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INSÔNIA - P.2 / Stephen-King
INSÔNIA - P.2 / Stephen-King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INSÔNIA

Segunda Parte

 

A CIDADE SECRETA

 

OS VELHOS DEVIAM SER EXPLORADORES

S. Eliot Quatro Quartetos

 

A DERRY DOS VELHOS COROAS não era a única cidade secreta que existia silenciosa na terra que Ralph Roberts sempre chamara de lar; quando era menino em Mary Mead, onde hoje se erguem loteamentos com chalés, Ralph descobrira que havia, além da Derry que pertencia aos adultos, outra que era propriedade exclusiva das crianças. Havia o acampamento de vagabundos, abandonado perto do armazém ferroviário na rua Neibolt, onde às vezes elas encontravam latas de sopa de tomate com picadinho até a metade e garrafas com uns goles de cerveja; havia o beco atrás do teatro Aladdin, onde elas fumavam cigarros Buli Durham e soltavam rojões Black Cat; havia um velho olmeiro debruçado sobre o rio, onde dezenas de meninos e meninas tinham aprendido a mergulhar; havia a centena (ou talvez fossem centenas) de trilhas confusas que serpeavam pela tundra, um vale verdejante que cortava o centro da cidade como uma cicatriz malcurada.

Essas ruas e estradas ocultas existiam abaixo do plano de visão dos adultos e, consequentemente, eram-lhes invisíveis... embora houvesse excepções. Uma dessas fora o tira

Aloysius Nell

- o Sr. Nell para gerações de crianças em Derry - e somente agora, enquanto se encaminhava para a área de piqueniques próxima ao ponto em que a Avenida Harris virava a

Extensão, ocorria a Ralph que Chris Nell era provavelmente filho do velho Sr. Nell... só que não parecia possível, porque o tira que Ralph vira pela primeira vez em companhia de John

Leydecker não tinha idade suficiente para ser filho do velho Sr. Nell. Neto, sim.

Ralph tomara consciência de uma segunda cidade secreta

- a que pertencia aos velhos - quando se aposentara, mas não compreendera inteiramente que ele próprio fazia parte dela até Carolyn morrer. Descobrira então uma geografia submersa estranhamente semelhante àquela que conhecera quando criança, um lugar quase ignorado pelos que correm-para-trabalhar e correm-para-brincar no mundo que palpitava e rugia à sua volta. A Derry dos Coroas sobrepunha-se ainda a uma terceira cidade secreta: a Derry dos Condenados, um lugar terrível habitado em grande parte por alcoólatras, fugitivos e dementes que não podiam ser mantidos em confinamento.

Foi na área de piquenique que Lafayette Chapin apresentara Ralph a uma das reflexões mais importantes da vida... isto é, depois que alguém se tornava um Coroa genuíno. Tal reflexão dizia respeito à "vida real" de uma pessoa. O assunto surgira quando os dois tinham acabado de se conhecer. Ralph perguntara a Faye o que fazia antes de começar a frequentar a área de piqueniques.

- Bem, na vida real eu era carpinteiro e marceneiro - Chapin respondera, revelando os dentes restantes num largo sorriso, - mas tudo isso acabou faz quase dez anos. - Como se, Ralph lembrava-se de ter pensado, a aposentadoria fosse uma espécie de beijo de vampiro, que arrastasse os que sobreviviam para o mundo dos mortos-vivos. E quando se conhecia cada caso, será que a imagem estaria assim tão longe da verdade?

AGORA, com McGovern a uma distância segura (ou pelo menos assim esperava), Ralph entrou pelo maciço de carvalhos e bordos que isolava a área de piqueniques da Extensão da

Harris. Viu que oito ou nove pessoas tinham chegado desde sua caminhada anterior, a maioria com almoços para viagem ou sanduíches. Os Eberlys e os Zells jogavam com um baralho ensebado que o pessoal guardava no oco de um carvalho próximo; Faye e Doe

Mulhare, um veterinário aposentado, jogavam xadrez; uns curiosos se deslocavam de um jogo para outro.

Os jogos eram a actividade da área de piqueniques - a actividade da maioria dos logradouros na Derry dos Velhos Coroas - mas Ralph achava que, na realidade, os jogos eram apenas uma moldura. As pessoas vinham ali para manter contato com a base, se mostrar, confirmar (ainda que para si mesmos) que ainda viviam algum tipo de vida, real ou irreal.

Ralph sentou-se em um banco vazio próximo à cerca de tela e correu distraidamente o dedo pelas incisões feitas na madeira - nomes, iniciais, vários FODA-SE - enquanto apreciava os aviões pousarem a intervalos de dois minutos: um Cessna, um Piper, um Apache, um Twin Bonanza, o Air Express das onze e quarenta e cinco vindo de Boston. Mantinha um ouvido atento ao fluxo e refluxo das conversas às suas costas. O nome de May Locher fora mencionado mais de uma vez. Era conhecida de muitos ali, e a opinião geral parecia endossar a da Sra. Perrine - que Deus finalmente revelara misericórdia e pusera um fim a seu sofrimento. A maior parte das conversas hoje, porém, abordavam a visita iminente de Susan Day. Via de regra, a política não estimulava muita conversa entre os Velhos Coroas, que preferiam um bom câncer de intestino ou um infarto, mas mesmo ali a questão do aborto exercia sua singular capacidade de atrair opiniões, inflamar e dividir.

- Ela escolheu uma cidade ruim para visitar, e o diabo é que duvido que ela saiba dissodisse Doe Mulhare, estudando o tabuleiro de xadrez com sombria concentração, enquanto Fay Chapin derrubava as últimas defesas do seu rei. - As coisas aqui têm um jeito próprio de acontecer. Lembra-se do incêndio no Black Spot, Faye?

Faye resmungou concordando e comeu o segundo bispo de Doe.

- Não compreendo esses pentelhos-comentou Lisa Zell, pegando na mesa de piquenique o primeiro caderno do News e indicando com um tapa a foto dos manifestantes encapuzados diante da WomanCare. - E como se eles quisessem voltar ao tempo em que as mulheres faziam os próprios abortos usando cabides.

- É justamente o que eles querem - disse Georgina Eberly. - Calculam que, se uma mulher sentir bastante medo de morrer, ela terá o bebé. Nunca passa pela cabeça deles que uma mulher pode ter mais medo de parir um bebé do que de usar um cabide para se livrar dele.

E onde é que o medo entra nessa história? - um dos curiosos, um velhote com cara de pá chamado Pedersen, perguntou com truculência. - Assassinato é assassinato tanto faz o bebê estar dentro como fora, essa é a minha opinião. Mesmo quando são tão mínimos que se precisa um microscópio para enxergar, continua a ser assassinato. Porque se deixassem eles em paz, eles virariam crianças.

- Por esse raciocínio, você vira um Adolf Eichman toda vez que bate uma punheta - disse

Faye, e mexeu a rainha. - Cheque.

- La-fay-eífe Ow-pin! - exclamou Lisa Zell.

- Uma coisa não tem nada a ver com a outra - Pedersen respondeu, mal-humorado.

- Ah, não? Não teve um cara na Bíblia que foi amaldiçoado por Deus por que vivia se masturbando? - perguntou o outro curioso.

- Você provavelmente está pensando em Onan - informou alguém às costas de Ralph. Ele se virou, assustado, e viu o velho Dor. Trazia na mão uma brochura com um grande número 5 estampado na capa. Diabos, de onde foi que você saiu ? perguntou-se Ralph. Podia quase jurar que, há poucos minutos, não havia ninguém parado atrás dele.

- Onan, Shmonan - falou Pedersen. - Mas espermatozóides não são bebês...

- Não? - Faye perguntou. - Então por que a Igreja Católica não vende camisinhas nos bingos? Conta pra mim.

- Isso é uma ignorância-retrucou Pedersen.-E se você não vê...

- Mas Onan não foi castigado por se masturbar - interpôs Dorrance naquela voz aguda e penetrante de velho. - Foi castigado porque se recusava a fertilizar a viúva do irmão e garantir sua descendência. Tem um poema de Allen Ginsberg, eu acho...

- Cala a boca, seu velho idiota! - Pedersen berrou, e então fechou a cara para Faye

Chapin.-E se você não consegue ver que tem uma enorme diferença entre um homem tocar uma bronha e uma mulher jogar latrina abaixo o bebê que Deus pôs no ventre dela, você é tão idiota quanto ele.

- Que conversa mais sórdida - comentou Lisa Zell, revelando mais fascínio do que incômodo. Ralph espiou por cima do ombro dela e viu que uma parte da cerca fora despregada do poste e dobrada para trás, provavelmente pelos garotos que invadiam o local à noite. Isto pelo menos esclarecia o mistério. Ele não notara

Dorrance porque o velho simplesmente não se achava na área de piqueniques; andava perambulando pelos terrenos do aeroporto.

Ocorreu a Ralph que ali estava sua chance de abordar Dorrance e talvez obter algumas respostas... só que provavelmente ele próprio acabaria mais confuso que nunca. O velho Dor parecia demais com o gato careteiro de Alice no país das maravilhas - mais sorrisos do que substância.

- Grande diferença, não é mesmo? - Faye provocava Pedersen.

- E é! - Manchas vermelhas afogueavam as bochechas rachadas de Pedersen.

Doe Mulhare mexeu-se pouco à vontade no banco.

- Olhe aqui, vamos esquecer essa conversa e terminar o jogo, Faye, está bem?

Faye nem ouviu; sua atenção continuava centrada em Pedersen.

- Talvez fosse melhor você refletir sobre todos os esperminhas que morreram na palma de sua mão todas as vezes que você se sentou no vaso pensando como seria bom se Marilyn

Monroe segurasse seu...

Pedersen avançou com o braço e varejou as peças do tabuleiro no chão. Doe Mulhare encolheu-se, a boca trêmula, os olhos muito abertos e assustados por trás dos óculos de aros rosa já emendados com fita isolante em dois lugares.

- Grande! - Faye gritou. - Esse foi um argumento e tanto, hein, seu tarado!

Pedersen ergueu os punhos numa pose exagerada de John Sullivan.

- Vai querer brigar? - perguntou. - Vem, vem!

Faye levantou-se vagarosamente. De pé era, sem favor nenhum, uns trinta centímetros mais alto do que o cara de pá do Pedersen e pesava bem uns vinte e tantos quilos a mais.

Ralph mal podia acreditar no que via. E se o veneno se espalhara até ali, como estaria o resto da cidade?

Parecia-lhe que Doe Mulhare tinha razão; Susan Day não devia nem imaginar a má idéia que era trazer o seu teatrinho a Derry. De certa maneira - de várias maneiras - Derry não era como os outros lugares.

Ralph se pôs em movimento antes mesmo de ter consciência do que pretendia fazer e ficou aliviado de ver que Stan Eberly fazia o mesmo. Entreolharam-se ao se aproximarem dos dois homens que se enfrentavam cara a cara, e Stan fez um leve aceno com a cabeça. Ralph passou o braço pelos ombros de Faye uma fração de segundo antes de Stan agarrar o braço esquerdo de Pedersen.

- Você não vai fazer nada disso - disse Stan, falando directamente no ouvido peludo de Pedersen. - Vamos acabar levando duas vítimas de ataque cardíaco para o Derry Home, e você não precisa de mais nenhum: já teve dois. Ou foram três?

- Não vou deixar ele fazer graça com mulheres que matam crianças! - Pederson falou, e Ralph viu rolarem lágrimas pelo rosto do homem.-Minha mulher morreu no parto de nossa segunda filha! De septicemia, em 1946! Por isso não vou tolerar essa conversa de matar bebês!

- Puxa - Faye disse num tom diferente. - Eu não sabia disso, Harley. Sinto muito...

- Uma porra que você sentei - Pedersen exclamou, desvencilhando o braço do aperto de Stan Eberly. Avançou para Faye, que ergueu os punhos e tornou a baixá-los quando Pedersen passou por ele às tontas, sem sequer olhá-lo. Enveredou pelo caminho entre as árvores que levava à Extensão da Harris e desapareceu. À sua partida, seguiram-se trinta segundos de absoluto silêncio, interrompido apenas pelo zumbido de um aviãozinho Piper Cub.

- PUXA VIDA! - Faye exclamou finalmente. - A gente vê um cara quase todo dia durante cinco, dez anos, e começa a pensar que conhece tudo sobre a vida dele. Puxa, Ralphie, eu não sabia como a mulher dele tinha morrido. Me sinto um cretino.

- Não fique assim arrasado - disse Stan. - Vai ver ele está de chico.

- Cale a boca - falou Georgina. - Já tivemos bastante conversa sórdida para uma manhã.

- Vou ficar satisfeito quando essa tal de Susan vier e for embora e as coisas puderem voltar ao normal-disse Fred Zell.

Doe Mulhare estava de quatro no chão, recolhendo as peças de xadrez.

- Você vai querer acabar o jogo, Faye? - perguntou. - Acho que me lembro da posição de todas as peças.

- Não. - Sua voz que permanecera firme durante o confronto com Pedersen, agora parecia trêmula.

- Acho que já joguei bastante por hoje. Talvez Ralph queira jogar uma preliminar do torneio com você.

- Acho que não vai dar - disse Ralph. Procurava Dorrance e finalmente localizou-o. Ele voltara a passar pelo buraco na cerca. Parará com mato até os joelhos na estrada de serviço adiante, dobrando o livro nas mãos, enquanto observava o Piper Cub taxiar até o terminal da aviação geral do aeroporto. Ralph lembrou-se do jeito como Ed disparara por aquela estrada de serviço no velho Datsun marron, e xingara (Anda logo! Anda logo, abre essa merda!)

diante da moleza do portão. Pela primeira vez em mais de um ano, surpreendeu-se imaginando o que Ed estaria fazendo ali para começar.

- ... do que estava.

- Hum? - Fez um esforço para focalizar Faye novamente.

- Eu disse que você deve ter voltado a dormir bem, porque está com uma aparência muito melhor do que estava. Mas agora acho que a sua audição é que está pifando.

- Acho que sim - Ralph respondeu e tentou sorrir. - Estou pensando em fazer uma boquinha. Quer vir comigo, Faye? O convite é meu.

- Não, já engoli alguma coisa no Coffee Pot. Está pesando como chumbo nas minhas tripas, para falar a verdade. Puxa, Ralph, o coroa estava chorando, você viu?

- Vi, mas não ligaria muito se fosse você. - Ralph começou a andar na direcção da

Extensão da Harris e Faye o acompanhou. Com os ombros largos curvados e a cabeça baixa, Faye lembrava muito um urso ensinado vestido de gente.

- Caras da idade da gente choram à toa. Você sabe disso, não?

- Acho que sim.

- De qualquer modo, obrigado por me agarrar antes que eu piorasse as coisas-disse Faye com um sorriso grato.-Você sabe como eu sou às vezes.

Gostaria que alguém tivesse estado presente quando BUI e eu começamos a discutir, Ralph pensou.

- Não foi nada-respondeu em voz alta.-Na realidade, eu é que devia estar agradecendo a você. E mais uma qualificação para pôr no meu currículo quando me candidatar àquele empregão nocturno na ONU.

Faye riu gostosamente e deu uma palmada no ombro de Ralph.

- Sei, Secretário-geral! Mediador Número Um da ONU! Você tem competência para isso, Ralph, fora de brincadeira!

- Não tenho a menor dúvida. Cuide-se bem, Faye. Ia se virando, quando Faye lhe tocou o braço.

- Você continua inscrito no torneio da semana que vem, não? O Clássico Pista 3?

Ralph levou um momento para entender o que ele estava dizendo, embora aquele fosse o principal assunto do marceneiro aposentado desde que as folhas começaram a se colorir.

Faye vinha organizando o torneio de xadrez, a que chamava O Clássico Pista 3, desde que encerrara sua "vida real" em 1984. O troféu era uma enorme calota cromada com uma coroa e um cetro extravagantes gravados no centro. Faye, sem favor nenhum, o melhor jogador entre os Coroas (no sector oeste da cidade, pelo menos), concedera a si mesmo o troféu em seis das nove ocasiões em que fora disputado, e Ralph desconfiava que perdera as outras três intencionalmente, só para manter os outros participantes interessados no torneio. Ralph não se ocupara muito com o xadrez este outono; tinha tido outras preocupações.

- Claro - respondeu - acho que sim. Faye sorriu.

- Óptimo. O torneio devia ter sido no fim da semana passada, essa era a programação, mas fiquei na esperança de que, se adiasse o torneio, Jimmy V. poderia jogar. Mas ele contínua no hospital, e se eu continuar adiando por mais tempo, ficará frio demais para se jogar ao ar livre e vamos acabar nos fundos da barbearia do Duffy Sprague, como aconteceu em 90.

- Que houve com o Jimmy V.?

- O câncer reapareceu - disse Faye, acrescentando em tom mais baixo: - Acho que desta vez ele não tem a mínima chance de se recuperar.

Ralph sentiu um pesar súbito e surpreendentemente agudo com a notícia. Ele e Jimmy Vandermeer tinham se conhecido bem durante suas "vidas reais". Naquele tempo, os dois viviam com o pé na estrada, Jimmy vendendo balas e cartões de festas, Ralph, materiais para gráficas e produtos de papel, e tinham se dado tão bem que chegaram a viajar diversas vezes juntos pela Nova Inglaterra, dividindo o volante e acomodações mais luxuosas do que poderiam pagar sozinhos.

Também tinham dividido os medíocres e solitários segredos dos vendedores viajantes.

Jimmy contou a Ralph sobre a prostituta que furtara sua carteira em 1958 e a mentira que pregara à sua mulher, dizendo que um carona o roubara. Ralph contou a Jimmy a sua descoberta, aos quarenta e três anos, de que se viciara em hidrato de terpeno e a luta dolorosa e bem-sucedida para largar o hábito. Da mesma forma que Jimmy V. não falara à mulher sobre a última piranha, tampouco Ralph contara a Carolyn a estranha dependência de xarope para tosse.

Muitas viagens; muitas trocas de pneus; muitas piadas de vendedor com a bela filha do fazendeiro; muitos papos de fim de noite que entravam pela madrugada. As vezes coversavam sobre Deus, outras, sobre o imposto de renda. Em tudo, por tudo, Jimmy Vandermeer fora um companheirão. Então Ralph arranjara uma função burocrática na gráfica e perdera contacto com Jimmy. Só voltaram a reatar o convívio ali e em alguns marcos que pontilhavam a Derry dos Velhos Coroas - a biblioteca, a sinuca, a sala dos fundos da barbearia de Duffy Sprague e outros quatro ou cinco lugares. Quando Jimmy lhe contara, pouco depois da morte de Carolyn, a luta que travara contra o câncer e que perdera um pulmão, mas que, de resto, estava bem, Ralph se lembrara do homem que discorria sobre beisebol ou pescaria enquanto atirava pelo quebra-vento guimbas e mais guimbas de cigarro acesas.

Tive sorte, foi o que dissera. Eu e Duke, os dois tivemos sorte. Só que, aparentemente, a sorte não durara muito para nenhum dos dois. Mas, no fim, também não durava para ninguém.

- Puxa, rapaz - comentou Ralph. - Lamento saber disso.

- Ele está no Derry Home faz umas três semanas - disse Faye. - Estão aplicando nele aquelas radiações e injeções de veneno que deviam matar o câncer, mas acabam matando lentamente o paciente. Estou surpreso que você não saiba.

Imagino que esteja, mas eu não. A insónia não pára de devorar as coisas, sabe. Um dia você não encontra o último envelope de sopa; no outro, o sentido do tempo; dois dias depois, os seus velhos amigos.

Faye balançou a cabeça.

- Porra de câncer. Dá medo o jeito com que fica espreitando a pessoa.

Ralph concordou com a cabeça, pensando em Carolyn.

- Em que quarto Jimmy está, você sabe? Talvez eu vá visitá-lo.

- Por acaso sei. 315. Você vai se lembrar? Ralph sorriu.

- Pelo menos por algum tempo.

- Vá mesmo se puder: eles mantêm o Jimmy bastante dopado, mas ele ainda reconhece as visitas, e aposto que ia gostar de ver você. Ele me contou uma vez que vocês dois passaram grandes momentos juntos.

- Bem, sabe como é, dois caras na estrada. Se tirávamos cara ou coroa para ver quem pagava o jantar, Jimmy sempre pedia coroa. - De repente sentiu vontade de chorar.

- Que merda, não é? - Faye disse baixinho.

- E.

- Bem, vá vê-lo. Ele vai ficar contente e você vai se sentir melhor. Pelo menos é assim que a coisa deve funcionar. E não se esqueça do torneio de xadrez!-Faye terminou, empertigando-se e fazendo um esforço heróico para parecer animado. - Se você desistir agora, vai matar as sementes que plantamos.

- Vou fazer o possível.

- Sei que vai - fechou um punho e deu um soco leve no braço de Ralph. - E mais uma vez obrigado por me segurar antes de eu fazer uma coisa, sabe, para depois me arrepender.

- Claro. Mediador Número Um, sou eu mesmo. - Ralph começou a descer pelo caminho que levava à Extensão da Harris, então se virou. - Está vendo aquela estrada de serviço ali adiante? A que vai do terminal até a rua? - apontou. Naquele momento, o caminhão de um serviço de bufê ia se afastando do terminal para aviões executivos, e seu pára-brisa refletia os raios do sol nos olhos dos dois. O caminhão parou um pouco antes do portão, interceptando o facho de luz da célula foto-elétrica. O portão começou a se abrir.

- Claro que sim - respondeu Faye.

- No verão passado, vi Ed Deepneau usando aquela estrada, o que significa que tinha um cartão magnético para passar pelo portão. Tem idéia de como é que ele teria arranjado um cartão?

- Você está falando do cara dos Amigos da Vida? O cientista que fez umas pesquisas sobre espancamento de mulher no verão passado?

Ralph concordou.

- Mas estou falando do verão de 92. Ele dirigia um velho Datsun marron naquela época.

Faye deu uma risada.

- Não saberia distinguir um Datsun de um Toyota ou de um Honda, Ralph: perdi a capacidade de diferenciar carros quando o Chevrolet perdeu o rabo de gaivota. Mas posso lhe dizer quem geralmente usa esta estrada: fornecedores de comida, mecânicos, pilotos, tripulantes e controladores de vôo. Alguns passageiros têm cartões, acho, quando fazem vôos executivos com freqüência. Lá os únicos cientistas são os que trabalham na estação meteorológica. É esse tipo de cientista que ele é?

- Não, ele é químico. Trabalhou nos laboratórios Hawking até pouco tempo.

- Brincava com ratinhos brancos, é? Bem não há ratinhos no aeroporto, pelo menos que eu saiba, mas, pensando bem, tem outro pessoal que usa esse portão.

- Ah é? Quem?

Faye apontou para uma construção pré-fabricada com telhado de metal corrugado a uns sessenta metros do terminal geral.

- Está vendo aquele prédio? É a Solo Tech.

- Que é a Solo Tech?

- Uma escola - respondeu Faye. - Ensina o pessoal a voar.

RALPH VOLTOU pela Avenida Harris com as mãos enormes metidas nos bolsos e a cabeça baixa, de modo que via pouco mais que as rachaduras na calçada que seus tênis calcavam.

Tinha os pensamentos fixos em Ed Deepneau novamente... e na Solo Tech. Não havia maneira de saber se a Solo Tech era a razão de Ed ter estado no aeroporto no dia em que batera na pick-up da firma de jardinagem, mas de repente essa era uma pergunte que Ralph gostaria muito de ver respondida. Também tinha curiosidade de saber onde Ed estava morando ultimamente. Pôs-se a imaginar se John Leydecker teria a mesma curiosidade e decidiu averiguar.

Ia passando pela desprentensiosa loja geminada em que funcionavam a George Lyford,

Contadores, de um lado, e a joalheria Maritime (PAGAMOS O MELHOR PREÇO PELO SEU OURO) do outro, quando foi sacudido de seus pensamentos por um latido curto e abafado. Ergueu os olhos e viu Rosalie sentada na calçada, bem na entrada superior do parque Strawford. A velha cachorra ofegava; a saliva escorria da língua pendurada e formava uma poça escura no concreto entre suas patas. O pêlo estava colado em chumaços escuros, como se ela tivesse corrido, e o lenço azul desbotado que trazia amarrado ao pescoço dava a impressão de tremer com sua respiração ofegante. Quando Ralph olhou, ela deu outro latido, que mais parecia um ganido.

Percorreu a rua com o olhar, procurando o alvo daqueles latidos, mas não encontrou nada, exceto a lavanderia BuffyBuffy. Havia algumas mulheres andando no interior da loja, mas Ralph achou impossível que Rosalie estivesse latindo para elas.

Não havia mais ninguém passando pela calçada da lavanderia automática naquela hora.

Ralph voltou a olhar a cachorra e subitamente percebeu que Rosalie não estava sentada na calçada, mas agachada ali... encolhida... Parecia morta de medo.

Até aquele momento, Ralph nunca pensara muito na estranha humanidade que expressam a cara e o corpo dos cães: sorriam quando estavam satisfeitos, abaixavam a cabeça quan300 do sentiam vergonha, registravam ansiedade nos olhos e tensão na postura das espáduas-enfim, tudo o que as pessoas faziam. E, como gente, expressavam medo servil e total em cada linha do corpo trêmulo.

Ele tornou a espiar para o lado oposto da rua, para o ponto que parecia concentrar a atenção de Rosalie e, mais uma vez, não viu nada exceto a lavanderia e a calçada vazia diante da loja. Então, inesperadamente, lembrou-se de Natalie, Sua Majestade a Neném, agarrando os rastros azul-cinzentos deixados por seus dedos quando ele esticara a mão para limpar o leite de seu queixo. A qualquer outra pessoa, pareceria que ela não estava tentando agarrar nada, daquele jeito que os bebês sempre fazem... mas Ralph sabia que não.

Ele vira.

Rosalie emitiu uma saraivada de ganidos de pânico que arranharam o ouvido de Ralph como o som de dobradiças sem lubrificação.

Até agora a coisa só aconteceu independente da minha vontade... mas talvez eu possa fazêla acontecer. Talvez eu possa me levara ver...

Ver o quê?

Bem, as auras. Elas, naturalmente. E talvez aquilo que Rosalie (three-six-nine-hon) está olhando também. Ralph já fazia uma boa idéia f the goose drank wine)

do que era, mas queria ter certeza. O problema era como fazer.

Como é que uma pessoa vê, para começar? r

Olhando, é claro.

Ralph olhou para Rosalie. Olhou-a atentamente, procurando ver tudo que havia para ver; a padronagem desbotada do lenço azul que lhe servia de coleira, os chumaços empoeirados e embaraçados em seu pêlo sem trato, os salpicos de pêlos grisalhos por todo o focinho. Após alguns minutos de estudo, ela pareceu sentir seu olhar, porque se virou, fitou-o e gemeu inquieta.

Quando a cachorra fez isso, Ralph sentiu alguma coisa girar em sua mente-como se o motor de arranque de um carro se ligasse. Teve uma sensação breve, mas muito clara, de estar subitamente mais leve, e então a luminosidade inundou o dia. Descobrira o caminho de volta àquele mundo mais nítido, mais texturado. Viu uma membrana escura - que o fez pensar em clara de ovo choco materializar-se em torno de Rosalie, e viu sair da cachorra um fio de balão cinza-escuro. Seu ponto de origem, porém, não era a cabeça, como fora o caso das pessoas que Ralph observara neste estado exacerbado de consciência. O fio de balão de Rosalie saía do focinho.

Agora você conhece a diferença.mais fundamental entre cães e homens, pensou. Suas almas residem em lugares diferentes.

[Totó! Aqui, totó, vem!]

Ralph fez uma careta e procurou evitar aquela voz, que lembrava giz arranhando o quadronegro. Levou as palmas das mãos quase até os ouvidos antes de perceber que não adiantaria; na realidade, não ouvia a voz com os ouvidos, e o ponto em que a voz mais incomodava estava no fundo de sua cabeça, onde as mãos não poderiam alcançar.

[Ei, seu porra pulguento! Você acha que temos o dia inteiro? Mexa esse rabo cheio de sarna e venha já aqui!]

Rosalie gemeu e transferiu o olhar de Ralph para o que quer que estivesse olhando antes.

Começou a se levantar, mas tornou a cair sobre os quartos. O lenço que usava sacudia com mais rapidez que nunca e Ralph viu uma meia-lua escura se espalhar em volta de sua anca esquerda, quando a bexiga esvaziou.

Ele olhou para o lado oposto da rua e lá estava o Dr. N-3, parado entre a lavanderia e um velho prédio de apartamentos vizinho, o Dr. N-3 com o seu avental branco (bem sujo, Ralph reparou, como se estivesse em uso há muito tempo) e seus jeans azuis de anão. Ainda trazia o panamá de McGovern na cabeça. O chapéu agora parecia equilibrar-se nas orelhas da criatura; ficava-lhe tão grande, que a metade superior da cabeça parecia soterrada sob o chapéu. Sorria ferozmente para a cachorra, e Ralph viu uma fileira dupla de dentes brancos e pontiagudos -os dentes de um canibal. Na mão esquerda, segurava alguma coisa, um velho bisturi ou uma navalha. Parte da mente de Ralph tentou convencê-lo de que era sangue o que via na navalha, mas tinha quase certeza de que era apenas ferrugem.

O Dr. N-2 meteu os dois primeiros dedos da mão direita nos cantos da boca e tirou um assobio cortante que atravessou a cabeça de Ralph como uma broca. Na calçada, Rosalie encolheu-se e em seguida soltou um breve uivo.

[Passa já para aqui, Rover! Nesse minuto!]

Rosalie se levantou com o rabo entre as pernas e começou a caminhar esquiva na direcção da rua. Gania ao caminhar, e o medo piorara tanto a perna coxa que ela mal conseguia cambalear; os quartos traseiros ameaçavam escorregar para os lados a cada arranco relutante.

[EU]

Ralph só percebeu que tinha gritado, quando viu uma nuvenzinha azul flutuar diante de seu rosto. Riscava-a uma teia prateada que lhe dava a aparência de um floco de neve. O anão careca girou na direção do grito de Ralph, e ergueu instintivamente a arma que segurava.

Sua expressão era um esgar de surpresa. Rosalie parará com as patas dianteiras na sarjeta e observava Ralph com os olhos castanhos arregalados e ansiosos.

[Que éque você quer, Coroa?]

Havia fúria naquela voz por ter sido interrompido, fúria por ter sido desafiado... mas Ralph achou que havia outras emoções por trás. Medo? Gostaria de poder acreditar. Perplexidade e surpresa pareciam mais prováveis. Quem quer que fosse essa criatura, não estava habituada a ser vista por gente como Ralph, e, muito menos, desafiada.

[Que foi, Pé-na-cova, o gato comeu sua língua? Ou já se esqueceu do que queria?]

[- Quero que deixe o cachorro em paz!]

Ralph se ouvia de duas formas distintas. Tinha uma razoável certeza de que estava falando em voz alta, mas o som de sua voz real era distante e fraco, como a música que saía dos fones de um Walkman posto de lado temporariamente. Alguém que parasse ao seu lado poderia ouvir o que dissera, mas Ralph sabia que as palavras teriam soado como um ofego breve e fraco - a voz de um homem que acabasse de levar um soco no estômago. Dentro de sua cabeça, porém, ele se ouvia como há muito não ocorria - jovem, forte e confiante.

O Dr. n23 deve tê-lo ouvido dessa segunda forma, porque relutou brevemente, e tornou a erguer a arma (Ralph agora estava quase seguro de que se tratava de um bisturi) um instante, como se quisesse se defender. Então pareceu recuperarse. Abandonou a calçada, foi até a beira da Avenida Harris e parou na faixa de grama, coberta de folhas, entre a calçada e a rua. Enganchou os dedos na cintura dos jeans, puxou-a sob o avental sujo, e encarou Ralph mal-humorado por alguns momentos. Em seguida, ergueu o bisturi enferrujado no ar e fez um gesto desagradável e sugestivo de quem serra.

[Você pode me ver-grande coisa! Não meta o nariz no que não é da sua conta, Pé-nacova! O vira-lata é meu!]

O doutor careca virou-se para a cachorra agachada.

[Não estou para brincadeiras com você, Rover! Passe já para aqui! Agora!]

Rosalie lançou a Ralph um olhar suplicante e desesperado e, então, começou a atravessar a rua.

Eu não me meto em histórias antigas, o velho Dor lhe aconselhara no dia em que lhe dera o livro de poemas de Stephen Dobyns. E já lhe disse para também não se meter.

Dissera, de fato dissera, mas Ralph tinha a sensação de que agora era demasiado tarde. E mesmo que não fosse, não tinha intenção de entregar Rosalie ao desagradável anãozinho parado diante da lavanderia automática, do outro lado da rua. Isto é, se pudesse evitá-lo.

[- Rosalie! Aqui, cachorrinha! Junto!]

Rosalie deu um único latido e correu para Ralph. Colocou-se atrás de sua perna direita e sentou ofegante, com os olhos postos nele. E ali estava outra expressão que Ralph descobriu que podia ler com facilidade: uma parte de alívio, duas partes de gratidão.

O rosto do Dr. N-2 se contorceu numa careta de ódio tão profundo, que era quase uma caricatura.

[É melhor mandar ela para cá, Coroa! Estou avisando!]

- [Não.]

[Vou ferrar você, Coroa. Vou ferrar você pra valer. E vou ferrar seus amigos. Tá me ouvindo bem? Tá...]

De repente Ralph ergueu a mão na altura do ombro com a palma voltada para o lado da cabeça, como se pretendesse dar um golpe de caraté. Baixou, rápido, a mão e observou, assombrado, uma cunha de luz azul voar da ponta de seus dedos e atravessar a rua como uma lança. O Dr. N-2 abaixou-se na hora, botando a mão no panamá de McGovern para impedi-lo de voar. A cunha azul passou raspando a uns cinco ou seis centímetros daquela mãozinha em cima do chapéu e atingiu a vitrine do Buffy-Buffy. Ali se espalhou como se fosse um líquido sobrenatural e, por um instante, o vidro empoeirado refletiu o azul radioso e perfeito do céu daquele dia. Apagou-se após um instante, e Ralph viu de novo as mulheres no interior da lavanderia dobrando roupas e metendo-as nas máquinas de lavar, como se nada tivesse acontecido.

O anão careca endireitou-se, fechou os punhos e sacudiuos para Ralph. Em seguida, puxou o chapéu de McGovern da cabeça, meteu a aba na boca e arrancou um pedaço. Ao executar esse estranho equivalente de uma má-criação de criança, o sol tirou lascas de fogo dos lóbulos de suas orelhas pequenas e bem feitas. Ele cuspiu o pedaço de palha estraçalhada e enfiou o chapéu de novo na cabeça.

[Aquela cachorra era minha, Coroa! Ia brincar com ela! Acho que em vez disso, vou ter que brincar com você, hein? Você e os panacas dos seus amigos!]

- [Cai fora daqui!]

[Chupador de buceta! Fodeu a mãe e depois lambeu a buceta dela!]

Ralph sabia onde tinha ouvido expressões desse tipo antes: Ed Deepneau, no aeroporto, no verão de 1992. Não era coisa de que se esquecesse, e de repente sentiu-se aterrorizado.

Deus do céu, em que é que tropeçara?

RALPH ERGUEU a mão até o lado da cabeça outra vez, mas alguma coisa interior mudara.

Poderia baixá-la de novo naquele gesto de caraté, mas tinha quase certeza de que, desta vez, não produziria nenhuma cunha azul voadora.

Mas aparentemente o doutor não sabia que estava sendo ameaçado com uma arma sem balas. Encolheu-se, levantou a mão que segurava o bisturi num gesto de quem se protege. O chapéu grotescamente mordido escorregou por cima de seus olhos e, por um momento, ele pareceu uma versão teatral de Jack, o Estripador... alguém que estivesse procurando se livrar de uma impotência patológica causada pela baixa estatura.

[Vou tirara forra, Coroa! Pode esperar! Pode esperar! Nenhum Pé-na-cova vai folgar comigo!]

Mas, por ora, o doutorzinho careca já se enchera. Deu meia-volta e entrou correndo pelo caminho cheio de mato entre a lavanderia e o prédio de apartamentos, com o avental demasiado comprido esvoaçando e batendo nas pernas dos jeans. A luminosidade do dia desapareceu com ele. Até certo ponto,

Ralph assinalou essa passagem com sentidos que nunca suspeitara possuir. Sentia-se totalmente desperto, totalmente energizado, e quase explodindo de prazerosa excitação.

Botei-o para correr, por Deus! Botei o filho da puta para correr!

Não fazia a menor idéia de quem poderia ser realmente a criatura de avental branco, mas sabia que salvara Rosalie de suas garras, e por ora bastava. As perguntas incômodas sobre sua sanidade poderiam voltar sorrateiras amanhã de manhã, quando se sentasse na poltrona contemplando a rua deserta... mas, no momento, sentia-se o máximo.

- Você viu ele, não viu, Rosalie? Você viu aquele coisinha...

Baixou os olhos, descobriu que Rosalie já não se encontrava junto dele, e ergueu a cabeça em tempo de vê-la entrar no parque mancando, a cabeça baixa, a perna direita repuxando dura para fora a cada passada dolorosa.

- Rosalie! - chamou. - Ei, cachorrinha! - E, sem saber realmente por quê, exceto que tinham vivido juntos uma coisa extraordinária, Ralph saiu atrás dela, de início apenas andando rápido, depois correndo, finalmente dando tudo que podia.

Mas não correu assim por muito tempo. Uma dor aguda, que parecia uma agulha em brasa, enterrou-se em seu lado esquerdo, e logo se espalhou por metade do peito. Ele parou na entrada do parque com o corpo dobrado, no cruzamento de dois caminhos, as mãos apoiadas nas pernas, bem acima dos joelhos. O suor escorreu para seus olhos, ardendo como se fosse lágrima. Ele ofegava asperamente, perguntando-se se seria apenas o tipo de pontada normal que se lembrava de sentir no último trecho da pista de corrida na escola secundária, ou se aquilo era o princípio de um ataque cardíaco fatal.

Passados trinta ou quarenta segundos, a dor começou a regredir, portanto, talvez fosse mesmo apenas uma pontada. Mas era um bom argumento em favor da tese de McGovern, não? Vou-lhe dizer uma coisa, Ralph - na nossa idade, os distúrbios mentais são comuns!

Na nossa idade, são supercomuns! Ralph não sabia se isto era ou não verdade, mas sabia que transcorrera meio século desde que participara da corrida estadual e sair correndo atrás de Rosalie como fizera fora uma burrice, provavelmente, uma burrice perigosa. Se seu coração tivesse emperrado, ele não teria sido o primeiro velhote a ser punido com uma trombose nas coronárias, por se excitar e esquecer que, quando os dezoito anos passavam, era para sempre.

A dor praticamente cessara e ele ia recuperando o fôlego, mas as pernas continuavam pouco confiáveis, como se ameaçassem ceder nos joelhos e deixá-lo cair no caminho de brita sem o menor aviso. Ralph ergueu a cabeça procurando o banco de jardim mais próximo, e viu algo que o fez esquecer cachorros vadios, pernas bambas, e até possíveis ataques cardíacos. O banco mais próximo encontrava-se a uns quinze metros adiante, no caminho da esquerda, no topo de uma elevação suave. Lois Chasse estava sentada naquele banco, com seu casaco azul de outono. Trazia as mãos enluvadas entrelaçadas ao colo e soluçava como se seu coração fosse partir.

 

- QUE FOI que houve, Lois?

Ela ergueu os olhos para ele, e o primeiro pensamento a cruzar a cabeça de Ralph foi na realidade uma lembrança: uma peça a que levara Carolyn para assistir no teatro Penobscot em Bangor, há oito ou nove anos. Alguns personagens estavam supostamente mortos e usavam maquilagem branca e olheiras escuras em torno dos olhos, para dar a impressão de grandes órbitas vazias.

Seu segundo pensamento foi muito mais simples: Quatis.

Ou ela viu esses pensamentos estampados no rosto de Ralph ou simplesmente se apercebeu de sua provável aparência, porque virou a cabeça, tentou por alguns instantes abrir o fecho da bolsa e, em seguida, simplesmente ergueu as mãos e usou-as para esconder o rosto do seu olhar.

- Vá-se embora, Ralph, por favor - pediu numa voz embargada. - Não estou me sentindo muito bem hoje.

Em circunstâncias normais, Ralph teria feito o que ela pedia, e se afastaria depressa sem olhar para trás, sentindo apenas um vago constrangimento por tê-la encontrado com a maquilagem desfeita e desarmada. Mas as circunstâncias não eram normais e Ralph resolveu que não ia embora - pelo menos, não naquele momento. Ainda conservava um pouco daquela estranha leveza, e ainda sentia que o outro mundo, a outra Derry, achava-se muito próxima. E havia mais uma coisa, uma coisa perfeitamente simples e direta. Odiava ver Lois, cuja natureza alegre ele jamais pusera em dúvida, sentada sozinha e chorando de se acabar.

- Que foi que houve, Lois?

- Não estou me sentindo bem! - exclamou. - Será que não pode me deixar em paz?

Lois escondeu o rosto nas mãos enluvadas. Suas costas sacudiam, as mangas do casaco azul tremiam, e Ralph pensou na expressão de Rosalie quando o doutor careca berrara mandando-a atravessar a rua imediatamente: infeliz, morta de medo.

Ralph sentou-se junto de Lois, passou o braço por suas costas e puxou-a para perto. Ela veio, mas dura... como se tivesse o corpo cheio de arames.

- Não olhe para mim! - exclamou na mesma voz transtornada. - Não se atreva! Minha maquilagem está um horror! Me maquilei especialmente para o meu filho e minha nora...

eles vieram tomar o café da manhã... íamos passar a manhã... "Vai ser óptimo, mamãe" foi o que Harold disse... mas o motivo por que vieram... sabe, o verdadeiro motivo...

A comunicação foi interrompida por um novo acesso de choro. Ralph apalpou seu bolso traseiro e puxou um lenço amassado, mas limpo, e colocou-o nas mãos de Lois. Ela tomouo sem olhar para Ralph.

- Vamos - falou. - Esfregue um pouco se quiser, embora você não esteja muito ruim, Lois; sinceramente que não.

Está com um aninho de quati, pensou, mas é só. Começou a rir, mas logo o sorriso morreu.

Lembrou-se do dia em que saíra para ir à Rite Aid, conhecer os soníferos vendidos sem receita e encontrara Bill e Lois parados do lado de fora do parque, discutindo a manifestação com bonecas cheias de sangue que Ed comandara diante da WomanCare. Ela estava visivelmente perturbada naquele dia - Ralph se lembrava de tê-la achado com o ar cansado apesar da agitação e do interesse - mas, também, quase bela: seu busto de bom tamanho ondeando com a respiração, os olhos cintilantes, as faces coradas como as de uma mocinha. Aquela beleza quase irresistível hoje não passava de uma lembrança; com a maquilagem derretida, Lois Chasse parecia um palhaço velho e triste e Ralph sentiu uma centelha de fúria pela coisa ou a pessoa que causara aquela transformação.

- Estou horrorosal - Lois disse, esfregando o lenço de Ralph com força. - Um espantalho!

- Não está não, senhora. Seu rosto está só um pouquinho borrado.

Lois finalmente virou-se para encará-lo. Isto lhe custou um visível esforço agora que a maior parte do blush e da sombra tinham passado para o lenço de Ralph.

- Ainda estou muito ruim? - ela sussurrou. - Diga a verdade, Ralph Roberts, ou vai ficar vesgo.

Ele se curvou e beijou sua face úmida.

- Apenas bonita, Lois. Vamos guardar o etérea para outro dia.

Ela deu um sorriso inseguro, e o movimento ascendente das faces fez mais duas lágrimas rolarem de seus olhos. Ralph tomou o lenço amassado de suas mãos e enxugou-as devagarinho.

- Fico tão contente que tenha sido você a aparecer e não Bill - disse. - Teria morrido de vergonha se Bill me visse chorando em público.

Ralph espiou em volta. Viu Rosalie, sã e salva, ao pé da elevação - deitara-se entre os dois banheiros que ficavam ali, o focinho descansando sobre a pata - de resto, este pedaço do parque estava deserto.

- Acho que o lugar é praticamente nosso, pelo menos por ora - falou.

- Graças a Deus pelos seus pequenos favores. - Lois retomou o lenço e recomeçou a retirar a maquilagem, desta vez com uma disposição mais profissional.-Por falar em Bill, parei no mercadinho a caminho daqui, isto foi antes de começar a sentir pena de mim mesma e cair no choro, e Sue me disse que vocês tiveram uma grande discussão há pouco. E que estavam aos gritos no jardim diante da casa.

- Não, não foi tão escandaloso assim - Ralph sorriu sem graça.

- Posso ser curiosa e perguntar por que foi?

- Xadrez - respondeu Ralph. Foi a primeira coisa que lhe ocorreu. - O torneio da Pista 3 que Faye Chapin organiza todo ano. Só que discutimos por besteira. Sabe como é, às vezes a gente levanta da cama com o pé esquerdo e aproveita a primeira desculpa.

- Espero que tenha sido assim comigo. - Lois abriu a bolsa, desta vez sem muito esforço, e retirou o pequeno estojo de pó. Então suspirou e voltou a guardá-lo na bolsa. - Não posso. Sei que estou sendo criança, mas simplesmente não posso. Ralph meteu ligeiro a mão na bolsa antes que ela a fechasse, apanhou o estojo, abriu-o e segurou o espelho diante dela.

- Está vendo? Não está tão ruim assim, está?

Ela desviou o rosto como um vampiro diante de um crucifixo.

- Uh! - exclamou. - Guarde isso.

- Se você prometer me contar o que aconteceu.

- Prometo qualquer coisa, mas guarde isso.

Ele obedeceu. Por alguns instantes, Lois não disse nada, simplesmente continuou olhando para as mãos que mexiam e remexiam no fecho da bolsa. Ralph estava a ponto de insistir, quando ela o encarou com uma aflita expressão de desafio.

- Acontece que você não é a única pessoa que não consegue dormir uma boa noite de sono, Ralph.

- De que é que você está falando...

- De insónia. Vou-me deitar mais ou menos a mesma hora em que sempre me deitei, mas não consigo dormir até de manhã. E pior que isso. Parece que acordo cada dia mais cedo.

Ralph procurou lembrar se chegara a contar a Lois este aspecto do seu próprio problema.

Achava que não.

- Por que está fazendo essa cara de surpresa? - Lois perguntou. - Você não pensou realmente que fosse a única pessoa no mundo que já passou uma noite insone, pensou?

- Claro que não! - Ralph respondeu com alguma indignação... mas não teria por vezes sentido que era a única pessoa no mundo a ter aquele tipo de insónia? Parado ali, impotente, enquanto boas horas de sono se escoam minuto a minuto, hora a hora? Parecia uma variante exótica da tortura chinesa do pingo d'água.

- Quando começou?

- Uns dois meses antes de Carol falecer.

- E quanto tempo você está conseguindo dormir?

- Não chega nem a uma hora, desde o início de outubro. - Sua voz era calma, mas Ralph ouvia um tremor subjacente que bem poderia ser de pânico. - Do jeito que as coisas vão, terei parado de dormir inteiramente por volta do Natal, e se isso realmente acontecer, não sei como vou conseguir sobreviver. Agora já é tão difícil.

Ralph procurou recuperar a fala e fez a primeira pergunta que lhe ocorreu.

- Como é que nunca vi sua luz acesa?

- Pela mesma razão que raramente vejo a sua, imagino. Moro na mesma casa há trinta e cinco anos, e não preciso acender a luz para me deslocar. E também, costumo guardar meus problemas para mim. Se você fica acedendo as luzes às duas da manhã, mais cedo ou mais tarde alguém vê. A notícia se espalha e logo os bisbilhoteiros começam a fazer perguntas.

Não gosto de bisbilhotices, e não sou do tipo que gosta de anunciar no jornal todas as vezes que tem uma prisão de ventre.

Ralph caiu na gargalhada. Ela fitou-o com visível perplexidade por um instante, mas logo o acompanhou. O braço dele continuava nos ombros de Lois (ou será que tinha voltado de mansinho, por conta própria, depois que o retirara? Ralph não sabia e não estava realmente interessado), e abraçou-a com mais força. Desta vez seu corpo não opôs resistência; os arames duros tinham desaparecido. Ralph ficou contente.

- Você não está rindo de mim, está, Ralph?

- Não. Absolutamente.

- Então, tudo bem-ela assentiu, ainda sorrindo.-Você nunca me viu andando pela sala de estar, viu?

- Não.

- É porque não tem lâmpada diante da minha casa. Mas tem na frente da sua. Já vi você sentado naquela poltrona ensebada muitas vezes, observando a rua, bebendo chá.

Sempre presumi que eu fosse o único, pensou, e a pergunta inesperada - ao mesmo tempo cómica e embaraçosa - lampejou em sua mente. Quantas vezes ela o vira sentado ali, tirando meleca do nariz? Ou coçando o saco?

Fosse porque leu seus pensamentos ou por conta do rubor de seu rosto, Lois respondeu:

- Para falar a verdade, nunca deu para distinguir mais do que o seu vulto, sabe, e você estava sempre usando roupão, perfeitamente composto. Portanto, não precisa se preocupar.

E também espero que saiba que, se algum dia você começasse a fazer uma coisa que não quisesse que outros vissem, eu não teria olhado. Não fui criada numa estrebaria, está bem?

Ele sorriu e deu uma palmadinha em sua mão.

- Eu sei disso, Lois. É só que... você sabe, é uma surpresa. Descobrir que, enquanto eu estava sentado ali observando a rua, alguém estava me observando.

Ela fitou-o com um sorriso enigmático que poderia significar, não se preocupe, Ralph você era para mim apenas mais um detalhe do cenário.

Ele estudou seu sorriso por um momento, então procurou voltar ao assunto principal.

- Então, que foi que aconteceu, Lois? Por que você estava sentada aqui chorando? Só por causa da insónia? Se foi por isso, você tem toda a minha solidariedade. Na realidade, não há nenhum "só" nisso, não é mesmo?

O sorriso de Lois desapareceu. Suas mãos enluvadas cruzaram-se de novo no colo e ela baixou os olhos tristemente.

- Há coisas piores do que a insónia. Traição, por exemplo. Principalmente quando os traidores são pessoas de quem se gosta.

ELA SE calou. Ralph não insistiu. Olhou para o pé do morro, de onde Rosalie parecia observá-lo. Aos dois, talvez.

- Você sabia que temos o mesmo médico, além do mesmo problema, Ralph?

- Você é cliente do Litchfield, também?

- Era. Foi Carolyn quem me recomendou o Litchfield. Mas nunca mais volto a me consultar com ele. Para mim chega - seu lábio superior se arreganhou. - Traidor filho da puta.

- Que aconteceu?

- Deixei o problema rolar durante quase um ano, à espera de que melhorasse sozinho, deixando, como dizem, a natureza agir. Não que eu não tentasse ajudar a natureza de vez em quando. Provavelmente experimentamos muitos remédios iguais.

- Favo de mel? - Ralph perguntou sorrindo novamente. Não podia deixar de sorrir. Que dia assombroso o de hoje, pensou. Que dia absolutamente assombroso... e ainda nem chegamos a uma hora da tarde.

- Favo de mel? Que é que tem o favo de mel? Ajuda?

- Não - Ralph respondeu rindo mais francamente que nunca - não ajuda nada, mas tem um gosto maravilhoso.

Ela deu uma risada e apertou a mão nua de Ralph em suas mãos enluvadas. Ele retribuiu o aperto.

- Você nunca consultou o Dr. Litchfield sobre a sua insónia, não é, Ralph?

- Não. Marquei uma consulta uma vez, mas cancelei.

- Você adiou por que não confiava nele? Por que achava que pisou na bola com Carolyn?

Ralph olhou-a, admirado.

- Esquece - disse Lois. - Eu não tinha o direito de perguntar.

- Não, pode perguntar. Acho que me admirei de ouvir essa idéia na boca de outra pessoa.

Que ele... sabe... que ele pode ter feito um diagnóstico errado.

- Hum! - Os belos olhos de Lois faiscaram. - A idéia ocorreu a todos nós! Bill costumava dizer que era inacreditável que você não tivesse levado aquele trapalhão filho da puta aos tribunais, no dia seguinte ao enterro de Carolyn. Naturalmente, naquela época, eu estava no partido oposto, defendendo Litchfield com unhas e dentes. Você nunca pensou em processá-lo?

- Não. Tenho setenta anos, e não quero passar o tempo que ainda me resta às voltas com um processo de erro médico. Além do mais: isso traria Carolyn de volta?

Ela sacudiu a cabeça.

- Mas o que aconteceu com Carolyn foi a razão por que não fui procurá-lo - Ralph admitiu. - Pelo menos, acho que foi. Não confiar mais totalmente nele, ou talvez... não sei...

Não, ele realmente não sabia, isso é que era o diabo. Só tinha certeza de que cancelara a consulta com o Dr. Litchfield, tal como cancelara a consulta com James Roy Hong, conhecido em certos meios como o espetador de agulhas. Consulta que desmarcara a conselho de um homem de noventa e dois ou três anos que provavelmente nem conseguia mais lembrar seu segundo nome. Sua mente saiu vagando até o livro que o velho Dor lhe dera, e até o poema que o velho Dor citara - Busca, era o título, e aparentemente Ralph não conseguia tirá-lo da cabeça... principalmente o trecho em que o poeta falava das coisas que via desaparecer à sua passagem: os livros que não lera, as piadas que não contara, as viagens que nunca faria.

- Ralph? Você está aqui?

- Claro, só estava pensando no Litchfield. Me perguntando por que cancelei aquela consulta.

Ela lhe deu uma palmadinha na mão.

- Pois fique feliz que cancelou. Eu fui à minha.

- Me conte como foi. Lois sacudiu os ombros.

- Quando a insónia chegou a um ponto que eu não conseguia mais suportar, procurei o Litchfield e lhe contei tudo. Pensei que ia me dar uma receita de soníferos, mas ele me disse que nem isso podia fazer: às vezes tenho arritmia cardíaca e as pílulas podiam piorar o problema.

- Quando foi ao Litchfield?

- No início da semana passada. Então, ontem, inesperadamente meu filho Harold me ligou dizendo que ele e Janet viriam me buscar para tomar café da manhã. Bobagem, falei. Ainda me viro muito bem na cozinha. Se vão enfrentar uma viagem de Bangor até aqui, falei, vou preparar um café bem gostoso para vocês, e não se fala mais nisso. Então, depois, se quiserem me levar para passear, pensei no shopping, porque sempre gosto de ir até lá, e seria ótimo. Foi só isso que eu disse.

Virou para Ralph com um sorriso breve, amargurado e feroz.

- Nem me ocorreu questionar por que os dois estavam vindo me ver no meio da semana, eles trabalham e devem adorar aqueles empregos, porque praticamente é só nisso que falam.

Pensei no carinho do gesto... na consideração... e fiz um esforço especial para me arrumar bem e fazer tudo certo para que Janet não desconfiasse de que eu não estava bem de saúde.

Acho que é isso que me exaspera mais. Lois, a velha boba. "A nossa Lois" como Bill sempre diz... não faça cara de surpresa, Ralph! Claro que eu sabia disso; vocês acham que eu nasci ontem? E ele tem razão. SOM tola, SOM boba, mas isso não quer dizer que não me magoe como todo mundo quando se aproveitam da... - ela recomeçou a chorar.

- Claro que não - Ralph disse, e afagou sua mão.

- Você teria rido se tivesse me visto assando bolinhos de abóbora às quatro horas da manhã, cortando cogumelos em rodelas para fazer uma omelete italiana às quatro e quinze, e começando a me maquilar às quatro e trinta só para ter certeza, absoluta certeza, de que Jan não ia começar com aquela história de "Você tem certeza que está se sentindo bem, mãe Lois?" Odeio quando ela começa com essa baboseira. E sabe o que mais, Ralph? Ela sabia o tempo todo qual era o meu problema. Os dois sabiam.

Portanto, acho que estavam se divertindo às minhas custas, não acha?

Ralph achava que tinha acompanhado a história com muita atenção, mas aparentemente perdera um ou dois detalhes.

- Sabiam? Como podiam saber?

- Porque Litchfield contou! - ela gritou. Seu rosto se contorceu de novo, mas desta vez não foi mágoa nem pesar o que Ralph viu, mas uma terível e lastimável fúria. - Aquele linguarudo filho de uma puta ligou para o meu filho e CONTOU TUDO!

Ralph estava perplexo.

- Lois, eles não podem fazer isso - disse finalmente quando recuperou a voz.-A relação médico-paciente é... bem, é privilegiada. Seu filho deve saber porque é advogado e a regra é a mesma que se aplica aos médicos. Os médicos não podem contar a ninguém o que o paciente diz a não ser que o paciente...

- Ora francamente - Lois girou os olhos para o alto. - Ai, meu Deusinho do céu. Em que mundo você vive, Ralph? Gente como Litchfield faz o que acha que está certo. Acho que sempre soube disso, o que me faz duas vezes mais burra por ter ido consultá-lo. Cari Litchfield é um sujeito arrogante que se preocupa mais com a aparência dos seus suspensórios e camisas de griffe do que com os pacientes.

- Que comentário mais cínico.

- E mais verdadeiro, isto é que é triste. Sabe de uma coisa? Ele anda aí pelos trinta e cinco, trinta e seis anos, e, sabe-se lá por que, meteu na cabeça que quando completar quarenta anos, simplesmente vai... parar. Vai continuar quarentão o tempo que quiser. Ele meteu na cabeça que as pessoas só ficam velhas quando chegam aos sessenta e que até as mais saudáveis já estão caducas por volta dos sessenta e oito, e que, se passarem dos oitenta, seria uma ato de caridade se os parentes as entregassem àquele Dr. Kevorkian. Os filhos não têm o direito de conhecer os segredos dos pais, mas, no entender de Litchfield, gente velha como nós não tem o direito de guardar segredos dos filhos. Não seria bom para nós, sabe.

- O que Cari Litchfield fez praticamente no minuto em que saí do consultório foi telefonar para Harold, em Bangor - Lois continuou. - Contou que eu não estava dormindo, que estava sofrendo de depressão, e que estava tendo problemas de percepção que acompanham o declínio prematuro da cognição. E acrescentou: "O senhor precisa se lembrar, Sr. Chasse, de que sua mãe está envelhecendo e, se eu fosse o senhor, reavaliaria seriamente a situação dela aqui em Derry."

- Ele não fez isso! - Ralph exclamou, assombrado e horrorizado. - Quero dizer... ele fez isso?

Lois concordava com a cabeça sombriamente.

- Ele disse isso a Harold e Harold me disse e agora estou lhe dizendo. A velha boba nem ao menos sabia o que significava "um declínio prematuro de cognição" e nenhum deles queria me dizer. Procurei "cognição" no dicionário, e você sabe o que significa?

- Pensamento-disse Ralph.-Cognição é pensamento.

- Certo. O meu médico ligou para o meu filho para dizer que eu estava ficando senil! Lois riu com raiva e usou o lenço de Ralph para enxugar as lágrimas que rolavam pelo seu rosto.

- Não dá para acreditar - comentou Ralph, mas o diabo é que dava. Desde a morte de Carolyn, ele se apercebera de que a ingenuidade com que encarava o mundo até mais ou menos os dezoito anos aparentemente desapareceu por completo, quando ele cruzou o portal entre a infância e a idade adulta; aquela inocência peculiar parecia estar retornando agora que cruzava o portal entre a idade adulta e a velhice. As coisas não paravam de surpreendê-lo... exceto que "surpresa" era, na realidade, uma palavra muito fraca. O que a maioria das coisas faziam era vira-lo de cabeça para baixo.

As garrafinhas debaixo da Ponte dos Beijos eram um exemplo. Ele fizera uma longa caminhada até o parque Bassey um dia de julho e parou debaixo da ponte para fugir um pouco do sol da tarde. Mal se acomodara confortavelmente quando reparou num montinho de vidro quebrado no mato à beira do riacho que corria sob a ponte. Ele abaixara as plantas altas com um galho quebrado e descobriu umas oito garrafinhas. Uma delas tinha uma crostra branca no fundo. Ralph a levantara e ao revirá-la curioso diante dos olhos, percebeu que o que via eram os restos de uma festinha de crack. Largara a garrafa no chão, como se ela queimasse. Ainda conseguia se lembrar do choque que sentira, da infrutífera tentativa de se convencer de que estava ficando maluco, que aquilo não podia ser o que ele pensava que era, não neste buraco no meio do mato, quatrocentos quilômetros ao norte de Boston. Naturalmente era o ingênuo emergente que se chocara; aquela parte dele parecia acreditar (ou acreditara até descobrir as garrafinhas sob a Ponte dos Beijos) que todas aquelas notícias sobre epidemia de cocaína eram apenas mentirinhas, tão fantasiosas quanto um seriado de crimes na TV ou um filme de Jean-Claude Van Damme. Sentia agora um choque semelhante.

- Harold me disse que queria dar um pulo comigo até Bangor e me mostrar um lugar Lois ia dizendo. - Ele nunca me leva para passear ultimamente; apenas dá umas voltinhas por aí. Como se eu fosse uma tarefa a ser cumprida. Os dois trouxeram uma pilha de folhetos e quando Harold fez sinal a Janet, ela os sacou tão depressa...

- Ôôôôô, mais devagar. Que lugar? Que folhetos?

- Desculpe. Estou pondo o carro adiante dos bois. É um lugar em Bangor, chamado Riverview Estates.

Ralph já ouvira o nome; até recebera um folheto. Uma dessas malas-diretas endereçada a pessoas de sessenta e cinco anos ou mais. EleeMcGovern tinham dado risadas juntos... mas o riso tivera um quê de constrangimento - como o assovio dos garotos, ao passarem pelo cemitério.

- Puxa, Lois: é um asilo para velhos, não é?

- Não, senhor! - ela protestou, arregalando os olhos inocentemente. - Foi o que eu disse, mas Harold e Janet me corrigiram. Não, Ralph, Riverview Estates é um condomínio construído para cidadãos idosos com um senso de comunidade! Quando Harold falou isso, exclamei: "É mesmo? Bem, vou dizer uma coisa aos dois: vocês podem pôr uma tortinha do McDonald's num réchaud de prata-de-lei e batizá-la de torta francesa, mas para mim vai continuar sendo uma tortinha do McDonakTs".

- Quando disse isso, Harold começou a engasgar e a ficar vermelho, mas Jan deu aquele sorrisinho meigo, aquele que guarda para ocasiões especiais porque sabe que me irrita. Ela disse: "Bem, por que não damos pelo menos uma olhada nos folhetos, mãe Lois? Você fará pelo menos isso, não fará, sabendo que nós dois tiramos um dia de folga e dirigimos quilômetros para vir ver você?"

- Como se Derry ficasse no coração da África - Ralph murmurou.

Lois segurou sua mão e disse uma coisa que o fez rir:

- Ah, para ela fica!

- Isso foi antes ou depois de você ter descoberto que Litchfield tinha sido linguarudo? perguntou Ralph. Usou intencionalmente a mesma imagem que Lois usara; parecia se ajustar melhor à situação do que qualquer palavra ou frase mais rebuscada. "Cometera um abuso de confiança" era uma frase demasiado digna para esse tipo de atitude sórdida. Era muito mais simples, Litchfield saíra correndo e batera com a língua nos dentes.

- Antes. Achei que podia muito bem olhar os folhetos; afinal eles tinham viajado mais de sessenta quilômetros, e não ia me tirar nenhum pedaço. Então folheei o material enquanto comiam os pratos que tinha preparado, e não sobrou nada para jogar no lixo, e bebiam o café.

- É um lugar e tanto esse Riverview. Eles têm uma equipe médica permanente vinte e quatro horas por dia e uma cozinha própria. Quando a pessoa entra, fazem um exame físico completo e decidem o que ela pode comer. Têm uma Dieta Vermelha, uma Dieta Azul, uma Dieta Verde e uma Dieta Amarela. Havia mais outras três ou quatro cores. Não lembro para que era cada uma das dietas, mas a Amarela era para diabéticos e a Azul para gorduchos.

Ralph pensou em comer três refeições cientificamente equilibradas por dia o resto da vida nada de pizzas de salsicha do Gambino's, nada de sanduíches do Coffee Pot, nada de chilibúrgueres do México Milfs - e achou a perspectiva quase insuportável.

- E mais - continuou Lois animada - eles têm um sistema de tubos de ar comprimido que deixam a dosagem diária de pílulas diretamente em sua cozinha individual. Não é uma idéia maravilhosa, Ralph?

- Deve ser - concordou Ralph.

- Ah, claro que é. É maravilhosa, a onda do futuro. Tudo é controlado por computador, e aposto como a cognição deles nunca entra em declínio. Tem um ônibus especial que leva os moradores de Riverview a lugares de interesse paisagístico ou cultural, duas vezes por semana, e também os leva para fazer compras. O uso do ônibus é obrigatório, porque as pessoas de Riverview não podem ter carros.

- Boa idéia - disse ele dando um aperto carinhoso na mão de Lois. - Que são meia dúzia de bêbados numa noite de sábado, comparados a um velho fóssil com uma cognição instável à solta num Buick?

Ela não sorriu, conforme Ralph esperara que fizesse.

- As fotos nos folhetos fizeram meu sangue ferver. Velhotas jogando canastra. Velhotes atirando ferraduras. Os dois gêneros juntos numa ampla sala de painéis de madeira a que chamam de Salão River, dançando quadrilha. Embora o nome seja até bonito, não acha?

Salão River?

- Acho que sim.

- Parece nome de salão que a gente encontra em castelo encantado. Mas já visitei velhos amigos em Strawberry Fields, o asilo geriátrico de Skowhegan, e conheço uma sala de recreação para velhos só de olhar. Não importa o nome bonito que dêem, sempre haverá um armário cheio de jogos de tabuleiros, quebra-cabeças faltando cinco ou seis peças em cada conjunto, a TV sempre ligada em um seriado do gênero brigas em família, jamais em filmes em que jovens bonitos ficam pelados e rolam abraçados pelo chão diante da lareira. Essas salas sempre cheiram a pomada... e urina... e aquarelas baratas vendidas em latas compridas... e desespero.

Lois fitou-o com seus olhos negros.

- Eu só tenho sessenta e oito anos, Ralph. Sei que sessenta e oito não parece pouco para o Dr. Fonte da Juventude, mas para mim parece, porque minha mãe tinha noventa e dois anos quando morreu no ano passado e meu pai viveu até os oitenta e seis. Na minha família, quem morre aos oitenta, morre jovem... e se tivesse que passar doze anos morando num lugar onde o jantar é anunciado por um alto-falante, endoidaria.

- Eu também.

- Mas olhei os folhetos. Queria ser gentil. Quando terminei, arrumei tudo numa pilha certinha e devolvi a Jan. Comentei que eram muito interessantes e agradeci. Ela acenou com a cabeça, sorriu e guardou os folhetos de volta na bolsa. Pensei l que a coisa ia acabar ali e que já acabava tarde, mas então Harold falou: "Vista o seu casaco, mamãe."

- Por um segundo, fiquei tão apavorada, que não consegui respirar. Pensei que já tivessem me inscrito! E tive a impressão de que se dissesse que não ia, Harold abriria a porta e haveria dois ou três homens de paletós brancos, e um deles sorriria e diria: "Não se preocupe, Sia. Chasse; depois que a senhora receber o primeiro punhado de pílulas diretamente em sua cozinha, a senhora nunca mais vai querer morar em outro lugar."

- Não quero vestir o meu casaco - respondi a Harold, e tentei usar a mesma firmeza que usava quando ele tinha dez anos e sempre entrava com os pés cheios de lama na cozinha, mas meu coração batia tão forte que o ouvia pulsar na minha voz. - Mudei de idéia sobre o passeio Esqueci que tinha muito que fazer hoje. E então Jan deu uma risada que detesto ainda mais do que o seu sorrisinho meloso e disse: "Ora, mãe Lois, que é que você teria de tão importantepara fazer que não possa nos acompanhar até Bangor, depois de termos gasto tempo de nossa folga para vir até Derry vê-la?"

- Aquela mulher sempre consegue me irritar, e acho que faço o mesmo com ela. Devo fazer porque nunca na vida conheci uma mulher que sorrisse tanto para outra sem odiá-la.

Em todo o caso, disse que, para começar, tinha de lavar o chão da cozinha. Olhe só para esse chão - falei. Está imundo.

"Hum!" - disse Harold. "Não acredito que você vá nos mandar de volta à cidade de mãos abanando, depois de termos vindo até aqui, mamãe."

- Bom, não vou me mudar paia esse lugar mesmo que você tenha vindo de longe retorqui - portanto, pode ir tirando essa idéia da cabeça. Vivo era Derry há trinta e cinco anos, metade de minha vida. Todos os meus amigos moram aqui e não vou me mudar.

- Eles se entreolharam do jeito que fazem os pais quando têm um filho que deixou de ser engraçadinho e começou a virar um pentelho. Janet me deu uma palrmdinha no ombro e disse: "Não precisa ficar nervosa, mãe Lois: só queremos que vá dar uma espiada." Como se fossem os folhetos de novo e eu só precisasse ser gentil. De qualquer modo, ao dizer que era só para dar uma espiada, ela me tranqüilizou um pouco. Devia saber que eles não poderiam me obrigar a morar lá, e nem mesmo pagar sozinhos a minha hospedagem. É com o dinheiro do Sr. Chasse que estão contando para fazer a mudança, a pensão e o seguro da estrada de ferro porque ele morreu em serviço.

- Acabei descobrindo que já tinham marcado uma visita para as onze horas, e havia um homem à espera para me mostrar as instalações e tentar me convecer. O medo maior já tinha passado quando descobri tudo isso, mas fiquei magoada com o ar de superioridade com que estavam me tratando, e furiosa que Janet acrescentasse a quase tudo que dizia o tempo de folga isso e o tempo de folga aquilo. Ficou bem claro que ela poderia imaginar programas muito melhores para passar o dia do que visitar a bruxa da sogra em Derry.

- "Chega de alvoroço e vamos, mãe", disse depois de mais idas e vindas, como se eu estivesse tão feliz com a idéia do asilo que nem conseguisse decidir que chapéu usar. "Vista seu casaco. Ajudo você a lavar a louça do café quando voltarmos."

- Vocês não me ouviram, falei. Eu não vou a parte alguma. Por que desperdiçar um belo dia de outono como este, visitando um lugar onde não vou querer jamais morar? E com que direito vocês vêm até aqui querendo me expulsar de minha casa? Por que nenhum dos dois telefonou para dizer: 'Temos uma idéia, mamãe, você quer ouvir?" Não é assim que tratariam um amigo de vocês?

- Quando eu disse isso, eles se entreolharam outra vez... Lois suspirou, enxugou os olhos uma última vez e devolveu o lenço a Ralph, mais úmido, mas de resto usável.

- Bem, percebi, por aquele olhar, que ainda não tínhamos atingido o fundo do poço. À principal indicação era o jeito de Harold, o mesmo que ficava quando acabava de roubar um punhado de pedaços de chocolate do saco na despensa. E Janet... lançou a ele o olhar que mais detesto nela. O olhar de trator, como chamo. E então perguntou se ele queria me contar o que o médico dissera, ou se ela deveria fazer isso.

- No fim, os dois contaram e quando terminaram eu estava tão furiosa e apavorada que tive vontade de arrancar os cabelos pela raiz. O que não conseguia engolir, por mais que tentasse, era a idéia de Carl Litchfield contar a Harold todas as coisas que achava que eram particulares. Simplesmente pegar o telefone e lhe contar, como se não houvesse nada de errado nisso.

- Então você acha que estou senil?, perguntei a Harold. É nisso que a coisa se resume?

Você e Jan acham que fiquei de miolo mole na avançada idade de sessenta e oito anos?

- Harold ficou vermelho e começou a arrastar os pés debaixo da cadeira e a resmungar.

Disse que não pensava tal coisa, mas tinha que levar em consideração a minha segurança, da mesma maneira que eu sempre levara a sua quando ele ainda não era adulto. E o tempo todo

Janet ficou sentada à mesa, mordiscando um bolinho e fazendo uma cara para ele que me dava vontade de matá-la: como se o considerasse apenas uma barata que aprendera a falar como advogado. Então ela se levantou e perguntou se podia "usar o toalete". Respondi-lhe que não fizesse cerimônia e consegui refrear a vontade de dizer que seria um alívio tê-la fora da cozinha por dois minutos.

- "Obrigada, mãe Lois", ela disse. "Não me demoro. Harry e eu teremos que ir andando daqui a pouco. Se você acha que não pode nos acompanhar e cumprir o seu compromisso, então acho que não há mais nada a dizer."

- Que amoreco - Ralph comentou.

- Bem, aquilo foi a gota d'água para mim; já aturara o bastante. Cumpro os meus compromissos, Janet Chasse, falei, mas só os que eu mesma marco. Estou me cagando para os compromissos que marcam para mim.

- Ela abanou as mãos como se eu fosse a mulher mais irracional que já pisou a face da terra e me largou sozinha com o Harold. Ele me contemplava com aqueles grandes olhos castanhos, como se esperasse o meu pedido de desculpas. E quase senti que devia me desculpar, ainda que fosse apenas para apagar aquela expressão de cocker spaniel do rosto dele, mas não me desculpei. Eu não faria isso. Encarei-o de volta e, passado algum tempo, ele não conseguiu agüentar mais e me disse para eu me acalmar. Disse que só estava preocupado comigo aqui sozinha, que só estava tentando ser um bom filho e Janet só estava tentando ser uma boa filha.

- Creio que compreendo isso, falei, mas você devia saber que fazer as coisas pelas costas de alguém não é bem uma maneira de expressar amor e interesse. Ele se empertigou todo, e respondeu que ele e Jan não achavam que tivessem feito nada pelas costas. Olhou na direção do banheiro por uns dois segundos quando disse isso, e fiquei com a idéia de que o que ele queria mesmo dizer é que Jan não achava que tivessem feito nada pelas costas. Então falou que as coisas não tinham se passado como eu estava pensando: que Litchfield ligara para ele e não o contrário.

- Muito bem, respondi, mas o que foi que o impediu de desligar quando percebeu qual era o assunto que ele queria abordar? Isso foi absolutamente errado, Harry. Que foi que deu em você?

- Ele começou a ficar nervoso e inquieto, acho que poderia até estar começando a pedir desculpas, quando Jan voltou e você sabe o que bateu no ventilador. Ela me perguntou onde estavam os meus brincos de brilhantes, os que tinham me dado pelo Natal. Foi uma tal reviravolta que, a princípio, só consegui balbuciar, e suponho que dei a impressão de estar ficando senil. Mas finalmente consegui dizer que os brincos estavam na tigelinha de porcelana chinesa na cômoda do meu quarto, como sempre. Tenho uma caixa de jóias, mas guardo esses brincos e outras duas ou três jóias boas fora, porque são tão bonitas que sempre me alegro só de olhar para elas. Além do mais, os brincos são feitos de caquinhos de brilhante e é pouco provável que alguém fosse querer assaltar a casa só para roubá-/os. O mesmo acontece com o meu anel de noivado e um camafeu de marfim, que são as outras duas peças que guardo naquela tigelinha.

Lois lançou a Ralph um olhar intenso e suplicante. Ele apertou sua mão em resposta.

Ela sorriu e inspirou profundamente.

- Isto é muito duro para mim.

- Se você quiser parar...

- Não, quero terminar... só que, a partir de um certo ponto, não consigo me lembrar muito bem. Foi tudo tão horrível. Sabe, Janet disse que sabia onde eu os guardava, mas que não estavam lá. Meu anel de noivado estava, e o camafeu também, mas os brincos do Natal, não.

Fui ao quarto verificar pessoalmente e vi que tinha razão. Reviramos o quarto de cabeça para baixo, olhamos por todo lado, mas não encontramos os brincos. Tinham desaparecido.

Lois agora estava segurando as mãos de Ralph entre as suas, e parecia falar principalmente para o zíper de seu blusão.

- Tiramos todas as roupas da cômoda... Harold afastou-a da parede e olhou atrás... debaixo da cama e nas almofadas do sofá... e parecia que todas as vezes que eu olhava para Janet, ela me encarava de volta, com aquela expressão doce, com aqueles olhos arregalados muito dela. Doce como manteiga derretida, exceto os olhos, e ela não precisava falar francamente o que estava pensando porque eu já sabia. Está vendo? Está vendo como o Dr. Litchfield fez bem em nos ligar, e como fizemos bem em marcar aquela visita? E como você está sendo teimosa? Porque você precisa ir para um lugar como Riverview Estates, e a prova está aí.

Você perdeu os lindos brincos que lhe demos de Natal, você está sofrendo um sério declínio em sua cognição e a prova está aí. Não demora muito, você vai deixar os bicos do fogão acesos... ou o aquecedor do banheiro...

Ela começou a chorar novamente, e estas lágrimas doeram no coração de Ralph - eram soluços profundos e catárticos de alguém que fora humilhada no fundo da alma. Lois escondeu o rosto no blusão dele. Ele abraçou-a com mais força. Lois, pensou. Nossa Lois.

Mas, não; não gostava mais do tom dessa frase, se é que algum dia gostara.

Minha Lois, pensou, e naquele instante, como se algum poder maior tivesse dado sua aprovação, o dia começou a se encher de luz novamente. Os sons adquiriram uma nova ressonância. Ele olhou para suas mãos e as de Lois, entrelaçadas no colo dela, e viu uma linda nuvem azul-cinzenta envolvendoas, cor de fumaça de cigarro. As auras tinham retornado.

- VOCÊ DEVERIA ter mandado os dois embora no minuto em que percebeu que os brincos tinham desaparecido - ele se ouviu dizendo, e cada palavra era destacada e maravilhosamente única, como uma trovoada de cristal. - No mesmo segundo.

- Ah, agora sei disso - falou Lois. - Ela estava só esperando que eu metesse os pés pelas mãos, e naturalmente lhe fiz esse favor. Mas estava tão perturbada: primeiro a discussão se ia ou não com eles a Bangor visitar o Riverview Estates, depois a revelação de que o meu médico contara coisas que não tinha o direito de contar, e ainda por cima a descoberta de que perdera um dos objetos que mais prezo. E você sabe qual foi o máximo? Ter sido ela quem descobriu que os brincos sumiram! Você pode me culpar por não saber o que fazer?

- Não - ele respondeu, levando as mãos enluvadas de Lois à boca. O som das luvas cortando o ar parecia o sussurro áspero de uma palma roçando um cobertor de lã e, por um momento, ele viu claramente a forma de seus lábios, impressa nas costas da luva direita, num beijo azul.

- Obrigada, Ralph. - Lois agradeceu.

- O prazer foi meu.

- "Suponho que você tenha uma boa idéia de como as coisas aconteceram, não tem?", Jan falou. "Você realmente devia se cuidar melhor, mãe Lois, só que o Dr. Litchfield diz que chegou o momento em sua vida em que você realmente não consegue se cuidar melhor, e é por isso que pensamos em Riverview Estates. Desculpe se deixamos você de cabelo em pé, mas parecia importante agir depressa. Agora você vê o porquê."

Ralph ergueu os olhos. No alto, o céu era uma catarata de fogo azul-verde cheio de nuvens que lembravam aerobarcos de cromo. Olhou morro abaixo e viu Rosalie ainda deitada entre os banheiros. O fio de balão cinza-escuro, que saía de seu focinho, balançava à brisa fresca de outubro.

- Então, fiquei realmente furiosa... - Lois fez uma pausa e sorriu. Ralph achou que era o seu primeiro sorriso naquele dia em que a via expressar realmente bom humor ao invés de outra emoção menos agradável ou mais complicada. - Não, não foi bem assim. Fiquei muito mais do que furiosa. Se o meu sobrinho-neto estivesse presente, ele teria dito que vovó ficou explosiva.

Ralph riu e Lois o acompanhou, mas seu riso pareceu um pouquinho forçado.

- O que me exaspera é que Janet sabia que eu ia me enfurecer. Acho que ela queria mesmo que eu ficasse explosiva, porque sabia que mais tarde ia me sentir muito culpada. E Deus sabe que estou me sentindo assim. Gritei que eles sumissem dali. Harold tinha o ar de quem queria se enfiar pelo chão a dentro, os gritos sempre o deixaram muito constrangido, mas Jan simplesmente continuou sentada ali com as mãos cruzadas no colo, sorrindo e até acenando com a cabeça, como se dissesse. "Muito bem, mãe Lois, bote para quebrar e elimine todo esse veneno antigo do seu corpo, quando acabar, talvez esteja disposta a ouvir a voz da razão."

Lois inspirou profundamente.

- Então aconteceu uma coisa. Não tenho bem certeza do que foi. E também não foi a primeira vez, mas foi a pior. Receio que tenha sido uma espécie de... bem... uma espécie de acesso. Em todo o caso, comecei a ver Janet de um jeito muito engraçado... um jeito realmente assustador. E disse alguma coisa que realmente a atingiu. Não me lembro do que foi, e nem tenho certeza se quero me lembrar, mas não resta dúvida que riscou aquele sorriso meloso, que odeio tanto, de seu rosto. Na verdade, ela quase arrastou Harold para fora. A última coisa que me lembro de a ouvir dizer é que um deles me ligaria quando eu estivesse menos histérica e capaz de refrear acusações tão feias a pessoas que me amavam.

- Continuei em casa mais um pouco depois que eles foram embora, e então saí e vim me sentar aqui no parque. Às vezes basta sentar ao sol e meu corpo já se sente melhor. Parei no mercadinho para fazer um lanche e foi então que ouvi dizer que você e Bill tinham brigado.

Você e ele realmente cortaram relações?

Ralph sacudiu a cabeça.

- Não... depois fazemos as pazes. Gosto do Bill de verdade, mas...

- ... mas é preciso ter cuidado com o que se diz a ele - ela terminou. - E também, Ralph, posso acrescentar que não se pode tomar as respostas dele muito seriamente?

Desta vez foi Ralph quem apertou as mãos entrelaçadas de Lois.

- É um bom conselho para você também, Lois: não devia levar muito a sério o que aconteceu hoje de manhã.

Ela suspirou.

- Talvez, mas é difícil não levar. No fim, disse coisas terríveis, Ralph. Terríveis. Aquele sorriso irritante dela...

Um arco-íris de compreensão repentinamente iluminou a consciência de Ralph. Nessa luz, ele viu uma coisa muito grande, tão grande que pareceu ao mesmo tempo inquestionável e predestinada. Ele olhou diretamente no rosto de Lois pela primeira vez desde que as auras tinham retornado... ou desde que ele retornara para as auras. Uma cápsula de luz cinzenta e translúcida, ofuscante como a névoa nas manhãs de verão quando está prestes a clarear, envolvia Lois. E transformava a mulher que Bill McGovern chamava de "Nossa Lois" numa criatura de grande dignidade... e de beleza quase insuportável.

Ela parece Eos, pensou. A deusa da alvorada.

Lois mexeu-se constrangida no banco.

- Ralph? Por que está me olhando assim?

Porque você é linda, e porque me apaixonei por você, Ralph pensou, admirado. Neste instante estou tão apaixonado por você que tenho a sensação de estar-me afogando e que é ótimo morrer.

- Porque você se lembra exatamente do que disse.

Ela recomeçou a brincar nervosamente com o fecho da bolsa.

- Não, eu...

- Lembra, sim.. Você disse à sua nora que foi ela que tirou os brincos. E fez isso porque percebeu que você ia resistir com todas as forças à idéia de acompanhá-los, e uma coisa que deixa sua nora doida é ser contrariada quando quer alguma coisa... deixa-a explosiva. Fez isso porque você a deixou pau da vida. Não foi assim?

Lois estava olhando para ele com os olhos muito abertos e amedrontados.

- Como é que você sabe disso, Ralph? Como é que você sabe como a minha nora é?

- Sei porque você sabe, e você sabe porque viu.

- Ah, não - sussurrou. - Não, não vi nada. Estive na cozinha com o Harold o tempo todo.

- Não na hora, não quando ela tirou os brincos, mas quando ela voltou. Você viu nela e a toda sua volta.

Da mesma forma que ele agora via a esposa de Harold Chasse em Lois, como se a mulher sentada ao seu lado no banco tivesse se transformado numa lente. Janet Chasse era alta, clara, de tronco longo. Seu rosto era salpicado de sardas que ela disfarçava com maquilagem, e seus cabelos eram um tom de vermelho-vivo como gengibre. Esta manhã ela viera a Derry com aqueles cabelos fabulosos caídos sobre um ombro numa grossa trança, como um feixe de fios de cobre. Que mais ele sabia sobre essa mulher que nunca vira?

Tudo, tudo.

Ela cobre as sardas com pancake porque acha que elas a fazem parecer infantil; que as pessoas não levam as mulheres sardentas muito a sério. Tem pernas lindas e sabe disso.

Usa saias curtas para ir trabalhar, mas hoje quando veio ver (a velha bruxa)

mãe Lois, vestia um casaquinho e um velho par de calças jeans. Roupa para Derry. Sua menstruação estava atrasada. E ela já chegou àquela idade em que a menstruação não ocorre mais regular e pontualmente e durante esse inquietante atraso de dois ou três dias que ela sofre mensalmente, uma pausa em que o mundo inteiro parece feito de vidro e todos que nele vivem parecem burros ou malvados, seu comportamento e seus humores tornam-se instáveis. Provavelmente foi por isso que fez o que fez.

Ralph viu-a saindo do banheirinho de Lois. Viu-a lançar um olhar intenso e furioso em direção à cozinha - agora não há sinal daquele sorriso meloso em seu rosto fino e intenso

- e então ela retira os brincos da tigelinha de porcelana. Viu-a metê-los no bolso dianteiro dos jeans, do lado esquerdo.

Não, Lois na realidade não presenciara o pequeno furto vergonhoso, mas ele alterara a cor da aura de Jan Chasse de verde-claro para uma intrincado desenho de camadas castanhas e vermelhas que Lois vira e compreendera na hora, provavelmente sem ter a menor idéia do que estava realmente ocorrendo.

- Foi ela mesma quem tirou os brincos - disse Ralph. Ele via uma névoa cinzenta passar lentamente pelas pupilas dos olhos arregalados de Lois. Seria capaz de fitá-los o resto do dia.

- Sei, mas...

- Se você afinal tivesse concordado em fazer a visita a Riverview States, aposto como você os teria achado numa próxima visita dos dois... ou então ela, o que acho mais provável. Um feliz acaso: "Ah, mãe Lois, venha ver o que achei!" Debaixo da pia do banheiro, ou num armário, ou caído em algum canto escuro.

- É-encarava-o agora, fascinada, quase hipnotizada. - Ela deve estar se sentindo péssima...e não vai ter coragem de traze-los de volta, vai? Não depois das coisas que eu disse. Ralph, como é que você soube?

- Do mesmo jeito que você. Há quanto tempo você está vendo auras, Lois?

- AURAS? Não estou entendendo. - Só que entendia, sim.

- Litchfield falou a seu filho sobre a insónia, mas duvido que só isso fosse suficiente para fazer mesmo o Litchfield... sabe, dar com a língua nos dentes. A outra coisa, o que você disse que ele chamou de problemas sensoriais, na hora me passou despercebida. Acho que fiquei espantado demais com a idéia de alguém pensar que você pudesse estar prematuramente senil, embora eu próprio ande tendo os meus problemas sensoriais nos últimos tempos.

- Você!

- Sim, senhora. Então há uns minutinhos você disse outra coisa ainda mais interessante.

Você disse que começou a ver Janet de um jeito realmente estranho. De um jeito realmente apavorante. Você não conseguia se lembrar do que dissera pouco antes dos dois irem embora, mas sabia exatamente o que sentira. Você está vendo o outro lado do mundo, o resto do mundo. Formas em torno das coisas, formas dentro das coisas, sons dentro dos sons. Chamo isto de mundo das auras e é o que você está vivendo. Não é, Lois?

Ela observou-o silenciosa por um momento, então cobriu o rosto com as mãos.

- Pensei que estivesse perdendo a razão-disse e repetiu: - Ah, Ralph, pensei que estivesse perdendo a razão.

ELE ABRAÇOU-A, depois soltou-a e ergueu seu queixo.

- Chega de lágrimas - falou. - Não trouxe lenço de reserva.

- Chega de lágrimas - ela concordou, mas seus olhos já estavam outra vez marejados. Ralph, se você soubesse como tem sido horrível...

- Eu sei como é.

- É... você sabe, não é mesmo? - Ela sorriu radiante.

- O que fez aquele idiota do Litchfield concluir que você estava ficando senil, ele provavelmente pensou no mal de Alzheimer, não foi apenas a insónia, mas a insónia acompanhada de algo mais... algo que ele concluiu serem alucinações. Certo?

- Acho que sim, mas à época ele não disse nada disso para mim. Quando lhe contei as coisas que andava vendo, as cores e todo o resto, ele pareceu muito compreensivo.

- Hum-hum, e no minuto em que você saiu pela porta ele ligou para seu filho e disse que viesse correndo para Derry fazer alguma coisa com sua velha mãe, que tinha começado a ver gente andando dentro de invólucros coloridos com longos fios de balão flutuando no alto da cabeça.

- Você também vê isso? Ralph, você também vê isso?

- Também vejo - ele disse, e soltou uma gargalhada. O som foi meio amalucado, mas isso não o surpreendeu. Tinha mil coisas que queria lhe perguntar; sentia-se louco de impaciência. E havia outra coisa, outra coisa tão inesperada que ele não conseguira identificar a princípio: ele estava sentindo tesão. Não era excitação; era tesão mesmo.

Lois recomeçara a chorar. Suas lágrimas tinham a cor da névoa em um lago tranqüilo e fumegavam um pouquinho ao escorrerem por suas faces. Ralph sabia que teriam um gosto escuro e musgoso, como brotos de samambaia na primavera.

- Ralph... isto... isto é... nossa.

- Maior do que Michael Jackson no estádio Super Bowl, não é?

Ela riu discretamente.

- Bem, só... sabe, só um pouco.

- Tem um nome para o que está acontecendo conosco, Lois, e não é insónia, nem senilidade, nem mal de Alzheimer. E hiper-realidade.

- Hiper-realidade-ela murmurou.-Deus, que palavra exótica!

- É mesmo. Um farmacêutico da Rite Aid, Joe Wyzer, foi quem a usou. Só que há muito mais coisas além do que ele sabia. Mais do que qualquer pessoa em perfeito juízo poderia imaginar.

- É, como na telepatia... isto é, se realmente está acontecendo. Ralph nós estamos com o juízo perfeito?

- A sua nora tirou os seus brincos?

- Eu... ela... tirou. - Lois se endireitou. - Tirou, sim.

- Não há dúvidas?

- Não.

- Então você já respondeu à sua pergunta. Estamos mentalmente sãos, sim... mas eu acho que você está enganada sobre a parte da telepatia. Não lemos pensamentos, lemos auras.

Olhe, Lois, tem uma porção de coisas que quero perguntar a você, mas tenho a impressão de que neste momento só preciso realmente saber uma coisa. Você já viu... - ele parou abruptamente, perguntando-se se realmente queria dizer o que estava na ponta da língua.

- Se já vi o quê?

- Tudo bem. Isto vai parecer mais maluco do que qualquer coisa que você tenha me contado, mas eu não estou maluco. Você acredita em mim? Não estou.

- Acredito em você-ela disse com simplicidade e Ralph sentiu sair um enorme peso de seu coração. Ela dizia a verdade. Não restava dúvida; sua crença brilhava ao seu redor.

- Então, ouça. Desde que isto começou a acontecer, você tem visto certas pessoas que dão a impressão de não fazer parte da Avenida Harris? Pessoas que dão a impressão de não fazer parte de nenhum lugar no mundo normal?

Lois olhava-o intrigada, sem compreender.

- São carecas, baixos, usam aventais brancos e se parecem muito com desenhos de alienígenas que às vezes saem publicados nas primeiras páginas desses tablóides que vendem no mercadinho. Você não viu ninguém assim durante os seus acessos de hiper-realidade?

- Não, ninguém.

'Ele bateu o punho na perna, frustrado, pensou por um momento, depois ergueu a cabeça.

- Na segunda-feira de manhã - disse. - Antes dos tiras aparecerem na casa da Sra. Locher... você me viu?

Muito devagarinho, Lois concordou com a cabeça. Sua aura escurecera ligeiramente e espirais vermelhas, finas como fios de linha, começaram a subir por ela numa lenta diagonal.

- Imagino que você tenha uma boa idéia de quem chamou a polícia, então - falou Ralph.

- Não tem?

- Ah, sei que foi você - Lois falou baixinho. - Já suspeitava antes, mas só tive certeza agora há pouco. Quando vi... sabe, nas suas cores.

Nas minhas cores, ele pensou. Era o nome que Ed também usava.

- Mas você não viu dois baixinhos carecas saírem da casa?

- Não - ela respondeu - mas isto não quer dizer nada. Da janela do meu quarto sequer vejo a casa da Sra. Locher. O telhado do mercadinho não deixa.

Ralph cruzou as mãos no alto da cabeça. Claro que não, e ele deveria saber.

- A razão por que pensei que você chamou a polícia é que pouco antes de ir tomar banho, vi você olhando alguma coisa com binóculos. Nunca vi você fazer isso antes, mas pensei que talvez quisesse dar uma boa espiada naquele vira-la tá que pilha as latas de lixo nas quintas de manhã. - Ela apontou morro abaixo. - Ele.

- Não é um ele, é a adorável Rosalie - Ralph riu.

- Ah. Em todo o caso, tomei um banho demorado, porque uso uma rinçagem especial no cabelo. Não é tinta - disse secamente, como se ele a tivesse acusado de tal artifício - são proteínas e ingredientes que aparentemente deixam o cabelo mais encorpado. Quando saí, a polícia estava por toda a rua. Olhei para sua casa, mas não consegui mais vê-lo. Ou você tinha ido para outro cómodo ou se enterrara na poltrona. Você faz isso às vezes.

Ralph sacudiu a cabeça como se quisesse clareá-la. Afinal ele não estivera em um teatro vazio todas aquelas noites, mais alguém estivera lá. Tinham ocupado camarotes separados.

- Lois, a briga que Bill e eu tivemos não foi realmente por causa do xadrez. Foi...

No pé do morro, Rosalie soltou um latido rouco e começou a se levantar. Ralph olhou naquela direção e sentiu um pingente de gelo escorregar em sua barriga. Embora os dois estivessem sentados ali há quase meia hora e ninguém tivesse sequer se aproximado dos banheiros, a porta de plástico prensado marcada HOMENS agora se abria lentamente.

Dela saiu o Dr. n23. Trazia o chapéu de McGovern, o panamá com uma meia-lua arrancada da aba a dentadas, encaixado na parte de trás da cabeça, o que o fazia se parecer curiosamente com McGovern no dia em que Ralph o vira pela primeira vez com o chapéu marrom de feltro: um repórter xereta de seção policial num filme dos anos quarenta.

Na mão erguida o estranho careca segurava o bisturi enferrujado.

 

- LOIS? - Aos ouvidos de Ralph, sua voz pareceu um eco refletindo-se por um desfiladeiro longo e profundo.-Lois, você está vendo aquilo?

- Não... - sua voz quebrou. - Foi o vento que abriu a porta daquele banheiro? Não foi, não é mesmo? Tem alguém ali? É por isso que o cachorro está latindo tanto?

Rosalie recuou lentamente se afastando do careca, as orelhas esfiapadas repuxadas para trás, o focinho enrugado deixando à mostra dentes corroídos tão ameaçadores quanto pinos de borracha. Ela disparou uma saraivada de latidos esganiçados, então começou a ganir desesperadamente.

- Você não está vendo, Lois? Olhe! Ele está bem ali! Ralph se levantou, Lois se levantou também, sombreando os olhos com a mão. Espreitou a descida do morro com desesperada intensidade.

- Vejo uma luz trémula, é só. Como o ar que sai de um incinerador.

- Eu lhe disse para deixar a cachorra em paz! - Ralph gritou para baixo. - Pára com isso. Se manda daqui!

O careca voltou-se na direcção de Ralph, mas desta vez não houve surpresa em seu olhar; foi displicente, sumário. Ele ergueu o dedo médio da mão direita, mostrou-o a Ralph naquela saudação consagrada e arreganhou os dentes - muito mais afiados e muito mais ameaçadores do que os de Rosalie-numa risada silenciosa.

Rosalie se encolheu quando o homenzinho de avental sujo recomeçou a andar em sua direcção e chegou a cobrir a cabeça com uma pata num gesto que, em um desenho animado, teria sido engraçado mas ali expressava pavorosamente o seu terror. -Que é que não estou enxergando, Ralph?-Lois gemeu. - Estou vendo alguma coisa, mas...

- [Fique LONGE dela!] - Ralph gritou e ergueu a mão naquele gesto de caraté.

Interiormente, porém, a mão que antes produzira a cunha de luz azul e densa continuava a dar a impressão de uma arma descarregada, e desta vez o doutorzinho careca parecia saber.

Olhou na direcção de Ralph e fez um pequeno aceno zombeteiro.

[Ah, corta essa, Coroa: senta, cala a boca e curte o espectáculo.]

A criatura na base do morro voltou as atenções para Rosalie, que se agachara junto a um velho pinheiro. A árvore deixava escapar uma ténue névoa verde pelas rachaduras em sua casca. O doutor careca curvou-se para Rosalie, a mão direita estendida num gesto de solicitude que não combinava nem um pouco com o bisturi seguro pela mão esquerda.

Rosalie ganiu... então esticou o pescoço para a frente e humildemente lambeu a palma da mão da criatura careca.

Ralph olhou para as próprias mãos, sentindo alguma coisa nelas, não o poder que tivera antes, nada parecido, mas alguma coisa. De repente viu ondas de luz branca dançando pouco acima de suas unhas. Era como se seus dedos tivessem se transformado em velas de ignição.

Lois agarrava-o aflita agora.

- Que está acontecendo com a cachorra? Ralph, que está acontecendo com ela?

Sem pensar no que fazia ou por que o fazia, Ralph cobriu os olhos de Lois com a mão, como alguém brincando de adivinhação com um amigo querido. Seus dedos emitiram uma luz momentaneamente tão branca e luminosa que chegava a cegar. Deve ser o tal branco de que estão sempre falando nos comerciais de detergente, pensou.

Lois gritou. Suas mãos voaram para os pulsos de Ralph, fecharam-se em torno deles e em seguida afrouxaram.

- Meu Deus, Ralph, que foi que você fez comigo?

Ele retirou as mãos e viu a forma de um oito luminoso delineando os olhos de Lois; era como se ela tivesse acabado de tirar um par de óculos de protecção previamente mergulhados em açúcar de confeiteiro. O branco começou a esmaecer quase no mesmo momento em que ele afastou as mãos... só que... Não está desbotando, pensou ele. Está afundando no rosto.

- Não se preocupe - ele disse e apontou. - Olha!. Seus olhos esbugalhados confirmaram o que ele queria saber. O Dr. N-5, indiferente ao esforço desesperado de Rosalie para fazer amizade, empurrou seu focinho para o lado com a mão que segurava o bisturi. Agarrou o velho lenço que envolvia seu pescoço com a outra mão e ergueu com violência a cabeça de Rosalie. A cachorra uivou infeliz. A baba escorreu pelos lados de seu focinho. O careca deu uma risada escabrosa que provocou arrepios em Ralph.

[Eu Pare com isso! Pare de maltratar o cachorro!]

A cabeça do careca se virou imediatamente. O sorriso desapareceu de seu rosto e ele rosnou para Lois, um som quase canino.

[Ora vásefoder, sua babaca Pé-na-Cova! O cachorro é meu, já disse isso pró seu namoradinho broxa!]

O careca largou o lenço azul ao ouvir o grito de Lois, e Rosalie agora se encolhia de novo de encontro ao pinheiro, os olhos girando, coalhos de espuma caindo pelos lados do focinho. Ralph nunca vira um bicho tão completamente aterrorizado na vida.

- Corra! - Ralph berrou. - Fuja!

Ela parecia não escutá-lo e, passado um momento, Ralph percebeu que ela não estava escutando mesmo, porque Rosalie não se encontrava mais inteiramente ali. O doutor careca lhe fizera alguma coisa - arrancara-a parcialmente da realidade normal como um fazendeiro que usasse um tractor e uma corrente para arrancar um toco de árvore do chão.

Mesmo assim, Ralph experimentou outra vez.

[Corra, Rosalie! Fuja!]

Desta vez suas orelhas repuxadas espetaram-se para a frente e a cabeça começou a girar na direcção de Ralph. Ele não sabia se a cachorra iria ou não lhe obedecer, porque o careca tornou a segurá-la pelo lenço, antes que ela sequer começasse a se mexer. Tornou a levantar a cabeça da cachorra.

- Ele vai matá-la! - Lois gritou. - Ele vai cortar o pescoço dela com aquela coisa que tem na mão! Não deixe, Ralph! Faça ele parar!

- Não posso! Talvez você possa! Atire nele! Aponte sua mão para ele!

Ela olhou-o sem compreender. Ralph fez gestos frenéticos de quem corta com o lado da mão direita, mas, antes que Lois pudesse reagir, Rosalie soltou um último uivo pavoroso. O doutor careca ergueu o bisturi e baixou-o, mas não foi o pescoço de Rosalie que ele cortou.

Cortou o seu fio de balão.

UM FIO saiu de cada narina de Rosalie e flutuou para o alto.

Entrelaçaram-se a uns quinze centímetros acima de seu focinho, formando uma delicada trancinha, e foi neste ponto que o Carequinha n23 fez o corte. Ralph observou, paralisado de terror, a trancinha seccionada subir toda a vida como o barbante de um balão de hélio solto no ar, E ia se desfazendo à medida que subia. Ele achou que os fios da trança se embaraçariam nos galhos do velho pinheiro, mas isso não ocorreu. Quando o fio de balão ascendente finalmente encontrou um dos galhos, atravessou-o simplesmente.

É claro, pensou Ralph. Do mesmo jeito que os coleguinhas desse cara atravessaram a porta trancada de May Lacher, quando terminaram de fazer o mesmo com ela.

A essa imagem, seguiu-se um pensamento demasiado simples e macabramente lógico para não merecer crédito: eles não eram alienígenas espaciais, nem doutorezinhos carecas, eram Centuriões. Os Centuriões de Ed Deepneau. É verdade que não se pareciam nada com aqueles soldados romanos que usavam saiotes de lata em épicos como Espdrtaco e Bem Hur, mas tinham que ser Centuriões... não?

A uns seis metros do chão, o fio de Rosalie simplesmente dissolveu-se no ar.

Ralph olhou para baixo em tempo de ver o anão careca retirar o lenço azul desbotado pela cabeça da cachorra e em seguida empurrá-la contra a árvore. Ralph olhou-a com maior atenção e sentiu a pele se retrair contra os ossos. Seu sonho com Carolyn voltou com cruel intensidade, e ele se viu lutando para reprimir um grito de pavor.

Muito bem, Ralph, não grite. Você não quer fazer isso porque se começar, talvez não consiga parar - é capaz de continuar gritando até a garganta estourar. Lembre-se de Lois, porque ela agora está metida nisto também. Lembre-se de Lois e não comece a gritar.

Ah, mas era difícil obedecer, porque os insetos oníricos que tinham extravasado da cabeça de Carolyn agora jorravam das narinas de Rosalie em torrentes negras e serpeantes.

Aquilo não são insectos. Não sei o que são, mas não são insectos.

Não, nada de insectos - apenas outro tipo de aura. Uma substância negra aterrorizante, nem líquida nem gasosa, escorria pulsante de Rosalie a cada expiração. Não flutuava para o alto, ao contrário começava a envolvê-la lentamente em feias espirais de antiluz. O negrume deveria ter ocultado Rosalie, mas não o fez. Ralph via seus olhos suplicantes e aterrorizados, à medida que a escuridão encobria sua cabeça e começava a deslizar pelo dorso, o flanco e as pernas.

Era um saco mortuário, um verdadeiro saco mortuário desta vez, e ele ficou observando Rosalie, agora despojada do fio de balão, ir tecendo-o em torno de si mesma como uma placenta venenosa. Essa metáfora disparou a voz de Ed Deepneau no interior de sua cabeça, Ed falando que os Centuriões estavam arrancando bebês dos úteros maternos e transportando-os em caminhões fechados.

Você algum dia se perguntou o que havia por baixo da maioria daquelas lonas? Ed perguntara.

O Dr. N-3, parado, sorria para Rosalie. Então desfez o nó do lenço da cachorra e amarrou-o no próprio pescoço, com um nó grande e frouxo, fazendo-o parecer a gravata de um artista boêmio. Depois, ergueu o rosto para Ralph e Lois com uma expressão de complacente repugnância. Pronto! seu olhar dizia. Afinal completei o meu serviço e vocês não puderam fazer droga nenhuma para me impedir, não foi?

[Faça alguma coisa, Ralph! Por favor, faça alguma coisa! Faça ele parar!]

Tarde demais para isso, mas talvez não seja tarde demais para botá-lo para correr antes que possa curtir a visão de Rosalie caindo morta ao pé da árvore. Ralph tinha certeza de que Lois não era capaz de produzir um golpe de caratê luminoso como ele, mas talvez pudesse fazer uma outra coisa.

É - pode acertá-lo a seu modo.

Não sabia por que sentia tanta segurança, mas a sensação fora instantânea. Agarrou Lois pelos ombros para que o encarasse e então levantou a mão direita. Engatilhou o polegar e apontou o indicador para o careca. Parecia um garotinho brincando de polícia e ladrão.

Lois respondeu com uma expressão de desalento e incompreensão. Ralph agarrou sua mão e descalçou a luva.

[Você! Você, Lois!]

Ela captou a idéia, ergueu a mão, esticou o indicador, e repetiu o gesto infantil de atirar: Pum! Pum!

Dois losangos compactos, de uma cor azul-cinzenta idêntica à aura de Lois, mas muito mais luminosa, voaram da ponta de seu dedo riscando o ar morro abaixo.

O Dr. N-3 soltou um grito estridente e deu um pulo, os punhos cerrados erguidos à altura dos ombros, os saltos dos sapatos batendo contra as nádegas, quando a primeira dessas "balas" passou por baixo dele. Ela bateu no chão, quicou como uma pedra chata atirada numa superfície de água e bateu no reservado marcado MULHERES. Por um instante, toda a frente refulgiu com intensidade, como acontecera com a vitrine da Buffy-Buffy.

A segunda bala cinza-azulada raspou o quadril esquerdo do carequinha e ricocheteou para o alto. Ele berrou - um som agudo e chilreante que parecia se distorcer como uma minhoca bem dentro da cabeça de Ralph. Ralph levou as mãos aos ouvidos, embora o gesto fosse inútil, e viu Lois fazer o mesmo. Tinha certeza de que se aquele grito continuasse por muito tempo, racharia sua cabeça da mesma forma que um dó agudo estilhaça um cristal de qualidade.

O Dr. N-3 caiu no chão atapetado de agulhas de pinheiro ao lado de Rosalie e rolou de um lado para outro, berrando e segurando o quadril como uma criancinha que agarrasse a parte do corpo que machucou ao cair do velocípede. Após algum tempo, seus gritos começaram a diminuir e ele se levantou. Sob a enorme testa branca, seus olhos fuzilavam os dois. O panamá de Bill agora escorregara mais para a nuca, e o lado esquerdo de seu avental estava preto e fumegante.

[Vou acabar com vocês! Vou acabar com vocês dois! Merdas de Pés-na-cova intrometidos!

VOU ACABAR COM VOCÊS DOIS!]

Deu meia-volta e disparou pelo caminho que levava aos brinquedos e às quadras de tênis, correndo aos saltos como um astronauta na lua. O tiro de Lois aparentemente não fizera nenhum estrago real, a julgar pela velocidade de sua corrida.

Lois segurou o ombro de Ralph e sacudiu-o. Ao fazê-lo, as auras começaram a desaparecer.

[As crianças! Ele está indo em direcção às crianças...]

Sua voz foi sumindo, e lhe pareceu fazer muito sentido, porque viu de repente que Lois não estava de fato falando, apenas encarava-o fixamente com seus olhos escuros enquanto lhe apertava o ombro.

- Não consigo ouvir você! - gritou. - Lois, não consigo ouvir!

- Que foi que houve, ficou surdo? Ele está indo para os brinquedos! Em direcção às crianças! Não podemos deixar ele fazer mal às crianças!

Ralph deixou escapar um suspiro profundo e trémulo.

- Ele não vai fazer nada.

- Como pode ter certeza?

- Não sei. Apenas tenho.

- Eu atirei nele-ela virou o dedo para o rosto, parecendo por instantes uma mulher imitando o gesto de um suicida. - Atirei nele com o meu dedo.

- Hum-hum. E acertou. Pra valer, pelo jeito.

- Não estou vendo mais as cores, Ralph. Ele concordou com a cabeça.

- Elas vêm e vão, como as estações de rádio à noite.

- Não sei como estou me sentindo... Nem mesmo sei como quero me sentir! - disse a última frase num lamento e Ralph envolveu-a em seus braços. Apesar de tudo que andava ocorrendo em sua vida presentemente, havia um fato muito claro: era maravilhoso abraçar uma mulher outra vez.

- Não faz mal - disse-lhe, e apertou o rosto contra a cabeça de Lois. Seus cabelos cheiravam bem, sem os vestígios dos produtos de beleza de salão que se acostumara a sentir nos cabelos de Carolyn nos últimos dez ou quinze anos de vida comum. - Esqueça isso por ora, está bem?

Lois o fitava. Ele já não via a névoa ténue que perpassava suas pupilas, mas tinha certeza de que continuava ali. Além disso, seus olhos eram muito bonitos, mesmo sem aquele atrativo adicional.

- Para que serve, Ralph? Sabe para que serve?

Ele sacudiu a cabeça. Em sua mente, giravam peças de quebra-cabeças - chapéus, doutores, insetos, cartazes de protesto, bonecas que estouravam esparramando sangue falso - que não queriam se encaixar. E, por ora, pelo menos, o que parecia recorrer com maior ressonância era a frase absurda do velho Dor: O-feito-não-pode-ser-desfeito.

Ralph tinha a impressão de que isso era pura verdade.

UM GANIDINHO triste chegou aos seus ouvidos e Ralph olhou para o pé do morro.

Rosalie jazia junto ao grande pinheiro, tentando se levantar. Ralph já não via o saco preto que a envolvia, mas tinha certeza de que continuava ali.

- Ah, Ralph, coitadinha! Que podemos fazer?

Não havia nada que pudessem fazer. Ralph tinha certeza. Segurou a mão direita de Lois nas suas e aguardou Rosalie deitar e morrer.

No entanto, ela deu uma guinada no corpo com tal força que a pôs de pé e quase a derruba para o lado oposto. Ficou imóvel por um momento, a cabeça tão baixa que o focinho quase encostava no chão, e então espirrou três ou quatro vezes. Feito isso, sacudiu-se e levantou os olhos para Ralph e Lois. Latiu para eles uma vez, um som curto e forte. Parecia estar dizendo a Ralph que parassem de se preocupar. Então virou as costas e enveredou por um maciço de pinheiros rumo à entrada inferior do parque. Antes de Ralph a perder de vista, ela já readquiria o trote manco e displicente que era sua marca. A perna aleijada não parecia melhor depois da intervenção do Dr. N-5, mas tampouco parecia pior. Visivelmente velha, mas ainda muito distante do fim (como o resto dos Velhos Coroas da Avenida Harris, pensou Ralph), ela desapareceu por entre as árvores.

- Pensei que aquela coisa ia matá-la - comentou Lois. De fato, pensei que a matara.

- Eu também - falou Ralph.

- Ralph, isso tudo aconteceu de verdade? Aconteceu, não foi?

- Aconteceu.

- Os fios de balão... você acha que são linhas de vida? Ele concordou lentamente com a cabeça.

- São. Como cordões umbilicais. E Rosalie... Relembrou sua primeira experiência verdadeira com as auras, parado na porta da Rite Aid de costas para a caixa de correio, de queixo caído quase até o peito. Das sessenta ou setenta pessoas que observara antes de desaparecerem as auras, apenas umas poucas estavam andando dentro das capas escuras que ele agora comparava a sacos mortuários, e o que Rosalie tecera à própria volta, há pouco, fora o mais escuro que já vira até aquele dia. Contudo, as pessoas no estacionamento que tinham auras escuras invariavelmente pareciam doentes... como Rosalie, cuja aura era da cor de meias de esporte encardidas, antes mesmo de o Carequinha n-5 começar a importuná-la.

Talvez ele tenha apenas acelerado um processo perfeitamente natural, Ralph pensou.

- Ralph? - Lois perguntou. - E a Rosalie?

- Acho que minha velha amiga Rosalie está vivendo uma prorrogação agora.

Lois reflectiu, olhando para o pé do morro e para a moita empoeirada de sol em que Rosalie desaparecera. Finalmente virou-se para Ralph.

- Aquele anão com o bisturi foi um dos homens que você viu saindo da casa de May

Locher, não foi?

- Não. Aqueles eram outros dois.

- Você já viu mais? - Não.

- Você acha que há mais?

- Não sei.

Ele teve a impressão de que em seguida Lois ia lhe perguntar se a criatura estava usando o panamá de Bill, mas ela não perguntou. Ralph supôs que talvez ela não o tivesse reconhecido. Mil coisas estranhas girando à sua volta e, além do mais, não faltava um pedaço arrancado a dentadas da última vez que vira Bill usando o chapéu. Professores de história aposentados não são gente de morder chapéus, ele reflectiu sorrindo.

- Foi uma manhã e tanto, Ralph - Lois encarou-o fixamente, nos olhos.-Acho que temos de conversar, não? Preciso realmente saber o que está acontecendo.

Ralph lembrou-se de que naquela mesma manhã-há mil anos - descera a avenida ao deixar a área de piqueniques, repassara seu pequeno rol de conhecidos e tentara resolver com quem conversar. Eliminara Lois dessa lista mental porque poderia fofocar com as amigas, e agora se sentia constrangido por seu julgamento precipitado, que se baseara mais na imagem que McGovern fazia de Lois do que na sua. Afinal a única pessoa a quem Lois falara das auras antes tinha sido a única pessoa que se esperava que fosse capaz de guardar o seu segredo.

Ele concordou com a cabeça.

- Você tem razão. Precisamos conversar.

- Quer voltar à minha casa para um almocinho tardio? Sei preparar um viradinho bárbaro para uma velhota que não consegue lembrar onde largou os brincos.

- Seria um prazer. Vou-lhe contar o que sei, mas vai levar algum tempo. Quando conversei com Bill hoje de manhã fiz apenas uma versão condensada tipo Reader's Digest.

- Então - Lois perguntou - a briga foi por causa do xadrez?

- Bem, talvez não - Ralph respondeu olhando para as mãos. - Talvez tenha sido realmente o mesmo tipo de briga que você teve com seu filho e sua nora. E eu nem cheguei a contar a ele as partes mais absurdas.

- Mas você vai me contar?

- Vou - disse, começando a se levantar. - E aposto que você é uma cozinheira fantástica. Na realidade... - parou de repente e levou uma mão ao peito. Tornou a se sentar no banco, pesadamente, os olhos arregalados e a boca aberta.

- Ralph? Você está bem?

A voz assustada parecia estar vindo de muito longe. Mentalmente ele revia o Carequinha n3, parado entre a Buffy-Buffy e o prédio de apartamentos vizinho. O Carequinha n-3

tentando obrigar Rosalie a atravessar a Avenida Harris para poder cortar seu fio de balão.

Fracassara daquela vez, mas agora realizara seu intento (Ew ia brincar com ela!)

antes mesmo de findar a manhã.

Talvez o fato de Bill não ser do tipo que come chapéu não fosse a única razão por que Lois não reparara de quem era o chapéu que o Carequinha n^3 estava usando, Ralph amigão.

Talvez não reparasse porque não quisesse reparar. Talvez tenhamos aqui algumas peças que se encaixam e, se você tiver razão, as implicações são muito amplas. Percebe isso, não?

- Ralph? Que está acontecendo?

Ele viu o anão dar uma dentada na aba do panamá e repor o chapéu na cabeça. Ouviu-o dizer que achava que a alternativa era brincar com Ralph.

Mas não apenas comigo. Comigo e com meus amigos, foi o que ele disse. Comigo e com os panacas dos meus amigos.

Agora, relembrando, viu mais uma coisa. Viu o sol produzindo reflexos de fogo nos lóbulos das orelhas do Dr. n23 quando ele - ou o coisa que ele era - abocanhou a aba do chapéu de McGovern. A lembrança era demasiado nítida para negar, bem como as implicações da cena.

As tais implicações muito amplas.

Vamos com calma - você não tem certeza de nada, e o spa para malucos fica logo ali adiante, meu amigo. Acho que precisa ter isto em mente, e até usar tal lembrança como âncora. Não me interessa se Lois também está vendo ou não todas essas coisas. Os outros homens de avental branco, não falo dos carequinhas nanicos, mas dos cavalões que andam com redes de caçar borboletas e com injeções de Thorazine, podem aparecer a qualquer minuto. Absolutamente a qualquer minuto.

Mas mesmo assim.

Mesmo asim.

- Ralph! Pelo amor de Deus, fale comigo!-Lois o sacudia agora e sacudia com força, como uma mulher tentando acordar o marido para não deixá-lo chegar atrasado ao trabalho.

Ele se virou para Lois e tentou produzir um sorriso. Sentia por dentro que era falso, mas deve ter parecido verdadeiro a Lois, porque a acalmou. Pelo menos, um pouquinho.

- Desculpe - falou. - Por alguns segundos, a coisa toda... sabe, meio que me atropelou.

- Não me apavore assim! O jeito com que pôs a mão no peito, nossa!

- Estou ótimo - disse Ralph, abrindo ainda mais o sorriso falso. Sentiu-se como um garoto que puxa uma pelota de massa para ver até onde estica sem partir. - E se você continua disposta a cozinhar, continuo disposto a comer.

Three-six-nine, hon, lhe goose drank urine.

Lois deu uma boa olhada nele e se descontraiu.

- Ótimo. Vai ser divertido. Não cozinho para ninguém a não ser Simone e Mina, minhas amigas, sabe, há muito tempo. - Deu uma risada. - Só que não é bem isso que eu quis dizer. Não é por isso que vai ser, sabe, divertido.

- Que é que você quis dizer?

- Que não cozinho para um homem há muito tempo. Espero não ter esquecido a fórmula.

- Bem, teve o dia em que Bill e eu entramos para ver o telejornal com você: comemos macarrão gratinado. E estava gostoso.

Ela fez um gesto de pouco caso.

- Requentado. Não é a mesma coisa. Themonkeychewedtobaccoon thestreetcarline.

Thelinebroke... Sorrindo mais que nunca. Antecipando o prazer.

- Tenho certeza de que não esqueceu, Lois.

- O Sr. Chasse tinha um excelente apetite. Aliás, excelente para tudo. Mas começou a ter problemas com o fígado e... - suspirou, e então buscou o braço de Ralph, segurando-o com uma mescla de timidez e decisão que ele achou absolutamente encantadora. - Mas isso não interessa mais. Estou cansada de me lamuriar e lamentar o passado. Vou deixar isso para o Bill. Vamos.

Ralph se levantou, deu o braço a ela e desceram juntos a encosta, rumando para a entrada inferior do parque. Lois sorria cegamente para as jovens mães no playground quando ela e Ralph passaram. Ralph agradeceu a distração. Assim podia dizer a si mesmo para se abster de julgar, podia lembrar a si mesmo mil vezes que não conhecia a experiência que ele e Lois estavam vivendo sequer o suficiente para se enganar que fosse capaz de reflectir logicamente sobre o assunto, mas não parava de tirar conclusões precipitadas. A conclusão parecia certa ao seu coração e tudo que já passara levava-o a crer que, no mundo das auras, sentir e saber eram praticamente idênticos.

Não conheço os outros, mas o n-5 é um paramédico maluco... e coleciona souvenirs.

Recolhe-os do mesmo jeito com que alguns malucos no Vietnã decepavam orelhas.

Ele não tinha dúvida de que a nora de Lois cedera a um impulso perverso, apanhara os brincos de brilhantes na tigelinha de porcelana e os guardara no bolso dos jeans. Mas Janet Chasse não possuía mais os brincos; agora mesmo devia estar se censurando amargamente por tê-los perdido e se questionando por que os tirara para começar.

Ralph sabia que o crustáceo com o bisturi roubara o chapéu de McGovern, mesmo que Lois não o tivesse reconhecido, e os dois tinham visto o Dr. n^3 tirar o lenço de Rosalie. O que Ralph percebera ao começar a se levantar do banco foi que aqueles reflexos de luz que vira nas orelhas do careca provavelmente significavam que roubara os brincos de Lois também.

A CADEIRA DE BALANÇO do falecido Sr. Chasse ficava sobre o linóleo desbotado junto à porta da varanda dos fundos. Lois levou Ralph até a cadeira e avisou-o para "não ficar no caminho". Ralph achou que aquela era uma ordem que poderia cumprir. Luz forte, luz de plena tarde, incidiu sobre seu colo quando ele se sentou e começou a se balançar. Ralph não sabia muito bem como entardecera tão depressa, mas era verdade. Talvez eu tenha adormecido, pensou. Talvez esteja dormindo neste exacto momento, sonhando tudo isso.

Observou Lois descer uma panela redonda (definitivamente uma miniatura) de um armário suspenso na parede. Cinco minutos depois, a cozinha começou a se encher de aromas apetitosos.

- Eu bem que disse que um dia cozinharia para você - comentou Lois, combinando verduras da gaveta da geladeira com temperos de um armário de parede. - Foi no mesmo dia em que servi as sobras de macarrão gratinado para você e o Bill. Lembra-se?

- Acho que sim - respondeu Ralph, sorrindo.

- Tem um garrafão de cidra fresca na caixa do leite na varanda da frente: a cidra sempre se conserva melhor fora de casa. Quer apanhar para mim? E pode se servir, também. Meus copos bons estão no armário em cima da pia, aquele que só consigo alcançar usando uma cadeira. Você tem altura suficiente para alcançá-lo sem cadeira, calculo. Que altura você tem, Ralph, um metro e oitenta e cinco?

- Um metro e noventa. Pelo menos tinha; devo ter perdido uns cinco centímetros nos últimos dez anos. Dizem que a coluna encolhe, ou outra coisa qualquer. E você não precisa usar a louça da família só por minha causa. Sinceramente.

Ela olhou para ele séria, as mãos nos quadris, a colher com que mexia a panela em uma das mãos. Sua severidade era atenuada por um vestígio de sorriso.

- Eu disse meus copos bons, Ralph Roberts, não disse meus melhores copos.

- Sim, senhora-ele assentiu rindo e acrescentou:-Pelo cheiro da comida, acho que você ainda sabe cozinhar para um homem.

- O pudim para ser testado tem que ser comido - Lois retrucou, mas Ralph achou que tinha uma expressão satisfeita quando voltou sua atenção para a panela.

A COMIDA estava saborosa e eles se abstiveram de conversar sobre o que acontecera no parque enquanto comiam. O apetite de Ralph se tornara instável, mais ausente que presente, desde que a insónia realmente começara a incomodar, mas hoje ele comia com vontade e acompanhou os legumes à chinesa com três copos de cidra de maçã (preocupando-se, ao virar o último copo, que as actividades do resto do dia não o deixassem muito longe de um banheiro). Quando terminaram, Lois se levantou, foi até a pia e começou a enchê-la de água quente para lavar os pratos. Enquanto fazia isso, retomou a conversa anterior, como se ela fosse uma peça de tricô quase pronta que temporariamente tivesse sido abandonada em favor de outra tarefa mais urgente.

- Que foi que você fez comigo? - ela perguntou. - Que foi que você fez para as cores voltarem?

- Não sei.

- Foi como se eu estivesse no limiar daquele mundo e, ao cobrir meus olhos com as mãos, você tivesse me empurrado para dentro dele.

Ele concordou, lembrando-se da expressão de Lois nos primeiros segundos após retirar as mãos que cobriam os olhos - como se tivesse acabado de tirar óculos de proteção cobertos de açúcar de confeiteiro.

- Foi puro instinto. E você tem razão, como se fosse um mundo. É assim que sempre penso nele, o mundo das auras.

- É maravilhoso, não acha? Quero dizer, assusta, e quando começou a me aparecer, em fins de julho, princípios de agosto, pensei que estava enlouquecendo, mas mesmo assim gostei. Não podia deixar de gostar.

Ralph observou-a, admirado. Será que um dia pensara que Lois era transparente?

Fofoqueira? Incapaz de guardar um segredo?

Não, receio que tenha sido um pouco pior que isso, companheiro. Você pensava que ela era superficial. Aliás, você a via predominantemente pelos olhos de Bill: "A nossa Lois".

Nada mais... nem nada menos.

- Que foi? - ela perguntou meio sem graça. - Por que está me olhando assim?

- Você anda vendo essas auras desde o verão? Tanto tempo assim?

- É, e cada vez mais luminosas. E mais frequentes. Foi por isso que finalmente recorri ao linguarudo. Realmente atirei naquela coisa com o meu dedo, Ralph? Quanto mais o tempo passa, menos acredito nessa parte da história.

- Atirou sim. Fiz algo parecido pouco antes de encontrar você.

Ele contou a Lois o seu confronto anterior com o Dr. n^3 e como expulsara o anão... pelo menos temporariamente. Ergueu a mão na altura do ombro e baixou-a de um golpe.

- Foi só o que fiz: como um garoto brincando de Chuck Norris ou Steven Seagal. Mas disparei aquele raio incrível de luz azul contra ele, e o anão escapuliu a toda. O que provavelmente foi o melhor, porque eu não poderia ter repetido o raio. Também não sei como fiz aquilo. Será que você poderia ter atirado com o dedo de novo?

Lois deu uma risadinha,virou-se para ele e apontou o dedo para seu lado.

- Quer descobrir? Bum! Bam!

- Não aponte essa coisa para mim, moça - Ralph disse. Sorriu ao dizê-lo, mas não tinha muita certeza de estar brincando.

Lois baixou o dedo e espirrou detergente na pia. Quando começou a mexer a água com uma mão, levantando flocos de espuma, indagou a Ralph que perguntas ele considerava as mais importantes: de onde vinha esse poder? Para que servia?

Ele sacudiu a cabeça negativamente ao mesmo tempo em que se levantava, aproximando-se do escorredor de louça.

- Não sei e não sei. Ajudei a responder alguma coisa? Onde é que você guarda os panos de prato, Lois?

- Não interessa onde guardo os meus panos de prato. Vá se sentar. Por favor, Ralph, não me diga que você é um homem moderno: desses que vivem dando abraços e gritos.

Ralph riu e balançou a cabeça.

- Não. Fui bem treinado, é só.

- Tudo bem. Desde que você não comece a falar o tempo todo da sua sensibilidade. Tem certas coisas que uma mulher gosta de descobrir sozinha. - Ela abriu o armário debaixo da pia e lhe atirou um pano de prato desbotado, mas escrupulosamente limpo. - Só enxugue os pratos e deixe-os em cima da bancada. Eu mesma guardo. Enquanto me ajuda, você podia me contar sua história, a versão completa.

- Negócio fechado.

Ele ainda estava pensando por onde começar, quando sua boca abriu, aparentemente por vontade própria e começou a falar por ele.

- Quando finalmente comecei a compreender que Carolyn ia morrer, passei a fazer grandes caminhadas. E um dia, quando eu estava na Extensão...

CONTOU-LHE tudo, desde a intervenção na briga de Ed com o gordo que usava um boné da firma de jardinagem de West Side, até a conversa que terminara com Bill lhe dizendo que seria melhor procurar um médico, porque nessa idade os distúrbios mentais eram comuns, supercomuns. Teve que voltar atrás várias vezes para retomar fios perdidos - o aparecimento do velho Dor no meio de seus esforços para impedir que Ed agredisse o homem da firma de jardinagem, por exemplo - mas não se importou de fazer isso, e Lois não pareceu ter nenhuma dificuldade em seguir sua narrativa, tampouco. A sensação geral que se apossava de Ralph, enquanto desenvolvia sua trama, era de um alívio tão profundo que chegava a doer. Era como se alguém tivesse empilhado tijolos em sua mente e no seu coração e agora ele os removesse um a um.

Quando terminou, a louça já estava guardada e os dois tinham trocado a cozinha pela sala de estar com suas dúzias de fotografias emolduradas, que o Sr. Chasse presidia de seu posto sobre a TV.

- E então? - perguntou Ralph. - Em quanto disso você acredita?

- Em tudo, naturalmente - ela falou, sem notar a expressão de alívio no rosto de Ralph ou talvez preferindo fingir que não notara. - Depois do que presenciamos esta manhã, sem falar no que você sabia sobre a minha maravilhosa nora, não dá para deixar de acreditar.

Essa é a vantagem que levo sobre Bill.

E não é a única, Ralph pensou, mas não disse.

- Nada disso é coincidência, é? - ela perguntou. Ralph abanou a cabeça.

- Não, acho que não.

- Quando tinha dezessete anos, minha mãe contratou um rapaz que morava mais adiante na mesma estrada, Richard Henderson era o nome dele, para ajudar na nossa propriedade.

Havia outros rapazes que ela podia ter contratado, mas preferiu Richie porque gostava dele... e gostava dele para mim, se é que me entende.

- Claro que entendo. Estava arranjando um casamento.

- Hum-hum, mas pelo menos não fazia isso de maneira exagerada, revoltante ou embaraçosa. Graças a Deus, porque eu não estava nem um pouco interessada em Richie, não para casar. Ainda assim, mamãe fez o possível. Se estava estudando na mesa da cozinha, ela o mandava encher o cesto de lenha, embora já fosse maio e já fizesse calor. Se estava dando comida às galinhas, ela mandava Richie cortar feno perto do jardim da entrada. Ela queria que eu o visse pela casa... que me habituasse com sua presença... e se acabássemos gostando da companhia um do outro e ele me convidasse para um baile ou para a feira municipal, ela concordaria plenamente. Era uma pressão suave, mas constante. Um empurrãozinho. Como agora.

- Essas pressões não me parecem assim tão suaves - retorquiu Ralph. E levou a mão involuntariamente ao lugar onde Charlie Pickering o furara com a ponta da faca.

- Não, claro que não. Ter um homem enfiando uma faca nas costelas deve ter sido horrível. Graças a Deus, você tinha aquela lata de aerosol. Você acha que o velho Dor vê auras também? Que alguma coisa daquele mundo o mandou pôr a lata em seu bolso?

Ralph sacudiu os ombros desanimado. A sugestão de Lois já lhe ocorrera, mas, quando desenvolvia esse raciocínio, o terreno realmente começava a descambar. Porque se Dorrance tivesse feito isso, seguia-se que uma (entidade)

força ou ser sabia que Ralph ia precisar de ajuda. E isso não era tudo. Aquela força - ou ser - também teria de saber que:

(a) Ralph ia sair no domingo à tarde,

(b) o tempo, agradável até então, viraria de tal modo que exigiria o uso de um blusão, e

(c) ele usaria aquele blusão. Em outras palavras, estava-se falando de algo capaz de prever o futuro. A ideia de que tal força o tivesse notado francamente o fazia borrar-se de medo. Reconhecia que, no caso da lata de aerosol, pelo menos, a intervenção provavelmente salvara sua vida, mas ele continuava a se borrar de medo.

- Talvez - Ralph respondeu. - Talvez alguma coisa realmente tenha usado Dorrance como menino de recados. Mas por quê?

- E o que sabemos de fato? - ela acrescentou.

Ralph limitou-se a sacudir a cabeça negativamente.

Lois olhou para o relógio espremido entre a foto do homem de casaco de quati e da jovem com cara dos anos 20, então estendeu a mão para o telefone.

- Quase três e meia! Nossa! Ralph tocou-lhe a mão.

- Para quem está ligando?

- Simone Castonguay. Tinha combinado de ir a Ludlow com ela e Mina hoje à tarde, vai haver um joguinho de cartas na Grange, mas não posso acompanhá-las depois de tudo isso.

Perderia até a roupa - ela riu e em seguida ruborizou-se encantadora. - É só uma maneira de falar.

Ralph segurou-lhe a mão, antes que ela pudesse erguer o fone.

- Vá ao seu joguinho, Lois.

- Sério? - Ela parecia ao mesmo tempo em dúvida e ligeiramente desapontada.

- Sério. - Ele não percebia com muita clareza o que estava ocorrendo ali, mas sentia que havia uma mudança iminente. Lois falara de ser empurrada, mas Ralph tinha a sensação de ser levado, da mesma maneira como a correnteza do rio leva um homem num barquinho.

Mas não conseguia distinguir aonde ia; uma névoa densa amortalhava as margens e agora, à medida que a correnteza começava a acelerar, ele ouvia o ronco das corredeiras adiante.

Contudo, há vultos, Ralph. Vultos em meio à névoa.

Há. E nada tranquilizantes. Poderiam ser árvores que apenas pareciam garras... mas, por outro lado, poderiam ser garras procurando parecer árvores. Até Ralph descobrir qual era o caso, agradava-lhe a ideia de Lois estar fora da cidade. Tinha uma forte intuição - ou talvez fosse apenas uma esperança mascarada de intuição - de que o Dr. N-3 não podia seguir Lois até Ludlow, que talvez nem pudesse segui-la se atravessasse a tundra para o lado leste.

Você não pode saber isso, Ralph.

Talvez não, mas parecia verdade, e ele continuava convencido de que, no mundo das auras, sentir e saber eram praticamente o mesmo. O que realmente sabia era que o Dr. N-3 ainda não cortara o fio de balão de Lois; isto Ralph vira com os próprios olhos e também o fulgor cinzento felizmente saudável de sua aura. No entanto, Ralph não conseguia fugir de uma certeza crescente de que o Dr. n^3 - o Doidão - pretendia cortá-lo e, por mais viva que

Rosalie parecesse quando saiu trotando do parque Strawford, cortar esse fio era um ato criminoso e letal.

Vamos dizer que você tenha razão, Ralph; vamos dizer que ele não possa alcançá-la hoje à tarde, se ela estiver jogando cartas a uns centavos o ponto em Ludlow. E hoje à noite? Amanhã? Semana que vem? Qual é a solução? Será que vai ligar para o filho ou a vaca da nora para dizer que mudou de ideia sobre Riverview Estates e que afinal quer mesmo se mudar para lá?

Ele não sabia. Mas sabia que precisava de tempo para pensar, e também sabia que qualquer reflexão construtiva seria difícil até ter quase certeza de que Lois se achava sã e salva, pelo menos por enquanto.

- Ralph? Você está fazendo aquela cara mugui outra vez.

- Aquela cara o quê?

- Mugui - ela sacudiu os cabelos num gesto atrevido. - É uma palavra que inventei para descrever a expressão do Sr. Chasse, quando ele fingia que estava me ouvindo mas, na realidade, estava pensando em sua coleção de moedas. Conheço uma cara mugui só de olhar, Ralph. Em que é que você está pensando?

- Estava imaginando a que horas você estaria de volta do joguinho.

- Isso depende.

- De quê?

- Se vamos ou não parar no Tubby's para tomar frappés de chocolate - respondeu com o ar de uma mulher que revela um vício secreto.

- Suponhamos que você volte directo.

- Sete horas. Talvez sete e meia.

- Me ligue assim que chegar em casa. Me faz esse favor?

- Claro. Você quer que eu fique fora da cidade, não é? É isso que realmente significava aquela cara mugui.

- Bem...

- Você acha que aquele careca maligno pretende me machucar, não é?

- Acho que é uma possibilidade.

- Bem, ele também pode machucar você!

- Pode, mas...

Mas até onde sei, Lois, ele não está usando nenhum acessório meu.

- Mas o quê?

- Vou estar seguro até você voltar, só isso.-Lembrou-se do comentário depreciativo que ela fizera sobre homens modernos que vivem aos abraços e gritos e tentou fazer uma cara autoritária.

- Vá jogar cartas e deixe que eu cuido desse assunto, pelo menos por ora. Isto é uma ordem.

Carolyn teria rido ou feito cara feia diante dessa atitude machista de ópera-cómica. Lois, que pertencia a uma escola de pensamento feminino muito diferente, apenas aquiesceu, grata por tirarem a decisão de suas mãos.

- Está bem - Lois puxou o queixo dele para baixo para poder olhá-lo directamente nos olhos. - Você sabe o que está fazendo, Ralph?

- Não. Ainda não.

- Tudo bem. Já que admite isso. - Ela colocou a mão em seu braço e lhe deu um beijo leve, de boca aberta no canto da boca. Ralph sentiu um formigamento muito bem-vindo na virilha. -Vou a Ludlow ganhar cinco dólares jogando pôquer com aquelas bobas que estão sempre tentando completar as cartas internas de uma sequência. Hoje à noite, conversaremos sobre o próximo passo. Certo?

- Certo.

Seu sorrisinho - algo que ocorria mais nos olhos do que na boca - sugeria que poderiam fazer mais do que apenas conversar, se Ralph se atrevesse... e, naquele momento, ele se sentiu realmente muito atrevido. E nem mesmo o olhar severo do Sr. Chasse, lá do seu posto sobre a TV, conseguia afectar o seu sentimento.

 

FALTAVAM QUINZE para as quatro, quando Ralph atravessou a rua e transpôs a curta subida até o seu prédio. O cansaço recomeçava a assaltá-lo; tinha a sensação de estar acordado há uns três séculos. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se melhor que nunca desde a morte de Carolyn. Mais integrado. Mais ele mesmo.

Ou quem sabe é nisso que você gostaria de acreditar? Que uma pessoa não pode se sentir tão infeliz assim sem ter algum tipo de compensação? É uma bela ideia, Ralph mas não é muito realista.

Muito bem, pensou, vai ver estou um pouco confuso neste instante.

De fato estava. E também assustado, eufórico, desorientado, e com um ligeiro tesão.

Contudo uma ideia transparecia nesse coquetel de emoções, algo que precisava fazer antes de mais nada: tinha que fazer as pazes com Bill. Se isto significava desculpar-se, não custava nada. Talvez um pedido de desculpas fosse a coisa certa. Afinal Bill não procurara ele para dizer: "Puxa, companheiro, você está horrível, me conta o que foi que houve". Não, ele é que procurara Bill. Cheio de apreensões, é verdade, mas isso não alterava o fato, e...

Ah, Ralph, puxa vida, que é que vou fazer com você? Era a voz risonha de Carolyn, falando com a mesma clareza das primeiras semanas após sua morte, quando ele enfrentara o momento de maior tristeza discutindo tudo com ela mentalmente... e por vezes em voz alta, quando acontecia estar sozinho no apartamento. Foi Bill quem explodiu, queridinho, e não você. Vejo que continua tão intransigente consigo mesmo quanto era quando eu estava viva. Acho que têm coisas que nunca mudam.

Ralph sorriu brevemente. Tudo bem, talvez algumas coisas realmente nunca mudem, e talvez a discussão tenha sido mais culpa de Bill do que dele. A questão era se queria ou não cortar relações com Bill por causa de uma briga idiota e muita arrogância quanto a quem estaria certo ou errado. Ralph achava que não, e se isso significava um pedido de desculpas que Bill realmente não merecia, que haveria de tão ruim nisso? Que soubesse, não tirava pedaço dizer as quatro sílabas de um Me desculpe.

A Carolyn em sua mente reagiu à sua ideia com muda incredulidade.

Não importa, disse-lhe ao entrar no caminho do prédio. Estou fazendo isto por mim e, não, por ele. Nem por você, pensando bem.

Admirou-se e achou graça em descobrir a sensação de culpa que esse último pensamento provocara - quase como se tivesse cometido um sacrilégio. Mas isso não tornava o pensamento menos verdadeiro.

Apalpava o bolso em busca da chave, quando deparou com um bilhete espetado na porta.

Ralph catou os óculos, mas deixara-os em casa, na mesa da cozinha. Inclinou-se para trás e apertou os olhos para ler a caligrafia esparramada de Bill:

Caro Ralph/Lois/Faye/Outros

Pretendo passar a maior parte do dia no DerryHome. A sobrinha de Bob Polhurst me ligou, dizendo que desta vez é quase certo; o coitado praticamente entregou os pontos. O quarto 313 do Derry Home é o último lugar na terra onde gostaria de estar num belo dia de outubro, mas acho que é melhor acompanhar Bob até o fim.

Ralph, me desculpe os maus momentos desta manhã. Você me procurou pedindo ajuda e quase arranco sua cara com as minhas unhadas. Só posso dizer para me justificar que o problema de Bob arrasou os meus nervos. Acho que lhe devo um jantar... isto é, se você ainda quiser comer em companhia de alguém como eu.

Faye, por favor, por favor, POR FAVOR, pare de me encher com a droga do seu torneio de xadrez. Já prometi que vou participar e costumo cumprir o que prometo.

Adeus, mundo cruel.

Bill.

Ralph endireitou-se sentindo alívio e gratidão. Se ao menos as outras coisas que andavam acontecendo com ele ultimamente pudessem se acertar com a mesma facilidade!

Subiu ao seu apartamento, sacudiu a chaleira e ia enchê-la na pia, quando o telefone tocou.

Era John Leydecker.

- Puxa, que bom que finalmente encontrei você - falou. - Já estava ficando um pouco preocupado, amigão.

- Por quê? - Ralph perguntou. - Algum problema?

- Talvez sim, talvez não. Charlie Pickering pagou a fiança.

- Você me disse que isso não ia acontecer.

- Me enganei, está bem?-Leydecker respondeu visivelmente irritado. - E esse não foi o meu único engano. Disse que o juiz provavelmente fixaria a fiança por volta dos quarenta mil dólares, mas não sabia que o juiz sorteado para o caso Pickering ia ser o juiz Steadman, que todo mundo sabe que sequer acredita em insanidade. Steadman fixou a fiança em oitenta mil. O defensor nomeado pelo tribunal reclamou pra caramba, mas não adiantou nada.

Ralph baixou os olhos e viu que ainda estava segurando a chaleira. Colocou-a em cima da mesa.

- E ainda assim ele conseguiu pagar?

- Conseguiu. Lembra-se de que eu disse que o Ed o descartaria como quem se livra de uma faca que a lâmina partiu?

- Lembro.

- Bem, registre mais este furo de John Leydecker. Ed entrou pelo fórum hoje de manhã, às onze horas, com uma maleta cheia de dinheiro.

- Oito mil dólares? - Ralph perguntou.

- Eu disse uma maleta, e não um envelope - retrucou Leydecker. - Não são oito, são oitenta mil. Os caras no tribunal continuam no maior alvoroço até agora. Pó, e vão continuar assim até depois do Natal.

Ralph tentou imaginar Ed Deepneau metido numa daquelas suéteres velhas e largas e calças de cotelê surradas - seu trajo de cientista maluco, como Carolyn costumava dizer sacando maços de notas de vinte e de cinqüenta da maleta, mas não conseguiu.

- Pensei que você tivesse dito que dez por cento da fiança era suficiente para garantir a soltura.

- E é, se você puder empenhar outra coisa, uma casa, um terreno, por exemplo, cujo valor somado ao dinheiro vivo quase complete o total da fiança. Aparentemente Ed não pôde fazer isso, mas tinha uma reserva para emergências guardada no colchão. Ou isso ou então ofereceu à fada do dentinho uma tremenda boquete.

Ralph lembrou-se da carta que recebera de Helen, uma semana após deixar o hospital e se mudar para High Ridge. Ela mencionara um cheque que recebera de Ed - setecentos e cinqüenta dólares, isso parece indicar que ele compreende suas responsabilidades, ela escrevera. Ralph se perguntou se Helen ainda pensaria o mesmo, se soubesse que Ed entrara no fórum de Derry com dinheiro suficiente para sustentar generosamente a filha durante os primeiros quinze anos de sua vida... e o depositara para libertar um maluco que gostava de brincar com facas e coquetéis molotov.

- Onde será que ele arranjou o dinheiro? - perguntou a Leydecker.

- Não sei.

- E ele não é obrigado a declarar?

- Não. Vivemos num país livre. Pelo que sei, ele comentou alguma coisa sobre uma venda de ações.

Ralph pensou nos bons tempos - os bons tempos antes de Carolyn adoecer e morrer e Ed ficar desequilibrado. Pensou nas refeições que os quatro faziam juntos mais ou menos a cada quinze dias, pizza para viagem na casa dos Deepneaus ou talvez o empadão de galinha de

Carolyn na cozinha dos Roberts, e lembrou-se de Ed prometer certa vez que ia levar todo mundo para comer um filé de primeira no Red Lion de Bangor, quando suas ações valorizassem. Vamos mesmo, Helen comentara, sorrindo carinhosamente para Ed. Estava grávida, a barriga começava a arredondar e ela parecia ter quatorze anos, com os cabelos puxados para trás num rabo de cavalo e uma bata xadrez que ainda era demasiado grande.

Quais as que você acha que vão subir primeiro, Ed? As duas mil das Geléias de Cotovelo ou as seis mil das Almôndegas Azedas? Ele rosnara para ela, um rosnado que fez todos rirem porque Ed Deepneau não tinha um pingo de maldade no corpo, qualquer um que o conhecesse há mais de duas semanas sabia que era incapaz de fazer mal a uma mosca. Só que talvez Helen soubesse que não era assim - mesmo há tanto tempo, ela com certeza já sabia que não era bem assim, com ou sem olhar carinhoso.

- Ralph? - Leydecker chamou. - Você ainda está aí?

- Ed não tinha ações - Ralph falou. - Ora essa, ele era apenas um químico, e o pai era capataz em uma engarrafadora em algum lugar absurdo desses como Plaster Rock,

Pennsylvania. Um cara sem grana.

- Bem, ele a arranjou em algum lugar, e estaria mentindo se dissesse que gostei.

- Acha que foi com os outros Amigos da Vida?

- Não, acho que não. Primeiro, não estamos falando de gente rica: a maioria das pessoas que pertencem aos Amigos são operários, heróis de macacão. Dão o que podem, mas isso tudo? Não. Suponho que poderiam ter reunido um número suficiente de títulos de propriedade para soltar Pickering, mas não foi o que fizeram. A maioria não faria isso, mesmo que Ed tivesse pedido. Para eles, agora Ed é praticamente persona non grata, e imagino que devem estar desejando que nunca tivessem ouvido falar em Charlie Pickering.

Dan Dalton reassumiu a liderança dos Amigos da Vida e para muitos deles isso é um alívio.

Ed, Charlie e mais uns dois, um cara chamado Frank Felton e uma mulher chamada Sandra

McKay, parecem estar operando por conta própria agora. Não sei nada a respeito de Felton e ele nunca usou camisa-de-força, mas a McKay já excursionou pelas mesmas instituições

famosas que Charlie. E ela é inconfundível: pele macilenta, muitas espinhas, lentes dos óculos tão grossas que fazem os olhos parecerem ovos pochés, e pesa uns cento e trinta quilos.

- Você está brincando?

- Não. Ela tem preferência por calças de lycra da Kmart e em geral anda em companhia de vários Birutas, Excêntricos e Aluados. Costuma usar uma camiseta larga com os dizeres

FÁBRICA DE BEBÊS no peito. Diz que deu à luz quinze filhos. Na verdade nunca teve nenhum e provavelmente nem pode ter.

- Por que está me contando tudo isso?

- Porque quero que fique de sobreaviso com esses personagens - disse Leydecker. Falava pacientemente, como se Ralph fosse criança. - Eles podem ser perigosos. Charlie é, e isso você já sabe sem eu precisar dizer, e Charlie está solto. Onde Ed arranjou dinheiro para tirá-lo da cadeia é secundário: arranjou e é só o que interessa. Não ficaria nem um pouco surpreso se ele saísse procurando você outra vez. Ele, ou Ed, ou os outros.

- E Helen e Natalie?

- Estão com amigos: amigos muito atentos para o perigo que representam maridinhos de parafuso frouxo. Falei com Mike Hanlon e ele também vai ficar de olho nela. A biblioteca está sendo bem vigiada pelos nossos homens. Achamos que, no momento, Helen não corre nenhum perigo real, ela continua em High Ridge, mas estamos tomando todas as precauções.

- Obrigado, John. Agradeço a atenção e agradeço o telefonema.

- Agradeço que você agradeça a atenção, mas ainda não terminei. Você precisa lembrar que quem recebeu um telefonema de Ed e quem foi ameaçado, meu amigo, não foi Helen, foi você. Ele não parece estar muito preocupado com Helen, mas você continua na cabeça dele, Ralph. Perguntei ao Chefe Johnson se podia destacar um homem, Chris Nell seria a minha escolha, para vigiar você, pelo menos até que a Vaca-de-Aluguel da WomanCare tenha chegado e partido. Ele não autorizou. Tem coisa demais acontecendo esta semana, disse... mas, pelo jeitão da resposta, se o pedido partisse de você, ele mandaria alguém protegê-lo. O que me diz?

Protecção policial, pensou Ralph. É o nome que dão a isso nos seriados policiais de TV e é disso que ele está falando - protecção policial.

Tentou examinar a ideia, mas outras tantas interferiram; dançaram em sua cabeça como absurdas ameixas secas. Chapéus, doutores, aventais brancos, latas de aerosol. Para não falar em facas, bisturis e tesouras vislumbradas através das lentes empoeiradas de velhos binóculos. Cada coisa cue faço, faço-a depressa para poder fazer mais outra, Ralph pensou, e na esteira desta: É longa a viagem de volta ao paraíso, querido, portanto não esquente com ninharias.

- Não - respondeu.

- Quê? Ralph fechou os olhos e viu-se pegando este mesmo fone para cancelar a consulta com o espetador de agulhas. Era a mesma coisa se repetindo, não era? Era. Poderia receber protecção policial contra os Pickerings e as McKays e os Feltons, mas não era assim que as coisas deviam se passar. Sabia disso e sentia-o em cada batida de seu coração, em

cada pulsar das veias.

- Você me ouviu. Não quero protecção policial.

- Pelo amor de Deus, por que não?

- Porque posso me cuidar sozinho - respondeu Ralph, e fez uma careta diante da solenidade absurda de tal sentimento, que ouvira da boca de John Wayne em incontáveis filmes de faroeste.

- Ralph detesto ter que lhe dar esta notícia, mas você está velho. Você teve sorte no domingo. Mas talvez não tenha tanta sorte da próxima vez.

Não foi apenas sorte, Ralph pensou. Tenho amigos bem colocados. Ou talvez devesse dizer entidades bem colocadas.

- Vou ficar bem - falou. Leydecker suspirou.

- Se você mudar de ideia, me telefona, sim?

- Telefono.

- E se vir o Pickering ou a gorda com lentes de fundo de garrrafa e cabelos louros bem crespos no pedaço...

- Telefono para você.

- Ralph, por favor, pense bem. Só estou falando de um cara estacionado na rua.

- O-feito-não-pode-ser-desfeito - disse Ralph.

- Hein?

- Disse que agradeço, mas dispenso. Depois a gente conversa.

Lentamente Ralph repôs o fone no gancho. Era bem provável que John estivesse certo, pensou, provavelmente ele é que estava doido, no entanto nunca se sentira tão completamente são na vida.

- Cansado - falou para a cozinha vazia e ensolarada - mas são. - Fez uma pausa e acrescentou: - E talvez em vias de me apaixonar.

O pensamento o fez sorrir, e ainda sorria quando finalmente pôs a chaleira no fogo.

ESTAVA na segunda xícara de chá, quando se lembrou de que Bill lhe dissera no bilhete que estava lhe devendo um jantar. Num impulso, decidiu convidar Bill para se encontrarem no Day Break, Sun Down e fazer uma ceiazinha. Poderiam reatar a amizade.

Acho que temos de reatar mesmo, pensou, porque o taradinho pegou o chapéu dele, e tenho quase certeza de que isto significa que ele está em apuros.

Bem, a hora é essa. Apanhou o fone e discou um número que não teve dificuldade em lembrar: 941-5000. O número do hospital Derry Home.

A RECEPCIONISTA DO HOSPITAL transferiu-o para o quarto 313. A mulher sensivelmente cansada que atendeu a ligação era Denise Polhurst, sobrinha do moribundo.

Bill não estava, ela informou. Quatro outros professores do que chamou de "os dias de glória do titio" tinham aparecido por volta de uma hora e Bill propusera almoçarem juntos.

Ralph até sabia como seu inquilino do andar de baixo teria feito a proposta: antes tarde do que nunca. Era uma de suas máximas favoritas. Quando Ralph perguntou se achava que Bill ia demorar, ela respondeu afirmativamente.

- Ele tem sido tão amigo. Não sei o que teria feito sem ele, Sr. Robbins.

- Roberts - corrigiu. - Bill faz o Sr. Polhurst parecer um homem extraordinário.

- É, todos acham isso. Mas naturalmente as contas não vão ser enviadas para o seu fã clube, não é mesmo?

- Não - Ralph respondeu pouco à vontade. - Imagino que não. O bilhete de Bill dizia que seu tio está muito fraco.

- Está. O médico disse que ele provavelmente não verá o fim do dia, muito menos a noite, mas já ouvi essa conversa antes. Deus me perdoe, mas às vezes me parece que tio Bob é um daqueles anúncios da Publishers Clearing House: estão sempre prometendo o que não vão cumprir. Acho que isso deve parecer horrível, mas estou cansada demais para me importar. Eles desligaram os aparelhos de sustentação hoje de manhã: não poderia assumir a responsabilidade sozinha, mas liguei para o Bill e ele disse que era o que meu tio teria querido. "Está na hora de Bob ir explorar outro mundo", falou. "Este ele já mapeou à perfeição." Não é poético, Sr. Robbins?

- É. O nome é Roberts, Sra. Polhurst. Será que podia dizer ao Bill que Ralph Roberts ligou e que gostaria que ele retornasse a ligar...

- Então desligamos os aparelhos e me preparei, me enchi de coragem, como vocês diriam, mas ele não morreu. Não consigo entender. Ele está pronto, eu estou pronta, o trabalho de sua vida está pronto... então por que é que ele não morre?

- Não sei.

- A morte é muito idiota - ela continuou, naquela voz queixosa e antipática que somente os muito cansados e os profundamente abatidos parecem usar. - Se um obstetra demorasse tanto para cortar o cordão umbilical de um bebê seria despedido por incompetência.

A mente de Ralph ultimamente dera para vagar, mas desta vez voltou instantaneamente.

- Que foi que a senhora disse?

- Perdão? - Ela pareceu assustada, como se sua própria mente estivesse vagando.

- A senhora disse alguma coisa sobre cortar o cordão.

- Não quis dizer nada - retorquiu. Aquele tom queixoso se tornara mais forte... só que não era queixa, Ralph percebeu; era um choramingo medroso. Havia alguma coisa errada.

Seus batimentos cardíacos subitamente se aceleraram.

- Não quis dizer nada mesmo-ela insistiu, e, de repente, o fone que Ralph segurava adquiriu uma tonalidade azul sinistra e profunda.

Ela anda pensando em matá-lo, e não é um pensamento ocioso - ela anda pensando em cobrir o rosto dele com um travesseiro e sufocá-lo. "Não demoraria nada", pensa. "Um ato de misericórdia", pensa. "Enfim terminou", pensa.

Ralph afastou o telefone do ouvido. Uma luz azul, fria como o céu de fevereiro, saiu dos orifícios do fone em raios da espessura de um risco de lápis.

O homicídio é azul, Ralph pensou, afastando o fone do ouvido e vendo com olhos descrentes e arregalados os raios azuis começarem a se dobrar e a deslizar para o chão. Ele ouvia muito indistintamente a voz ansiosa e grasnida de Denise Polhurst. Não é coisa que eu quisesse jamais saber, mas acho que agora sei: o homicídio é azul.

Ele tornou a aproximar o bocal do rosto, inclinando-o de maneira a manter longe aquela aura carregada de pingentes gelados. Teve medo de que, se chegasse o fone muito perto do ouvido, o desespero furioso e gélido da moça poderia ensurdecê-lo.

- Diga a Bill que Ralph ligou - falou. - Roberts, e não Robbins. - E desligou sem esperar resposta. Os raios azuis desprenderam-se do fone e rolaram para o chão. Ralph mais uma vez lembrou-se de pingentes de gelo; desta vez, do jeito como caem em fieiras certinhas quando se passa a mão enluvada sob o beiral do telhado em um dia mais quente de inverno.

Eles desapareceram antes de bater no linóleo. Ralph olhou a toda volta. Nada na cozinha brilhava, tremeluzia, vibrava. As auras tinham desaparecido. Começou a suspirar de alívio quando ouviu o carburador de um carro soltar uma descarga explosiva na Avenida Harris.

No apartamento vazio de primeiro andar, Ralph Roberts gritou.

ELE NÃO QUERIA mais chá, mas continuava com sede. Encontrou metade de uma Diet

Pepsi - choca mas líquida - no fundo da geladeira, despejou-a num copo de plástico com o logotipo do mercadinho já desbotado, e levou-o para fora. Não agüentava mais ficar no apartamento que parecia cheirar a vigília infeliz.

Principalmente depois do que acontecera com o telefone.

O dia se tornara ainda mais belo, se é que era possível; um vento constante e suave começara a soprar, deslocando rolos de luz e sombra pelo oeste de Derry, penteando as folhas das árvores. Estas, o vento afugentava pelas calçadas em redemoinhos laranja, amarelos e vermelhos.

Ralph virou para a esquerda, não porque tivesse qualquer desejo consciente de voltar à área de piqueniques junto ao aeroporto, mas apenas para pegar o vento pelas costas. Contudo, viu-se entrando na pequena clareira uns dez minutos mais tarde. Desta vez estava vazia, o que não o surpreendeu. Não havia friagem no vento que se erguera, nada que fizesse velhotes correrem para dentro de casa, mas não era nada fácil manter as cartas em cima da mesa ou as peças no tabuleiro de xadrez enquanto o vento travesso tentava derrubá-las toda hora. Quando Ralph se aproximou da mesinha de cavalete onde Faye Chapin em geral recebia sua corte, também não se surpreendeu ao encontrar um bilhete preso com uma pedra, e teve uma boa noção do seu conteúdo mesmo antes de pousar o copo plástico e apanhar o papel.

Dois caminhos; duas aparições do doutor careca com o bisturi; duas pessoas idosas sofrendo de insónia e tendo visões vivamente coloridas; dois bilhetes. Era como Noé embarcando os animais na arca, não um a um, mas aos pares... e será que vai cair outro temporal? Bem, que é que você acha, meu caro?

Ele não sabia o que achar... mas o bilhete de Bill fora uma espécie de obituário-emandamento e Ralph não alimentava a menor dúvida de que o de Faye fosse igual.

A sensação de ser sempre empurrado para diante, sem esforço nem hesitação, era simplesmente demasiado forte para alimentar dúvidas; era como acordar em um palco desconhecido e se ver representando (aos tropeços) o texto de um drama que não se lembrava de ter ensaiado, ou distinguir um padrão coerente no que até aquele momento lhe parecera completamente absurdo, ou descobrir...

Descobrir o quê?

- Mais uma cidade secreta, é isso - murmurou. - A Derry das Auras. - Inclinou-se sobre o bilhete de Faye e leu-o enquanto o vento brincava caprichosamente com seus cabelos ralos.

ACONSELHAMOS a quem quiser prestar as últimas homenagens a Jimmy Vandermeer que o faça impreterivelmente até amanhã. O Padre Coughlin passou por minha casa hoje ao meio-dia e me avisou coitado está sucumbindo rapidamente. Mas ele PODE receber visitas e está na UTI do Derry Home, quarto 315. Faye

  1. S. Lembrem-se de que o tempo é curto.

Ralph leu o bilhete duas vezes e recolocou-o na mesa com a Pedra em cima para que não voasse até o próximo Coroa aParecer. Ficou ali parado com as mãos nos bolsos e a cabeça babca, espiando a Pista 3 por debaixo das sobrancelhas espessas e Emaranhadas. Uma folha seca, laranja como as abóboras do Dia das Bruxas que em breve iriam decorar a avenida, rolou do Profundo azul do céu e caiu sobre seus cabelos finos. Ralph arrastou-a distraidamente e pensou em dois quartos de hospital n° andar da UTI do Derry Home, dois quartos lado a lado. Bob Polhurst em um, Jimmy V. no outro. E no quarto seguinte do corredor? O de número 317, o quarto em que sua mulher morrera.

- Isto não é coincidência - falou baixinho.

Mas o que era? Vultos na névoa? Uma cidade secreta? frases evocativas, as duas, mas não respondiam pergunta alguma.

Ralph sentou-se na mesa de piqueniques ao lado daquela em que Faye deixara o bilhete, tirou os sapatos, e cruzou as Pernas. O vento soprou uma rajada que despenteou seus cabelos.

Ficou ali sentado entre as folhas que caíam, a cabeça ligeiramente curvada e o cenho franzido em reflexões. Parecia um lida em versão de Winslow Homer, meditando com as mãos Pausadas nos joelhos, cuidadosamente repassando suas Opressões sobre os Drs. N-1 e n-2... e em seguida comparando-as com as que tivera do Dr. N-5.

Primeira impressão: todos os três doutores lembravam alienígenas de tablóides como o Inside View, desenhos em que sempre vinha a ressalva "criações artísticas". Ralph sabia que esses misteriosos visitantes do espaço carecas e de olhos escuros Atavam de muitos anos; havia gente que declarava ter tido contacto com esses nanicos carecas - os chamados doutorezinhos - há muito tempo, talvez o mesmo tempo em que as Pessoas vinham relatando o aparecimento de OVNIs. Ralph tyha plena certeza de que lera no mínimo uma história dessas "na década de sessenta.

- Muito bem, então digamos que haja um bom número desses caras por aqui. - Ralph disse a uma andorinha que acabara de pousar no latão de lixo da área de piqueniques.

- Não uns três doutores, mas três centenas deles. Ou três milhares. Lois e eu não somos as únicas pessoas que os vimos. E...

E a maioria das pessoas que relataram tais encontros não tinham também mencionado objectos pontiagudos?

Tinham, mas não tesouras nem bisturis - não que Ralph se lembrasse. A maioria das pessoas que alegavam ter sido sequestradas pelos doutorezinhos falavam de sondas, não era?

A andorinha voou. Ralph nem percebeu. Pensava nos doutorezinhos carecas que tinham visitado May Locher na noite de sua morte. Que mais sabia sobre eles? Que mais vira?

Vestiam compridos aventais brancos, como aqueles usados por médicos nos seriados de TV dos anos cinqüenta e sessenta, como aqueles que os farmacêuticos ainda usam. Só que os aventais deles, ao contrário daquele do Dr. N-3, eram limpos. O n23 andava exibindo um bisturi enferrujado; se havia ferrugem na tesoura que o Dr. n-1 segurava na mão direita,

Ralph não reparara. Nem mesmo depois de ter mirado os binóculos nele.

E havia outra coisa-provavelmente sem importância, mas que chamava atenção. O Dr. que exibia a tesoura era destro, pelo menos a julgar pela maneira como segurava a arma.

O Dr. que brandia o bisturi era canhoto.

Não, provavelmente não era importante, mas era alguma coisa - outro daqueles vultos na névoa, embora pequeno - que o incomodava do mesmo jeito. Alguma coisa sobre a dicotomia esquerda e direita.

- Tome a esquerda e chegará à direita - Ralph murmurou, repetindo o bordão de alguma piada que já não lembrava mais. - Tome a direita e chegará à esquerda.

Deixa pra lá. Que mais sabia sobre os médicos?

Bem, estavam cercados por auras, naturalmente - um belo auriverde por sinal - e tinham deixado (pegadas do homem branco)

passos de dança como nos diagramas de Arthur Murray ao passar. E embora suas feições tivessem parecido a Ralph absolutamente anônimas, suas auras transmitiam sensações de poder... e sobriedade... e...

- E dignidade, droga - disse Ralph. O vento soprou nova rajada e mais folhas soltaram-se das árvores. A uns quarenta e cinco metros da área de piqueniques, não muito longe da velha ferrovia, uma árvore retorcida e meio desenraizada parecia se alongar na direcção de Ralph, esticando ramos que realmente lembravam um pouco mãos em garras.

De repente ocorreu a Ralph que vira muita coisa naquela noite para um cara velho que supostamente estaria no limiar da última fase da vida de um homem, a que Shakespeare (e Bill McGovern) chamavam a fase do "Bufão da Commedia deli'Arte" . E nada dissonadinha-sugeria perigo ou más intenções. Que Ralph tivesse inferido más intenções não surpreendia muito. Tratava-se de visitantes estranhos fisicamente; observara-os saindo da casa de uma mulher doente, numa hora da noite em que visitas raramente comparecem; vira-os apenas alguns minutos após um pesadelo de proporções épicas.

Agora, no entanto, relembrando o que vira, ocorriam-lhe outros detalhes. A maneira com que pararam na varanda da Sra. Locher, por exemplo, como se tivessem todo o direito de estar ali; a sensação que transmitiram de serem dois amigos entretidos num bate-papo antes de seguir cada um o seu caminho. Dois velhos colegas conversando mais um pouquinho antes de voltar para casa após uma longa noite de trabalho.

Essa foi a impressão que teve, é verdade, mas não quer dizer que possa confiar nela, Ralph.

Mas ele achava que podia confiar. Velhos amigos, colegas de longa data, encerrando o trabalho da noite. May Locher fora sua última parada.

Muito bem, então os Drs. n-1 e n-2 diferiam do terceiro como o dia da noite. Os dois eram limpos e, ele, sujo, possuíam auras, mas ele não possuía nenhuma (pelo menos nenhuma que Ralph pudesse perceber), carregavam uma tesoura e, ele, um bisturi, os dois tinham a aparência sã e sóbria de quaisquer dois cidadãos idosos e respeitados da cidade, enquanto o n^3 parecia mais doido que um rato de mictório.

Uma coisa, porém, ficava muito clara, não? Seus chapinhas são seres sobrenaturais e, além de Lois, a única pessoa que parece saber de sua presença é Ed Deepneau. Quer apostar quantas horas de sono Ed anda dormindo ultimamente?

- Não - Ralph respondeu. Tirou as mãos dos joelhos e ergueu-as diante dos olhos. Elas tremiam ligeiramente. Ed mencionara doutorezinhos carecas, e havia doutorezinhos carecas.

Seria aos doutores que se referia quando falara dos Centuriões? Ralph não sabia. Quase tinha esperanças de que fosse, porque a palavra - Centuriões - começara a suscitar uma imagem muito mais terrível em sua mente cada vez que surgia: os ringwraiths da trilogia fantasiosa de Tolkien. Vultos encapuzados, que montavam cavalos esqueléticos de olhos vermelhos, atacando um pequeno grupo de hobbits amedrontados do lado de fora da taverna Prancing Pony, em Bree.

Pensar em hobbits levou-o a pensar em Lois, e o tremor de suas mãos aumentou.

Carolyn: E longa a viagem de volta ao Paraíso, querido, portanto não esquente com ninharias.

Lois: Na minha família, quem morre aos oitenta morre jovem.

Joe Wyzer: O legista acaba registrando como causa da morte suicídio ao invés de insónia.

Bill: Ele se especializou na Guerra de Secessão, e agora nem sequer sabe o que é uma guerra civil, muito menos quem ganhou a nossa.

Denise Polhurst: A morte é muito idiota. Se um obstetra demorasse tanto tempo para cortar o cordão umbilical de um bebê...

Foi como se alguém tivesse repentinamente acendido um potente holofote no interior de sua cabeça e Ralph soltou um grito na ensolarada tarde de outono. Nem mesmo o 727 da Delta que se aproximava para pousar na pista 3 conseguiu abafar inteiramente aquele grito.

ELE PASSOU o resto da tarde sentado na varanda do prédio que dividia com McGovern, esperando impacientemente que Lois voltasse do jogo. Poderia ter tentado mais uma vez encontrar McGovern no hospital, mas não o fez. A necessidade de falar com McGovern passara. Ralph ainda não entendia tudo, mas achava que entendia muito mais do que antes e, se a repentina intuição na área de piqueniques tivesse algum valor, contar a McGovern o que acontecera com o seu panamá não serviria absolutamente para nada, mesmo que Bill lhe desse crédito.

Tenho que recuperar o chapéu, Ralph pensou. E tenho que recuperar os brincos de Lois, também.

Foi uma tarde e um anoitecer surpreendentes. Por um lado, nada acontecera. Por outro, tudo acontecera. O mundo das auras veio e foi à sua volta como a magnífica progressão de sombras de nuvens pelo oeste da cidade. Ralph sentou-se e contemplou, embevecido, interrompendo-se apenas para comer alguma coisa e dar uma chegada ao banheiro. Viu a velha Sra. Bennigan parada na varanda, com o seu casaco vermelhovivo, apoiada no andador, examinando suas flores de outono. Viu a aura que a envolvia-o rosa limpo e saudável de um bebê que acabou de tomar banho - e fez votos de que a Sra. B. não tivesse um bando de parentes esperando que morresse. Viu um rapaz que não teria mais de vinte anos, dançando do outro lado da rua no rumo do mercadinho. Era a imagem da saúde com os seus jeans desbotados e a camiseta sem mangas de um time de beisebol, mas Ralph viu também um saco mortuário agarrado nele como uma mancha de óleo, e o fio de balão que se erguia do alto de sua cabeça parecia um puxador de cortina roto numa casa malassombrada.

Não viu doutorezinhos carecas, mas, pouco depois das cinco e meia, observou um assustador facho de luz roxa irromper da tampa de um bueiro no meio da Avenida Harris;

subiu para o céu como um efeito especial, num épico bíblico de Cecil B. DeMille, durante uns três minutos talvez, depois simplesmente se apagou. Viu também um enorme pássaro que lembrava um gavião pré-histórico planar entre as chaminés da velha fábrica de laticínios, pouco adiante na rua Howard, e ondas de ar quente azuis e vermelhas que se alternavam sobre o parque Strawford em longas e preguiçosas estrias.

Quando o treino de futebol na escola primária Fairmount terminou às quinze para as seis, uns doze garotos entraram como um enxame no estacionamento do mercadinho, onde comprariam toneladas de balas e doces pré-jantar e fardos de figurinhas-figurinhas de futebol, nesta altura do ano, calculou Ralph. Dois deles pararam para discutir alguma coisa e suas auras, uma verde e a outra de um laranja-escuro vibrante, se intensificaram, encolheram e começaram a refulgir com espirais ascendentes de fios vermelhos.

Cuidado! Ralph gritou mentalmente para o menino na capa de luz laranja, um momento antes do Menino Verde atirar os livros de escola no chão e socar o outro na boca. Os dois se atracaram, rodaram numa dança desajeitada e agressiva, e rolaram pela calçada. Uma roda de garotos que gritavam e torciam formou-se a sua volta. Uma cúpula púrpura, semelhante a uma nuvem de tempestade, começou a se formar ao redor do local da luta.

Ralph achou essa forma, que circulava num movimento lento e contrário ao dos ponteiros do relógio, ao mesmo tempo terrível e bela, e pôs-se a imaginar que aspecto teria a aura sobre uma batalha de grandes proporções. Concluiu que aquela era uma pergunta cuja resposta ele não queria realmente saber. No momento em que o Menino Laranja montou no Menino Verde e começou a socá-lo com vontade, Sue saiu do mercadinho e gritou que parassem de brigar no maldito estacionamento.

O Menino Laranja desmontou relutante. Os combatentes se puseram de pé, entreolhando-se mal-humorados. Então o Menino Verde, tentando parecer superior, virou as costas e entrou na loja. Apenas o olhar rápido por cima do ombro, para se certificar de que o oponente não vinha em seu encalço, estragou o efeito.

Uma parte dos espectadores acompanhou o Menino Verde ao mercadinho em busca dos suprimentos pós-treino, a outra se amontoou em torno do Menino Laranja, para cumprimentá-lo. No alto, invisível, o cogumelo púrpura e virulento desfazia-se como uma nuvem ao encontrar um vento forte. Os pedaços se esgarçaram, se desagregaram e desapareceram.

A rua é um mafuáde energia, pensou Ralph. A energia desperdiçada por esses dois meninos durante os noventa segundos em que se atracaram pareceu-lhe suficiente para iluminar Derry por uma semana, e se uma pessoa pudesse captar a que os espectadores geraram -a energia contida naquele cogumelo nebuloso-provavelmente poderia iluminar o estado do Maine inteiro durante um mês. Pode imaginar como seria entrar no mundo das auras na Times Square, faltando dois minutos para a meia-noite, na véspera do Ano Novo?

Ele não podia nem queria. Suspeitava que vislumbrara o bordo de ataque de uma força tão gigantesca e tão vital que fazia as armas nucleares criadas desde 1945 parecerem ter a potência de pistolas de espoleta disparadas contra uma lata de pêssegos vazia. Força suficiente para destruir o universo, talvez... ou criar um novo.

RALPH SUBIU ao apartamento, despejou uma lata de feijão em uma panela e algumas salsichas em outra, e ficou andando de um lado para o outro, estalando os dedos e ocasionalmente passando-os pelos cabelos, enquanto esperava que o jantar improvisado de solteiro ficasse pronto. O cansaço que penetrava até os seus ossos e o sobrecarregava como pesos invisíveis desde o meio do verão, pelo menos por ora, desaparecera por completo;

sentia-se tomado por uma energia absurda e estranha, absolutamente repleto. Supunha que era por isso que as pessoas gostavam de benzedrina e cocaína, só que tinha a impressão de que o seu barato era muito melhor, pois, quando terminasse, não o deixaria saqueado e maltratado, mais consumido do que consumidor.

Ralph Roberts, inconsciente de que os cabelos por que passara os dedos tinham-se engrossado, e que fios escuros tornavam-se visíveis pela primeira vez em cinco anos, saiu dançando pelo apartamento, na ponta dos pés, primeiro cantarolando com a boca fechada, depois cantando um velho rock do início dos anos sessenta: Hey, pretty bay-bee, you can't sit down... you gotta slop, bop, slip, slop, flip top alll about..."

O feijão começou a borbulhar numa panela, as salsichas ferveram na outra - só que pareciam a Ralph estarem dançando ao ritmo da velha canção dos Dovells. Ainda cantando a plenos pulmões ("When you hear the hippie with the backbeat, you can't sit down"), Ralph picou as salsichas dentro do feijão, acrescentou uns duzentos e cinqüenta gramas de ketchup e um pouco de chili, misturou tudo vigorosamente e dirigiu-se para a porta. Levava o jantar, ainda na panela, numa mão. Desceu as escadas correndo, com a agilidade de um garoto que está atrasado para o primeiro dia de escola. Tirou uma velha suéter larga de tricô - era de McGovern, mas e daí? - do armário da entrada, e saiu de novo para a varanda.

As auras tinham desaparecido, mas Ralph não desanimou; no momento estava mais interessado no cheiro da comida. Não se lembrava da última vez em que se sentira tão faminto quanto agora. Sentou-se no degrau mais alto com as coxas compridas e joelhos ossudos espetados para os lados, e começou a comer. As primeiras garfadas queimaram seus lábios e boca, mas isso não o deteve, Ralph comeu ainda mais depressa, praticamente engolindo sem mastigar.

Parou, quando já consumira metade da panela de feijões e salsichas. O animal em sua barriga não voltara a adormecer - ainda não - mas sossegara um pouquinho. Ralph arrotou sem constrangimento e contemplou a Avenida Harris com uma sensação de contentamento que não conhecia há anos. Nas atuais circunstâncias, aquela sensação não fazia o menor sentido, mas isso não a alterava em nada. Quando tinha sido a última vez em que se sentira tão bem?

Talvez na manhã em que acordara naquele curral, em algum lugar entre Derry, Maine, e Poughkeepsie, Nova Iorque, admirado com os raios conflitantes de luz - pareciam milhares - que cruzavam o lugar morno e cheiroso em que se encontrava deitado.

Ou talvez nunca.

É, ou talvez nunca.

Ele observou a Sra. Perrine subir a rua, provavelmente voltando de Um Lugar Seguro, uma combinação de sopão dos pobres e abrigo para os sem-teto junto ao Canal. Ralph mais uma vez viu-se fascinado pelo andar deslizante e incomum que ela conseguia sem auxílio de bengala e aparentemente sem mexer os quadris para os lados. Seus cabelos, ainda mais escuros que grisalhos, estavam agora presos - ou talvez contidos fosse a palavra certa pela rede que usara quando servira o jantar. Meias grossas contra varizes, da cor de algodão-doce, emergiam de seus impecáveis tênis brancos de enfermeira... não que Ralph pudesse ver muita coisa das meias ou das pernas que elas cobriam; esta noite, a Sra. Perrine usava um sobretudo masculino de lã, que chegava quase aos tornozelos. Ela parecia depender quase inteiramente das coxas para se deslocar-sinal de algum problema crônico na coluna, adivinhou Ralph-e este jeito de se locomover, somado ao sobretudo emprestavam à Esther Perrine um ar um tanto surreal. Parecia a rainha preta em um tabuleiro de xadrez, uma peça que ora era conduzida por uma mão invisível, ora deslocava-se sozinha.

Ao se aproximar do lugar em que Ralph se sentara-ainda vestindo a camisa rasgada e, de quebra, ainda comendo o jantar directamente da panela - as auras começaram a voltar ao mundo de mansinho. As lâmpadas da rua já estavam acesas, e agora Ralph via delicados arcos azul-arroxeados sobre cada uma. Via também uma névoa vermelha pairando sobre uns telhados, amarela sobre outros, e cereja claro sobre outros ainda. No leste, onde a noite agora ia se adensando, o horizonte estava salpicado de pontinhos verde-claros.

Mais perto, ele observou a aura da Sra. Perrine ganhar vida ao seu redor-aquele cinzento sério que lhe lembrava uniforme de cadete de academia militar. Alguns pontos escuros, como botões fantasmas, refulgiam acima de seu busto (Ralph presumia que houvesse um busto escondido em algum lugar debaixo do sobretudo). Não tinha certeza, mas achava que os pontos eram sinal de iminente má saúde.

- Boa noite, Sra. Perrine - cumprimentou educadamente, observando as palavras passarem diante de seus olhos sob a forma de flocos de neve.

Ela lhe lançou um olhar penetrante, piscando os olhos para cima e para baixo, parecendo ao mesmo tempo medi-lo e desprezá-lo num só movimento.

- Vejo que ainda está usando a mesma camisa, Roberts - comentou.

O que não comentou - mas Ralph tinha certeza de que pensara - foi: Também vejo que está sentado aí, comendo feijão na panela, como um maltrapilho das ruas, que nunca aprendeu modos melhores... e tenho o habito de me lembrar do que vejo, Roberts.

- É verdade-respondeu Ralph.-Acho que me esqueci de trocá-la.

- Hum - resmungou a Sra. Perrine, e agora Ralph achou que estava avaliando suas roupas de baixo. Quando foi a última vez que se lembrou de trocá-las? Estremeço só de pensar, Roberts.

- Linda noite, não, Sra. Perrine?

Mais um relance rápido, desta vez para o céu. E de volta para Ralph.

- Vai esfriar.

- A senhora acha?

- Ah, vai: o veranico terminou. Minhas costas não servem para muita coisa além de prever o tempo, mas são muito boas nisso. - Fez uma pausa. - Creio que a suéter é do Bill

McGovern.

- Acho que é - Ralph concordou, imaginando se em seguida perguntaria se Bill sabia que a estava usando. Não se surpreenderia nem um pouco.

Ao invés disso, mandou que ele se abotoasse.

- Você não quer se candidatar a uma pneumonia, quer?

- perguntou e o franzido de sua boca acrescentou: Além de se candidatar ao hospício?

- Absolutamente não - Ralph respondeu. Pôs a panela de lado, levou a mão aos botões da suéter, então parou. Ainda estava usando a luva pega-panelas na mão esquerda. Não reparara até aquele momento.

- Vai ser mais fácil se você descalçar a luva - comentou a Sra. Perrine. Talvez tivesse passado um ligeiro brilho por seus olhos.

- Imagino que sim - disse Ralph com humildade. Sacudiu fora a luva e abotoou a suéter de McGovern.

- Meu oferecimento continua de pé, Roberts.

- Desculpe, que foi que disse?

- Meu oferecimento de consertar sua camisa. Isto é, se você puder se separar dela um ou dois dias. - Fez uma pausa.

- Acredito que tenha outra camisa... Que possa usar enquanto conserto a que está usando.

- Claro que tenho - respondeu Ralph. - Com certeza. E não são poucas.

- Escolher uma todos os dias deve ser um desafio para você. Seu queixo está sujo de caldo de feijão, Roberts. - Com esta sentença, os olhos da Sra.Perrine piscaram para o caminho à frente e ela recomeçou sua marcha.

O que Ralph fez então, fez sem premeditar ou compreender; foi tão instintivo quanto o gesto de cortar que usara anteriormente para afugentar o Dr. n^3 de perto de Rosalie.

Ergueu a mão que estivera metida na luva térmica e enrolou-a como um canudo em torno da boca. Então inspirou com força, produzindo um silvo leve e sussurrante.

Os resultados foram assombrosos. Um risco de luz cinzenta desprendeu-se da aura da Sra.

Perrine como o espinho de um porco-espinho. Alongou-se rapidamente, dobrou para trás enquanto a senhora seguia em frente, cruzou o gramado coberto de folhas e entrou como uma flecha no canudo formado pelos dedos de Ralph. Ele percebeu quando a luz entrou em sua respiração e foi como se engolisse energia pura. Sentiu-se repentinamente aceso como um letreiro de néon ou a marquise de cinema em cidade grande. Uma sensação explosiva de força - uma espécie de Bum - percorreu-lhe o peito e o estômago, depois desceu pelas pernas até as pontas dos dedos dos pés. Ao mesmo tempo, chispou para sua cabeça, ameaçando arrancarlhe o topo do crânio como se fosse o telhado de concreto fino de um depósito de míssil.

Viu raios de luz, cinzentos como um nevoeiro eletrificado, escaparem fumegantes por entre seus dedos. Uma sensação de poder, prazerosa e terrível, iluminou seus pensamentos, mas durou apenas um instante. Seguiram-se outras de vergonha e horror.

Que é que você está fazendo, Ralph? Seja o que for isso, não lhe pertence. Você meteria a mão na bolsa dela para tirar parte do seu dinheiro quando ela estivesse distraída?

Sentiu o rosto ruborizar. Baixou a mão em concha e fechou a boca. Quando seus lábios e dentes se juntaram, ouviu claramente - e chegou a sentir-que mastigava uma coisa crocante. O mesmo ruído que se ouvia ao mastigar aipo fresco.

A Sra. Perrine parou, e Ralph observou-a apreensivo, quando ela deu meia-volta e espiou Avenida Harris. Não tive intenção, pensou dirigindo-se a ela. Juro que não, Sra. P. ainda estou engatinhando nessa coisa.

- Roberts?

- Sim, senhora?

- Você ouviu alguma coisa? Parecia um tiro.

Ralph sentiu as orelhas latejarem com o influxo de sangue quente, ao sacudir negativamente a cabeça.

- Não... mas os meus ouvidos já não são o que...

- Provavelmente o escape de algum carro na rua Kansas - disse, desprezando de cara sua desculpa. - Mas confesso que fez o meu coração parar.

Ela retomou seu caminho com aquele andar estranho, deslizante de rainha de xadrez, então parou mais uma vez e olhou para trás, na direcção de Ralph. Sua aura começara a dissolverse, mas ele não teve dificuldade em ver seus olhos: eram aguçados como os de um falcão.

- Você está com a aparência diferente, Roberts - falou. - Mais jovem.

Ralph, que esperara outra coisa (Me devolve o que furtou, Roberts, agora mesmo, por exemplo), só conseguiu se atrapalhar.

- A senhora acha... é muito... quero dizer obrigado... Ela fez um aceno impaciente com a mão, como se dissesse "ah, cala a boca".

- Provavelmente é a luz. Aconselho você a não respingar comida nessa suéter, Roberts. A impressão que tenho é que o Sr. McGovern é muito cuidadoso com o que lhe pertence.

- Pois deveria ter cuidado melhor do chapéu-retorquiu Ralph.

Aqueles olhos vivos, que iam mais uma vez se desviando, voltaram a fitá-lo.

- Desculpe, que foi que disse?

- O panamá - Ralph respondeu. - Ele o perdeu em algum lugar.

A Sra. Perrine examinou a afirmação à luz do intelecto por um momento, em seguida dispensou-a com um Hum.

- Vá para dentro, Roberts. Se continuar mais tempo aqui fora, vai conseguir morrer de pneumonia. - E então deslizou para casa, aparentemente nem um pouco pior em consequência do impensado furto de Ralph.

Furto? Estou muito seguro que é a palavra errada, Ralph. O que vocêfezagora há pouco foi algo muito mais próximo ao...

- Vampirismo - completou Ralph sombriamente. Pôs a panela de feijão de lado e começou a esfregar as mãos lentamente. Sentia-se envergonhado... culpado... e praticamente explodindo de energia.

Você furtou energia vital ao invés de sangue, mas um vampiro é um vampiro, Ralph.

É verdade. E subitamente ocorreu a Ralph que não devia ter sido a primeira vez que fizera tal coisa.

Você está com a aparência diferente, Roberts. Mais jovem. Foi o que a Sra. Perrine dissera há pouco, mas as pessoas tinham feito comentários semelhantes desde o fim do verão, não tinham? A principal razão por que seus amigos não o forçaram a procurar um médico é que não parecia haver nada errado com ele.

Queixava-se de insónia, mas era a imagem da saúde. Acho que aquele favo de mel deve ter realmente feito milagre, dissera John Leydecker no domingo, pouco antes de deixarem juntos a biblioteca - parecia ter sido na Idade do Ferro agora. Quando Ralph perguntara a que se referia, Leydecker respondera que estava se referindo à sua insónia. Você parece mil vezes melhor do que no dia em que o conheci.

E Leydecker não fora o único. Ralph tinha andado praticamente se arrastando durante o dia, sentindo-se gasto, cansado, abatido... mas as pessoas não se cansavam de comentar sua boa aparência, seu ar descansado e jovem. Helen... McGovern... e até Faye Chapin dissera alguma coisa há umas duas semanas, embora Ralph não lembrasse exactamente o quê...

- Mas claro que lembro - falou em voz baixa, desanimado. - Ele me perguntou se eu estava usando creme anti-rugas. Creme anti-rugas, pelo amor de Deus!

Será que já andava furtando a energia vital dos outros naquela altura? Furtando sem sequer se dar conta?

- É bem provável - disse na mesma voz baixa. - Deus dos céus, sou um vampiro.

Mas seria a palavra certa?-perguntou-se imediatamente. Não seria possível que, no mundo das auras, chamassem um ladrão de energia de Centurião?

O rosto pálido e tenso de Ed surgiu diante dele como um fantasma que retorna para acusar seu assassino, e Ralph, inesperadamente aterrorizado, abraçou os joelhos e baixou a cabeça para descansá-la ali.

 

AS SETE E VINTE DA NOITE, uma Lincoln Town superconservada, do final dos anos setenta, encostou no meio-fio diante da casa de Lois. Ralph - que passara a última hora tomando banho, barbeando-se e tentando se acalmar - encontrava-se na varanda e observou Lois desembarcar do banco traseiro do carro. A brisa trouxe aos seus ouvidos adeuses e risos joviais e alegres.

A Lincoln partiu e Lois começou a se dirigir para casa. A meio caminho parou e virou-se.

Por um longo momento, os dois se entreolharam de lados opostos da Avenida Harris, vendo perfeitamente bem, apesar da escuridão crescente e dos quase duzentos metros que os separavam. Os dois iluminaram-se um para o outro naquela escuridão, como tochas secretas.

Lois apontou um dedo para ele. Um gesto muito próximo ao que fizera antes de atirar no Dr. n23, mas isto não perturbou Ralph em nada.

Intenção, pensou. Tudo reside na intenção. Há poucos erros neste mundo... e uma vez que se descobre como são as coisas, talvez não haja erro algum.

Um raio fino de força, cinza-metálico, apareceu na ponta do dedo de Lois e começou a se alongar pelas sombras da Avenida Harris. Um carro atravessou-o calmamente. As janelas do carro reflectiram momentaneamente uma luz cinza ofuscante e seus faróis pareceram piscar por um instante, mas foi só.

Ralph ergueu o dedo, e produziu um raio azul. Os dois fios de luz se encontraram no meio da Avenida Harris e se entrelaçaram como uma trepadeira.

E foram subindo cada vez mais alto, esmaecendo gradualmente durante a subida. Então Ralph enrolou o dedo, e a sua metade deste laço amoroso no meio da Avenida Harris piscou e desapareceu. Pouco depois, a metade de Lois também desapareceu. Ralph desceu lentamente os degraus da varanda e começou a atravessar o gramado. Lois veio ao seu encontro. Juntaram-se no meio da rua... onde, num sentido muito real, já haviam se juntado.

Ralph enlaçou-a pela cintura e beijou-a.

VOCÊ está com a aparência diferente, Roberts, mais jovem.

As palavras não cessavam de voltar à sua mente - repetindo-se como uma gravação sem fim - enquanto Ralph, sentado na cozinha de Lois, bebia café. Não conseguia despregar os olhos da amiga. Ela parecia bem uns dez anos mais jovem e cinco quilos mais magra do que a Lois que se habituara a ver nos últimos anos. Será que parecia assim jovem e bonita hoje no parque? Ralph achava que não, mas naturalmente ela estivera perturbada naquela manhã, perturbada e chorosa e ele supunha que isto fizesse diferença.

Contudo...

É, contudo... A redezinha de linhas que contornavam os cantos de sua boca tinha desaparecido. E igualmente as rugas incipientes no pescoço e o babado de carne flácida que começara a se formar em seus braços. Chorara pela manhã e estava radiante de felicidade agora à noite, mas Ralph sabia que isso não esclarecia todas as mudanças que observava.

- Sei o que você está olhando-falou Lois.-Parece coisa de assombração, não é? Quero dizer, responde à indagação se tudo isto estaria ocorrendo apenas em nossas mentes, mas contínua a parecer meio sobrenatural. Descobrimos a Fonte da Juventude. Nada de Flórida;

ela sempre esteve aqui em Derry.

- Nós a descobrimos?

Por um momento, ela apenas expressou surpresa... e uma certa preocupação, como se desconfiasse que ele pretendia gozá-la, fazê-la de boba. Tratá-la como a "Nossa Lois".

Então estendeu a mão por cima da mesa e apertou a dele.

- Vá até o banheiro. Dê uma olhada em sua cara.

- Sei com que cara estou. Diabos, acabei de me barbear. E gastei um bocado de tempo.

Ela concordou com a cabeça.

- Você caprichou mesmo, Ralph... mas não estou me referindo à sua barba às cinco da tarde. Dê uma boa olhada em sua cara.

- Você está falando sério?

- Claro que estou - respondeu com firmeza.

Ia quase alcançando à porta quando ela acrescentou.

- E não fez apenas a barba; trocou a camisa também. Que bom. Eu não quis dizer nada, mas a camisa xadrez estava rasgada.

- Estava?-Ralph perguntou. Tinha as costas viradas, de modo que ela não pôde vê-lo sorrir. - Não reparei.

ELE FICOU parado com as mãos apoiadas na pia, examinando o rosto bem uns dois minutos. Foi o tempo que levou para admitir para si mesmo que estava realmente vendo o que pensava que estava vendo. Os fios negros, reluzentes como penas de corvo, que tinham reaparecido em sua cabeleira eram assombrosos, bem como a ausência das feias bolsas sob os olhos, mas a coisa que o impedia de desviar os olhos era a maneira como as rugas e vincos fundos tinham desaparecido de seus lábios. Era uma bobagem... mas era também uma mudança substancial. Era a boca de um rapaz. E...

Abruptamente, Ralph correu o dedo por dentro da boca, acompanhando a fileira inferior de dentes do lado direito. Não podia ter absoluta certeza, mas lhe davam a impressão de estarem mais altos, como se parte do desgaste tivesse se recomposto.

- Caramba! - Ralph murmurou, e seu pensamento voltou àquele dia escaldante do verão anterior, quando enfrentara Ed Deepneau no gramado de sua casa. Ed primeiro o convidara para puxar uma pedra e em seguida lhe confidenciara que Derry tinha sido invadida por criaturas sinistras que matavam bebês. Ladrões de vidas. Todas as linhas de força já começaram a convergir para cá, Ed afirmara. Sei como é difícil acreditar, mas é verdade.

Ralph achava cada vez menos difícil acreditar. O mais difícil mesmo era acreditar na ideia de que Ed estivesse louco.

- Se isto não parar - disse Lois da porta, assustando-o, - vamos ter de nos casar e mudar de cidade, Ralph. Simone e Mina não conseguiam, literalmente não conseguiam, despregar os olhos de mim. Falei uma porção de bobagens sobre um novo tipo de maquilhagem que tinha comprado no shopping, mas elas não enguliram a conversa. Um homem teria engolido, mas uma mulher sabe o que a maquilhagem é capaz de fazer. E o que não é.

Voltaram juntos para a cozinha e, embora as auras tivessem temporariamente desaparecido, Ralph descobriu que ainda podia ver alguma coisa: um rubor que saía pela gola da blusa de seda branca de Lois.

- Finalmente disse a única coisa em que poderiam acreditar.

- E o que foi?

- Disse que conhecera um homem. - Ela hesitou e, em seguida, quando o rubor chegou ao seu rosto e lhe coloriu as faces de rosa, ela mergulhou de cabeça. - E me apaixonara por ele.

Ralph segurou o braço de Lois e virou-a para ele. Reparou na dobrinha nítida na parte interna de seu cotovelo e pensou no quanto gostaria de acariciá-la com a boca. Ou talvez com a ponta da língua. Então ergueu os olhos para Lois.

- E era verdade?

Ela o encarou com os olhos cheios de esperança e candura.

- Acho que sim-disse em voz baixa, porém clara -, mas ultimamente tudo anda tão estranho. A única certeza que tenho é que gostaria que fosse verdade. Quero ter um amigo.

Tenho vivido assustada, infeliz e solitária há muito tempo. Acho a solidão a pior parte da velhice... não são as dores, o mal-estar, os intestinos preguiçosos ou a perda de fôlego quando se sobe uma escada que se subia praticamente voando aos vinte anos... mas a solidão.

- Verdade - disse Ralph. - É o pior.

- Ninguém mais conversa com a gente... ah, sim, as pessoas se dirigem a gente, às vezes, mas não é a mesma coisa... Na maioria das vezes, elas sequer nos vêem. Você já se sentiu assim?

Ralph pensou na Derry dos Velhos Coroas, uma cidade em geral desprezada pelo mundo dos que correm-para-trabalhar e correm-para-brincar que gira à sua volta, e concordou.

- Ralph, me abraça?

- Com todo o prazer-respondeu, e puxou-a gentilmente para o círculo dos seus braços.

ALGUM tempo depois, amarrotados e tontos, mas felizes, Ralph e Lois sentaram-se juntos no sofá da sala de estar, um móvel tão ao jeito de um gnomo que, na realidade, tinha apenas dois lugares. Mas nem um nem outro se importou com isso. Ralph passou o braço pelos ombros de Lois. Ela soltara os cabelos e ele enrolou um cacho nos dedos, refletindo sobre a facilidade com que se esquecia a sensação que transmitiam os cabelos de uma mulher, tão maravilhosamente diferentes dos de um homem. Lois lhe contara sobre o jogo de cartas e Ralph ouvira com atenção, admirado, sim, mas pouco surpreso.

Havia mais ou menos uma dúzia de mulheres que jogavam quase toda semana em Ludlow Grange a uns centavos o ponto. Era possível voltar para casa cinco dólares mais rica ou mais pobre, mas o resultado mais provável era terminar ganhando um dólar ou perdendo um punhado de trocados. Embora houvesse tanto jogadoras boas quanto trapalhonas (Lois se incluía entre as primeiras), era principalmente uma maneira divertida de passar a tarde - a versão feminina do torneio de xadrez e das maratonas de buraco dos Velhos Coroas.

- Só que esta tarde eu não conseguia perder. Com as meninas me perguntando que vitaminas tinha tomado e onde tinha feito o último tratamento de pele e todo o resto era para ter voltado para casa completamente falida. Quem é que consegue se concentrar em variações bobinhas de pôquer, quando precisa ficar inventando mentiras sem tropeçar nas que já disse?

- Deve ter sido duro - Ralph comentou, tentando não rir.

- Foi, Duríssimo! Mas, ao invés de perder, não parava de ganhar. E sabe por quê, Ralph?

Ele sabia, mas fez que não com a cabeça, para que ela pudesse contar. Gostava de ouvi-la.

- Foram as auras. Nem sempre sabia ao certo que cartas as meninas tinham na não, mas muitas vezes sabia. E mesmo quando não sabia, tinha uma ideia bastante clara se as mãos eram boas. As auras nem sempre estavam visíveis, você sabe como elas vêm e vão, mas, mesmo quando desapareciam, jogava melhor do que jamais joguei na vida. Durante a última hora, comecei a perder de propósito, só para não ficarem com raiva de mim. E sabe de uma coisa? Até mesmo perder de propósito foi duro.-Ela baixou os olhos para as mãos que começara a cruzar e descruzar nervosamente no colo. - E na volta, fiz uma coisa que me deixou morta de vergonha.

Ralph começou a vislumbrar de novo a aura de Lois, uma mancha fraca e cinzenta na qual giravam bolhas azuis-escuras em formação.

- Antes que você continue - falou -, escute só e me responda se já viu isto antes.

Ralph contou que a Sra. Perrine vinha se aproximando, quando estava sentado na varanda jantando, enquanto esperava Lois voltar. Ao recontar o que fizera à velha senhora, baixou os olhos e sentiu as orelhas arderem outra vez.

- É - falou Lois quando ele terminou. - Foi a mesma coisa que me aconteceu... mas não tive intenção, Ralph... pelo menos, acho que não tive. Estava sentada com Mina no banco traseiro do carro, e ela retomou aquela conversa interminável sobre a minha aparência diferente, meu ar jovem e pensei, fico constrangida de dizer isto abertamente, Ralph, mas acho que é a melhor solução: pensei, vou calar sua boca sua velha bisbilhoteira e invejosa.

Porque era inveja, Ralph. Dava para ver na aura dela. Uns enormes dentes da cor exacta dos olhos de um gato. Não me admira que chamem a inveja de monstro de olhos verdes! Em todo o caso, apontei para fora da janela e comentei: "Aaah, Mina, não é uma graça aquela casinha?" E quando ela se virou para olhar, eu... fiz o que você fez, Ralph. Só que não enrolei a mão. Fiz uma espécie de biquinho com a boca... assim... - Ela demonstrou, parecendo tão beijável que Ralph se sentiu tentado (quase compelido, na realidade) a se aproveitar da expressão -... e inspirei uma grande nuvem da aura dela.

- E que aconteceu? - Ralph perguntou, fascinado e receoso.

Lois riu arrependida.

- A mim ou a ela?

- Às duas.

- Mina deu um salto e deu um tapa na nuca. 'Tem um bicho no meu pescoço!", ela disse.

"E me mordeu!. Tira ele daí, Lo! Por favor, tira ele daí!" Claro que não havia nenhum bicho, o bicho era eu, mas enxotei a coisa da nuca de Mina, abri a janela e disse que o bicho tinha saído, voado para fora do carro. Ela teve sorte de não ter lhe dado uma cacetada na cabeça ao invés de uma simples palmada no pescoço: isso é para você ver como eu estava cheia de energia. Me sentia capaz de abrir a porta do carro e correr até em casa.

Ralph concordou.

- Foi maravilhoso... maravilhoso demais. É como nos filmes sobre drogas que passam na TV, primeiro levam a pessoa ao céu e depois a acorrentam no inferno. E se começarmos a fazer isso e não conseguirmos parar?

- É - comentou Ralph. - E se fizer mal às pessoas? Penso o tempo todo em vampirismo.

- Sabe no que penso o tempo todo? - A voz de Lois se transformara num murmúrio. Naquelas coisas que o Ed lhe falou. Naqueles Centuriões. E se eles forem nós, Ralph? E se eles forem nós?

Ele a abraçou e lhe deu um beijo no alto da cabeça. Ouvir o seu pior receio sair da boca de Lois aliviou um pouco o peso em seu peito o que o fez lembrar do que ela dissera sobre a solidão ser a pior parte da velhice.

- Eu sei - respondeu. - E o que fiz à Sra. Perrine foi totalmente impulsivo: não me lembro de ter pensado no que fazia, simplesmente fiz. Com você também foi assim?

- Foi. Exatamente. - Ela encostou a cabeça em seu ombro.

- Não podemos fazer mais isso - ele falou. - Porque pode realmente viciar. Uma coisa que dá tanto prazer tem de viciar, você não concorda? E também precisamos tentar colocar umas defesas que nos impeçam de fazer isso involuntariamente. Porque acho que tenho feito isso. Quem sabe não foi essa a razão por que...

O ruído de uma freada, derrapagem e pneus cantando interromperam-no. Ralph e Lois se entreolharam espantados, quando o ruído continuou sem parar, como se o desastre procurasse um ponto de impacto.

Ouviram um baque abafado quando os freios e os pneus silenciaram. Seguiu-se um grito breve de mulher ou de criança, Ralph não soube distinguir. Alguém mais berrou:

"Que aconteceu" e depois "Cacilda!" Ouviram um atropelo de passos na rua.

- Fique no sofá - Ralph correu para a janela da sala. Quando levantou a cortina, Lois estava colada nele, e Ralph sentiu um lampejo de aprovação. Era o que Carolyn teria feito nas mesmas circunstâncias.

Viram um mundo noturno que palpitava com cores estranhas e movimentos fabulosos.

Ralph sabia que iam ver Bill, sabia - Bill atropelado por um carro, caído morto na rua, o chapéupanamá com a meia-lua comida próximo à sua mão estendida. Passou o braço pelas costas de Lois e ela agarrou sua mão.

Mas não era McGovern quem se achava no leque luminoso dos faróis do Ford, atravessado no meio da Avenida Harris: era Rosalie. Suas investidas matinais tinham chegado ao fim.

Estava caída de lado, numa poça crescente de sangue, o dorso dobrado e torcido em diversos pontos. Quando o motorista do carro que atingira a velha vira-lata se ajoelhou ao seu lado, a luz impiedosa da lâmpada mais próxima iluminou seu rosto. Era Joe Wyzer, o farmacêutico da Rite Aid, sua aura amarelo-laranja agora girando em confusos torvelinhos vermelhos e azuis. Ele acariciou o flanco da cachorra, e toda vez que sua mão penetrava a nojenta aura negra colada à Rosalie, ela desaparecia. O terror atravessou Ralph, fazendo sua temperatura cair e os testículos murcharem até ficarem como carocinhos duros de pêssego.

Inesperadamente voltou a julho de 1992, Carolyne morria, o relógio da morte tiquetaqueava e uma coisa esquisita acontecera com Ed Deepneau. Ed surtara e Ralph via-se tentando impedir que o marido de Helen, normalmente bem-humorado, avançasse no homem com o boné da firma de jardinagem de West Side querendo lhe cortar a garganta. Então - a cereja da charlotte russe, como diria Carolyn - surgira Dorrance Marstellar. O velho Dor. E o que dissera?

Eu não tocaria mais nele... Não consigo ver suas mãos.

Não consigo ver suas mãos.

- Ah meu Deus - Ralph murmurou.

FOI TRAZIDO de volta à realidade pela impressão de que Lois oscilava contra ele, como se estivesse a ponto de desmaiar.

- Lois! - falou com firmeza, agarrando-a pelo braço. - Lois, você está bem?

- Acho que sim... mas Ralph... você está vendo...

- É, é Rosalie. Acho que ela...

- Não estou falando dela; estou falando dele. - Ela apontou para a direita.

O Dr. N-3 estava encostado no porta-malas do Ford de Joe Wyzer, o panamá de McGovern inclinado jovialmente para trás do seu crânio pelado. Ele olhou na direcção de Ralph e Lois, sorriu com insolência, então levou lentamente o polegar à ponta do nariz e fez um gesto de fiau para eles.

- Filho da puta! - berrou Ralph, e deu um soco na parede ao lado da janela, desafogando sua frustração.

Meia dúzia de pessoas acorreu à cena do acidente, mas não havia nada que pudessem fazer; Rosalie estaria morta antes mesmo que a mais próxima chegasse ao lugar onde ela jazia iluminada pelos faróis do carro. A aura negra ia se solidificando, transformando-se em uma substância muito semelhante a um tijolo escuro de fuligem. Envolvia a cachorra como uma mortalha justa, e a mão de Wyzer desaparecia quase até o pulso toda vez que penetrava aquela horrível veste.

Agora o Dr. N-5 levantava a mão com o dedo médio esticado para cima e inclinava a cabeça - uma pantomima didática tão eficaz que praticamente dizia em voz alta: "Prestem atenção, por favor!" Avançou na ponta dos pés - sem necessidade, pois não podia mesmo ser visto pelos circunstantes, mas teatralmente correcto - e esticou a mão para o bolso traseiro de Joe Wyzer. Deu uma espiada em Ralph e Lois, como se perguntasse se continuavam prestando atenção. Então recomeçou a andar na ponta dos pés, com a mão esquerda esticada.

- Faça ele parar, Ralph - Lois gemeu. - Por favor, faça ele parar.

Devagar, como um homem drogado, Ralph ergueu a mão e baixou-a de um golpe. Uma cunha azul voou da ponta de seus dedos, mas dispersou-se ao atravessar a vidraça. Uma névoa pastel espalhou-se até uma curta distância da casa de Lois e em seguida desapareceu.

O doutor careca sacudiu o dedo numa pantomima enfurecedora: Ah, menino mauzinho, dizia.

O Dr. N-5 estendeu de novo a mão e puxou uma coisa do bolso traseiro de Joe Wyzer, ainda ajoelhado na rua, lamentando a cachorra. Ralph não conseguiu saber direito o que era, até que a criatura de avental sujo tirou o chapéu de McGovern e fingiu usar o objeto nos cabelos ausentes. Furtara um pente de bolso preto, do tipo que se compra em qualquer loja de conveniências por um dólar e vinte e nove. Então deu um salto no ar e bateu os calcanhares como um elfo maligno.

Rosalie ergueu a cabeça à aproximação do doutor careca. Em seguida, largou-a de novo no chão e morreu. A aura que a envolvia desapareceu na mesma hora, não se dissolveu aos poucos, simplesmente sumiu num abrir e fechar de olhos como uma bolha de sabão. Wyzer se levantou, virou-se para um homem parado na calçada e começou a lhe contar o que acontecera, gesticulando com as mãos para indicar como a cachorra atravessara correndo a frente do carro. Ralph descobriu que conseguia até ler uma sequência de seis palavras que saíam dos lábios de Wyzer: nem vi de onde ela saiu.

Ao olhar para o carro de Wyzer, Ralph viu que o doutorzinho careca voltara para lá.

 

RALPH CONSEGUIU dar partida no seu calhambeque Oldsmobile, mas, ainda assim, levou vinte minutos para atravessar a cidade até o Derry Home que ficava na parte leste. Carolyn compreendera sua crescente preocupação ao dirigir e tentara se solidarizar, mas possuía um traço de impaciência e pressa em sua natureza, que os anos não tinham suavizado muito. Em viagens de mais de um quilómetro, ela mal conseguia evitar as censuras. Ruminava em silêncio por alguns momentos e aí começava a criticar. Se estava particularmente exasperada com o seu progresso - ou falta de progresso - talvez perguntasse se um clister o ajudaria a se livrar do chumbo no rabo. Ela era um amor, mas sempre tivera uma língua afiada.

Em seguida a esses comentários, Ralph sempre se oferecia - e sempre sem rancor - para encostar o carro e deixá-la dirigir. Carol sempre dispensara o oferecimento. Acreditava que, pelo menos nas viagens curtas, dirigir era a obrigação do marido e fazer críticas construtivas a da mulher.

Ele ficou à espera de que Lois fizesse alguma observação sobre sua velocidade ou seus maus hábitos ao volante (atualmente achava que não conseguiria se lembrar muito bem quais eram, nem que alguém lhe apontasse uma arma para a cabeça), mas ela não disse nada apenas sentou-se no lugar que Carolyn ocupara em cinco mil viagens ou mais, a bolsa segura no colo exactamente como Carolyn sempre fizera. Cunhas de luz - néons de letreiros, sinais de tráfego, lâmpadas de rua - passavam como arco-íris pelas faces e testa de Lois. Seus olhos escuros estavam distantes e pensativos. Chorara depois da morte de Rosalie, chorara copiosamente e fizera Ralph baixar a cortina.

Ralph quase a desobedecera. Seu primeiro impulso fora correr para a rua, antes que Joe Wyzer pudesse ir embora. Dizer a Joe que tivesse muito cuidado. Dizer que, quando esvaziasse os bolsos das calças à noite, ia dar por falta de um pente barato, o que não era nenhum problema, as pessoas viviam perdendo pentes, só que desta vez era um problema cabeludo, e da próxima vez quem sabe seria o farmacêutico da Rite Aid, Joe Wyzer, quem estaria caído ao fim da derrapagem. Escute aqui, Joe, e me escute com atenção. Você tem de tomar muito cuidado, porque recebemos muitas notícias da Zona da Hiper-realidade, e no seu caso todas chegam com uma tarja preta.

Mas isto também acarretava problemas. O maior era que Joe Wyzer, por mais simpático que tivesse sido no dia em que cavara para Ralph a consulta com o acupunturista, iria pensar que ele era doido. Além disso, como alguém iria se defender de uma criatura que sequer conseguia enxergar?

Então ele baixara a cortina... mas antes, deu uma última e insistente olhada no homem que lhe contara que antigamente se chamava Joe Wyze, mas agora estava mais velho e mais sabido. As auras continuavam visíveis, e ele pôde ver o fio de balão de Wyzer, um amarelo-laranja vivo, subindo intacto do alto de sua cabeça. Portanto, ele estava bem.

Pelo menos por ora.

Ralph levara Lois para a cozinha e lhe servira outra xícara de café forte, com muito açúcar.

- Ele matou a cachorra, não foi? - ela perguntou ao levar a xícara à boca com as duas mãos- O bruto a matou.

- Foi. Mas não acho que tenha feito isso agora à noite. Acho que na realidade matou-a hoje de manhã.

- Por quê? Por quê?

- Porque pode - respondeu Ralph sombriamente. - Acho que é o único motivo que precisa ter. Simplesmente porque pode.

Lois lhe lançara um olhar demorado e avaliador, e uma expressão de alívio surgiu lentamente em seus olhos.

- Você decifrou a charada, não foi? Devia ter percebido no minuto em que o vi hoje à noite. E teria percebido se não houvesse tantas outras coisas girando por minha suposta mente.

- Decifrado? Estou muito longe disso, mas tenho algumas ideias. Você me acompanharia até o Derry Home?

- Acho que sim. Você quer ver o Bill?

- Não sei muito bem quem eu quero ver. Talvez o Bill, mas talvez o amigo de Bill, Bob Polhurst. Talvez até o Jimmy Vandermeer: você conhece ele?

- Jimmy V.? Claro que conheço! Conhecia a mulher dele ainda melhor. Na verdade, ela jogou pôquer conosco até morrer. Foi um ataque cardíaco, e tão súbito...

Interrompeu-se de repente e olhou para Ralph com seus escuros olhos ibéricos.

- Jimmy está no hospital? Ah, meu Deus, é o câncer, não é? O câncer voltou.

- Hum hum. Ele está no quarto vizinho ao do amigo de Bill. - Ralph contou-lhe a conversa que tivera com Faye àquela manhã e mencionou o bilhete que encontrara à tarde na mesa de piqueniques. Destacou a estranha conjunção de quartos e pacientes: Polhurst, Jimmy V., Carolyn, e perguntou a Lois se achava que aquilo era apenas coincidência.

- Não. Tenho certeza de que não é. - Ela olhara para o relógio.

- Vamos, acho que a hora de visitas termina às nove e trinta. Se queremos chegar lá antes do encerramento é melhor nos mexermos.

AGORA, ao virar para a rua do hospital (Esqueceu a droga do pisca-pisca outra vez, querido, Carolyn comentou), ele olhou para Lois, a Lois sentada ali com as mãos segurando a bolsa e a aura agora invisível, e perguntou se ela estava bem.

Ela acenou com a cabeça.

- Estou. Nada para me gabar, mas estou bem. Não se preocupe comigo.

Mas eu me preocupo, Lois, Ralph pensou. E um bocado. E por falar nisso, você viu o Dr. n-3 tirar o pente do bolso de Joe Wyzer?

Que pergunta idiota. Claro que vira. O anão careca quis que ela visse. Quis que os dois vissem. A pergunta pertinente era que significado ela emprestara ao fato.

Quanto você realmente sabe, Lois? Quem mais você conheceu? Tenho curiosidade, porque eles não são nada difíceis de ver... mas sinto medo de perguntar.

Havia um prédio baixo de tijolos à vista, a uns quinhentos metros mais adiante, numa estrada secundária: WomanCare. Numerosos faroletes (seguramente recém-instalados) lançavam leques de luz pelo gramado e Ralph viu dois homens caminhando para diante e para trás na extremidade de suas sombras grotescamente alongadas... seguranças contratados, supunha.

Mais um palpite; outra palha lançada num vento maligno.

Ele dobrou à esquerda (desta vez pelo menos lembrou-se do pisca-pisca) e seguiu cuidadosamente pela rampa que dava acesso aos vários níveis de garagens no hospital. No alto, uma cancela laranja bloqueou seu caminho. PARE POR FAVOR E RETIRE O TICKET, dizia o aviso ao lado. Ralph lembrava-se do tempo em que havia gente de verdade em lugares como aquele, fazendo-os parecer menos mal-assombrados. Those were the days, myfriend, we thought they'd never end, ele pensou ao baixar o vidro da janela do carro e puxar um ticket da caixa automática.

- Ralph?

- Hummm? - Concentrava-se em evitar os pára-choques traseiros dos carros parados em ângulo dos dois lados dos corredores. Sabia que os corredores eram extremamente largos e os pára-choques dos outros carros não eram de fato um obstáculo ao seu avanço intelectualmente sabia disso -, mas o que seus nervos sabiam era outra conversa. Como Carolyn ia encher o saco e reclamar da minha maneira de dirigir, pensou com um certo carinho inconsciente.

- Você sabe mesmo o que estamos fazendo aqui, ou vamos improvisar?

- Espere um instantinho: deixa eu estacionar essa droga. No primeiro nível, ele deixou passar várias vagas com espaço suficiente para o seu Oldsmobile, mas nenhuma com folga suficiente para deixá-lo à vontade. No terceiro nível, encontrou três vagas lado a lado (juntas tinham espaço suficiente para acomodar confortavelmente um tanque Sherman) e entrou cuidadosamente com o carro na vaga do meio. Desligou o motor e virou-se para Lois. Outros motores roncavam em marcha lenta acima e abaixo deles, impossíveis de localizar por causa do eco.

Luz laranja: aquela claridade persistente e penetrante agora comum a todos as garagens, ao que parecia - incidia sobre a pele dos dois como uma fina tinta tóxica. Lois retribuiu com firmeza o seu olhar. Ele percebia vestígios das lágrimas que derramara por Rosalie em suas pálpebras vermelhas e inchadas, mas os olhos em si estavam calmos e seguros. Espantou-se de ver o quanto ela mudara desde aquela manhã, quando a encontrara de ombros curvados, chorando, num banco do parque. Lois, pensou, se seu filho e sua nora pudessem lhe ver hoje à noite, acho que fugiriam gritando a plenos pulmões. Não porque você meta medo, mas porque a mulher que eles vieram forçar a se mudar para Riverview Estates não está mais aqui.

- Então? - ela perguntou com um vestígio de sorriso. - Você vai falar comigo ou vai ficar só me olhando?

Ralph, normalmente um homem cauteloso, disse irreflectidamente a primeira coisa que lhe passou pela cabeça.

- O que gostaria mesmo de fazer era lamber você como um sorvete.

O sorriso de Lois aprofundou-se o suficiente para formar covinhas nos cantos da boca.

- Talvez mais tarde a gente confira qual é o tamanho da sua fome de sorvete, Ralph. Mas, por enquanto, me diga por que me trouxe aqui. E não vá me dizer que não sabe, porque eu acho que sabe.

Ralph fechou os olhos, inspirou profundamente e tornou a abri-los.

- Acho que estamos aqui para encontrar os outros dois carecas. Os que vi saindo da casa de May Locher. Se alguém for capaz de explicar o que está acontecendo, serão eles.

- E por que acha que vai encontrá-los aqui?

- Acho que têm trabalho para fazer... dois homens, Jimmy V. e o amigo de Bill, estão morrendo lado a lado. Eu devia ter sabido quem são os doutores carecas, o que fazem, no minuto que vi os caras da ambulância retirarem a Sra. Locher amarrada numa maça com um lençol sobre o corpo. Saberia, se não estivesse morrendo de cansaço. A tesoura deveria ter bastado. Ao invés disso, levei até esta tarde para compreender e só o consegui por causa de uma coisa que a sobrinha do Sr. Polhurst disse.

- E o que foi?

- Que a morte era idiota. Que se um obstetra levasse tanto tempo para cortar um cordão umbilical, ele seria processado por incompetência. Isto me fez pensar em um mito que li na escola primária, quando era doido por deuses e deusas e cavalos de Tróia. Era a história de três irmãs: as Irmãs Gregas, talvez, ou as Irmãs Esquisitas. Merda, não me pergunte; a maior parte do tempo nem consigo lembrar de usar a droga do pisca-pisca. Em todo o caso, as irmãs eram responsáveis pelo curso da vida humana. Uma delas fiava a linha, outra decidia que tamanho iria ter... isto está lhe lembrando alguma coisa, Lois?

- Claro que sim! - ela quase gritou. - Os fios de balão! Ralph assentiu.

- Isso. Os fios de balão. Não me lembro do nome das duas primeiras irmãs, mas nunca me esqueci do nome da terceira: Atropos. Segundo a lenda, sua função é cortar o fio que a primeira fiava e a segunda media. A pessoa podia discutir com ela, podia suplicar, mas nunca adiantava. Quando decidia que estava na hora de cortar, ela cortava.

Lois concordava com a cabeça.

- Lembro dessa história. Não sei se a li ou se alguém me contou quando era criança. Você acredita que seja realmente verdade, Ralph? Só que no caso são os Irmãos Carecas ao invés das Irmãs Esquisitas.

- É, e não é. Pelo que lembro da história, as irmãs estavam todas do mesmo lado: uma equipe. E essa foi a impressão que me deram os dois homens que saíram da casa da Sra. Locher, que eram parceiros de longa data e ligados por um imenso respeito mútuo. Mas o outro cara, o que tornamos a ver hoje à noite, não se parece com eles. Acho que o Dr. N-3 é um bandido.

Lois estremeceu, um gesto teatral que se tornou real no último momento.

- Ele é um horror, Ralph. Odeio ele.

- Não tiro a sua razão.

Ele estendeu a mão para a maçaneta da porta, mas Lois interrompeu-o com um toque.

- Vi o careca fazer uma coisa.

Ralph se virou para olhá-la. Os tendões de seu pescoço rangeram enferrujados. Tinha uma boa ideia do que ela ia dizer.

- Ele roubou o homem que atropelou Rosalie. Enquanto estava ajoelhado ao lado da cachorra na rua, o careca mexeu em seu bolso. Mas só tirou um pente. E o chapéu que aquele careca está usando... tenho quase certeza de que o reconheci.

Ralph continuou a fitá-la, desejando ardentemente que a lembrança que Lois tinha da indumentária do Dr. N 3 não fosse além.

- Era do Bill, não era? O panamá do Bill. Ralph confirmou com um aceno de cabeça. - Era.

Lois fechou os olhos.

- Deus do céu.

- Então, Lois? Ainda topa me acompanhar?

- Claro. - Abriu a porta e girou as pernas para fora. - Mas vamos logo, antes que eu perca a coragem.

- Me conte como se faz isso - disse Ralph Roberts.

Ao se aproximarem das portas principais do Derry Home, Ralph se inclinou para o ouvido de Lois e murmurou:

- Está acontecendo com você?

- Está. - Seus "olhos se arregalaram. - Nossa. E com muita intensidade desta vez, não?

Ao passarem pela célula fotoelétrica e as portas do hospital se abrirem diante deles, a superfície do mundo repentinamente se abriu e revelou outro mundo, que vibrava com cores jamais vistas e se movia com formas jamais vistas. Por cima do mural que ocupava toda a parede, retratando Derry em seus dias de tranquila cidade madeireira, na virada do século, flechas castanho-escuras se perseguiam, chegando cada vez mais perto até se tocarem.

Quando isto acontecia elas piscavam um verdeescuro momentâneo e mudavam de direcção.

Um funil de prata reluzente, que parecia uma tromba dágua ou um ciclone de briquedo, descia a escada curva que levava às salas comuns do segundo andar, à lanchonete e ao auditório. O topo largo balançava para diante e para trás ao se deslocar de um degrau a outro, e a Ralph aquela forma pareceu nitidamente amigável, como um personagem antropomórfico de Disney. Enquanto observava, dois homens segurando pastas subiram correndo as escadas, e um deles atravessou o funil prateado. Ele sequer interrompeu o que estava dizendo ao companheiro, mas, quando saiu do outro lado, Ralph viu que distraidamente usou a mão livre para alisar os cabelos para trás... embora não houvesse um único fio desalinhado.

O funil chegou ao pé da escada, deu a volta pelo centro do saguão desenhando um oito exuberante, e em seguida desapareceu instantaneamente, deixando apenas uma névoa etérea e rosada, que logo se dissipou.

Lois meteu o cotovelo nas costelas de Ralph, começou a apontar para uma área além do guichê de informações, mas percebeu que havia gente em volta e preferiu erguer o queixo naquela direcção. Mais cedo, Ralph vira no céu uma forma que lhe lembrara um pássaro préhistórico. Agora via algo semelhante a uma cobra translúcida. Serpeava pelo teto, acima de um letreiro com os dizeres: AGUARDE AQUI PARA O EXAME DE SANGUE.

- Está viva? - Lois cochichou meio assustada.

Ralph observou-a com mais atenção e percebeu que a coisa não tinha cabeça... nem rabo discernível. Era só corpo. Supunha que estivesse viva - tinha a impressão de que, de certa maneira, todas as auras eram vivas -, mas não achava que fosse realmente uma serpente, e duvidava que oferecesse perigo, pelo menos a gente como eles.

- Não esquente com ninharias, querida - cochichou ao entrarem na pequena fila diante do guiché de informações e, ao dizer isso, a serpente pareceu se dissolver no teto e desaparecer.

Ralph não sabia qual era a importância de coisas como o pássaro e o ciclone na ordem do mundo secreto, mas tinha certeza de que as pessoas continuavam a ser a atração principal. O saguão do hospital Derry Home lembrava um fantástico espectáculo de fogos de artifício, um espectáculo em que os papéis das cascatas de luz e chuvas de prata eram desempenhados por seres humanos.

Lois enganchou um dedo em seu colarinho, para fazê-lo inclinar a cabeça para o lado dela.

- Você é que vai ter de falar, Ralph-disse numa vozinha fraca e admirada. - Estou me esforçando ao máximo para não fazer pipi nas calças.

O homem à frente deles deixou o guiché, e Ralph se adiantou. Ao fazer isso, uma lembrança clara e docemente nostálgica de Jimmy V. surgiu em sua mente. Andavam na estrada em algum lugar de Rhode Island - Kingston, talvez - e decidiram num impulso que queriam assistir a um encontro evangélico que estava sendo realizado em tendas, num campo de feno próximo. Naturalmente achavam-se mais bêbados do que pulgas dentro de uma garrafa de gim. Duas moças muito arrumadinhas guardavam a entrada da barraca, distribuindo panfletos religiosos e, quando ele e Jimmy se aproximaram, foram avisando um ao outro em cochichos alcoolizados para agirem sobriamente, droga, apenas agirem normalmente. Será que tinham conseguido entrar naquele dia? Ou...

- Às suas ordens-falou a mulher do guiché de informações, indicando pelo tom que o fato de se dirigir a Ralph já era um favor que lhe fazia. Ele espiou pelo vidro e viu uma mulher mergulhada numa confusa aura laranja que mais parecia uma moita em chamas. Temos aqui uma senhora que adora regulamentos e faz o máximo de cerimónia possível, pensou, e na esteira disso, Ralph lembrou-se que as duas moças que tomavam conta da entrada da barraca tinham dado uma única cheirada nele e em Jimmy V. e delicada, mas firmemente, despacharam os dois. Eles acabaram passando a noite num inferninho, pelo que se lembrava, e provavelmente tiveram sorte de não serem roubados, ao saírem cambaleando, na hora do bar fechar.

- Senhor? - a mulher no guiché de vidro chamou impaciente. - Em que posso servi-lo?

Ralph voltou ao presente com um baque quase perceptível.

- Sim, senhora. Minha mulher e eu gostaríamos de visitar Jimmy Vandermeer no terceiro andar, se...

- É a U.T.I! - retorquiu bruscamente. - Não pode ir à U.T.I sem um passe especial. Ganchos laranja projectaram-se para fora da luz que contornava sua cabeça, e a aura começou a lembrar uma cerca de arame farpado bloqueando uma terra de ninguém fantasmagórica.

- Eu sei - respondeu Ralph mais humilde que nunca -, mas meu amigo Lafayette Chapin disse...

- Puxa vida! - A mulher no guiché interrompeu-o. - É maravilhoso como todo mundo tem um amigo aqui. É realmente maravilhoso. - E revirou ironicamente os olhos para o teto.

- Faye disse que Jimmy podia receber visitas. Sabe, ele está com câncer e não é provável que viva muito m...

- Bem, vou verificar o arquivo - a mulher do guiché falou com a má vontade de alguém a quem deram uma tarefa inútil - mas o computador está muito lento hoje à noite, e vai demorar um pouco. Deixe o seu nome, e o senhor e sua mulher podem se sentar ali adiante.

Chamo os dois assim que...

Ralph resolveu que já se humilhara o suficiente diante desse cão de guarda da burocracia.

Afinal não estava pedindo nenhum visto de saída na Albânia; bastava a droga de um passe para a U.T.I.

Havia um recorte na base do guiché de vidro. Ralph meteu a mão por ali e agarrou o pulso da mulher, antes que ela pudesse recuá-lo. Teve a sensação, indolor mas muito clara, de que os ganchos passaram directamente por sua pele sem encontrar onde se prender. Ralph apertou o pulso dela gentilmente e sentiu um pequeno impacto de energia - algo que não seria maior do que um chumbinho - passar dele para a mulher. Inesperadamente a burocrática aura laranja em torno de seu braço e lado esquerdos viraram turquesa pálido como a aura de Ralph. A mulher ofegou e saltou para a frente da cadeira, como se alguém tivesse acabado de despejar pedras de gelo nas costas de seu uniforme.

[- Esqueça o computador. Basta me dar dois passes, por favor. Agora.]

- Sim, senhor - concordou imediatamente e Ralph largou seu pulso de modo que ela pudesse apanhá-los sob a mesa. A luz turquesa em torno do braço da moça voltou a se alaranjar, a mudança de cor deslizando lentamente do ombro para o pulso.

Mas eu poderia tê-la deixado toda azul, pensou Ralph. Subjugado. Mandado correr pelo saguão como um brinquedo de corda. Subitamente lembrou-se de Ed citando o evangelho de Mateus - "Então Herodes, vendo que tinha sido iludido pelos magos, irritou-se muito"

- e uma mistura de medo e vergonha se apoderou dele. Os pensamentos sobre vampirismo voltaram também, e uma frase de um velho e famoso quadrinho de Fogo: Encontramós o inimigo e ele somos nós. É, ele provavelmente poderia fazer quase tudo que quisesse com essa rabujenta de auréola laranja; trazia as baterias totalmente carregadas. O único problema é que a energia dessas baterias - e das de Lois, também - era mercadoria roubada.

Quando a mão da mulher do guiché emergiu da mesa, trazia dois crachás laminados em rosa com a frase VISITANTE /UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA.

- Aqui estão, senhor - disse numa voz cortês completamente diferente daquela com que se dirigira a ele no começo. - Aproveite sua visita e obrigada por ter aguardado.

- Eu é que lhe agradeço - respondeu Ralph. Recebeu os crachás e segurou a mão de Lois. - Vamos, querida. Temos de [- Ralph, que foi que você FEZ com ela?]

[- Nada, imagino: acho que ela está bem.] subir e fazer nossa visita antes que fique muito tarde.

Lois tornou a olhar para a mulher no guiché de informações. Ela atendia a pessoa seguinte, mas com vagar, como se tivesse acabado de ter uma revelação moderadamente assombrosa e precisasse reflectir sobre o acontecido. O brilho azul agora só era visível nas pontinhas de seus dedos e, enquanto Lois a observava, ele também desapareceu.

Lois ergueu a cabeça para Ralph outra vez e sorriu.

[- É... ela ESTÁ bem. Portanto pare de se flagelar.]

[- Era isso que eu estava fazendo?]

[- Acho que sim, era... estamos falando outra vez daquele jeito, Ralph.]

[- Eu sei.] [-Ralph?]

[- Que foi?]

[- Isso tudo é muito maravilhoso, não?]

[-É.] Ralph tentou ocultar de Lois seus outros pensamentos: que quando chegasse a hora de pagar o preço por algo tão maravilhoso, provavelmente iam descobrir que era demasiado alto.

[-Pare de encarar aquele bebé, Ralph. Você está deixando a mãe dele nervosa.]

Ralph olhou para a mulher em cujos braços o bebé dormia e viu que Lois tinha razão... mas era difícil não olhar. O bebé, que não teria mais de três meses, achava-se envolto em uma cápsula de aura cinza-amarelada, violentamente instável. Esse relâmpago poderoso, mas inquietante, girava em torno daquele corpinho com a velocidade estúpida da atmosfera de um gigante gasoso - digamos, Júpiter ou Saturno.

[- Puxa, Lois aquilo é concussão cerebral, não eé?]

[- É. A mulher diz que houve um acidente de carro.]

[- Diz? Você andou falando com ela?]

[-Não. É.]

[- Não entendi.]

[- Entre para o nosso clube.]

O enorme elevador hospitalar subia lentamente. Os passageiros - os estropiados, os mancos, os poucos que se sentiam culpados por gozar de boa saúde - não falavam, mas mantinham os olhos no indicador de andares sobre as portas ou baixados como se examinassem os próprios sapatos. A única exceção era a mulher com a criança relampejante.

Ela observava Ralph com desconfiança e medo, como se esperasse que ele avançasse a qualquer momento e tentasse arrancar o bebé de seus braços.

Não é só porque eu estava olhando, Ralph pensou. Pelo menos acho que não. Ela sentiu que eu estava pensando no bebé. Intuiu... sentiu... ou outra droga qualquer.

O elevador parou no segundo andar e as portas chiaram ao deslizar para os lados. A mulher com o bebé virou-se para Ralph. O bebé se mexeu levemente com o movimento da mãe, e Ralph pôde ver melhor sua cabeça. Havia um vinco fundo no topo do pequeno crânio. Uma cicatriz vermelha cortava-o de ponta a ponta. A Ralph pareceu um córrego de água poluída no leito de uma vala. A aura feia e confusa de cor cinza-amarelada que envolvia o bebé emergia dessa cicatriz como vapor de uma fenda na terra. O fio de balão do bebé era do mesmo tom que sua aura era diferente de qualquer outro que Ralph vira até então - não era doentio, mas curto, feio, pouco mais que um toco.

- Sua mãe não lhe deu educação? - A mãe do bebé perguntou a Ralph, e o que o incomodou não foi tanto a censura, mas a maneira como foi feita. Ele a assustara barbaramente.

- Minha senhora, eu garanto...

- É, pois garanta para o meu rabo - disse, saindo do elevador. As portas começaram a se fechar. Ralph olhou para Lois e os dois tiveram um momento de breve, mas total entendimento. Lois sacudiu o dedo em direcção às portas como se ralhasse com elas, e uma malha cinza irradiou-se da ponta do dedo. As portas bateram nela e voltaram a se abrir como eram programadas a fazer quando encontravam uma barreira no caminho.

[ - Minha senhora?]

A mulher parou e virou-se, claramente aturdida. Lançou olhares desconfiados a toda volta, tentando identificar quem falara. Sua aura era um amarelo-manteiga, escuro, com laivos laranja que se projectavam das bordas internas. Ralph prendeu o olhar da senhora no dele.

[ - Lamento se a ofendi. Isto tudo é muito novo para mim e minha amiga. Somos como crianças em um jantar de cerimónia. Peço desculpas.]

Ele não sabia o que ela estava tentando comunicar - era o mesmo que observar alguém falando numa cabine à prova de som - mas ele percebeu alívio e profundo constrangimento... o tipo de constrangimento que as pessoas sentem quando acham que alguém as viu fazendo o que não deviam. Seu olhar hesitante continuou pousado no rosto de Ralph por mais uns instantes, então ela deu as costas e começou a caminhar rapidamente pelo corredor na direção de um letreiro em que se lia EXAMES NEUROLÓGICOS. A malha cinza que Lois lançara contra a porta foi raleando, e quando as portas tentaram se fechar de novo, cortaram-na ao meio. O elevador continuou sua lenta viagem para cima.

[ - Ralph... Ralph, eu acho que sei o que aconteceu com aquele bebé]

Ela estendeu a mão direita em direcção ao rosto dele e passou-a, com a palma voltada para baixo, entre o nariz e a boca. Comprimiu levemente o polegar contra um malar e o indicador contra o outro. O gesto foi tão rápido e seguro que mais ninguém no elevador notou. Se um dos outros três passageiros tivesse notado, teria visto uma esposa preocupada com a limpeza, espalhando uma mancha de loção ou um resto de creme de barbear.

Ralph teve a sensação de que alguém acionara um botão de alta voltagem em seu cérebro e, como num estádio, se acenderam baterias de holofotes. Na claridade crua e instantânea, ele viu uma imagem horrível: mãos envoltas numa violenta aura roxo-suja, estendendo-se para um berço e agarrando o bebé que tinham acabado de ver. Sacudiram-no para a frente e para trás, a cabeça batendo e girando no pescoço fino como se fosse uma boneca de trapos...

... e o atiraram.

As luzes em sua cabeça se apagaram e Ralph deixou escapar um suspiro trémulo e rouco de alívio. Pensou nos manifestantes pró-vida que vira no telejornal da noite anterior, homens e mulheres agitando cartazes com a foto de Susan Day e os dizeres PROCURADA POR HOMICÍDIO, homens e mulheres com as vestes da morte, homens e mulheres carregando uma bandeira onde se lia VIDA, QUE BELA OPÇÃO.

E perguntou-se se o bebé relampejante teria outra versão para esse slogan. Seus olhos encontraram os de Lois, admirados e aflitos, e ele procurou suas mãos para apertá-las.

[- Foi o pai, certo? Atirou a criança contra a parede?]

[- Foi. O bebé não queria parar de chorar]

[- E ela sabe. Sabe, mas não contou a ninguém.]

[- Não... mas talvez conte, Ralph. Está pensando nisso.]

- Mas também pode esperar que ele repita a dose. E da próxima vez ele talvez termine o que começou.

Um pensamento terrível ocorreu a Ralph então; cruzou sua mente como um meteoro, deixando um rastro momentâneo de fogo pelo céu estival de meia-noite: talvez fosse melhor que ele terminasse o que começou. O fio de balão do bebé relampejante era apenas um toco, mas um toco saudável. A criança talvez vivesse anos, sem saber quem era ou onde estava, e menos ainda por que estava ali, observando as pessoas irem e virem como árvores em meio à névoa...

Lois tinha os ombros curvados, os olhos no piso do elevador e irradiava uma tristeza que apertou o coração de Ralph. Ele esticou o braço, pôs um dedo sob seu queixo e Lois observou um delicado rosa-azulado sair girando do ponto em que sua aura tocou a dela. Ergueu seu rosto e não se surpreendeu ao ver lágrimas em seus olhos.

- Você ainda acha que tudo é maravilhoso, Lois? - perguntou baixinho, mas não obteve resposta, nem audível nem mentalmente.

ELES FORAM os únicos a descer no terceiro andar, onde o silêncio era tão denso quanto a poeira sob as prateleiras de bibliotecas. Duas enfermeiras estavam a meio caminho no corredor, pranchetas seguras contra o peito vestido de branco, falando aos sussurros.

Qualquer pessoa parada junto aos elevadores teria olhado para elas e deduzido que sua conversa tratava de vida e morte e de medidas heróicas; Ralph e Lois, porém, deram uma olhada em suas auras sobrepostas e souberam que o assunto presentemente em discussão era onde ir tomar um drinque quando terminassem o turno.

Ralph viu isso e ao mesmo tempo não viu, do jeito que um homem profundamente preocupado vê e obedece a um sinal de trânsito sem realmente enxergá-lo. A maior parte de sua mente fora tomada por uma sensação mortal de déjà vu no instante em que ele e Lois desceram do elevador neste mundo, onde o leve ranger dos tênis das enfermeiras no linóleo fazia quase o mesmo ruído que o bip do equipamento de sustentação vital dos doentes.

Quartos de números pares à esquerda; quartos de números ímpares à direita, ele pensou, e o 317, onde Carolyn morreu, fica próximo do posto de enfermagem. Foi o 317, sim lembro-me bem. Agora que estou aqui lembro-me de tudo. Como havia sempre alguém metendo a papeleta de cabeça para baixo na bolsinha no lado interno da porta. Como a luz da janela incidia sobre a cama numa espécie de rectângulo torto nos dias de sol. Como se podia sentar na cadeira de visita e olhar para a enfermeira de plantão, cuja tarefa é monitorar sinais vitais, as chamadas que chegam e os pedidos de pizza que saem.

Igual. Tudo igual. Era início de Março de novo, o fim sombrio de um dia nublado e cinzento, o granizo começando a tamborilar na única janela do quarto 317, e ele estivera sentado na cadeira de visitas com um exemplar de Ascensão e Queda do

Terceiro Reich, de Shirer fechado sobre o colo desde cedo àquela manhã. Sentado ali, sem querer se levantar nem para usar o banheiro, porque o relógio da morte estava quase parando àquela altura, cada tique era um avanço do ponteiro e o lapso entre um tique e outro era uma vida inteira; sua companheira de longa data tinha um trem a pegar e ele queria estar na plataforma para se despedir. Haveria apenas uma oportunidade de fazer isso correctamente.

Não era difícil ouvir o granizo quando fustigava com mais força, porque o equipamento de sustentação tinha sido desligado.

Ralph entregara os pontos na última semana de Fevereiro; levara a Carolyn, que nunca desistira de nada na vida, um pouco mais de tempo para entender a mensagem. E qual era, exactamente, a mensagem? Ora, que na dura partida de dez rounds em que se enfrentavam Carolyn Roberts e o Câncer, o vencedor era o Câncer, aquele eterno campeão peso-pesado, por nocaute técnico.

Sentado na cadeira de visitas, observava e aguardava enquanto a respiração dela se tornava cada vez mais acentuada - a expiração longa e suspirante, o peito achatado e imóvel, a certeza crescente de que a última expiração fora realmente a última, que o tempo se esgotara, o trem chegara à estação para apanhar um único passageiro... e então sobrevinha outro forte arquejo inconsciente quando ela arrancava o próximo hausto do ar hostil, não era mais respiração num sentido normal, era apenas um encher e esvaziar reflexivo do pulmão entre arquejos, como um bêbado avançando pelo corredor longo e escuro de um hotel barato.

Plim-plam-plim-plam: o granizo continuara a batucar suas unhas invisíveis na janela à medida que o encardido dia de Março marchava para o encardido crepúsculo de Março e Carolyn continuava a lutar a última metade do seu último round. Por essa altura, ela estava funcionando inteiramente no piloto automático, é claro; o cérebro que existira naquele bem modelado crânio não existia mais. Fora substituído por um mutante - um burro delinquente preto-acinzentado que não podia pensar nem sentir mas somente comer, comer, comer até se empanturrar e morrer.

Plim-plam-plim-plam, e ele notara que o respirador em forma de T sobre o nariz de Carolyn entortara. Esperou que ela puxasse um daqueles horríveis e penosos haustos do ar e depois que o expeliu, ele se curvou e repôs a pequena peça de plástico no lugar. Umedecera a ponta dos dedos com um pouco de secreção, lembrou-se, e limpara-a com um lenço de papel da caixa sobre a mesa de cabeceira. Tornara a sentar, esperando o próximo arquejo, querendo se certificar de que o respirador não ia entortar de novo, mas não houve o próximo arquejo e ele percebeu que o tique-taque que ouvira de todos os lados desde o verão anterior parecia ter parado.

Lembrou-se de aguardar enquanto os minutos passavam - um, depois três, depois seisincapaz de acreditar que todos aqueles anos bons e momentos bons (para não mencionar os poucos maus) tinham findado dessa maneira inexpressiva e silenciosa. O rádio de Carolyn, sintonizado na estação local, tocava baixinho a um canto e ele ouviu Simon e Garfunkel cantarem Scarborough Fair. Cantaram a música até o fim. Em seguida entrou Wayne Newton e começou a cantar Danke Schoen. Cantou-a até o fim. Depois veio a previsão do tempo, mas antes que o locutor pudesse terminar de descrever como seria o primeiro dia de viuvez de Ralph Roberts, aquele palavrório todo sobre clarear, esfriar e mudar vento para nordeste, ele finalmente compreendeu. O relógio parará de tiquetaquear, o trem chegara, a luta de boxe findara. Todas as metáforas tinham desmoronado, deixando apenas a mulher no quarto, enfim muda. Ralph começou a chorar. Ainda chorando, fora aos tropeços até o canto e desligara o rádio. Lembrou-se do verão em que tinham feito um curso de pintura a dedo, e da noite em que terminaram pintando com os dedos o corpo nu um do outro. Essa lembrança o fez chorar ainda mais forte. Chegou até a janela e encostou a cabeça na vidraça fria e chorou. Naquele primeiro minuto terrível de compreensão, só tivera uma vontade:

morrer também. Uma enfermeira ouvi-o chorando e entrou no quarto. Tentou tomar o pulso de Carolyn. Ralph lhe disse que parasse de fazer papel de boba. Ela se aproximou de Ralph e por um instante ele pensou que ia tentar tomar o pulso dele. Em vez disso, ela o abraçara.

Ela...

[- Ralph? Ralph, você está bem?]

Ele se virou para Lois, começou a dizer que estava bem, mas logo lembrou-se que havia muito pouca coisa que pudesse esconder dela enquanto estivessem naquele estado.

[- Sentindo tristeza. Lembranças demais aqui. Ruins.]

[- Compreendo... mas olhe para baixo, Ralph! Olhe para o chão!]

Ele obedeceu e seus olhos se arregalaram. O chão estava coberto por uma sobreposição de pegadas multicores, algumas recentes, a maioria se apagando até a invisibilidade. Dois pares se destacavam claramente das demais, faiscavam como diamantes num conjunto de imitações baratas. Eram um auriverde profundo em que ainda flutuavam algumas pintinhas avermelhadas.

[- Será que são dos que estamos procurando, Ralph?]

[- São: os doutores estão aqui.]

Ralph pegou a mão de Lois - estava muito fria - e começou a conduzi-la lentamente pelo corredor.

 

NÃO TINHAM ido longe, quando uma coisa muito estranha e assustadora aconteceu. Por um instante, o mundo embranqueceu diante deles. As portas para os quartos alinhavam-se ao longo do corredor, quase invisíveis nesta névoa radiosa e branca, ganhando o tamanho de baias de carregamento nos armazéns. O corredor pareceu ficar simultaneamente mais comprido e mais alto. Ralph sentiu o fundo do estômago cair como costumava acontecer quando era adolescente e freguês assíduo da montanha-russa na praia de Old Orchard. Ele ouviu Lois gemer e ela apertou sua mão com a força do pânico.

A onda branca durou apenas um segundo e, quando as cores tornaram a inundar o mundo, estavam mais vivas e frescas do que tinham estado no momento anterior. A perspectiva normal voltou, mas de alguma forma os objectos pareciam mais espessos. As auras continuavam presentes, mas davam a impressão de estarem mais finas e mais pálidas-cores pastéis ao invés de cores primárias pintadas com tinta de spray. Ao mesmo tempo, Ralph percebeu que podia distinguir cada rachadura e poro na parede à sua esquerda... e, depois, que podia distinguir até os canos, os fios e o isolamento térmico dentro das paredes, se quisesse; bastava olhar.

Deus dos céus, pensou. Será que isso está realmente acontecendo? Será que pode estar acontecendo?

Os sons vinham de todos os lados: sinetas tocadas de leve, a descarga de um vaso, risos abafados. Sons que a pessoa normalmente aceitava como parte do quotidiano, mas não agora. Não aqui. Da mesma forma que a realidade visível dos objectos, os sons pareciam possuir uma extraordinária textura sensual, como se fossem finos enfeites sobrepostos de seda e aço.

Nem todos os sons eram comuns, tampouco; havia muitos sons exóticos entremeando o pandemónio geral. Ele ouviu uma mosca zumbindo no fundo de um duto de aquecimento. O som de lixa fina que uma enfermeira produzia ao acertar a meia-calça no banheiro dos funcionários. Corações palpitando. Sangue circulando. O fluxo suave e ritmado da respiração superficial. Cada som era perfeito em si; reunido aos outros, compunha um belo e complicado ballet auditivo - um Lago do Cisne invisível de estômagos a borbulhar, tomadas de electricidade a zunir, secadores de cabelo, sussurro das rodas de maças hospitalares. Ralph podia ouvir uma TV no fim do corredor, para além do posto de enfermagem. Vinha do quarto 340, onde o Sr. Thomas Wren, doente dos rins, assistia a Kirk Douglas e Lana Turner em The Bad and the Beautiful. "Se você se aliar a mim, boneca, vamos virar essa cidade pelo avesso", Kirk dizia e Ralph sabia pela aura que cercava suas palavras que o Sr. Douglas sentia dor de dentes no dia em que aquela cena fora filmada. E não era tudo; sabia que podia (subir mais? se aprofundar mais? ampliar mais?) se quisesse. Ralph definitivamente não queria. Estava numa selva de Arden, e um homem podia se perder no cipoal.

Ou ser devorado por tigres.

[- Puxa! É outro nível: tem de ser, Lois! Um nível inteiramente diferente!]

[- Eu sei.]

[- Você está bem nesse?]

[- Acho que estou, Ralph... e você?]

[- Acho que sim, por enquanto... mas se o fundo cair outra vez, não sei. Vamos.]

Mas antes que pudessem recomeçar a seguir as pegadas auriverdes, Bill McGovern e um homem que Ralph não conhecia saíram do quarto 313. Estavam absortos conversando.

Lois virou para Ralph um rosto que expressava horror.

[- Ah, não! Meus Deus, não! Você está vendo, Ralph?

Está vendo?]

Ralph apertou a mão dela com mais força. Claro que estava vendo. O amigo de McGovern caminhava envolto numa aura cor de ameixa. Não parecia particularmente saudável, mas Ralph não achou que o homem estivesse gravemente doente; tinha apenas doenças crônicas como reumatismo e pedras nos rins. Um fio de balão da mesma cor ameixa sarapintada subia do topo da aura do homem, flutuando incerta para cá e para lá como a mangueira de ar de um mergulhador numa fraca correnteza.

A aura de McGovern, porém, estava totalmente preta. O toco do que fora seu fio de balão espetava-se para o alto. O fio de balão do bebê relampejante era curto mas saudável; o que viam agora era o resto podre de uma tosca amputação. Ralph captou uma imagem momentânea, tão forte que era quase uma alucinação, os olhos de McGovern primeiro se esbugalhavam e em seguida saltavam das órbitas, empurradas por uma maré de insectos negros. Teve de fechar seus olhos por um momento para não gritar e, quando os reabriu, Lois não se encontrava mais do seu lado.

MCGOVERN e seu amigo iam na direcção ao posto de enfermagem, provavelmente em busca do bebedouro. Lois corria pelo corredor em seu encalço, o peito arfando. Sua aura produzia faíscas rosadas que rodopiavam lembrando asteriscos de néon. Ralph precipitou-se atrás dela. Não sabia o que poderia acontecer se ela chamasse a atenção de McGovern, e realmente não queria descobrir. Achava, porém, que provavelmente iria descobrir.

[- Lois! Lois, não faça isso!]

Ela não lhe fez caso.

[- Bill, pare! Você precisa me ouvir! Tem uma coisa errada com você!]

McGovern não lhe deu atenção; falava sobre o manuscrito de Bob Polhurst, Later That

Summer. "O melhor livro sobre a guerra de Secessão que já li", dizia ao homem de aura cor de ameixa, "mas quando sugeri que o publicasse, ele me disse que estava fora de questão.

Dá para acreditar? Um possível ganhador do Prémio Pulitzer, mas..."

[- Lois, volte! Não se aproxime dele!]

[-Bill! Bill! B...]

Lois alcançou McGovern segundos antes de Ralph conseguir alcançá-la. Ela esticou a mão para agarrar o ombro de Bill. Ralph viu os dedos dela mergulharem na escuridão que o cercava... e penetrarem no corpo de McGovern.

A aura de Lois se transformou instantaneamente de azulacinzentada com centelhas rosadas no vermelho-vivo de um carro de bombeiros. Flocos negros denteados atravessaram-na como nuvens de insectos minúsculos. Lois gritou e recolheu a mão. A expressão de seu rosto era uma mistura de terror e repugnância. Ergueu a mão diante dos olhos e gritou de novo, embora Ralph não conseguisse ver o porquê. Listras estreitas e negras agora giravam vertiginosamente na orla de sua aura; lembravam a Ralph órbitas planetárias desenhadas num mapa do sistema solar. Ela se virou para fugir. Ralph segurou-a pelos braços e ela o golpeou cegamente.

Enquanto isso, McGovern e o amigo continuavam seu tranquilo passeio pelo corredor até o bebedouro, completamente alheios à mulher que gritava e se debatia a menos de três metros.

"Quando perguntei a Bob por que não queria publicar o livro", McGovern continuava, "ele me disse que eu, mais do que ninguém, deveria entender suas razões. Eu disse..."

Lois abafou a voz de McGovern, berrando como um alarme de incêndio.

[Ml In In]

[- Pare com isso, Lois! Agora mesmo! Seja o que for que tenha acontecido a você já acabou! Acabou e você está bem!]

Mas Lois continuava a resistir, atordoando-o com aqueles gritos inarticulados, tentando lhe contar a experiência horrível por que passara, como McGovern estava apodrecendo, que havia coisas dentro dele comendo-o vivo, e isso já era bastante ruim, mas não era o pior.

Aquelas coisas tinham consciência, eram daninhas e sabiam que ela estava presente.

[- Lois, você está comigo! Você está comigo e tudo...]

Um punho que golpeava o ar apanhou-o do lado do queixo e Ralph viu estrelas. Ele compreendeu que os dois tinham passado para um plano da realidade em que o contacto físico com outros era impossível - ele não vira a mão de Lois atravessar McGovern, como a mão de um fantasma? - mas ele e Lois obviamente continuavam bastante reais um para o outro; tinha o queixo machucado para prová-lo.

Ele passou os braços em volta dela e apertou-a contra o corpo, prendendo seus punhos entre os seios e o peito dele. Seus gritos, porém, [!!! !!! !!!] - continuaram a ressoar e explodir em sua cabeça. Ele cruzou as mãos sobre as espáduas dela e apertou. Sentiu as forças lhe fugirem outra vez, como acontecera pela manhã, só que desta vez era inteiramente diferente. Uma luz azul derramou-se pela turbulenta aura preto-avermelhada de Lois, acalmando-a.

Sua resistência diminuiu e por fim cessou. Ele a sentiu tomar fôlego estremecendo. Acima e à volta de Lois, a luminosidade azul expandia e esmaecia. As tiras negras desapareceram de sua aura, uma a uma, de baixo para cima, e em seguida o alarmante tom de vermelho-infecção também começou a clarear. Ela descansou a cabeça no braço de Ralph.

[- Lamento, Ralph: fiquei explosiva de novo, não foi?]

[- Acho que sim, mas não esquente. Você está bem agora. Isto é que é o importante.]

[- Se você soubesse como foi horrível... tocar nele daquela maneira...]

[- Você se saiu muito bem, Lois.]

Ela espiou para o fim do corredor, onde o amigo de McGovern agora bebia um pouco de água. McGovern descansava apoiado na parede ao lado, contando como Sua Majestade Bob Polhurst sempre fizera as palavras cruzadas do Sunday New York Times a tinta. "Ele costumava me dizer que não era por orgulho mas por otimismo", dizia, e seu saco mortuário ia girando lentamente ao seu redor enquanto ele falava, entrando e saindo de sua boca e por entre os dedos da mão que ele gesticulava com eloquência.

[- Não podemos ajudá-lo, podemos, Ralph? Não há nada no mundo que possamos fazer.]

Ralph lhe deu um abraço breve e forte. Sua aura, ele reparou, voltara inteiramente ao normal.

McGovern e o amigo retornavam pelo corredor em direcção a eles. Impulsivamente Ralph largou Lois e caminhou directamente para o Sr. Ameixa, que ouvia McGovern discorrer sobre a tragédia da velhice, concordando com a cabeça nos momentos certos.

[- Ralph, não faça isso!]

[- Tudo bem, não se preocupe.]

Mas de repente ele já não tinha certeza de que estaria tudo bem. Teria retrocedido se lhe dessem outro segundo. Mas antes que o fizesse, porém, o Sr. Ameixa encarou-o sem parecer vê-lo e atravessou-o. A sensação que perpassou o corpo de Ralph àquela passagem foi perfeitamente familiar; o formigamento que ocorre quando um membro adormecido começa a desentorpecer. Por um momento, a aura do Sr. Ameixa e a sua se fundiram, e Ralph soube tudo que havia para saber sobre aquele homem, inclusive os sonhos que tivera no ventre materno.

O Sr. Ameixa parou abruptamente.

- Algum problema? - McGovern perguntou.

- Acho que não, mas... você ouviu um tiro em algum lugar? Como uma bombinha ou cano de descarga de um carro?

- Não posso dizer que ouvi, mas minha audição não é mais o que era - McGovern falou rindo. - Se alguma coisa explodiu, espero que não tenha sido nos laboratórios de radiação.

- Não estou ouvindo nada agora. Provavelmente imaginei. - E se viraram para entrar no quarto de Bob Polhurst.

A Sra. Perrine disse que parecia um tiro, Ralph pensou. A amiga de Lois pensou que tivesse um bicho no pescoço, talvez a mordê-la. Quem sabe é apenas uma diferença no toque, da mesma maneira que diferentes pianistas têm maneiras distintas de tocar. Seja qual for o caso, as pessoas sentem quando mexemos nelas. Talvez não saibam o que é, mas certamente sentem a interferência.

Lois segurou a mão dele e o conduziu até a porta do quarto 313. Pararam e espiaram para dentro, quando McGovern se sentava na cadeira de fibra ao pé da cama. Havia pelo menos oito pessoas amontoadas no quarto e Ralph não podia ver Bob Polhurst claramente, mas pôde ver uma coisa: embora ele estivesse profundamente imerso em um saco mortuário, seu fio de balão continuava intacto. Estava imundo como um cano de descarga enferrujado, descascado em alguns pontos, rachado em outros... mas, ainda assim, intacto. Voltou-se para Lois.

[-Esse pessoal talvez tenha de esperar mais tempo do que pensa.]

Lois concordou, e então apontou para pegadas auriverdes - as pegadas do homem-branco.

Elas passavam ao largo do 313, Ralph constatou, mas entravam na porta seguinte - 315, o quarto de Jimmy V.

Ele e Lois prosseguiram e pararam para espreitar. Jimmy V. tinha três visitantes, e o que estava sentado ao lado da cama pensava que estava sozinho. Era Faye que examinava distraidamente a pilha dupla de cartões com votos de pronta convalescença sobre a mesa de cabeceira de Jimmy. Os outros dois eram os doutorezinhos carecas que Ralph vira pela primeira vez na varanda de May Locher. Encontravam-se parados aos pés da cama de

Jimmy V., solenes em seus aventais brancos e limpos e, agora que os via de perto, Ralph percebia que havia um universo de caráter naqueles rostos lisos e quase idênticos; era o tipo de coisa que não se podia ver com binóculos - ou talvez não antes de se subir alguns pontos na escala da percepção. Concentravam-se principalmente nos olhos, que eram escuros, sem pupilas, salpicados de reflexos dourados. Aqueles olhos brilhavam com inteligência e viva consciência. Suas auras refulgiam e lampejam à toda volta como as vestes de um imperador...

... ou talvez de Centuriões em uma visita de estado.

Examinaram Ralph e Lois parados à porta, de mãos dadas, como crianças que se perderam na floresta, e sorriram para os dois.

[Olá, mulher.]

Foi o Dr. n-1 quem cumprimentou. Segurava a tesoura na mão direita. As lâminas eram muito longas, e as pontas pareciam muito afiadas. O Dr. n-2 deu um passo em direcção aos dois e fez uma semi-reverência cómica.

[OU, homem. Estávamos à sua espera]

RALPH SENTIU a mão de Lois apertar a sua e afrouxar, em seguida, ao concluir que não havia nenhum perigo imediato. Ela deu um passinho à frente, olhando do Dr. n-1 para o Dr. e de volta ao n-1.

[- Quem são vocês?]

O Dr. n-1 cruzou os braços sobre o peito franzino. As longas lâminas descansaram em toda a extensão do seu braço esquerdo vestido de branco.

[Não temos nomes, não como os Vidas-Curtas têm - mas você pode nos dar os nomes das Parcas na história que este homem já lhe contou. Não significa nada para nós se esses nomes originalmente pertenciam a mulheres, porque somos criaturas assexuadas. Eu serei doto, embora não fie nenhuma roca, e meu colega e velho amigo será Láquesis, embora não segure nenhuma vara nem nunca tenha jogado moedas. Entrem os dois - por favor!]

Eles entraram e pararam cautelosos entre a cadeira de visitas e a cama. Ralph não achou que os doutores pretendessem lhes fazer mal - pelo menos por ora - mas, ainda assim, não queria chegar demasiado perto. Suas auras, tão brilhantes e fabulosas quando comparadas às das pessoas comuns, o intimidaram, e podia ver pelos olhos arregalados e a boca meio aberta de Lois que ela sentia o mesmo. Ela percebeu seu olhar, virou-se e tentou sorrir.

Minha Lois, Ralph pensou. Passou o braço pelos ombros dela e deu-lhe um breve aperto.

Láquesis: [Demos os nossos nomes - pelo menos nomes que podem usar; não vão nos dar os seus?]

[Lois: - Está me dizendo que ainda não sabem? Desculpe, mas acho difícil acreditar.]

Láquesis: [Poderíamos procurar saber, mas nos abstivemos. Gostamos de observar as regras de educação dos Vidas-Curtas sempre que possível. Nós as achamos encantadoras, porque sua espécie as passa da mão maior para a menor, criando a ilusão de vidas longas.]

[-Não entendi.]

Nem Ralph, e sequer tinha muita certeza de que queria entender. Percebeu um toque ligeiramente paternalista no tom do que atendia pelo nome de Láquesis, algo que lhe lembrava McGovern quando estava com vontade de discorrer ou pontificar sobre um assunto.

[Láquesis: Não faz diferença. Tínhamos certeza de que viriam. Sabemos que estava nos observando na madrugada de segunda-feira, homem, na casa de]

Neste ponto houve uma estranha sobreposição na fala de Láquesis.

Ele parecia dizer duas coisas exactamente ao mesmo tempo, as frases rolavam juntas como uma cobra com o rabo na boca:

[May Locher a mulher extinta.]

Lois deu um passo hesitante à frente.

[- Meu nome é Lois Chasse. Meu amigo é Ralph Roberts. E agora que já nos apresentamos formalmente, talvez vocês queiram nos dizer o que está acontecendo por aqui.]

Láquesis: [Há mais um a ser nomeado.]

Cloto: [Ralph Roberts já lhe deu um nome.]

Lois olhou para Ralph que concordou com a cabeça.

[- Estão se referindo ao Dr. N-3. Certo, rapazes?]

Cloto e Láquesis assentiram. Exibiam idênticos sorrisos de aprovação. Ralph supôs que devia sentir-se lisonjeado, mas isto não ocorreu. Ao contrário, sentiu medo e muita raiva tinham sido manipulados passo a passo o tempo todo. Aquilo não era um encontro casual; era uma armação desde o primeiro momento. Cloto e Láquesis, dois doutorezinhos carecas com tempo para gastar à toa no quarto de Jimmy V., esperando os VidasCurtas chegarem, que tédio.

Ralph olhou para Faye e viu que ele tirara do bolso um livro chamado Cinqüenta problemas clássicos de xadrez. Lia ruminando enquanto tirava meleca do nariz. Após as explorações preliminares, Faye meteu o dedo mais fundo e fisgou uma das grandes. Examinou-a e coloua embaixo da mesa de cabeceira. Ralph desviou os olhos, constrangido, e lembrou-se instantaneamente de um ditado de sua avó: Quem espreita pelo buraco da fechadura, acaba se vexando. Vivera até os setenta sem compreender inteiramente o que a frase queria dizer; finalmente achava que a compreendia. Entrementes, outra pergunta lhe ocorrera.

[- Por que Faye não nos vê? Aliás, por que Bill e seu amigo não nos viram? E como aquele homem pode me atravessar? Ou será que imaginei isso?]

Cloto sorriu.

[Você não imaginou. Procure entendera vida como uma espécie de edifício, Ralph - o que vocês chamariam de arranha-céu.]

Só que Ralph descobriu que isso não era bem o que Cloto estava pensando. Por um instante, ele pensou captar uma imagem da mente do outro, que achou excitante e perturbadora: uma enorme torre construída de pedra escura e fuliginosa, no meio de um campo de rosas vermelhas. Janelas muito estreitas subiam pela torre em sombria espiral.

Então desapareceu.

[Você e Lois e todos os outros Vidas-Curtas vivem nos dois primeiros andares dessa estrutura. Naturalmente há elevadores...]

Não, Ralph pensou. Não na torre que vi em sua mente, companheiro. Nesse edifício-se é que tal construção realmente existe - não há elevadores, apenas uma escada estreita infestada de teias de aranha e portas que levam Deus sabe aonde.

Láquesis o observava com uma curiosidade estranha, que beirava a desconfiança, e Ralph concluiu que não gostava daquele olhar. Voltou-se para Cloto e fez sinal para que ele continuasse.

Cloto: [Como eu ia dizendo, há elevadores, mas os VidasCurtas não têm permissão de usálos em condições normais. Vocês não estão [prontos] [preparados]

A última explicação era nitidamente a melhor, mas lhe escapou antes que conseguisse entendê-la. Ralph olhou para Lois, que sacudiu a cabeça negativamente, e de volta a Cloto e Láquesis. Estava começando a sentir mais raiva que nunca. Todas aquelas noites longas e intermináveis sentado na poltrona à espera do amanhecer; todos os dias que passara sentindo-se um fantasma dentro do próprio corpo; a incapacidade de memorizar uma frase a não ser na terceira leitura; os números de telefone, que antigamente guardava de cabeça e que agora precisava conferir...

Sobreveio-lhe, então, uma lembrança que simultaneamente resumiu e justificou a raiva que sentia ao contemplar essas criaturas carecas com seus olhos escuros e dourados e auras quase cegantes. Viu-se espiando dentro do armário sobre a bancada da cozinha, à procura do envelope de sopa que sua mente sobrecarregada e exaurida insistia que devia estar ali em algum lugar. Viu-se tacteando, parando, e tornando a tactear. Viu a expressão do próprio rosto - uma perplexidade distante que poderia facilmente ser tomada por um ligeiro retardo mental, mas era simples exaustão. Então viu-se deixando cair as mãos e continuar parado ali, como se esperasse que o envelope saltasse para fora sozinho.

Somente agora, neste momento e a esta lembrança, se deu conta do horror que tinham sido os últimos meses. Examiná-los retrospectivamente era o mesmo que contemplar uma terra devastada, num quadro pintado em melancólicos cinzas e marrons.

[- Então vocês nos puseram no elevador... ou talvez isso não fosse bom o bastante para gente como nós, e nos fizeram subir depressinha pela escada de incêndio. Nos aclimataram aos poucos para não destrambelharmos de vez, imagino. E foi muito fácil. Só precisaram roubar o nosso sono até nos deixarem quase doidos. O filho e a nora de Lois querem metêla num parquegeriátrico, sabiam? E meu amigo Bill McGovern acha que estou no ponto para me internarem em Juniper Hill. Nesse meio tempo, os dois anjinhos aqui...]

Cloto ofereceu apenas um vestígio de seu largo sorriso anterior.

[Não somos anjos, Ralph.]

[- Ralph, por favor, não grite com eles.]

É, estivera gritando, e pelo menos em parte seus gritos pareciam ter alcançado Faye; ele fechou o livro de xadrez, parou de cutucar o nariz, e sentava-se agora completamente erecto na cadeira, espiando o quarto desconfiado.

Ralph olhou de Cloto (que deu um passo atrás e perdeu o que restara do sorriso) para Láquesis.

[-Seu amigo diz que vocês não sãoanjos. Então onde estão eles? Jogando pôquerseis ou oito andares acima? E suponho que Deus esteja na cobertura e o diabo no porão, pondo carvão na caldeira...]

Não houve resposta. Cloto e Láquesis entreolharam-se, expressando dúvida. Lois puxou a manga de Ralph, mas ele não lhe deu atenção.

[- Então o que devemos fazer, rapazes? Seguir o rastro da sua versãozinha careca do Hannibal Lecter de O silêncio dos inocentes, e lhe cassar o bisturi? Ora, vão se foder.]

Ralph teria virado as costas e saído (vira muitos filmes, e sabia reconhecer uma boa deixa quando a ouvia), mas Lois prorrompeu em lágrimas de choque e temor, e isso o reteve. A expressão de perplexidade e censura nos olhos de Lois fez Ralph se arrepender de sua explosão, pelo menos um pouquinho. Tornou a passar o braço pelos ombros de Lois e encarou os dois carecas com ar de desafio.

Eles se entreolharam de novo e uma coisa - uma forma de comunicação além de sua capacidade e da de Lois de ouvir e compreender - ocorreu entre os dois. Quando Láquesis se dirigiu outra vez a eles, sorria... mas seus olhos estavam sérios.

[Ouço sua raiva, Ralph, mas ela não se justifica. Você não acredita agora, mas talvez venha a acreditar. No momento, precisamos deixar suas perguntas e nossas respostas, as que pudermos dar, de lado.]

[- Por quê?]

[Porque chegou a hora da separação para este homem. Observe atentamente, para poder aprender e guardar.]

Cloto foi até o lado esquerdo da cama. Láquesis se aproximou pelo direito e, ao fazê-lo, atravessou Faye Chapin. Faye se dobrou, tomado de um súbito acesso de tosse; quando se acalmou, tornou a abrir seu livro de xadrez.

[- Ralph não posso olhar isso! Não posso olhar eles fazerem isto!]

Mas Ralph achou que ela olharia. Achou que os dois olhariam.

Ele a abraçou com firmeza quando Cloto e Láquesis se curvaram para Jimmy V. Tinham os rostos radiosos de amor, atenção e gentileza; fizeram Ralph se lembrar dos rostos que certa vez vira num quadro de Rembrandt - A vigília, achava que era o título. Suas auras se fundiram e se sobrepuseram no peito de Jimmy, e de repente o homem na cama abriu os olhos. Através dos dois doutores, contemplou o teto por um momento, com uma expressão vaga e intrigada, e então seu olhar se voltou para a porta e ele sorriu.

- Ei! Olha quem está aqui! -Jimmy V. exclamou. Sua voz saiu enferrujada e estrangulada, mas Ralph ainda conseguiu perceber aquele sotaque de malandro de South Boston, em que o "r" final cedia lugar ao "a". Faye deu um pulo. O livro de problemas de xadrez rolou de seu colo e caiu no chão. Ele se inclinou para Jimmy, segurou sua mão, mas o amigo o ignorou, continuando a olhar para Ralph e Lois.

- É o Ralph Roberts! E a mulher de Paul Chasse veio com ele! Me diga, Ralphie, você se lembra do dia em que tentamos entrar naquele encontro evangélico para ouvir eles cantarem

Amazing Grace?

[- Lembro, Jimmy.]

Jimmy pareceu sorrir, e então seus olhos tornaram a se fechar. Láquesis colocou as mãos nas faces do moribundo e ajeitou sua cabeça, como um barbeiro se preparando para barbear um freguês. No mesmo instante, Cloto se curvou ainda mais, abriu a tesoura, e levou-a à frente de modo que as longas lâminas prendessem o negro fio de balão de Jimmy V. Quando Cloto fechou a tesoura, Láquesis abaixou-se e beijou a testa de Jimmy.

[- Vá em paz, amigo.]

Ouviu-se um pliquezinho insignificante. O segmento do fio de balão acima da tesoura flutuou em direcção ao teto e desapareceu. O saco mortuário em que Jimmy jazia tornou-se momentaneamente branco-brilhante e sumiu exactamente como ocorrera com ode Rosalie naquela noite. Jimmy reabriu os olhos e olhou para Faye. Pareceu a Ralph que começou a sorrir mas, em seguida, seu olhar se tornou fixo e distante. As covinhas que tinham começado a se formar nos cantos de sua boca se desfizeram.

- Jimmy? - Fay sacudiu os ombros do amigo, passando a mão pelo lado de Láquesis. Vocês está bem, Jimmy?... Que merda!

Faye se levantou e saiu do quarto, sem muita pressa.

Cloto: [Vocês vêem e compreendem que fazemos o nosso trabalho com amor e respeito?

Que somos de fato os médicos de último caso? É vital para o nosso relacionamento com vocês, Ralph e Lois, que compreendam isso.]

[- Compreendo]

[- Compreendo.]

Ralph não pretendera concordar com nada que nenhum dos dois dissesse, mas aquela frase

- médicos de último caso - atravessou sua raiva como um corte limpo e fácil. Parecia verdadeira. Tinham libertado Jimmy V. de um mundo onde não lhe restava mais nada excepto a dor. Com toda certeza, tinham estado no quarto 317 com Ralph, numa tarde de granizo há uns sete meses, e concedido a Carolyn a mesma libertação. E com efeito, se desincumbiam dessa tarefa com amor e respeito - quaisquer dúvidas que pudesse ter tido neste particular fora afastada quando Láquesis beijara a testa de Jimmy V. Mas será que amor e respeito lhes davam o direito de o infernizarem e a Lois - e depois os confrontar com um ser sobrenatural que destrambelhara? Será que lhes davam o direito de sequer sonhar que duas pessoas comuns, que já não eram jovens, poderiam enfrentar tal criatura?

Láquesis: [Víamos sair deste lugar. Vai se encher de gente e precisamos conversar.]

[- E temos escolha?]

As respostas dos dois [Claro que têm! Sempre há uma escolha!] vieram rápidas, coloridas de surpresa.

Cloto e Láquesis encaminharam-se para a porta; Ralph e Lois se encolheram para deixá-los passar. As auras dos doutorezinhos carecas os engolfaram por um momento, porém, e Ralph registrou seu gosto e textura: o gosto de maçãs doces, a textura de cortiça leve e seca.

Ao saírem, lado a lado, falando grave e respeitosamente entre si, Faye voltou, agora acompanhado por duas enfermeiras. Os recém-chegados atravessaram Láquesis e Cloto, depois Ralph e Lois, sem se deterem, não parecendo achar nada estranho.

Fora, no corredor, a vida continuava no ritmo usual e abafado. As campainhas não dispararam, as luzes não piscaram, nenhum servente apareceu empurrando uma maça pelo corredor gritando "fogo!". Ninguém gritou Já pelo alto-falante. A morte era uma visitante demasiado conhecida ali para causar alvoroço. Ralph reflectiu que não era bem-vinda, mesmo em tais circunstâncias, mas era familiar e aceita. Também reflectiu que Jimmy V. teria ficado bastante feliz com a sua partida do terceiro andar do Derry Home - partira sem confusões nem incómodos, não precisara mostrar a ninguém nem a licença de motorista nem o cartão do seguro-saúde. Morrera com a dignidade que as coisas esperadas e simples em geral encerram. Uns dois momentos de consciência, acompanhados por uma percepção ligeiramente ampliada do que ocorria à sua volta e apagou. Embale as minhas tristezas e aflições, pássaro de mau agouro, e tchau.

ELES se reuniram aos doutores carecas no corredor do lado de fora do quarto de Bob Polhurst. Pela porta aberta, puderam constatar que a vigília da morte em volta da cama do velho professor continuava.

Lois: - [O homem mais perto da cama é Bill McGovern, um amigo nosso. Tem algum problema com ele. Alguma coisa horrível. Se fizermos o que querem será que...?]

Mas Láquesis e Cloto balançaram a cabeça ao mesmo tempo.

Cloto: [Nada pode ser mudado.]

É, pensou Ralph. Dorrance sabia disso: o-feito-não-pode-serdesfeito.

Lois: - [Quando vai ocorrer?]

Cloto: [O seu amigo pertence ao outro, ao terceiro. Ao que Ralph já baptizou de Átropos.

Mas nem Átropos nem nós saberíamos dizer a hora exacta da morte do homem. Ele nem ao menos saberia dizer quem levará em seguida. Átropos é agente do Acaso.]

A frase produziu um arrepio no peito de Ralph.

Láquesis: [Mas aqui não é lugar para se conversar. Venham.]

Láquesis segurou a mão de Cloto, e estendeu a mão livre para Ralph. Ao mesmo tempo, Cloto estendeu a sua em direcção a Lois. Ela hesitou e então olhou para Ralph.

Ralph, por sua vez, fez cara feia para Láquesis.

[- É melhor não machucá-la.]

[- Nenhum de vocês dois vai se machucar, Ralph.

Segure minha mão.]

Sou um estranho no paraíso, Ralph terminou a frase mentalmente. Então soltou um suspiro entredentes, acenou com a cabeça para Lois e agarrou a mão estendida de Láquesis. Aquele choque de reconhecimento, profundo e agradável como um encontro inesperado com um velho e estimado amigo,

perpassou-o outra vez. Maçãs e cortiça; lembranças de pomares por onde andara em criança. Estava de alguma forma consciente, sem na realidade ver que sua aura mudara de cor e se tornara - pelo menos por um momento - o verde salpicado de ouro de Cloto e Láquesis.

Lois tomou a mão de Cloto, inspirou brevemente pelos lábios entreabertos, e sorriu hesitante.

Cloto: [Fechem o círculo, Ralph e Lois. Não tenham medo. Está tudo bem.]

Cara, como discordo disso, Ralph pensou, mas, quando Lois estendeu a mão, ele a segurou pelos dedos. Ao gosto de maçãs e à textura de cortiça seca acrescentou-se um tempero escuro e irreconhecível. Ralph inspirou profundamnte aquele aroma e depois sorriu para

Lois. Ela retribuiu o sorriso - não havia a menor hesitação em seu sorriso - e Ralph sentiu um ligeiro e longínquo aturdimento. Como você pode sentir medo? Como pode sequer hesitar quando o que trouxeram foi tão bom e parece tão certo?

Eu compreendo, Ralph, mas hesito assim mesmo, aconselhou uma voz.

[-Ralph? Ralph!]

Sua voz pareceu ao mesmo tempo assustada e aturdida. Ralph olhou em tempo de ver a parte superior da porta do quarto 315 descer rente pelos ombros dela... só que não era a porta que descia; era Lois que subia. Todos subiam, ainda de mãos dadas, formando uma roda.

Ralph acabara de absorver isso quando uma escuridão momentânea, cortante como o fio de uma faca, atravessou sua visão como a sombra de uma palheta de persiana. De relance, viu canos finos, que provavelmente faziam parte do sistema de sprinklers, cercados por placas rosadas de isolamento. Em seguida, descobriu-se diante de um longo corredor ladrilhado.

Uma maca rolava em direcção à sua cabeça... que, ele subitamente percebeu, acabara de emergir como um periscópio em um corredor do quarto andar.

Ele ouviu Lois gritar e sentiu que ela apertava sua mão com mais força. Ralph fechou os olhos instintivamente e esperou a maca lhe achatar o crânio.

Cloto: [Fiquem calmos! Por favor, fiquem calmos! Lembrem-se de que essas coisas existem em um nível de realidade diferente do que se encontram agora!]

Ralph abriu os olhos. A maca desaparecera, embora ele ainda ouvisse suas rodas se afastando. O ruído agora vinha das costas. A maca, como o amigo de McGovern, atravessara-o sem parar. Os quatro entraram levitando lentamente em um corredor que devia pertencer à ala de pediatria - criaturas de contos de fadas saracoteavam e faziam travessuras pelas paredes, e decalques de personagens de Disney, Aladim e A pequena sereia enfeitavam as janelas de uma ampla e bem iluminada área de recreação. Um médico e uma enfermeira caminhavam em direcção a eles, discutindo um caso.

"... seria aconselhável fazer outros exames, mas só se tivermos no mínimo noventa por cento de certeza de que..."

O médico atravessou Ralph e ao fazê-lo Ralph percebeu que ele voltara a fumar escondido após um intervalo de cinco anos e estava se culpando pra caramba. Então os dois se foram.

Ralph olhou para baixo na hora em que seus pés emergiam do piso ladrilhado. Virou-se para Lois, sorrindo hesitante.

[- E bem melhor que o elevador, não?

Ela concordou com um aceno de cabeça. Continuou a apertar sua mão com muita força.

Atravessaram o quinto andar e emergiram numa sala de médicos no sexto (havia dois médicos - dos bons -, um assistia à reprise de um filme velho e o outro roncava num pavoroso sofá moderno sueco), e chegaram ao telhado.

A noite estava clara, sem lua, linda. As estrelas cintilavam pela abóbada celeste numa extravagante difusão de luz. O vento soprava forte e ele se lembrou da Sra. Perrine dizendo que podia marcar suas palavras: o veranico terminara. Ralph ouviu o vento, mas não o sentiu... embora tivesse a impressão de que poderia sentir se quisesse. Era apenas uma questão de se concentrar correctamente...

Na mesma hora em que pensou isso, sentiu uma leve e momentânea mudança em seu corpo, algo como uma piscadela. De repente seus cabelos estavam esvoaçando para trás, e ele ouviu as pernas das calças balançarem em torno de seu corpo. Sentiu arrepios. As costas da Sra. Perrine tinham razão quanto à mudança do tempo. Ralph deu outra piscadela interior e o vento cessou. Olhou para Láquesis.

[- Posso largar sua mão agora?]

Láquesis concordou e afrouxou a mão. Cloto soltou a mão de Lois. Ralph contemplou a cidade mais para oeste e viu os pisca-piscas azuis da pista do aeroporto. Para além a malha de luzes de sódio alaranjadas que marcavam Cape Green, um dos loteamentos mais recentes na periferia da tundra. E em algum ponto, no salpico de luzes à leste do aeroporto, encontrava-se a Avenida Harris.

[- É lindo, não é, Ralph?]

Ele assentiu e pensou que estar parado ali, vendo a cidade se espraiar assim na escuridão, valia tudo por que tinha passado desde que a insónia começara. Tudo e mais alguma coisa.

Mas tal pensamento não era inteiramente confiável.

Ele se dirigiu a Láquesis e Cloto.

[- Muito bem, expliquem. Quem são vocês, quem é ele, e o que querem que a gente faça?]

Os dois doutores carecas estavam parados entre dois exaustores que giravam velozes e lançavam no ar leques de poluentes castanho-arroxeados. Láquesis e Cloto se entreolharam nervosamente, e o primeiro acenou com a cabeça quase imperceptivelmente para o segundo.

Cloto se adiantou, olhou de Ralph para Lois e pareceu organizar seus pensamentos.

[Muito bem. Primeiro, vocês precisam entender que o que está acontecendo, embora inesperado e penoso, não é exactamente anormal. Meu colega e eu fazemos o que nos determinaram; Atropos faz o que lhe foi determinado; e vocês, meus amigos Vida-Curta, farão o que lhes foi determinado.]

Ralph brindou-o com um sorriso inteligente e amargo.

- E se vai a liberdade de escolha.

Láquesis: [Você não deve pensar assim! Simplesmente o que vocês chamam liberdade de escolha faz parte do que chamamos ka, a grande roda da existência.]

Lois: - [É como se víssemos as coisas através de um vidro escuro... é isso que querem dizer?]

Cloto, dando um sorriso que parecia juvenil: Uma citação da Bíblia, se não me engano. E uma boa maneira de apresentar a coisa.

Ralph: - [E também muito conveniente para gente como vocês, mas vamos adiante. Temos uma máxima que não se encontra na Bíblia, cavalheiros, mas que ébem oportuna: Não dourem a pílula. Espero que não se esqueçam dela.]

Mas Ralph teve a impressão de que talvez fosse pedir demais.

CLOTO COMEÇOU a falar, então, e falou por um bom tempo. Ralph não fazia uma ideia exacta do número de minutos, porque a noção de tempo era diferente no nível em que se achavam - como que comprimido. Às vezes não havia palavras no que ele dizia; os termos verbais eram substituídos por imagens simples e claras como a de um quebra-cabeças infantil. Ralph supôs que fosse telepatia e ficou muito surpreso, mas, enquanto isso acontecia, pareceu-lhe tão natural quanto respirar.

Outras vezes as palavras e imagens se perdiam, havia interrupções intrigantes na comunicação. Mas, mesmo assim, Ralph conseguia captar a idéia geral do que Cloto estava querendo transmitir, e tinha a impressão de que Lois estava entendendo o sentido oculto naqueles lapsos ainda melhor do que ele.

[Primeiro, saibam que há apenas quatro constantes na área da existência onde suas vidas e as nossas, as vidas dos [ ] se sobrepõem. As quatro constantes são Vida, Morte, Desígnio e Acaso. Todas essas palavras têm significados para vocês, mas agora adquiriram uma noção ligeiramente diferente de Vida e Morte, não?]

Ralph e Lois concordaram hesitantes.

[Láquesis e eu somos agentes da Morte. Isto nos torna figuras atemorizantes para a maioria dos Vidas-Curtas; mesmo os que fingem aceitar nossa presença e o que fazemos, em geral, nos temem. Os filmes, por vezes, nos mostram como um esqueleto horrendo ou um vulto encapuzado cujo rosto ninguém vê.]

Cloto levou as mãos minúsculas aos ombros vestidos de branco e fingiu estremecer. A imitação foi bastante boa para provocar um sorriso de Ralph.

[Mas não somos apenas agentes da morte, Ralph e Lois; somos também agentes do Desígnio.

E agora prestem muita atenção, porque não quero ser mal-entendido. Há os de sua espécie que acham que tudo acontece por predeterminação, e há os que acham que todos os acontecimentos são uma simples questão de sorte ou oportunidade. A verdade é que a vida é ao mesmo tempo acaso e desígnio, embora em proporções desiguais. A vida é como]

Aqui Cloto formou um círculo com os braços, como uma criancinha tentando mostrar o formato da terra, e dentro do círculo Ralph viu uma imagem luminosa e evocativa: milhares (ou talvez fossem milhões) de cartas abertas em leque num rápido arco-íris de copas, espadas, paus e ouros. Também viu muitos coringas nesse enorme baralho; não tantos que pudessem formar uma sequência própria, mas visivelmente mais, em termos proporcionais, do que os dois ou três encontrados num baralho normal. Todos sorriam e todos usavam um panamá surrado faltando uma meia-lua na aba, arrancada a dentadas.

Todos carregavam um bisturi enferrujado.

Ralph virou-se para Cloto arregalando os olhos. Cloto confirmou.

[É, não sei exactamente o que viu, mas sei que viu o que eu estava tentando comunicar.

Lois? E você?]

Lois, que adorava jogar cartas, acenou pálida.

[- Átropos é o coringa no baralho... é o que você quer dizer.]

[Ele é agente do Acaso. Nós, Ldquesis e eu, servimos a outra força, a que responde pela maioria dos acontecimentos na vida dos indivíduos e na correnteza mais ampla da vida.

No seu nível do edifício, Ralph e Lois, toda criatura é uma Vida-Curta, e tem um tempo definido. O que não quer dizer que uma criança saia do ventre da mãe com um letreiro em volta do pescoço dizendo CORTE O CORDÃO AOS 84 ANOS, 11 MESES, 9 DIAS, 6 HORAS, 4 MINUTOS E 21 SEGUNDOS. Isso é uma idéia ridícula. Mas a passagem do tempo é marcada normalmente e, como vocês dois têm visto, uma das muitas funções da aura dos Vidas-Curtas é servir de relógio.]

Lois se mexeu e, quando Ralph se virou para olhá-la, viu uma coisa assombrosa: no alto o céu empalidecia. Ele calculou que fosse umas cinco horas da madrugada. Os dois tinham chegado ao hospital por volta das nove horas na noite de terça-feira, e agora, de repente, era quarta-feira, 6 de outubro. Ralph ouvira falar do tempo voar, mas isso era um absurdo.

Lois: [- O seu trabalho é o que chamamos de morte natural, não é?]

Sua aura piscou com imagens confusas e incompletas. Um homem (o falecido Sr. Chasse, Ralph estava quase certo) deitado numa tenda de oxigênio. Jimmy V. abrindo os olhos para contemplar Ralph e Lois um instante antes de Cloto cortar seu fio de balão. A página de notas fúnebres do News de Derry, pontilhada de fotografias, a maioria pouco maior do que um selo, divulgando a safra semanal dos hospitais e asilos locais.

Cloto e Láquesis balançaram a cabeça discordando.

Láquesis: [Não existe morte natural, não de todo. O nosso trabalho é a morte designada.

Levamos os velhos e os doentes, mas levamos outros também. Ainda ontem, por exemplo, levamos um rapaz de vinte e oito anos. Um carpinteiro. Há duas semanas de seu tempo, ele caiu de um andaime e fraturou o crânio. Durante as duas semanas seguintes sua aura foi]

Ralph recebeu uma imagem fracturada de uma aura relampejante como a que envolvia o bebé no elevador.

Cloto: [Finalmente a mudança sobreveio: a alteração na aura. Sabíamos que ocorreria, mas não em que momento. Quando ocorreu, fomos até ele e o despachamos.]

[- Despacharam para onde?]

Foi Lois que perguntou, abordando o assunto delicado da vida após a morte quase por acaso. Ralph agarrou seu cinto de segurança mental, quase torcendo por uma daquelas estranhas lacunas mas, quando as respostas sobrepostas vieram, foram perfeitamente claras.

Cloto: [Para toda parte.]

Láquesis: Para outros mundos.

Ralph sentiu uma mistura de alívio e desapontamento.

[- Isto parece muito poético, mas acho que significa, corrija-me se estiver errado, que a vida após a morte é o mesmo mistério para vocês que é para nós.]

Láquesis, meio empertigado: [Em outra ocasião, talvez tenhamos tempo para discutir tais assuntos, mas não neste momento - como vocês sem dúvida já perceberam, o tempo passa mais depressa neste nível do edifício]

Ralph olhou à volta e viu que a manhã já clareara consideravelmente.

[- Desculpe]

E Cloto, sorrindo: [De nada-apreciamos suas perguntas, são revigorantes. A curiosidade existe por todo o continuum da vida, mas em parte alguma é tão abundante quanto aqui.

Mas o que vocês chamam de vida após a morte não tem lugar nas quatro constantes Vida e Morte, Acaso e Desígnio - que nos interessam agora.

A chegada de praticamente qualquer morte que serve ao Desígnio segue um curso com que estamos muito familiarizados. As auras dos que irão sofrer mortes determinadas ficam cinzentas quando o fim se aproxima. O cinzento escurece progressivamente a té enegrecer. Somos chamados quando a aura, e viemos exatamente como viram ontem à noite. Trazemos libertação para os que sofrem, paz para os que vivem em terror, descanso para os que não o têm. A maioria das mortes designadas são esperadas, e até bem-vindas, mas nem todas.

Por vezes somos chamados para levar homens, mulheres e crianças que estão cheios de saúde... mas cujas auras se alteraram subitamente e cujo tempo se esgotou]

Ralph lembrou-se do rapaz, com a camiseta cavada dos Celtics, que vira entrar dançando no mercadinho na tarde anterior. Era a imagem da saúde e vitalidade... isto é, excepto pelo saco espectral que o envolvia.

Ralph abriu a boca, talvez para mencionar o rapaz (ou perguntar pelo seu destino), então tornou a fechá-la. O sol estava a pino, e uma estranha certeza repentinamente o invadiu: que ele e Lois tinham se tornado tema de conversas apimentadas na cidade secreta dos Velhos Coroas.

Alguém viu os dois?... Não? Acham que fugiram juntos? Para casar talvez?... Não, não na idade deles, mas quem sabe juntaram as escovas... Não sei se Ralphie ainda tem munição naquele velho arsenal, mas ela sempre me pareceu uma mulher fogosa... É, e anda como se soubesse o que fazer com aquilo, não anda?

A imagem do seu enorme calhambeque aguardando pacientemente por trás de um dos apartamentos cobertos de hera do Derry Cabins, enquanto no quarto as molas subiam e desciam libidinosamente, acorreu a Ralph e ele sorriu. Não pôde evitar. Um instante depois, lhe ocorreu a ideia assustadora de que poderia estar irradiando seus pensamentos pela aura e bateu a porta na cara da imagem na mesma hora. Mas não era que Lois o observava com um certo ar risonho de indagação?

Ralph apressadamente voltou suas atenções para Cloto.

[Átropos serve ao Acaso. Nem todas as mortes do tipo que os Vidas-Curtas consideram "sem sentido", "desnecessárias" e "trágicas" são seu trabalho, mas a maioria é. Quando uma dúzia de velhos e velhas morrem em um incendo num hotel para aposentados, são grandes as chances de Átropos ter passado por lá, levando souvenirs e cortando cordões.

Quando uma criancinha morre no berço sem razão aparente, a causa, muito provavelmente, será Átropos e seu bisturi enferrujado. Quando um cachorro-sim, mesmo um cachorro, porque os destinos de quase todos os seres vivos no mundo dos Vidas-Curtas cabem ao Acaso ou ao Desígnio - é atropelado na rua porque o motorista que o atingiu escolheu o momento errado para consultar o relógio...]

Lois: [- Foi isso que aconteceu a Rosalie?]

Cloto: [Átropos foi o que aconteceu a Rosalie. O amigo de Ralph, Joe Wyzer, apenas "serviu à circunstância" como dizemos.]

Láquesis: [E Átropos foi também o que aconteceu ao seu amigo, o falecido Sr. McGovern.]

Lois traduzia o sentimento de Ralph: desalentada mas não realmente surpresa. Era agora o fim da tarde, talvez tivessem transcorrido umas dezoito horas na contagem dos Vidas-Curtas desde que viram Bill, e Ralph sabia que o tempo que lhe restava era extremamente curto mesmo na noite anterior. Lois, que sem querer pusera a mão dentro dele, provavelmente sabia disso até melhor que Ralph.

Ralph: [- Quando aconteceu? Quanto tempo depois que o vimos?]

Láquesis: [Não demorou muito. Quando ele estava deixando o hospital. Lamento por sua perda e por ser o portador da notícia de maneira tão inábil, falamos com Vidas-Curtas tão raramente que nos esquecemos como fazê-lo. Não quis

magoá-los, Ralph e Lois.]

Lois respondeu-lhe que estava tudo bem, que compreendia, mas as lágrimas rolavam pelo seu rosto, e Ralph sentiu arderem também em seus próprios olhos. A idéia de que Bill pudesse ter partido - que aquele merdinha de avental sujo o tivesse pego - era difícil de assimilar. Deveria acreditar que McGovern nunca mais ergueria aquela sobrancelha peluda e satírica? Nunca mais encheria o saco sobre a porcaria que era envelhecer? Impossível.

Voltou-se repentinamente para Cloto.

[- Mostre para nós.]

Cloto, surpreso, quase perturbado: [Eu... eu não acho...]

Ralph: [- Ver é crer para nós otários de vida curta. Vocês nunca ouviram isso?]

Lois manifestou-se inesperadamente.

[- Isto mesmo: mostre para nós. Mas apenas o suficiente para que possamos saber e aceitar. Procure não nos fazer sentir pior do que já estamos.]

Cloto e Láquesis se entreolharam, então pareceram dar de ombros sem na realidade mexerem o tronco estreito. Láquesis estalou os primeiros dois dedos da mão direita para o alto, criando um leque luminoso verde-azulado como a cauda de um pavão. Nele Ralph viu uma imitação pequena e estranhamente perfeita do corredor da U.T.I. Uma enfermeira entrou nesse arco e atravessou-o empurrando um carrinho de remédios. No outro extremo do leque, ela pareceu curvar-se por um instante antes de desaparecer de vista.

Lois, encantada, apesar das circunstâncias: [- É como assistir um filme projectado em uma bolha de sabão!]

Agora McGovern e o Sr. Ameixa saíram do quarto de Bob Polhurst. McGovern vestira uma velha suéter da escola secundária de Derry e seu amigo fechava o zíper do blusão; visivelmente encerravam por mais uma noite a vigília da morte. McGovern caminhava lentamente, deixando-se ficar para trás do Sr. Ameixa. Ralph pôde observar que seu vizinho do térreo e amigo de alguns anos não parecia nada bem.

Sentiu a mão de Lois escorregar pelo seu braço e apertá-lo com força. Pôs a sua mão sobre a dela.

A meio caminho do elevador, McGovern parou, apoiou-se na parede com uma mão, e baixou a cabeça. Parecia um fundista totalmente sem fôlego ao fim de uma maratona. Por um momento, o Sr. Ameixa continuou a caminhar. Ralph viu sua boca se mexer e pensou:

Ele não sabe que está falando sozinho - pelo menos, ainda não.

De repente Ralph não quis ver mais nada.

Dentro do leque verde-azulado, McGovern levou uma mão ao peito. A outra procurou a garganta e começou a massageá-la, como se estivesse verificando o estado da barba. Ralph não tinha muita certeza, mas achava que os olhos do seu vizinho do térreo pareciam assustados. Lembrou-se do esgar de ódio na cara do Dr. N-3 quando compreendeu que um

Vida-Curta se atrevera a interferir em seu trabalho com um vira-lata local. Que foi que ele dissera?

[Vou ferrar você, Coroa. Vou ferrar você pra valer. E vou ferrar seus amigos também. Tá me ouvindo bem?]

Uma idéia terrível, quase uma certeza, penetrou a mente de Ralph, enquanto observava Bill

McGovern desmontar lentamente no chão.

Lois: [- faça isso desaparecer - por favor, faça isso desaparecer!]

Ela enterrou o rosto no ombro de Ralph. Cloto e Láquesis tornaram a trocar olhares inquietos e Ralph percebeu que já começara a revisar a imagem mental que fazia da onisciência e poder dos dois. Podiam muito bem ser criaturas sobrenaturais, mas não eram nenhum Dr. Joyce Brothers. Tinha a impressão de que não entendiam grande coisa de previsão de futuro, tampouco; caras com bolas de cristal realmente eficientes provavelmente não teriam uma expressão daquelas em seu repertório.

Eles estão tacteando pelo caminho, igualzinho a nós, Ralph pensou, e sentiu uma certa simpatia relutante pelo Sr. C. e o Sr. L.

O leque luminoso verde-azulado que flutuava diante de Láquesis - e as imagens que continha - subitamente desapareceu.

Cloto, parecendo na defensiva: [Por favor, lembrem-se que vocês, Ralph e Lois, é que quiseram ver. Não lhes mostramos isto voluntariamente.]

Ralph mal ouviu as desculpas. A ideia assustadora ainda não se revelara totalmente, como uma fotografia que a pessoa não quer ver mas não consegue desviar os olhos dela.

Lembrava do chapéu de Bill... do lenço azul desbotado de Rosalie... e dos brincos de diamantes que Lois perdera.

[Vou ferrar seus amigos pra valer, Coroa - está me ouvindo bem? Espero que esteja.

Espero que esteja mesmo.]

Ele olhou de Cloto para Láquesis, a simpatia que sentira desapareceu. Substituiu-a uma palpitação surda de raiva. Láquesis dissera que não havia morte acidental e isso incluía a de McGovern. Ralph não tinha dúvidas de que Átropos tirara a vida de McGovern naquele momento por uma única razão: queria ferir Ralph, queria castigar Ralph por se intrometer...

como foi que Dorrance chamara isso? Histórias passadas.

O velho Dor sugerira que ele não fizesse isso - uma boa política, sem dúvida, mas ele, Ralph, realmente não tivera escolha... porque os dois nanicos carecas tinham se intrometido com ele. Tinham, num sentido muito real, provocado a morte de Bill McGovern.

Cloto e Láquesis viram sua raiva e recuaram um passo (embora dessem a impressão de fazer isso sem parecer mexer os pés), os rostos expressando mais inquietação que nunca.

[- Vocês dois são a causa da morte de Bill McGovern. Essa é que é a verdade, não é?]

Cloto: [Por favor... se você ao menos nos deixar acabar de explicar...]

Lois fitava Ralph, ansiosa e apavorada. [- Ralph? Que foi que houve? Por que está zangado?] [- Você não está percebendo? Essa armaçãozinha deles custou a vida de Bill McGovern. Estamos aqui porque Átropos fez alguma coisa que estes caras não gostam ou está se preparando para fazer...] Láquesis: [Você está tirando conclusões precipitadas, Ralph...] [-... mas há um problema muito básico: ele sabe que nós o vemos! Átropos SABE que nós o vemos!]

Os olhos de Lois se arregalaram de terror... e compreensão.

 

UMA MÃOZINHA branca pousou no ombro de Ralph e permaneceu ali como fumaça.

[Por favor... se ao menos nos deixarem explicar...] Ele sentiu aquela mudança - aquela piscadela - ocorrer em seu corpo mesmo antes de tomar inteira consciência de que a comandara. Voltou a sentir o vento, vindo da escuridão como a lâmina fria de uma faca e estremeceu. O toque da mão de Cloto agora não passava de uma vibração fantasmagórica sob a superfície da pele de Ralph. Ele via os três, mas agora estavam leitosos e desmaiados.

Agora eram fantasmas.

Desci. Não para o lugar em que começamos, mas pelo menos até o nível onde eles quase não podem ter contacto físico comigo. Minha aura, meu fio de balão... tenho certeza de que podem tocar essas coisas, mas a parte física que vive a minha vida real no mundo dos Vidas-Curtas? Nem pensar.

A voz de Lois, distante como um eco que vai morrendo: [-Ralph! Que é que você está fazendo com o seu...] Ele contemplou os fantasmas de Cloto e Láquesis. Agora não pareciam apenas constrangidos ou ligeiramente culpados, mas completamente apavorados.

Seus rostos estavam distorcidos e difíceis de distinguir, mas seu pavor era inconfundível.

Cloto, a voz distante mas audível: [Volte, Ralph! Por favor volte!]

- Se eu voltar, você vai parar de tentar nos enrolar com molecagens e vai ser honesto conosco?

Láquesis, desbotando, desaparecendo: [Vou! Vou!]

Ralph comandou aquela piscadela interior de novo. Os três voltaram a entrar em foco. Ao mesmo tempo, a cor voltou a inundar os espaços do mundo e o tempo retomou seu ritmo anterior - ele observou a lua minguante escorregar para o horizonte como uma gota de mercúrio reluzente. Lois atirou os braços em torno de seu pescoço, e por um momento ele não teve certeza se o abraçava ou tentava estrangulá-lo.

[- Graças a Deus! Pensei que você ia me abandonar!]

Ralph beijou-a; por instantes, sua cabeça foi invadida por uma agradável confusão sensorial: o gosto de mel fresco, a textura de lã penteada e o cheiro de maçãs. Um pensamento lampejou em sua mente.

(como seria fazer amor lá em cima?)

e ele o expulsou da cabeça na mesma hora. Precisava pensar e falar com muito cuidado nos próximos (minutos? horas? dias?)

e distrair-se com essas coisas apenas tornaria a tarefa muito mais difícil. Virou-se para os doutorezinhos carecas e mediu-os com os olhos.

[- Espero que estejam sendo sinceros. Porque se não estiverem, acho que é melhor cancelarmos este páreo agora e cada um seguir o seu caminho}

Cloto e Láquesis não se deram o trabalho de trocar olhares desta vez; ambos concordaram com a cabeça, ansiosos. Láquesis falou num tom defensivo. Esses caras, Ralph desconfiava, eram de trato bem mais ameno do que Átropos, mas nem por isso estavam mais habituados a serem questionados - a serem postos à prova, como diria a mãe de Ralph - do que o outro.

[Tudo que lhes dissemos era verdade, Ralph e Lois. Podemos ter omitido a possibilidade de Átropos ter uma compreensão ligeiramente maior da situação do que realmente nos agradaria, mas...]

Ralph: [- E se nos recusarmos a continuar a ouvir essa baboseira? E se simplesmente dermos as costas e formos embora?]

Nenhum dos dois respondeu, mas Ralph pensou ter visto nos olhos deles algo que o desanimou: sabiam que Átropos se apossara dos brincos de Lois e sabiam que ele sabia. A única pessoa que não sabia - Ralph esperava - era a própria Lois.

Ela agora o puxava pela manga.

[- Não faça isso, Ralph: por favor, não. Precisamos ouvir o que têm a dizer.]

Ele virou-se para os dois e fez um sinal breve para que continuassem.

Láquesis: [Em circunstâncias normais, não interferimos com Átropos, nem ele conosco.

Não poderíamos interferir com ele nem que quiséssemos; o Acaso e o Desígnio são como os quadrados brancos e pretos em um tabuleiro de xadrez, que se definem pelo contraste.

Mas Átropos quer interferir com a operação das coisas - interferir é, em um sentido muito real, o que lhe foi designado fazer - e em raras ocasiões, surge a oportunidade de agir numa escala grandiosa. As tentativas de detê-lo são raras...]

Cloto: [A verdade é um pouco mais forte, Ralph e Lois; nunca em nossa experiência houve uma tentativa de contê-lo ou impedi-lo]

Láquesis: [...e só ocorrem se a situação em que ele pretende interferir for muito delicada, e haja muitas questões graves a pesar e repesar. Estamos diante de uma situação dessas.

Átropos cortou um cordão vital em que não deveria ter tocado. Isto irá causar problemas terríveis em todos os níveis, sem falar no sério desequilíbrio entre o Acaso e o Desígnio, a não ser que a situação seja corrigida. Não podemos resolver o que está acontecendo; a situação ultrapassou de muito a nossa capacidade. Não conseguimos mais ver claramente e muito menos agir. Neste caso, porém, nossa incapacidade de ver pouco importa, porque, no fim, somente os Vidas-Curtas podem se opor à vontade de Átropos. E por isso que vocês dois estão aqui.

Ralph: [-Você está nos dizendo que Átropos cortou o cordão de alguém que deveria morrer de morte natural... ou de uma morte designada?]

Cloto: [Não é bem assim. Algumas vidas - muito poucas - não possuem uma definição nítida. Quando Átropos mexe com tais vidas é grande a probabilidade de criar problemas.

"Não se aceitam mais apostas" como vocês dizem. As vidas não definidas são como...]

Cloto afastou as mãos e surgiu entre elas uma imagem - mais um baralho. Uma sequência de sete cartas que foram rapidamente viradas, uma após a outra, por uma mão invisível. Um ás; um dois; um coringa; um três; um sete; uma rainha. A última carta que a mão invisível virou estava em branco.

Cloto: [A imagem ajuda a compreender?]

Ralph franziu a testa. Não sabia dizer. Em algum lugar lá fora, havia uma pessoa que não era uma carta comum nem um coringa no baralho. Uma pessoa inteiramente indefinida que podia ser usada por qualquer dos lados. Átropos cortara o tubo metafísico de ar de um cara e agora alguém - ou alguma coisa - pedira tempo.

Lois: [- É de Ed que estão falando, não é?]

Ralph girou nos calcanhares e encarou-a incisivamente, mas ela estava olhando para Láquesis.

[- Ed Deepneau é a carta em branco]

Láquesis concordava com um aceno de cabeça.

[- Como soube disso, Lois?]

[- Quem mais poderia ser?]

Ela não estava propriamente sorrindo para ele, mas Ralph teve a sensação de um sorriso.

Voltou-se para Cloto e Láquesis.

[- Muito bem, finalmente estamos chegando a algum lugar. Então quem foi que acendeu a luz vermelha nessa hitória? Não me parece que foram vocês: tenho a impressão de que pelo menos neste caso vocês dois não passam de mão-de-obra contratada]

Eles juntaram as cabeças por um instante e cochicharam, mas Ralph viu surgir um leve traço ocre, que lembrava uma costura, no ponto em que as duas auras auriverdes se sobrepuseram e viu que tinha razão. Finalmente os dois voltaram a encarar Ralph e Lois.

Láquesis: [É, o caso é basicamente este. Você tem a habilidade de colocar as coisas em perspectiva, Ralph. Não temos uma conversa assim há milhares de anos...]

Cloto: [Se é que já tivemos alguma]

Ralph: [- Basta contarem a verdade, rapazes]

Láquesis, lamentando-se como uma criança: [Temos feito isso!].

Ralph: [- Toda a verdade]

Láquesis: [Muito bem: toda a verdade. Certo, foi o cordão de Ed Deepneau que Átropos cortou. Não sabemos disso porque vimos - perdemos a capacidade de ver com clareza, como disse - mas porque é a única conclusão lógica. O Deepneau não foi definido nem pelo Acaso nem pelo Desígnio, isto nós sabemos, e o cordão dele devia ser essencial, para ter causado tanto alvoroço e preocupação. Até mesmo o fato de continuar vivo, tanto tempo depois de ter o cordão seccionado, indica seu poder e importância. Ao seccionar o cordão, Átropos desencadeou uma série de acontecimentos terríveis.]

Lois estremeceu e achegou-se mais para perto de Ralph.

Láquesis: [Você nos chamou de mão-de-obra contratada. Estava mais certo do que supôs. Somos, neste caso, simples mensageiros. Nossa tarefa é alertar você e Lois para o acontecido e para o que se espera de vocês, e essa tarefa está quase cumprida. Quanto a "quem acendeu a luz vermelha", não podemos responder essa pergunta porque realmente não sabemos.]

[- Não acredito.]

Mas percebeu que faltava convicção à sua própria voz (se é que aquilo era uma voz).

Cloto: [Não seja tolo - é claro que acredita! Você esperaria que os directores de uma grande indústria de automóveis convidassem um subalterno à sala de reuniões da directoria para lhe explicar as razões que embasam as diretrizes da companhia? Ou talvez para lhe justificar por que resolveu fechar uma fábrica e deixar outra aberta?]

Láquesis: [Ocupamos uma posição um pouco superior a dos homens que trabalham nas linhas de montagem, mas ainda somos o que você chamaria de operários, Ralph - nem mais nem menos.]

Cloto: [Contente-se com o seguinte: além dos níveis de existência dos Vidas-Curtas e dos Vidas-Longas em que Láquesis, Átropos e eu vivemos, ainda há outro. São habitados por criaturas que consideramos Eternas, cuja vida é perene ou tão próxima disso que não faz muita diferença. Os

Vidas-Curtas e os Vidas-Longas habitam esferas de existência que se sobrepõem - nos andares interligados do mesmo edifício, se preferir - regidos pelo Acaso e o Desígnio. Acima desses andares, inacessíveis a nós, mas parte da mesma torre de existência, vivem os outros seres. Alguns são assombrosos e fantásticos; outros são tão medonhos que ultrapassam a nossa compreensão, quanto mais a de vocês. Poderíamos chamar tais seres de Superior Desígnio e Superior Acaso... ou talvez não haja Acaso acima de certo nível; suspeitamos que seja este o caso, mas não temos como nos certificar. Sabemos que alguma coisa de um desses níveis superiores se interessou por Ed, e que uma outra coisa lá no alto contra-atacou. Esse contra-ataque são vocês, Ralph e Lois.]

Lois lançou um olhar desalentado a Ralph que mal notou. A ideia de que alguma coisa os movia como peças de xadrez no Clássico Pista 3 que Faye Chapin tanto prezava - uma idéia que o teria enfurecido em outras circunstâncias - passou por ele em brancas nuvens.

Lembrava-se da noite em que Ed lhe telefonara. Você está entrando em águas profundas, dissera, e há coisas submersas na correnteza que você sequer é capaz de conceber.

Em outras palavras, entidades.

Seres tão medonhos que ultrapassam a compreensão, segundo o Sr. C., e o Sr. C. era um cavalheiro cujo trabalho era trazer a morte.

Eles ainda não repararam realmente em você, Ed lhe dissera naquela noite, mas se você continuar a se meter comigo, repararão. E você não quer que isso aconteça. Não quer, não, pode crer.

Lois: [- Para começar, como foi que vocês nos fizeram chegar a este nível? Foi a insónia, não foi?]

Láquesis, cauteloso: t- Em essência, sim. E também podemos fazer pequenas alterações nas auras dos Vidas-Curtas. Esses ajustes causaram uma forma especial de insónia que alterou a maneira de vocês sonharem e a maneira de perceberem o mundo em estado de vigília. O ajuste de auras em

Vidas-Curtas é uma tarefa delicada e assustadora. Existe sempre o risco de enlouquecê-los.]

Cloto: [Houve vezes em que vocês talvez sentissem que estavam enlouquecendo, mas nenhum dos dois chegou nem perto disso. Vocês são muito mais resistentes do que julgam.]

Esses veados realmente acham que estão nos tranquilizando, Ralph se admirou, e mais uma vez afastou a raiva de seus pensamentos. Simplesmente não tinha tempo para raivas agora.

Mais tarde, talvez, compensaria o atraso. Esperava que sim. Por ora, apenas afagou a mão de Lois e voltou sua atenção para Cloto e Láquesis.

[- M, verão passado, depois de espancar a mulher, Ed me falou de um ser a quem chamou de Rei

Sangüinário. Vocês já ouviram f alar nele?]

Cloto e Láquesis se entreolharam num gesto que, no primeiro instante, Ralph tomou por solene.

Cloto: [Ralph, você precisa se lembrar que Ed é louco, vive num estado de delírio...]

[- Sei, me fale disso.]

[... mas acreditamos que, de alguma forma, o "Rei Sangüinário" existe, e quando Átropos cortou o cordão vital de Ed, ele caiu directamente sob a influência desse ser.]

Os dois doutorezinhos carecas se entreolharam de novo e, desta vez, Ralph entendeu a expressão em seus olhos: não era solene, mas aterrorizada.

RAIOU uma nova manhã - quinta-feira - que clareava cada vez mais, a caminho do meiodia. Ralph não saberia dizer ao certo, mas achava que a velocidade com que as horas passavam lá embaixo no nível dos Vidas-Curtas estava-se acelerando; se eles não concluíssem essa conversa logo, Bill McGovern não seria o único de seus amigos a quem sobreviveriam.

Cloto: [Átropos soube que o Superior Desígnio enviaria alguém para tentar alterar o processo que ele desencadeara, e agora já sabe quem é. Mas vocês não devem se deixar desviar por Átropos; não se esqueçam que ele é pouco mais que um peão neste tabuleiro.

Átropos não é o seu verdadeiro antagonista.]

Ele parou e olhou hesitante para o colega. Láquesis fez sinal com a cabeça para que prosseguisse, e ele assim fez com muita segurança, mas Ralph sentiu um frio no estômago do mesmo jeito. Estava seguro de que os dois doutores carecas tinham as melhores intenções, mas era óbvio que estavam num vôo cego.

Cloto: [Vocês não devem abordar Átropos directamente, tampouco. Nunca é demais enfatizar. Ele está cercado de forças que lhe são muito superiores, forças malignas e poderosas, forças que são conscientes e não se deterão diante de nada para vencerem vocês. Porém achamos que, se vocês se mantiverem afastados de Átropos, talvez consigam bloquear esta coisa horrível que está para acontecer... e que, num sentido muito real, já está acontecendo.]

Ralph não estava nada interessado no pressuposto implícito de que ele e Lois iam fazer o que quer que esses dois vaqueiros sorridentes pretendiam, mas o momento não parecia ser o mais acertado para dizer isso.

Lois: [- Que é que está para acontecer? Que é que querem de nós? Teremos que encontrar Ed e convencê-lo a não agir mal?]

Cloto e Láquesis olharam-na com idênticas expressões de choque e horror.

[Você não ouviu o...]

[... nem pensar numa coisa dessas...]

Eles se calaram e Cloto fez sinal para Láquesis continuar.

[Se não ouviu antes, Lois, ouça agora: fique longe de Ed Deepneau! Como aconteceu com Átropos, sua situação anormal o investiu temporariamente de grande poder. Só de chegar perto dele, vocês correm o risco de uma visita da entidade a quem chama de Rei

Sangüinário... e, além do mais, ele não se encontra mais em Derry.]

Láquesis contemplou a cidade, onde as luzes começavam a iluminar o crepúsculo de quintafeira, depois voltou sua atenção para Ralph e Lois.

[Ele partiu para]

Sem palavras, mas Ralph teve uma clara percepção, parte olfativa (óleo, graxa, exaustão, sal marinho), parte tátil e auditiva (o vento sacudindo alguma coisa - talvez uma bandeira), e parte visual (um grande e velho edifício com uma enorme porta aberta sobre um trilho de aço).

[- Ele está no litoral, não ei Ou a caminho dali]

Cloto e Láquesis assentiram, e seus rostos sugeriam que o litoral, a uns cento e trinta quilómetros de Derry, era um bom lugar para Ed Deepneau.

Lois deu um puxão na mão de Ralph que se virou.

[- Você viu o edifício, Ralph?]

Ele confirmou com a cabeça.

Lois: [-Não são os laboratórios Hawking, mas fica perto. Acho que talvez seja um lugar que conheço...]

Láquesis, falando rapidamente como se quisesse mudar de assunto: Onde ele está ou o que pode estar planejando realmente não importa. A tarefa de vocês é outra, em águas seguras, mas talvez precisem usar todo o seu poder de Vidas-Curtas, que é enorme, para realizá-la, e talvez corram grande perigo.

Lois olhou nervosa para Ralph.

[- Diga a eles que não vamos ferir ninguém, Ralph - poderíamos concordar em ajudálos, se estiver ao nosso alcance, mas não vamos ferir ninguém, em hipótese alguma.]

Ralph, porém, não disse nada. Estava pensando no brilho dos diamantes nas orelhas de Átropos e na maneira perfeita com que fora apanhado - e Lois com ele, é claro. É, ele ia ferir alguém para recuperar os brincos. Não havia a menor dúvida. Mas até onde estava disposto a ir? Mataria para tê-los de volta?

Sem querer abordar o problema - sem sequer querer olhar para Lois, pelo menos por ora - Ralph se dirigiu a Cloto e Láquesis. Abriu a boca para falar, mas Lois falou primeiro.

[-Há uma outra coisa que quero saber antes de dar outro passo.]

Foi Cloto quem respondeu, parecendo achar uma certa graça - parecendo-se, de fato, muitíssimo com Bill McGovern. Ralph não gostou nem um pouco.

[- E o que é, Lois?]

[- Ralph também está em perigo? Átropos tirou alguma coisa de Ralph que vamos precisar recuperar depois? Uma coisa como o chapéu de Bill?]

Láquesis e Cloto trocaram um olhar rápido e apreensivo. Ralph achou que Lois não percebera, mas ele, sim. Ela está chegando perto demais para o nosso gosto, dizia o olhar.

Então passou. Seus rostos estavam novamente lisos ao voltarem as atenções para Lois.

Láquesis: [Não. Átropos não furtou nada de Ralph porque, até agora, isto não lhe adiantaria nada.]

Ralph: [Que quis dizer com "até agora"?]

Cloto: [Você passou a vida como parte do Desígnio, Ralph, mas isto mudou.]

Lois: [- Quando mudou? Foi quando começamos a ver as auras, não foi?]

Eles olharam um para o outro, depois para Lois, e então - nervosos-para Ralph. Não responderam, e uma ideia interessante ocorreu a Ralph: como a história da macieira que contam sobre o presidente George Washington na infância, Cloto e Láquesis não sabiam mentir... e, em momentos como aquele, provavelmente lamentavam sua incapacidade. A única alternativa era a que empregavam: passavam um zíper na boca e esperavam que a conversa tomasse rumos mais seguros. Ralph resolveu que não queria que a conversa prosseguisse - pelo menos por ora -, embora estivessem perigosamente próximos de deixar Lois descobrir onde tinham ido parar seus brincos... sempre presumindo que ela já não o soubesse, uma possibilidade que não lhe parecia nada remota. Ocorreu-lhe a frase de um antigo lançador puxa-saco: Venham, cavalheiros... mas se quiserem jogar, terão que pagar.

[- Não, Lois: a mudança não se operou quando comecei a ver as auras. Acho que muita gente, de vez em quando, tem vislumbres das auras do mundo dos Vidas-Longas, e não lhes acontece nada de ruim. Não creio que tenha sido expulso do meu lugarzinho seguro e confortável no Desígnio até começarmos a conversar com os nossos amigos aqui. Que me dizem? Vocês só faltaram deixar um rastro de miolinhos de pão, embora soubessem perfeitamente bem qual seria o resultado. Não foi assim?]

Eles olharam para os pés, então lentamente, relutantemente, ergueram os olhos para Ralph.

Foi Láquesis quem respondeu.

[Verdade, Ralph. Nós os atraímos mesmo sabendo que isso alteraria o seu ka. E lastimável, mas a situação exigiu.]

Agora Lois vai perguntar sobre a condição dela, Ralph pensou. Agora ela tem que perguntar.

Mas ela não perguntou. Apenas olhou para os dois doutorezinhos carecas com uma expressão indecifrável, completamente diferente dos olhares habituais da Nossa Lois. Ralph se perguntou outra vez o quanto ela saberia ou imaginaria, admirando-se mais uma vez que ele não tivesse a menor pista... e então tais especulações foram engolidas por uma nova onda de raiva.

[- Caras...caramba, vocês caras...]

Ele não terminou, embora talvez o fizesse, se Lois não estivesse ao seu lado: Caras vocês fizeram muito mais do que interferir com o nosso sono, não foi mesmo? Não sei qual é o caso da Lois, mas eu tinha um nichozinho bem confortável no Desígnio... o que significa que vocês deliberadamente me transformaram numa excepção às regras que passaram a vida inteira respeitando. De certa forma, me transformei em uma carta em branco igualzinha ao cara que vocês querem que a gente encontre. Como foi que Cloto disse?

"Não aceitamos mais apostas." Porra, que frase mais verdadeira.

Lois: [- Vocês falaram em usar nossos poderes. Que poderes?] Láquesis se dirigiu a ela, visivelmente satisfeito com a mudança de assunto.

Apertou as mãos, palma contra palma, depois abriu-as num curioso gesto oriental. O que apareceu entre as mãos foram duas breves imagens: a mão de Ralph produzindo um relâmpago de fogo azul ao cortar o ar num golpe de caraté, e o dedo de Lois produzindo balas de luz cinza-azulada que lembravam pastilhas nucleares para tosse.

Ralph: [Tudo bem, temos alguma coisa, mas não é confiável.

É como...]

Ele se concentrou e criou uma imagem própria: as mãos abrindo a tampa de um rádio e retirando duas pilhas incrustadas de azinhavre. Cloto e Láquesis franziram a testa para ele, sem compreender.

Lois: [- Ele está tentando dizer que nem sempre podemos fazer isso e, quando podemos, não é por muito tempo. Nossas baterias se descarregam, entende?]

A compreensão mesclada por um sorriso de incredulidade se espalhou pelos seus rostos.

Ralph: [- Pó, qual é a graça?]

Cloto: [Nada... tudo. Vocênão tem idéia de como você e Lois nos parecem estranhosincrivelmente sábios e perspicazes num momento e incrivelmente ingênuos no momento seguinte.

Suas pilhas, conforme as chamam, nunca se descarregam, porque vocês dois têm à disposição uma reserva inesgotável de energia. Presumimos isso, porque os dois já se utilizaram da reserva e certamente sabem disso.]

Ralph: [- Mas de que é que vocês estão falando?]

Láquesis fez aquele curioso gesto oriental de abrir as mãos. Desta vez Ralph viu a Sra. Perrine, caminhando empertigada numa aura cor de uniforme de gala de cadete. Viu um raio de brilho acinzentado, fino e recto como o espinho de um porco-espinho, desprender-se dessa aura.

A imagem foi sobreposta pela de uma mulher magricela metida numa aura castanhoacinzentada. Ela olhava pela janela de um carro. Uma voz-a de Lois - falou: Ah, Mina, aquela casa não é uma gracinha? Um instante depois ouviu-se uma inspiração sibilante e um fino raio da aura da mulher desprendeu-se de sua nuca.

Seguiu-se uma terceira imagem, breve, mas forte: Ralph metendo a mão pela abertura do guiché de informação e agarrando o pulso da mulher com a aura laranja espinhenta... só que de repente a aura em torno de seu braço esquerdo deixou de ser laranja. De repente era o turquesa pálido que ele agora chamava de Azul Ralph Roberts.

A imagem se dissolveu. Láquesis e Cloto encararam Ralph e Lois; eles retribuíram o olhar chocados.

Lois: [Ah, não! Não podemos fazer isso! É o mesmo...]

Imagem: Dois homens em uniformes listrados de presidiários e pequenas máscaras pretas, saindo nas pontas dos pés do cofre de um banco, carregando sacos disformes de tão cheios, marcados com um cifrão de um lado.

Ralph: [- Não, pior que isso. E como...]

Imagem: Um morcego entra voando por uma janela aberta, faz dois círculos descendentes num raio prateado de luar, então se transforma em Ralph Lugosi vestindo uma capa e um smoking antiquado. Aproxima-se de uma mulher adormecida -não uma virgenzinha jovem e rosada, mas a velha Sra. Perrine metida numa sensata camisola de flanela -, debruça-se sobre ela e suga sua aura.

Quando Ralph tornou a olhar para Cloto e Láquesis, os dois sacudiam a cabeça com toda veemência.

Láquesis: [Não! Não, não, não! Você não poderia estar mais enganado! Nunca lhe ocorreu por que vocês são Vidas-Curtas e marcam a passagem da vida em décadas ao invés de séculos? Suas vidas são curtas porque vocês ardem como fogueiras! Quando vocês tiram energia de um companheiro Vida-Curta, é o mesmo...]

Imagem: Uma criança na praia, uma linda menina de cachos dourados caindo pelos ombros, corre em direcção ao mar. Em uma das mãos, leva um baldinho vermelho. Ajoelha-se e enche-o com a água do vasto oceano azul-cinza.

Cloto: [Vocês são como a criança, Ralph e Lois - seus companheiros Vidas-Curtas são como o mar. Compreendem agora?]

Ralph: [- Existe realmente tanta energia assim na aura da raça humana?]

Láquesis: [Você ainda não entendeu. Essa é a quantidade que existe...]

Lois interrompeu-o. Sua voz tremia, embora Ralph não soubesse dizer se era de medo ou de êxtase.

[- Essa é a quantidade que existe em cada um de nós, Ralph. Em cada ser humano na face da terra!]

Ralph assoviou baixinho e olhou de Láquesis para Cloto. Eles confirmaram com a cabeça.

[- Vocês estão dizendo que podemos nos reabastecer com a energia de qualquer pessoa que esteja por perto? Que é seguro para as pessoas de quem a extraímos?]

Cloto: [É. A possibilidade de machucar alguém é a mesma de esvaziar o Atlântico com um baldinho de praia]

Ralph rezou para que fosse verdade, porque tinha a impressão de que ele e Lois andavam tomando energia emprestada feito loucos - era a única explicação que conseguia encontrar para todos os elogios que vinha recebendo. Gente dizendo que ele estava com uma óptima aparência. Gente dizendo que ele devia estar curado da insónia, tinha que estar, porque andava com um ar tão descansado e saudável. Que estava mais jovem.

Diabos, pensou, estou mais jovem.

A lua se pusera mais uma vez e Ralph percebeu sobressaltado que o sol de sexta-feira não tardaria a nascer. Já era tempo de retomarem o assunto da conversa.

[- Vamos voltar ao que interessa, caras. Por que se deram todo este trabalho? Que é que vocês querem que a gente impeça?]

E então, antes que um dos dois pudesse responder, ele teve uma intuição demasiado forte e clara para ser questionada ou negada.

[- É a Susan Day, não é? Ele pretende matar Susan Day. Assassiná-la.]

Cloto: [É, mas...]

Láquesis: [... mas não é isso que importa...]

Ralph: [- Vamos, caras - vocês não acham que chegou a hora de botar todas as cartas na mesa?]

Láquesis: [Certo, Ralph. Chegou a hora.]

Tinha havido pouco ou até nenhum contacto entre eles desde que formaram o círculo e subiram pelos pisos dos andares do hospital até o telhado, mas agora Láquesis passou um braço leve e gentil pelos ombros de Ralph e Cloto segurou Lois pelo braço, como um cavalheiro antigo faria para conduzir uma dama ao salão de dança.

Aroma de maçãs, gosto de mel, textura de lã... mas desta vez o prazer de Ralph com aquele insumo sensorial não conseguiu mascarar a inquietação que sentiu quando Láquesis virouo para a esquerda e em seguida caminhou com ele até a beirada da laje de cobertura do hospital.

Como tantas cidades maiores e mais importantes, Derry parecia ter sido construída no local geograficamente mais impróprio que seus primeiros habitantes conseguiram encontrar. A área do centro ficava nas encostas íngremes de um vale; no fundo, o rio Kenduskeag corria preguiçosamente pela vegetação rasteira da tundra. Do seu ponto de observação, no alto do hospital, Derry parecia uma cidade cujo coração fora transpassado por um fino punhal verde... só que no escuro, o punhal era preto.

Um lado do vale era Old Cape, local de um desanimado loteamento do pós-guerra e de um reluzente e luxuoso shopping. O outro reunia quase tudo que as pessoas queriam dizer quando se referiam ao centro da cidade. O centro de Derry girava em torno do morro da Ladeira-Acima. A rua Witcham tomava o caminho mais direto para o morro, subindo a encosta íngreme antes de se ramificar no emaranhado de ruas (entre elas a Avenida Harris) que formava o lado oeste. A rua Principal saía da Witcham no meio da subida e rumava para sudoeste ao longo do lado mais raso do vale. Esta área da cidade era conhecida pelos nomes de rua Principal e Bassey Park. E quase no topo da rua Principal...

Lois, num gemido: [- Meu bom Deus, o que é aquilo?]

Ralph tentou dizer alguma coisa para reconfortá-la, mas só conseguiu produzir um som fraco e rouco. Quase no alto da rua Principal, um grande guarda-chuva negro flutuava acima do chão, tampando as estrelas que começavam a empalidecer com a chegada da manhã.

Ralph tentou dizer a si mesmo, a princípio, que era apenas fumaça, que um dos armazéns naquela área pegara fogo... talvez até a estação ferroviária abandonada no fim da rua Neilbolt. Mas os armazéns ficavam mais para o sul, a velha estação mais para oeste, e se aquele cogumelo de aparência maligna fosse realmente fumaça, o vento predominante o desfaria pelo céu em plumas e penachos. E isto não estava acontecendo. Ao invés de se dissipar, a mancha silenciosa no céu simplesmente continuava ali, mais escura que a escuridão.

E ninguém a vê, pensou Ralph. Ninguém a não ser eu... e Lois... e os doutorezinhos carecas. Os sacanas dos doutorezinhos carecas.

Ralph apertou os olhos, procurando distinguir a forma no interior do gigantesco saco mortuário, embora ele não precisasse realmente fazer isso; vivera em Derry a maior parte da vida, e era capaz de navegar por suas ruas de olhos fechados (isto é, desde que não tivesse que fazer isso ao volante do seu carro). Contudo, ele conseguia divisar a construção dentro do saco mortuário, particularmente agora que a luz do dia começava a transbordar pelo horizonte. O telhado plano e circular que cobria a fachada de vidro curvo e tijolos à vista era um indicador certo. A construção ao estilo da década de 1950, desenhada em cima da perna pelo famoso arquitecto (e à época morador de Derry) Benjamin Hanscom, era o novo centro cívico de Derry, em substituição ao que fora destruído pela inundação de 1985.

Cloto virou Ralph de frente para ele.

[Está vendo, Ralph, você tinha razão - ele pretende assassinar Susan Day... mas não é só a Susan Day.]

Fez uma pausa, olhou para Lois, e voltou seu rosto sério para Ralph.

[Aquela nuvem - que vocês dois muito apropriadamente chamam íte saco mortuário significa que, num certo sentido, ele já fez o que Atropos o mandou fazer. Haverá mais de duas mil pessoas ali hoje à noite... e Ed Deepneau pretende matar todos. Se o curso dos acontecimentos não for alterado, matará todos.]

Láquesis deu um passo à frente para juntar-se ao seu colega.

[Vocês, Ralph e Lois, são os únicos que podem impedir que isto aconteça.]

MENTALMENTE RALPH viu o póster de Susan Day que fora afixado na loja vazia entre a farmácia Rite Aid e o Day Break, Sun Down. Lembrou-se das palavras escritas na poeira acumulada do lado de fora da vitrine: MATE ESSA BOCETUDA. E uma coisa dessas podia muito bem acontecer em Derry, esse é que era o problema. Derry não era exactamente igual a outros lugares. Parecia a Ralph que a atmosfera da cidade melhorara muito desde a grande inundação há oito anos, mas ela continuava a não ser igual a outros lugares. Havia um traço de perversidade em Derry e, quando seus moradores se inflamavam, eram conhecidos por fazerem coisas extraordinariamente ruins.

Ele enxugou os lábios e foi momentaneamente distraído pelo toque sedoso e distante de sua mão na boca. Era constantemente lembrado, de diferentes maneiras, que sua condição sofrera uma mudança radical.

Lois, horrorizada: [- E como vamos fazer isso? Se não podemos nos aproximar de Atropos nem de Ed, como podemos evitar que alguma coisa aconteça?]

Ralph percebeu que não conseguia ver o rosto de Lois nitidamente agora; o dia clareava com a velocidade de uma fotografia quadro a quadro num velho filme de Disney sobre a natureza.

[-Vamos telefonar dizendo que há uma ameaça de bomba, Lois. Isso deve funcionar.]

Cloto pareceu desanimado ao ouvi-lo; Láquesis chegou a bater na testa com o punho antes de espiar nervoso o céu do amanhecer. Quando tornou a olhar para Ralph, seu rosto miúdo estava tomado por algo que poderia ser um pânico cuidadosamente amordaçado.

[Isto não vai funcionar, Ralph. Agora, ouçam os dois, e ouçam com atenção: seja lá o que façam nas próximas quatorze horas mais ou menos, é preciso que não subestimem o poder das forças que Atropos liberou ao encontrar Ed e cortar seu cordão vital]

Ralph: [- Por que não vai funcionar?]

Láquesis, parecendo ao mesmo tempo zangado e assustado: [Não podemos simplesmente continuar a responder suas perguntas indefinidamente, Ralph - de agora em diante, você vai ter que nos dar um voto de confiança. Conhece a velocidade com que o tempo passa neste nível; se continuarmos aqui em cima por mais tempo, perderá sua chance de impedir o que está para acontecer hoje à noite no centro cívico. Você e Lois precisam descer.

Realmente precisam!] - Cloto estendeu a mão para o colega, então voltou-se para Ralph e Lois.

[Vou responder esta última pergunta, embora tenha certeza de que se pensasse um pouco, você mesmo poderia respondê-la. Já houve vinte e três ameaças de bomba com relação ao discurso de Susan Day hoje à noite. A polícia tem mantido cães que farejam explosivos no cen iro cívico, nas últimas quarenta e oito horas, tem radiografado todos os pacotes e entregas que chegaram ao prédio e também tem feito buscas localizadas. A polícia previu as ameaças de bombas e as tem levado a sério, mas supõe que no caso as ameaças estejam partindo de seguidores do pró-vida que tentam impedir que a Sra. Day fale.]

Lois, apaticamente: [Ah meu Deus - como na história do menino que gritava "Lobo!"]

Cloto: [Certo, Lois.]

Ralph: [Ele escondeu uma bomba? Escondeu, não foi?]

A claridade inundou o telhado, alongando como puxa-puxa as sombras dos exaustores em funcionmento. Cloto e Láquesis olharam para as sombras e depois para o leste, onde uma pontinha do sol aparecia no horizonte, com idênticas expressões de desânimo.

Láquesis: [Não sabemos e não interessa. Você precisa impedir que ela dicurse, e só há uma maneira de fazer isso: você precisa convencer as coordenadoras da visita de Susan Day a cancelarem o evento. Compreendeu? Ela não pode aparecer no centro cívico hoje à noite!

Você não pode deter Ed, e não pode se atrever a se aproximar de Átropos, então precisa deter Susan Day.]

Ralph: [-Mas...]

Não foi a claridade que se expandia que calou sua boca, nem a crescente expressão de mortificação e medo nos rostos dos doutorezinhos carecas. Foi Lois. Ela pôs a mão em seu rosto e lhe deu uma leve mas decisiva sacudidela na cabeça.

[- Chega. Vemos que descer, Ralph. Agora.]

As perguntas giravam em sua cabeça como mosquitos, mas se Lois dizia que não havia mais tempo, não havia mais tempo. Espiou o sol, viu que já passara inteiramente a linha do horizonte, e concordou com a cabeça. Passou o braço pela cintura de Lois.

Cloto, ansioso: [Não nos deixem na mão, Ralph e Lois]

Ralph: [- Poupe o papo para animar jogador, nanico. Isto não é uma partida de futebol]

Antes que eles pudessem responder, Ralph fechou os olhos e concentrou-se em voltar ao mundo dos Vidas-Curtas.

 

HOUVE AQUELA sensação de piscadela e uma gelada brisa matinal golpeou seu rosto.

Ralph abriu os olhos e espiou a mulher ao seu lado. Por um instante, vislumbrou sua aura esvoaçar por trás dela como uma sobre-saia de gaze num vestido de baile antigo e em seguida viu apenas Lois, parecendo vinte anos mais jovem do que na semana anterior... e também extremamente deslocada, em seu casaco leve de Outono e no vestido sóbrio de visitar doentes, ali no telhado de piche e brita do hospital.

Ralph abraçou-a com mais força, quando ela começou a tremer. De Láquesis e Cloto, nem sinal.

Embora pudessem estar parados bem aqui do nosso lado, pensou Ralph. Aliás é bem provável que estejam.

De repente lembrou-se outra vez da velha frase do lançador puxa-saco, aquela que, se a pessoa queria jogar, tinha que mostrar jogo, portanto adiantem-se, cavalheiros, e façam suas apostas. Mas era bem mais frequente a gente ser o objecto e não o sujeito do jogo. E qual era o jogo? Fazê-lo de otário, naturalmente. E por que lhe ocorria essa sensação agora?

Porque houve muitas coisas que você nunca descobriu, disse Carolyn dentro de sua cabeça.

Eles o conduziram por muitas veredas interessantes e o mantiveram afastado da questão principal até ser demasiado tarde para você fazer as perguntas que eles talvez não quisessem responder... e não creio que uma coisa dessas aconteça por acaso, não acha?

Não. Ele não achava.

Aquela sensação de ser conduzido por mãos invisíveis para dentro de um túnel escuro onde poderia haver qualquer coisa à espreita tornou-se mais forte. A sensação de estar sendo manipulado. Sentiu-se pequeno... e vulnerável... e pau da vida.

- B-Bem, estamos de v-v-volta - Lois disse por entre os dentes que batiam de frio. Que horas você acha que são?

Dava a impressão de serem umas seis horas mas, quando Ralph olhou para o relógio, não se surpreendeu ao constactar que não estava funcionando. Não se lembrava qual fora a última vez em que lhe dera corda. Provavelmente na terça-feira de manhã.

Acompanhou o olhar de Lois para o sudoeste e viu o centro cívico erguendo-se como uma ilha no meio de um mar de carros. Com o sol do início da manhã tirando reflexos de suas grandes janelas curvas, o centro parecia uma versão gigantesca do edifico onde George Jetson trabalhava. O enorme saco mortuário que o envolvia há poucos instantes desaparecera.

Ah, não desaparecera, não. Não se iluda, companheiro. Você pode não estar vendo, mas ele continua lá, sim.

- Cedo - respondeu a Lois, puxando-a mais para junto de si, quando uma rajada de vento despenteou seus cabelos, cabelos que agora eram igualmente pretos e brancos, e começavam na testa. - Mas acho que vai ficar tarde rapidinho.

Ela compreendeu o que ele queria dizer e concordou com um aceno de cabeça.

- Onde estão L-Láquesis e C-C...

- Em um nível onde o vento não congela o rabo da gente, imagino. Vamos. Vamos procurar uma porta e dar o fora desse telhado.

Porém, ela continuou onde estava por mais um momento, tremendo e contemplando a cidade.

- Que será que ele fez? - perguntou baixinho. - Se não escondeu uma bomba no centro, que poderá ter feito?

- Talvez ele tenha escondido uma bomba só que os cães de nariz treinado ainda não a encontraram. Ou talvez tenha escondido alguma coisa que os cães não foram treinados para encontrar. Uma lata escondida nas vigas do telhado, digamos, uma substância letal que Ed tenha preparado na banheira. Afinal, ele ganhava a vida como químico... pelo menos até largar o emprego para virar maluco de tempo integral. Poderia estar planejando matá-los com gás, como se fossem ratos.

- Que horror, Ralph! - Ela levou a mão ao peito, pouco acima dos seios e fitou-o com olhos arregalados e tristes.

- Vamos, Lois. Vamos dar o fora desse telhado infecto.

Desta vez ela o acompanhou de boa vontade. Ralph conduziu-a até a porta do telhado...

que, esperava com fervor, estivesse destrancada.

- Duas mil pessoas - ela comentou quase gemendo, quando alcançaram a porta. Ralph ficou aliviado ao sentir a maçaneta girar em sua mão, mas Lois agarrou-o pelo pulso com a mão gelada, antes que ele pudesse abrir a porta. Seu rosto erguido expressava uma ansiosa esperança. - Talvez aqueles homenzinhos estivessem mentindo, Ralph: talvez tenham interesses ocultos, do tipo que sequer poderíamos compreender, e seja tudo mentira.

- Não acho que saibam mentir - ele respondeu lentamente. - E aí é que está o problema, Lois: não acho que saibam. Além do mais, há aquilo lá. - E apontou para o centro cívico, para a membrana escura que não podiam ver, mas que ambos sabiam que estava presente.

Lois não quis se virar para olhá-la. Em vez disso, colocou a mão gelada sobre a dele, abriu a porta do telhado e começou a descer as escadas.

RALPH ABRIU a porta no fim da escada, deu uma espiada no corredor do sexto andar, constatou que estava vazio e puxou Lois para fora. Quando seguiam em direcção aos elevadores, detiveram-se diante de uma porta aberta com o letreiro SALA DOS MÉDICOS impresso na parede em letras muito vermelhas. Era a sala cujo interior tinham visto ao subirem ao telhado com Cloto e Láquesis - quadros de Winslow Homer pendurados tortos nas paredes, uma cafeteira de vidro refractário numa chapa eléctrica, e uma horrenda mobília sueca. Não havia ninguém na sala, mas a TV aparafusada à parede estava ligada assim mesmo, e sua velha amiga Lisette Benson lia as notícias matinais. Ralph lembrou-se do dia em que ele, Lois e Bill se achavam sentados na sala de Lois, comendo macarrão gratinado enquanto assistiam à reportagem de Lisette Benson sobre o incidente das bonecas atiradas contra a WomanCare. Fora a menos de um mês. E subitamente lembrou-se que Bill McGovern jamais assistiria a Lisette Benson outra vez, ou se esqueceria de trancar a porta da rua, e uma sensação de perda, forte como um vendaval de novembro, atravessou-o. Não conseguia acreditar totalmente, pelo menos no momento.

Como Bill poderia ter morrido tão depressa e sem a menor cerimónia? Ele teria odiado, Ralph pensou, e não somente porque consideraria morrer de enfarto no corredor de um hospital um gesto de mau gosto. Mas também porque consideraria tal morte um drama sem categoria.

Mas vira-a acontecer, e Lois chegara a senti-la devorando as entranhas de Bill. Ralph pensou no saco mortuário que envolvia o centro cívico, e no que ia ocorrer ali se eles não impedissem o evento. Recomeçou a andar na direcção dos elevadores, mas Lois o puxou de volta. Espiava fascinada a TV.

- ...vai se sentir muito aliviada quando o discurso da defensora do direito ao aborto, Susan

Day, hoje à noite, pertencer ao passado - dizia Lisette Benson -, mas a polícia não é a única a pensar assim. Aparentemente tanto os defensores da vida quanto os da opção estão começando a se ressentir da tensão de viver à beira de um confronto. John Kirkland fala ao vivo do centro cívico de Derry agora de manhã e tem outras notícias. John?

O homem pálido e carrancudo ao lado de Kirkland era Dan Dalton. O butão na camisa mostrava um bisturi ameaçando um bebé com os joelhos dobrados em posição fetal. Em volta, um círculo vermelho cortado por uma diagonal também vermelha. Ralph viu meia dúzia de carros de polícia e dois caminhões de TV, um com o logotipo da NBC na lateral, ao fundo da cena. Um policial fardado caminhava pelo gramado levando dois cães pelas guias - um sabujo e um pastor alemão.

- Certo, Lisette, estou aqui no centro cívico, onde se poderia dizer que há uma atmosfera de ansiedade e íntima determinação. Ao meu lado, Dan Dalton, presidente da organização os

Amigos da Vida, que tem se oposto tão veementemente ao discurso da Sra. Day. Sr. Dalton, o senhor concordaria com a minha avaliação?

- De que há muita ansiedade e determinação no ar? - Dalton perguntou. A Ralph, seu sorriso pareceu ao mesmo tempo nervoso e arrogante. - E, acho que poderia descrevê-la assim. Estamos preocupados porque Susan Day, uma das maiores criminosas à solta no país, conseguirá confundir a questão central aqui em Derry: a matança diária de doze a quatorze fetos desamparados.

- Mas, Sr. Dalton...

- E - Dalton interrompeu-o - estamos decididos a mostrar à nação que nos observa que não pretendemos ser bons nazistas, e que nem todas as pessoas se deixam intimidar pela religião e pelo que é politicamente correcto - o temível pe-cê.

- Sr. Dalton...

- Também estamos decididos a mostrar à nação que nos observa que ainda há pessoas capazes de se levantar em defesa de suas crenças, e de corresponder à sagrada responsabilidade que o bom Deus nos...

- Sr. Dalton, os Amigos da Vida estão planejando algum tipo de protesto violento aqui?

A pergunta o fez calar-se por um momento e pelo menos temporariamente drenou toda a vitalidade enlatada de seu rosto. Com isso, Ralph vislumbrou uma coisa desanimadora: sob aquele rompante, Dalton estava morto de medo.

- Violência? - disse finalmente. Pronunciou a palavra com cuidado, como se, do contrário, pudesse causar um corte feio em sua boca. - Deus dos céus, não. Os Amigos da Vida rejeitam a ideia de que dois erros possam produzir um acerto. Pretendemos montar uma manifestação maciça, estão vindo se juntar à nossa luta os defensores da vida de Augusta, Portland, Portsmouth e até de Boston, mas não haverá violência.

- E o Ed Deepneau? O senhor pode falar em nome dele? Os lábios de Dalton, já finos a ponto de parecerem uma costura, agora quase desapareceram de todo.

- O Sr. Deepneau não está mais ligado aos Amigos da Vida - respondeu. Ralph pensou ter percebido medo e indignação no tom de Dalton. - Nem tampouco Frank Felton, Sandra McKay ou Charles Pickering, caso pretenda perguntar.

O olhar de John Kirkland para a câmera foi breve, mas significativo. Dizia que achava Dan Danton completamente pirado.

- O senhor está me dizendo que Ed Deepneau e esses outros indivíduos, me desculpe, não sei quem são, formaram um grupo antiaborto isolado? Uma espécie de dissidência?

- Nós não somos antiaborto, somos pró-vida. - Dalton exclamou. - Há uma grande diferença, mas parece que vocês, repórteres, não conseguem distinguir!

- Então o senhor não sabe onde anda Ed Deepneau, nem o que poderia estar planejando, se estiver planejando alguma coisa?

- Não sei, nem me interessa onde ele está, e não quero saber de sua... dissidência, tãopouco.

Mas você está com medo, Ralph pensou. E se um sacana dono da verdade como você está com medo, então eu acho que estou aterrorizado.

Dalton se afastou. Kírkland aparentemente decidiu que ainda não o espremera de todo, saiu atrás dele, sacudindo o fio do microfone para soltá-lo.

- Mas não é verdade, Sr. Dalton, que enquanto esteve associado aos Amigos da Vida, Ed Deepneau instigou várias manifestações com objetivos violentos, inclusive a do mês passado em que atiraram bonecas cheias de sangue...

- Vocês são todos iguais, não é mesmo? - Dan Dalton exclamou. - Vou rezar por você, meu amigo. - E afastou-se com altivez.

Kirkland acompanhou-o com o olhar por um momento, intrigado, então voltou-se para a câmera.

- Tentamos encontrar a presidente da organização oposta a do Sr. Dalton, Gretchen

Tillbury, que assumiu a tarefa de coordenar o evento para a WomanCare, mas ela não pôde nos conceder entrevista. Ouvimos dizer que se encontra em High Ridge, um abrigo e casa de passagem para mulheres ligadas à WomanCare. Presumivelmente, ela e suas companheiras estão cuidando dos detalhes finais da programação do comício e discurso desta noite no centro cívico, na esperança de que seja seguro e sem violência.

Ralph olhou para Lois.

- Tudo bem, pelo menos agora sabemos aonde estamos indo.

A imagem voltou à Lisette Benson no estúdio.

- John, há realmente indícios de possíveis manifestações de violência no centro cívico?

E mais uma vez a Kirkland, que retomara sua posição original diante dos carros de polícia.

Segurava um pequeno rectângulo branco com alguma coisa impressa diante da gravata.

- Bem, o pessoal da segurança que se encontra de serviço aqui recolheu centenas dessas fichas espalhadas pelo jardim da entrada hoje, quando o dia amanheceu. Um dos guardas afirma que viu o veículo de onde foram atiradas. Diz que foi um Cadillac do fim da década de sessenta, marrom ou preto. Ele não conseguiu anotar o número da placa, mas diz que havia um adesivo no pára-choque traseiro com os dizeres ABORTO NÃO É OPÇÃO, É CRIME.

De volta ao estúdio, onde Lisette Benson observava com grande interesse.

- Que está escrito nesses cartões, John? Novamente Kirkland.

- Acho que teríamos de responder que é uma espécie de charada. - Ele baixou os olhos para o cartão e leu: - "Se você tem um revolver carregado com duas balas apenas e se encontra em uma sala com Hitler, Stalin e alguém pró-aborto, que é que você faz?" Kirkland ergueu os olhos para a câmera e continuou. - A resposta impressa no verso, Lisette, é a seguinte: "Atire no pró-aborto duas vezes."

- John Kirkland, ao vivo, do centro cívico de Derry.

- ESTOU MORRENDO DE FOME. - Lois comentou enquanto Ralph manobrava atentamente o Oldsmobile por uma série de rampas de garagem que deveria libertá-los... isto é, se Ralph não perdesse nenhuma das setas de saída.

- Se é exagero, não é muito.

- Eu também - retrucou Ralph. - E considerando que não comemos nada desde terçafeira, acho que já era de se esperar. Vamos nos sentar e tomar um bom café da manhã a caminho de High Ridge.

- Teremos tempo?

- Arranjaremos. Afinal de contas, um

exército luta com a barriga.

- Imagino que sim, embora não me sinta nada militarizada. Você sabe onde...

- Fique quieta um segundo, Lois.

Ele parou abruptamente o Oldsmobile, e apurou os ouvidos. Ouviu um cleque repetitivo sob o capo que não lhe agradou muito. Claro que as paredes de concreto de locais como esse tendiam a ampliar os sons, porém...

- Ralph? - ela perguntou nervosa - Não vai me dizer que tem alguma coisa errada com o carro? Por favor, não me diga isso, está bem?

- Acho que o carro está óptimo - respondeu, recomeçando a se deslocar lentamente em direcção à luz. - É que perdi a intimidade com a velha Nellie desde que Carol morreu.

Esqueci o tipo de sons que costuma fazer. Você ia me perguntando uma coisa, não ia?

- Se você sabe onde fica o abrigo. High Ridge. Ralph balançou a cabeça.

- Em algum ponto na divisa com Newport é só o que sei. Acho que não informam a homens onde fica. Estava na esperança de que você talvez soubesse.

Lois sacudiu a cabeça.

- Nunca precisei usar um lugar desses, graças a Deus. Teremos que ligar para ela. A tal Tillbury. Você a conheceu em companhia de Helen, portanto pode falar. Ela vai lhe escutar.

Lois lançou a Ralph um breve olhar, que lhe aqueceu o coração: Qualquer pessoa com algum bom senso o escutaria, Ralph - dizia, mas ele sacudiu a cabeça.

- Aposto que as únicas ligações a que ela está atendendo hoje são as que vêm do centro cívico ou do lugar onde Susan Day estiver. - Deu uma espiada em Lois. - Sabe, aquela mulher tem muito peito para vir aqui. Ou então é burra demais.

- Provavelmente um pouco de cada. Se Gretchen Tillbury não estiver atendendo, como vai falar com ela?

- Bem, vou lhe dizer. Fui vendedor durante um longo período da minha vida real, como diria Faye Chapin, e aposto como ainda consigo ser criativo quando é preciso.-Ele pensou na mulher do guiché de informações de aura laranja e sorriu. - Persuasivo, também, acho.

- Ralph? - Sua voz era fraca.

- Que foi, Lois?

- Isto me parece vida real. Ralph afagou sua mão.

- Sei o que quer dizer.

UM ROSTO conhecido e magricela espiou para fora da cabine de pagamento da garagem do hospital; um sorriso conhecido - um sorriso do qual no mínimo meia dúzia de dentes tinham desertado - iluminou a cabine.

- Eiii, Ralph, é você? Diabos se não é! Beleza! Beleza!

- Trigger? - Ralph perguntou lentamente. - Trigger Vachon?

- Em pessoa! - Trigger afastou os cabelos castanhos e lisos dos olhos, para poder dar uma boa olhada em Lois. - E quem é essa flor aí? Conheço ela de algum lugar, diabos se não conheço!

- Lois Chasse - informou Ralph, puxando o ticket do estacionamento que imprensara sobre o protector de sol. - Vai ver você conheceu o marido dela, Paul...

- Se conheci! - Trigger exclamou. - Fomos guerreiros de fim de semana, em setenta, talvez setenta e um! A gente fechou a Nan's Tavern mais de uma vez! Puxa vida! E como vai indo o Paul, madame?

- O Sr. Chasse faleceu há pouco mais de dois anos - respondeu Lois.

- Diabos! Sinto muito. Era um campeão, o Paul Chasse. Campeão em tudo. Todos gostavam dele. - Trigger pareceu tão aflito quanto se tivesse sabido que o falecimento ocorrera naquela manhã.

- Muito obrigada, Sr. Vachon. - Lois consultou o relógio e ergueu os olhos para Ralph.

Seu estômago roncava, acrescentando um ponto final à argumentação.

Ralph entregou o ticket pela janela aberta do carro e, quando Trigger o recebeu, repentinamente se deu conta de que o carimbo indicaria que ele e Lois estavam ali desde

terça-feira à noite. Quase sessenta horas.

- Que aconteceu com a tinturaria, Trig? - perguntou depressa.

- Ahhh, eles me despediram - respondeu Trigger. - Não contei pra você? Despediram quase todo o mundo. No começo, fiquei pra morrer, mas aí arranjei esse outro aqui em abril, e... é isso! E acho que estou gostando muito mais. Tenho uma televisãozinha pra ver quando o movimento está fraco, e não tem ninguém buzinando para mim se eu não arrancar no segundo em que o sinal abre, nem me cortando lá na Extensão da Harris. Todo o mundo correndo para chegar em outro lugar, é o que é, só não sei pra quê. E vou dizer mais uma coisa, Ralph: aquele furgão era mais frio que peito de bruxa no inverno. Desculpe, madame.

Lois não respondeu. Parecia estar estudando as costas das mãos com grande interesse.

Enquanto isso, Ralph observou com alívio que Trigger amassou o ticket e atirou-o no lixo, sem sequer verificar o carimbo de hora e data. Comprimiu um dos botões da caixa registradora, e apareceram três zeros na tela da cabine.

- Puxa, Trigger, não precisava se incomodar - Ralph agradeceu.

- Eiii, não foi nada - e num gesto grandioso, apertou outro botão. Este ergueu a barreira diante da cabine. - Foi bom ver você. Ah, você lembra aquele dia lá no aeroporto? Puts! O tempo fechou pra valer e aqueles dois caras quase se atracaram. Depois choveu à beça. Caiu um pouco de granizo, também. Você estava a pé e lhe dei uma carona até em casa. Desde aquele dia, só vi você umas duas vezes. - Observou Ralph com mais atenção. - Você está com uma cara muito melhor agora, Ralph Acredite. Diabos, você não parece ter mais de cinqüenta e cinco anos. Beleza!

Ao lado de Ralph, o estômago de Lois roncou outra vez, mais alto. Ela continuou a examinar as costas das mãos.

- Mas me sinto bem mais velho - retorquiu Ralph. - Olha Trig, foi óptimo ver você, mas tenho que...

- Diabos - Trigger disse, e seus olhos pareceram distantes. -Tinha uma coisa pra dizer, Ralph. Pelo menos acho que tinha. Sobre aquele dia. Puts, estou ficando velho e burro!

Ralph esperou mais um pouco, pairando constrangido entre a impaciência e a curiosidade.

- Bem, não se aflija, Trig. Já faz muito tempo.

- Que diabo...? - Trigger se perguntou. Olhou para o teto da cabine apertada, como se a resposta pudesse estar escrita ali.

- Ralph, precisamos ir - falou Lois. - E não é só pela vontade de tomar café.

- Vamos. Você tem razão.-Pôs o Oldsmobile novamente em movimento, embora lentamente. - Se você se lembrar, Trig, me ligue. O telefone está na lista. Gostei muito de ver você.

Trigger Vachon não lhe deu atenção; na realidade, nem parecia mais consciente da presença de Ralph.

- Foi uma coisa que vimos? - perguntou ao teto. - Ou alguma coisa que fizemos? Puts!

Ele continuava a olhar para cima e a coçar os cabelinhos crespos da nuca quando Ralph virou à esquerda e, com um aceno final, saiu na rua do hospital, dirigindo-se para o prédio baixo de tijolos à vista onde funcionava a WomanCare.

AGORA que o sol estava totalmente de fora, havia apenas um segurança, e nenhum manifestante. Essa ausência fez Ralph se lembrar de todos os épicos passados nas selvas que vira quando rapaz, principalmente a parte em que os tambores nativos paravam de rufar e o herói - Jon Hall ou Frank Buck - se virava para o chefe dos carregadores e dizia que não estava gostando daquele silêncio profundo. O segurança tirou uma prancheta de debaixo do braço, apertou os olhos para olhar o Olds de Ralph e anotou alguma coisa - o número da placa, supôs Ralph. Então veio andando em sua direcção, pelo caminho coberto de folhas.

A esta hora da manhã, Ralph pôde escolher uma das vagas de dez minutos defronte ao prédio. Estacionou, desembarcou e deu a volta para abrir a porta de Lois, conforme fora treinado a fazer.

- Como é que vamos agir? - ela perguntou quando Ralph segurou sua mão para ajudá-la a descer.

- Provavelmente teremos de bancar os simpáticos, mas não vamos exagerar. Certo?

- Certo. - Ela deu uns tapinhas nervosos pela frente do casaco ao atravessarem a rua e se abriu num sorriso de um megawatt para o segurança. - Bom-dia, seu guarda.

- Bom-dia. - Ele deu uma olhada no relógio. - Acho que ainda não tem ninguém aí dentro a não ser a recepcionista e a faxineira.

- E com a recepcionista que queremos falar - disse Lois animada. Isto era novidade para

Ralph. - Barbie Richards. A tia Simone mandou um recado para ela passar adiante. Muito importante. Diga a ela que é a Lois Chasse.

O segurança pensou um pouco, até que acenou com a cabeça em direcção à porta.

- Não vai ser preciso. Pode entrar direto, madame.

- Não vamos demorar nem dois segundos, certo, Norton? - disse, sorrindo mais radiosa que nunca.

- Dois segundos e meio, mais provavelmente - concordou Ralph. Quando se aproximavam do prédio, deixando o segurança para trás, ele se curvou para Lois e murmurou: - Norton? Meu Deus, Lois, Norton?

- Foi o primeiro nome que me veio à cabeça. Acho que estava pensando em The

Honeymooners, Ralph e Norton, lembra?

- Lembro. Um dia desses, Alice... bum! Direto para a lua! Duas das três portas estavam trancadas, mas a da ponta esquerda abriu e eles entraram. Ralph apertou a mão de Lois e sentiu um aperto em resposta. Na mesma hora, sentiu uma forte concentração, como se sua força de vontade e consciência se reduzissem e intensificassem. Em torno dele, os olhos do mundo pareceram primeiro piscar e depois se arregalar. Em torno dos dois.

A área de recepção era quase ostensivamente simples. Os cartazes nas paredes eram, na maioria, do tipo que as agências de turismo estrangeiras enviavam pelo preço da postagem.

A única excepção encontrava-se à direita da mesa da recepcionista: uma enorme foto em preto e branco de uma jovem vestindo uma bata de grávida. Achava-se sentada em um banquinho de bar com um cálice de martíni na mão, QUANDO VOCÊ ESTÁ GRÁVIDA, VOCÊ NUNCA BEBE SOZINHA, dizia a legenda. Não havia indicação de que em um quarto, ou quartos, atrás deste espaço comercial agradável e inexpressivo, faziam-se abortos a pedido.

Bem, pensou Ralph, que é que você esperava? Um anúncio? Um cartaz com fetos abortados num balde de lixo galvanizado entre os cartazes da ilha de Capri e dos alpes italianos? Cai na real, Ralph.

A esquerda, uma mulher corpulenta, entre os quarenta e tantos e os cinqüenta e poucos anos, lavava o tampo de vidro da mesinha de centro; havia um carrinho cheio de material de limpeza a seu lado. Estava imersa numa aura azul-escura em que doentias pintas pretas esvoaçavam como um enxame de estranhos insectos na altura do coração e dos pulmões, e espiava os recém-chegados com indisfarçável desconfiança.

Bem à frente, outra mulher os observava atentamente, embora sem a desconfiança da encarregada da limpeza. Ralph reconheceu-a do telejornal no dia do incidente com as bonecas cheias de sangue. A sobrinha de Simone Castonguay tinha cabelos escuros, uns trinta e cinco anos, e era quase bonita mesmo de manhãzinha. Sentava-se a uma austera mesa de metal cinza que complementava perfeitamente sua aparência, imersa numa aura verde-floresta que parecia muito mais saudável do que a da faxineira. Um vaso de vidro lapidado, cheio de flores de Outono, enfeitava um canto da mesa.

Ela sorriu, hesitante, para eles, sem demonstrar reconhecer Lois, então sacudiu um dedo para o relógio na parede.

- Só abrimos às oito - informou - e acho que, de qualquer maneira, não poderíamos atendê-los hoje. Os médicos estão todos de folga, quero dizer, a Dra. Hamilton está dando cobertura técnica, mas não tenho nem certeza se poderia chamá-la. Há muita coisa acontecendo: é um grande dia para nós.

- Eu sei - respondeu Lois, e deu outro aperto na mão de Ralph antes de soltá-la. Ele ouviu mentalmente sua voz, muito fraca, por um instante - como uma ligação interurbana ruim - mas audível:

[- Fique onde está, Ralph. Ela está ar...]

Lois enviou-lhe uma imagem ainda mais fraca do que o pensamento, que desapareceu praticamente na hora em que Ralph a vislumbrou. Este tipo de comunicação era muito mais fácil nos níveis superiores, mas o que percebeu foi o suficiente. A mão que Barbara Richards apontara para o relógio agora descansava descontraída sobre a mesa, mas a outra estava sob o móvel, onde havia um botãozinho branco a um lado da abertura para os joelhos. Se um deles fizesse um gesto minimamente estranho, ela apertaria o botão, chamando, primeiro, seu amigo postado lá fora com a prancheta, e, em seguida, a maioria dos seguranças particulares em Derry.

E sou eu que ela está observando com maior atenção, porque sou homem, pensou Ralph.

Quando Lois se aproximou da mesa de recepção, Ralph teve um pensamento inquietante:

dada a atmosfera atual em Derry, aquele tipo de discriminação sexual-inconsciente, mas muito real - poderia acabar machucando essa mulher bonita de cabelos escuros... e talvez até matando-a. Lembrou-se que Leydecker lhe dissera que um dos elementos do quadro de malucos de Ed era uma mulher. Pele macilenta, muita acne, óculos de lentes tão grossas que faziam seus olhos parecerem ovos pochés. Sandra de tal, chamava-se. E se a Sandra de

Tal se aproximasse da mesa da Sra. Richards como Lois estava fazendo agora, primeiro abrindo e depois metendo a mão dentro da bolsa, será que a mulher revestida daquela aura verde-floresta teria apertado o botão de alarme?

- Você provavelmente não se lembra de mim, Barbara - Lois ia dizendo - porque não nos vemos muito desde que você estava na faculdade e namorava o filho dos Sparkmeyers...

- Meu Deus, Lennie Sparkmeyer, não penso nele há anos - disse Barbara Richards e deu uma risadinha inibida. - Mas me lembro de você. Lois Delancey. A parceira de pôquer de tia Simone. Puxa, vocês ainda jogam?

- O nome é Chasse, e não Delancey, e ainda jogamos - Lois parecia encantada que Barbara se lembrasse dela e Ralph rezou que não se esquecesse do que tinham vindo fazer ali. Não precisava ter-se preocupado. - Pois bem, Simone me pediu para mandar um recado a Gretchen Tillbury. - Tirou um pedaço de papel da bolsa. - Será que você poderia entregar a ela?

- Duvido muito que consiga sequer falar com Gretchen pelo telefone hoje - Richards disse. - Ela está tão ocupada quanto todos nós. Até mais ocupada.

- Acredito. - Lois deu uma risadinha surpreendentemente autêntica. - Mas acho que isso não é realmente urgente. Gretchen tem uma sobrinha que recebeu uma bolsa de estudos integral da Universidade de New Hampshire. Você já reparou que dá muito mais trabalho encontrar as pessoas quando se têm más notícias para transmitir? É estranho, não é?

- Acho que sim - respondeu Richards, estendendo a mão para o papel dobrado. - Em todo caso, terei prazer em colocar isto na...

Lois segurou-a pelo pulso, e um lampejo de luz cinzenta - tão forte que Ralph teve de apertar os olhos para protegê-los do ofuscamento - subiu pelo braço, ombro e pescoço da mulher. Girou em torno de sua cabeça como uma breve auréola e desapareceu.

Não, não desapareceu, Ralph pensou. Submergiu.

- Que foi isso? - a faxineira perguntou desconfiada? - Que tiro foi esse?

- O cano de descarga de um carro - falou Ralph. - Só isso.

- Hum - murmurou a mulher. - Pó, os homens sempre acham que sabem tudo. Você ouviu isso, Barbie?

- Ouvi - confirmou Richards. Pareceu perfeitamente normal a Ralph, e ele sabia que a faxineira não poderia ver a névoa cinza-pérola que agora lhe toldava os olhos. - Acho que ele tem razão, mas quer verificar com o Peter lá fora? Cuidado nunca é demais.

- Pó, falou - disse a faxineira. A mulher descansou a garrafa de limpa-vidros no chão, cruzou o sabão até a entrada (lançando a Ralph um olhar azedo final que dizia Você está velho, pó, mas aposto que ainda têm um pênis aí embaixo), e saiu.

Assim que ela se foi, Lois se debruçou por cima da mesa.

- Barbara, meu amigo e eu temos de falar com a Gretchen agora de manhã. Cara a cara.

- Ela não está aqui. Está em High Ridge.

- Me diz como é que se chega lá.

O olhar de Richards vagou até Ralph. Ele achou suas órbitas cinzentas e sem pupilas profundamente perturbadoras. Era como ver uma escultura clássica que, por alguma razão, tivesse ganhado vida. E sua aura verde-escura também empalidecera consideravelmente.

Não, pensou. Apenas foi temporariamente sobreposta pelo cinza de Lois.

Lois deu uma rápida espiada em volta, acompanhando o olhar de Barbara Richards para Ralph, e então tornou a Barbara.

- E, ele é homem, mas desta vez não tem problema. Prometo. Nenhum de nós dois pretende fazer mal a Gretchen Tillbury ou a qualquer outra mulher em High Ridge, mas precisamos falar com ela, por isso, nos diga como chegar lá. - Ela tocou a mão de Richards de novo, e outro relâmpago cinza subiu pelo braço da moça.

- Não vá machucá-la - alertou Ralph.

- Não vou, mas ela vai falar. - Lois se curvou mais para perto de Richards. - Onde fica?

Vamos, Barbara.

- Você pega a estrada 33 saindo de Derry - ela explicou.

- A estrada velha para Newport. Uns dezesseis quilómetros depois, você vai ver um casarão vermelho de fazenda, à esquerda. Há dois galpões atrás da casa. Você toma a primeira estrada à esquerda e depois...

A faxineira voltou.

- Peter não ouviu... - Ela parou bruscamente, talvez porque não gostasse do jeito com que Lois se debruçava sobre a mesa da amiga, talvez porque não gostasse do olhar vago da amiga.

- Barbara? Você está bem...?

- Fique quieta - Ralph disse em tom baixo e simpático.

- Elas estão conversando. - E segurou o braço da faxineira logo acima do cotovelo, sentindo uma palpitação energética breve, mas forte. Por um momento, todas as cores do mundo ficaram mais luminosas. O nome da faxineira era Rachel Anderson. Fora casada uma vez com um homem que lhe batia com brutalidade e frequência, até desaparecer há oito anos atrás. Agora ela tinha um cachorro e as amigas da WomanCare e lhe bastavam.

- Ah, é claro - Rachel Anderson disse numa voz pensativa e sonhadora. - Elas estão conversando e Peter disse que está tudo bem, por isso, acho que é melhor ficar calada.

- Que boa ideia - exclamou Ralph, ainda segurando seu braço de leve.

Lois deu uma espiada rápida para confirmar se Ralph tinha a situação sob controle e voltou sua atenção para Barbara Richards.

- Vire à esquerda depois do casarão vermelho de fazenda com os dois galpões. Tudo bem, isso entendi. E depois?

- Você vai entrar numa estrada de terra que sobe uma longa encosta, mais ou menos uns dois quilómetros e meio, e termina numa casa branca de fazenda. E High Ridge. Tem a vista mais linda...

- Acredito - disse Lois. - Barbara foi óptimo reencontrar você. Agora meu amigo e eu...

- Foi óptimo ver você, também, Lois-Richards disse num tom distante e desinteressado.

- Agora meu amigo e eu vamos embora. Está tudo bem.

- Que bom.

- Você não precisa lembrar nada disso - falou Lois.

- Claro que não.

Lois começou a se virar, então voltou e recolheu o pedaço de papel que tirara da bolsa.

Caíra na mesa quando Lois agarrara o pulso da moça.

- Por que você não retoma o seu serviço, Rachel?-Ralph perguntou à faxineira. E foi soltando seu braço devagarinho, pronto para tornar a segurá-lo se ela desse sinal de precisar de um reforço.

- É, é melhor eu retomar meu serviço - ela repetiu, parecendo mais simpática. - Quero terminar aqui até o meiodia para poder ir a High Ridge ajudar a fazer os cartazes.

Lois juntou-se a Ralph enquanto Rachel Anderson voltava para o seu carrinho de materiais de limpeza. Lois parecia ao mesmo tempo admirada e ligeiramente trémula.

- Elas vão ficar bem, não vão, Ralph?

- Vão, tenho certeza que vão. E você, está bem? Não vai desmaiar nem nada do género?

- Estou bem. Você guardou as instruções?

- Claro: ela estava descrevendo o lugar onde ficavam os pomares Barrett. Carolyn e eu costumávamos ir lá todo Outono para apanhar maçãs e comprar cidra até que eles venderam o lugar no início da década de oitenta. E pensar que agora aquilo é o High Ridge.

- Deixe o assombro para depois, Ralph, estou realmente morrendo de fome.

- Está bem. Por falar nisso, que havia no bilhete? O bilhete da sobrinha com bolsa integral na UNH?

Ela deu um sorrisinho e lhe entregou o bilhete. Era a sua conta de luz do mês de setembro.

- CONSEGUIRAM DEIXAR o RECADO? - perguntou o segurança quando eles saíram e começaram a descer pela calçadinha.

- Conseguimos, obrigada - Lois tornou a lampejar o sorriso de um megawatt. Não parou, porém, e sua mão apertava a de Ralph com muita força. Ele sabia como ela estava se sentindo; e não fazia a menor idéia de quanto tempo as sugestões que tinham dado às duas mulheres durariam.

- Que bom! - retrucou o guarda, acompanhando-os até o fim do caminho. - Vai ser um dia muito, muito esticado. Vou ficar feliz quando terminar. Sabe quantos seguranças vamos ter aqui do meio-dia à meia-noite? Doze. E isso é só aqui. Vão ter mais de quarenta no centro cívico, além dos tiras locais.

E não vai adiantar nada, pensou Ralph.

- E para quê? Para uma loura decidida a deitar falação.

- E olhou para Lois como se esperasse que o acusasse de ser um porco chauvinista, mas

Lois apenas renovou seu sorriso.

- Espero que tudo corra bem para o senhor, seu guarda

- disse Ralph, e conduziu Lois ao carro estacionado do outro lado da rua. Deu partida e penosamente fez um balão na entrada da WomanCare, esperando que Barbara Richards,

Rachel Anderson, ou as duas saíssem correndo pela porta da rua, de olhos arregalados e os dedos em riste. Finalmente conseguiu apontar o Oldsmobile na direcção certa e deixou escapar um longo suspiro de alívio. Lois virou-se para ele, acenando com a cabeça compreensivamente.

- Pensei que eu é que era o vendedor - disse Ralph - mas olha, nunca vi um papo de vendas igual ao seu.

Lois sorriu dengosa e cruzou as mãos no colo. Aproximavam-se da garage do hospital quando Trigger saiu correndo da cabine, acenando com os braços. O primeiro pensamento de Ralph foi que afinal não conseguiriam dar o fora sem confusão - o segurança com a prancheta teria percebido alguma coisa suspeita e telefonado ou passado um rádio para Trigger parar o carro. Então viu sua expressão ofegante mas feliz - e o que Trigger segurava na mão direita. Era uma carteira preta muito velha e muito surrada. Ela se abria e fechava como uma boca sem dentes a cada aceno do braço de Trig.

- Não se preocupe-disse Ralph reduzindo a marcha do Oldsmobile. - Não sei o que ele quer, mas tenho certeza de que não há nenhum problema. Pelo menos por enquanto.

- Não me interessa o que ele quer. Eu só quero dar o fora daqui e comer alguma coisa. Se ele começar a lhe mostrar fotos de pescarias, Ralph, eu mesma vou meter o pé no acelerador.

- Amém - disse Ralph, sabendo perfeitamente que não era em fotos de pescaria que

Trigger Vachon estava pensando. Não via com muita clareza o que seria, mas de uma coisa estava certo: nada acontecia por acaso. Não mais. Era o Desígnio em ritmo de vingança.

Parou ao lado de Trigger e apertou o botão para baixar a janela. Ela desceu com um rangido de má vontade.

- Eiii, Ralph! - Trigger exclamou. - Achei que não ia conseguir alcançar você!

- Que foi Trig? Estamos meio com pressa...

- Sei, sei, isso só vai levar um segundo. Está mesmo aqui na minha carteira, Ralph. Cara, guardo todos os meus papéis aqui e nunca perco um.

Ele abriu as mandíbulas frouxas da velha carteira, deixando à mostra algumas notas amassadas, uma sanfona de fotos (e não é que Ralph vislumbrou uma foto de Trigger erguendo uma enorme pesca), e o que lhe pareceram, no mínimo, quarenta cartões de visita, na maioria vincados e moles de velhos. Trigger começou a repassá-los com a velocidade de um caixa de banco veterano contando dinheiro.

- Nunca jogo essas coisas fora - Trigger comentou. - São óptimos para tomar notas, melhor do que caderninho, e de graça. Me dá um segundo... só um segundo, ora droga, onde foi que você se meteu?

Lois lançou a Ralph um olhar impaciente e preocupado e apontou para a estrada. Ralph fingiu não ver o olhar nem o gesto. Começara a sentir um estranho formigamento no peito.

Mentalmente viu-se estendendo o dedo indicador e desenhar uma coisa no vapor que embaçara o pára-brisas do furgão de Trigger em consequência da tempestade de verão, há quinze meses - chuva fria em um dia quente.

- Ralph, você lembra do cachecol que Deepneau estava usando naquele dia? Branco, com uns desenhos vermelhos?

- Lembro - disse Ralph. Chupão, Ed xingara o grandalhão. Fodeu a mãe e ainda lambeu a buceta dela. E lembrava-se do cachecol também...claro que sim. Mas a coisa vermelha não era uma mancha nem uma padronagem sem sentido; era um ideograma ou vários. O repentino frio no fundo do estômago informou a Ralph que Trigger podia parar de repassar aqueles cartões de visita. Ele sabia do que se tratava. Sabia.

- Você esteve na guerra, Ralph?-Trigger perguntou. - Na grande? A de número dois?

- De certa maneira, sim - Ralph respondeu. - Lutei a maior parte do tempo no Texas.

Fui para o exterior no começo de 45, mas fiquei no escalão de retaguarda a guerra toda.

Trigger concordou.

- Você está falando da Europa. Não teve escalão de retaguarda no Pacífico, não no fim.

- Inglaterra - disse Ralph. - Depois Alemanha. Trigger continuava a acenar com a cabeça, satisfeito.

- Se você tivesse estado no Pacífico, saberia que aquela coisa no cachecol não era chinês.

- Era japonês, não era? Não era, Trig?

Trigger concordou. Em uma das mãos, segurava um cartão de visita que puxara do maço.

No verso, Ralph viu um esboço tosco do símbolo duplo que havia no cachecol de Ed, o símbolo duplo que ele desenhara no vapor do pára-brisas.

- De que é que vocês estão falando? - Lois perguntou: não parecia impaciente mas simplesmente apavorada.

- Devia ter imaginado - Ralph se ouviu dizendo numa voz fraca e horrorizada. - Devia ter imaginado mesmo.

- Imaginado o quê? - Ela o agarrou pelo ombro e o sacudiu. - Imaginado o quê?

Ele não respondeu. Sentindo-se como se sonhasse, estendeu a mão e apanhou o cartão.

Trigger Vachon parará de sorrir, e seus olhos escuros estudaram o rosto de Ralph gravemente.

- Copiei o desenho antes que o vapor escorresse pelo pára-brisa - Trigger falou porque sabia que já tinha visto isso antes, e quando cheguei em casa naquela noite, descobri onde. Meu irmão mais velho, Mareei, lutou o último ano de guerra no Pacífico. Uma das coisas que trouxe de lembrança foi um cachecol com um desenho igualzinho, naquele mesmo vermelho. Perguntei a ele, só para ter certeza, e ele reproduziu o desenho neste cartão. - Trigger apontou para o cartão que Ralph segurava entre os dedos.-Queria dizer isso a você assim que o encontrasse de novo, mas me esqueci até hoje. Fiquei contente de ter finalmente me lembrado, mas olhando para você, acho que teria sido melhor que continuasse esquecido.

- Não, está tudo bem.

Lois tirou o cartão da mão dele.

- Que é isso? Que significa?

- Conto depois. - Ralph procurou a alavanca de marchas Sentia o coração como uma pedra no peito. Lois olhava para os símbolos no verso do cartão, virando o lado impresso para Ralph. E.H. FOSTER, WELLS & DRY-W ALLS, lia-se. Abaixo, o irmão mais velho de Trigger escrevera uma única palavra em letras de imprensa.

Kamikaze.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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