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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INVEJA / J. R. Ward
INVEJA / J. R. Ward

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 1


Era primavera, numa noite escura de abril, quando o detetive Thomas DelVecchio Jr. entendeu que pesadelos poderiam, de fato, saltar da mente e tornar-se realidade. Infelizmente, isso, para ele, não era bem uma novidade.

Havia sangue por toda parte. Um vermelho brilhante sob o luar, como se um galão de tinta tivesse sido derramado no local, não apenas sobre o chão da floresta... mas sobre aquele homem estraçalhado em meio às folhas secas, bem aos pés de Veck.

Contudo, toda aquela confusão vermelha não era de tinta látex para interiores. Ou de tinta a óleo para acabamentos. Ou, ainda, de tinta para paredes externas. Não se poderia comprar aquilo numa loja de tintas e limpar tudo com solvente, muito menos era algum corante daqueles filmes de terror de segunda.

Aquilo era a vida real, sim, bem ali, diante dele. Escorrendo por todos os cantos.

O que ele havia feito? Santo Deus...

Arrancando sua jaqueta de couro, ajoelhou-se para pressioná-la contra o tórax descoberto do homem. Sons de líquido borbulhando misturavam-se com os da forte respiração de Veck, que encarava aqueles olhos escurecendo-se rapidamente.

– Eu matei você? Será que eu...?

Nenhuma resposta. É claro que as cordas vocais do bastardo deviam estar penduradas num galho qualquer.

Droga... que droga... era como a noite em que sua mãe havia sido morta.

Só que, neste caso, ele realmente veio para esquartejar alguém.

De uma coisa tinha certeza: estava com sua moto, dirigiu até ali e esperou escondido na floresta até o maldito psicótico aparecer – mentindo a si mesmo, o tempo todo, sobre estar ali apenas para prender o “suspeito”. Mas as suas mãos diziam a verdade. Quando sua presa finalmente chegou, a faca estava empunhada e atuou como uma sombra com suas roupas pretas, aproximando-se...



 

 

 


O Monroe Motel & Suítes estava a pouco mais de dez metros dele, do outro lado da espessa barreira de arbustos e pinheiros. Iluminado por luzes de um amarelo que mais parecia urina, a tentativa decadente do local de chamar a atenção para o aluguel de quarto por uma noite, ou por uma hora, foi a razão para ele e o assassino terem saído de casa naquela noite.

Serial killers costumam colecionar troféus de suas vítimas. Incapazes de formar laços emocionais adequados com as pessoas e carentes de representações físicas do poder fugaz que exercem sobre suas presas, revestem os objetos de emoções ou lembranças das pessoas que massacraram.

David Kroner havia perdido sua coleção de recordações há duas noites. Quando o trabalho que fazia ali foi interrompido e a polícia cercou a cena do crime. Então, é claro que retornaria ao local onde esteve no controle da situação pela última vez. Era o máximo que poderia reconquistar daquele momento.

– Chamei uma ambulância – Veck ouviu-se dizer, sem saber ao certo com quem estava falando.

Mudando o foco de seu olhar, concentrou-se no último quarto do motel, próximo de onde estavam e longe da sala da gerência. Um selo oficial do Departamento de Polícia de Caldwell estava fixado à porta e aos batentes, e a fita que envolvia a cena do crime produzia um ruído com a brisa que nela batia. Numa fração de segundos, visualizou o que ele e os outros oficiais tinham encontrado havia duas noites: outra jovem mulher, que acabara de ser morta e estava prestes a ter sua carne recortada para ser levada como lembrança.

Mais sons de algo borbulhando.

Olhou para baixo. O homem que sangrava era magro e fino, portanto, fazia sentido as vítimas de David Kroner serem jovens, aparentando idade entre 16 e 24 anos. Não precisava ser forte como um cão de guarda para fazer o trabalho. Os cabelos loiros de Sandy afinavam no alto da cabeça. A pele branca tornava-se cinza, pelo menos onde não estava coberta de sangue.


Mergulhando em seu banco de dados mental, Veck tentou se lembrar do que diabos havia acontecido. Após esperar por um período de tempo que lhe pareceu dias, o estalar de galhos finos chamou-lhe a atenção, foi quando viu Kroner andando na ponta dos pés entre os pinheiros.

No instante em que avistou o homem, pegou a faca, agachou o seu corpo e, em seguida...

– Filho da mãe!

A dor de cabeça veio com força, como se alguém tivesse batido um prego em seu lobo frontal. Erguendo uma das mãos, inclinou-se para a esquerda e pensou, muito bem, ótimo. Quando a ambulância chegasse, os médicos poderiam diagnosticar nele um aneurisma.

Ao menos isso lhes daria algo para fazer – Kroner já seria um cadáver quando chegassem ali.

Quando a dor lancinante passou um pouco, Veck tentou, outra vez, lembrar-se de mais alguma coisa... apenas para voltar com força total à necessidade de tomar um analgésico urgentemente e, em seguida, sofrer um apagão mental novamente. Com a nova rodada de agonia que floresceu em seu crânio como se fosse um buquê vermelho brilhante, fechou os olhos e pensou em vomitar – e, enquanto a dúvida sobre pôr ou não tudo para fora enfurecia suas entranhas, percebeu que era hora de ser honesto consigo mesmo. Por causa do enorme buraco negro em suas lembranças de curto prazo, sabia apenas que tinha sim ido até lá para matar aquele filho da mãe pervertido que, incluindo a última vítima na contagem, havia atacado pelo menos onze mulheres de Chicago a Caldwell no ano passado.

Horrível, é claro. Mas era um amadorismo comparado ao próprio pai de Veck – que fizera tudo aquilo num espaço de três meses: Thomas DelVecchio pai escreveu a cartilha para caras como Kroner.

E foi seguindo essa linha de raciocínio que Veck chamou não apenas a ambulância, mas também seu parceiro do Departamento de Homicídios.

Por mais que detestasse admitir, era filho de seu pai: foi até ali para matar. Ponto final. E o fato de sua vítima ser um imbecil violento não era nada além de um filtro social aceitável para a realidade.

No fundo, não se tratava de vingar as garotas mortas.

E, pelo amor de Deus... sabia que o que acontecera naquela noite era inevitável. Ao longo de toda sua vida, aquela sombra esteve atrás dele, guiando-o, seduzindo-o, puxando-o em direção àquela cena de destruição. Então, fazia sentido não se lembrar de nada. Sua outra metade finalmente havia assumido o controle e não tirou as mãos do volante até que todo o ato de violência estivesse feito. Prova disso? Em algum lugar na parte de trás de sua cabeça, ecoava um riso, maníaco e satisfeito.

Certo, muito bem, divirta-se agora – pensou, pois não iria mais deixar-se levar tão longe em direção aos passos de seu pai...

O som de sirenes surgiu vindo do Leste e ficava cada vez mais alto e rápido.

Aparentemente, não foi o único que ouviu o alarme. Um homem saiu rapidamente de um dos quartos do hotel e correu em volta do capô de um carro já com seus dez anos, bastante usado, que tinha uma treliça metálica sobre o para-choque. Foi meio difícil pegar as chaves, já que puxava as calças ao mesmo tempo. Em seguida, no mesmo ritmo de fuga, veio uma mulher de aparência rude que tropeçava ao se aproximar de um velho Honda Civic enquanto descia sua minissaia.

As partidas ruidosas e desenfreadas deixaram o estacionamento vazio quando a ambulância surgiu na entrada do local e parou em frente à sala da gerência. Quando um paramédico saiu do banco do passageiro, um homem que deveria ser o gerente abriu a porta, Veck assoviou com força: – Aqui!

Parece que o gerente não tinha a menor intenção de se envolver e voltou para trás. Mas o paramédico correu e a ambulância percorreu o estacionamento atrás dele. Quando chegaram, Veck ficou muito calmo – mortalmente calmo. Tão intocável quanto a fria e distante lua que os vigiava naquela noite densa e escura.

Dane-se seu lado negro. Foi ele quem tinha feito aquilo. E obrigaria a si mesmo a pagar por isso.

A oficial de Assuntos Internos, Sophia Reilly, dirigia a todo vapor em seu carro sem marcas de identificação, disparando ao longo de uma área remota junto aos limites sujos de Caldwell, enquanto percorria a Rota 149 numa corrida louca – o fato de estar a caminho da cena de um crime não justificava a alta velocidade. Ela dirigia rápido, comia rápido e odiava esperar em filas, aguardar pessoas ou informações.

Se apenas pudesse evitar a colisão com um cervo antes de chegar ao Monroe Motel & Suítes...

Quando seu celular tocou, já estava com ele em seu ouvido antes do segundo toque.

– Reilly.

– Detetive De la Cruz.

– Oi. Adivinhe para onde estou indo agora?

– Quem te ligou?

– 190. Seu parceiro está na minha lista de coisas a fazer... então, quando ele liga chamando uma ambulância, pede reforços no meio da noite e diz que não se lembra do que aconteceu com a vítima, eu recebo uma ligação básica.

Infelizmente, aquilo era algo com o que ela já estava se familiarizando. Thomas DelVecchio Jr. estava trabalhando no Departamento de Homicídios há apenas duas semanas e já quase tinha sido suspenso por nocautear um paparazzo que tentara tirar uma foto de uma vítima.

No entanto, aquilo era brincadeira de criança se comparado à confusão de agora.

– Como descobriu? – ela perguntou.

– Ele me acordou.

– E o que lhe pareceu?

– Vou ser honesto com você.

– Sempre é, detetive.

– Parecia que estava bem. Reclamou de uma dor de cabeça e perda de memória. Disse que havia muito sangue e que tinha certeza absoluta de que a vítima era David Kroner.

Mais conhecido como o bastardo doente que havia retalhado garotas e guardado pedaços delas. A última sessão de “trabalho” do bastardo tinha sido dirigir até aquele hotel há duas noites, mas foi interrompido por desconhecidos. Com a confusão, Kroner escapou por uma janela do banheiro, deixando para trás um cadáver numa posição trágica e uma caminhonete cheia de frascos com amostras e outros objetos – todos eles foram catalogados em seu esconderijo, e havia referências cruzadas a nível nacional.


– Perguntou se foi ele quem fez isso? – como membro do Departamento de Assuntos Internos, Reilly investigava os delitos de seus colegas e, apesar de se orgulhar do trabalho que fazia, não gostava do fato de que as pessoas com sua função sempre tivessem muito trabalho. Seria melhor se todos, incluindo os oficiais da lei, jogassem segundo as regras.

– Ele disse que não sabia.

Branco total ao cometer um assassinato? Não era incomum. Especialmente se fosse um crime passional – como, digamos, um detetive de homicídios querendo pegar um perverso serial killer. E Veck já tinha dado provas de ser um cara de pavio curto no que se referia à proteção ou defesa das vítimas. Bem, não era simplesmente pavio curto e ponto final. O cara era brilhante, um pavio curto muito sexy – não que o fato de ser sexy fosse relevante. Nem um pouco.

– Em quanto tempo você vai chegar lá, detetive? – ela perguntou.

– Uns quinze minutos.

– Estou a pouco mais de um quilômetro de distância. Vejo você lá.

– Entendido.

Quando desligaram, ela colocou o telefone no bolso interno do casaco e endireitou-se no banco. A possibilidade de um membro do departamento ser o suspeito na investigação de um assassinato – e considerando o que Veck havia dito ao pessoal da Emergência, que a probabilidade de Kroner ter sobrevivido era mínima – criava todos os tipos de conflito de interesse. Na maioria das vezes, o pessoal dos Assuntos Internos lidava com corrupção, infrações processuais e investigações sobre a competência no desempenho de funções. Mas, numa situação como essa, os membros do próprio departamento de Veck estavam numa posição delicada, pois deveriam avaliar se um de seus colegas havia cometido um crime.

Caramba, dependendo de como a situação se encaminhasse, ela teria de chamar algum reforço externo para efetivar a investigação. Mas era muito cedo para isso. Porém, não era muito cedo para pensar sobre o pai de Veck.

Todos sabiam quem ele era, e ela tinha de admitir que, se esse laço consanguíneo não estivesse em jogo, não estaria tão alerta... com a preocupação constante de que aquilo fosse resultado de uma revanche ao estilo DelVecchio, por assim dizer.

Thomas pai foi um dos serial killers mais conhecidos do século XX. Oficialmente, fora acusado e condenado por “apenas” 28 assassinatos. Mas estava envolvido em mais trinta – e isso era apenas o que as autoridades de quatro estados sabiam. Havia uma grande probabilidade de existir dúzias de mulheres desaparecidas, cujos casos não puderam ser relacionados adequadamente a ele.

Então, não, se o pai de Veck tivesse sido um advogado, contador ou professor, ela não estaria tão preocupada. Mas o velho ditado “tal pai, tal filho” tinha implicações terríveis quando se tratava de serial killers e seus filhos.

Depois de passar por uma ponte estreita, o Monroe Motel & Suítes surgiu mais acima, à direita, e ela passou lentamente pela gerência e pelos quartos até chegar ao final do estacionamento, próximo à floresta. Ao sair com uma mochila cheia de pequenos compartimentos, o aroma doce do diesel da ambulância a fez espirrar com força e, na sequência, sentiu o odor forte dos ramos de pinheiro... bem como o cheiro pungente e inconfundível de sangue fresco.

Os paramédicos estacionaram o veículo com a traseira voltada para a floresta e, sob a luz dos faróis, os dois profissionais trabalhavam sobre o corpo ensanguentado de um homem branco. As roupas da vítima haviam sido cortadas – ou rasgadas – e sob elas havia uma mistura de incontáveis ferimentos.

Não há chance alguma de ele sobreviver, ela pensou. Então, viu Veck. O detetive de homicídios estava em pé ao lado da cena do crime, com braços cruzados e pés bem firmados ao chão. O rosto mostrava... absolutamente nada. Assim como De la Cruz havia dito. Meu Deus, o cara poderia muito bem estar na fila de uma lanchonete daquele jeito.

Quando andou sobre a superfície esponjosa de folhas caídas e terra macia, sentiu um súbito frio na barriga. Embora, sinceramente, não fosse apenas pela cena do crime. Também era por causa do homem que deveria investigar. Próximo ao local, notou uma moto preta estacionada nos limites da floresta. Era dele, já tinha visto na delegacia antes. De fato, já o vira pela janela de sua sala montando naquela coisa, dando o impulso com o pé para iniciar o motor e arrancando para longe dali. Ele usava capacete – na maioria das vezes.

Ela sabia que muitas mulheres na delegacia observavam a cena, pois havia muito que olhar. Aqueles ombros pesados e quadris bem definidos mostravam a constituição de um boxeador, mas seu rosto era mais o de um garotinho bonito que o de um pugilista – ou seria, se não fosse por seu olhar. Aqueles olhos azuis-escuros, inteligentes e frios faziam com que toda a estrutura óssea, estilo modelo famoso, tornasse-o bastante viril. E havia algo mais.

Parando em frente a ele, a primeira coisa que notou foi o sangue na gola de sua blusa preta. Respingos aqui e ali, não eram grandes manchas ou partes encharcadas. Nenhum arranhão no rosto, ou no pescoço.

As roupas e o chapéu estavam em boas condições – nada desalinhado, rasgado ou amassado. Havia dois círculos de lama sobre os joelhos de suas calças pretas. A arma estava guardada no coldre. Não estava claro se tinha outras armas.

Ele não disse nada. Nada de “eu não fiz isso” ou “deixe-me explicar...”. Seus olhos apenas se fixaram nela.

Deixando de lado as gentilezas, ela disse: – O sargento me ligou.

– Imaginei.

– Está ferido?

– Não.

– Se importa se eu fizer algumas perguntas?

– Vá em frente.

Deus, ele tinha tanto autocontrole.

– O que o trouxe aqui esta noite?

– Sabia que Kroner voltaria. Tinha que voltar. Com sua coleção apreendida, não restava mais nada do seu trabalho, portanto, este é um local sagrado para ele.

– E o que aconteceu depois que chegou?

– Esperei. Ele chegou... e, então... – Veck hesitou, as sobrancelhas estreitaram-se como se fossem dar um nó e uma das mãos se ergueu para esfregar a têmpora.

– Droga...

– Detetive?

– Não consigo me lembrar – olhou para os olhos de sua colega outra vez. – Não consigo me lembrar de nada depois que ele apareceu, juro por Deus. Em um minuto ele surgiu vindo da floresta, no outro...? Havia sangue por toda parte.

– Posso ver suas mãos, detetive? – quando ele as estendeu, estavam firmes como rocha... e sem marcas de corte ou arranhões. Nada de sangue na palma das mãos, na ponta dos dedos ou nas unhas.

– Avaliou a vítima ou interveio em seus ferimentos antes de ligar para o 190?

– Peguei minha jaqueta de couro e coloquei sobre o pescoço dele. Não ia ajudar, mas eu fiz mesmo assim.

– Está carregando mais alguma coisa além da sua arma de fogo?

– Minha faca. Está no meu...

Ela colocou a mão sobre o ombro dele para impedi-lo de continuar.

– Deixe-me dar uma olhada.

Assentindo, virou-se. Sob a luz da ambulância, a lâmina guardada no pequeno coldre em suas costas era bem o que ela esperava ver.

– Posso ficar com a arma, detetive?

– Fique à vontade.

Tirando um par de luvas de vinil, vestiu-as e pegou o punhal. Quando puxou o objeto, percebeu que o corpo dele não se moveu. Poderia muito bem ser esta a sensação de desarmar uma estátua.

A faca estava limpa e seca. Levantando-a até o nariz, ela inalou. Nenhum cheiro de adstringente que indicasse ter sido higienizada às pressas.

Quando ele olhou por cima do ombro, o movimento de seu corpo fez seus ombros parecerem enormes e, sem qualquer motivo, ela percebeu que estava frente a frente com o peitoral dele. Com seu quase um metro e setenta, ela tinha uma altura mediana, mas, ao lado dele, ela sentia como se tivesse sido reduzida a uma miniatura.

– Vou confiscar isso, importa-se? – Ela ia pegar a arma dele também, mas, considerando os ferimentos da vítima... a lâmina era o que realmente queria.

– Nem um pouco.

Quando pegou um saco plástico, disse: – O que acha que aconteceu aqui?

– Alguém partiu ele ao meio e acho que fui eu.

Aquilo deteve-a, mas não por achar que fosse, de fato, uma confissão – não esperava que alguém naquelas circunstâncias fosse tão honesto.

Naquele momento, um carro sem identificação percorreu o estacionamento com duas viaturas.

– Seu parceiro chegou – ela disse. – Mas o sargento quer que eu lidere a investigação para evitar qualquer possibilidade de conflito de interesses.

– Sem problema.

– Concordaria se eu retirasse amostras do material sob suas unhas?

– Sim.

Ela colocou a mochila à sua frente outra vez e tirou um canivete suíço e alguns pequenos sacos plásticos.

– Você é muito organizada, oficial – Veck disse.

– Não gosto de estar despreparada. Por favor, estenda sua mão direita.

Ela fez um trabalho rápido, começando com o dedo mindinho. As unhas foram cortadas, mas não como uma manicure faria, e havia muito pouco sob elas.

– Tem experiência em trabalhos de investigação? – Veck perguntou.

– Sim.

– Parece mesmo.

Quando ela terminou, ergueu o olhar... e imediatamente teve que se desviar de seus olhos azuis-escuros como a meia-noite para algum outro lugar próximo.

– Quer outro casaco, detetive? Está frio aqui.

– Estou bem.

Se estivesse com um ferimento sangrando no peito, aceitaria um maldito esparadrapo? – ela pensou – ou bancaria o cara durão até não haver mais plasma em suas veias?

Bancaria o durão, com certeza, concluiu.

– Quero que os paramédicos deem uma olhada em você.

– Estou bem.

– Isto é uma ordem, detetive. Parece que está com dor de cabeça.

Naquele momento, De la Cruz emergiu de seu carro e, enquanto se aproximava, seu rosto parecia triste e cansado. O fato era que tinha perdido um parceiro há alguns anos. Obviamente, não estava empolgado com a ideia de repetir a dose, mesmo que por um motivo diferente.

– Com licença – ela disse aos dois. – Vou chamar um dos paramédicos.

Contudo, quando ela aproximou-se, eles estavam transferindo Kroner para a maca e, logicamente, não poderiam dispensar nem um minuto.

– Quais são as chances dele?

– Poucas – um deles disse. – Mas faremos o nosso melhor, oficial.

– Sei que farão.

Os suportes da maca foram estendidos até que esta ficasse à altura da cintura deles e, pouco antes de deslizarem o objeto, ela tirou uma foto mental. Kroner parecia ter sido retirado dos destroços de um carro fumegante, com o rosto desfigurado, como se não estivesse usando o cinto de segurança e tivesse sido lançado contra a janela.

Reilly olhou para Veck outra vez.

Há muitas lacunas nesta cena – pensou. Especialmente se concluísse que havia sido ele o agressor. Mas não havia muitas possibilidades de fazer todo aquele estrago e limpar tudo tão rápido no meio da floresta. Além disso, parecia que não havia se envolvido em alguma briga ou coisa assim – e não existe um jeito de lavar arranhões e hematomas.

Quem tinha feito aquilo? Era o que a incomodava.

Como se pudesse sentir o olhar dela, Veck girou a cabeça, e, quando os olhares encontraram-se, tudo desapareceu: era como se estivesse a sós com ele... não a quinze metros de distância, mas a quinze centímetros.


Do nada, um calor brotou, borbulhando pelo corpo de Reilly, o tipo de coisa que, se ela estivesse em casa, diria a si mesma que era a proximidade do duto de ar quente. Mas ali ela justificava a onda de calor como consequência da adrenalina do estresse.

Maldito estresse. Nada de atração sexual.

Ela interrompeu aquela conexão quando atentou-se aos policiais recém-chegados. Ordenou: – Poderia passar a fita aqui?

– Entendido, oficial.

Certo, hora de voltar ao trabalho: aquele breve momento de atração totalmente inadequada não atrapalharia o que tinha a fazer. Era muito sensata. Sua integridade profissional não exigia nada menos que isso. Também não tinha a intenção de permanecer muito tempo na lista de adoradoras do cara. Ia cuidar dos seus negócios e deixar os olhares embevecidos para as outras.

Além disso, caras como Veck não gostavam de mulheres como ela e não havia problema algum nisso. Estava muito mais interessada no trabalho do que em mostrar as pernas, soltar os cabelos e competir nos jogos olímpicos da sedução. Brittany – na verdade, escrevia-se Britnae, mais conhecida como a gostosa da delegacia – poderia conquistá-lo e ficar com ele à vontade se quisesse.

Enquanto isso, Reilly verificaria se o filho teria revivido ou não os horrores típicos dos atos do pai.


CAPÍTULO 2

 

Em circunstâncias normais, Jim Heron considerava-se um mau perdedor. E isso com qualquer coisa que jogasse no dia a dia, fosse vídeogame, tênis ou pôquer. Não que ele perdesse tempo jogando tudo isso, mas, quando jogava, era do tipo que não deixaria o controle, a quadra ou a mesa antes de estar por cima da situação.

Mas nada disso tem importância.

Quando se tratava da guerra com o demônio Devina, ele ficava em chamas de tão furioso: havia perdido a última rodada.

Perdido, o contrário de ter vencido. Na batalha por aquelas sete almas, ele e aquela vadia estavam empatados em um a um. Claro, ainda havia mais cinco disputas, mas não era essa a direção que ele ou qualquer outra pessoa precisava seguir.

Derrotado? Aquele demônio tinha domínio não só sobre a terra mas também sobre os céus... o que significava que sua mãe e todas as boas almas que ali estavam, assim como ele e seus soldados, que eram anjos caídos, poderiam um dia contemplar uma eternidade de tormentos.

E havia descoberto há pouco tempo que aquilo não era apenas algo hipotético que motivava os mais religiosos. O inferno era um lugar de verdade, e o sofrimento que ali havia era bem real. De fato, muito do que tinha concluído ser apenas retórica tola de todos aqueles que se diziam santos mostrou-se ser correto.

Então, sim, as apostas eram altas e ele odiava perder. Especialmente porque não precisava ter sido daquele jeito. Estava furioso com o jogo. Com seu chefe, Nigel. Com as “regras”.

Era senso comum: quando se diz a um cara que ele deve influenciar alguns idiotas numa encruzilhada da vida, facilita se disser quem eles são. Afinal, não era um grande segredo: Nigel sabia. O inimigo, Devina, sabia. Jim? Nem tanto assim, pessoal. E, cortesia do buraco negro de informação, concentrou-se no homem errado na última rodada e estragou tudo.

E lá estava ele, empatado com a vadia e furioso num quarto de hotel em Caldwell, Nova York. E não era o único enfezado por ali. No quarto ao lado, do outro lado de um conjugado, duas vozes masculinas graves iam e vinham, num tom de extrema frustração.

Nenhuma novidade. Seus companheiros, Adrian Vogel e Eddie Blackhawk, não estavam contentes e era claro que falavam mal dele em sua ausência. Voltar constantemente a Caldie não era tanto a questão. O problema era a razão pela qual Jim arrastou-os até ali.

Seus olhos percorreram o edredom. Cachorro estava enrolado como uma bola ao lado dele, seu pelo desalinhado dava a impressão de o terem entupido de gel e colocado, em seguida, diante de um vento forte, mas isso não tinha acontecido. Ao seu lado, havia a impressão de um artigo de três semanas do Correio de Caldwell. O título era “Garota local desaparecida”, e, ao lado do texto, havia a foto de um grupo de amigos sorridentes, cabeças unidas e braços estendidos por trás dos ombros uns dos outros. A legenda sob a imagem identificava a que estava no meio como Cecília Barten.

Sua Sissy.

Bem, não era bem “sua”, mas pensava nela como sendo sua responsabilidade. A questão era: ao contrário de seus pais, familiares e amigos da comunidade, sabia onde ela estava e o que havia acontecido com ela. A moça não fazia parte da enorme lista de jovens que fogem de casa e também não havia sido atacada pelo serial killer que, de acordo com o site do jornal daquela manhã, estava à solta. Porém, havia sido profanada. Por Devina.

Sissy foi uma virgem sacrificada para proteger o espelho do demônio, seu bem mais sagrado. Jim encontrou seu corpo pendurado de cabeça para baixo em frente à coisa, no covil temporário do demônio, e foi forçado a deixá-la para trás. Porém, mais tarde, pôde vê-la no muro de almas de Devina... presa, sofrendo, perdida para sempre entre os condenados que mereciam aquele destino.

Cecília não pertencia ao inferno. Era uma garota inocente e foi usada pelo mal – e Jim iria libertá-la, nem que fosse a última coisa que fizesse. Portanto, sim, foi por isso que voltaram a Caldwell. E a razão pela qual Adrian e Eddie estavam furiosos.

Mas, sem ofensa... que se fodam.

Com cuidado, Jim pegou o artigo e passou o polegar calejado sobre a imagem granulada do cabelo de Sissy, longo e loiro. Quando piscou os olhos, viu os fios cobertos de sangue pendendo sobre o ralo de uma banheira de porcelana branca. Então, piscou outra vez, e viu-a como na outra noite, na prisão viscosa de Devina, apavorada, confusa, preocupada com seus pais.

Ele queria ter ido direto conversar com os Barten, porém as reclamações de Adrian e Eddie só serviam para gastar saliva. Não ia tirar os olhos da guerra, pois não poderia suportar perder para Devina enquanto tentava tirar Sissy daquele poço de almas.

A porta do quarto conjugado abriu-se, foi quando Adrian, mais conhecido como “O que se Faz de Surdo”, entrou sem bater. Bem no estilo dele. O anjo estava vestido de preto, como sempre, e os vários piercings em seu rosto não constituíam nem a metade do que ele deveria ter pelo resto do corpo.

– Vocês terminaram de discutir sobre mim? – Jim virou o artigo para baixo e cruzou os braços sobre o peito. – Ou fizeram apenas uma pequena pausa?

– Que tal levar isto a sério?

Jim levantou-se da cama e ficou frente a frente com seu soldado.

– Estou dando qualquer indício de que ando brincando por aí?

– Não nos arrastou de volta a este lugar para a guerra.

– Até parece que não.

Enquanto se enfrentavam, Adrian não se intimidou, mesmo que Jim fosse um antigo assassino das Operações Extraoficiais e soubesse derrotar um peso-pesado de muitas maneiras diferentes.

– Aquela garota não é seu alvo – Ad disse – e, caso não tenha notado, perdemos um. Distrações não são nossas amigas.

Jim deixou passar a referência a Sissy: propôs-se a nunca falar sobre ela. Seus amigos testemunharam quando ele encontrou o corpo e viram o que aquilo fez com ele – então, sabiam o suficiente. E não havia motivo algum para pronunciar palavras que descrevessem o que foi vê-la naquela parede. Ou mencionar o fato de que, enquanto estava sendo usado e abusado por Devina e seus subordinados na última rodada, a jovem, possivelmente, assistiu assustada a tudo o que aconteceu com ele.

Droga... as coisas que aconteceram naquela mesa de “trabalho” eram algo difícil de testemunhar até mesmo para um homem habituado a guerras. Mas uma inocente? Que já estava aterrorizada?

Por um lado, naquele momento de sua vida, as violações não o incomodavam mais. Tortura, de qualquer maneira que fosse aplicada, não era nada além de uma sobrecarga de sensações físicas. Mas, por outro lado, ninguém precisava ser testemunha ocular daquilo, muito menos sua garota. Não que ela fosse sua.

– Vou conversar com Nigel – Jim respondeu. – Então, já terminaram de me detonar? Ou querem desperdiçar um pouco mais do meu tempo?

– Por que já não está lá?

Bem, porque estava sentado naquela cama, olhando para o nada, apenas pensando para onde diabos Devina tinha levado o corpo de Sissy.

Só que Jim não era o tipo de idiota que dava o braço a torcer.

– Jim, sei que essa garota é importante para você. Mas vamos lá, cara, precisamos cuidar dos negócios.

Enquanto Ad falava, Jim olhou por sobre os ombros do cara. Eddie estava parado na porta que ligava os dois quartos, seu corpo enorme estava tenso, os olhos vermelhos eram graves, aquela longa trança preta descia sobre o ombro, cuja ponta quase alcançava a cintura de suas calças de couro.

Caramba. O jeito espalhafatoso de Adrian dava vontade de xingar. Ou socar... o que já havia acontecido antes. Mas a rotina equilibrada e pacífica de Eddie não era um alvo. Era um espelho que simplesmente refletia o comportamento idiota de quem o observava.

– Tenho tudo sob controle – disse Jim. – E vou ver Nigel agora mesmo.

O arcanjo Nigel estava em seus aposentos particulares quando a convocação aconteceu. De qualquer maneira, já era hora de sair do banho.

– Vamos ter companhia – disse a Colin quando se levantou da água perfumada.

– Vou ficar aqui. O banho está numa temperatura perfeita – com isso, Colin esticou-se e fez um arco preguiçoso com o corpo. Seu cabelo escuro estava molhado com a umidade e havia cachos nas pontas. Seu rosto majestoso e inteligente estava relaxado como sempre. Nada muito exagerado.

– Sabe por que ele está vindo?

– Mas é claro.

Atravessando o mármore branco e afastando a cortina safira e coral, Nigel saiu e teve todo o cuidado ao colocar de volta no lugar o tecido aveludado. Ninguém precisava saber sobre sua companhia na sala de banho – embora suspeitasse que Bertie e Byron fizessem alguma ideia disso. No entanto, eram bastante discretos para dizer qualquer coisa.

Puxando um roupão de seda, não se preocupou em vestir nada mais formal. Jim Heron não se importaria nem um pouco com seu vestuário e, já pensando em como seria a conversa, sabia que precisaria voltar para o banho.

Com um gesto de sua mão, Nigel convocou o anjo que se encontrava na Terra, reunindo o corpo físico de Heron e materializando-o em seus aposentos particulares. Sobre seu divã de seda, para ser mais exato. O salvador parecia ridículo sobre o móvel framboesa, os braços e pernas pesados pendiam nas laterais, sua camiseta preta e o jeans surrado eram uma ofensa a um tecido tão delicado.

Heron caiu em si numa fração de segundo e ficou em pé num salto, pronto, alerta... e não muito satisfeito.

– Vinho gelado? – Nigel perguntou ao se aproximar de uma cômoda francesa com gavetas, cuja tampa de mármore servia de bar. – Ou talvez uma dose de uísque?

– Quero saber quem é o próximo, Nigel.

– Isso é um “não” para as bebidas? – levou um tempo escolhendo entre as pequenas garrafas de vidro e, então, serviu-se lenta e tranquilamente.

Ele não era um idiota qualquer a quem se fazia exigências, e Heron precisava aprender um pouco de boas maneiras. Nigel virou-se e tomou um gole.

– Leve e refrescante.

– Dane-se o vinho.

Nigel deixou passar essa e apenas encarou o salvador.

Quando o Criador apareceu diante de Nigel e Devina explicando que haveria uma competição final, os dois lados concordaram que Heron estaria sozinho no campo de batalha com as sete almas escolhidas. Cada adversário, naturalmente, queria seus valores representados, e o resultado foi que aquele forte anjo com espírito guerreiro, ali, em pé diante de Nigel, tinha o bem e o mal equilibrados dentro dele.

Contudo, Nigel tinha convicção de que o fato da mãe assassinada de Jim estar dentro dos muros da mansão seria crucial. Momentos como aquele faziam-no questionar o próprio fundamento daquele jogo decisivo. O anjo parecia pronto para matar.

– Tem que me dizer quem é.

– Como disse antes, não posso.

– Eu perdi, idiota. E ela trapaceou.

– Tenho plena consciência dos limites que ela ultrapassou e acho que se lembra do meu conselho: deixe-a fazer o que quiser. Haverá represálias.

– Quando?

– Quando acontecer.

Heron não gostou daquela resposta e começou a andar pelo local ornamentado com suas cortinas de cetim, tapetes orientais e a cama baixa... ao redor da qual – Nigel percebeu tarde demais – dois conjuntos de roupas estavam dispostos.

Nigel limpou a garganta.

– Não posso correr o risco de que haja uma reviravolta e tudo se volte contra nós. Já me rebaixei demais ao nível de Devina permitindo que Adrian e Edward o ajudassem. Se eu lhe ajudar mais, posso perder não apenas uma rodada, mas a competição inteira. E isso é inaceitável.

– Porém, você sabe quem é a alma. E Devina também.

– Sim.

– E isso não lhe parece uma grande injustiça? Ela irá atrás dessa pessoa... Provavelmente, já foi.

– Pelas regras estabelecidas e acordadas, ela não tem permissão de interagir com as almas. Ela, assim como eu, deve apenas influenciar você na maneira como vai influenciá-los. Contato direto não é permitido.

– Então, por que você não deteve o que aconteceu?

– Isso não é da minha alçada.

– Que saco, Nigel, estabeleça...

– Posso assegurar uma coisa: o saco dele está bem.

Com a interrupção seca, tanto Nigel como o salvador viraram-se para as cortinas que levavam à sala de banho. Colin não se preocupou em vestir um roupão, estava em pé diante deles nu e sem qualquer ar de desculpa.

E, agora que tinha a atenção de todos, o arcanjo acrescentou: – Também vou pedir para que controle o linguajar, companheiro.

As sobrancelhas de Heron ergueram-se rápido e houve um momento em que parecia estar assistindo a um jogo de tênis, alternando o olhar de um para o outro.

Nigel amaldiçoou baixinho. Sua privacidade e decoro tinham ido por água abaixo.

– Vinho gelado, Colin? – disse rispidamente. – E talvez um roupão?

– Estou bem.

– É verdade. Mas sua falta de modéstia não lhe protege muito bem do ar frio desse ambiente. E eu tenho um convidado.

Sua única resposta foi um grunhido. Que era a maneira de Colin proclamar que não havia razão para dar uma de velho azedo.

Adorável.

Nigel virou-se para o salvador.

– Sinto muito em não poder lhe conceder o que me pede. Pode acreditar.

– Você me ajudou com o primeiro.

– Houve permissão para isso.

– E veja o que aconteceu com o número dois.

Nigel escondeu sua preocupação atrás de um gole em seu copo.

– Sua paixão é louvável. E posso lhe dizer que seu retorno a Caldwell é bem útil.

– Obrigado pela dica. Há dois milhões de pessoas naquela maldita cidade. Isso não reduz muito as possibilidades.

– Nada é por acaso e não existem coincidências, Jim. Na verdade, há outra pessoa que procura o mesmo que você e, quando seus diferentes propósitos se unirem, encontrará a próxima alma.

– Sem ofensa, mas isso não significa merda nenhuma – Heron olhou para Colin. – E não vou pedir desculpas à fiscalização por isso. Sinto muito.

Colin cruzou os braços sobre o peito nu: – Faça como quiser, rapaz. E eu farei o mesmo.

Leia-se: talvez eu o esgane agora. Talvez depois.

A última coisa que Nigel precisava era de uma briga em seus aposentos, isso atrairia os outros arcanjos, assim como Tarquil, num piscar de olhos. Não era bem a interrupção que procurava.

– Colin – disse Nigel –, vá tomar banho.

– Já fiz isso, obrigado.

– Isso é uma questão de ponto de vista – Nigel murmurou antes de se dirigir a Jim. – Vá em frente e tenha fé que você estará no lugar certo e fará o melhor possível.

– Não acredito em destino, Nigel. É como pegar uma arma descarregada e achar que vai atirar em alguma coisa. Você mesmo tem que carregá-la com as balas.

– Estou lhe dizendo que há coisas maiores nesse trabalho do que seus esforços.

– Certo, ótimo, então coloque tudo num cartão de Natal. Mas não venha com besteiras pra cima de mim.

Encarando o rosto duro do salvador, Nigel teve um lampejo de medo. Com aquela atitude, havia mais uma coisa que jogava contra os anjos. Mas o que ele poderia fazer? Heron não tinha paciência ou fé, mas isso não mudava em nada as regras do jogo ou as chances de que o Criador corrigisse as liberdades que Devina havia tomado.

Ao menos esse último fato contribuía a favor deles.

– Acredito que já terminamos – Nigel disse. – Nada de bom virá a nosso favor se continuarmos a conversa.

Houve um momento obscuro, até mesmo maligno, durante o qual Heron olhou para ele com uma espécie de fúria.

– Tudo bem – disse o salvador. – Mas eu não desisto tão fácil.

– E eu sou a montanha que não será movida.

– Entendido.

Num piscar de olhos, o anjo se foi. E, quando o silêncio dominou o local, Nigel percebeu que não tinha mandado Heron embora. Ele tinha feito aquilo sozinho.

Estava ficando mais forte, não?

– Quer que eu desça e o vigie? – Colin disse.

– Quando concordei que ele seria o escolhido, pensei que haveria rédeas suficientes para contê-lo. Acreditava mesmo nisso.

– Então, repito, eu devo sair para vigiá-lo?

Nigel voltou-se para o seu querido amigo, que era muito mais que um colega e confidente.

– Essa é a tarefa de Adrian e Edward.

– Conforme estipulado. Mas fico pensando até onde essa competência, que aumenta cada vez mais, vai levá-lo. Acho que isso não nos guia por um bom caminho.

Nigel tomou outro gole de seu vinho e observou o espaço vazio que Heron tinha acabado de deixar. Apesar de continuar em silêncio, tinha que concordar. A questão era: o que fazer, o que fazer...


CAPÍTULO 3

 

Lá embaixo, na floresta fria próxima ao Monroe Hotel & Suítes, Veck permanecia parado sob o reflexo dos faróis da ambulância, com seu colega De la Cruz à direita e seu parceiro, Bails, à esquerda. Iluminado como estava, sentiu-se num palco quando Kroner surgiu dentre as árvores sobre uma maca.

Só que havia apenas uma pessoa olhando para ele. Sophia Reilly, a oficial de Assuntos Internos. Ela estava em pé próxima a ele e, quando os olhos dos dois encontraram-se, desejou que as circunstâncias fossem diferentes – de novo. O primeiro encontro com Sophia Reilly tinha sido quando ele agrediu aquele paparazzo. Mas a situação em que estavam agora fazia aquela agressão parecer uma caminhada na praia.

A questão era: gostou dela no momento em que apertaram as mãos, e essa primeira impressão foi reforçada naquela noite: o detetive dentro dele tinha aprovado totalmente a atuação profissional dela, bem como a maneira como o olhou. Se ele estivesse mentindo – e não estava –, ela teria percebido. Mas precisavam parar de se encontrar daquela maneira. Literalmente.

Sobre o asfalto do estacionamento houve um barulho alto quando os médicos fecharam as portas duplas da ambulância e, em seguida, o veículo afastou-se, levando a iluminação consigo. Quando Reilly voltou-se para observar a partida, já estava no escuro... até que acendeu uma lanterna.

Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, De la Cruz falou baixinho: – Quer um advogado?

– Por que ele precisaria de um advogado? – Bails exclamou.

Veck balançou a cabeça para seu amigo. Entendia a lealdade do cara, mas ele próprio não tinha tanta fé em si mesmo naquele momento.

– É uma boa pergunta.

– Então, vai querer? – De la Cruz sussurrou.

A oficial Reilly circulou a poça de sangue, transitou entre os troncos e galhos... Pequenos gravetos estalavam sob seus pés, aquilo soava alto nos ouvidos de Veck. Ela parou na frente dele.

– Terei de continuar com as perguntas amanhã, mas pode ir para casa agora.

Veck estreitou os olhos.

– Você vai me liberar?

– Nunca esteve sob minha custódia, detetive.

– Isto é tudo?

– Não, não. Mas não tem mais nada o que fazer aqui esta noite.

Veck balançou a cabeça.

– Ouça, oficial, isto não pode...

– A perícia criminal está a caminho. Não quero você aqui quando chegarem à cena do crime, pois isso pode comprometer o trabalho deles. Está suficientemente claro para você?

Ah, sim. E ele devia ter adivinhado. Estava escuro entre as árvores. Ele poderia manipular evidências com facilidade sem que ninguém soubesse, e ela queria fazê-lo sair dali de uma maneira discreta e educada.

Ela é esperta – pensou. E também era bonita: sob o brilho da lanterna, ela estava deslumbrante, do jeito que só uma mulher natural e saudável poderia ser – nada de maquiagem pesada para entupir seus poros ou pesar suas pálpebras, nenhum brilho gorduroso e escorregadio sobre seus lábios. Era totalmente verdadeira. O cabelo vermelho-escuro e pesado e o olhar de um verde profundo também não poluíam o visual. Além disso, havia a postura “nada de gracinhas” dela...

– Muito bem, oficial – ele murmurou.

– Por favor, esteja na sala do sargento amanhã, às 8h30.

– Você é quem manda.

Quando Bails murmurou alguma coisa em voz baixa, Veck rezou para que o bastardo guardasse suas opiniões para si mesmo. Reilly só estava fazendo seu trabalho – e era bastante profissional. O mínimo que poderiam fazer era retribuir o respeito.

Antes que seu amigo falasse algo, Veck bateu no ombro de Bails e assentiu para De la Cruz. Quando começou a andar, a voz séria e baixa de Reilly irrompeu no silêncio da noite: – Detetive.

Ele olhou sobre o ombro.

– Sim, oficial.

– Terei de levar sua arma. E seu distintivo. E o coldre daquela faca.

Certo. Mas é claro.

– O distintivo está na jaqueta de couro bem ali no chão. Quer fazer as honras com a minha nove milímetros e o cinto?

– Sim, por favor. E levarei seu celular também, se incomoda?

Quando ela aproximou-se, Veck sentiu seu perfume. Nada de frutas ou florais ou, meu Deus, aquela merda de baunilha. Mas também nada que pudesse classificar. Xampu talvez? Será que ela recebeu a ligação saindo do banho?

Que bela imagem... Espere um minuto. Estava mesmo fantasiando com sua colega de trabalho... a menos de dois metros da cena de um crime? Nossa. Sim, era isso mesmo o que estava fazendo.

Reilly colocou a lanterna na boca e, então, as mãos revestidas por luvas azuis brilhantes estenderam-se. Quando ele ergueu os braços para facilitar que tocasse sua cintura, registrou uma pressão sutil em seus quadris, o tipo de coisa que sentiria se ela estivesse tirando as calças dele...

O impulso elétrico que surgiu em seu pênis foi uma surpresa... E, Deus, ficou feliz por aquela luz estar sobre seu peito, e não mais ao sul. Cara, aquilo era tão errado... e contrário à maneira que agia. Nunca paquerava colegas de trabalho, fossem assistentes administrativas, colegas detetives... ou oficiais do Departamento de Assuntos Internos. Problemas demais quando chegava ao fim inevitável...

Santo Deus, onde estava com a cabeça?

Parece que não na realidade.

Era quase como se a magnitude do que havia acontecido naquele local cheio de folhas manchadas de vermelho fosse tão grande que seu cérebro buscasse refúgio em qualquer outro lugar para além do elefante gigante ensanguentado na floresta. Talvez estivesse simplesmente louco. E ponto final.

– Obrigada, detetive – Reilly disse ao afastar-se com a arma e o coldre de couro. – Seu celular?

Ele entregou-o.

– Quer minha carteira?

– Sim, mas pode ficar com sua carteira de motorista.

Quando o trabalho de confisco terminou, ela adicionou: – Além disso, gostaria que você tirasse suas roupas em casa para ensacá-las e levá-las a mim amanhã.

– Sem problema. E sabe onde me encontrar – ele disse com a voz rouca.

– Sim, sei.

Quando estavam prontos para partir, percebeu que não havia nenhum sinal de um queixo abaixado ou um olhar esquivo aparentando timidez. Nada de mexer nos cabelos. Nada de rebolar. Algo que, tudo bem, seria ridículo naquelas circunstâncias... Mas ele teve a sensação de que, se estivesse numa boate, ao lado do bar, ela também não agiria de outra maneira. Não era seu estilo.

Droga, ela simplesmente ficava mais atraente a cada minuto. Se aquilo continuasse, pediria Sophia Reilly em casamento na próxima semana.

Até parece...

Com isso, Veck virou-se pela segunda vez. E ficou surpreso ao ouvi-la dizer: – Tem certeza de que não quer um casaco, detetive? Tenho uma jaqueta extra no meu carro, pois sentirá frio na moto.

– Ficarei bem.

Por alguma razão, ele não queria olhar para trás. Provavelmente por causa de todo aquele grande público que eram os olhos de De la Cruz e Bails. Sim. Era isso.

Na moto, jogou a perna sobre o assento e pegou o capacete. Não o usou para chegar até ali, mas precisava conservar alguma parte do corpo aquecida. Quando deu a partida, esperava que De la Cruz se aproximasse dele e voltasse a comentar sobre o advogado. Em vez disso, o venerável detetive ficou onde estava e falou com a agente Reilly.


Bails foi quem se aproximou. O cara estava com roupas de academia, cabelo curto espetado, os olhos eram um pouco agressivos... sem dúvida porque não gostava que Reilly tivesse assumido o caso.

– Tem certeza de que está bem para ir para casa?

– Sim.

– Quer que eu lhe siga?

– Não – provavelmente o cara iria de qualquer maneira. Ele era assim.

– Sei que você não fez isso.

Quando Veck olhou para o parceiro, ficou tentado a desabafar sobre tudo: seus dois lados, a divisão que sentia há anos, o medo de que sua maior preocupação finalmente tivesse acontecido. Droga, sabia que podia confiar no cara. Ele e Bails fizeram academia de polícia juntos anos atrás e, embora tivessem seguido por caminhos diferentes, mantiveram contato e proximidade – até Bails convocá-lo para ir a Manhattan unir-se à equipe do Departamento de Homicídios de Caldwell. Duas semanas. Estava ali há apenas duas malditas semanas.

Assim que abriu a boca, uma van estacionou atrás dele junto com outros carros do Departamento de Polícia, anunciando a chegada da perícia.

Veck negou com a cabeça.

– Obrigado, cara. Vejo você amanhã.

Deu um solavanco com o corpo, ligou o motor e, enquanto aquecia a moto, olhou de volta para a cena. Reilly estava ajoelhada perto da jaqueta dele, revistando os bolsos. Assim como faria com sua carteira.

Oh, droga. Encontraria...

– Ligue se precisar de mim para alguma coisa, cara.

– Sim. Ligarei.

Veck acenou para Bails e partiu devagar com a moto, pensando ser desnecessário Reilly ver as duas camisinhas que sempre mantinha na carteira atrás dos cartões de crédito. Engraçado, ser um vadio nunca o incomodou antes. Agora, desejava ter dado um nó no pênis anos atrás.

Quando entrou na estrada propriamente dita, acelerou a moto e seguiu rugindo. Quando disparou pelas curvas da estrada 149, inclinava-se nelas, abaixando-se sobre os guidões, tornando-se apenas mais uma peça do projeto aerodinâmico de sua BMW. Com a alta velocidade, as curvas tornaram-se apenas pequenos movimentos para a esquerda e para a direita, enquanto ele e a moto desafiavam as leis da física. Bater em qualquer coisa naquela velocidade? Teria sorte se restasse algum pedaço grande o suficiente para enterrar.

Mais rápido. Mais rápido. Mais...

Infelizmente, ou felizmente, não tinha certeza, o fim da linha para ele não foi colidir em árvores, evitando um acidente com um carro ou um cervo.

Foi um outlet da Ralph Lauren.

Ou, especificamente, um semáforo próximo ao local.

Sair daquela sensação de velocidade da qual tanto gostava deixou-o num estado de desorientação estranho, e a única razão de ter parado no sinal vermelho foi que havia alguns carros na frente dele. Foi forçado a obedecer às leis de trânsito ou andar sobre os carros.

O maldito sinal levou uma eternidade para abrir, e a fila em que estava moveu-se a passo de lesma quando finalmente ficou verde. Ele teria atingido mais de cem quilômetros por hora na estrada, o que não ajudaria em nada. Não que estivesse fugindo de alguma coisa. Claro que não.

Passou por lojas como Nike, Van Heusen e Brooks Brothers. Sentiu-se tão vazio quanto os estacionamentos, e havia uma parte dele que desejava continuar... Desejava passar por aquela parte mais afastada da cidade, vagar pelo labirinto suburbano de Caldie, percorrer a área de arranha-céus e atravessar uma ponte que só Deus sabe onde daria.

O problema era que, aonde quer que fosse... lá estava ele: a mudança geográfica não mudaria se rosto no espelho. Ou aquela parte de si mesmo que ele nunca entendeu, mas também nunca questionou. Ou a porra que teria acontecido naquela noite.

Assassinara aquele bastardo doente. Não havia outra explicação. E não sabia o que Reilly tinha na cabeça ao deixá-lo ir. Talvez ele simplesmente precisasse confessar... Sim, mas o quê? Que tinha ido até lá com a intenção de matar e, em seguida...

A dor de cabeça que acometeu seu lóbulo frontal era o tipo de coisa que ele não suportaria. Nesses casos, tudo o que se faz é gemer e fechar os olhos... Mas isso não é a melhor opção quando se está em cima de uma moto que, praticamente, resume-se num motor com um assento acolchoado.

Forçando a concentração na estrada e em nada mais, sentiu-se aliviado quando a pancada no crânio suavizou e pôde seguir caminho.

A casa em que morava ficava num bairro cheio de professores, enfermeiras e representantes de vendas. Havia muitas crianças, e a conservação dos gramados nos quintais era feita por amadores – o que significava que, no verão, era muito fácil encontrar um gramado irregular, mas, ao menos, eram aparados regularmente.

Veck era um caso isolado ali: não tinha esposa, filhos e nunca contrataria um garoto para aparar a grama. Felizmente, tinha a impressão de que os vizinhos dos dois lados de seu quintal – praticamente um cartão-postal – eram do tipo que invadiam alegremente o território alheio com suas ferramentas.

Sua casa de dois andares era tão luxuosa e única quanto uma moeda de um centavo dos anos 1970. Portanto, como era de se esperar, foi nessa época que a casa viu sua última nova camada de papel de parede.

Estacionando na garagem, desmontou da moto e encaixou o capacete no guidão. Não havia muitos crimes naquela área... então, seus vizinhos aparadores de gramado faziam um ótimo trabalho, em vários sentidos.

Entrou pela porta lateral, passou pelo armário de casacos e caminhou até a cozinha. Não havia muita comida por ali: só algumas caixas vazias de pizza sobre o balcão e algumas embalagens da Starbucks amontoadas sobre a pia. Tinha envelopes meio abertos e relatórios espalhados sobre a mesa. O laptop estava fechado junto a cupons de desconto que ele nunca usaria. Também havia ali uma conta de TV a cabo que ainda não estava vencida, mas, provavelmente, acabaria vencendo, pois era péssimo em pagar as coisas em dia. Sempre ocupado demais para fazer um cheque ou acessar a internet para pagar.

Deus, a única diferença entre aquele lugar e sua sala no centro da cidade era o fato de ter uma cama king-size no andar de cima. Pensando nisso, lembrou-se de que a oficial Reilly queria que ele se despisse, não queria?

Pegou um saco de lixo debaixo da pia da cozinha e subiu as escadas pensando em contratar uma faxineira para limpar a casa uma vez por semana, assim não teria mais que encontrar teias de aranha em todos os cantos e montinhos de poeira que se multiplicavam embaixo do sofá. Mas aquilo não era um lar e nunca seria. Desinfetante e outros produtos de limpeza quatro vezes por mês não deixariam o local aconchegante. Porém, se levasse uma garota um dia até lá, ela teria um local decente para se vestir.

Seu quarto ficava na parte dianteira da casa, e tudo que havia nele era uma cama grande e uma escrivaninha. Suas botas, meias e calças foram tiradas rapidamente. Com a blusa foi a mesma coisa. Quando tirou sua cueca boxer preta, recusou-se a lembrar da oficial Reilly revistando-o. Simplesmente não seguiria por aí.

Dirigindo-se para o banho, ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, parou em frente ao espelho sobre a pia. Não havia reflexo para se preocupar... Tinha coberto o espelho com uma toalha de praia no dia em que se mudou. Não era fã de espelhos.

Ergueu as mãos e estendeu-as com as palmas para baixo. Então virou-as. Em seguida, olhou embaixo das unhas. Parecia que seu corpo, assim como sua mente, estava vazio de pistas. Embora aceitasse que a ausência de ferimentos, sangue ou coágulos em si mesmo fosse um indício... e, sem dúvida, a boa oficial Reilly também tinha notado.

Cara, era a segunda vez na vida em que se encontrava numa situação dessas. Na primeira... Não havia razão para pensar no assassinato de sua mãe. Não numa noite como aquela. Entrando no chuveiro, fechou os olhos e deixou a ducha cair sobre sua cabeça, ombros e rosto. Sabonete. Enxaguar. Xampu. Enxaguar.

Estava parado, envolvido no vapor, quando sentiu uma corrente: como se alguém tivesse aberto a janela do banheiro. O sopro de ar movimentou a parte de cima da cortina e acariciou sua pele. Sentiu arrepios quando percebeu que passava também pelo seu peito e descia por suas pernas e pelas costas. Contudo, a janela não fora aberta.

Foi por isso que removeu o boxe de vidro do banheiro e cobriu aquele espelho embutido sobre a pia. Foram as únicas coisas que mudou na casa, sendo que a melhoria era para manter a sanidade. Já fazia anos que se barbeava sem olhar no espelho.

– Fique longe de mim – ele disse, fechando os olhos e mantendo-os assim.

A corrente de ar enroscou-se nas pernas de Veck, como se mãos estivessem se movendo sobre sua pele, subindo cada vez mais, acariciando seu sexo antes de atingir o abdômen e o peitoral, até chegar ao seu pescoço... seu rosto... Mãos frias passaram pelo seu cabelo...

– Me deixe em paz! – estendeu o braço e empurrou a cortina. Quando o ar quente dissipou-se, tentou concentrar-se em si mesmo, expulsar o intruso, matar a conexão. Tropeçando no balcão, envolveu o corpo com os braços e inclinou-se, respirando com força e odiando a si mesmo, odiando aquela noite, odiando sua vida.

Sabia muito bem que era possível, se você tivesse um distúrbio de personalidade múltipla, que uma parte poderia se libertar e agir de maneira independente. Aqueles que sofrem disso podem ignorar completamente as atitudes tomadas por seu corpo, mesmo quando envolvem atos de violência...

Quando a dor de cabeça começou a latejar em suas têmporas outra vez, Veck amaldiçoou e conseguiu se enxugar. Em seguida, pegou a camisa de flanela e as calças de moletom do Departamento de Polícia de Nova York com que tinha dormido na noite anterior e deixado atrás do vaso sanitário. Estava prestes a descer as escadas quando uma rápida olhada pela janela imobilizou-o.

Havia um veículo estacionado do outro lado da rua a umas duas casas de distância. Conhecia cada veículo da vizinhança, todas as caminhonetes, vans, suvs, sedãs, carros híbridos... Aquele carro escuro, de um modelo recém-lançado, não estava na lista.

Contudo, era exatamente o tipo de carro sem identificação que o Departamento de Polícia de Caldwell usava. Reilly fora vigiá-lo. Muito bem... exatamente o que ele faria no lugar dela.

Finalmente, viu que era mesmo ela, em carne e osso.

Descendo as escadas, hesitou na frente da porta, considerando sair na rua, mesmo descalço, porque talvez ela, ou quem quer que fosse, tivesse respostas sobre a cena Conteve aquela brilhante ideia e foi até a cozinha. Tinha de haver algo para comer no armário. Tinha de ter. Ao abrir e procurar por um momento, só encontrou um monte de vazio entre as prateleiras. Qual supermercado de fadas ele achava que existia? Pois só assim entregariam comida: como mágica.

A fome era tanta que poderia jogar um pouco de ketchup numa caixa de pizza e mastigá-la. Seria bom para ele comer um pouco de fibra.

Delícia.

A duas casas da residência do detetive DelVecchio, Reilly estava sentada atrás do volante, tampando parcialmente a própria visão.

– Por tudo que é mais sagrado... – esfregou os olhos. – Não é adepto a cortinas?

Enquanto rezava para que a imagem espetacular de seu colega nu desaparecesse de suas retinas, repensou seriamente a decisão de vigiá-lo sozinha. Estava exausta, isso era fato... Ou estava, antes de, simplesmente, ter visto tudo o que Veck tinha para oferecer. Desconsidere o simplesmente.

O bom disso era que agora estava realmente alerta, muito obrigada... Era o mesmo que ter umedecido dois dedos e os ter colocado na tomada: a visão foi suficiente para dar todo o ânimo que tinha aos treze anos.

Murmurando para si mesma, deixou cair as mãos sobre o colo outra vez. E, meu Deus, enquanto olhava para o painel do carro, tudo o que via era... era a cena que tinha visto antes. Sim, uau, em alguns homens, estar sem roupas era muito mais do que estar nu.

E pensar que ela quase perdera o show. Estacionou o carro e assumiu sua posição quando as luzes do andar de cima acenderam-se e pôde, assim, ter uma boa visão do que acontecia no quarto. Inclinando-se no banco, não se deu conta de que a posição expunha os dois... Não se ateve a nada além do que parecia ser uma lâmpada no teto do que deveria ser a suíte principal.

Geralmente, a decoração de um apartamento de solteiro tendia a ser muito cheia de detalhes ou minimalista. Era óbvio que Veck seguia a linha minimalista.

De repente, ela não pensava mais na decoração, pois seu suspeito tinha entrado no banheiro e ligado o interruptor.

Olááá, garotão.

E o superlativo englobava várias coisas.

– Pare de pensar nisso... pare de pensar...

Fechar os olhos não ajudou: se já tinha notado como ele ficava bem dentro das roupas que vestia, agora sabia exatamente o porquê. Era muito musculoso e, considerando que não tinha qualquer pelo na parte superior do corpo, nada ocultava aquele peitoral, o abdômen e as saliências esculpidas que desciam até os quadris.

Aliás, por falar em depilação, tudo o que tinha era uma linha escura que percorria a distância entre o umbigo e o...

Bem, talvez tamanho seja importante – Reilly pensou.

– Oh, pelo amor de Deus.

Na tentativa de manter seu cérebro focado em alguma coisa, qualquer coisa mais apropriada, inclinou-se para frente e olhou pela janela oposta. Poderia dizer que a casa da frente tinha cortinas capazes de manter a privacidade. Muito bom, principalmente se concluísse que ele desfilava daquela maneira todas as noites. Talvez o marido tivesse instalado tudo aquilo para que sua mulher não começasse a ter desmaios.

Preparando-se, voltou a olhar a casa de Veck. As luzes tinham se apagado no andar de cima, e ela esperava que agora ele estivesse no primeiro andar, vestido... e permanecesse assim.

Deus, que noite.

Ainda esperava obter alguma prova concreta do que havia acontecido na cena do crime, mas não parava de pensar nos ferimentos de Kroner. Havia coiotes naquelas florestas. Ursos. Gatos selvagens. Havia grandes chances de o cara ter andado por ali com cheiro de sangue seco nas roupas e alguma coisa de quatro patas tê-lo visto como um Mc Lanche Feliz. Na tentativa de intervir, Veck foi jogado de lado. Afinal, estava esfregando a testa como se esta doesse muito, e Deus é testemunha de que traumatismos cranianos são conhecidos por causarem perda de memória em curto prazo. A falta de provas físicas nele apoiava a teoria, com certeza.

E, mesmo assim... Deus, o pai dele. Era impossível não relacionálos, ao menos um pouco. Como todo aluno de especialização em justiça criminal, ela estudou o caso de Thomas DelVecchio pai como objeto de disciplina... mas também passou tempo considerável refletindo sobre ele em suas aulas de desvios psicológicos. O pai de Veck era considerado um serial killer clássico: inteligente, astuto, comprometido com seu “ofício”, totalmente sem remorsos. E, ainda assim, ao assistir vídeos de entrevistas dele com a polícia, deparou-se com um homem bonito, atraente e agradável. Sem qualquer ligação aparente com um monstro.

Contudo, como muitos psicopatas, cultivava uma imagem e sustentava-a com cuidado. Foi muito bem-sucedido como comerciante de antiguidades. Porém, estabelecer-se naquele mundo arrogante, cheio de dinheiro e privilégios, foi apenas um refúgio inventado por ele. Tinha vindo do nada, mas possuía talento para encantar pessoas ricas – bem como para viajar a diversas partes do mundo e voltar com artefatos antigos e estátuas extremamente bem recebidas no mercado. Seus negócios nunca tinham passado por qualquer investigação até os assassinatos virem à tona, e, até hoje, ninguém fazia ideia de onde encontrava tudo o que tinha... Era como se tivesse um tesouro guardado em algum lugar do Oriente Médio. Com certeza não ajudou as autoridades a entender isso, mas o que poderiam fazer com ele agora? Já estava no corredor da morte. Logicamente, não por muito tempo.

Como teria sido a mãe de Veck...?

A batida na janela do carro, ao lado de sua cabeça, foi como um tiro, e Reilly empunhou sua arma em direção ao som menos de um segundo depois.

Veck estava parado na rua ao lado do carro, mãos para cima, o cabelo molhado brilhava sob a luz do poste.

Reilly baixou a arma e abriu a janela com uma maldição.

– Reflexos rápidos, oficial – ele murmurou.

– Quer levar um tiro, detetive?

– Eu disse seu nome. Duas vezes. Mas estava mergulhada em pensamentos.

Graças ao que tinha visto naquele banheiro, a camiseta de flanela e a calça de moletom pareciam muito fáceis de serem removidas, eram coisas que não resistiriam a um puxão. Mas, vamos lá, como se já não conhecesse cada brinquedo daquele parque de diversões.

– Já quer levar minhas roupas? – ele disse ao erguer um saco de lixo.

– Sim, obrigada – ela aceitou o pacote pesado pela janela e apoiou as coisas no chão do carro. – Os sapatos também?

Ao assentir, disse: – Quer que lhe traga um pouco de café? Não tenho muita coisa na minha cozinha, mas acho que consigo encontrar uma caneca limpa e café solúvel.

– Obrigada. Estou bem.

Houve uma pausa.

– Há alguma razão para não olhar nos meus olhos, oficial?

Acabei de vê-lo nu, detetive.

– Nenhuma – ela o encarou furtivamente.

– Deveria entrar. Está frio.

– O frio não me incomoda. Ficará aqui a noite inteira?

– Depende.

– Depende do clima, certo?

– Sim.

Ele assentiu e, então, olhou ao redor, casualmente, como se fossem vizinhos conversando sobre o tempo. Tão calmo. Tão confiante. Assim como o pai.

– Posso ser sincero com você? – ele disse de repente.

– É bom que seja, detetive.

– Ainda estou surpreso por me liberar.

Reilly passou as mãos sobre o volante.

– Posso ser sincera com você?

– Sim.

– Te liberei porque não acredito que tenha feito aquilo.

– Eu estava na cena do crime e havia sangue em mim.

– Você chamou a emergência e não fugiu. Aquele tipo de assassinato é muito difícil de ser cometido.

– Talvez eu tenha limpado tudo.

– Até onde vi, não havia qualquer chuveiro entre aquelas árvores.

Não. Pense. Nele. Nu.

Quando ele começou a balançar a cabeça como se fosse argumentar, Reilly interrompeu-o.

– Por que está tentando me convencer de que estou errada?

Aquilo calou-o. Ao menos por um momento. Então, disse em voz baixa: – Vai se sentir mais segura me seguindo?

– Por que não?

Pela primeira vez, alguma emoção percorreu a expressão fria de Veck, e o coração dela parou: havia medo em seus olhos, como se não confiasse em si mesmo.

– Veck – ela disse em tom suave –, se existir alguma coisa que eu não saiba...

Ele cruzou os braços sobre o grande peitoral e seu peso oscilava sobre os quadris, como se estivesse pensando. Em seguida, sussurrou e começou a esfregar a testa.

– Não sei de nada – murmurou. – Ouça, faça um favor a nós dois, oficial. Mantenha aquela arma por perto.

Não olhou para trás ao se virar e atravessar a rua.

Reilly percebeu que ele não usava qualquer calçado. Ao erguer o vidro da janela, observou Veck entrar na casa e fechar a porta. Em seguida, as luzes da casa apagaram-se, exceto uma no corredor do segundo andar.

Recompondo-se, ela acomodou-se sobre o banco e olhou para todas as janelas. Pouco depois, uma grande sombra entrou na sala de estar – ou melhor, parecia se arrastar até um móvel? Seria um sofá? Então, Veck sentou-se e sua cabeça desapareceu como se estivesse estendido sobre o móvel.

Era quase como se estivessem dormindo lado a lado. Bem, aquilo que os separava eram apenas as paredes da casa, o gramado mal aparado, a calçada, o asfalto e a estrutura que envolvia o carro.

As pálpebras de Reilly começaram a cair, mas era porque tinha abaixado a cabeça. Não estava cansada e nem preocupada em cair no sono. Estava bem alerta no interior escuro do carro. Mesmo assim, estendeu a mão e apertou o botão para travar as portas. Só para garantir.


CAPÍTULO 4

 

Vagando ao longo do corredor de concreto frio, o demônio Devina não seguia um caminho reto, mas sinuoso. Percorria várias salas de escritório, o tic-tac de vários relógios abafava o barulho que seus saltos produziam.

Tudo foi acomodado ali, sua coleção tinha se mudado com segurança para o porão do prédio de escritórios de dois andares. O local era perfeito, afastado do centro da cidade de Caldwell e, para parecer verdadeiro e não suscitar polêmicas, projetou a ilusão de que uma empresa de recursos humanos havia se instalado no local que agora ela percorria: os humanos só conseguiriam enxergar um próspero empreendimento que havia alugado o imóvel para se expandir dentro do mercado.

Seres humanos estúpidos. Como se, na atual circunstância da economia, alguém pudesse contratar ou pagar mão de obra especializada para preencher as vagas de trabalho que disponibilizavam.

Parou em frente a uma cômoda clássica produzida em Rhode Island, em 1801, e passou a mão sobre o mogno. O acabamento original ainda estava ali. Claro, ela evitou que o objeto ficasse exposto ao sol ou à umidade desde que o havia comprado há duzentos anos. Havia divisões nas gavetas cheias de botões, filas e mais filas de óculos e amontoados de pequenas caixas com anéis dentro delas. Possuía objetos similares nos outros gabinetes, todos objetos pessoais, feitos de diversos metais.

Além de seu espelho, aquela coleção era a coisa mais preciosa que tinha. Era a sua ligação com as almas, a segurança que precisava quando sentia-se insegura ou estressada na Terra, como agora.

No entanto, o problema daquela noite era que, pela primeira vez, tudo aquilo que vinha acumulando há séculos não a acalmava, não a deixava mais segura, nem diminuía sua ansiedade. Vagando por entre os objetos, estava longe da ajuda do vício que, há tanto tempo, provara-se muito útil.

E o que parecia ainda pior? Aquela noite deveria ser um “momento de recompensa”, como sua terapeuta definia. Um tempo para concentrar-se e saborear suas realizações: tinha vencido a última rodada contra Jim Heron e, mesmo sabendo que ele, Adrian e Eddie tinham se infiltrado em seu covil anterior, tinha conseguido reinstalar todas as suas coisas naquele novo e seguro local.

Deveria estar em êxtase. Mesmo assim, mesmo o cheiro de morte à deriva vindo do banheiro não lhe deu prazer: para proteger o espelho, precisava de muito mais que um sistema de monitoramento comum, e o novo sacrifício virginal que tinha pendurado sobre a banheira sangrava muito bem... quase pronto para ser usado, não era apenas decorativo.

Tudo estava a seu favor, ao menos superficialmente falando, e, ainda assim, ela sentia-se tão... Tédio, parece que era assim chamado... E que nome adorável para um péssimo estado de desmotivação.

Talvez só estivesse exausta por ter organizado tudo após a mudança. Tinha mais ou menos quarenta gabinetes cheios de aquisições de todas as eras da humanidade. Sempre que era forçada a se restabelecer em outro lugar, era obrigada a tocar cada objeto para se reconectar com a essência da vítima que permanecia no metal. E ainda precisava iniciar o ritual de contato, porém estava um pouco surpresa consigo mesma. Normalmente, não conseguia concentrar-se em mais nada até que houvesse aquela fissura no tempo, até que vagasse pelo local por alguns minutos e completasse o longo processo.

Acreditava que sua terapeuta veria aquilo como um progresso, considerando a compulsão que lhe era tão comum e inegável: aqueles objetos preciosos, que remontavam desde os tempos do Egito antigo até a França gótica, da Guerra Civil Americana aos Estados Unidos de hoje, eram o que a ligava à sua casa quando estava longe.

Ainda assim, não havia pânico para se refugiar naquilo que era seu pela eternidade. Parecia que seu maior desejo era lamentar-se e andar sem direção. Tudo culpa de Jim Heron.

Ele era tão desafiador. Dominante. Extraordinário. Tinha sido escolhido por ela e por Nigel – aquele filho da mãe arrogante – por ter o bem e mal equilibrados dentro de si... E, conforme ela tinha aprendido ao longo dos tempos, quando tratava-se da humanidade, o mal sempre vencia. Achava que atraí-lo para o lado dela não seria nada além de uma tarefa tediosa, o tipo de coisa que sempre fez com homens e mulheres desde o primeiro momento de sua existência. Em vez disso... era ela quem estava sendo sugada e seduzida.

Heron era tão... incontrolável. Mesmo quando o dominou e brincou com ele, quando seus subordinados torturaram-no, quando a verdadeira natureza dela foi revelada... ele permaneceu firme, inflexível, intransigente. E aquela força deixava-o inatingível.

Nunca tinha visto aquilo antes. Em ninguém. A questão era: controlar fazia parte de sua natureza, pois era uma perfeita parasita. Procurava uma maneira de replicar sua essência até que o local no qual havia se infiltrado se tornasse dela para sempre.

O desafio que Heron representava era inebriante, um tapa no rosto, uma rajada de ar fresco. Mas também parecia esvaziar a importância de toda a existência das coisas.

Abrindo uma gaveta, tirou uma fina pulseira de ouro com uma pequena pomba como pingente. A inscrição no interior do objeto apresentava-se em letra cursiva e delicada. Era um presente de dois pais para uma filha. Com uma data do ano anterior. Blá-blá-blá.

Ela odiava o nome Cecília. Muito. Aquela virgem sem importância... Que espinho em sua vida. O propósito daquela garota de sobrenome Barten era apenas o de proteger o espelho. Mas, agora, aquele pequeno lixo tinha algum tipo de ligação com Jim...

Quando estava prestes a esmagar o frágil objeto, um calor percorreu seu corpo, como se o toque de um amante tivesse passado não apenas sobre sua carne, mas sobre seus ossos.

Jim. Era Jim. Ele chamava-a.

Descartando a pulseira, verificou se a gaveta estava mesmo fechada e foi até o espelho que usava apenas para checar sua aparência. Em frente a ele, mudou sua forma, assumindo o corpo de uma linda morena, com seios que desafiavam a gravidade e um traseiro com mais volume do que uma estante de livros.

Ajeitou o cabelo, alisou a saia preta e achou que a barra estava longa demais. Erguendo-a com a força, virou-se e viu que suas coxas lisas e perfeitas estavam à mostra. De repente, estava viva. Bem, tecnicamente, viva não era o termo correto. Mas era assim que parecia: em apenas um momento, seu humor mudou de sepulcral para sublime. Só que não seria idiota com relação a isso. Confiante em sua saia curta, no decote e nos belos cabelos, entrou no banheiro.

– Como estou?

Deu um pequeno giro em frente ao jovem pendurado de cabeça para baixo sobre a banheira. Só que ele não disse nada, mesmo de olhos abertos.

– Ah, o que é que você sabe?

Ela abaixou-se e mergulhou a ponta dos dedos no sangue que escorria continuamente da carótida do rapaz. Impaciente com a demora, traçou alguns riscos em volta dos batentes da porta e no chão, indo e voltando da banheira para umedecer os dedos novamente com a “tinta”. A pureza da essência do jovem formava um selo mais eficaz que qualquer alarme de segurança já criado por um humano... Além disso, o processo permitia que ela livrasse o mundo de mais uma criatura mortal.

Seu trabalho ficava mais fácil assim.

Terminou o assunto com o senhor Tagarela e virou-se para o antigo espelho envolto por uma moldura um tanto apodrecida pelos séculos. A superfície gasta exibia um reflexo em constante mudança, ondas de cinza-escuro e preto rodavam em torno de um fundo cuja cor parecia a mancha de um tapete velho. Aquilo era um horrível portal e a única maneira de se aproximar das almas que possuía.

– Fique aí – disse a ele. – Volto já.

Aproximando-se da superfície do espelho, foi puxada por uma força cruel e entregou-se livremente àquilo. O corpo que havia assumido tornou-se caramelo ao passar por aquele local. Do outro lado, emergiu sem muita firmeza, jogada pela tempestade, mas não precisou de tempo algum para se recuperar.

Ao ajeitar o cabelo e alisar a saia apertada, pensou ser uma falha não ter um espelho ali. No entanto, não precisava preocupar-se com a opinião de seus subordinados ou de suas almas... Oh, suas adoráveis almas... bem, tinham outras coisas em mente.

Inclinando a cabeça para trás, olhou as paredes que se estendiam por quilômetros num negro brilhante visível desde o chão de pedra. O contorcionismo dos condenados torturados desafiavam os limites de sua viscosa prisão; rostos, quadris, joelhos e cotovelos esticavam-se tentando alcançar uma liberdade impossível, as múltiplas vozes erguiam-se num lamento miserável e abafado.

– Como estou? – ela gritou para cima.

O volume do coro de gemidos aumentou como resposta, mas não lhe disseram absolutamente nada. Pelo amor de Deus, será que não conseguiria uma opinião? Qualquer uma?

Depois de olhar para si mesma mais uma vez, concedeu acesso a Jim, convocando sua forma física no local. Enquanto esperava, seu coração batia três vezes mais rápido, uma corrente percorria cada centímetro de sua pele com um chiado elétrico. Mas não demonstraria isso. Calma. Fique calma.

Jim chegou num redemoinho de névoa, e ela prendeu a respiração.

O salvador escolhido era o melhor exemplar que havia do sexo masculino. De uma constituição grande e letal, seu corpo era um instrumento de guerra e sedução. Era primitivo, intenso...

– Você me deseja – disse ela em voz baixa.

Os olhos dele estreitaram-se, e o ódio que havia neles fez mais pela libido de Devina do que um prato cheio de ostras poderia fazer.

– Não dessa maneira, querida.

Oh, como ele mentia.

Devina foi até a mesa de trabalho rebolando e passou as pontas dos dedos sobre a superfície esburacada e sem cor. As memórias dele amarrado nu, de pernas bem abertas e com seu sexo brilhando por ter sido usado há pouco, fizeram-na respirar fundo.

– Não? – ela disse. – Você me chamou. Não o contrário.

– Quero que me diga quem é a próxima alma.

Interessante.

– Então, Nigel mandou você até aqui quando fez a mesma pergunta a ele, não foi?

– Não disse isso.

– Bem, acho difícil acreditar que me procurou primeiro – murmurou em tom amargo. – E acha que vou te contar?

– Sim, acho.

Soltou uma risada violenta.

– Já deveria saber como sou.

– E vai me dizer.

– Por que eu haveria de...

Uma das mãos ergueu-se e Jim começou a passá-la pelo peitoral de maneira intensa e lentamente, oh, bem lentamente, descendo pelo seu estômago...

Devina engoliu em seco. E, então, sua boca ficou realmente seca quando ele segurou o próprio órgão entre as pernas.

– Tenho algo que deseja – ele disse asperamente. – E vice-versa.

Bem, bem, bem... Desejava ficar com ele, sim, mas era muito melhor quando a ligação era voluntária. Ele teria que se esforçar para fazer sexo com ela, sacrificar sua carne para obter informação... na frente de sua doce e estimada Sissy.

Devina olhou para a parede e encontrou a alma com a qual ele tanto se preocupava. Ao descer a garota, inclinou-se contra a mesa.

– O que, exatamente, você está me propondo?

– Diga quem é e eu fodo você.

– Faça amor comigo.

– Vai ser uma foda. Pode acreditar.

– Chame da maneira que quiser... mas não tenho certeza – que mentira. – É uma informação muito valiosa.

– Bem, sabe como eu sou.

Ah, ela sabia e desejava-o outra vez. Desejava sempre.

– Tudo bem – ela disse. – Vou te dizer quem é e, em troca, vai se entregar para mim sempre que eu quiser. Tem que estar à minha disposição.

Os olhos dele estreitaram-se outra vez, como fendas que o faziam parecer um predador.

E, então, houve apenas silêncio. Enquanto o silêncio estendia-se, ela permaneceu firme. Ele tinha voltado, isso era muito estranho, mas precisava agradecer a Nigel – o idiota que sempre seguia as regras – por isso. Se o arcanjo tivesse deixado escapar o nome da alma, aquele maravilhoso sacrifício não estaria acontecendo.

– Certo.

Devina começou a sorrir...

– Com uma ressalva – quando a expressão dela congelou, ele disse: – Ficarei com você agora em troca do nome. Então, veremos se é o correto. No final da rodada, se não tiver mentido... você terá o que deseja. Sempre que quiser.

Devina rosnou. Maldito livre arbítrio. Se ao menos pudesse dominar tal atributo de maneira mais apropriada, ele não imporia qualquer condição. Mas não era assim que funcionava.

Ainda há algumas brechas – pensou. Algumas maneiras de distorcer o acordo para que não falasse demais e ainda conseguisse possuí-lo.

– Temos um acordo? – ele perguntou.

Olhou sobre o ombro dele, enquanto se aproximava, em direção à pequena forma na parede que havia convocado para assistir de camarote o que aconteceria.

Quando Devina tocou o corpo forte e ergueu-se na ponta dos pés, ficou encantada com a carne rígida que acariciava. No ouvido de Heron, sussurrou: – Tire as calças.

– Feito ou não, demônio?

Estava inabalável diante dela, perfeitamente capaz de negá-la, tanto agora como no futuro. Mesmo estando bem na frente dela, era completamente intocável.

Só que era como ele mesmo havia dito, os dois tinham algo que o outro desejava.

– Tire as calças – afastou-se pronta para aproveitar o espetáculo. – Faça isso devagar... e teremos um acordo.

– Que maldição ele está fazendo lá?

Quando Adrian expressou toda sua retórica, indignado, não esperava uma reação de seu colega de quarto. Poderia passar com um carro sobre os pés de Eddie e, talvez, conseguisse obter um ai. Era mais provável que o anjo apenas piscasse os olhos e chutasse o veículo com força.

Sinceramente, aquela coisa toda de forte e silencioso podia ser bem irritante.

– Já faz duas horas – parou no pé da cama em que Eddie estava esparramado. – Ei? Está acompanhando a situação? Ou planeja dormir durante a rodada?

As pálpebras ergueram-se exibindo olhos vermelhos.

– Não estava dormindo.

– Meditando. Que seja.

– Não estava meditando.

– Tudo bem. Manipulando psiquicamente campos de energia...

– Você me deixa atordoado quando fica andando de um lado para o outro sem parar. Só estou evitando uma vertigem.

Não acreditou naquilo nem por um segundo.

– Preocupar-se um pouco com a situação o mataria?

– Quem disse que não estou preocupado?

– Eu disse – Adrian correu os olhos ao longo do corpo grande e imóvel de seu colega. – Estou prestes a pegar um desfibrilador e dar uma descarga na sua bunda.

– O que posso fazer, Ad? Ele voltará quando for a hora.

Imagens de Nigel, o afeminado, aproximando-se todo elegante de Jim fez Adrian pensar se não precisariam de um serviço funerário. Aquele arcanjo poderia passar o tempo jogando críquete e polo, mas não significava que não daria um jeito no cara... E Jim tinha deixado o local com vontade de acabar com alguém. Talvez o bastardo tivesse conseguido aquilo que procurava.

Adrian começou a andar novamente, mas o quarto de hotel não oferecia muito em termos de espaço. Pensou em descer ao bar...

Houve um rangido no quarto ao lado. Como se alguém tivesse sentado na cama. Ou aberto e fechado alguma coisa.

Ad estendeu a mão para a parte traseira da cintura e pegou a adaga de cristal. Se fosse apenas um humano tentando roubar um notebook, não precisaria daquilo. Mas, se Devina tivesse enviado mais um de seus subordinados para distraí-los, a arma seria bastante útil.

Empurrando a porta do quarto conjugado apenas um centímetro ou dois, inclinou-se. Uma camiseta preta foi arremessada para fora do banheiro. Em seguida, uma calça jeans.

Bota.

Bota.

O chuveiro foi acionado e, na sequência, houve um silvo, como se Jim não tivesse esperado a água aquecer primeiro.

Droga. Não tinha visitado apenas Nigel, tinha?

Adrian guardou a adaga outra vez, empurrou a porta com força, atravessou o quarto e sentou-se na cama do outro anjo. Deus sabia que não havia razão para arrancar a roupa e correr para uma ducha de água quente após um encontro com o arcanjo. O pobre coitado deve ter ido até Devina... E ninguém precisava pensar duas vezes para descobrir o que havia acontecido.

Ouvindo o som de Jim lavando o fedor do demônio, Adrian sentiu-se cansado ao ponto de perceber a visão turva de tanta exaustão. O que significava aquele caminho que o salvador decidiu seguir? Ir até lá. Fazer aquilo. Perder a cabeça.

Era este o negócio de Devina. Ela penetrava em você. No começo, você ainda achava que estava no controle. Depois, aquilo que fazia com ela, por razões que pareciam ser muito sensatas, devorava-o, e Devina entrava em sua pele e assumia a direção. Era assim que trabalhava e era muito bem-sucedida.

Quando Jim finalmente saiu do banheiro, parou com uma toalha nas costas, um braço erguido e outro abaixado. Havia marcas de arranhões nas coxas e no abdômen e seu sexo pendia desanimado, como se tivesse sido muito usado e deixado para morrer.

– Ela vai comê-lo vivo – Adrian disse.

O anjo responsável por salvar a tudo e a todos balançou a cabeça.

– De jeito nenhum.

– Jim...

– Ela vai nos dizer quem é a alma – Jim envolveu a toalha em torno de seus quadris. – Vamos encontrá-la amanhã cedo.

Caramba.

– Espere, ela não lhe deu a informação agora?

– Amanhã cedo.

Ad apenas balançou a cabeça.

– Ela está brincando com você...

– Ela vai mostrar. E vai dizer. Confie em mim.

– Ela não é uma fonte confiável. E esse não é o caminho da vitória.

– Então, você acha melhor obter o resultado da última rodada?

Bem... droga.

Jim foi até a mochila e pegou um uniforme militar. Quando virou-se e começou a se vestir, aquela tatuagem enorme em suas costas, com o Ceifeiro da Morte num cemitério, contorceu-se e voltou a assumir a forma original.

Talvez Jim fosse mais durão. Aquilo seria um golpe baixo e dolorido, algo que Ad admitiria apenas diante de sua carcaça fumegante. Mas, se o cara conseguisse suportar tudo aquilo... se pudesse, de alguma maneira, manter-se em pé... então, tinham a melhor arma naquela luta, pois o demônio tinha uma atração pelo cara. Uma grande atração.

Jim foi até o jeans que atirara pela porta do banheiro e vasculhou os bolsos. Quando ergueu-se novamente, havia um quadrado de papel dobrado em suas mãos.

As mãos tremiam, ainda que levemente. Quando ele abriu cuidadosamente o papel, Adrian, mesmo sem ver o que havia ali, esfregou o rosto e desejou que um carro tivesse caído sobre sua cabeça. Sabia muito bem que era o objeto pessoal daquela garota que encontraram sobre a banheira de Devina – a virgem pela qual Jim estava obcecado.

Idiota – Ad pensou. Estavam ferrados. Estavam muito ferrados.


CAPÍTULO 5

 

Veck acordou no sofá de sua sala de estar. O que foi uma surpresa, pois não tinha um.

Esfregando os olhos por causa da bela luz do sol, ficou surpreso por ter controlado o desejo de dormir mais perto da oficial Reilly, tanto que conseguiu se arrastar apenas até ali.

Sentou-se e olhou para a rua. O carro sem marcas de identificação havia partido, e ficou pensando em quando ela se fora. Da última vez que olhou, ainda estava lá, às quatro horas. Gemendo, esticou o corpo, seus ombros estalaram. Detalhes da noite anterior voltaram à memória, mas Veck, instintivamente, quis ficar longe do Monroe Motel & Suítes. Já sentia-se péssimo, não precisava adicionar uma dor terrível à fumaça que saía de sua cabeça.

Quando ficou em pé, ainda teve de lidar com uma ereção matinal obscena – outra coisa para se ignorar. Tinha a impressão de que se envolvera num sonho ousado e espetacular entre ele e a oficial do Departamento de Assuntos Internos. Alguma coisa sobre ela cavalgando em cima dele... O corpo de Veck estava quase todo vestido, ela estava completamente nua... não, espere, estava com o distintivo e a arma no cinto sobre o quadril.

– Droga... – quando seu pênis começou a ficar rígido, rezou para perder outra remessa de memórias de curto prazo e amaldiçoou o pornô clichê. Mas, agora, poderia entender por que os caras de outros departamentos achavam Reilly atraente.

Considerando a direção que seu cérebro estava tomando, não tinha certeza se adicionar cafeína à mistura era uma boa ideia, mas seu corpo precisava se reerguer. Foi chato quando descobriu que havia mentido para a oficial Reilly. Depois de ter conversado com ela e entrado, percebeu que estava sem pó de café.


No andar de cima, tomou banho, barbeou-se e vestiu o uniforme de trabalho: calça e camisa. Nada de gravata para ele, apesar de muitos detetives usarem. Nada de terno. Não usava nada desse tipo, a não ser jaqueta de couro, ou de motociclista, ou algo assim, bem informal.

No andar de baixo, pegou o casaco-reserva no armário, a chave da moto e trancou tudo. Ao se aproximar da BMW, lembrou que levaram várias coisas dele na noite anterior, por isso sentia-se tão leve. Nada de celular para checar as mensagens de voz. Nada de distintivo no bolso da frente. Nada de arma no coldre. Nada de carteira no bolso de trás da calça. A oficial Reilly ficou com tudo. Até com suas roupas de baixo.

Colocou o capacete e subiu na moto, a manhã estava clara e brilhante demais para ele... E nem tinha amanhecido completamente. Cara, considerando a pequena fresta que seus olhos conseguiam abrir, era bom saber que a moto já conhecia o caminho.

De la Cruz tinha levado Veck ao restaurante Riverside há alguns dias, e ele já se perguntava como tinha conseguido sobreviver, até então, sem uma boa dose daquela comida gordurosa. Seguindo o caminho do local, pegou as marginais pavimentadas, pois, mesmo às 7h45, a estrada principal estaria lotada.

O restaurante ficava às margens do rio Hudson, a apenas uns quatro quarteirões da delegacia... E, quando parou no estacionamento cheio de veículos sem identificação, entendeu que tinha chegado ao seu destino. Havia uma grande possibilidade de que metade da força policial também estivesse ali para tomar sua caneca de café de sempre, mas era tarde demais para ir a outro lugar.

Pouco antes de entrar, depositou 75 centavos numa máquina que distribuía o Correio de Caldwell e pegou um exemplar do jornal. Não havia nada sobre a noite passada na primeira página, então virou a página procurando um artigo que...

E lá estava seu nome. Em negrito.

A reportagem, no entanto, não era sobre ele ou Kroner. Era sobre seu pai, e ele rapidamente pulou o texto. Não queria acompanhar as acusações, o julgamento, a sentença de morte, nada que tivesse relação com seu pai. E, meu Deus, quando finalmente foi pego pela justiça criminal, ficou doente no dia em que cobriram o caso.

Não havia nada demais no resto da primeira sessão, nada nas notícias locais, nada nas seções de esportes, quadrinhos ou classificados. Porém, a falta de cobertura sobre o caso não duraria muito. Os repórteres tinham algum acesso aos relatórios policiais e, provavelmente, a história já estava na televisão e nos rádios. Um detetive do Departamento de Homicídios ligado tão diretamente aos atos de um psicopata? Era esse tipo de porcaria que vendia jornais e justificava os preços dos anúncios.

Ao empurrar a porta de vidro, entrou no ambiente ruidoso do Riverside com sua face enterrada nos artigos esportivos. O local estava cheio, quente e com um barulho tão alto como num bar. Teve o cuidado de não fazer contato visual com ninguém enquanto olhava ao redor procurando uma cadeira livre ou uma mesa vazia.

Não havia nada vago. Maldição. E não queria muito juntar-se a uma mesa cheia de oficiais da polícia. A última coisa que precisava era o monte de perguntas que seus colegas fariam. Talvez ele devesse ter ido direto à delegacia e recorrido a uma máquina de bebidas.

– Bom dia, detetive.

Veck olhou à direita. A bela oficial Reilly, que estava sentada na mesa mais próxima que havia da porta, de costas para ele, virou a cabeça a fim de olhar para ele por sobre o ombro. Tinha uma xícara de café à sua frente, um celular na mão e uma expressão de que nada fazia sentido.

– Quer me acompanhar? – disse, apontando para a mesa.

Ela devia estar brincando. Havia mais ou menos uma dúzia de membros da força policial olhando para eles... Alguns de uma maneira mais sorrateira que outros.

– Tem certeza de que quer ser vista comigo?

– Por quê? Não sabe se comportar à mesa?

– Sabe o que quero dizer.

Ela deu de ombros e tomou um gole do café em sua xícara.

– Nossa reunião com o sargento é daqui a vinte minutos. Vai ter muita sorte se conseguir um lugar para sentar até lá.

Veck deslizou na frente dela.

– Pensei que no Departamento de Assuntos Internos vocês sempre se preocupassem com o decoro.

– São apenas dois ovos, detetive, nada demais.

Veck colocou o jornal de lado.

– Está certo.

A garçonete veio com o bloco de notas e o lápis a postos.

– O que vai ser?

Não havia razão alguma para olhar o cardápio. O Riverside tinha todo tipo de omelete, ovos e torradas conhecidos pelo ser humano. Estava com vontade de comer uma torta no café da manhã? Um sanduíche com bacon e tomate? Cereais, aveia e panquecas? Muito bem, que seja... Mas faça logo seu pedido e coma rápido antes que outra pessoa sente no seu lugar.

– Três ovos mexidos. Gema dura. Torradas com manteiga. Café. Obrigado.

A garçonete sorriu como se tivesse aprovado a eficiência.

– Já vai sair.

Eeeee lá estava ele sozinho com Reilly. Ela tinha tomado banho e vestido um conjunto bem profissional de saia e camisa de botões. O tailleur, combinando com a roupa, estava dobrado com cuidado ao lado dela em cima do casaco. Seus cabelos vermelho-escuros estavam amarrados para trás outra vez e toda a maquiagem que ostentava era constituída apenas de um pequeno traço de batom.

De fato, quando ela apoiou a xícara de café na mesa, havia uma meia-lua rosa onde havia tocado com a boca. Não que ele estivesse observando os detalhes de seus lábios. Não mesmo.

– Estou com um relatório preliminar sobre o caso – ela disse.

Hum... aqueles olhos não eram apenas verdes, como ele havia concluído antes. Havia traços de avelã, produzindo uma combinação única de cores que parecia verde apenas a distância.

– Desculpe, o que você disse?

– Tenho um relatório preliminar de ontem à noite.

– E?

– Não foram encontradas outras armas no local.

Manteve-se tranquilo por força do hábito.

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a garçonete entregou o café dele e o pedido de Reilly: uma tigela de mingau de aveia com uma torrada. Sem manteiga.

– É só trigo? – ele perguntou.

– Sim.

Claro que era. Provavelmente ela comia uma salada leve no almoço com alguma fonte de proteína e uma taça de vinho, quando muito, e, no jantar, deveria ser apenas legumes e frango grelhado e alguma coisa com baixo índice glicêmico.

Ficou pensando o que ela teria achado do ataque cardíaco caprichado que ele pedira.

– Por favor, não espere por mim – ele disse.

Ela pegou a colher e adicionou uma pequena quantidade de açúcar mascavo e creme.

– Quer saber o que acho que aconteceu?

– Sim, quero.

– Um animal selvagem te atacou, e, em meio à confusão, você bateu a cabeça.

Ele esfregou o rosto.

– Não tenho marcas.

– Pode ter caído de costas.

Na verdade, não é que ele havia pensado nisso?

– Mas não há qualquer inchaço. E meu casaco ficaria todo sujo.

– Está sujo.

– Apenas por eu ter colocado sobre o Kroner.

Ela baixou a colher.

– Pode provar? Como sabe se foi só isso se não consegue se lembrar de nada? Além disso, sua cabeça estava te matando ontem à noite e, a propósito, você está fazendo isso outra vez.

– Fazendo o quê?

– Discutindo comigo sobre o que aconteceu. E também está esfregando a testa.

Quando ele amaldiçoou e voltou a colocar as mãos sobre a caneca de café, ela sorriu um pouco.

– Adivinhe só, detetive? Você vai ser examinado na delegacia assim que terminarmos nossa reunião.

– Estou bem – Deus, podia ouvir o tom dissimulado em sua voz.

– Lembra-se do que eu disse ontem à noite, detetive? É uma ordem.

Ao se ajeitar na cadeira e beber um pouco do seu estimulante, viu-se observando o dedo anelar de Reilly. Não havia nada. Nem mesmo uma marca mais clara, como se alguma já tivesse passado por lá.

Desejou que estivesse usando um anel de compromisso simples: ele não se metia com mulheres casadas. Nunca. Claro que já atrapalhou alguns casais em sua história de encontros casuais, mas apenas por não saber que eram comprometidas. Era um vadio com valores, sabe?

– Por que você não me suspende?

– Outra vez com uma negativa.

– Não quero que arruíne sua carreira comigo – murmurou.

– E não tenho qualquer intenção de permitir que isso aconteça. Mas não há evidência de que tenha sido você o responsável pelo ataque, detetive, portanto, é o suficiente... só não sei por que você continua a me pressionar.

Quando encarou os olhos dela, ouviu-se dizer: – Sabe quem é meu pai, não sabe?

Aquilo conteve-a por um momento, sua porção de fibras sem gordura voltou para o prato no meio do caminho. Até parou de mastigar.

Então, a bela oficial Reilly recuperou-se com um encolher de ombros.

– Claro que isso é ruim, mas não significa que você tenha dilacerado alguém – inclinou-se. – Mas é o que você teme, não? E por isso continua a bancar o advogado do diabo.

A garçonete escolheu aquele momento para aparecer com o prato fumegante cheio de colesterol, e sua chegada foi um salva-vidas conversacional, se é que existia este tipo de coisa.

Salgou o prato. Colocou pimenta. Espetou com o garfo e comeu.

– Ajudaria se conversasse com alguém? – Reilly disse, quase inaudível.

– Um psiquiatra?

– Terapeuta. Eles podem ser bastante úteis.

– Diz isso por experiência pessoal, oficial?

– Na verdade, sim.

Ele soltou uma risada alta: – Por algum motivo, não acredito que eu seja o tipo de pessoa que precise de algo assim.

– Todos têm problemas.

Sabia que seria um tanto inconveniente, mas sentiu-se nu – e no mal sentido.

– Então, conte-me um dos seus.

– Não estamos falando de mim.

– Bem, estou cansado de estar no palco sozinho – quebrou um pedaço de torrada em duas. – Vamos lá, oficial. Conte alguma coisa sobre você.

– Sou um livro aberto.

– Que precisa de terapia? – quando ela não respondeu, ergueu o olhar para encará-la. – Covarde.

Os olhos da mulher estreitaram-se, ela inclinou o corpo para trás e empurrou a vasilha, ainda metade cheia, para frente. Ele esperava alguma réplica espirituosa. Ou, mais ainda, um tapa. Em vez disso, ela enfiou a mão no bolso, pegou uma nota de dez dólares e a colocou entre eles sobre a mesa.

– Vejo você na sala do sargento.

Com uma graça sutil, distanciou-se, pegou o casaco, a bolsa e o celular.

Antes de sair, Veck agarrou seu pulso.

– Desculpe. Passei do limite.

Ela desprendeu-se e colocou o celular na bolsa.

– Até logo.

Depois que Reilly saiu, Veck empurrou o próprio prato, mesmo ainda tendo um ovo e meio nele. Ainda não eram nove horas... e já tinha ganho o prêmio de idiota do dia. Fantástico...

Uma corrente de ar passou por suas costas, eriçando os cabelos da nuca, e aquilo o fez virar em direção à porta. Uma mulher havia entrado e não pertencia ao local, assim como uma porcelana chinesa fina sendo vendida numa loja de departamentos qualquer. Quando seu perfume pairou no ar e ela tirou o casaco de pele, houve uma pausa audível nas conversas do local. Ela tinha acabado de expor seios enormes para metade do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando Veck observou-a, achou que deveria ter sentido alguma atração por ela, mas, em vez disso, aquele ar frio fazendo cócegas em sua coluna despertou nele o desejo de pegar uma arma e apontar em direção àquela mulher como um mecanismo de autodefesa. E como o desejo era forte.

Deixando uma nota de vinte, interou o valor do resto do café da manhã e dirigiu-se à porta. Ao sair, parou. Olhou ao redor. Sua nuca ainda estava alerta, seus instintos gritavam, principalmente quando olhou através das janelas redondas do restaurante. Alguém o observava. Talvez fosse aquela mulher com corpo de modelo de revista erótica, talvez outra pessoa. Mas seus instintos nunca mentiam.

A boa notícia era que talvez recebesse suas armas de volta naquela manhã. Então, pelo menos, poderia novamente se proteger.

Quando Jim estacionou no Riverside com sua Harley, um cara aproximou-se com uma bela moto BMW rugindo. Adrian e Eddie estavam bem atrás dele com suas motos, e os três estacionaram juntos do outro lado, próximo ao rio Hudson. Quando Jim desmontou e olhou para o lugar, concluiu que Devina havia lhe chamado para um encontro. Bem, tinha algo de especial ali. Esteve com sua primeira alma naquele mesmo restaurante.

Talvez Caldwell fosse um imã para almas condenadas. Ou talvez ela apenas gostava do café servido ali e lhe diria que a alma em questão estava em outro lugar.

Aproximando-se da entrada, viu que seus colegas não estavam para conversa... o que não era novidade da parte de Eddie, mas um milagre, no caso do outro anjo. Aquilo não duraria muito da parte de Ad.

O restaurante estava lotado, barulhento e cheirava a café e a manteiga derretida. Que maldito lugar para Devina escolher...

E lá estava ela, à esquerda, sentada numa mesa, observando a porta enquanto um raio de sol se derramava pela janela ao seu lado. Os raios cálidos e amarelos iluminavam perfeitamente seu rosto, como se estivesse prestes a ser fotografada, e Jim pensou na primeira vez que a viu naquele clube, parada sob uma luminária no teto. Ela, por si só, também brilhava.

O mal nunca pareceu tão atraente, mas, ao contrário dos outros homens, que olhavam sobre suas canecas e babavam como cães, Jim sabia quem aquela mulher realmente era... Não se distraía mais com aquele disfarce a ponto de deixar de perceber que ela não projetava sombra. Por mais brilhante que fosse a luz que a atingisse, não havia qualquer contorno de sombra sobre a mesa ou sobre o encosto do banco ao lado dela.

Por uma fração de segundo, visualizou a imagem deles dois juntos na noite anterior. Tentou penetrá-la por trás sobre a mesa, mas ela insistiu em transar face a face. Sinceramente, ficou surpreso por conseguir uma ereção, mas a fúria também deixava-o rígido, por algum motivo. Ao menos com ela.

Quando desvencilhou-se daquela cena grosseira, suada, olhou ao redor, em direção às paredes, imaginando Sissy presa naquele emaranhado de condenados. Rezou para que sua garota não tivesse visto aquilo. Deus, pensar que ela poderia ter...

Mas chega disso. Aproximando-se de Devina, bloqueou todos os pensamentos em relação a Sissy, ao sexo que teve com o inimigo ou até mesmo em relação ao jogo em si.

– Então, quem é? – ele disse.

O demônio olhou por cima do Correio de Caldwell, seus olhos negros percorreram rapidamente o corpo de Jim e fizeram com que ele sentisse vontade de tomar outro banho... dessa vez, com uma lixadeira.

– Bem, bom dia, Jim. Gostaria de sentar ao meu lado?

– De jeito nenhum.

O cara na mesa em frente à dela olhou por cima do ombro. Como se não tivesse aprovado o tom ou o linguajar de Jim com a moça.

É só aparência, cara – Jim pensou.

Devina abaixou o jornal e voltou-se para suas panquecas de leite e manteiga e para seu café.

– Tem uma caneta?

– Não brinque comigo.

– Um pouco tarde para isso. Caneta?

Como algumas pessoas tentavam passar, Jim e seus colegas tiveram que virar de lado. Eddie tirou uma caneta do bolso e entregou-lhe.

Devina destampou a coisa com suas mãos longas e tratadas. Em seguida, dobrou o jornal na parte de palavras cruzadas.

– Uma palavra com sete letras para...

– Droga, Devina, pare...

–... antagonista.

–... com essa merda.

– Na verdade, Jim, “merda” tem cinco letras. Mas eu não estou fazendo isso, estou? – Devina começou a escrever a palavra com cuidado. – Acredito que “inimigo” seja a palavra que procuro. E terá de se sentar comigo, sozinho, ou vai cair no corredor por suas pernas adormecerem de tanto ficar de pé.

Fez mais um registro cuidadoso sobre o jornal. Imaginou se ela não estaria trabalhando numa palavra equivalente a “dor no traseiro”.

Jim olhou para seus amigos.

– Já vou sair.

– Adeus, Adrian – disse Devina com um aceno – Mas vejo você em breve... tenho certeza.

O demônio não disse nada a Eddie. Afinal, ela gostava de provocar as pessoas, mas Eddie era tão calmo e impassível que simplesmente não valia a pena. O que colocava ele e Adrian no departamento de opostos que se completam.

Quando os dois anjos saíram, Jim sentou-se.

– E então?

– Não gostaria de tomar café?

– Quem é, Devina?

– Odeio comer sozinha.

– Você poderia prender a respiração até eu decidir acompanhá-la... O que acha disso?

Os olhos negros de Devina assumiram um tom objetivo.

– Vamos brigar?

Com isso, Jim soltou uma risada sincera.

– É a razão pela qual estamos aqui, querida.

Ela sorriu um pouco.

– Acho que é a primeira vez que ouço algo assim vindo de você.

Jim foi interrompido quando a garçonete chegou com um bule de café.

– Nada para mim, obrigado.

– Ele vai querer café e waflles.

Quando a garçonete olhou para Jim como se dissesse “vamos lá, decida-se”, ele deu de ombros e deixou por isso mesmo.

Ao ficarem sozinhos outra vez, Devina olhou novamente para suas palavras cruzadas.

– Não terá outra chance comigo a menos que comece a falar.

Houve uma pausa, como se o demônio pensasse em alguma maneira de prolongar o encontro. Finalmente, começou a bater no jornal com a ponta da caneta de Eddie.

– Você lê o Correio de Caldwell?

– Às vezes.

– É um verdadeiro tesouro de informações – ela fez um espetáculo para exibir a primeira parte do jornal. – Nunca se sabe o que pode encontrar nele.

Achatou o papel, virou-o em direção a Jim e passou a encará-lo do outro lado da mesa.

Jim olhou para baixo. Três grandes artigos. Um sobre o projeto de uma nova escola no bairro. Outro sobre o aumento do número de pequenas empresas. E um terceiro sobre... A ponta da caneta de Eddie apontou o último artigo.

– Acho que cumpri minha parte do acordo – disse lentamente.

A manchete dizia: “Agendada a execução de DelVecchio”.

Jim percorreu o artigo rapidamente e pensou: Droga, esta é a alma?

Quando Devina já ia recolher a caneta, ele estendeu a mão e fechou-a sobre o pulso dela, mantendo-o no lugar.

Na verdade, a ponta da caneta apontava um nome escrito ao longo do artigo... E não era o nome do serial killer DelVecchio. Era o filho do cara... Thomas DelVecchio Jr. Um detetive da força policial de Caldwell.

Jim encarou o inimigo do outro lado da mesa e sorriu.

– Pegadinha?

Seus cílios baixaram numa atitude tímida.

– Sempre.

Chega de Devina e de perder tempo, Jim levantou-se e levou a caneta com ele.

– Aproveite meus waffles, querida.

– Ei, como vou terminar minhas palavras cruzadas?

– Tenho certeza de que dará um jeito. Até mais.

Jim saiu do restaurante e seguiu direto para seus amigos. Quando aproximou-se das motos, estendeu a caneta a Eddie.

– Sua caneta – quando o anjo foi pegá-la, Jim segurou-a. – Há metal em volta do bico. Da próxima vez, ofereça uma canetinha hidrográfica.

Quando Jim começou a estender a perna sobre o banco da moto, Adrian perguntou.

– O que ela disse?

– Parece que vamos ter que entrar no mundo dos policiais e dos ladrões.

– Ah. Bom – Ad montou sobre sua moto. – Pelo menos eu falo a mesma língua deles.


CAPÍTULO 6

 

Reilly entrou na delegacia pela porta dos fundos e passou pelo corredor de concreto que daria na mais nova, renovada, inspiradora e motivadora recepção. Infelizmente, a estátua de bronze da Dama da Justiça, com sua balança e espada, era uma interpretação moderna do clássico greco-romano, e mais parecia queijo derretido. Queijo derretido velho e marrom.

Andar ao redor da deusa de olhos vendados e dos pequenos holofotes que a iluminavam de baixo para cima dava uma ideia exata da confusão que havia no lugar. Entretanto, a maioria da força policial, dos advogados e dos promotores que passavam por ali eram ocupados demais para se preocupar com a decoração: o pessoal tinha muita coisa a fazer. O Departamento de Segurança e a Central de Detenções estavam à direita, além da cadeia em si. Os registros eram feitos no setor à esquerda. No andar de cima, estavam as salas dos departamentos de Homicídios e de Assuntos Internos, bem como a sala de reuniões e o vestiário. No terceiro andar, havia o novo laboratório e o local de armazenamento de evidências.

Reilly subiu as escadas de dois em dois degraus, ultrapassando dois colegas que iam mais devagar que ela. Mas, quando chegou ao segundo andar, perdeu o ímpeto. A grande área aberta à sua frente tinha uma série de mesas onde o pessoal do suporte administrativo trabalhava. E, bem no centro do local, em meio ao pessoal, estava Britnae, a gostosa da delegacia.

A loira tinha um espelho nas mãos e passou com os dedos uma sombra de alguma marca famosa nos olhos. O próximo passo foi arrumar os cachos. Por último, pressionar os lábios e fazer beicinho. O tempo todo inclinava-se para frente e exibia o par de silicones para si mesma... Era evidente que estava satisfeita com a maquiagem e com aquela maravilhosa paisagem.


Britnae virou o pulso e checou um daqueles relógios femininos minúsculos que algumas mulheres usam, do tipo que têm pulseiras delicadas e os ponteiros sobre um fundo perolado. Provavelmente, ela tinha um monte de pulseiras e brincos em alguma prateleira ou armário cheio de coisas cor-de-rosa.

O guarda-roupa de Reilly parecia o do Marilyn Manson e dispensava joias. Seu relógio? Era simples. Preto e à prova de choque.

Três chances para adivinhar como Britnae ficaria quando... só precisou de uma: a garota ficava ofegante na frente de Veck desde o dia em que o cara entrara ali há duas semanas. Não que fosse da conta de Reilly.

Antes que alguém a acusasse de xereta, apressou-se para o Departamento de Assuntos Internos e entrou em seu cubículo. Fingindo estar alerta, acessou o computador, mas, quando entrou no e-mail, tudo tinha sido traduzido para uma língua estrangeira. Ou isso, ou seu cérebro tinha esquecido o inglês.

Maldito DelVecchio.

Chamá-la de covarde? Só por querer manter o profissionalismo? Não sabia metade do inferno pelo qual tinha passado. Além disso, estava tentando ajudá-lo...

Aquilo deu vontade de descarregar no cara sua nove milímetros como café da manhã.

Seguindo o programa, acessou o relatório que havia enviado a si mesma por e-mail mais cedo e verificou, outra vez, o trabalho, revisando todo o documento do início ao fim. Quando o telefone tocou, ela atendeu sem olhar.

– Reilly.

– Thomason – ah, o cara do laboratório. – Só queria avisar que acho que os ferimentos de Kroner foram resultado de dentes.

– Como...

– Presas, especificamente. Encontrei os paramédicos ontem à noite no pronto-socorro e estava lá quando Kroner foi entubado, costurado e até quando recebeu uma transfusão. Observei bem as feridas do rosto e do pescoço. Quando uma faca é usada num ataque como aquele, tende a deixar contornos bem claros nas lacerações. A carne dele foi rasgada... algo parecido com o que eu vi quando aquele tigre comeu o treinador de animais no ano passado.

Aquilo confirmava suas conclusões, não é mesmo? E fez com que se perguntasse o que poderia estar perambulando por aquela floresta.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Não tenho certeza. Peguei algumas amostras do tecido... Só Deus sabe quantas espécies existem... Vamos descobrir que tipo de saliva foi deixada. Porém, posso adiantar uma coisa: seja lá o que for... estamos falando de algo grande, poderoso e... furioso.

– Muito obrigada por me ligar tão rápido.

– Sem problema. Vou tirar um cochilo e voltar ao trabalho em seguida. Entro em contato.

Depois que desligou, Reilly digitou um adendo ao seu relatório, pressionou Ctrl+P e, em seguida, enviou o documento por e-mail ao sargento. Pegou uma pasta, o celular e esperou a impressora terminar de liberar as páginas do relatório.

Ao menos tinha uma evidência para confirmar o que havia dito ao sargento antes do café da manhã. Com isso, começou a pensar no restaurante. Não deveria ter convidado Veck para se juntar a ela. Ele estava certo... parecia ruim, mas, mais que isso, poderiam ter evitado aquela conversa desagradável. Na verdade, aquilo a chateou. Não deveria. Um comentário inapropriado no café da manhã? Não deveria incomodá-la. Não mesmo. Ou teria sido uma reação alérgica à palavra covarde? Sim, era isso.

Veck atravessou o saguão da delegacia como um jato, passava rápido pelas pessoas, quase corria. Chegou à escada e subiu os degraus de pedra de dois em dois. Quando chegou ao segundo andar, dirigiu-se à esquerda, mas não ia ao seu escritório. O lugar ao qual precisava ir era o Departamento de Assuntos Internos... do nada, uma coisa rosa e loira entrou em seu caminho.

– Oi!

Quando olhou a garota, entendeu o que os tornados deveriam achar de um trailer quando atingiam algum pelo caminho: absolutamente nada. Ele quase passou por cima dela para chegar a Reilly, por assim dizer.

– Oi. Desculpe... estou atrasado.

Infelizmente, Britnae decidiu dançar uma valsa com ele no corredor, indo para a direita e para a esquerda. Quando ele parou, ela respirou fundo, ou arqueou as costas, ou esbarrou em algum compressor de ar, pois, de repente, parecia Jessica Rabbit, a personagem sensual que vivia exibindo o decote. Se ela mostrasse mais um pouco dos seios, estaria pronta para uma mamografia.

– Então... – ela balbuciou – eu estava pensando se você não gostaria de um pouco de café...

Chá... ou, quem sabe, eu mesma? – ela terminou a sentença mentalmente.

– Obrigado, mas estou atrasado para uma reunião – driblou-a.

Nova barreira.

– Bem, eu poderia trazer para você!

– Não, obrigado...

Ela colocou uma das mãos sobre o braço de Veck.

– Sério, eu não me importo...

A oficial Reilly visualizou o momento ao sair da sua sala nos Assuntos Internos. E, como pode imaginar, não hesitou ou mostrou qualquer mudança em sua expressão facial... Por que vê-lo dar o fora em alguém a incomodaria?

Quando passou, assentiu para ele dizendo oi para aquele atraso de vida.

– Tenho que ir – disse Veck, já mais que atrasado.

– Vejo você mais tarde – Britnae disse em voz alta.

– Reilly – sussurrou – Reilly.

A mulher que realmente interessava parou em frente à sala do sargento.

– Sim?

– Sinto muito pelo que disse. Passei dos limites.

Reilly colocou a pasta sobre o braço e passou a mão pelos cabelos.

– Está tudo bem. É um momento de estresse. Entendo.

– Não acontecerá de novo.

– Não faria diferença para mim se acontecesse.

Com isso, ela virou-se com seus sapatos de salto baixo e entrou na sala de espera. Certo... essa doeu. Mas não podia culpá-la.

Em vez de segui-la, ele ficou ali parado como uma árvore enquanto a porta fechava-se diante de seu rosto, com vontade de chutar o próprio traseiro. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café fresco que indicava a proximidade de seu parceiro.

José De la Cruz parecia cansado, mas alerta; era assim que o cara costumava estar sempre.

– Como estamos?

– Péssimos.

– Não me diga – entregou um dos dois cafés que segurava. – Beba isto. Ou, se conseguir, injete um pouco na veia.

– Obrigado, cara.

– Está pronto?

Não.

– Sim.

Ao entrar na sala, Reilly olhou para trás e acenou para De la Cruz, em seguida, voltou a conversar com a assistente do sargento.

Veck acomodou-se numa das tradicionais cadeiras de madeira alinhadas contra a parede da sala de espera do escritório do sargento, revestida de painéis também de madeira. Enquanto bebia o café, observava cada detalhe em Reilly: a maneira como tocava o brinco direito, como se estivesse meio solto, como fazia ao dobrar a perna, como batia a ponta do sapato enquanto tentava argumentar, o fato de que, ao sorrir, exibia o ligeiro brilho de um preenchimento de ouro no molar superior. Era muito atraente. Atraente mesmo.

– Então, tentei ligar para você ontem à noite – De la Cruz disse em voz baixa.

– Meu celular está no laboratório.

– Você deveria ter um telefone fixo.

– Sim – olhou para seu parceiro. – Acho que não encontraram muita coisa na floresta.

– Nada.

Sentaram-se lado a lado, bebendo café em copos de papel com imagens de cartas de baralho. O café estava horrível, mas estava quente e deu-lhes algo a fazer.

– Você pensou em matar Kroner, não? – quando Veck encarou-o, o outro detetive deu de ombros. – Vi você com aquele paparazzo, lembra? Fui eu quem tirou você de cima dele. Quanta raiva.

Veck voltou a observar Reilly, contente por ela estar compenetrada na outra conversa. Assentindo na direção dela, disse em voz baixa: – Ela acha que não fui eu. Porém, estou com a impressão de que você acha.

– Não disse isso.

– Não precisa.

– Não, eu vi como Kroner ficou. Você também. É uma equação sem lógica.

– Então, por que falou nisso?

– Porque está na sua mente.

Veck produziu um barulho evasivo.

– Se ela recomendar que eu continue na ativa, haverá algum problema para você?

– Não, mas acho que você não deveria sair nas ruas sozinho neste momento.

Engraçado, ele achava a mesma coisa. E era uma droga.

– Vamos ficar algemados um ao outro, então?

O sargento abriu a porta de seu escritório, mostrando a cabeça grisalha.

– Vamos lá?

Reilly despediu-se da assistente, e Veck e De la Cruz seguiram-na ao longo do grande escritório. A mesa de reunião, na outra extremidade da sala, era grande o suficiente para comportar a todos com conforto, e Reilly escolheu a cadeira mais distante de Veck para se sentar... ou seja, estava bem diante dele. Nada de contato visual. Isso não o surpreendeu.

Que inferno.

– Bem, li o relatório que me enviou por e-mail – o sargento disse a Reilly. – Mais alguma coisa?

– Apenas um adendo, o qual eu também enviei – ela passou algumas cópias ao sargento e, em seguida, entrelaçou os dedos e sentou-se. – Mantenho minhas conclusões.

O sargento olhou para De la Cruz.

– Alguma coisa a acrescentar?

– Não. Também li o relatório e isto diz tudo.

– Então, estou propenso a concordar com a oficial Reilly – o sargento olhou para Veck com firmeza. – Gosto de você. É o meu tipo de policial. Mas não vou permitir que alguém que represente perigo a outras pessoas carregue um distintivo. Reilly é sua nova parceira... Veck, não posso dispensar De la Cruz durante o seu período probatório, que será de um mês, no mínimo.

Reilly não mostrou qualquer reação diante da mudança, mas era uma profissional, não era?

– Ainda posso trabalhar no caso de Kroner? – Veck perguntou.

– Não nesta vida. A partir de hoje, você assumirá os casos antigos pelos próximos trinta dias e terá reuniões periódicas com o dr. Riccard.

Ah, sim, o psicólogo do departamento. E, no silêncio que se seguiu, Veck sabia que todos esperavam que soltasse algum protesto, mas, afinal, não poderiam considerá-lo uma máquina mortífera selvagem.

Não mesmo. Por exemplo, não conseguia deslocar o ombro, não morava na praia com um cachorro e não saía por aí tentando liberar seu instinto assassino. Logo...

– Certo.

O sargento pareceu um pouco surpreso, mas bateu na mesa com o nó dos dedos, algo que Veck concluiu ser um gesto de satisfação do cara.

– Ótimo. De la Cruz, quero falar com você. Quanto a vocês dois... terminamos.

Reilly saiu do escritório tão rápido quanto um tiro, mas Veck também conseguia correr daquele jeito. Saiu bem atrás dela e alcançou-a na saída do corredor.

– Então, como será? – ele falou.

Era tudo o que tinha a dizer. Desculpar-se não adiantou e, de alguma maneira, também não conseguia pensar em agradecê-la pelo relatório.

Reilly deu de ombros.

– Vou terminar o que estava fazendo esta manhã e, depois, poderemos nos ater aos casos antigos.

– Durante trinta dias.

– Trinta dias – ela não parecia entusiasmada, mas também não parecia temer o que estava por vir. Veck concluiu, com isso, que não seria fácil conversar com ela no tempo livre.

– Vejo você às treze horas em ponto no seu departamento, detetive.

– Entendido, oficial.

Mesmo andando, ela fez alguma anotação em seus papéis ao sair, a cabeça estava enterrada no trabalho. Dois rapazes passaram, olharam para ela e continuaram a olhar, como se esperassem alguma troca de contato visual. Mas ela não ergueu a cabeça. Nem notou-os. Contudo, Veck percebeu muito bem aquilo. E desejou fazer algum ajuste óptico naqueles bastardos.

– Você deixou isto no escritório do sargento.

Veck virou-se. De la Cruz tinha saído e levava o café de Veck.

Bem, aquilo não pareceu nada estranho. Não mesmo.

– Obrigado, cara – Veck pegou o copo de papel e tomou um gole. A única coisa que redimia a bebida tinha passado: a porcaria estava morna. – Bem, estava sendo bom trabalhar com você.

– Posso dizer o mesmo – José estendeu uma das mãos. – Mas, quem sabe? Talvez volte a ser designado meu parceiro daqui a um mês.

– Sim – porém, de alguma forma, Veck tinha a sensação de que seus dias no Departamento de Polícia de Caldwell estavam contados.

Voltaram ao Homicídios em silêncio e, quando abriram a porta do departamento, todos os detetives que ali estavam desviaram o olhar das paredes cinzentas que dividiam seus cubículos. Veck não viu razão alguma para suavizar as coisas.

– Na ativa. Nada de Kroner. Com Reilly.

Várias cabeças assentiram para ele e, cara, agradecia quando as pessoas eram legais. Na verdade, ali havia pessoas decentes trabalhando duro por pouco dinheiro e não tinham muito tempo para bobagens. Além disso, bem ou mal, depois de ter acertado aquele paparazzo, ganhou bastante respeito.

Quando todos voltaram ao trabalho, José bateu sobre o ombro de Veck e dirigiu-se à própria mesa. Veck não perdeu tempo. Sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e checou seus e-mails.

Casos antigos, hum? Era uma categoria muito ampla. Acessando a base de dados do departamento, puxou todos os relatórios de pessoas desaparecidas. E aquilo fazia parte, tecnicamente, de casos antigos, não? Uma vez que ainda estavam abertos. Ao iniciar a pesquisa, esparramou-se e deixou o computador trabalhar. Engraçado como o resultado da pesquisa exibiu apenas dados de mulheres, entre 16 e 30 anos, registradas como desaparecidas nas últimas, digamos... três semanas? Quando foi mesmo que Kroner apareceu atuando naquela área?

Não era coincidência.


CONTINUA

CAPÍTULO 1


Era primavera, numa noite escura de abril, quando o detetive Thomas DelVecchio Jr. entendeu que pesadelos poderiam, de fato, saltar da mente e tornar-se realidade. Infelizmente, isso, para ele, não era bem uma novidade.

Havia sangue por toda parte. Um vermelho brilhante sob o luar, como se um galão de tinta tivesse sido derramado no local, não apenas sobre o chão da floresta... mas sobre aquele homem estraçalhado em meio às folhas secas, bem aos pés de Veck.

Contudo, toda aquela confusão vermelha não era de tinta látex para interiores. Ou de tinta a óleo para acabamentos. Ou, ainda, de tinta para paredes externas. Não se poderia comprar aquilo numa loja de tintas e limpar tudo com solvente, muito menos era algum corante daqueles filmes de terror de segunda.

Aquilo era a vida real, sim, bem ali, diante dele. Escorrendo por todos os cantos.

O que ele havia feito? Santo Deus...

Arrancando sua jaqueta de couro, ajoelhou-se para pressioná-la contra o tórax descoberto do homem. Sons de líquido borbulhando misturavam-se com os da forte respiração de Veck, que encarava aqueles olhos escurecendo-se rapidamente.

– Eu matei você? Será que eu...?

Nenhuma resposta. É claro que as cordas vocais do bastardo deviam estar penduradas num galho qualquer.

Droga... que droga... era como a noite em que sua mãe havia sido morta.

Só que, neste caso, ele realmente veio para esquartejar alguém.

De uma coisa tinha certeza: estava com sua moto, dirigiu até ali e esperou escondido na floresta até o maldito psicótico aparecer – mentindo a si mesmo, o tempo todo, sobre estar ali apenas para prender o “suspeito”. Mas as suas mãos diziam a verdade. Quando sua presa finalmente chegou, a faca estava empunhada e atuou como uma sombra com suas roupas pretas, aproximando-se...


X


O Monroe Motel & Suítes estava a pouco mais de dez metros dele, do outro lado da espessa barreira de arbustos e pinheiros. Iluminado por luzes de um amarelo que mais parecia urina, a tentativa decadente do local de chamar a atenção para o aluguel de quarto por uma noite, ou por uma hora, foi a razão para ele e o assassino terem saído de casa naquela noite.

Serial killers costumam colecionar troféus de suas vítimas. Incapazes de formar laços emocionais adequados com as pessoas e carentes de representações físicas do poder fugaz que exercem sobre suas presas, revestem os objetos de emoções ou lembranças das pessoas que massacraram.

David Kroner havia perdido sua coleção de recordações há duas noites. Quando o trabalho que fazia ali foi interrompido e a polícia cercou a cena do crime. Então, é claro que retornaria ao local onde esteve no controle da situação pela última vez. Era o máximo que poderia reconquistar daquele momento.

– Chamei uma ambulância – Veck ouviu-se dizer, sem saber ao certo com quem estava falando.

Mudando o foco de seu olhar, concentrou-se no último quarto do motel, próximo de onde estavam e longe da sala da gerência. Um selo oficial do Departamento de Polícia de Caldwell estava fixado à porta e aos batentes, e a fita que envolvia a cena do crime produzia um ruído com a brisa que nela batia. Numa fração de segundos, visualizou o que ele e os outros oficiais tinham encontrado havia duas noites: outra jovem mulher, que acabara de ser morta e estava prestes a ter sua carne recortada para ser levada como lembrança.

Mais sons de algo borbulhando.

Olhou para baixo. O homem que sangrava era magro e fino, portanto, fazia sentido as vítimas de David Kroner serem jovens, aparentando idade entre 16 e 24 anos. Não precisava ser forte como um cão de guarda para fazer o trabalho. Os cabelos loiros de Sandy afinavam no alto da cabeça. A pele branca tornava-se cinza, pelo menos onde não estava coberta de sangue.


Mergulhando em seu banco de dados mental, Veck tentou se lembrar do que diabos havia acontecido. Após esperar por um período de tempo que lhe pareceu dias, o estalar de galhos finos chamou-lhe a atenção, foi quando viu Kroner andando na ponta dos pés entre os pinheiros.

No instante em que avistou o homem, pegou a faca, agachou o seu corpo e, em seguida...

– Filho da mãe!

A dor de cabeça veio com força, como se alguém tivesse batido um prego em seu lobo frontal. Erguendo uma das mãos, inclinou-se para a esquerda e pensou, muito bem, ótimo. Quando a ambulância chegasse, os médicos poderiam diagnosticar nele um aneurisma.

Ao menos isso lhes daria algo para fazer – Kroner já seria um cadáver quando chegassem ali.

Quando a dor lancinante passou um pouco, Veck tentou, outra vez, lembrar-se de mais alguma coisa... apenas para voltar com força total à necessidade de tomar um analgésico urgentemente e, em seguida, sofrer um apagão mental novamente. Com a nova rodada de agonia que floresceu em seu crânio como se fosse um buquê vermelho brilhante, fechou os olhos e pensou em vomitar – e, enquanto a dúvida sobre pôr ou não tudo para fora enfurecia suas entranhas, percebeu que era hora de ser honesto consigo mesmo. Por causa do enorme buraco negro em suas lembranças de curto prazo, sabia apenas que tinha sim ido até lá para matar aquele filho da mãe pervertido que, incluindo a última vítima na contagem, havia atacado pelo menos onze mulheres de Chicago a Caldwell no ano passado.

Horrível, é claro. Mas era um amadorismo comparado ao próprio pai de Veck – que fizera tudo aquilo num espaço de três meses: Thomas DelVecchio pai escreveu a cartilha para caras como Kroner.

E foi seguindo essa linha de raciocínio que Veck chamou não apenas a ambulância, mas também seu parceiro do Departamento de Homicídios.

Por mais que detestasse admitir, era filho de seu pai: foi até ali para matar. Ponto final. E o fato de sua vítima ser um imbecil violento não era nada além de um filtro social aceitável para a realidade.

No fundo, não se tratava de vingar as garotas mortas.

E, pelo amor de Deus... sabia que o que acontecera naquela noite era inevitável. Ao longo de toda sua vida, aquela sombra esteve atrás dele, guiando-o, seduzindo-o, puxando-o em direção àquela cena de destruição. Então, fazia sentido não se lembrar de nada. Sua outra metade finalmente havia assumido o controle e não tirou as mãos do volante até que todo o ato de violência estivesse feito. Prova disso? Em algum lugar na parte de trás de sua cabeça, ecoava um riso, maníaco e satisfeito.

Certo, muito bem, divirta-se agora – pensou, pois não iria mais deixar-se levar tão longe em direção aos passos de seu pai...

O som de sirenes surgiu vindo do Leste e ficava cada vez mais alto e rápido.

Aparentemente, não foi o único que ouviu o alarme. Um homem saiu rapidamente de um dos quartos do hotel e correu em volta do capô de um carro já com seus dez anos, bastante usado, que tinha uma treliça metálica sobre o para-choque. Foi meio difícil pegar as chaves, já que puxava as calças ao mesmo tempo. Em seguida, no mesmo ritmo de fuga, veio uma mulher de aparência rude que tropeçava ao se aproximar de um velho Honda Civic enquanto descia sua minissaia.

As partidas ruidosas e desenfreadas deixaram o estacionamento vazio quando a ambulância surgiu na entrada do local e parou em frente à sala da gerência. Quando um paramédico saiu do banco do passageiro, um homem que deveria ser o gerente abriu a porta, Veck assoviou com força: – Aqui!

Parece que o gerente não tinha a menor intenção de se envolver e voltou para trás. Mas o paramédico correu e a ambulância percorreu o estacionamento atrás dele. Quando chegaram, Veck ficou muito calmo – mortalmente calmo. Tão intocável quanto a fria e distante lua que os vigiava naquela noite densa e escura.

Dane-se seu lado negro. Foi ele quem tinha feito aquilo. E obrigaria a si mesmo a pagar por isso.

A oficial de Assuntos Internos, Sophia Reilly, dirigia a todo vapor em seu carro sem marcas de identificação, disparando ao longo de uma área remota junto aos limites sujos de Caldwell, enquanto percorria a Rota 149 numa corrida louca – o fato de estar a caminho da cena de um crime não justificava a alta velocidade. Ela dirigia rápido, comia rápido e odiava esperar em filas, aguardar pessoas ou informações.

Se apenas pudesse evitar a colisão com um cervo antes de chegar ao Monroe Motel & Suítes...

Quando seu celular tocou, já estava com ele em seu ouvido antes do segundo toque.

– Reilly.

– Detetive De la Cruz.

– Oi. Adivinhe para onde estou indo agora?

– Quem te ligou?

– 190. Seu parceiro está na minha lista de coisas a fazer... então, quando ele liga chamando uma ambulância, pede reforços no meio da noite e diz que não se lembra do que aconteceu com a vítima, eu recebo uma ligação básica.

Infelizmente, aquilo era algo com o que ela já estava se familiarizando. Thomas DelVecchio Jr. estava trabalhando no Departamento de Homicídios há apenas duas semanas e já quase tinha sido suspenso por nocautear um paparazzo que tentara tirar uma foto de uma vítima.

No entanto, aquilo era brincadeira de criança se comparado à confusão de agora.

– Como descobriu? – ela perguntou.

– Ele me acordou.

– E o que lhe pareceu?

– Vou ser honesto com você.

– Sempre é, detetive.

– Parecia que estava bem. Reclamou de uma dor de cabeça e perda de memória. Disse que havia muito sangue e que tinha certeza absoluta de que a vítima era David Kroner.

Mais conhecido como o bastardo doente que havia retalhado garotas e guardado pedaços delas. A última sessão de “trabalho” do bastardo tinha sido dirigir até aquele hotel há duas noites, mas foi interrompido por desconhecidos. Com a confusão, Kroner escapou por uma janela do banheiro, deixando para trás um cadáver numa posição trágica e uma caminhonete cheia de frascos com amostras e outros objetos – todos eles foram catalogados em seu esconderijo, e havia referências cruzadas a nível nacional.


– Perguntou se foi ele quem fez isso? – como membro do Departamento de Assuntos Internos, Reilly investigava os delitos de seus colegas e, apesar de se orgulhar do trabalho que fazia, não gostava do fato de que as pessoas com sua função sempre tivessem muito trabalho. Seria melhor se todos, incluindo os oficiais da lei, jogassem segundo as regras.

– Ele disse que não sabia.

Branco total ao cometer um assassinato? Não era incomum. Especialmente se fosse um crime passional – como, digamos, um detetive de homicídios querendo pegar um perverso serial killer. E Veck já tinha dado provas de ser um cara de pavio curto no que se referia à proteção ou defesa das vítimas. Bem, não era simplesmente pavio curto e ponto final. O cara era brilhante, um pavio curto muito sexy – não que o fato de ser sexy fosse relevante. Nem um pouco.

– Em quanto tempo você vai chegar lá, detetive? – ela perguntou.

– Uns quinze minutos.

– Estou a pouco mais de um quilômetro de distância. Vejo você lá.

– Entendido.

Quando desligaram, ela colocou o telefone no bolso interno do casaco e endireitou-se no banco. A possibilidade de um membro do departamento ser o suspeito na investigação de um assassinato – e considerando o que Veck havia dito ao pessoal da Emergência, que a probabilidade de Kroner ter sobrevivido era mínima – criava todos os tipos de conflito de interesse. Na maioria das vezes, o pessoal dos Assuntos Internos lidava com corrupção, infrações processuais e investigações sobre a competência no desempenho de funções. Mas, numa situação como essa, os membros do próprio departamento de Veck estavam numa posição delicada, pois deveriam avaliar se um de seus colegas havia cometido um crime.

Caramba, dependendo de como a situação se encaminhasse, ela teria de chamar algum reforço externo para efetivar a investigação. Mas era muito cedo para isso. Porém, não era muito cedo para pensar sobre o pai de Veck.

Todos sabiam quem ele era, e ela tinha de admitir que, se esse laço consanguíneo não estivesse em jogo, não estaria tão alerta... com a preocupação constante de que aquilo fosse resultado de uma revanche ao estilo DelVecchio, por assim dizer.

Thomas pai foi um dos serial killers mais conhecidos do século XX. Oficialmente, fora acusado e condenado por “apenas” 28 assassinatos. Mas estava envolvido em mais trinta – e isso era apenas o que as autoridades de quatro estados sabiam. Havia uma grande probabilidade de existir dúzias de mulheres desaparecidas, cujos casos não puderam ser relacionados adequadamente a ele.

Então, não, se o pai de Veck tivesse sido um advogado, contador ou professor, ela não estaria tão preocupada. Mas o velho ditado “tal pai, tal filho” tinha implicações terríveis quando se tratava de serial killers e seus filhos.

Depois de passar por uma ponte estreita, o Monroe Motel & Suítes surgiu mais acima, à direita, e ela passou lentamente pela gerência e pelos quartos até chegar ao final do estacionamento, próximo à floresta. Ao sair com uma mochila cheia de pequenos compartimentos, o aroma doce do diesel da ambulância a fez espirrar com força e, na sequência, sentiu o odor forte dos ramos de pinheiro... bem como o cheiro pungente e inconfundível de sangue fresco.

Os paramédicos estacionaram o veículo com a traseira voltada para a floresta e, sob a luz dos faróis, os dois profissionais trabalhavam sobre o corpo ensanguentado de um homem branco. As roupas da vítima haviam sido cortadas – ou rasgadas – e sob elas havia uma mistura de incontáveis ferimentos.

Não há chance alguma de ele sobreviver, ela pensou. Então, viu Veck. O detetive de homicídios estava em pé ao lado da cena do crime, com braços cruzados e pés bem firmados ao chão. O rosto mostrava... absolutamente nada. Assim como De la Cruz havia dito. Meu Deus, o cara poderia muito bem estar na fila de uma lanchonete daquele jeito.

Quando andou sobre a superfície esponjosa de folhas caídas e terra macia, sentiu um súbito frio na barriga. Embora, sinceramente, não fosse apenas pela cena do crime. Também era por causa do homem que deveria investigar. Próximo ao local, notou uma moto preta estacionada nos limites da floresta. Era dele, já tinha visto na delegacia antes. De fato, já o vira pela janela de sua sala montando naquela coisa, dando o impulso com o pé para iniciar o motor e arrancando para longe dali. Ele usava capacete – na maioria das vezes.

Ela sabia que muitas mulheres na delegacia observavam a cena, pois havia muito que olhar. Aqueles ombros pesados e quadris bem definidos mostravam a constituição de um boxeador, mas seu rosto era mais o de um garotinho bonito que o de um pugilista – ou seria, se não fosse por seu olhar. Aqueles olhos azuis-escuros, inteligentes e frios faziam com que toda a estrutura óssea, estilo modelo famoso, tornasse-o bastante viril. E havia algo mais.

Parando em frente a ele, a primeira coisa que notou foi o sangue na gola de sua blusa preta. Respingos aqui e ali, não eram grandes manchas ou partes encharcadas. Nenhum arranhão no rosto, ou no pescoço.

As roupas e o chapéu estavam em boas condições – nada desalinhado, rasgado ou amassado. Havia dois círculos de lama sobre os joelhos de suas calças pretas. A arma estava guardada no coldre. Não estava claro se tinha outras armas.

Ele não disse nada. Nada de “eu não fiz isso” ou “deixe-me explicar...”. Seus olhos apenas se fixaram nela.

Deixando de lado as gentilezas, ela disse: – O sargento me ligou.

– Imaginei.

– Está ferido?

– Não.

– Se importa se eu fizer algumas perguntas?

– Vá em frente.

Deus, ele tinha tanto autocontrole.

– O que o trouxe aqui esta noite?

– Sabia que Kroner voltaria. Tinha que voltar. Com sua coleção apreendida, não restava mais nada do seu trabalho, portanto, este é um local sagrado para ele.

– E o que aconteceu depois que chegou?

– Esperei. Ele chegou... e, então... – Veck hesitou, as sobrancelhas estreitaram-se como se fossem dar um nó e uma das mãos se ergueu para esfregar a têmpora.

– Droga...

– Detetive?

– Não consigo me lembrar – olhou para os olhos de sua colega outra vez. – Não consigo me lembrar de nada depois que ele apareceu, juro por Deus. Em um minuto ele surgiu vindo da floresta, no outro...? Havia sangue por toda parte.

– Posso ver suas mãos, detetive? – quando ele as estendeu, estavam firmes como rocha... e sem marcas de corte ou arranhões. Nada de sangue na palma das mãos, na ponta dos dedos ou nas unhas.

– Avaliou a vítima ou interveio em seus ferimentos antes de ligar para o 190?

– Peguei minha jaqueta de couro e coloquei sobre o pescoço dele. Não ia ajudar, mas eu fiz mesmo assim.

– Está carregando mais alguma coisa além da sua arma de fogo?

– Minha faca. Está no meu...

Ela colocou a mão sobre o ombro dele para impedi-lo de continuar.

– Deixe-me dar uma olhada.

Assentindo, virou-se. Sob a luz da ambulância, a lâmina guardada no pequeno coldre em suas costas era bem o que ela esperava ver.

– Posso ficar com a arma, detetive?

– Fique à vontade.

Tirando um par de luvas de vinil, vestiu-as e pegou o punhal. Quando puxou o objeto, percebeu que o corpo dele não se moveu. Poderia muito bem ser esta a sensação de desarmar uma estátua.

A faca estava limpa e seca. Levantando-a até o nariz, ela inalou. Nenhum cheiro de adstringente que indicasse ter sido higienizada às pressas.

Quando ele olhou por cima do ombro, o movimento de seu corpo fez seus ombros parecerem enormes e, sem qualquer motivo, ela percebeu que estava frente a frente com o peitoral dele. Com seu quase um metro e setenta, ela tinha uma altura mediana, mas, ao lado dele, ela sentia como se tivesse sido reduzida a uma miniatura.

– Vou confiscar isso, importa-se? – Ela ia pegar a arma dele também, mas, considerando os ferimentos da vítima... a lâmina era o que realmente queria.

– Nem um pouco.

Quando pegou um saco plástico, disse: – O que acha que aconteceu aqui?

– Alguém partiu ele ao meio e acho que fui eu.

Aquilo deteve-a, mas não por achar que fosse, de fato, uma confissão – não esperava que alguém naquelas circunstâncias fosse tão honesto.

Naquele momento, um carro sem identificação percorreu o estacionamento com duas viaturas.

– Seu parceiro chegou – ela disse. – Mas o sargento quer que eu lidere a investigação para evitar qualquer possibilidade de conflito de interesses.

– Sem problema.

– Concordaria se eu retirasse amostras do material sob suas unhas?

– Sim.

Ela colocou a mochila à sua frente outra vez e tirou um canivete suíço e alguns pequenos sacos plásticos.

– Você é muito organizada, oficial – Veck disse.

– Não gosto de estar despreparada. Por favor, estenda sua mão direita.

Ela fez um trabalho rápido, começando com o dedo mindinho. As unhas foram cortadas, mas não como uma manicure faria, e havia muito pouco sob elas.

– Tem experiência em trabalhos de investigação? – Veck perguntou.

– Sim.

– Parece mesmo.

Quando ela terminou, ergueu o olhar... e imediatamente teve que se desviar de seus olhos azuis-escuros como a meia-noite para algum outro lugar próximo.

– Quer outro casaco, detetive? Está frio aqui.

– Estou bem.

Se estivesse com um ferimento sangrando no peito, aceitaria um maldito esparadrapo? – ela pensou – ou bancaria o cara durão até não haver mais plasma em suas veias?

Bancaria o durão, com certeza, concluiu.

– Quero que os paramédicos deem uma olhada em você.

– Estou bem.

– Isto é uma ordem, detetive. Parece que está com dor de cabeça.

Naquele momento, De la Cruz emergiu de seu carro e, enquanto se aproximava, seu rosto parecia triste e cansado. O fato era que tinha perdido um parceiro há alguns anos. Obviamente, não estava empolgado com a ideia de repetir a dose, mesmo que por um motivo diferente.

– Com licença – ela disse aos dois. – Vou chamar um dos paramédicos.

Contudo, quando ela aproximou-se, eles estavam transferindo Kroner para a maca e, logicamente, não poderiam dispensar nem um minuto.

– Quais são as chances dele?

– Poucas – um deles disse. – Mas faremos o nosso melhor, oficial.

– Sei que farão.

Os suportes da maca foram estendidos até que esta ficasse à altura da cintura deles e, pouco antes de deslizarem o objeto, ela tirou uma foto mental. Kroner parecia ter sido retirado dos destroços de um carro fumegante, com o rosto desfigurado, como se não estivesse usando o cinto de segurança e tivesse sido lançado contra a janela.

Reilly olhou para Veck outra vez.

Há muitas lacunas nesta cena – pensou. Especialmente se concluísse que havia sido ele o agressor. Mas não havia muitas possibilidades de fazer todo aquele estrago e limpar tudo tão rápido no meio da floresta. Além disso, parecia que não havia se envolvido em alguma briga ou coisa assim – e não existe um jeito de lavar arranhões e hematomas.

Quem tinha feito aquilo? Era o que a incomodava.

Como se pudesse sentir o olhar dela, Veck girou a cabeça, e, quando os olhares encontraram-se, tudo desapareceu: era como se estivesse a sós com ele... não a quinze metros de distância, mas a quinze centímetros.


Do nada, um calor brotou, borbulhando pelo corpo de Reilly, o tipo de coisa que, se ela estivesse em casa, diria a si mesma que era a proximidade do duto de ar quente. Mas ali ela justificava a onda de calor como consequência da adrenalina do estresse.

Maldito estresse. Nada de atração sexual.

Ela interrompeu aquela conexão quando atentou-se aos policiais recém-chegados. Ordenou: – Poderia passar a fita aqui?

– Entendido, oficial.

Certo, hora de voltar ao trabalho: aquele breve momento de atração totalmente inadequada não atrapalharia o que tinha a fazer. Era muito sensata. Sua integridade profissional não exigia nada menos que isso. Também não tinha a intenção de permanecer muito tempo na lista de adoradoras do cara. Ia cuidar dos seus negócios e deixar os olhares embevecidos para as outras.

Além disso, caras como Veck não gostavam de mulheres como ela e não havia problema algum nisso. Estava muito mais interessada no trabalho do que em mostrar as pernas, soltar os cabelos e competir nos jogos olímpicos da sedução. Brittany – na verdade, escrevia-se Britnae, mais conhecida como a gostosa da delegacia – poderia conquistá-lo e ficar com ele à vontade se quisesse.

Enquanto isso, Reilly verificaria se o filho teria revivido ou não os horrores típicos dos atos do pai.


CAPÍTULO 2

 

Em circunstâncias normais, Jim Heron considerava-se um mau perdedor. E isso com qualquer coisa que jogasse no dia a dia, fosse vídeogame, tênis ou pôquer. Não que ele perdesse tempo jogando tudo isso, mas, quando jogava, era do tipo que não deixaria o controle, a quadra ou a mesa antes de estar por cima da situação.

Mas nada disso tem importância.

Quando se tratava da guerra com o demônio Devina, ele ficava em chamas de tão furioso: havia perdido a última rodada.

Perdido, o contrário de ter vencido. Na batalha por aquelas sete almas, ele e aquela vadia estavam empatados em um a um. Claro, ainda havia mais cinco disputas, mas não era essa a direção que ele ou qualquer outra pessoa precisava seguir.

Derrotado? Aquele demônio tinha domínio não só sobre a terra mas também sobre os céus... o que significava que sua mãe e todas as boas almas que ali estavam, assim como ele e seus soldados, que eram anjos caídos, poderiam um dia contemplar uma eternidade de tormentos.

E havia descoberto há pouco tempo que aquilo não era apenas algo hipotético que motivava os mais religiosos. O inferno era um lugar de verdade, e o sofrimento que ali havia era bem real. De fato, muito do que tinha concluído ser apenas retórica tola de todos aqueles que se diziam santos mostrou-se ser correto.

Então, sim, as apostas eram altas e ele odiava perder. Especialmente porque não precisava ter sido daquele jeito. Estava furioso com o jogo. Com seu chefe, Nigel. Com as “regras”.

Era senso comum: quando se diz a um cara que ele deve influenciar alguns idiotas numa encruzilhada da vida, facilita se disser quem eles são. Afinal, não era um grande segredo: Nigel sabia. O inimigo, Devina, sabia. Jim? Nem tanto assim, pessoal. E, cortesia do buraco negro de informação, concentrou-se no homem errado na última rodada e estragou tudo.

E lá estava ele, empatado com a vadia e furioso num quarto de hotel em Caldwell, Nova York. E não era o único enfezado por ali. No quarto ao lado, do outro lado de um conjugado, duas vozes masculinas graves iam e vinham, num tom de extrema frustração.

Nenhuma novidade. Seus companheiros, Adrian Vogel e Eddie Blackhawk, não estavam contentes e era claro que falavam mal dele em sua ausência. Voltar constantemente a Caldie não era tanto a questão. O problema era a razão pela qual Jim arrastou-os até ali.

Seus olhos percorreram o edredom. Cachorro estava enrolado como uma bola ao lado dele, seu pelo desalinhado dava a impressão de o terem entupido de gel e colocado, em seguida, diante de um vento forte, mas isso não tinha acontecido. Ao seu lado, havia a impressão de um artigo de três semanas do Correio de Caldwell. O título era “Garota local desaparecida”, e, ao lado do texto, havia a foto de um grupo de amigos sorridentes, cabeças unidas e braços estendidos por trás dos ombros uns dos outros. A legenda sob a imagem identificava a que estava no meio como Cecília Barten.

Sua Sissy.

Bem, não era bem “sua”, mas pensava nela como sendo sua responsabilidade. A questão era: ao contrário de seus pais, familiares e amigos da comunidade, sabia onde ela estava e o que havia acontecido com ela. A moça não fazia parte da enorme lista de jovens que fogem de casa e também não havia sido atacada pelo serial killer que, de acordo com o site do jornal daquela manhã, estava à solta. Porém, havia sido profanada. Por Devina.

Sissy foi uma virgem sacrificada para proteger o espelho do demônio, seu bem mais sagrado. Jim encontrou seu corpo pendurado de cabeça para baixo em frente à coisa, no covil temporário do demônio, e foi forçado a deixá-la para trás. Porém, mais tarde, pôde vê-la no muro de almas de Devina... presa, sofrendo, perdida para sempre entre os condenados que mereciam aquele destino.

Cecília não pertencia ao inferno. Era uma garota inocente e foi usada pelo mal – e Jim iria libertá-la, nem que fosse a última coisa que fizesse. Portanto, sim, foi por isso que voltaram a Caldwell. E a razão pela qual Adrian e Eddie estavam furiosos.

Mas, sem ofensa... que se fodam.

Com cuidado, Jim pegou o artigo e passou o polegar calejado sobre a imagem granulada do cabelo de Sissy, longo e loiro. Quando piscou os olhos, viu os fios cobertos de sangue pendendo sobre o ralo de uma banheira de porcelana branca. Então, piscou outra vez, e viu-a como na outra noite, na prisão viscosa de Devina, apavorada, confusa, preocupada com seus pais.

Ele queria ter ido direto conversar com os Barten, porém as reclamações de Adrian e Eddie só serviam para gastar saliva. Não ia tirar os olhos da guerra, pois não poderia suportar perder para Devina enquanto tentava tirar Sissy daquele poço de almas.

A porta do quarto conjugado abriu-se, foi quando Adrian, mais conhecido como “O que se Faz de Surdo”, entrou sem bater. Bem no estilo dele. O anjo estava vestido de preto, como sempre, e os vários piercings em seu rosto não constituíam nem a metade do que ele deveria ter pelo resto do corpo.

– Vocês terminaram de discutir sobre mim? – Jim virou o artigo para baixo e cruzou os braços sobre o peito. – Ou fizeram apenas uma pequena pausa?

– Que tal levar isto a sério?

Jim levantou-se da cama e ficou frente a frente com seu soldado.

– Estou dando qualquer indício de que ando brincando por aí?

– Não nos arrastou de volta a este lugar para a guerra.

– Até parece que não.

Enquanto se enfrentavam, Adrian não se intimidou, mesmo que Jim fosse um antigo assassino das Operações Extraoficiais e soubesse derrotar um peso-pesado de muitas maneiras diferentes.

– Aquela garota não é seu alvo – Ad disse – e, caso não tenha notado, perdemos um. Distrações não são nossas amigas.

Jim deixou passar a referência a Sissy: propôs-se a nunca falar sobre ela. Seus amigos testemunharam quando ele encontrou o corpo e viram o que aquilo fez com ele – então, sabiam o suficiente. E não havia motivo algum para pronunciar palavras que descrevessem o que foi vê-la naquela parede. Ou mencionar o fato de que, enquanto estava sendo usado e abusado por Devina e seus subordinados na última rodada, a jovem, possivelmente, assistiu assustada a tudo o que aconteceu com ele.

Droga... as coisas que aconteceram naquela mesa de “trabalho” eram algo difícil de testemunhar até mesmo para um homem habituado a guerras. Mas uma inocente? Que já estava aterrorizada?

Por um lado, naquele momento de sua vida, as violações não o incomodavam mais. Tortura, de qualquer maneira que fosse aplicada, não era nada além de uma sobrecarga de sensações físicas. Mas, por outro lado, ninguém precisava ser testemunha ocular daquilo, muito menos sua garota. Não que ela fosse sua.

– Vou conversar com Nigel – Jim respondeu. – Então, já terminaram de me detonar? Ou querem desperdiçar um pouco mais do meu tempo?

– Por que já não está lá?

Bem, porque estava sentado naquela cama, olhando para o nada, apenas pensando para onde diabos Devina tinha levado o corpo de Sissy.

Só que Jim não era o tipo de idiota que dava o braço a torcer.

– Jim, sei que essa garota é importante para você. Mas vamos lá, cara, precisamos cuidar dos negócios.

Enquanto Ad falava, Jim olhou por sobre os ombros do cara. Eddie estava parado na porta que ligava os dois quartos, seu corpo enorme estava tenso, os olhos vermelhos eram graves, aquela longa trança preta descia sobre o ombro, cuja ponta quase alcançava a cintura de suas calças de couro.

Caramba. O jeito espalhafatoso de Adrian dava vontade de xingar. Ou socar... o que já havia acontecido antes. Mas a rotina equilibrada e pacífica de Eddie não era um alvo. Era um espelho que simplesmente refletia o comportamento idiota de quem o observava.

– Tenho tudo sob controle – disse Jim. – E vou ver Nigel agora mesmo.

O arcanjo Nigel estava em seus aposentos particulares quando a convocação aconteceu. De qualquer maneira, já era hora de sair do banho.

– Vamos ter companhia – disse a Colin quando se levantou da água perfumada.

– Vou ficar aqui. O banho está numa temperatura perfeita – com isso, Colin esticou-se e fez um arco preguiçoso com o corpo. Seu cabelo escuro estava molhado com a umidade e havia cachos nas pontas. Seu rosto majestoso e inteligente estava relaxado como sempre. Nada muito exagerado.

– Sabe por que ele está vindo?

– Mas é claro.

Atravessando o mármore branco e afastando a cortina safira e coral, Nigel saiu e teve todo o cuidado ao colocar de volta no lugar o tecido aveludado. Ninguém precisava saber sobre sua companhia na sala de banho – embora suspeitasse que Bertie e Byron fizessem alguma ideia disso. No entanto, eram bastante discretos para dizer qualquer coisa.

Puxando um roupão de seda, não se preocupou em vestir nada mais formal. Jim Heron não se importaria nem um pouco com seu vestuário e, já pensando em como seria a conversa, sabia que precisaria voltar para o banho.

Com um gesto de sua mão, Nigel convocou o anjo que se encontrava na Terra, reunindo o corpo físico de Heron e materializando-o em seus aposentos particulares. Sobre seu divã de seda, para ser mais exato. O salvador parecia ridículo sobre o móvel framboesa, os braços e pernas pesados pendiam nas laterais, sua camiseta preta e o jeans surrado eram uma ofensa a um tecido tão delicado.

Heron caiu em si numa fração de segundo e ficou em pé num salto, pronto, alerta... e não muito satisfeito.

– Vinho gelado? – Nigel perguntou ao se aproximar de uma cômoda francesa com gavetas, cuja tampa de mármore servia de bar. – Ou talvez uma dose de uísque?

– Quero saber quem é o próximo, Nigel.

– Isso é um “não” para as bebidas? – levou um tempo escolhendo entre as pequenas garrafas de vidro e, então, serviu-se lenta e tranquilamente.

Ele não era um idiota qualquer a quem se fazia exigências, e Heron precisava aprender um pouco de boas maneiras. Nigel virou-se e tomou um gole.

– Leve e refrescante.

– Dane-se o vinho.

Nigel deixou passar essa e apenas encarou o salvador.

Quando o Criador apareceu diante de Nigel e Devina explicando que haveria uma competição final, os dois lados concordaram que Heron estaria sozinho no campo de batalha com as sete almas escolhidas. Cada adversário, naturalmente, queria seus valores representados, e o resultado foi que aquele forte anjo com espírito guerreiro, ali, em pé diante de Nigel, tinha o bem e o mal equilibrados dentro dele.

Contudo, Nigel tinha convicção de que o fato da mãe assassinada de Jim estar dentro dos muros da mansão seria crucial. Momentos como aquele faziam-no questionar o próprio fundamento daquele jogo decisivo. O anjo parecia pronto para matar.

– Tem que me dizer quem é.

– Como disse antes, não posso.

– Eu perdi, idiota. E ela trapaceou.

– Tenho plena consciência dos limites que ela ultrapassou e acho que se lembra do meu conselho: deixe-a fazer o que quiser. Haverá represálias.

– Quando?

– Quando acontecer.

Heron não gostou daquela resposta e começou a andar pelo local ornamentado com suas cortinas de cetim, tapetes orientais e a cama baixa... ao redor da qual – Nigel percebeu tarde demais – dois conjuntos de roupas estavam dispostos.

Nigel limpou a garganta.

– Não posso correr o risco de que haja uma reviravolta e tudo se volte contra nós. Já me rebaixei demais ao nível de Devina permitindo que Adrian e Edward o ajudassem. Se eu lhe ajudar mais, posso perder não apenas uma rodada, mas a competição inteira. E isso é inaceitável.

– Porém, você sabe quem é a alma. E Devina também.

– Sim.

– E isso não lhe parece uma grande injustiça? Ela irá atrás dessa pessoa... Provavelmente, já foi.

– Pelas regras estabelecidas e acordadas, ela não tem permissão de interagir com as almas. Ela, assim como eu, deve apenas influenciar você na maneira como vai influenciá-los. Contato direto não é permitido.

– Então, por que você não deteve o que aconteceu?

– Isso não é da minha alçada.

– Que saco, Nigel, estabeleça...

– Posso assegurar uma coisa: o saco dele está bem.

Com a interrupção seca, tanto Nigel como o salvador viraram-se para as cortinas que levavam à sala de banho. Colin não se preocupou em vestir um roupão, estava em pé diante deles nu e sem qualquer ar de desculpa.

E, agora que tinha a atenção de todos, o arcanjo acrescentou: – Também vou pedir para que controle o linguajar, companheiro.

As sobrancelhas de Heron ergueram-se rápido e houve um momento em que parecia estar assistindo a um jogo de tênis, alternando o olhar de um para o outro.

Nigel amaldiçoou baixinho. Sua privacidade e decoro tinham ido por água abaixo.

– Vinho gelado, Colin? – disse rispidamente. – E talvez um roupão?

– Estou bem.

– É verdade. Mas sua falta de modéstia não lhe protege muito bem do ar frio desse ambiente. E eu tenho um convidado.

Sua única resposta foi um grunhido. Que era a maneira de Colin proclamar que não havia razão para dar uma de velho azedo.

Adorável.

Nigel virou-se para o salvador.

– Sinto muito em não poder lhe conceder o que me pede. Pode acreditar.

– Você me ajudou com o primeiro.

– Houve permissão para isso.

– E veja o que aconteceu com o número dois.

Nigel escondeu sua preocupação atrás de um gole em seu copo.

– Sua paixão é louvável. E posso lhe dizer que seu retorno a Caldwell é bem útil.

– Obrigado pela dica. Há dois milhões de pessoas naquela maldita cidade. Isso não reduz muito as possibilidades.

– Nada é por acaso e não existem coincidências, Jim. Na verdade, há outra pessoa que procura o mesmo que você e, quando seus diferentes propósitos se unirem, encontrará a próxima alma.

– Sem ofensa, mas isso não significa merda nenhuma – Heron olhou para Colin. – E não vou pedir desculpas à fiscalização por isso. Sinto muito.

Colin cruzou os braços sobre o peito nu: – Faça como quiser, rapaz. E eu farei o mesmo.

Leia-se: talvez eu o esgane agora. Talvez depois.

A última coisa que Nigel precisava era de uma briga em seus aposentos, isso atrairia os outros arcanjos, assim como Tarquil, num piscar de olhos. Não era bem a interrupção que procurava.

– Colin – disse Nigel –, vá tomar banho.

– Já fiz isso, obrigado.

– Isso é uma questão de ponto de vista – Nigel murmurou antes de se dirigir a Jim. – Vá em frente e tenha fé que você estará no lugar certo e fará o melhor possível.

– Não acredito em destino, Nigel. É como pegar uma arma descarregada e achar que vai atirar em alguma coisa. Você mesmo tem que carregá-la com as balas.

– Estou lhe dizendo que há coisas maiores nesse trabalho do que seus esforços.

– Certo, ótimo, então coloque tudo num cartão de Natal. Mas não venha com besteiras pra cima de mim.

Encarando o rosto duro do salvador, Nigel teve um lampejo de medo. Com aquela atitude, havia mais uma coisa que jogava contra os anjos. Mas o que ele poderia fazer? Heron não tinha paciência ou fé, mas isso não mudava em nada as regras do jogo ou as chances de que o Criador corrigisse as liberdades que Devina havia tomado.

Ao menos esse último fato contribuía a favor deles.

– Acredito que já terminamos – Nigel disse. – Nada de bom virá a nosso favor se continuarmos a conversa.

Houve um momento obscuro, até mesmo maligno, durante o qual Heron olhou para ele com uma espécie de fúria.

– Tudo bem – disse o salvador. – Mas eu não desisto tão fácil.

– E eu sou a montanha que não será movida.

– Entendido.

Num piscar de olhos, o anjo se foi. E, quando o silêncio dominou o local, Nigel percebeu que não tinha mandado Heron embora. Ele tinha feito aquilo sozinho.

Estava ficando mais forte, não?

– Quer que eu desça e o vigie? – Colin disse.

– Quando concordei que ele seria o escolhido, pensei que haveria rédeas suficientes para contê-lo. Acreditava mesmo nisso.

– Então, repito, eu devo sair para vigiá-lo?

Nigel voltou-se para o seu querido amigo, que era muito mais que um colega e confidente.

– Essa é a tarefa de Adrian e Edward.

– Conforme estipulado. Mas fico pensando até onde essa competência, que aumenta cada vez mais, vai levá-lo. Acho que isso não nos guia por um bom caminho.

Nigel tomou outro gole de seu vinho e observou o espaço vazio que Heron tinha acabado de deixar. Apesar de continuar em silêncio, tinha que concordar. A questão era: o que fazer, o que fazer...


CAPÍTULO 3

 

Lá embaixo, na floresta fria próxima ao Monroe Hotel & Suítes, Veck permanecia parado sob o reflexo dos faróis da ambulância, com seu colega De la Cruz à direita e seu parceiro, Bails, à esquerda. Iluminado como estava, sentiu-se num palco quando Kroner surgiu dentre as árvores sobre uma maca.

Só que havia apenas uma pessoa olhando para ele. Sophia Reilly, a oficial de Assuntos Internos. Ela estava em pé próxima a ele e, quando os olhos dos dois encontraram-se, desejou que as circunstâncias fossem diferentes – de novo. O primeiro encontro com Sophia Reilly tinha sido quando ele agrediu aquele paparazzo. Mas a situação em que estavam agora fazia aquela agressão parecer uma caminhada na praia.

A questão era: gostou dela no momento em que apertaram as mãos, e essa primeira impressão foi reforçada naquela noite: o detetive dentro dele tinha aprovado totalmente a atuação profissional dela, bem como a maneira como o olhou. Se ele estivesse mentindo – e não estava –, ela teria percebido. Mas precisavam parar de se encontrar daquela maneira. Literalmente.

Sobre o asfalto do estacionamento houve um barulho alto quando os médicos fecharam as portas duplas da ambulância e, em seguida, o veículo afastou-se, levando a iluminação consigo. Quando Reilly voltou-se para observar a partida, já estava no escuro... até que acendeu uma lanterna.

Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, De la Cruz falou baixinho: – Quer um advogado?

– Por que ele precisaria de um advogado? – Bails exclamou.

Veck balançou a cabeça para seu amigo. Entendia a lealdade do cara, mas ele próprio não tinha tanta fé em si mesmo naquele momento.

– É uma boa pergunta.

– Então, vai querer? – De la Cruz sussurrou.

A oficial Reilly circulou a poça de sangue, transitou entre os troncos e galhos... Pequenos gravetos estalavam sob seus pés, aquilo soava alto nos ouvidos de Veck. Ela parou na frente dele.

– Terei de continuar com as perguntas amanhã, mas pode ir para casa agora.

Veck estreitou os olhos.

– Você vai me liberar?

– Nunca esteve sob minha custódia, detetive.

– Isto é tudo?

– Não, não. Mas não tem mais nada o que fazer aqui esta noite.

Veck balançou a cabeça.

– Ouça, oficial, isto não pode...

– A perícia criminal está a caminho. Não quero você aqui quando chegarem à cena do crime, pois isso pode comprometer o trabalho deles. Está suficientemente claro para você?

Ah, sim. E ele devia ter adivinhado. Estava escuro entre as árvores. Ele poderia manipular evidências com facilidade sem que ninguém soubesse, e ela queria fazê-lo sair dali de uma maneira discreta e educada.

Ela é esperta – pensou. E também era bonita: sob o brilho da lanterna, ela estava deslumbrante, do jeito que só uma mulher natural e saudável poderia ser – nada de maquiagem pesada para entupir seus poros ou pesar suas pálpebras, nenhum brilho gorduroso e escorregadio sobre seus lábios. Era totalmente verdadeira. O cabelo vermelho-escuro e pesado e o olhar de um verde profundo também não poluíam o visual. Além disso, havia a postura “nada de gracinhas” dela...

– Muito bem, oficial – ele murmurou.

– Por favor, esteja na sala do sargento amanhã, às 8h30.

– Você é quem manda.

Quando Bails murmurou alguma coisa em voz baixa, Veck rezou para que o bastardo guardasse suas opiniões para si mesmo. Reilly só estava fazendo seu trabalho – e era bastante profissional. O mínimo que poderiam fazer era retribuir o respeito.

Antes que seu amigo falasse algo, Veck bateu no ombro de Bails e assentiu para De la Cruz. Quando começou a andar, a voz séria e baixa de Reilly irrompeu no silêncio da noite: – Detetive.

Ele olhou sobre o ombro.

– Sim, oficial.

– Terei de levar sua arma. E seu distintivo. E o coldre daquela faca.

Certo. Mas é claro.

– O distintivo está na jaqueta de couro bem ali no chão. Quer fazer as honras com a minha nove milímetros e o cinto?

– Sim, por favor. E levarei seu celular também, se incomoda?

Quando ela aproximou-se, Veck sentiu seu perfume. Nada de frutas ou florais ou, meu Deus, aquela merda de baunilha. Mas também nada que pudesse classificar. Xampu talvez? Será que ela recebeu a ligação saindo do banho?

Que bela imagem... Espere um minuto. Estava mesmo fantasiando com sua colega de trabalho... a menos de dois metros da cena de um crime? Nossa. Sim, era isso mesmo o que estava fazendo.

Reilly colocou a lanterna na boca e, então, as mãos revestidas por luvas azuis brilhantes estenderam-se. Quando ele ergueu os braços para facilitar que tocasse sua cintura, registrou uma pressão sutil em seus quadris, o tipo de coisa que sentiria se ela estivesse tirando as calças dele...

O impulso elétrico que surgiu em seu pênis foi uma surpresa... E, Deus, ficou feliz por aquela luz estar sobre seu peito, e não mais ao sul. Cara, aquilo era tão errado... e contrário à maneira que agia. Nunca paquerava colegas de trabalho, fossem assistentes administrativas, colegas detetives... ou oficiais do Departamento de Assuntos Internos. Problemas demais quando chegava ao fim inevitável...

Santo Deus, onde estava com a cabeça?

Parece que não na realidade.

Era quase como se a magnitude do que havia acontecido naquele local cheio de folhas manchadas de vermelho fosse tão grande que seu cérebro buscasse refúgio em qualquer outro lugar para além do elefante gigante ensanguentado na floresta. Talvez estivesse simplesmente louco. E ponto final.

– Obrigada, detetive – Reilly disse ao afastar-se com a arma e o coldre de couro. – Seu celular?

Ele entregou-o.

– Quer minha carteira?

– Sim, mas pode ficar com sua carteira de motorista.

Quando o trabalho de confisco terminou, ela adicionou: – Além disso, gostaria que você tirasse suas roupas em casa para ensacá-las e levá-las a mim amanhã.

– Sem problema. E sabe onde me encontrar – ele disse com a voz rouca.

– Sim, sei.

Quando estavam prontos para partir, percebeu que não havia nenhum sinal de um queixo abaixado ou um olhar esquivo aparentando timidez. Nada de mexer nos cabelos. Nada de rebolar. Algo que, tudo bem, seria ridículo naquelas circunstâncias... Mas ele teve a sensação de que, se estivesse numa boate, ao lado do bar, ela também não agiria de outra maneira. Não era seu estilo.

Droga, ela simplesmente ficava mais atraente a cada minuto. Se aquilo continuasse, pediria Sophia Reilly em casamento na próxima semana.

Até parece...

Com isso, Veck virou-se pela segunda vez. E ficou surpreso ao ouvi-la dizer: – Tem certeza de que não quer um casaco, detetive? Tenho uma jaqueta extra no meu carro, pois sentirá frio na moto.

– Ficarei bem.

Por alguma razão, ele não queria olhar para trás. Provavelmente por causa de todo aquele grande público que eram os olhos de De la Cruz e Bails. Sim. Era isso.

Na moto, jogou a perna sobre o assento e pegou o capacete. Não o usou para chegar até ali, mas precisava conservar alguma parte do corpo aquecida. Quando deu a partida, esperava que De la Cruz se aproximasse dele e voltasse a comentar sobre o advogado. Em vez disso, o venerável detetive ficou onde estava e falou com a agente Reilly.


Bails foi quem se aproximou. O cara estava com roupas de academia, cabelo curto espetado, os olhos eram um pouco agressivos... sem dúvida porque não gostava que Reilly tivesse assumido o caso.

– Tem certeza de que está bem para ir para casa?

– Sim.

– Quer que eu lhe siga?

– Não – provavelmente o cara iria de qualquer maneira. Ele era assim.

– Sei que você não fez isso.

Quando Veck olhou para o parceiro, ficou tentado a desabafar sobre tudo: seus dois lados, a divisão que sentia há anos, o medo de que sua maior preocupação finalmente tivesse acontecido. Droga, sabia que podia confiar no cara. Ele e Bails fizeram academia de polícia juntos anos atrás e, embora tivessem seguido por caminhos diferentes, mantiveram contato e proximidade – até Bails convocá-lo para ir a Manhattan unir-se à equipe do Departamento de Homicídios de Caldwell. Duas semanas. Estava ali há apenas duas malditas semanas.

Assim que abriu a boca, uma van estacionou atrás dele junto com outros carros do Departamento de Polícia, anunciando a chegada da perícia.

Veck negou com a cabeça.

– Obrigado, cara. Vejo você amanhã.

Deu um solavanco com o corpo, ligou o motor e, enquanto aquecia a moto, olhou de volta para a cena. Reilly estava ajoelhada perto da jaqueta dele, revistando os bolsos. Assim como faria com sua carteira.

Oh, droga. Encontraria...

– Ligue se precisar de mim para alguma coisa, cara.

– Sim. Ligarei.

Veck acenou para Bails e partiu devagar com a moto, pensando ser desnecessário Reilly ver as duas camisinhas que sempre mantinha na carteira atrás dos cartões de crédito. Engraçado, ser um vadio nunca o incomodou antes. Agora, desejava ter dado um nó no pênis anos atrás.

Quando entrou na estrada propriamente dita, acelerou a moto e seguiu rugindo. Quando disparou pelas curvas da estrada 149, inclinava-se nelas, abaixando-se sobre os guidões, tornando-se apenas mais uma peça do projeto aerodinâmico de sua BMW. Com a alta velocidade, as curvas tornaram-se apenas pequenos movimentos para a esquerda e para a direita, enquanto ele e a moto desafiavam as leis da física. Bater em qualquer coisa naquela velocidade? Teria sorte se restasse algum pedaço grande o suficiente para enterrar.

Mais rápido. Mais rápido. Mais...

Infelizmente, ou felizmente, não tinha certeza, o fim da linha para ele não foi colidir em árvores, evitando um acidente com um carro ou um cervo.

Foi um outlet da Ralph Lauren.

Ou, especificamente, um semáforo próximo ao local.

Sair daquela sensação de velocidade da qual tanto gostava deixou-o num estado de desorientação estranho, e a única razão de ter parado no sinal vermelho foi que havia alguns carros na frente dele. Foi forçado a obedecer às leis de trânsito ou andar sobre os carros.

O maldito sinal levou uma eternidade para abrir, e a fila em que estava moveu-se a passo de lesma quando finalmente ficou verde. Ele teria atingido mais de cem quilômetros por hora na estrada, o que não ajudaria em nada. Não que estivesse fugindo de alguma coisa. Claro que não.

Passou por lojas como Nike, Van Heusen e Brooks Brothers. Sentiu-se tão vazio quanto os estacionamentos, e havia uma parte dele que desejava continuar... Desejava passar por aquela parte mais afastada da cidade, vagar pelo labirinto suburbano de Caldie, percorrer a área de arranha-céus e atravessar uma ponte que só Deus sabe onde daria.

O problema era que, aonde quer que fosse... lá estava ele: a mudança geográfica não mudaria se rosto no espelho. Ou aquela parte de si mesmo que ele nunca entendeu, mas também nunca questionou. Ou a porra que teria acontecido naquela noite.

Assassinara aquele bastardo doente. Não havia outra explicação. E não sabia o que Reilly tinha na cabeça ao deixá-lo ir. Talvez ele simplesmente precisasse confessar... Sim, mas o quê? Que tinha ido até lá com a intenção de matar e, em seguida...

A dor de cabeça que acometeu seu lóbulo frontal era o tipo de coisa que ele não suportaria. Nesses casos, tudo o que se faz é gemer e fechar os olhos... Mas isso não é a melhor opção quando se está em cima de uma moto que, praticamente, resume-se num motor com um assento acolchoado.

Forçando a concentração na estrada e em nada mais, sentiu-se aliviado quando a pancada no crânio suavizou e pôde seguir caminho.

A casa em que morava ficava num bairro cheio de professores, enfermeiras e representantes de vendas. Havia muitas crianças, e a conservação dos gramados nos quintais era feita por amadores – o que significava que, no verão, era muito fácil encontrar um gramado irregular, mas, ao menos, eram aparados regularmente.

Veck era um caso isolado ali: não tinha esposa, filhos e nunca contrataria um garoto para aparar a grama. Felizmente, tinha a impressão de que os vizinhos dos dois lados de seu quintal – praticamente um cartão-postal – eram do tipo que invadiam alegremente o território alheio com suas ferramentas.

Sua casa de dois andares era tão luxuosa e única quanto uma moeda de um centavo dos anos 1970. Portanto, como era de se esperar, foi nessa época que a casa viu sua última nova camada de papel de parede.

Estacionando na garagem, desmontou da moto e encaixou o capacete no guidão. Não havia muitos crimes naquela área... então, seus vizinhos aparadores de gramado faziam um ótimo trabalho, em vários sentidos.

Entrou pela porta lateral, passou pelo armário de casacos e caminhou até a cozinha. Não havia muita comida por ali: só algumas caixas vazias de pizza sobre o balcão e algumas embalagens da Starbucks amontoadas sobre a pia. Tinha envelopes meio abertos e relatórios espalhados sobre a mesa. O laptop estava fechado junto a cupons de desconto que ele nunca usaria. Também havia ali uma conta de TV a cabo que ainda não estava vencida, mas, provavelmente, acabaria vencendo, pois era péssimo em pagar as coisas em dia. Sempre ocupado demais para fazer um cheque ou acessar a internet para pagar.

Deus, a única diferença entre aquele lugar e sua sala no centro da cidade era o fato de ter uma cama king-size no andar de cima. Pensando nisso, lembrou-se de que a oficial Reilly queria que ele se despisse, não queria?

Pegou um saco de lixo debaixo da pia da cozinha e subiu as escadas pensando em contratar uma faxineira para limpar a casa uma vez por semana, assim não teria mais que encontrar teias de aranha em todos os cantos e montinhos de poeira que se multiplicavam embaixo do sofá. Mas aquilo não era um lar e nunca seria. Desinfetante e outros produtos de limpeza quatro vezes por mês não deixariam o local aconchegante. Porém, se levasse uma garota um dia até lá, ela teria um local decente para se vestir.

Seu quarto ficava na parte dianteira da casa, e tudo que havia nele era uma cama grande e uma escrivaninha. Suas botas, meias e calças foram tiradas rapidamente. Com a blusa foi a mesma coisa. Quando tirou sua cueca boxer preta, recusou-se a lembrar da oficial Reilly revistando-o. Simplesmente não seguiria por aí.

Dirigindo-se para o banho, ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, parou em frente ao espelho sobre a pia. Não havia reflexo para se preocupar... Tinha coberto o espelho com uma toalha de praia no dia em que se mudou. Não era fã de espelhos.

Ergueu as mãos e estendeu-as com as palmas para baixo. Então virou-as. Em seguida, olhou embaixo das unhas. Parecia que seu corpo, assim como sua mente, estava vazio de pistas. Embora aceitasse que a ausência de ferimentos, sangue ou coágulos em si mesmo fosse um indício... e, sem dúvida, a boa oficial Reilly também tinha notado.

Cara, era a segunda vez na vida em que se encontrava numa situação dessas. Na primeira... Não havia razão para pensar no assassinato de sua mãe. Não numa noite como aquela. Entrando no chuveiro, fechou os olhos e deixou a ducha cair sobre sua cabeça, ombros e rosto. Sabonete. Enxaguar. Xampu. Enxaguar.

Estava parado, envolvido no vapor, quando sentiu uma corrente: como se alguém tivesse aberto a janela do banheiro. O sopro de ar movimentou a parte de cima da cortina e acariciou sua pele. Sentiu arrepios quando percebeu que passava também pelo seu peito e descia por suas pernas e pelas costas. Contudo, a janela não fora aberta.

Foi por isso que removeu o boxe de vidro do banheiro e cobriu aquele espelho embutido sobre a pia. Foram as únicas coisas que mudou na casa, sendo que a melhoria era para manter a sanidade. Já fazia anos que se barbeava sem olhar no espelho.

– Fique longe de mim – ele disse, fechando os olhos e mantendo-os assim.

A corrente de ar enroscou-se nas pernas de Veck, como se mãos estivessem se movendo sobre sua pele, subindo cada vez mais, acariciando seu sexo antes de atingir o abdômen e o peitoral, até chegar ao seu pescoço... seu rosto... Mãos frias passaram pelo seu cabelo...

– Me deixe em paz! – estendeu o braço e empurrou a cortina. Quando o ar quente dissipou-se, tentou concentrar-se em si mesmo, expulsar o intruso, matar a conexão. Tropeçando no balcão, envolveu o corpo com os braços e inclinou-se, respirando com força e odiando a si mesmo, odiando aquela noite, odiando sua vida.

Sabia muito bem que era possível, se você tivesse um distúrbio de personalidade múltipla, que uma parte poderia se libertar e agir de maneira independente. Aqueles que sofrem disso podem ignorar completamente as atitudes tomadas por seu corpo, mesmo quando envolvem atos de violência...

Quando a dor de cabeça começou a latejar em suas têmporas outra vez, Veck amaldiçoou e conseguiu se enxugar. Em seguida, pegou a camisa de flanela e as calças de moletom do Departamento de Polícia de Nova York com que tinha dormido na noite anterior e deixado atrás do vaso sanitário. Estava prestes a descer as escadas quando uma rápida olhada pela janela imobilizou-o.

Havia um veículo estacionado do outro lado da rua a umas duas casas de distância. Conhecia cada veículo da vizinhança, todas as caminhonetes, vans, suvs, sedãs, carros híbridos... Aquele carro escuro, de um modelo recém-lançado, não estava na lista.

Contudo, era exatamente o tipo de carro sem identificação que o Departamento de Polícia de Caldwell usava. Reilly fora vigiá-lo. Muito bem... exatamente o que ele faria no lugar dela.

Finalmente, viu que era mesmo ela, em carne e osso.

Descendo as escadas, hesitou na frente da porta, considerando sair na rua, mesmo descalço, porque talvez ela, ou quem quer que fosse, tivesse respostas sobre a cena Conteve aquela brilhante ideia e foi até a cozinha. Tinha de haver algo para comer no armário. Tinha de ter. Ao abrir e procurar por um momento, só encontrou um monte de vazio entre as prateleiras. Qual supermercado de fadas ele achava que existia? Pois só assim entregariam comida: como mágica.

A fome era tanta que poderia jogar um pouco de ketchup numa caixa de pizza e mastigá-la. Seria bom para ele comer um pouco de fibra.

Delícia.

A duas casas da residência do detetive DelVecchio, Reilly estava sentada atrás do volante, tampando parcialmente a própria visão.

– Por tudo que é mais sagrado... – esfregou os olhos. – Não é adepto a cortinas?

Enquanto rezava para que a imagem espetacular de seu colega nu desaparecesse de suas retinas, repensou seriamente a decisão de vigiá-lo sozinha. Estava exausta, isso era fato... Ou estava, antes de, simplesmente, ter visto tudo o que Veck tinha para oferecer. Desconsidere o simplesmente.

O bom disso era que agora estava realmente alerta, muito obrigada... Era o mesmo que ter umedecido dois dedos e os ter colocado na tomada: a visão foi suficiente para dar todo o ânimo que tinha aos treze anos.

Murmurando para si mesma, deixou cair as mãos sobre o colo outra vez. E, meu Deus, enquanto olhava para o painel do carro, tudo o que via era... era a cena que tinha visto antes. Sim, uau, em alguns homens, estar sem roupas era muito mais do que estar nu.

E pensar que ela quase perdera o show. Estacionou o carro e assumiu sua posição quando as luzes do andar de cima acenderam-se e pôde, assim, ter uma boa visão do que acontecia no quarto. Inclinando-se no banco, não se deu conta de que a posição expunha os dois... Não se ateve a nada além do que parecia ser uma lâmpada no teto do que deveria ser a suíte principal.

Geralmente, a decoração de um apartamento de solteiro tendia a ser muito cheia de detalhes ou minimalista. Era óbvio que Veck seguia a linha minimalista.

De repente, ela não pensava mais na decoração, pois seu suspeito tinha entrado no banheiro e ligado o interruptor.

Olááá, garotão.

E o superlativo englobava várias coisas.

– Pare de pensar nisso... pare de pensar...

Fechar os olhos não ajudou: se já tinha notado como ele ficava bem dentro das roupas que vestia, agora sabia exatamente o porquê. Era muito musculoso e, considerando que não tinha qualquer pelo na parte superior do corpo, nada ocultava aquele peitoral, o abdômen e as saliências esculpidas que desciam até os quadris.

Aliás, por falar em depilação, tudo o que tinha era uma linha escura que percorria a distância entre o umbigo e o...

Bem, talvez tamanho seja importante – Reilly pensou.

– Oh, pelo amor de Deus.

Na tentativa de manter seu cérebro focado em alguma coisa, qualquer coisa mais apropriada, inclinou-se para frente e olhou pela janela oposta. Poderia dizer que a casa da frente tinha cortinas capazes de manter a privacidade. Muito bom, principalmente se concluísse que ele desfilava daquela maneira todas as noites. Talvez o marido tivesse instalado tudo aquilo para que sua mulher não começasse a ter desmaios.

Preparando-se, voltou a olhar a casa de Veck. As luzes tinham se apagado no andar de cima, e ela esperava que agora ele estivesse no primeiro andar, vestido... e permanecesse assim.

Deus, que noite.

Ainda esperava obter alguma prova concreta do que havia acontecido na cena do crime, mas não parava de pensar nos ferimentos de Kroner. Havia coiotes naquelas florestas. Ursos. Gatos selvagens. Havia grandes chances de o cara ter andado por ali com cheiro de sangue seco nas roupas e alguma coisa de quatro patas tê-lo visto como um Mc Lanche Feliz. Na tentativa de intervir, Veck foi jogado de lado. Afinal, estava esfregando a testa como se esta doesse muito, e Deus é testemunha de que traumatismos cranianos são conhecidos por causarem perda de memória em curto prazo. A falta de provas físicas nele apoiava a teoria, com certeza.

E, mesmo assim... Deus, o pai dele. Era impossível não relacionálos, ao menos um pouco. Como todo aluno de especialização em justiça criminal, ela estudou o caso de Thomas DelVecchio pai como objeto de disciplina... mas também passou tempo considerável refletindo sobre ele em suas aulas de desvios psicológicos. O pai de Veck era considerado um serial killer clássico: inteligente, astuto, comprometido com seu “ofício”, totalmente sem remorsos. E, ainda assim, ao assistir vídeos de entrevistas dele com a polícia, deparou-se com um homem bonito, atraente e agradável. Sem qualquer ligação aparente com um monstro.

Contudo, como muitos psicopatas, cultivava uma imagem e sustentava-a com cuidado. Foi muito bem-sucedido como comerciante de antiguidades. Porém, estabelecer-se naquele mundo arrogante, cheio de dinheiro e privilégios, foi apenas um refúgio inventado por ele. Tinha vindo do nada, mas possuía talento para encantar pessoas ricas – bem como para viajar a diversas partes do mundo e voltar com artefatos antigos e estátuas extremamente bem recebidas no mercado. Seus negócios nunca tinham passado por qualquer investigação até os assassinatos virem à tona, e, até hoje, ninguém fazia ideia de onde encontrava tudo o que tinha... Era como se tivesse um tesouro guardado em algum lugar do Oriente Médio. Com certeza não ajudou as autoridades a entender isso, mas o que poderiam fazer com ele agora? Já estava no corredor da morte. Logicamente, não por muito tempo.

Como teria sido a mãe de Veck...?

A batida na janela do carro, ao lado de sua cabeça, foi como um tiro, e Reilly empunhou sua arma em direção ao som menos de um segundo depois.

Veck estava parado na rua ao lado do carro, mãos para cima, o cabelo molhado brilhava sob a luz do poste.

Reilly baixou a arma e abriu a janela com uma maldição.

– Reflexos rápidos, oficial – ele murmurou.

– Quer levar um tiro, detetive?

– Eu disse seu nome. Duas vezes. Mas estava mergulhada em pensamentos.

Graças ao que tinha visto naquele banheiro, a camiseta de flanela e a calça de moletom pareciam muito fáceis de serem removidas, eram coisas que não resistiriam a um puxão. Mas, vamos lá, como se já não conhecesse cada brinquedo daquele parque de diversões.

– Já quer levar minhas roupas? – ele disse ao erguer um saco de lixo.

– Sim, obrigada – ela aceitou o pacote pesado pela janela e apoiou as coisas no chão do carro. – Os sapatos também?

Ao assentir, disse: – Quer que lhe traga um pouco de café? Não tenho muita coisa na minha cozinha, mas acho que consigo encontrar uma caneca limpa e café solúvel.

– Obrigada. Estou bem.

Houve uma pausa.

– Há alguma razão para não olhar nos meus olhos, oficial?

Acabei de vê-lo nu, detetive.

– Nenhuma – ela o encarou furtivamente.

– Deveria entrar. Está frio.

– O frio não me incomoda. Ficará aqui a noite inteira?

– Depende.

– Depende do clima, certo?

– Sim.

Ele assentiu e, então, olhou ao redor, casualmente, como se fossem vizinhos conversando sobre o tempo. Tão calmo. Tão confiante. Assim como o pai.

– Posso ser sincero com você? – ele disse de repente.

– É bom que seja, detetive.

– Ainda estou surpreso por me liberar.

Reilly passou as mãos sobre o volante.

– Posso ser sincera com você?

– Sim.

– Te liberei porque não acredito que tenha feito aquilo.

– Eu estava na cena do crime e havia sangue em mim.

– Você chamou a emergência e não fugiu. Aquele tipo de assassinato é muito difícil de ser cometido.

– Talvez eu tenha limpado tudo.

– Até onde vi, não havia qualquer chuveiro entre aquelas árvores.

Não. Pense. Nele. Nu.

Quando ele começou a balançar a cabeça como se fosse argumentar, Reilly interrompeu-o.

– Por que está tentando me convencer de que estou errada?

Aquilo calou-o. Ao menos por um momento. Então, disse em voz baixa: – Vai se sentir mais segura me seguindo?

– Por que não?

Pela primeira vez, alguma emoção percorreu a expressão fria de Veck, e o coração dela parou: havia medo em seus olhos, como se não confiasse em si mesmo.

– Veck – ela disse em tom suave –, se existir alguma coisa que eu não saiba...

Ele cruzou os braços sobre o grande peitoral e seu peso oscilava sobre os quadris, como se estivesse pensando. Em seguida, sussurrou e começou a esfregar a testa.

– Não sei de nada – murmurou. – Ouça, faça um favor a nós dois, oficial. Mantenha aquela arma por perto.

Não olhou para trás ao se virar e atravessar a rua.

Reilly percebeu que ele não usava qualquer calçado. Ao erguer o vidro da janela, observou Veck entrar na casa e fechar a porta. Em seguida, as luzes da casa apagaram-se, exceto uma no corredor do segundo andar.

Recompondo-se, ela acomodou-se sobre o banco e olhou para todas as janelas. Pouco depois, uma grande sombra entrou na sala de estar – ou melhor, parecia se arrastar até um móvel? Seria um sofá? Então, Veck sentou-se e sua cabeça desapareceu como se estivesse estendido sobre o móvel.

Era quase como se estivessem dormindo lado a lado. Bem, aquilo que os separava eram apenas as paredes da casa, o gramado mal aparado, a calçada, o asfalto e a estrutura que envolvia o carro.

As pálpebras de Reilly começaram a cair, mas era porque tinha abaixado a cabeça. Não estava cansada e nem preocupada em cair no sono. Estava bem alerta no interior escuro do carro. Mesmo assim, estendeu a mão e apertou o botão para travar as portas. Só para garantir.


CAPÍTULO 4

 

Vagando ao longo do corredor de concreto frio, o demônio Devina não seguia um caminho reto, mas sinuoso. Percorria várias salas de escritório, o tic-tac de vários relógios abafava o barulho que seus saltos produziam.

Tudo foi acomodado ali, sua coleção tinha se mudado com segurança para o porão do prédio de escritórios de dois andares. O local era perfeito, afastado do centro da cidade de Caldwell e, para parecer verdadeiro e não suscitar polêmicas, projetou a ilusão de que uma empresa de recursos humanos havia se instalado no local que agora ela percorria: os humanos só conseguiriam enxergar um próspero empreendimento que havia alugado o imóvel para se expandir dentro do mercado.

Seres humanos estúpidos. Como se, na atual circunstância da economia, alguém pudesse contratar ou pagar mão de obra especializada para preencher as vagas de trabalho que disponibilizavam.

Parou em frente a uma cômoda clássica produzida em Rhode Island, em 1801, e passou a mão sobre o mogno. O acabamento original ainda estava ali. Claro, ela evitou que o objeto ficasse exposto ao sol ou à umidade desde que o havia comprado há duzentos anos. Havia divisões nas gavetas cheias de botões, filas e mais filas de óculos e amontoados de pequenas caixas com anéis dentro delas. Possuía objetos similares nos outros gabinetes, todos objetos pessoais, feitos de diversos metais.

Além de seu espelho, aquela coleção era a coisa mais preciosa que tinha. Era a sua ligação com as almas, a segurança que precisava quando sentia-se insegura ou estressada na Terra, como agora.

No entanto, o problema daquela noite era que, pela primeira vez, tudo aquilo que vinha acumulando há séculos não a acalmava, não a deixava mais segura, nem diminuía sua ansiedade. Vagando por entre os objetos, estava longe da ajuda do vício que, há tanto tempo, provara-se muito útil.

E o que parecia ainda pior? Aquela noite deveria ser um “momento de recompensa”, como sua terapeuta definia. Um tempo para concentrar-se e saborear suas realizações: tinha vencido a última rodada contra Jim Heron e, mesmo sabendo que ele, Adrian e Eddie tinham se infiltrado em seu covil anterior, tinha conseguido reinstalar todas as suas coisas naquele novo e seguro local.

Deveria estar em êxtase. Mesmo assim, mesmo o cheiro de morte à deriva vindo do banheiro não lhe deu prazer: para proteger o espelho, precisava de muito mais que um sistema de monitoramento comum, e o novo sacrifício virginal que tinha pendurado sobre a banheira sangrava muito bem... quase pronto para ser usado, não era apenas decorativo.

Tudo estava a seu favor, ao menos superficialmente falando, e, ainda assim, ela sentia-se tão... Tédio, parece que era assim chamado... E que nome adorável para um péssimo estado de desmotivação.

Talvez só estivesse exausta por ter organizado tudo após a mudança. Tinha mais ou menos quarenta gabinetes cheios de aquisições de todas as eras da humanidade. Sempre que era forçada a se restabelecer em outro lugar, era obrigada a tocar cada objeto para se reconectar com a essência da vítima que permanecia no metal. E ainda precisava iniciar o ritual de contato, porém estava um pouco surpresa consigo mesma. Normalmente, não conseguia concentrar-se em mais nada até que houvesse aquela fissura no tempo, até que vagasse pelo local por alguns minutos e completasse o longo processo.

Acreditava que sua terapeuta veria aquilo como um progresso, considerando a compulsão que lhe era tão comum e inegável: aqueles objetos preciosos, que remontavam desde os tempos do Egito antigo até a França gótica, da Guerra Civil Americana aos Estados Unidos de hoje, eram o que a ligava à sua casa quando estava longe.

Ainda assim, não havia pânico para se refugiar naquilo que era seu pela eternidade. Parecia que seu maior desejo era lamentar-se e andar sem direção. Tudo culpa de Jim Heron.

Ele era tão desafiador. Dominante. Extraordinário. Tinha sido escolhido por ela e por Nigel – aquele filho da mãe arrogante – por ter o bem e mal equilibrados dentro de si... E, conforme ela tinha aprendido ao longo dos tempos, quando tratava-se da humanidade, o mal sempre vencia. Achava que atraí-lo para o lado dela não seria nada além de uma tarefa tediosa, o tipo de coisa que sempre fez com homens e mulheres desde o primeiro momento de sua existência. Em vez disso... era ela quem estava sendo sugada e seduzida.

Heron era tão... incontrolável. Mesmo quando o dominou e brincou com ele, quando seus subordinados torturaram-no, quando a verdadeira natureza dela foi revelada... ele permaneceu firme, inflexível, intransigente. E aquela força deixava-o inatingível.

Nunca tinha visto aquilo antes. Em ninguém. A questão era: controlar fazia parte de sua natureza, pois era uma perfeita parasita. Procurava uma maneira de replicar sua essência até que o local no qual havia se infiltrado se tornasse dela para sempre.

O desafio que Heron representava era inebriante, um tapa no rosto, uma rajada de ar fresco. Mas também parecia esvaziar a importância de toda a existência das coisas.

Abrindo uma gaveta, tirou uma fina pulseira de ouro com uma pequena pomba como pingente. A inscrição no interior do objeto apresentava-se em letra cursiva e delicada. Era um presente de dois pais para uma filha. Com uma data do ano anterior. Blá-blá-blá.

Ela odiava o nome Cecília. Muito. Aquela virgem sem importância... Que espinho em sua vida. O propósito daquela garota de sobrenome Barten era apenas o de proteger o espelho. Mas, agora, aquele pequeno lixo tinha algum tipo de ligação com Jim...

Quando estava prestes a esmagar o frágil objeto, um calor percorreu seu corpo, como se o toque de um amante tivesse passado não apenas sobre sua carne, mas sobre seus ossos.

Jim. Era Jim. Ele chamava-a.

Descartando a pulseira, verificou se a gaveta estava mesmo fechada e foi até o espelho que usava apenas para checar sua aparência. Em frente a ele, mudou sua forma, assumindo o corpo de uma linda morena, com seios que desafiavam a gravidade e um traseiro com mais volume do que uma estante de livros.

Ajeitou o cabelo, alisou a saia preta e achou que a barra estava longa demais. Erguendo-a com a força, virou-se e viu que suas coxas lisas e perfeitas estavam à mostra. De repente, estava viva. Bem, tecnicamente, viva não era o termo correto. Mas era assim que parecia: em apenas um momento, seu humor mudou de sepulcral para sublime. Só que não seria idiota com relação a isso. Confiante em sua saia curta, no decote e nos belos cabelos, entrou no banheiro.

– Como estou?

Deu um pequeno giro em frente ao jovem pendurado de cabeça para baixo sobre a banheira. Só que ele não disse nada, mesmo de olhos abertos.

– Ah, o que é que você sabe?

Ela abaixou-se e mergulhou a ponta dos dedos no sangue que escorria continuamente da carótida do rapaz. Impaciente com a demora, traçou alguns riscos em volta dos batentes da porta e no chão, indo e voltando da banheira para umedecer os dedos novamente com a “tinta”. A pureza da essência do jovem formava um selo mais eficaz que qualquer alarme de segurança já criado por um humano... Além disso, o processo permitia que ela livrasse o mundo de mais uma criatura mortal.

Seu trabalho ficava mais fácil assim.

Terminou o assunto com o senhor Tagarela e virou-se para o antigo espelho envolto por uma moldura um tanto apodrecida pelos séculos. A superfície gasta exibia um reflexo em constante mudança, ondas de cinza-escuro e preto rodavam em torno de um fundo cuja cor parecia a mancha de um tapete velho. Aquilo era um horrível portal e a única maneira de se aproximar das almas que possuía.

– Fique aí – disse a ele. – Volto já.

Aproximando-se da superfície do espelho, foi puxada por uma força cruel e entregou-se livremente àquilo. O corpo que havia assumido tornou-se caramelo ao passar por aquele local. Do outro lado, emergiu sem muita firmeza, jogada pela tempestade, mas não precisou de tempo algum para se recuperar.

Ao ajeitar o cabelo e alisar a saia apertada, pensou ser uma falha não ter um espelho ali. No entanto, não precisava preocupar-se com a opinião de seus subordinados ou de suas almas... Oh, suas adoráveis almas... bem, tinham outras coisas em mente.

Inclinando a cabeça para trás, olhou as paredes que se estendiam por quilômetros num negro brilhante visível desde o chão de pedra. O contorcionismo dos condenados torturados desafiavam os limites de sua viscosa prisão; rostos, quadris, joelhos e cotovelos esticavam-se tentando alcançar uma liberdade impossível, as múltiplas vozes erguiam-se num lamento miserável e abafado.

– Como estou? – ela gritou para cima.

O volume do coro de gemidos aumentou como resposta, mas não lhe disseram absolutamente nada. Pelo amor de Deus, será que não conseguiria uma opinião? Qualquer uma?

Depois de olhar para si mesma mais uma vez, concedeu acesso a Jim, convocando sua forma física no local. Enquanto esperava, seu coração batia três vezes mais rápido, uma corrente percorria cada centímetro de sua pele com um chiado elétrico. Mas não demonstraria isso. Calma. Fique calma.

Jim chegou num redemoinho de névoa, e ela prendeu a respiração.

O salvador escolhido era o melhor exemplar que havia do sexo masculino. De uma constituição grande e letal, seu corpo era um instrumento de guerra e sedução. Era primitivo, intenso...

– Você me deseja – disse ela em voz baixa.

Os olhos dele estreitaram-se, e o ódio que havia neles fez mais pela libido de Devina do que um prato cheio de ostras poderia fazer.

– Não dessa maneira, querida.

Oh, como ele mentia.

Devina foi até a mesa de trabalho rebolando e passou as pontas dos dedos sobre a superfície esburacada e sem cor. As memórias dele amarrado nu, de pernas bem abertas e com seu sexo brilhando por ter sido usado há pouco, fizeram-na respirar fundo.

– Não? – ela disse. – Você me chamou. Não o contrário.

– Quero que me diga quem é a próxima alma.

Interessante.

– Então, Nigel mandou você até aqui quando fez a mesma pergunta a ele, não foi?

– Não disse isso.

– Bem, acho difícil acreditar que me procurou primeiro – murmurou em tom amargo. – E acha que vou te contar?

– Sim, acho.

Soltou uma risada violenta.

– Já deveria saber como sou.

– E vai me dizer.

– Por que eu haveria de...

Uma das mãos ergueu-se e Jim começou a passá-la pelo peitoral de maneira intensa e lentamente, oh, bem lentamente, descendo pelo seu estômago...

Devina engoliu em seco. E, então, sua boca ficou realmente seca quando ele segurou o próprio órgão entre as pernas.

– Tenho algo que deseja – ele disse asperamente. – E vice-versa.

Bem, bem, bem... Desejava ficar com ele, sim, mas era muito melhor quando a ligação era voluntária. Ele teria que se esforçar para fazer sexo com ela, sacrificar sua carne para obter informação... na frente de sua doce e estimada Sissy.

Devina olhou para a parede e encontrou a alma com a qual ele tanto se preocupava. Ao descer a garota, inclinou-se contra a mesa.

– O que, exatamente, você está me propondo?

– Diga quem é e eu fodo você.

– Faça amor comigo.

– Vai ser uma foda. Pode acreditar.

– Chame da maneira que quiser... mas não tenho certeza – que mentira. – É uma informação muito valiosa.

– Bem, sabe como eu sou.

Ah, ela sabia e desejava-o outra vez. Desejava sempre.

– Tudo bem – ela disse. – Vou te dizer quem é e, em troca, vai se entregar para mim sempre que eu quiser. Tem que estar à minha disposição.

Os olhos dele estreitaram-se outra vez, como fendas que o faziam parecer um predador.

E, então, houve apenas silêncio. Enquanto o silêncio estendia-se, ela permaneceu firme. Ele tinha voltado, isso era muito estranho, mas precisava agradecer a Nigel – o idiota que sempre seguia as regras – por isso. Se o arcanjo tivesse deixado escapar o nome da alma, aquele maravilhoso sacrifício não estaria acontecendo.

– Certo.

Devina começou a sorrir...

– Com uma ressalva – quando a expressão dela congelou, ele disse: – Ficarei com você agora em troca do nome. Então, veremos se é o correto. No final da rodada, se não tiver mentido... você terá o que deseja. Sempre que quiser.

Devina rosnou. Maldito livre arbítrio. Se ao menos pudesse dominar tal atributo de maneira mais apropriada, ele não imporia qualquer condição. Mas não era assim que funcionava.

Ainda há algumas brechas – pensou. Algumas maneiras de distorcer o acordo para que não falasse demais e ainda conseguisse possuí-lo.

– Temos um acordo? – ele perguntou.

Olhou sobre o ombro dele, enquanto se aproximava, em direção à pequena forma na parede que havia convocado para assistir de camarote o que aconteceria.

Quando Devina tocou o corpo forte e ergueu-se na ponta dos pés, ficou encantada com a carne rígida que acariciava. No ouvido de Heron, sussurrou: – Tire as calças.

– Feito ou não, demônio?

Estava inabalável diante dela, perfeitamente capaz de negá-la, tanto agora como no futuro. Mesmo estando bem na frente dela, era completamente intocável.

Só que era como ele mesmo havia dito, os dois tinham algo que o outro desejava.

– Tire as calças – afastou-se pronta para aproveitar o espetáculo. – Faça isso devagar... e teremos um acordo.

– Que maldição ele está fazendo lá?

Quando Adrian expressou toda sua retórica, indignado, não esperava uma reação de seu colega de quarto. Poderia passar com um carro sobre os pés de Eddie e, talvez, conseguisse obter um ai. Era mais provável que o anjo apenas piscasse os olhos e chutasse o veículo com força.

Sinceramente, aquela coisa toda de forte e silencioso podia ser bem irritante.

– Já faz duas horas – parou no pé da cama em que Eddie estava esparramado. – Ei? Está acompanhando a situação? Ou planeja dormir durante a rodada?

As pálpebras ergueram-se exibindo olhos vermelhos.

– Não estava dormindo.

– Meditando. Que seja.

– Não estava meditando.

– Tudo bem. Manipulando psiquicamente campos de energia...

– Você me deixa atordoado quando fica andando de um lado para o outro sem parar. Só estou evitando uma vertigem.

Não acreditou naquilo nem por um segundo.

– Preocupar-se um pouco com a situação o mataria?

– Quem disse que não estou preocupado?

– Eu disse – Adrian correu os olhos ao longo do corpo grande e imóvel de seu colega. – Estou prestes a pegar um desfibrilador e dar uma descarga na sua bunda.

– O que posso fazer, Ad? Ele voltará quando for a hora.

Imagens de Nigel, o afeminado, aproximando-se todo elegante de Jim fez Adrian pensar se não precisariam de um serviço funerário. Aquele arcanjo poderia passar o tempo jogando críquete e polo, mas não significava que não daria um jeito no cara... E Jim tinha deixado o local com vontade de acabar com alguém. Talvez o bastardo tivesse conseguido aquilo que procurava.

Adrian começou a andar novamente, mas o quarto de hotel não oferecia muito em termos de espaço. Pensou em descer ao bar...

Houve um rangido no quarto ao lado. Como se alguém tivesse sentado na cama. Ou aberto e fechado alguma coisa.

Ad estendeu a mão para a parte traseira da cintura e pegou a adaga de cristal. Se fosse apenas um humano tentando roubar um notebook, não precisaria daquilo. Mas, se Devina tivesse enviado mais um de seus subordinados para distraí-los, a arma seria bastante útil.

Empurrando a porta do quarto conjugado apenas um centímetro ou dois, inclinou-se. Uma camiseta preta foi arremessada para fora do banheiro. Em seguida, uma calça jeans.

Bota.

Bota.

O chuveiro foi acionado e, na sequência, houve um silvo, como se Jim não tivesse esperado a água aquecer primeiro.

Droga. Não tinha visitado apenas Nigel, tinha?

Adrian guardou a adaga outra vez, empurrou a porta com força, atravessou o quarto e sentou-se na cama do outro anjo. Deus sabia que não havia razão para arrancar a roupa e correr para uma ducha de água quente após um encontro com o arcanjo. O pobre coitado deve ter ido até Devina... E ninguém precisava pensar duas vezes para descobrir o que havia acontecido.

Ouvindo o som de Jim lavando o fedor do demônio, Adrian sentiu-se cansado ao ponto de perceber a visão turva de tanta exaustão. O que significava aquele caminho que o salvador decidiu seguir? Ir até lá. Fazer aquilo. Perder a cabeça.

Era este o negócio de Devina. Ela penetrava em você. No começo, você ainda achava que estava no controle. Depois, aquilo que fazia com ela, por razões que pareciam ser muito sensatas, devorava-o, e Devina entrava em sua pele e assumia a direção. Era assim que trabalhava e era muito bem-sucedida.

Quando Jim finalmente saiu do banheiro, parou com uma toalha nas costas, um braço erguido e outro abaixado. Havia marcas de arranhões nas coxas e no abdômen e seu sexo pendia desanimado, como se tivesse sido muito usado e deixado para morrer.

– Ela vai comê-lo vivo – Adrian disse.

O anjo responsável por salvar a tudo e a todos balançou a cabeça.

– De jeito nenhum.

– Jim...

– Ela vai nos dizer quem é a alma – Jim envolveu a toalha em torno de seus quadris. – Vamos encontrá-la amanhã cedo.

Caramba.

– Espere, ela não lhe deu a informação agora?

– Amanhã cedo.

Ad apenas balançou a cabeça.

– Ela está brincando com você...

– Ela vai mostrar. E vai dizer. Confie em mim.

– Ela não é uma fonte confiável. E esse não é o caminho da vitória.

– Então, você acha melhor obter o resultado da última rodada?

Bem... droga.

Jim foi até a mochila e pegou um uniforme militar. Quando virou-se e começou a se vestir, aquela tatuagem enorme em suas costas, com o Ceifeiro da Morte num cemitério, contorceu-se e voltou a assumir a forma original.

Talvez Jim fosse mais durão. Aquilo seria um golpe baixo e dolorido, algo que Ad admitiria apenas diante de sua carcaça fumegante. Mas, se o cara conseguisse suportar tudo aquilo... se pudesse, de alguma maneira, manter-se em pé... então, tinham a melhor arma naquela luta, pois o demônio tinha uma atração pelo cara. Uma grande atração.

Jim foi até o jeans que atirara pela porta do banheiro e vasculhou os bolsos. Quando ergueu-se novamente, havia um quadrado de papel dobrado em suas mãos.

As mãos tremiam, ainda que levemente. Quando ele abriu cuidadosamente o papel, Adrian, mesmo sem ver o que havia ali, esfregou o rosto e desejou que um carro tivesse caído sobre sua cabeça. Sabia muito bem que era o objeto pessoal daquela garota que encontraram sobre a banheira de Devina – a virgem pela qual Jim estava obcecado.

Idiota – Ad pensou. Estavam ferrados. Estavam muito ferrados.


CAPÍTULO 5

 

Veck acordou no sofá de sua sala de estar. O que foi uma surpresa, pois não tinha um.

Esfregando os olhos por causa da bela luz do sol, ficou surpreso por ter controlado o desejo de dormir mais perto da oficial Reilly, tanto que conseguiu se arrastar apenas até ali.

Sentou-se e olhou para a rua. O carro sem marcas de identificação havia partido, e ficou pensando em quando ela se fora. Da última vez que olhou, ainda estava lá, às quatro horas. Gemendo, esticou o corpo, seus ombros estalaram. Detalhes da noite anterior voltaram à memória, mas Veck, instintivamente, quis ficar longe do Monroe Motel & Suítes. Já sentia-se péssimo, não precisava adicionar uma dor terrível à fumaça que saía de sua cabeça.

Quando ficou em pé, ainda teve de lidar com uma ereção matinal obscena – outra coisa para se ignorar. Tinha a impressão de que se envolvera num sonho ousado e espetacular entre ele e a oficial do Departamento de Assuntos Internos. Alguma coisa sobre ela cavalgando em cima dele... O corpo de Veck estava quase todo vestido, ela estava completamente nua... não, espere, estava com o distintivo e a arma no cinto sobre o quadril.

– Droga... – quando seu pênis começou a ficar rígido, rezou para perder outra remessa de memórias de curto prazo e amaldiçoou o pornô clichê. Mas, agora, poderia entender por que os caras de outros departamentos achavam Reilly atraente.

Considerando a direção que seu cérebro estava tomando, não tinha certeza se adicionar cafeína à mistura era uma boa ideia, mas seu corpo precisava se reerguer. Foi chato quando descobriu que havia mentido para a oficial Reilly. Depois de ter conversado com ela e entrado, percebeu que estava sem pó de café.


No andar de cima, tomou banho, barbeou-se e vestiu o uniforme de trabalho: calça e camisa. Nada de gravata para ele, apesar de muitos detetives usarem. Nada de terno. Não usava nada desse tipo, a não ser jaqueta de couro, ou de motociclista, ou algo assim, bem informal.

No andar de baixo, pegou o casaco-reserva no armário, a chave da moto e trancou tudo. Ao se aproximar da BMW, lembrou que levaram várias coisas dele na noite anterior, por isso sentia-se tão leve. Nada de celular para checar as mensagens de voz. Nada de distintivo no bolso da frente. Nada de arma no coldre. Nada de carteira no bolso de trás da calça. A oficial Reilly ficou com tudo. Até com suas roupas de baixo.

Colocou o capacete e subiu na moto, a manhã estava clara e brilhante demais para ele... E nem tinha amanhecido completamente. Cara, considerando a pequena fresta que seus olhos conseguiam abrir, era bom saber que a moto já conhecia o caminho.

De la Cruz tinha levado Veck ao restaurante Riverside há alguns dias, e ele já se perguntava como tinha conseguido sobreviver, até então, sem uma boa dose daquela comida gordurosa. Seguindo o caminho do local, pegou as marginais pavimentadas, pois, mesmo às 7h45, a estrada principal estaria lotada.

O restaurante ficava às margens do rio Hudson, a apenas uns quatro quarteirões da delegacia... E, quando parou no estacionamento cheio de veículos sem identificação, entendeu que tinha chegado ao seu destino. Havia uma grande possibilidade de que metade da força policial também estivesse ali para tomar sua caneca de café de sempre, mas era tarde demais para ir a outro lugar.

Pouco antes de entrar, depositou 75 centavos numa máquina que distribuía o Correio de Caldwell e pegou um exemplar do jornal. Não havia nada sobre a noite passada na primeira página, então virou a página procurando um artigo que...

E lá estava seu nome. Em negrito.

A reportagem, no entanto, não era sobre ele ou Kroner. Era sobre seu pai, e ele rapidamente pulou o texto. Não queria acompanhar as acusações, o julgamento, a sentença de morte, nada que tivesse relação com seu pai. E, meu Deus, quando finalmente foi pego pela justiça criminal, ficou doente no dia em que cobriram o caso.

Não havia nada demais no resto da primeira sessão, nada nas notícias locais, nada nas seções de esportes, quadrinhos ou classificados. Porém, a falta de cobertura sobre o caso não duraria muito. Os repórteres tinham algum acesso aos relatórios policiais e, provavelmente, a história já estava na televisão e nos rádios. Um detetive do Departamento de Homicídios ligado tão diretamente aos atos de um psicopata? Era esse tipo de porcaria que vendia jornais e justificava os preços dos anúncios.

Ao empurrar a porta de vidro, entrou no ambiente ruidoso do Riverside com sua face enterrada nos artigos esportivos. O local estava cheio, quente e com um barulho tão alto como num bar. Teve o cuidado de não fazer contato visual com ninguém enquanto olhava ao redor procurando uma cadeira livre ou uma mesa vazia.

Não havia nada vago. Maldição. E não queria muito juntar-se a uma mesa cheia de oficiais da polícia. A última coisa que precisava era o monte de perguntas que seus colegas fariam. Talvez ele devesse ter ido direto à delegacia e recorrido a uma máquina de bebidas.

– Bom dia, detetive.

Veck olhou à direita. A bela oficial Reilly, que estava sentada na mesa mais próxima que havia da porta, de costas para ele, virou a cabeça a fim de olhar para ele por sobre o ombro. Tinha uma xícara de café à sua frente, um celular na mão e uma expressão de que nada fazia sentido.

– Quer me acompanhar? – disse, apontando para a mesa.

Ela devia estar brincando. Havia mais ou menos uma dúzia de membros da força policial olhando para eles... Alguns de uma maneira mais sorrateira que outros.

– Tem certeza de que quer ser vista comigo?

– Por quê? Não sabe se comportar à mesa?

– Sabe o que quero dizer.

Ela deu de ombros e tomou um gole do café em sua xícara.

– Nossa reunião com o sargento é daqui a vinte minutos. Vai ter muita sorte se conseguir um lugar para sentar até lá.

Veck deslizou na frente dela.

– Pensei que no Departamento de Assuntos Internos vocês sempre se preocupassem com o decoro.

– São apenas dois ovos, detetive, nada demais.

Veck colocou o jornal de lado.

– Está certo.

A garçonete veio com o bloco de notas e o lápis a postos.

– O que vai ser?

Não havia razão alguma para olhar o cardápio. O Riverside tinha todo tipo de omelete, ovos e torradas conhecidos pelo ser humano. Estava com vontade de comer uma torta no café da manhã? Um sanduíche com bacon e tomate? Cereais, aveia e panquecas? Muito bem, que seja... Mas faça logo seu pedido e coma rápido antes que outra pessoa sente no seu lugar.

– Três ovos mexidos. Gema dura. Torradas com manteiga. Café. Obrigado.

A garçonete sorriu como se tivesse aprovado a eficiência.

– Já vai sair.

Eeeee lá estava ele sozinho com Reilly. Ela tinha tomado banho e vestido um conjunto bem profissional de saia e camisa de botões. O tailleur, combinando com a roupa, estava dobrado com cuidado ao lado dela em cima do casaco. Seus cabelos vermelho-escuros estavam amarrados para trás outra vez e toda a maquiagem que ostentava era constituída apenas de um pequeno traço de batom.

De fato, quando ela apoiou a xícara de café na mesa, havia uma meia-lua rosa onde havia tocado com a boca. Não que ele estivesse observando os detalhes de seus lábios. Não mesmo.

– Estou com um relatório preliminar sobre o caso – ela disse.

Hum... aqueles olhos não eram apenas verdes, como ele havia concluído antes. Havia traços de avelã, produzindo uma combinação única de cores que parecia verde apenas a distância.

– Desculpe, o que você disse?

– Tenho um relatório preliminar de ontem à noite.

– E?

– Não foram encontradas outras armas no local.

Manteve-se tranquilo por força do hábito.

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a garçonete entregou o café dele e o pedido de Reilly: uma tigela de mingau de aveia com uma torrada. Sem manteiga.

– É só trigo? – ele perguntou.

– Sim.

Claro que era. Provavelmente ela comia uma salada leve no almoço com alguma fonte de proteína e uma taça de vinho, quando muito, e, no jantar, deveria ser apenas legumes e frango grelhado e alguma coisa com baixo índice glicêmico.

Ficou pensando o que ela teria achado do ataque cardíaco caprichado que ele pedira.

– Por favor, não espere por mim – ele disse.

Ela pegou a colher e adicionou uma pequena quantidade de açúcar mascavo e creme.

– Quer saber o que acho que aconteceu?

– Sim, quero.

– Um animal selvagem te atacou, e, em meio à confusão, você bateu a cabeça.

Ele esfregou o rosto.

– Não tenho marcas.

– Pode ter caído de costas.

Na verdade, não é que ele havia pensado nisso?

– Mas não há qualquer inchaço. E meu casaco ficaria todo sujo.

– Está sujo.

– Apenas por eu ter colocado sobre o Kroner.

Ela baixou a colher.

– Pode provar? Como sabe se foi só isso se não consegue se lembrar de nada? Além disso, sua cabeça estava te matando ontem à noite e, a propósito, você está fazendo isso outra vez.

– Fazendo o quê?

– Discutindo comigo sobre o que aconteceu. E também está esfregando a testa.

Quando ele amaldiçoou e voltou a colocar as mãos sobre a caneca de café, ela sorriu um pouco.

– Adivinhe só, detetive? Você vai ser examinado na delegacia assim que terminarmos nossa reunião.

– Estou bem – Deus, podia ouvir o tom dissimulado em sua voz.

– Lembra-se do que eu disse ontem à noite, detetive? É uma ordem.

Ao se ajeitar na cadeira e beber um pouco do seu estimulante, viu-se observando o dedo anelar de Reilly. Não havia nada. Nem mesmo uma marca mais clara, como se alguma já tivesse passado por lá.

Desejou que estivesse usando um anel de compromisso simples: ele não se metia com mulheres casadas. Nunca. Claro que já atrapalhou alguns casais em sua história de encontros casuais, mas apenas por não saber que eram comprometidas. Era um vadio com valores, sabe?

– Por que você não me suspende?

– Outra vez com uma negativa.

– Não quero que arruíne sua carreira comigo – murmurou.

– E não tenho qualquer intenção de permitir que isso aconteça. Mas não há evidência de que tenha sido você o responsável pelo ataque, detetive, portanto, é o suficiente... só não sei por que você continua a me pressionar.

Quando encarou os olhos dela, ouviu-se dizer: – Sabe quem é meu pai, não sabe?

Aquilo conteve-a por um momento, sua porção de fibras sem gordura voltou para o prato no meio do caminho. Até parou de mastigar.

Então, a bela oficial Reilly recuperou-se com um encolher de ombros.

– Claro que isso é ruim, mas não significa que você tenha dilacerado alguém – inclinou-se. – Mas é o que você teme, não? E por isso continua a bancar o advogado do diabo.

A garçonete escolheu aquele momento para aparecer com o prato fumegante cheio de colesterol, e sua chegada foi um salva-vidas conversacional, se é que existia este tipo de coisa.

Salgou o prato. Colocou pimenta. Espetou com o garfo e comeu.

– Ajudaria se conversasse com alguém? – Reilly disse, quase inaudível.

– Um psiquiatra?

– Terapeuta. Eles podem ser bastante úteis.

– Diz isso por experiência pessoal, oficial?

– Na verdade, sim.

Ele soltou uma risada alta: – Por algum motivo, não acredito que eu seja o tipo de pessoa que precise de algo assim.

– Todos têm problemas.

Sabia que seria um tanto inconveniente, mas sentiu-se nu – e no mal sentido.

– Então, conte-me um dos seus.

– Não estamos falando de mim.

– Bem, estou cansado de estar no palco sozinho – quebrou um pedaço de torrada em duas. – Vamos lá, oficial. Conte alguma coisa sobre você.

– Sou um livro aberto.

– Que precisa de terapia? – quando ela não respondeu, ergueu o olhar para encará-la. – Covarde.

Os olhos da mulher estreitaram-se, ela inclinou o corpo para trás e empurrou a vasilha, ainda metade cheia, para frente. Ele esperava alguma réplica espirituosa. Ou, mais ainda, um tapa. Em vez disso, ela enfiou a mão no bolso, pegou uma nota de dez dólares e a colocou entre eles sobre a mesa.

– Vejo você na sala do sargento.

Com uma graça sutil, distanciou-se, pegou o casaco, a bolsa e o celular.

Antes de sair, Veck agarrou seu pulso.

– Desculpe. Passei do limite.

Ela desprendeu-se e colocou o celular na bolsa.

– Até logo.

Depois que Reilly saiu, Veck empurrou o próprio prato, mesmo ainda tendo um ovo e meio nele. Ainda não eram nove horas... e já tinha ganho o prêmio de idiota do dia. Fantástico...

Uma corrente de ar passou por suas costas, eriçando os cabelos da nuca, e aquilo o fez virar em direção à porta. Uma mulher havia entrado e não pertencia ao local, assim como uma porcelana chinesa fina sendo vendida numa loja de departamentos qualquer. Quando seu perfume pairou no ar e ela tirou o casaco de pele, houve uma pausa audível nas conversas do local. Ela tinha acabado de expor seios enormes para metade do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando Veck observou-a, achou que deveria ter sentido alguma atração por ela, mas, em vez disso, aquele ar frio fazendo cócegas em sua coluna despertou nele o desejo de pegar uma arma e apontar em direção àquela mulher como um mecanismo de autodefesa. E como o desejo era forte.

Deixando uma nota de vinte, interou o valor do resto do café da manhã e dirigiu-se à porta. Ao sair, parou. Olhou ao redor. Sua nuca ainda estava alerta, seus instintos gritavam, principalmente quando olhou através das janelas redondas do restaurante. Alguém o observava. Talvez fosse aquela mulher com corpo de modelo de revista erótica, talvez outra pessoa. Mas seus instintos nunca mentiam.

A boa notícia era que talvez recebesse suas armas de volta naquela manhã. Então, pelo menos, poderia novamente se proteger.

Quando Jim estacionou no Riverside com sua Harley, um cara aproximou-se com uma bela moto BMW rugindo. Adrian e Eddie estavam bem atrás dele com suas motos, e os três estacionaram juntos do outro lado, próximo ao rio Hudson. Quando Jim desmontou e olhou para o lugar, concluiu que Devina havia lhe chamado para um encontro. Bem, tinha algo de especial ali. Esteve com sua primeira alma naquele mesmo restaurante.

Talvez Caldwell fosse um imã para almas condenadas. Ou talvez ela apenas gostava do café servido ali e lhe diria que a alma em questão estava em outro lugar.

Aproximando-se da entrada, viu que seus colegas não estavam para conversa... o que não era novidade da parte de Eddie, mas um milagre, no caso do outro anjo. Aquilo não duraria muito da parte de Ad.

O restaurante estava lotado, barulhento e cheirava a café e a manteiga derretida. Que maldito lugar para Devina escolher...

E lá estava ela, à esquerda, sentada numa mesa, observando a porta enquanto um raio de sol se derramava pela janela ao seu lado. Os raios cálidos e amarelos iluminavam perfeitamente seu rosto, como se estivesse prestes a ser fotografada, e Jim pensou na primeira vez que a viu naquele clube, parada sob uma luminária no teto. Ela, por si só, também brilhava.

O mal nunca pareceu tão atraente, mas, ao contrário dos outros homens, que olhavam sobre suas canecas e babavam como cães, Jim sabia quem aquela mulher realmente era... Não se distraía mais com aquele disfarce a ponto de deixar de perceber que ela não projetava sombra. Por mais brilhante que fosse a luz que a atingisse, não havia qualquer contorno de sombra sobre a mesa ou sobre o encosto do banco ao lado dela.

Por uma fração de segundo, visualizou a imagem deles dois juntos na noite anterior. Tentou penetrá-la por trás sobre a mesa, mas ela insistiu em transar face a face. Sinceramente, ficou surpreso por conseguir uma ereção, mas a fúria também deixava-o rígido, por algum motivo. Ao menos com ela.

Quando desvencilhou-se daquela cena grosseira, suada, olhou ao redor, em direção às paredes, imaginando Sissy presa naquele emaranhado de condenados. Rezou para que sua garota não tivesse visto aquilo. Deus, pensar que ela poderia ter...

Mas chega disso. Aproximando-se de Devina, bloqueou todos os pensamentos em relação a Sissy, ao sexo que teve com o inimigo ou até mesmo em relação ao jogo em si.

– Então, quem é? – ele disse.

O demônio olhou por cima do Correio de Caldwell, seus olhos negros percorreram rapidamente o corpo de Jim e fizeram com que ele sentisse vontade de tomar outro banho... dessa vez, com uma lixadeira.

– Bem, bom dia, Jim. Gostaria de sentar ao meu lado?

– De jeito nenhum.

O cara na mesa em frente à dela olhou por cima do ombro. Como se não tivesse aprovado o tom ou o linguajar de Jim com a moça.

É só aparência, cara – Jim pensou.

Devina abaixou o jornal e voltou-se para suas panquecas de leite e manteiga e para seu café.

– Tem uma caneta?

– Não brinque comigo.

– Um pouco tarde para isso. Caneta?

Como algumas pessoas tentavam passar, Jim e seus colegas tiveram que virar de lado. Eddie tirou uma caneta do bolso e entregou-lhe.

Devina destampou a coisa com suas mãos longas e tratadas. Em seguida, dobrou o jornal na parte de palavras cruzadas.

– Uma palavra com sete letras para...

– Droga, Devina, pare...

–... antagonista.

–... com essa merda.

– Na verdade, Jim, “merda” tem cinco letras. Mas eu não estou fazendo isso, estou? – Devina começou a escrever a palavra com cuidado. – Acredito que “inimigo” seja a palavra que procuro. E terá de se sentar comigo, sozinho, ou vai cair no corredor por suas pernas adormecerem de tanto ficar de pé.

Fez mais um registro cuidadoso sobre o jornal. Imaginou se ela não estaria trabalhando numa palavra equivalente a “dor no traseiro”.

Jim olhou para seus amigos.

– Já vou sair.

– Adeus, Adrian – disse Devina com um aceno – Mas vejo você em breve... tenho certeza.

O demônio não disse nada a Eddie. Afinal, ela gostava de provocar as pessoas, mas Eddie era tão calmo e impassível que simplesmente não valia a pena. O que colocava ele e Adrian no departamento de opostos que se completam.

Quando os dois anjos saíram, Jim sentou-se.

– E então?

– Não gostaria de tomar café?

– Quem é, Devina?

– Odeio comer sozinha.

– Você poderia prender a respiração até eu decidir acompanhá-la... O que acha disso?

Os olhos negros de Devina assumiram um tom objetivo.

– Vamos brigar?

Com isso, Jim soltou uma risada sincera.

– É a razão pela qual estamos aqui, querida.

Ela sorriu um pouco.

– Acho que é a primeira vez que ouço algo assim vindo de você.

Jim foi interrompido quando a garçonete chegou com um bule de café.

– Nada para mim, obrigado.

– Ele vai querer café e waflles.

Quando a garçonete olhou para Jim como se dissesse “vamos lá, decida-se”, ele deu de ombros e deixou por isso mesmo.

Ao ficarem sozinhos outra vez, Devina olhou novamente para suas palavras cruzadas.

– Não terá outra chance comigo a menos que comece a falar.

Houve uma pausa, como se o demônio pensasse em alguma maneira de prolongar o encontro. Finalmente, começou a bater no jornal com a ponta da caneta de Eddie.

– Você lê o Correio de Caldwell?

– Às vezes.

– É um verdadeiro tesouro de informações – ela fez um espetáculo para exibir a primeira parte do jornal. – Nunca se sabe o que pode encontrar nele.

Achatou o papel, virou-o em direção a Jim e passou a encará-lo do outro lado da mesa.

Jim olhou para baixo. Três grandes artigos. Um sobre o projeto de uma nova escola no bairro. Outro sobre o aumento do número de pequenas empresas. E um terceiro sobre... A ponta da caneta de Eddie apontou o último artigo.

– Acho que cumpri minha parte do acordo – disse lentamente.

A manchete dizia: “Agendada a execução de DelVecchio”.

Jim percorreu o artigo rapidamente e pensou: Droga, esta é a alma?

Quando Devina já ia recolher a caneta, ele estendeu a mão e fechou-a sobre o pulso dela, mantendo-o no lugar.

Na verdade, a ponta da caneta apontava um nome escrito ao longo do artigo... E não era o nome do serial killer DelVecchio. Era o filho do cara... Thomas DelVecchio Jr. Um detetive da força policial de Caldwell.

Jim encarou o inimigo do outro lado da mesa e sorriu.

– Pegadinha?

Seus cílios baixaram numa atitude tímida.

– Sempre.

Chega de Devina e de perder tempo, Jim levantou-se e levou a caneta com ele.

– Aproveite meus waffles, querida.

– Ei, como vou terminar minhas palavras cruzadas?

– Tenho certeza de que dará um jeito. Até mais.

Jim saiu do restaurante e seguiu direto para seus amigos. Quando aproximou-se das motos, estendeu a caneta a Eddie.

– Sua caneta – quando o anjo foi pegá-la, Jim segurou-a. – Há metal em volta do bico. Da próxima vez, ofereça uma canetinha hidrográfica.

Quando Jim começou a estender a perna sobre o banco da moto, Adrian perguntou.

– O que ela disse?

– Parece que vamos ter que entrar no mundo dos policiais e dos ladrões.

– Ah. Bom – Ad montou sobre sua moto. – Pelo menos eu falo a mesma língua deles.


CAPÍTULO 6

 

Reilly entrou na delegacia pela porta dos fundos e passou pelo corredor de concreto que daria na mais nova, renovada, inspiradora e motivadora recepção. Infelizmente, a estátua de bronze da Dama da Justiça, com sua balança e espada, era uma interpretação moderna do clássico greco-romano, e mais parecia queijo derretido. Queijo derretido velho e marrom.

Andar ao redor da deusa de olhos vendados e dos pequenos holofotes que a iluminavam de baixo para cima dava uma ideia exata da confusão que havia no lugar. Entretanto, a maioria da força policial, dos advogados e dos promotores que passavam por ali eram ocupados demais para se preocupar com a decoração: o pessoal tinha muita coisa a fazer. O Departamento de Segurança e a Central de Detenções estavam à direita, além da cadeia em si. Os registros eram feitos no setor à esquerda. No andar de cima, estavam as salas dos departamentos de Homicídios e de Assuntos Internos, bem como a sala de reuniões e o vestiário. No terceiro andar, havia o novo laboratório e o local de armazenamento de evidências.

Reilly subiu as escadas de dois em dois degraus, ultrapassando dois colegas que iam mais devagar que ela. Mas, quando chegou ao segundo andar, perdeu o ímpeto. A grande área aberta à sua frente tinha uma série de mesas onde o pessoal do suporte administrativo trabalhava. E, bem no centro do local, em meio ao pessoal, estava Britnae, a gostosa da delegacia.

A loira tinha um espelho nas mãos e passou com os dedos uma sombra de alguma marca famosa nos olhos. O próximo passo foi arrumar os cachos. Por último, pressionar os lábios e fazer beicinho. O tempo todo inclinava-se para frente e exibia o par de silicones para si mesma... Era evidente que estava satisfeita com a maquiagem e com aquela maravilhosa paisagem.


Britnae virou o pulso e checou um daqueles relógios femininos minúsculos que algumas mulheres usam, do tipo que têm pulseiras delicadas e os ponteiros sobre um fundo perolado. Provavelmente, ela tinha um monte de pulseiras e brincos em alguma prateleira ou armário cheio de coisas cor-de-rosa.

O guarda-roupa de Reilly parecia o do Marilyn Manson e dispensava joias. Seu relógio? Era simples. Preto e à prova de choque.

Três chances para adivinhar como Britnae ficaria quando... só precisou de uma: a garota ficava ofegante na frente de Veck desde o dia em que o cara entrara ali há duas semanas. Não que fosse da conta de Reilly.

Antes que alguém a acusasse de xereta, apressou-se para o Departamento de Assuntos Internos e entrou em seu cubículo. Fingindo estar alerta, acessou o computador, mas, quando entrou no e-mail, tudo tinha sido traduzido para uma língua estrangeira. Ou isso, ou seu cérebro tinha esquecido o inglês.

Maldito DelVecchio.

Chamá-la de covarde? Só por querer manter o profissionalismo? Não sabia metade do inferno pelo qual tinha passado. Além disso, estava tentando ajudá-lo...

Aquilo deu vontade de descarregar no cara sua nove milímetros como café da manhã.

Seguindo o programa, acessou o relatório que havia enviado a si mesma por e-mail mais cedo e verificou, outra vez, o trabalho, revisando todo o documento do início ao fim. Quando o telefone tocou, ela atendeu sem olhar.

– Reilly.

– Thomason – ah, o cara do laboratório. – Só queria avisar que acho que os ferimentos de Kroner foram resultado de dentes.

– Como...

– Presas, especificamente. Encontrei os paramédicos ontem à noite no pronto-socorro e estava lá quando Kroner foi entubado, costurado e até quando recebeu uma transfusão. Observei bem as feridas do rosto e do pescoço. Quando uma faca é usada num ataque como aquele, tende a deixar contornos bem claros nas lacerações. A carne dele foi rasgada... algo parecido com o que eu vi quando aquele tigre comeu o treinador de animais no ano passado.

Aquilo confirmava suas conclusões, não é mesmo? E fez com que se perguntasse o que poderia estar perambulando por aquela floresta.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Não tenho certeza. Peguei algumas amostras do tecido... Só Deus sabe quantas espécies existem... Vamos descobrir que tipo de saliva foi deixada. Porém, posso adiantar uma coisa: seja lá o que for... estamos falando de algo grande, poderoso e... furioso.

– Muito obrigada por me ligar tão rápido.

– Sem problema. Vou tirar um cochilo e voltar ao trabalho em seguida. Entro em contato.

Depois que desligou, Reilly digitou um adendo ao seu relatório, pressionou Ctrl+P e, em seguida, enviou o documento por e-mail ao sargento. Pegou uma pasta, o celular e esperou a impressora terminar de liberar as páginas do relatório.

Ao menos tinha uma evidência para confirmar o que havia dito ao sargento antes do café da manhã. Com isso, começou a pensar no restaurante. Não deveria ter convidado Veck para se juntar a ela. Ele estava certo... parecia ruim, mas, mais que isso, poderiam ter evitado aquela conversa desagradável. Na verdade, aquilo a chateou. Não deveria. Um comentário inapropriado no café da manhã? Não deveria incomodá-la. Não mesmo. Ou teria sido uma reação alérgica à palavra covarde? Sim, era isso.

Veck atravessou o saguão da delegacia como um jato, passava rápido pelas pessoas, quase corria. Chegou à escada e subiu os degraus de pedra de dois em dois. Quando chegou ao segundo andar, dirigiu-se à esquerda, mas não ia ao seu escritório. O lugar ao qual precisava ir era o Departamento de Assuntos Internos... do nada, uma coisa rosa e loira entrou em seu caminho.

– Oi!

Quando olhou a garota, entendeu o que os tornados deveriam achar de um trailer quando atingiam algum pelo caminho: absolutamente nada. Ele quase passou por cima dela para chegar a Reilly, por assim dizer.

– Oi. Desculpe... estou atrasado.

Infelizmente, Britnae decidiu dançar uma valsa com ele no corredor, indo para a direita e para a esquerda. Quando ele parou, ela respirou fundo, ou arqueou as costas, ou esbarrou em algum compressor de ar, pois, de repente, parecia Jessica Rabbit, a personagem sensual que vivia exibindo o decote. Se ela mostrasse mais um pouco dos seios, estaria pronta para uma mamografia.

– Então... – ela balbuciou – eu estava pensando se você não gostaria de um pouco de café...

Chá... ou, quem sabe, eu mesma? – ela terminou a sentença mentalmente.

– Obrigado, mas estou atrasado para uma reunião – driblou-a.

Nova barreira.

– Bem, eu poderia trazer para você!

– Não, obrigado...

Ela colocou uma das mãos sobre o braço de Veck.

– Sério, eu não me importo...

A oficial Reilly visualizou o momento ao sair da sua sala nos Assuntos Internos. E, como pode imaginar, não hesitou ou mostrou qualquer mudança em sua expressão facial... Por que vê-lo dar o fora em alguém a incomodaria?

Quando passou, assentiu para ele dizendo oi para aquele atraso de vida.

– Tenho que ir – disse Veck, já mais que atrasado.

– Vejo você mais tarde – Britnae disse em voz alta.

– Reilly – sussurrou – Reilly.

A mulher que realmente interessava parou em frente à sala do sargento.

– Sim?

– Sinto muito pelo que disse. Passei dos limites.

Reilly colocou a pasta sobre o braço e passou a mão pelos cabelos.

– Está tudo bem. É um momento de estresse. Entendo.

– Não acontecerá de novo.

– Não faria diferença para mim se acontecesse.

Com isso, ela virou-se com seus sapatos de salto baixo e entrou na sala de espera. Certo... essa doeu. Mas não podia culpá-la.

Em vez de segui-la, ele ficou ali parado como uma árvore enquanto a porta fechava-se diante de seu rosto, com vontade de chutar o próprio traseiro. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café fresco que indicava a proximidade de seu parceiro.

José De la Cruz parecia cansado, mas alerta; era assim que o cara costumava estar sempre.

– Como estamos?

– Péssimos.

– Não me diga – entregou um dos dois cafés que segurava. – Beba isto. Ou, se conseguir, injete um pouco na veia.

– Obrigado, cara.

– Está pronto?

Não.

– Sim.

Ao entrar na sala, Reilly olhou para trás e acenou para De la Cruz, em seguida, voltou a conversar com a assistente do sargento.

Veck acomodou-se numa das tradicionais cadeiras de madeira alinhadas contra a parede da sala de espera do escritório do sargento, revestida de painéis também de madeira. Enquanto bebia o café, observava cada detalhe em Reilly: a maneira como tocava o brinco direito, como se estivesse meio solto, como fazia ao dobrar a perna, como batia a ponta do sapato enquanto tentava argumentar, o fato de que, ao sorrir, exibia o ligeiro brilho de um preenchimento de ouro no molar superior. Era muito atraente. Atraente mesmo.

– Então, tentei ligar para você ontem à noite – De la Cruz disse em voz baixa.

– Meu celular está no laboratório.

– Você deveria ter um telefone fixo.

– Sim – olhou para seu parceiro. – Acho que não encontraram muita coisa na floresta.

– Nada.

Sentaram-se lado a lado, bebendo café em copos de papel com imagens de cartas de baralho. O café estava horrível, mas estava quente e deu-lhes algo a fazer.

– Você pensou em matar Kroner, não? – quando Veck encarou-o, o outro detetive deu de ombros. – Vi você com aquele paparazzo, lembra? Fui eu quem tirou você de cima dele. Quanta raiva.

Veck voltou a observar Reilly, contente por ela estar compenetrada na outra conversa. Assentindo na direção dela, disse em voz baixa: – Ela acha que não fui eu. Porém, estou com a impressão de que você acha.

– Não disse isso.

– Não precisa.

– Não, eu vi como Kroner ficou. Você também. É uma equação sem lógica.

– Então, por que falou nisso?

– Porque está na sua mente.

Veck produziu um barulho evasivo.

– Se ela recomendar que eu continue na ativa, haverá algum problema para você?

– Não, mas acho que você não deveria sair nas ruas sozinho neste momento.

Engraçado, ele achava a mesma coisa. E era uma droga.

– Vamos ficar algemados um ao outro, então?

O sargento abriu a porta de seu escritório, mostrando a cabeça grisalha.

– Vamos lá?

Reilly despediu-se da assistente, e Veck e De la Cruz seguiram-na ao longo do grande escritório. A mesa de reunião, na outra extremidade da sala, era grande o suficiente para comportar a todos com conforto, e Reilly escolheu a cadeira mais distante de Veck para se sentar... ou seja, estava bem diante dele. Nada de contato visual. Isso não o surpreendeu.

Que inferno.

– Bem, li o relatório que me enviou por e-mail – o sargento disse a Reilly. – Mais alguma coisa?

– Apenas um adendo, o qual eu também enviei – ela passou algumas cópias ao sargento e, em seguida, entrelaçou os dedos e sentou-se. – Mantenho minhas conclusões.

O sargento olhou para De la Cruz.

– Alguma coisa a acrescentar?

– Não. Também li o relatório e isto diz tudo.

– Então, estou propenso a concordar com a oficial Reilly – o sargento olhou para Veck com firmeza. – Gosto de você. É o meu tipo de policial. Mas não vou permitir que alguém que represente perigo a outras pessoas carregue um distintivo. Reilly é sua nova parceira... Veck, não posso dispensar De la Cruz durante o seu período probatório, que será de um mês, no mínimo.

Reilly não mostrou qualquer reação diante da mudança, mas era uma profissional, não era?

– Ainda posso trabalhar no caso de Kroner? – Veck perguntou.

– Não nesta vida. A partir de hoje, você assumirá os casos antigos pelos próximos trinta dias e terá reuniões periódicas com o dr. Riccard.

Ah, sim, o psicólogo do departamento. E, no silêncio que se seguiu, Veck sabia que todos esperavam que soltasse algum protesto, mas, afinal, não poderiam considerá-lo uma máquina mortífera selvagem.

Não mesmo. Por exemplo, não conseguia deslocar o ombro, não morava na praia com um cachorro e não saía por aí tentando liberar seu instinto assassino. Logo...

– Certo.

O sargento pareceu um pouco surpreso, mas bateu na mesa com o nó dos dedos, algo que Veck concluiu ser um gesto de satisfação do cara.

– Ótimo. De la Cruz, quero falar com você. Quanto a vocês dois... terminamos.

Reilly saiu do escritório tão rápido quanto um tiro, mas Veck também conseguia correr daquele jeito. Saiu bem atrás dela e alcançou-a na saída do corredor.

– Então, como será? – ele falou.

Era tudo o que tinha a dizer. Desculpar-se não adiantou e, de alguma maneira, também não conseguia pensar em agradecê-la pelo relatório.

Reilly deu de ombros.

– Vou terminar o que estava fazendo esta manhã e, depois, poderemos nos ater aos casos antigos.

– Durante trinta dias.

– Trinta dias – ela não parecia entusiasmada, mas também não parecia temer o que estava por vir. Veck concluiu, com isso, que não seria fácil conversar com ela no tempo livre.

– Vejo você às treze horas em ponto no seu departamento, detetive.

– Entendido, oficial.

Mesmo andando, ela fez alguma anotação em seus papéis ao sair, a cabeça estava enterrada no trabalho. Dois rapazes passaram, olharam para ela e continuaram a olhar, como se esperassem alguma troca de contato visual. Mas ela não ergueu a cabeça. Nem notou-os. Contudo, Veck percebeu muito bem aquilo. E desejou fazer algum ajuste óptico naqueles bastardos.

– Você deixou isto no escritório do sargento.

Veck virou-se. De la Cruz tinha saído e levava o café de Veck.

Bem, aquilo não pareceu nada estranho. Não mesmo.

– Obrigado, cara – Veck pegou o copo de papel e tomou um gole. A única coisa que redimia a bebida tinha passado: a porcaria estava morna. – Bem, estava sendo bom trabalhar com você.

– Posso dizer o mesmo – José estendeu uma das mãos. – Mas, quem sabe? Talvez volte a ser designado meu parceiro daqui a um mês.

– Sim – porém, de alguma forma, Veck tinha a sensação de que seus dias no Departamento de Polícia de Caldwell estavam contados.

Voltaram ao Homicídios em silêncio e, quando abriram a porta do departamento, todos os detetives que ali estavam desviaram o olhar das paredes cinzentas que dividiam seus cubículos. Veck não viu razão alguma para suavizar as coisas.

– Na ativa. Nada de Kroner. Com Reilly.

Várias cabeças assentiram para ele e, cara, agradecia quando as pessoas eram legais. Na verdade, ali havia pessoas decentes trabalhando duro por pouco dinheiro e não tinham muito tempo para bobagens. Além disso, bem ou mal, depois de ter acertado aquele paparazzo, ganhou bastante respeito.

Quando todos voltaram ao trabalho, José bateu sobre o ombro de Veck e dirigiu-se à própria mesa. Veck não perdeu tempo. Sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e checou seus e-mails.

Casos antigos, hum? Era uma categoria muito ampla. Acessando a base de dados do departamento, puxou todos os relatórios de pessoas desaparecidas. E aquilo fazia parte, tecnicamente, de casos antigos, não? Uma vez que ainda estavam abertos. Ao iniciar a pesquisa, esparramou-se e deixou o computador trabalhar. Engraçado como o resultado da pesquisa exibiu apenas dados de mulheres, entre 16 e 30 anos, registradas como desaparecidas nas últimas, digamos... três semanas? Quando foi mesmo que Kroner apareceu atuando naquela área?

Não era coincidência.


CONTINUA

CAPÍTULO 1


Era primavera, numa noite escura de abril, quando o detetive Thomas DelVecchio Jr. entendeu que pesadelos poderiam, de fato, saltar da mente e tornar-se realidade. Infelizmente, isso, para ele, não era bem uma novidade.

Havia sangue por toda parte. Um vermelho brilhante sob o luar, como se um galão de tinta tivesse sido derramado no local, não apenas sobre o chão da floresta... mas sobre aquele homem estraçalhado em meio às folhas secas, bem aos pés de Veck.

Contudo, toda aquela confusão vermelha não era de tinta látex para interiores. Ou de tinta a óleo para acabamentos. Ou, ainda, de tinta para paredes externas. Não se poderia comprar aquilo numa loja de tintas e limpar tudo com solvente, muito menos era algum corante daqueles filmes de terror de segunda.

Aquilo era a vida real, sim, bem ali, diante dele. Escorrendo por todos os cantos.

O que ele havia feito? Santo Deus...

Arrancando sua jaqueta de couro, ajoelhou-se para pressioná-la contra o tórax descoberto do homem. Sons de líquido borbulhando misturavam-se com os da forte respiração de Veck, que encarava aqueles olhos escurecendo-se rapidamente.

– Eu matei você? Será que eu...?

Nenhuma resposta. É claro que as cordas vocais do bastardo deviam estar penduradas num galho qualquer.

Droga... que droga... era como a noite em que sua mãe havia sido morta.

Só que, neste caso, ele realmente veio para esquartejar alguém.

De uma coisa tinha certeza: estava com sua moto, dirigiu até ali e esperou escondido na floresta até o maldito psicótico aparecer – mentindo a si mesmo, o tempo todo, sobre estar ali apenas para prender o “suspeito”. Mas as suas mãos diziam a verdade. Quando sua presa finalmente chegou, a faca estava empunhada e atuou como uma sombra com suas roupas pretas, aproximando-se...


X


O Monroe Motel & Suítes estava a pouco mais de dez metros dele, do outro lado da espessa barreira de arbustos e pinheiros. Iluminado por luzes de um amarelo que mais parecia urina, a tentativa decadente do local de chamar a atenção para o aluguel de quarto por uma noite, ou por uma hora, foi a razão para ele e o assassino terem saído de casa naquela noite.

Serial killers costumam colecionar troféus de suas vítimas. Incapazes de formar laços emocionais adequados com as pessoas e carentes de representações físicas do poder fugaz que exercem sobre suas presas, revestem os objetos de emoções ou lembranças das pessoas que massacraram.

David Kroner havia perdido sua coleção de recordações há duas noites. Quando o trabalho que fazia ali foi interrompido e a polícia cercou a cena do crime. Então, é claro que retornaria ao local onde esteve no controle da situação pela última vez. Era o máximo que poderia reconquistar daquele momento.

– Chamei uma ambulância – Veck ouviu-se dizer, sem saber ao certo com quem estava falando.

Mudando o foco de seu olhar, concentrou-se no último quarto do motel, próximo de onde estavam e longe da sala da gerência. Um selo oficial do Departamento de Polícia de Caldwell estava fixado à porta e aos batentes, e a fita que envolvia a cena do crime produzia um ruído com a brisa que nela batia. Numa fração de segundos, visualizou o que ele e os outros oficiais tinham encontrado havia duas noites: outra jovem mulher, que acabara de ser morta e estava prestes a ter sua carne recortada para ser levada como lembrança.

Mais sons de algo borbulhando.

Olhou para baixo. O homem que sangrava era magro e fino, portanto, fazia sentido as vítimas de David Kroner serem jovens, aparentando idade entre 16 e 24 anos. Não precisava ser forte como um cão de guarda para fazer o trabalho. Os cabelos loiros de Sandy afinavam no alto da cabeça. A pele branca tornava-se cinza, pelo menos onde não estava coberta de sangue.


Mergulhando em seu banco de dados mental, Veck tentou se lembrar do que diabos havia acontecido. Após esperar por um período de tempo que lhe pareceu dias, o estalar de galhos finos chamou-lhe a atenção, foi quando viu Kroner andando na ponta dos pés entre os pinheiros.

No instante em que avistou o homem, pegou a faca, agachou o seu corpo e, em seguida...

– Filho da mãe!

A dor de cabeça veio com força, como se alguém tivesse batido um prego em seu lobo frontal. Erguendo uma das mãos, inclinou-se para a esquerda e pensou, muito bem, ótimo. Quando a ambulância chegasse, os médicos poderiam diagnosticar nele um aneurisma.

Ao menos isso lhes daria algo para fazer – Kroner já seria um cadáver quando chegassem ali.

Quando a dor lancinante passou um pouco, Veck tentou, outra vez, lembrar-se de mais alguma coisa... apenas para voltar com força total à necessidade de tomar um analgésico urgentemente e, em seguida, sofrer um apagão mental novamente. Com a nova rodada de agonia que floresceu em seu crânio como se fosse um buquê vermelho brilhante, fechou os olhos e pensou em vomitar – e, enquanto a dúvida sobre pôr ou não tudo para fora enfurecia suas entranhas, percebeu que era hora de ser honesto consigo mesmo. Por causa do enorme buraco negro em suas lembranças de curto prazo, sabia apenas que tinha sim ido até lá para matar aquele filho da mãe pervertido que, incluindo a última vítima na contagem, havia atacado pelo menos onze mulheres de Chicago a Caldwell no ano passado.

Horrível, é claro. Mas era um amadorismo comparado ao próprio pai de Veck – que fizera tudo aquilo num espaço de três meses: Thomas DelVecchio pai escreveu a cartilha para caras como Kroner.

E foi seguindo essa linha de raciocínio que Veck chamou não apenas a ambulância, mas também seu parceiro do Departamento de Homicídios.

Por mais que detestasse admitir, era filho de seu pai: foi até ali para matar. Ponto final. E o fato de sua vítima ser um imbecil violento não era nada além de um filtro social aceitável para a realidade.

No fundo, não se tratava de vingar as garotas mortas.

E, pelo amor de Deus... sabia que o que acontecera naquela noite era inevitável. Ao longo de toda sua vida, aquela sombra esteve atrás dele, guiando-o, seduzindo-o, puxando-o em direção àquela cena de destruição. Então, fazia sentido não se lembrar de nada. Sua outra metade finalmente havia assumido o controle e não tirou as mãos do volante até que todo o ato de violência estivesse feito. Prova disso? Em algum lugar na parte de trás de sua cabeça, ecoava um riso, maníaco e satisfeito.

Certo, muito bem, divirta-se agora – pensou, pois não iria mais deixar-se levar tão longe em direção aos passos de seu pai...

O som de sirenes surgiu vindo do Leste e ficava cada vez mais alto e rápido.

Aparentemente, não foi o único que ouviu o alarme. Um homem saiu rapidamente de um dos quartos do hotel e correu em volta do capô de um carro já com seus dez anos, bastante usado, que tinha uma treliça metálica sobre o para-choque. Foi meio difícil pegar as chaves, já que puxava as calças ao mesmo tempo. Em seguida, no mesmo ritmo de fuga, veio uma mulher de aparência rude que tropeçava ao se aproximar de um velho Honda Civic enquanto descia sua minissaia.

As partidas ruidosas e desenfreadas deixaram o estacionamento vazio quando a ambulância surgiu na entrada do local e parou em frente à sala da gerência. Quando um paramédico saiu do banco do passageiro, um homem que deveria ser o gerente abriu a porta, Veck assoviou com força: – Aqui!

Parece que o gerente não tinha a menor intenção de se envolver e voltou para trás. Mas o paramédico correu e a ambulância percorreu o estacionamento atrás dele. Quando chegaram, Veck ficou muito calmo – mortalmente calmo. Tão intocável quanto a fria e distante lua que os vigiava naquela noite densa e escura.

Dane-se seu lado negro. Foi ele quem tinha feito aquilo. E obrigaria a si mesmo a pagar por isso.

A oficial de Assuntos Internos, Sophia Reilly, dirigia a todo vapor em seu carro sem marcas de identificação, disparando ao longo de uma área remota junto aos limites sujos de Caldwell, enquanto percorria a Rota 149 numa corrida louca – o fato de estar a caminho da cena de um crime não justificava a alta velocidade. Ela dirigia rápido, comia rápido e odiava esperar em filas, aguardar pessoas ou informações.

Se apenas pudesse evitar a colisão com um cervo antes de chegar ao Monroe Motel & Suítes...

Quando seu celular tocou, já estava com ele em seu ouvido antes do segundo toque.

– Reilly.

– Detetive De la Cruz.

– Oi. Adivinhe para onde estou indo agora?

– Quem te ligou?

– 190. Seu parceiro está na minha lista de coisas a fazer... então, quando ele liga chamando uma ambulância, pede reforços no meio da noite e diz que não se lembra do que aconteceu com a vítima, eu recebo uma ligação básica.

Infelizmente, aquilo era algo com o que ela já estava se familiarizando. Thomas DelVecchio Jr. estava trabalhando no Departamento de Homicídios há apenas duas semanas e já quase tinha sido suspenso por nocautear um paparazzo que tentara tirar uma foto de uma vítima.

No entanto, aquilo era brincadeira de criança se comparado à confusão de agora.

– Como descobriu? – ela perguntou.

– Ele me acordou.

– E o que lhe pareceu?

– Vou ser honesto com você.

– Sempre é, detetive.

– Parecia que estava bem. Reclamou de uma dor de cabeça e perda de memória. Disse que havia muito sangue e que tinha certeza absoluta de que a vítima era David Kroner.

Mais conhecido como o bastardo doente que havia retalhado garotas e guardado pedaços delas. A última sessão de “trabalho” do bastardo tinha sido dirigir até aquele hotel há duas noites, mas foi interrompido por desconhecidos. Com a confusão, Kroner escapou por uma janela do banheiro, deixando para trás um cadáver numa posição trágica e uma caminhonete cheia de frascos com amostras e outros objetos – todos eles foram catalogados em seu esconderijo, e havia referências cruzadas a nível nacional.


– Perguntou se foi ele quem fez isso? – como membro do Departamento de Assuntos Internos, Reilly investigava os delitos de seus colegas e, apesar de se orgulhar do trabalho que fazia, não gostava do fato de que as pessoas com sua função sempre tivessem muito trabalho. Seria melhor se todos, incluindo os oficiais da lei, jogassem segundo as regras.

– Ele disse que não sabia.

Branco total ao cometer um assassinato? Não era incomum. Especialmente se fosse um crime passional – como, digamos, um detetive de homicídios querendo pegar um perverso serial killer. E Veck já tinha dado provas de ser um cara de pavio curto no que se referia à proteção ou defesa das vítimas. Bem, não era simplesmente pavio curto e ponto final. O cara era brilhante, um pavio curto muito sexy – não que o fato de ser sexy fosse relevante. Nem um pouco.

– Em quanto tempo você vai chegar lá, detetive? – ela perguntou.

– Uns quinze minutos.

– Estou a pouco mais de um quilômetro de distância. Vejo você lá.

– Entendido.

Quando desligaram, ela colocou o telefone no bolso interno do casaco e endireitou-se no banco. A possibilidade de um membro do departamento ser o suspeito na investigação de um assassinato – e considerando o que Veck havia dito ao pessoal da Emergência, que a probabilidade de Kroner ter sobrevivido era mínima – criava todos os tipos de conflito de interesse. Na maioria das vezes, o pessoal dos Assuntos Internos lidava com corrupção, infrações processuais e investigações sobre a competência no desempenho de funções. Mas, numa situação como essa, os membros do próprio departamento de Veck estavam numa posição delicada, pois deveriam avaliar se um de seus colegas havia cometido um crime.

Caramba, dependendo de como a situação se encaminhasse, ela teria de chamar algum reforço externo para efetivar a investigação. Mas era muito cedo para isso. Porém, não era muito cedo para pensar sobre o pai de Veck.

Todos sabiam quem ele era, e ela tinha de admitir que, se esse laço consanguíneo não estivesse em jogo, não estaria tão alerta... com a preocupação constante de que aquilo fosse resultado de uma revanche ao estilo DelVecchio, por assim dizer.

Thomas pai foi um dos serial killers mais conhecidos do século XX. Oficialmente, fora acusado e condenado por “apenas” 28 assassinatos. Mas estava envolvido em mais trinta – e isso era apenas o que as autoridades de quatro estados sabiam. Havia uma grande probabilidade de existir dúzias de mulheres desaparecidas, cujos casos não puderam ser relacionados adequadamente a ele.

Então, não, se o pai de Veck tivesse sido um advogado, contador ou professor, ela não estaria tão preocupada. Mas o velho ditado “tal pai, tal filho” tinha implicações terríveis quando se tratava de serial killers e seus filhos.

Depois de passar por uma ponte estreita, o Monroe Motel & Suítes surgiu mais acima, à direita, e ela passou lentamente pela gerência e pelos quartos até chegar ao final do estacionamento, próximo à floresta. Ao sair com uma mochila cheia de pequenos compartimentos, o aroma doce do diesel da ambulância a fez espirrar com força e, na sequência, sentiu o odor forte dos ramos de pinheiro... bem como o cheiro pungente e inconfundível de sangue fresco.

Os paramédicos estacionaram o veículo com a traseira voltada para a floresta e, sob a luz dos faróis, os dois profissionais trabalhavam sobre o corpo ensanguentado de um homem branco. As roupas da vítima haviam sido cortadas – ou rasgadas – e sob elas havia uma mistura de incontáveis ferimentos.

Não há chance alguma de ele sobreviver, ela pensou. Então, viu Veck. O detetive de homicídios estava em pé ao lado da cena do crime, com braços cruzados e pés bem firmados ao chão. O rosto mostrava... absolutamente nada. Assim como De la Cruz havia dito. Meu Deus, o cara poderia muito bem estar na fila de uma lanchonete daquele jeito.

Quando andou sobre a superfície esponjosa de folhas caídas e terra macia, sentiu um súbito frio na barriga. Embora, sinceramente, não fosse apenas pela cena do crime. Também era por causa do homem que deveria investigar. Próximo ao local, notou uma moto preta estacionada nos limites da floresta. Era dele, já tinha visto na delegacia antes. De fato, já o vira pela janela de sua sala montando naquela coisa, dando o impulso com o pé para iniciar o motor e arrancando para longe dali. Ele usava capacete – na maioria das vezes.

Ela sabia que muitas mulheres na delegacia observavam a cena, pois havia muito que olhar. Aqueles ombros pesados e quadris bem definidos mostravam a constituição de um boxeador, mas seu rosto era mais o de um garotinho bonito que o de um pugilista – ou seria, se não fosse por seu olhar. Aqueles olhos azuis-escuros, inteligentes e frios faziam com que toda a estrutura óssea, estilo modelo famoso, tornasse-o bastante viril. E havia algo mais.

Parando em frente a ele, a primeira coisa que notou foi o sangue na gola de sua blusa preta. Respingos aqui e ali, não eram grandes manchas ou partes encharcadas. Nenhum arranhão no rosto, ou no pescoço.

As roupas e o chapéu estavam em boas condições – nada desalinhado, rasgado ou amassado. Havia dois círculos de lama sobre os joelhos de suas calças pretas. A arma estava guardada no coldre. Não estava claro se tinha outras armas.

Ele não disse nada. Nada de “eu não fiz isso” ou “deixe-me explicar...”. Seus olhos apenas se fixaram nela.

Deixando de lado as gentilezas, ela disse: – O sargento me ligou.

– Imaginei.

– Está ferido?

– Não.

– Se importa se eu fizer algumas perguntas?

– Vá em frente.

Deus, ele tinha tanto autocontrole.

– O que o trouxe aqui esta noite?

– Sabia que Kroner voltaria. Tinha que voltar. Com sua coleção apreendida, não restava mais nada do seu trabalho, portanto, este é um local sagrado para ele.

– E o que aconteceu depois que chegou?

– Esperei. Ele chegou... e, então... – Veck hesitou, as sobrancelhas estreitaram-se como se fossem dar um nó e uma das mãos se ergueu para esfregar a têmpora.

– Droga...

– Detetive?

– Não consigo me lembrar – olhou para os olhos de sua colega outra vez. – Não consigo me lembrar de nada depois que ele apareceu, juro por Deus. Em um minuto ele surgiu vindo da floresta, no outro...? Havia sangue por toda parte.

– Posso ver suas mãos, detetive? – quando ele as estendeu, estavam firmes como rocha... e sem marcas de corte ou arranhões. Nada de sangue na palma das mãos, na ponta dos dedos ou nas unhas.

– Avaliou a vítima ou interveio em seus ferimentos antes de ligar para o 190?

– Peguei minha jaqueta de couro e coloquei sobre o pescoço dele. Não ia ajudar, mas eu fiz mesmo assim.

– Está carregando mais alguma coisa além da sua arma de fogo?

– Minha faca. Está no meu...

Ela colocou a mão sobre o ombro dele para impedi-lo de continuar.

– Deixe-me dar uma olhada.

Assentindo, virou-se. Sob a luz da ambulância, a lâmina guardada no pequeno coldre em suas costas era bem o que ela esperava ver.

– Posso ficar com a arma, detetive?

– Fique à vontade.

Tirando um par de luvas de vinil, vestiu-as e pegou o punhal. Quando puxou o objeto, percebeu que o corpo dele não se moveu. Poderia muito bem ser esta a sensação de desarmar uma estátua.

A faca estava limpa e seca. Levantando-a até o nariz, ela inalou. Nenhum cheiro de adstringente que indicasse ter sido higienizada às pressas.

Quando ele olhou por cima do ombro, o movimento de seu corpo fez seus ombros parecerem enormes e, sem qualquer motivo, ela percebeu que estava frente a frente com o peitoral dele. Com seu quase um metro e setenta, ela tinha uma altura mediana, mas, ao lado dele, ela sentia como se tivesse sido reduzida a uma miniatura.

– Vou confiscar isso, importa-se? – Ela ia pegar a arma dele também, mas, considerando os ferimentos da vítima... a lâmina era o que realmente queria.

– Nem um pouco.

Quando pegou um saco plástico, disse: – O que acha que aconteceu aqui?

– Alguém partiu ele ao meio e acho que fui eu.

Aquilo deteve-a, mas não por achar que fosse, de fato, uma confissão – não esperava que alguém naquelas circunstâncias fosse tão honesto.

Naquele momento, um carro sem identificação percorreu o estacionamento com duas viaturas.

– Seu parceiro chegou – ela disse. – Mas o sargento quer que eu lidere a investigação para evitar qualquer possibilidade de conflito de interesses.

– Sem problema.

– Concordaria se eu retirasse amostras do material sob suas unhas?

– Sim.

Ela colocou a mochila à sua frente outra vez e tirou um canivete suíço e alguns pequenos sacos plásticos.

– Você é muito organizada, oficial – Veck disse.

– Não gosto de estar despreparada. Por favor, estenda sua mão direita.

Ela fez um trabalho rápido, começando com o dedo mindinho. As unhas foram cortadas, mas não como uma manicure faria, e havia muito pouco sob elas.

– Tem experiência em trabalhos de investigação? – Veck perguntou.

– Sim.

– Parece mesmo.

Quando ela terminou, ergueu o olhar... e imediatamente teve que se desviar de seus olhos azuis-escuros como a meia-noite para algum outro lugar próximo.

– Quer outro casaco, detetive? Está frio aqui.

– Estou bem.

Se estivesse com um ferimento sangrando no peito, aceitaria um maldito esparadrapo? – ela pensou – ou bancaria o cara durão até não haver mais plasma em suas veias?

Bancaria o durão, com certeza, concluiu.

– Quero que os paramédicos deem uma olhada em você.

– Estou bem.

– Isto é uma ordem, detetive. Parece que está com dor de cabeça.

Naquele momento, De la Cruz emergiu de seu carro e, enquanto se aproximava, seu rosto parecia triste e cansado. O fato era que tinha perdido um parceiro há alguns anos. Obviamente, não estava empolgado com a ideia de repetir a dose, mesmo que por um motivo diferente.

– Com licença – ela disse aos dois. – Vou chamar um dos paramédicos.

Contudo, quando ela aproximou-se, eles estavam transferindo Kroner para a maca e, logicamente, não poderiam dispensar nem um minuto.

– Quais são as chances dele?

– Poucas – um deles disse. – Mas faremos o nosso melhor, oficial.

– Sei que farão.

Os suportes da maca foram estendidos até que esta ficasse à altura da cintura deles e, pouco antes de deslizarem o objeto, ela tirou uma foto mental. Kroner parecia ter sido retirado dos destroços de um carro fumegante, com o rosto desfigurado, como se não estivesse usando o cinto de segurança e tivesse sido lançado contra a janela.

Reilly olhou para Veck outra vez.

Há muitas lacunas nesta cena – pensou. Especialmente se concluísse que havia sido ele o agressor. Mas não havia muitas possibilidades de fazer todo aquele estrago e limpar tudo tão rápido no meio da floresta. Além disso, parecia que não havia se envolvido em alguma briga ou coisa assim – e não existe um jeito de lavar arranhões e hematomas.

Quem tinha feito aquilo? Era o que a incomodava.

Como se pudesse sentir o olhar dela, Veck girou a cabeça, e, quando os olhares encontraram-se, tudo desapareceu: era como se estivesse a sós com ele... não a quinze metros de distância, mas a quinze centímetros.


Do nada, um calor brotou, borbulhando pelo corpo de Reilly, o tipo de coisa que, se ela estivesse em casa, diria a si mesma que era a proximidade do duto de ar quente. Mas ali ela justificava a onda de calor como consequência da adrenalina do estresse.

Maldito estresse. Nada de atração sexual.

Ela interrompeu aquela conexão quando atentou-se aos policiais recém-chegados. Ordenou: – Poderia passar a fita aqui?

– Entendido, oficial.

Certo, hora de voltar ao trabalho: aquele breve momento de atração totalmente inadequada não atrapalharia o que tinha a fazer. Era muito sensata. Sua integridade profissional não exigia nada menos que isso. Também não tinha a intenção de permanecer muito tempo na lista de adoradoras do cara. Ia cuidar dos seus negócios e deixar os olhares embevecidos para as outras.

Além disso, caras como Veck não gostavam de mulheres como ela e não havia problema algum nisso. Estava muito mais interessada no trabalho do que em mostrar as pernas, soltar os cabelos e competir nos jogos olímpicos da sedução. Brittany – na verdade, escrevia-se Britnae, mais conhecida como a gostosa da delegacia – poderia conquistá-lo e ficar com ele à vontade se quisesse.

Enquanto isso, Reilly verificaria se o filho teria revivido ou não os horrores típicos dos atos do pai.


CAPÍTULO 2

 

Em circunstâncias normais, Jim Heron considerava-se um mau perdedor. E isso com qualquer coisa que jogasse no dia a dia, fosse vídeogame, tênis ou pôquer. Não que ele perdesse tempo jogando tudo isso, mas, quando jogava, era do tipo que não deixaria o controle, a quadra ou a mesa antes de estar por cima da situação.

Mas nada disso tem importância.

Quando se tratava da guerra com o demônio Devina, ele ficava em chamas de tão furioso: havia perdido a última rodada.

Perdido, o contrário de ter vencido. Na batalha por aquelas sete almas, ele e aquela vadia estavam empatados em um a um. Claro, ainda havia mais cinco disputas, mas não era essa a direção que ele ou qualquer outra pessoa precisava seguir.

Derrotado? Aquele demônio tinha domínio não só sobre a terra mas também sobre os céus... o que significava que sua mãe e todas as boas almas que ali estavam, assim como ele e seus soldados, que eram anjos caídos, poderiam um dia contemplar uma eternidade de tormentos.

E havia descoberto há pouco tempo que aquilo não era apenas algo hipotético que motivava os mais religiosos. O inferno era um lugar de verdade, e o sofrimento que ali havia era bem real. De fato, muito do que tinha concluído ser apenas retórica tola de todos aqueles que se diziam santos mostrou-se ser correto.

Então, sim, as apostas eram altas e ele odiava perder. Especialmente porque não precisava ter sido daquele jeito. Estava furioso com o jogo. Com seu chefe, Nigel. Com as “regras”.

Era senso comum: quando se diz a um cara que ele deve influenciar alguns idiotas numa encruzilhada da vida, facilita se disser quem eles são. Afinal, não era um grande segredo: Nigel sabia. O inimigo, Devina, sabia. Jim? Nem tanto assim, pessoal. E, cortesia do buraco negro de informação, concentrou-se no homem errado na última rodada e estragou tudo.

E lá estava ele, empatado com a vadia e furioso num quarto de hotel em Caldwell, Nova York. E não era o único enfezado por ali. No quarto ao lado, do outro lado de um conjugado, duas vozes masculinas graves iam e vinham, num tom de extrema frustração.

Nenhuma novidade. Seus companheiros, Adrian Vogel e Eddie Blackhawk, não estavam contentes e era claro que falavam mal dele em sua ausência. Voltar constantemente a Caldie não era tanto a questão. O problema era a razão pela qual Jim arrastou-os até ali.

Seus olhos percorreram o edredom. Cachorro estava enrolado como uma bola ao lado dele, seu pelo desalinhado dava a impressão de o terem entupido de gel e colocado, em seguida, diante de um vento forte, mas isso não tinha acontecido. Ao seu lado, havia a impressão de um artigo de três semanas do Correio de Caldwell. O título era “Garota local desaparecida”, e, ao lado do texto, havia a foto de um grupo de amigos sorridentes, cabeças unidas e braços estendidos por trás dos ombros uns dos outros. A legenda sob a imagem identificava a que estava no meio como Cecília Barten.

Sua Sissy.

Bem, não era bem “sua”, mas pensava nela como sendo sua responsabilidade. A questão era: ao contrário de seus pais, familiares e amigos da comunidade, sabia onde ela estava e o que havia acontecido com ela. A moça não fazia parte da enorme lista de jovens que fogem de casa e também não havia sido atacada pelo serial killer que, de acordo com o site do jornal daquela manhã, estava à solta. Porém, havia sido profanada. Por Devina.

Sissy foi uma virgem sacrificada para proteger o espelho do demônio, seu bem mais sagrado. Jim encontrou seu corpo pendurado de cabeça para baixo em frente à coisa, no covil temporário do demônio, e foi forçado a deixá-la para trás. Porém, mais tarde, pôde vê-la no muro de almas de Devina... presa, sofrendo, perdida para sempre entre os condenados que mereciam aquele destino.

Cecília não pertencia ao inferno. Era uma garota inocente e foi usada pelo mal – e Jim iria libertá-la, nem que fosse a última coisa que fizesse. Portanto, sim, foi por isso que voltaram a Caldwell. E a razão pela qual Adrian e Eddie estavam furiosos.

Mas, sem ofensa... que se fodam.

Com cuidado, Jim pegou o artigo e passou o polegar calejado sobre a imagem granulada do cabelo de Sissy, longo e loiro. Quando piscou os olhos, viu os fios cobertos de sangue pendendo sobre o ralo de uma banheira de porcelana branca. Então, piscou outra vez, e viu-a como na outra noite, na prisão viscosa de Devina, apavorada, confusa, preocupada com seus pais.

Ele queria ter ido direto conversar com os Barten, porém as reclamações de Adrian e Eddie só serviam para gastar saliva. Não ia tirar os olhos da guerra, pois não poderia suportar perder para Devina enquanto tentava tirar Sissy daquele poço de almas.

A porta do quarto conjugado abriu-se, foi quando Adrian, mais conhecido como “O que se Faz de Surdo”, entrou sem bater. Bem no estilo dele. O anjo estava vestido de preto, como sempre, e os vários piercings em seu rosto não constituíam nem a metade do que ele deveria ter pelo resto do corpo.

– Vocês terminaram de discutir sobre mim? – Jim virou o artigo para baixo e cruzou os braços sobre o peito. – Ou fizeram apenas uma pequena pausa?

– Que tal levar isto a sério?

Jim levantou-se da cama e ficou frente a frente com seu soldado.

– Estou dando qualquer indício de que ando brincando por aí?

– Não nos arrastou de volta a este lugar para a guerra.

– Até parece que não.

Enquanto se enfrentavam, Adrian não se intimidou, mesmo que Jim fosse um antigo assassino das Operações Extraoficiais e soubesse derrotar um peso-pesado de muitas maneiras diferentes.

– Aquela garota não é seu alvo – Ad disse – e, caso não tenha notado, perdemos um. Distrações não são nossas amigas.

Jim deixou passar a referência a Sissy: propôs-se a nunca falar sobre ela. Seus amigos testemunharam quando ele encontrou o corpo e viram o que aquilo fez com ele – então, sabiam o suficiente. E não havia motivo algum para pronunciar palavras que descrevessem o que foi vê-la naquela parede. Ou mencionar o fato de que, enquanto estava sendo usado e abusado por Devina e seus subordinados na última rodada, a jovem, possivelmente, assistiu assustada a tudo o que aconteceu com ele.

Droga... as coisas que aconteceram naquela mesa de “trabalho” eram algo difícil de testemunhar até mesmo para um homem habituado a guerras. Mas uma inocente? Que já estava aterrorizada?

Por um lado, naquele momento de sua vida, as violações não o incomodavam mais. Tortura, de qualquer maneira que fosse aplicada, não era nada além de uma sobrecarga de sensações físicas. Mas, por outro lado, ninguém precisava ser testemunha ocular daquilo, muito menos sua garota. Não que ela fosse sua.

– Vou conversar com Nigel – Jim respondeu. – Então, já terminaram de me detonar? Ou querem desperdiçar um pouco mais do meu tempo?

– Por que já não está lá?

Bem, porque estava sentado naquela cama, olhando para o nada, apenas pensando para onde diabos Devina tinha levado o corpo de Sissy.

Só que Jim não era o tipo de idiota que dava o braço a torcer.

– Jim, sei que essa garota é importante para você. Mas vamos lá, cara, precisamos cuidar dos negócios.

Enquanto Ad falava, Jim olhou por sobre os ombros do cara. Eddie estava parado na porta que ligava os dois quartos, seu corpo enorme estava tenso, os olhos vermelhos eram graves, aquela longa trança preta descia sobre o ombro, cuja ponta quase alcançava a cintura de suas calças de couro.

Caramba. O jeito espalhafatoso de Adrian dava vontade de xingar. Ou socar... o que já havia acontecido antes. Mas a rotina equilibrada e pacífica de Eddie não era um alvo. Era um espelho que simplesmente refletia o comportamento idiota de quem o observava.

– Tenho tudo sob controle – disse Jim. – E vou ver Nigel agora mesmo.

O arcanjo Nigel estava em seus aposentos particulares quando a convocação aconteceu. De qualquer maneira, já era hora de sair do banho.

– Vamos ter companhia – disse a Colin quando se levantou da água perfumada.

– Vou ficar aqui. O banho está numa temperatura perfeita – com isso, Colin esticou-se e fez um arco preguiçoso com o corpo. Seu cabelo escuro estava molhado com a umidade e havia cachos nas pontas. Seu rosto majestoso e inteligente estava relaxado como sempre. Nada muito exagerado.

– Sabe por que ele está vindo?

– Mas é claro.

Atravessando o mármore branco e afastando a cortina safira e coral, Nigel saiu e teve todo o cuidado ao colocar de volta no lugar o tecido aveludado. Ninguém precisava saber sobre sua companhia na sala de banho – embora suspeitasse que Bertie e Byron fizessem alguma ideia disso. No entanto, eram bastante discretos para dizer qualquer coisa.

Puxando um roupão de seda, não se preocupou em vestir nada mais formal. Jim Heron não se importaria nem um pouco com seu vestuário e, já pensando em como seria a conversa, sabia que precisaria voltar para o banho.

Com um gesto de sua mão, Nigel convocou o anjo que se encontrava na Terra, reunindo o corpo físico de Heron e materializando-o em seus aposentos particulares. Sobre seu divã de seda, para ser mais exato. O salvador parecia ridículo sobre o móvel framboesa, os braços e pernas pesados pendiam nas laterais, sua camiseta preta e o jeans surrado eram uma ofensa a um tecido tão delicado.

Heron caiu em si numa fração de segundo e ficou em pé num salto, pronto, alerta... e não muito satisfeito.

– Vinho gelado? – Nigel perguntou ao se aproximar de uma cômoda francesa com gavetas, cuja tampa de mármore servia de bar. – Ou talvez uma dose de uísque?

– Quero saber quem é o próximo, Nigel.

– Isso é um “não” para as bebidas? – levou um tempo escolhendo entre as pequenas garrafas de vidro e, então, serviu-se lenta e tranquilamente.

Ele não era um idiota qualquer a quem se fazia exigências, e Heron precisava aprender um pouco de boas maneiras. Nigel virou-se e tomou um gole.

– Leve e refrescante.

– Dane-se o vinho.

Nigel deixou passar essa e apenas encarou o salvador.

Quando o Criador apareceu diante de Nigel e Devina explicando que haveria uma competição final, os dois lados concordaram que Heron estaria sozinho no campo de batalha com as sete almas escolhidas. Cada adversário, naturalmente, queria seus valores representados, e o resultado foi que aquele forte anjo com espírito guerreiro, ali, em pé diante de Nigel, tinha o bem e o mal equilibrados dentro dele.

Contudo, Nigel tinha convicção de que o fato da mãe assassinada de Jim estar dentro dos muros da mansão seria crucial. Momentos como aquele faziam-no questionar o próprio fundamento daquele jogo decisivo. O anjo parecia pronto para matar.

– Tem que me dizer quem é.

– Como disse antes, não posso.

– Eu perdi, idiota. E ela trapaceou.

– Tenho plena consciência dos limites que ela ultrapassou e acho que se lembra do meu conselho: deixe-a fazer o que quiser. Haverá represálias.

– Quando?

– Quando acontecer.

Heron não gostou daquela resposta e começou a andar pelo local ornamentado com suas cortinas de cetim, tapetes orientais e a cama baixa... ao redor da qual – Nigel percebeu tarde demais – dois conjuntos de roupas estavam dispostos.

Nigel limpou a garganta.

– Não posso correr o risco de que haja uma reviravolta e tudo se volte contra nós. Já me rebaixei demais ao nível de Devina permitindo que Adrian e Edward o ajudassem. Se eu lhe ajudar mais, posso perder não apenas uma rodada, mas a competição inteira. E isso é inaceitável.

– Porém, você sabe quem é a alma. E Devina também.

– Sim.

– E isso não lhe parece uma grande injustiça? Ela irá atrás dessa pessoa... Provavelmente, já foi.

– Pelas regras estabelecidas e acordadas, ela não tem permissão de interagir com as almas. Ela, assim como eu, deve apenas influenciar você na maneira como vai influenciá-los. Contato direto não é permitido.

– Então, por que você não deteve o que aconteceu?

– Isso não é da minha alçada.

– Que saco, Nigel, estabeleça...

– Posso assegurar uma coisa: o saco dele está bem.

Com a interrupção seca, tanto Nigel como o salvador viraram-se para as cortinas que levavam à sala de banho. Colin não se preocupou em vestir um roupão, estava em pé diante deles nu e sem qualquer ar de desculpa.

E, agora que tinha a atenção de todos, o arcanjo acrescentou: – Também vou pedir para que controle o linguajar, companheiro.

As sobrancelhas de Heron ergueram-se rápido e houve um momento em que parecia estar assistindo a um jogo de tênis, alternando o olhar de um para o outro.

Nigel amaldiçoou baixinho. Sua privacidade e decoro tinham ido por água abaixo.

– Vinho gelado, Colin? – disse rispidamente. – E talvez um roupão?

– Estou bem.

– É verdade. Mas sua falta de modéstia não lhe protege muito bem do ar frio desse ambiente. E eu tenho um convidado.

Sua única resposta foi um grunhido. Que era a maneira de Colin proclamar que não havia razão para dar uma de velho azedo.

Adorável.

Nigel virou-se para o salvador.

– Sinto muito em não poder lhe conceder o que me pede. Pode acreditar.

– Você me ajudou com o primeiro.

– Houve permissão para isso.

– E veja o que aconteceu com o número dois.

Nigel escondeu sua preocupação atrás de um gole em seu copo.

– Sua paixão é louvável. E posso lhe dizer que seu retorno a Caldwell é bem útil.

– Obrigado pela dica. Há dois milhões de pessoas naquela maldita cidade. Isso não reduz muito as possibilidades.

– Nada é por acaso e não existem coincidências, Jim. Na verdade, há outra pessoa que procura o mesmo que você e, quando seus diferentes propósitos se unirem, encontrará a próxima alma.

– Sem ofensa, mas isso não significa merda nenhuma – Heron olhou para Colin. – E não vou pedir desculpas à fiscalização por isso. Sinto muito.

Colin cruzou os braços sobre o peito nu: – Faça como quiser, rapaz. E eu farei o mesmo.

Leia-se: talvez eu o esgane agora. Talvez depois.

A última coisa que Nigel precisava era de uma briga em seus aposentos, isso atrairia os outros arcanjos, assim como Tarquil, num piscar de olhos. Não era bem a interrupção que procurava.

– Colin – disse Nigel –, vá tomar banho.

– Já fiz isso, obrigado.

– Isso é uma questão de ponto de vista – Nigel murmurou antes de se dirigir a Jim. – Vá em frente e tenha fé que você estará no lugar certo e fará o melhor possível.

– Não acredito em destino, Nigel. É como pegar uma arma descarregada e achar que vai atirar em alguma coisa. Você mesmo tem que carregá-la com as balas.

– Estou lhe dizendo que há coisas maiores nesse trabalho do que seus esforços.

– Certo, ótimo, então coloque tudo num cartão de Natal. Mas não venha com besteiras pra cima de mim.

Encarando o rosto duro do salvador, Nigel teve um lampejo de medo. Com aquela atitude, havia mais uma coisa que jogava contra os anjos. Mas o que ele poderia fazer? Heron não tinha paciência ou fé, mas isso não mudava em nada as regras do jogo ou as chances de que o Criador corrigisse as liberdades que Devina havia tomado.

Ao menos esse último fato contribuía a favor deles.

– Acredito que já terminamos – Nigel disse. – Nada de bom virá a nosso favor se continuarmos a conversa.

Houve um momento obscuro, até mesmo maligno, durante o qual Heron olhou para ele com uma espécie de fúria.

– Tudo bem – disse o salvador. – Mas eu não desisto tão fácil.

– E eu sou a montanha que não será movida.

– Entendido.

Num piscar de olhos, o anjo se foi. E, quando o silêncio dominou o local, Nigel percebeu que não tinha mandado Heron embora. Ele tinha feito aquilo sozinho.

Estava ficando mais forte, não?

– Quer que eu desça e o vigie? – Colin disse.

– Quando concordei que ele seria o escolhido, pensei que haveria rédeas suficientes para contê-lo. Acreditava mesmo nisso.

– Então, repito, eu devo sair para vigiá-lo?

Nigel voltou-se para o seu querido amigo, que era muito mais que um colega e confidente.

– Essa é a tarefa de Adrian e Edward.

– Conforme estipulado. Mas fico pensando até onde essa competência, que aumenta cada vez mais, vai levá-lo. Acho que isso não nos guia por um bom caminho.

Nigel tomou outro gole de seu vinho e observou o espaço vazio que Heron tinha acabado de deixar. Apesar de continuar em silêncio, tinha que concordar. A questão era: o que fazer, o que fazer...


CAPÍTULO 3

 

Lá embaixo, na floresta fria próxima ao Monroe Hotel & Suítes, Veck permanecia parado sob o reflexo dos faróis da ambulância, com seu colega De la Cruz à direita e seu parceiro, Bails, à esquerda. Iluminado como estava, sentiu-se num palco quando Kroner surgiu dentre as árvores sobre uma maca.

Só que havia apenas uma pessoa olhando para ele. Sophia Reilly, a oficial de Assuntos Internos. Ela estava em pé próxima a ele e, quando os olhos dos dois encontraram-se, desejou que as circunstâncias fossem diferentes – de novo. O primeiro encontro com Sophia Reilly tinha sido quando ele agrediu aquele paparazzo. Mas a situação em que estavam agora fazia aquela agressão parecer uma caminhada na praia.

A questão era: gostou dela no momento em que apertaram as mãos, e essa primeira impressão foi reforçada naquela noite: o detetive dentro dele tinha aprovado totalmente a atuação profissional dela, bem como a maneira como o olhou. Se ele estivesse mentindo – e não estava –, ela teria percebido. Mas precisavam parar de se encontrar daquela maneira. Literalmente.

Sobre o asfalto do estacionamento houve um barulho alto quando os médicos fecharam as portas duplas da ambulância e, em seguida, o veículo afastou-se, levando a iluminação consigo. Quando Reilly voltou-se para observar a partida, já estava no escuro... até que acendeu uma lanterna.

Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, De la Cruz falou baixinho: – Quer um advogado?

– Por que ele precisaria de um advogado? – Bails exclamou.

Veck balançou a cabeça para seu amigo. Entendia a lealdade do cara, mas ele próprio não tinha tanta fé em si mesmo naquele momento.

– É uma boa pergunta.

– Então, vai querer? – De la Cruz sussurrou.

A oficial Reilly circulou a poça de sangue, transitou entre os troncos e galhos... Pequenos gravetos estalavam sob seus pés, aquilo soava alto nos ouvidos de Veck. Ela parou na frente dele.

– Terei de continuar com as perguntas amanhã, mas pode ir para casa agora.

Veck estreitou os olhos.

– Você vai me liberar?

– Nunca esteve sob minha custódia, detetive.

– Isto é tudo?

– Não, não. Mas não tem mais nada o que fazer aqui esta noite.

Veck balançou a cabeça.

– Ouça, oficial, isto não pode...

– A perícia criminal está a caminho. Não quero você aqui quando chegarem à cena do crime, pois isso pode comprometer o trabalho deles. Está suficientemente claro para você?

Ah, sim. E ele devia ter adivinhado. Estava escuro entre as árvores. Ele poderia manipular evidências com facilidade sem que ninguém soubesse, e ela queria fazê-lo sair dali de uma maneira discreta e educada.

Ela é esperta – pensou. E também era bonita: sob o brilho da lanterna, ela estava deslumbrante, do jeito que só uma mulher natural e saudável poderia ser – nada de maquiagem pesada para entupir seus poros ou pesar suas pálpebras, nenhum brilho gorduroso e escorregadio sobre seus lábios. Era totalmente verdadeira. O cabelo vermelho-escuro e pesado e o olhar de um verde profundo também não poluíam o visual. Além disso, havia a postura “nada de gracinhas” dela...

– Muito bem, oficial – ele murmurou.

– Por favor, esteja na sala do sargento amanhã, às 8h30.

– Você é quem manda.

Quando Bails murmurou alguma coisa em voz baixa, Veck rezou para que o bastardo guardasse suas opiniões para si mesmo. Reilly só estava fazendo seu trabalho – e era bastante profissional. O mínimo que poderiam fazer era retribuir o respeito.

Antes que seu amigo falasse algo, Veck bateu no ombro de Bails e assentiu para De la Cruz. Quando começou a andar, a voz séria e baixa de Reilly irrompeu no silêncio da noite: – Detetive.

Ele olhou sobre o ombro.

– Sim, oficial.

– Terei de levar sua arma. E seu distintivo. E o coldre daquela faca.

Certo. Mas é claro.

– O distintivo está na jaqueta de couro bem ali no chão. Quer fazer as honras com a minha nove milímetros e o cinto?

– Sim, por favor. E levarei seu celular também, se incomoda?

Quando ela aproximou-se, Veck sentiu seu perfume. Nada de frutas ou florais ou, meu Deus, aquela merda de baunilha. Mas também nada que pudesse classificar. Xampu talvez? Será que ela recebeu a ligação saindo do banho?

Que bela imagem... Espere um minuto. Estava mesmo fantasiando com sua colega de trabalho... a menos de dois metros da cena de um crime? Nossa. Sim, era isso mesmo o que estava fazendo.

Reilly colocou a lanterna na boca e, então, as mãos revestidas por luvas azuis brilhantes estenderam-se. Quando ele ergueu os braços para facilitar que tocasse sua cintura, registrou uma pressão sutil em seus quadris, o tipo de coisa que sentiria se ela estivesse tirando as calças dele...

O impulso elétrico que surgiu em seu pênis foi uma surpresa... E, Deus, ficou feliz por aquela luz estar sobre seu peito, e não mais ao sul. Cara, aquilo era tão errado... e contrário à maneira que agia. Nunca paquerava colegas de trabalho, fossem assistentes administrativas, colegas detetives... ou oficiais do Departamento de Assuntos Internos. Problemas demais quando chegava ao fim inevitável...

Santo Deus, onde estava com a cabeça?

Parece que não na realidade.

Era quase como se a magnitude do que havia acontecido naquele local cheio de folhas manchadas de vermelho fosse tão grande que seu cérebro buscasse refúgio em qualquer outro lugar para além do elefante gigante ensanguentado na floresta. Talvez estivesse simplesmente louco. E ponto final.

– Obrigada, detetive – Reilly disse ao afastar-se com a arma e o coldre de couro. – Seu celular?

Ele entregou-o.

– Quer minha carteira?

– Sim, mas pode ficar com sua carteira de motorista.

Quando o trabalho de confisco terminou, ela adicionou: – Além disso, gostaria que você tirasse suas roupas em casa para ensacá-las e levá-las a mim amanhã.

– Sem problema. E sabe onde me encontrar – ele disse com a voz rouca.

– Sim, sei.

Quando estavam prontos para partir, percebeu que não havia nenhum sinal de um queixo abaixado ou um olhar esquivo aparentando timidez. Nada de mexer nos cabelos. Nada de rebolar. Algo que, tudo bem, seria ridículo naquelas circunstâncias... Mas ele teve a sensação de que, se estivesse numa boate, ao lado do bar, ela também não agiria de outra maneira. Não era seu estilo.

Droga, ela simplesmente ficava mais atraente a cada minuto. Se aquilo continuasse, pediria Sophia Reilly em casamento na próxima semana.

Até parece...

Com isso, Veck virou-se pela segunda vez. E ficou surpreso ao ouvi-la dizer: – Tem certeza de que não quer um casaco, detetive? Tenho uma jaqueta extra no meu carro, pois sentirá frio na moto.

– Ficarei bem.

Por alguma razão, ele não queria olhar para trás. Provavelmente por causa de todo aquele grande público que eram os olhos de De la Cruz e Bails. Sim. Era isso.

Na moto, jogou a perna sobre o assento e pegou o capacete. Não o usou para chegar até ali, mas precisava conservar alguma parte do corpo aquecida. Quando deu a partida, esperava que De la Cruz se aproximasse dele e voltasse a comentar sobre o advogado. Em vez disso, o venerável detetive ficou onde estava e falou com a agente Reilly.


Bails foi quem se aproximou. O cara estava com roupas de academia, cabelo curto espetado, os olhos eram um pouco agressivos... sem dúvida porque não gostava que Reilly tivesse assumido o caso.

– Tem certeza de que está bem para ir para casa?

– Sim.

– Quer que eu lhe siga?

– Não – provavelmente o cara iria de qualquer maneira. Ele era assim.

– Sei que você não fez isso.

Quando Veck olhou para o parceiro, ficou tentado a desabafar sobre tudo: seus dois lados, a divisão que sentia há anos, o medo de que sua maior preocupação finalmente tivesse acontecido. Droga, sabia que podia confiar no cara. Ele e Bails fizeram academia de polícia juntos anos atrás e, embora tivessem seguido por caminhos diferentes, mantiveram contato e proximidade – até Bails convocá-lo para ir a Manhattan unir-se à equipe do Departamento de Homicídios de Caldwell. Duas semanas. Estava ali há apenas duas malditas semanas.

Assim que abriu a boca, uma van estacionou atrás dele junto com outros carros do Departamento de Polícia, anunciando a chegada da perícia.

Veck negou com a cabeça.

– Obrigado, cara. Vejo você amanhã.

Deu um solavanco com o corpo, ligou o motor e, enquanto aquecia a moto, olhou de volta para a cena. Reilly estava ajoelhada perto da jaqueta dele, revistando os bolsos. Assim como faria com sua carteira.

Oh, droga. Encontraria...

– Ligue se precisar de mim para alguma coisa, cara.

– Sim. Ligarei.

Veck acenou para Bails e partiu devagar com a moto, pensando ser desnecessário Reilly ver as duas camisinhas que sempre mantinha na carteira atrás dos cartões de crédito. Engraçado, ser um vadio nunca o incomodou antes. Agora, desejava ter dado um nó no pênis anos atrás.

Quando entrou na estrada propriamente dita, acelerou a moto e seguiu rugindo. Quando disparou pelas curvas da estrada 149, inclinava-se nelas, abaixando-se sobre os guidões, tornando-se apenas mais uma peça do projeto aerodinâmico de sua BMW. Com a alta velocidade, as curvas tornaram-se apenas pequenos movimentos para a esquerda e para a direita, enquanto ele e a moto desafiavam as leis da física. Bater em qualquer coisa naquela velocidade? Teria sorte se restasse algum pedaço grande o suficiente para enterrar.

Mais rápido. Mais rápido. Mais...

Infelizmente, ou felizmente, não tinha certeza, o fim da linha para ele não foi colidir em árvores, evitando um acidente com um carro ou um cervo.

Foi um outlet da Ralph Lauren.

Ou, especificamente, um semáforo próximo ao local.

Sair daquela sensação de velocidade da qual tanto gostava deixou-o num estado de desorientação estranho, e a única razão de ter parado no sinal vermelho foi que havia alguns carros na frente dele. Foi forçado a obedecer às leis de trânsito ou andar sobre os carros.

O maldito sinal levou uma eternidade para abrir, e a fila em que estava moveu-se a passo de lesma quando finalmente ficou verde. Ele teria atingido mais de cem quilômetros por hora na estrada, o que não ajudaria em nada. Não que estivesse fugindo de alguma coisa. Claro que não.

Passou por lojas como Nike, Van Heusen e Brooks Brothers. Sentiu-se tão vazio quanto os estacionamentos, e havia uma parte dele que desejava continuar... Desejava passar por aquela parte mais afastada da cidade, vagar pelo labirinto suburbano de Caldie, percorrer a área de arranha-céus e atravessar uma ponte que só Deus sabe onde daria.

O problema era que, aonde quer que fosse... lá estava ele: a mudança geográfica não mudaria se rosto no espelho. Ou aquela parte de si mesmo que ele nunca entendeu, mas também nunca questionou. Ou a porra que teria acontecido naquela noite.

Assassinara aquele bastardo doente. Não havia outra explicação. E não sabia o que Reilly tinha na cabeça ao deixá-lo ir. Talvez ele simplesmente precisasse confessar... Sim, mas o quê? Que tinha ido até lá com a intenção de matar e, em seguida...

A dor de cabeça que acometeu seu lóbulo frontal era o tipo de coisa que ele não suportaria. Nesses casos, tudo o que se faz é gemer e fechar os olhos... Mas isso não é a melhor opção quando se está em cima de uma moto que, praticamente, resume-se num motor com um assento acolchoado.

Forçando a concentração na estrada e em nada mais, sentiu-se aliviado quando a pancada no crânio suavizou e pôde seguir caminho.

A casa em que morava ficava num bairro cheio de professores, enfermeiras e representantes de vendas. Havia muitas crianças, e a conservação dos gramados nos quintais era feita por amadores – o que significava que, no verão, era muito fácil encontrar um gramado irregular, mas, ao menos, eram aparados regularmente.

Veck era um caso isolado ali: não tinha esposa, filhos e nunca contrataria um garoto para aparar a grama. Felizmente, tinha a impressão de que os vizinhos dos dois lados de seu quintal – praticamente um cartão-postal – eram do tipo que invadiam alegremente o território alheio com suas ferramentas.

Sua casa de dois andares era tão luxuosa e única quanto uma moeda de um centavo dos anos 1970. Portanto, como era de se esperar, foi nessa época que a casa viu sua última nova camada de papel de parede.

Estacionando na garagem, desmontou da moto e encaixou o capacete no guidão. Não havia muitos crimes naquela área... então, seus vizinhos aparadores de gramado faziam um ótimo trabalho, em vários sentidos.

Entrou pela porta lateral, passou pelo armário de casacos e caminhou até a cozinha. Não havia muita comida por ali: só algumas caixas vazias de pizza sobre o balcão e algumas embalagens da Starbucks amontoadas sobre a pia. Tinha envelopes meio abertos e relatórios espalhados sobre a mesa. O laptop estava fechado junto a cupons de desconto que ele nunca usaria. Também havia ali uma conta de TV a cabo que ainda não estava vencida, mas, provavelmente, acabaria vencendo, pois era péssimo em pagar as coisas em dia. Sempre ocupado demais para fazer um cheque ou acessar a internet para pagar.

Deus, a única diferença entre aquele lugar e sua sala no centro da cidade era o fato de ter uma cama king-size no andar de cima. Pensando nisso, lembrou-se de que a oficial Reilly queria que ele se despisse, não queria?

Pegou um saco de lixo debaixo da pia da cozinha e subiu as escadas pensando em contratar uma faxineira para limpar a casa uma vez por semana, assim não teria mais que encontrar teias de aranha em todos os cantos e montinhos de poeira que se multiplicavam embaixo do sofá. Mas aquilo não era um lar e nunca seria. Desinfetante e outros produtos de limpeza quatro vezes por mês não deixariam o local aconchegante. Porém, se levasse uma garota um dia até lá, ela teria um local decente para se vestir.

Seu quarto ficava na parte dianteira da casa, e tudo que havia nele era uma cama grande e uma escrivaninha. Suas botas, meias e calças foram tiradas rapidamente. Com a blusa foi a mesma coisa. Quando tirou sua cueca boxer preta, recusou-se a lembrar da oficial Reilly revistando-o. Simplesmente não seguiria por aí.

Dirigindo-se para o banho, ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, parou em frente ao espelho sobre a pia. Não havia reflexo para se preocupar... Tinha coberto o espelho com uma toalha de praia no dia em que se mudou. Não era fã de espelhos.

Ergueu as mãos e estendeu-as com as palmas para baixo. Então virou-as. Em seguida, olhou embaixo das unhas. Parecia que seu corpo, assim como sua mente, estava vazio de pistas. Embora aceitasse que a ausência de ferimentos, sangue ou coágulos em si mesmo fosse um indício... e, sem dúvida, a boa oficial Reilly também tinha notado.

Cara, era a segunda vez na vida em que se encontrava numa situação dessas. Na primeira... Não havia razão para pensar no assassinato de sua mãe. Não numa noite como aquela. Entrando no chuveiro, fechou os olhos e deixou a ducha cair sobre sua cabeça, ombros e rosto. Sabonete. Enxaguar. Xampu. Enxaguar.

Estava parado, envolvido no vapor, quando sentiu uma corrente: como se alguém tivesse aberto a janela do banheiro. O sopro de ar movimentou a parte de cima da cortina e acariciou sua pele. Sentiu arrepios quando percebeu que passava também pelo seu peito e descia por suas pernas e pelas costas. Contudo, a janela não fora aberta.

Foi por isso que removeu o boxe de vidro do banheiro e cobriu aquele espelho embutido sobre a pia. Foram as únicas coisas que mudou na casa, sendo que a melhoria era para manter a sanidade. Já fazia anos que se barbeava sem olhar no espelho.

– Fique longe de mim – ele disse, fechando os olhos e mantendo-os assim.

A corrente de ar enroscou-se nas pernas de Veck, como se mãos estivessem se movendo sobre sua pele, subindo cada vez mais, acariciando seu sexo antes de atingir o abdômen e o peitoral, até chegar ao seu pescoço... seu rosto... Mãos frias passaram pelo seu cabelo...

– Me deixe em paz! – estendeu o braço e empurrou a cortina. Quando o ar quente dissipou-se, tentou concentrar-se em si mesmo, expulsar o intruso, matar a conexão. Tropeçando no balcão, envolveu o corpo com os braços e inclinou-se, respirando com força e odiando a si mesmo, odiando aquela noite, odiando sua vida.

Sabia muito bem que era possível, se você tivesse um distúrbio de personalidade múltipla, que uma parte poderia se libertar e agir de maneira independente. Aqueles que sofrem disso podem ignorar completamente as atitudes tomadas por seu corpo, mesmo quando envolvem atos de violência...

Quando a dor de cabeça começou a latejar em suas têmporas outra vez, Veck amaldiçoou e conseguiu se enxugar. Em seguida, pegou a camisa de flanela e as calças de moletom do Departamento de Polícia de Nova York com que tinha dormido na noite anterior e deixado atrás do vaso sanitário. Estava prestes a descer as escadas quando uma rápida olhada pela janela imobilizou-o.

Havia um veículo estacionado do outro lado da rua a umas duas casas de distância. Conhecia cada veículo da vizinhança, todas as caminhonetes, vans, suvs, sedãs, carros híbridos... Aquele carro escuro, de um modelo recém-lançado, não estava na lista.

Contudo, era exatamente o tipo de carro sem identificação que o Departamento de Polícia de Caldwell usava. Reilly fora vigiá-lo. Muito bem... exatamente o que ele faria no lugar dela.

Finalmente, viu que era mesmo ela, em carne e osso.

Descendo as escadas, hesitou na frente da porta, considerando sair na rua, mesmo descalço, porque talvez ela, ou quem quer que fosse, tivesse respostas sobre a cena Conteve aquela brilhante ideia e foi até a cozinha. Tinha de haver algo para comer no armário. Tinha de ter. Ao abrir e procurar por um momento, só encontrou um monte de vazio entre as prateleiras. Qual supermercado de fadas ele achava que existia? Pois só assim entregariam comida: como mágica.

A fome era tanta que poderia jogar um pouco de ketchup numa caixa de pizza e mastigá-la. Seria bom para ele comer um pouco de fibra.

Delícia.

A duas casas da residência do detetive DelVecchio, Reilly estava sentada atrás do volante, tampando parcialmente a própria visão.

– Por tudo que é mais sagrado... – esfregou os olhos. – Não é adepto a cortinas?

Enquanto rezava para que a imagem espetacular de seu colega nu desaparecesse de suas retinas, repensou seriamente a decisão de vigiá-lo sozinha. Estava exausta, isso era fato... Ou estava, antes de, simplesmente, ter visto tudo o que Veck tinha para oferecer. Desconsidere o simplesmente.

O bom disso era que agora estava realmente alerta, muito obrigada... Era o mesmo que ter umedecido dois dedos e os ter colocado na tomada: a visão foi suficiente para dar todo o ânimo que tinha aos treze anos.

Murmurando para si mesma, deixou cair as mãos sobre o colo outra vez. E, meu Deus, enquanto olhava para o painel do carro, tudo o que via era... era a cena que tinha visto antes. Sim, uau, em alguns homens, estar sem roupas era muito mais do que estar nu.

E pensar que ela quase perdera o show. Estacionou o carro e assumiu sua posição quando as luzes do andar de cima acenderam-se e pôde, assim, ter uma boa visão do que acontecia no quarto. Inclinando-se no banco, não se deu conta de que a posição expunha os dois... Não se ateve a nada além do que parecia ser uma lâmpada no teto do que deveria ser a suíte principal.

Geralmente, a decoração de um apartamento de solteiro tendia a ser muito cheia de detalhes ou minimalista. Era óbvio que Veck seguia a linha minimalista.

De repente, ela não pensava mais na decoração, pois seu suspeito tinha entrado no banheiro e ligado o interruptor.

Olááá, garotão.

E o superlativo englobava várias coisas.

– Pare de pensar nisso... pare de pensar...

Fechar os olhos não ajudou: se já tinha notado como ele ficava bem dentro das roupas que vestia, agora sabia exatamente o porquê. Era muito musculoso e, considerando que não tinha qualquer pelo na parte superior do corpo, nada ocultava aquele peitoral, o abdômen e as saliências esculpidas que desciam até os quadris.

Aliás, por falar em depilação, tudo o que tinha era uma linha escura que percorria a distância entre o umbigo e o...

Bem, talvez tamanho seja importante – Reilly pensou.

– Oh, pelo amor de Deus.

Na tentativa de manter seu cérebro focado em alguma coisa, qualquer coisa mais apropriada, inclinou-se para frente e olhou pela janela oposta. Poderia dizer que a casa da frente tinha cortinas capazes de manter a privacidade. Muito bom, principalmente se concluísse que ele desfilava daquela maneira todas as noites. Talvez o marido tivesse instalado tudo aquilo para que sua mulher não começasse a ter desmaios.

Preparando-se, voltou a olhar a casa de Veck. As luzes tinham se apagado no andar de cima, e ela esperava que agora ele estivesse no primeiro andar, vestido... e permanecesse assim.

Deus, que noite.

Ainda esperava obter alguma prova concreta do que havia acontecido na cena do crime, mas não parava de pensar nos ferimentos de Kroner. Havia coiotes naquelas florestas. Ursos. Gatos selvagens. Havia grandes chances de o cara ter andado por ali com cheiro de sangue seco nas roupas e alguma coisa de quatro patas tê-lo visto como um Mc Lanche Feliz. Na tentativa de intervir, Veck foi jogado de lado. Afinal, estava esfregando a testa como se esta doesse muito, e Deus é testemunha de que traumatismos cranianos são conhecidos por causarem perda de memória em curto prazo. A falta de provas físicas nele apoiava a teoria, com certeza.

E, mesmo assim... Deus, o pai dele. Era impossível não relacionálos, ao menos um pouco. Como todo aluno de especialização em justiça criminal, ela estudou o caso de Thomas DelVecchio pai como objeto de disciplina... mas também passou tempo considerável refletindo sobre ele em suas aulas de desvios psicológicos. O pai de Veck era considerado um serial killer clássico: inteligente, astuto, comprometido com seu “ofício”, totalmente sem remorsos. E, ainda assim, ao assistir vídeos de entrevistas dele com a polícia, deparou-se com um homem bonito, atraente e agradável. Sem qualquer ligação aparente com um monstro.

Contudo, como muitos psicopatas, cultivava uma imagem e sustentava-a com cuidado. Foi muito bem-sucedido como comerciante de antiguidades. Porém, estabelecer-se naquele mundo arrogante, cheio de dinheiro e privilégios, foi apenas um refúgio inventado por ele. Tinha vindo do nada, mas possuía talento para encantar pessoas ricas – bem como para viajar a diversas partes do mundo e voltar com artefatos antigos e estátuas extremamente bem recebidas no mercado. Seus negócios nunca tinham passado por qualquer investigação até os assassinatos virem à tona, e, até hoje, ninguém fazia ideia de onde encontrava tudo o que tinha... Era como se tivesse um tesouro guardado em algum lugar do Oriente Médio. Com certeza não ajudou as autoridades a entender isso, mas o que poderiam fazer com ele agora? Já estava no corredor da morte. Logicamente, não por muito tempo.

Como teria sido a mãe de Veck...?

A batida na janela do carro, ao lado de sua cabeça, foi como um tiro, e Reilly empunhou sua arma em direção ao som menos de um segundo depois.

Veck estava parado na rua ao lado do carro, mãos para cima, o cabelo molhado brilhava sob a luz do poste.

Reilly baixou a arma e abriu a janela com uma maldição.

– Reflexos rápidos, oficial – ele murmurou.

– Quer levar um tiro, detetive?

– Eu disse seu nome. Duas vezes. Mas estava mergulhada em pensamentos.

Graças ao que tinha visto naquele banheiro, a camiseta de flanela e a calça de moletom pareciam muito fáceis de serem removidas, eram coisas que não resistiriam a um puxão. Mas, vamos lá, como se já não conhecesse cada brinquedo daquele parque de diversões.

– Já quer levar minhas roupas? – ele disse ao erguer um saco de lixo.

– Sim, obrigada – ela aceitou o pacote pesado pela janela e apoiou as coisas no chão do carro. – Os sapatos também?

Ao assentir, disse: – Quer que lhe traga um pouco de café? Não tenho muita coisa na minha cozinha, mas acho que consigo encontrar uma caneca limpa e café solúvel.

– Obrigada. Estou bem.

Houve uma pausa.

– Há alguma razão para não olhar nos meus olhos, oficial?

Acabei de vê-lo nu, detetive.

– Nenhuma – ela o encarou furtivamente.

– Deveria entrar. Está frio.

– O frio não me incomoda. Ficará aqui a noite inteira?

– Depende.

– Depende do clima, certo?

– Sim.

Ele assentiu e, então, olhou ao redor, casualmente, como se fossem vizinhos conversando sobre o tempo. Tão calmo. Tão confiante. Assim como o pai.

– Posso ser sincero com você? – ele disse de repente.

– É bom que seja, detetive.

– Ainda estou surpreso por me liberar.

Reilly passou as mãos sobre o volante.

– Posso ser sincera com você?

– Sim.

– Te liberei porque não acredito que tenha feito aquilo.

– Eu estava na cena do crime e havia sangue em mim.

– Você chamou a emergência e não fugiu. Aquele tipo de assassinato é muito difícil de ser cometido.

– Talvez eu tenha limpado tudo.

– Até onde vi, não havia qualquer chuveiro entre aquelas árvores.

Não. Pense. Nele. Nu.

Quando ele começou a balançar a cabeça como se fosse argumentar, Reilly interrompeu-o.

– Por que está tentando me convencer de que estou errada?

Aquilo calou-o. Ao menos por um momento. Então, disse em voz baixa: – Vai se sentir mais segura me seguindo?

– Por que não?

Pela primeira vez, alguma emoção percorreu a expressão fria de Veck, e o coração dela parou: havia medo em seus olhos, como se não confiasse em si mesmo.

– Veck – ela disse em tom suave –, se existir alguma coisa que eu não saiba...

Ele cruzou os braços sobre o grande peitoral e seu peso oscilava sobre os quadris, como se estivesse pensando. Em seguida, sussurrou e começou a esfregar a testa.

– Não sei de nada – murmurou. – Ouça, faça um favor a nós dois, oficial. Mantenha aquela arma por perto.

Não olhou para trás ao se virar e atravessar a rua.

Reilly percebeu que ele não usava qualquer calçado. Ao erguer o vidro da janela, observou Veck entrar na casa e fechar a porta. Em seguida, as luzes da casa apagaram-se, exceto uma no corredor do segundo andar.

Recompondo-se, ela acomodou-se sobre o banco e olhou para todas as janelas. Pouco depois, uma grande sombra entrou na sala de estar – ou melhor, parecia se arrastar até um móvel? Seria um sofá? Então, Veck sentou-se e sua cabeça desapareceu como se estivesse estendido sobre o móvel.

Era quase como se estivessem dormindo lado a lado. Bem, aquilo que os separava eram apenas as paredes da casa, o gramado mal aparado, a calçada, o asfalto e a estrutura que envolvia o carro.

As pálpebras de Reilly começaram a cair, mas era porque tinha abaixado a cabeça. Não estava cansada e nem preocupada em cair no sono. Estava bem alerta no interior escuro do carro. Mesmo assim, estendeu a mão e apertou o botão para travar as portas. Só para garantir.


CAPÍTULO 4

 

Vagando ao longo do corredor de concreto frio, o demônio Devina não seguia um caminho reto, mas sinuoso. Percorria várias salas de escritório, o tic-tac de vários relógios abafava o barulho que seus saltos produziam.

Tudo foi acomodado ali, sua coleção tinha se mudado com segurança para o porão do prédio de escritórios de dois andares. O local era perfeito, afastado do centro da cidade de Caldwell e, para parecer verdadeiro e não suscitar polêmicas, projetou a ilusão de que uma empresa de recursos humanos havia se instalado no local que agora ela percorria: os humanos só conseguiriam enxergar um próspero empreendimento que havia alugado o imóvel para se expandir dentro do mercado.

Seres humanos estúpidos. Como se, na atual circunstância da economia, alguém pudesse contratar ou pagar mão de obra especializada para preencher as vagas de trabalho que disponibilizavam.

Parou em frente a uma cômoda clássica produzida em Rhode Island, em 1801, e passou a mão sobre o mogno. O acabamento original ainda estava ali. Claro, ela evitou que o objeto ficasse exposto ao sol ou à umidade desde que o havia comprado há duzentos anos. Havia divisões nas gavetas cheias de botões, filas e mais filas de óculos e amontoados de pequenas caixas com anéis dentro delas. Possuía objetos similares nos outros gabinetes, todos objetos pessoais, feitos de diversos metais.

Além de seu espelho, aquela coleção era a coisa mais preciosa que tinha. Era a sua ligação com as almas, a segurança que precisava quando sentia-se insegura ou estressada na Terra, como agora.

No entanto, o problema daquela noite era que, pela primeira vez, tudo aquilo que vinha acumulando há séculos não a acalmava, não a deixava mais segura, nem diminuía sua ansiedade. Vagando por entre os objetos, estava longe da ajuda do vício que, há tanto tempo, provara-se muito útil.

E o que parecia ainda pior? Aquela noite deveria ser um “momento de recompensa”, como sua terapeuta definia. Um tempo para concentrar-se e saborear suas realizações: tinha vencido a última rodada contra Jim Heron e, mesmo sabendo que ele, Adrian e Eddie tinham se infiltrado em seu covil anterior, tinha conseguido reinstalar todas as suas coisas naquele novo e seguro local.

Deveria estar em êxtase. Mesmo assim, mesmo o cheiro de morte à deriva vindo do banheiro não lhe deu prazer: para proteger o espelho, precisava de muito mais que um sistema de monitoramento comum, e o novo sacrifício virginal que tinha pendurado sobre a banheira sangrava muito bem... quase pronto para ser usado, não era apenas decorativo.

Tudo estava a seu favor, ao menos superficialmente falando, e, ainda assim, ela sentia-se tão... Tédio, parece que era assim chamado... E que nome adorável para um péssimo estado de desmotivação.

Talvez só estivesse exausta por ter organizado tudo após a mudança. Tinha mais ou menos quarenta gabinetes cheios de aquisições de todas as eras da humanidade. Sempre que era forçada a se restabelecer em outro lugar, era obrigada a tocar cada objeto para se reconectar com a essência da vítima que permanecia no metal. E ainda precisava iniciar o ritual de contato, porém estava um pouco surpresa consigo mesma. Normalmente, não conseguia concentrar-se em mais nada até que houvesse aquela fissura no tempo, até que vagasse pelo local por alguns minutos e completasse o longo processo.

Acreditava que sua terapeuta veria aquilo como um progresso, considerando a compulsão que lhe era tão comum e inegável: aqueles objetos preciosos, que remontavam desde os tempos do Egito antigo até a França gótica, da Guerra Civil Americana aos Estados Unidos de hoje, eram o que a ligava à sua casa quando estava longe.

Ainda assim, não havia pânico para se refugiar naquilo que era seu pela eternidade. Parecia que seu maior desejo era lamentar-se e andar sem direção. Tudo culpa de Jim Heron.

Ele era tão desafiador. Dominante. Extraordinário. Tinha sido escolhido por ela e por Nigel – aquele filho da mãe arrogante – por ter o bem e mal equilibrados dentro de si... E, conforme ela tinha aprendido ao longo dos tempos, quando tratava-se da humanidade, o mal sempre vencia. Achava que atraí-lo para o lado dela não seria nada além de uma tarefa tediosa, o tipo de coisa que sempre fez com homens e mulheres desde o primeiro momento de sua existência. Em vez disso... era ela quem estava sendo sugada e seduzida.

Heron era tão... incontrolável. Mesmo quando o dominou e brincou com ele, quando seus subordinados torturaram-no, quando a verdadeira natureza dela foi revelada... ele permaneceu firme, inflexível, intransigente. E aquela força deixava-o inatingível.

Nunca tinha visto aquilo antes. Em ninguém. A questão era: controlar fazia parte de sua natureza, pois era uma perfeita parasita. Procurava uma maneira de replicar sua essência até que o local no qual havia se infiltrado se tornasse dela para sempre.

O desafio que Heron representava era inebriante, um tapa no rosto, uma rajada de ar fresco. Mas também parecia esvaziar a importância de toda a existência das coisas.

Abrindo uma gaveta, tirou uma fina pulseira de ouro com uma pequena pomba como pingente. A inscrição no interior do objeto apresentava-se em letra cursiva e delicada. Era um presente de dois pais para uma filha. Com uma data do ano anterior. Blá-blá-blá.

Ela odiava o nome Cecília. Muito. Aquela virgem sem importância... Que espinho em sua vida. O propósito daquela garota de sobrenome Barten era apenas o de proteger o espelho. Mas, agora, aquele pequeno lixo tinha algum tipo de ligação com Jim...

Quando estava prestes a esmagar o frágil objeto, um calor percorreu seu corpo, como se o toque de um amante tivesse passado não apenas sobre sua carne, mas sobre seus ossos.

Jim. Era Jim. Ele chamava-a.

Descartando a pulseira, verificou se a gaveta estava mesmo fechada e foi até o espelho que usava apenas para checar sua aparência. Em frente a ele, mudou sua forma, assumindo o corpo de uma linda morena, com seios que desafiavam a gravidade e um traseiro com mais volume do que uma estante de livros.

Ajeitou o cabelo, alisou a saia preta e achou que a barra estava longa demais. Erguendo-a com a força, virou-se e viu que suas coxas lisas e perfeitas estavam à mostra. De repente, estava viva. Bem, tecnicamente, viva não era o termo correto. Mas era assim que parecia: em apenas um momento, seu humor mudou de sepulcral para sublime. Só que não seria idiota com relação a isso. Confiante em sua saia curta, no decote e nos belos cabelos, entrou no banheiro.

– Como estou?

Deu um pequeno giro em frente ao jovem pendurado de cabeça para baixo sobre a banheira. Só que ele não disse nada, mesmo de olhos abertos.

– Ah, o que é que você sabe?

Ela abaixou-se e mergulhou a ponta dos dedos no sangue que escorria continuamente da carótida do rapaz. Impaciente com a demora, traçou alguns riscos em volta dos batentes da porta e no chão, indo e voltando da banheira para umedecer os dedos novamente com a “tinta”. A pureza da essência do jovem formava um selo mais eficaz que qualquer alarme de segurança já criado por um humano... Além disso, o processo permitia que ela livrasse o mundo de mais uma criatura mortal.

Seu trabalho ficava mais fácil assim.

Terminou o assunto com o senhor Tagarela e virou-se para o antigo espelho envolto por uma moldura um tanto apodrecida pelos séculos. A superfície gasta exibia um reflexo em constante mudança, ondas de cinza-escuro e preto rodavam em torno de um fundo cuja cor parecia a mancha de um tapete velho. Aquilo era um horrível portal e a única maneira de se aproximar das almas que possuía.

– Fique aí – disse a ele. – Volto já.

Aproximando-se da superfície do espelho, foi puxada por uma força cruel e entregou-se livremente àquilo. O corpo que havia assumido tornou-se caramelo ao passar por aquele local. Do outro lado, emergiu sem muita firmeza, jogada pela tempestade, mas não precisou de tempo algum para se recuperar.

Ao ajeitar o cabelo e alisar a saia apertada, pensou ser uma falha não ter um espelho ali. No entanto, não precisava preocupar-se com a opinião de seus subordinados ou de suas almas... Oh, suas adoráveis almas... bem, tinham outras coisas em mente.

Inclinando a cabeça para trás, olhou as paredes que se estendiam por quilômetros num negro brilhante visível desde o chão de pedra. O contorcionismo dos condenados torturados desafiavam os limites de sua viscosa prisão; rostos, quadris, joelhos e cotovelos esticavam-se tentando alcançar uma liberdade impossível, as múltiplas vozes erguiam-se num lamento miserável e abafado.

– Como estou? – ela gritou para cima.

O volume do coro de gemidos aumentou como resposta, mas não lhe disseram absolutamente nada. Pelo amor de Deus, será que não conseguiria uma opinião? Qualquer uma?

Depois de olhar para si mesma mais uma vez, concedeu acesso a Jim, convocando sua forma física no local. Enquanto esperava, seu coração batia três vezes mais rápido, uma corrente percorria cada centímetro de sua pele com um chiado elétrico. Mas não demonstraria isso. Calma. Fique calma.

Jim chegou num redemoinho de névoa, e ela prendeu a respiração.

O salvador escolhido era o melhor exemplar que havia do sexo masculino. De uma constituição grande e letal, seu corpo era um instrumento de guerra e sedução. Era primitivo, intenso...

– Você me deseja – disse ela em voz baixa.

Os olhos dele estreitaram-se, e o ódio que havia neles fez mais pela libido de Devina do que um prato cheio de ostras poderia fazer.

– Não dessa maneira, querida.

Oh, como ele mentia.

Devina foi até a mesa de trabalho rebolando e passou as pontas dos dedos sobre a superfície esburacada e sem cor. As memórias dele amarrado nu, de pernas bem abertas e com seu sexo brilhando por ter sido usado há pouco, fizeram-na respirar fundo.

– Não? – ela disse. – Você me chamou. Não o contrário.

– Quero que me diga quem é a próxima alma.

Interessante.

– Então, Nigel mandou você até aqui quando fez a mesma pergunta a ele, não foi?

– Não disse isso.

– Bem, acho difícil acreditar que me procurou primeiro – murmurou em tom amargo. – E acha que vou te contar?

– Sim, acho.

Soltou uma risada violenta.

– Já deveria saber como sou.

– E vai me dizer.

– Por que eu haveria de...

Uma das mãos ergueu-se e Jim começou a passá-la pelo peitoral de maneira intensa e lentamente, oh, bem lentamente, descendo pelo seu estômago...

Devina engoliu em seco. E, então, sua boca ficou realmente seca quando ele segurou o próprio órgão entre as pernas.

– Tenho algo que deseja – ele disse asperamente. – E vice-versa.

Bem, bem, bem... Desejava ficar com ele, sim, mas era muito melhor quando a ligação era voluntária. Ele teria que se esforçar para fazer sexo com ela, sacrificar sua carne para obter informação... na frente de sua doce e estimada Sissy.

Devina olhou para a parede e encontrou a alma com a qual ele tanto se preocupava. Ao descer a garota, inclinou-se contra a mesa.

– O que, exatamente, você está me propondo?

– Diga quem é e eu fodo você.

– Faça amor comigo.

– Vai ser uma foda. Pode acreditar.

– Chame da maneira que quiser... mas não tenho certeza – que mentira. – É uma informação muito valiosa.

– Bem, sabe como eu sou.

Ah, ela sabia e desejava-o outra vez. Desejava sempre.

– Tudo bem – ela disse. – Vou te dizer quem é e, em troca, vai se entregar para mim sempre que eu quiser. Tem que estar à minha disposição.

Os olhos dele estreitaram-se outra vez, como fendas que o faziam parecer um predador.

E, então, houve apenas silêncio. Enquanto o silêncio estendia-se, ela permaneceu firme. Ele tinha voltado, isso era muito estranho, mas precisava agradecer a Nigel – o idiota que sempre seguia as regras – por isso. Se o arcanjo tivesse deixado escapar o nome da alma, aquele maravilhoso sacrifício não estaria acontecendo.

– Certo.

Devina começou a sorrir...

– Com uma ressalva – quando a expressão dela congelou, ele disse: – Ficarei com você agora em troca do nome. Então, veremos se é o correto. No final da rodada, se não tiver mentido... você terá o que deseja. Sempre que quiser.

Devina rosnou. Maldito livre arbítrio. Se ao menos pudesse dominar tal atributo de maneira mais apropriada, ele não imporia qualquer condição. Mas não era assim que funcionava.

Ainda há algumas brechas – pensou. Algumas maneiras de distorcer o acordo para que não falasse demais e ainda conseguisse possuí-lo.

– Temos um acordo? – ele perguntou.

Olhou sobre o ombro dele, enquanto se aproximava, em direção à pequena forma na parede que havia convocado para assistir de camarote o que aconteceria.

Quando Devina tocou o corpo forte e ergueu-se na ponta dos pés, ficou encantada com a carne rígida que acariciava. No ouvido de Heron, sussurrou: – Tire as calças.

– Feito ou não, demônio?

Estava inabalável diante dela, perfeitamente capaz de negá-la, tanto agora como no futuro. Mesmo estando bem na frente dela, era completamente intocável.

Só que era como ele mesmo havia dito, os dois tinham algo que o outro desejava.

– Tire as calças – afastou-se pronta para aproveitar o espetáculo. – Faça isso devagar... e teremos um acordo.

– Que maldição ele está fazendo lá?

Quando Adrian expressou toda sua retórica, indignado, não esperava uma reação de seu colega de quarto. Poderia passar com um carro sobre os pés de Eddie e, talvez, conseguisse obter um ai. Era mais provável que o anjo apenas piscasse os olhos e chutasse o veículo com força.

Sinceramente, aquela coisa toda de forte e silencioso podia ser bem irritante.

– Já faz duas horas – parou no pé da cama em que Eddie estava esparramado. – Ei? Está acompanhando a situação? Ou planeja dormir durante a rodada?

As pálpebras ergueram-se exibindo olhos vermelhos.

– Não estava dormindo.

– Meditando. Que seja.

– Não estava meditando.

– Tudo bem. Manipulando psiquicamente campos de energia...

– Você me deixa atordoado quando fica andando de um lado para o outro sem parar. Só estou evitando uma vertigem.

Não acreditou naquilo nem por um segundo.

– Preocupar-se um pouco com a situação o mataria?

– Quem disse que não estou preocupado?

– Eu disse – Adrian correu os olhos ao longo do corpo grande e imóvel de seu colega. – Estou prestes a pegar um desfibrilador e dar uma descarga na sua bunda.

– O que posso fazer, Ad? Ele voltará quando for a hora.

Imagens de Nigel, o afeminado, aproximando-se todo elegante de Jim fez Adrian pensar se não precisariam de um serviço funerário. Aquele arcanjo poderia passar o tempo jogando críquete e polo, mas não significava que não daria um jeito no cara... E Jim tinha deixado o local com vontade de acabar com alguém. Talvez o bastardo tivesse conseguido aquilo que procurava.

Adrian começou a andar novamente, mas o quarto de hotel não oferecia muito em termos de espaço. Pensou em descer ao bar...

Houve um rangido no quarto ao lado. Como se alguém tivesse sentado na cama. Ou aberto e fechado alguma coisa.

Ad estendeu a mão para a parte traseira da cintura e pegou a adaga de cristal. Se fosse apenas um humano tentando roubar um notebook, não precisaria daquilo. Mas, se Devina tivesse enviado mais um de seus subordinados para distraí-los, a arma seria bastante útil.

Empurrando a porta do quarto conjugado apenas um centímetro ou dois, inclinou-se. Uma camiseta preta foi arremessada para fora do banheiro. Em seguida, uma calça jeans.

Bota.

Bota.

O chuveiro foi acionado e, na sequência, houve um silvo, como se Jim não tivesse esperado a água aquecer primeiro.

Droga. Não tinha visitado apenas Nigel, tinha?

Adrian guardou a adaga outra vez, empurrou a porta com força, atravessou o quarto e sentou-se na cama do outro anjo. Deus sabia que não havia razão para arrancar a roupa e correr para uma ducha de água quente após um encontro com o arcanjo. O pobre coitado deve ter ido até Devina... E ninguém precisava pensar duas vezes para descobrir o que havia acontecido.

Ouvindo o som de Jim lavando o fedor do demônio, Adrian sentiu-se cansado ao ponto de perceber a visão turva de tanta exaustão. O que significava aquele caminho que o salvador decidiu seguir? Ir até lá. Fazer aquilo. Perder a cabeça.

Era este o negócio de Devina. Ela penetrava em você. No começo, você ainda achava que estava no controle. Depois, aquilo que fazia com ela, por razões que pareciam ser muito sensatas, devorava-o, e Devina entrava em sua pele e assumia a direção. Era assim que trabalhava e era muito bem-sucedida.

Quando Jim finalmente saiu do banheiro, parou com uma toalha nas costas, um braço erguido e outro abaixado. Havia marcas de arranhões nas coxas e no abdômen e seu sexo pendia desanimado, como se tivesse sido muito usado e deixado para morrer.

– Ela vai comê-lo vivo – Adrian disse.

O anjo responsável por salvar a tudo e a todos balançou a cabeça.

– De jeito nenhum.

– Jim...

– Ela vai nos dizer quem é a alma – Jim envolveu a toalha em torno de seus quadris. – Vamos encontrá-la amanhã cedo.

Caramba.

– Espere, ela não lhe deu a informação agora?

– Amanhã cedo.

Ad apenas balançou a cabeça.

– Ela está brincando com você...

– Ela vai mostrar. E vai dizer. Confie em mim.

– Ela não é uma fonte confiável. E esse não é o caminho da vitória.

– Então, você acha melhor obter o resultado da última rodada?

Bem... droga.

Jim foi até a mochila e pegou um uniforme militar. Quando virou-se e começou a se vestir, aquela tatuagem enorme em suas costas, com o Ceifeiro da Morte num cemitério, contorceu-se e voltou a assumir a forma original.

Talvez Jim fosse mais durão. Aquilo seria um golpe baixo e dolorido, algo que Ad admitiria apenas diante de sua carcaça fumegante. Mas, se o cara conseguisse suportar tudo aquilo... se pudesse, de alguma maneira, manter-se em pé... então, tinham a melhor arma naquela luta, pois o demônio tinha uma atração pelo cara. Uma grande atração.

Jim foi até o jeans que atirara pela porta do banheiro e vasculhou os bolsos. Quando ergueu-se novamente, havia um quadrado de papel dobrado em suas mãos.

As mãos tremiam, ainda que levemente. Quando ele abriu cuidadosamente o papel, Adrian, mesmo sem ver o que havia ali, esfregou o rosto e desejou que um carro tivesse caído sobre sua cabeça. Sabia muito bem que era o objeto pessoal daquela garota que encontraram sobre a banheira de Devina – a virgem pela qual Jim estava obcecado.

Idiota – Ad pensou. Estavam ferrados. Estavam muito ferrados.


CAPÍTULO 5

 

Veck acordou no sofá de sua sala de estar. O que foi uma surpresa, pois não tinha um.

Esfregando os olhos por causa da bela luz do sol, ficou surpreso por ter controlado o desejo de dormir mais perto da oficial Reilly, tanto que conseguiu se arrastar apenas até ali.

Sentou-se e olhou para a rua. O carro sem marcas de identificação havia partido, e ficou pensando em quando ela se fora. Da última vez que olhou, ainda estava lá, às quatro horas. Gemendo, esticou o corpo, seus ombros estalaram. Detalhes da noite anterior voltaram à memória, mas Veck, instintivamente, quis ficar longe do Monroe Motel & Suítes. Já sentia-se péssimo, não precisava adicionar uma dor terrível à fumaça que saía de sua cabeça.

Quando ficou em pé, ainda teve de lidar com uma ereção matinal obscena – outra coisa para se ignorar. Tinha a impressão de que se envolvera num sonho ousado e espetacular entre ele e a oficial do Departamento de Assuntos Internos. Alguma coisa sobre ela cavalgando em cima dele... O corpo de Veck estava quase todo vestido, ela estava completamente nua... não, espere, estava com o distintivo e a arma no cinto sobre o quadril.

– Droga... – quando seu pênis começou a ficar rígido, rezou para perder outra remessa de memórias de curto prazo e amaldiçoou o pornô clichê. Mas, agora, poderia entender por que os caras de outros departamentos achavam Reilly atraente.

Considerando a direção que seu cérebro estava tomando, não tinha certeza se adicionar cafeína à mistura era uma boa ideia, mas seu corpo precisava se reerguer. Foi chato quando descobriu que havia mentido para a oficial Reilly. Depois de ter conversado com ela e entrado, percebeu que estava sem pó de café.


No andar de cima, tomou banho, barbeou-se e vestiu o uniforme de trabalho: calça e camisa. Nada de gravata para ele, apesar de muitos detetives usarem. Nada de terno. Não usava nada desse tipo, a não ser jaqueta de couro, ou de motociclista, ou algo assim, bem informal.

No andar de baixo, pegou o casaco-reserva no armário, a chave da moto e trancou tudo. Ao se aproximar da BMW, lembrou que levaram várias coisas dele na noite anterior, por isso sentia-se tão leve. Nada de celular para checar as mensagens de voz. Nada de distintivo no bolso da frente. Nada de arma no coldre. Nada de carteira no bolso de trás da calça. A oficial Reilly ficou com tudo. Até com suas roupas de baixo.

Colocou o capacete e subiu na moto, a manhã estava clara e brilhante demais para ele... E nem tinha amanhecido completamente. Cara, considerando a pequena fresta que seus olhos conseguiam abrir, era bom saber que a moto já conhecia o caminho.

De la Cruz tinha levado Veck ao restaurante Riverside há alguns dias, e ele já se perguntava como tinha conseguido sobreviver, até então, sem uma boa dose daquela comida gordurosa. Seguindo o caminho do local, pegou as marginais pavimentadas, pois, mesmo às 7h45, a estrada principal estaria lotada.

O restaurante ficava às margens do rio Hudson, a apenas uns quatro quarteirões da delegacia... E, quando parou no estacionamento cheio de veículos sem identificação, entendeu que tinha chegado ao seu destino. Havia uma grande possibilidade de que metade da força policial também estivesse ali para tomar sua caneca de café de sempre, mas era tarde demais para ir a outro lugar.

Pouco antes de entrar, depositou 75 centavos numa máquina que distribuía o Correio de Caldwell e pegou um exemplar do jornal. Não havia nada sobre a noite passada na primeira página, então virou a página procurando um artigo que...

E lá estava seu nome. Em negrito.

A reportagem, no entanto, não era sobre ele ou Kroner. Era sobre seu pai, e ele rapidamente pulou o texto. Não queria acompanhar as acusações, o julgamento, a sentença de morte, nada que tivesse relação com seu pai. E, meu Deus, quando finalmente foi pego pela justiça criminal, ficou doente no dia em que cobriram o caso.

Não havia nada demais no resto da primeira sessão, nada nas notícias locais, nada nas seções de esportes, quadrinhos ou classificados. Porém, a falta de cobertura sobre o caso não duraria muito. Os repórteres tinham algum acesso aos relatórios policiais e, provavelmente, a história já estava na televisão e nos rádios. Um detetive do Departamento de Homicídios ligado tão diretamente aos atos de um psicopata? Era esse tipo de porcaria que vendia jornais e justificava os preços dos anúncios.

Ao empurrar a porta de vidro, entrou no ambiente ruidoso do Riverside com sua face enterrada nos artigos esportivos. O local estava cheio, quente e com um barulho tão alto como num bar. Teve o cuidado de não fazer contato visual com ninguém enquanto olhava ao redor procurando uma cadeira livre ou uma mesa vazia.

Não havia nada vago. Maldição. E não queria muito juntar-se a uma mesa cheia de oficiais da polícia. A última coisa que precisava era o monte de perguntas que seus colegas fariam. Talvez ele devesse ter ido direto à delegacia e recorrido a uma máquina de bebidas.

– Bom dia, detetive.

Veck olhou à direita. A bela oficial Reilly, que estava sentada na mesa mais próxima que havia da porta, de costas para ele, virou a cabeça a fim de olhar para ele por sobre o ombro. Tinha uma xícara de café à sua frente, um celular na mão e uma expressão de que nada fazia sentido.

– Quer me acompanhar? – disse, apontando para a mesa.

Ela devia estar brincando. Havia mais ou menos uma dúzia de membros da força policial olhando para eles... Alguns de uma maneira mais sorrateira que outros.

– Tem certeza de que quer ser vista comigo?

– Por quê? Não sabe se comportar à mesa?

– Sabe o que quero dizer.

Ela deu de ombros e tomou um gole do café em sua xícara.

– Nossa reunião com o sargento é daqui a vinte minutos. Vai ter muita sorte se conseguir um lugar para sentar até lá.

Veck deslizou na frente dela.

– Pensei que no Departamento de Assuntos Internos vocês sempre se preocupassem com o decoro.

– São apenas dois ovos, detetive, nada demais.

Veck colocou o jornal de lado.

– Está certo.

A garçonete veio com o bloco de notas e o lápis a postos.

– O que vai ser?

Não havia razão alguma para olhar o cardápio. O Riverside tinha todo tipo de omelete, ovos e torradas conhecidos pelo ser humano. Estava com vontade de comer uma torta no café da manhã? Um sanduíche com bacon e tomate? Cereais, aveia e panquecas? Muito bem, que seja... Mas faça logo seu pedido e coma rápido antes que outra pessoa sente no seu lugar.

– Três ovos mexidos. Gema dura. Torradas com manteiga. Café. Obrigado.

A garçonete sorriu como se tivesse aprovado a eficiência.

– Já vai sair.

Eeeee lá estava ele sozinho com Reilly. Ela tinha tomado banho e vestido um conjunto bem profissional de saia e camisa de botões. O tailleur, combinando com a roupa, estava dobrado com cuidado ao lado dela em cima do casaco. Seus cabelos vermelho-escuros estavam amarrados para trás outra vez e toda a maquiagem que ostentava era constituída apenas de um pequeno traço de batom.

De fato, quando ela apoiou a xícara de café na mesa, havia uma meia-lua rosa onde havia tocado com a boca. Não que ele estivesse observando os detalhes de seus lábios. Não mesmo.

– Estou com um relatório preliminar sobre o caso – ela disse.

Hum... aqueles olhos não eram apenas verdes, como ele havia concluído antes. Havia traços de avelã, produzindo uma combinação única de cores que parecia verde apenas a distância.

– Desculpe, o que você disse?

– Tenho um relatório preliminar de ontem à noite.

– E?

– Não foram encontradas outras armas no local.

Manteve-se tranquilo por força do hábito.

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a garçonete entregou o café dele e o pedido de Reilly: uma tigela de mingau de aveia com uma torrada. Sem manteiga.

– É só trigo? – ele perguntou.

– Sim.

Claro que era. Provavelmente ela comia uma salada leve no almoço com alguma fonte de proteína e uma taça de vinho, quando muito, e, no jantar, deveria ser apenas legumes e frango grelhado e alguma coisa com baixo índice glicêmico.

Ficou pensando o que ela teria achado do ataque cardíaco caprichado que ele pedira.

– Por favor, não espere por mim – ele disse.

Ela pegou a colher e adicionou uma pequena quantidade de açúcar mascavo e creme.

– Quer saber o que acho que aconteceu?

– Sim, quero.

– Um animal selvagem te atacou, e, em meio à confusão, você bateu a cabeça.

Ele esfregou o rosto.

– Não tenho marcas.

– Pode ter caído de costas.

Na verdade, não é que ele havia pensado nisso?

– Mas não há qualquer inchaço. E meu casaco ficaria todo sujo.

– Está sujo.

– Apenas por eu ter colocado sobre o Kroner.

Ela baixou a colher.

– Pode provar? Como sabe se foi só isso se não consegue se lembrar de nada? Além disso, sua cabeça estava te matando ontem à noite e, a propósito, você está fazendo isso outra vez.

– Fazendo o quê?

– Discutindo comigo sobre o que aconteceu. E também está esfregando a testa.

Quando ele amaldiçoou e voltou a colocar as mãos sobre a caneca de café, ela sorriu um pouco.

– Adivinhe só, detetive? Você vai ser examinado na delegacia assim que terminarmos nossa reunião.

– Estou bem – Deus, podia ouvir o tom dissimulado em sua voz.

– Lembra-se do que eu disse ontem à noite, detetive? É uma ordem.

Ao se ajeitar na cadeira e beber um pouco do seu estimulante, viu-se observando o dedo anelar de Reilly. Não havia nada. Nem mesmo uma marca mais clara, como se alguma já tivesse passado por lá.

Desejou que estivesse usando um anel de compromisso simples: ele não se metia com mulheres casadas. Nunca. Claro que já atrapalhou alguns casais em sua história de encontros casuais, mas apenas por não saber que eram comprometidas. Era um vadio com valores, sabe?

– Por que você não me suspende?

– Outra vez com uma negativa.

– Não quero que arruíne sua carreira comigo – murmurou.

– E não tenho qualquer intenção de permitir que isso aconteça. Mas não há evidência de que tenha sido você o responsável pelo ataque, detetive, portanto, é o suficiente... só não sei por que você continua a me pressionar.

Quando encarou os olhos dela, ouviu-se dizer: – Sabe quem é meu pai, não sabe?

Aquilo conteve-a por um momento, sua porção de fibras sem gordura voltou para o prato no meio do caminho. Até parou de mastigar.

Então, a bela oficial Reilly recuperou-se com um encolher de ombros.

– Claro que isso é ruim, mas não significa que você tenha dilacerado alguém – inclinou-se. – Mas é o que você teme, não? E por isso continua a bancar o advogado do diabo.

A garçonete escolheu aquele momento para aparecer com o prato fumegante cheio de colesterol, e sua chegada foi um salva-vidas conversacional, se é que existia este tipo de coisa.

Salgou o prato. Colocou pimenta. Espetou com o garfo e comeu.

– Ajudaria se conversasse com alguém? – Reilly disse, quase inaudível.

– Um psiquiatra?

– Terapeuta. Eles podem ser bastante úteis.

– Diz isso por experiência pessoal, oficial?

– Na verdade, sim.

Ele soltou uma risada alta: – Por algum motivo, não acredito que eu seja o tipo de pessoa que precise de algo assim.

– Todos têm problemas.

Sabia que seria um tanto inconveniente, mas sentiu-se nu – e no mal sentido.

– Então, conte-me um dos seus.

– Não estamos falando de mim.

– Bem, estou cansado de estar no palco sozinho – quebrou um pedaço de torrada em duas. – Vamos lá, oficial. Conte alguma coisa sobre você.

– Sou um livro aberto.

– Que precisa de terapia? – quando ela não respondeu, ergueu o olhar para encará-la. – Covarde.

Os olhos da mulher estreitaram-se, ela inclinou o corpo para trás e empurrou a vasilha, ainda metade cheia, para frente. Ele esperava alguma réplica espirituosa. Ou, mais ainda, um tapa. Em vez disso, ela enfiou a mão no bolso, pegou uma nota de dez dólares e a colocou entre eles sobre a mesa.

– Vejo você na sala do sargento.

Com uma graça sutil, distanciou-se, pegou o casaco, a bolsa e o celular.

Antes de sair, Veck agarrou seu pulso.

– Desculpe. Passei do limite.

Ela desprendeu-se e colocou o celular na bolsa.

– Até logo.

Depois que Reilly saiu, Veck empurrou o próprio prato, mesmo ainda tendo um ovo e meio nele. Ainda não eram nove horas... e já tinha ganho o prêmio de idiota do dia. Fantástico...

Uma corrente de ar passou por suas costas, eriçando os cabelos da nuca, e aquilo o fez virar em direção à porta. Uma mulher havia entrado e não pertencia ao local, assim como uma porcelana chinesa fina sendo vendida numa loja de departamentos qualquer. Quando seu perfume pairou no ar e ela tirou o casaco de pele, houve uma pausa audível nas conversas do local. Ela tinha acabado de expor seios enormes para metade do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando Veck observou-a, achou que deveria ter sentido alguma atração por ela, mas, em vez disso, aquele ar frio fazendo cócegas em sua coluna despertou nele o desejo de pegar uma arma e apontar em direção àquela mulher como um mecanismo de autodefesa. E como o desejo era forte.

Deixando uma nota de vinte, interou o valor do resto do café da manhã e dirigiu-se à porta. Ao sair, parou. Olhou ao redor. Sua nuca ainda estava alerta, seus instintos gritavam, principalmente quando olhou através das janelas redondas do restaurante. Alguém o observava. Talvez fosse aquela mulher com corpo de modelo de revista erótica, talvez outra pessoa. Mas seus instintos nunca mentiam.

A boa notícia era que talvez recebesse suas armas de volta naquela manhã. Então, pelo menos, poderia novamente se proteger.

Quando Jim estacionou no Riverside com sua Harley, um cara aproximou-se com uma bela moto BMW rugindo. Adrian e Eddie estavam bem atrás dele com suas motos, e os três estacionaram juntos do outro lado, próximo ao rio Hudson. Quando Jim desmontou e olhou para o lugar, concluiu que Devina havia lhe chamado para um encontro. Bem, tinha algo de especial ali. Esteve com sua primeira alma naquele mesmo restaurante.

Talvez Caldwell fosse um imã para almas condenadas. Ou talvez ela apenas gostava do café servido ali e lhe diria que a alma em questão estava em outro lugar.

Aproximando-se da entrada, viu que seus colegas não estavam para conversa... o que não era novidade da parte de Eddie, mas um milagre, no caso do outro anjo. Aquilo não duraria muito da parte de Ad.

O restaurante estava lotado, barulhento e cheirava a café e a manteiga derretida. Que maldito lugar para Devina escolher...

E lá estava ela, à esquerda, sentada numa mesa, observando a porta enquanto um raio de sol se derramava pela janela ao seu lado. Os raios cálidos e amarelos iluminavam perfeitamente seu rosto, como se estivesse prestes a ser fotografada, e Jim pensou na primeira vez que a viu naquele clube, parada sob uma luminária no teto. Ela, por si só, também brilhava.

O mal nunca pareceu tão atraente, mas, ao contrário dos outros homens, que olhavam sobre suas canecas e babavam como cães, Jim sabia quem aquela mulher realmente era... Não se distraía mais com aquele disfarce a ponto de deixar de perceber que ela não projetava sombra. Por mais brilhante que fosse a luz que a atingisse, não havia qualquer contorno de sombra sobre a mesa ou sobre o encosto do banco ao lado dela.

Por uma fração de segundo, visualizou a imagem deles dois juntos na noite anterior. Tentou penetrá-la por trás sobre a mesa, mas ela insistiu em transar face a face. Sinceramente, ficou surpreso por conseguir uma ereção, mas a fúria também deixava-o rígido, por algum motivo. Ao menos com ela.

Quando desvencilhou-se daquela cena grosseira, suada, olhou ao redor, em direção às paredes, imaginando Sissy presa naquele emaranhado de condenados. Rezou para que sua garota não tivesse visto aquilo. Deus, pensar que ela poderia ter...

Mas chega disso. Aproximando-se de Devina, bloqueou todos os pensamentos em relação a Sissy, ao sexo que teve com o inimigo ou até mesmo em relação ao jogo em si.

– Então, quem é? – ele disse.

O demônio olhou por cima do Correio de Caldwell, seus olhos negros percorreram rapidamente o corpo de Jim e fizeram com que ele sentisse vontade de tomar outro banho... dessa vez, com uma lixadeira.

– Bem, bom dia, Jim. Gostaria de sentar ao meu lado?

– De jeito nenhum.

O cara na mesa em frente à dela olhou por cima do ombro. Como se não tivesse aprovado o tom ou o linguajar de Jim com a moça.

É só aparência, cara – Jim pensou.

Devina abaixou o jornal e voltou-se para suas panquecas de leite e manteiga e para seu café.

– Tem uma caneta?

– Não brinque comigo.

– Um pouco tarde para isso. Caneta?

Como algumas pessoas tentavam passar, Jim e seus colegas tiveram que virar de lado. Eddie tirou uma caneta do bolso e entregou-lhe.

Devina destampou a coisa com suas mãos longas e tratadas. Em seguida, dobrou o jornal na parte de palavras cruzadas.

– Uma palavra com sete letras para...

– Droga, Devina, pare...

–... antagonista.

–... com essa merda.

– Na verdade, Jim, “merda” tem cinco letras. Mas eu não estou fazendo isso, estou? – Devina começou a escrever a palavra com cuidado. – Acredito que “inimigo” seja a palavra que procuro. E terá de se sentar comigo, sozinho, ou vai cair no corredor por suas pernas adormecerem de tanto ficar de pé.

Fez mais um registro cuidadoso sobre o jornal. Imaginou se ela não estaria trabalhando numa palavra equivalente a “dor no traseiro”.

Jim olhou para seus amigos.

– Já vou sair.

– Adeus, Adrian – disse Devina com um aceno – Mas vejo você em breve... tenho certeza.

O demônio não disse nada a Eddie. Afinal, ela gostava de provocar as pessoas, mas Eddie era tão calmo e impassível que simplesmente não valia a pena. O que colocava ele e Adrian no departamento de opostos que se completam.

Quando os dois anjos saíram, Jim sentou-se.

– E então?

– Não gostaria de tomar café?

– Quem é, Devina?

– Odeio comer sozinha.

– Você poderia prender a respiração até eu decidir acompanhá-la... O que acha disso?

Os olhos negros de Devina assumiram um tom objetivo.

– Vamos brigar?

Com isso, Jim soltou uma risada sincera.

– É a razão pela qual estamos aqui, querida.

Ela sorriu um pouco.

– Acho que é a primeira vez que ouço algo assim vindo de você.

Jim foi interrompido quando a garçonete chegou com um bule de café.

– Nada para mim, obrigado.

– Ele vai querer café e waflles.

Quando a garçonete olhou para Jim como se dissesse “vamos lá, decida-se”, ele deu de ombros e deixou por isso mesmo.

Ao ficarem sozinhos outra vez, Devina olhou novamente para suas palavras cruzadas.

– Não terá outra chance comigo a menos que comece a falar.

Houve uma pausa, como se o demônio pensasse em alguma maneira de prolongar o encontro. Finalmente, começou a bater no jornal com a ponta da caneta de Eddie.

– Você lê o Correio de Caldwell?

– Às vezes.

– É um verdadeiro tesouro de informações – ela fez um espetáculo para exibir a primeira parte do jornal. – Nunca se sabe o que pode encontrar nele.

Achatou o papel, virou-o em direção a Jim e passou a encará-lo do outro lado da mesa.

Jim olhou para baixo. Três grandes artigos. Um sobre o projeto de uma nova escola no bairro. Outro sobre o aumento do número de pequenas empresas. E um terceiro sobre... A ponta da caneta de Eddie apontou o último artigo.

– Acho que cumpri minha parte do acordo – disse lentamente.

A manchete dizia: “Agendada a execução de DelVecchio”.

Jim percorreu o artigo rapidamente e pensou: Droga, esta é a alma?

Quando Devina já ia recolher a caneta, ele estendeu a mão e fechou-a sobre o pulso dela, mantendo-o no lugar.

Na verdade, a ponta da caneta apontava um nome escrito ao longo do artigo... E não era o nome do serial killer DelVecchio. Era o filho do cara... Thomas DelVecchio Jr. Um detetive da força policial de Caldwell.

Jim encarou o inimigo do outro lado da mesa e sorriu.

– Pegadinha?

Seus cílios baixaram numa atitude tímida.

– Sempre.

Chega de Devina e de perder tempo, Jim levantou-se e levou a caneta com ele.

– Aproveite meus waffles, querida.

– Ei, como vou terminar minhas palavras cruzadas?

– Tenho certeza de que dará um jeito. Até mais.

Jim saiu do restaurante e seguiu direto para seus amigos. Quando aproximou-se das motos, estendeu a caneta a Eddie.

– Sua caneta – quando o anjo foi pegá-la, Jim segurou-a. – Há metal em volta do bico. Da próxima vez, ofereça uma canetinha hidrográfica.

Quando Jim começou a estender a perna sobre o banco da moto, Adrian perguntou.

– O que ela disse?

– Parece que vamos ter que entrar no mundo dos policiais e dos ladrões.

– Ah. Bom – Ad montou sobre sua moto. – Pelo menos eu falo a mesma língua deles.


CAPÍTULO 6

 

Reilly entrou na delegacia pela porta dos fundos e passou pelo corredor de concreto que daria na mais nova, renovada, inspiradora e motivadora recepção. Infelizmente, a estátua de bronze da Dama da Justiça, com sua balança e espada, era uma interpretação moderna do clássico greco-romano, e mais parecia queijo derretido. Queijo derretido velho e marrom.

Andar ao redor da deusa de olhos vendados e dos pequenos holofotes que a iluminavam de baixo para cima dava uma ideia exata da confusão que havia no lugar. Entretanto, a maioria da força policial, dos advogados e dos promotores que passavam por ali eram ocupados demais para se preocupar com a decoração: o pessoal tinha muita coisa a fazer. O Departamento de Segurança e a Central de Detenções estavam à direita, além da cadeia em si. Os registros eram feitos no setor à esquerda. No andar de cima, estavam as salas dos departamentos de Homicídios e de Assuntos Internos, bem como a sala de reuniões e o vestiário. No terceiro andar, havia o novo laboratório e o local de armazenamento de evidências.

Reilly subiu as escadas de dois em dois degraus, ultrapassando dois colegas que iam mais devagar que ela. Mas, quando chegou ao segundo andar, perdeu o ímpeto. A grande área aberta à sua frente tinha uma série de mesas onde o pessoal do suporte administrativo trabalhava. E, bem no centro do local, em meio ao pessoal, estava Britnae, a gostosa da delegacia.

A loira tinha um espelho nas mãos e passou com os dedos uma sombra de alguma marca famosa nos olhos. O próximo passo foi arrumar os cachos. Por último, pressionar os lábios e fazer beicinho. O tempo todo inclinava-se para frente e exibia o par de silicones para si mesma... Era evidente que estava satisfeita com a maquiagem e com aquela maravilhosa paisagem.


Britnae virou o pulso e checou um daqueles relógios femininos minúsculos que algumas mulheres usam, do tipo que têm pulseiras delicadas e os ponteiros sobre um fundo perolado. Provavelmente, ela tinha um monte de pulseiras e brincos em alguma prateleira ou armário cheio de coisas cor-de-rosa.

O guarda-roupa de Reilly parecia o do Marilyn Manson e dispensava joias. Seu relógio? Era simples. Preto e à prova de choque.

Três chances para adivinhar como Britnae ficaria quando... só precisou de uma: a garota ficava ofegante na frente de Veck desde o dia em que o cara entrara ali há duas semanas. Não que fosse da conta de Reilly.

Antes que alguém a acusasse de xereta, apressou-se para o Departamento de Assuntos Internos e entrou em seu cubículo. Fingindo estar alerta, acessou o computador, mas, quando entrou no e-mail, tudo tinha sido traduzido para uma língua estrangeira. Ou isso, ou seu cérebro tinha esquecido o inglês.

Maldito DelVecchio.

Chamá-la de covarde? Só por querer manter o profissionalismo? Não sabia metade do inferno pelo qual tinha passado. Além disso, estava tentando ajudá-lo...

Aquilo deu vontade de descarregar no cara sua nove milímetros como café da manhã.

Seguindo o programa, acessou o relatório que havia enviado a si mesma por e-mail mais cedo e verificou, outra vez, o trabalho, revisando todo o documento do início ao fim. Quando o telefone tocou, ela atendeu sem olhar.

– Reilly.

– Thomason – ah, o cara do laboratório. – Só queria avisar que acho que os ferimentos de Kroner foram resultado de dentes.

– Como...

– Presas, especificamente. Encontrei os paramédicos ontem à noite no pronto-socorro e estava lá quando Kroner foi entubado, costurado e até quando recebeu uma transfusão. Observei bem as feridas do rosto e do pescoço. Quando uma faca é usada num ataque como aquele, tende a deixar contornos bem claros nas lacerações. A carne dele foi rasgada... algo parecido com o que eu vi quando aquele tigre comeu o treinador de animais no ano passado.

Aquilo confirmava suas conclusões, não é mesmo? E fez com que se perguntasse o que poderia estar perambulando por aquela floresta.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Não tenho certeza. Peguei algumas amostras do tecido... Só Deus sabe quantas espécies existem... Vamos descobrir que tipo de saliva foi deixada. Porém, posso adiantar uma coisa: seja lá o que for... estamos falando de algo grande, poderoso e... furioso.

– Muito obrigada por me ligar tão rápido.

– Sem problema. Vou tirar um cochilo e voltar ao trabalho em seguida. Entro em contato.

Depois que desligou, Reilly digitou um adendo ao seu relatório, pressionou Ctrl+P e, em seguida, enviou o documento por e-mail ao sargento. Pegou uma pasta, o celular e esperou a impressora terminar de liberar as páginas do relatório.

Ao menos tinha uma evidência para confirmar o que havia dito ao sargento antes do café da manhã. Com isso, começou a pensar no restaurante. Não deveria ter convidado Veck para se juntar a ela. Ele estava certo... parecia ruim, mas, mais que isso, poderiam ter evitado aquela conversa desagradável. Na verdade, aquilo a chateou. Não deveria. Um comentário inapropriado no café da manhã? Não deveria incomodá-la. Não mesmo. Ou teria sido uma reação alérgica à palavra covarde? Sim, era isso.

Veck atravessou o saguão da delegacia como um jato, passava rápido pelas pessoas, quase corria. Chegou à escada e subiu os degraus de pedra de dois em dois. Quando chegou ao segundo andar, dirigiu-se à esquerda, mas não ia ao seu escritório. O lugar ao qual precisava ir era o Departamento de Assuntos Internos... do nada, uma coisa rosa e loira entrou em seu caminho.

– Oi!

Quando olhou a garota, entendeu o que os tornados deveriam achar de um trailer quando atingiam algum pelo caminho: absolutamente nada. Ele quase passou por cima dela para chegar a Reilly, por assim dizer.

– Oi. Desculpe... estou atrasado.

Infelizmente, Britnae decidiu dançar uma valsa com ele no corredor, indo para a direita e para a esquerda. Quando ele parou, ela respirou fundo, ou arqueou as costas, ou esbarrou em algum compressor de ar, pois, de repente, parecia Jessica Rabbit, a personagem sensual que vivia exibindo o decote. Se ela mostrasse mais um pouco dos seios, estaria pronta para uma mamografia.

– Então... – ela balbuciou – eu estava pensando se você não gostaria de um pouco de café...

Chá... ou, quem sabe, eu mesma? – ela terminou a sentença mentalmente.

– Obrigado, mas estou atrasado para uma reunião – driblou-a.

Nova barreira.

– Bem, eu poderia trazer para você!

– Não, obrigado...

Ela colocou uma das mãos sobre o braço de Veck.

– Sério, eu não me importo...

A oficial Reilly visualizou o momento ao sair da sua sala nos Assuntos Internos. E, como pode imaginar, não hesitou ou mostrou qualquer mudança em sua expressão facial... Por que vê-lo dar o fora em alguém a incomodaria?

Quando passou, assentiu para ele dizendo oi para aquele atraso de vida.

– Tenho que ir – disse Veck, já mais que atrasado.

– Vejo você mais tarde – Britnae disse em voz alta.

– Reilly – sussurrou – Reilly.

A mulher que realmente interessava parou em frente à sala do sargento.

– Sim?

– Sinto muito pelo que disse. Passei dos limites.

Reilly colocou a pasta sobre o braço e passou a mão pelos cabelos.

– Está tudo bem. É um momento de estresse. Entendo.

– Não acontecerá de novo.

– Não faria diferença para mim se acontecesse.

Com isso, ela virou-se com seus sapatos de salto baixo e entrou na sala de espera. Certo... essa doeu. Mas não podia culpá-la.

Em vez de segui-la, ele ficou ali parado como uma árvore enquanto a porta fechava-se diante de seu rosto, com vontade de chutar o próprio traseiro. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café fresco que indicava a proximidade de seu parceiro.

José De la Cruz parecia cansado, mas alerta; era assim que o cara costumava estar sempre.

– Como estamos?

– Péssimos.

– Não me diga – entregou um dos dois cafés que segurava. – Beba isto. Ou, se conseguir, injete um pouco na veia.

– Obrigado, cara.

– Está pronto?

Não.

– Sim.

Ao entrar na sala, Reilly olhou para trás e acenou para De la Cruz, em seguida, voltou a conversar com a assistente do sargento.

Veck acomodou-se numa das tradicionais cadeiras de madeira alinhadas contra a parede da sala de espera do escritório do sargento, revestida de painéis também de madeira. Enquanto bebia o café, observava cada detalhe em Reilly: a maneira como tocava o brinco direito, como se estivesse meio solto, como fazia ao dobrar a perna, como batia a ponta do sapato enquanto tentava argumentar, o fato de que, ao sorrir, exibia o ligeiro brilho de um preenchimento de ouro no molar superior. Era muito atraente. Atraente mesmo.

– Então, tentei ligar para você ontem à noite – De la Cruz disse em voz baixa.

– Meu celular está no laboratório.

– Você deveria ter um telefone fixo.

– Sim – olhou para seu parceiro. – Acho que não encontraram muita coisa na floresta.

– Nada.

Sentaram-se lado a lado, bebendo café em copos de papel com imagens de cartas de baralho. O café estava horrível, mas estava quente e deu-lhes algo a fazer.

– Você pensou em matar Kroner, não? – quando Veck encarou-o, o outro detetive deu de ombros. – Vi você com aquele paparazzo, lembra? Fui eu quem tirou você de cima dele. Quanta raiva.

Veck voltou a observar Reilly, contente por ela estar compenetrada na outra conversa. Assentindo na direção dela, disse em voz baixa: – Ela acha que não fui eu. Porém, estou com a impressão de que você acha.

– Não disse isso.

– Não precisa.

– Não, eu vi como Kroner ficou. Você também. É uma equação sem lógica.

– Então, por que falou nisso?

– Porque está na sua mente.

Veck produziu um barulho evasivo.

– Se ela recomendar que eu continue na ativa, haverá algum problema para você?

– Não, mas acho que você não deveria sair nas ruas sozinho neste momento.

Engraçado, ele achava a mesma coisa. E era uma droga.

– Vamos ficar algemados um ao outro, então?

O sargento abriu a porta de seu escritório, mostrando a cabeça grisalha.

– Vamos lá?

Reilly despediu-se da assistente, e Veck e De la Cruz seguiram-na ao longo do grande escritório. A mesa de reunião, na outra extremidade da sala, era grande o suficiente para comportar a todos com conforto, e Reilly escolheu a cadeira mais distante de Veck para se sentar... ou seja, estava bem diante dele. Nada de contato visual. Isso não o surpreendeu.

Que inferno.

– Bem, li o relatório que me enviou por e-mail – o sargento disse a Reilly. – Mais alguma coisa?

– Apenas um adendo, o qual eu também enviei – ela passou algumas cópias ao sargento e, em seguida, entrelaçou os dedos e sentou-se. – Mantenho minhas conclusões.

O sargento olhou para De la Cruz.

– Alguma coisa a acrescentar?

– Não. Também li o relatório e isto diz tudo.

– Então, estou propenso a concordar com a oficial Reilly – o sargento olhou para Veck com firmeza. – Gosto de você. É o meu tipo de policial. Mas não vou permitir que alguém que represente perigo a outras pessoas carregue um distintivo. Reilly é sua nova parceira... Veck, não posso dispensar De la Cruz durante o seu período probatório, que será de um mês, no mínimo.

Reilly não mostrou qualquer reação diante da mudança, mas era uma profissional, não era?

– Ainda posso trabalhar no caso de Kroner? – Veck perguntou.

– Não nesta vida. A partir de hoje, você assumirá os casos antigos pelos próximos trinta dias e terá reuniões periódicas com o dr. Riccard.

Ah, sim, o psicólogo do departamento. E, no silêncio que se seguiu, Veck sabia que todos esperavam que soltasse algum protesto, mas, afinal, não poderiam considerá-lo uma máquina mortífera selvagem.

Não mesmo. Por exemplo, não conseguia deslocar o ombro, não morava na praia com um cachorro e não saía por aí tentando liberar seu instinto assassino. Logo...

– Certo.

O sargento pareceu um pouco surpreso, mas bateu na mesa com o nó dos dedos, algo que Veck concluiu ser um gesto de satisfação do cara.

– Ótimo. De la Cruz, quero falar com você. Quanto a vocês dois... terminamos.

Reilly saiu do escritório tão rápido quanto um tiro, mas Veck também conseguia correr daquele jeito. Saiu bem atrás dela e alcançou-a na saída do corredor.

– Então, como será? – ele falou.

Era tudo o que tinha a dizer. Desculpar-se não adiantou e, de alguma maneira, também não conseguia pensar em agradecê-la pelo relatório.

Reilly deu de ombros.

– Vou terminar o que estava fazendo esta manhã e, depois, poderemos nos ater aos casos antigos.

– Durante trinta dias.

– Trinta dias – ela não parecia entusiasmada, mas também não parecia temer o que estava por vir. Veck concluiu, com isso, que não seria fácil conversar com ela no tempo livre.

– Vejo você às treze horas em ponto no seu departamento, detetive.

– Entendido, oficial.

Mesmo andando, ela fez alguma anotação em seus papéis ao sair, a cabeça estava enterrada no trabalho. Dois rapazes passaram, olharam para ela e continuaram a olhar, como se esperassem alguma troca de contato visual. Mas ela não ergueu a cabeça. Nem notou-os. Contudo, Veck percebeu muito bem aquilo. E desejou fazer algum ajuste óptico naqueles bastardos.

– Você deixou isto no escritório do sargento.

Veck virou-se. De la Cruz tinha saído e levava o café de Veck.

Bem, aquilo não pareceu nada estranho. Não mesmo.

– Obrigado, cara – Veck pegou o copo de papel e tomou um gole. A única coisa que redimia a bebida tinha passado: a porcaria estava morna. – Bem, estava sendo bom trabalhar com você.

– Posso dizer o mesmo – José estendeu uma das mãos. – Mas, quem sabe? Talvez volte a ser designado meu parceiro daqui a um mês.

– Sim – porém, de alguma forma, Veck tinha a sensação de que seus dias no Departamento de Polícia de Caldwell estavam contados.

Voltaram ao Homicídios em silêncio e, quando abriram a porta do departamento, todos os detetives que ali estavam desviaram o olhar das paredes cinzentas que dividiam seus cubículos. Veck não viu razão alguma para suavizar as coisas.

– Na ativa. Nada de Kroner. Com Reilly.

Várias cabeças assentiram para ele e, cara, agradecia quando as pessoas eram legais. Na verdade, ali havia pessoas decentes trabalhando duro por pouco dinheiro e não tinham muito tempo para bobagens. Além disso, bem ou mal, depois de ter acertado aquele paparazzo, ganhou bastante respeito.

Quando todos voltaram ao trabalho, José bateu sobre o ombro de Veck e dirigiu-se à própria mesa. Veck não perdeu tempo. Sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e checou seus e-mails.

Casos antigos, hum? Era uma categoria muito ampla. Acessando a base de dados do departamento, puxou todos os relatórios de pessoas desaparecidas. E aquilo fazia parte, tecnicamente, de casos antigos, não? Uma vez que ainda estavam abertos. Ao iniciar a pesquisa, esparramou-se e deixou o computador trabalhar. Engraçado como o resultado da pesquisa exibiu apenas dados de mulheres, entre 16 e 30 anos, registradas como desaparecidas nas últimas, digamos... três semanas? Quando foi mesmo que Kroner apareceu atuando naquela área?

Não era coincidência.


CONTINUA

CAPÍTULO 1


Era primavera, numa noite escura de abril, quando o detetive Thomas DelVecchio Jr. entendeu que pesadelos poderiam, de fato, saltar da mente e tornar-se realidade. Infelizmente, isso, para ele, não era bem uma novidade.

Havia sangue por toda parte. Um vermelho brilhante sob o luar, como se um galão de tinta tivesse sido derramado no local, não apenas sobre o chão da floresta... mas sobre aquele homem estraçalhado em meio às folhas secas, bem aos pés de Veck.

Contudo, toda aquela confusão vermelha não era de tinta látex para interiores. Ou de tinta a óleo para acabamentos. Ou, ainda, de tinta para paredes externas. Não se poderia comprar aquilo numa loja de tintas e limpar tudo com solvente, muito menos era algum corante daqueles filmes de terror de segunda.

Aquilo era a vida real, sim, bem ali, diante dele. Escorrendo por todos os cantos.

O que ele havia feito? Santo Deus...

Arrancando sua jaqueta de couro, ajoelhou-se para pressioná-la contra o tórax descoberto do homem. Sons de líquido borbulhando misturavam-se com os da forte respiração de Veck, que encarava aqueles olhos escurecendo-se rapidamente.

– Eu matei você? Será que eu...?

Nenhuma resposta. É claro que as cordas vocais do bastardo deviam estar penduradas num galho qualquer.

Droga... que droga... era como a noite em que sua mãe havia sido morta.

Só que, neste caso, ele realmente veio para esquartejar alguém.

De uma coisa tinha certeza: estava com sua moto, dirigiu até ali e esperou escondido na floresta até o maldito psicótico aparecer – mentindo a si mesmo, o tempo todo, sobre estar ali apenas para prender o “suspeito”. Mas as suas mãos diziam a verdade. Quando sua presa finalmente chegou, a faca estava empunhada e atuou como uma sombra com suas roupas pretas, aproximando-se...


X


O Monroe Motel & Suítes estava a pouco mais de dez metros dele, do outro lado da espessa barreira de arbustos e pinheiros. Iluminado por luzes de um amarelo que mais parecia urina, a tentativa decadente do local de chamar a atenção para o aluguel de quarto por uma noite, ou por uma hora, foi a razão para ele e o assassino terem saído de casa naquela noite.

Serial killers costumam colecionar troféus de suas vítimas. Incapazes de formar laços emocionais adequados com as pessoas e carentes de representações físicas do poder fugaz que exercem sobre suas presas, revestem os objetos de emoções ou lembranças das pessoas que massacraram.

David Kroner havia perdido sua coleção de recordações há duas noites. Quando o trabalho que fazia ali foi interrompido e a polícia cercou a cena do crime. Então, é claro que retornaria ao local onde esteve no controle da situação pela última vez. Era o máximo que poderia reconquistar daquele momento.

– Chamei uma ambulância – Veck ouviu-se dizer, sem saber ao certo com quem estava falando.

Mudando o foco de seu olhar, concentrou-se no último quarto do motel, próximo de onde estavam e longe da sala da gerência. Um selo oficial do Departamento de Polícia de Caldwell estava fixado à porta e aos batentes, e a fita que envolvia a cena do crime produzia um ruído com a brisa que nela batia. Numa fração de segundos, visualizou o que ele e os outros oficiais tinham encontrado havia duas noites: outra jovem mulher, que acabara de ser morta e estava prestes a ter sua carne recortada para ser levada como lembrança.

Mais sons de algo borbulhando.

Olhou para baixo. O homem que sangrava era magro e fino, portanto, fazia sentido as vítimas de David Kroner serem jovens, aparentando idade entre 16 e 24 anos. Não precisava ser forte como um cão de guarda para fazer o trabalho. Os cabelos loiros de Sandy afinavam no alto da cabeça. A pele branca tornava-se cinza, pelo menos onde não estava coberta de sangue.


Mergulhando em seu banco de dados mental, Veck tentou se lembrar do que diabos havia acontecido. Após esperar por um período de tempo que lhe pareceu dias, o estalar de galhos finos chamou-lhe a atenção, foi quando viu Kroner andando na ponta dos pés entre os pinheiros.

No instante em que avistou o homem, pegou a faca, agachou o seu corpo e, em seguida...

– Filho da mãe!

A dor de cabeça veio com força, como se alguém tivesse batido um prego em seu lobo frontal. Erguendo uma das mãos, inclinou-se para a esquerda e pensou, muito bem, ótimo. Quando a ambulância chegasse, os médicos poderiam diagnosticar nele um aneurisma.

Ao menos isso lhes daria algo para fazer – Kroner já seria um cadáver quando chegassem ali.

Quando a dor lancinante passou um pouco, Veck tentou, outra vez, lembrar-se de mais alguma coisa... apenas para voltar com força total à necessidade de tomar um analgésico urgentemente e, em seguida, sofrer um apagão mental novamente. Com a nova rodada de agonia que floresceu em seu crânio como se fosse um buquê vermelho brilhante, fechou os olhos e pensou em vomitar – e, enquanto a dúvida sobre pôr ou não tudo para fora enfurecia suas entranhas, percebeu que era hora de ser honesto consigo mesmo. Por causa do enorme buraco negro em suas lembranças de curto prazo, sabia apenas que tinha sim ido até lá para matar aquele filho da mãe pervertido que, incluindo a última vítima na contagem, havia atacado pelo menos onze mulheres de Chicago a Caldwell no ano passado.

Horrível, é claro. Mas era um amadorismo comparado ao próprio pai de Veck – que fizera tudo aquilo num espaço de três meses: Thomas DelVecchio pai escreveu a cartilha para caras como Kroner.

E foi seguindo essa linha de raciocínio que Veck chamou não apenas a ambulância, mas também seu parceiro do Departamento de Homicídios.

Por mais que detestasse admitir, era filho de seu pai: foi até ali para matar. Ponto final. E o fato de sua vítima ser um imbecil violento não era nada além de um filtro social aceitável para a realidade.

No fundo, não se tratava de vingar as garotas mortas.

E, pelo amor de Deus... sabia que o que acontecera naquela noite era inevitável. Ao longo de toda sua vida, aquela sombra esteve atrás dele, guiando-o, seduzindo-o, puxando-o em direção àquela cena de destruição. Então, fazia sentido não se lembrar de nada. Sua outra metade finalmente havia assumido o controle e não tirou as mãos do volante até que todo o ato de violência estivesse feito. Prova disso? Em algum lugar na parte de trás de sua cabeça, ecoava um riso, maníaco e satisfeito.

Certo, muito bem, divirta-se agora – pensou, pois não iria mais deixar-se levar tão longe em direção aos passos de seu pai...

O som de sirenes surgiu vindo do Leste e ficava cada vez mais alto e rápido.

Aparentemente, não foi o único que ouviu o alarme. Um homem saiu rapidamente de um dos quartos do hotel e correu em volta do capô de um carro já com seus dez anos, bastante usado, que tinha uma treliça metálica sobre o para-choque. Foi meio difícil pegar as chaves, já que puxava as calças ao mesmo tempo. Em seguida, no mesmo ritmo de fuga, veio uma mulher de aparência rude que tropeçava ao se aproximar de um velho Honda Civic enquanto descia sua minissaia.

As partidas ruidosas e desenfreadas deixaram o estacionamento vazio quando a ambulância surgiu na entrada do local e parou em frente à sala da gerência. Quando um paramédico saiu do banco do passageiro, um homem que deveria ser o gerente abriu a porta, Veck assoviou com força: – Aqui!

Parece que o gerente não tinha a menor intenção de se envolver e voltou para trás. Mas o paramédico correu e a ambulância percorreu o estacionamento atrás dele. Quando chegaram, Veck ficou muito calmo – mortalmente calmo. Tão intocável quanto a fria e distante lua que os vigiava naquela noite densa e escura.

Dane-se seu lado negro. Foi ele quem tinha feito aquilo. E obrigaria a si mesmo a pagar por isso.

A oficial de Assuntos Internos, Sophia Reilly, dirigia a todo vapor em seu carro sem marcas de identificação, disparando ao longo de uma área remota junto aos limites sujos de Caldwell, enquanto percorria a Rota 149 numa corrida louca – o fato de estar a caminho da cena de um crime não justificava a alta velocidade. Ela dirigia rápido, comia rápido e odiava esperar em filas, aguardar pessoas ou informações.

Se apenas pudesse evitar a colisão com um cervo antes de chegar ao Monroe Motel & Suítes...

Quando seu celular tocou, já estava com ele em seu ouvido antes do segundo toque.

– Reilly.

– Detetive De la Cruz.

– Oi. Adivinhe para onde estou indo agora?

– Quem te ligou?

– 190. Seu parceiro está na minha lista de coisas a fazer... então, quando ele liga chamando uma ambulância, pede reforços no meio da noite e diz que não se lembra do que aconteceu com a vítima, eu recebo uma ligação básica.

Infelizmente, aquilo era algo com o que ela já estava se familiarizando. Thomas DelVecchio Jr. estava trabalhando no Departamento de Homicídios há apenas duas semanas e já quase tinha sido suspenso por nocautear um paparazzo que tentara tirar uma foto de uma vítima.

No entanto, aquilo era brincadeira de criança se comparado à confusão de agora.

– Como descobriu? – ela perguntou.

– Ele me acordou.

– E o que lhe pareceu?

– Vou ser honesto com você.

– Sempre é, detetive.

– Parecia que estava bem. Reclamou de uma dor de cabeça e perda de memória. Disse que havia muito sangue e que tinha certeza absoluta de que a vítima era David Kroner.

Mais conhecido como o bastardo doente que havia retalhado garotas e guardado pedaços delas. A última sessão de “trabalho” do bastardo tinha sido dirigir até aquele hotel há duas noites, mas foi interrompido por desconhecidos. Com a confusão, Kroner escapou por uma janela do banheiro, deixando para trás um cadáver numa posição trágica e uma caminhonete cheia de frascos com amostras e outros objetos – todos eles foram catalogados em seu esconderijo, e havia referências cruzadas a nível nacional.


– Perguntou se foi ele quem fez isso? – como membro do Departamento de Assuntos Internos, Reilly investigava os delitos de seus colegas e, apesar de se orgulhar do trabalho que fazia, não gostava do fato de que as pessoas com sua função sempre tivessem muito trabalho. Seria melhor se todos, incluindo os oficiais da lei, jogassem segundo as regras.

– Ele disse que não sabia.

Branco total ao cometer um assassinato? Não era incomum. Especialmente se fosse um crime passional – como, digamos, um detetive de homicídios querendo pegar um perverso serial killer. E Veck já tinha dado provas de ser um cara de pavio curto no que se referia à proteção ou defesa das vítimas. Bem, não era simplesmente pavio curto e ponto final. O cara era brilhante, um pavio curto muito sexy – não que o fato de ser sexy fosse relevante. Nem um pouco.

– Em quanto tempo você vai chegar lá, detetive? – ela perguntou.

– Uns quinze minutos.

– Estou a pouco mais de um quilômetro de distância. Vejo você lá.

– Entendido.

Quando desligaram, ela colocou o telefone no bolso interno do casaco e endireitou-se no banco. A possibilidade de um membro do departamento ser o suspeito na investigação de um assassinato – e considerando o que Veck havia dito ao pessoal da Emergência, que a probabilidade de Kroner ter sobrevivido era mínima – criava todos os tipos de conflito de interesse. Na maioria das vezes, o pessoal dos Assuntos Internos lidava com corrupção, infrações processuais e investigações sobre a competência no desempenho de funções. Mas, numa situação como essa, os membros do próprio departamento de Veck estavam numa posição delicada, pois deveriam avaliar se um de seus colegas havia cometido um crime.

Caramba, dependendo de como a situação se encaminhasse, ela teria de chamar algum reforço externo para efetivar a investigação. Mas era muito cedo para isso. Porém, não era muito cedo para pensar sobre o pai de Veck.

Todos sabiam quem ele era, e ela tinha de admitir que, se esse laço consanguíneo não estivesse em jogo, não estaria tão alerta... com a preocupação constante de que aquilo fosse resultado de uma revanche ao estilo DelVecchio, por assim dizer.

Thomas pai foi um dos serial killers mais conhecidos do século XX. Oficialmente, fora acusado e condenado por “apenas” 28 assassinatos. Mas estava envolvido em mais trinta – e isso era apenas o que as autoridades de quatro estados sabiam. Havia uma grande probabilidade de existir dúzias de mulheres desaparecidas, cujos casos não puderam ser relacionados adequadamente a ele.

Então, não, se o pai de Veck tivesse sido um advogado, contador ou professor, ela não estaria tão preocupada. Mas o velho ditado “tal pai, tal filho” tinha implicações terríveis quando se tratava de serial killers e seus filhos.

Depois de passar por uma ponte estreita, o Monroe Motel & Suítes surgiu mais acima, à direita, e ela passou lentamente pela gerência e pelos quartos até chegar ao final do estacionamento, próximo à floresta. Ao sair com uma mochila cheia de pequenos compartimentos, o aroma doce do diesel da ambulância a fez espirrar com força e, na sequência, sentiu o odor forte dos ramos de pinheiro... bem como o cheiro pungente e inconfundível de sangue fresco.

Os paramédicos estacionaram o veículo com a traseira voltada para a floresta e, sob a luz dos faróis, os dois profissionais trabalhavam sobre o corpo ensanguentado de um homem branco. As roupas da vítima haviam sido cortadas – ou rasgadas – e sob elas havia uma mistura de incontáveis ferimentos.

Não há chance alguma de ele sobreviver, ela pensou. Então, viu Veck. O detetive de homicídios estava em pé ao lado da cena do crime, com braços cruzados e pés bem firmados ao chão. O rosto mostrava... absolutamente nada. Assim como De la Cruz havia dito. Meu Deus, o cara poderia muito bem estar na fila de uma lanchonete daquele jeito.

Quando andou sobre a superfície esponjosa de folhas caídas e terra macia, sentiu um súbito frio na barriga. Embora, sinceramente, não fosse apenas pela cena do crime. Também era por causa do homem que deveria investigar. Próximo ao local, notou uma moto preta estacionada nos limites da floresta. Era dele, já tinha visto na delegacia antes. De fato, já o vira pela janela de sua sala montando naquela coisa, dando o impulso com o pé para iniciar o motor e arrancando para longe dali. Ele usava capacete – na maioria das vezes.

Ela sabia que muitas mulheres na delegacia observavam a cena, pois havia muito que olhar. Aqueles ombros pesados e quadris bem definidos mostravam a constituição de um boxeador, mas seu rosto era mais o de um garotinho bonito que o de um pugilista – ou seria, se não fosse por seu olhar. Aqueles olhos azuis-escuros, inteligentes e frios faziam com que toda a estrutura óssea, estilo modelo famoso, tornasse-o bastante viril. E havia algo mais.

Parando em frente a ele, a primeira coisa que notou foi o sangue na gola de sua blusa preta. Respingos aqui e ali, não eram grandes manchas ou partes encharcadas. Nenhum arranhão no rosto, ou no pescoço.

As roupas e o chapéu estavam em boas condições – nada desalinhado, rasgado ou amassado. Havia dois círculos de lama sobre os joelhos de suas calças pretas. A arma estava guardada no coldre. Não estava claro se tinha outras armas.

Ele não disse nada. Nada de “eu não fiz isso” ou “deixe-me explicar...”. Seus olhos apenas se fixaram nela.

Deixando de lado as gentilezas, ela disse: – O sargento me ligou.

– Imaginei.

– Está ferido?

– Não.

– Se importa se eu fizer algumas perguntas?

– Vá em frente.

Deus, ele tinha tanto autocontrole.

– O que o trouxe aqui esta noite?

– Sabia que Kroner voltaria. Tinha que voltar. Com sua coleção apreendida, não restava mais nada do seu trabalho, portanto, este é um local sagrado para ele.

– E o que aconteceu depois que chegou?

– Esperei. Ele chegou... e, então... – Veck hesitou, as sobrancelhas estreitaram-se como se fossem dar um nó e uma das mãos se ergueu para esfregar a têmpora.

– Droga...

– Detetive?

– Não consigo me lembrar – olhou para os olhos de sua colega outra vez. – Não consigo me lembrar de nada depois que ele apareceu, juro por Deus. Em um minuto ele surgiu vindo da floresta, no outro...? Havia sangue por toda parte.

– Posso ver suas mãos, detetive? – quando ele as estendeu, estavam firmes como rocha... e sem marcas de corte ou arranhões. Nada de sangue na palma das mãos, na ponta dos dedos ou nas unhas.

– Avaliou a vítima ou interveio em seus ferimentos antes de ligar para o 190?

– Peguei minha jaqueta de couro e coloquei sobre o pescoço dele. Não ia ajudar, mas eu fiz mesmo assim.

– Está carregando mais alguma coisa além da sua arma de fogo?

– Minha faca. Está no meu...

Ela colocou a mão sobre o ombro dele para impedi-lo de continuar.

– Deixe-me dar uma olhada.

Assentindo, virou-se. Sob a luz da ambulância, a lâmina guardada no pequeno coldre em suas costas era bem o que ela esperava ver.

– Posso ficar com a arma, detetive?

– Fique à vontade.

Tirando um par de luvas de vinil, vestiu-as e pegou o punhal. Quando puxou o objeto, percebeu que o corpo dele não se moveu. Poderia muito bem ser esta a sensação de desarmar uma estátua.

A faca estava limpa e seca. Levantando-a até o nariz, ela inalou. Nenhum cheiro de adstringente que indicasse ter sido higienizada às pressas.

Quando ele olhou por cima do ombro, o movimento de seu corpo fez seus ombros parecerem enormes e, sem qualquer motivo, ela percebeu que estava frente a frente com o peitoral dele. Com seu quase um metro e setenta, ela tinha uma altura mediana, mas, ao lado dele, ela sentia como se tivesse sido reduzida a uma miniatura.

– Vou confiscar isso, importa-se? – Ela ia pegar a arma dele também, mas, considerando os ferimentos da vítima... a lâmina era o que realmente queria.

– Nem um pouco.

Quando pegou um saco plástico, disse: – O que acha que aconteceu aqui?

– Alguém partiu ele ao meio e acho que fui eu.

Aquilo deteve-a, mas não por achar que fosse, de fato, uma confissão – não esperava que alguém naquelas circunstâncias fosse tão honesto.

Naquele momento, um carro sem identificação percorreu o estacionamento com duas viaturas.

– Seu parceiro chegou – ela disse. – Mas o sargento quer que eu lidere a investigação para evitar qualquer possibilidade de conflito de interesses.

– Sem problema.

– Concordaria se eu retirasse amostras do material sob suas unhas?

– Sim.

Ela colocou a mochila à sua frente outra vez e tirou um canivete suíço e alguns pequenos sacos plásticos.

– Você é muito organizada, oficial – Veck disse.

– Não gosto de estar despreparada. Por favor, estenda sua mão direita.

Ela fez um trabalho rápido, começando com o dedo mindinho. As unhas foram cortadas, mas não como uma manicure faria, e havia muito pouco sob elas.

– Tem experiência em trabalhos de investigação? – Veck perguntou.

– Sim.

– Parece mesmo.

Quando ela terminou, ergueu o olhar... e imediatamente teve que se desviar de seus olhos azuis-escuros como a meia-noite para algum outro lugar próximo.

– Quer outro casaco, detetive? Está frio aqui.

– Estou bem.

Se estivesse com um ferimento sangrando no peito, aceitaria um maldito esparadrapo? – ela pensou – ou bancaria o cara durão até não haver mais plasma em suas veias?

Bancaria o durão, com certeza, concluiu.

– Quero que os paramédicos deem uma olhada em você.

– Estou bem.

– Isto é uma ordem, detetive. Parece que está com dor de cabeça.

Naquele momento, De la Cruz emergiu de seu carro e, enquanto se aproximava, seu rosto parecia triste e cansado. O fato era que tinha perdido um parceiro há alguns anos. Obviamente, não estava empolgado com a ideia de repetir a dose, mesmo que por um motivo diferente.

– Com licença – ela disse aos dois. – Vou chamar um dos paramédicos.

Contudo, quando ela aproximou-se, eles estavam transferindo Kroner para a maca e, logicamente, não poderiam dispensar nem um minuto.

– Quais são as chances dele?

– Poucas – um deles disse. – Mas faremos o nosso melhor, oficial.

– Sei que farão.

Os suportes da maca foram estendidos até que esta ficasse à altura da cintura deles e, pouco antes de deslizarem o objeto, ela tirou uma foto mental. Kroner parecia ter sido retirado dos destroços de um carro fumegante, com o rosto desfigurado, como se não estivesse usando o cinto de segurança e tivesse sido lançado contra a janela.

Reilly olhou para Veck outra vez.

Há muitas lacunas nesta cena – pensou. Especialmente se concluísse que havia sido ele o agressor. Mas não havia muitas possibilidades de fazer todo aquele estrago e limpar tudo tão rápido no meio da floresta. Além disso, parecia que não havia se envolvido em alguma briga ou coisa assim – e não existe um jeito de lavar arranhões e hematomas.

Quem tinha feito aquilo? Era o que a incomodava.

Como se pudesse sentir o olhar dela, Veck girou a cabeça, e, quando os olhares encontraram-se, tudo desapareceu: era como se estivesse a sós com ele... não a quinze metros de distância, mas a quinze centímetros.


Do nada, um calor brotou, borbulhando pelo corpo de Reilly, o tipo de coisa que, se ela estivesse em casa, diria a si mesma que era a proximidade do duto de ar quente. Mas ali ela justificava a onda de calor como consequência da adrenalina do estresse.

Maldito estresse. Nada de atração sexual.

Ela interrompeu aquela conexão quando atentou-se aos policiais recém-chegados. Ordenou: – Poderia passar a fita aqui?

– Entendido, oficial.

Certo, hora de voltar ao trabalho: aquele breve momento de atração totalmente inadequada não atrapalharia o que tinha a fazer. Era muito sensata. Sua integridade profissional não exigia nada menos que isso. Também não tinha a intenção de permanecer muito tempo na lista de adoradoras do cara. Ia cuidar dos seus negócios e deixar os olhares embevecidos para as outras.

Além disso, caras como Veck não gostavam de mulheres como ela e não havia problema algum nisso. Estava muito mais interessada no trabalho do que em mostrar as pernas, soltar os cabelos e competir nos jogos olímpicos da sedução. Brittany – na verdade, escrevia-se Britnae, mais conhecida como a gostosa da delegacia – poderia conquistá-lo e ficar com ele à vontade se quisesse.

Enquanto isso, Reilly verificaria se o filho teria revivido ou não os horrores típicos dos atos do pai.


CAPÍTULO 2

 

Em circunstâncias normais, Jim Heron considerava-se um mau perdedor. E isso com qualquer coisa que jogasse no dia a dia, fosse vídeogame, tênis ou pôquer. Não que ele perdesse tempo jogando tudo isso, mas, quando jogava, era do tipo que não deixaria o controle, a quadra ou a mesa antes de estar por cima da situação.

Mas nada disso tem importância.

Quando se tratava da guerra com o demônio Devina, ele ficava em chamas de tão furioso: havia perdido a última rodada.

Perdido, o contrário de ter vencido. Na batalha por aquelas sete almas, ele e aquela vadia estavam empatados em um a um. Claro, ainda havia mais cinco disputas, mas não era essa a direção que ele ou qualquer outra pessoa precisava seguir.

Derrotado? Aquele demônio tinha domínio não só sobre a terra mas também sobre os céus... o que significava que sua mãe e todas as boas almas que ali estavam, assim como ele e seus soldados, que eram anjos caídos, poderiam um dia contemplar uma eternidade de tormentos.

E havia descoberto há pouco tempo que aquilo não era apenas algo hipotético que motivava os mais religiosos. O inferno era um lugar de verdade, e o sofrimento que ali havia era bem real. De fato, muito do que tinha concluído ser apenas retórica tola de todos aqueles que se diziam santos mostrou-se ser correto.

Então, sim, as apostas eram altas e ele odiava perder. Especialmente porque não precisava ter sido daquele jeito. Estava furioso com o jogo. Com seu chefe, Nigel. Com as “regras”.

Era senso comum: quando se diz a um cara que ele deve influenciar alguns idiotas numa encruzilhada da vida, facilita se disser quem eles são. Afinal, não era um grande segredo: Nigel sabia. O inimigo, Devina, sabia. Jim? Nem tanto assim, pessoal. E, cortesia do buraco negro de informação, concentrou-se no homem errado na última rodada e estragou tudo.

E lá estava ele, empatado com a vadia e furioso num quarto de hotel em Caldwell, Nova York. E não era o único enfezado por ali. No quarto ao lado, do outro lado de um conjugado, duas vozes masculinas graves iam e vinham, num tom de extrema frustração.

Nenhuma novidade. Seus companheiros, Adrian Vogel e Eddie Blackhawk, não estavam contentes e era claro que falavam mal dele em sua ausência. Voltar constantemente a Caldie não era tanto a questão. O problema era a razão pela qual Jim arrastou-os até ali.

Seus olhos percorreram o edredom. Cachorro estava enrolado como uma bola ao lado dele, seu pelo desalinhado dava a impressão de o terem entupido de gel e colocado, em seguida, diante de um vento forte, mas isso não tinha acontecido. Ao seu lado, havia a impressão de um artigo de três semanas do Correio de Caldwell. O título era “Garota local desaparecida”, e, ao lado do texto, havia a foto de um grupo de amigos sorridentes, cabeças unidas e braços estendidos por trás dos ombros uns dos outros. A legenda sob a imagem identificava a que estava no meio como Cecília Barten.

Sua Sissy.

Bem, não era bem “sua”, mas pensava nela como sendo sua responsabilidade. A questão era: ao contrário de seus pais, familiares e amigos da comunidade, sabia onde ela estava e o que havia acontecido com ela. A moça não fazia parte da enorme lista de jovens que fogem de casa e também não havia sido atacada pelo serial killer que, de acordo com o site do jornal daquela manhã, estava à solta. Porém, havia sido profanada. Por Devina.

Sissy foi uma virgem sacrificada para proteger o espelho do demônio, seu bem mais sagrado. Jim encontrou seu corpo pendurado de cabeça para baixo em frente à coisa, no covil temporário do demônio, e foi forçado a deixá-la para trás. Porém, mais tarde, pôde vê-la no muro de almas de Devina... presa, sofrendo, perdida para sempre entre os condenados que mereciam aquele destino.

Cecília não pertencia ao inferno. Era uma garota inocente e foi usada pelo mal – e Jim iria libertá-la, nem que fosse a última coisa que fizesse. Portanto, sim, foi por isso que voltaram a Caldwell. E a razão pela qual Adrian e Eddie estavam furiosos.

Mas, sem ofensa... que se fodam.

Com cuidado, Jim pegou o artigo e passou o polegar calejado sobre a imagem granulada do cabelo de Sissy, longo e loiro. Quando piscou os olhos, viu os fios cobertos de sangue pendendo sobre o ralo de uma banheira de porcelana branca. Então, piscou outra vez, e viu-a como na outra noite, na prisão viscosa de Devina, apavorada, confusa, preocupada com seus pais.

Ele queria ter ido direto conversar com os Barten, porém as reclamações de Adrian e Eddie só serviam para gastar saliva. Não ia tirar os olhos da guerra, pois não poderia suportar perder para Devina enquanto tentava tirar Sissy daquele poço de almas.

A porta do quarto conjugado abriu-se, foi quando Adrian, mais conhecido como “O que se Faz de Surdo”, entrou sem bater. Bem no estilo dele. O anjo estava vestido de preto, como sempre, e os vários piercings em seu rosto não constituíam nem a metade do que ele deveria ter pelo resto do corpo.

– Vocês terminaram de discutir sobre mim? – Jim virou o artigo para baixo e cruzou os braços sobre o peito. – Ou fizeram apenas uma pequena pausa?

– Que tal levar isto a sério?

Jim levantou-se da cama e ficou frente a frente com seu soldado.

– Estou dando qualquer indício de que ando brincando por aí?

– Não nos arrastou de volta a este lugar para a guerra.

– Até parece que não.

Enquanto se enfrentavam, Adrian não se intimidou, mesmo que Jim fosse um antigo assassino das Operações Extraoficiais e soubesse derrotar um peso-pesado de muitas maneiras diferentes.

– Aquela garota não é seu alvo – Ad disse – e, caso não tenha notado, perdemos um. Distrações não são nossas amigas.

Jim deixou passar a referência a Sissy: propôs-se a nunca falar sobre ela. Seus amigos testemunharam quando ele encontrou o corpo e viram o que aquilo fez com ele – então, sabiam o suficiente. E não havia motivo algum para pronunciar palavras que descrevessem o que foi vê-la naquela parede. Ou mencionar o fato de que, enquanto estava sendo usado e abusado por Devina e seus subordinados na última rodada, a jovem, possivelmente, assistiu assustada a tudo o que aconteceu com ele.

Droga... as coisas que aconteceram naquela mesa de “trabalho” eram algo difícil de testemunhar até mesmo para um homem habituado a guerras. Mas uma inocente? Que já estava aterrorizada?

Por um lado, naquele momento de sua vida, as violações não o incomodavam mais. Tortura, de qualquer maneira que fosse aplicada, não era nada além de uma sobrecarga de sensações físicas. Mas, por outro lado, ninguém precisava ser testemunha ocular daquilo, muito menos sua garota. Não que ela fosse sua.

– Vou conversar com Nigel – Jim respondeu. – Então, já terminaram de me detonar? Ou querem desperdiçar um pouco mais do meu tempo?

– Por que já não está lá?

Bem, porque estava sentado naquela cama, olhando para o nada, apenas pensando para onde diabos Devina tinha levado o corpo de Sissy.

Só que Jim não era o tipo de idiota que dava o braço a torcer.

– Jim, sei que essa garota é importante para você. Mas vamos lá, cara, precisamos cuidar dos negócios.

Enquanto Ad falava, Jim olhou por sobre os ombros do cara. Eddie estava parado na porta que ligava os dois quartos, seu corpo enorme estava tenso, os olhos vermelhos eram graves, aquela longa trança preta descia sobre o ombro, cuja ponta quase alcançava a cintura de suas calças de couro.

Caramba. O jeito espalhafatoso de Adrian dava vontade de xingar. Ou socar... o que já havia acontecido antes. Mas a rotina equilibrada e pacífica de Eddie não era um alvo. Era um espelho que simplesmente refletia o comportamento idiota de quem o observava.

– Tenho tudo sob controle – disse Jim. – E vou ver Nigel agora mesmo.

O arcanjo Nigel estava em seus aposentos particulares quando a convocação aconteceu. De qualquer maneira, já era hora de sair do banho.

– Vamos ter companhia – disse a Colin quando se levantou da água perfumada.

– Vou ficar aqui. O banho está numa temperatura perfeita – com isso, Colin esticou-se e fez um arco preguiçoso com o corpo. Seu cabelo escuro estava molhado com a umidade e havia cachos nas pontas. Seu rosto majestoso e inteligente estava relaxado como sempre. Nada muito exagerado.

– Sabe por que ele está vindo?

– Mas é claro.

Atravessando o mármore branco e afastando a cortina safira e coral, Nigel saiu e teve todo o cuidado ao colocar de volta no lugar o tecido aveludado. Ninguém precisava saber sobre sua companhia na sala de banho – embora suspeitasse que Bertie e Byron fizessem alguma ideia disso. No entanto, eram bastante discretos para dizer qualquer coisa.

Puxando um roupão de seda, não se preocupou em vestir nada mais formal. Jim Heron não se importaria nem um pouco com seu vestuário e, já pensando em como seria a conversa, sabia que precisaria voltar para o banho.

Com um gesto de sua mão, Nigel convocou o anjo que se encontrava na Terra, reunindo o corpo físico de Heron e materializando-o em seus aposentos particulares. Sobre seu divã de seda, para ser mais exato. O salvador parecia ridículo sobre o móvel framboesa, os braços e pernas pesados pendiam nas laterais, sua camiseta preta e o jeans surrado eram uma ofensa a um tecido tão delicado.

Heron caiu em si numa fração de segundo e ficou em pé num salto, pronto, alerta... e não muito satisfeito.

– Vinho gelado? – Nigel perguntou ao se aproximar de uma cômoda francesa com gavetas, cuja tampa de mármore servia de bar. – Ou talvez uma dose de uísque?

– Quero saber quem é o próximo, Nigel.

– Isso é um “não” para as bebidas? – levou um tempo escolhendo entre as pequenas garrafas de vidro e, então, serviu-se lenta e tranquilamente.

Ele não era um idiota qualquer a quem se fazia exigências, e Heron precisava aprender um pouco de boas maneiras. Nigel virou-se e tomou um gole.

– Leve e refrescante.

– Dane-se o vinho.

Nigel deixou passar essa e apenas encarou o salvador.

Quando o Criador apareceu diante de Nigel e Devina explicando que haveria uma competição final, os dois lados concordaram que Heron estaria sozinho no campo de batalha com as sete almas escolhidas. Cada adversário, naturalmente, queria seus valores representados, e o resultado foi que aquele forte anjo com espírito guerreiro, ali, em pé diante de Nigel, tinha o bem e o mal equilibrados dentro dele.

Contudo, Nigel tinha convicção de que o fato da mãe assassinada de Jim estar dentro dos muros da mansão seria crucial. Momentos como aquele faziam-no questionar o próprio fundamento daquele jogo decisivo. O anjo parecia pronto para matar.

– Tem que me dizer quem é.

– Como disse antes, não posso.

– Eu perdi, idiota. E ela trapaceou.

– Tenho plena consciência dos limites que ela ultrapassou e acho que se lembra do meu conselho: deixe-a fazer o que quiser. Haverá represálias.

– Quando?

– Quando acontecer.

Heron não gostou daquela resposta e começou a andar pelo local ornamentado com suas cortinas de cetim, tapetes orientais e a cama baixa... ao redor da qual – Nigel percebeu tarde demais – dois conjuntos de roupas estavam dispostos.

Nigel limpou a garganta.

– Não posso correr o risco de que haja uma reviravolta e tudo se volte contra nós. Já me rebaixei demais ao nível de Devina permitindo que Adrian e Edward o ajudassem. Se eu lhe ajudar mais, posso perder não apenas uma rodada, mas a competição inteira. E isso é inaceitável.

– Porém, você sabe quem é a alma. E Devina também.

– Sim.

– E isso não lhe parece uma grande injustiça? Ela irá atrás dessa pessoa... Provavelmente, já foi.

– Pelas regras estabelecidas e acordadas, ela não tem permissão de interagir com as almas. Ela, assim como eu, deve apenas influenciar você na maneira como vai influenciá-los. Contato direto não é permitido.

– Então, por que você não deteve o que aconteceu?

– Isso não é da minha alçada.

– Que saco, Nigel, estabeleça...

– Posso assegurar uma coisa: o saco dele está bem.

Com a interrupção seca, tanto Nigel como o salvador viraram-se para as cortinas que levavam à sala de banho. Colin não se preocupou em vestir um roupão, estava em pé diante deles nu e sem qualquer ar de desculpa.

E, agora que tinha a atenção de todos, o arcanjo acrescentou: – Também vou pedir para que controle o linguajar, companheiro.

As sobrancelhas de Heron ergueram-se rápido e houve um momento em que parecia estar assistindo a um jogo de tênis, alternando o olhar de um para o outro.

Nigel amaldiçoou baixinho. Sua privacidade e decoro tinham ido por água abaixo.

– Vinho gelado, Colin? – disse rispidamente. – E talvez um roupão?

– Estou bem.

– É verdade. Mas sua falta de modéstia não lhe protege muito bem do ar frio desse ambiente. E eu tenho um convidado.

Sua única resposta foi um grunhido. Que era a maneira de Colin proclamar que não havia razão para dar uma de velho azedo.

Adorável.

Nigel virou-se para o salvador.

– Sinto muito em não poder lhe conceder o que me pede. Pode acreditar.

– Você me ajudou com o primeiro.

– Houve permissão para isso.

– E veja o que aconteceu com o número dois.

Nigel escondeu sua preocupação atrás de um gole em seu copo.

– Sua paixão é louvável. E posso lhe dizer que seu retorno a Caldwell é bem útil.

– Obrigado pela dica. Há dois milhões de pessoas naquela maldita cidade. Isso não reduz muito as possibilidades.

– Nada é por acaso e não existem coincidências, Jim. Na verdade, há outra pessoa que procura o mesmo que você e, quando seus diferentes propósitos se unirem, encontrará a próxima alma.

– Sem ofensa, mas isso não significa merda nenhuma – Heron olhou para Colin. – E não vou pedir desculpas à fiscalização por isso. Sinto muito.

Colin cruzou os braços sobre o peito nu: – Faça como quiser, rapaz. E eu farei o mesmo.

Leia-se: talvez eu o esgane agora. Talvez depois.

A última coisa que Nigel precisava era de uma briga em seus aposentos, isso atrairia os outros arcanjos, assim como Tarquil, num piscar de olhos. Não era bem a interrupção que procurava.

– Colin – disse Nigel –, vá tomar banho.

– Já fiz isso, obrigado.

– Isso é uma questão de ponto de vista – Nigel murmurou antes de se dirigir a Jim. – Vá em frente e tenha fé que você estará no lugar certo e fará o melhor possível.

– Não acredito em destino, Nigel. É como pegar uma arma descarregada e achar que vai atirar em alguma coisa. Você mesmo tem que carregá-la com as balas.

– Estou lhe dizendo que há coisas maiores nesse trabalho do que seus esforços.

– Certo, ótimo, então coloque tudo num cartão de Natal. Mas não venha com besteiras pra cima de mim.

Encarando o rosto duro do salvador, Nigel teve um lampejo de medo. Com aquela atitude, havia mais uma coisa que jogava contra os anjos. Mas o que ele poderia fazer? Heron não tinha paciência ou fé, mas isso não mudava em nada as regras do jogo ou as chances de que o Criador corrigisse as liberdades que Devina havia tomado.

Ao menos esse último fato contribuía a favor deles.

– Acredito que já terminamos – Nigel disse. – Nada de bom virá a nosso favor se continuarmos a conversa.

Houve um momento obscuro, até mesmo maligno, durante o qual Heron olhou para ele com uma espécie de fúria.

– Tudo bem – disse o salvador. – Mas eu não desisto tão fácil.

– E eu sou a montanha que não será movida.

– Entendido.

Num piscar de olhos, o anjo se foi. E, quando o silêncio dominou o local, Nigel percebeu que não tinha mandado Heron embora. Ele tinha feito aquilo sozinho.

Estava ficando mais forte, não?

– Quer que eu desça e o vigie? – Colin disse.

– Quando concordei que ele seria o escolhido, pensei que haveria rédeas suficientes para contê-lo. Acreditava mesmo nisso.

– Então, repito, eu devo sair para vigiá-lo?

Nigel voltou-se para o seu querido amigo, que era muito mais que um colega e confidente.

– Essa é a tarefa de Adrian e Edward.

– Conforme estipulado. Mas fico pensando até onde essa competência, que aumenta cada vez mais, vai levá-lo. Acho que isso não nos guia por um bom caminho.

Nigel tomou outro gole de seu vinho e observou o espaço vazio que Heron tinha acabado de deixar. Apesar de continuar em silêncio, tinha que concordar. A questão era: o que fazer, o que fazer...


CAPÍTULO 3

 

Lá embaixo, na floresta fria próxima ao Monroe Hotel & Suítes, Veck permanecia parado sob o reflexo dos faróis da ambulância, com seu colega De la Cruz à direita e seu parceiro, Bails, à esquerda. Iluminado como estava, sentiu-se num palco quando Kroner surgiu dentre as árvores sobre uma maca.

Só que havia apenas uma pessoa olhando para ele. Sophia Reilly, a oficial de Assuntos Internos. Ela estava em pé próxima a ele e, quando os olhos dos dois encontraram-se, desejou que as circunstâncias fossem diferentes – de novo. O primeiro encontro com Sophia Reilly tinha sido quando ele agrediu aquele paparazzo. Mas a situação em que estavam agora fazia aquela agressão parecer uma caminhada na praia.

A questão era: gostou dela no momento em que apertaram as mãos, e essa primeira impressão foi reforçada naquela noite: o detetive dentro dele tinha aprovado totalmente a atuação profissional dela, bem como a maneira como o olhou. Se ele estivesse mentindo – e não estava –, ela teria percebido. Mas precisavam parar de se encontrar daquela maneira. Literalmente.

Sobre o asfalto do estacionamento houve um barulho alto quando os médicos fecharam as portas duplas da ambulância e, em seguida, o veículo afastou-se, levando a iluminação consigo. Quando Reilly voltou-se para observar a partida, já estava no escuro... até que acendeu uma lanterna.

Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, De la Cruz falou baixinho: – Quer um advogado?

– Por que ele precisaria de um advogado? – Bails exclamou.

Veck balançou a cabeça para seu amigo. Entendia a lealdade do cara, mas ele próprio não tinha tanta fé em si mesmo naquele momento.

– É uma boa pergunta.

– Então, vai querer? – De la Cruz sussurrou.

A oficial Reilly circulou a poça de sangue, transitou entre os troncos e galhos... Pequenos gravetos estalavam sob seus pés, aquilo soava alto nos ouvidos de Veck. Ela parou na frente dele.

– Terei de continuar com as perguntas amanhã, mas pode ir para casa agora.

Veck estreitou os olhos.

– Você vai me liberar?

– Nunca esteve sob minha custódia, detetive.

– Isto é tudo?

– Não, não. Mas não tem mais nada o que fazer aqui esta noite.

Veck balançou a cabeça.

– Ouça, oficial, isto não pode...

– A perícia criminal está a caminho. Não quero você aqui quando chegarem à cena do crime, pois isso pode comprometer o trabalho deles. Está suficientemente claro para você?

Ah, sim. E ele devia ter adivinhado. Estava escuro entre as árvores. Ele poderia manipular evidências com facilidade sem que ninguém soubesse, e ela queria fazê-lo sair dali de uma maneira discreta e educada.

Ela é esperta – pensou. E também era bonita: sob o brilho da lanterna, ela estava deslumbrante, do jeito que só uma mulher natural e saudável poderia ser – nada de maquiagem pesada para entupir seus poros ou pesar suas pálpebras, nenhum brilho gorduroso e escorregadio sobre seus lábios. Era totalmente verdadeira. O cabelo vermelho-escuro e pesado e o olhar de um verde profundo também não poluíam o visual. Além disso, havia a postura “nada de gracinhas” dela...

– Muito bem, oficial – ele murmurou.

– Por favor, esteja na sala do sargento amanhã, às 8h30.

– Você é quem manda.

Quando Bails murmurou alguma coisa em voz baixa, Veck rezou para que o bastardo guardasse suas opiniões para si mesmo. Reilly só estava fazendo seu trabalho – e era bastante profissional. O mínimo que poderiam fazer era retribuir o respeito.

Antes que seu amigo falasse algo, Veck bateu no ombro de Bails e assentiu para De la Cruz. Quando começou a andar, a voz séria e baixa de Reilly irrompeu no silêncio da noite: – Detetive.

Ele olhou sobre o ombro.

– Sim, oficial.

– Terei de levar sua arma. E seu distintivo. E o coldre daquela faca.

Certo. Mas é claro.

– O distintivo está na jaqueta de couro bem ali no chão. Quer fazer as honras com a minha nove milímetros e o cinto?

– Sim, por favor. E levarei seu celular também, se incomoda?

Quando ela aproximou-se, Veck sentiu seu perfume. Nada de frutas ou florais ou, meu Deus, aquela merda de baunilha. Mas também nada que pudesse classificar. Xampu talvez? Será que ela recebeu a ligação saindo do banho?

Que bela imagem... Espere um minuto. Estava mesmo fantasiando com sua colega de trabalho... a menos de dois metros da cena de um crime? Nossa. Sim, era isso mesmo o que estava fazendo.

Reilly colocou a lanterna na boca e, então, as mãos revestidas por luvas azuis brilhantes estenderam-se. Quando ele ergueu os braços para facilitar que tocasse sua cintura, registrou uma pressão sutil em seus quadris, o tipo de coisa que sentiria se ela estivesse tirando as calças dele...

O impulso elétrico que surgiu em seu pênis foi uma surpresa... E, Deus, ficou feliz por aquela luz estar sobre seu peito, e não mais ao sul. Cara, aquilo era tão errado... e contrário à maneira que agia. Nunca paquerava colegas de trabalho, fossem assistentes administrativas, colegas detetives... ou oficiais do Departamento de Assuntos Internos. Problemas demais quando chegava ao fim inevitável...

Santo Deus, onde estava com a cabeça?

Parece que não na realidade.

Era quase como se a magnitude do que havia acontecido naquele local cheio de folhas manchadas de vermelho fosse tão grande que seu cérebro buscasse refúgio em qualquer outro lugar para além do elefante gigante ensanguentado na floresta. Talvez estivesse simplesmente louco. E ponto final.

– Obrigada, detetive – Reilly disse ao afastar-se com a arma e o coldre de couro. – Seu celular?

Ele entregou-o.

– Quer minha carteira?

– Sim, mas pode ficar com sua carteira de motorista.

Quando o trabalho de confisco terminou, ela adicionou: – Além disso, gostaria que você tirasse suas roupas em casa para ensacá-las e levá-las a mim amanhã.

– Sem problema. E sabe onde me encontrar – ele disse com a voz rouca.

– Sim, sei.

Quando estavam prontos para partir, percebeu que não havia nenhum sinal de um queixo abaixado ou um olhar esquivo aparentando timidez. Nada de mexer nos cabelos. Nada de rebolar. Algo que, tudo bem, seria ridículo naquelas circunstâncias... Mas ele teve a sensação de que, se estivesse numa boate, ao lado do bar, ela também não agiria de outra maneira. Não era seu estilo.

Droga, ela simplesmente ficava mais atraente a cada minuto. Se aquilo continuasse, pediria Sophia Reilly em casamento na próxima semana.

Até parece...

Com isso, Veck virou-se pela segunda vez. E ficou surpreso ao ouvi-la dizer: – Tem certeza de que não quer um casaco, detetive? Tenho uma jaqueta extra no meu carro, pois sentirá frio na moto.

– Ficarei bem.

Por alguma razão, ele não queria olhar para trás. Provavelmente por causa de todo aquele grande público que eram os olhos de De la Cruz e Bails. Sim. Era isso.

Na moto, jogou a perna sobre o assento e pegou o capacete. Não o usou para chegar até ali, mas precisava conservar alguma parte do corpo aquecida. Quando deu a partida, esperava que De la Cruz se aproximasse dele e voltasse a comentar sobre o advogado. Em vez disso, o venerável detetive ficou onde estava e falou com a agente Reilly.


Bails foi quem se aproximou. O cara estava com roupas de academia, cabelo curto espetado, os olhos eram um pouco agressivos... sem dúvida porque não gostava que Reilly tivesse assumido o caso.

– Tem certeza de que está bem para ir para casa?

– Sim.

– Quer que eu lhe siga?

– Não – provavelmente o cara iria de qualquer maneira. Ele era assim.

– Sei que você não fez isso.

Quando Veck olhou para o parceiro, ficou tentado a desabafar sobre tudo: seus dois lados, a divisão que sentia há anos, o medo de que sua maior preocupação finalmente tivesse acontecido. Droga, sabia que podia confiar no cara. Ele e Bails fizeram academia de polícia juntos anos atrás e, embora tivessem seguido por caminhos diferentes, mantiveram contato e proximidade – até Bails convocá-lo para ir a Manhattan unir-se à equipe do Departamento de Homicídios de Caldwell. Duas semanas. Estava ali há apenas duas malditas semanas.

Assim que abriu a boca, uma van estacionou atrás dele junto com outros carros do Departamento de Polícia, anunciando a chegada da perícia.

Veck negou com a cabeça.

– Obrigado, cara. Vejo você amanhã.

Deu um solavanco com o corpo, ligou o motor e, enquanto aquecia a moto, olhou de volta para a cena. Reilly estava ajoelhada perto da jaqueta dele, revistando os bolsos. Assim como faria com sua carteira.

Oh, droga. Encontraria...

– Ligue se precisar de mim para alguma coisa, cara.

– Sim. Ligarei.

Veck acenou para Bails e partiu devagar com a moto, pensando ser desnecessário Reilly ver as duas camisinhas que sempre mantinha na carteira atrás dos cartões de crédito. Engraçado, ser um vadio nunca o incomodou antes. Agora, desejava ter dado um nó no pênis anos atrás.

Quando entrou na estrada propriamente dita, acelerou a moto e seguiu rugindo. Quando disparou pelas curvas da estrada 149, inclinava-se nelas, abaixando-se sobre os guidões, tornando-se apenas mais uma peça do projeto aerodinâmico de sua BMW. Com a alta velocidade, as curvas tornaram-se apenas pequenos movimentos para a esquerda e para a direita, enquanto ele e a moto desafiavam as leis da física. Bater em qualquer coisa naquela velocidade? Teria sorte se restasse algum pedaço grande o suficiente para enterrar.

Mais rápido. Mais rápido. Mais...

Infelizmente, ou felizmente, não tinha certeza, o fim da linha para ele não foi colidir em árvores, evitando um acidente com um carro ou um cervo.

Foi um outlet da Ralph Lauren.

Ou, especificamente, um semáforo próximo ao local.

Sair daquela sensação de velocidade da qual tanto gostava deixou-o num estado de desorientação estranho, e a única razão de ter parado no sinal vermelho foi que havia alguns carros na frente dele. Foi forçado a obedecer às leis de trânsito ou andar sobre os carros.

O maldito sinal levou uma eternidade para abrir, e a fila em que estava moveu-se a passo de lesma quando finalmente ficou verde. Ele teria atingido mais de cem quilômetros por hora na estrada, o que não ajudaria em nada. Não que estivesse fugindo de alguma coisa. Claro que não.

Passou por lojas como Nike, Van Heusen e Brooks Brothers. Sentiu-se tão vazio quanto os estacionamentos, e havia uma parte dele que desejava continuar... Desejava passar por aquela parte mais afastada da cidade, vagar pelo labirinto suburbano de Caldie, percorrer a área de arranha-céus e atravessar uma ponte que só Deus sabe onde daria.

O problema era que, aonde quer que fosse... lá estava ele: a mudança geográfica não mudaria se rosto no espelho. Ou aquela parte de si mesmo que ele nunca entendeu, mas também nunca questionou. Ou a porra que teria acontecido naquela noite.

Assassinara aquele bastardo doente. Não havia outra explicação. E não sabia o que Reilly tinha na cabeça ao deixá-lo ir. Talvez ele simplesmente precisasse confessar... Sim, mas o quê? Que tinha ido até lá com a intenção de matar e, em seguida...

A dor de cabeça que acometeu seu lóbulo frontal era o tipo de coisa que ele não suportaria. Nesses casos, tudo o que se faz é gemer e fechar os olhos... Mas isso não é a melhor opção quando se está em cima de uma moto que, praticamente, resume-se num motor com um assento acolchoado.

Forçando a concentração na estrada e em nada mais, sentiu-se aliviado quando a pancada no crânio suavizou e pôde seguir caminho.

A casa em que morava ficava num bairro cheio de professores, enfermeiras e representantes de vendas. Havia muitas crianças, e a conservação dos gramados nos quintais era feita por amadores – o que significava que, no verão, era muito fácil encontrar um gramado irregular, mas, ao menos, eram aparados regularmente.

Veck era um caso isolado ali: não tinha esposa, filhos e nunca contrataria um garoto para aparar a grama. Felizmente, tinha a impressão de que os vizinhos dos dois lados de seu quintal – praticamente um cartão-postal – eram do tipo que invadiam alegremente o território alheio com suas ferramentas.

Sua casa de dois andares era tão luxuosa e única quanto uma moeda de um centavo dos anos 1970. Portanto, como era de se esperar, foi nessa época que a casa viu sua última nova camada de papel de parede.

Estacionando na garagem, desmontou da moto e encaixou o capacete no guidão. Não havia muitos crimes naquela área... então, seus vizinhos aparadores de gramado faziam um ótimo trabalho, em vários sentidos.

Entrou pela porta lateral, passou pelo armário de casacos e caminhou até a cozinha. Não havia muita comida por ali: só algumas caixas vazias de pizza sobre o balcão e algumas embalagens da Starbucks amontoadas sobre a pia. Tinha envelopes meio abertos e relatórios espalhados sobre a mesa. O laptop estava fechado junto a cupons de desconto que ele nunca usaria. Também havia ali uma conta de TV a cabo que ainda não estava vencida, mas, provavelmente, acabaria vencendo, pois era péssimo em pagar as coisas em dia. Sempre ocupado demais para fazer um cheque ou acessar a internet para pagar.

Deus, a única diferença entre aquele lugar e sua sala no centro da cidade era o fato de ter uma cama king-size no andar de cima. Pensando nisso, lembrou-se de que a oficial Reilly queria que ele se despisse, não queria?

Pegou um saco de lixo debaixo da pia da cozinha e subiu as escadas pensando em contratar uma faxineira para limpar a casa uma vez por semana, assim não teria mais que encontrar teias de aranha em todos os cantos e montinhos de poeira que se multiplicavam embaixo do sofá. Mas aquilo não era um lar e nunca seria. Desinfetante e outros produtos de limpeza quatro vezes por mês não deixariam o local aconchegante. Porém, se levasse uma garota um dia até lá, ela teria um local decente para se vestir.

Seu quarto ficava na parte dianteira da casa, e tudo que havia nele era uma cama grande e uma escrivaninha. Suas botas, meias e calças foram tiradas rapidamente. Com a blusa foi a mesma coisa. Quando tirou sua cueca boxer preta, recusou-se a lembrar da oficial Reilly revistando-o. Simplesmente não seguiria por aí.

Dirigindo-se para o banho, ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, parou em frente ao espelho sobre a pia. Não havia reflexo para se preocupar... Tinha coberto o espelho com uma toalha de praia no dia em que se mudou. Não era fã de espelhos.

Ergueu as mãos e estendeu-as com as palmas para baixo. Então virou-as. Em seguida, olhou embaixo das unhas. Parecia que seu corpo, assim como sua mente, estava vazio de pistas. Embora aceitasse que a ausência de ferimentos, sangue ou coágulos em si mesmo fosse um indício... e, sem dúvida, a boa oficial Reilly também tinha notado.

Cara, era a segunda vez na vida em que se encontrava numa situação dessas. Na primeira... Não havia razão para pensar no assassinato de sua mãe. Não numa noite como aquela. Entrando no chuveiro, fechou os olhos e deixou a ducha cair sobre sua cabeça, ombros e rosto. Sabonete. Enxaguar. Xampu. Enxaguar.

Estava parado, envolvido no vapor, quando sentiu uma corrente: como se alguém tivesse aberto a janela do banheiro. O sopro de ar movimentou a parte de cima da cortina e acariciou sua pele. Sentiu arrepios quando percebeu que passava também pelo seu peito e descia por suas pernas e pelas costas. Contudo, a janela não fora aberta.

Foi por isso que removeu o boxe de vidro do banheiro e cobriu aquele espelho embutido sobre a pia. Foram as únicas coisas que mudou na casa, sendo que a melhoria era para manter a sanidade. Já fazia anos que se barbeava sem olhar no espelho.

– Fique longe de mim – ele disse, fechando os olhos e mantendo-os assim.

A corrente de ar enroscou-se nas pernas de Veck, como se mãos estivessem se movendo sobre sua pele, subindo cada vez mais, acariciando seu sexo antes de atingir o abdômen e o peitoral, até chegar ao seu pescoço... seu rosto... Mãos frias passaram pelo seu cabelo...

– Me deixe em paz! – estendeu o braço e empurrou a cortina. Quando o ar quente dissipou-se, tentou concentrar-se em si mesmo, expulsar o intruso, matar a conexão. Tropeçando no balcão, envolveu o corpo com os braços e inclinou-se, respirando com força e odiando a si mesmo, odiando aquela noite, odiando sua vida.

Sabia muito bem que era possível, se você tivesse um distúrbio de personalidade múltipla, que uma parte poderia se libertar e agir de maneira independente. Aqueles que sofrem disso podem ignorar completamente as atitudes tomadas por seu corpo, mesmo quando envolvem atos de violência...

Quando a dor de cabeça começou a latejar em suas têmporas outra vez, Veck amaldiçoou e conseguiu se enxugar. Em seguida, pegou a camisa de flanela e as calças de moletom do Departamento de Polícia de Nova York com que tinha dormido na noite anterior e deixado atrás do vaso sanitário. Estava prestes a descer as escadas quando uma rápida olhada pela janela imobilizou-o.

Havia um veículo estacionado do outro lado da rua a umas duas casas de distância. Conhecia cada veículo da vizinhança, todas as caminhonetes, vans, suvs, sedãs, carros híbridos... Aquele carro escuro, de um modelo recém-lançado, não estava na lista.

Contudo, era exatamente o tipo de carro sem identificação que o Departamento de Polícia de Caldwell usava. Reilly fora vigiá-lo. Muito bem... exatamente o que ele faria no lugar dela.

Finalmente, viu que era mesmo ela, em carne e osso.

Descendo as escadas, hesitou na frente da porta, considerando sair na rua, mesmo descalço, porque talvez ela, ou quem quer que fosse, tivesse respostas sobre a cena Conteve aquela brilhante ideia e foi até a cozinha. Tinha de haver algo para comer no armário. Tinha de ter. Ao abrir e procurar por um momento, só encontrou um monte de vazio entre as prateleiras. Qual supermercado de fadas ele achava que existia? Pois só assim entregariam comida: como mágica.

A fome era tanta que poderia jogar um pouco de ketchup numa caixa de pizza e mastigá-la. Seria bom para ele comer um pouco de fibra.

Delícia.

A duas casas da residência do detetive DelVecchio, Reilly estava sentada atrás do volante, tampando parcialmente a própria visão.

– Por tudo que é mais sagrado... – esfregou os olhos. – Não é adepto a cortinas?

Enquanto rezava para que a imagem espetacular de seu colega nu desaparecesse de suas retinas, repensou seriamente a decisão de vigiá-lo sozinha. Estava exausta, isso era fato... Ou estava, antes de, simplesmente, ter visto tudo o que Veck tinha para oferecer. Desconsidere o simplesmente.

O bom disso era que agora estava realmente alerta, muito obrigada... Era o mesmo que ter umedecido dois dedos e os ter colocado na tomada: a visão foi suficiente para dar todo o ânimo que tinha aos treze anos.

Murmurando para si mesma, deixou cair as mãos sobre o colo outra vez. E, meu Deus, enquanto olhava para o painel do carro, tudo o que via era... era a cena que tinha visto antes. Sim, uau, em alguns homens, estar sem roupas era muito mais do que estar nu.

E pensar que ela quase perdera o show. Estacionou o carro e assumiu sua posição quando as luzes do andar de cima acenderam-se e pôde, assim, ter uma boa visão do que acontecia no quarto. Inclinando-se no banco, não se deu conta de que a posição expunha os dois... Não se ateve a nada além do que parecia ser uma lâmpada no teto do que deveria ser a suíte principal.

Geralmente, a decoração de um apartamento de solteiro tendia a ser muito cheia de detalhes ou minimalista. Era óbvio que Veck seguia a linha minimalista.

De repente, ela não pensava mais na decoração, pois seu suspeito tinha entrado no banheiro e ligado o interruptor.

Olááá, garotão.

E o superlativo englobava várias coisas.

– Pare de pensar nisso... pare de pensar...

Fechar os olhos não ajudou: se já tinha notado como ele ficava bem dentro das roupas que vestia, agora sabia exatamente o porquê. Era muito musculoso e, considerando que não tinha qualquer pelo na parte superior do corpo, nada ocultava aquele peitoral, o abdômen e as saliências esculpidas que desciam até os quadris.

Aliás, por falar em depilação, tudo o que tinha era uma linha escura que percorria a distância entre o umbigo e o...

Bem, talvez tamanho seja importante – Reilly pensou.

– Oh, pelo amor de Deus.

Na tentativa de manter seu cérebro focado em alguma coisa, qualquer coisa mais apropriada, inclinou-se para frente e olhou pela janela oposta. Poderia dizer que a casa da frente tinha cortinas capazes de manter a privacidade. Muito bom, principalmente se concluísse que ele desfilava daquela maneira todas as noites. Talvez o marido tivesse instalado tudo aquilo para que sua mulher não começasse a ter desmaios.

Preparando-se, voltou a olhar a casa de Veck. As luzes tinham se apagado no andar de cima, e ela esperava que agora ele estivesse no primeiro andar, vestido... e permanecesse assim.

Deus, que noite.

Ainda esperava obter alguma prova concreta do que havia acontecido na cena do crime, mas não parava de pensar nos ferimentos de Kroner. Havia coiotes naquelas florestas. Ursos. Gatos selvagens. Havia grandes chances de o cara ter andado por ali com cheiro de sangue seco nas roupas e alguma coisa de quatro patas tê-lo visto como um Mc Lanche Feliz. Na tentativa de intervir, Veck foi jogado de lado. Afinal, estava esfregando a testa como se esta doesse muito, e Deus é testemunha de que traumatismos cranianos são conhecidos por causarem perda de memória em curto prazo. A falta de provas físicas nele apoiava a teoria, com certeza.

E, mesmo assim... Deus, o pai dele. Era impossível não relacionálos, ao menos um pouco. Como todo aluno de especialização em justiça criminal, ela estudou o caso de Thomas DelVecchio pai como objeto de disciplina... mas também passou tempo considerável refletindo sobre ele em suas aulas de desvios psicológicos. O pai de Veck era considerado um serial killer clássico: inteligente, astuto, comprometido com seu “ofício”, totalmente sem remorsos. E, ainda assim, ao assistir vídeos de entrevistas dele com a polícia, deparou-se com um homem bonito, atraente e agradável. Sem qualquer ligação aparente com um monstro.

Contudo, como muitos psicopatas, cultivava uma imagem e sustentava-a com cuidado. Foi muito bem-sucedido como comerciante de antiguidades. Porém, estabelecer-se naquele mundo arrogante, cheio de dinheiro e privilégios, foi apenas um refúgio inventado por ele. Tinha vindo do nada, mas possuía talento para encantar pessoas ricas – bem como para viajar a diversas partes do mundo e voltar com artefatos antigos e estátuas extremamente bem recebidas no mercado. Seus negócios nunca tinham passado por qualquer investigação até os assassinatos virem à tona, e, até hoje, ninguém fazia ideia de onde encontrava tudo o que tinha... Era como se tivesse um tesouro guardado em algum lugar do Oriente Médio. Com certeza não ajudou as autoridades a entender isso, mas o que poderiam fazer com ele agora? Já estava no corredor da morte. Logicamente, não por muito tempo.

Como teria sido a mãe de Veck...?

A batida na janela do carro, ao lado de sua cabeça, foi como um tiro, e Reilly empunhou sua arma em direção ao som menos de um segundo depois.

Veck estava parado na rua ao lado do carro, mãos para cima, o cabelo molhado brilhava sob a luz do poste.

Reilly baixou a arma e abriu a janela com uma maldição.

– Reflexos rápidos, oficial – ele murmurou.

– Quer levar um tiro, detetive?

– Eu disse seu nome. Duas vezes. Mas estava mergulhada em pensamentos.

Graças ao que tinha visto naquele banheiro, a camiseta de flanela e a calça de moletom pareciam muito fáceis de serem removidas, eram coisas que não resistiriam a um puxão. Mas, vamos lá, como se já não conhecesse cada brinquedo daquele parque de diversões.

– Já quer levar minhas roupas? – ele disse ao erguer um saco de lixo.

– Sim, obrigada – ela aceitou o pacote pesado pela janela e apoiou as coisas no chão do carro. – Os sapatos também?

Ao assentir, disse: – Quer que lhe traga um pouco de café? Não tenho muita coisa na minha cozinha, mas acho que consigo encontrar uma caneca limpa e café solúvel.

– Obrigada. Estou bem.

Houve uma pausa.

– Há alguma razão para não olhar nos meus olhos, oficial?

Acabei de vê-lo nu, detetive.

– Nenhuma – ela o encarou furtivamente.

– Deveria entrar. Está frio.

– O frio não me incomoda. Ficará aqui a noite inteira?

– Depende.

– Depende do clima, certo?

– Sim.

Ele assentiu e, então, olhou ao redor, casualmente, como se fossem vizinhos conversando sobre o tempo. Tão calmo. Tão confiante. Assim como o pai.

– Posso ser sincero com você? – ele disse de repente.

– É bom que seja, detetive.

– Ainda estou surpreso por me liberar.

Reilly passou as mãos sobre o volante.

– Posso ser sincera com você?

– Sim.

– Te liberei porque não acredito que tenha feito aquilo.

– Eu estava na cena do crime e havia sangue em mim.

– Você chamou a emergência e não fugiu. Aquele tipo de assassinato é muito difícil de ser cometido.

– Talvez eu tenha limpado tudo.

– Até onde vi, não havia qualquer chuveiro entre aquelas árvores.

Não. Pense. Nele. Nu.

Quando ele começou a balançar a cabeça como se fosse argumentar, Reilly interrompeu-o.

– Por que está tentando me convencer de que estou errada?

Aquilo calou-o. Ao menos por um momento. Então, disse em voz baixa: – Vai se sentir mais segura me seguindo?

– Por que não?

Pela primeira vez, alguma emoção percorreu a expressão fria de Veck, e o coração dela parou: havia medo em seus olhos, como se não confiasse em si mesmo.

– Veck – ela disse em tom suave –, se existir alguma coisa que eu não saiba...

Ele cruzou os braços sobre o grande peitoral e seu peso oscilava sobre os quadris, como se estivesse pensando. Em seguida, sussurrou e começou a esfregar a testa.

– Não sei de nada – murmurou. – Ouça, faça um favor a nós dois, oficial. Mantenha aquela arma por perto.

Não olhou para trás ao se virar e atravessar a rua.

Reilly percebeu que ele não usava qualquer calçado. Ao erguer o vidro da janela, observou Veck entrar na casa e fechar a porta. Em seguida, as luzes da casa apagaram-se, exceto uma no corredor do segundo andar.

Recompondo-se, ela acomodou-se sobre o banco e olhou para todas as janelas. Pouco depois, uma grande sombra entrou na sala de estar – ou melhor, parecia se arrastar até um móvel? Seria um sofá? Então, Veck sentou-se e sua cabeça desapareceu como se estivesse estendido sobre o móvel.

Era quase como se estivessem dormindo lado a lado. Bem, aquilo que os separava eram apenas as paredes da casa, o gramado mal aparado, a calçada, o asfalto e a estrutura que envolvia o carro.

As pálpebras de Reilly começaram a cair, mas era porque tinha abaixado a cabeça. Não estava cansada e nem preocupada em cair no sono. Estava bem alerta no interior escuro do carro. Mesmo assim, estendeu a mão e apertou o botão para travar as portas. Só para garantir.


CAPÍTULO 4

 

Vagando ao longo do corredor de concreto frio, o demônio Devina não seguia um caminho reto, mas sinuoso. Percorria várias salas de escritório, o tic-tac de vários relógios abafava o barulho que seus saltos produziam.

Tudo foi acomodado ali, sua coleção tinha se mudado com segurança para o porão do prédio de escritórios de dois andares. O local era perfeito, afastado do centro da cidade de Caldwell e, para parecer verdadeiro e não suscitar polêmicas, projetou a ilusão de que uma empresa de recursos humanos havia se instalado no local que agora ela percorria: os humanos só conseguiriam enxergar um próspero empreendimento que havia alugado o imóvel para se expandir dentro do mercado.

Seres humanos estúpidos. Como se, na atual circunstância da economia, alguém pudesse contratar ou pagar mão de obra especializada para preencher as vagas de trabalho que disponibilizavam.

Parou em frente a uma cômoda clássica produzida em Rhode Island, em 1801, e passou a mão sobre o mogno. O acabamento original ainda estava ali. Claro, ela evitou que o objeto ficasse exposto ao sol ou à umidade desde que o havia comprado há duzentos anos. Havia divisões nas gavetas cheias de botões, filas e mais filas de óculos e amontoados de pequenas caixas com anéis dentro delas. Possuía objetos similares nos outros gabinetes, todos objetos pessoais, feitos de diversos metais.

Além de seu espelho, aquela coleção era a coisa mais preciosa que tinha. Era a sua ligação com as almas, a segurança que precisava quando sentia-se insegura ou estressada na Terra, como agora.

No entanto, o problema daquela noite era que, pela primeira vez, tudo aquilo que vinha acumulando há séculos não a acalmava, não a deixava mais segura, nem diminuía sua ansiedade. Vagando por entre os objetos, estava longe da ajuda do vício que, há tanto tempo, provara-se muito útil.

E o que parecia ainda pior? Aquela noite deveria ser um “momento de recompensa”, como sua terapeuta definia. Um tempo para concentrar-se e saborear suas realizações: tinha vencido a última rodada contra Jim Heron e, mesmo sabendo que ele, Adrian e Eddie tinham se infiltrado em seu covil anterior, tinha conseguido reinstalar todas as suas coisas naquele novo e seguro local.

Deveria estar em êxtase. Mesmo assim, mesmo o cheiro de morte à deriva vindo do banheiro não lhe deu prazer: para proteger o espelho, precisava de muito mais que um sistema de monitoramento comum, e o novo sacrifício virginal que tinha pendurado sobre a banheira sangrava muito bem... quase pronto para ser usado, não era apenas decorativo.

Tudo estava a seu favor, ao menos superficialmente falando, e, ainda assim, ela sentia-se tão... Tédio, parece que era assim chamado... E que nome adorável para um péssimo estado de desmotivação.

Talvez só estivesse exausta por ter organizado tudo após a mudança. Tinha mais ou menos quarenta gabinetes cheios de aquisições de todas as eras da humanidade. Sempre que era forçada a se restabelecer em outro lugar, era obrigada a tocar cada objeto para se reconectar com a essência da vítima que permanecia no metal. E ainda precisava iniciar o ritual de contato, porém estava um pouco surpresa consigo mesma. Normalmente, não conseguia concentrar-se em mais nada até que houvesse aquela fissura no tempo, até que vagasse pelo local por alguns minutos e completasse o longo processo.

Acreditava que sua terapeuta veria aquilo como um progresso, considerando a compulsão que lhe era tão comum e inegável: aqueles objetos preciosos, que remontavam desde os tempos do Egito antigo até a França gótica, da Guerra Civil Americana aos Estados Unidos de hoje, eram o que a ligava à sua casa quando estava longe.

Ainda assim, não havia pânico para se refugiar naquilo que era seu pela eternidade. Parecia que seu maior desejo era lamentar-se e andar sem direção. Tudo culpa de Jim Heron.

Ele era tão desafiador. Dominante. Extraordinário. Tinha sido escolhido por ela e por Nigel – aquele filho da mãe arrogante – por ter o bem e mal equilibrados dentro de si... E, conforme ela tinha aprendido ao longo dos tempos, quando tratava-se da humanidade, o mal sempre vencia. Achava que atraí-lo para o lado dela não seria nada além de uma tarefa tediosa, o tipo de coisa que sempre fez com homens e mulheres desde o primeiro momento de sua existência. Em vez disso... era ela quem estava sendo sugada e seduzida.

Heron era tão... incontrolável. Mesmo quando o dominou e brincou com ele, quando seus subordinados torturaram-no, quando a verdadeira natureza dela foi revelada... ele permaneceu firme, inflexível, intransigente. E aquela força deixava-o inatingível.

Nunca tinha visto aquilo antes. Em ninguém. A questão era: controlar fazia parte de sua natureza, pois era uma perfeita parasita. Procurava uma maneira de replicar sua essência até que o local no qual havia se infiltrado se tornasse dela para sempre.

O desafio que Heron representava era inebriante, um tapa no rosto, uma rajada de ar fresco. Mas também parecia esvaziar a importância de toda a existência das coisas.

Abrindo uma gaveta, tirou uma fina pulseira de ouro com uma pequena pomba como pingente. A inscrição no interior do objeto apresentava-se em letra cursiva e delicada. Era um presente de dois pais para uma filha. Com uma data do ano anterior. Blá-blá-blá.

Ela odiava o nome Cecília. Muito. Aquela virgem sem importância... Que espinho em sua vida. O propósito daquela garota de sobrenome Barten era apenas o de proteger o espelho. Mas, agora, aquele pequeno lixo tinha algum tipo de ligação com Jim...

Quando estava prestes a esmagar o frágil objeto, um calor percorreu seu corpo, como se o toque de um amante tivesse passado não apenas sobre sua carne, mas sobre seus ossos.

Jim. Era Jim. Ele chamava-a.

Descartando a pulseira, verificou se a gaveta estava mesmo fechada e foi até o espelho que usava apenas para checar sua aparência. Em frente a ele, mudou sua forma, assumindo o corpo de uma linda morena, com seios que desafiavam a gravidade e um traseiro com mais volume do que uma estante de livros.

Ajeitou o cabelo, alisou a saia preta e achou que a barra estava longa demais. Erguendo-a com a força, virou-se e viu que suas coxas lisas e perfeitas estavam à mostra. De repente, estava viva. Bem, tecnicamente, viva não era o termo correto. Mas era assim que parecia: em apenas um momento, seu humor mudou de sepulcral para sublime. Só que não seria idiota com relação a isso. Confiante em sua saia curta, no decote e nos belos cabelos, entrou no banheiro.

– Como estou?

Deu um pequeno giro em frente ao jovem pendurado de cabeça para baixo sobre a banheira. Só que ele não disse nada, mesmo de olhos abertos.

– Ah, o que é que você sabe?

Ela abaixou-se e mergulhou a ponta dos dedos no sangue que escorria continuamente da carótida do rapaz. Impaciente com a demora, traçou alguns riscos em volta dos batentes da porta e no chão, indo e voltando da banheira para umedecer os dedos novamente com a “tinta”. A pureza da essência do jovem formava um selo mais eficaz que qualquer alarme de segurança já criado por um humano... Além disso, o processo permitia que ela livrasse o mundo de mais uma criatura mortal.

Seu trabalho ficava mais fácil assim.

Terminou o assunto com o senhor Tagarela e virou-se para o antigo espelho envolto por uma moldura um tanto apodrecida pelos séculos. A superfície gasta exibia um reflexo em constante mudança, ondas de cinza-escuro e preto rodavam em torno de um fundo cuja cor parecia a mancha de um tapete velho. Aquilo era um horrível portal e a única maneira de se aproximar das almas que possuía.

– Fique aí – disse a ele. – Volto já.

Aproximando-se da superfície do espelho, foi puxada por uma força cruel e entregou-se livremente àquilo. O corpo que havia assumido tornou-se caramelo ao passar por aquele local. Do outro lado, emergiu sem muita firmeza, jogada pela tempestade, mas não precisou de tempo algum para se recuperar.

Ao ajeitar o cabelo e alisar a saia apertada, pensou ser uma falha não ter um espelho ali. No entanto, não precisava preocupar-se com a opinião de seus subordinados ou de suas almas... Oh, suas adoráveis almas... bem, tinham outras coisas em mente.

Inclinando a cabeça para trás, olhou as paredes que se estendiam por quilômetros num negro brilhante visível desde o chão de pedra. O contorcionismo dos condenados torturados desafiavam os limites de sua viscosa prisão; rostos, quadris, joelhos e cotovelos esticavam-se tentando alcançar uma liberdade impossível, as múltiplas vozes erguiam-se num lamento miserável e abafado.

– Como estou? – ela gritou para cima.

O volume do coro de gemidos aumentou como resposta, mas não lhe disseram absolutamente nada. Pelo amor de Deus, será que não conseguiria uma opinião? Qualquer uma?

Depois de olhar para si mesma mais uma vez, concedeu acesso a Jim, convocando sua forma física no local. Enquanto esperava, seu coração batia três vezes mais rápido, uma corrente percorria cada centímetro de sua pele com um chiado elétrico. Mas não demonstraria isso. Calma. Fique calma.

Jim chegou num redemoinho de névoa, e ela prendeu a respiração.

O salvador escolhido era o melhor exemplar que havia do sexo masculino. De uma constituição grande e letal, seu corpo era um instrumento de guerra e sedução. Era primitivo, intenso...

– Você me deseja – disse ela em voz baixa.

Os olhos dele estreitaram-se, e o ódio que havia neles fez mais pela libido de Devina do que um prato cheio de ostras poderia fazer.

– Não dessa maneira, querida.

Oh, como ele mentia.

Devina foi até a mesa de trabalho rebolando e passou as pontas dos dedos sobre a superfície esburacada e sem cor. As memórias dele amarrado nu, de pernas bem abertas e com seu sexo brilhando por ter sido usado há pouco, fizeram-na respirar fundo.

– Não? – ela disse. – Você me chamou. Não o contrário.

– Quero que me diga quem é a próxima alma.

Interessante.

– Então, Nigel mandou você até aqui quando fez a mesma pergunta a ele, não foi?

– Não disse isso.

– Bem, acho difícil acreditar que me procurou primeiro – murmurou em tom amargo. – E acha que vou te contar?

– Sim, acho.

Soltou uma risada violenta.

– Já deveria saber como sou.

– E vai me dizer.

– Por que eu haveria de...

Uma das mãos ergueu-se e Jim começou a passá-la pelo peitoral de maneira intensa e lentamente, oh, bem lentamente, descendo pelo seu estômago...

Devina engoliu em seco. E, então, sua boca ficou realmente seca quando ele segurou o próprio órgão entre as pernas.

– Tenho algo que deseja – ele disse asperamente. – E vice-versa.

Bem, bem, bem... Desejava ficar com ele, sim, mas era muito melhor quando a ligação era voluntária. Ele teria que se esforçar para fazer sexo com ela, sacrificar sua carne para obter informação... na frente de sua doce e estimada Sissy.

Devina olhou para a parede e encontrou a alma com a qual ele tanto se preocupava. Ao descer a garota, inclinou-se contra a mesa.

– O que, exatamente, você está me propondo?

– Diga quem é e eu fodo você.

– Faça amor comigo.

– Vai ser uma foda. Pode acreditar.

– Chame da maneira que quiser... mas não tenho certeza – que mentira. – É uma informação muito valiosa.

– Bem, sabe como eu sou.

Ah, ela sabia e desejava-o outra vez. Desejava sempre.

– Tudo bem – ela disse. – Vou te dizer quem é e, em troca, vai se entregar para mim sempre que eu quiser. Tem que estar à minha disposição.

Os olhos dele estreitaram-se outra vez, como fendas que o faziam parecer um predador.

E, então, houve apenas silêncio. Enquanto o silêncio estendia-se, ela permaneceu firme. Ele tinha voltado, isso era muito estranho, mas precisava agradecer a Nigel – o idiota que sempre seguia as regras – por isso. Se o arcanjo tivesse deixado escapar o nome da alma, aquele maravilhoso sacrifício não estaria acontecendo.

– Certo.

Devina começou a sorrir...

– Com uma ressalva – quando a expressão dela congelou, ele disse: – Ficarei com você agora em troca do nome. Então, veremos se é o correto. No final da rodada, se não tiver mentido... você terá o que deseja. Sempre que quiser.

Devina rosnou. Maldito livre arbítrio. Se ao menos pudesse dominar tal atributo de maneira mais apropriada, ele não imporia qualquer condição. Mas não era assim que funcionava.

Ainda há algumas brechas – pensou. Algumas maneiras de distorcer o acordo para que não falasse demais e ainda conseguisse possuí-lo.

– Temos um acordo? – ele perguntou.

Olhou sobre o ombro dele, enquanto se aproximava, em direção à pequena forma na parede que havia convocado para assistir de camarote o que aconteceria.

Quando Devina tocou o corpo forte e ergueu-se na ponta dos pés, ficou encantada com a carne rígida que acariciava. No ouvido de Heron, sussurrou: – Tire as calças.

– Feito ou não, demônio?

Estava inabalável diante dela, perfeitamente capaz de negá-la, tanto agora como no futuro. Mesmo estando bem na frente dela, era completamente intocável.

Só que era como ele mesmo havia dito, os dois tinham algo que o outro desejava.

– Tire as calças – afastou-se pronta para aproveitar o espetáculo. – Faça isso devagar... e teremos um acordo.

– Que maldição ele está fazendo lá?

Quando Adrian expressou toda sua retórica, indignado, não esperava uma reação de seu colega de quarto. Poderia passar com um carro sobre os pés de Eddie e, talvez, conseguisse obter um ai. Era mais provável que o anjo apenas piscasse os olhos e chutasse o veículo com força.

Sinceramente, aquela coisa toda de forte e silencioso podia ser bem irritante.

– Já faz duas horas – parou no pé da cama em que Eddie estava esparramado. – Ei? Está acompanhando a situação? Ou planeja dormir durante a rodada?

As pálpebras ergueram-se exibindo olhos vermelhos.

– Não estava dormindo.

– Meditando. Que seja.

– Não estava meditando.

– Tudo bem. Manipulando psiquicamente campos de energia...

– Você me deixa atordoado quando fica andando de um lado para o outro sem parar. Só estou evitando uma vertigem.

Não acreditou naquilo nem por um segundo.

– Preocupar-se um pouco com a situação o mataria?

– Quem disse que não estou preocupado?

– Eu disse – Adrian correu os olhos ao longo do corpo grande e imóvel de seu colega. – Estou prestes a pegar um desfibrilador e dar uma descarga na sua bunda.

– O que posso fazer, Ad? Ele voltará quando for a hora.

Imagens de Nigel, o afeminado, aproximando-se todo elegante de Jim fez Adrian pensar se não precisariam de um serviço funerário. Aquele arcanjo poderia passar o tempo jogando críquete e polo, mas não significava que não daria um jeito no cara... E Jim tinha deixado o local com vontade de acabar com alguém. Talvez o bastardo tivesse conseguido aquilo que procurava.

Adrian começou a andar novamente, mas o quarto de hotel não oferecia muito em termos de espaço. Pensou em descer ao bar...

Houve um rangido no quarto ao lado. Como se alguém tivesse sentado na cama. Ou aberto e fechado alguma coisa.

Ad estendeu a mão para a parte traseira da cintura e pegou a adaga de cristal. Se fosse apenas um humano tentando roubar um notebook, não precisaria daquilo. Mas, se Devina tivesse enviado mais um de seus subordinados para distraí-los, a arma seria bastante útil.

Empurrando a porta do quarto conjugado apenas um centímetro ou dois, inclinou-se. Uma camiseta preta foi arremessada para fora do banheiro. Em seguida, uma calça jeans.

Bota.

Bota.

O chuveiro foi acionado e, na sequência, houve um silvo, como se Jim não tivesse esperado a água aquecer primeiro.

Droga. Não tinha visitado apenas Nigel, tinha?

Adrian guardou a adaga outra vez, empurrou a porta com força, atravessou o quarto e sentou-se na cama do outro anjo. Deus sabia que não havia razão para arrancar a roupa e correr para uma ducha de água quente após um encontro com o arcanjo. O pobre coitado deve ter ido até Devina... E ninguém precisava pensar duas vezes para descobrir o que havia acontecido.

Ouvindo o som de Jim lavando o fedor do demônio, Adrian sentiu-se cansado ao ponto de perceber a visão turva de tanta exaustão. O que significava aquele caminho que o salvador decidiu seguir? Ir até lá. Fazer aquilo. Perder a cabeça.

Era este o negócio de Devina. Ela penetrava em você. No começo, você ainda achava que estava no controle. Depois, aquilo que fazia com ela, por razões que pareciam ser muito sensatas, devorava-o, e Devina entrava em sua pele e assumia a direção. Era assim que trabalhava e era muito bem-sucedida.

Quando Jim finalmente saiu do banheiro, parou com uma toalha nas costas, um braço erguido e outro abaixado. Havia marcas de arranhões nas coxas e no abdômen e seu sexo pendia desanimado, como se tivesse sido muito usado e deixado para morrer.

– Ela vai comê-lo vivo – Adrian disse.

O anjo responsável por salvar a tudo e a todos balançou a cabeça.

– De jeito nenhum.

– Jim...

– Ela vai nos dizer quem é a alma – Jim envolveu a toalha em torno de seus quadris. – Vamos encontrá-la amanhã cedo.

Caramba.

– Espere, ela não lhe deu a informação agora?

– Amanhã cedo.

Ad apenas balançou a cabeça.

– Ela está brincando com você...

– Ela vai mostrar. E vai dizer. Confie em mim.

– Ela não é uma fonte confiável. E esse não é o caminho da vitória.

– Então, você acha melhor obter o resultado da última rodada?

Bem... droga.

Jim foi até a mochila e pegou um uniforme militar. Quando virou-se e começou a se vestir, aquela tatuagem enorme em suas costas, com o Ceifeiro da Morte num cemitério, contorceu-se e voltou a assumir a forma original.

Talvez Jim fosse mais durão. Aquilo seria um golpe baixo e dolorido, algo que Ad admitiria apenas diante de sua carcaça fumegante. Mas, se o cara conseguisse suportar tudo aquilo... se pudesse, de alguma maneira, manter-se em pé... então, tinham a melhor arma naquela luta, pois o demônio tinha uma atração pelo cara. Uma grande atração.

Jim foi até o jeans que atirara pela porta do banheiro e vasculhou os bolsos. Quando ergueu-se novamente, havia um quadrado de papel dobrado em suas mãos.

As mãos tremiam, ainda que levemente. Quando ele abriu cuidadosamente o papel, Adrian, mesmo sem ver o que havia ali, esfregou o rosto e desejou que um carro tivesse caído sobre sua cabeça. Sabia muito bem que era o objeto pessoal daquela garota que encontraram sobre a banheira de Devina – a virgem pela qual Jim estava obcecado.

Idiota – Ad pensou. Estavam ferrados. Estavam muito ferrados.


CAPÍTULO 5

 

Veck acordou no sofá de sua sala de estar. O que foi uma surpresa, pois não tinha um.

Esfregando os olhos por causa da bela luz do sol, ficou surpreso por ter controlado o desejo de dormir mais perto da oficial Reilly, tanto que conseguiu se arrastar apenas até ali.

Sentou-se e olhou para a rua. O carro sem marcas de identificação havia partido, e ficou pensando em quando ela se fora. Da última vez que olhou, ainda estava lá, às quatro horas. Gemendo, esticou o corpo, seus ombros estalaram. Detalhes da noite anterior voltaram à memória, mas Veck, instintivamente, quis ficar longe do Monroe Motel & Suítes. Já sentia-se péssimo, não precisava adicionar uma dor terrível à fumaça que saía de sua cabeça.

Quando ficou em pé, ainda teve de lidar com uma ereção matinal obscena – outra coisa para se ignorar. Tinha a impressão de que se envolvera num sonho ousado e espetacular entre ele e a oficial do Departamento de Assuntos Internos. Alguma coisa sobre ela cavalgando em cima dele... O corpo de Veck estava quase todo vestido, ela estava completamente nua... não, espere, estava com o distintivo e a arma no cinto sobre o quadril.

– Droga... – quando seu pênis começou a ficar rígido, rezou para perder outra remessa de memórias de curto prazo e amaldiçoou o pornô clichê. Mas, agora, poderia entender por que os caras de outros departamentos achavam Reilly atraente.

Considerando a direção que seu cérebro estava tomando, não tinha certeza se adicionar cafeína à mistura era uma boa ideia, mas seu corpo precisava se reerguer. Foi chato quando descobriu que havia mentido para a oficial Reilly. Depois de ter conversado com ela e entrado, percebeu que estava sem pó de café.


No andar de cima, tomou banho, barbeou-se e vestiu o uniforme de trabalho: calça e camisa. Nada de gravata para ele, apesar de muitos detetives usarem. Nada de terno. Não usava nada desse tipo, a não ser jaqueta de couro, ou de motociclista, ou algo assim, bem informal.

No andar de baixo, pegou o casaco-reserva no armário, a chave da moto e trancou tudo. Ao se aproximar da BMW, lembrou que levaram várias coisas dele na noite anterior, por isso sentia-se tão leve. Nada de celular para checar as mensagens de voz. Nada de distintivo no bolso da frente. Nada de arma no coldre. Nada de carteira no bolso de trás da calça. A oficial Reilly ficou com tudo. Até com suas roupas de baixo.

Colocou o capacete e subiu na moto, a manhã estava clara e brilhante demais para ele... E nem tinha amanhecido completamente. Cara, considerando a pequena fresta que seus olhos conseguiam abrir, era bom saber que a moto já conhecia o caminho.

De la Cruz tinha levado Veck ao restaurante Riverside há alguns dias, e ele já se perguntava como tinha conseguido sobreviver, até então, sem uma boa dose daquela comida gordurosa. Seguindo o caminho do local, pegou as marginais pavimentadas, pois, mesmo às 7h45, a estrada principal estaria lotada.

O restaurante ficava às margens do rio Hudson, a apenas uns quatro quarteirões da delegacia... E, quando parou no estacionamento cheio de veículos sem identificação, entendeu que tinha chegado ao seu destino. Havia uma grande possibilidade de que metade da força policial também estivesse ali para tomar sua caneca de café de sempre, mas era tarde demais para ir a outro lugar.

Pouco antes de entrar, depositou 75 centavos numa máquina que distribuía o Correio de Caldwell e pegou um exemplar do jornal. Não havia nada sobre a noite passada na primeira página, então virou a página procurando um artigo que...

E lá estava seu nome. Em negrito.

A reportagem, no entanto, não era sobre ele ou Kroner. Era sobre seu pai, e ele rapidamente pulou o texto. Não queria acompanhar as acusações, o julgamento, a sentença de morte, nada que tivesse relação com seu pai. E, meu Deus, quando finalmente foi pego pela justiça criminal, ficou doente no dia em que cobriram o caso.

Não havia nada demais no resto da primeira sessão, nada nas notícias locais, nada nas seções de esportes, quadrinhos ou classificados. Porém, a falta de cobertura sobre o caso não duraria muito. Os repórteres tinham algum acesso aos relatórios policiais e, provavelmente, a história já estava na televisão e nos rádios. Um detetive do Departamento de Homicídios ligado tão diretamente aos atos de um psicopata? Era esse tipo de porcaria que vendia jornais e justificava os preços dos anúncios.

Ao empurrar a porta de vidro, entrou no ambiente ruidoso do Riverside com sua face enterrada nos artigos esportivos. O local estava cheio, quente e com um barulho tão alto como num bar. Teve o cuidado de não fazer contato visual com ninguém enquanto olhava ao redor procurando uma cadeira livre ou uma mesa vazia.

Não havia nada vago. Maldição. E não queria muito juntar-se a uma mesa cheia de oficiais da polícia. A última coisa que precisava era o monte de perguntas que seus colegas fariam. Talvez ele devesse ter ido direto à delegacia e recorrido a uma máquina de bebidas.

– Bom dia, detetive.

Veck olhou à direita. A bela oficial Reilly, que estava sentada na mesa mais próxima que havia da porta, de costas para ele, virou a cabeça a fim de olhar para ele por sobre o ombro. Tinha uma xícara de café à sua frente, um celular na mão e uma expressão de que nada fazia sentido.

– Quer me acompanhar? – disse, apontando para a mesa.

Ela devia estar brincando. Havia mais ou menos uma dúzia de membros da força policial olhando para eles... Alguns de uma maneira mais sorrateira que outros.

– Tem certeza de que quer ser vista comigo?

– Por quê? Não sabe se comportar à mesa?

– Sabe o que quero dizer.

Ela deu de ombros e tomou um gole do café em sua xícara.

– Nossa reunião com o sargento é daqui a vinte minutos. Vai ter muita sorte se conseguir um lugar para sentar até lá.

Veck deslizou na frente dela.

– Pensei que no Departamento de Assuntos Internos vocês sempre se preocupassem com o decoro.

– São apenas dois ovos, detetive, nada demais.

Veck colocou o jornal de lado.

– Está certo.

A garçonete veio com o bloco de notas e o lápis a postos.

– O que vai ser?

Não havia razão alguma para olhar o cardápio. O Riverside tinha todo tipo de omelete, ovos e torradas conhecidos pelo ser humano. Estava com vontade de comer uma torta no café da manhã? Um sanduíche com bacon e tomate? Cereais, aveia e panquecas? Muito bem, que seja... Mas faça logo seu pedido e coma rápido antes que outra pessoa sente no seu lugar.

– Três ovos mexidos. Gema dura. Torradas com manteiga. Café. Obrigado.

A garçonete sorriu como se tivesse aprovado a eficiência.

– Já vai sair.

Eeeee lá estava ele sozinho com Reilly. Ela tinha tomado banho e vestido um conjunto bem profissional de saia e camisa de botões. O tailleur, combinando com a roupa, estava dobrado com cuidado ao lado dela em cima do casaco. Seus cabelos vermelho-escuros estavam amarrados para trás outra vez e toda a maquiagem que ostentava era constituída apenas de um pequeno traço de batom.

De fato, quando ela apoiou a xícara de café na mesa, havia uma meia-lua rosa onde havia tocado com a boca. Não que ele estivesse observando os detalhes de seus lábios. Não mesmo.

– Estou com um relatório preliminar sobre o caso – ela disse.

Hum... aqueles olhos não eram apenas verdes, como ele havia concluído antes. Havia traços de avelã, produzindo uma combinação única de cores que parecia verde apenas a distância.

– Desculpe, o que você disse?

– Tenho um relatório preliminar de ontem à noite.

– E?

– Não foram encontradas outras armas no local.

Manteve-se tranquilo por força do hábito.

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a garçonete entregou o café dele e o pedido de Reilly: uma tigela de mingau de aveia com uma torrada. Sem manteiga.

– É só trigo? – ele perguntou.

– Sim.

Claro que era. Provavelmente ela comia uma salada leve no almoço com alguma fonte de proteína e uma taça de vinho, quando muito, e, no jantar, deveria ser apenas legumes e frango grelhado e alguma coisa com baixo índice glicêmico.

Ficou pensando o que ela teria achado do ataque cardíaco caprichado que ele pedira.

– Por favor, não espere por mim – ele disse.

Ela pegou a colher e adicionou uma pequena quantidade de açúcar mascavo e creme.

– Quer saber o que acho que aconteceu?

– Sim, quero.

– Um animal selvagem te atacou, e, em meio à confusão, você bateu a cabeça.

Ele esfregou o rosto.

– Não tenho marcas.

– Pode ter caído de costas.

Na verdade, não é que ele havia pensado nisso?

– Mas não há qualquer inchaço. E meu casaco ficaria todo sujo.

– Está sujo.

– Apenas por eu ter colocado sobre o Kroner.

Ela baixou a colher.

– Pode provar? Como sabe se foi só isso se não consegue se lembrar de nada? Além disso, sua cabeça estava te matando ontem à noite e, a propósito, você está fazendo isso outra vez.

– Fazendo o quê?

– Discutindo comigo sobre o que aconteceu. E também está esfregando a testa.

Quando ele amaldiçoou e voltou a colocar as mãos sobre a caneca de café, ela sorriu um pouco.

– Adivinhe só, detetive? Você vai ser examinado na delegacia assim que terminarmos nossa reunião.

– Estou bem – Deus, podia ouvir o tom dissimulado em sua voz.

– Lembra-se do que eu disse ontem à noite, detetive? É uma ordem.

Ao se ajeitar na cadeira e beber um pouco do seu estimulante, viu-se observando o dedo anelar de Reilly. Não havia nada. Nem mesmo uma marca mais clara, como se alguma já tivesse passado por lá.

Desejou que estivesse usando um anel de compromisso simples: ele não se metia com mulheres casadas. Nunca. Claro que já atrapalhou alguns casais em sua história de encontros casuais, mas apenas por não saber que eram comprometidas. Era um vadio com valores, sabe?

– Por que você não me suspende?

– Outra vez com uma negativa.

– Não quero que arruíne sua carreira comigo – murmurou.

– E não tenho qualquer intenção de permitir que isso aconteça. Mas não há evidência de que tenha sido você o responsável pelo ataque, detetive, portanto, é o suficiente... só não sei por que você continua a me pressionar.

Quando encarou os olhos dela, ouviu-se dizer: – Sabe quem é meu pai, não sabe?

Aquilo conteve-a por um momento, sua porção de fibras sem gordura voltou para o prato no meio do caminho. Até parou de mastigar.

Então, a bela oficial Reilly recuperou-se com um encolher de ombros.

– Claro que isso é ruim, mas não significa que você tenha dilacerado alguém – inclinou-se. – Mas é o que você teme, não? E por isso continua a bancar o advogado do diabo.

A garçonete escolheu aquele momento para aparecer com o prato fumegante cheio de colesterol, e sua chegada foi um salva-vidas conversacional, se é que existia este tipo de coisa.

Salgou o prato. Colocou pimenta. Espetou com o garfo e comeu.

– Ajudaria se conversasse com alguém? – Reilly disse, quase inaudível.

– Um psiquiatra?

– Terapeuta. Eles podem ser bastante úteis.

– Diz isso por experiência pessoal, oficial?

– Na verdade, sim.

Ele soltou uma risada alta: – Por algum motivo, não acredito que eu seja o tipo de pessoa que precise de algo assim.

– Todos têm problemas.

Sabia que seria um tanto inconveniente, mas sentiu-se nu – e no mal sentido.

– Então, conte-me um dos seus.

– Não estamos falando de mim.

– Bem, estou cansado de estar no palco sozinho – quebrou um pedaço de torrada em duas. – Vamos lá, oficial. Conte alguma coisa sobre você.

– Sou um livro aberto.

– Que precisa de terapia? – quando ela não respondeu, ergueu o olhar para encará-la. – Covarde.

Os olhos da mulher estreitaram-se, ela inclinou o corpo para trás e empurrou a vasilha, ainda metade cheia, para frente. Ele esperava alguma réplica espirituosa. Ou, mais ainda, um tapa. Em vez disso, ela enfiou a mão no bolso, pegou uma nota de dez dólares e a colocou entre eles sobre a mesa.

– Vejo você na sala do sargento.

Com uma graça sutil, distanciou-se, pegou o casaco, a bolsa e o celular.

Antes de sair, Veck agarrou seu pulso.

– Desculpe. Passei do limite.

Ela desprendeu-se e colocou o celular na bolsa.

– Até logo.

Depois que Reilly saiu, Veck empurrou o próprio prato, mesmo ainda tendo um ovo e meio nele. Ainda não eram nove horas... e já tinha ganho o prêmio de idiota do dia. Fantástico...

Uma corrente de ar passou por suas costas, eriçando os cabelos da nuca, e aquilo o fez virar em direção à porta. Uma mulher havia entrado e não pertencia ao local, assim como uma porcelana chinesa fina sendo vendida numa loja de departamentos qualquer. Quando seu perfume pairou no ar e ela tirou o casaco de pele, houve uma pausa audível nas conversas do local. Ela tinha acabado de expor seios enormes para metade do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando Veck observou-a, achou que deveria ter sentido alguma atração por ela, mas, em vez disso, aquele ar frio fazendo cócegas em sua coluna despertou nele o desejo de pegar uma arma e apontar em direção àquela mulher como um mecanismo de autodefesa. E como o desejo era forte.

Deixando uma nota de vinte, interou o valor do resto do café da manhã e dirigiu-se à porta. Ao sair, parou. Olhou ao redor. Sua nuca ainda estava alerta, seus instintos gritavam, principalmente quando olhou através das janelas redondas do restaurante. Alguém o observava. Talvez fosse aquela mulher com corpo de modelo de revista erótica, talvez outra pessoa. Mas seus instintos nunca mentiam.

A boa notícia era que talvez recebesse suas armas de volta naquela manhã. Então, pelo menos, poderia novamente se proteger.

Quando Jim estacionou no Riverside com sua Harley, um cara aproximou-se com uma bela moto BMW rugindo. Adrian e Eddie estavam bem atrás dele com suas motos, e os três estacionaram juntos do outro lado, próximo ao rio Hudson. Quando Jim desmontou e olhou para o lugar, concluiu que Devina havia lhe chamado para um encontro. Bem, tinha algo de especial ali. Esteve com sua primeira alma naquele mesmo restaurante.

Talvez Caldwell fosse um imã para almas condenadas. Ou talvez ela apenas gostava do café servido ali e lhe diria que a alma em questão estava em outro lugar.

Aproximando-se da entrada, viu que seus colegas não estavam para conversa... o que não era novidade da parte de Eddie, mas um milagre, no caso do outro anjo. Aquilo não duraria muito da parte de Ad.

O restaurante estava lotado, barulhento e cheirava a café e a manteiga derretida. Que maldito lugar para Devina escolher...

E lá estava ela, à esquerda, sentada numa mesa, observando a porta enquanto um raio de sol se derramava pela janela ao seu lado. Os raios cálidos e amarelos iluminavam perfeitamente seu rosto, como se estivesse prestes a ser fotografada, e Jim pensou na primeira vez que a viu naquele clube, parada sob uma luminária no teto. Ela, por si só, também brilhava.

O mal nunca pareceu tão atraente, mas, ao contrário dos outros homens, que olhavam sobre suas canecas e babavam como cães, Jim sabia quem aquela mulher realmente era... Não se distraía mais com aquele disfarce a ponto de deixar de perceber que ela não projetava sombra. Por mais brilhante que fosse a luz que a atingisse, não havia qualquer contorno de sombra sobre a mesa ou sobre o encosto do banco ao lado dela.

Por uma fração de segundo, visualizou a imagem deles dois juntos na noite anterior. Tentou penetrá-la por trás sobre a mesa, mas ela insistiu em transar face a face. Sinceramente, ficou surpreso por conseguir uma ereção, mas a fúria também deixava-o rígido, por algum motivo. Ao menos com ela.

Quando desvencilhou-se daquela cena grosseira, suada, olhou ao redor, em direção às paredes, imaginando Sissy presa naquele emaranhado de condenados. Rezou para que sua garota não tivesse visto aquilo. Deus, pensar que ela poderia ter...

Mas chega disso. Aproximando-se de Devina, bloqueou todos os pensamentos em relação a Sissy, ao sexo que teve com o inimigo ou até mesmo em relação ao jogo em si.

– Então, quem é? – ele disse.

O demônio olhou por cima do Correio de Caldwell, seus olhos negros percorreram rapidamente o corpo de Jim e fizeram com que ele sentisse vontade de tomar outro banho... dessa vez, com uma lixadeira.

– Bem, bom dia, Jim. Gostaria de sentar ao meu lado?

– De jeito nenhum.

O cara na mesa em frente à dela olhou por cima do ombro. Como se não tivesse aprovado o tom ou o linguajar de Jim com a moça.

É só aparência, cara – Jim pensou.

Devina abaixou o jornal e voltou-se para suas panquecas de leite e manteiga e para seu café.

– Tem uma caneta?

– Não brinque comigo.

– Um pouco tarde para isso. Caneta?

Como algumas pessoas tentavam passar, Jim e seus colegas tiveram que virar de lado. Eddie tirou uma caneta do bolso e entregou-lhe.

Devina destampou a coisa com suas mãos longas e tratadas. Em seguida, dobrou o jornal na parte de palavras cruzadas.

– Uma palavra com sete letras para...

– Droga, Devina, pare...

–... antagonista.

–... com essa merda.

– Na verdade, Jim, “merda” tem cinco letras. Mas eu não estou fazendo isso, estou? – Devina começou a escrever a palavra com cuidado. – Acredito que “inimigo” seja a palavra que procuro. E terá de se sentar comigo, sozinho, ou vai cair no corredor por suas pernas adormecerem de tanto ficar de pé.

Fez mais um registro cuidadoso sobre o jornal. Imaginou se ela não estaria trabalhando numa palavra equivalente a “dor no traseiro”.

Jim olhou para seus amigos.

– Já vou sair.

– Adeus, Adrian – disse Devina com um aceno – Mas vejo você em breve... tenho certeza.

O demônio não disse nada a Eddie. Afinal, ela gostava de provocar as pessoas, mas Eddie era tão calmo e impassível que simplesmente não valia a pena. O que colocava ele e Adrian no departamento de opostos que se completam.

Quando os dois anjos saíram, Jim sentou-se.

– E então?

– Não gostaria de tomar café?

– Quem é, Devina?

– Odeio comer sozinha.

– Você poderia prender a respiração até eu decidir acompanhá-la... O que acha disso?

Os olhos negros de Devina assumiram um tom objetivo.

– Vamos brigar?

Com isso, Jim soltou uma risada sincera.

– É a razão pela qual estamos aqui, querida.

Ela sorriu um pouco.

– Acho que é a primeira vez que ouço algo assim vindo de você.

Jim foi interrompido quando a garçonete chegou com um bule de café.

– Nada para mim, obrigado.

– Ele vai querer café e waflles.

Quando a garçonete olhou para Jim como se dissesse “vamos lá, decida-se”, ele deu de ombros e deixou por isso mesmo.

Ao ficarem sozinhos outra vez, Devina olhou novamente para suas palavras cruzadas.

– Não terá outra chance comigo a menos que comece a falar.

Houve uma pausa, como se o demônio pensasse em alguma maneira de prolongar o encontro. Finalmente, começou a bater no jornal com a ponta da caneta de Eddie.

– Você lê o Correio de Caldwell?

– Às vezes.

– É um verdadeiro tesouro de informações – ela fez um espetáculo para exibir a primeira parte do jornal. – Nunca se sabe o que pode encontrar nele.

Achatou o papel, virou-o em direção a Jim e passou a encará-lo do outro lado da mesa.

Jim olhou para baixo. Três grandes artigos. Um sobre o projeto de uma nova escola no bairro. Outro sobre o aumento do número de pequenas empresas. E um terceiro sobre... A ponta da caneta de Eddie apontou o último artigo.

– Acho que cumpri minha parte do acordo – disse lentamente.

A manchete dizia: “Agendada a execução de DelVecchio”.

Jim percorreu o artigo rapidamente e pensou: Droga, esta é a alma?

Quando Devina já ia recolher a caneta, ele estendeu a mão e fechou-a sobre o pulso dela, mantendo-o no lugar.

Na verdade, a ponta da caneta apontava um nome escrito ao longo do artigo... E não era o nome do serial killer DelVecchio. Era o filho do cara... Thomas DelVecchio Jr. Um detetive da força policial de Caldwell.

Jim encarou o inimigo do outro lado da mesa e sorriu.

– Pegadinha?

Seus cílios baixaram numa atitude tímida.

– Sempre.

Chega de Devina e de perder tempo, Jim levantou-se e levou a caneta com ele.

– Aproveite meus waffles, querida.

– Ei, como vou terminar minhas palavras cruzadas?

– Tenho certeza de que dará um jeito. Até mais.

Jim saiu do restaurante e seguiu direto para seus amigos. Quando aproximou-se das motos, estendeu a caneta a Eddie.

– Sua caneta – quando o anjo foi pegá-la, Jim segurou-a. – Há metal em volta do bico. Da próxima vez, ofereça uma canetinha hidrográfica.

Quando Jim começou a estender a perna sobre o banco da moto, Adrian perguntou.

– O que ela disse?

– Parece que vamos ter que entrar no mundo dos policiais e dos ladrões.

– Ah. Bom – Ad montou sobre sua moto. – Pelo menos eu falo a mesma língua deles.


CAPÍTULO 6

 

Reilly entrou na delegacia pela porta dos fundos e passou pelo corredor de concreto que daria na mais nova, renovada, inspiradora e motivadora recepção. Infelizmente, a estátua de bronze da Dama da Justiça, com sua balança e espada, era uma interpretação moderna do clássico greco-romano, e mais parecia queijo derretido. Queijo derretido velho e marrom.

Andar ao redor da deusa de olhos vendados e dos pequenos holofotes que a iluminavam de baixo para cima dava uma ideia exata da confusão que havia no lugar. Entretanto, a maioria da força policial, dos advogados e dos promotores que passavam por ali eram ocupados demais para se preocupar com a decoração: o pessoal tinha muita coisa a fazer. O Departamento de Segurança e a Central de Detenções estavam à direita, além da cadeia em si. Os registros eram feitos no setor à esquerda. No andar de cima, estavam as salas dos departamentos de Homicídios e de Assuntos Internos, bem como a sala de reuniões e o vestiário. No terceiro andar, havia o novo laboratório e o local de armazenamento de evidências.

Reilly subiu as escadas de dois em dois degraus, ultrapassando dois colegas que iam mais devagar que ela. Mas, quando chegou ao segundo andar, perdeu o ímpeto. A grande área aberta à sua frente tinha uma série de mesas onde o pessoal do suporte administrativo trabalhava. E, bem no centro do local, em meio ao pessoal, estava Britnae, a gostosa da delegacia.

A loira tinha um espelho nas mãos e passou com os dedos uma sombra de alguma marca famosa nos olhos. O próximo passo foi arrumar os cachos. Por último, pressionar os lábios e fazer beicinho. O tempo todo inclinava-se para frente e exibia o par de silicones para si mesma... Era evidente que estava satisfeita com a maquiagem e com aquela maravilhosa paisagem.


Britnae virou o pulso e checou um daqueles relógios femininos minúsculos que algumas mulheres usam, do tipo que têm pulseiras delicadas e os ponteiros sobre um fundo perolado. Provavelmente, ela tinha um monte de pulseiras e brincos em alguma prateleira ou armário cheio de coisas cor-de-rosa.

O guarda-roupa de Reilly parecia o do Marilyn Manson e dispensava joias. Seu relógio? Era simples. Preto e à prova de choque.

Três chances para adivinhar como Britnae ficaria quando... só precisou de uma: a garota ficava ofegante na frente de Veck desde o dia em que o cara entrara ali há duas semanas. Não que fosse da conta de Reilly.

Antes que alguém a acusasse de xereta, apressou-se para o Departamento de Assuntos Internos e entrou em seu cubículo. Fingindo estar alerta, acessou o computador, mas, quando entrou no e-mail, tudo tinha sido traduzido para uma língua estrangeira. Ou isso, ou seu cérebro tinha esquecido o inglês.

Maldito DelVecchio.

Chamá-la de covarde? Só por querer manter o profissionalismo? Não sabia metade do inferno pelo qual tinha passado. Além disso, estava tentando ajudá-lo...

Aquilo deu vontade de descarregar no cara sua nove milímetros como café da manhã.

Seguindo o programa, acessou o relatório que havia enviado a si mesma por e-mail mais cedo e verificou, outra vez, o trabalho, revisando todo o documento do início ao fim. Quando o telefone tocou, ela atendeu sem olhar.

– Reilly.

– Thomason – ah, o cara do laboratório. – Só queria avisar que acho que os ferimentos de Kroner foram resultado de dentes.

– Como...

– Presas, especificamente. Encontrei os paramédicos ontem à noite no pronto-socorro e estava lá quando Kroner foi entubado, costurado e até quando recebeu uma transfusão. Observei bem as feridas do rosto e do pescoço. Quando uma faca é usada num ataque como aquele, tende a deixar contornos bem claros nas lacerações. A carne dele foi rasgada... algo parecido com o que eu vi quando aquele tigre comeu o treinador de animais no ano passado.

Aquilo confirmava suas conclusões, não é mesmo? E fez com que se perguntasse o que poderia estar perambulando por aquela floresta.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Não tenho certeza. Peguei algumas amostras do tecido... Só Deus sabe quantas espécies existem... Vamos descobrir que tipo de saliva foi deixada. Porém, posso adiantar uma coisa: seja lá o que for... estamos falando de algo grande, poderoso e... furioso.

– Muito obrigada por me ligar tão rápido.

– Sem problema. Vou tirar um cochilo e voltar ao trabalho em seguida. Entro em contato.

Depois que desligou, Reilly digitou um adendo ao seu relatório, pressionou Ctrl+P e, em seguida, enviou o documento por e-mail ao sargento. Pegou uma pasta, o celular e esperou a impressora terminar de liberar as páginas do relatório.

Ao menos tinha uma evidência para confirmar o que havia dito ao sargento antes do café da manhã. Com isso, começou a pensar no restaurante. Não deveria ter convidado Veck para se juntar a ela. Ele estava certo... parecia ruim, mas, mais que isso, poderiam ter evitado aquela conversa desagradável. Na verdade, aquilo a chateou. Não deveria. Um comentário inapropriado no café da manhã? Não deveria incomodá-la. Não mesmo. Ou teria sido uma reação alérgica à palavra covarde? Sim, era isso.

Veck atravessou o saguão da delegacia como um jato, passava rápido pelas pessoas, quase corria. Chegou à escada e subiu os degraus de pedra de dois em dois. Quando chegou ao segundo andar, dirigiu-se à esquerda, mas não ia ao seu escritório. O lugar ao qual precisava ir era o Departamento de Assuntos Internos... do nada, uma coisa rosa e loira entrou em seu caminho.

– Oi!

Quando olhou a garota, entendeu o que os tornados deveriam achar de um trailer quando atingiam algum pelo caminho: absolutamente nada. Ele quase passou por cima dela para chegar a Reilly, por assim dizer.

– Oi. Desculpe... estou atrasado.

Infelizmente, Britnae decidiu dançar uma valsa com ele no corredor, indo para a direita e para a esquerda. Quando ele parou, ela respirou fundo, ou arqueou as costas, ou esbarrou em algum compressor de ar, pois, de repente, parecia Jessica Rabbit, a personagem sensual que vivia exibindo o decote. Se ela mostrasse mais um pouco dos seios, estaria pronta para uma mamografia.

– Então... – ela balbuciou – eu estava pensando se você não gostaria de um pouco de café...

Chá... ou, quem sabe, eu mesma? – ela terminou a sentença mentalmente.

– Obrigado, mas estou atrasado para uma reunião – driblou-a.

Nova barreira.

– Bem, eu poderia trazer para você!

– Não, obrigado...

Ela colocou uma das mãos sobre o braço de Veck.

– Sério, eu não me importo...

A oficial Reilly visualizou o momento ao sair da sua sala nos Assuntos Internos. E, como pode imaginar, não hesitou ou mostrou qualquer mudança em sua expressão facial... Por que vê-lo dar o fora em alguém a incomodaria?

Quando passou, assentiu para ele dizendo oi para aquele atraso de vida.

– Tenho que ir – disse Veck, já mais que atrasado.

– Vejo você mais tarde – Britnae disse em voz alta.

– Reilly – sussurrou – Reilly.

A mulher que realmente interessava parou em frente à sala do sargento.

– Sim?

– Sinto muito pelo que disse. Passei dos limites.

Reilly colocou a pasta sobre o braço e passou a mão pelos cabelos.

– Está tudo bem. É um momento de estresse. Entendo.

– Não acontecerá de novo.

– Não faria diferença para mim se acontecesse.

Com isso, ela virou-se com seus sapatos de salto baixo e entrou na sala de espera. Certo... essa doeu. Mas não podia culpá-la.

Em vez de segui-la, ele ficou ali parado como uma árvore enquanto a porta fechava-se diante de seu rosto, com vontade de chutar o próprio traseiro. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café fresco que indicava a proximidade de seu parceiro.

José De la Cruz parecia cansado, mas alerta; era assim que o cara costumava estar sempre.

– Como estamos?

– Péssimos.

– Não me diga – entregou um dos dois cafés que segurava. – Beba isto. Ou, se conseguir, injete um pouco na veia.

– Obrigado, cara.

– Está pronto?

Não.

– Sim.

Ao entrar na sala, Reilly olhou para trás e acenou para De la Cruz, em seguida, voltou a conversar com a assistente do sargento.

Veck acomodou-se numa das tradicionais cadeiras de madeira alinhadas contra a parede da sala de espera do escritório do sargento, revestida de painéis também de madeira. Enquanto bebia o café, observava cada detalhe em Reilly: a maneira como tocava o brinco direito, como se estivesse meio solto, como fazia ao dobrar a perna, como batia a ponta do sapato enquanto tentava argumentar, o fato de que, ao sorrir, exibia o ligeiro brilho de um preenchimento de ouro no molar superior. Era muito atraente. Atraente mesmo.

– Então, tentei ligar para você ontem à noite – De la Cruz disse em voz baixa.

– Meu celular está no laboratório.

– Você deveria ter um telefone fixo.

– Sim – olhou para seu parceiro. – Acho que não encontraram muita coisa na floresta.

– Nada.

Sentaram-se lado a lado, bebendo café em copos de papel com imagens de cartas de baralho. O café estava horrível, mas estava quente e deu-lhes algo a fazer.

– Você pensou em matar Kroner, não? – quando Veck encarou-o, o outro detetive deu de ombros. – Vi você com aquele paparazzo, lembra? Fui eu quem tirou você de cima dele. Quanta raiva.

Veck voltou a observar Reilly, contente por ela estar compenetrada na outra conversa. Assentindo na direção dela, disse em voz baixa: – Ela acha que não fui eu. Porém, estou com a impressão de que você acha.

– Não disse isso.

– Não precisa.

– Não, eu vi como Kroner ficou. Você também. É uma equação sem lógica.

– Então, por que falou nisso?

– Porque está na sua mente.

Veck produziu um barulho evasivo.

– Se ela recomendar que eu continue na ativa, haverá algum problema para você?

– Não, mas acho que você não deveria sair nas ruas sozinho neste momento.

Engraçado, ele achava a mesma coisa. E era uma droga.

– Vamos ficar algemados um ao outro, então?

O sargento abriu a porta de seu escritório, mostrando a cabeça grisalha.

– Vamos lá?

Reilly despediu-se da assistente, e Veck e De la Cruz seguiram-na ao longo do grande escritório. A mesa de reunião, na outra extremidade da sala, era grande o suficiente para comportar a todos com conforto, e Reilly escolheu a cadeira mais distante de Veck para se sentar... ou seja, estava bem diante dele. Nada de contato visual. Isso não o surpreendeu.

Que inferno.

– Bem, li o relatório que me enviou por e-mail – o sargento disse a Reilly. – Mais alguma coisa?

– Apenas um adendo, o qual eu também enviei – ela passou algumas cópias ao sargento e, em seguida, entrelaçou os dedos e sentou-se. – Mantenho minhas conclusões.

O sargento olhou para De la Cruz.

– Alguma coisa a acrescentar?

– Não. Também li o relatório e isto diz tudo.

– Então, estou propenso a concordar com a oficial Reilly – o sargento olhou para Veck com firmeza. – Gosto de você. É o meu tipo de policial. Mas não vou permitir que alguém que represente perigo a outras pessoas carregue um distintivo. Reilly é sua nova parceira... Veck, não posso dispensar De la Cruz durante o seu período probatório, que será de um mês, no mínimo.

Reilly não mostrou qualquer reação diante da mudança, mas era uma profissional, não era?

– Ainda posso trabalhar no caso de Kroner? – Veck perguntou.

– Não nesta vida. A partir de hoje, você assumirá os casos antigos pelos próximos trinta dias e terá reuniões periódicas com o dr. Riccard.

Ah, sim, o psicólogo do departamento. E, no silêncio que se seguiu, Veck sabia que todos esperavam que soltasse algum protesto, mas, afinal, não poderiam considerá-lo uma máquina mortífera selvagem.

Não mesmo. Por exemplo, não conseguia deslocar o ombro, não morava na praia com um cachorro e não saía por aí tentando liberar seu instinto assassino. Logo...

– Certo.

O sargento pareceu um pouco surpreso, mas bateu na mesa com o nó dos dedos, algo que Veck concluiu ser um gesto de satisfação do cara.

– Ótimo. De la Cruz, quero falar com você. Quanto a vocês dois... terminamos.

Reilly saiu do escritório tão rápido quanto um tiro, mas Veck também conseguia correr daquele jeito. Saiu bem atrás dela e alcançou-a na saída do corredor.

– Então, como será? – ele falou.

Era tudo o que tinha a dizer. Desculpar-se não adiantou e, de alguma maneira, também não conseguia pensar em agradecê-la pelo relatório.

Reilly deu de ombros.

– Vou terminar o que estava fazendo esta manhã e, depois, poderemos nos ater aos casos antigos.

– Durante trinta dias.

– Trinta dias – ela não parecia entusiasmada, mas também não parecia temer o que estava por vir. Veck concluiu, com isso, que não seria fácil conversar com ela no tempo livre.

– Vejo você às treze horas em ponto no seu departamento, detetive.

– Entendido, oficial.

Mesmo andando, ela fez alguma anotação em seus papéis ao sair, a cabeça estava enterrada no trabalho. Dois rapazes passaram, olharam para ela e continuaram a olhar, como se esperassem alguma troca de contato visual. Mas ela não ergueu a cabeça. Nem notou-os. Contudo, Veck percebeu muito bem aquilo. E desejou fazer algum ajuste óptico naqueles bastardos.

– Você deixou isto no escritório do sargento.

Veck virou-se. De la Cruz tinha saído e levava o café de Veck.

Bem, aquilo não pareceu nada estranho. Não mesmo.

– Obrigado, cara – Veck pegou o copo de papel e tomou um gole. A única coisa que redimia a bebida tinha passado: a porcaria estava morna. – Bem, estava sendo bom trabalhar com você.

– Posso dizer o mesmo – José estendeu uma das mãos. – Mas, quem sabe? Talvez volte a ser designado meu parceiro daqui a um mês.

– Sim – porém, de alguma forma, Veck tinha a sensação de que seus dias no Departamento de Polícia de Caldwell estavam contados.

Voltaram ao Homicídios em silêncio e, quando abriram a porta do departamento, todos os detetives que ali estavam desviaram o olhar das paredes cinzentas que dividiam seus cubículos. Veck não viu razão alguma para suavizar as coisas.

– Na ativa. Nada de Kroner. Com Reilly.

Várias cabeças assentiram para ele e, cara, agradecia quando as pessoas eram legais. Na verdade, ali havia pessoas decentes trabalhando duro por pouco dinheiro e não tinham muito tempo para bobagens. Além disso, bem ou mal, depois de ter acertado aquele paparazzo, ganhou bastante respeito.

Quando todos voltaram ao trabalho, José bateu sobre o ombro de Veck e dirigiu-se à própria mesa. Veck não perdeu tempo. Sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e checou seus e-mails.

Casos antigos, hum? Era uma categoria muito ampla. Acessando a base de dados do departamento, puxou todos os relatórios de pessoas desaparecidas. E aquilo fazia parte, tecnicamente, de casos antigos, não? Uma vez que ainda estavam abertos. Ao iniciar a pesquisa, esparramou-se e deixou o computador trabalhar. Engraçado como o resultado da pesquisa exibiu apenas dados de mulheres, entre 16 e 30 anos, registradas como desaparecidas nas últimas, digamos... três semanas? Quando foi mesmo que Kroner apareceu atuando naquela área?

Não era coincidência.


CONTINUA

CAPÍTULO 1


Era primavera, numa noite escura de abril, quando o detetive Thomas DelVecchio Jr. entendeu que pesadelos poderiam, de fato, saltar da mente e tornar-se realidade. Infelizmente, isso, para ele, não era bem uma novidade.

Havia sangue por toda parte. Um vermelho brilhante sob o luar, como se um galão de tinta tivesse sido derramado no local, não apenas sobre o chão da floresta... mas sobre aquele homem estraçalhado em meio às folhas secas, bem aos pés de Veck.

Contudo, toda aquela confusão vermelha não era de tinta látex para interiores. Ou de tinta a óleo para acabamentos. Ou, ainda, de tinta para paredes externas. Não se poderia comprar aquilo numa loja de tintas e limpar tudo com solvente, muito menos era algum corante daqueles filmes de terror de segunda.

Aquilo era a vida real, sim, bem ali, diante dele. Escorrendo por todos os cantos.

O que ele havia feito? Santo Deus...

Arrancando sua jaqueta de couro, ajoelhou-se para pressioná-la contra o tórax descoberto do homem. Sons de líquido borbulhando misturavam-se com os da forte respiração de Veck, que encarava aqueles olhos escurecendo-se rapidamente.

– Eu matei você? Será que eu...?

Nenhuma resposta. É claro que as cordas vocais do bastardo deviam estar penduradas num galho qualquer.

Droga... que droga... era como a noite em que sua mãe havia sido morta.

Só que, neste caso, ele realmente veio para esquartejar alguém.

De uma coisa tinha certeza: estava com sua moto, dirigiu até ali e esperou escondido na floresta até o maldito psicótico aparecer – mentindo a si mesmo, o tempo todo, sobre estar ali apenas para prender o “suspeito”. Mas as suas mãos diziam a verdade. Quando sua presa finalmente chegou, a faca estava empunhada e atuou como uma sombra com suas roupas pretas, aproximando-se...


X


O Monroe Motel & Suítes estava a pouco mais de dez metros dele, do outro lado da espessa barreira de arbustos e pinheiros. Iluminado por luzes de um amarelo que mais parecia urina, a tentativa decadente do local de chamar a atenção para o aluguel de quarto por uma noite, ou por uma hora, foi a razão para ele e o assassino terem saído de casa naquela noite.

Serial killers costumam colecionar troféus de suas vítimas. Incapazes de formar laços emocionais adequados com as pessoas e carentes de representações físicas do poder fugaz que exercem sobre suas presas, revestem os objetos de emoções ou lembranças das pessoas que massacraram.

David Kroner havia perdido sua coleção de recordações há duas noites. Quando o trabalho que fazia ali foi interrompido e a polícia cercou a cena do crime. Então, é claro que retornaria ao local onde esteve no controle da situação pela última vez. Era o máximo que poderia reconquistar daquele momento.

– Chamei uma ambulância – Veck ouviu-se dizer, sem saber ao certo com quem estava falando.

Mudando o foco de seu olhar, concentrou-se no último quarto do motel, próximo de onde estavam e longe da sala da gerência. Um selo oficial do Departamento de Polícia de Caldwell estava fixado à porta e aos batentes, e a fita que envolvia a cena do crime produzia um ruído com a brisa que nela batia. Numa fração de segundos, visualizou o que ele e os outros oficiais tinham encontrado havia duas noites: outra jovem mulher, que acabara de ser morta e estava prestes a ter sua carne recortada para ser levada como lembrança.

Mais sons de algo borbulhando.

Olhou para baixo. O homem que sangrava era magro e fino, portanto, fazia sentido as vítimas de David Kroner serem jovens, aparentando idade entre 16 e 24 anos. Não precisava ser forte como um cão de guarda para fazer o trabalho. Os cabelos loiros de Sandy afinavam no alto da cabeça. A pele branca tornava-se cinza, pelo menos onde não estava coberta de sangue.


Mergulhando em seu banco de dados mental, Veck tentou se lembrar do que diabos havia acontecido. Após esperar por um período de tempo que lhe pareceu dias, o estalar de galhos finos chamou-lhe a atenção, foi quando viu Kroner andando na ponta dos pés entre os pinheiros.

No instante em que avistou o homem, pegou a faca, agachou o seu corpo e, em seguida...

– Filho da mãe!

A dor de cabeça veio com força, como se alguém tivesse batido um prego em seu lobo frontal. Erguendo uma das mãos, inclinou-se para a esquerda e pensou, muito bem, ótimo. Quando a ambulância chegasse, os médicos poderiam diagnosticar nele um aneurisma.

Ao menos isso lhes daria algo para fazer – Kroner já seria um cadáver quando chegassem ali.

Quando a dor lancinante passou um pouco, Veck tentou, outra vez, lembrar-se de mais alguma coisa... apenas para voltar com força total à necessidade de tomar um analgésico urgentemente e, em seguida, sofrer um apagão mental novamente. Com a nova rodada de agonia que floresceu em seu crânio como se fosse um buquê vermelho brilhante, fechou os olhos e pensou em vomitar – e, enquanto a dúvida sobre pôr ou não tudo para fora enfurecia suas entranhas, percebeu que era hora de ser honesto consigo mesmo. Por causa do enorme buraco negro em suas lembranças de curto prazo, sabia apenas que tinha sim ido até lá para matar aquele filho da mãe pervertido que, incluindo a última vítima na contagem, havia atacado pelo menos onze mulheres de Chicago a Caldwell no ano passado.

Horrível, é claro. Mas era um amadorismo comparado ao próprio pai de Veck – que fizera tudo aquilo num espaço de três meses: Thomas DelVecchio pai escreveu a cartilha para caras como Kroner.

E foi seguindo essa linha de raciocínio que Veck chamou não apenas a ambulância, mas também seu parceiro do Departamento de Homicídios.

Por mais que detestasse admitir, era filho de seu pai: foi até ali para matar. Ponto final. E o fato de sua vítima ser um imbecil violento não era nada além de um filtro social aceitável para a realidade.

No fundo, não se tratava de vingar as garotas mortas.

E, pelo amor de Deus... sabia que o que acontecera naquela noite era inevitável. Ao longo de toda sua vida, aquela sombra esteve atrás dele, guiando-o, seduzindo-o, puxando-o em direção àquela cena de destruição. Então, fazia sentido não se lembrar de nada. Sua outra metade finalmente havia assumido o controle e não tirou as mãos do volante até que todo o ato de violência estivesse feito. Prova disso? Em algum lugar na parte de trás de sua cabeça, ecoava um riso, maníaco e satisfeito.

Certo, muito bem, divirta-se agora – pensou, pois não iria mais deixar-se levar tão longe em direção aos passos de seu pai...

O som de sirenes surgiu vindo do Leste e ficava cada vez mais alto e rápido.

Aparentemente, não foi o único que ouviu o alarme. Um homem saiu rapidamente de um dos quartos do hotel e correu em volta do capô de um carro já com seus dez anos, bastante usado, que tinha uma treliça metálica sobre o para-choque. Foi meio difícil pegar as chaves, já que puxava as calças ao mesmo tempo. Em seguida, no mesmo ritmo de fuga, veio uma mulher de aparência rude que tropeçava ao se aproximar de um velho Honda Civic enquanto descia sua minissaia.

As partidas ruidosas e desenfreadas deixaram o estacionamento vazio quando a ambulância surgiu na entrada do local e parou em frente à sala da gerência. Quando um paramédico saiu do banco do passageiro, um homem que deveria ser o gerente abriu a porta, Veck assoviou com força: – Aqui!

Parece que o gerente não tinha a menor intenção de se envolver e voltou para trás. Mas o paramédico correu e a ambulância percorreu o estacionamento atrás dele. Quando chegaram, Veck ficou muito calmo – mortalmente calmo. Tão intocável quanto a fria e distante lua que os vigiava naquela noite densa e escura.

Dane-se seu lado negro. Foi ele quem tinha feito aquilo. E obrigaria a si mesmo a pagar por isso.

A oficial de Assuntos Internos, Sophia Reilly, dirigia a todo vapor em seu carro sem marcas de identificação, disparando ao longo de uma área remota junto aos limites sujos de Caldwell, enquanto percorria a Rota 149 numa corrida louca – o fato de estar a caminho da cena de um crime não justificava a alta velocidade. Ela dirigia rápido, comia rápido e odiava esperar em filas, aguardar pessoas ou informações.

Se apenas pudesse evitar a colisão com um cervo antes de chegar ao Monroe Motel & Suítes...

Quando seu celular tocou, já estava com ele em seu ouvido antes do segundo toque.

– Reilly.

– Detetive De la Cruz.

– Oi. Adivinhe para onde estou indo agora?

– Quem te ligou?

– 190. Seu parceiro está na minha lista de coisas a fazer... então, quando ele liga chamando uma ambulância, pede reforços no meio da noite e diz que não se lembra do que aconteceu com a vítima, eu recebo uma ligação básica.

Infelizmente, aquilo era algo com o que ela já estava se familiarizando. Thomas DelVecchio Jr. estava trabalhando no Departamento de Homicídios há apenas duas semanas e já quase tinha sido suspenso por nocautear um paparazzo que tentara tirar uma foto de uma vítima.

No entanto, aquilo era brincadeira de criança se comparado à confusão de agora.

– Como descobriu? – ela perguntou.

– Ele me acordou.

– E o que lhe pareceu?

– Vou ser honesto com você.

– Sempre é, detetive.

– Parecia que estava bem. Reclamou de uma dor de cabeça e perda de memória. Disse que havia muito sangue e que tinha certeza absoluta de que a vítima era David Kroner.

Mais conhecido como o bastardo doente que havia retalhado garotas e guardado pedaços delas. A última sessão de “trabalho” do bastardo tinha sido dirigir até aquele hotel há duas noites, mas foi interrompido por desconhecidos. Com a confusão, Kroner escapou por uma janela do banheiro, deixando para trás um cadáver numa posição trágica e uma caminhonete cheia de frascos com amostras e outros objetos – todos eles foram catalogados em seu esconderijo, e havia referências cruzadas a nível nacional.


– Perguntou se foi ele quem fez isso? – como membro do Departamento de Assuntos Internos, Reilly investigava os delitos de seus colegas e, apesar de se orgulhar do trabalho que fazia, não gostava do fato de que as pessoas com sua função sempre tivessem muito trabalho. Seria melhor se todos, incluindo os oficiais da lei, jogassem segundo as regras.

– Ele disse que não sabia.

Branco total ao cometer um assassinato? Não era incomum. Especialmente se fosse um crime passional – como, digamos, um detetive de homicídios querendo pegar um perverso serial killer. E Veck já tinha dado provas de ser um cara de pavio curto no que se referia à proteção ou defesa das vítimas. Bem, não era simplesmente pavio curto e ponto final. O cara era brilhante, um pavio curto muito sexy – não que o fato de ser sexy fosse relevante. Nem um pouco.

– Em quanto tempo você vai chegar lá, detetive? – ela perguntou.

– Uns quinze minutos.

– Estou a pouco mais de um quilômetro de distância. Vejo você lá.

– Entendido.

Quando desligaram, ela colocou o telefone no bolso interno do casaco e endireitou-se no banco. A possibilidade de um membro do departamento ser o suspeito na investigação de um assassinato – e considerando o que Veck havia dito ao pessoal da Emergência, que a probabilidade de Kroner ter sobrevivido era mínima – criava todos os tipos de conflito de interesse. Na maioria das vezes, o pessoal dos Assuntos Internos lidava com corrupção, infrações processuais e investigações sobre a competência no desempenho de funções. Mas, numa situação como essa, os membros do próprio departamento de Veck estavam numa posição delicada, pois deveriam avaliar se um de seus colegas havia cometido um crime.

Caramba, dependendo de como a situação se encaminhasse, ela teria de chamar algum reforço externo para efetivar a investigação. Mas era muito cedo para isso. Porém, não era muito cedo para pensar sobre o pai de Veck.

Todos sabiam quem ele era, e ela tinha de admitir que, se esse laço consanguíneo não estivesse em jogo, não estaria tão alerta... com a preocupação constante de que aquilo fosse resultado de uma revanche ao estilo DelVecchio, por assim dizer.

Thomas pai foi um dos serial killers mais conhecidos do século XX. Oficialmente, fora acusado e condenado por “apenas” 28 assassinatos. Mas estava envolvido em mais trinta – e isso era apenas o que as autoridades de quatro estados sabiam. Havia uma grande probabilidade de existir dúzias de mulheres desaparecidas, cujos casos não puderam ser relacionados adequadamente a ele.

Então, não, se o pai de Veck tivesse sido um advogado, contador ou professor, ela não estaria tão preocupada. Mas o velho ditado “tal pai, tal filho” tinha implicações terríveis quando se tratava de serial killers e seus filhos.

Depois de passar por uma ponte estreita, o Monroe Motel & Suítes surgiu mais acima, à direita, e ela passou lentamente pela gerência e pelos quartos até chegar ao final do estacionamento, próximo à floresta. Ao sair com uma mochila cheia de pequenos compartimentos, o aroma doce do diesel da ambulância a fez espirrar com força e, na sequência, sentiu o odor forte dos ramos de pinheiro... bem como o cheiro pungente e inconfundível de sangue fresco.

Os paramédicos estacionaram o veículo com a traseira voltada para a floresta e, sob a luz dos faróis, os dois profissionais trabalhavam sobre o corpo ensanguentado de um homem branco. As roupas da vítima haviam sido cortadas – ou rasgadas – e sob elas havia uma mistura de incontáveis ferimentos.

Não há chance alguma de ele sobreviver, ela pensou. Então, viu Veck. O detetive de homicídios estava em pé ao lado da cena do crime, com braços cruzados e pés bem firmados ao chão. O rosto mostrava... absolutamente nada. Assim como De la Cruz havia dito. Meu Deus, o cara poderia muito bem estar na fila de uma lanchonete daquele jeito.

Quando andou sobre a superfície esponjosa de folhas caídas e terra macia, sentiu um súbito frio na barriga. Embora, sinceramente, não fosse apenas pela cena do crime. Também era por causa do homem que deveria investigar. Próximo ao local, notou uma moto preta estacionada nos limites da floresta. Era dele, já tinha visto na delegacia antes. De fato, já o vira pela janela de sua sala montando naquela coisa, dando o impulso com o pé para iniciar o motor e arrancando para longe dali. Ele usava capacete – na maioria das vezes.

Ela sabia que muitas mulheres na delegacia observavam a cena, pois havia muito que olhar. Aqueles ombros pesados e quadris bem definidos mostravam a constituição de um boxeador, mas seu rosto era mais o de um garotinho bonito que o de um pugilista – ou seria, se não fosse por seu olhar. Aqueles olhos azuis-escuros, inteligentes e frios faziam com que toda a estrutura óssea, estilo modelo famoso, tornasse-o bastante viril. E havia algo mais.

Parando em frente a ele, a primeira coisa que notou foi o sangue na gola de sua blusa preta. Respingos aqui e ali, não eram grandes manchas ou partes encharcadas. Nenhum arranhão no rosto, ou no pescoço.

As roupas e o chapéu estavam em boas condições – nada desalinhado, rasgado ou amassado. Havia dois círculos de lama sobre os joelhos de suas calças pretas. A arma estava guardada no coldre. Não estava claro se tinha outras armas.

Ele não disse nada. Nada de “eu não fiz isso” ou “deixe-me explicar...”. Seus olhos apenas se fixaram nela.

Deixando de lado as gentilezas, ela disse: – O sargento me ligou.

– Imaginei.

– Está ferido?

– Não.

– Se importa se eu fizer algumas perguntas?

– Vá em frente.

Deus, ele tinha tanto autocontrole.

– O que o trouxe aqui esta noite?

– Sabia que Kroner voltaria. Tinha que voltar. Com sua coleção apreendida, não restava mais nada do seu trabalho, portanto, este é um local sagrado para ele.

– E o que aconteceu depois que chegou?

– Esperei. Ele chegou... e, então... – Veck hesitou, as sobrancelhas estreitaram-se como se fossem dar um nó e uma das mãos se ergueu para esfregar a têmpora.

– Droga...

– Detetive?

– Não consigo me lembrar – olhou para os olhos de sua colega outra vez. – Não consigo me lembrar de nada depois que ele apareceu, juro por Deus. Em um minuto ele surgiu vindo da floresta, no outro...? Havia sangue por toda parte.

– Posso ver suas mãos, detetive? – quando ele as estendeu, estavam firmes como rocha... e sem marcas de corte ou arranhões. Nada de sangue na palma das mãos, na ponta dos dedos ou nas unhas.

– Avaliou a vítima ou interveio em seus ferimentos antes de ligar para o 190?

– Peguei minha jaqueta de couro e coloquei sobre o pescoço dele. Não ia ajudar, mas eu fiz mesmo assim.

– Está carregando mais alguma coisa além da sua arma de fogo?

– Minha faca. Está no meu...

Ela colocou a mão sobre o ombro dele para impedi-lo de continuar.

– Deixe-me dar uma olhada.

Assentindo, virou-se. Sob a luz da ambulância, a lâmina guardada no pequeno coldre em suas costas era bem o que ela esperava ver.

– Posso ficar com a arma, detetive?

– Fique à vontade.

Tirando um par de luvas de vinil, vestiu-as e pegou o punhal. Quando puxou o objeto, percebeu que o corpo dele não se moveu. Poderia muito bem ser esta a sensação de desarmar uma estátua.

A faca estava limpa e seca. Levantando-a até o nariz, ela inalou. Nenhum cheiro de adstringente que indicasse ter sido higienizada às pressas.

Quando ele olhou por cima do ombro, o movimento de seu corpo fez seus ombros parecerem enormes e, sem qualquer motivo, ela percebeu que estava frente a frente com o peitoral dele. Com seu quase um metro e setenta, ela tinha uma altura mediana, mas, ao lado dele, ela sentia como se tivesse sido reduzida a uma miniatura.

– Vou confiscar isso, importa-se? – Ela ia pegar a arma dele também, mas, considerando os ferimentos da vítima... a lâmina era o que realmente queria.

– Nem um pouco.

Quando pegou um saco plástico, disse: – O que acha que aconteceu aqui?

– Alguém partiu ele ao meio e acho que fui eu.

Aquilo deteve-a, mas não por achar que fosse, de fato, uma confissão – não esperava que alguém naquelas circunstâncias fosse tão honesto.

Naquele momento, um carro sem identificação percorreu o estacionamento com duas viaturas.

– Seu parceiro chegou – ela disse. – Mas o sargento quer que eu lidere a investigação para evitar qualquer possibilidade de conflito de interesses.

– Sem problema.

– Concordaria se eu retirasse amostras do material sob suas unhas?

– Sim.

Ela colocou a mochila à sua frente outra vez e tirou um canivete suíço e alguns pequenos sacos plásticos.

– Você é muito organizada, oficial – Veck disse.

– Não gosto de estar despreparada. Por favor, estenda sua mão direita.

Ela fez um trabalho rápido, começando com o dedo mindinho. As unhas foram cortadas, mas não como uma manicure faria, e havia muito pouco sob elas.

– Tem experiência em trabalhos de investigação? – Veck perguntou.

– Sim.

– Parece mesmo.

Quando ela terminou, ergueu o olhar... e imediatamente teve que se desviar de seus olhos azuis-escuros como a meia-noite para algum outro lugar próximo.

– Quer outro casaco, detetive? Está frio aqui.

– Estou bem.

Se estivesse com um ferimento sangrando no peito, aceitaria um maldito esparadrapo? – ela pensou – ou bancaria o cara durão até não haver mais plasma em suas veias?

Bancaria o durão, com certeza, concluiu.

– Quero que os paramédicos deem uma olhada em você.

– Estou bem.

– Isto é uma ordem, detetive. Parece que está com dor de cabeça.

Naquele momento, De la Cruz emergiu de seu carro e, enquanto se aproximava, seu rosto parecia triste e cansado. O fato era que tinha perdido um parceiro há alguns anos. Obviamente, não estava empolgado com a ideia de repetir a dose, mesmo que por um motivo diferente.

– Com licença – ela disse aos dois. – Vou chamar um dos paramédicos.

Contudo, quando ela aproximou-se, eles estavam transferindo Kroner para a maca e, logicamente, não poderiam dispensar nem um minuto.

– Quais são as chances dele?

– Poucas – um deles disse. – Mas faremos o nosso melhor, oficial.

– Sei que farão.

Os suportes da maca foram estendidos até que esta ficasse à altura da cintura deles e, pouco antes de deslizarem o objeto, ela tirou uma foto mental. Kroner parecia ter sido retirado dos destroços de um carro fumegante, com o rosto desfigurado, como se não estivesse usando o cinto de segurança e tivesse sido lançado contra a janela.

Reilly olhou para Veck outra vez.

Há muitas lacunas nesta cena – pensou. Especialmente se concluísse que havia sido ele o agressor. Mas não havia muitas possibilidades de fazer todo aquele estrago e limpar tudo tão rápido no meio da floresta. Além disso, parecia que não havia se envolvido em alguma briga ou coisa assim – e não existe um jeito de lavar arranhões e hematomas.

Quem tinha feito aquilo? Era o que a incomodava.

Como se pudesse sentir o olhar dela, Veck girou a cabeça, e, quando os olhares encontraram-se, tudo desapareceu: era como se estivesse a sós com ele... não a quinze metros de distância, mas a quinze centímetros.


Do nada, um calor brotou, borbulhando pelo corpo de Reilly, o tipo de coisa que, se ela estivesse em casa, diria a si mesma que era a proximidade do duto de ar quente. Mas ali ela justificava a onda de calor como consequência da adrenalina do estresse.

Maldito estresse. Nada de atração sexual.

Ela interrompeu aquela conexão quando atentou-se aos policiais recém-chegados. Ordenou: – Poderia passar a fita aqui?

– Entendido, oficial.

Certo, hora de voltar ao trabalho: aquele breve momento de atração totalmente inadequada não atrapalharia o que tinha a fazer. Era muito sensata. Sua integridade profissional não exigia nada menos que isso. Também não tinha a intenção de permanecer muito tempo na lista de adoradoras do cara. Ia cuidar dos seus negócios e deixar os olhares embevecidos para as outras.

Além disso, caras como Veck não gostavam de mulheres como ela e não havia problema algum nisso. Estava muito mais interessada no trabalho do que em mostrar as pernas, soltar os cabelos e competir nos jogos olímpicos da sedução. Brittany – na verdade, escrevia-se Britnae, mais conhecida como a gostosa da delegacia – poderia conquistá-lo e ficar com ele à vontade se quisesse.

Enquanto isso, Reilly verificaria se o filho teria revivido ou não os horrores típicos dos atos do pai.


CAPÍTULO 2

 

Em circunstâncias normais, Jim Heron considerava-se um mau perdedor. E isso com qualquer coisa que jogasse no dia a dia, fosse vídeogame, tênis ou pôquer. Não que ele perdesse tempo jogando tudo isso, mas, quando jogava, era do tipo que não deixaria o controle, a quadra ou a mesa antes de estar por cima da situação.

Mas nada disso tem importância.

Quando se tratava da guerra com o demônio Devina, ele ficava em chamas de tão furioso: havia perdido a última rodada.

Perdido, o contrário de ter vencido. Na batalha por aquelas sete almas, ele e aquela vadia estavam empatados em um a um. Claro, ainda havia mais cinco disputas, mas não era essa a direção que ele ou qualquer outra pessoa precisava seguir.

Derrotado? Aquele demônio tinha domínio não só sobre a terra mas também sobre os céus... o que significava que sua mãe e todas as boas almas que ali estavam, assim como ele e seus soldados, que eram anjos caídos, poderiam um dia contemplar uma eternidade de tormentos.

E havia descoberto há pouco tempo que aquilo não era apenas algo hipotético que motivava os mais religiosos. O inferno era um lugar de verdade, e o sofrimento que ali havia era bem real. De fato, muito do que tinha concluído ser apenas retórica tola de todos aqueles que se diziam santos mostrou-se ser correto.

Então, sim, as apostas eram altas e ele odiava perder. Especialmente porque não precisava ter sido daquele jeito. Estava furioso com o jogo. Com seu chefe, Nigel. Com as “regras”.

Era senso comum: quando se diz a um cara que ele deve influenciar alguns idiotas numa encruzilhada da vida, facilita se disser quem eles são. Afinal, não era um grande segredo: Nigel sabia. O inimigo, Devina, sabia. Jim? Nem tanto assim, pessoal. E, cortesia do buraco negro de informação, concentrou-se no homem errado na última rodada e estragou tudo.

E lá estava ele, empatado com a vadia e furioso num quarto de hotel em Caldwell, Nova York. E não era o único enfezado por ali. No quarto ao lado, do outro lado de um conjugado, duas vozes masculinas graves iam e vinham, num tom de extrema frustração.

Nenhuma novidade. Seus companheiros, Adrian Vogel e Eddie Blackhawk, não estavam contentes e era claro que falavam mal dele em sua ausência. Voltar constantemente a Caldie não era tanto a questão. O problema era a razão pela qual Jim arrastou-os até ali.

Seus olhos percorreram o edredom. Cachorro estava enrolado como uma bola ao lado dele, seu pelo desalinhado dava a impressão de o terem entupido de gel e colocado, em seguida, diante de um vento forte, mas isso não tinha acontecido. Ao seu lado, havia a impressão de um artigo de três semanas do Correio de Caldwell. O título era “Garota local desaparecida”, e, ao lado do texto, havia a foto de um grupo de amigos sorridentes, cabeças unidas e braços estendidos por trás dos ombros uns dos outros. A legenda sob a imagem identificava a que estava no meio como Cecília Barten.

Sua Sissy.

Bem, não era bem “sua”, mas pensava nela como sendo sua responsabilidade. A questão era: ao contrário de seus pais, familiares e amigos da comunidade, sabia onde ela estava e o que havia acontecido com ela. A moça não fazia parte da enorme lista de jovens que fogem de casa e também não havia sido atacada pelo serial killer que, de acordo com o site do jornal daquela manhã, estava à solta. Porém, havia sido profanada. Por Devina.

Sissy foi uma virgem sacrificada para proteger o espelho do demônio, seu bem mais sagrado. Jim encontrou seu corpo pendurado de cabeça para baixo em frente à coisa, no covil temporário do demônio, e foi forçado a deixá-la para trás. Porém, mais tarde, pôde vê-la no muro de almas de Devina... presa, sofrendo, perdida para sempre entre os condenados que mereciam aquele destino.

Cecília não pertencia ao inferno. Era uma garota inocente e foi usada pelo mal – e Jim iria libertá-la, nem que fosse a última coisa que fizesse. Portanto, sim, foi por isso que voltaram a Caldwell. E a razão pela qual Adrian e Eddie estavam furiosos.

Mas, sem ofensa... que se fodam.

Com cuidado, Jim pegou o artigo e passou o polegar calejado sobre a imagem granulada do cabelo de Sissy, longo e loiro. Quando piscou os olhos, viu os fios cobertos de sangue pendendo sobre o ralo de uma banheira de porcelana branca. Então, piscou outra vez, e viu-a como na outra noite, na prisão viscosa de Devina, apavorada, confusa, preocupada com seus pais.

Ele queria ter ido direto conversar com os Barten, porém as reclamações de Adrian e Eddie só serviam para gastar saliva. Não ia tirar os olhos da guerra, pois não poderia suportar perder para Devina enquanto tentava tirar Sissy daquele poço de almas.

A porta do quarto conjugado abriu-se, foi quando Adrian, mais conhecido como “O que se Faz de Surdo”, entrou sem bater. Bem no estilo dele. O anjo estava vestido de preto, como sempre, e os vários piercings em seu rosto não constituíam nem a metade do que ele deveria ter pelo resto do corpo.

– Vocês terminaram de discutir sobre mim? – Jim virou o artigo para baixo e cruzou os braços sobre o peito. – Ou fizeram apenas uma pequena pausa?

– Que tal levar isto a sério?

Jim levantou-se da cama e ficou frente a frente com seu soldado.

– Estou dando qualquer indício de que ando brincando por aí?

– Não nos arrastou de volta a este lugar para a guerra.

– Até parece que não.

Enquanto se enfrentavam, Adrian não se intimidou, mesmo que Jim fosse um antigo assassino das Operações Extraoficiais e soubesse derrotar um peso-pesado de muitas maneiras diferentes.

– Aquela garota não é seu alvo – Ad disse – e, caso não tenha notado, perdemos um. Distrações não são nossas amigas.

Jim deixou passar a referência a Sissy: propôs-se a nunca falar sobre ela. Seus amigos testemunharam quando ele encontrou o corpo e viram o que aquilo fez com ele – então, sabiam o suficiente. E não havia motivo algum para pronunciar palavras que descrevessem o que foi vê-la naquela parede. Ou mencionar o fato de que, enquanto estava sendo usado e abusado por Devina e seus subordinados na última rodada, a jovem, possivelmente, assistiu assustada a tudo o que aconteceu com ele.

Droga... as coisas que aconteceram naquela mesa de “trabalho” eram algo difícil de testemunhar até mesmo para um homem habituado a guerras. Mas uma inocente? Que já estava aterrorizada?

Por um lado, naquele momento de sua vida, as violações não o incomodavam mais. Tortura, de qualquer maneira que fosse aplicada, não era nada além de uma sobrecarga de sensações físicas. Mas, por outro lado, ninguém precisava ser testemunha ocular daquilo, muito menos sua garota. Não que ela fosse sua.

– Vou conversar com Nigel – Jim respondeu. – Então, já terminaram de me detonar? Ou querem desperdiçar um pouco mais do meu tempo?

– Por que já não está lá?

Bem, porque estava sentado naquela cama, olhando para o nada, apenas pensando para onde diabos Devina tinha levado o corpo de Sissy.

Só que Jim não era o tipo de idiota que dava o braço a torcer.

– Jim, sei que essa garota é importante para você. Mas vamos lá, cara, precisamos cuidar dos negócios.

Enquanto Ad falava, Jim olhou por sobre os ombros do cara. Eddie estava parado na porta que ligava os dois quartos, seu corpo enorme estava tenso, os olhos vermelhos eram graves, aquela longa trança preta descia sobre o ombro, cuja ponta quase alcançava a cintura de suas calças de couro.

Caramba. O jeito espalhafatoso de Adrian dava vontade de xingar. Ou socar... o que já havia acontecido antes. Mas a rotina equilibrada e pacífica de Eddie não era um alvo. Era um espelho que simplesmente refletia o comportamento idiota de quem o observava.

– Tenho tudo sob controle – disse Jim. – E vou ver Nigel agora mesmo.

O arcanjo Nigel estava em seus aposentos particulares quando a convocação aconteceu. De qualquer maneira, já era hora de sair do banho.

– Vamos ter companhia – disse a Colin quando se levantou da água perfumada.

– Vou ficar aqui. O banho está numa temperatura perfeita – com isso, Colin esticou-se e fez um arco preguiçoso com o corpo. Seu cabelo escuro estava molhado com a umidade e havia cachos nas pontas. Seu rosto majestoso e inteligente estava relaxado como sempre. Nada muito exagerado.

– Sabe por que ele está vindo?

– Mas é claro.

Atravessando o mármore branco e afastando a cortina safira e coral, Nigel saiu e teve todo o cuidado ao colocar de volta no lugar o tecido aveludado. Ninguém precisava saber sobre sua companhia na sala de banho – embora suspeitasse que Bertie e Byron fizessem alguma ideia disso. No entanto, eram bastante discretos para dizer qualquer coisa.

Puxando um roupão de seda, não se preocupou em vestir nada mais formal. Jim Heron não se importaria nem um pouco com seu vestuário e, já pensando em como seria a conversa, sabia que precisaria voltar para o banho.

Com um gesto de sua mão, Nigel convocou o anjo que se encontrava na Terra, reunindo o corpo físico de Heron e materializando-o em seus aposentos particulares. Sobre seu divã de seda, para ser mais exato. O salvador parecia ridículo sobre o móvel framboesa, os braços e pernas pesados pendiam nas laterais, sua camiseta preta e o jeans surrado eram uma ofensa a um tecido tão delicado.

Heron caiu em si numa fração de segundo e ficou em pé num salto, pronto, alerta... e não muito satisfeito.

– Vinho gelado? – Nigel perguntou ao se aproximar de uma cômoda francesa com gavetas, cuja tampa de mármore servia de bar. – Ou talvez uma dose de uísque?

– Quero saber quem é o próximo, Nigel.

– Isso é um “não” para as bebidas? – levou um tempo escolhendo entre as pequenas garrafas de vidro e, então, serviu-se lenta e tranquilamente.

Ele não era um idiota qualquer a quem se fazia exigências, e Heron precisava aprender um pouco de boas maneiras. Nigel virou-se e tomou um gole.

– Leve e refrescante.

– Dane-se o vinho.

Nigel deixou passar essa e apenas encarou o salvador.

Quando o Criador apareceu diante de Nigel e Devina explicando que haveria uma competição final, os dois lados concordaram que Heron estaria sozinho no campo de batalha com as sete almas escolhidas. Cada adversário, naturalmente, queria seus valores representados, e o resultado foi que aquele forte anjo com espírito guerreiro, ali, em pé diante de Nigel, tinha o bem e o mal equilibrados dentro dele.

Contudo, Nigel tinha convicção de que o fato da mãe assassinada de Jim estar dentro dos muros da mansão seria crucial. Momentos como aquele faziam-no questionar o próprio fundamento daquele jogo decisivo. O anjo parecia pronto para matar.

– Tem que me dizer quem é.

– Como disse antes, não posso.

– Eu perdi, idiota. E ela trapaceou.

– Tenho plena consciência dos limites que ela ultrapassou e acho que se lembra do meu conselho: deixe-a fazer o que quiser. Haverá represálias.

– Quando?

– Quando acontecer.

Heron não gostou daquela resposta e começou a andar pelo local ornamentado com suas cortinas de cetim, tapetes orientais e a cama baixa... ao redor da qual – Nigel percebeu tarde demais – dois conjuntos de roupas estavam dispostos.

Nigel limpou a garganta.

– Não posso correr o risco de que haja uma reviravolta e tudo se volte contra nós. Já me rebaixei demais ao nível de Devina permitindo que Adrian e Edward o ajudassem. Se eu lhe ajudar mais, posso perder não apenas uma rodada, mas a competição inteira. E isso é inaceitável.

– Porém, você sabe quem é a alma. E Devina também.

– Sim.

– E isso não lhe parece uma grande injustiça? Ela irá atrás dessa pessoa... Provavelmente, já foi.

– Pelas regras estabelecidas e acordadas, ela não tem permissão de interagir com as almas. Ela, assim como eu, deve apenas influenciar você na maneira como vai influenciá-los. Contato direto não é permitido.

– Então, por que você não deteve o que aconteceu?

– Isso não é da minha alçada.

– Que saco, Nigel, estabeleça...

– Posso assegurar uma coisa: o saco dele está bem.

Com a interrupção seca, tanto Nigel como o salvador viraram-se para as cortinas que levavam à sala de banho. Colin não se preocupou em vestir um roupão, estava em pé diante deles nu e sem qualquer ar de desculpa.

E, agora que tinha a atenção de todos, o arcanjo acrescentou: – Também vou pedir para que controle o linguajar, companheiro.

As sobrancelhas de Heron ergueram-se rápido e houve um momento em que parecia estar assistindo a um jogo de tênis, alternando o olhar de um para o outro.

Nigel amaldiçoou baixinho. Sua privacidade e decoro tinham ido por água abaixo.

– Vinho gelado, Colin? – disse rispidamente. – E talvez um roupão?

– Estou bem.

– É verdade. Mas sua falta de modéstia não lhe protege muito bem do ar frio desse ambiente. E eu tenho um convidado.

Sua única resposta foi um grunhido. Que era a maneira de Colin proclamar que não havia razão para dar uma de velho azedo.

Adorável.

Nigel virou-se para o salvador.

– Sinto muito em não poder lhe conceder o que me pede. Pode acreditar.

– Você me ajudou com o primeiro.

– Houve permissão para isso.

– E veja o que aconteceu com o número dois.

Nigel escondeu sua preocupação atrás de um gole em seu copo.

– Sua paixão é louvável. E posso lhe dizer que seu retorno a Caldwell é bem útil.

– Obrigado pela dica. Há dois milhões de pessoas naquela maldita cidade. Isso não reduz muito as possibilidades.

– Nada é por acaso e não existem coincidências, Jim. Na verdade, há outra pessoa que procura o mesmo que você e, quando seus diferentes propósitos se unirem, encontrará a próxima alma.

– Sem ofensa, mas isso não significa merda nenhuma – Heron olhou para Colin. – E não vou pedir desculpas à fiscalização por isso. Sinto muito.

Colin cruzou os braços sobre o peito nu: – Faça como quiser, rapaz. E eu farei o mesmo.

Leia-se: talvez eu o esgane agora. Talvez depois.

A última coisa que Nigel precisava era de uma briga em seus aposentos, isso atrairia os outros arcanjos, assim como Tarquil, num piscar de olhos. Não era bem a interrupção que procurava.

– Colin – disse Nigel –, vá tomar banho.

– Já fiz isso, obrigado.

– Isso é uma questão de ponto de vista – Nigel murmurou antes de se dirigir a Jim. – Vá em frente e tenha fé que você estará no lugar certo e fará o melhor possível.

– Não acredito em destino, Nigel. É como pegar uma arma descarregada e achar que vai atirar em alguma coisa. Você mesmo tem que carregá-la com as balas.

– Estou lhe dizendo que há coisas maiores nesse trabalho do que seus esforços.

– Certo, ótimo, então coloque tudo num cartão de Natal. Mas não venha com besteiras pra cima de mim.

Encarando o rosto duro do salvador, Nigel teve um lampejo de medo. Com aquela atitude, havia mais uma coisa que jogava contra os anjos. Mas o que ele poderia fazer? Heron não tinha paciência ou fé, mas isso não mudava em nada as regras do jogo ou as chances de que o Criador corrigisse as liberdades que Devina havia tomado.

Ao menos esse último fato contribuía a favor deles.

– Acredito que já terminamos – Nigel disse. – Nada de bom virá a nosso favor se continuarmos a conversa.

Houve um momento obscuro, até mesmo maligno, durante o qual Heron olhou para ele com uma espécie de fúria.

– Tudo bem – disse o salvador. – Mas eu não desisto tão fácil.

– E eu sou a montanha que não será movida.

– Entendido.

Num piscar de olhos, o anjo se foi. E, quando o silêncio dominou o local, Nigel percebeu que não tinha mandado Heron embora. Ele tinha feito aquilo sozinho.

Estava ficando mais forte, não?

– Quer que eu desça e o vigie? – Colin disse.

– Quando concordei que ele seria o escolhido, pensei que haveria rédeas suficientes para contê-lo. Acreditava mesmo nisso.

– Então, repito, eu devo sair para vigiá-lo?

Nigel voltou-se para o seu querido amigo, que era muito mais que um colega e confidente.

– Essa é a tarefa de Adrian e Edward.

– Conforme estipulado. Mas fico pensando até onde essa competência, que aumenta cada vez mais, vai levá-lo. Acho que isso não nos guia por um bom caminho.

Nigel tomou outro gole de seu vinho e observou o espaço vazio que Heron tinha acabado de deixar. Apesar de continuar em silêncio, tinha que concordar. A questão era: o que fazer, o que fazer...


CAPÍTULO 3

 

Lá embaixo, na floresta fria próxima ao Monroe Hotel & Suítes, Veck permanecia parado sob o reflexo dos faróis da ambulância, com seu colega De la Cruz à direita e seu parceiro, Bails, à esquerda. Iluminado como estava, sentiu-se num palco quando Kroner surgiu dentre as árvores sobre uma maca.

Só que havia apenas uma pessoa olhando para ele. Sophia Reilly, a oficial de Assuntos Internos. Ela estava em pé próxima a ele e, quando os olhos dos dois encontraram-se, desejou que as circunstâncias fossem diferentes – de novo. O primeiro encontro com Sophia Reilly tinha sido quando ele agrediu aquele paparazzo. Mas a situação em que estavam agora fazia aquela agressão parecer uma caminhada na praia.

A questão era: gostou dela no momento em que apertaram as mãos, e essa primeira impressão foi reforçada naquela noite: o detetive dentro dele tinha aprovado totalmente a atuação profissional dela, bem como a maneira como o olhou. Se ele estivesse mentindo – e não estava –, ela teria percebido. Mas precisavam parar de se encontrar daquela maneira. Literalmente.

Sobre o asfalto do estacionamento houve um barulho alto quando os médicos fecharam as portas duplas da ambulância e, em seguida, o veículo afastou-se, levando a iluminação consigo. Quando Reilly voltou-se para observar a partida, já estava no escuro... até que acendeu uma lanterna.

Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, De la Cruz falou baixinho: – Quer um advogado?

– Por que ele precisaria de um advogado? – Bails exclamou.

Veck balançou a cabeça para seu amigo. Entendia a lealdade do cara, mas ele próprio não tinha tanta fé em si mesmo naquele momento.

– É uma boa pergunta.

– Então, vai querer? – De la Cruz sussurrou.

A oficial Reilly circulou a poça de sangue, transitou entre os troncos e galhos... Pequenos gravetos estalavam sob seus pés, aquilo soava alto nos ouvidos de Veck. Ela parou na frente dele.

– Terei de continuar com as perguntas amanhã, mas pode ir para casa agora.

Veck estreitou os olhos.

– Você vai me liberar?

– Nunca esteve sob minha custódia, detetive.

– Isto é tudo?

– Não, não. Mas não tem mais nada o que fazer aqui esta noite.

Veck balançou a cabeça.

– Ouça, oficial, isto não pode...

– A perícia criminal está a caminho. Não quero você aqui quando chegarem à cena do crime, pois isso pode comprometer o trabalho deles. Está suficientemente claro para você?

Ah, sim. E ele devia ter adivinhado. Estava escuro entre as árvores. Ele poderia manipular evidências com facilidade sem que ninguém soubesse, e ela queria fazê-lo sair dali de uma maneira discreta e educada.

Ela é esperta – pensou. E também era bonita: sob o brilho da lanterna, ela estava deslumbrante, do jeito que só uma mulher natural e saudável poderia ser – nada de maquiagem pesada para entupir seus poros ou pesar suas pálpebras, nenhum brilho gorduroso e escorregadio sobre seus lábios. Era totalmente verdadeira. O cabelo vermelho-escuro e pesado e o olhar de um verde profundo também não poluíam o visual. Além disso, havia a postura “nada de gracinhas” dela...

– Muito bem, oficial – ele murmurou.

– Por favor, esteja na sala do sargento amanhã, às 8h30.

– Você é quem manda.

Quando Bails murmurou alguma coisa em voz baixa, Veck rezou para que o bastardo guardasse suas opiniões para si mesmo. Reilly só estava fazendo seu trabalho – e era bastante profissional. O mínimo que poderiam fazer era retribuir o respeito.

Antes que seu amigo falasse algo, Veck bateu no ombro de Bails e assentiu para De la Cruz. Quando começou a andar, a voz séria e baixa de Reilly irrompeu no silêncio da noite: – Detetive.

Ele olhou sobre o ombro.

– Sim, oficial.

– Terei de levar sua arma. E seu distintivo. E o coldre daquela faca.

Certo. Mas é claro.

– O distintivo está na jaqueta de couro bem ali no chão. Quer fazer as honras com a minha nove milímetros e o cinto?

– Sim, por favor. E levarei seu celular também, se incomoda?

Quando ela aproximou-se, Veck sentiu seu perfume. Nada de frutas ou florais ou, meu Deus, aquela merda de baunilha. Mas também nada que pudesse classificar. Xampu talvez? Será que ela recebeu a ligação saindo do banho?

Que bela imagem... Espere um minuto. Estava mesmo fantasiando com sua colega de trabalho... a menos de dois metros da cena de um crime? Nossa. Sim, era isso mesmo o que estava fazendo.

Reilly colocou a lanterna na boca e, então, as mãos revestidas por luvas azuis brilhantes estenderam-se. Quando ele ergueu os braços para facilitar que tocasse sua cintura, registrou uma pressão sutil em seus quadris, o tipo de coisa que sentiria se ela estivesse tirando as calças dele...

O impulso elétrico que surgiu em seu pênis foi uma surpresa... E, Deus, ficou feliz por aquela luz estar sobre seu peito, e não mais ao sul. Cara, aquilo era tão errado... e contrário à maneira que agia. Nunca paquerava colegas de trabalho, fossem assistentes administrativas, colegas detetives... ou oficiais do Departamento de Assuntos Internos. Problemas demais quando chegava ao fim inevitável...

Santo Deus, onde estava com a cabeça?

Parece que não na realidade.

Era quase como se a magnitude do que havia acontecido naquele local cheio de folhas manchadas de vermelho fosse tão grande que seu cérebro buscasse refúgio em qualquer outro lugar para além do elefante gigante ensanguentado na floresta. Talvez estivesse simplesmente louco. E ponto final.

– Obrigada, detetive – Reilly disse ao afastar-se com a arma e o coldre de couro. – Seu celular?

Ele entregou-o.

– Quer minha carteira?

– Sim, mas pode ficar com sua carteira de motorista.

Quando o trabalho de confisco terminou, ela adicionou: – Além disso, gostaria que você tirasse suas roupas em casa para ensacá-las e levá-las a mim amanhã.

– Sem problema. E sabe onde me encontrar – ele disse com a voz rouca.

– Sim, sei.

Quando estavam prontos para partir, percebeu que não havia nenhum sinal de um queixo abaixado ou um olhar esquivo aparentando timidez. Nada de mexer nos cabelos. Nada de rebolar. Algo que, tudo bem, seria ridículo naquelas circunstâncias... Mas ele teve a sensação de que, se estivesse numa boate, ao lado do bar, ela também não agiria de outra maneira. Não era seu estilo.

Droga, ela simplesmente ficava mais atraente a cada minuto. Se aquilo continuasse, pediria Sophia Reilly em casamento na próxima semana.

Até parece...

Com isso, Veck virou-se pela segunda vez. E ficou surpreso ao ouvi-la dizer: – Tem certeza de que não quer um casaco, detetive? Tenho uma jaqueta extra no meu carro, pois sentirá frio na moto.

– Ficarei bem.

Por alguma razão, ele não queria olhar para trás. Provavelmente por causa de todo aquele grande público que eram os olhos de De la Cruz e Bails. Sim. Era isso.

Na moto, jogou a perna sobre o assento e pegou o capacete. Não o usou para chegar até ali, mas precisava conservar alguma parte do corpo aquecida. Quando deu a partida, esperava que De la Cruz se aproximasse dele e voltasse a comentar sobre o advogado. Em vez disso, o venerável detetive ficou onde estava e falou com a agente Reilly.


Bails foi quem se aproximou. O cara estava com roupas de academia, cabelo curto espetado, os olhos eram um pouco agressivos... sem dúvida porque não gostava que Reilly tivesse assumido o caso.

– Tem certeza de que está bem para ir para casa?

– Sim.

– Quer que eu lhe siga?

– Não – provavelmente o cara iria de qualquer maneira. Ele era assim.

– Sei que você não fez isso.

Quando Veck olhou para o parceiro, ficou tentado a desabafar sobre tudo: seus dois lados, a divisão que sentia há anos, o medo de que sua maior preocupação finalmente tivesse acontecido. Droga, sabia que podia confiar no cara. Ele e Bails fizeram academia de polícia juntos anos atrás e, embora tivessem seguido por caminhos diferentes, mantiveram contato e proximidade – até Bails convocá-lo para ir a Manhattan unir-se à equipe do Departamento de Homicídios de Caldwell. Duas semanas. Estava ali há apenas duas malditas semanas.

Assim que abriu a boca, uma van estacionou atrás dele junto com outros carros do Departamento de Polícia, anunciando a chegada da perícia.

Veck negou com a cabeça.

– Obrigado, cara. Vejo você amanhã.

Deu um solavanco com o corpo, ligou o motor e, enquanto aquecia a moto, olhou de volta para a cena. Reilly estava ajoelhada perto da jaqueta dele, revistando os bolsos. Assim como faria com sua carteira.

Oh, droga. Encontraria...

– Ligue se precisar de mim para alguma coisa, cara.

– Sim. Ligarei.

Veck acenou para Bails e partiu devagar com a moto, pensando ser desnecessário Reilly ver as duas camisinhas que sempre mantinha na carteira atrás dos cartões de crédito. Engraçado, ser um vadio nunca o incomodou antes. Agora, desejava ter dado um nó no pênis anos atrás.

Quando entrou na estrada propriamente dita, acelerou a moto e seguiu rugindo. Quando disparou pelas curvas da estrada 149, inclinava-se nelas, abaixando-se sobre os guidões, tornando-se apenas mais uma peça do projeto aerodinâmico de sua BMW. Com a alta velocidade, as curvas tornaram-se apenas pequenos movimentos para a esquerda e para a direita, enquanto ele e a moto desafiavam as leis da física. Bater em qualquer coisa naquela velocidade? Teria sorte se restasse algum pedaço grande o suficiente para enterrar.

Mais rápido. Mais rápido. Mais...

Infelizmente, ou felizmente, não tinha certeza, o fim da linha para ele não foi colidir em árvores, evitando um acidente com um carro ou um cervo.

Foi um outlet da Ralph Lauren.

Ou, especificamente, um semáforo próximo ao local.

Sair daquela sensação de velocidade da qual tanto gostava deixou-o num estado de desorientação estranho, e a única razão de ter parado no sinal vermelho foi que havia alguns carros na frente dele. Foi forçado a obedecer às leis de trânsito ou andar sobre os carros.

O maldito sinal levou uma eternidade para abrir, e a fila em que estava moveu-se a passo de lesma quando finalmente ficou verde. Ele teria atingido mais de cem quilômetros por hora na estrada, o que não ajudaria em nada. Não que estivesse fugindo de alguma coisa. Claro que não.

Passou por lojas como Nike, Van Heusen e Brooks Brothers. Sentiu-se tão vazio quanto os estacionamentos, e havia uma parte dele que desejava continuar... Desejava passar por aquela parte mais afastada da cidade, vagar pelo labirinto suburbano de Caldie, percorrer a área de arranha-céus e atravessar uma ponte que só Deus sabe onde daria.

O problema era que, aonde quer que fosse... lá estava ele: a mudança geográfica não mudaria se rosto no espelho. Ou aquela parte de si mesmo que ele nunca entendeu, mas também nunca questionou. Ou a porra que teria acontecido naquela noite.

Assassinara aquele bastardo doente. Não havia outra explicação. E não sabia o que Reilly tinha na cabeça ao deixá-lo ir. Talvez ele simplesmente precisasse confessar... Sim, mas o quê? Que tinha ido até lá com a intenção de matar e, em seguida...

A dor de cabeça que acometeu seu lóbulo frontal era o tipo de coisa que ele não suportaria. Nesses casos, tudo o que se faz é gemer e fechar os olhos... Mas isso não é a melhor opção quando se está em cima de uma moto que, praticamente, resume-se num motor com um assento acolchoado.

Forçando a concentração na estrada e em nada mais, sentiu-se aliviado quando a pancada no crânio suavizou e pôde seguir caminho.

A casa em que morava ficava num bairro cheio de professores, enfermeiras e representantes de vendas. Havia muitas crianças, e a conservação dos gramados nos quintais era feita por amadores – o que significava que, no verão, era muito fácil encontrar um gramado irregular, mas, ao menos, eram aparados regularmente.

Veck era um caso isolado ali: não tinha esposa, filhos e nunca contrataria um garoto para aparar a grama. Felizmente, tinha a impressão de que os vizinhos dos dois lados de seu quintal – praticamente um cartão-postal – eram do tipo que invadiam alegremente o território alheio com suas ferramentas.

Sua casa de dois andares era tão luxuosa e única quanto uma moeda de um centavo dos anos 1970. Portanto, como era de se esperar, foi nessa época que a casa viu sua última nova camada de papel de parede.

Estacionando na garagem, desmontou da moto e encaixou o capacete no guidão. Não havia muitos crimes naquela área... então, seus vizinhos aparadores de gramado faziam um ótimo trabalho, em vários sentidos.

Entrou pela porta lateral, passou pelo armário de casacos e caminhou até a cozinha. Não havia muita comida por ali: só algumas caixas vazias de pizza sobre o balcão e algumas embalagens da Starbucks amontoadas sobre a pia. Tinha envelopes meio abertos e relatórios espalhados sobre a mesa. O laptop estava fechado junto a cupons de desconto que ele nunca usaria. Também havia ali uma conta de TV a cabo que ainda não estava vencida, mas, provavelmente, acabaria vencendo, pois era péssimo em pagar as coisas em dia. Sempre ocupado demais para fazer um cheque ou acessar a internet para pagar.

Deus, a única diferença entre aquele lugar e sua sala no centro da cidade era o fato de ter uma cama king-size no andar de cima. Pensando nisso, lembrou-se de que a oficial Reilly queria que ele se despisse, não queria?

Pegou um saco de lixo debaixo da pia da cozinha e subiu as escadas pensando em contratar uma faxineira para limpar a casa uma vez por semana, assim não teria mais que encontrar teias de aranha em todos os cantos e montinhos de poeira que se multiplicavam embaixo do sofá. Mas aquilo não era um lar e nunca seria. Desinfetante e outros produtos de limpeza quatro vezes por mês não deixariam o local aconchegante. Porém, se levasse uma garota um dia até lá, ela teria um local decente para se vestir.

Seu quarto ficava na parte dianteira da casa, e tudo que havia nele era uma cama grande e uma escrivaninha. Suas botas, meias e calças foram tiradas rapidamente. Com a blusa foi a mesma coisa. Quando tirou sua cueca boxer preta, recusou-se a lembrar da oficial Reilly revistando-o. Simplesmente não seguiria por aí.

Dirigindo-se para o banho, ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, parou em frente ao espelho sobre a pia. Não havia reflexo para se preocupar... Tinha coberto o espelho com uma toalha de praia no dia em que se mudou. Não era fã de espelhos.

Ergueu as mãos e estendeu-as com as palmas para baixo. Então virou-as. Em seguida, olhou embaixo das unhas. Parecia que seu corpo, assim como sua mente, estava vazio de pistas. Embora aceitasse que a ausência de ferimentos, sangue ou coágulos em si mesmo fosse um indício... e, sem dúvida, a boa oficial Reilly também tinha notado.

Cara, era a segunda vez na vida em que se encontrava numa situação dessas. Na primeira... Não havia razão para pensar no assassinato de sua mãe. Não numa noite como aquela. Entrando no chuveiro, fechou os olhos e deixou a ducha cair sobre sua cabeça, ombros e rosto. Sabonete. Enxaguar. Xampu. Enxaguar.

Estava parado, envolvido no vapor, quando sentiu uma corrente: como se alguém tivesse aberto a janela do banheiro. O sopro de ar movimentou a parte de cima da cortina e acariciou sua pele. Sentiu arrepios quando percebeu que passava também pelo seu peito e descia por suas pernas e pelas costas. Contudo, a janela não fora aberta.

Foi por isso que removeu o boxe de vidro do banheiro e cobriu aquele espelho embutido sobre a pia. Foram as únicas coisas que mudou na casa, sendo que a melhoria era para manter a sanidade. Já fazia anos que se barbeava sem olhar no espelho.

– Fique longe de mim – ele disse, fechando os olhos e mantendo-os assim.

A corrente de ar enroscou-se nas pernas de Veck, como se mãos estivessem se movendo sobre sua pele, subindo cada vez mais, acariciando seu sexo antes de atingir o abdômen e o peitoral, até chegar ao seu pescoço... seu rosto... Mãos frias passaram pelo seu cabelo...

– Me deixe em paz! – estendeu o braço e empurrou a cortina. Quando o ar quente dissipou-se, tentou concentrar-se em si mesmo, expulsar o intruso, matar a conexão. Tropeçando no balcão, envolveu o corpo com os braços e inclinou-se, respirando com força e odiando a si mesmo, odiando aquela noite, odiando sua vida.

Sabia muito bem que era possível, se você tivesse um distúrbio de personalidade múltipla, que uma parte poderia se libertar e agir de maneira independente. Aqueles que sofrem disso podem ignorar completamente as atitudes tomadas por seu corpo, mesmo quando envolvem atos de violência...

Quando a dor de cabeça começou a latejar em suas têmporas outra vez, Veck amaldiçoou e conseguiu se enxugar. Em seguida, pegou a camisa de flanela e as calças de moletom do Departamento de Polícia de Nova York com que tinha dormido na noite anterior e deixado atrás do vaso sanitário. Estava prestes a descer as escadas quando uma rápida olhada pela janela imobilizou-o.

Havia um veículo estacionado do outro lado da rua a umas duas casas de distância. Conhecia cada veículo da vizinhança, todas as caminhonetes, vans, suvs, sedãs, carros híbridos... Aquele carro escuro, de um modelo recém-lançado, não estava na lista.

Contudo, era exatamente o tipo de carro sem identificação que o Departamento de Polícia de Caldwell usava. Reilly fora vigiá-lo. Muito bem... exatamente o que ele faria no lugar dela.

Finalmente, viu que era mesmo ela, em carne e osso.

Descendo as escadas, hesitou na frente da porta, considerando sair na rua, mesmo descalço, porque talvez ela, ou quem quer que fosse, tivesse respostas sobre a cena Conteve aquela brilhante ideia e foi até a cozinha. Tinha de haver algo para comer no armário. Tinha de ter. Ao abrir e procurar por um momento, só encontrou um monte de vazio entre as prateleiras. Qual supermercado de fadas ele achava que existia? Pois só assim entregariam comida: como mágica.

A fome era tanta que poderia jogar um pouco de ketchup numa caixa de pizza e mastigá-la. Seria bom para ele comer um pouco de fibra.

Delícia.

A duas casas da residência do detetive DelVecchio, Reilly estava sentada atrás do volante, tampando parcialmente a própria visão.

– Por tudo que é mais sagrado... – esfregou os olhos. – Não é adepto a cortinas?

Enquanto rezava para que a imagem espetacular de seu colega nu desaparecesse de suas retinas, repensou seriamente a decisão de vigiá-lo sozinha. Estava exausta, isso era fato... Ou estava, antes de, simplesmente, ter visto tudo o que Veck tinha para oferecer. Desconsidere o simplesmente.

O bom disso era que agora estava realmente alerta, muito obrigada... Era o mesmo que ter umedecido dois dedos e os ter colocado na tomada: a visão foi suficiente para dar todo o ânimo que tinha aos treze anos.

Murmurando para si mesma, deixou cair as mãos sobre o colo outra vez. E, meu Deus, enquanto olhava para o painel do carro, tudo o que via era... era a cena que tinha visto antes. Sim, uau, em alguns homens, estar sem roupas era muito mais do que estar nu.

E pensar que ela quase perdera o show. Estacionou o carro e assumiu sua posição quando as luzes do andar de cima acenderam-se e pôde, assim, ter uma boa visão do que acontecia no quarto. Inclinando-se no banco, não se deu conta de que a posição expunha os dois... Não se ateve a nada além do que parecia ser uma lâmpada no teto do que deveria ser a suíte principal.

Geralmente, a decoração de um apartamento de solteiro tendia a ser muito cheia de detalhes ou minimalista. Era óbvio que Veck seguia a linha minimalista.

De repente, ela não pensava mais na decoração, pois seu suspeito tinha entrado no banheiro e ligado o interruptor.

Olááá, garotão.

E o superlativo englobava várias coisas.

– Pare de pensar nisso... pare de pensar...

Fechar os olhos não ajudou: se já tinha notado como ele ficava bem dentro das roupas que vestia, agora sabia exatamente o porquê. Era muito musculoso e, considerando que não tinha qualquer pelo na parte superior do corpo, nada ocultava aquele peitoral, o abdômen e as saliências esculpidas que desciam até os quadris.

Aliás, por falar em depilação, tudo o que tinha era uma linha escura que percorria a distância entre o umbigo e o...

Bem, talvez tamanho seja importante – Reilly pensou.

– Oh, pelo amor de Deus.

Na tentativa de manter seu cérebro focado em alguma coisa, qualquer coisa mais apropriada, inclinou-se para frente e olhou pela janela oposta. Poderia dizer que a casa da frente tinha cortinas capazes de manter a privacidade. Muito bom, principalmente se concluísse que ele desfilava daquela maneira todas as noites. Talvez o marido tivesse instalado tudo aquilo para que sua mulher não começasse a ter desmaios.

Preparando-se, voltou a olhar a casa de Veck. As luzes tinham se apagado no andar de cima, e ela esperava que agora ele estivesse no primeiro andar, vestido... e permanecesse assim.

Deus, que noite.

Ainda esperava obter alguma prova concreta do que havia acontecido na cena do crime, mas não parava de pensar nos ferimentos de Kroner. Havia coiotes naquelas florestas. Ursos. Gatos selvagens. Havia grandes chances de o cara ter andado por ali com cheiro de sangue seco nas roupas e alguma coisa de quatro patas tê-lo visto como um Mc Lanche Feliz. Na tentativa de intervir, Veck foi jogado de lado. Afinal, estava esfregando a testa como se esta doesse muito, e Deus é testemunha de que traumatismos cranianos são conhecidos por causarem perda de memória em curto prazo. A falta de provas físicas nele apoiava a teoria, com certeza.

E, mesmo assim... Deus, o pai dele. Era impossível não relacionálos, ao menos um pouco. Como todo aluno de especialização em justiça criminal, ela estudou o caso de Thomas DelVecchio pai como objeto de disciplina... mas também passou tempo considerável refletindo sobre ele em suas aulas de desvios psicológicos. O pai de Veck era considerado um serial killer clássico: inteligente, astuto, comprometido com seu “ofício”, totalmente sem remorsos. E, ainda assim, ao assistir vídeos de entrevistas dele com a polícia, deparou-se com um homem bonito, atraente e agradável. Sem qualquer ligação aparente com um monstro.

Contudo, como muitos psicopatas, cultivava uma imagem e sustentava-a com cuidado. Foi muito bem-sucedido como comerciante de antiguidades. Porém, estabelecer-se naquele mundo arrogante, cheio de dinheiro e privilégios, foi apenas um refúgio inventado por ele. Tinha vindo do nada, mas possuía talento para encantar pessoas ricas – bem como para viajar a diversas partes do mundo e voltar com artefatos antigos e estátuas extremamente bem recebidas no mercado. Seus negócios nunca tinham passado por qualquer investigação até os assassinatos virem à tona, e, até hoje, ninguém fazia ideia de onde encontrava tudo o que tinha... Era como se tivesse um tesouro guardado em algum lugar do Oriente Médio. Com certeza não ajudou as autoridades a entender isso, mas o que poderiam fazer com ele agora? Já estava no corredor da morte. Logicamente, não por muito tempo.

Como teria sido a mãe de Veck...?

A batida na janela do carro, ao lado de sua cabeça, foi como um tiro, e Reilly empunhou sua arma em direção ao som menos de um segundo depois.

Veck estava parado na rua ao lado do carro, mãos para cima, o cabelo molhado brilhava sob a luz do poste.

Reilly baixou a arma e abriu a janela com uma maldição.

– Reflexos rápidos, oficial – ele murmurou.

– Quer levar um tiro, detetive?

– Eu disse seu nome. Duas vezes. Mas estava mergulhada em pensamentos.

Graças ao que tinha visto naquele banheiro, a camiseta de flanela e a calça de moletom pareciam muito fáceis de serem removidas, eram coisas que não resistiriam a um puxão. Mas, vamos lá, como se já não conhecesse cada brinquedo daquele parque de diversões.

– Já quer levar minhas roupas? – ele disse ao erguer um saco de lixo.

– Sim, obrigada – ela aceitou o pacote pesado pela janela e apoiou as coisas no chão do carro. – Os sapatos também?

Ao assentir, disse: – Quer que lhe traga um pouco de café? Não tenho muita coisa na minha cozinha, mas acho que consigo encontrar uma caneca limpa e café solúvel.

– Obrigada. Estou bem.

Houve uma pausa.

– Há alguma razão para não olhar nos meus olhos, oficial?

Acabei de vê-lo nu, detetive.

– Nenhuma – ela o encarou furtivamente.

– Deveria entrar. Está frio.

– O frio não me incomoda. Ficará aqui a noite inteira?

– Depende.

– Depende do clima, certo?

– Sim.

Ele assentiu e, então, olhou ao redor, casualmente, como se fossem vizinhos conversando sobre o tempo. Tão calmo. Tão confiante. Assim como o pai.

– Posso ser sincero com você? – ele disse de repente.

– É bom que seja, detetive.

– Ainda estou surpreso por me liberar.

Reilly passou as mãos sobre o volante.

– Posso ser sincera com você?

– Sim.

– Te liberei porque não acredito que tenha feito aquilo.

– Eu estava na cena do crime e havia sangue em mim.

– Você chamou a emergência e não fugiu. Aquele tipo de assassinato é muito difícil de ser cometido.

– Talvez eu tenha limpado tudo.

– Até onde vi, não havia qualquer chuveiro entre aquelas árvores.

Não. Pense. Nele. Nu.

Quando ele começou a balançar a cabeça como se fosse argumentar, Reilly interrompeu-o.

– Por que está tentando me convencer de que estou errada?

Aquilo calou-o. Ao menos por um momento. Então, disse em voz baixa: – Vai se sentir mais segura me seguindo?

– Por que não?

Pela primeira vez, alguma emoção percorreu a expressão fria de Veck, e o coração dela parou: havia medo em seus olhos, como se não confiasse em si mesmo.

– Veck – ela disse em tom suave –, se existir alguma coisa que eu não saiba...

Ele cruzou os braços sobre o grande peitoral e seu peso oscilava sobre os quadris, como se estivesse pensando. Em seguida, sussurrou e começou a esfregar a testa.

– Não sei de nada – murmurou. – Ouça, faça um favor a nós dois, oficial. Mantenha aquela arma por perto.

Não olhou para trás ao se virar e atravessar a rua.

Reilly percebeu que ele não usava qualquer calçado. Ao erguer o vidro da janela, observou Veck entrar na casa e fechar a porta. Em seguida, as luzes da casa apagaram-se, exceto uma no corredor do segundo andar.

Recompondo-se, ela acomodou-se sobre o banco e olhou para todas as janelas. Pouco depois, uma grande sombra entrou na sala de estar – ou melhor, parecia se arrastar até um móvel? Seria um sofá? Então, Veck sentou-se e sua cabeça desapareceu como se estivesse estendido sobre o móvel.

Era quase como se estivessem dormindo lado a lado. Bem, aquilo que os separava eram apenas as paredes da casa, o gramado mal aparado, a calçada, o asfalto e a estrutura que envolvia o carro.

As pálpebras de Reilly começaram a cair, mas era porque tinha abaixado a cabeça. Não estava cansada e nem preocupada em cair no sono. Estava bem alerta no interior escuro do carro. Mesmo assim, estendeu a mão e apertou o botão para travar as portas. Só para garantir.


CAPÍTULO 4

 

Vagando ao longo do corredor de concreto frio, o demônio Devina não seguia um caminho reto, mas sinuoso. Percorria várias salas de escritório, o tic-tac de vários relógios abafava o barulho que seus saltos produziam.

Tudo foi acomodado ali, sua coleção tinha se mudado com segurança para o porão do prédio de escritórios de dois andares. O local era perfeito, afastado do centro da cidade de Caldwell e, para parecer verdadeiro e não suscitar polêmicas, projetou a ilusão de que uma empresa de recursos humanos havia se instalado no local que agora ela percorria: os humanos só conseguiriam enxergar um próspero empreendimento que havia alugado o imóvel para se expandir dentro do mercado.

Seres humanos estúpidos. Como se, na atual circunstância da economia, alguém pudesse contratar ou pagar mão de obra especializada para preencher as vagas de trabalho que disponibilizavam.

Parou em frente a uma cômoda clássica produzida em Rhode Island, em 1801, e passou a mão sobre o mogno. O acabamento original ainda estava ali. Claro, ela evitou que o objeto ficasse exposto ao sol ou à umidade desde que o havia comprado há duzentos anos. Havia divisões nas gavetas cheias de botões, filas e mais filas de óculos e amontoados de pequenas caixas com anéis dentro delas. Possuía objetos similares nos outros gabinetes, todos objetos pessoais, feitos de diversos metais.

Além de seu espelho, aquela coleção era a coisa mais preciosa que tinha. Era a sua ligação com as almas, a segurança que precisava quando sentia-se insegura ou estressada na Terra, como agora.

No entanto, o problema daquela noite era que, pela primeira vez, tudo aquilo que vinha acumulando há séculos não a acalmava, não a deixava mais segura, nem diminuía sua ansiedade. Vagando por entre os objetos, estava longe da ajuda do vício que, há tanto tempo, provara-se muito útil.

E o que parecia ainda pior? Aquela noite deveria ser um “momento de recompensa”, como sua terapeuta definia. Um tempo para concentrar-se e saborear suas realizações: tinha vencido a última rodada contra Jim Heron e, mesmo sabendo que ele, Adrian e Eddie tinham se infiltrado em seu covil anterior, tinha conseguido reinstalar todas as suas coisas naquele novo e seguro local.

Deveria estar em êxtase. Mesmo assim, mesmo o cheiro de morte à deriva vindo do banheiro não lhe deu prazer: para proteger o espelho, precisava de muito mais que um sistema de monitoramento comum, e o novo sacrifício virginal que tinha pendurado sobre a banheira sangrava muito bem... quase pronto para ser usado, não era apenas decorativo.

Tudo estava a seu favor, ao menos superficialmente falando, e, ainda assim, ela sentia-se tão... Tédio, parece que era assim chamado... E que nome adorável para um péssimo estado de desmotivação.

Talvez só estivesse exausta por ter organizado tudo após a mudança. Tinha mais ou menos quarenta gabinetes cheios de aquisições de todas as eras da humanidade. Sempre que era forçada a se restabelecer em outro lugar, era obrigada a tocar cada objeto para se reconectar com a essência da vítima que permanecia no metal. E ainda precisava iniciar o ritual de contato, porém estava um pouco surpresa consigo mesma. Normalmente, não conseguia concentrar-se em mais nada até que houvesse aquela fissura no tempo, até que vagasse pelo local por alguns minutos e completasse o longo processo.

Acreditava que sua terapeuta veria aquilo como um progresso, considerando a compulsão que lhe era tão comum e inegável: aqueles objetos preciosos, que remontavam desde os tempos do Egito antigo até a França gótica, da Guerra Civil Americana aos Estados Unidos de hoje, eram o que a ligava à sua casa quando estava longe.

Ainda assim, não havia pânico para se refugiar naquilo que era seu pela eternidade. Parecia que seu maior desejo era lamentar-se e andar sem direção. Tudo culpa de Jim Heron.

Ele era tão desafiador. Dominante. Extraordinário. Tinha sido escolhido por ela e por Nigel – aquele filho da mãe arrogante – por ter o bem e mal equilibrados dentro de si... E, conforme ela tinha aprendido ao longo dos tempos, quando tratava-se da humanidade, o mal sempre vencia. Achava que atraí-lo para o lado dela não seria nada além de uma tarefa tediosa, o tipo de coisa que sempre fez com homens e mulheres desde o primeiro momento de sua existência. Em vez disso... era ela quem estava sendo sugada e seduzida.

Heron era tão... incontrolável. Mesmo quando o dominou e brincou com ele, quando seus subordinados torturaram-no, quando a verdadeira natureza dela foi revelada... ele permaneceu firme, inflexível, intransigente. E aquela força deixava-o inatingível.

Nunca tinha visto aquilo antes. Em ninguém. A questão era: controlar fazia parte de sua natureza, pois era uma perfeita parasita. Procurava uma maneira de replicar sua essência até que o local no qual havia se infiltrado se tornasse dela para sempre.

O desafio que Heron representava era inebriante, um tapa no rosto, uma rajada de ar fresco. Mas também parecia esvaziar a importância de toda a existência das coisas.

Abrindo uma gaveta, tirou uma fina pulseira de ouro com uma pequena pomba como pingente. A inscrição no interior do objeto apresentava-se em letra cursiva e delicada. Era um presente de dois pais para uma filha. Com uma data do ano anterior. Blá-blá-blá.

Ela odiava o nome Cecília. Muito. Aquela virgem sem importância... Que espinho em sua vida. O propósito daquela garota de sobrenome Barten era apenas o de proteger o espelho. Mas, agora, aquele pequeno lixo tinha algum tipo de ligação com Jim...

Quando estava prestes a esmagar o frágil objeto, um calor percorreu seu corpo, como se o toque de um amante tivesse passado não apenas sobre sua carne, mas sobre seus ossos.

Jim. Era Jim. Ele chamava-a.

Descartando a pulseira, verificou se a gaveta estava mesmo fechada e foi até o espelho que usava apenas para checar sua aparência. Em frente a ele, mudou sua forma, assumindo o corpo de uma linda morena, com seios que desafiavam a gravidade e um traseiro com mais volume do que uma estante de livros.

Ajeitou o cabelo, alisou a saia preta e achou que a barra estava longa demais. Erguendo-a com a força, virou-se e viu que suas coxas lisas e perfeitas estavam à mostra. De repente, estava viva. Bem, tecnicamente, viva não era o termo correto. Mas era assim que parecia: em apenas um momento, seu humor mudou de sepulcral para sublime. Só que não seria idiota com relação a isso. Confiante em sua saia curta, no decote e nos belos cabelos, entrou no banheiro.

– Como estou?

Deu um pequeno giro em frente ao jovem pendurado de cabeça para baixo sobre a banheira. Só que ele não disse nada, mesmo de olhos abertos.

– Ah, o que é que você sabe?

Ela abaixou-se e mergulhou a ponta dos dedos no sangue que escorria continuamente da carótida do rapaz. Impaciente com a demora, traçou alguns riscos em volta dos batentes da porta e no chão, indo e voltando da banheira para umedecer os dedos novamente com a “tinta”. A pureza da essência do jovem formava um selo mais eficaz que qualquer alarme de segurança já criado por um humano... Além disso, o processo permitia que ela livrasse o mundo de mais uma criatura mortal.

Seu trabalho ficava mais fácil assim.

Terminou o assunto com o senhor Tagarela e virou-se para o antigo espelho envolto por uma moldura um tanto apodrecida pelos séculos. A superfície gasta exibia um reflexo em constante mudança, ondas de cinza-escuro e preto rodavam em torno de um fundo cuja cor parecia a mancha de um tapete velho. Aquilo era um horrível portal e a única maneira de se aproximar das almas que possuía.

– Fique aí – disse a ele. – Volto já.

Aproximando-se da superfície do espelho, foi puxada por uma força cruel e entregou-se livremente àquilo. O corpo que havia assumido tornou-se caramelo ao passar por aquele local. Do outro lado, emergiu sem muita firmeza, jogada pela tempestade, mas não precisou de tempo algum para se recuperar.

Ao ajeitar o cabelo e alisar a saia apertada, pensou ser uma falha não ter um espelho ali. No entanto, não precisava preocupar-se com a opinião de seus subordinados ou de suas almas... Oh, suas adoráveis almas... bem, tinham outras coisas em mente.

Inclinando a cabeça para trás, olhou as paredes que se estendiam por quilômetros num negro brilhante visível desde o chão de pedra. O contorcionismo dos condenados torturados desafiavam os limites de sua viscosa prisão; rostos, quadris, joelhos e cotovelos esticavam-se tentando alcançar uma liberdade impossível, as múltiplas vozes erguiam-se num lamento miserável e abafado.

– Como estou? – ela gritou para cima.

O volume do coro de gemidos aumentou como resposta, mas não lhe disseram absolutamente nada. Pelo amor de Deus, será que não conseguiria uma opinião? Qualquer uma?

Depois de olhar para si mesma mais uma vez, concedeu acesso a Jim, convocando sua forma física no local. Enquanto esperava, seu coração batia três vezes mais rápido, uma corrente percorria cada centímetro de sua pele com um chiado elétrico. Mas não demonstraria isso. Calma. Fique calma.

Jim chegou num redemoinho de névoa, e ela prendeu a respiração.

O salvador escolhido era o melhor exemplar que havia do sexo masculino. De uma constituição grande e letal, seu corpo era um instrumento de guerra e sedução. Era primitivo, intenso...

– Você me deseja – disse ela em voz baixa.

Os olhos dele estreitaram-se, e o ódio que havia neles fez mais pela libido de Devina do que um prato cheio de ostras poderia fazer.

– Não dessa maneira, querida.

Oh, como ele mentia.

Devina foi até a mesa de trabalho rebolando e passou as pontas dos dedos sobre a superfície esburacada e sem cor. As memórias dele amarrado nu, de pernas bem abertas e com seu sexo brilhando por ter sido usado há pouco, fizeram-na respirar fundo.

– Não? – ela disse. – Você me chamou. Não o contrário.

– Quero que me diga quem é a próxima alma.

Interessante.

– Então, Nigel mandou você até aqui quando fez a mesma pergunta a ele, não foi?

– Não disse isso.

– Bem, acho difícil acreditar que me procurou primeiro – murmurou em tom amargo. – E acha que vou te contar?

– Sim, acho.

Soltou uma risada violenta.

– Já deveria saber como sou.

– E vai me dizer.

– Por que eu haveria de...

Uma das mãos ergueu-se e Jim começou a passá-la pelo peitoral de maneira intensa e lentamente, oh, bem lentamente, descendo pelo seu estômago...

Devina engoliu em seco. E, então, sua boca ficou realmente seca quando ele segurou o próprio órgão entre as pernas.

– Tenho algo que deseja – ele disse asperamente. – E vice-versa.

Bem, bem, bem... Desejava ficar com ele, sim, mas era muito melhor quando a ligação era voluntária. Ele teria que se esforçar para fazer sexo com ela, sacrificar sua carne para obter informação... na frente de sua doce e estimada Sissy.

Devina olhou para a parede e encontrou a alma com a qual ele tanto se preocupava. Ao descer a garota, inclinou-se contra a mesa.

– O que, exatamente, você está me propondo?

– Diga quem é e eu fodo você.

– Faça amor comigo.

– Vai ser uma foda. Pode acreditar.

– Chame da maneira que quiser... mas não tenho certeza – que mentira. – É uma informação muito valiosa.

– Bem, sabe como eu sou.

Ah, ela sabia e desejava-o outra vez. Desejava sempre.

– Tudo bem – ela disse. – Vou te dizer quem é e, em troca, vai se entregar para mim sempre que eu quiser. Tem que estar à minha disposição.

Os olhos dele estreitaram-se outra vez, como fendas que o faziam parecer um predador.

E, então, houve apenas silêncio. Enquanto o silêncio estendia-se, ela permaneceu firme. Ele tinha voltado, isso era muito estranho, mas precisava agradecer a Nigel – o idiota que sempre seguia as regras – por isso. Se o arcanjo tivesse deixado escapar o nome da alma, aquele maravilhoso sacrifício não estaria acontecendo.

– Certo.

Devina começou a sorrir...

– Com uma ressalva – quando a expressão dela congelou, ele disse: – Ficarei com você agora em troca do nome. Então, veremos se é o correto. No final da rodada, se não tiver mentido... você terá o que deseja. Sempre que quiser.

Devina rosnou. Maldito livre arbítrio. Se ao menos pudesse dominar tal atributo de maneira mais apropriada, ele não imporia qualquer condição. Mas não era assim que funcionava.

Ainda há algumas brechas – pensou. Algumas maneiras de distorcer o acordo para que não falasse demais e ainda conseguisse possuí-lo.

– Temos um acordo? – ele perguntou.

Olhou sobre o ombro dele, enquanto se aproximava, em direção à pequena forma na parede que havia convocado para assistir de camarote o que aconteceria.

Quando Devina tocou o corpo forte e ergueu-se na ponta dos pés, ficou encantada com a carne rígida que acariciava. No ouvido de Heron, sussurrou: – Tire as calças.

– Feito ou não, demônio?

Estava inabalável diante dela, perfeitamente capaz de negá-la, tanto agora como no futuro. Mesmo estando bem na frente dela, era completamente intocável.

Só que era como ele mesmo havia dito, os dois tinham algo que o outro desejava.

– Tire as calças – afastou-se pronta para aproveitar o espetáculo. – Faça isso devagar... e teremos um acordo.

– Que maldição ele está fazendo lá?

Quando Adrian expressou toda sua retórica, indignado, não esperava uma reação de seu colega de quarto. Poderia passar com um carro sobre os pés de Eddie e, talvez, conseguisse obter um ai. Era mais provável que o anjo apenas piscasse os olhos e chutasse o veículo com força.

Sinceramente, aquela coisa toda de forte e silencioso podia ser bem irritante.

– Já faz duas horas – parou no pé da cama em que Eddie estava esparramado. – Ei? Está acompanhando a situação? Ou planeja dormir durante a rodada?

As pálpebras ergueram-se exibindo olhos vermelhos.

– Não estava dormindo.

– Meditando. Que seja.

– Não estava meditando.

– Tudo bem. Manipulando psiquicamente campos de energia...

– Você me deixa atordoado quando fica andando de um lado para o outro sem parar. Só estou evitando uma vertigem.

Não acreditou naquilo nem por um segundo.

– Preocupar-se um pouco com a situação o mataria?

– Quem disse que não estou preocupado?

– Eu disse – Adrian correu os olhos ao longo do corpo grande e imóvel de seu colega. – Estou prestes a pegar um desfibrilador e dar uma descarga na sua bunda.

– O que posso fazer, Ad? Ele voltará quando for a hora.

Imagens de Nigel, o afeminado, aproximando-se todo elegante de Jim fez Adrian pensar se não precisariam de um serviço funerário. Aquele arcanjo poderia passar o tempo jogando críquete e polo, mas não significava que não daria um jeito no cara... E Jim tinha deixado o local com vontade de acabar com alguém. Talvez o bastardo tivesse conseguido aquilo que procurava.

Adrian começou a andar novamente, mas o quarto de hotel não oferecia muito em termos de espaço. Pensou em descer ao bar...

Houve um rangido no quarto ao lado. Como se alguém tivesse sentado na cama. Ou aberto e fechado alguma coisa.

Ad estendeu a mão para a parte traseira da cintura e pegou a adaga de cristal. Se fosse apenas um humano tentando roubar um notebook, não precisaria daquilo. Mas, se Devina tivesse enviado mais um de seus subordinados para distraí-los, a arma seria bastante útil.

Empurrando a porta do quarto conjugado apenas um centímetro ou dois, inclinou-se. Uma camiseta preta foi arremessada para fora do banheiro. Em seguida, uma calça jeans.

Bota.

Bota.

O chuveiro foi acionado e, na sequência, houve um silvo, como se Jim não tivesse esperado a água aquecer primeiro.

Droga. Não tinha visitado apenas Nigel, tinha?

Adrian guardou a adaga outra vez, empurrou a porta com força, atravessou o quarto e sentou-se na cama do outro anjo. Deus sabia que não havia razão para arrancar a roupa e correr para uma ducha de água quente após um encontro com o arcanjo. O pobre coitado deve ter ido até Devina... E ninguém precisava pensar duas vezes para descobrir o que havia acontecido.

Ouvindo o som de Jim lavando o fedor do demônio, Adrian sentiu-se cansado ao ponto de perceber a visão turva de tanta exaustão. O que significava aquele caminho que o salvador decidiu seguir? Ir até lá. Fazer aquilo. Perder a cabeça.

Era este o negócio de Devina. Ela penetrava em você. No começo, você ainda achava que estava no controle. Depois, aquilo que fazia com ela, por razões que pareciam ser muito sensatas, devorava-o, e Devina entrava em sua pele e assumia a direção. Era assim que trabalhava e era muito bem-sucedida.

Quando Jim finalmente saiu do banheiro, parou com uma toalha nas costas, um braço erguido e outro abaixado. Havia marcas de arranhões nas coxas e no abdômen e seu sexo pendia desanimado, como se tivesse sido muito usado e deixado para morrer.

– Ela vai comê-lo vivo – Adrian disse.

O anjo responsável por salvar a tudo e a todos balançou a cabeça.

– De jeito nenhum.

– Jim...

– Ela vai nos dizer quem é a alma – Jim envolveu a toalha em torno de seus quadris. – Vamos encontrá-la amanhã cedo.

Caramba.

– Espere, ela não lhe deu a informação agora?

– Amanhã cedo.

Ad apenas balançou a cabeça.

– Ela está brincando com você...

– Ela vai mostrar. E vai dizer. Confie em mim.

– Ela não é uma fonte confiável. E esse não é o caminho da vitória.

– Então, você acha melhor obter o resultado da última rodada?

Bem... droga.

Jim foi até a mochila e pegou um uniforme militar. Quando virou-se e começou a se vestir, aquela tatuagem enorme em suas costas, com o Ceifeiro da Morte num cemitério, contorceu-se e voltou a assumir a forma original.

Talvez Jim fosse mais durão. Aquilo seria um golpe baixo e dolorido, algo que Ad admitiria apenas diante de sua carcaça fumegante. Mas, se o cara conseguisse suportar tudo aquilo... se pudesse, de alguma maneira, manter-se em pé... então, tinham a melhor arma naquela luta, pois o demônio tinha uma atração pelo cara. Uma grande atração.

Jim foi até o jeans que atirara pela porta do banheiro e vasculhou os bolsos. Quando ergueu-se novamente, havia um quadrado de papel dobrado em suas mãos.

As mãos tremiam, ainda que levemente. Quando ele abriu cuidadosamente o papel, Adrian, mesmo sem ver o que havia ali, esfregou o rosto e desejou que um carro tivesse caído sobre sua cabeça. Sabia muito bem que era o objeto pessoal daquela garota que encontraram sobre a banheira de Devina – a virgem pela qual Jim estava obcecado.

Idiota – Ad pensou. Estavam ferrados. Estavam muito ferrados.


CAPÍTULO 5

 

Veck acordou no sofá de sua sala de estar. O que foi uma surpresa, pois não tinha um.

Esfregando os olhos por causa da bela luz do sol, ficou surpreso por ter controlado o desejo de dormir mais perto da oficial Reilly, tanto que conseguiu se arrastar apenas até ali.

Sentou-se e olhou para a rua. O carro sem marcas de identificação havia partido, e ficou pensando em quando ela se fora. Da última vez que olhou, ainda estava lá, às quatro horas. Gemendo, esticou o corpo, seus ombros estalaram. Detalhes da noite anterior voltaram à memória, mas Veck, instintivamente, quis ficar longe do Monroe Motel & Suítes. Já sentia-se péssimo, não precisava adicionar uma dor terrível à fumaça que saía de sua cabeça.

Quando ficou em pé, ainda teve de lidar com uma ereção matinal obscena – outra coisa para se ignorar. Tinha a impressão de que se envolvera num sonho ousado e espetacular entre ele e a oficial do Departamento de Assuntos Internos. Alguma coisa sobre ela cavalgando em cima dele... O corpo de Veck estava quase todo vestido, ela estava completamente nua... não, espere, estava com o distintivo e a arma no cinto sobre o quadril.

– Droga... – quando seu pênis começou a ficar rígido, rezou para perder outra remessa de memórias de curto prazo e amaldiçoou o pornô clichê. Mas, agora, poderia entender por que os caras de outros departamentos achavam Reilly atraente.

Considerando a direção que seu cérebro estava tomando, não tinha certeza se adicionar cafeína à mistura era uma boa ideia, mas seu corpo precisava se reerguer. Foi chato quando descobriu que havia mentido para a oficial Reilly. Depois de ter conversado com ela e entrado, percebeu que estava sem pó de café.


No andar de cima, tomou banho, barbeou-se e vestiu o uniforme de trabalho: calça e camisa. Nada de gravata para ele, apesar de muitos detetives usarem. Nada de terno. Não usava nada desse tipo, a não ser jaqueta de couro, ou de motociclista, ou algo assim, bem informal.

No andar de baixo, pegou o casaco-reserva no armário, a chave da moto e trancou tudo. Ao se aproximar da BMW, lembrou que levaram várias coisas dele na noite anterior, por isso sentia-se tão leve. Nada de celular para checar as mensagens de voz. Nada de distintivo no bolso da frente. Nada de arma no coldre. Nada de carteira no bolso de trás da calça. A oficial Reilly ficou com tudo. Até com suas roupas de baixo.

Colocou o capacete e subiu na moto, a manhã estava clara e brilhante demais para ele... E nem tinha amanhecido completamente. Cara, considerando a pequena fresta que seus olhos conseguiam abrir, era bom saber que a moto já conhecia o caminho.

De la Cruz tinha levado Veck ao restaurante Riverside há alguns dias, e ele já se perguntava como tinha conseguido sobreviver, até então, sem uma boa dose daquela comida gordurosa. Seguindo o caminho do local, pegou as marginais pavimentadas, pois, mesmo às 7h45, a estrada principal estaria lotada.

O restaurante ficava às margens do rio Hudson, a apenas uns quatro quarteirões da delegacia... E, quando parou no estacionamento cheio de veículos sem identificação, entendeu que tinha chegado ao seu destino. Havia uma grande possibilidade de que metade da força policial também estivesse ali para tomar sua caneca de café de sempre, mas era tarde demais para ir a outro lugar.

Pouco antes de entrar, depositou 75 centavos numa máquina que distribuía o Correio de Caldwell e pegou um exemplar do jornal. Não havia nada sobre a noite passada na primeira página, então virou a página procurando um artigo que...

E lá estava seu nome. Em negrito.

A reportagem, no entanto, não era sobre ele ou Kroner. Era sobre seu pai, e ele rapidamente pulou o texto. Não queria acompanhar as acusações, o julgamento, a sentença de morte, nada que tivesse relação com seu pai. E, meu Deus, quando finalmente foi pego pela justiça criminal, ficou doente no dia em que cobriram o caso.

Não havia nada demais no resto da primeira sessão, nada nas notícias locais, nada nas seções de esportes, quadrinhos ou classificados. Porém, a falta de cobertura sobre o caso não duraria muito. Os repórteres tinham algum acesso aos relatórios policiais e, provavelmente, a história já estava na televisão e nos rádios. Um detetive do Departamento de Homicídios ligado tão diretamente aos atos de um psicopata? Era esse tipo de porcaria que vendia jornais e justificava os preços dos anúncios.

Ao empurrar a porta de vidro, entrou no ambiente ruidoso do Riverside com sua face enterrada nos artigos esportivos. O local estava cheio, quente e com um barulho tão alto como num bar. Teve o cuidado de não fazer contato visual com ninguém enquanto olhava ao redor procurando uma cadeira livre ou uma mesa vazia.

Não havia nada vago. Maldição. E não queria muito juntar-se a uma mesa cheia de oficiais da polícia. A última coisa que precisava era o monte de perguntas que seus colegas fariam. Talvez ele devesse ter ido direto à delegacia e recorrido a uma máquina de bebidas.

– Bom dia, detetive.

Veck olhou à direita. A bela oficial Reilly, que estava sentada na mesa mais próxima que havia da porta, de costas para ele, virou a cabeça a fim de olhar para ele por sobre o ombro. Tinha uma xícara de café à sua frente, um celular na mão e uma expressão de que nada fazia sentido.

– Quer me acompanhar? – disse, apontando para a mesa.

Ela devia estar brincando. Havia mais ou menos uma dúzia de membros da força policial olhando para eles... Alguns de uma maneira mais sorrateira que outros.

– Tem certeza de que quer ser vista comigo?

– Por quê? Não sabe se comportar à mesa?

– Sabe o que quero dizer.

Ela deu de ombros e tomou um gole do café em sua xícara.

– Nossa reunião com o sargento é daqui a vinte minutos. Vai ter muita sorte se conseguir um lugar para sentar até lá.

Veck deslizou na frente dela.

– Pensei que no Departamento de Assuntos Internos vocês sempre se preocupassem com o decoro.

– São apenas dois ovos, detetive, nada demais.

Veck colocou o jornal de lado.

– Está certo.

A garçonete veio com o bloco de notas e o lápis a postos.

– O que vai ser?

Não havia razão alguma para olhar o cardápio. O Riverside tinha todo tipo de omelete, ovos e torradas conhecidos pelo ser humano. Estava com vontade de comer uma torta no café da manhã? Um sanduíche com bacon e tomate? Cereais, aveia e panquecas? Muito bem, que seja... Mas faça logo seu pedido e coma rápido antes que outra pessoa sente no seu lugar.

– Três ovos mexidos. Gema dura. Torradas com manteiga. Café. Obrigado.

A garçonete sorriu como se tivesse aprovado a eficiência.

– Já vai sair.

Eeeee lá estava ele sozinho com Reilly. Ela tinha tomado banho e vestido um conjunto bem profissional de saia e camisa de botões. O tailleur, combinando com a roupa, estava dobrado com cuidado ao lado dela em cima do casaco. Seus cabelos vermelho-escuros estavam amarrados para trás outra vez e toda a maquiagem que ostentava era constituída apenas de um pequeno traço de batom.

De fato, quando ela apoiou a xícara de café na mesa, havia uma meia-lua rosa onde havia tocado com a boca. Não que ele estivesse observando os detalhes de seus lábios. Não mesmo.

– Estou com um relatório preliminar sobre o caso – ela disse.

Hum... aqueles olhos não eram apenas verdes, como ele havia concluído antes. Havia traços de avelã, produzindo uma combinação única de cores que parecia verde apenas a distância.

– Desculpe, o que você disse?

– Tenho um relatório preliminar de ontem à noite.

– E?

– Não foram encontradas outras armas no local.

Manteve-se tranquilo por força do hábito.

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a garçonete entregou o café dele e o pedido de Reilly: uma tigela de mingau de aveia com uma torrada. Sem manteiga.

– É só trigo? – ele perguntou.

– Sim.

Claro que era. Provavelmente ela comia uma salada leve no almoço com alguma fonte de proteína e uma taça de vinho, quando muito, e, no jantar, deveria ser apenas legumes e frango grelhado e alguma coisa com baixo índice glicêmico.

Ficou pensando o que ela teria achado do ataque cardíaco caprichado que ele pedira.

– Por favor, não espere por mim – ele disse.

Ela pegou a colher e adicionou uma pequena quantidade de açúcar mascavo e creme.

– Quer saber o que acho que aconteceu?

– Sim, quero.

– Um animal selvagem te atacou, e, em meio à confusão, você bateu a cabeça.

Ele esfregou o rosto.

– Não tenho marcas.

– Pode ter caído de costas.

Na verdade, não é que ele havia pensado nisso?

– Mas não há qualquer inchaço. E meu casaco ficaria todo sujo.

– Está sujo.

– Apenas por eu ter colocado sobre o Kroner.

Ela baixou a colher.

– Pode provar? Como sabe se foi só isso se não consegue se lembrar de nada? Além disso, sua cabeça estava te matando ontem à noite e, a propósito, você está fazendo isso outra vez.

– Fazendo o quê?

– Discutindo comigo sobre o que aconteceu. E também está esfregando a testa.

Quando ele amaldiçoou e voltou a colocar as mãos sobre a caneca de café, ela sorriu um pouco.

– Adivinhe só, detetive? Você vai ser examinado na delegacia assim que terminarmos nossa reunião.

– Estou bem – Deus, podia ouvir o tom dissimulado em sua voz.

– Lembra-se do que eu disse ontem à noite, detetive? É uma ordem.

Ao se ajeitar na cadeira e beber um pouco do seu estimulante, viu-se observando o dedo anelar de Reilly. Não havia nada. Nem mesmo uma marca mais clara, como se alguma já tivesse passado por lá.

Desejou que estivesse usando um anel de compromisso simples: ele não se metia com mulheres casadas. Nunca. Claro que já atrapalhou alguns casais em sua história de encontros casuais, mas apenas por não saber que eram comprometidas. Era um vadio com valores, sabe?

– Por que você não me suspende?

– Outra vez com uma negativa.

– Não quero que arruíne sua carreira comigo – murmurou.

– E não tenho qualquer intenção de permitir que isso aconteça. Mas não há evidência de que tenha sido você o responsável pelo ataque, detetive, portanto, é o suficiente... só não sei por que você continua a me pressionar.

Quando encarou os olhos dela, ouviu-se dizer: – Sabe quem é meu pai, não sabe?

Aquilo conteve-a por um momento, sua porção de fibras sem gordura voltou para o prato no meio do caminho. Até parou de mastigar.

Então, a bela oficial Reilly recuperou-se com um encolher de ombros.

– Claro que isso é ruim, mas não significa que você tenha dilacerado alguém – inclinou-se. – Mas é o que você teme, não? E por isso continua a bancar o advogado do diabo.

A garçonete escolheu aquele momento para aparecer com o prato fumegante cheio de colesterol, e sua chegada foi um salva-vidas conversacional, se é que existia este tipo de coisa.

Salgou o prato. Colocou pimenta. Espetou com o garfo e comeu.

– Ajudaria se conversasse com alguém? – Reilly disse, quase inaudível.

– Um psiquiatra?

– Terapeuta. Eles podem ser bastante úteis.

– Diz isso por experiência pessoal, oficial?

– Na verdade, sim.

Ele soltou uma risada alta: – Por algum motivo, não acredito que eu seja o tipo de pessoa que precise de algo assim.

– Todos têm problemas.

Sabia que seria um tanto inconveniente, mas sentiu-se nu – e no mal sentido.

– Então, conte-me um dos seus.

– Não estamos falando de mim.

– Bem, estou cansado de estar no palco sozinho – quebrou um pedaço de torrada em duas. – Vamos lá, oficial. Conte alguma coisa sobre você.

– Sou um livro aberto.

– Que precisa de terapia? – quando ela não respondeu, ergueu o olhar para encará-la. – Covarde.

Os olhos da mulher estreitaram-se, ela inclinou o corpo para trás e empurrou a vasilha, ainda metade cheia, para frente. Ele esperava alguma réplica espirituosa. Ou, mais ainda, um tapa. Em vez disso, ela enfiou a mão no bolso, pegou uma nota de dez dólares e a colocou entre eles sobre a mesa.

– Vejo você na sala do sargento.

Com uma graça sutil, distanciou-se, pegou o casaco, a bolsa e o celular.

Antes de sair, Veck agarrou seu pulso.

– Desculpe. Passei do limite.

Ela desprendeu-se e colocou o celular na bolsa.

– Até logo.

Depois que Reilly saiu, Veck empurrou o próprio prato, mesmo ainda tendo um ovo e meio nele. Ainda não eram nove horas... e já tinha ganho o prêmio de idiota do dia. Fantástico...

Uma corrente de ar passou por suas costas, eriçando os cabelos da nuca, e aquilo o fez virar em direção à porta. Uma mulher havia entrado e não pertencia ao local, assim como uma porcelana chinesa fina sendo vendida numa loja de departamentos qualquer. Quando seu perfume pairou no ar e ela tirou o casaco de pele, houve uma pausa audível nas conversas do local. Ela tinha acabado de expor seios enormes para metade do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando Veck observou-a, achou que deveria ter sentido alguma atração por ela, mas, em vez disso, aquele ar frio fazendo cócegas em sua coluna despertou nele o desejo de pegar uma arma e apontar em direção àquela mulher como um mecanismo de autodefesa. E como o desejo era forte.

Deixando uma nota de vinte, interou o valor do resto do café da manhã e dirigiu-se à porta. Ao sair, parou. Olhou ao redor. Sua nuca ainda estava alerta, seus instintos gritavam, principalmente quando olhou através das janelas redondas do restaurante. Alguém o observava. Talvez fosse aquela mulher com corpo de modelo de revista erótica, talvez outra pessoa. Mas seus instintos nunca mentiam.

A boa notícia era que talvez recebesse suas armas de volta naquela manhã. Então, pelo menos, poderia novamente se proteger.

Quando Jim estacionou no Riverside com sua Harley, um cara aproximou-se com uma bela moto BMW rugindo. Adrian e Eddie estavam bem atrás dele com suas motos, e os três estacionaram juntos do outro lado, próximo ao rio Hudson. Quando Jim desmontou e olhou para o lugar, concluiu que Devina havia lhe chamado para um encontro. Bem, tinha algo de especial ali. Esteve com sua primeira alma naquele mesmo restaurante.

Talvez Caldwell fosse um imã para almas condenadas. Ou talvez ela apenas gostava do café servido ali e lhe diria que a alma em questão estava em outro lugar.

Aproximando-se da entrada, viu que seus colegas não estavam para conversa... o que não era novidade da parte de Eddie, mas um milagre, no caso do outro anjo. Aquilo não duraria muito da parte de Ad.

O restaurante estava lotado, barulhento e cheirava a café e a manteiga derretida. Que maldito lugar para Devina escolher...

E lá estava ela, à esquerda, sentada numa mesa, observando a porta enquanto um raio de sol se derramava pela janela ao seu lado. Os raios cálidos e amarelos iluminavam perfeitamente seu rosto, como se estivesse prestes a ser fotografada, e Jim pensou na primeira vez que a viu naquele clube, parada sob uma luminária no teto. Ela, por si só, também brilhava.

O mal nunca pareceu tão atraente, mas, ao contrário dos outros homens, que olhavam sobre suas canecas e babavam como cães, Jim sabia quem aquela mulher realmente era... Não se distraía mais com aquele disfarce a ponto de deixar de perceber que ela não projetava sombra. Por mais brilhante que fosse a luz que a atingisse, não havia qualquer contorno de sombra sobre a mesa ou sobre o encosto do banco ao lado dela.

Por uma fração de segundo, visualizou a imagem deles dois juntos na noite anterior. Tentou penetrá-la por trás sobre a mesa, mas ela insistiu em transar face a face. Sinceramente, ficou surpreso por conseguir uma ereção, mas a fúria também deixava-o rígido, por algum motivo. Ao menos com ela.

Quando desvencilhou-se daquela cena grosseira, suada, olhou ao redor, em direção às paredes, imaginando Sissy presa naquele emaranhado de condenados. Rezou para que sua garota não tivesse visto aquilo. Deus, pensar que ela poderia ter...

Mas chega disso. Aproximando-se de Devina, bloqueou todos os pensamentos em relação a Sissy, ao sexo que teve com o inimigo ou até mesmo em relação ao jogo em si.

– Então, quem é? – ele disse.

O demônio olhou por cima do Correio de Caldwell, seus olhos negros percorreram rapidamente o corpo de Jim e fizeram com que ele sentisse vontade de tomar outro banho... dessa vez, com uma lixadeira.

– Bem, bom dia, Jim. Gostaria de sentar ao meu lado?

– De jeito nenhum.

O cara na mesa em frente à dela olhou por cima do ombro. Como se não tivesse aprovado o tom ou o linguajar de Jim com a moça.

É só aparência, cara – Jim pensou.

Devina abaixou o jornal e voltou-se para suas panquecas de leite e manteiga e para seu café.

– Tem uma caneta?

– Não brinque comigo.

– Um pouco tarde para isso. Caneta?

Como algumas pessoas tentavam passar, Jim e seus colegas tiveram que virar de lado. Eddie tirou uma caneta do bolso e entregou-lhe.

Devina destampou a coisa com suas mãos longas e tratadas. Em seguida, dobrou o jornal na parte de palavras cruzadas.

– Uma palavra com sete letras para...

– Droga, Devina, pare...

–... antagonista.

–... com essa merda.

– Na verdade, Jim, “merda” tem cinco letras. Mas eu não estou fazendo isso, estou? – Devina começou a escrever a palavra com cuidado. – Acredito que “inimigo” seja a palavra que procuro. E terá de se sentar comigo, sozinho, ou vai cair no corredor por suas pernas adormecerem de tanto ficar de pé.

Fez mais um registro cuidadoso sobre o jornal. Imaginou se ela não estaria trabalhando numa palavra equivalente a “dor no traseiro”.

Jim olhou para seus amigos.

– Já vou sair.

– Adeus, Adrian – disse Devina com um aceno – Mas vejo você em breve... tenho certeza.

O demônio não disse nada a Eddie. Afinal, ela gostava de provocar as pessoas, mas Eddie era tão calmo e impassível que simplesmente não valia a pena. O que colocava ele e Adrian no departamento de opostos que se completam.

Quando os dois anjos saíram, Jim sentou-se.

– E então?

– Não gostaria de tomar café?

– Quem é, Devina?

– Odeio comer sozinha.

– Você poderia prender a respiração até eu decidir acompanhá-la... O que acha disso?

Os olhos negros de Devina assumiram um tom objetivo.

– Vamos brigar?

Com isso, Jim soltou uma risada sincera.

– É a razão pela qual estamos aqui, querida.

Ela sorriu um pouco.

– Acho que é a primeira vez que ouço algo assim vindo de você.

Jim foi interrompido quando a garçonete chegou com um bule de café.

– Nada para mim, obrigado.

– Ele vai querer café e waflles.

Quando a garçonete olhou para Jim como se dissesse “vamos lá, decida-se”, ele deu de ombros e deixou por isso mesmo.

Ao ficarem sozinhos outra vez, Devina olhou novamente para suas palavras cruzadas.

– Não terá outra chance comigo a menos que comece a falar.

Houve uma pausa, como se o demônio pensasse em alguma maneira de prolongar o encontro. Finalmente, começou a bater no jornal com a ponta da caneta de Eddie.

– Você lê o Correio de Caldwell?

– Às vezes.

– É um verdadeiro tesouro de informações – ela fez um espetáculo para exibir a primeira parte do jornal. – Nunca se sabe o que pode encontrar nele.

Achatou o papel, virou-o em direção a Jim e passou a encará-lo do outro lado da mesa.

Jim olhou para baixo. Três grandes artigos. Um sobre o projeto de uma nova escola no bairro. Outro sobre o aumento do número de pequenas empresas. E um terceiro sobre... A ponta da caneta de Eddie apontou o último artigo.

– Acho que cumpri minha parte do acordo – disse lentamente.

A manchete dizia: “Agendada a execução de DelVecchio”.

Jim percorreu o artigo rapidamente e pensou: Droga, esta é a alma?

Quando Devina já ia recolher a caneta, ele estendeu a mão e fechou-a sobre o pulso dela, mantendo-o no lugar.

Na verdade, a ponta da caneta apontava um nome escrito ao longo do artigo... E não era o nome do serial killer DelVecchio. Era o filho do cara... Thomas DelVecchio Jr. Um detetive da força policial de Caldwell.

Jim encarou o inimigo do outro lado da mesa e sorriu.

– Pegadinha?

Seus cílios baixaram numa atitude tímida.

– Sempre.

Chega de Devina e de perder tempo, Jim levantou-se e levou a caneta com ele.

– Aproveite meus waffles, querida.

– Ei, como vou terminar minhas palavras cruzadas?

– Tenho certeza de que dará um jeito. Até mais.

Jim saiu do restaurante e seguiu direto para seus amigos. Quando aproximou-se das motos, estendeu a caneta a Eddie.

– Sua caneta – quando o anjo foi pegá-la, Jim segurou-a. – Há metal em volta do bico. Da próxima vez, ofereça uma canetinha hidrográfica.

Quando Jim começou a estender a perna sobre o banco da moto, Adrian perguntou.

– O que ela disse?

– Parece que vamos ter que entrar no mundo dos policiais e dos ladrões.

– Ah. Bom – Ad montou sobre sua moto. – Pelo menos eu falo a mesma língua deles.


CAPÍTULO 6

 

Reilly entrou na delegacia pela porta dos fundos e passou pelo corredor de concreto que daria na mais nova, renovada, inspiradora e motivadora recepção. Infelizmente, a estátua de bronze da Dama da Justiça, com sua balança e espada, era uma interpretação moderna do clássico greco-romano, e mais parecia queijo derretido. Queijo derretido velho e marrom.

Andar ao redor da deusa de olhos vendados e dos pequenos holofotes que a iluminavam de baixo para cima dava uma ideia exata da confusão que havia no lugar. Entretanto, a maioria da força policial, dos advogados e dos promotores que passavam por ali eram ocupados demais para se preocupar com a decoração: o pessoal tinha muita coisa a fazer. O Departamento de Segurança e a Central de Detenções estavam à direita, além da cadeia em si. Os registros eram feitos no setor à esquerda. No andar de cima, estavam as salas dos departamentos de Homicídios e de Assuntos Internos, bem como a sala de reuniões e o vestiário. No terceiro andar, havia o novo laboratório e o local de armazenamento de evidências.

Reilly subiu as escadas de dois em dois degraus, ultrapassando dois colegas que iam mais devagar que ela. Mas, quando chegou ao segundo andar, perdeu o ímpeto. A grande área aberta à sua frente tinha uma série de mesas onde o pessoal do suporte administrativo trabalhava. E, bem no centro do local, em meio ao pessoal, estava Britnae, a gostosa da delegacia.

A loira tinha um espelho nas mãos e passou com os dedos uma sombra de alguma marca famosa nos olhos. O próximo passo foi arrumar os cachos. Por último, pressionar os lábios e fazer beicinho. O tempo todo inclinava-se para frente e exibia o par de silicones para si mesma... Era evidente que estava satisfeita com a maquiagem e com aquela maravilhosa paisagem.


Britnae virou o pulso e checou um daqueles relógios femininos minúsculos que algumas mulheres usam, do tipo que têm pulseiras delicadas e os ponteiros sobre um fundo perolado. Provavelmente, ela tinha um monte de pulseiras e brincos em alguma prateleira ou armário cheio de coisas cor-de-rosa.

O guarda-roupa de Reilly parecia o do Marilyn Manson e dispensava joias. Seu relógio? Era simples. Preto e à prova de choque.

Três chances para adivinhar como Britnae ficaria quando... só precisou de uma: a garota ficava ofegante na frente de Veck desde o dia em que o cara entrara ali há duas semanas. Não que fosse da conta de Reilly.

Antes que alguém a acusasse de xereta, apressou-se para o Departamento de Assuntos Internos e entrou em seu cubículo. Fingindo estar alerta, acessou o computador, mas, quando entrou no e-mail, tudo tinha sido traduzido para uma língua estrangeira. Ou isso, ou seu cérebro tinha esquecido o inglês.

Maldito DelVecchio.

Chamá-la de covarde? Só por querer manter o profissionalismo? Não sabia metade do inferno pelo qual tinha passado. Além disso, estava tentando ajudá-lo...

Aquilo deu vontade de descarregar no cara sua nove milímetros como café da manhã.

Seguindo o programa, acessou o relatório que havia enviado a si mesma por e-mail mais cedo e verificou, outra vez, o trabalho, revisando todo o documento do início ao fim. Quando o telefone tocou, ela atendeu sem olhar.

– Reilly.

– Thomason – ah, o cara do laboratório. – Só queria avisar que acho que os ferimentos de Kroner foram resultado de dentes.

– Como...

– Presas, especificamente. Encontrei os paramédicos ontem à noite no pronto-socorro e estava lá quando Kroner foi entubado, costurado e até quando recebeu uma transfusão. Observei bem as feridas do rosto e do pescoço. Quando uma faca é usada num ataque como aquele, tende a deixar contornos bem claros nas lacerações. A carne dele foi rasgada... algo parecido com o que eu vi quando aquele tigre comeu o treinador de animais no ano passado.

Aquilo confirmava suas conclusões, não é mesmo? E fez com que se perguntasse o que poderia estar perambulando por aquela floresta.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Não tenho certeza. Peguei algumas amostras do tecido... Só Deus sabe quantas espécies existem... Vamos descobrir que tipo de saliva foi deixada. Porém, posso adiantar uma coisa: seja lá o que for... estamos falando de algo grande, poderoso e... furioso.

– Muito obrigada por me ligar tão rápido.

– Sem problema. Vou tirar um cochilo e voltar ao trabalho em seguida. Entro em contato.

Depois que desligou, Reilly digitou um adendo ao seu relatório, pressionou Ctrl+P e, em seguida, enviou o documento por e-mail ao sargento. Pegou uma pasta, o celular e esperou a impressora terminar de liberar as páginas do relatório.

Ao menos tinha uma evidência para confirmar o que havia dito ao sargento antes do café da manhã. Com isso, começou a pensar no restaurante. Não deveria ter convidado Veck para se juntar a ela. Ele estava certo... parecia ruim, mas, mais que isso, poderiam ter evitado aquela conversa desagradável. Na verdade, aquilo a chateou. Não deveria. Um comentário inapropriado no café da manhã? Não deveria incomodá-la. Não mesmo. Ou teria sido uma reação alérgica à palavra covarde? Sim, era isso.

Veck atravessou o saguão da delegacia como um jato, passava rápido pelas pessoas, quase corria. Chegou à escada e subiu os degraus de pedra de dois em dois. Quando chegou ao segundo andar, dirigiu-se à esquerda, mas não ia ao seu escritório. O lugar ao qual precisava ir era o Departamento de Assuntos Internos... do nada, uma coisa rosa e loira entrou em seu caminho.

– Oi!

Quando olhou a garota, entendeu o que os tornados deveriam achar de um trailer quando atingiam algum pelo caminho: absolutamente nada. Ele quase passou por cima dela para chegar a Reilly, por assim dizer.

– Oi. Desculpe... estou atrasado.

Infelizmente, Britnae decidiu dançar uma valsa com ele no corredor, indo para a direita e para a esquerda. Quando ele parou, ela respirou fundo, ou arqueou as costas, ou esbarrou em algum compressor de ar, pois, de repente, parecia Jessica Rabbit, a personagem sensual que vivia exibindo o decote. Se ela mostrasse mais um pouco dos seios, estaria pronta para uma mamografia.

– Então... – ela balbuciou – eu estava pensando se você não gostaria de um pouco de café...

Chá... ou, quem sabe, eu mesma? – ela terminou a sentença mentalmente.

– Obrigado, mas estou atrasado para uma reunião – driblou-a.

Nova barreira.

– Bem, eu poderia trazer para você!

– Não, obrigado...

Ela colocou uma das mãos sobre o braço de Veck.

– Sério, eu não me importo...

A oficial Reilly visualizou o momento ao sair da sua sala nos Assuntos Internos. E, como pode imaginar, não hesitou ou mostrou qualquer mudança em sua expressão facial... Por que vê-lo dar o fora em alguém a incomodaria?

Quando passou, assentiu para ele dizendo oi para aquele atraso de vida.

– Tenho que ir – disse Veck, já mais que atrasado.

– Vejo você mais tarde – Britnae disse em voz alta.

– Reilly – sussurrou – Reilly.

A mulher que realmente interessava parou em frente à sala do sargento.

– Sim?

– Sinto muito pelo que disse. Passei dos limites.

Reilly colocou a pasta sobre o braço e passou a mão pelos cabelos.

– Está tudo bem. É um momento de estresse. Entendo.

– Não acontecerá de novo.

– Não faria diferença para mim se acontecesse.

Com isso, ela virou-se com seus sapatos de salto baixo e entrou na sala de espera. Certo... essa doeu. Mas não podia culpá-la.

Em vez de segui-la, ele ficou ali parado como uma árvore enquanto a porta fechava-se diante de seu rosto, com vontade de chutar o próprio traseiro. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café fresco que indicava a proximidade de seu parceiro.

José De la Cruz parecia cansado, mas alerta; era assim que o cara costumava estar sempre.

– Como estamos?

– Péssimos.

– Não me diga – entregou um dos dois cafés que segurava. – Beba isto. Ou, se conseguir, injete um pouco na veia.

– Obrigado, cara.

– Está pronto?

Não.

– Sim.

Ao entrar na sala, Reilly olhou para trás e acenou para De la Cruz, em seguida, voltou a conversar com a assistente do sargento.

Veck acomodou-se numa das tradicionais cadeiras de madeira alinhadas contra a parede da sala de espera do escritório do sargento, revestida de painéis também de madeira. Enquanto bebia o café, observava cada detalhe em Reilly: a maneira como tocava o brinco direito, como se estivesse meio solto, como fazia ao dobrar a perna, como batia a ponta do sapato enquanto tentava argumentar, o fato de que, ao sorrir, exibia o ligeiro brilho de um preenchimento de ouro no molar superior. Era muito atraente. Atraente mesmo.

– Então, tentei ligar para você ontem à noite – De la Cruz disse em voz baixa.

– Meu celular está no laboratório.

– Você deveria ter um telefone fixo.

– Sim – olhou para seu parceiro. – Acho que não encontraram muita coisa na floresta.

– Nada.

Sentaram-se lado a lado, bebendo café em copos de papel com imagens de cartas de baralho. O café estava horrível, mas estava quente e deu-lhes algo a fazer.

– Você pensou em matar Kroner, não? – quando Veck encarou-o, o outro detetive deu de ombros. – Vi você com aquele paparazzo, lembra? Fui eu quem tirou você de cima dele. Quanta raiva.

Veck voltou a observar Reilly, contente por ela estar compenetrada na outra conversa. Assentindo na direção dela, disse em voz baixa: – Ela acha que não fui eu. Porém, estou com a impressão de que você acha.

– Não disse isso.

– Não precisa.

– Não, eu vi como Kroner ficou. Você também. É uma equação sem lógica.

– Então, por que falou nisso?

– Porque está na sua mente.

Veck produziu um barulho evasivo.

– Se ela recomendar que eu continue na ativa, haverá algum problema para você?

– Não, mas acho que você não deveria sair nas ruas sozinho neste momento.

Engraçado, ele achava a mesma coisa. E era uma droga.

– Vamos ficar algemados um ao outro, então?

O sargento abriu a porta de seu escritório, mostrando a cabeça grisalha.

– Vamos lá?

Reilly despediu-se da assistente, e Veck e De la Cruz seguiram-na ao longo do grande escritório. A mesa de reunião, na outra extremidade da sala, era grande o suficiente para comportar a todos com conforto, e Reilly escolheu a cadeira mais distante de Veck para se sentar... ou seja, estava bem diante dele. Nada de contato visual. Isso não o surpreendeu.

Que inferno.

– Bem, li o relatório que me enviou por e-mail – o sargento disse a Reilly. – Mais alguma coisa?

– Apenas um adendo, o qual eu também enviei – ela passou algumas cópias ao sargento e, em seguida, entrelaçou os dedos e sentou-se. – Mantenho minhas conclusões.

O sargento olhou para De la Cruz.

– Alguma coisa a acrescentar?

– Não. Também li o relatório e isto diz tudo.

– Então, estou propenso a concordar com a oficial Reilly – o sargento olhou para Veck com firmeza. – Gosto de você. É o meu tipo de policial. Mas não vou permitir que alguém que represente perigo a outras pessoas carregue um distintivo. Reilly é sua nova parceira... Veck, não posso dispensar De la Cruz durante o seu período probatório, que será de um mês, no mínimo.

Reilly não mostrou qualquer reação diante da mudança, mas era uma profissional, não era?

– Ainda posso trabalhar no caso de Kroner? – Veck perguntou.

– Não nesta vida. A partir de hoje, você assumirá os casos antigos pelos próximos trinta dias e terá reuniões periódicas com o dr. Riccard.

Ah, sim, o psicólogo do departamento. E, no silêncio que se seguiu, Veck sabia que todos esperavam que soltasse algum protesto, mas, afinal, não poderiam considerá-lo uma máquina mortífera selvagem.

Não mesmo. Por exemplo, não conseguia deslocar o ombro, não morava na praia com um cachorro e não saía por aí tentando liberar seu instinto assassino. Logo...

– Certo.

O sargento pareceu um pouco surpreso, mas bateu na mesa com o nó dos dedos, algo que Veck concluiu ser um gesto de satisfação do cara.

– Ótimo. De la Cruz, quero falar com você. Quanto a vocês dois... terminamos.

Reilly saiu do escritório tão rápido quanto um tiro, mas Veck também conseguia correr daquele jeito. Saiu bem atrás dela e alcançou-a na saída do corredor.

– Então, como será? – ele falou.

Era tudo o que tinha a dizer. Desculpar-se não adiantou e, de alguma maneira, também não conseguia pensar em agradecê-la pelo relatório.

Reilly deu de ombros.

– Vou terminar o que estava fazendo esta manhã e, depois, poderemos nos ater aos casos antigos.

– Durante trinta dias.

– Trinta dias – ela não parecia entusiasmada, mas também não parecia temer o que estava por vir. Veck concluiu, com isso, que não seria fácil conversar com ela no tempo livre.

– Vejo você às treze horas em ponto no seu departamento, detetive.

– Entendido, oficial.

Mesmo andando, ela fez alguma anotação em seus papéis ao sair, a cabeça estava enterrada no trabalho. Dois rapazes passaram, olharam para ela e continuaram a olhar, como se esperassem alguma troca de contato visual. Mas ela não ergueu a cabeça. Nem notou-os. Contudo, Veck percebeu muito bem aquilo. E desejou fazer algum ajuste óptico naqueles bastardos.

– Você deixou isto no escritório do sargento.

Veck virou-se. De la Cruz tinha saído e levava o café de Veck.

Bem, aquilo não pareceu nada estranho. Não mesmo.

– Obrigado, cara – Veck pegou o copo de papel e tomou um gole. A única coisa que redimia a bebida tinha passado: a porcaria estava morna. – Bem, estava sendo bom trabalhar com você.

– Posso dizer o mesmo – José estendeu uma das mãos. – Mas, quem sabe? Talvez volte a ser designado meu parceiro daqui a um mês.

– Sim – porém, de alguma forma, Veck tinha a sensação de que seus dias no Departamento de Polícia de Caldwell estavam contados.

Voltaram ao Homicídios em silêncio e, quando abriram a porta do departamento, todos os detetives que ali estavam desviaram o olhar das paredes cinzentas que dividiam seus cubículos. Veck não viu razão alguma para suavizar as coisas.

– Na ativa. Nada de Kroner. Com Reilly.

Várias cabeças assentiram para ele e, cara, agradecia quando as pessoas eram legais. Na verdade, ali havia pessoas decentes trabalhando duro por pouco dinheiro e não tinham muito tempo para bobagens. Além disso, bem ou mal, depois de ter acertado aquele paparazzo, ganhou bastante respeito.

Quando todos voltaram ao trabalho, José bateu sobre o ombro de Veck e dirigiu-se à própria mesa. Veck não perdeu tempo. Sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e checou seus e-mails.

Casos antigos, hum? Era uma categoria muito ampla. Acessando a base de dados do departamento, puxou todos os relatórios de pessoas desaparecidas. E aquilo fazia parte, tecnicamente, de casos antigos, não? Uma vez que ainda estavam abertos. Ao iniciar a pesquisa, esparramou-se e deixou o computador trabalhar. Engraçado como o resultado da pesquisa exibiu apenas dados de mulheres, entre 16 e 30 anos, registradas como desaparecidas nas últimas, digamos... três semanas? Quando foi mesmo que Kroner apareceu atuando naquela área?

Não era coincidência.


CONTINUA

CAPÍTULO 1


Era primavera, numa noite escura de abril, quando o detetive Thomas DelVecchio Jr. entendeu que pesadelos poderiam, de fato, saltar da mente e tornar-se realidade. Infelizmente, isso, para ele, não era bem uma novidade.

Havia sangue por toda parte. Um vermelho brilhante sob o luar, como se um galão de tinta tivesse sido derramado no local, não apenas sobre o chão da floresta... mas sobre aquele homem estraçalhado em meio às folhas secas, bem aos pés de Veck.

Contudo, toda aquela confusão vermelha não era de tinta látex para interiores. Ou de tinta a óleo para acabamentos. Ou, ainda, de tinta para paredes externas. Não se poderia comprar aquilo numa loja de tintas e limpar tudo com solvente, muito menos era algum corante daqueles filmes de terror de segunda.

Aquilo era a vida real, sim, bem ali, diante dele. Escorrendo por todos os cantos.

O que ele havia feito? Santo Deus...

Arrancando sua jaqueta de couro, ajoelhou-se para pressioná-la contra o tórax descoberto do homem. Sons de líquido borbulhando misturavam-se com os da forte respiração de Veck, que encarava aqueles olhos escurecendo-se rapidamente.

– Eu matei você? Será que eu...?

Nenhuma resposta. É claro que as cordas vocais do bastardo deviam estar penduradas num galho qualquer.

Droga... que droga... era como a noite em que sua mãe havia sido morta.

Só que, neste caso, ele realmente veio para esquartejar alguém.

De uma coisa tinha certeza: estava com sua moto, dirigiu até ali e esperou escondido na floresta até o maldito psicótico aparecer – mentindo a si mesmo, o tempo todo, sobre estar ali apenas para prender o “suspeito”. Mas as suas mãos diziam a verdade. Quando sua presa finalmente chegou, a faca estava empunhada e atuou como uma sombra com suas roupas pretas, aproximando-se...


X


O Monroe Motel & Suítes estava a pouco mais de dez metros dele, do outro lado da espessa barreira de arbustos e pinheiros. Iluminado por luzes de um amarelo que mais parecia urina, a tentativa decadente do local de chamar a atenção para o aluguel de quarto por uma noite, ou por uma hora, foi a razão para ele e o assassino terem saído de casa naquela noite.

Serial killers costumam colecionar troféus de suas vítimas. Incapazes de formar laços emocionais adequados com as pessoas e carentes de representações físicas do poder fugaz que exercem sobre suas presas, revestem os objetos de emoções ou lembranças das pessoas que massacraram.

David Kroner havia perdido sua coleção de recordações há duas noites. Quando o trabalho que fazia ali foi interrompido e a polícia cercou a cena do crime. Então, é claro que retornaria ao local onde esteve no controle da situação pela última vez. Era o máximo que poderia reconquistar daquele momento.

– Chamei uma ambulância – Veck ouviu-se dizer, sem saber ao certo com quem estava falando.

Mudando o foco de seu olhar, concentrou-se no último quarto do motel, próximo de onde estavam e longe da sala da gerência. Um selo oficial do Departamento de Polícia de Caldwell estava fixado à porta e aos batentes, e a fita que envolvia a cena do crime produzia um ruído com a brisa que nela batia. Numa fração de segundos, visualizou o que ele e os outros oficiais tinham encontrado havia duas noites: outra jovem mulher, que acabara de ser morta e estava prestes a ter sua carne recortada para ser levada como lembrança.

Mais sons de algo borbulhando.

Olhou para baixo. O homem que sangrava era magro e fino, portanto, fazia sentido as vítimas de David Kroner serem jovens, aparentando idade entre 16 e 24 anos. Não precisava ser forte como um cão de guarda para fazer o trabalho. Os cabelos loiros de Sandy afinavam no alto da cabeça. A pele branca tornava-se cinza, pelo menos onde não estava coberta de sangue.


Mergulhando em seu banco de dados mental, Veck tentou se lembrar do que diabos havia acontecido. Após esperar por um período de tempo que lhe pareceu dias, o estalar de galhos finos chamou-lhe a atenção, foi quando viu Kroner andando na ponta dos pés entre os pinheiros.

No instante em que avistou o homem, pegou a faca, agachou o seu corpo e, em seguida...

– Filho da mãe!

A dor de cabeça veio com força, como se alguém tivesse batido um prego em seu lobo frontal. Erguendo uma das mãos, inclinou-se para a esquerda e pensou, muito bem, ótimo. Quando a ambulância chegasse, os médicos poderiam diagnosticar nele um aneurisma.

Ao menos isso lhes daria algo para fazer – Kroner já seria um cadáver quando chegassem ali.

Quando a dor lancinante passou um pouco, Veck tentou, outra vez, lembrar-se de mais alguma coisa... apenas para voltar com força total à necessidade de tomar um analgésico urgentemente e, em seguida, sofrer um apagão mental novamente. Com a nova rodada de agonia que floresceu em seu crânio como se fosse um buquê vermelho brilhante, fechou os olhos e pensou em vomitar – e, enquanto a dúvida sobre pôr ou não tudo para fora enfurecia suas entranhas, percebeu que era hora de ser honesto consigo mesmo. Por causa do enorme buraco negro em suas lembranças de curto prazo, sabia apenas que tinha sim ido até lá para matar aquele filho da mãe pervertido que, incluindo a última vítima na contagem, havia atacado pelo menos onze mulheres de Chicago a Caldwell no ano passado.

Horrível, é claro. Mas era um amadorismo comparado ao próprio pai de Veck – que fizera tudo aquilo num espaço de três meses: Thomas DelVecchio pai escreveu a cartilha para caras como Kroner.

E foi seguindo essa linha de raciocínio que Veck chamou não apenas a ambulância, mas também seu parceiro do Departamento de Homicídios.

Por mais que detestasse admitir, era filho de seu pai: foi até ali para matar. Ponto final. E o fato de sua vítima ser um imbecil violento não era nada além de um filtro social aceitável para a realidade.

No fundo, não se tratava de vingar as garotas mortas.

E, pelo amor de Deus... sabia que o que acontecera naquela noite era inevitável. Ao longo de toda sua vida, aquela sombra esteve atrás dele, guiando-o, seduzindo-o, puxando-o em direção àquela cena de destruição. Então, fazia sentido não se lembrar de nada. Sua outra metade finalmente havia assumido o controle e não tirou as mãos do volante até que todo o ato de violência estivesse feito. Prova disso? Em algum lugar na parte de trás de sua cabeça, ecoava um riso, maníaco e satisfeito.

Certo, muito bem, divirta-se agora – pensou, pois não iria mais deixar-se levar tão longe em direção aos passos de seu pai...

O som de sirenes surgiu vindo do Leste e ficava cada vez mais alto e rápido.

Aparentemente, não foi o único que ouviu o alarme. Um homem saiu rapidamente de um dos quartos do hotel e correu em volta do capô de um carro já com seus dez anos, bastante usado, que tinha uma treliça metálica sobre o para-choque. Foi meio difícil pegar as chaves, já que puxava as calças ao mesmo tempo. Em seguida, no mesmo ritmo de fuga, veio uma mulher de aparência rude que tropeçava ao se aproximar de um velho Honda Civic enquanto descia sua minissaia.

As partidas ruidosas e desenfreadas deixaram o estacionamento vazio quando a ambulância surgiu na entrada do local e parou em frente à sala da gerência. Quando um paramédico saiu do banco do passageiro, um homem que deveria ser o gerente abriu a porta, Veck assoviou com força: – Aqui!

Parece que o gerente não tinha a menor intenção de se envolver e voltou para trás. Mas o paramédico correu e a ambulância percorreu o estacionamento atrás dele. Quando chegaram, Veck ficou muito calmo – mortalmente calmo. Tão intocável quanto a fria e distante lua que os vigiava naquela noite densa e escura.

Dane-se seu lado negro. Foi ele quem tinha feito aquilo. E obrigaria a si mesmo a pagar por isso.

A oficial de Assuntos Internos, Sophia Reilly, dirigia a todo vapor em seu carro sem marcas de identificação, disparando ao longo de uma área remota junto aos limites sujos de Caldwell, enquanto percorria a Rota 149 numa corrida louca – o fato de estar a caminho da cena de um crime não justificava a alta velocidade. Ela dirigia rápido, comia rápido e odiava esperar em filas, aguardar pessoas ou informações.

Se apenas pudesse evitar a colisão com um cervo antes de chegar ao Monroe Motel & Suítes...

Quando seu celular tocou, já estava com ele em seu ouvido antes do segundo toque.

– Reilly.

– Detetive De la Cruz.

– Oi. Adivinhe para onde estou indo agora?

– Quem te ligou?

– 190. Seu parceiro está na minha lista de coisas a fazer... então, quando ele liga chamando uma ambulância, pede reforços no meio da noite e diz que não se lembra do que aconteceu com a vítima, eu recebo uma ligação básica.

Infelizmente, aquilo era algo com o que ela já estava se familiarizando. Thomas DelVecchio Jr. estava trabalhando no Departamento de Homicídios há apenas duas semanas e já quase tinha sido suspenso por nocautear um paparazzo que tentara tirar uma foto de uma vítima.

No entanto, aquilo era brincadeira de criança se comparado à confusão de agora.

– Como descobriu? – ela perguntou.

– Ele me acordou.

– E o que lhe pareceu?

– Vou ser honesto com você.

– Sempre é, detetive.

– Parecia que estava bem. Reclamou de uma dor de cabeça e perda de memória. Disse que havia muito sangue e que tinha certeza absoluta de que a vítima era David Kroner.

Mais conhecido como o bastardo doente que havia retalhado garotas e guardado pedaços delas. A última sessão de “trabalho” do bastardo tinha sido dirigir até aquele hotel há duas noites, mas foi interrompido por desconhecidos. Com a confusão, Kroner escapou por uma janela do banheiro, deixando para trás um cadáver numa posição trágica e uma caminhonete cheia de frascos com amostras e outros objetos – todos eles foram catalogados em seu esconderijo, e havia referências cruzadas a nível nacional.


– Perguntou se foi ele quem fez isso? – como membro do Departamento de Assuntos Internos, Reilly investigava os delitos de seus colegas e, apesar de se orgulhar do trabalho que fazia, não gostava do fato de que as pessoas com sua função sempre tivessem muito trabalho. Seria melhor se todos, incluindo os oficiais da lei, jogassem segundo as regras.

– Ele disse que não sabia.

Branco total ao cometer um assassinato? Não era incomum. Especialmente se fosse um crime passional – como, digamos, um detetive de homicídios querendo pegar um perverso serial killer. E Veck já tinha dado provas de ser um cara de pavio curto no que se referia à proteção ou defesa das vítimas. Bem, não era simplesmente pavio curto e ponto final. O cara era brilhante, um pavio curto muito sexy – não que o fato de ser sexy fosse relevante. Nem um pouco.

– Em quanto tempo você vai chegar lá, detetive? – ela perguntou.

– Uns quinze minutos.

– Estou a pouco mais de um quilômetro de distância. Vejo você lá.

– Entendido.

Quando desligaram, ela colocou o telefone no bolso interno do casaco e endireitou-se no banco. A possibilidade de um membro do departamento ser o suspeito na investigação de um assassinato – e considerando o que Veck havia dito ao pessoal da Emergência, que a probabilidade de Kroner ter sobrevivido era mínima – criava todos os tipos de conflito de interesse. Na maioria das vezes, o pessoal dos Assuntos Internos lidava com corrupção, infrações processuais e investigações sobre a competência no desempenho de funções. Mas, numa situação como essa, os membros do próprio departamento de Veck estavam numa posição delicada, pois deveriam avaliar se um de seus colegas havia cometido um crime.

Caramba, dependendo de como a situação se encaminhasse, ela teria de chamar algum reforço externo para efetivar a investigação. Mas era muito cedo para isso. Porém, não era muito cedo para pensar sobre o pai de Veck.

Todos sabiam quem ele era, e ela tinha de admitir que, se esse laço consanguíneo não estivesse em jogo, não estaria tão alerta... com a preocupação constante de que aquilo fosse resultado de uma revanche ao estilo DelVecchio, por assim dizer.

Thomas pai foi um dos serial killers mais conhecidos do século XX. Oficialmente, fora acusado e condenado por “apenas” 28 assassinatos. Mas estava envolvido em mais trinta – e isso era apenas o que as autoridades de quatro estados sabiam. Havia uma grande probabilidade de existir dúzias de mulheres desaparecidas, cujos casos não puderam ser relacionados adequadamente a ele.

Então, não, se o pai de Veck tivesse sido um advogado, contador ou professor, ela não estaria tão preocupada. Mas o velho ditado “tal pai, tal filho” tinha implicações terríveis quando se tratava de serial killers e seus filhos.

Depois de passar por uma ponte estreita, o Monroe Motel & Suítes surgiu mais acima, à direita, e ela passou lentamente pela gerência e pelos quartos até chegar ao final do estacionamento, próximo à floresta. Ao sair com uma mochila cheia de pequenos compartimentos, o aroma doce do diesel da ambulância a fez espirrar com força e, na sequência, sentiu o odor forte dos ramos de pinheiro... bem como o cheiro pungente e inconfundível de sangue fresco.

Os paramédicos estacionaram o veículo com a traseira voltada para a floresta e, sob a luz dos faróis, os dois profissionais trabalhavam sobre o corpo ensanguentado de um homem branco. As roupas da vítima haviam sido cortadas – ou rasgadas – e sob elas havia uma mistura de incontáveis ferimentos.

Não há chance alguma de ele sobreviver, ela pensou. Então, viu Veck. O detetive de homicídios estava em pé ao lado da cena do crime, com braços cruzados e pés bem firmados ao chão. O rosto mostrava... absolutamente nada. Assim como De la Cruz havia dito. Meu Deus, o cara poderia muito bem estar na fila de uma lanchonete daquele jeito.

Quando andou sobre a superfície esponjosa de folhas caídas e terra macia, sentiu um súbito frio na barriga. Embora, sinceramente, não fosse apenas pela cena do crime. Também era por causa do homem que deveria investigar. Próximo ao local, notou uma moto preta estacionada nos limites da floresta. Era dele, já tinha visto na delegacia antes. De fato, já o vira pela janela de sua sala montando naquela coisa, dando o impulso com o pé para iniciar o motor e arrancando para longe dali. Ele usava capacete – na maioria das vezes.

Ela sabia que muitas mulheres na delegacia observavam a cena, pois havia muito que olhar. Aqueles ombros pesados e quadris bem definidos mostravam a constituição de um boxeador, mas seu rosto era mais o de um garotinho bonito que o de um pugilista – ou seria, se não fosse por seu olhar. Aqueles olhos azuis-escuros, inteligentes e frios faziam com que toda a estrutura óssea, estilo modelo famoso, tornasse-o bastante viril. E havia algo mais.

Parando em frente a ele, a primeira coisa que notou foi o sangue na gola de sua blusa preta. Respingos aqui e ali, não eram grandes manchas ou partes encharcadas. Nenhum arranhão no rosto, ou no pescoço.

As roupas e o chapéu estavam em boas condições – nada desalinhado, rasgado ou amassado. Havia dois círculos de lama sobre os joelhos de suas calças pretas. A arma estava guardada no coldre. Não estava claro se tinha outras armas.

Ele não disse nada. Nada de “eu não fiz isso” ou “deixe-me explicar...”. Seus olhos apenas se fixaram nela.

Deixando de lado as gentilezas, ela disse: – O sargento me ligou.

– Imaginei.

– Está ferido?

– Não.

– Se importa se eu fizer algumas perguntas?

– Vá em frente.

Deus, ele tinha tanto autocontrole.

– O que o trouxe aqui esta noite?

– Sabia que Kroner voltaria. Tinha que voltar. Com sua coleção apreendida, não restava mais nada do seu trabalho, portanto, este é um local sagrado para ele.

– E o que aconteceu depois que chegou?

– Esperei. Ele chegou... e, então... – Veck hesitou, as sobrancelhas estreitaram-se como se fossem dar um nó e uma das mãos se ergueu para esfregar a têmpora.

– Droga...

– Detetive?

– Não consigo me lembrar – olhou para os olhos de sua colega outra vez. – Não consigo me lembrar de nada depois que ele apareceu, juro por Deus. Em um minuto ele surgiu vindo da floresta, no outro...? Havia sangue por toda parte.

– Posso ver suas mãos, detetive? – quando ele as estendeu, estavam firmes como rocha... e sem marcas de corte ou arranhões. Nada de sangue na palma das mãos, na ponta dos dedos ou nas unhas.

– Avaliou a vítima ou interveio em seus ferimentos antes de ligar para o 190?

– Peguei minha jaqueta de couro e coloquei sobre o pescoço dele. Não ia ajudar, mas eu fiz mesmo assim.

– Está carregando mais alguma coisa além da sua arma de fogo?

– Minha faca. Está no meu...

Ela colocou a mão sobre o ombro dele para impedi-lo de continuar.

– Deixe-me dar uma olhada.

Assentindo, virou-se. Sob a luz da ambulância, a lâmina guardada no pequeno coldre em suas costas era bem o que ela esperava ver.

– Posso ficar com a arma, detetive?

– Fique à vontade.

Tirando um par de luvas de vinil, vestiu-as e pegou o punhal. Quando puxou o objeto, percebeu que o corpo dele não se moveu. Poderia muito bem ser esta a sensação de desarmar uma estátua.

A faca estava limpa e seca. Levantando-a até o nariz, ela inalou. Nenhum cheiro de adstringente que indicasse ter sido higienizada às pressas.

Quando ele olhou por cima do ombro, o movimento de seu corpo fez seus ombros parecerem enormes e, sem qualquer motivo, ela percebeu que estava frente a frente com o peitoral dele. Com seu quase um metro e setenta, ela tinha uma altura mediana, mas, ao lado dele, ela sentia como se tivesse sido reduzida a uma miniatura.

– Vou confiscar isso, importa-se? – Ela ia pegar a arma dele também, mas, considerando os ferimentos da vítima... a lâmina era o que realmente queria.

– Nem um pouco.

Quando pegou um saco plástico, disse: – O que acha que aconteceu aqui?

– Alguém partiu ele ao meio e acho que fui eu.

Aquilo deteve-a, mas não por achar que fosse, de fato, uma confissão – não esperava que alguém naquelas circunstâncias fosse tão honesto.

Naquele momento, um carro sem identificação percorreu o estacionamento com duas viaturas.

– Seu parceiro chegou – ela disse. – Mas o sargento quer que eu lidere a investigação para evitar qualquer possibilidade de conflito de interesses.

– Sem problema.

– Concordaria se eu retirasse amostras do material sob suas unhas?

– Sim.

Ela colocou a mochila à sua frente outra vez e tirou um canivete suíço e alguns pequenos sacos plásticos.

– Você é muito organizada, oficial – Veck disse.

– Não gosto de estar despreparada. Por favor, estenda sua mão direita.

Ela fez um trabalho rápido, começando com o dedo mindinho. As unhas foram cortadas, mas não como uma manicure faria, e havia muito pouco sob elas.

– Tem experiência em trabalhos de investigação? – Veck perguntou.

– Sim.

– Parece mesmo.

Quando ela terminou, ergueu o olhar... e imediatamente teve que se desviar de seus olhos azuis-escuros como a meia-noite para algum outro lugar próximo.

– Quer outro casaco, detetive? Está frio aqui.

– Estou bem.

Se estivesse com um ferimento sangrando no peito, aceitaria um maldito esparadrapo? – ela pensou – ou bancaria o cara durão até não haver mais plasma em suas veias?

Bancaria o durão, com certeza, concluiu.

– Quero que os paramédicos deem uma olhada em você.

– Estou bem.

– Isto é uma ordem, detetive. Parece que está com dor de cabeça.

Naquele momento, De la Cruz emergiu de seu carro e, enquanto se aproximava, seu rosto parecia triste e cansado. O fato era que tinha perdido um parceiro há alguns anos. Obviamente, não estava empolgado com a ideia de repetir a dose, mesmo que por um motivo diferente.

– Com licença – ela disse aos dois. – Vou chamar um dos paramédicos.

Contudo, quando ela aproximou-se, eles estavam transferindo Kroner para a maca e, logicamente, não poderiam dispensar nem um minuto.

– Quais são as chances dele?

– Poucas – um deles disse. – Mas faremos o nosso melhor, oficial.

– Sei que farão.

Os suportes da maca foram estendidos até que esta ficasse à altura da cintura deles e, pouco antes de deslizarem o objeto, ela tirou uma foto mental. Kroner parecia ter sido retirado dos destroços de um carro fumegante, com o rosto desfigurado, como se não estivesse usando o cinto de segurança e tivesse sido lançado contra a janela.

Reilly olhou para Veck outra vez.

Há muitas lacunas nesta cena – pensou. Especialmente se concluísse que havia sido ele o agressor. Mas não havia muitas possibilidades de fazer todo aquele estrago e limpar tudo tão rápido no meio da floresta. Além disso, parecia que não havia se envolvido em alguma briga ou coisa assim – e não existe um jeito de lavar arranhões e hematomas.

Quem tinha feito aquilo? Era o que a incomodava.

Como se pudesse sentir o olhar dela, Veck girou a cabeça, e, quando os olhares encontraram-se, tudo desapareceu: era como se estivesse a sós com ele... não a quinze metros de distância, mas a quinze centímetros.


Do nada, um calor brotou, borbulhando pelo corpo de Reilly, o tipo de coisa que, se ela estivesse em casa, diria a si mesma que era a proximidade do duto de ar quente. Mas ali ela justificava a onda de calor como consequência da adrenalina do estresse.

Maldito estresse. Nada de atração sexual.

Ela interrompeu aquela conexão quando atentou-se aos policiais recém-chegados. Ordenou: – Poderia passar a fita aqui?

– Entendido, oficial.

Certo, hora de voltar ao trabalho: aquele breve momento de atração totalmente inadequada não atrapalharia o que tinha a fazer. Era muito sensata. Sua integridade profissional não exigia nada menos que isso. Também não tinha a intenção de permanecer muito tempo na lista de adoradoras do cara. Ia cuidar dos seus negócios e deixar os olhares embevecidos para as outras.

Além disso, caras como Veck não gostavam de mulheres como ela e não havia problema algum nisso. Estava muito mais interessada no trabalho do que em mostrar as pernas, soltar os cabelos e competir nos jogos olímpicos da sedução. Brittany – na verdade, escrevia-se Britnae, mais conhecida como a gostosa da delegacia – poderia conquistá-lo e ficar com ele à vontade se quisesse.

Enquanto isso, Reilly verificaria se o filho teria revivido ou não os horrores típicos dos atos do pai.


CAPÍTULO 2

 

Em circunstâncias normais, Jim Heron considerava-se um mau perdedor. E isso com qualquer coisa que jogasse no dia a dia, fosse vídeogame, tênis ou pôquer. Não que ele perdesse tempo jogando tudo isso, mas, quando jogava, era do tipo que não deixaria o controle, a quadra ou a mesa antes de estar por cima da situação.

Mas nada disso tem importância.

Quando se tratava da guerra com o demônio Devina, ele ficava em chamas de tão furioso: havia perdido a última rodada.

Perdido, o contrário de ter vencido. Na batalha por aquelas sete almas, ele e aquela vadia estavam empatados em um a um. Claro, ainda havia mais cinco disputas, mas não era essa a direção que ele ou qualquer outra pessoa precisava seguir.

Derrotado? Aquele demônio tinha domínio não só sobre a terra mas também sobre os céus... o que significava que sua mãe e todas as boas almas que ali estavam, assim como ele e seus soldados, que eram anjos caídos, poderiam um dia contemplar uma eternidade de tormentos.

E havia descoberto há pouco tempo que aquilo não era apenas algo hipotético que motivava os mais religiosos. O inferno era um lugar de verdade, e o sofrimento que ali havia era bem real. De fato, muito do que tinha concluído ser apenas retórica tola de todos aqueles que se diziam santos mostrou-se ser correto.

Então, sim, as apostas eram altas e ele odiava perder. Especialmente porque não precisava ter sido daquele jeito. Estava furioso com o jogo. Com seu chefe, Nigel. Com as “regras”.

Era senso comum: quando se diz a um cara que ele deve influenciar alguns idiotas numa encruzilhada da vida, facilita se disser quem eles são. Afinal, não era um grande segredo: Nigel sabia. O inimigo, Devina, sabia. Jim? Nem tanto assim, pessoal. E, cortesia do buraco negro de informação, concentrou-se no homem errado na última rodada e estragou tudo.

E lá estava ele, empatado com a vadia e furioso num quarto de hotel em Caldwell, Nova York. E não era o único enfezado por ali. No quarto ao lado, do outro lado de um conjugado, duas vozes masculinas graves iam e vinham, num tom de extrema frustração.

Nenhuma novidade. Seus companheiros, Adrian Vogel e Eddie Blackhawk, não estavam contentes e era claro que falavam mal dele em sua ausência. Voltar constantemente a Caldie não era tanto a questão. O problema era a razão pela qual Jim arrastou-os até ali.

Seus olhos percorreram o edredom. Cachorro estava enrolado como uma bola ao lado dele, seu pelo desalinhado dava a impressão de o terem entupido de gel e colocado, em seguida, diante de um vento forte, mas isso não tinha acontecido. Ao seu lado, havia a impressão de um artigo de três semanas do Correio de Caldwell. O título era “Garota local desaparecida”, e, ao lado do texto, havia a foto de um grupo de amigos sorridentes, cabeças unidas e braços estendidos por trás dos ombros uns dos outros. A legenda sob a imagem identificava a que estava no meio como Cecília Barten.

Sua Sissy.

Bem, não era bem “sua”, mas pensava nela como sendo sua responsabilidade. A questão era: ao contrário de seus pais, familiares e amigos da comunidade, sabia onde ela estava e o que havia acontecido com ela. A moça não fazia parte da enorme lista de jovens que fogem de casa e também não havia sido atacada pelo serial killer que, de acordo com o site do jornal daquela manhã, estava à solta. Porém, havia sido profanada. Por Devina.

Sissy foi uma virgem sacrificada para proteger o espelho do demônio, seu bem mais sagrado. Jim encontrou seu corpo pendurado de cabeça para baixo em frente à coisa, no covil temporário do demônio, e foi forçado a deixá-la para trás. Porém, mais tarde, pôde vê-la no muro de almas de Devina... presa, sofrendo, perdida para sempre entre os condenados que mereciam aquele destino.

Cecília não pertencia ao inferno. Era uma garota inocente e foi usada pelo mal – e Jim iria libertá-la, nem que fosse a última coisa que fizesse. Portanto, sim, foi por isso que voltaram a Caldwell. E a razão pela qual Adrian e Eddie estavam furiosos.

Mas, sem ofensa... que se fodam.

Com cuidado, Jim pegou o artigo e passou o polegar calejado sobre a imagem granulada do cabelo de Sissy, longo e loiro. Quando piscou os olhos, viu os fios cobertos de sangue pendendo sobre o ralo de uma banheira de porcelana branca. Então, piscou outra vez, e viu-a como na outra noite, na prisão viscosa de Devina, apavorada, confusa, preocupada com seus pais.

Ele queria ter ido direto conversar com os Barten, porém as reclamações de Adrian e Eddie só serviam para gastar saliva. Não ia tirar os olhos da guerra, pois não poderia suportar perder para Devina enquanto tentava tirar Sissy daquele poço de almas.

A porta do quarto conjugado abriu-se, foi quando Adrian, mais conhecido como “O que se Faz de Surdo”, entrou sem bater. Bem no estilo dele. O anjo estava vestido de preto, como sempre, e os vários piercings em seu rosto não constituíam nem a metade do que ele deveria ter pelo resto do corpo.

– Vocês terminaram de discutir sobre mim? – Jim virou o artigo para baixo e cruzou os braços sobre o peito. – Ou fizeram apenas uma pequena pausa?

– Que tal levar isto a sério?

Jim levantou-se da cama e ficou frente a frente com seu soldado.

– Estou dando qualquer indício de que ando brincando por aí?

– Não nos arrastou de volta a este lugar para a guerra.

– Até parece que não.

Enquanto se enfrentavam, Adrian não se intimidou, mesmo que Jim fosse um antigo assassino das Operações Extraoficiais e soubesse derrotar um peso-pesado de muitas maneiras diferentes.

– Aquela garota não é seu alvo – Ad disse – e, caso não tenha notado, perdemos um. Distrações não são nossas amigas.

Jim deixou passar a referência a Sissy: propôs-se a nunca falar sobre ela. Seus amigos testemunharam quando ele encontrou o corpo e viram o que aquilo fez com ele – então, sabiam o suficiente. E não havia motivo algum para pronunciar palavras que descrevessem o que foi vê-la naquela parede. Ou mencionar o fato de que, enquanto estava sendo usado e abusado por Devina e seus subordinados na última rodada, a jovem, possivelmente, assistiu assustada a tudo o que aconteceu com ele.

Droga... as coisas que aconteceram naquela mesa de “trabalho” eram algo difícil de testemunhar até mesmo para um homem habituado a guerras. Mas uma inocente? Que já estava aterrorizada?

Por um lado, naquele momento de sua vida, as violações não o incomodavam mais. Tortura, de qualquer maneira que fosse aplicada, não era nada além de uma sobrecarga de sensações físicas. Mas, por outro lado, ninguém precisava ser testemunha ocular daquilo, muito menos sua garota. Não que ela fosse sua.

– Vou conversar com Nigel – Jim respondeu. – Então, já terminaram de me detonar? Ou querem desperdiçar um pouco mais do meu tempo?

– Por que já não está lá?

Bem, porque estava sentado naquela cama, olhando para o nada, apenas pensando para onde diabos Devina tinha levado o corpo de Sissy.

Só que Jim não era o tipo de idiota que dava o braço a torcer.

– Jim, sei que essa garota é importante para você. Mas vamos lá, cara, precisamos cuidar dos negócios.

Enquanto Ad falava, Jim olhou por sobre os ombros do cara. Eddie estava parado na porta que ligava os dois quartos, seu corpo enorme estava tenso, os olhos vermelhos eram graves, aquela longa trança preta descia sobre o ombro, cuja ponta quase alcançava a cintura de suas calças de couro.

Caramba. O jeito espalhafatoso de Adrian dava vontade de xingar. Ou socar... o que já havia acontecido antes. Mas a rotina equilibrada e pacífica de Eddie não era um alvo. Era um espelho que simplesmente refletia o comportamento idiota de quem o observava.

– Tenho tudo sob controle – disse Jim. – E vou ver Nigel agora mesmo.

O arcanjo Nigel estava em seus aposentos particulares quando a convocação aconteceu. De qualquer maneira, já era hora de sair do banho.

– Vamos ter companhia – disse a Colin quando se levantou da água perfumada.

– Vou ficar aqui. O banho está numa temperatura perfeita – com isso, Colin esticou-se e fez um arco preguiçoso com o corpo. Seu cabelo escuro estava molhado com a umidade e havia cachos nas pontas. Seu rosto majestoso e inteligente estava relaxado como sempre. Nada muito exagerado.

– Sabe por que ele está vindo?

– Mas é claro.

Atravessando o mármore branco e afastando a cortina safira e coral, Nigel saiu e teve todo o cuidado ao colocar de volta no lugar o tecido aveludado. Ninguém precisava saber sobre sua companhia na sala de banho – embora suspeitasse que Bertie e Byron fizessem alguma ideia disso. No entanto, eram bastante discretos para dizer qualquer coisa.

Puxando um roupão de seda, não se preocupou em vestir nada mais formal. Jim Heron não se importaria nem um pouco com seu vestuário e, já pensando em como seria a conversa, sabia que precisaria voltar para o banho.

Com um gesto de sua mão, Nigel convocou o anjo que se encontrava na Terra, reunindo o corpo físico de Heron e materializando-o em seus aposentos particulares. Sobre seu divã de seda, para ser mais exato. O salvador parecia ridículo sobre o móvel framboesa, os braços e pernas pesados pendiam nas laterais, sua camiseta preta e o jeans surrado eram uma ofensa a um tecido tão delicado.

Heron caiu em si numa fração de segundo e ficou em pé num salto, pronto, alerta... e não muito satisfeito.

– Vinho gelado? – Nigel perguntou ao se aproximar de uma cômoda francesa com gavetas, cuja tampa de mármore servia de bar. – Ou talvez uma dose de uísque?

– Quero saber quem é o próximo, Nigel.

– Isso é um “não” para as bebidas? – levou um tempo escolhendo entre as pequenas garrafas de vidro e, então, serviu-se lenta e tranquilamente.

Ele não era um idiota qualquer a quem se fazia exigências, e Heron precisava aprender um pouco de boas maneiras. Nigel virou-se e tomou um gole.

– Leve e refrescante.

– Dane-se o vinho.

Nigel deixou passar essa e apenas encarou o salvador.

Quando o Criador apareceu diante de Nigel e Devina explicando que haveria uma competição final, os dois lados concordaram que Heron estaria sozinho no campo de batalha com as sete almas escolhidas. Cada adversário, naturalmente, queria seus valores representados, e o resultado foi que aquele forte anjo com espírito guerreiro, ali, em pé diante de Nigel, tinha o bem e o mal equilibrados dentro dele.

Contudo, Nigel tinha convicção de que o fato da mãe assassinada de Jim estar dentro dos muros da mansão seria crucial. Momentos como aquele faziam-no questionar o próprio fundamento daquele jogo decisivo. O anjo parecia pronto para matar.

– Tem que me dizer quem é.

– Como disse antes, não posso.

– Eu perdi, idiota. E ela trapaceou.

– Tenho plena consciência dos limites que ela ultrapassou e acho que se lembra do meu conselho: deixe-a fazer o que quiser. Haverá represálias.

– Quando?

– Quando acontecer.

Heron não gostou daquela resposta e começou a andar pelo local ornamentado com suas cortinas de cetim, tapetes orientais e a cama baixa... ao redor da qual – Nigel percebeu tarde demais – dois conjuntos de roupas estavam dispostos.

Nigel limpou a garganta.

– Não posso correr o risco de que haja uma reviravolta e tudo se volte contra nós. Já me rebaixei demais ao nível de Devina permitindo que Adrian e Edward o ajudassem. Se eu lhe ajudar mais, posso perder não apenas uma rodada, mas a competição inteira. E isso é inaceitável.

– Porém, você sabe quem é a alma. E Devina também.

– Sim.

– E isso não lhe parece uma grande injustiça? Ela irá atrás dessa pessoa... Provavelmente, já foi.

– Pelas regras estabelecidas e acordadas, ela não tem permissão de interagir com as almas. Ela, assim como eu, deve apenas influenciar você na maneira como vai influenciá-los. Contato direto não é permitido.

– Então, por que você não deteve o que aconteceu?

– Isso não é da minha alçada.

– Que saco, Nigel, estabeleça...

– Posso assegurar uma coisa: o saco dele está bem.

Com a interrupção seca, tanto Nigel como o salvador viraram-se para as cortinas que levavam à sala de banho. Colin não se preocupou em vestir um roupão, estava em pé diante deles nu e sem qualquer ar de desculpa.

E, agora que tinha a atenção de todos, o arcanjo acrescentou: – Também vou pedir para que controle o linguajar, companheiro.

As sobrancelhas de Heron ergueram-se rápido e houve um momento em que parecia estar assistindo a um jogo de tênis, alternando o olhar de um para o outro.

Nigel amaldiçoou baixinho. Sua privacidade e decoro tinham ido por água abaixo.

– Vinho gelado, Colin? – disse rispidamente. – E talvez um roupão?

– Estou bem.

– É verdade. Mas sua falta de modéstia não lhe protege muito bem do ar frio desse ambiente. E eu tenho um convidado.

Sua única resposta foi um grunhido. Que era a maneira de Colin proclamar que não havia razão para dar uma de velho azedo.

Adorável.

Nigel virou-se para o salvador.

– Sinto muito em não poder lhe conceder o que me pede. Pode acreditar.

– Você me ajudou com o primeiro.

– Houve permissão para isso.

– E veja o que aconteceu com o número dois.

Nigel escondeu sua preocupação atrás de um gole em seu copo.

– Sua paixão é louvável. E posso lhe dizer que seu retorno a Caldwell é bem útil.

– Obrigado pela dica. Há dois milhões de pessoas naquela maldita cidade. Isso não reduz muito as possibilidades.

– Nada é por acaso e não existem coincidências, Jim. Na verdade, há outra pessoa que procura o mesmo que você e, quando seus diferentes propósitos se unirem, encontrará a próxima alma.

– Sem ofensa, mas isso não significa merda nenhuma – Heron olhou para Colin. – E não vou pedir desculpas à fiscalização por isso. Sinto muito.

Colin cruzou os braços sobre o peito nu: – Faça como quiser, rapaz. E eu farei o mesmo.

Leia-se: talvez eu o esgane agora. Talvez depois.

A última coisa que Nigel precisava era de uma briga em seus aposentos, isso atrairia os outros arcanjos, assim como Tarquil, num piscar de olhos. Não era bem a interrupção que procurava.

– Colin – disse Nigel –, vá tomar banho.

– Já fiz isso, obrigado.

– Isso é uma questão de ponto de vista – Nigel murmurou antes de se dirigir a Jim. – Vá em frente e tenha fé que você estará no lugar certo e fará o melhor possível.

– Não acredito em destino, Nigel. É como pegar uma arma descarregada e achar que vai atirar em alguma coisa. Você mesmo tem que carregá-la com as balas.

– Estou lhe dizendo que há coisas maiores nesse trabalho do que seus esforços.

– Certo, ótimo, então coloque tudo num cartão de Natal. Mas não venha com besteiras pra cima de mim.

Encarando o rosto duro do salvador, Nigel teve um lampejo de medo. Com aquela atitude, havia mais uma coisa que jogava contra os anjos. Mas o que ele poderia fazer? Heron não tinha paciência ou fé, mas isso não mudava em nada as regras do jogo ou as chances de que o Criador corrigisse as liberdades que Devina havia tomado.

Ao menos esse último fato contribuía a favor deles.

– Acredito que já terminamos – Nigel disse. – Nada de bom virá a nosso favor se continuarmos a conversa.

Houve um momento obscuro, até mesmo maligno, durante o qual Heron olhou para ele com uma espécie de fúria.

– Tudo bem – disse o salvador. – Mas eu não desisto tão fácil.

– E eu sou a montanha que não será movida.

– Entendido.

Num piscar de olhos, o anjo se foi. E, quando o silêncio dominou o local, Nigel percebeu que não tinha mandado Heron embora. Ele tinha feito aquilo sozinho.

Estava ficando mais forte, não?

– Quer que eu desça e o vigie? – Colin disse.

– Quando concordei que ele seria o escolhido, pensei que haveria rédeas suficientes para contê-lo. Acreditava mesmo nisso.

– Então, repito, eu devo sair para vigiá-lo?

Nigel voltou-se para o seu querido amigo, que era muito mais que um colega e confidente.

– Essa é a tarefa de Adrian e Edward.

– Conforme estipulado. Mas fico pensando até onde essa competência, que aumenta cada vez mais, vai levá-lo. Acho que isso não nos guia por um bom caminho.

Nigel tomou outro gole de seu vinho e observou o espaço vazio que Heron tinha acabado de deixar. Apesar de continuar em silêncio, tinha que concordar. A questão era: o que fazer, o que fazer...


CAPÍTULO 3

 

Lá embaixo, na floresta fria próxima ao Monroe Hotel & Suítes, Veck permanecia parado sob o reflexo dos faróis da ambulância, com seu colega De la Cruz à direita e seu parceiro, Bails, à esquerda. Iluminado como estava, sentiu-se num palco quando Kroner surgiu dentre as árvores sobre uma maca.

Só que havia apenas uma pessoa olhando para ele. Sophia Reilly, a oficial de Assuntos Internos. Ela estava em pé próxima a ele e, quando os olhos dos dois encontraram-se, desejou que as circunstâncias fossem diferentes – de novo. O primeiro encontro com Sophia Reilly tinha sido quando ele agrediu aquele paparazzo. Mas a situação em que estavam agora fazia aquela agressão parecer uma caminhada na praia.

A questão era: gostou dela no momento em que apertaram as mãos, e essa primeira impressão foi reforçada naquela noite: o detetive dentro dele tinha aprovado totalmente a atuação profissional dela, bem como a maneira como o olhou. Se ele estivesse mentindo – e não estava –, ela teria percebido. Mas precisavam parar de se encontrar daquela maneira. Literalmente.

Sobre o asfalto do estacionamento houve um barulho alto quando os médicos fecharam as portas duplas da ambulância e, em seguida, o veículo afastou-se, levando a iluminação consigo. Quando Reilly voltou-se para observar a partida, já estava no escuro... até que acendeu uma lanterna.

Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, De la Cruz falou baixinho: – Quer um advogado?

– Por que ele precisaria de um advogado? – Bails exclamou.

Veck balançou a cabeça para seu amigo. Entendia a lealdade do cara, mas ele próprio não tinha tanta fé em si mesmo naquele momento.

– É uma boa pergunta.

– Então, vai querer? – De la Cruz sussurrou.

A oficial Reilly circulou a poça de sangue, transitou entre os troncos e galhos... Pequenos gravetos estalavam sob seus pés, aquilo soava alto nos ouvidos de Veck. Ela parou na frente dele.

– Terei de continuar com as perguntas amanhã, mas pode ir para casa agora.

Veck estreitou os olhos.

– Você vai me liberar?

– Nunca esteve sob minha custódia, detetive.

– Isto é tudo?

– Não, não. Mas não tem mais nada o que fazer aqui esta noite.

Veck balançou a cabeça.

– Ouça, oficial, isto não pode...

– A perícia criminal está a caminho. Não quero você aqui quando chegarem à cena do crime, pois isso pode comprometer o trabalho deles. Está suficientemente claro para você?

Ah, sim. E ele devia ter adivinhado. Estava escuro entre as árvores. Ele poderia manipular evidências com facilidade sem que ninguém soubesse, e ela queria fazê-lo sair dali de uma maneira discreta e educada.

Ela é esperta – pensou. E também era bonita: sob o brilho da lanterna, ela estava deslumbrante, do jeito que só uma mulher natural e saudável poderia ser – nada de maquiagem pesada para entupir seus poros ou pesar suas pálpebras, nenhum brilho gorduroso e escorregadio sobre seus lábios. Era totalmente verdadeira. O cabelo vermelho-escuro e pesado e o olhar de um verde profundo também não poluíam o visual. Além disso, havia a postura “nada de gracinhas” dela...

– Muito bem, oficial – ele murmurou.

– Por favor, esteja na sala do sargento amanhã, às 8h30.

– Você é quem manda.

Quando Bails murmurou alguma coisa em voz baixa, Veck rezou para que o bastardo guardasse suas opiniões para si mesmo. Reilly só estava fazendo seu trabalho – e era bastante profissional. O mínimo que poderiam fazer era retribuir o respeito.

Antes que seu amigo falasse algo, Veck bateu no ombro de Bails e assentiu para De la Cruz. Quando começou a andar, a voz séria e baixa de Reilly irrompeu no silêncio da noite: – Detetive.

Ele olhou sobre o ombro.

– Sim, oficial.

– Terei de levar sua arma. E seu distintivo. E o coldre daquela faca.

Certo. Mas é claro.

– O distintivo está na jaqueta de couro bem ali no chão. Quer fazer as honras com a minha nove milímetros e o cinto?

– Sim, por favor. E levarei seu celular também, se incomoda?

Quando ela aproximou-se, Veck sentiu seu perfume. Nada de frutas ou florais ou, meu Deus, aquela merda de baunilha. Mas também nada que pudesse classificar. Xampu talvez? Será que ela recebeu a ligação saindo do banho?

Que bela imagem... Espere um minuto. Estava mesmo fantasiando com sua colega de trabalho... a menos de dois metros da cena de um crime? Nossa. Sim, era isso mesmo o que estava fazendo.

Reilly colocou a lanterna na boca e, então, as mãos revestidas por luvas azuis brilhantes estenderam-se. Quando ele ergueu os braços para facilitar que tocasse sua cintura, registrou uma pressão sutil em seus quadris, o tipo de coisa que sentiria se ela estivesse tirando as calças dele...

O impulso elétrico que surgiu em seu pênis foi uma surpresa... E, Deus, ficou feliz por aquela luz estar sobre seu peito, e não mais ao sul. Cara, aquilo era tão errado... e contrário à maneira que agia. Nunca paquerava colegas de trabalho, fossem assistentes administrativas, colegas detetives... ou oficiais do Departamento de Assuntos Internos. Problemas demais quando chegava ao fim inevitável...

Santo Deus, onde estava com a cabeça?

Parece que não na realidade.

Era quase como se a magnitude do que havia acontecido naquele local cheio de folhas manchadas de vermelho fosse tão grande que seu cérebro buscasse refúgio em qualquer outro lugar para além do elefante gigante ensanguentado na floresta. Talvez estivesse simplesmente louco. E ponto final.

– Obrigada, detetive – Reilly disse ao afastar-se com a arma e o coldre de couro. – Seu celular?

Ele entregou-o.

– Quer minha carteira?

– Sim, mas pode ficar com sua carteira de motorista.

Quando o trabalho de confisco terminou, ela adicionou: – Além disso, gostaria que você tirasse suas roupas em casa para ensacá-las e levá-las a mim amanhã.

– Sem problema. E sabe onde me encontrar – ele disse com a voz rouca.

– Sim, sei.

Quando estavam prontos para partir, percebeu que não havia nenhum sinal de um queixo abaixado ou um olhar esquivo aparentando timidez. Nada de mexer nos cabelos. Nada de rebolar. Algo que, tudo bem, seria ridículo naquelas circunstâncias... Mas ele teve a sensação de que, se estivesse numa boate, ao lado do bar, ela também não agiria de outra maneira. Não era seu estilo.

Droga, ela simplesmente ficava mais atraente a cada minuto. Se aquilo continuasse, pediria Sophia Reilly em casamento na próxima semana.

Até parece...

Com isso, Veck virou-se pela segunda vez. E ficou surpreso ao ouvi-la dizer: – Tem certeza de que não quer um casaco, detetive? Tenho uma jaqueta extra no meu carro, pois sentirá frio na moto.

– Ficarei bem.

Por alguma razão, ele não queria olhar para trás. Provavelmente por causa de todo aquele grande público que eram os olhos de De la Cruz e Bails. Sim. Era isso.

Na moto, jogou a perna sobre o assento e pegou o capacete. Não o usou para chegar até ali, mas precisava conservar alguma parte do corpo aquecida. Quando deu a partida, esperava que De la Cruz se aproximasse dele e voltasse a comentar sobre o advogado. Em vez disso, o venerável detetive ficou onde estava e falou com a agente Reilly.


Bails foi quem se aproximou. O cara estava com roupas de academia, cabelo curto espetado, os olhos eram um pouco agressivos... sem dúvida porque não gostava que Reilly tivesse assumido o caso.

– Tem certeza de que está bem para ir para casa?

– Sim.

– Quer que eu lhe siga?

– Não – provavelmente o cara iria de qualquer maneira. Ele era assim.

– Sei que você não fez isso.

Quando Veck olhou para o parceiro, ficou tentado a desabafar sobre tudo: seus dois lados, a divisão que sentia há anos, o medo de que sua maior preocupação finalmente tivesse acontecido. Droga, sabia que podia confiar no cara. Ele e Bails fizeram academia de polícia juntos anos atrás e, embora tivessem seguido por caminhos diferentes, mantiveram contato e proximidade – até Bails convocá-lo para ir a Manhattan unir-se à equipe do Departamento de Homicídios de Caldwell. Duas semanas. Estava ali há apenas duas malditas semanas.

Assim que abriu a boca, uma van estacionou atrás dele junto com outros carros do Departamento de Polícia, anunciando a chegada da perícia.

Veck negou com a cabeça.

– Obrigado, cara. Vejo você amanhã.

Deu um solavanco com o corpo, ligou o motor e, enquanto aquecia a moto, olhou de volta para a cena. Reilly estava ajoelhada perto da jaqueta dele, revistando os bolsos. Assim como faria com sua carteira.

Oh, droga. Encontraria...

– Ligue se precisar de mim para alguma coisa, cara.

– Sim. Ligarei.

Veck acenou para Bails e partiu devagar com a moto, pensando ser desnecessário Reilly ver as duas camisinhas que sempre mantinha na carteira atrás dos cartões de crédito. Engraçado, ser um vadio nunca o incomodou antes. Agora, desejava ter dado um nó no pênis anos atrás.

Quando entrou na estrada propriamente dita, acelerou a moto e seguiu rugindo. Quando disparou pelas curvas da estrada 149, inclinava-se nelas, abaixando-se sobre os guidões, tornando-se apenas mais uma peça do projeto aerodinâmico de sua BMW. Com a alta velocidade, as curvas tornaram-se apenas pequenos movimentos para a esquerda e para a direita, enquanto ele e a moto desafiavam as leis da física. Bater em qualquer coisa naquela velocidade? Teria sorte se restasse algum pedaço grande o suficiente para enterrar.

Mais rápido. Mais rápido. Mais...

Infelizmente, ou felizmente, não tinha certeza, o fim da linha para ele não foi colidir em árvores, evitando um acidente com um carro ou um cervo.

Foi um outlet da Ralph Lauren.

Ou, especificamente, um semáforo próximo ao local.

Sair daquela sensação de velocidade da qual tanto gostava deixou-o num estado de desorientação estranho, e a única razão de ter parado no sinal vermelho foi que havia alguns carros na frente dele. Foi forçado a obedecer às leis de trânsito ou andar sobre os carros.

O maldito sinal levou uma eternidade para abrir, e a fila em que estava moveu-se a passo de lesma quando finalmente ficou verde. Ele teria atingido mais de cem quilômetros por hora na estrada, o que não ajudaria em nada. Não que estivesse fugindo de alguma coisa. Claro que não.

Passou por lojas como Nike, Van Heusen e Brooks Brothers. Sentiu-se tão vazio quanto os estacionamentos, e havia uma parte dele que desejava continuar... Desejava passar por aquela parte mais afastada da cidade, vagar pelo labirinto suburbano de Caldie, percorrer a área de arranha-céus e atravessar uma ponte que só Deus sabe onde daria.

O problema era que, aonde quer que fosse... lá estava ele: a mudança geográfica não mudaria se rosto no espelho. Ou aquela parte de si mesmo que ele nunca entendeu, mas também nunca questionou. Ou a porra que teria acontecido naquela noite.

Assassinara aquele bastardo doente. Não havia outra explicação. E não sabia o que Reilly tinha na cabeça ao deixá-lo ir. Talvez ele simplesmente precisasse confessar... Sim, mas o quê? Que tinha ido até lá com a intenção de matar e, em seguida...

A dor de cabeça que acometeu seu lóbulo frontal era o tipo de coisa que ele não suportaria. Nesses casos, tudo o que se faz é gemer e fechar os olhos... Mas isso não é a melhor opção quando se está em cima de uma moto que, praticamente, resume-se num motor com um assento acolchoado.

Forçando a concentração na estrada e em nada mais, sentiu-se aliviado quando a pancada no crânio suavizou e pôde seguir caminho.

A casa em que morava ficava num bairro cheio de professores, enfermeiras e representantes de vendas. Havia muitas crianças, e a conservação dos gramados nos quintais era feita por amadores – o que significava que, no verão, era muito fácil encontrar um gramado irregular, mas, ao menos, eram aparados regularmente.

Veck era um caso isolado ali: não tinha esposa, filhos e nunca contrataria um garoto para aparar a grama. Felizmente, tinha a impressão de que os vizinhos dos dois lados de seu quintal – praticamente um cartão-postal – eram do tipo que invadiam alegremente o território alheio com suas ferramentas.

Sua casa de dois andares era tão luxuosa e única quanto uma moeda de um centavo dos anos 1970. Portanto, como era de se esperar, foi nessa época que a casa viu sua última nova camada de papel de parede.

Estacionando na garagem, desmontou da moto e encaixou o capacete no guidão. Não havia muitos crimes naquela área... então, seus vizinhos aparadores de gramado faziam um ótimo trabalho, em vários sentidos.

Entrou pela porta lateral, passou pelo armário de casacos e caminhou até a cozinha. Não havia muita comida por ali: só algumas caixas vazias de pizza sobre o balcão e algumas embalagens da Starbucks amontoadas sobre a pia. Tinha envelopes meio abertos e relatórios espalhados sobre a mesa. O laptop estava fechado junto a cupons de desconto que ele nunca usaria. Também havia ali uma conta de TV a cabo que ainda não estava vencida, mas, provavelmente, acabaria vencendo, pois era péssimo em pagar as coisas em dia. Sempre ocupado demais para fazer um cheque ou acessar a internet para pagar.

Deus, a única diferença entre aquele lugar e sua sala no centro da cidade era o fato de ter uma cama king-size no andar de cima. Pensando nisso, lembrou-se de que a oficial Reilly queria que ele se despisse, não queria?

Pegou um saco de lixo debaixo da pia da cozinha e subiu as escadas pensando em contratar uma faxineira para limpar a casa uma vez por semana, assim não teria mais que encontrar teias de aranha em todos os cantos e montinhos de poeira que se multiplicavam embaixo do sofá. Mas aquilo não era um lar e nunca seria. Desinfetante e outros produtos de limpeza quatro vezes por mês não deixariam o local aconchegante. Porém, se levasse uma garota um dia até lá, ela teria um local decente para se vestir.

Seu quarto ficava na parte dianteira da casa, e tudo que havia nele era uma cama grande e uma escrivaninha. Suas botas, meias e calças foram tiradas rapidamente. Com a blusa foi a mesma coisa. Quando tirou sua cueca boxer preta, recusou-se a lembrar da oficial Reilly revistando-o. Simplesmente não seguiria por aí.

Dirigindo-se para o banho, ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, parou em frente ao espelho sobre a pia. Não havia reflexo para se preocupar... Tinha coberto o espelho com uma toalha de praia no dia em que se mudou. Não era fã de espelhos.

Ergueu as mãos e estendeu-as com as palmas para baixo. Então virou-as. Em seguida, olhou embaixo das unhas. Parecia que seu corpo, assim como sua mente, estava vazio de pistas. Embora aceitasse que a ausência de ferimentos, sangue ou coágulos em si mesmo fosse um indício... e, sem dúvida, a boa oficial Reilly também tinha notado.

Cara, era a segunda vez na vida em que se encontrava numa situação dessas. Na primeira... Não havia razão para pensar no assassinato de sua mãe. Não numa noite como aquela. Entrando no chuveiro, fechou os olhos e deixou a ducha cair sobre sua cabeça, ombros e rosto. Sabonete. Enxaguar. Xampu. Enxaguar.

Estava parado, envolvido no vapor, quando sentiu uma corrente: como se alguém tivesse aberto a janela do banheiro. O sopro de ar movimentou a parte de cima da cortina e acariciou sua pele. Sentiu arrepios quando percebeu que passava também pelo seu peito e descia por suas pernas e pelas costas. Contudo, a janela não fora aberta.

Foi por isso que removeu o boxe de vidro do banheiro e cobriu aquele espelho embutido sobre a pia. Foram as únicas coisas que mudou na casa, sendo que a melhoria era para manter a sanidade. Já fazia anos que se barbeava sem olhar no espelho.

– Fique longe de mim – ele disse, fechando os olhos e mantendo-os assim.

A corrente de ar enroscou-se nas pernas de Veck, como se mãos estivessem se movendo sobre sua pele, subindo cada vez mais, acariciando seu sexo antes de atingir o abdômen e o peitoral, até chegar ao seu pescoço... seu rosto... Mãos frias passaram pelo seu cabelo...

– Me deixe em paz! – estendeu o braço e empurrou a cortina. Quando o ar quente dissipou-se, tentou concentrar-se em si mesmo, expulsar o intruso, matar a conexão. Tropeçando no balcão, envolveu o corpo com os braços e inclinou-se, respirando com força e odiando a si mesmo, odiando aquela noite, odiando sua vida.

Sabia muito bem que era possível, se você tivesse um distúrbio de personalidade múltipla, que uma parte poderia se libertar e agir de maneira independente. Aqueles que sofrem disso podem ignorar completamente as atitudes tomadas por seu corpo, mesmo quando envolvem atos de violência...

Quando a dor de cabeça começou a latejar em suas têmporas outra vez, Veck amaldiçoou e conseguiu se enxugar. Em seguida, pegou a camisa de flanela e as calças de moletom do Departamento de Polícia de Nova York com que tinha dormido na noite anterior e deixado atrás do vaso sanitário. Estava prestes a descer as escadas quando uma rápida olhada pela janela imobilizou-o.

Havia um veículo estacionado do outro lado da rua a umas duas casas de distância. Conhecia cada veículo da vizinhança, todas as caminhonetes, vans, suvs, sedãs, carros híbridos... Aquele carro escuro, de um modelo recém-lançado, não estava na lista.

Contudo, era exatamente o tipo de carro sem identificação que o Departamento de Polícia de Caldwell usava. Reilly fora vigiá-lo. Muito bem... exatamente o que ele faria no lugar dela.

Finalmente, viu que era mesmo ela, em carne e osso.

Descendo as escadas, hesitou na frente da porta, considerando sair na rua, mesmo descalço, porque talvez ela, ou quem quer que fosse, tivesse respostas sobre a cena Conteve aquela brilhante ideia e foi até a cozinha. Tinha de haver algo para comer no armário. Tinha de ter. Ao abrir e procurar por um momento, só encontrou um monte de vazio entre as prateleiras. Qual supermercado de fadas ele achava que existia? Pois só assim entregariam comida: como mágica.

A fome era tanta que poderia jogar um pouco de ketchup numa caixa de pizza e mastigá-la. Seria bom para ele comer um pouco de fibra.

Delícia.

A duas casas da residência do detetive DelVecchio, Reilly estava sentada atrás do volante, tampando parcialmente a própria visão.

– Por tudo que é mais sagrado... – esfregou os olhos. – Não é adepto a cortinas?

Enquanto rezava para que a imagem espetacular de seu colega nu desaparecesse de suas retinas, repensou seriamente a decisão de vigiá-lo sozinha. Estava exausta, isso era fato... Ou estava, antes de, simplesmente, ter visto tudo o que Veck tinha para oferecer. Desconsidere o simplesmente.

O bom disso era que agora estava realmente alerta, muito obrigada... Era o mesmo que ter umedecido dois dedos e os ter colocado na tomada: a visão foi suficiente para dar todo o ânimo que tinha aos treze anos.

Murmurando para si mesma, deixou cair as mãos sobre o colo outra vez. E, meu Deus, enquanto olhava para o painel do carro, tudo o que via era... era a cena que tinha visto antes. Sim, uau, em alguns homens, estar sem roupas era muito mais do que estar nu.

E pensar que ela quase perdera o show. Estacionou o carro e assumiu sua posição quando as luzes do andar de cima acenderam-se e pôde, assim, ter uma boa visão do que acontecia no quarto. Inclinando-se no banco, não se deu conta de que a posição expunha os dois... Não se ateve a nada além do que parecia ser uma lâmpada no teto do que deveria ser a suíte principal.

Geralmente, a decoração de um apartamento de solteiro tendia a ser muito cheia de detalhes ou minimalista. Era óbvio que Veck seguia a linha minimalista.

De repente, ela não pensava mais na decoração, pois seu suspeito tinha entrado no banheiro e ligado o interruptor.

Olááá, garotão.

E o superlativo englobava várias coisas.

– Pare de pensar nisso... pare de pensar...

Fechar os olhos não ajudou: se já tinha notado como ele ficava bem dentro das roupas que vestia, agora sabia exatamente o porquê. Era muito musculoso e, considerando que não tinha qualquer pelo na parte superior do corpo, nada ocultava aquele peitoral, o abdômen e as saliências esculpidas que desciam até os quadris.

Aliás, por falar em depilação, tudo o que tinha era uma linha escura que percorria a distância entre o umbigo e o...

Bem, talvez tamanho seja importante – Reilly pensou.

– Oh, pelo amor de Deus.

Na tentativa de manter seu cérebro focado em alguma coisa, qualquer coisa mais apropriada, inclinou-se para frente e olhou pela janela oposta. Poderia dizer que a casa da frente tinha cortinas capazes de manter a privacidade. Muito bom, principalmente se concluísse que ele desfilava daquela maneira todas as noites. Talvez o marido tivesse instalado tudo aquilo para que sua mulher não começasse a ter desmaios.

Preparando-se, voltou a olhar a casa de Veck. As luzes tinham se apagado no andar de cima, e ela esperava que agora ele estivesse no primeiro andar, vestido... e permanecesse assim.

Deus, que noite.

Ainda esperava obter alguma prova concreta do que havia acontecido na cena do crime, mas não parava de pensar nos ferimentos de Kroner. Havia coiotes naquelas florestas. Ursos. Gatos selvagens. Havia grandes chances de o cara ter andado por ali com cheiro de sangue seco nas roupas e alguma coisa de quatro patas tê-lo visto como um Mc Lanche Feliz. Na tentativa de intervir, Veck foi jogado de lado. Afinal, estava esfregando a testa como se esta doesse muito, e Deus é testemunha de que traumatismos cranianos são conhecidos por causarem perda de memória em curto prazo. A falta de provas físicas nele apoiava a teoria, com certeza.

E, mesmo assim... Deus, o pai dele. Era impossível não relacionálos, ao menos um pouco. Como todo aluno de especialização em justiça criminal, ela estudou o caso de Thomas DelVecchio pai como objeto de disciplina... mas também passou tempo considerável refletindo sobre ele em suas aulas de desvios psicológicos. O pai de Veck era considerado um serial killer clássico: inteligente, astuto, comprometido com seu “ofício”, totalmente sem remorsos. E, ainda assim, ao assistir vídeos de entrevistas dele com a polícia, deparou-se com um homem bonito, atraente e agradável. Sem qualquer ligação aparente com um monstro.

Contudo, como muitos psicopatas, cultivava uma imagem e sustentava-a com cuidado. Foi muito bem-sucedido como comerciante de antiguidades. Porém, estabelecer-se naquele mundo arrogante, cheio de dinheiro e privilégios, foi apenas um refúgio inventado por ele. Tinha vindo do nada, mas possuía talento para encantar pessoas ricas – bem como para viajar a diversas partes do mundo e voltar com artefatos antigos e estátuas extremamente bem recebidas no mercado. Seus negócios nunca tinham passado por qualquer investigação até os assassinatos virem à tona, e, até hoje, ninguém fazia ideia de onde encontrava tudo o que tinha... Era como se tivesse um tesouro guardado em algum lugar do Oriente Médio. Com certeza não ajudou as autoridades a entender isso, mas o que poderiam fazer com ele agora? Já estava no corredor da morte. Logicamente, não por muito tempo.

Como teria sido a mãe de Veck...?

A batida na janela do carro, ao lado de sua cabeça, foi como um tiro, e Reilly empunhou sua arma em direção ao som menos de um segundo depois.

Veck estava parado na rua ao lado do carro, mãos para cima, o cabelo molhado brilhava sob a luz do poste.

Reilly baixou a arma e abriu a janela com uma maldição.

– Reflexos rápidos, oficial – ele murmurou.

– Quer levar um tiro, detetive?

– Eu disse seu nome. Duas vezes. Mas estava mergulhada em pensamentos.

Graças ao que tinha visto naquele banheiro, a camiseta de flanela e a calça de moletom pareciam muito fáceis de serem removidas, eram coisas que não resistiriam a um puxão. Mas, vamos lá, como se já não conhecesse cada brinquedo daquele parque de diversões.

– Já quer levar minhas roupas? – ele disse ao erguer um saco de lixo.

– Sim, obrigada – ela aceitou o pacote pesado pela janela e apoiou as coisas no chão do carro. – Os sapatos também?

Ao assentir, disse: – Quer que lhe traga um pouco de café? Não tenho muita coisa na minha cozinha, mas acho que consigo encontrar uma caneca limpa e café solúvel.

– Obrigada. Estou bem.

Houve uma pausa.

– Há alguma razão para não olhar nos meus olhos, oficial?

Acabei de vê-lo nu, detetive.

– Nenhuma – ela o encarou furtivamente.

– Deveria entrar. Está frio.

– O frio não me incomoda. Ficará aqui a noite inteira?

– Depende.

– Depende do clima, certo?

– Sim.

Ele assentiu e, então, olhou ao redor, casualmente, como se fossem vizinhos conversando sobre o tempo. Tão calmo. Tão confiante. Assim como o pai.

– Posso ser sincero com você? – ele disse de repente.

– É bom que seja, detetive.

– Ainda estou surpreso por me liberar.

Reilly passou as mãos sobre o volante.

– Posso ser sincera com você?

– Sim.

– Te liberei porque não acredito que tenha feito aquilo.

– Eu estava na cena do crime e havia sangue em mim.

– Você chamou a emergência e não fugiu. Aquele tipo de assassinato é muito difícil de ser cometido.

– Talvez eu tenha limpado tudo.

– Até onde vi, não havia qualquer chuveiro entre aquelas árvores.

Não. Pense. Nele. Nu.

Quando ele começou a balançar a cabeça como se fosse argumentar, Reilly interrompeu-o.

– Por que está tentando me convencer de que estou errada?

Aquilo calou-o. Ao menos por um momento. Então, disse em voz baixa: – Vai se sentir mais segura me seguindo?

– Por que não?

Pela primeira vez, alguma emoção percorreu a expressão fria de Veck, e o coração dela parou: havia medo em seus olhos, como se não confiasse em si mesmo.

– Veck – ela disse em tom suave –, se existir alguma coisa que eu não saiba...

Ele cruzou os braços sobre o grande peitoral e seu peso oscilava sobre os quadris, como se estivesse pensando. Em seguida, sussurrou e começou a esfregar a testa.

– Não sei de nada – murmurou. – Ouça, faça um favor a nós dois, oficial. Mantenha aquela arma por perto.

Não olhou para trás ao se virar e atravessar a rua.

Reilly percebeu que ele não usava qualquer calçado. Ao erguer o vidro da janela, observou Veck entrar na casa e fechar a porta. Em seguida, as luzes da casa apagaram-se, exceto uma no corredor do segundo andar.

Recompondo-se, ela acomodou-se sobre o banco e olhou para todas as janelas. Pouco depois, uma grande sombra entrou na sala de estar – ou melhor, parecia se arrastar até um móvel? Seria um sofá? Então, Veck sentou-se e sua cabeça desapareceu como se estivesse estendido sobre o móvel.

Era quase como se estivessem dormindo lado a lado. Bem, aquilo que os separava eram apenas as paredes da casa, o gramado mal aparado, a calçada, o asfalto e a estrutura que envolvia o carro.

As pálpebras de Reilly começaram a cair, mas era porque tinha abaixado a cabeça. Não estava cansada e nem preocupada em cair no sono. Estava bem alerta no interior escuro do carro. Mesmo assim, estendeu a mão e apertou o botão para travar as portas. Só para garantir.


CAPÍTULO 4

 

Vagando ao longo do corredor de concreto frio, o demônio Devina não seguia um caminho reto, mas sinuoso. Percorria várias salas de escritório, o tic-tac de vários relógios abafava o barulho que seus saltos produziam.

Tudo foi acomodado ali, sua coleção tinha se mudado com segurança para o porão do prédio de escritórios de dois andares. O local era perfeito, afastado do centro da cidade de Caldwell e, para parecer verdadeiro e não suscitar polêmicas, projetou a ilusão de que uma empresa de recursos humanos havia se instalado no local que agora ela percorria: os humanos só conseguiriam enxergar um próspero empreendimento que havia alugado o imóvel para se expandir dentro do mercado.

Seres humanos estúpidos. Como se, na atual circunstância da economia, alguém pudesse contratar ou pagar mão de obra especializada para preencher as vagas de trabalho que disponibilizavam.

Parou em frente a uma cômoda clássica produzida em Rhode Island, em 1801, e passou a mão sobre o mogno. O acabamento original ainda estava ali. Claro, ela evitou que o objeto ficasse exposto ao sol ou à umidade desde que o havia comprado há duzentos anos. Havia divisões nas gavetas cheias de botões, filas e mais filas de óculos e amontoados de pequenas caixas com anéis dentro delas. Possuía objetos similares nos outros gabinetes, todos objetos pessoais, feitos de diversos metais.

Além de seu espelho, aquela coleção era a coisa mais preciosa que tinha. Era a sua ligação com as almas, a segurança que precisava quando sentia-se insegura ou estressada na Terra, como agora.

No entanto, o problema daquela noite era que, pela primeira vez, tudo aquilo que vinha acumulando há séculos não a acalmava, não a deixava mais segura, nem diminuía sua ansiedade. Vagando por entre os objetos, estava longe da ajuda do vício que, há tanto tempo, provara-se muito útil.

E o que parecia ainda pior? Aquela noite deveria ser um “momento de recompensa”, como sua terapeuta definia. Um tempo para concentrar-se e saborear suas realizações: tinha vencido a última rodada contra Jim Heron e, mesmo sabendo que ele, Adrian e Eddie tinham se infiltrado em seu covil anterior, tinha conseguido reinstalar todas as suas coisas naquele novo e seguro local.

Deveria estar em êxtase. Mesmo assim, mesmo o cheiro de morte à deriva vindo do banheiro não lhe deu prazer: para proteger o espelho, precisava de muito mais que um sistema de monitoramento comum, e o novo sacrifício virginal que tinha pendurado sobre a banheira sangrava muito bem... quase pronto para ser usado, não era apenas decorativo.

Tudo estava a seu favor, ao menos superficialmente falando, e, ainda assim, ela sentia-se tão... Tédio, parece que era assim chamado... E que nome adorável para um péssimo estado de desmotivação.

Talvez só estivesse exausta por ter organizado tudo após a mudança. Tinha mais ou menos quarenta gabinetes cheios de aquisições de todas as eras da humanidade. Sempre que era forçada a se restabelecer em outro lugar, era obrigada a tocar cada objeto para se reconectar com a essência da vítima que permanecia no metal. E ainda precisava iniciar o ritual de contato, porém estava um pouco surpresa consigo mesma. Normalmente, não conseguia concentrar-se em mais nada até que houvesse aquela fissura no tempo, até que vagasse pelo local por alguns minutos e completasse o longo processo.

Acreditava que sua terapeuta veria aquilo como um progresso, considerando a compulsão que lhe era tão comum e inegável: aqueles objetos preciosos, que remontavam desde os tempos do Egito antigo até a França gótica, da Guerra Civil Americana aos Estados Unidos de hoje, eram o que a ligava à sua casa quando estava longe.

Ainda assim, não havia pânico para se refugiar naquilo que era seu pela eternidade. Parecia que seu maior desejo era lamentar-se e andar sem direção. Tudo culpa de Jim Heron.

Ele era tão desafiador. Dominante. Extraordinário. Tinha sido escolhido por ela e por Nigel – aquele filho da mãe arrogante – por ter o bem e mal equilibrados dentro de si... E, conforme ela tinha aprendido ao longo dos tempos, quando tratava-se da humanidade, o mal sempre vencia. Achava que atraí-lo para o lado dela não seria nada além de uma tarefa tediosa, o tipo de coisa que sempre fez com homens e mulheres desde o primeiro momento de sua existência. Em vez disso... era ela quem estava sendo sugada e seduzida.

Heron era tão... incontrolável. Mesmo quando o dominou e brincou com ele, quando seus subordinados torturaram-no, quando a verdadeira natureza dela foi revelada... ele permaneceu firme, inflexível, intransigente. E aquela força deixava-o inatingível.

Nunca tinha visto aquilo antes. Em ninguém. A questão era: controlar fazia parte de sua natureza, pois era uma perfeita parasita. Procurava uma maneira de replicar sua essência até que o local no qual havia se infiltrado se tornasse dela para sempre.

O desafio que Heron representava era inebriante, um tapa no rosto, uma rajada de ar fresco. Mas também parecia esvaziar a importância de toda a existência das coisas.

Abrindo uma gaveta, tirou uma fina pulseira de ouro com uma pequena pomba como pingente. A inscrição no interior do objeto apresentava-se em letra cursiva e delicada. Era um presente de dois pais para uma filha. Com uma data do ano anterior. Blá-blá-blá.

Ela odiava o nome Cecília. Muito. Aquela virgem sem importância... Que espinho em sua vida. O propósito daquela garota de sobrenome Barten era apenas o de proteger o espelho. Mas, agora, aquele pequeno lixo tinha algum tipo de ligação com Jim...

Quando estava prestes a esmagar o frágil objeto, um calor percorreu seu corpo, como se o toque de um amante tivesse passado não apenas sobre sua carne, mas sobre seus ossos.

Jim. Era Jim. Ele chamava-a.

Descartando a pulseira, verificou se a gaveta estava mesmo fechada e foi até o espelho que usava apenas para checar sua aparência. Em frente a ele, mudou sua forma, assumindo o corpo de uma linda morena, com seios que desafiavam a gravidade e um traseiro com mais volume do que uma estante de livros.

Ajeitou o cabelo, alisou a saia preta e achou que a barra estava longa demais. Erguendo-a com a força, virou-se e viu que suas coxas lisas e perfeitas estavam à mostra. De repente, estava viva. Bem, tecnicamente, viva não era o termo correto. Mas era assim que parecia: em apenas um momento, seu humor mudou de sepulcral para sublime. Só que não seria idiota com relação a isso. Confiante em sua saia curta, no decote e nos belos cabelos, entrou no banheiro.

– Como estou?

Deu um pequeno giro em frente ao jovem pendurado de cabeça para baixo sobre a banheira. Só que ele não disse nada, mesmo de olhos abertos.

– Ah, o que é que você sabe?

Ela abaixou-se e mergulhou a ponta dos dedos no sangue que escorria continuamente da carótida do rapaz. Impaciente com a demora, traçou alguns riscos em volta dos batentes da porta e no chão, indo e voltando da banheira para umedecer os dedos novamente com a “tinta”. A pureza da essência do jovem formava um selo mais eficaz que qualquer alarme de segurança já criado por um humano... Além disso, o processo permitia que ela livrasse o mundo de mais uma criatura mortal.

Seu trabalho ficava mais fácil assim.

Terminou o assunto com o senhor Tagarela e virou-se para o antigo espelho envolto por uma moldura um tanto apodrecida pelos séculos. A superfície gasta exibia um reflexo em constante mudança, ondas de cinza-escuro e preto rodavam em torno de um fundo cuja cor parecia a mancha de um tapete velho. Aquilo era um horrível portal e a única maneira de se aproximar das almas que possuía.

– Fique aí – disse a ele. – Volto já.

Aproximando-se da superfície do espelho, foi puxada por uma força cruel e entregou-se livremente àquilo. O corpo que havia assumido tornou-se caramelo ao passar por aquele local. Do outro lado, emergiu sem muita firmeza, jogada pela tempestade, mas não precisou de tempo algum para se recuperar.

Ao ajeitar o cabelo e alisar a saia apertada, pensou ser uma falha não ter um espelho ali. No entanto, não precisava preocupar-se com a opinião de seus subordinados ou de suas almas... Oh, suas adoráveis almas... bem, tinham outras coisas em mente.

Inclinando a cabeça para trás, olhou as paredes que se estendiam por quilômetros num negro brilhante visível desde o chão de pedra. O contorcionismo dos condenados torturados desafiavam os limites de sua viscosa prisão; rostos, quadris, joelhos e cotovelos esticavam-se tentando alcançar uma liberdade impossível, as múltiplas vozes erguiam-se num lamento miserável e abafado.

– Como estou? – ela gritou para cima.

O volume do coro de gemidos aumentou como resposta, mas não lhe disseram absolutamente nada. Pelo amor de Deus, será que não conseguiria uma opinião? Qualquer uma?

Depois de olhar para si mesma mais uma vez, concedeu acesso a Jim, convocando sua forma física no local. Enquanto esperava, seu coração batia três vezes mais rápido, uma corrente percorria cada centímetro de sua pele com um chiado elétrico. Mas não demonstraria isso. Calma. Fique calma.

Jim chegou num redemoinho de névoa, e ela prendeu a respiração.

O salvador escolhido era o melhor exemplar que havia do sexo masculino. De uma constituição grande e letal, seu corpo era um instrumento de guerra e sedução. Era primitivo, intenso...

– Você me deseja – disse ela em voz baixa.

Os olhos dele estreitaram-se, e o ódio que havia neles fez mais pela libido de Devina do que um prato cheio de ostras poderia fazer.

– Não dessa maneira, querida.

Oh, como ele mentia.

Devina foi até a mesa de trabalho rebolando e passou as pontas dos dedos sobre a superfície esburacada e sem cor. As memórias dele amarrado nu, de pernas bem abertas e com seu sexo brilhando por ter sido usado há pouco, fizeram-na respirar fundo.

– Não? – ela disse. – Você me chamou. Não o contrário.

– Quero que me diga quem é a próxima alma.

Interessante.

– Então, Nigel mandou você até aqui quando fez a mesma pergunta a ele, não foi?

– Não disse isso.

– Bem, acho difícil acreditar que me procurou primeiro – murmurou em tom amargo. – E acha que vou te contar?

– Sim, acho.

Soltou uma risada violenta.

– Já deveria saber como sou.

– E vai me dizer.

– Por que eu haveria de...

Uma das mãos ergueu-se e Jim começou a passá-la pelo peitoral de maneira intensa e lentamente, oh, bem lentamente, descendo pelo seu estômago...

Devina engoliu em seco. E, então, sua boca ficou realmente seca quando ele segurou o próprio órgão entre as pernas.

– Tenho algo que deseja – ele disse asperamente. – E vice-versa.

Bem, bem, bem... Desejava ficar com ele, sim, mas era muito melhor quando a ligação era voluntária. Ele teria que se esforçar para fazer sexo com ela, sacrificar sua carne para obter informação... na frente de sua doce e estimada Sissy.

Devina olhou para a parede e encontrou a alma com a qual ele tanto se preocupava. Ao descer a garota, inclinou-se contra a mesa.

– O que, exatamente, você está me propondo?

– Diga quem é e eu fodo você.

– Faça amor comigo.

– Vai ser uma foda. Pode acreditar.

– Chame da maneira que quiser... mas não tenho certeza – que mentira. – É uma informação muito valiosa.

– Bem, sabe como eu sou.

Ah, ela sabia e desejava-o outra vez. Desejava sempre.

– Tudo bem – ela disse. – Vou te dizer quem é e, em troca, vai se entregar para mim sempre que eu quiser. Tem que estar à minha disposição.

Os olhos dele estreitaram-se outra vez, como fendas que o faziam parecer um predador.

E, então, houve apenas silêncio. Enquanto o silêncio estendia-se, ela permaneceu firme. Ele tinha voltado, isso era muito estranho, mas precisava agradecer a Nigel – o idiota que sempre seguia as regras – por isso. Se o arcanjo tivesse deixado escapar o nome da alma, aquele maravilhoso sacrifício não estaria acontecendo.

– Certo.

Devina começou a sorrir...

– Com uma ressalva – quando a expressão dela congelou, ele disse: – Ficarei com você agora em troca do nome. Então, veremos se é o correto. No final da rodada, se não tiver mentido... você terá o que deseja. Sempre que quiser.

Devina rosnou. Maldito livre arbítrio. Se ao menos pudesse dominar tal atributo de maneira mais apropriada, ele não imporia qualquer condição. Mas não era assim que funcionava.

Ainda há algumas brechas – pensou. Algumas maneiras de distorcer o acordo para que não falasse demais e ainda conseguisse possuí-lo.

– Temos um acordo? – ele perguntou.

Olhou sobre o ombro dele, enquanto se aproximava, em direção à pequena forma na parede que havia convocado para assistir de camarote o que aconteceria.

Quando Devina tocou o corpo forte e ergueu-se na ponta dos pés, ficou encantada com a carne rígida que acariciava. No ouvido de Heron, sussurrou: – Tire as calças.

– Feito ou não, demônio?

Estava inabalável diante dela, perfeitamente capaz de negá-la, tanto agora como no futuro. Mesmo estando bem na frente dela, era completamente intocável.

Só que era como ele mesmo havia dito, os dois tinham algo que o outro desejava.

– Tire as calças – afastou-se pronta para aproveitar o espetáculo. – Faça isso devagar... e teremos um acordo.

– Que maldição ele está fazendo lá?

Quando Adrian expressou toda sua retórica, indignado, não esperava uma reação de seu colega de quarto. Poderia passar com um carro sobre os pés de Eddie e, talvez, conseguisse obter um ai. Era mais provável que o anjo apenas piscasse os olhos e chutasse o veículo com força.

Sinceramente, aquela coisa toda de forte e silencioso podia ser bem irritante.

– Já faz duas horas – parou no pé da cama em que Eddie estava esparramado. – Ei? Está acompanhando a situação? Ou planeja dormir durante a rodada?

As pálpebras ergueram-se exibindo olhos vermelhos.

– Não estava dormindo.

– Meditando. Que seja.

– Não estava meditando.

– Tudo bem. Manipulando psiquicamente campos de energia...

– Você me deixa atordoado quando fica andando de um lado para o outro sem parar. Só estou evitando uma vertigem.

Não acreditou naquilo nem por um segundo.

– Preocupar-se um pouco com a situação o mataria?

– Quem disse que não estou preocupado?

– Eu disse – Adrian correu os olhos ao longo do corpo grande e imóvel de seu colega. – Estou prestes a pegar um desfibrilador e dar uma descarga na sua bunda.

– O que posso fazer, Ad? Ele voltará quando for a hora.

Imagens de Nigel, o afeminado, aproximando-se todo elegante de Jim fez Adrian pensar se não precisariam de um serviço funerário. Aquele arcanjo poderia passar o tempo jogando críquete e polo, mas não significava que não daria um jeito no cara... E Jim tinha deixado o local com vontade de acabar com alguém. Talvez o bastardo tivesse conseguido aquilo que procurava.

Adrian começou a andar novamente, mas o quarto de hotel não oferecia muito em termos de espaço. Pensou em descer ao bar...

Houve um rangido no quarto ao lado. Como se alguém tivesse sentado na cama. Ou aberto e fechado alguma coisa.

Ad estendeu a mão para a parte traseira da cintura e pegou a adaga de cristal. Se fosse apenas um humano tentando roubar um notebook, não precisaria daquilo. Mas, se Devina tivesse enviado mais um de seus subordinados para distraí-los, a arma seria bastante útil.

Empurrando a porta do quarto conjugado apenas um centímetro ou dois, inclinou-se. Uma camiseta preta foi arremessada para fora do banheiro. Em seguida, uma calça jeans.

Bota.

Bota.

O chuveiro foi acionado e, na sequência, houve um silvo, como se Jim não tivesse esperado a água aquecer primeiro.

Droga. Não tinha visitado apenas Nigel, tinha?

Adrian guardou a adaga outra vez, empurrou a porta com força, atravessou o quarto e sentou-se na cama do outro anjo. Deus sabia que não havia razão para arrancar a roupa e correr para uma ducha de água quente após um encontro com o arcanjo. O pobre coitado deve ter ido até Devina... E ninguém precisava pensar duas vezes para descobrir o que havia acontecido.

Ouvindo o som de Jim lavando o fedor do demônio, Adrian sentiu-se cansado ao ponto de perceber a visão turva de tanta exaustão. O que significava aquele caminho que o salvador decidiu seguir? Ir até lá. Fazer aquilo. Perder a cabeça.

Era este o negócio de Devina. Ela penetrava em você. No começo, você ainda achava que estava no controle. Depois, aquilo que fazia com ela, por razões que pareciam ser muito sensatas, devorava-o, e Devina entrava em sua pele e assumia a direção. Era assim que trabalhava e era muito bem-sucedida.

Quando Jim finalmente saiu do banheiro, parou com uma toalha nas costas, um braço erguido e outro abaixado. Havia marcas de arranhões nas coxas e no abdômen e seu sexo pendia desanimado, como se tivesse sido muito usado e deixado para morrer.

– Ela vai comê-lo vivo – Adrian disse.

O anjo responsável por salvar a tudo e a todos balançou a cabeça.

– De jeito nenhum.

– Jim...

– Ela vai nos dizer quem é a alma – Jim envolveu a toalha em torno de seus quadris. – Vamos encontrá-la amanhã cedo.

Caramba.

– Espere, ela não lhe deu a informação agora?

– Amanhã cedo.

Ad apenas balançou a cabeça.

– Ela está brincando com você...

– Ela vai mostrar. E vai dizer. Confie em mim.

– Ela não é uma fonte confiável. E esse não é o caminho da vitória.

– Então, você acha melhor obter o resultado da última rodada?

Bem... droga.

Jim foi até a mochila e pegou um uniforme militar. Quando virou-se e começou a se vestir, aquela tatuagem enorme em suas costas, com o Ceifeiro da Morte num cemitério, contorceu-se e voltou a assumir a forma original.

Talvez Jim fosse mais durão. Aquilo seria um golpe baixo e dolorido, algo que Ad admitiria apenas diante de sua carcaça fumegante. Mas, se o cara conseguisse suportar tudo aquilo... se pudesse, de alguma maneira, manter-se em pé... então, tinham a melhor arma naquela luta, pois o demônio tinha uma atração pelo cara. Uma grande atração.

Jim foi até o jeans que atirara pela porta do banheiro e vasculhou os bolsos. Quando ergueu-se novamente, havia um quadrado de papel dobrado em suas mãos.

As mãos tremiam, ainda que levemente. Quando ele abriu cuidadosamente o papel, Adrian, mesmo sem ver o que havia ali, esfregou o rosto e desejou que um carro tivesse caído sobre sua cabeça. Sabia muito bem que era o objeto pessoal daquela garota que encontraram sobre a banheira de Devina – a virgem pela qual Jim estava obcecado.

Idiota – Ad pensou. Estavam ferrados. Estavam muito ferrados.


CAPÍTULO 5

 

Veck acordou no sofá de sua sala de estar. O que foi uma surpresa, pois não tinha um.

Esfregando os olhos por causa da bela luz do sol, ficou surpreso por ter controlado o desejo de dormir mais perto da oficial Reilly, tanto que conseguiu se arrastar apenas até ali.

Sentou-se e olhou para a rua. O carro sem marcas de identificação havia partido, e ficou pensando em quando ela se fora. Da última vez que olhou, ainda estava lá, às quatro horas. Gemendo, esticou o corpo, seus ombros estalaram. Detalhes da noite anterior voltaram à memória, mas Veck, instintivamente, quis ficar longe do Monroe Motel & Suítes. Já sentia-se péssimo, não precisava adicionar uma dor terrível à fumaça que saía de sua cabeça.

Quando ficou em pé, ainda teve de lidar com uma ereção matinal obscena – outra coisa para se ignorar. Tinha a impressão de que se envolvera num sonho ousado e espetacular entre ele e a oficial do Departamento de Assuntos Internos. Alguma coisa sobre ela cavalgando em cima dele... O corpo de Veck estava quase todo vestido, ela estava completamente nua... não, espere, estava com o distintivo e a arma no cinto sobre o quadril.

– Droga... – quando seu pênis começou a ficar rígido, rezou para perder outra remessa de memórias de curto prazo e amaldiçoou o pornô clichê. Mas, agora, poderia entender por que os caras de outros departamentos achavam Reilly atraente.

Considerando a direção que seu cérebro estava tomando, não tinha certeza se adicionar cafeína à mistura era uma boa ideia, mas seu corpo precisava se reerguer. Foi chato quando descobriu que havia mentido para a oficial Reilly. Depois de ter conversado com ela e entrado, percebeu que estava sem pó de café.


No andar de cima, tomou banho, barbeou-se e vestiu o uniforme de trabalho: calça e camisa. Nada de gravata para ele, apesar de muitos detetives usarem. Nada de terno. Não usava nada desse tipo, a não ser jaqueta de couro, ou de motociclista, ou algo assim, bem informal.

No andar de baixo, pegou o casaco-reserva no armário, a chave da moto e trancou tudo. Ao se aproximar da BMW, lembrou que levaram várias coisas dele na noite anterior, por isso sentia-se tão leve. Nada de celular para checar as mensagens de voz. Nada de distintivo no bolso da frente. Nada de arma no coldre. Nada de carteira no bolso de trás da calça. A oficial Reilly ficou com tudo. Até com suas roupas de baixo.

Colocou o capacete e subiu na moto, a manhã estava clara e brilhante demais para ele... E nem tinha amanhecido completamente. Cara, considerando a pequena fresta que seus olhos conseguiam abrir, era bom saber que a moto já conhecia o caminho.

De la Cruz tinha levado Veck ao restaurante Riverside há alguns dias, e ele já se perguntava como tinha conseguido sobreviver, até então, sem uma boa dose daquela comida gordurosa. Seguindo o caminho do local, pegou as marginais pavimentadas, pois, mesmo às 7h45, a estrada principal estaria lotada.

O restaurante ficava às margens do rio Hudson, a apenas uns quatro quarteirões da delegacia... E, quando parou no estacionamento cheio de veículos sem identificação, entendeu que tinha chegado ao seu destino. Havia uma grande possibilidade de que metade da força policial também estivesse ali para tomar sua caneca de café de sempre, mas era tarde demais para ir a outro lugar.

Pouco antes de entrar, depositou 75 centavos numa máquina que distribuía o Correio de Caldwell e pegou um exemplar do jornal. Não havia nada sobre a noite passada na primeira página, então virou a página procurando um artigo que...

E lá estava seu nome. Em negrito.

A reportagem, no entanto, não era sobre ele ou Kroner. Era sobre seu pai, e ele rapidamente pulou o texto. Não queria acompanhar as acusações, o julgamento, a sentença de morte, nada que tivesse relação com seu pai. E, meu Deus, quando finalmente foi pego pela justiça criminal, ficou doente no dia em que cobriram o caso.

Não havia nada demais no resto da primeira sessão, nada nas notícias locais, nada nas seções de esportes, quadrinhos ou classificados. Porém, a falta de cobertura sobre o caso não duraria muito. Os repórteres tinham algum acesso aos relatórios policiais e, provavelmente, a história já estava na televisão e nos rádios. Um detetive do Departamento de Homicídios ligado tão diretamente aos atos de um psicopata? Era esse tipo de porcaria que vendia jornais e justificava os preços dos anúncios.

Ao empurrar a porta de vidro, entrou no ambiente ruidoso do Riverside com sua face enterrada nos artigos esportivos. O local estava cheio, quente e com um barulho tão alto como num bar. Teve o cuidado de não fazer contato visual com ninguém enquanto olhava ao redor procurando uma cadeira livre ou uma mesa vazia.

Não havia nada vago. Maldição. E não queria muito juntar-se a uma mesa cheia de oficiais da polícia. A última coisa que precisava era o monte de perguntas que seus colegas fariam. Talvez ele devesse ter ido direto à delegacia e recorrido a uma máquina de bebidas.

– Bom dia, detetive.

Veck olhou à direita. A bela oficial Reilly, que estava sentada na mesa mais próxima que havia da porta, de costas para ele, virou a cabeça a fim de olhar para ele por sobre o ombro. Tinha uma xícara de café à sua frente, um celular na mão e uma expressão de que nada fazia sentido.

– Quer me acompanhar? – disse, apontando para a mesa.

Ela devia estar brincando. Havia mais ou menos uma dúzia de membros da força policial olhando para eles... Alguns de uma maneira mais sorrateira que outros.

– Tem certeza de que quer ser vista comigo?

– Por quê? Não sabe se comportar à mesa?

– Sabe o que quero dizer.

Ela deu de ombros e tomou um gole do café em sua xícara.

– Nossa reunião com o sargento é daqui a vinte minutos. Vai ter muita sorte se conseguir um lugar para sentar até lá.

Veck deslizou na frente dela.

– Pensei que no Departamento de Assuntos Internos vocês sempre se preocupassem com o decoro.

– São apenas dois ovos, detetive, nada demais.

Veck colocou o jornal de lado.

– Está certo.

A garçonete veio com o bloco de notas e o lápis a postos.

– O que vai ser?

Não havia razão alguma para olhar o cardápio. O Riverside tinha todo tipo de omelete, ovos e torradas conhecidos pelo ser humano. Estava com vontade de comer uma torta no café da manhã? Um sanduíche com bacon e tomate? Cereais, aveia e panquecas? Muito bem, que seja... Mas faça logo seu pedido e coma rápido antes que outra pessoa sente no seu lugar.

– Três ovos mexidos. Gema dura. Torradas com manteiga. Café. Obrigado.

A garçonete sorriu como se tivesse aprovado a eficiência.

– Já vai sair.

Eeeee lá estava ele sozinho com Reilly. Ela tinha tomado banho e vestido um conjunto bem profissional de saia e camisa de botões. O tailleur, combinando com a roupa, estava dobrado com cuidado ao lado dela em cima do casaco. Seus cabelos vermelho-escuros estavam amarrados para trás outra vez e toda a maquiagem que ostentava era constituída apenas de um pequeno traço de batom.

De fato, quando ela apoiou a xícara de café na mesa, havia uma meia-lua rosa onde havia tocado com a boca. Não que ele estivesse observando os detalhes de seus lábios. Não mesmo.

– Estou com um relatório preliminar sobre o caso – ela disse.

Hum... aqueles olhos não eram apenas verdes, como ele havia concluído antes. Havia traços de avelã, produzindo uma combinação única de cores que parecia verde apenas a distância.

– Desculpe, o que você disse?

– Tenho um relatório preliminar de ontem à noite.

– E?

– Não foram encontradas outras armas no local.

Manteve-se tranquilo por força do hábito.

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a garçonete entregou o café dele e o pedido de Reilly: uma tigela de mingau de aveia com uma torrada. Sem manteiga.

– É só trigo? – ele perguntou.

– Sim.

Claro que era. Provavelmente ela comia uma salada leve no almoço com alguma fonte de proteína e uma taça de vinho, quando muito, e, no jantar, deveria ser apenas legumes e frango grelhado e alguma coisa com baixo índice glicêmico.

Ficou pensando o que ela teria achado do ataque cardíaco caprichado que ele pedira.

– Por favor, não espere por mim – ele disse.

Ela pegou a colher e adicionou uma pequena quantidade de açúcar mascavo e creme.

– Quer saber o que acho que aconteceu?

– Sim, quero.

– Um animal selvagem te atacou, e, em meio à confusão, você bateu a cabeça.

Ele esfregou o rosto.

– Não tenho marcas.

– Pode ter caído de costas.

Na verdade, não é que ele havia pensado nisso?

– Mas não há qualquer inchaço. E meu casaco ficaria todo sujo.

– Está sujo.

– Apenas por eu ter colocado sobre o Kroner.

Ela baixou a colher.

– Pode provar? Como sabe se foi só isso se não consegue se lembrar de nada? Além disso, sua cabeça estava te matando ontem à noite e, a propósito, você está fazendo isso outra vez.

– Fazendo o quê?

– Discutindo comigo sobre o que aconteceu. E também está esfregando a testa.

Quando ele amaldiçoou e voltou a colocar as mãos sobre a caneca de café, ela sorriu um pouco.

– Adivinhe só, detetive? Você vai ser examinado na delegacia assim que terminarmos nossa reunião.

– Estou bem – Deus, podia ouvir o tom dissimulado em sua voz.

– Lembra-se do que eu disse ontem à noite, detetive? É uma ordem.

Ao se ajeitar na cadeira e beber um pouco do seu estimulante, viu-se observando o dedo anelar de Reilly. Não havia nada. Nem mesmo uma marca mais clara, como se alguma já tivesse passado por lá.

Desejou que estivesse usando um anel de compromisso simples: ele não se metia com mulheres casadas. Nunca. Claro que já atrapalhou alguns casais em sua história de encontros casuais, mas apenas por não saber que eram comprometidas. Era um vadio com valores, sabe?

– Por que você não me suspende?

– Outra vez com uma negativa.

– Não quero que arruíne sua carreira comigo – murmurou.

– E não tenho qualquer intenção de permitir que isso aconteça. Mas não há evidência de que tenha sido você o responsável pelo ataque, detetive, portanto, é o suficiente... só não sei por que você continua a me pressionar.

Quando encarou os olhos dela, ouviu-se dizer: – Sabe quem é meu pai, não sabe?

Aquilo conteve-a por um momento, sua porção de fibras sem gordura voltou para o prato no meio do caminho. Até parou de mastigar.

Então, a bela oficial Reilly recuperou-se com um encolher de ombros.

– Claro que isso é ruim, mas não significa que você tenha dilacerado alguém – inclinou-se. – Mas é o que você teme, não? E por isso continua a bancar o advogado do diabo.

A garçonete escolheu aquele momento para aparecer com o prato fumegante cheio de colesterol, e sua chegada foi um salva-vidas conversacional, se é que existia este tipo de coisa.

Salgou o prato. Colocou pimenta. Espetou com o garfo e comeu.

– Ajudaria se conversasse com alguém? – Reilly disse, quase inaudível.

– Um psiquiatra?

– Terapeuta. Eles podem ser bastante úteis.

– Diz isso por experiência pessoal, oficial?

– Na verdade, sim.

Ele soltou uma risada alta: – Por algum motivo, não acredito que eu seja o tipo de pessoa que precise de algo assim.

– Todos têm problemas.

Sabia que seria um tanto inconveniente, mas sentiu-se nu – e no mal sentido.

– Então, conte-me um dos seus.

– Não estamos falando de mim.

– Bem, estou cansado de estar no palco sozinho – quebrou um pedaço de torrada em duas. – Vamos lá, oficial. Conte alguma coisa sobre você.

– Sou um livro aberto.

– Que precisa de terapia? – quando ela não respondeu, ergueu o olhar para encará-la. – Covarde.

Os olhos da mulher estreitaram-se, ela inclinou o corpo para trás e empurrou a vasilha, ainda metade cheia, para frente. Ele esperava alguma réplica espirituosa. Ou, mais ainda, um tapa. Em vez disso, ela enfiou a mão no bolso, pegou uma nota de dez dólares e a colocou entre eles sobre a mesa.

– Vejo você na sala do sargento.

Com uma graça sutil, distanciou-se, pegou o casaco, a bolsa e o celular.

Antes de sair, Veck agarrou seu pulso.

– Desculpe. Passei do limite.

Ela desprendeu-se e colocou o celular na bolsa.

– Até logo.

Depois que Reilly saiu, Veck empurrou o próprio prato, mesmo ainda tendo um ovo e meio nele. Ainda não eram nove horas... e já tinha ganho o prêmio de idiota do dia. Fantástico...

Uma corrente de ar passou por suas costas, eriçando os cabelos da nuca, e aquilo o fez virar em direção à porta. Uma mulher havia entrado e não pertencia ao local, assim como uma porcelana chinesa fina sendo vendida numa loja de departamentos qualquer. Quando seu perfume pairou no ar e ela tirou o casaco de pele, houve uma pausa audível nas conversas do local. Ela tinha acabado de expor seios enormes para metade do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando Veck observou-a, achou que deveria ter sentido alguma atração por ela, mas, em vez disso, aquele ar frio fazendo cócegas em sua coluna despertou nele o desejo de pegar uma arma e apontar em direção àquela mulher como um mecanismo de autodefesa. E como o desejo era forte.

Deixando uma nota de vinte, interou o valor do resto do café da manhã e dirigiu-se à porta. Ao sair, parou. Olhou ao redor. Sua nuca ainda estava alerta, seus instintos gritavam, principalmente quando olhou através das janelas redondas do restaurante. Alguém o observava. Talvez fosse aquela mulher com corpo de modelo de revista erótica, talvez outra pessoa. Mas seus instintos nunca mentiam.

A boa notícia era que talvez recebesse suas armas de volta naquela manhã. Então, pelo menos, poderia novamente se proteger.

Quando Jim estacionou no Riverside com sua Harley, um cara aproximou-se com uma bela moto BMW rugindo. Adrian e Eddie estavam bem atrás dele com suas motos, e os três estacionaram juntos do outro lado, próximo ao rio Hudson. Quando Jim desmontou e olhou para o lugar, concluiu que Devina havia lhe chamado para um encontro. Bem, tinha algo de especial ali. Esteve com sua primeira alma naquele mesmo restaurante.

Talvez Caldwell fosse um imã para almas condenadas. Ou talvez ela apenas gostava do café servido ali e lhe diria que a alma em questão estava em outro lugar.

Aproximando-se da entrada, viu que seus colegas não estavam para conversa... o que não era novidade da parte de Eddie, mas um milagre, no caso do outro anjo. Aquilo não duraria muito da parte de Ad.

O restaurante estava lotado, barulhento e cheirava a café e a manteiga derretida. Que maldito lugar para Devina escolher...

E lá estava ela, à esquerda, sentada numa mesa, observando a porta enquanto um raio de sol se derramava pela janela ao seu lado. Os raios cálidos e amarelos iluminavam perfeitamente seu rosto, como se estivesse prestes a ser fotografada, e Jim pensou na primeira vez que a viu naquele clube, parada sob uma luminária no teto. Ela, por si só, também brilhava.

O mal nunca pareceu tão atraente, mas, ao contrário dos outros homens, que olhavam sobre suas canecas e babavam como cães, Jim sabia quem aquela mulher realmente era... Não se distraía mais com aquele disfarce a ponto de deixar de perceber que ela não projetava sombra. Por mais brilhante que fosse a luz que a atingisse, não havia qualquer contorno de sombra sobre a mesa ou sobre o encosto do banco ao lado dela.

Por uma fração de segundo, visualizou a imagem deles dois juntos na noite anterior. Tentou penetrá-la por trás sobre a mesa, mas ela insistiu em transar face a face. Sinceramente, ficou surpreso por conseguir uma ereção, mas a fúria também deixava-o rígido, por algum motivo. Ao menos com ela.

Quando desvencilhou-se daquela cena grosseira, suada, olhou ao redor, em direção às paredes, imaginando Sissy presa naquele emaranhado de condenados. Rezou para que sua garota não tivesse visto aquilo. Deus, pensar que ela poderia ter...

Mas chega disso. Aproximando-se de Devina, bloqueou todos os pensamentos em relação a Sissy, ao sexo que teve com o inimigo ou até mesmo em relação ao jogo em si.

– Então, quem é? – ele disse.

O demônio olhou por cima do Correio de Caldwell, seus olhos negros percorreram rapidamente o corpo de Jim e fizeram com que ele sentisse vontade de tomar outro banho... dessa vez, com uma lixadeira.

– Bem, bom dia, Jim. Gostaria de sentar ao meu lado?

– De jeito nenhum.

O cara na mesa em frente à dela olhou por cima do ombro. Como se não tivesse aprovado o tom ou o linguajar de Jim com a moça.

É só aparência, cara – Jim pensou.

Devina abaixou o jornal e voltou-se para suas panquecas de leite e manteiga e para seu café.

– Tem uma caneta?

– Não brinque comigo.

– Um pouco tarde para isso. Caneta?

Como algumas pessoas tentavam passar, Jim e seus colegas tiveram que virar de lado. Eddie tirou uma caneta do bolso e entregou-lhe.

Devina destampou a coisa com suas mãos longas e tratadas. Em seguida, dobrou o jornal na parte de palavras cruzadas.

– Uma palavra com sete letras para...

– Droga, Devina, pare...

–... antagonista.

–... com essa merda.

– Na verdade, Jim, “merda” tem cinco letras. Mas eu não estou fazendo isso, estou? – Devina começou a escrever a palavra com cuidado. – Acredito que “inimigo” seja a palavra que procuro. E terá de se sentar comigo, sozinho, ou vai cair no corredor por suas pernas adormecerem de tanto ficar de pé.

Fez mais um registro cuidadoso sobre o jornal. Imaginou se ela não estaria trabalhando numa palavra equivalente a “dor no traseiro”.

Jim olhou para seus amigos.

– Já vou sair.

– Adeus, Adrian – disse Devina com um aceno – Mas vejo você em breve... tenho certeza.

O demônio não disse nada a Eddie. Afinal, ela gostava de provocar as pessoas, mas Eddie era tão calmo e impassível que simplesmente não valia a pena. O que colocava ele e Adrian no departamento de opostos que se completam.

Quando os dois anjos saíram, Jim sentou-se.

– E então?

– Não gostaria de tomar café?

– Quem é, Devina?

– Odeio comer sozinha.

– Você poderia prender a respiração até eu decidir acompanhá-la... O que acha disso?

Os olhos negros de Devina assumiram um tom objetivo.

– Vamos brigar?

Com isso, Jim soltou uma risada sincera.

– É a razão pela qual estamos aqui, querida.

Ela sorriu um pouco.

– Acho que é a primeira vez que ouço algo assim vindo de você.

Jim foi interrompido quando a garçonete chegou com um bule de café.

– Nada para mim, obrigado.

– Ele vai querer café e waflles.

Quando a garçonete olhou para Jim como se dissesse “vamos lá, decida-se”, ele deu de ombros e deixou por isso mesmo.

Ao ficarem sozinhos outra vez, Devina olhou novamente para suas palavras cruzadas.

– Não terá outra chance comigo a menos que comece a falar.

Houve uma pausa, como se o demônio pensasse em alguma maneira de prolongar o encontro. Finalmente, começou a bater no jornal com a ponta da caneta de Eddie.

– Você lê o Correio de Caldwell?

– Às vezes.

– É um verdadeiro tesouro de informações – ela fez um espetáculo para exibir a primeira parte do jornal. – Nunca se sabe o que pode encontrar nele.

Achatou o papel, virou-o em direção a Jim e passou a encará-lo do outro lado da mesa.

Jim olhou para baixo. Três grandes artigos. Um sobre o projeto de uma nova escola no bairro. Outro sobre o aumento do número de pequenas empresas. E um terceiro sobre... A ponta da caneta de Eddie apontou o último artigo.

– Acho que cumpri minha parte do acordo – disse lentamente.

A manchete dizia: “Agendada a execução de DelVecchio”.

Jim percorreu o artigo rapidamente e pensou: Droga, esta é a alma?

Quando Devina já ia recolher a caneta, ele estendeu a mão e fechou-a sobre o pulso dela, mantendo-o no lugar.

Na verdade, a ponta da caneta apontava um nome escrito ao longo do artigo... E não era o nome do serial killer DelVecchio. Era o filho do cara... Thomas DelVecchio Jr. Um detetive da força policial de Caldwell.

Jim encarou o inimigo do outro lado da mesa e sorriu.

– Pegadinha?

Seus cílios baixaram numa atitude tímida.

– Sempre.

Chega de Devina e de perder tempo, Jim levantou-se e levou a caneta com ele.

– Aproveite meus waffles, querida.

– Ei, como vou terminar minhas palavras cruzadas?

– Tenho certeza de que dará um jeito. Até mais.

Jim saiu do restaurante e seguiu direto para seus amigos. Quando aproximou-se das motos, estendeu a caneta a Eddie.

– Sua caneta – quando o anjo foi pegá-la, Jim segurou-a. – Há metal em volta do bico. Da próxima vez, ofereça uma canetinha hidrográfica.

Quando Jim começou a estender a perna sobre o banco da moto, Adrian perguntou.

– O que ela disse?

– Parece que vamos ter que entrar no mundo dos policiais e dos ladrões.

– Ah. Bom – Ad montou sobre sua moto. – Pelo menos eu falo a mesma língua deles.


CAPÍTULO 6

 

Reilly entrou na delegacia pela porta dos fundos e passou pelo corredor de concreto que daria na mais nova, renovada, inspiradora e motivadora recepção. Infelizmente, a estátua de bronze da Dama da Justiça, com sua balança e espada, era uma interpretação moderna do clássico greco-romano, e mais parecia queijo derretido. Queijo derretido velho e marrom.

Andar ao redor da deusa de olhos vendados e dos pequenos holofotes que a iluminavam de baixo para cima dava uma ideia exata da confusão que havia no lugar. Entretanto, a maioria da força policial, dos advogados e dos promotores que passavam por ali eram ocupados demais para se preocupar com a decoração: o pessoal tinha muita coisa a fazer. O Departamento de Segurança e a Central de Detenções estavam à direita, além da cadeia em si. Os registros eram feitos no setor à esquerda. No andar de cima, estavam as salas dos departamentos de Homicídios e de Assuntos Internos, bem como a sala de reuniões e o vestiário. No terceiro andar, havia o novo laboratório e o local de armazenamento de evidências.

Reilly subiu as escadas de dois em dois degraus, ultrapassando dois colegas que iam mais devagar que ela. Mas, quando chegou ao segundo andar, perdeu o ímpeto. A grande área aberta à sua frente tinha uma série de mesas onde o pessoal do suporte administrativo trabalhava. E, bem no centro do local, em meio ao pessoal, estava Britnae, a gostosa da delegacia.

A loira tinha um espelho nas mãos e passou com os dedos uma sombra de alguma marca famosa nos olhos. O próximo passo foi arrumar os cachos. Por último, pressionar os lábios e fazer beicinho. O tempo todo inclinava-se para frente e exibia o par de silicones para si mesma... Era evidente que estava satisfeita com a maquiagem e com aquela maravilhosa paisagem.


Britnae virou o pulso e checou um daqueles relógios femininos minúsculos que algumas mulheres usam, do tipo que têm pulseiras delicadas e os ponteiros sobre um fundo perolado. Provavelmente, ela tinha um monte de pulseiras e brincos em alguma prateleira ou armário cheio de coisas cor-de-rosa.

O guarda-roupa de Reilly parecia o do Marilyn Manson e dispensava joias. Seu relógio? Era simples. Preto e à prova de choque.

Três chances para adivinhar como Britnae ficaria quando... só precisou de uma: a garota ficava ofegante na frente de Veck desde o dia em que o cara entrara ali há duas semanas. Não que fosse da conta de Reilly.

Antes que alguém a acusasse de xereta, apressou-se para o Departamento de Assuntos Internos e entrou em seu cubículo. Fingindo estar alerta, acessou o computador, mas, quando entrou no e-mail, tudo tinha sido traduzido para uma língua estrangeira. Ou isso, ou seu cérebro tinha esquecido o inglês.

Maldito DelVecchio.

Chamá-la de covarde? Só por querer manter o profissionalismo? Não sabia metade do inferno pelo qual tinha passado. Além disso, estava tentando ajudá-lo...

Aquilo deu vontade de descarregar no cara sua nove milímetros como café da manhã.

Seguindo o programa, acessou o relatório que havia enviado a si mesma por e-mail mais cedo e verificou, outra vez, o trabalho, revisando todo o documento do início ao fim. Quando o telefone tocou, ela atendeu sem olhar.

– Reilly.

– Thomason – ah, o cara do laboratório. – Só queria avisar que acho que os ferimentos de Kroner foram resultado de dentes.

– Como...

– Presas, especificamente. Encontrei os paramédicos ontem à noite no pronto-socorro e estava lá quando Kroner foi entubado, costurado e até quando recebeu uma transfusão. Observei bem as feridas do rosto e do pescoço. Quando uma faca é usada num ataque como aquele, tende a deixar contornos bem claros nas lacerações. A carne dele foi rasgada... algo parecido com o que eu vi quando aquele tigre comeu o treinador de animais no ano passado.

Aquilo confirmava suas conclusões, não é mesmo? E fez com que se perguntasse o que poderia estar perambulando por aquela floresta.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Não tenho certeza. Peguei algumas amostras do tecido... Só Deus sabe quantas espécies existem... Vamos descobrir que tipo de saliva foi deixada. Porém, posso adiantar uma coisa: seja lá o que for... estamos falando de algo grande, poderoso e... furioso.

– Muito obrigada por me ligar tão rápido.

– Sem problema. Vou tirar um cochilo e voltar ao trabalho em seguida. Entro em contato.

Depois que desligou, Reilly digitou um adendo ao seu relatório, pressionou Ctrl+P e, em seguida, enviou o documento por e-mail ao sargento. Pegou uma pasta, o celular e esperou a impressora terminar de liberar as páginas do relatório.

Ao menos tinha uma evidência para confirmar o que havia dito ao sargento antes do café da manhã. Com isso, começou a pensar no restaurante. Não deveria ter convidado Veck para se juntar a ela. Ele estava certo... parecia ruim, mas, mais que isso, poderiam ter evitado aquela conversa desagradável. Na verdade, aquilo a chateou. Não deveria. Um comentário inapropriado no café da manhã? Não deveria incomodá-la. Não mesmo. Ou teria sido uma reação alérgica à palavra covarde? Sim, era isso.

Veck atravessou o saguão da delegacia como um jato, passava rápido pelas pessoas, quase corria. Chegou à escada e subiu os degraus de pedra de dois em dois. Quando chegou ao segundo andar, dirigiu-se à esquerda, mas não ia ao seu escritório. O lugar ao qual precisava ir era o Departamento de Assuntos Internos... do nada, uma coisa rosa e loira entrou em seu caminho.

– Oi!

Quando olhou a garota, entendeu o que os tornados deveriam achar de um trailer quando atingiam algum pelo caminho: absolutamente nada. Ele quase passou por cima dela para chegar a Reilly, por assim dizer.

– Oi. Desculpe... estou atrasado.

Infelizmente, Britnae decidiu dançar uma valsa com ele no corredor, indo para a direita e para a esquerda. Quando ele parou, ela respirou fundo, ou arqueou as costas, ou esbarrou em algum compressor de ar, pois, de repente, parecia Jessica Rabbit, a personagem sensual que vivia exibindo o decote. Se ela mostrasse mais um pouco dos seios, estaria pronta para uma mamografia.

– Então... – ela balbuciou – eu estava pensando se você não gostaria de um pouco de café...

Chá... ou, quem sabe, eu mesma? – ela terminou a sentença mentalmente.

– Obrigado, mas estou atrasado para uma reunião – driblou-a.

Nova barreira.

– Bem, eu poderia trazer para você!

– Não, obrigado...

Ela colocou uma das mãos sobre o braço de Veck.

– Sério, eu não me importo...

A oficial Reilly visualizou o momento ao sair da sua sala nos Assuntos Internos. E, como pode imaginar, não hesitou ou mostrou qualquer mudança em sua expressão facial... Por que vê-lo dar o fora em alguém a incomodaria?

Quando passou, assentiu para ele dizendo oi para aquele atraso de vida.

– Tenho que ir – disse Veck, já mais que atrasado.

– Vejo você mais tarde – Britnae disse em voz alta.

– Reilly – sussurrou – Reilly.

A mulher que realmente interessava parou em frente à sala do sargento.

– Sim?

– Sinto muito pelo que disse. Passei dos limites.

Reilly colocou a pasta sobre o braço e passou a mão pelos cabelos.

– Está tudo bem. É um momento de estresse. Entendo.

– Não acontecerá de novo.

– Não faria diferença para mim se acontecesse.

Com isso, ela virou-se com seus sapatos de salto baixo e entrou na sala de espera. Certo... essa doeu. Mas não podia culpá-la.

Em vez de segui-la, ele ficou ali parado como uma árvore enquanto a porta fechava-se diante de seu rosto, com vontade de chutar o próprio traseiro. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café fresco que indicava a proximidade de seu parceiro.

José De la Cruz parecia cansado, mas alerta; era assim que o cara costumava estar sempre.

– Como estamos?

– Péssimos.

– Não me diga – entregou um dos dois cafés que segurava. – Beba isto. Ou, se conseguir, injete um pouco na veia.

– Obrigado, cara.

– Está pronto?

Não.

– Sim.

Ao entrar na sala, Reilly olhou para trás e acenou para De la Cruz, em seguida, voltou a conversar com a assistente do sargento.

Veck acomodou-se numa das tradicionais cadeiras de madeira alinhadas contra a parede da sala de espera do escritório do sargento, revestida de painéis também de madeira. Enquanto bebia o café, observava cada detalhe em Reilly: a maneira como tocava o brinco direito, como se estivesse meio solto, como fazia ao dobrar a perna, como batia a ponta do sapato enquanto tentava argumentar, o fato de que, ao sorrir, exibia o ligeiro brilho de um preenchimento de ouro no molar superior. Era muito atraente. Atraente mesmo.

– Então, tentei ligar para você ontem à noite – De la Cruz disse em voz baixa.

– Meu celular está no laboratório.

– Você deveria ter um telefone fixo.

– Sim – olhou para seu parceiro. – Acho que não encontraram muita coisa na floresta.

– Nada.

Sentaram-se lado a lado, bebendo café em copos de papel com imagens de cartas de baralho. O café estava horrível, mas estava quente e deu-lhes algo a fazer.

– Você pensou em matar Kroner, não? – quando Veck encarou-o, o outro detetive deu de ombros. – Vi você com aquele paparazzo, lembra? Fui eu quem tirou você de cima dele. Quanta raiva.

Veck voltou a observar Reilly, contente por ela estar compenetrada na outra conversa. Assentindo na direção dela, disse em voz baixa: – Ela acha que não fui eu. Porém, estou com a impressão de que você acha.

– Não disse isso.

– Não precisa.

– Não, eu vi como Kroner ficou. Você também. É uma equação sem lógica.

– Então, por que falou nisso?

– Porque está na sua mente.

Veck produziu um barulho evasivo.

– Se ela recomendar que eu continue na ativa, haverá algum problema para você?

– Não, mas acho que você não deveria sair nas ruas sozinho neste momento.

Engraçado, ele achava a mesma coisa. E era uma droga.

– Vamos ficar algemados um ao outro, então?

O sargento abriu a porta de seu escritório, mostrando a cabeça grisalha.

– Vamos lá?

Reilly despediu-se da assistente, e Veck e De la Cruz seguiram-na ao longo do grande escritório. A mesa de reunião, na outra extremidade da sala, era grande o suficiente para comportar a todos com conforto, e Reilly escolheu a cadeira mais distante de Veck para se sentar... ou seja, estava bem diante dele. Nada de contato visual. Isso não o surpreendeu.

Que inferno.

– Bem, li o relatório que me enviou por e-mail – o sargento disse a Reilly. – Mais alguma coisa?

– Apenas um adendo, o qual eu também enviei – ela passou algumas cópias ao sargento e, em seguida, entrelaçou os dedos e sentou-se. – Mantenho minhas conclusões.

O sargento olhou para De la Cruz.

– Alguma coisa a acrescentar?

– Não. Também li o relatório e isto diz tudo.

– Então, estou propenso a concordar com a oficial Reilly – o sargento olhou para Veck com firmeza. – Gosto de você. É o meu tipo de policial. Mas não vou permitir que alguém que represente perigo a outras pessoas carregue um distintivo. Reilly é sua nova parceira... Veck, não posso dispensar De la Cruz durante o seu período probatório, que será de um mês, no mínimo.

Reilly não mostrou qualquer reação diante da mudança, mas era uma profissional, não era?

– Ainda posso trabalhar no caso de Kroner? – Veck perguntou.

– Não nesta vida. A partir de hoje, você assumirá os casos antigos pelos próximos trinta dias e terá reuniões periódicas com o dr. Riccard.

Ah, sim, o psicólogo do departamento. E, no silêncio que se seguiu, Veck sabia que todos esperavam que soltasse algum protesto, mas, afinal, não poderiam considerá-lo uma máquina mortífera selvagem.

Não mesmo. Por exemplo, não conseguia deslocar o ombro, não morava na praia com um cachorro e não saía por aí tentando liberar seu instinto assassino. Logo...

– Certo.

O sargento pareceu um pouco surpreso, mas bateu na mesa com o nó dos dedos, algo que Veck concluiu ser um gesto de satisfação do cara.

– Ótimo. De la Cruz, quero falar com você. Quanto a vocês dois... terminamos.

Reilly saiu do escritório tão rápido quanto um tiro, mas Veck também conseguia correr daquele jeito. Saiu bem atrás dela e alcançou-a na saída do corredor.

– Então, como será? – ele falou.

Era tudo o que tinha a dizer. Desculpar-se não adiantou e, de alguma maneira, também não conseguia pensar em agradecê-la pelo relatório.

Reilly deu de ombros.

– Vou terminar o que estava fazendo esta manhã e, depois, poderemos nos ater aos casos antigos.

– Durante trinta dias.

– Trinta dias – ela não parecia entusiasmada, mas também não parecia temer o que estava por vir. Veck concluiu, com isso, que não seria fácil conversar com ela no tempo livre.

– Vejo você às treze horas em ponto no seu departamento, detetive.

– Entendido, oficial.

Mesmo andando, ela fez alguma anotação em seus papéis ao sair, a cabeça estava enterrada no trabalho. Dois rapazes passaram, olharam para ela e continuaram a olhar, como se esperassem alguma troca de contato visual. Mas ela não ergueu a cabeça. Nem notou-os. Contudo, Veck percebeu muito bem aquilo. E desejou fazer algum ajuste óptico naqueles bastardos.

– Você deixou isto no escritório do sargento.

Veck virou-se. De la Cruz tinha saído e levava o café de Veck.

Bem, aquilo não pareceu nada estranho. Não mesmo.

– Obrigado, cara – Veck pegou o copo de papel e tomou um gole. A única coisa que redimia a bebida tinha passado: a porcaria estava morna. – Bem, estava sendo bom trabalhar com você.

– Posso dizer o mesmo – José estendeu uma das mãos. – Mas, quem sabe? Talvez volte a ser designado meu parceiro daqui a um mês.

– Sim – porém, de alguma forma, Veck tinha a sensação de que seus dias no Departamento de Polícia de Caldwell estavam contados.

Voltaram ao Homicídios em silêncio e, quando abriram a porta do departamento, todos os detetives que ali estavam desviaram o olhar das paredes cinzentas que dividiam seus cubículos. Veck não viu razão alguma para suavizar as coisas.

– Na ativa. Nada de Kroner. Com Reilly.

Várias cabeças assentiram para ele e, cara, agradecia quando as pessoas eram legais. Na verdade, ali havia pessoas decentes trabalhando duro por pouco dinheiro e não tinham muito tempo para bobagens. Além disso, bem ou mal, depois de ter acertado aquele paparazzo, ganhou bastante respeito.

Quando todos voltaram ao trabalho, José bateu sobre o ombro de Veck e dirigiu-se à própria mesa. Veck não perdeu tempo. Sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e checou seus e-mails.

Casos antigos, hum? Era uma categoria muito ampla. Acessando a base de dados do departamento, puxou todos os relatórios de pessoas desaparecidas. E aquilo fazia parte, tecnicamente, de casos antigos, não? Uma vez que ainda estavam abertos. Ao iniciar a pesquisa, esparramou-se e deixou o computador trabalhar. Engraçado como o resultado da pesquisa exibiu apenas dados de mulheres, entre 16 e 30 anos, registradas como desaparecidas nas últimas, digamos... três semanas? Quando foi mesmo que Kroner apareceu atuando naquela área?

Não era coincidência.


CONTINUA

CAPÍTULO 1


Era primavera, numa noite escura de abril, quando o detetive Thomas DelVecchio Jr. entendeu que pesadelos poderiam, de fato, saltar da mente e tornar-se realidade. Infelizmente, isso, para ele, não era bem uma novidade.

Havia sangue por toda parte. Um vermelho brilhante sob o luar, como se um galão de tinta tivesse sido derramado no local, não apenas sobre o chão da floresta... mas sobre aquele homem estraçalhado em meio às folhas secas, bem aos pés de Veck.

Contudo, toda aquela confusão vermelha não era de tinta látex para interiores. Ou de tinta a óleo para acabamentos. Ou, ainda, de tinta para paredes externas. Não se poderia comprar aquilo numa loja de tintas e limpar tudo com solvente, muito menos era algum corante daqueles filmes de terror de segunda.

Aquilo era a vida real, sim, bem ali, diante dele. Escorrendo por todos os cantos.

O que ele havia feito? Santo Deus...

Arrancando sua jaqueta de couro, ajoelhou-se para pressioná-la contra o tórax descoberto do homem. Sons de líquido borbulhando misturavam-se com os da forte respiração de Veck, que encarava aqueles olhos escurecendo-se rapidamente.

– Eu matei você? Será que eu...?

Nenhuma resposta. É claro que as cordas vocais do bastardo deviam estar penduradas num galho qualquer.

Droga... que droga... era como a noite em que sua mãe havia sido morta.

Só que, neste caso, ele realmente veio para esquartejar alguém.

De uma coisa tinha certeza: estava com sua moto, dirigiu até ali e esperou escondido na floresta até o maldito psicótico aparecer – mentindo a si mesmo, o tempo todo, sobre estar ali apenas para prender o “suspeito”. Mas as suas mãos diziam a verdade. Quando sua presa finalmente chegou, a faca estava empunhada e atuou como uma sombra com suas roupas pretas, aproximando-se...


X


O Monroe Motel & Suítes estava a pouco mais de dez metros dele, do outro lado da espessa barreira de arbustos e pinheiros. Iluminado por luzes de um amarelo que mais parecia urina, a tentativa decadente do local de chamar a atenção para o aluguel de quarto por uma noite, ou por uma hora, foi a razão para ele e o assassino terem saído de casa naquela noite.

Serial killers costumam colecionar troféus de suas vítimas. Incapazes de formar laços emocionais adequados com as pessoas e carentes de representações físicas do poder fugaz que exercem sobre suas presas, revestem os objetos de emoções ou lembranças das pessoas que massacraram.

David Kroner havia perdido sua coleção de recordações há duas noites. Quando o trabalho que fazia ali foi interrompido e a polícia cercou a cena do crime. Então, é claro que retornaria ao local onde esteve no controle da situação pela última vez. Era o máximo que poderia reconquistar daquele momento.

– Chamei uma ambulância – Veck ouviu-se dizer, sem saber ao certo com quem estava falando.

Mudando o foco de seu olhar, concentrou-se no último quarto do motel, próximo de onde estavam e longe da sala da gerência. Um selo oficial do Departamento de Polícia de Caldwell estava fixado à porta e aos batentes, e a fita que envolvia a cena do crime produzia um ruído com a brisa que nela batia. Numa fração de segundos, visualizou o que ele e os outros oficiais tinham encontrado havia duas noites: outra jovem mulher, que acabara de ser morta e estava prestes a ter sua carne recortada para ser levada como lembrança.

Mais sons de algo borbulhando.

Olhou para baixo. O homem que sangrava era magro e fino, portanto, fazia sentido as vítimas de David Kroner serem jovens, aparentando idade entre 16 e 24 anos. Não precisava ser forte como um cão de guarda para fazer o trabalho. Os cabelos loiros de Sandy afinavam no alto da cabeça. A pele branca tornava-se cinza, pelo menos onde não estava coberta de sangue.


Mergulhando em seu banco de dados mental, Veck tentou se lembrar do que diabos havia acontecido. Após esperar por um período de tempo que lhe pareceu dias, o estalar de galhos finos chamou-lhe a atenção, foi quando viu Kroner andando na ponta dos pés entre os pinheiros.

No instante em que avistou o homem, pegou a faca, agachou o seu corpo e, em seguida...

– Filho da mãe!

A dor de cabeça veio com força, como se alguém tivesse batido um prego em seu lobo frontal. Erguendo uma das mãos, inclinou-se para a esquerda e pensou, muito bem, ótimo. Quando a ambulância chegasse, os médicos poderiam diagnosticar nele um aneurisma.

Ao menos isso lhes daria algo para fazer – Kroner já seria um cadáver quando chegassem ali.

Quando a dor lancinante passou um pouco, Veck tentou, outra vez, lembrar-se de mais alguma coisa... apenas para voltar com força total à necessidade de tomar um analgésico urgentemente e, em seguida, sofrer um apagão mental novamente. Com a nova rodada de agonia que floresceu em seu crânio como se fosse um buquê vermelho brilhante, fechou os olhos e pensou em vomitar – e, enquanto a dúvida sobre pôr ou não tudo para fora enfurecia suas entranhas, percebeu que era hora de ser honesto consigo mesmo. Por causa do enorme buraco negro em suas lembranças de curto prazo, sabia apenas que tinha sim ido até lá para matar aquele filho da mãe pervertido que, incluindo a última vítima na contagem, havia atacado pelo menos onze mulheres de Chicago a Caldwell no ano passado.

Horrível, é claro. Mas era um amadorismo comparado ao próprio pai de Veck – que fizera tudo aquilo num espaço de três meses: Thomas DelVecchio pai escreveu a cartilha para caras como Kroner.

E foi seguindo essa linha de raciocínio que Veck chamou não apenas a ambulância, mas também seu parceiro do Departamento de Homicídios.

Por mais que detestasse admitir, era filho de seu pai: foi até ali para matar. Ponto final. E o fato de sua vítima ser um imbecil violento não era nada além de um filtro social aceitável para a realidade.

No fundo, não se tratava de vingar as garotas mortas.

E, pelo amor de Deus... sabia que o que acontecera naquela noite era inevitável. Ao longo de toda sua vida, aquela sombra esteve atrás dele, guiando-o, seduzindo-o, puxando-o em direção àquela cena de destruição. Então, fazia sentido não se lembrar de nada. Sua outra metade finalmente havia assumido o controle e não tirou as mãos do volante até que todo o ato de violência estivesse feito. Prova disso? Em algum lugar na parte de trás de sua cabeça, ecoava um riso, maníaco e satisfeito.

Certo, muito bem, divirta-se agora – pensou, pois não iria mais deixar-se levar tão longe em direção aos passos de seu pai...

O som de sirenes surgiu vindo do Leste e ficava cada vez mais alto e rápido.

Aparentemente, não foi o único que ouviu o alarme. Um homem saiu rapidamente de um dos quartos do hotel e correu em volta do capô de um carro já com seus dez anos, bastante usado, que tinha uma treliça metálica sobre o para-choque. Foi meio difícil pegar as chaves, já que puxava as calças ao mesmo tempo. Em seguida, no mesmo ritmo de fuga, veio uma mulher de aparência rude que tropeçava ao se aproximar de um velho Honda Civic enquanto descia sua minissaia.

As partidas ruidosas e desenfreadas deixaram o estacionamento vazio quando a ambulância surgiu na entrada do local e parou em frente à sala da gerência. Quando um paramédico saiu do banco do passageiro, um homem que deveria ser o gerente abriu a porta, Veck assoviou com força: – Aqui!

Parece que o gerente não tinha a menor intenção de se envolver e voltou para trás. Mas o paramédico correu e a ambulância percorreu o estacionamento atrás dele. Quando chegaram, Veck ficou muito calmo – mortalmente calmo. Tão intocável quanto a fria e distante lua que os vigiava naquela noite densa e escura.

Dane-se seu lado negro. Foi ele quem tinha feito aquilo. E obrigaria a si mesmo a pagar por isso.

A oficial de Assuntos Internos, Sophia Reilly, dirigia a todo vapor em seu carro sem marcas de identificação, disparando ao longo de uma área remota junto aos limites sujos de Caldwell, enquanto percorria a Rota 149 numa corrida louca – o fato de estar a caminho da cena de um crime não justificava a alta velocidade. Ela dirigia rápido, comia rápido e odiava esperar em filas, aguardar pessoas ou informações.

Se apenas pudesse evitar a colisão com um cervo antes de chegar ao Monroe Motel & Suítes...

Quando seu celular tocou, já estava com ele em seu ouvido antes do segundo toque.

– Reilly.

– Detetive De la Cruz.

– Oi. Adivinhe para onde estou indo agora?

– Quem te ligou?

– 190. Seu parceiro está na minha lista de coisas a fazer... então, quando ele liga chamando uma ambulância, pede reforços no meio da noite e diz que não se lembra do que aconteceu com a vítima, eu recebo uma ligação básica.

Infelizmente, aquilo era algo com o que ela já estava se familiarizando. Thomas DelVecchio Jr. estava trabalhando no Departamento de Homicídios há apenas duas semanas e já quase tinha sido suspenso por nocautear um paparazzo que tentara tirar uma foto de uma vítima.

No entanto, aquilo era brincadeira de criança se comparado à confusão de agora.

– Como descobriu? – ela perguntou.

– Ele me acordou.

– E o que lhe pareceu?

– Vou ser honesto com você.

– Sempre é, detetive.

– Parecia que estava bem. Reclamou de uma dor de cabeça e perda de memória. Disse que havia muito sangue e que tinha certeza absoluta de que a vítima era David Kroner.

Mais conhecido como o bastardo doente que havia retalhado garotas e guardado pedaços delas. A última sessão de “trabalho” do bastardo tinha sido dirigir até aquele hotel há duas noites, mas foi interrompido por desconhecidos. Com a confusão, Kroner escapou por uma janela do banheiro, deixando para trás um cadáver numa posição trágica e uma caminhonete cheia de frascos com amostras e outros objetos – todos eles foram catalogados em seu esconderijo, e havia referências cruzadas a nível nacional.


– Perguntou se foi ele quem fez isso? – como membro do Departamento de Assuntos Internos, Reilly investigava os delitos de seus colegas e, apesar de se orgulhar do trabalho que fazia, não gostava do fato de que as pessoas com sua função sempre tivessem muito trabalho. Seria melhor se todos, incluindo os oficiais da lei, jogassem segundo as regras.

– Ele disse que não sabia.

Branco total ao cometer um assassinato? Não era incomum. Especialmente se fosse um crime passional – como, digamos, um detetive de homicídios querendo pegar um perverso serial killer. E Veck já tinha dado provas de ser um cara de pavio curto no que se referia à proteção ou defesa das vítimas. Bem, não era simplesmente pavio curto e ponto final. O cara era brilhante, um pavio curto muito sexy – não que o fato de ser sexy fosse relevante. Nem um pouco.

– Em quanto tempo você vai chegar lá, detetive? – ela perguntou.

– Uns quinze minutos.

– Estou a pouco mais de um quilômetro de distância. Vejo você lá.

– Entendido.

Quando desligaram, ela colocou o telefone no bolso interno do casaco e endireitou-se no banco. A possibilidade de um membro do departamento ser o suspeito na investigação de um assassinato – e considerando o que Veck havia dito ao pessoal da Emergência, que a probabilidade de Kroner ter sobrevivido era mínima – criava todos os tipos de conflito de interesse. Na maioria das vezes, o pessoal dos Assuntos Internos lidava com corrupção, infrações processuais e investigações sobre a competência no desempenho de funções. Mas, numa situação como essa, os membros do próprio departamento de Veck estavam numa posição delicada, pois deveriam avaliar se um de seus colegas havia cometido um crime.

Caramba, dependendo de como a situação se encaminhasse, ela teria de chamar algum reforço externo para efetivar a investigação. Mas era muito cedo para isso. Porém, não era muito cedo para pensar sobre o pai de Veck.

Todos sabiam quem ele era, e ela tinha de admitir que, se esse laço consanguíneo não estivesse em jogo, não estaria tão alerta... com a preocupação constante de que aquilo fosse resultado de uma revanche ao estilo DelVecchio, por assim dizer.

Thomas pai foi um dos serial killers mais conhecidos do século XX. Oficialmente, fora acusado e condenado por “apenas” 28 assassinatos. Mas estava envolvido em mais trinta – e isso era apenas o que as autoridades de quatro estados sabiam. Havia uma grande probabilidade de existir dúzias de mulheres desaparecidas, cujos casos não puderam ser relacionados adequadamente a ele.

Então, não, se o pai de Veck tivesse sido um advogado, contador ou professor, ela não estaria tão preocupada. Mas o velho ditado “tal pai, tal filho” tinha implicações terríveis quando se tratava de serial killers e seus filhos.

Depois de passar por uma ponte estreita, o Monroe Motel & Suítes surgiu mais acima, à direita, e ela passou lentamente pela gerência e pelos quartos até chegar ao final do estacionamento, próximo à floresta. Ao sair com uma mochila cheia de pequenos compartimentos, o aroma doce do diesel da ambulância a fez espirrar com força e, na sequência, sentiu o odor forte dos ramos de pinheiro... bem como o cheiro pungente e inconfundível de sangue fresco.

Os paramédicos estacionaram o veículo com a traseira voltada para a floresta e, sob a luz dos faróis, os dois profissionais trabalhavam sobre o corpo ensanguentado de um homem branco. As roupas da vítima haviam sido cortadas – ou rasgadas – e sob elas havia uma mistura de incontáveis ferimentos.

Não há chance alguma de ele sobreviver, ela pensou. Então, viu Veck. O detetive de homicídios estava em pé ao lado da cena do crime, com braços cruzados e pés bem firmados ao chão. O rosto mostrava... absolutamente nada. Assim como De la Cruz havia dito. Meu Deus, o cara poderia muito bem estar na fila de uma lanchonete daquele jeito.

Quando andou sobre a superfície esponjosa de folhas caídas e terra macia, sentiu um súbito frio na barriga. Embora, sinceramente, não fosse apenas pela cena do crime. Também era por causa do homem que deveria investigar. Próximo ao local, notou uma moto preta estacionada nos limites da floresta. Era dele, já tinha visto na delegacia antes. De fato, já o vira pela janela de sua sala montando naquela coisa, dando o impulso com o pé para iniciar o motor e arrancando para longe dali. Ele usava capacete – na maioria das vezes.

Ela sabia que muitas mulheres na delegacia observavam a cena, pois havia muito que olhar. Aqueles ombros pesados e quadris bem definidos mostravam a constituição de um boxeador, mas seu rosto era mais o de um garotinho bonito que o de um pugilista – ou seria, se não fosse por seu olhar. Aqueles olhos azuis-escuros, inteligentes e frios faziam com que toda a estrutura óssea, estilo modelo famoso, tornasse-o bastante viril. E havia algo mais.

Parando em frente a ele, a primeira coisa que notou foi o sangue na gola de sua blusa preta. Respingos aqui e ali, não eram grandes manchas ou partes encharcadas. Nenhum arranhão no rosto, ou no pescoço.

As roupas e o chapéu estavam em boas condições – nada desalinhado, rasgado ou amassado. Havia dois círculos de lama sobre os joelhos de suas calças pretas. A arma estava guardada no coldre. Não estava claro se tinha outras armas.

Ele não disse nada. Nada de “eu não fiz isso” ou “deixe-me explicar...”. Seus olhos apenas se fixaram nela.

Deixando de lado as gentilezas, ela disse: – O sargento me ligou.

– Imaginei.

– Está ferido?

– Não.

– Se importa se eu fizer algumas perguntas?

– Vá em frente.

Deus, ele tinha tanto autocontrole.

– O que o trouxe aqui esta noite?

– Sabia que Kroner voltaria. Tinha que voltar. Com sua coleção apreendida, não restava mais nada do seu trabalho, portanto, este é um local sagrado para ele.

– E o que aconteceu depois que chegou?

– Esperei. Ele chegou... e, então... – Veck hesitou, as sobrancelhas estreitaram-se como se fossem dar um nó e uma das mãos se ergueu para esfregar a têmpora.

– Droga...

– Detetive?

– Não consigo me lembrar – olhou para os olhos de sua colega outra vez. – Não consigo me lembrar de nada depois que ele apareceu, juro por Deus. Em um minuto ele surgiu vindo da floresta, no outro...? Havia sangue por toda parte.

– Posso ver suas mãos, detetive? – quando ele as estendeu, estavam firmes como rocha... e sem marcas de corte ou arranhões. Nada de sangue na palma das mãos, na ponta dos dedos ou nas unhas.

– Avaliou a vítima ou interveio em seus ferimentos antes de ligar para o 190?

– Peguei minha jaqueta de couro e coloquei sobre o pescoço dele. Não ia ajudar, mas eu fiz mesmo assim.

– Está carregando mais alguma coisa além da sua arma de fogo?

– Minha faca. Está no meu...

Ela colocou a mão sobre o ombro dele para impedi-lo de continuar.

– Deixe-me dar uma olhada.

Assentindo, virou-se. Sob a luz da ambulância, a lâmina guardada no pequeno coldre em suas costas era bem o que ela esperava ver.

– Posso ficar com a arma, detetive?

– Fique à vontade.

Tirando um par de luvas de vinil, vestiu-as e pegou o punhal. Quando puxou o objeto, percebeu que o corpo dele não se moveu. Poderia muito bem ser esta a sensação de desarmar uma estátua.

A faca estava limpa e seca. Levantando-a até o nariz, ela inalou. Nenhum cheiro de adstringente que indicasse ter sido higienizada às pressas.

Quando ele olhou por cima do ombro, o movimento de seu corpo fez seus ombros parecerem enormes e, sem qualquer motivo, ela percebeu que estava frente a frente com o peitoral dele. Com seu quase um metro e setenta, ela tinha uma altura mediana, mas, ao lado dele, ela sentia como se tivesse sido reduzida a uma miniatura.

– Vou confiscar isso, importa-se? – Ela ia pegar a arma dele também, mas, considerando os ferimentos da vítima... a lâmina era o que realmente queria.

– Nem um pouco.

Quando pegou um saco plástico, disse: – O que acha que aconteceu aqui?

– Alguém partiu ele ao meio e acho que fui eu.

Aquilo deteve-a, mas não por achar que fosse, de fato, uma confissão – não esperava que alguém naquelas circunstâncias fosse tão honesto.

Naquele momento, um carro sem identificação percorreu o estacionamento com duas viaturas.

– Seu parceiro chegou – ela disse. – Mas o sargento quer que eu lidere a investigação para evitar qualquer possibilidade de conflito de interesses.

– Sem problema.

– Concordaria se eu retirasse amostras do material sob suas unhas?

– Sim.

Ela colocou a mochila à sua frente outra vez e tirou um canivete suíço e alguns pequenos sacos plásticos.

– Você é muito organizada, oficial – Veck disse.

– Não gosto de estar despreparada. Por favor, estenda sua mão direita.

Ela fez um trabalho rápido, começando com o dedo mindinho. As unhas foram cortadas, mas não como uma manicure faria, e havia muito pouco sob elas.

– Tem experiência em trabalhos de investigação? – Veck perguntou.

– Sim.

– Parece mesmo.

Quando ela terminou, ergueu o olhar... e imediatamente teve que se desviar de seus olhos azuis-escuros como a meia-noite para algum outro lugar próximo.

– Quer outro casaco, detetive? Está frio aqui.

– Estou bem.

Se estivesse com um ferimento sangrando no peito, aceitaria um maldito esparadrapo? – ela pensou – ou bancaria o cara durão até não haver mais plasma em suas veias?

Bancaria o durão, com certeza, concluiu.

– Quero que os paramédicos deem uma olhada em você.

– Estou bem.

– Isto é uma ordem, detetive. Parece que está com dor de cabeça.

Naquele momento, De la Cruz emergiu de seu carro e, enquanto se aproximava, seu rosto parecia triste e cansado. O fato era que tinha perdido um parceiro há alguns anos. Obviamente, não estava empolgado com a ideia de repetir a dose, mesmo que por um motivo diferente.

– Com licença – ela disse aos dois. – Vou chamar um dos paramédicos.

Contudo, quando ela aproximou-se, eles estavam transferindo Kroner para a maca e, logicamente, não poderiam dispensar nem um minuto.

– Quais são as chances dele?

– Poucas – um deles disse. – Mas faremos o nosso melhor, oficial.

– Sei que farão.

Os suportes da maca foram estendidos até que esta ficasse à altura da cintura deles e, pouco antes de deslizarem o objeto, ela tirou uma foto mental. Kroner parecia ter sido retirado dos destroços de um carro fumegante, com o rosto desfigurado, como se não estivesse usando o cinto de segurança e tivesse sido lançado contra a janela.

Reilly olhou para Veck outra vez.

Há muitas lacunas nesta cena – pensou. Especialmente se concluísse que havia sido ele o agressor. Mas não havia muitas possibilidades de fazer todo aquele estrago e limpar tudo tão rápido no meio da floresta. Além disso, parecia que não havia se envolvido em alguma briga ou coisa assim – e não existe um jeito de lavar arranhões e hematomas.

Quem tinha feito aquilo? Era o que a incomodava.

Como se pudesse sentir o olhar dela, Veck girou a cabeça, e, quando os olhares encontraram-se, tudo desapareceu: era como se estivesse a sós com ele... não a quinze metros de distância, mas a quinze centímetros.


Do nada, um calor brotou, borbulhando pelo corpo de Reilly, o tipo de coisa que, se ela estivesse em casa, diria a si mesma que era a proximidade do duto de ar quente. Mas ali ela justificava a onda de calor como consequência da adrenalina do estresse.

Maldito estresse. Nada de atração sexual.

Ela interrompeu aquela conexão quando atentou-se aos policiais recém-chegados. Ordenou: – Poderia passar a fita aqui?

– Entendido, oficial.

Certo, hora de voltar ao trabalho: aquele breve momento de atração totalmente inadequada não atrapalharia o que tinha a fazer. Era muito sensata. Sua integridade profissional não exigia nada menos que isso. Também não tinha a intenção de permanecer muito tempo na lista de adoradoras do cara. Ia cuidar dos seus negócios e deixar os olhares embevecidos para as outras.

Além disso, caras como Veck não gostavam de mulheres como ela e não havia problema algum nisso. Estava muito mais interessada no trabalho do que em mostrar as pernas, soltar os cabelos e competir nos jogos olímpicos da sedução. Brittany – na verdade, escrevia-se Britnae, mais conhecida como a gostosa da delegacia – poderia conquistá-lo e ficar com ele à vontade se quisesse.

Enquanto isso, Reilly verificaria se o filho teria revivido ou não os horrores típicos dos atos do pai.


CAPÍTULO 2

 

Em circunstâncias normais, Jim Heron considerava-se um mau perdedor. E isso com qualquer coisa que jogasse no dia a dia, fosse vídeogame, tênis ou pôquer. Não que ele perdesse tempo jogando tudo isso, mas, quando jogava, era do tipo que não deixaria o controle, a quadra ou a mesa antes de estar por cima da situação.

Mas nada disso tem importância.

Quando se tratava da guerra com o demônio Devina, ele ficava em chamas de tão furioso: havia perdido a última rodada.

Perdido, o contrário de ter vencido. Na batalha por aquelas sete almas, ele e aquela vadia estavam empatados em um a um. Claro, ainda havia mais cinco disputas, mas não era essa a direção que ele ou qualquer outra pessoa precisava seguir.

Derrotado? Aquele demônio tinha domínio não só sobre a terra mas também sobre os céus... o que significava que sua mãe e todas as boas almas que ali estavam, assim como ele e seus soldados, que eram anjos caídos, poderiam um dia contemplar uma eternidade de tormentos.

E havia descoberto há pouco tempo que aquilo não era apenas algo hipotético que motivava os mais religiosos. O inferno era um lugar de verdade, e o sofrimento que ali havia era bem real. De fato, muito do que tinha concluído ser apenas retórica tola de todos aqueles que se diziam santos mostrou-se ser correto.

Então, sim, as apostas eram altas e ele odiava perder. Especialmente porque não precisava ter sido daquele jeito. Estava furioso com o jogo. Com seu chefe, Nigel. Com as “regras”.

Era senso comum: quando se diz a um cara que ele deve influenciar alguns idiotas numa encruzilhada da vida, facilita se disser quem eles são. Afinal, não era um grande segredo: Nigel sabia. O inimigo, Devina, sabia. Jim? Nem tanto assim, pessoal. E, cortesia do buraco negro de informação, concentrou-se no homem errado na última rodada e estragou tudo.

E lá estava ele, empatado com a vadia e furioso num quarto de hotel em Caldwell, Nova York. E não era o único enfezado por ali. No quarto ao lado, do outro lado de um conjugado, duas vozes masculinas graves iam e vinham, num tom de extrema frustração.

Nenhuma novidade. Seus companheiros, Adrian Vogel e Eddie Blackhawk, não estavam contentes e era claro que falavam mal dele em sua ausência. Voltar constantemente a Caldie não era tanto a questão. O problema era a razão pela qual Jim arrastou-os até ali.

Seus olhos percorreram o edredom. Cachorro estava enrolado como uma bola ao lado dele, seu pelo desalinhado dava a impressão de o terem entupido de gel e colocado, em seguida, diante de um vento forte, mas isso não tinha acontecido. Ao seu lado, havia a impressão de um artigo de três semanas do Correio de Caldwell. O título era “Garota local desaparecida”, e, ao lado do texto, havia a foto de um grupo de amigos sorridentes, cabeças unidas e braços estendidos por trás dos ombros uns dos outros. A legenda sob a imagem identificava a que estava no meio como Cecília Barten.

Sua Sissy.

Bem, não era bem “sua”, mas pensava nela como sendo sua responsabilidade. A questão era: ao contrário de seus pais, familiares e amigos da comunidade, sabia onde ela estava e o que havia acontecido com ela. A moça não fazia parte da enorme lista de jovens que fogem de casa e também não havia sido atacada pelo serial killer que, de acordo com o site do jornal daquela manhã, estava à solta. Porém, havia sido profanada. Por Devina.

Sissy foi uma virgem sacrificada para proteger o espelho do demônio, seu bem mais sagrado. Jim encontrou seu corpo pendurado de cabeça para baixo em frente à coisa, no covil temporário do demônio, e foi forçado a deixá-la para trás. Porém, mais tarde, pôde vê-la no muro de almas de Devina... presa, sofrendo, perdida para sempre entre os condenados que mereciam aquele destino.

Cecília não pertencia ao inferno. Era uma garota inocente e foi usada pelo mal – e Jim iria libertá-la, nem que fosse a última coisa que fizesse. Portanto, sim, foi por isso que voltaram a Caldwell. E a razão pela qual Adrian e Eddie estavam furiosos.

Mas, sem ofensa... que se fodam.

Com cuidado, Jim pegou o artigo e passou o polegar calejado sobre a imagem granulada do cabelo de Sissy, longo e loiro. Quando piscou os olhos, viu os fios cobertos de sangue pendendo sobre o ralo de uma banheira de porcelana branca. Então, piscou outra vez, e viu-a como na outra noite, na prisão viscosa de Devina, apavorada, confusa, preocupada com seus pais.

Ele queria ter ido direto conversar com os Barten, porém as reclamações de Adrian e Eddie só serviam para gastar saliva. Não ia tirar os olhos da guerra, pois não poderia suportar perder para Devina enquanto tentava tirar Sissy daquele poço de almas.

A porta do quarto conjugado abriu-se, foi quando Adrian, mais conhecido como “O que se Faz de Surdo”, entrou sem bater. Bem no estilo dele. O anjo estava vestido de preto, como sempre, e os vários piercings em seu rosto não constituíam nem a metade do que ele deveria ter pelo resto do corpo.

– Vocês terminaram de discutir sobre mim? – Jim virou o artigo para baixo e cruzou os braços sobre o peito. – Ou fizeram apenas uma pequena pausa?

– Que tal levar isto a sério?

Jim levantou-se da cama e ficou frente a frente com seu soldado.

– Estou dando qualquer indício de que ando brincando por aí?

– Não nos arrastou de volta a este lugar para a guerra.

– Até parece que não.

Enquanto se enfrentavam, Adrian não se intimidou, mesmo que Jim fosse um antigo assassino das Operações Extraoficiais e soubesse derrotar um peso-pesado de muitas maneiras diferentes.

– Aquela garota não é seu alvo – Ad disse – e, caso não tenha notado, perdemos um. Distrações não são nossas amigas.

Jim deixou passar a referência a Sissy: propôs-se a nunca falar sobre ela. Seus amigos testemunharam quando ele encontrou o corpo e viram o que aquilo fez com ele – então, sabiam o suficiente. E não havia motivo algum para pronunciar palavras que descrevessem o que foi vê-la naquela parede. Ou mencionar o fato de que, enquanto estava sendo usado e abusado por Devina e seus subordinados na última rodada, a jovem, possivelmente, assistiu assustada a tudo o que aconteceu com ele.

Droga... as coisas que aconteceram naquela mesa de “trabalho” eram algo difícil de testemunhar até mesmo para um homem habituado a guerras. Mas uma inocente? Que já estava aterrorizada?

Por um lado, naquele momento de sua vida, as violações não o incomodavam mais. Tortura, de qualquer maneira que fosse aplicada, não era nada além de uma sobrecarga de sensações físicas. Mas, por outro lado, ninguém precisava ser testemunha ocular daquilo, muito menos sua garota. Não que ela fosse sua.

– Vou conversar com Nigel – Jim respondeu. – Então, já terminaram de me detonar? Ou querem desperdiçar um pouco mais do meu tempo?

– Por que já não está lá?

Bem, porque estava sentado naquela cama, olhando para o nada, apenas pensando para onde diabos Devina tinha levado o corpo de Sissy.

Só que Jim não era o tipo de idiota que dava o braço a torcer.

– Jim, sei que essa garota é importante para você. Mas vamos lá, cara, precisamos cuidar dos negócios.

Enquanto Ad falava, Jim olhou por sobre os ombros do cara. Eddie estava parado na porta que ligava os dois quartos, seu corpo enorme estava tenso, os olhos vermelhos eram graves, aquela longa trança preta descia sobre o ombro, cuja ponta quase alcançava a cintura de suas calças de couro.

Caramba. O jeito espalhafatoso de Adrian dava vontade de xingar. Ou socar... o que já havia acontecido antes. Mas a rotina equilibrada e pacífica de Eddie não era um alvo. Era um espelho que simplesmente refletia o comportamento idiota de quem o observava.

– Tenho tudo sob controle – disse Jim. – E vou ver Nigel agora mesmo.

O arcanjo Nigel estava em seus aposentos particulares quando a convocação aconteceu. De qualquer maneira, já era hora de sair do banho.

– Vamos ter companhia – disse a Colin quando se levantou da água perfumada.

– Vou ficar aqui. O banho está numa temperatura perfeita – com isso, Colin esticou-se e fez um arco preguiçoso com o corpo. Seu cabelo escuro estava molhado com a umidade e havia cachos nas pontas. Seu rosto majestoso e inteligente estava relaxado como sempre. Nada muito exagerado.

– Sabe por que ele está vindo?

– Mas é claro.

Atravessando o mármore branco e afastando a cortina safira e coral, Nigel saiu e teve todo o cuidado ao colocar de volta no lugar o tecido aveludado. Ninguém precisava saber sobre sua companhia na sala de banho – embora suspeitasse que Bertie e Byron fizessem alguma ideia disso. No entanto, eram bastante discretos para dizer qualquer coisa.

Puxando um roupão de seda, não se preocupou em vestir nada mais formal. Jim Heron não se importaria nem um pouco com seu vestuário e, já pensando em como seria a conversa, sabia que precisaria voltar para o banho.

Com um gesto de sua mão, Nigel convocou o anjo que se encontrava na Terra, reunindo o corpo físico de Heron e materializando-o em seus aposentos particulares. Sobre seu divã de seda, para ser mais exato. O salvador parecia ridículo sobre o móvel framboesa, os braços e pernas pesados pendiam nas laterais, sua camiseta preta e o jeans surrado eram uma ofensa a um tecido tão delicado.

Heron caiu em si numa fração de segundo e ficou em pé num salto, pronto, alerta... e não muito satisfeito.

– Vinho gelado? – Nigel perguntou ao se aproximar de uma cômoda francesa com gavetas, cuja tampa de mármore servia de bar. – Ou talvez uma dose de uísque?

– Quero saber quem é o próximo, Nigel.

– Isso é um “não” para as bebidas? – levou um tempo escolhendo entre as pequenas garrafas de vidro e, então, serviu-se lenta e tranquilamente.

Ele não era um idiota qualquer a quem se fazia exigências, e Heron precisava aprender um pouco de boas maneiras. Nigel virou-se e tomou um gole.

– Leve e refrescante.

– Dane-se o vinho.

Nigel deixou passar essa e apenas encarou o salvador.

Quando o Criador apareceu diante de Nigel e Devina explicando que haveria uma competição final, os dois lados concordaram que Heron estaria sozinho no campo de batalha com as sete almas escolhidas. Cada adversário, naturalmente, queria seus valores representados, e o resultado foi que aquele forte anjo com espírito guerreiro, ali, em pé diante de Nigel, tinha o bem e o mal equilibrados dentro dele.

Contudo, Nigel tinha convicção de que o fato da mãe assassinada de Jim estar dentro dos muros da mansão seria crucial. Momentos como aquele faziam-no questionar o próprio fundamento daquele jogo decisivo. O anjo parecia pronto para matar.

– Tem que me dizer quem é.

– Como disse antes, não posso.

– Eu perdi, idiota. E ela trapaceou.

– Tenho plena consciência dos limites que ela ultrapassou e acho que se lembra do meu conselho: deixe-a fazer o que quiser. Haverá represálias.

– Quando?

– Quando acontecer.

Heron não gostou daquela resposta e começou a andar pelo local ornamentado com suas cortinas de cetim, tapetes orientais e a cama baixa... ao redor da qual – Nigel percebeu tarde demais – dois conjuntos de roupas estavam dispostos.

Nigel limpou a garganta.

– Não posso correr o risco de que haja uma reviravolta e tudo se volte contra nós. Já me rebaixei demais ao nível de Devina permitindo que Adrian e Edward o ajudassem. Se eu lhe ajudar mais, posso perder não apenas uma rodada, mas a competição inteira. E isso é inaceitável.

– Porém, você sabe quem é a alma. E Devina também.

– Sim.

– E isso não lhe parece uma grande injustiça? Ela irá atrás dessa pessoa... Provavelmente, já foi.

– Pelas regras estabelecidas e acordadas, ela não tem permissão de interagir com as almas. Ela, assim como eu, deve apenas influenciar você na maneira como vai influenciá-los. Contato direto não é permitido.

– Então, por que você não deteve o que aconteceu?

– Isso não é da minha alçada.

– Que saco, Nigel, estabeleça...

– Posso assegurar uma coisa: o saco dele está bem.

Com a interrupção seca, tanto Nigel como o salvador viraram-se para as cortinas que levavam à sala de banho. Colin não se preocupou em vestir um roupão, estava em pé diante deles nu e sem qualquer ar de desculpa.

E, agora que tinha a atenção de todos, o arcanjo acrescentou: – Também vou pedir para que controle o linguajar, companheiro.

As sobrancelhas de Heron ergueram-se rápido e houve um momento em que parecia estar assistindo a um jogo de tênis, alternando o olhar de um para o outro.

Nigel amaldiçoou baixinho. Sua privacidade e decoro tinham ido por água abaixo.

– Vinho gelado, Colin? – disse rispidamente. – E talvez um roupão?

– Estou bem.

– É verdade. Mas sua falta de modéstia não lhe protege muito bem do ar frio desse ambiente. E eu tenho um convidado.

Sua única resposta foi um grunhido. Que era a maneira de Colin proclamar que não havia razão para dar uma de velho azedo.

Adorável.

Nigel virou-se para o salvador.

– Sinto muito em não poder lhe conceder o que me pede. Pode acreditar.

– Você me ajudou com o primeiro.

– Houve permissão para isso.

– E veja o que aconteceu com o número dois.

Nigel escondeu sua preocupação atrás de um gole em seu copo.

– Sua paixão é louvável. E posso lhe dizer que seu retorno a Caldwell é bem útil.

– Obrigado pela dica. Há dois milhões de pessoas naquela maldita cidade. Isso não reduz muito as possibilidades.

– Nada é por acaso e não existem coincidências, Jim. Na verdade, há outra pessoa que procura o mesmo que você e, quando seus diferentes propósitos se unirem, encontrará a próxima alma.

– Sem ofensa, mas isso não significa merda nenhuma – Heron olhou para Colin. – E não vou pedir desculpas à fiscalização por isso. Sinto muito.

Colin cruzou os braços sobre o peito nu: – Faça como quiser, rapaz. E eu farei o mesmo.

Leia-se: talvez eu o esgane agora. Talvez depois.

A última coisa que Nigel precisava era de uma briga em seus aposentos, isso atrairia os outros arcanjos, assim como Tarquil, num piscar de olhos. Não era bem a interrupção que procurava.

– Colin – disse Nigel –, vá tomar banho.

– Já fiz isso, obrigado.

– Isso é uma questão de ponto de vista – Nigel murmurou antes de se dirigir a Jim. – Vá em frente e tenha fé que você estará no lugar certo e fará o melhor possível.

– Não acredito em destino, Nigel. É como pegar uma arma descarregada e achar que vai atirar em alguma coisa. Você mesmo tem que carregá-la com as balas.

– Estou lhe dizendo que há coisas maiores nesse trabalho do que seus esforços.

– Certo, ótimo, então coloque tudo num cartão de Natal. Mas não venha com besteiras pra cima de mim.

Encarando o rosto duro do salvador, Nigel teve um lampejo de medo. Com aquela atitude, havia mais uma coisa que jogava contra os anjos. Mas o que ele poderia fazer? Heron não tinha paciência ou fé, mas isso não mudava em nada as regras do jogo ou as chances de que o Criador corrigisse as liberdades que Devina havia tomado.

Ao menos esse último fato contribuía a favor deles.

– Acredito que já terminamos – Nigel disse. – Nada de bom virá a nosso favor se continuarmos a conversa.

Houve um momento obscuro, até mesmo maligno, durante o qual Heron olhou para ele com uma espécie de fúria.

– Tudo bem – disse o salvador. – Mas eu não desisto tão fácil.

– E eu sou a montanha que não será movida.

– Entendido.

Num piscar de olhos, o anjo se foi. E, quando o silêncio dominou o local, Nigel percebeu que não tinha mandado Heron embora. Ele tinha feito aquilo sozinho.

Estava ficando mais forte, não?

– Quer que eu desça e o vigie? – Colin disse.

– Quando concordei que ele seria o escolhido, pensei que haveria rédeas suficientes para contê-lo. Acreditava mesmo nisso.

– Então, repito, eu devo sair para vigiá-lo?

Nigel voltou-se para o seu querido amigo, que era muito mais que um colega e confidente.

– Essa é a tarefa de Adrian e Edward.

– Conforme estipulado. Mas fico pensando até onde essa competência, que aumenta cada vez mais, vai levá-lo. Acho que isso não nos guia por um bom caminho.

Nigel tomou outro gole de seu vinho e observou o espaço vazio que Heron tinha acabado de deixar. Apesar de continuar em silêncio, tinha que concordar. A questão era: o que fazer, o que fazer...


CAPÍTULO 3

 

Lá embaixo, na floresta fria próxima ao Monroe Hotel & Suítes, Veck permanecia parado sob o reflexo dos faróis da ambulância, com seu colega De la Cruz à direita e seu parceiro, Bails, à esquerda. Iluminado como estava, sentiu-se num palco quando Kroner surgiu dentre as árvores sobre uma maca.

Só que havia apenas uma pessoa olhando para ele. Sophia Reilly, a oficial de Assuntos Internos. Ela estava em pé próxima a ele e, quando os olhos dos dois encontraram-se, desejou que as circunstâncias fossem diferentes – de novo. O primeiro encontro com Sophia Reilly tinha sido quando ele agrediu aquele paparazzo. Mas a situação em que estavam agora fazia aquela agressão parecer uma caminhada na praia.

A questão era: gostou dela no momento em que apertaram as mãos, e essa primeira impressão foi reforçada naquela noite: o detetive dentro dele tinha aprovado totalmente a atuação profissional dela, bem como a maneira como o olhou. Se ele estivesse mentindo – e não estava –, ela teria percebido. Mas precisavam parar de se encontrar daquela maneira. Literalmente.

Sobre o asfalto do estacionamento houve um barulho alto quando os médicos fecharam as portas duplas da ambulância e, em seguida, o veículo afastou-se, levando a iluminação consigo. Quando Reilly voltou-se para observar a partida, já estava no escuro... até que acendeu uma lanterna.

Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, De la Cruz falou baixinho: – Quer um advogado?

– Por que ele precisaria de um advogado? – Bails exclamou.

Veck balançou a cabeça para seu amigo. Entendia a lealdade do cara, mas ele próprio não tinha tanta fé em si mesmo naquele momento.

– É uma boa pergunta.

– Então, vai querer? – De la Cruz sussurrou.

A oficial Reilly circulou a poça de sangue, transitou entre os troncos e galhos... Pequenos gravetos estalavam sob seus pés, aquilo soava alto nos ouvidos de Veck. Ela parou na frente dele.

– Terei de continuar com as perguntas amanhã, mas pode ir para casa agora.

Veck estreitou os olhos.

– Você vai me liberar?

– Nunca esteve sob minha custódia, detetive.

– Isto é tudo?

– Não, não. Mas não tem mais nada o que fazer aqui esta noite.

Veck balançou a cabeça.

– Ouça, oficial, isto não pode...

– A perícia criminal está a caminho. Não quero você aqui quando chegarem à cena do crime, pois isso pode comprometer o trabalho deles. Está suficientemente claro para você?

Ah, sim. E ele devia ter adivinhado. Estava escuro entre as árvores. Ele poderia manipular evidências com facilidade sem que ninguém soubesse, e ela queria fazê-lo sair dali de uma maneira discreta e educada.

Ela é esperta – pensou. E também era bonita: sob o brilho da lanterna, ela estava deslumbrante, do jeito que só uma mulher natural e saudável poderia ser – nada de maquiagem pesada para entupir seus poros ou pesar suas pálpebras, nenhum brilho gorduroso e escorregadio sobre seus lábios. Era totalmente verdadeira. O cabelo vermelho-escuro e pesado e o olhar de um verde profundo também não poluíam o visual. Além disso, havia a postura “nada de gracinhas” dela...

– Muito bem, oficial – ele murmurou.

– Por favor, esteja na sala do sargento amanhã, às 8h30.

– Você é quem manda.

Quando Bails murmurou alguma coisa em voz baixa, Veck rezou para que o bastardo guardasse suas opiniões para si mesmo. Reilly só estava fazendo seu trabalho – e era bastante profissional. O mínimo que poderiam fazer era retribuir o respeito.

Antes que seu amigo falasse algo, Veck bateu no ombro de Bails e assentiu para De la Cruz. Quando começou a andar, a voz séria e baixa de Reilly irrompeu no silêncio da noite: – Detetive.

Ele olhou sobre o ombro.

– Sim, oficial.

– Terei de levar sua arma. E seu distintivo. E o coldre daquela faca.

Certo. Mas é claro.

– O distintivo está na jaqueta de couro bem ali no chão. Quer fazer as honras com a minha nove milímetros e o cinto?

– Sim, por favor. E levarei seu celular também, se incomoda?

Quando ela aproximou-se, Veck sentiu seu perfume. Nada de frutas ou florais ou, meu Deus, aquela merda de baunilha. Mas também nada que pudesse classificar. Xampu talvez? Será que ela recebeu a ligação saindo do banho?

Que bela imagem... Espere um minuto. Estava mesmo fantasiando com sua colega de trabalho... a menos de dois metros da cena de um crime? Nossa. Sim, era isso mesmo o que estava fazendo.

Reilly colocou a lanterna na boca e, então, as mãos revestidas por luvas azuis brilhantes estenderam-se. Quando ele ergueu os braços para facilitar que tocasse sua cintura, registrou uma pressão sutil em seus quadris, o tipo de coisa que sentiria se ela estivesse tirando as calças dele...

O impulso elétrico que surgiu em seu pênis foi uma surpresa... E, Deus, ficou feliz por aquela luz estar sobre seu peito, e não mais ao sul. Cara, aquilo era tão errado... e contrário à maneira que agia. Nunca paquerava colegas de trabalho, fossem assistentes administrativas, colegas detetives... ou oficiais do Departamento de Assuntos Internos. Problemas demais quando chegava ao fim inevitável...

Santo Deus, onde estava com a cabeça?

Parece que não na realidade.

Era quase como se a magnitude do que havia acontecido naquele local cheio de folhas manchadas de vermelho fosse tão grande que seu cérebro buscasse refúgio em qualquer outro lugar para além do elefante gigante ensanguentado na floresta. Talvez estivesse simplesmente louco. E ponto final.

– Obrigada, detetive – Reilly disse ao afastar-se com a arma e o coldre de couro. – Seu celular?

Ele entregou-o.

– Quer minha carteira?

– Sim, mas pode ficar com sua carteira de motorista.

Quando o trabalho de confisco terminou, ela adicionou: – Além disso, gostaria que você tirasse suas roupas em casa para ensacá-las e levá-las a mim amanhã.

– Sem problema. E sabe onde me encontrar – ele disse com a voz rouca.

– Sim, sei.

Quando estavam prontos para partir, percebeu que não havia nenhum sinal de um queixo abaixado ou um olhar esquivo aparentando timidez. Nada de mexer nos cabelos. Nada de rebolar. Algo que, tudo bem, seria ridículo naquelas circunstâncias... Mas ele teve a sensação de que, se estivesse numa boate, ao lado do bar, ela também não agiria de outra maneira. Não era seu estilo.

Droga, ela simplesmente ficava mais atraente a cada minuto. Se aquilo continuasse, pediria Sophia Reilly em casamento na próxima semana.

Até parece...

Com isso, Veck virou-se pela segunda vez. E ficou surpreso ao ouvi-la dizer: – Tem certeza de que não quer um casaco, detetive? Tenho uma jaqueta extra no meu carro, pois sentirá frio na moto.

– Ficarei bem.

Por alguma razão, ele não queria olhar para trás. Provavelmente por causa de todo aquele grande público que eram os olhos de De la Cruz e Bails. Sim. Era isso.

Na moto, jogou a perna sobre o assento e pegou o capacete. Não o usou para chegar até ali, mas precisava conservar alguma parte do corpo aquecida. Quando deu a partida, esperava que De la Cruz se aproximasse dele e voltasse a comentar sobre o advogado. Em vez disso, o venerável detetive ficou onde estava e falou com a agente Reilly.


Bails foi quem se aproximou. O cara estava com roupas de academia, cabelo curto espetado, os olhos eram um pouco agressivos... sem dúvida porque não gostava que Reilly tivesse assumido o caso.

– Tem certeza de que está bem para ir para casa?

– Sim.

– Quer que eu lhe siga?

– Não – provavelmente o cara iria de qualquer maneira. Ele era assim.

– Sei que você não fez isso.

Quando Veck olhou para o parceiro, ficou tentado a desabafar sobre tudo: seus dois lados, a divisão que sentia há anos, o medo de que sua maior preocupação finalmente tivesse acontecido. Droga, sabia que podia confiar no cara. Ele e Bails fizeram academia de polícia juntos anos atrás e, embora tivessem seguido por caminhos diferentes, mantiveram contato e proximidade – até Bails convocá-lo para ir a Manhattan unir-se à equipe do Departamento de Homicídios de Caldwell. Duas semanas. Estava ali há apenas duas malditas semanas.

Assim que abriu a boca, uma van estacionou atrás dele junto com outros carros do Departamento de Polícia, anunciando a chegada da perícia.

Veck negou com a cabeça.

– Obrigado, cara. Vejo você amanhã.

Deu um solavanco com o corpo, ligou o motor e, enquanto aquecia a moto, olhou de volta para a cena. Reilly estava ajoelhada perto da jaqueta dele, revistando os bolsos. Assim como faria com sua carteira.

Oh, droga. Encontraria...

– Ligue se precisar de mim para alguma coisa, cara.

– Sim. Ligarei.

Veck acenou para Bails e partiu devagar com a moto, pensando ser desnecessário Reilly ver as duas camisinhas que sempre mantinha na carteira atrás dos cartões de crédito. Engraçado, ser um vadio nunca o incomodou antes. Agora, desejava ter dado um nó no pênis anos atrás.

Quando entrou na estrada propriamente dita, acelerou a moto e seguiu rugindo. Quando disparou pelas curvas da estrada 149, inclinava-se nelas, abaixando-se sobre os guidões, tornando-se apenas mais uma peça do projeto aerodinâmico de sua BMW. Com a alta velocidade, as curvas tornaram-se apenas pequenos movimentos para a esquerda e para a direita, enquanto ele e a moto desafiavam as leis da física. Bater em qualquer coisa naquela velocidade? Teria sorte se restasse algum pedaço grande o suficiente para enterrar.

Mais rápido. Mais rápido. Mais...

Infelizmente, ou felizmente, não tinha certeza, o fim da linha para ele não foi colidir em árvores, evitando um acidente com um carro ou um cervo.

Foi um outlet da Ralph Lauren.

Ou, especificamente, um semáforo próximo ao local.

Sair daquela sensação de velocidade da qual tanto gostava deixou-o num estado de desorientação estranho, e a única razão de ter parado no sinal vermelho foi que havia alguns carros na frente dele. Foi forçado a obedecer às leis de trânsito ou andar sobre os carros.

O maldito sinal levou uma eternidade para abrir, e a fila em que estava moveu-se a passo de lesma quando finalmente ficou verde. Ele teria atingido mais de cem quilômetros por hora na estrada, o que não ajudaria em nada. Não que estivesse fugindo de alguma coisa. Claro que não.

Passou por lojas como Nike, Van Heusen e Brooks Brothers. Sentiu-se tão vazio quanto os estacionamentos, e havia uma parte dele que desejava continuar... Desejava passar por aquela parte mais afastada da cidade, vagar pelo labirinto suburbano de Caldie, percorrer a área de arranha-céus e atravessar uma ponte que só Deus sabe onde daria.

O problema era que, aonde quer que fosse... lá estava ele: a mudança geográfica não mudaria se rosto no espelho. Ou aquela parte de si mesmo que ele nunca entendeu, mas também nunca questionou. Ou a porra que teria acontecido naquela noite.

Assassinara aquele bastardo doente. Não havia outra explicação. E não sabia o que Reilly tinha na cabeça ao deixá-lo ir. Talvez ele simplesmente precisasse confessar... Sim, mas o quê? Que tinha ido até lá com a intenção de matar e, em seguida...

A dor de cabeça que acometeu seu lóbulo frontal era o tipo de coisa que ele não suportaria. Nesses casos, tudo o que se faz é gemer e fechar os olhos... Mas isso não é a melhor opção quando se está em cima de uma moto que, praticamente, resume-se num motor com um assento acolchoado.

Forçando a concentração na estrada e em nada mais, sentiu-se aliviado quando a pancada no crânio suavizou e pôde seguir caminho.

A casa em que morava ficava num bairro cheio de professores, enfermeiras e representantes de vendas. Havia muitas crianças, e a conservação dos gramados nos quintais era feita por amadores – o que significava que, no verão, era muito fácil encontrar um gramado irregular, mas, ao menos, eram aparados regularmente.

Veck era um caso isolado ali: não tinha esposa, filhos e nunca contrataria um garoto para aparar a grama. Felizmente, tinha a impressão de que os vizinhos dos dois lados de seu quintal – praticamente um cartão-postal – eram do tipo que invadiam alegremente o território alheio com suas ferramentas.

Sua casa de dois andares era tão luxuosa e única quanto uma moeda de um centavo dos anos 1970. Portanto, como era de se esperar, foi nessa época que a casa viu sua última nova camada de papel de parede.

Estacionando na garagem, desmontou da moto e encaixou o capacete no guidão. Não havia muitos crimes naquela área... então, seus vizinhos aparadores de gramado faziam um ótimo trabalho, em vários sentidos.

Entrou pela porta lateral, passou pelo armário de casacos e caminhou até a cozinha. Não havia muita comida por ali: só algumas caixas vazias de pizza sobre o balcão e algumas embalagens da Starbucks amontoadas sobre a pia. Tinha envelopes meio abertos e relatórios espalhados sobre a mesa. O laptop estava fechado junto a cupons de desconto que ele nunca usaria. Também havia ali uma conta de TV a cabo que ainda não estava vencida, mas, provavelmente, acabaria vencendo, pois era péssimo em pagar as coisas em dia. Sempre ocupado demais para fazer um cheque ou acessar a internet para pagar.

Deus, a única diferença entre aquele lugar e sua sala no centro da cidade era o fato de ter uma cama king-size no andar de cima. Pensando nisso, lembrou-se de que a oficial Reilly queria que ele se despisse, não queria?

Pegou um saco de lixo debaixo da pia da cozinha e subiu as escadas pensando em contratar uma faxineira para limpar a casa uma vez por semana, assim não teria mais que encontrar teias de aranha em todos os cantos e montinhos de poeira que se multiplicavam embaixo do sofá. Mas aquilo não era um lar e nunca seria. Desinfetante e outros produtos de limpeza quatro vezes por mês não deixariam o local aconchegante. Porém, se levasse uma garota um dia até lá, ela teria um local decente para se vestir.

Seu quarto ficava na parte dianteira da casa, e tudo que havia nele era uma cama grande e uma escrivaninha. Suas botas, meias e calças foram tiradas rapidamente. Com a blusa foi a mesma coisa. Quando tirou sua cueca boxer preta, recusou-se a lembrar da oficial Reilly revistando-o. Simplesmente não seguiria por aí.

Dirigindo-se para o banho, ligou o chuveiro e, enquanto esperava a água esquentar, parou em frente ao espelho sobre a pia. Não havia reflexo para se preocupar... Tinha coberto o espelho com uma toalha de praia no dia em que se mudou. Não era fã de espelhos.

Ergueu as mãos e estendeu-as com as palmas para baixo. Então virou-as. Em seguida, olhou embaixo das unhas. Parecia que seu corpo, assim como sua mente, estava vazio de pistas. Embora aceitasse que a ausência de ferimentos, sangue ou coágulos em si mesmo fosse um indício... e, sem dúvida, a boa oficial Reilly também tinha notado.

Cara, era a segunda vez na vida em que se encontrava numa situação dessas. Na primeira... Não havia razão para pensar no assassinato de sua mãe. Não numa noite como aquela. Entrando no chuveiro, fechou os olhos e deixou a ducha cair sobre sua cabeça, ombros e rosto. Sabonete. Enxaguar. Xampu. Enxaguar.

Estava parado, envolvido no vapor, quando sentiu uma corrente: como se alguém tivesse aberto a janela do banheiro. O sopro de ar movimentou a parte de cima da cortina e acariciou sua pele. Sentiu arrepios quando percebeu que passava também pelo seu peito e descia por suas pernas e pelas costas. Contudo, a janela não fora aberta.

Foi por isso que removeu o boxe de vidro do banheiro e cobriu aquele espelho embutido sobre a pia. Foram as únicas coisas que mudou na casa, sendo que a melhoria era para manter a sanidade. Já fazia anos que se barbeava sem olhar no espelho.

– Fique longe de mim – ele disse, fechando os olhos e mantendo-os assim.

A corrente de ar enroscou-se nas pernas de Veck, como se mãos estivessem se movendo sobre sua pele, subindo cada vez mais, acariciando seu sexo antes de atingir o abdômen e o peitoral, até chegar ao seu pescoço... seu rosto... Mãos frias passaram pelo seu cabelo...

– Me deixe em paz! – estendeu o braço e empurrou a cortina. Quando o ar quente dissipou-se, tentou concentrar-se em si mesmo, expulsar o intruso, matar a conexão. Tropeçando no balcão, envolveu o corpo com os braços e inclinou-se, respirando com força e odiando a si mesmo, odiando aquela noite, odiando sua vida.

Sabia muito bem que era possível, se você tivesse um distúrbio de personalidade múltipla, que uma parte poderia se libertar e agir de maneira independente. Aqueles que sofrem disso podem ignorar completamente as atitudes tomadas por seu corpo, mesmo quando envolvem atos de violência...

Quando a dor de cabeça começou a latejar em suas têmporas outra vez, Veck amaldiçoou e conseguiu se enxugar. Em seguida, pegou a camisa de flanela e as calças de moletom do Departamento de Polícia de Nova York com que tinha dormido na noite anterior e deixado atrás do vaso sanitário. Estava prestes a descer as escadas quando uma rápida olhada pela janela imobilizou-o.

Havia um veículo estacionado do outro lado da rua a umas duas casas de distância. Conhecia cada veículo da vizinhança, todas as caminhonetes, vans, suvs, sedãs, carros híbridos... Aquele carro escuro, de um modelo recém-lançado, não estava na lista.

Contudo, era exatamente o tipo de carro sem identificação que o Departamento de Polícia de Caldwell usava. Reilly fora vigiá-lo. Muito bem... exatamente o que ele faria no lugar dela.

Finalmente, viu que era mesmo ela, em carne e osso.

Descendo as escadas, hesitou na frente da porta, considerando sair na rua, mesmo descalço, porque talvez ela, ou quem quer que fosse, tivesse respostas sobre a cena Conteve aquela brilhante ideia e foi até a cozinha. Tinha de haver algo para comer no armário. Tinha de ter. Ao abrir e procurar por um momento, só encontrou um monte de vazio entre as prateleiras. Qual supermercado de fadas ele achava que existia? Pois só assim entregariam comida: como mágica.

A fome era tanta que poderia jogar um pouco de ketchup numa caixa de pizza e mastigá-la. Seria bom para ele comer um pouco de fibra.

Delícia.

A duas casas da residência do detetive DelVecchio, Reilly estava sentada atrás do volante, tampando parcialmente a própria visão.

– Por tudo que é mais sagrado... – esfregou os olhos. – Não é adepto a cortinas?

Enquanto rezava para que a imagem espetacular de seu colega nu desaparecesse de suas retinas, repensou seriamente a decisão de vigiá-lo sozinha. Estava exausta, isso era fato... Ou estava, antes de, simplesmente, ter visto tudo o que Veck tinha para oferecer. Desconsidere o simplesmente.

O bom disso era que agora estava realmente alerta, muito obrigada... Era o mesmo que ter umedecido dois dedos e os ter colocado na tomada: a visão foi suficiente para dar todo o ânimo que tinha aos treze anos.

Murmurando para si mesma, deixou cair as mãos sobre o colo outra vez. E, meu Deus, enquanto olhava para o painel do carro, tudo o que via era... era a cena que tinha visto antes. Sim, uau, em alguns homens, estar sem roupas era muito mais do que estar nu.

E pensar que ela quase perdera o show. Estacionou o carro e assumiu sua posição quando as luzes do andar de cima acenderam-se e pôde, assim, ter uma boa visão do que acontecia no quarto. Inclinando-se no banco, não se deu conta de que a posição expunha os dois... Não se ateve a nada além do que parecia ser uma lâmpada no teto do que deveria ser a suíte principal.

Geralmente, a decoração de um apartamento de solteiro tendia a ser muito cheia de detalhes ou minimalista. Era óbvio que Veck seguia a linha minimalista.

De repente, ela não pensava mais na decoração, pois seu suspeito tinha entrado no banheiro e ligado o interruptor.

Olááá, garotão.

E o superlativo englobava várias coisas.

– Pare de pensar nisso... pare de pensar...

Fechar os olhos não ajudou: se já tinha notado como ele ficava bem dentro das roupas que vestia, agora sabia exatamente o porquê. Era muito musculoso e, considerando que não tinha qualquer pelo na parte superior do corpo, nada ocultava aquele peitoral, o abdômen e as saliências esculpidas que desciam até os quadris.

Aliás, por falar em depilação, tudo o que tinha era uma linha escura que percorria a distância entre o umbigo e o...

Bem, talvez tamanho seja importante – Reilly pensou.

– Oh, pelo amor de Deus.

Na tentativa de manter seu cérebro focado em alguma coisa, qualquer coisa mais apropriada, inclinou-se para frente e olhou pela janela oposta. Poderia dizer que a casa da frente tinha cortinas capazes de manter a privacidade. Muito bom, principalmente se concluísse que ele desfilava daquela maneira todas as noites. Talvez o marido tivesse instalado tudo aquilo para que sua mulher não começasse a ter desmaios.

Preparando-se, voltou a olhar a casa de Veck. As luzes tinham se apagado no andar de cima, e ela esperava que agora ele estivesse no primeiro andar, vestido... e permanecesse assim.

Deus, que noite.

Ainda esperava obter alguma prova concreta do que havia acontecido na cena do crime, mas não parava de pensar nos ferimentos de Kroner. Havia coiotes naquelas florestas. Ursos. Gatos selvagens. Havia grandes chances de o cara ter andado por ali com cheiro de sangue seco nas roupas e alguma coisa de quatro patas tê-lo visto como um Mc Lanche Feliz. Na tentativa de intervir, Veck foi jogado de lado. Afinal, estava esfregando a testa como se esta doesse muito, e Deus é testemunha de que traumatismos cranianos são conhecidos por causarem perda de memória em curto prazo. A falta de provas físicas nele apoiava a teoria, com certeza.

E, mesmo assim... Deus, o pai dele. Era impossível não relacionálos, ao menos um pouco. Como todo aluno de especialização em justiça criminal, ela estudou o caso de Thomas DelVecchio pai como objeto de disciplina... mas também passou tempo considerável refletindo sobre ele em suas aulas de desvios psicológicos. O pai de Veck era considerado um serial killer clássico: inteligente, astuto, comprometido com seu “ofício”, totalmente sem remorsos. E, ainda assim, ao assistir vídeos de entrevistas dele com a polícia, deparou-se com um homem bonito, atraente e agradável. Sem qualquer ligação aparente com um monstro.

Contudo, como muitos psicopatas, cultivava uma imagem e sustentava-a com cuidado. Foi muito bem-sucedido como comerciante de antiguidades. Porém, estabelecer-se naquele mundo arrogante, cheio de dinheiro e privilégios, foi apenas um refúgio inventado por ele. Tinha vindo do nada, mas possuía talento para encantar pessoas ricas – bem como para viajar a diversas partes do mundo e voltar com artefatos antigos e estátuas extremamente bem recebidas no mercado. Seus negócios nunca tinham passado por qualquer investigação até os assassinatos virem à tona, e, até hoje, ninguém fazia ideia de onde encontrava tudo o que tinha... Era como se tivesse um tesouro guardado em algum lugar do Oriente Médio. Com certeza não ajudou as autoridades a entender isso, mas o que poderiam fazer com ele agora? Já estava no corredor da morte. Logicamente, não por muito tempo.

Como teria sido a mãe de Veck...?

A batida na janela do carro, ao lado de sua cabeça, foi como um tiro, e Reilly empunhou sua arma em direção ao som menos de um segundo depois.

Veck estava parado na rua ao lado do carro, mãos para cima, o cabelo molhado brilhava sob a luz do poste.

Reilly baixou a arma e abriu a janela com uma maldição.

– Reflexos rápidos, oficial – ele murmurou.

– Quer levar um tiro, detetive?

– Eu disse seu nome. Duas vezes. Mas estava mergulhada em pensamentos.

Graças ao que tinha visto naquele banheiro, a camiseta de flanela e a calça de moletom pareciam muito fáceis de serem removidas, eram coisas que não resistiriam a um puxão. Mas, vamos lá, como se já não conhecesse cada brinquedo daquele parque de diversões.

– Já quer levar minhas roupas? – ele disse ao erguer um saco de lixo.

– Sim, obrigada – ela aceitou o pacote pesado pela janela e apoiou as coisas no chão do carro. – Os sapatos também?

Ao assentir, disse: – Quer que lhe traga um pouco de café? Não tenho muita coisa na minha cozinha, mas acho que consigo encontrar uma caneca limpa e café solúvel.

– Obrigada. Estou bem.

Houve uma pausa.

– Há alguma razão para não olhar nos meus olhos, oficial?

Acabei de vê-lo nu, detetive.

– Nenhuma – ela o encarou furtivamente.

– Deveria entrar. Está frio.

– O frio não me incomoda. Ficará aqui a noite inteira?

– Depende.

– Depende do clima, certo?

– Sim.

Ele assentiu e, então, olhou ao redor, casualmente, como se fossem vizinhos conversando sobre o tempo. Tão calmo. Tão confiante. Assim como o pai.

– Posso ser sincero com você? – ele disse de repente.

– É bom que seja, detetive.

– Ainda estou surpreso por me liberar.

Reilly passou as mãos sobre o volante.

– Posso ser sincera com você?

– Sim.

– Te liberei porque não acredito que tenha feito aquilo.

– Eu estava na cena do crime e havia sangue em mim.

– Você chamou a emergência e não fugiu. Aquele tipo de assassinato é muito difícil de ser cometido.

– Talvez eu tenha limpado tudo.

– Até onde vi, não havia qualquer chuveiro entre aquelas árvores.

Não. Pense. Nele. Nu.

Quando ele começou a balançar a cabeça como se fosse argumentar, Reilly interrompeu-o.

– Por que está tentando me convencer de que estou errada?

Aquilo calou-o. Ao menos por um momento. Então, disse em voz baixa: – Vai se sentir mais segura me seguindo?

– Por que não?

Pela primeira vez, alguma emoção percorreu a expressão fria de Veck, e o coração dela parou: havia medo em seus olhos, como se não confiasse em si mesmo.

– Veck – ela disse em tom suave –, se existir alguma coisa que eu não saiba...

Ele cruzou os braços sobre o grande peitoral e seu peso oscilava sobre os quadris, como se estivesse pensando. Em seguida, sussurrou e começou a esfregar a testa.

– Não sei de nada – murmurou. – Ouça, faça um favor a nós dois, oficial. Mantenha aquela arma por perto.

Não olhou para trás ao se virar e atravessar a rua.

Reilly percebeu que ele não usava qualquer calçado. Ao erguer o vidro da janela, observou Veck entrar na casa e fechar a porta. Em seguida, as luzes da casa apagaram-se, exceto uma no corredor do segundo andar.

Recompondo-se, ela acomodou-se sobre o banco e olhou para todas as janelas. Pouco depois, uma grande sombra entrou na sala de estar – ou melhor, parecia se arrastar até um móvel? Seria um sofá? Então, Veck sentou-se e sua cabeça desapareceu como se estivesse estendido sobre o móvel.

Era quase como se estivessem dormindo lado a lado. Bem, aquilo que os separava eram apenas as paredes da casa, o gramado mal aparado, a calçada, o asfalto e a estrutura que envolvia o carro.

As pálpebras de Reilly começaram a cair, mas era porque tinha abaixado a cabeça. Não estava cansada e nem preocupada em cair no sono. Estava bem alerta no interior escuro do carro. Mesmo assim, estendeu a mão e apertou o botão para travar as portas. Só para garantir.


CAPÍTULO 4

 

Vagando ao longo do corredor de concreto frio, o demônio Devina não seguia um caminho reto, mas sinuoso. Percorria várias salas de escritório, o tic-tac de vários relógios abafava o barulho que seus saltos produziam.

Tudo foi acomodado ali, sua coleção tinha se mudado com segurança para o porão do prédio de escritórios de dois andares. O local era perfeito, afastado do centro da cidade de Caldwell e, para parecer verdadeiro e não suscitar polêmicas, projetou a ilusão de que uma empresa de recursos humanos havia se instalado no local que agora ela percorria: os humanos só conseguiriam enxergar um próspero empreendimento que havia alugado o imóvel para se expandir dentro do mercado.

Seres humanos estúpidos. Como se, na atual circunstância da economia, alguém pudesse contratar ou pagar mão de obra especializada para preencher as vagas de trabalho que disponibilizavam.

Parou em frente a uma cômoda clássica produzida em Rhode Island, em 1801, e passou a mão sobre o mogno. O acabamento original ainda estava ali. Claro, ela evitou que o objeto ficasse exposto ao sol ou à umidade desde que o havia comprado há duzentos anos. Havia divisões nas gavetas cheias de botões, filas e mais filas de óculos e amontoados de pequenas caixas com anéis dentro delas. Possuía objetos similares nos outros gabinetes, todos objetos pessoais, feitos de diversos metais.

Além de seu espelho, aquela coleção era a coisa mais preciosa que tinha. Era a sua ligação com as almas, a segurança que precisava quando sentia-se insegura ou estressada na Terra, como agora.

No entanto, o problema daquela noite era que, pela primeira vez, tudo aquilo que vinha acumulando há séculos não a acalmava, não a deixava mais segura, nem diminuía sua ansiedade. Vagando por entre os objetos, estava longe da ajuda do vício que, há tanto tempo, provara-se muito útil.

E o que parecia ainda pior? Aquela noite deveria ser um “momento de recompensa”, como sua terapeuta definia. Um tempo para concentrar-se e saborear suas realizações: tinha vencido a última rodada contra Jim Heron e, mesmo sabendo que ele, Adrian e Eddie tinham se infiltrado em seu covil anterior, tinha conseguido reinstalar todas as suas coisas naquele novo e seguro local.

Deveria estar em êxtase. Mesmo assim, mesmo o cheiro de morte à deriva vindo do banheiro não lhe deu prazer: para proteger o espelho, precisava de muito mais que um sistema de monitoramento comum, e o novo sacrifício virginal que tinha pendurado sobre a banheira sangrava muito bem... quase pronto para ser usado, não era apenas decorativo.

Tudo estava a seu favor, ao menos superficialmente falando, e, ainda assim, ela sentia-se tão... Tédio, parece que era assim chamado... E que nome adorável para um péssimo estado de desmotivação.

Talvez só estivesse exausta por ter organizado tudo após a mudança. Tinha mais ou menos quarenta gabinetes cheios de aquisições de todas as eras da humanidade. Sempre que era forçada a se restabelecer em outro lugar, era obrigada a tocar cada objeto para se reconectar com a essência da vítima que permanecia no metal. E ainda precisava iniciar o ritual de contato, porém estava um pouco surpresa consigo mesma. Normalmente, não conseguia concentrar-se em mais nada até que houvesse aquela fissura no tempo, até que vagasse pelo local por alguns minutos e completasse o longo processo.

Acreditava que sua terapeuta veria aquilo como um progresso, considerando a compulsão que lhe era tão comum e inegável: aqueles objetos preciosos, que remontavam desde os tempos do Egito antigo até a França gótica, da Guerra Civil Americana aos Estados Unidos de hoje, eram o que a ligava à sua casa quando estava longe.

Ainda assim, não havia pânico para se refugiar naquilo que era seu pela eternidade. Parecia que seu maior desejo era lamentar-se e andar sem direção. Tudo culpa de Jim Heron.

Ele era tão desafiador. Dominante. Extraordinário. Tinha sido escolhido por ela e por Nigel – aquele filho da mãe arrogante – por ter o bem e mal equilibrados dentro de si... E, conforme ela tinha aprendido ao longo dos tempos, quando tratava-se da humanidade, o mal sempre vencia. Achava que atraí-lo para o lado dela não seria nada além de uma tarefa tediosa, o tipo de coisa que sempre fez com homens e mulheres desde o primeiro momento de sua existência. Em vez disso... era ela quem estava sendo sugada e seduzida.

Heron era tão... incontrolável. Mesmo quando o dominou e brincou com ele, quando seus subordinados torturaram-no, quando a verdadeira natureza dela foi revelada... ele permaneceu firme, inflexível, intransigente. E aquela força deixava-o inatingível.

Nunca tinha visto aquilo antes. Em ninguém. A questão era: controlar fazia parte de sua natureza, pois era uma perfeita parasita. Procurava uma maneira de replicar sua essência até que o local no qual havia se infiltrado se tornasse dela para sempre.

O desafio que Heron representava era inebriante, um tapa no rosto, uma rajada de ar fresco. Mas também parecia esvaziar a importância de toda a existência das coisas.

Abrindo uma gaveta, tirou uma fina pulseira de ouro com uma pequena pomba como pingente. A inscrição no interior do objeto apresentava-se em letra cursiva e delicada. Era um presente de dois pais para uma filha. Com uma data do ano anterior. Blá-blá-blá.

Ela odiava o nome Cecília. Muito. Aquela virgem sem importância... Que espinho em sua vida. O propósito daquela garota de sobrenome Barten era apenas o de proteger o espelho. Mas, agora, aquele pequeno lixo tinha algum tipo de ligação com Jim...

Quando estava prestes a esmagar o frágil objeto, um calor percorreu seu corpo, como se o toque de um amante tivesse passado não apenas sobre sua carne, mas sobre seus ossos.

Jim. Era Jim. Ele chamava-a.

Descartando a pulseira, verificou se a gaveta estava mesmo fechada e foi até o espelho que usava apenas para checar sua aparência. Em frente a ele, mudou sua forma, assumindo o corpo de uma linda morena, com seios que desafiavam a gravidade e um traseiro com mais volume do que uma estante de livros.

Ajeitou o cabelo, alisou a saia preta e achou que a barra estava longa demais. Erguendo-a com a força, virou-se e viu que suas coxas lisas e perfeitas estavam à mostra. De repente, estava viva. Bem, tecnicamente, viva não era o termo correto. Mas era assim que parecia: em apenas um momento, seu humor mudou de sepulcral para sublime. Só que não seria idiota com relação a isso. Confiante em sua saia curta, no decote e nos belos cabelos, entrou no banheiro.

– Como estou?

Deu um pequeno giro em frente ao jovem pendurado de cabeça para baixo sobre a banheira. Só que ele não disse nada, mesmo de olhos abertos.

– Ah, o que é que você sabe?

Ela abaixou-se e mergulhou a ponta dos dedos no sangue que escorria continuamente da carótida do rapaz. Impaciente com a demora, traçou alguns riscos em volta dos batentes da porta e no chão, indo e voltando da banheira para umedecer os dedos novamente com a “tinta”. A pureza da essência do jovem formava um selo mais eficaz que qualquer alarme de segurança já criado por um humano... Além disso, o processo permitia que ela livrasse o mundo de mais uma criatura mortal.

Seu trabalho ficava mais fácil assim.

Terminou o assunto com o senhor Tagarela e virou-se para o antigo espelho envolto por uma moldura um tanto apodrecida pelos séculos. A superfície gasta exibia um reflexo em constante mudança, ondas de cinza-escuro e preto rodavam em torno de um fundo cuja cor parecia a mancha de um tapete velho. Aquilo era um horrível portal e a única maneira de se aproximar das almas que possuía.

– Fique aí – disse a ele. – Volto já.

Aproximando-se da superfície do espelho, foi puxada por uma força cruel e entregou-se livremente àquilo. O corpo que havia assumido tornou-se caramelo ao passar por aquele local. Do outro lado, emergiu sem muita firmeza, jogada pela tempestade, mas não precisou de tempo algum para se recuperar.

Ao ajeitar o cabelo e alisar a saia apertada, pensou ser uma falha não ter um espelho ali. No entanto, não precisava preocupar-se com a opinião de seus subordinados ou de suas almas... Oh, suas adoráveis almas... bem, tinham outras coisas em mente.

Inclinando a cabeça para trás, olhou as paredes que se estendiam por quilômetros num negro brilhante visível desde o chão de pedra. O contorcionismo dos condenados torturados desafiavam os limites de sua viscosa prisão; rostos, quadris, joelhos e cotovelos esticavam-se tentando alcançar uma liberdade impossível, as múltiplas vozes erguiam-se num lamento miserável e abafado.

– Como estou? – ela gritou para cima.

O volume do coro de gemidos aumentou como resposta, mas não lhe disseram absolutamente nada. Pelo amor de Deus, será que não conseguiria uma opinião? Qualquer uma?

Depois de olhar para si mesma mais uma vez, concedeu acesso a Jim, convocando sua forma física no local. Enquanto esperava, seu coração batia três vezes mais rápido, uma corrente percorria cada centímetro de sua pele com um chiado elétrico. Mas não demonstraria isso. Calma. Fique calma.

Jim chegou num redemoinho de névoa, e ela prendeu a respiração.

O salvador escolhido era o melhor exemplar que havia do sexo masculino. De uma constituição grande e letal, seu corpo era um instrumento de guerra e sedução. Era primitivo, intenso...

– Você me deseja – disse ela em voz baixa.

Os olhos dele estreitaram-se, e o ódio que havia neles fez mais pela libido de Devina do que um prato cheio de ostras poderia fazer.

– Não dessa maneira, querida.

Oh, como ele mentia.

Devina foi até a mesa de trabalho rebolando e passou as pontas dos dedos sobre a superfície esburacada e sem cor. As memórias dele amarrado nu, de pernas bem abertas e com seu sexo brilhando por ter sido usado há pouco, fizeram-na respirar fundo.

– Não? – ela disse. – Você me chamou. Não o contrário.

– Quero que me diga quem é a próxima alma.

Interessante.

– Então, Nigel mandou você até aqui quando fez a mesma pergunta a ele, não foi?

– Não disse isso.

– Bem, acho difícil acreditar que me procurou primeiro – murmurou em tom amargo. – E acha que vou te contar?

– Sim, acho.

Soltou uma risada violenta.

– Já deveria saber como sou.

– E vai me dizer.

– Por que eu haveria de...

Uma das mãos ergueu-se e Jim começou a passá-la pelo peitoral de maneira intensa e lentamente, oh, bem lentamente, descendo pelo seu estômago...

Devina engoliu em seco. E, então, sua boca ficou realmente seca quando ele segurou o próprio órgão entre as pernas.

– Tenho algo que deseja – ele disse asperamente. – E vice-versa.

Bem, bem, bem... Desejava ficar com ele, sim, mas era muito melhor quando a ligação era voluntária. Ele teria que se esforçar para fazer sexo com ela, sacrificar sua carne para obter informação... na frente de sua doce e estimada Sissy.

Devina olhou para a parede e encontrou a alma com a qual ele tanto se preocupava. Ao descer a garota, inclinou-se contra a mesa.

– O que, exatamente, você está me propondo?

– Diga quem é e eu fodo você.

– Faça amor comigo.

– Vai ser uma foda. Pode acreditar.

– Chame da maneira que quiser... mas não tenho certeza – que mentira. – É uma informação muito valiosa.

– Bem, sabe como eu sou.

Ah, ela sabia e desejava-o outra vez. Desejava sempre.

– Tudo bem – ela disse. – Vou te dizer quem é e, em troca, vai se entregar para mim sempre que eu quiser. Tem que estar à minha disposição.

Os olhos dele estreitaram-se outra vez, como fendas que o faziam parecer um predador.

E, então, houve apenas silêncio. Enquanto o silêncio estendia-se, ela permaneceu firme. Ele tinha voltado, isso era muito estranho, mas precisava agradecer a Nigel – o idiota que sempre seguia as regras – por isso. Se o arcanjo tivesse deixado escapar o nome da alma, aquele maravilhoso sacrifício não estaria acontecendo.

– Certo.

Devina começou a sorrir...

– Com uma ressalva – quando a expressão dela congelou, ele disse: – Ficarei com você agora em troca do nome. Então, veremos se é o correto. No final da rodada, se não tiver mentido... você terá o que deseja. Sempre que quiser.

Devina rosnou. Maldito livre arbítrio. Se ao menos pudesse dominar tal atributo de maneira mais apropriada, ele não imporia qualquer condição. Mas não era assim que funcionava.

Ainda há algumas brechas – pensou. Algumas maneiras de distorcer o acordo para que não falasse demais e ainda conseguisse possuí-lo.

– Temos um acordo? – ele perguntou.

Olhou sobre o ombro dele, enquanto se aproximava, em direção à pequena forma na parede que havia convocado para assistir de camarote o que aconteceria.

Quando Devina tocou o corpo forte e ergueu-se na ponta dos pés, ficou encantada com a carne rígida que acariciava. No ouvido de Heron, sussurrou: – Tire as calças.

– Feito ou não, demônio?

Estava inabalável diante dela, perfeitamente capaz de negá-la, tanto agora como no futuro. Mesmo estando bem na frente dela, era completamente intocável.

Só que era como ele mesmo havia dito, os dois tinham algo que o outro desejava.

– Tire as calças – afastou-se pronta para aproveitar o espetáculo. – Faça isso devagar... e teremos um acordo.

– Que maldição ele está fazendo lá?

Quando Adrian expressou toda sua retórica, indignado, não esperava uma reação de seu colega de quarto. Poderia passar com um carro sobre os pés de Eddie e, talvez, conseguisse obter um ai. Era mais provável que o anjo apenas piscasse os olhos e chutasse o veículo com força.

Sinceramente, aquela coisa toda de forte e silencioso podia ser bem irritante.

– Já faz duas horas – parou no pé da cama em que Eddie estava esparramado. – Ei? Está acompanhando a situação? Ou planeja dormir durante a rodada?

As pálpebras ergueram-se exibindo olhos vermelhos.

– Não estava dormindo.

– Meditando. Que seja.

– Não estava meditando.

– Tudo bem. Manipulando psiquicamente campos de energia...

– Você me deixa atordoado quando fica andando de um lado para o outro sem parar. Só estou evitando uma vertigem.

Não acreditou naquilo nem por um segundo.

– Preocupar-se um pouco com a situação o mataria?

– Quem disse que não estou preocupado?

– Eu disse – Adrian correu os olhos ao longo do corpo grande e imóvel de seu colega. – Estou prestes a pegar um desfibrilador e dar uma descarga na sua bunda.

– O que posso fazer, Ad? Ele voltará quando for a hora.

Imagens de Nigel, o afeminado, aproximando-se todo elegante de Jim fez Adrian pensar se não precisariam de um serviço funerário. Aquele arcanjo poderia passar o tempo jogando críquete e polo, mas não significava que não daria um jeito no cara... E Jim tinha deixado o local com vontade de acabar com alguém. Talvez o bastardo tivesse conseguido aquilo que procurava.

Adrian começou a andar novamente, mas o quarto de hotel não oferecia muito em termos de espaço. Pensou em descer ao bar...

Houve um rangido no quarto ao lado. Como se alguém tivesse sentado na cama. Ou aberto e fechado alguma coisa.

Ad estendeu a mão para a parte traseira da cintura e pegou a adaga de cristal. Se fosse apenas um humano tentando roubar um notebook, não precisaria daquilo. Mas, se Devina tivesse enviado mais um de seus subordinados para distraí-los, a arma seria bastante útil.

Empurrando a porta do quarto conjugado apenas um centímetro ou dois, inclinou-se. Uma camiseta preta foi arremessada para fora do banheiro. Em seguida, uma calça jeans.

Bota.

Bota.

O chuveiro foi acionado e, na sequência, houve um silvo, como se Jim não tivesse esperado a água aquecer primeiro.

Droga. Não tinha visitado apenas Nigel, tinha?

Adrian guardou a adaga outra vez, empurrou a porta com força, atravessou o quarto e sentou-se na cama do outro anjo. Deus sabia que não havia razão para arrancar a roupa e correr para uma ducha de água quente após um encontro com o arcanjo. O pobre coitado deve ter ido até Devina... E ninguém precisava pensar duas vezes para descobrir o que havia acontecido.

Ouvindo o som de Jim lavando o fedor do demônio, Adrian sentiu-se cansado ao ponto de perceber a visão turva de tanta exaustão. O que significava aquele caminho que o salvador decidiu seguir? Ir até lá. Fazer aquilo. Perder a cabeça.

Era este o negócio de Devina. Ela penetrava em você. No começo, você ainda achava que estava no controle. Depois, aquilo que fazia com ela, por razões que pareciam ser muito sensatas, devorava-o, e Devina entrava em sua pele e assumia a direção. Era assim que trabalhava e era muito bem-sucedida.

Quando Jim finalmente saiu do banheiro, parou com uma toalha nas costas, um braço erguido e outro abaixado. Havia marcas de arranhões nas coxas e no abdômen e seu sexo pendia desanimado, como se tivesse sido muito usado e deixado para morrer.

– Ela vai comê-lo vivo – Adrian disse.

O anjo responsável por salvar a tudo e a todos balançou a cabeça.

– De jeito nenhum.

– Jim...

– Ela vai nos dizer quem é a alma – Jim envolveu a toalha em torno de seus quadris. – Vamos encontrá-la amanhã cedo.

Caramba.

– Espere, ela não lhe deu a informação agora?

– Amanhã cedo.

Ad apenas balançou a cabeça.

– Ela está brincando com você...

– Ela vai mostrar. E vai dizer. Confie em mim.

– Ela não é uma fonte confiável. E esse não é o caminho da vitória.

– Então, você acha melhor obter o resultado da última rodada?

Bem... droga.

Jim foi até a mochila e pegou um uniforme militar. Quando virou-se e começou a se vestir, aquela tatuagem enorme em suas costas, com o Ceifeiro da Morte num cemitério, contorceu-se e voltou a assumir a forma original.

Talvez Jim fosse mais durão. Aquilo seria um golpe baixo e dolorido, algo que Ad admitiria apenas diante de sua carcaça fumegante. Mas, se o cara conseguisse suportar tudo aquilo... se pudesse, de alguma maneira, manter-se em pé... então, tinham a melhor arma naquela luta, pois o demônio tinha uma atração pelo cara. Uma grande atração.

Jim foi até o jeans que atirara pela porta do banheiro e vasculhou os bolsos. Quando ergueu-se novamente, havia um quadrado de papel dobrado em suas mãos.

As mãos tremiam, ainda que levemente. Quando ele abriu cuidadosamente o papel, Adrian, mesmo sem ver o que havia ali, esfregou o rosto e desejou que um carro tivesse caído sobre sua cabeça. Sabia muito bem que era o objeto pessoal daquela garota que encontraram sobre a banheira de Devina – a virgem pela qual Jim estava obcecado.

Idiota – Ad pensou. Estavam ferrados. Estavam muito ferrados.


CAPÍTULO 5

 

Veck acordou no sofá de sua sala de estar. O que foi uma surpresa, pois não tinha um.

Esfregando os olhos por causa da bela luz do sol, ficou surpreso por ter controlado o desejo de dormir mais perto da oficial Reilly, tanto que conseguiu se arrastar apenas até ali.

Sentou-se e olhou para a rua. O carro sem marcas de identificação havia partido, e ficou pensando em quando ela se fora. Da última vez que olhou, ainda estava lá, às quatro horas. Gemendo, esticou o corpo, seus ombros estalaram. Detalhes da noite anterior voltaram à memória, mas Veck, instintivamente, quis ficar longe do Monroe Motel & Suítes. Já sentia-se péssimo, não precisava adicionar uma dor terrível à fumaça que saía de sua cabeça.

Quando ficou em pé, ainda teve de lidar com uma ereção matinal obscena – outra coisa para se ignorar. Tinha a impressão de que se envolvera num sonho ousado e espetacular entre ele e a oficial do Departamento de Assuntos Internos. Alguma coisa sobre ela cavalgando em cima dele... O corpo de Veck estava quase todo vestido, ela estava completamente nua... não, espere, estava com o distintivo e a arma no cinto sobre o quadril.

– Droga... – quando seu pênis começou a ficar rígido, rezou para perder outra remessa de memórias de curto prazo e amaldiçoou o pornô clichê. Mas, agora, poderia entender por que os caras de outros departamentos achavam Reilly atraente.

Considerando a direção que seu cérebro estava tomando, não tinha certeza se adicionar cafeína à mistura era uma boa ideia, mas seu corpo precisava se reerguer. Foi chato quando descobriu que havia mentido para a oficial Reilly. Depois de ter conversado com ela e entrado, percebeu que estava sem pó de café.


No andar de cima, tomou banho, barbeou-se e vestiu o uniforme de trabalho: calça e camisa. Nada de gravata para ele, apesar de muitos detetives usarem. Nada de terno. Não usava nada desse tipo, a não ser jaqueta de couro, ou de motociclista, ou algo assim, bem informal.

No andar de baixo, pegou o casaco-reserva no armário, a chave da moto e trancou tudo. Ao se aproximar da BMW, lembrou que levaram várias coisas dele na noite anterior, por isso sentia-se tão leve. Nada de celular para checar as mensagens de voz. Nada de distintivo no bolso da frente. Nada de arma no coldre. Nada de carteira no bolso de trás da calça. A oficial Reilly ficou com tudo. Até com suas roupas de baixo.

Colocou o capacete e subiu na moto, a manhã estava clara e brilhante demais para ele... E nem tinha amanhecido completamente. Cara, considerando a pequena fresta que seus olhos conseguiam abrir, era bom saber que a moto já conhecia o caminho.

De la Cruz tinha levado Veck ao restaurante Riverside há alguns dias, e ele já se perguntava como tinha conseguido sobreviver, até então, sem uma boa dose daquela comida gordurosa. Seguindo o caminho do local, pegou as marginais pavimentadas, pois, mesmo às 7h45, a estrada principal estaria lotada.

O restaurante ficava às margens do rio Hudson, a apenas uns quatro quarteirões da delegacia... E, quando parou no estacionamento cheio de veículos sem identificação, entendeu que tinha chegado ao seu destino. Havia uma grande possibilidade de que metade da força policial também estivesse ali para tomar sua caneca de café de sempre, mas era tarde demais para ir a outro lugar.

Pouco antes de entrar, depositou 75 centavos numa máquina que distribuía o Correio de Caldwell e pegou um exemplar do jornal. Não havia nada sobre a noite passada na primeira página, então virou a página procurando um artigo que...

E lá estava seu nome. Em negrito.

A reportagem, no entanto, não era sobre ele ou Kroner. Era sobre seu pai, e ele rapidamente pulou o texto. Não queria acompanhar as acusações, o julgamento, a sentença de morte, nada que tivesse relação com seu pai. E, meu Deus, quando finalmente foi pego pela justiça criminal, ficou doente no dia em que cobriram o caso.

Não havia nada demais no resto da primeira sessão, nada nas notícias locais, nada nas seções de esportes, quadrinhos ou classificados. Porém, a falta de cobertura sobre o caso não duraria muito. Os repórteres tinham algum acesso aos relatórios policiais e, provavelmente, a história já estava na televisão e nos rádios. Um detetive do Departamento de Homicídios ligado tão diretamente aos atos de um psicopata? Era esse tipo de porcaria que vendia jornais e justificava os preços dos anúncios.

Ao empurrar a porta de vidro, entrou no ambiente ruidoso do Riverside com sua face enterrada nos artigos esportivos. O local estava cheio, quente e com um barulho tão alto como num bar. Teve o cuidado de não fazer contato visual com ninguém enquanto olhava ao redor procurando uma cadeira livre ou uma mesa vazia.

Não havia nada vago. Maldição. E não queria muito juntar-se a uma mesa cheia de oficiais da polícia. A última coisa que precisava era o monte de perguntas que seus colegas fariam. Talvez ele devesse ter ido direto à delegacia e recorrido a uma máquina de bebidas.

– Bom dia, detetive.

Veck olhou à direita. A bela oficial Reilly, que estava sentada na mesa mais próxima que havia da porta, de costas para ele, virou a cabeça a fim de olhar para ele por sobre o ombro. Tinha uma xícara de café à sua frente, um celular na mão e uma expressão de que nada fazia sentido.

– Quer me acompanhar? – disse, apontando para a mesa.

Ela devia estar brincando. Havia mais ou menos uma dúzia de membros da força policial olhando para eles... Alguns de uma maneira mais sorrateira que outros.

– Tem certeza de que quer ser vista comigo?

– Por quê? Não sabe se comportar à mesa?

– Sabe o que quero dizer.

Ela deu de ombros e tomou um gole do café em sua xícara.

– Nossa reunião com o sargento é daqui a vinte minutos. Vai ter muita sorte se conseguir um lugar para sentar até lá.

Veck deslizou na frente dela.

– Pensei que no Departamento de Assuntos Internos vocês sempre se preocupassem com o decoro.

– São apenas dois ovos, detetive, nada demais.

Veck colocou o jornal de lado.

– Está certo.

A garçonete veio com o bloco de notas e o lápis a postos.

– O que vai ser?

Não havia razão alguma para olhar o cardápio. O Riverside tinha todo tipo de omelete, ovos e torradas conhecidos pelo ser humano. Estava com vontade de comer uma torta no café da manhã? Um sanduíche com bacon e tomate? Cereais, aveia e panquecas? Muito bem, que seja... Mas faça logo seu pedido e coma rápido antes que outra pessoa sente no seu lugar.

– Três ovos mexidos. Gema dura. Torradas com manteiga. Café. Obrigado.

A garçonete sorriu como se tivesse aprovado a eficiência.

– Já vai sair.

Eeeee lá estava ele sozinho com Reilly. Ela tinha tomado banho e vestido um conjunto bem profissional de saia e camisa de botões. O tailleur, combinando com a roupa, estava dobrado com cuidado ao lado dela em cima do casaco. Seus cabelos vermelho-escuros estavam amarrados para trás outra vez e toda a maquiagem que ostentava era constituída apenas de um pequeno traço de batom.

De fato, quando ela apoiou a xícara de café na mesa, havia uma meia-lua rosa onde havia tocado com a boca. Não que ele estivesse observando os detalhes de seus lábios. Não mesmo.

– Estou com um relatório preliminar sobre o caso – ela disse.

Hum... aqueles olhos não eram apenas verdes, como ele havia concluído antes. Havia traços de avelã, produzindo uma combinação única de cores que parecia verde apenas a distância.

– Desculpe, o que você disse?

– Tenho um relatório preliminar de ontem à noite.

– E?

– Não foram encontradas outras armas no local.

Manteve-se tranquilo por força do hábito.

E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a garçonete entregou o café dele e o pedido de Reilly: uma tigela de mingau de aveia com uma torrada. Sem manteiga.

– É só trigo? – ele perguntou.

– Sim.

Claro que era. Provavelmente ela comia uma salada leve no almoço com alguma fonte de proteína e uma taça de vinho, quando muito, e, no jantar, deveria ser apenas legumes e frango grelhado e alguma coisa com baixo índice glicêmico.

Ficou pensando o que ela teria achado do ataque cardíaco caprichado que ele pedira.

– Por favor, não espere por mim – ele disse.

Ela pegou a colher e adicionou uma pequena quantidade de açúcar mascavo e creme.

– Quer saber o que acho que aconteceu?

– Sim, quero.

– Um animal selvagem te atacou, e, em meio à confusão, você bateu a cabeça.

Ele esfregou o rosto.

– Não tenho marcas.

– Pode ter caído de costas.

Na verdade, não é que ele havia pensado nisso?

– Mas não há qualquer inchaço. E meu casaco ficaria todo sujo.

– Está sujo.

– Apenas por eu ter colocado sobre o Kroner.

Ela baixou a colher.

– Pode provar? Como sabe se foi só isso se não consegue se lembrar de nada? Além disso, sua cabeça estava te matando ontem à noite e, a propósito, você está fazendo isso outra vez.

– Fazendo o quê?

– Discutindo comigo sobre o que aconteceu. E também está esfregando a testa.

Quando ele amaldiçoou e voltou a colocar as mãos sobre a caneca de café, ela sorriu um pouco.

– Adivinhe só, detetive? Você vai ser examinado na delegacia assim que terminarmos nossa reunião.

– Estou bem – Deus, podia ouvir o tom dissimulado em sua voz.

– Lembra-se do que eu disse ontem à noite, detetive? É uma ordem.

Ao se ajeitar na cadeira e beber um pouco do seu estimulante, viu-se observando o dedo anelar de Reilly. Não havia nada. Nem mesmo uma marca mais clara, como se alguma já tivesse passado por lá.

Desejou que estivesse usando um anel de compromisso simples: ele não se metia com mulheres casadas. Nunca. Claro que já atrapalhou alguns casais em sua história de encontros casuais, mas apenas por não saber que eram comprometidas. Era um vadio com valores, sabe?

– Por que você não me suspende?

– Outra vez com uma negativa.

– Não quero que arruíne sua carreira comigo – murmurou.

– E não tenho qualquer intenção de permitir que isso aconteça. Mas não há evidência de que tenha sido você o responsável pelo ataque, detetive, portanto, é o suficiente... só não sei por que você continua a me pressionar.

Quando encarou os olhos dela, ouviu-se dizer: – Sabe quem é meu pai, não sabe?

Aquilo conteve-a por um momento, sua porção de fibras sem gordura voltou para o prato no meio do caminho. Até parou de mastigar.

Então, a bela oficial Reilly recuperou-se com um encolher de ombros.

– Claro que isso é ruim, mas não significa que você tenha dilacerado alguém – inclinou-se. – Mas é o que você teme, não? E por isso continua a bancar o advogado do diabo.

A garçonete escolheu aquele momento para aparecer com o prato fumegante cheio de colesterol, e sua chegada foi um salva-vidas conversacional, se é que existia este tipo de coisa.

Salgou o prato. Colocou pimenta. Espetou com o garfo e comeu.

– Ajudaria se conversasse com alguém? – Reilly disse, quase inaudível.

– Um psiquiatra?

– Terapeuta. Eles podem ser bastante úteis.

– Diz isso por experiência pessoal, oficial?

– Na verdade, sim.

Ele soltou uma risada alta: – Por algum motivo, não acredito que eu seja o tipo de pessoa que precise de algo assim.

– Todos têm problemas.

Sabia que seria um tanto inconveniente, mas sentiu-se nu – e no mal sentido.

– Então, conte-me um dos seus.

– Não estamos falando de mim.

– Bem, estou cansado de estar no palco sozinho – quebrou um pedaço de torrada em duas. – Vamos lá, oficial. Conte alguma coisa sobre você.

– Sou um livro aberto.

– Que precisa de terapia? – quando ela não respondeu, ergueu o olhar para encará-la. – Covarde.

Os olhos da mulher estreitaram-se, ela inclinou o corpo para trás e empurrou a vasilha, ainda metade cheia, para frente. Ele esperava alguma réplica espirituosa. Ou, mais ainda, um tapa. Em vez disso, ela enfiou a mão no bolso, pegou uma nota de dez dólares e a colocou entre eles sobre a mesa.

– Vejo você na sala do sargento.

Com uma graça sutil, distanciou-se, pegou o casaco, a bolsa e o celular.

Antes de sair, Veck agarrou seu pulso.

– Desculpe. Passei do limite.

Ela desprendeu-se e colocou o celular na bolsa.

– Até logo.

Depois que Reilly saiu, Veck empurrou o próprio prato, mesmo ainda tendo um ovo e meio nele. Ainda não eram nove horas... e já tinha ganho o prêmio de idiota do dia. Fantástico...

Uma corrente de ar passou por suas costas, eriçando os cabelos da nuca, e aquilo o fez virar em direção à porta. Uma mulher havia entrado e não pertencia ao local, assim como uma porcelana chinesa fina sendo vendida numa loja de departamentos qualquer. Quando seu perfume pairou no ar e ela tirou o casaco de pele, houve uma pausa audível nas conversas do local. Ela tinha acabado de expor seios enormes para metade do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando Veck observou-a, achou que deveria ter sentido alguma atração por ela, mas, em vez disso, aquele ar frio fazendo cócegas em sua coluna despertou nele o desejo de pegar uma arma e apontar em direção àquela mulher como um mecanismo de autodefesa. E como o desejo era forte.

Deixando uma nota de vinte, interou o valor do resto do café da manhã e dirigiu-se à porta. Ao sair, parou. Olhou ao redor. Sua nuca ainda estava alerta, seus instintos gritavam, principalmente quando olhou através das janelas redondas do restaurante. Alguém o observava. Talvez fosse aquela mulher com corpo de modelo de revista erótica, talvez outra pessoa. Mas seus instintos nunca mentiam.

A boa notícia era que talvez recebesse suas armas de volta naquela manhã. Então, pelo menos, poderia novamente se proteger.

Quando Jim estacionou no Riverside com sua Harley, um cara aproximou-se com uma bela moto BMW rugindo. Adrian e Eddie estavam bem atrás dele com suas motos, e os três estacionaram juntos do outro lado, próximo ao rio Hudson. Quando Jim desmontou e olhou para o lugar, concluiu que Devina havia lhe chamado para um encontro. Bem, tinha algo de especial ali. Esteve com sua primeira alma naquele mesmo restaurante.

Talvez Caldwell fosse um imã para almas condenadas. Ou talvez ela apenas gostava do café servido ali e lhe diria que a alma em questão estava em outro lugar.

Aproximando-se da entrada, viu que seus colegas não estavam para conversa... o que não era novidade da parte de Eddie, mas um milagre, no caso do outro anjo. Aquilo não duraria muito da parte de Ad.

O restaurante estava lotado, barulhento e cheirava a café e a manteiga derretida. Que maldito lugar para Devina escolher...

E lá estava ela, à esquerda, sentada numa mesa, observando a porta enquanto um raio de sol se derramava pela janela ao seu lado. Os raios cálidos e amarelos iluminavam perfeitamente seu rosto, como se estivesse prestes a ser fotografada, e Jim pensou na primeira vez que a viu naquele clube, parada sob uma luminária no teto. Ela, por si só, também brilhava.

O mal nunca pareceu tão atraente, mas, ao contrário dos outros homens, que olhavam sobre suas canecas e babavam como cães, Jim sabia quem aquela mulher realmente era... Não se distraía mais com aquele disfarce a ponto de deixar de perceber que ela não projetava sombra. Por mais brilhante que fosse a luz que a atingisse, não havia qualquer contorno de sombra sobre a mesa ou sobre o encosto do banco ao lado dela.

Por uma fração de segundo, visualizou a imagem deles dois juntos na noite anterior. Tentou penetrá-la por trás sobre a mesa, mas ela insistiu em transar face a face. Sinceramente, ficou surpreso por conseguir uma ereção, mas a fúria também deixava-o rígido, por algum motivo. Ao menos com ela.

Quando desvencilhou-se daquela cena grosseira, suada, olhou ao redor, em direção às paredes, imaginando Sissy presa naquele emaranhado de condenados. Rezou para que sua garota não tivesse visto aquilo. Deus, pensar que ela poderia ter...

Mas chega disso. Aproximando-se de Devina, bloqueou todos os pensamentos em relação a Sissy, ao sexo que teve com o inimigo ou até mesmo em relação ao jogo em si.

– Então, quem é? – ele disse.

O demônio olhou por cima do Correio de Caldwell, seus olhos negros percorreram rapidamente o corpo de Jim e fizeram com que ele sentisse vontade de tomar outro banho... dessa vez, com uma lixadeira.

– Bem, bom dia, Jim. Gostaria de sentar ao meu lado?

– De jeito nenhum.

O cara na mesa em frente à dela olhou por cima do ombro. Como se não tivesse aprovado o tom ou o linguajar de Jim com a moça.

É só aparência, cara – Jim pensou.

Devina abaixou o jornal e voltou-se para suas panquecas de leite e manteiga e para seu café.

– Tem uma caneta?

– Não brinque comigo.

– Um pouco tarde para isso. Caneta?

Como algumas pessoas tentavam passar, Jim e seus colegas tiveram que virar de lado. Eddie tirou uma caneta do bolso e entregou-lhe.

Devina destampou a coisa com suas mãos longas e tratadas. Em seguida, dobrou o jornal na parte de palavras cruzadas.

– Uma palavra com sete letras para...

– Droga, Devina, pare...

–... antagonista.

–... com essa merda.

– Na verdade, Jim, “merda” tem cinco letras. Mas eu não estou fazendo isso, estou? – Devina começou a escrever a palavra com cuidado. – Acredito que “inimigo” seja a palavra que procuro. E terá de se sentar comigo, sozinho, ou vai cair no corredor por suas pernas adormecerem de tanto ficar de pé.

Fez mais um registro cuidadoso sobre o jornal. Imaginou se ela não estaria trabalhando numa palavra equivalente a “dor no traseiro”.

Jim olhou para seus amigos.

– Já vou sair.

– Adeus, Adrian – disse Devina com um aceno – Mas vejo você em breve... tenho certeza.

O demônio não disse nada a Eddie. Afinal, ela gostava de provocar as pessoas, mas Eddie era tão calmo e impassível que simplesmente não valia a pena. O que colocava ele e Adrian no departamento de opostos que se completam.

Quando os dois anjos saíram, Jim sentou-se.

– E então?

– Não gostaria de tomar café?

– Quem é, Devina?

– Odeio comer sozinha.

– Você poderia prender a respiração até eu decidir acompanhá-la... O que acha disso?

Os olhos negros de Devina assumiram um tom objetivo.

– Vamos brigar?

Com isso, Jim soltou uma risada sincera.

– É a razão pela qual estamos aqui, querida.

Ela sorriu um pouco.

– Acho que é a primeira vez que ouço algo assim vindo de você.

Jim foi interrompido quando a garçonete chegou com um bule de café.

– Nada para mim, obrigado.

– Ele vai querer café e waflles.

Quando a garçonete olhou para Jim como se dissesse “vamos lá, decida-se”, ele deu de ombros e deixou por isso mesmo.

Ao ficarem sozinhos outra vez, Devina olhou novamente para suas palavras cruzadas.

– Não terá outra chance comigo a menos que comece a falar.

Houve uma pausa, como se o demônio pensasse em alguma maneira de prolongar o encontro. Finalmente, começou a bater no jornal com a ponta da caneta de Eddie.

– Você lê o Correio de Caldwell?

– Às vezes.

– É um verdadeiro tesouro de informações – ela fez um espetáculo para exibir a primeira parte do jornal. – Nunca se sabe o que pode encontrar nele.

Achatou o papel, virou-o em direção a Jim e passou a encará-lo do outro lado da mesa.

Jim olhou para baixo. Três grandes artigos. Um sobre o projeto de uma nova escola no bairro. Outro sobre o aumento do número de pequenas empresas. E um terceiro sobre... A ponta da caneta de Eddie apontou o último artigo.

– Acho que cumpri minha parte do acordo – disse lentamente.

A manchete dizia: “Agendada a execução de DelVecchio”.

Jim percorreu o artigo rapidamente e pensou: Droga, esta é a alma?

Quando Devina já ia recolher a caneta, ele estendeu a mão e fechou-a sobre o pulso dela, mantendo-o no lugar.

Na verdade, a ponta da caneta apontava um nome escrito ao longo do artigo... E não era o nome do serial killer DelVecchio. Era o filho do cara... Thomas DelVecchio Jr. Um detetive da força policial de Caldwell.

Jim encarou o inimigo do outro lado da mesa e sorriu.

– Pegadinha?

Seus cílios baixaram numa atitude tímida.

– Sempre.

Chega de Devina e de perder tempo, Jim levantou-se e levou a caneta com ele.

– Aproveite meus waffles, querida.

– Ei, como vou terminar minhas palavras cruzadas?

– Tenho certeza de que dará um jeito. Até mais.

Jim saiu do restaurante e seguiu direto para seus amigos. Quando aproximou-se das motos, estendeu a caneta a Eddie.

– Sua caneta – quando o anjo foi pegá-la, Jim segurou-a. – Há metal em volta do bico. Da próxima vez, ofereça uma canetinha hidrográfica.

Quando Jim começou a estender a perna sobre o banco da moto, Adrian perguntou.

– O que ela disse?

– Parece que vamos ter que entrar no mundo dos policiais e dos ladrões.

– Ah. Bom – Ad montou sobre sua moto. – Pelo menos eu falo a mesma língua deles.


CAPÍTULO 6

 

Reilly entrou na delegacia pela porta dos fundos e passou pelo corredor de concreto que daria na mais nova, renovada, inspiradora e motivadora recepção. Infelizmente, a estátua de bronze da Dama da Justiça, com sua balança e espada, era uma interpretação moderna do clássico greco-romano, e mais parecia queijo derretido. Queijo derretido velho e marrom.

Andar ao redor da deusa de olhos vendados e dos pequenos holofotes que a iluminavam de baixo para cima dava uma ideia exata da confusão que havia no lugar. Entretanto, a maioria da força policial, dos advogados e dos promotores que passavam por ali eram ocupados demais para se preocupar com a decoração: o pessoal tinha muita coisa a fazer. O Departamento de Segurança e a Central de Detenções estavam à direita, além da cadeia em si. Os registros eram feitos no setor à esquerda. No andar de cima, estavam as salas dos departamentos de Homicídios e de Assuntos Internos, bem como a sala de reuniões e o vestiário. No terceiro andar, havia o novo laboratório e o local de armazenamento de evidências.

Reilly subiu as escadas de dois em dois degraus, ultrapassando dois colegas que iam mais devagar que ela. Mas, quando chegou ao segundo andar, perdeu o ímpeto. A grande área aberta à sua frente tinha uma série de mesas onde o pessoal do suporte administrativo trabalhava. E, bem no centro do local, em meio ao pessoal, estava Britnae, a gostosa da delegacia.

A loira tinha um espelho nas mãos e passou com os dedos uma sombra de alguma marca famosa nos olhos. O próximo passo foi arrumar os cachos. Por último, pressionar os lábios e fazer beicinho. O tempo todo inclinava-se para frente e exibia o par de silicones para si mesma... Era evidente que estava satisfeita com a maquiagem e com aquela maravilhosa paisagem.


Britnae virou o pulso e checou um daqueles relógios femininos minúsculos que algumas mulheres usam, do tipo que têm pulseiras delicadas e os ponteiros sobre um fundo perolado. Provavelmente, ela tinha um monte de pulseiras e brincos em alguma prateleira ou armário cheio de coisas cor-de-rosa.

O guarda-roupa de Reilly parecia o do Marilyn Manson e dispensava joias. Seu relógio? Era simples. Preto e à prova de choque.

Três chances para adivinhar como Britnae ficaria quando... só precisou de uma: a garota ficava ofegante na frente de Veck desde o dia em que o cara entrara ali há duas semanas. Não que fosse da conta de Reilly.

Antes que alguém a acusasse de xereta, apressou-se para o Departamento de Assuntos Internos e entrou em seu cubículo. Fingindo estar alerta, acessou o computador, mas, quando entrou no e-mail, tudo tinha sido traduzido para uma língua estrangeira. Ou isso, ou seu cérebro tinha esquecido o inglês.

Maldito DelVecchio.

Chamá-la de covarde? Só por querer manter o profissionalismo? Não sabia metade do inferno pelo qual tinha passado. Além disso, estava tentando ajudá-lo...

Aquilo deu vontade de descarregar no cara sua nove milímetros como café da manhã.

Seguindo o programa, acessou o relatório que havia enviado a si mesma por e-mail mais cedo e verificou, outra vez, o trabalho, revisando todo o documento do início ao fim. Quando o telefone tocou, ela atendeu sem olhar.

– Reilly.

– Thomason – ah, o cara do laboratório. – Só queria avisar que acho que os ferimentos de Kroner foram resultado de dentes.

– Como...

– Presas, especificamente. Encontrei os paramédicos ontem à noite no pronto-socorro e estava lá quando Kroner foi entubado, costurado e até quando recebeu uma transfusão. Observei bem as feridas do rosto e do pescoço. Quando uma faca é usada num ataque como aquele, tende a deixar contornos bem claros nas lacerações. A carne dele foi rasgada... algo parecido com o que eu vi quando aquele tigre comeu o treinador de animais no ano passado.

Aquilo confirmava suas conclusões, não é mesmo? E fez com que se perguntasse o que poderia estar perambulando por aquela floresta.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Não tenho certeza. Peguei algumas amostras do tecido... Só Deus sabe quantas espécies existem... Vamos descobrir que tipo de saliva foi deixada. Porém, posso adiantar uma coisa: seja lá o que for... estamos falando de algo grande, poderoso e... furioso.

– Muito obrigada por me ligar tão rápido.

– Sem problema. Vou tirar um cochilo e voltar ao trabalho em seguida. Entro em contato.

Depois que desligou, Reilly digitou um adendo ao seu relatório, pressionou Ctrl+P e, em seguida, enviou o documento por e-mail ao sargento. Pegou uma pasta, o celular e esperou a impressora terminar de liberar as páginas do relatório.

Ao menos tinha uma evidência para confirmar o que havia dito ao sargento antes do café da manhã. Com isso, começou a pensar no restaurante. Não deveria ter convidado Veck para se juntar a ela. Ele estava certo... parecia ruim, mas, mais que isso, poderiam ter evitado aquela conversa desagradável. Na verdade, aquilo a chateou. Não deveria. Um comentário inapropriado no café da manhã? Não deveria incomodá-la. Não mesmo. Ou teria sido uma reação alérgica à palavra covarde? Sim, era isso.

Veck atravessou o saguão da delegacia como um jato, passava rápido pelas pessoas, quase corria. Chegou à escada e subiu os degraus de pedra de dois em dois. Quando chegou ao segundo andar, dirigiu-se à esquerda, mas não ia ao seu escritório. O lugar ao qual precisava ir era o Departamento de Assuntos Internos... do nada, uma coisa rosa e loira entrou em seu caminho.

– Oi!

Quando olhou a garota, entendeu o que os tornados deveriam achar de um trailer quando atingiam algum pelo caminho: absolutamente nada. Ele quase passou por cima dela para chegar a Reilly, por assim dizer.

– Oi. Desculpe... estou atrasado.

Infelizmente, Britnae decidiu dançar uma valsa com ele no corredor, indo para a direita e para a esquerda. Quando ele parou, ela respirou fundo, ou arqueou as costas, ou esbarrou em algum compressor de ar, pois, de repente, parecia Jessica Rabbit, a personagem sensual que vivia exibindo o decote. Se ela mostrasse mais um pouco dos seios, estaria pronta para uma mamografia.

– Então... – ela balbuciou – eu estava pensando se você não gostaria de um pouco de café...

Chá... ou, quem sabe, eu mesma? – ela terminou a sentença mentalmente.

– Obrigado, mas estou atrasado para uma reunião – driblou-a.

Nova barreira.

– Bem, eu poderia trazer para você!

– Não, obrigado...

Ela colocou uma das mãos sobre o braço de Veck.

– Sério, eu não me importo...

A oficial Reilly visualizou o momento ao sair da sua sala nos Assuntos Internos. E, como pode imaginar, não hesitou ou mostrou qualquer mudança em sua expressão facial... Por que vê-lo dar o fora em alguém a incomodaria?

Quando passou, assentiu para ele dizendo oi para aquele atraso de vida.

– Tenho que ir – disse Veck, já mais que atrasado.

– Vejo você mais tarde – Britnae disse em voz alta.

– Reilly – sussurrou – Reilly.

A mulher que realmente interessava parou em frente à sala do sargento.

– Sim?

– Sinto muito pelo que disse. Passei dos limites.

Reilly colocou a pasta sobre o braço e passou a mão pelos cabelos.

– Está tudo bem. É um momento de estresse. Entendo.

– Não acontecerá de novo.

– Não faria diferença para mim se acontecesse.

Com isso, ela virou-se com seus sapatos de salto baixo e entrou na sala de espera. Certo... essa doeu. Mas não podia culpá-la.

Em vez de segui-la, ele ficou ali parado como uma árvore enquanto a porta fechava-se diante de seu rosto, com vontade de chutar o próprio traseiro. A próxima coisa que sentiu foi o cheiro de café fresco que indicava a proximidade de seu parceiro.

José De la Cruz parecia cansado, mas alerta; era assim que o cara costumava estar sempre.

– Como estamos?

– Péssimos.

– Não me diga – entregou um dos dois cafés que segurava. – Beba isto. Ou, se conseguir, injete um pouco na veia.

– Obrigado, cara.

– Está pronto?

Não.

– Sim.

Ao entrar na sala, Reilly olhou para trás e acenou para De la Cruz, em seguida, voltou a conversar com a assistente do sargento.

Veck acomodou-se numa das tradicionais cadeiras de madeira alinhadas contra a parede da sala de espera do escritório do sargento, revestida de painéis também de madeira. Enquanto bebia o café, observava cada detalhe em Reilly: a maneira como tocava o brinco direito, como se estivesse meio solto, como fazia ao dobrar a perna, como batia a ponta do sapato enquanto tentava argumentar, o fato de que, ao sorrir, exibia o ligeiro brilho de um preenchimento de ouro no molar superior. Era muito atraente. Atraente mesmo.

– Então, tentei ligar para você ontem à noite – De la Cruz disse em voz baixa.

– Meu celular está no laboratório.

– Você deveria ter um telefone fixo.

– Sim – olhou para seu parceiro. – Acho que não encontraram muita coisa na floresta.

– Nada.

Sentaram-se lado a lado, bebendo café em copos de papel com imagens de cartas de baralho. O café estava horrível, mas estava quente e deu-lhes algo a fazer.

– Você pensou em matar Kroner, não? – quando Veck encarou-o, o outro detetive deu de ombros. – Vi você com aquele paparazzo, lembra? Fui eu quem tirou você de cima dele. Quanta raiva.

Veck voltou a observar Reilly, contente por ela estar compenetrada na outra conversa. Assentindo na direção dela, disse em voz baixa: – Ela acha que não fui eu. Porém, estou com a impressão de que você acha.

– Não disse isso.

– Não precisa.

– Não, eu vi como Kroner ficou. Você também. É uma equação sem lógica.

– Então, por que falou nisso?

– Porque está na sua mente.

Veck produziu um barulho evasivo.

– Se ela recomendar que eu continue na ativa, haverá algum problema para você?

– Não, mas acho que você não deveria sair nas ruas sozinho neste momento.

Engraçado, ele achava a mesma coisa. E era uma droga.

– Vamos ficar algemados um ao outro, então?

O sargento abriu a porta de seu escritório, mostrando a cabeça grisalha.

– Vamos lá?

Reilly despediu-se da assistente, e Veck e De la Cruz seguiram-na ao longo do grande escritório. A mesa de reunião, na outra extremidade da sala, era grande o suficiente para comportar a todos com conforto, e Reilly escolheu a cadeira mais distante de Veck para se sentar... ou seja, estava bem diante dele. Nada de contato visual. Isso não o surpreendeu.

Que inferno.

– Bem, li o relatório que me enviou por e-mail – o sargento disse a Reilly. – Mais alguma coisa?

– Apenas um adendo, o qual eu também enviei – ela passou algumas cópias ao sargento e, em seguida, entrelaçou os dedos e sentou-se. – Mantenho minhas conclusões.

O sargento olhou para De la Cruz.

– Alguma coisa a acrescentar?

– Não. Também li o relatório e isto diz tudo.

– Então, estou propenso a concordar com a oficial Reilly – o sargento olhou para Veck com firmeza. – Gosto de você. É o meu tipo de policial. Mas não vou permitir que alguém que represente perigo a outras pessoas carregue um distintivo. Reilly é sua nova parceira... Veck, não posso dispensar De la Cruz durante o seu período probatório, que será de um mês, no mínimo.

Reilly não mostrou qualquer reação diante da mudança, mas era uma profissional, não era?

– Ainda posso trabalhar no caso de Kroner? – Veck perguntou.

– Não nesta vida. A partir de hoje, você assumirá os casos antigos pelos próximos trinta dias e terá reuniões periódicas com o dr. Riccard.

Ah, sim, o psicólogo do departamento. E, no silêncio que se seguiu, Veck sabia que todos esperavam que soltasse algum protesto, mas, afinal, não poderiam considerá-lo uma máquina mortífera selvagem.

Não mesmo. Por exemplo, não conseguia deslocar o ombro, não morava na praia com um cachorro e não saía por aí tentando liberar seu instinto assassino. Logo...

– Certo.

O sargento pareceu um pouco surpreso, mas bateu na mesa com o nó dos dedos, algo que Veck concluiu ser um gesto de satisfação do cara.

– Ótimo. De la Cruz, quero falar com você. Quanto a vocês dois... terminamos.

Reilly saiu do escritório tão rápido quanto um tiro, mas Veck também conseguia correr daquele jeito. Saiu bem atrás dela e alcançou-a na saída do corredor.

– Então, como será? – ele falou.

Era tudo o que tinha a dizer. Desculpar-se não adiantou e, de alguma maneira, também não conseguia pensar em agradecê-la pelo relatório.

Reilly deu de ombros.

– Vou terminar o que estava fazendo esta manhã e, depois, poderemos nos ater aos casos antigos.

– Durante trinta dias.

– Trinta dias – ela não parecia entusiasmada, mas também não parecia temer o que estava por vir. Veck concluiu, com isso, que não seria fácil conversar com ela no tempo livre.

– Vejo você às treze horas em ponto no seu departamento, detetive.

– Entendido, oficial.

Mesmo andando, ela fez alguma anotação em seus papéis ao sair, a cabeça estava enterrada no trabalho. Dois rapazes passaram, olharam para ela e continuaram a olhar, como se esperassem alguma troca de contato visual. Mas ela não ergueu a cabeça. Nem notou-os. Contudo, Veck percebeu muito bem aquilo. E desejou fazer algum ajuste óptico naqueles bastardos.

– Você deixou isto no escritório do sargento.

Veck virou-se. De la Cruz tinha saído e levava o café de Veck.

Bem, aquilo não pareceu nada estranho. Não mesmo.

– Obrigado, cara – Veck pegou o copo de papel e tomou um gole. A única coisa que redimia a bebida tinha passado: a porcaria estava morna. – Bem, estava sendo bom trabalhar com você.

– Posso dizer o mesmo – José estendeu uma das mãos. – Mas, quem sabe? Talvez volte a ser designado meu parceiro daqui a um mês.

– Sim – porém, de alguma forma, Veck tinha a sensação de que seus dias no Departamento de Polícia de Caldwell estavam contados.

Voltaram ao Homicídios em silêncio e, quando abriram a porta do departamento, todos os detetives que ali estavam desviaram o olhar das paredes cinzentas que dividiam seus cubículos. Veck não viu razão alguma para suavizar as coisas.

– Na ativa. Nada de Kroner. Com Reilly.

Várias cabeças assentiram para ele e, cara, agradecia quando as pessoas eram legais. Na verdade, ali havia pessoas decentes trabalhando duro por pouco dinheiro e não tinham muito tempo para bobagens. Além disso, bem ou mal, depois de ter acertado aquele paparazzo, ganhou bastante respeito.

Quando todos voltaram ao trabalho, José bateu sobre o ombro de Veck e dirigiu-se à própria mesa. Veck não perdeu tempo. Sentou-se em sua cadeira, ligou o computador e checou seus e-mails.

Casos antigos, hum? Era uma categoria muito ampla. Acessando a base de dados do departamento, puxou todos os relatórios de pessoas desaparecidas. E aquilo fazia parte, tecnicamente, de casos antigos, não? Uma vez que ainda estavam abertos. Ao iniciar a pesquisa, esparramou-se e deixou o computador trabalhar. Engraçado como o resultado da pesquisa exibiu apenas dados de mulheres, entre 16 e 30 anos, registradas como desaparecidas nas últimas, digamos... três semanas? Quando foi mesmo que Kroner apareceu atuando naquela área?

Não era coincidência.

 


CONTINUA