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INTENÇÃO CRIMINOSA / Robin Cook
INTENÇÃO CRIMINOSA / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INTENÇÃO CRIMINOSA

Primeira Parte

 

                               9 de Setembro de 1988

                              11:45 BOSTON, MASSACHUSETTS

Assim que sentiu os primeiros espasmos agudos, que começaram cerca das nove e meia nessa manhã, Patty Owen teve a certeza de que chegara o momento. Até ali, sentira-se preocupada com a ideia de na altura própria não ser capaz de distinguir entre as contracções que assinalam o início do trabalho de parto e os pontapés ligeiros e o desconforto generalizado do trimestre final da gravidez. Verificava agora que as suas apreensões não tinham fundamento: as dores fortes e opressivas que passara a sentir eram completamente diferentes de tudo o que alguma vez conhecera. A única coisa que as tornava familiares era serem tão classicamente de acordo com os manuais tão regulares. De vinte em vinte minutos, como se tratasse do mecanismo de um relógio, Patty sentia a dor acutilá-la firmemente na parte de baixo das costas. Nos intervalos ela desaparecia, para surgir de novo com toda a força. Apesar do sofrimento cada vez mais agudo, Patty não conseguiu reprimir um sorriso passageiro. Sabia que o pequeno Mark se estava a preparar para entrar neste mundo.

Tentando manter-se calma, Patty pôs-se a remexer os papéis que estavam espalhados sobre o estirador, na cozinha, à procura do número de telefone do hotel que Clark lhe deixara na véspera. Ele bem teria preferido não ser obrigado afazer aquela viagem de negócios numa altura em que Patty estava quase no fim do tempo, mas o banco não lhe dera muitas hipóteses de escolha. O patrão tinha insistido em que ele acompanhasse até ao fim as negociações que iriam culminar com o acordo em que andava a trabalhar havia três meses. Como solução de compromisso, os dois homens tinham concordado que, independentemente do ponto em que se encontrassem as negociações, Clark não se ausentaria por mais de dois dias. Mesmo assim, não lhe agradava nada ter de ir, mas pelo menos poderia regressar uma semana antes da data prevista para o nascimento...

Patty encontrou o número do hotel. Ligou e a telefonista, muito cordial, passou a chamada para o quarto de Clark.

Quando viu que ele não atendia ao segundo toque, Patty compreendeu que Clark já se tinha ido embora para a entrevista. Para ter a certeza, deixou o telefone tocar mais cinco vezes, na esperança de que Clark estivesse no duche e atendesse de repente, esbaforido. Estava desesperada por lhe ouvir a voz tranquilizadora.

Enquanto o telefone retinia, Patty sacudia a cabeça, tentando reprimir as lágrimas. A verdade é que, embora se tivesse sentido muito feliz com aquela primeira gravidez, não deixara de ficar perturbada com um vago pressentimento, que a acompanhava desde o início, de que alguma coisa de mal ia acontecer. Quando Clark aparecera em casa com a notícia de que ia ser forçado a ausentar-se da cidade numa altura tão crítica, Patty vira confirmarem-se todas as suas piores apreensões. Apesar de todas as aulas e exercícios de Lamaze que tinham seguido juntos, ia ter de se aguentar sozinha. Clark garantira-lhe que os seus receios eram exagerados, o que era natural, e que estaria de volta muito a tempo para o parto.

A telefonista do hotel apareceu novamente em linha e perguntou a Patty se queria deixar recado. Patty disse que queria que o marido falasse para ela o mais depressa possível. Deixou o número do Boston Memorial Hospital. Sabia que uma mensagem tão sucinta ia com certeza deixar Clark preocupado, mas era bem feito, para ele não se ausentar numa altura daquelas.

A seguir, Patty ligou para o consultório do Dr. Ralph Simarian. A voz do médico, sonora e bem-disposta, acalmou-lhe temporariamente os receios. Aconselhou-a a pedir a Clark que a levasse ao BM, como costumava, por brincadeira, referir—se ao Boston Memorial, e a fazer o internamento. Ele por sua vez iria juntar-se-lhes dentro de umas duas horas. Disse-lhe que os intervalos de vinte minutos queriam dizer que ela ainda tinha muito tempo.

— Dr. Simarian? — atalhou Patty quando o médico já se preparava para desligar. — O Clark está fora, em viagem de negócios. Eu vou sozinha.

— Bem planeado! — disse o dr. Simarian com uma risada. — Os homens são sempre os mesmos. Gostam de ter o seuprazer, mas quando há um trabalhinho para fazer, desaparecem.

—Ele pensava que ainda faltáva uma semana—esclareceu Patty, sentindo-se na obrigação de defender Clark. Ela podia irritar-se com o marido, mas não dava esse direito a mais ninguém.

— Estava a brincar — disse o dr. Simarian. —Tenho a certeza de que ele vai ficar desgostoso por não poder participar. Quando voltar, vamos ter uma pequena surpresa para ele. Agora não se preocupe. Tudo vai correr bem. Tem maneira de ir para o hospital?

Patty disse que tinha uma vizinha que se prontificara a levá-la, caso houvesse alguma surpresa durante a ausência de Clark.

— Dr. Simarian — acrescentou Patty, hesitante —, agora que me vejo sozinha, acho que estou demasiado nervosa para aguentar tudo até ao fim. Não quero nada que seja prejudicial para o bebé, mas se achar que me podem dar um anestésico, como já em tempos falámos...

— Não há qualquer problema — interrompeu o Dr. Simarian. — Não canse essa cabecinha com pormenores. Eu trato de tudo. Vou já telefonar para lá e dizer-lhes que você quer que lhe façam uma epidural, está bem?

Patty agradeceu ao Dr. Simarian e desligou, mesmo a tempo de morder o lábio, enquanto sentia o principiar de uma nova contracção.

Não havia motivo para preocupações, disse para si própria com toda a seriedade. Ainda tinha muito tempo para ir até ao hospital. O Dr. Simarian tinha tudo sob controlo. Ela sabia que o bebé era saudável. Insistira no exame de ultra-sons e na amniocentese, embora o Dr. Simarian a informasse de que era desnecessário, dado que ela tinha apenas 24 anos. Mas entre os seus pressentimentos negativos e uma preocupação genuína, Patty resolvera levar por diante essa vontade. Os resultados dos testes foram extremamente encorajadores: a criança que tinha no ventre era uma criança saudável e normal. Uma semana depois de ter recebido os resultados, Patty e Clark estavam a pintar de azul o quarto do bebé e a escolher o nome, tendo acabado por se decidir a favor de Mark.

Todas as contas feitas, não havia nenhuma razão para esperar outra coisa a não ser um parto normal e um nascimento normal.

Quando Patty se voltou para ir buscar a mala que tinha preparada no armário do quarto, reparou na mudança drástica que apresentava o tempo lá fora. O Sol luminoso de Setembro, que até ali entrara abundantemente pelas vidraças das janelas, fora eclipsado por uma nuvem escura que surgira repentinamente do oeste, deixando o quarto quase às escuras. O rolar distante da trovoada provocou um calafrio a Patty.

Não sendo supersticiosa por natureza, Patty recusou-se a tomar a tempestade como um presságio. Foi até ao sofá do quarto e sentou-se. Resolveu chamar a vizinha logo que passasse a contracção. Assim poderiam chegar aohospital antes que começasse a contracção seguinte.

A medida que a dor foi aumentando, a confiança engendrada pelo Dr. Simarian começou a desaparecer. A ansiedade apoderou-se do espírito de Patty, ao mesmo tempo que uma rajada repentina varria o Pátio das traseiras, dobrando os chopos e trazendo as primeiras gotas de chuva. Patty estremeceu. Desejaria que tudo estivesse acabado. Talvez não fosse supersticiosa, mas estava assustada. Toda a sequência dos acontecimentos — a tempestade, a viagem de negócios de Clark, o facto de ela ter entrado em trabalho de parto uma semana antes —parecia-lhe de mais. As lágrimas corriam pela face de Patty enquanto aguardava para telefonar à vizinha. Como desejaria não estar

tão nervosa.

—Oh, que maravilha — exclamou sarcasticamente o Dr. Jeffrey Rhodes ao dar com os olhos na escala de serviço que se encontrava no serviço de anestesia. Tinha aparecido um novo caso: Patty Owen, um parto com pedido expresso de anestesia epidural. Jeffrey sacudiu a cabeça, sabendo que era o único anestesista disponível naquele momento. Todo o restante pessoal de serviço no turno de dia estava ocupado. Jeffrey ligou para a maternidade, para se informar do estado da paciente, e ficou a saber que não havia pressa, uma vez que ela ainda nem chegara à área de recepção.

—Algumas complicações de que eu deva ser informado?—perguntou Jeffrey, quase receoso da resposta. Naquele dia as coisas não lhe tinham corrido lá muito bem.

—Parece ser um caso de rotina — disse a enfermeira. Primípara. Vinte e quatro. Saudável.

— Quem é o médico assistente?

— Simarian — replicou a enfermeira.

Jeffrey disse que iria lá ter daí a momentos e desligou. Simarian, pensou Jeffrey, convencido de que iria ser uma seca. O tipo era bom tecnicamente, mas Jeffrey achava aquele ar paternalista que assumia para com as pacientes um bocado maçador. Graças a Deus que não era Braxton ou Hicks. Queria que tudo se passasse suavemente e de preferência com rapidez; se fosse qualquer dos outros isso seria certamente impossível.

Saindo do gabinete de anestesia, seguiu pelo corredor dos Serviços de Obstetrícia, passando pelo balcão de recepção, com toda a sua afectividade efervescente. O turno da noite ia entrar ao serviço dentro de minutos e o render da guarda significava inevitavelmente o caos momentâneo.

Jeffrey empurrou as portas duplas que davam acesso ao átrio da cirurgia e arrancou a máscara que lhe pendia inútil sobre o peito, pendurada por um elástico. Deitou-a para o cesto do lixo com uma sensação de alívio; havia seis horas que respirava através daquela coisa.

O átrio fervilhava com o pessoal que ia entrar ao serviço. Jeffrey ignorou-os e atravessou o vestiário que estava igualmente apinhado. Parou em frente do espelho, para ver se o seu aspecto era tão mau quanto julgava. Era mesmo. Os olhos pareciam ter recuado, de tal forma estavam encovados. Por baixo de cada um deles havia uma mancha escura, indelével, em forma de crescente. Até o bigode parecia em mau estado. Mas que é que ele podia esperar, depois de o ter mantido sob a máscara cirúrgica durante seis longas horas?

Como a maior parte dos médicos que resistiam à hipocondria crónica resultante da escola médica, Jeffrey tocava frequentemente o outro extremo: negava ou ignorava todos os sintomas de doença ou sinais de fadiga, até que ameaçassem dominá-lo. O dia de hoje não era excepção. Desde o momento em que acordara, às seis da manhã, que se sentia horrivelmente mal. Embora andasse a sentir-se em baixo há vários dias, começou por atribuir aquela sensação esquisita na cabeça e os arrepios a qualquer coisa que tinha comido na véspera. Quando as náuseas começaram, a meio da manhã, Jeffrey não hesitou em as atribuir a um excesso de café. E quando a dor de cabeça e a diarreia apareceram, ao princípio da tarde, responsabilizou a sopa que comera na cantina do hospital.

Só quando se viu confrontado com o seu reflexo doentio no espelho do vestiário do hospital é que Jeffrey admitiu finalmente que estava doente. Estava provavelmente com a mesma gripe que grassava pelo hospital havia um mês. Apoiou a parte de dentro do pulso à testa para uma verificação grosseira da temperatura. Não restavam dúvidas: estava quente.

Afastando-se do lavatório, Jeffrey dirigiu-se ao seu cacifo pessoal, satisfeito por o dia estar quase a terminar. A visão da própria cama era a imagem mais atraente que conseguia chamar a si.

Sentou-se no banco, indiferente à multidão tegarela, e começou a fazer rodar a fechadura de segredo. Sentia-se pior que nunca. O estômago fazia-lhe ruídos desagradáveis; os intestinos estavam numa agonia. Um espasmo passageiro encheu-lhe a fronte de gotas de suor. Amenos que alguém pudesse substituí-lo, ainda tinha mais algumas horas de trabalho.

Detendo-se finalmente no último número, Jeffrey abriu o armário. Estendendo o braço para o interior, cuidadosamente arrumado, tirou de lá um frasco de elixir paregórico, um velho remédio que a mãe costumava obrigá-lo a tomar quando ele era criança. Nesse tempo, ela submetia-o regularmente a um diagnóstico de prisão de ventre ou diarreia. Só quando entrou para o liceu é que se capacitou de que tais diagnósticos eram apenas pretextos para o obrigar a tomar a sua mezinha preferida que, segundo ela, curava tudo. Com os anos, Jeffrey acabara por ganhar confiança no elixir paregórico, embora essa confiança não englobasse a capacidade de diagnóstico da mãe. Tinha sempre uma garrafa à mão.

Desenroscando a tampa, inclinou a cabeça para trás e bebeu uma boa golada. Limpando a boca, viu um estagiário sentado perto dele, a observar-lhe todos os movimentos.

— Quer um golo? — perguntou Jeffrey a sorrir, estendendo-lhe o frasco. — É óptimo.

O homem deitou-lhe um olhar de desprezo, levantou-se e foi-se embora.

Jeffrey sacudiu a cabeça perante a falta de humor do outro. Pela sua reacção poderia julgar-se que ele lhe tinha oferecido veneno. Com uma lentidão que não lhe era habitual, Jeffrey tirou a roupa de trabalho. Massajando as têmporas durante breves instantes, acabou por se pôr de pé e ir para o duche. Depois de se ter ensaboado e passado por água, deixou-se ficar sob o jacto quente durante cinco minutos, antes de sair e de se secar vigorosamente. Escovou o cabelo ondulado, castanho-claro, vestiu a bata lavada e pôs uma máscara e um barrete novos. Sentia-se agora bastante melhor. A não ser um ou outro ruído ocasional, até o cólon parecia estar a cooperar — pelo menos de momento.

Jeffrey atravessou mais uma vez o átrio da cirurgia, percorreu o corredor do Bloco Operatório e empurrou a porta que levava à Maternidade. A decoração ali era um antídoto agradável para o ladrilhado austero e utilitário do corredor. As salas de parto estavam igualmente esterilizadas, mas toda a área destinada aos partos e às fases precedentes estava pintada em tons pastel, com reproduções de Impressionistas emolduradas e penduradas nas paredes. As janelas até tinham cortinas. Dava muito mais a impressão de se estar num hotel do que num grande hospital urbano.

Jeffrey dirigiu-se à recepção e perguntou pela sua paciente.

—Patty Owen está no quinze—respondeu uma mulher negra, alta e bonita. Chamava-se Monica Carver e era a enfermeira-chefe no turno da noite.

Jeffrey encostou-se ao balcão, grato pelo descanso momentâneo.

— Como é que ela está?

— Óptima — disse Monica. — Mas ainda vai demorar um bocado. As contracções ainda não são muito fortes nem frequentes e só tem quatro centímetros de dilatação.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Preferia que as coisas estivessem mais adiantadas. Era prática corrente aguardar que a parturiente tivesse seis centímetros de dilatação antes de fazer a epidural. Monica estendeu a Jeffrey a folha de Patty. Ele estudou-a rapidamente. Não havia grande coisa. Era evidente que se tratava de uma mulher saudável. Isso, pelo menos, era bom.

—Vou falar com ela — disse Jeffrey. — Depois volto para o bloco. Se houver alguma alteração, entre em contacto comigo.

— Claro — disse Monica alegremente.

Jeffrey encaminhou-se para o quarto quinze. A meio do caminho, sentiu novo espasmo intestinal. Teve de parar e encostar-se à parede, à espera que passasse. “Que maçada”, pensou. Quando começou a sentir-se melhor, continuou até ao número quinze e bateu à porta. Uma voz agradável convidou-o a entrar.

— Sou o Dr. Jeffrey Rhodes—disse, estendendo a mão.—Vou ser o seu anestesista.

Patty Owen apertou-lha. A palma da mão dela estava húmida, os dedos frios. Parecia ter bastante menos que 24 anos. O cabelo dela era loiro e os olhos grandes faziam lembrar os de uma criança vulnerável. Jeffrey compreendeu que ela estava assustada.

— Estou bem contente por o ver! — disse Patty, sem querer soltar de imediato a mão de Jeffrey. — Quero que fique a saber desde já que sou muito cobarde. Aguento mal o sofrimento.

— Tenho a certeza de que vamos poder ajudá-la — ripostou Jeffrey, tranquilizador.

— Quero uma anestesia epidural — disse Patty. — O meu médico disse que era possível.

— Eu compreendo — disse Jeffrey —, e vai tê-la. Tudo há-de correr bem. Fazemos muitos partos aqui no Boston Memorial. Vamos tomar bem conta de si e depois de tudo ser feito vai perguntar a si mesma por que foi que se sentiu assim tão apreensiva.

— Palavra? — disse Patty.

— Se não tivéssemos tantas clientes felizes, acha que as mulheres voltariam a procurar-nos a segunda, a terceira e mesmo a quarta vez?

Patty esboçou um sorriso fraco.

Jeffrey passou mais um quarto de hora a interrogá-la sobre a sua saúde e alergias. Sentiu uma grande solidariedade para com ela quando ela lhe disse que o marido estava fora em viagem de negócios. A familiaridade da jovem com a anestesia epidural surpreendeu-o. Patty confessou-lhe que não só lera sobre o assunto como a irmã a tinha usado nos seus dois partos. Jeffrey explicou os motivos por que não podia dar-lhe a anestesia imediatamente. Mas quando lhe disse que poderiam dar-lhe entretanto um pouco de Demerol, se ela quisesse, Patty ficou mais descansada e descontraída. Antes de a deixar, Jeffrey fez-lhe lembrar que qualquer medicamento que ela ingerisse seria igualmente ingerido pelo bebé. Seguidamente, repetiu-lhe que não havia razão para preocupações; estava em boas mãos.

Ao sair do quarto de Patty, e sentindo-se atacado por novo espasmo intestinal, Jeffrey compreendeu que ia ter de tomar medidas drásticas em relação aos seus próprios sintomas se queria aguentar-se durante o parto de Patty Owen. Apesar do elixir paregórico, estava a sentir-se cada vez pior.

Atravessou as diversas portas que o levaram de volta ao gabinete de anestesia, onde tinham passado a maior parte do seu tempo nas últimas vinte e quatro horas. O gabinete estava vazio e provavelmente não seria utilizado a não ser na manhã seguinte.

Olhou para o corredor, nos dois sentidos, para se certificar de que não vinha ninguém e depois fechou o cortinado. Embora acabasse de admitir para consigo próprio que estava doente, não se sentia disposto a admiti-lo perante mais ninguém.

Da gaveta da máquina de anestesia Narcomed III, tirou uma agulha fina para injecções endovenosas e um sistema de venoclise. Retirou da prateleira um frasco de Lactato Ringer V e removeu a tampa que cobria o vedante de borracha. Com um movimento preciso enfiou o tubo da EV no frasco e suspendeu-o no suporte próprio, por cima da máquina de anestesia. Deixou correr o líquido no tubo até desaparecerem todas as bolhas de ar e depois fechou a válvula de plástico.

Jeffrey só aplicara endovenosas a si próprio uma ou duas vezes, mas tinha prática suficiente para se tornar um perito. Servindo-se dos dentes para segurar a ponta do torniquete, atou-o em volta do bicípede e ficou a ver as veias a dilatarem-se.

Aquilo que Jeffrey tinha na ideia era um truque que aprendera quando estagiário. Nesse tempo, ele e os colegas, especialmente os estagiários de cirurgia, recusavam-se a dar parte de doente, com medo de serem prejudicados. Quando apanhavam alguma gripe ou tinham sintomas como os que Jeffrey sentia naquele momento, apenas tiravam o tempo necessário para receberem um litro de soro para aplicação endovenosa. Os resultados eram praticamente garantidos, o que sugeria que a maior parte dos sintomas gripais eram devidos a desidratação. Com um litro de Lactado de Ringer a correr-lhe nas veias, era difícil não se sentir melhor. Havia anos que Jeffrey tinha recorrido pela última vez a uma EV. Só lhe restava esperar que os resultados fossem tão eficientes como nos seus tempos de estagiário. Agora, aos 42 anos, custava-lhe acreditar que da última vez era quase vinte anos mais novo.

Jeffrey preparava-se para enterrar a agulha quando a cortina da alcova foi puxada para o lado. Levantou os olhos para o rosto surpreendido de Regina Vinson, uma das enfermeiras da noite.

— Oh — exclamou Regina. — Desculpe.

— Não há problema — começou Jeffrey, mas Regina desapareceu tão depressa como tinha aparecido. Já que ela o tinha apanhado inadvertidamente, Jeffrey estava disposto a pedir-lhe que o ajudasse, ligando o tubo à agulha logo que ela a introduzisse na veia.

Estendendo a mão puxou a cortina para o lado, na esperança de conseguir ainda chamá-la, mas Regina já ia quase ao fundo do corredor apinhado. Deixou cair novamente a cortina. Havia de se arranjar perfeitamente sem a ajuda dela.

Depois de ligado o tubo, abriu a válvula. Sentiu quase instantaneamente o líquido fresco correr-lhe para o braço. Quando o frasco ficou vazio, a temperatura do braço tinha baixado consideravelmente. Puxou para fora a agulha, pôs um algodão com álcool onde ela tinha entrado e dobrou o cotovelo para segurar o algodão. Deitou os vários acessórios que utilizara para o caixote do lixo e depois pôs-se de pé. Aguardou um momento, para ver como se sentia. A sensação de tontura e a dor de cabeça tinham desaparecido completamente, O mesmo acontecera com a náusea. Satisfeito com a rapidez dos resultados, Jeffrey empurrou a cortina para o lado e dirigiu-se de novo para a sala dos cacifos. Só o cólon o continuava a incomodar.

O pessoal da noite já tinha começado a trabalhar e o turno de dia começava a ir-se embora. A sala dos cacifos enchera-se de gente alegre. A maior parte dos duches estavam ocupados. Primeiro Jeffrey foi à casa de banho. Em seguida, puxou do elixir paregórico e bebeu mais uma boa golada. O gosto fê-lo estremecer, ao mesmo tempo que perguntava a si próprio o que seria que tornava aquilo tão amargo. Deitou o frasco que entretanto esvaziara para o caixote do lixo. Depois tomou um segundo duche e vestiu as roupas de trabalho lavadas.

Quando entrou no átrio da cirurgia sentiu-se quase humano. Tencionava sentar-se durante uma meia hora a ler o jornal, mas antes disso a campainha tocou a chamá-lo. Reconheceu o número. Era da maternidade.

—A Sr.a Owen pergunta por si—disse Monica Carver ao telefone.

— Como é que ela está? — perguntou.

— Muito bem — respondeu Monica. — Está um bocado apreensiva, mas nem sequer pediu analgésicos, embora as contracções sejam agora mais frequentes. Está entre os cinco e os seis centímetros.

— Óptimo — disse Jeffrey. Sentia-se satisfeito. — Vou já.

No caminho para a maternidade, Jeffrey parou no gabinete de anestesia para dar uma olhadela no placard e ver o que é que havia para a noite. Tal como esperava, toda a gente estava ocupada com os casos em curso. Pegou num bocado de giz e escreveu que, logo que alguém ficasse livre, deveria dirigir-se à maternidade para o substituir.

Quando Jeffrey chegou à sala quinze, Patty estava no meio de uma contracção. Junto dela encontrava-se uma enfermeira-parteira experimentada e as duas mulheres funcionavam como uma equipa treinada. Gotas de suor orlavam a fronte de Patty. Os olhos dela estavam cerrados com força, ao mesmo tempo que agarrava firmemente as duas mãos da enfermeira. Atado ao abdómen tinha o monitor de borracha que registava o progresso do trabalho de parto, bem como os batimentos do coração do feto.

—Ah, o meu cavaleiro branco vestido de azul — disse Patty quando a dor abrandou e ela abriu os olhos, vendo Jeffrey aos pés da cama. Sorriu-lhe.

— E que tal a epidural agora? — sugeriu JefFrey.

— Que tal? — ecoou Patty.

Todo o equipamento necessário a Jeffrey encontrava-se num carrinho com rodas que trouxera com ele. Depois de ajustar a banda para medir a tensão arterial, Jeffrey retirou-lhe o monitor de borracha do abdómen e ajudou-a a deitar-se de lado. De luvas calçadas, esfregou-lhe no dorso uma loção anti-séptica.

— Primeiro vou dar-lhe a anestesia local de que falámos — disse Jeffrey enquanto preparava a injecção. Fez um pequeno vergão com a agulha minúscula a meio do dorso de Patty. Ela sentia-se tão aliviada com a perspectiva de lhe ser ministrado o anestésico que nem pestanejou.

A seguir, ele tirou uma agulha de Touhey da bandeja e verificou se o estilete estava no seu lugar. Depois, com as duas mãos, fez entrar a agulha nas costas de Patty, empurrando-a devagar, mas com firmeza, até estar certo de ter atingido o revestimento ligamentoso do canal espinal. Retirando o estilete colocou uma seringa de vidro vazia. Jeffrey fez uma ligeira pressão no êmbolo da seringa. Sentindo resistência, fez avançar habilmente a agulha. De repente, a resistência do êmbolo deixou de se fazer sentir. Jeffrey ficou satisfeito: sabia que estava no espaço epidural.

—Sente-se bem?—perguntou Jeffrey enquanto se servia de uma seringa de vidro para recolher uma dose de teste de 2 cm3 de água esterilizada com uma pequeníssima porção de epinefrina.

— Já acabou? — perguntou Patty.

— Só mais um bocadinho — disse Jeffrey. —Dois ou três minutos. — Injectou a dose de teste e controlou imediatamente a tensão arterial e o pulso de Patty. Não havia qualquer alteração. Se a agulha estivesse num vaso sanguíneo, os batimentos do coração de Patty teriam sofrido uma aceleração imediata em resposta à epinefrina.

Só nesta altura é que Jeffrey pegou no pequeno catéter epidural. Com uma minúcia experimentada, enfiou-o na agulha de Touhey.

— Sinto uma coisa esquisita na perna — disse Patty nervosa. Jeffrey parou de empurrar o catéter. Só tinha avançado cerca de

um centímetro para além da ponta da agulha. Perguntou a Patty qual era a sensação que tinha e depois explicou-lhe que era normal o catéter epidural tocar os nervos periféricos ao atravessar o espaço epidural. Isso podia explicar o que ela estava a sentir naquele momento. Quando a parestesia acalmou, Jeffrey empurrou o catéter mais um centímetro e meio. Patty não se queixou.

Finalmente Jeffrey retirou a agulha de Touhey, deixando no local o pequeno catéter de plástico. Depois preparou uma segunda dose de teste: 2 cm3 de Marcaína de grau espinal a 0,25% com epinefrina. Após ter injectado esta segunda dose, verificou a tensão arterial de Patty e a sensibilidade ao toque nas extremidades inferiores. Constatando que não havia qualquer alteração ao cabo de alguns minutos, Jeffrey ficou absolutamente convencido de que o catéter estava no sítio devido. Por fim injectou a dose terapêutica do anestésico: 5 cm3 de Marcaína a 0,25%. Em seguida tirou o catéter.

— E é tudo — anunciou Jeffrey, enquanto punha um penso esterilizado no sítio onde fizera a perfuração. — Mesmo assim quero que fique ainda mais uns momentos deitada de lado.

— Mas eu não sinto nada — queixou-se Patty.

— É isso que se pretende — comentou Jeffrey com um sorriso.

— Tem a certeza de que está a dar resultado?

—Espere até ter a próxima contracção — replicou Jeffrey cheio de confiança.

Jeffrey trocou algumas palavras com a enfermeira para a informar com que frequência queria que ela medisse a tensão arterial de Patty. Depois, ajudou-a a pôr novamente o monitor de borracha. Deixou-se ficar no quarto até Patty ter a contracção seguinte, usando o tempo de espera para preencher com a meticulosidade habitual o registo da anestesia. Patty sentia-se mais tranquila. O mal-estar que viera sentindo até ali estava muito melhor, o que a levou a agradecer efusivamente ao Dr. Jeffrey.

Depois de ter dito a Monica Carver e à enfermeira-parteira onde poderiam encontrá-lo, Jeffrey foi para um dos quartos vazios e às escuras, para se deitar um bocado. Sentia-se melhor, mas ainda não no seu estado normal. Fechando os olhos, segundo pensava, apenas por alguns minutos e embalado pelo som da chuva a bater na janela, surpreendeu-se a si próprio caindo num sono profundo. Teve uma vaga consciência de a porta se ter aberto e fechado várias vezes, quando diferentes pessoas vieram saber dele, mas ninguém o incomodou até que Monica entrou e o sacudiu suavemente no ombro.

— Temos um problema — disse Monica.

Jeffrey pôs as pernas fora da cama e esfregou os olhos:

— Que é que se passa?

— Simarian resolveu fazer uma sesariana a Patty Owen.

—Assim tão depressa?—perguntou Jeffrey. Olhou para o relógio. Pestanejou várias vezes. O quarto parecia mais escuro que antes.

Consultando novamente o relógio, ficou espantado por ver que tinha dormido uma hora e meia.

—O bebé é um occipúcio posterior e não tem feito qualquer progresso — esclareceu Monica. —Mas o problema principal é que o coração da criança tem demorado a voltar ao ritmo normal depois de cada contracção.

—E altura de recorrer à cesariana—concordou Jeffrey, levantando-se vacilante. Aguardou um momento que lhe passasse uma tontura ligeira.

— Sente-se bem? — inquiriu Monica.

— Estou óptimo — replicou Jeffrey.

Sentou-se numa cadeira para calçar os sapatos próprios para a sala de operações. — Qual é a hora prevista?

— Simarian deve chegar daqui a uns vinte minutos—disse Monica, observando o rosto de Jeffrey.

— Há algum problema? — perguntou ele. Passou os dedos pelo cabelo, com medo que estivesse desgrenhado.

— Está pálido — disse Monica. — Talvez seja a falta de luz aqui dentro. — Lá fora chovia cada vez mais.

— Como é que está Patty? — perguntou Jeffrey, ao mesmo tempo que se dirigia para a casa de banho.

—Está apreensiva—respondeu Monica, da porta.—Quanto a dores, está bem, mas talvez lhe pudesse dar um tranquilizante qualquer para a acalmar.

Jeffrey fez que sim com a cabeça, ao mesmo tempo que acendia a luz da casa de banho. Não o entusiasmava muito a ideia de dar um tranquilizante a Patty, mas dadas as circunstâncias ia estudar o assunto.

— Não deixem de lhe dar oxigénio — disse para Monica. — Daqui a um segundo estou lá.

— Ela já está a tomar oxigénio — disse Monica por cima do ombro ao sair do quarto.

Jeffrey examinou-se no espelho. Era verdade que estava pálido. Depois reparou noutra coisa. Tinha as pupilas tão contraídas que pareciam dois bicos de lápis. Nunca as vira tão pequenas. Não admira-, vá que tivesse tido dificuldade em ver as horas no outro quarto.

Molhou o rosto com água fria, depois secou-o com certa violência. Isso pelo menos fê-lo acordar. Olhou de novo para as pupilas. Continuavam mióticas. Respirou fundo e prometeu a si próprio que logo que acabasse de assistir àquele parto ia direito para casa e se metia na cama. Depois de ajeitar o cabelo com as mãos, dirigiu-se ao quarto quinze.

Monica tinha razão. Patty estava atrapalhada, assustada e nervosa, com a perspectiva de cesariana. Assumia-se como culpada de o trabalho de parto não ter corrido bem. As lágrimas afloraram-lhe aos olhos quando exprimiu a sua contrariedade pela ausência do marido. Jeffrey sentiu pena dela e esforçou-se por lhe garantir que tudo ia correr bem e que ela não era de forma nenhuma responsável por aquela situação. Deu-lhe ainda 5 mg de diazepam EV, que na sua opinião iria ter um efeito mínimo na criança que estava para nascer. O medicamento teve um efeito calmante imediato sobre Patty.

— Vou estar a dormir durante a cesariana? — perguntou ela. —Vai sentir-se muito bem—replicou Jeffrey, rodeando a questão.

—Um dos grandes benefícios da anestesia contínua epidural é que ela pode agora ser levada a um grau mais alto, sem prejudicar a Patty júnior!

— É um rapaz — disse Patty. — Chama-se Mark. — Teve um sorriso fraco. As pálpebras começavam a pesar-lhe. Era nítido que o tranquilizante estava a produzir efeito.

A transferência da sala de parto para a sala de operações foi levada a cabo sem incidentes. Jeffrey manteve Patty sob a máscara durante a curta deslocação.

Na Sala de Operações tinham sido prevenidos de que ia haver uma cesariana. Quando Patty foi transferida, já tudo estava preparado. Uma enfermeira escolhia os instrumentos. Outra ajudou a introduzir a mesa rolante e a transferir Patty para a mesa de operações. Patty continuava com o monitor fetal, que entretanto foi deixado no lugar.

Jeffrey não estava familiarizado com o pessoal da noite e não conhecia a enfermeira que veio receber a parturiente. No cartão que trazia ao peito lia-se: Sheila Dodenhoff.

— Vou precisar de Marcaína a 0,5% — disse Jeffrey a Sheila, enquanto mudava Patty da garrafa de oxigénio portátil para o oxigénio fornecido através da máquina de anestesiaNarcomed III. Em seguida, ligou de novo a banda de medição da tensão arterial ao braço esquerdo de Patty.

— Vem a caminho — disse Sheila alegremente.

Jeffrey trabalhava com rapidez e precisão. Anotava cuidadosamente todos os passos no registo da anestesia, depois de efectuados. Ao contrário da maior parte dos médicos, Jeffrey tinha orgulho na sua caligrafia perfeitamente legível.

Depois de ligar os fios do electrocardiógrafo, colocou o monitor das pulsações no index esquerdo de Patty. Estava ele a substituir o sistema de venoclise de Patty por um intracatéter que lhe oferecia maior segurança, quando Sheila entrou.

— Cá está — disse ela, entregando a Jeffrey um frasco de vidro de 30 cm3 com Marcaína a 0,5%. Jeffrey pegou no medicamento e, como era seu hábito, verificou a etiqueta; depois pô-lo em cima da máquina de anestesia. Da gaveta, retirou uma ampola de 2 cm3 de Marcaina a 0,5% grau espinal com epinefrina, que introduziu numa seringa. Fazendo virar Patty sobre o lado direito, Jeffrey injectou os 2 cm3 no catéter epidural.

—Como é que vão as coisas?—perguntou uma voz bem sonora vinda do lado da porta.

Jeffrey voltou-se e viu o Dr. Simarian, segurando uma máscara diante do rosto enquanto abria a porta.

— Daqui a um minuto está tudo pronto — replicou Jeffrey.

—E como é que está a máquina do pequeno?—perguntou o outro.

— De momento, bem — respondeu Jeffrey.

— Vou-me preparar e vamos a isto já de seguida.

A porta fechou-se. Jeffrey apertou ligeiramente o ombro de Patty enquanto estudava o electrocardiograma e os registos da tensão arterial.

— Sente-se bem? — perguntou, desviando para o lado a máscara de oxigénio.

— Acho que sim — disse Patty.

—Quero que me diga tudo o que sentir. Compreende? — disse Jeffrey. — Sente os pés normais?

Patty fez que sim com a cabeça. Jeffrey aproximou-se e testou-lhe a sensibilidade. Ao voltar para a cabeceira da mesa para verificar de novo os monitores, tinha a certeza de que o catéter epidural não se deslocara nem penetrara quer no canal espinal quer numa das veias de Bateson, dilatadas pela gravidez.

Depois de se certificar de que tudo estava em ordem, Jeffrey pegou no frasco de Marcaína que Sheila lhe tinha trazido. Servindo-se do polegar, removeu a tampa que selava o recipiente de vidro. Mais uma vez olhou para o rótulo e depois retirou 12 cm3. Queria que a anestesia atingisse pelo menos um T6, de preferência T4. Quando pousou a Marcaína, os olhos dele cruzaram-se com os de Sheila. A enfermeira estava de pé, à esquerda, a olhar para ele.

— Há algum problema? — perguntou Jeffrey.

Sheila aguentou o olhar dele um instante, depois deu meia volta e saiu da sala de operações sem dizer palavra. Jeffrey voltou-se para a enfermeira instrumentista, mas esta ainda estava ocupada apor tudo em ordem. Jeffrey encolheu os ombros. Passava-se qualquer coisa que ele desconhecia.

Voltando para junto de Patty, injectou a Marcaína. Em seguida, tapou o catéter epidural e foi para a cabeceira da mesa. Depois de pousar a seringa, anotou a hora e a quantidade exacta de líquido injectado. Uma leve aceleração do sinal sonoro ligado ao pulso fê-lo dirigir o olhar para o monitor do electrocardiógrafo. A verificar-se uma alteração no ritmo do coração, Jeffrey esperava antes um ligeiro abrandamento pelo bloqueamento progressivo do simpático. Em vez disso, dava-se o fenómeno oposto. O pulso de Patty estava a sofrer uma aceleração. Foi o primeiro sinal do desastre eminente.

A reacção inicial de Jeffrey foi mais de curiosidade que de preocupação. Ó seu espírito analítico procurou uma explicação lógica para aquilo que estava a presenciar. Olhou para os valores da tensão arterial. Estava tudo em ordem. Deitou novo olhar ao electrocardiógrafo. O pulso continuava a acelerar e, o que era mais preocupante, o bater do coração tornara-se irregular. Dadas as circunstâncias, não era um sinal positivo.

Jeffrey engoliu em seco, com o medo a apertar-lhe a garganta. Tinham passado apenas alguns segundos desde que ele injectara a Marcaína. Seria possível que tivesse tido efeito endovenoso apesar do resultado obtido com a dose de teste? Jeffrey já tivera no decurso da sua carreira profissional uma outra reacção negativa a um anestésico local. O incidente tinha sido verdadeiramente aflitivo.

Os batimentos ectópicos estavam a aumentar de frequência. Por que é que os batimentos do coração se aceleravam e porquê o ritmo irregular? Se a dose de anestésico tinha seguido avia endovenosa, por que é que a tensão arterial não descia? Jeffrey não encontrava respostas imediatas para tais perguntas e o seu sexto sentido clínico, fruto de anos de experiência, fazia-lhe soar alarmes no espírito. Qualquer coisa de anormal se estava a passar. Qualquer coisa que Jeffrey não conseguia explicar e muito menos compreender.

— Não me sinto bem — disse Patty, voltando a cabeça para falar fora da máscara.

Jeffrey olhou para o rosto de Patty. Viu-o novamente toldado pelo medo.

—Que é que se passa?—perguntou ele, espantado com todos aqueles acontecimentos tão rápidos. Tocou-lhe no ombro.

— Sinto-me esquisita — disse Patty.

— Esquisita, como? — os olhos de Jeffrey dirigiram-se novamente para os monitores. Havia sempre o receio de uma alergia aos anestésicos locais, embora o aparecimento de uma alergia no espaço de duas horas depois da primeira dose parecesse um tanto difícil. Notou Que a tensão arterial subira ligeiramente.

— Ahhhh! — gritou Patty.

Os olhos de Jeffrey cravaram-se-lhe na face. As feições de Patty estavam contorcidas num trejeito horrível.

— Que é que há, Patty? — perguntou Jeffrey.

— Sinto uma dor no estômago — disse ela com dificuldade, numa voz rouca e com os dentes cerrados.—É cá em cima, por baixo das costelas. É muito diferente das contracções. Por favor... — A voz dela extinguiu-se.

Patty começou a contorcer-se em cima da mesa, ao mesmo tempo que encolhia as pernas. Sheila apareceu de novo com um enfermeiro bem musculado que ajudou a tentar segurá-la.

A tensão arterial, que subira ligeiramente, começou de novo a baixar.

—Ponham uma cunha do lado direito — gritou Jeffrey, ao mesmo tempo que tirava efedrina da gaveta e a preparava para injectar. Mentalmente, ia calculando até que ponto podia deixar que a tensão arterial descesse antes de injectar o agente vasoconstritor. Continuava a não fazer ideia do que estava a acontecer e preferia não actuar antes de saber exactamente o que era que estava a tentar contrariar.

Um som gorgolejante chamou-lhe novamente a atenção para o rosto de Patty. Arrancou-lhe a máscara de oxigénio. Com surpresa e horror viu que ela salivava como um cão raivoso. Ao mesmo tempo lacrimejava profusamente; as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Uma tosse húmida sugeria a formação crescente de secreções traqueo -brônquicas.

Jeffrey manteve um espírito estritamente profissional. Tinha-si treinado para enfrentar este tipo de situações de emergência. O espírito dele corria veloz, absorvendo todas as informações, estabelecendo hipóteses, rejeitando-as em seguida. Entretanto, ia tentando controlar os sintomas que ameaçavam pôr fim à vida. Primeiro aspirouos canais nasofaríngicos de Patty, depois injectou-lhe atropina por via endovenosa, seguida de efedrina. Aspirou de novo, depois injectou uma segunda dose de atropina. As secreções abrandaram, a tensão arterial estabilizou, a oxigenação manteve-se normal, mas Jeffrey continuava a não encontrar a causa. A única coisa que lhe ocorria era uma reacção alérgica à Marcaína. Observou o electrocardiograma, na esperança de que a atropina pudesse ter um efeito positivo sobre os batimentos irregulares do coração. Mas estes continuavam irregulares. De facto, tornaram-se até mais irregulares à medida que as pulsações aceleravam. Jeffrey preparou uma dose de 4 mg de propranolol, mas antes que tivesse tempo de o injectar notou os espasmos musculares que distorciam as feições de Patty numa série de torções aparentemente incontroláveis. Os espasmos estenderam-se rapidamente a outros músculos até que todo o corpo foi agitado por estremecimentos clónicos.

— Segura-a, Trent! —gritou Sheila para o enfermeiro. —Agarra-lhe as pernas!

Jeffrey injectou-lhe o propranolol, enquanto o electrocardiógrafo continuava a registar novas mudanças bizarras, apontando para um envolvimento difuso do sistema de condução eléctrica do coração.

Patty vomitou bílis verde que Jeffrey aspirou rapidamente. Olhou para os valores do oxímetro. Estava a aguentar-se. Nessa altura o alarme do monitor fetal fez-se ouvir: o coração do bebé estava a ir-se abaixo. Antes que alguém tivesse tempo para reagir, Patty foi acometida de violento ataque. Os membros agitaram-se-lhe loucamente em todas as direcções e seguidamente as costas arquearam-se numa hiperextensão descabida.

— Que diabo está a acontecer?—gritou Simarian entrando precipitadamente.

—AMarcaína—gritou Jeffrey. —Ela está a ter uma reacção tremenda. —Jeffrey não teve tempo para mais explicações e introduziu numa seringa 75 mg de succinilcolina.

—Santo Deus!—berrou Simarian, dando a volta à mesa para ajudar a segurar Patty.

Jeffrey injectou a succinilcolina e uma dose adicional de diazepam. Estava satisfeito por o seu empenhamento o ter levado a substituir o conjunto endovenoso por outro mais seguro. O sinal sonoro do oxímetro tornou-se menos agudo quando o nível de oxigenação começou a baixar. Jeffrey aspirou-lhe de novo as vias respiratórias e tentou enchê-las com oxigénio a 100%.

A agitação motora de Patty começou a abrandar sob o efeito paralisante da succinilcolina. Jeffrey introduziu-lhe um tubo endotraqueal, verificou a posição do mesmo e ventilou-a cuidadosamente com o oxigénio. O som do monitor retomou imediatamente os valores mais agudos. Mas o monitor fetal continuava a emitir o seu alarme. O coração do bebé abrandara nitidamente e não mostrava qualquer tendência para normalizar.

— Temos de tirar a criança! — gritou Simarian. Deitou a mão às luvas esterilizadas que estavam em cima de uma das mesas de apoio e enfiou-as rapidamente.

Jeffrey continuava a vigiar a tensão arterial que começara de novo a baixar. Deu a Patty mais uma dose de efedrina. A tensão arterial começou a subir. Olhou para o electrocardiograma; não sofrera qualquer melhoria sob o efeito do propranolol. Depois, para horror de Jeffrey, o electrocardiograma desintegrou-se numa fibrilação incompreensível. O coração de Patty deixara de bater.

— Ela está a ficar-se! — gritou Jeffrey. A tensão arterial desceu Para zero. Os alarmes do electrocardiógrafo do medidor de pulsações ”zeram-se ouvir num som estrídulo.

— Santo Deus! — gritou Simarian. Naquele momento estava a cobrir apressadamente a paciente com um lençol. Aproximou—se da mesa e começou a comprimir o peito de Patty numa massagem cardíaca externa. Sheila fez chegar a notícia à recepção do bloco operatório. Foi-lhes mandada ajuda.

Uma equipa adicional de enfermeiras de serviço ao Bloco chegou pouco depois. Com a velocidade do relâmpago, prepararam o desfibrilador. Chegou também uma enfermeira anestesista que foi colocar-se directamente ao lado de Jeffrey.

O teor de oxigénio do sangue de Patty subiu ligeiramente.

— Façam-lhe o contra choque! — ordenou Jeffrey.

Simarian tirou as placas do desfibrilador das mãos de uma das enfermeiras. Aplicou-as sobre o peito nu de Patty. Todos se afastaram da mesa de operações. Simarian premiu o botão. Uma vez que Patty estava sob o efeito paralisante da succinilcolina, a corrente eléctrica não teve qualquer efeito notório a não ser no ecrã do electrocardiógrafo. Afibrilação desapareceu, mas quando o sinal fosforescente reapareceu, ele não correspondia a uma batida normal do coração. Em vez disso, desenhou uma linha perfeitamente direita, com ligeiras ondulações sem qualquer significado.

— Retomem a massagem! — ordenou Jeffrey. Ficou com os olhos pregados no electrocardiógrafo. Não conseguia acreditar que não houvesse actividade eléctrica. O enfermeiro musculado tomou o lugar de Simarian para comprimir o peito de Patty e os resultados foram bons.

O monitor fetal continuava a soar. Os batimentos do coração do bebé eram demasiado lentos.

—Temos de tirar a criança! — atalhou novamente Simarian. Mudou as luvas e tirou precipitadamente os lençóis lavados das mãos da enfermeira auxiliar. Colocou-os o melhor que pôde, apesar da massagem cardíaca. Tirou uma faca da mesa de instrumentos e deitou mãos ao trabalho. Através de uma incisão vertical generosa, abriu o abdómen inferior de Patty. Dado o abaixamento da tensão arterial, a perda de sangue era pequena. Entretanto chegou um pediatra que se preparou para levar a criança.

A atenção de Jeffrey continuava concentrada em Patty. Aspirou-a e ficou surpreendido com a quantidade das secreções, mesmo depois de ter ministrado duas doses de atropina. A verificação das pupilas deixou-o satisfeito por não haver dilatação. Ficou mesmo surpreendido por as encontrar reduzidas a um ponto. Mantendo a oxigenação, Jeffrey decidiu não introduzir mais drogas no organismo de Patty enquanto não tirassem o bebé. Resumidamente, explicou à enfermeira anestesista aquilo que tinha acontecido.

— Pensa que seja uma reacção à Marcaína? — perguntou ela.

— É a única hipótese que vejo — admitiu Jeffrey.

Em seguida, um bebé silencioso, pálido e flácido foi retirado do abdómen de Patty. Depois de cortado o cordão, a criança foi rapidamente entregue ao pediatra que aguardava para o levar. Ele dirigiu-se rapidamente para a unidade de cuidados infantis, onde o pôs nas mãos da sua própria equipa de ressuscitação. A enfermeira anestesista foi juntar-se ao grupo.

—Não me agrada nada este electrocardiograma em linha recta — disse Jeffrey para si próprio enquanto injectava uma dose de epinefrina. Observou o electrocardiógrafo. Nenhuma reacção. Tentou nova dose de atropina. Nada. Exasperado, colheu uma amostra de sangue arterial e mandou-a para o laboratório para uma análise electrostática.

Ted Overstreet, um dos cirurgiões cardiologistas, que concluíra recentemente um bypass, entrou e foi colocar-se ao lado de Jeffrey. Depois de este lhe ter explicado a situação, sugeriu que abrissem a paciente.

A enfermeira anestesista voltou, para anunciar que o bebé não estava em muito boa forma.

— O Apgar não vai além de três — disse. — Respira e o coração bate, mas não muito bem. E o tónus muscular também não é bom. Está esquisito.

—Esquisito como?—perguntou Jeffrey, tentando afastar uma onda de depressão.

— Mexe bem a perna esquerda, mas não a direita. Está completamente flácida. E com os braços é precisamente o contrário.

Jeffrey sacudiu a cabeça. Era evidente que a criança fora privada de oxigénio ainda no ventre da mãe e apresentava agora lesões cerebrais. Era uma situação desesperante, mas não havia tempo para lamentações. Naquele momento a sua preocupação principal era Patty e como pôr-lhe o coração a funcionar.

Os resultados do laboratório foram entregues. O ph de Patty era

7,28. Dadas as circunstâncias, Jeffrey pensou que era bastante bom. A seguir injectou-lhe uma dose de cloreto de cálcio. Os minutos pareciam horas, enquanto todos tinham os olhos pregados no electrocardiógrafo, aguardando um sinal de vida, uma reacção qualquer ao tratamento. Mas o monitor traçava apenas uma frustrante linha recta.

O enfermeiro continuava afazer-lhe compressões ao peito e o ventilador mantinha os pulmões de Patty cheios de oxigénio puro. As Pupilas continuavam mióticas, indicando que o cérebro estava a receber oxigénio suficiente, embora o coração continuasse eléctrica e mecanicamente parado. Jeffrey repetiu todos os passos, um por um, como constava dos manuais, mas em vão. Chegou mesmo a fazer aplicar nova série de choques em Patty, com o desfibrilador a 400 joules.

Logo que o pediatra conseguiu estabilizar o recém-nascido, fez retirar da sala de operações toda a unidade de cuidados infantis, com o respectivo bando de estagiários e enfermeiras. O pequeno Mark ia a caminho da unidade de cuidados intensivos para recém-nascidos. Jeffrey ficou a vê-los sair. Sentia uma dor no coração. Sacudindo a cabeça, tristemente, voltou-se de novo para Patty. Que é que haviam de fazer?

Jeffrey levantou os olhos para Ted, que continuava ao lado dele. Perguntou-lhe o que achava que deviam fazer. Jeffrey sentia-se desesperado.

— Como eu já disse, acho que devíamos abri-la e massajar directamente o coração. Já não há muito a perder.

Jeffrey olhou para o electrocardiograma rectilíneo durante mais uns momentos. Depois suspirou.

— Okay. Vamos tentar — disse com relutância. Não tinha nenhuma outra ideia e não queria desistir. Ted tinha razão, já não tinham nada a perder. Valia a pena tentar.

Ted vestiu-se e calçou as luvas em menos de dez minutos. Logo que ficou pronto, mandou a enfermeira parar de comprimir o peito, para ele poder pôr-lhe rapidamente um pano e cortar. Num espaço de segundos, tinha o coração de Patty na mão.

Ted massajou o coração com a mão enluvada e injectou mesmo epinefrina directamente no ventrículo esquerdo. Como isso não produzisse efeito, tentou obrigar o coração a pulsar fazendo a ligação de condutas internas à parede cardíaca. Houve uma reacção no electrocardiograma, mas o coração em si não reagiu.

Ted recomeçou a massagem cardíaca interna.

— Não queria usar de gracejos de mau gosto, mas diz-me o coração que não há mais nada a fazer — anunciou ele passados alguns minutos. — Receio bem que tenhamos esgotado os nossos recursos, a menos que vocês tenham aí à mão um coração para transplantar. Este já não dá mais.

Jeffrey sabia que Ted não pretendia ostentar frieza e que a sua atitude aparentemente indiferente era mais um mecanismo de defesa do que uma genuína falta de compaixão, no entanto, sentiu-a profundamente. Teve de se controlar para não ripostar com agressividade.

Apesar de ter desistido, Ted continuou a massagem cardíaca interna. O único som que se ouvia na sala de operações vinha do monitor que registava a descarga dopacemaker e do zumbido brando do oxímetro em resposta à massagem interna de Ted.

Foi Simarian quem rompeu o silêncio.

— Concordo — disse simplesmente. E arrancou as luvas.

Ted olhou para Jeffrey. Jeffrey fez um sinal de assentimento com a cabeça. Ted parou a massagem e retirou a mão de dentro do peito de Patty.

— Lamento muito — disse.

Jeffrey fez novo sinal de assentimento com a cabeça. Respirou fundo e desligou o ventilador. Voltou a olhar para o triste espectáculo de Patty Owen com o abdómen e o peito rudemente esventrados. Era uma visão horrível, uma visão que havia de acompanhar Jeffrey até ao fim da vida. O chão estava coberto de embalagens e envólucros de medicamentos.

Jeffrey sentia-se esmagado e entorpecido. Este era o nadir da sua carreira profissional. Já presenciara outras tragédias, mas esta era a pior e a mais inesperada. Os olhos vaguearam-lhe em direcção à máquina de anestesia. Também ela estava coberta de destroços. Por baixo dos destroços, encontrava-se o registo incompleto da anestesia. Ia ter de o actualizar. Na sua tentativa febril para salvar a vida de Patty não tivera tempo de o fazer. Procurou o frasco meio vazio de Marcaína com um sentimento de antipatia irracional. Embora isso não parecesse razoável à luz dos resultados obtidos com a dose de teste, não conseguia deixar de sentir que, na base da tragédia, estava uma reacção alérgica à Marcaína. Tinha vontade de esmagar o frasco de encontro a uma parede para dar largas à sua frustração. Claro que também sabia que não ia atirar frasco nenhum, tinha o autocontrole suficiente para não o fazer. Mas não conseguiu encontrá-lo no meio de toda aquela confusão.

— Sheila — disse Jeffrey para a enfermeira de serviço que começara entretanto a arrumar a sala —, que foi que aconteceu ao frasco de Marcaína?

Sheila interrompeu o que estava a fazer e deitou um olhar furioso a Jeffrey.

— Se o senhor não sabe onde o pôs, não sou eu com certeza que vou saber — ripostou furiosa.

Jeffrey fez que sim com a cabeça e concentrou-se na tarefa de desligar Patty dos monitores. Compreendia a irritação de Sheila. Ele sentia o mesmo. Patty não merecia tal destino. O que Jeffrey não compreendeufoi que Sheila não estava irritada com o destino. Estavairritada com ele próprio. Estava mesmo furiosa.

 

                           2.a feira, 15 de Maio de 1989, 11:15

Um raio de sol dourado e matinal filtrava-se por uma janela colocada bastante alta na parede, à esquerda de Jeffrey, e atravessava como um punhal a sala do tribunal, detendo-se como um projector na parede forrada a madeira por detrás do lugar do juiz. Milhões de particulazinhas de poeira brilhavam e rodopiavam na intensidade do raio. Desde o início do julgamento que Jeffrey se sentira impressionado com o lado teatral do sistema da justiça. Mas não se tratava de nenhum folhetim televisivo. Era a carreira de Jeffrey—toda a sua vida — que estavam em causa.

Jeffrey fechou os olhos e inclinou-se para a frente sobre a mesa de réu, deitando a cabeça nas mãos. Com os cotovelos apoiados na mesa, esfregou asperamente os olhos. A tensão ameaçava endoidecê-lo.

Respirando fundo, abriu os olhos, na esperança vaga de que a cena que tinha diante dele desaparecesse por magia, permitindo-lhe acordar do pior pesadelo de toda a sua vida. Mas a verdade é que não se tratava de um sonho mau. Jeffrey estava envolvido no segundo julgamento pela morte inesperada de Patty Owen, oito meses antes. Naquele momento, encontrava-se sentado num tribunal do centro de Boston, aguardando que o júri se pronunciasse a seu respeito perante a acusação de crime.

Jeffrey lançou o olhar por cima da cabeça do seu advogado, para estudar a multidão. Havia grande confusão de vozes, excitadas e não muito altas, um murmúrio de expectativa. Jeffrey desviou o olhar, sabendo que todas as conversas estavam centradas na sua pessoa. Desejaria poder esconder-se. Sentia-se completamente humilhado Pelo espectáculo público que se desenrolava tão rapidamente. Toda a sua vida se desmoronava e estava a desintegrar-se. A sua carreira ia Por água abaixo. Sentia-se estupefacto e ao mesmo tempo tomado de um torpor estranho.

Jeffrey suspirou. Randolph Bingham, o seu advogado, incitara-o a mostrar-se calmo e controlado. O que era mais fácil de dizer que de fazer, especialmente naquele momento. Depois de todo o desgosto, ansiedade e noites de insónia, chegara o momento crucial. O júri tomara a sua decisão. O veredicto vinha a caminho.

Jeffrey estudou o perfil aristocrático de Randolph. O homem tornara-se um pai para ele ao longo daqueles últimos oito meses de ansiedade, embora tivesse apenas mais cinco anos que ele. Algumas vezes, Jeffrey quase sentira amor por aquele homem, outras vezes estivera mais próximo da raiva e do ódio. Mas nunca deixara de ter confiança na sua capacidade como advogado, pelo menos até àquela altura.

Deitando uma olhadela à equipa de acusação, Jeffrey pôs-se a estudar o delegado do ministério público. Sentia uma antipatia especial por aquele homem, que parecia ter-se apossado deste caso como de um veículo para promover a sua própria carreira política. Jeffrey admirava-lhe a inteligência nata, embora tivesse acabado por o desprezar no decorrer daqueles quatro dias de julgamento. Mas agora, ao vê-lo conversar com animação com um dos seus assistentes, Jeffrey compreendeu que sentia uma estranha ausência de emoção perante aquele indivíduo. Para ele, tudo aquilo não passara de uma tarefa, nem mais nem menos.

Os olhos de Jeffrey desviaram-se do delegado para a tribuna do júri, vazia. Durante o julgamento, a ideia de que aqueles doze desconhecidos tinham nas mãos o seu próprio destino, ino deixara Jeffre paralisado. Nunca antes sentira tal vulnerabilidade. Até àquele momento, sempre vivera na ilusão de que o seu destino estava praticamente nas suas mãos. O julgamento veio provar-lhe até que ponto si enganara.

O júri estava a deliberar havia dois dias, cheios de ansiedade e — para Jeffrey — duas noites de insónia. Agora aguardavam que o júri regressasse à sala. Jeffrey perguntava a si próprio, mais uma vez, se dois dias a deliberar seria bom ou mau sinal. Randolph, com a sua maneira irritantente conservadora, recusava-se a especular. Jeffre achava que o advogado bem podia ter mentido, quanto mais não fosse se para lhe dar umas horas de relativa tranquilidade.

Apesar de todas as boas intenções de não permitir a si mesmo qualquer gesto de nervosismo, Jeffrey começou a cofiar o bigode. Quando se apercebeu do que estava a fazer, entrelaçou os dedos e pousou as mãos na mesa diante de si.

Deitou uma olhadela por cima do ombro esquerdo e viu Carol, que seria em breve sua ex-mulher. Estava de cabeça baixa. Lia. Jeffrey olhou para a cadeira vazia do juiz. Podia sentir-se irritado por ela estar suficientemente descontraída para conseguir ler num momento daqueles, mas não. Em vez disso, Jeffrey sentia-se agradecido pela sua presença ali, naquele momento, e por todo o apoio que lhe dera. Afinal, mesmo antes de ter começado aquele pesadelo legal os dois já tinham chegado à conclusão de que havia entre eles um grande afastamento.

Na altura em que se tinham casado, oito anos antes, não lhes parecera importante o facto de Carol ser muito sociável e extrovertida, enquanto que ele tendia precisamente para o contrário. Jeffrey também não ficara aborrecido por Carol preferir não ter filhos enquanto progredia na sua carreira no mundo da banca, pelo menos até ter descoberto que esse “enquanto”, para ela, significava “nunca”. E agora Carol queria ir para o oeste, para Los Angeles. Jeffrey seria capaz de suportar a ideia de ir viver para a Califórnia, mas o problema dos filhos era diferente. Com o passar dos anos, começara a desejar cada vez mais ter um filho. Ver as esperanças e aspirações de Carol orientarem-se num sentido completamente diferente entristecia-o, embora não lhe quisesse mal por isso. A princípio, Jeffrey tentara afastar a ideia do divórcio, mas acabara por ceder. Fosse como fosse, não estavam talhados um para o outro. No entanto, quando começaram os problemas de Jeffrey com alei, Carol tinha sugerido amavelmente que poderia ocupar-se dos assuntos domésticos até a situação estar resolvida.

Jeffrey suspirou de novo, mais alto que antes. Randolph deitou-lhe um olhar de desaprovação, mas Jeffrey não conseguia compreender que as aparências tivessem qualquer importância naquela altura. Sempre que pensava na sequência dos acontecimentos, ficava como que estonteado. Tudo acontecera tão depressa. A seguir à morte desastrosa de Patty Owen, a acusação de incúria médica não se tinha feito esperar. No clima litigioso decorrente, Jeffrey não ficara surpreendido com a acção do tribunal, talvez apenas com a rapidez com que tudo se desenrolou.

Logo de início, Randolph prevenira Jeffrey de que o caso ia ser duro. Jeffrey nem fazia ideia até que ponto. Isso fora pouco antes de o Boston Memorial o ter suspendido. Nessa altura, tal atitude parecera caprichosa e de uma maldade injustificada. Ela não constituía de maneira nenhuma o tipo de apoio ou o voto de confiança que Jeffrey esperara. Nem Jeffrey nem Randolph faziam a menor ideia das razões da suspensão. Jeffrey mostrara vontade de agir contra o Boston Memorial em face daquele acto injustificado, mas Randolph aconselhara-o aficar quieto. Na sua opinião, aquele problema resolver-se-ia melhor depois de terminado o caso da incúria médica.

Mas a suspensão fora apenas o prenúncio de problemas maiores. O advogado de acusação era um indivíduo jovem e agressivo, de nome ”fatthew Davidson, pertencente a uma firma de St. Louis especialiezada em casos como aquele. Era também sócio de uma pequena firma que tratava de casos litigiosos em geral e era sediada em Massachu setts. Levantaram-se processos a Jeffrey, Simarian, Overstreet, ao hospital e até mesmo contra a Arolen, Produtos Farmacêuticos, que fabricava a Marcaína. Jeffrey nunca tinha sido réu de um caso seme lhante. Randolph explicara-lhe que se tratava de uma técnica de “ataque cerrado”. Os litigantes processavam todas as pessoas com dinheiro, quer houvesse ou não indícios do seu envolvimento directo no caso da pretensa incúria médica.

O facto de ser um entre vários servira a princípio de consolação a Jeffrey, mas isso não durou muito. Em breve se tornou claro que Jeffrey acabaria por ficar só. Lembrava-se do ponto de viragem como se tivesse sido na véspera. Acontecera durante o seu próprio depoimento, na fase inicial do julgamento civil por incúria médica. Tinha sido ele o primeiro réu a comparecer perante o tribunal. Davidson fizera -lhe várias perguntas relativamente superficiais antes de assumir repentinamente uma atitude mais dura.

—Sr. Doutor—dissera Davidson, voltando para ele o rosto magro e bem parecido e pondo uma nota pejorativa no título. Avançou directamente para o banco das testemunhas e colocou o rosto dele a alguns centímetros do de Jeffrey. Vestia um fato escuro de risca fina, impecavelmente confeccionado, camisa cor de lavanda-clara e uma gravata estampada com um motivo clássico escocês, em púrpura escuro. Exalava um odor a colónia de boa qualidade. — Alguma vez teve dependência de drogas?

— Protesto! — exclamou Randolph, pondo-se de pé.

Jeffrey sentia-se como se estivesse a presenciar uma cena no teatro, não um capítulo da sua própria vida. Randolph explicou o seu protesto:

—A pergunta não tem nada a ver com o assunto em causa. O advogado de acusação está a tentar impugnar o meu cliente.

—Não é verdade — contrapôs Davidson. —Esta questão está profundamente relacionada com as circunstâncias que estamos a analisar, como irá ser demonstrado por testemunhos subsequentes.

Durante alguns momentos reinou o silêncio no tribunal apinhado. A publicidade tornara o caso notório. Havia pessoas de pé ao fundo da sala.

O juiz era um negro forte de nome Wilson. Aconchegou os óculos de aros pretos e grossos e em seguida pigarreou.

— Se está a brincar comigo, Dr. Davidson, vai arrepender-se.

— Eu nunca faria uma coisa dessas, Excelência.

—Protesto recusado—anunciou o juiz Wilson. Fez um sinal de cabeça na direcção de Davidson. — Pode continuar.

— Muito obrigado — disse Davidson voltando novamente as suas atenções para Jeffrey. — Pretende que repita a minha pergunta, Sr. Doutor? — perguntou.

—Não—respondeu Jeffrey. Tinha a pergunta bem presente. Deitou uma olhadela a Randolph, mas este estava ocupado a escrever num bloco de papel amarelo. Jeffrey retribuiu o olhar firme e pouco amistoso de Davidson. Tinha um pressentimento de que ia haver sarilho. — Sim, tive em tempos um ligeiro problema de droga — disse num tom submisso. Tratava-se de um velho segredo que ele nunca esperara ver aparecer à luz do dia, especialmente em tribunal. A questão tinha-lhe sido recordada havia pouco tempo, quando tivera que preencher o impresso necessário para renovar a licença para a prática de medicina no Massachusetts. No entanto, estava convencido de que a informação era confidencial.

— Quer informar o júri de qual a droga que lhe causou dependência? — solicitou Davidson, afastando-se de Jeffrey como se estivesse demasiado revoltado, para permanecer tão perto dele mais que o estritamente necessário.

—Morfina—replicou Jeffrey num tom de quase desafio. —Foi há cinco anos. Tive problemas com dores nas costas na sequência de um grave acidente de bicicleta.

Pelo canto do olho, Jeffrey viu Randolph coçar a sobrancelha direita. Era um gesto previamente combinado para indicar a Jeffrey que este devia limitar-se a responder à pergunta sem fornecer mais informações. Mas Jeffrey não fez caso dele. Estava furioso por aquele episódio irrelevante do seu passado ter sido trazido à baila. Sentia necessidade de o explicar e de se defender. Não havia dúvidas que ele não era de forma alguma um viciado em drogas.

—Quanto tempo durou essa dependência? —perguntou Davidson.

—Menos de um mês—atalhou Jeffrey. —Foi uma situação em que a necessidade e o desejo se misturaram imperceptivelmente.

—Estou a ver—disse Davidson, levantando as sobrancelhas num gesto dramático de compreensão. — Foi assim que explicou o facto perante si próprio?

—Foi assim que o meu conselheiro durante o tratamento mo explicou — contrapôs Jeffrey. Reparou que Randolph se voltava a coçar freneticamente, mas continuou a ignorá-lo. — O acidente de bicicleta ocorreu num período de grande tensão doméstica. A morfina foi-me receitada por um cirurgião ortopedista. E eu convenci-me de que prensava dela mais tempo do que na realidade precisava. Mas em poucas semanas compreendi o que se estava a passar, dei parte de doente no hospital e submeti-me voluntariamente ao tratamento. Ao mesmo tempo que procurei um conselheiro matrimonial, devo acrescentar.

—E durante essas semanas, alguma vez ministrou uma anestesia enquanto... —Davidson fez uma pausa, como se estivesse a procurar as palavras. —... enquanto sob essa influência?

— Protesto! — exclamou Randolph. — Esta linha de interrogatório é absurda! Está a tornar-se caluniosa.

O juiz inclinou a cabeça para olhar por cima dos óculos que empurrara para a ponta do nariz.

— Dr. Davidson — disse com ar condescendente. — Continuamos com o mesmo problema. Espero que tenha uma boa razão para este aparente desvio.

— Sem dúvida, Excelência — disse Davidson. — Tencionamos mostrar que este testemunho tem uma ligação directa com o caso que está a ser julgado.

— Protesto recusado — disse o juiz. — Prossiga.

Davidson voltou-se novamente para Jeffrey e repetiu a pergunta. Parecia saborear a frase “sob essa influência”.

Jeffrey deitou um olhar furioso ao advogado de acusação. A única coisa na sua vida de que tinha a certeza absoluta era do seu sentido de responsabilidade profissional, da sua competência e capacidade de actuação. O facto de aquele homem estar a sugerir qualquer coisa de diferente enfurecia-o.

— Nunca pus um doente em risco — atalhou.

— Não é essa a minha pergunta — disse Davidson. Randolph pôs-se de pé e disse:

— Gostaria de conferenciar com Vossa Excelència

Randolph e Davidson aproximaram-se do juiz. Era visível que Randolph estava fora de si. Começou a falar num murmúrio roufenho. Embora estivesse a pouco mais de dois metros de distância, Jeffrey não conseguiu ouvir nitidamente a conversa, mas ouviu que mencionavam várias vezes a palavra “suspensão”. Por fim, o juiz recostou-se na cadeira e olhou para ele.

—Dr. Rhodes—disse —, o seu advogado parece ser de opinião que o senhor precisa descansar. É verdade?

—Não preciso de descanso nenhum—respondeu Jeffrey, zangado.

Randolph levantou as mãos mostrando a sua frustração.

— Muito bem — disse o juiz. —Então continuemos o interrogatório, Dr. Davidson, para podermos ir todos almoçar.

— Muito bem, Dr. Rhodes — continuou Davidson —, alguma vez ministrou uma anestesia sob a influência de morfina?

— Pode ter acontecido uma ou duas vezes... — começou Jeffrey—, mas...

— Sim ou não, Sr. Doutor! — atalhou Davidson. —A única coisa que lhe peço é que diga sim ou não.

—Protesto!—exclamou Randolph. —A testemunha está a ser impedida de responder à pergunta.

—Pelo contrário—replicou Davidson. —Trata-se de uma pergunta simples e pretendo uma resposta igualmente simples. Sim ou não.

— Recusado! — disse o juiz. — A testemunha poderá alargar-se sobre a questão durante o interrogatório cruzado. Por favor responda à pergunta, Dr. Rhodes.

— Sim — replicou Jeffrey. Sentia o sangue a ferver. Apetecia-lhe estender os braços e estrangular o advogado de acusação.

— Depois do tratamento que fez para a sua dependência da morfina... — começou Davidson, afastando-se de Jeffrey. Sublinhou as palavras “dependência” e “morfina”, seguidamente fez uma pausa. Parou junto da bancada do júri, depois virou-se e acrescentou—... voltou alguma vez a tomar morfina?

— Não — disse Jeffrey, com firmeza.

—Tomou morfina no dia em que ministrou anestesia à infortunada Patty Owen?

— De maneira nenhuma — respondeu Jeffrey.

— Tem a certeza, Dr. Rhodes?

— Tenho! — gritou Jeffrey.

— Não tenho mais perguntas a fazer — declarou Davidson, e voltou para o seu lugar.

Randolph fizera tudo o que estava ao seu alcance no interrogatório cruzado, acentuando que o problema da dependência fora ligeiro e de breve duração e que Jeffrey nunca passara de doses terapêuticas. Além disso, Jeffrey tinha procurado o tratamento de livre vontade, fora dado como “curado” e não sofrera qualquer acção disciplinar. Mas, apesar destas afirmações, tanto Randolph como Jeffrey sentiram que o caso sofrera um golpe mortal.

Nesse momento, Jeffrey foi chamado de novo ao presente pelo aparecimento de um oficial de diligências, de uniforme, à porta da sala do júri. O pulso bateu-lhe desordenado. Achava que a entrada do júri estava prestes a ser anunciada. Mas o oficial de diligências dirigiu-se Para a porta do gabinete do juiz e desapareceu. Os pensamentos de Jeffrey desviaram-se de novo para o julgamento por incúria médica.

Fiel à sua palavra quanto à irrelevância, Davidson retomou a questão da dependência com um novo testemunho, totalmente inesperado, apesar dos depoimentos iniciais. A primeira surpresa surgiu com Regina Vinson.

Depois das perguntas clássicas, Davidson interrogou-a sobre se ela tinha visto o Dr. Jeffrey Rhodes no dia fatídico da morte de Patty Owen.

— Vi-o, sim — replicou Regina com os olhos fixos em Jeffrey.

Jeffrey conhecia Regina vagamente, como uma das enfermeiras do turno da noite do Bloco Operatório. Não se recordava de a ter visto na noite em que Patty morrera.

— Onde estava o Dr. Rhodes no momento em que o viu? — inquiriu Davidson.

— Estava no gabinete de anestesia da sala onze — disse Regina, sempre com os olhos postos em Jeffrey.

Este teve mais uma vez o pressentimento de que alguma coisa em detrimento do seu caso se estava a aproximar, mas não conseguia adivinhar o quê. Lembrava-se de ter trabalhado na sala onze durante a maior parte do dia. Randolph inclinou-se para ele e perguntou em surdina:

— Onde é que ele está a querer chegar?

—Não faço a menor ideia—murmurou Jeffrey, incapaz de desviar o olhar do da enfermeira. O que mais o perturbava era que sentia por parte da mulher uma verdadeira hostilidade.

— O Dr. Rhodes também a viu? — perguntou Davidson.

— Sim, viu — replicou Regina.

Jeffrey recordou-se imediatamente. Em espírito, reviu a imagem do rosto sobressaltado da enfermeira no momento em que afastara a cortina. O facto de se ter sentido doente naquele dia fatídico era um aspecto, para além do problema da dependência, que acabara por não contar a Randolph. Chegara a pensar nisso, mas teve medo. Na altura, tinha pensado também no seu comportamento habitual como prova de dedicação e espírito de sacrifício. Depois, essa certeza começou a fraquejar e acabou por nunca falar no caso a ninguém. Estendeu a mão para o braço de Randolph, mas já era tarde de mais.

Davidson olhava para os jurados, um após outro, enquanto fez a pergunta seguinte:

— Havia alguma coisa de estranho na presença do Dr. Rhodes no gabinete da sala onze?

— Sim — replicou Regina. — A cortina estava fechada e a sala de operações onze não estava a ser usada.

Davidson continuava a olhar para os jurados. Depois acrescentou:

— Por favor, relate a este tribunal o que o Dr. Rhodes estava a fazer no gabinete de anestesia da sala de operações vazia com as cortinas corridas.

—Estava a injectar-se—disse Regina num tom zangado —, estava a aplicar a si mesmo uma injecção endovenosa.

Um murmúrio de excitação espalhou-se pela sala do tribunalRandolph voltou-se para Jeffrey com ar chocado. Jeffrey sacudiu a cabeça com ar de quem fora apanhado em falta.

— Eu posso explicar — disse sem jeito.

Davidson continuou:

— E que foi que fez depois de ter visto o Dr. Rhodes & injectar-se?

— Fui procurar a supervisora que chamou o anestesista-chefe — disse Regina.—Infelizmente, o anestesista-chefe não pôde ser contactado senão depois da tragédia.

Logo a seguir ao testemunho pernicioso de Regina, Randolph conseguira obter uns momentos de intervalo. Quando ficou a sós com Jeffrey, pediu-lhe que lhe explicasse a cena da injecção. Jeffrey confessou que se sentira doente naquele dia fatídico e que ninguém a não ser ele estava disponível para o parto. Explicou tudo o que fizera para conseguir continuar o trabalho, incluindo o facto de ter aplicado a si próprio a endovenosa e de ter tomado o elixir paregórico.

— Que mais é que você não me contou? — perguntou Randolph, zangado.

— Foi só isso — replicou Jeffrey.

— Por que é que não me contou isso antes? — atalhou Randolph. Jeffrey sacudiu a cabeça. A verdade é que não se sentia muito seguro de si.

— Não sei — replicou. — Nunca gostei de admitir, nem perante mim próprio, que estava doente, ainda menos diante de outra pessoa. Há muitos médicos que são assim. Talvez seja parte do nosso mecanismo de defesa por vivermos no meio da doença. Gostamos de pensar que somos invulneráveis.

— Não lhe estou a pedir que faça nenhuma dissertação — quase gritou Randolph.—Guarde esse palavreado todo para oNewEngland JournalofMedicine. O que eu quero saber é por que razão você não me disse a mim, o seu advogado, que foi visto a injectar-se na manhã em causa.

— Acho que tive medo de lhe dizer — admitiu Jeffrey. — Fiz tudo o que era possível para salvar Patty Owen. Qualquer pessoa pode ler os registos e verificar que foi assim. A última coisa que eu quereria admitir era que pudesse haver alguma dúvida de que eu estava em Plena forma. Talvez receasse que não me defendesse com a mesma intensidade se pensasse que eu podia ser muito remotamente culpado.

— Santo Deus! — exclamou Randolph.

Mais tarde, já de regresso à sala de tribunal, durante o interrogatório cruzado, Randolph fez tudo o que estava ao seu alcance para abater a credibilidade do depoimento da enfermeira. Salientou o facto de Regina não saber se Jeffrey se estava a injectar com alguma droga ou simplesmente a iniciar uma endovenosa de re-hidratação.

Mas Davidson ainda não tinha acabado. Chamou Sheila Dodenhoff ao banco das testemunhas. Tal como Regina, também ela deitou a Jeffrey um olhar carregado enquanto fazia o seu depoimento.

—Miss Dodenhoff—cantarolou Davidson —, como enfermeira de serviço no piso durante a tragédia da Sr.- Owen, notou alguma coisa de estranho no réu, o Dr. Rhodes?

— Notei, sim — disse Sheila, triunfante.

—Queira informar o tribunal daquilo que notou—disse Davidson, saboreando nitidamente o momento.

— Notei que tinha as pupilas extremamente contraídas — disse Sheila. — Apercebi-me disso por ele ter os olhos tão azuis. Praticamente não se viam as pupilas.

A testemunha seguinte apresentada por Davidson era um oftalmologista de Nova Iorque, mundialmente famoso, que escrevera um volume exaustivo sobre a função da pupila. Depois de tornar conhecidas as suas notáveis credenciais, Davidson pediu ao médico que nomeasse a droga mais comum que causava a contracção extrema da pupila — miose, como o médico preferia chamar-lhe.

— Refere-se a uma droga sistemática ou a um colírio? — perguntou o oftalmologista.

— Uma droga sistemática — disse Davidson.

— A morfina — anunciou o oftalmologista, confiante. Lançou-se depois numa dissertação incompreensível sobre o núcelo de Edinger-Westphal, mas Davidson interrompeu-o e passou a testemunha para Randolph.

À medida que o julgamento se arrastava, Randolph tentara rectificar o mal feito, informando que Jeffrey tomara elixir paregórico para a diarreia. Uma vez que o elixir paregórico é um composto que contém tintura de ópio e uma vez que o ópio contém morfina, sugeriu que a contracção das pupilas de Jeffrey tivesse sido causada por aquele medicamento. Também explicou que Jeffrey ministrara a si próprio uma injecção endovenosa como tratamento para sintomas gripais, frequentemente causados pela desidratação. Mas era notório que o júri não estava a aceitar tais explicações, especialmente depois de Davidson ter trazido a depor um médico bem conhecido e respeitado.

— Diga-me, Doutor — prosseguiu Davidson num tom untuoso —, é prática comum os médicos tratarem-se a si próprios com injecções endovenosas, como foi sugerido que tenha sido feito pelo Dr. Rhodes?

— Não — respondeu o médico —, tenho ouvido rumores acerca de alguns estagiários mais descontrolados que o fazem, mas certamente que, ainda que demos crédito a tais rumores, não se trata de uma prática comum.

O golpe final surgiu quando Davidson chamou Marvin Hickleman ao banco das testemunhas. Tratava-se de um dos assistentes hospitalares da Sala de Operações.

— Sr. Hickleman — disse Davidson. — Foi o senhor quem limpou a sala quinze a seguir ao caso de Patty Owen?

— Fui, sim — replicou Marvin.

— Estou informado de que encontrou qualquer coisa no recipiente do lixo tóxico, do lado da máquina de anestesia. Pode informar o tribunal daquilo que encontrou?

Marvin pigarreou.

— Encontrei um frasco de Marcaína vazio.

— Qual era a concentração? — inquiriu Davidson.

— 0,75% — esclareceu Marvin.

Jeffrey inclinou-se para a frente e sussurrou para Randolph:

— O que eu utilizei era de 0,5%, tenho a certeza.

Como se o tivesse ouvido, Davidson perguntou a Hickleman:

— Encontrou algum frasco de Marcaína a 0,5%?

— Não — disse Marvin —, não encontrei.

Durante o interrogatório cruzado, Randolph tentou desacreditar o testemunho de Marvin, mas só conseguiu piorar as coisas.

— Sr. Hickleman, é seu costume passar revista ao lixo quando faz limpeza à sala de operações e verificar a concentração indicada em todos os frascos?

— Nada disso!

— Mas fê-lo neste caso?

— Exactamente.

— Pode dizer-nos porquê?

— Foi a enfermeira-chefe quem me pediu.

O golpe de misericórdia foi desferido pelo Dr. Leonard Simon, de Nova Iorque, anestesista famoso que o próprio Jeffrey reconheceu. Davidson foi direito ao assunto:

—Dr. Simon, Marcaína a 0,75% é recomendada em obstetrícia para a anestesia epidural?

—De maneira nenhuma—ripostou o Dr. Simon.—É mesmo contra-indicado. Essa informação está claramente impressa na posologia do medicamento e é do conhecimento de todos os anestesistas.

—Pode esclarecer-nos por que razão ela é contra-indicada na obstetrícia?

—Por se ter descoberto que pode causar reacções graves em certos casos.

— Que espécie de reacções, Dr. Simon? — Toxicidade a nível do sistema nervoso central...

— Quer isso dizer convulsões?

Sim, há conhecimento de casos em que se verificaram convulsões.

— E que mais?

— Toxicidade cardíaca.

— Que quer isso dizer?

— Arritmias, paragem cardíaca.

— E tais reacções tiveram ocasionalmente consequências fatais?

— É um facto — disse o Dr. Simon, enterrando o último prego no caixão de Jeffrey.

O resultado foi que Jeffrey e só Jeffrey fora acusado de incúria médica. Simarian, Overstreet, o hospital e a companhia farmacêutica tinham sido ilibados. O júri atribuiu ao espólio de Patty Owen o valor de onze milhões de dólares: nove milhões a mais que o seguro de Jeffrey.

No final do julgamento, Davidson mostrara-se nitidamente decepcionado por ter sido tão eficiente na destruição de Jeffrey. Uma vez que os outros réus e as suas carteiras bem recheadas tinham sido ilibados, havia poucas hipóteses de cobrar muito mais que o valor do seguro de Jeffrey, mesmo que os rendimentos deste ficassem retidos até ao fim da vida dele.

Para Jeffrey, o resultado foi calamitoso, não menos do ponto de vista pessoal que profissional. Toda a sua imagem de si próprio e o seu valor pessoal se baseavam num sentido de dedicação, empenhamento e sacrifício. O julgamento e a conclusão do júri destruíram tudo, i ssi Começara mesmo a duvidar de si próprio. Talvez tivesse usado a Mar caína a 0,75%, por engano.

Jeffrey poderia ter ficado deprimido, mas não teve tempo para se entregar à depressão. Pressionado pela notícia espalhada aos quatro ventos de que Jeffrey “agira sob influência” e pelo forte sentimento anti-droga daquela época, o delegado público vira-se obrigado a instaurar o processo de crime. Perante a incredulidade total de Jeffrey, foi pronunciada a acusação de crime em segundo grau. Era sobre esta acusação que Jeffrey aguardava o veredicto do júri.

As locobrações de Jeffrey foram novamente interrompidas pelo oficial de diligências, em uniforme, que saiu do gabinete do juiz e entrou para a sala do júri. Por que é que estavam a demorar as coisas daquela forma? Era uma tortura para Jeffrey. Atormentava-o uma sensação bem real de déjà vu, uma vez que o julgamento de quatro dias do processo crime não estava a ser muito diferente do julgamento de responsabilidade civil. Só que desta vez as apostas eram mais altas.

Perder dinheiro, mesmo que o tivesse, era uma coisa. O espectro de uma condenação por crime e da correspondente pena de encarceramento era uma coisa completamente diferente. Na realidade, Jeffrey não sentia que fosse capaz de aguentar a vida por detrás das grades de uma prisão. Se se tratava de um medo racional ou de uma fobia irracional, não seria capaz de o dizer. Declarara abertamente a Carol que preferiria passar o resto da vida noutro país a ver-se atrás das grades. Jeffrey ergueu os olhos para o lugar do juiz onde não se encontrava ninguém. Dois dias antes, o juiz interpelara o júri, antes de se retirarem para deliberar. Algumas das palavras do júri ecoavam ainda no espírito de Jeffrey e reacendiam os seus temores.

— Membros do júri — dissera ajuíza Janice Maloney —, antes de poderem concluir que o réu, Dr. Jeffrey Rhodes, é culpado de homicídio em segundo grau, a comunidade deverá ter provado, sem sombra de dúvida razoável, que a morte de Patty Owen foi causada por um acto do réu que se tornou iminentemente perigoso para outra pessoa e que evidenciou um espírito depravado, indiferente à vida humana. Um acto é “iminentemente perigoso” e “evidencia um espírito depravado quando se trata de um acto em relação ao qual uma pessoa normal se aperceberia de que iria matar ou afectar seriamente a integridade física de outra pessoa. Trata-se também de um acto dessa natureza se for praticado por má vontade, ódio ou com vontade criminosa”.

Parecia a Jeffrey que tudo dependia de ele ter ou não tomado morfina. Se acreditassem que sim, iam chegar à conclusão de que agira com vontade criminosa. Pelo menos era assim que Jeffrey pensaria se fosse um dos jurados. Afinal, ministrar uma anestesia era sempre iminentemente perigoso. A única coisa que a distinguia de uma agressão criminosa era o consentimento expresso.

Mas as palavras dirigidas pela juíza aos jurados e que mais ameaçadoras tinham parecido a Jeffrey eram as que diziam respeito ao castigo. Ajuíza informara o júri de que mesmo a condenação mais leve por homicídio obrigá-los-ia a proferir contra Jeffrey uma sentença de, pelo menos, três anos de prisão.

Três anos! Jeffrey começou a transpirar e a sentir frio ao mesmo tempo. Passou a mão pela fronte e ficou com os dedos húmidos.

— Todos de pé! — anunciou o oficial de diligências, acabando de sair do gabinete dos jurados. Depois deu um passo para o lado. Toda a gente na sala do tribunal se pôs de pé. Muitos esticaram o pescoço, na esperança de antever um reflexo do veredicto nas expressões dos jurados, logo que estes aparecessem.

Ocupado com os seus pensamentos, Jeffrey foi apanhado de surpresa pelas palavras breves do oficial de diligências. Teve uma reacção despropositada e levantou-se de um salto. Sentindo-se momentaneamente estonteado foi forçado a apoiar-se à mesa que tinha diante dele.

A medida que foram desfilando para dentro da sala, nenhum dos jurados cruzou o olhar com o de Jeffrey. Seria bom ou mau sinal? Jefrey teve vontade de perguntar a Randolph, mas receou fazê-lo.

—O Meretíssimo Juiz Janice Maloney—anunciou o oficial de diligências, logo que ajuíza saiu do seu gabinete e se instalou no lugar que lhe competia. Depois de sentada, pôs-se a arranjar as coisas que tinha diante dela em cima da mesa e empurrou para o lado o jarro com água. Era uma mulher magra, de olhar penetrante.

— Podem sentar-se — disse o oficial de diligências. — Senhores membros do júri, queiram fazer o favor de continuar de pé.

Jeffrey sentou-se, sem tirar os olhos do júri. Nenhum deles dirigiu o olhar para a sua pessoa, facto que começava a perturbá-lo. Jeffrey fitou uma avozinha de cabelos brancos que se encontrava na ponta esquerda da primeira fila. Durante o julgamento, olhara frequentemente na sua direcção. Esse facto criara em Jeffrey a intuição de que ela devia sentir uma certa afeição por ele. Mas agora não. Tinha as mãos unidas em frente do corpo, o olhar baixo.

O oficial de diligências ajeitou os óculos. Estava sentado à frente da juíza, mais abaixo, à direita. O escrivão estava mesmo em frente dele.

— O réu deve pôr-se de pé e de frente para o júri — disse o funcionário.

Jeffrey pôs-se novamente de pé. Desta vez com lentidão. Agora todos os jurados tinham os olhos postos nele. Contudo, os seus rostos pareciam de pedra. Jeffrey sentiu o pulso bater-lhe forte nos ouvidos.

— Sr.a presidente do Júri — chamou o funcionário. A presidente era uma mulher bem parecida, a caminho dos 40, com um ar de eficiência profissional. — O júri já formulou o veredicto?

— Sim — respondeu ela.

— Oficial, por favor, receba o veredicto das mãos da presidente — disse o funcionário.

O oficial de diligências aproximou—se dela e recebeu aquilo que parecia ser uma folha de papel em branco. Seguidamente entregou a folha à juíza.

Esta leu a nota, inclinando a cabeça para trás para ver através das bifocais. Leu a nota sem pressas, abanou a cabeça afirmativamente e depois devolveu o papel ao funcionário que se pusera de pé para o receber.

O oficial também parecia estar sem pressas. Jeffrey sentiu uma irritação violenta perante todas aquelas demoras desnecessárias, enquanto continuava de pé diante do júri impassível. O tribunal troçava dele, escarnecia-o com todo aquele seu protocolo arcaico. O coração batia-lhe cada vez mais depressa, tinha as palmas das mãos molhadas de transpiração. Sentia um ardor no peito.

Depois de pigarrear, o funcionário voltou-se para o júri.

— O que tem para dizer, Sr. Presidente, o réu é ou não culpado da queixa apresentada de homicídio em segundo grau?

Jeffrey sentiu as pernas tremerem-lhe. Com a mão esquerda agarrou a orla da mesa. Não era especificamente religioso, mas deu consigo a rezar: Por favor, meu Deus...

— Culpado! — anunciou a presidente numa voz clara e cheia.

Jeffrey sentiu as pernas vergarem-se-lhe enquanto toda a imagem do tribunal parecia oscilar diante dele. Tentou agarrar-se à mesa com a mão direita, para não vacilar. Sentiu Randolph segurar-lhe o braço direito.

—Isto é apenas o primeiro assalto—murmurou-lhe Randolph ao ouvido. —Vamos recorrer, como fizemos com o caso da incúria médica.

O funcionário olhou para Jeffrey e Randolph com ar de reprovação, depois voltou-se novamente para o júri e disse:

— Sr.a Presidente e membros do júri, escutai o vosso veredicto tal como é registado pelo tribunal. Os jurados sob juramento declaram que o réu é considerado culpado da acusação citada. São essas as suas palavras, Sr.s Presidente?

— Sim — respondeu a presidente.

— São essas as vossas palavras, membros do júri?

— Sim — responderam os jurados em uníssono.

O funcionário voltou novamente a atenção para os seus livros, enquanto ajuíza despedia os membros do júri. Agradeceu-lhes o tempo dispendido e a atenção dada ao caso, louvando o seu papel na manutenção de uma tradição de justiça bicentenária.

Jeffrey sentou-se pesadamente, sentindo-se atordoado e com frio. Randolph falava com ele, recordando-lhe que o juiz do caso de incúria médica nunca devia ter permitido que a questão do problema de droga fosse levada por diante.

—Além disso — disse Randolph, inclinando-se e olhando Jeffrey nos olhos —, todas as provas são circunstanciais. Não houve nenhuma prova conclusiva de que você tivesse tomado morfina. Nem uma!

Mas Jeffrey não estava a ouvi-lo. As ramificações do veredicto foram demasiado espantosas. Lá bem no fundo, compreendia-o agora, apesar de todos os seus receios nunca acreditara verdadeiramente que Pudesse ser condenado — pelo simples facto de que não era culpado. Nunca se vira envolvido no sistema legal e sempre confiara em que “a verdade havia de vir ao de cima” se alguma vez fosse injustamente acusado. Mas essa crença era falsa. Agora ia ser metido na prisão.

Prisão! Como que para fazer sobressair o seu destino, o oficial de deligências aproximou-se para o algemar. Jeffrey ficou a olhar, incrédulo. Fitou a superfície polida das algemas. Era como se o transfor massem num criminoso, um condenado, ainda mais que o veredicto do Júri.

Randolph murmurava palavras de encorajamento. Ajuíza conti

nuava a despedir o júri. Jeffrey não ouviu uma palavra. Sentiu a depressão cair sobre ele como uma manta pesada. Competindo com a depressão havia uma sensação de pânico perante a claustrofobia iminente. A ideia de ficar fechado num quarto minúsculo evocava-lhe imagens assustadoras de ser apanhado debaixo dos cobertores, em criança, pelo irmão mais velho, enchendo-se de medo de ficar asfixiado.

— Excelência — disse o delegado do ministério público logo que o júri saiu. Pôs-se de pé. —A comunidade desejaria que fosse pronunciada a pena.

— Recusado — respondeu ajuíza. — O tribunal marcará a data para o efeito, depois de uma investigação prévia pelo departamento de penas suspensas. Qual é a altura mais indicada, Sr. Lewis?

O funcionário folheou a agenda.

— O dia 7 de Julho parece bom.

— Será então o dia 7 de Julho — replicou ajuíza.

—A comunidade solicita respeitosamente que seja negada afiança ou então que esta suba significativamente — continuou o delegado do ministério público. — A posição da comunidade é que, no mínimo, a fiança deve ser aumentada de 50 000 dólares para 500 000 dólares.

— Muito bem, Sr. Delegado do Ministério Público — queira apresentar os seus argumentos.

O delegado saiu de detrás da mesa da acusação e foi colocar-se diante da juíza.

—Agravidade da queixa, combinada com o veredicto, exigem uma fiança significativa, mais de acordo com a severidade do crime pelo qual o réu é condenado. Espalharam-se também rumores de que o Dr. Jeffrey Rhodes preferiria fugir a enfrentar o castigo imposto pelo tribunal.

Ajuíza voltou-se para Randolph. Este pôs-se de pé.

—Excelência—começou —, gostaria de salientar perante o tribunal que o meu cliente tem laços significativos com a comunidade. Sempre se mostrou responsável no seu comportamento. Nada consta até esta data do seu registo criminal. Na realidade, ele tem sido um membro exemplar da sociedade, produtivo e respeitador da lei. Além disso, tem toda a intenção de cumprir a sentença. Na minha opinião 50000 dólares é uma fiança mais que suficiente: 500 000 seria uma importância excessiva.

— O seu cliente alguma vez exprimiu a intenção de evitar o cumprimento da pena?—perguntou ajuíza, olhando por cima dos óculos.

Randolph deitou um olhar rápido a Jeffrey. Jeffrey baixou os olhos para as mãos. Voltando-se de novo para ajuíza, Randolph replicou:

—Não creio que o meu cliente pensasse ou dissesse uma coisa dessas.

Ajuíza olhou alternadamente, sem pressas, para Randolph e para o delegado do ministério público. Por fim, disse:

— Fiança fixada em 500 000 dólares, em dinheiro. — Depois, olhando directamente para Jeffrey, acrescentou: — Dr. Rhodes, na sua qualidade de condenado não deverá ausentar-se do território de Massachusetts. Compreendeu bem?

Jeffrey abanou fracamente a cabeça num sinal de assentimento.

— Excelência...! —protestou Randolph.

Mas a juíza limitou-se a dar uma única pancada com o martelo e pôs-se de pé, dando nitidamente a sessão por encerrada.

— Todos de pé! — berrou o oficial de diligências.

Com as vestes em turbilhão, ajuíza Janice Maloney deixou o tribunal e desapareceu pela porta do seu gabinete. O burburinho das conversas espalhou-se pela sala.

— Por aqui, Dr. Rhodes — disse o oficial de diligências que se encontrava ao lado de Jeffrey, indicando-lhe com um gesto uma porta lateral. Jeffrey pôs-se de pé e avançou com passo incerto. Deitou um olhar rápido na direcção de Carol. Esta observava-o tristemente.

O pânico cresceu dentro de Jeffrey quando o levaram para uma sala de detenção mobilada com uma mesa simples e cadeiras de madeira de aspecto espartano. Sentou-se na cadeira para onde Randolph o encaminhou. Embora fazendo todos os esforços para manter a compostura, não conseguia evitar que as mãos lhe tremessem. Faltava-lhe o ar.

Randolph fez todos os possíveis para o acalmar. Sentia-se indignado com o veredicto e optimista em relação ao recurso. Nesse momento Carol foi introduzida na salinha estreita. Randolph deu-lhe uma Pancada nas costas, dizendo:

— Fale com ele. Eu vou chamar o abonador da fiança.

Carol fez que sim com a cabeça e baixou os olhos para Jeffrey.

— Lamento muito — disse, quando Randolph saiu da sala.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Tinha sido generoso da parte dela ficar do seu lado. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Mordeu o lábio para não chorar.

— E tão injusto — disse Carol, sentando-se ao lado dele.

—Eu não posso ir para a prisão —foi a única coisa que Jeffrey conseguiu dizer. Depois sacudiu a cabeça. —Ainda nem consigo acreditar que tudo isto está a acontecer na realidade. , Randolph vai apresentar recurso—disse Carol. —Ainda não está tudo terminado.

— Recurso — disse Jeffrey com desprezo. —Vai ser o mesmo. Já perdi dois casos...

— Não é a mesma coisa — disse Carol. — O processo vai ser analisado apenas por juizes experientes, não por um júri emotivo.

Randolph voltou do telefone para dizer que Michael Mosconi, o abonador da fiança, vinha a caminho. Randolph e Carol lançaram-se numa conversa animada sobre o recurso. Jeffrey pôs os cotovelos em cima da mesa e, apesar das algemas, descansou a cabeça nas mãos. Estava a pensar na sua licença de médico, perguntando a si mesmo o que lhe aconteceria depois do veredicto. Infelizmente, tinha uma ideia bastante nítida.

Michael Mosconi chegou pouco depois, de pasta na mão. O escritório dele ficava a poucos passos do tribunal, no edifício encurvado situado em frente do Centro Governamental. Não era alto, mas tinha uma cabeça grande e era quase careca. O cabelo que lhe restava formava um crescente escuro que rodeava a parte de trás da cabeça, de orelha a orelha. Algumas madeixas de cabelo escuro estavam penteadas sobre o alto da cabeça careca, numa tentativa vã para lhe dar um mínimo de cobertura. Tinha os olhos intensamente escuros, parecendo ser todos pupila. Vestia de uma forma estranha, com um fato de polyester azul-escuro, camisa negra e gravata branca.

Mosconi pousou a pasta em cima da mesa, abriu-lhe os fechos e retirou de lá um dossier com o nome de Jeffrey numa etiqueta.

— Okay—disse ele, sentando-se à mesa e abrindo o dossier. — De quanto foi o aumento da fiança?—Já tinha entrado com a fiança inicial de 50 000 dólares, recebendo 5000 dólares pelos seus serviços.

— São 450 000 dólares — disse Randolph.

Mosconi assobiou por entre dentes, parando um momento de expor os papéis.

—Mas quem pensam eles que têm aqui? O Inimigo Público Número Um?—Nem Randolph nem Jeffrey acharam que lhe deviam qualquer resposta.

A atenção de Mosconi centrou-se novamente nos papéis, indiferente à falta de resposta por parte do cliente. Quando fora atribuída a fiança inicial, ele dera a garantia de 50 000 dólares mediante o direito de retenção de igual soma sobre a casa de Jeffrey e Carol em Marblehead. A casa tinha sido oficialmente avaliada em 800 000 dólares e tinha uma hipoteca de pouco mais de 300 000 dólares.

— Bom, temos de concordar que não estamos mal — comentou. —Posso cobrir a fiança com uma garantia adicional de 450 000 dólares sobre o vosso pequeno castelo de Marblehead. Que é que acham?

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Carol encolheu os ombros. Quando começou a preencher os papéis, Mosconi acrescentou:

— Claro que ainda temos a questãozinha dos honorários, que neste caso serão de 45 000 dólares. Pretendo recebê-los em dinheiro.

— Eu não tenho esse dinheiro todo — replicou Jeffrey. Mosconi parou de preencher o impresso.

—Mas tenho a certeza de que consegue arranjá-lo—atalhou Randolph.

— Talvez — disse Jeffrey. Começava a sentir-se deprimido.

—É sim ou não—prosseguiu Mosconi. —Não faço isto para me distrair.

— Eu arranjo o dinheiro — respondeu Jeffrey.

—Normalmente recebo adiantado—acrescentou Mosconi.—Mas atendendo a que o senhor é médico... —Riu-se. —Digamos que estou habituado a uma clientela um bocadinho diferente. No seu caso, estou disposto a aceitar um cheque. Mas só se conseguir arranjar o dinheiro e tê-lo depositado na sua conta, digamos, amanhã por esta hora. Acha possível?

— Não sei — respondeu Jeffrey.

— Então, se não sabe, vai ter de ficar detido até arranjar o dinheiro — concluiu Mosconi.

—Eu arranjo-o—disse Jeffrey. A ideia de passar nem que fossem duas ou três noites na prisão era-lhe intolerável.

— Tem algum cheque consigo? — perguntou Mosconi. Jeffrey fez que sim com a cabeça.

Mosconi começou de novo a preencher o impresso.

— Espero que compreenda, Doutor — disse —, que estou a fazer-lhe um grande favor em aceitar o cheque. Aminha companhia não ia ver isso com bons olhos, portanto é melhor que fique só aqui entre nós. Tem a certeza de que consegue pôr o dinheiro na conta dentro de vinte e quatro horas?

— Vou tratar disso esta tarde — replicou Jeffrey.

—Óptimo—concluiu Mosconi. Empurrou os papéis na direcção de Jeffrey.—Agora, se assinarem os dois esta nota, vou já à secção liquidar o que falta.

Jeffrey assinou sem ler. Carol leu tudo cuidadosamente e depois assinou. Carol tirou o livro de cheques de Jeffrey da algibeira do casaco dele e segurou-o enquanto Jeffrey preenchia um cheque de 45 000 dólares. Mosconi recebeu o cheque e meteu-o na pasta. Depois levantou-se e dirigiu-se para a porta com um andar petulante.

— Eu já volto — disse com um sorriso astuto.

— Indivíduo encantador—disse Jeffrey.—Por que é que ele se háde vestir daquela maneira?

— Esse homem está a fazer-lhe um favor—lembrou Randolph. — mas também é verdade que você não é propriamente o tipo de indivído com quem ele está habituado a lidar. Antes de ele voltar, acho que devíamos falar da investigação que vai preceder a sentença e daquilo que comporta.

— Quando é que damos entrada do recurso? — perguntou Jeffrey,

— Imediatamente — replicou Randolph.

— E eu continuo sob fiança até ser ouvido o recurso?

— É o mais provável — disse Randolph, evasivamente.

— Ao menos isso — admitiu Jeffrey.

Randolph explicou-lhe depois como era feita a investigação antes da sentença e aquilo que Jeffrey podia esperar das formalidades relativas à pena. Como não queria deixar Jeffrey mais desmoralizado do que ele já estava, teve o cuidado de fazer ressaltar os aspectos mais prometedores do recurso. Mas Jeffrey continuava em baixo.

— Devo admitir que já não tenho muita fé neste sistema legal — disse Jeffrey.

— Mas tens de ter um pensamento positivo — encorajou Carol.

Jeffrey olhou para a mulher e começou a sentir até que ponto estava zangado. O facto de Carol lhe dizer, naquelas circunstâncias, que ele tinha de ter um pensamento positivo era francamente irritante. De repente, Jeffrey compreendeu que estava irritado com o sistema, irritado com o destino, irritado com Carol, até mesmo irritado com o seu próprio advogado. Pelo menos a irritação era um sentimento mais salutar que a depressão.

— Está tudo em ordem — disse Mosconi transpondo a porta. Acenava-lhes com um documento de aspecto oficial que trazia na mão. — Não se importa? — disse, fazendo um gesto na direcção do oficial de diligências para que tirasse as algemas a Jeffrey.

Este esfregou os punhos, aliviado, quando ficaram livres. Aquilo que mais desejava era sair do tribunal. Pôs-se de pé.

— Tenho a certeza de que não é preciso lembrar-lhe os 45 000 dólares — acrescentou Mosconi. — Não se esqueça de que estou a arriscar o cabedal por si.

— Estou-lhe agradecido — disse Jeffrey, tentando pôr na voz um tom de gratidão.

Saíram juntos da sala de detenção, embora Mosconi se afastasse apressadamente na direcção oposta quando chegaram ao corredor.

Jeffrey nunca apreciara de forma tão consciente o ar puro, aquele ar a cheirar a oceano, como no momento em que saiu a porta do tribunal e pisou a praça pública, pavimentada a tijolo. Era uma tarde luminosa, já a meio da Primavera, com pequeninas nuvens brancas correndo como farrapos de algodão num céu azul e distante. O sol estava quente mas o ar era vivo. Era espantoso como a ameaça do emprisionamento tinha aguçado as percepções de Jeffrey.

Randolph despediu-se no meio da vasta praça, em frente da Câmara Municipal de Boston com o seu modernismo ostensivo.

—Lamento muito que as coisas tenham corrido assim. Fiz o melhor que pude.

— Eu sei — replicou Jeffrey. — E também sei que fui um cliente horrível e que lhe tornei as coisas extremamente difíceis.

—Tudo se há-de arranjar no recurso. Falo-lhe de manhã. Adeus, Carol.

Carol acenou com a mão, depois ela e Jeffrey ficaram a ver Randolph afastar-se em passos largos na direcção de State Street, onde ele e mais alguns colegas ocupavam todo um piso de uma das mais recentes torres de escritórios de Boston.

—Não sei se hei-de gostar dele ou odiá-lo—disse Jeffrey.—Nem sequer sei se ele fez um bom trabalho ou não, especialmente depois de ter sido condenado.

— Eu pessoalmente não acho que ele tenha sido suficientemente convincente — disse Carol. E encaminhou-se para a garagem de estacionamento.

—Não vais voltar para o trabalho?—perguntou Jeffrey. Carol trabalhava numa firma de investimentos situada na zona financeira. Aquele era o sentido oposto.

— Tirei o dia — respondeu ela por cima do ombro. Parou quando viu que Jeffrey não a seguia. — Não sabia quanto tempo o veredicto ia demorar. Vem, podes dar-me boleia até ao meu carro.

Jeffrey foi juntar-se a ela e puseram-se a caminhar juntos, contornando a Câmara Municipal.

—Onde é que vais arranjar 45 000 dólares em vinte e quatro horas? —perguntou Carol, atirando a cabeça para trás num gesto característico. Tinha os cabelos louros, finos e lisos, arranjados de uma forma Que fazia com que lhe caíssem constantemente para a cara.

Jeffrey sentiu a irritação vir novamente ao de cima. As finanças tinham sido um dos pontos nevrálgicos do casamento de ambos. Carol gostava de gastar dinheiro, Jeffrey gostava de economizar. Quando se tinham casado, o ordenado de Jeffrey era bastante maior e era portanto o ordenado de Jeffrey que Carol se encarregava de gastar. Quando o salário de Carol tinha começado a subir, passara a ser totalmente canalizado para a carteira de investimentos dela, enquanto o de Jeffrey continuava a ser utilizado para pagar todas as despesas. O raciocínio de Carol era que, se ela não trabalhasse, também teria de usar o dinheiro de Jeffrey para as despesas.

Jeffrey não respondeu logo à pergunta de Carol. Compreendia que naquelas circunstâncias a sua irritação não estava dirigida para o alvo certo. A verdade é que não estava zangado com ela. Todas as suas velhas disputas financeiras eram águas passadas e a pergunta sobre onde arranjar 45000 dólares em dinheiro era uma preocupação legítima. O que o irritava era o sistema legal e os advogados que estavam à frente dele. Como é que podiam advogados como o delegado do ministério público ou o advogado de acusação viver com o espírito tranquilo quando diziam tantas mentiras? Pelos depoimentos, Jeffrey sabia que eles não acreditavam nos seus próprios esquemas de acusação. Cada um dos julgamentos de Jeffrey não passara de um processo amoral no qual os advogados em oposição deixavam que os fins justificassem meios desonestos.

Jeffrey sentou-se ao volante do carro. Respirou fundo para controlar a irritação e depois voltou-se para Carol:

— Tenciono aumentar a hipoteca sobre a casa de Marblehead. Aliás, é melhor passarmos pelo banco a caminho de casa.

— Com o compromisso que acabámos de assinar, não creio que o banco vá aumentar a hipoteca — disse Carol. Ela era uma autoridade no assunto, tratava-se de uma operação da sua especialidade.

— É por isso que eu quero lá ir directamente — replicou Jeffrey. Ligou o motor e saiu da garagem. —Ainda ninguém sabe. O papel deve levar uns dois ou três dias a chegar aos computadores deles.

— Achas que deves fazer isso?

—Tens alguma outra sugestão para eu arranjar 45 000 dólares até amanhã à tarde? — perguntou Jeffrey.

— Parece-me que não.

Jeffrey sabia que ela tinha essa importância na sua carteira de investimentos, mas preferia tudo a ter de lhe pedir.

— Vemo-nos no banco — disse Carol ao sair na parte da frente da garagem onde deixara o carro estacionado.

Quando Jeffrey se dirigia para norte pela Tobin Bridge, apoderou-se dele um cansaço extremo. Parecia-lhe que tinha de fazer um esforço consciente até mesmo para respirar. Começou a perguntar a si mesmo por que razão se incomodava tanto com aquela trapalhada. Ele não era suficientemente importante para isso. Especialmente agora que tinha a certeza de perder a licença de exercício da medicina. Para além da medicina, aliás, para além da anestesia, não encontrava mais nada que estivesse habilitado a fazer. Era um condenado, 42 anos perdidos, um zé-ninguém de meia-idade desempregado.

Quando Jeffrey chegou ao banco, estacionou o carro mas não saiu lá de dentro. Deixou-se cair para a frente e apoiou a cabeça no volante. Talvez devesse esquecer tudo, ir para casa e dormir.

Quando a porta do outro lado se abriu, Jeffrey nem se deu ao trabalho de levantar os olhos.

— Sentes-te bem? — perguntou Carol.

— Um bocado deprimido — replicou Jeffrey.

—Bom, é compreensível — continuou Carol. —Mas antes de ficares paralisado, vamos lá arrumar essa questão do banco.

— És tão compreensiva — disse Jeffrey irritado.

—Um de nós tem de ter espírito prático — disse Carol.—E não me apetece ver-te ir para a cadeia. Mas se não consegues ter esse dinheiro na conta é onde vais parar.

—Tenho um terrível pressentimento de que é mesmo onde eu vou parar, faça o que fizer.—Com um esforço imenso, saiu do carro. Olhou para Carol por cima do tejadilho. — O que eu acho engraçado—acrescentou — é que eu vou para a cadeia e tu vais para L. A., mas não sei quem é que fica pior.

— Tem muita graça — disse Carol, aliviada por ele estar a tentar gracejar, embora não lhe tivesse achado piada nenhuma.

Dudley Farnsworth era o gerente da agência do banco de Jeffrey em Marblehead. Anos antes, ele era funcionário da filial de Boston que tratara da primeira compra imobiliária de Jeffrey, quando era ainda anestesista estagiário. Catorze anos antes, Jeffrey tinha comprado um apartamento de três assoalhadas e Dudley encarregara-se do financiamento.

Dudley recebeu-os logo que pôde, conduziu-os ao seu gabinete e fê-los sentar em cadeiras de couro diante da secretária.

—Em que posso ser-lhes útil?—perguntou amavelmente. Era um homem da idade de Jeffrey, mas parecia mais velho com os seus cabelos prateados.

— Gostaríamos de aumentar a hipoteca sobre a nossa casa — disse Jeffrey.

— Tenho a certeza de que isso não vai constituir problema — disse Dudley. Dirigiu-se a um ficheiro de gavetas e tirou de lá um dossier. — Quanto é que estavam a pensar?

— Quarenta e cinco mil dólares — disse Jeffrey. Dudley sentou-se e abriu o dossier.

— Não há qualquer problema — replicou, olhando para os números. — Podem mesmo pedir mais se quiserem.

— Quarenta e cinco mil chegam — disse Jeffrey.—Mas preciso do dinheiro amanhã.

— Ai! — exclamou Dudley. — Isso é que vai ser difícil.

—Talvez possa arranjar um empréstimo sobre o excedente da hipoteca — sugeriu Carol. — Quando a hipoteca for formalizada pode Usar esse dinheiro para pagar o empréstimo.

Dudley acenou com a cabeça, arqueando as sobrancelhas. . —É uma ideia. Mas acho que o que eu vou fazer é preencher já os impressos para a hipoteca e depois logo vejo o que posso fazer. Se a hipoteca demorar, sigo a sugestão de Carol. Pode passar por cá amanhã de manhã?

—Se conseguir levantar-me da cama—disse Jeffrey com um suspiro.

Dudley deitou um olhar rápido a Jeffrey. Pressentia que havia qualquer coisa que não estava bem, mas por outro lado era demasiado cavalheiro para perguntar.

Concluídas as formalidades com o banco, Jeffrey e Carol dirigiram-se para os respectivos carros.

— Acho que vou comprar qualquer coisa para o jantar — sugeriu Carol. — Que é que te apetece? Que tal o teu prato preferido: costeletas de vitela grelhadas?

— Não tenho fome — replicou Jeffrey.

— Talvez não tenhas fome agora, mas mais tarde tens.

— Duvido — disse Jeffrey.

— Eu conheço-te e sei que vais ter fome. Eu vou comprar comida para logo à noite. Que é que há-de ser?

— Compra o que quiseres — disse Jeffrey. E meteu-se no carro. — A sentir-me como me sinto, não creio que me vá apetecer comer.

Quando Jeffrey chegou a casa, meteu o carro na garagem e foi directamente para o quarto. Havia um ano que ele e Carol ocupavam quartos separados. Tinha sido ideia de Carol, mas Jeffrey, com grande surpresa para ele próprio, concordara imediatamente. Esse tinha sido um dos primeiros sinais nítidos de que o seu casamento não estava sólido.

Jeffrey fechou a porta atrás dele, dando a volta à chave. Percorreu com o olhar os livros e revistas cuidadosamente arrumados nas prateleiras e agrupados conforme os tamanhos. Não ia precisar de nada daquilo por uns tempos. Aproximou-se da estante, tirou de lá a Epdurai Analgesia de Bromage e atirou o livro de encontro à parede quee deixou uma pequena marca no estuque e em seguida caiu no chão. O gesto não o fez sentir-se nada melhor. Pelo contrário, ficou com um sentimento de culpa e o esforço deixou-o ainda mais exausto. Apanhou o livro, alisou-lhe algumas páginas torcidas e depois repô-lo no sítio que lhe era destinado. Por uma questão de hábito, alinhou a lombada com os outros volumes.

Sentando-se pesadamente no cadeirão de orelhas ao pé da janela, Jeffrey pôs-se a olhar, apático, para o abrunheiro cujas flores primaveris, já meio murchas, estavam longe da sua plenitude. Apoderou-se dele uma tristeza profunda. Sabia que tinha de se libertar daquela autocomiseração se queria chegar a algum lado. Ouviu o carro de Carol parar e em seguida o bater da porta. Minutos depois ouviu uma pancada leve na porta. Ignorou-a, pensando que ele ia convencer-se que tinha adormecido. Queria ficar sozinho.

Jeffrey lutava com um sentimento de culpa cada vez mais enraizado. Talvez essa fosse a parte pior da condenação. A diminuição da sua autoconfiança fez surgir de novo a preocupação de ter errado ao ministrar a anestesia naquele dia fatal. Talvez tivesse usado uma concentração errada. Talvez a morte de Patty Owen fosse culpa sua.

As horas arrastavam-se, enquanto o espírito preocupado de Jeffrey batalhava com um sentimento crescente de inutilidade. Tudo aquilo que alguma vez fizera lhe parecia agora estúpido e sem sentido. Falhara em tudo, desde o seu trabalho como anestesista ao seu papel de marido. Não conseguia encontrar uma única coisa em que tivesse sido bem sucedido. Falhara até na sua participação na equipa de basquete-bol nos primeiros anos do liceu.

Quando o Sol se pôs a ocidente, tocando o horizonte, Jeffrey teve a sensação de estar a presenciar o caso da sua vida. Veio-lhe à ideia que poucas pessoas tinham consciência do efeito tremendo que uma acusação de incúria médica exercia sobre a vida emocional e profissional de um médico em exercício, especialmente quando a incúria não existia. Mesmo que Jeffrey tivesse ganho a questão, sabia que a sua vida ia ficar mudada para sempre. O facto de ter perdido era ainda mais devastador. E isso não tinha nada a ver com dinheiro.

Jeffrey ficou a ver o céu mudar dos seus vermelhos quentes para um púrpura e um prata mais frios, enquanto a luz ia diminuindo e o dia expirava. Ali sentado, no meio da melancolia crescente do crepúsculo, teve uma ideia repentina. Não era propriamente verdade que estivesse totalmente impotente. Ainda havia uma coisa que ele podia fazer para modificar o seu destino. Sentindo pela primeira vez nas últimas semanas que os seus actos tinham uma finalidade, Jeffrey levantou-se da cadeira de orelhas e dirigiu-se para o armário. Retirou de lá o seu volumoso saco preto de médico e pô-lo em cima da secretária.

Retirou do saco dois frascos pequenos de lactato de Ringer sob a forma de líquido endovenoso, bem como dois sistemas de venoclise e uma Pequena agulha fina. Depois pegou em dois frascos, um com succinilcolina, o outro com morfina. Servindo-se de uma seringa, recolheu 75 de succinilcolina e introduziu-a num dos frascos de lactato. Depois recolheu 75 mg de morfina, uma dose violenta.

Uma das vantagens de ser anestesista era que Jeffrey conhecia a maneira mais eficiente de cometer suicídio. Outros médicos não a Conheciam, embora tivessem mais possibilidades de ser bem sucedidos nas suas tentativas do que o público em geral. Alguns disparavam contra si próprios, um método pouco limpo que, por estranho que parecesse, nem sempre resultava. Outros tomavam doses excessivas, outro método que muitas vezes não dava o resultado desejado. Em muitos casos os suicidas potenciais eram apanhados a tempo de lhes fazerem uma lavagem ao estômago. Outras vezes as drogas injectadas bastavam para provocar o estado de coma mas não a morte. Jeffrey estremeceu ao pensar nas consequências acidentais.

Enquanto preparava tudo sentiu o seu estado depressivo aliviar-se um pouco. Era estimulante ter uma finalidade. Retirou o quadro que estava pendurado sobre a cabeceira da cama e usou a escrápula para pendurar os frascos. Depois sentou-se à beira da cama e começou a infusão endovenosa nas costas da mão esquerda, usando o frasco que continha a solução de lactato de Ringer. Ligou o frasco que continha a succinilcolina ao outro, ficando apenas a delgada válvula azul a separá-lo do seu conteúdo letal.

Tendo o cuidado de não deslocar a agulha, Jeffrey deitou-se de costas em cima da cama. A sua intenção era injectar a enorme dose de morfina e em seguida abrir a válvula à solução contendo a succinilcolina. A morfina enviá-lo-ia para o país do esquecimento muito antes de a concentração de succinilcolina lhe paralisar o aparelho respiratório. Sem um ventilador não tardaria a morrer. Tão simples como isso.

Suavemente, Jeffrey ligou a agulha da seringa contendo a morfina à secção do tubo que ia directamente para a mão dele. Precisamente quando estava a começar a injectar o narcótico, ouviu uma pancada suave na porta.

Jeffrey revirou os olhos. Que altura para Carol se vir intrometer. Interrompeu a injecção, mas não respondeu ao batimento, na esperança de que ela se fosse embora julgando-o adormecido. Em vez disso, ela bateu de novo, com mais força, e depois com mais força ainda.

— Jeffrey! — chamou. — Jeffrey! Já fiz o jantar.

Houve um breve silêncio que levou Jeffrey a pensar que ela tivesse desistido. Mas daí a pouco ouviu rodar o puxador da porta, enquanto esta era sacudida.

— Jeffrey... estás bem?

Jeffrey encheu o peito de ar. Sabia que tinha de dizer qualquer coisa, senão ela ia ficar preocupada e podia forçar a porta. A última coisa que queria era que Carol irrompesse pelo quarto e o encontrasse a fazer a endovenosa.

— Estou óptimo — disse por fim.

— Então por que é que não me respondeste? — inquiriu Carol.

— Estava a dormir.

— Por que é que tens a porta fechada à chave?

— Julgo que era por não querer ser incomodado — replicou com ironia.

— Já fiz o jantar — disse Carol.

— É muito amável da tua parte, mas continuo sem fome.

— Fiz duas costeletas de vitela, as tuas preferidas. Acho que devias comer.

—Porfavor, Carol—disse Jeffrey, exasperado.—Não tenho fome.

—Então vem comer para me fazeres a vontade. É um favor que me fazes.

Furioso, Jeffrey pôs a seringa com a morfina em cima da mesa-decabeceira e tirou a agulha. Depois dirigiu-se para a porta, que abriu de repelão, mas não completamente, para Carol não poder ver lá para dentro.

—Ouve! — atirou-lhe. —Já há bocado te disse que não tinha fome e estou a dizer-te agora que continuo sem fome. Não quero comer e não gosto que estejas a fazer-me sentir culpado por isso, entendes?

— Jeffrey, vem, eu não acho que devas estar aí sozinho. Olha, eu dei-me ao trabalho de ir comprar comida e de a preparar por tua causa. O menos que podes fazer é vir prová-la.

Jeffrey compreendeu que não tinha maneira de se ver livre dela. Quando tomava uma resolução era o tipo de pessoa que não se deixava dissuadir facilmente.

— Está bem — disse contrariado —, está bem.

— Que é que tens na mão? — perguntou Carol, notando-lhe uma gota de sangue nas costas da mão.

—Nada—disse Jeffrey.—Absolutamente nada. Deitou uma olhadela às costas da mão. O sangue brotava do sítio onde espetara a agulha. Procurou freneticamente uma explicação.

— Mas estás a sangrar.

— Cortei-me numa folha de papel. — Nunca tivera muito jeito Para mentir. Depois, com uma ironia que só ele podia saborear, acrescentou. — Eu sobrevivo. Podes crer. Deixa estar que eu sobrevivo. Olha — disse. — Desço daqui a um minuto.

— Prometes? — disse Carol.

— Prometo.

Depois de Carol se ter ido embora e com a porta novamente fechada à chave, Jeffrey retirou os frascos de quarto de litro da suspensão . arrumou-os no fundo do armário, dentro do saco de couro. Deitou os invólucros no cesto dos papéis da casa de banho.

Carol tinha o sentido da oportunidade, pensou tristemente. Só quando já estava a arrumar todo o seu equipamento médico é que se

Percebeu até que ponto estivera perto. Disse para consigo próprio que

Não devia ceder ao desespero, pelo menos até que todas as vias legais estivessem esgotadas. Antes do rumo recentemente tomado pelos acontecimentos, Jeffrey nunca pensara a sério no suicídio. Sentia-se honestamente perplexo com os suicídios de que tinha conhecimento, embora intelectualmente conseguisse compreender as profundidades de desespero que poderiam levar a isso.

Por estranho que parecesse, ou talvez não fosse assim tão estranho, os únicos suicídios de que tivera conhecimento eram os de outros médicos que tinham sido empurrados para uma tal decisão por motivos não muito diferentes dos seus. Lembrava-se de um amigo em especial: Chris Everson. Não se recordava exactamente quando ele morrera, mas havia uns dois anos.

Chris era um colega anestesista. Anos antes, ele e Jeffrey tinham estagiado juntos. Chris ter-se-ia lembrado dos tempos em que os estagiários mais despachados tratavam os sintomas gripais com Lactato de Ringer. Aquilo que lhe tornou de repente tão dolorosa a recordação de Chris foi o ter-se apercebido de que ele fora condenado por incúria médica porque um dos seus doentes tivera uma reacção violentíssima a um anestésico local, durante uma anestesia epidural.

Jeffrey fechou os olhos e tentou recordar os pormenores do caso. Tanto quanto conseguia lembrar-se, o doente de Chris tivera uma paragem cardíaca logo que Chris injectara a dose de teste de 2 ou 3. Embora tivessem conseguido reanimar-lhe o coração, o doente acabara por ficar quadriplégico e num estado semicomatoso. Uma semana depois desse acontecimento, Chris tinha sido processado, juntamente com o Valley Hospital e todas as outras entidades, mesmo as mais remotamente associadas com o episódio. Mais uma vez a estratégia das “algibeiras recheadas”.

Mas Chris não chegara a ir a tribunal. Cometera suicídio mesmo antes de terminado o período inicial do processo. E embora o processo de anestesia tivesse sido caracterizado como impecável, a decisão final foi favorável ao queixoso. Na altura, a sentença tinha sido a mais pesada para um caso de incúria médica que jamais se conhecera na história de Massachusetts. Mas nos meses que se seguiram, Jeffrey tinha tido conhecimento de, pelo menos, duas sentenças que tinham excedido aquela.

Jeffrey recordava nitidamente a sua própria reacção ao saber do suicídio de Chris. Tinha-se recusado a acreditar. Nessa altura, antes do envolvimento actual de Jeffrey com o sistema legal, ele não fazia a menor ideia do que teria empurrado Chris para uma coisa tão terrível. Chris tinha fama de ser um excelente anestesista, um médico de médicos, um dos melhores. Casara havia pouco com uma formosa infermeira do Bloco Operatório. Parecia que tudo corria a seu favor. Foi nessa altura, veio o pesadelo...

Um bater suave trouxe Jeffrey de novo ao presente. Carol estava Outra vez à porta.

— Jeffrey! — chamou. — É melhor desceres antes que arrefeça.

— Vou a caminho.

Agora que ele já conhecia bem de mais aquilo que Chris apenas começara a passar, Jeffrey desejaria ter estado em contacto com o amigo nessa altura. Fraca amizade, era aquilo que tinha demonstrado. Mesmo depois de Chris ter posto fim à vida, a única coisa que fizera fora estar presente no funeral. Nem sequer entrara em contacto com Kelly, a mulher de Chris, embora durante o funeral tivesse prometido a si mesmo que o faria.

Um tal comportamento não tinha nada a ver com Jeffrey e ele perguntava a si próprio porque se teria mostrado tão insensível. A única desculpa que lhe ocorria era uma necessidade de suprimir o episódio. O suicídio de um colega com quem Jeffrey se podia tão facilmente identificar era um acontecimento fundamentalmente perturbador. Talvez que a hipótese de o encarar de frente tivesse sido um desafio demasiado violento para ele. Era o tipo de análise pessoal que Jeffrey e os médicos em geral tinham sido ensinados a evitar, usando o rótulo de “distanciamento clínico”.

“Que tremendo desperdício”, pensou ao lembrar-se de Chris tal como o tinha visto pela última vez antes da tragédia. E se Carol não o tivesse interrompido, não era bem possível que outros viessem a ter os mesmos pensamentos a respeito dele?

Não, pensou Jeffrey com veemência, o suicídio não era uma opção. De qualquer forma não o era naquele momento. Jeffrey detestava passar por simplório, mas enquanto havia vida havia esperança. E que é que tinha acontecido a seguir ao suicídio de Chris? Depois de ele morrer não havia ninguém para defender ou limpar o seu nome. Apesar de todo o desespero e da depressão que se avolumava, Jeffrey ainda sentia raiva perante um sistema e um processo que conseguira condená-lo quando ele, com toda a honestidade, não tinha feito nada de mal. Como ia ele poder descansar enquanto não fizesse tudo o que estava ao seu alcance para limpar o próprio nome?

Jeffrey sentia-se irado só de pensar no caso. Para todos os advogados envolvidos no caso, até para o próprio Randolph, tudo aquilo era Parte do seu trabalho, como de costume, mas não para Jeffrey. Era a sua vida que estava em causa. A sua carreira. Tudo. Para maior ironia, no dia em que ocorrera a tragédia de Patty Owen, Jeffrey fizera todos os esforços para lhe dar a melhor assistência possível. Apenas tomara o soro endovenoso e o exilir paregórico para conseguir fazer o trabalho para que fora treinado. Tinha sido motivado por um sentido de dedicação e esta era a paga que recebia.

Se alguma vez Jeffrey conseguisse voltar à prática da medicina receava os efeitos a longo prazo que aquele caso iria ter em quaisquer decisões clínicas que pudesse vir a ter que tomar. Que espécie de assistência podiam as pessoas esperar de médicos que eram forçados a trabalhar naquele ambiente ameaçador, tendo que controlar os seus melhores instintos e pensar duas vezes cada decisão? Como é que se desenvolvera um tal sistema?, perguntou Jeffrey a si próprio. A verdade é que não se podia dizer que estivessem a eliminar uns quantos “maus” médicos, pois, por ironia, esses raramente eram processados, O que estava a acontecer era que muitos bons médicos estavam a ser destruídos.

Enquanto se lavava para descer à cozinha, o espírito de Jeffrey trouxe à superfície uma outra recordação que ele inconscientemente suprimira. Um dos melhores e mais dedicados internos que ele alguma vez conhecera tinha-se suicidado havia cinco anos, na mesma noite em que recebera uma citação do tribunal por incúria médica. Tinha dado um tiro na boca com uma espingarda de caça. Nem esperara que começasse a instrução do processo e muito menos o julgamento. Na altura, Jeffrey tinha ficado extremamente baralhado, pois todos sabiam que a acusação não tinha fundamento. A verdade é que o médico, para maior ironia, tinha salvo a vida do homem. Jeffrey já podia agora fazer uma ideia das razões do desespero que ele sentira.

Terminadas as lavagens, Jeffrey voltou ao quarto de cama e vestiu calças e camisa lavadas. Abrindo a porta, sentiu o cheiro da comida que Carol preparara. Continuava sem fome, mas ia fazer um esforço. Parando ao cimo das escadas, prometeu a si mesmo lutar contra os pensamentos depressivos que não deixariam de o atormentar enquanto o episódio em curso seguia os seus trâmites. Com aquela decisão bem presente no espírito, dirigiu-se para a cozinha.

 

                             3.a feira, 16 de Maio de 1989, 9:12

Jeffrey acordou sobressaltado e ficou surpreendido com as horas. Primeiro tinha acordado por volta das cinco da manhã, espantado por dar consigo sentado no cadeirão de orelhas, ao pé da janela. Com as articulações um tanto rígidas, lá conseguira despir-se e meter-se na cama, pensando que não iria conseguir adormecer de novo. Mas era evidente que conseguira.

Tomou um duche rápido. Ao sair do quarto, procurou Carol. Tendo recuperado, até certo ponto, da depressão profunda da véspera, sentia-se desejoso de um pouco de contacto humano e de compreensão. Esperava que Carol não se tivesse ido embora para o trabalho sem falar com ele. Queria pedir-lhe desculpa pelo pouco apreço que mostrara em relação aos seus esforços da noite anterior. Compreendia agora como tinha sido bom que ela o tivesse interrompido e conseguido fazê-lo irritar. Sem o saber, tinha-o impedido de cometer suicídio. Pela primeira vez na vida, um acesso de irritação tinha tido um efeito positivo.

Mas Carol já tinha saído há muito. Havia um bilhete encostado à caixa do cereal do pequeno-almoço, em cima da mesa da cozinha. O bilhete dizia que não tinha querido incomodá-lo pois estava certa de que ele precisava de descansar. Tivera de sair cedo para o trabalho e esperava que ele compreendesse.

Jeffrey encheu uma taça de cereal e foi buscar o leite ao frigorífico. Invejava o emprego de Carol. Quem lhe dera ter um trabalho para onde pudesse ir. Quanto mais não fosse para manter o espírito ocupado. Gostaria de poder ser útil nalguma coisa. Seria bom para o seu amor próprio. Nunca se apercebera até que ponto o trabalho lhe definia a identidade.

De regresso ao quarto, desembaraçou-se do sistema de venoclise

enibrulhando-o em jornais velhos e levando-o assim embrulhado

Para os recipientes de lixo que estavam na garagem. Não queria que alguém descobrisse nada daquilo. Dava-lhe uma sensação estranha ao mexer naquele equipamento. Deixava-o tremendamente embaraçado o facto de ter estado consciente e voluntariamente tão perto da morte.

A ideia do suicídio já lhe ocorrera no passado, mas sempre num contexto metafórico e sempre mais como uma fantasia de retribuição no intuito de atingir alguém que na sua opinião lhe causara danos emocionais, como por exemplo na altura em que a sua namorada do oitavo ano resolvera transferir as afeições para o melhor amigo de Jeffrey. Mas na noite anterior tinha sido diferente, e pensar que estivera à distância de um cabelo de pôr a ideia em prática fazia-lhe tremer as pernas.

Depois de sair do quarto, Jeffrey pôs-se a pensar no efeito que o seu suicídio teria nos amigos e na família. Provavelmente seria um alívio para Carol. Já não precisava de ir por diante com o divórcio. Perguntava a si mesmo se alguém teria sentido a sua falta. Provavelmente ninguém...

—Pelo amor de Deus—exclamou Jeffrey, apercebendo-se do ridículo de tais pensamentos e lembrando-se da sua promessa de resistir à depressão. Seria que ia passar o resto da vida a alimentar-se espiritualmente com a sua falta de carinho por si próprio?

Mas a questão do suicídio era difícil de afastar do pensamento. Lembrou-se novamente de Chris Everson. Seria que o suicídio de Chris tinha sido o produto de uma depressão aguda que se abatera sobre ele como uma tempestade, à semelhança do que acontecera consigo próprio na noite anterior? Ou teria sido uma coisa que ele planeara durante algum tempo? De qualquer forma, a morte de Chris fora uma perda terrível para todos — a família, o público e mesmo para a classe médica.

Jeffrey deteve-se a caminho do quarto e ficou a olhar, sem ver, através da janela da sala de estar. A sua situação não representava menor perda. Do ponto de vista da produtividade, a perda da licença médica e o encarceramento não eram uma perda menor do que se tivesse realmente cometido suicídio.

— Rai’s partam! — berrou apanhando uma almofada de cima do sofá e batendo-lhe repetidas vezes com o punho fechado.—Rai’s partam! Rai’s partam!

Jeffrey cansou-se rapidamente e repôs a almofada no lugar. Depois sentou-se, abatido e desanimado, com os joelhos levantados diante dele. Entrelaçou os dedos e descansou os cotovelos nos joelhos, tentando imaginar-se na prisão. Era um pensamento horrível. Uma autêntica caricatura da justiça! Só a questão da incúria médica em si fora mais do que suficiente para abalar e modificar seriamente a sua vida, mas toda aquela história do processo de crime era bastante pior, deitar sal numa ferida mortífera.

Jeffrey pensou nos colegas do hospital e nos outros médicos seus amigos. A princípio todos tinham tentado dar-lhe apoio, pelo menos até dar entrada o processo de crime. Depois tinham começado a evitá-lo; como se sofresse de alguma doença contagiosa. Jeffrey sentia-se isolado e só. E, acima de tudo, sentia-se zangado.

— Não é justo! — disse com os dentes cerrados. Completamente fora de si, Jeffrey pegou numa peça de cristal do bric-à-brac de Carol que estava em cima de uma mesinha baixa e num acesso de pura frustração atirou-a com uma precisão mortífera através do arco que levava à sala de jantar. Ouviu-se um som de vidros quebrados que o fez estremecer.

— Oh-oh! — disse Jeffrey quando compreendeu aquilo que tinha feito. Levantou-se e foi buscar uma pá e uma vassoura. Quando acabou de apanhar o lixo, tinha chegado a uma conclusão espantosa: Não ia pôr os pés na prisão! De forma nenhuma! Que se lixasse o recurso. Tinha tanta confiança no sistema legal como nos contos de fadas.

A decisão foi tomada de forma tão repentina e com tanta firmeza que o deixou exultante. Olhou para o relógio. O banco não tardaria a abrir. Excitado, subiu ao quarto e pegou no passaporte. Tinha tido sorte em o tribunal não lhe retirar o passaporte ao mesmo tempo que aumentara a fiança. Depois ligou para a Pan American. Ficou a saber que podia apanhar a carreira de Nova Iorque, depois o autocarro para Kennedy e daí voar para o Rio. Considerando o número de transportes que serviam o mercado tinha uma vasta gama de voos à sua escolha, incluindo um que saía às 11 :45 e fazia diversas paragens em locais exóticos.

Com o pulso a bater acelerado perante a ideia, Jeffrey ligou para o banco e falou com Dudley. Fez todos os possíveis por se mostrar controlado. Perguntou como iam as coisas em relação ao empréstimo.

— Nenhum problema — disse Dudley cheio de orgulho. — Puxei alguns cordelinhos e consegui logo a aprovação. Assim. — Jeffrey ouviu o homem fazer estalar os dedos para seu benefício. — Quando é que tenciona passar por cá? — Dudley acrescentou. — Gostava de estar Presente nessa altura.

— Vou já de seguida — replicou, fazendo contas ao tempo. O tempo era a chave. — Tenho de lhe fazer mais um pedido. Gostava de receber em dinheiro.

— Está a brincar — disse Dudley. Não, é a sério — insistiu Jeffrey.

— Mas é um bocado irregular — acrescentou Dudley, hesitante. Jeffrey não tinha pensado nesse lado da questão e agora sentia a hesitação de Dudley. Compreendeu que ia ter de lhe dar explicações se queria conseguir o dinheiro e não havia dúvidas que precisava dele Não podia ir para a América do Sul apenas com alguns trocos no bolso

— Dudley — começou —, infelizmente estou com problemas.

— Não estou a gostar nada disto — replicou Dudley.

— Não é nada daquilo que está a pensar. Não são dívidas de jogo nem nada que se pareça. A verdade é que preciso do dinheiro por causa de uma fiança. Não leu nada sobre o meu problema nos jornais?

— Não, não li — disse Dudley, mostrando-se um pouco mais caloroso.

—Fui processado por incúria médica e depois condenado por causa de um caso infeliz de anestesia. Não vou maçá-lo com pormenores. O problema é que eu preciso dos 45 000 dólares para pagar ao indivíduo que depositou a minha fiança. Ele disse que queria receber em dinheiro.

— Tenho a certeza de que um cheque visado seria aceitável.

— Oiça, Dudley — atalhou Jeffrey —, o indivíduo disse-me que queria receber em dinheiro. Que é que eu posso fazer? Peço-lhe que me faça este favor. Não torne as coisas ainda mais difíceis para mim do que elas já estão.

Houve uma pausa. Jeffrey pensou que ouvira Dudley suspirar.

— Pode ser em notas de cem?

— Claro — disse Jeffrey. — Notas de cem está óptimo. — Perguntava a si mesmo qual o espaço que ocupariam.

—Eu tenho tudo pronto—concordou Dudley. — Só espero que não vá andar por aí com esse dinheiro todo.

— Só até Boston — respondeu Jeffrey.

Desligou. Esperava que Dudley não resolvesse ligar para a polícia ou tentar verificar as informações que lhe dera. Não que as coisas não batessem certas. Jeffrey achava que quanto menos pessoas andassem a pensar nele e a fazer perguntas, melhor, pelo menos até estar dentro do avião a caminho de Nova Iorque.

Sentando-se com um bloco na mão, Jeffrey começou a escrever um bilhete a Carol, dizendo-lhe que levava os 45 000 dólares, mas que ela podia ficar com tudo o mais. Mas a carta pereceu-lhe constrangedora. Além disso, enquanto escrevia compreendeu que não devia deixar quaisquer provas das suas intenções, caso sofresse um atraso de qualquer espécie. Amachucou o papel, pegou-lhe fogo com um fósforo e atirou-o para a lareira. Em vez de escrever, resolveu ligar para Carol, do estrangeiro, e falar directamente com ela. Não seria tão impessoal como uma carta. E seria também mais seguro.

O problema que teria de resolver a seguir era o daquilo que ia levar com ele. Não queria ver-se a braços com uma data de bagagem. Decidio-se por uma mala pequena na qual meteu alguma roupa informal, nepois de lá ter enfiado tudo o que queria levar teve de se sentar em cima da mala para conseguir fechá-la. Em seguida meteu umas quantas coisas na pasta, incluindo artigos de toilette e roupa de baixo.

Ia fechar o armário quando deu com os olhos na mala de médico. Hesitou um momento, perguntando a si mesmo o que havia de fazer se alguma coisa corresse tremendamente mal. Por uma questão de segurança, abriu a mala e tirou para fora um sistema de vencolise, algumas seringas, dois decilitros e meio de soro, um frasco de succinilcolina e outro de morfina e meteu tudo na pasta por baixo da roupa interior. Não lhe agradava pensar que não pusera totalmente de lado a hipótese do suicídio, por isso disse para si próprio que as drogas eram como uma apólice de seguro. Esperava não ter de se servir delas, mas tinha-as à mão, para o que desse e viesse...

Jeffrey tinha uma sensação esquisita, mesclada de tristeza, ao olhar em volta para a casa, talvez pela última vez, sabendo que possivelmente nunca mais lhe poria a vista em cima. Mas ao andar de quarto para quarto, ficou surpreendido por não se sentir mais desgostoso. Havia tanta coisa que lhe recordava acontecimentos passados, uns bons, outros maus. Mas em primeiro lugar Jeffrey apercebeu-se que associava aquele lugar com o seu casamento falhado. E tal como acontecia com o caso do seu falhanço clínico, o melhor que podia fazer era deixar tudo para trás. Pela primeira vez nos últimos meses, sentia-se cheio de energia. Era como o primeiro dia de uma vida nova. Com a mala na bagageira e a pasta no assento ao lado dele, Jeffrey saiu da garagem, fechou a porta com o controlo remoto e meteu-se a caminho. Não olhou para trás. A primeira paragem era no banco e, à medida que se aproximava, começou a ficar ansioso. A sua nova vida começava de uma forma única: planeara deliberadamente infringir a ki e desafiar o tribunal. Perguntava a si mesmo se iria conseguir.

Quando finalmente entrou no estacionamento do banco, sentia-se muito nervoso. Tinha a boca seca. E se Dudley tivesse telefonado à Polícia a dizer que ele pedira aquela soma em dinheiro? Não era precisa a inteligência de um génio para desconfiar que Jeffrey poderia estar a planear fazer qualquer coisa mais com o seu dinheiro do que entregá-lo simplesmente ao fiador.

Depois de ter ficado um momento sentado no carro estacionado a

ranjar coragem, Jeffrey pegou na pasta e obrigou-se a si próprio a

entrar no banco. De certa forma, sentia-se como um assaltante, embora a o dinheiro que ia buscar lhe pertencesse tecnicamente. Respirando para se acalmar, dirigiu-se ao balcão e perguntou por Dudley.

O Dudley veio ao seu encontro, falador e sorridente. Conduziu Jeffrey ao seu gabinete e fez-lhe sinal para que se sentasse. A julgar por todo aquele comportamento, não devia tê-lo como suspeito. Mas a ansiedade de Jeffrey mantinha-se aguçada como uma lâmina. Tremia.

— Quer um café ou um refresco?—propôs Dudley. Jeffrey pensou que faria melhor em evitar a cafeína. Disse a Dudley que agradecia um sumo. Não seria pior ter as mãos ocupadas. Dudley sorriu e disse:

— É para já.

O homem estava a ser tão cordial que Jeffrey receava que se tratasse de uma armadilha.

— Eu volto já com o dinheiro — disse Dudley depois de ter passado a Jeffrey um copo com sumo de laranja. Voltou alguns minutos depois com um saco de oleado usado. Despejou o conteúdo do saco para „ cima da secretária. Havia nove maços de notas de cem dólares, cada.a um com cinquenta notas. Jeffrey nunca tinha visto tanto dinheiro junto. Sentia-se cada vez mais embaraçado.

— Foi-nos um bocado difícil juntar este dinheiro todo tão depressa — disse Dudley.

— Estou-lhe muito agradecido — replicou Jeffrey.

—Suponho que vai querer contá-lo—sugeriu Dudley, mas Jeffrev declinou a sugestão.

Dudley pediu a Jeffrey que assinasse um recibo.

—Tem a certeza que não prefere um cheque visado?—perguntou Dudley quando Jeffrey lhe entregou o recibo assinado. —É perigoso andar por aí com todo esse dinheiro. Podia fazer vir aqui o próprio fiador. E como sabe, um cheque visado é o mesmo que dinheiro. Ele podia ir a qualquer dos nossos escritórios de Boston e trocá-lo, se é isso que ele quer. Mas para si seria mais seguro.

— O homem disse que queria receber em dinheiro, portanto é dinheiro que eu lhe vou dar — replicou Jeffrey. Sentia-se comovido com a preocupação de Dudley. — O escritório dele não é muito longe daqui — esclareceu.

— E tem a certeza de que não quer contá-lo?

A tensão de Jeffrey começava a tocar as raias da irritação, mas conseguiu forçar um sorriso.

—Não tenho tempo. Tinha combinado entregar-lhe o dinheiro antes do meio-dia e já estou atrasado. Além disso não é a primeira vez que trabalho consigo... —Pegou no dinheiro, enfiou-o na pasta e pós -se de pé.

— Se soubesse que não ia contá-lo tinha tirado algumas notas de cada um dos maços — gracejou Dudley, rindo.

Jeffrey apressou-se a regressar ao carro, atirou a pasta lá para dentro e saiu cautelosamente do parque de estacionamento. Só o que lhe faltava era ser multado por excesso de velocidade. Olhou para o espelho retrovisor para se assegurar de que não estava a ser seguido. Até ali tudo bem.

Jeffrey seguiu directamente para o aeroporto e estacionou no terraço do edifício central. Deixou o cartão de estacionamento no cinzeiro do carro. Quando ligasse para Carol, de qualquer lado, dir-lhe-ia que fosse buscar o carro.

Com a pasta numa das mãos e a mala na outra, Jeffrey dirigiu-se para o balcão da Pan American. Tentou comportar-se como um vulgar homem de negócios em viagem, mas sentia os nervos tensos, o estômago em agonia. Se alguém o reconhecesse, compreenderiam que ia a fugir. Tinha-lhe sido dito com toda a clareza que não saísse do estado de Massachusetts. A ansiedade de Jeffrey subia mais um ponto cada minuto que esperava na fila dos bilhetes. Quando finalmente chegou a sua vez, comprou um bilhete para o voo Nova yorque-Rio, bem como para a carreira das 1:30. O agente tentou convencê-lo de que seria muito mais fácil apanhar ao fim da tarde um voo directo para Kennedy. Assim Jeffrey não seria obrigado a tomar o autocarro de La Guardiã para Kennedy. Mas Jeffrey preferia esse percurso. Achava que quanto mais depressa saísse de Boston melhor se ia sentir.

Depois de ter comprado os bilhetes, dirigiu-se para junto da máquina de raios-X. Havia um oficial da polícia estatal, em uniforme, encostado com o ar mais natural do outro lado da máquina de segurança. Jeffrey teve de fazer um esforço enorme para não dar meia volta e fugir a correr.

Logo que pôs a pasta e depois a mala em cima do tapete rolante e as viu desaparecer em direcção à máquina, sentiu um sobressalto repentino. E as seringas e a ampola de morfina? Que é que aconteceria se fossem detectadas e ele tivesse de abrir a pasta? Nessa altura iam descobrir os maços de notas! Que é que haviam de pensar ao ver tanto dinheiro?

Jeffrey ainda pensou em tentar enfiar a mão na máquina de raios-X e tirar a pasta cá para fora, mas era tarde de mais. Deitou um olhar à mulher que observava o ecrã. A luz iluminava-lhe lugubremente o rosto, mas os olhos dela estavam vidrados de tédio. Jeffrey sentiu-se subtilmente levado em frente pelas pessoas que esperavam atrás dele. Atravessou o detector de metais, sempre com os olhos postos no polícia. Este apercebeu-se do olhar de Jeffrey e sorriu-lhe; Jeffrey conseguiu retribuir-lhe com um sorriso um tanto forçado. Depois olhou Para trás, para a mulher que observava o ecrã. O rosto inexpressivo mostrara-se repentinamente espantado com qualquer coisa. Tinha Parado o tapete rolante e fazia sinal a outra mulher para que se aprocimasse.

O coração de Jeffrey deu um salto. As duas examinavam o conteúdo da pasta tal como se apresentava no ecrã. O polícia ainda não dera por nada. Jeffrey viu-o bocejar.

Depois o tapete rolante pôs-se de novo em movimento. A pasta surgiu, mas a segunda das duas mulheres aproximou-se e pôs-lhe a mão em cima.

— É sua? — perguntou a Jeffrey.

Ele hesitou, mas não podia negar que a pasta lhe pertencia. Tinha o passaporte lá dentro.

— Sim — respondeu com voz fraca.

— Tem lá dentro um Dopp Kit com uma tesoura pequena? Jeffrey fez que sim com a cabeça.

— Okay — disse ela dando um ligeiro empurrão à pasta em direcção a ele.

Espantado mas com uma enorme sensação de alívio, Jeffrey levou rapidamente a sua bagagem para a outra ponta da sala de espera e sentou-se. Pegou num jornal que alguém ali deixara e abriu-o de forma a tapar a cara. A verdade é que não se sentira de todo como um criminoso no momento em que o júri tinha apresentado o veredicto, mas já não poderia dizer o mesmo naquele momento.

Logo que anunciaram o voo, Jeffrey precipitou-se para a entrada. Mal podia esperar para entrar no avião. Assim que entrou no aparelho, sentiu a mesma urgência em ocupar o seu lugar.

Jeffrey encontrava-se numa fila próxima da dianteira do avião. Com a mala bem arrumada no compartimento por cima dos assentos e a pasta por baixo dos pés, recostou-se e fechou os olhos. O coração batia-lhe acelerado, mas pelo menos já podia tentar descontrair-se um pouco. Estava praticamente a caminho.

Mas era-lhe difícil acalmar-se. Sentado ali naquele avião, a gravidade e a irreversibilidade daquilo que estava a fazer começou finalmente a atingi-lo. Até aí, ainda não houvera transgressão. Mas logo que o aparelho atravessasse de Massachusetts para outro estado, as coisas seriam diferentes. E já não poderia voltar atrás.

Jeffrey olhou para o relógio. Começou a transpirar. Era uma e vinte e sete. Apenas três minutos mais até cerrarem a porta. Depois levantariam voo. Estaria a seguir o caminho certo? Pela primeira vez desde que tomara aquela decisão, nessa mesma manhã, Jeffrey sentia-se assaltado pela dúvida. A experiência de uma vida inteira pronunciava-se contra. Ele sempre tinha seguido a lei e respeitado a autoridade.

Jeffrey começou a tremer dos pesa cabeça. Nunca sentira uma agonia semelhante, debatendo-se entre a indecisão e a confusão. Olhou novamente para o relógio. Passavam vinte e nove minutos da hora. As assistentes de bordo andavam ocupadas a fechar os compartimentos das bagagens e o ruído forte quase o enlouquecia. A porta da cabina foi fechada com um estalido sonoro. Um controlador de terra veio a bordo do avião e deu o manifesto final. Todos os passageiros estavam nos seus lugares. De certa forma ele estava a pôr fim à vida que sempre conhecera, tão inequivocamente como se tivesse aberto a válvula na noite anterior.

Perguntava a si mesmo em que medida a fuga afectaria o recurso. O mais natural era que o fizesse parecer mais culpado. E se alguma vez fosse levado a comparecer perante a lei, não teria de cumprir uma pena maior por ter fugido? E que é que tencionava fazer na América do Sul? Nem sequer falava espanhol ou português. De repente, compreendeu todo o horror do seu acto. Não podia levá-lo por diante.

— Esperem! — gritou ao ouvir os sons do fechar da porta do avião. Todos os olhares se voltaram para ele. — Esperem! Eu tenho de sair! — Desapertou o cinto, depois tentou puxar a pasta de baixo do assento. Aporta abriu-se e parte do que estava lá dentro, incluindo um maço de notas de cem dólares, caiu para fora. Apressadamente, enfiou tudo lá dentro outra vez, depois tirou a mala do compartimento por cima dele. Ninguém disse nada. Toda a gente observava o pânico de Jeffrey com uma curiosidade cheia de espanto.

Jeffrey correu para a parte da frente e foi ter com a hospedeira.

— Tenho de desembarcar! — repetiu. O suor corria-lhe pela testa, dificultando-lhe a visão. Parecia tresloucado. — Eu sou médico — acrescentou à guisa de explicação. — É uma emergência.

— Okay, okay — disse a hospedeira calmamente. Bateu na porta, depois fez um gesto através da janela para o assistente de terra que estava ainda junto do portão de embarque, do outro lado. A porta foi aberta, mas com demasiada lentidão para o gosto de Jeffrey.

Logo que o caminho ficou livre, Jeffrey correu para fora do avião. Felizmente ninguém veio ao seu encontro para lhe perguntar as razões do desembarque. Correu pela pista. A porta do terminal estava fechada, mas não à chave. Começou a atravessar a sala de embarque,

não foi longe. O assistente de terra chamou-o ao balcão de controlo.

— O seu nome, por favor? — perguntou numa voz inexpressiva.

Jeffrey hesitou. Detestava ter de o dizer. Não queria ter que se apresentar às autoridades.

Não lhe posso devolver o bilhete, a menos que me diga o seu nome — insistiu o homem, levemente irritado.

Jeffrey acedeu e recebeu o bilhete de volta. Meteu-o à pressa na algibeira, depois passou o controlo de segurança e entrou na casa-de-banho dos homens. Tinha de se acalmar. Estava com os nervos desfeitos - POUSOU as malas e encostou-se ao rebordo do lavatório. Detestou—se a si próprio pelas suas vacilações, primeiro com o suicídio, agora com a fuga. Continuava a pensar que fizera a escolha certa, mas agora quais eram as suas opções? Sentiu a ameaça da depressão pairar novamente sobre ele e tentou combatê-la.

Pelo menos Chris Everson tivera a coragem de levar a sua decisão até ao fim, embora ela não fosse a melhor. Jeffrey amaldiçoou-se mais uma vez por não ter sido um amigo mais fiel. Se ao menos soubesse naquele tempo o que sabia hoje, talvez pudesse tê-lo salvo. Só agora e que Jeffrey compreendia aquilo que Chris tinha passado. Jeffrey odiava-se por não ter contactado com ele e por ter completado essa negligência não procurando a jovem viúva, Kelly.

Molhou a cara com água fria. Quando sentiu que recuperara um pouco a compostura, pegou na mala e na pasta e saiu da casa de banho Apesar de todo o movimento do aeroporto, sentia-se terrivelmente só e isolado. A ideia de regressar à casa vazia deixava-o oprimido. Mas não lhe ocorreria nenhum outro sítio para onde ir. Errante, dirigiu-se para o estacionamento.

Ao chegar junto do carro, Jeffrey pôs a mala na bagageira e a pásta no assento ao lado dele. Sentou-se atrás do volante e deixou-se ficar, olhando em frente, impassível, à espera de uma inspiração.

Esteve ali sentado várias horas, revendo todos os seus falhanços. Nunca estivera tão em baixo. Obcecado por Chris Everson, acabou por se pôr a pensar no que teria acontecido a Kelly Everson. Encontrara -se com ela em duas ou três ocasiões sociais, antes da morte de Chris Lembrava-se mesmo de ter feito alguns comentários elogiosos a seu respeito em conversa com Carol. Na altura, Carol não gostara de os ou vir.

Jeffrey perguntou a si mesmo se Kelly teria continuado a trabalhar no Valley Hospital e se continuaria mesmo a viver na região de Boston. Lembrava-se dela como sendo alta, magra, com uma figura atlética. O cabelo era castanho com reflexos ruivos e dourados e usava-o comprido, simplesmente apanhado com um travessão. Lembrava-lhe o rosto largo com os olhos castanhos escuros e as feições pequenas e cheias que se abriam frequentemente num sorriso luminoso. Mas o que recordava melhor era a personalidade dela. Aquela jovialidade que combinava maravilhosamente com um ardor e uma sinceridade bem femininos e que faziam com que as pessoas gostassem dela dês de o primeiro momento.

Quando os seus pensamentos passaram de Chris para Kelly Jeffrey deu consigo a pensar que ela, mais que qualquer outra pessoa seria capaz de compreender aquilo que ele estava a passar. Depois de perder o marido através do desgaste emocional causado por um processo por incúria médica, não podia deixar de ser extremamente sensível ao problema emocional de Jeffrey. Talvez tivesse mesmo alguma sugestão quanto à maneira de o enfrentar. No mínimo, devia ser capaz de lhe dar aquela dose de simpatia e compreensão de que tanto precisava. E quanto mais não fosse, ele ficaria em paz com a sua consciência por ter feito finalmente o telefonema que até ali não passara de uma intenção vaga.

Jeffrey voltou ao terminal. Quando chegou junto das primeiras cabinas usou uma lista para procurar Kelly Everson. Susteve a respiração enquanto percorria com o dedo a lista de nomes. Parou em K. C. Everson, Brookline. Era prometedor. Pôs a moeda no aparelho e marcou o número. O telefone tocou uma, duas, três vezes. Já ia a desligar quando alguém atendeu do outro lado. Uma voz alegre veio até ele pelo auscultador.

Jeffrey apercebeu-se de que não pensara de todo como começar a conversa. Abruptamente, disse-lhe “Olá” e a seguir o nome. Sentia-se tão inseguro que teve medo de que Kelly não se lembrasse dele, mas antes que pudesse dizer alguma coisa para lhe avivar a memória, ouviu-lhe um jovial “Olá, Jeffrey!”. Parecia genuinamente satisfeita por ele ter telefonado e nada surpreendida.

— Estou tão contente que tenhas telefonado — disse. — Pensei ligar para ti quando li a notícia acerca dos teus problemas judiciais, mas não consegui arranjar coragem. Tive medo que não te lembrasses de mim.

Medo que ele não se lembrasse dela! Jeffrey garantiu-lhe que isso seria impossível. Aproveitando o assunto, desfez-se em desculpas por não lhe ter telefonado antes, como prometera.

—Não tens que pedir desculpa — disse. — Eu sei que as tragédias intimidam as pessoas, tal como acontece com o cancro, ou acontecia. E também sei que os médicos têm dificuldade em aceitar o suicídio de um colega. Não esperava que telefonasses, mas fiquei sensibilizada por teres arranjado tempo para ir ao funeral. O Chris teria ficado contente por saber que te importavas com ele. Ele respeitava-te muito. Uma vez disse-me que achava que eras o melhor anestesista que ele conhecia. Por isso considerei uma honra teres ido. Houve amigos dele Que não apareceram. Mas eu compreendi.

Jeffrey não sabia o que dizer. Ali estava Kelly, a perdoar-lhe comPletamente, até mesmo a elogiá-lo. No entanto, quanto mais ela falava pior ele se sentia. Sem saber o que responder, mudou de assunto. Disse-lhe que tinha ficado satisfeito por a ter encontrado em casa.

— Esta é sempre uma boa hora de me encontrar. Cheguei agora

do trabalho. Julgo que sabes que já não trabalho no Valley. •— Não, não sabia. —Depois da morte do Chris, achei que seria bom para mim ir para outro sítio — disse Kelly. — Mudei-me para a cidade e estou agora a trabalhar no St. Joe’s. Na unidade de cuidados intensivos. Prefiro-o à recuperação. Ainda estás no Boston Memorial, não?

—Mais ou menos—replicou Jeffrey evasivo. Sentia-se acanhado e indeciso. Tinha medo que ela se recusasse a vê-lo. Ao fim e ao cabo, que obrigações tinha para com ele? Kelly tinha a sua vida. Mas já que fora até ali tinha de tentar.

— Kelly — disse por fim —, achas que eu podia passar por aí para falarmos um bocado?

—Quando é que estavas a pensar?—perguntou Kelly sem hesitar um segundo.

— Quando te convier. Eu... eu até podia ir agora se não estiveres muito ocupada.

— Sim, claro — disse Kelly.

— Se não te calha, eu posso...

—Não, não! Está óptimo. Vem — concluiu Kelly antes que Jeffrey tivesse tido tempo de acabar a frase. Depois deu-lhe as indicações necessárias para encontrar a casa.

Michael Mosconi tinha o cheque de Jeffrey diante dele, em cima da pasta da secretária, quando fez a chamada para Owen Shatterley do Boston National Bank. Não esperava sentir-se nervoso, mas o estômago contraiu-se-lhe quando marcou o número. Esta era a segunda vez que aceitava um cheque pessoal em toda a sua vida de fiador. Da primeira, correra tudo bem. Não se tinha queimado. Mas Michael já ouvira histórias arrepiantes de colegas seus. Claro que se alguma coisa corresse mal, o maior problema de Mosconi era que a firma com que trabalhava o proibia de receber pagamentos em cheque. Tal como Michael explicara a Jeffrey, era o próprio pescoço que estava a meter na corda. Não percebia porque é que se estava a tornar tão brando. Mas também não era um caso qualquer. O tipo era médico, caramba. Além disso, honorários de 45 000 dólares não era coisa que se recebesse todos os dias. Michael não quisera deixar que o caso fosse para a concorrência. Portanto, à sua maneira, oferecera melhores condições. Fora uma decisão de executivo.

Alguém atendeu do banco e em seguida deixou-o à espera. Fez-se ouvir uma música característica. Michael pôs-se a tamborilar com os dedos no tampo da mesa. Eram quase quatro horas da tarde. Tudo o que ele queria era ter a certeza de que o cheque do médico tinha cobertura, antes de o depositar. Shatterly era um amigo de longa data; Michael sabia que não teria qualquer dificuldade em conseguir essa informação através dele. Quando Shatterley apareceu em linha, Michael explicou— lhe qual a informação de que precisava. Não precisou acrescentar mais nada. Shatterley disse simplesmente:

— Um segundo.

Michael ouvia-o bater nas teclas do computador.

— De quanto é o cheque? — perguntou Shatterley.

— Quarenta e cinco mil — respondeu Michael. Shatterley soltou uma risada.

— A conta só tem vinte e três dólares e picos.

Fez-se uma pausa. Michael deixou de tamborilar. Sentiu uma espécie de náusea.

— Tem a certeza de que não houve nenhum depósito hoje? — perguntou.

— Nada da ordem dos 45 000 dólares — afirmou Shatterley. Michael desligou.

— Sarilho? — perguntou Devlin O’Shea, olhando-o por cima de uma Penthouse já antiga. Devlin era um indivíduo corpulento que mais parecia um motociclista estilo anos 60 do que um antigo polícia de Boston. Suspenso da orelha direita trazia um brinco pequeno, em ouro, com a cruz de Malta. Usava mesmo o cabelo apanhado em rabo de cavalo. Além de lhe ser útil no seu trabalho, o seu aspecto exterior era uma forma de ignorar a autoridade, agora que já não tinha de se preocupar com regras como as que impunham um determinado tipo de vestuário. O’Shea tinha saído da polícia na sequência de uma condenação por suborno.

Devlin estava instalado num sofá de vinil, em frente da secretária de Michael. Vestia a roupa que se tornara mais ou menos um uniforme para ele desde que deixara a polícia: blusão de ganga, jeans desbotados e botas pretas de cowboy.

Michael não disse nada, o que era resposta suficiente para Devlin.

— Alguma coisa que eu possa fazer? — perguntou Devlin. Michael pôs-se a estudar Devlin, observando-lhe os antebraços

massiços e o emaranhado de tatuagens. Um dos dentes da frente de Devlin tinha desaparecido, dando-lhe um ar de desordeiro de bar que ocasionalmente correspondia à realidade.

Talvez — replicou Michael. Começava a dar forma a um plano.

Devlin passara naquela tarde pelo escritório de Mosconi porque

concluíra um trabalho e não tinha que fazer. Acabava de trazer de volta um assassino que estava sob fiança e fugira para o Canadá. Devlin

éra um um dos caçadores de prémios que Michael utilizava quando necessitava.

pensou que Devlin era precisamente o homem indicado para fazer lembrar a Jeffrey as suas obrigações. Estava certo de que Devlin seria bastante mais persuasivo que ele próprio.

Recostando-se na cadeira, Michael explicou a situação. Devlin pôs de lado a Penthouse e levantou-se do sofá. Tinha um metro e noventa e cinco de altura e pesava cento e trinta e quatro quilos. A barriga redonda caía sobre a grande fivela de prata do cinto. Mas por baixo da camada de gordura havia muito músculo.

— Claro que posso ir falar com ele — disse Devlin.

— Mas seja simpático — disse Michael. —Basta que seja persuasivo. Não se esqueça de que ele é médico. Só não quero é que se esqueça de mim.

—Eu sou sempre simpático—disse Devlin. —Atencioso, bem educado, boa presença. É o meu encanto.

Devlin saiu do escritório, satisfeito por ter que fazer. Detestava a inactividade. O único problema era que desejaria que a tarefa fosse mais lucrativa. Mas agradava-lhe a ideia de ir até Marblehead. Talvez fosse àquele restaurante italiano que lá havia e depois podia ir beber umas cervejas ao seu bar preferido, no cais.

A casa de Kelly tinha dois pisos de um colonial delicioso, com janelinhas de vidrinhos. Estava pintada de branco e as persianas eram prétas. As duas chaminés, uma de cada lado da fachada, estavam revestidas a tijolo antigo. À direita havia uma garagem para dois carros, à esquerda um alpendre fechado.

Jeffrey parou do outro lado da rua e encostou o carro ao passeio. Ficou a estudar a casa pela janela, esperando ter a coragem suficiente para avançar e tocar à campainha. Surpreendia-o ver tantas árvores tão perto do centro de Boston. A casa estava aninhada num maciço confortável de bordos, carvalhos e faias.

Ainda sentado no carro, Jeffrey tentou pensar naquilo que iria dizer. Nunca na sua vida tinha ido a casa de alguém à procura de “simpatia e compreensão”. E continuava preocupado com a hipótese da rejeição, apesar de ter sido tão bem acolhido ao telefone. Se não soubesse já que Kelly estava à sua espera não seria capaz de levar aquilo por diante.

Fazendo apelo à própria coragem, ligou o motor e meteu pelo caminho que levava à casa de Kelly. Dirigiu-se à porta principal, de pasta na mão. Sentia-se perfeitamente ridículo — como médico, nem se quer estava habituado a andar de pasta — mas também tinha medo de deixar tanto dinheiro no carro.

Kelly abriu a porta antes mesmo de ele ter tido tempo de tocar. Vestia collants negros, uma camisola cor-de-rosa, fita elástica na cabeça também cor-de-rosa e perneiras de aquecimento.

— Vou a uma aula de aeróbica quase todas as tardes — explicou corando ligeiramente. Depois abraçou Jeffrey. Os olhos dele quase se encheram de lágrimas quando se deu conta de que não conseguia lembrar-se da última vez que alguém o abraçara. Levou um momento a recompor-se e a retribuir o abraço.

Sem deixar de lhe segurar os braços, ela inclinou-se para trás para o olhar nos olhos. Jeffrey tinha bem uns quinze centímetros a mais que Kelly.

—Estou tão contente que tenhas vindo—disse. Por momentos sustentou-lhe o olhar, depois acrescentou. —Entra, entra!—Pegou-lhe na mão e levou-o para dentro, fechando a porta com o pé calçado só com a meia.

Jeffrey encontrou-se numa entrada espaçosa, com arcos que davam para a sala de jantar, à direita, e para uma sala de estar, à esquerda. Havia uma mesa baixa com um serviço de chá em prata. Ao fundo da sala de entrada, já nas traseiras da casa, uma escadaria elegante subia em curva até ao segundo andar.

— Queres um chá? — propôs Kelly.

— Não quero dar maçada — replicou Jeffrey. Kelly deu um estalido com a língua.

— Que é isso de “maçada”?

Sempre a segurar-lhe a mão, conduziu-o através da sala de jantar até à cozinha. Prolongando-se para a parte de trás da casa e abrindo para a cozinha havia uma salinha confortável. Parecia ter sido acrescentada posteriormente. Em frente da grande janela curva de sacada via-se um jardim. O jardim tinha um ar pouco cuidado. A casa em si estava impecável.

Kelly fez sentar Jeffrey num sofá de algodão às riscas. Jeffrey pôs a pasta no chão.

— Que é que há com a pasta? — perguntou Kelly, afastando-se Para pôr a água ao lume. — Eu julgava que os médicos usavam umas malinhas pretas quando iam visitar algum doente a casa. Assim ficas com um ar de agente de seguros. —Riu-se, com um riso cristalino, entretanto abria o frigorífico e tirava uma tarte de queijo do congelador.

Se eu te mostrasse o que tenho nesta pasta tu não acreditavas ”-disse Jeffrey.

Por que é que dizes isso?

, . Jeffrey não respondeu e ela não insistiu. Tirou uma faca da prateleira por cima do lava-loiça e cortou duas fatias de tarte. „ Estou contente por teres resolvido aparecer — disse, lambendo a faca.—Só sirvo tarte de queijo quando tenho companhia. Pôs um saco grande de chá no bule e foi buscar chávenas. A chaleira começou a apitar ferozmente. Kelly tirou-a de cima do fogão e deitou a água a ferver no bule. Pôs tudo num tabuleiro e levou-o para uma mesinha baixa, em frente do sofá, na sala de estar

— Pronto! — disse, pousando o tabuleiro. — Esqueci-me de alguma coisa? — Passou os olhos pelo tabuleiro. — Guardanapos! — gritou e voltou à cozinha. Quando regressou, sentou-se. Sorriu para Jeffrey. —A sério — disse, servindo o chá. — Estou bem contente por teres vindo e não é só por causa da tarte de queijo.

Jeffrey lembrou-se que não comera mais nada depois do cereal da manhã. A tarte de queijo era uma delícia.

—Havia algum assunto em particular que tu quisesses falar comigo? — perguntou Kelly, pousando a chávena.

Jeffrey admirou-lhe a franqueza. Tornava tudo mais fácil para ele

—Para começar, acho que quero pedir desculpa por ter não ter sido um amigo melhor para o Chris — disse Jeffrey. — Depois daquilo que tenho passado nos últimos meses, já consigo compreender o que o Chris passou. Na altura, não fazia ideia.

— Acho que ninguém fez — comentou Kelly tristemente. —Nem eu própria.

— Não quero reavivar recordações dolorosas para ti — disse Jeffrey ao ver a mudança de expressão de Kelly.

— Não te preocupes. Agora já consigo encarar essas recordações. E essa é mais uma razão por que eu devia ter-te telefonado. Como é que te estás a aguentar?

Jeffrey não esperava que a conversa se orientasse tão rapidamente para os seus problemas. Como é que ele estava a aguentar-se? Nas últimas vinte e quatro horas tentara suicidar-se e, como não conseguira, tinha tentado fugir do país.

— Tem sido difícil — foi o que conseguiu dizer. Kelly estendeu o braço e apertou-lhe a mão na dela.

— Acho que as pessoas não fazem a menor ideia do preço de uma acusação por incúria médica, e não estou a falar em termos de dinheiro.

—Tu sabes isso melhor que a maior parte das pessoas—disse Jeffrey. —-Tu e o Chris pagaram o preço máximo.

— É verdade que vais ser preso? — perguntou Kelly. Jeffrey suspirou.

— Tudo indica que sim.

— E um absurdo!—exclamou Kelly, com uma veemência que surpreendeu Jeffrey.

— Vamos apresentar recurso — acrescentou —, mas não tenho grande fé no processo, depois de tudo o que já vi e ouvi.

— Como é que acabaste por te tornar no bode expiatório?

Perguntou Kelly. — Que foi que aconteceu aos outros médicos e ao hospital? Não foram processados?

—Foram ilibados — explicou Jeffrey.—Eu tive um ligeiro problema com morfina há alguns anos atrás. Uma história simples: foi—me receitada por causa de um problema que tive com as costas, a seguir a um acidente de bicicleta. Durante o julgamento, sugeriram que eu me tinha injectado com morfina momentos antes do que sucedeu. Depois alguém encontrou um frasco vazio de Marcaína a 0,75 % no recipiente do lixo da máquina de anestesia que eu utilizei... A Marcaína a 0,75% é contra-indicada em obstetrícia. Ninguém encontrou o frasco de Marcaína a 0,5%.

— Mas tu não usaste o de 0,75%, pois não? — perguntou Kelly.

—Eu controlo sempre os rótulos de todos os medicamentos — disse Jeffrey. — Mas é um desses actos reflexos de rotina que uma pessoa tem dificuldade em recordar com segurança. Eu não consigo acreditar que tenha usado a Marcaína a 0,75%. Mas que é que eu posso fazer? Eles encontraram aquilo que encontraram.

— Eh! — disse Kelly. — Não comeces a duvidar de ti próprio. Foi esse o problema do Chris.

— É fácil de dizer.

— Em que casos é que se usa a Marcaína a 0,75%? — perguntou Kelly.

—Há vários—replicou Jeffrey.—Sempre que se pretende um bloqueio de acção prolongada com pouco volume. Usa-se muito na cirurgia dos olhos.

—Fizeram alguma operação a olhos na sala onde ocorreu o acidente ou qualquer outra operação em que pudesse ter sido usada a Marcaína a 0,75%?

Jeffrey ficou um momento a pensar. Sacudiu a cabeça.

— Não me parece, mas também não tenho a certeza.

—Talvez valesse a pena procurar saber — disse Kelly. —Poderia não ter grande significado legal, mas se conseguisses explicar, pelo menos a ti próprio, a presença da Marcaína a 0,75%, isso já seria muito bom para te ajudar a recuperar a confiança. Estou sinceramente convencida de que, no tocante aos casos de incúria médica, os médicos devem esforçar-se tanto por salvaguardar a sua auto-estima como por Prepararem a defesa perante o tribunal.

Tens toda a razão — concordou Jeffrey, mas sem deixar de pensar nas perguntas de Kelly sobre a Marcaína a 0,75%. Era inacreditável que ninguém tivesse pensado em perguntar pelos casos que tinham precedido Patty Owen na mesma sala de operações. Ele, próprio , não pensara nisso. Perguntava a si mesmo como é que se ia arranjar para fazer essas perguntas, agora que já não tinha acesso a hospital como dantes.

— Falando em auto-estima, como vai a tua? — Kelly sorriu, mas Jeffrey apercebeu-se de que, apesar da sua aparente despreocupação, estava a levar o assunto bastante a sério. —Tens lido alguma coisa de psiquiatria?

— Praticamente nada — disse Jeffrey. —Infelizmente só aprendi o valor da auto-estima pela via mais difícil, ou seja, por experiência —Ela levou o chá aos lábios. Por momentos ficou perdida nas suas próprias divagações, contemplando através da janela o jardim meio abandonado. Depois, com a mesma brusquidão, saiu do seu transe momentâneo. Olhou de novo para Jeffrey, mas sem o sorriso. —Tenho a certeza de que foi por falta de estima por si próprio que Chris se suicidou. Ele nunca teria feito o que fez se estivesse em melhores termos consigo mesmo. Eu sei. Não foi o facto da tragédia que o levou até ao limite. E também não foi certamente a sensação de culpa. Chris era como tu, na medida em que não tinha nenhum motivo para se sentir culpado. Foi o desmoronar súbito da confiança, os danos causados na sua opinião sobre si próprio, que levaram Chris a pôr termo à vida. As pessoas não fazem ideia até que ponto os médicos, mesmo os mais dotados, são sensíveis ao impacto de um procedimento legal. Aliás, quanto melhor for o médico, maior a dor. O facto de a acusação ser infundada nem sequer vem ao caso.

—Tens toda a razão — disse Jeffrey.—Nessa altura, quando ouvi dizer que o Chris se tinha suicidado, fiquei cheio de espanto. Eu sabia que espécie de homem ele era, que espécie de médico. Agora o suicídio dele já não me surpreende minimamente. Aliás, no ponto a que cheguei, o que me surpreende é que não haja mais médicos processados por incúria que sejam levados a fazer o mesmo. Eu próprio o tentei a noite passada.

—Tentaste o quê? — perguntou Carol com aspereza. Sabia do que Jeffrey estava a falar, mas não queria acreditar.

Jeffrey suspirou. Não conseguia olhar para ela.

—A noite passada tentei matar-me — disse com simplicidade. -” Estive à beira de fazer o mesmo que Chris. Estás a ver, aquele truque da succinilcolina e da morfina. Já tinha a endovenosa a correr e tudo

Kelly deixou cair a chávena de chá. Atirou-se para a frente e, agarrando Jeffrey pelos ombros, sacudiu-o. O movimento assustou-o. Apanhara-o completamente desprevenido.

— Não te atrevas a fazer semelhante coisa. Nem sequer pense nisso!

Kelly olhava-o furiosa, ainda agarrada aos ombros dele. Por fim, Jeffrey disse por entre dentes que ela não precisava de se preocupar porque ele não tinha tido coragem de levar por diante o seu intento.

Kelly sacudiu-o de novo, reagindo às palavras dele.

Jeffrey não sabia o que dizer e ainda menos o que fazer.

Kelly continuava a sacudi-lo, no auge da excitação.

—O suicídio não é um acto de coragem—disse furiosa. — Pelo contrário. É uma solução cobarde. Magoa todos aqueles que ficam para trás, todos aqueles que nos amam. Quero que me prometas que se voltares a ter pensamentos suicidas me telefonas imediatamente, seja qual for a hora do dia ou da noite. Pensa na tua mulher. O suicídio do Chris deixou-me com um sentimento de culpa que não consegues imaginar. Fiquei desfeita. Sentia que de alguma forma eu tinha falhado. Agora sei que isso não era verdade, mas a morte dele é uma coisa da qual eu nunca me hei-de recompor totalmente.

— Carol e eu vamos divorciar-nos — atalhou Jeffrey. A expressão de Kelly suavizou—se.

— Por causa do processo? Jeffrey sacudiu a cabeça.

—Já tínhamos tomado a decisão antes de tudo isto começar. A Carol é que foi simpática e resolveu adiar, por agora.

—Pobre Jeffrey—disse Kelly—, nem consigo imaginar como é que te aguentas com as duas coisas ao mesmo tempo, uma acusação de incúria médica e um casamento desfeito.

— Os problemas matrimoniais são os que menos me preocupam — comentou Jeffrey.

— Estou a falar a sério quando te digo que me telefones antes de fazer algum disparate — disse Kelly.

— Eu não estou a pensar...

— Promete! — insistiu Kelly.

— Está bem, prometo — concordou Jeffrey.

Satisfeita, Kelly levantou-se e apanhou os cacos da chávena que Deixara cair. Enquanto juntava os pedaços de loiça partida, disse;

— A coisa que eu mais desejava era ter tido a mais leve indicação do que o Chris andava a planear. Num momento estava cheio de energia> a dizer que a complicação anestésica tinha sido consequência de um contaminante, e logo a seguir já estava morto.

Jeffrey ficou a observar Kelly enquanto esta atirava fora os pedaços da chávena. Levou alguns momentos a inteirar-se bem das últimas palavras dela. Quando ela voltou e se sentou outra vez. Jeffrey Perguntou:

Que é que levou o Chris a pensar na presença de um contaminante na anestesia local?

Kelly encolheu os ombros.

— Não faço a menor ideia. Mas parecia estar verdadeiramente excitado com essa possibilidade. Encorajei-o. Pouco antes ele tinha estado deprimido. Muito deprimido. A ideia do contaminante deu-lhe uma nova energia. Passou vários dias a consultar livros de farmacologia e fisiologia. Tomou imensos apontamentos. Estava a trabalhar na noite em que... Eu tinha-me ido deitar. Encontrei-o na manhã seguinte, com o sistema de venoclise ligado e a garrafa vazia.

— Que horror — esclamou Jeffrey.

— Foi a pior experiência da minha vida — admitiu Kelly.

Por instantes Jeffrey invejou Chris, não por ele ter conseguido aquilo em que ele próprio falhara, mas por ter deixado para trás alguém que obviamente lhe dedicava um amor profundo. Se Jeffrey tivesse levado o seu intento até ao fim, seria que alguém teria sentido assim tanta pena? Tentou afastar tal pensamento. Em vez disso, concentrou-se na ideia de um contaminante no anestésico local. Era uma hipótese curiosa.

— Que espécie de contaminante é que o Chris tinha na ideia? — perguntou.

— Francamente não sei — replicou Kelly. — Já foi há dois anos e o Chris não entrou em muitos pormenores. Pelo menos comigo.

— Nessa altura falaste na teoria dele a alguém?

— Falei aos advogados. Porquê?

— É uma ideia curiosa — disse Jeffrey.

— Ainda tenho os apontamentos do Chris — continuou Kelly. — Posso mostrar-tos, se quiseres.

— Queria — concluiu Jeffrey.

Kelly levantou-se e levou Jeffrey de novo através da cozinha e da sala de jantar, depois atravessaram a entrada e a sala. Parou diante de uma porta fechada.

—Agora acho que tenho de te explicar uma coisa — disse. — Aqui era o estúdio do Chris. Eu sei que talvez não fosse uma atitude muito saudável, mas depois da morte dele limitei-me a fechar a porta e a deixar tudo como estava. Não me perguntes porquê. Na altura fez-me sentir melhor, como se uma parte dele ainda aqui estivesse. Portanto prepara-te. Deve haver bastante poeira por toda a parte. — Em seguida abriu a porta e afastou-se para o lado.

Jeffrey entrou no estúdio. Em contraste com o restante da casa, estava bastante desarrumado e bafiento. Uma espessa camada de pó recobria tudo. Havia mesmo algumas teias de aranha suspensas do tecto. As persianas estavam completamente fechadas. Numa das paredes via-se uma estante, desde o chão até ao tecto, cheia com volumes que Jeffrey reconheceu imediatamente. A maior parte eram textos clássicos sobre anestesia. Os outros tratavam de tópicos de medicina mais generalizados.

No meio da casa estava uma secretária antiga, apinhada com papéis e livros. A um canto havia uma cadeira Eames, forrada a couro negro que acabara por secar e estalar. Ao lado da cadeira, via-se uma pilha de livros.

Kelly ficou encostada à ombreira da porta, de braços cruzados, como se sentisse relutância em entrar.

— Uma bonita confusão — disse.

— Não te importas que dê uma vista de olhos? — perguntou Jeffrey. Sentia uma certa afinidade com o colega morto mas não queria magoar Kelly.

— À vontade — disse ela. — Como já te disse, consegui finalmente encarar a ideia da morte do Chris. Já há tempo que ando a pensar em limpar este estúdio. Só que ainda não calhou.

Jeffrey deu a volta à secretária. Havia uma lâmpada em cima que ele acendeu. Não era supersticioso nem acreditava no sobrenatural. No entanto, sentia que Chris estava a tentar dizer-lhe qualquer coisa.

Aberto no meio da secretária estava um manual familiar: A Base Farmacológica da Terapêutica, de Goodman e Gillman. Ao lado, a Toxicologia Clínica. Ao pé desses dois livros, havia um maço de notas manuscritas. Inclinando-se sobre a secretária, Jeffrey reparou que o manual de Goodman e Gillman estava aberto na secção sobre a Marcaína. Os efeitos negativos potenciais tinham sido sublinhados com força.

— O caso do Chris também tinha que ver com a Marcaína? — perguntou Jeffrey.

— Sim — replicou Kelly. — Julgava que sabias.

—Não fazia ideia—disse Jeffrey. Não lhe tinham dito qual o anestésico local que Chris usara. As complicações ocasionais podiam surgir com qualquer anestésico.

Jeffrey pegou no maço de folhas manuscritas. Quase imediatamente sentiu uma comichão no nariz. Espirrou.

Kelly pôs mão em frente da boca para esconder um sorriso.

— Preveni-te de que devia haver muito pó. Jeffrey espirrou de novo.

—Por que é que não tiras aquilo que te interessa e vamos outra vez Para a sala pequena? — sugeriu Kelly.

. Com os olhos a lacrimejar, Jeffrey pegou nos livros de farmacologia e de toxicologia, juntamente com as notas manuscritas, e levou-as ele. Espirrou uma terceira vez antes de Kelly fechar a porta do escritório.

Quando entraram novamente na cozinha, Kelly fez uma proposta: Por que é que não ficas e comemos qualquer coisa cedo? Posso arranjar qualquer coisa para jantarmos. Não vai ser nada de espetacular mas pelo menos é saudável.

—Julguei que ias sair para a tua aula da aeróbica — disse Jeffrey. Sentia-se encantado com a sugestão, mas não queria incomodar mais.

— Posso ir noutro dia qualquer — respondeu Kelly. — Além disso acho que precisas que se ocupem de ti.

— Bom, se não for muita maçada — replicou Jeffrey. Sentia-sencantado com a gentileza dela.

—Vai ser um prazer—disse Kelly. —Instala-te aí no sofá. Se quiseres, podes tirar os sapatos.

Jeffrey resolveu fazer exactamente o que ela lhe dissera. Sentou-se e pôs os livros em cima da mesinha. Ficou um momento a olhar enquanto andava de um lado para o outro na cozinha, abrindo o frigorífico e os armários. Depois tirou os sapatos e preparou-se para analisar os apontamentos de Chris. A primeira coisa que se lhe deparou foi um resumo escrito à mão das complicações anestésicas associadas ao caso trágico de Chris Everson.

— Tenho de ir comprar uma coisa — disse Kelly. — Deixa-te ficar sossegado.

—Não quero complicar-te a vida—disse Jeffrey, fazendo menção de se levantar. Mas não era verdade. Dava-lhe imenso prazer pensar que Kelly estava disposta a fazer tudo aquilo por ele.

— Que disparate — disse Kelly. — Eu não me demoro. Jeffrey ficou na dúvida se Kelly teria dito “disparate” porque compreendera que ele não estava a ser sincero ou porque realmente não se importava. De qualquer forma, ela saiu logo de seguida. Jeffrey ou viu-a pôr o carro em andamento dentro da garagem, sair e acelerar já na rua.

Olhou em volta para a salinha confortável e para a cozinha, satis feito por ter resolvido telefonar a Kelly. Aparte a decisão de não se matar e de não fugir do país, era a melhor decisão que tinha tomado nas últimas vinte e quatro horas.

Recostando-se de novo no sofá, Jeffrey voltou as atenções para o relatório da complicação anestésica de Chris:

Henry Noble, indivíduo do sexo masculino, branco, de 57 anos de idade, deu entrada no Valley Hospital para se submeter a uma prostatectomia total provocada por cancro. O Dr. Wallensterie solicitou anestesia epidural contínua. Visitei o indivíduo na tarde anterior à operação. Estava levemente apreensivo. O seu estado de saúde era bom. Coração normal com electrocardiograma normal. Não tinha alergias. Especificamente não tinha alergia a qualquer medicamento. Sofrera uma anestesia geral para ser operado a uma hérnia em 1977, sem problemas. Fora submetido a anestesias locais para diversos tratamentos dentários, sem problemas. Dado o seu estado de apreensão, prescrevi-lhe 10 mg de diazepam para serem ministrados oralmente, uma hora antes de ser conduzido para a operação. Na manhã seguinte, o doente apresentou-se bem-disposto. O diazepam produzira um efeito positivo. Encontrava-se levemente sonolento mas era possível acordá-lo. Foi levado para a sala de anestesia e colocado em posição lateral direita. Foi feita punção epidural com uma agulha de Touhey calibre 18, sem problemas. Não houve qualquer reacção aos 2 cm3 de Lidocaína utilizados para facilitar a penetração epidural. A confirmação da localização epidural foi feita com 2 cm3 de água esterilizada com epinefrina. Um catéter epidural fino foi introduzido através da agulha de Touhey. O paciente foi novamente deitado de costas. Preparou-se então uma dose de teste de Marcaína a 0,5% com uma pequena quantidade de epinefrina de um frasco de 30 ml. A dose de teste foi injectada. Logo que a dose de teste foi injectada, o paciente queixou-se daquilo que descreveu como tontura, seguida de fortes cólicas intestinais. O ritmo do coração acelerou-se, mas não ao ponto que seria de esperar se a dose de teste tivesse sido inadvertidamente injectada por via endovenosa. Seguidamente apareceram fasciculações musculares generalizadas, sugerindo um estado de hiperestesia. Seguiu-se uma grande salivação, sugerindo uma reacção parassimpática. Foi ministrada atropina por via endovenosa. Notou-se que as pupilas se apresentavam mióticas. O paciente teve em seguida um ataque violento que foi tratado com succinilcolina e Valium, por via endovenosa. O paciente foi entubado e mantido a oxigénio. Depois sobreveio uma paragem cardíaca. O coração mostrou-se extremamente resistente a qualquer medicação, mas finalmente conseguiu-se um ritmo na cavidade. O paciente estabilizou mas não voltou ao estado consciente. O paciente foi transferido para a unidade de cuidados cirúrgicos intensivos, onde se manteve em estado de coma durante uma semana sofrendo múltiplas paragens cardíacas. Foi também comprovado que o doente sofreu uma paralisia total na sequência da complicação anestesia e que envolveu não apenas a espinal medula mas também os nervos cranianos. No final da semana, o paciente teve uma paragem cardíaca final da qual não foi possível reanimar o coração.

Jeffrey levantou os olhos dos apontamentos. Ao ler a história que estava escrita por Chris para descrever o seu problema, Jeffrey sentiu ressuscitar o terror que sentira enquanto lutava desesperadamente para salvar Patty Owen. A recordação foi tão pungente que as mãos lhe começaram a transpirar. Aquilo que a tornava mais pungente eram as semelhanças flagrantes entre os dois casos e não apenas no que dizia respeito ao dramatismo dos ataques ou às paragens cardíacas. Jeffrey lembrava-se com uma nitidez espantosa do momento em que notara a salivação e o lacrimejar de Patty. E além disso havia as dores abdominais e as pupilas mióticas. Nenhuma daquelas reacções era um efeito secundário usual nos anestésicos locais, embora estes fossem susceptíveis de causar uma enorme variedade de efeitos negativos, tanto neurológicos como cardiológicos, em alguns indivíduos menos afortunados.

Jeffrey estudou a página seguinte dos apontamentos. Havia várias palavras inscritas em maiúsculas. Duas delas eram “muscarínico” e “nicotínico”. Jeffrey reconheceu-as, sobretudo dos seus tempos de escola médica. Tinham a ver com a função do sistema nervoso autónomo. Depois havia a frase “bloqueamento irreversível da zona espinal superior com envolvimento do nervo craniano”, seguida de uma série de pontos de exclamação.

Jeffrey ouviu o carro de Kelly aproximar-se de casa e entrar na garagem. Olhou para o relógio. Ela era despachada a fazer as compras.

O ponto seguinte das notas de Chris era um relatório sobre RMN

— ressonância magnética nuclear — que dizia respeito a Henry Noble durante o tempo que estivera paralisado e em estado de coma.

— Olá — disse Kelly alegremente, ao entrar. — Sentiste a minha falta? — Riu-se enquanto pousava um embrulho na bancada da cozinha. Depois foi pôr-se atrás do sofá e olhou por cima do ombro de Jeffrey. — Que é que tudo isso quer dizer? — Apontou para as palavras e frases que Jeffrey estivera a ler.

— Não sei — admitiu Jeffrey. — Mas estas notas são fascinantes. Há tantas semelhanças entre o caso do Chris e o meu. Não sei que conclusões tirar.

— Bom, estou satisfeita por isso poder ter utilidade para alguém

— rematou Kelly voltando para a cozinha. — Faz-me sentir menos maníaca em ter guardado tudo isso.

— Não acho que tenhas sido maníaca ao guardar estas coisas -” ripostou Jeffrey, virando a página. Seguia-se um resumo dactilogra’ fado da autópsia de Henry Noble, que fora realizada pelo médico averiguador. Chris sublinhara a frase “degenerescência dos axónios vista em secções microscópicas” e pusera-lhe a seguir uma série de pontos je interrogação. Depois sublinhara a frase “toxicologia negativa”, assinalando-a com um ponto de exclamação bastante enfático. Jeffrey estava confuso.

As restantes notas eram resumos de artigos tirados sobretudo do manual de farmacologia de Goodman e Gillman. Uma leitura rápida sugeriu a Jeffrey que se ocupavam sobretudo da função do sistema nervoso automático. Resolveu analisar todo aquele material mais tarde. Empilhou os papéis em cima da mesa, por baixo dos dois livros.

Depois Jeffrey foi juntar-se a Kelly, que estava na cozinha, ao pé do lava-loiça.

— Que é que eu posso fazer? — perguntou.

— Devias estar a descansar — disse Kelly, passando a alface por água.

— Preferia ajudar — replicou Jeffrey.

— Como quiseres. Podias acender o grelhador que está no alpendre das traseiras. Os fósforos estão naquela gaveta. — Kelly apontou a gaveta com uma folha de alface.

Jeffrey pegou numa carteira de fósforos e saiu. O barbecue era dos redondos, com uma botija de gás propano. Ele descobriu rapidamente como trabalhava a válvula e acendeu-a, fechando depois a tampa abobadada.

Antes de voltar para dentro, Jeffrey olhou em volta para o jardim mal cuidado. A erva alta era de um verde tenro e primaveril. Chovera bastante naquela Primavera e toda a vegetação estava particularmente saudável e exuberante. Viam-se os fetos arrendados no meio dos massiços de árvores.

Jeffrey sacudiu a cabeça, incrédulo. Parecia-lhe quase inconcebível que na noite anterior tivesse estado tão perto de cometer suicídio. E ainda naquela mesma tarde tentara fugir para a América do Sul. Agora estava ali no alpendre de uma casa de Brookline, preparando-se para comer um jantar de grelhados com uma mulher atraente, sensível e de uma espontaneidade desconcertante. Quase lhe parecia bom de mais para ser verdade. Mas logo compreendeu com um sobressalto que era verdade e que não tardaria muito a estar provavelmente Achado numa prisão.

Jeffrey inspirou profundamente o ar fresco de fim de tarde, sabotando-lhe a pureza. Viu um pisco arrancar um verme do chão húmido Depois voltou para dentro para ver que mais podia fazer para ajudar.

. O jantar estava delicioso e foi um verdadeiro sucesso. Apesar das

circunstâncias difíceis, Jeffrey sentiu-se tremendamente bem. A conversa com Kelly era natural e fácil. Jantaram bifes de atum marina com arroz pilaf e salada mista. Kelly tinha uma garrafa de Chardonnay

89 escondida no fundo do frigorífico. O vinho era fresco e leve. Jeffrey deu consigo a rir, pela primeira vez nos últimos meses. Só isso, em si já era um êxito.

Com café e mais uma fatia de tarte de queijo congelada, voltára para o sofá de riscas. Os apontamentos e os manuais de Chris encaminharam de novo o espírito de Jeffrey para assuntos mais sérios.

—Detesto começar outra vez a falar de coisas desagradáveis—disse Jeffrey, depois de uma pausa na conversa —, mas como é que foi o caso do Chris?

— O pagamento do espólio do queixoso foi dividido entre o hospital, Chris e o cirurgião, segundo um plano bastante complicado. Foi o seguro de Chris é que pagou quase tudo, mas não tenho a certeza. Felizmente esta casa estava só em meu nome e não puderam encluí-la nos bens disponíveis dele.

— Li o resumo que o Chris escreveu — disse Jeffrey. — É evidente que não houve qualquer incúria.

— Num caso tão emocionalmente carregado — explicou Kelly o facto de haver incúria ou não deixa de ser assim tão importante. Um bom advogado de acusação pode sempre levar o júri a identificar-: com o paciente.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Infelizmente era verdade.

— Queria pedir-te um favor — disse depois de uma pausa. — Importavas-te muito de me emprestar estas notas?—perguntou,batendo na pilha dos apontamentos.

—Claro que não—replicou Kelly. — Leva-as à vontade. Posso saber por que é que estás tão interessado?

— Fazem-me lembrar certas perguntas que eu tinha feito a mim mesmo sobre o meu caso—disse Jeffrey. —Houve umas pequenas incongruências que nunca consegui explicar. Surpreende-me ver que as mesmas inconsistências surgiram no caso do Chris. A ideia de um contaminante nunca me ocorreu. Gostava de estudar melhor as notas dele. O que ele estava a pensar não é de uma evidência imediata. Além disso — acrescentou Jeffrey com um sorriso —, o facto de as levar comigo também é uma boa desculpa para cá voltar.

—Não precisas de arranjar pretextos—ripostou Kelly.—És sempre bem-vindo.

Jeffrey foi-se embora pouco depois de terem comido a sobremesa. Kelly acompanhou-o ao carro. Tinham comido tão cedo que lá fora ainda havia luz do dia. Jeffrey agradeceu-lhe efusivamente a sua hospitalidade espontânea. — Não fazes ideia como gostei desta visita -” disse com sinceridade.

Depois de Jeffrey ter entrado no carro, levando a pasta que agora continha os apontamentos de Chris, Kelly meteu a cabeça pela janela aberta.

— Não te esqueças do que prometeste! — preveniu. — Se começares com ideias tolas, tens de te pôr imediatamente em contacto comigo.

—Eu não me esqueço—garantiu-lhe Jeffrey. E dirigiu-se a casa, cheio de um contentamento sereno. As poucas horas que passara com Kelly tinham contribuído muito para lhe levantar o moral. Dadas as circunstâncias estava espantado por ter conseguido reagir de uma maneira normal. Mas também sabia que isso tinha mais a ver com o espírito de Kelly que com o seu. Ao descrever a curva final para entrar na rua onde morava, Jeffrey estendeu a mão para segurar a pasta que ameaçava cair do banco. Ainda com a mão em cima da pasta pensou no seu estranho conteúdo. Artigos de toilette, roupa interior, 45 000 dólares em dinheiro e uma pilha de apontamentos escritos por uma vítima de suicídio.

Embora não esperasse encontrar nas notas nada que o fizesse absolver, o simples facto de as ter na sua posse enchia-o de esperança. Talvez a experiência de Chris lhe desse a conhecer alguma coisa que ele por si não conseguira ver.

E embora tivesse sentido pena de dizer adeus a Kelly, Jeffrey estava contente por chegar cedo a casa. Tencionava ler com mais atenção as notas de Chris e escolher alguns livros seus para uma leitura séria.

 

                         3.a feira, 16 de Maio de 1989, 19:49

Jeffrey parou junto da porta da garagem, saiu do carro e espreguiçou-se. Sentia o cheiro do oceano. Na sua qualidade de península projectada para dentro do Atlântico, toda a superfície de Marblehead ficava próxima da água. Inclinando-se para dentro do carro, Jeffrey arrastou para fora a pasta e levantou-a no ar. Em seguida, fechou a porta do carro e começou a subir os degraus que levavam à porta principal.

Enquanto caminhava, Jeffrey notou a beleza que o rodeava. Pássaros canoros trinavam como loucos na árvore verdejante que ficava diante do relvado e uma gaivota, à distância, soltou o seu grito. Um maciço de rododendros estava em plena floração numa explosão de cor, ao longo da fachada da casa. Absorto nos seus problemas ao longo dos últimos meses, Jeffrey perdera completamente a transição maravilhosa do Inverno desolado da Nova Inglaterra para a sua Primavera gloriosa. Estava a apreciá-la naquele momento pela primeira vez nesse ano. O efeito da visita a Kelly estava ainda bem presente no seu espírito.

Chegado à porta principal, Jeffrey lembrou-se da mala. Hesitou um momento e depois decidiu que iria buscá-la mais tarde. Meteu a chave na fechadura e entrou.

Carol estava de pé na entrada, com as mãos nos quadris. Viu logo pela expressão dela que estava zangada. “Bem-vindo a casa” pensou Jeffrey. “Como é que passaste o dia?”. Pôs a pasta no chão.

—São quase oito horas—disse Carol sem conseguir disfarçar a impaciência.

— Eu sei as horas que são.

— Onde é que estiveste?

Jeffrey pendurou o casaco. O ar inquisitorial de Carol irritava-o. Talvez ele devesse ter telefonado. Noutros tempos tê-lo-ia feito, mas o tempo que estavam a viver não era de todo normal.

— Eu não te pergunto onde estiveste — comentou Jeffrey.

—Se por alguma razão eu me atraso até às oito horas da noite, telefono sempre — disse Carol. — É uma simples questão de delicadeza.

.— Devo ser eu que não sou delicado — ripostou Jeffrey. Estava demasiado cansado para discutir. Pegou na pasta com a intenção de ir directamente para o quarto. Não lhe interessava entrar em discussão com Carol. Mas entretanto parou. Um indivíduo corpulento tinha aparecido, encostando-se com ar natural à ombreira da porta que dava para a cozinha. Os olhos de Jeffrey registaram imediatamente o rabo de cavalo, a roupa de ganga, as botas de cowboy e as tatuagens. Tinha também um brinco de ouro numa das orelhas e na mão uma garrafa de Kronenburg.

Jeffrey deitou um olhar interrogador a Carol.

—Enquanto tu andaste lá por fora a fazer sabe Deus o quê — atalhou Carol —, eu tenho estado aqui a aturar este brutamontes. E tudo por tua causa. Onde é que andaste?

Os olhos de Jeffrey iam de Carol para o desconhecido e depois novamente para Carol. Não fazia a menor ideia do que se estava a passar. O desconhecido piscou o olho e sorriu perante a referência pouco lisonjeira de Carol, como se tivesse recebido um cumprimento.

— Eu também gostaria de saber onde é que você andou, meu caro —disse o grandalhão.—Porque onde você não esteve já eu sei. — Bebeu uma golada de cerveja e sorriu. Tinha o ar de estar a divertir-se imenso.

—Quem é este homem?—perguntou Jeffrey, dirigindo—se a Carol.

—Devlin O’Shea—anunciou o homem. Deixou a ombreira da porta e foi colocar-se ao lado de Carol. —Eu e aqui a nossa linda patroazinha estamos há horas à sua espera. — Estendeu o braço para beliscar a face de Carol, mas ela afastou-lhe a mão com uma palmada. — Criaturinha arisca. — E riu-se.

—Eu quero saber o que é que se está a passar aqui—inquiriu Jeffrey.

— O Sr. O’Shea é um encantador emissário do Sr. Michael Mosconi — disse Carol, furiosa.

— Emissário? — inquiriu Devlin. — Ah, gosto disso. Tem um som muito sexy.

, —Foste ao banco procurar o Dudley?—perguntou Carol, ignorando Devlin.

Claro — disse Jeffrey. De repente, compreendeu a presença de Uevlin naquela casa.

E que é que se passou? — perguntou Carol.

- Sim, que foi que aconteceu? — repetiu Devlin. — As nossas fontes informaram-nos que não houve depósito nenhum como estava prometido. É um grande aborrecimento.

—Surgiu um problema...—tartamudeou Jeffrey. Não estava preparado para aquele interrogatório.

— Que espécie de problema? — perguntou Devlin, dando um passo em frente e tocando repetidas vezes com o indicador no peito de Jeffrey, como que a pressioná-lo. Sentia que Jeffrey estava a esconder qualquer coisa.

— Burocracia — ripostou Jeffrey, tentando afastar-se dos golpes de Devlin. —A burocracia que há sempre nos bancos.

— E se eu não acreditar naquilo que me está a dizer? — comentou Devlin. Assentou uma palmada, de lado, na cabeça de Jeffrey com a mão aberta.

Jeffrey levou a mão à orelha. A pancada deixara-o magoado e assustado. O ouvido zumbia-lhe.

— Você não pode entrar por aqui dentro e tratar-me dessa forma — disse Jeffrey, tentando mostrar-se autoritário.

— Ah não? — replicou Devlin num tom forçadamente agudo. Passou a cerveja para a mão direita e com a esquerda deu nova palmada em Jeffrey, do outro lado da cabeça. O movimento foi tão rápido que Jeffrey não teve tempo de reagir. Cambaleou para trás, de encontro à parede, recuando diante daquele mastodonte.

—Deixe-me que lhe recorde uma coisa—disse Devlin com os olhos postos em Jeffrey. —Você é um criminoso condenado, meu amigo, e a única razão por que não está neste momento a apodrecer numa prisão é graças à generosidade do Sr. Mosconi.

— Carol! — gritou Jeffrey. Sentia um misto de terror e fúria. — Chama a polícia!

— Ha! — riu-se Devlin, atirando a cabeça para trás. — Chama a polícia! Você é de mais, Doutor! Palavra. Eu é que tenho a lei atrás de mim, você não. Eu estou aqui na qualidade de... —Devlin fez uma pausa e depois olhou novamente para Carol. — Olhe, minha querida, que foi que me chamou há bocado?

— Emissário — disse Carol, esperando acalmar o homem. Esta estupefacta com aquela cena e não sabia o que fazer.

—É como ela disse. Eu sou um emissário—repetiu Devlin, voltando-se novamente para Jeffrey.—Sou um emissário para lhe recordar do seu acordo com o sr. Mosconi. Ele ficou um bocado decepcionado esta tarde quando telefonou para o banco. Que foi que aconteceu ao dinheiro que devia ter sido depositado na sua conta à ordem?

— A culpa foi do banco — repetiu Jeffrey. Esperava em Deus que o gigante não abrisse a pasta que ele tinha na mão. Se visse o dinheiro descobria logo que Jeffrey tinha planeado fugir. — Foi um pormenor sem importância, questão de papelada, mas o dinheiro vai ser depositado amanhã logo de manhã. Os papéis já estão todos em ordem —Você não está a tentar enganar-me, pois não?—perguntou Devlin. Raspou a extremidade do nariz de Jeffrey com a unha do indicador. Jeffrey estremeceu. Tinha a sensação de ter sido picado na ponta do nariz por uma abelha.

— Eles garantiram-me que não haveria mais problemas — declarou Jeffrey. Tocou na ponta do nariz e depois olhou para o dedo. Esperava ver sangue, mas não.

— Então o dinheiro está lá amanhã de manhã?

— Sem dúvida nenhuma.

—Bom, nesse caso vou andando — disse Devlin. —Nem vale a pena dizer que se o dinheiro não aparecer, eu volto. — Devlin voltou as costas a Jeffrey e aproximou-se de Carol. Estendeu-lhe a garrafa de cerveja. — Obrigado pela bebida, querida.

Carol pegou na garrafa. Devlin tentou mais uma vez beliscar-lhe a face. Carol tentou dar-lhe uma bofetada, mas ele agarrou-lhe o braço.

— Não há dúvida que é mesmo selvagem — disse, rindo-se. E soltou-lhe o braço com uma sacudidela.

— Tenho a certeza de que ficam os dois cheios de pena de eu me ir embora — disse Devlin da porta. — Adorava ficar para jantar, mas prometi encontrar-me com um grupo de freiras no Rosalie’s. —Soltou uma risada roufenha enquanto fechava a porta atrás de si.

Durante alguns momentos, nem Carol nem Jeffrey se mexeram. Ouviram um carro pôr-se em marcha lá fora na rua e depois afastar-se. Carol foi a primeira a quebrar o silêncio.

— Que foi que aconteceu no banco? — perguntou. Estava furiosa. — Por que é que eles não tinham o dinheiro para te dar?

Jeffrey não respondeu. Ficou a olhar para a mulher, em silêncio. Ainda tremia, em reacção às atitudes de Devlin. O equilíbrio entre a ira e o terror inclinara-se para o lado do terror. Devlin era a encarnação dos piores receios de Jeffrey, especialmente depois de ter compreendido que não tinha qualquer defesa contra ele, nem protecção Por parte da lei. Devlin era exactamente o tipo de pessoa que Jeffrey imaginava que devia povoar as prisões. Ficara surpreendido por ele não ter ameaçado quebrar-lhe as rótulas. Apesar do nome irlandês, Parecia saído directamente da Máfia.

— Responde-me! — exigiu Carol. — Onde é que estiveste? Sempre com a pasta na mão, Jeffrey encaminhou-se para o seu

quarto. Queria estar sozinho. A visão do pesadelo de uma prisão cheia e indivíduos iguais a Devlin abateu-se sobre ele como um turbilhão estonteante.

Carol agarrou-o pelo braço.

- Estou a falar contigo! — advertiu.

Jeffrey parou e olhou para a mão de Carol que lhe agarrava o braço.

— Larga-me — disse numa voz perfeitamente controlada.

— Só quando falares comigo e me disseres onde estiveste.

— Larga-me — disse Jeffrey num tom ameaçador. Prudentemente, Carol largou-lhe o braço. Ele encaminhou-se bruscãmente para o quarto. Ela seguiu-o, rápida.

—Tu não és o único que tem tido problemas—gritou-lhe. — Já disse que mereço uma explicação. Tive de aturar aquele animal durante horas.

Jeffrey parou à porta do quarto.

— Peço-te desculpa — disse. Devia-lhe isso. Carol estava mesmo atrás dele.

— Acho que tenho sido bastante compreensiva no meio de tudo isto —disse Carol. —Agora quero saber o que aconteceu no banco. Ontem o Dudley disse que não ia haver problemas.

— Depois falamos disso. — Precisava de alguns minutos para se acalmar.

— Eu quero falar agora — insistiu Carol.

Jeffrey abriu a porta e entrou para o quarto. Carol tentou empurrar a porta, mas Jeffrey bloqueou-lhe a passagem.

—Mais tarde! — disse, mais alto do que tencionava. E fechou-lhe a porta na cara. Carol ouviu o barulho da chave.

No meio da sua frustração pôs-se a bater com os punhos na porta e depois começou a chorar.

— És impossível! Não sei por que é que resolvi esperar para pedir o divórcio. É este o agradecimento que recebo. — Soluçando, deu um pontapé na porta e depois correu em direcção ao quarto dela, corredor fora.

Jeffrey atirou com a pasta para cima da cama, depois sentou-se ao lado. Não tinha querido exasperar Carol, mas não conseguia evitá-lo Como é que lhe podia explicar aquilo que se estava a passar quando havia anos que não comunicavam verdadeiramente um com o outro? Sabia que lhe devia uma explicação, mas não queria abrir-se com ela antes de ter a certeza do que ia fazer. Se lhe dissesse que tinha o dinheiro na mão, ela ia obrigá-lo a levá-lo imediatamente ao banco Mas Jeffrey precisava de pensar primeiro. Com aquilo que sentia pela quadragésima vez só naquele dia, não estava certo do que iria acabar por fazer.

Entretanto, levantou-se de cima da cama e foi à casa de banho. Encheu um copo com água e segurou-o com as duas mãos enquanto bebia. Ainda tremia no meio daquele turbilhão de emoções. Olhou-se no espelho. Tinha um arranhão na ponta do nariz, no sítio que Devlin raspara com a unha. Tinha as duas orelhas vermelhas e brilhantes.

Estremeceu ao lembrar-se de como se sentira indefeso diante do outro.

Jeffrey voltou ao quarto e olhou para a pasta. Abrindo os fechos, levantou-lhe a tampa e empurrou para o lado os apontamento de Chris Everson. Olhou para os pacotes bem alinhados de notas de cem dólares e deu consigo a lamentar não se ter deixado ficar no avião naquela tarde. Se o tivesse feito, naquele momento iria a caminho do Rio e de uma vida nova. Fosse o que fosse, tinha de ser melhor que aquilo que estava a passar agora. Os momentos cheios de calor humano que passara junto de Kelly, o excelente jantar, tudo isso parecia que lhe tinha acontecido numa outra vida.

Olhando para o relógio, Jeffrey notou que passava pouco das oito. O último avião regular da Pan American era às nove e meia. Ainda podia apanhá-lo se não se demorasse.

Lembrou-se de como se sentira mal no avião nessa tarde. Seria realmente capaz de ir até ao fim? Jeffrey entrou novamente na casa de banho e examinou as orelhas inflamadas e o nariz arranhado. De que mais seria capaz um homem como Devlin se ficassem fechados na mesma cela, dia após dia? Jeffrey deu meia volta e foi buscar a pasta. Baixou-lhe a tampa e correu os fechos. Ia para o Brasil.

Quando Devlin saiu da casa dos Rhodes, ia plenamente decidido a seguir o seu plano original quanto à comida italiana e depois as cervejas no cais. Mas depois de percorrer uns três quarteirões, a intuição levou-o a encostar o carro. Em espírito, reviu a conversa que tivera com o bravo médico. A partir do momento em que Jeffrey culpara o banco por não lhe ter arranjado o dinheiro, Devlin compreendeu que ele estava a mentir. Agora perguntava a si próprio porquê.

— Médicos! — disse Devlin. —Acham sempre que são mais espertos que toda a gente.

Fazendo uma inversão de sentido de marcha, Devlin voltou pelo caminho por onde tinha vindo e passou devagarinho diante da casa dos Rhodes, tentando encontrar uma linha de procedimento. Cerca de um Quarteirão mais à frente, mudou novamente de sentido e foi passar outra vez diante da casa. Desta vez abrandou. Encontrou um sítio para estacionar e meteu lá o carro.

Segundo a sua maneira de ver, tinha duas hipóteses. Ou voltar lá a casa e perguntar ao médico porque é que estava a mentir, ou ficar ali sentado e quieto e esperar um bocado. Sabia que tinha assustado o indivíduo. Fora essa a sua intenção.

Muitas vezes as pessoas que se sentiam culpadas em relação a qualquer coisa reagiam à confrontação cometendo rapidamente um acto que as denunciava. Devlin resolveu ficar à espera de Rhodes. Se não acontecesse nada dentro de uma hora, mais ou menos, ia comer qualquer coisa e depois voltava para uma visita.

Desligando o motor, Devlin escondeu-se o melhor que pôde deixando-se escorregar atrás do volante. Pôs-se a pensar em Jeffrey Rhodes perguntando a si mesmo qual seria a condenação. Mosconi não lhe tinha dito nada. Para Devlin, Rhodes não parecia ter tipo de criminoso, nem mesmo de ladrão de casaca.

Os mosquitos vieram interromper as lucubrações de Devlin. Fechou as janelas e a temperatura no interior do carro subiu. Devlin começou a repensar os seus planos. Quando se preparava para pôr o carro em movimento, viu que alguma coisa se mexia do outro lado da garagen

—Que é que temos agora?—disse, escondendo-se ainda mais pélo assento abaixo.

A princípio Devlin não conseguiu perceber quem era, se homem ou mulher. Mas depois Jeffrey destacou-se do fundo da garagem e encaminhou-se a direito para o carro. Levava com ele a mesma pasta, avançava todo encurvado como se não quisesse ser visto de dentro da casa.

—Isto está a ficar interessante—sussurrou Devlin. Se Devlin conseguisse provar que Jeffrey estava a querer fugir apesar de estar sób fiança e o arrastasse para a prisão, ia ganhar bom dinheiro.

Sem fechar a porta do carro, com medo que Carol o pudesse ouvi-lo, Jeffrey soltou o travão de mão e deixou o carro deslizar silenciosamente até à rua. Só nessa altura ligou o motor e partiu. Inclinou o pescoço para olhar para a casa e deixou-se ficar assim até poder, mas Carol não apareceu. Um quarteirão mais adiante, fechou a porta com devia ser e pôs o cinto. Afinal tinha sido mais fácil do que pensava

Quando Jeffrey chegou à congestionada Lynn Way, com os seus parques de carros usados e os reclames de néon berrantes, começou acalmar. Ainda estava um tanto abalado com a visita de Devlin, mas era um alívio saber que não tardaria a deixar para trás aquele indvíduo, e a ameaça da prisão.

Quando se aproximou do Aeroporto Internacional de Logan, começou a sentir as mesmas apreensões da manhã. Mas bastou-lhe tocar nas orelhas doridas para fortalecer a decisão. Desta vez tinha de ir até ao fim, fossem quais fossem os seus remóços de consciência, chegasse onde chegasse o seu estado de ansiedade.

Jeffrey ainda tinha alguns minutos de espera e foi ao balcão das passagens mudar o bilhete para o Rio de Janeiro. Sabia que o bilhete para Nova Iorque era o mesmo, mas o voo nocturno para o Rio de Janeiro era mais barato que o voo da tarde e Jeffrey recebeu de volta uma importância considerável.

Com o bilhete na boca, a mala numa mão e a pasta na outra, dirigiu-se rapidamente ao controlo de segurança. Tinha demorado mais do que pensara a trocar o bilhete e não queria de maneira nenhuma perder aquele voo.

Jeffrey foi directamente à máquina de raios-X e pôs a mala no tapete rolante. Ia fazer a mesma coisa com a pasta, quando alguém lhe agarrou o colarinho pela parte de trás.

—Vai de férias, Doutor? — perguntou Devlin com um sorriso irónico. Arrancou o bilhete de avião da boca de Jeffrey.

Sempre a segurar-lhe o colarinho com a mão esquerda, Devlin abriu a capa do bilhete e leu o destino do mesmo. Quando viu Rio de Janeiro, disse “Bingo!” com um sorriso aberto. Já se via a si próprio diante das mesas de jogo de Lãs Vegas. Estava a caminho do dinheiro.

Enfiando o bilhete de Jeffrey no bolso do blusão de ganga, Devlin levou a mão à algibeira de trás e puxou das algemas. As pessoas que tinham formado bicha atrás de Jeffrey para chegarem à máquina de raios-X ficaram a olhar, de boca aberta, sem acreditarem.

A visão familiar das algemas arrancou Jeffrey ao seu estado de paralisia. Num movimento repentino e inesperado fez rodar a pasta num círculo violento dirigido contra Devlin. Este, concentrado na tarefa de abrir as algemas, não se apercebeu do golpe.

A pasta apanhou Devlin na têmpora esquerda, mesmo acima da orelha, atirando-o de encontro à máquina de raios-X. As algemas caíram ruidosamente no chão.

A empregada de serviço aos raios-X soltou um grito. Um oficial da polícia estatal, em uniforme, levantou os olhos da página desportiva do Herald. Jeffrey fugiu como um coelho, numa corrida louca, outra vez em direcção ao terminal e ao balcão dos bilhetes. Devlin levou a mão à cabeça e quando a retirou vinha suja de sangue.

Para Jeffrey era como uma corrida de estafeta, enquanto tentava desviar-se dos passageiros, evitando alguns e chocando com outros. Quando chegou à bifurcação com o terminal propriamente dito, olhou Para trás, para a área de segurança. Viu Devlin, que apontava na sua direcção, com o polícia de uniforme a seu lado. Havia outras pessoas que olhavam na direcção de Jeffrey, sobretudo aquelas com quem chocara.

Na frente de Jeffrey havia uma escada rolante que trazia as pessoas do andar de baixo. Correu para lá e começou a descer empurrando Para o lado os passageiros, furiosos, e as suas bagagens. Em baixo, no piso das chegadas, havia uma multidão que andava de um lado Para o outro, pois acabavam de aterrar diversos voos. Serpenteando Pelo meio dos recém-chegados, Jeffrey contornou a área das bagagens, o mais depressa que lhe foi possível, e correu para a rua através das portas electrónicas.

Arquejante, parou à beira do passeio, tentando decidir para onde havia de se encaminhar. Sabia que tinha de sair imediatamente do aeroporto. A questão era como. Havia uma fila de táxis ali mesmo ao pé, mas também havia uma longa fila de pessoas à espera. Jeffrey não tinha muito tempo. Podia ir a correr até ao estacionamento e buscar o carro, mas alguma coisa lhe dizia que se ia meter num beco sem saída. Para começar, Devlin devia saber onde é que ele o tinha deixado. O mais provável era que o tivesse seguido até ao aeroporto. De outra forma, como é que poderia saber onde o encontrar?

Enquanto Jeffrey pesava as suas alternativas, o autocarro interterminais avançava pesadamente rua abaixo. Sem hesitar um segundo, Jeffrey correu para o meio da rua e postou-se diante do autocarro, agitando freneticamente os braços.

O autocarro parou, com os travões a guinchar. O condutor abriu a porta. Logo que Jeffrey entrou, disse-lhe:

—Oh homem, o senhor é estúpido ou endoideceu e eu sinceramente prefiro que seja estúpido pois não me agradava nada ter um passageiro chanfrado. —Sacudiu a cabeça, incrédulo, fez a mudança respectiva e acelerou.

Segurando-se à prateleira das bagagens, Jeffrey inclinou-se para olhar pela janela. Avistou Devlin e o polícia que abriam caminho pelo meio da multidão na saída das bagagens. Jeffrey nem acreditava na sorte que tivera. Não o tinham visto.

Sentou-se e pôs a pasta no colo. Ainda estava ofegante. A paragem seguinte era no terminal central que servia Delta, United e TWA. Foi aí que Jeffrey saiu. Evitando o trânsito, correu para a fila de táxis. Tal como antes, havia um grande número de pessoas à espera.

Jeffrey hesitou um momento, analisando todas as alternativas. Ganhando coragem, dirigiu-se para o expedidor de táxis.

— Sou médico e preciso de um táxi imediatamente — disse com toda a autoridade que conseguiu chamar a si. Mesmo em situações de emergência, Jeffrey não gostava de se aproveitar do seu estatuto profissional.

Com um bloco de mola e uma ponta de lápis na mão, o homem olhou-o de cima a baixo. Sem uma palavra, apontou para o táxi que ocupava a posição seguinte na fila. Enquanto Jeffrey embarcava apressadamente, algumas das pessoas que aguardavam puseram-se a resmungar.

Jeffrey fechou a porta do táxi. O condutor olhou para ele pelo espelho retrovisor. Era um homem novo, de cabelos compridos e finos.

— Para onde é? — perguntou.

Enterrando-se no assento, Jeffrey disse-lhe simplesmente que saísse do aeroporto. O condutor deu meia volta para olhar de frente para ele.

— Preciso de um endereço, homem! — disse.

— Está bem... vamos para o centro.

— Para o centro onde? — perguntou o condutor irritado.

— Eu resolvo quando lá chegarmos — replicou Jeffrey, voltando-se para espreitar pelo vidro de trás. — Agora ande!

— Santo Deus! — murmurou o motorista, sacudindo a cabeça incrédulo. Estava duplamente irritado por ser uma distância tão pequena. Estava na praça à espera havia meia hora e tinha esperanças de conseguir um serviço para um lugar como Weston, por exemplo. E além de ser um percurso curto o tipo era meio excêntrico ou coisa ainda pior. Quando passaram por um carro da polícia na outra extremidade do terminal, Jeffrey deitou-se ao comprido no banco de trás. Era só o que lhe faltava: um maluco fugido.

Jeffrey levantou a cabeça devagar, embora o táxi já devesse ir bem longe do carro-patrulha. Voltou-se e espreitou pela janela de trás. Não parecia que fosse ninguém a segui-lo. Não havia barulho de sirenes nem luzes de faróis. Voltou-se de novo e olhou em frente. Caíra finalmente a noite. Em frente dele havia um mar de faróis traseiros balouçando-se na escuridão. Jeffrey tentou arrumar a cabeça e começar a pensar.

Teria agido bem? O seu primeiro reflexo fora pôr-se em fuga. Era compreensível o terror que sentia perante Devlin, mas deveria ter largado a correr, especialmente com a polícia ali?

Sobressaltado, lembrou-se de que Devlin lhe arrancara o bilhete, Prova de que ele tencionava fugir. Só isso era razão bastante para o Deterem na cadeia. Que efeito teria a tentativa de fuga no processo de recurso? Jeffrey não queria estar perto quando Randolph descobrisse.

Ele não conhecia bem os meandros da lei, mas uma coisa conseguia

compreender: com o seu comportamento ostensivo e indeciso conseguira transformar-se num verdadeiro fugitivo. Agora ia ter de enfrentar uma acusação totalmente separada, talvez mesmo uma série de

acusações.

O táxi enfiou pelo Sumner Tunnel. O trânsito era relativamente , por isso avançavam com certa rapidez. Jeffrey perguntava a si o se deveria procurar a polícia. Seria melhor admitir tudo e entregar-se? Talvez devesse dirigir-se para o terminal de autocarros e sair da cidade. Pensou em alugar um carro, pois dessa forma ficaria mais independente. O problema era que as únicas agências de aluguer de automóveis abertas àquela hora eram as do aeroporto.

Jeffrey não sabia o que fazer. Sentia-se completamente perdido. Todos os planos de acção que lhe ocorriam tinham desvantagens. E todas as vezes que pensava que tinha chegado ao fundo conseguia descobrir um pântano ainda mais profundo.

 

                                   3.a feira, 16 de Maio de 1989, 21:42

— Tenho boas notícias e más notícias — disse Devlin para Michael Mosconi. — Quais quer que lhe diga primeiro? — Devlin estava a falar de um dos telefones do aeroporto, na secção de bagagens, por baixo dos portões de embarque da Pan American. Passara o terminal a pente fino à procura de Jeffrey, sem resultado. O polícia tinha ido alertar os outros agentes de serviço ao aeroporto. Devlin ligara para Michal Mosconi para conseguir ajuda adicional. Devlin estava surpreendido por o médico ter tido a sorte de conseguir escapar.

— Não estou com disposição para brincadeiras — disse Mosconi irritado. — Diga o que tem a dizer e acabe lá com isso.

— Vamos lá, homem, anime-se. As boas notícias ou as más? — Devlin divertia-se a arreliar Mosconi porque ele era um alvo fácil.

— Vamos às boas — disse Mosconi furioso, a praguejar em voz baixa — , e espero que sejam mesmo boas.

— Depende do seu ponto de vista — disse Devlin alegremente. — As boas notícias é que você me deve umas massas. Há minutos impedi o nosso doutor de embarcar para o Rio de Janeiro.

— Não está a gozar comigo? — perguntou Mosconi.

— De maneira nenhuma... e tenho o bilhete dele para o provar!

— Essa é óptima, Dev! — disse Mosconi excitado. — Santo Deus, afiança dele são quinhentos mil dólares! Uma dessas tinha-me arruinado. Como diabo é que você fez isso? O que eu quero dizer é como é que você sabia que ele ia fugir? Tenho de me render. Você é espantoso,

— É bom saber que gostam de nós — replicou Devlin. — Mas está a esquecer das más notícias. — Devlin sorriu para o auscultador, antessedendo de antemão que a reacção de Mosconi não se faria esperar.

Houve uma pausa breve, antes de Mosconi dizer com um gemido:

— Está bem, venham as más notícias!

Neste momento, não sei onde está o nosso médico. Ainda está a solta por Boston. Eu agarrei-o, mas aquele patife enfezado bateu-me com a mala dele antes que eu lhe pusesse as algemas, veja, e é ele um médico.

— Você tem de o encontrar!—gritou Mosconi. — Por que raio é que, eu havia de ter confiado nele? Devia fazer um exame à cabeça.

—Já expliquei a situação à polícia do aeroporto — esclareceu Devlin.—Portanto devem estar à procura dele. O meu palpite é que o nosso doutor não vai tentar fugir outra vez. Pelo menos de Logan. Ah, mandei confiscar o carro dele.

—Quero que descubram esse tipo!—disse Mosconi em tom ameaçador. — Quero—o metido na cadeia. E depressa. Está a ouvir-me, Devlin?

— Oh homem, eu estou a ouvi-lo muito bem... o que não oiço é números nenhuns. Que é que você me oferece para eu meter na gaiola esse indivíduo perigoso?

— Pare com as brincadeiras, Dev!

—Eh, eu não estou a brincar. O doutor pode não ser assim tão peri goso, mas eu preciso de saber até que ponto é que você quer mesmo que se agarre o tipo. A melhor maneira de me explicar é através da recompensa que eu vou receber.

— Apanhe-o que depois falamos de números.

— Michael, por quem é que você me toma? Por algum idiota? Houve um silêncio pesado. Devlin interrompeu-o.

— Bom, acho que vou jantar. Depois sou capaz de ir a um espectáculo. Vemo-nos por aí, amigo.

— Espere! — gritou Michael. — Está bem... dividimos os honorários. Vinte e cinco mil.

— Dividimos os honorários? — repetiu Devlin. — Esse não é o preço habitual, meu caro amigo.

— Sim, mas este tipo também não é um dos assassinos armados e cheios de sangue-frio a que você está habituado.

—Não vejo qual a diferença — disse Devlin. — Se você chamar outra pessoa, é o dinheiro todo. O preço são cinquenta mil. Mas sempre lhe digo uma coisa. Já que nos conhecemos há tanto tempo, faço-o por quarenta mil e você pode ficar com dez mil por ter preenchido a papelada toda.

Mosconi detestava ceder, mas não estava em posição de regatear Está bem, seu patife — concordou. — Mas quero o doutor atrás das grades antes de confiscarem a fiança. Está a entender?

—Vou dar a minha melhor atenção ao caso — disse Devlin. — Especialmente agora que você insistiu em ser tão generoso. Entretanto temos que mandar fechar as saídas da cidade. O aeroporto já está, mas ainda falta o terminal de autocarros, os caminhos-de-ferro e agèncias de aluguer de automóveis.

—Eu vou falar para a polícia—replicou Mosconi.—Hoje deve ser o Albert Norstadt Queridos pais, está de serviço, portanto não há problema. Que é que você vai fazer agora?

— Vou vigiar a casa dele — disse Devlin. — Estou convencido de que ele ou aparece por lá ou telefona à mulher. Se telefonar, o mais natural é que ela vá ter onde ele estiver.

— Quando lhe deitar a mão, trate-o como se ele tivesse assassinado uma dúzia de pessoas — disse Mosconi. — Seja rijo com ele. Isto agora é mesmo a sério. Nesta altura, já pouco me importa que o traga vivo ou morto.

—Desde que você faça o necessário para ele não sair da cidade, eu apanho-o. Se tiver algum problema com a polícia, entre em contacto comigo pelo telefone do carro.

O estado de espírito do motorista do táxi em que ia Jeffrey melhorou quando o preço da corrida começou a aumentar. Incapaz de decidir para onde havia de ir, Jeffrey fez o homem andar às voltas por Boston. Enquanto contornavam pela terceira vez o Jardim de Boston, o taxímetro chegou aos trinta dólares.

Jeffrey tinha medo de ir para casa. Era esse com certeza o primeiro sítio onde Devlin o iria procurar. A verdade é que Jeffrey tinha medo de ir para onde quer que fosse. Tinha medo de procurar um autocarro ou um comboio, não fossem as autoridades estar já de sobreaviso. Tanto quanto sabia, todos os polícias de Boston podiam andar a procurá-lo.

Jeffrey pensou que podia tentar ligar para Randolph para ver o que é que o advogado poderia fazer—se é que podia fazer alguma coisa — para repor a situação no pé em que estava antes do episódio do aeroporto. Não se sentia lá muito optimista, mas era uma possibilidade que valia a pena tentar. Ao mesmo tempo, pensou que faria bem em ””para um hotel, embora não um dos melhores. Os bons hotéis deviam yir logo a seguir à casa na lista dos sítios onde Devlin tentaria encontrá-lo.

Inclinando-se para a frente de encontro à divisória de Plexiglas, Perguntou ao taxista se sabia de algum hotel barato. O homem ficou Um momento a pensar.

— Bom — disse —, há o Plymouth Hotel. O Plymouth era um grande motel.

Uma coisa menos conhecida. Não me importo que seja um bocado duvidoso. Estou à procura de qualquer coisa de retirado, de preferència desconhecido.

Tem o Essex — disse o taxista. Onde é que isso fica? — perguntou Jeffrey. Do outro lado da frente de batalha — respondeu o condutor.

Olhou para Jeffrey pelo espelho retrovisor para ver se encontrava um lampejo de compreensão. O Essex era uma lixeira, mais parecia um albergue que um hotel. Era frequentado por muitas das prostitutas da zona.

— Quer dizer que é assim um bocado para o lado do reles? — perguntou Jeffrey.

— Sim, não creio que me interessasse conhecer nada mais ralé ainda.

— Parece-me perfeito — concluiu Jeffrey. — Vamos para lá. Chegou-se para trás. O facto de nunca ter ouvido falar no Essex parcia-lhe encorajador, pois havia bem vinte anos que se movia na zona de Boston, precisamente desde que entrara para a escola médica.

O condutor tomou uma rua à esquerda que saía da Rua Arlington meteu pela Boylston e continuou para a parte baixa. Aí as coisas começaram a descer na vertical. Contrastando com as zonas elegantes qi, se encontravam em volta do jardim de Boston, havia edifícios abandonados, lojas de pornografia e ruas cheias de lixo. Gente sem casa espalhava-se pelas ruelas e agrupava-se nas entradas dos prédios. Quando o táxi parou diante de um semáforo, uma rapariga com a cara cheia de borbulhas e uma saia obscenamente curta levantou as sombrancelhas, para Jeffrey de modo sugestivo. A julgar pelo aspecto não parecia ter mais de 15 anos.

O reclame luminoso em frente do Essex Hotel encontrava-se adequadamente transformado em SEXEL; as restantes letras estavam apagadas. Vendo até que ponto o lugar tinha um ar decrépito, Jeffrey hesitou momentaneamente. Espreitando pela janela, ainda de dentro da segurança do seu táxi, analisou tristemente a fachada de tijolo do hotel. “Duvidoso” era um adjectivo demasiado optimista. Um bèbado, ainda agarrado à garrafa embrulhada em papel pardo, estava inanimado do lado direito dos degraus da entrada.

— Disse que queria um sítio barato — recordou o taxista. —E barato é.

Jeffrey estendeu-lhe uma nota de cem dólares que tirou da pasta

— Não tem mais pequeno? — queixou-se o taxista. Jeffrey sacudiu a cabeça.

— Não tenho quarenta e dois dólares.

O homem suspirou e deu a Jeffrey o troco num ritual elaborado de passividade agressiva. Pensando que seria melhor não deixar no rasto um taxista mal-disposto, Jeffrey deu-lhe dez dólares a mais. E até agradeceu e desejou-lhe uma boa noite antes de se ir embora.

Jeffrey estudou uma vez mais o hotel. À direita havia um edifício vazio cujasjanelas, exceptuando as do rés-do-chão, estavam coberta” com tabiques. No rés-do-chão ficava uma casa de penhores e uma loja de vídeo do pior que havia. À esquerda havia um edifício de escritórios, no mesmo estado de decadência que o prédio do hotel. A seguir ao edifício de escritórios, encontrava-se uma loja de bebidas com as janelas protegidas por grades, como uma fortaleza. Mais para lá da loja de bebidas via-se um terreno baldio coberto de lixo e tijolos partidos.

Com a pasta na mão e um ar nitidamente deslocado, Jeffrey subiu os degraus e entrou no Essex Hotel.

O interior era tão distinto como o exterior. O mobiliário da entrada consistia num único sofá gasto e meia dúzia de cadeiras de dobrar, em metal. Um telefone público era a única decoração das paredes. Havia um elevador, mas um letreiro atravessado na porta dizia “AVARIADO”. Ao lado do elevador via-se uma porta com uma janela de vidro armado que dava para uma escada. Com o estômago apertado, Jeffrey aproximou-se da recepção.

Por detrás do balcão, um homem de pouco mais de 60 anos, miseravelmente vestido, olhou-o com desconfiança. Só os traficantes de droga apareciam no Essex com pastas na mão. O homem estava a seguir um programa numa televisão pequena a preto e branco com antena interior. Tinha os cabelos desalinhados e uma barba de três dias. Estava de gravata, mas afastada do colarinho e com uma série de nódoas de gordura na parte inferior.

—Que deseja?—perguntou, mirando Jeffrey de alto a baixo. Também não parecia interessado naquilo que alguém pudesse desejar.

Jeffrey fez que sim com a cabeça.

— Queria um quarto.

— Tem reserva? — perguntou o homem.

Jeffrey não queria acreditar que ele estivesse a falar sério. Reservas numa casa de passe como aquela? Mas não quis ofendê-lo. Resolveu entrar no jogo.

— Não, não tenho reserva.

— Os preços são dez dólares à hora e vinte e cinco por uma noite — Aplicou o homem.

— E se forem duas noites? — disse Jeffrey. O homem encolheu os ombros.

— Cinquenta dólares mais a taxa, adiantados.

Jeffrey assinou “Richard Bard”. Deu ao empregado o troco que já recebera do táxi e acrescentou-lhe cinco dólares e alguns trócos que tinha na carteira. O homem deu-lhe uma chave com uma corrente garrada e uma placa de metal com um 53 gravado.

A escada forneceu-lhe a primeira e única sugestão de que o edifício tinha sido quase elegante em tempos. Os degraus estavam forrados a mármore branco, embora se apresentassem manchados e meio estragados. A balaustrada ornamentada era de ferro forjado, espirais e arabescos formando grinaldas.

O quarto que coube a Jeffrey deitava para a rua. Quando abriu a porta, a única iluminação que encontrou era a que vinha da luz vermelha do reclame luminoso que ficava sobre a entrada, quatro pisos mais abaixo. Accionando o interruptor, Jeffrey analisou a sua nova casa. As paredes não eram pintadas há anos. A pouca tinta que ainda conservavam estava riscada e a cair. Era difícil determinar qual teria sido a cor original; parecia situar-se entre o cinzento e o verde. O mobiliário escasso consistia numa cama de pessoa só, uma mesa-de-cabeceira com um candeeiro sem abajour, uma mesa de jogo e uma única cadeira de madeira. A colcha era de algodão, com várias manchas esverdeadas. Uma porta de contraplacado fino dava para uma casa de banho.

Por um momento Jeffrey hesitou em entrar, mas qual era a alternativa? Resolveu tentar tirar o melhor partido da situação ou, pelo menos, adaptar-se às circunstâncias. Atravessando a porta, entrou e fechou-a, dando a volta à chave. Sentia-se terrivelmente só e isolado. Realmente não podia descer mais baixo que aquilo.

Jeffrey sentou-se em cima da cama e depois deitou-se atravessado, com os pés firmemente plantados no chão. Não se deu conta até que ponto estava exausto até apoiar as costas no colchão. Teria adorado enroscar-se durante umas horas, tanto para se evadir como para descansar, mas também sabia que não era altura de dormir a sesta. Tinha de arranjar uma estratégia, um plano qualquer. Mas primeiro precisava fazer alguns telefonemas.

Como não havia telefone naquele miserável quarto de hotel, teve de ir à entrada para fazer as chamadas. Levou a pasta com ele, receoso só de a deixar sem vigilância nem que fosse por um minuto.

No rés-do-chão, o empregado deixou com relutância o jogo dos Red Sox para arranjar os trócos que Jeffrey precisava para poder usar o telefone.

A primeira chamada que fez foi para Randolph Bingham. Não era necessário ser advogado para compreender que precisava desespera damente dos conselhos de um homem de leis. Enquanto Jeffrey esperava que atendessem a chamada, a mesma rapariga borbulhenta que vira através da janela do carro entrou pela porta do hotel. Trazia com ela um indivíduo careca, de aspecto nervoso, com um autocolante pegado na lapela que dizia: “Olá! eu sou o Harry”. Era evidentemente delegado a uma convenção qualquer e procurava a emoção de pòr a própria vida em risco. Jeffrey voltou as costas ao que se passava no balcão da recepção. Randolph respondeu-lhe com o seu sotaque familiar istocrático.

— Estou com um problema — declarou Jeffrey sem sequer explicar quem era. Mas Randolph reconheceu-lhe imediatamente a voz. Com algumas frases simples, Jeffrey elucidou Randolph. Não omitiu nada, incluindo o facto de ter agredido Devlin com a pasta diante de um polícia e a perseguição subequente através do terminal do aeroporto.

— Santo Deus — foi tudo o que Randolph conseguiu dizer quando jeffrey terminou. Depois, quase zangado, acrescentou. — Sabe que isto não vai ajudar nada o seu recurso? E quando chegar o momento da sentença certamente que vai ter a sua influência.

— Eu sei — atalhou Jeffrey. —Já tinha percebido isso. Mas também não lhe telefonei para o ouvir dizer-me que estou em apuros. Isso já eu tinha adivinhado sem a ajuda de ninguém. O que eu preciso de saber é aquilo que pode fazer para me ajudar.

— Bom, antes de eu fazer o que quer que seja, o senhor vai ter de se entregar.

— Mas...

— Não há mas. Já se colocou numa posição extremamente precária aos olhos do tribunal.

—E se eu me entregar, não há a possibilidade de o tribunal me recusar pura e simplesmente a fiança?

— Jeffrey, não tem por onde escolher. Perante a sua tentativa de fuga para o estrangeiro, não se pode dizer que tenha feito grande coisa para lhes suscitar confiança.

Randolph ia continuar a falar, mas Jeffrey interrompeu-o.

—Lamento muito, mas não estou preparado para ir para a cadeia. Em circunstância alguma. Por favor faça tudo o que puder aí do seu lado. Eu volto a entrar em contacto consigo. — Desligou o aparelho. Não podia levar a mal a Randolph o conselho que lhe dera. Sob alguns aspectos era exactamente como um medicamento: por vezes o doente Pura e simplesmente nem queria ouvir a terapia que o médico lhe proPunha.

Com a mão pousada sobre o auscultador, Jeffrey voltou-se para a área da recepção, para ver se alguém teria escutado a conversa. A Jovem de minissaia e o seu acompanhante tinham desaparecido pela

escada acima e o empregado estava novamente grudado à televisão minúscula. Outro homem, que parecia ter uns 70 anos, aparecera entretanto e estava sentado no sofá esfarrapado a folhear uma revista.

Pondo nova moeda no telefone, Jeffrey ligou para casa.

Onde é que tu estás? — perguntou imediatamente Carol assim que o ouviu murmurar um “Olá” inexpressivo. Já estou em Boston—respondeu ele. Não tencionava dizer-lhe nada mais concreto, mas achou que lhe devia aquela explicação.

Sabia que ela devia estar furiosa por ele ter partido sem dizer nada, mas queria preveni-la, caso Devlin investisse de novo. E também queria que ela fosse buscar o carro. Além disso não esperava nada dentro da área da compreensão. Uma avalancha de invectivas foi o que recebeu. — Por que é que não me disseste que ias sair de casa?—disse com ar furiosa. —Eu aqui tenho estado cheia de paciência, sempre ao teu lado, durante todos estes meses, e é este o agradecimento que recebi. Procurei-te por toda a casa antes de me aperceber que o teu carro tinha desaparecido.

— É sobre o carro que eu preciso de te falar.

— Não estou interessada no teu carro.

— Carol, escuta-me! — gritou Jeffrey. Quando percebeu que ela < ia deixar falar, baixou a voz, pondo a mão em concha em volta do bocal. — O meu carro está no aeroporto, no estacionamento central. O cartão está no cinzeiro.

— Estás a planear deixar perder a fiança? — perguntou Carol incrédula. —Vamos perder a casa! Assinei aquela garantia de boa-fé

—Há coisas mais importantes que a casa! — interrompeu Jeffre * sem pensar. Baixou outra vez a voz. —Além disso, a casa do Cabo não tem nenhuma hipoteca. Podes ficar com ela, se é o dinheiro que te preocupa.

—Ainda não me respondeste—disse Carol.—Estás a planear dexar perder a fiança?

— Não sei — suspirou Jeffrey. E era verdade que não sabia. Não fazia ideia. Ainda não tivera tempo de analisar a situação. —Olha, >. carro está no segundo nível. Se o quiseres, tudo bem. Se não o quiseres, está tudo bem na mesma.

— Quero falar contigo sobre o divórcio — disse Carol. —Já está ser adiado há tempo de mais. Por muito que eu compreenda os teus problemas, e acredita que os compreendo, tenho de tratar da minha vida.

— Eu depois entro em contacto contigo — disse Jeffrey irritado <. desligou-lhe também o telefone.

Sacudiu a cabeça tristemente. Não conseguia sequer lembrar-se de uma ocasião em que tivesse havido um sentimento de carinho entre Carol e ele. Uma relação agonizante era sempre uma coisa tão feia. E ali estava, fugido, e a única coisa em que ela pensava eram as propriedades e o divórcio. Bom, tinha que dar ordem à vida dela, era isso. T1 qualquer fr.Mas já não faltava muito. Ia ver-se definitivamente livre dele.

Olhou para o telefone. O que lhe apetecia fazer era ligar para Kelly. Mas que é que havia de dizer? Seria que ia admitir que tinha tentado fugir e falhara? Jeffrey estava cheio de indecisão e muito confuso.

Pegando na pasta, atravessou a entrada, evitando conscientemente olhar para os dois homens.

Sentindo-se mais só que antes, subiu os quatro lanços de escadas, sujas e tortuosas, e voltou ao quarto deprimente. Foi pôr-se à janela, banhado pela luz vermelha do néon, perguntando a si próprio o que havia de fazer. Oh, como desejaria ligar para Kelly, mas não podia. Era demasiado embaraçoso. Aproximando-se da cama, perguntou a si mesmo se conseguiria dormir. Tinha de fazer qualquer coisa. Olhou para a pasta.

 

                                   3.a feira, 16 de Maio de 1989, 22:51

A única luz que havia dentro do quarto vinha do aparelho de televisão. Uma pistola de calibre quarenta e cinco e meia dúzia de frascos de Marcaína brilhavam sobre a fraca iluminação numa secretária ao lado da TV. No ecrã, três Jamaicanos encontravam-se de pé num apertado quarto de hotel e todos estavam visivelmente impacientes. Cada um empunhava uma espingarda de assalto AK-47. O mais corpulento dos três não tirava os olhos do relógio. Tinham a testa coberta de transpiração. A evidente tensão dos Jamaicanos formava um contraste agudo com o ritmo sonoro de um reggae vindo de um rádio insta lado na mesa-de-cabeceira.

De repente, a porta abriu-se com violência.

Crockett foi o primeiro a entrar, agarrado a uma arma automátca de nove milímetros, apontada para o tecto. Com um movimento rápido e felino, apontou a arma ao peito do primeiro dos três homens e enfiou-lhe uma bala silenciosa e mortífera. Crockett enfiava a segunda bala no peito do segundo, quando Tubbs atravessou a porta a tempo de se ocupar do terceiro. Num abrir e fechar de olhos tudo ficou terminado.

Crockett sacudiu a cabeça. Estava vestido da maneira habitual: um blusão caro de linho, de Armani, por cima de uma T-shirt vulgar de algodão.

— Mesmo a tempo, Tubbs — disse. — Eu ia ter dificuldade em ar’rumar o terceiro tipo.

Enquanto a ficha técnica aparecia no ecrã, Trent aplaudia um com panheiro imaginário. “Óptimo!”, exclamou triunfante. A violência na TV tinha um efeito estimulante sobre Trent. Carregava-o de uma energia agressiva que exigia expressão. Vivia a imaginar-se a si próprio enfiando balas no peito dos outros da mesma maneira que Johnson fazia com tanta regularidade. Às vezes Trent pensava que devia ter-se alistado nas forças da lei. Se ao menos tivesse escolhido a polícia militar quando se alistara na Marinha. Em vez disso, Trent resolvera fazer parte dos serviços médicos. Claro que tinha gostado. Tinha sido um desafio e aprendera umas quantas coisas fora do habitual- Nunca pensara ser auxiliar de enfermagem antes de entrar para a Marinha. À primeira vez que isso lhe ocorrera tinha sido depois de ouvir uma conversa durante o treino básico. Achava os serviços médicos extremamente atraentes e gostava da ideia de os tipos irem ter com ele a pedir-lhe ajuda para lhes dizer o que haviam de fazer.

Trent levantou-se do sofá da sala e encaminhou-se para a cozinha. Vivia num apartamento confortável, com um quarto e duas casas de banho. Trent poderia arranjar coisa melhor, mas gostava daquele. Ocupava o último piso de um prédio de cinco andares na parte de trás de Beacon Hill. As janelas do quarto e da sala deitavam para a Rua do Jardim. A cozinha e a casa de banho maior davam para um pátio interior.

Tirando uma AmstelLeve do frigorífico, Trent abriu-lhe a parte de cima e sorveu uma golada, longa e deliciada. Pensava que a cerveja talvez o acalmasse um bocado. Sentia-se ansioso e impaciente depois de ter estado uma hora a ver o Miami Vice. Mesmo os filmes que já tinha visto antes deixavam-no suficientemente excitado para ter vontade de ir até um dos bares locais e ver se conseguia fazer ondas. Normalmente conseguia encontrar um ou dois homossexuais lá para os lados da rua de Cambridge e provocá-los.

Trent tinha o ar de um homem que andava à procura de sarilhos. E também tinha o ar de um homem que já conseguira encontrá-los mais do que uma ou duas vezes. Era um indivíduo forte e musculado de 28 anos de idade e usava o cabelo louro muito claro penteado para trás, com um ar liso e severo. Os olhos eram de um azul transparente e penetrante. Tinha uma cicatriz por baixo do olho esquerdo que lhe recuava até à orelha. Arranjara-a uma vez em que estava do lado errado de uma garrafa de cerveja partida numa rixa num bar de São Diego. Tinha levado alguns pontos, mas o outro tipo tivera de refazer a cara toda. Cometera o erro de dizer a Trent que achava que ele tinha um rabo muito giro. Trent ainda ficava a ferver cada vez que pensava nesse episódio. Que nojento, aquele maldito paneleiro.

Trent voltou para o quarto e pousou a cerveja em cima da TV. Pegou

na pistola de fabrico militar, calibre 45, que tinha “apanhado” a um

fuzileiro a troco de anfetaminas. Assentava-lhe bem na mão grande.

pegando a pistola com as duas mãos, Trent apontou para o ecrã da televisão com os braços estendidos e os cotovelos rígidos. Depois rodou por si mesmo e apontou a arma pela janela aberta.

Do outro lado da rua, uma mulher abria a janela do quarto. Pouca sorte, minha linda — sussurrou Trent. Apontou cuidadamente a pistola, baixando o cano até acertar perfeitamente a linha

de mira, tendo como alvo o busto da mulher. Lentamente, deliberadamente, Trent puxou o aço gelado do gatilho.

Quando o mecanismo do disparador fez “clicque”, Trent exclamou “Pum!”, ao mesmo tempo que fingia que a arma dava o coice habitual depois de disparar. Sorriu. Podia ter furado a mulher se tivesse posto as balas no revólver. Imaginou-a a ser atirada para trás, para o interior do apartamento, com um buraco no meio do peito e o sangue a jorrar do orifício.

Pousando a pistola em cima da televisão, ao lado da cerveja, Trent retirou de cima da secretária um dos frascos de Marcaína. Atirando-o ao ar apanhou-o com a outra mão atrás das costas. Dirigiu-se calmamente para a cozinha para retirar do esconderijo a tralha necessária.

Primeiro teve de tirar os copos da prateleira de um dos armários ao lado do frigorífico. Depois, suavemente, levantou o quadrado de contraplacado que dava acesso ao seu esconderijo secreto: um pequeno espaço coberto entre a parte de trás do armário e a parede exterior. Trent retirou de lá um frasco cheio com um líquido amarelo e uma porção de seringas de 18. Conseguira o frasco através de um colombiano, em Miami. Seringas era-lhe fácil arranjar através do seu emprego no hospital. Levou os dois frascos e as seringas outra vez para o quarto, juntamente com o maçarico de propano que guardava debaixo do lava-loiça da cozinha.

Trent estendeu a mão para a garrafa e bebeu outra golada de cerveja. Colocou o maçarico em cima de um pequeno tripé que conservava dobrado debaixo da cama. Tirando um cigarro do maço que estava ao pé da televisão, acendeu-o com um fósforo.

Trent inspirou longamente o fumo, depois acendeu o maçarico de propano com o cigarro. A seguir, pegou numa das agulhas. Depois de recolher um pouco de líquido amarelo, aqueceu a ponta da agulha até ela ficar incandescente. Sempre com a agulha na chama, pegou no frasco de Marcaína e aqueceu-lhe a parte de cima até começar também a ficar vermelha. Com gestos hábeis e treinados, empurrou a agulha quente através do vidro derretido e deixou cair uma gota de líquido amarelo. A fase seguinte era a mais complicada. Depois de deitar fora a agulha, Trent começou a fazer rodar o frasco, deixando-o aproximar da zona mais quente da chama. Manteve-o aí durante alguns segundos, o tempo suficiente para fechar a perfuração da agulha.

Continuou a fazer girar o frasco, mesmo depois de o ter retirado da chama. Não parou enquanto o vidro não arrefeceu consideravelmente.

— Merda! — exclamou Trent ao ver a extremidade do frasco abater-se repentinamente numa depressão indesejável. Embora fosse virtualmente impossível de detectar, Trent não podia arriscar-se a deixar passar qualquer defeito. Se alguém fosse suficientemente atento para notar, deitá-lo-iam fora como defeituoso. Ou, pior ainda, alguma das pessoas envolvidas podia criar suspeitas. Aborrecido, atirou o frasco para o lixo.

“Rai’s partam!”, pensou, pegando noutro frasco de Marcaína. Ia ter de tentar de novo. Enquanto repetia o processo, tornou-se mais envolvido, praguejando furioso quando a terceira tentativa acabou igualmente em falhanço. Finalmente, à quarta tentativa, o sítio da perfuração selou perfeitamente; a ponta encurvada manteve o contorno hemisférico suave.

Segurando a ampola de encontro à luz, inspeccionou-a cuidadosamente. Estava praticamente perfeita. Ainda conseguia ver o sítio onde o vidro fora perfurado, mas tinha de olhar com muita atenção. Pensou que talvez fosse o melhor que alguma vez tinha conseguido. Dava-lhe enorme satisfação ter conseguido dominar um processo tão difícil. Quando pensara nisso pela primeira vez, não fazia ideia se iria resultar. Nessa altura levava horas para conseguir o que agora fazia em poucos minutos.

Depois de ter realizado aquilo que se propusera fazer, Trent repôs o frasco de líquido amarelo, a pistola calibre 45 e os restantes frascos de Marcaína no seu esconderijo. Repôs o fundo falso do armário e arrumou novamente os copos.

Pegando no frasco de Marcaína que adulterara, deu-lhe uma boa sacudidela. A gota de líquido amarelo já se dissolvera há muito. Voltou a ampola de pernas para o ar, analisando-a para ver se havia alguma fuga. Mas o sítio onde introduzira a agulha ficara, tal como ele esperava, perfeitamente impermeável.

Trent considerou com satisfação o efeito que aquele frasquinho em breve teria no Bloco Operatório do St. Joseph’s. Pensava em especial nos médicos, altos e poderosos, na devastação que iria causar nesse sector elevado. Nem nos seus sonhos mais arrojados poderia Trent ter ansiado por uma carreira melhor.

Trent odiava médicos. Actuavam sempre como se soubessem tudo, Quando na realidade não viam um palmo diante do nariz, especialmente os da Marinha. A maior parte das vezes, Trent sabia duas vezes mais que o médico, e, no entanto, tinha de fazer o que eles mandavam, e numa maneira muito especial, Trent detestava aquele chibo daÇiele médico da Marinha que o denunciara por ter metido ao bolso algumas anfetaminas. O hipócrita. Toda a gente sabia que os médicos Se governavam à grande com medicamentos, instrumentos cirúrgicos ”ido o mais que podiam pilhar, e isso há anos. Depois havia aquele utro pervertido que se tinha queixado ao comandante de Trent do °niportamento homossexual deste último. Essa tinha sido a gota de que fizera transbordar o oceano. Em vez de aguentar a estupidez de um tribunal marcial ou do que quer que fosse que eles estavam a planear, Trent demitira-se.

Pelo menos quando saiu já tinha um bom treino. Não lhe era difícil arranjar trabalho como enfermeiro. Com a falta de enfermeiros que havia por toda a parte, descobriu que podia trabalhar onde quisesse. Todos os hospitais o queriam, especialmente por ele gostar de trabalhar no bloco operatório e ter já a experiência do tempo em que estivera na Marinha.

O único problema que havia em trabalhar num hospital civil, à parte dos médicos, era o restante pessoal de enfermagem. Alguns deles eram iguais aos médicos, especialmente os supervisores. Estavam sempre a tentar dizer-lhe qualquer coisa que ele já sabia. Mas Trent não os achava tão irritantes como os médicos. Afinal eram os médicos que tinham conspirado para limitar a autonomia que tivera para a prática de medicina de rotina na Marinha.

Trent pôs a ampola de Marcaína adulterada na algibeira do casaco branco do hospital que estava pendurado no armário da entrada. Pensando em médicos lembrou-se do Dr. Doherty. Cerrou os dentes ao evocar o homem. Mas isso não bastava. Trent não conseguia controlar-se. Fechou a porta do armário com tanta força que todo o prédio pareceu estremecer. Ainda naquele dia, Doherty, um dos anestesistas, tivera o descaramento de criticar Trent em frente de várias enfermeiras. Doherty tinha-o repreendido por aquilo que designava de técnica de esterilização atabalhoada. E isto dito por um palerma que não punha devidamente o barrete na cabeça ou a máscara cirúrgica na cara! A maior parte das vezes Doherty nem sequer tinha o nariz protegido. Trent estava furioso.

— Espero que o frasco calhe ao Doherty — rosnou. Infelizmente não havia maneira de ter a certeza que ele lhe iria parar às mãos. As probabilidades eram de um para vinte, a menos que ele esperasse até que Doherty estivesse marcado para uma epidural. — Ah, quero lá saber—disse com um aceno de indiferença. Era sempre divertido, fosse quem fosse que recebesse o frasco.

Embora o novo estatuto de fugitivo fizesse aumentar a confusão e a indecisão no espírito de Jeffrey, por outro lado ele deixara de sentir toda e qualquer tendência para o suicídio. Não sabia se estava a agir com coragem ou cobardia, mas decidira que não ia agonizar por mais tempo. No entanto, com tudo o que acontecera, sentia uma preocupação inteiramente compreensível quanto à possibilidade de nova crise de depressão. Pensando que mais valia desembaraçar-se de tentações, resolveu tirar o frasco de morfina da pasta, fazer-lhe saltar a tampa e despejar o conteúdo na retrete.

Depois de ter tomado pelo menos uma decisão quanto a um dos problemas, Jeffrey sentiu-se ligeiramente mais senhor de si. Para começar a sentir-se ainda mais organizado, dedicou-se a arrumar tudo o que tinha dentro da pasta. Empilhou cuidadosamente o dinheiro, no fundo, cobrindo-o com a roupa interior. Depois arrumou o conteúdo da pasta de arquivo em acordeão mesmo por baixo da tampa, para arranjar espaço para os apontamentos de Chris Everson. Voltando a atenção para os apontamentos, organizou-se segundo o tamanho. Alguns estavam escritos em papel com o nome de Christopher Everson na parte superior. Outros eram em papel normal amarelo.

Jeffrey começou a percorrer os apontamentos, quase involuntariamente. Sentia-se grato por tudo o que lhe desviasse o espírito da sua situação presente. A descrição do caso de Henry Noble tornou-se especialmente fascinante quando lida pela segunda vez. De novo Jeffrey se sentiu impressionado pelas semelhanças entre a triste experiência de Chris com esse homem e o seu caso com Patty Owen, particularmente no que dizia respeito aos sintomas iniciais de cada um dos pacientes. A principal diferença entre os dois casos era o facto de o de Patty ter sido mais fulminante e espantoso. Dado que a Marcaína estivera envolvida em ambos, o facto de os sintomas serem semelhantes não era surpreendente. O que parecia extraordinário era que em ambas as situações os sintomas iniciais não tinham sido aquilo que se podia esperar de uma reacção negativa a um anestésico local.

Depois de ter praticado a anestesia durante vários anos, Jeffrey estava familiarizado com os tipos de sintomas que podiam ocorrer quando um paciente tinha uma reacção negativa a um anestésico local. Os Problemas surgiam invariavelmente por causa de uma dose excessiva que atingia a corrente sanguínea, indo afectar quer o coração quer o sistema nervoso. Considerando o sistema nervoso, era geralmente o Sistema central ou autónomo que causava problemas, quer através de estimulação quer de depressão ou uma combinação das duas.

Tudo isto envolvia muita coisa, mas de todas as reacções que Jefrey tinha estudado, presenciado ou de que ouvira falar, nenhuma se assemelhava às de Patty Owen, tanto no que dizia respeito à saliva excessiva, como à agitação, à transpiração repentina, às dores dominais e às pupilas contraídas ou mióticas. Algumas destas reacções podiam ocorrer em casos de alergia mas não de dose excessiva e

Jefffrey tinha razões para pensar que Patty Owen não era alérgica à marcaína e era evidente, a julgar pelos apontamentos, que Chris Everson tinha uma perplexidade semelhante. Chris notara que os sintomas de Henry Noble eram mais muscarínicos que outra coisa, isto é, do tipo que se espera quando partes do sistema nervoso parassimpático sãc estimuladas. Eram chamados muscarínicos por causa de uma droga chamada muscarina, extraída de um tipo de cogumelo. Mas a estimulação parassimpática não era de esperar no caso de um anestésico local como aMarcaína. Nesse caso, qual a explicação para os sintomas muscarínicos? Era intrigante.

Jeffrey fechou os olhos. Era tudo muito complicado e, infelizmente embora conhecesse os aspectos básicos, muitos dos detalhes fisiológicos já não estavam frescos na sua memória. Mas lembrava-se do suficiente para saber que a zona do grande simpático era a parte afectada pelos anestésicos locais, não a do parassimpático, aparentemente afectada nos casos Noble e Owen. Não havia nenhuma explicação imediata para esse facto.

A concentração profunda de Jeffrey foi interrompida por uma pancada seca de encontro à parede, seguida dos gemidos exagerados de um êxtase fingido que vinham do quarto ao lado. Teve uma visão desagradável da rapariga com borbulhas e do homem careca. O gemido atingiu um crescendo e depois diminuiu.

Jeffrey foi até à janela para esticar as pernas. Ficou de novo banhado pela luz vermelha do néon. Um grupo de gente sem casa andava de um lado para o outro, à direita da entrada do Essex, provavelmente em frente à loja de bebidas. Algumas jovens prostitutas batiam a rua. ao lado estavam uns jovens rufiões que observavam o que se passava na área, com ar de proprietários. Se se tratava de chulos ou de traficantes de droga, Jeffrey não saberia dizê-lo. Mas que sítio aquele, pensou

Afastou-se da janela. Já tinha visto o suficiente. Os apontamentos de Chris estavam espalhados por cima da cama. Os gemidos do quarto ao lado tinham parado. Jeffrey tentou passar em revista a lista de possibilidades para os casos de Noble e Owen. Mais uma vez se concentrou na ideia que tanto ocupara o espírito de Chris nos seus últimos dias: a possibilidade de um contaminante na Marcaína. Partindo do princípio que nem ele nem Chris tinham cometido nenhum grave erro clínico — no caso Owen, por exemplo, que ele não usara a Marcaína a 0,75% que fora encontrada no recipiente do lixo — e tendo em conta o facto de ambos os pacientes terem tido sintomas parassimpáticos inesperados sem quaisquer reacções alérgicas otanafiláticas, nesse contexto a teoria de Chris sobre o contaminante era consideravelmente válida.

Voltando à janela, Jeffrey pensou nas implicações da existência de um contaminante na Marcaína. Se ele conseguisse provar uma tal teoria, estaria próximo de conseguir a absolvição relativamente ao caso Owen. A culpa recaía sobre a companhia farmacêutica que a fabricara.

Jeffrey não tinha a certeza de como funcionaria a máquina legal, uma vez provada a sua tese. Pelos seus contactos recentes com o sistema judicial, sabia que o mecanismo ia funcionar devagar, mas não deixaria de funcionar. Talvez o velho Randolph fosse capaz de descortinar uma maneira de fazer as rodas girarem um pouco mais depressa. Jeffrey sorriu perante uma ideia maravilhosa: talvez a sua vida e a sua carreira pudessem ser salvas. Mas como havia de fazer para provar que havia um contaminante no frasco que fora usado nove meses antes?

De repente, Jeffrey teve uma ideia. Retomou os apontamentos de Chris para ler o resumo do caso Henry Noble.

Estava particularmente interessado na sequência inicial dos acontecimentos, quando Chris estava ministrando a anestesia epidural.

Chris retirara 2 cm3 de Marcaína de uma ampola de 30 cm3 para a sua dose de teste, acrescentando-lhe epinefrina a 1200 000. A reacção de Henry Noble começara imediatamente a seguir à dose de teste. Com Patty Owen, Jeffrey usara uma outra ampola de 30 cm3 de Marcaína na Sala de Operações. E foi após esta Marcaína lhe ter sido introduzida no sistema que a reacção negativa de Patty começara. Para a dose de teste, Jeffrey tinha usado um frasco de 2 cm3 de Marcaína de grau espinal, como era seu hábito. Se havia um contaminante na Marcaína, ele tinha de estar na ampola de 30 cm3, em ambos os casos. Isso significaria que Patty recebera uma dose substancialmente maior que a de Henry Noble — uma dose terapêutica completa, enquanto ele apenas tivera uma dose de teste de 2 cm3. Isso explicaria a razão por que a reacção de Patty fora tão mais violenta que a de Henry Noble e como este último ainda conseguira viver durante uma semana.

Pela primeira vez nos últimos meses, Jeffrey sentia um lampejo de esperança de ainda conseguir retomar a sua vida antiga. Podia tê-la de volta. Durante a sua defesa nunca considerara a possibilidade de um contaminante. Agora, de repente, essa parecia-lhe uma possibilidade real. Mas era preciso um certo tempo e um esforço sério para conduzir a investigação, quanto mais para o provar. Qual deveria ser o Primeiro passo?

Em primeiro lugar, precisava de mais informação. Isso significava que ia ter de avivar a farmacinética dos anestésicos locais, bem como

Toda história do sistema nervoso autónomo. Mas isso seria relativamente fácil - Apenas precisava de livros. A parte mais difícil seria o estudo da possibilidade de um contaminante. E precisaria de ter acesso ao relatório patológico sobre Patty Owen. Apenas tomara conhessimento de algumas partes durante o processo preliminar. Havia ainda a Questão levantada por Kelly: arranjar uma explicação para a presença de um frasco de Marcaína a 0,75% no recipiente do lixo da máquina de anestesia. Como é que ele teria ido lá parar?

Investigar estes aspectos já teria sido difícil nas circunstâncias mais favoráveis. Agora que ele se tornara um condenado e um fugitivo, podia dizer-se que seria impossível. Ia ter de entrar no Boston Memorial. Conseguiria fazê-lo?

Jeffrey foi até à casa de banho. Colocando-se em frente do espelho, analisou as próprias feições sob a crua luz fluorescente. Será que era capaz de modificar as próprias feições a ponto de não ser reconhecido? Estivera ligado ao Boston Memorial desde os tempos da escola médica. Havia centenas de pessoas que o conheciam de vista.

Jeffrey assentou a mão na fronte e puxou para trás o cabelo castanho-claro. Penteou-o para o lado, com um risco à direita. Se o segurasse para trás faria a testa parecer maior. Também nunca usara óculos. Talvez pudesse arranjá-los agora. Além disso, durante a maior parte do tempo em que trabalhara no Boston Memorial sempre usara bigode. Podia rapá-lo.

Ocupado com aquela ideia, Jeffrey voltou ao quarto para buscar o seu Dopp Kit. Voltou a colocar-se diante do espelho. Ensaboando-o, cortou rapidamente o bigode. Parecia-lhe estranho passar a língua no lábio superior, directamente. Molhando o cabelo, penteou-o tudo para trás, afastando-o da testa. Estava a ficar entusiasmado; já parecia outra pessoa.

Em seguida Jeffrey cortou as patilhas curtas. A diferença não era muito acentuada, mas pensou que tudo ajudava. Seria que conseguia passar por outro médico? O que lhe faltava era uma identificação. No Boston Memorial tinham apertado consideravelmente as medidas de segurança; sinal dos tempos. Se fosse interrogado e não pudesse apresentar uma identificação, seria apanhado. No entanto, precisava do acesso e eram os médicos que tinham acesso a todas as áreas do hospital.

Jeffrey continuava a pensar. Não ia deixar-se vencer pelo desespero. Havia outro grupo no hospital que tinha livre acesso: o pessoal da limpeza. Ninguém se importava com eles. Jeffrey passara muitas noites de serviço no hospital e lembrava-se de ver pessoal de limpeza por toda a parte. Nunca ninguém se preocupava com eles. Também sabia que o turno das onze da noite às sete da manhã era sempre muito difícil de preencher. O turno da noite ia ser perfeito, pensou. Seria menos provável encontrar-se com alguém que o conhecesse. Havia anos que ele fazia o turno de dia.

Estimulado pela sua nova cruzada, Jeffrey ardia no desejo de começar imediatamente. Isso envolvia uma ida à biblioteca. Se saísse imediatamente ainda teria uma hora antes de ela fechar. Sem mais treâmbulos, meteu as folhas de Chris no espaço que arranjara para esse efeito dentro da pasta e fechou-lhe a tampa.

Pelo sim pelo não, fechou a porta à chave. Enquanto descia as escadas, hesitou. O cheiro ácido e bolorento fê-lo pensar em Devlin. Jeffrey recebera uma lufada do hálito do homem quando este lhe tinha tocado no aeroporto.

Ao considerar o seu plano de acção, Jeffrey não entrara em conta com o factor Devlin. Jeffrey sabia alguma coisa sobre caçadores de recompensas e isso era certamente o que ele era. Jeffrey não nutria quaisquer ilusões sobre o que viria a acontecer se Devlin o voltasse a apanhar, especialmente depois do episódio do aeroporto. Após uma indecisão momentânea, continuou resignadamente a descer as escadas. Se queria investigar alguma coisa, tinha de correr alguns riscos, mas convinha que continuasse num alerta constante. Além disso, tinha de se antecipar nos seus pensamentos para, caso tivesse a infelicidade de se cruzar com Devlin, dispor de um plano de acção. No vestíbulo do hotel, o homem da revista tinha desaparecido, mas o empregado continuava a ver o jogo dos Red Sox. Jeffrey saiu sem que dessem por ele. Era bom sinal, gracejou para consigo próprio. A sua primeira tentativa para não ser visto fora um sucesso. Pelo menos ainda conservava o sentido de humor.

Toda a indiferença que conseguira chamar a si desapareceu logo que pôs os olhos na cena de rua que tinha diante dele. Sentiu uma onda de paranóia aguda ao recordar a si próprio a dupla realidade da sua situação de fugitivo e ainda por cima com 45 000 dólares em dinheiro dentro da pasta. Mesmo em frente de Jeffrey, nas sombas da entrada de um prédio abandonado, os dois homens que vira da janela estavam a fumar crack.

Agarrando bem a pasta, Jeffrey desceu os degraus de entrada do Essex. Evitou pisar o pobre tipo que dormitava refastelado no passeio, sempre agarrado à sua garrafa embrulhada em papel pardo. Jeffrey virou à direita. Tencionava andar cinco ou seis quarteirões até ao Centro Lafayette, onde se encontrava um bom hotel. Aí arranjaria um táxi.

Jeffrey passava diante da loja de bebidas quando viu um carro da Polícia na sua direcção. Sem hesitar um momento, enfiou-se na loja.

O chocalhar das campainhas presas à porta buliu-lhe com os nervos.

Por mais louco que parecesse, não sabia quem receava mais, se as pessoas que vira na rua se a polícia.

—Em que posso servi-lo?—perguntou um indivíduo de barba, por ptrás do balcão. O carro da polícia abrandou, depois começou a afastar-se. Jeffrey respirou fundo. Não ia ser fácil.

— Em que posso servi-lo? — repetiu o homem.

Jeffrey comprou uma garrafa de meio litro de vodca. Se o carro da polícia voltasse a passar, queria que a sua entrada na loja parecesse genuína. Mas não era necessário. Quando saiu da loja, o carro da polícia desaparecera totalmente. Aliviado, Jeffrey voltou à direita, com a intenção de apressar o passo. Mas teve de estacar, chocando praticamente com um dos indivíduos sem casa que vira anteriormente. Sobressaltado, Jeffrey ergueu a mão que tinha disponível, para se proteger.

— Não se arranjam por aí uns trocos, amigo? — perguntou o homem com voz pouco firme. Era evidente que estava embriagado. Tinha um golpe recente junto da têmpora. Uma das lentes dos óculos de aros pretos estava rachada.

Jeffrey recuou, encolhendo-se. O homem era mais ou menos da altura dele, com o cabelo escuro, quase negro. Tinha a cara coberta com uma barba cerrada que indicava que não se barbeava há um mês. Mas o que chamou a atenção de Jeffrey foi a roupa dele. Vestia um fato completo, esfarrapado, e uma camisa azul à qual faltavam alguns botões. Trazia uma gravata de um regimento qualquer, afastada do colarinho e com nódoas esverdeadas. A impressão de Jeffrey era que ele se vestira um dia para ir para o trabalho e nunca mais tinha voltado para casa.

— Que é que se passa?—perguntou ele com uma voz incerta de bêbado. — Não fala inglês?

Jeffrey meteu a mão na algibeira das calças à procura do troco que recebera do vodca. Enquanto deixava cair o dinheiro na palma da mão do homem estudou-lhe a cara. Os olhos, ainda que vidrados, tinham uma expressão bondosa. Jeffrey perguntou a si mesmo o que seria que o empurrara para aquela situação desesperada. Sentiu uma estranha afinidade com o indivíduo sem lar e o seu problema. Estremeceu ao pensar como era ténue a linha que o separava de um destino semelhante. A identificação era ainda mais fácil uma vez que o indivíduo aparentava mais ou menos a mesma idade que Jeffrey.

Como esperara, encontrou facilmente um táxi nas proximidades do hotel de luxo. A partir daí levou apenas quinze minutos para chegar à secção médica de Harvard. Passava pouco das onze horas quando Jeffrey entrou na Biblioteca Médica de Countway.

Entre os livros e nos estreitos cubículos de leitura, Jeffrey sentiu’ -se em casa. Usou um dos terminais de computador para obter os numeros de ordem de vários livros sobre a fisiologia do sistema nervos” autónomo e a farmacologia dos anestésicos locais. Com este livros na mão, foi para um dos pequenos gabinetes que davam para o pátio terior e fechou a porta. No espaço de minutos estava perdido na plexidade da condução dos impulsos nervosos.

Jeffrey não tardou a compreender por que é que Chris sublinhara a palavra “nicotínico”. Embora a maior parte das pessoas pensasse na nicotina como um ingrediente activo dos cigarros, a nicotina era uma droga, ou mais especificamente um veneno que provocava a estimulação e depois o bloqueamento dos gânglios autónomos. Muitos dos sintomas associados à nicotina eram os mesmos que os causados pela niuscarina: salivação, suores, dores abdominais e lacrimação — precisamente os sintomas que se tinham verificado em Patty Owen e Henry Noble. Podia mesmo causar a morte em concentrações espantosamente pequenas.

Tudo isto significava para Jeffrey que, no caso de estar a pensar num contaminante, este teria de ser um composto que tivesse até certo ponto o comportamento de um anestésico local, qualquer coisa como a nicotina. Mas não podia ter sido nicotina, pensou Jeffrey. O relatório toxicológico de Henry Noble tinha sido negativo: qualquer coisa como a nicotina teria sido detectada.

No caso de haver um contaminante, ele teria de estar presente numa quantidade extremamente pequena, um bilionésimo de uma unidade de massa. Teria portanto que ser uma caixa extremamente potente. Jeffrey não fazia a menor ideia daquilo que poderia ser, mas na sequência das suas leituras deparou-se-lhe algo de que se recordava dos tempos da escola médica, mas que não lhe ocorrera até ali. Atoxina botulínica, uma das substâncias mais tóxicas conhecidas pelo homem, assemelhava-se aos anestésicos locais na sua capacidade para “imobilizar” as membranas da sinapse da célula nervosa.

No entanto Jeffrey sabia que não estava perante um envenenamento com botulinum. Os sintomas eram totalmente diferentes; os efeitos muscarínicos eram bloqueados, não estimulados.

O tempo nunca passara tão depressa. Antes que desse por isso, eram horas de fechar a biblioteca, aproximava-se a meia-noite. Contrariado, juntou os apontamentos de Chris Everson e os que ele Próprio acabara de tomar. Com os livros numa mão e a pasta na outra, desceu ao primeiro andar. Deixou os livros no balcão para serem arrumados e dirigiu-se para a porta. De repente, estacou.

Mais adiante as pessoas estavam a ser interpeladas por um empregado que lhes abria embrulhos, mochilas e, evidentemente, pastas. um procedimento habitual para reduzir o número de livros desaparecidos, mas Jeffrey é que se esquecera disso. Detestava pensar qual seria a reacção do guarda quando olhasse para todos aqueles maços de notas de cem dólares. Era o que lhe convinha para não dar nas vistas.

Jeffrey voltou para trás, para a secção de periódicos, e enfiou-se atrás de um expositor que lhe dava pelo ombro. Abriu a pasta e começou a enfiar o dinheiro nas algibeiras. Para arranjar espaço, tirou a garrafa de meio litro de vodca do bolso lateral do casaco e meteu-a na pasta. Preferia que o guarda pensasse que era alcoólico do que o tomasse por um traficante de droga ou um ladrão.

Jeffrey conseguiu sair da biblioteca sem incidentes. Sentia-se um bocado constrangido com as algibeiras a abarrotar, mas naquele momento não podia fazer nada para o remediar.

Não havia praticamente um único táxi na Avenida Huntington àquela hora da noite. Depois de ter tentado em vão durante dez minutos apareceu o trolley da Linha Verde. Jeffrey embarcou, achando que era mais prudente ir andando.

Ocupou um dos assentos paralelos ao carro e equilibrou a pasta em cima dos joelhos. Sentia todos os maços de notas que levava nas algibeiras das calças, especialmente aqueles em cima dos quais ia sentado. Quando o trolley se pôs em movimento, percorreu a viatura com o olhar. Não desmentindo a sua experiência do metropolitano de Boston, ninguém dizia palavra. Todos olhavam em frente, sem expressão, como se estivessem em transe. O olhar de Jeffrey cruzou-se com o de outros passageiros que iam sentados diante dele. As pessoas que lhe retribuíram o olhar com ar sombrio fizeram-no sentir-se transparente. Espantava-o o número de pessoas que, segundo a sua ideia, tinham ar de criminosos.

Fechando os olhos, Jeffrey reviu parte do material que acabava de ler, analisando-o à luz da experiência que tivera com Patty Owen e Chris com Henry Noble. Ficara particularmente surpreendido com uma informação sobre anestésicos locais. Numa secção assinalada como “Reacções Adversas”, lera que ocasionalmente podiam aparecer pupilas mióticas ou contraídas. Isso era uma novidade para Jeffrey. A excepção de Patty Owen e Henry Noble, nunca tivera essa experiência clínica assim como nunca lera nada sobre essa possibilidade. Não havia qualquer explicação quanto ao mecanismo fisiológico e Jeffrey também não conseguia explicá-lo. Mais adiante no mesmo artigo, estava escrito que geralmente se verificava uma midríase ou dilatação das pupilas. Neste ponto Jeffrey pôs de lado a questão do tamanho das pupilas. Nada daquilo fazia muito sentido para ele e só lhe aumentava a confusão.

Quando o trolley mergulhou repentinamente debaixo do chão, o ruído sobressaltou Jeffrey. Abriu os olhos aterrorizado e a respiração tornou-se-lhe ofegante. Até àquele momento não se apercebera de que tinha os nervos tão tensos. Começou a respirar profundamente e de maneira compassada para se acalmar.

Passado um ou dois minutos, os pensamentos de Jeffrey voltara-se -se de novo para os casos que estava a analisar. Apercebia-se que havia uma ou outra semelhança entre os casos Noble e Owen que ele não considerara. Henry Noble permanecera paralisado ao longo da semana que tivera de vida. Era como se tivesse tido uma anestesia espinal total e irreversível. Como Patty morrera, Jeffrey não fazia ideia se ela teria sofrido paralisia no caso de continuar com vida. Mas o filho tinha sobrevivido e apresentava paralisia residual acentuada. Tinha-se partido do princípio que a paralisia do bebé resultava de uma falta de oxigénio no cérebro, mas agora Jeffrey já não tinha a mesma certeza. A estranha distribuição assimétrica sempre o perturbara. Talvez essa paralisia fosse mais um indício, um indício que poderia vir a ser útil na identificação de um contaminante.

Jeffrey saiu do metropolitano em Park Street e subiu as escadas. Evitando vários polícias, desceu rapidamente Winter Street, deixando para trás a área movimentada de Park Street. Enquanto caminhava, pensou muito a sério na hipótese de voltar ao Boston Memorial Hospital, agora que já fizera as suas pesquisas na biblioteca.

A ideia de passar a fazer parte da brigada de limpeza era muito aproveitável, à excepção de um pequeno problema: para se candidatar a um emprego precisava de poder apresentar uma identificação qualquer, bem como um número de caixa de previdência válido. Na era dos computadores Jeffrey sabia que não ia safar-se inventando um número qualquer.

Estava a braços com o problema de identificação quando entrou na rua do Essex Hotel. A cerca de meio quarteirão da loja de bebidas, que continuava aberta, parou. Surgiu-lhe de novo a visão do homem com o fato esfarrapado. Eram ambos da mesma altura e deviam andar pela mesma idade.

Atravessando a rua, Jeffrey aproximou-se do terreno baldio que ficava ao lado da loja de bebidas. Um candeeiro estrategicamente colocado iluminava bem toda a área. A três quartos do fundo do lote havia uma saliência de betão, suspensa, saindo de um dos edifícios laterais que fazia pensar num velho cais de carregamento de mercadorias. Por baixo, Jeffrey distinguiu várias figuras, umas sentadas, outras completamente passadas e estendidas no chão.

Parando à escuta, Jeffrey ouviu conversar. Ultrapassando a sua desconfiança, encaminhou-se para o grupo. Caminhando cautelosamente sobre uma camada de tijolos partidos, Jeffrey aproximou-se do

terraço de betão. Um odor fétido a corpos humanos mal lavados assaltou-lhe os sentidos. A conversa parou. Vários olhos ramelosos pousaram-se nele na semiobscuridade, cheios de desconfiança. Jeffrey sentiu-se como um intruso num outro mundo. Com uma

nsiedade crescente, procurou o homem do fato esfarrapado, desviando os olhos rapidamente de uma figura sombria para outra. Que faria se aqueles homens de repente saltassem sobre ele?

Por fim, viu o homem que procurava. Era um dos que estavam sentados em semicírculo. Obrigando-se a continuar em frente, Jeffrey aproximou-se deles. Ninguém disse nada. Havia no ar uma carga eléctrica de expectativa, como se uma faísca pudesse causar uma explosão. Todos os olhares seguiam Jeffrey. Algumas das pessoas que estavam deitadas tinham-se sentado, a olhar para ele.

— Olá — disse Jeffrey com clareza quando chegou diante do homem. Ele não se mexeu. Nem nenhum dos outros. — Lembra-se de mim?—perguntou. Começava a sentir-se idiota, mas não lhe ocorria mais nada para dizer. — Dei-lhe algumas moedas há cerca de uma hora. Ali daquele lado, àfrente da loja. —Jeffrey apontou por cima do ombro.

O homem não respondeu.

— Pensei que talvez quisesse mais algumas — continuou Jeffrey. Meteu a mão na algibeira e, empurrando para o lado o maço de notas de cem dólares, tirou de lá algumas moedas e notas mais pequenas. Estendeu-lhe o dinheiro. O homem esticou o braço e pegou nas moedas.

— Obrigado, amigo—conseguiu dizer, tentando ver as moedas na escuridão.

— Tenho mais — disse Jeffrey. — Aliás, tenho aqui uma nota de cinco dólares e até era capaz de apostar que você está tão bêbado que nem se lembra do seu número de beneficiário da Previdência.

— Que é que você quer dizer? — tartamudeou o homem, levantando-se com dificuldade. Dois dos outros imitaram-no. Aquele em quem Jeffrey estava interessado cambaleou como se fosse a cair, mas conseguiu aguentar-se. Parecia ainda mais bêbado do que antes.—É o 139-32-1560. É esse o meu número.

— Oh, claro — disse Jeffrey, abanando a mão num gesto de dúvida. — Você inventou o número agora.

— Inventei uma ova! — exclamou o homem indignado. Com um gesto largo que quase o fez perder o equilíbrio, puxou da carteira. Vacilou de novo, esforçando-se por arrancar a carteira da algibeira das calças. Quando conseguiu, puxou desajeitadamente da carta de condução, em vez do Cartão da Previdência. Entretanto, deixou cair a carteira. Jeffrey baixou-se e apanhou-a. Notou que não tinha dinheiro

— Veja aqui! — disse o homem. — Tal e qual como eu disse. Jeffrey entregou-lhe a carteira e pegou na carta. Não viu o nume’

ro, mas também não era importante.

— Palavra de honra, acho que você tinha razão — disse depois fingindo analisá-la. Estendeu-lhe a nota de cinco dólares que ele agarrou com avidez. Mas um dos outros arrancou-lha da mão.

— Dá-me o dinheiro! — gritou o homem.

Um outro tinha ido colocar-se por detrás de Jeffrey. Este meteu a mão na algibeira e tirou de lá mais moedas.

— Há aqui para todos — disse, atirando o dinheiro para o chão. As moedas tilintaram sobre os tijolos partidos. Estabeleceu-se grande barafunda enquanto todos, à excepção de Jeffrey, se punham de gatas no meio da escuridão. Jeffrey aproveitou a diversão para dar meia volta e correr o mais depressa que pôde sobre o entulho, em direcção à rua.

De regresso ao quarto do hotel, equilibrou a carta de condução no rebordo do lavatório e comparou a sua própria imagem com a fotografia do documento. O nariz era completamente diferente. Quanto a isso não podia fazer nada. No entanto, se escurecesse o cabelo e o penteasse para trás com um pouco de gel como parecia que o outro fazia, e se arranjasse uns óculos com os aros negros, talvez resultasse. Mas pelo menos tinha um número válido, associado a um nome e endereço reais: Frank Amendola, 1617 Sparrow Lane, Framingham, Massachusetts.

 

                                   4.a feira, 17 de Maio de 1989, 6:15

Trent Harding só tinha de começar a trabalhar às sete, mas às seis e um quarto já estava a despir o fato na sala de cacifos que dava para o átrio de cirurgia do St. Joseph’s Hospital. De onde estava, via em linha recta os lavatórios e a sua própria imagem reflectida nos espelhos que lhes ficavam por cima. Flectiu os músculos do braço e do pescoço para os fazer sobressair. Inclinou—se ligeiramente para lhes examinar o recorte. Gostou daquilo que viu.

Trent frequentava o clube de ginástica pelo menos quatro vezes por semana e usava o equipamento “nautilus” ao ponto da exaustão. O corpo dele era como uma peça de escultura. Trent tinha a certeza de que as pessoas reparavam e o admiravam. No entanto, não estava satisfeito. Achava que ainda conseguiria dar mais volume aos bicípedes. Nas pernas, os quadricípedes precisavam de endurecer um bocado. Resolveu concentrar-se em ambas as coisas nas próximas semanas.

Trent tinha o hábito de chegar cedo, mas naquela manhã em especial chegara ainda mais cedo que o costume. Na sua excitação, acordara antes de o despertador tocar e não conseguira voltar a adormecer, por isso decidira ir mais cedo para o trabalho. Além disso, gostava de fazer as coisas com calma. Era uma sensação incrivelmente divertida colocar uma das suas ampolas de Marcaína “preparadas” no meio da reserva geral de Marcaína. Sentia arrepios de prazer—era como colocar uma bomba-relógio. Ele era o único a saber do perigo eminente. Era ele que o controlava.

Depois de ter vestido a roupa de trabalho, Trent olhou em volta. Algumas pessoas que estavam a sair do turno tinham entrado na sala dos cacifos. Um estava no duche a cantar uma canção de Stevie WoO’ der; outro estava na casa de banho; e o terceiro junto do cacifo, num sítio onde não o via.

Trent meteu a mão na algibeira do casaco branco do hospital e tirou de lá a ampola de Marcaína “preparada”. Escondendo-a na palma da mão, não fosse alguém aparecer inesperadamente, Trent deixou-a deslizar para dentro das cuecas justas. A princípio teve uma desagradável sensação de frio e fez uma careta ao ajeitá-la. Depois fechou o cacifo e encaminhou-se para o átrio.

No átrio de cirurgia, estavam a tirar café fresco, que enchia a sala com o seu aroma agradável. Enfermeiros, enfermeiros anestesistas, alguns médicos e ajudantes encontravam-se reunidos ali. Não tardariam a acabar o turno. Não havia nenhuma emergência em curso e todos os preparativos para o trabalho do dia, pelo qual o turno da noite era responsável, estava feito. A conversa alegre e despreocupada ecoava na sala.

Ninguém prestou atenção à chegada de Trent e ele também não saudou ninguém. A maior parte do pessoal não o reconheceu, pois ele não pertencia ao turno da noite. Trent atravessou o átrio e entrou na área da Sala de Operações. Não estava ninguém na área de distribuição de serviço. O enorme quadro preto já estava preenchido com a escala para o dia seguinte. Trent fez uma paragem breve para analisar o quadro e ver qual a sala que lhe estava destinada para o dia e se havia casos de anestesia espinal ou epidural. Para seu deleite havia vários. Outro estremecimento de excitação lhe percorreu a espinha. Esse número elevado de casos era uma boa garantia de que a sua Marcaína seria usada ainda nesse dia.

Trent continuou pelo corredor principal do bloco operatório e virou para o Depósito Central de medicamentos que estava convenientemente situado mesmo no meio da área. O complexo de salas de operações de St. Joe’s tinha a forma de um “U” com as salas de operações distribuídas ao longo das pernas do “U” e o Depósito Central no interior.

Com movimentos decididos, como se se dirigisse àquela área para ir buscar um conjunto de equipamento necessário numa das Salas de Operações, Trent deu a volta a toda a área. Como de costume, não havia lá ninguém. Havia sempre um hiato entre as seis e um quarto e as seis e quarenta e cinco, em que o Depósito Central estava desocupado. Satisfeito, Trent avançou directamente para a secção onde se encontravam os fluidos endovenosos e os medicamentos não narcóticos e não controlados. Não precisava de procurar o sítio dos anestésicos locais. Há muito tempo que os localizara.

Deitando em volta um novo olhar rápido, Trent pegou numa embalagem aberta de 30 cm3 de marcaína a 0,5%. Levantou a tampa com estreza. Ainda havia três ampolas na caixa que originariamente continha cinco. Trent trocou uma das ampolas intactas pela que ele alterára. Estremeceu mais uma vez. Era espantosa a sensação que provocava o vidro à temperatura de uma sala fria. Fechou a tampa da caixa de Marcaína e voltou a pô-la cuidadosamente na posição original.

Trent olhou mais uma vez em volta. Não aparecera ninguém. Dirigiu um novo olhar para a caixa de Marcaína. E mais uma vez uma sensação próxima da excitação sensual lhe percorreu o corpo. Fizera-o de novo e ninguém conseguiria jamais descobrir o menor indício. Era tão fácil e, conforme os casos previstos para as salas de operações e com um bocado de sorte, o frasco seria usado em breve, talvez mesmo naquela manhã.

Por um momento breve, Trent pensou em retirar os dois frascos intactos da caixa para apressar as coisas. Agora que a ampola estava no seu lugar, sentia-se impaciente por saborear o caos que iria causar. Mas resolveu não lhes tocar. Nunca correra riscos no passado e não era uma boa altura para começar. E se alguém estivesse a controlar o número de frasquinhos de Marcaína disponíveis no momento?

Trent emergiu do Depósito Central e dirigiu-se novamente ao seu cacifo para esconder a ampola que tinha agora nas cuecas. Depois iria tomar uma boa chávena de café. Mais tarde, nesse mesmo dia, se nada acontecesse, voltaria ao Depósito para ver se o frasco em questão tinha sido retirado. Se fosse usado naquele dia, não tardaria a sabê-lo. As notícias sobre qualquer caso que se complicasse consideravelmente espalhavam-se pelas Salas de Operações como o fogo numa floresta.

Em pensamento, Trent conseguia ver o frasquinho inocentemente arrumado na sua caixa. Era uma espécie de roleta russa. Sentiu de novo aquela espécie de excitação sexual. Correu para a sala dos cacifos, tentando controlar-se. “Se ao menos ele fosse parar às mãos de Doherty”, pensou. “Isso tornaria as coisas perfeitas.”

Os maxilares de Trent contraíram-se quando pensou no anestesista. O nome do homem reacendeu a ira pela humilhação da véspera. Ao chegar junto do cacifo, Trent deu-lhe uma palmada sonora com a mão aberta. Algumas pessoas olharam na direcção dele. Trent ignorou-os. A ironia era que, antes da cena da humilhação, Trent até gostava de Doherty. Tinha mesmo sido simpático para aquele palerma.

Furioso, Trent fez rodar a combinação da fechadura e abriu a porta. Segurando-a com o corpo, fez escorregar a ampola de Marcaína de dentro das cuecas e deixou-a cair para a algibeira do casaco branco que estava pendurado no interior do armário. Talvès tivesse que Preparar alguma coisa especial para Doherty.

Soltando um suspiro de alívio, Jeffrey fechou a porta do quarto que ocupava no Essex Hotel. Passava pouco das onze da manhã. Tinha andado por fora desde as nove e meia, hora a que saíra do hotel para fazer algumas compras. Sentira-se constantemente aterrorizado com a ideia de ser descoberto por alguma pessoa conhecida, por Devlin ou pela polícia. Vira alguns oficiais da polícia, mas evitara sempre uma confrontação directa. Mesmo assim a aventura arrasara-lhe os nervos.

Pousou os embrulhos e a pasta em cima da cama e abriu o saco mais pequeno. Entre outras coisas continha um champô para dar cor ao cabelo. Era “Negro da Meia-Noite”. Despindo-se, Jeffrey foi directamente para a casa de banho e seguiu as instruções da embalagem. Quando finalmente pôs o gel para se pentear e escovou o cabelo todo para trás, parecia outra pessoa. Achou que parecia um vendedor de carros usados ou uma figura saída de um filme dos anos 30. Comparando a sua própria imagem com a pequena fotografia da carta de condução, achou que podia passar por Frank Amendola se ninguém olhasse de muito perto. Mesmo assim ainda não tinha acabado.

Já outra vez no quarto, Jeffrey abriu o embrulho maior e tirou de lá um fato novo azul-escuro, em polyester, que comprara na cave do Filene e mandara arranjar no Pacifíci de Boston. Mike, o alfaiatechefe, prontificara-se a fazer as alterações enquanto Jeffrey esperava. Jeffrey não queria que fizessem muita coisa, pois não estava interessado em que o fato assentasse bem de mais. Teve mesmo que resistir a algumas das sugestões de Mike.

Voltando a mexer nos embrulhos, Jeffrey puxou de várias camisas brancas e gravatas de mau gosto. Vestiu uma das camisas e pôs uma gravata, depois o fato. Em seguida deu a volta aos sacos até encontrar uns óculos de aros negros. Depois de os pôr, voltou à casa de banho e colocou-se diante do espelho. Comparou de novo a própria imagem com a fotografia da carta de condução. Não conseguiu conter um sorriso. Em termos gerais, estava com um aspecto terrível. Quanto a parecer-se com Frank Amendola, o resultado era razoável. Surpreendeu-se ao constatar como as feições do rosto eram pouco importantes Para criar uma impressão geral.

Um dos outros embrulhos continha um saco de pano com uma tira Para pôr a tiracolo e meia dúzia de compartimentos. Jeffrey transferio o dinheiro para esses compartimentos. Sentia-se conspícuo de Pasta na mão e receava que isso pudesse ajudar a polícia a descobrilo. Estava mesmo convencido de que a pasta poderia ser citada como Parte da sua descrição.

Pegando novamente nela, retirou de lá uma seringa e o frasco de

De ccinilcolina. Depois de ter andado toda a manhã preocupado com a ideia de que Devlin lhe pudesse aparecer inesperadamente, como

acontecera no aeroporto, Jeffrey acabara por ter uma ideia. Cautelosamente, introduziu na seringa 40 mg de succinilcolina e depois tapou-a. Pôs a seringa na algibeira do casaco. Não tinha a certeza como é que se iria servir da succinilcolina, mas tinha-a ali, para o que desse e viesse. Era mais um apoio psicológico que outra coisa.

Com os seus óculos de vidro normal e o saco de pano ao ombro, Jeffrey deitou uma olhadela pelo quarto, a ver se se esquecia de alguma coisa. Estava hesitante em sair do quarto pois sabia que logo que saísse a angústia de ser reconhecido voltaria imediatamente. Mas ele queria conseguir entrada no Boston Memorial Hospital e sabia que a única forma de isso acontecer era ir direito lá e pedir um emprego nos serviços de limpeza.

Devlin saiu indelicadamente do elevador a caminho do escritório de Michael Mosconi, sem dar tempo a nenhum dos outros passageiros para se desviarem do caminho dele. Sentia um prazer perverso em provocar as pessoas, especialmente homens de fato completo, meio na esperança de que algum deles resolvesse armar em herói.

Devlin estava num estado de espírito péssimo. Passara a noite quase toda acordado, desconfortavelmente sentado no banco da frente do seu carro, vigiando a residência dos Rhodes. Esperara sinceramente que Jeffrey tentasse entrar em casa às escondidas, pela calada da noite. Ou, pelo menos, esperara que Carol saísse de repente. Mas nada aconteceu até pouco depois das oito da manhã, quando Carol saiu da garagem como uma espécie de Vespão Verde no seu Mazda RX7, deixando as marcas dos pneus no meio da estrada.

Com grande dificuldade e poucas esperanças, Devlin seguira Carol pelo meio do trânsito matinal. Ela guiava de forma impetuosa, entrando e saindo com grande mobilidade das filas de trânsito. Arrastara-o até ao centro da cidade e aí limitara-se simplesmente a subir ao vigésimo segundo andar de um dos edifícios de escritórios mais modernos onde se encontrava aquele em que trabalhava. Devlin resolveu desistir de a vigiar por uns tempos. Precisava saber mais sobre Jeffrey para decidir o que havia de fazer a seguir.

— Bom? — perguntou Michael cheio de expectativa logo que Devlin atravessou a porta.

Devlin não respondeu imediatamente, sabendo que isso iria enfurecer Michael. O tipo estava sempre tão tenso. Devlin deixou-se cair no sofá de vinil em frente da secretária de Michael e pôs as botas de cowboy em cima da mesinha baixa.

— Bom o quê? — disse com irritação.

— Onde é que está o doutor? — Pensava que Devlin se preparasse para lhe dizer que já tinha entregue Rhodes na prisão.

— Levou-me a melhor — disse Devlin.

— Que é que isso quer dizer?—Ainda havia uma hipótese de Devlin estar a gracejar.

— Acho que é bastante claro — ripostou Devlin.

— Pode ser claro para si, mas não para mim — atalhou Michael.

— Não sei onde é que está esse malandro — admitiu finalmente Devlin.

—Pelo amor de Deus!—explodiu Michael, levantando as mãos em sinal de desaprovação. —Você disse-me que agarrava o tipo, que não era problema. Tem de o descobrir! Isto agora já não está para brincadeiras.

— Ele nunca mais pôs os pés em casa.

— Rai’s parta! Rai’s parta! — exclamou Michael num pânico crescente. A cadeira rotativa guinchou quando ele a inclinou para a frente e se pôs de pé. — Vou perder o emprego.

Devlin franziu a testa. Michael estava mais nervoso que o costume. Esse tal médico desaparecido estava mesmo a preocupá-lo.

—Não se rale—disse paraMichael. —Euhei-de encontrá-lo. Que mais sabe sobre ele?

— Nada! — berrou Michael. — Disse-lhe tudo o que sabia.

—Não me disse praticamente nada—comentou Devlin.—Outras pessoas de família? Coisas assim. Amigos?

—Já lhe disse, não sei nada sobre o tipo — admitiu Michael. —A única coisa que eu fiz foi aceitar-lhe a casa como penhor. E sabe uma coisa? O tipo também me levou à certa com isso. Esta manhã recebi uma chamada do Owen Shatterly, do banco, a dizer-me que tinha acabado de saber que o Jeffrey Rhodes tinha aumentado a hipoteca antes de eu apresentar os documentos de fiança. Agora nem sequer essa importância está coberta.

Devlin riu-se.

— Que rai’ é que tem assim tanta graça? Devlin sacudiu a cabeça.

— Acho piada como este doutorzinho de merda consegue dar-lhe tantos problemas.

— Não vejo em que é que isso seja tão engraçado — disse Michael. —o Owen também me disse que os 45 000 que ele pediu por conta da hipoteca os quis receber em dinheiro.

— Céus, não me admira que a pasta dele estivesse tão pesada — Comentou Devlin com um sorriso. — Nunca me tinham dado com tanto dinheiro.

— Muita graça — atalhou Michael. — O problema é que as coisas estão a ir de mal a pior. Graças a Deus que tenho o meu amigo Albert Norstadt lá na esquadra da polícia. Não vão fazer nada enquanto ele não for apanhado.

— E eles acham que Rhodes ainda está em Boston? — perguntou Devlin.

—Tanto quanto sei — disse o Michael. — Eles não têm feito grande coisa, mas pelo menos vigiaram o aeroporto, as estações de camionetas e comboios, agências de aluguer de automóveis, até mesmo companhias de táxis.

—Já é bastante—disse Devlin. A verdade é que ele não queria que fosse a polícia a apanhar Jeffrey. — Se ele está na cidade, apanho-o com certeza dentro de um dia ou dois. Se se passou, vai levar mais algum tempo, mas eu apanho-o. Descanse.

— Quero que o apanhem hoje! — disse Michael, preparando nova crise de frenesi. Começou a andar de um lado para o outro atrás da secretária. — Se você não consegue encontrar esse malandro, eu arranjo outro especialista.

— Espere aí — disse Devlin tirando as pernas de cima da mesa e endireitando-se na cadeira. Não queria outros indivíduos a farejarem aquela presa. — Estou a fazer o melhor que qualquer pessoa pode fazer. Eu encontro o tipo, acalme-se.

— Mas eu quero-o agora, não é daqui a um ano — disse Michael.

— Descanse. Só passaram doze horas.

—E para que rai’ está você aqui metido a perder tempo?—atalhou Michael. — Com quarenta e cinco mil dólares na algibeira, ele não vai ficar indefinidamente por aí. Quero que você volte ao aeroporto e veja se consegue apanhar-lhe o rasto a partir daí. Ele teve de voltar para Boston de alguma forma. E com certeza que não veio a pé. Levante o rabo da cadeira e vá falar com alguém dos serviços de autocarros. Talvez se lembrem de um tipo magro, de bigode, com uma pasta.

— Acho melhor continuar a vigiar a mulher — disse Devlin.

— Não me pareceu que fossem propriamente um casal de amorosos —comentou Michael.—Quero que você vá antes tentar o aeroporto. Se não, mando outra pessoa.

— Está bem, está bem! — disse Devlin, pondo-se de pé. — Se quer que tente o aeroporto, eu tento o aeroporto.

— Óptimo — concluiu Michael. — E mantenha-me informado. Devlin saiu do gabinete de Michael. O seu estado de espírito não melhorara. Normalmente não deixaria um tipo como Michael dizer-lhe como havia de fazer o seu trabalho, mas neste caso pensou que seria melhor não irritar mais o indivíduo. A última coisa que ele queria era ter concorrência. Especialmente no caso presente. O único problema era que agora que ia ter de ir ao aeroporto, via-se obrigado a contratar alguém para seguir a mulher de Jeffrey e vigiar a casa. Enquanto esperava pelo elevador, foi pensando quem é que havia de chamar.

Jeffrey parou nos degraus largos da entrada do Boston Memorial para arranjar coragem. Apesar do esforço que fizera para se disfarçar, agora que chegara ao limiar do hospital sentia-se apreensivo. Preocupava-o a ideia de ser reconhecido pelo primeiro indivíduo que o conhecesse.

Até conseguia imaginar aquilo que diriam:

—Jeffrey Rhodes, és mesmo tu? Que é que andas a fazer, vais para algum baile de máscaras? Ouvimos dizer que a polícia anda à tua procura, é verdade? Lamento que tenhas sido condenado por crime de segundo grau. Só prova que cada vez é mais difícil exercer medicina no Massachusetts.

Dando um passo para trás e mudando o saco para o outro ombro, Jeffrey inclinou a cabeça para olhar para os caracteres em gótico por cima da entrada principal. Havia uma placa na qual se lia: O BOSTON MEMORIAL FOI ERIGIDO COMO CASA DE REFÚGIO PARA OS DOENTES, OS ENFERMOS E OS ATORMENTADOS. Ele não estava doente ou enfermo, mas certamente estava atormentado. Quanto mais hesitasse, mais difícil ia ser entrar. Estava preso nesta indecisão quando avistou Mark Wilson.

Mark era um colega anestesista que Jeffrey conhecia bastante bem. Tinham estagiado juntos no Memorial. Jeffrey estava um ano mais adiantado. Mark era um negro corpulento cujo bigode sempre fizera o de Jeffrey parecer ralo, por comparação. Fora sempre assunto de brincadeira entre ambos. Mark parecia deleitar-se com o ar fresco e leve daquele dia de Primavera. Aproximava-se, vindo de Beacon Street, e dirigia-se para a porta de entrada—e directamente para Jeffrey.

Foi esse o empurrão de que precisava. Em pânico, passou a porta giratória e entrou no átrio principal. Sentiu-se imediatamente engolido por uma onda de gente. O átrio servia não apenas de entrada, mas era aí também que se fazia a confluência dos três corredores principais Que levavam às três torres do hospital.

Receando que Mark estivesse atrás dele, Jeffrey avançou rapidamente para a cabina de informações circular que ocupava o centro do átrio abobadado e desceu o corredor central. Calculava que Mark ia encaminhar-se para o conjunto de elevadores, à esquerda, que levavam ao bloco operatório.

Tenso com medo de ser descoberto, Jeffrey avançava pelo corredor, para assumir um ar natural. Quando finalmente se voltou para trás, Mark não estava visível em parte nenhuma.

Embora tivesse estado ligado ao hospital durante perto de vinte anos, Jeffrey não conhecia ninguém na secção de pessoal. Mesmo assim, continuou atento e cauteloso quando entrou na secção de emprego e recebeu a ficha de inscrição que um empregado lhe estendeu amavelmente. O facto de ele não conhecer o pessoal daquela secção não queria dizer que estes não o conhecessem a ele.

Preencheu o formulário, usando o nome de Frank Amendola, o seu número da Previdência e endereço de Framinghan. Na secção em que se perguntava qual o trabalho preferido, Jeffrey indicou limpezas. Onde se perguntava qual o turno, Jeffrey escreveu “noite”. Como referência indicou vários hospitais que visitara em sessões de anestesia. A sua esperança era que a secção demorasse na sua recolha de referências, se é que chegavam a fazer alguma coisa nesse sentido. Entre a enorme procura de pessoal para trabalhar nos hospitais e os baixos salários oferecidos, Jeffrey achava que o candidato era rei. Não lhe parecia que o seu emprego como empregado de limpeza estivesse sujeito a um controlo de referências.

Depois de ter entregue o impresso preenchido, foi-lhe dado a escolher entre fazer imediatamente a entrevista ou ser convocado para uma data posterior. Respondeu que teria muito gosto em ser entrevistado com a maior brevidade que conviesse aos serviços.

Depois de uma curta espera, foi introduzido no gabinete interior de Cari Bodanski. Bodanski era um dos funcionários superiores da secção de pessoal do Memorial. Uma das paredes do pequeno gabinete era dominada por um quadro enorme, com centenas de etiquetas com nomes penduradas em pequenos ganchos. Noutra parede havia um calendário. A terceira era ocupada por portas duplas. Tudo muito organizado e funcional.

Cari Bodanski tinha entre 35 e 40 anos. Tinha cabelo escuro, um rosto atraente, e estava vestido com uma certa elegância, embora comedida, com o seu fato completo de cor escura. Jeffrey lembrava-se de o ter visto muitas vezes na cafetaria do hospital, mas nunca tinham falado um com o outro. Quando Jeffrey entrou, ele estava inclinado sobre a secretária.

— Sente-se, por favor — disse Bodanski com cordialidade, mas ainda sem levantar os olhos. Jeffrey percebeu que estava a ler a inscrição que ele acabara de preencher. Quando Bodanski finalmente voltou a atenção para Jeffrey, este susteve a respiração. Receava que se lhe deparasse repentinamente um lampejo de reconhecimento. Mas nada disso aconteceu. Em vez disso, Bodanski perguntou-lhe se gostaria de tomar alguma coisa, café ou uma Cola.

Jeffrey declinou, nervoso. Estudou o rosto de Bodanski. Este sorriu-lhe.

— Portanto já trabalhou em hospitais?

—Sim, sim—replicou Jeffrey. —Bastante. —Fez-lhe um sorriso tímido. Começava a descontrair-se.

— E quer trabalhar no turno da noite do serviço de limpezas?—Bodanski queria ter a certeza de que não houvera engano. Pelo seu lado, parecia-lhe bom de mais para ser verdade: um indivíduo que queria trabalhar no turno da noite dos serviços de limpeza e que não tinha ar de criminoso nem de estrangeiro ilegal e que falava inglês.

—Era o que eu preferia—disse Jeffrey. Compreendeu que era um tanto inesperado. Numa inspiração momentânea, apresentou uma justificação.—Tenciono frequentar a Universidade de Suffolk durante o dia ou talvez ao princípio da noite. E tenho de ganhar para viver.

— Que é que pretende estudar? — perguntou Bodanski.

— Direito — replicou Jeffrey. Foi a primeira coisa que lhe veio à ideia.

— Muito ambicioso. Quer dizer que vai frequentar a faculdade de direito durante alguns anos.

— Assim o espero — disse Jeffrey com entusiasmo. Notou que os olhos de Bodanski brilhavam. Além do recrutamento, o serviço de limpezas tinha outro problema que era a grande mobilidade do pessoal, especialmente no turno da noite. Se Bodanski pensava que Jeffrey ia ficar durante alguns anos no serviço da noite, devia achar que era o seu dia da sorte.

—Quando é que lhe interessaria começar?—perguntou Bodanski.

— O mais depressa possível — replicou Jeffrey. — Pode ser já esta noite.

—Esta noite? — repetiu Bodanski, incrédulo. Era realmente bom de mais para ser verdade.

Jeffrey encolheu os ombros.

—Vim há pouco tempo para a cidade e preciso de trabalho. Tenho de comer.

— Veio de Framingham? — perguntou Bodanski, deitando uma olhadela à inscrição.

—- Precisamente — respondeu Jeffrey. Não queria entrar em discussões sobre um sítio onde nunca tinha estado, por isso disse. — Se o Boston Memorial não tiver lugar para mim, posso ir procurar no St. seph’s ou no Boston City . — Não. não. Não vai ser preciso—atalhou imediatamente Bodans*• Só que as coisas levam o seu tempo. Tenho a certeza que compreende. Tem de ter um uniforme e o cartão de identificação. Há também certas questões burocráticas a resolver antes de poder começar. ’—Bom, já que eu estou aqui — disse Jeffrey—, porque é que não resolvemos isso tudo? Bodanski fez uma pequena pausa, depois disse:

— Só um momento. — Levantou-se e saiu do gabinete. Jeffrey deixou-se ficar sentado. Esperava não se ter mostrado demasiado ansioso ao pedir para começar tão depressa. Para passar o tempo, percorreu com o olhar o gabinete de Bodanski. Em cima da mesa havia uma fotografia com moldura de prata: uma mulher de pé, atrás de duas crianças de faces rosadas. Era o único toque pessoal que ali se encontrava, mas um toque bastante simpático, pensou Jeffrey. Bodanski voltou com um homem baixo, de cabelo negro e brilhante e um sorriso amigável. Vestia o uniforme verde-escuro dos serviços de limpeza. Bodansky apresentou-o como José Martinez. Jeffrey levantou-se e apertou-lhe a mão. Já vira Martinez muitas vezes. Observou-o, como fizera com Bodanski, mas não detectou nenhum sinal de reconhecimento.

— José é o chefe dos serviços de limpeza — esclareceu Bodanski, com uma das mãos no ombro de Martinez. — Expliquei-lhe que você gostaria de começar a trabalhar imediatamente. José está disposto a apressar as coisas, portanto vou deixá-lo ao cuidado dele.

— Isso quer dizer que estou contratado? — perguntou Jeffrey. —Absolutamente — replicou Bodanski. — Tenho muito gosto em o incluir na equipa do Memorial. Quando o José já não precisar de si, volte aqui por favor. Vamos precisar de uma fotografia para o cartão de identificação. E depois temos de lhe fazer um seguro de assistência na doença. Alguma preferência?

— Absolutamente nenhuma — disse Jeffrey.

Martinez levou Jeffrey para as instalações dos serviços de limpeza, no primeiro piso da cave. Tinha um agradável sotaque espanhol e um sentido de humor contagiante. Na realidade, achava quase tudo suficientemente divertido para o fazer rir, especialmente o primeiro par de calças que pôs diante de Jeffrey. As pernas só chegavam aos joelhos deste último.

—Acho que vamos ter de fazer uma amputação — disse, rindo-se.

Depois de várias tentativas, descobriram um uniforme com a medida certa. Depois foi-lhe atribuído um cacifo. De momento, Martinez disse-lhe que vestisse só a camisa.

— Pode ficar com as suas calças — disse.

Martinez explicou-lhe que ia levá-lo a visitar o hospital. Entretanto a camisa da farda servir-lhe-ia de identificação.

—Custa-me estar a tomar-lhe mais tempo—atalhou Jeffrey imediatamente. Aúltima coisa que ele queria era ir passear pelo hospital em pleno dia, a altura em que era mais provável vir a ser reconhecido — Eu tenho tempo — disse Martinez. — Não há problema. Além disso faz parte da orientação habitual.

Receoso de criar problema em volta daquilo, Jeffrey vestiu com relutância a camisa verde-escura e guardou no cacifo a sua própria roupa.

Sempre com o saco de pano ao ombro, preparou-se para seguir tymartinez onde este o levasse. Aquilo que desejaria poder fazer era enfiar o saco na cabeça.

Martinez não parou de tagarelar enquanto dava a volta com Jeffrey. Primeiro apresentou-o a todo o pessoal de limpeza que se encontrava presente. Seguidamente foram à lavandaria, onde toda a gente estava demasiado ocupada para lhes prestar atenção. A seguir foi a cafetaria, onde todos se mostraram nitidamente hostis. Felizmente não encontraram ninguém lá sentado que conhecesse bem Jeffrey.

Subindo as escadas até ao terceiro andar, Martinez levou Jeffrey através das clínicas para doentes externos e da sala de urgências. Aqui, Jeffrey teve vontade de dar meia volta e enfiar pelo corredor, ao ver vários estagiários de cirurgia que ficara a conhecer bastante bem depois da sua passagem pelos serviços de anestesia. Felizmente para ele, não voltaram a cabeça para o sítio onde se encontrava. Estavam preocupados com casos de trauma resultantes de um acidente de automóvel.

A seguir ao serviço de urgências, Martinez levou Jeffrey aos elevadores principais da torre norte.

— Agora quero mostrar-lhe os laboratórios — disse Martinez. — E depois o bloco operatório.

Jeffrey engoliu em seco.

—Não devíamos ir outra vez ter com o Sr. Bodanski?—perguntou.

—Temos muito tempo — respondeu Martinez. Fez sinal a Jeffrey para que entrasse para o elevador, cujas portas acabavam de se abrir. —Além disso, é importante para si ver a patologia, a química e o bloco operatório. Esta noite vai ter de ir para lá. E sempre o turno da noite que faz a limpeza. É a única altura em que lá podemos entrar.

Jeffrey foi colocar-se ao fundo do elevador. Martinez foi para junto dele.

—Você vai trabalhar com mais quatro pessoas—explicou.—O nome do chefe de turno é David Arnold. E um bom homem.

Jeffrey fez que sim com a cabeça. Quando se aproximavam do bloco operatório e dos pisos onde ficavam os laboratórios, começou a sentiu um ardor no estômago. Deu um salto quando Martinez lhe agarrou n° braço e disse:

Saímos aqui.

Jeffrey respirou fundo, preparando-se para deixar o elevador e andar na parte do hospital onde tinha praticamente vivido durante quase duas décadas.

O queixo de Jeffrey descaiu-lhe. Durante um segundo, ficou paralisado.

Mesmo em frente dele estava Mark Wilson, à espera para entrar no elevador. Os olhos escuros dele cravaram-se em Jeffrey. Depois semicerraram-se e ele começou afalar. Jeffrey esperava ouvir um “Jeffrey, é você?”

— Vai sair ou quê? — perguntou Mark.

—Vamos sair—disse Martinez, dando um ligeiro empurrão a Jeffrey.

Este demorou alguns segundos a compreender que Mark não o tinha reconhecido. Voltou-se precisamente quando as portas do elevador se fecharam e o olhar dele cruzou-se pela segunda vez com o de Mark. Não viu nele o mais ligeiro sinal de reconhecimento.

Jeffrey empurrou os óculos para trás. Tinham-lhe escorregado ao sair desajeitadamente do elevador.

— Sente-se bem? — perguntou Martinez.

— Estou óptimo — disse Jeffrey. A verdade é que se sentia muito melhor. O facto de Mark não o ter reconhecido era encorajador.

A visita aos laboratórios de química e patologia foi menos enervante que a subida no elevador. Jeffrey viu muitas pessoas que conhecia, mas tal como Mark Wilson também não o reconheceram.

Crestado de tensão voltou quando Martinez levou Jeffrey à cirurgia. Aquela hora da tarde, havia pelo menos vinte pessoas que ele conhecia bem e que estavam sentadas na sala a beber café, a conversar ou a ler o jornal. Bastaria que algum deles o reconhecesse e tudo estaria terminado. Enquanto Martinez enumerava as tarefas da noite, Jeffrey tinha os olhos postos nos sapatos. Evitava ao máximo cruzar o olhar com o dos outros, mas ao fim de quase um quarto de hora de expectativa apercebeu-se de que ninguém lhes prestava a menor atenção. Tanto ele como Martinez podiam ser invisíveis, a julgar pela forma como os ignoravam.

— Tem alguma experiência da roupa dos médicos? — perguntou Martinez quando pararam em frente dos gabinetes onde eram guardadas as roupas.

— Sim — respondeu Jeffrey.

— Óptimo — disse Martinez. —Acho melhor não irmos lá dentro agora. Logo à noite o David Arnold mostra-lhe o bloco operatório. A esta hora está muito ocupado.

— Sim, compreendo — disse Jeffrey.

Aliviado por ter acabado a visita, Jeffrey vestiu o fato dele e Martinez levou-o outra vez ao gabinete de Cari Bodanski. Depois de aper’ tarem as mãos, Martinez desejou a Jeffrey que tudo corresse bem e voltou ao seu trabalho. Bodanski tinha uma declaração de retenção de impostos e um impresso de assistência na doença para Jeffrey assinar. Nervoso como ainda estava, começou a assinar o nome verdadeiro antes de cair em si e rabiscar o nome de Frank Amendola nos espaços próprios.

Só depois de passar a porta giratória da entrada principal do hospital e de se encontrar na rua é que Jeffrey sentiu a ansiedade começar a desaparecer. Sentia-se mesmo encorajado. Até ali tudo estava a correr conforme planeara.

Devlin subiu as escadas do aeroporto que levavam à paragem dos autocarros. Os protectores metálicos dos tacões das botas de cowboy tilintavam sonoros contra o cimento sujo. Apetecia-lhe estrangular alguém e ele não era difícil na escolha. Qualquer pessoa serviria.

O seu estado de espírito tinha piorado bastante desde que saíra do escritório de Michael Mosconi. Tal como esperava, o aeroporto tinha sido, até àquele momento, uma total perda de tempo. Tinhafalado com os empregados dos estacionamentos para ver se algum deles se lembrava de um indivíduo que chegara pelas nove da noite com um Mercedes creme 240D. Claro que ninguém tinha dado por ele.

A seguir tinha ido à garagem para saber o nome e o número de telefone do indivíduo que estivera de serviço aoguichet das fichas na noite anterior. Conseguir o número foi como arrancar um dente. Quando finalmente conseguiu entrar em contacto com o homem, o esforço revelou-se tão supérfluo como previra. O tipo nem seria capaz de se lembrar da própria mãe se ela tivesse ido comprar-lhe uma ficha.

Ao chegar à plataforma dos autocarros, Devlin esperou que passasse o interterminais. Quando ele finalmente chegou, entrou pela porta da frente. A princípio tentou ser amável.

— Desculpe — disse. O condutor era um negro magro com óculos redondos, de aros de metal. — Queria saber se me pode dar uma informação.

O condutor pestanejou, depois baixou os olhos para o braço tatuado de Devlin antes de lhe olhar novamente para a cara.Não posso fechar a porta enquanto não se sentar — disse. — E não posso pôr o autocarro em andamento enquanto não fechar a porta.

Devlin revirou os olhos. Olhou para o autocarro. Alguns passageiros tinham entrado pela porta das traseiras e estavam ocupados e arrumar as bagagens.

É só um instante — disse Devlin, controlando-se. — Olhe, eu estou. à procura de um homem que pode ter entrado num destes autocarros a noite passada, pelas nove e meia. É um tipo branco, magro, e bigode, com uma pasta. Sem mais bagagem. O que eu gostava.

—Agradecia-lhe que se sentasse—disse o condutor, interrompendo Devlin.

— Oiça, amigo — disse novamente Devlin, agora com a voz uma oitava abaixo. — Eu estou a tentar ser simpático.

— Está a perder o seu tempo — replicou o condutor. — Eu saio às três e meia.

—Compreendo—continuou Devlin, fazendo tudo para não perder a calma. — E será que pode dizer-me os nomes dos condutores que estiveram de serviço ontem à noite?

— Por que é que não vai aos escritórios?—perguntou o condutor. — Agora faça o favor de se sentar.

Devlin fechou os olhos. O homenzinho estava a exagerar.

— Ou se senta ou sai do autocarro.

Foi a última gota. Devlin avançou rapidamente e agarrou-o pelo peitilho da camisa, fazendo-o levantar do assento. Pôs a cara do homem a poucos centímetros da sua.

—Sabe uma coisa, meu caro?—perguntou Devlin. —Acho que não estou a gostar da sua atitude. A única coisa que eu quero é uma resposta simples a uma pergunta simples.

— Eh! — gritou um dos passageiros.

Sem largar o aterrorizado condutor, Devlin voltou-se para a parte de trás do autocarro. Um homem de fato completo veio direito a ele. Tinha o rosto congestionado de indignação.

— Que é que se está a passar aqui? — inquiriu.

Devlin estendeu a mão esquerda e agarrou a cabeça do passageiro como se fosse uma bola de basquetebol. Primeiro puxou-o um passo para a frente, depois deu-lhe um valente empurrão para trás. O homem desequilibrou-se e caiu de costas no corredor do autocarro. Os outros passageiros limitaram-se aficar a olhar. Mais ninguém tentou ir em socorro do condutor.

Entretanto este tentava falar. Devlin deixou-o cair no assento. O homem tossiu. Depois, com voz rouca, deu dois nomes a Devlin.

— Não sei os números deles, mas vivem os dois em Chelsea. Devlin tomou nota dos nomes num pequeno livro de apontamentos

que trazia no bolso esquerdo da camisa de ganga. Entretanto o alarme dele tocou. Arrancou o alarme do cinto, carregou no botão e olhou para o visor. O número de Michael Mosconi apareceu a brilhar.

— Obrigado, amigo — disse para o condutor.

Deu meia volta e saiu do autocarro. O veículo afastou-se no meio de uma nuvem de fumo de gasóleo, com a porta ainda aberta.

Devlin ficou a vê-lo ir, perguntando a si mesmo se não tardaria * ser acostado por um carro da polícia. Se isso acontecesse, o mais provável era os polícias serem seus conhecidos. Havia mais de cinco anos que deixara de pertencer à corporação, mas ainda conservava muitos amigos por lá. A excepção dos novatos.

Regressando ao interior da estação, Devlin usou um telefone público para ligar para Michael. Perguntava a si mesmo se este estaria a controlá-lo para ver se tinha ido realmente ao aeroporto.

—Tenho boas notícias, meu caro—disse Michael logo que foi completada a ligação. — Eu não devia dizer-lhe isto. Torna-lhe o trabalho demasiado fácil. Mas já sei onde é que o Jeffrey Rhodes se escondeu.

— Onde? — perguntou Devlin.

— Mais devagar — disse Michael. — Se eu lhe der a informação e você for todo descansadinho até lá e lhe deitar a mão, isso não vale quarenta mil. Também posso chamar outra pessoa. Está a ver onde quero chegar?

— Como é que conseguiu a informação? — inquiriu Devlin.

— Norstad, da polícia — esclareceu Michael triunfante. — Quando andavam a investigar as companhias de táxis, um dos motoristas apresentou-se a dizer que tinha apanhado um tipo que correspondia à descrição de Jeffrey Rhodes. O condutor disse que Rhodes tinha mostrado um comportamento estranho. A princípio nem sequer sabia para onde ir. Diz que andaram às voltas, sem destino.

— Então por que é que a polícia não lhe deitou a mão? — perguntou Devlin.

— Deixe lá que vão deitar. Mas neste momento estão um bocado preocupados. Há um grupo qualquer de rock que se está a preparar para vir actuar na cidade. Além disso, não acham que o Rhodes constitua uma ameaça para ninguém.

— Bom, então como é que ficamos?

— Dez mil — disse Michael. — É pegar ou largar. Devlin não levou muito tempo a pensar.

— Pego — replicou.

— Essex Hotel — disse Michael. — Olhe, Dev... dê-lhe no osso. O tipo já me causou muitas dores de cabeça.

—Com todo o prazer—replicou Devlin, e estava a ser sincero. Não só Jeffrey lhe tinha batido com a pasta, como ainda conseguira levado à certa em trinta mil dólares. Mesmo assim, talvez não tivesse.

Outra vez na plataforma dos autocarros, Devlin conseguiu chamar um táxi. Fez-se conduzir até ao seu próprio carro, que estava no estacionamento central, por cinco dólares.

Quando finalmente saiu do aeroporto, a atitude de Devlin já melhorara bastante. Era aborrecido perder trinta mil, se era isso que ia acabar por acontecer, mas dez mil também não era coisa que se despresasse. Além disso, ainda se podia divertir um bocadinho à custa de Jeffrey.

E agora que sabia onde ele se encontrava, não custava nada. Estava no papo.

Devlin seguiu directamente para o Essex Hotel. Parou junto de uma boca de incêndio mesmo do outro lado da rua. Conhecia o Essex. Quando era polícia, participara em algumas rusgas de droga naquele hotel.

Devlin subiu as escadas. Antes de abrir a porta, meteu a mão por baixo do blusão de ganga e soltou a tira que estava a afivelada por cima do cão do revólver calibre 38 de cano curto. Embora tivesse a certeza de que Jeffrey não andava armado, todos os cuidados eram poucos. O doutorzinho já o tinha surpreendido antes. Mas isso não ia acontecer outra vez.

Um olhar rápido pelo interior deu a entender a Devlin que o Essex não mudara em nada desde a sua última visita. Até se lembrava do cheiro. Era o mesmo cheiro baflento de sempre, como se tivessem cogumelos na cave. Devlin aproximou-se do balcão da recepção. Quando o homem desviou o olhar da televisão, Devlin também se recordou dele. Os tipos da polícia chamavam-lhe o Beiçola, por ele ter o lábio inferior caído como o de um bulldog.

— Que deseja?—perguntou o empregado, observando Devlin com evidente desagrado. Deixou-se ficar alguns centímetros afastado do balcão, como se tivesse medo que Devlin estendesse a mão e o agarrasse.

— Estou à procura de um dos seus hóspedes — disse Devlin. — O nome dele é Jeffrey Rhodes, mas também é possível que se tenha registado com um nome diferente.

—Não fornecemos informações sobre os nossos clientes—replicou o outro com ar presumido.

Devlin inclinou-se com ar intimidante na direcção do empregado. Fez uma pausa suficientemente longa para ele começar a sentir-se desconfortável.

— Então não dão informações sobre os vossos clientes? — repetiu, acenando a cabeça como se estivesse a compreender.

— Exactamente — disse o homem um tanto inseguro.

— E que raio pensa você que isto é, o Ritz-Carlton? — perguntou Devlin sarcástico. —As únicas pessoas que vocês costumam ter por cá são um bando de chulos, prostitutas e drogados.

O empregado deu um passo para trás, olhando Devlin com ar assustado.

Com a velocidade do relâmpago, Devlin bateu com a palma da mão no tampo de madeira, provocando como que um ribombar de trovoada. O homem estremeceu. Era visível que estava assustado.

— As pessoas têm-me andado a chatear o dia todo — berrou Devlin.

Depois baixou a voz. — Só estou a fazer-lhe uma pergunta muito simples.

—Não temos cá nenhum Jeffrey Rhodes—gaguejou o empregado.

Devlin fez que sim com a cabeça.

— Não me admira. Mas deixe-me descrever-lho. É um tipo mais ou menos da sua altura, de uns 40 anos, com bigode, assim pro magro, cabelos castanhos. Bom aspecto. E deve trazer uma pasta com ele.

— Esse podia ser Richard Bard — sugeriu o empregado, amável.

— E quando é que o Sr. Bard deu entrada neste estabelecimento palaciano?

— Ontem à noite, pelas dez—informou o empregado. Na esperança de apaziguar a ira de Devlin, voltou uma página do livro de registo dos hóspedes e apontou um nome, com a mão a tremer. — Vê, foi aqui que ele assinou. Aqui mesmo.

—E neste momento o Sr. Bard encontra-se no hotel? — quis saber Devlin.

O homem sacudiu a cabeça.

— Saiu por volta do meio-dia. Mas estava muito diferente. Tinha o cabelo preto e o bigode rapado.

—Ah, bom—comentou Devlin.—Isso explica tudo. Qual é o quarto do Sr. Bard?

— Cinco-F.

— Não seria pedir de mais se me levasse até lá? Que é que acha? O empregado sacudiu a cabeça. Fechou a gaveta do dinheiro, pegou

numa chave e saiu de trás do balcão. Devlin seguiu-o até à escada. Devlin apontou para o elevador.

— As coisas por cá não mudam muito. Quando estive aqui numa rusga de droga, há cinco anos, esse elevador já tinha aquele letreiro.

— O senhor é polícia? — perguntou o empregado.

— Mais ou menos — respondeu Devlin.

Subiram em silêncio. Quando chegaram ao quinto andar, Devlin pensou que o empregado estava à beira de um ataque de coração. Tinha a respiração difícil e transpirava abundantemente. Devlin deixou-o ganhar fôlego antes de descerem o corredor até ao 5F.

Por uma questão de segurança, Devlin bateu à porta. Como não houvesse resposta, desviou-se para o lado, para deixar o empregado abrir. Devlin deu uma volta rápida pelo quarto. Estava vazio.

— Acho que vou esperar aqui pelo Sr. Bard — disse Devlin, enclinando-se para a janela e olhando para fora. Voltou-se novamente Para o empregado. —Mas não quero que lhe diga nada quando ele entrar. Digamos que é uma pequena surpresa que lhe quero fazer. Compreende?

O empregado acenou vigorosamente com a cabeça.

— O Sr. Rhodes, supostamente Sr. Bard, anda fugido da justiça —. disse Devlin. — Há uma ordem de captura contra ele. É um homem perigoso, condenado por crime de morte. Se lhe disser alguma coisa que levante suspeitas, não se sabe como é que irá reagir. Entende o que lhe estou a dizer?

— Absolutamente — disse o outro. — O Sr. Bard tinha um ar estranho quando chegou. Eu até pensei em chamar a polícia.

— Claro que deve ter pensado — comentou Devlin, sarcástico.

— Eu não digo uma palavra a ninguém — garantiu, retirando-se.

— Conto consigo — disse Devlin. E fechou a porta atrás dele.

Logo que ficou só, Devlin precipitou-se para a pasta e atirou-a para cima da cama. Com as mãos a tremer, abriu os fechos e levantou a tampa. Vasculhou pelo meio dos papéis, mas não encontrou nada. A seguir abriu a pasta em acordeão e espreitou rapidamente em todos os compartimentos.

— Raios! — berrou. Esperava que Jeffrey tivesse sido suficientemente parvo para deixar o dinheiro na pasta. Mas tudo aquilo que lá encontrou foi uma mão cheia de papéis e roupa interior. Devlin pegou numa das folhas que tinha o nome de Christopher Everson impresso na parte superior. Estava coberta de termos científicos. Devlin perguntou a si mesmo quem seria Christopher Everson.

Pondo de lado o papel, Devlin fez uma busca completa ao quarto, caso Jeffrey tivesse escondido o dinheiro. Mas não havia lá dinheiro nenhum. Devlin concluiu que Jeffrey o devia ter com ele. Era essa a razão principal porque tinha concordado tão depressa com as condições de Michael. Devlin estava a planear meter ao bolso os quarenta e cinco mil que Jeffrey devia ter com ele, além dos dez mil que Michael lhe iria pagar.

Estendendo-se em cima da cama, Devlin retirou o revólver do colt. O doutorzinho era uma fonte constante de surpresas. Devlin achava melhor estar preparado para tudo.

Jeffrey sentia-se bastante mais à-vontade com o seu disfarce e com a nova identidade depois de ter feito a visita ao Boston Memorial sem o menor problema. Se as pessoas que conhecia intimamente não o reconheciam, não tinha nada a recear em público, pelo menos em termos de lhe revelarem a identidade. Apoiado pela confiança recém-adquirida, Jeffrey apanhou um táxi e dirigiu-se ao St. Joseph’s Hospital

Preocupava-o um bocado andar com tanto dinheiro, mas sentia-se bastante melhor com ele dentro do saco de pano do que de pasta na

mão.

O St. Joseph’s Hospital era bastante mais antigo que o Memorial

Era uma construção em tijolo, do princípio do século, que já tinha sido restaurada várias vezes. Instalado num pequeno bosque ao lado do Arnold Arboretum em Jamaica Plain, as instalações e localização do St. Joseph’s eram bastante mais agradáveis que as do Memorial.

Originariamente construído como hospital de caridade católico, com o decorrer dos anos acabara por se transformar num hospital comunitário bastante activo. Como o St. Joseph’s ficava nos subúrbios de Boston, não tinha aquele ar arrojado e urbano de um hospital do centro, obrigado a suportar o impacte dos problemas sociais do país.

Jeffrey parou e informou-se junto de uma das voluntárias de bata cor-de-rosa e cabelos brancos que tomavam conta doguichet de informações do hospital de como poderia encontrar a unidade de cuidados intensivos.

Com um sorriso, a voluntária, já de certa idade, encaminhou-o para o segundo andar.

Jeffrey encontrou sem dificuldade a unidade de cuidados intensivos e entrou.

Na sua qualidade de anestesista, Jeffrey sentiu-se em casa no meio da unidade, aparentemente caótica com a sua tecnologia sofisticada. Todas as camas estavam ocupadas. As máquinas assobiavam e produziam sons entrecortados. Suspensos como frutos de vidro, viam-se os cachos de frascos de soro endovenoso. Por toda a parte havia tubos e fios.

No meio de toda esta confusão electrónica, estavam as enfermeiras. Como de costume, encontravam-se tão ocupadas com as suas responsabilidades que nem deram pela presença de Jeffrey.

Este localizou imediatamente Kelly. Acabava de pegar num telefone, quando Jeffrey se aproximou dela. Os seus olhares cruzaram-se momentaneamente e Kelly fez-lhe sinal para que esperasse um momento. Jeffrey reparou que ela estava a tomar nota de valores dados Pelo laboratório.

Logo que desligou, Kelly chamou uma das outras enfermeiras e ditou-lhe os resultados. Do outro lado da sala, a enfermeira fez-lhe sinal a indicar que tinha compreendido e ajustou o fluxo para compensar.

—Posso ajudá-lo? — perguntou Kelly, dirigindo as atenções para Jeffrey. Vestia uma blusa branca e calças também brancas. Tinha o cabelo puxado para trás num pequeno chignon.

— Já ajudou — replicou Jeffrey com um sorriso.

— Perdão? — exclamou Kelly, visivelmente espantada. Jeffrey riu-se.

— Sou eu! O Jeffrey!

— Jeffrey? — perguntou ela, semicerrando os olhos.

— Jeffrey Rhodes - disse ele. — Não acredito que ninguém me reconheça! Não fiz nenhuma operação plástica!

Kelly levou a mão à boca para esconder o sorriso.

— Que é que estás a fazer aqui? E que é que aconteceu ao teu bigode? E ao cabelo?

— É uma história comprida. Tens um minuto?

— Claro. — Kelly disse a outra enfermeira que ia fazer um intervalo. —Vem — disse para Jeffrey, apontando para uma porta por detrás da sala das enfermeiras. Levou-o para uma divisão que usavam para arrumações e também provisoriamente como sala.

— Queres café? — perguntou Kelly. Jeffrey disse que sim. Kelly serviu um café para Jeffrey, outro para ela. — Bom, então que é que há quanto a esse disfarce?

Jeffrey pousou o saco de pano e tirou os óculos. Tinham começado a irritar-lhe a cana do nariz. Depois pegou na chávena de café e sentou-se. Kelly encostou-se ao balcão, segurando a caneca de café com as duas mãos.

Começando no momento em que deixara a casa dela na noite anterior, Jeffrey contou a Kelly tudo o que acontecera: o fiasco no aeroporto, como se tinha tornado um fugitivo, como atacara Devlin com a pasta, a luta com as algemas.

— Preparavas-te então para sair do país? — perguntou Kelly.

— Era a minha intenção, sim — admitiu.

— E não ias telefonar-me a contar?

— Tencionava telefonar-te logo que pudesse — disse Jeffrey. — Tinha as ideias um tanto baralhadas.

— Onde é que estás hospedado?

—Numa espécie de albergue na parte baixa de Boston—disse Jeffrey.

Kelly sacudiu a cabeça espantada.

— Oh, Jeffrey. Parece-me tudo muito mal parado. Se calhar o melhor era entregares-te. Esta situação não é nada boa para o teu recurso.

— Se eu me entrego, metem-me na prisão e o mais provável é que me neguem a fiança. Mesmo que me dessem uma hipótese, acho que neste momento já não teria onde arranjar dinheiro. Mas o recurso deve ser considerado uma coisa à parte. Seja como for, não posso ir para a cadeia neste momento porque tenho muito que fazer.

— Que é que queres dizer com isso? — perguntou Kelly.

—Tenho andado a estudar os apontamentos do Chris—disse, conseguindo conter o entusiasmo.—Estive mesmo a consultar alguns livros na biblioteca. Acho que o Chris esteve quase a descobrir qualquer coisa quando suspeitou de que houvesse um contaminante na marcaína que ministrou a Henry Noble. E agora eu estou a suspeitar do mesmo quanto à Marcaína que dei a Patty Owen. O que pretendo fazer é investigar os dois incidentes mais a fundo.

—Isso deixa-me uma sensação desagradável de déjà vu—comentou Kelly.

— Que é que queres dizer com isso? — perguntou Jeffrey.

— Estás a falar exactamente como o Chris na altura em que começou a suspeitar da existência de um contaminante. E depois, sem mais nem menos, suicidou-se.

— Desculpa-me — disse Jeffrey. — Não era minha intenção evocar pensamentos dolorosos, obrigando-te a reviver o passado.

—Não é o passado que me preocupa — afirmou Kelly. — És tu. Estou preocupada contigo. Ontem estavas deprimido, hoje estás meio maníaco. Como é que estarás amanhã?

—Vou estar óptimo — disse Jeffrey. —Palavra! Acho que vou descobrir alguma coisa.

Kelly inclinou a cabeça para o lado e levantou uma sobrancelha enquanto olhava para Jeffrey.

— Quero ter a certeza de que não te esqueces do que me prometeste — disse.

— Eu lembro-me — garantiu Jeffrey.

— Acho bem — replicou Kelly com certa aspereza. Depois sorriu. —Agora que isso está resolvido, podes contar-me o que foi que te pareceu tão digno de nota nessa questão do contaminante.

—Várias coisas. Aparalisia persistente de Henry Noble, por exemplo. Aparentemente ele nunca perdeu a função dos nervos cranianos. Isso não acontece com a anestesia espinal, portanto não pode ter sido uma “anestesia espinal irreversível” como disseram. E no meu caso, a criança teve paralisia persistente com distribuição assimétrica.

—Não se pensou que a paralisia de Noble tivesse aparecido na sequência de uma falta de oxigénio devido aos ataques e à paragem cardíaca?

— É verdade — disse Jeffrey. — Mas na autópsia Chris escreveu que em secções microscópicas se tinha observado degenerescência de axónios ou de células nervosas.

— Não te consigo acompanhar — admitiu Kelly.

— Não existe degenerescência de axónios com o grau de privação de oxigénio a que foi sujeito Henry Noble... se é que ele chegou a estar Privado de oxigénio. Se tivesse sofrido essa privação a ponto de haver degenerescência dos axónios, não teria sido possível ressuscitá-lo. E não há dúvida que os anestésicos locais não produzem degenerescência dos axónios. Os anestésicos locais fazem um bloqueamento das funções, não são de maneira nenhuma venenos celulares.

— Suponhamos que tens razão — disse Kelly. — Como é que vais prová-lo?

—Não vai ser fácil — admitiu Jeffrey —, especialmente na minha situação de fugitivo. Mas mesmo assim vou ver o que posso fazer. E queria perguntar-te se estarias disposta a dar uma ajuda. Se a minha teoria estiver certa e se eu conseguir prová-lo, o nome de Chris será ilibado juntamente com o meu.

— Claro que estou disposta a ajudar — disse Kelly. —Achas que era preciso pedir?

— Quero que penses nisso muito a sério antes de concordares — disse-lhe Jeffrey. — Podes vir a ter problemas por causa do meu estatuto de fugitivo. Qualquer ajuda que me venhas a dar poderá ser interpretada como auxílio prestado a um fugitivo. Nesse caso, tal facto em si também constitui provavelmente um crime. Não sei.

— Estou disposta a correr o risco — disse Kelly. — Faria não importa o quê para ilibar o nome de Chris. E além disso — acrescentou, corando ligeiramente—gostava de fazer alguma coisa para te ajudar.

— A primeira coisa a fazer é determinar se as duas ampolas de Marcaína eram provenientes do mesmo laboratório. Isso não deve ser difícil. Já é mais difícil determinar se faziam parte do mesmo fornecimento, tal como eu suspeito. Embora o caso de Chris e o meu se dessem com vários meses de intervalo, é possível que tivessem a mesma data de fabrico. O que me preocupa é que ainda pode haver por lá outros frascos contaminados.

—Céus! Que pensamento horrível! Uma tragédia à espera de acontecer.

— Continuas a dar-te com alguém em Valley Hospital que pudesse dizer-te qual é a companhia que lhes fornece a Marcaína? Eu por acaso sei que o Memorial se abastece na Arolen Pharmaceuticals, em Nova Jérsia.

— Sim, claro — disse Kelly. — A maior parte do pessoal com quem trabalhei quando estava no Valley ainda continua lá... Charlotte Henning é a enfermeira-chefe do bloco operatório. Falo com ela pelo menos uma vez por semana. Logo que sair do trabalho telefono-lhe.

— Isso seria óptimo — exclamou Jeffrey. — Quanto a mim, sou a aquisição mais recente da equipa de limpeza do Boston Memorial.

— O quê!

Jeffrey explicou-lhe como se dirigira ao Boston Memorial com o seu novo disfarce para pedir emprego no turno da noite dos serviço de limpeza.

— Não me admira que ninguém te tenha reconhecido—disse Kylly. — Eu também não te reconheci.

— Mas trata-se de pessoas com quem trabalhei durante anos e anos — disse Jeffrey.

A porta para a unidade de cuidados intensivos abriu-se e uma das enfermeiras meteu a cabeça na abertura.

— Kelly, vamos precisar de ti daqui a minutos. Vai entrar um novo doente.

Kelly garantiu-lhe que não demorava. A enfermeira fez um sinal de assentimento e retirou-se, discreta.

— E eles contrataram-te? — perguntou Kelly.

— Isso mesmo — respondeu Jeffrey. — Começo esta noite.

— Que é que vais fazer quando estiveres dentro do hospital?

—Uma das coisas é seguir a tua sugestão — esclareceu Jeffrey. — Vou tentar explicar o frasco de Marcaína a 0,75% que foi encontrado na minha máquina de anestesia. Tenciono ver quais foram as outras operações levadas a cabo naquele dia. Outra coisa que quero fazer é tentar ver todo o relatório patológico de Patty Owen. Tenho curiosidade de saber se fizeram secções dos nervos periféricos quando a autopsiaram. Quero saber também se fizeram alguma toxicologia.

— Tudo o que te posso dizer é que tens de ter cuidado — disse Kelly. Depois limpou os resíduos do café e passou a chávena por água. — Desculpa, tenho de ir trabalhar.

Jeffrey aproximou-se do lava-loiça e lavou também a sua chávena.

— Obrigado por teres arranjado tempo para falar comigo — disse, enquanto ela abria a porta. O som dos respiradores penetrou na sala. Jeffrey pegou no saco de pano, pôs os óculos e saiu atrás dela.

—Telefonas-me logo à noite?—perguntou Kelly antes de se separarem. — Logo que puder falo com a Charlotte.

— A que horas vais para a cama? — observou Jeffrey.

— Nunca antes das onze.

— Eu telefono-te antes de ir trabalhar — prometeu Jeffrey. Kelly ficou a vê-lo partir. Gostava de ter tido coragem para lhe perguntar se queria ir para casa dela.

No que dizia respeito a Cari Bodanski, tinha sido um dia extraordinariamente produtivo. Muitos pormenores incomodativos que andavam a aborrecê-lo tinham sido resolvidos. O principal fora a necessidade de arranjar mais uma pessoa para o turno nocturno do serviço de limpeza. Naquele preciso momento Bodanksi estava junto do quadro do pessoal, a pendurar a etiqueta mais recente, a que tinha o nome de:

FRANKAMENDOLA.

Afastando-se do quadro, Bodanski deitou-lhe um olhar crítico. Não estava bem. O nome de Frank Amendola estava ligeiramente torto.

Cuidadosamente, dobrou os pequenos ganchos metálicos que sustinham a etiqueta. Depois deu um passo para trás. Muito melhor. Ouviu-se uma pancada leve na porta.

— Entre — disse.

Aporta abriu-se. Era a secretária, Martha Reton. Entrou e fechou a porta atrás dela. Estava a passar-se qualquer coisa. O comportamento de Martha não era natural.

— Desculpe incomodá-lo, Sr. Bodanski.

— Não há problema — respondeu Bodanski. — O que há? Bodanski era um daqueles indivíduos para quem qualquer alteração da rotina era uma ameaça.

—Está aqui um homem que desejafalar-lhe—esclareceu Martha.

— Quem é? — perguntou Bodanski. Havia muitas pessoas que vinham procurá-lo. Era o departamento de pessoal. Por que é que ela estava com aquele ar?

— O nome dele é Horace Mannly — disse Martha. — E do FBI. Um tremor imperceptível percorreu a espinha de Bodanski. Do FBI, pensou alarmado. Passou em revista todas as infracções menores que praticara nos últimos meses. Havia a multa de estacionamento que ignorara. Havia a dedução da máquina de fax que instalara em casa e que incluíra na declaração do ano transacto, embora não a tivesse comprado por questões profissionais.

Bodanski instalou-se atrás da secretária como se o facto de assumir uma atitude profissional servisse para afastar suspeitas.

— Mande entrar o sr. Mannly — disse, nervoso.

Martha desapareceu. Instantes depois, um indivíduo um tanto obeso entrou no gabinete de Bodanski.

—Sr. Bodanski—disse o homem do FBI aproximando-se devagar da secretária deste. — Agente Mannly. — E estendeu-lhe a mão.

Bodanski apertou-lha. Estava húmida e pegajosa; Bodanski disfarçou uma careta de desagrado. O agente tinha uma enorme papada que lhe cobria praticamente o nó da gravata. Os olhos, nariz e bocapareciam extraordinariamente pequenos no meio da esfera pálida e avantajada do rosto.

—Sente-se—disse Bodanski. Depois de estarem ambos sentados, perguntou: — Em que é que posso ser-lhe útil?

— Teoricamente os computadores foram feitos para nos ajudar, mas às vezes só arranjam trabalhos — disse Mannly com um suspiro— Sabe o que eu quero dizer?

— Sem dúvida — disse Bodanski, embora sem saber se concordava ou não. Mas de qualquer forma não ia contradizer um agente do FBI.

—Um desses grandes computadores aí em qualquer lado cuspiu o nome de Frank Amendola — disse Mannly. — É verdade que esse tipo está a trabalhar para si? Olhe... importa-se que eu fume?

— Sim. Não. Quero dizer, acabei de contratar um Frank Amendola. E não, não me importo que fume.—Embora se sentisse aliviado por não estar a ser alvo de um inquérito, ficou decepcionado por saber que o mesmo não acontecia com Frank Amendola. Ele logo vira, encontrar alguém para o turno da noite era bom de mais para ser verdade.

Horace Mannly ganhou calor.

— Os nossos serviços foram informados pelo Bureau de que o senhor tinha contratado esse tal Frank Amendola — explicou Mannly.

— Contratámo-lo hoje mesmo — disse Bodanski. — O homem é procurado?

—Bom, é procurado, mas não por causa de nenhum crime. E a mulher que anda à procura dele, não é o FBI. Problemas domésticos. As vezes vemo-nos metidos neles. Depende. Amulher parece que fez uma grande história, escreveu para um deputado e para o Bureau, essas tretas todas. Portanto o número dele da Previdência foi assinalado como sendo de uma pessoa desaparecida. Vocês aqui resolvem verificar o número e ele vai bater à nossa porta. Bingo. E que aspecto tem o indivíduo, normal ou quê?

—Pareceu-me um bocado nervoso—declarou Bodanski, aliviado. Pelo menos, o tipo não era perigoso. —A não ser isso, pareceu—me completamente normal. E inteligente. Falou em frequentar a faculdade de Direito. Pensámos que era um bom candidato ao emprego. Temos de fazer alguma coisa?

— Não sei — disse Mannly. — Mas não creio. A minha incumbência era vir aqui e ver o que havia. Se ele tinha realmente voltado a aparecer. Olhe, não faça nada enquanto não entrarmos em contacto consigo. Acha bem?

— Teremos todo o prazer em colaborar naquilo que pudermos.

— Óptimo — disse Mannly. O rosto congestionou-se—lhe enquanto tentava levantar-se. —Agradeço—lhe o tempo que me concedeu. Logo que saiba qualquer coisa telefono-lhe.

Horace Mannly foi-se embora, mas o cheiro forte do cigarro ficou no ar. Bodanski pôs-se a tamborilar com os dedos na secretária, pensando que esperava que os problemas domésticos de Frank não lhe viessem a roubar um potencial bom empregado.

Nem o estado de degradação da área que circundava o Essex nem hotel em si conseguiam perturbar a boa disposição de Jeffrey ao subir os seis degraus que levavam à porta de entrada. Talvez estivesse um bocado apanhado, mas pelo menos tinha a sensação de que as coisas começavam finalmente a inclinar-se a seu favor. Pela primeira vez, que se lembrasse, sentia que estava a controlar os acontecimentos e não o contrário.

No táxi que o trouxera de St. Joe’s, onde tinha ido procurar Kelly passara em revista a sua teoria do contaminante. Mais que qualquer outra coisa, era o problema da paralisia que lhe dava a certeza de que alguma coisa tinha que estar errada com as ampolas seladas de Marcaína.

Jeffrey começou a atravessar a entrada, depois abrandou repentinamente o passo. O empregado não estava a ver televisão. Em vez disso, retirara-se para uma sala de arrumações por detrás do balcão de recepção. Uma porta que costumava estar sempre fechada. O homem acenou-lhe, nervosamente, pensou Jeffrey, quando os seus olhares se cruzaram. Era como se tivesse medo dele.

Jeffrey foi direito às escadas e começou a subir para o quarto. Não encontrava explicação para o estranho comportamento do empregado. Achara logo de início que ele devia ser um bocado excêntrico, mas não estranho àquele ponto. Não podia deixar de perguntar a si mesmo o que significaria aquilo. Esperava que nada.

Quando chegou ao quinto andar, Jeffrey inclinou-se sobre o corrimão e olhou para baixo. O recepcionista estava no rés-do-chão, a olhar para ele. Asism que deu com os olhos em Jeffrey, escondeu-se.

Portanto não era imaginação sua, pensou enquanto atravessava a porta que dava para o corredor. Era evidente que o homem o estava a observar, mas deliberadamente à distância. Porquê?

Jeffrey seguiu pelo corredor, preocupado em explicar o comportamento esquisito do empregado. Depois lembrou-se do seu próprio disfarce. Claro! Tinha de ser isso. Talvez o recepcionista não o reconhecesse e pensasse que era um desconhecido. E se o homem resolvesse chamar a polícia?

Ao chegar diante da porta do quarto, procurou a chave nas algibeiras, depois lembrou-se que a tinha posto no saco. Enquanto puxava o saco para a frente para correr o fecho do compartimento central, pen’ sou em mudar para outro hotel. Com todas as outras coisas em Que tinha que pensar, não queria ter de se preocupar com o empregado do hotel.

Meteu a chave na fechadura e abriu a porta. Depois voltou a pôr a chave no saco para saber onde ela estava quando quisesse sair. Quando do entrou no quarto já estava outra vez a pensar na teoria do contaminante. De repente estacou.

—Sejabem-vindo, Doutor—disse Devlin. Estava estendido na cama, com o revólver descuidadamente pendurado ao lado do corpo.

Não faz ideia como tenho estado ansioso por voltar a vê-lo depois da maneira como me tratou no nosso último encontro.

Devlin soergueu-se apoiado num cotovelo. Fitava Jeffrey com os olhos semicerrados.

— Está diferente. Não creio que o tivesse reconhecido. Soltou uma risada forte e profunda que terminou numa tosse irritativa provocada pelo tabaco.

Devlin cuspiu para o lado da cama e depois bateu com o punho no peito. Pigarreou para limpar a garganta e disse com voz rouca:

— Não fique aí parado. Entre e sente-se. Esteja à vontade.

Com o mesmo tipo de reflexo impensado que o levara a atacar Devlin com a pasta no aeroporto, Jeffrey deu um salto para fora do quarto. Ao atirar a porta para a fechar, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos. No momento em que tocou na passadeira suja, ouviu-se uma explosão no interior do quarto. Logo a seguir abateu-se sobre ele uma chuva de lascas de madeira. A bala de calibre 38 de Devlin rasgara a porta de contraplacado fino e tinha ido alojar-se na parede em frente.

Jeffrey levantou-se desajeitadamente e correu pelo corredor em direcção à escada. Não podia acreditar que tivessem disparado sobre ele. Sabia que era um homem procurado, mas não pertencia seguramente à categoria de “vivo ou morto”. Jeffrey pensou que Devlin devia estar louco.

Quando parou com os sapatos a escorregar, agarrado à ombreira da porta para mudar de direcção, ouviu a porta do quarto abrir-se violentamente atrás dele. Usando o ombro para forçar a porta da escada, ouviu no mesmo momento um segundo disparo da arma de Devlin. Desta vez a bala passou a gemer, mesmo atrás de Jeffrey, e foi estilhaçar uma janela ao fundo do corredor, Jeffrey ouviu o riso de Devlin. O homem estava a divertir-se!

Jeffrey lançou-se pela escada que se enrolava sobre si mesma, firniando-se ao corrimão para não perder o equilíbrio. Desceu os degraus a quatro e quatro, alguns a cinco e cinco. O saco que levava ao ombro Pendia atrás dele como um galhardete pesado. Para onde ir? Que fazer? Devlin já não vinha longe.

Quando descreveu a última curva da escada, ouviu a porta lá em cima abrir-se e os passos pesados do outro ecoaram por toda a parte. Tornado de um pânico crescente, saltou para o patamar de baixo. Atirou-se de encontro à porta e agarrou o puxador vertical. Sacudiu a Porta mas ela não se abriu. Freneticamente, sacudiu de novo a porta mas não se mexeu. Estava fechada à chave!

Espreitando pela pequena janela com o seu vidro raxado, Jeffrey viu o empregado encolhido com medo do outro lado da porta. Atrás dele,

os passos de Devlin aproximavam-se. Alcançá-lo-ia em poucos segundos.

Freneticamente, Jeffrey explicou por gestos ao empregado que a porta da escada estava fechada à chave. O outro limitou-se a encolher os ombros, fingindo que não compreendia o que Jeffrey estava a tentar dizer-lhe. Este sacudiu mais uma vez a porta, apontando para a fechadura.

Repentinamente o som dos passos parou. Jeffrey voltou-se devagar. Devlin estava ao cimo do último lanço de escadas e contemplava cá em baixo a sua presa encurralada. Tinha a arma apontada para Jeffrey. Este perguntava a si próprio se teria chegado ao fim. Se seria ali que a sua vida estava destinada a terminar. Mas Devlin não puxou o gatilho.

— Não me diga que a porta está fechada — disse com uma simpatia falsa. — Lamento muito, Doutor.

Devlin desceu lentamente os últimos degraus, sempre com a arma apontada à cara de Jeffrey.

— Tem piada — disse. — Preferia que a porta estivesse aberta. Seria mais desportivo.

Devlin aproximou-se de Jeffrey. Sorria, obviamente satisfeito.

— Volte-se! — ordenou.

Jeffrey voltou-se, com as mãos no ar, embora Devlin não lho tivesse pedido. Devlin empurrou-o com brutalidade de encontro à porta fechada e apoiou sobre ele o peso do corpo. Depois arrancou-lhe o saco do ombro e deixou-o cair ao chão. Disposto a não correr riscos desta vez, puxou os braços de Jeffrey para trás do corpo deste e algemou-o, antes de fazer o que quer que fosse. Depois das algemas postas, verificou se não estava armado. Em seguida fê-lo dar a volta e apanhou o saco.

— Se isto for o que eu penso que é — disse —, vai fazer de mim um homem muito feliz.

Devlin correu o fecho do saco e enfiou a mão lá dentro, a tactear, a procura de dinheiro. A boca dele, que se contraíra num esgar de determinação, abriu—se repentinamente num grande sorriso. Triunfante, retirou do saco um maço de notas de cem dólares.

— Olhem-me só para isto — disse. Depois enfiou o maço outra vez no saco. Não queria que o empregado visse a massa e se pusesse com ideias.

Devlin pendurou o saco ao ombro e começou a bater na porta o punho cerrado. O empregado correu a abrir. Devlin agarrou pela parte de trás do pescoço e empurrou-o para a entrada.

— Não sabe que não é permitido ter uma fechadura na porta ” uma escada? — disse Devlin para o empregado.

Este, gaguejando, disse que não sabia.

— Ignorância da lei não é desculpa — continuou Devlin. — Trate de remediar isso, senão mando-lhe cá a inspecção.

O homem fez que sim com a cabeça. Esperara que lhe agradecessem por ter sido tão cooperativo e útil. Mas Devlin ignorou-o, ao mesmo tempo que encaminhava Jeffrey através da entrada e depois para a rua.

Devlin levou Jeffrey sempre a direito até ao outro lado da rua, onde tinha deixado o carro, estacionado junto da boca de incêndio. Os transeuntes paravam e ficavam a olhar. Devlin abriu a porta do lugar ao lado do condutor e empurrou Jeffrey lá para dentro, Depois atirou com a porta, trancou-a e deu a volta ao carro.

Com uma presença de espírito que não esperava ter naquelas circunstâncias, Jeffrey inclinou-se para a frente e conseguiu enfiar a mão direita na algibeira do casaco. Os dedos enrolaram-se em volta da seringa que lá tinha posto. Com a unha, destapou a agulha, Jeffrey retirou a seringa da algibeira, com o maior cuidado, e depois recostou-se no assento.

Devlin abriu a porta de repelão, atirou o saco de pano para o assento de trás, sentou-se e meteu a chave na ignição. Logo que ele deu a volta à chave para pôr o carro em andamento, Jeffrey lançou-se sobre ele, fixando os pés na porta do seu lado para ganhar impulso. Devlin foi apanhado desprevenido. Antes de conseguir afastar Jeffrey, este enterrou-lhe a agulha no flanco direito e carregou no êmbolo.

— Merda! — gritou Devlin. Bateu com as costas da mão na cabeça de Jeffrey. A força da pancada fê-lo cair para o lado.

Devlin levantou o braço para investigar a causa daquela dor aguda que sentia na nádega direita. Com a agulha enterrada até ao fim viu. uma seringa de 5 cm3.

— Céus! — exclamou, rangendo os dentes. — Vocês, malditos médicos, dão mais problemas que um vulgar assassino. — Cautelosamente, puxou a agulha, com um estremecimento, e depois atirou-a para o banco de trás.

Jeffrey já tinha recuperado o suficiente da pancada que recebera

de Devlin para tentar abrir a porta do seu lado, mas não conseguiu levantar as mãos algemadas o suficiente para chegar ao fecho. Estava a tentar puxá-lo com os dentes quando Devlin o agarrou pela parte de

tras do pescoço e o sacudiu como se fosse uma boneca de trapos.

- Que rai’ é que você me injectou?—rosnou para Jeffrey que comessou a sentir-se sufocar. — Responda-me! — berrou Devlin, dando-lhe mais uma sacudidela. Jeffrey só conseguia produzir um som gorglejante. Os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. Nessa altura, Devlin largou-o e recuou o braço para lhe bater de novo.—Responda-me!

— Não lhe vai fazer mal — foi tudo o que Jeffrey conseguiu murmurar. — Não lhe faz mal. — Tentou levantar o ombro para aparar o golpe que se avizinhava, mas houve uma paragem no gesto do outro.

Com o braço em posição de ataque, os olhos de Devlin ficaram desfocados e o corpo dele balançou. A expressão que antes era de fúria transformou-se em espanto. Agarrou-se ao volante para não cair, mas faltaram-lhe as forças e caiu para o lado, na direcção de Jeffrey.

Devlin tentou falar mas a voz entaramelou-se-lhe.

—Não lhe vai fazer mal — repetiu Jeffrey. — É uma dose mínima de succinilcolina. Daqui a minutos já se sente bem outra vez. Não se assuste.

Jeffrey empurrou Devlin, deixando-o sentado, e conseguiu meter-lhe a mão na algibeira do lado direito. Mas não encontrou a chave das algemas. Jeffrey chegou-se para a frente e deixou que Devlin caísse de lado sobre o banco. Com dificuldade, revistou-lhe as restantes algibeiras. Nem vestígios da chave.

Já se preparava para desistir quando notou uma pequena chave suspensa na argola da chave da ignição. Não foi fácil, mas Jeffrey conseguiu, pondo-se de pé e dobrando-se sobre o espaço entre o volante e a porta do seu lado, arrancar as chaves da ignição. Depois de várias tentativas vãs, acabou por inserir a pequena chave na fechadura e abrir as algemas.

Estendendo o braço para o banco de trás agarrou no saco. Antes de sair do carro, observou Devlin. Estava praticamente paralisado. A respiração era lenta mas regular. Se Jeffrey lhe tivesse dado uma dose bastante mais forte, o próprio diafragma seria afectado e o homem morreria sufocado em poucos minutos.

Sempre o anestesista consciencioso, Jeffrey fez o necessário para colocar Devlin numa posição que não lhe afectasse a circulação enquanto não pudesse sair dali. Depois saiu do carro.

Jeffrey ia para avançar em direcção ao hotel. O empregado não estava visível em lado algum. Por momentos Jeffrey ficou a pensar nas suas coisas. Depois concluiu que era demasiado arriscado ir buscá-las. O recepcionista podia estar a ligar para a polícia naquele momento. Além disso, que é que ele tinha a perder? Tinha pena de se separar dos apontamentos de Chris Everson, principalmente porque Kelly poderia ter querido guardá-los. Mas a própria Kelly dissera que tencionava desembaraçar-se de todas as coisas do Chris.

Jeffrey deu meia volta e pôs-se em fuga. Dirigiu-se para o centro. Queria perder-se no meio da multidão. Logo que se sentisse mais seguro, poderia começar a pensar. E quanto mais se afastasse de Devrin, melhor. Jeffrey ainda mal conseguia acreditar que tivesse sido capaz de o injectar com a succinilcolina. Se Devlin tinha ficado irritado Com ele por causa do episódio do aeroporto, agora ia ficar duplamente furioso. Jeffrey só esperava não voltar a encontrar-se com ele enquanto não tivesse tido a oportunidade de esclarecer o seu caso.

A primeira oportunidade que se deparou a Trent de voltar ao Depósito Central foi quando o turno da noite já ia bem avançado. Trent estivera de serviço a um caso de aneurisma particularmente demorado. Na altura da mudança de turnos, não tinha havido ninguém para o substituir. Quer quisesse quer não, fora obrigado a fazer horas extraordinárias. Era uma coisa que acontecia de tempos a tempos. Geralmente isso não o incomodava, embora naquela ocasião lhe parecesse que não era a altura mais conveniente.

A expectativa deixara—o num estado de tensão desde que chegara ao hospital naquela manhã. Cada vez que a enfermeira circulante regressava ao bloco operatório, ele esperava que ela trouxesse a notícia de que tinha havido uma tremenda complicação anestésica. Mas nada acontecera. O dia passara-se numa rotina absurda.

Àhora do almoço, na cafetaria, as suas esperanças tinham sido ilusoriamente alimentadas, quando uma das enfermeiras do bloco operatório dissera:

— Já ouviram contar o que aconteceu na sala oito?

Depois de ter conseguido a atenção de todos os presentes, regalara-os com a história de como as calças de um dos estagiários de cirurgia se tinham desatado misteriosamente, acabando por lhe cair até aos joelhos. Todos fizeram grande galhofa, À excepção de Trent.

Trent parou antes de entrar no Depósito Central. Já tinha ido ao seu cacifo e tinha outra vez a ampola intacta de Marcaína escondida nas cuecas. Havia bastante gente que entrava e saía das diversas Salas de Operações, mas a confusão da mudança de turno já se tinha dissipado.

Não estava satisfeito com a situação. Era arriscado para ele ir ali aquela hora porque não estava de serviço. Se alguém o visse e lhe perguntasse o Que estava a fazer, tinha pouco que dizer em sua própria defesa. Mas não haveria outra alternativa. Não podia deixar a embalagem preparada ao abandono. Fizera seu hábito estar sempre por

Perto quando um dos seus frascos era utilizado para que, no meio da corrfusão que sempre se estabelecia, pudesse fazer desaparecer de sena o frasco vazio ou pelo menos qualquer resto do seu conteúdo. Não podia arriscar-se a que alguém resolvesse verificar a Marcaína para ver se estaria na origem da complicação.

Trent deu uma volta rápida pelo Depósito Central antes de ir ao local onde se encontravam os anestésicos locais. Até ali tudo bem. Deitando em volta um último olhar furtivo para se certificar de que não estava ninguém a vê-lo, levantou a tampa da caixa de Marcaína aberta e olhou para o interior. Restavam duas ampolas. Uma tinha sido usada a dada altura do dia.

Trent identificou com toda a facilidade o frasco “tratado” por ele e trocou-o rapidamente pelo outro, intacto, que levava nas cuecas. Depois fechou a tampa e repôs a caixa na posição original. Quando se voltou para regressar à sala dos cacifos, parou estarrecido. Ficara completamente desconcertado ao ver a saída bloqueada por uma enfermeira alta e loura. Ela parecia tão surpreendida por o ver ali como ele por a ver a ela. A enfermeira estava de mãos nos quadris e com os pés afastados.

Trent sentiu o rosto ruborizar-se-lhe enquanto tentava encontrar uma explicação plausível para a sua presença ali. Esperava bem que a ampola “preparada” que levava nas cuecas não estivesse visível.

— Posso ajudá-lo? — perguntou ela. A julgar pelo tom da voz, Trent pensou que a última coisa que ela quereria fazer era ajudar.

— Não, obrigado — disse. —Já vou de saída. — Finalmente ocorreu-lhe uma ideia.—Fui só arrumar uns frascos de soro que não chegámos a usar naquele caso de aneurisma da sala cinco.

A enfermeira fez que sim com a cabeça, mas não parecia lá muito convencida. Esticou o pescoço para olhar por cima do ombro de Trent.

Trent leu o nome que ela trazia na placa de identificação: Gail Schaeffer.

— O aneurisma demorou sete horas — disse Trent, só para fazer conversa.

— Ouvi dizer — comentou Gail. — Você não devia ter largado já o serviço?

— Finalmente, sim — disse Trent, recuperando o controlo de si mesmo. Revirou os olhos. — O dia nunca mais acabava. Estou a morrer por umas cervejinhas. Espero que não tenha muito que fazer esta noite. Boa sorte.

Trent passou ao lado dela e seguiu pelo corredor em direcção ao átrio de cirurgia. Depois de ter dado uns vinte passos, olhou para trás. Gail Schaffer continuava diante da porta, a observá-lo. “Rai’s parta “> pensou. A rapariga estava desconfiada. Acenou-lhe. Ela acenou também.

Trent empurrou as portas de mola que davam para a sala. De on’ de diabo é que Gail Schaffer tinha saído com tanta rapidez? Sentia-se irritado consigo próprio por não ter sido mais cuidadoso. Nunca tinha sido apanhado no gabinete dos anestésicos.

Anntes de se dirigir à sala dos cacifos, Trent parou noplacard de informações da entrada. Entre as informações e escalas de serviço encontrou o nome de Gail Schaffer fazendo parte da equipa de softball. O número de telefone de cada um dos membros da equipa figurava também noplacard. Pegando num pedacito de papel, anotou o número do telefone de Gail. Pelos três primeiros dígitos, percebeu que era da área de Back Bay.

“Que grande maçada”, pensou Trent, encaminhando-se para o vestiário para pôr a roupa normal de rua. Deixou cair novamente o frasco no casaco branco do hospital.

Enquanto se dirigia para os elevadores e depois para casa, compreendeu que ia ter de fazer qualquer coisa quanto a Gail Schaffer. Não estava em posição de ignorar qualquer pormenor.

 

                               4.a feira, 17 de Maio de 1989, 16:37

Devlin sempre detestara hospitais. Desde rapazito, criado em Dorchester, Massachusetts, que tinha medo deles. A mãe servira-se desse receio para o ameaçar: Se não fazes isto ou aquilo, levo-te ao hospital e o médico dá-te uma injecção. Devlin odiava injecções. Essa era uma das razões por que ele agora queria apanhar Jeffrey Rhodes, quer Michael Mosconi lhe pagasse quer não. Bom, isso também não era inteiramente verdade.

Devlin estremeceu. Pensar em Jeffrey fazia-lhe lembrar o terror por que acabava de passar. Durante todo aquele tempo, permanecera consciente, acompanhando o que se estava a passar. Era como se a gravidade fosse de repente mil vezes mais forte. Tinha ficado completamente paralisado, nem sequer conseguia falar. Respirar conseguia, mas só com grande esforço e muita concentração. A todo o momento sentia o pavor de começar a sufocar.

Aquele idiota do empregado do Essex Hotel só aparecera cá fora depois de Jeffrey se ter ido embora há um bom bocado. Pusera-se a bater no vidro e a chamar por Devlin, para ver se ele estava bem. O idiota tinha levado dez minutos para abrir a porcaria da porta. Depois perguntou a Devlin mais umas dez vezes se estava bem, antes de ter a inteligência suficiente para voltar ao hotel e chamar uma ambulância.

Quando Devlin chegou ao hospital, já tinham passado quarenta minutos. Com grande alívio seu, a paralisia tinha desaparecido. A sensação de peso também passara durante o percurso de ambulância. Mas, aterrorizado com a ideia de que aquilo se pudesse repetir, Devlin deixara que o conduzissem de carrinho de rodas até às emergências para ser examinado, apesar do seu medo dos hospitais.

No serviço de urgência, Devlin tinha sido ignorado, com excepção de uma visita rápida por parte de um polícia de uniforme. O agente Hank Stanley, que Devlin conhecia vagamente, veio dar-lhe dois dedos de conversa. Ao que parecia, um dos condutores da ambulância vira a arma de Devlin. Claro que logo que Stanley o reconheceu não houve problema. A arma de Devlin estava devidamente registada e ele tinha a necessária licença.

Por fim, Devlin tinha sido visto por um médico que parecia mal ter idade para poder guiar. O nome dele era Dr. Tardoff e tinha a pele que mais parecia o traseiro de um bebé. Devlin perguntou a si mesmo se ele já faria a barba. Contou ao médico o que lhe tinha acontecido. O médico examinara-o, depois tinha desaparecido sem dizer palavra, deixando Devlin sozinho num dos cubículos dos serviços de urgência.

Devlin passou as pernas para o lado de fora da marquesa e levantou-se. A roupa dele estava empilhada em cima de uma cadeira. “Que se lixe!”, disse para consigo próprio. Parecia-lhe que tinha esperado horas. Despindo a bata do hospital, Devlin vestiu-se rapidamente e enfiou as botas. Dirigindo-se à recepção perguntou pela pistola. Tinham insistido para que a deixasse ali.

— O Dr. Tardoff ainda não acabou de o ver — disse a enfermeira. Era uma mulher grande, mais ou menos do tamanho de Devlin, e não parecia ter menos fibra que ele.

— Receio morrer de velhice antes de ele voltar — replicou Devlin. Nesse preciso momento, o Dr. Tardoff apareceu, vindo de uma das salas de observação e tirando as luvas de borracha. Viu Devlin e foi ao encontro dele.

—Desculpe tê-lo feito esperar—disse. —Tive de ir coser uma laceração. Falei com um anestesista sobre o seu caso e ele diz que o senhor foi injectado com uma droga paralisante.

Devlin levou as duas mãos à cara e esfregou os olhos, enquanto enchia o peito de ar. A paciência dele estava a chegar ao fim.

—Eu não precisava de vir por aí fora de ambulância e chegar aqui ao hospital para me dizerem uma coisa que eu já sabia — comentou. — Foi para ouvir isso que me fez esperar este tempo todo?

—A nossa impressão é que se trata de succinilcolina — continuou o Dr. Tardoff, ignorando o comentário de Devlin.

— Eu próprio já lhe tinha dito isso — acrescentou Devlin. Tinha-se lembrado do que Jeffrey lhe dissera. Não pronunciara totalmente bem o nome da droga quando dera a informação ao Dr. Tardoff, mas andara lá muito perto.

— É uma droga que se usa correntemente em anestesias — continuou o médico, impassível. — É semelhante àquilo que os índios do Amazonas usam nas zarabatanas, embora o mecanismo fisiológico seja ligeiramente diferente.

— Isso é o que eu chamo uma informação muito útil — ripostou, sarcástico. —Agora talvez me possa dizer qualquer coisa de prático, como por exemplo se tenho de me preocupar com uma possível repetição da paralisia numa altura menos conveniente, digamos, quando vou ao volante a cento e vinte quilómetros à hora.

— De maneira nenhuma — disse o Dr. Tardoff. — O seu corpo já metabolizou completamente a droga. Para conseguir o mesmo efeito teria de ser injectado com uma nova dose.

— Dispenso. — Devlin voltou-se para a enfermeira. — E a minha pistola?

Devlin teve de assinar uns quantos papéis e em seguida deram-lhe a arma. Colocaram-na num sobrescrito de papel pardo e os cartuchos noutro. Devlin resolveu dar espectáculo e pôs-se a carregar a arma ali mesmo na recepção dos serviços de emergência. Em seguida meteu-a no coldre. À saída, levou o indicador à testa numa espécie de saudação. Caramba, estava bem contente por se ver dali para fora.

Devlin tomou um táxi para voltar ao Essex Hotel. O carro continuava estacionado diante da boca de incêndio. Mas antes de se meter nele, irrompeu pelo hotel dentro.

O empregado mostrou uma solicitude nervosa quanto ao estado de saúde de Devlin.

— Estou óptimo, mas não graças a si — respondeu Devlin. —Porque é que levou tanto tempo a chamar a ambulância? Eu podia ter

morrido, que diabo!

— Pensei que talvez estivesse a dormir — replicou o homem com voz fraca.

Devlin deixou passar o comentário. Sabia que se continuasse a pensar naquilo acabava por ter vontade de estrangular o idiota. Como se fosse possível ele resolver dormir a sesta logo a seguir a ter apanhado um fugitivo e tê-lo algemado sob o cano da arma. Que absurdo!

— O Sr. Bard voltou ao hotel depois de parecer que eu estava a dormir a sesta? — perguntou Devlin.

O empregado sacudiu a cabeça.

—Dê-me uma chave do 5F—pediu Devlin. —Você ainda não esteve lá em cima, pois não?

— Não senhor — disse o recepcionista, estendendo-lhe a chave.

Devlin subiu a escada até ao quarto de Jeffrey, mas devagar. Agora não tinha pressa. Olhou para o buraco da bala e perguntou a si mesmo como é que o tiro tinha falhado. Estava bem centrado na porta, a cerca de metro e meio do chão. Devia ter batido em qualquer coisa e devia ter obrigado Jeffrey a parar, quanto mais não fosse por medo.

Ao abrir a porta, a experiência disse a Devlin que o empregado tinha mentido. Estivera no quarto à procura de alguma coisa de valorDeitando uma olhadela à casa de banho, Devlin pensou imediatamente que ele devia ter levado a maior parte dos produtos de toilette do doutor. Devlin tirou da mesa-de-cabeceira algumas folhas de papel com o nome de Christopher Everson. Perguntou mais uma vez a si mesmo quem seria Christopher Everson.

Depois da sua fuga precipitada, Jeffrey andara a vaguear pelo centro de Boston, evitando todos os polícias que via. Sentia-se como se toda a gente estivesse a olhar para ele. Entrou no Filene’s e pôs-se a andar pela cave. As multidões faziam-no sentir-se mais seguro. Fingiu que andava a ver os artigos, enquanto se acalmava e tentava pensar no que iria fazer a seguir.

Passou quase uma hora no estabelecimento, até se aperceber de que o pessoal da segurança começava a observá-lo como se tivessem razões para pensar que se tratava de um ratoneiro.

Depois de sair do Filene’s, Jeffrey tomou a Winter Street até ao sítio que ficava perto da estação de trolleys de Park Street. Estava-se em plena hora de ponta. Jeffrey sentiu inveja das pessoas que tomavam o seu autocarro de todos os dias para ir para casa. Como ele gostaria de ter uma casa para onde ir. Ficou ao pé dos telefones públicos a ver as pessoas passarem. Mas quando apareceram dois polícias em Tremont Street, vindos ao contrário do trânsito, ele resolveu ir antes para o Boston Common. Por momentos, Jeffrey sentiu—se tentado a descer até à estação com os outros passageiros e tomar um carro da Linha Verde para Brookline. Mas no último minuto faltou-lhe a coragem.

O que Jeffrey estava desejoso de fazer era ir directamente para casa de Kelly. Acenava—lhe a recordação do conforto que lá encontrara. A ideia de tomar uma chávena de chá com ela era tão tentadora. Se ao menos as coisas não estivessem como estavam naquele momento. Mas Jeffrey era um criminoso condenado, um fugitivo. Agora pertencia ao número dos sem casa, vagueando à toa pela cidade. A única diferença era o facto de ele carregar uma tonelada de dinheiro no saco a tiracolo.

Ao mesmo tempo que desejava ardentemente ir a casa de Kelly, sentia relutância em a arrastar para o seu torvelinho de problemas, especialmente agora que tinha um caçador de prémios, armado e louco, atrás dele. Jeffrey não queria pôr em risco a segurança de Kelly. Não podia arrastar um inimigo como Devlin até à porta dela. Estremeceu ao recordar o som da pistola de Devlin.

Mas para onde poderia ir? Não era praticamente certo que Devlin havia de vasculhar todos os hotéis da cidade? E, ao mesmo tempo, Jeffrey compreendeu que o disfarce não lhe servia de nada, agora que Devlin já o tinha visto. Tanto quanto sabia até já podia haver novo Mandato de captura com a descrição actualizada da sua pessoa.

Jeffrey atravessou a extremidade do Common e encontrou-se no cruzamento das ruas Beacon e Charles. Subiu a Charles. A poucas portas da entrada da rua, havia uma mercearia famosa chamada Deluca’s. Jeffrey entrou para comprar fruta. Não tinha comido grande coisa naquele dia.

Enquanto comia a fruta, Jeffrey foi andando pela Charles Street. Passaram vários táxis e ele parou. Seguiu os táxis com os olhos, enquanto no seu espírito surgia a explicação da visita de Devlin. Só podia ter sido o motorista de táxi que ele apanhara do aeroporto para o Essex. O mais natural era que tivesse notificado a polícia. Pensando melhor, Jeffrey teve de admitir que o seu comportamento fora bastante estranho.

Mas se tinha sido o motorista a procurar a polícia, por que é que tinha sido Devlin a aparecer e não a polícia? Jeffrey começou de novo a andar. Mas não pôs de lado a questão. Por fim, acabou por chegar à conclusão de que devia ter sido Devlin a dirigir-se, por iniciativa própria, às companhias de táxis. As implicações eram que Devlin não constituía apenas uma presença temível. Era também um homem de recursos e, nesse caso, convinha tomar precauções significativamente maiores. Começava agora a aprender que conseguir manter-se na situação de fugitivo exigia um certo esforço e experiência.

Ao chegar a Charles Circle, onde o trolley emergia vindo de Beacon Hill e atravessava Longfellow Bridge, Jeffrey deteve- se, não sabendo bem que direcção tomar. Podia seguir para a direita, para Cambridge Street, e voltar ao centro. Mas isso não lhe parecia recomendável agora que associava aquelas paragens com a presença de Devlin. Semicerrando os olhos por causa do sol, Jeffrey avistou a ponte de peões que ligava Storrow Drive ao Charles Street Embankment, que seguia ao longo do rio Charles. Parecia um percurso tão bom como qualquer outro.

Ao chegar à beira do rio, Jeffrey pôs-se a caminhar ao longo daquilo que devia ter sido em tempos um passeio elegante, como o evidenciavam os balaústres e os degraus de granito. Agora havia erva por toda a parte e um ar de abandono. O rio era bonito, mas estava sujo e emanava um cheiro a pântano. Havia uma profusão de pequenos barcos à vela, salpicando a superfície brilhante das águas.

Quando atingiu a esplanada em frente do palco de Hatch Shell, onde os Boston Pops davam concertos gratuitos durante o Verão, Jeffrey sentou-se num dos bancos que ficavam por debaixo de uma fileira de carvalhos. Não estava sozinho. Havia numerosos joggers, atiradores de discos Frisbee, adeptos da marcha acelerada e até mesmo patina’ dores, que faziam os seus exercícios nos labirintos de caminhos e nos relvados cobertos de erva.

Embora ainda restassem umas quantas horas de luz do dia, o sol pareceu perder repentinamente a força. Formara-se uma neblina de nuvens altas, sugerindo que o tempo não tardaria a mudar. Levantou-se vento que trouxe o ar frio de cima das águas. Jeffrey estremeceu e apertou os braços em volta do corpo.

Tinha de estar no Memorial às onze, para ir trabalhar. Não tinha para onde ir até essa hora. Pensou mais uma vez em Kelly. Lembrou-se de como se sentira confortável em casa dela. Havia tanto tempo que não tinha ninguém com quem se abrir; tanto tempo que não tinha quem o escutasse.

Jeffrey pensou de novo em ir até Brookline. Não fora a própria Kelly a encorajá-lo a manter-se em contacto com ela? Não dissera que estava empenhada em ilibar o nome de Chris? Afinal ela também tinha a ver com tudo aquilo. E Jeffrey não precisou de mais nada para se convencer. A verdade é que precisava de ajuda e Kelly parecia disposta a dar-lha. Ela própria tinha dito que estava disposta. Claro que isso tinha sido antes dos últimos acontecimentos. Ia ser completamente franco com ela e contar-lhe o que tinha acontecido, incluindo os tiros de pistola. Dar-lhe-ia mais uma vez a possibilidade de decidir. Não deixaria de a compreender, caso quisesse ficar de fora agora que Devlin voltara a entrar em acção. Mas pelo menos podia tentar perguntar-lhe. Kelly era adulta e sabia tomar as suas próprias decisões quanto a riscos.

Jeffrey decidira que a melhor maneira de ir até à casa de Kelly era o autocarro que saía de Charles Street. Pôs-se a andar em passo acelerado ao imaginar-se sentado ao lado de Kelly no sofá de riscas, com as pernas em cima da mesinha baixa e ela a rir, com o seu riso cristalino.

Carol Rhodes acabava de entrar em casa vinda do trabalho. Fora um dia esgotante mas produtivo. Conseguira acabar de transferir praticamente todos os seus clientes para outros funcionários do banco, com vistas à sua próxima transferência para a filial de Los Angeles. Depois de ter visto a transferência ser adiada ao longo de tantos meses, começara a duvidar que alguma vez viesse a acontecer. Mas agora sentia-se confiante que dentro em breve estaria na soalheira Califórnia do Sul.

Abrindo a porta do frigorífico, ficou a ver o que poderia arranjar Para o jantar. Havia a vitela fria que sobrara do jantar que tinha feito para Jeffrey. Recebera um grande agradecimento. E também havia muito com que fazer uma salada.

Antes de começar com o jantar, olhou para o atendedor de chamadas.

Não havia nenhum recado. Não soubera nada de Jeffrey durante todo o dia. Perguntou a si mesma onde diabo estaria e o que andaria a fazer. Só naquele dia é que tinha descoberto que Jeffrey ficara com o dinheiro que conseguira arranjar com o aumento da hipoteca da casa. Quarenta e cinco mil dólares em dinheiro. Que é que ele estaria a planear? Se soubesse que se ia portar de forma tão irresponsável, nunca teria assinado a segunda hipoteca. Deixá-lo esperar pelo recurso na prisão. O seu único desejo agora era ultimar o divórcio. Actualmente, perguntava a si própria o que era que a tinha atraído nele.

Carol conhecera Jeffrey quando se tinha mudado para Boston, para frequentar a Escola de Comércio de Harvard. Tinha vindo da costa oeste, onde começara os estudos em Stanford. Talvez se tivesse sentido atraída por Jeffrey por causa da sua solidão. Estava a viver num dormitório em Allston e, quando o conhecera, não se tinha ainda relacionado com ninguém. Nunca na vida planeara ficar em Boston. Era uma cidade tão provinciana comparada com L. A. Achava as pessoas tão frias como o próprio clima.

Bom, mais uma semana e teria deixado tudo isso para trás. Trataria com Jeffrey por intermédio do advogado e entretanto lançava-se de alma e coração no seu novo emprego.

Nesse preciso momento, a campainha da porta soou. Eram quase sete horas. Perguntou a si mesma quem poderia ser. Por uma questão de hábito, espreitou pelo ralo antes de abrir. Estremeceu quando viu quem era.

— O meu marido não está em casa, Sr. O’Shea — disse Carol, sem abrir a porta. — Não faço ideia onde está e também não estou a contar com ele.

— Gostava de falar consigo um minuto, Sr.a Rhodes.

—Sobre quê?—disse Carol. Não se sentia disposta a discutir o que quer que fosse com aquele indivíduo horrível.

— É um bocado difícil conversar através da porta — replicou Devlin. — Eu não lhe tomo muito tempo.

Carol pensou em chamar a polícia. Mas se o fizesse o que é que lhes ia dizer? E como é que podia explicar a ausência de Jeffrey? Tanto quanto sabia, aquele tal O’Shea podia estar perfeitamente dentro do seu direito. Afinal Jeffrey não tinha aparecido com o dinheiro para pagar a Mosconi. Só esperava que Jeffrey não estivesse a meter-se num sarilho ainda maior.

— Só quero fazer-lhe algumas perguntas sobre o paradeiro do seu marido. —Disse Devlin, quando lhe pareceu que Carol não ia abrir; —Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Se eu não o encontrar, o Mosconi vai chamar uns mauzões que são capazes de magoar o seu marido. Se eu o encontrar primeiro, talvez possamos resolver tudo antes de a fiança ser confiscada.

Carol ainda não tinha pensado que o marido estava em riscos de perder o dinheiro da fiança. Talvez devesse pensar duas vezes antes de se recusar a falar com esse tal O’Shea.

Além da fechadura normal e de uma tranca, a porta da entrada tinha ainda uma corrente de segurança que Carol e Jeffrey nunca utilizavam. Carol fez deslizar a ponta da corrente no encaixe, depois tirou a tranca e abriu a porta. Com a corrente de segurança no sítio, a porta abria apenas alguns centímetros.

Carol ia começar a dizer mais uma vez a Devlin que não fazia ideia onde estava Jeffrey, mas não chegou a pronunciar as palavras. Antes de ter tempo de compreender o que tinha acontecido, a porta abriu-se para trás com um barulho de madeira rachada, ficando um pedaço da moldura da porta arrancada e suspenso da ponta da corrente.

A primeira reacção de Carol foi correr, mas Devlin agarrou-a pelo braço e fê-la parar. Começou por sorrir e depois largou a rir.

— Não pode entrar assim na minha casa! —gritou Carol. Esperava que a voz dela soasse bastante mais autoritária, embora estivesse cheia de medo. Tentou em vão arrancar o braço da garra de Devlin.

— Palavra? — disse ele, fingindo surpresa. — Mas ao que parece já cá estou dentro. Além disso, esta é também a casa do doutor e eu estou com curiosidade em saber se esse diabo se veio meter aqui depois de me ter enfiado uma espécie de seta envenenada no rabo. Não posso deixar de lhe dizer que estou a ficar cansado do seu marido.

“Também não é o único”, sentiu-se tentada a dizer, mas arrependeu-se.

— Ele não está aqui — foi o que respondeu.

— Ah não? — inquiriu Devlin. — Então vamos lá os dois dar uma vista de olhos.

— Eu quero-o daqui para fora! — gritou Carol, tentando resistir. Mas não serviu de nada. Devlin agarrara-lhe o pulso com força e foi-a arrastando de um compartimento para outro, enquanto procurava indícios da presença de Jeffrey.

Carol continuava a tentar libertar-se. Antes de a levar pela escada acima, Devlin deu-lhe um safanão brusco.

— é capaz de se acalmar? — gritou. — Sabe que esconder ou dar guarida a um condenado que fugiu à fiança é já por si crime. Se o doutor estiver aqui, é melhor para ambos que seja eu a encontrá-lo e não a Polícia.

— Ele não está aqui — ripostou Carol. — Não sei onde ele está, e Francamente também não quero saber!

— Ah-ah! — exclamou Devlin, surpreendido com o comentário

Afinal Será que temos aqui um pequeno desentendimento entre o casal?

Carol aproveitou a surpresa genuína de Devlin para libertar o braço com um puxão. E na mesma volta deu uma bofetada a Devlin.

Este ficou um momento estático com a surpresa. Depois riu-se com um riso sonoro e agarrou-lhe novamente o pulso.

—Você é Fresca!—disse.—Tal e qual como o seu marido. Se ao menos eu pudesse acreditar em si. Agora, se não se importa, gostava que me levasse a dar uma vista de olhos lá em cima.

Carol soltou um grito, assustada, quando Devlin a arrastou velozmente pelas escadas acima. Ele ia tão depressa que Carol tinha dificuldade em o acompanhar e tropeçou várias vezes nos degraus, esfolando as canelas.

Deram uma volta rápida ao primeiro andar. Ao espreitar para o quarto, onde reinava a maior confusão, com roupa suja por toda a parte, e para o roupeiro, juncado com uma mistura caótica de sapatos, Devlin disse:

— Você não é lá muito boa dona de casa, pois não?

O facto de estarem no quarto aterrorizava Carol, que não tinha a certeza das verdadeiras intenções de Devlin. Tentou controlar-se. Tinha de pensar em qualquer coisa antes que aquele suíno lhe caísse em cima.

Mas era evidente que Devlin não estava interessado em Carol. Arrastou-a pela escada móvel até ao sótão, depois fê-la descer dois lanços de escadas até à cave. Tudo dava a entender que Jeffrey não estava lá, nem tinha lá estado. Satisfeito, levou Carol novamente para a cozinha e pôs-se a olhar para o frigorífico.

— Sempre estava a falar verdade. Agora vou soltá-la, mas espero que se porte como deve ser. Entendeu?

Carol deitou-lhe um olhar furioso.

— Sr.a Rhodes, eu disse “Entendeu?”. Carol fez que sim com a cabeça. Devlin soltou-lhe o pulso.

— Bom — disse. — Agora acho que vou ficar por cá, caso o doutor telefone ou apareça para vir buscar roupa lavada.

— Quero-o daqui para fora — disse Carol, furiosa. — Saia ou eu chamo a polícia.

—Não pode chamar a polícia—disse Devlin num tom ligeiro, como se soubesse alguma coisa que Carol ignorava.

— E por que não? — perguntou ela, indignada.

—Porque eu não vou consentir — replicou ele. Depois riu-se, aquele seu riso roufenho, e começou a tossir. Quando conseguiu controlar-se, acrescentou.—Detesto dizer-lhe isto, mas hoje em dia a Polícia não tem lá muita consideração por Jeffrey Rhodes. Além disso, eu é que estou a trabalhar do lado da lei e da ordem. Jeffrey perdeu os seus direitos quando foi pronunciada a sentença.

— O Jeffrey foi condenado — afirmou Carol —, mas eu não.

—Um pequeno pormenor—disse Devlin com um aceno da mão. — Mas falemos de coisas mais importantes. O que é o jantar?

Jeffrey tomou o trolley para Cleveland Circle e depois subiu a Avenida de Chestnut Hill antes de se meter pelas elegantes ruas suburbanas em direcção à casa de Kelly. Acendiam-se as luzes das cozinhas, os cães ladravam e havia crianças a brincar cá fora. Tudo aquilo parecia fazer parte do cenário de um filme, com as carrinhas Ford Taurus estacionadas diante das portas de garagem recém-pintadas. O sol ia baixo no horizonte. Em breve ficaria escuro.

Depois de ter decidido que iria a casa de Kelly, o seu desejo era chegar o mais depressa possível. Mas agora que se estava a aproximar da rua dela, sentiu voltar-lhe a indecisão. Tomar decisões nunca fora um problema para ele. Jeffrey resolvera que ia tirar o curso de Medicina nos primeiros anos do liceu. Quando se tratara de comprar uma casa, bastou-lhe entrar na de Marblehead para dizer. “É esta!” Não estava habituado a sentir-se tão genuinamente dividido. Quando finalmente conseguiu avançar até à porta dela e tocar à campainha, quase desejou que Kelly não estivesse em casa para vir abrir.

— Jeffrey! — exclamou Kelly abrindo a porta. —Hoje é o dia das surpresas. Entra!

Jeffrey entrou e deu-se imediatamente conta de que estava bem aliviado por Kelly estar em casa.

— Dá-me o casaco — disse ela. Ajudou-o a despi-lo e perguntou-lhe o que tinha feito aos óculos.

Jeffrey levou a mão à cara. Só nesse momento se apercebeu de que os tinha perdido. Pensou que tivessem saltado quando se precipitara Para fora do quarto no hotel.

— Não é que eu não esteja contente por te ver. Acredita que estou. Mas que é que estás a fazer aqui? — Encaminhou-o entretanto para a Pequena sala das traseiras.

— Tinha alguém à minha espera quando voltei ao hotel — disse, Seguindo-a.

— Oh, céus. Conta-me lá tudo.

Mais uma vez, Jeffrey fez o relato de tudo a Kelly. Relatou-lhe o episódio completo com Devlin no Essex Hotel, incluindo os tiros e a inducção de succinilcolina .Apesar da sua consternação, Kelly não pôde deixar de rir.

- Só um anestesista é que ia pensar em injectar um caçador de prémios com succinilcolina — comentou.

—A situação não tem graça nenhuma — disse Jeffrey com tristeza. — O problema é que cada vez há mais coisas em causa e os riscos aumentam na proporção. Especialmente se o Devlin me volta a descobrir. Debati muito comigo mesmo se deveria vir aqui. Acho que devias reconsiderar a tua oferta de ajuda.

— Disparate — disse Kelly. — Aliás, quando saíste do hospital há umas horas, fiquei furiosa comigo mesma por não te ter dito que viesses para cá.

Jeffrey estudou o rosto de Kelly. A sinceridade dela era desconcertante. Estava francamente preocupada.

—Esse tal Devlin disparou contra mim—repetiu Jeffrey.—Duas vezes. Balas a sério. E ria-se como se estivesse muito divertido, num torneio de tiro aos pratos. Só quero ter a certeza de que compreendes bem o tipo de risco que isto envolve.

Kelly olhou Jeffrey, bem nos olhos.

— Compreendo perfeitamente — disse. — E também compreendo que tenho um quarto de hóspedes e que tu precisas de um sítio para ficar. Fico ofendida se não aceitares a minha oferta. Estamos entendidos?

— Estamos entendidos — disse Jeffrey, mal contendo um sorriso.

— Óptimo. Então agora que isso está decidido, vamos arranjar qualquer coisa para tu comeres. Aposto que não comeste nada em todo o dia.

— Não é verdade — disse Jeffrey. — Comi uma maçã e uma banana.

— E que tal um prato de spaghetti?—disse Kelly. —Daqui a meia hora está pronto.

— Isso era óptimo.

Kelly foi para a cozinha. Em poucos minutos estava a saltear cebolas e alhos picados numa velha frigideira de ferro.

—Depois de me ter visto livre de Devlin não voltei ao quarto do hotel — disse-lhe Jeffrey. Estava apoiado nas costas do sofá para seguir as actividades de Kelly na cozinha.

— Bom, espero bem que não. — Tirou carne picada do frigorífico — Só estou a dizer isto porque acho que fiquei sem os apontamentos do Chris — aqueles que te pedi emprestados.

- Não faz mal - disse Kelly. — Eu disse-te que tencionava deitá-los fora. Poupaste-me esse trabalho.

— Mesmo assim, peço-te desculpa.

Kelly começou a abrir uma lata de tomate pelado italiano com uma abre-latas eléctrico. Por cima do ranger da máquina, foi dizendo:

— A propósito, esqueci-me de te contar que falei com a Charlotte Uenning, do Valley Hospital. Ela disse-me que compram a Marcaína à Kidgeway Pharmaceuticals.

Jeffrey pareceu espantado.

— Ridgeway?

—Exactamente—afirmou Kelly, juntando a carne picada à cebola e ao alho. — Ela disse-me que a Ridgeway tem sido fornecedora de lá desde que se generalizou o uso da Marcaína.

Jeffrey virou-se para o outro lado e ficou a olhar pela janela para o jardim, lá fora, na escuridão. Estava espantado. A ideia de que a Marcaína do Memorial e do Valley provinham do mesmo fabricante era um ponto crucial para a sua teoria do contaminante. Se a Marcaína usada nas operações de Noble e Owen eram de origens diferentes, não podia argumentar que pertenciam a uma mesma remessa contaminada.

Sem se aperceber do efeito que a informação tivera sobre Jeffrey, Kelly juntou à carne, às cebolas e ao alho os tomates pelados e um pouco de concentrado de tomate. Salpicou a mistura com orégãos, mexeu e baixou o gás para deixar apurar. Depois foi buscar um tacho grande, encheu- de água e pô-lo ao lume para ferver.

Jeffrey veio colocar-se junto dela, diante da bancada da cozinha. Kelly pressentiu que havia qualquer coisa de errado.

— Que é que há? — perguntou. Jeffrey suspirou.

— Se em Valley usam Ridgeway, a ideia do contaminante vai por água abaixo. A Marcaína vem em recipientes de vidro selados e qualquer contaminante teria de ser introduzido na fase do fabrico.

Kelly limpou as mãos a uma toalha.

— E não era possível juntar-lhe o contaminante depois?

— Duvido.

— Mesmo depois de o frasco ter sido aberto? — sugeriu Kelly.

— Não—replicou Jeffrey em tom firme. — Eu abro sempre as minhas próprias embalagens e retiro imediatamente o medicamento, e de certeza de que o Chris fazia o mesmo.

—Bom, tem de haver uma forma—continuou Kelly.—Não desistas com tanta facilidade. Foi provavelmente isso que o Chris fez. Para introduzir um contaminante numa destas ampolas, teria que penetrar no vidro - afirmou Jeffrey, quase zangado. - Não é possível. Cápsulas sim, podem ser abertas, ampolas não.—Mas mal acabara de falar e já uma certa dúvida se instalara no espírito dele. Lembrou-se do laboratório de química, na faculdade, e de quando lhe tinham pedido que fizesse pipetas ao bico de Bunsen, com rinhas de vidro. Lembrava-se da sensação de pastilha elástica produzida pelo vidro a derreter, quando ele esperava que ficasse incandescente para poder puxá-lo até obter um tubo fino.

— Tens cá alguma seringa? — perguntou.

— Ainda tenho a mala do Chris — disse ela. — É capaz de ter lá seringas. Queres que vá buscá-la?

Jeffrey fez que sim com a cabeça, depois aproximou-se do fogão e ligou um dos bicos da frente, ao lado do molho do spaghetti. A chama devia ter o calor suficiente. Quando Kelly voltou, trazendo a mala de Chris, retirou de lá algumas seringas e umas duas ampolas de bicarbonato.

Aqueceu a ponta da seringa até o metal estar ao rubro. Retirando-a do fogo, tentou rapidamente empurrá-la para dentro do vidro. Não penetrou lá muito bem. Em seguida tentou aquecer o vidro e usar uma agulha fria, mas também não conseguiu nada. Depois tentou aquecer a agulha e o vidro e a agulha penetrou facilmente.

Jeffrey retirou a agulha do interior da ampola e pôs-se a analisar o vidro. A superfície, que anteriormente era lisa, apresentava-se defeituosa e no sítio em que inserira a agulha, ficara um orifício minúsculo. Colocando a ampola novamente ao lume, o vidro amoleceu outra vez, mas quando tentou fazê-lo rodar só conseguiu aumentar-lhe a distorção e queimar-se, deixando a ampola ainda em pior estado que antes.

— Que é que achas? — perguntou Kelly, espreitando por cima do ombro dele.

— Acho que tens razão — disse Jeffrey, esperançado outra vez. — Seria possível fazer isso. Não é fácil. Eu por exemplo dei cabo desta. Mas vê-se que é possível. Uma chama mais forte é capaz de tornar a tarefa mais fácil e, ao mesmo tempo, uma chama orientável.

Kelly foi buscar um pedaço de gelo e embrulhou-o num pano da cozinha para aplicar no dedo queimado.

— Que espécie de contaminante é que tens na ideia?—perguntou.

— Não sei exactamente — admitiu Jeffrey —, mas estou a pensar numa toxina qualquer. Seja o que for, tem de ser capaz de produzir efeito numa concentração ínfima. Além de que, segundo o que Chris escreveu, teria de causar estragos nas células nervosas mas sem afectar os rins ou o fígado. Isso eliminaria grande número dos venenos correntes. É possível que fique a saber mais quando conseguir ter na mão o relatório da autópsia de Patty Owen. Estou muito interessado em ver a parte da toxicologia. Passei os olhos por ela durante a fase de instrução dos dois processos e lembro-me que era negativa, à excepção ” vestígios de Marcaína. Mas não fiz uma leitura muito atenta. Na altura não me pareceu importante.

Quando a água já fervia em cachão, Kelly deitou a massa lá para dentro. Depois voltou-se para Jeffrey.

.—Se foi por este meio que a toxina apareceu na Marcaína—apontou para a ampola e a seringa que Jeffrey pousara em cima do balcão —, isso quer dizer que alguém adulterou a Marcaína de propósito, um envenenamento deliberado.

— Um assassinato.

— Santo Deus — disse Kelly. Começava a aperceber-se de todo o horror de tal hipótese.—Porquê?—perguntou, estremecendo.—Porque é que alguém havia de fazer uma coisa dessas?

Jeffrey encolheu os ombros.

— Essa é uma pergunta à qual não estou preparado para responder. Mas não seria a primeira vez que alguém adulterava um medicamento ou que o utilizava para maus fins. Quem é capaz de dizer qual a motivação que existe por detrás de um acto desses? O assassino do Tylenol. Esse tal Dr. X de Nova Jérsia, que matava os doentes com doses excessivas de succinilcolina.

— E agora este. — Kelly estava visivelmente abalada. A ideia de algum tresloucado que andasse pelos corredores do hospital de Boston era de mais para ela.—Se acreditas que isto possa ser verdade—disse —, não achas que devíamos comunicar à polícia?

—Era bom que pudéssemos fazer isso—respondeu Jeffrey. —Mas não podemos, por duas razões. Em primeiro lugar, eu sou um condenado e fugitivo ainda por cima. Mas mesmo que não fosse, temos que reconhecer que não temos a mais ligeira prova de nada. Se alguém fosse procurar a polícia com uma história destas, duvido muito que eles fizessem o que quer que fosse. É preciso ter provas concretas antes de ir procurar as autoridades.

— Mas é preciso deter essa pessoa!

—Concordo—disse Jeffrey. —Antes que haja mais mortes e mais médicos condenados.

Kelly pronunciou as palavras seguintes numa voz tão baixa que “effrey mal a ouviu.

—Antes que haja mais suicídios. — Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

Para controlar a própria emoção, virou-se de novo para apasta que firvia ao lume. Puxou para fora uma fita de spaghetti e atirou-a a por do armário da loiça. Ficou pegada. Limpando os olhos, Kelly disse: Vamos comer.

- Eu telefono-te logo que a intervenção terminar — disse Karen Olges para a mãe. Já estava ao telefone havia quase uma hora e começava a sentir-se um bocado irritada. Parecia-lhe que era a mãe que devia estar a consolá-la e não o contrário.

— Tens a certeza de que o médico é bom? — perguntou a Sr.a Hodges.

Karen levantou os olhos ao céu na direcção da amiga com quem partilhava o quarto, Marcia Ginsburg, que lhe dirigiu um sorriso compreensivo. Marcia sabia exactamente o que Karen estava a passar. As chamadas da mãe de Marcia eram um problema igual. Andava constantemente a advertir a filha por causa dos homens, da SIDA, das drogas e do peso.

—Ele é óptimo, mãe — disse Karen sem se dar ao trabalho de disfarçar a irritação.

— Diz-me lá outra vez como é que o arranjaste — insistiu a Sr.- Hodges.

— Mãe, já te disse um milhão de vezes.

— Está bem, está bem — rematou a Sr.a Hodges. — Mas não deixes de me telefonar logo que possas, estás a ouvir?—Sabia que estava a aborrecer a filha, mas não podia deixar de se sentir preocupada. Tinha sugerido ao marido que apanhassem o avião para Boston para estarem com Karen quando ela fosse fazer a laparoscopia, mas o Sr. Hodges dissera que não podia abandonar o escritório. Além disso, como ele fez notar, uma laparoscopia era apenas um processo de diagnóstico, não era uma operação “a valer”.

— É “a valer” quando se trata da minha filha — replicara a Sr.a Hodges. Mas no final ela e o Sr. Hodges tinham acabado por ficar em Chicago.

— Eu telefono logo que possa — disse Karen.

— Diz-me lá que espécie de anestesia é que vais levar? — perguntou a Sr.a Hodges, na esperança de demorar um pouco mais a filha. Não tinha vontade de desligar.

— Epidural — disse Karen.

— Como é que se escreve? Karen soletrou a palavra.

— Não costumam usar isso nos partos?

— Costumam — replicou Karen. — E também a usam para intervenções como a laparoscopia, quando não têm a certeza do tempo que pode levar. O médico não sabe o que é que vai encontrar. Pode demorar um bocado e não queria que eu estivesse inconsciente.

“Francamente, Mãe, já sabes como foi com a Cheryl. —Cheryl é a irmã mais velha de Karen, que também tinha problemas de endometrite.

— Tu não vais fazer nenhum aborto, pois não? — inquiriu a Sr .a Hodges.

- Mãe, eu tenho que desligar — disse Karen. A última pergunta tinha-a pôsto fora de si. Agora sentia-se zangada. Depois daquela conversa toda, a mãe pensava que ela estava a mentir. Era ridículo.

—Telefona—ainda conseguiu dizer a Sr.a Hodges antes de Karen desligar.

Karen voltou-se para Marcia e ficaram as duas um momento a olhar uma para a outra, depois largaram a rir.

— Mães! — exclamou Karen.

— São uma espécie única — concluiu Marcia.

— Ela não parece querer acreditar que eu já tenho 23 anos e que já saí da escola—disse Karen. —Daqui a três anos, quando eu me formar em Direito, sempre gostava de saber se ela me continua a tratar da mesma forma.

— Não tenho dúvidas a esse respeito — comentou Marcia.

Karen terminara o Simmons College no ano anterior e estava a trabalhar como secretária especializada de um advogado em casos de divórcio, empreendedor e cheio de sucesso, de nome Gerald McLellan. MacLellan tornara-se mais um orientador do que um patrão para ela. Reconhecendo-lhe a inteligência, insistira para que entrasse para a faculdade de Direito. Estava inscrita para começar no Boston College no Outono.

Embora Karen fosse a imagem de uma saúde perfeita, desde a puberdade que sofria de endometrite. No último ano, o problema agravara-se. O médico acabara por lhe marcar uma laparoscopia para decidir qual o tratamento a fazer.

—Nem calculas como estou contente por seres tu a ir comigo amanhã em vez da minha mãe — disse Karen. — Ela dava comigo em doida.

—Vou com muito gosto—respondeu Marcia. Tirara o dia no Bank of Boston para acompanhar Karen à sua pequena cirurgia e depois acompanhá-la a casa, a menos que viesse a ser necessário Karen ficar no hospital de um dia para o outro. Mas o médico de Karen achava isso Pouco provável.

— Estou um bocado apreensiva — admitiu Karen. À parte uma visita ao serviço de urgência depois de uma queda de bicicleta aos 10 anos de idade, nunca tinha entrado num hospital.

— Não custa nada — garantiu-lhe Marcia. — Eu também estava Preocupada quando fui fazer a operação ao apendicite, mas não custou mesmo nada. Palavra.

—Eu nunca fiz nenhuma anestesia — disse Karen. — E se não der efeito e eu sentir tudo?

— Nunca levaste uma injecção no dentista?

Karen sacudiu a cabeça.

— Não. Nunca tive nenhum dente furado.

Trent Harding retirou os copos do armário ao lado do frigorífico e tirou-lhe o fundo falso. Enfiando a mão lá dentro, tirou cá para fora a pistola de calibre 45 e deitou-a sobre a mão. Adorava aquela arma. Tinha uma ligeira mancha de óleo no cano, da última vez que lhe mexera. Pegou numa toalha de papel e puxou-lhe carinhosamente o lustro.

Metendo novamente a mão no esconderijo, tirou de lá o pente carregado de balas. Segurando a pistola na mão esquerda, inseriu o pente na base da pega. Depois empurrou-o e ouviu-lhe o estalido ao ficar em posição. a manobra deu-lhe uma sensação próxima do prazer sexual.

Empunhando novamente a arma, sentiu-a diferente, agora que estava carregada. Segurou-a à maneira de Crockett em Miami Vice e apontou-a através da porta da cozinha para o póster da Harley-Davidson que estava pendurado na parede da sala comum. Durante um espaço de segundos debateu consigo mesmo se poderia disparar a arma dentro do apartamento sem criar problemas. Mas resolveu que não valia a pena correr o risco. Uma 45 fazia um barulho dos diabos. Não queria que os vizinhos chamassem a polícia.

Pôs a arma em cima da mesa e dirigiu-se de novo ao seu esconderijo secreto. Meteu a mão lá dentro e tirou o pequeno frasco com o líquido amarelo. Sacudiu-o e observou-o à luz. Palavra que não fazia a menor ideia como é que tiravam o líquido da pele das rãs. Comprara-o a um negociante de droga colombiano em Miami. E era um espanto. Correspondia a tudo aquilo que o tipo prometera que havia de ser.

Com uma pequena seringa de 5 cm3, Trent recolheu um pouco de líquido, depois diluiu-o em água esterilizada. Naquele caso, não fazia ideia da porção que deveria usar. Não tinha qualquer experiência daquilo que estava a planear naquele momento.

Cuidadosamente, voltou a colocar o frasquinho no esconderijo” depois pôs a tampa no armário e arrumou os copos. Tapou a seringa que continha a toxina diluída e meteu-a na algibeira. Depois entalou a pistola no cinto, de forma a sentir o frio do cano na parte de baixo das costas.

Dirigindo-se ao roupeiro da entrada, tirou o blusão de ganga Levis e vestiu-o. Depois foi ver-se no espelho da casa de banho, para ter a certeza de que a arma não estava à vista. Mas com o corte daquele blusão não se notava sequer a saliência.

Desagradava-lhe perder o local de estacionamento em Hill, sabendo que se ia ver doido para arranjar outro quando voltasse, mas que outra coisa poderia fazer? Cobriu a distância até St. Joe’s num quarto do tempo que levaria em transportes públicos. Essa era mais uma coisa que o incomodava nos médicos. Eles podiam estacionar dentro do hospital durante o dia. Os enfermeiros não eram autorizados a fazê-lo, a menos que tivessem a categoria de supervisores e trabalhassem durante o fim da tarde ou à noite.

Trent estacionou no parque público, mas escolheu um sítio próximo da área de estacionamento dos empregados. Fechou o carro e dirigiu-se a pé para o hospital. Uma das voluntárias perguntou-lhe se podia ajudá-lo, mas ele disse que não, que estava tudo bem. Comprou o Globe na loja destinada aos visitantes e instalou-se a um canto. Sabia que ainda era cedo, mas não queria arriscar. Precisava estar lá quando Gail Schaffer saísse do turno.

Devlin arrotou. A cerveja às vezes fazia-lhe isso. Deitou um olhar a Carol, que o fitou com ar de desagrado. Estava sentada em frente dele na sala ao lado da cozinha, a ver revistas, às quais voltava a página com gestos mal humorados. Era evidente que estava irritada.

Devlin concentrou de novo as atenções no jogo dos Red Sox, que o ajudava a descontrair. Se estivessem a ganhar, ele sentir-se-ia nervoso, com medo que estragassem tudo. Mas por sorte estavam bastante para trás.

Pelo menos, comera bem. As costeletas de vitela frias com salada tinham vindo mesmo a matar. E as quatro cervejas também. Nunca ouvira falar naKronenbourg antes de visitar os Rhodes. Não era má, embora francamente tivesse preferido umaBud.

O doutor não chegara a aparecer nem a telefonar. Embora Devlin sempre tivesse ganho um bom jantar com o compasso de espera, por outro lado tinha tido que aturar Carol. Depois de passar uma parte da noite com ela, começara a compreender porque é que o doutorzinho não mostrava vontade de ir para casa.

Devlin deixou-se escorregar um pouco mais no sofá confortável, diante da TV. Tinha tirado as botas de cowboy e pusera os pés com meias em cima de uma das cadeiras de espaldar direito da cozinha. Suspirou. Era bem melhor que ficar de atalaia no carro, mesmo com os Red Sox a perderem. Devlin pestanejou. Por segundos sentiu-se cair no sono.

Carol nem acreditava que era assim que ia ter de passar uma das suas últimas noites em Boston: a fazer sala com um brutamontes que Pretendia descobrir onde parava Jeffrey. Se nunca mais voltasse a ver o seu em-breve-ex-marido, já não era sem tempo. Talvez gostasse de o ver mais uma vez, só para lhe dizer o que pensava dele.

Carol observava Devlin pelo canto do olho. Por momentos, pareceu-lhe que ia adormecer. Mas nessa altura ele levantou-se e foi buscar outra cerveja. Contudo não tardou a voltar à posição anterior, quase horizontal e com os olhos meio fechados.

Finalmente, durante um anúncio, a cabeça de Devlin descaiu-lhe sobre o peito. A garrafa de cerveja que tinha na mão inclinou-se e despejou parte do conteúdo para cima do chão alcatifado. A respiração dele tornou-se estertorosa. Caíra num sono profundo.

Carol deixou-se ficar onde estava, segurando a revista com medo de voltar a página, não fosse acordar Devlin. Houve de repente grande alarido na televisão, quando um dos jogadores marcou pontos. Carol estremeceu, pensando que o ruído certamente acordaria Devlin, mas ele começou a ressonar ainda com mais força.

Com lentidão, Carol levantou-se da cadeira. Pôs a revista em cima da televisão.

Respirando fundo, devagar, passou diante de Devlin em bicos de pés, atravessou a cozinha e subiu as escadas. Assim que entrou no quarto, fechou a porta à chave e pegou no telefone. Sem hesitar, marcou o número da polícia e disse que tinha um intruso em casa e precisava de auxílio urgente. Deu o endereço, calmamente. Se Jeffrey podia tratar dos problemas dele à sua maneira, ela também podia tratar dos dela. Garantiram-lhe que a ajuda não tardaria a chegar.

Entretanto Carol dirigiu-se para o quarto de banho. Por uma questão de segurança fechou a porta à chave. Baixou a tampa da retrete e sentou-se à espera. Ainda não tinham passado dez minutos quando se ouviu a campainha da porta. Só nessa altura é que Carol saiu do quarto de banho, atravessou o quarto de dormir e se pôs à escuta. Ouviu abrir a porta principal e depois um murmúrio de vozes.

Abrindo a porta do quarto, Carol saiu para o topo das escadas. Lá em baixo, ouviu um som de vozes a conversar, e depois, com grande espanto seu, a rir!

Começou a descer as escadas. Na entrada, junto da porta principal, dois polícias de uniforme riam-se com gosto e batiam nas costas de Devlin, tudo como se fossem os melhores amigos do mundo.

— Desculpem-me — disse Carol em voz alta, já ao fundo das escadas.

Os três homens levantaram os olhos para ela.

— Carol, minha querida — disse Devlin —, parece que houve uma confusão qualquer. Alguém chamou a polícia por causa de um intruso.

— Fui eu que chamei a polícia — disse Carol. — Ele é um intruso — Eu? — disse Devlin com um ar de surpresa exagerado. Depoes voltou-se novamente para os polícias. — Esta é o máximo. Eu estava lá dentro na salinha do fundo, a dormir diante da televisão. Que tal para um intruso? Aliás, aqui a Carol tinha acabado de me fazer um magnífico jantar. Ela tinha-me convidado...

— EU não convidei ninguém! — gritou Carol.

—Se quiserem vir até à cozinha—continuou Devlin —, verão a loiça que sujámos durante o nosso jantar romântico. Acredito que possa ter sido um bocado decepcionante o facto de eu ter adormecido.

Os dois polícias não puderam deixar de sorrir.

— Ele é que me obrigou a fazer o jantar — atalhou Carol. Devlin mostrou-se genuinamente magoado.

Com ostensiva indignação, Carol atravessou a entrada e pegou na corrente com o pedaço de ombreira agarrado. Acenou com ele na direcção dos polícias.

—Isto dá ideia de que eu tenha convidado esse suíno a entrar aqui?

— Não faço a menor ideia como é que isso aconteceu — disse Devlin —, mas palavra que não tive nada a ver com o caso. — Revirou os olhos em direcção aos polícias. — Mas não faz mal, Harold, Willy, se a senhora quer que eu me vá embora eu vou. Só que ela também mo podia ter dito directamente. Detesto estar onde não sou desejado.

— Willy, por que é que não vais um momento até lá fora com o Sr.

O’Sea?—disse o mais velho dos dois polícias.—Eu vou ter uma conversa com a Sr.a Rhodes.

Devlin teve de voltar à sala onde tinham jantado para ir buscar as botas. Depois de as ter calçado, ele e Willy saíram e puseram-se ao lado do carro da polícia.

—Mulheres—disse Devlin, inclinando a cabeça na direcção da casa dos Rhodes. — Causam sempre problemas. São qualquer coisa!

— Caramba, ela é fogo — disse Harold, saindo de casa e indo juntar-se aos outros. — Que rai’ é que tu lhe fizeste, Devlin, para ela estar tão furiosa?

Devlin encolheu os ombros.

—-Devo tê-la ofendido. Mas como é que eu podia saber que ela ia transformar o facto de eu ter adormecido numa questão pessoal? A única coisa que eu quero é descobrir o marido, de preferência antes de ele perder a fiança.

— Bom, eu lá consegui acalmá-la — disse Harold. — Mas por favor sê discreto e não partas mais nada.

—-Discreto? Caramba, esse é o meu segundo nome—replicou Devlin com uma risada. —Desculpem se lhes causei algum inconveniente.

Seguidamente Harold interrogou Devlin acerca de outro polícia de Boston que fora expulso juntamente com ele durante o escândalo do suborno. Devlin disse-lhe que a última vez que soubera dele tinham- lhe dito que estava na Florida a trabalhar como detective particular na área de Miami.

Com muitos apertos de mão foram para os respectivos carros e arrancaram. Quando chegaram a West Shore Drive, os polícias viraram à esquerda e Devlin à direita. Mas Devlin não foi longe. Deu a volta sobre si mesmo e acabou por ir passar de novo em frente da casa dos Rhodes. Estacionou num sítio onde ficava com a casa debaixo de olho. Uma vez que Jeffrey não aparecera nem tinha telefonado, lamentava o facto de se ver obrigado a contratar de novo o tipo que pusera a seguir Carol.

Mas depois daquela noite já não tinha a mesma certeza de que ela acabasse por o conduzir até Jeffrey. O comentário de Mosconi, que eles não eram nenhum par de namorados, combinado com o comportamento de Carol e um ou outro comentário que fizera, levavam Devlin a pensar que provavelmente teria de arranjar outra ideia qualquer para localizar Jeffrey. Mas uma coisa que ia tornar tudo mais fácil era o facto de ter conseguido pôr uma escuta no telefone de Carol enquanto ela estava a preparar o jantar. Se Jeffrey telefonasse, ele saberia.

Depois de estudar o quarto de hóspedes de Kelly, Jeffrey resolveu deixar o saco debaixo da cama. Achou que estaria tão seguro como em qualquer outro lado. Resolveu não falar a Kelly no dinheiro para não lhe arranjar mais uma preocupação.

Ao sair do quarto de hóspedes, Jeffrey encontrou Kelly no quarto dela, sentada na cama a ler. Tinha a porta entreaberta, como que à espera que ele se fosse despedir antes de sair. Estava com um pijama de algodão cor-de-rosa, debruado a verde-escuro. Enroscados em cima da cama, viam-se dois gatos, um siamês e um tabby castanho.

— Bom, que imagem de bem-estar doméstico — disse Jeffrey. Olhou em volta. O quarto era tremendamente feminino, com o seu papel de parede florido e os lençóis a condizer. Era fácil de ver que todos os pormenores tinham sido cuidadosamente pensados. Não havia nenhuma peça de roupa à vista e Jeffrey não pôde deixar de pensar no contraste com a toca caótica de Carol.

— Estava agora mesmo a pensar em ir ver se estavas acordado —’ disse Kelly. —Acho que nos vamos desencontrar de manhã. Eu tenho de sair daqui às seis e quarenta e cinco. Deixo a chave da porta dentro da lanterna.

— Não mudaste de ideias quanto a deixar-me ficar aqui? Kelly franziu a testa, fingindo-se desgostosa.

—Julgava que já tínhamos arrumado esse assunto. Eu quero que tu fiques. Tinha a impressão de que tencionávamos ir para a frente juntos. Especialmente agora, que tens esse inimigo para aí à solta.

Jeffrey entrou no quarto e aproximou-se da cama. O siamês levantou a cabeça e soprou.

— Vamos lá, Sansão, vamos lá a não ser ciumento — repreendeu Kelly- Depois disse para Jeffrey. —Não está habituado a ver um homem cá em casa.

— Quem são estas criaturas? — perguntou Jeffrey. — Como é que eu ainda não os tinha visto?

—Este é o Sansão — disse Kelly, apontando para o siamês. —Passa a maior parte do tempo lá fora a aterrorizar tudo e todos. E esta é a.Dalila. Está grávida, como vês. Dorme todo o dia na despensa.

— São casados? — perguntou Jeffrey.

Kelly riu-se com a sua maneira característica. Jeffrey sorriu. Não lhe parecia que a sua pequena piada tivesse assim tanta graça, mas a alegria de Kelly era contagiosa.

Jeffrey pigarreou.

— Kelly—fez uma pausa —, não sei como dizer isto mas não fazes ideia quanto eu aprecio a tua compreensão e hospitalidade. Não tenho forma de te agradecer.

Kelly olhou paraDalila e fez-lhe uma festa, carinhosamente. Jeffrey pensou que ela corara, mas era difícil ter a certeza, com aquela luz.

—Só queria que soubesses—acrescentou Jeffrey. Depois, mudando de assunto, disse. — Bom, acho que amanhã falamos.

—Tem cuidado—recomendou ela.—E boa sorte. Se tiveres algum problema, telefona-me. Seja a que horas for, eu não me importo.

— Não vai haver problemas — disse Jeffrey, confiante. Mas meia hora mais tarde, quando ia a subir os degraus do Boston Memorial, já não tinha tanto a certeza. Apesar da confiança que ganhara durante a visita com José Martinez, Jeffrey sentia-se de novo preocupado com a possibilidade de dar de caras com alguém que o conhecesse bem. Estava preocupado por ter perdido os óculos e só esperava que não fossem cruciais para o disfarce.

Jeffrey sentiu-se um bocado mais confiante depois de ter vestido o uniforme dos serviços de limpeza. Havia mesmo um sobrescrito pendurado no cacifo dele, com uma etiqueta com o nome e o cartão de identificação.

Uma ligeira pancada no ombro fê-lo dar um salto e por sua vez o Movimento brusco de Jeffrey sobressaltou a pessoa que lhe tinha tocado.

— Calma, homem, você está nervoso ou quê?

— Desculpe — disse Jeffrey. Tinha diante dele um tipo baixo, com cerca de um metro e sessenta, de cara estreita e feições escuras. — Acho que estou um bocado nervoso. É o meu primeiro dia neste trabalho.

— Não precisa de ficar nervoso — disse o homem. — O meu nome é David Arnold. Sou o chefe de turno. Durante as primeiras noites vamos trabalhar juntos. Portanto não se preocupe. Eu ensino-o a mexer os cordéis.

— Muito prazer — disse Jeffrey. — Mas eu tenho bastante experiência de hospitais, portanto, se me quiser deixar sozinho, tenho a certeza de que tudo vai correr bem.

—Eu passo sempre os primeiros dois ou três dias com o pessoal que vem de novo — disse David. — Não pense que é uma questão pessoal. Dá-me a oportunidade de lhe mostrar exactamente aquilo que esperamos, de acordo com a nossa rotina aqui no Memorial.

Jeffrey achou melhor não discutir. David levou-o a uma pequena sala estreita e sem janelas, modestamente mobilada com uma mesa de fórmica, uma máquina de refrigerantes e uma máquina de café eléctrica. Apresentou Jeffrey aos outros que trabalhavam no turno da noite. Dois só falavam espanhol. Outro falava um calão das ruas, ao mesmo tempo que pulava e se balançava ao som de um rap que lhe vinha dos headphones.

Quando faltava um minuto para as onze, David reuniu os seus homens.

—Okay, vamos a andar—disse, recordando a Jeffrey as patrulhas dos filmes de guerra, saindo para as suas missões. Deixaram a pequena sala e cada um pegou num carrinho da limpeza. Cada trabalhador era responsável por equipar o seu próprio carro. Jeffrey seguiu o exemplo dos outros, certificando—se de que o carro tinha o necessário complemento de produtos e instrumentos de limpeza.

Cada carro tinha cerca de duas vezes o volume de um carro de supermercado normal. Numa das extremidades era o sítio para o equipamento de cabo comprido, como esfregonas, uma escova de apanhar o pó do chão, e vassouras. Na outra extremidade havia um grande recipiente de plástico para o lixo. Na parte central havia três prateleiras. Aí havia de tudo, limpa-vidros, um produto para limpar tijoleira ou para a fórmica, toalhas de papel, até mesmo rolos de papel de casa de banho. Havia sabonetes, ceras, graxas e mesmo um lubrificante.

Jeffrey seguiu David até aos elevadores da torre oeste. A escolha era ao mesmo tempo encorajadora e enervante. A torre oeste incluía as salas de operações e o laboratório. Apesar de estar desejoso de fazer as suas pesquisas naquela área, não podia deixar de se sentir apreensivo quanto às pessoas que poderia encontrar por lá.

— Vamos começar nós dois com o bloco operatório — disse atiçando os receios de Jeffrey. —Já alguma vez vestiu o fato próprio para lá entrar?

— Várias vezes — disse Jeffrey, distraído.

Começava a preocupá-lo o facto de, uma vez vestido dessa forma, perder uma parte importante do seu disfarce. Bem desejaria ter os óculos de aros pretos. A única coisa que lhe parecia poder fazer era ficar sempre com a máscara cirúrgica. Mas provavelmente David ia reparar, pois normalmente a máscara só era usada quando estava alguma operação em curso. Jeffrey resolveu dizer que estava constipado.

Mas não foram logo para o bloco operatório. David disse-lhe que o átrio da cirurgia e as salas dos cacifos tinham de ser limpos primeiro.

— Por que é que não trata você do átrio e eu das salas dos cacifos? —sugeriu David, depois de lá estarem. Jeffrey fez que sim com a cabeça. Espreitou para dentro da sala, depois retirou a cabeça rapidamente. Havia duas enfermeiras anestesistas sentadas num sofá, a beber café. Jeffrey conhecia-as a ambas.

— Algum problema? — perguntou David.

— Nada, nada — disse Jeffrey rapidamente.

—Você vai sair-se bem—disse David.—Não se preocupe. Primeiro limpe o pó. Não se esqueça dos cantos superiores, junto ao tecto. Depois use um produto de limpeza nas mesas. A seguir com o pano. Okay?

Jeffrey fez um sinal de assentimento.

David empurrou o seu carrinho de limpeza para a sala dos cacifos e fechou a porta atrás dele.

Jeffrey engoliu em seco. Tinha de começar. Tirando o espanador de cabo comprido de cima do carrinho, avançou pelo átrio. A princípio tentou manter o rosto desviado das duas mulheres. Mas elas não lhe prestavam a mínima atenção. O uniforme do serviço de limpeza era tão eficaz como uma capa mágica de invisibilidade.

 

                                 4.a feira, 17 de Maio de 1989, 23:23

Com a sua mochila ao ombro, Gail Schaffer saiu do elevador com Regina Puksar. Desceram juntas o corredor central, em direcção à entrada principal. Conheciam-se havia quase cinco anos. Discutiam muitas vezes uma com a outra os seus problemas pessoais, embora não convivessem muito fora do hospital. Gail tinha contado a Regina a discussão que tivera com o namorado de haja dois anos.

—Concordo contigo — comentou Regina.—Se o Robert me dissesse de repente que queria sair com outras pessoas, eu respondia-lhe: “Tudo bem, mas entre nós acabou-se”. Uma relação não pode regredir. Ou cresce ou morre. Pelo menos, é essa a minha experiência.

— E a minha — suspirou Gail.

Nenhuma delas notou quando Trent dobrou o jornal e se pôs de pé. Quando saíram pela porta giratória, Trent estava mesmo atrás delas. Ouviu-lhes a conversa.

Seguro de que elas iam direitas ao parque de estacionamento dos empregados, Trent deixou-as adiantar um bocado, mas sem as perder de vista. Ficaram ainda uns minutos, paradas, a conversar, ao pé de umPontiacFiero vermelho de desporto. Finalmente, despediram-se. Depois Gail meteu-se no carro. Regina deu mais alguns passos para chegar junto do carro dela.

Trent foi até ao seu Corvette e meteu-se lá dentro. Não era o carro mais indicado para seguir alguém por ser tão impetuoso, mas neste caso não devia ter muita importância. Não havia qualquer razão para Gail ficar desconfiada.

O carro de Gail era igualmente impetuoso, o que o tornava mais fácil de seguir. Foi direita para Black Bay, tal como Trent calculara pelo número de telefone. Em Boylston, ela parou em segunda fila e e desapareceu no interior de um armazém-24.

Trent parou do outro lado da rua, que era de sentido único, e estacionou numa praça de táxis. De onde estava, podia facilmente manter a loja e o carro de Gail sob vigilância. Quando Gail saiu, com um embrulho, e se meteu de novo no carro, Trent esperou que ela o pusesse em andamento. Depois deslizou mesmo para trás do Pontiac vermelho.

Ela virou à esquerda em Berkeley, depois abrandou. Trent percebeu que andava à procura de lugar para estacionar, o que não era tarefa fácil àquela hora da noite. Deixou aumentar a distância entre os dois carros. Ela encontrou finalmente um sítio em Marlborough Street, mas levou um tempo infinito para lá meter o carro.

— Vaca incompetente — murmurou Trent enquanto observava a terceira tentativa da rapariga para estacionar paralelamente, em marcha atrás. Trent metera o carro num sítio de estacionamento proibido. Queria lá saber. E se fosse multado? Que é que isso tinha? Estava em serviço, qualquer despesa que tivesse que fazer seria legítima. A única coisa que não queria era que lhe rebocassem o carro, mas sabia por experiência que não havia muitas possibilidades de isso acontecer.

Finalmente, Gail deu-se por satisfeita com a arrumação, embora o mesmo não acontecesse com Trent. O carro ainda estava a uns bons trinta centímetros do passeio. Ela saiu, de mochila na mão, fechou as portas e começou a andar a pé. Trent ficou a vigiá-la, sem ser visto, do outro lado da rua. Viu Gail voltar à esquerda em Berkeley e à direita em Beacon. Passou algumas portas em Beacon e entrou numa das casas de arenito castanho-avermelhado.

Depois de ter esperado alguns minutos, Trent entrou no edifício e procurou na lista de nomes colocada ao lado da campainha de casa residente. Encontrou “G. Schaffer” em conjunto com “A. Winthrop.”

—Rai’s partam! — disse Trent por entre dentes. Pensava que Gail vivia sozinha. As coisas nunca eram fáceis, pensou. Ainda furioso, saiu novamente para a rua. Não ia meter-se no apartamento de Gail se ela tivesse mais alguém lá em casa. Não podia ter testemunhas. Isso Seria impossível.

Trent percorreu com o olhar a Rua Beacon, em direcção ao Jardim de Boston. Viu que estava perto do bar que a série de TV Cheers tornara famoso. Foi nessa altura que um plano começou a ganhar forma dentro da sua cabeça. Talvez conseguisse fazer com que Gail ou a amiga com quem vivia saíssem do apartamento.

- . Percorreu a pé a pequena distância que o separava de Hampshire

Ouse. Aí serviu-se de um telefone público para marcar o número de Gail que tinha copiado do placar de informações na sala do Bloco operatório. Enquanto o telefone tocava, foi concebendo vários planos, o quao dependia de quem atendesse.

— Olá! — disse a voz do outro lado da linha. Era Gail. A senhorita Winthrop, por favor — disse Trent.

— Ela não está.

Trent começou a ficar mais bem-disposto. Afinal talvez as coisas acabassem por ser fáceis.

— Pode dizer-me a que horas chega?

— Quem fala?

—Um amigo da família — disse Trent. —Vim a Boston em negócios e deram-me o número dela para dizer uma palavrinha.

— Ela agora faz o turno da noite no St. Joseph’s Hospital — disse Gail. — Quer que lhe dê o número? Pode tentar falar-lhe para lá. Se não ela está de volta aqui amanhã de manhã pelas sete e meia, se preferir voltar a telefonar.

Trent fingiu que anotava o número do St. Joseph’s, agradeceu e desligou. Não conseguiu reprimir um sorriso.

Saindo de Hampshire House, apressou-se a regressar ao prédio de Gail. Agora a única coisa que tinha a fazer era introduzir-se no apartamento. Entrou no vestíbulo e calçou um par de luvas de guiar, pretas. Depois tocou a campainha.

Num minuto, a voz de Gail fez-se ouvir no intercomunicador.

— Sim. Quem é?

—Duncan Wagner—disse Trent. Foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça. Os Wagners tinham vivido ao lado dos Hardings na base militar de San António. Duncan era uns anos mais velho que Trent e sempre brincaram juntos até o pai de Duncan se ter apercebido de que Trent era uma má influência.

— Eu conheço-o? — inquiriu Gail.

— Quanto mais não seja de vista — disse Trent. — Faço os turnos da noite em pediatria. —Trent pensou que a pediatria tinha um som mais inofensivo.

— No terceiro andar?

—Precisamente—continuou Trent. —Espero não estar a incomodá-la, mas um grupo de pessoal lá do hospital acabou por se reunir no Buli Finch Pub. E alguém falou no seu nome. Disseram que vivia aqui mesmo ao pé. Deitámos uma moeda ao ar para ver a quem calhava vir saber se podia vir ter connosco. Fui eu que ganhei.

—Vocês são muito amáveis — disse Gail, mas eu acabo de chegar> larguei o trabalho há momentos.

— Também nós. Venha até lá. É tudo gente que conhece.

— Quem mais é que lá está?

— A Regina Puksar, por exemplo.

—Mas eu deixei-a agora mesmo. Ela disse que ia a casa do namorado.

— Que é que eu lhe posso dizer? Talvez tenha mudado de ideia. Talvez não o tivesse encontrado. Seja como for, ela está lá connosco.

Ela insistiu muito em que alguém viesse buscá-la. Achou que lhe ia fazer bem.

Houve uma pausa. Trent sorriu. Sabia que tinha conseguido.

— Ainda estou de uniforme — disse Gail.

— Há lá outros que também estão. — Trent tinha resposta para tudo.

— Bom, ainda tenho de tomar um duche.

— Não há problema — disse Trent. — Eu espero.

— Eu posso ir lá ter.

— Não, não, eu espero. Carregue no botão para eu poder entrar.

— Só demoro uns dez minutos — disse Gail.

— Demore o tempo que precisar.

—Está bem — concordou Gail.—Se não se importa de esperar. Eu vivo no 3C.

O fecho eléctrico da porta interior que dava para o vestíbulo fez-se ouvir. Trent empurrou a porta. Entrou, sorrindo. Isto não só ia ser fácil, mas também ia ser divertido. Verificou a arma. Continuava bem presa. A seguir procurou a seringa. Estava na algibeira.

Trent subiu rapidamente ao terceiro andar. O truque consistia em entrar no apartamento de Gail antes que alguém o visse. No caso de se cruzar com algum dos outros moradores, fingiria que ia para outro lado. Mas não se avistava ninguém no corredor do terceiro andar. E mais, Gail deixara a porta aberta para ele entrar. Trent entrou e fechou a porta à chave. Aúltima coisa que queria agora era ser interrompido. Trent ouviu a água correr no quarto de banho. Gail já estava no duche.

— Esteja à vontade — gritou-lhe Gail quando ouviu bater a porta. — Eu não demoro nada.

Trent olhou em volta. Primeiro foi até à cozinha. Não estava lá ninguém. A seguir verificou o segundo quarto de dormir. Acendendo a luz, viu que estava vazio. Gail encontrava-se sozinha. A situação era perfeita.

Puxando da sua bem-amada pistola, Trent enrolou a mão em volte da coronha, apoiando suavemente o dedo no gatilho. Tudo assentava perfeitamente. Aproximando-se da porta do quarto de Gail, emPurrou-a com cuidado. A porta afastou-se alguns centímetros. Trent entrou para dentro. A cama estava por fazer. O uniforme de Gail ficara travessado em cima da cama. No chão, havia um par de calcinhas, umpar de meias brancas e um cinto de ligas. A porta da casa de banho stava fechada, mas Trent continuava a ouvir a água a correr.

Aproximando-se do cinto de ligas, Trent tocou-lhe com o pé. Amãe usava sempre cinto de ligas. Dissera-lhe dúzias de vezes que os collants eram desconfortáveis. Como a mãe insistia sempre para que dormisse com ela quando o pai estava ausente numa das suas inumeráveis missões militares, Trent cresceu a ver cintos de ligas a mais para o seu gosto.

Silenciosamente, aproximou-se da porta da casa de banho e experimentou-a. O puxador foi fácil de rodar. Abriu a porta uns dois centímetros. Lá de dentro escapou-se uma lufada de ar quente e húmido. Trent apontou o cano da arma para o tecto, como Don Johnson em Miami Vice. Segurava-a com as duas mãos. Servindo-se do pé, abriu a porta completamente para trás. As peças da casa de banho eram de estilo antigo. A banheira era de um velho modelo em porcelana, com pés de garra. A cortina branca do duche, com grandes lírios pintados, estava puxada. Trent viu a silhueta de Gail por detrás da cortina, a pôr champô no cabelo. Deu dois passos em direcção à banheira e puxou a cortina para o lado com um gesto decidido. O varão cedeu e caiu estrepitosamente no chão, juntamente com a cortina.

Gail cruzou os braços diante do peito.

— O que é... Quem... —tartamudeou. Depois, zangada, gritou. — Saia daqui para fora!

A água escorria pelo corpo bem ensaboado de Gail. Trent levou algum tempo a recuperar a compostura. Não havia dúvida de que Gail tinha melhor figura do que a mãe dele alguma vez tivera.

— Saia do duche — disse, apontando friamente a arma a Gail, de forma que ela a visse bem.

— Cá para fora! — repetiu Trent quando viu que a rapariga não se mexia. Mas Gail estava paralisada de medo. Encostou-lhe a arma à cabeça para a obrigar a sair.

Gail começou a gritar. Entre as quatro paredes do quarto de banho, era um som estrídulo e desagradável. Para a fazer parar mais depressa, Trent levantou a pistola ao alto e deixou cair a coronha, com força, na cabeça da rapariga. Acertou-lhe precisamente na orla do cabelo.

Logo que lhe acertou, sentiu que batera com força de mais. Gail caiu para dentro da banheira, como um trapo. Tinha uma brecha que lhe atravessava a testa e ia até à orelha. A ferida parecia profunda e Trent via-lhe o osso na parte inferior. No espaço de um minuto, havia tanto sangue que a banheira ficou cor-de-rosa.

Trent inclinou-se e desligou o chuveiro. Depois correu para a sala para ver se ouvia vozes de alguém que viesse a caminho para a socorrer. Algures ouvia-se uma televisão ligada. Mas, além disso, nenhum outro som. Encostou o ouvido à porta. O corredor estava mergulhado em silêncio. Ninguém ouvira os gritos de Gail; e se é que a tinham ouvido não pareciam dispostos a vir emseu auxílio. Trent voltou à casa de banho.

Gail acabara por ficar meio sentada, com as pernas por baixo do corpo e a cabeça apoiada ao canto, de encontro à parede. Tinha os olhos fechados. O ferimento continuava a deitar sangue, mas o fluxo abrandara desde que a água do duche deixara de lhe cair em cima.

Enfiando novamente a pistola no cinto, Trent agarrou Gail pelas pernas e começou a puxá-la para fora. Mas de repente parou. Sentiu a ira flamejar dentro dele. Ao ver o corpo nu de Gail estendido diante dele, esperara sentir uma certa excitação sexual, mas não sentia absolutamente nada, a não ser talvez repugnância. Talvez um toque de pânico.

Num acesso de ira repentina, puxou novamente da arma. Segurando-a pelo cano, levantou-lhe a coronha bem acima da cabeça. Apetecia-lhe esmagar o rosto calmo de Gail. Já ia a baixar o braço com toda a força quando caiu em si. Baixou a pistola, lentamente. Tanto quanto lhe apetecia mutilá-la, sabia que seria um erro. A beleza do seu plano era o facto de a morte de Gail parecer provocada por causas naturais, não por assassínio.

Pondo novamente a pistola no cinto, Trent puxou da seringa. Retirou-lhe a tampa e inclinou-se para a frente. Aproveitando a brecha e evitando assim deixar a marca da picada, injectou o conteúdo da seringa directamente na ferida.

Em seguida Trent endireitou-se. Tapou a agulha e guardou a seringa vazia na algibeira. Depois, ficou à espera, a olhar. No espaço de um minuto o rosto de Gail contorceu-se num espasmo muscular que lhe distorceu os lábios imóveis e serenos num esgar grotesco. Os espasmos espalharam-se rapidamente por todo o corpo. Passados mais alguns minutos, o estremecer dos músculos deu lugar a sacudidelas violentas, seguidas de um ataque violento. A cabeça de Gail bateu desesperadamente na parede forrada de azulejo, depois nas próprias torneiras, com um som horrível. Trent estremeceu, olhando-a.

Espantado com o poder da droga, recuou alguns passos. O efeito era verdadeiramente horroroso, especialmente quando Gail ficou repentinamente incontinente. Trent voltou-se e correu para a sala.

Abrindo a porta que dava para o corredor, observou as escadas, Para cima e para baixo. Felizmente não se via ninguém. Saiu e fechou a Porta. Depois foi em bicos de pés até às escadas e desceu ao rés-do-chão. Saiu do prédio, tendo o cuidado de caminhar com toda a naturalidade, como se andasse simplesmente a passear. Queria ter a certeza de que não chamava a atenção para a sua pessoa, de maneira nenhuma.

Sentindo-se nervoso e abatido, voltou à direita em Beacon Street ! voltou ao Buli Finch Pub. Não percebia por que é que se sentia tão inquieto. Na realidade esperara ficar...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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