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CAPÍTULO 30
Quando o último raio de luz solar esvaiu-se do céu, os restos mortais de Sissy Barten tinham sido embalados e removidos da caverna cuidadosamente.
Veck foi um dos rapazes que seguraram as alças da maca, sustentaram o peso do corpo e tiraram-no dali, levando-o para o ar limpo. Ele ficou por perto ao longo da tarde, mas preferiu ficar em segundo plano, limitando sua participação a tirar fotos com o celular, conversar com o médico-legista e ajudar sempre, sempre e sempre que possível com detalhes desnecessários. Reilly fazia o mesmo. E, então, a única coisa que havia para ser feita ali era subir o corpo até a encosta.
– Vamos por aqui – disse aos outros. – É o melhor caminho que temos.
Os quatro dirigiram-se para o norte e seguiram pelo caminho menos obstruído – algo muito relativo. E havia muita gente esperando a chegada do corpo.
Naturalmente, as equipes de reportagem tinham chegado e se posicionado nas margens da pedreira. Só Deus sabia quem os havia alertado. Com certeza não havia sido ninguém que estava exercendo uma função oficial ali. Mas, afinal, era uma área pública e, além da cidade inteira saber que a polícia havia capturado Kroner e que o cara se recuperava no Hospital São Francisco, também sabiam sobre a vítima naquele hotel e sobre as outras garotas mortas. O fato de alguns oficiais uniformizados começarem a percorrer uma área remota com um monte de lugares obscuros não indicava que alguém estivesse dando uma festa de aniversário em meio àquele amontoado de rochas. Além disso, agora havia um corpo envolvido num saco plástico.
Sobretudo, qualquer idiota tem um celular hoje em dia. E foi por isso que, no exato instante após a identificação do corpo com fotografias e marcas de nascença, De la Cruz saiu correndo da cena e entrou no carro. Embora o Departamento de Polícia de Caldwell não fosse liberar o nome à imprensa antes da família ser notificada, já havia inúmeros e-mails, mensagens de texto e ligações na delegacia – e não tinha como saber quem havia deixado escapar para a esposa, que tinha contado para a irmã, que, por sua vez, disse a alguém de um canal televisivo. Às vezes, a era da informação podia ser um saco. Ninguém desejava que os Barten soubessem sobre sua filha no jornal da noite... ou, que Deus os livrasse, no Facebook.
Enquanto Veck e os outros três rapazes resmungavam, estendiam-se, puxavam e levantavam, Reilly estava bem ao lado deles o tempo todo, direcionando a lanterna e iluminando o caminho enquanto começava a escurecer. E a escuridão parecia cada vez mais densa. Até ficar escuro como breu.
Quase uma hora depois, chegaram ao topo e colocaram os restos mortais na parte de trás de um dos veículos de resgate com todo cuidado.
Veck e Reilly ficaram para trás enquanto Sissy Barten era levada com segurança de volta à cidade.
Quando os outros oficiais começaram a se dispersar e os motores foram acionados, ela disse em voz baixa: – Não acho que...
– Kroner não a matou – Veck concordou com suavidade.
– O modus operandi não se encaixa.
– Nem um pouco.
E não foram os únicos que notaram a discrepância entre Sissy e as outras vítimas: aquele corpo fora suspenso pelos calcanhares e o sangue drenado... havia um desenho arranhado sobre o estômago. Além disso, apesar de estar nua e sem qualquer objeto pessoal, não havia manchas na pele que indicassem que alguma parte fora removida e nada que sugerisse abuso sexual – seria outra perversão típica de Kroner?
– Só não sei como explicar o brinco – Veck murmurou.
– Ou por que Kroner sabia onde ela estava se não a matou.
Veck olhou para sua parceira.
– Quer comer em algum lugar?
Apoiando os braços sobre a cabeça, ela espreguiçou-se.
– Sim, por favor. Estou faminta. E exausta.
Ele pegou o celular e enviou uma mensagem de texto: Sua casa? Você poderia tomar um banho. Comida pronta, prometo ser gentil.
Houve um sinal sonoro discreto e, depois de trocarem algumas palavras, ela pegou o telefone sorrateiramente e olhou a tela.
– Que plano perfeito.
O impulso que sentiu foi de beijá-la rápido e com firmeza. Mas se conteve a tempo, pois não estavam sozinhos. Alô! Estavam cercados de pessoas com quem trabalhavam.
Queria voltar com ela, mas teriam que seguir separados, graças a sua maldita moto. Caramba, e pensar que costumava gostar daquela coisa... Se não fosse por ela, Reilly não o teria levado para casa na noite passada.
– Vejo você em vinte minutos... – disse a ela.
– Tem certeza de que não quer um casaco extra?
– Vou ficar bem.
Ao caminhar pelo chão poroso e lamacento, Veck pensou em Jim Heron e na falta de pegadas. Passou mais algum tempo procurando evidências de que mais alguém, além dele e de Reilly, tivesse percorrido a área, mas não havia nada. No entanto, tinha plena certeza de que aquele homem não poderia ter atravessado todo o terreno molhado e irregular sem deixar qualquer vestígio. E Veck não imaginara a aparição daquele cara.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio. E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente. Sou o único que pode te ajudar.
Tanto faz, Heron.
Resistindo à tentação de gritar para as sombras, montou na moto, ligou o motor e esperou Reilly abrir o porta-malas e tirar as botas imundas. Ao menos aquilo o fez sorrir. Podia apostar que ela tinha um saco plástico ou tapete de borracha lá dentro para colocar os objetos sujos. Provavelmente, assim que chegasse em casa, lavaria imediatamente as botas para que estivessem prontas para o próximo uso.
Olhou para os próprios pés. Seus sapatos estavam arruinados. Do tipo que deveriam ser destinados a um saco de lixo, não serviriam nem se limpasse e engraxasse.
O difícil era encontrar outros em uma situação diferente daquela.
Reilly assumiu a dianteira e Veck seguiu-a pelo caminho até a cidade, mesmo congelando, pois dirigir a 110 quilômetros por hora numa noite como aquela era como sofrer o frio de um rigoroso inverno. A jaqueta não resolvia nada. Parecia estar de regata e nada mais, o frio o castigava. Mas não se importava com a temperatura. Em sua mente, voltou para o banho que havia tomado depois do pesadelo na floresta com Kroner, quando sentiu a presença obscura de algo envolvendo-o, falando com ele e acariciando-o, quando sentiu o maior de todos os seus medos. Não era daquele mundo. Nunca tinha sido.
Então ouviu a voz de Reilly: É como se tivesse caído do céu.
Deus, ele estava enlouquecendo. Só podia ser. Pois estava considerando, de fato, que Jim Heron não existia. Será que existia?
Mais ou menos dez minutos depois, saíram da estrada e seguiram o caminho em direção ao bairro de Reilly. Foi um alívio observar que tudo continuava bem e seguia normalmente: as casas iluminadas, TVs ligadas dentro delas, carros passando devagar e lojas nas esquinas com propagandas da loteria. Tudo poderia ser fácil e concretamente explicado. E quem poderia imaginar que Veck invejava aquilo?
Quando chegaram à casa de Reilly, estacionou atrás dela e saltou da moto enquanto ela entrava na garagem, as luzes vermelhas dos freios brilharam e desapareceram assim que ela desligou o motor.
– Deveria usar um capacete – ela disse ao sair, ir até o porta-malas e pegar as botas enlameadas.
Obviamente, depois disso, acendeu um interruptor, levou as botas até a mangueira do jardim que estava num canto na frente da garagem e lavou a sujeira. Quando olhou para ele outra vez, corou um pouco.
– Do que você está rindo?
– Tinha a sensação de que você faria isso.
Ela riu e voltou a se concentrar em seu trabalho de limpeza.
– Sou tão previsível assim?
Achou que a palavra supersexy também a definiria muito bem. Cara, mesmo uma tarefa trivial valia muito a pena observar.
– Você é perfeita – murmurou.
– Não sou, não, pode confiar em mim – desligando a água, balançou as botas, secou-as com uma flanela e colocou-as de volta no porta-malas.
Juntos, entraram na sua cozinha de galos e mais luzes foram acesas. A primeira coisa que Veck olhou? A mesa. A excitação foi instantânea. Assim como o replay mental da noite de dois dias atrás, quando fez muito mais que beijá-la ali. Aquela sensação, no entanto, não durou muito.
Pela porta de entrada do escritório, viu que ela tinha reorganizado os móveis: a poltrona tinha sido puxada para um canto, posicionada num ângulo mais aberto e havia uma mesa pequena ao lado dela. Deduzindo, imaginou que, se alguém sentasse ali, poderia observar tanto a porta da frente quanto a dos fundos de costas para uma parede sólida.
– Quer tentar uma pizza outra vez? – ela perguntou perto do telefone.
Virando a cabeça em direção a ela, disse um tanto rude: – Por que não me disse?
– O quê?
– Que andou sendo observada também.
Jim não esperou os restos mortais de Sissy serem retirados da pedreira e levados em direção à cidade. Em vez disso, separou-se de Veck, deixando Adrian com o cara e seguiu em direção à casa da família com um detetive baixinho de aparência séria que murmurava algumas coisas em espanhol.
Ele havia dito “Madre de Dios” várias vezes e feito o sinal da cruz tantas outras que já parecia ter um tique nervoso na mão.
De la Cruz não percebeu que tinha um passageiro em seu carro: Jim deu uma de copiloto no caminho de volta para Caldwell. Sim, claro, poderia sobrevoar pela noite, mas aquilo lhe daria tempo para se recompor.
Além disso, a introdução ao espanhol era instrutiva.
Vinte minutos depois de terem deixado o local, o detetive parou em frente à casa dos Barten, desligou o motor e saiu do carro. Ao ajustar as calças, o rosto era sombrio, mas, também, com as notícias que tinha... não era hora de sair exibindo sorrisos.
Na calçada, Jim ficou lado a lado com o homem, sem qualquer desejo de invadir a casa da mãe de Sissy, nem sequer por um momento, mesmo que ela nunca soubesse que Jim esteve ali.
Na porta, De la Cruz ergueu uma das mãos e colocou-a debaixo da gravata, sobre o peito. Havia uma cruz ali. Tinha que ser, especialmente porque ele começou a murmurar algo, como se estivesse rezando...
De repente, o detetive olhou em volta.
E, mesmo que De la Cruz não pudesse enxergá-lo, Jim encontrou aqueles olhos escuros tristes e cansados.
– Você consegue fazer isso. É um bom homem e pode fazer isso. Não está sozinho – Jim falou.
De la Cruz olhou para a porta outra vez e assentiu com ar seguro, como se tivesse ouvido as palavras. Então, tocou a campainha.
A senhora Barten abriu logo depois, como se estivesse esperando.
– Detetive De la Cruz.
– Posso entrar, senhora?
– Sim. Por favor.
Antes de entrar na casa, o detetive deixou os sapatos enlameados sobre o tapete de boas-vindas, e, quando a mulher observou-o, uma de suas mãos subiu até a garganta.
– Você a encontrou.
– Sim, senhora. Encontramos. Tem mais alguém que gostaria que estivesse com a senhora enquanto falo?
– Meu marido está viajando... mas está a caminho de casa. Liguei para ele logo depois que desliguei o telefone com o senhor.
– Vamos conversar lá dentro, senhora.
Ela estremeceu como se tivesse esquecido que estavam em pé na porta.
– Claro.
Jim entrou com o cara e, em seguida, estava mais uma vez na sala de estar, com a senhora Barten sentada na mesma poltrona florida do outro dia. De la Cruz ficou com o sofá e Jim começou a passear pela sala, sua raiva por Devina tornava impossível o ato de permanecer sentado.
– Diga – disse a senhora Barten de repente.
O detetive inclinou-se para frente e manteve os olhos fixos no rosto pálido e tenso.
– Nós a encontramos na pedreira.
Os olhos da mãe de Sissy fecharam-se com força e permaneceram assim. Então, a respiração saiu lentamente, até não restar ar algum em seus pulmões.
Aquilo foi o fim da esperança, Jim pensou. Talvez ela nem soubesse que ainda tinha alguma, mas lá estava, saindo de seu peito oprimido.
– Ela... foi... Ela sofreu...?
De la Cruz falou lentamente e com cuidado.
– Não temos certeza se ela faz parte dos assassinatos mais recentes.
Os olhos da senhora Barten abriram-se outra vez, seu corpo ficou rígido.
– O quê...? Então quem? Por quê?
– Ainda não tenho as respostas, senhora. Mas tem minha palavra: não vou parar até descobrir tudo e capturar o bastardo.
Jim não aguentava mais. Aproximou-se da mãe de Sissy e colocou sua mão invisível sobre o ombro dela. Deus... a dor que havia ali... podia sentir claramente, como se fosse sua própria dor, e, desejando aliviá-la da carga, puxou a emoção para si e conteve-a até seus joelhos dobrarem-se e começar a sentir tonturas.
De repente, como se estivesse fortalecida, a mulher endireitou os ombros e ergueu o queixo. Em voz baixa e forte, disse: – Como ela morreu?
– Senhora, precisamos que o médico legista nos diga isso. Ele está com ela agora e vai trabalhar a noite inteira para cuidar dela. Está em boas mãos e, depois que eu sair daqui, vou direto para lá. Não vou deixá-la, senhora. Não até que tenham terminado todos os exames. Tem minha palavra.
– Obrigada – a senhora Barten respirou fundo. – Como vou saber o que está acontecendo?
De la Cruz pegou um cartão e escreveu alguma coisa nele.
– Este é o número do meu celular. Pode me ligar a qualquer hora, dia ou noite. Meu telefone está sempre ligado e sempre comigo. E, assim que o médico terminar, a senhora será a primeira pessoa para quem vou ligar.
A senhora Barten assentiu e, em seguida, mudou seu foco. Os olhos alcançaram um meio-termo infinito entre ela e o detetive.
De qual parte da vida de Sissy ela estaria se lembrando? – Jim se perguntou. O nascimento... os aniversários... os feriados de Natal ou de Páscoa? Seria o Halloween ou o Dia da Independência? Ou nenhum feriado em particular, apenas alguma lembrança que veio de repente de um momento doce entre elas? Ou talvez qualquer expressão de bondade, empatia ou humor por parte de Sissy para com alguma outra pessoa...
Jim queria ver o que ela via, mesmo que não fosse bom ou nada demais. Mas não se infiltraria nela. O que havia acontecido com a filha já era suficiente...
A vibração que sentiu no peito não era o seu coração, era o telefone. Pegando o celular, leu a mensagem de Adrian: “Tentando entrar em contato e nada. Preciso encontrar você agora”.
Jim não queria partir, mas estava fora da casa num segundo. Dirigindo-se para o leste, concentrou-se em Adrian...
E ele apareceu em meio a uma luta no gramado dos fundos da casa da parceira de Veck.
Que porra...?
Parecia que os subordinados de Devina surgiram fervilhando na noite, seus corpos esfumaçados circulavam ao redor de Adrian como abutres sobre um cadáver. Mas ao menos seu amigo não estava à beira da morte... E, considerando a posição de luta que seu corpo forte tinha assumido, não estava nem perto disso.
Jim posicionou-se para a luta imediatamente e não esperou o sinal do juiz para começar. Entrou com tudo, lançando-se contra o inimigo mais próximo, enfrentando-o com força. Quando o bastardo gritou, o som estridente mudou tudo – numa fração de segundo, as coisas ficaram selvagens.
Segurando o filho da mãe, Jim fechou o punho e destruiu a coisa com um golpe na “cabeça”. Em seguida, conseguiu tirar vantagem do segundo de paralisia para olhar ao redor e lançar um escudo visual e auditivo em torno daquele show de horrores. Era um bairro de família, não um campo de guerra. E toda aquela luta mano a mano acontecia a alguns metros de distância de três outras casas. Todas cheias de linhas telefônicas aptas a chamar a polícia. Não precisavam nem um pouco que os caras do Departamento de Polícia de Caldwell aparecessem.
Sacando sua adaga de cristal, feriu o demônio que detinha e, então, começou a esfaquear tudo o que aparecia pela frente, cortando e dilacerando, lançando sempre a ponta afiada da arma que Eddie havia lhe dado e ensinado a usar.
Tudo o que sentia resultou em violência, toda dor e fúria foram desencadeadas, a ponto de não perceber que o sangue ácido do inimigo estava espirrando em seu rosto. E não se importava que aquela porcaria estivesse corroendo sua jaqueta de couro e ferindo sua pele. Na verdade, não conseguia sentir a terra embaixo de seus pés ao se lançar de demônio a demônio. Estava totalmente entregue e invisível ao mesmo tempo.
Em sua fúria, não conseguiam tocá-lo: eram garotos fazendo serviço de homem e estavam sendo devastados. Depois que Jim esfaqueou outra caixa torácica preta e o jato ácido atingiu seu maxilar e sua garganta, ele desvencilhou-se do corpo e já estava pronto para o próximo...
O golpe em suas costas foi um verdadeiro bote, o tipo de coisa que faz ver estrelas e ouvir pássaros cantar. Mas como soldado bem treinado que era, Jim aproveitou o ímpeto, deixou-se cair ao chão e apoiou-se sobre os ombros no último minuto para evitar mais prejuízos. Quando terminou de rolar e olhou para cima, o demônio que fora atrás dele estava pronto para a segunda rodada.
Certo, muito bem, Jim pensou.
O bastardo tinha pegado uma pá e, obviamente, usou a coisa como raquete de tênis, balançando a ponta de metal e golpeando com ela. E era difícil dizer, mas parecia que saía um riso da sombra tridimensional.
Com certeza, o imbecil filho da puta pensou que estava no comando, e Jim ficou mais que satisfeito em ensinar ao lacaio de Devina uma lição sobre responsabilidades. Mantendo-se abaixado e fingindo estar ferido, esperou a coisa se aproximar – e foi o que aconteceu, como se manipulasse aqueles braços e pernas oleosas com cordas: movendo-se como um robô com articulações rígidas, o demônio aproximou-se equilibrando a ferramenta pesada entre as mãos. Mais perto. Mais perto.
Quando já estava ao alcance, Jim levantou o tronco, pegou o cabo com as duas mãos e puxou com força. O demônio foi lançado para frente e perdeu o equilíbrio, a gravidade tomou conta daquele corpo e o empurrou para cima de Jim... Pelo menos a coisa não estava sangrando.
As botas de Jim atingiram o osso pélvico do inimigo para frear a descida e, em seguida, ele afastou-se e chutou o peso para longe – aproveitando para pegar a pá, claro.
Quando o demônio iniciou o pequeno passeio pelo ar rarefeito, Jim levantou-se, firmou o corpo e foi o primeiro a chegar à nova localização do idiota jogado ao chão. Balançando a pá, deu um fim à questão ao atingir o peito obscuro do bastardo.
Foi bom ouvir o grito. Mas ainda mais divertido foi dar um passo para trás e ver a coisa contorcer-se em câmera lenta. Aparentemente, Jim colocou tanta força no ataque que a ferramenta penetrou no chão, quase um metro, considerando a parte do cabo que ficou exposta. O demônio ficou preso, como um inseto capturado, erguendo os olhos e rosnando.
– É? Então, venha me pegar – Jim deu-lhe um segundo para se levantar. – Não? Prefere bancar o tapete de boas-vindas? Combina com você, seu filho da mãe.
Jim chutou a cabeça com força, como se o crânio fosse uma bola de futebol, e deixou o filho da puta onde estava. Do outro lado do gramado, Adrian estava prestes a ser surpreendido por um demônio que tinha encontrado uma enxada e aproximava-se dele correndo.
– O que é isso? Noite da liquidação de ferramentas? – Jim murmurou ao empunhar sua adaga outra vez. – Atrás de você!
Adrian jogou-se na grama assim que o jardineiro do inferno se lançou. Bem a tempo: o demônio atingiu um dos próprios colegas. O problema? Todo aquele sangue espirraria em Ad.
Jim estava prestes a se jogar sobre ele quando Adrian deu um jeito no problema: deixou os dois enfrentarem-se e saiu do caminho.
Havia apenas dois lacaios em pé à esquerda, e os guerreiros dividiram a tarefa. Jim pegou o que estava todo alegrinho com uma enxada nas mãos e Adrian levantou e começou a andar em círculos ao redor do outro, a adaga de cristal em punho.
Recusando-se a esperar por um golpe, Jim avançou e agarrou a enxada. Ergueu o objeto e lançou-o com força na testa do demônio. Resultado óbvio: Jim continuou a aniquilar a coisa esfaqueando-o com a adaga.
Quando virou-se, observou Ad terminando de lidar com o outro filho da mãe ao abrir um buraco em seus intestinos e, em seguida, cravar a lâmina em sua cabeça. Depois disso, não havia mais nada além de respirações ofegantes, couro fumegante e ferramentas de jardim jogadas ao chão.
Jim olhou ao redor, imaginando onde diabos estava... ah, sim, Reilly tinha um vizinho que possuía aquelas coisas para manutenção do quintal e o compartimento onde guardava tudo foi arrombado. Pena que o cortador de grama continuava no mesmo lugar... teria sido divertido. Poderia dar um novo significado para o conceito de cabelo raspado.
– Você está bem? – perguntou a Ad.
O parceiro, deitado na grama, respondeu.
– Sim.
Os dois tinham arranhões que sangravam, mas, ao menos, Jim estava sentindo-se melhor. A luta tinha lubrificado suas engrenagens e sentia-se mais ele mesmo. Mais calmo. Com maior capacidade de concentração.
Bem a tempo – pensou ao aproximar-se e ajoelhar-se ao lado do bastardo pregado ao chão.
– Você já tentou tirar informações de um deles? – disse enquanto examinava a coisa. Movia-se lentamente, era evidente que ainda estava vivo. Seja lá o que “vivo” significasse.
– Sim. Eles não têm nada a dizer. Não conseguem falar.
– Deve ser por isso que ela gosta deles.
Ad aproximou-se e enxugou o rosto com a ponta da camiseta. A mancha vermelha deixada no tecido poderia servir para aqueles testes psicológicos. Para Jim? Parecia a abertura de uma caverna. Uma caverna escura e profunda que escondia o corpo de uma inocente contra uma de suas paredes.
Sim, essa interpretação não era surpreendente.
Ao ouvir o som de um gemido, Jim pensou: Maldito demônio. Ela era esperta. Se seus subordinados eram incapazes de falar sobre ela por serem mudos, idiotas ou resistentes à dor, era uma boa estratégia para...
– Foi divertido assistir a isto.
Ao som da voz de Devina, Jim e Ad entreolharam-se. Concordaram em silêncio que a aparição dela não era nada inesperada. E, quando levantaram-se e viraram-se para ela, Jim colocou-se na frente do outro anjo. Não perderia outro para aquela vadia. Não naquela noite.
– Se escondendo de mim, Jim?
Os olhos do demônio ergueram-se e fixaram-se nele: eram tão intensos, pareciam enlouquecidos.
Mas que bobagem, ele pensou. Não tinha percebido que ela não conseguia encontrá-lo.
– O radar não está funcionando, Devina? – então foi por isso que Ad tinha sido atacado. Queria atrair Jim.
O demônio andou delicadamente sobre a grama. Usava um sapato com salto tão alto que Jim perguntou-se como ela conseguia respirar com o ar rarefeito ali de cima. Já a saia era do tamanho de um guardanapo e de uma cor tão chamativa quanto os cassinos de Las Vegas.
Soava ridículo, parecia sexy... Desde que não soubesse de fato o que era aquele ser. E Jim nunca iria se esquecer disso.
Estendendo uma das mãos para trás, colocou-a sobre o antebraço de Ad. O outro anjo estava rígido como um bloco de concreto, totalmente imóvel. E continuaria assim: não estava pensando direito ainda para enfrentar o inimigo. Nem Jim, para ser sincero. Mas ela não saberia disso.
– Alguma coisa em mente, Devina?
Ela parou ao aproximar-se de seu soldado morto-vivo que tinha sido reduzido a pedacinhos. Olhando para a coisa, ergueu uma das mãos e, com a urgência de alguém escolhendo um jornal, convocou o ser com a palma da mão, tirando-o do solo na forma de um fluxo e absorvendo a sujeira para dentro de si. Quando terminou, a pá continuava no mesmo lugar, enterrada no chão com o cabo para cima.
– Como está Eddie? – ela sorriu. – Cheirando a rosas?
Jim quis soltar um palavrão. É claro que ela abordaria esse assunto. Era a única coisa certa que faria Adrian enlouquecer. Maldição... E ele já estava pensando que a noite não poderia ficar pior...
CAPÍTULO 31
Quando Reilly encontrou os olhos de seu parceiro, pensou que os dois perderiam outra pizza: parado do outro lado da cozinha, Veck parecia muito chateado e, apesar do comportamento de homem das cavernas incomodá-la, ela sabia que aquilo tinha fundamento.
– Por que não me contou? – Veck perguntou de novo. – Ou, droga, se não para mim, para outra pessoa?
– Quem disse que eu estava sendo vigiada?
– Por que outra razão colocaria os móveis daquele jeito?
Viu? É por isso que não é tão interessante namorar um detetive... Cruzando os braços, Reilly recostou-se no balcão.
– Na verdade, eu não vi nada – encolheu os ombros. – Se tivesse alguma coisa para contar, eu diria. Mas apenas fiquei sentada naquela cadeira a noite toda, imaginando se eu não estava paranoica. Não aconteceu nada.
– Devia ter me ligado – com isso, ela ergueu uma das sobrancelhas e Veck amaldiçoou como se lembrasse de como as coisas tinham ficado entre eles. – Tudo bem, tudo bem... Mas, caramba, não quero você sozinha horas e horas esperando que alguém invada sua casa.
– Fiquei bem. Estou bem. E garanto que, se alguém tivesse entrado em casa, eu teria resolvido a situação.
Murmurando algo meio irritado, Veck aproximou-se e sentou-se à mesa da cozinha. Apoiou os braços sobre os cotovelos e coçou a cabeça.
– Isso está fora de controle.
Qual parte? A ideia de serem perseguidos? A situação com Kroner? O corpo que tinham encontrado? O sexo? A coisa toda envolvendo a palavra “amor”? Tantas opções.
Ao sentar-se na cadeira de frente para ele, pensou em seus pais, sentados juntos à mesa naquela bela casa. Podia apostar que nunca tiveram que olhar um para o outro naquelas circunstâncias...
Quando ouviram um grito vindo dos fundos da casa, ela e Veck estavam em pé antes que o som estridente terminasse. Armas surgiram ao se posicionarem um de cada lado da porta de correr que se abria para o quintal dos fundos. Reilly alcançou o interruptor e apagou as luzes, mergulhando a cozinha na escuridão, em seguida, acionou as luzes de segurança.
Seus olhos observaram o quintal bem iluminado. Não havia muita coisa ali. Era mais como um campo de futebol, e a única visão que tinha era dos pontos que ligavam as outras casas da vizinhança. Nada lá fora. Não que conseguisse enxergar. Mas seus instintos diziam outra coisa. E lembrou-se de todas aquelas pegadas que “Jim Heron” não tinha deixado para trás.
– Acho que estou ficando louca – ela murmurou.
– Engraçado, estou preocupado de que não estejamos.
Quando nada mais aconteceu, esperaram. E esperaram. E esperaram mais um pouco. Finalmente, os dois afastaram-se da porta e recolocaram suas armas no coldre.
– Precisamos de comida. E de um banho – Reilly murmurou. – E de uma avaliação psicológica.
Quando não houve resposta, olhou para seu parceiro. Veck andava pelo cômodo, como se estivesse prestes a levitar. Era evidente que não responderia coisa alguma. Então, entrou na frente dele, obrigando-o a parar ou passar por cima dela. Ele parou.
– Comida. Banho – ela ordenou. – Nessa ordem. Podemos pular a questão do psicólogo por enquanto.
Ele sorriu e acariciou sua face.
– É o seu jeito de me convidar para um encontro?
– Acho que sim, detetive.
– Então, que tal começarmos com um banho? – disse com uma voz grave que a fez pensar sobre o valor da limpeza.
A limpeza meticulosa, devagar, cheia de espuma.
Reilly teve que limpar a garganta antes de falar.
– Por que tenho a impressão de que vamos ficar lá em cima por um tempo?
– Não diga isso – ele aproximou-se mais e colocou as mãos sobre os quadris dela. – Acha que estamos tão sujos assim?
– Que tal imundos? – disse, concentrando-se nos lábios de Veck. – Já passamos do sujo e entramos no território do imundo.
Veck ronronou baixinho enquanto uma de suas mãos percorria as costas de Reilly. A outra desceu mais um pouco e agarrou-a, puxando-a contra ele, de tal forma que o pênis rígido pressionou os quadris dela com força. Ao fazer movimentos sinuosos com a cintura, acariciou com o órgão que já deixava-a sem ar.
Em resposta, Reilly elevou-se na ponta dos pés, arqueou-se sobre ele e colocou os braços em volta do pescoço do homem.
– Veck...
– Sim – ele rosnou.
Inclinando a cabeça para o lado, ela colocou a boca a menos de um centímetro da dele. Com uma voz ofegante e muito sexy, murmurou: – O que você quer na sua pizza...?
Então, ela colocou o lábio inferior entre os dentes e mordeu de leve. Veck gemeu e sentiu o corpo ficar muito rígido.
– Adivinhe.
– Serei a sobremesa...
Não se provocava um homem como Veck. Ele apoiou-a contra a parede, ergueu as mãos dela e segurou-as contra a parede de galos. Pressionando o seu corpo contra o dela para que o sentisse nas coxas e nos seios, assumiu um ritmo alternando movimentos até ela começar a ficar ofegante.
– É melhor fazer o pedido logo – disse, lambendo a garganta dela. – Ou não vou deixar ir até lá e pegar o telefone.
Veck estendeu o braço, aproximando-a do telefone. Mas não parou com o movimento erótico, nem com a língua. Em vez disso, empurrou uma das pernas entre as dela para aumentar o atrito... Ou fazer coisa melhor, dependendo do ponto de vista.
Deus, ela não tinha certeza se conseguiria usar o telefone. Ou lembrar-se do número da pizzaria para a qual ligava pelo menos uma vez por semana. De alguma maneira, pegou o fone e, com um insight, apertou o rediscar – pois acionara o último número há duas noites. Estava chamando. Veck beijava o caminho até seus ombros, o que dificultava um pouco a fala.
Conseguiu pronunciar o nome dela, o endereço e pedir uma pizza de calabresa e salame, grande. Em seguida, começou a negar as ofertas.
– Não... Não, só uma... Não... Não quero nada doce...
Começou a enterrar os dedos no cabelo espesso sobre a nuca de Veck e a arquear-se contra ele.
– Não... Deus, não... – certo, soou um pouco pornográfico, especialmente quando recusou um litro de Coca-Cola pela metade do preço. Desesperada, resmungou: – Só a pizza!
Na verdade queria gritar: “Pelo amor de Deus, mandem logo uma pizza!”
– O-o-obrigada.
O telefone foi colocado no gancho de forma um tanto precária e, em seguida, ficaram velozes e furiosos.
– Quanto tempo? – Veck rosnou contra a garganta dela.
– Vinte... minutos... – agarrou-se ao corpo dele, segurando-o pelos quadris. – Banheiro.
Veck pegou-a pelas coxas e levantou-a do chão. Segurando os ombros dele e envolvendo as pernas ao redor de seu corpo, Reilly firmou-se enquanto ele avançava para o banheiro do corredor.
Com os dois ali dentro, o pequeno cômodo encolheu ao ponto de parecer uma caixa de fósforos. Ao menos a pia tinha um balcão para colocar a mulher em cima. Reilly chutou a porta para fechá-la e começou a abrir a calça ao mesmo tempo em que ele atacou os botões da camisa. Muitas mãos para pouco espaço.
– Deixa – ela disse. Com isso, afastou-o e resolveu o problema em questão de segundos, arrancando a blusa por cima da cabeça e abrindo os zíperes a toda velocidade.
Veck pegou a carteira. E franziu a testa em seguida.
– É a última.
Ela parou no meio do processo de tirar o sutiã.
– Não tenho nada em casa.
E aquela seria apenas uma rapidinha antes da atração principal: Reilly completamente nua sobre a cama e os corpos envolvidos um em cima do outro.
Maldição... Nunca viu qualquer virtude em ser promíscua, mas, se quisesse fazer valer a pena todas as coisas que comprara na Victoria’s Secret, deveria ter algumas camisinhas na casa. Já ele? Foi até cavalheiro em não ter reabastecido o estoque, talvez por esperar que acontecesse algo entre eles ou por ter a intenção de ficar com outra pessoa. Pelo amor de Deus, pensou.
– Merda – disse Reilly.
Veck estava ofegante, o peito movimentava-se com força, seu corpo estava mais que pronto para o que tinham começado: seu pau entendeu que seria libertado e já estava saindo dentre as calças, lutando contra a cueca.
Com um palavrão, colocou a carteira de volta no bolso. E também guardou o pênis, contendo tudo e voltando a fechar as roupas com esforço, pois a dimensão do órgão estava enorme.
– Oh, não – ela disse. – Eu...
Ele voltou para os lábios de Reilly, interrompendo-a ao possuir sua boca com a língua. Com uma pressão sutil, inclinou-a para frente contra a parede, até ficar presa a um canto, o corpo quase estendido. Foi quando começou a tocá-la... Empurrou o sutiã para baixo e debruçou-se sobre os mamilos, brincando com eles até ela arquejar.
– Veck...
– Shhh. Deixe-me fazer assim com você.
Inclinou-se ainda mais para chegar aos seios, sugando-os enquanto as mãos iam a outros lugares: passeavam pelas coxas, acariciavam.
Fez um movimento preguiçoso para frente, erguendo-a, mas ainda não havia chegado ao ponto mais doce e excitado do corpo de Reilly. Enquanto isso, a boca fazia um milagre nos mamilos, provocando-os com movimentos rápidos e sugando-os outra vez logo em seguida e, Deus, a visão daqueles cabelos negros sobre sua pele nua era demais.
Passando as mãos pelo cabelo espesso, abriu ainda mais as pernas contra os quadris dele.
– Veck... por favor...
– Diga o que você quer – pronunciou contra os seios.
– Me toque.
Inclinou a cabeça para o lado e olhou para ela.
– Pensei em fazer isso mesmo.
Então, a língua rosa estendeu-se e fez um círculo quente e úmido sobre um dos mamilos. Gemendo, ela tentou arquear o corpo, mas não havia espaço.
– Aonde quer que eu vá, Reilly? – perguntou. Quando pegou a mão dele, pronta para guiá-lo num passeio, ele afastou os braços da mulher. – Não. Você tem que dizer.
– Veck...
– Bonito nome – colocou os lábios próximos aos ouvidos de Reilly. – Melhor ainda quando você o pronuncia parecendo que está prestes a gozar. Mas acho que não quer que façamos isso separados.
– Não seria difícil – ela gemeu ao imaginar aquela mão enorme segurando o pênis.
– Desculpe, meu objetivo é você. Onde, Reilly?
Dane-se. Os dois poderiam fazer aquele jogo de provocação. Ela deu um impulso sutil, e ele, gentilmente, recuou um pouco, sem dúvida pronto para ouvir todos os tipos de coisas divertidas. Em vez disso, ela baixou os olhos e começou a observá-lo... E colocou a própria mão entre as pernas dela.
– Estou pensando em você – ela disse, acariciando a si mesma. Em seguida, mordeu os lábios e movimentou os quadris ao mesmo tempo, não por querer fazer algum show, mas por ser assim que o sentia. – Me tocando... estou sentido você... me tocando...
Houve a impressão de que os joelhos dele curvaram-se. Ou isso, ou ela abalou o centro de gravidade de Veck... De qualquer maneira, ele afundou-se na parede e teve que estender uma das mãos para se segurar.
Tocando seu sexo, ficou assistindo Veck observá-la... E foi bom perceber que aquele ato solo não duraria muito. Os olhos possessos de Veck estavam fixos no que Reilly fazia, e o corpo dela tremia como se ele fosse assumir o controle a qualquer segundo.
– Quer ajudar? – ela balbuciou.
Veck estava sobre ela num piscar de olhos, auxiliando os movimentos até que ela saiu totalmente do caminho, pois era mais excitante para ele acariciá-la.
Com dedos ágeis, as calças de Reilly abriram-se e, em seguida, ele puxou-as pelas coxas, seus esforços receberam ajuda quando ela apoiou um dos pés contra o assento do vaso sanitário e ergueu-se. Com as calças abaixadas ao redor dos joelhos, teve acesso à calcinha e...
– Oh, Deus! – ela gritou ao ser tocada.
Havia algo muito delicioso na combinação entre seu órgão escorregadio e as carícias de Veck. E isso antes mesmo de ultrapassar a barreira de tecido e entrar em contato com a pele sobre seu núcleo.
Firmando-se em seus ombros, ela puxou-o contra sua boca enquanto ele concentrava-se no sexo, excitando-a cada vez mais, e mais e...
Reilly gozou, a força do orgasmo fez com que suas pernas pressionassem aquela mão talentosa, o corpo começou a se mover em impulsos ritmados. No entanto, ele não parou o que estava fazendo: apenas ajudou a continuar com as sensações até Reilly simplesmente ofegar de felicidade.
Quando Veck afastou-se um pouco e olhou para ela, sentiu que poderia não ter gozado, mas com certeza estava muito satisfeito.
– Gostou do aperitivo? – ele murmurou, a expressão de pálpebras baixas sugeria que sabia o quanto era bom.
Quando Reilly conseguiu se recuperar o suficiente para se mover, estendeu uma das mãos e tocou o pau duro dele através da braguilha fechada.
– Vai ser um prazer retribuir.
CAPÍTULO 32
Parado na frente de Devina, no quintal da casa da oficial de Assuntos Internos, Adrian, pela primeira vez em sua vida imortal e pouco natural, não reagia a uma provocação.
Como está Eddie? Cheirando a rosas?
Quando ele olhou por cima do ombro de Jim para aquela porção do mal em forma de uma mulher glamorosa de tão falsa beleza, as palavras do demônio começaram a girar ao redor de seu crânio como se ela tivesse colocado um de seus subordinados dentro da cabeça dele para que o filho da puta batesse em seu cérebro com uma marreta.
O velho Adrian teria pulado por cima de Jim, ou de qualquer outra coisa em seu caminho, e envolveria o pescoço dela com as mãos até não apenas sufocar a vadia, mas até conseguir arrancar a cabeça do tronco.
No entanto, era exatamente isso o que ela esperava. O que ela apostava que aconteceria. A razão pela qual tinha feito o comentário. E Adrian manteve o controle ao se dar conta de que sua instabilidade foi o que motivou o assassinato do seu melhor amigo. Jim estava certo: o nome do jogo era desestabilização, e o demônio fez o que fez pois tinha certeza de que isso iria ajudá-la na guerra.
Então, sim, por mais que isso matasse-o por dentro, por mais que o fizesse ranger os dentes e fechar os punhos, simplesmente ficou onde estava. Contudo, ele não poderia responder. Não confiava em si mesmo para isso.
– Eddie está são e salvo – disse Jim. – E estamos cuidando dele.
– Empregos novos como agentes funerários? Que pitoresco – Devina abriu um largo sorriso, como se estivesse profunda e verdadeiramente feliz. – Mas não sente falta dele, Adrian? Não se preocupe em responder, posso senti-lo daqui. Sabe? Se precisar de um ombro para chorar, estou sempre disponível.
Quando Ad estava prestes a dizer que Devina deveria enfiar a simpatia artificial no fundo do seu rabo, Jim intensificou o aperto sobre o braço dele... ao ponto de o cara sentir a circulação ser interrompida. O salvador estava certo: se reagisse como Devina esperava, Eddie teria morrido por nada. Depois da perda em si, isso seria a pior coisa que poderia acontecer. Então, ele colocou a outra mão sobre Jim, de modo que os dois permanecessem no lugar.
Devina pareceu perplexa por um momento. Mas não muito: – Paralisado pela dor, Adrian?
Uma eternidade se passou.
E, em dado momento, em meio àqueles segundos infinitos entre os insultos e a falta de reação, Adrian começou a congelar: suas emoções pararam de funcionar, como se queimassem – e, como uma estrela entrando em colapso, sentiu uma transformação que afastou-o do alcance de Devina.
Seria melhor tê-lo deixado sozinho em sua raiva. Mas agora que ela o havia impulsionado àquela clareza ártica, ele conseguiria, pela primeira vez, responder apenas usando a razão, e não o coração.
Soltou-se de Jim e afastou-se do salvador. Quando se separaram, Jim olhou ao redor como se estivesse prestes a interceder, mas Adrian ficou parado ao lado do cara e encarou o inimigo.
– Quer alguma coisa, Devina? – Adrian disse numa voz obscura. – Ou está apenas socializando um pouco?
Outra rodada de silêncio. Porém, desta vez, Devina começou a brincar com seus longos cabelos, com a saia curta, com as pulseiras de ouro. E para Ad não havia satisfação alguma em interromper a diversão do demônio. Apenas um silêncio mortal no peito, um poder ressonante que Adrian nunca havia sentido antes, mesmo com todos os instintos guerreiros ferozes que tinha. Era como se tivesse renascido. E poderia ser mandado para o inferno se voltasse a ser como era. Literalmente.
Quando Jim olhou para o outro anjo, pensou: Certo, quem é você e o que fez com Adrian Vogel?
O homem ao lado dele não chegava nem perto de quem conheceu e com quem trabalhou nas últimas duas rodadas na guerra. Era um robô parecido com Ad: absolutamente idêntico, mas desligado do original. Não havia emoção em seu rosto, em seu corpo, nas suas vibrações. Nada.
Algo dizia a Jim que a mudança era permanente, como se a placa mãe do cara tivesse explodido e sido substituída por outra. A paixão havia partido. O calor havia partido. No lugar? Uma frieza calculada – o que tornava-o intocável.
Era uma faca de dois gumes, não? Mas, de qualquer maneira, haveria tempo para se preocupar com as consequências mais tarde. Jim virou-se para Devina outra vez.
– Então, o que vai ser? Social? Ou negócios?
Devina deslizou uma das mãos pelo cabelo, as ondas movimentaram-se com leveza e brilho, como se estivesse num comercial de xampu.
– Estou muito ocupada.
– Então, por que está aqui conversando? – Jim pegou o maço de cigarros e tirou um. – Se é uma garotinha tão ocupada?
– Oh, não faz ideia de como estou trabalhando – seu sorriso sórdido parecia ter saído de um filme de terror, forçado, sem qualquer movimento natural. – Estou tentando fazer algumas mudanças no jogo. E não vejo a hora de esta rodada terminar.
– Porque você gosta do sabor da derrota? – tirou o isqueiro e acendeu o cigarro. – Que paladar estranho você tem, querida.
– Gosto do seu sabor – correu uma das mãos pelo corpo. – E vou me satisfazer em breve.
– Duvido.
– Se esqueceu do nosso acordo?
– Oh, não, eu me lembro.
– Eu não menti.
– Deve estar tão orgulhosa.
Quando Jim não disse mais nada, ela brincou com o cabelo mais um pouco... e isso foi tudo. Ficou ali parada na frente dele, cheia de gracinhas, sem ir a lugar algum. Caramba, talvez pensasse que estava sendo admirada. Talvez fosse uma loira burra, mesmo não tendo cabelo de verdade. Talvez estivesse...
Puta merda, ela estava vivendo um momento “namoradinha”, não? Emburrada por não encontrá-lo antes. Pois era esse o “motivo”.
Foda. Aquilo tudo era foda demais.
Era mesmo um namoro infernal.
E, mesmo sem saber por que não conseguiu encontrá-lo, Devina concluiu que, às vezes, a sorte simplesmente estava do seu lado.
De repente, o olhar dela voltou-se para a casa. Na janela dos fundos, na cozinha, Veck e Reilly apareceram. Pareciam desarrumados e estava claro que tinham acabado de dar uns amassos: estavam com aquele brilho de satisfação e felicidade, ao ponto de Jim achar que, se as luzes fossem apagadas, continuariam brilhando no escuro.
– Eu odeio eles – Devina disse, cruzando os braços sobre os seios.
Aposto que sim – Jim pensou. Pois havia duas pessoas apaixonadas ali.
E a inveja matava-a: seu rosto ficou tenso, os olhos iluminaram-se de ódio. Desejava ter aquilo com Jim.
Ha, ha.
– Então, precisa de alguma coisa? – ele perguntou com uma voz baixa e profunda.
Devina virou a cabeça com rapidez.
– Você precisa?
Para mantê-la ali, a resposta, claro, não poderia ser agradável. E, nossa, não era tão difícil fazer isso.
– Não de você – Jim assumiu uma expressão de tédio ao dar uma tragada no cigarro e exalar. – Nunca preciso de nada que venha de você.
A fúria no rosto de Devina animou-o. Em seguida, ela rosnou: – Tudo por causa daquela maldita Sissy.
Resposta errada, pensou. Resposta muuuito errada.
– Que Sissy?
– Não brinque comigo.
– Não estou brincando. Ao menos, não agora – deixou as pálpebras ficarem semicerradas. – Quando eu brincar com você, você saberá.
As palavras enojaram-no, mas Devina saiu do controle: corou de repente, como se estivesse se lembrando dos momentos que passaram juntos e, então, exibiu um sorriso grande e lento.
– Promete? – disse com voz rouca.
– Prometo.
Com isso, ela girou de alegria. Ótimo. Como se o estômago de Jim já não estivesse enjoado.
– Mas talvez eu seja um mentiroso – disse lentamente. – Acho que precisará esperar para ver.
– Acho que sim – os olhos examinaram o corpo de Jim de cima a baixo. – Mal posso esperar.
Francamente, aquela conversa toda fez Jim contrair-se, mas ele bloqueou a sensação. Não tinha certeza de que possuía total controle sobre o demônio. Mesmo ela estando apaixonada, essa era uma carta na manga que poderia deixar de funcionar, e Jim não sabia se a arma de sedução funcionaria para sempre. No entanto, cultivaria a qualquer custo aquela conexão pelo tempo que fosse possível.
– Bem, acho que é hora de parar por aqui, Jim – Devina deu outra pirueta. – Tenho que voltar ao trabalho, mas vejo você em breve.
– Se Veck está aqui nesta casa, por que precisa ir a outro lugar?
– Como eu disse, sou uma garota ocupada, você vai entender isso – soprou-lhe um beijo. – Até mais. E, Adrian, ligue se precisar de um ombro para chorar.
Com isso, saiu pela noite, uma névoa surgiu e desapareceu no ar. Então, se Devina não estava ali com Veck, Jim tinha que concluir que a luta era em outro lugar.
– Droga – murmurou, pronto para golpear alguma coisa.
– Não – Adrian disse. – Vamos ficar aqui. Vamos ficar com Veck.
Jim olhou para ele. O velho Adrian? Teria saído como um raio atrás dela. O novo Adrian? O calculista filho de uma puta estava superconcentrado, seus olhos frios e imparciais fixaram-se em Jim.
– Ela não vai nos enganar – Ad anunciou. – Vamos manter o foco e ficar aqui. Fumaça e espelhos não vão me influenciar.
Isso, é assim que se fala – Jim pensou, com respeito.
Naquele momento, o som de um carro estacionando em frente à casa ressoou. Aparecendo na rua com Adrian, Jim desembainhou sua adaga... Mas, em seguida, viu o pequeno sinal luminoso da pizzaria sobre o carro.
Oh, caaaaara. Pizza... e sexo. Talvez Devina tivesse razão. Difícil não invejar aquilo.
O entregador tirou o que precisava do carro e caminhou pela calçada. Veck atendeu, pagou em dinheiro e desapareceu. O carro partiu.
Nos momentos que se seguiram, Jim sentiu vontade de ir atrás de Devina... Podia sentir a presença dela em qualquer lugar da cidade... Mas não seria exatamente isso o que ela desejava? Não se podia confiar nela jamais. O novo Adrian estava certo: ficariam ali, firmes.
– Obrigado, cara – Jim disse sem tirar os olhos da porta sendo fechada e trancada na parte dianteira da casa.
– Sem problemas – foi a resposta concisa.
CAPÍTULO 33
Veck não sentiu o gosto da pizza. Para ele, a coisa poderia estar coberta de tiras de pneus e pedaços de gesso. Não conseguia parar de pensar em Reilly em cima do balcão da pia, pernas abertas, mãos acariciando a si mesma.
Sentado ao lado dela na cozinha, tinha plena certeza de que a mulher pensava mais ou menos a mesma coisa, pois comia com bastante objetividade. Porém, sem desalinho ou falta de boas maneiras... apenas de maneira limpa e rápida. Ele fazia o mesmo. Mas menos limpo.
Quando terminaram de devorar tudo, ele estendeu-se sobre a cadeira e olhou para o teto.
– Então, onde é sua banheira? – ele perguntou, tentando ser casual.
Aquilo a fez sorrir. E ele sentiu um desejo enorme de beijá-la por inteiro.
– Vou mostrar. Vai terminar este pedaço?
– Não – droga, se não fosse pelo estômago vazio resmungando, não teria se preocupado em apressar a transa para dispensar o cara da pizza. Mas Reilly precisava se alimentar.
– E você?
– Estou satisfeita.
Estou pronto para satisfazê-la de outra maneira – pensou.
Levantou-se e estendeu a mão para ela.
– Mostre o caminho.
Foi exatamente o que fez: subiu as escadas com ele e entraram num quarto que não tinha nada a ver com o local onde ele dormia. Os aposentos de Reilly tinham belas cortinas nas três janelas, uma cama cheia de travesseiros e um edredom grosso o suficiente para servir de cama elástica. Lugar perfeito para fazer amor.
– O banheiro é por ali – ela murmurou, apontando o caminho.
Veck aproximou-se, entrou na escuridão e tateou a parede para encontrar o interruptor. Quando bateu na coisa, quase caiu de joelhos com uma oração de agradecimento.
Uma banheira vintage enorme. Profunda como um lago. Tão grande quanto a cama.
E, como você pode imaginar, a torneira tinha pressão suficiente para abastecer uma mangueira de incêndio.
Quando a água quente começou a sair e encher a banheira, ele virou-se para chamar...
– Caralho... – ele sussurrou.
Reilly havia tirado as roupas e estava nua na porta.
Era o caminho mais curto para enlouquecer um homem: tudo o que viu foi uma pele linda, seios perfeitos e a linha sinuosa dos quadris que estava morrendo de vontade de agarrar.
Enquanto Veck tentava reagir sem palavrões, ou pior, sem começar a babar, ela puxou o laço do cabelo e balançou os fios avermelhados... com isso, os seios balançaram ligeiramente.
– Venha aqui – disse ele com voz rouca.
Ela aproximou-se com a cabeça erguida e o olhar baixo... Observava o pênis ereto cheio de desejo.
Perto dele, Reilly inclinou-se para beliscar sua orelha.
– A água já está bem quente?
– Entre – ele agarrou os quadris dela e apertou – e vai começar a ferver.
Curvou-se e uniu seus lábios aos dela, beijando-a. As roupas levaram... hum, um minuto e meio para serem removidas.
Então, como o cavalheiro que não era, mas que estava determinado a ser, ergueu Reilly e carregou-a para dentro da banheira com cuidado, posicionando-se de maneira que pudessem observar um ao outro. O vapor entre seus corpos tinha o aroma do perfume que sempre associou a ela, o que sugeria que a mulher fazia aquilo com frequência, talvez incluindo algum kit com cremes e sais de banho.
Mais beijos e mãos percorrendo todos os lugares do corpo junto com a água quente. Mas, quando ela tocou seu pênis ereto, Veck fez um movimento brusco e espirrou alguns litros de água no chão.
– Ai, merda... desculpe...
Reilly aproximou-se dele, empurrando-o contra a parede curva da banheira.
– Não estou preocupada com a água.
Quando fechou uma das mãos ao redor do pênis dele e começou a acariciar, Veck murmurou entre os dentes: – Não vou aguentar muito tempo se continuar assim.
– Não quero que aguente.
Ótimo, muito bom. Pois a visão dos seios lisos e flexíveis e o olhar erótico dela eram suficientes para fazê-lo gozar. Somando a carícia? Já estava ultrapassando e muuuito seus limites.
Veck começou a movimentar os quadris de modo que acompanhassem o ritmo de Reilly e deixou a cabeça cair para trás contra a borda sinuosa da banheira. O que lhe proporcionou um ótimo ponto de vista. O nível de água da banheira já havia sido recuperado, e os mamilos rosados e enrijecidos surgiam, desapareciam e voltavam outra vez...
Deixando-a brilhante. Muito brilhante. Como se ele a tivesse lambido por completo.
Foi a gota d’água. Seu maxilar ficou tenso e ele soltou um gemido alto quando seu pau explodiu contra aquela mão, o corpo arqueou-se com rigidez. Em resposta, ela exibiu um belo sorriso, digno de ser guardado na memória para sempre.
Contudo, por alguma razão... mesmo sendo algo muito desanimador... só conseguia pensar nela sentada naquela cadeira, armada, esperando alguém atacá-la. Estavam seguros ali, juntos, mas não duraria para sempre. Mais cedo ou mais tarde, teria que ir para casa, e ela ficaria ali sozinha. Deus, os dois sendo espionados? Era hora de assumir o controle da situação e manter aquela mulher com seu sorriso de tirar o fôlego em segurança. Da próxima vez que aquele Heron aparecesse, prenderia o bastardo. Mesmo se isso matasse os dois.
– Você está bem? – ela perguntou, sentindo com clareza a mudança nele.
– Ah, sim. Muito bem.
Reilly afastou a cabeça dele da borda da banheira, esticou a perna e girou a torneira com o pé. Em seguida, Veck puxou-a para perto dele, não tinha a menor intenção de desperdiçar o momento.
– Gostei muito disso – disse Veck contra a boca dela. – Mas tenho a impressão de que para você será melhor ainda.
Ficaram tempo o suficiente na água para aproveitarem o momento de tranquilidade, os beijos e as carícias. Não que ele precisasse de tempo para se recuperar. Estava pronto para outra logo depois do orgasmo que ela lhe proporcionara. Seu desejo por ela chegava a esse ponto.
– Vai me levar para sua cama? – Veck disse.
Quando ela assentiu com a cabeça, Veck estendeu-lhe uma das mãos com firmeza para ajudá-la a se levantar e, com cuidado, guiou-a ao sair da banheira alta.
– Cuidado – alertou. – Está molhado.
– Sim – Reilly olhou para baixo. – Vou pegar um pano para secar.
– Eu pago se por acaso tiver estragado o seu teto com a umidade.
Ao olhar para ele, Reilly virou-se com graciosidade.
– Teria valido muito a pena.
– Você é tão linda – ele disse suavemente, enquanto observava a luz sobre suas curvas.
Com as bochechas vermelhas, Reilly virou-se para a pilha de toalhas em cima do balcão e começou a jogá-las no chão ao redor da base da banheira. Mesmo muito satisfeito em apenas assistir ao show, Veck levantou-se da água e saiu.
O espelho sobre a pia deixou-o nervoso, mas esforçou-se para olhar o que havia ali. Nada além de seu reflexo. Nada de sombras. Nada se movendo entre suas costelas e dificultando sua respiração. Aliviado, aproximou-se dela por trás. Perto do corpo molhado e cálido, abaixou-se e beijou seu ombro.
– Não estou... acostumada com isso – tirou a última toalha da pilha, como se estivesse impaciente consigo mesma. – Eu só... não sei como lidar com isso.
– Você lida comigo muito bem – com isso, percorreu o dedo indicador sobre as costas de Reilly. – Melhor do que ninguém.
Ela riu numa explosão um pouco tensa.
– Não sei por que, mas eu duvido.
– Não duvide. Você é especial.
Colocou as mãos no pescoço dela e acariciou as costas até chegar aos quadris. Em seguida, seus lábios seguiram a mesma trilha, beijando e mordendo a partir do pescoço... e descendo cada vez mais.
Ajoelhando-se, Veck correu os lábios até as coxas, movendo-se gradualmente para se aproximar da junção sobre a qual pensava o tempo inteiro. Com essa insistência gentil, ela inclinou-se sobre o balcão, expondo seu órgão e enlouquecendo Veck...
Com um movimento súbito, ele aninhou-se ali e sugou-a.
Era doce... quente... e escorregadia tocando sua língua. E ela também estava adorando, braços apoiados sobre o mármore para manter o equilíbrio, a respiração ficou forte e ofegante.
Usando as mãos, Veck afastou os pés dela ainda mais para ganhar espaço; em seguida, percorreu as palmas das mãos de volta às coxas e segurou-a com força para deixá-la bem firme contra seu rosto: movimentos rápidos. Sucções profundas. Penetração com a língua.
Levou um tempo, pois havia muito para explorar e Reilly já não aguentava mais. Com uma das mãos, tocou o centro superior do sexo dela ao mesmo tempo em que passava a língua ali dentro. Os rápidos movimentos circulares no lugar certo levaram-na às alturas, e Veck adorou a maneira como ela se contraiu internamente e curvou-se contra ele.
Quando Reilly gozou, ele afastou-se. Através das pernas trêmulas, teve uma linda visão de seus seios que pendiam para baixo com as pontas roçando o mármore ao oscilarem para frente e para trás no ritmo da respiração.
Veck fechou os olhos com força e precisou de um minuto para se conter. Queria gozar dentro do local onde sua língua esteve.
O. Orgasmo. Da. Sua. Vida.
Enquanto Reilly esforçava-se para ficar em pé, seu corpo ainda estava a toda velocidade – porém, não havia lugar algum para ir, então, tudo o que os músculos das coxas fizeram foi permanecer no lugar. E isso não era nem a metade. Sua mente queimava, ao ponto de não saber exatamente onde estava.
Virando a cabeça, ficou face a face com o creme dental e as escovas de dente. Banheiro. Bem, parece que nunca mais olharia da mesma maneira para esses dois locais da casa... espere. Eram três. O lavabo do andar de baixo e a cozinha também.
Enquanto o mundo girava, percebeu que Veck pegou-a no colo. Boa ideia. Achava que não conseguiria andar mesmo – e foi uma ótima maneira de se secar. No quarto, ele deitou-a sobre a cama e cobriu-a com o edredom até a cintura.
– Volto já – ele disse.
Contudo, não ficou sozinha por muito tempo, pois ele agiu rápido: desceu, vasculhou um cômodo no andar de baixo que pareceu ser a cozinha e voltou rapidamente. Ao entrar, apagou as luzes. No começo, Reilly achou que seria por alguma modéstia – não precisava disso, claro, não depois do que fez sobre o balcão – mas então viu que ele colocou algo sobre a mesa de cabeceira.
A arma dele. Não, havia duas. Trouxera a dela também. Deve tê-las encontrado sobre a mesa onde se desarmaram antes do jantar. Que romântico.
A lembrança do que acontecera na noite anterior congelou-a, mas ele cuidou disso, cobrindo-a com seu corpo quente e forte.
– Não pense nisso – Veck sussurrou. – Não agora. Haverá bastante tempo para cuidarmos disso.
Tocou o rosto de Veck e desejou que estivessem em férias em algum lugar bem longe de qualquer dever que tinham com o trabalho e da situação que os unira.
– Você está certo – ela disse. – E não quero esperar mais nem um minuto.
Ele assentiu e pegou a última embalagem quadrada que guardava na carteira. Quando terminou de colocá-la, montou sobre ela outra vez e, ao abrir ainda mais as pernas da mulher, sentiu uma mudança nele, e também nela: tudo ficou mais lento.
Ao entrar nela deslizando suavemente, Reilly acolheu-o não apenas com seu sexo, mas com a alma, beijando-o profundamente.
Sem palavras, sem hesitações, sem quaisquer reservas, eles moveram-se juntos, criando uma dinâmica, intensificando tudo. Quando finalmente gozaram, foi ao mesmo tempo, e continuaram juntos mais um tempo: ela com as unhas cravadas nas costas de Veck, ele com os braços embaixo dela, apertando seu corpo.
Era a união perfeita. E, depois, mesmo Veck tendo que sair dela, deitaram no escuro o mais próximo possível um do outro, os corpos formaram uma massa tépida no centro da cama.
– Vai me deixar passar a noite aqui? – ele perguntou.
– Sim. Por favor, sim.
– Já volto. Fique embaixo das cobertas – ele disse.
Boa ideia. Porque, quando Veck saiu, o frio percorreu rapidamente todo o corpo dela. Poucos minutos depois, voltou do banheiro e juntou-se a ela.
– Estou do seu lado da cama?
– Ah... não. Eu fico aqui mesmo.
– Que bom.
Ela virou-se e ficaram face a face, cabeças sobre os travesseiros, os corpos aqueciam-se sob o peso dos cobertores. Veck roçou a ponta do dedo sobre a bochecha dela... ao longo do maxilar... sobre os lábios.
– Obrigado... – ele sussurrou.
Deus, ela mal conseguia respirar.
– Pelo quê?
Houve uma pausa.
– Pela pizza. Estava do jeito que eu gosto.
Reilly deu uma risada.
– Espertinho.
– Venha. Preciso abraçar você.
Ela sentia o mesmo. E quando não havia mais distância entre eles, a sensação era de voltar para a casa depois de um longo dia.
Com a cabeça em seu peito, sobre o coração que batia, com os braços de Veck ao redor dela e com uma das pernas jogada sobre a dele, estava confortável e segura. Enquanto ele acariciava seus cabelos com movimentos preguiçosos, ela fechou os olhos.
– Isto é simplesmente perfeito.
Com isso, Reilly pôde ouvir o sorriso na voz dele: – É como eu quero que seja para você. Quero fazer tudo perfeito para você.
Quando Reilly adormeceu, seu último pensamento foi sobre a ansiedade em fazer tudo outra vez. Não apenas o sexo. Aquela calma adorável, inestimável, era ainda melhor do que fazer amor. Apesar de não ter sido nem um pouco ruim.
CAPÍTULO 34
Na manhã seguinte, enquanto Veck ia para a delegacia, sua principal tarefa foi não ficar sorrindo o tempo todo feito um idiota. Difícil.
Estava uma hora atrasado, pois ele e Reilly ficaram envolvidos em atos que, por não terem mais camisinhas, poderiam chamar de “preliminares”. Assim, considerando que não tinham o material de látex apropriado, o que aconteceu foi melhor do que qualquer relação sexual que teve com qualquer outra pessoa antes – cinco mil vezes melhor. Também havia passado na farmácia a caminho do trabalho e comprado um estoque do que precisava.
Enquanto caminhava pelo saguão, acenava para as pessoas, mantendo uma atitude profissional, porém o adolescente dentro dele estava explodindo como se tivesse vencido vários campeonatos esportivos numa só noite.
Quando chegou ao topo da escada, rezou para não encontrar Britnae e suas ofertas de café da manhã. Aquela garota não tinha nada a ver com sua Reilly e já era hora de desfazer aquele hábito de abordá-lo o tempo todo. Mas nem precisou se preocupar. Um dos caras do turno da noite, da recepção e vigilância, estava na mesa dela. Veck não conhecia o oficial muito bem, mas ele parecia diferente. Como se tivesse assumido o papel de um galã de cinema, apesar de estar mais para Homer Simpson. Britnae? Devorava aquele homem com os olhos.
O que provava que aquilo que havia por dentro era o que contava – e quem poderia imaginar que uma garota do tipo de Britnae seria capaz de descobrir isso?
No Departamento de Homicídios, Veck sentou-se à sua mesa e ligou o computador. Em seguida, foi atingido por uma ideia romântica desconhecida e inegável: abriu sua caixa de e-mail, selecionou o endereço de Reilly nos contatos e preparou-se para enviar alguma coisa. Havia o espaço da tela em branco para preencher. Muuuito espaço. No final, digitou algumas palavras. E apertou logo enviar, antes que alguém olhasse por sobre seu ombro.
Depois, apenas ficou ali, observando a tela, perguntando-se se teria feito a coisa certa... até perceber que estava olhando para a caixa de entrada e o relatório sobre Sissy Barten do médico legista já estava pronto. Com certeza, o cara tinha virado a noite para terminar a autópsia.
Veck leu tudo e examinou cada uma das vinte ou mais fotografias do corpo. Não havia nada nelas que não tivesse visto por si mesmo na pedreira e, quando chegou às marcações ritualísticas no tronco, inclinou-se para trás e bateu o dedo indicador sobre o mouse. Se não tinha sido Kroner, quem teria sido?
– Correspondência.
Veck olhou para o funcionário com seu carrinho cheio de envelopes e caixas.
– Obrigado, cara.
Três mensagens. Duas interdepartamentais. Uma do correio americano... Era apenas uma carta que retornara de Connecticut. Endereço não encontrado? Nos últimos dez anos, evitou atualizações de cadastro junto às instituições federais.
Examinando o envelope, sentiu que, se começasse a abrir, não poderia mais voltar atrás. Seu primeiro impulso foi jogar a carta fora, mas a atração em saber o que havia lá dentro tornou o ato impossível – e pensou que odiava o poder mental que seu pai exercia sobre ele.
Ligue quando ficar assustado o suficiente.
Não desperdiçaria energia com o motivo pelo qual a voz de Heron soava em sua cabeça enquanto rasgava o embrulho.
Dentro, havia uma folha de papel com três linhas escritas com uma letra elegante e fluída que representava muito mais a imagem de riqueza que seu pai ostentava que suas origens do centro-oeste do país.
Caro Thomas, espero que esta mensagem o encontre bem. Gostaria que viesse me ver assim que possível. A prisão permitiu que eu recebesse uma última visita e escolhi você. Há coisas a serem ditas, filho. Ligue para o número abaixo. Com amor, seu pai.
– Você está bem?
Veck olhou para cima. Reilly estava em pé ao lado dele, ainda de casaco e a bolsa pendurada no ombro, seu cabelo macio fora lavado há pouco tempo.
Se não fosse pela noite anterior, teria respondido um “sim, tudo bem” e continuado a fazer suas coisas. Em vez disso, simplesmente ergueu a carta para ela.
Reilly sentou-se na cadeira enquanto lia e Veck acompanhou o movimento de seus olhos indo da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Então, voltou ao topo e releu.
– O que vai fazer? – ela perguntou quando finalmente ergueu os olhos.
– É suicídio mental ir vê-lo – Veck esfregou os olhos para apagar a impressão que aquelas palavras produziam. – Um maldito suicídio mental.
– Então, não faça isso – Reilly disse. – Não precisa ficar para o resto da sua vida com o que ele vai dizer atormentando a sua cabeça.
– Sim.
O problema era que seu pai não era o único com alguma coisa em mente. E, com certeza, seria ótimo ser adulto o suficiente para se afastar dessa situação, mas sentia que precisava olhar naqueles olhos uma última vez – ao menos para ver se havia realmente alguma coisa em comum entre eles. Afinal, durante anos, acreditava ser louco, cobrindo espelhos, observando sombras, ficando acordado durante a noite pensando se tudo não passava de paranoia ou se percebia algo de fato. Poderia ser a última chance de descobrir.
– Veck? – ela disse.
– Desculpe.
– Vai até lá?
– Não sei – era verdade. Pois ela tinha razão. – Ei, ah... o relatório de Sissy Barten chegou. Precisa dar uma olhada.
– Certo – apoiou a bolsa. Tirou o casaco. – Alguma surpresa?
– Tudo é surpreendente neste caso – Veck olhou ao redor. – E quero conversar com Kroner.
Reilly olhou Veck direto nos olhos.
– Nunca vai conseguir permissão.
– Não estava pensando em pedir.
Reilly soltou um palavrão baixinho. Não era o que planejava para um início de conversa matinal. Depois que Veck deixou sua casa, ela tomou um bom banho, depilou-se por completo e mergulhou nas suas sacolas da Victoria’s Secret.
O conjunto preto e vermelho de lingerie que vestiu lembrava-lhe cada beijo, lambida e carícia que compartilharam – e desejava mais daquilo assim que possível. Então, planejava chegar ali, agir profissionalmente e, de maneira bem discreta, apontar para o que havia sob as roupas. Em vez disso, entrou numa questão administrativa.
Olhando para seu parceiro, balançou a cabeça.
– Agir precipitadamente não é a resposta. E, se você quer continuar com isso, vai me colocar numa situação terrível.
– Sissy Barten é o que importa, não normas burocráticas. E eliminaram qualquer possível envolvimento meu no que aconteceu naquele hotel, lembra? Foi você quem fez isso – endireitou-se na cadeira. – Kroner não a matou, e você sabe disso. Serial killers não variam o estilo. Cometem alguns deslizes ou param no meio do que estão fazendo quando são interrompidos. Mas um cara que coleciona troféus de suas vítimas não começa, de repente, a arranhar símbolos na pele delas ou as deixa sangrar por completo. O que preciso descobrir é por que aquele homem sabia sobre a pedreira e por que diabos o brinco da garota está no meio das coisas encontradas na caminhonete dele. Tem alguma coisa que não estamos entendendo em tudo isso.
Reilly não podia discordar de nada. O método que ele empregava era um problema.
– Outra pessoa poderia perguntar a ele sobre essas coisas.
– Você?
– Sim.
No silêncio que se seguiu, Reilly pensou: Bom, pelo menos estivemos em sintonia durante a noite e no início da manhã. Pena que isso não durou muito tempo.
Ele discutiria com ela sobre isso, ela ficaria chateada e, então, tudo o que compartilharam antes e depois daquela pizza seria jogado pela janela...
– Certo – ele disse. Quando Reilly recuou, Veck apertou a boca: – Não precisa ficar tão surpresa. Só leve Bails com você dessa vez. Ou De la Cruz. A ideia de você ficar sozinha com aquele homem, mesmo ele numa cama de hospital e você armada, me deixa arrepiado.
Deus, ela quis envolver o rosto dele com as mãos e beijá-lo por ser tão sensível. Mas, em vez disso, sorriu e pegou o celular.
– Vou verificar se De la Cruz está disponível agora mesmo.
Ao falar com o detetive por telefone, ela estava acessando sua caixa de e-mails... e quase perdeu o foco da conversa. Veck tinha deixado algo em sua caixa de entrada, e Reilly clicou duas vezes para ver o que era ao mesmo tempo em que ouvia uma novidade sobre as condições de Kroner.
Havia apenas três palavras: Eu te amo.
Olhou para o lado com rapidez. Mas Veck estava ocupado olhando a tela do computador.
– Alô? – disse De la Cruz.
– Desculpe. O quê?
– Por que você e Bails não vão juntos?
– Tudo bem – seus olhos permaneceram no rosto de Veck, que olhava para a tela à frente dele. – Se ele estiver pronto para sair, também estou.
Algumas outras coisas foram ditas, mas Reilly não as ouviu. E, quando desligou, estava perdida. Não havia nada de eu acho antes do “eu te amo”. Nenhuma foto idiota embaixo das palavras com um gato e um cachorro com olhares carinhosos produzidos pelo computador. Não havia como interpretar errado a frase.
– Só achei que deveria saber – Veck disse baixinho.
Não tinha consciência de que estava enviando uma resposta ou de que digitava alguma coisa no teclado. Simplesmente aconteceu...
– O que está acontecendo aqui?
Reilly limpou a tela com um clique rápido. Girando a cadeira, olhou para Bails. Droga. Estava bem atrás dela, e parecia tenso.
– De la Cruz te ligou? – ela disse suavemente.
O cara olhou para as costas de Veck – de quem não conseguiu tirar qualquer informação, óbvio. Então, seus olhos voltaram-se para ela.
– Ah... sim, ele ligou. Há um segundo.
Estranho, mas ouviu a música do programa Jeopardy! em sua mente. E percebeu que ele lera o que havia naquele e-mail.
– E quando pode ir ao hospital comigo? – ela perguntou.
– Ah... tenho um suspeito chegando para um interrogatório agora. Então, pode ser depois disso?
– Sim. Estarei aqui.
Ao observá-lo, percebeu que o olhar de Bails estreitou-se muito, sem qualquer sinal de desculpas pela suposta invasão de privacidade. Não conhecia muito bem o cara, mas ficou evidente que não estava feliz. E é por isso que não se namora pessoas do trabalho. Amigos possessivos já eram chatos o suficiente quando se tinha que acompanhar o namorado em jogos de pôquer ou eventos esportivos e era preciso lidar com eles nessas ocasiões. Conviver com eles oito horas por dia, então?
Porém, assim que o período probatório de Veck terminasse, ela voltaria para o Departamento de Assuntos Internos. Relaxou um pouco com essa ideia. Muito melhor não estar tão perto...
Oh, droga. Teria de divulgar aquele relacionamento, não? E, quando o fizesse, afastariam-na da função de monitorar Veck – algo absolutamente necessário. Bem... parece que não teria que esperar um mês para voltar ao seu departamento.
– Ei, DelVecchio. Atenda seu telefone – alguém gritou.
Engraçado, ela não ouviu tocar. Tampouco Veck ou Bails, aparentemente.
Quando Veck iniciou uma conversa cheia de “sim” e “uh-hum”, podia sentir Bails espreitando ao redor de Reilly e teve vontade de enxotá-lo como uma mosca. Felizmente, a mesma mulher que gritou para Veck atender ao telefone aproximou-se do outro detetive e disse que seu suspeito estava na recepção.
– Volto aqui quando terminar – Bails disse. Depois que ela assentiu, ele deu um tapinha no ombro de Veck e saiu.
Veck desligou.
– Era De la Cruz. Ele quer que eu vá ao centro da cidade apurar um tiroteio que aconteceu ontem à noite. Precisa de uma ajuda extra. E acho que precisa se certificar de que eu nem sequer pense em ir ao hospital com você.
Fazia sentido.
– Mas não vamos sair por enquanto.
– Vai ser um dia longo. Temos que examinar um conjunto inteiro de apartamentos.
Veck levantou-se, vestiu o casaco e tateou vários bolsos, sem dúvida checando distintivo, arma, carteira, chaves e cigarros.
– Precisa parar de fumar – ela deixou escapar.
Quando Veck ficou imóvel, ela pensou: Droga, pareço uma namorada.
Aquelas três palavras recebidas por e-mail não lhe davam esse direito. Poderia sugerir algo do gênero? Sim. Mas não precisava passar a carroça na frente dos bois. O problema era que se preocupava demais com ele para ficar sentada assistindo-o se matar...
Veck pegou o maço de cigarros que já havia aberto... e esmagou-o com uma das mãos.
– Você está certa – jogou o maço na cesta de lixo embaixo da mesa. – Se eu ficar irritado nos próximos dias, já peço desculpas.
Reilly não conseguiu conter o sorriso no rosto. E, com um sussurro que só ele conseguiu ouvir, disse: – Vou pensar em algumas maneiras de distraí-lo.
Quando ela descruzou e cruzou as pernas outra vez, os olhos dele queimaram. Havia percebido os secrets que Reilly estava revelando, por assim dizer.
– Vou cobrar isso – piscou como um garoto malvado que sabia o que fazer com o corpo dela. – Fique com Bails... e me liguem quando terminarem, certo?
– Combinado.
Ela virou-se para a mesa à qual estava sentada, mas observando Veck, que saía pela porta, com o canto dos olhos. Deus do céu, aquele homem era lindo por trás...
CAPÍTULO 35
De certo modo, é ótimo sair para trabalhar – Veck pensou algumas horas depois.
Certo, não era ótimo que um pobre coitado tivesse sido baleado no rosto, ou que os vizinhos não quisessem dizer uma palavra sobre o que viram, ou que ele e De la Cruz estivessem gastando as solas de seus sapatos por nada. Mas era a droga de uma rotina difícil de trabalho. Não se tratava de seu pai ou do esquisitão sem pegadas que vigiava pessoas à noite.
A vítima em questão fora baleada no banco do motorista de um suv estacionado em frente àquele edifício residencial de doze andares, local conhecido por transações comerciais ilegais. O corpo fora descoberto naquela manhã por equipes de limpeza urbana que varriam a rua. Não havia drogas ou dinheiro no corpo ou no veículo, mas encontraram uma lista de nomes e alguns dólares dentro de um envelope amassado no casaco do rapaz, além de resíduos de crack numa série de embalagens plásticas e mais cinco armas dentro do carro.
Era evidente que ele não conseguira guardar tudo com a rapidez necessária.
A menos que se conclua que aqueles que tiveram acesso a tudo aquilo priorizaram levar outros objetos de valor.
Ao meio-dia, Veck e De la Cruz continuavam a percorrer os arredores do edifício, batendo nas portas e tentando convencer as pessoas a falarem alguma coisa – contudo, todos desconfiavam dos policiais e, além disso e com razão, tinham medo de alguma retaliação por parte dos envolvidos no crime.
Enquanto ia de porta em porta, Veck continuou a recordar-se da careta imobilizada da vítima ao ser atingida atrás do volante, o cinto de segurança sobre o peito manteve o corpo erguido, os traços faciais que poderiam ser identificados por sua mãe, familiares e amigos estavam arruinados a ponto de ser preciso uma identificação por arcada dentária.
Pensando outra vez em Kroner naquela floresta, Veck lembrou-se do impulso assassino que sentiu. A ideia de tirar um malfeitor das ruas era mais que justificável para ele – ao menos, para uma parte dele – mas isso realmente importava?
Que inferno, o filho da puta que atirou naquela vítima no carro sem dúvida tinha suas razões, por mais distorcidas que fossem. Só que um ato assassino era um ato assassino, não importando quais eram as tendências de comportamento do alvo.
Que pena aquilo não importar para o lado obscuro dentro dele: essa parte de sua essência não dava a mínima se Kroner era um santo ou um pecador – o ato assassino era tudo. O motivo da ira? Só tinha importância enquanto objetivo a ser atingido. Sem dúvida, este era o sentimento que seu pai tinha pelas outras pessoas. Que coisa ótima para se pensar.
Quando o sol começou a se pôr e as sombras começaram a tomar conta do cenário, o calor da tarde diminuiu e o edifício pareceu ainda mais encardido. Ele e De la Cruz tinham se separado e concentraram-se nos edifícios ao redor do local onde o corpo fora encontrado, mas, se considerassem o fato de que havia seis blocos de apartamentos no quarteirão, teriam sorte se terminassem até as cinco da tarde.
Afastando-se da porta de outra pessoa que não lhe deu resposta alguma, Veck dirigiu-se às escadas de concreto e desceu até a entrada. As portas da frente deveriam estar trancadas, claro, mas foram arrombadas tantas vezes que seria um milagre se apenas se fechassem por completo.
Esfregando o rosto e desejando um cigarro, virou-se para o leste e dirigiu-se ao último bloco de apartamentos sob sua responsabilidade. Já estava na porta quando o telefone tocou. A mensagem de texto de Reilly dizia que estava indo ao hospital com Bails naquele momento.
Bem, ao menos aquilo lhe daria mais tempo para colaborar no caso que estava trabalhando com De la Cruz.
E, depois, talvez fazer uma pequena viagem até Connecticut – uma voz interior sugeriu. – Para ver seu pai.
Chegou a olhar para trás no intuito de checar se alguém falava com ele. Mas não havia nada além do ar e da fraca luz do sol. E acabou concluindo que possivelmente faria isso mesmo. Em breve.
Com um palavrão, virou-se para a entrada e, quando o fez, olhou para baixo em direção ao cimento rachado da calçada. Congelou com o que viu.
Olhou sobre o ombro outra vez. O sol estava se pondo atrás dele – era a única fonte de luz. Pelo amor de Deus, não havia uma segunda opção que pudesse refletir outra sombra no chão, nenhum carro com várias partes cromadas que pudesse produzir tal efeito, nada de holofotes sobre sua cabeça.
Olhou para seus pés outra vez. Havia duas sombras projetadas de seu corpo. Duas sombras separadas e distintas, uma vinda do norte, outra do sul.
Era uma evidência concreta do que ele sempre sentiu: duas metades de si, divididas, atraindo-o em direções opostas.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio... E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente.
Quando a voz de Jim Heron disparou em sua mente, pensou em Reilly. Ele estava confiante de que poderia protegê-la de qualquer um que a perseguisse, certo de que poderia ser o que ela precisava. Mas toda essa história de coragem e bravura não se aplicava ao que via no chão. Não entendia a si mesmo, como poderia lutar por ela?
E Reilly estava em perigo. Caso contrário, não perderia a noite passada sentada numa cadeira com uma arma na mão.
Sou o único que pode te ajudar.
Deus era testemunha de que Heron seria capaz de machucá-los ou agredi-los se quisesse. Em vez disso, tudo o que fez naquela pedreira foi apontar a direção... e desaparecer.
Decidido, Veck pegou o telefone. Tinha salvo o número de Heron em sua lista de contatos e, quando discou, rezou para que o cara que não deixava pegadas atendesse... e dissesse o que havia em seus pés.
O som do celular tocando alto atrás dele quase o matou de susto. Jim Heron estava a três metros de distância dele, como se estivesse ali o tempo todo – e estava mesmo, não?
Veck estreitou os olhos e deu uma boa olhada no cara. Jim parecia bem sólido em sua jaqueta de couro e suas roupas camufladas. E, quando exalou a fumaça de um cigarro, a coisa flutuou, fazendo cócegas no desejo de fumar de Veck.
Mas não era real, era?
Com o coração batendo forte no peito, Veck apertou end no teclado de seu celular e o som que vinha do bolso de Jim parou.
– O tempo está se esgotando – disse o cara.
E isso fez Veck pensar em seu pai: aquele bilhete enviado pelo correio. A areia da ampulheta descia pouco a pouco e ficavam cada vez mais próximos do momento da execução. Algo que aconteceria muito em breve, não?
Era isso – pensou. Tudo, toda sua existência, levava-o até tal situação... Seja lá que situação fosse.
Quando Veck encontrou os olhos do cara, sentiu que o filme de sua vida estava fora de foco e nunca sequer soube que essa merda estava embaçada. Contudo, o cinegrafista finalmente tinha acordado e ajustado o equipamento... era um mundo novo.
Especialmente se considerasse o fato de que a luz do sol se punha atrás de Jim Heron... e não havia nada aos pés do cara. Nenhuma sombra.
– Que porra é você? – Veck perguntou.
– Estou aqui para salvar seu traseiro, e é isso que eu sou – o cara deu um trago no cigarro e exalou lentamente. – Está pronto para conversar comigo agora?
Veck olhou para o par de contornos que projetava, as duas sombras tinham o formato de seu corpo.
– Sim, estou.
Reilly dirigiu o carro ao longo do caminho até o complexo do Hospital São Francisco. Ao lado dela, o detetive Bails permaneceu em silêncio no banco do passageiro enquanto atravessaram pelo tráfego intenso, pararam nos sinais vermelhos e, em dado momento, viraram.
– Mais um pouco disso e vou achar que alguém não quer que conversemos com Kroner – ela murmurou.
Bails nem sequer ergueu o olhar.
– Sim.
Mais silêncio. Ao ponto de ela quase pedir para ele desabafar sobre tudo o que pensava: a última coisa que precisavam era daquela tensão toda na frente de um assassino. Porém, Bails começou a falar antes de Reilly pedir.
– Desculpe não falar nada. Só não sei o que fazer.
– Sobre o quê? – no momento em que sentiu segurança em tirar os olhos da estrada, deu uma olhada nele. O cara batia os dedos contra a porta e olhava para fora como se estivesse buscando respostas no vidro.
– Sei que viu o meu e-mail – ela disse depois de um momento.
– Se fosse esse o grande problema... – quando ela olhou-o mais uma vez, ele deu de ombros. – Sabe que eu e Veck somos muito próximos, não?
– Sim.
– E sabe que sempre estive cem por cento ao lado dele. Até a morte. O cara é meu amigo.
Quando o coração dela começou a bater mais forte, disse: – Certo.
– Então, sim, eu vi o e-mail que ele enviou. Não queria, mas estava na tela quando me aproximei de vocês – ergueu os olhos. – Não estava espiando. A coisa estava bem ali.
Maldição.
Era tudo o que ela conseguia pensar. Maldição.
– E agora... – seus dedos acalmaram-se e ele balançou a cabeça. – Não sei o que fazer.
– Sem ofensa, mas por que acha que é problema seu? Não quero ser chata, mas...
– Sei coisas sobre ele que você não sabe e acho que ele fez algo ilegal. E, se eu acreditar que você está com ele, não sei a quem vou recorrer no Departamento de Assuntos Internos. Está bom para você?
Quando Reilly exalou como se tivesse levado um soco no estômago, quis parar o carro. Que bom já estarem finalmente no hospital. Assim, conseguiu estacionar na área aberta em frente à emergência.
Quando desligou o motor, encarou Bails: – Do que está falando?
Bails colocou a palma da mão sobre o painel do carro e começou a movimentá-la para frente e para trás. Em seguida, limpou uma fina camada de poeira que caiu sobre sua coxa.
– Olha, sou um policial porque quero proteger as pessoas e porque acredito no sistema. Não acredito que uma sociedade civilizada possa existir sem a polícia, os tribunais e as cadeias. Há pessoas lá fora que simplesmente não podem ficar em meio à população geral. Ponto final.
– Só para você saber, ainda não mencionou uma palavra sobre Veck.
– Ele disse que tem antecedentes?
Quando uma corrente de ar frio passou por sua coluna, ela esforçou-se para manter a calma.
– Não.
– Achei que não diria mesmo.
Isso é mentira – ela pensou.
– Ouça, desculpe duvidar das suas fontes, mas não há nada no arquivo pessoal dele... e não pode negar isso. Tudo o que o RH precisa fazer, e fez, para verificar isso é rastrear o nome dele no sistema.
– Não se algo foi cometido antes da maioridade.
Reilly ficou confusa. Muito.
– Como?
– Ele tem um antecedente juvenil. Um muito sério.
– Como sabe?
– Vi a coisa. Com meus próprios olhos – Bails deixou a cabeça cair para trás contra o descanso do banco. – Conheci Veck na Academia de Polícia. Era um cara solitário que fazia tudo certo... eu era o palhaço da turma. Nós simplesmente... ficamos amigos. Depois saímos, mantivemos contato mesmo sendo designados para delegacias diferentes da área de Manhattan e, mais tarde, ele se mudou para cá. Ao longo de todos esses anos que o conheço, sempre foi uma pessoa correta. Controlada. Difícil, mas justo. Na verdade, é um dos melhores policiais que conheço e fiz um pedido para que ele viesse para Caldwell, pois queria trabalhar com ele – Bails soltou um palavrão. – Em todo esse tempo que o conheço, nunca pensei que estivesse inapto para o trabalho por causa dessa porcaria de história relacionada ao seu pai... até agora. Começou com aquela agressão ao paparazzo. Em seguida, a coisa toda com Kroner na floresta. É como se uma capa ao redor dele estivesse saindo... mas eu não iria dizer nada, não ia mesmo, até...
– Espere um minuto. Pare – Reilly pigarreou, tentando acalmar a dor de cabeça que sentia entre os olhos. – Para preservar a nossa reputação, você deve entrar em contato imediatamente com minha supervisora se tiver algo para dizer com relação ao detetive DelVecchio. Antes de tudo, você está certo... Não deveria ter me contado essas coisas. Eu não deveria... estar na posição em que estou agora. Na verdade, tenho uma reunião com minha superior quando eu voltar desta entrevista, então, poderei divulgar de maneira adequada essa relação ao meu departamento.
Bails esfregou os olhos e balançou a cabeça.
– Vou fazer isso. Mas também acho que você precisa saber. Porque, se alguma coisa acontecer com você, nunca vou me perdoar.
Diante disso, Reilly enrijeceu.
– Por que está preocupado com minha segurança?
Bails passou uma das mãos pelos cabelos.
– Entenda, eu ajudei Veck com a mudança quando veio para cá. Tinha várias caixas velhas que precisavam ser guardadas no sótão. Eu estava carregando uma delas quando o fundo se abriu. Espalhando papéis por toda parte e, então, eu comecei a recolher... e lá estava. O registro de antecedente juvenil datado de meados dos anos 1990.
– O que dizia? – ela conseguiu falar mesmo sentindo a garganta fechada.
– Havia todos os indícios de comportamento psicótico e antissocial que existem – Bails franziu a testa. – Sabe do que estou falando, então, não vou listar tudo o que ele fez.
Tortura de animais? Problemas em atear fogo em coisas diversas? Urinar-se na cama?
– Tudo isso – disse Bails, como se estivesse lendo sua mente.
– Mas nunca fez nada depois de adulto – ela argumentou... era menos uma afirmação que uma pergunta.
– Não que saibamos. E, veja só, isso é o que está me preocupando. Psicopatas são muito bons em fingir normalidade. Por fora, eles se encaixam em tudo, pois a atuação é parte do que fazem. E se essa relativa paz e tranquilidade até agora... seja exatamente o que ele quer mostrar? Quando termina a atuação e o verdadeiro Veck aparece? Não pode negar que ele está ficando fora de controle... caramba, não seria parceira dele agora se estivesse tudo bem – o conflito de Bails era evidente em seu rosto. – Ou pior... e se não sabemos o que ele realmente faz? Digo uma coisa, não consegui dormir na noite passada. Estava tentando conciliar o que acredito que ele seja... com o que ele pode ser de fato. Se é que isso pode fazer algum sentido.
Reilly ouviu a voz de Veck em sua mente: Quero fazer tudo perfeito para você.
E tinha feito. Disse e fez as coisas certas. Jogou seus cigarros fora por causa dela... ou ao menos foi o que fez na sua frente. Ela tinha se apaixonado por ele em quatro dias. Coisa do destino? Ou tudo planejado? Mas onde isso o levaria? Foi ele quem pediu suspensão... teria sido uma atitude deliberada? Ela estava cuidando do caso e da reputação dele – que tinha alcançado mais credibilidade depois de tudo, não?
A voz de Bails pairou no ar: – Não pode confiar nele. Estou entendendo isso agora.
– Só por que ele não lhe contou sobre o que aconteceu quando era mais jovem? – ouviu-se dizer. – E, além disso, manter o arquivo de um registro de antecedentes em segredo não é ilegal.
– Acho que ele plantou provas. O brinco de Sissy Barten, especificamente. Para que parecesse que Kroner a tivesse matado.
Ela não se preocupou em esconder a surpresa e recuou o corpo.
– O quê? Como?
– Ele subiu até o quarto dela, não foi? No dia em que vocês dois foram até a casa da família Barten. Ele me disse que você estava no andar de baixo quando subiu. E esteve na sala de provas ontem de manhã... Conversei com Joey, um dos investigadores da cena do crime. Ele disse que Veck passou por lá... e pode ter plantado o brinco.
– Mas ele disse que encontrou o brinco junto com as outras provas.
Bails esfregou os olhos outra vez.
– Chequei o registro preliminar de itens encontrados no caminhão, a lista feita assim que o veículo foi apreendido. Não havia qualquer observação sobre um brinco em forma de pomba. E verifiquei tudo isso outra vez pouco antes de chegar e ver vocês dois.
Por isso parecia tão abatido.
Ela balançou a cabeça.
– Mas o que ele teria a ganhar? A menos que...
Oh, Deus... e se ele tivesse assassinado a garota? E se Kroner tivesse visto alguma coisa ao cometer um de seus crimes na pedreira?
– Leu o relatório sobre o corpo de Sissy, certo? – Bails disse.
– Claro – passara a manhã inteira fazendo isso... e a conclusão que chegou quando o corpo foi encontrado era inevitável: nenhum dos ferimentos da vítima se encaixava nos outros assassinatos de Kroner... e, geralmente, aquele tipo de mudança não acontecia. Em geral, método e obsessões não se alteravam.
– Então deve saber que ela não foi atacada por Kroner. E, talvez, depois de apurar tudo... talvez Veck tenha feito isso.
Céus, ela não conseguia respirar. Como se houvesse mãos apertando a sua garganta.
– Mas... por quê?
Temia que fosse uma pergunta estúpida de se fazer.
– Quanto sabe sobre o pai de Veck? – o detetive disse. – Sobre seus assassinatos?
– Apenas o que estudei na faculdade.
Bails voltou a se concentrar na janela.
– Sabia que a primeira vítima dele sangrou pelo pescoço e pelos pulsos... depois de ter sido pendurada pelos pés? Também foi marcada como Sissy. Sobre o estômago.
Reilly pegou a maçaneta e abriu a porta. Não só para conseguir um pouco de ar fresco. Mas porque estava sentindo muita vontade de vomitar.
– Sinto muito – Bails disse, um tanto áspero.
– Eu também – ela resmungou, contudo, as palavras não chegavam nem perto do que sentia.
Quando olhou para o chão, ela se deu conta de que tinha sido enganada. Caiu como um patinho. E é claro que Veck se esforçou para conseguir isso. Ela era sua defensora na delegacia, aquela que deveria supervisioná-lo cuidadosamente e que decidiria se ele continuaria ou não na corporação: ele queria continuar trabalhando, e ela estava na posição que tornaria isso possível.
– Agradeço a Deus por você – Reilly disse um tanto sufocada. Pena que não conseguia olhar para Bails... Estava muito envergonhada por ter sido enganada tão bem. – Graças a Deus você me contou.
CAPÍTULO 36
– Que tal você falar primeiro?
Enquanto Veck pronunciava as palavras em voz baixa, mantinha o olhar fixo em Heron. Os dois tinham se esquivado ao redor do edifício e estavam em pé no escuro próximo a alguns galhos secos.
O olhar de Jim era mortal e sua voz tão profunda quanto o ressoar de um grande sino.
– Você sabe de tudo. Quais respostas quer? – colocou o dedo indicador no peito de Veck, bem em cima de seu coração. – Está tudo dentro de você.
Veck desejou responder com uma boa dose de “tanto faz, seu cuzão”. Mas não conseguiu.
– Meu pai quer me ver – foi sua resposta.
Heron assentiu e pegou seu maço de cigarros. Quando inclinou o pacote para frente, Veck recusou: – Não, parei.
– Inteligente – Heron acendeu. – É assim que funciona: vai perceber que está numa encruzilhada. Será um momento de decisão, de uma escolha definitiva, entre situações opostas. Tudo o que é, o que tem sido e o que poderá ser dependerá dessa decisão. As consequências? Não afetarão apenas a você. Afetarão a todos. Não é apenas uma questão de vida e morte... Trata-se da eternidade. Sua. Dos outros. Não subestime a distância que isso pode alcançar.
Enquanto o homem falava, Veck sentiu as duas partes dentro de si se separarem. Uma delas foi totalmente repelida. A outra...
Veck franziu a testa. Piscou algumas vezes, confuso. Desviou o olhar e olhou para trás. Deus era testemunha de que tinha visto um brilho cintilante sobre os ombros de Heron e ao redor de sua cabeça.
E a ilusão bizarra deu ainda mais credibilidade ao pesadelo como um todo. Da mesma maneira como quando quis entrar em contato com o cara e ele já estava bem atrás dele... E ainda havia a questão da falta de pegadas naquela pedreira... E o show de luzes na casa dos Barten.
Veck colocou a mão sobre o peito e esfregou com força a sombra que havia ali.
– Nunca pedi isso.
– Sei como se sente – Heron murmurou. – No seu caso, já nasceu com isso.
– Diga-me o que sou.
– Você já sabe.
– Diga.
Heron exalou lentamente, a fumaça ergueu-se dentre aquele brilho dourado.
– O mal. É o mal encarnado... Ou, pelo menos, metade de você é. Num futuro próximo, talvez hoje à noite, talvez amanhã, será necessário que escolha um dos lados – o cara apontou para si mesmo com a mão que segurava o cigarro. – Estou aqui para tentar te ajudar a escolher com sabedoria.
– E se eu não escolher certo?
– Você perde.
– No mesmo instante?
O homem assentiu lentamente, estreitando os olhos.
– Eu já vi onde vai terminar se isso acontecer. Não é bonito.
– O que você é?
A expressão de Heron não mudou. Nem sua postura. E nem sequer parou de fumar. Mas, num instante era um homem, no seguinte...
– Jesus... Cristo... – Veck sussurrou.
– Não chego nem perto – ele apagou o cigarro na sola da bota de combate. – Mas sou o que sou.
E isso seria... um anjo, evidentemente: sob a luz fraca e desbotada do dia, um espetáculo de luzes refratadas havia surgido sobre os ombros dele em forma de asas gigantes, tornando-o magnífico e etéreo.
– Fui enviado para te ajudar – o homem... anjo... seja lá o que fosse... voltou a olhar para Veck. – Então, quando for ver seu pai, quero estar junto.
– Já estava comigo. Não é mesmo?
– Sim – o cara limpou a garganta. – Mas não quando estava... você sabe.
As sobrancelhas de Veck se ergueram.
– Oh, sim. Que bom...
Eeeee os dois desviaram o olhar nesse momento.
Veck pensou sobre aquela noite com Kroner.
– E se a encruzilhada já tiver acontecido?
– A questão com Kroner? Estava fora das regras.
– Bem, sim, assassinato é contra lei mesmo.
– Não, não é neste sentido. Não sou o único que deseja fazer algo com você, o outro lado se precipitou naquele cenário.
– O outro lado?
– Como eu disse, não sou o único neste jogo. E, acredite, o inimigo é uma tremenda vadia... Tenho certeza de que a conhecerá em breve, se já não conheceu.
Oh, ótimo, mais notícias boas, Veck pensou.
E, então, deixou escapar: – Eu fui até lá matá-lo. Kroner – maldição, foi bom ter desabafado.
– Você quer dizer parte de você queria fazer isso. Vamos passar tudo a limpo: você não fez o estrago e você ligou para a emergência, se não tivesse feito isso ele teria sangrado até morrer aos seus pés.
– Então, o que o atacou?
– Está surpreso por conversar com um anjo? Não vai querer saber o que tem lá fora – Jim acenou com uma das mãos num gesto de desdém. – Mas não precisamos nos preocupar com isso. Vamos ver seu pai. Juntos. O mais rápido possível.
Veck pensou na sensação de ter chegado ao seu destino, como se sua vida tivesse chegado a um ponto culminante. Não era mais remoto e hipotético.
– Esta é a encruzilhada?
– Talvez sim. Talvez não.
De repente, Jim abaixou os olhos e inclinou a cabeça. Quando a ergueu outra vez, sua aparência era mortal – e exatamente o que Veck gostaria de ter como proteção: tinha a sensação de que precisaria de outro bom lutador se fosse enfrentar o outro lado de si mesmo. E era isso. Uma luta até a morte.
– Vamos descobrir – o anjo prometeu. – Quando chegarmos lá.
Tudo acontece por uma razão – Reilly pensou enquanto ela e Bails saíam do quarto de Kroner meia hora depois.
A condição de Kroner havia piorado muito, quase como se seus ferimentos aumentassem a cada instante. Ele não era capaz de se concentrar, resmungou algumas respostas sem sentido e, pouco depois de chegarem, ela e Bails desistiram.
– O que será que ele quis dizer com aquela coisa de sofrimento? – Bails murmurou enquanto segurava a porta do elevador para Reilly.
Reilly balançou a cabeça quando começaram a descer.
– Não sei.
Foi a mesma coisa de antes: Ele tem que saber que ela sofreu... tem que saber que ela sofreu...
Não fazia ideia do que aquilo significava. E também não fazia ideia de qual era a conexão entre Kroner e Veck. Caramba, naquele momento, sentia que não poderia confiar em seus instintos nem sequer para confirmar o próprio nome. Especular alguma coisa naquela bagunça? Era melhor nem começar.
Quando saíram para a recepção e caminharam até a porta giratória que dava para o estacionamento, Bails consultou o relógio.
– Quer beber alguma coisa? Tenho que fazer meu relatório em pouco mais de uma hora, preciso de uma bebida antes.
Sim, pois, quando um detetive tinha as informações que ela tinha sobre outro colega, não se ficava muito animado com a situação. Ligou para a delegacia logo depois que terminaram o interrogatório e, dentro de um minuto e meio, o sargento marcou uma reunião com líderes dos departamentos. Isso aconteceria bem depois do horário comercial.
Não era de se admirar que Bails quisesse uma cerveja.
– Obrigada – ela murmurou –, mas, como eu disse, tenho um encontro com minha supervisora agora.
A conversa toda que tiveram não os aproximou tanto assim. Juntos, andaram pelas filas de automóveis, entraram no carro e colocaram os cintos de seguranças. Os dois permaneceram em silêncio durante toda a viagem de volta à sede. Não tinham muito a dizer, e Bails parecia tão traído e doente quanto ela.
Separaram-se com um rápido abraço e, enquanto ele ia para o próprio carro, Reilly observava-o. Veck colocara-os no mesmo barco, e isso significava que aquele estranho agora era uma espécie de amigo.
Quando o telefone tocou na bolsa, sabia quem era antes de pegá-lo. Veck.
Certo, é para isso que o correio de voz serve – ela pensou.
Só que provavelmente ele viria atrás dela, e isso era a última coisa que queria. Deveria evitar um encontro pessoal a todo custo.
– Alô.
Houve um zumbido ao fundo, como se estivesse num carro.
– Reilly... o que há de errado?
Desanimada, como se o observasse do outro lado de um espelho de duas faces, pensou que havia sido exatamente daquela maneira que a seduzira: a emoção que projetava naquela voz profunda era a combinação perfeita de preocupação com uma boa dose de proteção.
– Estou bem. Acabei de ver Kroner... Não conseguimos nada de novo – não vindo de Kroner, claro. Já com Bails, a história era diferente.
– Você não parece bem.
O que significava que toda e qualquer aspiração que pudesse ter em ser uma psicopata deveria ser jogada pela janela. Que pena.
De fato, a ideia de não conseguir esconder as coisas era um alívio. Não queria ser como Veck. Nunca.
– Reilly... fale comigo.
– Estive pensando muito sobre meu trabalho hoje – ela disse. – Não é apropriado que deixemos nosso relacionamento como está. Estou comprometendo a integridade da força policial, da minha posição e a mim mesma. Vou encontrar minha supervisora agora mesmo e renunciar seu caso. Levarei alguma advertência, mas posso lidar com isso...
– Espere, o quê? Por que você...?
– E acho que não devemos nos ver outra vez.
Houve uma pausa. Em seguida, ele disse: – Assim de uma hora para outra?
Agora ele parecia frio, e era o que Reilly desejava: o verdadeiro Veck, o real. Mesmo que isso só a fizesse perceber outra vez o quanto tinha sido estúpida.
– É o melhor – concluiu.
Quando Veck não disse mais nada, ela começou a ficar agitada, pois não sabia exatamente do que ele era capaz. Sem dúvida, tinha sido ele quem andara vigiando-a dois dias atrás... Mas não tinha importância, aquela conversa tinha acabado e, uma vez que revelasse o que precisava à sua chefe e Bails agisse e cumprisse seu dever, Veck teria muitos outros problemas, tantos que estaria ocupado demais procurando um advogado para perder tempo com algum tipo de retaliação. Ao menos ela esperava que fosse assim.
Inferno, melhor ainda, ele poderia ser preso.
– Tenho que ir – ela disse.
Houve outra pausa e, então, a voz dele soou fria como um cubo de gelo.
– Não vou te incomodar outra vez.
– Agradeço muito. Adeus.
Não esperou por uma resposta. Não estava interessada em ser envolvida numa conversa longa e arrastada, com ele tentando manipulá-la novamente, ou pior, ver a máscara dele caindo por completo e ouvir ameaças.
Sua mão tremia tanto que precisou fazer duas tentativas para colocar o telefone de volta na bolsa. Apoiando-se contra o carro, olhou para os fundos escuros da delegacia e sentiu não ter forças para entrar e encarar sua chefe. Mas fez o que tinha que fazer... pois fora criada para agir assim.
CAPÍTULO 37
Quando Veck desligou o celular, olhou para tela e achou difícil acreditar que aquela conversa com Reilly tinha acabado de acontecer.
– O que foi?
Olhou para Heron. O cara, anjo – quem se importava – estava atrás do volante da caminhonete com seu outro amigo anjo... Cristo, como aquilo poderia ser real? O cara estava no banco de trás de uma cabine dupla e ocupava mais da metade do espaço.
Os três estavam indo para a Instituição Prisional em Somers, Connecticut.
– Nada – disse Veck suavemente.
– Até parece – ouviu do banco de trás.
Eram as primeiras duas palavras que o homem havia dito. O que significava que isso e o fato de estar respirando eram as únicas pistas que comprovavam que ele estava vivo.
Jim olhou para Veck.
– Coincidências não existem. Quando nos aproximamos do final, tudo importa.
– Era... – minha namorada? Ex-namorada? Oficial do Departamento de Assuntos Internos? – Reilly.
– O que ela disse?
– Que não quer me ver mais. Nunca mais.
As palavras foram ditas com uma voz calma e profunda – ao menos ainda tinha um pouco de brio. Porém, no fundo do peito, havia um grande buraco negro de agonia, como se fosse um desenho animado e tivessem disparado uma bala de canhão contra ele.
– Por quê? Ela deu algum motivo?
– Se importa de me emprestar um cigarro? – quando Jim estendeu o pacote, Veck pegou dois, pensando que aquele era um momento perfeito para jogar pela janela aquele papo de “desistir”.
– Por que isso?
– Porque, ou eu fumo alguma coisa agora, ou vou explodir o vidro ao meu lado com um soco.
– Que bom que escolheu o cigarro – veio da parte de trás. – Estamos indo a uns cem quilômetros por hora e está frio demais lá fora.
Veck pegou o isqueiro oferecido, acendeu e abriu um pouco a janela. Quando inalou, pensou ser uma pena haver tantos agentes cancerígenos naquelas coisas, pois, sem dúvida, aquilo o fazia sentir-se um pouco melhor.
Porém, não duraria muito. Ao contrário da dor no peito. Tinha a impressão de que teria que lidar com isso por um looongo tempo. Como se fosse um ataque cardíaco perpétuo.
Só que, cara, devia saber que isso aconteceria. Aquela mulher ingressou no Departamento de Assuntos Internos porque gostava das coisas certas, bem-feitas. Ficar com ele? Não estava na lista. Apaixonar-se por ele? Não seja ridículo.
– O motivo? – Jim exclamou.
– Conflito de interesses.
– Mas por que agora? Ela sabia o tempo todo o que estava fazendo.
– Eu não sei. Mas também não importa.
O bom era que não poderiam dispensá-lo do trabalho só por que ela acordou e sentiu o cheiro de carne podre da situação que viviam, por assim dizer. Eram dois adultos responsáveis e, sim, parecia ruim, mas ela faria a coisa certa e fim de papo.
Inevitavelmente, seria chamado para responder algumas perguntas no Recursos Humanos e teria a firmeza suficiente para dizer que foi tudo ideia dele. Ou seja: foi ele quem correu atrás dela, bem como foi o idiota que começou com a história do “eu te amo”. Imbecil. Que maldito imbecil ele foi...
Não disseram muita coisa durante o resto da viagem. Veck não via problema nisso. As imagens de Reilly e ele juntos pairavam em sua cabeça e faziam com que não confiasse na própria voz... E não só porque demonstraria uma boa dose de tristeza. Estava suscetível a esmagar alguém naquele momento.
Quando já estavam a um quilômetro da prisão, Jim parou um pouco antes de chegar à instituição e trocou de lugar com Veck. No volante, Veck assumiu seu papel: o de policial.
– Então, ninguém vai ver vocês?
Apesar de realmente acreditar que o cara era capaz de ficar invisível. Heron perseguiu-o por dias e apenas seus instintos ficaram um pouco alarmados.
– Isso mesmo.
– Contanto que... – Veck parou de falar quando olhou para o banco ao lado dele e viu que tinha ficado vazio de repente. Olhou rapidamente no espelho retrovisor e não havia nem sinal do cara grande e forte no banco de trás.
– Já pensaram em roubar bancos, seus filhos da mãe? – disse ele em tom seco.
– Não precisamos do dinheiro – a voz de Jim soou do nada ao lado dele.
– Não precisamos nos dar ao trabalho – veio da parte de trás.
Veck esfregou o rosto, pensando que seria melhor assumir que estava louco por começar a conversar com o ar. O problema era que lutava e lidava com essa realidade alternativa durante toda sua vida. A ideia de que era realidade, e não loucura, parecia ser muita maluquice, mas também fazia com que se sentisse um pouco são.
Contudo... fazer essa diferenciação era assumir que ele não era exatamente como o personagem do filme Uma mente brilhante.
Afinal, sabia que havia impulsos homicidas, e não casos de esquizofrenia em sua família, então, não tinha perdido totalmente o juízo. Que alívio!
Antes de sair de Caldwell, Veck havia telefonado para a prisão – não para o número que seu pai havia lhe dado, mas para o atendimento geral – e identificou-se. Não chegariam no horário de visitas, mas as pessoas costumavam fazer cortesias graças à sua ocupação profissional – e certamente também fariam-no graças ao fato de que seu pai estaria numa cova em mais ou menos 48 horas. Sem dúvida, havia também o fator curiosidade, algo com que Veck lidava com muito senso de realidade: em pouco tempo, aquela visita antes da morte estaria em todos os lugares... internet, televisão, rádio. Provavelmente, estaria na rede antes mesmo de sair e voltar para o estado de Nova York. Era assim que as coisas funcionavam.
À medida que percorriam o caminho onde se via as paredes da penitenciária numa das laterais, visualizaram um pequeno exército reunido dos dois lados da rua. Fãs de seu pai.
Havia pelo menos uma centena deles, mesmo sendo oito da noite e estando muito escuro e frio. Mas estavam preparados com lanternas, velas e cartazes com dizeres que protestavam contra a execução – e, no momento em que viram o veículo, correram para o asfalto gritando, rugindo, o barulho pressionava a caminhonete sem nem chegarem perto dela.
Mesmo com o estilo um tanto rebelde de se vestirem e a maneira furiosa com que agiam, era evidente que sabiam as consequências da desobediência civil: nenhum deles bloqueou ou tocou o veículo, e Veck diminuiu a velocidade para dar uma olhada neles. Grande erro.
Um dos homens inclinou-se para a janela e obviamente reconheceu Veck: quando o cara apontou para ele e gritou, o êxtase em seu rosto fez com que Veck sentisse vontade de baixar o vidro e dar um jeito no filho da puta.
Mas seria um desperdício de energia. O idiota tinha o símbolo da anarquia desenhado na testa. Tente argumentar com essas coisas.
– É ele! É ele!
A multidão exaltou-se e correu para a caminhonete.
– O que há de errado com essas pessoas? – Veck murmurou enquanto continuava lentamente, pronto para transformá-los em enfeites de capô se fosse preciso.
– É isso o que ela faz – a voz de Jim soou pelo ar.
– Quem é “ela”?
– É exatamente o que vamos tentar tirar de dentro de você.
Não havia tempo para entender mais esta. Virou na pista que a polícia usava e parou na portaria. Olhando para o guarda, baixou o vidro e mostrou seu distintivo e as credenciais.
– DelVecchio, Thomas... Jr.
Ao fundo, a multidão gritava o nome dele... ou de seu pai. Na verdade, eram os dois e com muita eficiência.
Os olhos do guarda baixaram para a identificação e voltaram para o rosto de Veck. Houve um sinal de desconfiança naquele olhar; sem dúvida, ele estava mantendo-se firme contra os malucos que permaneciam ali já há uma semana.
Mesmo assim, o cara acionou o comando do portão e as barras de ferro se abriram.
– Pare assim que entrar. Preciso revistar seu veículo, detetive.
– Sem problema – era bom não precisar fazer isso do lado de fora. Só Deus sabia até onde aquela multidão poderia chegar.
Veck seguiu o protocolo, andou em marcha lenta e freou no momento em que seu para-choque traseiro posicionou-se do outro lado do portão. Quando saiu, pegou o pacote de cigarros de Heron e colocou-o em uso, acendendo um cigarro enquanto os portões fechavam-se e o oficial verificava todas as partes do carro com uma lanterna.
Enquanto fumava, sabia que os anjos não estavam longe. Podia senti-los flutuando e ficou feliz por essa proteção – especialmente quando olhou para as barras do portão e viu a multidão enlouquecida. A energia que havia naqueles malucos era o tipo de coisa que deixaria qualquer um grato por aquilo que os separava deles.
– Pode continuar, detetive – disse o oficial, agora com atitude mais amigável. – Vire a primeira à esquerda e estacione ao lado da porta, por questões de segurança. Um guarda está esperando por você.
– Obrigado, cara.
– É proibido fumar lá dentro. Então, antes, termine o que está fazendo.
– Boa dica.
De volta à caminhonete. Pausa no segundo portão. Em seguida, estavam na unidade.
Prisões de segurança máxima não se pareciam com as que eram retratadas em filmes. Não havia paredes antigas de pedras caiadas com figuras monstruosas esculpidas no alto delas e que espreitavam quem passava embaixo. Nada de elementos nostálgicos como “Al Capone já esteve aqui”. Nenhuma visita guiada.
Era um negócio muito moderno que mantinha pessoas como seu pai isoladas do público em geral. Havia várias luzes fortes de xenônio para o período noturno, câmeras de vídeo e monitoramento computadorizado. Ainda havia guardas com armas e cercas de arame farpado o suficiente para envolver toda a cidade de Caldwell, mas o procedimento de entrada era feito com cartões magnéticos, computadores e portas automatizadas.
Esteve em vários lugares como aquele, mas nunca especificamente ali: assim que seu pai foi sentenciado, uma carta fora entregue em mãos na república em que Veck morava na faculdade. Não deveria ter aberto aquele envelope, mas não imaginava que seu pai era capaz de enviar da cadeia bilhetes por intermédio de alguém. Fazendo uma retrospectiva? Como fora ingênuo.
Porém, ao menos aquilo lhe indicou o que não fazer. Então, sim, era uma boa razão para não trabalhar em Connecticut e para integrar a força policial em vez do FBI. Nada de questões interestaduais, muito obrigado. E, ainda assim, lá estava ele.
Como prometido, no momento em que saiu da caminhonete, uma porta blindada abriu-se e um guarda encontrou-o e levou-o a um ambiente limpo e bem iluminado. Normalmente, como oficial, receberia autorização para entrar com o distintivo, o celular e a arma, desde que não fosse entrar na área das celas, mas não estava ali em caráter oficial e isso significava que tudo seria deixado na entrada.
Ao entregar o celular, viu que havia algumas mensagens de voz. Possivelmente passara por algumas áreas sem sinal telefônico ao longo da viagem, pois não ouvira o toque. Mas não as ouviria agora. Seja lá o que fosse, esperaria até sair dali. Além disso, tinha a sensação de que já sabia do que se tratava. Sem dúvida outra pessoa do Departamento de Assuntos Internos lhe seria designada – oh, que alegria. E provavelmente devia ter outra mensagem de Bails querendo saber como estava. O cara sempre fazia isso, especialmente se enviasse um torpedo e Veck não respondesse.
Depois de assinar um formulário e entregar todas as suas coisas ao guarda, percorreu uma série de salas sendo acompanhado por outro funcionário da prisão, sem produzir qualquer som além dos passos. Mas sobre o que poderiam conversar afinal?
Veio se despedir do seu pai? Legal...
Sim, é a primeira vez que o vejo em anos, e a última nesta vida...
Divirta-se, então.
Obrigado, cara.
Sim. Estava ansioso para ter esse tipo de conversa.
Quase cem metros depois andando entre o labirinto da prisão, o oficial mostrou a Veck uma área de visitas do tamanho de um pequeno refeitório e também organizada como tal, com longas mesas com assentos dos dois lados. O ambiente estava iluminado como se fosse uma exposição de joias, com grandes painéis de lâmpadas fluorescentes fixas no teto, e o chão era de um marrom salpicado, do tipo que escondia bem a sujeira, mas que, de qualquer maneira, era mantido brilhante e lustrado. Não havia janelas, plantas e observava-se apenas um mural com uma ilustração do que parecia ser a Assembleia Legislativa de Connecticut.
Contudo, as quatro máquinas de salgadinhos e bebidas davam um pouco de cor ao ambiente.
– Estão trazendo-o – disse o guarda. – Colocaremos vocês na área de visita como cortesia, mas peço que permaneça sentado com as duas mãos sobre a mesa o tempo todo.
– Sem problema. Quer que eu me sente em algum lugar específico?
– Não. E boa sorte.
O cara afastou-se e ficou junto à porta pela qual passaram ao chegar, cruzou os braços e encarou a parede nua do outro lado como se tivesse muita experiência em assumir aquela posição.
Veck sentou-se à mesa em frente ao cara e cruzou os dedos sobre a superfície lisa.
Fechando os olhos, sentiu a presença dos dois anjos. Estavam à esquerda e à direita dele, parados da mesma maneira que o guarda, silenciosos e vigilantes...
A porta no final da sala foi aberta sem produzir qualquer som... Em seguida, ouviu algo arrastar-se.
Seu pai passou pelos batentes com um sorriso em seu belo rosto e algemas nos pulsos e tornozelos. Apesar do fato de estar vestido com um macacão laranja folgado, estava elegante, com os cabelos cinza-escuros penteados para trás e sua atitude de embaixador muito evidente, como uma bandeira real.
No entanto, Veck não dava a mínima para aquela aparência – olhava para o chão. Seu pai projetava uma sombra, certo, uma sombra única que se reunia sob seus pés como tinta preta. O fato de ser mais escura do que qualquer outra no ambiente parecia lógico e surgia sob um novo paradigma.
– Olá, filho.
A voz era tão profunda e grave quanto a de Veck. Quando ele ergueu os olhos para observar seu pai, era como olhar no espelho – apenas vinte ou trinta anos mais tarde.
– Nenhuma saudação para mim? – o DelVecchio mais velho disse ao aproximar-se com passos pequenos e apertados, o guarda atrás dele estava tão próximo de suas costas que parecia vestir o mesmo macacão.
– Estou aqui, não estou?
– Sabe? É uma pena a necessidade de sermos vigiados – seu pai sentou-se na frente dele e colocou as mãos sobre a mesa... na posição exata que Veck havia assumido. – Mas podemos falar em voz baixa – as feições e ângulos daquele rosto mostraram uma expressão de carinho... na qual Veck não acreditou nem por um segundo. – Estou emocionado por estar aqui.
– Não fique.
– Bem, mas eu estou, filho – o balançar triste da cabeça era tão apropriado que Veck desejou revirar os olhos. – Deus, olhe para você... Está muito mais velho. E cansado. Trabalhando duro? Ouvi falar que está na polícia.
– Sim.
– Em Caldwell.
– Sim.
Seu pai inclinou-se para frente.
– Tenho permissão para ler os jornais e ouvi dizer que teve um pequeno problema com um monstro lá fora. Mas você o pegou, não foi? Na floresta? – lá se foi a mentira do pai benevolente. No lugar daquela figura calorosa, surgiu uma intensidade na expressão do homem que fez Veck desejar se levantar e sair. – Não foi? Filho.
Se os olhos são as janelas da alma, então Veck encontrou-se olhando para um abismo... E teve a mesma sensação de vertigem induzida pela gravidade e o puxão que alguém sentia ao inclinar-se e olhar para baixo num abismo real.
– Que herói você é, filho. Estou tão orgulhoso de você.
As palavras se distorceram nos ouvidos de Veck, seus sentidos ficaram confusos, era como se pudesse ouvi-las e sentisse-as alisando sua pele.
No entanto, deveria tê-lo matado quando teve a chance.
Veck franziu a testa quando percebeu que seu pai havia falado sem mover os lábios. Balançando a cabeça, Veck interrompeu aquela conexão.
– Bobagem.
– Elogiar você? Estou sendo sincero. Deus é minha testemunha.
– Deus não tem nada a ver com você.
– Ah, não? – seu pai enfiou uma das mãos no macacão e retirou rapidamente uma cruz dali antes mesmo que os guardas pudessem sequer começar a ficar tensos por conta da regra das mãos expostas. – Posso garantir que ele tem. Sou um homem muito religioso.
– Porque lhe é conveniente, sem dúvida.
– Não tenho que provar nada a ninguém – neste momento, seus olhos brilhavam. – Deixo minhas ações falarem por mim... Foi ao túmulo de sua mãe ultimamente?
– Não se atreva a ir até lá.
Seu pai riu um pouco e levantou as mãos, mostrando as algemas de aço.
– Claro que não, eu não posso. Não tenho permissão para sair... Isto é uma prisão, não um hotel de luxo. E, embora tenham levantado uma acusação falsa contra mim, tenham me julgado de maneira errada e me sentenciado à morte injustamente, estou preso como todos os outros que aqui estão.
– Não há nada falso sobre onde você está.
– Acha mesmo que matei todas aquelas mulheres?
– Vamos ser mais exatos... Acho que assassinou cruelmente todas aquelas mulheres. E ainda outras.
Balançou a cabeça mais um pouco.
– Filho, não sei de onde tirou estas ideias. Por exemplo... – seu pai ergueu os olhos para o teto, como se estivesse diante de uma equação matemática complexa. – Você leu sobre a morte de Suzie Bussman?
– Não sou um de seus fãs. Então, não, não acompanho tudo o que faz.
– Não foi a primeira garota que me acusaram de ter assassinado, mas a primeira que pensam que matei. Foi encontrada numa vala de drenagem. A garganta e os pulsos tinham sido cortados e havia símbolos inscritos sobre seu estômago.
Quando seu pai ficou em silêncio, ergueu o queixo e olhou para Veck. Sissy Barten. Encontrada numa caverna. Com a garganta e os pulsos cortados e com símbolos ritualísticos inscritos sobre o estômago.
– Bem, filho, como sabe, serial killers possuem padrões que gostam de seguir. É como um estilo de roupa ou uma parte do país que gostam de morar ou um objetivo profissional. É onde se sentem mais à vontade para se expressarem... É acertar a bola no ponto ideal da raquete, é um filé perfeitamente preparado ou a sala decorada de acordo com sua preferência e a de mais ninguém. É seu lar, filho... É o local ao qual pertence.
– Então, está dizendo que todas as outras mulheres não foram trabalho seu, apesar das evidências, pois não correspondem ao padrão da primeira?
– Oh, eu não matei ninguém.
– Então, como sabe sobre os padrões?
– Sou um bom leitor e gosto de aprender sobre esta patologia.
– Posso apostar.
Seu pai inclinou-se e baixou a voz num sussurro.
– Sei como se sente, o quanto está à parte, o quanto estar perdido pode ser desesperador. Mas me mostraram o caminho e foi o melhor que pôde acontecer, e será a mesma coisa para você. Pode ser salvo... Será salvo. Apenas olhe para si mesmo e siga a essência que nós dois sabemos que possui.
– Então, posso crescer e ser um serial killer como meu pai? Não, muito obrigado.
Seu pai recostou-se e ergueu as mãos para o teto.
– Oh, isso não, nunca... Estou falando de religião. Naturalmente.
Sim. Claro.
Veck olhou em volta para as câmeras de segurança ao redor da sala. Seu pai era inteligente e não atribuía qualquer implicação para si mesmo com aquele gesto, mesmo que a mensagem implícita estivesse tão clara quanto os letreiros dos cassinos de Las Vegas.
– Encontre seu Deus, filho... – aqueles olhos brilharam outra vez. – Abrace quem você é. Aquele impulso o levará para onde precisa ir. Confie em mim. Eu fui salvo.
Enquanto falava, a voz transformava-se numa sinfonia obscura nos ouvidos de Veck, como se as palavras de seu pai fossem a trilha sonora de um filme épico.
Veck inclinou-se para frente, aproximando-se tanto que conseguia enxergar cada partícula preta na íris azul de seu pai. Sussurrando, disse com um sorriso: – Tenho certeza de que você vai para o inferno.
– E vou te levar comigo, filho. Não pode lutar contra o que é, e vai ser colocado numa posição que não poderá vencer – seu pai inclinou o rosto, como se alguém tivesse colocado uma arma em sua testa. – Você e eu somos a mesma coisa.
– Tem certeza disso? Vou sair daqui logo e você tem um encontro marcado com uma agulha na quarta-feira. Não vejo a “mesma coisa” em nada aqui.
Os dois se encararam por um tempo, até que seu pai recuou.
– Ah, filho, acho que vai me encontrar vivo e muito bem no final da semana – havia muita satisfação em seu tom de voz. – Vai ler sobre isso nos jornais.
– Como vai conseguir isso?
– Tenho amigos no submundo, por assim dizer.
– Nisso eu acredito.
O sorriso encantador e um pouco arrogante voltou, e a voz de seu pai diminuiu chegando a ser graciosa.
– Apesar de ter sido... um tanto amargo... estou contente por ver você.
– Eu também. Você é menos impressionante do que eu me lembrava.
A contração muscular no olho esquerdo do pai informou que as palavras de Veck atingiram um ponto fraco.
– Faria uma coisa por mim?
– Provavelmente não.
– Vá até o túmulo de sua mãe e leve uma rosa vermelha para ela. Eu amava aquela mulher até a morte, de verdade.
As mãos de Veck fecharam-se.
– Vou dizer uma coisa – Veck sorriu. – Vou apagar o meu cigarro no seu túmulo. O que acha disso, pai?
Thomas DelVecchio pai recuou, sua expressão era fria. Com certeza o encontro não estava sendo como ele esperava.
– A propósito, não se trata apenas de você – seu pai anunciou.
Quando Veck franziu a testa, o homem encarou o espaço em branco atrás do ombro de Veck.
– Ela quer que saiba que ela sofreu. Horrivelmente.
Jesus... Exatamente a mesma coisa que Kroner disse...
Veck conteve-se antes de erguer o olhar em direção a Jim, mas a reação do anjo foi clara: uma corrente fria percorreu o ar e passou sobre a cabeça de Veck, atravessando a mesa e arrepiando a pele das costas das mãos do pai de Veck.
Seu pai sorriu para o ar onde Jim se encontrava em pé.
– Não acha que vai vencer esta, acha? Porque não pode tirá-la dele. Um exorcismo não vai funcionar porque ele nasceu com isso. Não está dentro dele, é parte dele.
Seu pai olhou de volta para Veck.
– Acha que eu não sei que trouxe amigos? Garoto tolo, muito tolo.
Veck levantou-se.
– Terminamos.
Sim, era hora de ir: considerando a explosão de vento gélido que passou por ele, Jim Heron, o anjo, estava prestes a atacar seu pai. Seria divertido, mas será que era a coisa mais inteligente a se fazer? Era melhor seguir a linha “não aqui, não agora”.
– Nenhum abraço? – seu pai falou lentamente.
Veck não se incomodou em responder essa. Não desperdiçaria seu fôlego e seu tempo com o filho da puta. Na verdade, não tinha certeza da razão de ter vindo – apenas para trocar ofensas? Não havia qualquer encruzilhada visível para ele ali... Porém, talvez o importante tenha sido aquela mensagem para Heron.
Quando Veck virou-se e caminhou até o guarda, o cara abriu a porta rapidamente, como se também não quisesse ficar naquele ambiente nem mais um minuto sequer.
– Thomas – seu pai chamou –, vejo você no espelho, filho. Todos os dias.
A porta foi fechada e interrompeu as palavras.
– Você está bem? – o guarda perguntou.
– Estou bem. Obrigado.
Atrás do outro homem, Veck seguiu na direção de onde vieram.
– Para quando está marcada a execução?
– Para o primeiro horário da quarta-feira. Se solicitar ao diretor, acho que pode conseguir um lugar.
– Bom saber.
Enquanto andava a passos largos, Veck podia sentir a presença de seu pai com ele, como se a bateria daquela lâmpada maligna dentro dele tivesse sido carregada e recuperado a força que deixou de ter durante anos.
No centro do peito, aquela ira obscura queimava com vivacidade... e espalhava-se.
– Tem certeza de que está bem, detetive?
Veck não teve certeza de qual parte dele respondeu: – Nunca me senti melhor em toda minha vida.
CAPÍTULO 38
– Você fez a coisa certa.
Reilly olhou por cima da divisória que havia no cubículo. Sua supervisora estava encostada contra a repartição, de casaco, maleta numa das mãos e as chaves pendiam na outra.
– E deveria ir para casa.
Reilly sorriu um pouco.
– Só estou recuperando o atraso.
– Sem ofensa, mas isso é besteira... no entanto, não vou te impedir.
– Obrigada – Reilly esticou os braços sobre a cabeça. – Preciso fazer isso. Pelo bem da minha sanidade.
Na tela de seu computador estava a lista preliminar de provas feita assim que a caminhonete de Kroner fora apreendida. Fez uma busca da palavra brinco e agora examinava uma a uma as descrições e as primeiras fotos impressas.
Ainda havia mais ou menos quinze para examinar e, então, passaria um pente-fino na lista principal, que fora finalizada naquela tarde. Precisava entender sozinha coisas como aquelas.
A supervisora assentiu.
– Está certo, eu entendo. E só para te avisar, DelVecchio não retornou minhas ligações... E acabei de ligar para o sargento outra vez. Nada também.
– Quando vai emitir um mandado de prisão contra ele?
– Amanhã, depois do meio-dia, se ele não se entregar para ser interrogado antes.
A acusação seria adulteração de provas. Ela, sua supervisora e o sargento tinham examinado o vídeo de segurança da sala de provas filmado no dia anterior... Viram Veck entrar, olhar todos os objetos catalogados e, em seguida, vasculhar a caixa de coisas que ainda precisavam ser registradas. Esta fora sua oportunidade e, além disso, sua mão esquerda acessou o bolso várias vezes.
Não era uma prova muito concreta, mas combinava com as declarações de Bails e a discrepância na lista – era o suficiente para, ao menos, detê-lo. Além disso, se não atendesse às ligações, havia grandes chances de estarem certos.
– Seja honesta comigo – sua chefe disse. – Teme por sua segurança pessoal?
– Não – talvez.
– Quer que eu designe uma patrulha para sua casa?
– Na verdade, vou para a casa dos meus pais esta noite. E vou ficar com eles um tempo.
– Boa ideia. E considere a patrulha feita – a mulher colocou uma das mãos sobre o ombro de Reilly. – Não se culpe por nada disso.
– Como não?
– Não pode controlar as pessoas.
Mas, pelo amor de Deus, poderia escolher com quem dormiria ou não. Mudando de assunto, disse: – Então, já terminou de conversar com Bails?
– Sim, a declaração dele já está nos arquivos. Pode ler se quiser, é exatamente o que ele já te disse. Saiu há pouco tempo.
– Vou fazer isso. E antes que você diga... sim, eu prometo ir para casa antes da meia-noite.
Sua chefe já estava quase na porta quando disse em voz alta: – Quando vai conversar com os Barten sobre isso?
– Quando tudo estiver acertado aqui. Aqueles pobres coitados já passaram pelo inferno e voltaram, e a ideia de que um policial pode ter assassinado a filha deles vai piorar muito as coisas. Especialmente com o nome DelVecchio associado ao caso.
E ainda teriam que levar em conta que Veck esteve na casa deles.
Naquele momento, as palavras dele foram repetidas em sua cabeça: Eu levei aquele cara até a casa de uma vítima.
Deus, era um ótimo mentiroso.
– Ligue para mim se quiser conversar – sua chefe murmurou.
– Farei isso. E obrigada de novo.
Ao ficar sozinha, pensou em Jim Heron, o “agente do FBI”, o que havia “mostrado” a caverna onde os restos mortais de Sissy foram encontrados. Veck foi brilhante ao interpretar aquela cena. Tão surpreso quando tudo aconteceu. Tão profissional depois.
E quanto à falta de pegadas nas pedras? Heron poderia ter acampado ali durante horas, esperando que Veck levasse-a na direção certa, as solas dos sapatos secaram percorrendo o local. E todos ficaram tão paralisados ao encontrar o corpo que ninguém procurou por ele. Um grande erro.
Estava claro que Heron e Veck trabalhavam juntos.
Reilly soltou um palavrão e voltou a prestar atenção na tela. A última entrada de “brinco” na lista preliminar não demorou para ser examinada e, como esperava, não havia nada parecido com uma pomba ali. Como Bails dissera.
Quando passou para a versão final, com suas fotografias tiradas por um microscópio, a catalogação era tão sucinta que levaria apenas alguns minutos para encontrar o brinco. A discrepância não havia sido notada, mas seria, em breve.
– Que confusão – ela murmurou ao abrir o arquivo de Sissy para rever as fotos da autópsia.
Deus, era fisicamente doloroso só de olhar.
Ao longo dos anos trabalhando na polícia, tinha visto muitas coisas horríveis, mas a situação de Sissy era a pior. Talvez por ter se envolvido pessoalmente, graças a algumas decisões estúpidas de sua parte.
Cansada, mas ainda incapaz de ir embora, decidiu perder algum tempo na internet. Introduziu o nome Thomas DelVecchio Jr., e o Google lhe deu milhares de referências em dezessete segundos. Descendo a tela com o mouse, clicou e abriu alguns blogs e sites... Apenas para se sentir cada vez menos impressionada com a humanidade. Não que precisasse de ajuda naquele departamento.
Havia tanta adoração pelos motivos errados... Reilly ficou se perguntando quantas daquelas pessoas achariam divertido se a própria filha ou a própria mãe tivessem sido uma das vítimas. Ou se alguma delas em si tivesse caído nas mãos de DelVecchio... e sido ferida por suas facas.
Refinando a busca para pesquisar sobre as vítimas, achou muitas referências da primeira mulher que fora assassinada, incluindo algumas fotos da autópsia. E uma comparação lado a lado entre Sissy Barten e Suzie Bussman resultou em algo que ela já sabia: o método e as marcas eram os mesmos.
Que maneira de homenagear o pai. Deus, até mesmo os nomes eram muito semelhantes, de uma maneira assustadora.
Recostando-se profundamente em sua cadeira, seus olhos iam e vinham entre as duas metades da tela – e deu-se conta de que rezava para que encontrassem provas suficientes para condenar Veck. Tudo o que tinham até agora era o brinco plantado em meio às provas, a declaração de Kroner com relação à pedreira e o fato de que Veck estivera na casa dos Barten. Porém, todos tinham lidado com o caso como se Kroner tivesse feito aquilo. Ninguém tinha olhado para Veck – mas isso estava mudando agora. Sua mesa, computador e armário já tinham sido revistados e tudo foi apreendido. Sua casa seria interditada para fins de investigação. E, assim que aparecesse, seria levado direto para um interrogatório. Contudo, talvez ele tivesse fugido...
Reilly ergueu-se e girou na cadeira.
O batimento cardíaco rugia nos ouvidos, abafando o som do sistema de aquecimento instalado no teto e o zumbido do equipamento de informática... e o ranger que ouviu atrás dela.
Olhando para o teto, observou a câmera de segurança em uma das extremidades. A luz vermelha no centro da máquina piscava lentamente, o ciclo preguiçoso das ondas emitidas por aquele sinal indicava que estava funcionando.
– Quem está aí?
Ninguém respondeu, pois não havia ninguém ali. Certo?
Ouviu a própria respiração por um tempo e, então, pensou: Certo, isso é besteira – não seria intimidada no seu maldito departamento.
Empurrando com força a cadeira, andou pelos cubículos vazios e verificou as salas de reunião e os escritórios. Na volta, percorreu todo o caminho até a porta principal, abriu-a e olhou para os dois lados do corredor.
Virou-se rapidamente, quase esperando encontrar alguém atrás dela. Ninguém.
Praguejando baixinho, voltou para sua mesa, sentou-se e... quando o celular tocou, deu um pulo e colocou uma das mãos sobre a garganta.
– Ai, cale essa boca.
Difícil saber se estava dirigindo-se ao celular ou à sua glândula produtora de adrenalina.
Pegou a coisa, aceitou a ligação e exclamou: – Reilly.
– Como você está?
Ao som da voz do detetive De la Cruz, respirou fundo.
– Já estive melhor.
– O sargento me ligou.
– Que confusão – aparentemente, aquela era sua nova trilha sonora.
– Sim.
Houve uma longa pausa, preenchida pelo mesmo tipo de silêncio que marcou a viagem de volta dela e de Bails do hospital até a delegacia: Que diabos aconteceu – era a mensagem subentendida sem que se dissesse uma palavra.
– Alguém te contou sobre a outra parte da história? – ela perguntou.
– Que você e Veck estavam... ah...
Ela teve que fazer uma careta.
– Foi um péssimo julgamento de minha parte. Pensei que o conhecia, pensei mesmo.
– Isto é difícil, não? – as palavras foram ditas com um cansaço que vinha de toda uma experiência pessoal. – No final, só se conhece de verdade a si mesmo.
– Tem toda razão... e estou contente por ter ligado. Quando isto tudo acabar... e ficar tudo...
– Tudo o que as pessoas pensarão é que ele é um idiota. E esse é o melhor cenário que ele poderá vivenciar.
Assassino seria outra palavra muito ouvida, sem dúvida.
– Você vai superar isto – De la Cruz disse. – Só queria que soubesse que pode me ligar se precisar de qualquer coisa.
– Está sendo muito... gentil.
– Parceiros são uma coisa complicada. Já tive alguns.
Mas aposto que nunca dormiu com um deles – Reilly pensou.
– Obrigada, detetive.
Depois que Reilly desligou o telefone, ficou olhando para o nada. Deus, será que aquela história de Veck encontrar sua mãe morta era mesmo verdade? Ou teria sido apenas outra maneira de jogar com as emoções?
Bem, só havia uma maneira de descobrir... Não levou muito tempo para localizar algumas referências em blogs amadores relacionadas a esse capítulo em especial na história da família DelVecchio. Leu tudo sobre como Veck tinha descoberto o corpo, como foi interrogado e como foi inocentado de qualquer envolvimento com base nas evidências físicas: apesar de suas impressões digitais estarem por toda casa, não havia nada sobre a vítima, também não havia sangue sob as unhas, nem sobre as roupas ou em locais como o seu banheiro ou sua cama.
Com o corpo de Sissy Barten foi a mesma coisa: não havia qualquer evidência que ligasse Veck ao assassinato. Porém, Veck era um detetive que sabia exatamente o que fazer para não deixar nada para trás. Fato que a fez se perguntar sobre a mãe dele. E ficar preocupada.
Deus... E se ele conseguisse se livrar desta? As implicações de ser demitido por plantar provas eram muito menores que a acusação de assassinato processada com sucesso. Poderia ficar sem emprego, mas livre nas ruas. E se tivesse a mesma tendência do pai, de escorregar entre os dedos da Segurança Pública, poderiam se passar anos antes de alguém conseguir prendê-lo.
Enojada com tudo aquilo e, aparentemente, procurando ficar ainda mais, acessou o Facebook e digitou Thomas DelVecc...
Não precisou de muito para visualizar vários resultados. Indo de página em página lentamente, observou os fã-clubes aos quais Veck tinha se referido. Ao menos não havia mentido sobre aquilo.
O maior grupo tinha 20 mil membros. Acessou o mural e observou as fotografias alinhadas na parte superior da página; em seguida, viu as postagens posicionadas na vertical. Tudo sobre a execução. Tudo sobre a adoração.
Recostou-se para trás na cadeira e ficou encarando a tela. Passou-se um longo tempo antes de desligar o computador e pegar seu casaco.
– Quem é essa tal de “ela”? – Veck perguntou atrás do volante da caminhonete de Heron. – A quem meu pai se referiu?
Sentado ao lado do cara, Jim não olhava para nada. Tinham pelo menos mais uma hora antes de chegarem em Caldwell, então, havia tempo de sobra para jogar conversa fora... Mas não estava com muita pressa de falar sobre o clima, muito menos sobre Devina e Sissy.
Quer que saiba que ela sofreu.
Aquele demônio era uma tremenda vadia.
Veck soltou um palavrão.
– Maldição, é melhor um de vocês começar a falar. E se não quer me dizer nada sobre a garota, então é bom explicar que porcaria foi aquela de exorcismo.
Jim bateu a ponta do cigarro pela fresta da janela e decidiu enfrentar a última opção, em vez da primeira.
– Você não é nossa primeira tarefa. A primeira alma que salvamos... foi salva dando a Devina uma ordem de despejo.
– Devina?
– Um demônio em forma de mulher, cara.
– Foi ela quem sofreu?
– Quem dera – Adrian murmurou do banco de trás.
Jim concordava muito com ele.
– É assim que funciona. Devina é um demônio... E se precisa de mais explicações além desta, pense na sabedoria popular e terá uma boa imagem dela. Ela entra em alguém e gradualmente influencia suas escolhas e decisões. Em dado momento, a pessoa chega à encruzilhada e tem que escolher. Dependendo do caminho que decide percorrer, de como o segue, das ações que pratica... Tudo isso determina onde vai acabar. E o andar de baixo é um lugar maldito e quente demais, se é que entende o que quero dizer.
– Inferno.
– Isso.
Nesse momento, Jim pensou no pai daquele homem. Cara, aquele ser era pura maldade. E se fosse isso que estava vinculado a Veck?
– Vou acabar lá? – disse Veck suavemente, como se estivesse falando sozinho.
– Não, se pudermos ajudar.
Contudo, como diabos fariam isso? Especialmente levando em conta que Veck parecia mais misterioso desde que deixara aquela sala de visita. Mais irritado. Muito distante, mesmo estando tão perto.
Por que diabos Eddie teve que morrer? – Jim pensou. Precisavam tanto dele naquela situação.
Devina era uma tremenda vadia.
– Reilly está em perigo? – Veck perguntou asperamente.
– Quanto maior a distância entre vocês dois, melhor.
O cara soltou um palavrão novamente e murmurou: – Missão cumprida.
– É realmente mais seguro assim. Ela produziria mais danos colaterais e Devina adora isso.
Na lateral da rodovia, viram uma placa verde com letras brancas na qual se lia “CALDWELL 55”.
Quantos cigarros ele ainda tinha?
– Então, quem é “ela”? A que sofreu?
Ah, sim. Aquela pergunta iria ajudar muito seu humor.
– Alguém com quem me importo.
– Sissy Barten – Veck olhou para ele. – Certo? Kroner disse a mesma coisa, exatamente com as mesmas palavras, quando conversou com Reilly sobre ela. E você já havia dito que era pessoal.
– Disse mesmo.
– Então, o que são aquelas marcas no estômago da garota?
– Devina não conhece os modernos sistemas de segurança e alarme. Ela usa virgens – Jim endireitou-se em seu assento, seus músculos ficaram rígidos quando o impulso assassino foi acionado. – O que viu em Sissy é a maneira como ela consegue se proteger.
– Que... inferno. Então, a primeira vítima do meu pai...
– Talvez Devina o tenha obrigado a fazer aquilo como prova de fé. Talvez ele tenha apenas ajudado. Quem sabe?
– Há quanto tempo isso vem acontecendo? Entre você e o... – a pausa que se seguiu sugeria que Veck ainda estava se acostumando a pronunciar a palavra demônio.
– Há algumas semanas. Mas houve pessoas antes de mim... E ainda haverá depois se eu conseguir que você não siga o caminho que ela quer que você siga.
Jim olhou para as mãos do detetive. Envolviam com tanta força o volante que era um grande milagre ainda não o ter arrancado.
Certo, aquele tipo de fúria não agiria a favor deles: seria um estopim para Devina... Se ela atingisse o ponto certo, teriam que lidar com uma grande explosão. E Veck era um cara grande e forte capaz de matar pessoas com as próprias mãos e, provavelmente, fora treinado para isso.
Maldição, Jim odiava aquela espera.
– Aliás, vamos ficar com você esta noite.
– Imaginei. Só tenho uma cama, mas tenho um sofá.
– Estou mais interessado em parar em alguma loja de conveniência – abriu o maço de cigarros. – Está acabando.
– Tem uma perto da minha casa.
– Legal.
Veck colocou a mão no bolso e pegou o celular.
– Vou deixar ligado.
Enquanto Jim fervilhava de frustração, olhou para a janela ao seu lado em direção à estrada escura, perguntando-se quando as coisas...
– Que inferno – Veck murmurou. – Meu maldito telefone está estranho.
Quando Jim virou a cabeça lentamente, pensou: O tempo de espera acabou. Lá vamos nós...
CAPÍTULO 39
No Paraíso, Nigel jogava contra si mesmo. Xadrez.
Na verdade, era um pouco chato, mesmo seu oponente estando muito bem vestido e sendo incrivelmente astuto: acompanhava todos os movimentos que fazia, então, a falta do elemento surpresa não era nada desafiadora... apesar das estratégias brilhantes e ostensivas.
– Xeque-mate – disse alto em meio ao silêncio de seus aposentos.
Quando não houve qualquer palavrão, nenhuma acusação de práticas desleais, nenhum protesto ou exigências de revanche, lembrou-se outra vez por que motivo jogar com Colin era muito mais gratificante.
Levantando-se, afastou-se da mesa e deixou as peças como estavam: apenas duas sobre o tabuleiro, uma rainha branca e um rei preto.
O desejo de deixar sua tenda e sair andando pelo gramado em direção ao castelo, seguir até o rio, até o local onde Colin dormia, perfazia um impulso irresistível, que ultrapassava os limites mentais e chegava aos físicos.
Mas já fora levado por aquela loucura uma vez e foi muito constrangedor. Não faria isso novamente.
Distraído pela dor no peito, andou em volta da cama, entrou no banheiro e voltou ao quarto outra vez. Na verdade, não estava prestando atenção em nada exatamente... Bem, isso desde aquela refeição horrível... Quando a honestidade de Colin havia acertado em cheio o ego arrogante e irritadiço de Nigel.
Estranho como a posição de alguém mudava. Enquanto o tempo passava como uma corrente preguiçosa num grande rio de águas tranquilas, sua reação defensiva e impetuosa tinha se transformado em algo mais moderado... Preparando-o até mesmo para a possibilidade de se desculpar, desde que um pedido de desculpas fosse oferecido em troca. Prova de que milagres poderiam acontecer.
Infelizmente, tinha plena certeza da resposta que receberia e, conhecendo a si mesmo, bem como ao outro arcanjo, reconhecia que uma nova rodada de discussões não beneficiaria nenhum deles. Ainda assim, quem sabe Colin não poderia tomar a iniciativa de fazer as pazes?
Na verdade, embora Nigel não admitisse isso a ninguém, ele havia pulado várias das últimas refeições e passava o tempo todo ali, na esperança de que o arcanjo se aproximasse. Porém, a situação estava ficando inaceitável. Tal passividade não fazia parte de sua natureza e paciência era uma virtude da qual possuía muito pouco...
– Nigel? – veio uma voz do outro lado dos aposentos.
Nigel rangeu os dentes, mas conteve o palavrão que desejava proferir ajeitando duas vezes a gravata. A última coisa que precisava era de um visitante que não fosse Colin. Contudo, era pouco adequado punir um inocente bem-intencionado.
– Byron, meu velho – murmurou, indo para a entrada –, como estás...?
No momento em que afastou a pesada cortina de cetim e viu o rosto do outro arcanjo, ficou paralisado.
– O que foi?
– Colin... está aqui?
– Não.
– Não conseguimos encontrá-lo – Byron brincava com os botões de metal das mangas do casaco. – Quando ele não se apresentou para a refeição noturna, concluímos que estivesse estudando e o deixamos em paz. Mas, antes de começar, fui procurá-lo com algumas provisões. Não estava em sua tenda. Nem nas fontes de água. Nem no castelo... e nem aqui, pelo que vejo.
Nigel balançou a cabeça ao mesmo tempo em que se concentrou para ouvir seus sentidos – e não encontrou sinal algum do anjo. Na verdade, se não estivesse tão preocupado consigo mesmo, reconheceria antes o que notava claramente agora: Colin não estava no local.
Houve um breve impulso de ceder ao pânico, mas Nigel controlou a reação emocional. E, pensando logicamente, ele sabia que havia apenas um lugar para onde aquele todo iria.
Por que não havia previsto aquilo?
– Não se preocupem – disse Nigel gravemente. – Vou sair e o trarei de volta.
– Quer ajuda?
– Não – pois não se responsabilizaria pela punição que daria ao arcanjo. Conflitos pessoais eram uma coisa, insubordinação era outra completamente diferente. E este último item não seria negligenciado, de forma alguma.
Apenas com a força do pensamento, seu roupão e chinelos com monogramas transformaram-se num terno cinza-claro, uma camisa de um branco brilhante, uma gravata xadrez de tons suaves e um par de asas.
– Vá e console Bertie e Tarquin – disse ao outro arcanjo. – Sem dúvida estão preocupados. E saiba que não devo demorar.
– Aonde vai?
– Para onde ele está.
Com isso, Nigel saiu, atravessando a barreira que os ligava ao mundo lá embaixo. E, quando retomou sua forma corpórea, viu-se diante de uma garagem de dois andares de distinção modesta no interior do país.
Pensou em Edward descansando ali.
Que local comum para uma alma tão extraordinária.
Com uma concentração sombria, Nigel subiu as escadas estreitas e passou pela porta como se não fosse nada além de um véu de névoa. Não havia razão para abrir as portas. Com certeza já havia anunciado sua presença.
E Colin não pareceu chocado com a invasão. O arcanjo estava sentado num sofá gasto sob uma grande janela, descansando com um dos braços estendido sobre as almofadas e as pernas cruzadas, com um dos tornozelos sobre o joelho.
Nigel relembrou cada ângulo e linha daquele belo e rígido rosto masculino. Em seguida, observou os olhos negros e os lábios volumosos.
– Pensou que sua ausência não seria notada?
– Pareço surpreso com sua chegada?
– A maneira adequada de agir diante destas situações é pedir permissão antes de sair.
– Talvez para Byron e Bertie. Mas não para mim.
– Eu não teria negado.
– Como poderia saber?
Quando Nigel franziu a testa, sua ira diminuiu de repente, em seu lugar, sentiu a exaustão. Como os seres humanos suportam aquele turbilhão emocional? E por que havia permitido que seu coração sentisse aquilo? Não era nada bom. Além disso, não poderia continuar. Quando se dirigiu ao arcanjo outra vez, foi com serenidade.
– Colin, parece que você e eu alcançamos nossa própria encruzilhada. Por mais que eu esteja preparado para reconhecer certos... erros de julgamento da minha parte... temo que não seja suficiente para você, assim como água não é suficiente quando a necessidade real é de sangue. Além disso, acredito que, na sua tentativa de assumir uma posição lógica, a verdade sobre você mesmo se perdeu. Suas paixões te governam muito mais do que imagina e te levam em direções que comprometem nossos interesses coletivos.
Os olhos de Colin desviaram-se.
– Portanto, devo sugerir que deixemos no passado nossa relação íntima para que possamos assumir uma distância apropriada. Talvez com o tempo, possamos também voltar a trabalhar juntos em harmonia. Porém, até que isso ocorra, eu espero que se comporte de maneira adequada ou vou remover qualquer influência que possa exercer sobre a presente situação.
Quando não houve resposta imediata, Nigel caminhou até uma cozinha e parou diante de uma porta pequena e baixa. Atrás daquela frágil barreira repousava Edward, sem respirar, mas também sem se deteriorar, o corpo do anjo era como um vaso exalando o perfume de flores que não estavam ali.
Colin foi inteligente ao se dirigir àquele local, pensou Nigel. Com Jim e Adrian guerreando intensamente com Devina, aquele vaso não estava seguro – e, se fosse quebrado ou comprometido, não haveria como restaurar a alma de Edward.
Contudo, mesmo que permanecesse intocado, era impossível saber quando retornaria. Coisas dessa natureza estavam sob a alçada do Criador e dele somente. Além disso, seria um acontecimento sem precedentes. Mas mesmo assim, Colin deveria...
– Eu deveria ter dito onde estava indo – o arcanjo disse bruscamente. – Você está certo neste ponto.
Nigel virou-se. O anjo ainda estava no sofá, ainda estendido, mas tinha erguido os olhos, encontrando os de Nigel.
– Isto é um pedido de desculpas? – disse Nigel.
– Entenda como quiser.
Nigel balançou a cabeça e pensou: Não está bom o suficiente, velho amigo. Simplesmente, temo que ainda não seja o suficiente.
Ajeitando as mangas da camisa, puxou as abotoaduras de ouro e afirmou mais uma vez: – Estou me esforçando para ganhar este concurso vital da melhor maneira que conheço... Ou seja, dentro dos limites dúbios próprios deste jogo. Não posso aceitar a afirmação de que dois erros façam um acerto. Não vou aceitar.
– Não se iluda – Colin murmurou ao erguer uma das mãos e flexionar os dedos. – Nossas mãos estão limpas, como você diz.
– E veja como isso acabou. Edward está morto.
– Você não é o culpado por isso.
– Sou sim – Nigel balançou a cabeça. – É o que você não entende. Tudo isso é minha responsabilidade. Pode ter suas opiniões, suas discordâncias, sua ira, mas, no final, seus ombros não sentirão o peso de arcar com o ônus da derrota, se este for o resultado. Essa função é minha e só minha. Portanto, enquanto menospreza meu controle, você vê as coisas da vantajosa posição onde pode comentar sem sofrer consequências.
Com isso, Nigel andou até a porta.
– Estou feliz por você estar aqui e sei que protegerá bem algo tão precioso.
– Nigel.
Olhou por cima do ombro.
– Colin.
Houve um longo momento de silêncio. Quando pareceu que nada mais seria dito, Nigel olhou para a cozinha e pensou sobre a natureza da perda: é possível escolher certas coisas, outras não. Algumas eram impostas. E... outras eram permanentes.
– Vejo você mais tarde – disse Nigel, finalizando a conversa e saindo.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
Quando o último raio de luz solar esvaiu-se do céu, os restos mortais de Sissy Barten tinham sido embalados e removidos da caverna cuidadosamente.
Veck foi um dos rapazes que seguraram as alças da maca, sustentaram o peso do corpo e tiraram-no dali, levando-o para o ar limpo. Ele ficou por perto ao longo da tarde, mas preferiu ficar em segundo plano, limitando sua participação a tirar fotos com o celular, conversar com o médico-legista e ajudar sempre, sempre e sempre que possível com detalhes desnecessários. Reilly fazia o mesmo. E, então, a única coisa que havia para ser feita ali era subir o corpo até a encosta.
– Vamos por aqui – disse aos outros. – É o melhor caminho que temos.
Os quatro dirigiram-se para o norte e seguiram pelo caminho menos obstruído – algo muito relativo. E havia muita gente esperando a chegada do corpo.
Naturalmente, as equipes de reportagem tinham chegado e se posicionado nas margens da pedreira. Só Deus sabia quem os havia alertado. Com certeza não havia sido ninguém que estava exercendo uma função oficial ali. Mas, afinal, era uma área pública e, além da cidade inteira saber que a polícia havia capturado Kroner e que o cara se recuperava no Hospital São Francisco, também sabiam sobre a vítima naquele hotel e sobre as outras garotas mortas. O fato de alguns oficiais uniformizados começarem a percorrer uma área remota com um monte de lugares obscuros não indicava que alguém estivesse dando uma festa de aniversário em meio àquele amontoado de rochas. Além disso, agora havia um corpo envolvido num saco plástico.
Sobretudo, qualquer idiota tem um celular hoje em dia. E foi por isso que, no exato instante após a identificação do corpo com fotografias e marcas de nascença, De la Cruz saiu correndo da cena e entrou no carro. Embora o Departamento de Polícia de Caldwell não fosse liberar o nome à imprensa antes da família ser notificada, já havia inúmeros e-mails, mensagens de texto e ligações na delegacia – e não tinha como saber quem havia deixado escapar para a esposa, que tinha contado para a irmã, que, por sua vez, disse a alguém de um canal televisivo. Às vezes, a era da informação podia ser um saco. Ninguém desejava que os Barten soubessem sobre sua filha no jornal da noite... ou, que Deus os livrasse, no Facebook.
Enquanto Veck e os outros três rapazes resmungavam, estendiam-se, puxavam e levantavam, Reilly estava bem ao lado deles o tempo todo, direcionando a lanterna e iluminando o caminho enquanto começava a escurecer. E a escuridão parecia cada vez mais densa. Até ficar escuro como breu.
Quase uma hora depois, chegaram ao topo e colocaram os restos mortais na parte de trás de um dos veículos de resgate com todo cuidado.
Veck e Reilly ficaram para trás enquanto Sissy Barten era levada com segurança de volta à cidade.
Quando os outros oficiais começaram a se dispersar e os motores foram acionados, ela disse em voz baixa: – Não acho que...
– Kroner não a matou – Veck concordou com suavidade.
– O modus operandi não se encaixa.
– Nem um pouco.
E não foram os únicos que notaram a discrepância entre Sissy e as outras vítimas: aquele corpo fora suspenso pelos calcanhares e o sangue drenado... havia um desenho arranhado sobre o estômago. Além disso, apesar de estar nua e sem qualquer objeto pessoal, não havia manchas na pele que indicassem que alguma parte fora removida e nada que sugerisse abuso sexual – seria outra perversão típica de Kroner?
– Só não sei como explicar o brinco – Veck murmurou.
– Ou por que Kroner sabia onde ela estava se não a matou.
Veck olhou para sua parceira.
– Quer comer em algum lugar?
Apoiando os braços sobre a cabeça, ela espreguiçou-se.
– Sim, por favor. Estou faminta. E exausta.
Ele pegou o celular e enviou uma mensagem de texto: Sua casa? Você poderia tomar um banho. Comida pronta, prometo ser gentil.
Houve um sinal sonoro discreto e, depois de trocarem algumas palavras, ela pegou o telefone sorrateiramente e olhou a tela.
– Que plano perfeito.
O impulso que sentiu foi de beijá-la rápido e com firmeza. Mas se conteve a tempo, pois não estavam sozinhos. Alô! Estavam cercados de pessoas com quem trabalhavam.
Queria voltar com ela, mas teriam que seguir separados, graças a sua maldita moto. Caramba, e pensar que costumava gostar daquela coisa... Se não fosse por ela, Reilly não o teria levado para casa na noite passada.
– Vejo você em vinte minutos... – disse a ela.
– Tem certeza de que não quer um casaco extra?
– Vou ficar bem.
Ao caminhar pelo chão poroso e lamacento, Veck pensou em Jim Heron e na falta de pegadas. Passou mais algum tempo procurando evidências de que mais alguém, além dele e de Reilly, tivesse percorrido a área, mas não havia nada. No entanto, tinha plena certeza de que aquele homem não poderia ter atravessado todo o terreno molhado e irregular sem deixar qualquer vestígio. E Veck não imaginara a aparição daquele cara.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio. E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente. Sou o único que pode te ajudar.
Tanto faz, Heron.
Resistindo à tentação de gritar para as sombras, montou na moto, ligou o motor e esperou Reilly abrir o porta-malas e tirar as botas imundas. Ao menos aquilo o fez sorrir. Podia apostar que ela tinha um saco plástico ou tapete de borracha lá dentro para colocar os objetos sujos. Provavelmente, assim que chegasse em casa, lavaria imediatamente as botas para que estivessem prontas para o próximo uso.
Olhou para os próprios pés. Seus sapatos estavam arruinados. Do tipo que deveriam ser destinados a um saco de lixo, não serviriam nem se limpasse e engraxasse.
O difícil era encontrar outros em uma situação diferente daquela.
Reilly assumiu a dianteira e Veck seguiu-a pelo caminho até a cidade, mesmo congelando, pois dirigir a 110 quilômetros por hora numa noite como aquela era como sofrer o frio de um rigoroso inverno. A jaqueta não resolvia nada. Parecia estar de regata e nada mais, o frio o castigava. Mas não se importava com a temperatura. Em sua mente, voltou para o banho que havia tomado depois do pesadelo na floresta com Kroner, quando sentiu a presença obscura de algo envolvendo-o, falando com ele e acariciando-o, quando sentiu o maior de todos os seus medos. Não era daquele mundo. Nunca tinha sido.
Então ouviu a voz de Reilly: É como se tivesse caído do céu.
Deus, ele estava enlouquecendo. Só podia ser. Pois estava considerando, de fato, que Jim Heron não existia. Será que existia?
Mais ou menos dez minutos depois, saíram da estrada e seguiram o caminho em direção ao bairro de Reilly. Foi um alívio observar que tudo continuava bem e seguia normalmente: as casas iluminadas, TVs ligadas dentro delas, carros passando devagar e lojas nas esquinas com propagandas da loteria. Tudo poderia ser fácil e concretamente explicado. E quem poderia imaginar que Veck invejava aquilo?
Quando chegaram à casa de Reilly, estacionou atrás dela e saltou da moto enquanto ela entrava na garagem, as luzes vermelhas dos freios brilharam e desapareceram assim que ela desligou o motor.
– Deveria usar um capacete – ela disse ao sair, ir até o porta-malas e pegar as botas enlameadas.
Obviamente, depois disso, acendeu um interruptor, levou as botas até a mangueira do jardim que estava num canto na frente da garagem e lavou a sujeira. Quando olhou para ele outra vez, corou um pouco.
– Do que você está rindo?
– Tinha a sensação de que você faria isso.
Ela riu e voltou a se concentrar em seu trabalho de limpeza.
– Sou tão previsível assim?
Achou que a palavra supersexy também a definiria muito bem. Cara, mesmo uma tarefa trivial valia muito a pena observar.
– Você é perfeita – murmurou.
– Não sou, não, pode confiar em mim – desligando a água, balançou as botas, secou-as com uma flanela e colocou-as de volta no porta-malas.
Juntos, entraram na sua cozinha de galos e mais luzes foram acesas. A primeira coisa que Veck olhou? A mesa. A excitação foi instantânea. Assim como o replay mental da noite de dois dias atrás, quando fez muito mais que beijá-la ali. Aquela sensação, no entanto, não durou muito.
Pela porta de entrada do escritório, viu que ela tinha reorganizado os móveis: a poltrona tinha sido puxada para um canto, posicionada num ângulo mais aberto e havia uma mesa pequena ao lado dela. Deduzindo, imaginou que, se alguém sentasse ali, poderia observar tanto a porta da frente quanto a dos fundos de costas para uma parede sólida.
– Quer tentar uma pizza outra vez? – ela perguntou perto do telefone.
Virando a cabeça em direção a ela, disse um tanto rude: – Por que não me disse?
– O quê?
– Que andou sendo observada também.
Jim não esperou os restos mortais de Sissy serem retirados da pedreira e levados em direção à cidade. Em vez disso, separou-se de Veck, deixando Adrian com o cara e seguiu em direção à casa da família com um detetive baixinho de aparência séria que murmurava algumas coisas em espanhol.
Ele havia dito “Madre de Dios” várias vezes e feito o sinal da cruz tantas outras que já parecia ter um tique nervoso na mão.
De la Cruz não percebeu que tinha um passageiro em seu carro: Jim deu uma de copiloto no caminho de volta para Caldwell. Sim, claro, poderia sobrevoar pela noite, mas aquilo lhe daria tempo para se recompor.
Além disso, a introdução ao espanhol era instrutiva.
Vinte minutos depois de terem deixado o local, o detetive parou em frente à casa dos Barten, desligou o motor e saiu do carro. Ao ajustar as calças, o rosto era sombrio, mas, também, com as notícias que tinha... não era hora de sair exibindo sorrisos.
Na calçada, Jim ficou lado a lado com o homem, sem qualquer desejo de invadir a casa da mãe de Sissy, nem sequer por um momento, mesmo que ela nunca soubesse que Jim esteve ali.
Na porta, De la Cruz ergueu uma das mãos e colocou-a debaixo da gravata, sobre o peito. Havia uma cruz ali. Tinha que ser, especialmente porque ele começou a murmurar algo, como se estivesse rezando...
De repente, o detetive olhou em volta.
E, mesmo que De la Cruz não pudesse enxergá-lo, Jim encontrou aqueles olhos escuros tristes e cansados.
– Você consegue fazer isso. É um bom homem e pode fazer isso. Não está sozinho – Jim falou.
De la Cruz olhou para a porta outra vez e assentiu com ar seguro, como se tivesse ouvido as palavras. Então, tocou a campainha.
A senhora Barten abriu logo depois, como se estivesse esperando.
– Detetive De la Cruz.
– Posso entrar, senhora?
– Sim. Por favor.
Antes de entrar na casa, o detetive deixou os sapatos enlameados sobre o tapete de boas-vindas, e, quando a mulher observou-o, uma de suas mãos subiu até a garganta.
– Você a encontrou.
– Sim, senhora. Encontramos. Tem mais alguém que gostaria que estivesse com a senhora enquanto falo?
– Meu marido está viajando... mas está a caminho de casa. Liguei para ele logo depois que desliguei o telefone com o senhor.
– Vamos conversar lá dentro, senhora.
Ela estremeceu como se tivesse esquecido que estavam em pé na porta.
– Claro.
Jim entrou com o cara e, em seguida, estava mais uma vez na sala de estar, com a senhora Barten sentada na mesma poltrona florida do outro dia. De la Cruz ficou com o sofá e Jim começou a passear pela sala, sua raiva por Devina tornava impossível o ato de permanecer sentado.
– Diga – disse a senhora Barten de repente.
O detetive inclinou-se para frente e manteve os olhos fixos no rosto pálido e tenso.
– Nós a encontramos na pedreira.
Os olhos da mãe de Sissy fecharam-se com força e permaneceram assim. Então, a respiração saiu lentamente, até não restar ar algum em seus pulmões.
Aquilo foi o fim da esperança, Jim pensou. Talvez ela nem soubesse que ainda tinha alguma, mas lá estava, saindo de seu peito oprimido.
– Ela... foi... Ela sofreu...?
De la Cruz falou lentamente e com cuidado.
– Não temos certeza se ela faz parte dos assassinatos mais recentes.
Os olhos da senhora Barten abriram-se outra vez, seu corpo ficou rígido.
– O quê...? Então quem? Por quê?
– Ainda não tenho as respostas, senhora. Mas tem minha palavra: não vou parar até descobrir tudo e capturar o bastardo.
Jim não aguentava mais. Aproximou-se da mãe de Sissy e colocou sua mão invisível sobre o ombro dela. Deus... a dor que havia ali... podia sentir claramente, como se fosse sua própria dor, e, desejando aliviá-la da carga, puxou a emoção para si e conteve-a até seus joelhos dobrarem-se e começar a sentir tonturas.
De repente, como se estivesse fortalecida, a mulher endireitou os ombros e ergueu o queixo. Em voz baixa e forte, disse: – Como ela morreu?
– Senhora, precisamos que o médico legista nos diga isso. Ele está com ela agora e vai trabalhar a noite inteira para cuidar dela. Está em boas mãos e, depois que eu sair daqui, vou direto para lá. Não vou deixá-la, senhora. Não até que tenham terminado todos os exames. Tem minha palavra.
– Obrigada – a senhora Barten respirou fundo. – Como vou saber o que está acontecendo?
De la Cruz pegou um cartão e escreveu alguma coisa nele.
– Este é o número do meu celular. Pode me ligar a qualquer hora, dia ou noite. Meu telefone está sempre ligado e sempre comigo. E, assim que o médico terminar, a senhora será a primeira pessoa para quem vou ligar.
A senhora Barten assentiu e, em seguida, mudou seu foco. Os olhos alcançaram um meio-termo infinito entre ela e o detetive.
De qual parte da vida de Sissy ela estaria se lembrando? – Jim se perguntou. O nascimento... os aniversários... os feriados de Natal ou de Páscoa? Seria o Halloween ou o Dia da Independência? Ou nenhum feriado em particular, apenas alguma lembrança que veio de repente de um momento doce entre elas? Ou talvez qualquer expressão de bondade, empatia ou humor por parte de Sissy para com alguma outra pessoa...
Jim queria ver o que ela via, mesmo que não fosse bom ou nada demais. Mas não se infiltraria nela. O que havia acontecido com a filha já era suficiente...
A vibração que sentiu no peito não era o seu coração, era o telefone. Pegando o celular, leu a mensagem de Adrian: “Tentando entrar em contato e nada. Preciso encontrar você agora”.
Jim não queria partir, mas estava fora da casa num segundo. Dirigindo-se para o leste, concentrou-se em Adrian...
E ele apareceu em meio a uma luta no gramado dos fundos da casa da parceira de Veck.
Que porra...?
Parecia que os subordinados de Devina surgiram fervilhando na noite, seus corpos esfumaçados circulavam ao redor de Adrian como abutres sobre um cadáver. Mas ao menos seu amigo não estava à beira da morte... E, considerando a posição de luta que seu corpo forte tinha assumido, não estava nem perto disso.
Jim posicionou-se para a luta imediatamente e não esperou o sinal do juiz para começar. Entrou com tudo, lançando-se contra o inimigo mais próximo, enfrentando-o com força. Quando o bastardo gritou, o som estridente mudou tudo – numa fração de segundo, as coisas ficaram selvagens.
Segurando o filho da mãe, Jim fechou o punho e destruiu a coisa com um golpe na “cabeça”. Em seguida, conseguiu tirar vantagem do segundo de paralisia para olhar ao redor e lançar um escudo visual e auditivo em torno daquele show de horrores. Era um bairro de família, não um campo de guerra. E toda aquela luta mano a mano acontecia a alguns metros de distância de três outras casas. Todas cheias de linhas telefônicas aptas a chamar a polícia. Não precisavam nem um pouco que os caras do Departamento de Polícia de Caldwell aparecessem.
Sacando sua adaga de cristal, feriu o demônio que detinha e, então, começou a esfaquear tudo o que aparecia pela frente, cortando e dilacerando, lançando sempre a ponta afiada da arma que Eddie havia lhe dado e ensinado a usar.
Tudo o que sentia resultou em violência, toda dor e fúria foram desencadeadas, a ponto de não perceber que o sangue ácido do inimigo estava espirrando em seu rosto. E não se importava que aquela porcaria estivesse corroendo sua jaqueta de couro e ferindo sua pele. Na verdade, não conseguia sentir a terra embaixo de seus pés ao se lançar de demônio a demônio. Estava totalmente entregue e invisível ao mesmo tempo.
Em sua fúria, não conseguiam tocá-lo: eram garotos fazendo serviço de homem e estavam sendo devastados. Depois que Jim esfaqueou outra caixa torácica preta e o jato ácido atingiu seu maxilar e sua garganta, ele desvencilhou-se do corpo e já estava pronto para o próximo...
O golpe em suas costas foi um verdadeiro bote, o tipo de coisa que faz ver estrelas e ouvir pássaros cantar. Mas como soldado bem treinado que era, Jim aproveitou o ímpeto, deixou-se cair ao chão e apoiou-se sobre os ombros no último minuto para evitar mais prejuízos. Quando terminou de rolar e olhou para cima, o demônio que fora atrás dele estava pronto para a segunda rodada.
Certo, muito bem, Jim pensou.
O bastardo tinha pegado uma pá e, obviamente, usou a coisa como raquete de tênis, balançando a ponta de metal e golpeando com ela. E era difícil dizer, mas parecia que saía um riso da sombra tridimensional.
Com certeza, o imbecil filho da puta pensou que estava no comando, e Jim ficou mais que satisfeito em ensinar ao lacaio de Devina uma lição sobre responsabilidades. Mantendo-se abaixado e fingindo estar ferido, esperou a coisa se aproximar – e foi o que aconteceu, como se manipulasse aqueles braços e pernas oleosas com cordas: movendo-se como um robô com articulações rígidas, o demônio aproximou-se equilibrando a ferramenta pesada entre as mãos. Mais perto. Mais perto.
Quando já estava ao alcance, Jim levantou o tronco, pegou o cabo com as duas mãos e puxou com força. O demônio foi lançado para frente e perdeu o equilíbrio, a gravidade tomou conta daquele corpo e o empurrou para cima de Jim... Pelo menos a coisa não estava sangrando.
As botas de Jim atingiram o osso pélvico do inimigo para frear a descida e, em seguida, ele afastou-se e chutou o peso para longe – aproveitando para pegar a pá, claro.
Quando o demônio iniciou o pequeno passeio pelo ar rarefeito, Jim levantou-se, firmou o corpo e foi o primeiro a chegar à nova localização do idiota jogado ao chão. Balançando a pá, deu um fim à questão ao atingir o peito obscuro do bastardo.
Foi bom ouvir o grito. Mas ainda mais divertido foi dar um passo para trás e ver a coisa contorcer-se em câmera lenta. Aparentemente, Jim colocou tanta força no ataque que a ferramenta penetrou no chão, quase um metro, considerando a parte do cabo que ficou exposta. O demônio ficou preso, como um inseto capturado, erguendo os olhos e rosnando.
– É? Então, venha me pegar – Jim deu-lhe um segundo para se levantar. – Não? Prefere bancar o tapete de boas-vindas? Combina com você, seu filho da mãe.
Jim chutou a cabeça com força, como se o crânio fosse uma bola de futebol, e deixou o filho da puta onde estava. Do outro lado do gramado, Adrian estava prestes a ser surpreendido por um demônio que tinha encontrado uma enxada e aproximava-se dele correndo.
– O que é isso? Noite da liquidação de ferramentas? – Jim murmurou ao empunhar sua adaga outra vez. – Atrás de você!
Adrian jogou-se na grama assim que o jardineiro do inferno se lançou. Bem a tempo: o demônio atingiu um dos próprios colegas. O problema? Todo aquele sangue espirraria em Ad.
Jim estava prestes a se jogar sobre ele quando Adrian deu um jeito no problema: deixou os dois enfrentarem-se e saiu do caminho.
Havia apenas dois lacaios em pé à esquerda, e os guerreiros dividiram a tarefa. Jim pegou o que estava todo alegrinho com uma enxada nas mãos e Adrian levantou e começou a andar em círculos ao redor do outro, a adaga de cristal em punho.
Recusando-se a esperar por um golpe, Jim avançou e agarrou a enxada. Ergueu o objeto e lançou-o com força na testa do demônio. Resultado óbvio: Jim continuou a aniquilar a coisa esfaqueando-o com a adaga.
Quando virou-se, observou Ad terminando de lidar com o outro filho da mãe ao abrir um buraco em seus intestinos e, em seguida, cravar a lâmina em sua cabeça. Depois disso, não havia mais nada além de respirações ofegantes, couro fumegante e ferramentas de jardim jogadas ao chão.
Jim olhou ao redor, imaginando onde diabos estava... ah, sim, Reilly tinha um vizinho que possuía aquelas coisas para manutenção do quintal e o compartimento onde guardava tudo foi arrombado. Pena que o cortador de grama continuava no mesmo lugar... teria sido divertido. Poderia dar um novo significado para o conceito de cabelo raspado.
– Você está bem? – perguntou a Ad.
O parceiro, deitado na grama, respondeu.
– Sim.
Os dois tinham arranhões que sangravam, mas, ao menos, Jim estava sentindo-se melhor. A luta tinha lubrificado suas engrenagens e sentia-se mais ele mesmo. Mais calmo. Com maior capacidade de concentração.
Bem a tempo – pensou ao aproximar-se e ajoelhar-se ao lado do bastardo pregado ao chão.
– Você já tentou tirar informações de um deles? – disse enquanto examinava a coisa. Movia-se lentamente, era evidente que ainda estava vivo. Seja lá o que “vivo” significasse.
– Sim. Eles não têm nada a dizer. Não conseguem falar.
– Deve ser por isso que ela gosta deles.
Ad aproximou-se e enxugou o rosto com a ponta da camiseta. A mancha vermelha deixada no tecido poderia servir para aqueles testes psicológicos. Para Jim? Parecia a abertura de uma caverna. Uma caverna escura e profunda que escondia o corpo de uma inocente contra uma de suas paredes.
Sim, essa interpretação não era surpreendente.
Ao ouvir o som de um gemido, Jim pensou: Maldito demônio. Ela era esperta. Se seus subordinados eram incapazes de falar sobre ela por serem mudos, idiotas ou resistentes à dor, era uma boa estratégia para...
– Foi divertido assistir a isto.
Ao som da voz de Devina, Jim e Ad entreolharam-se. Concordaram em silêncio que a aparição dela não era nada inesperada. E, quando levantaram-se e viraram-se para ela, Jim colocou-se na frente do outro anjo. Não perderia outro para aquela vadia. Não naquela noite.
– Se escondendo de mim, Jim?
Os olhos do demônio ergueram-se e fixaram-se nele: eram tão intensos, pareciam enlouquecidos.
Mas que bobagem, ele pensou. Não tinha percebido que ela não conseguia encontrá-lo.
– O radar não está funcionando, Devina? – então foi por isso que Ad tinha sido atacado. Queria atrair Jim.
O demônio andou delicadamente sobre a grama. Usava um sapato com salto tão alto que Jim perguntou-se como ela conseguia respirar com o ar rarefeito ali de cima. Já a saia era do tamanho de um guardanapo e de uma cor tão chamativa quanto os cassinos de Las Vegas.
Soava ridículo, parecia sexy... Desde que não soubesse de fato o que era aquele ser. E Jim nunca iria se esquecer disso.
Estendendo uma das mãos para trás, colocou-a sobre o antebraço de Ad. O outro anjo estava rígido como um bloco de concreto, totalmente imóvel. E continuaria assim: não estava pensando direito ainda para enfrentar o inimigo. Nem Jim, para ser sincero. Mas ela não saberia disso.
– Alguma coisa em mente, Devina?
Ela parou ao aproximar-se de seu soldado morto-vivo que tinha sido reduzido a pedacinhos. Olhando para a coisa, ergueu uma das mãos e, com a urgência de alguém escolhendo um jornal, convocou o ser com a palma da mão, tirando-o do solo na forma de um fluxo e absorvendo a sujeira para dentro de si. Quando terminou, a pá continuava no mesmo lugar, enterrada no chão com o cabo para cima.
– Como está Eddie? – ela sorriu. – Cheirando a rosas?
Jim quis soltar um palavrão. É claro que ela abordaria esse assunto. Era a única coisa certa que faria Adrian enlouquecer. Maldição... E ele já estava pensando que a noite não poderia ficar pior...
CAPÍTULO 31
Quando Reilly encontrou os olhos de seu parceiro, pensou que os dois perderiam outra pizza: parado do outro lado da cozinha, Veck parecia muito chateado e, apesar do comportamento de homem das cavernas incomodá-la, ela sabia que aquilo tinha fundamento.
– Por que não me contou? – Veck perguntou de novo. – Ou, droga, se não para mim, para outra pessoa?
– Quem disse que eu estava sendo vigiada?
– Por que outra razão colocaria os móveis daquele jeito?
Viu? É por isso que não é tão interessante namorar um detetive... Cruzando os braços, Reilly recostou-se no balcão.
– Na verdade, eu não vi nada – encolheu os ombros. – Se tivesse alguma coisa para contar, eu diria. Mas apenas fiquei sentada naquela cadeira a noite toda, imaginando se eu não estava paranoica. Não aconteceu nada.
– Devia ter me ligado – com isso, ela ergueu uma das sobrancelhas e Veck amaldiçoou como se lembrasse de como as coisas tinham ficado entre eles. – Tudo bem, tudo bem... Mas, caramba, não quero você sozinha horas e horas esperando que alguém invada sua casa.
– Fiquei bem. Estou bem. E garanto que, se alguém tivesse entrado em casa, eu teria resolvido a situação.
Murmurando algo meio irritado, Veck aproximou-se e sentou-se à mesa da cozinha. Apoiou os braços sobre os cotovelos e coçou a cabeça.
– Isso está fora de controle.
Qual parte? A ideia de serem perseguidos? A situação com Kroner? O corpo que tinham encontrado? O sexo? A coisa toda envolvendo a palavra “amor”? Tantas opções.
Ao sentar-se na cadeira de frente para ele, pensou em seus pais, sentados juntos à mesa naquela bela casa. Podia apostar que nunca tiveram que olhar um para o outro naquelas circunstâncias...
Quando ouviram um grito vindo dos fundos da casa, ela e Veck estavam em pé antes que o som estridente terminasse. Armas surgiram ao se posicionarem um de cada lado da porta de correr que se abria para o quintal dos fundos. Reilly alcançou o interruptor e apagou as luzes, mergulhando a cozinha na escuridão, em seguida, acionou as luzes de segurança.
Seus olhos observaram o quintal bem iluminado. Não havia muita coisa ali. Era mais como um campo de futebol, e a única visão que tinha era dos pontos que ligavam as outras casas da vizinhança. Nada lá fora. Não que conseguisse enxergar. Mas seus instintos diziam outra coisa. E lembrou-se de todas aquelas pegadas que “Jim Heron” não tinha deixado para trás.
– Acho que estou ficando louca – ela murmurou.
– Engraçado, estou preocupado de que não estejamos.
Quando nada mais aconteceu, esperaram. E esperaram. E esperaram mais um pouco. Finalmente, os dois afastaram-se da porta e recolocaram suas armas no coldre.
– Precisamos de comida. E de um banho – Reilly murmurou. – E de uma avaliação psicológica.
Quando não houve resposta, olhou para seu parceiro. Veck andava pelo cômodo, como se estivesse prestes a levitar. Era evidente que não responderia coisa alguma. Então, entrou na frente dele, obrigando-o a parar ou passar por cima dela. Ele parou.
– Comida. Banho – ela ordenou. – Nessa ordem. Podemos pular a questão do psicólogo por enquanto.
Ele sorriu e acariciou sua face.
– É o seu jeito de me convidar para um encontro?
– Acho que sim, detetive.
– Então, que tal começarmos com um banho? – disse com uma voz grave que a fez pensar sobre o valor da limpeza.
A limpeza meticulosa, devagar, cheia de espuma.
Reilly teve que limpar a garganta antes de falar.
– Por que tenho a impressão de que vamos ficar lá em cima por um tempo?
– Não diga isso – ele aproximou-se mais e colocou as mãos sobre os quadris dela. – Acha que estamos tão sujos assim?
– Que tal imundos? – disse, concentrando-se nos lábios de Veck. – Já passamos do sujo e entramos no território do imundo.
Veck ronronou baixinho enquanto uma de suas mãos percorria as costas de Reilly. A outra desceu mais um pouco e agarrou-a, puxando-a contra ele, de tal forma que o pênis rígido pressionou os quadris dela com força. Ao fazer movimentos sinuosos com a cintura, acariciou com o órgão que já deixava-a sem ar.
Em resposta, Reilly elevou-se na ponta dos pés, arqueou-se sobre ele e colocou os braços em volta do pescoço do homem.
– Veck...
– Sim – ele rosnou.
Inclinando a cabeça para o lado, ela colocou a boca a menos de um centímetro da dele. Com uma voz ofegante e muito sexy, murmurou: – O que você quer na sua pizza...?
Então, ela colocou o lábio inferior entre os dentes e mordeu de leve. Veck gemeu e sentiu o corpo ficar muito rígido.
– Adivinhe.
– Serei a sobremesa...
Não se provocava um homem como Veck. Ele apoiou-a contra a parede, ergueu as mãos dela e segurou-as contra a parede de galos. Pressionando o seu corpo contra o dela para que o sentisse nas coxas e nos seios, assumiu um ritmo alternando movimentos até ela começar a ficar ofegante.
– É melhor fazer o pedido logo – disse, lambendo a garganta dela. – Ou não vou deixar ir até lá e pegar o telefone.
Veck estendeu o braço, aproximando-a do telefone. Mas não parou com o movimento erótico, nem com a língua. Em vez disso, empurrou uma das pernas entre as dela para aumentar o atrito... Ou fazer coisa melhor, dependendo do ponto de vista.
Deus, ela não tinha certeza se conseguiria usar o telefone. Ou lembrar-se do número da pizzaria para a qual ligava pelo menos uma vez por semana. De alguma maneira, pegou o fone e, com um insight, apertou o rediscar – pois acionara o último número há duas noites. Estava chamando. Veck beijava o caminho até seus ombros, o que dificultava um pouco a fala.
Conseguiu pronunciar o nome dela, o endereço e pedir uma pizza de calabresa e salame, grande. Em seguida, começou a negar as ofertas.
– Não... Não, só uma... Não... Não quero nada doce...
Começou a enterrar os dedos no cabelo espesso sobre a nuca de Veck e a arquear-se contra ele.
– Não... Deus, não... – certo, soou um pouco pornográfico, especialmente quando recusou um litro de Coca-Cola pela metade do preço. Desesperada, resmungou: – Só a pizza!
Na verdade queria gritar: “Pelo amor de Deus, mandem logo uma pizza!”
– O-o-obrigada.
O telefone foi colocado no gancho de forma um tanto precária e, em seguida, ficaram velozes e furiosos.
– Quanto tempo? – Veck rosnou contra a garganta dela.
– Vinte... minutos... – agarrou-se ao corpo dele, segurando-o pelos quadris. – Banheiro.
Veck pegou-a pelas coxas e levantou-a do chão. Segurando os ombros dele e envolvendo as pernas ao redor de seu corpo, Reilly firmou-se enquanto ele avançava para o banheiro do corredor.
Com os dois ali dentro, o pequeno cômodo encolheu ao ponto de parecer uma caixa de fósforos. Ao menos a pia tinha um balcão para colocar a mulher em cima. Reilly chutou a porta para fechá-la e começou a abrir a calça ao mesmo tempo em que ele atacou os botões da camisa. Muitas mãos para pouco espaço.
– Deixa – ela disse. Com isso, afastou-o e resolveu o problema em questão de segundos, arrancando a blusa por cima da cabeça e abrindo os zíperes a toda velocidade.
Veck pegou a carteira. E franziu a testa em seguida.
– É a última.
Ela parou no meio do processo de tirar o sutiã.
– Não tenho nada em casa.
E aquela seria apenas uma rapidinha antes da atração principal: Reilly completamente nua sobre a cama e os corpos envolvidos um em cima do outro.
Maldição... Nunca viu qualquer virtude em ser promíscua, mas, se quisesse fazer valer a pena todas as coisas que comprara na Victoria’s Secret, deveria ter algumas camisinhas na casa. Já ele? Foi até cavalheiro em não ter reabastecido o estoque, talvez por esperar que acontecesse algo entre eles ou por ter a intenção de ficar com outra pessoa. Pelo amor de Deus, pensou.
– Merda – disse Reilly.
Veck estava ofegante, o peito movimentava-se com força, seu corpo estava mais que pronto para o que tinham começado: seu pau entendeu que seria libertado e já estava saindo dentre as calças, lutando contra a cueca.
Com um palavrão, colocou a carteira de volta no bolso. E também guardou o pênis, contendo tudo e voltando a fechar as roupas com esforço, pois a dimensão do órgão estava enorme.
– Oh, não – ela disse. – Eu...
Ele voltou para os lábios de Reilly, interrompendo-a ao possuir sua boca com a língua. Com uma pressão sutil, inclinou-a para frente contra a parede, até ficar presa a um canto, o corpo quase estendido. Foi quando começou a tocá-la... Empurrou o sutiã para baixo e debruçou-se sobre os mamilos, brincando com eles até ela arquejar.
– Veck...
– Shhh. Deixe-me fazer assim com você.
Inclinou-se ainda mais para chegar aos seios, sugando-os enquanto as mãos iam a outros lugares: passeavam pelas coxas, acariciavam.
Fez um movimento preguiçoso para frente, erguendo-a, mas ainda não havia chegado ao ponto mais doce e excitado do corpo de Reilly. Enquanto isso, a boca fazia um milagre nos mamilos, provocando-os com movimentos rápidos e sugando-os outra vez logo em seguida e, Deus, a visão daqueles cabelos negros sobre sua pele nua era demais.
Passando as mãos pelo cabelo espesso, abriu ainda mais as pernas contra os quadris dele.
– Veck... por favor...
– Diga o que você quer – pronunciou contra os seios.
– Me toque.
Inclinou a cabeça para o lado e olhou para ela.
– Pensei em fazer isso mesmo.
Então, a língua rosa estendeu-se e fez um círculo quente e úmido sobre um dos mamilos. Gemendo, ela tentou arquear o corpo, mas não havia espaço.
– Aonde quer que eu vá, Reilly? – perguntou. Quando pegou a mão dele, pronta para guiá-lo num passeio, ele afastou os braços da mulher. – Não. Você tem que dizer.
– Veck...
– Bonito nome – colocou os lábios próximos aos ouvidos de Reilly. – Melhor ainda quando você o pronuncia parecendo que está prestes a gozar. Mas acho que não quer que façamos isso separados.
– Não seria difícil – ela gemeu ao imaginar aquela mão enorme segurando o pênis.
– Desculpe, meu objetivo é você. Onde, Reilly?
Dane-se. Os dois poderiam fazer aquele jogo de provocação. Ela deu um impulso sutil, e ele, gentilmente, recuou um pouco, sem dúvida pronto para ouvir todos os tipos de coisas divertidas. Em vez disso, ela baixou os olhos e começou a observá-lo... E colocou a própria mão entre as pernas dela.
– Estou pensando em você – ela disse, acariciando a si mesma. Em seguida, mordeu os lábios e movimentou os quadris ao mesmo tempo, não por querer fazer algum show, mas por ser assim que o sentia. – Me tocando... estou sentido você... me tocando...
Houve a impressão de que os joelhos dele curvaram-se. Ou isso, ou ela abalou o centro de gravidade de Veck... De qualquer maneira, ele afundou-se na parede e teve que estender uma das mãos para se segurar.
Tocando seu sexo, ficou assistindo Veck observá-la... E foi bom perceber que aquele ato solo não duraria muito. Os olhos possessos de Veck estavam fixos no que Reilly fazia, e o corpo dela tremia como se ele fosse assumir o controle a qualquer segundo.
– Quer ajudar? – ela balbuciou.
Veck estava sobre ela num piscar de olhos, auxiliando os movimentos até que ela saiu totalmente do caminho, pois era mais excitante para ele acariciá-la.
Com dedos ágeis, as calças de Reilly abriram-se e, em seguida, ele puxou-as pelas coxas, seus esforços receberam ajuda quando ela apoiou um dos pés contra o assento do vaso sanitário e ergueu-se. Com as calças abaixadas ao redor dos joelhos, teve acesso à calcinha e...
– Oh, Deus! – ela gritou ao ser tocada.
Havia algo muito delicioso na combinação entre seu órgão escorregadio e as carícias de Veck. E isso antes mesmo de ultrapassar a barreira de tecido e entrar em contato com a pele sobre seu núcleo.
Firmando-se em seus ombros, ela puxou-o contra sua boca enquanto ele concentrava-se no sexo, excitando-a cada vez mais, e mais e...
Reilly gozou, a força do orgasmo fez com que suas pernas pressionassem aquela mão talentosa, o corpo começou a se mover em impulsos ritmados. No entanto, ele não parou o que estava fazendo: apenas ajudou a continuar com as sensações até Reilly simplesmente ofegar de felicidade.
Quando Veck afastou-se um pouco e olhou para ela, sentiu que poderia não ter gozado, mas com certeza estava muito satisfeito.
– Gostou do aperitivo? – ele murmurou, a expressão de pálpebras baixas sugeria que sabia o quanto era bom.
Quando Reilly conseguiu se recuperar o suficiente para se mover, estendeu uma das mãos e tocou o pau duro dele através da braguilha fechada.
– Vai ser um prazer retribuir.
CAPÍTULO 32
Parado na frente de Devina, no quintal da casa da oficial de Assuntos Internos, Adrian, pela primeira vez em sua vida imortal e pouco natural, não reagia a uma provocação.
Como está Eddie? Cheirando a rosas?
Quando ele olhou por cima do ombro de Jim para aquela porção do mal em forma de uma mulher glamorosa de tão falsa beleza, as palavras do demônio começaram a girar ao redor de seu crânio como se ela tivesse colocado um de seus subordinados dentro da cabeça dele para que o filho da puta batesse em seu cérebro com uma marreta.
O velho Adrian teria pulado por cima de Jim, ou de qualquer outra coisa em seu caminho, e envolveria o pescoço dela com as mãos até não apenas sufocar a vadia, mas até conseguir arrancar a cabeça do tronco.
No entanto, era exatamente isso o que ela esperava. O que ela apostava que aconteceria. A razão pela qual tinha feito o comentário. E Adrian manteve o controle ao se dar conta de que sua instabilidade foi o que motivou o assassinato do seu melhor amigo. Jim estava certo: o nome do jogo era desestabilização, e o demônio fez o que fez pois tinha certeza de que isso iria ajudá-la na guerra.
Então, sim, por mais que isso matasse-o por dentro, por mais que o fizesse ranger os dentes e fechar os punhos, simplesmente ficou onde estava. Contudo, ele não poderia responder. Não confiava em si mesmo para isso.
– Eddie está são e salvo – disse Jim. – E estamos cuidando dele.
– Empregos novos como agentes funerários? Que pitoresco – Devina abriu um largo sorriso, como se estivesse profunda e verdadeiramente feliz. – Mas não sente falta dele, Adrian? Não se preocupe em responder, posso senti-lo daqui. Sabe? Se precisar de um ombro para chorar, estou sempre disponível.
Quando Ad estava prestes a dizer que Devina deveria enfiar a simpatia artificial no fundo do seu rabo, Jim intensificou o aperto sobre o braço dele... ao ponto de o cara sentir a circulação ser interrompida. O salvador estava certo: se reagisse como Devina esperava, Eddie teria morrido por nada. Depois da perda em si, isso seria a pior coisa que poderia acontecer. Então, ele colocou a outra mão sobre Jim, de modo que os dois permanecessem no lugar.
Devina pareceu perplexa por um momento. Mas não muito: – Paralisado pela dor, Adrian?
Uma eternidade se passou.
E, em dado momento, em meio àqueles segundos infinitos entre os insultos e a falta de reação, Adrian começou a congelar: suas emoções pararam de funcionar, como se queimassem – e, como uma estrela entrando em colapso, sentiu uma transformação que afastou-o do alcance de Devina.
Seria melhor tê-lo deixado sozinho em sua raiva. Mas agora que ela o havia impulsionado àquela clareza ártica, ele conseguiria, pela primeira vez, responder apenas usando a razão, e não o coração.
Soltou-se de Jim e afastou-se do salvador. Quando se separaram, Jim olhou ao redor como se estivesse prestes a interceder, mas Adrian ficou parado ao lado do cara e encarou o inimigo.
– Quer alguma coisa, Devina? – Adrian disse numa voz obscura. – Ou está apenas socializando um pouco?
Outra rodada de silêncio. Porém, desta vez, Devina começou a brincar com seus longos cabelos, com a saia curta, com as pulseiras de ouro. E para Ad não havia satisfação alguma em interromper a diversão do demônio. Apenas um silêncio mortal no peito, um poder ressonante que Adrian nunca havia sentido antes, mesmo com todos os instintos guerreiros ferozes que tinha. Era como se tivesse renascido. E poderia ser mandado para o inferno se voltasse a ser como era. Literalmente.
Quando Jim olhou para o outro anjo, pensou: Certo, quem é você e o que fez com Adrian Vogel?
O homem ao lado dele não chegava nem perto de quem conheceu e com quem trabalhou nas últimas duas rodadas na guerra. Era um robô parecido com Ad: absolutamente idêntico, mas desligado do original. Não havia emoção em seu rosto, em seu corpo, nas suas vibrações. Nada.
Algo dizia a Jim que a mudança era permanente, como se a placa mãe do cara tivesse explodido e sido substituída por outra. A paixão havia partido. O calor havia partido. No lugar? Uma frieza calculada – o que tornava-o intocável.
Era uma faca de dois gumes, não? Mas, de qualquer maneira, haveria tempo para se preocupar com as consequências mais tarde. Jim virou-se para Devina outra vez.
– Então, o que vai ser? Social? Ou negócios?
Devina deslizou uma das mãos pelo cabelo, as ondas movimentaram-se com leveza e brilho, como se estivesse num comercial de xampu.
– Estou muito ocupada.
– Então, por que está aqui conversando? – Jim pegou o maço de cigarros e tirou um. – Se é uma garotinha tão ocupada?
– Oh, não faz ideia de como estou trabalhando – seu sorriso sórdido parecia ter saído de um filme de terror, forçado, sem qualquer movimento natural. – Estou tentando fazer algumas mudanças no jogo. E não vejo a hora de esta rodada terminar.
– Porque você gosta do sabor da derrota? – tirou o isqueiro e acendeu o cigarro. – Que paladar estranho você tem, querida.
– Gosto do seu sabor – correu uma das mãos pelo corpo. – E vou me satisfazer em breve.
– Duvido.
– Se esqueceu do nosso acordo?
– Oh, não, eu me lembro.
– Eu não menti.
– Deve estar tão orgulhosa.
Quando Jim não disse mais nada, ela brincou com o cabelo mais um pouco... e isso foi tudo. Ficou ali parada na frente dele, cheia de gracinhas, sem ir a lugar algum. Caramba, talvez pensasse que estava sendo admirada. Talvez fosse uma loira burra, mesmo não tendo cabelo de verdade. Talvez estivesse...
Puta merda, ela estava vivendo um momento “namoradinha”, não? Emburrada por não encontrá-lo antes. Pois era esse o “motivo”.
Foda. Aquilo tudo era foda demais.
Era mesmo um namoro infernal.
E, mesmo sem saber por que não conseguiu encontrá-lo, Devina concluiu que, às vezes, a sorte simplesmente estava do seu lado.
De repente, o olhar dela voltou-se para a casa. Na janela dos fundos, na cozinha, Veck e Reilly apareceram. Pareciam desarrumados e estava claro que tinham acabado de dar uns amassos: estavam com aquele brilho de satisfação e felicidade, ao ponto de Jim achar que, se as luzes fossem apagadas, continuariam brilhando no escuro.
– Eu odeio eles – Devina disse, cruzando os braços sobre os seios.
Aposto que sim – Jim pensou. Pois havia duas pessoas apaixonadas ali.
E a inveja matava-a: seu rosto ficou tenso, os olhos iluminaram-se de ódio. Desejava ter aquilo com Jim.
Ha, ha.
– Então, precisa de alguma coisa? – ele perguntou com uma voz baixa e profunda.
Devina virou a cabeça com rapidez.
– Você precisa?
Para mantê-la ali, a resposta, claro, não poderia ser agradável. E, nossa, não era tão difícil fazer isso.
– Não de você – Jim assumiu uma expressão de tédio ao dar uma tragada no cigarro e exalar. – Nunca preciso de nada que venha de você.
A fúria no rosto de Devina animou-o. Em seguida, ela rosnou: – Tudo por causa daquela maldita Sissy.
Resposta errada, pensou. Resposta muuuito errada.
– Que Sissy?
– Não brinque comigo.
– Não estou brincando. Ao menos, não agora – deixou as pálpebras ficarem semicerradas. – Quando eu brincar com você, você saberá.
As palavras enojaram-no, mas Devina saiu do controle: corou de repente, como se estivesse se lembrando dos momentos que passaram juntos e, então, exibiu um sorriso grande e lento.
– Promete? – disse com voz rouca.
– Prometo.
Com isso, ela girou de alegria. Ótimo. Como se o estômago de Jim já não estivesse enjoado.
– Mas talvez eu seja um mentiroso – disse lentamente. – Acho que precisará esperar para ver.
– Acho que sim – os olhos examinaram o corpo de Jim de cima a baixo. – Mal posso esperar.
Francamente, aquela conversa toda fez Jim contrair-se, mas ele bloqueou a sensação. Não tinha certeza de que possuía total controle sobre o demônio. Mesmo ela estando apaixonada, essa era uma carta na manga que poderia deixar de funcionar, e Jim não sabia se a arma de sedução funcionaria para sempre. No entanto, cultivaria a qualquer custo aquela conexão pelo tempo que fosse possível.
– Bem, acho que é hora de parar por aqui, Jim – Devina deu outra pirueta. – Tenho que voltar ao trabalho, mas vejo você em breve.
– Se Veck está aqui nesta casa, por que precisa ir a outro lugar?
– Como eu disse, sou uma garota ocupada, você vai entender isso – soprou-lhe um beijo. – Até mais. E, Adrian, ligue se precisar de um ombro para chorar.
Com isso, saiu pela noite, uma névoa surgiu e desapareceu no ar. Então, se Devina não estava ali com Veck, Jim tinha que concluir que a luta era em outro lugar.
– Droga – murmurou, pronto para golpear alguma coisa.
– Não – Adrian disse. – Vamos ficar aqui. Vamos ficar com Veck.
Jim olhou para ele. O velho Adrian? Teria saído como um raio atrás dela. O novo Adrian? O calculista filho de uma puta estava superconcentrado, seus olhos frios e imparciais fixaram-se em Jim.
– Ela não vai nos enganar – Ad anunciou. – Vamos manter o foco e ficar aqui. Fumaça e espelhos não vão me influenciar.
Isso, é assim que se fala – Jim pensou, com respeito.
Naquele momento, o som de um carro estacionando em frente à casa ressoou. Aparecendo na rua com Adrian, Jim desembainhou sua adaga... Mas, em seguida, viu o pequeno sinal luminoso da pizzaria sobre o carro.
Oh, caaaaara. Pizza... e sexo. Talvez Devina tivesse razão. Difícil não invejar aquilo.
O entregador tirou o que precisava do carro e caminhou pela calçada. Veck atendeu, pagou em dinheiro e desapareceu. O carro partiu.
Nos momentos que se seguiram, Jim sentiu vontade de ir atrás de Devina... Podia sentir a presença dela em qualquer lugar da cidade... Mas não seria exatamente isso o que ela desejava? Não se podia confiar nela jamais. O novo Adrian estava certo: ficariam ali, firmes.
– Obrigado, cara – Jim disse sem tirar os olhos da porta sendo fechada e trancada na parte dianteira da casa.
– Sem problemas – foi a resposta concisa.
CAPÍTULO 33
Veck não sentiu o gosto da pizza. Para ele, a coisa poderia estar coberta de tiras de pneus e pedaços de gesso. Não conseguia parar de pensar em Reilly em cima do balcão da pia, pernas abertas, mãos acariciando a si mesma.
Sentado ao lado dela na cozinha, tinha plena certeza de que a mulher pensava mais ou menos a mesma coisa, pois comia com bastante objetividade. Porém, sem desalinho ou falta de boas maneiras... apenas de maneira limpa e rápida. Ele fazia o mesmo. Mas menos limpo.
Quando terminaram de devorar tudo, ele estendeu-se sobre a cadeira e olhou para o teto.
– Então, onde é sua banheira? – ele perguntou, tentando ser casual.
Aquilo a fez sorrir. E ele sentiu um desejo enorme de beijá-la por inteiro.
– Vou mostrar. Vai terminar este pedaço?
– Não – droga, se não fosse pelo estômago vazio resmungando, não teria se preocupado em apressar a transa para dispensar o cara da pizza. Mas Reilly precisava se alimentar.
– E você?
– Estou satisfeita.
Estou pronto para satisfazê-la de outra maneira – pensou.
Levantou-se e estendeu a mão para ela.
– Mostre o caminho.
Foi exatamente o que fez: subiu as escadas com ele e entraram num quarto que não tinha nada a ver com o local onde ele dormia. Os aposentos de Reilly tinham belas cortinas nas três janelas, uma cama cheia de travesseiros e um edredom grosso o suficiente para servir de cama elástica. Lugar perfeito para fazer amor.
– O banheiro é por ali – ela murmurou, apontando o caminho.
Veck aproximou-se, entrou na escuridão e tateou a parede para encontrar o interruptor. Quando bateu na coisa, quase caiu de joelhos com uma oração de agradecimento.
Uma banheira vintage enorme. Profunda como um lago. Tão grande quanto a cama.
E, como você pode imaginar, a torneira tinha pressão suficiente para abastecer uma mangueira de incêndio.
Quando a água quente começou a sair e encher a banheira, ele virou-se para chamar...
– Caralho... – ele sussurrou.
Reilly havia tirado as roupas e estava nua na porta.
Era o caminho mais curto para enlouquecer um homem: tudo o que viu foi uma pele linda, seios perfeitos e a linha sinuosa dos quadris que estava morrendo de vontade de agarrar.
Enquanto Veck tentava reagir sem palavrões, ou pior, sem começar a babar, ela puxou o laço do cabelo e balançou os fios avermelhados... com isso, os seios balançaram ligeiramente.
– Venha aqui – disse ele com voz rouca.
Ela aproximou-se com a cabeça erguida e o olhar baixo... Observava o pênis ereto cheio de desejo.
Perto dele, Reilly inclinou-se para beliscar sua orelha.
– A água já está bem quente?
– Entre – ele agarrou os quadris dela e apertou – e vai começar a ferver.
Curvou-se e uniu seus lábios aos dela, beijando-a. As roupas levaram... hum, um minuto e meio para serem removidas.
Então, como o cavalheiro que não era, mas que estava determinado a ser, ergueu Reilly e carregou-a para dentro da banheira com cuidado, posicionando-se de maneira que pudessem observar um ao outro. O vapor entre seus corpos tinha o aroma do perfume que sempre associou a ela, o que sugeria que a mulher fazia aquilo com frequência, talvez incluindo algum kit com cremes e sais de banho.
Mais beijos e mãos percorrendo todos os lugares do corpo junto com a água quente. Mas, quando ela tocou seu pênis ereto, Veck fez um movimento brusco e espirrou alguns litros de água no chão.
– Ai, merda... desculpe...
Reilly aproximou-se dele, empurrando-o contra a parede curva da banheira.
– Não estou preocupada com a água.
Quando fechou uma das mãos ao redor do pênis dele e começou a acariciar, Veck murmurou entre os dentes: – Não vou aguentar muito tempo se continuar assim.
– Não quero que aguente.
Ótimo, muito bom. Pois a visão dos seios lisos e flexíveis e o olhar erótico dela eram suficientes para fazê-lo gozar. Somando a carícia? Já estava ultrapassando e muuuito seus limites.
Veck começou a movimentar os quadris de modo que acompanhassem o ritmo de Reilly e deixou a cabeça cair para trás contra a borda sinuosa da banheira. O que lhe proporcionou um ótimo ponto de vista. O nível de água da banheira já havia sido recuperado, e os mamilos rosados e enrijecidos surgiam, desapareciam e voltavam outra vez...
Deixando-a brilhante. Muito brilhante. Como se ele a tivesse lambido por completo.
Foi a gota d’água. Seu maxilar ficou tenso e ele soltou um gemido alto quando seu pau explodiu contra aquela mão, o corpo arqueou-se com rigidez. Em resposta, ela exibiu um belo sorriso, digno de ser guardado na memória para sempre.
Contudo, por alguma razão... mesmo sendo algo muito desanimador... só conseguia pensar nela sentada naquela cadeira, armada, esperando alguém atacá-la. Estavam seguros ali, juntos, mas não duraria para sempre. Mais cedo ou mais tarde, teria que ir para casa, e ela ficaria ali sozinha. Deus, os dois sendo espionados? Era hora de assumir o controle da situação e manter aquela mulher com seu sorriso de tirar o fôlego em segurança. Da próxima vez que aquele Heron aparecesse, prenderia o bastardo. Mesmo se isso matasse os dois.
– Você está bem? – ela perguntou, sentindo com clareza a mudança nele.
– Ah, sim. Muito bem.
Reilly afastou a cabeça dele da borda da banheira, esticou a perna e girou a torneira com o pé. Em seguida, Veck puxou-a para perto dele, não tinha a menor intenção de desperdiçar o momento.
– Gostei muito disso – disse Veck contra a boca dela. – Mas tenho a impressão de que para você será melhor ainda.
Ficaram tempo o suficiente na água para aproveitarem o momento de tranquilidade, os beijos e as carícias. Não que ele precisasse de tempo para se recuperar. Estava pronto para outra logo depois do orgasmo que ela lhe proporcionara. Seu desejo por ela chegava a esse ponto.
– Vai me levar para sua cama? – Veck disse.
Quando ela assentiu com a cabeça, Veck estendeu-lhe uma das mãos com firmeza para ajudá-la a se levantar e, com cuidado, guiou-a ao sair da banheira alta.
– Cuidado – alertou. – Está molhado.
– Sim – Reilly olhou para baixo. – Vou pegar um pano para secar.
– Eu pago se por acaso tiver estragado o seu teto com a umidade.
Ao olhar para ele, Reilly virou-se com graciosidade.
– Teria valido muito a pena.
– Você é tão linda – ele disse suavemente, enquanto observava a luz sobre suas curvas.
Com as bochechas vermelhas, Reilly virou-se para a pilha de toalhas em cima do balcão e começou a jogá-las no chão ao redor da base da banheira. Mesmo muito satisfeito em apenas assistir ao show, Veck levantou-se da água e saiu.
O espelho sobre a pia deixou-o nervoso, mas esforçou-se para olhar o que havia ali. Nada além de seu reflexo. Nada de sombras. Nada se movendo entre suas costelas e dificultando sua respiração. Aliviado, aproximou-se dela por trás. Perto do corpo molhado e cálido, abaixou-se e beijou seu ombro.
– Não estou... acostumada com isso – tirou a última toalha da pilha, como se estivesse impaciente consigo mesma. – Eu só... não sei como lidar com isso.
– Você lida comigo muito bem – com isso, percorreu o dedo indicador sobre as costas de Reilly. – Melhor do que ninguém.
Ela riu numa explosão um pouco tensa.
– Não sei por que, mas eu duvido.
– Não duvide. Você é especial.
Colocou as mãos no pescoço dela e acariciou as costas até chegar aos quadris. Em seguida, seus lábios seguiram a mesma trilha, beijando e mordendo a partir do pescoço... e descendo cada vez mais.
Ajoelhando-se, Veck correu os lábios até as coxas, movendo-se gradualmente para se aproximar da junção sobre a qual pensava o tempo inteiro. Com essa insistência gentil, ela inclinou-se sobre o balcão, expondo seu órgão e enlouquecendo Veck...
Com um movimento súbito, ele aninhou-se ali e sugou-a.
Era doce... quente... e escorregadia tocando sua língua. E ela também estava adorando, braços apoiados sobre o mármore para manter o equilíbrio, a respiração ficou forte e ofegante.
Usando as mãos, Veck afastou os pés dela ainda mais para ganhar espaço; em seguida, percorreu as palmas das mãos de volta às coxas e segurou-a com força para deixá-la bem firme contra seu rosto: movimentos rápidos. Sucções profundas. Penetração com a língua.
Levou um tempo, pois havia muito para explorar e Reilly já não aguentava mais. Com uma das mãos, tocou o centro superior do sexo dela ao mesmo tempo em que passava a língua ali dentro. Os rápidos movimentos circulares no lugar certo levaram-na às alturas, e Veck adorou a maneira como ela se contraiu internamente e curvou-se contra ele.
Quando Reilly gozou, ele afastou-se. Através das pernas trêmulas, teve uma linda visão de seus seios que pendiam para baixo com as pontas roçando o mármore ao oscilarem para frente e para trás no ritmo da respiração.
Veck fechou os olhos com força e precisou de um minuto para se conter. Queria gozar dentro do local onde sua língua esteve.
O. Orgasmo. Da. Sua. Vida.
Enquanto Reilly esforçava-se para ficar em pé, seu corpo ainda estava a toda velocidade – porém, não havia lugar algum para ir, então, tudo o que os músculos das coxas fizeram foi permanecer no lugar. E isso não era nem a metade. Sua mente queimava, ao ponto de não saber exatamente onde estava.
Virando a cabeça, ficou face a face com o creme dental e as escovas de dente. Banheiro. Bem, parece que nunca mais olharia da mesma maneira para esses dois locais da casa... espere. Eram três. O lavabo do andar de baixo e a cozinha também.
Enquanto o mundo girava, percebeu que Veck pegou-a no colo. Boa ideia. Achava que não conseguiria andar mesmo – e foi uma ótima maneira de se secar. No quarto, ele deitou-a sobre a cama e cobriu-a com o edredom até a cintura.
– Volto já – ele disse.
Contudo, não ficou sozinha por muito tempo, pois ele agiu rápido: desceu, vasculhou um cômodo no andar de baixo que pareceu ser a cozinha e voltou rapidamente. Ao entrar, apagou as luzes. No começo, Reilly achou que seria por alguma modéstia – não precisava disso, claro, não depois do que fez sobre o balcão – mas então viu que ele colocou algo sobre a mesa de cabeceira.
A arma dele. Não, havia duas. Trouxera a dela também. Deve tê-las encontrado sobre a mesa onde se desarmaram antes do jantar. Que romântico.
A lembrança do que acontecera na noite anterior congelou-a, mas ele cuidou disso, cobrindo-a com seu corpo quente e forte.
– Não pense nisso – Veck sussurrou. – Não agora. Haverá bastante tempo para cuidarmos disso.
Tocou o rosto de Veck e desejou que estivessem em férias em algum lugar bem longe de qualquer dever que tinham com o trabalho e da situação que os unira.
– Você está certo – ela disse. – E não quero esperar mais nem um minuto.
Ele assentiu e pegou a última embalagem quadrada que guardava na carteira. Quando terminou de colocá-la, montou sobre ela outra vez e, ao abrir ainda mais as pernas da mulher, sentiu uma mudança nele, e também nela: tudo ficou mais lento.
Ao entrar nela deslizando suavemente, Reilly acolheu-o não apenas com seu sexo, mas com a alma, beijando-o profundamente.
Sem palavras, sem hesitações, sem quaisquer reservas, eles moveram-se juntos, criando uma dinâmica, intensificando tudo. Quando finalmente gozaram, foi ao mesmo tempo, e continuaram juntos mais um tempo: ela com as unhas cravadas nas costas de Veck, ele com os braços embaixo dela, apertando seu corpo.
Era a união perfeita. E, depois, mesmo Veck tendo que sair dela, deitaram no escuro o mais próximo possível um do outro, os corpos formaram uma massa tépida no centro da cama.
– Vai me deixar passar a noite aqui? – ele perguntou.
– Sim. Por favor, sim.
– Já volto. Fique embaixo das cobertas – ele disse.
Boa ideia. Porque, quando Veck saiu, o frio percorreu rapidamente todo o corpo dela. Poucos minutos depois, voltou do banheiro e juntou-se a ela.
– Estou do seu lado da cama?
– Ah... não. Eu fico aqui mesmo.
– Que bom.
Ela virou-se e ficaram face a face, cabeças sobre os travesseiros, os corpos aqueciam-se sob o peso dos cobertores. Veck roçou a ponta do dedo sobre a bochecha dela... ao longo do maxilar... sobre os lábios.
– Obrigado... – ele sussurrou.
Deus, ela mal conseguia respirar.
– Pelo quê?
Houve uma pausa.
– Pela pizza. Estava do jeito que eu gosto.
Reilly deu uma risada.
– Espertinho.
– Venha. Preciso abraçar você.
Ela sentia o mesmo. E quando não havia mais distância entre eles, a sensação era de voltar para a casa depois de um longo dia.
Com a cabeça em seu peito, sobre o coração que batia, com os braços de Veck ao redor dela e com uma das pernas jogada sobre a dele, estava confortável e segura. Enquanto ele acariciava seus cabelos com movimentos preguiçosos, ela fechou os olhos.
– Isto é simplesmente perfeito.
Com isso, Reilly pôde ouvir o sorriso na voz dele: – É como eu quero que seja para você. Quero fazer tudo perfeito para você.
Quando Reilly adormeceu, seu último pensamento foi sobre a ansiedade em fazer tudo outra vez. Não apenas o sexo. Aquela calma adorável, inestimável, era ainda melhor do que fazer amor. Apesar de não ter sido nem um pouco ruim.
CAPÍTULO 34
Na manhã seguinte, enquanto Veck ia para a delegacia, sua principal tarefa foi não ficar sorrindo o tempo todo feito um idiota. Difícil.
Estava uma hora atrasado, pois ele e Reilly ficaram envolvidos em atos que, por não terem mais camisinhas, poderiam chamar de “preliminares”. Assim, considerando que não tinham o material de látex apropriado, o que aconteceu foi melhor do que qualquer relação sexual que teve com qualquer outra pessoa antes – cinco mil vezes melhor. Também havia passado na farmácia a caminho do trabalho e comprado um estoque do que precisava.
Enquanto caminhava pelo saguão, acenava para as pessoas, mantendo uma atitude profissional, porém o adolescente dentro dele estava explodindo como se tivesse vencido vários campeonatos esportivos numa só noite.
Quando chegou ao topo da escada, rezou para não encontrar Britnae e suas ofertas de café da manhã. Aquela garota não tinha nada a ver com sua Reilly e já era hora de desfazer aquele hábito de abordá-lo o tempo todo. Mas nem precisou se preocupar. Um dos caras do turno da noite, da recepção e vigilância, estava na mesa dela. Veck não conhecia o oficial muito bem, mas ele parecia diferente. Como se tivesse assumido o papel de um galã de cinema, apesar de estar mais para Homer Simpson. Britnae? Devorava aquele homem com os olhos.
O que provava que aquilo que havia por dentro era o que contava – e quem poderia imaginar que uma garota do tipo de Britnae seria capaz de descobrir isso?
No Departamento de Homicídios, Veck sentou-se à sua mesa e ligou o computador. Em seguida, foi atingido por uma ideia romântica desconhecida e inegável: abriu sua caixa de e-mail, selecionou o endereço de Reilly nos contatos e preparou-se para enviar alguma coisa. Havia o espaço da tela em branco para preencher. Muuuito espaço. No final, digitou algumas palavras. E apertou logo enviar, antes que alguém olhasse por sobre seu ombro.
Depois, apenas ficou ali, observando a tela, perguntando-se se teria feito a coisa certa... até perceber que estava olhando para a caixa de entrada e o relatório sobre Sissy Barten do médico legista já estava pronto. Com certeza, o cara tinha virado a noite para terminar a autópsia.
Veck leu tudo e examinou cada uma das vinte ou mais fotografias do corpo. Não havia nada nelas que não tivesse visto por si mesmo na pedreira e, quando chegou às marcações ritualísticas no tronco, inclinou-se para trás e bateu o dedo indicador sobre o mouse. Se não tinha sido Kroner, quem teria sido?
– Correspondência.
Veck olhou para o funcionário com seu carrinho cheio de envelopes e caixas.
– Obrigado, cara.
Três mensagens. Duas interdepartamentais. Uma do correio americano... Era apenas uma carta que retornara de Connecticut. Endereço não encontrado? Nos últimos dez anos, evitou atualizações de cadastro junto às instituições federais.
Examinando o envelope, sentiu que, se começasse a abrir, não poderia mais voltar atrás. Seu primeiro impulso foi jogar a carta fora, mas a atração em saber o que havia lá dentro tornou o ato impossível – e pensou que odiava o poder mental que seu pai exercia sobre ele.
Ligue quando ficar assustado o suficiente.
Não desperdiçaria energia com o motivo pelo qual a voz de Heron soava em sua cabeça enquanto rasgava o embrulho.
Dentro, havia uma folha de papel com três linhas escritas com uma letra elegante e fluída que representava muito mais a imagem de riqueza que seu pai ostentava que suas origens do centro-oeste do país.
Caro Thomas, espero que esta mensagem o encontre bem. Gostaria que viesse me ver assim que possível. A prisão permitiu que eu recebesse uma última visita e escolhi você. Há coisas a serem ditas, filho. Ligue para o número abaixo. Com amor, seu pai.
– Você está bem?
Veck olhou para cima. Reilly estava em pé ao lado dele, ainda de casaco e a bolsa pendurada no ombro, seu cabelo macio fora lavado há pouco tempo.
Se não fosse pela noite anterior, teria respondido um “sim, tudo bem” e continuado a fazer suas coisas. Em vez disso, simplesmente ergueu a carta para ela.
Reilly sentou-se na cadeira enquanto lia e Veck acompanhou o movimento de seus olhos indo da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Então, voltou ao topo e releu.
– O que vai fazer? – ela perguntou quando finalmente ergueu os olhos.
– É suicídio mental ir vê-lo – Veck esfregou os olhos para apagar a impressão que aquelas palavras produziam. – Um maldito suicídio mental.
– Então, não faça isso – Reilly disse. – Não precisa ficar para o resto da sua vida com o que ele vai dizer atormentando a sua cabeça.
– Sim.
O problema era que seu pai não era o único com alguma coisa em mente. E, com certeza, seria ótimo ser adulto o suficiente para se afastar dessa situação, mas sentia que precisava olhar naqueles olhos uma última vez – ao menos para ver se havia realmente alguma coisa em comum entre eles. Afinal, durante anos, acreditava ser louco, cobrindo espelhos, observando sombras, ficando acordado durante a noite pensando se tudo não passava de paranoia ou se percebia algo de fato. Poderia ser a última chance de descobrir.
– Veck? – ela disse.
– Desculpe.
– Vai até lá?
– Não sei – era verdade. Pois ela tinha razão. – Ei, ah... o relatório de Sissy Barten chegou. Precisa dar uma olhada.
– Certo – apoiou a bolsa. Tirou o casaco. – Alguma surpresa?
– Tudo é surpreendente neste caso – Veck olhou ao redor. – E quero conversar com Kroner.
Reilly olhou Veck direto nos olhos.
– Nunca vai conseguir permissão.
– Não estava pensando em pedir.
Reilly soltou um palavrão baixinho. Não era o que planejava para um início de conversa matinal. Depois que Veck deixou sua casa, ela tomou um bom banho, depilou-se por completo e mergulhou nas suas sacolas da Victoria’s Secret.
O conjunto preto e vermelho de lingerie que vestiu lembrava-lhe cada beijo, lambida e carícia que compartilharam – e desejava mais daquilo assim que possível. Então, planejava chegar ali, agir profissionalmente e, de maneira bem discreta, apontar para o que havia sob as roupas. Em vez disso, entrou numa questão administrativa.
Olhando para seu parceiro, balançou a cabeça.
– Agir precipitadamente não é a resposta. E, se você quer continuar com isso, vai me colocar numa situação terrível.
– Sissy Barten é o que importa, não normas burocráticas. E eliminaram qualquer possível envolvimento meu no que aconteceu naquele hotel, lembra? Foi você quem fez isso – endireitou-se na cadeira. – Kroner não a matou, e você sabe disso. Serial killers não variam o estilo. Cometem alguns deslizes ou param no meio do que estão fazendo quando são interrompidos. Mas um cara que coleciona troféus de suas vítimas não começa, de repente, a arranhar símbolos na pele delas ou as deixa sangrar por completo. O que preciso descobrir é por que aquele homem sabia sobre a pedreira e por que diabos o brinco da garota está no meio das coisas encontradas na caminhonete dele. Tem alguma coisa que não estamos entendendo em tudo isso.
Reilly não podia discordar de nada. O método que ele empregava era um problema.
– Outra pessoa poderia perguntar a ele sobre essas coisas.
– Você?
– Sim.
No silêncio que se seguiu, Reilly pensou: Bom, pelo menos estivemos em sintonia durante a noite e no início da manhã. Pena que isso não durou muito tempo.
Ele discutiria com ela sobre isso, ela ficaria chateada e, então, tudo o que compartilharam antes e depois daquela pizza seria jogado pela janela...
– Certo – ele disse. Quando Reilly recuou, Veck apertou a boca: – Não precisa ficar tão surpresa. Só leve Bails com você dessa vez. Ou De la Cruz. A ideia de você ficar sozinha com aquele homem, mesmo ele numa cama de hospital e você armada, me deixa arrepiado.
Deus, ela quis envolver o rosto dele com as mãos e beijá-lo por ser tão sensível. Mas, em vez disso, sorriu e pegou o celular.
– Vou verificar se De la Cruz está disponível agora mesmo.
Ao falar com o detetive por telefone, ela estava acessando sua caixa de e-mails... e quase perdeu o foco da conversa. Veck tinha deixado algo em sua caixa de entrada, e Reilly clicou duas vezes para ver o que era ao mesmo tempo em que ouvia uma novidade sobre as condições de Kroner.
Havia apenas três palavras: Eu te amo.
Olhou para o lado com rapidez. Mas Veck estava ocupado olhando a tela do computador.
– Alô? – disse De la Cruz.
– Desculpe. O quê?
– Por que você e Bails não vão juntos?
– Tudo bem – seus olhos permaneceram no rosto de Veck, que olhava para a tela à frente dele. – Se ele estiver pronto para sair, também estou.
Algumas outras coisas foram ditas, mas Reilly não as ouviu. E, quando desligou, estava perdida. Não havia nada de eu acho antes do “eu te amo”. Nenhuma foto idiota embaixo das palavras com um gato e um cachorro com olhares carinhosos produzidos pelo computador. Não havia como interpretar errado a frase.
– Só achei que deveria saber – Veck disse baixinho.
Não tinha consciência de que estava enviando uma resposta ou de que digitava alguma coisa no teclado. Simplesmente aconteceu...
– O que está acontecendo aqui?
Reilly limpou a tela com um clique rápido. Girando a cadeira, olhou para Bails. Droga. Estava bem atrás dela, e parecia tenso.
– De la Cruz te ligou? – ela disse suavemente.
O cara olhou para as costas de Veck – de quem não conseguiu tirar qualquer informação, óbvio. Então, seus olhos voltaram-se para ela.
– Ah... sim, ele ligou. Há um segundo.
Estranho, mas ouviu a música do programa Jeopardy! em sua mente. E percebeu que ele lera o que havia naquele e-mail.
– E quando pode ir ao hospital comigo? – ela perguntou.
– Ah... tenho um suspeito chegando para um interrogatório agora. Então, pode ser depois disso?
– Sim. Estarei aqui.
Ao observá-lo, percebeu que o olhar de Bails estreitou-se muito, sem qualquer sinal de desculpas pela suposta invasão de privacidade. Não conhecia muito bem o cara, mas ficou evidente que não estava feliz. E é por isso que não se namora pessoas do trabalho. Amigos possessivos já eram chatos o suficiente quando se tinha que acompanhar o namorado em jogos de pôquer ou eventos esportivos e era preciso lidar com eles nessas ocasiões. Conviver com eles oito horas por dia, então?
Porém, assim que o período probatório de Veck terminasse, ela voltaria para o Departamento de Assuntos Internos. Relaxou um pouco com essa ideia. Muito melhor não estar tão perto...
Oh, droga. Teria de divulgar aquele relacionamento, não? E, quando o fizesse, afastariam-na da função de monitorar Veck – algo absolutamente necessário. Bem... parece que não teria que esperar um mês para voltar ao seu departamento.
– Ei, DelVecchio. Atenda seu telefone – alguém gritou.
Engraçado, ela não ouviu tocar. Tampouco Veck ou Bails, aparentemente.
Quando Veck iniciou uma conversa cheia de “sim” e “uh-hum”, podia sentir Bails espreitando ao redor de Reilly e teve vontade de enxotá-lo como uma mosca. Felizmente, a mesma mulher que gritou para Veck atender ao telefone aproximou-se do outro detetive e disse que seu suspeito estava na recepção.
– Volto aqui quando terminar – Bails disse. Depois que ela assentiu, ele deu um tapinha no ombro de Veck e saiu.
Veck desligou.
– Era De la Cruz. Ele quer que eu vá ao centro da cidade apurar um tiroteio que aconteceu ontem à noite. Precisa de uma ajuda extra. E acho que precisa se certificar de que eu nem sequer pense em ir ao hospital com você.
Fazia sentido.
– Mas não vamos sair por enquanto.
– Vai ser um dia longo. Temos que examinar um conjunto inteiro de apartamentos.
Veck levantou-se, vestiu o casaco e tateou vários bolsos, sem dúvida checando distintivo, arma, carteira, chaves e cigarros.
– Precisa parar de fumar – ela deixou escapar.
Quando Veck ficou imóvel, ela pensou: Droga, pareço uma namorada.
Aquelas três palavras recebidas por e-mail não lhe davam esse direito. Poderia sugerir algo do gênero? Sim. Mas não precisava passar a carroça na frente dos bois. O problema era que se preocupava demais com ele para ficar sentada assistindo-o se matar...
Veck pegou o maço de cigarros que já havia aberto... e esmagou-o com uma das mãos.
– Você está certa – jogou o maço na cesta de lixo embaixo da mesa. – Se eu ficar irritado nos próximos dias, já peço desculpas.
Reilly não conseguiu conter o sorriso no rosto. E, com um sussurro que só ele conseguiu ouvir, disse: – Vou pensar em algumas maneiras de distraí-lo.
Quando ela descruzou e cruzou as pernas outra vez, os olhos dele queimaram. Havia percebido os secrets que Reilly estava revelando, por assim dizer.
– Vou cobrar isso – piscou como um garoto malvado que sabia o que fazer com o corpo dela. – Fique com Bails... e me liguem quando terminarem, certo?
– Combinado.
Ela virou-se para a mesa à qual estava sentada, mas observando Veck, que saía pela porta, com o canto dos olhos. Deus do céu, aquele homem era lindo por trás...
CAPÍTULO 35
De certo modo, é ótimo sair para trabalhar – Veck pensou algumas horas depois.
Certo, não era ótimo que um pobre coitado tivesse sido baleado no rosto, ou que os vizinhos não quisessem dizer uma palavra sobre o que viram, ou que ele e De la Cruz estivessem gastando as solas de seus sapatos por nada. Mas era a droga de uma rotina difícil de trabalho. Não se tratava de seu pai ou do esquisitão sem pegadas que vigiava pessoas à noite.
A vítima em questão fora baleada no banco do motorista de um suv estacionado em frente àquele edifício residencial de doze andares, local conhecido por transações comerciais ilegais. O corpo fora descoberto naquela manhã por equipes de limpeza urbana que varriam a rua. Não havia drogas ou dinheiro no corpo ou no veículo, mas encontraram uma lista de nomes e alguns dólares dentro de um envelope amassado no casaco do rapaz, além de resíduos de crack numa série de embalagens plásticas e mais cinco armas dentro do carro.
Era evidente que ele não conseguira guardar tudo com a rapidez necessária.
A menos que se conclua que aqueles que tiveram acesso a tudo aquilo priorizaram levar outros objetos de valor.
Ao meio-dia, Veck e De la Cruz continuavam a percorrer os arredores do edifício, batendo nas portas e tentando convencer as pessoas a falarem alguma coisa – contudo, todos desconfiavam dos policiais e, além disso e com razão, tinham medo de alguma retaliação por parte dos envolvidos no crime.
Enquanto ia de porta em porta, Veck continuou a recordar-se da careta imobilizada da vítima ao ser atingida atrás do volante, o cinto de segurança sobre o peito manteve o corpo erguido, os traços faciais que poderiam ser identificados por sua mãe, familiares e amigos estavam arruinados a ponto de ser preciso uma identificação por arcada dentária.
Pensando outra vez em Kroner naquela floresta, Veck lembrou-se do impulso assassino que sentiu. A ideia de tirar um malfeitor das ruas era mais que justificável para ele – ao menos, para uma parte dele – mas isso realmente importava?
Que inferno, o filho da puta que atirou naquela vítima no carro sem dúvida tinha suas razões, por mais distorcidas que fossem. Só que um ato assassino era um ato assassino, não importando quais eram as tendências de comportamento do alvo.
Que pena aquilo não importar para o lado obscuro dentro dele: essa parte de sua essência não dava a mínima se Kroner era um santo ou um pecador – o ato assassino era tudo. O motivo da ira? Só tinha importância enquanto objetivo a ser atingido. Sem dúvida, este era o sentimento que seu pai tinha pelas outras pessoas. Que coisa ótima para se pensar.
Quando o sol começou a se pôr e as sombras começaram a tomar conta do cenário, o calor da tarde diminuiu e o edifício pareceu ainda mais encardido. Ele e De la Cruz tinham se separado e concentraram-se nos edifícios ao redor do local onde o corpo fora encontrado, mas, se considerassem o fato de que havia seis blocos de apartamentos no quarteirão, teriam sorte se terminassem até as cinco da tarde.
Afastando-se da porta de outra pessoa que não lhe deu resposta alguma, Veck dirigiu-se às escadas de concreto e desceu até a entrada. As portas da frente deveriam estar trancadas, claro, mas foram arrombadas tantas vezes que seria um milagre se apenas se fechassem por completo.
Esfregando o rosto e desejando um cigarro, virou-se para o leste e dirigiu-se ao último bloco de apartamentos sob sua responsabilidade. Já estava na porta quando o telefone tocou. A mensagem de texto de Reilly dizia que estava indo ao hospital com Bails naquele momento.
Bem, ao menos aquilo lhe daria mais tempo para colaborar no caso que estava trabalhando com De la Cruz.
E, depois, talvez fazer uma pequena viagem até Connecticut – uma voz interior sugeriu. – Para ver seu pai.
Chegou a olhar para trás no intuito de checar se alguém falava com ele. Mas não havia nada além do ar e da fraca luz do sol. E acabou concluindo que possivelmente faria isso mesmo. Em breve.
Com um palavrão, virou-se para a entrada e, quando o fez, olhou para baixo em direção ao cimento rachado da calçada. Congelou com o que viu.
Olhou sobre o ombro outra vez. O sol estava se pondo atrás dele – era a única fonte de luz. Pelo amor de Deus, não havia uma segunda opção que pudesse refletir outra sombra no chão, nenhum carro com várias partes cromadas que pudesse produzir tal efeito, nada de holofotes sobre sua cabeça.
Olhou para seus pés outra vez. Havia duas sombras projetadas de seu corpo. Duas sombras separadas e distintas, uma vinda do norte, outra do sul.
Era uma evidência concreta do que ele sempre sentiu: duas metades de si, divididas, atraindo-o em direções opostas.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio... E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente.
Quando a voz de Jim Heron disparou em sua mente, pensou em Reilly. Ele estava confiante de que poderia protegê-la de qualquer um que a perseguisse, certo de que poderia ser o que ela precisava. Mas toda essa história de coragem e bravura não se aplicava ao que via no chão. Não entendia a si mesmo, como poderia lutar por ela?
E Reilly estava em perigo. Caso contrário, não perderia a noite passada sentada numa cadeira com uma arma na mão.
Sou o único que pode te ajudar.
Deus era testemunha de que Heron seria capaz de machucá-los ou agredi-los se quisesse. Em vez disso, tudo o que fez naquela pedreira foi apontar a direção... e desaparecer.
Decidido, Veck pegou o telefone. Tinha salvo o número de Heron em sua lista de contatos e, quando discou, rezou para que o cara que não deixava pegadas atendesse... e dissesse o que havia em seus pés.
O som do celular tocando alto atrás dele quase o matou de susto. Jim Heron estava a três metros de distância dele, como se estivesse ali o tempo todo – e estava mesmo, não?
Veck estreitou os olhos e deu uma boa olhada no cara. Jim parecia bem sólido em sua jaqueta de couro e suas roupas camufladas. E, quando exalou a fumaça de um cigarro, a coisa flutuou, fazendo cócegas no desejo de fumar de Veck.
Mas não era real, era?
Com o coração batendo forte no peito, Veck apertou end no teclado de seu celular e o som que vinha do bolso de Jim parou.
– O tempo está se esgotando – disse o cara.
E isso fez Veck pensar em seu pai: aquele bilhete enviado pelo correio. A areia da ampulheta descia pouco a pouco e ficavam cada vez mais próximos do momento da execução. Algo que aconteceria muito em breve, não?
Era isso – pensou. Tudo, toda sua existência, levava-o até tal situação... Seja lá que situação fosse.
Quando Veck encontrou os olhos do cara, sentiu que o filme de sua vida estava fora de foco e nunca sequer soube que essa merda estava embaçada. Contudo, o cinegrafista finalmente tinha acordado e ajustado o equipamento... era um mundo novo.
Especialmente se considerasse o fato de que a luz do sol se punha atrás de Jim Heron... e não havia nada aos pés do cara. Nenhuma sombra.
– Que porra é você? – Veck perguntou.
– Estou aqui para salvar seu traseiro, e é isso que eu sou – o cara deu um trago no cigarro e exalou lentamente. – Está pronto para conversar comigo agora?
Veck olhou para o par de contornos que projetava, as duas sombras tinham o formato de seu corpo.
– Sim, estou.
Reilly dirigiu o carro ao longo do caminho até o complexo do Hospital São Francisco. Ao lado dela, o detetive Bails permaneceu em silêncio no banco do passageiro enquanto atravessaram pelo tráfego intenso, pararam nos sinais vermelhos e, em dado momento, viraram.
– Mais um pouco disso e vou achar que alguém não quer que conversemos com Kroner – ela murmurou.
Bails nem sequer ergueu o olhar.
– Sim.
Mais silêncio. Ao ponto de ela quase pedir para ele desabafar sobre tudo o que pensava: a última coisa que precisavam era daquela tensão toda na frente de um assassino. Porém, Bails começou a falar antes de Reilly pedir.
– Desculpe não falar nada. Só não sei o que fazer.
– Sobre o quê? – no momento em que sentiu segurança em tirar os olhos da estrada, deu uma olhada nele. O cara batia os dedos contra a porta e olhava para fora como se estivesse buscando respostas no vidro.
– Sei que viu o meu e-mail – ela disse depois de um momento.
– Se fosse esse o grande problema... – quando ela olhou-o mais uma vez, ele deu de ombros. – Sabe que eu e Veck somos muito próximos, não?
– Sim.
– E sabe que sempre estive cem por cento ao lado dele. Até a morte. O cara é meu amigo.
Quando o coração dela começou a bater mais forte, disse: – Certo.
– Então, sim, eu vi o e-mail que ele enviou. Não queria, mas estava na tela quando me aproximei de vocês – ergueu os olhos. – Não estava espiando. A coisa estava bem ali.
Maldição.
Era tudo o que ela conseguia pensar. Maldição.
– E agora... – seus dedos acalmaram-se e ele balançou a cabeça. – Não sei o que fazer.
– Sem ofensa, mas por que acha que é problema seu? Não quero ser chata, mas...
– Sei coisas sobre ele que você não sabe e acho que ele fez algo ilegal. E, se eu acreditar que você está com ele, não sei a quem vou recorrer no Departamento de Assuntos Internos. Está bom para você?
Quando Reilly exalou como se tivesse levado um soco no estômago, quis parar o carro. Que bom já estarem finalmente no hospital. Assim, conseguiu estacionar na área aberta em frente à emergência.
Quando desligou o motor, encarou Bails: – Do que está falando?
Bails colocou a palma da mão sobre o painel do carro e começou a movimentá-la para frente e para trás. Em seguida, limpou uma fina camada de poeira que caiu sobre sua coxa.
– Olha, sou um policial porque quero proteger as pessoas e porque acredito no sistema. Não acredito que uma sociedade civilizada possa existir sem a polícia, os tribunais e as cadeias. Há pessoas lá fora que simplesmente não podem ficar em meio à população geral. Ponto final.
– Só para você saber, ainda não mencionou uma palavra sobre Veck.
– Ele disse que tem antecedentes?
Quando uma corrente de ar frio passou por sua coluna, ela esforçou-se para manter a calma.
– Não.
– Achei que não diria mesmo.
Isso é mentira – ela pensou.
– Ouça, desculpe duvidar das suas fontes, mas não há nada no arquivo pessoal dele... e não pode negar isso. Tudo o que o RH precisa fazer, e fez, para verificar isso é rastrear o nome dele no sistema.
– Não se algo foi cometido antes da maioridade.
Reilly ficou confusa. Muito.
– Como?
– Ele tem um antecedente juvenil. Um muito sério.
– Como sabe?
– Vi a coisa. Com meus próprios olhos – Bails deixou a cabeça cair para trás contra o descanso do banco. – Conheci Veck na Academia de Polícia. Era um cara solitário que fazia tudo certo... eu era o palhaço da turma. Nós simplesmente... ficamos amigos. Depois saímos, mantivemos contato mesmo sendo designados para delegacias diferentes da área de Manhattan e, mais tarde, ele se mudou para cá. Ao longo de todos esses anos que o conheço, sempre foi uma pessoa correta. Controlada. Difícil, mas justo. Na verdade, é um dos melhores policiais que conheço e fiz um pedido para que ele viesse para Caldwell, pois queria trabalhar com ele – Bails soltou um palavrão. – Em todo esse tempo que o conheço, nunca pensei que estivesse inapto para o trabalho por causa dessa porcaria de história relacionada ao seu pai... até agora. Começou com aquela agressão ao paparazzo. Em seguida, a coisa toda com Kroner na floresta. É como se uma capa ao redor dele estivesse saindo... mas eu não iria dizer nada, não ia mesmo, até...
– Espere um minuto. Pare – Reilly pigarreou, tentando acalmar a dor de cabeça que sentia entre os olhos. – Para preservar a nossa reputação, você deve entrar em contato imediatamente com minha supervisora se tiver algo para dizer com relação ao detetive DelVecchio. Antes de tudo, você está certo... Não deveria ter me contado essas coisas. Eu não deveria... estar na posição em que estou agora. Na verdade, tenho uma reunião com minha superior quando eu voltar desta entrevista, então, poderei divulgar de maneira adequada essa relação ao meu departamento.
Bails esfregou os olhos e balançou a cabeça.
– Vou fazer isso. Mas também acho que você precisa saber. Porque, se alguma coisa acontecer com você, nunca vou me perdoar.
Diante disso, Reilly enrijeceu.
– Por que está preocupado com minha segurança?
Bails passou uma das mãos pelos cabelos.
– Entenda, eu ajudei Veck com a mudança quando veio para cá. Tinha várias caixas velhas que precisavam ser guardadas no sótão. Eu estava carregando uma delas quando o fundo se abriu. Espalhando papéis por toda parte e, então, eu comecei a recolher... e lá estava. O registro de antecedente juvenil datado de meados dos anos 1990.
– O que dizia? – ela conseguiu falar mesmo sentindo a garganta fechada.
– Havia todos os indícios de comportamento psicótico e antissocial que existem – Bails franziu a testa. – Sabe do que estou falando, então, não vou listar tudo o que ele fez.
Tortura de animais? Problemas em atear fogo em coisas diversas? Urinar-se na cama?
– Tudo isso – disse Bails, como se estivesse lendo sua mente.
– Mas nunca fez nada depois de adulto – ela argumentou... era menos uma afirmação que uma pergunta.
– Não que saibamos. E, veja só, isso é o que está me preocupando. Psicopatas são muito bons em fingir normalidade. Por fora, eles se encaixam em tudo, pois a atuação é parte do que fazem. E se essa relativa paz e tranquilidade até agora... seja exatamente o que ele quer mostrar? Quando termina a atuação e o verdadeiro Veck aparece? Não pode negar que ele está ficando fora de controle... caramba, não seria parceira dele agora se estivesse tudo bem – o conflito de Bails era evidente em seu rosto. – Ou pior... e se não sabemos o que ele realmente faz? Digo uma coisa, não consegui dormir na noite passada. Estava tentando conciliar o que acredito que ele seja... com o que ele pode ser de fato. Se é que isso pode fazer algum sentido.
Reilly ouviu a voz de Veck em sua mente: Quero fazer tudo perfeito para você.
E tinha feito. Disse e fez as coisas certas. Jogou seus cigarros fora por causa dela... ou ao menos foi o que fez na sua frente. Ela tinha se apaixonado por ele em quatro dias. Coisa do destino? Ou tudo planejado? Mas onde isso o levaria? Foi ele quem pediu suspensão... teria sido uma atitude deliberada? Ela estava cuidando do caso e da reputação dele – que tinha alcançado mais credibilidade depois de tudo, não?
A voz de Bails pairou no ar: – Não pode confiar nele. Estou entendendo isso agora.
– Só por que ele não lhe contou sobre o que aconteceu quando era mais jovem? – ouviu-se dizer. – E, além disso, manter o arquivo de um registro de antecedentes em segredo não é ilegal.
– Acho que ele plantou provas. O brinco de Sissy Barten, especificamente. Para que parecesse que Kroner a tivesse matado.
Ela não se preocupou em esconder a surpresa e recuou o corpo.
– O quê? Como?
– Ele subiu até o quarto dela, não foi? No dia em que vocês dois foram até a casa da família Barten. Ele me disse que você estava no andar de baixo quando subiu. E esteve na sala de provas ontem de manhã... Conversei com Joey, um dos investigadores da cena do crime. Ele disse que Veck passou por lá... e pode ter plantado o brinco.
– Mas ele disse que encontrou o brinco junto com as outras provas.
Bails esfregou os olhos outra vez.
– Chequei o registro preliminar de itens encontrados no caminhão, a lista feita assim que o veículo foi apreendido. Não havia qualquer observação sobre um brinco em forma de pomba. E verifiquei tudo isso outra vez pouco antes de chegar e ver vocês dois.
Por isso parecia tão abatido.
Ela balançou a cabeça.
– Mas o que ele teria a ganhar? A menos que...
Oh, Deus... e se ele tivesse assassinado a garota? E se Kroner tivesse visto alguma coisa ao cometer um de seus crimes na pedreira?
– Leu o relatório sobre o corpo de Sissy, certo? – Bails disse.
– Claro – passara a manhã inteira fazendo isso... e a conclusão que chegou quando o corpo foi encontrado era inevitável: nenhum dos ferimentos da vítima se encaixava nos outros assassinatos de Kroner... e, geralmente, aquele tipo de mudança não acontecia. Em geral, método e obsessões não se alteravam.
– Então deve saber que ela não foi atacada por Kroner. E, talvez, depois de apurar tudo... talvez Veck tenha feito isso.
Céus, ela não conseguia respirar. Como se houvesse mãos apertando a sua garganta.
– Mas... por quê?
Temia que fosse uma pergunta estúpida de se fazer.
– Quanto sabe sobre o pai de Veck? – o detetive disse. – Sobre seus assassinatos?
– Apenas o que estudei na faculdade.
Bails voltou a se concentrar na janela.
– Sabia que a primeira vítima dele sangrou pelo pescoço e pelos pulsos... depois de ter sido pendurada pelos pés? Também foi marcada como Sissy. Sobre o estômago.
Reilly pegou a maçaneta e abriu a porta. Não só para conseguir um pouco de ar fresco. Mas porque estava sentindo muita vontade de vomitar.
– Sinto muito – Bails disse, um tanto áspero.
– Eu também – ela resmungou, contudo, as palavras não chegavam nem perto do que sentia.
Quando olhou para o chão, ela se deu conta de que tinha sido enganada. Caiu como um patinho. E é claro que Veck se esforçou para conseguir isso. Ela era sua defensora na delegacia, aquela que deveria supervisioná-lo cuidadosamente e que decidiria se ele continuaria ou não na corporação: ele queria continuar trabalhando, e ela estava na posição que tornaria isso possível.
– Agradeço a Deus por você – Reilly disse um tanto sufocada. Pena que não conseguia olhar para Bails... Estava muito envergonhada por ter sido enganada tão bem. – Graças a Deus você me contou.
CAPÍTULO 36
– Que tal você falar primeiro?
Enquanto Veck pronunciava as palavras em voz baixa, mantinha o olhar fixo em Heron. Os dois tinham se esquivado ao redor do edifício e estavam em pé no escuro próximo a alguns galhos secos.
O olhar de Jim era mortal e sua voz tão profunda quanto o ressoar de um grande sino.
– Você sabe de tudo. Quais respostas quer? – colocou o dedo indicador no peito de Veck, bem em cima de seu coração. – Está tudo dentro de você.
Veck desejou responder com uma boa dose de “tanto faz, seu cuzão”. Mas não conseguiu.
– Meu pai quer me ver – foi sua resposta.
Heron assentiu e pegou seu maço de cigarros. Quando inclinou o pacote para frente, Veck recusou: – Não, parei.
– Inteligente – Heron acendeu. – É assim que funciona: vai perceber que está numa encruzilhada. Será um momento de decisão, de uma escolha definitiva, entre situações opostas. Tudo o que é, o que tem sido e o que poderá ser dependerá dessa decisão. As consequências? Não afetarão apenas a você. Afetarão a todos. Não é apenas uma questão de vida e morte... Trata-se da eternidade. Sua. Dos outros. Não subestime a distância que isso pode alcançar.
Enquanto o homem falava, Veck sentiu as duas partes dentro de si se separarem. Uma delas foi totalmente repelida. A outra...
Veck franziu a testa. Piscou algumas vezes, confuso. Desviou o olhar e olhou para trás. Deus era testemunha de que tinha visto um brilho cintilante sobre os ombros de Heron e ao redor de sua cabeça.
E a ilusão bizarra deu ainda mais credibilidade ao pesadelo como um todo. Da mesma maneira como quando quis entrar em contato com o cara e ele já estava bem atrás dele... E ainda havia a questão da falta de pegadas naquela pedreira... E o show de luzes na casa dos Barten.
Veck colocou a mão sobre o peito e esfregou com força a sombra que havia ali.
– Nunca pedi isso.
– Sei como se sente – Heron murmurou. – No seu caso, já nasceu com isso.
– Diga-me o que sou.
– Você já sabe.
– Diga.
Heron exalou lentamente, a fumaça ergueu-se dentre aquele brilho dourado.
– O mal. É o mal encarnado... Ou, pelo menos, metade de você é. Num futuro próximo, talvez hoje à noite, talvez amanhã, será necessário que escolha um dos lados – o cara apontou para si mesmo com a mão que segurava o cigarro. – Estou aqui para tentar te ajudar a escolher com sabedoria.
– E se eu não escolher certo?
– Você perde.
– No mesmo instante?
O homem assentiu lentamente, estreitando os olhos.
– Eu já vi onde vai terminar se isso acontecer. Não é bonito.
– O que você é?
A expressão de Heron não mudou. Nem sua postura. E nem sequer parou de fumar. Mas, num instante era um homem, no seguinte...
– Jesus... Cristo... – Veck sussurrou.
– Não chego nem perto – ele apagou o cigarro na sola da bota de combate. – Mas sou o que sou.
E isso seria... um anjo, evidentemente: sob a luz fraca e desbotada do dia, um espetáculo de luzes refratadas havia surgido sobre os ombros dele em forma de asas gigantes, tornando-o magnífico e etéreo.
– Fui enviado para te ajudar – o homem... anjo... seja lá o que fosse... voltou a olhar para Veck. – Então, quando for ver seu pai, quero estar junto.
– Já estava comigo. Não é mesmo?
– Sim – o cara limpou a garganta. – Mas não quando estava... você sabe.
As sobrancelhas de Veck se ergueram.
– Oh, sim. Que bom...
Eeeee os dois desviaram o olhar nesse momento.
Veck pensou sobre aquela noite com Kroner.
– E se a encruzilhada já tiver acontecido?
– A questão com Kroner? Estava fora das regras.
– Bem, sim, assassinato é contra lei mesmo.
– Não, não é neste sentido. Não sou o único que deseja fazer algo com você, o outro lado se precipitou naquele cenário.
– O outro lado?
– Como eu disse, não sou o único neste jogo. E, acredite, o inimigo é uma tremenda vadia... Tenho certeza de que a conhecerá em breve, se já não conheceu.
Oh, ótimo, mais notícias boas, Veck pensou.
E, então, deixou escapar: – Eu fui até lá matá-lo. Kroner – maldição, foi bom ter desabafado.
– Você quer dizer parte de você queria fazer isso. Vamos passar tudo a limpo: você não fez o estrago e você ligou para a emergência, se não tivesse feito isso ele teria sangrado até morrer aos seus pés.
– Então, o que o atacou?
– Está surpreso por conversar com um anjo? Não vai querer saber o que tem lá fora – Jim acenou com uma das mãos num gesto de desdém. – Mas não precisamos nos preocupar com isso. Vamos ver seu pai. Juntos. O mais rápido possível.
Veck pensou na sensação de ter chegado ao seu destino, como se sua vida tivesse chegado a um ponto culminante. Não era mais remoto e hipotético.
– Esta é a encruzilhada?
– Talvez sim. Talvez não.
De repente, Jim abaixou os olhos e inclinou a cabeça. Quando a ergueu outra vez, sua aparência era mortal – e exatamente o que Veck gostaria de ter como proteção: tinha a sensação de que precisaria de outro bom lutador se fosse enfrentar o outro lado de si mesmo. E era isso. Uma luta até a morte.
– Vamos descobrir – o anjo prometeu. – Quando chegarmos lá.
Tudo acontece por uma razão – Reilly pensou enquanto ela e Bails saíam do quarto de Kroner meia hora depois.
A condição de Kroner havia piorado muito, quase como se seus ferimentos aumentassem a cada instante. Ele não era capaz de se concentrar, resmungou algumas respostas sem sentido e, pouco depois de chegarem, ela e Bails desistiram.
– O que será que ele quis dizer com aquela coisa de sofrimento? – Bails murmurou enquanto segurava a porta do elevador para Reilly.
Reilly balançou a cabeça quando começaram a descer.
– Não sei.
Foi a mesma coisa de antes: Ele tem que saber que ela sofreu... tem que saber que ela sofreu...
Não fazia ideia do que aquilo significava. E também não fazia ideia de qual era a conexão entre Kroner e Veck. Caramba, naquele momento, sentia que não poderia confiar em seus instintos nem sequer para confirmar o próprio nome. Especular alguma coisa naquela bagunça? Era melhor nem começar.
Quando saíram para a recepção e caminharam até a porta giratória que dava para o estacionamento, Bails consultou o relógio.
– Quer beber alguma coisa? Tenho que fazer meu relatório em pouco mais de uma hora, preciso de uma bebida antes.
Sim, pois, quando um detetive tinha as informações que ela tinha sobre outro colega, não se ficava muito animado com a situação. Ligou para a delegacia logo depois que terminaram o interrogatório e, dentro de um minuto e meio, o sargento marcou uma reunião com líderes dos departamentos. Isso aconteceria bem depois do horário comercial.
Não era de se admirar que Bails quisesse uma cerveja.
– Obrigada – ela murmurou –, mas, como eu disse, tenho um encontro com minha supervisora agora.
A conversa toda que tiveram não os aproximou tanto assim. Juntos, andaram pelas filas de automóveis, entraram no carro e colocaram os cintos de seguranças. Os dois permaneceram em silêncio durante toda a viagem de volta à sede. Não tinham muito a dizer, e Bails parecia tão traído e doente quanto ela.
Separaram-se com um rápido abraço e, enquanto ele ia para o próprio carro, Reilly observava-o. Veck colocara-os no mesmo barco, e isso significava que aquele estranho agora era uma espécie de amigo.
Quando o telefone tocou na bolsa, sabia quem era antes de pegá-lo. Veck.
Certo, é para isso que o correio de voz serve – ela pensou.
Só que provavelmente ele viria atrás dela, e isso era a última coisa que queria. Deveria evitar um encontro pessoal a todo custo.
– Alô.
Houve um zumbido ao fundo, como se estivesse num carro.
– Reilly... o que há de errado?
Desanimada, como se o observasse do outro lado de um espelho de duas faces, pensou que havia sido exatamente daquela maneira que a seduzira: a emoção que projetava naquela voz profunda era a combinação perfeita de preocupação com uma boa dose de proteção.
– Estou bem. Acabei de ver Kroner... Não conseguimos nada de novo – não vindo de Kroner, claro. Já com Bails, a história era diferente.
– Você não parece bem.
O que significava que toda e qualquer aspiração que pudesse ter em ser uma psicopata deveria ser jogada pela janela. Que pena.
De fato, a ideia de não conseguir esconder as coisas era um alívio. Não queria ser como Veck. Nunca.
– Reilly... fale comigo.
– Estive pensando muito sobre meu trabalho hoje – ela disse. – Não é apropriado que deixemos nosso relacionamento como está. Estou comprometendo a integridade da força policial, da minha posição e a mim mesma. Vou encontrar minha supervisora agora mesmo e renunciar seu caso. Levarei alguma advertência, mas posso lidar com isso...
– Espere, o quê? Por que você...?
– E acho que não devemos nos ver outra vez.
Houve uma pausa. Em seguida, ele disse: – Assim de uma hora para outra?
Agora ele parecia frio, e era o que Reilly desejava: o verdadeiro Veck, o real. Mesmo que isso só a fizesse perceber outra vez o quanto tinha sido estúpida.
– É o melhor – concluiu.
Quando Veck não disse mais nada, ela começou a ficar agitada, pois não sabia exatamente do que ele era capaz. Sem dúvida, tinha sido ele quem andara vigiando-a dois dias atrás... Mas não tinha importância, aquela conversa tinha acabado e, uma vez que revelasse o que precisava à sua chefe e Bails agisse e cumprisse seu dever, Veck teria muitos outros problemas, tantos que estaria ocupado demais procurando um advogado para perder tempo com algum tipo de retaliação. Ao menos ela esperava que fosse assim.
Inferno, melhor ainda, ele poderia ser preso.
– Tenho que ir – ela disse.
Houve outra pausa e, então, a voz dele soou fria como um cubo de gelo.
– Não vou te incomodar outra vez.
– Agradeço muito. Adeus.
Não esperou por uma resposta. Não estava interessada em ser envolvida numa conversa longa e arrastada, com ele tentando manipulá-la novamente, ou pior, ver a máscara dele caindo por completo e ouvir ameaças.
Sua mão tremia tanto que precisou fazer duas tentativas para colocar o telefone de volta na bolsa. Apoiando-se contra o carro, olhou para os fundos escuros da delegacia e sentiu não ter forças para entrar e encarar sua chefe. Mas fez o que tinha que fazer... pois fora criada para agir assim.
CAPÍTULO 37
Quando Veck desligou o celular, olhou para tela e achou difícil acreditar que aquela conversa com Reilly tinha acabado de acontecer.
– O que foi?
Olhou para Heron. O cara, anjo – quem se importava – estava atrás do volante da caminhonete com seu outro amigo anjo... Cristo, como aquilo poderia ser real? O cara estava no banco de trás de uma cabine dupla e ocupava mais da metade do espaço.
Os três estavam indo para a Instituição Prisional em Somers, Connecticut.
– Nada – disse Veck suavemente.
– Até parece – ouviu do banco de trás.
Eram as primeiras duas palavras que o homem havia dito. O que significava que isso e o fato de estar respirando eram as únicas pistas que comprovavam que ele estava vivo.
Jim olhou para Veck.
– Coincidências não existem. Quando nos aproximamos do final, tudo importa.
– Era... – minha namorada? Ex-namorada? Oficial do Departamento de Assuntos Internos? – Reilly.
– O que ela disse?
– Que não quer me ver mais. Nunca mais.
As palavras foram ditas com uma voz calma e profunda – ao menos ainda tinha um pouco de brio. Porém, no fundo do peito, havia um grande buraco negro de agonia, como se fosse um desenho animado e tivessem disparado uma bala de canhão contra ele.
– Por quê? Ela deu algum motivo?
– Se importa de me emprestar um cigarro? – quando Jim estendeu o pacote, Veck pegou dois, pensando que aquele era um momento perfeito para jogar pela janela aquele papo de “desistir”.
– Por que isso?
– Porque, ou eu fumo alguma coisa agora, ou vou explodir o vidro ao meu lado com um soco.
– Que bom que escolheu o cigarro – veio da parte de trás. – Estamos indo a uns cem quilômetros por hora e está frio demais lá fora.
Veck pegou o isqueiro oferecido, acendeu e abriu um pouco a janela. Quando inalou, pensou ser uma pena haver tantos agentes cancerígenos naquelas coisas, pois, sem dúvida, aquilo o fazia sentir-se um pouco melhor.
Porém, não duraria muito. Ao contrário da dor no peito. Tinha a impressão de que teria que lidar com isso por um looongo tempo. Como se fosse um ataque cardíaco perpétuo.
Só que, cara, devia saber que isso aconteceria. Aquela mulher ingressou no Departamento de Assuntos Internos porque gostava das coisas certas, bem-feitas. Ficar com ele? Não estava na lista. Apaixonar-se por ele? Não seja ridículo.
– O motivo? – Jim exclamou.
– Conflito de interesses.
– Mas por que agora? Ela sabia o tempo todo o que estava fazendo.
– Eu não sei. Mas também não importa.
O bom era que não poderiam dispensá-lo do trabalho só por que ela acordou e sentiu o cheiro de carne podre da situação que viviam, por assim dizer. Eram dois adultos responsáveis e, sim, parecia ruim, mas ela faria a coisa certa e fim de papo.
Inevitavelmente, seria chamado para responder algumas perguntas no Recursos Humanos e teria a firmeza suficiente para dizer que foi tudo ideia dele. Ou seja: foi ele quem correu atrás dela, bem como foi o idiota que começou com a história do “eu te amo”. Imbecil. Que maldito imbecil ele foi...
Não disseram muita coisa durante o resto da viagem. Veck não via problema nisso. As imagens de Reilly e ele juntos pairavam em sua cabeça e faziam com que não confiasse na própria voz... E não só porque demonstraria uma boa dose de tristeza. Estava suscetível a esmagar alguém naquele momento.
Quando já estavam a um quilômetro da prisão, Jim parou um pouco antes de chegar à instituição e trocou de lugar com Veck. No volante, Veck assumiu seu papel: o de policial.
– Então, ninguém vai ver vocês?
Apesar de realmente acreditar que o cara era capaz de ficar invisível. Heron perseguiu-o por dias e apenas seus instintos ficaram um pouco alarmados.
– Isso mesmo.
– Contanto que... – Veck parou de falar quando olhou para o banco ao lado dele e viu que tinha ficado vazio de repente. Olhou rapidamente no espelho retrovisor e não havia nem sinal do cara grande e forte no banco de trás.
– Já pensaram em roubar bancos, seus filhos da mãe? – disse ele em tom seco.
– Não precisamos do dinheiro – a voz de Jim soou do nada ao lado dele.
– Não precisamos nos dar ao trabalho – veio da parte de trás.
Veck esfregou o rosto, pensando que seria melhor assumir que estava louco por começar a conversar com o ar. O problema era que lutava e lidava com essa realidade alternativa durante toda sua vida. A ideia de que era realidade, e não loucura, parecia ser muita maluquice, mas também fazia com que se sentisse um pouco são.
Contudo... fazer essa diferenciação era assumir que ele não era exatamente como o personagem do filme Uma mente brilhante.
Afinal, sabia que havia impulsos homicidas, e não casos de esquizofrenia em sua família, então, não tinha perdido totalmente o juízo. Que alívio!
Antes de sair de Caldwell, Veck havia telefonado para a prisão – não para o número que seu pai havia lhe dado, mas para o atendimento geral – e identificou-se. Não chegariam no horário de visitas, mas as pessoas costumavam fazer cortesias graças à sua ocupação profissional – e certamente também fariam-no graças ao fato de que seu pai estaria numa cova em mais ou menos 48 horas. Sem dúvida, havia também o fator curiosidade, algo com que Veck lidava com muito senso de realidade: em pouco tempo, aquela visita antes da morte estaria em todos os lugares... internet, televisão, rádio. Provavelmente, estaria na rede antes mesmo de sair e voltar para o estado de Nova York. Era assim que as coisas funcionavam.
À medida que percorriam o caminho onde se via as paredes da penitenciária numa das laterais, visualizaram um pequeno exército reunido dos dois lados da rua. Fãs de seu pai.
Havia pelo menos uma centena deles, mesmo sendo oito da noite e estando muito escuro e frio. Mas estavam preparados com lanternas, velas e cartazes com dizeres que protestavam contra a execução – e, no momento em que viram o veículo, correram para o asfalto gritando, rugindo, o barulho pressionava a caminhonete sem nem chegarem perto dela.
Mesmo com o estilo um tanto rebelde de se vestirem e a maneira furiosa com que agiam, era evidente que sabiam as consequências da desobediência civil: nenhum deles bloqueou ou tocou o veículo, e Veck diminuiu a velocidade para dar uma olhada neles. Grande erro.
Um dos homens inclinou-se para a janela e obviamente reconheceu Veck: quando o cara apontou para ele e gritou, o êxtase em seu rosto fez com que Veck sentisse vontade de baixar o vidro e dar um jeito no filho da puta.
Mas seria um desperdício de energia. O idiota tinha o símbolo da anarquia desenhado na testa. Tente argumentar com essas coisas.
– É ele! É ele!
A multidão exaltou-se e correu para a caminhonete.
– O que há de errado com essas pessoas? – Veck murmurou enquanto continuava lentamente, pronto para transformá-los em enfeites de capô se fosse preciso.
– É isso o que ela faz – a voz de Jim soou pelo ar.
– Quem é “ela”?
– É exatamente o que vamos tentar tirar de dentro de você.
Não havia tempo para entender mais esta. Virou na pista que a polícia usava e parou na portaria. Olhando para o guarda, baixou o vidro e mostrou seu distintivo e as credenciais.
– DelVecchio, Thomas... Jr.
Ao fundo, a multidão gritava o nome dele... ou de seu pai. Na verdade, eram os dois e com muita eficiência.
Os olhos do guarda baixaram para a identificação e voltaram para o rosto de Veck. Houve um sinal de desconfiança naquele olhar; sem dúvida, ele estava mantendo-se firme contra os malucos que permaneciam ali já há uma semana.
Mesmo assim, o cara acionou o comando do portão e as barras de ferro se abriram.
– Pare assim que entrar. Preciso revistar seu veículo, detetive.
– Sem problema – era bom não precisar fazer isso do lado de fora. Só Deus sabia até onde aquela multidão poderia chegar.
Veck seguiu o protocolo, andou em marcha lenta e freou no momento em que seu para-choque traseiro posicionou-se do outro lado do portão. Quando saiu, pegou o pacote de cigarros de Heron e colocou-o em uso, acendendo um cigarro enquanto os portões fechavam-se e o oficial verificava todas as partes do carro com uma lanterna.
Enquanto fumava, sabia que os anjos não estavam longe. Podia senti-los flutuando e ficou feliz por essa proteção – especialmente quando olhou para as barras do portão e viu a multidão enlouquecida. A energia que havia naqueles malucos era o tipo de coisa que deixaria qualquer um grato por aquilo que os separava deles.
– Pode continuar, detetive – disse o oficial, agora com atitude mais amigável. – Vire a primeira à esquerda e estacione ao lado da porta, por questões de segurança. Um guarda está esperando por você.
– Obrigado, cara.
– É proibido fumar lá dentro. Então, antes, termine o que está fazendo.
– Boa dica.
De volta à caminhonete. Pausa no segundo portão. Em seguida, estavam na unidade.
Prisões de segurança máxima não se pareciam com as que eram retratadas em filmes. Não havia paredes antigas de pedras caiadas com figuras monstruosas esculpidas no alto delas e que espreitavam quem passava embaixo. Nada de elementos nostálgicos como “Al Capone já esteve aqui”. Nenhuma visita guiada.
Era um negócio muito moderno que mantinha pessoas como seu pai isoladas do público em geral. Havia várias luzes fortes de xenônio para o período noturno, câmeras de vídeo e monitoramento computadorizado. Ainda havia guardas com armas e cercas de arame farpado o suficiente para envolver toda a cidade de Caldwell, mas o procedimento de entrada era feito com cartões magnéticos, computadores e portas automatizadas.
Esteve em vários lugares como aquele, mas nunca especificamente ali: assim que seu pai foi sentenciado, uma carta fora entregue em mãos na república em que Veck morava na faculdade. Não deveria ter aberto aquele envelope, mas não imaginava que seu pai era capaz de enviar da cadeia bilhetes por intermédio de alguém. Fazendo uma retrospectiva? Como fora ingênuo.
Porém, ao menos aquilo lhe indicou o que não fazer. Então, sim, era uma boa razão para não trabalhar em Connecticut e para integrar a força policial em vez do FBI. Nada de questões interestaduais, muito obrigado. E, ainda assim, lá estava ele.
Como prometido, no momento em que saiu da caminhonete, uma porta blindada abriu-se e um guarda encontrou-o e levou-o a um ambiente limpo e bem iluminado. Normalmente, como oficial, receberia autorização para entrar com o distintivo, o celular e a arma, desde que não fosse entrar na área das celas, mas não estava ali em caráter oficial e isso significava que tudo seria deixado na entrada.
Ao entregar o celular, viu que havia algumas mensagens de voz. Possivelmente passara por algumas áreas sem sinal telefônico ao longo da viagem, pois não ouvira o toque. Mas não as ouviria agora. Seja lá o que fosse, esperaria até sair dali. Além disso, tinha a sensação de que já sabia do que se tratava. Sem dúvida outra pessoa do Departamento de Assuntos Internos lhe seria designada – oh, que alegria. E provavelmente devia ter outra mensagem de Bails querendo saber como estava. O cara sempre fazia isso, especialmente se enviasse um torpedo e Veck não respondesse.
Depois de assinar um formulário e entregar todas as suas coisas ao guarda, percorreu uma série de salas sendo acompanhado por outro funcionário da prisão, sem produzir qualquer som além dos passos. Mas sobre o que poderiam conversar afinal?
Veio se despedir do seu pai? Legal...
Sim, é a primeira vez que o vejo em anos, e a última nesta vida...
Divirta-se, então.
Obrigado, cara.
Sim. Estava ansioso para ter esse tipo de conversa.
Quase cem metros depois andando entre o labirinto da prisão, o oficial mostrou a Veck uma área de visitas do tamanho de um pequeno refeitório e também organizada como tal, com longas mesas com assentos dos dois lados. O ambiente estava iluminado como se fosse uma exposição de joias, com grandes painéis de lâmpadas fluorescentes fixas no teto, e o chão era de um marrom salpicado, do tipo que escondia bem a sujeira, mas que, de qualquer maneira, era mantido brilhante e lustrado. Não havia janelas, plantas e observava-se apenas um mural com uma ilustração do que parecia ser a Assembleia Legislativa de Connecticut.
Contudo, as quatro máquinas de salgadinhos e bebidas davam um pouco de cor ao ambiente.
– Estão trazendo-o – disse o guarda. – Colocaremos vocês na área de visita como cortesia, mas peço que permaneça sentado com as duas mãos sobre a mesa o tempo todo.
– Sem problema. Quer que eu me sente em algum lugar específico?
– Não. E boa sorte.
O cara afastou-se e ficou junto à porta pela qual passaram ao chegar, cruzou os braços e encarou a parede nua do outro lado como se tivesse muita experiência em assumir aquela posição.
Veck sentou-se à mesa em frente ao cara e cruzou os dedos sobre a superfície lisa.
Fechando os olhos, sentiu a presença dos dois anjos. Estavam à esquerda e à direita dele, parados da mesma maneira que o guarda, silenciosos e vigilantes...
A porta no final da sala foi aberta sem produzir qualquer som... Em seguida, ouviu algo arrastar-se.
Seu pai passou pelos batentes com um sorriso em seu belo rosto e algemas nos pulsos e tornozelos. Apesar do fato de estar vestido com um macacão laranja folgado, estava elegante, com os cabelos cinza-escuros penteados para trás e sua atitude de embaixador muito evidente, como uma bandeira real.
No entanto, Veck não dava a mínima para aquela aparência – olhava para o chão. Seu pai projetava uma sombra, certo, uma sombra única que se reunia sob seus pés como tinta preta. O fato de ser mais escura do que qualquer outra no ambiente parecia lógico e surgia sob um novo paradigma.
– Olá, filho.
A voz era tão profunda e grave quanto a de Veck. Quando ele ergueu os olhos para observar seu pai, era como olhar no espelho – apenas vinte ou trinta anos mais tarde.
– Nenhuma saudação para mim? – o DelVecchio mais velho disse ao aproximar-se com passos pequenos e apertados, o guarda atrás dele estava tão próximo de suas costas que parecia vestir o mesmo macacão.
– Estou aqui, não estou?
– Sabe? É uma pena a necessidade de sermos vigiados – seu pai sentou-se na frente dele e colocou as mãos sobre a mesa... na posição exata que Veck havia assumido. – Mas podemos falar em voz baixa – as feições e ângulos daquele rosto mostraram uma expressão de carinho... na qual Veck não acreditou nem por um segundo. – Estou emocionado por estar aqui.
– Não fique.
– Bem, mas eu estou, filho – o balançar triste da cabeça era tão apropriado que Veck desejou revirar os olhos. – Deus, olhe para você... Está muito mais velho. E cansado. Trabalhando duro? Ouvi falar que está na polícia.
– Sim.
– Em Caldwell.
– Sim.
Seu pai inclinou-se para frente.
– Tenho permissão para ler os jornais e ouvi dizer que teve um pequeno problema com um monstro lá fora. Mas você o pegou, não foi? Na floresta? – lá se foi a mentira do pai benevolente. No lugar daquela figura calorosa, surgiu uma intensidade na expressão do homem que fez Veck desejar se levantar e sair. – Não foi? Filho.
Se os olhos são as janelas da alma, então Veck encontrou-se olhando para um abismo... E teve a mesma sensação de vertigem induzida pela gravidade e o puxão que alguém sentia ao inclinar-se e olhar para baixo num abismo real.
– Que herói você é, filho. Estou tão orgulhoso de você.
As palavras se distorceram nos ouvidos de Veck, seus sentidos ficaram confusos, era como se pudesse ouvi-las e sentisse-as alisando sua pele.
No entanto, deveria tê-lo matado quando teve a chance.
Veck franziu a testa quando percebeu que seu pai havia falado sem mover os lábios. Balançando a cabeça, Veck interrompeu aquela conexão.
– Bobagem.
– Elogiar você? Estou sendo sincero. Deus é minha testemunha.
– Deus não tem nada a ver com você.
– Ah, não? – seu pai enfiou uma das mãos no macacão e retirou rapidamente uma cruz dali antes mesmo que os guardas pudessem sequer começar a ficar tensos por conta da regra das mãos expostas. – Posso garantir que ele tem. Sou um homem muito religioso.
– Porque lhe é conveniente, sem dúvida.
– Não tenho que provar nada a ninguém – neste momento, seus olhos brilhavam. – Deixo minhas ações falarem por mim... Foi ao túmulo de sua mãe ultimamente?
– Não se atreva a ir até lá.
Seu pai riu um pouco e levantou as mãos, mostrando as algemas de aço.
– Claro que não, eu não posso. Não tenho permissão para sair... Isto é uma prisão, não um hotel de luxo. E, embora tenham levantado uma acusação falsa contra mim, tenham me julgado de maneira errada e me sentenciado à morte injustamente, estou preso como todos os outros que aqui estão.
– Não há nada falso sobre onde você está.
– Acha mesmo que matei todas aquelas mulheres?
– Vamos ser mais exatos... Acho que assassinou cruelmente todas aquelas mulheres. E ainda outras.
Balançou a cabeça mais um pouco.
– Filho, não sei de onde tirou estas ideias. Por exemplo... – seu pai ergueu os olhos para o teto, como se estivesse diante de uma equação matemática complexa. – Você leu sobre a morte de Suzie Bussman?
– Não sou um de seus fãs. Então, não, não acompanho tudo o que faz.
– Não foi a primeira garota que me acusaram de ter assassinado, mas a primeira que pensam que matei. Foi encontrada numa vala de drenagem. A garganta e os pulsos tinham sido cortados e havia símbolos inscritos sobre seu estômago.
Quando seu pai ficou em silêncio, ergueu o queixo e olhou para Veck. Sissy Barten. Encontrada numa caverna. Com a garganta e os pulsos cortados e com símbolos ritualísticos inscritos sobre o estômago.
– Bem, filho, como sabe, serial killers possuem padrões que gostam de seguir. É como um estilo de roupa ou uma parte do país que gostam de morar ou um objetivo profissional. É onde se sentem mais à vontade para se expressarem... É acertar a bola no ponto ideal da raquete, é um filé perfeitamente preparado ou a sala decorada de acordo com sua preferência e a de mais ninguém. É seu lar, filho... É o local ao qual pertence.
– Então, está dizendo que todas as outras mulheres não foram trabalho seu, apesar das evidências, pois não correspondem ao padrão da primeira?
– Oh, eu não matei ninguém.
– Então, como sabe sobre os padrões?
– Sou um bom leitor e gosto de aprender sobre esta patologia.
– Posso apostar.
Seu pai inclinou-se e baixou a voz num sussurro.
– Sei como se sente, o quanto está à parte, o quanto estar perdido pode ser desesperador. Mas me mostraram o caminho e foi o melhor que pôde acontecer, e será a mesma coisa para você. Pode ser salvo... Será salvo. Apenas olhe para si mesmo e siga a essência que nós dois sabemos que possui.
– Então, posso crescer e ser um serial killer como meu pai? Não, muito obrigado.
Seu pai recostou-se e ergueu as mãos para o teto.
– Oh, isso não, nunca... Estou falando de religião. Naturalmente.
Sim. Claro.
Veck olhou em volta para as câmeras de segurança ao redor da sala. Seu pai era inteligente e não atribuía qualquer implicação para si mesmo com aquele gesto, mesmo que a mensagem implícita estivesse tão clara quanto os letreiros dos cassinos de Las Vegas.
– Encontre seu Deus, filho... – aqueles olhos brilharam outra vez. – Abrace quem você é. Aquele impulso o levará para onde precisa ir. Confie em mim. Eu fui salvo.
Enquanto falava, a voz transformava-se numa sinfonia obscura nos ouvidos de Veck, como se as palavras de seu pai fossem a trilha sonora de um filme épico.
Veck inclinou-se para frente, aproximando-se tanto que conseguia enxergar cada partícula preta na íris azul de seu pai. Sussurrando, disse com um sorriso: – Tenho certeza de que você vai para o inferno.
– E vou te levar comigo, filho. Não pode lutar contra o que é, e vai ser colocado numa posição que não poderá vencer – seu pai inclinou o rosto, como se alguém tivesse colocado uma arma em sua testa. – Você e eu somos a mesma coisa.
– Tem certeza disso? Vou sair daqui logo e você tem um encontro marcado com uma agulha na quarta-feira. Não vejo a “mesma coisa” em nada aqui.
Os dois se encararam por um tempo, até que seu pai recuou.
– Ah, filho, acho que vai me encontrar vivo e muito bem no final da semana – havia muita satisfação em seu tom de voz. – Vai ler sobre isso nos jornais.
– Como vai conseguir isso?
– Tenho amigos no submundo, por assim dizer.
– Nisso eu acredito.
O sorriso encantador e um pouco arrogante voltou, e a voz de seu pai diminuiu chegando a ser graciosa.
– Apesar de ter sido... um tanto amargo... estou contente por ver você.
– Eu também. Você é menos impressionante do que eu me lembrava.
A contração muscular no olho esquerdo do pai informou que as palavras de Veck atingiram um ponto fraco.
– Faria uma coisa por mim?
– Provavelmente não.
– Vá até o túmulo de sua mãe e leve uma rosa vermelha para ela. Eu amava aquela mulher até a morte, de verdade.
As mãos de Veck fecharam-se.
– Vou dizer uma coisa – Veck sorriu. – Vou apagar o meu cigarro no seu túmulo. O que acha disso, pai?
Thomas DelVecchio pai recuou, sua expressão era fria. Com certeza o encontro não estava sendo como ele esperava.
– A propósito, não se trata apenas de você – seu pai anunciou.
Quando Veck franziu a testa, o homem encarou o espaço em branco atrás do ombro de Veck.
– Ela quer que saiba que ela sofreu. Horrivelmente.
Jesus... Exatamente a mesma coisa que Kroner disse...
Veck conteve-se antes de erguer o olhar em direção a Jim, mas a reação do anjo foi clara: uma corrente fria percorreu o ar e passou sobre a cabeça de Veck, atravessando a mesa e arrepiando a pele das costas das mãos do pai de Veck.
Seu pai sorriu para o ar onde Jim se encontrava em pé.
– Não acha que vai vencer esta, acha? Porque não pode tirá-la dele. Um exorcismo não vai funcionar porque ele nasceu com isso. Não está dentro dele, é parte dele.
Seu pai olhou de volta para Veck.
– Acha que eu não sei que trouxe amigos? Garoto tolo, muito tolo.
Veck levantou-se.
– Terminamos.
Sim, era hora de ir: considerando a explosão de vento gélido que passou por ele, Jim Heron, o anjo, estava prestes a atacar seu pai. Seria divertido, mas será que era a coisa mais inteligente a se fazer? Era melhor seguir a linha “não aqui, não agora”.
– Nenhum abraço? – seu pai falou lentamente.
Veck não se incomodou em responder essa. Não desperdiçaria seu fôlego e seu tempo com o filho da puta. Na verdade, não tinha certeza da razão de ter vindo – apenas para trocar ofensas? Não havia qualquer encruzilhada visível para ele ali... Porém, talvez o importante tenha sido aquela mensagem para Heron.
Quando Veck virou-se e caminhou até o guarda, o cara abriu a porta rapidamente, como se também não quisesse ficar naquele ambiente nem mais um minuto sequer.
– Thomas – seu pai chamou –, vejo você no espelho, filho. Todos os dias.
A porta foi fechada e interrompeu as palavras.
– Você está bem? – o guarda perguntou.
– Estou bem. Obrigado.
Atrás do outro homem, Veck seguiu na direção de onde vieram.
– Para quando está marcada a execução?
– Para o primeiro horário da quarta-feira. Se solicitar ao diretor, acho que pode conseguir um lugar.
– Bom saber.
Enquanto andava a passos largos, Veck podia sentir a presença de seu pai com ele, como se a bateria daquela lâmpada maligna dentro dele tivesse sido carregada e recuperado a força que deixou de ter durante anos.
No centro do peito, aquela ira obscura queimava com vivacidade... e espalhava-se.
– Tem certeza de que está bem, detetive?
Veck não teve certeza de qual parte dele respondeu: – Nunca me senti melhor em toda minha vida.
CAPÍTULO 38
– Você fez a coisa certa.
Reilly olhou por cima da divisória que havia no cubículo. Sua supervisora estava encostada contra a repartição, de casaco, maleta numa das mãos e as chaves pendiam na outra.
– E deveria ir para casa.
Reilly sorriu um pouco.
– Só estou recuperando o atraso.
– Sem ofensa, mas isso é besteira... no entanto, não vou te impedir.
– Obrigada – Reilly esticou os braços sobre a cabeça. – Preciso fazer isso. Pelo bem da minha sanidade.
Na tela de seu computador estava a lista preliminar de provas feita assim que a caminhonete de Kroner fora apreendida. Fez uma busca da palavra brinco e agora examinava uma a uma as descrições e as primeiras fotos impressas.
Ainda havia mais ou menos quinze para examinar e, então, passaria um pente-fino na lista principal, que fora finalizada naquela tarde. Precisava entender sozinha coisas como aquelas.
A supervisora assentiu.
– Está certo, eu entendo. E só para te avisar, DelVecchio não retornou minhas ligações... E acabei de ligar para o sargento outra vez. Nada também.
– Quando vai emitir um mandado de prisão contra ele?
– Amanhã, depois do meio-dia, se ele não se entregar para ser interrogado antes.
A acusação seria adulteração de provas. Ela, sua supervisora e o sargento tinham examinado o vídeo de segurança da sala de provas filmado no dia anterior... Viram Veck entrar, olhar todos os objetos catalogados e, em seguida, vasculhar a caixa de coisas que ainda precisavam ser registradas. Esta fora sua oportunidade e, além disso, sua mão esquerda acessou o bolso várias vezes.
Não era uma prova muito concreta, mas combinava com as declarações de Bails e a discrepância na lista – era o suficiente para, ao menos, detê-lo. Além disso, se não atendesse às ligações, havia grandes chances de estarem certos.
– Seja honesta comigo – sua chefe disse. – Teme por sua segurança pessoal?
– Não – talvez.
– Quer que eu designe uma patrulha para sua casa?
– Na verdade, vou para a casa dos meus pais esta noite. E vou ficar com eles um tempo.
– Boa ideia. E considere a patrulha feita – a mulher colocou uma das mãos sobre o ombro de Reilly. – Não se culpe por nada disso.
– Como não?
– Não pode controlar as pessoas.
Mas, pelo amor de Deus, poderia escolher com quem dormiria ou não. Mudando de assunto, disse: – Então, já terminou de conversar com Bails?
– Sim, a declaração dele já está nos arquivos. Pode ler se quiser, é exatamente o que ele já te disse. Saiu há pouco tempo.
– Vou fazer isso. E antes que você diga... sim, eu prometo ir para casa antes da meia-noite.
Sua chefe já estava quase na porta quando disse em voz alta: – Quando vai conversar com os Barten sobre isso?
– Quando tudo estiver acertado aqui. Aqueles pobres coitados já passaram pelo inferno e voltaram, e a ideia de que um policial pode ter assassinado a filha deles vai piorar muito as coisas. Especialmente com o nome DelVecchio associado ao caso.
E ainda teriam que levar em conta que Veck esteve na casa deles.
Naquele momento, as palavras dele foram repetidas em sua cabeça: Eu levei aquele cara até a casa de uma vítima.
Deus, era um ótimo mentiroso.
– Ligue para mim se quiser conversar – sua chefe murmurou.
– Farei isso. E obrigada de novo.
Ao ficar sozinha, pensou em Jim Heron, o “agente do FBI”, o que havia “mostrado” a caverna onde os restos mortais de Sissy foram encontrados. Veck foi brilhante ao interpretar aquela cena. Tão surpreso quando tudo aconteceu. Tão profissional depois.
E quanto à falta de pegadas nas pedras? Heron poderia ter acampado ali durante horas, esperando que Veck levasse-a na direção certa, as solas dos sapatos secaram percorrendo o local. E todos ficaram tão paralisados ao encontrar o corpo que ninguém procurou por ele. Um grande erro.
Estava claro que Heron e Veck trabalhavam juntos.
Reilly soltou um palavrão e voltou a prestar atenção na tela. A última entrada de “brinco” na lista preliminar não demorou para ser examinada e, como esperava, não havia nada parecido com uma pomba ali. Como Bails dissera.
Quando passou para a versão final, com suas fotografias tiradas por um microscópio, a catalogação era tão sucinta que levaria apenas alguns minutos para encontrar o brinco. A discrepância não havia sido notada, mas seria, em breve.
– Que confusão – ela murmurou ao abrir o arquivo de Sissy para rever as fotos da autópsia.
Deus, era fisicamente doloroso só de olhar.
Ao longo dos anos trabalhando na polícia, tinha visto muitas coisas horríveis, mas a situação de Sissy era a pior. Talvez por ter se envolvido pessoalmente, graças a algumas decisões estúpidas de sua parte.
Cansada, mas ainda incapaz de ir embora, decidiu perder algum tempo na internet. Introduziu o nome Thomas DelVecchio Jr., e o Google lhe deu milhares de referências em dezessete segundos. Descendo a tela com o mouse, clicou e abriu alguns blogs e sites... Apenas para se sentir cada vez menos impressionada com a humanidade. Não que precisasse de ajuda naquele departamento.
Havia tanta adoração pelos motivos errados... Reilly ficou se perguntando quantas daquelas pessoas achariam divertido se a própria filha ou a própria mãe tivessem sido uma das vítimas. Ou se alguma delas em si tivesse caído nas mãos de DelVecchio... e sido ferida por suas facas.
Refinando a busca para pesquisar sobre as vítimas, achou muitas referências da primeira mulher que fora assassinada, incluindo algumas fotos da autópsia. E uma comparação lado a lado entre Sissy Barten e Suzie Bussman resultou em algo que ela já sabia: o método e as marcas eram os mesmos.
Que maneira de homenagear o pai. Deus, até mesmo os nomes eram muito semelhantes, de uma maneira assustadora.
Recostando-se profundamente em sua cadeira, seus olhos iam e vinham entre as duas metades da tela – e deu-se conta de que rezava para que encontrassem provas suficientes para condenar Veck. Tudo o que tinham até agora era o brinco plantado em meio às provas, a declaração de Kroner com relação à pedreira e o fato de que Veck estivera na casa dos Barten. Porém, todos tinham lidado com o caso como se Kroner tivesse feito aquilo. Ninguém tinha olhado para Veck – mas isso estava mudando agora. Sua mesa, computador e armário já tinham sido revistados e tudo foi apreendido. Sua casa seria interditada para fins de investigação. E, assim que aparecesse, seria levado direto para um interrogatório. Contudo, talvez ele tivesse fugido...
Reilly ergueu-se e girou na cadeira.
O batimento cardíaco rugia nos ouvidos, abafando o som do sistema de aquecimento instalado no teto e o zumbido do equipamento de informática... e o ranger que ouviu atrás dela.
Olhando para o teto, observou a câmera de segurança em uma das extremidades. A luz vermelha no centro da máquina piscava lentamente, o ciclo preguiçoso das ondas emitidas por aquele sinal indicava que estava funcionando.
– Quem está aí?
Ninguém respondeu, pois não havia ninguém ali. Certo?
Ouviu a própria respiração por um tempo e, então, pensou: Certo, isso é besteira – não seria intimidada no seu maldito departamento.
Empurrando com força a cadeira, andou pelos cubículos vazios e verificou as salas de reunião e os escritórios. Na volta, percorreu todo o caminho até a porta principal, abriu-a e olhou para os dois lados do corredor.
Virou-se rapidamente, quase esperando encontrar alguém atrás dela. Ninguém.
Praguejando baixinho, voltou para sua mesa, sentou-se e... quando o celular tocou, deu um pulo e colocou uma das mãos sobre a garganta.
– Ai, cale essa boca.
Difícil saber se estava dirigindo-se ao celular ou à sua glândula produtora de adrenalina.
Pegou a coisa, aceitou a ligação e exclamou: – Reilly.
– Como você está?
Ao som da voz do detetive De la Cruz, respirou fundo.
– Já estive melhor.
– O sargento me ligou.
– Que confusão – aparentemente, aquela era sua nova trilha sonora.
– Sim.
Houve uma longa pausa, preenchida pelo mesmo tipo de silêncio que marcou a viagem de volta dela e de Bails do hospital até a delegacia: Que diabos aconteceu – era a mensagem subentendida sem que se dissesse uma palavra.
– Alguém te contou sobre a outra parte da história? – ela perguntou.
– Que você e Veck estavam... ah...
Ela teve que fazer uma careta.
– Foi um péssimo julgamento de minha parte. Pensei que o conhecia, pensei mesmo.
– Isto é difícil, não? – as palavras foram ditas com um cansaço que vinha de toda uma experiência pessoal. – No final, só se conhece de verdade a si mesmo.
– Tem toda razão... e estou contente por ter ligado. Quando isto tudo acabar... e ficar tudo...
– Tudo o que as pessoas pensarão é que ele é um idiota. E esse é o melhor cenário que ele poderá vivenciar.
Assassino seria outra palavra muito ouvida, sem dúvida.
– Você vai superar isto – De la Cruz disse. – Só queria que soubesse que pode me ligar se precisar de qualquer coisa.
– Está sendo muito... gentil.
– Parceiros são uma coisa complicada. Já tive alguns.
Mas aposto que nunca dormiu com um deles – Reilly pensou.
– Obrigada, detetive.
Depois que Reilly desligou o telefone, ficou olhando para o nada. Deus, será que aquela história de Veck encontrar sua mãe morta era mesmo verdade? Ou teria sido apenas outra maneira de jogar com as emoções?
Bem, só havia uma maneira de descobrir... Não levou muito tempo para localizar algumas referências em blogs amadores relacionadas a esse capítulo em especial na história da família DelVecchio. Leu tudo sobre como Veck tinha descoberto o corpo, como foi interrogado e como foi inocentado de qualquer envolvimento com base nas evidências físicas: apesar de suas impressões digitais estarem por toda casa, não havia nada sobre a vítima, também não havia sangue sob as unhas, nem sobre as roupas ou em locais como o seu banheiro ou sua cama.
Com o corpo de Sissy Barten foi a mesma coisa: não havia qualquer evidência que ligasse Veck ao assassinato. Porém, Veck era um detetive que sabia exatamente o que fazer para não deixar nada para trás. Fato que a fez se perguntar sobre a mãe dele. E ficar preocupada.
Deus... E se ele conseguisse se livrar desta? As implicações de ser demitido por plantar provas eram muito menores que a acusação de assassinato processada com sucesso. Poderia ficar sem emprego, mas livre nas ruas. E se tivesse a mesma tendência do pai, de escorregar entre os dedos da Segurança Pública, poderiam se passar anos antes de alguém conseguir prendê-lo.
Enojada com tudo aquilo e, aparentemente, procurando ficar ainda mais, acessou o Facebook e digitou Thomas DelVecc...
Não precisou de muito para visualizar vários resultados. Indo de página em página lentamente, observou os fã-clubes aos quais Veck tinha se referido. Ao menos não havia mentido sobre aquilo.
O maior grupo tinha 20 mil membros. Acessou o mural e observou as fotografias alinhadas na parte superior da página; em seguida, viu as postagens posicionadas na vertical. Tudo sobre a execução. Tudo sobre a adoração.
Recostou-se para trás na cadeira e ficou encarando a tela. Passou-se um longo tempo antes de desligar o computador e pegar seu casaco.
– Quem é essa tal de “ela”? – Veck perguntou atrás do volante da caminhonete de Heron. – A quem meu pai se referiu?
Sentado ao lado do cara, Jim não olhava para nada. Tinham pelo menos mais uma hora antes de chegarem em Caldwell, então, havia tempo de sobra para jogar conversa fora... Mas não estava com muita pressa de falar sobre o clima, muito menos sobre Devina e Sissy.
Quer que saiba que ela sofreu.
Aquele demônio era uma tremenda vadia.
Veck soltou um palavrão.
– Maldição, é melhor um de vocês começar a falar. E se não quer me dizer nada sobre a garota, então é bom explicar que porcaria foi aquela de exorcismo.
Jim bateu a ponta do cigarro pela fresta da janela e decidiu enfrentar a última opção, em vez da primeira.
– Você não é nossa primeira tarefa. A primeira alma que salvamos... foi salva dando a Devina uma ordem de despejo.
– Devina?
– Um demônio em forma de mulher, cara.
– Foi ela quem sofreu?
– Quem dera – Adrian murmurou do banco de trás.
Jim concordava muito com ele.
– É assim que funciona. Devina é um demônio... E se precisa de mais explicações além desta, pense na sabedoria popular e terá uma boa imagem dela. Ela entra em alguém e gradualmente influencia suas escolhas e decisões. Em dado momento, a pessoa chega à encruzilhada e tem que escolher. Dependendo do caminho que decide percorrer, de como o segue, das ações que pratica... Tudo isso determina onde vai acabar. E o andar de baixo é um lugar maldito e quente demais, se é que entende o que quero dizer.
– Inferno.
– Isso.
Nesse momento, Jim pensou no pai daquele homem. Cara, aquele ser era pura maldade. E se fosse isso que estava vinculado a Veck?
– Vou acabar lá? – disse Veck suavemente, como se estivesse falando sozinho.
– Não, se pudermos ajudar.
Contudo, como diabos fariam isso? Especialmente levando em conta que Veck parecia mais misterioso desde que deixara aquela sala de visita. Mais irritado. Muito distante, mesmo estando tão perto.
Por que diabos Eddie teve que morrer? – Jim pensou. Precisavam tanto dele naquela situação.
Devina era uma tremenda vadia.
– Reilly está em perigo? – Veck perguntou asperamente.
– Quanto maior a distância entre vocês dois, melhor.
O cara soltou um palavrão novamente e murmurou: – Missão cumprida.
– É realmente mais seguro assim. Ela produziria mais danos colaterais e Devina adora isso.
Na lateral da rodovia, viram uma placa verde com letras brancas na qual se lia “CALDWELL 55”.
Quantos cigarros ele ainda tinha?
– Então, quem é “ela”? A que sofreu?
Ah, sim. Aquela pergunta iria ajudar muito seu humor.
– Alguém com quem me importo.
– Sissy Barten – Veck olhou para ele. – Certo? Kroner disse a mesma coisa, exatamente com as mesmas palavras, quando conversou com Reilly sobre ela. E você já havia dito que era pessoal.
– Disse mesmo.
– Então, o que são aquelas marcas no estômago da garota?
– Devina não conhece os modernos sistemas de segurança e alarme. Ela usa virgens – Jim endireitou-se em seu assento, seus músculos ficaram rígidos quando o impulso assassino foi acionado. – O que viu em Sissy é a maneira como ela consegue se proteger.
– Que... inferno. Então, a primeira vítima do meu pai...
– Talvez Devina o tenha obrigado a fazer aquilo como prova de fé. Talvez ele tenha apenas ajudado. Quem sabe?
– Há quanto tempo isso vem acontecendo? Entre você e o... – a pausa que se seguiu sugeria que Veck ainda estava se acostumando a pronunciar a palavra demônio.
– Há algumas semanas. Mas houve pessoas antes de mim... E ainda haverá depois se eu conseguir que você não siga o caminho que ela quer que você siga.
Jim olhou para as mãos do detetive. Envolviam com tanta força o volante que era um grande milagre ainda não o ter arrancado.
Certo, aquele tipo de fúria não agiria a favor deles: seria um estopim para Devina... Se ela atingisse o ponto certo, teriam que lidar com uma grande explosão. E Veck era um cara grande e forte capaz de matar pessoas com as próprias mãos e, provavelmente, fora treinado para isso.
Maldição, Jim odiava aquela espera.
– Aliás, vamos ficar com você esta noite.
– Imaginei. Só tenho uma cama, mas tenho um sofá.
– Estou mais interessado em parar em alguma loja de conveniência – abriu o maço de cigarros. – Está acabando.
– Tem uma perto da minha casa.
– Legal.
Veck colocou a mão no bolso e pegou o celular.
– Vou deixar ligado.
Enquanto Jim fervilhava de frustração, olhou para a janela ao seu lado em direção à estrada escura, perguntando-se quando as coisas...
– Que inferno – Veck murmurou. – Meu maldito telefone está estranho.
Quando Jim virou a cabeça lentamente, pensou: O tempo de espera acabou. Lá vamos nós...
CAPÍTULO 39
No Paraíso, Nigel jogava contra si mesmo. Xadrez.
Na verdade, era um pouco chato, mesmo seu oponente estando muito bem vestido e sendo incrivelmente astuto: acompanhava todos os movimentos que fazia, então, a falta do elemento surpresa não era nada desafiadora... apesar das estratégias brilhantes e ostensivas.
– Xeque-mate – disse alto em meio ao silêncio de seus aposentos.
Quando não houve qualquer palavrão, nenhuma acusação de práticas desleais, nenhum protesto ou exigências de revanche, lembrou-se outra vez por que motivo jogar com Colin era muito mais gratificante.
Levantando-se, afastou-se da mesa e deixou as peças como estavam: apenas duas sobre o tabuleiro, uma rainha branca e um rei preto.
O desejo de deixar sua tenda e sair andando pelo gramado em direção ao castelo, seguir até o rio, até o local onde Colin dormia, perfazia um impulso irresistível, que ultrapassava os limites mentais e chegava aos físicos.
Mas já fora levado por aquela loucura uma vez e foi muito constrangedor. Não faria isso novamente.
Distraído pela dor no peito, andou em volta da cama, entrou no banheiro e voltou ao quarto outra vez. Na verdade, não estava prestando atenção em nada exatamente... Bem, isso desde aquela refeição horrível... Quando a honestidade de Colin havia acertado em cheio o ego arrogante e irritadiço de Nigel.
Estranho como a posição de alguém mudava. Enquanto o tempo passava como uma corrente preguiçosa num grande rio de águas tranquilas, sua reação defensiva e impetuosa tinha se transformado em algo mais moderado... Preparando-o até mesmo para a possibilidade de se desculpar, desde que um pedido de desculpas fosse oferecido em troca. Prova de que milagres poderiam acontecer.
Infelizmente, tinha plena certeza da resposta que receberia e, conhecendo a si mesmo, bem como ao outro arcanjo, reconhecia que uma nova rodada de discussões não beneficiaria nenhum deles. Ainda assim, quem sabe Colin não poderia tomar a iniciativa de fazer as pazes?
Na verdade, embora Nigel não admitisse isso a ninguém, ele havia pulado várias das últimas refeições e passava o tempo todo ali, na esperança de que o arcanjo se aproximasse. Porém, a situação estava ficando inaceitável. Tal passividade não fazia parte de sua natureza e paciência era uma virtude da qual possuía muito pouco...
– Nigel? – veio uma voz do outro lado dos aposentos.
Nigel rangeu os dentes, mas conteve o palavrão que desejava proferir ajeitando duas vezes a gravata. A última coisa que precisava era de um visitante que não fosse Colin. Contudo, era pouco adequado punir um inocente bem-intencionado.
– Byron, meu velho – murmurou, indo para a entrada –, como estás...?
No momento em que afastou a pesada cortina de cetim e viu o rosto do outro arcanjo, ficou paralisado.
– O que foi?
– Colin... está aqui?
– Não.
– Não conseguimos encontrá-lo – Byron brincava com os botões de metal das mangas do casaco. – Quando ele não se apresentou para a refeição noturna, concluímos que estivesse estudando e o deixamos em paz. Mas, antes de começar, fui procurá-lo com algumas provisões. Não estava em sua tenda. Nem nas fontes de água. Nem no castelo... e nem aqui, pelo que vejo.
Nigel balançou a cabeça ao mesmo tempo em que se concentrou para ouvir seus sentidos – e não encontrou sinal algum do anjo. Na verdade, se não estivesse tão preocupado consigo mesmo, reconheceria antes o que notava claramente agora: Colin não estava no local.
Houve um breve impulso de ceder ao pânico, mas Nigel controlou a reação emocional. E, pensando logicamente, ele sabia que havia apenas um lugar para onde aquele todo iria.
Por que não havia previsto aquilo?
– Não se preocupem – disse Nigel gravemente. – Vou sair e o trarei de volta.
– Quer ajuda?
– Não – pois não se responsabilizaria pela punição que daria ao arcanjo. Conflitos pessoais eram uma coisa, insubordinação era outra completamente diferente. E este último item não seria negligenciado, de forma alguma.
Apenas com a força do pensamento, seu roupão e chinelos com monogramas transformaram-se num terno cinza-claro, uma camisa de um branco brilhante, uma gravata xadrez de tons suaves e um par de asas.
– Vá e console Bertie e Tarquin – disse ao outro arcanjo. – Sem dúvida estão preocupados. E saiba que não devo demorar.
– Aonde vai?
– Para onde ele está.
Com isso, Nigel saiu, atravessando a barreira que os ligava ao mundo lá embaixo. E, quando retomou sua forma corpórea, viu-se diante de uma garagem de dois andares de distinção modesta no interior do país.
Pensou em Edward descansando ali.
Que local comum para uma alma tão extraordinária.
Com uma concentração sombria, Nigel subiu as escadas estreitas e passou pela porta como se não fosse nada além de um véu de névoa. Não havia razão para abrir as portas. Com certeza já havia anunciado sua presença.
E Colin não pareceu chocado com a invasão. O arcanjo estava sentado num sofá gasto sob uma grande janela, descansando com um dos braços estendido sobre as almofadas e as pernas cruzadas, com um dos tornozelos sobre o joelho.
Nigel relembrou cada ângulo e linha daquele belo e rígido rosto masculino. Em seguida, observou os olhos negros e os lábios volumosos.
– Pensou que sua ausência não seria notada?
– Pareço surpreso com sua chegada?
– A maneira adequada de agir diante destas situações é pedir permissão antes de sair.
– Talvez para Byron e Bertie. Mas não para mim.
– Eu não teria negado.
– Como poderia saber?
Quando Nigel franziu a testa, sua ira diminuiu de repente, em seu lugar, sentiu a exaustão. Como os seres humanos suportam aquele turbilhão emocional? E por que havia permitido que seu coração sentisse aquilo? Não era nada bom. Além disso, não poderia continuar. Quando se dirigiu ao arcanjo outra vez, foi com serenidade.
– Colin, parece que você e eu alcançamos nossa própria encruzilhada. Por mais que eu esteja preparado para reconhecer certos... erros de julgamento da minha parte... temo que não seja suficiente para você, assim como água não é suficiente quando a necessidade real é de sangue. Além disso, acredito que, na sua tentativa de assumir uma posição lógica, a verdade sobre você mesmo se perdeu. Suas paixões te governam muito mais do que imagina e te levam em direções que comprometem nossos interesses coletivos.
Os olhos de Colin desviaram-se.
– Portanto, devo sugerir que deixemos no passado nossa relação íntima para que possamos assumir uma distância apropriada. Talvez com o tempo, possamos também voltar a trabalhar juntos em harmonia. Porém, até que isso ocorra, eu espero que se comporte de maneira adequada ou vou remover qualquer influência que possa exercer sobre a presente situação.
Quando não houve resposta imediata, Nigel caminhou até uma cozinha e parou diante de uma porta pequena e baixa. Atrás daquela frágil barreira repousava Edward, sem respirar, mas também sem se deteriorar, o corpo do anjo era como um vaso exalando o perfume de flores que não estavam ali.
Colin foi inteligente ao se dirigir àquele local, pensou Nigel. Com Jim e Adrian guerreando intensamente com Devina, aquele vaso não estava seguro – e, se fosse quebrado ou comprometido, não haveria como restaurar a alma de Edward.
Contudo, mesmo que permanecesse intocado, era impossível saber quando retornaria. Coisas dessa natureza estavam sob a alçada do Criador e dele somente. Além disso, seria um acontecimento sem precedentes. Mas mesmo assim, Colin deveria...
– Eu deveria ter dito onde estava indo – o arcanjo disse bruscamente. – Você está certo neste ponto.
Nigel virou-se. O anjo ainda estava no sofá, ainda estendido, mas tinha erguido os olhos, encontrando os de Nigel.
– Isto é um pedido de desculpas? – disse Nigel.
– Entenda como quiser.
Nigel balançou a cabeça e pensou: Não está bom o suficiente, velho amigo. Simplesmente, temo que ainda não seja o suficiente.
Ajeitando as mangas da camisa, puxou as abotoaduras de ouro e afirmou mais uma vez: – Estou me esforçando para ganhar este concurso vital da melhor maneira que conheço... Ou seja, dentro dos limites dúbios próprios deste jogo. Não posso aceitar a afirmação de que dois erros façam um acerto. Não vou aceitar.
– Não se iluda – Colin murmurou ao erguer uma das mãos e flexionar os dedos. – Nossas mãos estão limpas, como você diz.
– E veja como isso acabou. Edward está morto.
– Você não é o culpado por isso.
– Sou sim – Nigel balançou a cabeça. – É o que você não entende. Tudo isso é minha responsabilidade. Pode ter suas opiniões, suas discordâncias, sua ira, mas, no final, seus ombros não sentirão o peso de arcar com o ônus da derrota, se este for o resultado. Essa função é minha e só minha. Portanto, enquanto menospreza meu controle, você vê as coisas da vantajosa posição onde pode comentar sem sofrer consequências.
Com isso, Nigel andou até a porta.
– Estou feliz por você estar aqui e sei que protegerá bem algo tão precioso.
– Nigel.
Olhou por cima do ombro.
– Colin.
Houve um longo momento de silêncio. Quando pareceu que nada mais seria dito, Nigel olhou para a cozinha e pensou sobre a natureza da perda: é possível escolher certas coisas, outras não. Algumas eram impostas. E... outras eram permanentes.
– Vejo você mais tarde – disse Nigel, finalizando a conversa e saindo.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
Quando o último raio de luz solar esvaiu-se do céu, os restos mortais de Sissy Barten tinham sido embalados e removidos da caverna cuidadosamente.
Veck foi um dos rapazes que seguraram as alças da maca, sustentaram o peso do corpo e tiraram-no dali, levando-o para o ar limpo. Ele ficou por perto ao longo da tarde, mas preferiu ficar em segundo plano, limitando sua participação a tirar fotos com o celular, conversar com o médico-legista e ajudar sempre, sempre e sempre que possível com detalhes desnecessários. Reilly fazia o mesmo. E, então, a única coisa que havia para ser feita ali era subir o corpo até a encosta.
– Vamos por aqui – disse aos outros. – É o melhor caminho que temos.
Os quatro dirigiram-se para o norte e seguiram pelo caminho menos obstruído – algo muito relativo. E havia muita gente esperando a chegada do corpo.
Naturalmente, as equipes de reportagem tinham chegado e se posicionado nas margens da pedreira. Só Deus sabia quem os havia alertado. Com certeza não havia sido ninguém que estava exercendo uma função oficial ali. Mas, afinal, era uma área pública e, além da cidade inteira saber que a polícia havia capturado Kroner e que o cara se recuperava no Hospital São Francisco, também sabiam sobre a vítima naquele hotel e sobre as outras garotas mortas. O fato de alguns oficiais uniformizados começarem a percorrer uma área remota com um monte de lugares obscuros não indicava que alguém estivesse dando uma festa de aniversário em meio àquele amontoado de rochas. Além disso, agora havia um corpo envolvido num saco plástico.
Sobretudo, qualquer idiota tem um celular hoje em dia. E foi por isso que, no exato instante após a identificação do corpo com fotografias e marcas de nascença, De la Cruz saiu correndo da cena e entrou no carro. Embora o Departamento de Polícia de Caldwell não fosse liberar o nome à imprensa antes da família ser notificada, já havia inúmeros e-mails, mensagens de texto e ligações na delegacia – e não tinha como saber quem havia deixado escapar para a esposa, que tinha contado para a irmã, que, por sua vez, disse a alguém de um canal televisivo. Às vezes, a era da informação podia ser um saco. Ninguém desejava que os Barten soubessem sobre sua filha no jornal da noite... ou, que Deus os livrasse, no Facebook.
Enquanto Veck e os outros três rapazes resmungavam, estendiam-se, puxavam e levantavam, Reilly estava bem ao lado deles o tempo todo, direcionando a lanterna e iluminando o caminho enquanto começava a escurecer. E a escuridão parecia cada vez mais densa. Até ficar escuro como breu.
Quase uma hora depois, chegaram ao topo e colocaram os restos mortais na parte de trás de um dos veículos de resgate com todo cuidado.
Veck e Reilly ficaram para trás enquanto Sissy Barten era levada com segurança de volta à cidade.
Quando os outros oficiais começaram a se dispersar e os motores foram acionados, ela disse em voz baixa: – Não acho que...
– Kroner não a matou – Veck concordou com suavidade.
– O modus operandi não se encaixa.
– Nem um pouco.
E não foram os únicos que notaram a discrepância entre Sissy e as outras vítimas: aquele corpo fora suspenso pelos calcanhares e o sangue drenado... havia um desenho arranhado sobre o estômago. Além disso, apesar de estar nua e sem qualquer objeto pessoal, não havia manchas na pele que indicassem que alguma parte fora removida e nada que sugerisse abuso sexual – seria outra perversão típica de Kroner?
– Só não sei como explicar o brinco – Veck murmurou.
– Ou por que Kroner sabia onde ela estava se não a matou.
Veck olhou para sua parceira.
– Quer comer em algum lugar?
Apoiando os braços sobre a cabeça, ela espreguiçou-se.
– Sim, por favor. Estou faminta. E exausta.
Ele pegou o celular e enviou uma mensagem de texto: Sua casa? Você poderia tomar um banho. Comida pronta, prometo ser gentil.
Houve um sinal sonoro discreto e, depois de trocarem algumas palavras, ela pegou o telefone sorrateiramente e olhou a tela.
– Que plano perfeito.
O impulso que sentiu foi de beijá-la rápido e com firmeza. Mas se conteve a tempo, pois não estavam sozinhos. Alô! Estavam cercados de pessoas com quem trabalhavam.
Queria voltar com ela, mas teriam que seguir separados, graças a sua maldita moto. Caramba, e pensar que costumava gostar daquela coisa... Se não fosse por ela, Reilly não o teria levado para casa na noite passada.
– Vejo você em vinte minutos... – disse a ela.
– Tem certeza de que não quer um casaco extra?
– Vou ficar bem.
Ao caminhar pelo chão poroso e lamacento, Veck pensou em Jim Heron e na falta de pegadas. Passou mais algum tempo procurando evidências de que mais alguém, além dele e de Reilly, tivesse percorrido a área, mas não havia nada. No entanto, tinha plena certeza de que aquele homem não poderia ter atravessado todo o terreno molhado e irregular sem deixar qualquer vestígio. E Veck não imaginara a aparição daquele cara.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio. E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente. Sou o único que pode te ajudar.
Tanto faz, Heron.
Resistindo à tentação de gritar para as sombras, montou na moto, ligou o motor e esperou Reilly abrir o porta-malas e tirar as botas imundas. Ao menos aquilo o fez sorrir. Podia apostar que ela tinha um saco plástico ou tapete de borracha lá dentro para colocar os objetos sujos. Provavelmente, assim que chegasse em casa, lavaria imediatamente as botas para que estivessem prontas para o próximo uso.
Olhou para os próprios pés. Seus sapatos estavam arruinados. Do tipo que deveriam ser destinados a um saco de lixo, não serviriam nem se limpasse e engraxasse.
O difícil era encontrar outros em uma situação diferente daquela.
Reilly assumiu a dianteira e Veck seguiu-a pelo caminho até a cidade, mesmo congelando, pois dirigir a 110 quilômetros por hora numa noite como aquela era como sofrer o frio de um rigoroso inverno. A jaqueta não resolvia nada. Parecia estar de regata e nada mais, o frio o castigava. Mas não se importava com a temperatura. Em sua mente, voltou para o banho que havia tomado depois do pesadelo na floresta com Kroner, quando sentiu a presença obscura de algo envolvendo-o, falando com ele e acariciando-o, quando sentiu o maior de todos os seus medos. Não era daquele mundo. Nunca tinha sido.
Então ouviu a voz de Reilly: É como se tivesse caído do céu.
Deus, ele estava enlouquecendo. Só podia ser. Pois estava considerando, de fato, que Jim Heron não existia. Será que existia?
Mais ou menos dez minutos depois, saíram da estrada e seguiram o caminho em direção ao bairro de Reilly. Foi um alívio observar que tudo continuava bem e seguia normalmente: as casas iluminadas, TVs ligadas dentro delas, carros passando devagar e lojas nas esquinas com propagandas da loteria. Tudo poderia ser fácil e concretamente explicado. E quem poderia imaginar que Veck invejava aquilo?
Quando chegaram à casa de Reilly, estacionou atrás dela e saltou da moto enquanto ela entrava na garagem, as luzes vermelhas dos freios brilharam e desapareceram assim que ela desligou o motor.
– Deveria usar um capacete – ela disse ao sair, ir até o porta-malas e pegar as botas enlameadas.
Obviamente, depois disso, acendeu um interruptor, levou as botas até a mangueira do jardim que estava num canto na frente da garagem e lavou a sujeira. Quando olhou para ele outra vez, corou um pouco.
– Do que você está rindo?
– Tinha a sensação de que você faria isso.
Ela riu e voltou a se concentrar em seu trabalho de limpeza.
– Sou tão previsível assim?
Achou que a palavra supersexy também a definiria muito bem. Cara, mesmo uma tarefa trivial valia muito a pena observar.
– Você é perfeita – murmurou.
– Não sou, não, pode confiar em mim – desligando a água, balançou as botas, secou-as com uma flanela e colocou-as de volta no porta-malas.
Juntos, entraram na sua cozinha de galos e mais luzes foram acesas. A primeira coisa que Veck olhou? A mesa. A excitação foi instantânea. Assim como o replay mental da noite de dois dias atrás, quando fez muito mais que beijá-la ali. Aquela sensação, no entanto, não durou muito.
Pela porta de entrada do escritório, viu que ela tinha reorganizado os móveis: a poltrona tinha sido puxada para um canto, posicionada num ângulo mais aberto e havia uma mesa pequena ao lado dela. Deduzindo, imaginou que, se alguém sentasse ali, poderia observar tanto a porta da frente quanto a dos fundos de costas para uma parede sólida.
– Quer tentar uma pizza outra vez? – ela perguntou perto do telefone.
Virando a cabeça em direção a ela, disse um tanto rude: – Por que não me disse?
– O quê?
– Que andou sendo observada também.
Jim não esperou os restos mortais de Sissy serem retirados da pedreira e levados em direção à cidade. Em vez disso, separou-se de Veck, deixando Adrian com o cara e seguiu em direção à casa da família com um detetive baixinho de aparência séria que murmurava algumas coisas em espanhol.
Ele havia dito “Madre de Dios” várias vezes e feito o sinal da cruz tantas outras que já parecia ter um tique nervoso na mão.
De la Cruz não percebeu que tinha um passageiro em seu carro: Jim deu uma de copiloto no caminho de volta para Caldwell. Sim, claro, poderia sobrevoar pela noite, mas aquilo lhe daria tempo para se recompor.
Além disso, a introdução ao espanhol era instrutiva.
Vinte minutos depois de terem deixado o local, o detetive parou em frente à casa dos Barten, desligou o motor e saiu do carro. Ao ajustar as calças, o rosto era sombrio, mas, também, com as notícias que tinha... não era hora de sair exibindo sorrisos.
Na calçada, Jim ficou lado a lado com o homem, sem qualquer desejo de invadir a casa da mãe de Sissy, nem sequer por um momento, mesmo que ela nunca soubesse que Jim esteve ali.
Na porta, De la Cruz ergueu uma das mãos e colocou-a debaixo da gravata, sobre o peito. Havia uma cruz ali. Tinha que ser, especialmente porque ele começou a murmurar algo, como se estivesse rezando...
De repente, o detetive olhou em volta.
E, mesmo que De la Cruz não pudesse enxergá-lo, Jim encontrou aqueles olhos escuros tristes e cansados.
– Você consegue fazer isso. É um bom homem e pode fazer isso. Não está sozinho – Jim falou.
De la Cruz olhou para a porta outra vez e assentiu com ar seguro, como se tivesse ouvido as palavras. Então, tocou a campainha.
A senhora Barten abriu logo depois, como se estivesse esperando.
– Detetive De la Cruz.
– Posso entrar, senhora?
– Sim. Por favor.
Antes de entrar na casa, o detetive deixou os sapatos enlameados sobre o tapete de boas-vindas, e, quando a mulher observou-o, uma de suas mãos subiu até a garganta.
– Você a encontrou.
– Sim, senhora. Encontramos. Tem mais alguém que gostaria que estivesse com a senhora enquanto falo?
– Meu marido está viajando... mas está a caminho de casa. Liguei para ele logo depois que desliguei o telefone com o senhor.
– Vamos conversar lá dentro, senhora.
Ela estremeceu como se tivesse esquecido que estavam em pé na porta.
– Claro.
Jim entrou com o cara e, em seguida, estava mais uma vez na sala de estar, com a senhora Barten sentada na mesma poltrona florida do outro dia. De la Cruz ficou com o sofá e Jim começou a passear pela sala, sua raiva por Devina tornava impossível o ato de permanecer sentado.
– Diga – disse a senhora Barten de repente.
O detetive inclinou-se para frente e manteve os olhos fixos no rosto pálido e tenso.
– Nós a encontramos na pedreira.
Os olhos da mãe de Sissy fecharam-se com força e permaneceram assim. Então, a respiração saiu lentamente, até não restar ar algum em seus pulmões.
Aquilo foi o fim da esperança, Jim pensou. Talvez ela nem soubesse que ainda tinha alguma, mas lá estava, saindo de seu peito oprimido.
– Ela... foi... Ela sofreu...?
De la Cruz falou lentamente e com cuidado.
– Não temos certeza se ela faz parte dos assassinatos mais recentes.
Os olhos da senhora Barten abriram-se outra vez, seu corpo ficou rígido.
– O quê...? Então quem? Por quê?
– Ainda não tenho as respostas, senhora. Mas tem minha palavra: não vou parar até descobrir tudo e capturar o bastardo.
Jim não aguentava mais. Aproximou-se da mãe de Sissy e colocou sua mão invisível sobre o ombro dela. Deus... a dor que havia ali... podia sentir claramente, como se fosse sua própria dor, e, desejando aliviá-la da carga, puxou a emoção para si e conteve-a até seus joelhos dobrarem-se e começar a sentir tonturas.
De repente, como se estivesse fortalecida, a mulher endireitou os ombros e ergueu o queixo. Em voz baixa e forte, disse: – Como ela morreu?
– Senhora, precisamos que o médico legista nos diga isso. Ele está com ela agora e vai trabalhar a noite inteira para cuidar dela. Está em boas mãos e, depois que eu sair daqui, vou direto para lá. Não vou deixá-la, senhora. Não até que tenham terminado todos os exames. Tem minha palavra.
– Obrigada – a senhora Barten respirou fundo. – Como vou saber o que está acontecendo?
De la Cruz pegou um cartão e escreveu alguma coisa nele.
– Este é o número do meu celular. Pode me ligar a qualquer hora, dia ou noite. Meu telefone está sempre ligado e sempre comigo. E, assim que o médico terminar, a senhora será a primeira pessoa para quem vou ligar.
A senhora Barten assentiu e, em seguida, mudou seu foco. Os olhos alcançaram um meio-termo infinito entre ela e o detetive.
De qual parte da vida de Sissy ela estaria se lembrando? – Jim se perguntou. O nascimento... os aniversários... os feriados de Natal ou de Páscoa? Seria o Halloween ou o Dia da Independência? Ou nenhum feriado em particular, apenas alguma lembrança que veio de repente de um momento doce entre elas? Ou talvez qualquer expressão de bondade, empatia ou humor por parte de Sissy para com alguma outra pessoa...
Jim queria ver o que ela via, mesmo que não fosse bom ou nada demais. Mas não se infiltraria nela. O que havia acontecido com a filha já era suficiente...
A vibração que sentiu no peito não era o seu coração, era o telefone. Pegando o celular, leu a mensagem de Adrian: “Tentando entrar em contato e nada. Preciso encontrar você agora”.
Jim não queria partir, mas estava fora da casa num segundo. Dirigindo-se para o leste, concentrou-se em Adrian...
E ele apareceu em meio a uma luta no gramado dos fundos da casa da parceira de Veck.
Que porra...?
Parecia que os subordinados de Devina surgiram fervilhando na noite, seus corpos esfumaçados circulavam ao redor de Adrian como abutres sobre um cadáver. Mas ao menos seu amigo não estava à beira da morte... E, considerando a posição de luta que seu corpo forte tinha assumido, não estava nem perto disso.
Jim posicionou-se para a luta imediatamente e não esperou o sinal do juiz para começar. Entrou com tudo, lançando-se contra o inimigo mais próximo, enfrentando-o com força. Quando o bastardo gritou, o som estridente mudou tudo – numa fração de segundo, as coisas ficaram selvagens.
Segurando o filho da mãe, Jim fechou o punho e destruiu a coisa com um golpe na “cabeça”. Em seguida, conseguiu tirar vantagem do segundo de paralisia para olhar ao redor e lançar um escudo visual e auditivo em torno daquele show de horrores. Era um bairro de família, não um campo de guerra. E toda aquela luta mano a mano acontecia a alguns metros de distância de três outras casas. Todas cheias de linhas telefônicas aptas a chamar a polícia. Não precisavam nem um pouco que os caras do Departamento de Polícia de Caldwell aparecessem.
Sacando sua adaga de cristal, feriu o demônio que detinha e, então, começou a esfaquear tudo o que aparecia pela frente, cortando e dilacerando, lançando sempre a ponta afiada da arma que Eddie havia lhe dado e ensinado a usar.
Tudo o que sentia resultou em violência, toda dor e fúria foram desencadeadas, a ponto de não perceber que o sangue ácido do inimigo estava espirrando em seu rosto. E não se importava que aquela porcaria estivesse corroendo sua jaqueta de couro e ferindo sua pele. Na verdade, não conseguia sentir a terra embaixo de seus pés ao se lançar de demônio a demônio. Estava totalmente entregue e invisível ao mesmo tempo.
Em sua fúria, não conseguiam tocá-lo: eram garotos fazendo serviço de homem e estavam sendo devastados. Depois que Jim esfaqueou outra caixa torácica preta e o jato ácido atingiu seu maxilar e sua garganta, ele desvencilhou-se do corpo e já estava pronto para o próximo...
O golpe em suas costas foi um verdadeiro bote, o tipo de coisa que faz ver estrelas e ouvir pássaros cantar. Mas como soldado bem treinado que era, Jim aproveitou o ímpeto, deixou-se cair ao chão e apoiou-se sobre os ombros no último minuto para evitar mais prejuízos. Quando terminou de rolar e olhou para cima, o demônio que fora atrás dele estava pronto para a segunda rodada.
Certo, muito bem, Jim pensou.
O bastardo tinha pegado uma pá e, obviamente, usou a coisa como raquete de tênis, balançando a ponta de metal e golpeando com ela. E era difícil dizer, mas parecia que saía um riso da sombra tridimensional.
Com certeza, o imbecil filho da puta pensou que estava no comando, e Jim ficou mais que satisfeito em ensinar ao lacaio de Devina uma lição sobre responsabilidades. Mantendo-se abaixado e fingindo estar ferido, esperou a coisa se aproximar – e foi o que aconteceu, como se manipulasse aqueles braços e pernas oleosas com cordas: movendo-se como um robô com articulações rígidas, o demônio aproximou-se equilibrando a ferramenta pesada entre as mãos. Mais perto. Mais perto.
Quando já estava ao alcance, Jim levantou o tronco, pegou o cabo com as duas mãos e puxou com força. O demônio foi lançado para frente e perdeu o equilíbrio, a gravidade tomou conta daquele corpo e o empurrou para cima de Jim... Pelo menos a coisa não estava sangrando.
As botas de Jim atingiram o osso pélvico do inimigo para frear a descida e, em seguida, ele afastou-se e chutou o peso para longe – aproveitando para pegar a pá, claro.
Quando o demônio iniciou o pequeno passeio pelo ar rarefeito, Jim levantou-se, firmou o corpo e foi o primeiro a chegar à nova localização do idiota jogado ao chão. Balançando a pá, deu um fim à questão ao atingir o peito obscuro do bastardo.
Foi bom ouvir o grito. Mas ainda mais divertido foi dar um passo para trás e ver a coisa contorcer-se em câmera lenta. Aparentemente, Jim colocou tanta força no ataque que a ferramenta penetrou no chão, quase um metro, considerando a parte do cabo que ficou exposta. O demônio ficou preso, como um inseto capturado, erguendo os olhos e rosnando.
– É? Então, venha me pegar – Jim deu-lhe um segundo para se levantar. – Não? Prefere bancar o tapete de boas-vindas? Combina com você, seu filho da mãe.
Jim chutou a cabeça com força, como se o crânio fosse uma bola de futebol, e deixou o filho da puta onde estava. Do outro lado do gramado, Adrian estava prestes a ser surpreendido por um demônio que tinha encontrado uma enxada e aproximava-se dele correndo.
– O que é isso? Noite da liquidação de ferramentas? – Jim murmurou ao empunhar sua adaga outra vez. – Atrás de você!
Adrian jogou-se na grama assim que o jardineiro do inferno se lançou. Bem a tempo: o demônio atingiu um dos próprios colegas. O problema? Todo aquele sangue espirraria em Ad.
Jim estava prestes a se jogar sobre ele quando Adrian deu um jeito no problema: deixou os dois enfrentarem-se e saiu do caminho.
Havia apenas dois lacaios em pé à esquerda, e os guerreiros dividiram a tarefa. Jim pegou o que estava todo alegrinho com uma enxada nas mãos e Adrian levantou e começou a andar em círculos ao redor do outro, a adaga de cristal em punho.
Recusando-se a esperar por um golpe, Jim avançou e agarrou a enxada. Ergueu o objeto e lançou-o com força na testa do demônio. Resultado óbvio: Jim continuou a aniquilar a coisa esfaqueando-o com a adaga.
Quando virou-se, observou Ad terminando de lidar com o outro filho da mãe ao abrir um buraco em seus intestinos e, em seguida, cravar a lâmina em sua cabeça. Depois disso, não havia mais nada além de respirações ofegantes, couro fumegante e ferramentas de jardim jogadas ao chão.
Jim olhou ao redor, imaginando onde diabos estava... ah, sim, Reilly tinha um vizinho que possuía aquelas coisas para manutenção do quintal e o compartimento onde guardava tudo foi arrombado. Pena que o cortador de grama continuava no mesmo lugar... teria sido divertido. Poderia dar um novo significado para o conceito de cabelo raspado.
– Você está bem? – perguntou a Ad.
O parceiro, deitado na grama, respondeu.
– Sim.
Os dois tinham arranhões que sangravam, mas, ao menos, Jim estava sentindo-se melhor. A luta tinha lubrificado suas engrenagens e sentia-se mais ele mesmo. Mais calmo. Com maior capacidade de concentração.
Bem a tempo – pensou ao aproximar-se e ajoelhar-se ao lado do bastardo pregado ao chão.
– Você já tentou tirar informações de um deles? – disse enquanto examinava a coisa. Movia-se lentamente, era evidente que ainda estava vivo. Seja lá o que “vivo” significasse.
– Sim. Eles não têm nada a dizer. Não conseguem falar.
– Deve ser por isso que ela gosta deles.
Ad aproximou-se e enxugou o rosto com a ponta da camiseta. A mancha vermelha deixada no tecido poderia servir para aqueles testes psicológicos. Para Jim? Parecia a abertura de uma caverna. Uma caverna escura e profunda que escondia o corpo de uma inocente contra uma de suas paredes.
Sim, essa interpretação não era surpreendente.
Ao ouvir o som de um gemido, Jim pensou: Maldito demônio. Ela era esperta. Se seus subordinados eram incapazes de falar sobre ela por serem mudos, idiotas ou resistentes à dor, era uma boa estratégia para...
– Foi divertido assistir a isto.
Ao som da voz de Devina, Jim e Ad entreolharam-se. Concordaram em silêncio que a aparição dela não era nada inesperada. E, quando levantaram-se e viraram-se para ela, Jim colocou-se na frente do outro anjo. Não perderia outro para aquela vadia. Não naquela noite.
– Se escondendo de mim, Jim?
Os olhos do demônio ergueram-se e fixaram-se nele: eram tão intensos, pareciam enlouquecidos.
Mas que bobagem, ele pensou. Não tinha percebido que ela não conseguia encontrá-lo.
– O radar não está funcionando, Devina? – então foi por isso que Ad tinha sido atacado. Queria atrair Jim.
O demônio andou delicadamente sobre a grama. Usava um sapato com salto tão alto que Jim perguntou-se como ela conseguia respirar com o ar rarefeito ali de cima. Já a saia era do tamanho de um guardanapo e de uma cor tão chamativa quanto os cassinos de Las Vegas.
Soava ridículo, parecia sexy... Desde que não soubesse de fato o que era aquele ser. E Jim nunca iria se esquecer disso.
Estendendo uma das mãos para trás, colocou-a sobre o antebraço de Ad. O outro anjo estava rígido como um bloco de concreto, totalmente imóvel. E continuaria assim: não estava pensando direito ainda para enfrentar o inimigo. Nem Jim, para ser sincero. Mas ela não saberia disso.
– Alguma coisa em mente, Devina?
Ela parou ao aproximar-se de seu soldado morto-vivo que tinha sido reduzido a pedacinhos. Olhando para a coisa, ergueu uma das mãos e, com a urgência de alguém escolhendo um jornal, convocou o ser com a palma da mão, tirando-o do solo na forma de um fluxo e absorvendo a sujeira para dentro de si. Quando terminou, a pá continuava no mesmo lugar, enterrada no chão com o cabo para cima.
– Como está Eddie? – ela sorriu. – Cheirando a rosas?
Jim quis soltar um palavrão. É claro que ela abordaria esse assunto. Era a única coisa certa que faria Adrian enlouquecer. Maldição... E ele já estava pensando que a noite não poderia ficar pior...
CAPÍTULO 31
Quando Reilly encontrou os olhos de seu parceiro, pensou que os dois perderiam outra pizza: parado do outro lado da cozinha, Veck parecia muito chateado e, apesar do comportamento de homem das cavernas incomodá-la, ela sabia que aquilo tinha fundamento.
– Por que não me contou? – Veck perguntou de novo. – Ou, droga, se não para mim, para outra pessoa?
– Quem disse que eu estava sendo vigiada?
– Por que outra razão colocaria os móveis daquele jeito?
Viu? É por isso que não é tão interessante namorar um detetive... Cruzando os braços, Reilly recostou-se no balcão.
– Na verdade, eu não vi nada – encolheu os ombros. – Se tivesse alguma coisa para contar, eu diria. Mas apenas fiquei sentada naquela cadeira a noite toda, imaginando se eu não estava paranoica. Não aconteceu nada.
– Devia ter me ligado – com isso, ela ergueu uma das sobrancelhas e Veck amaldiçoou como se lembrasse de como as coisas tinham ficado entre eles. – Tudo bem, tudo bem... Mas, caramba, não quero você sozinha horas e horas esperando que alguém invada sua casa.
– Fiquei bem. Estou bem. E garanto que, se alguém tivesse entrado em casa, eu teria resolvido a situação.
Murmurando algo meio irritado, Veck aproximou-se e sentou-se à mesa da cozinha. Apoiou os braços sobre os cotovelos e coçou a cabeça.
– Isso está fora de controle.
Qual parte? A ideia de serem perseguidos? A situação com Kroner? O corpo que tinham encontrado? O sexo? A coisa toda envolvendo a palavra “amor”? Tantas opções.
Ao sentar-se na cadeira de frente para ele, pensou em seus pais, sentados juntos à mesa naquela bela casa. Podia apostar que nunca tiveram que olhar um para o outro naquelas circunstâncias...
Quando ouviram um grito vindo dos fundos da casa, ela e Veck estavam em pé antes que o som estridente terminasse. Armas surgiram ao se posicionarem um de cada lado da porta de correr que se abria para o quintal dos fundos. Reilly alcançou o interruptor e apagou as luzes, mergulhando a cozinha na escuridão, em seguida, acionou as luzes de segurança.
Seus olhos observaram o quintal bem iluminado. Não havia muita coisa ali. Era mais como um campo de futebol, e a única visão que tinha era dos pontos que ligavam as outras casas da vizinhança. Nada lá fora. Não que conseguisse enxergar. Mas seus instintos diziam outra coisa. E lembrou-se de todas aquelas pegadas que “Jim Heron” não tinha deixado para trás.
– Acho que estou ficando louca – ela murmurou.
– Engraçado, estou preocupado de que não estejamos.
Quando nada mais aconteceu, esperaram. E esperaram. E esperaram mais um pouco. Finalmente, os dois afastaram-se da porta e recolocaram suas armas no coldre.
– Precisamos de comida. E de um banho – Reilly murmurou. – E de uma avaliação psicológica.
Quando não houve resposta, olhou para seu parceiro. Veck andava pelo cômodo, como se estivesse prestes a levitar. Era evidente que não responderia coisa alguma. Então, entrou na frente dele, obrigando-o a parar ou passar por cima dela. Ele parou.
– Comida. Banho – ela ordenou. – Nessa ordem. Podemos pular a questão do psicólogo por enquanto.
Ele sorriu e acariciou sua face.
– É o seu jeito de me convidar para um encontro?
– Acho que sim, detetive.
– Então, que tal começarmos com um banho? – disse com uma voz grave que a fez pensar sobre o valor da limpeza.
A limpeza meticulosa, devagar, cheia de espuma.
Reilly teve que limpar a garganta antes de falar.
– Por que tenho a impressão de que vamos ficar lá em cima por um tempo?
– Não diga isso – ele aproximou-se mais e colocou as mãos sobre os quadris dela. – Acha que estamos tão sujos assim?
– Que tal imundos? – disse, concentrando-se nos lábios de Veck. – Já passamos do sujo e entramos no território do imundo.
Veck ronronou baixinho enquanto uma de suas mãos percorria as costas de Reilly. A outra desceu mais um pouco e agarrou-a, puxando-a contra ele, de tal forma que o pênis rígido pressionou os quadris dela com força. Ao fazer movimentos sinuosos com a cintura, acariciou com o órgão que já deixava-a sem ar.
Em resposta, Reilly elevou-se na ponta dos pés, arqueou-se sobre ele e colocou os braços em volta do pescoço do homem.
– Veck...
– Sim – ele rosnou.
Inclinando a cabeça para o lado, ela colocou a boca a menos de um centímetro da dele. Com uma voz ofegante e muito sexy, murmurou: – O que você quer na sua pizza...?
Então, ela colocou o lábio inferior entre os dentes e mordeu de leve. Veck gemeu e sentiu o corpo ficar muito rígido.
– Adivinhe.
– Serei a sobremesa...
Não se provocava um homem como Veck. Ele apoiou-a contra a parede, ergueu as mãos dela e segurou-as contra a parede de galos. Pressionando o seu corpo contra o dela para que o sentisse nas coxas e nos seios, assumiu um ritmo alternando movimentos até ela começar a ficar ofegante.
– É melhor fazer o pedido logo – disse, lambendo a garganta dela. – Ou não vou deixar ir até lá e pegar o telefone.
Veck estendeu o braço, aproximando-a do telefone. Mas não parou com o movimento erótico, nem com a língua. Em vez disso, empurrou uma das pernas entre as dela para aumentar o atrito... Ou fazer coisa melhor, dependendo do ponto de vista.
Deus, ela não tinha certeza se conseguiria usar o telefone. Ou lembrar-se do número da pizzaria para a qual ligava pelo menos uma vez por semana. De alguma maneira, pegou o fone e, com um insight, apertou o rediscar – pois acionara o último número há duas noites. Estava chamando. Veck beijava o caminho até seus ombros, o que dificultava um pouco a fala.
Conseguiu pronunciar o nome dela, o endereço e pedir uma pizza de calabresa e salame, grande. Em seguida, começou a negar as ofertas.
– Não... Não, só uma... Não... Não quero nada doce...
Começou a enterrar os dedos no cabelo espesso sobre a nuca de Veck e a arquear-se contra ele.
– Não... Deus, não... – certo, soou um pouco pornográfico, especialmente quando recusou um litro de Coca-Cola pela metade do preço. Desesperada, resmungou: – Só a pizza!
Na verdade queria gritar: “Pelo amor de Deus, mandem logo uma pizza!”
– O-o-obrigada.
O telefone foi colocado no gancho de forma um tanto precária e, em seguida, ficaram velozes e furiosos.
– Quanto tempo? – Veck rosnou contra a garganta dela.
– Vinte... minutos... – agarrou-se ao corpo dele, segurando-o pelos quadris. – Banheiro.
Veck pegou-a pelas coxas e levantou-a do chão. Segurando os ombros dele e envolvendo as pernas ao redor de seu corpo, Reilly firmou-se enquanto ele avançava para o banheiro do corredor.
Com os dois ali dentro, o pequeno cômodo encolheu ao ponto de parecer uma caixa de fósforos. Ao menos a pia tinha um balcão para colocar a mulher em cima. Reilly chutou a porta para fechá-la e começou a abrir a calça ao mesmo tempo em que ele atacou os botões da camisa. Muitas mãos para pouco espaço.
– Deixa – ela disse. Com isso, afastou-o e resolveu o problema em questão de segundos, arrancando a blusa por cima da cabeça e abrindo os zíperes a toda velocidade.
Veck pegou a carteira. E franziu a testa em seguida.
– É a última.
Ela parou no meio do processo de tirar o sutiã.
– Não tenho nada em casa.
E aquela seria apenas uma rapidinha antes da atração principal: Reilly completamente nua sobre a cama e os corpos envolvidos um em cima do outro.
Maldição... Nunca viu qualquer virtude em ser promíscua, mas, se quisesse fazer valer a pena todas as coisas que comprara na Victoria’s Secret, deveria ter algumas camisinhas na casa. Já ele? Foi até cavalheiro em não ter reabastecido o estoque, talvez por esperar que acontecesse algo entre eles ou por ter a intenção de ficar com outra pessoa. Pelo amor de Deus, pensou.
– Merda – disse Reilly.
Veck estava ofegante, o peito movimentava-se com força, seu corpo estava mais que pronto para o que tinham começado: seu pau entendeu que seria libertado e já estava saindo dentre as calças, lutando contra a cueca.
Com um palavrão, colocou a carteira de volta no bolso. E também guardou o pênis, contendo tudo e voltando a fechar as roupas com esforço, pois a dimensão do órgão estava enorme.
– Oh, não – ela disse. – Eu...
Ele voltou para os lábios de Reilly, interrompendo-a ao possuir sua boca com a língua. Com uma pressão sutil, inclinou-a para frente contra a parede, até ficar presa a um canto, o corpo quase estendido. Foi quando começou a tocá-la... Empurrou o sutiã para baixo e debruçou-se sobre os mamilos, brincando com eles até ela arquejar.
– Veck...
– Shhh. Deixe-me fazer assim com você.
Inclinou-se ainda mais para chegar aos seios, sugando-os enquanto as mãos iam a outros lugares: passeavam pelas coxas, acariciavam.
Fez um movimento preguiçoso para frente, erguendo-a, mas ainda não havia chegado ao ponto mais doce e excitado do corpo de Reilly. Enquanto isso, a boca fazia um milagre nos mamilos, provocando-os com movimentos rápidos e sugando-os outra vez logo em seguida e, Deus, a visão daqueles cabelos negros sobre sua pele nua era demais.
Passando as mãos pelo cabelo espesso, abriu ainda mais as pernas contra os quadris dele.
– Veck... por favor...
– Diga o que você quer – pronunciou contra os seios.
– Me toque.
Inclinou a cabeça para o lado e olhou para ela.
– Pensei em fazer isso mesmo.
Então, a língua rosa estendeu-se e fez um círculo quente e úmido sobre um dos mamilos. Gemendo, ela tentou arquear o corpo, mas não havia espaço.
– Aonde quer que eu vá, Reilly? – perguntou. Quando pegou a mão dele, pronta para guiá-lo num passeio, ele afastou os braços da mulher. – Não. Você tem que dizer.
– Veck...
– Bonito nome – colocou os lábios próximos aos ouvidos de Reilly. – Melhor ainda quando você o pronuncia parecendo que está prestes a gozar. Mas acho que não quer que façamos isso separados.
– Não seria difícil – ela gemeu ao imaginar aquela mão enorme segurando o pênis.
– Desculpe, meu objetivo é você. Onde, Reilly?
Dane-se. Os dois poderiam fazer aquele jogo de provocação. Ela deu um impulso sutil, e ele, gentilmente, recuou um pouco, sem dúvida pronto para ouvir todos os tipos de coisas divertidas. Em vez disso, ela baixou os olhos e começou a observá-lo... E colocou a própria mão entre as pernas dela.
– Estou pensando em você – ela disse, acariciando a si mesma. Em seguida, mordeu os lábios e movimentou os quadris ao mesmo tempo, não por querer fazer algum show, mas por ser assim que o sentia. – Me tocando... estou sentido você... me tocando...
Houve a impressão de que os joelhos dele curvaram-se. Ou isso, ou ela abalou o centro de gravidade de Veck... De qualquer maneira, ele afundou-se na parede e teve que estender uma das mãos para se segurar.
Tocando seu sexo, ficou assistindo Veck observá-la... E foi bom perceber que aquele ato solo não duraria muito. Os olhos possessos de Veck estavam fixos no que Reilly fazia, e o corpo dela tremia como se ele fosse assumir o controle a qualquer segundo.
– Quer ajudar? – ela balbuciou.
Veck estava sobre ela num piscar de olhos, auxiliando os movimentos até que ela saiu totalmente do caminho, pois era mais excitante para ele acariciá-la.
Com dedos ágeis, as calças de Reilly abriram-se e, em seguida, ele puxou-as pelas coxas, seus esforços receberam ajuda quando ela apoiou um dos pés contra o assento do vaso sanitário e ergueu-se. Com as calças abaixadas ao redor dos joelhos, teve acesso à calcinha e...
– Oh, Deus! – ela gritou ao ser tocada.
Havia algo muito delicioso na combinação entre seu órgão escorregadio e as carícias de Veck. E isso antes mesmo de ultrapassar a barreira de tecido e entrar em contato com a pele sobre seu núcleo.
Firmando-se em seus ombros, ela puxou-o contra sua boca enquanto ele concentrava-se no sexo, excitando-a cada vez mais, e mais e...
Reilly gozou, a força do orgasmo fez com que suas pernas pressionassem aquela mão talentosa, o corpo começou a se mover em impulsos ritmados. No entanto, ele não parou o que estava fazendo: apenas ajudou a continuar com as sensações até Reilly simplesmente ofegar de felicidade.
Quando Veck afastou-se um pouco e olhou para ela, sentiu que poderia não ter gozado, mas com certeza estava muito satisfeito.
– Gostou do aperitivo? – ele murmurou, a expressão de pálpebras baixas sugeria que sabia o quanto era bom.
Quando Reilly conseguiu se recuperar o suficiente para se mover, estendeu uma das mãos e tocou o pau duro dele através da braguilha fechada.
– Vai ser um prazer retribuir.
CAPÍTULO 32
Parado na frente de Devina, no quintal da casa da oficial de Assuntos Internos, Adrian, pela primeira vez em sua vida imortal e pouco natural, não reagia a uma provocação.
Como está Eddie? Cheirando a rosas?
Quando ele olhou por cima do ombro de Jim para aquela porção do mal em forma de uma mulher glamorosa de tão falsa beleza, as palavras do demônio começaram a girar ao redor de seu crânio como se ela tivesse colocado um de seus subordinados dentro da cabeça dele para que o filho da puta batesse em seu cérebro com uma marreta.
O velho Adrian teria pulado por cima de Jim, ou de qualquer outra coisa em seu caminho, e envolveria o pescoço dela com as mãos até não apenas sufocar a vadia, mas até conseguir arrancar a cabeça do tronco.
No entanto, era exatamente isso o que ela esperava. O que ela apostava que aconteceria. A razão pela qual tinha feito o comentário. E Adrian manteve o controle ao se dar conta de que sua instabilidade foi o que motivou o assassinato do seu melhor amigo. Jim estava certo: o nome do jogo era desestabilização, e o demônio fez o que fez pois tinha certeza de que isso iria ajudá-la na guerra.
Então, sim, por mais que isso matasse-o por dentro, por mais que o fizesse ranger os dentes e fechar os punhos, simplesmente ficou onde estava. Contudo, ele não poderia responder. Não confiava em si mesmo para isso.
– Eddie está são e salvo – disse Jim. – E estamos cuidando dele.
– Empregos novos como agentes funerários? Que pitoresco – Devina abriu um largo sorriso, como se estivesse profunda e verdadeiramente feliz. – Mas não sente falta dele, Adrian? Não se preocupe em responder, posso senti-lo daqui. Sabe? Se precisar de um ombro para chorar, estou sempre disponível.
Quando Ad estava prestes a dizer que Devina deveria enfiar a simpatia artificial no fundo do seu rabo, Jim intensificou o aperto sobre o braço dele... ao ponto de o cara sentir a circulação ser interrompida. O salvador estava certo: se reagisse como Devina esperava, Eddie teria morrido por nada. Depois da perda em si, isso seria a pior coisa que poderia acontecer. Então, ele colocou a outra mão sobre Jim, de modo que os dois permanecessem no lugar.
Devina pareceu perplexa por um momento. Mas não muito: – Paralisado pela dor, Adrian?
Uma eternidade se passou.
E, em dado momento, em meio àqueles segundos infinitos entre os insultos e a falta de reação, Adrian começou a congelar: suas emoções pararam de funcionar, como se queimassem – e, como uma estrela entrando em colapso, sentiu uma transformação que afastou-o do alcance de Devina.
Seria melhor tê-lo deixado sozinho em sua raiva. Mas agora que ela o havia impulsionado àquela clareza ártica, ele conseguiria, pela primeira vez, responder apenas usando a razão, e não o coração.
Soltou-se de Jim e afastou-se do salvador. Quando se separaram, Jim olhou ao redor como se estivesse prestes a interceder, mas Adrian ficou parado ao lado do cara e encarou o inimigo.
– Quer alguma coisa, Devina? – Adrian disse numa voz obscura. – Ou está apenas socializando um pouco?
Outra rodada de silêncio. Porém, desta vez, Devina começou a brincar com seus longos cabelos, com a saia curta, com as pulseiras de ouro. E para Ad não havia satisfação alguma em interromper a diversão do demônio. Apenas um silêncio mortal no peito, um poder ressonante que Adrian nunca havia sentido antes, mesmo com todos os instintos guerreiros ferozes que tinha. Era como se tivesse renascido. E poderia ser mandado para o inferno se voltasse a ser como era. Literalmente.
Quando Jim olhou para o outro anjo, pensou: Certo, quem é você e o que fez com Adrian Vogel?
O homem ao lado dele não chegava nem perto de quem conheceu e com quem trabalhou nas últimas duas rodadas na guerra. Era um robô parecido com Ad: absolutamente idêntico, mas desligado do original. Não havia emoção em seu rosto, em seu corpo, nas suas vibrações. Nada.
Algo dizia a Jim que a mudança era permanente, como se a placa mãe do cara tivesse explodido e sido substituída por outra. A paixão havia partido. O calor havia partido. No lugar? Uma frieza calculada – o que tornava-o intocável.
Era uma faca de dois gumes, não? Mas, de qualquer maneira, haveria tempo para se preocupar com as consequências mais tarde. Jim virou-se para Devina outra vez.
– Então, o que vai ser? Social? Ou negócios?
Devina deslizou uma das mãos pelo cabelo, as ondas movimentaram-se com leveza e brilho, como se estivesse num comercial de xampu.
– Estou muito ocupada.
– Então, por que está aqui conversando? – Jim pegou o maço de cigarros e tirou um. – Se é uma garotinha tão ocupada?
– Oh, não faz ideia de como estou trabalhando – seu sorriso sórdido parecia ter saído de um filme de terror, forçado, sem qualquer movimento natural. – Estou tentando fazer algumas mudanças no jogo. E não vejo a hora de esta rodada terminar.
– Porque você gosta do sabor da derrota? – tirou o isqueiro e acendeu o cigarro. – Que paladar estranho você tem, querida.
– Gosto do seu sabor – correu uma das mãos pelo corpo. – E vou me satisfazer em breve.
– Duvido.
– Se esqueceu do nosso acordo?
– Oh, não, eu me lembro.
– Eu não menti.
– Deve estar tão orgulhosa.
Quando Jim não disse mais nada, ela brincou com o cabelo mais um pouco... e isso foi tudo. Ficou ali parada na frente dele, cheia de gracinhas, sem ir a lugar algum. Caramba, talvez pensasse que estava sendo admirada. Talvez fosse uma loira burra, mesmo não tendo cabelo de verdade. Talvez estivesse...
Puta merda, ela estava vivendo um momento “namoradinha”, não? Emburrada por não encontrá-lo antes. Pois era esse o “motivo”.
Foda. Aquilo tudo era foda demais.
Era mesmo um namoro infernal.
E, mesmo sem saber por que não conseguiu encontrá-lo, Devina concluiu que, às vezes, a sorte simplesmente estava do seu lado.
De repente, o olhar dela voltou-se para a casa. Na janela dos fundos, na cozinha, Veck e Reilly apareceram. Pareciam desarrumados e estava claro que tinham acabado de dar uns amassos: estavam com aquele brilho de satisfação e felicidade, ao ponto de Jim achar que, se as luzes fossem apagadas, continuariam brilhando no escuro.
– Eu odeio eles – Devina disse, cruzando os braços sobre os seios.
Aposto que sim – Jim pensou. Pois havia duas pessoas apaixonadas ali.
E a inveja matava-a: seu rosto ficou tenso, os olhos iluminaram-se de ódio. Desejava ter aquilo com Jim.
Ha, ha.
– Então, precisa de alguma coisa? – ele perguntou com uma voz baixa e profunda.
Devina virou a cabeça com rapidez.
– Você precisa?
Para mantê-la ali, a resposta, claro, não poderia ser agradável. E, nossa, não era tão difícil fazer isso.
– Não de você – Jim assumiu uma expressão de tédio ao dar uma tragada no cigarro e exalar. – Nunca preciso de nada que venha de você.
A fúria no rosto de Devina animou-o. Em seguida, ela rosnou: – Tudo por causa daquela maldita Sissy.
Resposta errada, pensou. Resposta muuuito errada.
– Que Sissy?
– Não brinque comigo.
– Não estou brincando. Ao menos, não agora – deixou as pálpebras ficarem semicerradas. – Quando eu brincar com você, você saberá.
As palavras enojaram-no, mas Devina saiu do controle: corou de repente, como se estivesse se lembrando dos momentos que passaram juntos e, então, exibiu um sorriso grande e lento.
– Promete? – disse com voz rouca.
– Prometo.
Com isso, ela girou de alegria. Ótimo. Como se o estômago de Jim já não estivesse enjoado.
– Mas talvez eu seja um mentiroso – disse lentamente. – Acho que precisará esperar para ver.
– Acho que sim – os olhos examinaram o corpo de Jim de cima a baixo. – Mal posso esperar.
Francamente, aquela conversa toda fez Jim contrair-se, mas ele bloqueou a sensação. Não tinha certeza de que possuía total controle sobre o demônio. Mesmo ela estando apaixonada, essa era uma carta na manga que poderia deixar de funcionar, e Jim não sabia se a arma de sedução funcionaria para sempre. No entanto, cultivaria a qualquer custo aquela conexão pelo tempo que fosse possível.
– Bem, acho que é hora de parar por aqui, Jim – Devina deu outra pirueta. – Tenho que voltar ao trabalho, mas vejo você em breve.
– Se Veck está aqui nesta casa, por que precisa ir a outro lugar?
– Como eu disse, sou uma garota ocupada, você vai entender isso – soprou-lhe um beijo. – Até mais. E, Adrian, ligue se precisar de um ombro para chorar.
Com isso, saiu pela noite, uma névoa surgiu e desapareceu no ar. Então, se Devina não estava ali com Veck, Jim tinha que concluir que a luta era em outro lugar.
– Droga – murmurou, pronto para golpear alguma coisa.
– Não – Adrian disse. – Vamos ficar aqui. Vamos ficar com Veck.
Jim olhou para ele. O velho Adrian? Teria saído como um raio atrás dela. O novo Adrian? O calculista filho de uma puta estava superconcentrado, seus olhos frios e imparciais fixaram-se em Jim.
– Ela não vai nos enganar – Ad anunciou. – Vamos manter o foco e ficar aqui. Fumaça e espelhos não vão me influenciar.
Isso, é assim que se fala – Jim pensou, com respeito.
Naquele momento, o som de um carro estacionando em frente à casa ressoou. Aparecendo na rua com Adrian, Jim desembainhou sua adaga... Mas, em seguida, viu o pequeno sinal luminoso da pizzaria sobre o carro.
Oh, caaaaara. Pizza... e sexo. Talvez Devina tivesse razão. Difícil não invejar aquilo.
O entregador tirou o que precisava do carro e caminhou pela calçada. Veck atendeu, pagou em dinheiro e desapareceu. O carro partiu.
Nos momentos que se seguiram, Jim sentiu vontade de ir atrás de Devina... Podia sentir a presença dela em qualquer lugar da cidade... Mas não seria exatamente isso o que ela desejava? Não se podia confiar nela jamais. O novo Adrian estava certo: ficariam ali, firmes.
– Obrigado, cara – Jim disse sem tirar os olhos da porta sendo fechada e trancada na parte dianteira da casa.
– Sem problemas – foi a resposta concisa.
CAPÍTULO 33
Veck não sentiu o gosto da pizza. Para ele, a coisa poderia estar coberta de tiras de pneus e pedaços de gesso. Não conseguia parar de pensar em Reilly em cima do balcão da pia, pernas abertas, mãos acariciando a si mesma.
Sentado ao lado dela na cozinha, tinha plena certeza de que a mulher pensava mais ou menos a mesma coisa, pois comia com bastante objetividade. Porém, sem desalinho ou falta de boas maneiras... apenas de maneira limpa e rápida. Ele fazia o mesmo. Mas menos limpo.
Quando terminaram de devorar tudo, ele estendeu-se sobre a cadeira e olhou para o teto.
– Então, onde é sua banheira? – ele perguntou, tentando ser casual.
Aquilo a fez sorrir. E ele sentiu um desejo enorme de beijá-la por inteiro.
– Vou mostrar. Vai terminar este pedaço?
– Não – droga, se não fosse pelo estômago vazio resmungando, não teria se preocupado em apressar a transa para dispensar o cara da pizza. Mas Reilly precisava se alimentar.
– E você?
– Estou satisfeita.
Estou pronto para satisfazê-la de outra maneira – pensou.
Levantou-se e estendeu a mão para ela.
– Mostre o caminho.
Foi exatamente o que fez: subiu as escadas com ele e entraram num quarto que não tinha nada a ver com o local onde ele dormia. Os aposentos de Reilly tinham belas cortinas nas três janelas, uma cama cheia de travesseiros e um edredom grosso o suficiente para servir de cama elástica. Lugar perfeito para fazer amor.
– O banheiro é por ali – ela murmurou, apontando o caminho.
Veck aproximou-se, entrou na escuridão e tateou a parede para encontrar o interruptor. Quando bateu na coisa, quase caiu de joelhos com uma oração de agradecimento.
Uma banheira vintage enorme. Profunda como um lago. Tão grande quanto a cama.
E, como você pode imaginar, a torneira tinha pressão suficiente para abastecer uma mangueira de incêndio.
Quando a água quente começou a sair e encher a banheira, ele virou-se para chamar...
– Caralho... – ele sussurrou.
Reilly havia tirado as roupas e estava nua na porta.
Era o caminho mais curto para enlouquecer um homem: tudo o que viu foi uma pele linda, seios perfeitos e a linha sinuosa dos quadris que estava morrendo de vontade de agarrar.
Enquanto Veck tentava reagir sem palavrões, ou pior, sem começar a babar, ela puxou o laço do cabelo e balançou os fios avermelhados... com isso, os seios balançaram ligeiramente.
– Venha aqui – disse ele com voz rouca.
Ela aproximou-se com a cabeça erguida e o olhar baixo... Observava o pênis ereto cheio de desejo.
Perto dele, Reilly inclinou-se para beliscar sua orelha.
– A água já está bem quente?
– Entre – ele agarrou os quadris dela e apertou – e vai começar a ferver.
Curvou-se e uniu seus lábios aos dela, beijando-a. As roupas levaram... hum, um minuto e meio para serem removidas.
Então, como o cavalheiro que não era, mas que estava determinado a ser, ergueu Reilly e carregou-a para dentro da banheira com cuidado, posicionando-se de maneira que pudessem observar um ao outro. O vapor entre seus corpos tinha o aroma do perfume que sempre associou a ela, o que sugeria que a mulher fazia aquilo com frequência, talvez incluindo algum kit com cremes e sais de banho.
Mais beijos e mãos percorrendo todos os lugares do corpo junto com a água quente. Mas, quando ela tocou seu pênis ereto, Veck fez um movimento brusco e espirrou alguns litros de água no chão.
– Ai, merda... desculpe...
Reilly aproximou-se dele, empurrando-o contra a parede curva da banheira.
– Não estou preocupada com a água.
Quando fechou uma das mãos ao redor do pênis dele e começou a acariciar, Veck murmurou entre os dentes: – Não vou aguentar muito tempo se continuar assim.
– Não quero que aguente.
Ótimo, muito bom. Pois a visão dos seios lisos e flexíveis e o olhar erótico dela eram suficientes para fazê-lo gozar. Somando a carícia? Já estava ultrapassando e muuuito seus limites.
Veck começou a movimentar os quadris de modo que acompanhassem o ritmo de Reilly e deixou a cabeça cair para trás contra a borda sinuosa da banheira. O que lhe proporcionou um ótimo ponto de vista. O nível de água da banheira já havia sido recuperado, e os mamilos rosados e enrijecidos surgiam, desapareciam e voltavam outra vez...
Deixando-a brilhante. Muito brilhante. Como se ele a tivesse lambido por completo.
Foi a gota d’água. Seu maxilar ficou tenso e ele soltou um gemido alto quando seu pau explodiu contra aquela mão, o corpo arqueou-se com rigidez. Em resposta, ela exibiu um belo sorriso, digno de ser guardado na memória para sempre.
Contudo, por alguma razão... mesmo sendo algo muito desanimador... só conseguia pensar nela sentada naquela cadeira, armada, esperando alguém atacá-la. Estavam seguros ali, juntos, mas não duraria para sempre. Mais cedo ou mais tarde, teria que ir para casa, e ela ficaria ali sozinha. Deus, os dois sendo espionados? Era hora de assumir o controle da situação e manter aquela mulher com seu sorriso de tirar o fôlego em segurança. Da próxima vez que aquele Heron aparecesse, prenderia o bastardo. Mesmo se isso matasse os dois.
– Você está bem? – ela perguntou, sentindo com clareza a mudança nele.
– Ah, sim. Muito bem.
Reilly afastou a cabeça dele da borda da banheira, esticou a perna e girou a torneira com o pé. Em seguida, Veck puxou-a para perto dele, não tinha a menor intenção de desperdiçar o momento.
– Gostei muito disso – disse Veck contra a boca dela. – Mas tenho a impressão de que para você será melhor ainda.
Ficaram tempo o suficiente na água para aproveitarem o momento de tranquilidade, os beijos e as carícias. Não que ele precisasse de tempo para se recuperar. Estava pronto para outra logo depois do orgasmo que ela lhe proporcionara. Seu desejo por ela chegava a esse ponto.
– Vai me levar para sua cama? – Veck disse.
Quando ela assentiu com a cabeça, Veck estendeu-lhe uma das mãos com firmeza para ajudá-la a se levantar e, com cuidado, guiou-a ao sair da banheira alta.
– Cuidado – alertou. – Está molhado.
– Sim – Reilly olhou para baixo. – Vou pegar um pano para secar.
– Eu pago se por acaso tiver estragado o seu teto com a umidade.
Ao olhar para ele, Reilly virou-se com graciosidade.
– Teria valido muito a pena.
– Você é tão linda – ele disse suavemente, enquanto observava a luz sobre suas curvas.
Com as bochechas vermelhas, Reilly virou-se para a pilha de toalhas em cima do balcão e começou a jogá-las no chão ao redor da base da banheira. Mesmo muito satisfeito em apenas assistir ao show, Veck levantou-se da água e saiu.
O espelho sobre a pia deixou-o nervoso, mas esforçou-se para olhar o que havia ali. Nada além de seu reflexo. Nada de sombras. Nada se movendo entre suas costelas e dificultando sua respiração. Aliviado, aproximou-se dela por trás. Perto do corpo molhado e cálido, abaixou-se e beijou seu ombro.
– Não estou... acostumada com isso – tirou a última toalha da pilha, como se estivesse impaciente consigo mesma. – Eu só... não sei como lidar com isso.
– Você lida comigo muito bem – com isso, percorreu o dedo indicador sobre as costas de Reilly. – Melhor do que ninguém.
Ela riu numa explosão um pouco tensa.
– Não sei por que, mas eu duvido.
– Não duvide. Você é especial.
Colocou as mãos no pescoço dela e acariciou as costas até chegar aos quadris. Em seguida, seus lábios seguiram a mesma trilha, beijando e mordendo a partir do pescoço... e descendo cada vez mais.
Ajoelhando-se, Veck correu os lábios até as coxas, movendo-se gradualmente para se aproximar da junção sobre a qual pensava o tempo inteiro. Com essa insistência gentil, ela inclinou-se sobre o balcão, expondo seu órgão e enlouquecendo Veck...
Com um movimento súbito, ele aninhou-se ali e sugou-a.
Era doce... quente... e escorregadia tocando sua língua. E ela também estava adorando, braços apoiados sobre o mármore para manter o equilíbrio, a respiração ficou forte e ofegante.
Usando as mãos, Veck afastou os pés dela ainda mais para ganhar espaço; em seguida, percorreu as palmas das mãos de volta às coxas e segurou-a com força para deixá-la bem firme contra seu rosto: movimentos rápidos. Sucções profundas. Penetração com a língua.
Levou um tempo, pois havia muito para explorar e Reilly já não aguentava mais. Com uma das mãos, tocou o centro superior do sexo dela ao mesmo tempo em que passava a língua ali dentro. Os rápidos movimentos circulares no lugar certo levaram-na às alturas, e Veck adorou a maneira como ela se contraiu internamente e curvou-se contra ele.
Quando Reilly gozou, ele afastou-se. Através das pernas trêmulas, teve uma linda visão de seus seios que pendiam para baixo com as pontas roçando o mármore ao oscilarem para frente e para trás no ritmo da respiração.
Veck fechou os olhos com força e precisou de um minuto para se conter. Queria gozar dentro do local onde sua língua esteve.
O. Orgasmo. Da. Sua. Vida.
Enquanto Reilly esforçava-se para ficar em pé, seu corpo ainda estava a toda velocidade – porém, não havia lugar algum para ir, então, tudo o que os músculos das coxas fizeram foi permanecer no lugar. E isso não era nem a metade. Sua mente queimava, ao ponto de não saber exatamente onde estava.
Virando a cabeça, ficou face a face com o creme dental e as escovas de dente. Banheiro. Bem, parece que nunca mais olharia da mesma maneira para esses dois locais da casa... espere. Eram três. O lavabo do andar de baixo e a cozinha também.
Enquanto o mundo girava, percebeu que Veck pegou-a no colo. Boa ideia. Achava que não conseguiria andar mesmo – e foi uma ótima maneira de se secar. No quarto, ele deitou-a sobre a cama e cobriu-a com o edredom até a cintura.
– Volto já – ele disse.
Contudo, não ficou sozinha por muito tempo, pois ele agiu rápido: desceu, vasculhou um cômodo no andar de baixo que pareceu ser a cozinha e voltou rapidamente. Ao entrar, apagou as luzes. No começo, Reilly achou que seria por alguma modéstia – não precisava disso, claro, não depois do que fez sobre o balcão – mas então viu que ele colocou algo sobre a mesa de cabeceira.
A arma dele. Não, havia duas. Trouxera a dela também. Deve tê-las encontrado sobre a mesa onde se desarmaram antes do jantar. Que romântico.
A lembrança do que acontecera na noite anterior congelou-a, mas ele cuidou disso, cobrindo-a com seu corpo quente e forte.
– Não pense nisso – Veck sussurrou. – Não agora. Haverá bastante tempo para cuidarmos disso.
Tocou o rosto de Veck e desejou que estivessem em férias em algum lugar bem longe de qualquer dever que tinham com o trabalho e da situação que os unira.
– Você está certo – ela disse. – E não quero esperar mais nem um minuto.
Ele assentiu e pegou a última embalagem quadrada que guardava na carteira. Quando terminou de colocá-la, montou sobre ela outra vez e, ao abrir ainda mais as pernas da mulher, sentiu uma mudança nele, e também nela: tudo ficou mais lento.
Ao entrar nela deslizando suavemente, Reilly acolheu-o não apenas com seu sexo, mas com a alma, beijando-o profundamente.
Sem palavras, sem hesitações, sem quaisquer reservas, eles moveram-se juntos, criando uma dinâmica, intensificando tudo. Quando finalmente gozaram, foi ao mesmo tempo, e continuaram juntos mais um tempo: ela com as unhas cravadas nas costas de Veck, ele com os braços embaixo dela, apertando seu corpo.
Era a união perfeita. E, depois, mesmo Veck tendo que sair dela, deitaram no escuro o mais próximo possível um do outro, os corpos formaram uma massa tépida no centro da cama.
– Vai me deixar passar a noite aqui? – ele perguntou.
– Sim. Por favor, sim.
– Já volto. Fique embaixo das cobertas – ele disse.
Boa ideia. Porque, quando Veck saiu, o frio percorreu rapidamente todo o corpo dela. Poucos minutos depois, voltou do banheiro e juntou-se a ela.
– Estou do seu lado da cama?
– Ah... não. Eu fico aqui mesmo.
– Que bom.
Ela virou-se e ficaram face a face, cabeças sobre os travesseiros, os corpos aqueciam-se sob o peso dos cobertores. Veck roçou a ponta do dedo sobre a bochecha dela... ao longo do maxilar... sobre os lábios.
– Obrigado... – ele sussurrou.
Deus, ela mal conseguia respirar.
– Pelo quê?
Houve uma pausa.
– Pela pizza. Estava do jeito que eu gosto.
Reilly deu uma risada.
– Espertinho.
– Venha. Preciso abraçar você.
Ela sentia o mesmo. E quando não havia mais distância entre eles, a sensação era de voltar para a casa depois de um longo dia.
Com a cabeça em seu peito, sobre o coração que batia, com os braços de Veck ao redor dela e com uma das pernas jogada sobre a dele, estava confortável e segura. Enquanto ele acariciava seus cabelos com movimentos preguiçosos, ela fechou os olhos.
– Isto é simplesmente perfeito.
Com isso, Reilly pôde ouvir o sorriso na voz dele: – É como eu quero que seja para você. Quero fazer tudo perfeito para você.
Quando Reilly adormeceu, seu último pensamento foi sobre a ansiedade em fazer tudo outra vez. Não apenas o sexo. Aquela calma adorável, inestimável, era ainda melhor do que fazer amor. Apesar de não ter sido nem um pouco ruim.
CAPÍTULO 34
Na manhã seguinte, enquanto Veck ia para a delegacia, sua principal tarefa foi não ficar sorrindo o tempo todo feito um idiota. Difícil.
Estava uma hora atrasado, pois ele e Reilly ficaram envolvidos em atos que, por não terem mais camisinhas, poderiam chamar de “preliminares”. Assim, considerando que não tinham o material de látex apropriado, o que aconteceu foi melhor do que qualquer relação sexual que teve com qualquer outra pessoa antes – cinco mil vezes melhor. Também havia passado na farmácia a caminho do trabalho e comprado um estoque do que precisava.
Enquanto caminhava pelo saguão, acenava para as pessoas, mantendo uma atitude profissional, porém o adolescente dentro dele estava explodindo como se tivesse vencido vários campeonatos esportivos numa só noite.
Quando chegou ao topo da escada, rezou para não encontrar Britnae e suas ofertas de café da manhã. Aquela garota não tinha nada a ver com sua Reilly e já era hora de desfazer aquele hábito de abordá-lo o tempo todo. Mas nem precisou se preocupar. Um dos caras do turno da noite, da recepção e vigilância, estava na mesa dela. Veck não conhecia o oficial muito bem, mas ele parecia diferente. Como se tivesse assumido o papel de um galã de cinema, apesar de estar mais para Homer Simpson. Britnae? Devorava aquele homem com os olhos.
O que provava que aquilo que havia por dentro era o que contava – e quem poderia imaginar que uma garota do tipo de Britnae seria capaz de descobrir isso?
No Departamento de Homicídios, Veck sentou-se à sua mesa e ligou o computador. Em seguida, foi atingido por uma ideia romântica desconhecida e inegável: abriu sua caixa de e-mail, selecionou o endereço de Reilly nos contatos e preparou-se para enviar alguma coisa. Havia o espaço da tela em branco para preencher. Muuuito espaço. No final, digitou algumas palavras. E apertou logo enviar, antes que alguém olhasse por sobre seu ombro.
Depois, apenas ficou ali, observando a tela, perguntando-se se teria feito a coisa certa... até perceber que estava olhando para a caixa de entrada e o relatório sobre Sissy Barten do médico legista já estava pronto. Com certeza, o cara tinha virado a noite para terminar a autópsia.
Veck leu tudo e examinou cada uma das vinte ou mais fotografias do corpo. Não havia nada nelas que não tivesse visto por si mesmo na pedreira e, quando chegou às marcações ritualísticas no tronco, inclinou-se para trás e bateu o dedo indicador sobre o mouse. Se não tinha sido Kroner, quem teria sido?
– Correspondência.
Veck olhou para o funcionário com seu carrinho cheio de envelopes e caixas.
– Obrigado, cara.
Três mensagens. Duas interdepartamentais. Uma do correio americano... Era apenas uma carta que retornara de Connecticut. Endereço não encontrado? Nos últimos dez anos, evitou atualizações de cadastro junto às instituições federais.
Examinando o envelope, sentiu que, se começasse a abrir, não poderia mais voltar atrás. Seu primeiro impulso foi jogar a carta fora, mas a atração em saber o que havia lá dentro tornou o ato impossível – e pensou que odiava o poder mental que seu pai exercia sobre ele.
Ligue quando ficar assustado o suficiente.
Não desperdiçaria energia com o motivo pelo qual a voz de Heron soava em sua cabeça enquanto rasgava o embrulho.
Dentro, havia uma folha de papel com três linhas escritas com uma letra elegante e fluída que representava muito mais a imagem de riqueza que seu pai ostentava que suas origens do centro-oeste do país.
Caro Thomas, espero que esta mensagem o encontre bem. Gostaria que viesse me ver assim que possível. A prisão permitiu que eu recebesse uma última visita e escolhi você. Há coisas a serem ditas, filho. Ligue para o número abaixo. Com amor, seu pai.
– Você está bem?
Veck olhou para cima. Reilly estava em pé ao lado dele, ainda de casaco e a bolsa pendurada no ombro, seu cabelo macio fora lavado há pouco tempo.
Se não fosse pela noite anterior, teria respondido um “sim, tudo bem” e continuado a fazer suas coisas. Em vez disso, simplesmente ergueu a carta para ela.
Reilly sentou-se na cadeira enquanto lia e Veck acompanhou o movimento de seus olhos indo da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Então, voltou ao topo e releu.
– O que vai fazer? – ela perguntou quando finalmente ergueu os olhos.
– É suicídio mental ir vê-lo – Veck esfregou os olhos para apagar a impressão que aquelas palavras produziam. – Um maldito suicídio mental.
– Então, não faça isso – Reilly disse. – Não precisa ficar para o resto da sua vida com o que ele vai dizer atormentando a sua cabeça.
– Sim.
O problema era que seu pai não era o único com alguma coisa em mente. E, com certeza, seria ótimo ser adulto o suficiente para se afastar dessa situação, mas sentia que precisava olhar naqueles olhos uma última vez – ao menos para ver se havia realmente alguma coisa em comum entre eles. Afinal, durante anos, acreditava ser louco, cobrindo espelhos, observando sombras, ficando acordado durante a noite pensando se tudo não passava de paranoia ou se percebia algo de fato. Poderia ser a última chance de descobrir.
– Veck? – ela disse.
– Desculpe.
– Vai até lá?
– Não sei – era verdade. Pois ela tinha razão. – Ei, ah... o relatório de Sissy Barten chegou. Precisa dar uma olhada.
– Certo – apoiou a bolsa. Tirou o casaco. – Alguma surpresa?
– Tudo é surpreendente neste caso – Veck olhou ao redor. – E quero conversar com Kroner.
Reilly olhou Veck direto nos olhos.
– Nunca vai conseguir permissão.
– Não estava pensando em pedir.
Reilly soltou um palavrão baixinho. Não era o que planejava para um início de conversa matinal. Depois que Veck deixou sua casa, ela tomou um bom banho, depilou-se por completo e mergulhou nas suas sacolas da Victoria’s Secret.
O conjunto preto e vermelho de lingerie que vestiu lembrava-lhe cada beijo, lambida e carícia que compartilharam – e desejava mais daquilo assim que possível. Então, planejava chegar ali, agir profissionalmente e, de maneira bem discreta, apontar para o que havia sob as roupas. Em vez disso, entrou numa questão administrativa.
Olhando para seu parceiro, balançou a cabeça.
– Agir precipitadamente não é a resposta. E, se você quer continuar com isso, vai me colocar numa situação terrível.
– Sissy Barten é o que importa, não normas burocráticas. E eliminaram qualquer possível envolvimento meu no que aconteceu naquele hotel, lembra? Foi você quem fez isso – endireitou-se na cadeira. – Kroner não a matou, e você sabe disso. Serial killers não variam o estilo. Cometem alguns deslizes ou param no meio do que estão fazendo quando são interrompidos. Mas um cara que coleciona troféus de suas vítimas não começa, de repente, a arranhar símbolos na pele delas ou as deixa sangrar por completo. O que preciso descobrir é por que aquele homem sabia sobre a pedreira e por que diabos o brinco da garota está no meio das coisas encontradas na caminhonete dele. Tem alguma coisa que não estamos entendendo em tudo isso.
Reilly não podia discordar de nada. O método que ele empregava era um problema.
– Outra pessoa poderia perguntar a ele sobre essas coisas.
– Você?
– Sim.
No silêncio que se seguiu, Reilly pensou: Bom, pelo menos estivemos em sintonia durante a noite e no início da manhã. Pena que isso não durou muito tempo.
Ele discutiria com ela sobre isso, ela ficaria chateada e, então, tudo o que compartilharam antes e depois daquela pizza seria jogado pela janela...
– Certo – ele disse. Quando Reilly recuou, Veck apertou a boca: – Não precisa ficar tão surpresa. Só leve Bails com você dessa vez. Ou De la Cruz. A ideia de você ficar sozinha com aquele homem, mesmo ele numa cama de hospital e você armada, me deixa arrepiado.
Deus, ela quis envolver o rosto dele com as mãos e beijá-lo por ser tão sensível. Mas, em vez disso, sorriu e pegou o celular.
– Vou verificar se De la Cruz está disponível agora mesmo.
Ao falar com o detetive por telefone, ela estava acessando sua caixa de e-mails... e quase perdeu o foco da conversa. Veck tinha deixado algo em sua caixa de entrada, e Reilly clicou duas vezes para ver o que era ao mesmo tempo em que ouvia uma novidade sobre as condições de Kroner.
Havia apenas três palavras: Eu te amo.
Olhou para o lado com rapidez. Mas Veck estava ocupado olhando a tela do computador.
– Alô? – disse De la Cruz.
– Desculpe. O quê?
– Por que você e Bails não vão juntos?
– Tudo bem – seus olhos permaneceram no rosto de Veck, que olhava para a tela à frente dele. – Se ele estiver pronto para sair, também estou.
Algumas outras coisas foram ditas, mas Reilly não as ouviu. E, quando desligou, estava perdida. Não havia nada de eu acho antes do “eu te amo”. Nenhuma foto idiota embaixo das palavras com um gato e um cachorro com olhares carinhosos produzidos pelo computador. Não havia como interpretar errado a frase.
– Só achei que deveria saber – Veck disse baixinho.
Não tinha consciência de que estava enviando uma resposta ou de que digitava alguma coisa no teclado. Simplesmente aconteceu...
– O que está acontecendo aqui?
Reilly limpou a tela com um clique rápido. Girando a cadeira, olhou para Bails. Droga. Estava bem atrás dela, e parecia tenso.
– De la Cruz te ligou? – ela disse suavemente.
O cara olhou para as costas de Veck – de quem não conseguiu tirar qualquer informação, óbvio. Então, seus olhos voltaram-se para ela.
– Ah... sim, ele ligou. Há um segundo.
Estranho, mas ouviu a música do programa Jeopardy! em sua mente. E percebeu que ele lera o que havia naquele e-mail.
– E quando pode ir ao hospital comigo? – ela perguntou.
– Ah... tenho um suspeito chegando para um interrogatório agora. Então, pode ser depois disso?
– Sim. Estarei aqui.
Ao observá-lo, percebeu que o olhar de Bails estreitou-se muito, sem qualquer sinal de desculpas pela suposta invasão de privacidade. Não conhecia muito bem o cara, mas ficou evidente que não estava feliz. E é por isso que não se namora pessoas do trabalho. Amigos possessivos já eram chatos o suficiente quando se tinha que acompanhar o namorado em jogos de pôquer ou eventos esportivos e era preciso lidar com eles nessas ocasiões. Conviver com eles oito horas por dia, então?
Porém, assim que o período probatório de Veck terminasse, ela voltaria para o Departamento de Assuntos Internos. Relaxou um pouco com essa ideia. Muito melhor não estar tão perto...
Oh, droga. Teria de divulgar aquele relacionamento, não? E, quando o fizesse, afastariam-na da função de monitorar Veck – algo absolutamente necessário. Bem... parece que não teria que esperar um mês para voltar ao seu departamento.
– Ei, DelVecchio. Atenda seu telefone – alguém gritou.
Engraçado, ela não ouviu tocar. Tampouco Veck ou Bails, aparentemente.
Quando Veck iniciou uma conversa cheia de “sim” e “uh-hum”, podia sentir Bails espreitando ao redor de Reilly e teve vontade de enxotá-lo como uma mosca. Felizmente, a mesma mulher que gritou para Veck atender ao telefone aproximou-se do outro detetive e disse que seu suspeito estava na recepção.
– Volto aqui quando terminar – Bails disse. Depois que ela assentiu, ele deu um tapinha no ombro de Veck e saiu.
Veck desligou.
– Era De la Cruz. Ele quer que eu vá ao centro da cidade apurar um tiroteio que aconteceu ontem à noite. Precisa de uma ajuda extra. E acho que precisa se certificar de que eu nem sequer pense em ir ao hospital com você.
Fazia sentido.
– Mas não vamos sair por enquanto.
– Vai ser um dia longo. Temos que examinar um conjunto inteiro de apartamentos.
Veck levantou-se, vestiu o casaco e tateou vários bolsos, sem dúvida checando distintivo, arma, carteira, chaves e cigarros.
– Precisa parar de fumar – ela deixou escapar.
Quando Veck ficou imóvel, ela pensou: Droga, pareço uma namorada.
Aquelas três palavras recebidas por e-mail não lhe davam esse direito. Poderia sugerir algo do gênero? Sim. Mas não precisava passar a carroça na frente dos bois. O problema era que se preocupava demais com ele para ficar sentada assistindo-o se matar...
Veck pegou o maço de cigarros que já havia aberto... e esmagou-o com uma das mãos.
– Você está certa – jogou o maço na cesta de lixo embaixo da mesa. – Se eu ficar irritado nos próximos dias, já peço desculpas.
Reilly não conseguiu conter o sorriso no rosto. E, com um sussurro que só ele conseguiu ouvir, disse: – Vou pensar em algumas maneiras de distraí-lo.
Quando ela descruzou e cruzou as pernas outra vez, os olhos dele queimaram. Havia percebido os secrets que Reilly estava revelando, por assim dizer.
– Vou cobrar isso – piscou como um garoto malvado que sabia o que fazer com o corpo dela. – Fique com Bails... e me liguem quando terminarem, certo?
– Combinado.
Ela virou-se para a mesa à qual estava sentada, mas observando Veck, que saía pela porta, com o canto dos olhos. Deus do céu, aquele homem era lindo por trás...
CAPÍTULO 35
De certo modo, é ótimo sair para trabalhar – Veck pensou algumas horas depois.
Certo, não era ótimo que um pobre coitado tivesse sido baleado no rosto, ou que os vizinhos não quisessem dizer uma palavra sobre o que viram, ou que ele e De la Cruz estivessem gastando as solas de seus sapatos por nada. Mas era a droga de uma rotina difícil de trabalho. Não se tratava de seu pai ou do esquisitão sem pegadas que vigiava pessoas à noite.
A vítima em questão fora baleada no banco do motorista de um suv estacionado em frente àquele edifício residencial de doze andares, local conhecido por transações comerciais ilegais. O corpo fora descoberto naquela manhã por equipes de limpeza urbana que varriam a rua. Não havia drogas ou dinheiro no corpo ou no veículo, mas encontraram uma lista de nomes e alguns dólares dentro de um envelope amassado no casaco do rapaz, além de resíduos de crack numa série de embalagens plásticas e mais cinco armas dentro do carro.
Era evidente que ele não conseguira guardar tudo com a rapidez necessária.
A menos que se conclua que aqueles que tiveram acesso a tudo aquilo priorizaram levar outros objetos de valor.
Ao meio-dia, Veck e De la Cruz continuavam a percorrer os arredores do edifício, batendo nas portas e tentando convencer as pessoas a falarem alguma coisa – contudo, todos desconfiavam dos policiais e, além disso e com razão, tinham medo de alguma retaliação por parte dos envolvidos no crime.
Enquanto ia de porta em porta, Veck continuou a recordar-se da careta imobilizada da vítima ao ser atingida atrás do volante, o cinto de segurança sobre o peito manteve o corpo erguido, os traços faciais que poderiam ser identificados por sua mãe, familiares e amigos estavam arruinados a ponto de ser preciso uma identificação por arcada dentária.
Pensando outra vez em Kroner naquela floresta, Veck lembrou-se do impulso assassino que sentiu. A ideia de tirar um malfeitor das ruas era mais que justificável para ele – ao menos, para uma parte dele – mas isso realmente importava?
Que inferno, o filho da puta que atirou naquela vítima no carro sem dúvida tinha suas razões, por mais distorcidas que fossem. Só que um ato assassino era um ato assassino, não importando quais eram as tendências de comportamento do alvo.
Que pena aquilo não importar para o lado obscuro dentro dele: essa parte de sua essência não dava a mínima se Kroner era um santo ou um pecador – o ato assassino era tudo. O motivo da ira? Só tinha importância enquanto objetivo a ser atingido. Sem dúvida, este era o sentimento que seu pai tinha pelas outras pessoas. Que coisa ótima para se pensar.
Quando o sol começou a se pôr e as sombras começaram a tomar conta do cenário, o calor da tarde diminuiu e o edifício pareceu ainda mais encardido. Ele e De la Cruz tinham se separado e concentraram-se nos edifícios ao redor do local onde o corpo fora encontrado, mas, se considerassem o fato de que havia seis blocos de apartamentos no quarteirão, teriam sorte se terminassem até as cinco da tarde.
Afastando-se da porta de outra pessoa que não lhe deu resposta alguma, Veck dirigiu-se às escadas de concreto e desceu até a entrada. As portas da frente deveriam estar trancadas, claro, mas foram arrombadas tantas vezes que seria um milagre se apenas se fechassem por completo.
Esfregando o rosto e desejando um cigarro, virou-se para o leste e dirigiu-se ao último bloco de apartamentos sob sua responsabilidade. Já estava na porta quando o telefone tocou. A mensagem de texto de Reilly dizia que estava indo ao hospital com Bails naquele momento.
Bem, ao menos aquilo lhe daria mais tempo para colaborar no caso que estava trabalhando com De la Cruz.
E, depois, talvez fazer uma pequena viagem até Connecticut – uma voz interior sugeriu. – Para ver seu pai.
Chegou a olhar para trás no intuito de checar se alguém falava com ele. Mas não havia nada além do ar e da fraca luz do sol. E acabou concluindo que possivelmente faria isso mesmo. Em breve.
Com um palavrão, virou-se para a entrada e, quando o fez, olhou para baixo em direção ao cimento rachado da calçada. Congelou com o que viu.
Olhou sobre o ombro outra vez. O sol estava se pondo atrás dele – era a única fonte de luz. Pelo amor de Deus, não havia uma segunda opção que pudesse refletir outra sombra no chão, nenhum carro com várias partes cromadas que pudesse produzir tal efeito, nada de holofotes sobre sua cabeça.
Olhou para seus pés outra vez. Havia duas sombras projetadas de seu corpo. Duas sombras separadas e distintas, uma vinda do norte, outra do sul.
Era uma evidência concreta do que ele sempre sentiu: duas metades de si, divididas, atraindo-o em direções opostas.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio... E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente.
Quando a voz de Jim Heron disparou em sua mente, pensou em Reilly. Ele estava confiante de que poderia protegê-la de qualquer um que a perseguisse, certo de que poderia ser o que ela precisava. Mas toda essa história de coragem e bravura não se aplicava ao que via no chão. Não entendia a si mesmo, como poderia lutar por ela?
E Reilly estava em perigo. Caso contrário, não perderia a noite passada sentada numa cadeira com uma arma na mão.
Sou o único que pode te ajudar.
Deus era testemunha de que Heron seria capaz de machucá-los ou agredi-los se quisesse. Em vez disso, tudo o que fez naquela pedreira foi apontar a direção... e desaparecer.
Decidido, Veck pegou o telefone. Tinha salvo o número de Heron em sua lista de contatos e, quando discou, rezou para que o cara que não deixava pegadas atendesse... e dissesse o que havia em seus pés.
O som do celular tocando alto atrás dele quase o matou de susto. Jim Heron estava a três metros de distância dele, como se estivesse ali o tempo todo – e estava mesmo, não?
Veck estreitou os olhos e deu uma boa olhada no cara. Jim parecia bem sólido em sua jaqueta de couro e suas roupas camufladas. E, quando exalou a fumaça de um cigarro, a coisa flutuou, fazendo cócegas no desejo de fumar de Veck.
Mas não era real, era?
Com o coração batendo forte no peito, Veck apertou end no teclado de seu celular e o som que vinha do bolso de Jim parou.
– O tempo está se esgotando – disse o cara.
E isso fez Veck pensar em seu pai: aquele bilhete enviado pelo correio. A areia da ampulheta descia pouco a pouco e ficavam cada vez mais próximos do momento da execução. Algo que aconteceria muito em breve, não?
Era isso – pensou. Tudo, toda sua existência, levava-o até tal situação... Seja lá que situação fosse.
Quando Veck encontrou os olhos do cara, sentiu que o filme de sua vida estava fora de foco e nunca sequer soube que essa merda estava embaçada. Contudo, o cinegrafista finalmente tinha acordado e ajustado o equipamento... era um mundo novo.
Especialmente se considerasse o fato de que a luz do sol se punha atrás de Jim Heron... e não havia nada aos pés do cara. Nenhuma sombra.
– Que porra é você? – Veck perguntou.
– Estou aqui para salvar seu traseiro, e é isso que eu sou – o cara deu um trago no cigarro e exalou lentamente. – Está pronto para conversar comigo agora?
Veck olhou para o par de contornos que projetava, as duas sombras tinham o formato de seu corpo.
– Sim, estou.
Reilly dirigiu o carro ao longo do caminho até o complexo do Hospital São Francisco. Ao lado dela, o detetive Bails permaneceu em silêncio no banco do passageiro enquanto atravessaram pelo tráfego intenso, pararam nos sinais vermelhos e, em dado momento, viraram.
– Mais um pouco disso e vou achar que alguém não quer que conversemos com Kroner – ela murmurou.
Bails nem sequer ergueu o olhar.
– Sim.
Mais silêncio. Ao ponto de ela quase pedir para ele desabafar sobre tudo o que pensava: a última coisa que precisavam era daquela tensão toda na frente de um assassino. Porém, Bails começou a falar antes de Reilly pedir.
– Desculpe não falar nada. Só não sei o que fazer.
– Sobre o quê? – no momento em que sentiu segurança em tirar os olhos da estrada, deu uma olhada nele. O cara batia os dedos contra a porta e olhava para fora como se estivesse buscando respostas no vidro.
– Sei que viu o meu e-mail – ela disse depois de um momento.
– Se fosse esse o grande problema... – quando ela olhou-o mais uma vez, ele deu de ombros. – Sabe que eu e Veck somos muito próximos, não?
– Sim.
– E sabe que sempre estive cem por cento ao lado dele. Até a morte. O cara é meu amigo.
Quando o coração dela começou a bater mais forte, disse: – Certo.
– Então, sim, eu vi o e-mail que ele enviou. Não queria, mas estava na tela quando me aproximei de vocês – ergueu os olhos. – Não estava espiando. A coisa estava bem ali.
Maldição.
Era tudo o que ela conseguia pensar. Maldição.
– E agora... – seus dedos acalmaram-se e ele balançou a cabeça. – Não sei o que fazer.
– Sem ofensa, mas por que acha que é problema seu? Não quero ser chata, mas...
– Sei coisas sobre ele que você não sabe e acho que ele fez algo ilegal. E, se eu acreditar que você está com ele, não sei a quem vou recorrer no Departamento de Assuntos Internos. Está bom para você?
Quando Reilly exalou como se tivesse levado um soco no estômago, quis parar o carro. Que bom já estarem finalmente no hospital. Assim, conseguiu estacionar na área aberta em frente à emergência.
Quando desligou o motor, encarou Bails: – Do que está falando?
Bails colocou a palma da mão sobre o painel do carro e começou a movimentá-la para frente e para trás. Em seguida, limpou uma fina camada de poeira que caiu sobre sua coxa.
– Olha, sou um policial porque quero proteger as pessoas e porque acredito no sistema. Não acredito que uma sociedade civilizada possa existir sem a polícia, os tribunais e as cadeias. Há pessoas lá fora que simplesmente não podem ficar em meio à população geral. Ponto final.
– Só para você saber, ainda não mencionou uma palavra sobre Veck.
– Ele disse que tem antecedentes?
Quando uma corrente de ar frio passou por sua coluna, ela esforçou-se para manter a calma.
– Não.
– Achei que não diria mesmo.
Isso é mentira – ela pensou.
– Ouça, desculpe duvidar das suas fontes, mas não há nada no arquivo pessoal dele... e não pode negar isso. Tudo o que o RH precisa fazer, e fez, para verificar isso é rastrear o nome dele no sistema.
– Não se algo foi cometido antes da maioridade.
Reilly ficou confusa. Muito.
– Como?
– Ele tem um antecedente juvenil. Um muito sério.
– Como sabe?
– Vi a coisa. Com meus próprios olhos – Bails deixou a cabeça cair para trás contra o descanso do banco. – Conheci Veck na Academia de Polícia. Era um cara solitário que fazia tudo certo... eu era o palhaço da turma. Nós simplesmente... ficamos amigos. Depois saímos, mantivemos contato mesmo sendo designados para delegacias diferentes da área de Manhattan e, mais tarde, ele se mudou para cá. Ao longo de todos esses anos que o conheço, sempre foi uma pessoa correta. Controlada. Difícil, mas justo. Na verdade, é um dos melhores policiais que conheço e fiz um pedido para que ele viesse para Caldwell, pois queria trabalhar com ele – Bails soltou um palavrão. – Em todo esse tempo que o conheço, nunca pensei que estivesse inapto para o trabalho por causa dessa porcaria de história relacionada ao seu pai... até agora. Começou com aquela agressão ao paparazzo. Em seguida, a coisa toda com Kroner na floresta. É como se uma capa ao redor dele estivesse saindo... mas eu não iria dizer nada, não ia mesmo, até...
– Espere um minuto. Pare – Reilly pigarreou, tentando acalmar a dor de cabeça que sentia entre os olhos. – Para preservar a nossa reputação, você deve entrar em contato imediatamente com minha supervisora se tiver algo para dizer com relação ao detetive DelVecchio. Antes de tudo, você está certo... Não deveria ter me contado essas coisas. Eu não deveria... estar na posição em que estou agora. Na verdade, tenho uma reunião com minha superior quando eu voltar desta entrevista, então, poderei divulgar de maneira adequada essa relação ao meu departamento.
Bails esfregou os olhos e balançou a cabeça.
– Vou fazer isso. Mas também acho que você precisa saber. Porque, se alguma coisa acontecer com você, nunca vou me perdoar.
Diante disso, Reilly enrijeceu.
– Por que está preocupado com minha segurança?
Bails passou uma das mãos pelos cabelos.
– Entenda, eu ajudei Veck com a mudança quando veio para cá. Tinha várias caixas velhas que precisavam ser guardadas no sótão. Eu estava carregando uma delas quando o fundo se abriu. Espalhando papéis por toda parte e, então, eu comecei a recolher... e lá estava. O registro de antecedente juvenil datado de meados dos anos 1990.
– O que dizia? – ela conseguiu falar mesmo sentindo a garganta fechada.
– Havia todos os indícios de comportamento psicótico e antissocial que existem – Bails franziu a testa. – Sabe do que estou falando, então, não vou listar tudo o que ele fez.
Tortura de animais? Problemas em atear fogo em coisas diversas? Urinar-se na cama?
– Tudo isso – disse Bails, como se estivesse lendo sua mente.
– Mas nunca fez nada depois de adulto – ela argumentou... era menos uma afirmação que uma pergunta.
– Não que saibamos. E, veja só, isso é o que está me preocupando. Psicopatas são muito bons em fingir normalidade. Por fora, eles se encaixam em tudo, pois a atuação é parte do que fazem. E se essa relativa paz e tranquilidade até agora... seja exatamente o que ele quer mostrar? Quando termina a atuação e o verdadeiro Veck aparece? Não pode negar que ele está ficando fora de controle... caramba, não seria parceira dele agora se estivesse tudo bem – o conflito de Bails era evidente em seu rosto. – Ou pior... e se não sabemos o que ele realmente faz? Digo uma coisa, não consegui dormir na noite passada. Estava tentando conciliar o que acredito que ele seja... com o que ele pode ser de fato. Se é que isso pode fazer algum sentido.
Reilly ouviu a voz de Veck em sua mente: Quero fazer tudo perfeito para você.
E tinha feito. Disse e fez as coisas certas. Jogou seus cigarros fora por causa dela... ou ao menos foi o que fez na sua frente. Ela tinha se apaixonado por ele em quatro dias. Coisa do destino? Ou tudo planejado? Mas onde isso o levaria? Foi ele quem pediu suspensão... teria sido uma atitude deliberada? Ela estava cuidando do caso e da reputação dele – que tinha alcançado mais credibilidade depois de tudo, não?
A voz de Bails pairou no ar: – Não pode confiar nele. Estou entendendo isso agora.
– Só por que ele não lhe contou sobre o que aconteceu quando era mais jovem? – ouviu-se dizer. – E, além disso, manter o arquivo de um registro de antecedentes em segredo não é ilegal.
– Acho que ele plantou provas. O brinco de Sissy Barten, especificamente. Para que parecesse que Kroner a tivesse matado.
Ela não se preocupou em esconder a surpresa e recuou o corpo.
– O quê? Como?
– Ele subiu até o quarto dela, não foi? No dia em que vocês dois foram até a casa da família Barten. Ele me disse que você estava no andar de baixo quando subiu. E esteve na sala de provas ontem de manhã... Conversei com Joey, um dos investigadores da cena do crime. Ele disse que Veck passou por lá... e pode ter plantado o brinco.
– Mas ele disse que encontrou o brinco junto com as outras provas.
Bails esfregou os olhos outra vez.
– Chequei o registro preliminar de itens encontrados no caminhão, a lista feita assim que o veículo foi apreendido. Não havia qualquer observação sobre um brinco em forma de pomba. E verifiquei tudo isso outra vez pouco antes de chegar e ver vocês dois.
Por isso parecia tão abatido.
Ela balançou a cabeça.
– Mas o que ele teria a ganhar? A menos que...
Oh, Deus... e se ele tivesse assassinado a garota? E se Kroner tivesse visto alguma coisa ao cometer um de seus crimes na pedreira?
– Leu o relatório sobre o corpo de Sissy, certo? – Bails disse.
– Claro – passara a manhã inteira fazendo isso... e a conclusão que chegou quando o corpo foi encontrado era inevitável: nenhum dos ferimentos da vítima se encaixava nos outros assassinatos de Kroner... e, geralmente, aquele tipo de mudança não acontecia. Em geral, método e obsessões não se alteravam.
– Então deve saber que ela não foi atacada por Kroner. E, talvez, depois de apurar tudo... talvez Veck tenha feito isso.
Céus, ela não conseguia respirar. Como se houvesse mãos apertando a sua garganta.
– Mas... por quê?
Temia que fosse uma pergunta estúpida de se fazer.
– Quanto sabe sobre o pai de Veck? – o detetive disse. – Sobre seus assassinatos?
– Apenas o que estudei na faculdade.
Bails voltou a se concentrar na janela.
– Sabia que a primeira vítima dele sangrou pelo pescoço e pelos pulsos... depois de ter sido pendurada pelos pés? Também foi marcada como Sissy. Sobre o estômago.
Reilly pegou a maçaneta e abriu a porta. Não só para conseguir um pouco de ar fresco. Mas porque estava sentindo muita vontade de vomitar.
– Sinto muito – Bails disse, um tanto áspero.
– Eu também – ela resmungou, contudo, as palavras não chegavam nem perto do que sentia.
Quando olhou para o chão, ela se deu conta de que tinha sido enganada. Caiu como um patinho. E é claro que Veck se esforçou para conseguir isso. Ela era sua defensora na delegacia, aquela que deveria supervisioná-lo cuidadosamente e que decidiria se ele continuaria ou não na corporação: ele queria continuar trabalhando, e ela estava na posição que tornaria isso possível.
– Agradeço a Deus por você – Reilly disse um tanto sufocada. Pena que não conseguia olhar para Bails... Estava muito envergonhada por ter sido enganada tão bem. – Graças a Deus você me contou.
CAPÍTULO 36
– Que tal você falar primeiro?
Enquanto Veck pronunciava as palavras em voz baixa, mantinha o olhar fixo em Heron. Os dois tinham se esquivado ao redor do edifício e estavam em pé no escuro próximo a alguns galhos secos.
O olhar de Jim era mortal e sua voz tão profunda quanto o ressoar de um grande sino.
– Você sabe de tudo. Quais respostas quer? – colocou o dedo indicador no peito de Veck, bem em cima de seu coração. – Está tudo dentro de você.
Veck desejou responder com uma boa dose de “tanto faz, seu cuzão”. Mas não conseguiu.
– Meu pai quer me ver – foi sua resposta.
Heron assentiu e pegou seu maço de cigarros. Quando inclinou o pacote para frente, Veck recusou: – Não, parei.
– Inteligente – Heron acendeu. – É assim que funciona: vai perceber que está numa encruzilhada. Será um momento de decisão, de uma escolha definitiva, entre situações opostas. Tudo o que é, o que tem sido e o que poderá ser dependerá dessa decisão. As consequências? Não afetarão apenas a você. Afetarão a todos. Não é apenas uma questão de vida e morte... Trata-se da eternidade. Sua. Dos outros. Não subestime a distância que isso pode alcançar.
Enquanto o homem falava, Veck sentiu as duas partes dentro de si se separarem. Uma delas foi totalmente repelida. A outra...
Veck franziu a testa. Piscou algumas vezes, confuso. Desviou o olhar e olhou para trás. Deus era testemunha de que tinha visto um brilho cintilante sobre os ombros de Heron e ao redor de sua cabeça.
E a ilusão bizarra deu ainda mais credibilidade ao pesadelo como um todo. Da mesma maneira como quando quis entrar em contato com o cara e ele já estava bem atrás dele... E ainda havia a questão da falta de pegadas naquela pedreira... E o show de luzes na casa dos Barten.
Veck colocou a mão sobre o peito e esfregou com força a sombra que havia ali.
– Nunca pedi isso.
– Sei como se sente – Heron murmurou. – No seu caso, já nasceu com isso.
– Diga-me o que sou.
– Você já sabe.
– Diga.
Heron exalou lentamente, a fumaça ergueu-se dentre aquele brilho dourado.
– O mal. É o mal encarnado... Ou, pelo menos, metade de você é. Num futuro próximo, talvez hoje à noite, talvez amanhã, será necessário que escolha um dos lados – o cara apontou para si mesmo com a mão que segurava o cigarro. – Estou aqui para tentar te ajudar a escolher com sabedoria.
– E se eu não escolher certo?
– Você perde.
– No mesmo instante?
O homem assentiu lentamente, estreitando os olhos.
– Eu já vi onde vai terminar se isso acontecer. Não é bonito.
– O que você é?
A expressão de Heron não mudou. Nem sua postura. E nem sequer parou de fumar. Mas, num instante era um homem, no seguinte...
– Jesus... Cristo... – Veck sussurrou.
– Não chego nem perto – ele apagou o cigarro na sola da bota de combate. – Mas sou o que sou.
E isso seria... um anjo, evidentemente: sob a luz fraca e desbotada do dia, um espetáculo de luzes refratadas havia surgido sobre os ombros dele em forma de asas gigantes, tornando-o magnífico e etéreo.
– Fui enviado para te ajudar – o homem... anjo... seja lá o que fosse... voltou a olhar para Veck. – Então, quando for ver seu pai, quero estar junto.
– Já estava comigo. Não é mesmo?
– Sim – o cara limpou a garganta. – Mas não quando estava... você sabe.
As sobrancelhas de Veck se ergueram.
– Oh, sim. Que bom...
Eeeee os dois desviaram o olhar nesse momento.
Veck pensou sobre aquela noite com Kroner.
– E se a encruzilhada já tiver acontecido?
– A questão com Kroner? Estava fora das regras.
– Bem, sim, assassinato é contra lei mesmo.
– Não, não é neste sentido. Não sou o único que deseja fazer algo com você, o outro lado se precipitou naquele cenário.
– O outro lado?
– Como eu disse, não sou o único neste jogo. E, acredite, o inimigo é uma tremenda vadia... Tenho certeza de que a conhecerá em breve, se já não conheceu.
Oh, ótimo, mais notícias boas, Veck pensou.
E, então, deixou escapar: – Eu fui até lá matá-lo. Kroner – maldição, foi bom ter desabafado.
– Você quer dizer parte de você queria fazer isso. Vamos passar tudo a limpo: você não fez o estrago e você ligou para a emergência, se não tivesse feito isso ele teria sangrado até morrer aos seus pés.
– Então, o que o atacou?
– Está surpreso por conversar com um anjo? Não vai querer saber o que tem lá fora – Jim acenou com uma das mãos num gesto de desdém. – Mas não precisamos nos preocupar com isso. Vamos ver seu pai. Juntos. O mais rápido possível.
Veck pensou na sensação de ter chegado ao seu destino, como se sua vida tivesse chegado a um ponto culminante. Não era mais remoto e hipotético.
– Esta é a encruzilhada?
– Talvez sim. Talvez não.
De repente, Jim abaixou os olhos e inclinou a cabeça. Quando a ergueu outra vez, sua aparência era mortal – e exatamente o que Veck gostaria de ter como proteção: tinha a sensação de que precisaria de outro bom lutador se fosse enfrentar o outro lado de si mesmo. E era isso. Uma luta até a morte.
– Vamos descobrir – o anjo prometeu. – Quando chegarmos lá.
Tudo acontece por uma razão – Reilly pensou enquanto ela e Bails saíam do quarto de Kroner meia hora depois.
A condição de Kroner havia piorado muito, quase como se seus ferimentos aumentassem a cada instante. Ele não era capaz de se concentrar, resmungou algumas respostas sem sentido e, pouco depois de chegarem, ela e Bails desistiram.
– O que será que ele quis dizer com aquela coisa de sofrimento? – Bails murmurou enquanto segurava a porta do elevador para Reilly.
Reilly balançou a cabeça quando começaram a descer.
– Não sei.
Foi a mesma coisa de antes: Ele tem que saber que ela sofreu... tem que saber que ela sofreu...
Não fazia ideia do que aquilo significava. E também não fazia ideia de qual era a conexão entre Kroner e Veck. Caramba, naquele momento, sentia que não poderia confiar em seus instintos nem sequer para confirmar o próprio nome. Especular alguma coisa naquela bagunça? Era melhor nem começar.
Quando saíram para a recepção e caminharam até a porta giratória que dava para o estacionamento, Bails consultou o relógio.
– Quer beber alguma coisa? Tenho que fazer meu relatório em pouco mais de uma hora, preciso de uma bebida antes.
Sim, pois, quando um detetive tinha as informações que ela tinha sobre outro colega, não se ficava muito animado com a situação. Ligou para a delegacia logo depois que terminaram o interrogatório e, dentro de um minuto e meio, o sargento marcou uma reunião com líderes dos departamentos. Isso aconteceria bem depois do horário comercial.
Não era de se admirar que Bails quisesse uma cerveja.
– Obrigada – ela murmurou –, mas, como eu disse, tenho um encontro com minha supervisora agora.
A conversa toda que tiveram não os aproximou tanto assim. Juntos, andaram pelas filas de automóveis, entraram no carro e colocaram os cintos de seguranças. Os dois permaneceram em silêncio durante toda a viagem de volta à sede. Não tinham muito a dizer, e Bails parecia tão traído e doente quanto ela.
Separaram-se com um rápido abraço e, enquanto ele ia para o próprio carro, Reilly observava-o. Veck colocara-os no mesmo barco, e isso significava que aquele estranho agora era uma espécie de amigo.
Quando o telefone tocou na bolsa, sabia quem era antes de pegá-lo. Veck.
Certo, é para isso que o correio de voz serve – ela pensou.
Só que provavelmente ele viria atrás dela, e isso era a última coisa que queria. Deveria evitar um encontro pessoal a todo custo.
– Alô.
Houve um zumbido ao fundo, como se estivesse num carro.
– Reilly... o que há de errado?
Desanimada, como se o observasse do outro lado de um espelho de duas faces, pensou que havia sido exatamente daquela maneira que a seduzira: a emoção que projetava naquela voz profunda era a combinação perfeita de preocupação com uma boa dose de proteção.
– Estou bem. Acabei de ver Kroner... Não conseguimos nada de novo – não vindo de Kroner, claro. Já com Bails, a história era diferente.
– Você não parece bem.
O que significava que toda e qualquer aspiração que pudesse ter em ser uma psicopata deveria ser jogada pela janela. Que pena.
De fato, a ideia de não conseguir esconder as coisas era um alívio. Não queria ser como Veck. Nunca.
– Reilly... fale comigo.
– Estive pensando muito sobre meu trabalho hoje – ela disse. – Não é apropriado que deixemos nosso relacionamento como está. Estou comprometendo a integridade da força policial, da minha posição e a mim mesma. Vou encontrar minha supervisora agora mesmo e renunciar seu caso. Levarei alguma advertência, mas posso lidar com isso...
– Espere, o quê? Por que você...?
– E acho que não devemos nos ver outra vez.
Houve uma pausa. Em seguida, ele disse: – Assim de uma hora para outra?
Agora ele parecia frio, e era o que Reilly desejava: o verdadeiro Veck, o real. Mesmo que isso só a fizesse perceber outra vez o quanto tinha sido estúpida.
– É o melhor – concluiu.
Quando Veck não disse mais nada, ela começou a ficar agitada, pois não sabia exatamente do que ele era capaz. Sem dúvida, tinha sido ele quem andara vigiando-a dois dias atrás... Mas não tinha importância, aquela conversa tinha acabado e, uma vez que revelasse o que precisava à sua chefe e Bails agisse e cumprisse seu dever, Veck teria muitos outros problemas, tantos que estaria ocupado demais procurando um advogado para perder tempo com algum tipo de retaliação. Ao menos ela esperava que fosse assim.
Inferno, melhor ainda, ele poderia ser preso.
– Tenho que ir – ela disse.
Houve outra pausa e, então, a voz dele soou fria como um cubo de gelo.
– Não vou te incomodar outra vez.
– Agradeço muito. Adeus.
Não esperou por uma resposta. Não estava interessada em ser envolvida numa conversa longa e arrastada, com ele tentando manipulá-la novamente, ou pior, ver a máscara dele caindo por completo e ouvir ameaças.
Sua mão tremia tanto que precisou fazer duas tentativas para colocar o telefone de volta na bolsa. Apoiando-se contra o carro, olhou para os fundos escuros da delegacia e sentiu não ter forças para entrar e encarar sua chefe. Mas fez o que tinha que fazer... pois fora criada para agir assim.
CAPÍTULO 37
Quando Veck desligou o celular, olhou para tela e achou difícil acreditar que aquela conversa com Reilly tinha acabado de acontecer.
– O que foi?
Olhou para Heron. O cara, anjo – quem se importava – estava atrás do volante da caminhonete com seu outro amigo anjo... Cristo, como aquilo poderia ser real? O cara estava no banco de trás de uma cabine dupla e ocupava mais da metade do espaço.
Os três estavam indo para a Instituição Prisional em Somers, Connecticut.
– Nada – disse Veck suavemente.
– Até parece – ouviu do banco de trás.
Eram as primeiras duas palavras que o homem havia dito. O que significava que isso e o fato de estar respirando eram as únicas pistas que comprovavam que ele estava vivo.
Jim olhou para Veck.
– Coincidências não existem. Quando nos aproximamos do final, tudo importa.
– Era... – minha namorada? Ex-namorada? Oficial do Departamento de Assuntos Internos? – Reilly.
– O que ela disse?
– Que não quer me ver mais. Nunca mais.
As palavras foram ditas com uma voz calma e profunda – ao menos ainda tinha um pouco de brio. Porém, no fundo do peito, havia um grande buraco negro de agonia, como se fosse um desenho animado e tivessem disparado uma bala de canhão contra ele.
– Por quê? Ela deu algum motivo?
– Se importa de me emprestar um cigarro? – quando Jim estendeu o pacote, Veck pegou dois, pensando que aquele era um momento perfeito para jogar pela janela aquele papo de “desistir”.
– Por que isso?
– Porque, ou eu fumo alguma coisa agora, ou vou explodir o vidro ao meu lado com um soco.
– Que bom que escolheu o cigarro – veio da parte de trás. – Estamos indo a uns cem quilômetros por hora e está frio demais lá fora.
Veck pegou o isqueiro oferecido, acendeu e abriu um pouco a janela. Quando inalou, pensou ser uma pena haver tantos agentes cancerígenos naquelas coisas, pois, sem dúvida, aquilo o fazia sentir-se um pouco melhor.
Porém, não duraria muito. Ao contrário da dor no peito. Tinha a impressão de que teria que lidar com isso por um looongo tempo. Como se fosse um ataque cardíaco perpétuo.
Só que, cara, devia saber que isso aconteceria. Aquela mulher ingressou no Departamento de Assuntos Internos porque gostava das coisas certas, bem-feitas. Ficar com ele? Não estava na lista. Apaixonar-se por ele? Não seja ridículo.
– O motivo? – Jim exclamou.
– Conflito de interesses.
– Mas por que agora? Ela sabia o tempo todo o que estava fazendo.
– Eu não sei. Mas também não importa.
O bom era que não poderiam dispensá-lo do trabalho só por que ela acordou e sentiu o cheiro de carne podre da situação que viviam, por assim dizer. Eram dois adultos responsáveis e, sim, parecia ruim, mas ela faria a coisa certa e fim de papo.
Inevitavelmente, seria chamado para responder algumas perguntas no Recursos Humanos e teria a firmeza suficiente para dizer que foi tudo ideia dele. Ou seja: foi ele quem correu atrás dela, bem como foi o idiota que começou com a história do “eu te amo”. Imbecil. Que maldito imbecil ele foi...
Não disseram muita coisa durante o resto da viagem. Veck não via problema nisso. As imagens de Reilly e ele juntos pairavam em sua cabeça e faziam com que não confiasse na própria voz... E não só porque demonstraria uma boa dose de tristeza. Estava suscetível a esmagar alguém naquele momento.
Quando já estavam a um quilômetro da prisão, Jim parou um pouco antes de chegar à instituição e trocou de lugar com Veck. No volante, Veck assumiu seu papel: o de policial.
– Então, ninguém vai ver vocês?
Apesar de realmente acreditar que o cara era capaz de ficar invisível. Heron perseguiu-o por dias e apenas seus instintos ficaram um pouco alarmados.
– Isso mesmo.
– Contanto que... – Veck parou de falar quando olhou para o banco ao lado dele e viu que tinha ficado vazio de repente. Olhou rapidamente no espelho retrovisor e não havia nem sinal do cara grande e forte no banco de trás.
– Já pensaram em roubar bancos, seus filhos da mãe? – disse ele em tom seco.
– Não precisamos do dinheiro – a voz de Jim soou do nada ao lado dele.
– Não precisamos nos dar ao trabalho – veio da parte de trás.
Veck esfregou o rosto, pensando que seria melhor assumir que estava louco por começar a conversar com o ar. O problema era que lutava e lidava com essa realidade alternativa durante toda sua vida. A ideia de que era realidade, e não loucura, parecia ser muita maluquice, mas também fazia com que se sentisse um pouco são.
Contudo... fazer essa diferenciação era assumir que ele não era exatamente como o personagem do filme Uma mente brilhante.
Afinal, sabia que havia impulsos homicidas, e não casos de esquizofrenia em sua família, então, não tinha perdido totalmente o juízo. Que alívio!
Antes de sair de Caldwell, Veck havia telefonado para a prisão – não para o número que seu pai havia lhe dado, mas para o atendimento geral – e identificou-se. Não chegariam no horário de visitas, mas as pessoas costumavam fazer cortesias graças à sua ocupação profissional – e certamente também fariam-no graças ao fato de que seu pai estaria numa cova em mais ou menos 48 horas. Sem dúvida, havia também o fator curiosidade, algo com que Veck lidava com muito senso de realidade: em pouco tempo, aquela visita antes da morte estaria em todos os lugares... internet, televisão, rádio. Provavelmente, estaria na rede antes mesmo de sair e voltar para o estado de Nova York. Era assim que as coisas funcionavam.
À medida que percorriam o caminho onde se via as paredes da penitenciária numa das laterais, visualizaram um pequeno exército reunido dos dois lados da rua. Fãs de seu pai.
Havia pelo menos uma centena deles, mesmo sendo oito da noite e estando muito escuro e frio. Mas estavam preparados com lanternas, velas e cartazes com dizeres que protestavam contra a execução – e, no momento em que viram o veículo, correram para o asfalto gritando, rugindo, o barulho pressionava a caminhonete sem nem chegarem perto dela.
Mesmo com o estilo um tanto rebelde de se vestirem e a maneira furiosa com que agiam, era evidente que sabiam as consequências da desobediência civil: nenhum deles bloqueou ou tocou o veículo, e Veck diminuiu a velocidade para dar uma olhada neles. Grande erro.
Um dos homens inclinou-se para a janela e obviamente reconheceu Veck: quando o cara apontou para ele e gritou, o êxtase em seu rosto fez com que Veck sentisse vontade de baixar o vidro e dar um jeito no filho da puta.
Mas seria um desperdício de energia. O idiota tinha o símbolo da anarquia desenhado na testa. Tente argumentar com essas coisas.
– É ele! É ele!
A multidão exaltou-se e correu para a caminhonete.
– O que há de errado com essas pessoas? – Veck murmurou enquanto continuava lentamente, pronto para transformá-los em enfeites de capô se fosse preciso.
– É isso o que ela faz – a voz de Jim soou pelo ar.
– Quem é “ela”?
– É exatamente o que vamos tentar tirar de dentro de você.
Não havia tempo para entender mais esta. Virou na pista que a polícia usava e parou na portaria. Olhando para o guarda, baixou o vidro e mostrou seu distintivo e as credenciais.
– DelVecchio, Thomas... Jr.
Ao fundo, a multidão gritava o nome dele... ou de seu pai. Na verdade, eram os dois e com muita eficiência.
Os olhos do guarda baixaram para a identificação e voltaram para o rosto de Veck. Houve um sinal de desconfiança naquele olhar; sem dúvida, ele estava mantendo-se firme contra os malucos que permaneciam ali já há uma semana.
Mesmo assim, o cara acionou o comando do portão e as barras de ferro se abriram.
– Pare assim que entrar. Preciso revistar seu veículo, detetive.
– Sem problema – era bom não precisar fazer isso do lado de fora. Só Deus sabia até onde aquela multidão poderia chegar.
Veck seguiu o protocolo, andou em marcha lenta e freou no momento em que seu para-choque traseiro posicionou-se do outro lado do portão. Quando saiu, pegou o pacote de cigarros de Heron e colocou-o em uso, acendendo um cigarro enquanto os portões fechavam-se e o oficial verificava todas as partes do carro com uma lanterna.
Enquanto fumava, sabia que os anjos não estavam longe. Podia senti-los flutuando e ficou feliz por essa proteção – especialmente quando olhou para as barras do portão e viu a multidão enlouquecida. A energia que havia naqueles malucos era o tipo de coisa que deixaria qualquer um grato por aquilo que os separava deles.
– Pode continuar, detetive – disse o oficial, agora com atitude mais amigável. – Vire a primeira à esquerda e estacione ao lado da porta, por questões de segurança. Um guarda está esperando por você.
– Obrigado, cara.
– É proibido fumar lá dentro. Então, antes, termine o que está fazendo.
– Boa dica.
De volta à caminhonete. Pausa no segundo portão. Em seguida, estavam na unidade.
Prisões de segurança máxima não se pareciam com as que eram retratadas em filmes. Não havia paredes antigas de pedras caiadas com figuras monstruosas esculpidas no alto delas e que espreitavam quem passava embaixo. Nada de elementos nostálgicos como “Al Capone já esteve aqui”. Nenhuma visita guiada.
Era um negócio muito moderno que mantinha pessoas como seu pai isoladas do público em geral. Havia várias luzes fortes de xenônio para o período noturno, câmeras de vídeo e monitoramento computadorizado. Ainda havia guardas com armas e cercas de arame farpado o suficiente para envolver toda a cidade de Caldwell, mas o procedimento de entrada era feito com cartões magnéticos, computadores e portas automatizadas.
Esteve em vários lugares como aquele, mas nunca especificamente ali: assim que seu pai foi sentenciado, uma carta fora entregue em mãos na república em que Veck morava na faculdade. Não deveria ter aberto aquele envelope, mas não imaginava que seu pai era capaz de enviar da cadeia bilhetes por intermédio de alguém. Fazendo uma retrospectiva? Como fora ingênuo.
Porém, ao menos aquilo lhe indicou o que não fazer. Então, sim, era uma boa razão para não trabalhar em Connecticut e para integrar a força policial em vez do FBI. Nada de questões interestaduais, muito obrigado. E, ainda assim, lá estava ele.
Como prometido, no momento em que saiu da caminhonete, uma porta blindada abriu-se e um guarda encontrou-o e levou-o a um ambiente limpo e bem iluminado. Normalmente, como oficial, receberia autorização para entrar com o distintivo, o celular e a arma, desde que não fosse entrar na área das celas, mas não estava ali em caráter oficial e isso significava que tudo seria deixado na entrada.
Ao entregar o celular, viu que havia algumas mensagens de voz. Possivelmente passara por algumas áreas sem sinal telefônico ao longo da viagem, pois não ouvira o toque. Mas não as ouviria agora. Seja lá o que fosse, esperaria até sair dali. Além disso, tinha a sensação de que já sabia do que se tratava. Sem dúvida outra pessoa do Departamento de Assuntos Internos lhe seria designada – oh, que alegria. E provavelmente devia ter outra mensagem de Bails querendo saber como estava. O cara sempre fazia isso, especialmente se enviasse um torpedo e Veck não respondesse.
Depois de assinar um formulário e entregar todas as suas coisas ao guarda, percorreu uma série de salas sendo acompanhado por outro funcionário da prisão, sem produzir qualquer som além dos passos. Mas sobre o que poderiam conversar afinal?
Veio se despedir do seu pai? Legal...
Sim, é a primeira vez que o vejo em anos, e a última nesta vida...
Divirta-se, então.
Obrigado, cara.
Sim. Estava ansioso para ter esse tipo de conversa.
Quase cem metros depois andando entre o labirinto da prisão, o oficial mostrou a Veck uma área de visitas do tamanho de um pequeno refeitório e também organizada como tal, com longas mesas com assentos dos dois lados. O ambiente estava iluminado como se fosse uma exposição de joias, com grandes painéis de lâmpadas fluorescentes fixas no teto, e o chão era de um marrom salpicado, do tipo que escondia bem a sujeira, mas que, de qualquer maneira, era mantido brilhante e lustrado. Não havia janelas, plantas e observava-se apenas um mural com uma ilustração do que parecia ser a Assembleia Legislativa de Connecticut.
Contudo, as quatro máquinas de salgadinhos e bebidas davam um pouco de cor ao ambiente.
– Estão trazendo-o – disse o guarda. – Colocaremos vocês na área de visita como cortesia, mas peço que permaneça sentado com as duas mãos sobre a mesa o tempo todo.
– Sem problema. Quer que eu me sente em algum lugar específico?
– Não. E boa sorte.
O cara afastou-se e ficou junto à porta pela qual passaram ao chegar, cruzou os braços e encarou a parede nua do outro lado como se tivesse muita experiência em assumir aquela posição.
Veck sentou-se à mesa em frente ao cara e cruzou os dedos sobre a superfície lisa.
Fechando os olhos, sentiu a presença dos dois anjos. Estavam à esquerda e à direita dele, parados da mesma maneira que o guarda, silenciosos e vigilantes...
A porta no final da sala foi aberta sem produzir qualquer som... Em seguida, ouviu algo arrastar-se.
Seu pai passou pelos batentes com um sorriso em seu belo rosto e algemas nos pulsos e tornozelos. Apesar do fato de estar vestido com um macacão laranja folgado, estava elegante, com os cabelos cinza-escuros penteados para trás e sua atitude de embaixador muito evidente, como uma bandeira real.
No entanto, Veck não dava a mínima para aquela aparência – olhava para o chão. Seu pai projetava uma sombra, certo, uma sombra única que se reunia sob seus pés como tinta preta. O fato de ser mais escura do que qualquer outra no ambiente parecia lógico e surgia sob um novo paradigma.
– Olá, filho.
A voz era tão profunda e grave quanto a de Veck. Quando ele ergueu os olhos para observar seu pai, era como olhar no espelho – apenas vinte ou trinta anos mais tarde.
– Nenhuma saudação para mim? – o DelVecchio mais velho disse ao aproximar-se com passos pequenos e apertados, o guarda atrás dele estava tão próximo de suas costas que parecia vestir o mesmo macacão.
– Estou aqui, não estou?
– Sabe? É uma pena a necessidade de sermos vigiados – seu pai sentou-se na frente dele e colocou as mãos sobre a mesa... na posição exata que Veck havia assumido. – Mas podemos falar em voz baixa – as feições e ângulos daquele rosto mostraram uma expressão de carinho... na qual Veck não acreditou nem por um segundo. – Estou emocionado por estar aqui.
– Não fique.
– Bem, mas eu estou, filho – o balançar triste da cabeça era tão apropriado que Veck desejou revirar os olhos. – Deus, olhe para você... Está muito mais velho. E cansado. Trabalhando duro? Ouvi falar que está na polícia.
– Sim.
– Em Caldwell.
– Sim.
Seu pai inclinou-se para frente.
– Tenho permissão para ler os jornais e ouvi dizer que teve um pequeno problema com um monstro lá fora. Mas você o pegou, não foi? Na floresta? – lá se foi a mentira do pai benevolente. No lugar daquela figura calorosa, surgiu uma intensidade na expressão do homem que fez Veck desejar se levantar e sair. – Não foi? Filho.
Se os olhos são as janelas da alma, então Veck encontrou-se olhando para um abismo... E teve a mesma sensação de vertigem induzida pela gravidade e o puxão que alguém sentia ao inclinar-se e olhar para baixo num abismo real.
– Que herói você é, filho. Estou tão orgulhoso de você.
As palavras se distorceram nos ouvidos de Veck, seus sentidos ficaram confusos, era como se pudesse ouvi-las e sentisse-as alisando sua pele.
No entanto, deveria tê-lo matado quando teve a chance.
Veck franziu a testa quando percebeu que seu pai havia falado sem mover os lábios. Balançando a cabeça, Veck interrompeu aquela conexão.
– Bobagem.
– Elogiar você? Estou sendo sincero. Deus é minha testemunha.
– Deus não tem nada a ver com você.
– Ah, não? – seu pai enfiou uma das mãos no macacão e retirou rapidamente uma cruz dali antes mesmo que os guardas pudessem sequer começar a ficar tensos por conta da regra das mãos expostas. – Posso garantir que ele tem. Sou um homem muito religioso.
– Porque lhe é conveniente, sem dúvida.
– Não tenho que provar nada a ninguém – neste momento, seus olhos brilhavam. – Deixo minhas ações falarem por mim... Foi ao túmulo de sua mãe ultimamente?
– Não se atreva a ir até lá.
Seu pai riu um pouco e levantou as mãos, mostrando as algemas de aço.
– Claro que não, eu não posso. Não tenho permissão para sair... Isto é uma prisão, não um hotel de luxo. E, embora tenham levantado uma acusação falsa contra mim, tenham me julgado de maneira errada e me sentenciado à morte injustamente, estou preso como todos os outros que aqui estão.
– Não há nada falso sobre onde você está.
– Acha mesmo que matei todas aquelas mulheres?
– Vamos ser mais exatos... Acho que assassinou cruelmente todas aquelas mulheres. E ainda outras.
Balançou a cabeça mais um pouco.
– Filho, não sei de onde tirou estas ideias. Por exemplo... – seu pai ergueu os olhos para o teto, como se estivesse diante de uma equação matemática complexa. – Você leu sobre a morte de Suzie Bussman?
– Não sou um de seus fãs. Então, não, não acompanho tudo o que faz.
– Não foi a primeira garota que me acusaram de ter assassinado, mas a primeira que pensam que matei. Foi encontrada numa vala de drenagem. A garganta e os pulsos tinham sido cortados e havia símbolos inscritos sobre seu estômago.
Quando seu pai ficou em silêncio, ergueu o queixo e olhou para Veck. Sissy Barten. Encontrada numa caverna. Com a garganta e os pulsos cortados e com símbolos ritualísticos inscritos sobre o estômago.
– Bem, filho, como sabe, serial killers possuem padrões que gostam de seguir. É como um estilo de roupa ou uma parte do país que gostam de morar ou um objetivo profissional. É onde se sentem mais à vontade para se expressarem... É acertar a bola no ponto ideal da raquete, é um filé perfeitamente preparado ou a sala decorada de acordo com sua preferência e a de mais ninguém. É seu lar, filho... É o local ao qual pertence.
– Então, está dizendo que todas as outras mulheres não foram trabalho seu, apesar das evidências, pois não correspondem ao padrão da primeira?
– Oh, eu não matei ninguém.
– Então, como sabe sobre os padrões?
– Sou um bom leitor e gosto de aprender sobre esta patologia.
– Posso apostar.
Seu pai inclinou-se e baixou a voz num sussurro.
– Sei como se sente, o quanto está à parte, o quanto estar perdido pode ser desesperador. Mas me mostraram o caminho e foi o melhor que pôde acontecer, e será a mesma coisa para você. Pode ser salvo... Será salvo. Apenas olhe para si mesmo e siga a essência que nós dois sabemos que possui.
– Então, posso crescer e ser um serial killer como meu pai? Não, muito obrigado.
Seu pai recostou-se e ergueu as mãos para o teto.
– Oh, isso não, nunca... Estou falando de religião. Naturalmente.
Sim. Claro.
Veck olhou em volta para as câmeras de segurança ao redor da sala. Seu pai era inteligente e não atribuía qualquer implicação para si mesmo com aquele gesto, mesmo que a mensagem implícita estivesse tão clara quanto os letreiros dos cassinos de Las Vegas.
– Encontre seu Deus, filho... – aqueles olhos brilharam outra vez. – Abrace quem você é. Aquele impulso o levará para onde precisa ir. Confie em mim. Eu fui salvo.
Enquanto falava, a voz transformava-se numa sinfonia obscura nos ouvidos de Veck, como se as palavras de seu pai fossem a trilha sonora de um filme épico.
Veck inclinou-se para frente, aproximando-se tanto que conseguia enxergar cada partícula preta na íris azul de seu pai. Sussurrando, disse com um sorriso: – Tenho certeza de que você vai para o inferno.
– E vou te levar comigo, filho. Não pode lutar contra o que é, e vai ser colocado numa posição que não poderá vencer – seu pai inclinou o rosto, como se alguém tivesse colocado uma arma em sua testa. – Você e eu somos a mesma coisa.
– Tem certeza disso? Vou sair daqui logo e você tem um encontro marcado com uma agulha na quarta-feira. Não vejo a “mesma coisa” em nada aqui.
Os dois se encararam por um tempo, até que seu pai recuou.
– Ah, filho, acho que vai me encontrar vivo e muito bem no final da semana – havia muita satisfação em seu tom de voz. – Vai ler sobre isso nos jornais.
– Como vai conseguir isso?
– Tenho amigos no submundo, por assim dizer.
– Nisso eu acredito.
O sorriso encantador e um pouco arrogante voltou, e a voz de seu pai diminuiu chegando a ser graciosa.
– Apesar de ter sido... um tanto amargo... estou contente por ver você.
– Eu também. Você é menos impressionante do que eu me lembrava.
A contração muscular no olho esquerdo do pai informou que as palavras de Veck atingiram um ponto fraco.
– Faria uma coisa por mim?
– Provavelmente não.
– Vá até o túmulo de sua mãe e leve uma rosa vermelha para ela. Eu amava aquela mulher até a morte, de verdade.
As mãos de Veck fecharam-se.
– Vou dizer uma coisa – Veck sorriu. – Vou apagar o meu cigarro no seu túmulo. O que acha disso, pai?
Thomas DelVecchio pai recuou, sua expressão era fria. Com certeza o encontro não estava sendo como ele esperava.
– A propósito, não se trata apenas de você – seu pai anunciou.
Quando Veck franziu a testa, o homem encarou o espaço em branco atrás do ombro de Veck.
– Ela quer que saiba que ela sofreu. Horrivelmente.
Jesus... Exatamente a mesma coisa que Kroner disse...
Veck conteve-se antes de erguer o olhar em direção a Jim, mas a reação do anjo foi clara: uma corrente fria percorreu o ar e passou sobre a cabeça de Veck, atravessando a mesa e arrepiando a pele das costas das mãos do pai de Veck.
Seu pai sorriu para o ar onde Jim se encontrava em pé.
– Não acha que vai vencer esta, acha? Porque não pode tirá-la dele. Um exorcismo não vai funcionar porque ele nasceu com isso. Não está dentro dele, é parte dele.
Seu pai olhou de volta para Veck.
– Acha que eu não sei que trouxe amigos? Garoto tolo, muito tolo.
Veck levantou-se.
– Terminamos.
Sim, era hora de ir: considerando a explosão de vento gélido que passou por ele, Jim Heron, o anjo, estava prestes a atacar seu pai. Seria divertido, mas será que era a coisa mais inteligente a se fazer? Era melhor seguir a linha “não aqui, não agora”.
– Nenhum abraço? – seu pai falou lentamente.
Veck não se incomodou em responder essa. Não desperdiçaria seu fôlego e seu tempo com o filho da puta. Na verdade, não tinha certeza da razão de ter vindo – apenas para trocar ofensas? Não havia qualquer encruzilhada visível para ele ali... Porém, talvez o importante tenha sido aquela mensagem para Heron.
Quando Veck virou-se e caminhou até o guarda, o cara abriu a porta rapidamente, como se também não quisesse ficar naquele ambiente nem mais um minuto sequer.
– Thomas – seu pai chamou –, vejo você no espelho, filho. Todos os dias.
A porta foi fechada e interrompeu as palavras.
– Você está bem? – o guarda perguntou.
– Estou bem. Obrigado.
Atrás do outro homem, Veck seguiu na direção de onde vieram.
– Para quando está marcada a execução?
– Para o primeiro horário da quarta-feira. Se solicitar ao diretor, acho que pode conseguir um lugar.
– Bom saber.
Enquanto andava a passos largos, Veck podia sentir a presença de seu pai com ele, como se a bateria daquela lâmpada maligna dentro dele tivesse sido carregada e recuperado a força que deixou de ter durante anos.
No centro do peito, aquela ira obscura queimava com vivacidade... e espalhava-se.
– Tem certeza de que está bem, detetive?
Veck não teve certeza de qual parte dele respondeu: – Nunca me senti melhor em toda minha vida.
CAPÍTULO 38
– Você fez a coisa certa.
Reilly olhou por cima da divisória que havia no cubículo. Sua supervisora estava encostada contra a repartição, de casaco, maleta numa das mãos e as chaves pendiam na outra.
– E deveria ir para casa.
Reilly sorriu um pouco.
– Só estou recuperando o atraso.
– Sem ofensa, mas isso é besteira... no entanto, não vou te impedir.
– Obrigada – Reilly esticou os braços sobre a cabeça. – Preciso fazer isso. Pelo bem da minha sanidade.
Na tela de seu computador estava a lista preliminar de provas feita assim que a caminhonete de Kroner fora apreendida. Fez uma busca da palavra brinco e agora examinava uma a uma as descrições e as primeiras fotos impressas.
Ainda havia mais ou menos quinze para examinar e, então, passaria um pente-fino na lista principal, que fora finalizada naquela tarde. Precisava entender sozinha coisas como aquelas.
A supervisora assentiu.
– Está certo, eu entendo. E só para te avisar, DelVecchio não retornou minhas ligações... E acabei de ligar para o sargento outra vez. Nada também.
– Quando vai emitir um mandado de prisão contra ele?
– Amanhã, depois do meio-dia, se ele não se entregar para ser interrogado antes.
A acusação seria adulteração de provas. Ela, sua supervisora e o sargento tinham examinado o vídeo de segurança da sala de provas filmado no dia anterior... Viram Veck entrar, olhar todos os objetos catalogados e, em seguida, vasculhar a caixa de coisas que ainda precisavam ser registradas. Esta fora sua oportunidade e, além disso, sua mão esquerda acessou o bolso várias vezes.
Não era uma prova muito concreta, mas combinava com as declarações de Bails e a discrepância na lista – era o suficiente para, ao menos, detê-lo. Além disso, se não atendesse às ligações, havia grandes chances de estarem certos.
– Seja honesta comigo – sua chefe disse. – Teme por sua segurança pessoal?
– Não – talvez.
– Quer que eu designe uma patrulha para sua casa?
– Na verdade, vou para a casa dos meus pais esta noite. E vou ficar com eles um tempo.
– Boa ideia. E considere a patrulha feita – a mulher colocou uma das mãos sobre o ombro de Reilly. – Não se culpe por nada disso.
– Como não?
– Não pode controlar as pessoas.
Mas, pelo amor de Deus, poderia escolher com quem dormiria ou não. Mudando de assunto, disse: – Então, já terminou de conversar com Bails?
– Sim, a declaração dele já está nos arquivos. Pode ler se quiser, é exatamente o que ele já te disse. Saiu há pouco tempo.
– Vou fazer isso. E antes que você diga... sim, eu prometo ir para casa antes da meia-noite.
Sua chefe já estava quase na porta quando disse em voz alta: – Quando vai conversar com os Barten sobre isso?
– Quando tudo estiver acertado aqui. Aqueles pobres coitados já passaram pelo inferno e voltaram, e a ideia de que um policial pode ter assassinado a filha deles vai piorar muito as coisas. Especialmente com o nome DelVecchio associado ao caso.
E ainda teriam que levar em conta que Veck esteve na casa deles.
Naquele momento, as palavras dele foram repetidas em sua cabeça: Eu levei aquele cara até a casa de uma vítima.
Deus, era um ótimo mentiroso.
– Ligue para mim se quiser conversar – sua chefe murmurou.
– Farei isso. E obrigada de novo.
Ao ficar sozinha, pensou em Jim Heron, o “agente do FBI”, o que havia “mostrado” a caverna onde os restos mortais de Sissy foram encontrados. Veck foi brilhante ao interpretar aquela cena. Tão surpreso quando tudo aconteceu. Tão profissional depois.
E quanto à falta de pegadas nas pedras? Heron poderia ter acampado ali durante horas, esperando que Veck levasse-a na direção certa, as solas dos sapatos secaram percorrendo o local. E todos ficaram tão paralisados ao encontrar o corpo que ninguém procurou por ele. Um grande erro.
Estava claro que Heron e Veck trabalhavam juntos.
Reilly soltou um palavrão e voltou a prestar atenção na tela. A última entrada de “brinco” na lista preliminar não demorou para ser examinada e, como esperava, não havia nada parecido com uma pomba ali. Como Bails dissera.
Quando passou para a versão final, com suas fotografias tiradas por um microscópio, a catalogação era tão sucinta que levaria apenas alguns minutos para encontrar o brinco. A discrepância não havia sido notada, mas seria, em breve.
– Que confusão – ela murmurou ao abrir o arquivo de Sissy para rever as fotos da autópsia.
Deus, era fisicamente doloroso só de olhar.
Ao longo dos anos trabalhando na polícia, tinha visto muitas coisas horríveis, mas a situação de Sissy era a pior. Talvez por ter se envolvido pessoalmente, graças a algumas decisões estúpidas de sua parte.
Cansada, mas ainda incapaz de ir embora, decidiu perder algum tempo na internet. Introduziu o nome Thomas DelVecchio Jr., e o Google lhe deu milhares de referências em dezessete segundos. Descendo a tela com o mouse, clicou e abriu alguns blogs e sites... Apenas para se sentir cada vez menos impressionada com a humanidade. Não que precisasse de ajuda naquele departamento.
Havia tanta adoração pelos motivos errados... Reilly ficou se perguntando quantas daquelas pessoas achariam divertido se a própria filha ou a própria mãe tivessem sido uma das vítimas. Ou se alguma delas em si tivesse caído nas mãos de DelVecchio... e sido ferida por suas facas.
Refinando a busca para pesquisar sobre as vítimas, achou muitas referências da primeira mulher que fora assassinada, incluindo algumas fotos da autópsia. E uma comparação lado a lado entre Sissy Barten e Suzie Bussman resultou em algo que ela já sabia: o método e as marcas eram os mesmos.
Que maneira de homenagear o pai. Deus, até mesmo os nomes eram muito semelhantes, de uma maneira assustadora.
Recostando-se profundamente em sua cadeira, seus olhos iam e vinham entre as duas metades da tela – e deu-se conta de que rezava para que encontrassem provas suficientes para condenar Veck. Tudo o que tinham até agora era o brinco plantado em meio às provas, a declaração de Kroner com relação à pedreira e o fato de que Veck estivera na casa dos Barten. Porém, todos tinham lidado com o caso como se Kroner tivesse feito aquilo. Ninguém tinha olhado para Veck – mas isso estava mudando agora. Sua mesa, computador e armário já tinham sido revistados e tudo foi apreendido. Sua casa seria interditada para fins de investigação. E, assim que aparecesse, seria levado direto para um interrogatório. Contudo, talvez ele tivesse fugido...
Reilly ergueu-se e girou na cadeira.
O batimento cardíaco rugia nos ouvidos, abafando o som do sistema de aquecimento instalado no teto e o zumbido do equipamento de informática... e o ranger que ouviu atrás dela.
Olhando para o teto, observou a câmera de segurança em uma das extremidades. A luz vermelha no centro da máquina piscava lentamente, o ciclo preguiçoso das ondas emitidas por aquele sinal indicava que estava funcionando.
– Quem está aí?
Ninguém respondeu, pois não havia ninguém ali. Certo?
Ouviu a própria respiração por um tempo e, então, pensou: Certo, isso é besteira – não seria intimidada no seu maldito departamento.
Empurrando com força a cadeira, andou pelos cubículos vazios e verificou as salas de reunião e os escritórios. Na volta, percorreu todo o caminho até a porta principal, abriu-a e olhou para os dois lados do corredor.
Virou-se rapidamente, quase esperando encontrar alguém atrás dela. Ninguém.
Praguejando baixinho, voltou para sua mesa, sentou-se e... quando o celular tocou, deu um pulo e colocou uma das mãos sobre a garganta.
– Ai, cale essa boca.
Difícil saber se estava dirigindo-se ao celular ou à sua glândula produtora de adrenalina.
Pegou a coisa, aceitou a ligação e exclamou: – Reilly.
– Como você está?
Ao som da voz do detetive De la Cruz, respirou fundo.
– Já estive melhor.
– O sargento me ligou.
– Que confusão – aparentemente, aquela era sua nova trilha sonora.
– Sim.
Houve uma longa pausa, preenchida pelo mesmo tipo de silêncio que marcou a viagem de volta dela e de Bails do hospital até a delegacia: Que diabos aconteceu – era a mensagem subentendida sem que se dissesse uma palavra.
– Alguém te contou sobre a outra parte da história? – ela perguntou.
– Que você e Veck estavam... ah...
Ela teve que fazer uma careta.
– Foi um péssimo julgamento de minha parte. Pensei que o conhecia, pensei mesmo.
– Isto é difícil, não? – as palavras foram ditas com um cansaço que vinha de toda uma experiência pessoal. – No final, só se conhece de verdade a si mesmo.
– Tem toda razão... e estou contente por ter ligado. Quando isto tudo acabar... e ficar tudo...
– Tudo o que as pessoas pensarão é que ele é um idiota. E esse é o melhor cenário que ele poderá vivenciar.
Assassino seria outra palavra muito ouvida, sem dúvida.
– Você vai superar isto – De la Cruz disse. – Só queria que soubesse que pode me ligar se precisar de qualquer coisa.
– Está sendo muito... gentil.
– Parceiros são uma coisa complicada. Já tive alguns.
Mas aposto que nunca dormiu com um deles – Reilly pensou.
– Obrigada, detetive.
Depois que Reilly desligou o telefone, ficou olhando para o nada. Deus, será que aquela história de Veck encontrar sua mãe morta era mesmo verdade? Ou teria sido apenas outra maneira de jogar com as emoções?
Bem, só havia uma maneira de descobrir... Não levou muito tempo para localizar algumas referências em blogs amadores relacionadas a esse capítulo em especial na história da família DelVecchio. Leu tudo sobre como Veck tinha descoberto o corpo, como foi interrogado e como foi inocentado de qualquer envolvimento com base nas evidências físicas: apesar de suas impressões digitais estarem por toda casa, não havia nada sobre a vítima, também não havia sangue sob as unhas, nem sobre as roupas ou em locais como o seu banheiro ou sua cama.
Com o corpo de Sissy Barten foi a mesma coisa: não havia qualquer evidência que ligasse Veck ao assassinato. Porém, Veck era um detetive que sabia exatamente o que fazer para não deixar nada para trás. Fato que a fez se perguntar sobre a mãe dele. E ficar preocupada.
Deus... E se ele conseguisse se livrar desta? As implicações de ser demitido por plantar provas eram muito menores que a acusação de assassinato processada com sucesso. Poderia ficar sem emprego, mas livre nas ruas. E se tivesse a mesma tendência do pai, de escorregar entre os dedos da Segurança Pública, poderiam se passar anos antes de alguém conseguir prendê-lo.
Enojada com tudo aquilo e, aparentemente, procurando ficar ainda mais, acessou o Facebook e digitou Thomas DelVecc...
Não precisou de muito para visualizar vários resultados. Indo de página em página lentamente, observou os fã-clubes aos quais Veck tinha se referido. Ao menos não havia mentido sobre aquilo.
O maior grupo tinha 20 mil membros. Acessou o mural e observou as fotografias alinhadas na parte superior da página; em seguida, viu as postagens posicionadas na vertical. Tudo sobre a execução. Tudo sobre a adoração.
Recostou-se para trás na cadeira e ficou encarando a tela. Passou-se um longo tempo antes de desligar o computador e pegar seu casaco.
– Quem é essa tal de “ela”? – Veck perguntou atrás do volante da caminhonete de Heron. – A quem meu pai se referiu?
Sentado ao lado do cara, Jim não olhava para nada. Tinham pelo menos mais uma hora antes de chegarem em Caldwell, então, havia tempo de sobra para jogar conversa fora... Mas não estava com muita pressa de falar sobre o clima, muito menos sobre Devina e Sissy.
Quer que saiba que ela sofreu.
Aquele demônio era uma tremenda vadia.
Veck soltou um palavrão.
– Maldição, é melhor um de vocês começar a falar. E se não quer me dizer nada sobre a garota, então é bom explicar que porcaria foi aquela de exorcismo.
Jim bateu a ponta do cigarro pela fresta da janela e decidiu enfrentar a última opção, em vez da primeira.
– Você não é nossa primeira tarefa. A primeira alma que salvamos... foi salva dando a Devina uma ordem de despejo.
– Devina?
– Um demônio em forma de mulher, cara.
– Foi ela quem sofreu?
– Quem dera – Adrian murmurou do banco de trás.
Jim concordava muito com ele.
– É assim que funciona. Devina é um demônio... E se precisa de mais explicações além desta, pense na sabedoria popular e terá uma boa imagem dela. Ela entra em alguém e gradualmente influencia suas escolhas e decisões. Em dado momento, a pessoa chega à encruzilhada e tem que escolher. Dependendo do caminho que decide percorrer, de como o segue, das ações que pratica... Tudo isso determina onde vai acabar. E o andar de baixo é um lugar maldito e quente demais, se é que entende o que quero dizer.
– Inferno.
– Isso.
Nesse momento, Jim pensou no pai daquele homem. Cara, aquele ser era pura maldade. E se fosse isso que estava vinculado a Veck?
– Vou acabar lá? – disse Veck suavemente, como se estivesse falando sozinho.
– Não, se pudermos ajudar.
Contudo, como diabos fariam isso? Especialmente levando em conta que Veck parecia mais misterioso desde que deixara aquela sala de visita. Mais irritado. Muito distante, mesmo estando tão perto.
Por que diabos Eddie teve que morrer? – Jim pensou. Precisavam tanto dele naquela situação.
Devina era uma tremenda vadia.
– Reilly está em perigo? – Veck perguntou asperamente.
– Quanto maior a distância entre vocês dois, melhor.
O cara soltou um palavrão novamente e murmurou: – Missão cumprida.
– É realmente mais seguro assim. Ela produziria mais danos colaterais e Devina adora isso.
Na lateral da rodovia, viram uma placa verde com letras brancas na qual se lia “CALDWELL 55”.
Quantos cigarros ele ainda tinha?
– Então, quem é “ela”? A que sofreu?
Ah, sim. Aquela pergunta iria ajudar muito seu humor.
– Alguém com quem me importo.
– Sissy Barten – Veck olhou para ele. – Certo? Kroner disse a mesma coisa, exatamente com as mesmas palavras, quando conversou com Reilly sobre ela. E você já havia dito que era pessoal.
– Disse mesmo.
– Então, o que são aquelas marcas no estômago da garota?
– Devina não conhece os modernos sistemas de segurança e alarme. Ela usa virgens – Jim endireitou-se em seu assento, seus músculos ficaram rígidos quando o impulso assassino foi acionado. – O que viu em Sissy é a maneira como ela consegue se proteger.
– Que... inferno. Então, a primeira vítima do meu pai...
– Talvez Devina o tenha obrigado a fazer aquilo como prova de fé. Talvez ele tenha apenas ajudado. Quem sabe?
– Há quanto tempo isso vem acontecendo? Entre você e o... – a pausa que se seguiu sugeria que Veck ainda estava se acostumando a pronunciar a palavra demônio.
– Há algumas semanas. Mas houve pessoas antes de mim... E ainda haverá depois se eu conseguir que você não siga o caminho que ela quer que você siga.
Jim olhou para as mãos do detetive. Envolviam com tanta força o volante que era um grande milagre ainda não o ter arrancado.
Certo, aquele tipo de fúria não agiria a favor deles: seria um estopim para Devina... Se ela atingisse o ponto certo, teriam que lidar com uma grande explosão. E Veck era um cara grande e forte capaz de matar pessoas com as próprias mãos e, provavelmente, fora treinado para isso.
Maldição, Jim odiava aquela espera.
– Aliás, vamos ficar com você esta noite.
– Imaginei. Só tenho uma cama, mas tenho um sofá.
– Estou mais interessado em parar em alguma loja de conveniência – abriu o maço de cigarros. – Está acabando.
– Tem uma perto da minha casa.
– Legal.
Veck colocou a mão no bolso e pegou o celular.
– Vou deixar ligado.
Enquanto Jim fervilhava de frustração, olhou para a janela ao seu lado em direção à estrada escura, perguntando-se quando as coisas...
– Que inferno – Veck murmurou. – Meu maldito telefone está estranho.
Quando Jim virou a cabeça lentamente, pensou: O tempo de espera acabou. Lá vamos nós...
CAPÍTULO 39
No Paraíso, Nigel jogava contra si mesmo. Xadrez.
Na verdade, era um pouco chato, mesmo seu oponente estando muito bem vestido e sendo incrivelmente astuto: acompanhava todos os movimentos que fazia, então, a falta do elemento surpresa não era nada desafiadora... apesar das estratégias brilhantes e ostensivas.
– Xeque-mate – disse alto em meio ao silêncio de seus aposentos.
Quando não houve qualquer palavrão, nenhuma acusação de práticas desleais, nenhum protesto ou exigências de revanche, lembrou-se outra vez por que motivo jogar com Colin era muito mais gratificante.
Levantando-se, afastou-se da mesa e deixou as peças como estavam: apenas duas sobre o tabuleiro, uma rainha branca e um rei preto.
O desejo de deixar sua tenda e sair andando pelo gramado em direção ao castelo, seguir até o rio, até o local onde Colin dormia, perfazia um impulso irresistível, que ultrapassava os limites mentais e chegava aos físicos.
Mas já fora levado por aquela loucura uma vez e foi muito constrangedor. Não faria isso novamente.
Distraído pela dor no peito, andou em volta da cama, entrou no banheiro e voltou ao quarto outra vez. Na verdade, não estava prestando atenção em nada exatamente... Bem, isso desde aquela refeição horrível... Quando a honestidade de Colin havia acertado em cheio o ego arrogante e irritadiço de Nigel.
Estranho como a posição de alguém mudava. Enquanto o tempo passava como uma corrente preguiçosa num grande rio de águas tranquilas, sua reação defensiva e impetuosa tinha se transformado em algo mais moderado... Preparando-o até mesmo para a possibilidade de se desculpar, desde que um pedido de desculpas fosse oferecido em troca. Prova de que milagres poderiam acontecer.
Infelizmente, tinha plena certeza da resposta que receberia e, conhecendo a si mesmo, bem como ao outro arcanjo, reconhecia que uma nova rodada de discussões não beneficiaria nenhum deles. Ainda assim, quem sabe Colin não poderia tomar a iniciativa de fazer as pazes?
Na verdade, embora Nigel não admitisse isso a ninguém, ele havia pulado várias das últimas refeições e passava o tempo todo ali, na esperança de que o arcanjo se aproximasse. Porém, a situação estava ficando inaceitável. Tal passividade não fazia parte de sua natureza e paciência era uma virtude da qual possuía muito pouco...
– Nigel? – veio uma voz do outro lado dos aposentos.
Nigel rangeu os dentes, mas conteve o palavrão que desejava proferir ajeitando duas vezes a gravata. A última coisa que precisava era de um visitante que não fosse Colin. Contudo, era pouco adequado punir um inocente bem-intencionado.
– Byron, meu velho – murmurou, indo para a entrada –, como estás...?
No momento em que afastou a pesada cortina de cetim e viu o rosto do outro arcanjo, ficou paralisado.
– O que foi?
– Colin... está aqui?
– Não.
– Não conseguimos encontrá-lo – Byron brincava com os botões de metal das mangas do casaco. – Quando ele não se apresentou para a refeição noturna, concluímos que estivesse estudando e o deixamos em paz. Mas, antes de começar, fui procurá-lo com algumas provisões. Não estava em sua tenda. Nem nas fontes de água. Nem no castelo... e nem aqui, pelo que vejo.
Nigel balançou a cabeça ao mesmo tempo em que se concentrou para ouvir seus sentidos – e não encontrou sinal algum do anjo. Na verdade, se não estivesse tão preocupado consigo mesmo, reconheceria antes o que notava claramente agora: Colin não estava no local.
Houve um breve impulso de ceder ao pânico, mas Nigel controlou a reação emocional. E, pensando logicamente, ele sabia que havia apenas um lugar para onde aquele todo iria.
Por que não havia previsto aquilo?
– Não se preocupem – disse Nigel gravemente. – Vou sair e o trarei de volta.
– Quer ajuda?
– Não – pois não se responsabilizaria pela punição que daria ao arcanjo. Conflitos pessoais eram uma coisa, insubordinação era outra completamente diferente. E este último item não seria negligenciado, de forma alguma.
Apenas com a força do pensamento, seu roupão e chinelos com monogramas transformaram-se num terno cinza-claro, uma camisa de um branco brilhante, uma gravata xadrez de tons suaves e um par de asas.
– Vá e console Bertie e Tarquin – disse ao outro arcanjo. – Sem dúvida estão preocupados. E saiba que não devo demorar.
– Aonde vai?
– Para onde ele está.
Com isso, Nigel saiu, atravessando a barreira que os ligava ao mundo lá embaixo. E, quando retomou sua forma corpórea, viu-se diante de uma garagem de dois andares de distinção modesta no interior do país.
Pensou em Edward descansando ali.
Que local comum para uma alma tão extraordinária.
Com uma concentração sombria, Nigel subiu as escadas estreitas e passou pela porta como se não fosse nada além de um véu de névoa. Não havia razão para abrir as portas. Com certeza já havia anunciado sua presença.
E Colin não pareceu chocado com a invasão. O arcanjo estava sentado num sofá gasto sob uma grande janela, descansando com um dos braços estendido sobre as almofadas e as pernas cruzadas, com um dos tornozelos sobre o joelho.
Nigel relembrou cada ângulo e linha daquele belo e rígido rosto masculino. Em seguida, observou os olhos negros e os lábios volumosos.
– Pensou que sua ausência não seria notada?
– Pareço surpreso com sua chegada?
– A maneira adequada de agir diante destas situações é pedir permissão antes de sair.
– Talvez para Byron e Bertie. Mas não para mim.
– Eu não teria negado.
– Como poderia saber?
Quando Nigel franziu a testa, sua ira diminuiu de repente, em seu lugar, sentiu a exaustão. Como os seres humanos suportam aquele turbilhão emocional? E por que havia permitido que seu coração sentisse aquilo? Não era nada bom. Além disso, não poderia continuar. Quando se dirigiu ao arcanjo outra vez, foi com serenidade.
– Colin, parece que você e eu alcançamos nossa própria encruzilhada. Por mais que eu esteja preparado para reconhecer certos... erros de julgamento da minha parte... temo que não seja suficiente para você, assim como água não é suficiente quando a necessidade real é de sangue. Além disso, acredito que, na sua tentativa de assumir uma posição lógica, a verdade sobre você mesmo se perdeu. Suas paixões te governam muito mais do que imagina e te levam em direções que comprometem nossos interesses coletivos.
Os olhos de Colin desviaram-se.
– Portanto, devo sugerir que deixemos no passado nossa relação íntima para que possamos assumir uma distância apropriada. Talvez com o tempo, possamos também voltar a trabalhar juntos em harmonia. Porém, até que isso ocorra, eu espero que se comporte de maneira adequada ou vou remover qualquer influência que possa exercer sobre a presente situação.
Quando não houve resposta imediata, Nigel caminhou até uma cozinha e parou diante de uma porta pequena e baixa. Atrás daquela frágil barreira repousava Edward, sem respirar, mas também sem se deteriorar, o corpo do anjo era como um vaso exalando o perfume de flores que não estavam ali.
Colin foi inteligente ao se dirigir àquele local, pensou Nigel. Com Jim e Adrian guerreando intensamente com Devina, aquele vaso não estava seguro – e, se fosse quebrado ou comprometido, não haveria como restaurar a alma de Edward.
Contudo, mesmo que permanecesse intocado, era impossível saber quando retornaria. Coisas dessa natureza estavam sob a alçada do Criador e dele somente. Além disso, seria um acontecimento sem precedentes. Mas mesmo assim, Colin deveria...
– Eu deveria ter dito onde estava indo – o arcanjo disse bruscamente. – Você está certo neste ponto.
Nigel virou-se. O anjo ainda estava no sofá, ainda estendido, mas tinha erguido os olhos, encontrando os de Nigel.
– Isto é um pedido de desculpas? – disse Nigel.
– Entenda como quiser.
Nigel balançou a cabeça e pensou: Não está bom o suficiente, velho amigo. Simplesmente, temo que ainda não seja o suficiente.
Ajeitando as mangas da camisa, puxou as abotoaduras de ouro e afirmou mais uma vez: – Estou me esforçando para ganhar este concurso vital da melhor maneira que conheço... Ou seja, dentro dos limites dúbios próprios deste jogo. Não posso aceitar a afirmação de que dois erros façam um acerto. Não vou aceitar.
– Não se iluda – Colin murmurou ao erguer uma das mãos e flexionar os dedos. – Nossas mãos estão limpas, como você diz.
– E veja como isso acabou. Edward está morto.
– Você não é o culpado por isso.
– Sou sim – Nigel balançou a cabeça. – É o que você não entende. Tudo isso é minha responsabilidade. Pode ter suas opiniões, suas discordâncias, sua ira, mas, no final, seus ombros não sentirão o peso de arcar com o ônus da derrota, se este for o resultado. Essa função é minha e só minha. Portanto, enquanto menospreza meu controle, você vê as coisas da vantajosa posição onde pode comentar sem sofrer consequências.
Com isso, Nigel andou até a porta.
– Estou feliz por você estar aqui e sei que protegerá bem algo tão precioso.
– Nigel.
Olhou por cima do ombro.
– Colin.
Houve um longo momento de silêncio. Quando pareceu que nada mais seria dito, Nigel olhou para a cozinha e pensou sobre a natureza da perda: é possível escolher certas coisas, outras não. Algumas eram impostas. E... outras eram permanentes.
– Vejo você mais tarde – disse Nigel, finalizando a conversa e saindo.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
Quando o último raio de luz solar esvaiu-se do céu, os restos mortais de Sissy Barten tinham sido embalados e removidos da caverna cuidadosamente.
Veck foi um dos rapazes que seguraram as alças da maca, sustentaram o peso do corpo e tiraram-no dali, levando-o para o ar limpo. Ele ficou por perto ao longo da tarde, mas preferiu ficar em segundo plano, limitando sua participação a tirar fotos com o celular, conversar com o médico-legista e ajudar sempre, sempre e sempre que possível com detalhes desnecessários. Reilly fazia o mesmo. E, então, a única coisa que havia para ser feita ali era subir o corpo até a encosta.
– Vamos por aqui – disse aos outros. – É o melhor caminho que temos.
Os quatro dirigiram-se para o norte e seguiram pelo caminho menos obstruído – algo muito relativo. E havia muita gente esperando a chegada do corpo.
Naturalmente, as equipes de reportagem tinham chegado e se posicionado nas margens da pedreira. Só Deus sabia quem os havia alertado. Com certeza não havia sido ninguém que estava exercendo uma função oficial ali. Mas, afinal, era uma área pública e, além da cidade inteira saber que a polícia havia capturado Kroner e que o cara se recuperava no Hospital São Francisco, também sabiam sobre a vítima naquele hotel e sobre as outras garotas mortas. O fato de alguns oficiais uniformizados começarem a percorrer uma área remota com um monte de lugares obscuros não indicava que alguém estivesse dando uma festa de aniversário em meio àquele amontoado de rochas. Além disso, agora havia um corpo envolvido num saco plástico.
Sobretudo, qualquer idiota tem um celular hoje em dia. E foi por isso que, no exato instante após a identificação do corpo com fotografias e marcas de nascença, De la Cruz saiu correndo da cena e entrou no carro. Embora o Departamento de Polícia de Caldwell não fosse liberar o nome à imprensa antes da família ser notificada, já havia inúmeros e-mails, mensagens de texto e ligações na delegacia – e não tinha como saber quem havia deixado escapar para a esposa, que tinha contado para a irmã, que, por sua vez, disse a alguém de um canal televisivo. Às vezes, a era da informação podia ser um saco. Ninguém desejava que os Barten soubessem sobre sua filha no jornal da noite... ou, que Deus os livrasse, no Facebook.
Enquanto Veck e os outros três rapazes resmungavam, estendiam-se, puxavam e levantavam, Reilly estava bem ao lado deles o tempo todo, direcionando a lanterna e iluminando o caminho enquanto começava a escurecer. E a escuridão parecia cada vez mais densa. Até ficar escuro como breu.
Quase uma hora depois, chegaram ao topo e colocaram os restos mortais na parte de trás de um dos veículos de resgate com todo cuidado.
Veck e Reilly ficaram para trás enquanto Sissy Barten era levada com segurança de volta à cidade.
Quando os outros oficiais começaram a se dispersar e os motores foram acionados, ela disse em voz baixa: – Não acho que...
– Kroner não a matou – Veck concordou com suavidade.
– O modus operandi não se encaixa.
– Nem um pouco.
E não foram os únicos que notaram a discrepância entre Sissy e as outras vítimas: aquele corpo fora suspenso pelos calcanhares e o sangue drenado... havia um desenho arranhado sobre o estômago. Além disso, apesar de estar nua e sem qualquer objeto pessoal, não havia manchas na pele que indicassem que alguma parte fora removida e nada que sugerisse abuso sexual – seria outra perversão típica de Kroner?
– Só não sei como explicar o brinco – Veck murmurou.
– Ou por que Kroner sabia onde ela estava se não a matou.
Veck olhou para sua parceira.
– Quer comer em algum lugar?
Apoiando os braços sobre a cabeça, ela espreguiçou-se.
– Sim, por favor. Estou faminta. E exausta.
Ele pegou o celular e enviou uma mensagem de texto: Sua casa? Você poderia tomar um banho. Comida pronta, prometo ser gentil.
Houve um sinal sonoro discreto e, depois de trocarem algumas palavras, ela pegou o telefone sorrateiramente e olhou a tela.
– Que plano perfeito.
O impulso que sentiu foi de beijá-la rápido e com firmeza. Mas se conteve a tempo, pois não estavam sozinhos. Alô! Estavam cercados de pessoas com quem trabalhavam.
Queria voltar com ela, mas teriam que seguir separados, graças a sua maldita moto. Caramba, e pensar que costumava gostar daquela coisa... Se não fosse por ela, Reilly não o teria levado para casa na noite passada.
– Vejo você em vinte minutos... – disse a ela.
– Tem certeza de que não quer um casaco extra?
– Vou ficar bem.
Ao caminhar pelo chão poroso e lamacento, Veck pensou em Jim Heron e na falta de pegadas. Passou mais algum tempo procurando evidências de que mais alguém, além dele e de Reilly, tivesse percorrido a área, mas não havia nada. No entanto, tinha plena certeza de que aquele homem não poderia ter atravessado todo o terreno molhado e irregular sem deixar qualquer vestígio. E Veck não imaginara a aparição daquele cara.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio. E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente. Sou o único que pode te ajudar.
Tanto faz, Heron.
Resistindo à tentação de gritar para as sombras, montou na moto, ligou o motor e esperou Reilly abrir o porta-malas e tirar as botas imundas. Ao menos aquilo o fez sorrir. Podia apostar que ela tinha um saco plástico ou tapete de borracha lá dentro para colocar os objetos sujos. Provavelmente, assim que chegasse em casa, lavaria imediatamente as botas para que estivessem prontas para o próximo uso.
Olhou para os próprios pés. Seus sapatos estavam arruinados. Do tipo que deveriam ser destinados a um saco de lixo, não serviriam nem se limpasse e engraxasse.
O difícil era encontrar outros em uma situação diferente daquela.
Reilly assumiu a dianteira e Veck seguiu-a pelo caminho até a cidade, mesmo congelando, pois dirigir a 110 quilômetros por hora numa noite como aquela era como sofrer o frio de um rigoroso inverno. A jaqueta não resolvia nada. Parecia estar de regata e nada mais, o frio o castigava. Mas não se importava com a temperatura. Em sua mente, voltou para o banho que havia tomado depois do pesadelo na floresta com Kroner, quando sentiu a presença obscura de algo envolvendo-o, falando com ele e acariciando-o, quando sentiu o maior de todos os seus medos. Não era daquele mundo. Nunca tinha sido.
Então ouviu a voz de Reilly: É como se tivesse caído do céu.
Deus, ele estava enlouquecendo. Só podia ser. Pois estava considerando, de fato, que Jim Heron não existia. Será que existia?
Mais ou menos dez minutos depois, saíram da estrada e seguiram o caminho em direção ao bairro de Reilly. Foi um alívio observar que tudo continuava bem e seguia normalmente: as casas iluminadas, TVs ligadas dentro delas, carros passando devagar e lojas nas esquinas com propagandas da loteria. Tudo poderia ser fácil e concretamente explicado. E quem poderia imaginar que Veck invejava aquilo?
Quando chegaram à casa de Reilly, estacionou atrás dela e saltou da moto enquanto ela entrava na garagem, as luzes vermelhas dos freios brilharam e desapareceram assim que ela desligou o motor.
– Deveria usar um capacete – ela disse ao sair, ir até o porta-malas e pegar as botas enlameadas.
Obviamente, depois disso, acendeu um interruptor, levou as botas até a mangueira do jardim que estava num canto na frente da garagem e lavou a sujeira. Quando olhou para ele outra vez, corou um pouco.
– Do que você está rindo?
– Tinha a sensação de que você faria isso.
Ela riu e voltou a se concentrar em seu trabalho de limpeza.
– Sou tão previsível assim?
Achou que a palavra supersexy também a definiria muito bem. Cara, mesmo uma tarefa trivial valia muito a pena observar.
– Você é perfeita – murmurou.
– Não sou, não, pode confiar em mim – desligando a água, balançou as botas, secou-as com uma flanela e colocou-as de volta no porta-malas.
Juntos, entraram na sua cozinha de galos e mais luzes foram acesas. A primeira coisa que Veck olhou? A mesa. A excitação foi instantânea. Assim como o replay mental da noite de dois dias atrás, quando fez muito mais que beijá-la ali. Aquela sensação, no entanto, não durou muito.
Pela porta de entrada do escritório, viu que ela tinha reorganizado os móveis: a poltrona tinha sido puxada para um canto, posicionada num ângulo mais aberto e havia uma mesa pequena ao lado dela. Deduzindo, imaginou que, se alguém sentasse ali, poderia observar tanto a porta da frente quanto a dos fundos de costas para uma parede sólida.
– Quer tentar uma pizza outra vez? – ela perguntou perto do telefone.
Virando a cabeça em direção a ela, disse um tanto rude: – Por que não me disse?
– O quê?
– Que andou sendo observada também.
Jim não esperou os restos mortais de Sissy serem retirados da pedreira e levados em direção à cidade. Em vez disso, separou-se de Veck, deixando Adrian com o cara e seguiu em direção à casa da família com um detetive baixinho de aparência séria que murmurava algumas coisas em espanhol.
Ele havia dito “Madre de Dios” várias vezes e feito o sinal da cruz tantas outras que já parecia ter um tique nervoso na mão.
De la Cruz não percebeu que tinha um passageiro em seu carro: Jim deu uma de copiloto no caminho de volta para Caldwell. Sim, claro, poderia sobrevoar pela noite, mas aquilo lhe daria tempo para se recompor.
Além disso, a introdução ao espanhol era instrutiva.
Vinte minutos depois de terem deixado o local, o detetive parou em frente à casa dos Barten, desligou o motor e saiu do carro. Ao ajustar as calças, o rosto era sombrio, mas, também, com as notícias que tinha... não era hora de sair exibindo sorrisos.
Na calçada, Jim ficou lado a lado com o homem, sem qualquer desejo de invadir a casa da mãe de Sissy, nem sequer por um momento, mesmo que ela nunca soubesse que Jim esteve ali.
Na porta, De la Cruz ergueu uma das mãos e colocou-a debaixo da gravata, sobre o peito. Havia uma cruz ali. Tinha que ser, especialmente porque ele começou a murmurar algo, como se estivesse rezando...
De repente, o detetive olhou em volta.
E, mesmo que De la Cruz não pudesse enxergá-lo, Jim encontrou aqueles olhos escuros tristes e cansados.
– Você consegue fazer isso. É um bom homem e pode fazer isso. Não está sozinho – Jim falou.
De la Cruz olhou para a porta outra vez e assentiu com ar seguro, como se tivesse ouvido as palavras. Então, tocou a campainha.
A senhora Barten abriu logo depois, como se estivesse esperando.
– Detetive De la Cruz.
– Posso entrar, senhora?
– Sim. Por favor.
Antes de entrar na casa, o detetive deixou os sapatos enlameados sobre o tapete de boas-vindas, e, quando a mulher observou-o, uma de suas mãos subiu até a garganta.
– Você a encontrou.
– Sim, senhora. Encontramos. Tem mais alguém que gostaria que estivesse com a senhora enquanto falo?
– Meu marido está viajando... mas está a caminho de casa. Liguei para ele logo depois que desliguei o telefone com o senhor.
– Vamos conversar lá dentro, senhora.
Ela estremeceu como se tivesse esquecido que estavam em pé na porta.
– Claro.
Jim entrou com o cara e, em seguida, estava mais uma vez na sala de estar, com a senhora Barten sentada na mesma poltrona florida do outro dia. De la Cruz ficou com o sofá e Jim começou a passear pela sala, sua raiva por Devina tornava impossível o ato de permanecer sentado.
– Diga – disse a senhora Barten de repente.
O detetive inclinou-se para frente e manteve os olhos fixos no rosto pálido e tenso.
– Nós a encontramos na pedreira.
Os olhos da mãe de Sissy fecharam-se com força e permaneceram assim. Então, a respiração saiu lentamente, até não restar ar algum em seus pulmões.
Aquilo foi o fim da esperança, Jim pensou. Talvez ela nem soubesse que ainda tinha alguma, mas lá estava, saindo de seu peito oprimido.
– Ela... foi... Ela sofreu...?
De la Cruz falou lentamente e com cuidado.
– Não temos certeza se ela faz parte dos assassinatos mais recentes.
Os olhos da senhora Barten abriram-se outra vez, seu corpo ficou rígido.
– O quê...? Então quem? Por quê?
– Ainda não tenho as respostas, senhora. Mas tem minha palavra: não vou parar até descobrir tudo e capturar o bastardo.
Jim não aguentava mais. Aproximou-se da mãe de Sissy e colocou sua mão invisível sobre o ombro dela. Deus... a dor que havia ali... podia sentir claramente, como se fosse sua própria dor, e, desejando aliviá-la da carga, puxou a emoção para si e conteve-a até seus joelhos dobrarem-se e começar a sentir tonturas.
De repente, como se estivesse fortalecida, a mulher endireitou os ombros e ergueu o queixo. Em voz baixa e forte, disse: – Como ela morreu?
– Senhora, precisamos que o médico legista nos diga isso. Ele está com ela agora e vai trabalhar a noite inteira para cuidar dela. Está em boas mãos e, depois que eu sair daqui, vou direto para lá. Não vou deixá-la, senhora. Não até que tenham terminado todos os exames. Tem minha palavra.
– Obrigada – a senhora Barten respirou fundo. – Como vou saber o que está acontecendo?
De la Cruz pegou um cartão e escreveu alguma coisa nele.
– Este é o número do meu celular. Pode me ligar a qualquer hora, dia ou noite. Meu telefone está sempre ligado e sempre comigo. E, assim que o médico terminar, a senhora será a primeira pessoa para quem vou ligar.
A senhora Barten assentiu e, em seguida, mudou seu foco. Os olhos alcançaram um meio-termo infinito entre ela e o detetive.
De qual parte da vida de Sissy ela estaria se lembrando? – Jim se perguntou. O nascimento... os aniversários... os feriados de Natal ou de Páscoa? Seria o Halloween ou o Dia da Independência? Ou nenhum feriado em particular, apenas alguma lembrança que veio de repente de um momento doce entre elas? Ou talvez qualquer expressão de bondade, empatia ou humor por parte de Sissy para com alguma outra pessoa...
Jim queria ver o que ela via, mesmo que não fosse bom ou nada demais. Mas não se infiltraria nela. O que havia acontecido com a filha já era suficiente...
A vibração que sentiu no peito não era o seu coração, era o telefone. Pegando o celular, leu a mensagem de Adrian: “Tentando entrar em contato e nada. Preciso encontrar você agora”.
Jim não queria partir, mas estava fora da casa num segundo. Dirigindo-se para o leste, concentrou-se em Adrian...
E ele apareceu em meio a uma luta no gramado dos fundos da casa da parceira de Veck.
Que porra...?
Parecia que os subordinados de Devina surgiram fervilhando na noite, seus corpos esfumaçados circulavam ao redor de Adrian como abutres sobre um cadáver. Mas ao menos seu amigo não estava à beira da morte... E, considerando a posição de luta que seu corpo forte tinha assumido, não estava nem perto disso.
Jim posicionou-se para a luta imediatamente e não esperou o sinal do juiz para começar. Entrou com tudo, lançando-se contra o inimigo mais próximo, enfrentando-o com força. Quando o bastardo gritou, o som estridente mudou tudo – numa fração de segundo, as coisas ficaram selvagens.
Segurando o filho da mãe, Jim fechou o punho e destruiu a coisa com um golpe na “cabeça”. Em seguida, conseguiu tirar vantagem do segundo de paralisia para olhar ao redor e lançar um escudo visual e auditivo em torno daquele show de horrores. Era um bairro de família, não um campo de guerra. E toda aquela luta mano a mano acontecia a alguns metros de distância de três outras casas. Todas cheias de linhas telefônicas aptas a chamar a polícia. Não precisavam nem um pouco que os caras do Departamento de Polícia de Caldwell aparecessem.
Sacando sua adaga de cristal, feriu o demônio que detinha e, então, começou a esfaquear tudo o que aparecia pela frente, cortando e dilacerando, lançando sempre a ponta afiada da arma que Eddie havia lhe dado e ensinado a usar.
Tudo o que sentia resultou em violência, toda dor e fúria foram desencadeadas, a ponto de não perceber que o sangue ácido do inimigo estava espirrando em seu rosto. E não se importava que aquela porcaria estivesse corroendo sua jaqueta de couro e ferindo sua pele. Na verdade, não conseguia sentir a terra embaixo de seus pés ao se lançar de demônio a demônio. Estava totalmente entregue e invisível ao mesmo tempo.
Em sua fúria, não conseguiam tocá-lo: eram garotos fazendo serviço de homem e estavam sendo devastados. Depois que Jim esfaqueou outra caixa torácica preta e o jato ácido atingiu seu maxilar e sua garganta, ele desvencilhou-se do corpo e já estava pronto para o próximo...
O golpe em suas costas foi um verdadeiro bote, o tipo de coisa que faz ver estrelas e ouvir pássaros cantar. Mas como soldado bem treinado que era, Jim aproveitou o ímpeto, deixou-se cair ao chão e apoiou-se sobre os ombros no último minuto para evitar mais prejuízos. Quando terminou de rolar e olhou para cima, o demônio que fora atrás dele estava pronto para a segunda rodada.
Certo, muito bem, Jim pensou.
O bastardo tinha pegado uma pá e, obviamente, usou a coisa como raquete de tênis, balançando a ponta de metal e golpeando com ela. E era difícil dizer, mas parecia que saía um riso da sombra tridimensional.
Com certeza, o imbecil filho da puta pensou que estava no comando, e Jim ficou mais que satisfeito em ensinar ao lacaio de Devina uma lição sobre responsabilidades. Mantendo-se abaixado e fingindo estar ferido, esperou a coisa se aproximar – e foi o que aconteceu, como se manipulasse aqueles braços e pernas oleosas com cordas: movendo-se como um robô com articulações rígidas, o demônio aproximou-se equilibrando a ferramenta pesada entre as mãos. Mais perto. Mais perto.
Quando já estava ao alcance, Jim levantou o tronco, pegou o cabo com as duas mãos e puxou com força. O demônio foi lançado para frente e perdeu o equilíbrio, a gravidade tomou conta daquele corpo e o empurrou para cima de Jim... Pelo menos a coisa não estava sangrando.
As botas de Jim atingiram o osso pélvico do inimigo para frear a descida e, em seguida, ele afastou-se e chutou o peso para longe – aproveitando para pegar a pá, claro.
Quando o demônio iniciou o pequeno passeio pelo ar rarefeito, Jim levantou-se, firmou o corpo e foi o primeiro a chegar à nova localização do idiota jogado ao chão. Balançando a pá, deu um fim à questão ao atingir o peito obscuro do bastardo.
Foi bom ouvir o grito. Mas ainda mais divertido foi dar um passo para trás e ver a coisa contorcer-se em câmera lenta. Aparentemente, Jim colocou tanta força no ataque que a ferramenta penetrou no chão, quase um metro, considerando a parte do cabo que ficou exposta. O demônio ficou preso, como um inseto capturado, erguendo os olhos e rosnando.
– É? Então, venha me pegar – Jim deu-lhe um segundo para se levantar. – Não? Prefere bancar o tapete de boas-vindas? Combina com você, seu filho da mãe.
Jim chutou a cabeça com força, como se o crânio fosse uma bola de futebol, e deixou o filho da puta onde estava. Do outro lado do gramado, Adrian estava prestes a ser surpreendido por um demônio que tinha encontrado uma enxada e aproximava-se dele correndo.
– O que é isso? Noite da liquidação de ferramentas? – Jim murmurou ao empunhar sua adaga outra vez. – Atrás de você!
Adrian jogou-se na grama assim que o jardineiro do inferno se lançou. Bem a tempo: o demônio atingiu um dos próprios colegas. O problema? Todo aquele sangue espirraria em Ad.
Jim estava prestes a se jogar sobre ele quando Adrian deu um jeito no problema: deixou os dois enfrentarem-se e saiu do caminho.
Havia apenas dois lacaios em pé à esquerda, e os guerreiros dividiram a tarefa. Jim pegou o que estava todo alegrinho com uma enxada nas mãos e Adrian levantou e começou a andar em círculos ao redor do outro, a adaga de cristal em punho.
Recusando-se a esperar por um golpe, Jim avançou e agarrou a enxada. Ergueu o objeto e lançou-o com força na testa do demônio. Resultado óbvio: Jim continuou a aniquilar a coisa esfaqueando-o com a adaga.
Quando virou-se, observou Ad terminando de lidar com o outro filho da mãe ao abrir um buraco em seus intestinos e, em seguida, cravar a lâmina em sua cabeça. Depois disso, não havia mais nada além de respirações ofegantes, couro fumegante e ferramentas de jardim jogadas ao chão.
Jim olhou ao redor, imaginando onde diabos estava... ah, sim, Reilly tinha um vizinho que possuía aquelas coisas para manutenção do quintal e o compartimento onde guardava tudo foi arrombado. Pena que o cortador de grama continuava no mesmo lugar... teria sido divertido. Poderia dar um novo significado para o conceito de cabelo raspado.
– Você está bem? – perguntou a Ad.
O parceiro, deitado na grama, respondeu.
– Sim.
Os dois tinham arranhões que sangravam, mas, ao menos, Jim estava sentindo-se melhor. A luta tinha lubrificado suas engrenagens e sentia-se mais ele mesmo. Mais calmo. Com maior capacidade de concentração.
Bem a tempo – pensou ao aproximar-se e ajoelhar-se ao lado do bastardo pregado ao chão.
– Você já tentou tirar informações de um deles? – disse enquanto examinava a coisa. Movia-se lentamente, era evidente que ainda estava vivo. Seja lá o que “vivo” significasse.
– Sim. Eles não têm nada a dizer. Não conseguem falar.
– Deve ser por isso que ela gosta deles.
Ad aproximou-se e enxugou o rosto com a ponta da camiseta. A mancha vermelha deixada no tecido poderia servir para aqueles testes psicológicos. Para Jim? Parecia a abertura de uma caverna. Uma caverna escura e profunda que escondia o corpo de uma inocente contra uma de suas paredes.
Sim, essa interpretação não era surpreendente.
Ao ouvir o som de um gemido, Jim pensou: Maldito demônio. Ela era esperta. Se seus subordinados eram incapazes de falar sobre ela por serem mudos, idiotas ou resistentes à dor, era uma boa estratégia para...
– Foi divertido assistir a isto.
Ao som da voz de Devina, Jim e Ad entreolharam-se. Concordaram em silêncio que a aparição dela não era nada inesperada. E, quando levantaram-se e viraram-se para ela, Jim colocou-se na frente do outro anjo. Não perderia outro para aquela vadia. Não naquela noite.
– Se escondendo de mim, Jim?
Os olhos do demônio ergueram-se e fixaram-se nele: eram tão intensos, pareciam enlouquecidos.
Mas que bobagem, ele pensou. Não tinha percebido que ela não conseguia encontrá-lo.
– O radar não está funcionando, Devina? – então foi por isso que Ad tinha sido atacado. Queria atrair Jim.
O demônio andou delicadamente sobre a grama. Usava um sapato com salto tão alto que Jim perguntou-se como ela conseguia respirar com o ar rarefeito ali de cima. Já a saia era do tamanho de um guardanapo e de uma cor tão chamativa quanto os cassinos de Las Vegas.
Soava ridículo, parecia sexy... Desde que não soubesse de fato o que era aquele ser. E Jim nunca iria se esquecer disso.
Estendendo uma das mãos para trás, colocou-a sobre o antebraço de Ad. O outro anjo estava rígido como um bloco de concreto, totalmente imóvel. E continuaria assim: não estava pensando direito ainda para enfrentar o inimigo. Nem Jim, para ser sincero. Mas ela não saberia disso.
– Alguma coisa em mente, Devina?
Ela parou ao aproximar-se de seu soldado morto-vivo que tinha sido reduzido a pedacinhos. Olhando para a coisa, ergueu uma das mãos e, com a urgência de alguém escolhendo um jornal, convocou o ser com a palma da mão, tirando-o do solo na forma de um fluxo e absorvendo a sujeira para dentro de si. Quando terminou, a pá continuava no mesmo lugar, enterrada no chão com o cabo para cima.
– Como está Eddie? – ela sorriu. – Cheirando a rosas?
Jim quis soltar um palavrão. É claro que ela abordaria esse assunto. Era a única coisa certa que faria Adrian enlouquecer. Maldição... E ele já estava pensando que a noite não poderia ficar pior...
CAPÍTULO 31
Quando Reilly encontrou os olhos de seu parceiro, pensou que os dois perderiam outra pizza: parado do outro lado da cozinha, Veck parecia muito chateado e, apesar do comportamento de homem das cavernas incomodá-la, ela sabia que aquilo tinha fundamento.
– Por que não me contou? – Veck perguntou de novo. – Ou, droga, se não para mim, para outra pessoa?
– Quem disse que eu estava sendo vigiada?
– Por que outra razão colocaria os móveis daquele jeito?
Viu? É por isso que não é tão interessante namorar um detetive... Cruzando os braços, Reilly recostou-se no balcão.
– Na verdade, eu não vi nada – encolheu os ombros. – Se tivesse alguma coisa para contar, eu diria. Mas apenas fiquei sentada naquela cadeira a noite toda, imaginando se eu não estava paranoica. Não aconteceu nada.
– Devia ter me ligado – com isso, ela ergueu uma das sobrancelhas e Veck amaldiçoou como se lembrasse de como as coisas tinham ficado entre eles. – Tudo bem, tudo bem... Mas, caramba, não quero você sozinha horas e horas esperando que alguém invada sua casa.
– Fiquei bem. Estou bem. E garanto que, se alguém tivesse entrado em casa, eu teria resolvido a situação.
Murmurando algo meio irritado, Veck aproximou-se e sentou-se à mesa da cozinha. Apoiou os braços sobre os cotovelos e coçou a cabeça.
– Isso está fora de controle.
Qual parte? A ideia de serem perseguidos? A situação com Kroner? O corpo que tinham encontrado? O sexo? A coisa toda envolvendo a palavra “amor”? Tantas opções.
Ao sentar-se na cadeira de frente para ele, pensou em seus pais, sentados juntos à mesa naquela bela casa. Podia apostar que nunca tiveram que olhar um para o outro naquelas circunstâncias...
Quando ouviram um grito vindo dos fundos da casa, ela e Veck estavam em pé antes que o som estridente terminasse. Armas surgiram ao se posicionarem um de cada lado da porta de correr que se abria para o quintal dos fundos. Reilly alcançou o interruptor e apagou as luzes, mergulhando a cozinha na escuridão, em seguida, acionou as luzes de segurança.
Seus olhos observaram o quintal bem iluminado. Não havia muita coisa ali. Era mais como um campo de futebol, e a única visão que tinha era dos pontos que ligavam as outras casas da vizinhança. Nada lá fora. Não que conseguisse enxergar. Mas seus instintos diziam outra coisa. E lembrou-se de todas aquelas pegadas que “Jim Heron” não tinha deixado para trás.
– Acho que estou ficando louca – ela murmurou.
– Engraçado, estou preocupado de que não estejamos.
Quando nada mais aconteceu, esperaram. E esperaram. E esperaram mais um pouco. Finalmente, os dois afastaram-se da porta e recolocaram suas armas no coldre.
– Precisamos de comida. E de um banho – Reilly murmurou. – E de uma avaliação psicológica.
Quando não houve resposta, olhou para seu parceiro. Veck andava pelo cômodo, como se estivesse prestes a levitar. Era evidente que não responderia coisa alguma. Então, entrou na frente dele, obrigando-o a parar ou passar por cima dela. Ele parou.
– Comida. Banho – ela ordenou. – Nessa ordem. Podemos pular a questão do psicólogo por enquanto.
Ele sorriu e acariciou sua face.
– É o seu jeito de me convidar para um encontro?
– Acho que sim, detetive.
– Então, que tal começarmos com um banho? – disse com uma voz grave que a fez pensar sobre o valor da limpeza.
A limpeza meticulosa, devagar, cheia de espuma.
Reilly teve que limpar a garganta antes de falar.
– Por que tenho a impressão de que vamos ficar lá em cima por um tempo?
– Não diga isso – ele aproximou-se mais e colocou as mãos sobre os quadris dela. – Acha que estamos tão sujos assim?
– Que tal imundos? – disse, concentrando-se nos lábios de Veck. – Já passamos do sujo e entramos no território do imundo.
Veck ronronou baixinho enquanto uma de suas mãos percorria as costas de Reilly. A outra desceu mais um pouco e agarrou-a, puxando-a contra ele, de tal forma que o pênis rígido pressionou os quadris dela com força. Ao fazer movimentos sinuosos com a cintura, acariciou com o órgão que já deixava-a sem ar.
Em resposta, Reilly elevou-se na ponta dos pés, arqueou-se sobre ele e colocou os braços em volta do pescoço do homem.
– Veck...
– Sim – ele rosnou.
Inclinando a cabeça para o lado, ela colocou a boca a menos de um centímetro da dele. Com uma voz ofegante e muito sexy, murmurou: – O que você quer na sua pizza...?
Então, ela colocou o lábio inferior entre os dentes e mordeu de leve. Veck gemeu e sentiu o corpo ficar muito rígido.
– Adivinhe.
– Serei a sobremesa...
Não se provocava um homem como Veck. Ele apoiou-a contra a parede, ergueu as mãos dela e segurou-as contra a parede de galos. Pressionando o seu corpo contra o dela para que o sentisse nas coxas e nos seios, assumiu um ritmo alternando movimentos até ela começar a ficar ofegante.
– É melhor fazer o pedido logo – disse, lambendo a garganta dela. – Ou não vou deixar ir até lá e pegar o telefone.
Veck estendeu o braço, aproximando-a do telefone. Mas não parou com o movimento erótico, nem com a língua. Em vez disso, empurrou uma das pernas entre as dela para aumentar o atrito... Ou fazer coisa melhor, dependendo do ponto de vista.
Deus, ela não tinha certeza se conseguiria usar o telefone. Ou lembrar-se do número da pizzaria para a qual ligava pelo menos uma vez por semana. De alguma maneira, pegou o fone e, com um insight, apertou o rediscar – pois acionara o último número há duas noites. Estava chamando. Veck beijava o caminho até seus ombros, o que dificultava um pouco a fala.
Conseguiu pronunciar o nome dela, o endereço e pedir uma pizza de calabresa e salame, grande. Em seguida, começou a negar as ofertas.
– Não... Não, só uma... Não... Não quero nada doce...
Começou a enterrar os dedos no cabelo espesso sobre a nuca de Veck e a arquear-se contra ele.
– Não... Deus, não... – certo, soou um pouco pornográfico, especialmente quando recusou um litro de Coca-Cola pela metade do preço. Desesperada, resmungou: – Só a pizza!
Na verdade queria gritar: “Pelo amor de Deus, mandem logo uma pizza!”
– O-o-obrigada.
O telefone foi colocado no gancho de forma um tanto precária e, em seguida, ficaram velozes e furiosos.
– Quanto tempo? – Veck rosnou contra a garganta dela.
– Vinte... minutos... – agarrou-se ao corpo dele, segurando-o pelos quadris. – Banheiro.
Veck pegou-a pelas coxas e levantou-a do chão. Segurando os ombros dele e envolvendo as pernas ao redor de seu corpo, Reilly firmou-se enquanto ele avançava para o banheiro do corredor.
Com os dois ali dentro, o pequeno cômodo encolheu ao ponto de parecer uma caixa de fósforos. Ao menos a pia tinha um balcão para colocar a mulher em cima. Reilly chutou a porta para fechá-la e começou a abrir a calça ao mesmo tempo em que ele atacou os botões da camisa. Muitas mãos para pouco espaço.
– Deixa – ela disse. Com isso, afastou-o e resolveu o problema em questão de segundos, arrancando a blusa por cima da cabeça e abrindo os zíperes a toda velocidade.
Veck pegou a carteira. E franziu a testa em seguida.
– É a última.
Ela parou no meio do processo de tirar o sutiã.
– Não tenho nada em casa.
E aquela seria apenas uma rapidinha antes da atração principal: Reilly completamente nua sobre a cama e os corpos envolvidos um em cima do outro.
Maldição... Nunca viu qualquer virtude em ser promíscua, mas, se quisesse fazer valer a pena todas as coisas que comprara na Victoria’s Secret, deveria ter algumas camisinhas na casa. Já ele? Foi até cavalheiro em não ter reabastecido o estoque, talvez por esperar que acontecesse algo entre eles ou por ter a intenção de ficar com outra pessoa. Pelo amor de Deus, pensou.
– Merda – disse Reilly.
Veck estava ofegante, o peito movimentava-se com força, seu corpo estava mais que pronto para o que tinham começado: seu pau entendeu que seria libertado e já estava saindo dentre as calças, lutando contra a cueca.
Com um palavrão, colocou a carteira de volta no bolso. E também guardou o pênis, contendo tudo e voltando a fechar as roupas com esforço, pois a dimensão do órgão estava enorme.
– Oh, não – ela disse. – Eu...
Ele voltou para os lábios de Reilly, interrompendo-a ao possuir sua boca com a língua. Com uma pressão sutil, inclinou-a para frente contra a parede, até ficar presa a um canto, o corpo quase estendido. Foi quando começou a tocá-la... Empurrou o sutiã para baixo e debruçou-se sobre os mamilos, brincando com eles até ela arquejar.
– Veck...
– Shhh. Deixe-me fazer assim com você.
Inclinou-se ainda mais para chegar aos seios, sugando-os enquanto as mãos iam a outros lugares: passeavam pelas coxas, acariciavam.
Fez um movimento preguiçoso para frente, erguendo-a, mas ainda não havia chegado ao ponto mais doce e excitado do corpo de Reilly. Enquanto isso, a boca fazia um milagre nos mamilos, provocando-os com movimentos rápidos e sugando-os outra vez logo em seguida e, Deus, a visão daqueles cabelos negros sobre sua pele nua era demais.
Passando as mãos pelo cabelo espesso, abriu ainda mais as pernas contra os quadris dele.
– Veck... por favor...
– Diga o que você quer – pronunciou contra os seios.
– Me toque.
Inclinou a cabeça para o lado e olhou para ela.
– Pensei em fazer isso mesmo.
Então, a língua rosa estendeu-se e fez um círculo quente e úmido sobre um dos mamilos. Gemendo, ela tentou arquear o corpo, mas não havia espaço.
– Aonde quer que eu vá, Reilly? – perguntou. Quando pegou a mão dele, pronta para guiá-lo num passeio, ele afastou os braços da mulher. – Não. Você tem que dizer.
– Veck...
– Bonito nome – colocou os lábios próximos aos ouvidos de Reilly. – Melhor ainda quando você o pronuncia parecendo que está prestes a gozar. Mas acho que não quer que façamos isso separados.
– Não seria difícil – ela gemeu ao imaginar aquela mão enorme segurando o pênis.
– Desculpe, meu objetivo é você. Onde, Reilly?
Dane-se. Os dois poderiam fazer aquele jogo de provocação. Ela deu um impulso sutil, e ele, gentilmente, recuou um pouco, sem dúvida pronto para ouvir todos os tipos de coisas divertidas. Em vez disso, ela baixou os olhos e começou a observá-lo... E colocou a própria mão entre as pernas dela.
– Estou pensando em você – ela disse, acariciando a si mesma. Em seguida, mordeu os lábios e movimentou os quadris ao mesmo tempo, não por querer fazer algum show, mas por ser assim que o sentia. – Me tocando... estou sentido você... me tocando...
Houve a impressão de que os joelhos dele curvaram-se. Ou isso, ou ela abalou o centro de gravidade de Veck... De qualquer maneira, ele afundou-se na parede e teve que estender uma das mãos para se segurar.
Tocando seu sexo, ficou assistindo Veck observá-la... E foi bom perceber que aquele ato solo não duraria muito. Os olhos possessos de Veck estavam fixos no que Reilly fazia, e o corpo dela tremia como se ele fosse assumir o controle a qualquer segundo.
– Quer ajudar? – ela balbuciou.
Veck estava sobre ela num piscar de olhos, auxiliando os movimentos até que ela saiu totalmente do caminho, pois era mais excitante para ele acariciá-la.
Com dedos ágeis, as calças de Reilly abriram-se e, em seguida, ele puxou-as pelas coxas, seus esforços receberam ajuda quando ela apoiou um dos pés contra o assento do vaso sanitário e ergueu-se. Com as calças abaixadas ao redor dos joelhos, teve acesso à calcinha e...
– Oh, Deus! – ela gritou ao ser tocada.
Havia algo muito delicioso na combinação entre seu órgão escorregadio e as carícias de Veck. E isso antes mesmo de ultrapassar a barreira de tecido e entrar em contato com a pele sobre seu núcleo.
Firmando-se em seus ombros, ela puxou-o contra sua boca enquanto ele concentrava-se no sexo, excitando-a cada vez mais, e mais e...
Reilly gozou, a força do orgasmo fez com que suas pernas pressionassem aquela mão talentosa, o corpo começou a se mover em impulsos ritmados. No entanto, ele não parou o que estava fazendo: apenas ajudou a continuar com as sensações até Reilly simplesmente ofegar de felicidade.
Quando Veck afastou-se um pouco e olhou para ela, sentiu que poderia não ter gozado, mas com certeza estava muito satisfeito.
– Gostou do aperitivo? – ele murmurou, a expressão de pálpebras baixas sugeria que sabia o quanto era bom.
Quando Reilly conseguiu se recuperar o suficiente para se mover, estendeu uma das mãos e tocou o pau duro dele através da braguilha fechada.
– Vai ser um prazer retribuir.
CAPÍTULO 32
Parado na frente de Devina, no quintal da casa da oficial de Assuntos Internos, Adrian, pela primeira vez em sua vida imortal e pouco natural, não reagia a uma provocação.
Como está Eddie? Cheirando a rosas?
Quando ele olhou por cima do ombro de Jim para aquela porção do mal em forma de uma mulher glamorosa de tão falsa beleza, as palavras do demônio começaram a girar ao redor de seu crânio como se ela tivesse colocado um de seus subordinados dentro da cabeça dele para que o filho da puta batesse em seu cérebro com uma marreta.
O velho Adrian teria pulado por cima de Jim, ou de qualquer outra coisa em seu caminho, e envolveria o pescoço dela com as mãos até não apenas sufocar a vadia, mas até conseguir arrancar a cabeça do tronco.
No entanto, era exatamente isso o que ela esperava. O que ela apostava que aconteceria. A razão pela qual tinha feito o comentário. E Adrian manteve o controle ao se dar conta de que sua instabilidade foi o que motivou o assassinato do seu melhor amigo. Jim estava certo: o nome do jogo era desestabilização, e o demônio fez o que fez pois tinha certeza de que isso iria ajudá-la na guerra.
Então, sim, por mais que isso matasse-o por dentro, por mais que o fizesse ranger os dentes e fechar os punhos, simplesmente ficou onde estava. Contudo, ele não poderia responder. Não confiava em si mesmo para isso.
– Eddie está são e salvo – disse Jim. – E estamos cuidando dele.
– Empregos novos como agentes funerários? Que pitoresco – Devina abriu um largo sorriso, como se estivesse profunda e verdadeiramente feliz. – Mas não sente falta dele, Adrian? Não se preocupe em responder, posso senti-lo daqui. Sabe? Se precisar de um ombro para chorar, estou sempre disponível.
Quando Ad estava prestes a dizer que Devina deveria enfiar a simpatia artificial no fundo do seu rabo, Jim intensificou o aperto sobre o braço dele... ao ponto de o cara sentir a circulação ser interrompida. O salvador estava certo: se reagisse como Devina esperava, Eddie teria morrido por nada. Depois da perda em si, isso seria a pior coisa que poderia acontecer. Então, ele colocou a outra mão sobre Jim, de modo que os dois permanecessem no lugar.
Devina pareceu perplexa por um momento. Mas não muito: – Paralisado pela dor, Adrian?
Uma eternidade se passou.
E, em dado momento, em meio àqueles segundos infinitos entre os insultos e a falta de reação, Adrian começou a congelar: suas emoções pararam de funcionar, como se queimassem – e, como uma estrela entrando em colapso, sentiu uma transformação que afastou-o do alcance de Devina.
Seria melhor tê-lo deixado sozinho em sua raiva. Mas agora que ela o havia impulsionado àquela clareza ártica, ele conseguiria, pela primeira vez, responder apenas usando a razão, e não o coração.
Soltou-se de Jim e afastou-se do salvador. Quando se separaram, Jim olhou ao redor como se estivesse prestes a interceder, mas Adrian ficou parado ao lado do cara e encarou o inimigo.
– Quer alguma coisa, Devina? – Adrian disse numa voz obscura. – Ou está apenas socializando um pouco?
Outra rodada de silêncio. Porém, desta vez, Devina começou a brincar com seus longos cabelos, com a saia curta, com as pulseiras de ouro. E para Ad não havia satisfação alguma em interromper a diversão do demônio. Apenas um silêncio mortal no peito, um poder ressonante que Adrian nunca havia sentido antes, mesmo com todos os instintos guerreiros ferozes que tinha. Era como se tivesse renascido. E poderia ser mandado para o inferno se voltasse a ser como era. Literalmente.
Quando Jim olhou para o outro anjo, pensou: Certo, quem é você e o que fez com Adrian Vogel?
O homem ao lado dele não chegava nem perto de quem conheceu e com quem trabalhou nas últimas duas rodadas na guerra. Era um robô parecido com Ad: absolutamente idêntico, mas desligado do original. Não havia emoção em seu rosto, em seu corpo, nas suas vibrações. Nada.
Algo dizia a Jim que a mudança era permanente, como se a placa mãe do cara tivesse explodido e sido substituída por outra. A paixão havia partido. O calor havia partido. No lugar? Uma frieza calculada – o que tornava-o intocável.
Era uma faca de dois gumes, não? Mas, de qualquer maneira, haveria tempo para se preocupar com as consequências mais tarde. Jim virou-se para Devina outra vez.
– Então, o que vai ser? Social? Ou negócios?
Devina deslizou uma das mãos pelo cabelo, as ondas movimentaram-se com leveza e brilho, como se estivesse num comercial de xampu.
– Estou muito ocupada.
– Então, por que está aqui conversando? – Jim pegou o maço de cigarros e tirou um. – Se é uma garotinha tão ocupada?
– Oh, não faz ideia de como estou trabalhando – seu sorriso sórdido parecia ter saído de um filme de terror, forçado, sem qualquer movimento natural. – Estou tentando fazer algumas mudanças no jogo. E não vejo a hora de esta rodada terminar.
– Porque você gosta do sabor da derrota? – tirou o isqueiro e acendeu o cigarro. – Que paladar estranho você tem, querida.
– Gosto do seu sabor – correu uma das mãos pelo corpo. – E vou me satisfazer em breve.
– Duvido.
– Se esqueceu do nosso acordo?
– Oh, não, eu me lembro.
– Eu não menti.
– Deve estar tão orgulhosa.
Quando Jim não disse mais nada, ela brincou com o cabelo mais um pouco... e isso foi tudo. Ficou ali parada na frente dele, cheia de gracinhas, sem ir a lugar algum. Caramba, talvez pensasse que estava sendo admirada. Talvez fosse uma loira burra, mesmo não tendo cabelo de verdade. Talvez estivesse...
Puta merda, ela estava vivendo um momento “namoradinha”, não? Emburrada por não encontrá-lo antes. Pois era esse o “motivo”.
Foda. Aquilo tudo era foda demais.
Era mesmo um namoro infernal.
E, mesmo sem saber por que não conseguiu encontrá-lo, Devina concluiu que, às vezes, a sorte simplesmente estava do seu lado.
De repente, o olhar dela voltou-se para a casa. Na janela dos fundos, na cozinha, Veck e Reilly apareceram. Pareciam desarrumados e estava claro que tinham acabado de dar uns amassos: estavam com aquele brilho de satisfação e felicidade, ao ponto de Jim achar que, se as luzes fossem apagadas, continuariam brilhando no escuro.
– Eu odeio eles – Devina disse, cruzando os braços sobre os seios.
Aposto que sim – Jim pensou. Pois havia duas pessoas apaixonadas ali.
E a inveja matava-a: seu rosto ficou tenso, os olhos iluminaram-se de ódio. Desejava ter aquilo com Jim.
Ha, ha.
– Então, precisa de alguma coisa? – ele perguntou com uma voz baixa e profunda.
Devina virou a cabeça com rapidez.
– Você precisa?
Para mantê-la ali, a resposta, claro, não poderia ser agradável. E, nossa, não era tão difícil fazer isso.
– Não de você – Jim assumiu uma expressão de tédio ao dar uma tragada no cigarro e exalar. – Nunca preciso de nada que venha de você.
A fúria no rosto de Devina animou-o. Em seguida, ela rosnou: – Tudo por causa daquela maldita Sissy.
Resposta errada, pensou. Resposta muuuito errada.
– Que Sissy?
– Não brinque comigo.
– Não estou brincando. Ao menos, não agora – deixou as pálpebras ficarem semicerradas. – Quando eu brincar com você, você saberá.
As palavras enojaram-no, mas Devina saiu do controle: corou de repente, como se estivesse se lembrando dos momentos que passaram juntos e, então, exibiu um sorriso grande e lento.
– Promete? – disse com voz rouca.
– Prometo.
Com isso, ela girou de alegria. Ótimo. Como se o estômago de Jim já não estivesse enjoado.
– Mas talvez eu seja um mentiroso – disse lentamente. – Acho que precisará esperar para ver.
– Acho que sim – os olhos examinaram o corpo de Jim de cima a baixo. – Mal posso esperar.
Francamente, aquela conversa toda fez Jim contrair-se, mas ele bloqueou a sensação. Não tinha certeza de que possuía total controle sobre o demônio. Mesmo ela estando apaixonada, essa era uma carta na manga que poderia deixar de funcionar, e Jim não sabia se a arma de sedução funcionaria para sempre. No entanto, cultivaria a qualquer custo aquela conexão pelo tempo que fosse possível.
– Bem, acho que é hora de parar por aqui, Jim – Devina deu outra pirueta. – Tenho que voltar ao trabalho, mas vejo você em breve.
– Se Veck está aqui nesta casa, por que precisa ir a outro lugar?
– Como eu disse, sou uma garota ocupada, você vai entender isso – soprou-lhe um beijo. – Até mais. E, Adrian, ligue se precisar de um ombro para chorar.
Com isso, saiu pela noite, uma névoa surgiu e desapareceu no ar. Então, se Devina não estava ali com Veck, Jim tinha que concluir que a luta era em outro lugar.
– Droga – murmurou, pronto para golpear alguma coisa.
– Não – Adrian disse. – Vamos ficar aqui. Vamos ficar com Veck.
Jim olhou para ele. O velho Adrian? Teria saído como um raio atrás dela. O novo Adrian? O calculista filho de uma puta estava superconcentrado, seus olhos frios e imparciais fixaram-se em Jim.
– Ela não vai nos enganar – Ad anunciou. – Vamos manter o foco e ficar aqui. Fumaça e espelhos não vão me influenciar.
Isso, é assim que se fala – Jim pensou, com respeito.
Naquele momento, o som de um carro estacionando em frente à casa ressoou. Aparecendo na rua com Adrian, Jim desembainhou sua adaga... Mas, em seguida, viu o pequeno sinal luminoso da pizzaria sobre o carro.
Oh, caaaaara. Pizza... e sexo. Talvez Devina tivesse razão. Difícil não invejar aquilo.
O entregador tirou o que precisava do carro e caminhou pela calçada. Veck atendeu, pagou em dinheiro e desapareceu. O carro partiu.
Nos momentos que se seguiram, Jim sentiu vontade de ir atrás de Devina... Podia sentir a presença dela em qualquer lugar da cidade... Mas não seria exatamente isso o que ela desejava? Não se podia confiar nela jamais. O novo Adrian estava certo: ficariam ali, firmes.
– Obrigado, cara – Jim disse sem tirar os olhos da porta sendo fechada e trancada na parte dianteira da casa.
– Sem problemas – foi a resposta concisa.
CAPÍTULO 33
Veck não sentiu o gosto da pizza. Para ele, a coisa poderia estar coberta de tiras de pneus e pedaços de gesso. Não conseguia parar de pensar em Reilly em cima do balcão da pia, pernas abertas, mãos acariciando a si mesma.
Sentado ao lado dela na cozinha, tinha plena certeza de que a mulher pensava mais ou menos a mesma coisa, pois comia com bastante objetividade. Porém, sem desalinho ou falta de boas maneiras... apenas de maneira limpa e rápida. Ele fazia o mesmo. Mas menos limpo.
Quando terminaram de devorar tudo, ele estendeu-se sobre a cadeira e olhou para o teto.
– Então, onde é sua banheira? – ele perguntou, tentando ser casual.
Aquilo a fez sorrir. E ele sentiu um desejo enorme de beijá-la por inteiro.
– Vou mostrar. Vai terminar este pedaço?
– Não – droga, se não fosse pelo estômago vazio resmungando, não teria se preocupado em apressar a transa para dispensar o cara da pizza. Mas Reilly precisava se alimentar.
– E você?
– Estou satisfeita.
Estou pronto para satisfazê-la de outra maneira – pensou.
Levantou-se e estendeu a mão para ela.
– Mostre o caminho.
Foi exatamente o que fez: subiu as escadas com ele e entraram num quarto que não tinha nada a ver com o local onde ele dormia. Os aposentos de Reilly tinham belas cortinas nas três janelas, uma cama cheia de travesseiros e um edredom grosso o suficiente para servir de cama elástica. Lugar perfeito para fazer amor.
– O banheiro é por ali – ela murmurou, apontando o caminho.
Veck aproximou-se, entrou na escuridão e tateou a parede para encontrar o interruptor. Quando bateu na coisa, quase caiu de joelhos com uma oração de agradecimento.
Uma banheira vintage enorme. Profunda como um lago. Tão grande quanto a cama.
E, como você pode imaginar, a torneira tinha pressão suficiente para abastecer uma mangueira de incêndio.
Quando a água quente começou a sair e encher a banheira, ele virou-se para chamar...
– Caralho... – ele sussurrou.
Reilly havia tirado as roupas e estava nua na porta.
Era o caminho mais curto para enlouquecer um homem: tudo o que viu foi uma pele linda, seios perfeitos e a linha sinuosa dos quadris que estava morrendo de vontade de agarrar.
Enquanto Veck tentava reagir sem palavrões, ou pior, sem começar a babar, ela puxou o laço do cabelo e balançou os fios avermelhados... com isso, os seios balançaram ligeiramente.
– Venha aqui – disse ele com voz rouca.
Ela aproximou-se com a cabeça erguida e o olhar baixo... Observava o pênis ereto cheio de desejo.
Perto dele, Reilly inclinou-se para beliscar sua orelha.
– A água já está bem quente?
– Entre – ele agarrou os quadris dela e apertou – e vai começar a ferver.
Curvou-se e uniu seus lábios aos dela, beijando-a. As roupas levaram... hum, um minuto e meio para serem removidas.
Então, como o cavalheiro que não era, mas que estava determinado a ser, ergueu Reilly e carregou-a para dentro da banheira com cuidado, posicionando-se de maneira que pudessem observar um ao outro. O vapor entre seus corpos tinha o aroma do perfume que sempre associou a ela, o que sugeria que a mulher fazia aquilo com frequência, talvez incluindo algum kit com cremes e sais de banho.
Mais beijos e mãos percorrendo todos os lugares do corpo junto com a água quente. Mas, quando ela tocou seu pênis ereto, Veck fez um movimento brusco e espirrou alguns litros de água no chão.
– Ai, merda... desculpe...
Reilly aproximou-se dele, empurrando-o contra a parede curva da banheira.
– Não estou preocupada com a água.
Quando fechou uma das mãos ao redor do pênis dele e começou a acariciar, Veck murmurou entre os dentes: – Não vou aguentar muito tempo se continuar assim.
– Não quero que aguente.
Ótimo, muito bom. Pois a visão dos seios lisos e flexíveis e o olhar erótico dela eram suficientes para fazê-lo gozar. Somando a carícia? Já estava ultrapassando e muuuito seus limites.
Veck começou a movimentar os quadris de modo que acompanhassem o ritmo de Reilly e deixou a cabeça cair para trás contra a borda sinuosa da banheira. O que lhe proporcionou um ótimo ponto de vista. O nível de água da banheira já havia sido recuperado, e os mamilos rosados e enrijecidos surgiam, desapareciam e voltavam outra vez...
Deixando-a brilhante. Muito brilhante. Como se ele a tivesse lambido por completo.
Foi a gota d’água. Seu maxilar ficou tenso e ele soltou um gemido alto quando seu pau explodiu contra aquela mão, o corpo arqueou-se com rigidez. Em resposta, ela exibiu um belo sorriso, digno de ser guardado na memória para sempre.
Contudo, por alguma razão... mesmo sendo algo muito desanimador... só conseguia pensar nela sentada naquela cadeira, armada, esperando alguém atacá-la. Estavam seguros ali, juntos, mas não duraria para sempre. Mais cedo ou mais tarde, teria que ir para casa, e ela ficaria ali sozinha. Deus, os dois sendo espionados? Era hora de assumir o controle da situação e manter aquela mulher com seu sorriso de tirar o fôlego em segurança. Da próxima vez que aquele Heron aparecesse, prenderia o bastardo. Mesmo se isso matasse os dois.
– Você está bem? – ela perguntou, sentindo com clareza a mudança nele.
– Ah, sim. Muito bem.
Reilly afastou a cabeça dele da borda da banheira, esticou a perna e girou a torneira com o pé. Em seguida, Veck puxou-a para perto dele, não tinha a menor intenção de desperdiçar o momento.
– Gostei muito disso – disse Veck contra a boca dela. – Mas tenho a impressão de que para você será melhor ainda.
Ficaram tempo o suficiente na água para aproveitarem o momento de tranquilidade, os beijos e as carícias. Não que ele precisasse de tempo para se recuperar. Estava pronto para outra logo depois do orgasmo que ela lhe proporcionara. Seu desejo por ela chegava a esse ponto.
– Vai me levar para sua cama? – Veck disse.
Quando ela assentiu com a cabeça, Veck estendeu-lhe uma das mãos com firmeza para ajudá-la a se levantar e, com cuidado, guiou-a ao sair da banheira alta.
– Cuidado – alertou. – Está molhado.
– Sim – Reilly olhou para baixo. – Vou pegar um pano para secar.
– Eu pago se por acaso tiver estragado o seu teto com a umidade.
Ao olhar para ele, Reilly virou-se com graciosidade.
– Teria valido muito a pena.
– Você é tão linda – ele disse suavemente, enquanto observava a luz sobre suas curvas.
Com as bochechas vermelhas, Reilly virou-se para a pilha de toalhas em cima do balcão e começou a jogá-las no chão ao redor da base da banheira. Mesmo muito satisfeito em apenas assistir ao show, Veck levantou-se da água e saiu.
O espelho sobre a pia deixou-o nervoso, mas esforçou-se para olhar o que havia ali. Nada além de seu reflexo. Nada de sombras. Nada se movendo entre suas costelas e dificultando sua respiração. Aliviado, aproximou-se dela por trás. Perto do corpo molhado e cálido, abaixou-se e beijou seu ombro.
– Não estou... acostumada com isso – tirou a última toalha da pilha, como se estivesse impaciente consigo mesma. – Eu só... não sei como lidar com isso.
– Você lida comigo muito bem – com isso, percorreu o dedo indicador sobre as costas de Reilly. – Melhor do que ninguém.
Ela riu numa explosão um pouco tensa.
– Não sei por que, mas eu duvido.
– Não duvide. Você é especial.
Colocou as mãos no pescoço dela e acariciou as costas até chegar aos quadris. Em seguida, seus lábios seguiram a mesma trilha, beijando e mordendo a partir do pescoço... e descendo cada vez mais.
Ajoelhando-se, Veck correu os lábios até as coxas, movendo-se gradualmente para se aproximar da junção sobre a qual pensava o tempo inteiro. Com essa insistência gentil, ela inclinou-se sobre o balcão, expondo seu órgão e enlouquecendo Veck...
Com um movimento súbito, ele aninhou-se ali e sugou-a.
Era doce... quente... e escorregadia tocando sua língua. E ela também estava adorando, braços apoiados sobre o mármore para manter o equilíbrio, a respiração ficou forte e ofegante.
Usando as mãos, Veck afastou os pés dela ainda mais para ganhar espaço; em seguida, percorreu as palmas das mãos de volta às coxas e segurou-a com força para deixá-la bem firme contra seu rosto: movimentos rápidos. Sucções profundas. Penetração com a língua.
Levou um tempo, pois havia muito para explorar e Reilly já não aguentava mais. Com uma das mãos, tocou o centro superior do sexo dela ao mesmo tempo em que passava a língua ali dentro. Os rápidos movimentos circulares no lugar certo levaram-na às alturas, e Veck adorou a maneira como ela se contraiu internamente e curvou-se contra ele.
Quando Reilly gozou, ele afastou-se. Através das pernas trêmulas, teve uma linda visão de seus seios que pendiam para baixo com as pontas roçando o mármore ao oscilarem para frente e para trás no ritmo da respiração.
Veck fechou os olhos com força e precisou de um minuto para se conter. Queria gozar dentro do local onde sua língua esteve.
O. Orgasmo. Da. Sua. Vida.
Enquanto Reilly esforçava-se para ficar em pé, seu corpo ainda estava a toda velocidade – porém, não havia lugar algum para ir, então, tudo o que os músculos das coxas fizeram foi permanecer no lugar. E isso não era nem a metade. Sua mente queimava, ao ponto de não saber exatamente onde estava.
Virando a cabeça, ficou face a face com o creme dental e as escovas de dente. Banheiro. Bem, parece que nunca mais olharia da mesma maneira para esses dois locais da casa... espere. Eram três. O lavabo do andar de baixo e a cozinha também.
Enquanto o mundo girava, percebeu que Veck pegou-a no colo. Boa ideia. Achava que não conseguiria andar mesmo – e foi uma ótima maneira de se secar. No quarto, ele deitou-a sobre a cama e cobriu-a com o edredom até a cintura.
– Volto já – ele disse.
Contudo, não ficou sozinha por muito tempo, pois ele agiu rápido: desceu, vasculhou um cômodo no andar de baixo que pareceu ser a cozinha e voltou rapidamente. Ao entrar, apagou as luzes. No começo, Reilly achou que seria por alguma modéstia – não precisava disso, claro, não depois do que fez sobre o balcão – mas então viu que ele colocou algo sobre a mesa de cabeceira.
A arma dele. Não, havia duas. Trouxera a dela também. Deve tê-las encontrado sobre a mesa onde se desarmaram antes do jantar. Que romântico.
A lembrança do que acontecera na noite anterior congelou-a, mas ele cuidou disso, cobrindo-a com seu corpo quente e forte.
– Não pense nisso – Veck sussurrou. – Não agora. Haverá bastante tempo para cuidarmos disso.
Tocou o rosto de Veck e desejou que estivessem em férias em algum lugar bem longe de qualquer dever que tinham com o trabalho e da situação que os unira.
– Você está certo – ela disse. – E não quero esperar mais nem um minuto.
Ele assentiu e pegou a última embalagem quadrada que guardava na carteira. Quando terminou de colocá-la, montou sobre ela outra vez e, ao abrir ainda mais as pernas da mulher, sentiu uma mudança nele, e também nela: tudo ficou mais lento.
Ao entrar nela deslizando suavemente, Reilly acolheu-o não apenas com seu sexo, mas com a alma, beijando-o profundamente.
Sem palavras, sem hesitações, sem quaisquer reservas, eles moveram-se juntos, criando uma dinâmica, intensificando tudo. Quando finalmente gozaram, foi ao mesmo tempo, e continuaram juntos mais um tempo: ela com as unhas cravadas nas costas de Veck, ele com os braços embaixo dela, apertando seu corpo.
Era a união perfeita. E, depois, mesmo Veck tendo que sair dela, deitaram no escuro o mais próximo possível um do outro, os corpos formaram uma massa tépida no centro da cama.
– Vai me deixar passar a noite aqui? – ele perguntou.
– Sim. Por favor, sim.
– Já volto. Fique embaixo das cobertas – ele disse.
Boa ideia. Porque, quando Veck saiu, o frio percorreu rapidamente todo o corpo dela. Poucos minutos depois, voltou do banheiro e juntou-se a ela.
– Estou do seu lado da cama?
– Ah... não. Eu fico aqui mesmo.
– Que bom.
Ela virou-se e ficaram face a face, cabeças sobre os travesseiros, os corpos aqueciam-se sob o peso dos cobertores. Veck roçou a ponta do dedo sobre a bochecha dela... ao longo do maxilar... sobre os lábios.
– Obrigado... – ele sussurrou.
Deus, ela mal conseguia respirar.
– Pelo quê?
Houve uma pausa.
– Pela pizza. Estava do jeito que eu gosto.
Reilly deu uma risada.
– Espertinho.
– Venha. Preciso abraçar você.
Ela sentia o mesmo. E quando não havia mais distância entre eles, a sensação era de voltar para a casa depois de um longo dia.
Com a cabeça em seu peito, sobre o coração que batia, com os braços de Veck ao redor dela e com uma das pernas jogada sobre a dele, estava confortável e segura. Enquanto ele acariciava seus cabelos com movimentos preguiçosos, ela fechou os olhos.
– Isto é simplesmente perfeito.
Com isso, Reilly pôde ouvir o sorriso na voz dele: – É como eu quero que seja para você. Quero fazer tudo perfeito para você.
Quando Reilly adormeceu, seu último pensamento foi sobre a ansiedade em fazer tudo outra vez. Não apenas o sexo. Aquela calma adorável, inestimável, era ainda melhor do que fazer amor. Apesar de não ter sido nem um pouco ruim.
CAPÍTULO 34
Na manhã seguinte, enquanto Veck ia para a delegacia, sua principal tarefa foi não ficar sorrindo o tempo todo feito um idiota. Difícil.
Estava uma hora atrasado, pois ele e Reilly ficaram envolvidos em atos que, por não terem mais camisinhas, poderiam chamar de “preliminares”. Assim, considerando que não tinham o material de látex apropriado, o que aconteceu foi melhor do que qualquer relação sexual que teve com qualquer outra pessoa antes – cinco mil vezes melhor. Também havia passado na farmácia a caminho do trabalho e comprado um estoque do que precisava.
Enquanto caminhava pelo saguão, acenava para as pessoas, mantendo uma atitude profissional, porém o adolescente dentro dele estava explodindo como se tivesse vencido vários campeonatos esportivos numa só noite.
Quando chegou ao topo da escada, rezou para não encontrar Britnae e suas ofertas de café da manhã. Aquela garota não tinha nada a ver com sua Reilly e já era hora de desfazer aquele hábito de abordá-lo o tempo todo. Mas nem precisou se preocupar. Um dos caras do turno da noite, da recepção e vigilância, estava na mesa dela. Veck não conhecia o oficial muito bem, mas ele parecia diferente. Como se tivesse assumido o papel de um galã de cinema, apesar de estar mais para Homer Simpson. Britnae? Devorava aquele homem com os olhos.
O que provava que aquilo que havia por dentro era o que contava – e quem poderia imaginar que uma garota do tipo de Britnae seria capaz de descobrir isso?
No Departamento de Homicídios, Veck sentou-se à sua mesa e ligou o computador. Em seguida, foi atingido por uma ideia romântica desconhecida e inegável: abriu sua caixa de e-mail, selecionou o endereço de Reilly nos contatos e preparou-se para enviar alguma coisa. Havia o espaço da tela em branco para preencher. Muuuito espaço. No final, digitou algumas palavras. E apertou logo enviar, antes que alguém olhasse por sobre seu ombro.
Depois, apenas ficou ali, observando a tela, perguntando-se se teria feito a coisa certa... até perceber que estava olhando para a caixa de entrada e o relatório sobre Sissy Barten do médico legista já estava pronto. Com certeza, o cara tinha virado a noite para terminar a autópsia.
Veck leu tudo e examinou cada uma das vinte ou mais fotografias do corpo. Não havia nada nelas que não tivesse visto por si mesmo na pedreira e, quando chegou às marcações ritualísticas no tronco, inclinou-se para trás e bateu o dedo indicador sobre o mouse. Se não tinha sido Kroner, quem teria sido?
– Correspondência.
Veck olhou para o funcionário com seu carrinho cheio de envelopes e caixas.
– Obrigado, cara.
Três mensagens. Duas interdepartamentais. Uma do correio americano... Era apenas uma carta que retornara de Connecticut. Endereço não encontrado? Nos últimos dez anos, evitou atualizações de cadastro junto às instituições federais.
Examinando o envelope, sentiu que, se começasse a abrir, não poderia mais voltar atrás. Seu primeiro impulso foi jogar a carta fora, mas a atração em saber o que havia lá dentro tornou o ato impossível – e pensou que odiava o poder mental que seu pai exercia sobre ele.
Ligue quando ficar assustado o suficiente.
Não desperdiçaria energia com o motivo pelo qual a voz de Heron soava em sua cabeça enquanto rasgava o embrulho.
Dentro, havia uma folha de papel com três linhas escritas com uma letra elegante e fluída que representava muito mais a imagem de riqueza que seu pai ostentava que suas origens do centro-oeste do país.
Caro Thomas, espero que esta mensagem o encontre bem. Gostaria que viesse me ver assim que possível. A prisão permitiu que eu recebesse uma última visita e escolhi você. Há coisas a serem ditas, filho. Ligue para o número abaixo. Com amor, seu pai.
– Você está bem?
Veck olhou para cima. Reilly estava em pé ao lado dele, ainda de casaco e a bolsa pendurada no ombro, seu cabelo macio fora lavado há pouco tempo.
Se não fosse pela noite anterior, teria respondido um “sim, tudo bem” e continuado a fazer suas coisas. Em vez disso, simplesmente ergueu a carta para ela.
Reilly sentou-se na cadeira enquanto lia e Veck acompanhou o movimento de seus olhos indo da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Então, voltou ao topo e releu.
– O que vai fazer? – ela perguntou quando finalmente ergueu os olhos.
– É suicídio mental ir vê-lo – Veck esfregou os olhos para apagar a impressão que aquelas palavras produziam. – Um maldito suicídio mental.
– Então, não faça isso – Reilly disse. – Não precisa ficar para o resto da sua vida com o que ele vai dizer atormentando a sua cabeça.
– Sim.
O problema era que seu pai não era o único com alguma coisa em mente. E, com certeza, seria ótimo ser adulto o suficiente para se afastar dessa situação, mas sentia que precisava olhar naqueles olhos uma última vez – ao menos para ver se havia realmente alguma coisa em comum entre eles. Afinal, durante anos, acreditava ser louco, cobrindo espelhos, observando sombras, ficando acordado durante a noite pensando se tudo não passava de paranoia ou se percebia algo de fato. Poderia ser a última chance de descobrir.
– Veck? – ela disse.
– Desculpe.
– Vai até lá?
– Não sei – era verdade. Pois ela tinha razão. – Ei, ah... o relatório de Sissy Barten chegou. Precisa dar uma olhada.
– Certo – apoiou a bolsa. Tirou o casaco. – Alguma surpresa?
– Tudo é surpreendente neste caso – Veck olhou ao redor. – E quero conversar com Kroner.
Reilly olhou Veck direto nos olhos.
– Nunca vai conseguir permissão.
– Não estava pensando em pedir.
Reilly soltou um palavrão baixinho. Não era o que planejava para um início de conversa matinal. Depois que Veck deixou sua casa, ela tomou um bom banho, depilou-se por completo e mergulhou nas suas sacolas da Victoria’s Secret.
O conjunto preto e vermelho de lingerie que vestiu lembrava-lhe cada beijo, lambida e carícia que compartilharam – e desejava mais daquilo assim que possível. Então, planejava chegar ali, agir profissionalmente e, de maneira bem discreta, apontar para o que havia sob as roupas. Em vez disso, entrou numa questão administrativa.
Olhando para seu parceiro, balançou a cabeça.
– Agir precipitadamente não é a resposta. E, se você quer continuar com isso, vai me colocar numa situação terrível.
– Sissy Barten é o que importa, não normas burocráticas. E eliminaram qualquer possível envolvimento meu no que aconteceu naquele hotel, lembra? Foi você quem fez isso – endireitou-se na cadeira. – Kroner não a matou, e você sabe disso. Serial killers não variam o estilo. Cometem alguns deslizes ou param no meio do que estão fazendo quando são interrompidos. Mas um cara que coleciona troféus de suas vítimas não começa, de repente, a arranhar símbolos na pele delas ou as deixa sangrar por completo. O que preciso descobrir é por que aquele homem sabia sobre a pedreira e por que diabos o brinco da garota está no meio das coisas encontradas na caminhonete dele. Tem alguma coisa que não estamos entendendo em tudo isso.
Reilly não podia discordar de nada. O método que ele empregava era um problema.
– Outra pessoa poderia perguntar a ele sobre essas coisas.
– Você?
– Sim.
No silêncio que se seguiu, Reilly pensou: Bom, pelo menos estivemos em sintonia durante a noite e no início da manhã. Pena que isso não durou muito tempo.
Ele discutiria com ela sobre isso, ela ficaria chateada e, então, tudo o que compartilharam antes e depois daquela pizza seria jogado pela janela...
– Certo – ele disse. Quando Reilly recuou, Veck apertou a boca: – Não precisa ficar tão surpresa. Só leve Bails com você dessa vez. Ou De la Cruz. A ideia de você ficar sozinha com aquele homem, mesmo ele numa cama de hospital e você armada, me deixa arrepiado.
Deus, ela quis envolver o rosto dele com as mãos e beijá-lo por ser tão sensível. Mas, em vez disso, sorriu e pegou o celular.
– Vou verificar se De la Cruz está disponível agora mesmo.
Ao falar com o detetive por telefone, ela estava acessando sua caixa de e-mails... e quase perdeu o foco da conversa. Veck tinha deixado algo em sua caixa de entrada, e Reilly clicou duas vezes para ver o que era ao mesmo tempo em que ouvia uma novidade sobre as condições de Kroner.
Havia apenas três palavras: Eu te amo.
Olhou para o lado com rapidez. Mas Veck estava ocupado olhando a tela do computador.
– Alô? – disse De la Cruz.
– Desculpe. O quê?
– Por que você e Bails não vão juntos?
– Tudo bem – seus olhos permaneceram no rosto de Veck, que olhava para a tela à frente dele. – Se ele estiver pronto para sair, também estou.
Algumas outras coisas foram ditas, mas Reilly não as ouviu. E, quando desligou, estava perdida. Não havia nada de eu acho antes do “eu te amo”. Nenhuma foto idiota embaixo das palavras com um gato e um cachorro com olhares carinhosos produzidos pelo computador. Não havia como interpretar errado a frase.
– Só achei que deveria saber – Veck disse baixinho.
Não tinha consciência de que estava enviando uma resposta ou de que digitava alguma coisa no teclado. Simplesmente aconteceu...
– O que está acontecendo aqui?
Reilly limpou a tela com um clique rápido. Girando a cadeira, olhou para Bails. Droga. Estava bem atrás dela, e parecia tenso.
– De la Cruz te ligou? – ela disse suavemente.
O cara olhou para as costas de Veck – de quem não conseguiu tirar qualquer informação, óbvio. Então, seus olhos voltaram-se para ela.
– Ah... sim, ele ligou. Há um segundo.
Estranho, mas ouviu a música do programa Jeopardy! em sua mente. E percebeu que ele lera o que havia naquele e-mail.
– E quando pode ir ao hospital comigo? – ela perguntou.
– Ah... tenho um suspeito chegando para um interrogatório agora. Então, pode ser depois disso?
– Sim. Estarei aqui.
Ao observá-lo, percebeu que o olhar de Bails estreitou-se muito, sem qualquer sinal de desculpas pela suposta invasão de privacidade. Não conhecia muito bem o cara, mas ficou evidente que não estava feliz. E é por isso que não se namora pessoas do trabalho. Amigos possessivos já eram chatos o suficiente quando se tinha que acompanhar o namorado em jogos de pôquer ou eventos esportivos e era preciso lidar com eles nessas ocasiões. Conviver com eles oito horas por dia, então?
Porém, assim que o período probatório de Veck terminasse, ela voltaria para o Departamento de Assuntos Internos. Relaxou um pouco com essa ideia. Muito melhor não estar tão perto...
Oh, droga. Teria de divulgar aquele relacionamento, não? E, quando o fizesse, afastariam-na da função de monitorar Veck – algo absolutamente necessário. Bem... parece que não teria que esperar um mês para voltar ao seu departamento.
– Ei, DelVecchio. Atenda seu telefone – alguém gritou.
Engraçado, ela não ouviu tocar. Tampouco Veck ou Bails, aparentemente.
Quando Veck iniciou uma conversa cheia de “sim” e “uh-hum”, podia sentir Bails espreitando ao redor de Reilly e teve vontade de enxotá-lo como uma mosca. Felizmente, a mesma mulher que gritou para Veck atender ao telefone aproximou-se do outro detetive e disse que seu suspeito estava na recepção.
– Volto aqui quando terminar – Bails disse. Depois que ela assentiu, ele deu um tapinha no ombro de Veck e saiu.
Veck desligou.
– Era De la Cruz. Ele quer que eu vá ao centro da cidade apurar um tiroteio que aconteceu ontem à noite. Precisa de uma ajuda extra. E acho que precisa se certificar de que eu nem sequer pense em ir ao hospital com você.
Fazia sentido.
– Mas não vamos sair por enquanto.
– Vai ser um dia longo. Temos que examinar um conjunto inteiro de apartamentos.
Veck levantou-se, vestiu o casaco e tateou vários bolsos, sem dúvida checando distintivo, arma, carteira, chaves e cigarros.
– Precisa parar de fumar – ela deixou escapar.
Quando Veck ficou imóvel, ela pensou: Droga, pareço uma namorada.
Aquelas três palavras recebidas por e-mail não lhe davam esse direito. Poderia sugerir algo do gênero? Sim. Mas não precisava passar a carroça na frente dos bois. O problema era que se preocupava demais com ele para ficar sentada assistindo-o se matar...
Veck pegou o maço de cigarros que já havia aberto... e esmagou-o com uma das mãos.
– Você está certa – jogou o maço na cesta de lixo embaixo da mesa. – Se eu ficar irritado nos próximos dias, já peço desculpas.
Reilly não conseguiu conter o sorriso no rosto. E, com um sussurro que só ele conseguiu ouvir, disse: – Vou pensar em algumas maneiras de distraí-lo.
Quando ela descruzou e cruzou as pernas outra vez, os olhos dele queimaram. Havia percebido os secrets que Reilly estava revelando, por assim dizer.
– Vou cobrar isso – piscou como um garoto malvado que sabia o que fazer com o corpo dela. – Fique com Bails... e me liguem quando terminarem, certo?
– Combinado.
Ela virou-se para a mesa à qual estava sentada, mas observando Veck, que saía pela porta, com o canto dos olhos. Deus do céu, aquele homem era lindo por trás...
CAPÍTULO 35
De certo modo, é ótimo sair para trabalhar – Veck pensou algumas horas depois.
Certo, não era ótimo que um pobre coitado tivesse sido baleado no rosto, ou que os vizinhos não quisessem dizer uma palavra sobre o que viram, ou que ele e De la Cruz estivessem gastando as solas de seus sapatos por nada. Mas era a droga de uma rotina difícil de trabalho. Não se tratava de seu pai ou do esquisitão sem pegadas que vigiava pessoas à noite.
A vítima em questão fora baleada no banco do motorista de um suv estacionado em frente àquele edifício residencial de doze andares, local conhecido por transações comerciais ilegais. O corpo fora descoberto naquela manhã por equipes de limpeza urbana que varriam a rua. Não havia drogas ou dinheiro no corpo ou no veículo, mas encontraram uma lista de nomes e alguns dólares dentro de um envelope amassado no casaco do rapaz, além de resíduos de crack numa série de embalagens plásticas e mais cinco armas dentro do carro.
Era evidente que ele não conseguira guardar tudo com a rapidez necessária.
A menos que se conclua que aqueles que tiveram acesso a tudo aquilo priorizaram levar outros objetos de valor.
Ao meio-dia, Veck e De la Cruz continuavam a percorrer os arredores do edifício, batendo nas portas e tentando convencer as pessoas a falarem alguma coisa – contudo, todos desconfiavam dos policiais e, além disso e com razão, tinham medo de alguma retaliação por parte dos envolvidos no crime.
Enquanto ia de porta em porta, Veck continuou a recordar-se da careta imobilizada da vítima ao ser atingida atrás do volante, o cinto de segurança sobre o peito manteve o corpo erguido, os traços faciais que poderiam ser identificados por sua mãe, familiares e amigos estavam arruinados a ponto de ser preciso uma identificação por arcada dentária.
Pensando outra vez em Kroner naquela floresta, Veck lembrou-se do impulso assassino que sentiu. A ideia de tirar um malfeitor das ruas era mais que justificável para ele – ao menos, para uma parte dele – mas isso realmente importava?
Que inferno, o filho da puta que atirou naquela vítima no carro sem dúvida tinha suas razões, por mais distorcidas que fossem. Só que um ato assassino era um ato assassino, não importando quais eram as tendências de comportamento do alvo.
Que pena aquilo não importar para o lado obscuro dentro dele: essa parte de sua essência não dava a mínima se Kroner era um santo ou um pecador – o ato assassino era tudo. O motivo da ira? Só tinha importância enquanto objetivo a ser atingido. Sem dúvida, este era o sentimento que seu pai tinha pelas outras pessoas. Que coisa ótima para se pensar.
Quando o sol começou a se pôr e as sombras começaram a tomar conta do cenário, o calor da tarde diminuiu e o edifício pareceu ainda mais encardido. Ele e De la Cruz tinham se separado e concentraram-se nos edifícios ao redor do local onde o corpo fora encontrado, mas, se considerassem o fato de que havia seis blocos de apartamentos no quarteirão, teriam sorte se terminassem até as cinco da tarde.
Afastando-se da porta de outra pessoa que não lhe deu resposta alguma, Veck dirigiu-se às escadas de concreto e desceu até a entrada. As portas da frente deveriam estar trancadas, claro, mas foram arrombadas tantas vezes que seria um milagre se apenas se fechassem por completo.
Esfregando o rosto e desejando um cigarro, virou-se para o leste e dirigiu-se ao último bloco de apartamentos sob sua responsabilidade. Já estava na porta quando o telefone tocou. A mensagem de texto de Reilly dizia que estava indo ao hospital com Bails naquele momento.
Bem, ao menos aquilo lhe daria mais tempo para colaborar no caso que estava trabalhando com De la Cruz.
E, depois, talvez fazer uma pequena viagem até Connecticut – uma voz interior sugeriu. – Para ver seu pai.
Chegou a olhar para trás no intuito de checar se alguém falava com ele. Mas não havia nada além do ar e da fraca luz do sol. E acabou concluindo que possivelmente faria isso mesmo. Em breve.
Com um palavrão, virou-se para a entrada e, quando o fez, olhou para baixo em direção ao cimento rachado da calçada. Congelou com o que viu.
Olhou sobre o ombro outra vez. O sol estava se pondo atrás dele – era a única fonte de luz. Pelo amor de Deus, não havia uma segunda opção que pudesse refletir outra sombra no chão, nenhum carro com várias partes cromadas que pudesse produzir tal efeito, nada de holofotes sobre sua cabeça.
Olhou para seus pés outra vez. Havia duas sombras projetadas de seu corpo. Duas sombras separadas e distintas, uma vinda do norte, outra do sul.
Era uma evidência concreta do que ele sempre sentiu: duas metades de si, divididas, atraindo-o em direções opostas.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio... E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente.
Quando a voz de Jim Heron disparou em sua mente, pensou em Reilly. Ele estava confiante de que poderia protegê-la de qualquer um que a perseguisse, certo de que poderia ser o que ela precisava. Mas toda essa história de coragem e bravura não se aplicava ao que via no chão. Não entendia a si mesmo, como poderia lutar por ela?
E Reilly estava em perigo. Caso contrário, não perderia a noite passada sentada numa cadeira com uma arma na mão.
Sou o único que pode te ajudar.
Deus era testemunha de que Heron seria capaz de machucá-los ou agredi-los se quisesse. Em vez disso, tudo o que fez naquela pedreira foi apontar a direção... e desaparecer.
Decidido, Veck pegou o telefone. Tinha salvo o número de Heron em sua lista de contatos e, quando discou, rezou para que o cara que não deixava pegadas atendesse... e dissesse o que havia em seus pés.
O som do celular tocando alto atrás dele quase o matou de susto. Jim Heron estava a três metros de distância dele, como se estivesse ali o tempo todo – e estava mesmo, não?
Veck estreitou os olhos e deu uma boa olhada no cara. Jim parecia bem sólido em sua jaqueta de couro e suas roupas camufladas. E, quando exalou a fumaça de um cigarro, a coisa flutuou, fazendo cócegas no desejo de fumar de Veck.
Mas não era real, era?
Com o coração batendo forte no peito, Veck apertou end no teclado de seu celular e o som que vinha do bolso de Jim parou.
– O tempo está se esgotando – disse o cara.
E isso fez Veck pensar em seu pai: aquele bilhete enviado pelo correio. A areia da ampulheta descia pouco a pouco e ficavam cada vez mais próximos do momento da execução. Algo que aconteceria muito em breve, não?
Era isso – pensou. Tudo, toda sua existência, levava-o até tal situação... Seja lá que situação fosse.
Quando Veck encontrou os olhos do cara, sentiu que o filme de sua vida estava fora de foco e nunca sequer soube que essa merda estava embaçada. Contudo, o cinegrafista finalmente tinha acordado e ajustado o equipamento... era um mundo novo.
Especialmente se considerasse o fato de que a luz do sol se punha atrás de Jim Heron... e não havia nada aos pés do cara. Nenhuma sombra.
– Que porra é você? – Veck perguntou.
– Estou aqui para salvar seu traseiro, e é isso que eu sou – o cara deu um trago no cigarro e exalou lentamente. – Está pronto para conversar comigo agora?
Veck olhou para o par de contornos que projetava, as duas sombras tinham o formato de seu corpo.
– Sim, estou.
Reilly dirigiu o carro ao longo do caminho até o complexo do Hospital São Francisco. Ao lado dela, o detetive Bails permaneceu em silêncio no banco do passageiro enquanto atravessaram pelo tráfego intenso, pararam nos sinais vermelhos e, em dado momento, viraram.
– Mais um pouco disso e vou achar que alguém não quer que conversemos com Kroner – ela murmurou.
Bails nem sequer ergueu o olhar.
– Sim.
Mais silêncio. Ao ponto de ela quase pedir para ele desabafar sobre tudo o que pensava: a última coisa que precisavam era daquela tensão toda na frente de um assassino. Porém, Bails começou a falar antes de Reilly pedir.
– Desculpe não falar nada. Só não sei o que fazer.
– Sobre o quê? – no momento em que sentiu segurança em tirar os olhos da estrada, deu uma olhada nele. O cara batia os dedos contra a porta e olhava para fora como se estivesse buscando respostas no vidro.
– Sei que viu o meu e-mail – ela disse depois de um momento.
– Se fosse esse o grande problema... – quando ela olhou-o mais uma vez, ele deu de ombros. – Sabe que eu e Veck somos muito próximos, não?
– Sim.
– E sabe que sempre estive cem por cento ao lado dele. Até a morte. O cara é meu amigo.
Quando o coração dela começou a bater mais forte, disse: – Certo.
– Então, sim, eu vi o e-mail que ele enviou. Não queria, mas estava na tela quando me aproximei de vocês – ergueu os olhos. – Não estava espiando. A coisa estava bem ali.
Maldição.
Era tudo o que ela conseguia pensar. Maldição.
– E agora... – seus dedos acalmaram-se e ele balançou a cabeça. – Não sei o que fazer.
– Sem ofensa, mas por que acha que é problema seu? Não quero ser chata, mas...
– Sei coisas sobre ele que você não sabe e acho que ele fez algo ilegal. E, se eu acreditar que você está com ele, não sei a quem vou recorrer no Departamento de Assuntos Internos. Está bom para você?
Quando Reilly exalou como se tivesse levado um soco no estômago, quis parar o carro. Que bom já estarem finalmente no hospital. Assim, conseguiu estacionar na área aberta em frente à emergência.
Quando desligou o motor, encarou Bails: – Do que está falando?
Bails colocou a palma da mão sobre o painel do carro e começou a movimentá-la para frente e para trás. Em seguida, limpou uma fina camada de poeira que caiu sobre sua coxa.
– Olha, sou um policial porque quero proteger as pessoas e porque acredito no sistema. Não acredito que uma sociedade civilizada possa existir sem a polícia, os tribunais e as cadeias. Há pessoas lá fora que simplesmente não podem ficar em meio à população geral. Ponto final.
– Só para você saber, ainda não mencionou uma palavra sobre Veck.
– Ele disse que tem antecedentes?
Quando uma corrente de ar frio passou por sua coluna, ela esforçou-se para manter a calma.
– Não.
– Achei que não diria mesmo.
Isso é mentira – ela pensou.
– Ouça, desculpe duvidar das suas fontes, mas não há nada no arquivo pessoal dele... e não pode negar isso. Tudo o que o RH precisa fazer, e fez, para verificar isso é rastrear o nome dele no sistema.
– Não se algo foi cometido antes da maioridade.
Reilly ficou confusa. Muito.
– Como?
– Ele tem um antecedente juvenil. Um muito sério.
– Como sabe?
– Vi a coisa. Com meus próprios olhos – Bails deixou a cabeça cair para trás contra o descanso do banco. – Conheci Veck na Academia de Polícia. Era um cara solitário que fazia tudo certo... eu era o palhaço da turma. Nós simplesmente... ficamos amigos. Depois saímos, mantivemos contato mesmo sendo designados para delegacias diferentes da área de Manhattan e, mais tarde, ele se mudou para cá. Ao longo de todos esses anos que o conheço, sempre foi uma pessoa correta. Controlada. Difícil, mas justo. Na verdade, é um dos melhores policiais que conheço e fiz um pedido para que ele viesse para Caldwell, pois queria trabalhar com ele – Bails soltou um palavrão. – Em todo esse tempo que o conheço, nunca pensei que estivesse inapto para o trabalho por causa dessa porcaria de história relacionada ao seu pai... até agora. Começou com aquela agressão ao paparazzo. Em seguida, a coisa toda com Kroner na floresta. É como se uma capa ao redor dele estivesse saindo... mas eu não iria dizer nada, não ia mesmo, até...
– Espere um minuto. Pare – Reilly pigarreou, tentando acalmar a dor de cabeça que sentia entre os olhos. – Para preservar a nossa reputação, você deve entrar em contato imediatamente com minha supervisora se tiver algo para dizer com relação ao detetive DelVecchio. Antes de tudo, você está certo... Não deveria ter me contado essas coisas. Eu não deveria... estar na posição em que estou agora. Na verdade, tenho uma reunião com minha superior quando eu voltar desta entrevista, então, poderei divulgar de maneira adequada essa relação ao meu departamento.
Bails esfregou os olhos e balançou a cabeça.
– Vou fazer isso. Mas também acho que você precisa saber. Porque, se alguma coisa acontecer com você, nunca vou me perdoar.
Diante disso, Reilly enrijeceu.
– Por que está preocupado com minha segurança?
Bails passou uma das mãos pelos cabelos.
– Entenda, eu ajudei Veck com a mudança quando veio para cá. Tinha várias caixas velhas que precisavam ser guardadas no sótão. Eu estava carregando uma delas quando o fundo se abriu. Espalhando papéis por toda parte e, então, eu comecei a recolher... e lá estava. O registro de antecedente juvenil datado de meados dos anos 1990.
– O que dizia? – ela conseguiu falar mesmo sentindo a garganta fechada.
– Havia todos os indícios de comportamento psicótico e antissocial que existem – Bails franziu a testa. – Sabe do que estou falando, então, não vou listar tudo o que ele fez.
Tortura de animais? Problemas em atear fogo em coisas diversas? Urinar-se na cama?
– Tudo isso – disse Bails, como se estivesse lendo sua mente.
– Mas nunca fez nada depois de adulto – ela argumentou... era menos uma afirmação que uma pergunta.
– Não que saibamos. E, veja só, isso é o que está me preocupando. Psicopatas são muito bons em fingir normalidade. Por fora, eles se encaixam em tudo, pois a atuação é parte do que fazem. E se essa relativa paz e tranquilidade até agora... seja exatamente o que ele quer mostrar? Quando termina a atuação e o verdadeiro Veck aparece? Não pode negar que ele está ficando fora de controle... caramba, não seria parceira dele agora se estivesse tudo bem – o conflito de Bails era evidente em seu rosto. – Ou pior... e se não sabemos o que ele realmente faz? Digo uma coisa, não consegui dormir na noite passada. Estava tentando conciliar o que acredito que ele seja... com o que ele pode ser de fato. Se é que isso pode fazer algum sentido.
Reilly ouviu a voz de Veck em sua mente: Quero fazer tudo perfeito para você.
E tinha feito. Disse e fez as coisas certas. Jogou seus cigarros fora por causa dela... ou ao menos foi o que fez na sua frente. Ela tinha se apaixonado por ele em quatro dias. Coisa do destino? Ou tudo planejado? Mas onde isso o levaria? Foi ele quem pediu suspensão... teria sido uma atitude deliberada? Ela estava cuidando do caso e da reputação dele – que tinha alcançado mais credibilidade depois de tudo, não?
A voz de Bails pairou no ar: – Não pode confiar nele. Estou entendendo isso agora.
– Só por que ele não lhe contou sobre o que aconteceu quando era mais jovem? – ouviu-se dizer. – E, além disso, manter o arquivo de um registro de antecedentes em segredo não é ilegal.
– Acho que ele plantou provas. O brinco de Sissy Barten, especificamente. Para que parecesse que Kroner a tivesse matado.
Ela não se preocupou em esconder a surpresa e recuou o corpo.
– O quê? Como?
– Ele subiu até o quarto dela, não foi? No dia em que vocês dois foram até a casa da família Barten. Ele me disse que você estava no andar de baixo quando subiu. E esteve na sala de provas ontem de manhã... Conversei com Joey, um dos investigadores da cena do crime. Ele disse que Veck passou por lá... e pode ter plantado o brinco.
– Mas ele disse que encontrou o brinco junto com as outras provas.
Bails esfregou os olhos outra vez.
– Chequei o registro preliminar de itens encontrados no caminhão, a lista feita assim que o veículo foi apreendido. Não havia qualquer observação sobre um brinco em forma de pomba. E verifiquei tudo isso outra vez pouco antes de chegar e ver vocês dois.
Por isso parecia tão abatido.
Ela balançou a cabeça.
– Mas o que ele teria a ganhar? A menos que...
Oh, Deus... e se ele tivesse assassinado a garota? E se Kroner tivesse visto alguma coisa ao cometer um de seus crimes na pedreira?
– Leu o relatório sobre o corpo de Sissy, certo? – Bails disse.
– Claro – passara a manhã inteira fazendo isso... e a conclusão que chegou quando o corpo foi encontrado era inevitável: nenhum dos ferimentos da vítima se encaixava nos outros assassinatos de Kroner... e, geralmente, aquele tipo de mudança não acontecia. Em geral, método e obsessões não se alteravam.
– Então deve saber que ela não foi atacada por Kroner. E, talvez, depois de apurar tudo... talvez Veck tenha feito isso.
Céus, ela não conseguia respirar. Como se houvesse mãos apertando a sua garganta.
– Mas... por quê?
Temia que fosse uma pergunta estúpida de se fazer.
– Quanto sabe sobre o pai de Veck? – o detetive disse. – Sobre seus assassinatos?
– Apenas o que estudei na faculdade.
Bails voltou a se concentrar na janela.
– Sabia que a primeira vítima dele sangrou pelo pescoço e pelos pulsos... depois de ter sido pendurada pelos pés? Também foi marcada como Sissy. Sobre o estômago.
Reilly pegou a maçaneta e abriu a porta. Não só para conseguir um pouco de ar fresco. Mas porque estava sentindo muita vontade de vomitar.
– Sinto muito – Bails disse, um tanto áspero.
– Eu também – ela resmungou, contudo, as palavras não chegavam nem perto do que sentia.
Quando olhou para o chão, ela se deu conta de que tinha sido enganada. Caiu como um patinho. E é claro que Veck se esforçou para conseguir isso. Ela era sua defensora na delegacia, aquela que deveria supervisioná-lo cuidadosamente e que decidiria se ele continuaria ou não na corporação: ele queria continuar trabalhando, e ela estava na posição que tornaria isso possível.
– Agradeço a Deus por você – Reilly disse um tanto sufocada. Pena que não conseguia olhar para Bails... Estava muito envergonhada por ter sido enganada tão bem. – Graças a Deus você me contou.
CAPÍTULO 36
– Que tal você falar primeiro?
Enquanto Veck pronunciava as palavras em voz baixa, mantinha o olhar fixo em Heron. Os dois tinham se esquivado ao redor do edifício e estavam em pé no escuro próximo a alguns galhos secos.
O olhar de Jim era mortal e sua voz tão profunda quanto o ressoar de um grande sino.
– Você sabe de tudo. Quais respostas quer? – colocou o dedo indicador no peito de Veck, bem em cima de seu coração. – Está tudo dentro de você.
Veck desejou responder com uma boa dose de “tanto faz, seu cuzão”. Mas não conseguiu.
– Meu pai quer me ver – foi sua resposta.
Heron assentiu e pegou seu maço de cigarros. Quando inclinou o pacote para frente, Veck recusou: – Não, parei.
– Inteligente – Heron acendeu. – É assim que funciona: vai perceber que está numa encruzilhada. Será um momento de decisão, de uma escolha definitiva, entre situações opostas. Tudo o que é, o que tem sido e o que poderá ser dependerá dessa decisão. As consequências? Não afetarão apenas a você. Afetarão a todos. Não é apenas uma questão de vida e morte... Trata-se da eternidade. Sua. Dos outros. Não subestime a distância que isso pode alcançar.
Enquanto o homem falava, Veck sentiu as duas partes dentro de si se separarem. Uma delas foi totalmente repelida. A outra...
Veck franziu a testa. Piscou algumas vezes, confuso. Desviou o olhar e olhou para trás. Deus era testemunha de que tinha visto um brilho cintilante sobre os ombros de Heron e ao redor de sua cabeça.
E a ilusão bizarra deu ainda mais credibilidade ao pesadelo como um todo. Da mesma maneira como quando quis entrar em contato com o cara e ele já estava bem atrás dele... E ainda havia a questão da falta de pegadas naquela pedreira... E o show de luzes na casa dos Barten.
Veck colocou a mão sobre o peito e esfregou com força a sombra que havia ali.
– Nunca pedi isso.
– Sei como se sente – Heron murmurou. – No seu caso, já nasceu com isso.
– Diga-me o que sou.
– Você já sabe.
– Diga.
Heron exalou lentamente, a fumaça ergueu-se dentre aquele brilho dourado.
– O mal. É o mal encarnado... Ou, pelo menos, metade de você é. Num futuro próximo, talvez hoje à noite, talvez amanhã, será necessário que escolha um dos lados – o cara apontou para si mesmo com a mão que segurava o cigarro. – Estou aqui para tentar te ajudar a escolher com sabedoria.
– E se eu não escolher certo?
– Você perde.
– No mesmo instante?
O homem assentiu lentamente, estreitando os olhos.
– Eu já vi onde vai terminar se isso acontecer. Não é bonito.
– O que você é?
A expressão de Heron não mudou. Nem sua postura. E nem sequer parou de fumar. Mas, num instante era um homem, no seguinte...
– Jesus... Cristo... – Veck sussurrou.
– Não chego nem perto – ele apagou o cigarro na sola da bota de combate. – Mas sou o que sou.
E isso seria... um anjo, evidentemente: sob a luz fraca e desbotada do dia, um espetáculo de luzes refratadas havia surgido sobre os ombros dele em forma de asas gigantes, tornando-o magnífico e etéreo.
– Fui enviado para te ajudar – o homem... anjo... seja lá o que fosse... voltou a olhar para Veck. – Então, quando for ver seu pai, quero estar junto.
– Já estava comigo. Não é mesmo?
– Sim – o cara limpou a garganta. – Mas não quando estava... você sabe.
As sobrancelhas de Veck se ergueram.
– Oh, sim. Que bom...
Eeeee os dois desviaram o olhar nesse momento.
Veck pensou sobre aquela noite com Kroner.
– E se a encruzilhada já tiver acontecido?
– A questão com Kroner? Estava fora das regras.
– Bem, sim, assassinato é contra lei mesmo.
– Não, não é neste sentido. Não sou o único que deseja fazer algo com você, o outro lado se precipitou naquele cenário.
– O outro lado?
– Como eu disse, não sou o único neste jogo. E, acredite, o inimigo é uma tremenda vadia... Tenho certeza de que a conhecerá em breve, se já não conheceu.
Oh, ótimo, mais notícias boas, Veck pensou.
E, então, deixou escapar: – Eu fui até lá matá-lo. Kroner – maldição, foi bom ter desabafado.
– Você quer dizer parte de você queria fazer isso. Vamos passar tudo a limpo: você não fez o estrago e você ligou para a emergência, se não tivesse feito isso ele teria sangrado até morrer aos seus pés.
– Então, o que o atacou?
– Está surpreso por conversar com um anjo? Não vai querer saber o que tem lá fora – Jim acenou com uma das mãos num gesto de desdém. – Mas não precisamos nos preocupar com isso. Vamos ver seu pai. Juntos. O mais rápido possível.
Veck pensou na sensação de ter chegado ao seu destino, como se sua vida tivesse chegado a um ponto culminante. Não era mais remoto e hipotético.
– Esta é a encruzilhada?
– Talvez sim. Talvez não.
De repente, Jim abaixou os olhos e inclinou a cabeça. Quando a ergueu outra vez, sua aparência era mortal – e exatamente o que Veck gostaria de ter como proteção: tinha a sensação de que precisaria de outro bom lutador se fosse enfrentar o outro lado de si mesmo. E era isso. Uma luta até a morte.
– Vamos descobrir – o anjo prometeu. – Quando chegarmos lá.
Tudo acontece por uma razão – Reilly pensou enquanto ela e Bails saíam do quarto de Kroner meia hora depois.
A condição de Kroner havia piorado muito, quase como se seus ferimentos aumentassem a cada instante. Ele não era capaz de se concentrar, resmungou algumas respostas sem sentido e, pouco depois de chegarem, ela e Bails desistiram.
– O que será que ele quis dizer com aquela coisa de sofrimento? – Bails murmurou enquanto segurava a porta do elevador para Reilly.
Reilly balançou a cabeça quando começaram a descer.
– Não sei.
Foi a mesma coisa de antes: Ele tem que saber que ela sofreu... tem que saber que ela sofreu...
Não fazia ideia do que aquilo significava. E também não fazia ideia de qual era a conexão entre Kroner e Veck. Caramba, naquele momento, sentia que não poderia confiar em seus instintos nem sequer para confirmar o próprio nome. Especular alguma coisa naquela bagunça? Era melhor nem começar.
Quando saíram para a recepção e caminharam até a porta giratória que dava para o estacionamento, Bails consultou o relógio.
– Quer beber alguma coisa? Tenho que fazer meu relatório em pouco mais de uma hora, preciso de uma bebida antes.
Sim, pois, quando um detetive tinha as informações que ela tinha sobre outro colega, não se ficava muito animado com a situação. Ligou para a delegacia logo depois que terminaram o interrogatório e, dentro de um minuto e meio, o sargento marcou uma reunião com líderes dos departamentos. Isso aconteceria bem depois do horário comercial.
Não era de se admirar que Bails quisesse uma cerveja.
– Obrigada – ela murmurou –, mas, como eu disse, tenho um encontro com minha supervisora agora.
A conversa toda que tiveram não os aproximou tanto assim. Juntos, andaram pelas filas de automóveis, entraram no carro e colocaram os cintos de seguranças. Os dois permaneceram em silêncio durante toda a viagem de volta à sede. Não tinham muito a dizer, e Bails parecia tão traído e doente quanto ela.
Separaram-se com um rápido abraço e, enquanto ele ia para o próprio carro, Reilly observava-o. Veck colocara-os no mesmo barco, e isso significava que aquele estranho agora era uma espécie de amigo.
Quando o telefone tocou na bolsa, sabia quem era antes de pegá-lo. Veck.
Certo, é para isso que o correio de voz serve – ela pensou.
Só que provavelmente ele viria atrás dela, e isso era a última coisa que queria. Deveria evitar um encontro pessoal a todo custo.
– Alô.
Houve um zumbido ao fundo, como se estivesse num carro.
– Reilly... o que há de errado?
Desanimada, como se o observasse do outro lado de um espelho de duas faces, pensou que havia sido exatamente daquela maneira que a seduzira: a emoção que projetava naquela voz profunda era a combinação perfeita de preocupação com uma boa dose de proteção.
– Estou bem. Acabei de ver Kroner... Não conseguimos nada de novo – não vindo de Kroner, claro. Já com Bails, a história era diferente.
– Você não parece bem.
O que significava que toda e qualquer aspiração que pudesse ter em ser uma psicopata deveria ser jogada pela janela. Que pena.
De fato, a ideia de não conseguir esconder as coisas era um alívio. Não queria ser como Veck. Nunca.
– Reilly... fale comigo.
– Estive pensando muito sobre meu trabalho hoje – ela disse. – Não é apropriado que deixemos nosso relacionamento como está. Estou comprometendo a integridade da força policial, da minha posição e a mim mesma. Vou encontrar minha supervisora agora mesmo e renunciar seu caso. Levarei alguma advertência, mas posso lidar com isso...
– Espere, o quê? Por que você...?
– E acho que não devemos nos ver outra vez.
Houve uma pausa. Em seguida, ele disse: – Assim de uma hora para outra?
Agora ele parecia frio, e era o que Reilly desejava: o verdadeiro Veck, o real. Mesmo que isso só a fizesse perceber outra vez o quanto tinha sido estúpida.
– É o melhor – concluiu.
Quando Veck não disse mais nada, ela começou a ficar agitada, pois não sabia exatamente do que ele era capaz. Sem dúvida, tinha sido ele quem andara vigiando-a dois dias atrás... Mas não tinha importância, aquela conversa tinha acabado e, uma vez que revelasse o que precisava à sua chefe e Bails agisse e cumprisse seu dever, Veck teria muitos outros problemas, tantos que estaria ocupado demais procurando um advogado para perder tempo com algum tipo de retaliação. Ao menos ela esperava que fosse assim.
Inferno, melhor ainda, ele poderia ser preso.
– Tenho que ir – ela disse.
Houve outra pausa e, então, a voz dele soou fria como um cubo de gelo.
– Não vou te incomodar outra vez.
– Agradeço muito. Adeus.
Não esperou por uma resposta. Não estava interessada em ser envolvida numa conversa longa e arrastada, com ele tentando manipulá-la novamente, ou pior, ver a máscara dele caindo por completo e ouvir ameaças.
Sua mão tremia tanto que precisou fazer duas tentativas para colocar o telefone de volta na bolsa. Apoiando-se contra o carro, olhou para os fundos escuros da delegacia e sentiu não ter forças para entrar e encarar sua chefe. Mas fez o que tinha que fazer... pois fora criada para agir assim.
CAPÍTULO 37
Quando Veck desligou o celular, olhou para tela e achou difícil acreditar que aquela conversa com Reilly tinha acabado de acontecer.
– O que foi?
Olhou para Heron. O cara, anjo – quem se importava – estava atrás do volante da caminhonete com seu outro amigo anjo... Cristo, como aquilo poderia ser real? O cara estava no banco de trás de uma cabine dupla e ocupava mais da metade do espaço.
Os três estavam indo para a Instituição Prisional em Somers, Connecticut.
– Nada – disse Veck suavemente.
– Até parece – ouviu do banco de trás.
Eram as primeiras duas palavras que o homem havia dito. O que significava que isso e o fato de estar respirando eram as únicas pistas que comprovavam que ele estava vivo.
Jim olhou para Veck.
– Coincidências não existem. Quando nos aproximamos do final, tudo importa.
– Era... – minha namorada? Ex-namorada? Oficial do Departamento de Assuntos Internos? – Reilly.
– O que ela disse?
– Que não quer me ver mais. Nunca mais.
As palavras foram ditas com uma voz calma e profunda – ao menos ainda tinha um pouco de brio. Porém, no fundo do peito, havia um grande buraco negro de agonia, como se fosse um desenho animado e tivessem disparado uma bala de canhão contra ele.
– Por quê? Ela deu algum motivo?
– Se importa de me emprestar um cigarro? – quando Jim estendeu o pacote, Veck pegou dois, pensando que aquele era um momento perfeito para jogar pela janela aquele papo de “desistir”.
– Por que isso?
– Porque, ou eu fumo alguma coisa agora, ou vou explodir o vidro ao meu lado com um soco.
– Que bom que escolheu o cigarro – veio da parte de trás. – Estamos indo a uns cem quilômetros por hora e está frio demais lá fora.
Veck pegou o isqueiro oferecido, acendeu e abriu um pouco a janela. Quando inalou, pensou ser uma pena haver tantos agentes cancerígenos naquelas coisas, pois, sem dúvida, aquilo o fazia sentir-se um pouco melhor.
Porém, não duraria muito. Ao contrário da dor no peito. Tinha a impressão de que teria que lidar com isso por um looongo tempo. Como se fosse um ataque cardíaco perpétuo.
Só que, cara, devia saber que isso aconteceria. Aquela mulher ingressou no Departamento de Assuntos Internos porque gostava das coisas certas, bem-feitas. Ficar com ele? Não estava na lista. Apaixonar-se por ele? Não seja ridículo.
– O motivo? – Jim exclamou.
– Conflito de interesses.
– Mas por que agora? Ela sabia o tempo todo o que estava fazendo.
– Eu não sei. Mas também não importa.
O bom era que não poderiam dispensá-lo do trabalho só por que ela acordou e sentiu o cheiro de carne podre da situação que viviam, por assim dizer. Eram dois adultos responsáveis e, sim, parecia ruim, mas ela faria a coisa certa e fim de papo.
Inevitavelmente, seria chamado para responder algumas perguntas no Recursos Humanos e teria a firmeza suficiente para dizer que foi tudo ideia dele. Ou seja: foi ele quem correu atrás dela, bem como foi o idiota que começou com a história do “eu te amo”. Imbecil. Que maldito imbecil ele foi...
Não disseram muita coisa durante o resto da viagem. Veck não via problema nisso. As imagens de Reilly e ele juntos pairavam em sua cabeça e faziam com que não confiasse na própria voz... E não só porque demonstraria uma boa dose de tristeza. Estava suscetível a esmagar alguém naquele momento.
Quando já estavam a um quilômetro da prisão, Jim parou um pouco antes de chegar à instituição e trocou de lugar com Veck. No volante, Veck assumiu seu papel: o de policial.
– Então, ninguém vai ver vocês?
Apesar de realmente acreditar que o cara era capaz de ficar invisível. Heron perseguiu-o por dias e apenas seus instintos ficaram um pouco alarmados.
– Isso mesmo.
– Contanto que... – Veck parou de falar quando olhou para o banco ao lado dele e viu que tinha ficado vazio de repente. Olhou rapidamente no espelho retrovisor e não havia nem sinal do cara grande e forte no banco de trás.
– Já pensaram em roubar bancos, seus filhos da mãe? – disse ele em tom seco.
– Não precisamos do dinheiro – a voz de Jim soou do nada ao lado dele.
– Não precisamos nos dar ao trabalho – veio da parte de trás.
Veck esfregou o rosto, pensando que seria melhor assumir que estava louco por começar a conversar com o ar. O problema era que lutava e lidava com essa realidade alternativa durante toda sua vida. A ideia de que era realidade, e não loucura, parecia ser muita maluquice, mas também fazia com que se sentisse um pouco são.
Contudo... fazer essa diferenciação era assumir que ele não era exatamente como o personagem do filme Uma mente brilhante.
Afinal, sabia que havia impulsos homicidas, e não casos de esquizofrenia em sua família, então, não tinha perdido totalmente o juízo. Que alívio!
Antes de sair de Caldwell, Veck havia telefonado para a prisão – não para o número que seu pai havia lhe dado, mas para o atendimento geral – e identificou-se. Não chegariam no horário de visitas, mas as pessoas costumavam fazer cortesias graças à sua ocupação profissional – e certamente também fariam-no graças ao fato de que seu pai estaria numa cova em mais ou menos 48 horas. Sem dúvida, havia também o fator curiosidade, algo com que Veck lidava com muito senso de realidade: em pouco tempo, aquela visita antes da morte estaria em todos os lugares... internet, televisão, rádio. Provavelmente, estaria na rede antes mesmo de sair e voltar para o estado de Nova York. Era assim que as coisas funcionavam.
À medida que percorriam o caminho onde se via as paredes da penitenciária numa das laterais, visualizaram um pequeno exército reunido dos dois lados da rua. Fãs de seu pai.
Havia pelo menos uma centena deles, mesmo sendo oito da noite e estando muito escuro e frio. Mas estavam preparados com lanternas, velas e cartazes com dizeres que protestavam contra a execução – e, no momento em que viram o veículo, correram para o asfalto gritando, rugindo, o barulho pressionava a caminhonete sem nem chegarem perto dela.
Mesmo com o estilo um tanto rebelde de se vestirem e a maneira furiosa com que agiam, era evidente que sabiam as consequências da desobediência civil: nenhum deles bloqueou ou tocou o veículo, e Veck diminuiu a velocidade para dar uma olhada neles. Grande erro.
Um dos homens inclinou-se para a janela e obviamente reconheceu Veck: quando o cara apontou para ele e gritou, o êxtase em seu rosto fez com que Veck sentisse vontade de baixar o vidro e dar um jeito no filho da puta.
Mas seria um desperdício de energia. O idiota tinha o símbolo da anarquia desenhado na testa. Tente argumentar com essas coisas.
– É ele! É ele!
A multidão exaltou-se e correu para a caminhonete.
– O que há de errado com essas pessoas? – Veck murmurou enquanto continuava lentamente, pronto para transformá-los em enfeites de capô se fosse preciso.
– É isso o que ela faz – a voz de Jim soou pelo ar.
– Quem é “ela”?
– É exatamente o que vamos tentar tirar de dentro de você.
Não havia tempo para entender mais esta. Virou na pista que a polícia usava e parou na portaria. Olhando para o guarda, baixou o vidro e mostrou seu distintivo e as credenciais.
– DelVecchio, Thomas... Jr.
Ao fundo, a multidão gritava o nome dele... ou de seu pai. Na verdade, eram os dois e com muita eficiência.
Os olhos do guarda baixaram para a identificação e voltaram para o rosto de Veck. Houve um sinal de desconfiança naquele olhar; sem dúvida, ele estava mantendo-se firme contra os malucos que permaneciam ali já há uma semana.
Mesmo assim, o cara acionou o comando do portão e as barras de ferro se abriram.
– Pare assim que entrar. Preciso revistar seu veículo, detetive.
– Sem problema – era bom não precisar fazer isso do lado de fora. Só Deus sabia até onde aquela multidão poderia chegar.
Veck seguiu o protocolo, andou em marcha lenta e freou no momento em que seu para-choque traseiro posicionou-se do outro lado do portão. Quando saiu, pegou o pacote de cigarros de Heron e colocou-o em uso, acendendo um cigarro enquanto os portões fechavam-se e o oficial verificava todas as partes do carro com uma lanterna.
Enquanto fumava, sabia que os anjos não estavam longe. Podia senti-los flutuando e ficou feliz por essa proteção – especialmente quando olhou para as barras do portão e viu a multidão enlouquecida. A energia que havia naqueles malucos era o tipo de coisa que deixaria qualquer um grato por aquilo que os separava deles.
– Pode continuar, detetive – disse o oficial, agora com atitude mais amigável. – Vire a primeira à esquerda e estacione ao lado da porta, por questões de segurança. Um guarda está esperando por você.
– Obrigado, cara.
– É proibido fumar lá dentro. Então, antes, termine o que está fazendo.
– Boa dica.
De volta à caminhonete. Pausa no segundo portão. Em seguida, estavam na unidade.
Prisões de segurança máxima não se pareciam com as que eram retratadas em filmes. Não havia paredes antigas de pedras caiadas com figuras monstruosas esculpidas no alto delas e que espreitavam quem passava embaixo. Nada de elementos nostálgicos como “Al Capone já esteve aqui”. Nenhuma visita guiada.
Era um negócio muito moderno que mantinha pessoas como seu pai isoladas do público em geral. Havia várias luzes fortes de xenônio para o período noturno, câmeras de vídeo e monitoramento computadorizado. Ainda havia guardas com armas e cercas de arame farpado o suficiente para envolver toda a cidade de Caldwell, mas o procedimento de entrada era feito com cartões magnéticos, computadores e portas automatizadas.
Esteve em vários lugares como aquele, mas nunca especificamente ali: assim que seu pai foi sentenciado, uma carta fora entregue em mãos na república em que Veck morava na faculdade. Não deveria ter aberto aquele envelope, mas não imaginava que seu pai era capaz de enviar da cadeia bilhetes por intermédio de alguém. Fazendo uma retrospectiva? Como fora ingênuo.
Porém, ao menos aquilo lhe indicou o que não fazer. Então, sim, era uma boa razão para não trabalhar em Connecticut e para integrar a força policial em vez do FBI. Nada de questões interestaduais, muito obrigado. E, ainda assim, lá estava ele.
Como prometido, no momento em que saiu da caminhonete, uma porta blindada abriu-se e um guarda encontrou-o e levou-o a um ambiente limpo e bem iluminado. Normalmente, como oficial, receberia autorização para entrar com o distintivo, o celular e a arma, desde que não fosse entrar na área das celas, mas não estava ali em caráter oficial e isso significava que tudo seria deixado na entrada.
Ao entregar o celular, viu que havia algumas mensagens de voz. Possivelmente passara por algumas áreas sem sinal telefônico ao longo da viagem, pois não ouvira o toque. Mas não as ouviria agora. Seja lá o que fosse, esperaria até sair dali. Além disso, tinha a sensação de que já sabia do que se tratava. Sem dúvida outra pessoa do Departamento de Assuntos Internos lhe seria designada – oh, que alegria. E provavelmente devia ter outra mensagem de Bails querendo saber como estava. O cara sempre fazia isso, especialmente se enviasse um torpedo e Veck não respondesse.
Depois de assinar um formulário e entregar todas as suas coisas ao guarda, percorreu uma série de salas sendo acompanhado por outro funcionário da prisão, sem produzir qualquer som além dos passos. Mas sobre o que poderiam conversar afinal?
Veio se despedir do seu pai? Legal...
Sim, é a primeira vez que o vejo em anos, e a última nesta vida...
Divirta-se, então.
Obrigado, cara.
Sim. Estava ansioso para ter esse tipo de conversa.
Quase cem metros depois andando entre o labirinto da prisão, o oficial mostrou a Veck uma área de visitas do tamanho de um pequeno refeitório e também organizada como tal, com longas mesas com assentos dos dois lados. O ambiente estava iluminado como se fosse uma exposição de joias, com grandes painéis de lâmpadas fluorescentes fixas no teto, e o chão era de um marrom salpicado, do tipo que escondia bem a sujeira, mas que, de qualquer maneira, era mantido brilhante e lustrado. Não havia janelas, plantas e observava-se apenas um mural com uma ilustração do que parecia ser a Assembleia Legislativa de Connecticut.
Contudo, as quatro máquinas de salgadinhos e bebidas davam um pouco de cor ao ambiente.
– Estão trazendo-o – disse o guarda. – Colocaremos vocês na área de visita como cortesia, mas peço que permaneça sentado com as duas mãos sobre a mesa o tempo todo.
– Sem problema. Quer que eu me sente em algum lugar específico?
– Não. E boa sorte.
O cara afastou-se e ficou junto à porta pela qual passaram ao chegar, cruzou os braços e encarou a parede nua do outro lado como se tivesse muita experiência em assumir aquela posição.
Veck sentou-se à mesa em frente ao cara e cruzou os dedos sobre a superfície lisa.
Fechando os olhos, sentiu a presença dos dois anjos. Estavam à esquerda e à direita dele, parados da mesma maneira que o guarda, silenciosos e vigilantes...
A porta no final da sala foi aberta sem produzir qualquer som... Em seguida, ouviu algo arrastar-se.
Seu pai passou pelos batentes com um sorriso em seu belo rosto e algemas nos pulsos e tornozelos. Apesar do fato de estar vestido com um macacão laranja folgado, estava elegante, com os cabelos cinza-escuros penteados para trás e sua atitude de embaixador muito evidente, como uma bandeira real.
No entanto, Veck não dava a mínima para aquela aparência – olhava para o chão. Seu pai projetava uma sombra, certo, uma sombra única que se reunia sob seus pés como tinta preta. O fato de ser mais escura do que qualquer outra no ambiente parecia lógico e surgia sob um novo paradigma.
– Olá, filho.
A voz era tão profunda e grave quanto a de Veck. Quando ele ergueu os olhos para observar seu pai, era como olhar no espelho – apenas vinte ou trinta anos mais tarde.
– Nenhuma saudação para mim? – o DelVecchio mais velho disse ao aproximar-se com passos pequenos e apertados, o guarda atrás dele estava tão próximo de suas costas que parecia vestir o mesmo macacão.
– Estou aqui, não estou?
– Sabe? É uma pena a necessidade de sermos vigiados – seu pai sentou-se na frente dele e colocou as mãos sobre a mesa... na posição exata que Veck havia assumido. – Mas podemos falar em voz baixa – as feições e ângulos daquele rosto mostraram uma expressão de carinho... na qual Veck não acreditou nem por um segundo. – Estou emocionado por estar aqui.
– Não fique.
– Bem, mas eu estou, filho – o balançar triste da cabeça era tão apropriado que Veck desejou revirar os olhos. – Deus, olhe para você... Está muito mais velho. E cansado. Trabalhando duro? Ouvi falar que está na polícia.
– Sim.
– Em Caldwell.
– Sim.
Seu pai inclinou-se para frente.
– Tenho permissão para ler os jornais e ouvi dizer que teve um pequeno problema com um monstro lá fora. Mas você o pegou, não foi? Na floresta? – lá se foi a mentira do pai benevolente. No lugar daquela figura calorosa, surgiu uma intensidade na expressão do homem que fez Veck desejar se levantar e sair. – Não foi? Filho.
Se os olhos são as janelas da alma, então Veck encontrou-se olhando para um abismo... E teve a mesma sensação de vertigem induzida pela gravidade e o puxão que alguém sentia ao inclinar-se e olhar para baixo num abismo real.
– Que herói você é, filho. Estou tão orgulhoso de você.
As palavras se distorceram nos ouvidos de Veck, seus sentidos ficaram confusos, era como se pudesse ouvi-las e sentisse-as alisando sua pele.
No entanto, deveria tê-lo matado quando teve a chance.
Veck franziu a testa quando percebeu que seu pai havia falado sem mover os lábios. Balançando a cabeça, Veck interrompeu aquela conexão.
– Bobagem.
– Elogiar você? Estou sendo sincero. Deus é minha testemunha.
– Deus não tem nada a ver com você.
– Ah, não? – seu pai enfiou uma das mãos no macacão e retirou rapidamente uma cruz dali antes mesmo que os guardas pudessem sequer começar a ficar tensos por conta da regra das mãos expostas. – Posso garantir que ele tem. Sou um homem muito religioso.
– Porque lhe é conveniente, sem dúvida.
– Não tenho que provar nada a ninguém – neste momento, seus olhos brilhavam. – Deixo minhas ações falarem por mim... Foi ao túmulo de sua mãe ultimamente?
– Não se atreva a ir até lá.
Seu pai riu um pouco e levantou as mãos, mostrando as algemas de aço.
– Claro que não, eu não posso. Não tenho permissão para sair... Isto é uma prisão, não um hotel de luxo. E, embora tenham levantado uma acusação falsa contra mim, tenham me julgado de maneira errada e me sentenciado à morte injustamente, estou preso como todos os outros que aqui estão.
– Não há nada falso sobre onde você está.
– Acha mesmo que matei todas aquelas mulheres?
– Vamos ser mais exatos... Acho que assassinou cruelmente todas aquelas mulheres. E ainda outras.
Balançou a cabeça mais um pouco.
– Filho, não sei de onde tirou estas ideias. Por exemplo... – seu pai ergueu os olhos para o teto, como se estivesse diante de uma equação matemática complexa. – Você leu sobre a morte de Suzie Bussman?
– Não sou um de seus fãs. Então, não, não acompanho tudo o que faz.
– Não foi a primeira garota que me acusaram de ter assassinado, mas a primeira que pensam que matei. Foi encontrada numa vala de drenagem. A garganta e os pulsos tinham sido cortados e havia símbolos inscritos sobre seu estômago.
Quando seu pai ficou em silêncio, ergueu o queixo e olhou para Veck. Sissy Barten. Encontrada numa caverna. Com a garganta e os pulsos cortados e com símbolos ritualísticos inscritos sobre o estômago.
– Bem, filho, como sabe, serial killers possuem padrões que gostam de seguir. É como um estilo de roupa ou uma parte do país que gostam de morar ou um objetivo profissional. É onde se sentem mais à vontade para se expressarem... É acertar a bola no ponto ideal da raquete, é um filé perfeitamente preparado ou a sala decorada de acordo com sua preferência e a de mais ninguém. É seu lar, filho... É o local ao qual pertence.
– Então, está dizendo que todas as outras mulheres não foram trabalho seu, apesar das evidências, pois não correspondem ao padrão da primeira?
– Oh, eu não matei ninguém.
– Então, como sabe sobre os padrões?
– Sou um bom leitor e gosto de aprender sobre esta patologia.
– Posso apostar.
Seu pai inclinou-se e baixou a voz num sussurro.
– Sei como se sente, o quanto está à parte, o quanto estar perdido pode ser desesperador. Mas me mostraram o caminho e foi o melhor que pôde acontecer, e será a mesma coisa para você. Pode ser salvo... Será salvo. Apenas olhe para si mesmo e siga a essência que nós dois sabemos que possui.
– Então, posso crescer e ser um serial killer como meu pai? Não, muito obrigado.
Seu pai recostou-se e ergueu as mãos para o teto.
– Oh, isso não, nunca... Estou falando de religião. Naturalmente.
Sim. Claro.
Veck olhou em volta para as câmeras de segurança ao redor da sala. Seu pai era inteligente e não atribuía qualquer implicação para si mesmo com aquele gesto, mesmo que a mensagem implícita estivesse tão clara quanto os letreiros dos cassinos de Las Vegas.
– Encontre seu Deus, filho... – aqueles olhos brilharam outra vez. – Abrace quem você é. Aquele impulso o levará para onde precisa ir. Confie em mim. Eu fui salvo.
Enquanto falava, a voz transformava-se numa sinfonia obscura nos ouvidos de Veck, como se as palavras de seu pai fossem a trilha sonora de um filme épico.
Veck inclinou-se para frente, aproximando-se tanto que conseguia enxergar cada partícula preta na íris azul de seu pai. Sussurrando, disse com um sorriso: – Tenho certeza de que você vai para o inferno.
– E vou te levar comigo, filho. Não pode lutar contra o que é, e vai ser colocado numa posição que não poderá vencer – seu pai inclinou o rosto, como se alguém tivesse colocado uma arma em sua testa. – Você e eu somos a mesma coisa.
– Tem certeza disso? Vou sair daqui logo e você tem um encontro marcado com uma agulha na quarta-feira. Não vejo a “mesma coisa” em nada aqui.
Os dois se encararam por um tempo, até que seu pai recuou.
– Ah, filho, acho que vai me encontrar vivo e muito bem no final da semana – havia muita satisfação em seu tom de voz. – Vai ler sobre isso nos jornais.
– Como vai conseguir isso?
– Tenho amigos no submundo, por assim dizer.
– Nisso eu acredito.
O sorriso encantador e um pouco arrogante voltou, e a voz de seu pai diminuiu chegando a ser graciosa.
– Apesar de ter sido... um tanto amargo... estou contente por ver você.
– Eu também. Você é menos impressionante do que eu me lembrava.
A contração muscular no olho esquerdo do pai informou que as palavras de Veck atingiram um ponto fraco.
– Faria uma coisa por mim?
– Provavelmente não.
– Vá até o túmulo de sua mãe e leve uma rosa vermelha para ela. Eu amava aquela mulher até a morte, de verdade.
As mãos de Veck fecharam-se.
– Vou dizer uma coisa – Veck sorriu. – Vou apagar o meu cigarro no seu túmulo. O que acha disso, pai?
Thomas DelVecchio pai recuou, sua expressão era fria. Com certeza o encontro não estava sendo como ele esperava.
– A propósito, não se trata apenas de você – seu pai anunciou.
Quando Veck franziu a testa, o homem encarou o espaço em branco atrás do ombro de Veck.
– Ela quer que saiba que ela sofreu. Horrivelmente.
Jesus... Exatamente a mesma coisa que Kroner disse...
Veck conteve-se antes de erguer o olhar em direção a Jim, mas a reação do anjo foi clara: uma corrente fria percorreu o ar e passou sobre a cabeça de Veck, atravessando a mesa e arrepiando a pele das costas das mãos do pai de Veck.
Seu pai sorriu para o ar onde Jim se encontrava em pé.
– Não acha que vai vencer esta, acha? Porque não pode tirá-la dele. Um exorcismo não vai funcionar porque ele nasceu com isso. Não está dentro dele, é parte dele.
Seu pai olhou de volta para Veck.
– Acha que eu não sei que trouxe amigos? Garoto tolo, muito tolo.
Veck levantou-se.
– Terminamos.
Sim, era hora de ir: considerando a explosão de vento gélido que passou por ele, Jim Heron, o anjo, estava prestes a atacar seu pai. Seria divertido, mas será que era a coisa mais inteligente a se fazer? Era melhor seguir a linha “não aqui, não agora”.
– Nenhum abraço? – seu pai falou lentamente.
Veck não se incomodou em responder essa. Não desperdiçaria seu fôlego e seu tempo com o filho da puta. Na verdade, não tinha certeza da razão de ter vindo – apenas para trocar ofensas? Não havia qualquer encruzilhada visível para ele ali... Porém, talvez o importante tenha sido aquela mensagem para Heron.
Quando Veck virou-se e caminhou até o guarda, o cara abriu a porta rapidamente, como se também não quisesse ficar naquele ambiente nem mais um minuto sequer.
– Thomas – seu pai chamou –, vejo você no espelho, filho. Todos os dias.
A porta foi fechada e interrompeu as palavras.
– Você está bem? – o guarda perguntou.
– Estou bem. Obrigado.
Atrás do outro homem, Veck seguiu na direção de onde vieram.
– Para quando está marcada a execução?
– Para o primeiro horário da quarta-feira. Se solicitar ao diretor, acho que pode conseguir um lugar.
– Bom saber.
Enquanto andava a passos largos, Veck podia sentir a presença de seu pai com ele, como se a bateria daquela lâmpada maligna dentro dele tivesse sido carregada e recuperado a força que deixou de ter durante anos.
No centro do peito, aquela ira obscura queimava com vivacidade... e espalhava-se.
– Tem certeza de que está bem, detetive?
Veck não teve certeza de qual parte dele respondeu: – Nunca me senti melhor em toda minha vida.
CAPÍTULO 38
– Você fez a coisa certa.
Reilly olhou por cima da divisória que havia no cubículo. Sua supervisora estava encostada contra a repartição, de casaco, maleta numa das mãos e as chaves pendiam na outra.
– E deveria ir para casa.
Reilly sorriu um pouco.
– Só estou recuperando o atraso.
– Sem ofensa, mas isso é besteira... no entanto, não vou te impedir.
– Obrigada – Reilly esticou os braços sobre a cabeça. – Preciso fazer isso. Pelo bem da minha sanidade.
Na tela de seu computador estava a lista preliminar de provas feita assim que a caminhonete de Kroner fora apreendida. Fez uma busca da palavra brinco e agora examinava uma a uma as descrições e as primeiras fotos impressas.
Ainda havia mais ou menos quinze para examinar e, então, passaria um pente-fino na lista principal, que fora finalizada naquela tarde. Precisava entender sozinha coisas como aquelas.
A supervisora assentiu.
– Está certo, eu entendo. E só para te avisar, DelVecchio não retornou minhas ligações... E acabei de ligar para o sargento outra vez. Nada também.
– Quando vai emitir um mandado de prisão contra ele?
– Amanhã, depois do meio-dia, se ele não se entregar para ser interrogado antes.
A acusação seria adulteração de provas. Ela, sua supervisora e o sargento tinham examinado o vídeo de segurança da sala de provas filmado no dia anterior... Viram Veck entrar, olhar todos os objetos catalogados e, em seguida, vasculhar a caixa de coisas que ainda precisavam ser registradas. Esta fora sua oportunidade e, além disso, sua mão esquerda acessou o bolso várias vezes.
Não era uma prova muito concreta, mas combinava com as declarações de Bails e a discrepância na lista – era o suficiente para, ao menos, detê-lo. Além disso, se não atendesse às ligações, havia grandes chances de estarem certos.
– Seja honesta comigo – sua chefe disse. – Teme por sua segurança pessoal?
– Não – talvez.
– Quer que eu designe uma patrulha para sua casa?
– Na verdade, vou para a casa dos meus pais esta noite. E vou ficar com eles um tempo.
– Boa ideia. E considere a patrulha feita – a mulher colocou uma das mãos sobre o ombro de Reilly. – Não se culpe por nada disso.
– Como não?
– Não pode controlar as pessoas.
Mas, pelo amor de Deus, poderia escolher com quem dormiria ou não. Mudando de assunto, disse: – Então, já terminou de conversar com Bails?
– Sim, a declaração dele já está nos arquivos. Pode ler se quiser, é exatamente o que ele já te disse. Saiu há pouco tempo.
– Vou fazer isso. E antes que você diga... sim, eu prometo ir para casa antes da meia-noite.
Sua chefe já estava quase na porta quando disse em voz alta: – Quando vai conversar com os Barten sobre isso?
– Quando tudo estiver acertado aqui. Aqueles pobres coitados já passaram pelo inferno e voltaram, e a ideia de que um policial pode ter assassinado a filha deles vai piorar muito as coisas. Especialmente com o nome DelVecchio associado ao caso.
E ainda teriam que levar em conta que Veck esteve na casa deles.
Naquele momento, as palavras dele foram repetidas em sua cabeça: Eu levei aquele cara até a casa de uma vítima.
Deus, era um ótimo mentiroso.
– Ligue para mim se quiser conversar – sua chefe murmurou.
– Farei isso. E obrigada de novo.
Ao ficar sozinha, pensou em Jim Heron, o “agente do FBI”, o que havia “mostrado” a caverna onde os restos mortais de Sissy foram encontrados. Veck foi brilhante ao interpretar aquela cena. Tão surpreso quando tudo aconteceu. Tão profissional depois.
E quanto à falta de pegadas nas pedras? Heron poderia ter acampado ali durante horas, esperando que Veck levasse-a na direção certa, as solas dos sapatos secaram percorrendo o local. E todos ficaram tão paralisados ao encontrar o corpo que ninguém procurou por ele. Um grande erro.
Estava claro que Heron e Veck trabalhavam juntos.
Reilly soltou um palavrão e voltou a prestar atenção na tela. A última entrada de “brinco” na lista preliminar não demorou para ser examinada e, como esperava, não havia nada parecido com uma pomba ali. Como Bails dissera.
Quando passou para a versão final, com suas fotografias tiradas por um microscópio, a catalogação era tão sucinta que levaria apenas alguns minutos para encontrar o brinco. A discrepância não havia sido notada, mas seria, em breve.
– Que confusão – ela murmurou ao abrir o arquivo de Sissy para rever as fotos da autópsia.
Deus, era fisicamente doloroso só de olhar.
Ao longo dos anos trabalhando na polícia, tinha visto muitas coisas horríveis, mas a situação de Sissy era a pior. Talvez por ter se envolvido pessoalmente, graças a algumas decisões estúpidas de sua parte.
Cansada, mas ainda incapaz de ir embora, decidiu perder algum tempo na internet. Introduziu o nome Thomas DelVecchio Jr., e o Google lhe deu milhares de referências em dezessete segundos. Descendo a tela com o mouse, clicou e abriu alguns blogs e sites... Apenas para se sentir cada vez menos impressionada com a humanidade. Não que precisasse de ajuda naquele departamento.
Havia tanta adoração pelos motivos errados... Reilly ficou se perguntando quantas daquelas pessoas achariam divertido se a própria filha ou a própria mãe tivessem sido uma das vítimas. Ou se alguma delas em si tivesse caído nas mãos de DelVecchio... e sido ferida por suas facas.
Refinando a busca para pesquisar sobre as vítimas, achou muitas referências da primeira mulher que fora assassinada, incluindo algumas fotos da autópsia. E uma comparação lado a lado entre Sissy Barten e Suzie Bussman resultou em algo que ela já sabia: o método e as marcas eram os mesmos.
Que maneira de homenagear o pai. Deus, até mesmo os nomes eram muito semelhantes, de uma maneira assustadora.
Recostando-se profundamente em sua cadeira, seus olhos iam e vinham entre as duas metades da tela – e deu-se conta de que rezava para que encontrassem provas suficientes para condenar Veck. Tudo o que tinham até agora era o brinco plantado em meio às provas, a declaração de Kroner com relação à pedreira e o fato de que Veck estivera na casa dos Barten. Porém, todos tinham lidado com o caso como se Kroner tivesse feito aquilo. Ninguém tinha olhado para Veck – mas isso estava mudando agora. Sua mesa, computador e armário já tinham sido revistados e tudo foi apreendido. Sua casa seria interditada para fins de investigação. E, assim que aparecesse, seria levado direto para um interrogatório. Contudo, talvez ele tivesse fugido...
Reilly ergueu-se e girou na cadeira.
O batimento cardíaco rugia nos ouvidos, abafando o som do sistema de aquecimento instalado no teto e o zumbido do equipamento de informática... e o ranger que ouviu atrás dela.
Olhando para o teto, observou a câmera de segurança em uma das extremidades. A luz vermelha no centro da máquina piscava lentamente, o ciclo preguiçoso das ondas emitidas por aquele sinal indicava que estava funcionando.
– Quem está aí?
Ninguém respondeu, pois não havia ninguém ali. Certo?
Ouviu a própria respiração por um tempo e, então, pensou: Certo, isso é besteira – não seria intimidada no seu maldito departamento.
Empurrando com força a cadeira, andou pelos cubículos vazios e verificou as salas de reunião e os escritórios. Na volta, percorreu todo o caminho até a porta principal, abriu-a e olhou para os dois lados do corredor.
Virou-se rapidamente, quase esperando encontrar alguém atrás dela. Ninguém.
Praguejando baixinho, voltou para sua mesa, sentou-se e... quando o celular tocou, deu um pulo e colocou uma das mãos sobre a garganta.
– Ai, cale essa boca.
Difícil saber se estava dirigindo-se ao celular ou à sua glândula produtora de adrenalina.
Pegou a coisa, aceitou a ligação e exclamou: – Reilly.
– Como você está?
Ao som da voz do detetive De la Cruz, respirou fundo.
– Já estive melhor.
– O sargento me ligou.
– Que confusão – aparentemente, aquela era sua nova trilha sonora.
– Sim.
Houve uma longa pausa, preenchida pelo mesmo tipo de silêncio que marcou a viagem de volta dela e de Bails do hospital até a delegacia: Que diabos aconteceu – era a mensagem subentendida sem que se dissesse uma palavra.
– Alguém te contou sobre a outra parte da história? – ela perguntou.
– Que você e Veck estavam... ah...
Ela teve que fazer uma careta.
– Foi um péssimo julgamento de minha parte. Pensei que o conhecia, pensei mesmo.
– Isto é difícil, não? – as palavras foram ditas com um cansaço que vinha de toda uma experiência pessoal. – No final, só se conhece de verdade a si mesmo.
– Tem toda razão... e estou contente por ter ligado. Quando isto tudo acabar... e ficar tudo...
– Tudo o que as pessoas pensarão é que ele é um idiota. E esse é o melhor cenário que ele poderá vivenciar.
Assassino seria outra palavra muito ouvida, sem dúvida.
– Você vai superar isto – De la Cruz disse. – Só queria que soubesse que pode me ligar se precisar de qualquer coisa.
– Está sendo muito... gentil.
– Parceiros são uma coisa complicada. Já tive alguns.
Mas aposto que nunca dormiu com um deles – Reilly pensou.
– Obrigada, detetive.
Depois que Reilly desligou o telefone, ficou olhando para o nada. Deus, será que aquela história de Veck encontrar sua mãe morta era mesmo verdade? Ou teria sido apenas outra maneira de jogar com as emoções?
Bem, só havia uma maneira de descobrir... Não levou muito tempo para localizar algumas referências em blogs amadores relacionadas a esse capítulo em especial na história da família DelVecchio. Leu tudo sobre como Veck tinha descoberto o corpo, como foi interrogado e como foi inocentado de qualquer envolvimento com base nas evidências físicas: apesar de suas impressões digitais estarem por toda casa, não havia nada sobre a vítima, também não havia sangue sob as unhas, nem sobre as roupas ou em locais como o seu banheiro ou sua cama.
Com o corpo de Sissy Barten foi a mesma coisa: não havia qualquer evidência que ligasse Veck ao assassinato. Porém, Veck era um detetive que sabia exatamente o que fazer para não deixar nada para trás. Fato que a fez se perguntar sobre a mãe dele. E ficar preocupada.
Deus... E se ele conseguisse se livrar desta? As implicações de ser demitido por plantar provas eram muito menores que a acusação de assassinato processada com sucesso. Poderia ficar sem emprego, mas livre nas ruas. E se tivesse a mesma tendência do pai, de escorregar entre os dedos da Segurança Pública, poderiam se passar anos antes de alguém conseguir prendê-lo.
Enojada com tudo aquilo e, aparentemente, procurando ficar ainda mais, acessou o Facebook e digitou Thomas DelVecc...
Não precisou de muito para visualizar vários resultados. Indo de página em página lentamente, observou os fã-clubes aos quais Veck tinha se referido. Ao menos não havia mentido sobre aquilo.
O maior grupo tinha 20 mil membros. Acessou o mural e observou as fotografias alinhadas na parte superior da página; em seguida, viu as postagens posicionadas na vertical. Tudo sobre a execução. Tudo sobre a adoração.
Recostou-se para trás na cadeira e ficou encarando a tela. Passou-se um longo tempo antes de desligar o computador e pegar seu casaco.
– Quem é essa tal de “ela”? – Veck perguntou atrás do volante da caminhonete de Heron. – A quem meu pai se referiu?
Sentado ao lado do cara, Jim não olhava para nada. Tinham pelo menos mais uma hora antes de chegarem em Caldwell, então, havia tempo de sobra para jogar conversa fora... Mas não estava com muita pressa de falar sobre o clima, muito menos sobre Devina e Sissy.
Quer que saiba que ela sofreu.
Aquele demônio era uma tremenda vadia.
Veck soltou um palavrão.
– Maldição, é melhor um de vocês começar a falar. E se não quer me dizer nada sobre a garota, então é bom explicar que porcaria foi aquela de exorcismo.
Jim bateu a ponta do cigarro pela fresta da janela e decidiu enfrentar a última opção, em vez da primeira.
– Você não é nossa primeira tarefa. A primeira alma que salvamos... foi salva dando a Devina uma ordem de despejo.
– Devina?
– Um demônio em forma de mulher, cara.
– Foi ela quem sofreu?
– Quem dera – Adrian murmurou do banco de trás.
Jim concordava muito com ele.
– É assim que funciona. Devina é um demônio... E se precisa de mais explicações além desta, pense na sabedoria popular e terá uma boa imagem dela. Ela entra em alguém e gradualmente influencia suas escolhas e decisões. Em dado momento, a pessoa chega à encruzilhada e tem que escolher. Dependendo do caminho que decide percorrer, de como o segue, das ações que pratica... Tudo isso determina onde vai acabar. E o andar de baixo é um lugar maldito e quente demais, se é que entende o que quero dizer.
– Inferno.
– Isso.
Nesse momento, Jim pensou no pai daquele homem. Cara, aquele ser era pura maldade. E se fosse isso que estava vinculado a Veck?
– Vou acabar lá? – disse Veck suavemente, como se estivesse falando sozinho.
– Não, se pudermos ajudar.
Contudo, como diabos fariam isso? Especialmente levando em conta que Veck parecia mais misterioso desde que deixara aquela sala de visita. Mais irritado. Muito distante, mesmo estando tão perto.
Por que diabos Eddie teve que morrer? – Jim pensou. Precisavam tanto dele naquela situação.
Devina era uma tremenda vadia.
– Reilly está em perigo? – Veck perguntou asperamente.
– Quanto maior a distância entre vocês dois, melhor.
O cara soltou um palavrão novamente e murmurou: – Missão cumprida.
– É realmente mais seguro assim. Ela produziria mais danos colaterais e Devina adora isso.
Na lateral da rodovia, viram uma placa verde com letras brancas na qual se lia “CALDWELL 55”.
Quantos cigarros ele ainda tinha?
– Então, quem é “ela”? A que sofreu?
Ah, sim. Aquela pergunta iria ajudar muito seu humor.
– Alguém com quem me importo.
– Sissy Barten – Veck olhou para ele. – Certo? Kroner disse a mesma coisa, exatamente com as mesmas palavras, quando conversou com Reilly sobre ela. E você já havia dito que era pessoal.
– Disse mesmo.
– Então, o que são aquelas marcas no estômago da garota?
– Devina não conhece os modernos sistemas de segurança e alarme. Ela usa virgens – Jim endireitou-se em seu assento, seus músculos ficaram rígidos quando o impulso assassino foi acionado. – O que viu em Sissy é a maneira como ela consegue se proteger.
– Que... inferno. Então, a primeira vítima do meu pai...
– Talvez Devina o tenha obrigado a fazer aquilo como prova de fé. Talvez ele tenha apenas ajudado. Quem sabe?
– Há quanto tempo isso vem acontecendo? Entre você e o... – a pausa que se seguiu sugeria que Veck ainda estava se acostumando a pronunciar a palavra demônio.
– Há algumas semanas. Mas houve pessoas antes de mim... E ainda haverá depois se eu conseguir que você não siga o caminho que ela quer que você siga.
Jim olhou para as mãos do detetive. Envolviam com tanta força o volante que era um grande milagre ainda não o ter arrancado.
Certo, aquele tipo de fúria não agiria a favor deles: seria um estopim para Devina... Se ela atingisse o ponto certo, teriam que lidar com uma grande explosão. E Veck era um cara grande e forte capaz de matar pessoas com as próprias mãos e, provavelmente, fora treinado para isso.
Maldição, Jim odiava aquela espera.
– Aliás, vamos ficar com você esta noite.
– Imaginei. Só tenho uma cama, mas tenho um sofá.
– Estou mais interessado em parar em alguma loja de conveniência – abriu o maço de cigarros. – Está acabando.
– Tem uma perto da minha casa.
– Legal.
Veck colocou a mão no bolso e pegou o celular.
– Vou deixar ligado.
Enquanto Jim fervilhava de frustração, olhou para a janela ao seu lado em direção à estrada escura, perguntando-se quando as coisas...
– Que inferno – Veck murmurou. – Meu maldito telefone está estranho.
Quando Jim virou a cabeça lentamente, pensou: O tempo de espera acabou. Lá vamos nós...
CAPÍTULO 39
No Paraíso, Nigel jogava contra si mesmo. Xadrez.
Na verdade, era um pouco chato, mesmo seu oponente estando muito bem vestido e sendo incrivelmente astuto: acompanhava todos os movimentos que fazia, então, a falta do elemento surpresa não era nada desafiadora... apesar das estratégias brilhantes e ostensivas.
– Xeque-mate – disse alto em meio ao silêncio de seus aposentos.
Quando não houve qualquer palavrão, nenhuma acusação de práticas desleais, nenhum protesto ou exigências de revanche, lembrou-se outra vez por que motivo jogar com Colin era muito mais gratificante.
Levantando-se, afastou-se da mesa e deixou as peças como estavam: apenas duas sobre o tabuleiro, uma rainha branca e um rei preto.
O desejo de deixar sua tenda e sair andando pelo gramado em direção ao castelo, seguir até o rio, até o local onde Colin dormia, perfazia um impulso irresistível, que ultrapassava os limites mentais e chegava aos físicos.
Mas já fora levado por aquela loucura uma vez e foi muito constrangedor. Não faria isso novamente.
Distraído pela dor no peito, andou em volta da cama, entrou no banheiro e voltou ao quarto outra vez. Na verdade, não estava prestando atenção em nada exatamente... Bem, isso desde aquela refeição horrível... Quando a honestidade de Colin havia acertado em cheio o ego arrogante e irritadiço de Nigel.
Estranho como a posição de alguém mudava. Enquanto o tempo passava como uma corrente preguiçosa num grande rio de águas tranquilas, sua reação defensiva e impetuosa tinha se transformado em algo mais moderado... Preparando-o até mesmo para a possibilidade de se desculpar, desde que um pedido de desculpas fosse oferecido em troca. Prova de que milagres poderiam acontecer.
Infelizmente, tinha plena certeza da resposta que receberia e, conhecendo a si mesmo, bem como ao outro arcanjo, reconhecia que uma nova rodada de discussões não beneficiaria nenhum deles. Ainda assim, quem sabe Colin não poderia tomar a iniciativa de fazer as pazes?
Na verdade, embora Nigel não admitisse isso a ninguém, ele havia pulado várias das últimas refeições e passava o tempo todo ali, na esperança de que o arcanjo se aproximasse. Porém, a situação estava ficando inaceitável. Tal passividade não fazia parte de sua natureza e paciência era uma virtude da qual possuía muito pouco...
– Nigel? – veio uma voz do outro lado dos aposentos.
Nigel rangeu os dentes, mas conteve o palavrão que desejava proferir ajeitando duas vezes a gravata. A última coisa que precisava era de um visitante que não fosse Colin. Contudo, era pouco adequado punir um inocente bem-intencionado.
– Byron, meu velho – murmurou, indo para a entrada –, como estás...?
No momento em que afastou a pesada cortina de cetim e viu o rosto do outro arcanjo, ficou paralisado.
– O que foi?
– Colin... está aqui?
– Não.
– Não conseguimos encontrá-lo – Byron brincava com os botões de metal das mangas do casaco. – Quando ele não se apresentou para a refeição noturna, concluímos que estivesse estudando e o deixamos em paz. Mas, antes de começar, fui procurá-lo com algumas provisões. Não estava em sua tenda. Nem nas fontes de água. Nem no castelo... e nem aqui, pelo que vejo.
Nigel balançou a cabeça ao mesmo tempo em que se concentrou para ouvir seus sentidos – e não encontrou sinal algum do anjo. Na verdade, se não estivesse tão preocupado consigo mesmo, reconheceria antes o que notava claramente agora: Colin não estava no local.
Houve um breve impulso de ceder ao pânico, mas Nigel controlou a reação emocional. E, pensando logicamente, ele sabia que havia apenas um lugar para onde aquele todo iria.
Por que não havia previsto aquilo?
– Não se preocupem – disse Nigel gravemente. – Vou sair e o trarei de volta.
– Quer ajuda?
– Não – pois não se responsabilizaria pela punição que daria ao arcanjo. Conflitos pessoais eram uma coisa, insubordinação era outra completamente diferente. E este último item não seria negligenciado, de forma alguma.
Apenas com a força do pensamento, seu roupão e chinelos com monogramas transformaram-se num terno cinza-claro, uma camisa de um branco brilhante, uma gravata xadrez de tons suaves e um par de asas.
– Vá e console Bertie e Tarquin – disse ao outro arcanjo. – Sem dúvida estão preocupados. E saiba que não devo demorar.
– Aonde vai?
– Para onde ele está.
Com isso, Nigel saiu, atravessando a barreira que os ligava ao mundo lá embaixo. E, quando retomou sua forma corpórea, viu-se diante de uma garagem de dois andares de distinção modesta no interior do país.
Pensou em Edward descansando ali.
Que local comum para uma alma tão extraordinária.
Com uma concentração sombria, Nigel subiu as escadas estreitas e passou pela porta como se não fosse nada além de um véu de névoa. Não havia razão para abrir as portas. Com certeza já havia anunciado sua presença.
E Colin não pareceu chocado com a invasão. O arcanjo estava sentado num sofá gasto sob uma grande janela, descansando com um dos braços estendido sobre as almofadas e as pernas cruzadas, com um dos tornozelos sobre o joelho.
Nigel relembrou cada ângulo e linha daquele belo e rígido rosto masculino. Em seguida, observou os olhos negros e os lábios volumosos.
– Pensou que sua ausência não seria notada?
– Pareço surpreso com sua chegada?
– A maneira adequada de agir diante destas situações é pedir permissão antes de sair.
– Talvez para Byron e Bertie. Mas não para mim.
– Eu não teria negado.
– Como poderia saber?
Quando Nigel franziu a testa, sua ira diminuiu de repente, em seu lugar, sentiu a exaustão. Como os seres humanos suportam aquele turbilhão emocional? E por que havia permitido que seu coração sentisse aquilo? Não era nada bom. Além disso, não poderia continuar. Quando se dirigiu ao arcanjo outra vez, foi com serenidade.
– Colin, parece que você e eu alcançamos nossa própria encruzilhada. Por mais que eu esteja preparado para reconhecer certos... erros de julgamento da minha parte... temo que não seja suficiente para você, assim como água não é suficiente quando a necessidade real é de sangue. Além disso, acredito que, na sua tentativa de assumir uma posição lógica, a verdade sobre você mesmo se perdeu. Suas paixões te governam muito mais do que imagina e te levam em direções que comprometem nossos interesses coletivos.
Os olhos de Colin desviaram-se.
– Portanto, devo sugerir que deixemos no passado nossa relação íntima para que possamos assumir uma distância apropriada. Talvez com o tempo, possamos também voltar a trabalhar juntos em harmonia. Porém, até que isso ocorra, eu espero que se comporte de maneira adequada ou vou remover qualquer influência que possa exercer sobre a presente situação.
Quando não houve resposta imediata, Nigel caminhou até uma cozinha e parou diante de uma porta pequena e baixa. Atrás daquela frágil barreira repousava Edward, sem respirar, mas também sem se deteriorar, o corpo do anjo era como um vaso exalando o perfume de flores que não estavam ali.
Colin foi inteligente ao se dirigir àquele local, pensou Nigel. Com Jim e Adrian guerreando intensamente com Devina, aquele vaso não estava seguro – e, se fosse quebrado ou comprometido, não haveria como restaurar a alma de Edward.
Contudo, mesmo que permanecesse intocado, era impossível saber quando retornaria. Coisas dessa natureza estavam sob a alçada do Criador e dele somente. Além disso, seria um acontecimento sem precedentes. Mas mesmo assim, Colin deveria...
– Eu deveria ter dito onde estava indo – o arcanjo disse bruscamente. – Você está certo neste ponto.
Nigel virou-se. O anjo ainda estava no sofá, ainda estendido, mas tinha erguido os olhos, encontrando os de Nigel.
– Isto é um pedido de desculpas? – disse Nigel.
– Entenda como quiser.
Nigel balançou a cabeça e pensou: Não está bom o suficiente, velho amigo. Simplesmente, temo que ainda não seja o suficiente.
Ajeitando as mangas da camisa, puxou as abotoaduras de ouro e afirmou mais uma vez: – Estou me esforçando para ganhar este concurso vital da melhor maneira que conheço... Ou seja, dentro dos limites dúbios próprios deste jogo. Não posso aceitar a afirmação de que dois erros façam um acerto. Não vou aceitar.
– Não se iluda – Colin murmurou ao erguer uma das mãos e flexionar os dedos. – Nossas mãos estão limpas, como você diz.
– E veja como isso acabou. Edward está morto.
– Você não é o culpado por isso.
– Sou sim – Nigel balançou a cabeça. – É o que você não entende. Tudo isso é minha responsabilidade. Pode ter suas opiniões, suas discordâncias, sua ira, mas, no final, seus ombros não sentirão o peso de arcar com o ônus da derrota, se este for o resultado. Essa função é minha e só minha. Portanto, enquanto menospreza meu controle, você vê as coisas da vantajosa posição onde pode comentar sem sofrer consequências.
Com isso, Nigel andou até a porta.
– Estou feliz por você estar aqui e sei que protegerá bem algo tão precioso.
– Nigel.
Olhou por cima do ombro.
– Colin.
Houve um longo momento de silêncio. Quando pareceu que nada mais seria dito, Nigel olhou para a cozinha e pensou sobre a natureza da perda: é possível escolher certas coisas, outras não. Algumas eram impostas. E... outras eram permanentes.
– Vejo você mais tarde – disse Nigel, finalizando a conversa e saindo.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
Quando o último raio de luz solar esvaiu-se do céu, os restos mortais de Sissy Barten tinham sido embalados e removidos da caverna cuidadosamente.
Veck foi um dos rapazes que seguraram as alças da maca, sustentaram o peso do corpo e tiraram-no dali, levando-o para o ar limpo. Ele ficou por perto ao longo da tarde, mas preferiu ficar em segundo plano, limitando sua participação a tirar fotos com o celular, conversar com o médico-legista e ajudar sempre, sempre e sempre que possível com detalhes desnecessários. Reilly fazia o mesmo. E, então, a única coisa que havia para ser feita ali era subir o corpo até a encosta.
– Vamos por aqui – disse aos outros. – É o melhor caminho que temos.
Os quatro dirigiram-se para o norte e seguiram pelo caminho menos obstruído – algo muito relativo. E havia muita gente esperando a chegada do corpo.
Naturalmente, as equipes de reportagem tinham chegado e se posicionado nas margens da pedreira. Só Deus sabia quem os havia alertado. Com certeza não havia sido ninguém que estava exercendo uma função oficial ali. Mas, afinal, era uma área pública e, além da cidade inteira saber que a polícia havia capturado Kroner e que o cara se recuperava no Hospital São Francisco, também sabiam sobre a vítima naquele hotel e sobre as outras garotas mortas. O fato de alguns oficiais uniformizados começarem a percorrer uma área remota com um monte de lugares obscuros não indicava que alguém estivesse dando uma festa de aniversário em meio àquele amontoado de rochas. Além disso, agora havia um corpo envolvido num saco plástico.
Sobretudo, qualquer idiota tem um celular hoje em dia. E foi por isso que, no exato instante após a identificação do corpo com fotografias e marcas de nascença, De la Cruz saiu correndo da cena e entrou no carro. Embora o Departamento de Polícia de Caldwell não fosse liberar o nome à imprensa antes da família ser notificada, já havia inúmeros e-mails, mensagens de texto e ligações na delegacia – e não tinha como saber quem havia deixado escapar para a esposa, que tinha contado para a irmã, que, por sua vez, disse a alguém de um canal televisivo. Às vezes, a era da informação podia ser um saco. Ninguém desejava que os Barten soubessem sobre sua filha no jornal da noite... ou, que Deus os livrasse, no Facebook.
Enquanto Veck e os outros três rapazes resmungavam, estendiam-se, puxavam e levantavam, Reilly estava bem ao lado deles o tempo todo, direcionando a lanterna e iluminando o caminho enquanto começava a escurecer. E a escuridão parecia cada vez mais densa. Até ficar escuro como breu.
Quase uma hora depois, chegaram ao topo e colocaram os restos mortais na parte de trás de um dos veículos de resgate com todo cuidado.
Veck e Reilly ficaram para trás enquanto Sissy Barten era levada com segurança de volta à cidade.
Quando os outros oficiais começaram a se dispersar e os motores foram acionados, ela disse em voz baixa: – Não acho que...
– Kroner não a matou – Veck concordou com suavidade.
– O modus operandi não se encaixa.
– Nem um pouco.
E não foram os únicos que notaram a discrepância entre Sissy e as outras vítimas: aquele corpo fora suspenso pelos calcanhares e o sangue drenado... havia um desenho arranhado sobre o estômago. Além disso, apesar de estar nua e sem qualquer objeto pessoal, não havia manchas na pele que indicassem que alguma parte fora removida e nada que sugerisse abuso sexual – seria outra perversão típica de Kroner?
– Só não sei como explicar o brinco – Veck murmurou.
– Ou por que Kroner sabia onde ela estava se não a matou.
Veck olhou para sua parceira.
– Quer comer em algum lugar?
Apoiando os braços sobre a cabeça, ela espreguiçou-se.
– Sim, por favor. Estou faminta. E exausta.
Ele pegou o celular e enviou uma mensagem de texto: Sua casa? Você poderia tomar um banho. Comida pronta, prometo ser gentil.
Houve um sinal sonoro discreto e, depois de trocarem algumas palavras, ela pegou o telefone sorrateiramente e olhou a tela.
– Que plano perfeito.
O impulso que sentiu foi de beijá-la rápido e com firmeza. Mas se conteve a tempo, pois não estavam sozinhos. Alô! Estavam cercados de pessoas com quem trabalhavam.
Queria voltar com ela, mas teriam que seguir separados, graças a sua maldita moto. Caramba, e pensar que costumava gostar daquela coisa... Se não fosse por ela, Reilly não o teria levado para casa na noite passada.
– Vejo você em vinte minutos... – disse a ela.
– Tem certeza de que não quer um casaco extra?
– Vou ficar bem.
Ao caminhar pelo chão poroso e lamacento, Veck pensou em Jim Heron e na falta de pegadas. Passou mais algum tempo procurando evidências de que mais alguém, além dele e de Reilly, tivesse percorrido a área, mas não havia nada. No entanto, tinha plena certeza de que aquele homem não poderia ter atravessado todo o terreno molhado e irregular sem deixar qualquer vestígio. E Veck não imaginara a aparição daquele cara.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio. E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente. Sou o único que pode te ajudar.
Tanto faz, Heron.
Resistindo à tentação de gritar para as sombras, montou na moto, ligou o motor e esperou Reilly abrir o porta-malas e tirar as botas imundas. Ao menos aquilo o fez sorrir. Podia apostar que ela tinha um saco plástico ou tapete de borracha lá dentro para colocar os objetos sujos. Provavelmente, assim que chegasse em casa, lavaria imediatamente as botas para que estivessem prontas para o próximo uso.
Olhou para os próprios pés. Seus sapatos estavam arruinados. Do tipo que deveriam ser destinados a um saco de lixo, não serviriam nem se limpasse e engraxasse.
O difícil era encontrar outros em uma situação diferente daquela.
Reilly assumiu a dianteira e Veck seguiu-a pelo caminho até a cidade, mesmo congelando, pois dirigir a 110 quilômetros por hora numa noite como aquela era como sofrer o frio de um rigoroso inverno. A jaqueta não resolvia nada. Parecia estar de regata e nada mais, o frio o castigava. Mas não se importava com a temperatura. Em sua mente, voltou para o banho que havia tomado depois do pesadelo na floresta com Kroner, quando sentiu a presença obscura de algo envolvendo-o, falando com ele e acariciando-o, quando sentiu o maior de todos os seus medos. Não era daquele mundo. Nunca tinha sido.
Então ouviu a voz de Reilly: É como se tivesse caído do céu.
Deus, ele estava enlouquecendo. Só podia ser. Pois estava considerando, de fato, que Jim Heron não existia. Será que existia?
Mais ou menos dez minutos depois, saíram da estrada e seguiram o caminho em direção ao bairro de Reilly. Foi um alívio observar que tudo continuava bem e seguia normalmente: as casas iluminadas, TVs ligadas dentro delas, carros passando devagar e lojas nas esquinas com propagandas da loteria. Tudo poderia ser fácil e concretamente explicado. E quem poderia imaginar que Veck invejava aquilo?
Quando chegaram à casa de Reilly, estacionou atrás dela e saltou da moto enquanto ela entrava na garagem, as luzes vermelhas dos freios brilharam e desapareceram assim que ela desligou o motor.
– Deveria usar um capacete – ela disse ao sair, ir até o porta-malas e pegar as botas enlameadas.
Obviamente, depois disso, acendeu um interruptor, levou as botas até a mangueira do jardim que estava num canto na frente da garagem e lavou a sujeira. Quando olhou para ele outra vez, corou um pouco.
– Do que você está rindo?
– Tinha a sensação de que você faria isso.
Ela riu e voltou a se concentrar em seu trabalho de limpeza.
– Sou tão previsível assim?
Achou que a palavra supersexy também a definiria muito bem. Cara, mesmo uma tarefa trivial valia muito a pena observar.
– Você é perfeita – murmurou.
– Não sou, não, pode confiar em mim – desligando a água, balançou as botas, secou-as com uma flanela e colocou-as de volta no porta-malas.
Juntos, entraram na sua cozinha de galos e mais luzes foram acesas. A primeira coisa que Veck olhou? A mesa. A excitação foi instantânea. Assim como o replay mental da noite de dois dias atrás, quando fez muito mais que beijá-la ali. Aquela sensação, no entanto, não durou muito.
Pela porta de entrada do escritório, viu que ela tinha reorganizado os móveis: a poltrona tinha sido puxada para um canto, posicionada num ângulo mais aberto e havia uma mesa pequena ao lado dela. Deduzindo, imaginou que, se alguém sentasse ali, poderia observar tanto a porta da frente quanto a dos fundos de costas para uma parede sólida.
– Quer tentar uma pizza outra vez? – ela perguntou perto do telefone.
Virando a cabeça em direção a ela, disse um tanto rude: – Por que não me disse?
– O quê?
– Que andou sendo observada também.
Jim não esperou os restos mortais de Sissy serem retirados da pedreira e levados em direção à cidade. Em vez disso, separou-se de Veck, deixando Adrian com o cara e seguiu em direção à casa da família com um detetive baixinho de aparência séria que murmurava algumas coisas em espanhol.
Ele havia dito “Madre de Dios” várias vezes e feito o sinal da cruz tantas outras que já parecia ter um tique nervoso na mão.
De la Cruz não percebeu que tinha um passageiro em seu carro: Jim deu uma de copiloto no caminho de volta para Caldwell. Sim, claro, poderia sobrevoar pela noite, mas aquilo lhe daria tempo para se recompor.
Além disso, a introdução ao espanhol era instrutiva.
Vinte minutos depois de terem deixado o local, o detetive parou em frente à casa dos Barten, desligou o motor e saiu do carro. Ao ajustar as calças, o rosto era sombrio, mas, também, com as notícias que tinha... não era hora de sair exibindo sorrisos.
Na calçada, Jim ficou lado a lado com o homem, sem qualquer desejo de invadir a casa da mãe de Sissy, nem sequer por um momento, mesmo que ela nunca soubesse que Jim esteve ali.
Na porta, De la Cruz ergueu uma das mãos e colocou-a debaixo da gravata, sobre o peito. Havia uma cruz ali. Tinha que ser, especialmente porque ele começou a murmurar algo, como se estivesse rezando...
De repente, o detetive olhou em volta.
E, mesmo que De la Cruz não pudesse enxergá-lo, Jim encontrou aqueles olhos escuros tristes e cansados.
– Você consegue fazer isso. É um bom homem e pode fazer isso. Não está sozinho – Jim falou.
De la Cruz olhou para a porta outra vez e assentiu com ar seguro, como se tivesse ouvido as palavras. Então, tocou a campainha.
A senhora Barten abriu logo depois, como se estivesse esperando.
– Detetive De la Cruz.
– Posso entrar, senhora?
– Sim. Por favor.
Antes de entrar na casa, o detetive deixou os sapatos enlameados sobre o tapete de boas-vindas, e, quando a mulher observou-o, uma de suas mãos subiu até a garganta.
– Você a encontrou.
– Sim, senhora. Encontramos. Tem mais alguém que gostaria que estivesse com a senhora enquanto falo?
– Meu marido está viajando... mas está a caminho de casa. Liguei para ele logo depois que desliguei o telefone com o senhor.
– Vamos conversar lá dentro, senhora.
Ela estremeceu como se tivesse esquecido que estavam em pé na porta.
– Claro.
Jim entrou com o cara e, em seguida, estava mais uma vez na sala de estar, com a senhora Barten sentada na mesma poltrona florida do outro dia. De la Cruz ficou com o sofá e Jim começou a passear pela sala, sua raiva por Devina tornava impossível o ato de permanecer sentado.
– Diga – disse a senhora Barten de repente.
O detetive inclinou-se para frente e manteve os olhos fixos no rosto pálido e tenso.
– Nós a encontramos na pedreira.
Os olhos da mãe de Sissy fecharam-se com força e permaneceram assim. Então, a respiração saiu lentamente, até não restar ar algum em seus pulmões.
Aquilo foi o fim da esperança, Jim pensou. Talvez ela nem soubesse que ainda tinha alguma, mas lá estava, saindo de seu peito oprimido.
– Ela... foi... Ela sofreu...?
De la Cruz falou lentamente e com cuidado.
– Não temos certeza se ela faz parte dos assassinatos mais recentes.
Os olhos da senhora Barten abriram-se outra vez, seu corpo ficou rígido.
– O quê...? Então quem? Por quê?
– Ainda não tenho as respostas, senhora. Mas tem minha palavra: não vou parar até descobrir tudo e capturar o bastardo.
Jim não aguentava mais. Aproximou-se da mãe de Sissy e colocou sua mão invisível sobre o ombro dela. Deus... a dor que havia ali... podia sentir claramente, como se fosse sua própria dor, e, desejando aliviá-la da carga, puxou a emoção para si e conteve-a até seus joelhos dobrarem-se e começar a sentir tonturas.
De repente, como se estivesse fortalecida, a mulher endireitou os ombros e ergueu o queixo. Em voz baixa e forte, disse: – Como ela morreu?
– Senhora, precisamos que o médico legista nos diga isso. Ele está com ela agora e vai trabalhar a noite inteira para cuidar dela. Está em boas mãos e, depois que eu sair daqui, vou direto para lá. Não vou deixá-la, senhora. Não até que tenham terminado todos os exames. Tem minha palavra.
– Obrigada – a senhora Barten respirou fundo. – Como vou saber o que está acontecendo?
De la Cruz pegou um cartão e escreveu alguma coisa nele.
– Este é o número do meu celular. Pode me ligar a qualquer hora, dia ou noite. Meu telefone está sempre ligado e sempre comigo. E, assim que o médico terminar, a senhora será a primeira pessoa para quem vou ligar.
A senhora Barten assentiu e, em seguida, mudou seu foco. Os olhos alcançaram um meio-termo infinito entre ela e o detetive.
De qual parte da vida de Sissy ela estaria se lembrando? – Jim se perguntou. O nascimento... os aniversários... os feriados de Natal ou de Páscoa? Seria o Halloween ou o Dia da Independência? Ou nenhum feriado em particular, apenas alguma lembrança que veio de repente de um momento doce entre elas? Ou talvez qualquer expressão de bondade, empatia ou humor por parte de Sissy para com alguma outra pessoa...
Jim queria ver o que ela via, mesmo que não fosse bom ou nada demais. Mas não se infiltraria nela. O que havia acontecido com a filha já era suficiente...
A vibração que sentiu no peito não era o seu coração, era o telefone. Pegando o celular, leu a mensagem de Adrian: “Tentando entrar em contato e nada. Preciso encontrar você agora”.
Jim não queria partir, mas estava fora da casa num segundo. Dirigindo-se para o leste, concentrou-se em Adrian...
E ele apareceu em meio a uma luta no gramado dos fundos da casa da parceira de Veck.
Que porra...?
Parecia que os subordinados de Devina surgiram fervilhando na noite, seus corpos esfumaçados circulavam ao redor de Adrian como abutres sobre um cadáver. Mas ao menos seu amigo não estava à beira da morte... E, considerando a posição de luta que seu corpo forte tinha assumido, não estava nem perto disso.
Jim posicionou-se para a luta imediatamente e não esperou o sinal do juiz para começar. Entrou com tudo, lançando-se contra o inimigo mais próximo, enfrentando-o com força. Quando o bastardo gritou, o som estridente mudou tudo – numa fração de segundo, as coisas ficaram selvagens.
Segurando o filho da mãe, Jim fechou o punho e destruiu a coisa com um golpe na “cabeça”. Em seguida, conseguiu tirar vantagem do segundo de paralisia para olhar ao redor e lançar um escudo visual e auditivo em torno daquele show de horrores. Era um bairro de família, não um campo de guerra. E toda aquela luta mano a mano acontecia a alguns metros de distância de três outras casas. Todas cheias de linhas telefônicas aptas a chamar a polícia. Não precisavam nem um pouco que os caras do Departamento de Polícia de Caldwell aparecessem.
Sacando sua adaga de cristal, feriu o demônio que detinha e, então, começou a esfaquear tudo o que aparecia pela frente, cortando e dilacerando, lançando sempre a ponta afiada da arma que Eddie havia lhe dado e ensinado a usar.
Tudo o que sentia resultou em violência, toda dor e fúria foram desencadeadas, a ponto de não perceber que o sangue ácido do inimigo estava espirrando em seu rosto. E não se importava que aquela porcaria estivesse corroendo sua jaqueta de couro e ferindo sua pele. Na verdade, não conseguia sentir a terra embaixo de seus pés ao se lançar de demônio a demônio. Estava totalmente entregue e invisível ao mesmo tempo.
Em sua fúria, não conseguiam tocá-lo: eram garotos fazendo serviço de homem e estavam sendo devastados. Depois que Jim esfaqueou outra caixa torácica preta e o jato ácido atingiu seu maxilar e sua garganta, ele desvencilhou-se do corpo e já estava pronto para o próximo...
O golpe em suas costas foi um verdadeiro bote, o tipo de coisa que faz ver estrelas e ouvir pássaros cantar. Mas como soldado bem treinado que era, Jim aproveitou o ímpeto, deixou-se cair ao chão e apoiou-se sobre os ombros no último minuto para evitar mais prejuízos. Quando terminou de rolar e olhou para cima, o demônio que fora atrás dele estava pronto para a segunda rodada.
Certo, muito bem, Jim pensou.
O bastardo tinha pegado uma pá e, obviamente, usou a coisa como raquete de tênis, balançando a ponta de metal e golpeando com ela. E era difícil dizer, mas parecia que saía um riso da sombra tridimensional.
Com certeza, o imbecil filho da puta pensou que estava no comando, e Jim ficou mais que satisfeito em ensinar ao lacaio de Devina uma lição sobre responsabilidades. Mantendo-se abaixado e fingindo estar ferido, esperou a coisa se aproximar – e foi o que aconteceu, como se manipulasse aqueles braços e pernas oleosas com cordas: movendo-se como um robô com articulações rígidas, o demônio aproximou-se equilibrando a ferramenta pesada entre as mãos. Mais perto. Mais perto.
Quando já estava ao alcance, Jim levantou o tronco, pegou o cabo com as duas mãos e puxou com força. O demônio foi lançado para frente e perdeu o equilíbrio, a gravidade tomou conta daquele corpo e o empurrou para cima de Jim... Pelo menos a coisa não estava sangrando.
As botas de Jim atingiram o osso pélvico do inimigo para frear a descida e, em seguida, ele afastou-se e chutou o peso para longe – aproveitando para pegar a pá, claro.
Quando o demônio iniciou o pequeno passeio pelo ar rarefeito, Jim levantou-se, firmou o corpo e foi o primeiro a chegar à nova localização do idiota jogado ao chão. Balançando a pá, deu um fim à questão ao atingir o peito obscuro do bastardo.
Foi bom ouvir o grito. Mas ainda mais divertido foi dar um passo para trás e ver a coisa contorcer-se em câmera lenta. Aparentemente, Jim colocou tanta força no ataque que a ferramenta penetrou no chão, quase um metro, considerando a parte do cabo que ficou exposta. O demônio ficou preso, como um inseto capturado, erguendo os olhos e rosnando.
– É? Então, venha me pegar – Jim deu-lhe um segundo para se levantar. – Não? Prefere bancar o tapete de boas-vindas? Combina com você, seu filho da mãe.
Jim chutou a cabeça com força, como se o crânio fosse uma bola de futebol, e deixou o filho da puta onde estava. Do outro lado do gramado, Adrian estava prestes a ser surpreendido por um demônio que tinha encontrado uma enxada e aproximava-se dele correndo.
– O que é isso? Noite da liquidação de ferramentas? – Jim murmurou ao empunhar sua adaga outra vez. – Atrás de você!
Adrian jogou-se na grama assim que o jardineiro do inferno se lançou. Bem a tempo: o demônio atingiu um dos próprios colegas. O problema? Todo aquele sangue espirraria em Ad.
Jim estava prestes a se jogar sobre ele quando Adrian deu um jeito no problema: deixou os dois enfrentarem-se e saiu do caminho.
Havia apenas dois lacaios em pé à esquerda, e os guerreiros dividiram a tarefa. Jim pegou o que estava todo alegrinho com uma enxada nas mãos e Adrian levantou e começou a andar em círculos ao redor do outro, a adaga de cristal em punho.
Recusando-se a esperar por um golpe, Jim avançou e agarrou a enxada. Ergueu o objeto e lançou-o com força na testa do demônio. Resultado óbvio: Jim continuou a aniquilar a coisa esfaqueando-o com a adaga.
Quando virou-se, observou Ad terminando de lidar com o outro filho da mãe ao abrir um buraco em seus intestinos e, em seguida, cravar a lâmina em sua cabeça. Depois disso, não havia mais nada além de respirações ofegantes, couro fumegante e ferramentas de jardim jogadas ao chão.
Jim olhou ao redor, imaginando onde diabos estava... ah, sim, Reilly tinha um vizinho que possuía aquelas coisas para manutenção do quintal e o compartimento onde guardava tudo foi arrombado. Pena que o cortador de grama continuava no mesmo lugar... teria sido divertido. Poderia dar um novo significado para o conceito de cabelo raspado.
– Você está bem? – perguntou a Ad.
O parceiro, deitado na grama, respondeu.
– Sim.
Os dois tinham arranhões que sangravam, mas, ao menos, Jim estava sentindo-se melhor. A luta tinha lubrificado suas engrenagens e sentia-se mais ele mesmo. Mais calmo. Com maior capacidade de concentração.
Bem a tempo – pensou ao aproximar-se e ajoelhar-se ao lado do bastardo pregado ao chão.
– Você já tentou tirar informações de um deles? – disse enquanto examinava a coisa. Movia-se lentamente, era evidente que ainda estava vivo. Seja lá o que “vivo” significasse.
– Sim. Eles não têm nada a dizer. Não conseguem falar.
– Deve ser por isso que ela gosta deles.
Ad aproximou-se e enxugou o rosto com a ponta da camiseta. A mancha vermelha deixada no tecido poderia servir para aqueles testes psicológicos. Para Jim? Parecia a abertura de uma caverna. Uma caverna escura e profunda que escondia o corpo de uma inocente contra uma de suas paredes.
Sim, essa interpretação não era surpreendente.
Ao ouvir o som de um gemido, Jim pensou: Maldito demônio. Ela era esperta. Se seus subordinados eram incapazes de falar sobre ela por serem mudos, idiotas ou resistentes à dor, era uma boa estratégia para...
– Foi divertido assistir a isto.
Ao som da voz de Devina, Jim e Ad entreolharam-se. Concordaram em silêncio que a aparição dela não era nada inesperada. E, quando levantaram-se e viraram-se para ela, Jim colocou-se na frente do outro anjo. Não perderia outro para aquela vadia. Não naquela noite.
– Se escondendo de mim, Jim?
Os olhos do demônio ergueram-se e fixaram-se nele: eram tão intensos, pareciam enlouquecidos.
Mas que bobagem, ele pensou. Não tinha percebido que ela não conseguia encontrá-lo.
– O radar não está funcionando, Devina? – então foi por isso que Ad tinha sido atacado. Queria atrair Jim.
O demônio andou delicadamente sobre a grama. Usava um sapato com salto tão alto que Jim perguntou-se como ela conseguia respirar com o ar rarefeito ali de cima. Já a saia era do tamanho de um guardanapo e de uma cor tão chamativa quanto os cassinos de Las Vegas.
Soava ridículo, parecia sexy... Desde que não soubesse de fato o que era aquele ser. E Jim nunca iria se esquecer disso.
Estendendo uma das mãos para trás, colocou-a sobre o antebraço de Ad. O outro anjo estava rígido como um bloco de concreto, totalmente imóvel. E continuaria assim: não estava pensando direito ainda para enfrentar o inimigo. Nem Jim, para ser sincero. Mas ela não saberia disso.
– Alguma coisa em mente, Devina?
Ela parou ao aproximar-se de seu soldado morto-vivo que tinha sido reduzido a pedacinhos. Olhando para a coisa, ergueu uma das mãos e, com a urgência de alguém escolhendo um jornal, convocou o ser com a palma da mão, tirando-o do solo na forma de um fluxo e absorvendo a sujeira para dentro de si. Quando terminou, a pá continuava no mesmo lugar, enterrada no chão com o cabo para cima.
– Como está Eddie? – ela sorriu. – Cheirando a rosas?
Jim quis soltar um palavrão. É claro que ela abordaria esse assunto. Era a única coisa certa que faria Adrian enlouquecer. Maldição... E ele já estava pensando que a noite não poderia ficar pior...
CAPÍTULO 31
Quando Reilly encontrou os olhos de seu parceiro, pensou que os dois perderiam outra pizza: parado do outro lado da cozinha, Veck parecia muito chateado e, apesar do comportamento de homem das cavernas incomodá-la, ela sabia que aquilo tinha fundamento.
– Por que não me contou? – Veck perguntou de novo. – Ou, droga, se não para mim, para outra pessoa?
– Quem disse que eu estava sendo vigiada?
– Por que outra razão colocaria os móveis daquele jeito?
Viu? É por isso que não é tão interessante namorar um detetive... Cruzando os braços, Reilly recostou-se no balcão.
– Na verdade, eu não vi nada – encolheu os ombros. – Se tivesse alguma coisa para contar, eu diria. Mas apenas fiquei sentada naquela cadeira a noite toda, imaginando se eu não estava paranoica. Não aconteceu nada.
– Devia ter me ligado – com isso, ela ergueu uma das sobrancelhas e Veck amaldiçoou como se lembrasse de como as coisas tinham ficado entre eles. – Tudo bem, tudo bem... Mas, caramba, não quero você sozinha horas e horas esperando que alguém invada sua casa.
– Fiquei bem. Estou bem. E garanto que, se alguém tivesse entrado em casa, eu teria resolvido a situação.
Murmurando algo meio irritado, Veck aproximou-se e sentou-se à mesa da cozinha. Apoiou os braços sobre os cotovelos e coçou a cabeça.
– Isso está fora de controle.
Qual parte? A ideia de serem perseguidos? A situação com Kroner? O corpo que tinham encontrado? O sexo? A coisa toda envolvendo a palavra “amor”? Tantas opções.
Ao sentar-se na cadeira de frente para ele, pensou em seus pais, sentados juntos à mesa naquela bela casa. Podia apostar que nunca tiveram que olhar um para o outro naquelas circunstâncias...
Quando ouviram um grito vindo dos fundos da casa, ela e Veck estavam em pé antes que o som estridente terminasse. Armas surgiram ao se posicionarem um de cada lado da porta de correr que se abria para o quintal dos fundos. Reilly alcançou o interruptor e apagou as luzes, mergulhando a cozinha na escuridão, em seguida, acionou as luzes de segurança.
Seus olhos observaram o quintal bem iluminado. Não havia muita coisa ali. Era mais como um campo de futebol, e a única visão que tinha era dos pontos que ligavam as outras casas da vizinhança. Nada lá fora. Não que conseguisse enxergar. Mas seus instintos diziam outra coisa. E lembrou-se de todas aquelas pegadas que “Jim Heron” não tinha deixado para trás.
– Acho que estou ficando louca – ela murmurou.
– Engraçado, estou preocupado de que não estejamos.
Quando nada mais aconteceu, esperaram. E esperaram. E esperaram mais um pouco. Finalmente, os dois afastaram-se da porta e recolocaram suas armas no coldre.
– Precisamos de comida. E de um banho – Reilly murmurou. – E de uma avaliação psicológica.
Quando não houve resposta, olhou para seu parceiro. Veck andava pelo cômodo, como se estivesse prestes a levitar. Era evidente que não responderia coisa alguma. Então, entrou na frente dele, obrigando-o a parar ou passar por cima dela. Ele parou.
– Comida. Banho – ela ordenou. – Nessa ordem. Podemos pular a questão do psicólogo por enquanto.
Ele sorriu e acariciou sua face.
– É o seu jeito de me convidar para um encontro?
– Acho que sim, detetive.
– Então, que tal começarmos com um banho? – disse com uma voz grave que a fez pensar sobre o valor da limpeza.
A limpeza meticulosa, devagar, cheia de espuma.
Reilly teve que limpar a garganta antes de falar.
– Por que tenho a impressão de que vamos ficar lá em cima por um tempo?
– Não diga isso – ele aproximou-se mais e colocou as mãos sobre os quadris dela. – Acha que estamos tão sujos assim?
– Que tal imundos? – disse, concentrando-se nos lábios de Veck. – Já passamos do sujo e entramos no território do imundo.
Veck ronronou baixinho enquanto uma de suas mãos percorria as costas de Reilly. A outra desceu mais um pouco e agarrou-a, puxando-a contra ele, de tal forma que o pênis rígido pressionou os quadris dela com força. Ao fazer movimentos sinuosos com a cintura, acariciou com o órgão que já deixava-a sem ar.
Em resposta, Reilly elevou-se na ponta dos pés, arqueou-se sobre ele e colocou os braços em volta do pescoço do homem.
– Veck...
– Sim – ele rosnou.
Inclinando a cabeça para o lado, ela colocou a boca a menos de um centímetro da dele. Com uma voz ofegante e muito sexy, murmurou: – O que você quer na sua pizza...?
Então, ela colocou o lábio inferior entre os dentes e mordeu de leve. Veck gemeu e sentiu o corpo ficar muito rígido.
– Adivinhe.
– Serei a sobremesa...
Não se provocava um homem como Veck. Ele apoiou-a contra a parede, ergueu as mãos dela e segurou-as contra a parede de galos. Pressionando o seu corpo contra o dela para que o sentisse nas coxas e nos seios, assumiu um ritmo alternando movimentos até ela começar a ficar ofegante.
– É melhor fazer o pedido logo – disse, lambendo a garganta dela. – Ou não vou deixar ir até lá e pegar o telefone.
Veck estendeu o braço, aproximando-a do telefone. Mas não parou com o movimento erótico, nem com a língua. Em vez disso, empurrou uma das pernas entre as dela para aumentar o atrito... Ou fazer coisa melhor, dependendo do ponto de vista.
Deus, ela não tinha certeza se conseguiria usar o telefone. Ou lembrar-se do número da pizzaria para a qual ligava pelo menos uma vez por semana. De alguma maneira, pegou o fone e, com um insight, apertou o rediscar – pois acionara o último número há duas noites. Estava chamando. Veck beijava o caminho até seus ombros, o que dificultava um pouco a fala.
Conseguiu pronunciar o nome dela, o endereço e pedir uma pizza de calabresa e salame, grande. Em seguida, começou a negar as ofertas.
– Não... Não, só uma... Não... Não quero nada doce...
Começou a enterrar os dedos no cabelo espesso sobre a nuca de Veck e a arquear-se contra ele.
– Não... Deus, não... – certo, soou um pouco pornográfico, especialmente quando recusou um litro de Coca-Cola pela metade do preço. Desesperada, resmungou: – Só a pizza!
Na verdade queria gritar: “Pelo amor de Deus, mandem logo uma pizza!”
– O-o-obrigada.
O telefone foi colocado no gancho de forma um tanto precária e, em seguida, ficaram velozes e furiosos.
– Quanto tempo? – Veck rosnou contra a garganta dela.
– Vinte... minutos... – agarrou-se ao corpo dele, segurando-o pelos quadris. – Banheiro.
Veck pegou-a pelas coxas e levantou-a do chão. Segurando os ombros dele e envolvendo as pernas ao redor de seu corpo, Reilly firmou-se enquanto ele avançava para o banheiro do corredor.
Com os dois ali dentro, o pequeno cômodo encolheu ao ponto de parecer uma caixa de fósforos. Ao menos a pia tinha um balcão para colocar a mulher em cima. Reilly chutou a porta para fechá-la e começou a abrir a calça ao mesmo tempo em que ele atacou os botões da camisa. Muitas mãos para pouco espaço.
– Deixa – ela disse. Com isso, afastou-o e resolveu o problema em questão de segundos, arrancando a blusa por cima da cabeça e abrindo os zíperes a toda velocidade.
Veck pegou a carteira. E franziu a testa em seguida.
– É a última.
Ela parou no meio do processo de tirar o sutiã.
– Não tenho nada em casa.
E aquela seria apenas uma rapidinha antes da atração principal: Reilly completamente nua sobre a cama e os corpos envolvidos um em cima do outro.
Maldição... Nunca viu qualquer virtude em ser promíscua, mas, se quisesse fazer valer a pena todas as coisas que comprara na Victoria’s Secret, deveria ter algumas camisinhas na casa. Já ele? Foi até cavalheiro em não ter reabastecido o estoque, talvez por esperar que acontecesse algo entre eles ou por ter a intenção de ficar com outra pessoa. Pelo amor de Deus, pensou.
– Merda – disse Reilly.
Veck estava ofegante, o peito movimentava-se com força, seu corpo estava mais que pronto para o que tinham começado: seu pau entendeu que seria libertado e já estava saindo dentre as calças, lutando contra a cueca.
Com um palavrão, colocou a carteira de volta no bolso. E também guardou o pênis, contendo tudo e voltando a fechar as roupas com esforço, pois a dimensão do órgão estava enorme.
– Oh, não – ela disse. – Eu...
Ele voltou para os lábios de Reilly, interrompendo-a ao possuir sua boca com a língua. Com uma pressão sutil, inclinou-a para frente contra a parede, até ficar presa a um canto, o corpo quase estendido. Foi quando começou a tocá-la... Empurrou o sutiã para baixo e debruçou-se sobre os mamilos, brincando com eles até ela arquejar.
– Veck...
– Shhh. Deixe-me fazer assim com você.
Inclinou-se ainda mais para chegar aos seios, sugando-os enquanto as mãos iam a outros lugares: passeavam pelas coxas, acariciavam.
Fez um movimento preguiçoso para frente, erguendo-a, mas ainda não havia chegado ao ponto mais doce e excitado do corpo de Reilly. Enquanto isso, a boca fazia um milagre nos mamilos, provocando-os com movimentos rápidos e sugando-os outra vez logo em seguida e, Deus, a visão daqueles cabelos negros sobre sua pele nua era demais.
Passando as mãos pelo cabelo espesso, abriu ainda mais as pernas contra os quadris dele.
– Veck... por favor...
– Diga o que você quer – pronunciou contra os seios.
– Me toque.
Inclinou a cabeça para o lado e olhou para ela.
– Pensei em fazer isso mesmo.
Então, a língua rosa estendeu-se e fez um círculo quente e úmido sobre um dos mamilos. Gemendo, ela tentou arquear o corpo, mas não havia espaço.
– Aonde quer que eu vá, Reilly? – perguntou. Quando pegou a mão dele, pronta para guiá-lo num passeio, ele afastou os braços da mulher. – Não. Você tem que dizer.
– Veck...
– Bonito nome – colocou os lábios próximos aos ouvidos de Reilly. – Melhor ainda quando você o pronuncia parecendo que está prestes a gozar. Mas acho que não quer que façamos isso separados.
– Não seria difícil – ela gemeu ao imaginar aquela mão enorme segurando o pênis.
– Desculpe, meu objetivo é você. Onde, Reilly?
Dane-se. Os dois poderiam fazer aquele jogo de provocação. Ela deu um impulso sutil, e ele, gentilmente, recuou um pouco, sem dúvida pronto para ouvir todos os tipos de coisas divertidas. Em vez disso, ela baixou os olhos e começou a observá-lo... E colocou a própria mão entre as pernas dela.
– Estou pensando em você – ela disse, acariciando a si mesma. Em seguida, mordeu os lábios e movimentou os quadris ao mesmo tempo, não por querer fazer algum show, mas por ser assim que o sentia. – Me tocando... estou sentido você... me tocando...
Houve a impressão de que os joelhos dele curvaram-se. Ou isso, ou ela abalou o centro de gravidade de Veck... De qualquer maneira, ele afundou-se na parede e teve que estender uma das mãos para se segurar.
Tocando seu sexo, ficou assistindo Veck observá-la... E foi bom perceber que aquele ato solo não duraria muito. Os olhos possessos de Veck estavam fixos no que Reilly fazia, e o corpo dela tremia como se ele fosse assumir o controle a qualquer segundo.
– Quer ajudar? – ela balbuciou.
Veck estava sobre ela num piscar de olhos, auxiliando os movimentos até que ela saiu totalmente do caminho, pois era mais excitante para ele acariciá-la.
Com dedos ágeis, as calças de Reilly abriram-se e, em seguida, ele puxou-as pelas coxas, seus esforços receberam ajuda quando ela apoiou um dos pés contra o assento do vaso sanitário e ergueu-se. Com as calças abaixadas ao redor dos joelhos, teve acesso à calcinha e...
– Oh, Deus! – ela gritou ao ser tocada.
Havia algo muito delicioso na combinação entre seu órgão escorregadio e as carícias de Veck. E isso antes mesmo de ultrapassar a barreira de tecido e entrar em contato com a pele sobre seu núcleo.
Firmando-se em seus ombros, ela puxou-o contra sua boca enquanto ele concentrava-se no sexo, excitando-a cada vez mais, e mais e...
Reilly gozou, a força do orgasmo fez com que suas pernas pressionassem aquela mão talentosa, o corpo começou a se mover em impulsos ritmados. No entanto, ele não parou o que estava fazendo: apenas ajudou a continuar com as sensações até Reilly simplesmente ofegar de felicidade.
Quando Veck afastou-se um pouco e olhou para ela, sentiu que poderia não ter gozado, mas com certeza estava muito satisfeito.
– Gostou do aperitivo? – ele murmurou, a expressão de pálpebras baixas sugeria que sabia o quanto era bom.
Quando Reilly conseguiu se recuperar o suficiente para se mover, estendeu uma das mãos e tocou o pau duro dele através da braguilha fechada.
– Vai ser um prazer retribuir.
CAPÍTULO 32
Parado na frente de Devina, no quintal da casa da oficial de Assuntos Internos, Adrian, pela primeira vez em sua vida imortal e pouco natural, não reagia a uma provocação.
Como está Eddie? Cheirando a rosas?
Quando ele olhou por cima do ombro de Jim para aquela porção do mal em forma de uma mulher glamorosa de tão falsa beleza, as palavras do demônio começaram a girar ao redor de seu crânio como se ela tivesse colocado um de seus subordinados dentro da cabeça dele para que o filho da puta batesse em seu cérebro com uma marreta.
O velho Adrian teria pulado por cima de Jim, ou de qualquer outra coisa em seu caminho, e envolveria o pescoço dela com as mãos até não apenas sufocar a vadia, mas até conseguir arrancar a cabeça do tronco.
No entanto, era exatamente isso o que ela esperava. O que ela apostava que aconteceria. A razão pela qual tinha feito o comentário. E Adrian manteve o controle ao se dar conta de que sua instabilidade foi o que motivou o assassinato do seu melhor amigo. Jim estava certo: o nome do jogo era desestabilização, e o demônio fez o que fez pois tinha certeza de que isso iria ajudá-la na guerra.
Então, sim, por mais que isso matasse-o por dentro, por mais que o fizesse ranger os dentes e fechar os punhos, simplesmente ficou onde estava. Contudo, ele não poderia responder. Não confiava em si mesmo para isso.
– Eddie está são e salvo – disse Jim. – E estamos cuidando dele.
– Empregos novos como agentes funerários? Que pitoresco – Devina abriu um largo sorriso, como se estivesse profunda e verdadeiramente feliz. – Mas não sente falta dele, Adrian? Não se preocupe em responder, posso senti-lo daqui. Sabe? Se precisar de um ombro para chorar, estou sempre disponível.
Quando Ad estava prestes a dizer que Devina deveria enfiar a simpatia artificial no fundo do seu rabo, Jim intensificou o aperto sobre o braço dele... ao ponto de o cara sentir a circulação ser interrompida. O salvador estava certo: se reagisse como Devina esperava, Eddie teria morrido por nada. Depois da perda em si, isso seria a pior coisa que poderia acontecer. Então, ele colocou a outra mão sobre Jim, de modo que os dois permanecessem no lugar.
Devina pareceu perplexa por um momento. Mas não muito: – Paralisado pela dor, Adrian?
Uma eternidade se passou.
E, em dado momento, em meio àqueles segundos infinitos entre os insultos e a falta de reação, Adrian começou a congelar: suas emoções pararam de funcionar, como se queimassem – e, como uma estrela entrando em colapso, sentiu uma transformação que afastou-o do alcance de Devina.
Seria melhor tê-lo deixado sozinho em sua raiva. Mas agora que ela o havia impulsionado àquela clareza ártica, ele conseguiria, pela primeira vez, responder apenas usando a razão, e não o coração.
Soltou-se de Jim e afastou-se do salvador. Quando se separaram, Jim olhou ao redor como se estivesse prestes a interceder, mas Adrian ficou parado ao lado do cara e encarou o inimigo.
– Quer alguma coisa, Devina? – Adrian disse numa voz obscura. – Ou está apenas socializando um pouco?
Outra rodada de silêncio. Porém, desta vez, Devina começou a brincar com seus longos cabelos, com a saia curta, com as pulseiras de ouro. E para Ad não havia satisfação alguma em interromper a diversão do demônio. Apenas um silêncio mortal no peito, um poder ressonante que Adrian nunca havia sentido antes, mesmo com todos os instintos guerreiros ferozes que tinha. Era como se tivesse renascido. E poderia ser mandado para o inferno se voltasse a ser como era. Literalmente.
Quando Jim olhou para o outro anjo, pensou: Certo, quem é você e o que fez com Adrian Vogel?
O homem ao lado dele não chegava nem perto de quem conheceu e com quem trabalhou nas últimas duas rodadas na guerra. Era um robô parecido com Ad: absolutamente idêntico, mas desligado do original. Não havia emoção em seu rosto, em seu corpo, nas suas vibrações. Nada.
Algo dizia a Jim que a mudança era permanente, como se a placa mãe do cara tivesse explodido e sido substituída por outra. A paixão havia partido. O calor havia partido. No lugar? Uma frieza calculada – o que tornava-o intocável.
Era uma faca de dois gumes, não? Mas, de qualquer maneira, haveria tempo para se preocupar com as consequências mais tarde. Jim virou-se para Devina outra vez.
– Então, o que vai ser? Social? Ou negócios?
Devina deslizou uma das mãos pelo cabelo, as ondas movimentaram-se com leveza e brilho, como se estivesse num comercial de xampu.
– Estou muito ocupada.
– Então, por que está aqui conversando? – Jim pegou o maço de cigarros e tirou um. – Se é uma garotinha tão ocupada?
– Oh, não faz ideia de como estou trabalhando – seu sorriso sórdido parecia ter saído de um filme de terror, forçado, sem qualquer movimento natural. – Estou tentando fazer algumas mudanças no jogo. E não vejo a hora de esta rodada terminar.
– Porque você gosta do sabor da derrota? – tirou o isqueiro e acendeu o cigarro. – Que paladar estranho você tem, querida.
– Gosto do seu sabor – correu uma das mãos pelo corpo. – E vou me satisfazer em breve.
– Duvido.
– Se esqueceu do nosso acordo?
– Oh, não, eu me lembro.
– Eu não menti.
– Deve estar tão orgulhosa.
Quando Jim não disse mais nada, ela brincou com o cabelo mais um pouco... e isso foi tudo. Ficou ali parada na frente dele, cheia de gracinhas, sem ir a lugar algum. Caramba, talvez pensasse que estava sendo admirada. Talvez fosse uma loira burra, mesmo não tendo cabelo de verdade. Talvez estivesse...
Puta merda, ela estava vivendo um momento “namoradinha”, não? Emburrada por não encontrá-lo antes. Pois era esse o “motivo”.
Foda. Aquilo tudo era foda demais.
Era mesmo um namoro infernal.
E, mesmo sem saber por que não conseguiu encontrá-lo, Devina concluiu que, às vezes, a sorte simplesmente estava do seu lado.
De repente, o olhar dela voltou-se para a casa. Na janela dos fundos, na cozinha, Veck e Reilly apareceram. Pareciam desarrumados e estava claro que tinham acabado de dar uns amassos: estavam com aquele brilho de satisfação e felicidade, ao ponto de Jim achar que, se as luzes fossem apagadas, continuariam brilhando no escuro.
– Eu odeio eles – Devina disse, cruzando os braços sobre os seios.
Aposto que sim – Jim pensou. Pois havia duas pessoas apaixonadas ali.
E a inveja matava-a: seu rosto ficou tenso, os olhos iluminaram-se de ódio. Desejava ter aquilo com Jim.
Ha, ha.
– Então, precisa de alguma coisa? – ele perguntou com uma voz baixa e profunda.
Devina virou a cabeça com rapidez.
– Você precisa?
Para mantê-la ali, a resposta, claro, não poderia ser agradável. E, nossa, não era tão difícil fazer isso.
– Não de você – Jim assumiu uma expressão de tédio ao dar uma tragada no cigarro e exalar. – Nunca preciso de nada que venha de você.
A fúria no rosto de Devina animou-o. Em seguida, ela rosnou: – Tudo por causa daquela maldita Sissy.
Resposta errada, pensou. Resposta muuuito errada.
– Que Sissy?
– Não brinque comigo.
– Não estou brincando. Ao menos, não agora – deixou as pálpebras ficarem semicerradas. – Quando eu brincar com você, você saberá.
As palavras enojaram-no, mas Devina saiu do controle: corou de repente, como se estivesse se lembrando dos momentos que passaram juntos e, então, exibiu um sorriso grande e lento.
– Promete? – disse com voz rouca.
– Prometo.
Com isso, ela girou de alegria. Ótimo. Como se o estômago de Jim já não estivesse enjoado.
– Mas talvez eu seja um mentiroso – disse lentamente. – Acho que precisará esperar para ver.
– Acho que sim – os olhos examinaram o corpo de Jim de cima a baixo. – Mal posso esperar.
Francamente, aquela conversa toda fez Jim contrair-se, mas ele bloqueou a sensação. Não tinha certeza de que possuía total controle sobre o demônio. Mesmo ela estando apaixonada, essa era uma carta na manga que poderia deixar de funcionar, e Jim não sabia se a arma de sedução funcionaria para sempre. No entanto, cultivaria a qualquer custo aquela conexão pelo tempo que fosse possível.
– Bem, acho que é hora de parar por aqui, Jim – Devina deu outra pirueta. – Tenho que voltar ao trabalho, mas vejo você em breve.
– Se Veck está aqui nesta casa, por que precisa ir a outro lugar?
– Como eu disse, sou uma garota ocupada, você vai entender isso – soprou-lhe um beijo. – Até mais. E, Adrian, ligue se precisar de um ombro para chorar.
Com isso, saiu pela noite, uma névoa surgiu e desapareceu no ar. Então, se Devina não estava ali com Veck, Jim tinha que concluir que a luta era em outro lugar.
– Droga – murmurou, pronto para golpear alguma coisa.
– Não – Adrian disse. – Vamos ficar aqui. Vamos ficar com Veck.
Jim olhou para ele. O velho Adrian? Teria saído como um raio atrás dela. O novo Adrian? O calculista filho de uma puta estava superconcentrado, seus olhos frios e imparciais fixaram-se em Jim.
– Ela não vai nos enganar – Ad anunciou. – Vamos manter o foco e ficar aqui. Fumaça e espelhos não vão me influenciar.
Isso, é assim que se fala – Jim pensou, com respeito.
Naquele momento, o som de um carro estacionando em frente à casa ressoou. Aparecendo na rua com Adrian, Jim desembainhou sua adaga... Mas, em seguida, viu o pequeno sinal luminoso da pizzaria sobre o carro.
Oh, caaaaara. Pizza... e sexo. Talvez Devina tivesse razão. Difícil não invejar aquilo.
O entregador tirou o que precisava do carro e caminhou pela calçada. Veck atendeu, pagou em dinheiro e desapareceu. O carro partiu.
Nos momentos que se seguiram, Jim sentiu vontade de ir atrás de Devina... Podia sentir a presença dela em qualquer lugar da cidade... Mas não seria exatamente isso o que ela desejava? Não se podia confiar nela jamais. O novo Adrian estava certo: ficariam ali, firmes.
– Obrigado, cara – Jim disse sem tirar os olhos da porta sendo fechada e trancada na parte dianteira da casa.
– Sem problemas – foi a resposta concisa.
CAPÍTULO 33
Veck não sentiu o gosto da pizza. Para ele, a coisa poderia estar coberta de tiras de pneus e pedaços de gesso. Não conseguia parar de pensar em Reilly em cima do balcão da pia, pernas abertas, mãos acariciando a si mesma.
Sentado ao lado dela na cozinha, tinha plena certeza de que a mulher pensava mais ou menos a mesma coisa, pois comia com bastante objetividade. Porém, sem desalinho ou falta de boas maneiras... apenas de maneira limpa e rápida. Ele fazia o mesmo. Mas menos limpo.
Quando terminaram de devorar tudo, ele estendeu-se sobre a cadeira e olhou para o teto.
– Então, onde é sua banheira? – ele perguntou, tentando ser casual.
Aquilo a fez sorrir. E ele sentiu um desejo enorme de beijá-la por inteiro.
– Vou mostrar. Vai terminar este pedaço?
– Não – droga, se não fosse pelo estômago vazio resmungando, não teria se preocupado em apressar a transa para dispensar o cara da pizza. Mas Reilly precisava se alimentar.
– E você?
– Estou satisfeita.
Estou pronto para satisfazê-la de outra maneira – pensou.
Levantou-se e estendeu a mão para ela.
– Mostre o caminho.
Foi exatamente o que fez: subiu as escadas com ele e entraram num quarto que não tinha nada a ver com o local onde ele dormia. Os aposentos de Reilly tinham belas cortinas nas três janelas, uma cama cheia de travesseiros e um edredom grosso o suficiente para servir de cama elástica. Lugar perfeito para fazer amor.
– O banheiro é por ali – ela murmurou, apontando o caminho.
Veck aproximou-se, entrou na escuridão e tateou a parede para encontrar o interruptor. Quando bateu na coisa, quase caiu de joelhos com uma oração de agradecimento.
Uma banheira vintage enorme. Profunda como um lago. Tão grande quanto a cama.
E, como você pode imaginar, a torneira tinha pressão suficiente para abastecer uma mangueira de incêndio.
Quando a água quente começou a sair e encher a banheira, ele virou-se para chamar...
– Caralho... – ele sussurrou.
Reilly havia tirado as roupas e estava nua na porta.
Era o caminho mais curto para enlouquecer um homem: tudo o que viu foi uma pele linda, seios perfeitos e a linha sinuosa dos quadris que estava morrendo de vontade de agarrar.
Enquanto Veck tentava reagir sem palavrões, ou pior, sem começar a babar, ela puxou o laço do cabelo e balançou os fios avermelhados... com isso, os seios balançaram ligeiramente.
– Venha aqui – disse ele com voz rouca.
Ela aproximou-se com a cabeça erguida e o olhar baixo... Observava o pênis ereto cheio de desejo.
Perto dele, Reilly inclinou-se para beliscar sua orelha.
– A água já está bem quente?
– Entre – ele agarrou os quadris dela e apertou – e vai começar a ferver.
Curvou-se e uniu seus lábios aos dela, beijando-a. As roupas levaram... hum, um minuto e meio para serem removidas.
Então, como o cavalheiro que não era, mas que estava determinado a ser, ergueu Reilly e carregou-a para dentro da banheira com cuidado, posicionando-se de maneira que pudessem observar um ao outro. O vapor entre seus corpos tinha o aroma do perfume que sempre associou a ela, o que sugeria que a mulher fazia aquilo com frequência, talvez incluindo algum kit com cremes e sais de banho.
Mais beijos e mãos percorrendo todos os lugares do corpo junto com a água quente. Mas, quando ela tocou seu pênis ereto, Veck fez um movimento brusco e espirrou alguns litros de água no chão.
– Ai, merda... desculpe...
Reilly aproximou-se dele, empurrando-o contra a parede curva da banheira.
– Não estou preocupada com a água.
Quando fechou uma das mãos ao redor do pênis dele e começou a acariciar, Veck murmurou entre os dentes: – Não vou aguentar muito tempo se continuar assim.
– Não quero que aguente.
Ótimo, muito bom. Pois a visão dos seios lisos e flexíveis e o olhar erótico dela eram suficientes para fazê-lo gozar. Somando a carícia? Já estava ultrapassando e muuuito seus limites.
Veck começou a movimentar os quadris de modo que acompanhassem o ritmo de Reilly e deixou a cabeça cair para trás contra a borda sinuosa da banheira. O que lhe proporcionou um ótimo ponto de vista. O nível de água da banheira já havia sido recuperado, e os mamilos rosados e enrijecidos surgiam, desapareciam e voltavam outra vez...
Deixando-a brilhante. Muito brilhante. Como se ele a tivesse lambido por completo.
Foi a gota d’água. Seu maxilar ficou tenso e ele soltou um gemido alto quando seu pau explodiu contra aquela mão, o corpo arqueou-se com rigidez. Em resposta, ela exibiu um belo sorriso, digno de ser guardado na memória para sempre.
Contudo, por alguma razão... mesmo sendo algo muito desanimador... só conseguia pensar nela sentada naquela cadeira, armada, esperando alguém atacá-la. Estavam seguros ali, juntos, mas não duraria para sempre. Mais cedo ou mais tarde, teria que ir para casa, e ela ficaria ali sozinha. Deus, os dois sendo espionados? Era hora de assumir o controle da situação e manter aquela mulher com seu sorriso de tirar o fôlego em segurança. Da próxima vez que aquele Heron aparecesse, prenderia o bastardo. Mesmo se isso matasse os dois.
– Você está bem? – ela perguntou, sentindo com clareza a mudança nele.
– Ah, sim. Muito bem.
Reilly afastou a cabeça dele da borda da banheira, esticou a perna e girou a torneira com o pé. Em seguida, Veck puxou-a para perto dele, não tinha a menor intenção de desperdiçar o momento.
– Gostei muito disso – disse Veck contra a boca dela. – Mas tenho a impressão de que para você será melhor ainda.
Ficaram tempo o suficiente na água para aproveitarem o momento de tranquilidade, os beijos e as carícias. Não que ele precisasse de tempo para se recuperar. Estava pronto para outra logo depois do orgasmo que ela lhe proporcionara. Seu desejo por ela chegava a esse ponto.
– Vai me levar para sua cama? – Veck disse.
Quando ela assentiu com a cabeça, Veck estendeu-lhe uma das mãos com firmeza para ajudá-la a se levantar e, com cuidado, guiou-a ao sair da banheira alta.
– Cuidado – alertou. – Está molhado.
– Sim – Reilly olhou para baixo. – Vou pegar um pano para secar.
– Eu pago se por acaso tiver estragado o seu teto com a umidade.
Ao olhar para ele, Reilly virou-se com graciosidade.
– Teria valido muito a pena.
– Você é tão linda – ele disse suavemente, enquanto observava a luz sobre suas curvas.
Com as bochechas vermelhas, Reilly virou-se para a pilha de toalhas em cima do balcão e começou a jogá-las no chão ao redor da base da banheira. Mesmo muito satisfeito em apenas assistir ao show, Veck levantou-se da água e saiu.
O espelho sobre a pia deixou-o nervoso, mas esforçou-se para olhar o que havia ali. Nada além de seu reflexo. Nada de sombras. Nada se movendo entre suas costelas e dificultando sua respiração. Aliviado, aproximou-se dela por trás. Perto do corpo molhado e cálido, abaixou-se e beijou seu ombro.
– Não estou... acostumada com isso – tirou a última toalha da pilha, como se estivesse impaciente consigo mesma. – Eu só... não sei como lidar com isso.
– Você lida comigo muito bem – com isso, percorreu o dedo indicador sobre as costas de Reilly. – Melhor do que ninguém.
Ela riu numa explosão um pouco tensa.
– Não sei por que, mas eu duvido.
– Não duvide. Você é especial.
Colocou as mãos no pescoço dela e acariciou as costas até chegar aos quadris. Em seguida, seus lábios seguiram a mesma trilha, beijando e mordendo a partir do pescoço... e descendo cada vez mais.
Ajoelhando-se, Veck correu os lábios até as coxas, movendo-se gradualmente para se aproximar da junção sobre a qual pensava o tempo inteiro. Com essa insistência gentil, ela inclinou-se sobre o balcão, expondo seu órgão e enlouquecendo Veck...
Com um movimento súbito, ele aninhou-se ali e sugou-a.
Era doce... quente... e escorregadia tocando sua língua. E ela também estava adorando, braços apoiados sobre o mármore para manter o equilíbrio, a respiração ficou forte e ofegante.
Usando as mãos, Veck afastou os pés dela ainda mais para ganhar espaço; em seguida, percorreu as palmas das mãos de volta às coxas e segurou-a com força para deixá-la bem firme contra seu rosto: movimentos rápidos. Sucções profundas. Penetração com a língua.
Levou um tempo, pois havia muito para explorar e Reilly já não aguentava mais. Com uma das mãos, tocou o centro superior do sexo dela ao mesmo tempo em que passava a língua ali dentro. Os rápidos movimentos circulares no lugar certo levaram-na às alturas, e Veck adorou a maneira como ela se contraiu internamente e curvou-se contra ele.
Quando Reilly gozou, ele afastou-se. Através das pernas trêmulas, teve uma linda visão de seus seios que pendiam para baixo com as pontas roçando o mármore ao oscilarem para frente e para trás no ritmo da respiração.
Veck fechou os olhos com força e precisou de um minuto para se conter. Queria gozar dentro do local onde sua língua esteve.
O. Orgasmo. Da. Sua. Vida.
Enquanto Reilly esforçava-se para ficar em pé, seu corpo ainda estava a toda velocidade – porém, não havia lugar algum para ir, então, tudo o que os músculos das coxas fizeram foi permanecer no lugar. E isso não era nem a metade. Sua mente queimava, ao ponto de não saber exatamente onde estava.
Virando a cabeça, ficou face a face com o creme dental e as escovas de dente. Banheiro. Bem, parece que nunca mais olharia da mesma maneira para esses dois locais da casa... espere. Eram três. O lavabo do andar de baixo e a cozinha também.
Enquanto o mundo girava, percebeu que Veck pegou-a no colo. Boa ideia. Achava que não conseguiria andar mesmo – e foi uma ótima maneira de se secar. No quarto, ele deitou-a sobre a cama e cobriu-a com o edredom até a cintura.
– Volto já – ele disse.
Contudo, não ficou sozinha por muito tempo, pois ele agiu rápido: desceu, vasculhou um cômodo no andar de baixo que pareceu ser a cozinha e voltou rapidamente. Ao entrar, apagou as luzes. No começo, Reilly achou que seria por alguma modéstia – não precisava disso, claro, não depois do que fez sobre o balcão – mas então viu que ele colocou algo sobre a mesa de cabeceira.
A arma dele. Não, havia duas. Trouxera a dela também. Deve tê-las encontrado sobre a mesa onde se desarmaram antes do jantar. Que romântico.
A lembrança do que acontecera na noite anterior congelou-a, mas ele cuidou disso, cobrindo-a com seu corpo quente e forte.
– Não pense nisso – Veck sussurrou. – Não agora. Haverá bastante tempo para cuidarmos disso.
Tocou o rosto de Veck e desejou que estivessem em férias em algum lugar bem longe de qualquer dever que tinham com o trabalho e da situação que os unira.
– Você está certo – ela disse. – E não quero esperar mais nem um minuto.
Ele assentiu e pegou a última embalagem quadrada que guardava na carteira. Quando terminou de colocá-la, montou sobre ela outra vez e, ao abrir ainda mais as pernas da mulher, sentiu uma mudança nele, e também nela: tudo ficou mais lento.
Ao entrar nela deslizando suavemente, Reilly acolheu-o não apenas com seu sexo, mas com a alma, beijando-o profundamente.
Sem palavras, sem hesitações, sem quaisquer reservas, eles moveram-se juntos, criando uma dinâmica, intensificando tudo. Quando finalmente gozaram, foi ao mesmo tempo, e continuaram juntos mais um tempo: ela com as unhas cravadas nas costas de Veck, ele com os braços embaixo dela, apertando seu corpo.
Era a união perfeita. E, depois, mesmo Veck tendo que sair dela, deitaram no escuro o mais próximo possível um do outro, os corpos formaram uma massa tépida no centro da cama.
– Vai me deixar passar a noite aqui? – ele perguntou.
– Sim. Por favor, sim.
– Já volto. Fique embaixo das cobertas – ele disse.
Boa ideia. Porque, quando Veck saiu, o frio percorreu rapidamente todo o corpo dela. Poucos minutos depois, voltou do banheiro e juntou-se a ela.
– Estou do seu lado da cama?
– Ah... não. Eu fico aqui mesmo.
– Que bom.
Ela virou-se e ficaram face a face, cabeças sobre os travesseiros, os corpos aqueciam-se sob o peso dos cobertores. Veck roçou a ponta do dedo sobre a bochecha dela... ao longo do maxilar... sobre os lábios.
– Obrigado... – ele sussurrou.
Deus, ela mal conseguia respirar.
– Pelo quê?
Houve uma pausa.
– Pela pizza. Estava do jeito que eu gosto.
Reilly deu uma risada.
– Espertinho.
– Venha. Preciso abraçar você.
Ela sentia o mesmo. E quando não havia mais distância entre eles, a sensação era de voltar para a casa depois de um longo dia.
Com a cabeça em seu peito, sobre o coração que batia, com os braços de Veck ao redor dela e com uma das pernas jogada sobre a dele, estava confortável e segura. Enquanto ele acariciava seus cabelos com movimentos preguiçosos, ela fechou os olhos.
– Isto é simplesmente perfeito.
Com isso, Reilly pôde ouvir o sorriso na voz dele: – É como eu quero que seja para você. Quero fazer tudo perfeito para você.
Quando Reilly adormeceu, seu último pensamento foi sobre a ansiedade em fazer tudo outra vez. Não apenas o sexo. Aquela calma adorável, inestimável, era ainda melhor do que fazer amor. Apesar de não ter sido nem um pouco ruim.
CAPÍTULO 34
Na manhã seguinte, enquanto Veck ia para a delegacia, sua principal tarefa foi não ficar sorrindo o tempo todo feito um idiota. Difícil.
Estava uma hora atrasado, pois ele e Reilly ficaram envolvidos em atos que, por não terem mais camisinhas, poderiam chamar de “preliminares”. Assim, considerando que não tinham o material de látex apropriado, o que aconteceu foi melhor do que qualquer relação sexual que teve com qualquer outra pessoa antes – cinco mil vezes melhor. Também havia passado na farmácia a caminho do trabalho e comprado um estoque do que precisava.
Enquanto caminhava pelo saguão, acenava para as pessoas, mantendo uma atitude profissional, porém o adolescente dentro dele estava explodindo como se tivesse vencido vários campeonatos esportivos numa só noite.
Quando chegou ao topo da escada, rezou para não encontrar Britnae e suas ofertas de café da manhã. Aquela garota não tinha nada a ver com sua Reilly e já era hora de desfazer aquele hábito de abordá-lo o tempo todo. Mas nem precisou se preocupar. Um dos caras do turno da noite, da recepção e vigilância, estava na mesa dela. Veck não conhecia o oficial muito bem, mas ele parecia diferente. Como se tivesse assumido o papel de um galã de cinema, apesar de estar mais para Homer Simpson. Britnae? Devorava aquele homem com os olhos.
O que provava que aquilo que havia por dentro era o que contava – e quem poderia imaginar que uma garota do tipo de Britnae seria capaz de descobrir isso?
No Departamento de Homicídios, Veck sentou-se à sua mesa e ligou o computador. Em seguida, foi atingido por uma ideia romântica desconhecida e inegável: abriu sua caixa de e-mail, selecionou o endereço de Reilly nos contatos e preparou-se para enviar alguma coisa. Havia o espaço da tela em branco para preencher. Muuuito espaço. No final, digitou algumas palavras. E apertou logo enviar, antes que alguém olhasse por sobre seu ombro.
Depois, apenas ficou ali, observando a tela, perguntando-se se teria feito a coisa certa... até perceber que estava olhando para a caixa de entrada e o relatório sobre Sissy Barten do médico legista já estava pronto. Com certeza, o cara tinha virado a noite para terminar a autópsia.
Veck leu tudo e examinou cada uma das vinte ou mais fotografias do corpo. Não havia nada nelas que não tivesse visto por si mesmo na pedreira e, quando chegou às marcações ritualísticas no tronco, inclinou-se para trás e bateu o dedo indicador sobre o mouse. Se não tinha sido Kroner, quem teria sido?
– Correspondência.
Veck olhou para o funcionário com seu carrinho cheio de envelopes e caixas.
– Obrigado, cara.
Três mensagens. Duas interdepartamentais. Uma do correio americano... Era apenas uma carta que retornara de Connecticut. Endereço não encontrado? Nos últimos dez anos, evitou atualizações de cadastro junto às instituições federais.
Examinando o envelope, sentiu que, se começasse a abrir, não poderia mais voltar atrás. Seu primeiro impulso foi jogar a carta fora, mas a atração em saber o que havia lá dentro tornou o ato impossível – e pensou que odiava o poder mental que seu pai exercia sobre ele.
Ligue quando ficar assustado o suficiente.
Não desperdiçaria energia com o motivo pelo qual a voz de Heron soava em sua cabeça enquanto rasgava o embrulho.
Dentro, havia uma folha de papel com três linhas escritas com uma letra elegante e fluída que representava muito mais a imagem de riqueza que seu pai ostentava que suas origens do centro-oeste do país.
Caro Thomas, espero que esta mensagem o encontre bem. Gostaria que viesse me ver assim que possível. A prisão permitiu que eu recebesse uma última visita e escolhi você. Há coisas a serem ditas, filho. Ligue para o número abaixo. Com amor, seu pai.
– Você está bem?
Veck olhou para cima. Reilly estava em pé ao lado dele, ainda de casaco e a bolsa pendurada no ombro, seu cabelo macio fora lavado há pouco tempo.
Se não fosse pela noite anterior, teria respondido um “sim, tudo bem” e continuado a fazer suas coisas. Em vez disso, simplesmente ergueu a carta para ela.
Reilly sentou-se na cadeira enquanto lia e Veck acompanhou o movimento de seus olhos indo da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Então, voltou ao topo e releu.
– O que vai fazer? – ela perguntou quando finalmente ergueu os olhos.
– É suicídio mental ir vê-lo – Veck esfregou os olhos para apagar a impressão que aquelas palavras produziam. – Um maldito suicídio mental.
– Então, não faça isso – Reilly disse. – Não precisa ficar para o resto da sua vida com o que ele vai dizer atormentando a sua cabeça.
– Sim.
O problema era que seu pai não era o único com alguma coisa em mente. E, com certeza, seria ótimo ser adulto o suficiente para se afastar dessa situação, mas sentia que precisava olhar naqueles olhos uma última vez – ao menos para ver se havia realmente alguma coisa em comum entre eles. Afinal, durante anos, acreditava ser louco, cobrindo espelhos, observando sombras, ficando acordado durante a noite pensando se tudo não passava de paranoia ou se percebia algo de fato. Poderia ser a última chance de descobrir.
– Veck? – ela disse.
– Desculpe.
– Vai até lá?
– Não sei – era verdade. Pois ela tinha razão. – Ei, ah... o relatório de Sissy Barten chegou. Precisa dar uma olhada.
– Certo – apoiou a bolsa. Tirou o casaco. – Alguma surpresa?
– Tudo é surpreendente neste caso – Veck olhou ao redor. – E quero conversar com Kroner.
Reilly olhou Veck direto nos olhos.
– Nunca vai conseguir permissão.
– Não estava pensando em pedir.
Reilly soltou um palavrão baixinho. Não era o que planejava para um início de conversa matinal. Depois que Veck deixou sua casa, ela tomou um bom banho, depilou-se por completo e mergulhou nas suas sacolas da Victoria’s Secret.
O conjunto preto e vermelho de lingerie que vestiu lembrava-lhe cada beijo, lambida e carícia que compartilharam – e desejava mais daquilo assim que possível. Então, planejava chegar ali, agir profissionalmente e, de maneira bem discreta, apontar para o que havia sob as roupas. Em vez disso, entrou numa questão administrativa.
Olhando para seu parceiro, balançou a cabeça.
– Agir precipitadamente não é a resposta. E, se você quer continuar com isso, vai me colocar numa situação terrível.
– Sissy Barten é o que importa, não normas burocráticas. E eliminaram qualquer possível envolvimento meu no que aconteceu naquele hotel, lembra? Foi você quem fez isso – endireitou-se na cadeira. – Kroner não a matou, e você sabe disso. Serial killers não variam o estilo. Cometem alguns deslizes ou param no meio do que estão fazendo quando são interrompidos. Mas um cara que coleciona troféus de suas vítimas não começa, de repente, a arranhar símbolos na pele delas ou as deixa sangrar por completo. O que preciso descobrir é por que aquele homem sabia sobre a pedreira e por que diabos o brinco da garota está no meio das coisas encontradas na caminhonete dele. Tem alguma coisa que não estamos entendendo em tudo isso.
Reilly não podia discordar de nada. O método que ele empregava era um problema.
– Outra pessoa poderia perguntar a ele sobre essas coisas.
– Você?
– Sim.
No silêncio que se seguiu, Reilly pensou: Bom, pelo menos estivemos em sintonia durante a noite e no início da manhã. Pena que isso não durou muito tempo.
Ele discutiria com ela sobre isso, ela ficaria chateada e, então, tudo o que compartilharam antes e depois daquela pizza seria jogado pela janela...
– Certo – ele disse. Quando Reilly recuou, Veck apertou a boca: – Não precisa ficar tão surpresa. Só leve Bails com você dessa vez. Ou De la Cruz. A ideia de você ficar sozinha com aquele homem, mesmo ele numa cama de hospital e você armada, me deixa arrepiado.
Deus, ela quis envolver o rosto dele com as mãos e beijá-lo por ser tão sensível. Mas, em vez disso, sorriu e pegou o celular.
– Vou verificar se De la Cruz está disponível agora mesmo.
Ao falar com o detetive por telefone, ela estava acessando sua caixa de e-mails... e quase perdeu o foco da conversa. Veck tinha deixado algo em sua caixa de entrada, e Reilly clicou duas vezes para ver o que era ao mesmo tempo em que ouvia uma novidade sobre as condições de Kroner.
Havia apenas três palavras: Eu te amo.
Olhou para o lado com rapidez. Mas Veck estava ocupado olhando a tela do computador.
– Alô? – disse De la Cruz.
– Desculpe. O quê?
– Por que você e Bails não vão juntos?
– Tudo bem – seus olhos permaneceram no rosto de Veck, que olhava para a tela à frente dele. – Se ele estiver pronto para sair, também estou.
Algumas outras coisas foram ditas, mas Reilly não as ouviu. E, quando desligou, estava perdida. Não havia nada de eu acho antes do “eu te amo”. Nenhuma foto idiota embaixo das palavras com um gato e um cachorro com olhares carinhosos produzidos pelo computador. Não havia como interpretar errado a frase.
– Só achei que deveria saber – Veck disse baixinho.
Não tinha consciência de que estava enviando uma resposta ou de que digitava alguma coisa no teclado. Simplesmente aconteceu...
– O que está acontecendo aqui?
Reilly limpou a tela com um clique rápido. Girando a cadeira, olhou para Bails. Droga. Estava bem atrás dela, e parecia tenso.
– De la Cruz te ligou? – ela disse suavemente.
O cara olhou para as costas de Veck – de quem não conseguiu tirar qualquer informação, óbvio. Então, seus olhos voltaram-se para ela.
– Ah... sim, ele ligou. Há um segundo.
Estranho, mas ouviu a música do programa Jeopardy! em sua mente. E percebeu que ele lera o que havia naquele e-mail.
– E quando pode ir ao hospital comigo? – ela perguntou.
– Ah... tenho um suspeito chegando para um interrogatório agora. Então, pode ser depois disso?
– Sim. Estarei aqui.
Ao observá-lo, percebeu que o olhar de Bails estreitou-se muito, sem qualquer sinal de desculpas pela suposta invasão de privacidade. Não conhecia muito bem o cara, mas ficou evidente que não estava feliz. E é por isso que não se namora pessoas do trabalho. Amigos possessivos já eram chatos o suficiente quando se tinha que acompanhar o namorado em jogos de pôquer ou eventos esportivos e era preciso lidar com eles nessas ocasiões. Conviver com eles oito horas por dia, então?
Porém, assim que o período probatório de Veck terminasse, ela voltaria para o Departamento de Assuntos Internos. Relaxou um pouco com essa ideia. Muito melhor não estar tão perto...
Oh, droga. Teria de divulgar aquele relacionamento, não? E, quando o fizesse, afastariam-na da função de monitorar Veck – algo absolutamente necessário. Bem... parece que não teria que esperar um mês para voltar ao seu departamento.
– Ei, DelVecchio. Atenda seu telefone – alguém gritou.
Engraçado, ela não ouviu tocar. Tampouco Veck ou Bails, aparentemente.
Quando Veck iniciou uma conversa cheia de “sim” e “uh-hum”, podia sentir Bails espreitando ao redor de Reilly e teve vontade de enxotá-lo como uma mosca. Felizmente, a mesma mulher que gritou para Veck atender ao telefone aproximou-se do outro detetive e disse que seu suspeito estava na recepção.
– Volto aqui quando terminar – Bails disse. Depois que ela assentiu, ele deu um tapinha no ombro de Veck e saiu.
Veck desligou.
– Era De la Cruz. Ele quer que eu vá ao centro da cidade apurar um tiroteio que aconteceu ontem à noite. Precisa de uma ajuda extra. E acho que precisa se certificar de que eu nem sequer pense em ir ao hospital com você.
Fazia sentido.
– Mas não vamos sair por enquanto.
– Vai ser um dia longo. Temos que examinar um conjunto inteiro de apartamentos.
Veck levantou-se, vestiu o casaco e tateou vários bolsos, sem dúvida checando distintivo, arma, carteira, chaves e cigarros.
– Precisa parar de fumar – ela deixou escapar.
Quando Veck ficou imóvel, ela pensou: Droga, pareço uma namorada.
Aquelas três palavras recebidas por e-mail não lhe davam esse direito. Poderia sugerir algo do gênero? Sim. Mas não precisava passar a carroça na frente dos bois. O problema era que se preocupava demais com ele para ficar sentada assistindo-o se matar...
Veck pegou o maço de cigarros que já havia aberto... e esmagou-o com uma das mãos.
– Você está certa – jogou o maço na cesta de lixo embaixo da mesa. – Se eu ficar irritado nos próximos dias, já peço desculpas.
Reilly não conseguiu conter o sorriso no rosto. E, com um sussurro que só ele conseguiu ouvir, disse: – Vou pensar em algumas maneiras de distraí-lo.
Quando ela descruzou e cruzou as pernas outra vez, os olhos dele queimaram. Havia percebido os secrets que Reilly estava revelando, por assim dizer.
– Vou cobrar isso – piscou como um garoto malvado que sabia o que fazer com o corpo dela. – Fique com Bails... e me liguem quando terminarem, certo?
– Combinado.
Ela virou-se para a mesa à qual estava sentada, mas observando Veck, que saía pela porta, com o canto dos olhos. Deus do céu, aquele homem era lindo por trás...
CAPÍTULO 35
De certo modo, é ótimo sair para trabalhar – Veck pensou algumas horas depois.
Certo, não era ótimo que um pobre coitado tivesse sido baleado no rosto, ou que os vizinhos não quisessem dizer uma palavra sobre o que viram, ou que ele e De la Cruz estivessem gastando as solas de seus sapatos por nada. Mas era a droga de uma rotina difícil de trabalho. Não se tratava de seu pai ou do esquisitão sem pegadas que vigiava pessoas à noite.
A vítima em questão fora baleada no banco do motorista de um suv estacionado em frente àquele edifício residencial de doze andares, local conhecido por transações comerciais ilegais. O corpo fora descoberto naquela manhã por equipes de limpeza urbana que varriam a rua. Não havia drogas ou dinheiro no corpo ou no veículo, mas encontraram uma lista de nomes e alguns dólares dentro de um envelope amassado no casaco do rapaz, além de resíduos de crack numa série de embalagens plásticas e mais cinco armas dentro do carro.
Era evidente que ele não conseguira guardar tudo com a rapidez necessária.
A menos que se conclua que aqueles que tiveram acesso a tudo aquilo priorizaram levar outros objetos de valor.
Ao meio-dia, Veck e De la Cruz continuavam a percorrer os arredores do edifício, batendo nas portas e tentando convencer as pessoas a falarem alguma coisa – contudo, todos desconfiavam dos policiais e, além disso e com razão, tinham medo de alguma retaliação por parte dos envolvidos no crime.
Enquanto ia de porta em porta, Veck continuou a recordar-se da careta imobilizada da vítima ao ser atingida atrás do volante, o cinto de segurança sobre o peito manteve o corpo erguido, os traços faciais que poderiam ser identificados por sua mãe, familiares e amigos estavam arruinados a ponto de ser preciso uma identificação por arcada dentária.
Pensando outra vez em Kroner naquela floresta, Veck lembrou-se do impulso assassino que sentiu. A ideia de tirar um malfeitor das ruas era mais que justificável para ele – ao menos, para uma parte dele – mas isso realmente importava?
Que inferno, o filho da puta que atirou naquela vítima no carro sem dúvida tinha suas razões, por mais distorcidas que fossem. Só que um ato assassino era um ato assassino, não importando quais eram as tendências de comportamento do alvo.
Que pena aquilo não importar para o lado obscuro dentro dele: essa parte de sua essência não dava a mínima se Kroner era um santo ou um pecador – o ato assassino era tudo. O motivo da ira? Só tinha importância enquanto objetivo a ser atingido. Sem dúvida, este era o sentimento que seu pai tinha pelas outras pessoas. Que coisa ótima para se pensar.
Quando o sol começou a se pôr e as sombras começaram a tomar conta do cenário, o calor da tarde diminuiu e o edifício pareceu ainda mais encardido. Ele e De la Cruz tinham se separado e concentraram-se nos edifícios ao redor do local onde o corpo fora encontrado, mas, se considerassem o fato de que havia seis blocos de apartamentos no quarteirão, teriam sorte se terminassem até as cinco da tarde.
Afastando-se da porta de outra pessoa que não lhe deu resposta alguma, Veck dirigiu-se às escadas de concreto e desceu até a entrada. As portas da frente deveriam estar trancadas, claro, mas foram arrombadas tantas vezes que seria um milagre se apenas se fechassem por completo.
Esfregando o rosto e desejando um cigarro, virou-se para o leste e dirigiu-se ao último bloco de apartamentos sob sua responsabilidade. Já estava na porta quando o telefone tocou. A mensagem de texto de Reilly dizia que estava indo ao hospital com Bails naquele momento.
Bem, ao menos aquilo lhe daria mais tempo para colaborar no caso que estava trabalhando com De la Cruz.
E, depois, talvez fazer uma pequena viagem até Connecticut – uma voz interior sugeriu. – Para ver seu pai.
Chegou a olhar para trás no intuito de checar se alguém falava com ele. Mas não havia nada além do ar e da fraca luz do sol. E acabou concluindo que possivelmente faria isso mesmo. Em breve.
Com um palavrão, virou-se para a entrada e, quando o fez, olhou para baixo em direção ao cimento rachado da calçada. Congelou com o que viu.
Olhou sobre o ombro outra vez. O sol estava se pondo atrás dele – era a única fonte de luz. Pelo amor de Deus, não havia uma segunda opção que pudesse refletir outra sombra no chão, nenhum carro com várias partes cromadas que pudesse produzir tal efeito, nada de holofotes sobre sua cabeça.
Olhou para seus pés outra vez. Havia duas sombras projetadas de seu corpo. Duas sombras separadas e distintas, uma vinda do norte, outra do sul.
Era uma evidência concreta do que ele sempre sentiu: duas metades de si, divididas, atraindo-o em direções opostas.
Olhe para os seus pés, Thomas DelVecchio... E ligue para mim quando estiver assustado o suficiente.
Quando a voz de Jim Heron disparou em sua mente, pensou em Reilly. Ele estava confiante de que poderia protegê-la de qualquer um que a perseguisse, certo de que poderia ser o que ela precisava. Mas toda essa história de coragem e bravura não se aplicava ao que via no chão. Não entendia a si mesmo, como poderia lutar por ela?
E Reilly estava em perigo. Caso contrário, não perderia a noite passada sentada numa cadeira com uma arma na mão.
Sou o único que pode te ajudar.
Deus era testemunha de que Heron seria capaz de machucá-los ou agredi-los se quisesse. Em vez disso, tudo o que fez naquela pedreira foi apontar a direção... e desaparecer.
Decidido, Veck pegou o telefone. Tinha salvo o número de Heron em sua lista de contatos e, quando discou, rezou para que o cara que não deixava pegadas atendesse... e dissesse o que havia em seus pés.
O som do celular tocando alto atrás dele quase o matou de susto. Jim Heron estava a três metros de distância dele, como se estivesse ali o tempo todo – e estava mesmo, não?
Veck estreitou os olhos e deu uma boa olhada no cara. Jim parecia bem sólido em sua jaqueta de couro e suas roupas camufladas. E, quando exalou a fumaça de um cigarro, a coisa flutuou, fazendo cócegas no desejo de fumar de Veck.
Mas não era real, era?
Com o coração batendo forte no peito, Veck apertou end no teclado de seu celular e o som que vinha do bolso de Jim parou.
– O tempo está se esgotando – disse o cara.
E isso fez Veck pensar em seu pai: aquele bilhete enviado pelo correio. A areia da ampulheta descia pouco a pouco e ficavam cada vez mais próximos do momento da execução. Algo que aconteceria muito em breve, não?
Era isso – pensou. Tudo, toda sua existência, levava-o até tal situação... Seja lá que situação fosse.
Quando Veck encontrou os olhos do cara, sentiu que o filme de sua vida estava fora de foco e nunca sequer soube que essa merda estava embaçada. Contudo, o cinegrafista finalmente tinha acordado e ajustado o equipamento... era um mundo novo.
Especialmente se considerasse o fato de que a luz do sol se punha atrás de Jim Heron... e não havia nada aos pés do cara. Nenhuma sombra.
– Que porra é você? – Veck perguntou.
– Estou aqui para salvar seu traseiro, e é isso que eu sou – o cara deu um trago no cigarro e exalou lentamente. – Está pronto para conversar comigo agora?
Veck olhou para o par de contornos que projetava, as duas sombras tinham o formato de seu corpo.
– Sim, estou.
Reilly dirigiu o carro ao longo do caminho até o complexo do Hospital São Francisco. Ao lado dela, o detetive Bails permaneceu em silêncio no banco do passageiro enquanto atravessaram pelo tráfego intenso, pararam nos sinais vermelhos e, em dado momento, viraram.
– Mais um pouco disso e vou achar que alguém não quer que conversemos com Kroner – ela murmurou.
Bails nem sequer ergueu o olhar.
– Sim.
Mais silêncio. Ao ponto de ela quase pedir para ele desabafar sobre tudo o que pensava: a última coisa que precisavam era daquela tensão toda na frente de um assassino. Porém, Bails começou a falar antes de Reilly pedir.
– Desculpe não falar nada. Só não sei o que fazer.
– Sobre o quê? – no momento em que sentiu segurança em tirar os olhos da estrada, deu uma olhada nele. O cara batia os dedos contra a porta e olhava para fora como se estivesse buscando respostas no vidro.
– Sei que viu o meu e-mail – ela disse depois de um momento.
– Se fosse esse o grande problema... – quando ela olhou-o mais uma vez, ele deu de ombros. – Sabe que eu e Veck somos muito próximos, não?
– Sim.
– E sabe que sempre estive cem por cento ao lado dele. Até a morte. O cara é meu amigo.
Quando o coração dela começou a bater mais forte, disse: – Certo.
– Então, sim, eu vi o e-mail que ele enviou. Não queria, mas estava na tela quando me aproximei de vocês – ergueu os olhos. – Não estava espiando. A coisa estava bem ali.
Maldição.
Era tudo o que ela conseguia pensar. Maldição.
– E agora... – seus dedos acalmaram-se e ele balançou a cabeça. – Não sei o que fazer.
– Sem ofensa, mas por que acha que é problema seu? Não quero ser chata, mas...
– Sei coisas sobre ele que você não sabe e acho que ele fez algo ilegal. E, se eu acreditar que você está com ele, não sei a quem vou recorrer no Departamento de Assuntos Internos. Está bom para você?
Quando Reilly exalou como se tivesse levado um soco no estômago, quis parar o carro. Que bom já estarem finalmente no hospital. Assim, conseguiu estacionar na área aberta em frente à emergência.
Quando desligou o motor, encarou Bails: – Do que está falando?
Bails colocou a palma da mão sobre o painel do carro e começou a movimentá-la para frente e para trás. Em seguida, limpou uma fina camada de poeira que caiu sobre sua coxa.
– Olha, sou um policial porque quero proteger as pessoas e porque acredito no sistema. Não acredito que uma sociedade civilizada possa existir sem a polícia, os tribunais e as cadeias. Há pessoas lá fora que simplesmente não podem ficar em meio à população geral. Ponto final.
– Só para você saber, ainda não mencionou uma palavra sobre Veck.
– Ele disse que tem antecedentes?
Quando uma corrente de ar frio passou por sua coluna, ela esforçou-se para manter a calma.
– Não.
– Achei que não diria mesmo.
Isso é mentira – ela pensou.
– Ouça, desculpe duvidar das suas fontes, mas não há nada no arquivo pessoal dele... e não pode negar isso. Tudo o que o RH precisa fazer, e fez, para verificar isso é rastrear o nome dele no sistema.
– Não se algo foi cometido antes da maioridade.
Reilly ficou confusa. Muito.
– Como?
– Ele tem um antecedente juvenil. Um muito sério.
– Como sabe?
– Vi a coisa. Com meus próprios olhos – Bails deixou a cabeça cair para trás contra o descanso do banco. – Conheci Veck na Academia de Polícia. Era um cara solitário que fazia tudo certo... eu era o palhaço da turma. Nós simplesmente... ficamos amigos. Depois saímos, mantivemos contato mesmo sendo designados para delegacias diferentes da área de Manhattan e, mais tarde, ele se mudou para cá. Ao longo de todos esses anos que o conheço, sempre foi uma pessoa correta. Controlada. Difícil, mas justo. Na verdade, é um dos melhores policiais que conheço e fiz um pedido para que ele viesse para Caldwell, pois queria trabalhar com ele – Bails soltou um palavrão. – Em todo esse tempo que o conheço, nunca pensei que estivesse inapto para o trabalho por causa dessa porcaria de história relacionada ao seu pai... até agora. Começou com aquela agressão ao paparazzo. Em seguida, a coisa toda com Kroner na floresta. É como se uma capa ao redor dele estivesse saindo... mas eu não iria dizer nada, não ia mesmo, até...
– Espere um minuto. Pare – Reilly pigarreou, tentando acalmar a dor de cabeça que sentia entre os olhos. – Para preservar a nossa reputação, você deve entrar em contato imediatamente com minha supervisora se tiver algo para dizer com relação ao detetive DelVecchio. Antes de tudo, você está certo... Não deveria ter me contado essas coisas. Eu não deveria... estar na posição em que estou agora. Na verdade, tenho uma reunião com minha superior quando eu voltar desta entrevista, então, poderei divulgar de maneira adequada essa relação ao meu departamento.
Bails esfregou os olhos e balançou a cabeça.
– Vou fazer isso. Mas também acho que você precisa saber. Porque, se alguma coisa acontecer com você, nunca vou me perdoar.
Diante disso, Reilly enrijeceu.
– Por que está preocupado com minha segurança?
Bails passou uma das mãos pelos cabelos.
– Entenda, eu ajudei Veck com a mudança quando veio para cá. Tinha várias caixas velhas que precisavam ser guardadas no sótão. Eu estava carregando uma delas quando o fundo se abriu. Espalhando papéis por toda parte e, então, eu comecei a recolher... e lá estava. O registro de antecedente juvenil datado de meados dos anos 1990.
– O que dizia? – ela conseguiu falar mesmo sentindo a garganta fechada.
– Havia todos os indícios de comportamento psicótico e antissocial que existem – Bails franziu a testa. – Sabe do que estou falando, então, não vou listar tudo o que ele fez.
Tortura de animais? Problemas em atear fogo em coisas diversas? Urinar-se na cama?
– Tudo isso – disse Bails, como se estivesse lendo sua mente.
– Mas nunca fez nada depois de adulto – ela argumentou... era menos uma afirmação que uma pergunta.
– Não que saibamos. E, veja só, isso é o que está me preocupando. Psicopatas são muito bons em fingir normalidade. Por fora, eles se encaixam em tudo, pois a atuação é parte do que fazem. E se essa relativa paz e tranquilidade até agora... seja exatamente o que ele quer mostrar? Quando termina a atuação e o verdadeiro Veck aparece? Não pode negar que ele está ficando fora de controle... caramba, não seria parceira dele agora se estivesse tudo bem – o conflito de Bails era evidente em seu rosto. – Ou pior... e se não sabemos o que ele realmente faz? Digo uma coisa, não consegui dormir na noite passada. Estava tentando conciliar o que acredito que ele seja... com o que ele pode ser de fato. Se é que isso pode fazer algum sentido.
Reilly ouviu a voz de Veck em sua mente: Quero fazer tudo perfeito para você.
E tinha feito. Disse e fez as coisas certas. Jogou seus cigarros fora por causa dela... ou ao menos foi o que fez na sua frente. Ela tinha se apaixonado por ele em quatro dias. Coisa do destino? Ou tudo planejado? Mas onde isso o levaria? Foi ele quem pediu suspensão... teria sido uma atitude deliberada? Ela estava cuidando do caso e da reputação dele – que tinha alcançado mais credibilidade depois de tudo, não?
A voz de Bails pairou no ar: – Não pode confiar nele. Estou entendendo isso agora.
– Só por que ele não lhe contou sobre o que aconteceu quando era mais jovem? – ouviu-se dizer. – E, além disso, manter o arquivo de um registro de antecedentes em segredo não é ilegal.
– Acho que ele plantou provas. O brinco de Sissy Barten, especificamente. Para que parecesse que Kroner a tivesse matado.
Ela não se preocupou em esconder a surpresa e recuou o corpo.
– O quê? Como?
– Ele subiu até o quarto dela, não foi? No dia em que vocês dois foram até a casa da família Barten. Ele me disse que você estava no andar de baixo quando subiu. E esteve na sala de provas ontem de manhã... Conversei com Joey, um dos investigadores da cena do crime. Ele disse que Veck passou por lá... e pode ter plantado o brinco.
– Mas ele disse que encontrou o brinco junto com as outras provas.
Bails esfregou os olhos outra vez.
– Chequei o registro preliminar de itens encontrados no caminhão, a lista feita assim que o veículo foi apreendido. Não havia qualquer observação sobre um brinco em forma de pomba. E verifiquei tudo isso outra vez pouco antes de chegar e ver vocês dois.
Por isso parecia tão abatido.
Ela balançou a cabeça.
– Mas o que ele teria a ganhar? A menos que...
Oh, Deus... e se ele tivesse assassinado a garota? E se Kroner tivesse visto alguma coisa ao cometer um de seus crimes na pedreira?
– Leu o relatório sobre o corpo de Sissy, certo? – Bails disse.
– Claro – passara a manhã inteira fazendo isso... e a conclusão que chegou quando o corpo foi encontrado era inevitável: nenhum dos ferimentos da vítima se encaixava nos outros assassinatos de Kroner... e, geralmente, aquele tipo de mudança não acontecia. Em geral, método e obsessões não se alteravam.
– Então deve saber que ela não foi atacada por Kroner. E, talvez, depois de apurar tudo... talvez Veck tenha feito isso.
Céus, ela não conseguia respirar. Como se houvesse mãos apertando a sua garganta.
– Mas... por quê?
Temia que fosse uma pergunta estúpida de se fazer.
– Quanto sabe sobre o pai de Veck? – o detetive disse. – Sobre seus assassinatos?
– Apenas o que estudei na faculdade.
Bails voltou a se concentrar na janela.
– Sabia que a primeira vítima dele sangrou pelo pescoço e pelos pulsos... depois de ter sido pendurada pelos pés? Também foi marcada como Sissy. Sobre o estômago.
Reilly pegou a maçaneta e abriu a porta. Não só para conseguir um pouco de ar fresco. Mas porque estava sentindo muita vontade de vomitar.
– Sinto muito – Bails disse, um tanto áspero.
– Eu também – ela resmungou, contudo, as palavras não chegavam nem perto do que sentia.
Quando olhou para o chão, ela se deu conta de que tinha sido enganada. Caiu como um patinho. E é claro que Veck se esforçou para conseguir isso. Ela era sua defensora na delegacia, aquela que deveria supervisioná-lo cuidadosamente e que decidiria se ele continuaria ou não na corporação: ele queria continuar trabalhando, e ela estava na posição que tornaria isso possível.
– Agradeço a Deus por você – Reilly disse um tanto sufocada. Pena que não conseguia olhar para Bails... Estava muito envergonhada por ter sido enganada tão bem. – Graças a Deus você me contou.
CAPÍTULO 36
– Que tal você falar primeiro?
Enquanto Veck pronunciava as palavras em voz baixa, mantinha o olhar fixo em Heron. Os dois tinham se esquivado ao redor do edifício e estavam em pé no escuro próximo a alguns galhos secos.
O olhar de Jim era mortal e sua voz tão profunda quanto o ressoar de um grande sino.
– Você sabe de tudo. Quais respostas quer? – colocou o dedo indicador no peito de Veck, bem em cima de seu coração. – Está tudo dentro de você.
Veck desejou responder com uma boa dose de “tanto faz, seu cuzão”. Mas não conseguiu.
– Meu pai quer me ver – foi sua resposta.
Heron assentiu e pegou seu maço de cigarros. Quando inclinou o pacote para frente, Veck recusou: – Não, parei.
– Inteligente – Heron acendeu. – É assim que funciona: vai perceber que está numa encruzilhada. Será um momento de decisão, de uma escolha definitiva, entre situações opostas. Tudo o que é, o que tem sido e o que poderá ser dependerá dessa decisão. As consequências? Não afetarão apenas a você. Afetarão a todos. Não é apenas uma questão de vida e morte... Trata-se da eternidade. Sua. Dos outros. Não subestime a distância que isso pode alcançar.
Enquanto o homem falava, Veck sentiu as duas partes dentro de si se separarem. Uma delas foi totalmente repelida. A outra...
Veck franziu a testa. Piscou algumas vezes, confuso. Desviou o olhar e olhou para trás. Deus era testemunha de que tinha visto um brilho cintilante sobre os ombros de Heron e ao redor de sua cabeça.
E a ilusão bizarra deu ainda mais credibilidade ao pesadelo como um todo. Da mesma maneira como quando quis entrar em contato com o cara e ele já estava bem atrás dele... E ainda havia a questão da falta de pegadas naquela pedreira... E o show de luzes na casa dos Barten.
Veck colocou a mão sobre o peito e esfregou com força a sombra que havia ali.
– Nunca pedi isso.
– Sei como se sente – Heron murmurou. – No seu caso, já nasceu com isso.
– Diga-me o que sou.
– Você já sabe.
– Diga.
Heron exalou lentamente, a fumaça ergueu-se dentre aquele brilho dourado.
– O mal. É o mal encarnado... Ou, pelo menos, metade de você é. Num futuro próximo, talvez hoje à noite, talvez amanhã, será necessário que escolha um dos lados – o cara apontou para si mesmo com a mão que segurava o cigarro. – Estou aqui para tentar te ajudar a escolher com sabedoria.
– E se eu não escolher certo?
– Você perde.
– No mesmo instante?
O homem assentiu lentamente, estreitando os olhos.
– Eu já vi onde vai terminar se isso acontecer. Não é bonito.
– O que você é?
A expressão de Heron não mudou. Nem sua postura. E nem sequer parou de fumar. Mas, num instante era um homem, no seguinte...
– Jesus... Cristo... – Veck sussurrou.
– Não chego nem perto – ele apagou o cigarro na sola da bota de combate. – Mas sou o que sou.
E isso seria... um anjo, evidentemente: sob a luz fraca e desbotada do dia, um espetáculo de luzes refratadas havia surgido sobre os ombros dele em forma de asas gigantes, tornando-o magnífico e etéreo.
– Fui enviado para te ajudar – o homem... anjo... seja lá o que fosse... voltou a olhar para Veck. – Então, quando for ver seu pai, quero estar junto.
– Já estava comigo. Não é mesmo?
– Sim – o cara limpou a garganta. – Mas não quando estava... você sabe.
As sobrancelhas de Veck se ergueram.
– Oh, sim. Que bom...
Eeeee os dois desviaram o olhar nesse momento.
Veck pensou sobre aquela noite com Kroner.
– E se a encruzilhada já tiver acontecido?
– A questão com Kroner? Estava fora das regras.
– Bem, sim, assassinato é contra lei mesmo.
– Não, não é neste sentido. Não sou o único que deseja fazer algo com você, o outro lado se precipitou naquele cenário.
– O outro lado?
– Como eu disse, não sou o único neste jogo. E, acredite, o inimigo é uma tremenda vadia... Tenho certeza de que a conhecerá em breve, se já não conheceu.
Oh, ótimo, mais notícias boas, Veck pensou.
E, então, deixou escapar: – Eu fui até lá matá-lo. Kroner – maldição, foi bom ter desabafado.
– Você quer dizer parte de você queria fazer isso. Vamos passar tudo a limpo: você não fez o estrago e você ligou para a emergência, se não tivesse feito isso ele teria sangrado até morrer aos seus pés.
– Então, o que o atacou?
– Está surpreso por conversar com um anjo? Não vai querer saber o que tem lá fora – Jim acenou com uma das mãos num gesto de desdém. – Mas não precisamos nos preocupar com isso. Vamos ver seu pai. Juntos. O mais rápido possível.
Veck pensou na sensação de ter chegado ao seu destino, como se sua vida tivesse chegado a um ponto culminante. Não era mais remoto e hipotético.
– Esta é a encruzilhada?
– Talvez sim. Talvez não.
De repente, Jim abaixou os olhos e inclinou a cabeça. Quando a ergueu outra vez, sua aparência era mortal – e exatamente o que Veck gostaria de ter como proteção: tinha a sensação de que precisaria de outro bom lutador se fosse enfrentar o outro lado de si mesmo. E era isso. Uma luta até a morte.
– Vamos descobrir – o anjo prometeu. – Quando chegarmos lá.
Tudo acontece por uma razão – Reilly pensou enquanto ela e Bails saíam do quarto de Kroner meia hora depois.
A condição de Kroner havia piorado muito, quase como se seus ferimentos aumentassem a cada instante. Ele não era capaz de se concentrar, resmungou algumas respostas sem sentido e, pouco depois de chegarem, ela e Bails desistiram.
– O que será que ele quis dizer com aquela coisa de sofrimento? – Bails murmurou enquanto segurava a porta do elevador para Reilly.
Reilly balançou a cabeça quando começaram a descer.
– Não sei.
Foi a mesma coisa de antes: Ele tem que saber que ela sofreu... tem que saber que ela sofreu...
Não fazia ideia do que aquilo significava. E também não fazia ideia de qual era a conexão entre Kroner e Veck. Caramba, naquele momento, sentia que não poderia confiar em seus instintos nem sequer para confirmar o próprio nome. Especular alguma coisa naquela bagunça? Era melhor nem começar.
Quando saíram para a recepção e caminharam até a porta giratória que dava para o estacionamento, Bails consultou o relógio.
– Quer beber alguma coisa? Tenho que fazer meu relatório em pouco mais de uma hora, preciso de uma bebida antes.
Sim, pois, quando um detetive tinha as informações que ela tinha sobre outro colega, não se ficava muito animado com a situação. Ligou para a delegacia logo depois que terminaram o interrogatório e, dentro de um minuto e meio, o sargento marcou uma reunião com líderes dos departamentos. Isso aconteceria bem depois do horário comercial.
Não era de se admirar que Bails quisesse uma cerveja.
– Obrigada – ela murmurou –, mas, como eu disse, tenho um encontro com minha supervisora agora.
A conversa toda que tiveram não os aproximou tanto assim. Juntos, andaram pelas filas de automóveis, entraram no carro e colocaram os cintos de seguranças. Os dois permaneceram em silêncio durante toda a viagem de volta à sede. Não tinham muito a dizer, e Bails parecia tão traído e doente quanto ela.
Separaram-se com um rápido abraço e, enquanto ele ia para o próprio carro, Reilly observava-o. Veck colocara-os no mesmo barco, e isso significava que aquele estranho agora era uma espécie de amigo.
Quando o telefone tocou na bolsa, sabia quem era antes de pegá-lo. Veck.
Certo, é para isso que o correio de voz serve – ela pensou.
Só que provavelmente ele viria atrás dela, e isso era a última coisa que queria. Deveria evitar um encontro pessoal a todo custo.
– Alô.
Houve um zumbido ao fundo, como se estivesse num carro.
– Reilly... o que há de errado?
Desanimada, como se o observasse do outro lado de um espelho de duas faces, pensou que havia sido exatamente daquela maneira que a seduzira: a emoção que projetava naquela voz profunda era a combinação perfeita de preocupação com uma boa dose de proteção.
– Estou bem. Acabei de ver Kroner... Não conseguimos nada de novo – não vindo de Kroner, claro. Já com Bails, a história era diferente.
– Você não parece bem.
O que significava que toda e qualquer aspiração que pudesse ter em ser uma psicopata deveria ser jogada pela janela. Que pena.
De fato, a ideia de não conseguir esconder as coisas era um alívio. Não queria ser como Veck. Nunca.
– Reilly... fale comigo.
– Estive pensando muito sobre meu trabalho hoje – ela disse. – Não é apropriado que deixemos nosso relacionamento como está. Estou comprometendo a integridade da força policial, da minha posição e a mim mesma. Vou encontrar minha supervisora agora mesmo e renunciar seu caso. Levarei alguma advertência, mas posso lidar com isso...
– Espere, o quê? Por que você...?
– E acho que não devemos nos ver outra vez.
Houve uma pausa. Em seguida, ele disse: – Assim de uma hora para outra?
Agora ele parecia frio, e era o que Reilly desejava: o verdadeiro Veck, o real. Mesmo que isso só a fizesse perceber outra vez o quanto tinha sido estúpida.
– É o melhor – concluiu.
Quando Veck não disse mais nada, ela começou a ficar agitada, pois não sabia exatamente do que ele era capaz. Sem dúvida, tinha sido ele quem andara vigiando-a dois dias atrás... Mas não tinha importância, aquela conversa tinha acabado e, uma vez que revelasse o que precisava à sua chefe e Bails agisse e cumprisse seu dever, Veck teria muitos outros problemas, tantos que estaria ocupado demais procurando um advogado para perder tempo com algum tipo de retaliação. Ao menos ela esperava que fosse assim.
Inferno, melhor ainda, ele poderia ser preso.
– Tenho que ir – ela disse.
Houve outra pausa e, então, a voz dele soou fria como um cubo de gelo.
– Não vou te incomodar outra vez.
– Agradeço muito. Adeus.
Não esperou por uma resposta. Não estava interessada em ser envolvida numa conversa longa e arrastada, com ele tentando manipulá-la novamente, ou pior, ver a máscara dele caindo por completo e ouvir ameaças.
Sua mão tremia tanto que precisou fazer duas tentativas para colocar o telefone de volta na bolsa. Apoiando-se contra o carro, olhou para os fundos escuros da delegacia e sentiu não ter forças para entrar e encarar sua chefe. Mas fez o que tinha que fazer... pois fora criada para agir assim.
CAPÍTULO 37
Quando Veck desligou o celular, olhou para tela e achou difícil acreditar que aquela conversa com Reilly tinha acabado de acontecer.
– O que foi?
Olhou para Heron. O cara, anjo – quem se importava – estava atrás do volante da caminhonete com seu outro amigo anjo... Cristo, como aquilo poderia ser real? O cara estava no banco de trás de uma cabine dupla e ocupava mais da metade do espaço.
Os três estavam indo para a Instituição Prisional em Somers, Connecticut.
– Nada – disse Veck suavemente.
– Até parece – ouviu do banco de trás.
Eram as primeiras duas palavras que o homem havia dito. O que significava que isso e o fato de estar respirando eram as únicas pistas que comprovavam que ele estava vivo.
Jim olhou para Veck.
– Coincidências não existem. Quando nos aproximamos do final, tudo importa.
– Era... – minha namorada? Ex-namorada? Oficial do Departamento de Assuntos Internos? – Reilly.
– O que ela disse?
– Que não quer me ver mais. Nunca mais.
As palavras foram ditas com uma voz calma e profunda – ao menos ainda tinha um pouco de brio. Porém, no fundo do peito, havia um grande buraco negro de agonia, como se fosse um desenho animado e tivessem disparado uma bala de canhão contra ele.
– Por quê? Ela deu algum motivo?
– Se importa de me emprestar um cigarro? – quando Jim estendeu o pacote, Veck pegou dois, pensando que aquele era um momento perfeito para jogar pela janela aquele papo de “desistir”.
– Por que isso?
– Porque, ou eu fumo alguma coisa agora, ou vou explodir o vidro ao meu lado com um soco.
– Que bom que escolheu o cigarro – veio da parte de trás. – Estamos indo a uns cem quilômetros por hora e está frio demais lá fora.
Veck pegou o isqueiro oferecido, acendeu e abriu um pouco a janela. Quando inalou, pensou ser uma pena haver tantos agentes cancerígenos naquelas coisas, pois, sem dúvida, aquilo o fazia sentir-se um pouco melhor.
Porém, não duraria muito. Ao contrário da dor no peito. Tinha a impressão de que teria que lidar com isso por um looongo tempo. Como se fosse um ataque cardíaco perpétuo.
Só que, cara, devia saber que isso aconteceria. Aquela mulher ingressou no Departamento de Assuntos Internos porque gostava das coisas certas, bem-feitas. Ficar com ele? Não estava na lista. Apaixonar-se por ele? Não seja ridículo.
– O motivo? – Jim exclamou.
– Conflito de interesses.
– Mas por que agora? Ela sabia o tempo todo o que estava fazendo.
– Eu não sei. Mas também não importa.
O bom era que não poderiam dispensá-lo do trabalho só por que ela acordou e sentiu o cheiro de carne podre da situação que viviam, por assim dizer. Eram dois adultos responsáveis e, sim, parecia ruim, mas ela faria a coisa certa e fim de papo.
Inevitavelmente, seria chamado para responder algumas perguntas no Recursos Humanos e teria a firmeza suficiente para dizer que foi tudo ideia dele. Ou seja: foi ele quem correu atrás dela, bem como foi o idiota que começou com a história do “eu te amo”. Imbecil. Que maldito imbecil ele foi...
Não disseram muita coisa durante o resto da viagem. Veck não via problema nisso. As imagens de Reilly e ele juntos pairavam em sua cabeça e faziam com que não confiasse na própria voz... E não só porque demonstraria uma boa dose de tristeza. Estava suscetível a esmagar alguém naquele momento.
Quando já estavam a um quilômetro da prisão, Jim parou um pouco antes de chegar à instituição e trocou de lugar com Veck. No volante, Veck assumiu seu papel: o de policial.
– Então, ninguém vai ver vocês?
Apesar de realmente acreditar que o cara era capaz de ficar invisível. Heron perseguiu-o por dias e apenas seus instintos ficaram um pouco alarmados.
– Isso mesmo.
– Contanto que... – Veck parou de falar quando olhou para o banco ao lado dele e viu que tinha ficado vazio de repente. Olhou rapidamente no espelho retrovisor e não havia nem sinal do cara grande e forte no banco de trás.
– Já pensaram em roubar bancos, seus filhos da mãe? – disse ele em tom seco.
– Não precisamos do dinheiro – a voz de Jim soou do nada ao lado dele.
– Não precisamos nos dar ao trabalho – veio da parte de trás.
Veck esfregou o rosto, pensando que seria melhor assumir que estava louco por começar a conversar com o ar. O problema era que lutava e lidava com essa realidade alternativa durante toda sua vida. A ideia de que era realidade, e não loucura, parecia ser muita maluquice, mas também fazia com que se sentisse um pouco são.
Contudo... fazer essa diferenciação era assumir que ele não era exatamente como o personagem do filme Uma mente brilhante.
Afinal, sabia que havia impulsos homicidas, e não casos de esquizofrenia em sua família, então, não tinha perdido totalmente o juízo. Que alívio!
Antes de sair de Caldwell, Veck havia telefonado para a prisão – não para o número que seu pai havia lhe dado, mas para o atendimento geral – e identificou-se. Não chegariam no horário de visitas, mas as pessoas costumavam fazer cortesias graças à sua ocupação profissional – e certamente também fariam-no graças ao fato de que seu pai estaria numa cova em mais ou menos 48 horas. Sem dúvida, havia também o fator curiosidade, algo com que Veck lidava com muito senso de realidade: em pouco tempo, aquela visita antes da morte estaria em todos os lugares... internet, televisão, rádio. Provavelmente, estaria na rede antes mesmo de sair e voltar para o estado de Nova York. Era assim que as coisas funcionavam.
À medida que percorriam o caminho onde se via as paredes da penitenciária numa das laterais, visualizaram um pequeno exército reunido dos dois lados da rua. Fãs de seu pai.
Havia pelo menos uma centena deles, mesmo sendo oito da noite e estando muito escuro e frio. Mas estavam preparados com lanternas, velas e cartazes com dizeres que protestavam contra a execução – e, no momento em que viram o veículo, correram para o asfalto gritando, rugindo, o barulho pressionava a caminhonete sem nem chegarem perto dela.
Mesmo com o estilo um tanto rebelde de se vestirem e a maneira furiosa com que agiam, era evidente que sabiam as consequências da desobediência civil: nenhum deles bloqueou ou tocou o veículo, e Veck diminuiu a velocidade para dar uma olhada neles. Grande erro.
Um dos homens inclinou-se para a janela e obviamente reconheceu Veck: quando o cara apontou para ele e gritou, o êxtase em seu rosto fez com que Veck sentisse vontade de baixar o vidro e dar um jeito no filho da puta.
Mas seria um desperdício de energia. O idiota tinha o símbolo da anarquia desenhado na testa. Tente argumentar com essas coisas.
– É ele! É ele!
A multidão exaltou-se e correu para a caminhonete.
– O que há de errado com essas pessoas? – Veck murmurou enquanto continuava lentamente, pronto para transformá-los em enfeites de capô se fosse preciso.
– É isso o que ela faz – a voz de Jim soou pelo ar.
– Quem é “ela”?
– É exatamente o que vamos tentar tirar de dentro de você.
Não havia tempo para entender mais esta. Virou na pista que a polícia usava e parou na portaria. Olhando para o guarda, baixou o vidro e mostrou seu distintivo e as credenciais.
– DelVecchio, Thomas... Jr.
Ao fundo, a multidão gritava o nome dele... ou de seu pai. Na verdade, eram os dois e com muita eficiência.
Os olhos do guarda baixaram para a identificação e voltaram para o rosto de Veck. Houve um sinal de desconfiança naquele olhar; sem dúvida, ele estava mantendo-se firme contra os malucos que permaneciam ali já há uma semana.
Mesmo assim, o cara acionou o comando do portão e as barras de ferro se abriram.
– Pare assim que entrar. Preciso revistar seu veículo, detetive.
– Sem problema – era bom não precisar fazer isso do lado de fora. Só Deus sabia até onde aquela multidão poderia chegar.
Veck seguiu o protocolo, andou em marcha lenta e freou no momento em que seu para-choque traseiro posicionou-se do outro lado do portão. Quando saiu, pegou o pacote de cigarros de Heron e colocou-o em uso, acendendo um cigarro enquanto os portões fechavam-se e o oficial verificava todas as partes do carro com uma lanterna.
Enquanto fumava, sabia que os anjos não estavam longe. Podia senti-los flutuando e ficou feliz por essa proteção – especialmente quando olhou para as barras do portão e viu a multidão enlouquecida. A energia que havia naqueles malucos era o tipo de coisa que deixaria qualquer um grato por aquilo que os separava deles.
– Pode continuar, detetive – disse o oficial, agora com atitude mais amigável. – Vire a primeira à esquerda e estacione ao lado da porta, por questões de segurança. Um guarda está esperando por você.
– Obrigado, cara.
– É proibido fumar lá dentro. Então, antes, termine o que está fazendo.
– Boa dica.
De volta à caminhonete. Pausa no segundo portão. Em seguida, estavam na unidade.
Prisões de segurança máxima não se pareciam com as que eram retratadas em filmes. Não havia paredes antigas de pedras caiadas com figuras monstruosas esculpidas no alto delas e que espreitavam quem passava embaixo. Nada de elementos nostálgicos como “Al Capone já esteve aqui”. Nenhuma visita guiada.
Era um negócio muito moderno que mantinha pessoas como seu pai isoladas do público em geral. Havia várias luzes fortes de xenônio para o período noturno, câmeras de vídeo e monitoramento computadorizado. Ainda havia guardas com armas e cercas de arame farpado o suficiente para envolver toda a cidade de Caldwell, mas o procedimento de entrada era feito com cartões magnéticos, computadores e portas automatizadas.
Esteve em vários lugares como aquele, mas nunca especificamente ali: assim que seu pai foi sentenciado, uma carta fora entregue em mãos na república em que Veck morava na faculdade. Não deveria ter aberto aquele envelope, mas não imaginava que seu pai era capaz de enviar da cadeia bilhetes por intermédio de alguém. Fazendo uma retrospectiva? Como fora ingênuo.
Porém, ao menos aquilo lhe indicou o que não fazer. Então, sim, era uma boa razão para não trabalhar em Connecticut e para integrar a força policial em vez do FBI. Nada de questões interestaduais, muito obrigado. E, ainda assim, lá estava ele.
Como prometido, no momento em que saiu da caminhonete, uma porta blindada abriu-se e um guarda encontrou-o e levou-o a um ambiente limpo e bem iluminado. Normalmente, como oficial, receberia autorização para entrar com o distintivo, o celular e a arma, desde que não fosse entrar na área das celas, mas não estava ali em caráter oficial e isso significava que tudo seria deixado na entrada.
Ao entregar o celular, viu que havia algumas mensagens de voz. Possivelmente passara por algumas áreas sem sinal telefônico ao longo da viagem, pois não ouvira o toque. Mas não as ouviria agora. Seja lá o que fosse, esperaria até sair dali. Além disso, tinha a sensação de que já sabia do que se tratava. Sem dúvida outra pessoa do Departamento de Assuntos Internos lhe seria designada – oh, que alegria. E provavelmente devia ter outra mensagem de Bails querendo saber como estava. O cara sempre fazia isso, especialmente se enviasse um torpedo e Veck não respondesse.
Depois de assinar um formulário e entregar todas as suas coisas ao guarda, percorreu uma série de salas sendo acompanhado por outro funcionário da prisão, sem produzir qualquer som além dos passos. Mas sobre o que poderiam conversar afinal?
Veio se despedir do seu pai? Legal...
Sim, é a primeira vez que o vejo em anos, e a última nesta vida...
Divirta-se, então.
Obrigado, cara.
Sim. Estava ansioso para ter esse tipo de conversa.
Quase cem metros depois andando entre o labirinto da prisão, o oficial mostrou a Veck uma área de visitas do tamanho de um pequeno refeitório e também organizada como tal, com longas mesas com assentos dos dois lados. O ambiente estava iluminado como se fosse uma exposição de joias, com grandes painéis de lâmpadas fluorescentes fixas no teto, e o chão era de um marrom salpicado, do tipo que escondia bem a sujeira, mas que, de qualquer maneira, era mantido brilhante e lustrado. Não havia janelas, plantas e observava-se apenas um mural com uma ilustração do que parecia ser a Assembleia Legislativa de Connecticut.
Contudo, as quatro máquinas de salgadinhos e bebidas davam um pouco de cor ao ambiente.
– Estão trazendo-o – disse o guarda. – Colocaremos vocês na área de visita como cortesia, mas peço que permaneça sentado com as duas mãos sobre a mesa o tempo todo.
– Sem problema. Quer que eu me sente em algum lugar específico?
– Não. E boa sorte.
O cara afastou-se e ficou junto à porta pela qual passaram ao chegar, cruzou os braços e encarou a parede nua do outro lado como se tivesse muita experiência em assumir aquela posição.
Veck sentou-se à mesa em frente ao cara e cruzou os dedos sobre a superfície lisa.
Fechando os olhos, sentiu a presença dos dois anjos. Estavam à esquerda e à direita dele, parados da mesma maneira que o guarda, silenciosos e vigilantes...
A porta no final da sala foi aberta sem produzir qualquer som... Em seguida, ouviu algo arrastar-se.
Seu pai passou pelos batentes com um sorriso em seu belo rosto e algemas nos pulsos e tornozelos. Apesar do fato de estar vestido com um macacão laranja folgado, estava elegante, com os cabelos cinza-escuros penteados para trás e sua atitude de embaixador muito evidente, como uma bandeira real.
No entanto, Veck não dava a mínima para aquela aparência – olhava para o chão. Seu pai projetava uma sombra, certo, uma sombra única que se reunia sob seus pés como tinta preta. O fato de ser mais escura do que qualquer outra no ambiente parecia lógico e surgia sob um novo paradigma.
– Olá, filho.
A voz era tão profunda e grave quanto a de Veck. Quando ele ergueu os olhos para observar seu pai, era como olhar no espelho – apenas vinte ou trinta anos mais tarde.
– Nenhuma saudação para mim? – o DelVecchio mais velho disse ao aproximar-se com passos pequenos e apertados, o guarda atrás dele estava tão próximo de suas costas que parecia vestir o mesmo macacão.
– Estou aqui, não estou?
– Sabe? É uma pena a necessidade de sermos vigiados – seu pai sentou-se na frente dele e colocou as mãos sobre a mesa... na posição exata que Veck havia assumido. – Mas podemos falar em voz baixa – as feições e ângulos daquele rosto mostraram uma expressão de carinho... na qual Veck não acreditou nem por um segundo. – Estou emocionado por estar aqui.
– Não fique.
– Bem, mas eu estou, filho – o balançar triste da cabeça era tão apropriado que Veck desejou revirar os olhos. – Deus, olhe para você... Está muito mais velho. E cansado. Trabalhando duro? Ouvi falar que está na polícia.
– Sim.
– Em Caldwell.
– Sim.
Seu pai inclinou-se para frente.
– Tenho permissão para ler os jornais e ouvi dizer que teve um pequeno problema com um monstro lá fora. Mas você o pegou, não foi? Na floresta? – lá se foi a mentira do pai benevolente. No lugar daquela figura calorosa, surgiu uma intensidade na expressão do homem que fez Veck desejar se levantar e sair. – Não foi? Filho.
Se os olhos são as janelas da alma, então Veck encontrou-se olhando para um abismo... E teve a mesma sensação de vertigem induzida pela gravidade e o puxão que alguém sentia ao inclinar-se e olhar para baixo num abismo real.
– Que herói você é, filho. Estou tão orgulhoso de você.
As palavras se distorceram nos ouvidos de Veck, seus sentidos ficaram confusos, era como se pudesse ouvi-las e sentisse-as alisando sua pele.
No entanto, deveria tê-lo matado quando teve a chance.
Veck franziu a testa quando percebeu que seu pai havia falado sem mover os lábios. Balançando a cabeça, Veck interrompeu aquela conexão.
– Bobagem.
– Elogiar você? Estou sendo sincero. Deus é minha testemunha.
– Deus não tem nada a ver com você.
– Ah, não? – seu pai enfiou uma das mãos no macacão e retirou rapidamente uma cruz dali antes mesmo que os guardas pudessem sequer começar a ficar tensos por conta da regra das mãos expostas. – Posso garantir que ele tem. Sou um homem muito religioso.
– Porque lhe é conveniente, sem dúvida.
– Não tenho que provar nada a ninguém – neste momento, seus olhos brilhavam. – Deixo minhas ações falarem por mim... Foi ao túmulo de sua mãe ultimamente?
– Não se atreva a ir até lá.
Seu pai riu um pouco e levantou as mãos, mostrando as algemas de aço.
– Claro que não, eu não posso. Não tenho permissão para sair... Isto é uma prisão, não um hotel de luxo. E, embora tenham levantado uma acusação falsa contra mim, tenham me julgado de maneira errada e me sentenciado à morte injustamente, estou preso como todos os outros que aqui estão.
– Não há nada falso sobre onde você está.
– Acha mesmo que matei todas aquelas mulheres?
– Vamos ser mais exatos... Acho que assassinou cruelmente todas aquelas mulheres. E ainda outras.
Balançou a cabeça mais um pouco.
– Filho, não sei de onde tirou estas ideias. Por exemplo... – seu pai ergueu os olhos para o teto, como se estivesse diante de uma equação matemática complexa. – Você leu sobre a morte de Suzie Bussman?
– Não sou um de seus fãs. Então, não, não acompanho tudo o que faz.
– Não foi a primeira garota que me acusaram de ter assassinado, mas a primeira que pensam que matei. Foi encontrada numa vala de drenagem. A garganta e os pulsos tinham sido cortados e havia símbolos inscritos sobre seu estômago.
Quando seu pai ficou em silêncio, ergueu o queixo e olhou para Veck. Sissy Barten. Encontrada numa caverna. Com a garganta e os pulsos cortados e com símbolos ritualísticos inscritos sobre o estômago.
– Bem, filho, como sabe, serial killers possuem padrões que gostam de seguir. É como um estilo de roupa ou uma parte do país que gostam de morar ou um objetivo profissional. É onde se sentem mais à vontade para se expressarem... É acertar a bola no ponto ideal da raquete, é um filé perfeitamente preparado ou a sala decorada de acordo com sua preferência e a de mais ninguém. É seu lar, filho... É o local ao qual pertence.
– Então, está dizendo que todas as outras mulheres não foram trabalho seu, apesar das evidências, pois não correspondem ao padrão da primeira?
– Oh, eu não matei ninguém.
– Então, como sabe sobre os padrões?
– Sou um bom leitor e gosto de aprender sobre esta patologia.
– Posso apostar.
Seu pai inclinou-se e baixou a voz num sussurro.
– Sei como se sente, o quanto está à parte, o quanto estar perdido pode ser desesperador. Mas me mostraram o caminho e foi o melhor que pôde acontecer, e será a mesma coisa para você. Pode ser salvo... Será salvo. Apenas olhe para si mesmo e siga a essência que nós dois sabemos que possui.
– Então, posso crescer e ser um serial killer como meu pai? Não, muito obrigado.
Seu pai recostou-se e ergueu as mãos para o teto.
– Oh, isso não, nunca... Estou falando de religião. Naturalmente.
Sim. Claro.
Veck olhou em volta para as câmeras de segurança ao redor da sala. Seu pai era inteligente e não atribuía qualquer implicação para si mesmo com aquele gesto, mesmo que a mensagem implícita estivesse tão clara quanto os letreiros dos cassinos de Las Vegas.
– Encontre seu Deus, filho... – aqueles olhos brilharam outra vez. – Abrace quem você é. Aquele impulso o levará para onde precisa ir. Confie em mim. Eu fui salvo.
Enquanto falava, a voz transformava-se numa sinfonia obscura nos ouvidos de Veck, como se as palavras de seu pai fossem a trilha sonora de um filme épico.
Veck inclinou-se para frente, aproximando-se tanto que conseguia enxergar cada partícula preta na íris azul de seu pai. Sussurrando, disse com um sorriso: – Tenho certeza de que você vai para o inferno.
– E vou te levar comigo, filho. Não pode lutar contra o que é, e vai ser colocado numa posição que não poderá vencer – seu pai inclinou o rosto, como se alguém tivesse colocado uma arma em sua testa. – Você e eu somos a mesma coisa.
– Tem certeza disso? Vou sair daqui logo e você tem um encontro marcado com uma agulha na quarta-feira. Não vejo a “mesma coisa” em nada aqui.
Os dois se encararam por um tempo, até que seu pai recuou.
– Ah, filho, acho que vai me encontrar vivo e muito bem no final da semana – havia muita satisfação em seu tom de voz. – Vai ler sobre isso nos jornais.
– Como vai conseguir isso?
– Tenho amigos no submundo, por assim dizer.
– Nisso eu acredito.
O sorriso encantador e um pouco arrogante voltou, e a voz de seu pai diminuiu chegando a ser graciosa.
– Apesar de ter sido... um tanto amargo... estou contente por ver você.
– Eu também. Você é menos impressionante do que eu me lembrava.
A contração muscular no olho esquerdo do pai informou que as palavras de Veck atingiram um ponto fraco.
– Faria uma coisa por mim?
– Provavelmente não.
– Vá até o túmulo de sua mãe e leve uma rosa vermelha para ela. Eu amava aquela mulher até a morte, de verdade.
As mãos de Veck fecharam-se.
– Vou dizer uma coisa – Veck sorriu. – Vou apagar o meu cigarro no seu túmulo. O que acha disso, pai?
Thomas DelVecchio pai recuou, sua expressão era fria. Com certeza o encontro não estava sendo como ele esperava.
– A propósito, não se trata apenas de você – seu pai anunciou.
Quando Veck franziu a testa, o homem encarou o espaço em branco atrás do ombro de Veck.
– Ela quer que saiba que ela sofreu. Horrivelmente.
Jesus... Exatamente a mesma coisa que Kroner disse...
Veck conteve-se antes de erguer o olhar em direção a Jim, mas a reação do anjo foi clara: uma corrente fria percorreu o ar e passou sobre a cabeça de Veck, atravessando a mesa e arrepiando a pele das costas das mãos do pai de Veck.
Seu pai sorriu para o ar onde Jim se encontrava em pé.
– Não acha que vai vencer esta, acha? Porque não pode tirá-la dele. Um exorcismo não vai funcionar porque ele nasceu com isso. Não está dentro dele, é parte dele.
Seu pai olhou de volta para Veck.
– Acha que eu não sei que trouxe amigos? Garoto tolo, muito tolo.
Veck levantou-se.
– Terminamos.
Sim, era hora de ir: considerando a explosão de vento gélido que passou por ele, Jim Heron, o anjo, estava prestes a atacar seu pai. Seria divertido, mas será que era a coisa mais inteligente a se fazer? Era melhor seguir a linha “não aqui, não agora”.
– Nenhum abraço? – seu pai falou lentamente.
Veck não se incomodou em responder essa. Não desperdiçaria seu fôlego e seu tempo com o filho da puta. Na verdade, não tinha certeza da razão de ter vindo – apenas para trocar ofensas? Não havia qualquer encruzilhada visível para ele ali... Porém, talvez o importante tenha sido aquela mensagem para Heron.
Quando Veck virou-se e caminhou até o guarda, o cara abriu a porta rapidamente, como se também não quisesse ficar naquele ambiente nem mais um minuto sequer.
– Thomas – seu pai chamou –, vejo você no espelho, filho. Todos os dias.
A porta foi fechada e interrompeu as palavras.
– Você está bem? – o guarda perguntou.
– Estou bem. Obrigado.
Atrás do outro homem, Veck seguiu na direção de onde vieram.
– Para quando está marcada a execução?
– Para o primeiro horário da quarta-feira. Se solicitar ao diretor, acho que pode conseguir um lugar.
– Bom saber.
Enquanto andava a passos largos, Veck podia sentir a presença de seu pai com ele, como se a bateria daquela lâmpada maligna dentro dele tivesse sido carregada e recuperado a força que deixou de ter durante anos.
No centro do peito, aquela ira obscura queimava com vivacidade... e espalhava-se.
– Tem certeza de que está bem, detetive?
Veck não teve certeza de qual parte dele respondeu: – Nunca me senti melhor em toda minha vida.
CAPÍTULO 38
– Você fez a coisa certa.
Reilly olhou por cima da divisória que havia no cubículo. Sua supervisora estava encostada contra a repartição, de casaco, maleta numa das mãos e as chaves pendiam na outra.
– E deveria ir para casa.
Reilly sorriu um pouco.
– Só estou recuperando o atraso.
– Sem ofensa, mas isso é besteira... no entanto, não vou te impedir.
– Obrigada – Reilly esticou os braços sobre a cabeça. – Preciso fazer isso. Pelo bem da minha sanidade.
Na tela de seu computador estava a lista preliminar de provas feita assim que a caminhonete de Kroner fora apreendida. Fez uma busca da palavra brinco e agora examinava uma a uma as descrições e as primeiras fotos impressas.
Ainda havia mais ou menos quinze para examinar e, então, passaria um pente-fino na lista principal, que fora finalizada naquela tarde. Precisava entender sozinha coisas como aquelas.
A supervisora assentiu.
– Está certo, eu entendo. E só para te avisar, DelVecchio não retornou minhas ligações... E acabei de ligar para o sargento outra vez. Nada também.
– Quando vai emitir um mandado de prisão contra ele?
– Amanhã, depois do meio-dia, se ele não se entregar para ser interrogado antes.
A acusação seria adulteração de provas. Ela, sua supervisora e o sargento tinham examinado o vídeo de segurança da sala de provas filmado no dia anterior... Viram Veck entrar, olhar todos os objetos catalogados e, em seguida, vasculhar a caixa de coisas que ainda precisavam ser registradas. Esta fora sua oportunidade e, além disso, sua mão esquerda acessou o bolso várias vezes.
Não era uma prova muito concreta, mas combinava com as declarações de Bails e a discrepância na lista – era o suficiente para, ao menos, detê-lo. Além disso, se não atendesse às ligações, havia grandes chances de estarem certos.
– Seja honesta comigo – sua chefe disse. – Teme por sua segurança pessoal?
– Não – talvez.
– Quer que eu designe uma patrulha para sua casa?
– Na verdade, vou para a casa dos meus pais esta noite. E vou ficar com eles um tempo.
– Boa ideia. E considere a patrulha feita – a mulher colocou uma das mãos sobre o ombro de Reilly. – Não se culpe por nada disso.
– Como não?
– Não pode controlar as pessoas.
Mas, pelo amor de Deus, poderia escolher com quem dormiria ou não. Mudando de assunto, disse: – Então, já terminou de conversar com Bails?
– Sim, a declaração dele já está nos arquivos. Pode ler se quiser, é exatamente o que ele já te disse. Saiu há pouco tempo.
– Vou fazer isso. E antes que você diga... sim, eu prometo ir para casa antes da meia-noite.
Sua chefe já estava quase na porta quando disse em voz alta: – Quando vai conversar com os Barten sobre isso?
– Quando tudo estiver acertado aqui. Aqueles pobres coitados já passaram pelo inferno e voltaram, e a ideia de que um policial pode ter assassinado a filha deles vai piorar muito as coisas. Especialmente com o nome DelVecchio associado ao caso.
E ainda teriam que levar em conta que Veck esteve na casa deles.
Naquele momento, as palavras dele foram repetidas em sua cabeça: Eu levei aquele cara até a casa de uma vítima.
Deus, era um ótimo mentiroso.
– Ligue para mim se quiser conversar – sua chefe murmurou.
– Farei isso. E obrigada de novo.
Ao ficar sozinha, pensou em Jim Heron, o “agente do FBI”, o que havia “mostrado” a caverna onde os restos mortais de Sissy foram encontrados. Veck foi brilhante ao interpretar aquela cena. Tão surpreso quando tudo aconteceu. Tão profissional depois.
E quanto à falta de pegadas nas pedras? Heron poderia ter acampado ali durante horas, esperando que Veck levasse-a na direção certa, as solas dos sapatos secaram percorrendo o local. E todos ficaram tão paralisados ao encontrar o corpo que ninguém procurou por ele. Um grande erro.
Estava claro que Heron e Veck trabalhavam juntos.
Reilly soltou um palavrão e voltou a prestar atenção na tela. A última entrada de “brinco” na lista preliminar não demorou para ser examinada e, como esperava, não havia nada parecido com uma pomba ali. Como Bails dissera.
Quando passou para a versão final, com suas fotografias tiradas por um microscópio, a catalogação era tão sucinta que levaria apenas alguns minutos para encontrar o brinco. A discrepância não havia sido notada, mas seria, em breve.
– Que confusão – ela murmurou ao abrir o arquivo de Sissy para rever as fotos da autópsia.
Deus, era fisicamente doloroso só de olhar.
Ao longo dos anos trabalhando na polícia, tinha visto muitas coisas horríveis, mas a situação de Sissy era a pior. Talvez por ter se envolvido pessoalmente, graças a algumas decisões estúpidas de sua parte.
Cansada, mas ainda incapaz de ir embora, decidiu perder algum tempo na internet. Introduziu o nome Thomas DelVecchio Jr., e o Google lhe deu milhares de referências em dezessete segundos. Descendo a tela com o mouse, clicou e abriu alguns blogs e sites... Apenas para se sentir cada vez menos impressionada com a humanidade. Não que precisasse de ajuda naquele departamento.
Havia tanta adoração pelos motivos errados... Reilly ficou se perguntando quantas daquelas pessoas achariam divertido se a própria filha ou a própria mãe tivessem sido uma das vítimas. Ou se alguma delas em si tivesse caído nas mãos de DelVecchio... e sido ferida por suas facas.
Refinando a busca para pesquisar sobre as vítimas, achou muitas referências da primeira mulher que fora assassinada, incluindo algumas fotos da autópsia. E uma comparação lado a lado entre Sissy Barten e Suzie Bussman resultou em algo que ela já sabia: o método e as marcas eram os mesmos.
Que maneira de homenagear o pai. Deus, até mesmo os nomes eram muito semelhantes, de uma maneira assustadora.
Recostando-se profundamente em sua cadeira, seus olhos iam e vinham entre as duas metades da tela – e deu-se conta de que rezava para que encontrassem provas suficientes para condenar Veck. Tudo o que tinham até agora era o brinco plantado em meio às provas, a declaração de Kroner com relação à pedreira e o fato de que Veck estivera na casa dos Barten. Porém, todos tinham lidado com o caso como se Kroner tivesse feito aquilo. Ninguém tinha olhado para Veck – mas isso estava mudando agora. Sua mesa, computador e armário já tinham sido revistados e tudo foi apreendido. Sua casa seria interditada para fins de investigação. E, assim que aparecesse, seria levado direto para um interrogatório. Contudo, talvez ele tivesse fugido...
Reilly ergueu-se e girou na cadeira.
O batimento cardíaco rugia nos ouvidos, abafando o som do sistema de aquecimento instalado no teto e o zumbido do equipamento de informática... e o ranger que ouviu atrás dela.
Olhando para o teto, observou a câmera de segurança em uma das extremidades. A luz vermelha no centro da máquina piscava lentamente, o ciclo preguiçoso das ondas emitidas por aquele sinal indicava que estava funcionando.
– Quem está aí?
Ninguém respondeu, pois não havia ninguém ali. Certo?
Ouviu a própria respiração por um tempo e, então, pensou: Certo, isso é besteira – não seria intimidada no seu maldito departamento.
Empurrando com força a cadeira, andou pelos cubículos vazios e verificou as salas de reunião e os escritórios. Na volta, percorreu todo o caminho até a porta principal, abriu-a e olhou para os dois lados do corredor.
Virou-se rapidamente, quase esperando encontrar alguém atrás dela. Ninguém.
Praguejando baixinho, voltou para sua mesa, sentou-se e... quando o celular tocou, deu um pulo e colocou uma das mãos sobre a garganta.
– Ai, cale essa boca.
Difícil saber se estava dirigindo-se ao celular ou à sua glândula produtora de adrenalina.
Pegou a coisa, aceitou a ligação e exclamou: – Reilly.
– Como você está?
Ao som da voz do detetive De la Cruz, respirou fundo.
– Já estive melhor.
– O sargento me ligou.
– Que confusão – aparentemente, aquela era sua nova trilha sonora.
– Sim.
Houve uma longa pausa, preenchida pelo mesmo tipo de silêncio que marcou a viagem de volta dela e de Bails do hospital até a delegacia: Que diabos aconteceu – era a mensagem subentendida sem que se dissesse uma palavra.
– Alguém te contou sobre a outra parte da história? – ela perguntou.
– Que você e Veck estavam... ah...
Ela teve que fazer uma careta.
– Foi um péssimo julgamento de minha parte. Pensei que o conhecia, pensei mesmo.
– Isto é difícil, não? – as palavras foram ditas com um cansaço que vinha de toda uma experiência pessoal. – No final, só se conhece de verdade a si mesmo.
– Tem toda razão... e estou contente por ter ligado. Quando isto tudo acabar... e ficar tudo...
– Tudo o que as pessoas pensarão é que ele é um idiota. E esse é o melhor cenário que ele poderá vivenciar.
Assassino seria outra palavra muito ouvida, sem dúvida.
– Você vai superar isto – De la Cruz disse. – Só queria que soubesse que pode me ligar se precisar de qualquer coisa.
– Está sendo muito... gentil.
– Parceiros são uma coisa complicada. Já tive alguns.
Mas aposto que nunca dormiu com um deles – Reilly pensou.
– Obrigada, detetive.
Depois que Reilly desligou o telefone, ficou olhando para o nada. Deus, será que aquela história de Veck encontrar sua mãe morta era mesmo verdade? Ou teria sido apenas outra maneira de jogar com as emoções?
Bem, só havia uma maneira de descobrir... Não levou muito tempo para localizar algumas referências em blogs amadores relacionadas a esse capítulo em especial na história da família DelVecchio. Leu tudo sobre como Veck tinha descoberto o corpo, como foi interrogado e como foi inocentado de qualquer envolvimento com base nas evidências físicas: apesar de suas impressões digitais estarem por toda casa, não havia nada sobre a vítima, também não havia sangue sob as unhas, nem sobre as roupas ou em locais como o seu banheiro ou sua cama.
Com o corpo de Sissy Barten foi a mesma coisa: não havia qualquer evidência que ligasse Veck ao assassinato. Porém, Veck era um detetive que sabia exatamente o que fazer para não deixar nada para trás. Fato que a fez se perguntar sobre a mãe dele. E ficar preocupada.
Deus... E se ele conseguisse se livrar desta? As implicações de ser demitido por plantar provas eram muito menores que a acusação de assassinato processada com sucesso. Poderia ficar sem emprego, mas livre nas ruas. E se tivesse a mesma tendência do pai, de escorregar entre os dedos da Segurança Pública, poderiam se passar anos antes de alguém conseguir prendê-lo.
Enojada com tudo aquilo e, aparentemente, procurando ficar ainda mais, acessou o Facebook e digitou Thomas DelVecc...
Não precisou de muito para visualizar vários resultados. Indo de página em página lentamente, observou os fã-clubes aos quais Veck tinha se referido. Ao menos não havia mentido sobre aquilo.
O maior grupo tinha 20 mil membros. Acessou o mural e observou as fotografias alinhadas na parte superior da página; em seguida, viu as postagens posicionadas na vertical. Tudo sobre a execução. Tudo sobre a adoração.
Recostou-se para trás na cadeira e ficou encarando a tela. Passou-se um longo tempo antes de desligar o computador e pegar seu casaco.
– Quem é essa tal de “ela”? – Veck perguntou atrás do volante da caminhonete de Heron. – A quem meu pai se referiu?
Sentado ao lado do cara, Jim não olhava para nada. Tinham pelo menos mais uma hora antes de chegarem em Caldwell, então, havia tempo de sobra para jogar conversa fora... Mas não estava com muita pressa de falar sobre o clima, muito menos sobre Devina e Sissy.
Quer que saiba que ela sofreu.
Aquele demônio era uma tremenda vadia.
Veck soltou um palavrão.
– Maldição, é melhor um de vocês começar a falar. E se não quer me dizer nada sobre a garota, então é bom explicar que porcaria foi aquela de exorcismo.
Jim bateu a ponta do cigarro pela fresta da janela e decidiu enfrentar a última opção, em vez da primeira.
– Você não é nossa primeira tarefa. A primeira alma que salvamos... foi salva dando a Devina uma ordem de despejo.
– Devina?
– Um demônio em forma de mulher, cara.
– Foi ela quem sofreu?
– Quem dera – Adrian murmurou do banco de trás.
Jim concordava muito com ele.
– É assim que funciona. Devina é um demônio... E se precisa de mais explicações além desta, pense na sabedoria popular e terá uma boa imagem dela. Ela entra em alguém e gradualmente influencia suas escolhas e decisões. Em dado momento, a pessoa chega à encruzilhada e tem que escolher. Dependendo do caminho que decide percorrer, de como o segue, das ações que pratica... Tudo isso determina onde vai acabar. E o andar de baixo é um lugar maldito e quente demais, se é que entende o que quero dizer.
– Inferno.
– Isso.
Nesse momento, Jim pensou no pai daquele homem. Cara, aquele ser era pura maldade. E se fosse isso que estava vinculado a Veck?
– Vou acabar lá? – disse Veck suavemente, como se estivesse falando sozinho.
– Não, se pudermos ajudar.
Contudo, como diabos fariam isso? Especialmente levando em conta que Veck parecia mais misterioso desde que deixara aquela sala de visita. Mais irritado. Muito distante, mesmo estando tão perto.
Por que diabos Eddie teve que morrer? – Jim pensou. Precisavam tanto dele naquela situação.
Devina era uma tremenda vadia.
– Reilly está em perigo? – Veck perguntou asperamente.
– Quanto maior a distância entre vocês dois, melhor.
O cara soltou um palavrão novamente e murmurou: – Missão cumprida.
– É realmente mais seguro assim. Ela produziria mais danos colaterais e Devina adora isso.
Na lateral da rodovia, viram uma placa verde com letras brancas na qual se lia “CALDWELL 55”.
Quantos cigarros ele ainda tinha?
– Então, quem é “ela”? A que sofreu?
Ah, sim. Aquela pergunta iria ajudar muito seu humor.
– Alguém com quem me importo.
– Sissy Barten – Veck olhou para ele. – Certo? Kroner disse a mesma coisa, exatamente com as mesmas palavras, quando conversou com Reilly sobre ela. E você já havia dito que era pessoal.
– Disse mesmo.
– Então, o que são aquelas marcas no estômago da garota?
– Devina não conhece os modernos sistemas de segurança e alarme. Ela usa virgens – Jim endireitou-se em seu assento, seus músculos ficaram rígidos quando o impulso assassino foi acionado. – O que viu em Sissy é a maneira como ela consegue se proteger.
– Que... inferno. Então, a primeira vítima do meu pai...
– Talvez Devina o tenha obrigado a fazer aquilo como prova de fé. Talvez ele tenha apenas ajudado. Quem sabe?
– Há quanto tempo isso vem acontecendo? Entre você e o... – a pausa que se seguiu sugeria que Veck ainda estava se acostumando a pronunciar a palavra demônio.
– Há algumas semanas. Mas houve pessoas antes de mim... E ainda haverá depois se eu conseguir que você não siga o caminho que ela quer que você siga.
Jim olhou para as mãos do detetive. Envolviam com tanta força o volante que era um grande milagre ainda não o ter arrancado.
Certo, aquele tipo de fúria não agiria a favor deles: seria um estopim para Devina... Se ela atingisse o ponto certo, teriam que lidar com uma grande explosão. E Veck era um cara grande e forte capaz de matar pessoas com as próprias mãos e, provavelmente, fora treinado para isso.
Maldição, Jim odiava aquela espera.
– Aliás, vamos ficar com você esta noite.
– Imaginei. Só tenho uma cama, mas tenho um sofá.
– Estou mais interessado em parar em alguma loja de conveniência – abriu o maço de cigarros. – Está acabando.
– Tem uma perto da minha casa.
– Legal.
Veck colocou a mão no bolso e pegou o celular.
– Vou deixar ligado.
Enquanto Jim fervilhava de frustração, olhou para a janela ao seu lado em direção à estrada escura, perguntando-se quando as coisas...
– Que inferno – Veck murmurou. – Meu maldito telefone está estranho.
Quando Jim virou a cabeça lentamente, pensou: O tempo de espera acabou. Lá vamos nós...
CAPÍTULO 39
No Paraíso, Nigel jogava contra si mesmo. Xadrez.
Na verdade, era um pouco chato, mesmo seu oponente estando muito bem vestido e sendo incrivelmente astuto: acompanhava todos os movimentos que fazia, então, a falta do elemento surpresa não era nada desafiadora... apesar das estratégias brilhantes e ostensivas.
– Xeque-mate – disse alto em meio ao silêncio de seus aposentos.
Quando não houve qualquer palavrão, nenhuma acusação de práticas desleais, nenhum protesto ou exigências de revanche, lembrou-se outra vez por que motivo jogar com Colin era muito mais gratificante.
Levantando-se, afastou-se da mesa e deixou as peças como estavam: apenas duas sobre o tabuleiro, uma rainha branca e um rei preto.
O desejo de deixar sua tenda e sair andando pelo gramado em direção ao castelo, seguir até o rio, até o local onde Colin dormia, perfazia um impulso irresistível, que ultrapassava os limites mentais e chegava aos físicos.
Mas já fora levado por aquela loucura uma vez e foi muito constrangedor. Não faria isso novamente.
Distraído pela dor no peito, andou em volta da cama, entrou no banheiro e voltou ao quarto outra vez. Na verdade, não estava prestando atenção em nada exatamente... Bem, isso desde aquela refeição horrível... Quando a honestidade de Colin havia acertado em cheio o ego arrogante e irritadiço de Nigel.
Estranho como a posição de alguém mudava. Enquanto o tempo passava como uma corrente preguiçosa num grande rio de águas tranquilas, sua reação defensiva e impetuosa tinha se transformado em algo mais moderado... Preparando-o até mesmo para a possibilidade de se desculpar, desde que um pedido de desculpas fosse oferecido em troca. Prova de que milagres poderiam acontecer.
Infelizmente, tinha plena certeza da resposta que receberia e, conhecendo a si mesmo, bem como ao outro arcanjo, reconhecia que uma nova rodada de discussões não beneficiaria nenhum deles. Ainda assim, quem sabe Colin não poderia tomar a iniciativa de fazer as pazes?
Na verdade, embora Nigel não admitisse isso a ninguém, ele havia pulado várias das últimas refeições e passava o tempo todo ali, na esperança de que o arcanjo se aproximasse. Porém, a situação estava ficando inaceitável. Tal passividade não fazia parte de sua natureza e paciência era uma virtude da qual possuía muito pouco...
– Nigel? – veio uma voz do outro lado dos aposentos.
Nigel rangeu os dentes, mas conteve o palavrão que desejava proferir ajeitando duas vezes a gravata. A última coisa que precisava era de um visitante que não fosse Colin. Contudo, era pouco adequado punir um inocente bem-intencionado.
– Byron, meu velho – murmurou, indo para a entrada –, como estás...?
No momento em que afastou a pesada cortina de cetim e viu o rosto do outro arcanjo, ficou paralisado.
– O que foi?
– Colin... está aqui?
– Não.
– Não conseguimos encontrá-lo – Byron brincava com os botões de metal das mangas do casaco. – Quando ele não se apresentou para a refeição noturna, concluímos que estivesse estudando e o deixamos em paz. Mas, antes de começar, fui procurá-lo com algumas provisões. Não estava em sua tenda. Nem nas fontes de água. Nem no castelo... e nem aqui, pelo que vejo.
Nigel balançou a cabeça ao mesmo tempo em que se concentrou para ouvir seus sentidos – e não encontrou sinal algum do anjo. Na verdade, se não estivesse tão preocupado consigo mesmo, reconheceria antes o que notava claramente agora: Colin não estava no local.
Houve um breve impulso de ceder ao pânico, mas Nigel controlou a reação emocional. E, pensando logicamente, ele sabia que havia apenas um lugar para onde aquele todo iria.
Por que não havia previsto aquilo?
– Não se preocupem – disse Nigel gravemente. – Vou sair e o trarei de volta.
– Quer ajuda?
– Não – pois não se responsabilizaria pela punição que daria ao arcanjo. Conflitos pessoais eram uma coisa, insubordinação era outra completamente diferente. E este último item não seria negligenciado, de forma alguma.
Apenas com a força do pensamento, seu roupão e chinelos com monogramas transformaram-se num terno cinza-claro, uma camisa de um branco brilhante, uma gravata xadrez de tons suaves e um par de asas.
– Vá e console Bertie e Tarquin – disse ao outro arcanjo. – Sem dúvida estão preocupados. E saiba que não devo demorar.
– Aonde vai?
– Para onde ele está.
Com isso, Nigel saiu, atravessando a barreira que os ligava ao mundo lá embaixo. E, quando retomou sua forma corpórea, viu-se diante de uma garagem de dois andares de distinção modesta no interior do país.
Pensou em Edward descansando ali.
Que local comum para uma alma tão extraordinária.
Com uma concentração sombria, Nigel subiu as escadas estreitas e passou pela porta como se não fosse nada além de um véu de névoa. Não havia razão para abrir as portas. Com certeza já havia anunciado sua presença.
E Colin não pareceu chocado com a invasão. O arcanjo estava sentado num sofá gasto sob uma grande janela, descansando com um dos braços estendido sobre as almofadas e as pernas cruzadas, com um dos tornozelos sobre o joelho.
Nigel relembrou cada ângulo e linha daquele belo e rígido rosto masculino. Em seguida, observou os olhos negros e os lábios volumosos.
– Pensou que sua ausência não seria notada?
– Pareço surpreso com sua chegada?
– A maneira adequada de agir diante destas situações é pedir permissão antes de sair.
– Talvez para Byron e Bertie. Mas não para mim.
– Eu não teria negado.
– Como poderia saber?
Quando Nigel franziu a testa, sua ira diminuiu de repente, em seu lugar, sentiu a exaustão. Como os seres humanos suportam aquele turbilhão emocional? E por que havia permitido que seu coração sentisse aquilo? Não era nada bom. Além disso, não poderia continuar. Quando se dirigiu ao arcanjo outra vez, foi com serenidade.
– Colin, parece que você e eu alcançamos nossa própria encruzilhada. Por mais que eu esteja preparado para reconhecer certos... erros de julgamento da minha parte... temo que não seja suficiente para você, assim como água não é suficiente quando a necessidade real é de sangue. Além disso, acredito que, na sua tentativa de assumir uma posição lógica, a verdade sobre você mesmo se perdeu. Suas paixões te governam muito mais do que imagina e te levam em direções que comprometem nossos interesses coletivos.
Os olhos de Colin desviaram-se.
– Portanto, devo sugerir que deixemos no passado nossa relação íntima para que possamos assumir uma distância apropriada. Talvez com o tempo, possamos também voltar a trabalhar juntos em harmonia. Porém, até que isso ocorra, eu espero que se comporte de maneira adequada ou vou remover qualquer influência que possa exercer sobre a presente situação.
Quando não houve resposta imediata, Nigel caminhou até uma cozinha e parou diante de uma porta pequena e baixa. Atrás daquela frágil barreira repousava Edward, sem respirar, mas também sem se deteriorar, o corpo do anjo era como um vaso exalando o perfume de flores que não estavam ali.
Colin foi inteligente ao se dirigir àquele local, pensou Nigel. Com Jim e Adrian guerreando intensamente com Devina, aquele vaso não estava seguro – e, se fosse quebrado ou comprometido, não haveria como restaurar a alma de Edward.
Contudo, mesmo que permanecesse intocado, era impossível saber quando retornaria. Coisas dessa natureza estavam sob a alçada do Criador e dele somente. Além disso, seria um acontecimento sem precedentes. Mas mesmo assim, Colin deveria...
– Eu deveria ter dito onde estava indo – o arcanjo disse bruscamente. – Você está certo neste ponto.
Nigel virou-se. O anjo ainda estava no sofá, ainda estendido, mas tinha erguido os olhos, encontrando os de Nigel.
– Isto é um pedido de desculpas? – disse Nigel.
– Entenda como quiser.
Nigel balançou a cabeça e pensou: Não está bom o suficiente, velho amigo. Simplesmente, temo que ainda não seja o suficiente.
Ajeitando as mangas da camisa, puxou as abotoaduras de ouro e afirmou mais uma vez: – Estou me esforçando para ganhar este concurso vital da melhor maneira que conheço... Ou seja, dentro dos limites dúbios próprios deste jogo. Não posso aceitar a afirmação de que dois erros façam um acerto. Não vou aceitar.
– Não se iluda – Colin murmurou ao erguer uma das mãos e flexionar os dedos. – Nossas mãos estão limpas, como você diz.
– E veja como isso acabou. Edward está morto.
– Você não é o culpado por isso.
– Sou sim – Nigel balançou a cabeça. – É o que você não entende. Tudo isso é minha responsabilidade. Pode ter suas opiniões, suas discordâncias, sua ira, mas, no final, seus ombros não sentirão o peso de arcar com o ônus da derrota, se este for o resultado. Essa função é minha e só minha. Portanto, enquanto menospreza meu controle, você vê as coisas da vantajosa posição onde pode comentar sem sofrer consequências.
Com isso, Nigel andou até a porta.
– Estou feliz por você estar aqui e sei que protegerá bem algo tão precioso.
– Nigel.
Olhou por cima do ombro.
– Colin.
Houve um longo momento de silêncio. Quando pareceu que nada mais seria dito, Nigel olhou para a cozinha e pensou sobre a natureza da perda: é possível escolher certas coisas, outras não. Algumas eram impostas. E... outras eram permanentes.
– Vejo você mais tarde – disse Nigel, finalizando a conversa e saindo.