era uma espécie de celebridade do mundo das artes de Florença. Diretor do Museo dell’Opera del Duomo havia muito tempo, supervisionava todos os aspectos da mais proeminente atração histórica florentina: a gigantesca catedral que, com sua cúpula vermelha, dominava tanto a história quanto o horizonte de Florença. Sua paixão pelo monumento, aliada a seus quase 180 quilos e ao rosto sempre vermelho, haviam resultado no bem-intencionado apelido de il Duomino – “o pequeno Duomo”.

       Marta não conseguia sequer imaginar como Langdon conhecera il Duomino, mas Busoni lhe telefonara na noite anterior dizendo que queria trazer um convidado para uma exibição particular da máscara mortuária de Dante. Quando o convidado misterioso havia se revelado o famoso simbologista e historiador da arte americano Robert Langdon, ela ficara bastante empolgada por ter a oportunidade de conduzir aqueles dois homens famosos à galeria do palazzo.

       Agora, já no topo da escada, Marta levou as mãos aos quadris e respirou fundo. Sienna já estava debruçada no guarda-corpo do balcão, olhando para o Salão dos Quinhentos.

       – Para mim, essa é a melhor vista do salão – disse a italiana, ofegante. – Daqui se tem uma perspectiva completamente diferente dos murais. Imagino que seu irmão tenha lhe contado sobre a mensagem misteriosa escondida naquele ali? – apontou ela.

       Sienna assentiu, entusiasmada.

       – Cerca trova.

       Marta observou Langdon, que admirava o salão. À luz das janelas do mezanino, não pôde deixar de notar que ele não estava tão bonito quanto na noite anterior. Gostava do seu novo terno, mas ele tinha a barba por fazer e um semblante pálido, cansado. Além disso, os cabelos, que na véspera tinham lhe parecido grossos e cheios, agora estavam desgrenhados, como se ele ainda não tivesse tomado banho.

       Virou-se de volta para o mural antes de ser flagrada olhando para ele.

       – Estamos praticamente na mesma altura de onde Vasari escreveu cerca trova – falou. – Quase dá para ver as palavras a olho nu.

       A irmã de Langdon parecia indiferente ao mural.

       – Fale-me sobre a máscara mortuária de Dante. Por que ela está aqui no Palazzo Vecchio?

       Igualzinha ao irmão, pensou Marta, reprimindo um resmungo, ainda perplexa com o fato de que a máscara exercesse tamanho fascínio nos dois. Por outro lado, o objeto tinha uma história muito estranha, especialmente nos últimos tempos, e Langdon não era o primeiro a demonstrar um interesse quase obsessivo por ele.

       – Bem, primeiro me diga o que sabe sobre Dante.

       A bela jovem loura deu de ombros.

       – Só o que se aprende na escola. Ele foi um poeta italiano e é mais conhecido por ter escrito A Divina Comédia, que relata sua jornada imaginária pelo Inferno.

       – Mais ou menos isso – respondeu Marta. – Em seu poema, Dante consegue sair do Inferno, atravessa o Purgatório e, por fim, chega ao Paraíso. Se um dia ler A Divina Comédia, vai ver que a jornada é divida em três partes. – Marta gesticulou para que eles a seguissem ao longo da galeria até a entrada do museu. – Mas a razão para a máscara estar aqui no Palazzo Vecchio não tem nada a ver com a Comédia. Na verdade, é um motivo histórico. Dante vivia em Florença, cidade que amava tanto quanto é possível amar um lugar. Ele era um florentino muito proeminente e poderoso, mas houve uma reviravolta política, ele apoiou o lado errado e foi condenado ao exílio, expulso para sempre da cidade.

       Quando chegaram perto da entrada do museu, Marta parou a fim de recuperar o fôlego. Tornando a pousar as mãos nos quadris, deslocou o peso do corpo para trás e seguiu falando:

       – Há quem diga que é por causa do exílio que a máscara mortuária de Dante parece tão triste, mas eu tenho outra teoria. Sou um pouco romântica, então acho que a expressão de tristeza tem mais a ver com uma mulher. Dante passou a vida inteira apaixonado por uma jovem chamada Beatriz Portinari. Infelizmente, ela se casou com outro homem. Ou seja, Dante foi obrigado a viver não só sem sua adorada Florença, mas também sem a mulher que tanto amava. Seu amor por Beatriz se tornou um dos temas centrais da Divina Comédia.

       – Interessante – falou Sienna em um tom que sugeria que ela não tinha ouvido uma só palavra. – Mas ainda não está claro para mim por que a máscara fica guardada aqui dentro do palazzo.

       Marta achou a insistência da jovem, além de incomum, quase mal-educada.

       – Bem – prosseguiu ela, voltando a andar –, Dante ainda estava proibido de entrar em Florença quando morreu, por isso foi sepultado em Ravena. Mas como Beatriz, seu grande amor, estava enterrada aqui e como ele adorava tanto a cidade, trazer sua máscara mortuária para cá pareceu um nobre tributo ao poeta.

       – Entendo – disse Sienna. – E por que justamente neste edifício?

       – O Palazzo Vecchio é o símbolo mais antigo de Florença. Na época de Dante, era o coração da cidade. Há um quadro famoso na catedral que o mostra em pé do lado de fora da cidade murada, banido, enquanto ao fundo se pode ver a torre do palazzo que ele tanto estimava. Em vários sentidos, ao guardar a máscara mortuária aqui, sentimos que Dante enfim pôde voltar para casa.

       – Legal – falou Sienna, parecendo enfim satisfeita. – Obrigada.

       Marta chegou à porta do museu e bateu três vezes.

       – Sono io, Marta! Buongiorno!

       Ouviu-se o tilintar de chaves do outro lado e a porta se abriu. Um guarda idoso abriu um sorriso cansado para ela e conferiu o relógio.

       – È un po’ presto – falou, sem deixar de sorrir. Está meio cedo.

       Marta gesticulou para Langdon à guisa de explicação e o guarda ficou imediatamente radiante.

       – Signore! Bentornato! – Bem-vindo de volta!

       – Grazie – respondeu Langdon com simpatia, vendo o guarda acenar para que os três entrassem.

       Atravessaram um pequeno saguão onde o guarda desarmou um sistema de segurança, destrancando em seguida uma segunda porta, mais pesada. Quando esta se abriu, ele entrou e estendeu o braço no ar com um floreio:

       – Ecco il museo!

       Marta sorriu, agradecida, e conduziu seus convidados para dentro.

       O espaço que aquele museu ocupava fora originalmente projetado para abrigar os escritórios administrativos do governo, portanto, em vez de uma galeria ampla e aberta, era um labirinto de salas de tamanho médio e corredores que circundavam metade do edifício.

       – A máscara fica logo ali adiante, depois da curva – falou Marta para Sienna. – Está exposta em um espaço estreito chamado l’andito, que nada mais é do que uma passagem entre duas salas maiores. Fica dentro de um mostruário antigo encostado na parede lateral, o que a mantém invisível até que se esteja de cara para ela. Por causa disso, muitos visitantes passam bem em frente à máscara sem nem perceber!

       Langdon agora andava mais depressa, com o olhar fixo à frente, como se a máscara exercesse sobre ele algum poder estranho. Marta cutucou Sienna com o cotovelo e sussurrou:

       – É óbvio que seu irmão não está interessado em nenhuma outra das nossas peças, mas, já que está aqui, não deveria deixar de ver o busto de Maquiavel ou o globo do Mappa Mundi na Sala dos Mapas.

       Sienna assentiu com educação e seguiu em frente, também sem desviar os olhos do caminho. Marta mal conseguia acompanhá-los. Quando chegaram à terceira sala, já havia ficado um pouco para trás e, por fim, parou.

       – Professor? – chamou, ofegante. – Talvez o senhor... queira mostrar à sua irmã... parte da galeria... antes de vermos a máscara?

       Langdon se virou, aparentemente distraído, como se estivesse voltando de um devaneio profundo.

       – Perdão?

       Sem fôlego, Marta apontou para um mostruário ao seu lado.

       – Uma das primeiras... edições impressas da Divina Comédia?

       Quando Langdon enfim percebeu que Marta estava secando o suor da testa e tentando recuperar o fôlego, quase morreu de vergonha.

       – Marta, me desculpe! Claro, seria maravilhoso se pudéssemos dar uma olhada rápida no texto.

       Langdon voltou apressado e deixou que Marta os conduzisse até o antigo mostruário. Lá dentro havia um livro bastante gasto, encadernado em couro e aberto em uma folha de rosto rebuscada: La Divina Commedia: Dante Alighieri.

       – Incrível – comentou, parecendo surpreso. – Reconheço esse frontispício. Não sabia que vocês tinham uma das edições Numeister originais!

       É claro que sabia, pensou Marta, intrigada. Eu lhe mostrei isso ontem à noite!

       – Johann Numeister imprimiu os primeiros exemplares da obra de Dante em meados do século XIV – explicou Langdon rapidamente para Sienna. – Várias centenas de cópias foram impressas, mas pouco mais de dez sobreviveram. São muito raras.

       Marta teve a impressão de que Langdon estava fingindo que já não sabia daquilo para se exibir para a irmã mais nova. Tamanha imodéstia não condizia com um professor cuja reputação era de humildade acadêmica.

       – Esse exemplar é um empréstimo da Biblioteca Laurenziana – comentou Marta. – Se vocês ainda não tiverem ido lá, eu recomendo. Eles têm uma escadaria espetacular projetada por Michelangelo que conduz à primeira sala de leitura pública do mundo. Os livros eram literalmente acorrentados aos assentos para que ninguém os levasse embora. Claro, muitas das edições eram únicas no mundo.

       – Impressionante – falou Sienna, olhando mais para o fundo do museu. – E a máscara está para lá?

       Por que tanta pressa? Marta precisava de mais alguns instantes para recuperar o fôlego.

       – Sim, mas talvez vocês achem aquilo ali interessante. – Ela apontou para um nicho do outro lado da sala, em direção a uma pequena escada que desaparecia no teto. – Aquela escada leva a uma plataforma de observação nos caibros do telhado da qual é possível ver de cima o famoso teto suspenso de Vasari. Eu teria o maior prazer em esperar aqui se vocês quiserem...

       – Por favor, Marta – interrompeu Sienna. – Estou louca para ver a máscara. Não temos muito tempo.

       Marta encarou a jovem com um olhar perplexo. Não gostava nem um pouco daquela nova mania de pessoas que mal se conheciam ficarem se chamando pelo primeiro nome. Eu sou a Signora Alvarez, ralhou em pensamento. E estou lhe fazendo um favor.

       – Tudo bem, Sienna – respondeu de forma direta. – A máscara fica por aqui.

       Ela não perdeu mais tempo dando informações a Langdon e sua irmã enquanto atravessavam o sinuoso conjunto de salas em direção à máscara. Na noite anterior, Langdon e il Duomino tinham passado quase meia hora no estreito andito observando o artefato. Intrigada com tanta curiosidade, Marta lhes perguntara se todo aquele fascínio estaria de alguma forma relacionado à inusitada série de acontecimentos envolvendo a máscara ao longo daquele último ano. Evasivos, Langdon e il Duomino não lhe deram nenhuma resposta concreta.

       Agora, à medida que se aproximavam do andito, Langdon começou a explicar à irmã o simples processo de criação de uma máscara mortuária. Sua descrição, para alegria de Marta, foi muito precisa, bem diferente daquela conversa mole de que ele nunca tinha visto o exemplar raro da Divina Comédia exibido no museu.

       – Logo depois da morte, o rosto do defunto era untado com azeite – descreveu Langdon. – Então aplicava-se uma camada de gesso úmido sobre a pele até cobrir o rosto inteiro, boca, nariz, pálpebras, desde a linha dos cabelos até o pescoço. Depois de duro, o gesso saía com facilidade e era usado como molde para uma nova camada de gesso. Quando endurecia, esse segundo gesso criava uma réplica perfeita do rosto do defunto. A prática era usada sobretudo para homenagear figuras eminentes ou grandes gênios: Dante, Shakespeare, Voltaire, Tasso, Keats. Todos eles tiveram máscaras mortuárias.

       – E aqui estamos nós enfim – anunciou Marta quando o trio chegou diante do andito. Afastando-se para o lado, gesticulou para que a irmã de Langdon entrasse primeiro. – A máscara está no mostruário junto à parede da esquerda. Por favor, fique atrás do cordão.

       – Obrigada – Sienna entrou no corredor estreito, foi até o mostruário e olhou para dentro.

       Seus olhos se arregalaram de imediato e ela se virou para Langdon com uma expressão de pavor.

       Marta já tinha visto a mesma reação milhares de vezes. Os visitantes frequentemente se assustavam e faziam cara de nojo ao verem a máscara pela primeira vez: o semblante enrugado e sinistro de Dante, seu nariz adunco e seus olhos fechados.

       Langdon entrou logo atrás de Sienna, parou ao seu lado e olhou na mesma direção que ela. Recuou de imediato, com surpresa também estampada no rosto.

       Marta deu um grunhido. Che esagerato. E entrou atrás deles. Quando olhou para a vitrine, porém, também soltou um arquejo audível. Oh, mio Dio!

       Marta Alvarez esperava deparar com o conhecido semblante morto de Dante, mas viu apenas o interior de cetim vermelho do mostruário e o gancho em que a máscara costumava ficar pendurada.

       Cobriu a boca e ficou encarando horrorizada a vitrine vazia. Sua respiração se acelerou e ela segurou uma das colunas do cordão de segurança para se apoiar. Por fim, tirou os olhos do mostruário e se virou para os guardas noturnos na entrada principal.

       – La maschera di Dante! – gritou feito uma louca. – La maschera di Dante è sparita!

 

       Marta Alvarez tremia diante do mostruário vazio. Torceu para que a rigidez em sua barriga fosse apenas pânico, e não as primeiras contrações.

       A máscara mortuária de Dante sumiu!

       Depois de terem chegado ao andito, visto a vitrine vazia e entrado em ação, os dois seguranças estavam agora em estado de alerta total. Um havia corrido até uma sala de controle próxima para recuperar as gravações das câmeras de segurança da noite anterior, enquanto o outro acabara de telefonar para a polícia para comunicar o roubo.

       – La polizia arriverà tra venti minuti! – falou o guarda para Marta assim que desligou o telefone.

       – Venti minuti?! – exclamou ela. Vinte minutos?! – Uma obra de arte importante foi roubada!

       O guarda disse ter sido informado de que a maior parte da polícia metropolitana estava administrando uma crise muito mais grave, e que estavam tentando encontrar um agente disponível para ir até o museu colher depoimentos.

       – Che cosa protrebbe esserci di più grave? – reclamou ela. O que poderia ser mais grave?

       Langdon e Sienna trocaram olhares ansiosos e Marta percebeu que os dois visitantes estavam transtornados com aquela situação. Não é de espantar. Eles tinham apenas ido dar uma olhada na máscara mortuária de Dante e agora testemunhavam as consequências do roubo de uma importante obra de arte. Na noite anterior, alguém dera um jeito de entrar na galeria e roubar a máscara.

       Marta sabia que havia peças muito mais valiosas ali que poderiam ter sido roubadas, por isso tentou pensar “dos males, o menor”. Mesmo assim, aquele era o primeiro roubo na história do museu. Eu nem sei qual é o protocolo para isso!

       De repente sentiu-se fraca e tornou a se apoiar na coluna do cordão.

       Com ar estupefato, os dois guardas da galeria contaram a Marta exatamente o que tinham feito e tudo o que havia acontecido na noite anterior: por volta das dez da noite, ela chegara com il Duomino e Langdon. Pouco depois, o trio fora embora junto. Os guardas haviam trancado de novo as portas e reativado o alarme. Até onde sabiam, ninguém havia entrado ou saído da galeria desde então.

       – Impossível! – ralhara Marta em italiano. – A máscara estava no mostruário quando fomos embora ontem à noite, então é óbvio que alguém entrou na galeria depois disso.

       Os guardas abriram os braços, atônitos.

       – Noi non abbiamo visto nessuno!

       Agora, com a polícia a caminho, Marta se moveu em direção à sala de controle o mais rápido que sua gravidez lhe permitia. Langdon e Sienna foram atrás, nervosos.

       O vídeo de segurança, pensou Marta. Ele vai nos mostrar quem esteve aqui na noite passada!

 

       A três quarteirões dali, na Ponte Vecchio, Vayentha se escondeu nas sombras quando uma dupla de policiais percorreu a multidão, patrulhando a área com fotos de Langdon na mão.

       Quando estavam se aproximando dela, um de seus rádios chiou, emitindo um alerta da central para todas as unidades. O anúncio foi breve e em italiano, mas Vayentha entendeu o teor geral: qualquer agente disponível na área devia correr ao Palazzo Vecchio para colher um depoimento no museu.

       Os oficiais mal se mexeram, mas Vayentha ficou em estado de alerta.

       Il Museo di Palazzo Vecchio?

       O fracasso da noite anterior – o fiasco que praticamente arruinara sua carreira – tinha ocorrido nas vielas nos arredores do palazzo.

       O alerta da polícia prosseguiu em italiano entremeado por estática, quase ininteligível, com exceção de duas palavras que se destacaram com clareza: Dante Alighieri.

       Seu corpo se retesou na mesma hora. Dante Alighieri?! Com certeza isso não era coincidência. Ela se virou na direção do Palazzo Vecchio e localizou a torre recortada por ameias que despontava acima dos telhados dos edifícios mais próximos.

       O que exatamente aconteceu no museu?, pensou. E quando?

       Quaisquer que fossem os detalhes, Vayentha tinha experiência suficiente como analista de campo para saber que coincidências eram bem menos comuns do que a maioria das pessoas imaginava. O museu do Palazzo Vecchio... E Dante? Aquilo só podia estar relacionado a Langdon.

       Desde o início suspeitara que ele voltaria à cidade velha. Fazia todo o sentido: foi lá que ele estivera na noite anterior, quando tudo começara a degringolar.

       Agora, em plena luz do dia, perguntou-se se Langdon não teria voltado aos arredores do Palazzo Vecchio para encontrar o que estava procurando. Tinha certeza de que ele não havia atravessado a ponte em direção à cidade velha. Havia várias outras pontes, mas elas pareciam distantes demais dos Jardins de Boboli para se ir a pé.

       Foi então que notou um caiaque com quatro remadores passar no rio debaixo da ponte. O casco dizia società cannotieri firenze / clube de regatas de florença. Os remos vermelhos e brancos característicos subiam e desciam em perfeita sincronia.

       Será que Langdon atravessou o rio de barco? Parecia improvável, mas algo lhe dizia que o alerta policial sobre o Palazzo Vecchio era uma pista que merecia atenção.

       – Peguem suas câmeras, per favore! – gritou uma mulher em inglês com sotaque.

       Vayentha se virou e viu um pompom cor de laranja se balançando em uma vareta: uma guia tentava arrebanhar seu grupo de turistas para atravessarem juntos a Ponte Vecchio.

       – Se olharem para cima, verão a maior obra-prima de Vasari! – exclamou a guia com um entusiasmo calculado, erguendo no ar o pompom e fazendo todo mundo olhar para o alto.

       Vayentha não havia notado antes, mas parecia haver uma estrutura suspensa que corria por cima das lojas, como um apartamento.

       – O Corredor Vasari – anunciou a guia. – Tem quase um quilômetro de comprimento e permitia à família Médici passar com segurança entre o Palazzo Pitti e o Palazzo Vecchio.

       Vayentha arregalou os olhos ao examinar a estrutura em forma de túnel lá em cima. Já havia ouvido falar do corredor, mas não sabia quase nada a respeito dele.

       Ele conduz ao Palazzo Vecchio?

       – Para os felizardos que possuem contatos VIP, até hoje ainda é possível entrar no corredor – prosseguiu a guia. – Ele é uma galeria de arte espetacular que se estende do Palazzo Vecchio até a extremidade nordeste dos Jardins de Boboli.

       A guia continuou falando, mas Vayentha não ouviu.

       Já estava correndo em direção à motocicleta.

 

       Os pontos no couro cabeludo de Langdon haviam voltado a latejar quando ele e Sienna se espremeram junto com Marta e os dois guardas dentro da sala de controle. O espaço apertado não passava de um vestiário adaptado, com um monte de discos rígidos e monitores de computador barulhentos. Era abafado e recendia a fumaça de cigarro velha.

       Na mesma hora, Langdon sentiu as paredes se fecharem ao seu redor.

       Marta se sentou em frente ao monitor de vídeo, que já estava em modo de reprodução e mostrava uma imagem em preto e branco granulada do andito, filmada de cima da porta. A data e hora estampadas no monitor indicavam que a gravação fora retrocedida até o meio da manhã da véspera – exatas 24 horas atrás –, aparentemente logo antes de o museu abrir e bem antes da misteriosa chegada de Langdon e il Duomino.

       O guarda avançou o vídeo e Langdon viu uma enxurrada de turistas fluir depressa em direção ao andito, deslocando-se em movimentos espasmódicos e acelerados. Daquele ângulo não era possível ver a máscara, mas ela claramente ainda estava no mostruário, pois vários turistas se detinham para olhar ou tirar fotos antes de prosseguir.

       Por favor, andem logo, pensou Langdon, sabendo que a polícia estava a caminho. Pensou se ele e Sienna não deveriam simplesmente pedir licença e sair correndo, mas tinham de ver aquela gravação: o que quer que houvesse nela responderia a muitas perguntas sobre o que estava acontecendo.

       O vídeo prosseguiu, agora mais rápido, e as sombras da tarde começaram a atravessar a sala. Turistas entravam e saíam depressa do quadro até por fim começarem a rarear e então desaparecerem de forma abrupta. Quando o relógio no monitor passou das cinco da tarde, as luzes do museu se apagaram e o espaço mergulhou em silêncio.

       Cinco horas. O museu fechou.

       – Aumenti la velocità – ordenou Marta, inclinando-se para a frente na cadeira e olhando para o monitor.

       O guarda acelerou o vídeo e a hora avançou depressa, até que de repente, por volta das dez da noite, as luzes do museu voltaram a se acender.

       Imediatamente o guarda pôs a reprodução na velocidade normal.

       Instantes depois, a conhecida silhueta grávida de Marta Alvarez surgiu no monitor. Foi seguida de perto por Langdon, que entrou em quadro usando as roupas de sempre: paletó Harris Tweed, calça social com vinco marcado e seus sapatos sociais. Ele chegou até a ver o reflexo do relógio do Mickey cintilar sob a manga do paletó enquanto andava.

       Olhe eu aí... antes de levar um tiro.

       Assistir a si mesmo fazendo coisas das quais não se lembrava lhe pareceu muito perturbador. Eu vim aqui ontem à noite... para ver a máscara mortuária? De alguma forma, entre a gravação daquele vídeo e agora, Langdon conseguira perder as roupas, o relógio do Mickey e dois dias de vida.

       O vídeo prosseguia e ele e Sienna se aproximaram por trás de Marta e dos guardas para enxergar melhor. As imagens sem som mostraram Langdon e Marta chegando diante do mostruário e admirando a máscara. Enquanto o faziam, uma sombra larga escureceu o vão da porta atrás deles e um homem obeso entrou em quadro arrastando os pés. Usava um terno castanho, carregava uma maleta e mal conseguiu atravessar a porta. Sua imensa barriga fazia até Marta, grávida, parecer esguia.

       Langdon reconheceu o homem na hora. Ignazio?!

       – É Ignazio Busoni – sussurrou ele ao pé do ouvido de Sienna. – Diretor do Museo dell’Opera del Duomo. Eu o conheço há vários anos. Só nunca tinha ouvido ninguém chamá-lo de il Duomino.

       – O apelido faz sentido – respondeu Sienna baixinho.

       Anos antes, Langdon havia consultado Ignazio sobre artefatos e acontecimentos históricos relacionados ao Duomo, mas uma visita ao Palazzo Vecchio parecia fugir da sua alçada. Por outro lado, além de ser uma figura influente no mundo florentino da arte, Ignazio Busoni era fã e estudioso de Dante.

       Uma fonte lógica de informação sobre a máscara mortuária do poeta.

       Quando Langdon voltou a se concentrar no vídeo, viu Marta recostada na parede oposta do andito, aguardando pacientemente enquanto Langdon e Ignazio se inclinavam por cima do cordão de segurança para olhar a máscara o mais de perto possível. Os dois continuaram sua análise e discussão por vários minutos, e foi possível ver Marta conferir discretamente o relógio atrás deles.

       Langdon desejou que o vídeo de segurança tivesse som. Sobre o que eu e Ignazio estamos falando? O que estamos procurando?!

       Então a imagem mostrou Langdon passando por cima do cordão e se agachando bem em frente ao mostruário, com o rosto a poucos centímetros do vidro. Marta interveio na hora, parecendo lhe dar uma bronca, ao que Langdon recuou pedindo desculpas.

       – Desculpe ter sido tão rígida – disse Marta, olhando para ele por cima do ombro. – Mas, como eu disse ontem, o mostruário é antigo e muito frágil. O dono da máscara insiste que mantenhamos as pessoas atrás do cordão. Não deixa nem nossos próprios funcionários abrirem a vitrine sem a sua presença.

       Langdon precisou de alguns instantes para digerir aquelas palavras. O dono da máscara? Ele achava que a máscara fosse propriedade do museu.

       Sienna pareceu igualmente surpresa e perguntou sem hesitar:

       – A máscara não pertence ao museu?

       Marta fez que não com a cabeça, já virada para o monitor outra vez.

       – Um patrono rico se dispôs a comprar a máscara mortuária de Dante da nossa coleção, mas deixá-la em exposição permanente aqui. Ele ofereceu uma pequena fortuna, então aceitamos com prazer.

       – Espere aí – falou Sienna. – Ele pagou pela máscara... e deixou vocês ficarem com ela?

       – Acontece muito – disse Langdon. – Aquisição filantrópica: uma forma de fazer doações generosas a museus sem que o valor seja declarado como caridade.

       – O doador era um homem estranho – disse Marta. – Um legítimo estudioso de Dante, mas ao mesmo tempo meio... fanático.

       – Quem é? – perguntou Sienna num tom casual entremeado de ansiedade.

       – Quem é quem? – Ainda de olho no vídeo, Marta fechou a cara. – Bem, você deve ter lido sobre ele na imprensa recentemente... o bilionário suíço Bertrand Zobrist.

       Para Langdon, o nome soou apenas um pouco familiar, mas Sienna agarrou seu braço e apertou com força, como se tivesse acabado de ver um fantasma.

       – Ah, sim... – falou com dificuldade, lívida. – Bertrand Zobrist. O famoso bioquímico. Fez fortuna com patentes biológicas ainda jovem. – Ela se calou e engoliu em seco. Então se inclinou para junto de Langdon e sussurrou em seu ouvido. – Zobrist praticamente inventou o campo da manipulação genética de células germinativas.

       Langdon não fazia ideia do que era manipulação genética de células germinativas, mas a expressão soava ameaçadora, sobretudo à luz da recente enxurrada de imagens relacionadas a pestes e morte. Pensou se Sienna conheceria tanto a respeito de Zobrist por ser médica... ou talvez pelo fato de ambos terem uma inteligência extraordinária. Será que os superdotados costumam acompanhar os trabalhos uns dos outros?

       – Ouvi falar de Zobrist pela primeira vez alguns anos atrás, quando ele fez declarações bem provocativas na mídia sobre o crescimento populacional – explicou Sienna. Ela se deteve, com uma expressão taciturna. – Ele é um defensor da Equação do Apocalipse Populacional.

       – Que raio é isso?

       – Basicamente, uma admissão matemática de que a população da Terra está aumentando, as pessoas estão vivendo mais e nossos recursos naturais estão em declínio. A equação prevê que a única consequência possível da nossa trajetória atual é o colapso apocalíptico da sociedade. Zobrist foi a público e previu que a raça humana não sobreviverá mais um século... a menos que tenhamos algum tipo de evento de extinção em massa. – Sienna deu um suspiro profundo e cruzou olhares com Langdon. – Na verdade, ele chegou a dizer que “a melhor coisa que já aconteceu à Europa foi a Peste Negra”.

       Langdon a encarou, chocado. Os cabelos em sua nuca se arrepiaram e mais uma vez ele vislumbrou a imagem da máscara da peste. Passara a manhã inteira tentando resistir à ideia de que sua situação atual estava relacionada a alguma praga mortífera... mas essa hipótese estava ficando cada vez mais difícil de refutar.

       Sem dúvida era um absurdo Bertrand Zobrist descrever a Peste Negra como a melhor coisa que já acontecera à Europa, mas Langdon sabia que muitos historiadores haviam mencionado os benefícios socioeconômicos de longo prazo da extinção em massa ocorrida no continente no século XIV. Antes da epidemia, a Idade das Trevas era caracterizada por superpopulação, fome e dificuldades econômicas. A chegada repentina da peste, embora terrível, havia “reduzido o rebanho humano” de forma eficaz, gerando uma abundância de alimentos e oportunidades que, segundo muitos pesquisadores, fora um dos principais catalisadores do surgimento da Renascença.

       Ao recordar o símbolo de risco biológico no tubo que continha o mapa modificado do Inferno de Dante, Langdon foi acometido por um pensamento aterrorizante: aquele sinistro projetor havia sido criado por alguém... e Bertrand Zobrist – bioquímico e fanático por Dante – agora parecia ser um candidato provável.

       O pai da manipulação genética de células germinativas. Langdon sentia que as peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar. Infelizmente, a imagem que se formava parecia cada vez mais assustadora.

       – Pode avançar essa parte – ordenou Marta ao segurança, soando ansiosa para deixar para trás a gravação em tempo real de Langdon e Ignazio Busoni analisando a máscara e descobrir quem tinha invadido o museu para roubá-la.

       O segurança pressionou o botão de avançar e o relógio na tela acelerou.

       Três minutos... seis... oito.

       No monitor, Marta continuava atrás dos homens, trocando o peso de uma perna para a outra com cada vez mais frequência e conferindo repetidas vezes o relógio.

       – Desculpe termos demorado tanto – disse Langdon. – Você parece desconfortável.

       – A culpa foi toda minha – respondeu Marta. – Vocês dois insistiram que eu fosse para casa, que os guardas poderiam acompanhá-los até a saída, mas achei que seria indelicado da minha parte.

       De repente, Marta desapareceu do quadro. O guarda desacelerou o vídeo até a velocidade normal.

       – Tudo bem – disse a italiana. – Eu me lembro de ter ido ao banheiro.

       O segurança assentiu e fez menção de tornar a acelerar a gravação, mas, antes que pudesse fazê-lo, Marta segurou seu braço.

       – Aspetti!

       Ela entortou a cabeça e olhou para o monitor, confusa.

       Langdon também tinha visto. Mas que droga é essa?!

       Na imagem, Langdon acabara de enfiar a mão no bolso do paletó de tweed para sacar um par de luvas cirúrgicas. Ele as calçou.

       Enquanto isso, il Duomino se posicionava atrás de Langdon e espiava o corredor que, pouco antes, Marta havia atravessado para ir ao banheiro. Logo em seguida, o homem obeso assentia para Langdon de um jeito que parecia indicar que a barra estava limpa.

       Que diabo estamos fazendo?!

       Langdon assistiu a si mesmo estender a mão enluvada para a frente até a porta do mostruário... e então, com todo o cuidado, ele a puxou até a antiga dobradiça se mover e a porta se abrir devagar, expondo a máscara mortuária de Dante.

       Marta Alvarez soltou um arquejo horrorizado e levou as mãos ao rosto.

       Compartilhando o mesmo horror e sem conseguir acreditar nos próprios olhos, Langdon observou a si mesmo enfiar as duas mãos dentro do mostruário, pegar a máscara mortuária e retirá-la.

       – Dio mi salvi! – explodiu Marta, erguendo-se da cadeira e virando-se para encarar Langdon. – Cos’ha fatto! Perchè!

       Antes que Langdon pudesse responder, um dos seguranças sacou uma Beretta preta e a apontou para seu peito.

       Meu Deus!

       Robert Langdon olhou para o cano da pistola e sentiu a sala apertada se fechar ao seu redor. Marta Alvarez, agora de pé, fuzilava-o com um olhar incrédulo, como se tivesse sido traída. No monitor de segurança atrás dela, Langdon erguia a máscara em direção à luz e a analisava.

       – Eu só a peguei por alguns instantes – insistiu Langdon, rezando para que fosse verdade. – Ignazio me garantiu que você não se importaria!

       Marta não respondeu. Parecia estupefata, claramente tentando imaginar por que Langdon havia mentido para ela... e também como poderia ter ficado ali parado, com toda a calma do mundo, e os deixado assistir à gravação quando sabia o que ela revelaria.

       Eu não fazia ideia de que tinha aberto o mostruário!

       – Robert – sussurrou Sienna. – Olhe! Você achou alguma coisa! – Sienna continuava com os olhos pregados no vídeo, concentrada em obter respostas, apesar da situação delicada em que se encontravam.

       No monitor, Langdon agora mantinha a máscara erguida no ar e a inclinava em direção à luz, aparentemente atraído por algo interessante no verso.

       Daquele ângulo, por uma fração de segundo, a máscara suspensa bloqueou parte do rosto de Langdon de tal forma que os olhos mortos de Dante se alinharam aos dele. Ele sentiu um arrepio ao se lembrar da inscrição no mapa adulterado do Inferno – A verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte.

       Não conseguia imaginar o que poderia estar examinando no verso da máscara, mas, quando compartilhou sua descoberta com Ignazio, o homem obeso recuou, tateando em busca dos óculos para analisar o artefato outra vez... e outra vez. Pôs-se a balançar a cabeça com energia e andar de um lado para outro no andito, agitado.

       De repente, os dois levantaram a cabeça, sem dúvida por terem ouvido algo no corredor – provavelmente Marta voltava do banheiro. Langdon se apressou em sacar do bolso um saco Ziploc grande, guardar a máscara dentro dele e em seguida lacrá-lo. Entregou-o então com cuidado a Ignazio, que, por sua vez, com aparente relutância, pôs o saco dentro da maleta. Langdon fechou depressa a antiga porta de vidro do mostruário agora vazio e os dois subiram o corredor a passos rápidos, indo ao encontro de Marta antes que ela descobrisse o roubo.

       Agora os dois guardas apontavam as armas para Langdon.

       Marta cambaleou e segurou a mesa para se apoiar.

       – Não entendo! – exclamou, aflita. – Você e Ignazio Busoni roubaram a máscara mortuária de Dante?!

       – Não! – insistiu Langdon, blefando o quanto podia. – Tivemos permissão do dono para retirar a máscara do museu por uma noite.

       – Permissão do dono? – questionou ela. – Bertrand Zobrist?!

       – Sim! O Sr. Zobrist nos deu permissão para examinar algumas marcas no verso da máscara! Nós estivemos com ele ontem à tarde!

       Marta o fuzilou com o olhar.

       – Professor, tenho certeza absoluta de que vocês não estiveram com Bertrand Zobrist ontem à tarde...

       – Como não? É claro que nós...

       Sienna pousou a mão no braço de Langdon para detê-lo.

       – Robert... – Ela deu um suspiro pesaroso. – Seis dias atrás, Bertrand Zobrist se jogou do alto da torre da Badia, a poucos quarteirões daqui.

 

       Vayentha havia largado a moto logo ao norte do Palazzo Vechio e prosseguido a pé, contornando a Piazza della Signoria. Ao serpentear pelo estatuário ao ar livre da Loggia dei Lanzi, não pôde deixar de notar que todas as esculturas pareciam variações de um só tema: cenas violentas de dominação masculina sobre as mulheres.

       O rapto das sabinas.

       O estupro de Polixena.

       Perseu segurando a cabeça cortada da Medusa.

       Que lindo, pensou, puxando o boné para baixo, bem acima dos olhos, e abrindo caminho pela aglomeração matinal rumo à entrada do palácio, que começava a receber os primeiros turistas do dia. Pelo visto, tudo corria normalmente ali no Palazzo Vecchio.

       Nada de polícia, pensou. Pelo menos por enquanto.

       Fechou o zíper do macacão até em cima no pescoço, certificando-se de que a pistola não estava visível, e foi até a entrada. Seguindo as placas que indicavam Il Museo di Palazzo Vecchio, passou por dois átrios suntuosos e subiu uma enorme escada em direção ao primeiro piso.

       À medida que subia, o alerta policial ecoava em sua mente.

       Il Museo di Palazzo Vecchio... Dante Alighieri.

       Langdon só pode estar aqui.

       As placas do museu a conduziram até uma galeria descomunal, adornada de forma espetacular – o Salão dos Quinhentos –, onde um grupo disperso de turistas admirava os imensos murais nas paredes. Sem interesse em observar a arte ali exposta, Vayentha se apressou em localizar outra placa no canto direito dos fundos da sala, que indicava uma escada.

       Enquanto atravessava o recinto, notou um grupo de universitários reunidos em volta de uma só escultura, rindo e tirando fotos.

       A placa dizia: Hércules e Diomedes.

       Vayentha olhou para a estátua e soltou um grunhido.

       A escultura representava dois heróis da mitologia grega – ambos nus –, engalfinhados em uma luta corpo a corpo. Hercules segurava Diomedes de cabeça para baixo, preparando-se para jogá-lo no chão, enquanto Diomedes apertava com força o pênis de Hércules como quem diz: “Tem certeza de que quer me jogar?”

       Vayentha se encolheu: Isso é que é segurar alguém pelo saco.

       Afastou os olhos daquela estátua peculiar e subiu a passos rápidos a escada em direção ao museu.

       Chegou a um balcão alto com vista para o salão. Uns dez turistas aguardavam em frente à entrada.

       – O museu hoje vai abrir mais tarde – informou um turista animado, espiando por trás do visor da câmera.

       – Sabe por quê? – perguntou ela.

       – Não, mas com uma vista dessas, quem se importa em esperar? – Com um gesto, ele indicou o Salão dos Quinhentos logo abaixo.

       Vayentha foi até a beirada e olhou para o amplo salão. Lá embaixo, um policial solitário acabava de chegar, atraindo pouca atenção ao atravessar a galeria sem nenhuma pressa em direção à escada.

       Deve estar subindo para tomar um depoimento, calculou Vayentha. O desânimo com que o homem arrastava os pés degraus acima indicava que ele estava respondendo a um chamado de rotina – nada parecido com a busca caótica por Langdon em frente à Porta Romana.

       Se Langdon está aqui, por que eles não ocuparam o palácio inteiro?

       Ou Vayentha se enganara ao achar que Langdon estava lá, ou a polícia local e Brüder ainda não tinham somado dois mais dois.

       Quando o policial estacou ao topo da escada e seguiu em direção à entrada do museu, Vayentha se virou discretamente e fingiu olhar por uma janela. Levando em conta a sua desvinculação e a grande influência do diretor, não queria correr nenhum risco de ser reconhecida.

       – Aspetta! – gritou uma voz em algum lugar.

       Quando o homem estacou bem atrás dela, seu coração parou de bater por um instante. Percebeu então que a voz vinha de seu walkie-talkie.

       – Attendi i rinforzi! – disse a voz.

       Aguardar reforços? Vayentha percebeu que a situação acabava de mudar.

       Bem nessa hora, do lado de fora da janela, notou um objeto preto no céu, ao longe, que ia ficando cada vez maior. Vinha dos Jardins de Boboli em direção ao Palazzo Vecchio.

       O drone, entendeu Vayentha. Brüder sabe. E está vindo para cá.

 

       O facilitador do Consórcio Laurence Knowlton continuava xingando a si mesmo por ter telefonado para o diretor. Não deveria ter sugerido que ele assistisse ao vídeo do cliente antes que fosse enviado à imprensa no dia seguinte.

       O conteúdo era irrelevante.

       Só o protocolo importa.

       Knowlton ainda se lembrava do mantra ensinado aos facilitadores mais jovens quando eles começavam a trabalhar para a organização. Não faça perguntas. Apenas faça.

       Com relutância, pôs o pequeno cartão de memória vermelho na fila para a manhã seguinte, perguntando-se o que a imprensa iria pensar daquela mensagem bizarra. Será que ao menos a transmitiriam?

       É claro que sim. É uma mensagem de Bertrand Zobrist.

       Zobrist não só era uma figura de extraordinário sucesso na área biomédica como já fora notícia na semana anterior por causa de seu suicídio. Aquele vídeo de nove minutos seria como uma mensagem do além e seu tom macabro e agourento tornaria quase impossível que as pessoas não o quisessem ver até o fim.

       Esse vídeo vai se tornar viral em questão de minutos.

 

       Marta Alvarez fervia de raiva ao sair da sala de vídeo apertada, deixando Langdon e sua irmã mais nova e mal-educada lá dentro, sob a mira dos seguranças. Marchou até uma janela, olhou para a Piazza della Signoria e ficou aliviada ao ver uma viatura de polícia estacionada em frente ao palácio.

       Já não era sem tempo.

       Ainda não conseguia entender por que um homem tão respeitado em sua profissão quanto Robert Langdon a havia enganado de forma tão descarada, aproveitando-se de sua cortesia profissional para roubar um artefato inestimável.

       E com a ajuda de Ignazio Busoni?! Inacreditável!

       Disposta a dizer a Ignazio o que pensava daquilo, Marta sacou o celular e digitou o número do escritório de il Duomino, que ficava a alguns quarteirões dali, no Museo dell’Opera del Duomo.

       O telefone tocou uma vez só.

       – Ufficio di Ignazio Busoni – respondeu uma voz feminina conhecida.

       Marta era amiga da secretária de Ignazio, mas não estava no clima para bater papo.

       – Eugenia, sono Marta. Devo parlare con Ignazio.

       Fez-se um silêncio constrangido na linha e então, de repente, a secretária explodiu em soluços descontrolados.

       – Cosa succede?! – quis saber Marta. O que houve?!

       Aos prantos, Eugenia contou à Marta que havia acabado de chegar ao escritório e saber que seu chefe sofrera um ataque cardíaco fulminante na noite anterior em um beco perto do Duomo. Era mais ou menos meia-noite quando ele chamara uma ambulância, mas os médicos não tinham chegado a tempo. Busoni havia morrido.

       Os joelhos de Marta quase cederam. Escutara mais cedo no rádio que um funcionário público não identificado morrera na noite anterior, mas nem lhe passara pela cabeça que pudesse ser Ignazio.

       – Eugenia, ascoltami – pediu, tentando manter a calma enquanto explicava rapidamente o que tinha acabado de testemunhar nas câmeras de segurança do palazzo: a máscara mortuária de Dante sendo roubada por Ignazio e Robert Langdon, que agora estava ali, sob a mira dos seguranças do museu.

       Por mais que não soubesse que tipo de resposta esperar de Eugenia, Marta sem dúvida não estava preparada para o que ouviu:

       – Robert Langdon?! – exclamou a secretária. – Sei con Langdon ora?! – Você está com Langdon agora?

       Ela parecia não entender o mais importante. Sim, mas a máscara...

       – Devo parlare con lui! – Eugenia estava quase gritando. Preciso falar com ele!

 

       Dentro da sala de segurança, a cabeça de Langdon continuava a latejar sob a mira das armas dos guardas. De repente, a porta se abriu e Marta Alvarez entrou.

       Pela abertura, Langdon pôde ouvir o zumbido distante do drone em algum lugar lá fora, um ruído ameaçador acompanhado pelo ressoar de sirenes que se aproximavam. Descobriram onde estamos.

       – È arrivata la polizia – Marta informou aos seguranças, despachando um deles para acompanhar a polícia até o museu. O outro ficou para trás, com o cano da arma ainda apontado para Langdon.

       Para surpresa do professor, Marta lhe estendeu um celular.

       – Uma pessoa quer falar com o senhor – disse ela em tom perplexo. – Vai ter que sair para conseguir sinal.

       O grupo migrou da sala de controle abafada para uma área contígua da galeria, onde a luz do sol se derramava por grandes janelas que ofereciam uma vista espetacular da Piazza della Signoria. Mesmo que ainda estivesse sob a mira do segurança, Langdon ficou aliviado ao se ver fora daquele espaço confinado.

       Marta o chamou para junto da janela e lhe entregou o telefone.

       Com hesitação, Langdon pegou o aparelho e o levou à orelha.

       – Alô? Aqui é Robert Langdon.

       – Signore, aqui é Eugenia Antonucci, secretária de Ignazio Busoni – disse a mulher em um inglês inseguro, com sotaque carregado. – Nós nos conhecemos ontem à noite, quando o senhor veio ao escritório dele.

       Langdon não se lembrava de nada.

       – Pois não?

       – Sinto muito lhe dizer isso, mas Ignazio sofreu um ataque cardíaco ontem à noite e faleceu.

       Langdon segurou mais firme o telefone. Ignazio Busoni morreu?!

       A mulher agora chorava e continuou com uma voz carregada de tristeza:

       – Ele me ligou antes de morrer. Deixou um recado e pediu que eu o mostrasse ao senhor. Vou pôr para o senhor ouvir.

       Langdon ouviu alguns ruídos e, logo em seguida, uma gravação débil da voz ofegante de Ignazio Busoni.

       “Eugenia”, dizia ele sem fôlego, claramente sentindo muita dor. “Por favor, não deixe de fazer com que este recado chegue aos ouvidos de Robert Langdon. Estou em apuros. Não acho que vou conseguir voltar ao escritório.” Ignazio gemeu; seguiu-se um longo silêncio. Quando ele voltou a falar, sua voz estava mais fraca: “Robert, espero que você tenha conseguido fugir. Eles continuam atrás de mim... e eu... estou passando mal. Estou tentando chamar um médico, mas...” Outra pausa comprida, como se il Duomino estivesse reunindo suas últimas reservas de energia. “Robert, preste atenção. O que você procura está escondido em um lugar seguro. Os portões estão abertos para você, mas não demore. Paraíso 25.” Ele ficou um bom tempo calado antes de concluir com um sussurro: “Fique com Deus.”

       Assim terminava o recado.

       Langdon sentia o coração disparado; sabia que havia acabado de ouvir as últimas palavras de um homem. O fato de as palavras terem sido dirigidas a ele não aplacou nem um pouco sua ansiedade. Paraíso 25? Os portões estão abertos para mim? Ele refletiu sobre isso. De que portões ele está falando?! A única coisa que fazia algum sentido era Ignazio ter dito que a máscara estava escondida num lugar seguro.

       Eugenia voltou à linha.

       – Professor, o senhor entendeu o recado?

       – Mais ou menos.

       – Posso fazer alguma coisa?

       Langdon pensou um bom tempo nessa pergunta.

       – Não mostre o recado a mais ninguém.

       – Nem à polícia? Um investigador está vindo tomar o meu depoimento.

       Langdon ficou tenso. Olhou para o segurança ainda de arma apontada. Então, com um movimento rápido, virou-se para a janela, baixou a voz e sussurrou depressa:

       – Eugenia... sei que isso vai soar estranho, mas preciso que você apague o recado e não diga à polícia que falou comigo. Entendeu? A situação está muito complicada e...

       Ele sentiu a pressão do cano de uma arma contra a lateral de seu corpo e, quando se virou, viu o segurança a poucos centímetros estendendo a mão livre para pedir o celular de Marta.

       Houve um longo silêncio na linha, mas, por fim, Eugenia disse:

       – Sr. Langdon, meu chefe confiava no senhor... então também vou confiar.

       E desligou.

       Langdon devolveu o telefone ao guarda.

       – Ignazio Busoni morreu – falou para Sienna. – Teve um infarto ontem à noite depois de sair deste museu. – Langdon passou alguns instantes calado. – A máscara está em segurança. Ignazio a escondeu antes de morrer. E acho que deixou uma pista de onde encontrá-la.

       Paraíso 25.

       Uma centelha de esperança iluminou os olhos de Sienna, mas, quando Langdon se virou para Marta, a italiana lhe pareceu desconfiada.

       – Marta – disse ele. – Posso recuperar a máscara de Dante, mas você precisa nos deixar sair daqui. Agora.

       Marta soltou uma gargalhada.

       – Nem pensar! Foi o senhor quem roubou a máscara! A polícia está chegando e...

       – Signora Alvarez – interrompeu Sienna, levantando a voz. – Mi dispiace, ma non le abbiamo detto la verità.

       Langdon quase não acreditou. O que Sienna está fazendo?! Tinha entendido o que ela dissera. Sra. Alvarez, sinto muito, mas nós não lhe dissemos a verdade.

       Marta pareceu igualmente atônita com as palavras de Sienna, embora grande parte desse espanto talvez fosse pelo fato de a moça, de uma hora para a outra, estar falando em italiano fluente, sem sotaque.

       – Innanzitutto, non sono la sorella di Robert Langdon – prosseguiu Sienna em um tom de voz sincero, como se pedisse desculpas. Em primeiro lugar, não sou irmã de Robert Langdon.

 

       Marta Alvarez deu um passo vacilante para trás e cruzou os braços, analisando a mulher loura à sua frente.

       – Mi dispiace – prosseguiu Sienna, ainda em italiano fluente. – Le abbiamo mentito su molte cose. – Sinto muito. Mentimos para a senhora sobre muitas coisas.

       O segurança parecia tão perplexo quanto Marta, mas se manteve firme.

       Sienna então começou a falar mais rápido, ainda em italiano, e disse a Marta que trabalhava em um hospital de Florença e que Langdon havia chegado lá na noite anterior com um ferimento à bala na cabeça. Explicou que ele não tinha nenhuma recordação dos acontecimentos que o haviam levado ao hospital e que estava tão surpreso quanto Marta com o vídeo de segurança.

       – Mostre seu ferimento para ela – ordenou a Langdon.

       Ao ver os pontos sob os cabelos desgrenhados do professor, Marta se apoiou no parapeito da janela e escondeu o rosto nas mãos por vários segundos.

       Nos últimos minutos, havia descoberto não só que a máscara mortuária de Dante fora roubada sob sua responsabilidade, mas também que os ladrões tinham sido um respeitado professor americano e seu confiável colega florentino, agora morto. Para completar, a jovem Sienna Brooks, que Marta imaginava ser a irmã de Robert Langdon que estava ali para admirar as belezas de Florença, no fim das contas era uma médica e estava admitindo ter mentido... em italiano fluente.

       – Marta – disse Langdon com uma voz grave e compreensiva. – Sei que deve ser difícil de acreditar, mas juro que não me lembro de nada da noite passada. Nem imagino por que Ignazio e eu pegamos a máscara.

       Pela expressão nos olhos dele, Marta percebeu que Langdon estava dizendo a verdade.

       – Vou lhe devolver a máscara – continuou ele. – Eu lhe dou a minha palavra. Mas não poderei fazer isso se você não nos deixar sair daqui. A situação é complicada. Você tem que nos deixar ir agora mesmo.

       Por mais que quisesse ter a inestimável máscara de volta, Marta não tinha a menor intenção de deixar ninguém sair dali. Cadê a polícia?! Olhou em direção à solitária viatura na Piazza della Signoria. Parecia estranho que os agentes ainda não tivessem chegado ao museu. Também escutou um zumbido estranho ao longe, como se alguém estivesse usando uma serra elétrica. E esse barulho estava ficando cada vez mais alto.

       O que será isso?

       – Marta, você conhece Ignazio. – Langdon agora falava em tom de súplica. – Ele jamais iria tirar a máscara do museu se não tivesse um bom motivo. Há muito mais coisas em jogo aqui. O dono da máscara, Bertrand Zobrist, era um homem muito perturbado. Acreditamos que esteja envolvido em algo terrível. Não tenho tempo para explicar tudo, mas estou implorando que confie em nós.

       Marta não sabia o que pensar. Nada daquilo parecia fazer o menor sentido.

       – Sra. Alvarez – falou Sienna, fitando Marta com um olhar duro como pedra. – Se dá valor ao seu futuro e ao futuro do seu bebê, tem que nos deixar ir embora agora mesmo.

       Marta cruzou as mãos sobre a barriga como se quisesse protegê-la, não gostando nem um pouco daquela ameaça velada ao seu bebê ainda por nascer.

       O zumbido agudo lá fora sem dúvida estava ficando mais alto. Quando Marta espiou pela janela, não conseguiu identificar a fonte do barulho, mas viu outra coisa.

       O guarda também viu e seus olhos se arregalaram.

       Lá embaixo, na Piazza della Signoria, a multidão se abrira para deixar passar uma longa fila de viaturas policiais que chegavam com as sirenes desligadas, conduzidas por duas vans pretas que pararam cantando pneus em frente às portas do palácio. Soldados de uniforme preto portando grandes armas saltaram e entraram correndo no edifício.

       Marta foi tomada por uma onda de medo. Quem são essas pessoas?

       O segurança pareceu igualmente alarmado.

       O zumbido agudo de repente se fez mais penetrante e Marta recuou, aflita, ao ver um pequeno helicóptero aparecer bem do outro lado da janela.

       A máquina pairava a não mais de 10 metros de distância, quase como se estivesse olhando para as pessoas dentro da galeria. Era uma aeronave pequena, com cerca de um metro de comprimento e um longo cilindro preto montado na frente. O cilindro apontava para eles.

       – Sta per sparare! – gritou Sienna. – Ele vai atirar! Tutti a terra! Todos para o chão!

       Ela se ajoelhou debaixo do parapeito e Marta gelou de pavor enquanto seu instinto a levava a fazer o mesmo. O segurança também se agachou, apontando por reflexo a arma para o aparelhinho.

       Agachada desconfortavelmente sob o parapeito, Marta viu que Langdon continuava de pé e encarava Sienna com uma expressão estranha; era óbvio que ele não acreditava que houvesse perigo. Sienna ficou apenas um instante no chão antes de se levantar com um pulo, agarrar Langdon pelo pulso e puxá-lo na direção do corredor. Um segundo depois, os dois fugiam juntos rumo à entrada principal do palácio.

       O guarda ajoelhado girou na direção deles e se posicionou como um franco-atirador, apontando a arma para o corredor e mirando na dupla de fugitivos.

       – Non spari! – ordenou Marta. – Non possono scappare. – Não atire! Eles não têm como fugir!

       Langdon e Sienna sumiram de vista ao dobrar uma quina. Marta sabia que em questão de segundos iriam topar com as autoridades que vinham na direção oposta.

 

       – Mais rápido! – instou Sienna, correndo com Langdon ao longo do caminho pelo qual tinham chegado.

       Estava torcendo para conseguirem alcançar a entrada principal antes de toparem com a polícia, mas agora percebia que as chances de isso acontecer eram quase nulas.

       Langdon parecia ter dúvidas semelhantes. De repente, os dois derraparam e pararam em um grande cruzamento de corredores.

       – Nunca vamos conseguir sair por aqui.

       – Venha! – Sienna gesticulou com urgência para que ele a seguisse. – Robert, não podemos ficar parados aqui!

       Langdon parecia distraído, com os olhos voltados para a esquerda na direção de um corredor curto que parecia terminar em uma pequena câmara mal-iluminada e sem saída. As paredes do recinto eram cobertas de mapas antigos e no centro havia um globo de ferro maciço. Ele fitou a enorme esfera de metal e começou a assentir, primeiro devagar, depois com mais energia.

       – Por aqui! – declarou, correndo em direção ao globo de ferro.

       Sienna o seguiu a contragosto. Era óbvio que o corredor conduzia para dentro do museu, afastando-os da saída.

       – Robert? – falou, ofegante, quando enfim o alcançou. – Para onde está nos levando?

       – Vamos atravessar a Armênia – respondeu ele.

       – O quê?!

       – A Armênia – repetiu Langdon, sem tirar os olhos do caminho à sua frente. – Confie em mim.

 

       Escondida entre os turistas assustados na galeria do Salão dos Quinhentos, Vayentha manteve a cabeça baixa enquanto a equipe de SMI de Brüder passava estrondosamente por ela para entrar no museu. No térreo, o som de portas batendo ecoou pelo salão quando a polícia isolou a área.

       Se Langdon estivesse mesmo ali, estava encurralado.

       Infelizmente, ela também.

 

       Com suas paredes forradas de painéis de carvalho e o teto formado por caixotões de madeira, a Sala dos Mapas Geográficos parecia outro mundo quando comparada ao interior austero de pedra e gesso do Palazzo Vecchio. Aquele espaço pomposo, que no projeto original era a chapelaria do palácio, continha dezenas de armários e gabinetes que outrora serviam para guardar os tesouros portáteis do grão-duque. Atualmente, as paredes são cobertas de mapas – 53 iluminuras pintadas à mão em couro – que representam o mundo como era conhecido na década de 1550.

       Essa excepcional coleção de cartografia é dominada pela presença de um globo maciço situado no centro do recinto. Conhecida como Mappa Mundi, a esfera de 1,83 metro de altura foi o maior globo giratório de sua época e, segundo relatos, era possível girá-la quase sem esforço, com o simples toque de um dedo. Hoje serve mais como última parada para turistas que, depois de atravessar a longa sucessão de salas do primeiro andar e chegar a um beco sem saída, contornam a obra e voltam pelo mesmo caminho.

       Langdon e Sienna chegaram sem fôlego à Sala dos Mapas. O Mappa Mundi se erguia majestoso diante deles, mas Langdon o ignorou por completo e olhou para as paredes que cercavam a sala.

       – Temos que encontrar a Armênia! – falou. – O mapa da Armênia!

       Claramente desconcertada pelo pedido, Sienna correu até a parede direita da sala em busca de um mapa da Armênia.

       Langdon iniciou uma busca semelhante pela parede esquerda, começando a dar a volta na sala.

       Arábia, Espanha, Grécia...

       Todos os países eram retratados com extraordinária riqueza de detalhes, apesar de os desenhos terem sido feitos mais de quinhentos anos antes, época em que a maior parte do mundo nem havia sido mapeada ou explorada.

       Onde está a Armênia?

       Embora sua memória fotográfica em geral fosse nítida, as lembranças do “tour pelas passagens secretas” que ele fizera naquele palazzo muitos anos antes lhe pareciam nebulosas, em grande parte por causa da segunda taça de Gaja Nebbiolo que ele bebera no almoço antes do passeio. De modo muito apropriado, a palavra nebbiolo significava “pequena névoa”. Mesmo assim, Langdon se lembrava com clareza de ter visto um mapa específico naquela sala, o da Armênia, que tinha uma característica singular.

       Sei que ele está por aqui, pensou, continuando a vasculhar a sucessão aparentemente interminável de mapas.

       – Armênia! – anunciou Sienna. – Achei!

       Langdon se virou para onde ela estava, no canto direito mais afastado da sala. Correu até lá e Sienna apontou para o mapa com uma expressão que parecia dizer: “Encontramos a Armênia... e daí?”

       Langdon sabia que eles não tinham tempo para explicações. Limitou-se a estender as mãos, segurar a grossa moldura de madeira do mapa e puxá-la para si. O mapa inteiro girou para dentro da sala, junto com um longo pedaço da parede e da madeira que a revestia, revelando uma passagem secreta.

       – Então está bem – disse Sienna, parecendo impressionada. – Armênia, aí vamos nós.

       Sem hesitar, ela passou depressa pela abertura e mergulhou sem medo no espaço mal iluminado. Langdon a seguiu, apressando-se em fechar a parede atrás deles.

       Apesar das recordações nebulosas, lembrava-se bem daquele caminho. Ele e Sienna tinham acabado de passar para o outro lado do espelho, por assim dizer, adentrando o Palazzo Invisibile: o mundo oculto que existia atrás das paredes do Palazzo Vecchio, um reino secreto ao qual tinham acesso apenas o então soberano grão-duque e as pessoas mais próximas a ele.

       Langdon se deteve por alguns instantes debaixo do portal para assimilar o novo espaço ao seu redor: um corredor de pedras claras iluminado apenas pela fraca luz natural que passava através de uma série de janelas com caixilhos de chumbo. O corredor descia cerca de 50 metros até uma porta de madeira.

       Ele então se virou para a esquerda, onde havia uma escada estreita bloqueada por uma corrente. Uma placa logo acima dela dizia: senza uscita.

       Langdon se encaminhou para lá.

       – Não! – alertou Sienna. – A placa diz “sem saída”.

       – Obrigado – falou Langdon com um sorriso de ironia. – Sei ler em italiano.

       Ele soltou a corrente e a levou até a porta secreta, usando-a para prendê-la – passou rapidamente a corrente por dentro do puxador e ao redor de uma arandela próxima para que ninguém pudesse abrir pelo outro lado.

       – Ah – falou Sienna, encabulada. – Bem pensado.

       – Isso não vai detê-los por muito tempo – disse Langdon. – Mas não precisamos de muito. Venha comigo.

 

       Quando o mapa da Armênia finalmente se abriu com um estrondo, o agente Brüder e seus homens retomaram a busca, descendo o corredor estreito em direção à porta de madeira na outra extremidade. Assim que a arrombaram, Brüder sentiu uma rajada de ar frio atingi-lo em cheio e foi cegado pela luz forte do sol.

       Havia chegado a uma passarela externa que margeava o telhado do palazzo. Olhou para o caminho adiante que levava direto a outra porta, uns 50 metros à frente, e entrou de volta no edifício.

       Então Brüder olhou para a esquerda da passarela, onde o teto alto e abobadado do Salão dos Quinhentos se erguia como uma montanha. Impossível atravessar. Virou-se em seguida para a direita, onde a passarela era ladeada por um paredão íngreme que mergulhava até um poço de luz profundo. Morte instantânea.

       Tornou a olhar para o caminho à frente.

       – Por aqui!

       O grupo disparou pela passarela rumo à segunda porta enquanto o drone de reconhecimento voava em círculos acima deles, como um abutre.

       Ao atravessarem o portal, contudo, pararam de repente, quase colidindo uns com os outros.

       Estavam dentro de uma minúscula câmara de pedra sem outra saída que não a porta pela qual tinham acabado de entrar. Encostada na parede havia uma solitária mesa de madeira. Acima de suas cabeças, as figuras grotescas retratadas nos afrescos do teto da câmara pareciam lhes lançar olhares zombeteiros.

       Não havia como sair dali.

       Um dos homens correu até a parede para analisar a placa informativa que estava afixada ali.

       – Esperem um instante – falou. – Na placa está escrito que tem uma finestra aqui... alguma espécie de janela secreta?

       Brüder olhou em volta, mas não viu janela secreta nenhuma. Então marchou em direção à parede e leu ele mesmo a placa.

       Aparentemente, aquele espaço costumava ser o gabinete particular da duquesa Bianca Cappello e tinha uma janela secreta – una finestra segreta – pela qual ela podia assistir às escondidas aos discursos do marido lá embaixo, no Salão dos Quinhentos.

       Ele tornou a correr os olhos pelo recinto e dessa vez identificou uma pequena abertura gradeada oculta na parede lateral. Será que eles fugiram por aqui?

       Foi até lá e examinou a abertura, que parecia pequena demais para alguém do tamanho de Langdon conseguir atravessar. Encostou o rosto na grade e olhou pelo buraco para ter certeza de que ninguém havia escapado por ali. Do outro lado da grade havia uma queda abrupta de vários andares até o chão do Salão dos Quinhentos.

       Então onde esses dois se meteram?!

       Quando tornou a se virar para o interior da câmara de pedra, o agente Brüder sentiu toda a frustração do dia se acumular dentro de si. Em um raro momento de descontrole emocional, jogou a cabeça para trás e soltou um urro de raiva.

       Naquele espaço confinado, o som foi ensurdecedor.

       Vários metros abaixo, no Salão dos Quinhentos, turistas e policiais se viraram e ergueram os olhos para a abertura gradeada bem no alto da parede. Pelo visto, o gabinete secreto da duquesa agora estava servindo de jaula para algum animal selvagem.

 

       Sienna Brooks e Robert Langdon estavam parados na mais completa escuridão.

       Minutos antes, Sienna testemunhara a esperteza de Langdon ao usar uma corrente para travar o mapa giratório da Armênia e, em seguida, se virar e fugir.

       Para sua surpresa, no entanto, em vez de descer o corredor, ele subira a escada íngreme com a placa uscita vietata.

       – Robert! – sussurrou ela, confusa. – A placa dizia “sem saída”! Além do mais, achei que nós quiséssemos descer!

       – E queremos – disse Langdon, olhando por cima do ombro. – Mas às vezes é preciso subir... para depois descer. – Ele lhe deu uma piscadela encorajadora. – Não se lembra da barriga de Satã?

       Do que ele está falando? Ela correu atrás de Langdon, sentindo-se perdida.

       – Você já leu o Inferno? – perguntou ele.

       Já... mas acho que devia ter uns 7 anos.

       Logo em seguida, no entanto, ela entendeu.

       – Ah, a barriga de Satã! Agora me lembrei.

       Ela havia demorado um pouco, mas então percebera que Langdon estava se referindo ao final do Inferno de Dante. No último canto do poema, para escapar do Inferno, o poeta tem que descer pela barriga peluda de um gigantesco Satã; quando chega à altura do quadril, que seria o centro da Terra, a gravidade se inverte de repente e, para continuar a descer em direção ao Purgatório... Dante precisa, na verdade, subir.

       Sienna não se lembrava de muita coisa do Inferno além da sua decepção diante da ação absurda da gravidade no centro da Terra; pelo jeito, o gênio de Dante não incluía uma compreensão satisfatória da física das forças vetoriais.

       Quando chegaram ao topo da escada, Langdon abriu a única porta que havia ali. Nela se lia: sala dei modelli di architettura.

       Ele conduziu Sienna para dentro, fechou a porta atrás de si e passou o trinco.

       O cômodo era pequeno e simples, com uma série de mostruários que exibiam maquetes de madeira dos projetos arquitetônicos de Vasari para o interior do palazzo. Sienna mal olhou para as maquetes. Não deixou de notar, porém, que a sala não tinha portas nem janelas e, como dizia a placa... era sem saída.

       – Em meados do século XIV – sussurrou Langdon –, o duque de Atenas assumiu o poder no palácio e construiu esta rota de fuga secreta caso fosse atacado. Chama-se Escada do Duque de Atenas e desce até uma minúscula saída de emergência que dá numa rua secundária. Se conseguirmos chegar até lá, ninguém nos verá sair. – Ele apontou para uma das maquetes. – Olhe. Está vendo aqui do lado?

       Ele me trouxe aqui para me mostrar maquetes?

       Aflita, Sienna olhou para o modelo e viu a escada secreta que descia do topo do palácio até a rua, astutamente escondida entre as paredes interna e externa do edifício.

       – Sim, Robert, estou vendo a escada, mas ela está do lado oposto do palácio – falou com irritação. – Nós nunca vamos conseguir chegar lá!

       – Tenha um pouco de fé – retrucou ele com um sorriso torto.

       Um estrondo repentino no andar de baixo lhes informou que o mapa da Armênia acabara de ser arrombado. Petrificados, os dois ouviram os passos dos soldados seguirem pelo corredor, nenhum deles sequer imaginando que os fugitivos fossem subir mais ainda... muito menos por uma pequena escada com uma placa de sem saída.

       Quando a barulheira mais abaixo cessou, Langdon atravessou com determinação o recinto, passando entre as maquetes e se encaminhando diretamente para o que parecia um grande armário na parede dos fundos. O armário tinha cerca de um metro quadrado e estava suspenso a pouco menos de um metro do chão. Langdon agarrou o puxador e escancarou a porta.

       Sienna recuou, surpresa.

       O espaço lá dentro parecia um vácuo profundo... como se o armário fosse um portal para outro mundo.

       – Venha – disse Langdon.

       Ele pegou uma solitária lanterna pendurada na parede ao lado da entrada. Então, com agilidade e força surpreendentes, o professor içou o próprio corpo e cruzou o limiar, desaparecendo dentro daquela toca de coelho.

 

       La soffitta, pensou Langdon. O sótão mais dramático da Terra.

       O ar dentro do vão parecia bolorento e estagnado, como se o pó de gesso acumulado ao longo dos séculos tivesse se tornado tão fino e leve que se recusasse a se assentar, pairando de modo perpétuo no ambiente. O amplo espaço rangia e estalava, dando a Langdon a sensação de ter acabado de entrar na barriga de um animal vivo.

       Assim que sentiu que estava bem equilibrado sobre uma larga viga horizontal, ergueu a lanterna e fez o facho de luz penetrar a escuridão.

       Um túnel que parecia não ter fim se estendia à sua frente, entrecortado por uma verdadeira teia de triângulos e retângulos de madeira formada pelo cruzamento de traves, vigas, escoras e outros elementos estruturais que formavam o esqueleto invisível do Salão dos Quinhentos.

       Langdon tinha visitado aquele imenso forro alguns anos antes, durante seu passeio embriagado de Nebbiolo pelas passagens secretas do palácio. A janela de observação em forma de armário fora aberta na parede da sala das maquetes para que os visitantes pudessem primeiro inspecionar os modelos do madeiramento para depois olhar pela abertura com uma lanterna a fim de ver a estrutura real.

       Agora que estava dentro do desvão, Langdon ficou surpreso ao constatar quanto o madeiramento se parecia com o dos velhos celeiros da Nova Inglaterra – uma estrutura clássica de pendural e escoras, com emendas tipo “dardo de Júpiter”.

       Sienna também havia escalado a abertura e agora se equilibrava na viga ao seu lado, parecendo desorientada. Langdon moveu a lanterna de um lado para outro, mostrando-lhe a paisagem incomum.

       De onde estavam, olhar pelo forro era como espiar por entre uma longa sucessão de triângulos isósceles que se prolongava a perder de vista, estendendo-se em direção a algum ponto de fuga distante. Sob seus pés não havia assoalho e as vigas de sustentação horizontais ficavam totalmente expostas, como os dormentes de uma estrada de ferro.

       Langdon apontou à frente para o túnel comprido.

       – Este espaço está bem em cima do Salão dos Quinhentos – sussurrou. – Se conseguirmos chegar à outra ponta, sei o caminho até a Escada do Duque de Atenas.

       Sienna lançou um olhar cético ao labirinto de vigas e escoras que se erguia à sua frente. Pelo jeito, a única forma de atravessar o forro seria saltar de viga em viga como crianças em um trilho de trem. As vigas eram largas – compostas por várias vigas menores unidas por grampos de ferro grossos até formarem um feixe resistente – e tinham largura de sobra para uma pessoa se equilibrar. O desafio, no entanto, era o espaço entre elas, muito grande para ser galgado com segurança.

       – Nunca vou conseguir saltar entre essas vigas – sussurrou Sienna.

       Langdon também duvidava de que fosse capaz, e cair seria morte certa. Apontou a lanterna para baixo, iluminando o vão entre as vigas.

       Uns 2,5 metros abaixo de onde estavam havia uma superfície horizontal empoeirada suspensa por varas de ferro: uma espécie de pavimento que se estendia até onde o olho alcançava. Apesar de parecer sólido, Langdon sabia que aquilo era apenas um tecido esticado coberto de pó. Aquele era o “avesso” do teto suspenso do Salão dos Quinhentos – uma sucessão dos caixotões de madeira que enquadravam as 39 telas de Vasari, todos dispostos na horizontal, formando uma espécie de colcha de retalhos.

       Sienna apontou a superfície empoeirada logo abaixo.

       – Será que conseguimos descer até ali e andar até o outro lado?

       Só se você quiser rasgar uma das telas de Vasari e cair no Salão dos Quinhentos.

       – Na verdade, temos uma alternativa melhor – disse Langdon com calma, sem querer assustá-la. Começou a descer a viga em direção ao eixo central do forro.

       Em sua visita anterior, além de olhar através da janela na sala das maquetes, Langdon havia explorado o forro a pé, entrando por uma porta do outro lado do sótão. Se a memória embotada pelo vinho não estivesse lhe pregando uma peça, uma sólida passarela acompanhava a espinha dorsal do forro, proporcionando aos turistas acesso a uma larga plataforma de observação no centro da estrutura.

       No entanto, a passarela que ele encontrou ao chegar à metade da viga não se parecia em nada com a de suas recordações.

       Quanto Nebbiolo será que bebi naquele dia?

       Em vez de uma estrutura sólida, digna de receber turistas, o que viu foi uma confusão de tábuas soltas dispostas na perpendicular ao longo das vigas para criar uma passarela rudimentar – mais uma corda bamba do que uma ponte.

       Pelo jeito, a firme passarela para turistas que começava na outra extremidade do forro se estendia apenas até a plataforma de observação central. A partir dali, os visitantes obviamente davam meia-volta. O mais provável era que a ponte improvisada à sua frente tivesse sido instalada para que engenheiros pudessem fazer reparos no restante do forro daquele lado.

       – Parece que vamos ter que andar na prancha – disse Langdon, fitando com insegurança as tábuas estreitas.

       Sienna deu de ombros; não parecia abalada.

       – Tão ruim quanto Veneza na estação de enchentes.

       Langdon percebeu que, de certo modo, ela estava certa. Em sua última ida a Veneza, a praça São Marcos estava submersa em 30 centímetros de água, e ele fora obrigado a andar do Hotel Daniele até a basílica em cima de pranchas de madeira apoiadas em blocos de concreto e baldes emborcados. É claro que a perspectiva de molhar seus sapatos sociais não era nada se comparada a cair e morrer depois de ter rasgado uma obra-prima da Renascença.

       Langdon afastou esse pensamento e deu um passo em direção à tábua estreita com uma falsa segurança que, esperava, fosse acalmar qualquer preocupação que Sienna pudesse ter. Porém, por mais seguro que parecesse, seu coração batia descompassado enquanto ele avançava pela primeira tábua. No meio do caminho, ela vergou sob seu peso com um rangido ameaçador. Langdon seguiu em frente, mais depressa, e por fim conseguiu chegar ao outro lado e à relativa segurança da segunda viga.

       Respirando aliviado, virou-se para iluminar o caminho para Sienna e para oferecer quaisquer palavras de incentivo de que ela pudesse precisar. Mas, pelo jeito, não precisava de nenhuma. Assim que o facho de luz incidiu sobre a tábua, ela começou a atravessá-la com incrível destreza. A prancha mal vergou sob seu corpo esguio e em questão de segundos ela já havia se juntado a ele do outro lado.

       Sentindo-se encorajado, Langdon tornou a se virar para a frente e começou a atravessar a tábua seguinte. Sienna esperou que ele chegasse ao outro lado e se virasse para iluminar o caminho, então foi atrás, mantendo-se em sua cola. Os dois seguiram em frente num ritmo constante – dois vultos se movendo um atrás do outro sob a luz de uma só lanterna. Em algum lugar abaixo deles, o som dos walkie-talkies da polícia atravessava o teto fino. Langdon se permitiu um leve sorriso. Estamos suspensos acima do Salão dos Quinhentos, leves como penas, invisíveis.

       – Então, Robert – sussurrou Sienna. – Você disse que Ignazio falou onde está a máscara, não foi?

       – Sim... mas em uma espécie de código. – Em poucas palavras, ele explicou que, pelo jeito, Ignazio não quisera entregar o paradeiro da máscara na secretária eletrônica, preferindo compartilhar a informação de forma enigmática: – Ele se referiu ao Paraíso, o que suponho ser uma alusão à última parte da Divina Comédia. Suas palavras exatas foram: “Paraíso 25.”

       Sienna ergueu os olhos.

       – Ele devia estar se referindo ao Canto XXV.

       – Concordo – disse Langdon.

       Grosso modo, cada canto equivalia a um capítulo. A palavra remontava à tradição oral de “cantar” poemas épicos. A Divina Comédia continha um total de cem cantos divididos em três seções:

        

       Inferno 1–34

       Purgatorio 1–33

       Paradiso 1–33

        

       Paraíso 25, pensou Langdon, desejando que sua memória fotográfica fosse boa o suficiente para ele saber o texto inteiro de cor. Infelizmente, não chego nem perto disso: precisamos encontrar um exemplar do livro.

       – E tem mais – prosseguiu Langdon. – A última coisa que Ignazio me disse foi: Os portões estão abertos para você, mas não demore. – Ele se calou e tornou a olhar para ela. – O Canto XXV deve fazer referência a algum local específico aqui em Florença. Ao que parece, algum lugar com portões.

       Sienna franziu o cenho.

       – Esta cidade deve ter dezenas de portões.

       – Exato. E é por isso que precisamos ler o Canto XXV do Paraíso. – Ele lhe abriu um sorriso esperançoso. – Você por acaso não saberia toda a Divina Comédia de cor, saberia?

       Ela o encarou, pasma.

       – Mais de 14 mil versos de italiano arcaico que li quando era criança? – Sienna balançou a cabeça. – Quem tem memória de elefante é você, professor. Eu sou apenas uma médica.

       Enquanto avançavam, Langdon sentiu uma certa tristeza por constatar que, apesar de tudo o que eles haviam passado juntos, Sienna ainda parecia preferir omitir a verdade sobre o seu intelecto excepcional. Apenas uma médica? Ele não pôde deixar de rir. A médica mais modesta do mundo, pensou, lembrando-se dos recortes de imprensa que havia lido sobre suas habilidades especiais – habilidades que, infelizmente, mas sem grande surpresa, não incluíam saber de cabeça um dos poemas épicos mais longos da história.

       Em silêncio, seguiram por várias outras vigas. Por fim, Langdon viu mais adiante na penumbra uma silhueta animadora. A plataforma de observação! As pranchas sobre as quais eles estavam andando conduziam direto a uma estrutura muito mais sólida dotada de guarda-corpos. Se conseguissem chegar lá, poderiam atravessar a passarela até saírem do forro por uma porta que, pelo que Langdon se lembrava, ficava muito perto da Escada do Duque de Atenas.

       Quando estavam quase chegando à plataforma, Langdon olhou para o teto suspenso 2 metros abaixo de onde estava. Até ali, todos os compartimentos lá embaixo tinham sido parecidos. O que estava se aproximando, contudo, era imenso – muito maior do que os outros.

       A Apoteose de Cosmo I, pensou Langdon.

       Aquele grande caixotão circular correspondia ao quadro mais precioso de Vasari – a imagem central do Salão dos Quinhentos. Langdon muitas vezes mostrava slides dessa obra para seus alunos, assinalando as semelhanças com A Apoteose de Washington no Capitólio dos Estados Unidos – um lembrete de que a jovem América havia herdado muito mais da Itália do que o mero conceito de república.

       Mas hoje ele estava muito mais interessado em passar depressa pela Apoteose do que em estudá-la. Apertando o passo, virou a cabeça ligeiramente para trás na intenção de sussurrar para Sienna que estavam quase chegando.

       Ao fazer isso, seu pé direito errou o centro da tábua e metade da sola do mocassim emprestado pisou para fora. Seu tornozelo se torceu e Langdon foi lançado para a frente. Meio tropeçando, meio correndo, tentou dar um passo rápido para recuperar o equilíbrio.

       Mas era tarde demais.

       Ele caiu pesado na tábua, de joelhos, e esticou as mãos para a frente em desespero, tentando alcançar a viga perpendicular. Ruidosamente, a lanterna caiu no espaço escuro e vazio abaixo deles e aterrissou na tela, que a aparou como se fosse uma rede. Langdon fez força com as pernas e por um triz conseguiu se projetar até a segurança da viga seguinte enquanto a tábua caía com um estrondo, indo parar 2,5 metros abaixo, no caixotão de madeira que cercava a tela da Apoteose de Vasari.

       O som ecoou pelo forro.

       Horrorizado, Langdon se levantou atabalhoadamente e se virou para Sienna.

       Sob a luz fraca da lanterna caída na tela, viu que ela estava parada na viga atrás dele, encurralada, sem ter como atravessar. Seu olhar transmitia o que Langdon já sabia. Era quase certo que o barulho da tábua caindo houvesse revelado sua posição.

 

       Os olhos de Vayentha se voltaram como dois raios para o teto ornamentado.

       – Ratos no sótão? – brincou com uma voz nervosa o homem da filmadora enquanto o som reverberava pelo salão.

       Ratos bem grandes, pensou ela, olhando para o quadro circular bem no meio do teto. Uma pequena nuvem de poeira descia por entre os caixotões e Vayentha poderia jurar que havia agora uma pequena saliência na tela, como se alguém a estivesse empurrando pelo outro lado.

       – Vai ver um dos policiais deixou a arma cair da plataforma de observação – disse o homem, fitando o calombo na pintura. – O que acha que eles estão procurando? Tudo isso é tão empolgante!

       – Uma plataforma de observação? – perguntou Vayentha. – Dá para subir lá?

       – Claro. – Ele gesticulou para a entrada do museu. – Logo depois daquela porta, há uma outra que conduz a uma passarela no sótão. Dá pra ver todo o madeiramento projetado por Vasari. É incrível.

       De repente a voz de Brüder tornou a ecoar pelo Salão dos Quinhentos.

       – Onde eles se enfiaram?!

       Suas palavras, assim como o grito angustiado que ele dera mais cedo, vieram de trás de uma grade bem no alto da parede, à esquerda de Vayentha. Ao que tudo indicava, Brüder estava dentro de um recinto atrás da grade... um andar inteiro acima do teto.

       Ela tornou a olhar para a saliência na tela.

       Ratos no sótão, pensou. Tentando encontrar uma saída.

       Agradeceu ao homem da filmadora e se encaminhou depressa para a entrada do museu. A porta estava fechada, mas, com todos aqueles policiais entrando e saindo, ela desconfiou que estivesse destrancada.

       Sua intuição estava certa.

 

       Lá fora na piazza, em meio ao caos da chegada da polícia, um homem de meia-idade parado nas sombras da Loggia dei Lanzi observava com grande interesse a movimentação ao seu redor. Usava óculos da marca Plume Paris, uma gravata de estampa paisley e um pequeno brinco de ouro em uma das orelhas.

       Enquanto assistia à comoção, reparou que estava coçando outra vez o pescoço. Da noite para o dia tinha desenvolvido uma irritação na pele que parecia estar piorando e se manifestava na forma de pequenas erupções no maxilar, no pescoço, nas bochechas e acima dos olhos.

       Quando olhou para as próprias unhas, viu que estavam sujas de sangue. Sacou o lenço e limpou os dedos, usando-o também para enxugar de leve as erupções no rosto e no pescoço.

       Quando terminou, tornou a olhar para as duas vans pretas estacionadas em frente ao palazzo. Na mais próxima, havia duas pessoas no banco traseiro.

       Uma era um soldado armado vestido de preto.

       A outra era uma mulher mais velha muito bonita, de cabelos cor de prata, que usava um amuleto azul no pescoço.

       O soldado parecia estar preparando uma seringa.

 

       Dentro da van, a Dra. Elizabeth Sinskey olhava distraída para o palazzo, perguntando-se como aquela crise podia ter chegado àquelas proporções.

       – Doutora? – disse uma voz grave ao seu lado.

       Ela se virou, grogue, para o soldado que a acompanhava. Ele segurava seu braço e tinha uma seringa na outra mão.

       – Não se mexa.

       Ela sentiu a pontada incisiva de uma agulha perfurando sua pele.

       O soldado terminou de aplicar a injeção.

       – Agora volte a dormir.

       Enquanto fechava os olhos, ela poderia jurar ter visto um homem escondido nas sombras, analisando seu rosto. Usava óculos de grife e uma gravata estilosa. A pele de seu rosto estava irritada e vermelha. Por um instante, Elizabeth teve a impressão de que o conhecia, mas quando abriu os olhos para fitá-lo uma segunda vez ele já havia sumido.

 

       Na penumbra do forro, Langdon e Sienna estavam agora separados por um vão de 6 metros. Um pouco mais abaixo, a tábua solta havia caído sobre o caixotão que sustentava a tela da Apoteose de Vasari. A lanterna, ainda acesa, jazia sobre a tela em si e criava uma pequena depressão, como uma pedra em cima de uma rede.

       – A tábua atrás de você – sussurrou Langdon. – Consegue arrastá-la até esta viga aqui?

       Sienna olhou para a tábua a que ele se referia.

       – Não sem que a outra ponta caia em cima da tela.

       Era o que ele temia: a última coisa de que precisavam àquela altura era uma tábua despencando lá de cima e rasgando um quadro de Vasari.

       – Tive uma ideia – falou Sienna, movendo-se de lado pela viga em direção à parede lateral.

       Da viga onde estava, Langdon a seguiu. O caminho ficava mais traiçoeiro conforme eles se afastavam do facho de luz da lanterna. Quando chegaram à parede, a escuridão era quase completa.

       – Ali embaixo – sussurrou Sienna, apontando para o breu. – Na beirada da estrutura. Aquilo deve estar chumbado na parede. Deve aguentar meu peso.

       Antes que Langdon pudesse protestar, ela já estava descendo da viga, usando uma série de escoras como escada. Foi até a beirada de um caixotão de madeira, que emitiu um único rangido, mas aguentou firme. Então, avançando devagar junto à parede, Sienna começou a andar na direção de Langdon, como se estivesse no parapeito de um prédio alto. O caixotão tornou a ranger.

       É como gelo fino, pensou Langdon. Não se afaste da margem.

       Quando Sienna chegou à metade do caminho, aproximando-se da viga sobre a qual ele estava, Langdon sentiu uma nova onda de esperança de que talvez eles conseguissem sair dali a tempo.

       Foi então que, em algum ponto da escuridão à sua frente, uma porta bateu e ele ouviu passos rápidos se aproximarem pela passarela. Uma lanterna se acendeu e seu facho de luz começou a vasculhar o espaço, aproximando-se a cada segundo. Langdon sentiu as esperanças minguarem. Alguém vinha na direção deles pela passarela principal, bloqueando sua rota de fuga.

       – Sienna, não pare – sussurrou ele, reagindo por instinto. – Vá até o final da parede. Tem uma saída do outro lado. Vou interceptar quem está vindo.

       – Não! – respondeu ela, também sussurrando, mas com um tom de urgência na voz. – Robert, volte aqui!

       Mas Langdon já havia partido, voltando pela viga em direção ao tirante central do forro e deixando Sienna no escuro junto à parede lateral, 2,5 metros abaixo.

       Quando ele alcançou o centro do forro, uma silhueta sem rosto segurando uma lanterna havia acabado de chegar à plataforma de observação. A pessoa parou diante do guarda-corpo baixo e apontou a lanterna para onde ele estava, direto para seus olhos.

       O brilho foi ofuscante e ele ergueu os braços na hora, rendendo-se. Não poderia ter se sentido mais vulnerável – equilibrado nas alturas do Salão dos Quinhentos e cegado por uma luz forte.

       Esperou um tiro ou alguma ordem, mas houve apenas silêncio. Logo em seguida, o facho de luz foi desviado de seu rosto e começou a vasculhar a escuridão atrás dele, aparentemente procurando alguma coisa... ou alguém. Sem a luz da lanterna nos olhos, ele mal podia distinguir a silhueta que bloqueava sua rota de fuga. Era uma mulher musculosa e toda vestida de preto. Não teve dúvidas de que, por baixo do boné de beisebol, seus cabelos eram espetados.

       Os músculos de Langdon se retesaram por instinto e sua cabeça foi invadida por visões do Dr. Marconi agonizando no chão do hospital.

       Ela me encontrou. Está aqui para terminar o serviço.

       Uma imagem lhe veio à mente com um clarão: mergulhadores gregos nadando rumo às profundezas de um túnel, muito além do ponto do qual era possível retornar, e então se deparando com um muro de pedra intransponível.

       A assassina tornou a apontar a lanterna para seus olhos.

       – Professor Langdon – sussurrou ela. – Onde está a sua amiga?

       Langdon sentiu um arrepio. Essa assassina está aqui atrás de nós dois.

       Ele olhou ostensivamente por cima do ombro na direção oposta a Sienna, para o espaço escuro do qual eles tinham vindo.

       – Ela não tem nada a ver com isso. É a mim que você quer.

       Rezou para que Sienna estivesse avançando junto à parede. Se ela conseguisse se esgueirar até atrás da plataforma de observação, poderia seguir sem fazer barulho até a passarela central, por trás da mulher, e de lá para a porta.

       A assassina tornou a erguer a lanterna e vasculhar o forro vazio atrás dele. Sem a luz nos olhos por alguns instantes, Langdon teve o súbito vislumbre de um vulto na escuridão atrás dela.

       Ai, meu Deus, não!

       Sienna de fato estava andando por uma viga em direção à passarela central, mas infelizmente estava menos de 10 metros atrás da assassina.

       Sienna, não! Afaste-se! Ela vai ouvir você!

       A luz voltou a cegá-lo.

       – Preste atenção, professor – sussurrou a assassina. – Se quiser viver, sugiro que confie em mim. Minha missão foi abortada. Eu não tenho motivo algum para lhe fazer mal. Agora estamos no mesmo time e talvez eu saiba como ajudá-lo.

       Langdon mal a ouvia e só conseguia pensar em Sienna, cujo perfil indistinto agora conseguia ver, escalando com agilidade em direção à passarela atrás da plataforma de observação, perto demais da mulher de cabelos espetados.

       Fuja!, pensou ele, como se quisesse instigá-la. Dê o fora daqui!

       Para sua aflição, porém, Sienna continuou ali, agachando-se nas sombras e pondo-se a observar em silêncio.

 

       Os olhos de Vayentha esquadrinharam a escuridão atrás de Langdon. Onde ela se meteu? Será que eles se separaram?

       Precisava evitar que o casal de fugitivos caísse nas garras de Brüder. É minha única esperança.

       – Sienna?! – arriscou ela com um sussurro gutural. – Se estiver me ouvindo, preste atenção: vocês não vão querer ser pegos por aqueles homens lá embaixo. Eles não vão ser delicados. Conheço um caminho para sair daqui. Posso ajudá-los. Confie em mim.

       – Confiar em você? – rebateu Langdon, a voz de repente alta o bastante para que qualquer um por perto o ouvisse. – Você é uma assassina!

       Sienna está aqui perto, entendeu Vayentha. Langdon está falando com ela, está tentando alertá-la.

       Ela tentou outra vez:

       – Sienna, a situação está complicada, mas posso tirá-los daqui. Pense nas suas alternativas. Você está encurralada. Não tem escolha.

       – Ela tem escolha, sim – disse Langdon em voz alta. – E é esperta o suficiente para fugir para o mais longe possível de você.

       – Tudo mudou – insistiu Vayentha. – Eu não tenho motivo para fazer mal a nenhum de vocês dois.

       – Você matou o Dr. Marconi! E imagino que também tenha me dado um tiro na cabeça!

       Vayentha sabia que ele nunca iria acreditar que ela não tinha intenção de matá-lo.

       Chega de conversa. Nada que diga irá convencê-lo.

       Sem hesitar, ela enfiou a mão na jaqueta e sacou a pistola equipada com silenciador.

 

       Imóvel nas sombras, Sienna permanecia agachada na passarela, a menos de 10 metros da mulher que acabara de confrontar Langdon. Mesmo no escuro, aquela silhueta era inconfundível. Para horror de Sienna, a mulher empunhava a mesma pistola que usara para atirar no Dr. Marconi.

       Ela vai disparar, percebeu, interpretando sua linguagem corporal.

       De fato, a mulher deu dois passos ameaçadores na direção de Langdon e parou em frente ao guarda-corpo baixo que cercava a plataforma de observação acima da Apoteose de Vasari. Estava agora o mais perto dele que podia chegar. Ergueu a pistola e a apontou diretamente para seu peito.

       – Só vai doer por um instante – falou –, mas não tenho alternativa.

       Sienna reagiu por instinto.

 

       A vibração inesperada nas tábuas sob os pés de Vayentha foi suficiente para fazê-la virar de leve o corpo ao atirar. No mesmo instante em que a pistola disparou, ela soube que não apontava mais para Langdon.

       Algo se aproximava dela por trás.

       Depressa.

       Vayentha girou 180 graus, apontando a arma para a pessoa que a atacava; um lampejo de cabelos louros brilhou no escuro quando a pessoa se chocou contra ela a toda a velocidade. A pistola tornou a disparar, mas o vulto havia se agachado abaixo da linha de tiro para lhe dar um empurrão forte, jogando seu corpo para cima.

       Seus pés saíram do chão e metade de seu corpo se chocou contra o guarda-corpo baixo da plataforma de observação. O tronco foi projetado por cima do guarda-corpo e Vayentha agitou os braços, tentando se agarrar em algo para não cair. Era tarde demais. Ela despencou pela beirada.

       Foi caindo pela escuridão e se preparou para colidir com a superfície empoeirada que se estendia 2,5 metros abaixo da plataforma. Estranhamente, porém, a aterrissagem foi mais suave do que ela esperava... como se tivesse sido aparada por uma rede de lona que agora afundava sob o seu peso.

       Desorientada, Vayentha ficou ali, deitada de costas, com os olhos erguidos na direção da pessoa que a havia atacado. Debruçada no guarda-corpo, Sienna Brooks olhava para baixo. Atônita, Vayentha abriu a boca para falar, mas de repente ouviu o som de algo se rasgando bem debaixo dela.

       A lona que sustentava seu peso se abriu.

       Vayentha tornou a despencar.

       Dessa vez, caiu por três longos segundos durante os quais se pegou olhando para o teto coberto de belas pinturas. A que estava logo acima dela – uma enorme tela circular representando Cosmo I rodeado de querubins em uma nuvem de aparência celestial – agora ostentava um rasgão escuro e irregular no centro.

       Então, com um baque repentino, o mundo de Vayentha inteiro foi tragado pela escuridão.

 

       No forro, imóvel de tanta incredulidade, Robert Langdon espiou pelo rasgo na Apoteose o grande abismo que se abrira lá embaixo. No chão de pedra do Salão dos Quinhentos, a mulher de cabelos espetados jazia imóvel, e uma poça escura de sangue se espalhava rapidamente em volta de sua cabeça. Sua mão ainda segurava a pistola.

       Langdon ergueu os olhos para Sienna; ela também olhava para baixo, desnorteada pela cena macabra. Parecia em choque.

       – Eu não queria...

       – Você reagiu por instinto – sussurrou Langdon. – Ela ia me matar.

       Gritos alarmados ecoaram no salão, atravessando a tela rasgada.

       Com delicadeza, Langdon afastou Sienna do guarda-corpo.

       – Precisamos continuar.

 

       No gabinete secreto da duquesa Bianca Cappello, o agente Brüder acabara de ouvir um baque repulsivo seguido de uma comoção crescente no Salão dos Quinhentos. Correu até a grade na parede e espiou por ali. Precisou de vários segundos para processar a cena no elegante chão de pedra lá embaixo.

       A administradora do museu, que estava grávida, havia chegado ao seu lado junto à grade e imediatamente cobrira a boca com a mão, sem palavras, aterrorizada com o que via: um corpo desconjuntado cercado de turistas em pânico. Ao erguer os olhos devagar em direção ao teto do Salão dos Quinhentos, soltou um gemido de angústia. Brüder acompanhou seu olhar até um painel circular no teto – um quadro com um rasgo no meio.

       Brüder se virou para a mulher:

       – Como se chega lá em cima?!

 

       Na outra ponta do palazzo, Langdon e Sienna desceram ofegantes do sótão e atravessaram correndo uma porta. Em poucos segundos, Langdon havia encontrado o pequeno nicho engenhosamente escondido atrás de uma cortina vermelha. Lembrava-se dele com clareza do dia em que fizera o tour pelas passagens secretas.

       A Escada do Duque de Atenas.

       O som de passos apressados e gritos parecia agora vir de todas as direções. Langdon entendeu que eles tinham pouco tempo. Afastou a cortina e ele e Sienna chegaram a um pequeno patamar.

       Sem dizer nada, começaram a descer a escada de pedra. A passagem tinha sido projetada como uma série de lances íngremes e estreitos em zigue-zague. Quanto mais eles desciam, mais apertado o espaço parecia ficar. Por sorte, quando Langdon achou que as paredes iriam esmagá-lo, chegaram ao pé da escada.

       Estamos no térreo.

       A escada terminava em um pequeno recinto de pedra cuja saída, apesar de ser uma das menores portas da face da Terra, foi uma visão muito bem-vinda. Com apenas 1,20 metro de altura, a porta era de madeira maciça, com rebites de ferro e uma tranca interna para impedir a entrada.

       – Dá para ouvir a rua do outro lado – sussurrou Sienna, ainda parecendo abalada. – Onde essa porta vai dar?

       – Na Via della Ninna – respondeu Langdon, pensando na movimentada rua de pedestres. – Mas talvez haja policiais.

       – Eles não vão nos reconhecer. Estão procurando uma mulher loura e um homem de cabelos escuros.

       Langdon a encarou com um olhar estranho.

       – Exatamente o que nós somos...

       Sienna balançou a cabeça e seu semblante assumiu uma expressão decidida e melancólica.

       – Robert, eu não queria que você me visse assim, mas infelizmente é como estou agora.

       Com um gesto brusco, ela ergueu a mão e segurou um punhado de fios louros. Deu um puxão e todo o cabelo saiu da cabeça em um só movimento.

       Langdon recuou, impressionado tanto pelo fato de Sienna usar peruca quanto por sua aparência sem ela. A moça na verdade era totalmente careca e tinha um couro cabeludo liso e pálido, como uma paciente de câncer em quimioterapia. Além de tudo, ela está doente?

       – Eu sei – disse ela. – É uma longa história. Agora abaixe-se. – Ela ergueu a peruca, com a intenção de colocá-la na cabeça de Langdon.

       Ela está falando sério? Agachou-se sem muita convicção e Sienna encaixou os cabelos louros em sua cabeça. A peruca quase não coube, mas ela a ajeitou da melhor forma possível. Então deu um passo para trás e avaliou o resultado. Não satisfeita, estendeu as mãos, afrouxou a gravata de Langdon, puxou-a para a sua testa como se fosse uma bandana e voltou a apertar o laço, prendendo melhor a peruca pequena demais para a cabeça dele.

       Então foi a vez da própria Sienna: enrolou as bainhas da calça e abaixou as meias para deixá-las emboladas em volta dos tornozelos. Levantou-se com um sorriso sarcástico nos lábios. A linda Sienna Brooks era agora uma skinhead. A transformação da ex-atriz shakespeariana era espantosa.

       – Lembre-se: noventa por cento da identificação de uma pessoa se dá pela linguagem corporal – advertiu ela. – Então, ande como um velho roqueiro.

       Velho até pode ser, pensou Langdon. Mas roqueiro, eu já não sei.

       Antes que ele pudesse argumentar, Sienna já havia destrancado e aberto a pequena porta. Ela se abaixou e saiu em direção à movimentada rua de paralelepípedos. Langdon foi atrás e quase teve de engatinhar para emergir à luz do dia.

       Além de um ou outro olhar de espanto para o casal improvável que atravessou a minúscula porta nos alicerces do Palazzo Vecchio, ninguém lhes deu muita atenção. Em poucos segundos, Langdon e Sienna estavam seguindo rumo ao leste, engolidos pela multidão.

 

       O homem de óculos Plume Paris cutucava a pele ensanguentada enquanto ziguezagueava pela multidão, mantendo uma distância segura de Robert Langdon e Sienna Brooks. Apesar dos disfarces bem bolados, reconhecera-os assim que os dois haviam saído pela pequena porta para a Via della Ninna.

       Depois de segui-los por apenas alguns quarteirões, ficou sem fôlego e começou a sentir uma dor aguda no peito que o fez arquejar. Era como se tivesse levado um soco no esterno.

   Cerrando os dentes para suportar a dor, obrigou-se a se concentrar em Langdon e Sienna outra vez e continuou a segui-los pelas ruas de Florença.

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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