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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INVEJA
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Biblio VT

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 20

 

Gary Peters sempre achara que seu nome soava como ele: nada de especial. Havia milhares de Garys no país – a mesma coisa para Peters – e sua aparência física também não o diferenciava muito. De alguma maneira, conseguiu evitar uma barriga de cerveja, mas seu cabelo era fino e, agora que tinha chegado aos quarenta, passava pela crise de perdê-los. O rosto era branco como um purê de batatas, os olhos eram de um castanho-terra e a existência de um queixo era discutível: talvez pescoço, bochechas e clavícula estivessem todos unidos.

Moral da história? Era um homem invisível, daqueles que as mulheres nem percebem a existência entre tantos metrossexuais musculosos, atletas e caras ricos e famosos.

Razão pela qual a visão de Britnae avançando até sua mesa e lançando um olhar... digamos, daqueles... foi uma grande surpresa.

– Desculpe – ele balançou a cabeça. – O que você disse?

Ela inclinou-se e... bom Deus, aqueles seios...

Quando ela ergueu-se outra vez, ele teve a sensação de que a mulher falara alguma coisa, mas não fazia ideia do que tinha sido...

– Desculpe, telefone – esticando o corpo, pegou o fone. – Departamento de Polícia de Caldwell, pois não. Sim. Uh-hum. Sim, está sob custódia e intimado. Sim, claro... Darei o recado de que estará lá pela manhã.

Fez algumas anotações no caderno e voltou sua atenção para Britnae. Que tinha decidido sentar-se à mesa em que se apoiou antes.

No começo achava que a saia era pequena. Agora, parecia micromíni.

– Ah... o quê? – ele disse.

– Perguntei quando será seu intervalo.

– Ah, desculpe – pelo amor de Deus, tinha alguma coisa errada naquela abordagem. – Não tão cedo. Ei, você não costuma sair às cinco da tarde?

– Estou presa aqui examinando uma folha de pagamento – quando ela fez beicinho, o lábio inferior, já volumoso, pareceu um travesseiro. – É tão injusto... e ainda tenho mais uma hora pela frente, pelo menos, e está tão tarde.

Ele olhou o relógio: 20h. Tinha acabado de iniciar seu turno de dez horas, aquele em que vigiava provas e prisioneiros, então, era cedo para ele. Costumava ir para casa às 6h, e o departamento dela chegava ali às 8h30.

Ela inclinou-se outra vez.

– É verdade que todas as coisas de Kroner estão aqui?

– Na sala de provas? Sim, estão.

– Você chegou a vê-las?

– Algumas delas.

– Mesmo?

Foi muito curioso como os olhos dela arregalaram-se um pouco enquanto colocava a mão sobre a garganta.

– São horríveis – ele acrescentou, sentindo o peito inflar.

– Como assim... o que são?

A hesitação dela mostrava que estava em dúvida se desejava mesmo saber mais.

– Partes e pedaços... Se é que me entende.

A voz dela tornou-se quase um sussurro.

– Você pode me levar lá?

– À sala de evidências? Ah, sim, não, não posso. Apenas pessoal autorizado.

– Mas você é autorizado, não é?

– E gostaria de manter o meu emprego também.

– Quem ficaria sabendo? – ela inclinou-se ainda mais. Gary pensou que, caso ela se endireitasse um pouco mais, poderiam se beijar.

Temendo passar por tonto, afastou-se e empurrou a cadeira para trás.

– Eu não diria a ninguém – ela sussurrou.

– Não é tão simples. Precisa se identificar na entrada e na saída e tem as câmeras de segurança. Não é uma sala de descanso.

Ele podia ouvir a petulância em sua voz e, de repente, desprezou sua calvície e sua meia-idade. Talvez aquele tom fosse a razão pela qual ainda era virgem.

– Mas você poderia me deixar entrar... se quisesse – os lábios dela eram absolutamente hipnotizantes, moviam-se devagar à medida que enunciavam as palavras. – Certo? Sei que poderia, se quisesse. E eu não vou tocar em nada.

Deus, como aquilo era estranho. Esperava entrar no trabalho e cumprir suas tarefas como sempre fazia todas as noites. Mas lá estava ele, com aquela... encruzilhada.

Será que Gary Peters não faria nada, como de costume? Ou será que tomaria uma atitude de verdade com a gostosa do departamento?

– Sabe de uma coisa? Vamos lá.

Ele levantou-se e verificou outra vez se as chaves estavam no cinto – onde, é claro, elas estavam. E, como era de se esperar, havia uma equipe reduzida na delegacia, então, era o único responsável por levar qualquer coisa ao andar de cima – e os detetives Hicks e Rodriguez tinham acabado de trazer dois gramas de maconha embalados e assinados.

– Oh, meu Deus – ela disse, saltando da mesa. – De verdade?

O peito dele voltou a se encher, em vez da sensação de vazio de sempre.

– Sim. Vamos.

Colocou o sinal de que estava em intervalo, para que as pessoas ligassem em seu celular – alguém poderia aparecer para registrar ou cadastrar alguma prova – e, então, abriu a porta para ela.

Quando ela passou e Gary sentiu o perfume, pensou ser mais alto do que era quando começara a trabalhar, a sensação era ótima. Sabia que havia uma grande possibilidade de sair impune daquilo. A equipe de evidências trabalhara muito, há dias, nas evidências de Kroner, mas, finalmente, decidiram que também precisavam dormir; então, não havia ninguém ali. E, com certeza, Britnae não tocaria em nada mesmo – ele iria se certificar disso. Assim, não haveria necessidade de verificar as gravações das câmeras de segurança.

Arriscado? Um pouco. Mas, na pior das hipóteses, receberia uma advertência. Tinha o registro mais irrepreensível em termos de assiduidade e desempenho no departamento de recepção e segurança – ele não tinha vida. E Britnae nunca iria abordá-lo novamente.

Algumas vezes, você precisa ser algo mais que um mero Gary Peters atrás de uma mesa...

Britnae pulou e abraçou-o.

– Você é tão legal!

– Ah... imagina.

Droga, como Gary era imbecil. Graças a Deus ela não ficou agarrada por muito tempo, pois ele quase desmaiou.

O engraçado foi que se sentiu calmo ao mostrar o caminho, levando-a para o elevador até o segundo andar. Dali em diante, insistiu, como se fosse um agente secreto, que seguissem pelas escadas. Lá em cima, abriu a saída de incêndio e ouviu. Nada. Nem mesmo alguém da limpeza. E, no final do corredor, as luzes do laboratório forense estavam apagadas.

– Nunca estive aqui antes – Britnae sussurrou perto da manga da camisa ao agarrar o braço dele.

– Vou cuidar de você. Vamos.

Andaram na ponta dos pés pelo corredor até uma porta de aço pesada na qual se lia “evidências – apenas pessoal autorizado”. Com suas chaves, abriu-a e seguiu até uma antessala de identificação. Sentiu seus nervos exaltados quando aproximou-se da mesa em que a recepcionista ficava durante o horário comercial, mas, quando identificou-se e entrou, sabia que não tinha mais volta.

– Oh, meu Deus, estou tão animada! – quando Britnae colocou as mãos sobre o antebraço de Gary e inclinou-se, como se ele fosse seu protetor, o homem não se incomodou mais em esconder o sorriso, pois ela não conseguia visualizar seu rosto.

Isso é... muito legal – ele pensou ao registrar no sistema a maconha apreendida.

Quando Devina esfregou-se contra o corpo do oficial, fez um favor àquele triste humano, um tal de Gary Peters. Era engraçado fingir ser a bonitona do escritório, e o idiota da recepção engolia a mentira. Seu plano só precisava ter um início e um fim. Ele não se lembraria de nada na manhã seguinte: para que aquilo tudo funcionasse, o statu quo tinha que ser preservado.


– Certo, vamos entrar – o cara disse ao sair da frente do computador.

Usando o tom de voz alto de Britnae e aquela pronúncia ao estilo de modelos famosas californianas, disse: – Oh, meu Deus, estou tããão empolgada. Isso é muito real!

Blá-blá-blá... mas usou o tom certo, pois já estava usando a carcaça há algum tempo. E a garota não tinha um vocabulário muito extenso – era só acrescentar “oh, meu Deus” a cada substantivo ou verbo e pronto.

Na segunda porta de aço, Gary Peters passou seu cartão pelo leitor magnético na parede e a fechadura soltou-se em seguida com uma batida.

– Está pronta? – ele disse, todo protetor.

– Não sei... Quero dizer, sim!

Ela saltitou um pouco e, então, voltou a ofegar sobre o braço dele enquanto segurava uma de suas mãos. E, ao vê-lo todo encantado com o show, ela pensou: que idiota.

No instante em que entrou no interior das instalações de armazenamento de provas, a habitual cena de gato e rato assumiu seu lugar na missão. De alguma maneira, estava entediada daquele tipo de diversão, porém, tinha que fazer algo de qualquer jeito. O desaparecimento de Jim Heron obrigou-a a antecipar algumas coisas, o que ela odiava.

Não conseguia acreditar que não havia qualquer sinal dele. Era a primeira vez que acontecia com um anjo e tinha certeza de apenas uma coisa: ele não tinha recuado ou desistido. Não estava em sua natureza. A guerra continuava e havia uma alma para tomar... Além disso, havia maneiras de conseguir que Jim aparecesse outra vez.

O guarda conduziu-a ao longo dos corredores cheios de prateleiras que se estendiam do chão ao teto, cheias de caixas de uma variedade incalculável de formatos e tamanhos. Tudo estava bem catalogado e indexado, havia pequenas etiquetas penduradas e muitos sinais alfanuméricos indicando algum tipo de sistema.

Que coleção. Que organização...

Devina teve que parar e desabafou: – Isso é incrível.

O oficial idiota ficou todo orgulhoso, mesmo sendo apenas uma pequena engrenagem de uma máquina maior.

– Sempre há dezenas de milhares de provas aqui. Tudo está identificado pelo número do caso e registrado no computador para que possamos encontrar tudo de maneira eficiente – começou a andar outra vez, dirigindo-se a alguns recantos do local. – No entanto, existem algumas exceções, como o caso Kroner, pois há muita coisa envolvida no processo.

Enquanto ele seguia, Devina olhava para cima e observava todos os objetos ao redor. Que demais!

Ao longo de todo o caminho, havia algumas mesas com cadeiras, como se fosse uma cafeteria em que se serve objetos inanimados para consumo.

– Os detetives e oficiais têm autorização para entrar, tirar fotos, reexaminar coisas ou pegar alguma evidência para julgamentos. O laboratório também retira os objetos do lugar de tempos em tempos, mas tudo precisa retornar ao departamento. As coisas de Kroner estão bem aqui. Não toque em nada.

Atrás de uma divisória de 1,8 metros de altura, havia uma estação temporária de trabalho constituída de mesas, cadeiras, computadores e um equipamento fotográfico, assim como caixas de sacos plásticos vazias e rolos de etiquetas adesivas. Mas isso não importava. Em prateleiras rebaixadas, que tinham 2,5 metros ou mais de comprimento, havia vários saquinhos enfileirados, todos com códigos de barras, contendo frascos, joias e outros itens.

Seu pequeno servo tinha sido um menino muito, muito ocupado, não?

– Geralmente, a evidência é registrada lá embaixo, na entrada, ou no laboratório, se for restos humanos, mas havia tantas coisas naquela caminhonete apreendida que tiveram que criar uma unidade temporária de processamento de dados aqui. Todas as amostras de tecido foram examinadas primeiro, pois havia uma preocupação com a preservação dos elementos... Entretanto, parece que Kroner já sabia exatamente como manter tudo. Claro que sabia. Queria ter sempre parte de suas vítimas junto dele.

– Há muitos outros objetos aqui – o policial levantou um lençol branco que cobria uma caixa enorme e rasa.

Ah, sim, exatamente o que ela esperava encontrar: um amontoado de camisetas, joias, bolsas, laços de cabelo e outros objetos pessoais.

Vendo tudo aquilo, ela sentiu-se profunda e verdadeiramente triste por Kroner, pois sabia muito bem de onde vinha a obsessão dele. Ninguém quer perder as conquistas do trabalho duro, as pessoas passam a valorizar seus objetos. No caso de Kroner, era mais difícil, pois, ao contrário dela, ele não tinha como manter suas vítimas para sempre... E, agora, também tinha perdido sua coleção.

De repente, Devina sentiu dificuldade para respirar.

Ela tinha perdido seus preciosos objetos, e lá estavam eles, sob a tutela de seres humanos, que tocaram e recatalogaram tudo. Eles poderiam, muito bem, um dia, num futuro distante, jogá-los fora.

– Britnae? Você está bem?

O oficial apareceu bem ao lado dela, mostrando uma cadeira de escritório.

– Sente-se – ouviu-o dizer ao longe.

Quando a sala começou a girar, Devina fez o que ele havia sugerido e colocou a cabeça entre os joelhos que não eram dela. Estendendo uma das mãos, pegou na borda da mesa, como se assim pudesse manter a consciência.

– Merda, merda... certo, vou pegar um pouco de água para você.

Quando o oficial saiu, seus pés iniciaram uma corrida mortal em direção às pilhas de evidências, pois sabia que não tinha muito tempo. Com a mão trêmula e suada, pegou o brinco de ouro que tinha trazido de sua coleção. As lágrimas vieram à tona quando percebeu que tinha de abrir mão novamente daquilo se quisesse progredir naquela rodada com Heron... e DelVecchio.

Há pouco, quando estava em seus aposentos privados, parecia haver uma perspectiva tão razoável, tão fácil, mas ali, cercada por centenas de milhares de troféus, o que era o brinco de uma virgem morta? Ficaria com a outra peça do par... além do mais, tinha outros objetos para se lembrar daquela maldita Sissy Barten.

Agora, porém, sentada ao lado da carnificina que eram as lembranças de Kroner, sentia como se estivesse enviando uma de suas muitas almas às profundezas de um mar de perda e esquecimento permanentes. Mas que escolha tinha? Tinha que eliminar as forças de Heron e, mais importante, tinha que configurar o final do jogo...

De repente, a imagem da secretária gostosa começou a se desintegrar, a verdadeira forma de Devina passou a emergir da camada de pele humana jovem e rosada, sua carne morta e enrugada e suas garras cinzas e retorcidas embalavam o brinco barato em formato de pássaro.

Por um momento, não se importou. Estava abalada demais por sua possessividade, não conseguia lidar com o fato de que o oficial voltaria em breve e que, então, teria de infectá-lo ou matá-lo – e não tinha energia para nada disso. Ela tinha, porém, de se recompor.

Obrigando-se a pensar um pouco, convocou a visão de sua terapeuta, imaginando aquelas formas arredondadas, aquela pessoa realizada, acolhedora, que já tinha passado da menopausa e que não só parecia ter resposta para tudo... Mas parecia saber exatamente do que ela estava falando.

Devina, a ansiedade não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo... Você deve se lembrar de que não necessita de objetos para justificar sua existência ou para se sentir bem ou segura.

Ou seja, se não conseguisse se recompor e colocar aquele brinco ali, comprometeria mais ainda seus objetivos.

Você já perdeu uma vez – lembrou a si mesma.

Duas respirações profundas... mais outra. Então, olhou para sua mão e desejou a imagem da jovem e a bela carne de volta. A concentração que aquilo exigia deu-lhe uma dor de cabeça permanente, mesmo depois que voltou a ser Britnae, mas não havia tempo para desperdiçar com as têmporas que latejavam. Ao colocar-se em pé sobre pernas tão fortes quanto canudos de refrigerante, saiu tropeçando em direção à caixa de objetos. Agarrando-se a uma cortina, colocou ali o brinco em formato de pomba e, em seguida, patinou de volta ao assento que o oficial havia providenciado para ela. Bem a tempo.

– Aqui, beba isso.

Olhou para o cara. Considerando a expressão em seu rosto, parecia que o disfarce Britnae ainda estava funcionando. Uma coisa era certa sobre humanos: ficavam totalmente chocados quando a viam como era de fato.

– Obrigada – disse com voz rouca ao estender uma das mãos... com uma camada de esmalte rosa nas unhas. Mas quanto tempo aquilo duraria?

Bebeu a água, amassou o copo de papel e jogou-o numa lata de lixo embaixo da mesa.

– Por favor, pode me tirar daqui? Agora?

– Claro.

Ele tirou-a da cadeira, jogando um braço surpreendentemente forte em volta da cintura e sustentando a maior parte de seu peso. Passaram pelos longos corredores. Saíram pela porta desbloqueada graças àquele cartão magnético. Enfim, o corredor que daria para a saída. O elevador foi uma bênção, mesmo ficando ainda mais tonta com a descida.

O plano, disse a si mesma. Trabalhar no plano. Era o sacrifício necessário para trazer as coisas de volta ao lugar.

Quando chegaram ao escritório, ele sentou-a numa das cadeiras de plástico de sua mesa e trouxe um segundo copo de água. O que ajudou um pouco a clarear a mente de Devina. Ela concentrou-se no oficial e decidiu não só deixá-lo viver, daria também um pequeno presente.

– Obrigada – disse-lhe, com sinceridade.

– Por nada. Quer uma carona para casa?

Ela não respondeu e inclinou-se para frente. Estendendo-se mentalmente pelo ar, infiltrou-se pelos olhos de Gary e adulou-o dentro do cérebro, passeando pelos corredores metafóricos de sua mente, visualizando ao acaso as provas que havia em suas estantes particulares.

Da mesma maneira que colocou o brinco na caixa, inseriu a convicção no cérebro do homem de que ele era um Casanova, um cara que, apesar de sua modesta aparência, era desejado pelas mulheres e, portanto, confiante e viril.

Era o tipo de coisa que o faria conseguir uma transa. Pois, ao contrário dos homens, criaturas visuais, as mulheres tendiam a valorizar mais o conteúdo que havia entre as orelhas de alguém. E autoconfiança era muito sensual.


Devina partiu em seguida, levando com ela as memórias do que tinham feito e onde tinham estado. Seu ato de caridade enojou-a, e ela desejou fazer um gesto obsceno àquele Nigel insuportável.

Mesmo uma freira com o coração mais puro que se possa imaginar teria vontade de soltar um palavrão naquela ocasião. Eram raros os casos em que um demônio motivava-se a mostrar compaixão. Ela sentiu vontade de tomar um banho para tirar o fedor.


CAPÍTULO 21

 

– Acho que estou no céu.

Reilly escondeu um sorriso quando Veck olhou com admiração o pedaço de torta que sua mãe havia colocado à frente dele.

– A senhora fez mesmo isso? – disse ao olhar para cima.

– Do zero, incluindo a massa – o pai dela anunciou. – E não só isso, ela pode calcular seus impostos de olhos fechados com um dos braços amarrado nas costas.

– Acho que estou apaixonado.

– Desculpe, ela já é comprometida – o pai de Reilly puxou sua esposa para um rápido beijo ao pegar seu pedaço de sobremesa. – Certo?

– Certo – a resposta foi pronunciada de boca cheia.

Reilly ofereceu um pouco de sorvete de baunilha a Veck.

– Sorvete?

– Com certeza.

O detetive DelVecchio acabou se mostrando muito bom de garfo. Levou segundos para comer a carne de vitela e o espaguete ao molho pomodoro. Não era muito fã de saladas, o que não era muito surpreendente. E poderiam ter servido a sobremesa em dose dupla.

Contudo, não foi a capacidade de apreciar a comida de sua mãe que impressionou Reilly: ele inteirou-se bem com o pai. Brincava e, com respeito, mostrou que não era alguém influenciável, mesmo Tom Reilly sendo conhecido por assustar até à morte seus subordinados. Resultado disso?

– E, sim, Veck, concordo com você – o pai dela anunciou. – Há muita coisa que precisa ser modificada no sistema. É muito difícil obter um equilíbrio entre acusação e perseguição, especialmente com relação a alguns grupos étnicos e raciais. Socioeconômicos também.


Sim, seu parceiro tinha sido agraciado com a plena aprovação.

Quando a conversa encaminhou-se para o assunto da aplicação da lei, ela sentou-se e observou Veck. Ele parecia mais relaxado que nunca. E, cara, como estava lindo.

Meia hora e mais um pedaço de torta depois, Veck ajudou a levar os pratos até a pia e ajudou a secar a louça. Então, chegou o momento de colocarem os casacos e dirigirem-se à saída.

– Obrigada, mãe – ela disse, abraçando a mulher que sempre estaria ali por ela. – E pai.

Ao aproximar-se do pai, teve que ficar na ponta dos pés para colocar os braços ao redor dele, esticou-se bem e não chegou nem à metade do caminho dos ombros.

– Eu te amo – ele disse, segurando-a com firmeza. E, então, sussurrou em sua orelha: – Tem um bom rapaz aí.

Antes que pudesse retornar ao discurso “não, eu não tenho ninguém”, passaram aos apertos de mãos e saíram pela porta.

Na rua, os dois acenaram e, enfim, tudo acabou.

– Seus pais são incríveis – Veck disse, enquanto se afastavam de carro.

Um rubor de orgulho da família a fez sorrir.

– São mesmo.

– Se não se importa, queria perguntar...

Quando percebeu que ele não a olhava e que não terminaria a frase, Reilly sabia qual era a pergunta que tinha ficado no ar. Era importante, mas isso não significava que ele iria forçá-la a responder.

– Fico muito feliz em conversar sobre isso – quando a chuva começou a cair, aguardou num sinal vermelho e ligou os limpadores de para-brisa. – Meus pais sempre trabalharam com jovens de risco e centros de recuperação... Começaram antes mesmo de se conhecerem. Existe um centro assim na igreja católica do centro da cidade e, depois que se casaram, costumavam passar os sábados lá, organizando livros, solicitando doações, ajudando famílias desabrigadas. A mulher que meu deu à luz chegou ali comigo depois de ter brigado com um dos três namorados. Com isso, ela acabou perdendo a visão do olho esquerdo – Reilly lançou um rápido olhar para ele. – Eu vi acontecer. Na verdade, é a primeira memória que tenho.


– Quantos anos você tinha? – ele perguntou um pouco tenso.

– Três anos e meio. Ela brigava com ele por qualquer coisa, até aí nenhuma novidade, mas, daquela vez, ela agarrou uma faca e foi atrás dele. Ele a empurrou para se defender, mas ela continuou atacando até que ele começou a bater nela. Com força. Eu disse aos policiais que ele a espancou e, então, o colocaram na cadeia. E foi assim que terminamos no abrigo, pois o apartamento em que estávamos hospedadas era dele – Reilly acionou a seta e entrou numa via principal, pouco depois de um colégio. – De qualquer forma, ficamos no local onde meus pais trabalhavam como voluntários, mas a mulher que me deu à luz roubou algumas coisas de outra família, e, então, foi o fim da estadia. Tivemos que ficar com seus outros dois namorados por mais ou menos uma semana e, então... ela me levou de volta ao abrigo e me deixou lá. Simplesmente me abandonou.

Veck encontrou seus olhos.

– Onde ela está agora?

– Não faço ideia. Nunca mais a vi de novo e, sei que soará amargo, mas não dou a mínima para o que aconteceu com ela – aproximou-se de um semáforo e pisou no freio. – Era uma mentirosa e uma viciada, e a única coisa boa que fez por mim foi ter me deixado. Mas tenho certeza de que ela não tinha a intenção de me proporcionar algum benefício com isso. Provavelmente, eu estava atrapalhando seu estilo de vida, e ela devia saber que matar uma criança era o tipo de crime que garantiria toda uma vida atrás das grades.

Nesse ponto, era o momento de entrar na pista expressa... que veio em boa hora, pois essa era a parte mais difícil da história Fez uma pequena pausa e respirou um pouco ao se posicionar no trânsito.

– Nossa, a chuva está ficando forte mesmo – ela disse, aumentando a velocidade dos limpadores.

– Não precisa terminar a história.

– Não, está tudo bem. O verdadeiro pesadelo teria acontecido se meus pais não tivessem se interessado por mim. Isso me assusta ainda hoje – verificou o espelho retrovisor, mudou para a faixa da esquerda e afundou o acelerador. – Aconteceu de meus pais estarem trabalhando naquele dia... E eu simplesmente grudei neles feito cola. Eu adorei meu pai desde a primeira vez que o vi, pois ele era tão grande e forte, com aquela voz profunda... sabia que me protegeria. E minha mãe sempre me deu bolachas e leite... e brincava comigo. Quase que de imediato eu já estava determinada a ir para a casa com eles, mas eles estavam tentando engravidar na época e, meu Deus, não estavam necessariamente interessados em bebês com histórico de pais viciados em drogas.

– Naquela noite e durante a semana seguinte, tentaram encontrar a mulher e instigar um pouco de sentimento nela, pois sabiam que, quando uma criança entrava no sistema, era difícil sair dele. Quando finalmente a encontraram, ela não me quis... e disse que renunciaria seus direitos. Voltaram mais tarde e sentaram-se comigo. Eu não poderia ficar no abrigo, pois era preciso estar acompanhada de um responsável. Então minha mãe decidiu dormir lá comigo para que eu pudesse ter direito a um beliche. Me lembro de ter tido certeza de que me diriam para ir embora, mas um dia transformou-se em dois... e depois em mais outra semana. Eu era muito bem comportada, e tinha a impressão de que meu pai estava trabalhando em alguma coisa. Finalmente, voltaram e me perguntaram se eu queria ficar com eles por um tempo. Ele conseguiu ajeitar as coisas para que se encaixassem no sistema como candidatos a meus pais adotivos. Só ele mesmo – ela olhou e sorriu. – Um tempo que se transformou em vinte e tantos anos. Conseguiram me adotar oficialmente um ano depois que me mudei.

– Isso é incrível – Veck devolveu um sorriso e, em seguida, ficou sério outra vez. – E seu pai biológico?

– Ninguém sabe quem é, inclusive a mulher que me deu à luz, de acordo com o que os meus pais dizem. Me disseram, bem depois, quando eu já estava crescida, que ela acreditava ser um dos dois ex-namorados. E os dois estavam na cadeia por tráfico de drogas – acelerou ainda mais os limpadores. – E, veja bem, sei que pareço... estar com raiva em alguns momentos da história. Mas acho que é apenas uma tentativa de lutar com a teoria de que o vício é uma doença genética. Com dois viciados na minha base genética, há uma probabilidade estatística de que eu termine como eles, mas não vou seguir por esse caminho. Sabia que era uma porta que eu não deveria abrir e, de fato, nunca fiz isso. E, sim, você pode argumentar que meus pais me deram oportunidades que meus pais biológicos nunca teriam dado, e é verdade. Mas você faz o próprio destino. Você escolhe seu caminho.


Durante algum tempo, ouviu-se apenas o ruído dos limpadores e da água chicoteando a parte inferior do carro.

– Desculpe, acho que falei demais.

– Não, nem um pouco.

Reilly olhou para Veck e teve a impressão de que ele estava voltando ao próprio passado.

Em silêncio, esperou que ele se abrisse, mas o homem continuou calado, cotovelo apoiado na porta, uma das mãos massageando o queixo.

Do nada, um carro enorme rugiu na faixa do meio. O suv espirrou litros e litros de água sobre o capô de Reilly e obscureceu a visão.

– Deus – ela disse, diminuindo a velocidade. – Devem estar a mais de 150 quilômetros por hora.

– Nada como um desejo de morte para diminuir o tempo na viagem.

O veículo desviou para a direita, em seguida para a esquerda, e depois para a direita outra vez, movimentando-se dentre os outros carros num zigue-zague atordoante.

Reilly franziu a testa ao imaginar Veck em sua moto naquele aguaceiro tendo de lidar com um maníaco na estrada como aquele.

– Ei, consegue voltar para casa nessa chuva? Está ficando perigoso.

– Não, não tem problema – ele respondeu.

Pensando num palavrão, não teve certeza se ele estava entendendo direito a situação. E o fato de ser estúpido o suficiente para pegar aquele foguete que dizia ser uma moto e sair naquelas condições não a alegrou muito.

Enquanto Veck permanecia sentado ao lado de Reilly, viu-se pensando sobre seu pai... e sobre sua mãe também. Embora não conseguisse se preocupar muito com ela. Que irônico. DelVecchio pai estava sempre em sua mente, mas sua mãe...

– Acho melhor eu levar você para a sua casa – Reilly disse. – Não é nada interessante enfrentar esse tempo na sua moto.

– Eu não fazia ideia do seu passado – ele murmurou. – E nunca teria imaginado. Você é tão segura.

Houve uma pausa, como se tivesse que trocar a faixa do assunto na sua cabeça.

– Bem, devo muito disso aos meus pais. Foram um exemplo e uma realidade, são tudo o que desejo ser e quem me tornei. Porém, nem sempre foi fácil. Por um longo tempo, achava que, se eu não fosse perfeita, eles me devolveriam como se fosse uma torradeira com defeito. Mas destruí o carro do meu pai nas minhas aulas de direção... Um bom teste para essa teoria, não? E, adivinhe só? Eles continuaram comigo.

Olhou o perfil do rosto dela e disse: – Acho que você não dá crédito suficiente a si mesma.

– A única coisa que fiz foi aproveitar o bom exemplo que tinha diante de mim.

– E isso é muito.

Quando ela entrou no bairro dele, cinco minutos depois, ele percebeu que ela tinha seguido o próprio conselho sobre ele, sua moto e o clima.

Os freios rangeram ligeiramente quando ela parou na calçada e, de repente, a chuva sobre o teto do carro começou a soar como bolas de pingue-pongue.

– Acho que está caindo um pouco de granizo – ele disse.

– Sim – ela olhou pelo para-brisa dianteiro. – Que tempestade.

– Nenhum trovão.

– Não.

Os limpadores continuaram o movimento, clareando a visão por alguns momentos.

Em dado momento, olhou para ela.

– Quero te beijar de novo.

– Eu sei.

Ele riu um pouco.

– Sou tão óbvio assim?

– Não... eu quero também.

Então, vire a cabeça para mim, ele pensou. Tudo o que tem a fazer é virar a cabeça que eu beijo você.

A chuva caiu. Os limpadores continuaram. Motor parado.

Ela virou a cabeça. E fixou os olhos na boca dele.

– Quero muito isso.

Veck inclinou-se em direção a ela e aproximou-a de seus lábios. O beijo foi bastante lento e profundo. E quando a língua de Reilly encontrou a sua, teve consciência de que desejava algo mais dela que apenas sexo. Em última análise, no entanto, a definição daquilo não importava. Não dentro daquele carro sem marcas de identificação, estacionado na sua calçada, com a tempestade que caía lá fora.

O que os dois precisavam não tinha como resolver conversando.

Deus, ela ainda era tão macia embaixo dele, pele macia, cabelo macio, perfume suave, mas foi sua essência firme, sua solidez e obstinação que realmente excitaram-no. A ideia de que era uma sobrevivente, que era tão forte e esclarecida com quem era e de onde vinha fez com que a respeitasse ainda mais.

E, como pode imaginar... aquilo era mais sensual do que qualquer coisa naquela sacola da Victoria’s Secret.

Com um movimento do tronco, tentou chegar ainda mais perto, mas a lateral do corpo atingiu o volante, que o bloqueou. O homem das cavernas nele de fato rosnou quando tentou aproximar-se outra vez, mas não conseguiu chegar nem perto de onde queria. Ou seja, nu em cima dela.

Com um palavrão, recuou. Sob as luzes dos faróis refletidas dentro do carro, o belo rosto de Reilly iluminou-se, a sombra da chuva sobre o para-brisa tocava suas feições, manchando-as um pouco, até que os limpadores dissipassem o que parecia ser lágrimas.

Pensou nela com sua família, tão feliz e em paz.

Simplesmente pensou nela, ponto final.

– Vou entrar sozinho – disse abruptamente.

Veck não esperou uma resposta. Saiu do carro uma fração de segundo depois e correu até a porta da frente de sua casa, não por causa da tempestade, mas porque conseguia observar seu interior com muita clareza.

– Espere! – ela gritou quando ele pegou as chaves.

– Volte para o carro – ele murmurou com a voz áspera.

Correndo até ele, balançou a cabeça e disse: – Não quero.

Com isso, ergueu a mão e apontou para o carro. Quando acionou o alarme, as portas foram trancadas e os faróis piscaram.

Veck fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, a chuva atingiu sua testa e bochechas.

– Se você entrar, eu não vou conseguir parar.

A resposta de Reilly foi tirar as chaves das mãos dele, destrancar a porta e, sutil e implacavelmente, empurrá-lo para dentro da casa.

Desejava outro beijo como aquele dado no carro.

Fechando a porta com um chute, Veck desvencilhou-se do casaco, agarrou-a e puxou-a contra ele, segurando-a com força, tomando sua boca outra vez. E ela atacou de volta, envolvendo com força os braços ao redor dos ombros e pressionando seu corpo contra o dele.

O sofá.

Tinha mudado o sofá de lugar.

Ainda bem.

Houve um emaranhado de movimentos para chegar até lá, e tirar o casaco molhado dela e os coldres com as armas dos dois não facilitou as coisas. Mas logo ele moveu-a, estendendo-a sobre as almofadas... e montou sobre ela, pulando em cima de seu corpo.

O beijo foi desesperado, do tipo em que os dentes se encontram de vez em quando, e ele não queria nem sequer parar para respirar, mesmo com os pulmões queimando por falta de oxigênio. Especialmente quando ela começou a arranhar seus ombros.

Com isso, resolveu não ser bonzinho com a camisa dela. Sem romper o vínculo formado pelo beijo, pegou as lapelas e separou a maldita coisa da gola à bainha, liberando todos os botões perolados que navegaram pelo ar e caíram sobre o tapete.

O sutiã por baixo da roupa era de um tom pastel bem claro e a simples peça de algodão ficou espetacular sobre os seios. E que alívio não ter que se preocupar em rasgar rendas delicadas.

Enquanto ele abria o fecho frontal, ela respirava rápido e com força e o movimento sinuoso de suas costelas sob a pele era muito excitante, mas nada comparado ao momento em que afastou os modestos bojos para os lados.

– Você é incrível – ele gemeu ao dar uma boa olhada nela... Algo que evitou fazer na noite anterior.

Oh, cara, os seios eram mais pesados que aparentavam ser com roupas, mais cheios e redondos também... Com isso, ele até se perguntou se ela não usaria sutiãs mais apertados intencionalmente para disfarçá-los. Que desperdício seria. Mas pensar que outro homem poderia olhá-la com cobiça instigou-lhe a vontade de recorrer à sua arma.

Apalpando o que havia sido revelado, teve outra surpresa que deixou passar na pressa da noite passada. Era toda natural, tudo presente de Deus, nenhuma intervenção por insegurança ou vaidade. E o peso maleável de seus seios fez seu pau pulsar... lembrando-lhe quanto tempo havia se passado desde a última vez que ficara com uma mulher sem a rigidez dos implantes.

Pressionando os seios, sentiu os mamilos rígidos e eretos e abaixou-se para sugar um, depois o outro. Em seguida, aninhou-se ali.

Bem, parecia ser um homem que adorava seios, ele pensou, quando seus quadris foram impulsionados contra as pernas dela. Quem diria?

Ou... talvez fosse um homem que adorasse Sophia Reilly.

– Você é linda demais – rosnou quando voltou a trabalhar sobre os mamilos cor-de-rosa.

Estava desesperado para entrar nela, e encantado com a parte de cima, explorando, lambendo, tocando e observando suas reações. De alguma maneira, as coxas dela separaram-se – talvez tenha sido o joelho dele, talvez a necessidade dela, quem se importa? –, e os dois uniram-se onde mais desejavam.

Erguendo-se com os braços, começou a pressioná-la, seu pênis rijo acariciando o núcleo dela. Em resposta, ela arqueou o corpo de uma forma muito erótica, os seios subiram quando a coluna movimentou-se e ela cravou as unhas nos antebraços de Veck.

Quando ergueu-se contra ela, os seios balançaram com o movimento e ele ficou entorpecido, com o corpo dormente e hipersensível ao mesmo tempo – mas percebeu que tinha perdido o contato com os lábios. Voltando a beijá-la, soube que estava prestes a não conseguir mais se controlar... E, então, sentiu as mãos dela puxando sua camisa.

Parece que não era o único desejando algo.

De repente, perdeu a paciência com suas roupas e o que cobria seu peito desapareceu um momento depois, arrancando tudo como fez com Reilly.

– Sinta minha pele – ele exclamou, ao colocar-se sobre ela.

Ele beijou-a com força enquanto as mãos dela passavam por todo o seu corpo, passeando sobre seus músculos, agarrando os ombros, riscando as unhas ao longo de suas costelas.

Mais.

– Posso te deixar nua? – disse.

– Sim...

Veck ergueu-se e ela levantou os quadris e começou a tirar o cinto. Fez um trabalho tão bom com as calças, que ele simplesmente sentou-se e observou quando uma calcinha de algodão apareceu em sua frente.

Quando ela mostrou estar com dificuldade para continuar, pois, ora, tinha um homem de noventa quilos em cima dela, ele ajudou a mulher a tirar as calças descendo-as sobre suas pernas longas e lisas.

Oh, cara... – pensou, passando as mãos sobre as coxas. Era esguia e levemente musculosa, e imaginou-se separando aquelas coxas e mergulhando sua cabeça...

Agarrando-a, investiu contra ela, esticando-se por cima dela mais uma vez. O plano? Facilitar o caminho ao sul e tomar a calcinha com os dentes. Então, passaria um tempo ali certificando-se de que o corpo dela estava pronto para ele. Com seus lábios, língua e dedos.

Parece que havia um pequeno cavalheiro dentro dele, afinal. Sim. Havia. Não era por estar morrendo de desejo de possuí-la... só que, em seguida, ela tocou o cinto dele. Veck congelou e colocou as mãos sobre as dela, acalmando-a.

– Se isso acontecer – disse em tom rude –, não serei capaz de esperar mais um segundo.

Com o corpo absolutamente sólido de Veck posicionado sobre o dela, o cérebro de Reilly estava focado em apenas uma coisa: tirar as calças dele.

– Não quero esperar.

– Tem certeza? – a voz dele era tão gutural que se aproximava do inaudível.

Como resposta, ela passou a mão entre as coxas dele e envolveu seu sexo. No instante em que a conexão foi feita, ele amaldiçoou numa respiração explosiva e seu corpo foi investido contra o dela, o material macio das calças dele não fizeram nada para ocultar aquela extensão rígida.

– Quero ver você – ela exigiu com voz rouca.

Não precisaria pedir duas vezes: com mãos violentas e rápidas, abriu a braguilha e foi ela quem puxou a cintura. Em seguida, trabalharam juntos com a cueca para libertar a...

O pau duro de Veck projetou-se dos quadris e as pálpebras dele abaixaram-se para vê-la observar o que havia ali.

Santo...

Bem, ela poderia usar um dicionário de sinônimos para definir aquilo como “magnífico”, não? E, se era correto afirmar que tinha ficado impressionada com o que viu naquela noite no banheiro ou quando o sentiu por cima das roupas na cozinha dela, podia-se dizer que agora explodia ao vê-lo totalmente revelado e pronto para rugir. E o sexo dele não era a única bela visão: seu peito era tão macio e musculoso quanto se lembrava e seu abdômen era incrível, havia linhas firmes e bem definidas que iam até sua pélvis e seu...

– Me f...

Ao agarrá-lo, com as palmas das mãos sobre a coisa, ele estremeceu violentamente, e Reilly adorou a sensação de poder por ter abalado sua estrutura. E, oh, Deus, era firme e longo, pulsava e latejava reagindo à carícia.

Nunca vou esquecer isso – ela pensou, vendo-o sobre si, dentes expostos, cabeça para trás, o peitoral enorme esticado enquanto se esforçava para assumir o controle. Era a coisa mais quente que já tinha visto. E explorar primeiro era uma virtude, com certeza... Mas desejava possuí-lo de maneira mais profunda antes de aprender suas particularidades.

Pensando assim...

– Sua carteira? – ela tinha visto o que ele guardava ali quando manipulou a carteira na floresta... e a visão das camisinhas constrangeu-a naquele momento. Agora, estava agradecida, pois Deus sabia que ela não tinha nada disso. E não havia necessidade de se culpar por isso, um homem tinha que estar preparado sempre. Além disso, tinha alguma noção de como ele era. Testemunhou o efeito daquilo sobre Britnae.

– Agora – ela exclamou.

Outra coisa que não precisou pedir duas vezes. Quando encontrou as calças e tirou a carteira, ela levantou-se e tirou a calcinha – assim, estava pronta quando ele ergueu umas das mãos e trouxe a camisinha entre os dedos.

Ele fez uma pausa, como se quisesse que ela desse mais uma boa olhada.

Ela não hesitou. Sentou-se, pegou o pacote, mordeu e rasgou para abri-lo.

Ele gemeu e disse: – Eu posso colocar...

– Não, me deixe fazer.

Detalhes práticos nunca foram tão eróticos. Ela lidou bem com o objeto, acariciando a grande extensão de seu pênis ao cobri-lo, até Veck arquear-se e segurar o peso do corpo sobre os braços. Quando Reilly começou a tocá-lo, os olhos dele começaram a queimar, e, quando ela puxou-o, Veck rosnou... E beijou-a da maneira de sempre: com um domínio que vinha de um homem que sabia exatamente o que poderia fazer com uma mulher.

Ela posicionou-o sobre seu núcleo e, apesar de estar desesperada e de estar evidente que ele a desejava, Veck foi lento e cuidadoso ao pressioná-la por dentro. Muito bom. O corpo dela estava pronto – mas “pronto” era um termo relativo, considerando o tamanho dele.


Gloriosamente relativo: o toque de toda aquela extensão foi eletrizante, e ela abriu as pernas ainda mais, inclinando os quadris para cima, facilitando o caminho.

E, finalmente, estavam juntos.

Ao contrário da fúria que tinha tomado conta deles até ali, agora tudo desacelerava. Enquanto ele a esperava se adaptar ao seu órgão, lambeu seus lábios com a língua escorregadia; os movimentos preguiçosos atordoaram-na. Então, moveu os quadris, curvando a coluna, criando um arrepio insano.

O assovio que ele soltou foi seguido por outro gemido. Em seguida, Reilly fundiu sua boca com a dele e continuou, mantendo o ritmo equilibrado e sem pressa. Seguindo o exemplo dele, começou a golpear também. Com isso, o sexo ganhou um impulso que a levou, ao mesmo tempo, para fora de seu corpo e para os locais mais profundos de seu íntimo.

A casa estava em silêncio. Tudo o que faziam era muito alto. Desde o ranger do sofá, até o atrito sutil das almofadas, a respiração e... Tudo estava amplificado até ela imaginar que não ficaria surpresa se pessoas no centro da cidade pudessem ouvir.

Mais rápido. Mais forte. Mais profundo.

O corpo dele transformou-se numa máquina, e ela segurou-o, deixando ser levada pelo turbilhão, agarrando suas costas primeiro com as mãos, depois com as unhas.

Reilly gozou com uma explosão selvagem tão poderosa que ficou surpresa por não ter se partido ao meio. E ele seguiu-a de imediato, os quadris dele começaram a pulsar violentamente quando houve a pressão dentro de seu órgão.

Passou-se um bom tempo antes do rugido em seus ouvidos diminuir e, quando aconteceu, o silêncio na casa aumentou.

Depois do momento de paixão, a realidade retornou: tomou consciência de que estava nua e Veck estava dentro dela... e tinham acabado de fazer sexo.

Com o homem que era seu parceiro. Com o detetive que deveria fiscalizar. Com uma pessoa com quem tinha passado apenas algumas horas... que não era nada além de um estranho, afinal.

Um estranho que levou para a casa de sua família.

Um estranho que ela deveria adicionar à sua lista das poucas pessoas com quem ela havia estado.

O que eles tinham acabado de fazer?


CAPÍTULO 22

 

Adrian e Eddie ficaram mais um tempo ao longo da noite sentados naquela mesa do Iron Mask, bebendo cervejas nas garrafas longneck e paquerando as mulheres que passavam por eles. Nenhum dos dois falou muito. Era como se o que acontecera no banheiro tivesse sugado suas cordas vocais. E outra rodada de sexo estava fora de questão.

Ao sentar-se ao lado do seu parceiro, Ad esperava que algo dentro dele protestasse e trouxesse-o de volta ao normal. Maaas... nada aconteceu. A questão era: poderia lutar com seu inimigo com facas e punhos, mas a alma não tinha armas para lutar naquela guerra, pois não tinha como vencer. Também não conseguia lutar contra a realidade no ringue – não havia alvo para atingir. A não ser um obstáculo intransponível. Então, apenas sentou-se naquele clube, observando a multidão beber, mas sem ficar embriagado.

– Vamos voltar ao hotel? – perguntou finalmente.

Enquanto esperava por uma resposta, tinha plena consciência do quanto confiava no outro anjo como sendo a voz da razão; era aquele que tomava as decisões certas, que os guiava na direção correta.

E o que ele dava em troca?

Além do sexo – e, naquela noite, Eddie tinha provado que não precisava dos seus serviços nesse sentido também.

Ai, ai, ai – Ad pensou. Se continuasse assim ganharia o prêmio de covarde do ano.

– O que eu quero mesmo é uma audiência com Nigel – Eddie murmurou. – Mas ele está me afastando.

Ad olhou para ele.

– Será que ele foi demitido outra vez? Porque não deve se preocupar, não é nossa culpa. Jim é quem está com problemas, não nós. Ele nos dispensou.

E tudo por causa daquela maldita virgem.

Cara, se ele pudesse voltar atrás em alguma coisa desde que conheceu o salvador, seria manter o cara longe da toca de Devina. Sim, com certeza, a questão Sissy foi uma tragédia. Mas o que isso estava causando a Jim era pior. Uma garota, uma família, versus a totalidade das almas existentes? Matemática cruel para os Bartens, mas era a realidade.

Ad passou uma das mãos pelos cabelos e sentiu vontade de gritar.

– Olha, não consigo mais ficar aqui.

O grunhido que saiu de Eddie poderia ser um gesto de acordo, fome, ou a cerveja que não tinha caído bem.

– Vamos – Ad declarou, levantando-se.

Pela primeira vez, Eddie seguiu-o e, juntos, desviaram-se da multidão e afastaram-se do tumulto, chegando à porta de saída. Do outro lado? Chuva. Frio. Era o período noturno numa cidade que não era diferente de nenhuma outra no planeta e uma noite que não destoava de tantas outras pelas quais já tinham passado juntos.

Droga, talvez precisassem se acertar com Jim... relaxar. Nada de bom poderia vir com o salvador lutando sozinho.

Saindo do clube, não seguiram para uma direção específica. Mais cedo ou mais tarde, encontrariam um lugar para ficar – a menos que fossem acolhidos no território de Nigel, mas parece que isso não aconteceria tão cedo. Precisavam descansar. Imortais eram imortais só até certo ponto quando estavam na Terra. Não, não envelheciam, mas eram vulneráveis de algumas maneiras e precisavam comer, dormir, seguir as regras de higiene...

O ataque aconteceu tão rápido que Adrian não conseguiu ver nada. Nem Eddie. Seu parceiro apenas soltou um palavrão, agarrou a lateral de seu corpo e caiu como uma árvore, de lado, sobre o pavimento molhado do beco.

– Eddie? O que aconteceu?

O outro anjo gemeu e curvou-se todo... deixando atrás de si uma mancha brilhante de sangue fresco sobre o asfalto sujo.

– Eddie! – gritou.

Antes que pudesse se ajoelhar, um riso maníaco ecoou na escuridão fria e úmida. Levou apenas um segundo para Adrian reagir. Virou-se e desembainhou a faca, esperando enfrentar Devina. Acompanhada de um de seus subordinados. Ou doze deles.

Mas tudo o que viu... foi um humano. Um maldito pedaço de carne humana. Com um canivete na mão e um olhar selvagem de viciado no rosto encolhido.

Mais risos saíram da boca escancarada do homem.

– O diabo me obrigou a fazer isso! O diabo me obrigou a fazer isso!

O mendigo ergueu a faca por cima do ombro e saltou à frente, atirando-se contra Adrian com uma força sobre-humana, que só os loucos possuem.

Ad firmou-se sobre as coxas. Seu movimento normal seria sair correndo e olhar para trás bem depois, mas não com Eddie no chão: precisava manter contato visual com seu amigo... porque o cara não estava se movendo, nem para pegar uma arma, nem... ah, droga, não estava se movendo...

– Vamos lá, Eddie. Mexa-se! – passou a adaga de cristal para a mão esquerda e observou o antebraço do maluco possuído, esperando o momento certo...

O cara vacilou um pouco e foi o momento perfeito para Ad pegar o braço dele, mudar a trajetória do canivete e redirecioná-lo contra o bastardo. E a correção de percurso deveria ter sido muito fácil, a arma faria um arco evitando o contato com os órgãos vitais de Ad e terminaria no intestino do agressor.

Não foi bem assim. O corpo magro controlado pela mente caótica desvencilhou-se de Ad como se fosse uma rajada de vento, e ele, então, percebeu que Eddie não se levantaria.

Como se o maluco pudesse ler sua mente, um riso borbulhou de sua alma perdida, soando como um piano sendo tocado aleatoriamente por uma mão pesada, nada além de ruídos e sons dissonantes.

O filho da mãe quase voava sobre o chão ao investir contra Eddie outra vez, a faca por cima do ombro, a pele descamada sobre o rosto em que se via mais ossos que carne.

Ad não teve escolha. Precisava se concentrar no agressor e se proteger. Eddie morreria naquela calçada se ele não sobrevivesse e tirasse-o dali em segurança. Não podia perder aquela luta.

Agachando-se no último momento, investiu contra o bastardo e fazendo-o colidir contra uma construção. Quando o impacto aconteceu, uma dor ardente acima de seus rins disse-lhe que a faca havia ultrapassado a pele e mergulhado bem fundo, mas não houve tempo de se preocupar com o sangramento. Estendeu a mão, pegou aquele braço enlouquecido e acertou-o em cheio com um tijolo molhado. Fixando o membro no chão, fez um longo ferimento nele com sua adaga.

A risada maníaca foi substituída por um grito agudo de dor.

Esfaqueou outra vez. E uma terceira vez... uma quarta, uma quinta. Era claro que estava tão enlouquecido quanto o agressor, mas não parou. Com um poder preciso e cruel, golpeou a lâmina de cristal por cima do tronco várias vezes até quebrar todas as costelas, como se a lâmina penetrasse numa esponja molhada. Mesmo assim, continuou, só não precisava mais controlar o cara, apenas mudou-o de lugar para terminar de esfaqueá-lo.

A diversão e as brincadeiras finalmente pararam quando sua lâmina de cristal atingiu a parede de tijolos, esculpindo-a nos locais onde Ad havia golpeado.

Ele estava ofegante quando deixou a arma cair ao seu lado. Havia sangue por toda parte, e o maluco estava com muitos problemas no trato intestinal – na verdade, o cara quase tinha sido partido em dois, a coluna era a única coisa que ligava os quadris à parte superior do corpo.

Com lábios frouxos e flácidos, os engasgos interromperam o fluxo constante de plasma que bloqueava o ar que o homem ainda tentava fazer passar pela garganta. Mas aquilo terminaria em breve.

– O demônio... me obrigou... a fazer...

– E ela pode ficar com você – Ad rosnou, antes de lançar uma facada entre os olhos do maluco.

Houve um barulho terrível quando a essência de Devina explodiu daqueles olhos que uma vez tinham pertencido a um viciado de rua perdido. A fumaça negra fundiu-se e preparava um ataque por conta própria.

– Droga! – com um grande salto, Adrian ergueu o corpo e saiu correndo. Eddie ferido no chão era seu principal objetivo e cobriu o corpo do anjo com o seu, tornando-se o único escudo que manteria Devina longe da carne de seu parceiro.

Preparando-se para o impacto, pensou: Bem, não esperava ser assim, tão rápido.

Estava pensando na morte.

Ao menos Eddie sairia dessa. Era preciso mais que um grande golpe para derrubá-lo de vez. Afinal, feridas poderiam ser consertadas... tinha de ser assim.

Enquanto Jim estava parado com Cachorro na calçada da casa de Veck, entendeu que tinha assumido uma posição observadora com a alma em questão, apenas seguindo o cara em todos os lugares, deixando o tempo passar até Devina fazer a próxima jogada. Isso era extremamente chato.

Ficava muito mais à vontade assumindo uma postura agressiva, mas, às vezes, esperar e observar eram o X do problema. Contudo, caramba, o clima poderia estar melhor. A chuva continuava a cair e ele poderia muito bem continuar o seu trabalho sem o frio. Poderia muito bem ignorar o que acontecia dentro da casa também. Claro que aqueles dois estavam fazendo sexo. Dã.

Visualizou o início da diversão quando entraram e, então, ficou óbvio qual seria o próximo passo: a química deles estava explodindo e, em geral, não era o tipo de coisa da qual se fugia.

Jim cruzou os braços sobre o peito e agachou-se, todo aquele movimento sensual o fez pensar nas mulheres com quem estivera. Hum... Devina contava? Apenas se estivesse com o disfarce da bela morena, concluiu. Sem isso, teria que iniciar uma categoria “animal” na sua lista.

Tanto faz. Independentemente da espécie, nunca ficou com alguém a quem dava a mínima importância. Transar era como uma masturbação interativa para ele – e, pensando assim, prostitutas baratas pareciam um bom negócio. Gostava de ficar com elas, a sensação de controle era melhor que qualquer outra coisa que fizessem.

Contudo, sua vida sexual tinha acabado, não? Não poderia considerar o que teve com aquele demônio – foi uma luta em meio à guerra, apenas com punhos e cotovelos movimentando-se de forma diferente. E seu estilo de vida não incentivava muito um namoro. Porém...

De repente, uma imagem de Adrian e Eddie transando com aquela ruiva no quarto de hotel em Massachusetts escorreu em sua mente como chuva sobre a cabeça. Viu Eddie estendido em cima dela e Adrian juntando-se a eles com um olhar de quem já estava morto por dentro.

Devina havia feito aquilo com o anjo. Colocou aquele vazio em seu olhar.

Vadia da porra.

Pegou um cigarro, acendeu e inalou.

Veck era um homem de sorte por estar com a mulher que desejava. Jim nunca teria aquilo. Mesmo se libertasse Sissy...

– Idiota – murmurou ao exalar.

Será que a importância que dava àquela garota em alguma parte ridícula de seu cérebro tinha ido tão longe que ultrapassara os limites do termo “sua” ao referir-se a ela como alguém por quem era responsável? Pensava nela como sendo “sua” de fato? Será que tinha enlouquecido? Ela estava mais ou menos com seus dezenove anos e ele devia ter 140 mil naquele momento.

Certo, talvez Adrian e Eddie estivessem certos. O que estava fazendo com relação àquela garota era distração. Sim, tentou disfarçar com o discurso de que estava tudo bem, mas mentiu o tempo todo. E, naturalmente, quando seus parceiros forçaram-no a olhar a realidade, voltou-se contra eles e bufou como uma biscatinha.

Um arranhão na perna o fez baixar a cabeça. Cachorro tinha se sentado próximo aos seus pés e dava patadas na panturrilha. Parecia preocupado.

– O que foi?

O telefone de Jim tocou e, antes de atender, verificou a tela e teve a premonição de uma tragédia.

Aceitou a ligação e tudo o que ouviu foi uma respiração difícil. Em seguida, a voz de Eddie, fraca e entrecortada.

– Rua do Comércio... com a 13. Ajuda...

O riso entrecortado ao fundo significava más notícias, e Jim não perdeu tempo. Deixou Cachorro na calçada e foi para o centro da cidade, rezando para que um piscar de olhos fosse o suficiente para chegar a tempo.

O endereço era irrelevante, tudo o que tinha a fazer era seguir a essência de seus amigos. Chegou lá no momento em que Adrian pegou sua adaga de cristal e investiu entre os olhos de um bastardo louco e ensanguentado.

Devina.


Jim não precisava ouvir o barulho estridente para saber que algo maligno surgiria daquele saco de carne, e não havia nada para impedi-lo de investir contra Eddie: o anjo estava caído, todo contorcido, com o celular numa das mãos, agora totalmente rendido.

Sem pensar, Jim jogou-se em direção ao anjo sem defesa, arremessando o corpo no ar – Adrian fez a mesma coisa, ao mesmo tempo.

Ad aterrissou primeiro. E Jim cobriu os dois, sem muita esperança de proteger alguém...

Mas a coisa mais estranha aconteceu: seu corpo dissolveu-se em luz, da mesma maneira que aconteceu quando ficou furioso com Devina na última rodada. Num momento estava em sua forma corpórea... no outro, era pura energia.

Cobriu os anjos embaixo dele. Conseguiu mantê-los em segurança.

O servo, demônio, seja lá o que fosse aquilo, atingiu-o com o impacto de uma bola de golfe sobre o capô de um carro, ricocheteando, sem fazer qualquer estrago. Tentou outra vez imediatamente e obteve o mesmo resultado. Eeeee uma terceira vez.

Houve uma longa pausa em que Jim não vacilou. Podia sentir a presença em volta deles, procurando uma maneira de entrar.

Ficou claro que Eddie sangrava. O cheiro pungente era muito forte para estar vindo do corpo que jazia próximo à parede de tijolos. Inferno, talvez os dois anjos estivessem feridos. Hora de acabar com aquela bobagem.

Jim retraiu-se, levantou-se numa coluna de luz brilhante que iluminou cada centímetro nas proximidades e dissipou todas as sombras daquele local sujo. Colocando-se em posição de defesa frente ao ser maligno, condensou tudo o que havia no ar... E lançou tudo contra o filho da mãe.


A explosão não produziu luz, mas o grito foi tão alto quanto dois carros freando com força ao mesmo tempo em asfalto seco, e, em seguida, houve um ruído estranho como se areia estivesse sendo despejada.

Jim retomou sua forma corpórea e ajoelhou-se sobre os rapazes.

– Quem está ferido?

Adrian gemeu e saiu de cima de seu melhor amigo, uma das mãos pressionava a lateral do corpo.

– Ele. Levou uma facada no estômago.

Estava claro que Ad tinha sido ferido também, mas Eddie não se movia. Ao menos até Jim tocar o ombro do anjo. Com isso, o cara encolheu-se.

– Como você está?

Quando não houve resposta alguma, Jim olhou ao redor. Precisavam sair da rua. Era uma área movimentada da cidade durante a noite, e a última coisa que precisava era de alguém bem intencionado chamando a emergência. Ou pior, de um assaltante passando por ali. Ou de um policial em patrulha.

– E você? – perguntou a Adrian ao examinar o outro lado do beco.

– Estou bem.

– Mesmo? – edifícios de escritório, comércios ao redor. – Então por que está tremendo assim?

– Estou resfriado.

– Ah. Certo.

Não havia como voltar ao hotel. Precisavam de mais privacidade e, de qualquer maneira, era impossível carregar Eddie pela recepção: mesmo que conseguisse camuflar os dois, o cara ainda deixaria um rastro de sangue.

Além disso, as alternativas eram discutíveis, pois não poderia voar com aquele peso. Precisava encontrar abrigo para eles perto dali.

– E a sua mobilidade? – perguntou a Adrian.

– Depende. Se for para andar? Tudo bem. Voar? Nem pensar.

Jim mergulhou os braços sob o corpo de Eddie.

– Prepare-se, garotão. Isto vai doer.

Com um impulso, Jim estendeu os músculos da coxa como apoio e ergueu o peso do anjo do pavimento úmido. Em resposta, Eddie gemeu e ficou mais tenso, o que foi bom, pois facilitou segurar o cara.

Também significava que o bastardo ainda estava com eles.

Antes que Jim começasse a andar, o celular de Eddie atingiu o chão e deslizou para longe, batendo na bota de combate de Adrian.

O anjo curvou-se e pegou. A tela brilhava, e o sangue projetou uma luz vermelha.

Passando a mão pelos cabelos molhados, Ad disse: – Então, ele te ligou.

– Sim – já na saída do beco, Jim indicou com a cabeça um banco do outro lado da rua. – Vamos entrar lá.

– Como?

– Pela porta da frente – quando Jim começou a caminhar, murmurou para Eddie: – Caramba, garoto, você pesa tanto quanto um carro.

O passo arrastado atrás dele indicava que Ad acompanhava-os. O comentário em seguida apenas confirmou tal fato: – Um banco? Aquele lugar deve estar todo trancado. Tão perto de...

Quando chegaram à entrada com portas de vidro da recepção, as luzes internas apagaram-se, o sistema de segurança foi desativado e a porta da frente... abriu-se, completamente.

Quando entraram, tudo voltou ao normal, exceto as luzes e os sensores de movimento.

– Como fez isso? – Adrian sussurrou.

Jim olhou por cima do ombro. O anjo atrás dele parecia ter sofrido um acidente de trem: rosto muito pálido, olhos muito arregalados, sangue nas mãos e escorrendo pela camiseta.

– Não sei – disse Jim com voz suave. – Apenas fiz. E você precisa se sentar. Agora.

– Dane-se... Precisamos cuidar de Eddie.

Verdade. O problema era que numa situação como aquela... Eddie era o cara a quem Jim perguntaria o que fazer.

Hora de começar a rezar por um milagre – Jim pensou.


CAPÍTULO 23

 

Veck sentiu a mudança em Reilly imediatamente: mesmo ainda dentro dela, percebeu que, em sua mente, ela havia colocado suas roupas, aberto a porta e ido embora.

Droga.

Movendo uma das mãos entre seus corpos, apoiou-se e recuou.

– Sei o que está pensando.

Ela esfregou os olhos.

– Sabe?

– Sim. E provavelmente eu deveria dizer algo como “foi um erro”. Assim, você poderia dar logo um fim nisto.

Antes que se ajeitasse sobre as almofadas do sofá ao lado dela, abaixou-se e pegou a camisa dele para cobrir o corpo nu de Reilly.

Enquanto ele puxava a gola até o queixo, ela examinava seu rosto.

– Foi um erro, para todos os efeitos. É um erro.

Certo, esta doeu.

– Mas eu não consegui me conter – ela disse com voz suave.

– A tentação é assim – e ele tinha que manter isto em mente: tentação foi tudo o que a moveu.

Os olhos dela moveram-se para o chão próximo ao sofá... Onde a carteira dele estava aberta e havia outro preservativo guardado numa das divisórias.

– Acho melhor eu ir – disse ela um tanto rude.

Deus, por que sempre tinha que manter duas ali?

A última coisa que desejava era que ela fosse embora – e a última coisa que poderia impedir.

– Vai ter que ficar com a minha camisa. Eu rasguei a sua.

Fechando os olhos, ela amaldiçoou em voz baixa.

– Desculpe.

– Meu Deus, pelo quê?

– Não sei.

Acreditava que não sabia mesmo. Mas tinha certeza de que descobriria muito em breve exatamente o que e o quanto lamentava.

Quando Reilly levantou-se do sofá, ele escondeu o pênis com uma das mãos: ela não tinha motivos para ver aquilo agora. E não tinha motivos para pensar que a noite não tinha sido como ela mesma descrevera: um erro.

Para ele? Graças a Reilly, teve a sua primeira refeição caseira do século XXI, uma carona em meio à tempestade e uma relação sexual que se aproximava bastante do conceito piegas de “fazer amor”.

Irônico como duas pessoas poderiam cumprir a mesma lista de tarefas com uma perspectiva totalmente diferente. Infelizmente, o ponto de vista dela era o que contava.

Em silêncio, reuniu as roupas dela uma a uma e entregou-as. Ouviu quando ela vestiu as calças, as meias e os sapatos. Concluiu que tinha vestido o sutiã também, mesmo que a peça não fizesse muito barulho. O coldre foi a última coisa que entregou e, enquanto ela lidava com o cinto de couro, Veck subiu a própria calça e prendeu-a sobre os quadris.

– Vou te acompanhar até a porta – disse, quando ela terminou de vestir-se.

Não havia razão para prolongar aquela situação constrangedora. Além disso, iria embora de qualquer maneira.

Deus, isto tudo é como tomar um tiro – pensou ao aproximar-se da porta.

Quando Reilly aproximou-se, procurou olhar por sobre o ombro dela, o que, infelizmente, levou seus olhos para o sofá.

– Não quero que isso termine assim – ela disse.

– As coisas são como são. Sei de onde você veio, seus valores.

– Não é o que você pensa.

– Posso imaginar.

– Não quero... Eu queria muito isso. Mas é difícil ser apenas outra mulher em sua cama.

Ao abrir a porta, foi atingido por uma rajada de vento frio e úmido.

– Eu nunca te levaria lá para cima. Confie em mim.

Ela piscou confusa. Limpou a garganta e disse: – Certo. Ah... vejo você amanhã.

– Sim, às nove.

Assim que saiu, fechou a porta e foi até a cozinha para vê-la entrar no carro e afastar-se sob a chuva.

– Filho da puta.

Apoiando a palma das mãos sobre o balcão, deixou a cabeça pender por um momento. Então, enojado de si mesmo, virou-se e subiu as escadas rapidamente. Em seu quarto, passou pela cama e pensou: Não, de jeito nenhum, nunca traria Reilly até aqui.

Naquele colchão, trazido de Manhattan, deitaram-se as várias mulheres com quem tinha se relacionado ao acaso em bares e locais assim – nem sequer sabia o nome de algumas delas, muito menos o telefone. Pedia para que todas fossem embora antes mesmo do suor secar.

A mulher com quem teve a sorte de ficar naquela noite não era uma qualquer, e, mesmo que não sentisse o mesmo que ele, nunca a desvalorizaria deitando-a sobre aquele lugar sujo. Lençóis limpos não escondiam as manchas do modo como ele vivia.

No banheiro, tirou o preservativo e jogou-o na cesta de lixo. Ao olhar para o chuveiro, pensou em tomar uma ducha. Mas acabou vestindo uma calça de moletom e depois desceu para ficar no sofá, o perfume delicado de Reilly ainda estava sobre ele.

Patético.

O bom de ter passado três anos fazendo patrulha em vários pontos da cidade de Caldwell era que Reilly conseguia chegar em casa saindo de qualquer lugar sem nem sequer pensar no que estava fazendo. Muito útil numa noite como aquela.

Nunca a levaria lá para cima. Confie em mim.

É, aquela pequena frase ficaria em sua mente para o resto da vida. E, claro, ficou imaginando que tipo raro de mulher seria bem-vinda naquele local tão especial. Deus, com quantas mulheres deve ter ficado naquele sofá? E como seria a seleção para chegar até o quarto?


Mas não o culpava pelo que sentia agora. Desejava exatamente o que tinha acontecido e lidaria com as consequências – as quais, por ter sido sexo seguro, seriam apenas emocionais: escolhera aquele resultado... Seguiu Veck até a porta, empurrou o cara para dentro da casa, pediu para que pegasse a carteira. Então, seria adulta o suficiente naquele momento e passaria as próximas dez horas recompondo-se para voltar ao escritório às nove da manhã do outro dia. Era o que profissionais faziam. E o motivo pelo qual profissionais não deixavam as coisas chegarem àquele ponto.

Depois de dez minutos de estrada embaixo de uma tempestade, parou na calçada de sua casa e acionou o controle do portão da garagem. Enquanto esperava os painéis subirem, pensou: Ah, que droga. Entre o jantar e o que tinha feito depois, já fazia horas que não checava o celular.

Quando o pegou, verificou que havia três chamadas perdidas. Havia apenas uma mensagem de voz, mas, considerando quem tentara ligar, não perdeu tempo com isso. Simplesmente ligou de volta para De la Cruz.

Um toque. Dois toques. Três toques. Caramba, talvez ele estivesse dormindo. Era tarde... A voz dele interrompeu um dos toques.

– Esperava que fosse você.

– Desculpe, eu estava ocupada – fez uma careta. – O que aconteceu?

– Sei que gostaria de falar com Kroner e acho que pode e deve fazer isso agora. Os médicos dizem que ele está melhor do que pela manhã, mas a maré pode virar, e acho que se fizer uma entrevista como parte neutra no caso, pode ajudar Veck e também pode influenciar a opinião pública.

– Quando posso vê-lo? – inferno, iria naquela noite mesmo se pudesse.

– Provavelmente amanhã de manhã seja o melhor horário. Tive notícias há uma hora de que ele está descansando tranquilamente. Não está mais encubado, não tomou mais sedativos e até comeu alguma coisa. Mas, agora está dormindo profundamente.

Lembrando-se da condição do cara naquela floresta, era loucura ele ainda estar respirando, quanto mais comendo as refeições do hospital – e pensou em Sissy Barten. Tão injusto. Aquele tal de Kroner estava vivo e a garota... bem, provavelmente não.

– Estarei lá amanhã às nove horas.

– Tem segurança 24 horas. Vou me certificar de que sejam comunicados da sua visita. Ei, como estão você e Veck juntos?

Fechou os olhos e conteve um palavrão.

– Bem. Perfeito.

– Ótimo. Não o leve com você.

– Não iria mesmo – por mais de um motivo.

– Depois me diga como foi, se não se importa.

– Detetive, será a primeira pessoa para quem vou telefonar.

Depois de desligar, esfregou a nuca, tentando aliviar a tensão que pensava ter sido causada pelos exercícios que fizera com o parceiro naquele sofá.

Soltando o freio, deixou o motor levá-la devagar para dentro da garagem. Desligou o carro, saiu e... parou enquanto fechava a porta do motorista.

– Quem está aí? – ela gritou, colocando uma das mãos sob o casaco para pegar a arma.

A luz automática do teto deu-lhe uma visão clara das vassouras, da lata de lixo e do saco de sal que jogava na calçada durante o inverno para que os carteiros conseguissem entregar a correspondência. Mas também fez dela um alvo fácil para quem a observava.

E havia mesmo alguém.

Num movimento rápido, deu a volta pelo capô, e não pelo porta-malas, e já estava com a chave a postos antes de chegar à porta. Com movimentos rápidos e certeiros, abriu a fechadura, entrou na casa e acionou o portão da garagem ao mesmo tempo. E a fechadura foi trancada assim que entrou.

O sistema de alarme começou a apitar no canto da cozinha. Ou seja, estava ativado e fora ela mesma quem o tinha disparado. Com a mão esquerda, digitou a senha e silenciou o barulho. A arma estava na mão direita.

Com as luzes apagadas, passeou pela casa, olhando pelas janelas. Não viu nada. Não ouviu nada. Mas seus instintos gritavam que estava sendo vigiada.

Reilly pensou naqueles “agentes do FBI” e no fato de que alguém tinha entrado ou andado em volta da casa de Veck na noite anterior. Oficiais de polícia também são perseguidos. Isso já havia acontecido com muitos. E, embora há muitos anos não atuasse num caso com apelo público, hoje estava envolvida com Veck.

E ele estava longe de ser um cara sem controvérsias.

No escritório, pegou o telefone e verificou se havia linha. Sim, havia. E, ironicamente, Veck foi a primeira pessoa que pensou em chamar. Mas não chamaria, era perfeitamente capaz de se defender.

Puxando a cadeira da escrivaninha, posicionou-a para que pudesse ver a porta da frente e a que dava acesso à garagem ao mesmo tempo. Em seguida, arrastou um criado-mudo. No armário, num cofre à prova de fogo, havia três outras armas e vários cartuchos de munição; ela pegou outra automática e preparou-a para atirar.

Sentando-se apoiada contra a parede, pegou o receptor do telefone sem fio e colocou-o sobre a mesa com a arma extra, mantendo o celular no bolso caso precisasse agir rápido.

Alguém queria atacá-la?

Tudo bem. Podiam entrar para ver a recepção que teriam.


CAPÍTULO 24


No centro da cidade, na recepção de mármore do banco que Jim havia arrombado, Adrian estava perdendo sangue e com vertigens, mas se recusou a desmaiar.

Sob um facho de luz externa, Jim colocou Eddie suavemente no chão duro e polido. O anjo ainda estava contorcido, o corpo enorme assumiu uma posição fetal ao lado dele, sua trança escura serpenteava como uma corda.

– Podemos estender você um pouco, amigão? Ver o que está acontecendo? – disse Jim. Não eram bem perguntas. Era mais um aviso a Eddie de que mais movimentação estava por vir. E quando o cara esticou-se um pouco, foi bom ouvir o palavrão que soltou. Sinal de que o grande bastardo ainda estava respirando.

Só que continuou curvado sobre a barriga. E seu rosto... não estava certo. A pele, que era sempre de um tom mais escuro, estava clara como a neve, e seus olhos estavam fechados com tanta força que os traços distorciam-se.

Havia sangue na boca, manchando os lábios de vermelho. Sangue... estava saindo da boca.

Adrian começou a arfar, os punhos fecharam-se, o suor escorria pelo corpo inteiro.

– Você vai ficar bem, Eddie. Vai ficar...

– Se estenda um pouco, por favor – disse Jim. – Sei que dói demais, mas temos que ver.

–... tudo bem. Vai ficar tudo bem...

– Ai, merda – Jim sussurrou.

Ai... merda... era isso mesmo. O sangue não só manchava ou escorria de onde Eddie segurava... saía em fluxos.

Jim arrancou seu casaco de couro molhado, amassou-o e tirou do caminho as mãos de Eddie, escorregadias, brilhantes e vermelhas de sangue. Mas congelou em seguida.

De alguma maneira, a faca daquele maluco penetrou no intestino de Eddie e foi puxada para a lateral, produzindo um buraco longo e profundo o suficiente para que uma boa parte das vísceras fosse exposta. Mas essa não era a pior parte: considerando a quantidade de sangue que saía do ferimento, era evidente que uma veia importante ou uma artéria fora rompida. E isso iria matá-lo.

Jim estremeceu e colocou a jaqueta embolada sobre a ferida.

– Pode segurar isto para mim, Ed?

Eddie fez uma tentativa de erguer as mãos, mas conseguiu movê-las apenas um centímetro ou dois.

Jim olhou para cima.

– Ele pode morrer?

Adrian balançou a cabeça enquanto sentia as pernas ficarem dormentes.

– Eu não sei.

Mentira. Sabia a resposta. Só não conseguia dizer.

– Maldição – Jim inclinou-se em direção ao rosto de Eddie. – Cara, tem alguma coisa que pode me dizer?

Adrian caiu de joelhos. Em seguida, pegando a mão de seu melhor amigo, ficou horrorizado com o quanto estava fria. Fria e molhada por conta do sangue e da chuva.

– Eddie... Eddie, olhe para mim – Jim falava.

Aquilo não estava certo. O combatente heroico, o guerreiro que percorrera séculos, não poderia ser abatido por um louco com uma faca. Eddie era forte e destacava-se em tudo, glorioso, era alguém que poderia enfrentar um exército de escravos demoníacos sozinho. Não poderia ser assim... Não naquela noite.

Eddie soltou um suspiro ao apertar a mão de Adrian, seu corpo enorme tremia.

– Estou aqui... – disse Ad ao esfregar os olhos com as costas da mão livre. – Não vou a lugar algum. Não está sozinho...

Puta merda. Estamos perdendo Eddie.

E esse ponto era inexplicável. Como anjos, estavam e não estavam vivos, existiam e não eram constituídos de carne e osso ao mesmo tempo, eram imortais, mas capazes de perder a vida que lhes tinha sido concedida.

– Eddie, maldição... Não vá... Você consegue sair desta... – olhou para Jim. – Faça alguma coisa!

Jim soltou um palavrão e olhou em volta, caramba... Estavam na recepção de um banco e não num hospital. Além disso, o salvador não poderia pegar uma agulha e linha e começar a suturar, poderia?

Mas Jim fechou os olhos e acomodou-se no chão, cruzando as pernas no estilo indiano, conseguindo ficar completamente calmo. Quando Ad estava prestes a gritar dizendo que aquela não era hora de fazer meditação, o cara começou a brilhar: dos pés à cabeça, uma luz branca e pura começou a emanar de sua cabeça, corpo e mãos.

Um momento depois, o salvador estendeu-se... e colocou as mãos sobre o peito grande e volumoso de...

O tronco de Eddie arqueou-se para cima com força, como se tivesse recebido uma descarga elétrica daqueles desfibriladores cardíacos que os humanos usam e, em seguida, respirou fundo. Imediatamente, seus olhos vermelhos abriram-se... e voltaram-se para Adrian.

Sentindo-se uma menina por chorar, Ad limpou outra vez os olhos.

– Ei – teve que limpar a garganta. – Tem que ficar firme e enfrentar isto. Cure-se. Use o que Jim está lhe dando...

Eddie balançou a cabeça um pouco e abriu a boca. Tudo o que saiu foi um gemido.

–... firme. Vamos lá, cara, apenas...

– Preste... atenção... – Ad ficou imóvel, a voz de Eddie estava muito fraca. – Precisa... ficar... com Jim...

– Não. De jeito nenhum. Você não vai partir...

– Fique... com Jim... não... – lutou para respirar mais uma vez. – Fique com Jim.

– Não pode acabar assim! Sou eu quem deve ir primeiro...

Eddie ergueu o braço com esforço e colocou o dedo indicador sobre os lábios de Ad, para silenciá-lo.

– Seja... inteligente... ao menos uma vez... certo? Prometa.

Adrian começou a se mover para frente e para trás, os olhos inundados de lágrimas ao ponto de a visão ficar completamente turva.

– Prometa... por sua honra...

– Não. Não prometo nada. Dane-se! Não vai me deixar!

As pálpebras do anjo começaram a se fechar devagar.

– Eddie! Maldito! Não morra assim! Vai se foder!

Quando os ecos daquelas palavras desapareceram no ar, a respiração de Eddie ficou mais difícil enquanto abria a boca ao máximo. E, nos momentos terríveis e silenciosos que se seguiram, o coração de Ad começou a pulsar cada vez mais rápido, com a certeza de que o do seu amigo fazia o contrário e desacelerava.

Edward Lucifer Blackhawk morreu depois de respirar mais duas vezes.

Não foi a abrupta falta de movimentos nas costelas, ou a maneira como o corpo relaxou, ou o fato de a mão dele ter perdido a pouca força que ainda restava que confirmaram a morte. Foi o perfume de flores da primavera que flutuou pelo ar.

Adrian agarrou a frente da camiseta de Jim.

– Pode trazê-lo de volta. Traga-o de volta, pelo amor de Deus, coloque suas... mãos... em cima dele...

Por alguma razão, Adrian não conseguiu mais falar depois disso. Em seguida, não conseguia mais enxergar. Ficou confuso por um momento, olhou em volta, os pensamentos estavam nublados, sentiu um pouco de asfixia.

Oh, espere.

Ele estava soluçando como uma menininha.

Nem sequer fingiu se importar com isso, agarrou Eddie ao redor do peito e embalou junto ao coração o anjo caído que sempre o acompanhara, séculos e séculos, em cada passo de seu caminho na terra e no purgatório. E, quando o segurou, parecia leve em seus braços, mesmo o tamanho do corpo sendo o mesmo de sempre.

A essência de Eddie havia partido.

Eddie enterrou o rosto no pescoço grosso e começou a balançar para trás e para frente, para trás e para frente... para trás e para frente...

– Não me deixe... não... oh, Deus, Eddie...

Adrian não estava certo de quantos minutos ou horas se passaram, mas percebeu, mesmo naquele estado de perturbação, que algo havia mudado.

Olhando sobre a cabeça de Eddie, viu o salvador... E teve que piscar algumas vezes para se certificar de que a imagem fazia sentido.

Jim Heron estava agachado, dentes expostos, o corpo enorme muito tenso. Os olhos estavam fixos em Adrian e Eddie, e um brilho negro profano emanava deles, a luz maligna irradiava pelo ar perfumado.

Eram vingança, ira e raiva subindo e espalhando-se. Era a promessa do inferno na Terra. Era tudo o que dizia respeito a Devina... na forma e nas feições do salvador. Foi estranho, mas Adrian sentiu-se aliviado com a visão. Calmo. Centrado. Não estava sozinho ao sentir-se violado, roubado. Não estava sozinho ao olhar para o futuro.

O caminho que ele seguiria para abater aquele demônio teria dois pares de pegadas, não apenas um...

Naquele momento, Jim abriu a boca e soltou um rugido mais alto que o som de um avião decolando seguido por uma grande explosão: As janelas de vidro da recepção do banco, em toda sua imensa extensão, explodiram de uma só vez, banhando a calçada como se fosse uma nevasca de pequenos cacos de vidro.


CAPÍTULO 25

 

No céu, Nigel deu um salto em seu leito de cetim e seda. Não estava em repouso – não conseguia fechar os olhos sem Colin ao seu lado –, mas, acordado ou dormindo, a visão que lhe sobreveio iria deixá-lo chocado e em estado de alerta seja lá quais fossem as circunstâncias.

Com mãos trêmulas, vestiu um roupão para cobrir sua nudez. Edward... Oh, caro e estoico Edward. Havia partido. Naquele exato momento, na Terra. Uma terrível reviravolta nos acontecimentos. Uma desestabilização horrível.

Como isso foi acontecer?

Na verdade, a ideia de que um dos dois guerreiros fosse abatido não fora contemplada em nenhum de seus planos: enviou os anjos caídos para ajudar Jim, pois eram fortes e flexíveis e muito capacitados a defenderem o bem que tantas vezes subestimaram. E, dentre os dois, Eddie deveria sobreviver: era o prudente, o inteligente, aquele que equilibrava seu parceiro elétrico, eclético e fora de controle.

Mas o destino havia surpreendido a todos.

– Maldição, maldição... maldição...

Não tinha como trazer Edward de volta – ao menos não de alguma maneira que Nigel pudesse atuar: ressurreição era algo que só cabia ao Criador, e a última vez que um anjo havia retornado fora... nunca.

Nigel secou o rosto com um lenço de linho. Havia apostado tanto em Edward e Adrian, jogando-os como dados e, agora, Adrian, o volátil, sofreria um naufrágio sem sua bússola, sua âncora, seu capitão. E Jim, que já estava distraído, estava pior que sozinho. Ele teria que cuidar do outro anjo. Era uma tragédia.

E uma grande manobra da parte do demônio – afinal, como aquilo havia acontecido? Edward estava sempre alerta. O que o teria distraído de seus instintos?

Aproximando-se do balcão de chá, Nigel começou a aquecer a chaleira. Suas mãos tremiam ao pensar sobre o que havia feito. Edward vivia seguro naquele local incomparável que ele supervisionava – estava esperando para ser útil em alguma situação, é verdade, e emocionado por ser perdoado por quebrar as regras e salvar Adrian há muitos anos. Mas ainda assim. Um bom homem. Agora, havia partido. Não era para ser assim.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Apoiando as mãos sobre a tampa de mármore da cômoda, não conseguia suportar o peso em seu coração. Se não tivesse tirado os dois de seus respectivos purgatórios, isso não teria acontecido. Tinha sido tão arrogante com a certeza de ter feito a escolha certa.

O que foi que eu fiz...?

Parado ali, sem ninguém diante ou atrás dele, sozinho com seus maus pensamentos e com o peso de seus atos dentro do peito, pensou em Adrian. Sozinho. Com dor. Na guerra.

Enquanto Nigel esforçava-se para respirar, mesmo sem precisar disso, havia apenas uma entidade a quem recorrer naquela solidão terrível. E o fato de Colin não estar lá e, mais triste ainda, o fato de que ele não podia se aproximar do arcanjo fizeram-no chorar pela situação de Adrian. Perder sua outra metade era pior que a morte. Era uma tortura, embora fosse um aprendizado...

Ao longo do que se poderia considerar seus dias e noites, na rotação interminável de suas refeições de faz de conta e de seus jogos de críquete falsos, dentro daquela estrutura tão bem construída que arquitetou para manter a si mesmo e seus arcanjos sãos ao longo da eternidade em que existiam, Nigel nunca influenciara a vontade de outra pessoa. Não era de sua natureza fazê-lo. Além disso, Colin fazia parte dele. Ao contrário de Adrian, poderia falar com sua outra metade, buscar socorro em meio àquele terror, solidão e tristeza.

Adrian nunca mais teria acesso àquilo de novo: a não ser por um milagre impossível de acontecer, estaria cada vez mais longe da outra metade de si.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Quando o apito estridente da chaleira irrompeu ao longo do local, Nigel deixou que a água continuasse fervendo, seus pés moveram-se em direção à saída de seus aposentos particulares e ele cruzou o chão com passos rápidos, vestindo um roupão.

Influenciando os ciclos que comandava, a noite caiu como uma capa de veludo sobre a paisagem. Mais à frente, as chamas das tochas começaram a queimar ao longo das muralhas e das torres do castelo produzindo um brilho cintilante que se estendeu pelo gramado.

Edward estava perdido. Colin estava ali. Só havia muito gramado entre eles.

Seguindo pelas paredes da mansão, aproximou-se do canto mais a oeste da fortaleza e virou à direita. Ao longe, a tenda de Colin surgia construída contra a linha de árvores, a estrutura do local era feita de lonas pesadas sustentadas por grandes hastes. Ao contrário do santuário privado de Nigel, era pequeno e modesto. Nada de sedas. Nada de cetins. Nada de apetrechos de luxo: o arcanjo banhava-se no rio que corria atrás do local e não dormia sobre uma cama, mas sobre um leito rústico e pobre. Nada de cobertores. Nada de travesseiros. Apenas livros para se divertir.

Por tudo isso, Nigel insistia que dividissem seus aposentos; o outro arcanjo praticamente havia se mudado para lá há muitos séculos.

Na verdade, quando chegou à tenda, Nigel percebeu que nunca havia passado uma “noite” ali. Sempre era Colin quem se locomovia.

Quando foi a última vez que estive aqui? – Nigel pensou.

Não havia batentes de porta para bater.

– Colin? – disse calmamente.

Quando não houve resposta, repetiu o nome. E fez isso mais uma vez.

Parecia que todas as luzes estavam apagadas; então, convocou uma lanterna na palma de uma de suas mãos, produzindo um pouco de iluminação diante de seus olhos. Estendendo um dos braços, empurrou a lona para um dos lados e afastou-a, a iluminação penetrou no interior escuro.

Vazio.

De fato, se algum ser desavisado entrasse ali, poderia achar que havia acontecido um assalto. Havia tão pouca coisa ali dentro. Sim, sim... apenas um leito simples com um baú posicionado aos pés do objeto. Alguns livros encadernados em couro. Uma lamparina a óleo. No chão, não havia sequer um mero tapete, apenas a mesma grama do pátio externo.

Os quartos de Bertie e Byron, constituídos na outra extremidade da muralha, eram tão luxuosos quanto o de Nigel, apenas decorados de acordo com as preferências de cada um. E Colin poderia ter mais do que aquilo. Colin poderia ter o mundo.

Virando-se, Nigel saiu da tenda e seguiu até o riacho. Havia toalhas penduradas em galhos de árvores e marcas de um par de pegadas sobre a areia.

– Colin... – sussurrou.

O som triste da própria voz foi o que o alertou para a realidade.

De repente, o desespero atingiu-o e fez com que repensasse sobre a decisão de ter ido até ali mesmo em meio à realidade da guerra: pensou em Jim, em Adrian e em suas fraquezas. Fraquezas que estavam sendo expostas e exploradas pelo outro lado.

Ele mesmo era fraco em relação a Colin. O que significava que também possuía uma brecha desprotegida. Com rapidez, Nigel virou-se e começou a correr, seus passos levando-o na noite enquanto puxava o roupão para se cobrir melhor. Não se desviaria do caminho de seus aposentos outra vez.

Não era Adrian. Não se perderia... como Adrian perdera-se. E não se comprometeria com o que sentia como aconteceu com Jim. O dever exigia dele um grande isolamento e muita força. O céu não merecia um esforço menor.


CAPÍTULO 26

 

Na manhã seguinte, Veck sentou-se em sua mesa e olhou para Bails sobre a caneca da cafeteria. O cara mastigava em ritmo acelerado, o rosto animado, as mãos movendo-se em círculos.

–... toda a maldita coisa explodiu – Bails parou e acenou na frente do rosto de Veck. – Oi! Está me ouvindo?

– Desculpe, o quê?

– O primeiro andar inteiro do Banco de Caldwell, na rua do Comércio com a 13, está no meio da rua.

Veck balançou a cabeça para voltar a se concentrar.

– O que quer dizer, no meio da rua?

– Todos os vidros das janelas da recepção explodiram. Não restou nada além das estruturas metálicas. Aconteceu um pouco antes da meia-noite.

– Foi uma bomba?

– A bomba mais estranha que já se viu. Não há danos na recepção... bem, algumas cadeiras da sala de espera foram removidas, mas não há evidências de detonação. Não há um raio de impacto. Há uma mancha estranha no piso do saguão formada pelo que parece ser esmalte, e o local cheirava a uma floricultura. Mas, além disso, nada.

– Os policiais que investigaram a cena assistiram às fitas de segurança?

– Sim, e adivinhe só? O sistema apagou por volta das 23h e continuou assim.

Veck franziu a testa.

– Simplesmente apagou?

– Apagou. Mesmo sem nenhuma avaria no fornecimento de energia elétrica ter sido relatada no bairro. Parece que as luzes da recepção foram apagadas também. Mas nenhum outro dispositivo ou sistema foi afetado no local, incluindo o alarme e a rede de computadores. É muito estranho. Como apenas os registros de vídeo são perdidos e nada mais?

A nuca de Veck formigou. Pelo amor de Deus, onde foi que ouvira aquilo antes...?

– Sim, é estranho.

– É a única palavra para definir isso.

Bails inclinou a cabeça, os olhos estreitaram-se.

– Ei, você está bem?

Veck voltou-se para seu computador e acessou seu e-mail.

– Nunca estive melhor.

– Se você diz – houve uma pausa. – Acho que sua parceira está entrevistando Kroner.

Veck virou-se bruscamente.

– Está?

– Não sabia? – Bails encolheu os ombros. – De la Cruz me mandou uma mensagem ontem à noite. Eu queria voltar lá hoje, mas é a vez do Departamento de Assuntos Internos lidar com ele... Sem dúvida para envolver você com um belo laço dizendo “inocente”.

Maldição. A ideia de Reilly perto daquele monstro fez seu sangue congelar.

– Quando?

– Agora, eu acho.

E, como pode imaginar, o primeiro instinto dele seria sair correndo até o Hospital São Francisco. Claro, esta deve ter sido a razão pela qual ela nem sequer passou ali para comentar onde estava indo.

– Bem, te vejo depois. Preciso voltar ao trabalho.

Por instinto, Veck pegou o celular e verificou as mensagens. Havia uma mensagem de texto de Reilly que não ouvira chegar: “Vou me atrasar hoje. R.”

– Que foda.

Olhou ao redor, como se o gesto pudesse ajudá-lo de alguma maneira. Em seguida, tentou se concentrar na tela do computador à frente dele.

Maldição... sem chance de conseguir continuar sentado naquela cadeira enquanto ela entrevistava um louco.

E, no entanto... era uma oportunidade, não?

Pegou o café e atravessou o Departamento de Homicídios, virou à esquerda e dirigiu-se à saída de emergência. Subiu dois degraus de cada vez na escada de concreto, passou pela porta de aço e seguiu até a sala de provas.

Ali, identificou-se à recepcionista, conversou um pouco – como se tudo o que precisasse lá dentro fosse questão rotineira – e, depois de mais um pouco de conversa jogada fora, estava em meio às estantes.

Como policial de patrulhas em Manhattan, passou um bom tempo manipulando evidências como embalagens com drogas, celulares e dinheiro apreendido – coisas usadas em crimes diversos. Agora que estava no Departamento de Homicídios, lidava mais com roupas ensanguentadas, armas e objetos pessoais – coisas que foram deixadas para trás.

Passando pelas longas fileiras de estantes, concentrou sua atenção na parte de trás da instalação, onde estavam as mesas.

– Oi, Joe – disse, ao aproximar-se da parede de 1,8 metros de altura.

O investigador de cenas criminais veterano ergueu o olhar de um microscópio.

– Oi.

– Como vai?

– Trabalhando muito.

Quando o cara levantou os braços sobre a cabeça e espreguiçou-se, Veck encostou-se contra a estação de trabalho, todo casual.

– Como você aguenta?

– O turno da noite é mais fácil que o diurno. Claro, nesta última semana, os dois estão uma droga.

– Ainda falta muito para examinarem tudo?

– Talvez umas 48 horas. Estamos em três. E não paramos em momento algum, com exceção da noite passada.

Veck olhou a coleção de coisas que haviam sido catalogadas e seladas, bem como a bandeja enorme com itens já registrados, mas que ainda precisavam ser examinados e devidamente embalados.

O investigador usou uma pinça para colocar uma amarra de cabelo debaixo da lente de aumento. Depois de colocar o elástico preto numa embalagem plástica, pegou um adesivo amarelo fosforescente longo e fino e colou sobre a abertura. Em seguida, fez uma anotação com uma caneta azul, colocando suas iniciais logo abaixo e digitou algo no teclado do notebook. O passo final foi passar o código de barras da embalagem sobre um leitor. O sinal sonoro produzido significava que agora o objeto estava oficialmente no sistema.

Veck tomou um gole de seu café.

– Bem, estou trabalhando num caso de pessoa desaparecida. Uma jovem.

– Quer dar uma olhada no que temos?

– Tem problema?

– Não. Apenas não leve nada daqui.

Veck começou pelo final das estantes que foram instaladas ali em caráter temporário. Nenhum objeto daquela coleção tinha um local exato para ficar ainda, pois todos, desde os oficiais de polícia até o FBI, examinariam tudo.

Pulou os frascos de amostra de pele, pois Cecília não tinha nenhuma tatuagem, e concentrou-se na variedade de anéis, pulseiras, presilhas, colares...

Onde você está, Sissy? – pensou.

Abaixando-se, pegou um saco plástico transparente selado com a assinatura de um dos investigadores. Dentro, havia uma pulseira de couro manchada e com um pingente em forma de crânio. Não era o estilo de Cecília.

Continuou e pegou uma argola prateada já registrada. Em todas as fotos na casa dos Barten, a garota usava acessórios dourados.

Onde você está, Sissy... onde diabos você está?

No Hospital São Francisco, Reilly estava concentrada ao caminhar ao longo de um dos milhares de corredores. Enquanto andava, passou por médicos com jalecos brancos, atendentes de uniformes azuis, enfermeiras de verde e pacientes e familiares vestidos com roupas casuais.

A unidade que procurava ficava à direita, e separou o distintivo enquanto aproximava-se do balcão das enfermeiras. Depois de uma rápida conversa, foi orientada para seguir em frente e virar à esquerda. Quando virou na última esquina, o guarda próximo à cela de vidro levantou-se.

– Oficial Reilly? – disse.

– Sou eu – mostrou o distintivo. – Como ele está?

O homem balançou a cabeça.

– Acabou de tomar café da manhã – havia um evidente tom de desaprovação na resposta, como se o guarda desejasse que o suspeito fizesse uma greve de fome. Ou talvez que morresse de fome. – Acho que vão tirá-lo daqui logo, pois ele está indo muito bem. Quer que eu entre com a senhora?

Reilly sorriu enquanto guardava o distintivo e tirava um pequeno bloco de notas.

– Posso lidar com ele.

O oficial de segurança pareceu medi-la, mas assentiu com a cabeça em seguida.

– Sim, parece que sim.

– Não se trata apenas de aparências. Confie em mim.

Ela abriu a porta de vidro, empurrou a cortina verde-clara... Congelou com a visão de uma enfermeira inclinando-se sobre Kroner.

– Oh, desculpe...

A morena olhou para ela e sorriu.

– Por favor, entre, oficial Reilly.

Quando Reilly olhou aqueles olhos de um negro tão intenso que pareciam não possuir íris, sentiu uma onda de terror irracional: cada instinto em seu corpo dizia para correr. O mais rápido e para o local mais distante possível.

Só que Kroner era o único com quem precisava ser cautelosa – não uma mulher que estava apenas fazendo seu trabalho.

– Ah... acho melhor voltar depois – Reilly disse.

– Não – a enfermeira sorriu outra vez, revelando dentes brancos perfeitos. – Ele está pronto para você.

– Ainda assim, vou esperar até que você...

– Fique. Estou feliz em deixar os dois juntos.

Reilly franziu a testa, pensando: Como assim? – como se os dois estivessem namorando?

A enfermeira voltou-se para Kroner, proferiu algo em voz baixa e acariciou a mão dele de uma maneira que deixou Reilly ligeiramente enjoada. Em seguida, a mulher aproximou-se, ficando mais e mais bonita – ficou tão resplandecente que era de se perguntar por que não seguia a carreira de modelo.

Ainda assim, Reilly só queria ficar bem longe dela. Não fazia sentido.

A enfermeira parou na porta e sorriu mais uma vez.

– Fique o tempo que quiser. Ele é tudo o que você precisa.

Então, ela se foi.

Reilly piscou um pouco para entender. Mais um pouco. Então, inclinou o corpo para fora da porta e olhou ao redor.

O guarda ergueu o olhar de seu assento.

– Você está bem?

Com exceção de um carrinho, uma caixa com rodinhas cheia de roupa suja e uma maca, o corredor estava vazio, nada, nem ninguém. Será que a enfermeira teria entrado em outro quarto? Tinha de ser. Havia outras unidades ao redor do local em que Kroner estava.

– Sim, tudo bem.

Voltando para dentro, Reilly recompôs-se e concentrou-se no paciente, encarando um homem que havia matado pelo menos uma dúzia de jovens mulheres em todo o país.

Que olhos brilhantes – foi seu primeiro pensamento. Olhos brilhantes e espertos, como os que se vê em ratos esfomeados.

Segundo pensamento?

Mas você é tão pequeno. Difícil de acreditar que consegue carregar uma sacola cheia de compras, quanto mais dominar mulheres jovens e saudáveis. Provavelmente, usa drogas para ajudar a incapacitar as vítimas, impedindo fuga e barulho. Ao menos num primeiro momento.

Seu pensamento final foi...

Cara, quanto curativo.

Estava quase mumificado, com tiras de gaze em volta do crânio e do pescoço e bandagens acolchoadas nas bochechas e no queixo. Ainda assim, embora parecesse um trabalho do doutor Frankenstein, estava alerta e a cor de sua pele estava radiante.


Na verdade, nem parecia normal. Será que estava com febre?

Quando aproximou-se da cama, ergueu o distintivo.

– Sou a oficial Reilly, do Departamento de Polícia de Caldwell. Gostaria de fazer algumas perguntas. Soube que renunciou ao seu direito de ter a presença de um advogado.

– Gostaria de se sentar? – a voz de Kroner era suave, o tom, respeitoso. – Tenho uma cadeira no quarto – como se estivesse em sua sala de estar ou algo assim.

– Obrigada – ela puxou a cadeira de plástico perto da cabeceira, aproximando-se dele, mas não muito. – Quero conversar com você sobre aquela noite, quando foi atacado.

– Um detetive já fez isso. Ontem.

– Sei. Mas estou dando seguimento.

– Disse-lhe o que me lembrava.

– Bem, importa-se de repetir para mim?

– Nem um pouco – ergueu-se na cama com fraqueza e, em seguida, olhou para Reilly como se estivesse esperando uma oferta de ajuda. Quando não houve nada da parte dela, pigarreou. – Eu estava na floresta. Caminhando lentamente. Através dos bosques...

Reilly não acreditou no consentimento e na receptividade dele em contar tudo aquilo nem por um instante. Alguém como Kroner? Sem dúvida, poderia transformar o discurso para que acreditassem que ele fosse a vítima. É assim que psicopatas agem. Poderia convencer a todos, por um tempo, e até a si mesmo de que era uma pessoa normal, como todas as outras: com características boas e más – nas quais o “mau” seria apenas sonegar impostos ou ultrapassar os limites de velocidade numa estrada ou talvez falar mal da sogra pelas costas. Mas assassinar moças? Nunca. No entanto, não se conseguia vestir máscaras para sempre.

– E para onde estava indo? – ela perguntou.

As pálpebras de Kroner abaixaram.

– Você sabe.

– Por que não diz você?

– Para o Monroe Motel & Suítes – houve uma pausa, os lábios ficaram tensos. – Eu queria ir até lá. Fui roubado, entende?

– Sua coleção?

Houve uma longa pausa.

– Sim – quando ele franziu a testa, disfarçou a expressão do olhar ao observar as mãos. – Eu estava na floresta e alguma coisa se aproximou de mim. Um animal. Veio do nada. Tentei lutar contra a coisa, mas era forte demais...

Que tal a sensação, seu bastardo? – ela pensou.

– Havia um homem lá... Ele viu o que aconteceu. Ele pode lhe dizer. Consegui distingui-lo em algumas fotos que me deram ontem.

– O que aconteceu com o homem?

– Ele tentou me ajudar – franziu a testa mais ainda. – Ligou para a emergência... não me lembro... de muita coisa... Além disso... espere um minuto – os olhos redondos ficaram astutos. – Você esteve lá, não foi?

– Tem alguma coisa que me possa dizer sobre o animal?

– Você esteve lá. Viu quando me colocaram na ambulância.

– Se pudesse continuar a descrever o animal...

– E você o observava também – o “senhor bonzinho e normal” sorriu e pareceu adormecer um pouco, um estranho esquema mental surgiu em seus olhos. – Você estava observando o homem que esteve comigo. Acha que foi ele quem fez isso?

– O animal, por favor. É o que me interessa.

– Não é sóóó isso que te interessa – o só foi pronunciado com uma cadência monótona. – Mas tudo bem. Não tem problema desejar coisas.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Um leão, um tigre, um urso... oh, Deus.

– Isto não é brincadeira, senhor Kroner. Precisamos saber se temos um problema de segurança pública.

Pelo que havia estudado sobre técnicas de entrevista, imaginou ter dado uma abertura para que ele pensasse ser um herói. Às vezes, suspeitos como ele entravam no jogo na esperança de se insinuarem ou tentavam ganhar uma confiança da qual poderiam se aproveitar mais tarde.

Kroner deixou as pálpebras caírem.

– Oh, acho que você cuida muito bem da segurança pública. Não é mesmo?

Sim, isso se o cara não fugisse do hospital e se o sistema jogasse-o na prisão para o resto da vida.

– Devia ter presas – ela disse.

– Sim... – tocou o rosto arruinado. – Presas... e era grande. Seja lá o que for... era avassalador. Ainda não sei por que sobrevivi... mas o homem, ele me ajudou. É um velho amigo...

Reilly esforçou-se para que sua expressão não mudasse em nada.

– Velho amigo? Você o conhece?

– Os iguais se reconhecem.

Um arrepio passou pela coluna de Reilly, Kroner ergueu uma das mãos e impediu-a de voltar a falar.

– Espere... preciso te dizer algo.

– O que é?

As bandagens no rosto contorceram-se como se ele estivesse fazendo uma careta e a mão subiu até a cabeça.

– Preciso te dizer...

Considerando que ele não a conhecia, era impossível dizer algo importante.

– Senhor Kroner...

– Ela tinha cabelos longos e loiros. Lisos, cabelos longos... – ele respirou ofegante e apalpou as têmporas como se estivesse com dor. – Estava presa pelo cabelo... aqueles cabelos loiros cheios de sangue. Ela morreu na banheira... mas não é onde seu corpo está agora – a cabeça de Kroner erguia-se e voltava a cair no travesseiro. – Vá até a pedreira. Ela está lá. Na caverna... Você vai precisar entrar bem fundo para encontrar...

O coração de Reilly começou a bater forte. O interrogatório deveria se limitar à noite do ataque, mas não tinha como não tentar entender aquilo. E também não havia razão alguma para que Kroner soubesse que ela estava trabalhando no caso de Cecília Barten.

– De quem está falando?

Kroner deixou cair o braço e, de repente, a cor de sua pele passou a exibir um aspecto cinzento.

– A garota do mercado. Precisava te dizer isso... Ela quer que eu te diga. É tudo o que sei...

De repente, começou a tremer, a convulsão em seu tronco aumentou tanto que começou a puxar os travesseiros e revirar os olhos.

Reilly avançou e acionou o botão de emergência num interfone.

– Precisamos de ajuda aqui!

No auge do ataque, Kroner pegou o pulso dela com força, os olhos exibiam um brilho profano.

– Diga a ele que ela sofreu... Ele precisa saber... Ela sofreu...


CAPÍTULO 27

 

Na delegacia, na sala de provas, Veck examinou tudo o que pertencia à coleção de Kroner, arquivando fotos mentais dos objetos. Infelizmente, não havia nada dentre as joias ou outros objetos ali parecido com o que observou nas fotografias na casa dos Barten.

Recuou e cruzou os braços sobre o peito.

– Droga.

– Ainda tem mais – o investigador disse, sem tirar os olhos do que estava fazendo, e afastou uma cortina que cobria tudo o que ainda não havia sido catalogado.

Veck tomou um gole de seu café frio, aproximou-se e inclinou-se sobre os objetos. Sem tocar em nada, é claro. Estava tudo organizado lado a lado. Mais joias... Mais elásticos de cabelo com fios pretos, castanhos, cor-de-rosa...

Seu telefone tocou e ele virou-se para atender.

– DelVecchio. Sim, sim... uh-hum... sim, sou eu...

Era o Departamento de Recursos Humanos, verificando seus dados antes que enviassem o primeiro salário após a transferência de unidade. Enquanto respondia, pensou, sem ofensa, que tinha coisa melhor para fazer.

Quando finalmente terminou, voltou-se para a bandeja. Tinha tanta certeza de que Sissy fora vítima de Kroner. Maldição...

Em meio às luvas de látex do investigador, surgiu um brilho dourado quando apoiou alguma coisa sob o microscópio.

Era um brinco. Um brinco pequeno em forma de pássaro. Como uma pomba ou um pardal.

– Posso ver isso? – disse Veck com voz rouca.

Mas, mesmo sem um olhar mais atento, reconheceu o que era... Tinha visto aquilo na estante dos Barten, naquela foto que tiraram de Sissy sem que ela soubesse. Estava usando um brinco igual àquele. Talvez fosse exatamente o mesmo.

O telefone tocou novamente assim que o investigador soltou a prova. Quando Veck olhou para a tela e viu que era Reilly, aceitou a ligação imediatamente.

– Não vai acreditar... Estou olhando para um dos brincos de Sissy Barten.

– Na sessão de provas dedicada a Kroner – foi uma afirmação, não uma pergunta.

Veck franziu a testa. Algo soava errado na voz dela.

– Você está bem? O que aconteceu com Kroner?

Houve uma breve pausa.

– Eu...

Veck afastou-se do investigador, indo em direção a um dos cantos da sala e virou de costas para o cara. Baixando o volume da voz, disse: – O que aconteceu?

– Acho que ele a matou. Sissy. Ele... a matou.

A mão de Veck apertou o celular com força.

– O que ele disse?

– Ele a identificou pelo cabelo e pelo mercado.

– Levou alguma foto dela? Podemos ter um resultado efetivo de que...

– Ele teve uma crise no meio do interrogatório. Estou fora da UTI agora e os médicos estão cuidando dele. Não sabem dizer se vão conseguir salvá-lo desta vez.

– Ele disse mais alguma coisa?

– O corpo está em algum lugar na pedreira. De acordo com ele.

– Vamos...

– Já liguei para De la Cruz. Está indo até lá com Bails...

– Estou saindo daqui agora mesmo.

– Veck! – ela exclamou. – Esse caso não está mais relacionado com o Departamento de Pessoas Desaparecidas. Você e eu estamos fora dessa.

– Não estamos, não. Ela ainda é minha até encontrarem o corpo. Me encontre lá e pode me dar uma suspensão, se quiser. Ou melhor, pode dar uma mãozinha com as pedras.

Houve uma pausa bem longa.

– Você está me colocando numa posição terrível.

O arrependimento fez com que apertasse o maxilar.

– Parece que eu me destaco nisso quando se trata de você. Mas tenho que fazer isso... Prometo não ser um idiota.

– Você se destaca nisso, também.

– Está certo. Olha, não posso sair dessa até saber o que aconteceu. Não vou enfrentar Kroner se encontrarmos alguma coisa e não vou tocar em nada, mas tenho que fazer isso.

Outra pausa interminável. Então: – Tudo bem. Estou a caminho. Mas se De la Cruz nos expulsar de lá, não vamos discutir com ele, está claro?

– Como água cristalina – Veck fez uma prece de agradecimento. E então... – Ele disse mais alguma coisa? Kroner?

Houve um ruído, como se ela estivesse trocando o telefone de uma das mãos para outra.

– Disse que conhecia você.

– O quê?

– Kroner disse que conhecia você.

– Que grande mentira. Nunca o encontrei antes na minha vida – quando não se ouviu qualquer reação da parte dela, ele soltou um palavrão. – Reilly, eu juro. Não conheço o cara.

– Acredito em você.

– Não parece – e, por alguma razão, a opinião dela não era apenas importante, era crucial. – Vou fazer o teste do polígrafo.

A respiração dela soou exausta.

– Talvez ele só quis me confundir. É difícil saber.

– O que ele disse exatamente?

– Algo como “os iguais se reconhecem”.

Veck congelou.

– Não sou Kroner.

– Eu sei. Bem, me deixe ir para o carro e começar a dirigir. A pedreira é do outro lado da cidade e só vamos entrar se De la Cruz permitir. Vejo você em meia hora.

Quando desligou, o investigador olhou por cima do microscópio.

– Achou o que precisava?

– Acho que sim. Entre em contato comigo se descobrir alguma coisa sobre esse brinco. Tenho a impressão de que é da minha garota desaparecida.

– Sem problema.

– Onde é a pedreira?

– Siga na Northway por uns trinta quilômetros. Não sei a saída exata, mas vai encontrar placas. Não tem como errar, haverá mais sinalizações que o levarão até lá.

– Obrigado, cara.

– É um bom lugar para esconder coisas, se é que me entende.

– Entendo. Infelizmente.

Cinco minutos depois, Veck estava em sua moto rugindo em direção à interestadual. Não precisava acionar De la Cruz. Discutiriam pessoalmente quando chegasse lá.

A saída em questão apareceu quinze minutos depois e havia uma placa na qual se lia “pedreira thomas greenfield”. Foi fácil seguir a sinalização e, alguns minutos depois, virou e entrou numa pequena estrada de terra cercada por grandes árvores. Sem dúvida, formavam um romântico passeio no verão. Naquele momento, pareciam braços esqueléticos arranhando-se uns aos outros.

Diminuiu a velocidade ao virar à direita e começou a subir uma ladeira muito íngreme. O vento, frio e intenso, chicoteava seu rosto, e as nuvens pareciam se aproximar como se tentassem sufocar o chão. Começou a pensar que estava perdido quando chegou ao topo, mas lá estava ela.

Pedreira? Parecia mais o Grand Canyon.

Membros do Departamento de Polícia de Caldwell e os bombeiros já estavam ali: havia dois veículos de busca e um de resgate. Algumas viaturas. Um carro sem identificação que deveria ser de De la Cruz. Uma unidade com cães farejadores.

Veck estacionou a certa distância e não tentou disfarçar sua chegada ao aproximar-se do amontoado de homens, mulheres e cachorros.

De la Cruz saiu do meio deles e caminhou até Veck. A expressão de tristeza constante do detetive não havia mudado em nada. Porém, não devia estar surpreso com tudo aquilo, e a chegada de Veck não era uma boa notícia.

– Que coisa encontrá-lo aqui – De la Cruz murmurou, estendendo a mão para um aperto.

– Este lugar é enorme – as mãos encontraram-se em uma batida. – Com certeza poderia ajudar em alguma coisa.

A pedreira devia ter mais de um quilômetro de diâmetro e mais outro de profundidade – e o formato era mais consequência da formação natural que da operação mineradora. Três quartos de suas paredes eram quedas acentuadas, mas uma delas mais ao sul exibia um declive desagradável marcado por escavações rochosas desalinhadas, havia também vários buracos negros que deviam ser cavernas.

– Então, vai me deixar trabalhar? – Veck perguntou.

– Onde está sua parceira?

– A caminho.

De la Cruz olhou para o grupo de colegas.

– Estamos com uma equipe reduzida, pois não queremos chamar atenção. Se a imprensa ficar sabendo disto, teremos um dia longo e cheio de curiosos.

– Então, isto é um sim?

De la Cruz o encarou bem dentro de seus olhos.

– Não toque em porcaria nenhuma e não saia daqui enquanto Reilly não chegar.

– Está certo, detetive.

– Vamos lá... Pode se juntar à fase de planejamento estratégico.

A antiga casa de Jim não era tão antiga nem exatamente sua.

Assim que chegara a Caldwell, havia alugado a garagem e o estúdio no segundo andar de um cara que se vestia com terno de mordomo. Quando saiu há mais ou menos uma semana, achou que seria pela última vez: seu antigo chefe, o maldito Matthias, perseguia-o, e ele precisava ir até Boston para travar a próxima batalha com Devina.

Mas, cara, o que tinha acontecido de acordo com o planejado? Matthias não estava mais em cena, Jim voltara a Caldwell e ele e Adrian precisavam de um lugar seguro para ficar.

Olá, velhos fantasmas, digamos assim... E era hora de rezar para que o proprietário não tivesse alugado para outra pessoa e as chaves tivessem sido deixadas ali.

Dirigindo sua caminhonete na longa estrada que levava até o local, verificou se Adrian ainda o seguia com aquela moto – sim, o cara continuava a segui-lo. Juntos, passaram pela casa vazia, mas muito bem cuidada pelo proprietário, e continuaram pela pista, atravessando um campo que teria mais ou menos uns vinte acres. A garagem ficava bem nos fundos da propriedade e, provavelmente, tinha sido usada para guardar equipamentos agrícolas e cortadores de grama, com um zelador morando no andar de cima. Contudo, quando alugou, teve a impressão de que estava vazia há um tempo.

Parando o carro em frente às grandes portas duplas, saiu, pegou uma das alças e jogou seu peso sobre o objeto, imaginando se o lugar estaria...

O painel retumbou ao abrir, revelando um chão de cimento muito limpo e um teto rústico com altura suficiente para estacionar um trailer de carregar cavalos.

Jim voltou a se sentar atrás do volante e deixou o motor levá-lo devagar para dentro. Adrian estava bem atrás dele, estacionou e fechou a porta. Quando a luz cinzenta do dia foi bloqueada, Jim desligou o motor, abriu a porta...

O aroma fresco e suave de flores invadiu o ar. Ao ponto de quase vomitar, mesmo sendo um perfume indiscutivelmente agradável.

Ele e Adrian não disseram uma palavra ao se posicionarem um de cada lado da parte de trás da caminhonete. A lona que compraram no mercado há uma hora estava presa por alguns cabos elásticos e começaram a libertar os ganchos e as faixas um a um. Ao enrolarem a lona grossa e azul, revelaram o corpo, com o qual foram muito cuidadosos, envolto num lençol.

Deixaram a recepção do banco não muito depois de a fúria de Jim ter explodido todas as janelas do local e, em seguida, levaram Eddie com eles – o que não foi difícil, ao menos não fisicamente. Depois da morte, o corpo ficou leve como uma pluma, como se toda massa bruta tivesse desocupado a pele e os ossos. O que ficou para trás parecia ser apenas o esboço do que Eddie havia sido.

Jim não fazia ideia de onde ir, mas Cachorro apareceu no caminho... e guiou-os a um prédio abandonado de três andares.

Ao deixar Adrian e o animal velando seu morto, Jim voltou ao hotel, pegou tudo o que tinham e carregou a caminhonete. Quando voltou, estacionou numa garagem subterrânea a alguns quarteirões de distância e começou a pensar em várias maneiras de mudarem-se para um local mais seguro levando os outros veículos e motos que ainda estavam no estacionamento do hotel.

Porém, no final, apenas sentou-se e deu um tempo para Adrian – pois parecia que o cara estava prestes a quebrar ao meio.

Contudo, em dado momento, precisaram se mover e Jim decidiu que ir até aquele local era a melhor aposta que poderia fazer em curto prazo. E Adrian seguiu-o sem comentários, só que isso não era um bom sinal: era evidente que ainda estava entorpecido, mas aquilo não duraria muito tempo. Qual seria o outro extremo da situação? Era provável que a expressão “proporções bíblicas” fosse pouco para refletir sequer a metade do que aconteceria.

Jim destravou a abertura traseira e deixou-a cair.

– Você quer...

Adrian adiantou-se e subiu, posicionando-se de maneira hábil ao lado de Eddie. Pegando os restos mortais, saiu da caminhonete e andou até a porta lateral.

– Pode abrir aqui para nós?

– Sim, com certeza.

Com Cachorro liderando o caminho outra vez, Jim seguiu-o e abriu a porta de saída do galpão; em seguida, os três dirigiram-se às escadas externas. Usando um canivete no topo, abriu a maçaneta em questão de segundos, e ficou de lado enquanto Adrian entrava.

A cama de solteiro estava do mesmo jeito que Jim havia deixado quando partiu, os lençóis emaranhados da última noite de sono ruim que teve ali. E, sim, o dinheiro e as chaves estavam exatamente onde os colocara, sobre o balcão da estreita cozinha. O sofá ainda estava sob a janela, as leves cortinas, fechadas. O ar cheirava um pouco a feno, mas não por muito tempo.

Não com Eddie por perto.

Quando Jim olhou para Adrian, sabia que não havia razão para não usar o local. Matthias estaria na parede de almas de Devina por toda eternidade, então, não era uma ameaça, e o resto das Operações Extraoficiais estaria ocupado procurando um novo líder para preencher a vaga que o cara havia deixado. Além disso, o único problema de Jim com o departamento estava relacionado ao seu antigo chefe. Que perdera na última rodada.

– Tem um espaço meio apertado aqui atrás – disse Jim, caminhando até a cozinha.

Ao lado da geladeira, havia uma porta estreita que se abria por cima e por baixo e que levava a uma área de teto rebaixado, envolvida com placas de gesso, sob o beiral do telhado. Entrando, acendeu a lâmpada e saiu do caminho.

Quando Adrian agachou-se e entrou com sua carga, Jim abriu uma das gavetas sob o balcão da cozinha e pegou uma faca longa. Não hesitou ao passar a lâmina na palma de sua mão e pressioná-la contra a pele.

– Caralho – sussurrou.

Adrian saiu do espaço estreito.

– O que está fazendo?

Gotas brilhantes e vermelhas caíram no chão formando uma pequena trilha enquanto andava em direção ao local onde Eddie havia sido colocado. A verdade é que não tinha plena certeza do que estava acontecendo ali, mas seus instintos guiavam-no, faziam-no prosseguir e, assim, passou a palma da mão que sangrava pela porta... bem como o próprio corpo. Antes de retrair a mão sangrenta, prometeu: – Não deixo soldados caídos para trás. Você estará conosco... até voltar. Pode apostar.

Ao fechar a porta, olhou para Adrian, que tinha se apoiado no balcão e envolvido o próprio corpo com os braços. O anjo olhava para o chão como se fossem folhas de chá... ou um mapa... ou um espelho... ou nada, talvez. Quem poderia saber?

– Preciso saber como vai se posicionar – disse Jim. – Quer ficar aqui com ele ou quer continuar a lutar?

Os olhos vazios ergueram-se do chão.

– Não era para ser assim. Ele teria lidado melhor com isso.

– Não tem uma maneira melhor de lidar com isso. Mas não vou tentar convencê-lo de nada. Se não quiser fazer mais nada além de lamentar, não tem problema nenhum para mim. Mas preciso saber o que está disposto a fazer.

Caramba, provavelmente era cedo demais para perguntar ao cara o que ele queria no almoço, quanto mais se estava disposto a lutar. Mas Jim não poderia se dar ao luxo de bancar o terapeuta e trabalhar os sentimentos. Aquilo era guerra.

Quando Adrian apenas resmungou alguma coisa como “não está certo”, Jim entendeu que precisava chamar a atenção do cara.

– Ouça – disse devagar e com clareza. – Devina fez isso de propósito. Ela o tirou de você, pois acha que a perda vai te incapacitar. É uma estratégia básica: isolamento. Está tentando tirar os dois de mim... E você do mundo. A escolha é sua em deixar que isso funcione ou não.

Adrian mudou seu olhar e mirou a porta que Jim havia fechado.

– Como pode algo tão grande... acontecer tão rápido?

Jim voltou-se para o próprio passado, para uma cozinha que conhecia tão bem, para uma cena sangrenta que nunca havia esquecido: sua mãe morrendo numa poça de seu próprio sangue, enquanto dizia para que corresse o mais rápido e seguisse para o mais longe possível...

Entendia muito bem o trauma pelo qual Adrian estava passando, era a constatação terrível de que os pilares da estrutura que o levava aos céus eram feitos de papel em vez de pedra.

– Desastres acontecem.

Houve um período de silêncio, em seguida, um som suave sobre o chão. Cachorro, que havia ficado fora do caminho a maior parte do tempo, aproximava-se de Adrian mancando e, quando chegou perto do cara, sentou-se sobre a bota de combate do anjo e reclinou a cabeça contra a canela.

– Não estou bravo – Adrian disse finalmente. – Não sinto... nada.

Aquilo iria mudar, Jim pensou. A questão era: quando?

– Fique aqui com ele – disse Jim. – Preciso voltar ao campo de batalha. Não quero DelVecchio por aí sozinho.

– Sim... sim – Adrian abaixou e pegou Cachorro. – Sim.

O anjo andou um pouco e sentou-se no sofá, colocando o animal em seu colo e mantendo os olhos fixos na porta daquele espaço de teto rebaixado.

– Pode me ligar – disse Jim. – E estarei aqui num instante.

– Sim.

Deus, Ad parecia um objeto inanimado que respirava. E o último pensamento de Jim ali foi que Devina estava brincando com fogo. Adrian acordaria de seu estupor... E, então, seria implacável ao fazê-la pagar por aquilo.

Depois de fechar a porta, Jim parou para acender um cigarro e olhar para o céu. As nuvens pareciam fervilhar sobre a garagem e viu-se procurando por uma imagem ou sinal entre elass.

Nada.

Terminou o cigarro e, quando estava prestes a sair, ouviu um rádio ser ligado dentro do apartamento.

À capela. Bon Jovi cantava “Blaze of Glory”.

Muito apropriado.

Jim projetou-se pelo ar, seguindo o farol que era DelVecchio. E estava a meio caminho de seu alvo quando se deu conta...

Ele não possuía rádio algum.


CAPÍTULO 28

 

– Aqui, me deixe ajudar você.

Reilly equilibrou-se sobre duas pedras do tamanho de poltronas, em seguida, inclinou-se e estendeu a mão.

Veck olhou para ela por um momento.

– Obrigado.

As palmas das mãos encontraram-se e firmaram-se uma na outra e, então, Reilly dobrou-se para trás, colocando todo seu peso no ato de erguê-lo. Mesmo com o corpo fazendo movimento de alavanca, era como puxar um carro entalado numa vala, e a mulher percebeu claramente que, se ele não tivesse pulado e dado um impulso, não chegariam a lugar algum.

Quando ele juntou-se a ela no planalto, olharam em volta. Já estavam trabalhando na longa encosta da pedreira há várias horas, iluminando cavernas com lanternas e examinando saliências rochosas. Os oficiais de resgate ficaram com o lado mais íngreme e os outros policiais iam mais à esquerda ou percorriam as bordas com os cães. Os minutos passavam lenta e dolorosamente, a extensão total do que ainda havia para ser examinado oprimia Reilly.

E ainda havia tudo aquilo implícito em relação a Veck, coisas não ditas, que não ajudavam.

Deus, odiava aquela situação. Especialmente o fato de estarem em meio à tentativa de encontrar o corpo de uma jovem.

– Tem outra caverna por ali – ela disse, pulando de uma pedra e aterrissando de cócoras no chão lamacento.

O terreno parecia árido visto da borda da pedreira. De perto, era uma pista de obstáculos, do tipo que requeria botas para ser explorada – ao menos tinha se prevenido e trazido mais que um agasalho extra e um kit de armazenamento de provas no porta-malas. Muito bom também a chuva da noite anterior ter parado ou a tarefa seria mais que exaustiva. Com o clima mais estável, o topo das rochas já havia secado com o sol, então, já contavam com partes mais firmes para pisarem, afinal, as poças e a lama nos pontos mais baixos do local já desaceleravam o suficiente o trabalho deles.

– Já esteve aqui antes? – perguntou Veck depois de firmar-se ao lado dela. Como sempre, ele não estava com roupa suficiente...

Espere, me deixe reformular a frase – ela pensou – Como sempre, não está agasalhado o suficiente e seus sapatos são mais para um serviço de escritório que para um trabalho externo.

Mas Veck não parecia se importar com nada disso: apesar de os sapatos estarem arruinados e sua jaqueta preta isolar o vento frio tão bem como uma folha de papel, ele continuava como um soldado, seguindo decidido como se estivesse muito à vontade e confortável. Apesar de estarem trabalhando ensopados de suor.

Espere, qual era a pergunta que ele tinha feito mesmo...?

– Como a maioria das pessoas daqui, conheço a pedreira desde sempre – olhou para a borda. – Mas esta é a minha primeira visita. Cara, é como se tivessem arrancado um pedaço gigantesco da Terra.

– Muito grande mesmo.

– Dizem que foi criada por geleiras.

– Ou isso, ou Deus era um jogador de golfe e o buraco que desejava acertar estava na Pensilvânia.

Ela riu um pouco.

– Pessoalmente, apostaria meu dinheiro no gelo pré-histórico. Na verdade, isto tudo é simplesmente chamado de “a pedreira”... Nunca foi, mas parece uma.

Subiram outra pedra, pularam novamente e seguiram em direção à boca escura da caverna que ela tinha visto. Aquela parecia maior que as outras e, de perto, a entrada parecia alta o suficiente para passarem sem se curvar. Contudo, não tinha como os ombros de Veck caberem ali a menos que se virasse de lado.

Acendendo a lanterna, não havia nada além de paredes rochosas, um chão de terra e, Deus, o mau cheiro. Úmido, mofado. Todas exalavam o mesmo cheiro, como se o lugar tivesse uma espécie de odor corporal próprio.

– Nada – ela disse. – Mas não consigo ver o final desta.

– Me deixe entrar mais.

Agora seria o momento perfeito para a mulher moderna dentro dela aparecer dizendo “Que inferno, não, deixe que eu cuido disso”. Mas só Deus sabia o que havia ali dentro, e ela não era muito fã de morcegos. Ursos. Cobras. Aranhas. Era a única situação com a qual se acovardava.

Quando Reilly abriu caminho, Veck adiantou-se e espremeu-se dentro do espaço fino. O fato de seu peito ter passado tão perto lembrou-lhe o quanto conhecia seu corpo. Olhou ao redor e tentou encontrar outro foco, desesperadamente.

– Nada – Veck murmurou quando reapareceu e fez um X vermelho sobre a pedra com tinta spray.

– Espere, você tem... – ela ergueu-se na ponta dos pés e tirou uma teia de aranha do cabelo de Veck. – Isso, mais apresentável agora.

Quando Reilly virou-se, Veck agarrou a mão dela.

Ao ser puxada de surpresa, olhou ao redor rapidamente, então, Veck disse: – Não se preocupe, ninguém pode nos ver.

Parecia ser verdade: estavam num local profundo da pedreira, entre três pedras enormes. Mas não era algo bom, não precisavam de privacidade.

Holofotes. Um palco. Megafones presos em seus rostos seriam mais adequados...

– Olha, sei que é inapropriado – Veck murmurou com um tom de voz que fez o coração dela bater ainda mais rápido. – Mas aquela porcaria que Kroner disse... sobre me conhecer...

Reilly respirou aliviada. Graças a Deus não se tratava deles.

– Sim?

Veck soltou-a e andou fazendo um pequeno círculo. Então, tirou um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça na direção oposta a Reilly.

– Acho que, de alguma maneira, isso é o que mais me assusta neste mundo.

Sentindo-se uma tola por ter se assustado, ela apoiou-se sobre o flanco de uma rocha aquecido pelo sol.

– O que quer dizer?

Veck encarou o céu, a sombra de seu queixo forte projetou-se sobre seu peito, formando um arco escuro sobre o tronco.

– Iguais se reconhecem...

– Acha mesmo que tentou matá-lo? – disse ela suavemente.

– Olha, vai parecer loucura... Mas parece que meu pai está sempre comigo – colocou a mão sobre o peito, exatamente sobre a sombra escura. – Essa... coisa faz parte de mim, mas não do meu ser. E sempre fui amedrontado com a possibilidade disso sair e... – interrompeu-se com uma maldição. – Oh, Cristo, quanta besteira...

– Não é besteira – quando ele virou-se para Reilly, os olhos de ambos encontraram-se. – E pode conversar comigo. Sem julgamentos. Ninguém mais saberá, nunca. Desde que não tenha infringido a lei.

A boca de Veck contorceu-se com amargura.

– Não fiz nada para que me prendam. Mas ainda me pergunto se fui eu quem fez aquilo com Kroner na floresta.

– Bem, se tem medo de ser como seu pai e, quando surge um banho de sangue na sua frente, você não consegue se lembrar de nada... é natural se questionar.

– Não quero ser como ele. Nunca.

– Você não é.

– Não me conhece.

A expressão tensa de Veck produziu um calafrio nela, mesmo com os pés secos e quentes e vestindo um casaco e luvas. Tinha tanta certeza de ser um estranho para ela, que Reilly perguntou-se por que tamanha obviedade não os impediu na noite anterior. Mas sexo e atração sexual faziam as pessoas sentirem-se próximas, quando, na verdade, eram apenas dois corpos esfregando-se.

O quanto ela realmente sabia sobre ele? Não muito além do que havia registrado em seus arquivos no Departamento de Recursos Humanos. Porém, estava certa de uma coisa: ele não tinha, de forma alguma, machucado aquele homem.


– Precisa conversar com um profissional – ela disse, pois ter um pai como aquele deveria repercutir psicologicamente. – Tire esse peso de você.

– Mas esse é o problema... está dentro de mim.

Algo naquele tom que usou fez o calafrio retornar – dez vezes mais forte. Só que agora achou ser loucura.

– Estou dizendo, você precisa desabafar.

Veck olhou o céu azul brilhante outra vez com suas listras passageiras de nuvens brancas.

Depois de um momento, ele disse: – Fiquei aliviado por você ter saído tão rápido na noite passada.

Que belo tapa no rosto para trazê-la de volta à realidade.

– Fico feliz por ter feito esse favor – ela disse em tom decidido.

– Porque eu poderia me apaixonar por você.

Quando a boca de Reilly abriu-se e ela piscou confusa, Veck bateu o cigarro e exalou, a fumaça ergueu-se no ar frio da primavera.

– Sei que isso não ajuda em nada. Tanto o fato de confessar isso agora como ser a mais pura verdade.

Verdade. Mesmo assim, ela não deixou de continuar a conversa.

– Mas ontem à noite... você disse que nunca me levaria para a sua cama.

Balançou a cabeça, o lábio superior fez um movimento sinuoso de desgosto.

– De jeito nenhum. Fiquei com mulheres sem importância ali. Você foi importante... É importante – soltou um palavrão em voz baixa e profunda. – Não é como as outras.

Reilly respirou fundo. E de novo. Sabia que aquele era um bom momento para tentar dizer algo que os mantivesse dentro dos limites.

– Estou muito lisonjeada, mas...

Em vez disso, apenas olhou para ele quando virou o cigarro e focou-se na pequena ponta alaranjada. Examinando os traços belos e rígidos de seu rosto, tentou lutar contra o impulso de jogar-se nele... Desistiu: naquele pequeno espaço de privacidade em frente à caverna, com a brisa assoviando entre as pedras e o sol iluminando seus rostos, as engrenagens entre eles voltaram a funcionar direito outra vez... Deu-se conta da verdadeira razão pela qual havia deixado a casa dele tão rápido. Dane-se o profissionalismo: sentia o mesmo que ele, e aquilo assustava-a.

– Mas está tudo ligado à porcaria de relação que eu tenho com meu pai.

– Desculpe, o quê? – Reilly ouviu-se dizer.

– Essa coisa com você... está ligada a ele também – seus olhos brilharam em direção a ela. – Ele era apaixonado pela minha mãe. Tanto que a fatiou viva e formou um coração com seus intestinos, no chão, ao lado dela. Sei disso pois fui eu quem encontrou o corpo.

Quando Reilly começou a ofegar, uma das mãos subiu até a garganta e, por instinto, deu um passo para trás... apenas para descobrir que estava encurralada pela pedra em que havia se recostado.

– Sim... – disse Veck. – Essa é a história da minha família.

Que maneira de cortejar uma mulher, Veck pensou quando Reilly ficou pálida como neve e tentou se afastar dele. Dando um trago profundo em seu cigarro, exalou para longe dela.

– Eu não devia ter dito isso.

Reilly balançou a cabeça, talvez para esclarecer um pouco os pensamentos.

– Não... não, fico feliz por você ter contado. Só estou um pouco...

– Chocada. Sim. E é apenas um dos motivos pelos quais não converso sobre isso.

Ela afastou uma mecha de cabelo solta sobre os olhos.

– Mas eu falei sério. Pode conversar comigo. Quero que converse comigo.

Não tinha tanta certeza se Reilly dizia a verdade. Mas, por alguma razão, abriu a boca.

– Minha mãe foi a 13a vítima dele – cara, invejava aqueles cujas “histórias ruins” da vida eram apenas de encrencas por conta de cervejadas, depredação de propriedade pública e, talvez, urinar no tanque de gasolina de alguém.

– Eu estava em férias de verão do ensino médio, hospedado numa casa alugada em Cape Cod com os amigos. Saí na última noite que tínhamos para ficar ali e também fui o último a ir para casa; então, estava sozinho. Ele a trouxe até a sala de estar e fez tudo ali. Depois, deve ter subido as escadas e dado uma olhada em mim... Quando acordei, havia duas marcas de sangue no batente da porta do meu quarto. Foi a primeira evidência de que algo ruim havia acontecido. Ele havia colocado fita adesiva na boca dela, então, não ouvi nada.

– Oh... meu Deus...

Dando outro trago profundo no cigarro, falou através da fumaça que exalou.

– Como pode imaginar, mesmo naquela época, a primeira coisa que fiz quando vi as marcas no chão foi olhar para as minhas próprias mãos. Quando percebi que não havia nada, corri para o meu banheiro, verifiquei as toalhas, as minhas roupas... Irônico, as mesmas coisas que eu fiz depois do episódio com Kroner. E, então, me dei conta... Droga, a vítima. Liguei para a emergência e estava no telefone com eles quando desci as escadas.

– Você a encontrou.

– Sim – esfregou os olhos lutando contra as imagens do sangue vermelho sobre o tapete azul barato e um coração feito de órgãos humanos. – Sim, encontrei, e sabia que tinha sido ele.

Não conseguiu ir além disso, não dava mais, nem para ela nem para si mesmo. Essa memória não era acessada há tanto tempo que ele esperava ter caído num modo reflexivo, saudável talvez. Mas não. A cena da qual se lembrara naquele momento ainda estava desenhada em neon nos seus pensamentos, como se os vapores do pânico e do terror que sentiu emergissem e distorcessem a fotografia mental, mas sem alterar a nitidez.

– Já li sobre seu pai... Estudei sobre ele na faculdade – disse Reilly suavemente.

– É um tema popular.

– Mas não havia nada sobre...

– Eu tinha dezessete anos, menor de idade, e minha mãe não tinha o meu sobrenome, então, não poderia ter ouvido falar nada mesmo. Engraçado, foi quando os representantes da lei conversaram pela primeira vez com meu pai sobre uma vítima. Não preciso dizer que acreditaram quando ele disse que estava aflito. E Deus sabe o quanto ele era bom em fingir sentimentos. Ah, e as marcas sobre o batente da porta? Ele tinha usado luvas, claro; então não havia nada para acusá-lo.


– Deus, sinto muito.

Veck ficou em silêncio, mas não por muito tempo.

– Não o vi muito. E, quando ele se aproximava, eu percebia que minha mãe seria capaz de fugir com ele. Ela nunca se cansava dele... Era sua droga, a única coisa que importava, só pensava nele. Olhando para trás, tenho certeza de que ele a induziu a toda aquela fixação. Eu ficava irritado... Até que percebi o que ele era e vi que ela não tinha qualquer chance com ele. Para ele? Acho que foi divertido, mas parece que o jogo ficou enjoativo depois de um tempo.

Com isso, Veck ficou exausto, como um corredor que não aguenta mais avançar.

– De qualquer forma, é por isso que nunca jantaremos na casa dos meus pais.

Péssima tentativa de fazer piada. Nenhum deles riu.

Quando chegou ao final do cigarro, amassou a ponta incandescente sobre a sola do sapato – e notou pela primeira vez que seus sapatos não sobreviveriam àquele banho de lama. Reilly, no entanto, deu um jeito de conseguir um par de botas. Bem típico dela. Estava sempre preparada...

Quando olhou para cima, ela estava bem na frente dele. As bochechas estavam rosadas por causa do vento e do esforço, seus olhos brilhavam com um calor que vinha não apenas de um coração bom mas também de um coração aberto. As mechas de cabelo que se soltaram do rabo de cavalo produziam um halo vermelho, e seu perfume de xampu, ou seja lá o que fosse, o fez lembrar do verão – um verão normal, não aquele de que tinha acabado de se lembrar, quando ainda era uma “criança”.

Então, ela aproximou-se, colocou os braços ao redor dele e simplesmente abraçou-o. Levou um minuto para Veck entender o que estava acontecendo, pois era a última coisa que esperava. Mas, então, abraçou-a de volta. E os dois ficaram ali só Deus sabe por quanto tempo.


– Não tenho o hábito de namorar – ele disse um tanto rude.

– Namorar colegas de trabalho? – ela afastou-se e olhou para ele.

– Qualquer pessoa – alisou o cabelo dela com a palma das mãos. – E você é boa demais para mim.

Houve uma breve pausa e, em seguida, ela sorriu um pouco.

– Então, o sofá é o local preferido, hein?

– Pode me chamar de Casanova.

– O que vou fazer com você? – ela murmurou, como se estivesse falando consigo mesma.

– Honestamente? Não sei. Se eu fosse seu amigo, diria para correr em direção à saída, nada de ir andando.

– Eles não são você, sabe disso, não? – ela disse. – Seus pais não te definem.

– Não tenho tanta certeza. Ela era a bajuladora de um psicopata. Ele é um demônio com uma bela máscara. Daí surgiu um bebê num carrinho. Vamos encarar os fatos, até agora, minha vida tem girado em torno de evitar o passado, desperdiçando o presente e me recusando a pensar sobre o futuro... Pois fico apavorado de não compartilhar apenas o nome com meu pai.

Reilly balançou a cabeça.

– Ouça, eu ficava assustada com a possibilidade de a mulher que me deu à luz voltar e me querer de volta. Por muito tempo, eu tinha a convicção de que qualquer coisa que meu pai fizesse legalmente não seria suficiente se ela me quisesse de volta. Isso costumava me deixar acordada à noite. E ainda tenho pesadelos. Na verdade, e vai achar que é loucura, eu ainda deixo uma cópia do meu certificado de adoção do meu lado, em cima do criado-mudo, quando vou dormir. Aonde quero chegar? Não pode fazer alguma coisa se tornar realidade só porque tem medo dela. O medo não vai tornar real uma história fictícia.

Houve outro longo silêncio, mas Veck interrompeu-o.

– Apague o que eu disse antes. Acho que estou me apaixonando por você. Bem aqui. Agora.


CAPÍTULO 29

 

Ficando um pouco distante de Reilly e Veck, Jim fingiu ser uma pedra e esforçou-se para não ouvir a conversa entre eles, tanto que, ao se aproximar, virou a cabeça. Havia lá as vantagens de ser invisível, mas não era muito adepto de ficar espiando casais. Além do mais, não estava muito satisfeito com aquele atraso emotivo. Estavam procurando por Sissy – a porcaria melosa poderia esperar até encontrarem algo ou descobrirem que a indicação do local era uma farsa.

Afastando-se da rocha na qual se apoiara, caiu numa poça, a água turva espirrou sobre suas roupas de couro e suas botas de combate, mas não fez som algum graças ao campo de força que havia projetado em volta de si. Cara, aquela pedreira parecia um cenário dos antigos episódios de Jornada nas Estrelas, as pessoas só não usavam camisas vermelhas nem se teletransportavam...

De repente, um calor floresceu na lateral de seu rosto e a sensação fez com que erguesse a cabeça e inclinasse-a para a direita. Um raio de sol derramava-se sobre ele, tocando-lhe os olhos e a bochecha.

Que merda é essa? – pensou, percebendo que vinha da direção errada.

Com a testa franzida, recuou e virou-se, seguindo o caminho da faixa amarelo-limão... que o levou para a caverna atrás dele.

Algo aconteceu em suas entranhas.

– Oh, droga – Jim sussurrou quando uma premonição lavou-o como chuva fria.

Preparando-se, caminhou até uma abertura irregular. Não havia necessidade de virar de lado, a iluminação passava por ele como se não estivesse lá. A abertura era bem grande, quase dois metros de altura, talvez um metro de largura, contudo, estreitava-se quase imediatamente após a entrada. Então, como a luz era refletida ali dentro?


Ao entrar, a luz do sol seguiu-o, fazendo-o pensar em Cachorro e sua companhia calma e reconfortante. E não parou para pensar em como a iluminação conseguia envolver até mesmo as extremidades do local ou para se perguntar por que parecia orientar seus passos...

– Oh... Deus... – apoiou-se numa parede de pedra para manter-se em pé ao descobrir o que fazia a luz emergir da escuridão: contra a parede íngreme da caverna, envolto numa lona áspera, havia um corpo deitado no chão, como lixo descartado.

O feixe luminoso acabou por fundir-se com o pacote e foi quando Jim viu o comprimento do cabelo – que, se estivesse limpo, seria loiro. Atordoado, caiu contra uma das laterais da caverna. Dar-se conta, repentinamente, de todo o seu esforço até aquele momento – droga, talvez tudo que tinha feito – era como uma trombeta tocando em sua nuca, sem cessar, ensurdecendo-o.

Não existem coincidências – ouviu Nigel dizer.

Quando alguém colocou a mão sobre seu ombro, virou-se e sacou sua adaga de cristal ao mesmo tempo. Baixou a arma imediatamente.

– Meu Deus, Adrian... quer levar uma facada?

Péssima pergunta para se fazer num dia como aquele. O outro anjo não respondeu. Apenas olhou para a luz que pairava acima da cabeça de Sissy, como uma coroa celestial dourada marcando seus restos mortais. Com uma voz baixa, disse: – Quero te ajudar com esta perda. Você me ajudou com a minha.

Jim olhou para Ad por alguns momentos.

– Obrigado, cara.

Adrian assentiu com a cabeça, como se tivessem combinado algo, trocado algum voto, e esse acordo fez Jim perguntar-se... Se tudo tinha um propósito, será que Sissy havia morrido para que houvesse aquele momento entre eles? Seria a razão pela qual perderam Eddie? Pois, quando os olhos mortos de Adrian encontraram os dele, os dois estavam na mesma situação, dois caras explosivos realinhados por tragédias paralelas e, ao mesmo tempo, vivendo exatamente a mesma situação.

Em vez de ir até sua garota, Jim estendeu uma das mãos para o parceiro. E, quando o anjo retribuiu o gesto, puxou Adrian contra si e abraçou o bastardo com força. Sobre o ombro do cara, olhou para Sissy.

Foi difícil, mas, ao avaliar os interesses da guerra junto à perda que sofreu a família da garota e, agora, Adrian, concluiu que as duas passaram a ter um valor inesperado: até onde Jim conseguia entender, na melhor das hipóteses, o jogo estava empatado, com apenas um fio de cabelo pesando a favor de Devina na batalha.

Só que, às vezes, uma simples gota d’água resultava em tragédia. E famílias perdiam suas filhas, melhores amigos não voltavam para casa no final da noite. Parece que viver não vale mais a pena, mas você continua de qualquer maneira.

Quando se afastaram, Adrian colocou o dedo sobre o colar de Sissy.

– Ela é sua garota.

Jim assentiu.

– E já é hora de tirar ela daqui.

Caramba – Reilly pensou. Parecia que Veck iria beijá-la. E parecia que ela deixaria. Mas, então, surgiu aquele papo que envolvia a palavra “amor”, e aquilo deixou-a paralisada, não sabia ao certo como reagir. Estava se apaixonando por ele também. Mas não conseguia lidar com aquilo direito em sua mente. Dizer essas coisas em voz alta era expor-se demais. Contudo, havia outras maneiras de responder.

Quando ela inclinou-se em direção à boca dele, Veck abaixou-se, aproximando-se dos lábios dela... Alguém apareceu sobre a rocha acima deles. Alguém grande, que surgiu das alturas e bloqueou o sol. Quando ela pulou afastando-se de seu parceiro, seu pensamento imediato foi: Oh, Deus, não permita que seja alguém da delegacia...

Seu desejo tornou-se realidade, infelizmente: era aquele “agente do FBI”.

Veck moveu-se tão rápido que Reilly só percebeu que havia um escudo humano à sua frente quando sentiu suas mãos repousarem nas costas dele. Foi um movimento muito cavalheiro, mas ela não precisava de proteção. Colocando a mão dentro do casaco, Reilly encontrou a coronha de sua arma – ele também fez o mesmo – e recuou com a arma apontada para cima.

Só que... o homem que os olhava de cima não parecia nem um pouco agressivo. Parecia arruinado. Totalmente destruído.

– Sissy Barten está logo ali – ele apontou para trás de si. – Na parede dos fundos da próxima caverna.

Ele não vai nos machucar – ela pensou com uma convicção vinda da alma.

Redirecionando o cano da nove milímetros para o chão, ela franziu a testa. Ao redor do corpo do agente havia um brilho sutil, um esplendor que poderia ser explicado por estar posicionado de costas para um raio de sol – mas, espere um minuto, a posição dele não era essa. Era muito tarde para que houvesse tal projeção no local onde ele estava.

– Você está bem? – ouviu-se perguntar ao homem.

Os olhos assombrados fixaram-se nos dela.

– Não, não estou.

Veck falou alto, forte e exigente: – Como sabe onde o corpo está?

– Acabei de ver.

– Liguei para o FBI. Nunca ouviram falar de você.

– Por conta da administração atual – o tom era entediado. – Vai ajudar a moça ou perder tempo com...

– Fingir ser um oficial federal é crime.

– Então, pegue essa força toda e venha atrás de mim... por aqui.

Quando o cara ergueu-se da pedra e desapareceu, Veck olhou por cima do ombro.

– Fique aqui.

– Até parece.

Algo na expressão dela deve ter lhe dito que discutir seria uma perda de tempo, pois murmurou alguma coisa – e começou a andar. Juntos, escalaram a pedra à frente, agarrando pontos precisos na subida. Quando chegaram ao topo... Jim Heron, ou seja lá quem fosse, tinha desaparecido. No entanto, viram a entrada de uma grande caverna.

– Chame reforços – Veck disse, saltando para baixo ao pegar a lanterna. – Vou entrar... e preciso que me cubra daqui de fora.

– Entendido – Reilly pegou o rádio, mas exclamou em seguida: – Pare! Precisa prestar atenção nas pegadas. Perto das bordas, certo?

Olhou para ela.

– Bem lembrado.

– Cuidado.

– Tem minha palavra.

Seguindo com a lanterna e a arma, entrou na caverna, seus ombros largos mal passaram pela entrada. Devia existir um obstáculo logo ao entrar, pois o brilho da lanterna esmaeceu e, em seguida, não se via mais iluminação alguma.

Enquanto Reilly chamava seus colegas e recebia a confirmação de que estavam a caminho, abaixou-se cuidadosamente em direção à entrada lamacenta da caverna que lhe dava boas-vindas. Sabia que levaria um tempo até que os outros chegassem e rezou para que seus instintos estivessem certos sobre o homem grande e loiro. Ele não parecia nem um pouco preocupado em mentir ou distorcer o que dizia, mas era certo que parecia arrasado em relação a Sissy Barten.

Se alguma coisa acontecesse com Veck enquanto vigiava, nunca iria se perdoar...

– Que... droga é essa? – murmurou.

Reilly franziu a testa e agachou-se. Bem no meio do caminho de terra encharcada, onde Veck tinha aterrissado ao pular, as pegadas pareciam crateras lunares. Da mesma forma, perto da entrada, o rastro ali marcado era profundo, as pegadas de sapatos de sola lisa eram fundas e indicavam que um homem com seus noventa quilos havia passado por ali.

Erguendo-se, Reilly apoiou um dos pés sobre uma pedra alta e olhou para trás ao longo do caminho por onde Veck e ela tinham atravessado. Na parte superior da plataforma de pedra, existiam dois pares de pegadas umedecidas: dela e de Veck. Era isso.

Ao analisar a extensão do declive, balançou a cabeça. Não tinha como Jim Heron, ou seja lá quem fosse, ter descido até ali sem ficar com os pés encharcados. E também era impossível ficar parado onde ficou sem deixar pegadas úmidas para trás, assim como ela e Veck tinham deixado.


Que diabos está acontecendo?

Atrás dela, Veck reapareceu na abertura da caverna.

– É Sissy Barten. Ele estava certo.

Reilly engoliu em seco ao descer mais um pouco.

– Tem mais alguma coisa aí?

– Não que eu consiga enxergar. Chamou o pessoal?

– Sim. Tem certeza de que é ela?

– Não toquei em nada, mas há um pouco de cabelo loiro exposto e o corpo está onde Kroner indicou – as sobrancelhas de Veck estreitaram-se. – O que foi?

– Tem pegadas no chão da caverna?

– Me deixe ver – ele desapareceu. Voltou em seguida. – Não. Mas não é a melhor superfície para verificar isso. Está relativamente seco, e o solo tem pouca profundidade. O que você...

– É como se tivesse caído do céu.

– Quem? Heron?

– Não há qualquer evidência de que ele esteve aqui, Veck. Onde estão as pegadas? Aqui no chão? Lá em cima?

– Espere, não tem...

– Nada.

Ele franziu a testa e olhou ao redor.

– Filho de uma puta.

– Sinto a mesma coisa.

Ao longe, Reilly ouviu os oficiais aproximarem-se, então, colocou as mãos ao redor da boca e gritou: – Aqui! Estamos aqui!

Talvez alguém pudesse entender alguma coisa. Porque não lhe ocorria nada... e era evidente que acontecia o mesmo com Veck.


CONTINUA

CAPÍTULO 20

 

Gary Peters sempre achara que seu nome soava como ele: nada de especial. Havia milhares de Garys no país – a mesma coisa para Peters – e sua aparência física também não o diferenciava muito. De alguma maneira, conseguiu evitar uma barriga de cerveja, mas seu cabelo era fino e, agora que tinha chegado aos quarenta, passava pela crise de perdê-los. O rosto era branco como um purê de batatas, os olhos eram de um castanho-terra e a existência de um queixo era discutível: talvez pescoço, bochechas e clavícula estivessem todos unidos.

Moral da história? Era um homem invisível, daqueles que as mulheres nem percebem a existência entre tantos metrossexuais musculosos, atletas e caras ricos e famosos.

Razão pela qual a visão de Britnae avançando até sua mesa e lançando um olhar... digamos, daqueles... foi uma grande surpresa.

– Desculpe – ele balançou a cabeça. – O que você disse?

Ela inclinou-se e... bom Deus, aqueles seios...

Quando ela ergueu-se outra vez, ele teve a sensação de que a mulher falara alguma coisa, mas não fazia ideia do que tinha sido...

– Desculpe, telefone – esticando o corpo, pegou o fone. – Departamento de Polícia de Caldwell, pois não. Sim. Uh-hum. Sim, está sob custódia e intimado. Sim, claro... Darei o recado de que estará lá pela manhã.

Fez algumas anotações no caderno e voltou sua atenção para Britnae. Que tinha decidido sentar-se à mesa em que se apoiou antes.

No começo achava que a saia era pequena. Agora, parecia micromíni.

– Ah... o quê? – ele disse.

– Perguntei quando será seu intervalo.

– Ah, desculpe – pelo amor de Deus, tinha alguma coisa errada naquela abordagem. – Não tão cedo. Ei, você não costuma sair às cinco da tarde?

– Estou presa aqui examinando uma folha de pagamento – quando ela fez beicinho, o lábio inferior, já volumoso, pareceu um travesseiro. – É tão injusto... e ainda tenho mais uma hora pela frente, pelo menos, e está tão tarde.

Ele olhou o relógio: 20h. Tinha acabado de iniciar seu turno de dez horas, aquele em que vigiava provas e prisioneiros, então, era cedo para ele. Costumava ir para casa às 6h, e o departamento dela chegava ali às 8h30.

Ela inclinou-se outra vez.

– É verdade que todas as coisas de Kroner estão aqui?

– Na sala de provas? Sim, estão.

– Você chegou a vê-las?

– Algumas delas.

– Mesmo?

Foi muito curioso como os olhos dela arregalaram-se um pouco enquanto colocava a mão sobre a garganta.

– São horríveis – ele acrescentou, sentindo o peito inflar.

– Como assim... o que são?

A hesitação dela mostrava que estava em dúvida se desejava mesmo saber mais.

– Partes e pedaços... Se é que me entende.

A voz dela tornou-se quase um sussurro.

– Você pode me levar lá?

– À sala de evidências? Ah, sim, não, não posso. Apenas pessoal autorizado.

– Mas você é autorizado, não é?

– E gostaria de manter o meu emprego também.

– Quem ficaria sabendo? – ela inclinou-se ainda mais. Gary pensou que, caso ela se endireitasse um pouco mais, poderiam se beijar.

Temendo passar por tonto, afastou-se e empurrou a cadeira para trás.

– Eu não diria a ninguém – ela sussurrou.

– Não é tão simples. Precisa se identificar na entrada e na saída e tem as câmeras de segurança. Não é uma sala de descanso.

Ele podia ouvir a petulância em sua voz e, de repente, desprezou sua calvície e sua meia-idade. Talvez aquele tom fosse a razão pela qual ainda era virgem.

– Mas você poderia me deixar entrar... se quisesse – os lábios dela eram absolutamente hipnotizantes, moviam-se devagar à medida que enunciavam as palavras. – Certo? Sei que poderia, se quisesse. E eu não vou tocar em nada.

Deus, como aquilo era estranho. Esperava entrar no trabalho e cumprir suas tarefas como sempre fazia todas as noites. Mas lá estava ele, com aquela... encruzilhada.

Será que Gary Peters não faria nada, como de costume? Ou será que tomaria uma atitude de verdade com a gostosa do departamento?

– Sabe de uma coisa? Vamos lá.

Ele levantou-se e verificou outra vez se as chaves estavam no cinto – onde, é claro, elas estavam. E, como era de se esperar, havia uma equipe reduzida na delegacia, então, era o único responsável por levar qualquer coisa ao andar de cima – e os detetives Hicks e Rodriguez tinham acabado de trazer dois gramas de maconha embalados e assinados.

– Oh, meu Deus – ela disse, saltando da mesa. – De verdade?

O peito dele voltou a se encher, em vez da sensação de vazio de sempre.

– Sim. Vamos.

Colocou o sinal de que estava em intervalo, para que as pessoas ligassem em seu celular – alguém poderia aparecer para registrar ou cadastrar alguma prova – e, então, abriu a porta para ela.

Quando ela passou e Gary sentiu o perfume, pensou ser mais alto do que era quando começara a trabalhar, a sensação era ótima. Sabia que havia uma grande possibilidade de sair impune daquilo. A equipe de evidências trabalhara muito, há dias, nas evidências de Kroner, mas, finalmente, decidiram que também precisavam dormir; então, não havia ninguém ali. E, com certeza, Britnae não tocaria em nada mesmo – ele iria se certificar disso. Assim, não haveria necessidade de verificar as gravações das câmeras de segurança.

Arriscado? Um pouco. Mas, na pior das hipóteses, receberia uma advertência. Tinha o registro mais irrepreensível em termos de assiduidade e desempenho no departamento de recepção e segurança – ele não tinha vida. E Britnae nunca iria abordá-lo novamente.

Algumas vezes, você precisa ser algo mais que um mero Gary Peters atrás de uma mesa...

Britnae pulou e abraçou-o.

– Você é tão legal!

– Ah... imagina.

Droga, como Gary era imbecil. Graças a Deus ela não ficou agarrada por muito tempo, pois ele quase desmaiou.

O engraçado foi que se sentiu calmo ao mostrar o caminho, levando-a para o elevador até o segundo andar. Dali em diante, insistiu, como se fosse um agente secreto, que seguissem pelas escadas. Lá em cima, abriu a saída de incêndio e ouviu. Nada. Nem mesmo alguém da limpeza. E, no final do corredor, as luzes do laboratório forense estavam apagadas.

– Nunca estive aqui antes – Britnae sussurrou perto da manga da camisa ao agarrar o braço dele.

– Vou cuidar de você. Vamos.

Andaram na ponta dos pés pelo corredor até uma porta de aço pesada na qual se lia “evidências – apenas pessoal autorizado”. Com suas chaves, abriu-a e seguiu até uma antessala de identificação. Sentiu seus nervos exaltados quando aproximou-se da mesa em que a recepcionista ficava durante o horário comercial, mas, quando identificou-se e entrou, sabia que não tinha mais volta.

– Oh, meu Deus, estou tão animada! – quando Britnae colocou as mãos sobre o antebraço de Gary e inclinou-se, como se ele fosse seu protetor, o homem não se incomodou mais em esconder o sorriso, pois ela não conseguia visualizar seu rosto.

Isso é... muito legal – ele pensou ao registrar no sistema a maconha apreendida.

Quando Devina esfregou-se contra o corpo do oficial, fez um favor àquele triste humano, um tal de Gary Peters. Era engraçado fingir ser a bonitona do escritório, e o idiota da recepção engolia a mentira. Seu plano só precisava ter um início e um fim. Ele não se lembraria de nada na manhã seguinte: para que aquilo tudo funcionasse, o statu quo tinha que ser preservado.


– Certo, vamos entrar – o cara disse ao sair da frente do computador.

Usando o tom de voz alto de Britnae e aquela pronúncia ao estilo de modelos famosas californianas, disse: – Oh, meu Deus, estou tããão empolgada. Isso é muito real!

Blá-blá-blá... mas usou o tom certo, pois já estava usando a carcaça há algum tempo. E a garota não tinha um vocabulário muito extenso – era só acrescentar “oh, meu Deus” a cada substantivo ou verbo e pronto.

Na segunda porta de aço, Gary Peters passou seu cartão pelo leitor magnético na parede e a fechadura soltou-se em seguida com uma batida.

– Está pronta? – ele disse, todo protetor.

– Não sei... Quero dizer, sim!

Ela saltitou um pouco e, então, voltou a ofegar sobre o braço dele enquanto segurava uma de suas mãos. E, ao vê-lo todo encantado com o show, ela pensou: que idiota.

No instante em que entrou no interior das instalações de armazenamento de provas, a habitual cena de gato e rato assumiu seu lugar na missão. De alguma maneira, estava entediada daquele tipo de diversão, porém, tinha que fazer algo de qualquer jeito. O desaparecimento de Jim Heron obrigou-a a antecipar algumas coisas, o que ela odiava.

Não conseguia acreditar que não havia qualquer sinal dele. Era a primeira vez que acontecia com um anjo e tinha certeza de apenas uma coisa: ele não tinha recuado ou desistido. Não estava em sua natureza. A guerra continuava e havia uma alma para tomar... Além disso, havia maneiras de conseguir que Jim aparecesse outra vez.

O guarda conduziu-a ao longo dos corredores cheios de prateleiras que se estendiam do chão ao teto, cheias de caixas de uma variedade incalculável de formatos e tamanhos. Tudo estava bem catalogado e indexado, havia pequenas etiquetas penduradas e muitos sinais alfanuméricos indicando algum tipo de sistema.

Que coleção. Que organização...

Devina teve que parar e desabafou: – Isso é incrível.

O oficial idiota ficou todo orgulhoso, mesmo sendo apenas uma pequena engrenagem de uma máquina maior.

– Sempre há dezenas de milhares de provas aqui. Tudo está identificado pelo número do caso e registrado no computador para que possamos encontrar tudo de maneira eficiente – começou a andar outra vez, dirigindo-se a alguns recantos do local. – No entanto, existem algumas exceções, como o caso Kroner, pois há muita coisa envolvida no processo.

Enquanto ele seguia, Devina olhava para cima e observava todos os objetos ao redor. Que demais!

Ao longo de todo o caminho, havia algumas mesas com cadeiras, como se fosse uma cafeteria em que se serve objetos inanimados para consumo.

– Os detetives e oficiais têm autorização para entrar, tirar fotos, reexaminar coisas ou pegar alguma evidência para julgamentos. O laboratório também retira os objetos do lugar de tempos em tempos, mas tudo precisa retornar ao departamento. As coisas de Kroner estão bem aqui. Não toque em nada.

Atrás de uma divisória de 1,8 metros de altura, havia uma estação temporária de trabalho constituída de mesas, cadeiras, computadores e um equipamento fotográfico, assim como caixas de sacos plásticos vazias e rolos de etiquetas adesivas. Mas isso não importava. Em prateleiras rebaixadas, que tinham 2,5 metros ou mais de comprimento, havia vários saquinhos enfileirados, todos com códigos de barras, contendo frascos, joias e outros itens.

Seu pequeno servo tinha sido um menino muito, muito ocupado, não?

– Geralmente, a evidência é registrada lá embaixo, na entrada, ou no laboratório, se for restos humanos, mas havia tantas coisas naquela caminhonete apreendida que tiveram que criar uma unidade temporária de processamento de dados aqui. Todas as amostras de tecido foram examinadas primeiro, pois havia uma preocupação com a preservação dos elementos... Entretanto, parece que Kroner já sabia exatamente como manter tudo. Claro que sabia. Queria ter sempre parte de suas vítimas junto dele.

– Há muitos outros objetos aqui – o policial levantou um lençol branco que cobria uma caixa enorme e rasa.

Ah, sim, exatamente o que ela esperava encontrar: um amontoado de camisetas, joias, bolsas, laços de cabelo e outros objetos pessoais.

Vendo tudo aquilo, ela sentiu-se profunda e verdadeiramente triste por Kroner, pois sabia muito bem de onde vinha a obsessão dele. Ninguém quer perder as conquistas do trabalho duro, as pessoas passam a valorizar seus objetos. No caso de Kroner, era mais difícil, pois, ao contrário dela, ele não tinha como manter suas vítimas para sempre... E, agora, também tinha perdido sua coleção.

De repente, Devina sentiu dificuldade para respirar.

Ela tinha perdido seus preciosos objetos, e lá estavam eles, sob a tutela de seres humanos, que tocaram e recatalogaram tudo. Eles poderiam, muito bem, um dia, num futuro distante, jogá-los fora.

– Britnae? Você está bem?

O oficial apareceu bem ao lado dela, mostrando uma cadeira de escritório.

– Sente-se – ouviu-o dizer ao longe.

Quando a sala começou a girar, Devina fez o que ele havia sugerido e colocou a cabeça entre os joelhos que não eram dela. Estendendo uma das mãos, pegou na borda da mesa, como se assim pudesse manter a consciência.

– Merda, merda... certo, vou pegar um pouco de água para você.

Quando o oficial saiu, seus pés iniciaram uma corrida mortal em direção às pilhas de evidências, pois sabia que não tinha muito tempo. Com a mão trêmula e suada, pegou o brinco de ouro que tinha trazido de sua coleção. As lágrimas vieram à tona quando percebeu que tinha de abrir mão novamente daquilo se quisesse progredir naquela rodada com Heron... e DelVecchio.

Há pouco, quando estava em seus aposentos privados, parecia haver uma perspectiva tão razoável, tão fácil, mas ali, cercada por centenas de milhares de troféus, o que era o brinco de uma virgem morta? Ficaria com a outra peça do par... além do mais, tinha outros objetos para se lembrar daquela maldita Sissy Barten.

Agora, porém, sentada ao lado da carnificina que eram as lembranças de Kroner, sentia como se estivesse enviando uma de suas muitas almas às profundezas de um mar de perda e esquecimento permanentes. Mas que escolha tinha? Tinha que eliminar as forças de Heron e, mais importante, tinha que configurar o final do jogo...

De repente, a imagem da secretária gostosa começou a se desintegrar, a verdadeira forma de Devina passou a emergir da camada de pele humana jovem e rosada, sua carne morta e enrugada e suas garras cinzas e retorcidas embalavam o brinco barato em formato de pássaro.

Por um momento, não se importou. Estava abalada demais por sua possessividade, não conseguia lidar com o fato de que o oficial voltaria em breve e que, então, teria de infectá-lo ou matá-lo – e não tinha energia para nada disso. Ela tinha, porém, de se recompor.

Obrigando-se a pensar um pouco, convocou a visão de sua terapeuta, imaginando aquelas formas arredondadas, aquela pessoa realizada, acolhedora, que já tinha passado da menopausa e que não só parecia ter resposta para tudo... Mas parecia saber exatamente do que ela estava falando.

Devina, a ansiedade não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo... Você deve se lembrar de que não necessita de objetos para justificar sua existência ou para se sentir bem ou segura.

Ou seja, se não conseguisse se recompor e colocar aquele brinco ali, comprometeria mais ainda seus objetivos.

Você já perdeu uma vez – lembrou a si mesma.

Duas respirações profundas... mais outra. Então, olhou para sua mão e desejou a imagem da jovem e a bela carne de volta. A concentração que aquilo exigia deu-lhe uma dor de cabeça permanente, mesmo depois que voltou a ser Britnae, mas não havia tempo para desperdiçar com as têmporas que latejavam. Ao colocar-se em pé sobre pernas tão fortes quanto canudos de refrigerante, saiu tropeçando em direção à caixa de objetos. Agarrando-se a uma cortina, colocou ali o brinco em formato de pomba e, em seguida, patinou de volta ao assento que o oficial havia providenciado para ela. Bem a tempo.

– Aqui, beba isso.

Olhou para o cara. Considerando a expressão em seu rosto, parecia que o disfarce Britnae ainda estava funcionando. Uma coisa era certa sobre humanos: ficavam totalmente chocados quando a viam como era de fato.

– Obrigada – disse com voz rouca ao estender uma das mãos... com uma camada de esmalte rosa nas unhas. Mas quanto tempo aquilo duraria?

Bebeu a água, amassou o copo de papel e jogou-o numa lata de lixo embaixo da mesa.

– Por favor, pode me tirar daqui? Agora?

– Claro.

Ele tirou-a da cadeira, jogando um braço surpreendentemente forte em volta da cintura e sustentando a maior parte de seu peso. Passaram pelos longos corredores. Saíram pela porta desbloqueada graças àquele cartão magnético. Enfim, o corredor que daria para a saída. O elevador foi uma bênção, mesmo ficando ainda mais tonta com a descida.

O plano, disse a si mesma. Trabalhar no plano. Era o sacrifício necessário para trazer as coisas de volta ao lugar.

Quando chegaram ao escritório, ele sentou-a numa das cadeiras de plástico de sua mesa e trouxe um segundo copo de água. O que ajudou um pouco a clarear a mente de Devina. Ela concentrou-se no oficial e decidiu não só deixá-lo viver, daria também um pequeno presente.

– Obrigada – disse-lhe, com sinceridade.

– Por nada. Quer uma carona para casa?

Ela não respondeu e inclinou-se para frente. Estendendo-se mentalmente pelo ar, infiltrou-se pelos olhos de Gary e adulou-o dentro do cérebro, passeando pelos corredores metafóricos de sua mente, visualizando ao acaso as provas que havia em suas estantes particulares.

Da mesma maneira que colocou o brinco na caixa, inseriu a convicção no cérebro do homem de que ele era um Casanova, um cara que, apesar de sua modesta aparência, era desejado pelas mulheres e, portanto, confiante e viril.

Era o tipo de coisa que o faria conseguir uma transa. Pois, ao contrário dos homens, criaturas visuais, as mulheres tendiam a valorizar mais o conteúdo que havia entre as orelhas de alguém. E autoconfiança era muito sensual.


Devina partiu em seguida, levando com ela as memórias do que tinham feito e onde tinham estado. Seu ato de caridade enojou-a, e ela desejou fazer um gesto obsceno àquele Nigel insuportável.

Mesmo uma freira com o coração mais puro que se possa imaginar teria vontade de soltar um palavrão naquela ocasião. Eram raros os casos em que um demônio motivava-se a mostrar compaixão. Ela sentiu vontade de tomar um banho para tirar o fedor.


CAPÍTULO 21

 

– Acho que estou no céu.

Reilly escondeu um sorriso quando Veck olhou com admiração o pedaço de torta que sua mãe havia colocado à frente dele.

– A senhora fez mesmo isso? – disse ao olhar para cima.

– Do zero, incluindo a massa – o pai dela anunciou. – E não só isso, ela pode calcular seus impostos de olhos fechados com um dos braços amarrado nas costas.

– Acho que estou apaixonado.

– Desculpe, ela já é comprometida – o pai de Reilly puxou sua esposa para um rápido beijo ao pegar seu pedaço de sobremesa. – Certo?

– Certo – a resposta foi pronunciada de boca cheia.

Reilly ofereceu um pouco de sorvete de baunilha a Veck.

– Sorvete?

– Com certeza.

O detetive DelVecchio acabou se mostrando muito bom de garfo. Levou segundos para comer a carne de vitela e o espaguete ao molho pomodoro. Não era muito fã de saladas, o que não era muito surpreendente. E poderiam ter servido a sobremesa em dose dupla.

Contudo, não foi a capacidade de apreciar a comida de sua mãe que impressionou Reilly: ele inteirou-se bem com o pai. Brincava e, com respeito, mostrou que não era alguém influenciável, mesmo Tom Reilly sendo conhecido por assustar até à morte seus subordinados. Resultado disso?

– E, sim, Veck, concordo com você – o pai dela anunciou. – Há muita coisa que precisa ser modificada no sistema. É muito difícil obter um equilíbrio entre acusação e perseguição, especialmente com relação a alguns grupos étnicos e raciais. Socioeconômicos também.


Sim, seu parceiro tinha sido agraciado com a plena aprovação.

Quando a conversa encaminhou-se para o assunto da aplicação da lei, ela sentou-se e observou Veck. Ele parecia mais relaxado que nunca. E, cara, como estava lindo.

Meia hora e mais um pedaço de torta depois, Veck ajudou a levar os pratos até a pia e ajudou a secar a louça. Então, chegou o momento de colocarem os casacos e dirigirem-se à saída.

– Obrigada, mãe – ela disse, abraçando a mulher que sempre estaria ali por ela. – E pai.

Ao aproximar-se do pai, teve que ficar na ponta dos pés para colocar os braços ao redor dele, esticou-se bem e não chegou nem à metade do caminho dos ombros.

– Eu te amo – ele disse, segurando-a com firmeza. E, então, sussurrou em sua orelha: – Tem um bom rapaz aí.

Antes que pudesse retornar ao discurso “não, eu não tenho ninguém”, passaram aos apertos de mãos e saíram pela porta.

Na rua, os dois acenaram e, enfim, tudo acabou.

– Seus pais são incríveis – Veck disse, enquanto se afastavam de carro.

Um rubor de orgulho da família a fez sorrir.

– São mesmo.

– Se não se importa, queria perguntar...

Quando percebeu que ele não a olhava e que não terminaria a frase, Reilly sabia qual era a pergunta que tinha ficado no ar. Era importante, mas isso não significava que ele iria forçá-la a responder.

– Fico muito feliz em conversar sobre isso – quando a chuva começou a cair, aguardou num sinal vermelho e ligou os limpadores de para-brisa. – Meus pais sempre trabalharam com jovens de risco e centros de recuperação... Começaram antes mesmo de se conhecerem. Existe um centro assim na igreja católica do centro da cidade e, depois que se casaram, costumavam passar os sábados lá, organizando livros, solicitando doações, ajudando famílias desabrigadas. A mulher que meu deu à luz chegou ali comigo depois de ter brigado com um dos três namorados. Com isso, ela acabou perdendo a visão do olho esquerdo – Reilly lançou um rápido olhar para ele. – Eu vi acontecer. Na verdade, é a primeira memória que tenho.


– Quantos anos você tinha? – ele perguntou um pouco tenso.

– Três anos e meio. Ela brigava com ele por qualquer coisa, até aí nenhuma novidade, mas, daquela vez, ela agarrou uma faca e foi atrás dele. Ele a empurrou para se defender, mas ela continuou atacando até que ele começou a bater nela. Com força. Eu disse aos policiais que ele a espancou e, então, o colocaram na cadeia. E foi assim que terminamos no abrigo, pois o apartamento em que estávamos hospedadas era dele – Reilly acionou a seta e entrou numa via principal, pouco depois de um colégio. – De qualquer forma, ficamos no local onde meus pais trabalhavam como voluntários, mas a mulher que me deu à luz roubou algumas coisas de outra família, e, então, foi o fim da estadia. Tivemos que ficar com seus outros dois namorados por mais ou menos uma semana e, então... ela me levou de volta ao abrigo e me deixou lá. Simplesmente me abandonou.

Veck encontrou seus olhos.

– Onde ela está agora?

– Não faço ideia. Nunca mais a vi de novo e, sei que soará amargo, mas não dou a mínima para o que aconteceu com ela – aproximou-se de um semáforo e pisou no freio. – Era uma mentirosa e uma viciada, e a única coisa boa que fez por mim foi ter me deixado. Mas tenho certeza de que ela não tinha a intenção de me proporcionar algum benefício com isso. Provavelmente, eu estava atrapalhando seu estilo de vida, e ela devia saber que matar uma criança era o tipo de crime que garantiria toda uma vida atrás das grades.

Nesse ponto, era o momento de entrar na pista expressa... que veio em boa hora, pois essa era a parte mais difícil da história Fez uma pequena pausa e respirou um pouco ao se posicionar no trânsito.

– Nossa, a chuva está ficando forte mesmo – ela disse, aumentando a velocidade dos limpadores.

– Não precisa terminar a história.

– Não, está tudo bem. O verdadeiro pesadelo teria acontecido se meus pais não tivessem se interessado por mim. Isso me assusta ainda hoje – verificou o espelho retrovisor, mudou para a faixa da esquerda e afundou o acelerador. – Aconteceu de meus pais estarem trabalhando naquele dia... E eu simplesmente grudei neles feito cola. Eu adorei meu pai desde a primeira vez que o vi, pois ele era tão grande e forte, com aquela voz profunda... sabia que me protegeria. E minha mãe sempre me deu bolachas e leite... e brincava comigo. Quase que de imediato eu já estava determinada a ir para a casa com eles, mas eles estavam tentando engravidar na época e, meu Deus, não estavam necessariamente interessados em bebês com histórico de pais viciados em drogas.

– Naquela noite e durante a semana seguinte, tentaram encontrar a mulher e instigar um pouco de sentimento nela, pois sabiam que, quando uma criança entrava no sistema, era difícil sair dele. Quando finalmente a encontraram, ela não me quis... e disse que renunciaria seus direitos. Voltaram mais tarde e sentaram-se comigo. Eu não poderia ficar no abrigo, pois era preciso estar acompanhada de um responsável. Então minha mãe decidiu dormir lá comigo para que eu pudesse ter direito a um beliche. Me lembro de ter tido certeza de que me diriam para ir embora, mas um dia transformou-se em dois... e depois em mais outra semana. Eu era muito bem comportada, e tinha a impressão de que meu pai estava trabalhando em alguma coisa. Finalmente, voltaram e me perguntaram se eu queria ficar com eles por um tempo. Ele conseguiu ajeitar as coisas para que se encaixassem no sistema como candidatos a meus pais adotivos. Só ele mesmo – ela olhou e sorriu. – Um tempo que se transformou em vinte e tantos anos. Conseguiram me adotar oficialmente um ano depois que me mudei.

– Isso é incrível – Veck devolveu um sorriso e, em seguida, ficou sério outra vez. – E seu pai biológico?

– Ninguém sabe quem é, inclusive a mulher que me deu à luz, de acordo com o que os meus pais dizem. Me disseram, bem depois, quando eu já estava crescida, que ela acreditava ser um dos dois ex-namorados. E os dois estavam na cadeia por tráfico de drogas – acelerou ainda mais os limpadores. – E, veja bem, sei que pareço... estar com raiva em alguns momentos da história. Mas acho que é apenas uma tentativa de lutar com a teoria de que o vício é uma doença genética. Com dois viciados na minha base genética, há uma probabilidade estatística de que eu termine como eles, mas não vou seguir por esse caminho. Sabia que era uma porta que eu não deveria abrir e, de fato, nunca fiz isso. E, sim, você pode argumentar que meus pais me deram oportunidades que meus pais biológicos nunca teriam dado, e é verdade. Mas você faz o próprio destino. Você escolhe seu caminho.


Durante algum tempo, ouviu-se apenas o ruído dos limpadores e da água chicoteando a parte inferior do carro.

– Desculpe, acho que falei demais.

– Não, nem um pouco.

Reilly olhou para Veck e teve a impressão de que ele estava voltando ao próprio passado.

Em silêncio, esperou que ele se abrisse, mas o homem continuou calado, cotovelo apoiado na porta, uma das mãos massageando o queixo.

Do nada, um carro enorme rugiu na faixa do meio. O suv espirrou litros e litros de água sobre o capô de Reilly e obscureceu a visão.

– Deus – ela disse, diminuindo a velocidade. – Devem estar a mais de 150 quilômetros por hora.

– Nada como um desejo de morte para diminuir o tempo na viagem.

O veículo desviou para a direita, em seguida para a esquerda, e depois para a direita outra vez, movimentando-se dentre os outros carros num zigue-zague atordoante.

Reilly franziu a testa ao imaginar Veck em sua moto naquele aguaceiro tendo de lidar com um maníaco na estrada como aquele.

– Ei, consegue voltar para casa nessa chuva? Está ficando perigoso.

– Não, não tem problema – ele respondeu.

Pensando num palavrão, não teve certeza se ele estava entendendo direito a situação. E o fato de ser estúpido o suficiente para pegar aquele foguete que dizia ser uma moto e sair naquelas condições não a alegrou muito.

Enquanto Veck permanecia sentado ao lado de Reilly, viu-se pensando sobre seu pai... e sobre sua mãe também. Embora não conseguisse se preocupar muito com ela. Que irônico. DelVecchio pai estava sempre em sua mente, mas sua mãe...

– Acho melhor eu levar você para a sua casa – Reilly disse. – Não é nada interessante enfrentar esse tempo na sua moto.

– Eu não fazia ideia do seu passado – ele murmurou. – E nunca teria imaginado. Você é tão segura.

Houve uma pausa, como se tivesse que trocar a faixa do assunto na sua cabeça.

– Bem, devo muito disso aos meus pais. Foram um exemplo e uma realidade, são tudo o que desejo ser e quem me tornei. Porém, nem sempre foi fácil. Por um longo tempo, achava que, se eu não fosse perfeita, eles me devolveriam como se fosse uma torradeira com defeito. Mas destruí o carro do meu pai nas minhas aulas de direção... Um bom teste para essa teoria, não? E, adivinhe só? Eles continuaram comigo.

Olhou o perfil do rosto dela e disse: – Acho que você não dá crédito suficiente a si mesma.

– A única coisa que fiz foi aproveitar o bom exemplo que tinha diante de mim.

– E isso é muito.

Quando ela entrou no bairro dele, cinco minutos depois, ele percebeu que ela tinha seguido o próprio conselho sobre ele, sua moto e o clima.

Os freios rangeram ligeiramente quando ela parou na calçada e, de repente, a chuva sobre o teto do carro começou a soar como bolas de pingue-pongue.

– Acho que está caindo um pouco de granizo – ele disse.

– Sim – ela olhou pelo para-brisa dianteiro. – Que tempestade.

– Nenhum trovão.

– Não.

Os limpadores continuaram o movimento, clareando a visão por alguns momentos.

Em dado momento, olhou para ela.

– Quero te beijar de novo.

– Eu sei.

Ele riu um pouco.

– Sou tão óbvio assim?

– Não... eu quero também.

Então, vire a cabeça para mim, ele pensou. Tudo o que tem a fazer é virar a cabeça que eu beijo você.

A chuva caiu. Os limpadores continuaram. Motor parado.

Ela virou a cabeça. E fixou os olhos na boca dele.

– Quero muito isso.

Veck inclinou-se em direção a ela e aproximou-a de seus lábios. O beijo foi bastante lento e profundo. E quando a língua de Reilly encontrou a sua, teve consciência de que desejava algo mais dela que apenas sexo. Em última análise, no entanto, a definição daquilo não importava. Não dentro daquele carro sem marcas de identificação, estacionado na sua calçada, com a tempestade que caía lá fora.

O que os dois precisavam não tinha como resolver conversando.

Deus, ela ainda era tão macia embaixo dele, pele macia, cabelo macio, perfume suave, mas foi sua essência firme, sua solidez e obstinação que realmente excitaram-no. A ideia de que era uma sobrevivente, que era tão forte e esclarecida com quem era e de onde vinha fez com que a respeitasse ainda mais.

E, como pode imaginar... aquilo era mais sensual do que qualquer coisa naquela sacola da Victoria’s Secret.

Com um movimento do tronco, tentou chegar ainda mais perto, mas a lateral do corpo atingiu o volante, que o bloqueou. O homem das cavernas nele de fato rosnou quando tentou aproximar-se outra vez, mas não conseguiu chegar nem perto de onde queria. Ou seja, nu em cima dela.

Com um palavrão, recuou. Sob as luzes dos faróis refletidas dentro do carro, o belo rosto de Reilly iluminou-se, a sombra da chuva sobre o para-brisa tocava suas feições, manchando-as um pouco, até que os limpadores dissipassem o que parecia ser lágrimas.

Pensou nela com sua família, tão feliz e em paz.

Simplesmente pensou nela, ponto final.

– Vou entrar sozinho – disse abruptamente.

Veck não esperou uma resposta. Saiu do carro uma fração de segundo depois e correu até a porta da frente de sua casa, não por causa da tempestade, mas porque conseguia observar seu interior com muita clareza.

– Espere! – ela gritou quando ele pegou as chaves.

– Volte para o carro – ele murmurou com a voz áspera.

Correndo até ele, balançou a cabeça e disse: – Não quero.

Com isso, ergueu a mão e apontou para o carro. Quando acionou o alarme, as portas foram trancadas e os faróis piscaram.

Veck fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, a chuva atingiu sua testa e bochechas.

– Se você entrar, eu não vou conseguir parar.

A resposta de Reilly foi tirar as chaves das mãos dele, destrancar a porta e, sutil e implacavelmente, empurrá-lo para dentro da casa.

Desejava outro beijo como aquele dado no carro.

Fechando a porta com um chute, Veck desvencilhou-se do casaco, agarrou-a e puxou-a contra ele, segurando-a com força, tomando sua boca outra vez. E ela atacou de volta, envolvendo com força os braços ao redor dos ombros e pressionando seu corpo contra o dele.

O sofá.

Tinha mudado o sofá de lugar.

Ainda bem.

Houve um emaranhado de movimentos para chegar até lá, e tirar o casaco molhado dela e os coldres com as armas dos dois não facilitou as coisas. Mas logo ele moveu-a, estendendo-a sobre as almofadas... e montou sobre ela, pulando em cima de seu corpo.

O beijo foi desesperado, do tipo em que os dentes se encontram de vez em quando, e ele não queria nem sequer parar para respirar, mesmo com os pulmões queimando por falta de oxigênio. Especialmente quando ela começou a arranhar seus ombros.

Com isso, resolveu não ser bonzinho com a camisa dela. Sem romper o vínculo formado pelo beijo, pegou as lapelas e separou a maldita coisa da gola à bainha, liberando todos os botões perolados que navegaram pelo ar e caíram sobre o tapete.

O sutiã por baixo da roupa era de um tom pastel bem claro e a simples peça de algodão ficou espetacular sobre os seios. E que alívio não ter que se preocupar em rasgar rendas delicadas.

Enquanto ele abria o fecho frontal, ela respirava rápido e com força e o movimento sinuoso de suas costelas sob a pele era muito excitante, mas nada comparado ao momento em que afastou os modestos bojos para os lados.

– Você é incrível – ele gemeu ao dar uma boa olhada nela... Algo que evitou fazer na noite anterior.

Oh, cara, os seios eram mais pesados que aparentavam ser com roupas, mais cheios e redondos também... Com isso, ele até se perguntou se ela não usaria sutiãs mais apertados intencionalmente para disfarçá-los. Que desperdício seria. Mas pensar que outro homem poderia olhá-la com cobiça instigou-lhe a vontade de recorrer à sua arma.

Apalpando o que havia sido revelado, teve outra surpresa que deixou passar na pressa da noite passada. Era toda natural, tudo presente de Deus, nenhuma intervenção por insegurança ou vaidade. E o peso maleável de seus seios fez seu pau pulsar... lembrando-lhe quanto tempo havia se passado desde a última vez que ficara com uma mulher sem a rigidez dos implantes.

Pressionando os seios, sentiu os mamilos rígidos e eretos e abaixou-se para sugar um, depois o outro. Em seguida, aninhou-se ali.

Bem, parecia ser um homem que adorava seios, ele pensou, quando seus quadris foram impulsionados contra as pernas dela. Quem diria?

Ou... talvez fosse um homem que adorasse Sophia Reilly.

– Você é linda demais – rosnou quando voltou a trabalhar sobre os mamilos cor-de-rosa.

Estava desesperado para entrar nela, e encantado com a parte de cima, explorando, lambendo, tocando e observando suas reações. De alguma maneira, as coxas dela separaram-se – talvez tenha sido o joelho dele, talvez a necessidade dela, quem se importa? –, e os dois uniram-se onde mais desejavam.

Erguendo-se com os braços, começou a pressioná-la, seu pênis rijo acariciando o núcleo dela. Em resposta, ela arqueou o corpo de uma forma muito erótica, os seios subiram quando a coluna movimentou-se e ela cravou as unhas nos antebraços de Veck.

Quando ergueu-se contra ela, os seios balançaram com o movimento e ele ficou entorpecido, com o corpo dormente e hipersensível ao mesmo tempo – mas percebeu que tinha perdido o contato com os lábios. Voltando a beijá-la, soube que estava prestes a não conseguir mais se controlar... E, então, sentiu as mãos dela puxando sua camisa.

Parece que não era o único desejando algo.

De repente, perdeu a paciência com suas roupas e o que cobria seu peito desapareceu um momento depois, arrancando tudo como fez com Reilly.

– Sinta minha pele – ele exclamou, ao colocar-se sobre ela.

Ele beijou-a com força enquanto as mãos dela passavam por todo o seu corpo, passeando sobre seus músculos, agarrando os ombros, riscando as unhas ao longo de suas costelas.

Mais.

– Posso te deixar nua? – disse.

– Sim...

Veck ergueu-se e ela levantou os quadris e começou a tirar o cinto. Fez um trabalho tão bom com as calças, que ele simplesmente sentou-se e observou quando uma calcinha de algodão apareceu em sua frente.

Quando ela mostrou estar com dificuldade para continuar, pois, ora, tinha um homem de noventa quilos em cima dela, ele ajudou a mulher a tirar as calças descendo-as sobre suas pernas longas e lisas.

Oh, cara... – pensou, passando as mãos sobre as coxas. Era esguia e levemente musculosa, e imaginou-se separando aquelas coxas e mergulhando sua cabeça...

Agarrando-a, investiu contra ela, esticando-se por cima dela mais uma vez. O plano? Facilitar o caminho ao sul e tomar a calcinha com os dentes. Então, passaria um tempo ali certificando-se de que o corpo dela estava pronto para ele. Com seus lábios, língua e dedos.

Parece que havia um pequeno cavalheiro dentro dele, afinal. Sim. Havia. Não era por estar morrendo de desejo de possuí-la... só que, em seguida, ela tocou o cinto dele. Veck congelou e colocou as mãos sobre as dela, acalmando-a.

– Se isso acontecer – disse em tom rude –, não serei capaz de esperar mais um segundo.

Com o corpo absolutamente sólido de Veck posicionado sobre o dela, o cérebro de Reilly estava focado em apenas uma coisa: tirar as calças dele.

– Não quero esperar.

– Tem certeza? – a voz dele era tão gutural que se aproximava do inaudível.

Como resposta, ela passou a mão entre as coxas dele e envolveu seu sexo. No instante em que a conexão foi feita, ele amaldiçoou numa respiração explosiva e seu corpo foi investido contra o dela, o material macio das calças dele não fizeram nada para ocultar aquela extensão rígida.

– Quero ver você – ela exigiu com voz rouca.

Não precisaria pedir duas vezes: com mãos violentas e rápidas, abriu a braguilha e foi ela quem puxou a cintura. Em seguida, trabalharam juntos com a cueca para libertar a...

O pau duro de Veck projetou-se dos quadris e as pálpebras dele abaixaram-se para vê-la observar o que havia ali.

Santo...

Bem, ela poderia usar um dicionário de sinônimos para definir aquilo como “magnífico”, não? E, se era correto afirmar que tinha ficado impressionada com o que viu naquela noite no banheiro ou quando o sentiu por cima das roupas na cozinha dela, podia-se dizer que agora explodia ao vê-lo totalmente revelado e pronto para rugir. E o sexo dele não era a única bela visão: seu peito era tão macio e musculoso quanto se lembrava e seu abdômen era incrível, havia linhas firmes e bem definidas que iam até sua pélvis e seu...

– Me f...

Ao agarrá-lo, com as palmas das mãos sobre a coisa, ele estremeceu violentamente, e Reilly adorou a sensação de poder por ter abalado sua estrutura. E, oh, Deus, era firme e longo, pulsava e latejava reagindo à carícia.

Nunca vou esquecer isso – ela pensou, vendo-o sobre si, dentes expostos, cabeça para trás, o peitoral enorme esticado enquanto se esforçava para assumir o controle. Era a coisa mais quente que já tinha visto. E explorar primeiro era uma virtude, com certeza... Mas desejava possuí-lo de maneira mais profunda antes de aprender suas particularidades.

Pensando assim...

– Sua carteira? – ela tinha visto o que ele guardava ali quando manipulou a carteira na floresta... e a visão das camisinhas constrangeu-a naquele momento. Agora, estava agradecida, pois Deus sabia que ela não tinha nada disso. E não havia necessidade de se culpar por isso, um homem tinha que estar preparado sempre. Além disso, tinha alguma noção de como ele era. Testemunhou o efeito daquilo sobre Britnae.

– Agora – ela exclamou.

Outra coisa que não precisou pedir duas vezes. Quando encontrou as calças e tirou a carteira, ela levantou-se e tirou a calcinha – assim, estava pronta quando ele ergueu umas das mãos e trouxe a camisinha entre os dedos.

Ele fez uma pausa, como se quisesse que ela desse mais uma boa olhada.

Ela não hesitou. Sentou-se, pegou o pacote, mordeu e rasgou para abri-lo.

Ele gemeu e disse: – Eu posso colocar...

– Não, me deixe fazer.

Detalhes práticos nunca foram tão eróticos. Ela lidou bem com o objeto, acariciando a grande extensão de seu pênis ao cobri-lo, até Veck arquear-se e segurar o peso do corpo sobre os braços. Quando Reilly começou a tocá-lo, os olhos dele começaram a queimar, e, quando ela puxou-o, Veck rosnou... E beijou-a da maneira de sempre: com um domínio que vinha de um homem que sabia exatamente o que poderia fazer com uma mulher.

Ela posicionou-o sobre seu núcleo e, apesar de estar desesperada e de estar evidente que ele a desejava, Veck foi lento e cuidadoso ao pressioná-la por dentro. Muito bom. O corpo dela estava pronto – mas “pronto” era um termo relativo, considerando o tamanho dele.


Gloriosamente relativo: o toque de toda aquela extensão foi eletrizante, e ela abriu as pernas ainda mais, inclinando os quadris para cima, facilitando o caminho.

E, finalmente, estavam juntos.

Ao contrário da fúria que tinha tomado conta deles até ali, agora tudo desacelerava. Enquanto ele a esperava se adaptar ao seu órgão, lambeu seus lábios com a língua escorregadia; os movimentos preguiçosos atordoaram-na. Então, moveu os quadris, curvando a coluna, criando um arrepio insano.

O assovio que ele soltou foi seguido por outro gemido. Em seguida, Reilly fundiu sua boca com a dele e continuou, mantendo o ritmo equilibrado e sem pressa. Seguindo o exemplo dele, começou a golpear também. Com isso, o sexo ganhou um impulso que a levou, ao mesmo tempo, para fora de seu corpo e para os locais mais profundos de seu íntimo.

A casa estava em silêncio. Tudo o que faziam era muito alto. Desde o ranger do sofá, até o atrito sutil das almofadas, a respiração e... Tudo estava amplificado até ela imaginar que não ficaria surpresa se pessoas no centro da cidade pudessem ouvir.

Mais rápido. Mais forte. Mais profundo.

O corpo dele transformou-se numa máquina, e ela segurou-o, deixando ser levada pelo turbilhão, agarrando suas costas primeiro com as mãos, depois com as unhas.

Reilly gozou com uma explosão selvagem tão poderosa que ficou surpresa por não ter se partido ao meio. E ele seguiu-a de imediato, os quadris dele começaram a pulsar violentamente quando houve a pressão dentro de seu órgão.

Passou-se um bom tempo antes do rugido em seus ouvidos diminuir e, quando aconteceu, o silêncio na casa aumentou.

Depois do momento de paixão, a realidade retornou: tomou consciência de que estava nua e Veck estava dentro dela... e tinham acabado de fazer sexo.

Com o homem que era seu parceiro. Com o detetive que deveria fiscalizar. Com uma pessoa com quem tinha passado apenas algumas horas... que não era nada além de um estranho, afinal.

Um estranho que levou para a casa de sua família.

Um estranho que ela deveria adicionar à sua lista das poucas pessoas com quem ela havia estado.

O que eles tinham acabado de fazer?


CAPÍTULO 22

 

Adrian e Eddie ficaram mais um tempo ao longo da noite sentados naquela mesa do Iron Mask, bebendo cervejas nas garrafas longneck e paquerando as mulheres que passavam por eles. Nenhum dos dois falou muito. Era como se o que acontecera no banheiro tivesse sugado suas cordas vocais. E outra rodada de sexo estava fora de questão.

Ao sentar-se ao lado do seu parceiro, Ad esperava que algo dentro dele protestasse e trouxesse-o de volta ao normal. Maaas... nada aconteceu. A questão era: poderia lutar com seu inimigo com facas e punhos, mas a alma não tinha armas para lutar naquela guerra, pois não tinha como vencer. Também não conseguia lutar contra a realidade no ringue – não havia alvo para atingir. A não ser um obstáculo intransponível. Então, apenas sentou-se naquele clube, observando a multidão beber, mas sem ficar embriagado.

– Vamos voltar ao hotel? – perguntou finalmente.

Enquanto esperava por uma resposta, tinha plena consciência do quanto confiava no outro anjo como sendo a voz da razão; era aquele que tomava as decisões certas, que os guiava na direção correta.

E o que ele dava em troca?

Além do sexo – e, naquela noite, Eddie tinha provado que não precisava dos seus serviços nesse sentido também.

Ai, ai, ai – Ad pensou. Se continuasse assim ganharia o prêmio de covarde do ano.

– O que eu quero mesmo é uma audiência com Nigel – Eddie murmurou. – Mas ele está me afastando.

Ad olhou para ele.

– Será que ele foi demitido outra vez? Porque não deve se preocupar, não é nossa culpa. Jim é quem está com problemas, não nós. Ele nos dispensou.

E tudo por causa daquela maldita virgem.

Cara, se ele pudesse voltar atrás em alguma coisa desde que conheceu o salvador, seria manter o cara longe da toca de Devina. Sim, com certeza, a questão Sissy foi uma tragédia. Mas o que isso estava causando a Jim era pior. Uma garota, uma família, versus a totalidade das almas existentes? Matemática cruel para os Bartens, mas era a realidade.

Ad passou uma das mãos pelos cabelos e sentiu vontade de gritar.

– Olha, não consigo mais ficar aqui.

O grunhido que saiu de Eddie poderia ser um gesto de acordo, fome, ou a cerveja que não tinha caído bem.

– Vamos – Ad declarou, levantando-se.

Pela primeira vez, Eddie seguiu-o e, juntos, desviaram-se da multidão e afastaram-se do tumulto, chegando à porta de saída. Do outro lado? Chuva. Frio. Era o período noturno numa cidade que não era diferente de nenhuma outra no planeta e uma noite que não destoava de tantas outras pelas quais já tinham passado juntos.

Droga, talvez precisassem se acertar com Jim... relaxar. Nada de bom poderia vir com o salvador lutando sozinho.

Saindo do clube, não seguiram para uma direção específica. Mais cedo ou mais tarde, encontrariam um lugar para ficar – a menos que fossem acolhidos no território de Nigel, mas parece que isso não aconteceria tão cedo. Precisavam descansar. Imortais eram imortais só até certo ponto quando estavam na Terra. Não, não envelheciam, mas eram vulneráveis de algumas maneiras e precisavam comer, dormir, seguir as regras de higiene...

O ataque aconteceu tão rápido que Adrian não conseguiu ver nada. Nem Eddie. Seu parceiro apenas soltou um palavrão, agarrou a lateral de seu corpo e caiu como uma árvore, de lado, sobre o pavimento molhado do beco.

– Eddie? O que aconteceu?

O outro anjo gemeu e curvou-se todo... deixando atrás de si uma mancha brilhante de sangue fresco sobre o asfalto sujo.

– Eddie! – gritou.

Antes que pudesse se ajoelhar, um riso maníaco ecoou na escuridão fria e úmida. Levou apenas um segundo para Adrian reagir. Virou-se e desembainhou a faca, esperando enfrentar Devina. Acompanhada de um de seus subordinados. Ou doze deles.

Mas tudo o que viu... foi um humano. Um maldito pedaço de carne humana. Com um canivete na mão e um olhar selvagem de viciado no rosto encolhido.

Mais risos saíram da boca escancarada do homem.

– O diabo me obrigou a fazer isso! O diabo me obrigou a fazer isso!

O mendigo ergueu a faca por cima do ombro e saltou à frente, atirando-se contra Adrian com uma força sobre-humana, que só os loucos possuem.

Ad firmou-se sobre as coxas. Seu movimento normal seria sair correndo e olhar para trás bem depois, mas não com Eddie no chão: precisava manter contato visual com seu amigo... porque o cara não estava se movendo, nem para pegar uma arma, nem... ah, droga, não estava se movendo...

– Vamos lá, Eddie. Mexa-se! – passou a adaga de cristal para a mão esquerda e observou o antebraço do maluco possuído, esperando o momento certo...

O cara vacilou um pouco e foi o momento perfeito para Ad pegar o braço dele, mudar a trajetória do canivete e redirecioná-lo contra o bastardo. E a correção de percurso deveria ter sido muito fácil, a arma faria um arco evitando o contato com os órgãos vitais de Ad e terminaria no intestino do agressor.

Não foi bem assim. O corpo magro controlado pela mente caótica desvencilhou-se de Ad como se fosse uma rajada de vento, e ele, então, percebeu que Eddie não se levantaria.

Como se o maluco pudesse ler sua mente, um riso borbulhou de sua alma perdida, soando como um piano sendo tocado aleatoriamente por uma mão pesada, nada além de ruídos e sons dissonantes.

O filho da mãe quase voava sobre o chão ao investir contra Eddie outra vez, a faca por cima do ombro, a pele descamada sobre o rosto em que se via mais ossos que carne.

Ad não teve escolha. Precisava se concentrar no agressor e se proteger. Eddie morreria naquela calçada se ele não sobrevivesse e tirasse-o dali em segurança. Não podia perder aquela luta.

Agachando-se no último momento, investiu contra o bastardo e fazendo-o colidir contra uma construção. Quando o impacto aconteceu, uma dor ardente acima de seus rins disse-lhe que a faca havia ultrapassado a pele e mergulhado bem fundo, mas não houve tempo de se preocupar com o sangramento. Estendeu a mão, pegou aquele braço enlouquecido e acertou-o em cheio com um tijolo molhado. Fixando o membro no chão, fez um longo ferimento nele com sua adaga.

A risada maníaca foi substituída por um grito agudo de dor.

Esfaqueou outra vez. E uma terceira vez... uma quarta, uma quinta. Era claro que estava tão enlouquecido quanto o agressor, mas não parou. Com um poder preciso e cruel, golpeou a lâmina de cristal por cima do tronco várias vezes até quebrar todas as costelas, como se a lâmina penetrasse numa esponja molhada. Mesmo assim, continuou, só não precisava mais controlar o cara, apenas mudou-o de lugar para terminar de esfaqueá-lo.

A diversão e as brincadeiras finalmente pararam quando sua lâmina de cristal atingiu a parede de tijolos, esculpindo-a nos locais onde Ad havia golpeado.

Ele estava ofegante quando deixou a arma cair ao seu lado. Havia sangue por toda parte, e o maluco estava com muitos problemas no trato intestinal – na verdade, o cara quase tinha sido partido em dois, a coluna era a única coisa que ligava os quadris à parte superior do corpo.

Com lábios frouxos e flácidos, os engasgos interromperam o fluxo constante de plasma que bloqueava o ar que o homem ainda tentava fazer passar pela garganta. Mas aquilo terminaria em breve.

– O demônio... me obrigou... a fazer...

– E ela pode ficar com você – Ad rosnou, antes de lançar uma facada entre os olhos do maluco.

Houve um barulho terrível quando a essência de Devina explodiu daqueles olhos que uma vez tinham pertencido a um viciado de rua perdido. A fumaça negra fundiu-se e preparava um ataque por conta própria.

– Droga! – com um grande salto, Adrian ergueu o corpo e saiu correndo. Eddie ferido no chão era seu principal objetivo e cobriu o corpo do anjo com o seu, tornando-se o único escudo que manteria Devina longe da carne de seu parceiro.

Preparando-se para o impacto, pensou: Bem, não esperava ser assim, tão rápido.

Estava pensando na morte.

Ao menos Eddie sairia dessa. Era preciso mais que um grande golpe para derrubá-lo de vez. Afinal, feridas poderiam ser consertadas... tinha de ser assim.

Enquanto Jim estava parado com Cachorro na calçada da casa de Veck, entendeu que tinha assumido uma posição observadora com a alma em questão, apenas seguindo o cara em todos os lugares, deixando o tempo passar até Devina fazer a próxima jogada. Isso era extremamente chato.

Ficava muito mais à vontade assumindo uma postura agressiva, mas, às vezes, esperar e observar eram o X do problema. Contudo, caramba, o clima poderia estar melhor. A chuva continuava a cair e ele poderia muito bem continuar o seu trabalho sem o frio. Poderia muito bem ignorar o que acontecia dentro da casa também. Claro que aqueles dois estavam fazendo sexo. Dã.

Visualizou o início da diversão quando entraram e, então, ficou óbvio qual seria o próximo passo: a química deles estava explodindo e, em geral, não era o tipo de coisa da qual se fugia.

Jim cruzou os braços sobre o peito e agachou-se, todo aquele movimento sensual o fez pensar nas mulheres com quem estivera. Hum... Devina contava? Apenas se estivesse com o disfarce da bela morena, concluiu. Sem isso, teria que iniciar uma categoria “animal” na sua lista.

Tanto faz. Independentemente da espécie, nunca ficou com alguém a quem dava a mínima importância. Transar era como uma masturbação interativa para ele – e, pensando assim, prostitutas baratas pareciam um bom negócio. Gostava de ficar com elas, a sensação de controle era melhor que qualquer outra coisa que fizessem.

Contudo, sua vida sexual tinha acabado, não? Não poderia considerar o que teve com aquele demônio – foi uma luta em meio à guerra, apenas com punhos e cotovelos movimentando-se de forma diferente. E seu estilo de vida não incentivava muito um namoro. Porém...

De repente, uma imagem de Adrian e Eddie transando com aquela ruiva no quarto de hotel em Massachusetts escorreu em sua mente como chuva sobre a cabeça. Viu Eddie estendido em cima dela e Adrian juntando-se a eles com um olhar de quem já estava morto por dentro.

Devina havia feito aquilo com o anjo. Colocou aquele vazio em seu olhar.

Vadia da porra.

Pegou um cigarro, acendeu e inalou.

Veck era um homem de sorte por estar com a mulher que desejava. Jim nunca teria aquilo. Mesmo se libertasse Sissy...

– Idiota – murmurou ao exalar.

Será que a importância que dava àquela garota em alguma parte ridícula de seu cérebro tinha ido tão longe que ultrapassara os limites do termo “sua” ao referir-se a ela como alguém por quem era responsável? Pensava nela como sendo “sua” de fato? Será que tinha enlouquecido? Ela estava mais ou menos com seus dezenove anos e ele devia ter 140 mil naquele momento.

Certo, talvez Adrian e Eddie estivessem certos. O que estava fazendo com relação àquela garota era distração. Sim, tentou disfarçar com o discurso de que estava tudo bem, mas mentiu o tempo todo. E, naturalmente, quando seus parceiros forçaram-no a olhar a realidade, voltou-se contra eles e bufou como uma biscatinha.

Um arranhão na perna o fez baixar a cabeça. Cachorro tinha se sentado próximo aos seus pés e dava patadas na panturrilha. Parecia preocupado.

– O que foi?

O telefone de Jim tocou e, antes de atender, verificou a tela e teve a premonição de uma tragédia.

Aceitou a ligação e tudo o que ouviu foi uma respiração difícil. Em seguida, a voz de Eddie, fraca e entrecortada.

– Rua do Comércio... com a 13. Ajuda...

O riso entrecortado ao fundo significava más notícias, e Jim não perdeu tempo. Deixou Cachorro na calçada e foi para o centro da cidade, rezando para que um piscar de olhos fosse o suficiente para chegar a tempo.

O endereço era irrelevante, tudo o que tinha a fazer era seguir a essência de seus amigos. Chegou lá no momento em que Adrian pegou sua adaga de cristal e investiu entre os olhos de um bastardo louco e ensanguentado.

Devina.


Jim não precisava ouvir o barulho estridente para saber que algo maligno surgiria daquele saco de carne, e não havia nada para impedi-lo de investir contra Eddie: o anjo estava caído, todo contorcido, com o celular numa das mãos, agora totalmente rendido.

Sem pensar, Jim jogou-se em direção ao anjo sem defesa, arremessando o corpo no ar – Adrian fez a mesma coisa, ao mesmo tempo.

Ad aterrissou primeiro. E Jim cobriu os dois, sem muita esperança de proteger alguém...

Mas a coisa mais estranha aconteceu: seu corpo dissolveu-se em luz, da mesma maneira que aconteceu quando ficou furioso com Devina na última rodada. Num momento estava em sua forma corpórea... no outro, era pura energia.

Cobriu os anjos embaixo dele. Conseguiu mantê-los em segurança.

O servo, demônio, seja lá o que fosse aquilo, atingiu-o com o impacto de uma bola de golfe sobre o capô de um carro, ricocheteando, sem fazer qualquer estrago. Tentou outra vez imediatamente e obteve o mesmo resultado. Eeeee uma terceira vez.

Houve uma longa pausa em que Jim não vacilou. Podia sentir a presença em volta deles, procurando uma maneira de entrar.

Ficou claro que Eddie sangrava. O cheiro pungente era muito forte para estar vindo do corpo que jazia próximo à parede de tijolos. Inferno, talvez os dois anjos estivessem feridos. Hora de acabar com aquela bobagem.

Jim retraiu-se, levantou-se numa coluna de luz brilhante que iluminou cada centímetro nas proximidades e dissipou todas as sombras daquele local sujo. Colocando-se em posição de defesa frente ao ser maligno, condensou tudo o que havia no ar... E lançou tudo contra o filho da mãe.


A explosão não produziu luz, mas o grito foi tão alto quanto dois carros freando com força ao mesmo tempo em asfalto seco, e, em seguida, houve um ruído estranho como se areia estivesse sendo despejada.

Jim retomou sua forma corpórea e ajoelhou-se sobre os rapazes.

– Quem está ferido?

Adrian gemeu e saiu de cima de seu melhor amigo, uma das mãos pressionava a lateral do corpo.

– Ele. Levou uma facada no estômago.

Estava claro que Ad tinha sido ferido também, mas Eddie não se movia. Ao menos até Jim tocar o ombro do anjo. Com isso, o cara encolheu-se.

– Como você está?

Quando não houve resposta alguma, Jim olhou ao redor. Precisavam sair da rua. Era uma área movimentada da cidade durante a noite, e a última coisa que precisava era de alguém bem intencionado chamando a emergência. Ou pior, de um assaltante passando por ali. Ou de um policial em patrulha.

– E você? – perguntou a Adrian ao examinar o outro lado do beco.

– Estou bem.

– Mesmo? – edifícios de escritório, comércios ao redor. – Então por que está tremendo assim?

– Estou resfriado.

– Ah. Certo.

Não havia como voltar ao hotel. Precisavam de mais privacidade e, de qualquer maneira, era impossível carregar Eddie pela recepção: mesmo que conseguisse camuflar os dois, o cara ainda deixaria um rastro de sangue.

Além disso, as alternativas eram discutíveis, pois não poderia voar com aquele peso. Precisava encontrar abrigo para eles perto dali.

– E a sua mobilidade? – perguntou a Adrian.

– Depende. Se for para andar? Tudo bem. Voar? Nem pensar.

Jim mergulhou os braços sob o corpo de Eddie.

– Prepare-se, garotão. Isto vai doer.

Com um impulso, Jim estendeu os músculos da coxa como apoio e ergueu o peso do anjo do pavimento úmido. Em resposta, Eddie gemeu e ficou mais tenso, o que foi bom, pois facilitou segurar o cara.

Também significava que o bastardo ainda estava com eles.

Antes que Jim começasse a andar, o celular de Eddie atingiu o chão e deslizou para longe, batendo na bota de combate de Adrian.

O anjo curvou-se e pegou. A tela brilhava, e o sangue projetou uma luz vermelha.

Passando a mão pelos cabelos molhados, Ad disse: – Então, ele te ligou.

– Sim – já na saída do beco, Jim indicou com a cabeça um banco do outro lado da rua. – Vamos entrar lá.

– Como?

– Pela porta da frente – quando Jim começou a caminhar, murmurou para Eddie: – Caramba, garoto, você pesa tanto quanto um carro.

O passo arrastado atrás dele indicava que Ad acompanhava-os. O comentário em seguida apenas confirmou tal fato: – Um banco? Aquele lugar deve estar todo trancado. Tão perto de...

Quando chegaram à entrada com portas de vidro da recepção, as luzes internas apagaram-se, o sistema de segurança foi desativado e a porta da frente... abriu-se, completamente.

Quando entraram, tudo voltou ao normal, exceto as luzes e os sensores de movimento.

– Como fez isso? – Adrian sussurrou.

Jim olhou por cima do ombro. O anjo atrás dele parecia ter sofrido um acidente de trem: rosto muito pálido, olhos muito arregalados, sangue nas mãos e escorrendo pela camiseta.

– Não sei – disse Jim com voz suave. – Apenas fiz. E você precisa se sentar. Agora.

– Dane-se... Precisamos cuidar de Eddie.

Verdade. O problema era que numa situação como aquela... Eddie era o cara a quem Jim perguntaria o que fazer.

Hora de começar a rezar por um milagre – Jim pensou.


CAPÍTULO 23

 

Veck sentiu a mudança em Reilly imediatamente: mesmo ainda dentro dela, percebeu que, em sua mente, ela havia colocado suas roupas, aberto a porta e ido embora.

Droga.

Movendo uma das mãos entre seus corpos, apoiou-se e recuou.

– Sei o que está pensando.

Ela esfregou os olhos.

– Sabe?

– Sim. E provavelmente eu deveria dizer algo como “foi um erro”. Assim, você poderia dar logo um fim nisto.

Antes que se ajeitasse sobre as almofadas do sofá ao lado dela, abaixou-se e pegou a camisa dele para cobrir o corpo nu de Reilly.

Enquanto ele puxava a gola até o queixo, ela examinava seu rosto.

– Foi um erro, para todos os efeitos. É um erro.

Certo, esta doeu.

– Mas eu não consegui me conter – ela disse com voz suave.

– A tentação é assim – e ele tinha que manter isto em mente: tentação foi tudo o que a moveu.

Os olhos dela moveram-se para o chão próximo ao sofá... Onde a carteira dele estava aberta e havia outro preservativo guardado numa das divisórias.

– Acho melhor eu ir – disse ela um tanto rude.

Deus, por que sempre tinha que manter duas ali?

A última coisa que desejava era que ela fosse embora – e a última coisa que poderia impedir.

– Vai ter que ficar com a minha camisa. Eu rasguei a sua.

Fechando os olhos, ela amaldiçoou em voz baixa.

– Desculpe.

– Meu Deus, pelo quê?

– Não sei.

Acreditava que não sabia mesmo. Mas tinha certeza de que descobriria muito em breve exatamente o que e o quanto lamentava.

Quando Reilly levantou-se do sofá, ele escondeu o pênis com uma das mãos: ela não tinha motivos para ver aquilo agora. E não tinha motivos para pensar que a noite não tinha sido como ela mesma descrevera: um erro.

Para ele? Graças a Reilly, teve a sua primeira refeição caseira do século XXI, uma carona em meio à tempestade e uma relação sexual que se aproximava bastante do conceito piegas de “fazer amor”.

Irônico como duas pessoas poderiam cumprir a mesma lista de tarefas com uma perspectiva totalmente diferente. Infelizmente, o ponto de vista dela era o que contava.

Em silêncio, reuniu as roupas dela uma a uma e entregou-as. Ouviu quando ela vestiu as calças, as meias e os sapatos. Concluiu que tinha vestido o sutiã também, mesmo que a peça não fizesse muito barulho. O coldre foi a última coisa que entregou e, enquanto ela lidava com o cinto de couro, Veck subiu a própria calça e prendeu-a sobre os quadris.

– Vou te acompanhar até a porta – disse, quando ela terminou de vestir-se.

Não havia razão para prolongar aquela situação constrangedora. Além disso, iria embora de qualquer maneira.

Deus, isto tudo é como tomar um tiro – pensou ao aproximar-se da porta.

Quando Reilly aproximou-se, procurou olhar por sobre o ombro dela, o que, infelizmente, levou seus olhos para o sofá.

– Não quero que isso termine assim – ela disse.

– As coisas são como são. Sei de onde você veio, seus valores.

– Não é o que você pensa.

– Posso imaginar.

– Não quero... Eu queria muito isso. Mas é difícil ser apenas outra mulher em sua cama.

Ao abrir a porta, foi atingido por uma rajada de vento frio e úmido.

– Eu nunca te levaria lá para cima. Confie em mim.

Ela piscou confusa. Limpou a garganta e disse: – Certo. Ah... vejo você amanhã.

– Sim, às nove.

Assim que saiu, fechou a porta e foi até a cozinha para vê-la entrar no carro e afastar-se sob a chuva.

– Filho da puta.

Apoiando a palma das mãos sobre o balcão, deixou a cabeça pender por um momento. Então, enojado de si mesmo, virou-se e subiu as escadas rapidamente. Em seu quarto, passou pela cama e pensou: Não, de jeito nenhum, nunca traria Reilly até aqui.

Naquele colchão, trazido de Manhattan, deitaram-se as várias mulheres com quem tinha se relacionado ao acaso em bares e locais assim – nem sequer sabia o nome de algumas delas, muito menos o telefone. Pedia para que todas fossem embora antes mesmo do suor secar.

A mulher com quem teve a sorte de ficar naquela noite não era uma qualquer, e, mesmo que não sentisse o mesmo que ele, nunca a desvalorizaria deitando-a sobre aquele lugar sujo. Lençóis limpos não escondiam as manchas do modo como ele vivia.

No banheiro, tirou o preservativo e jogou-o na cesta de lixo. Ao olhar para o chuveiro, pensou em tomar uma ducha. Mas acabou vestindo uma calça de moletom e depois desceu para ficar no sofá, o perfume delicado de Reilly ainda estava sobre ele.

Patético.

O bom de ter passado três anos fazendo patrulha em vários pontos da cidade de Caldwell era que Reilly conseguia chegar em casa saindo de qualquer lugar sem nem sequer pensar no que estava fazendo. Muito útil numa noite como aquela.

Nunca a levaria lá para cima. Confie em mim.

É, aquela pequena frase ficaria em sua mente para o resto da vida. E, claro, ficou imaginando que tipo raro de mulher seria bem-vinda naquele local tão especial. Deus, com quantas mulheres deve ter ficado naquele sofá? E como seria a seleção para chegar até o quarto?


Mas não o culpava pelo que sentia agora. Desejava exatamente o que tinha acontecido e lidaria com as consequências – as quais, por ter sido sexo seguro, seriam apenas emocionais: escolhera aquele resultado... Seguiu Veck até a porta, empurrou o cara para dentro da casa, pediu para que pegasse a carteira. Então, seria adulta o suficiente naquele momento e passaria as próximas dez horas recompondo-se para voltar ao escritório às nove da manhã do outro dia. Era o que profissionais faziam. E o motivo pelo qual profissionais não deixavam as coisas chegarem àquele ponto.

Depois de dez minutos de estrada embaixo de uma tempestade, parou na calçada de sua casa e acionou o controle do portão da garagem. Enquanto esperava os painéis subirem, pensou: Ah, que droga. Entre o jantar e o que tinha feito depois, já fazia horas que não checava o celular.

Quando o pegou, verificou que havia três chamadas perdidas. Havia apenas uma mensagem de voz, mas, considerando quem tentara ligar, não perdeu tempo com isso. Simplesmente ligou de volta para De la Cruz.

Um toque. Dois toques. Três toques. Caramba, talvez ele estivesse dormindo. Era tarde... A voz dele interrompeu um dos toques.

– Esperava que fosse você.

– Desculpe, eu estava ocupada – fez uma careta. – O que aconteceu?

– Sei que gostaria de falar com Kroner e acho que pode e deve fazer isso agora. Os médicos dizem que ele está melhor do que pela manhã, mas a maré pode virar, e acho que se fizer uma entrevista como parte neutra no caso, pode ajudar Veck e também pode influenciar a opinião pública.

– Quando posso vê-lo? – inferno, iria naquela noite mesmo se pudesse.

– Provavelmente amanhã de manhã seja o melhor horário. Tive notícias há uma hora de que ele está descansando tranquilamente. Não está mais encubado, não tomou mais sedativos e até comeu alguma coisa. Mas, agora está dormindo profundamente.

Lembrando-se da condição do cara naquela floresta, era loucura ele ainda estar respirando, quanto mais comendo as refeições do hospital – e pensou em Sissy Barten. Tão injusto. Aquele tal de Kroner estava vivo e a garota... bem, provavelmente não.

– Estarei lá amanhã às nove horas.

– Tem segurança 24 horas. Vou me certificar de que sejam comunicados da sua visita. Ei, como estão você e Veck juntos?

Fechou os olhos e conteve um palavrão.

– Bem. Perfeito.

– Ótimo. Não o leve com você.

– Não iria mesmo – por mais de um motivo.

– Depois me diga como foi, se não se importa.

– Detetive, será a primeira pessoa para quem vou telefonar.

Depois de desligar, esfregou a nuca, tentando aliviar a tensão que pensava ter sido causada pelos exercícios que fizera com o parceiro naquele sofá.

Soltando o freio, deixou o motor levá-la devagar para dentro da garagem. Desligou o carro, saiu e... parou enquanto fechava a porta do motorista.

– Quem está aí? – ela gritou, colocando uma das mãos sob o casaco para pegar a arma.

A luz automática do teto deu-lhe uma visão clara das vassouras, da lata de lixo e do saco de sal que jogava na calçada durante o inverno para que os carteiros conseguissem entregar a correspondência. Mas também fez dela um alvo fácil para quem a observava.

E havia mesmo alguém.

Num movimento rápido, deu a volta pelo capô, e não pelo porta-malas, e já estava com a chave a postos antes de chegar à porta. Com movimentos rápidos e certeiros, abriu a fechadura, entrou na casa e acionou o portão da garagem ao mesmo tempo. E a fechadura foi trancada assim que entrou.

O sistema de alarme começou a apitar no canto da cozinha. Ou seja, estava ativado e fora ela mesma quem o tinha disparado. Com a mão esquerda, digitou a senha e silenciou o barulho. A arma estava na mão direita.

Com as luzes apagadas, passeou pela casa, olhando pelas janelas. Não viu nada. Não ouviu nada. Mas seus instintos gritavam que estava sendo vigiada.

Reilly pensou naqueles “agentes do FBI” e no fato de que alguém tinha entrado ou andado em volta da casa de Veck na noite anterior. Oficiais de polícia também são perseguidos. Isso já havia acontecido com muitos. E, embora há muitos anos não atuasse num caso com apelo público, hoje estava envolvida com Veck.

E ele estava longe de ser um cara sem controvérsias.

No escritório, pegou o telefone e verificou se havia linha. Sim, havia. E, ironicamente, Veck foi a primeira pessoa que pensou em chamar. Mas não chamaria, era perfeitamente capaz de se defender.

Puxando a cadeira da escrivaninha, posicionou-a para que pudesse ver a porta da frente e a que dava acesso à garagem ao mesmo tempo. Em seguida, arrastou um criado-mudo. No armário, num cofre à prova de fogo, havia três outras armas e vários cartuchos de munição; ela pegou outra automática e preparou-a para atirar.

Sentando-se apoiada contra a parede, pegou o receptor do telefone sem fio e colocou-o sobre a mesa com a arma extra, mantendo o celular no bolso caso precisasse agir rápido.

Alguém queria atacá-la?

Tudo bem. Podiam entrar para ver a recepção que teriam.


CAPÍTULO 24


No centro da cidade, na recepção de mármore do banco que Jim havia arrombado, Adrian estava perdendo sangue e com vertigens, mas se recusou a desmaiar.

Sob um facho de luz externa, Jim colocou Eddie suavemente no chão duro e polido. O anjo ainda estava contorcido, o corpo enorme assumiu uma posição fetal ao lado dele, sua trança escura serpenteava como uma corda.

– Podemos estender você um pouco, amigão? Ver o que está acontecendo? – disse Jim. Não eram bem perguntas. Era mais um aviso a Eddie de que mais movimentação estava por vir. E quando o cara esticou-se um pouco, foi bom ouvir o palavrão que soltou. Sinal de que o grande bastardo ainda estava respirando.

Só que continuou curvado sobre a barriga. E seu rosto... não estava certo. A pele, que era sempre de um tom mais escuro, estava clara como a neve, e seus olhos estavam fechados com tanta força que os traços distorciam-se.

Havia sangue na boca, manchando os lábios de vermelho. Sangue... estava saindo da boca.

Adrian começou a arfar, os punhos fecharam-se, o suor escorria pelo corpo inteiro.

– Você vai ficar bem, Eddie. Vai ficar...

– Se estenda um pouco, por favor – disse Jim. – Sei que dói demais, mas temos que ver.

–... tudo bem. Vai ficar tudo bem...

– Ai, merda – Jim sussurrou.

Ai... merda... era isso mesmo. O sangue não só manchava ou escorria de onde Eddie segurava... saía em fluxos.

Jim arrancou seu casaco de couro molhado, amassou-o e tirou do caminho as mãos de Eddie, escorregadias, brilhantes e vermelhas de sangue. Mas congelou em seguida.

De alguma maneira, a faca daquele maluco penetrou no intestino de Eddie e foi puxada para a lateral, produzindo um buraco longo e profundo o suficiente para que uma boa parte das vísceras fosse exposta. Mas essa não era a pior parte: considerando a quantidade de sangue que saía do ferimento, era evidente que uma veia importante ou uma artéria fora rompida. E isso iria matá-lo.

Jim estremeceu e colocou a jaqueta embolada sobre a ferida.

– Pode segurar isto para mim, Ed?

Eddie fez uma tentativa de erguer as mãos, mas conseguiu movê-las apenas um centímetro ou dois.

Jim olhou para cima.

– Ele pode morrer?

Adrian balançou a cabeça enquanto sentia as pernas ficarem dormentes.

– Eu não sei.

Mentira. Sabia a resposta. Só não conseguia dizer.

– Maldição – Jim inclinou-se em direção ao rosto de Eddie. – Cara, tem alguma coisa que pode me dizer?

Adrian caiu de joelhos. Em seguida, pegando a mão de seu melhor amigo, ficou horrorizado com o quanto estava fria. Fria e molhada por conta do sangue e da chuva.

– Eddie... Eddie, olhe para mim – Jim falava.

Aquilo não estava certo. O combatente heroico, o guerreiro que percorrera séculos, não poderia ser abatido por um louco com uma faca. Eddie era forte e destacava-se em tudo, glorioso, era alguém que poderia enfrentar um exército de escravos demoníacos sozinho. Não poderia ser assim... Não naquela noite.

Eddie soltou um suspiro ao apertar a mão de Adrian, seu corpo enorme tremia.

– Estou aqui... – disse Ad ao esfregar os olhos com as costas da mão livre. – Não vou a lugar algum. Não está sozinho...

Puta merda. Estamos perdendo Eddie.

E esse ponto era inexplicável. Como anjos, estavam e não estavam vivos, existiam e não eram constituídos de carne e osso ao mesmo tempo, eram imortais, mas capazes de perder a vida que lhes tinha sido concedida.

– Eddie, maldição... Não vá... Você consegue sair desta... – olhou para Jim. – Faça alguma coisa!

Jim soltou um palavrão e olhou em volta, caramba... Estavam na recepção de um banco e não num hospital. Além disso, o salvador não poderia pegar uma agulha e linha e começar a suturar, poderia?

Mas Jim fechou os olhos e acomodou-se no chão, cruzando as pernas no estilo indiano, conseguindo ficar completamente calmo. Quando Ad estava prestes a gritar dizendo que aquela não era hora de fazer meditação, o cara começou a brilhar: dos pés à cabeça, uma luz branca e pura começou a emanar de sua cabeça, corpo e mãos.

Um momento depois, o salvador estendeu-se... e colocou as mãos sobre o peito grande e volumoso de...

O tronco de Eddie arqueou-se para cima com força, como se tivesse recebido uma descarga elétrica daqueles desfibriladores cardíacos que os humanos usam e, em seguida, respirou fundo. Imediatamente, seus olhos vermelhos abriram-se... e voltaram-se para Adrian.

Sentindo-se uma menina por chorar, Ad limpou outra vez os olhos.

– Ei – teve que limpar a garganta. – Tem que ficar firme e enfrentar isto. Cure-se. Use o que Jim está lhe dando...

Eddie balançou a cabeça um pouco e abriu a boca. Tudo o que saiu foi um gemido.

–... firme. Vamos lá, cara, apenas...

– Preste... atenção... – Ad ficou imóvel, a voz de Eddie estava muito fraca. – Precisa... ficar... com Jim...

– Não. De jeito nenhum. Você não vai partir...

– Fique... com Jim... não... – lutou para respirar mais uma vez. – Fique com Jim.

– Não pode acabar assim! Sou eu quem deve ir primeiro...

Eddie ergueu o braço com esforço e colocou o dedo indicador sobre os lábios de Ad, para silenciá-lo.

– Seja... inteligente... ao menos uma vez... certo? Prometa.

Adrian começou a se mover para frente e para trás, os olhos inundados de lágrimas ao ponto de a visão ficar completamente turva.

– Prometa... por sua honra...

– Não. Não prometo nada. Dane-se! Não vai me deixar!

As pálpebras do anjo começaram a se fechar devagar.

– Eddie! Maldito! Não morra assim! Vai se foder!

Quando os ecos daquelas palavras desapareceram no ar, a respiração de Eddie ficou mais difícil enquanto abria a boca ao máximo. E, nos momentos terríveis e silenciosos que se seguiram, o coração de Ad começou a pulsar cada vez mais rápido, com a certeza de que o do seu amigo fazia o contrário e desacelerava.

Edward Lucifer Blackhawk morreu depois de respirar mais duas vezes.

Não foi a abrupta falta de movimentos nas costelas, ou a maneira como o corpo relaxou, ou o fato de a mão dele ter perdido a pouca força que ainda restava que confirmaram a morte. Foi o perfume de flores da primavera que flutuou pelo ar.

Adrian agarrou a frente da camiseta de Jim.

– Pode trazê-lo de volta. Traga-o de volta, pelo amor de Deus, coloque suas... mãos... em cima dele...

Por alguma razão, Adrian não conseguiu mais falar depois disso. Em seguida, não conseguia mais enxergar. Ficou confuso por um momento, olhou em volta, os pensamentos estavam nublados, sentiu um pouco de asfixia.

Oh, espere.

Ele estava soluçando como uma menininha.

Nem sequer fingiu se importar com isso, agarrou Eddie ao redor do peito e embalou junto ao coração o anjo caído que sempre o acompanhara, séculos e séculos, em cada passo de seu caminho na terra e no purgatório. E, quando o segurou, parecia leve em seus braços, mesmo o tamanho do corpo sendo o mesmo de sempre.

A essência de Eddie havia partido.

Eddie enterrou o rosto no pescoço grosso e começou a balançar para trás e para frente, para trás e para frente... para trás e para frente...

– Não me deixe... não... oh, Deus, Eddie...

Adrian não estava certo de quantos minutos ou horas se passaram, mas percebeu, mesmo naquele estado de perturbação, que algo havia mudado.

Olhando sobre a cabeça de Eddie, viu o salvador... E teve que piscar algumas vezes para se certificar de que a imagem fazia sentido.

Jim Heron estava agachado, dentes expostos, o corpo enorme muito tenso. Os olhos estavam fixos em Adrian e Eddie, e um brilho negro profano emanava deles, a luz maligna irradiava pelo ar perfumado.

Eram vingança, ira e raiva subindo e espalhando-se. Era a promessa do inferno na Terra. Era tudo o que dizia respeito a Devina... na forma e nas feições do salvador. Foi estranho, mas Adrian sentiu-se aliviado com a visão. Calmo. Centrado. Não estava sozinho ao sentir-se violado, roubado. Não estava sozinho ao olhar para o futuro.

O caminho que ele seguiria para abater aquele demônio teria dois pares de pegadas, não apenas um...

Naquele momento, Jim abriu a boca e soltou um rugido mais alto que o som de um avião decolando seguido por uma grande explosão: As janelas de vidro da recepção do banco, em toda sua imensa extensão, explodiram de uma só vez, banhando a calçada como se fosse uma nevasca de pequenos cacos de vidro.


CAPÍTULO 25

 

No céu, Nigel deu um salto em seu leito de cetim e seda. Não estava em repouso – não conseguia fechar os olhos sem Colin ao seu lado –, mas, acordado ou dormindo, a visão que lhe sobreveio iria deixá-lo chocado e em estado de alerta seja lá quais fossem as circunstâncias.

Com mãos trêmulas, vestiu um roupão para cobrir sua nudez. Edward... Oh, caro e estoico Edward. Havia partido. Naquele exato momento, na Terra. Uma terrível reviravolta nos acontecimentos. Uma desestabilização horrível.

Como isso foi acontecer?

Na verdade, a ideia de que um dos dois guerreiros fosse abatido não fora contemplada em nenhum de seus planos: enviou os anjos caídos para ajudar Jim, pois eram fortes e flexíveis e muito capacitados a defenderem o bem que tantas vezes subestimaram. E, dentre os dois, Eddie deveria sobreviver: era o prudente, o inteligente, aquele que equilibrava seu parceiro elétrico, eclético e fora de controle.

Mas o destino havia surpreendido a todos.

– Maldição, maldição... maldição...

Não tinha como trazer Edward de volta – ao menos não de alguma maneira que Nigel pudesse atuar: ressurreição era algo que só cabia ao Criador, e a última vez que um anjo havia retornado fora... nunca.

Nigel secou o rosto com um lenço de linho. Havia apostado tanto em Edward e Adrian, jogando-os como dados e, agora, Adrian, o volátil, sofreria um naufrágio sem sua bússola, sua âncora, seu capitão. E Jim, que já estava distraído, estava pior que sozinho. Ele teria que cuidar do outro anjo. Era uma tragédia.

E uma grande manobra da parte do demônio – afinal, como aquilo havia acontecido? Edward estava sempre alerta. O que o teria distraído de seus instintos?

Aproximando-se do balcão de chá, Nigel começou a aquecer a chaleira. Suas mãos tremiam ao pensar sobre o que havia feito. Edward vivia seguro naquele local incomparável que ele supervisionava – estava esperando para ser útil em alguma situação, é verdade, e emocionado por ser perdoado por quebrar as regras e salvar Adrian há muitos anos. Mas ainda assim. Um bom homem. Agora, havia partido. Não era para ser assim.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Apoiando as mãos sobre a tampa de mármore da cômoda, não conseguia suportar o peso em seu coração. Se não tivesse tirado os dois de seus respectivos purgatórios, isso não teria acontecido. Tinha sido tão arrogante com a certeza de ter feito a escolha certa.

O que foi que eu fiz...?

Parado ali, sem ninguém diante ou atrás dele, sozinho com seus maus pensamentos e com o peso de seus atos dentro do peito, pensou em Adrian. Sozinho. Com dor. Na guerra.

Enquanto Nigel esforçava-se para respirar, mesmo sem precisar disso, havia apenas uma entidade a quem recorrer naquela solidão terrível. E o fato de Colin não estar lá e, mais triste ainda, o fato de que ele não podia se aproximar do arcanjo fizeram-no chorar pela situação de Adrian. Perder sua outra metade era pior que a morte. Era uma tortura, embora fosse um aprendizado...

Ao longo do que se poderia considerar seus dias e noites, na rotação interminável de suas refeições de faz de conta e de seus jogos de críquete falsos, dentro daquela estrutura tão bem construída que arquitetou para manter a si mesmo e seus arcanjos sãos ao longo da eternidade em que existiam, Nigel nunca influenciara a vontade de outra pessoa. Não era de sua natureza fazê-lo. Além disso, Colin fazia parte dele. Ao contrário de Adrian, poderia falar com sua outra metade, buscar socorro em meio àquele terror, solidão e tristeza.

Adrian nunca mais teria acesso àquilo de novo: a não ser por um milagre impossível de acontecer, estaria cada vez mais longe da outra metade de si.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Quando o apito estridente da chaleira irrompeu ao longo do local, Nigel deixou que a água continuasse fervendo, seus pés moveram-se em direção à saída de seus aposentos particulares e ele cruzou o chão com passos rápidos, vestindo um roupão.

Influenciando os ciclos que comandava, a noite caiu como uma capa de veludo sobre a paisagem. Mais à frente, as chamas das tochas começaram a queimar ao longo das muralhas e das torres do castelo produzindo um brilho cintilante que se estendeu pelo gramado.

Edward estava perdido. Colin estava ali. Só havia muito gramado entre eles.

Seguindo pelas paredes da mansão, aproximou-se do canto mais a oeste da fortaleza e virou à direita. Ao longe, a tenda de Colin surgia construída contra a linha de árvores, a estrutura do local era feita de lonas pesadas sustentadas por grandes hastes. Ao contrário do santuário privado de Nigel, era pequeno e modesto. Nada de sedas. Nada de cetins. Nada de apetrechos de luxo: o arcanjo banhava-se no rio que corria atrás do local e não dormia sobre uma cama, mas sobre um leito rústico e pobre. Nada de cobertores. Nada de travesseiros. Apenas livros para se divertir.

Por tudo isso, Nigel insistia que dividissem seus aposentos; o outro arcanjo praticamente havia se mudado para lá há muitos séculos.

Na verdade, quando chegou à tenda, Nigel percebeu que nunca havia passado uma “noite” ali. Sempre era Colin quem se locomovia.

Quando foi a última vez que estive aqui? – Nigel pensou.

Não havia batentes de porta para bater.

– Colin? – disse calmamente.

Quando não houve resposta, repetiu o nome. E fez isso mais uma vez.

Parecia que todas as luzes estavam apagadas; então, convocou uma lanterna na palma de uma de suas mãos, produzindo um pouco de iluminação diante de seus olhos. Estendendo um dos braços, empurrou a lona para um dos lados e afastou-a, a iluminação penetrou no interior escuro.

Vazio.

De fato, se algum ser desavisado entrasse ali, poderia achar que havia acontecido um assalto. Havia tão pouca coisa ali dentro. Sim, sim... apenas um leito simples com um baú posicionado aos pés do objeto. Alguns livros encadernados em couro. Uma lamparina a óleo. No chão, não havia sequer um mero tapete, apenas a mesma grama do pátio externo.

Os quartos de Bertie e Byron, constituídos na outra extremidade da muralha, eram tão luxuosos quanto o de Nigel, apenas decorados de acordo com as preferências de cada um. E Colin poderia ter mais do que aquilo. Colin poderia ter o mundo.

Virando-se, Nigel saiu da tenda e seguiu até o riacho. Havia toalhas penduradas em galhos de árvores e marcas de um par de pegadas sobre a areia.

– Colin... – sussurrou.

O som triste da própria voz foi o que o alertou para a realidade.

De repente, o desespero atingiu-o e fez com que repensasse sobre a decisão de ter ido até ali mesmo em meio à realidade da guerra: pensou em Jim, em Adrian e em suas fraquezas. Fraquezas que estavam sendo expostas e exploradas pelo outro lado.

Ele mesmo era fraco em relação a Colin. O que significava que também possuía uma brecha desprotegida. Com rapidez, Nigel virou-se e começou a correr, seus passos levando-o na noite enquanto puxava o roupão para se cobrir melhor. Não se desviaria do caminho de seus aposentos outra vez.

Não era Adrian. Não se perderia... como Adrian perdera-se. E não se comprometeria com o que sentia como aconteceu com Jim. O dever exigia dele um grande isolamento e muita força. O céu não merecia um esforço menor.


CAPÍTULO 26

 

Na manhã seguinte, Veck sentou-se em sua mesa e olhou para Bails sobre a caneca da cafeteria. O cara mastigava em ritmo acelerado, o rosto animado, as mãos movendo-se em círculos.

–... toda a maldita coisa explodiu – Bails parou e acenou na frente do rosto de Veck. – Oi! Está me ouvindo?

– Desculpe, o quê?

– O primeiro andar inteiro do Banco de Caldwell, na rua do Comércio com a 13, está no meio da rua.

Veck balançou a cabeça para voltar a se concentrar.

– O que quer dizer, no meio da rua?

– Todos os vidros das janelas da recepção explodiram. Não restou nada além das estruturas metálicas. Aconteceu um pouco antes da meia-noite.

– Foi uma bomba?

– A bomba mais estranha que já se viu. Não há danos na recepção... bem, algumas cadeiras da sala de espera foram removidas, mas não há evidências de detonação. Não há um raio de impacto. Há uma mancha estranha no piso do saguão formada pelo que parece ser esmalte, e o local cheirava a uma floricultura. Mas, além disso, nada.

– Os policiais que investigaram a cena assistiram às fitas de segurança?

– Sim, e adivinhe só? O sistema apagou por volta das 23h e continuou assim.

Veck franziu a testa.

– Simplesmente apagou?

– Apagou. Mesmo sem nenhuma avaria no fornecimento de energia elétrica ter sido relatada no bairro. Parece que as luzes da recepção foram apagadas também. Mas nenhum outro dispositivo ou sistema foi afetado no local, incluindo o alarme e a rede de computadores. É muito estranho. Como apenas os registros de vídeo são perdidos e nada mais?

A nuca de Veck formigou. Pelo amor de Deus, onde foi que ouvira aquilo antes...?

– Sim, é estranho.

– É a única palavra para definir isso.

Bails inclinou a cabeça, os olhos estreitaram-se.

– Ei, você está bem?

Veck voltou-se para seu computador e acessou seu e-mail.

– Nunca estive melhor.

– Se você diz – houve uma pausa. – Acho que sua parceira está entrevistando Kroner.

Veck virou-se bruscamente.

– Está?

– Não sabia? – Bails encolheu os ombros. – De la Cruz me mandou uma mensagem ontem à noite. Eu queria voltar lá hoje, mas é a vez do Departamento de Assuntos Internos lidar com ele... Sem dúvida para envolver você com um belo laço dizendo “inocente”.

Maldição. A ideia de Reilly perto daquele monstro fez seu sangue congelar.

– Quando?

– Agora, eu acho.

E, como pode imaginar, o primeiro instinto dele seria sair correndo até o Hospital São Francisco. Claro, esta deve ter sido a razão pela qual ela nem sequer passou ali para comentar onde estava indo.

– Bem, te vejo depois. Preciso voltar ao trabalho.

Por instinto, Veck pegou o celular e verificou as mensagens. Havia uma mensagem de texto de Reilly que não ouvira chegar: “Vou me atrasar hoje. R.”

– Que foda.

Olhou ao redor, como se o gesto pudesse ajudá-lo de alguma maneira. Em seguida, tentou se concentrar na tela do computador à frente dele.

Maldição... sem chance de conseguir continuar sentado naquela cadeira enquanto ela entrevistava um louco.

E, no entanto... era uma oportunidade, não?

Pegou o café e atravessou o Departamento de Homicídios, virou à esquerda e dirigiu-se à saída de emergência. Subiu dois degraus de cada vez na escada de concreto, passou pela porta de aço e seguiu até a sala de provas.

Ali, identificou-se à recepcionista, conversou um pouco – como se tudo o que precisasse lá dentro fosse questão rotineira – e, depois de mais um pouco de conversa jogada fora, estava em meio às estantes.

Como policial de patrulhas em Manhattan, passou um bom tempo manipulando evidências como embalagens com drogas, celulares e dinheiro apreendido – coisas usadas em crimes diversos. Agora que estava no Departamento de Homicídios, lidava mais com roupas ensanguentadas, armas e objetos pessoais – coisas que foram deixadas para trás.

Passando pelas longas fileiras de estantes, concentrou sua atenção na parte de trás da instalação, onde estavam as mesas.

– Oi, Joe – disse, ao aproximar-se da parede de 1,8 metros de altura.

O investigador de cenas criminais veterano ergueu o olhar de um microscópio.

– Oi.

– Como vai?

– Trabalhando muito.

Quando o cara levantou os braços sobre a cabeça e espreguiçou-se, Veck encostou-se contra a estação de trabalho, todo casual.

– Como você aguenta?

– O turno da noite é mais fácil que o diurno. Claro, nesta última semana, os dois estão uma droga.

– Ainda falta muito para examinarem tudo?

– Talvez umas 48 horas. Estamos em três. E não paramos em momento algum, com exceção da noite passada.

Veck olhou a coleção de coisas que haviam sido catalogadas e seladas, bem como a bandeja enorme com itens já registrados, mas que ainda precisavam ser examinados e devidamente embalados.

O investigador usou uma pinça para colocar uma amarra de cabelo debaixo da lente de aumento. Depois de colocar o elástico preto numa embalagem plástica, pegou um adesivo amarelo fosforescente longo e fino e colou sobre a abertura. Em seguida, fez uma anotação com uma caneta azul, colocando suas iniciais logo abaixo e digitou algo no teclado do notebook. O passo final foi passar o código de barras da embalagem sobre um leitor. O sinal sonoro produzido significava que agora o objeto estava oficialmente no sistema.

Veck tomou um gole de seu café.

– Bem, estou trabalhando num caso de pessoa desaparecida. Uma jovem.

– Quer dar uma olhada no que temos?

– Tem problema?

– Não. Apenas não leve nada daqui.

Veck começou pelo final das estantes que foram instaladas ali em caráter temporário. Nenhum objeto daquela coleção tinha um local exato para ficar ainda, pois todos, desde os oficiais de polícia até o FBI, examinariam tudo.

Pulou os frascos de amostra de pele, pois Cecília não tinha nenhuma tatuagem, e concentrou-se na variedade de anéis, pulseiras, presilhas, colares...

Onde você está, Sissy? – pensou.

Abaixando-se, pegou um saco plástico transparente selado com a assinatura de um dos investigadores. Dentro, havia uma pulseira de couro manchada e com um pingente em forma de crânio. Não era o estilo de Cecília.

Continuou e pegou uma argola prateada já registrada. Em todas as fotos na casa dos Barten, a garota usava acessórios dourados.

Onde você está, Sissy... onde diabos você está?

No Hospital São Francisco, Reilly estava concentrada ao caminhar ao longo de um dos milhares de corredores. Enquanto andava, passou por médicos com jalecos brancos, atendentes de uniformes azuis, enfermeiras de verde e pacientes e familiares vestidos com roupas casuais.

A unidade que procurava ficava à direita, e separou o distintivo enquanto aproximava-se do balcão das enfermeiras. Depois de uma rápida conversa, foi orientada para seguir em frente e virar à esquerda. Quando virou na última esquina, o guarda próximo à cela de vidro levantou-se.

– Oficial Reilly? – disse.

– Sou eu – mostrou o distintivo. – Como ele está?

O homem balançou a cabeça.

– Acabou de tomar café da manhã – havia um evidente tom de desaprovação na resposta, como se o guarda desejasse que o suspeito fizesse uma greve de fome. Ou talvez que morresse de fome. – Acho que vão tirá-lo daqui logo, pois ele está indo muito bem. Quer que eu entre com a senhora?

Reilly sorriu enquanto guardava o distintivo e tirava um pequeno bloco de notas.

– Posso lidar com ele.

O oficial de segurança pareceu medi-la, mas assentiu com a cabeça em seguida.

– Sim, parece que sim.

– Não se trata apenas de aparências. Confie em mim.

Ela abriu a porta de vidro, empurrou a cortina verde-clara... Congelou com a visão de uma enfermeira inclinando-se sobre Kroner.

– Oh, desculpe...

A morena olhou para ela e sorriu.

– Por favor, entre, oficial Reilly.

Quando Reilly olhou aqueles olhos de um negro tão intenso que pareciam não possuir íris, sentiu uma onda de terror irracional: cada instinto em seu corpo dizia para correr. O mais rápido e para o local mais distante possível.

Só que Kroner era o único com quem precisava ser cautelosa – não uma mulher que estava apenas fazendo seu trabalho.

– Ah... acho melhor voltar depois – Reilly disse.

– Não – a enfermeira sorriu outra vez, revelando dentes brancos perfeitos. – Ele está pronto para você.

– Ainda assim, vou esperar até que você...

– Fique. Estou feliz em deixar os dois juntos.

Reilly franziu a testa, pensando: Como assim? – como se os dois estivessem namorando?

A enfermeira voltou-se para Kroner, proferiu algo em voz baixa e acariciou a mão dele de uma maneira que deixou Reilly ligeiramente enjoada. Em seguida, a mulher aproximou-se, ficando mais e mais bonita – ficou tão resplandecente que era de se perguntar por que não seguia a carreira de modelo.

Ainda assim, Reilly só queria ficar bem longe dela. Não fazia sentido.

A enfermeira parou na porta e sorriu mais uma vez.

– Fique o tempo que quiser. Ele é tudo o que você precisa.

Então, ela se foi.

Reilly piscou um pouco para entender. Mais um pouco. Então, inclinou o corpo para fora da porta e olhou ao redor.

O guarda ergueu o olhar de seu assento.

– Você está bem?

Com exceção de um carrinho, uma caixa com rodinhas cheia de roupa suja e uma maca, o corredor estava vazio, nada, nem ninguém. Será que a enfermeira teria entrado em outro quarto? Tinha de ser. Havia outras unidades ao redor do local em que Kroner estava.

– Sim, tudo bem.

Voltando para dentro, Reilly recompôs-se e concentrou-se no paciente, encarando um homem que havia matado pelo menos uma dúzia de jovens mulheres em todo o país.

Que olhos brilhantes – foi seu primeiro pensamento. Olhos brilhantes e espertos, como os que se vê em ratos esfomeados.

Segundo pensamento?

Mas você é tão pequeno. Difícil de acreditar que consegue carregar uma sacola cheia de compras, quanto mais dominar mulheres jovens e saudáveis. Provavelmente, usa drogas para ajudar a incapacitar as vítimas, impedindo fuga e barulho. Ao menos num primeiro momento.

Seu pensamento final foi...

Cara, quanto curativo.

Estava quase mumificado, com tiras de gaze em volta do crânio e do pescoço e bandagens acolchoadas nas bochechas e no queixo. Ainda assim, embora parecesse um trabalho do doutor Frankenstein, estava alerta e a cor de sua pele estava radiante.


Na verdade, nem parecia normal. Será que estava com febre?

Quando aproximou-se da cama, ergueu o distintivo.

– Sou a oficial Reilly, do Departamento de Polícia de Caldwell. Gostaria de fazer algumas perguntas. Soube que renunciou ao seu direito de ter a presença de um advogado.

– Gostaria de se sentar? – a voz de Kroner era suave, o tom, respeitoso. – Tenho uma cadeira no quarto – como se estivesse em sua sala de estar ou algo assim.

– Obrigada – ela puxou a cadeira de plástico perto da cabeceira, aproximando-se dele, mas não muito. – Quero conversar com você sobre aquela noite, quando foi atacado.

– Um detetive já fez isso. Ontem.

– Sei. Mas estou dando seguimento.

– Disse-lhe o que me lembrava.

– Bem, importa-se de repetir para mim?

– Nem um pouco – ergueu-se na cama com fraqueza e, em seguida, olhou para Reilly como se estivesse esperando uma oferta de ajuda. Quando não houve nada da parte dela, pigarreou. – Eu estava na floresta. Caminhando lentamente. Através dos bosques...

Reilly não acreditou no consentimento e na receptividade dele em contar tudo aquilo nem por um instante. Alguém como Kroner? Sem dúvida, poderia transformar o discurso para que acreditassem que ele fosse a vítima. É assim que psicopatas agem. Poderia convencer a todos, por um tempo, e até a si mesmo de que era uma pessoa normal, como todas as outras: com características boas e más – nas quais o “mau” seria apenas sonegar impostos ou ultrapassar os limites de velocidade numa estrada ou talvez falar mal da sogra pelas costas. Mas assassinar moças? Nunca. No entanto, não se conseguia vestir máscaras para sempre.

– E para onde estava indo? – ela perguntou.

As pálpebras de Kroner abaixaram.

– Você sabe.

– Por que não diz você?

– Para o Monroe Motel & Suítes – houve uma pausa, os lábios ficaram tensos. – Eu queria ir até lá. Fui roubado, entende?

– Sua coleção?

Houve uma longa pausa.

– Sim – quando ele franziu a testa, disfarçou a expressão do olhar ao observar as mãos. – Eu estava na floresta e alguma coisa se aproximou de mim. Um animal. Veio do nada. Tentei lutar contra a coisa, mas era forte demais...

Que tal a sensação, seu bastardo? – ela pensou.

– Havia um homem lá... Ele viu o que aconteceu. Ele pode lhe dizer. Consegui distingui-lo em algumas fotos que me deram ontem.

– O que aconteceu com o homem?

– Ele tentou me ajudar – franziu a testa mais ainda. – Ligou para a emergência... não me lembro... de muita coisa... Além disso... espere um minuto – os olhos redondos ficaram astutos. – Você esteve lá, não foi?

– Tem alguma coisa que me possa dizer sobre o animal?

– Você esteve lá. Viu quando me colocaram na ambulância.

– Se pudesse continuar a descrever o animal...

– E você o observava também – o “senhor bonzinho e normal” sorriu e pareceu adormecer um pouco, um estranho esquema mental surgiu em seus olhos. – Você estava observando o homem que esteve comigo. Acha que foi ele quem fez isso?

– O animal, por favor. É o que me interessa.

– Não é sóóó isso que te interessa – o só foi pronunciado com uma cadência monótona. – Mas tudo bem. Não tem problema desejar coisas.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Um leão, um tigre, um urso... oh, Deus.

– Isto não é brincadeira, senhor Kroner. Precisamos saber se temos um problema de segurança pública.

Pelo que havia estudado sobre técnicas de entrevista, imaginou ter dado uma abertura para que ele pensasse ser um herói. Às vezes, suspeitos como ele entravam no jogo na esperança de se insinuarem ou tentavam ganhar uma confiança da qual poderiam se aproveitar mais tarde.

Kroner deixou as pálpebras caírem.

– Oh, acho que você cuida muito bem da segurança pública. Não é mesmo?

Sim, isso se o cara não fugisse do hospital e se o sistema jogasse-o na prisão para o resto da vida.

– Devia ter presas – ela disse.

– Sim... – tocou o rosto arruinado. – Presas... e era grande. Seja lá o que for... era avassalador. Ainda não sei por que sobrevivi... mas o homem, ele me ajudou. É um velho amigo...

Reilly esforçou-se para que sua expressão não mudasse em nada.

– Velho amigo? Você o conhece?

– Os iguais se reconhecem.

Um arrepio passou pela coluna de Reilly, Kroner ergueu uma das mãos e impediu-a de voltar a falar.

– Espere... preciso te dizer algo.

– O que é?

As bandagens no rosto contorceram-se como se ele estivesse fazendo uma careta e a mão subiu até a cabeça.

– Preciso te dizer...

Considerando que ele não a conhecia, era impossível dizer algo importante.

– Senhor Kroner...

– Ela tinha cabelos longos e loiros. Lisos, cabelos longos... – ele respirou ofegante e apalpou as têmporas como se estivesse com dor. – Estava presa pelo cabelo... aqueles cabelos loiros cheios de sangue. Ela morreu na banheira... mas não é onde seu corpo está agora – a cabeça de Kroner erguia-se e voltava a cair no travesseiro. – Vá até a pedreira. Ela está lá. Na caverna... Você vai precisar entrar bem fundo para encontrar...

O coração de Reilly começou a bater forte. O interrogatório deveria se limitar à noite do ataque, mas não tinha como não tentar entender aquilo. E também não havia razão alguma para que Kroner soubesse que ela estava trabalhando no caso de Cecília Barten.

– De quem está falando?

Kroner deixou cair o braço e, de repente, a cor de sua pele passou a exibir um aspecto cinzento.

– A garota do mercado. Precisava te dizer isso... Ela quer que eu te diga. É tudo o que sei...

De repente, começou a tremer, a convulsão em seu tronco aumentou tanto que começou a puxar os travesseiros e revirar os olhos.

Reilly avançou e acionou o botão de emergência num interfone.

– Precisamos de ajuda aqui!

No auge do ataque, Kroner pegou o pulso dela com força, os olhos exibiam um brilho profano.

– Diga a ele que ela sofreu... Ele precisa saber... Ela sofreu...


CAPÍTULO 27

 

Na delegacia, na sala de provas, Veck examinou tudo o que pertencia à coleção de Kroner, arquivando fotos mentais dos objetos. Infelizmente, não havia nada dentre as joias ou outros objetos ali parecido com o que observou nas fotografias na casa dos Barten.

Recuou e cruzou os braços sobre o peito.

– Droga.

– Ainda tem mais – o investigador disse, sem tirar os olhos do que estava fazendo, e afastou uma cortina que cobria tudo o que ainda não havia sido catalogado.

Veck tomou um gole de seu café frio, aproximou-se e inclinou-se sobre os objetos. Sem tocar em nada, é claro. Estava tudo organizado lado a lado. Mais joias... Mais elásticos de cabelo com fios pretos, castanhos, cor-de-rosa...

Seu telefone tocou e ele virou-se para atender.

– DelVecchio. Sim, sim... uh-hum... sim, sou eu...

Era o Departamento de Recursos Humanos, verificando seus dados antes que enviassem o primeiro salário após a transferência de unidade. Enquanto respondia, pensou, sem ofensa, que tinha coisa melhor para fazer.

Quando finalmente terminou, voltou-se para a bandeja. Tinha tanta certeza de que Sissy fora vítima de Kroner. Maldição...

Em meio às luvas de látex do investigador, surgiu um brilho dourado quando apoiou alguma coisa sob o microscópio.

Era um brinco. Um brinco pequeno em forma de pássaro. Como uma pomba ou um pardal.

– Posso ver isso? – disse Veck com voz rouca.

Mas, mesmo sem um olhar mais atento, reconheceu o que era... Tinha visto aquilo na estante dos Barten, naquela foto que tiraram de Sissy sem que ela soubesse. Estava usando um brinco igual àquele. Talvez fosse exatamente o mesmo.

O telefone tocou novamente assim que o investigador soltou a prova. Quando Veck olhou para a tela e viu que era Reilly, aceitou a ligação imediatamente.

– Não vai acreditar... Estou olhando para um dos brincos de Sissy Barten.

– Na sessão de provas dedicada a Kroner – foi uma afirmação, não uma pergunta.

Veck franziu a testa. Algo soava errado na voz dela.

– Você está bem? O que aconteceu com Kroner?

Houve uma breve pausa.

– Eu...

Veck afastou-se do investigador, indo em direção a um dos cantos da sala e virou de costas para o cara. Baixando o volume da voz, disse: – O que aconteceu?

– Acho que ele a matou. Sissy. Ele... a matou.

A mão de Veck apertou o celular com força.

– O que ele disse?

– Ele a identificou pelo cabelo e pelo mercado.

– Levou alguma foto dela? Podemos ter um resultado efetivo de que...

– Ele teve uma crise no meio do interrogatório. Estou fora da UTI agora e os médicos estão cuidando dele. Não sabem dizer se vão conseguir salvá-lo desta vez.

– Ele disse mais alguma coisa?

– O corpo está em algum lugar na pedreira. De acordo com ele.

– Vamos...

– Já liguei para De la Cruz. Está indo até lá com Bails...

– Estou saindo daqui agora mesmo.

– Veck! – ela exclamou. – Esse caso não está mais relacionado com o Departamento de Pessoas Desaparecidas. Você e eu estamos fora dessa.

– Não estamos, não. Ela ainda é minha até encontrarem o corpo. Me encontre lá e pode me dar uma suspensão, se quiser. Ou melhor, pode dar uma mãozinha com as pedras.

Houve uma pausa bem longa.

– Você está me colocando numa posição terrível.

O arrependimento fez com que apertasse o maxilar.

– Parece que eu me destaco nisso quando se trata de você. Mas tenho que fazer isso... Prometo não ser um idiota.

– Você se destaca nisso, também.

– Está certo. Olha, não posso sair dessa até saber o que aconteceu. Não vou enfrentar Kroner se encontrarmos alguma coisa e não vou tocar em nada, mas tenho que fazer isso.

Outra pausa interminável. Então: – Tudo bem. Estou a caminho. Mas se De la Cruz nos expulsar de lá, não vamos discutir com ele, está claro?

– Como água cristalina – Veck fez uma prece de agradecimento. E então... – Ele disse mais alguma coisa? Kroner?

Houve um ruído, como se ela estivesse trocando o telefone de uma das mãos para outra.

– Disse que conhecia você.

– O quê?

– Kroner disse que conhecia você.

– Que grande mentira. Nunca o encontrei antes na minha vida – quando não se ouviu qualquer reação da parte dela, ele soltou um palavrão. – Reilly, eu juro. Não conheço o cara.

– Acredito em você.

– Não parece – e, por alguma razão, a opinião dela não era apenas importante, era crucial. – Vou fazer o teste do polígrafo.

A respiração dela soou exausta.

– Talvez ele só quis me confundir. É difícil saber.

– O que ele disse exatamente?

– Algo como “os iguais se reconhecem”.

Veck congelou.

– Não sou Kroner.

– Eu sei. Bem, me deixe ir para o carro e começar a dirigir. A pedreira é do outro lado da cidade e só vamos entrar se De la Cruz permitir. Vejo você em meia hora.

Quando desligou, o investigador olhou por cima do microscópio.

– Achou o que precisava?

– Acho que sim. Entre em contato comigo se descobrir alguma coisa sobre esse brinco. Tenho a impressão de que é da minha garota desaparecida.

– Sem problema.

– Onde é a pedreira?

– Siga na Northway por uns trinta quilômetros. Não sei a saída exata, mas vai encontrar placas. Não tem como errar, haverá mais sinalizações que o levarão até lá.

– Obrigado, cara.

– É um bom lugar para esconder coisas, se é que me entende.

– Entendo. Infelizmente.

Cinco minutos depois, Veck estava em sua moto rugindo em direção à interestadual. Não precisava acionar De la Cruz. Discutiriam pessoalmente quando chegasse lá.

A saída em questão apareceu quinze minutos depois e havia uma placa na qual se lia “pedreira thomas greenfield”. Foi fácil seguir a sinalização e, alguns minutos depois, virou e entrou numa pequena estrada de terra cercada por grandes árvores. Sem dúvida, formavam um romântico passeio no verão. Naquele momento, pareciam braços esqueléticos arranhando-se uns aos outros.

Diminuiu a velocidade ao virar à direita e começou a subir uma ladeira muito íngreme. O vento, frio e intenso, chicoteava seu rosto, e as nuvens pareciam se aproximar como se tentassem sufocar o chão. Começou a pensar que estava perdido quando chegou ao topo, mas lá estava ela.

Pedreira? Parecia mais o Grand Canyon.

Membros do Departamento de Polícia de Caldwell e os bombeiros já estavam ali: havia dois veículos de busca e um de resgate. Algumas viaturas. Um carro sem identificação que deveria ser de De la Cruz. Uma unidade com cães farejadores.

Veck estacionou a certa distância e não tentou disfarçar sua chegada ao aproximar-se do amontoado de homens, mulheres e cachorros.

De la Cruz saiu do meio deles e caminhou até Veck. A expressão de tristeza constante do detetive não havia mudado em nada. Porém, não devia estar surpreso com tudo aquilo, e a chegada de Veck não era uma boa notícia.

– Que coisa encontrá-lo aqui – De la Cruz murmurou, estendendo a mão para um aperto.

– Este lugar é enorme – as mãos encontraram-se em uma batida. – Com certeza poderia ajudar em alguma coisa.

A pedreira devia ter mais de um quilômetro de diâmetro e mais outro de profundidade – e o formato era mais consequência da formação natural que da operação mineradora. Três quartos de suas paredes eram quedas acentuadas, mas uma delas mais ao sul exibia um declive desagradável marcado por escavações rochosas desalinhadas, havia também vários buracos negros que deviam ser cavernas.

– Então, vai me deixar trabalhar? – Veck perguntou.

– Onde está sua parceira?

– A caminho.

De la Cruz olhou para o grupo de colegas.

– Estamos com uma equipe reduzida, pois não queremos chamar atenção. Se a imprensa ficar sabendo disto, teremos um dia longo e cheio de curiosos.

– Então, isto é um sim?

De la Cruz o encarou bem dentro de seus olhos.

– Não toque em porcaria nenhuma e não saia daqui enquanto Reilly não chegar.

– Está certo, detetive.

– Vamos lá... Pode se juntar à fase de planejamento estratégico.

A antiga casa de Jim não era tão antiga nem exatamente sua.

Assim que chegara a Caldwell, havia alugado a garagem e o estúdio no segundo andar de um cara que se vestia com terno de mordomo. Quando saiu há mais ou menos uma semana, achou que seria pela última vez: seu antigo chefe, o maldito Matthias, perseguia-o, e ele precisava ir até Boston para travar a próxima batalha com Devina.

Mas, cara, o que tinha acontecido de acordo com o planejado? Matthias não estava mais em cena, Jim voltara a Caldwell e ele e Adrian precisavam de um lugar seguro para ficar.

Olá, velhos fantasmas, digamos assim... E era hora de rezar para que o proprietário não tivesse alugado para outra pessoa e as chaves tivessem sido deixadas ali.

Dirigindo sua caminhonete na longa estrada que levava até o local, verificou se Adrian ainda o seguia com aquela moto – sim, o cara continuava a segui-lo. Juntos, passaram pela casa vazia, mas muito bem cuidada pelo proprietário, e continuaram pela pista, atravessando um campo que teria mais ou menos uns vinte acres. A garagem ficava bem nos fundos da propriedade e, provavelmente, tinha sido usada para guardar equipamentos agrícolas e cortadores de grama, com um zelador morando no andar de cima. Contudo, quando alugou, teve a impressão de que estava vazia há um tempo.

Parando o carro em frente às grandes portas duplas, saiu, pegou uma das alças e jogou seu peso sobre o objeto, imaginando se o lugar estaria...

O painel retumbou ao abrir, revelando um chão de cimento muito limpo e um teto rústico com altura suficiente para estacionar um trailer de carregar cavalos.

Jim voltou a se sentar atrás do volante e deixou o motor levá-lo devagar para dentro. Adrian estava bem atrás dele, estacionou e fechou a porta. Quando a luz cinzenta do dia foi bloqueada, Jim desligou o motor, abriu a porta...

O aroma fresco e suave de flores invadiu o ar. Ao ponto de quase vomitar, mesmo sendo um perfume indiscutivelmente agradável.

Ele e Adrian não disseram uma palavra ao se posicionarem um de cada lado da parte de trás da caminhonete. A lona que compraram no mercado há uma hora estava presa por alguns cabos elásticos e começaram a libertar os ganchos e as faixas um a um. Ao enrolarem a lona grossa e azul, revelaram o corpo, com o qual foram muito cuidadosos, envolto num lençol.

Deixaram a recepção do banco não muito depois de a fúria de Jim ter explodido todas as janelas do local e, em seguida, levaram Eddie com eles – o que não foi difícil, ao menos não fisicamente. Depois da morte, o corpo ficou leve como uma pluma, como se toda massa bruta tivesse desocupado a pele e os ossos. O que ficou para trás parecia ser apenas o esboço do que Eddie havia sido.

Jim não fazia ideia de onde ir, mas Cachorro apareceu no caminho... e guiou-os a um prédio abandonado de três andares.

Ao deixar Adrian e o animal velando seu morto, Jim voltou ao hotel, pegou tudo o que tinham e carregou a caminhonete. Quando voltou, estacionou numa garagem subterrânea a alguns quarteirões de distância e começou a pensar em várias maneiras de mudarem-se para um local mais seguro levando os outros veículos e motos que ainda estavam no estacionamento do hotel.

Porém, no final, apenas sentou-se e deu um tempo para Adrian – pois parecia que o cara estava prestes a quebrar ao meio.

Contudo, em dado momento, precisaram se mover e Jim decidiu que ir até aquele local era a melhor aposta que poderia fazer em curto prazo. E Adrian seguiu-o sem comentários, só que isso não era um bom sinal: era evidente que ainda estava entorpecido, mas aquilo não duraria muito tempo. Qual seria o outro extremo da situação? Era provável que a expressão “proporções bíblicas” fosse pouco para refletir sequer a metade do que aconteceria.

Jim destravou a abertura traseira e deixou-a cair.

– Você quer...

Adrian adiantou-se e subiu, posicionando-se de maneira hábil ao lado de Eddie. Pegando os restos mortais, saiu da caminhonete e andou até a porta lateral.

– Pode abrir aqui para nós?

– Sim, com certeza.

Com Cachorro liderando o caminho outra vez, Jim seguiu-o e abriu a porta de saída do galpão; em seguida, os três dirigiram-se às escadas externas. Usando um canivete no topo, abriu a maçaneta em questão de segundos, e ficou de lado enquanto Adrian entrava.

A cama de solteiro estava do mesmo jeito que Jim havia deixado quando partiu, os lençóis emaranhados da última noite de sono ruim que teve ali. E, sim, o dinheiro e as chaves estavam exatamente onde os colocara, sobre o balcão da estreita cozinha. O sofá ainda estava sob a janela, as leves cortinas, fechadas. O ar cheirava um pouco a feno, mas não por muito tempo.

Não com Eddie por perto.

Quando Jim olhou para Adrian, sabia que não havia razão para não usar o local. Matthias estaria na parede de almas de Devina por toda eternidade, então, não era uma ameaça, e o resto das Operações Extraoficiais estaria ocupado procurando um novo líder para preencher a vaga que o cara havia deixado. Além disso, o único problema de Jim com o departamento estava relacionado ao seu antigo chefe. Que perdera na última rodada.

– Tem um espaço meio apertado aqui atrás – disse Jim, caminhando até a cozinha.

Ao lado da geladeira, havia uma porta estreita que se abria por cima e por baixo e que levava a uma área de teto rebaixado, envolvida com placas de gesso, sob o beiral do telhado. Entrando, acendeu a lâmpada e saiu do caminho.

Quando Adrian agachou-se e entrou com sua carga, Jim abriu uma das gavetas sob o balcão da cozinha e pegou uma faca longa. Não hesitou ao passar a lâmina na palma de sua mão e pressioná-la contra a pele.

– Caralho – sussurrou.

Adrian saiu do espaço estreito.

– O que está fazendo?

Gotas brilhantes e vermelhas caíram no chão formando uma pequena trilha enquanto andava em direção ao local onde Eddie havia sido colocado. A verdade é que não tinha plena certeza do que estava acontecendo ali, mas seus instintos guiavam-no, faziam-no prosseguir e, assim, passou a palma da mão que sangrava pela porta... bem como o próprio corpo. Antes de retrair a mão sangrenta, prometeu: – Não deixo soldados caídos para trás. Você estará conosco... até voltar. Pode apostar.

Ao fechar a porta, olhou para Adrian, que tinha se apoiado no balcão e envolvido o próprio corpo com os braços. O anjo olhava para o chão como se fossem folhas de chá... ou um mapa... ou um espelho... ou nada, talvez. Quem poderia saber?

– Preciso saber como vai se posicionar – disse Jim. – Quer ficar aqui com ele ou quer continuar a lutar?

Os olhos vazios ergueram-se do chão.

– Não era para ser assim. Ele teria lidado melhor com isso.

– Não tem uma maneira melhor de lidar com isso. Mas não vou tentar convencê-lo de nada. Se não quiser fazer mais nada além de lamentar, não tem problema nenhum para mim. Mas preciso saber o que está disposto a fazer.

Caramba, provavelmente era cedo demais para perguntar ao cara o que ele queria no almoço, quanto mais se estava disposto a lutar. Mas Jim não poderia se dar ao luxo de bancar o terapeuta e trabalhar os sentimentos. Aquilo era guerra.

Quando Adrian apenas resmungou alguma coisa como “não está certo”, Jim entendeu que precisava chamar a atenção do cara.

– Ouça – disse devagar e com clareza. – Devina fez isso de propósito. Ela o tirou de você, pois acha que a perda vai te incapacitar. É uma estratégia básica: isolamento. Está tentando tirar os dois de mim... E você do mundo. A escolha é sua em deixar que isso funcione ou não.

Adrian mudou seu olhar e mirou a porta que Jim havia fechado.

– Como pode algo tão grande... acontecer tão rápido?

Jim voltou-se para o próprio passado, para uma cozinha que conhecia tão bem, para uma cena sangrenta que nunca havia esquecido: sua mãe morrendo numa poça de seu próprio sangue, enquanto dizia para que corresse o mais rápido e seguisse para o mais longe possível...

Entendia muito bem o trauma pelo qual Adrian estava passando, era a constatação terrível de que os pilares da estrutura que o levava aos céus eram feitos de papel em vez de pedra.

– Desastres acontecem.

Houve um período de silêncio, em seguida, um som suave sobre o chão. Cachorro, que havia ficado fora do caminho a maior parte do tempo, aproximava-se de Adrian mancando e, quando chegou perto do cara, sentou-se sobre a bota de combate do anjo e reclinou a cabeça contra a canela.

– Não estou bravo – Adrian disse finalmente. – Não sinto... nada.

Aquilo iria mudar, Jim pensou. A questão era: quando?

– Fique aqui com ele – disse Jim. – Preciso voltar ao campo de batalha. Não quero DelVecchio por aí sozinho.

– Sim... sim – Adrian abaixou e pegou Cachorro. – Sim.

O anjo andou um pouco e sentou-se no sofá, colocando o animal em seu colo e mantendo os olhos fixos na porta daquele espaço de teto rebaixado.

– Pode me ligar – disse Jim. – E estarei aqui num instante.

– Sim.

Deus, Ad parecia um objeto inanimado que respirava. E o último pensamento de Jim ali foi que Devina estava brincando com fogo. Adrian acordaria de seu estupor... E, então, seria implacável ao fazê-la pagar por aquilo.

Depois de fechar a porta, Jim parou para acender um cigarro e olhar para o céu. As nuvens pareciam fervilhar sobre a garagem e viu-se procurando por uma imagem ou sinal entre elass.

Nada.

Terminou o cigarro e, quando estava prestes a sair, ouviu um rádio ser ligado dentro do apartamento.

À capela. Bon Jovi cantava “Blaze of Glory”.

Muito apropriado.

Jim projetou-se pelo ar, seguindo o farol que era DelVecchio. E estava a meio caminho de seu alvo quando se deu conta...

Ele não possuía rádio algum.


CAPÍTULO 28

 

– Aqui, me deixe ajudar você.

Reilly equilibrou-se sobre duas pedras do tamanho de poltronas, em seguida, inclinou-se e estendeu a mão.

Veck olhou para ela por um momento.

– Obrigado.

As palmas das mãos encontraram-se e firmaram-se uma na outra e, então, Reilly dobrou-se para trás, colocando todo seu peso no ato de erguê-lo. Mesmo com o corpo fazendo movimento de alavanca, era como puxar um carro entalado numa vala, e a mulher percebeu claramente que, se ele não tivesse pulado e dado um impulso, não chegariam a lugar algum.

Quando ele juntou-se a ela no planalto, olharam em volta. Já estavam trabalhando na longa encosta da pedreira há várias horas, iluminando cavernas com lanternas e examinando saliências rochosas. Os oficiais de resgate ficaram com o lado mais íngreme e os outros policiais iam mais à esquerda ou percorriam as bordas com os cães. Os minutos passavam lenta e dolorosamente, a extensão total do que ainda havia para ser examinado oprimia Reilly.

E ainda havia tudo aquilo implícito em relação a Veck, coisas não ditas, que não ajudavam.

Deus, odiava aquela situação. Especialmente o fato de estarem em meio à tentativa de encontrar o corpo de uma jovem.

– Tem outra caverna por ali – ela disse, pulando de uma pedra e aterrissando de cócoras no chão lamacento.

O terreno parecia árido visto da borda da pedreira. De perto, era uma pista de obstáculos, do tipo que requeria botas para ser explorada – ao menos tinha se prevenido e trazido mais que um agasalho extra e um kit de armazenamento de provas no porta-malas. Muito bom também a chuva da noite anterior ter parado ou a tarefa seria mais que exaustiva. Com o clima mais estável, o topo das rochas já havia secado com o sol, então, já contavam com partes mais firmes para pisarem, afinal, as poças e a lama nos pontos mais baixos do local já desaceleravam o suficiente o trabalho deles.

– Já esteve aqui antes? – perguntou Veck depois de firmar-se ao lado dela. Como sempre, ele não estava com roupa suficiente...

Espere, me deixe reformular a frase – ela pensou – Como sempre, não está agasalhado o suficiente e seus sapatos são mais para um serviço de escritório que para um trabalho externo.

Mas Veck não parecia se importar com nada disso: apesar de os sapatos estarem arruinados e sua jaqueta preta isolar o vento frio tão bem como uma folha de papel, ele continuava como um soldado, seguindo decidido como se estivesse muito à vontade e confortável. Apesar de estarem trabalhando ensopados de suor.

Espere, qual era a pergunta que ele tinha feito mesmo...?

– Como a maioria das pessoas daqui, conheço a pedreira desde sempre – olhou para a borda. – Mas esta é a minha primeira visita. Cara, é como se tivessem arrancado um pedaço gigantesco da Terra.

– Muito grande mesmo.

– Dizem que foi criada por geleiras.

– Ou isso, ou Deus era um jogador de golfe e o buraco que desejava acertar estava na Pensilvânia.

Ela riu um pouco.

– Pessoalmente, apostaria meu dinheiro no gelo pré-histórico. Na verdade, isto tudo é simplesmente chamado de “a pedreira”... Nunca foi, mas parece uma.

Subiram outra pedra, pularam novamente e seguiram em direção à boca escura da caverna que ela tinha visto. Aquela parecia maior que as outras e, de perto, a entrada parecia alta o suficiente para passarem sem se curvar. Contudo, não tinha como os ombros de Veck caberem ali a menos que se virasse de lado.

Acendendo a lanterna, não havia nada além de paredes rochosas, um chão de terra e, Deus, o mau cheiro. Úmido, mofado. Todas exalavam o mesmo cheiro, como se o lugar tivesse uma espécie de odor corporal próprio.

– Nada – ela disse. – Mas não consigo ver o final desta.

– Me deixe entrar mais.

Agora seria o momento perfeito para a mulher moderna dentro dela aparecer dizendo “Que inferno, não, deixe que eu cuido disso”. Mas só Deus sabia o que havia ali dentro, e ela não era muito fã de morcegos. Ursos. Cobras. Aranhas. Era a única situação com a qual se acovardava.

Quando Reilly abriu caminho, Veck adiantou-se e espremeu-se dentro do espaço fino. O fato de seu peito ter passado tão perto lembrou-lhe o quanto conhecia seu corpo. Olhou ao redor e tentou encontrar outro foco, desesperadamente.

– Nada – Veck murmurou quando reapareceu e fez um X vermelho sobre a pedra com tinta spray.

– Espere, você tem... – ela ergueu-se na ponta dos pés e tirou uma teia de aranha do cabelo de Veck. – Isso, mais apresentável agora.

Quando Reilly virou-se, Veck agarrou a mão dela.

Ao ser puxada de surpresa, olhou ao redor rapidamente, então, Veck disse: – Não se preocupe, ninguém pode nos ver.

Parecia ser verdade: estavam num local profundo da pedreira, entre três pedras enormes. Mas não era algo bom, não precisavam de privacidade.

Holofotes. Um palco. Megafones presos em seus rostos seriam mais adequados...

– Olha, sei que é inapropriado – Veck murmurou com um tom de voz que fez o coração dela bater ainda mais rápido. – Mas aquela porcaria que Kroner disse... sobre me conhecer...

Reilly respirou aliviada. Graças a Deus não se tratava deles.

– Sim?

Veck soltou-a e andou fazendo um pequeno círculo. Então, tirou um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça na direção oposta a Reilly.

– Acho que, de alguma maneira, isso é o que mais me assusta neste mundo.

Sentindo-se uma tola por ter se assustado, ela apoiou-se sobre o flanco de uma rocha aquecido pelo sol.

– O que quer dizer?

Veck encarou o céu, a sombra de seu queixo forte projetou-se sobre seu peito, formando um arco escuro sobre o tronco.

– Iguais se reconhecem...

– Acha mesmo que tentou matá-lo? – disse ela suavemente.

– Olha, vai parecer loucura... Mas parece que meu pai está sempre comigo – colocou a mão sobre o peito, exatamente sobre a sombra escura. – Essa... coisa faz parte de mim, mas não do meu ser. E sempre fui amedrontado com a possibilidade disso sair e... – interrompeu-se com uma maldição. – Oh, Cristo, quanta besteira...

– Não é besteira – quando ele virou-se para Reilly, os olhos de ambos encontraram-se. – E pode conversar comigo. Sem julgamentos. Ninguém mais saberá, nunca. Desde que não tenha infringido a lei.

A boca de Veck contorceu-se com amargura.

– Não fiz nada para que me prendam. Mas ainda me pergunto se fui eu quem fez aquilo com Kroner na floresta.

– Bem, se tem medo de ser como seu pai e, quando surge um banho de sangue na sua frente, você não consegue se lembrar de nada... é natural se questionar.

– Não quero ser como ele. Nunca.

– Você não é.

– Não me conhece.

A expressão tensa de Veck produziu um calafrio nela, mesmo com os pés secos e quentes e vestindo um casaco e luvas. Tinha tanta certeza de ser um estranho para ela, que Reilly perguntou-se por que tamanha obviedade não os impediu na noite anterior. Mas sexo e atração sexual faziam as pessoas sentirem-se próximas, quando, na verdade, eram apenas dois corpos esfregando-se.

O quanto ela realmente sabia sobre ele? Não muito além do que havia registrado em seus arquivos no Departamento de Recursos Humanos. Porém, estava certa de uma coisa: ele não tinha, de forma alguma, machucado aquele homem.


– Precisa conversar com um profissional – ela disse, pois ter um pai como aquele deveria repercutir psicologicamente. – Tire esse peso de você.

– Mas esse é o problema... está dentro de mim.

Algo naquele tom que usou fez o calafrio retornar – dez vezes mais forte. Só que agora achou ser loucura.

– Estou dizendo, você precisa desabafar.

Veck olhou o céu azul brilhante outra vez com suas listras passageiras de nuvens brancas.

Depois de um momento, ele disse: – Fiquei aliviado por você ter saído tão rápido na noite passada.

Que belo tapa no rosto para trazê-la de volta à realidade.

– Fico feliz por ter feito esse favor – ela disse em tom decidido.

– Porque eu poderia me apaixonar por você.

Quando a boca de Reilly abriu-se e ela piscou confusa, Veck bateu o cigarro e exalou, a fumaça ergueu-se no ar frio da primavera.

– Sei que isso não ajuda em nada. Tanto o fato de confessar isso agora como ser a mais pura verdade.

Verdade. Mesmo assim, ela não deixou de continuar a conversa.

– Mas ontem à noite... você disse que nunca me levaria para a sua cama.

Balançou a cabeça, o lábio superior fez um movimento sinuoso de desgosto.

– De jeito nenhum. Fiquei com mulheres sem importância ali. Você foi importante... É importante – soltou um palavrão em voz baixa e profunda. – Não é como as outras.

Reilly respirou fundo. E de novo. Sabia que aquele era um bom momento para tentar dizer algo que os mantivesse dentro dos limites.

– Estou muito lisonjeada, mas...

Em vez disso, apenas olhou para ele quando virou o cigarro e focou-se na pequena ponta alaranjada. Examinando os traços belos e rígidos de seu rosto, tentou lutar contra o impulso de jogar-se nele... Desistiu: naquele pequeno espaço de privacidade em frente à caverna, com a brisa assoviando entre as pedras e o sol iluminando seus rostos, as engrenagens entre eles voltaram a funcionar direito outra vez... Deu-se conta da verdadeira razão pela qual havia deixado a casa dele tão rápido. Dane-se o profissionalismo: sentia o mesmo que ele, e aquilo assustava-a.

– Mas está tudo ligado à porcaria de relação que eu tenho com meu pai.

– Desculpe, o quê? – Reilly ouviu-se dizer.

– Essa coisa com você... está ligada a ele também – seus olhos brilharam em direção a ela. – Ele era apaixonado pela minha mãe. Tanto que a fatiou viva e formou um coração com seus intestinos, no chão, ao lado dela. Sei disso pois fui eu quem encontrou o corpo.

Quando Reilly começou a ofegar, uma das mãos subiu até a garganta e, por instinto, deu um passo para trás... apenas para descobrir que estava encurralada pela pedra em que havia se recostado.

– Sim... – disse Veck. – Essa é a história da minha família.

Que maneira de cortejar uma mulher, Veck pensou quando Reilly ficou pálida como neve e tentou se afastar dele. Dando um trago profundo em seu cigarro, exalou para longe dela.

– Eu não devia ter dito isso.

Reilly balançou a cabeça, talvez para esclarecer um pouco os pensamentos.

– Não... não, fico feliz por você ter contado. Só estou um pouco...

– Chocada. Sim. E é apenas um dos motivos pelos quais não converso sobre isso.

Ela afastou uma mecha de cabelo solta sobre os olhos.

– Mas eu falei sério. Pode conversar comigo. Quero que converse comigo.

Não tinha tanta certeza se Reilly dizia a verdade. Mas, por alguma razão, abriu a boca.

– Minha mãe foi a 13a vítima dele – cara, invejava aqueles cujas “histórias ruins” da vida eram apenas de encrencas por conta de cervejadas, depredação de propriedade pública e, talvez, urinar no tanque de gasolina de alguém.

– Eu estava em férias de verão do ensino médio, hospedado numa casa alugada em Cape Cod com os amigos. Saí na última noite que tínhamos para ficar ali e também fui o último a ir para casa; então, estava sozinho. Ele a trouxe até a sala de estar e fez tudo ali. Depois, deve ter subido as escadas e dado uma olhada em mim... Quando acordei, havia duas marcas de sangue no batente da porta do meu quarto. Foi a primeira evidência de que algo ruim havia acontecido. Ele havia colocado fita adesiva na boca dela, então, não ouvi nada.

– Oh... meu Deus...

Dando outro trago profundo no cigarro, falou através da fumaça que exalou.

– Como pode imaginar, mesmo naquela época, a primeira coisa que fiz quando vi as marcas no chão foi olhar para as minhas próprias mãos. Quando percebi que não havia nada, corri para o meu banheiro, verifiquei as toalhas, as minhas roupas... Irônico, as mesmas coisas que eu fiz depois do episódio com Kroner. E, então, me dei conta... Droga, a vítima. Liguei para a emergência e estava no telefone com eles quando desci as escadas.

– Você a encontrou.

– Sim – esfregou os olhos lutando contra as imagens do sangue vermelho sobre o tapete azul barato e um coração feito de órgãos humanos. – Sim, encontrei, e sabia que tinha sido ele.

Não conseguiu ir além disso, não dava mais, nem para ela nem para si mesmo. Essa memória não era acessada há tanto tempo que ele esperava ter caído num modo reflexivo, saudável talvez. Mas não. A cena da qual se lembrara naquele momento ainda estava desenhada em neon nos seus pensamentos, como se os vapores do pânico e do terror que sentiu emergissem e distorcessem a fotografia mental, mas sem alterar a nitidez.

– Já li sobre seu pai... Estudei sobre ele na faculdade – disse Reilly suavemente.

– É um tema popular.

– Mas não havia nada sobre...

– Eu tinha dezessete anos, menor de idade, e minha mãe não tinha o meu sobrenome, então, não poderia ter ouvido falar nada mesmo. Engraçado, foi quando os representantes da lei conversaram pela primeira vez com meu pai sobre uma vítima. Não preciso dizer que acreditaram quando ele disse que estava aflito. E Deus sabe o quanto ele era bom em fingir sentimentos. Ah, e as marcas sobre o batente da porta? Ele tinha usado luvas, claro; então não havia nada para acusá-lo.


– Deus, sinto muito.

Veck ficou em silêncio, mas não por muito tempo.

– Não o vi muito. E, quando ele se aproximava, eu percebia que minha mãe seria capaz de fugir com ele. Ela nunca se cansava dele... Era sua droga, a única coisa que importava, só pensava nele. Olhando para trás, tenho certeza de que ele a induziu a toda aquela fixação. Eu ficava irritado... Até que percebi o que ele era e vi que ela não tinha qualquer chance com ele. Para ele? Acho que foi divertido, mas parece que o jogo ficou enjoativo depois de um tempo.

Com isso, Veck ficou exausto, como um corredor que não aguenta mais avançar.

– De qualquer forma, é por isso que nunca jantaremos na casa dos meus pais.

Péssima tentativa de fazer piada. Nenhum deles riu.

Quando chegou ao final do cigarro, amassou a ponta incandescente sobre a sola do sapato – e notou pela primeira vez que seus sapatos não sobreviveriam àquele banho de lama. Reilly, no entanto, deu um jeito de conseguir um par de botas. Bem típico dela. Estava sempre preparada...

Quando olhou para cima, ela estava bem na frente dele. As bochechas estavam rosadas por causa do vento e do esforço, seus olhos brilhavam com um calor que vinha não apenas de um coração bom mas também de um coração aberto. As mechas de cabelo que se soltaram do rabo de cavalo produziam um halo vermelho, e seu perfume de xampu, ou seja lá o que fosse, o fez lembrar do verão – um verão normal, não aquele de que tinha acabado de se lembrar, quando ainda era uma “criança”.

Então, ela aproximou-se, colocou os braços ao redor dele e simplesmente abraçou-o. Levou um minuto para Veck entender o que estava acontecendo, pois era a última coisa que esperava. Mas, então, abraçou-a de volta. E os dois ficaram ali só Deus sabe por quanto tempo.


– Não tenho o hábito de namorar – ele disse um tanto rude.

– Namorar colegas de trabalho? – ela afastou-se e olhou para ele.

– Qualquer pessoa – alisou o cabelo dela com a palma das mãos. – E você é boa demais para mim.

Houve uma breve pausa e, em seguida, ela sorriu um pouco.

– Então, o sofá é o local preferido, hein?

– Pode me chamar de Casanova.

– O que vou fazer com você? – ela murmurou, como se estivesse falando consigo mesma.

– Honestamente? Não sei. Se eu fosse seu amigo, diria para correr em direção à saída, nada de ir andando.

– Eles não são você, sabe disso, não? – ela disse. – Seus pais não te definem.

– Não tenho tanta certeza. Ela era a bajuladora de um psicopata. Ele é um demônio com uma bela máscara. Daí surgiu um bebê num carrinho. Vamos encarar os fatos, até agora, minha vida tem girado em torno de evitar o passado, desperdiçando o presente e me recusando a pensar sobre o futuro... Pois fico apavorado de não compartilhar apenas o nome com meu pai.

Reilly balançou a cabeça.

– Ouça, eu ficava assustada com a possibilidade de a mulher que me deu à luz voltar e me querer de volta. Por muito tempo, eu tinha a convicção de que qualquer coisa que meu pai fizesse legalmente não seria suficiente se ela me quisesse de volta. Isso costumava me deixar acordada à noite. E ainda tenho pesadelos. Na verdade, e vai achar que é loucura, eu ainda deixo uma cópia do meu certificado de adoção do meu lado, em cima do criado-mudo, quando vou dormir. Aonde quero chegar? Não pode fazer alguma coisa se tornar realidade só porque tem medo dela. O medo não vai tornar real uma história fictícia.

Houve outro longo silêncio, mas Veck interrompeu-o.

– Apague o que eu disse antes. Acho que estou me apaixonando por você. Bem aqui. Agora.


CAPÍTULO 29

 

Ficando um pouco distante de Reilly e Veck, Jim fingiu ser uma pedra e esforçou-se para não ouvir a conversa entre eles, tanto que, ao se aproximar, virou a cabeça. Havia lá as vantagens de ser invisível, mas não era muito adepto de ficar espiando casais. Além do mais, não estava muito satisfeito com aquele atraso emotivo. Estavam procurando por Sissy – a porcaria melosa poderia esperar até encontrarem algo ou descobrirem que a indicação do local era uma farsa.

Afastando-se da rocha na qual se apoiara, caiu numa poça, a água turva espirrou sobre suas roupas de couro e suas botas de combate, mas não fez som algum graças ao campo de força que havia projetado em volta de si. Cara, aquela pedreira parecia um cenário dos antigos episódios de Jornada nas Estrelas, as pessoas só não usavam camisas vermelhas nem se teletransportavam...

De repente, um calor floresceu na lateral de seu rosto e a sensação fez com que erguesse a cabeça e inclinasse-a para a direita. Um raio de sol derramava-se sobre ele, tocando-lhe os olhos e a bochecha.

Que merda é essa? – pensou, percebendo que vinha da direção errada.

Com a testa franzida, recuou e virou-se, seguindo o caminho da faixa amarelo-limão... que o levou para a caverna atrás dele.

Algo aconteceu em suas entranhas.

– Oh, droga – Jim sussurrou quando uma premonição lavou-o como chuva fria.

Preparando-se, caminhou até uma abertura irregular. Não havia necessidade de virar de lado, a iluminação passava por ele como se não estivesse lá. A abertura era bem grande, quase dois metros de altura, talvez um metro de largura, contudo, estreitava-se quase imediatamente após a entrada. Então, como a luz era refletida ali dentro?


Ao entrar, a luz do sol seguiu-o, fazendo-o pensar em Cachorro e sua companhia calma e reconfortante. E não parou para pensar em como a iluminação conseguia envolver até mesmo as extremidades do local ou para se perguntar por que parecia orientar seus passos...

– Oh... Deus... – apoiou-se numa parede de pedra para manter-se em pé ao descobrir o que fazia a luz emergir da escuridão: contra a parede íngreme da caverna, envolto numa lona áspera, havia um corpo deitado no chão, como lixo descartado.

O feixe luminoso acabou por fundir-se com o pacote e foi quando Jim viu o comprimento do cabelo – que, se estivesse limpo, seria loiro. Atordoado, caiu contra uma das laterais da caverna. Dar-se conta, repentinamente, de todo o seu esforço até aquele momento – droga, talvez tudo que tinha feito – era como uma trombeta tocando em sua nuca, sem cessar, ensurdecendo-o.

Não existem coincidências – ouviu Nigel dizer.

Quando alguém colocou a mão sobre seu ombro, virou-se e sacou sua adaga de cristal ao mesmo tempo. Baixou a arma imediatamente.

– Meu Deus, Adrian... quer levar uma facada?

Péssima pergunta para se fazer num dia como aquele. O outro anjo não respondeu. Apenas olhou para a luz que pairava acima da cabeça de Sissy, como uma coroa celestial dourada marcando seus restos mortais. Com uma voz baixa, disse: – Quero te ajudar com esta perda. Você me ajudou com a minha.

Jim olhou para Ad por alguns momentos.

– Obrigado, cara.

Adrian assentiu com a cabeça, como se tivessem combinado algo, trocado algum voto, e esse acordo fez Jim perguntar-se... Se tudo tinha um propósito, será que Sissy havia morrido para que houvesse aquele momento entre eles? Seria a razão pela qual perderam Eddie? Pois, quando os olhos mortos de Adrian encontraram os dele, os dois estavam na mesma situação, dois caras explosivos realinhados por tragédias paralelas e, ao mesmo tempo, vivendo exatamente a mesma situação.

Em vez de ir até sua garota, Jim estendeu uma das mãos para o parceiro. E, quando o anjo retribuiu o gesto, puxou Adrian contra si e abraçou o bastardo com força. Sobre o ombro do cara, olhou para Sissy.

Foi difícil, mas, ao avaliar os interesses da guerra junto à perda que sofreu a família da garota e, agora, Adrian, concluiu que as duas passaram a ter um valor inesperado: até onde Jim conseguia entender, na melhor das hipóteses, o jogo estava empatado, com apenas um fio de cabelo pesando a favor de Devina na batalha.

Só que, às vezes, uma simples gota d’água resultava em tragédia. E famílias perdiam suas filhas, melhores amigos não voltavam para casa no final da noite. Parece que viver não vale mais a pena, mas você continua de qualquer maneira.

Quando se afastaram, Adrian colocou o dedo sobre o colar de Sissy.

– Ela é sua garota.

Jim assentiu.

– E já é hora de tirar ela daqui.

Caramba – Reilly pensou. Parecia que Veck iria beijá-la. E parecia que ela deixaria. Mas, então, surgiu aquele papo que envolvia a palavra “amor”, e aquilo deixou-a paralisada, não sabia ao certo como reagir. Estava se apaixonando por ele também. Mas não conseguia lidar com aquilo direito em sua mente. Dizer essas coisas em voz alta era expor-se demais. Contudo, havia outras maneiras de responder.

Quando ela inclinou-se em direção à boca dele, Veck abaixou-se, aproximando-se dos lábios dela... Alguém apareceu sobre a rocha acima deles. Alguém grande, que surgiu das alturas e bloqueou o sol. Quando ela pulou afastando-se de seu parceiro, seu pensamento imediato foi: Oh, Deus, não permita que seja alguém da delegacia...

Seu desejo tornou-se realidade, infelizmente: era aquele “agente do FBI”.

Veck moveu-se tão rápido que Reilly só percebeu que havia um escudo humano à sua frente quando sentiu suas mãos repousarem nas costas dele. Foi um movimento muito cavalheiro, mas ela não precisava de proteção. Colocando a mão dentro do casaco, Reilly encontrou a coronha de sua arma – ele também fez o mesmo – e recuou com a arma apontada para cima.

Só que... o homem que os olhava de cima não parecia nem um pouco agressivo. Parecia arruinado. Totalmente destruído.

– Sissy Barten está logo ali – ele apontou para trás de si. – Na parede dos fundos da próxima caverna.

Ele não vai nos machucar – ela pensou com uma convicção vinda da alma.

Redirecionando o cano da nove milímetros para o chão, ela franziu a testa. Ao redor do corpo do agente havia um brilho sutil, um esplendor que poderia ser explicado por estar posicionado de costas para um raio de sol – mas, espere um minuto, a posição dele não era essa. Era muito tarde para que houvesse tal projeção no local onde ele estava.

– Você está bem? – ouviu-se perguntar ao homem.

Os olhos assombrados fixaram-se nos dela.

– Não, não estou.

Veck falou alto, forte e exigente: – Como sabe onde o corpo está?

– Acabei de ver.

– Liguei para o FBI. Nunca ouviram falar de você.

– Por conta da administração atual – o tom era entediado. – Vai ajudar a moça ou perder tempo com...

– Fingir ser um oficial federal é crime.

– Então, pegue essa força toda e venha atrás de mim... por aqui.

Quando o cara ergueu-se da pedra e desapareceu, Veck olhou por cima do ombro.

– Fique aqui.

– Até parece.

Algo na expressão dela deve ter lhe dito que discutir seria uma perda de tempo, pois murmurou alguma coisa – e começou a andar. Juntos, escalaram a pedra à frente, agarrando pontos precisos na subida. Quando chegaram ao topo... Jim Heron, ou seja lá quem fosse, tinha desaparecido. No entanto, viram a entrada de uma grande caverna.

– Chame reforços – Veck disse, saltando para baixo ao pegar a lanterna. – Vou entrar... e preciso que me cubra daqui de fora.

– Entendido – Reilly pegou o rádio, mas exclamou em seguida: – Pare! Precisa prestar atenção nas pegadas. Perto das bordas, certo?

Olhou para ela.

– Bem lembrado.

– Cuidado.

– Tem minha palavra.

Seguindo com a lanterna e a arma, entrou na caverna, seus ombros largos mal passaram pela entrada. Devia existir um obstáculo logo ao entrar, pois o brilho da lanterna esmaeceu e, em seguida, não se via mais iluminação alguma.

Enquanto Reilly chamava seus colegas e recebia a confirmação de que estavam a caminho, abaixou-se cuidadosamente em direção à entrada lamacenta da caverna que lhe dava boas-vindas. Sabia que levaria um tempo até que os outros chegassem e rezou para que seus instintos estivessem certos sobre o homem grande e loiro. Ele não parecia nem um pouco preocupado em mentir ou distorcer o que dizia, mas era certo que parecia arrasado em relação a Sissy Barten.

Se alguma coisa acontecesse com Veck enquanto vigiava, nunca iria se perdoar...

– Que... droga é essa? – murmurou.

Reilly franziu a testa e agachou-se. Bem no meio do caminho de terra encharcada, onde Veck tinha aterrissado ao pular, as pegadas pareciam crateras lunares. Da mesma forma, perto da entrada, o rastro ali marcado era profundo, as pegadas de sapatos de sola lisa eram fundas e indicavam que um homem com seus noventa quilos havia passado por ali.

Erguendo-se, Reilly apoiou um dos pés sobre uma pedra alta e olhou para trás ao longo do caminho por onde Veck e ela tinham atravessado. Na parte superior da plataforma de pedra, existiam dois pares de pegadas umedecidas: dela e de Veck. Era isso.

Ao analisar a extensão do declive, balançou a cabeça. Não tinha como Jim Heron, ou seja lá quem fosse, ter descido até ali sem ficar com os pés encharcados. E também era impossível ficar parado onde ficou sem deixar pegadas úmidas para trás, assim como ela e Veck tinham deixado.


Que diabos está acontecendo?

Atrás dela, Veck reapareceu na abertura da caverna.

– É Sissy Barten. Ele estava certo.

Reilly engoliu em seco ao descer mais um pouco.

– Tem mais alguma coisa aí?

– Não que eu consiga enxergar. Chamou o pessoal?

– Sim. Tem certeza de que é ela?

– Não toquei em nada, mas há um pouco de cabelo loiro exposto e o corpo está onde Kroner indicou – as sobrancelhas de Veck estreitaram-se. – O que foi?

– Tem pegadas no chão da caverna?

– Me deixe ver – ele desapareceu. Voltou em seguida. – Não. Mas não é a melhor superfície para verificar isso. Está relativamente seco, e o solo tem pouca profundidade. O que você...

– É como se tivesse caído do céu.

– Quem? Heron?

– Não há qualquer evidência de que ele esteve aqui, Veck. Onde estão as pegadas? Aqui no chão? Lá em cima?

– Espere, não tem...

– Nada.

Ele franziu a testa e olhou ao redor.

– Filho de uma puta.

– Sinto a mesma coisa.

Ao longe, Reilly ouviu os oficiais aproximarem-se, então, colocou as mãos ao redor da boca e gritou: – Aqui! Estamos aqui!

Talvez alguém pudesse entender alguma coisa. Porque não lhe ocorria nada... e era evidente que acontecia o mesmo com Veck.


CONTINUA

CAPÍTULO 20

 

Gary Peters sempre achara que seu nome soava como ele: nada de especial. Havia milhares de Garys no país – a mesma coisa para Peters – e sua aparência física também não o diferenciava muito. De alguma maneira, conseguiu evitar uma barriga de cerveja, mas seu cabelo era fino e, agora que tinha chegado aos quarenta, passava pela crise de perdê-los. O rosto era branco como um purê de batatas, os olhos eram de um castanho-terra e a existência de um queixo era discutível: talvez pescoço, bochechas e clavícula estivessem todos unidos.

Moral da história? Era um homem invisível, daqueles que as mulheres nem percebem a existência entre tantos metrossexuais musculosos, atletas e caras ricos e famosos.

Razão pela qual a visão de Britnae avançando até sua mesa e lançando um olhar... digamos, daqueles... foi uma grande surpresa.

– Desculpe – ele balançou a cabeça. – O que você disse?

Ela inclinou-se e... bom Deus, aqueles seios...

Quando ela ergueu-se outra vez, ele teve a sensação de que a mulher falara alguma coisa, mas não fazia ideia do que tinha sido...

– Desculpe, telefone – esticando o corpo, pegou o fone. – Departamento de Polícia de Caldwell, pois não. Sim. Uh-hum. Sim, está sob custódia e intimado. Sim, claro... Darei o recado de que estará lá pela manhã.

Fez algumas anotações no caderno e voltou sua atenção para Britnae. Que tinha decidido sentar-se à mesa em que se apoiou antes.

No começo achava que a saia era pequena. Agora, parecia micromíni.

– Ah... o quê? – ele disse.

– Perguntei quando será seu intervalo.

– Ah, desculpe – pelo amor de Deus, tinha alguma coisa errada naquela abordagem. – Não tão cedo. Ei, você não costuma sair às cinco da tarde?

– Estou presa aqui examinando uma folha de pagamento – quando ela fez beicinho, o lábio inferior, já volumoso, pareceu um travesseiro. – É tão injusto... e ainda tenho mais uma hora pela frente, pelo menos, e está tão tarde.

Ele olhou o relógio: 20h. Tinha acabado de iniciar seu turno de dez horas, aquele em que vigiava provas e prisioneiros, então, era cedo para ele. Costumava ir para casa às 6h, e o departamento dela chegava ali às 8h30.

Ela inclinou-se outra vez.

– É verdade que todas as coisas de Kroner estão aqui?

– Na sala de provas? Sim, estão.

– Você chegou a vê-las?

– Algumas delas.

– Mesmo?

Foi muito curioso como os olhos dela arregalaram-se um pouco enquanto colocava a mão sobre a garganta.

– São horríveis – ele acrescentou, sentindo o peito inflar.

– Como assim... o que são?

A hesitação dela mostrava que estava em dúvida se desejava mesmo saber mais.

– Partes e pedaços... Se é que me entende.

A voz dela tornou-se quase um sussurro.

– Você pode me levar lá?

– À sala de evidências? Ah, sim, não, não posso. Apenas pessoal autorizado.

– Mas você é autorizado, não é?

– E gostaria de manter o meu emprego também.

– Quem ficaria sabendo? – ela inclinou-se ainda mais. Gary pensou que, caso ela se endireitasse um pouco mais, poderiam se beijar.

Temendo passar por tonto, afastou-se e empurrou a cadeira para trás.

– Eu não diria a ninguém – ela sussurrou.

– Não é tão simples. Precisa se identificar na entrada e na saída e tem as câmeras de segurança. Não é uma sala de descanso.

Ele podia ouvir a petulância em sua voz e, de repente, desprezou sua calvície e sua meia-idade. Talvez aquele tom fosse a razão pela qual ainda era virgem.

– Mas você poderia me deixar entrar... se quisesse – os lábios dela eram absolutamente hipnotizantes, moviam-se devagar à medida que enunciavam as palavras. – Certo? Sei que poderia, se quisesse. E eu não vou tocar em nada.

Deus, como aquilo era estranho. Esperava entrar no trabalho e cumprir suas tarefas como sempre fazia todas as noites. Mas lá estava ele, com aquela... encruzilhada.

Será que Gary Peters não faria nada, como de costume? Ou será que tomaria uma atitude de verdade com a gostosa do departamento?

– Sabe de uma coisa? Vamos lá.

Ele levantou-se e verificou outra vez se as chaves estavam no cinto – onde, é claro, elas estavam. E, como era de se esperar, havia uma equipe reduzida na delegacia, então, era o único responsável por levar qualquer coisa ao andar de cima – e os detetives Hicks e Rodriguez tinham acabado de trazer dois gramas de maconha embalados e assinados.

– Oh, meu Deus – ela disse, saltando da mesa. – De verdade?

O peito dele voltou a se encher, em vez da sensação de vazio de sempre.

– Sim. Vamos.

Colocou o sinal de que estava em intervalo, para que as pessoas ligassem em seu celular – alguém poderia aparecer para registrar ou cadastrar alguma prova – e, então, abriu a porta para ela.

Quando ela passou e Gary sentiu o perfume, pensou ser mais alto do que era quando começara a trabalhar, a sensação era ótima. Sabia que havia uma grande possibilidade de sair impune daquilo. A equipe de evidências trabalhara muito, há dias, nas evidências de Kroner, mas, finalmente, decidiram que também precisavam dormir; então, não havia ninguém ali. E, com certeza, Britnae não tocaria em nada mesmo – ele iria se certificar disso. Assim, não haveria necessidade de verificar as gravações das câmeras de segurança.

Arriscado? Um pouco. Mas, na pior das hipóteses, receberia uma advertência. Tinha o registro mais irrepreensível em termos de assiduidade e desempenho no departamento de recepção e segurança – ele não tinha vida. E Britnae nunca iria abordá-lo novamente.

Algumas vezes, você precisa ser algo mais que um mero Gary Peters atrás de uma mesa...

Britnae pulou e abraçou-o.

– Você é tão legal!

– Ah... imagina.

Droga, como Gary era imbecil. Graças a Deus ela não ficou agarrada por muito tempo, pois ele quase desmaiou.

O engraçado foi que se sentiu calmo ao mostrar o caminho, levando-a para o elevador até o segundo andar. Dali em diante, insistiu, como se fosse um agente secreto, que seguissem pelas escadas. Lá em cima, abriu a saída de incêndio e ouviu. Nada. Nem mesmo alguém da limpeza. E, no final do corredor, as luzes do laboratório forense estavam apagadas.

– Nunca estive aqui antes – Britnae sussurrou perto da manga da camisa ao agarrar o braço dele.

– Vou cuidar de você. Vamos.

Andaram na ponta dos pés pelo corredor até uma porta de aço pesada na qual se lia “evidências – apenas pessoal autorizado”. Com suas chaves, abriu-a e seguiu até uma antessala de identificação. Sentiu seus nervos exaltados quando aproximou-se da mesa em que a recepcionista ficava durante o horário comercial, mas, quando identificou-se e entrou, sabia que não tinha mais volta.

– Oh, meu Deus, estou tão animada! – quando Britnae colocou as mãos sobre o antebraço de Gary e inclinou-se, como se ele fosse seu protetor, o homem não se incomodou mais em esconder o sorriso, pois ela não conseguia visualizar seu rosto.

Isso é... muito legal – ele pensou ao registrar no sistema a maconha apreendida.

Quando Devina esfregou-se contra o corpo do oficial, fez um favor àquele triste humano, um tal de Gary Peters. Era engraçado fingir ser a bonitona do escritório, e o idiota da recepção engolia a mentira. Seu plano só precisava ter um início e um fim. Ele não se lembraria de nada na manhã seguinte: para que aquilo tudo funcionasse, o statu quo tinha que ser preservado.


– Certo, vamos entrar – o cara disse ao sair da frente do computador.

Usando o tom de voz alto de Britnae e aquela pronúncia ao estilo de modelos famosas californianas, disse: – Oh, meu Deus, estou tããão empolgada. Isso é muito real!

Blá-blá-blá... mas usou o tom certo, pois já estava usando a carcaça há algum tempo. E a garota não tinha um vocabulário muito extenso – era só acrescentar “oh, meu Deus” a cada substantivo ou verbo e pronto.

Na segunda porta de aço, Gary Peters passou seu cartão pelo leitor magnético na parede e a fechadura soltou-se em seguida com uma batida.

– Está pronta? – ele disse, todo protetor.

– Não sei... Quero dizer, sim!

Ela saltitou um pouco e, então, voltou a ofegar sobre o braço dele enquanto segurava uma de suas mãos. E, ao vê-lo todo encantado com o show, ela pensou: que idiota.

No instante em que entrou no interior das instalações de armazenamento de provas, a habitual cena de gato e rato assumiu seu lugar na missão. De alguma maneira, estava entediada daquele tipo de diversão, porém, tinha que fazer algo de qualquer jeito. O desaparecimento de Jim Heron obrigou-a a antecipar algumas coisas, o que ela odiava.

Não conseguia acreditar que não havia qualquer sinal dele. Era a primeira vez que acontecia com um anjo e tinha certeza de apenas uma coisa: ele não tinha recuado ou desistido. Não estava em sua natureza. A guerra continuava e havia uma alma para tomar... Além disso, havia maneiras de conseguir que Jim aparecesse outra vez.

O guarda conduziu-a ao longo dos corredores cheios de prateleiras que se estendiam do chão ao teto, cheias de caixas de uma variedade incalculável de formatos e tamanhos. Tudo estava bem catalogado e indexado, havia pequenas etiquetas penduradas e muitos sinais alfanuméricos indicando algum tipo de sistema.

Que coleção. Que organização...

Devina teve que parar e desabafou: – Isso é incrível.

O oficial idiota ficou todo orgulhoso, mesmo sendo apenas uma pequena engrenagem de uma máquina maior.

– Sempre há dezenas de milhares de provas aqui. Tudo está identificado pelo número do caso e registrado no computador para que possamos encontrar tudo de maneira eficiente – começou a andar outra vez, dirigindo-se a alguns recantos do local. – No entanto, existem algumas exceções, como o caso Kroner, pois há muita coisa envolvida no processo.

Enquanto ele seguia, Devina olhava para cima e observava todos os objetos ao redor. Que demais!

Ao longo de todo o caminho, havia algumas mesas com cadeiras, como se fosse uma cafeteria em que se serve objetos inanimados para consumo.

– Os detetives e oficiais têm autorização para entrar, tirar fotos, reexaminar coisas ou pegar alguma evidência para julgamentos. O laboratório também retira os objetos do lugar de tempos em tempos, mas tudo precisa retornar ao departamento. As coisas de Kroner estão bem aqui. Não toque em nada.

Atrás de uma divisória de 1,8 metros de altura, havia uma estação temporária de trabalho constituída de mesas, cadeiras, computadores e um equipamento fotográfico, assim como caixas de sacos plásticos vazias e rolos de etiquetas adesivas. Mas isso não importava. Em prateleiras rebaixadas, que tinham 2,5 metros ou mais de comprimento, havia vários saquinhos enfileirados, todos com códigos de barras, contendo frascos, joias e outros itens.

Seu pequeno servo tinha sido um menino muito, muito ocupado, não?

– Geralmente, a evidência é registrada lá embaixo, na entrada, ou no laboratório, se for restos humanos, mas havia tantas coisas naquela caminhonete apreendida que tiveram que criar uma unidade temporária de processamento de dados aqui. Todas as amostras de tecido foram examinadas primeiro, pois havia uma preocupação com a preservação dos elementos... Entretanto, parece que Kroner já sabia exatamente como manter tudo. Claro que sabia. Queria ter sempre parte de suas vítimas junto dele.

– Há muitos outros objetos aqui – o policial levantou um lençol branco que cobria uma caixa enorme e rasa.

Ah, sim, exatamente o que ela esperava encontrar: um amontoado de camisetas, joias, bolsas, laços de cabelo e outros objetos pessoais.

Vendo tudo aquilo, ela sentiu-se profunda e verdadeiramente triste por Kroner, pois sabia muito bem de onde vinha a obsessão dele. Ninguém quer perder as conquistas do trabalho duro, as pessoas passam a valorizar seus objetos. No caso de Kroner, era mais difícil, pois, ao contrário dela, ele não tinha como manter suas vítimas para sempre... E, agora, também tinha perdido sua coleção.

De repente, Devina sentiu dificuldade para respirar.

Ela tinha perdido seus preciosos objetos, e lá estavam eles, sob a tutela de seres humanos, que tocaram e recatalogaram tudo. Eles poderiam, muito bem, um dia, num futuro distante, jogá-los fora.

– Britnae? Você está bem?

O oficial apareceu bem ao lado dela, mostrando uma cadeira de escritório.

– Sente-se – ouviu-o dizer ao longe.

Quando a sala começou a girar, Devina fez o que ele havia sugerido e colocou a cabeça entre os joelhos que não eram dela. Estendendo uma das mãos, pegou na borda da mesa, como se assim pudesse manter a consciência.

– Merda, merda... certo, vou pegar um pouco de água para você.

Quando o oficial saiu, seus pés iniciaram uma corrida mortal em direção às pilhas de evidências, pois sabia que não tinha muito tempo. Com a mão trêmula e suada, pegou o brinco de ouro que tinha trazido de sua coleção. As lágrimas vieram à tona quando percebeu que tinha de abrir mão novamente daquilo se quisesse progredir naquela rodada com Heron... e DelVecchio.

Há pouco, quando estava em seus aposentos privados, parecia haver uma perspectiva tão razoável, tão fácil, mas ali, cercada por centenas de milhares de troféus, o que era o brinco de uma virgem morta? Ficaria com a outra peça do par... além do mais, tinha outros objetos para se lembrar daquela maldita Sissy Barten.

Agora, porém, sentada ao lado da carnificina que eram as lembranças de Kroner, sentia como se estivesse enviando uma de suas muitas almas às profundezas de um mar de perda e esquecimento permanentes. Mas que escolha tinha? Tinha que eliminar as forças de Heron e, mais importante, tinha que configurar o final do jogo...

De repente, a imagem da secretária gostosa começou a se desintegrar, a verdadeira forma de Devina passou a emergir da camada de pele humana jovem e rosada, sua carne morta e enrugada e suas garras cinzas e retorcidas embalavam o brinco barato em formato de pássaro.

Por um momento, não se importou. Estava abalada demais por sua possessividade, não conseguia lidar com o fato de que o oficial voltaria em breve e que, então, teria de infectá-lo ou matá-lo – e não tinha energia para nada disso. Ela tinha, porém, de se recompor.

Obrigando-se a pensar um pouco, convocou a visão de sua terapeuta, imaginando aquelas formas arredondadas, aquela pessoa realizada, acolhedora, que já tinha passado da menopausa e que não só parecia ter resposta para tudo... Mas parecia saber exatamente do que ela estava falando.

Devina, a ansiedade não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo... Você deve se lembrar de que não necessita de objetos para justificar sua existência ou para se sentir bem ou segura.

Ou seja, se não conseguisse se recompor e colocar aquele brinco ali, comprometeria mais ainda seus objetivos.

Você já perdeu uma vez – lembrou a si mesma.

Duas respirações profundas... mais outra. Então, olhou para sua mão e desejou a imagem da jovem e a bela carne de volta. A concentração que aquilo exigia deu-lhe uma dor de cabeça permanente, mesmo depois que voltou a ser Britnae, mas não havia tempo para desperdiçar com as têmporas que latejavam. Ao colocar-se em pé sobre pernas tão fortes quanto canudos de refrigerante, saiu tropeçando em direção à caixa de objetos. Agarrando-se a uma cortina, colocou ali o brinco em formato de pomba e, em seguida, patinou de volta ao assento que o oficial havia providenciado para ela. Bem a tempo.

– Aqui, beba isso.

Olhou para o cara. Considerando a expressão em seu rosto, parecia que o disfarce Britnae ainda estava funcionando. Uma coisa era certa sobre humanos: ficavam totalmente chocados quando a viam como era de fato.

– Obrigada – disse com voz rouca ao estender uma das mãos... com uma camada de esmalte rosa nas unhas. Mas quanto tempo aquilo duraria?

Bebeu a água, amassou o copo de papel e jogou-o numa lata de lixo embaixo da mesa.

– Por favor, pode me tirar daqui? Agora?

– Claro.

Ele tirou-a da cadeira, jogando um braço surpreendentemente forte em volta da cintura e sustentando a maior parte de seu peso. Passaram pelos longos corredores. Saíram pela porta desbloqueada graças àquele cartão magnético. Enfim, o corredor que daria para a saída. O elevador foi uma bênção, mesmo ficando ainda mais tonta com a descida.

O plano, disse a si mesma. Trabalhar no plano. Era o sacrifício necessário para trazer as coisas de volta ao lugar.

Quando chegaram ao escritório, ele sentou-a numa das cadeiras de plástico de sua mesa e trouxe um segundo copo de água. O que ajudou um pouco a clarear a mente de Devina. Ela concentrou-se no oficial e decidiu não só deixá-lo viver, daria também um pequeno presente.

– Obrigada – disse-lhe, com sinceridade.

– Por nada. Quer uma carona para casa?

Ela não respondeu e inclinou-se para frente. Estendendo-se mentalmente pelo ar, infiltrou-se pelos olhos de Gary e adulou-o dentro do cérebro, passeando pelos corredores metafóricos de sua mente, visualizando ao acaso as provas que havia em suas estantes particulares.

Da mesma maneira que colocou o brinco na caixa, inseriu a convicção no cérebro do homem de que ele era um Casanova, um cara que, apesar de sua modesta aparência, era desejado pelas mulheres e, portanto, confiante e viril.

Era o tipo de coisa que o faria conseguir uma transa. Pois, ao contrário dos homens, criaturas visuais, as mulheres tendiam a valorizar mais o conteúdo que havia entre as orelhas de alguém. E autoconfiança era muito sensual.


Devina partiu em seguida, levando com ela as memórias do que tinham feito e onde tinham estado. Seu ato de caridade enojou-a, e ela desejou fazer um gesto obsceno àquele Nigel insuportável.

Mesmo uma freira com o coração mais puro que se possa imaginar teria vontade de soltar um palavrão naquela ocasião. Eram raros os casos em que um demônio motivava-se a mostrar compaixão. Ela sentiu vontade de tomar um banho para tirar o fedor.


CAPÍTULO 21

 

– Acho que estou no céu.

Reilly escondeu um sorriso quando Veck olhou com admiração o pedaço de torta que sua mãe havia colocado à frente dele.

– A senhora fez mesmo isso? – disse ao olhar para cima.

– Do zero, incluindo a massa – o pai dela anunciou. – E não só isso, ela pode calcular seus impostos de olhos fechados com um dos braços amarrado nas costas.

– Acho que estou apaixonado.

– Desculpe, ela já é comprometida – o pai de Reilly puxou sua esposa para um rápido beijo ao pegar seu pedaço de sobremesa. – Certo?

– Certo – a resposta foi pronunciada de boca cheia.

Reilly ofereceu um pouco de sorvete de baunilha a Veck.

– Sorvete?

– Com certeza.

O detetive DelVecchio acabou se mostrando muito bom de garfo. Levou segundos para comer a carne de vitela e o espaguete ao molho pomodoro. Não era muito fã de saladas, o que não era muito surpreendente. E poderiam ter servido a sobremesa em dose dupla.

Contudo, não foi a capacidade de apreciar a comida de sua mãe que impressionou Reilly: ele inteirou-se bem com o pai. Brincava e, com respeito, mostrou que não era alguém influenciável, mesmo Tom Reilly sendo conhecido por assustar até à morte seus subordinados. Resultado disso?

– E, sim, Veck, concordo com você – o pai dela anunciou. – Há muita coisa que precisa ser modificada no sistema. É muito difícil obter um equilíbrio entre acusação e perseguição, especialmente com relação a alguns grupos étnicos e raciais. Socioeconômicos também.


Sim, seu parceiro tinha sido agraciado com a plena aprovação.

Quando a conversa encaminhou-se para o assunto da aplicação da lei, ela sentou-se e observou Veck. Ele parecia mais relaxado que nunca. E, cara, como estava lindo.

Meia hora e mais um pedaço de torta depois, Veck ajudou a levar os pratos até a pia e ajudou a secar a louça. Então, chegou o momento de colocarem os casacos e dirigirem-se à saída.

– Obrigada, mãe – ela disse, abraçando a mulher que sempre estaria ali por ela. – E pai.

Ao aproximar-se do pai, teve que ficar na ponta dos pés para colocar os braços ao redor dele, esticou-se bem e não chegou nem à metade do caminho dos ombros.

– Eu te amo – ele disse, segurando-a com firmeza. E, então, sussurrou em sua orelha: – Tem um bom rapaz aí.

Antes que pudesse retornar ao discurso “não, eu não tenho ninguém”, passaram aos apertos de mãos e saíram pela porta.

Na rua, os dois acenaram e, enfim, tudo acabou.

– Seus pais são incríveis – Veck disse, enquanto se afastavam de carro.

Um rubor de orgulho da família a fez sorrir.

– São mesmo.

– Se não se importa, queria perguntar...

Quando percebeu que ele não a olhava e que não terminaria a frase, Reilly sabia qual era a pergunta que tinha ficado no ar. Era importante, mas isso não significava que ele iria forçá-la a responder.

– Fico muito feliz em conversar sobre isso – quando a chuva começou a cair, aguardou num sinal vermelho e ligou os limpadores de para-brisa. – Meus pais sempre trabalharam com jovens de risco e centros de recuperação... Começaram antes mesmo de se conhecerem. Existe um centro assim na igreja católica do centro da cidade e, depois que se casaram, costumavam passar os sábados lá, organizando livros, solicitando doações, ajudando famílias desabrigadas. A mulher que meu deu à luz chegou ali comigo depois de ter brigado com um dos três namorados. Com isso, ela acabou perdendo a visão do olho esquerdo – Reilly lançou um rápido olhar para ele. – Eu vi acontecer. Na verdade, é a primeira memória que tenho.


– Quantos anos você tinha? – ele perguntou um pouco tenso.

– Três anos e meio. Ela brigava com ele por qualquer coisa, até aí nenhuma novidade, mas, daquela vez, ela agarrou uma faca e foi atrás dele. Ele a empurrou para se defender, mas ela continuou atacando até que ele começou a bater nela. Com força. Eu disse aos policiais que ele a espancou e, então, o colocaram na cadeia. E foi assim que terminamos no abrigo, pois o apartamento em que estávamos hospedadas era dele – Reilly acionou a seta e entrou numa via principal, pouco depois de um colégio. – De qualquer forma, ficamos no local onde meus pais trabalhavam como voluntários, mas a mulher que me deu à luz roubou algumas coisas de outra família, e, então, foi o fim da estadia. Tivemos que ficar com seus outros dois namorados por mais ou menos uma semana e, então... ela me levou de volta ao abrigo e me deixou lá. Simplesmente me abandonou.

Veck encontrou seus olhos.

– Onde ela está agora?

– Não faço ideia. Nunca mais a vi de novo e, sei que soará amargo, mas não dou a mínima para o que aconteceu com ela – aproximou-se de um semáforo e pisou no freio. – Era uma mentirosa e uma viciada, e a única coisa boa que fez por mim foi ter me deixado. Mas tenho certeza de que ela não tinha a intenção de me proporcionar algum benefício com isso. Provavelmente, eu estava atrapalhando seu estilo de vida, e ela devia saber que matar uma criança era o tipo de crime que garantiria toda uma vida atrás das grades.

Nesse ponto, era o momento de entrar na pista expressa... que veio em boa hora, pois essa era a parte mais difícil da história Fez uma pequena pausa e respirou um pouco ao se posicionar no trânsito.

– Nossa, a chuva está ficando forte mesmo – ela disse, aumentando a velocidade dos limpadores.

– Não precisa terminar a história.

– Não, está tudo bem. O verdadeiro pesadelo teria acontecido se meus pais não tivessem se interessado por mim. Isso me assusta ainda hoje – verificou o espelho retrovisor, mudou para a faixa da esquerda e afundou o acelerador. – Aconteceu de meus pais estarem trabalhando naquele dia... E eu simplesmente grudei neles feito cola. Eu adorei meu pai desde a primeira vez que o vi, pois ele era tão grande e forte, com aquela voz profunda... sabia que me protegeria. E minha mãe sempre me deu bolachas e leite... e brincava comigo. Quase que de imediato eu já estava determinada a ir para a casa com eles, mas eles estavam tentando engravidar na época e, meu Deus, não estavam necessariamente interessados em bebês com histórico de pais viciados em drogas.

– Naquela noite e durante a semana seguinte, tentaram encontrar a mulher e instigar um pouco de sentimento nela, pois sabiam que, quando uma criança entrava no sistema, era difícil sair dele. Quando finalmente a encontraram, ela não me quis... e disse que renunciaria seus direitos. Voltaram mais tarde e sentaram-se comigo. Eu não poderia ficar no abrigo, pois era preciso estar acompanhada de um responsável. Então minha mãe decidiu dormir lá comigo para que eu pudesse ter direito a um beliche. Me lembro de ter tido certeza de que me diriam para ir embora, mas um dia transformou-se em dois... e depois em mais outra semana. Eu era muito bem comportada, e tinha a impressão de que meu pai estava trabalhando em alguma coisa. Finalmente, voltaram e me perguntaram se eu queria ficar com eles por um tempo. Ele conseguiu ajeitar as coisas para que se encaixassem no sistema como candidatos a meus pais adotivos. Só ele mesmo – ela olhou e sorriu. – Um tempo que se transformou em vinte e tantos anos. Conseguiram me adotar oficialmente um ano depois que me mudei.

– Isso é incrível – Veck devolveu um sorriso e, em seguida, ficou sério outra vez. – E seu pai biológico?

– Ninguém sabe quem é, inclusive a mulher que me deu à luz, de acordo com o que os meus pais dizem. Me disseram, bem depois, quando eu já estava crescida, que ela acreditava ser um dos dois ex-namorados. E os dois estavam na cadeia por tráfico de drogas – acelerou ainda mais os limpadores. – E, veja bem, sei que pareço... estar com raiva em alguns momentos da história. Mas acho que é apenas uma tentativa de lutar com a teoria de que o vício é uma doença genética. Com dois viciados na minha base genética, há uma probabilidade estatística de que eu termine como eles, mas não vou seguir por esse caminho. Sabia que era uma porta que eu não deveria abrir e, de fato, nunca fiz isso. E, sim, você pode argumentar que meus pais me deram oportunidades que meus pais biológicos nunca teriam dado, e é verdade. Mas você faz o próprio destino. Você escolhe seu caminho.


Durante algum tempo, ouviu-se apenas o ruído dos limpadores e da água chicoteando a parte inferior do carro.

– Desculpe, acho que falei demais.

– Não, nem um pouco.

Reilly olhou para Veck e teve a impressão de que ele estava voltando ao próprio passado.

Em silêncio, esperou que ele se abrisse, mas o homem continuou calado, cotovelo apoiado na porta, uma das mãos massageando o queixo.

Do nada, um carro enorme rugiu na faixa do meio. O suv espirrou litros e litros de água sobre o capô de Reilly e obscureceu a visão.

– Deus – ela disse, diminuindo a velocidade. – Devem estar a mais de 150 quilômetros por hora.

– Nada como um desejo de morte para diminuir o tempo na viagem.

O veículo desviou para a direita, em seguida para a esquerda, e depois para a direita outra vez, movimentando-se dentre os outros carros num zigue-zague atordoante.

Reilly franziu a testa ao imaginar Veck em sua moto naquele aguaceiro tendo de lidar com um maníaco na estrada como aquele.

– Ei, consegue voltar para casa nessa chuva? Está ficando perigoso.

– Não, não tem problema – ele respondeu.

Pensando num palavrão, não teve certeza se ele estava entendendo direito a situação. E o fato de ser estúpido o suficiente para pegar aquele foguete que dizia ser uma moto e sair naquelas condições não a alegrou muito.

Enquanto Veck permanecia sentado ao lado de Reilly, viu-se pensando sobre seu pai... e sobre sua mãe também. Embora não conseguisse se preocupar muito com ela. Que irônico. DelVecchio pai estava sempre em sua mente, mas sua mãe...

– Acho melhor eu levar você para a sua casa – Reilly disse. – Não é nada interessante enfrentar esse tempo na sua moto.

– Eu não fazia ideia do seu passado – ele murmurou. – E nunca teria imaginado. Você é tão segura.

Houve uma pausa, como se tivesse que trocar a faixa do assunto na sua cabeça.

– Bem, devo muito disso aos meus pais. Foram um exemplo e uma realidade, são tudo o que desejo ser e quem me tornei. Porém, nem sempre foi fácil. Por um longo tempo, achava que, se eu não fosse perfeita, eles me devolveriam como se fosse uma torradeira com defeito. Mas destruí o carro do meu pai nas minhas aulas de direção... Um bom teste para essa teoria, não? E, adivinhe só? Eles continuaram comigo.

Olhou o perfil do rosto dela e disse: – Acho que você não dá crédito suficiente a si mesma.

– A única coisa que fiz foi aproveitar o bom exemplo que tinha diante de mim.

– E isso é muito.

Quando ela entrou no bairro dele, cinco minutos depois, ele percebeu que ela tinha seguido o próprio conselho sobre ele, sua moto e o clima.

Os freios rangeram ligeiramente quando ela parou na calçada e, de repente, a chuva sobre o teto do carro começou a soar como bolas de pingue-pongue.

– Acho que está caindo um pouco de granizo – ele disse.

– Sim – ela olhou pelo para-brisa dianteiro. – Que tempestade.

– Nenhum trovão.

– Não.

Os limpadores continuaram o movimento, clareando a visão por alguns momentos.

Em dado momento, olhou para ela.

– Quero te beijar de novo.

– Eu sei.

Ele riu um pouco.

– Sou tão óbvio assim?

– Não... eu quero também.

Então, vire a cabeça para mim, ele pensou. Tudo o que tem a fazer é virar a cabeça que eu beijo você.

A chuva caiu. Os limpadores continuaram. Motor parado.

Ela virou a cabeça. E fixou os olhos na boca dele.

– Quero muito isso.

Veck inclinou-se em direção a ela e aproximou-a de seus lábios. O beijo foi bastante lento e profundo. E quando a língua de Reilly encontrou a sua, teve consciência de que desejava algo mais dela que apenas sexo. Em última análise, no entanto, a definição daquilo não importava. Não dentro daquele carro sem marcas de identificação, estacionado na sua calçada, com a tempestade que caía lá fora.

O que os dois precisavam não tinha como resolver conversando.

Deus, ela ainda era tão macia embaixo dele, pele macia, cabelo macio, perfume suave, mas foi sua essência firme, sua solidez e obstinação que realmente excitaram-no. A ideia de que era uma sobrevivente, que era tão forte e esclarecida com quem era e de onde vinha fez com que a respeitasse ainda mais.

E, como pode imaginar... aquilo era mais sensual do que qualquer coisa naquela sacola da Victoria’s Secret.

Com um movimento do tronco, tentou chegar ainda mais perto, mas a lateral do corpo atingiu o volante, que o bloqueou. O homem das cavernas nele de fato rosnou quando tentou aproximar-se outra vez, mas não conseguiu chegar nem perto de onde queria. Ou seja, nu em cima dela.

Com um palavrão, recuou. Sob as luzes dos faróis refletidas dentro do carro, o belo rosto de Reilly iluminou-se, a sombra da chuva sobre o para-brisa tocava suas feições, manchando-as um pouco, até que os limpadores dissipassem o que parecia ser lágrimas.

Pensou nela com sua família, tão feliz e em paz.

Simplesmente pensou nela, ponto final.

– Vou entrar sozinho – disse abruptamente.

Veck não esperou uma resposta. Saiu do carro uma fração de segundo depois e correu até a porta da frente de sua casa, não por causa da tempestade, mas porque conseguia observar seu interior com muita clareza.

– Espere! – ela gritou quando ele pegou as chaves.

– Volte para o carro – ele murmurou com a voz áspera.

Correndo até ele, balançou a cabeça e disse: – Não quero.

Com isso, ergueu a mão e apontou para o carro. Quando acionou o alarme, as portas foram trancadas e os faróis piscaram.

Veck fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, a chuva atingiu sua testa e bochechas.

– Se você entrar, eu não vou conseguir parar.

A resposta de Reilly foi tirar as chaves das mãos dele, destrancar a porta e, sutil e implacavelmente, empurrá-lo para dentro da casa.

Desejava outro beijo como aquele dado no carro.

Fechando a porta com um chute, Veck desvencilhou-se do casaco, agarrou-a e puxou-a contra ele, segurando-a com força, tomando sua boca outra vez. E ela atacou de volta, envolvendo com força os braços ao redor dos ombros e pressionando seu corpo contra o dele.

O sofá.

Tinha mudado o sofá de lugar.

Ainda bem.

Houve um emaranhado de movimentos para chegar até lá, e tirar o casaco molhado dela e os coldres com as armas dos dois não facilitou as coisas. Mas logo ele moveu-a, estendendo-a sobre as almofadas... e montou sobre ela, pulando em cima de seu corpo.

O beijo foi desesperado, do tipo em que os dentes se encontram de vez em quando, e ele não queria nem sequer parar para respirar, mesmo com os pulmões queimando por falta de oxigênio. Especialmente quando ela começou a arranhar seus ombros.

Com isso, resolveu não ser bonzinho com a camisa dela. Sem romper o vínculo formado pelo beijo, pegou as lapelas e separou a maldita coisa da gola à bainha, liberando todos os botões perolados que navegaram pelo ar e caíram sobre o tapete.

O sutiã por baixo da roupa era de um tom pastel bem claro e a simples peça de algodão ficou espetacular sobre os seios. E que alívio não ter que se preocupar em rasgar rendas delicadas.

Enquanto ele abria o fecho frontal, ela respirava rápido e com força e o movimento sinuoso de suas costelas sob a pele era muito excitante, mas nada comparado ao momento em que afastou os modestos bojos para os lados.

– Você é incrível – ele gemeu ao dar uma boa olhada nela... Algo que evitou fazer na noite anterior.

Oh, cara, os seios eram mais pesados que aparentavam ser com roupas, mais cheios e redondos também... Com isso, ele até se perguntou se ela não usaria sutiãs mais apertados intencionalmente para disfarçá-los. Que desperdício seria. Mas pensar que outro homem poderia olhá-la com cobiça instigou-lhe a vontade de recorrer à sua arma.

Apalpando o que havia sido revelado, teve outra surpresa que deixou passar na pressa da noite passada. Era toda natural, tudo presente de Deus, nenhuma intervenção por insegurança ou vaidade. E o peso maleável de seus seios fez seu pau pulsar... lembrando-lhe quanto tempo havia se passado desde a última vez que ficara com uma mulher sem a rigidez dos implantes.

Pressionando os seios, sentiu os mamilos rígidos e eretos e abaixou-se para sugar um, depois o outro. Em seguida, aninhou-se ali.

Bem, parecia ser um homem que adorava seios, ele pensou, quando seus quadris foram impulsionados contra as pernas dela. Quem diria?

Ou... talvez fosse um homem que adorasse Sophia Reilly.

– Você é linda demais – rosnou quando voltou a trabalhar sobre os mamilos cor-de-rosa.

Estava desesperado para entrar nela, e encantado com a parte de cima, explorando, lambendo, tocando e observando suas reações. De alguma maneira, as coxas dela separaram-se – talvez tenha sido o joelho dele, talvez a necessidade dela, quem se importa? –, e os dois uniram-se onde mais desejavam.

Erguendo-se com os braços, começou a pressioná-la, seu pênis rijo acariciando o núcleo dela. Em resposta, ela arqueou o corpo de uma forma muito erótica, os seios subiram quando a coluna movimentou-se e ela cravou as unhas nos antebraços de Veck.

Quando ergueu-se contra ela, os seios balançaram com o movimento e ele ficou entorpecido, com o corpo dormente e hipersensível ao mesmo tempo – mas percebeu que tinha perdido o contato com os lábios. Voltando a beijá-la, soube que estava prestes a não conseguir mais se controlar... E, então, sentiu as mãos dela puxando sua camisa.

Parece que não era o único desejando algo.

De repente, perdeu a paciência com suas roupas e o que cobria seu peito desapareceu um momento depois, arrancando tudo como fez com Reilly.

– Sinta minha pele – ele exclamou, ao colocar-se sobre ela.

Ele beijou-a com força enquanto as mãos dela passavam por todo o seu corpo, passeando sobre seus músculos, agarrando os ombros, riscando as unhas ao longo de suas costelas.

Mais.

– Posso te deixar nua? – disse.

– Sim...

Veck ergueu-se e ela levantou os quadris e começou a tirar o cinto. Fez um trabalho tão bom com as calças, que ele simplesmente sentou-se e observou quando uma calcinha de algodão apareceu em sua frente.

Quando ela mostrou estar com dificuldade para continuar, pois, ora, tinha um homem de noventa quilos em cima dela, ele ajudou a mulher a tirar as calças descendo-as sobre suas pernas longas e lisas.

Oh, cara... – pensou, passando as mãos sobre as coxas. Era esguia e levemente musculosa, e imaginou-se separando aquelas coxas e mergulhando sua cabeça...

Agarrando-a, investiu contra ela, esticando-se por cima dela mais uma vez. O plano? Facilitar o caminho ao sul e tomar a calcinha com os dentes. Então, passaria um tempo ali certificando-se de que o corpo dela estava pronto para ele. Com seus lábios, língua e dedos.

Parece que havia um pequeno cavalheiro dentro dele, afinal. Sim. Havia. Não era por estar morrendo de desejo de possuí-la... só que, em seguida, ela tocou o cinto dele. Veck congelou e colocou as mãos sobre as dela, acalmando-a.

– Se isso acontecer – disse em tom rude –, não serei capaz de esperar mais um segundo.

Com o corpo absolutamente sólido de Veck posicionado sobre o dela, o cérebro de Reilly estava focado em apenas uma coisa: tirar as calças dele.

– Não quero esperar.

– Tem certeza? – a voz dele era tão gutural que se aproximava do inaudível.

Como resposta, ela passou a mão entre as coxas dele e envolveu seu sexo. No instante em que a conexão foi feita, ele amaldiçoou numa respiração explosiva e seu corpo foi investido contra o dela, o material macio das calças dele não fizeram nada para ocultar aquela extensão rígida.

– Quero ver você – ela exigiu com voz rouca.

Não precisaria pedir duas vezes: com mãos violentas e rápidas, abriu a braguilha e foi ela quem puxou a cintura. Em seguida, trabalharam juntos com a cueca para libertar a...

O pau duro de Veck projetou-se dos quadris e as pálpebras dele abaixaram-se para vê-la observar o que havia ali.

Santo...

Bem, ela poderia usar um dicionário de sinônimos para definir aquilo como “magnífico”, não? E, se era correto afirmar que tinha ficado impressionada com o que viu naquela noite no banheiro ou quando o sentiu por cima das roupas na cozinha dela, podia-se dizer que agora explodia ao vê-lo totalmente revelado e pronto para rugir. E o sexo dele não era a única bela visão: seu peito era tão macio e musculoso quanto se lembrava e seu abdômen era incrível, havia linhas firmes e bem definidas que iam até sua pélvis e seu...

– Me f...

Ao agarrá-lo, com as palmas das mãos sobre a coisa, ele estremeceu violentamente, e Reilly adorou a sensação de poder por ter abalado sua estrutura. E, oh, Deus, era firme e longo, pulsava e latejava reagindo à carícia.

Nunca vou esquecer isso – ela pensou, vendo-o sobre si, dentes expostos, cabeça para trás, o peitoral enorme esticado enquanto se esforçava para assumir o controle. Era a coisa mais quente que já tinha visto. E explorar primeiro era uma virtude, com certeza... Mas desejava possuí-lo de maneira mais profunda antes de aprender suas particularidades.

Pensando assim...

– Sua carteira? – ela tinha visto o que ele guardava ali quando manipulou a carteira na floresta... e a visão das camisinhas constrangeu-a naquele momento. Agora, estava agradecida, pois Deus sabia que ela não tinha nada disso. E não havia necessidade de se culpar por isso, um homem tinha que estar preparado sempre. Além disso, tinha alguma noção de como ele era. Testemunhou o efeito daquilo sobre Britnae.

– Agora – ela exclamou.

Outra coisa que não precisou pedir duas vezes. Quando encontrou as calças e tirou a carteira, ela levantou-se e tirou a calcinha – assim, estava pronta quando ele ergueu umas das mãos e trouxe a camisinha entre os dedos.

Ele fez uma pausa, como se quisesse que ela desse mais uma boa olhada.

Ela não hesitou. Sentou-se, pegou o pacote, mordeu e rasgou para abri-lo.

Ele gemeu e disse: – Eu posso colocar...

– Não, me deixe fazer.

Detalhes práticos nunca foram tão eróticos. Ela lidou bem com o objeto, acariciando a grande extensão de seu pênis ao cobri-lo, até Veck arquear-se e segurar o peso do corpo sobre os braços. Quando Reilly começou a tocá-lo, os olhos dele começaram a queimar, e, quando ela puxou-o, Veck rosnou... E beijou-a da maneira de sempre: com um domínio que vinha de um homem que sabia exatamente o que poderia fazer com uma mulher.

Ela posicionou-o sobre seu núcleo e, apesar de estar desesperada e de estar evidente que ele a desejava, Veck foi lento e cuidadoso ao pressioná-la por dentro. Muito bom. O corpo dela estava pronto – mas “pronto” era um termo relativo, considerando o tamanho dele.


Gloriosamente relativo: o toque de toda aquela extensão foi eletrizante, e ela abriu as pernas ainda mais, inclinando os quadris para cima, facilitando o caminho.

E, finalmente, estavam juntos.

Ao contrário da fúria que tinha tomado conta deles até ali, agora tudo desacelerava. Enquanto ele a esperava se adaptar ao seu órgão, lambeu seus lábios com a língua escorregadia; os movimentos preguiçosos atordoaram-na. Então, moveu os quadris, curvando a coluna, criando um arrepio insano.

O assovio que ele soltou foi seguido por outro gemido. Em seguida, Reilly fundiu sua boca com a dele e continuou, mantendo o ritmo equilibrado e sem pressa. Seguindo o exemplo dele, começou a golpear também. Com isso, o sexo ganhou um impulso que a levou, ao mesmo tempo, para fora de seu corpo e para os locais mais profundos de seu íntimo.

A casa estava em silêncio. Tudo o que faziam era muito alto. Desde o ranger do sofá, até o atrito sutil das almofadas, a respiração e... Tudo estava amplificado até ela imaginar que não ficaria surpresa se pessoas no centro da cidade pudessem ouvir.

Mais rápido. Mais forte. Mais profundo.

O corpo dele transformou-se numa máquina, e ela segurou-o, deixando ser levada pelo turbilhão, agarrando suas costas primeiro com as mãos, depois com as unhas.

Reilly gozou com uma explosão selvagem tão poderosa que ficou surpresa por não ter se partido ao meio. E ele seguiu-a de imediato, os quadris dele começaram a pulsar violentamente quando houve a pressão dentro de seu órgão.

Passou-se um bom tempo antes do rugido em seus ouvidos diminuir e, quando aconteceu, o silêncio na casa aumentou.

Depois do momento de paixão, a realidade retornou: tomou consciência de que estava nua e Veck estava dentro dela... e tinham acabado de fazer sexo.

Com o homem que era seu parceiro. Com o detetive que deveria fiscalizar. Com uma pessoa com quem tinha passado apenas algumas horas... que não era nada além de um estranho, afinal.

Um estranho que levou para a casa de sua família.

Um estranho que ela deveria adicionar à sua lista das poucas pessoas com quem ela havia estado.

O que eles tinham acabado de fazer?


CAPÍTULO 22

 

Adrian e Eddie ficaram mais um tempo ao longo da noite sentados naquela mesa do Iron Mask, bebendo cervejas nas garrafas longneck e paquerando as mulheres que passavam por eles. Nenhum dos dois falou muito. Era como se o que acontecera no banheiro tivesse sugado suas cordas vocais. E outra rodada de sexo estava fora de questão.

Ao sentar-se ao lado do seu parceiro, Ad esperava que algo dentro dele protestasse e trouxesse-o de volta ao normal. Maaas... nada aconteceu. A questão era: poderia lutar com seu inimigo com facas e punhos, mas a alma não tinha armas para lutar naquela guerra, pois não tinha como vencer. Também não conseguia lutar contra a realidade no ringue – não havia alvo para atingir. A não ser um obstáculo intransponível. Então, apenas sentou-se naquele clube, observando a multidão beber, mas sem ficar embriagado.

– Vamos voltar ao hotel? – perguntou finalmente.

Enquanto esperava por uma resposta, tinha plena consciência do quanto confiava no outro anjo como sendo a voz da razão; era aquele que tomava as decisões certas, que os guiava na direção correta.

E o que ele dava em troca?

Além do sexo – e, naquela noite, Eddie tinha provado que não precisava dos seus serviços nesse sentido também.

Ai, ai, ai – Ad pensou. Se continuasse assim ganharia o prêmio de covarde do ano.

– O que eu quero mesmo é uma audiência com Nigel – Eddie murmurou. – Mas ele está me afastando.

Ad olhou para ele.

– Será que ele foi demitido outra vez? Porque não deve se preocupar, não é nossa culpa. Jim é quem está com problemas, não nós. Ele nos dispensou.

E tudo por causa daquela maldita virgem.

Cara, se ele pudesse voltar atrás em alguma coisa desde que conheceu o salvador, seria manter o cara longe da toca de Devina. Sim, com certeza, a questão Sissy foi uma tragédia. Mas o que isso estava causando a Jim era pior. Uma garota, uma família, versus a totalidade das almas existentes? Matemática cruel para os Bartens, mas era a realidade.

Ad passou uma das mãos pelos cabelos e sentiu vontade de gritar.

– Olha, não consigo mais ficar aqui.

O grunhido que saiu de Eddie poderia ser um gesto de acordo, fome, ou a cerveja que não tinha caído bem.

– Vamos – Ad declarou, levantando-se.

Pela primeira vez, Eddie seguiu-o e, juntos, desviaram-se da multidão e afastaram-se do tumulto, chegando à porta de saída. Do outro lado? Chuva. Frio. Era o período noturno numa cidade que não era diferente de nenhuma outra no planeta e uma noite que não destoava de tantas outras pelas quais já tinham passado juntos.

Droga, talvez precisassem se acertar com Jim... relaxar. Nada de bom poderia vir com o salvador lutando sozinho.

Saindo do clube, não seguiram para uma direção específica. Mais cedo ou mais tarde, encontrariam um lugar para ficar – a menos que fossem acolhidos no território de Nigel, mas parece que isso não aconteceria tão cedo. Precisavam descansar. Imortais eram imortais só até certo ponto quando estavam na Terra. Não, não envelheciam, mas eram vulneráveis de algumas maneiras e precisavam comer, dormir, seguir as regras de higiene...

O ataque aconteceu tão rápido que Adrian não conseguiu ver nada. Nem Eddie. Seu parceiro apenas soltou um palavrão, agarrou a lateral de seu corpo e caiu como uma árvore, de lado, sobre o pavimento molhado do beco.

– Eddie? O que aconteceu?

O outro anjo gemeu e curvou-se todo... deixando atrás de si uma mancha brilhante de sangue fresco sobre o asfalto sujo.

– Eddie! – gritou.

Antes que pudesse se ajoelhar, um riso maníaco ecoou na escuridão fria e úmida. Levou apenas um segundo para Adrian reagir. Virou-se e desembainhou a faca, esperando enfrentar Devina. Acompanhada de um de seus subordinados. Ou doze deles.

Mas tudo o que viu... foi um humano. Um maldito pedaço de carne humana. Com um canivete na mão e um olhar selvagem de viciado no rosto encolhido.

Mais risos saíram da boca escancarada do homem.

– O diabo me obrigou a fazer isso! O diabo me obrigou a fazer isso!

O mendigo ergueu a faca por cima do ombro e saltou à frente, atirando-se contra Adrian com uma força sobre-humana, que só os loucos possuem.

Ad firmou-se sobre as coxas. Seu movimento normal seria sair correndo e olhar para trás bem depois, mas não com Eddie no chão: precisava manter contato visual com seu amigo... porque o cara não estava se movendo, nem para pegar uma arma, nem... ah, droga, não estava se movendo...

– Vamos lá, Eddie. Mexa-se! – passou a adaga de cristal para a mão esquerda e observou o antebraço do maluco possuído, esperando o momento certo...

O cara vacilou um pouco e foi o momento perfeito para Ad pegar o braço dele, mudar a trajetória do canivete e redirecioná-lo contra o bastardo. E a correção de percurso deveria ter sido muito fácil, a arma faria um arco evitando o contato com os órgãos vitais de Ad e terminaria no intestino do agressor.

Não foi bem assim. O corpo magro controlado pela mente caótica desvencilhou-se de Ad como se fosse uma rajada de vento, e ele, então, percebeu que Eddie não se levantaria.

Como se o maluco pudesse ler sua mente, um riso borbulhou de sua alma perdida, soando como um piano sendo tocado aleatoriamente por uma mão pesada, nada além de ruídos e sons dissonantes.

O filho da mãe quase voava sobre o chão ao investir contra Eddie outra vez, a faca por cima do ombro, a pele descamada sobre o rosto em que se via mais ossos que carne.

Ad não teve escolha. Precisava se concentrar no agressor e se proteger. Eddie morreria naquela calçada se ele não sobrevivesse e tirasse-o dali em segurança. Não podia perder aquela luta.

Agachando-se no último momento, investiu contra o bastardo e fazendo-o colidir contra uma construção. Quando o impacto aconteceu, uma dor ardente acima de seus rins disse-lhe que a faca havia ultrapassado a pele e mergulhado bem fundo, mas não houve tempo de se preocupar com o sangramento. Estendeu a mão, pegou aquele braço enlouquecido e acertou-o em cheio com um tijolo molhado. Fixando o membro no chão, fez um longo ferimento nele com sua adaga.

A risada maníaca foi substituída por um grito agudo de dor.

Esfaqueou outra vez. E uma terceira vez... uma quarta, uma quinta. Era claro que estava tão enlouquecido quanto o agressor, mas não parou. Com um poder preciso e cruel, golpeou a lâmina de cristal por cima do tronco várias vezes até quebrar todas as costelas, como se a lâmina penetrasse numa esponja molhada. Mesmo assim, continuou, só não precisava mais controlar o cara, apenas mudou-o de lugar para terminar de esfaqueá-lo.

A diversão e as brincadeiras finalmente pararam quando sua lâmina de cristal atingiu a parede de tijolos, esculpindo-a nos locais onde Ad havia golpeado.

Ele estava ofegante quando deixou a arma cair ao seu lado. Havia sangue por toda parte, e o maluco estava com muitos problemas no trato intestinal – na verdade, o cara quase tinha sido partido em dois, a coluna era a única coisa que ligava os quadris à parte superior do corpo.

Com lábios frouxos e flácidos, os engasgos interromperam o fluxo constante de plasma que bloqueava o ar que o homem ainda tentava fazer passar pela garganta. Mas aquilo terminaria em breve.

– O demônio... me obrigou... a fazer...

– E ela pode ficar com você – Ad rosnou, antes de lançar uma facada entre os olhos do maluco.

Houve um barulho terrível quando a essência de Devina explodiu daqueles olhos que uma vez tinham pertencido a um viciado de rua perdido. A fumaça negra fundiu-se e preparava um ataque por conta própria.

– Droga! – com um grande salto, Adrian ergueu o corpo e saiu correndo. Eddie ferido no chão era seu principal objetivo e cobriu o corpo do anjo com o seu, tornando-se o único escudo que manteria Devina longe da carne de seu parceiro.

Preparando-se para o impacto, pensou: Bem, não esperava ser assim, tão rápido.

Estava pensando na morte.

Ao menos Eddie sairia dessa. Era preciso mais que um grande golpe para derrubá-lo de vez. Afinal, feridas poderiam ser consertadas... tinha de ser assim.

Enquanto Jim estava parado com Cachorro na calçada da casa de Veck, entendeu que tinha assumido uma posição observadora com a alma em questão, apenas seguindo o cara em todos os lugares, deixando o tempo passar até Devina fazer a próxima jogada. Isso era extremamente chato.

Ficava muito mais à vontade assumindo uma postura agressiva, mas, às vezes, esperar e observar eram o X do problema. Contudo, caramba, o clima poderia estar melhor. A chuva continuava a cair e ele poderia muito bem continuar o seu trabalho sem o frio. Poderia muito bem ignorar o que acontecia dentro da casa também. Claro que aqueles dois estavam fazendo sexo. Dã.

Visualizou o início da diversão quando entraram e, então, ficou óbvio qual seria o próximo passo: a química deles estava explodindo e, em geral, não era o tipo de coisa da qual se fugia.

Jim cruzou os braços sobre o peito e agachou-se, todo aquele movimento sensual o fez pensar nas mulheres com quem estivera. Hum... Devina contava? Apenas se estivesse com o disfarce da bela morena, concluiu. Sem isso, teria que iniciar uma categoria “animal” na sua lista.

Tanto faz. Independentemente da espécie, nunca ficou com alguém a quem dava a mínima importância. Transar era como uma masturbação interativa para ele – e, pensando assim, prostitutas baratas pareciam um bom negócio. Gostava de ficar com elas, a sensação de controle era melhor que qualquer outra coisa que fizessem.

Contudo, sua vida sexual tinha acabado, não? Não poderia considerar o que teve com aquele demônio – foi uma luta em meio à guerra, apenas com punhos e cotovelos movimentando-se de forma diferente. E seu estilo de vida não incentivava muito um namoro. Porém...

De repente, uma imagem de Adrian e Eddie transando com aquela ruiva no quarto de hotel em Massachusetts escorreu em sua mente como chuva sobre a cabeça. Viu Eddie estendido em cima dela e Adrian juntando-se a eles com um olhar de quem já estava morto por dentro.

Devina havia feito aquilo com o anjo. Colocou aquele vazio em seu olhar.

Vadia da porra.

Pegou um cigarro, acendeu e inalou.

Veck era um homem de sorte por estar com a mulher que desejava. Jim nunca teria aquilo. Mesmo se libertasse Sissy...

– Idiota – murmurou ao exalar.

Será que a importância que dava àquela garota em alguma parte ridícula de seu cérebro tinha ido tão longe que ultrapassara os limites do termo “sua” ao referir-se a ela como alguém por quem era responsável? Pensava nela como sendo “sua” de fato? Será que tinha enlouquecido? Ela estava mais ou menos com seus dezenove anos e ele devia ter 140 mil naquele momento.

Certo, talvez Adrian e Eddie estivessem certos. O que estava fazendo com relação àquela garota era distração. Sim, tentou disfarçar com o discurso de que estava tudo bem, mas mentiu o tempo todo. E, naturalmente, quando seus parceiros forçaram-no a olhar a realidade, voltou-se contra eles e bufou como uma biscatinha.

Um arranhão na perna o fez baixar a cabeça. Cachorro tinha se sentado próximo aos seus pés e dava patadas na panturrilha. Parecia preocupado.

– O que foi?

O telefone de Jim tocou e, antes de atender, verificou a tela e teve a premonição de uma tragédia.

Aceitou a ligação e tudo o que ouviu foi uma respiração difícil. Em seguida, a voz de Eddie, fraca e entrecortada.

– Rua do Comércio... com a 13. Ajuda...

O riso entrecortado ao fundo significava más notícias, e Jim não perdeu tempo. Deixou Cachorro na calçada e foi para o centro da cidade, rezando para que um piscar de olhos fosse o suficiente para chegar a tempo.

O endereço era irrelevante, tudo o que tinha a fazer era seguir a essência de seus amigos. Chegou lá no momento em que Adrian pegou sua adaga de cristal e investiu entre os olhos de um bastardo louco e ensanguentado.

Devina.


Jim não precisava ouvir o barulho estridente para saber que algo maligno surgiria daquele saco de carne, e não havia nada para impedi-lo de investir contra Eddie: o anjo estava caído, todo contorcido, com o celular numa das mãos, agora totalmente rendido.

Sem pensar, Jim jogou-se em direção ao anjo sem defesa, arremessando o corpo no ar – Adrian fez a mesma coisa, ao mesmo tempo.

Ad aterrissou primeiro. E Jim cobriu os dois, sem muita esperança de proteger alguém...

Mas a coisa mais estranha aconteceu: seu corpo dissolveu-se em luz, da mesma maneira que aconteceu quando ficou furioso com Devina na última rodada. Num momento estava em sua forma corpórea... no outro, era pura energia.

Cobriu os anjos embaixo dele. Conseguiu mantê-los em segurança.

O servo, demônio, seja lá o que fosse aquilo, atingiu-o com o impacto de uma bola de golfe sobre o capô de um carro, ricocheteando, sem fazer qualquer estrago. Tentou outra vez imediatamente e obteve o mesmo resultado. Eeeee uma terceira vez.

Houve uma longa pausa em que Jim não vacilou. Podia sentir a presença em volta deles, procurando uma maneira de entrar.

Ficou claro que Eddie sangrava. O cheiro pungente era muito forte para estar vindo do corpo que jazia próximo à parede de tijolos. Inferno, talvez os dois anjos estivessem feridos. Hora de acabar com aquela bobagem.

Jim retraiu-se, levantou-se numa coluna de luz brilhante que iluminou cada centímetro nas proximidades e dissipou todas as sombras daquele local sujo. Colocando-se em posição de defesa frente ao ser maligno, condensou tudo o que havia no ar... E lançou tudo contra o filho da mãe.


A explosão não produziu luz, mas o grito foi tão alto quanto dois carros freando com força ao mesmo tempo em asfalto seco, e, em seguida, houve um ruído estranho como se areia estivesse sendo despejada.

Jim retomou sua forma corpórea e ajoelhou-se sobre os rapazes.

– Quem está ferido?

Adrian gemeu e saiu de cima de seu melhor amigo, uma das mãos pressionava a lateral do corpo.

– Ele. Levou uma facada no estômago.

Estava claro que Ad tinha sido ferido também, mas Eddie não se movia. Ao menos até Jim tocar o ombro do anjo. Com isso, o cara encolheu-se.

– Como você está?

Quando não houve resposta alguma, Jim olhou ao redor. Precisavam sair da rua. Era uma área movimentada da cidade durante a noite, e a última coisa que precisava era de alguém bem intencionado chamando a emergência. Ou pior, de um assaltante passando por ali. Ou de um policial em patrulha.

– E você? – perguntou a Adrian ao examinar o outro lado do beco.

– Estou bem.

– Mesmo? – edifícios de escritório, comércios ao redor. – Então por que está tremendo assim?

– Estou resfriado.

– Ah. Certo.

Não havia como voltar ao hotel. Precisavam de mais privacidade e, de qualquer maneira, era impossível carregar Eddie pela recepção: mesmo que conseguisse camuflar os dois, o cara ainda deixaria um rastro de sangue.

Além disso, as alternativas eram discutíveis, pois não poderia voar com aquele peso. Precisava encontrar abrigo para eles perto dali.

– E a sua mobilidade? – perguntou a Adrian.

– Depende. Se for para andar? Tudo bem. Voar? Nem pensar.

Jim mergulhou os braços sob o corpo de Eddie.

– Prepare-se, garotão. Isto vai doer.

Com um impulso, Jim estendeu os músculos da coxa como apoio e ergueu o peso do anjo do pavimento úmido. Em resposta, Eddie gemeu e ficou mais tenso, o que foi bom, pois facilitou segurar o cara.

Também significava que o bastardo ainda estava com eles.

Antes que Jim começasse a andar, o celular de Eddie atingiu o chão e deslizou para longe, batendo na bota de combate de Adrian.

O anjo curvou-se e pegou. A tela brilhava, e o sangue projetou uma luz vermelha.

Passando a mão pelos cabelos molhados, Ad disse: – Então, ele te ligou.

– Sim – já na saída do beco, Jim indicou com a cabeça um banco do outro lado da rua. – Vamos entrar lá.

– Como?

– Pela porta da frente – quando Jim começou a caminhar, murmurou para Eddie: – Caramba, garoto, você pesa tanto quanto um carro.

O passo arrastado atrás dele indicava que Ad acompanhava-os. O comentário em seguida apenas confirmou tal fato: – Um banco? Aquele lugar deve estar todo trancado. Tão perto de...

Quando chegaram à entrada com portas de vidro da recepção, as luzes internas apagaram-se, o sistema de segurança foi desativado e a porta da frente... abriu-se, completamente.

Quando entraram, tudo voltou ao normal, exceto as luzes e os sensores de movimento.

– Como fez isso? – Adrian sussurrou.

Jim olhou por cima do ombro. O anjo atrás dele parecia ter sofrido um acidente de trem: rosto muito pálido, olhos muito arregalados, sangue nas mãos e escorrendo pela camiseta.

– Não sei – disse Jim com voz suave. – Apenas fiz. E você precisa se sentar. Agora.

– Dane-se... Precisamos cuidar de Eddie.

Verdade. O problema era que numa situação como aquela... Eddie era o cara a quem Jim perguntaria o que fazer.

Hora de começar a rezar por um milagre – Jim pensou.


CAPÍTULO 23

 

Veck sentiu a mudança em Reilly imediatamente: mesmo ainda dentro dela, percebeu que, em sua mente, ela havia colocado suas roupas, aberto a porta e ido embora.

Droga.

Movendo uma das mãos entre seus corpos, apoiou-se e recuou.

– Sei o que está pensando.

Ela esfregou os olhos.

– Sabe?

– Sim. E provavelmente eu deveria dizer algo como “foi um erro”. Assim, você poderia dar logo um fim nisto.

Antes que se ajeitasse sobre as almofadas do sofá ao lado dela, abaixou-se e pegou a camisa dele para cobrir o corpo nu de Reilly.

Enquanto ele puxava a gola até o queixo, ela examinava seu rosto.

– Foi um erro, para todos os efeitos. É um erro.

Certo, esta doeu.

– Mas eu não consegui me conter – ela disse com voz suave.

– A tentação é assim – e ele tinha que manter isto em mente: tentação foi tudo o que a moveu.

Os olhos dela moveram-se para o chão próximo ao sofá... Onde a carteira dele estava aberta e havia outro preservativo guardado numa das divisórias.

– Acho melhor eu ir – disse ela um tanto rude.

Deus, por que sempre tinha que manter duas ali?

A última coisa que desejava era que ela fosse embora – e a última coisa que poderia impedir.

– Vai ter que ficar com a minha camisa. Eu rasguei a sua.

Fechando os olhos, ela amaldiçoou em voz baixa.

– Desculpe.

– Meu Deus, pelo quê?

– Não sei.

Acreditava que não sabia mesmo. Mas tinha certeza de que descobriria muito em breve exatamente o que e o quanto lamentava.

Quando Reilly levantou-se do sofá, ele escondeu o pênis com uma das mãos: ela não tinha motivos para ver aquilo agora. E não tinha motivos para pensar que a noite não tinha sido como ela mesma descrevera: um erro.

Para ele? Graças a Reilly, teve a sua primeira refeição caseira do século XXI, uma carona em meio à tempestade e uma relação sexual que se aproximava bastante do conceito piegas de “fazer amor”.

Irônico como duas pessoas poderiam cumprir a mesma lista de tarefas com uma perspectiva totalmente diferente. Infelizmente, o ponto de vista dela era o que contava.

Em silêncio, reuniu as roupas dela uma a uma e entregou-as. Ouviu quando ela vestiu as calças, as meias e os sapatos. Concluiu que tinha vestido o sutiã também, mesmo que a peça não fizesse muito barulho. O coldre foi a última coisa que entregou e, enquanto ela lidava com o cinto de couro, Veck subiu a própria calça e prendeu-a sobre os quadris.

– Vou te acompanhar até a porta – disse, quando ela terminou de vestir-se.

Não havia razão para prolongar aquela situação constrangedora. Além disso, iria embora de qualquer maneira.

Deus, isto tudo é como tomar um tiro – pensou ao aproximar-se da porta.

Quando Reilly aproximou-se, procurou olhar por sobre o ombro dela, o que, infelizmente, levou seus olhos para o sofá.

– Não quero que isso termine assim – ela disse.

– As coisas são como são. Sei de onde você veio, seus valores.

– Não é o que você pensa.

– Posso imaginar.

– Não quero... Eu queria muito isso. Mas é difícil ser apenas outra mulher em sua cama.

Ao abrir a porta, foi atingido por uma rajada de vento frio e úmido.

– Eu nunca te levaria lá para cima. Confie em mim.

Ela piscou confusa. Limpou a garganta e disse: – Certo. Ah... vejo você amanhã.

– Sim, às nove.

Assim que saiu, fechou a porta e foi até a cozinha para vê-la entrar no carro e afastar-se sob a chuva.

– Filho da puta.

Apoiando a palma das mãos sobre o balcão, deixou a cabeça pender por um momento. Então, enojado de si mesmo, virou-se e subiu as escadas rapidamente. Em seu quarto, passou pela cama e pensou: Não, de jeito nenhum, nunca traria Reilly até aqui.

Naquele colchão, trazido de Manhattan, deitaram-se as várias mulheres com quem tinha se relacionado ao acaso em bares e locais assim – nem sequer sabia o nome de algumas delas, muito menos o telefone. Pedia para que todas fossem embora antes mesmo do suor secar.

A mulher com quem teve a sorte de ficar naquela noite não era uma qualquer, e, mesmo que não sentisse o mesmo que ele, nunca a desvalorizaria deitando-a sobre aquele lugar sujo. Lençóis limpos não escondiam as manchas do modo como ele vivia.

No banheiro, tirou o preservativo e jogou-o na cesta de lixo. Ao olhar para o chuveiro, pensou em tomar uma ducha. Mas acabou vestindo uma calça de moletom e depois desceu para ficar no sofá, o perfume delicado de Reilly ainda estava sobre ele.

Patético.

O bom de ter passado três anos fazendo patrulha em vários pontos da cidade de Caldwell era que Reilly conseguia chegar em casa saindo de qualquer lugar sem nem sequer pensar no que estava fazendo. Muito útil numa noite como aquela.

Nunca a levaria lá para cima. Confie em mim.

É, aquela pequena frase ficaria em sua mente para o resto da vida. E, claro, ficou imaginando que tipo raro de mulher seria bem-vinda naquele local tão especial. Deus, com quantas mulheres deve ter ficado naquele sofá? E como seria a seleção para chegar até o quarto?


Mas não o culpava pelo que sentia agora. Desejava exatamente o que tinha acontecido e lidaria com as consequências – as quais, por ter sido sexo seguro, seriam apenas emocionais: escolhera aquele resultado... Seguiu Veck até a porta, empurrou o cara para dentro da casa, pediu para que pegasse a carteira. Então, seria adulta o suficiente naquele momento e passaria as próximas dez horas recompondo-se para voltar ao escritório às nove da manhã do outro dia. Era o que profissionais faziam. E o motivo pelo qual profissionais não deixavam as coisas chegarem àquele ponto.

Depois de dez minutos de estrada embaixo de uma tempestade, parou na calçada de sua casa e acionou o controle do portão da garagem. Enquanto esperava os painéis subirem, pensou: Ah, que droga. Entre o jantar e o que tinha feito depois, já fazia horas que não checava o celular.

Quando o pegou, verificou que havia três chamadas perdidas. Havia apenas uma mensagem de voz, mas, considerando quem tentara ligar, não perdeu tempo com isso. Simplesmente ligou de volta para De la Cruz.

Um toque. Dois toques. Três toques. Caramba, talvez ele estivesse dormindo. Era tarde... A voz dele interrompeu um dos toques.

– Esperava que fosse você.

– Desculpe, eu estava ocupada – fez uma careta. – O que aconteceu?

– Sei que gostaria de falar com Kroner e acho que pode e deve fazer isso agora. Os médicos dizem que ele está melhor do que pela manhã, mas a maré pode virar, e acho que se fizer uma entrevista como parte neutra no caso, pode ajudar Veck e também pode influenciar a opinião pública.

– Quando posso vê-lo? – inferno, iria naquela noite mesmo se pudesse.

– Provavelmente amanhã de manhã seja o melhor horário. Tive notícias há uma hora de que ele está descansando tranquilamente. Não está mais encubado, não tomou mais sedativos e até comeu alguma coisa. Mas, agora está dormindo profundamente.

Lembrando-se da condição do cara naquela floresta, era loucura ele ainda estar respirando, quanto mais comendo as refeições do hospital – e pensou em Sissy Barten. Tão injusto. Aquele tal de Kroner estava vivo e a garota... bem, provavelmente não.

– Estarei lá amanhã às nove horas.

– Tem segurança 24 horas. Vou me certificar de que sejam comunicados da sua visita. Ei, como estão você e Veck juntos?

Fechou os olhos e conteve um palavrão.

– Bem. Perfeito.

– Ótimo. Não o leve com você.

– Não iria mesmo – por mais de um motivo.

– Depois me diga como foi, se não se importa.

– Detetive, será a primeira pessoa para quem vou telefonar.

Depois de desligar, esfregou a nuca, tentando aliviar a tensão que pensava ter sido causada pelos exercícios que fizera com o parceiro naquele sofá.

Soltando o freio, deixou o motor levá-la devagar para dentro da garagem. Desligou o carro, saiu e... parou enquanto fechava a porta do motorista.

– Quem está aí? – ela gritou, colocando uma das mãos sob o casaco para pegar a arma.

A luz automática do teto deu-lhe uma visão clara das vassouras, da lata de lixo e do saco de sal que jogava na calçada durante o inverno para que os carteiros conseguissem entregar a correspondência. Mas também fez dela um alvo fácil para quem a observava.

E havia mesmo alguém.

Num movimento rápido, deu a volta pelo capô, e não pelo porta-malas, e já estava com a chave a postos antes de chegar à porta. Com movimentos rápidos e certeiros, abriu a fechadura, entrou na casa e acionou o portão da garagem ao mesmo tempo. E a fechadura foi trancada assim que entrou.

O sistema de alarme começou a apitar no canto da cozinha. Ou seja, estava ativado e fora ela mesma quem o tinha disparado. Com a mão esquerda, digitou a senha e silenciou o barulho. A arma estava na mão direita.

Com as luzes apagadas, passeou pela casa, olhando pelas janelas. Não viu nada. Não ouviu nada. Mas seus instintos gritavam que estava sendo vigiada.

Reilly pensou naqueles “agentes do FBI” e no fato de que alguém tinha entrado ou andado em volta da casa de Veck na noite anterior. Oficiais de polícia também são perseguidos. Isso já havia acontecido com muitos. E, embora há muitos anos não atuasse num caso com apelo público, hoje estava envolvida com Veck.

E ele estava longe de ser um cara sem controvérsias.

No escritório, pegou o telefone e verificou se havia linha. Sim, havia. E, ironicamente, Veck foi a primeira pessoa que pensou em chamar. Mas não chamaria, era perfeitamente capaz de se defender.

Puxando a cadeira da escrivaninha, posicionou-a para que pudesse ver a porta da frente e a que dava acesso à garagem ao mesmo tempo. Em seguida, arrastou um criado-mudo. No armário, num cofre à prova de fogo, havia três outras armas e vários cartuchos de munição; ela pegou outra automática e preparou-a para atirar.

Sentando-se apoiada contra a parede, pegou o receptor do telefone sem fio e colocou-o sobre a mesa com a arma extra, mantendo o celular no bolso caso precisasse agir rápido.

Alguém queria atacá-la?

Tudo bem. Podiam entrar para ver a recepção que teriam.


CAPÍTULO 24


No centro da cidade, na recepção de mármore do banco que Jim havia arrombado, Adrian estava perdendo sangue e com vertigens, mas se recusou a desmaiar.

Sob um facho de luz externa, Jim colocou Eddie suavemente no chão duro e polido. O anjo ainda estava contorcido, o corpo enorme assumiu uma posição fetal ao lado dele, sua trança escura serpenteava como uma corda.

– Podemos estender você um pouco, amigão? Ver o que está acontecendo? – disse Jim. Não eram bem perguntas. Era mais um aviso a Eddie de que mais movimentação estava por vir. E quando o cara esticou-se um pouco, foi bom ouvir o palavrão que soltou. Sinal de que o grande bastardo ainda estava respirando.

Só que continuou curvado sobre a barriga. E seu rosto... não estava certo. A pele, que era sempre de um tom mais escuro, estava clara como a neve, e seus olhos estavam fechados com tanta força que os traços distorciam-se.

Havia sangue na boca, manchando os lábios de vermelho. Sangue... estava saindo da boca.

Adrian começou a arfar, os punhos fecharam-se, o suor escorria pelo corpo inteiro.

– Você vai ficar bem, Eddie. Vai ficar...

– Se estenda um pouco, por favor – disse Jim. – Sei que dói demais, mas temos que ver.

–... tudo bem. Vai ficar tudo bem...

– Ai, merda – Jim sussurrou.

Ai... merda... era isso mesmo. O sangue não só manchava ou escorria de onde Eddie segurava... saía em fluxos.

Jim arrancou seu casaco de couro molhado, amassou-o e tirou do caminho as mãos de Eddie, escorregadias, brilhantes e vermelhas de sangue. Mas congelou em seguida.

De alguma maneira, a faca daquele maluco penetrou no intestino de Eddie e foi puxada para a lateral, produzindo um buraco longo e profundo o suficiente para que uma boa parte das vísceras fosse exposta. Mas essa não era a pior parte: considerando a quantidade de sangue que saía do ferimento, era evidente que uma veia importante ou uma artéria fora rompida. E isso iria matá-lo.

Jim estremeceu e colocou a jaqueta embolada sobre a ferida.

– Pode segurar isto para mim, Ed?

Eddie fez uma tentativa de erguer as mãos, mas conseguiu movê-las apenas um centímetro ou dois.

Jim olhou para cima.

– Ele pode morrer?

Adrian balançou a cabeça enquanto sentia as pernas ficarem dormentes.

– Eu não sei.

Mentira. Sabia a resposta. Só não conseguia dizer.

– Maldição – Jim inclinou-se em direção ao rosto de Eddie. – Cara, tem alguma coisa que pode me dizer?

Adrian caiu de joelhos. Em seguida, pegando a mão de seu melhor amigo, ficou horrorizado com o quanto estava fria. Fria e molhada por conta do sangue e da chuva.

– Eddie... Eddie, olhe para mim – Jim falava.

Aquilo não estava certo. O combatente heroico, o guerreiro que percorrera séculos, não poderia ser abatido por um louco com uma faca. Eddie era forte e destacava-se em tudo, glorioso, era alguém que poderia enfrentar um exército de escravos demoníacos sozinho. Não poderia ser assim... Não naquela noite.

Eddie soltou um suspiro ao apertar a mão de Adrian, seu corpo enorme tremia.

– Estou aqui... – disse Ad ao esfregar os olhos com as costas da mão livre. – Não vou a lugar algum. Não está sozinho...

Puta merda. Estamos perdendo Eddie.

E esse ponto era inexplicável. Como anjos, estavam e não estavam vivos, existiam e não eram constituídos de carne e osso ao mesmo tempo, eram imortais, mas capazes de perder a vida que lhes tinha sido concedida.

– Eddie, maldição... Não vá... Você consegue sair desta... – olhou para Jim. – Faça alguma coisa!

Jim soltou um palavrão e olhou em volta, caramba... Estavam na recepção de um banco e não num hospital. Além disso, o salvador não poderia pegar uma agulha e linha e começar a suturar, poderia?

Mas Jim fechou os olhos e acomodou-se no chão, cruzando as pernas no estilo indiano, conseguindo ficar completamente calmo. Quando Ad estava prestes a gritar dizendo que aquela não era hora de fazer meditação, o cara começou a brilhar: dos pés à cabeça, uma luz branca e pura começou a emanar de sua cabeça, corpo e mãos.

Um momento depois, o salvador estendeu-se... e colocou as mãos sobre o peito grande e volumoso de...

O tronco de Eddie arqueou-se para cima com força, como se tivesse recebido uma descarga elétrica daqueles desfibriladores cardíacos que os humanos usam e, em seguida, respirou fundo. Imediatamente, seus olhos vermelhos abriram-se... e voltaram-se para Adrian.

Sentindo-se uma menina por chorar, Ad limpou outra vez os olhos.

– Ei – teve que limpar a garganta. – Tem que ficar firme e enfrentar isto. Cure-se. Use o que Jim está lhe dando...

Eddie balançou a cabeça um pouco e abriu a boca. Tudo o que saiu foi um gemido.

–... firme. Vamos lá, cara, apenas...

– Preste... atenção... – Ad ficou imóvel, a voz de Eddie estava muito fraca. – Precisa... ficar... com Jim...

– Não. De jeito nenhum. Você não vai partir...

– Fique... com Jim... não... – lutou para respirar mais uma vez. – Fique com Jim.

– Não pode acabar assim! Sou eu quem deve ir primeiro...

Eddie ergueu o braço com esforço e colocou o dedo indicador sobre os lábios de Ad, para silenciá-lo.

– Seja... inteligente... ao menos uma vez... certo? Prometa.

Adrian começou a se mover para frente e para trás, os olhos inundados de lágrimas ao ponto de a visão ficar completamente turva.

– Prometa... por sua honra...

– Não. Não prometo nada. Dane-se! Não vai me deixar!

As pálpebras do anjo começaram a se fechar devagar.

– Eddie! Maldito! Não morra assim! Vai se foder!

Quando os ecos daquelas palavras desapareceram no ar, a respiração de Eddie ficou mais difícil enquanto abria a boca ao máximo. E, nos momentos terríveis e silenciosos que se seguiram, o coração de Ad começou a pulsar cada vez mais rápido, com a certeza de que o do seu amigo fazia o contrário e desacelerava.

Edward Lucifer Blackhawk morreu depois de respirar mais duas vezes.

Não foi a abrupta falta de movimentos nas costelas, ou a maneira como o corpo relaxou, ou o fato de a mão dele ter perdido a pouca força que ainda restava que confirmaram a morte. Foi o perfume de flores da primavera que flutuou pelo ar.

Adrian agarrou a frente da camiseta de Jim.

– Pode trazê-lo de volta. Traga-o de volta, pelo amor de Deus, coloque suas... mãos... em cima dele...

Por alguma razão, Adrian não conseguiu mais falar depois disso. Em seguida, não conseguia mais enxergar. Ficou confuso por um momento, olhou em volta, os pensamentos estavam nublados, sentiu um pouco de asfixia.

Oh, espere.

Ele estava soluçando como uma menininha.

Nem sequer fingiu se importar com isso, agarrou Eddie ao redor do peito e embalou junto ao coração o anjo caído que sempre o acompanhara, séculos e séculos, em cada passo de seu caminho na terra e no purgatório. E, quando o segurou, parecia leve em seus braços, mesmo o tamanho do corpo sendo o mesmo de sempre.

A essência de Eddie havia partido.

Eddie enterrou o rosto no pescoço grosso e começou a balançar para trás e para frente, para trás e para frente... para trás e para frente...

– Não me deixe... não... oh, Deus, Eddie...

Adrian não estava certo de quantos minutos ou horas se passaram, mas percebeu, mesmo naquele estado de perturbação, que algo havia mudado.

Olhando sobre a cabeça de Eddie, viu o salvador... E teve que piscar algumas vezes para se certificar de que a imagem fazia sentido.

Jim Heron estava agachado, dentes expostos, o corpo enorme muito tenso. Os olhos estavam fixos em Adrian e Eddie, e um brilho negro profano emanava deles, a luz maligna irradiava pelo ar perfumado.

Eram vingança, ira e raiva subindo e espalhando-se. Era a promessa do inferno na Terra. Era tudo o que dizia respeito a Devina... na forma e nas feições do salvador. Foi estranho, mas Adrian sentiu-se aliviado com a visão. Calmo. Centrado. Não estava sozinho ao sentir-se violado, roubado. Não estava sozinho ao olhar para o futuro.

O caminho que ele seguiria para abater aquele demônio teria dois pares de pegadas, não apenas um...

Naquele momento, Jim abriu a boca e soltou um rugido mais alto que o som de um avião decolando seguido por uma grande explosão: As janelas de vidro da recepção do banco, em toda sua imensa extensão, explodiram de uma só vez, banhando a calçada como se fosse uma nevasca de pequenos cacos de vidro.


CAPÍTULO 25

 

No céu, Nigel deu um salto em seu leito de cetim e seda. Não estava em repouso – não conseguia fechar os olhos sem Colin ao seu lado –, mas, acordado ou dormindo, a visão que lhe sobreveio iria deixá-lo chocado e em estado de alerta seja lá quais fossem as circunstâncias.

Com mãos trêmulas, vestiu um roupão para cobrir sua nudez. Edward... Oh, caro e estoico Edward. Havia partido. Naquele exato momento, na Terra. Uma terrível reviravolta nos acontecimentos. Uma desestabilização horrível.

Como isso foi acontecer?

Na verdade, a ideia de que um dos dois guerreiros fosse abatido não fora contemplada em nenhum de seus planos: enviou os anjos caídos para ajudar Jim, pois eram fortes e flexíveis e muito capacitados a defenderem o bem que tantas vezes subestimaram. E, dentre os dois, Eddie deveria sobreviver: era o prudente, o inteligente, aquele que equilibrava seu parceiro elétrico, eclético e fora de controle.

Mas o destino havia surpreendido a todos.

– Maldição, maldição... maldição...

Não tinha como trazer Edward de volta – ao menos não de alguma maneira que Nigel pudesse atuar: ressurreição era algo que só cabia ao Criador, e a última vez que um anjo havia retornado fora... nunca.

Nigel secou o rosto com um lenço de linho. Havia apostado tanto em Edward e Adrian, jogando-os como dados e, agora, Adrian, o volátil, sofreria um naufrágio sem sua bússola, sua âncora, seu capitão. E Jim, que já estava distraído, estava pior que sozinho. Ele teria que cuidar do outro anjo. Era uma tragédia.

E uma grande manobra da parte do demônio – afinal, como aquilo havia acontecido? Edward estava sempre alerta. O que o teria distraído de seus instintos?

Aproximando-se do balcão de chá, Nigel começou a aquecer a chaleira. Suas mãos tremiam ao pensar sobre o que havia feito. Edward vivia seguro naquele local incomparável que ele supervisionava – estava esperando para ser útil em alguma situação, é verdade, e emocionado por ser perdoado por quebrar as regras e salvar Adrian há muitos anos. Mas ainda assim. Um bom homem. Agora, havia partido. Não era para ser assim.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Apoiando as mãos sobre a tampa de mármore da cômoda, não conseguia suportar o peso em seu coração. Se não tivesse tirado os dois de seus respectivos purgatórios, isso não teria acontecido. Tinha sido tão arrogante com a certeza de ter feito a escolha certa.

O que foi que eu fiz...?

Parado ali, sem ninguém diante ou atrás dele, sozinho com seus maus pensamentos e com o peso de seus atos dentro do peito, pensou em Adrian. Sozinho. Com dor. Na guerra.

Enquanto Nigel esforçava-se para respirar, mesmo sem precisar disso, havia apenas uma entidade a quem recorrer naquela solidão terrível. E o fato de Colin não estar lá e, mais triste ainda, o fato de que ele não podia se aproximar do arcanjo fizeram-no chorar pela situação de Adrian. Perder sua outra metade era pior que a morte. Era uma tortura, embora fosse um aprendizado...

Ao longo do que se poderia considerar seus dias e noites, na rotação interminável de suas refeições de faz de conta e de seus jogos de críquete falsos, dentro daquela estrutura tão bem construída que arquitetou para manter a si mesmo e seus arcanjos sãos ao longo da eternidade em que existiam, Nigel nunca influenciara a vontade de outra pessoa. Não era de sua natureza fazê-lo. Além disso, Colin fazia parte dele. Ao contrário de Adrian, poderia falar com sua outra metade, buscar socorro em meio àquele terror, solidão e tristeza.

Adrian nunca mais teria acesso àquilo de novo: a não ser por um milagre impossível de acontecer, estaria cada vez mais longe da outra metade de si.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Quando o apito estridente da chaleira irrompeu ao longo do local, Nigel deixou que a água continuasse fervendo, seus pés moveram-se em direção à saída de seus aposentos particulares e ele cruzou o chão com passos rápidos, vestindo um roupão.

Influenciando os ciclos que comandava, a noite caiu como uma capa de veludo sobre a paisagem. Mais à frente, as chamas das tochas começaram a queimar ao longo das muralhas e das torres do castelo produzindo um brilho cintilante que se estendeu pelo gramado.

Edward estava perdido. Colin estava ali. Só havia muito gramado entre eles.

Seguindo pelas paredes da mansão, aproximou-se do canto mais a oeste da fortaleza e virou à direita. Ao longe, a tenda de Colin surgia construída contra a linha de árvores, a estrutura do local era feita de lonas pesadas sustentadas por grandes hastes. Ao contrário do santuário privado de Nigel, era pequeno e modesto. Nada de sedas. Nada de cetins. Nada de apetrechos de luxo: o arcanjo banhava-se no rio que corria atrás do local e não dormia sobre uma cama, mas sobre um leito rústico e pobre. Nada de cobertores. Nada de travesseiros. Apenas livros para se divertir.

Por tudo isso, Nigel insistia que dividissem seus aposentos; o outro arcanjo praticamente havia se mudado para lá há muitos séculos.

Na verdade, quando chegou à tenda, Nigel percebeu que nunca havia passado uma “noite” ali. Sempre era Colin quem se locomovia.

Quando foi a última vez que estive aqui? – Nigel pensou.

Não havia batentes de porta para bater.

– Colin? – disse calmamente.

Quando não houve resposta, repetiu o nome. E fez isso mais uma vez.

Parecia que todas as luzes estavam apagadas; então, convocou uma lanterna na palma de uma de suas mãos, produzindo um pouco de iluminação diante de seus olhos. Estendendo um dos braços, empurrou a lona para um dos lados e afastou-a, a iluminação penetrou no interior escuro.

Vazio.

De fato, se algum ser desavisado entrasse ali, poderia achar que havia acontecido um assalto. Havia tão pouca coisa ali dentro. Sim, sim... apenas um leito simples com um baú posicionado aos pés do objeto. Alguns livros encadernados em couro. Uma lamparina a óleo. No chão, não havia sequer um mero tapete, apenas a mesma grama do pátio externo.

Os quartos de Bertie e Byron, constituídos na outra extremidade da muralha, eram tão luxuosos quanto o de Nigel, apenas decorados de acordo com as preferências de cada um. E Colin poderia ter mais do que aquilo. Colin poderia ter o mundo.

Virando-se, Nigel saiu da tenda e seguiu até o riacho. Havia toalhas penduradas em galhos de árvores e marcas de um par de pegadas sobre a areia.

– Colin... – sussurrou.

O som triste da própria voz foi o que o alertou para a realidade.

De repente, o desespero atingiu-o e fez com que repensasse sobre a decisão de ter ido até ali mesmo em meio à realidade da guerra: pensou em Jim, em Adrian e em suas fraquezas. Fraquezas que estavam sendo expostas e exploradas pelo outro lado.

Ele mesmo era fraco em relação a Colin. O que significava que também possuía uma brecha desprotegida. Com rapidez, Nigel virou-se e começou a correr, seus passos levando-o na noite enquanto puxava o roupão para se cobrir melhor. Não se desviaria do caminho de seus aposentos outra vez.

Não era Adrian. Não se perderia... como Adrian perdera-se. E não se comprometeria com o que sentia como aconteceu com Jim. O dever exigia dele um grande isolamento e muita força. O céu não merecia um esforço menor.


CAPÍTULO 26

 

Na manhã seguinte, Veck sentou-se em sua mesa e olhou para Bails sobre a caneca da cafeteria. O cara mastigava em ritmo acelerado, o rosto animado, as mãos movendo-se em círculos.

–... toda a maldita coisa explodiu – Bails parou e acenou na frente do rosto de Veck. – Oi! Está me ouvindo?

– Desculpe, o quê?

– O primeiro andar inteiro do Banco de Caldwell, na rua do Comércio com a 13, está no meio da rua.

Veck balançou a cabeça para voltar a se concentrar.

– O que quer dizer, no meio da rua?

– Todos os vidros das janelas da recepção explodiram. Não restou nada além das estruturas metálicas. Aconteceu um pouco antes da meia-noite.

– Foi uma bomba?

– A bomba mais estranha que já se viu. Não há danos na recepção... bem, algumas cadeiras da sala de espera foram removidas, mas não há evidências de detonação. Não há um raio de impacto. Há uma mancha estranha no piso do saguão formada pelo que parece ser esmalte, e o local cheirava a uma floricultura. Mas, além disso, nada.

– Os policiais que investigaram a cena assistiram às fitas de segurança?

– Sim, e adivinhe só? O sistema apagou por volta das 23h e continuou assim.

Veck franziu a testa.

– Simplesmente apagou?

– Apagou. Mesmo sem nenhuma avaria no fornecimento de energia elétrica ter sido relatada no bairro. Parece que as luzes da recepção foram apagadas também. Mas nenhum outro dispositivo ou sistema foi afetado no local, incluindo o alarme e a rede de computadores. É muito estranho. Como apenas os registros de vídeo são perdidos e nada mais?

A nuca de Veck formigou. Pelo amor de Deus, onde foi que ouvira aquilo antes...?

– Sim, é estranho.

– É a única palavra para definir isso.

Bails inclinou a cabeça, os olhos estreitaram-se.

– Ei, você está bem?

Veck voltou-se para seu computador e acessou seu e-mail.

– Nunca estive melhor.

– Se você diz – houve uma pausa. – Acho que sua parceira está entrevistando Kroner.

Veck virou-se bruscamente.

– Está?

– Não sabia? – Bails encolheu os ombros. – De la Cruz me mandou uma mensagem ontem à noite. Eu queria voltar lá hoje, mas é a vez do Departamento de Assuntos Internos lidar com ele... Sem dúvida para envolver você com um belo laço dizendo “inocente”.

Maldição. A ideia de Reilly perto daquele monstro fez seu sangue congelar.

– Quando?

– Agora, eu acho.

E, como pode imaginar, o primeiro instinto dele seria sair correndo até o Hospital São Francisco. Claro, esta deve ter sido a razão pela qual ela nem sequer passou ali para comentar onde estava indo.

– Bem, te vejo depois. Preciso voltar ao trabalho.

Por instinto, Veck pegou o celular e verificou as mensagens. Havia uma mensagem de texto de Reilly que não ouvira chegar: “Vou me atrasar hoje. R.”

– Que foda.

Olhou ao redor, como se o gesto pudesse ajudá-lo de alguma maneira. Em seguida, tentou se concentrar na tela do computador à frente dele.

Maldição... sem chance de conseguir continuar sentado naquela cadeira enquanto ela entrevistava um louco.

E, no entanto... era uma oportunidade, não?

Pegou o café e atravessou o Departamento de Homicídios, virou à esquerda e dirigiu-se à saída de emergência. Subiu dois degraus de cada vez na escada de concreto, passou pela porta de aço e seguiu até a sala de provas.

Ali, identificou-se à recepcionista, conversou um pouco – como se tudo o que precisasse lá dentro fosse questão rotineira – e, depois de mais um pouco de conversa jogada fora, estava em meio às estantes.

Como policial de patrulhas em Manhattan, passou um bom tempo manipulando evidências como embalagens com drogas, celulares e dinheiro apreendido – coisas usadas em crimes diversos. Agora que estava no Departamento de Homicídios, lidava mais com roupas ensanguentadas, armas e objetos pessoais – coisas que foram deixadas para trás.

Passando pelas longas fileiras de estantes, concentrou sua atenção na parte de trás da instalação, onde estavam as mesas.

– Oi, Joe – disse, ao aproximar-se da parede de 1,8 metros de altura.

O investigador de cenas criminais veterano ergueu o olhar de um microscópio.

– Oi.

– Como vai?

– Trabalhando muito.

Quando o cara levantou os braços sobre a cabeça e espreguiçou-se, Veck encostou-se contra a estação de trabalho, todo casual.

– Como você aguenta?

– O turno da noite é mais fácil que o diurno. Claro, nesta última semana, os dois estão uma droga.

– Ainda falta muito para examinarem tudo?

– Talvez umas 48 horas. Estamos em três. E não paramos em momento algum, com exceção da noite passada.

Veck olhou a coleção de coisas que haviam sido catalogadas e seladas, bem como a bandeja enorme com itens já registrados, mas que ainda precisavam ser examinados e devidamente embalados.

O investigador usou uma pinça para colocar uma amarra de cabelo debaixo da lente de aumento. Depois de colocar o elástico preto numa embalagem plástica, pegou um adesivo amarelo fosforescente longo e fino e colou sobre a abertura. Em seguida, fez uma anotação com uma caneta azul, colocando suas iniciais logo abaixo e digitou algo no teclado do notebook. O passo final foi passar o código de barras da embalagem sobre um leitor. O sinal sonoro produzido significava que agora o objeto estava oficialmente no sistema.

Veck tomou um gole de seu café.

– Bem, estou trabalhando num caso de pessoa desaparecida. Uma jovem.

– Quer dar uma olhada no que temos?

– Tem problema?

– Não. Apenas não leve nada daqui.

Veck começou pelo final das estantes que foram instaladas ali em caráter temporário. Nenhum objeto daquela coleção tinha um local exato para ficar ainda, pois todos, desde os oficiais de polícia até o FBI, examinariam tudo.

Pulou os frascos de amostra de pele, pois Cecília não tinha nenhuma tatuagem, e concentrou-se na variedade de anéis, pulseiras, presilhas, colares...

Onde você está, Sissy? – pensou.

Abaixando-se, pegou um saco plástico transparente selado com a assinatura de um dos investigadores. Dentro, havia uma pulseira de couro manchada e com um pingente em forma de crânio. Não era o estilo de Cecília.

Continuou e pegou uma argola prateada já registrada. Em todas as fotos na casa dos Barten, a garota usava acessórios dourados.

Onde você está, Sissy... onde diabos você está?

No Hospital São Francisco, Reilly estava concentrada ao caminhar ao longo de um dos milhares de corredores. Enquanto andava, passou por médicos com jalecos brancos, atendentes de uniformes azuis, enfermeiras de verde e pacientes e familiares vestidos com roupas casuais.

A unidade que procurava ficava à direita, e separou o distintivo enquanto aproximava-se do balcão das enfermeiras. Depois de uma rápida conversa, foi orientada para seguir em frente e virar à esquerda. Quando virou na última esquina, o guarda próximo à cela de vidro levantou-se.

– Oficial Reilly? – disse.

– Sou eu – mostrou o distintivo. – Como ele está?

O homem balançou a cabeça.

– Acabou de tomar café da manhã – havia um evidente tom de desaprovação na resposta, como se o guarda desejasse que o suspeito fizesse uma greve de fome. Ou talvez que morresse de fome. – Acho que vão tirá-lo daqui logo, pois ele está indo muito bem. Quer que eu entre com a senhora?

Reilly sorriu enquanto guardava o distintivo e tirava um pequeno bloco de notas.

– Posso lidar com ele.

O oficial de segurança pareceu medi-la, mas assentiu com a cabeça em seguida.

– Sim, parece que sim.

– Não se trata apenas de aparências. Confie em mim.

Ela abriu a porta de vidro, empurrou a cortina verde-clara... Congelou com a visão de uma enfermeira inclinando-se sobre Kroner.

– Oh, desculpe...

A morena olhou para ela e sorriu.

– Por favor, entre, oficial Reilly.

Quando Reilly olhou aqueles olhos de um negro tão intenso que pareciam não possuir íris, sentiu uma onda de terror irracional: cada instinto em seu corpo dizia para correr. O mais rápido e para o local mais distante possível.

Só que Kroner era o único com quem precisava ser cautelosa – não uma mulher que estava apenas fazendo seu trabalho.

– Ah... acho melhor voltar depois – Reilly disse.

– Não – a enfermeira sorriu outra vez, revelando dentes brancos perfeitos. – Ele está pronto para você.

– Ainda assim, vou esperar até que você...

– Fique. Estou feliz em deixar os dois juntos.

Reilly franziu a testa, pensando: Como assim? – como se os dois estivessem namorando?

A enfermeira voltou-se para Kroner, proferiu algo em voz baixa e acariciou a mão dele de uma maneira que deixou Reilly ligeiramente enjoada. Em seguida, a mulher aproximou-se, ficando mais e mais bonita – ficou tão resplandecente que era de se perguntar por que não seguia a carreira de modelo.

Ainda assim, Reilly só queria ficar bem longe dela. Não fazia sentido.

A enfermeira parou na porta e sorriu mais uma vez.

– Fique o tempo que quiser. Ele é tudo o que você precisa.

Então, ela se foi.

Reilly piscou um pouco para entender. Mais um pouco. Então, inclinou o corpo para fora da porta e olhou ao redor.

O guarda ergueu o olhar de seu assento.

– Você está bem?

Com exceção de um carrinho, uma caixa com rodinhas cheia de roupa suja e uma maca, o corredor estava vazio, nada, nem ninguém. Será que a enfermeira teria entrado em outro quarto? Tinha de ser. Havia outras unidades ao redor do local em que Kroner estava.

– Sim, tudo bem.

Voltando para dentro, Reilly recompôs-se e concentrou-se no paciente, encarando um homem que havia matado pelo menos uma dúzia de jovens mulheres em todo o país.

Que olhos brilhantes – foi seu primeiro pensamento. Olhos brilhantes e espertos, como os que se vê em ratos esfomeados.

Segundo pensamento?

Mas você é tão pequeno. Difícil de acreditar que consegue carregar uma sacola cheia de compras, quanto mais dominar mulheres jovens e saudáveis. Provavelmente, usa drogas para ajudar a incapacitar as vítimas, impedindo fuga e barulho. Ao menos num primeiro momento.

Seu pensamento final foi...

Cara, quanto curativo.

Estava quase mumificado, com tiras de gaze em volta do crânio e do pescoço e bandagens acolchoadas nas bochechas e no queixo. Ainda assim, embora parecesse um trabalho do doutor Frankenstein, estava alerta e a cor de sua pele estava radiante.


Na verdade, nem parecia normal. Será que estava com febre?

Quando aproximou-se da cama, ergueu o distintivo.

– Sou a oficial Reilly, do Departamento de Polícia de Caldwell. Gostaria de fazer algumas perguntas. Soube que renunciou ao seu direito de ter a presença de um advogado.

– Gostaria de se sentar? – a voz de Kroner era suave, o tom, respeitoso. – Tenho uma cadeira no quarto – como se estivesse em sua sala de estar ou algo assim.

– Obrigada – ela puxou a cadeira de plástico perto da cabeceira, aproximando-se dele, mas não muito. – Quero conversar com você sobre aquela noite, quando foi atacado.

– Um detetive já fez isso. Ontem.

– Sei. Mas estou dando seguimento.

– Disse-lhe o que me lembrava.

– Bem, importa-se de repetir para mim?

– Nem um pouco – ergueu-se na cama com fraqueza e, em seguida, olhou para Reilly como se estivesse esperando uma oferta de ajuda. Quando não houve nada da parte dela, pigarreou. – Eu estava na floresta. Caminhando lentamente. Através dos bosques...

Reilly não acreditou no consentimento e na receptividade dele em contar tudo aquilo nem por um instante. Alguém como Kroner? Sem dúvida, poderia transformar o discurso para que acreditassem que ele fosse a vítima. É assim que psicopatas agem. Poderia convencer a todos, por um tempo, e até a si mesmo de que era uma pessoa normal, como todas as outras: com características boas e más – nas quais o “mau” seria apenas sonegar impostos ou ultrapassar os limites de velocidade numa estrada ou talvez falar mal da sogra pelas costas. Mas assassinar moças? Nunca. No entanto, não se conseguia vestir máscaras para sempre.

– E para onde estava indo? – ela perguntou.

As pálpebras de Kroner abaixaram.

– Você sabe.

– Por que não diz você?

– Para o Monroe Motel & Suítes – houve uma pausa, os lábios ficaram tensos. – Eu queria ir até lá. Fui roubado, entende?

– Sua coleção?

Houve uma longa pausa.

– Sim – quando ele franziu a testa, disfarçou a expressão do olhar ao observar as mãos. – Eu estava na floresta e alguma coisa se aproximou de mim. Um animal. Veio do nada. Tentei lutar contra a coisa, mas era forte demais...

Que tal a sensação, seu bastardo? – ela pensou.

– Havia um homem lá... Ele viu o que aconteceu. Ele pode lhe dizer. Consegui distingui-lo em algumas fotos que me deram ontem.

– O que aconteceu com o homem?

– Ele tentou me ajudar – franziu a testa mais ainda. – Ligou para a emergência... não me lembro... de muita coisa... Além disso... espere um minuto – os olhos redondos ficaram astutos. – Você esteve lá, não foi?

– Tem alguma coisa que me possa dizer sobre o animal?

– Você esteve lá. Viu quando me colocaram na ambulância.

– Se pudesse continuar a descrever o animal...

– E você o observava também – o “senhor bonzinho e normal” sorriu e pareceu adormecer um pouco, um estranho esquema mental surgiu em seus olhos. – Você estava observando o homem que esteve comigo. Acha que foi ele quem fez isso?

– O animal, por favor. É o que me interessa.

– Não é sóóó isso que te interessa – o só foi pronunciado com uma cadência monótona. – Mas tudo bem. Não tem problema desejar coisas.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Um leão, um tigre, um urso... oh, Deus.

– Isto não é brincadeira, senhor Kroner. Precisamos saber se temos um problema de segurança pública.

Pelo que havia estudado sobre técnicas de entrevista, imaginou ter dado uma abertura para que ele pensasse ser um herói. Às vezes, suspeitos como ele entravam no jogo na esperança de se insinuarem ou tentavam ganhar uma confiança da qual poderiam se aproveitar mais tarde.

Kroner deixou as pálpebras caírem.

– Oh, acho que você cuida muito bem da segurança pública. Não é mesmo?

Sim, isso se o cara não fugisse do hospital e se o sistema jogasse-o na prisão para o resto da vida.

– Devia ter presas – ela disse.

– Sim... – tocou o rosto arruinado. – Presas... e era grande. Seja lá o que for... era avassalador. Ainda não sei por que sobrevivi... mas o homem, ele me ajudou. É um velho amigo...

Reilly esforçou-se para que sua expressão não mudasse em nada.

– Velho amigo? Você o conhece?

– Os iguais se reconhecem.

Um arrepio passou pela coluna de Reilly, Kroner ergueu uma das mãos e impediu-a de voltar a falar.

– Espere... preciso te dizer algo.

– O que é?

As bandagens no rosto contorceram-se como se ele estivesse fazendo uma careta e a mão subiu até a cabeça.

– Preciso te dizer...

Considerando que ele não a conhecia, era impossível dizer algo importante.

– Senhor Kroner...

– Ela tinha cabelos longos e loiros. Lisos, cabelos longos... – ele respirou ofegante e apalpou as têmporas como se estivesse com dor. – Estava presa pelo cabelo... aqueles cabelos loiros cheios de sangue. Ela morreu na banheira... mas não é onde seu corpo está agora – a cabeça de Kroner erguia-se e voltava a cair no travesseiro. – Vá até a pedreira. Ela está lá. Na caverna... Você vai precisar entrar bem fundo para encontrar...

O coração de Reilly começou a bater forte. O interrogatório deveria se limitar à noite do ataque, mas não tinha como não tentar entender aquilo. E também não havia razão alguma para que Kroner soubesse que ela estava trabalhando no caso de Cecília Barten.

– De quem está falando?

Kroner deixou cair o braço e, de repente, a cor de sua pele passou a exibir um aspecto cinzento.

– A garota do mercado. Precisava te dizer isso... Ela quer que eu te diga. É tudo o que sei...

De repente, começou a tremer, a convulsão em seu tronco aumentou tanto que começou a puxar os travesseiros e revirar os olhos.

Reilly avançou e acionou o botão de emergência num interfone.

– Precisamos de ajuda aqui!

No auge do ataque, Kroner pegou o pulso dela com força, os olhos exibiam um brilho profano.

– Diga a ele que ela sofreu... Ele precisa saber... Ela sofreu...


CAPÍTULO 27

 

Na delegacia, na sala de provas, Veck examinou tudo o que pertencia à coleção de Kroner, arquivando fotos mentais dos objetos. Infelizmente, não havia nada dentre as joias ou outros objetos ali parecido com o que observou nas fotografias na casa dos Barten.

Recuou e cruzou os braços sobre o peito.

– Droga.

– Ainda tem mais – o investigador disse, sem tirar os olhos do que estava fazendo, e afastou uma cortina que cobria tudo o que ainda não havia sido catalogado.

Veck tomou um gole de seu café frio, aproximou-se e inclinou-se sobre os objetos. Sem tocar em nada, é claro. Estava tudo organizado lado a lado. Mais joias... Mais elásticos de cabelo com fios pretos, castanhos, cor-de-rosa...

Seu telefone tocou e ele virou-se para atender.

– DelVecchio. Sim, sim... uh-hum... sim, sou eu...

Era o Departamento de Recursos Humanos, verificando seus dados antes que enviassem o primeiro salário após a transferência de unidade. Enquanto respondia, pensou, sem ofensa, que tinha coisa melhor para fazer.

Quando finalmente terminou, voltou-se para a bandeja. Tinha tanta certeza de que Sissy fora vítima de Kroner. Maldição...

Em meio às luvas de látex do investigador, surgiu um brilho dourado quando apoiou alguma coisa sob o microscópio.

Era um brinco. Um brinco pequeno em forma de pássaro. Como uma pomba ou um pardal.

– Posso ver isso? – disse Veck com voz rouca.

Mas, mesmo sem um olhar mais atento, reconheceu o que era... Tinha visto aquilo na estante dos Barten, naquela foto que tiraram de Sissy sem que ela soubesse. Estava usando um brinco igual àquele. Talvez fosse exatamente o mesmo.

O telefone tocou novamente assim que o investigador soltou a prova. Quando Veck olhou para a tela e viu que era Reilly, aceitou a ligação imediatamente.

– Não vai acreditar... Estou olhando para um dos brincos de Sissy Barten.

– Na sessão de provas dedicada a Kroner – foi uma afirmação, não uma pergunta.

Veck franziu a testa. Algo soava errado na voz dela.

– Você está bem? O que aconteceu com Kroner?

Houve uma breve pausa.

– Eu...

Veck afastou-se do investigador, indo em direção a um dos cantos da sala e virou de costas para o cara. Baixando o volume da voz, disse: – O que aconteceu?

– Acho que ele a matou. Sissy. Ele... a matou.

A mão de Veck apertou o celular com força.

– O que ele disse?

– Ele a identificou pelo cabelo e pelo mercado.

– Levou alguma foto dela? Podemos ter um resultado efetivo de que...

– Ele teve uma crise no meio do interrogatório. Estou fora da UTI agora e os médicos estão cuidando dele. Não sabem dizer se vão conseguir salvá-lo desta vez.

– Ele disse mais alguma coisa?

– O corpo está em algum lugar na pedreira. De acordo com ele.

– Vamos...

– Já liguei para De la Cruz. Está indo até lá com Bails...

– Estou saindo daqui agora mesmo.

– Veck! – ela exclamou. – Esse caso não está mais relacionado com o Departamento de Pessoas Desaparecidas. Você e eu estamos fora dessa.

– Não estamos, não. Ela ainda é minha até encontrarem o corpo. Me encontre lá e pode me dar uma suspensão, se quiser. Ou melhor, pode dar uma mãozinha com as pedras.

Houve uma pausa bem longa.

– Você está me colocando numa posição terrível.

O arrependimento fez com que apertasse o maxilar.

– Parece que eu me destaco nisso quando se trata de você. Mas tenho que fazer isso... Prometo não ser um idiota.

– Você se destaca nisso, também.

– Está certo. Olha, não posso sair dessa até saber o que aconteceu. Não vou enfrentar Kroner se encontrarmos alguma coisa e não vou tocar em nada, mas tenho que fazer isso.

Outra pausa interminável. Então: – Tudo bem. Estou a caminho. Mas se De la Cruz nos expulsar de lá, não vamos discutir com ele, está claro?

– Como água cristalina – Veck fez uma prece de agradecimento. E então... – Ele disse mais alguma coisa? Kroner?

Houve um ruído, como se ela estivesse trocando o telefone de uma das mãos para outra.

– Disse que conhecia você.

– O quê?

– Kroner disse que conhecia você.

– Que grande mentira. Nunca o encontrei antes na minha vida – quando não se ouviu qualquer reação da parte dela, ele soltou um palavrão. – Reilly, eu juro. Não conheço o cara.

– Acredito em você.

– Não parece – e, por alguma razão, a opinião dela não era apenas importante, era crucial. – Vou fazer o teste do polígrafo.

A respiração dela soou exausta.

– Talvez ele só quis me confundir. É difícil saber.

– O que ele disse exatamente?

– Algo como “os iguais se reconhecem”.

Veck congelou.

– Não sou Kroner.

– Eu sei. Bem, me deixe ir para o carro e começar a dirigir. A pedreira é do outro lado da cidade e só vamos entrar se De la Cruz permitir. Vejo você em meia hora.

Quando desligou, o investigador olhou por cima do microscópio.

– Achou o que precisava?

– Acho que sim. Entre em contato comigo se descobrir alguma coisa sobre esse brinco. Tenho a impressão de que é da minha garota desaparecida.

– Sem problema.

– Onde é a pedreira?

– Siga na Northway por uns trinta quilômetros. Não sei a saída exata, mas vai encontrar placas. Não tem como errar, haverá mais sinalizações que o levarão até lá.

– Obrigado, cara.

– É um bom lugar para esconder coisas, se é que me entende.

– Entendo. Infelizmente.

Cinco minutos depois, Veck estava em sua moto rugindo em direção à interestadual. Não precisava acionar De la Cruz. Discutiriam pessoalmente quando chegasse lá.

A saída em questão apareceu quinze minutos depois e havia uma placa na qual se lia “pedreira thomas greenfield”. Foi fácil seguir a sinalização e, alguns minutos depois, virou e entrou numa pequena estrada de terra cercada por grandes árvores. Sem dúvida, formavam um romântico passeio no verão. Naquele momento, pareciam braços esqueléticos arranhando-se uns aos outros.

Diminuiu a velocidade ao virar à direita e começou a subir uma ladeira muito íngreme. O vento, frio e intenso, chicoteava seu rosto, e as nuvens pareciam se aproximar como se tentassem sufocar o chão. Começou a pensar que estava perdido quando chegou ao topo, mas lá estava ela.

Pedreira? Parecia mais o Grand Canyon.

Membros do Departamento de Polícia de Caldwell e os bombeiros já estavam ali: havia dois veículos de busca e um de resgate. Algumas viaturas. Um carro sem identificação que deveria ser de De la Cruz. Uma unidade com cães farejadores.

Veck estacionou a certa distância e não tentou disfarçar sua chegada ao aproximar-se do amontoado de homens, mulheres e cachorros.

De la Cruz saiu do meio deles e caminhou até Veck. A expressão de tristeza constante do detetive não havia mudado em nada. Porém, não devia estar surpreso com tudo aquilo, e a chegada de Veck não era uma boa notícia.

– Que coisa encontrá-lo aqui – De la Cruz murmurou, estendendo a mão para um aperto.

– Este lugar é enorme – as mãos encontraram-se em uma batida. – Com certeza poderia ajudar em alguma coisa.

A pedreira devia ter mais de um quilômetro de diâmetro e mais outro de profundidade – e o formato era mais consequência da formação natural que da operação mineradora. Três quartos de suas paredes eram quedas acentuadas, mas uma delas mais ao sul exibia um declive desagradável marcado por escavações rochosas desalinhadas, havia também vários buracos negros que deviam ser cavernas.

– Então, vai me deixar trabalhar? – Veck perguntou.

– Onde está sua parceira?

– A caminho.

De la Cruz olhou para o grupo de colegas.

– Estamos com uma equipe reduzida, pois não queremos chamar atenção. Se a imprensa ficar sabendo disto, teremos um dia longo e cheio de curiosos.

– Então, isto é um sim?

De la Cruz o encarou bem dentro de seus olhos.

– Não toque em porcaria nenhuma e não saia daqui enquanto Reilly não chegar.

– Está certo, detetive.

– Vamos lá... Pode se juntar à fase de planejamento estratégico.

A antiga casa de Jim não era tão antiga nem exatamente sua.

Assim que chegara a Caldwell, havia alugado a garagem e o estúdio no segundo andar de um cara que se vestia com terno de mordomo. Quando saiu há mais ou menos uma semana, achou que seria pela última vez: seu antigo chefe, o maldito Matthias, perseguia-o, e ele precisava ir até Boston para travar a próxima batalha com Devina.

Mas, cara, o que tinha acontecido de acordo com o planejado? Matthias não estava mais em cena, Jim voltara a Caldwell e ele e Adrian precisavam de um lugar seguro para ficar.

Olá, velhos fantasmas, digamos assim... E era hora de rezar para que o proprietário não tivesse alugado para outra pessoa e as chaves tivessem sido deixadas ali.

Dirigindo sua caminhonete na longa estrada que levava até o local, verificou se Adrian ainda o seguia com aquela moto – sim, o cara continuava a segui-lo. Juntos, passaram pela casa vazia, mas muito bem cuidada pelo proprietário, e continuaram pela pista, atravessando um campo que teria mais ou menos uns vinte acres. A garagem ficava bem nos fundos da propriedade e, provavelmente, tinha sido usada para guardar equipamentos agrícolas e cortadores de grama, com um zelador morando no andar de cima. Contudo, quando alugou, teve a impressão de que estava vazia há um tempo.

Parando o carro em frente às grandes portas duplas, saiu, pegou uma das alças e jogou seu peso sobre o objeto, imaginando se o lugar estaria...

O painel retumbou ao abrir, revelando um chão de cimento muito limpo e um teto rústico com altura suficiente para estacionar um trailer de carregar cavalos.

Jim voltou a se sentar atrás do volante e deixou o motor levá-lo devagar para dentro. Adrian estava bem atrás dele, estacionou e fechou a porta. Quando a luz cinzenta do dia foi bloqueada, Jim desligou o motor, abriu a porta...

O aroma fresco e suave de flores invadiu o ar. Ao ponto de quase vomitar, mesmo sendo um perfume indiscutivelmente agradável.

Ele e Adrian não disseram uma palavra ao se posicionarem um de cada lado da parte de trás da caminhonete. A lona que compraram no mercado há uma hora estava presa por alguns cabos elásticos e começaram a libertar os ganchos e as faixas um a um. Ao enrolarem a lona grossa e azul, revelaram o corpo, com o qual foram muito cuidadosos, envolto num lençol.

Deixaram a recepção do banco não muito depois de a fúria de Jim ter explodido todas as janelas do local e, em seguida, levaram Eddie com eles – o que não foi difícil, ao menos não fisicamente. Depois da morte, o corpo ficou leve como uma pluma, como se toda massa bruta tivesse desocupado a pele e os ossos. O que ficou para trás parecia ser apenas o esboço do que Eddie havia sido.

Jim não fazia ideia de onde ir, mas Cachorro apareceu no caminho... e guiou-os a um prédio abandonado de três andares.

Ao deixar Adrian e o animal velando seu morto, Jim voltou ao hotel, pegou tudo o que tinham e carregou a caminhonete. Quando voltou, estacionou numa garagem subterrânea a alguns quarteirões de distância e começou a pensar em várias maneiras de mudarem-se para um local mais seguro levando os outros veículos e motos que ainda estavam no estacionamento do hotel.

Porém, no final, apenas sentou-se e deu um tempo para Adrian – pois parecia que o cara estava prestes a quebrar ao meio.

Contudo, em dado momento, precisaram se mover e Jim decidiu que ir até aquele local era a melhor aposta que poderia fazer em curto prazo. E Adrian seguiu-o sem comentários, só que isso não era um bom sinal: era evidente que ainda estava entorpecido, mas aquilo não duraria muito tempo. Qual seria o outro extremo da situação? Era provável que a expressão “proporções bíblicas” fosse pouco para refletir sequer a metade do que aconteceria.

Jim destravou a abertura traseira e deixou-a cair.

– Você quer...

Adrian adiantou-se e subiu, posicionando-se de maneira hábil ao lado de Eddie. Pegando os restos mortais, saiu da caminhonete e andou até a porta lateral.

– Pode abrir aqui para nós?

– Sim, com certeza.

Com Cachorro liderando o caminho outra vez, Jim seguiu-o e abriu a porta de saída do galpão; em seguida, os três dirigiram-se às escadas externas. Usando um canivete no topo, abriu a maçaneta em questão de segundos, e ficou de lado enquanto Adrian entrava.

A cama de solteiro estava do mesmo jeito que Jim havia deixado quando partiu, os lençóis emaranhados da última noite de sono ruim que teve ali. E, sim, o dinheiro e as chaves estavam exatamente onde os colocara, sobre o balcão da estreita cozinha. O sofá ainda estava sob a janela, as leves cortinas, fechadas. O ar cheirava um pouco a feno, mas não por muito tempo.

Não com Eddie por perto.

Quando Jim olhou para Adrian, sabia que não havia razão para não usar o local. Matthias estaria na parede de almas de Devina por toda eternidade, então, não era uma ameaça, e o resto das Operações Extraoficiais estaria ocupado procurando um novo líder para preencher a vaga que o cara havia deixado. Além disso, o único problema de Jim com o departamento estava relacionado ao seu antigo chefe. Que perdera na última rodada.

– Tem um espaço meio apertado aqui atrás – disse Jim, caminhando até a cozinha.

Ao lado da geladeira, havia uma porta estreita que se abria por cima e por baixo e que levava a uma área de teto rebaixado, envolvida com placas de gesso, sob o beiral do telhado. Entrando, acendeu a lâmpada e saiu do caminho.

Quando Adrian agachou-se e entrou com sua carga, Jim abriu uma das gavetas sob o balcão da cozinha e pegou uma faca longa. Não hesitou ao passar a lâmina na palma de sua mão e pressioná-la contra a pele.

– Caralho – sussurrou.

Adrian saiu do espaço estreito.

– O que está fazendo?

Gotas brilhantes e vermelhas caíram no chão formando uma pequena trilha enquanto andava em direção ao local onde Eddie havia sido colocado. A verdade é que não tinha plena certeza do que estava acontecendo ali, mas seus instintos guiavam-no, faziam-no prosseguir e, assim, passou a palma da mão que sangrava pela porta... bem como o próprio corpo. Antes de retrair a mão sangrenta, prometeu: – Não deixo soldados caídos para trás. Você estará conosco... até voltar. Pode apostar.

Ao fechar a porta, olhou para Adrian, que tinha se apoiado no balcão e envolvido o próprio corpo com os braços. O anjo olhava para o chão como se fossem folhas de chá... ou um mapa... ou um espelho... ou nada, talvez. Quem poderia saber?

– Preciso saber como vai se posicionar – disse Jim. – Quer ficar aqui com ele ou quer continuar a lutar?

Os olhos vazios ergueram-se do chão.

– Não era para ser assim. Ele teria lidado melhor com isso.

– Não tem uma maneira melhor de lidar com isso. Mas não vou tentar convencê-lo de nada. Se não quiser fazer mais nada além de lamentar, não tem problema nenhum para mim. Mas preciso saber o que está disposto a fazer.

Caramba, provavelmente era cedo demais para perguntar ao cara o que ele queria no almoço, quanto mais se estava disposto a lutar. Mas Jim não poderia se dar ao luxo de bancar o terapeuta e trabalhar os sentimentos. Aquilo era guerra.

Quando Adrian apenas resmungou alguma coisa como “não está certo”, Jim entendeu que precisava chamar a atenção do cara.

– Ouça – disse devagar e com clareza. – Devina fez isso de propósito. Ela o tirou de você, pois acha que a perda vai te incapacitar. É uma estratégia básica: isolamento. Está tentando tirar os dois de mim... E você do mundo. A escolha é sua em deixar que isso funcione ou não.

Adrian mudou seu olhar e mirou a porta que Jim havia fechado.

– Como pode algo tão grande... acontecer tão rápido?

Jim voltou-se para o próprio passado, para uma cozinha que conhecia tão bem, para uma cena sangrenta que nunca havia esquecido: sua mãe morrendo numa poça de seu próprio sangue, enquanto dizia para que corresse o mais rápido e seguisse para o mais longe possível...

Entendia muito bem o trauma pelo qual Adrian estava passando, era a constatação terrível de que os pilares da estrutura que o levava aos céus eram feitos de papel em vez de pedra.

– Desastres acontecem.

Houve um período de silêncio, em seguida, um som suave sobre o chão. Cachorro, que havia ficado fora do caminho a maior parte do tempo, aproximava-se de Adrian mancando e, quando chegou perto do cara, sentou-se sobre a bota de combate do anjo e reclinou a cabeça contra a canela.

– Não estou bravo – Adrian disse finalmente. – Não sinto... nada.

Aquilo iria mudar, Jim pensou. A questão era: quando?

– Fique aqui com ele – disse Jim. – Preciso voltar ao campo de batalha. Não quero DelVecchio por aí sozinho.

– Sim... sim – Adrian abaixou e pegou Cachorro. – Sim.

O anjo andou um pouco e sentou-se no sofá, colocando o animal em seu colo e mantendo os olhos fixos na porta daquele espaço de teto rebaixado.

– Pode me ligar – disse Jim. – E estarei aqui num instante.

– Sim.

Deus, Ad parecia um objeto inanimado que respirava. E o último pensamento de Jim ali foi que Devina estava brincando com fogo. Adrian acordaria de seu estupor... E, então, seria implacável ao fazê-la pagar por aquilo.

Depois de fechar a porta, Jim parou para acender um cigarro e olhar para o céu. As nuvens pareciam fervilhar sobre a garagem e viu-se procurando por uma imagem ou sinal entre elass.

Nada.

Terminou o cigarro e, quando estava prestes a sair, ouviu um rádio ser ligado dentro do apartamento.

À capela. Bon Jovi cantava “Blaze of Glory”.

Muito apropriado.

Jim projetou-se pelo ar, seguindo o farol que era DelVecchio. E estava a meio caminho de seu alvo quando se deu conta...

Ele não possuía rádio algum.


CAPÍTULO 28

 

– Aqui, me deixe ajudar você.

Reilly equilibrou-se sobre duas pedras do tamanho de poltronas, em seguida, inclinou-se e estendeu a mão.

Veck olhou para ela por um momento.

– Obrigado.

As palmas das mãos encontraram-se e firmaram-se uma na outra e, então, Reilly dobrou-se para trás, colocando todo seu peso no ato de erguê-lo. Mesmo com o corpo fazendo movimento de alavanca, era como puxar um carro entalado numa vala, e a mulher percebeu claramente que, se ele não tivesse pulado e dado um impulso, não chegariam a lugar algum.

Quando ele juntou-se a ela no planalto, olharam em volta. Já estavam trabalhando na longa encosta da pedreira há várias horas, iluminando cavernas com lanternas e examinando saliências rochosas. Os oficiais de resgate ficaram com o lado mais íngreme e os outros policiais iam mais à esquerda ou percorriam as bordas com os cães. Os minutos passavam lenta e dolorosamente, a extensão total do que ainda havia para ser examinado oprimia Reilly.

E ainda havia tudo aquilo implícito em relação a Veck, coisas não ditas, que não ajudavam.

Deus, odiava aquela situação. Especialmente o fato de estarem em meio à tentativa de encontrar o corpo de uma jovem.

– Tem outra caverna por ali – ela disse, pulando de uma pedra e aterrissando de cócoras no chão lamacento.

O terreno parecia árido visto da borda da pedreira. De perto, era uma pista de obstáculos, do tipo que requeria botas para ser explorada – ao menos tinha se prevenido e trazido mais que um agasalho extra e um kit de armazenamento de provas no porta-malas. Muito bom também a chuva da noite anterior ter parado ou a tarefa seria mais que exaustiva. Com o clima mais estável, o topo das rochas já havia secado com o sol, então, já contavam com partes mais firmes para pisarem, afinal, as poças e a lama nos pontos mais baixos do local já desaceleravam o suficiente o trabalho deles.

– Já esteve aqui antes? – perguntou Veck depois de firmar-se ao lado dela. Como sempre, ele não estava com roupa suficiente...

Espere, me deixe reformular a frase – ela pensou – Como sempre, não está agasalhado o suficiente e seus sapatos são mais para um serviço de escritório que para um trabalho externo.

Mas Veck não parecia se importar com nada disso: apesar de os sapatos estarem arruinados e sua jaqueta preta isolar o vento frio tão bem como uma folha de papel, ele continuava como um soldado, seguindo decidido como se estivesse muito à vontade e confortável. Apesar de estarem trabalhando ensopados de suor.

Espere, qual era a pergunta que ele tinha feito mesmo...?

– Como a maioria das pessoas daqui, conheço a pedreira desde sempre – olhou para a borda. – Mas esta é a minha primeira visita. Cara, é como se tivessem arrancado um pedaço gigantesco da Terra.

– Muito grande mesmo.

– Dizem que foi criada por geleiras.

– Ou isso, ou Deus era um jogador de golfe e o buraco que desejava acertar estava na Pensilvânia.

Ela riu um pouco.

– Pessoalmente, apostaria meu dinheiro no gelo pré-histórico. Na verdade, isto tudo é simplesmente chamado de “a pedreira”... Nunca foi, mas parece uma.

Subiram outra pedra, pularam novamente e seguiram em direção à boca escura da caverna que ela tinha visto. Aquela parecia maior que as outras e, de perto, a entrada parecia alta o suficiente para passarem sem se curvar. Contudo, não tinha como os ombros de Veck caberem ali a menos que se virasse de lado.

Acendendo a lanterna, não havia nada além de paredes rochosas, um chão de terra e, Deus, o mau cheiro. Úmido, mofado. Todas exalavam o mesmo cheiro, como se o lugar tivesse uma espécie de odor corporal próprio.

– Nada – ela disse. – Mas não consigo ver o final desta.

– Me deixe entrar mais.

Agora seria o momento perfeito para a mulher moderna dentro dela aparecer dizendo “Que inferno, não, deixe que eu cuido disso”. Mas só Deus sabia o que havia ali dentro, e ela não era muito fã de morcegos. Ursos. Cobras. Aranhas. Era a única situação com a qual se acovardava.

Quando Reilly abriu caminho, Veck adiantou-se e espremeu-se dentro do espaço fino. O fato de seu peito ter passado tão perto lembrou-lhe o quanto conhecia seu corpo. Olhou ao redor e tentou encontrar outro foco, desesperadamente.

– Nada – Veck murmurou quando reapareceu e fez um X vermelho sobre a pedra com tinta spray.

– Espere, você tem... – ela ergueu-se na ponta dos pés e tirou uma teia de aranha do cabelo de Veck. – Isso, mais apresentável agora.

Quando Reilly virou-se, Veck agarrou a mão dela.

Ao ser puxada de surpresa, olhou ao redor rapidamente, então, Veck disse: – Não se preocupe, ninguém pode nos ver.

Parecia ser verdade: estavam num local profundo da pedreira, entre três pedras enormes. Mas não era algo bom, não precisavam de privacidade.

Holofotes. Um palco. Megafones presos em seus rostos seriam mais adequados...

– Olha, sei que é inapropriado – Veck murmurou com um tom de voz que fez o coração dela bater ainda mais rápido. – Mas aquela porcaria que Kroner disse... sobre me conhecer...

Reilly respirou aliviada. Graças a Deus não se tratava deles.

– Sim?

Veck soltou-a e andou fazendo um pequeno círculo. Então, tirou um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça na direção oposta a Reilly.

– Acho que, de alguma maneira, isso é o que mais me assusta neste mundo.

Sentindo-se uma tola por ter se assustado, ela apoiou-se sobre o flanco de uma rocha aquecido pelo sol.

– O que quer dizer?

Veck encarou o céu, a sombra de seu queixo forte projetou-se sobre seu peito, formando um arco escuro sobre o tronco.

– Iguais se reconhecem...

– Acha mesmo que tentou matá-lo? – disse ela suavemente.

– Olha, vai parecer loucura... Mas parece que meu pai está sempre comigo – colocou a mão sobre o peito, exatamente sobre a sombra escura. – Essa... coisa faz parte de mim, mas não do meu ser. E sempre fui amedrontado com a possibilidade disso sair e... – interrompeu-se com uma maldição. – Oh, Cristo, quanta besteira...

– Não é besteira – quando ele virou-se para Reilly, os olhos de ambos encontraram-se. – E pode conversar comigo. Sem julgamentos. Ninguém mais saberá, nunca. Desde que não tenha infringido a lei.

A boca de Veck contorceu-se com amargura.

– Não fiz nada para que me prendam. Mas ainda me pergunto se fui eu quem fez aquilo com Kroner na floresta.

– Bem, se tem medo de ser como seu pai e, quando surge um banho de sangue na sua frente, você não consegue se lembrar de nada... é natural se questionar.

– Não quero ser como ele. Nunca.

– Você não é.

– Não me conhece.

A expressão tensa de Veck produziu um calafrio nela, mesmo com os pés secos e quentes e vestindo um casaco e luvas. Tinha tanta certeza de ser um estranho para ela, que Reilly perguntou-se por que tamanha obviedade não os impediu na noite anterior. Mas sexo e atração sexual faziam as pessoas sentirem-se próximas, quando, na verdade, eram apenas dois corpos esfregando-se.

O quanto ela realmente sabia sobre ele? Não muito além do que havia registrado em seus arquivos no Departamento de Recursos Humanos. Porém, estava certa de uma coisa: ele não tinha, de forma alguma, machucado aquele homem.


– Precisa conversar com um profissional – ela disse, pois ter um pai como aquele deveria repercutir psicologicamente. – Tire esse peso de você.

– Mas esse é o problema... está dentro de mim.

Algo naquele tom que usou fez o calafrio retornar – dez vezes mais forte. Só que agora achou ser loucura.

– Estou dizendo, você precisa desabafar.

Veck olhou o céu azul brilhante outra vez com suas listras passageiras de nuvens brancas.

Depois de um momento, ele disse: – Fiquei aliviado por você ter saído tão rápido na noite passada.

Que belo tapa no rosto para trazê-la de volta à realidade.

– Fico feliz por ter feito esse favor – ela disse em tom decidido.

– Porque eu poderia me apaixonar por você.

Quando a boca de Reilly abriu-se e ela piscou confusa, Veck bateu o cigarro e exalou, a fumaça ergueu-se no ar frio da primavera.

– Sei que isso não ajuda em nada. Tanto o fato de confessar isso agora como ser a mais pura verdade.

Verdade. Mesmo assim, ela não deixou de continuar a conversa.

– Mas ontem à noite... você disse que nunca me levaria para a sua cama.

Balançou a cabeça, o lábio superior fez um movimento sinuoso de desgosto.

– De jeito nenhum. Fiquei com mulheres sem importância ali. Você foi importante... É importante – soltou um palavrão em voz baixa e profunda. – Não é como as outras.

Reilly respirou fundo. E de novo. Sabia que aquele era um bom momento para tentar dizer algo que os mantivesse dentro dos limites.

– Estou muito lisonjeada, mas...

Em vez disso, apenas olhou para ele quando virou o cigarro e focou-se na pequena ponta alaranjada. Examinando os traços belos e rígidos de seu rosto, tentou lutar contra o impulso de jogar-se nele... Desistiu: naquele pequeno espaço de privacidade em frente à caverna, com a brisa assoviando entre as pedras e o sol iluminando seus rostos, as engrenagens entre eles voltaram a funcionar direito outra vez... Deu-se conta da verdadeira razão pela qual havia deixado a casa dele tão rápido. Dane-se o profissionalismo: sentia o mesmo que ele, e aquilo assustava-a.

– Mas está tudo ligado à porcaria de relação que eu tenho com meu pai.

– Desculpe, o quê? – Reilly ouviu-se dizer.

– Essa coisa com você... está ligada a ele também – seus olhos brilharam em direção a ela. – Ele era apaixonado pela minha mãe. Tanto que a fatiou viva e formou um coração com seus intestinos, no chão, ao lado dela. Sei disso pois fui eu quem encontrou o corpo.

Quando Reilly começou a ofegar, uma das mãos subiu até a garganta e, por instinto, deu um passo para trás... apenas para descobrir que estava encurralada pela pedra em que havia se recostado.

– Sim... – disse Veck. – Essa é a história da minha família.

Que maneira de cortejar uma mulher, Veck pensou quando Reilly ficou pálida como neve e tentou se afastar dele. Dando um trago profundo em seu cigarro, exalou para longe dela.

– Eu não devia ter dito isso.

Reilly balançou a cabeça, talvez para esclarecer um pouco os pensamentos.

– Não... não, fico feliz por você ter contado. Só estou um pouco...

– Chocada. Sim. E é apenas um dos motivos pelos quais não converso sobre isso.

Ela afastou uma mecha de cabelo solta sobre os olhos.

– Mas eu falei sério. Pode conversar comigo. Quero que converse comigo.

Não tinha tanta certeza se Reilly dizia a verdade. Mas, por alguma razão, abriu a boca.

– Minha mãe foi a 13a vítima dele – cara, invejava aqueles cujas “histórias ruins” da vida eram apenas de encrencas por conta de cervejadas, depredação de propriedade pública e, talvez, urinar no tanque de gasolina de alguém.

– Eu estava em férias de verão do ensino médio, hospedado numa casa alugada em Cape Cod com os amigos. Saí na última noite que tínhamos para ficar ali e também fui o último a ir para casa; então, estava sozinho. Ele a trouxe até a sala de estar e fez tudo ali. Depois, deve ter subido as escadas e dado uma olhada em mim... Quando acordei, havia duas marcas de sangue no batente da porta do meu quarto. Foi a primeira evidência de que algo ruim havia acontecido. Ele havia colocado fita adesiva na boca dela, então, não ouvi nada.

– Oh... meu Deus...

Dando outro trago profundo no cigarro, falou através da fumaça que exalou.

– Como pode imaginar, mesmo naquela época, a primeira coisa que fiz quando vi as marcas no chão foi olhar para as minhas próprias mãos. Quando percebi que não havia nada, corri para o meu banheiro, verifiquei as toalhas, as minhas roupas... Irônico, as mesmas coisas que eu fiz depois do episódio com Kroner. E, então, me dei conta... Droga, a vítima. Liguei para a emergência e estava no telefone com eles quando desci as escadas.

– Você a encontrou.

– Sim – esfregou os olhos lutando contra as imagens do sangue vermelho sobre o tapete azul barato e um coração feito de órgãos humanos. – Sim, encontrei, e sabia que tinha sido ele.

Não conseguiu ir além disso, não dava mais, nem para ela nem para si mesmo. Essa memória não era acessada há tanto tempo que ele esperava ter caído num modo reflexivo, saudável talvez. Mas não. A cena da qual se lembrara naquele momento ainda estava desenhada em neon nos seus pensamentos, como se os vapores do pânico e do terror que sentiu emergissem e distorcessem a fotografia mental, mas sem alterar a nitidez.

– Já li sobre seu pai... Estudei sobre ele na faculdade – disse Reilly suavemente.

– É um tema popular.

– Mas não havia nada sobre...

– Eu tinha dezessete anos, menor de idade, e minha mãe não tinha o meu sobrenome, então, não poderia ter ouvido falar nada mesmo. Engraçado, foi quando os representantes da lei conversaram pela primeira vez com meu pai sobre uma vítima. Não preciso dizer que acreditaram quando ele disse que estava aflito. E Deus sabe o quanto ele era bom em fingir sentimentos. Ah, e as marcas sobre o batente da porta? Ele tinha usado luvas, claro; então não havia nada para acusá-lo.


– Deus, sinto muito.

Veck ficou em silêncio, mas não por muito tempo.

– Não o vi muito. E, quando ele se aproximava, eu percebia que minha mãe seria capaz de fugir com ele. Ela nunca se cansava dele... Era sua droga, a única coisa que importava, só pensava nele. Olhando para trás, tenho certeza de que ele a induziu a toda aquela fixação. Eu ficava irritado... Até que percebi o que ele era e vi que ela não tinha qualquer chance com ele. Para ele? Acho que foi divertido, mas parece que o jogo ficou enjoativo depois de um tempo.

Com isso, Veck ficou exausto, como um corredor que não aguenta mais avançar.

– De qualquer forma, é por isso que nunca jantaremos na casa dos meus pais.

Péssima tentativa de fazer piada. Nenhum deles riu.

Quando chegou ao final do cigarro, amassou a ponta incandescente sobre a sola do sapato – e notou pela primeira vez que seus sapatos não sobreviveriam àquele banho de lama. Reilly, no entanto, deu um jeito de conseguir um par de botas. Bem típico dela. Estava sempre preparada...

Quando olhou para cima, ela estava bem na frente dele. As bochechas estavam rosadas por causa do vento e do esforço, seus olhos brilhavam com um calor que vinha não apenas de um coração bom mas também de um coração aberto. As mechas de cabelo que se soltaram do rabo de cavalo produziam um halo vermelho, e seu perfume de xampu, ou seja lá o que fosse, o fez lembrar do verão – um verão normal, não aquele de que tinha acabado de se lembrar, quando ainda era uma “criança”.

Então, ela aproximou-se, colocou os braços ao redor dele e simplesmente abraçou-o. Levou um minuto para Veck entender o que estava acontecendo, pois era a última coisa que esperava. Mas, então, abraçou-a de volta. E os dois ficaram ali só Deus sabe por quanto tempo.


– Não tenho o hábito de namorar – ele disse um tanto rude.

– Namorar colegas de trabalho? – ela afastou-se e olhou para ele.

– Qualquer pessoa – alisou o cabelo dela com a palma das mãos. – E você é boa demais para mim.

Houve uma breve pausa e, em seguida, ela sorriu um pouco.

– Então, o sofá é o local preferido, hein?

– Pode me chamar de Casanova.

– O que vou fazer com você? – ela murmurou, como se estivesse falando consigo mesma.

– Honestamente? Não sei. Se eu fosse seu amigo, diria para correr em direção à saída, nada de ir andando.

– Eles não são você, sabe disso, não? – ela disse. – Seus pais não te definem.

– Não tenho tanta certeza. Ela era a bajuladora de um psicopata. Ele é um demônio com uma bela máscara. Daí surgiu um bebê num carrinho. Vamos encarar os fatos, até agora, minha vida tem girado em torno de evitar o passado, desperdiçando o presente e me recusando a pensar sobre o futuro... Pois fico apavorado de não compartilhar apenas o nome com meu pai.

Reilly balançou a cabeça.

– Ouça, eu ficava assustada com a possibilidade de a mulher que me deu à luz voltar e me querer de volta. Por muito tempo, eu tinha a convicção de que qualquer coisa que meu pai fizesse legalmente não seria suficiente se ela me quisesse de volta. Isso costumava me deixar acordada à noite. E ainda tenho pesadelos. Na verdade, e vai achar que é loucura, eu ainda deixo uma cópia do meu certificado de adoção do meu lado, em cima do criado-mudo, quando vou dormir. Aonde quero chegar? Não pode fazer alguma coisa se tornar realidade só porque tem medo dela. O medo não vai tornar real uma história fictícia.

Houve outro longo silêncio, mas Veck interrompeu-o.

– Apague o que eu disse antes. Acho que estou me apaixonando por você. Bem aqui. Agora.


CAPÍTULO 29

 

Ficando um pouco distante de Reilly e Veck, Jim fingiu ser uma pedra e esforçou-se para não ouvir a conversa entre eles, tanto que, ao se aproximar, virou a cabeça. Havia lá as vantagens de ser invisível, mas não era muito adepto de ficar espiando casais. Além do mais, não estava muito satisfeito com aquele atraso emotivo. Estavam procurando por Sissy – a porcaria melosa poderia esperar até encontrarem algo ou descobrirem que a indicação do local era uma farsa.

Afastando-se da rocha na qual se apoiara, caiu numa poça, a água turva espirrou sobre suas roupas de couro e suas botas de combate, mas não fez som algum graças ao campo de força que havia projetado em volta de si. Cara, aquela pedreira parecia um cenário dos antigos episódios de Jornada nas Estrelas, as pessoas só não usavam camisas vermelhas nem se teletransportavam...

De repente, um calor floresceu na lateral de seu rosto e a sensação fez com que erguesse a cabeça e inclinasse-a para a direita. Um raio de sol derramava-se sobre ele, tocando-lhe os olhos e a bochecha.

Que merda é essa? – pensou, percebendo que vinha da direção errada.

Com a testa franzida, recuou e virou-se, seguindo o caminho da faixa amarelo-limão... que o levou para a caverna atrás dele.

Algo aconteceu em suas entranhas.

– Oh, droga – Jim sussurrou quando uma premonição lavou-o como chuva fria.

Preparando-se, caminhou até uma abertura irregular. Não havia necessidade de virar de lado, a iluminação passava por ele como se não estivesse lá. A abertura era bem grande, quase dois metros de altura, talvez um metro de largura, contudo, estreitava-se quase imediatamente após a entrada. Então, como a luz era refletida ali dentro?


Ao entrar, a luz do sol seguiu-o, fazendo-o pensar em Cachorro e sua companhia calma e reconfortante. E não parou para pensar em como a iluminação conseguia envolver até mesmo as extremidades do local ou para se perguntar por que parecia orientar seus passos...

– Oh... Deus... – apoiou-se numa parede de pedra para manter-se em pé ao descobrir o que fazia a luz emergir da escuridão: contra a parede íngreme da caverna, envolto numa lona áspera, havia um corpo deitado no chão, como lixo descartado.

O feixe luminoso acabou por fundir-se com o pacote e foi quando Jim viu o comprimento do cabelo – que, se estivesse limpo, seria loiro. Atordoado, caiu contra uma das laterais da caverna. Dar-se conta, repentinamente, de todo o seu esforço até aquele momento – droga, talvez tudo que tinha feito – era como uma trombeta tocando em sua nuca, sem cessar, ensurdecendo-o.

Não existem coincidências – ouviu Nigel dizer.

Quando alguém colocou a mão sobre seu ombro, virou-se e sacou sua adaga de cristal ao mesmo tempo. Baixou a arma imediatamente.

– Meu Deus, Adrian... quer levar uma facada?

Péssima pergunta para se fazer num dia como aquele. O outro anjo não respondeu. Apenas olhou para a luz que pairava acima da cabeça de Sissy, como uma coroa celestial dourada marcando seus restos mortais. Com uma voz baixa, disse: – Quero te ajudar com esta perda. Você me ajudou com a minha.

Jim olhou para Ad por alguns momentos.

– Obrigado, cara.

Adrian assentiu com a cabeça, como se tivessem combinado algo, trocado algum voto, e esse acordo fez Jim perguntar-se... Se tudo tinha um propósito, será que Sissy havia morrido para que houvesse aquele momento entre eles? Seria a razão pela qual perderam Eddie? Pois, quando os olhos mortos de Adrian encontraram os dele, os dois estavam na mesma situação, dois caras explosivos realinhados por tragédias paralelas e, ao mesmo tempo, vivendo exatamente a mesma situação.

Em vez de ir até sua garota, Jim estendeu uma das mãos para o parceiro. E, quando o anjo retribuiu o gesto, puxou Adrian contra si e abraçou o bastardo com força. Sobre o ombro do cara, olhou para Sissy.

Foi difícil, mas, ao avaliar os interesses da guerra junto à perda que sofreu a família da garota e, agora, Adrian, concluiu que as duas passaram a ter um valor inesperado: até onde Jim conseguia entender, na melhor das hipóteses, o jogo estava empatado, com apenas um fio de cabelo pesando a favor de Devina na batalha.

Só que, às vezes, uma simples gota d’água resultava em tragédia. E famílias perdiam suas filhas, melhores amigos não voltavam para casa no final da noite. Parece que viver não vale mais a pena, mas você continua de qualquer maneira.

Quando se afastaram, Adrian colocou o dedo sobre o colar de Sissy.

– Ela é sua garota.

Jim assentiu.

– E já é hora de tirar ela daqui.

Caramba – Reilly pensou. Parecia que Veck iria beijá-la. E parecia que ela deixaria. Mas, então, surgiu aquele papo que envolvia a palavra “amor”, e aquilo deixou-a paralisada, não sabia ao certo como reagir. Estava se apaixonando por ele também. Mas não conseguia lidar com aquilo direito em sua mente. Dizer essas coisas em voz alta era expor-se demais. Contudo, havia outras maneiras de responder.

Quando ela inclinou-se em direção à boca dele, Veck abaixou-se, aproximando-se dos lábios dela... Alguém apareceu sobre a rocha acima deles. Alguém grande, que surgiu das alturas e bloqueou o sol. Quando ela pulou afastando-se de seu parceiro, seu pensamento imediato foi: Oh, Deus, não permita que seja alguém da delegacia...

Seu desejo tornou-se realidade, infelizmente: era aquele “agente do FBI”.

Veck moveu-se tão rápido que Reilly só percebeu que havia um escudo humano à sua frente quando sentiu suas mãos repousarem nas costas dele. Foi um movimento muito cavalheiro, mas ela não precisava de proteção. Colocando a mão dentro do casaco, Reilly encontrou a coronha de sua arma – ele também fez o mesmo – e recuou com a arma apontada para cima.

Só que... o homem que os olhava de cima não parecia nem um pouco agressivo. Parecia arruinado. Totalmente destruído.

– Sissy Barten está logo ali – ele apontou para trás de si. – Na parede dos fundos da próxima caverna.

Ele não vai nos machucar – ela pensou com uma convicção vinda da alma.

Redirecionando o cano da nove milímetros para o chão, ela franziu a testa. Ao redor do corpo do agente havia um brilho sutil, um esplendor que poderia ser explicado por estar posicionado de costas para um raio de sol – mas, espere um minuto, a posição dele não era essa. Era muito tarde para que houvesse tal projeção no local onde ele estava.

– Você está bem? – ouviu-se perguntar ao homem.

Os olhos assombrados fixaram-se nos dela.

– Não, não estou.

Veck falou alto, forte e exigente: – Como sabe onde o corpo está?

– Acabei de ver.

– Liguei para o FBI. Nunca ouviram falar de você.

– Por conta da administração atual – o tom era entediado. – Vai ajudar a moça ou perder tempo com...

– Fingir ser um oficial federal é crime.

– Então, pegue essa força toda e venha atrás de mim... por aqui.

Quando o cara ergueu-se da pedra e desapareceu, Veck olhou por cima do ombro.

– Fique aqui.

– Até parece.

Algo na expressão dela deve ter lhe dito que discutir seria uma perda de tempo, pois murmurou alguma coisa – e começou a andar. Juntos, escalaram a pedra à frente, agarrando pontos precisos na subida. Quando chegaram ao topo... Jim Heron, ou seja lá quem fosse, tinha desaparecido. No entanto, viram a entrada de uma grande caverna.

– Chame reforços – Veck disse, saltando para baixo ao pegar a lanterna. – Vou entrar... e preciso que me cubra daqui de fora.

– Entendido – Reilly pegou o rádio, mas exclamou em seguida: – Pare! Precisa prestar atenção nas pegadas. Perto das bordas, certo?

Olhou para ela.

– Bem lembrado.

– Cuidado.

– Tem minha palavra.

Seguindo com a lanterna e a arma, entrou na caverna, seus ombros largos mal passaram pela entrada. Devia existir um obstáculo logo ao entrar, pois o brilho da lanterna esmaeceu e, em seguida, não se via mais iluminação alguma.

Enquanto Reilly chamava seus colegas e recebia a confirmação de que estavam a caminho, abaixou-se cuidadosamente em direção à entrada lamacenta da caverna que lhe dava boas-vindas. Sabia que levaria um tempo até que os outros chegassem e rezou para que seus instintos estivessem certos sobre o homem grande e loiro. Ele não parecia nem um pouco preocupado em mentir ou distorcer o que dizia, mas era certo que parecia arrasado em relação a Sissy Barten.

Se alguma coisa acontecesse com Veck enquanto vigiava, nunca iria se perdoar...

– Que... droga é essa? – murmurou.

Reilly franziu a testa e agachou-se. Bem no meio do caminho de terra encharcada, onde Veck tinha aterrissado ao pular, as pegadas pareciam crateras lunares. Da mesma forma, perto da entrada, o rastro ali marcado era profundo, as pegadas de sapatos de sola lisa eram fundas e indicavam que um homem com seus noventa quilos havia passado por ali.

Erguendo-se, Reilly apoiou um dos pés sobre uma pedra alta e olhou para trás ao longo do caminho por onde Veck e ela tinham atravessado. Na parte superior da plataforma de pedra, existiam dois pares de pegadas umedecidas: dela e de Veck. Era isso.

Ao analisar a extensão do declive, balançou a cabeça. Não tinha como Jim Heron, ou seja lá quem fosse, ter descido até ali sem ficar com os pés encharcados. E também era impossível ficar parado onde ficou sem deixar pegadas úmidas para trás, assim como ela e Veck tinham deixado.


Que diabos está acontecendo?

Atrás dela, Veck reapareceu na abertura da caverna.

– É Sissy Barten. Ele estava certo.

Reilly engoliu em seco ao descer mais um pouco.

– Tem mais alguma coisa aí?

– Não que eu consiga enxergar. Chamou o pessoal?

– Sim. Tem certeza de que é ela?

– Não toquei em nada, mas há um pouco de cabelo loiro exposto e o corpo está onde Kroner indicou – as sobrancelhas de Veck estreitaram-se. – O que foi?

– Tem pegadas no chão da caverna?

– Me deixe ver – ele desapareceu. Voltou em seguida. – Não. Mas não é a melhor superfície para verificar isso. Está relativamente seco, e o solo tem pouca profundidade. O que você...

– É como se tivesse caído do céu.

– Quem? Heron?

– Não há qualquer evidência de que ele esteve aqui, Veck. Onde estão as pegadas? Aqui no chão? Lá em cima?

– Espere, não tem...

– Nada.

Ele franziu a testa e olhou ao redor.

– Filho de uma puta.

– Sinto a mesma coisa.

Ao longe, Reilly ouviu os oficiais aproximarem-se, então, colocou as mãos ao redor da boca e gritou: – Aqui! Estamos aqui!

Talvez alguém pudesse entender alguma coisa. Porque não lhe ocorria nada... e era evidente que acontecia o mesmo com Veck.


CONTINUA

CAPÍTULO 20

 

Gary Peters sempre achara que seu nome soava como ele: nada de especial. Havia milhares de Garys no país – a mesma coisa para Peters – e sua aparência física também não o diferenciava muito. De alguma maneira, conseguiu evitar uma barriga de cerveja, mas seu cabelo era fino e, agora que tinha chegado aos quarenta, passava pela crise de perdê-los. O rosto era branco como um purê de batatas, os olhos eram de um castanho-terra e a existência de um queixo era discutível: talvez pescoço, bochechas e clavícula estivessem todos unidos.

Moral da história? Era um homem invisível, daqueles que as mulheres nem percebem a existência entre tantos metrossexuais musculosos, atletas e caras ricos e famosos.

Razão pela qual a visão de Britnae avançando até sua mesa e lançando um olhar... digamos, daqueles... foi uma grande surpresa.

– Desculpe – ele balançou a cabeça. – O que você disse?

Ela inclinou-se e... bom Deus, aqueles seios...

Quando ela ergueu-se outra vez, ele teve a sensação de que a mulher falara alguma coisa, mas não fazia ideia do que tinha sido...

– Desculpe, telefone – esticando o corpo, pegou o fone. – Departamento de Polícia de Caldwell, pois não. Sim. Uh-hum. Sim, está sob custódia e intimado. Sim, claro... Darei o recado de que estará lá pela manhã.

Fez algumas anotações no caderno e voltou sua atenção para Britnae. Que tinha decidido sentar-se à mesa em que se apoiou antes.

No começo achava que a saia era pequena. Agora, parecia micromíni.

– Ah... o quê? – ele disse.

– Perguntei quando será seu intervalo.

– Ah, desculpe – pelo amor de Deus, tinha alguma coisa errada naquela abordagem. – Não tão cedo. Ei, você não costuma sair às cinco da tarde?

– Estou presa aqui examinando uma folha de pagamento – quando ela fez beicinho, o lábio inferior, já volumoso, pareceu um travesseiro. – É tão injusto... e ainda tenho mais uma hora pela frente, pelo menos, e está tão tarde.

Ele olhou o relógio: 20h. Tinha acabado de iniciar seu turno de dez horas, aquele em que vigiava provas e prisioneiros, então, era cedo para ele. Costumava ir para casa às 6h, e o departamento dela chegava ali às 8h30.

Ela inclinou-se outra vez.

– É verdade que todas as coisas de Kroner estão aqui?

– Na sala de provas? Sim, estão.

– Você chegou a vê-las?

– Algumas delas.

– Mesmo?

Foi muito curioso como os olhos dela arregalaram-se um pouco enquanto colocava a mão sobre a garganta.

– São horríveis – ele acrescentou, sentindo o peito inflar.

– Como assim... o que são?

A hesitação dela mostrava que estava em dúvida se desejava mesmo saber mais.

– Partes e pedaços... Se é que me entende.

A voz dela tornou-se quase um sussurro.

– Você pode me levar lá?

– À sala de evidências? Ah, sim, não, não posso. Apenas pessoal autorizado.

– Mas você é autorizado, não é?

– E gostaria de manter o meu emprego também.

– Quem ficaria sabendo? – ela inclinou-se ainda mais. Gary pensou que, caso ela se endireitasse um pouco mais, poderiam se beijar.

Temendo passar por tonto, afastou-se e empurrou a cadeira para trás.

– Eu não diria a ninguém – ela sussurrou.

– Não é tão simples. Precisa se identificar na entrada e na saída e tem as câmeras de segurança. Não é uma sala de descanso.

Ele podia ouvir a petulância em sua voz e, de repente, desprezou sua calvície e sua meia-idade. Talvez aquele tom fosse a razão pela qual ainda era virgem.

– Mas você poderia me deixar entrar... se quisesse – os lábios dela eram absolutamente hipnotizantes, moviam-se devagar à medida que enunciavam as palavras. – Certo? Sei que poderia, se quisesse. E eu não vou tocar em nada.

Deus, como aquilo era estranho. Esperava entrar no trabalho e cumprir suas tarefas como sempre fazia todas as noites. Mas lá estava ele, com aquela... encruzilhada.

Será que Gary Peters não faria nada, como de costume? Ou será que tomaria uma atitude de verdade com a gostosa do departamento?

– Sabe de uma coisa? Vamos lá.

Ele levantou-se e verificou outra vez se as chaves estavam no cinto – onde, é claro, elas estavam. E, como era de se esperar, havia uma equipe reduzida na delegacia, então, era o único responsável por levar qualquer coisa ao andar de cima – e os detetives Hicks e Rodriguez tinham acabado de trazer dois gramas de maconha embalados e assinados.

– Oh, meu Deus – ela disse, saltando da mesa. – De verdade?

O peito dele voltou a se encher, em vez da sensação de vazio de sempre.

– Sim. Vamos.

Colocou o sinal de que estava em intervalo, para que as pessoas ligassem em seu celular – alguém poderia aparecer para registrar ou cadastrar alguma prova – e, então, abriu a porta para ela.

Quando ela passou e Gary sentiu o perfume, pensou ser mais alto do que era quando começara a trabalhar, a sensação era ótima. Sabia que havia uma grande possibilidade de sair impune daquilo. A equipe de evidências trabalhara muito, há dias, nas evidências de Kroner, mas, finalmente, decidiram que também precisavam dormir; então, não havia ninguém ali. E, com certeza, Britnae não tocaria em nada mesmo – ele iria se certificar disso. Assim, não haveria necessidade de verificar as gravações das câmeras de segurança.

Arriscado? Um pouco. Mas, na pior das hipóteses, receberia uma advertência. Tinha o registro mais irrepreensível em termos de assiduidade e desempenho no departamento de recepção e segurança – ele não tinha vida. E Britnae nunca iria abordá-lo novamente.

Algumas vezes, você precisa ser algo mais que um mero Gary Peters atrás de uma mesa...

Britnae pulou e abraçou-o.

– Você é tão legal!

– Ah... imagina.

Droga, como Gary era imbecil. Graças a Deus ela não ficou agarrada por muito tempo, pois ele quase desmaiou.

O engraçado foi que se sentiu calmo ao mostrar o caminho, levando-a para o elevador até o segundo andar. Dali em diante, insistiu, como se fosse um agente secreto, que seguissem pelas escadas. Lá em cima, abriu a saída de incêndio e ouviu. Nada. Nem mesmo alguém da limpeza. E, no final do corredor, as luzes do laboratório forense estavam apagadas.

– Nunca estive aqui antes – Britnae sussurrou perto da manga da camisa ao agarrar o braço dele.

– Vou cuidar de você. Vamos.

Andaram na ponta dos pés pelo corredor até uma porta de aço pesada na qual se lia “evidências – apenas pessoal autorizado”. Com suas chaves, abriu-a e seguiu até uma antessala de identificação. Sentiu seus nervos exaltados quando aproximou-se da mesa em que a recepcionista ficava durante o horário comercial, mas, quando identificou-se e entrou, sabia que não tinha mais volta.

– Oh, meu Deus, estou tão animada! – quando Britnae colocou as mãos sobre o antebraço de Gary e inclinou-se, como se ele fosse seu protetor, o homem não se incomodou mais em esconder o sorriso, pois ela não conseguia visualizar seu rosto.

Isso é... muito legal – ele pensou ao registrar no sistema a maconha apreendida.

Quando Devina esfregou-se contra o corpo do oficial, fez um favor àquele triste humano, um tal de Gary Peters. Era engraçado fingir ser a bonitona do escritório, e o idiota da recepção engolia a mentira. Seu plano só precisava ter um início e um fim. Ele não se lembraria de nada na manhã seguinte: para que aquilo tudo funcionasse, o statu quo tinha que ser preservado.


– Certo, vamos entrar – o cara disse ao sair da frente do computador.

Usando o tom de voz alto de Britnae e aquela pronúncia ao estilo de modelos famosas californianas, disse: – Oh, meu Deus, estou tããão empolgada. Isso é muito real!

Blá-blá-blá... mas usou o tom certo, pois já estava usando a carcaça há algum tempo. E a garota não tinha um vocabulário muito extenso – era só acrescentar “oh, meu Deus” a cada substantivo ou verbo e pronto.

Na segunda porta de aço, Gary Peters passou seu cartão pelo leitor magnético na parede e a fechadura soltou-se em seguida com uma batida.

– Está pronta? – ele disse, todo protetor.

– Não sei... Quero dizer, sim!

Ela saltitou um pouco e, então, voltou a ofegar sobre o braço dele enquanto segurava uma de suas mãos. E, ao vê-lo todo encantado com o show, ela pensou: que idiota.

No instante em que entrou no interior das instalações de armazenamento de provas, a habitual cena de gato e rato assumiu seu lugar na missão. De alguma maneira, estava entediada daquele tipo de diversão, porém, tinha que fazer algo de qualquer jeito. O desaparecimento de Jim Heron obrigou-a a antecipar algumas coisas, o que ela odiava.

Não conseguia acreditar que não havia qualquer sinal dele. Era a primeira vez que acontecia com um anjo e tinha certeza de apenas uma coisa: ele não tinha recuado ou desistido. Não estava em sua natureza. A guerra continuava e havia uma alma para tomar... Além disso, havia maneiras de conseguir que Jim aparecesse outra vez.

O guarda conduziu-a ao longo dos corredores cheios de prateleiras que se estendiam do chão ao teto, cheias de caixas de uma variedade incalculável de formatos e tamanhos. Tudo estava bem catalogado e indexado, havia pequenas etiquetas penduradas e muitos sinais alfanuméricos indicando algum tipo de sistema.

Que coleção. Que organização...

Devina teve que parar e desabafou: – Isso é incrível.

O oficial idiota ficou todo orgulhoso, mesmo sendo apenas uma pequena engrenagem de uma máquina maior.

– Sempre há dezenas de milhares de provas aqui. Tudo está identificado pelo número do caso e registrado no computador para que possamos encontrar tudo de maneira eficiente – começou a andar outra vez, dirigindo-se a alguns recantos do local. – No entanto, existem algumas exceções, como o caso Kroner, pois há muita coisa envolvida no processo.

Enquanto ele seguia, Devina olhava para cima e observava todos os objetos ao redor. Que demais!

Ao longo de todo o caminho, havia algumas mesas com cadeiras, como se fosse uma cafeteria em que se serve objetos inanimados para consumo.

– Os detetives e oficiais têm autorização para entrar, tirar fotos, reexaminar coisas ou pegar alguma evidência para julgamentos. O laboratório também retira os objetos do lugar de tempos em tempos, mas tudo precisa retornar ao departamento. As coisas de Kroner estão bem aqui. Não toque em nada.

Atrás de uma divisória de 1,8 metros de altura, havia uma estação temporária de trabalho constituída de mesas, cadeiras, computadores e um equipamento fotográfico, assim como caixas de sacos plásticos vazias e rolos de etiquetas adesivas. Mas isso não importava. Em prateleiras rebaixadas, que tinham 2,5 metros ou mais de comprimento, havia vários saquinhos enfileirados, todos com códigos de barras, contendo frascos, joias e outros itens.

Seu pequeno servo tinha sido um menino muito, muito ocupado, não?

– Geralmente, a evidência é registrada lá embaixo, na entrada, ou no laboratório, se for restos humanos, mas havia tantas coisas naquela caminhonete apreendida que tiveram que criar uma unidade temporária de processamento de dados aqui. Todas as amostras de tecido foram examinadas primeiro, pois havia uma preocupação com a preservação dos elementos... Entretanto, parece que Kroner já sabia exatamente como manter tudo. Claro que sabia. Queria ter sempre parte de suas vítimas junto dele.

– Há muitos outros objetos aqui – o policial levantou um lençol branco que cobria uma caixa enorme e rasa.

Ah, sim, exatamente o que ela esperava encontrar: um amontoado de camisetas, joias, bolsas, laços de cabelo e outros objetos pessoais.

Vendo tudo aquilo, ela sentiu-se profunda e verdadeiramente triste por Kroner, pois sabia muito bem de onde vinha a obsessão dele. Ninguém quer perder as conquistas do trabalho duro, as pessoas passam a valorizar seus objetos. No caso de Kroner, era mais difícil, pois, ao contrário dela, ele não tinha como manter suas vítimas para sempre... E, agora, também tinha perdido sua coleção.

De repente, Devina sentiu dificuldade para respirar.

Ela tinha perdido seus preciosos objetos, e lá estavam eles, sob a tutela de seres humanos, que tocaram e recatalogaram tudo. Eles poderiam, muito bem, um dia, num futuro distante, jogá-los fora.

– Britnae? Você está bem?

O oficial apareceu bem ao lado dela, mostrando uma cadeira de escritório.

– Sente-se – ouviu-o dizer ao longe.

Quando a sala começou a girar, Devina fez o que ele havia sugerido e colocou a cabeça entre os joelhos que não eram dela. Estendendo uma das mãos, pegou na borda da mesa, como se assim pudesse manter a consciência.

– Merda, merda... certo, vou pegar um pouco de água para você.

Quando o oficial saiu, seus pés iniciaram uma corrida mortal em direção às pilhas de evidências, pois sabia que não tinha muito tempo. Com a mão trêmula e suada, pegou o brinco de ouro que tinha trazido de sua coleção. As lágrimas vieram à tona quando percebeu que tinha de abrir mão novamente daquilo se quisesse progredir naquela rodada com Heron... e DelVecchio.

Há pouco, quando estava em seus aposentos privados, parecia haver uma perspectiva tão razoável, tão fácil, mas ali, cercada por centenas de milhares de troféus, o que era o brinco de uma virgem morta? Ficaria com a outra peça do par... além do mais, tinha outros objetos para se lembrar daquela maldita Sissy Barten.

Agora, porém, sentada ao lado da carnificina que eram as lembranças de Kroner, sentia como se estivesse enviando uma de suas muitas almas às profundezas de um mar de perda e esquecimento permanentes. Mas que escolha tinha? Tinha que eliminar as forças de Heron e, mais importante, tinha que configurar o final do jogo...

De repente, a imagem da secretária gostosa começou a se desintegrar, a verdadeira forma de Devina passou a emergir da camada de pele humana jovem e rosada, sua carne morta e enrugada e suas garras cinzas e retorcidas embalavam o brinco barato em formato de pássaro.

Por um momento, não se importou. Estava abalada demais por sua possessividade, não conseguia lidar com o fato de que o oficial voltaria em breve e que, então, teria de infectá-lo ou matá-lo – e não tinha energia para nada disso. Ela tinha, porém, de se recompor.

Obrigando-se a pensar um pouco, convocou a visão de sua terapeuta, imaginando aquelas formas arredondadas, aquela pessoa realizada, acolhedora, que já tinha passado da menopausa e que não só parecia ter resposta para tudo... Mas parecia saber exatamente do que ela estava falando.

Devina, a ansiedade não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo... Você deve se lembrar de que não necessita de objetos para justificar sua existência ou para se sentir bem ou segura.

Ou seja, se não conseguisse se recompor e colocar aquele brinco ali, comprometeria mais ainda seus objetivos.

Você já perdeu uma vez – lembrou a si mesma.

Duas respirações profundas... mais outra. Então, olhou para sua mão e desejou a imagem da jovem e a bela carne de volta. A concentração que aquilo exigia deu-lhe uma dor de cabeça permanente, mesmo depois que voltou a ser Britnae, mas não havia tempo para desperdiçar com as têmporas que latejavam. Ao colocar-se em pé sobre pernas tão fortes quanto canudos de refrigerante, saiu tropeçando em direção à caixa de objetos. Agarrando-se a uma cortina, colocou ali o brinco em formato de pomba e, em seguida, patinou de volta ao assento que o oficial havia providenciado para ela. Bem a tempo.

– Aqui, beba isso.

Olhou para o cara. Considerando a expressão em seu rosto, parecia que o disfarce Britnae ainda estava funcionando. Uma coisa era certa sobre humanos: ficavam totalmente chocados quando a viam como era de fato.

– Obrigada – disse com voz rouca ao estender uma das mãos... com uma camada de esmalte rosa nas unhas. Mas quanto tempo aquilo duraria?

Bebeu a água, amassou o copo de papel e jogou-o numa lata de lixo embaixo da mesa.

– Por favor, pode me tirar daqui? Agora?

– Claro.

Ele tirou-a da cadeira, jogando um braço surpreendentemente forte em volta da cintura e sustentando a maior parte de seu peso. Passaram pelos longos corredores. Saíram pela porta desbloqueada graças àquele cartão magnético. Enfim, o corredor que daria para a saída. O elevador foi uma bênção, mesmo ficando ainda mais tonta com a descida.

O plano, disse a si mesma. Trabalhar no plano. Era o sacrifício necessário para trazer as coisas de volta ao lugar.

Quando chegaram ao escritório, ele sentou-a numa das cadeiras de plástico de sua mesa e trouxe um segundo copo de água. O que ajudou um pouco a clarear a mente de Devina. Ela concentrou-se no oficial e decidiu não só deixá-lo viver, daria também um pequeno presente.

– Obrigada – disse-lhe, com sinceridade.

– Por nada. Quer uma carona para casa?

Ela não respondeu e inclinou-se para frente. Estendendo-se mentalmente pelo ar, infiltrou-se pelos olhos de Gary e adulou-o dentro do cérebro, passeando pelos corredores metafóricos de sua mente, visualizando ao acaso as provas que havia em suas estantes particulares.

Da mesma maneira que colocou o brinco na caixa, inseriu a convicção no cérebro do homem de que ele era um Casanova, um cara que, apesar de sua modesta aparência, era desejado pelas mulheres e, portanto, confiante e viril.

Era o tipo de coisa que o faria conseguir uma transa. Pois, ao contrário dos homens, criaturas visuais, as mulheres tendiam a valorizar mais o conteúdo que havia entre as orelhas de alguém. E autoconfiança era muito sensual.


Devina partiu em seguida, levando com ela as memórias do que tinham feito e onde tinham estado. Seu ato de caridade enojou-a, e ela desejou fazer um gesto obsceno àquele Nigel insuportável.

Mesmo uma freira com o coração mais puro que se possa imaginar teria vontade de soltar um palavrão naquela ocasião. Eram raros os casos em que um demônio motivava-se a mostrar compaixão. Ela sentiu vontade de tomar um banho para tirar o fedor.


CAPÍTULO 21

 

– Acho que estou no céu.

Reilly escondeu um sorriso quando Veck olhou com admiração o pedaço de torta que sua mãe havia colocado à frente dele.

– A senhora fez mesmo isso? – disse ao olhar para cima.

– Do zero, incluindo a massa – o pai dela anunciou. – E não só isso, ela pode calcular seus impostos de olhos fechados com um dos braços amarrado nas costas.

– Acho que estou apaixonado.

– Desculpe, ela já é comprometida – o pai de Reilly puxou sua esposa para um rápido beijo ao pegar seu pedaço de sobremesa. – Certo?

– Certo – a resposta foi pronunciada de boca cheia.

Reilly ofereceu um pouco de sorvete de baunilha a Veck.

– Sorvete?

– Com certeza.

O detetive DelVecchio acabou se mostrando muito bom de garfo. Levou segundos para comer a carne de vitela e o espaguete ao molho pomodoro. Não era muito fã de saladas, o que não era muito surpreendente. E poderiam ter servido a sobremesa em dose dupla.

Contudo, não foi a capacidade de apreciar a comida de sua mãe que impressionou Reilly: ele inteirou-se bem com o pai. Brincava e, com respeito, mostrou que não era alguém influenciável, mesmo Tom Reilly sendo conhecido por assustar até à morte seus subordinados. Resultado disso?

– E, sim, Veck, concordo com você – o pai dela anunciou. – Há muita coisa que precisa ser modificada no sistema. É muito difícil obter um equilíbrio entre acusação e perseguição, especialmente com relação a alguns grupos étnicos e raciais. Socioeconômicos também.


Sim, seu parceiro tinha sido agraciado com a plena aprovação.

Quando a conversa encaminhou-se para o assunto da aplicação da lei, ela sentou-se e observou Veck. Ele parecia mais relaxado que nunca. E, cara, como estava lindo.

Meia hora e mais um pedaço de torta depois, Veck ajudou a levar os pratos até a pia e ajudou a secar a louça. Então, chegou o momento de colocarem os casacos e dirigirem-se à saída.

– Obrigada, mãe – ela disse, abraçando a mulher que sempre estaria ali por ela. – E pai.

Ao aproximar-se do pai, teve que ficar na ponta dos pés para colocar os braços ao redor dele, esticou-se bem e não chegou nem à metade do caminho dos ombros.

– Eu te amo – ele disse, segurando-a com firmeza. E, então, sussurrou em sua orelha: – Tem um bom rapaz aí.

Antes que pudesse retornar ao discurso “não, eu não tenho ninguém”, passaram aos apertos de mãos e saíram pela porta.

Na rua, os dois acenaram e, enfim, tudo acabou.

– Seus pais são incríveis – Veck disse, enquanto se afastavam de carro.

Um rubor de orgulho da família a fez sorrir.

– São mesmo.

– Se não se importa, queria perguntar...

Quando percebeu que ele não a olhava e que não terminaria a frase, Reilly sabia qual era a pergunta que tinha ficado no ar. Era importante, mas isso não significava que ele iria forçá-la a responder.

– Fico muito feliz em conversar sobre isso – quando a chuva começou a cair, aguardou num sinal vermelho e ligou os limpadores de para-brisa. – Meus pais sempre trabalharam com jovens de risco e centros de recuperação... Começaram antes mesmo de se conhecerem. Existe um centro assim na igreja católica do centro da cidade e, depois que se casaram, costumavam passar os sábados lá, organizando livros, solicitando doações, ajudando famílias desabrigadas. A mulher que meu deu à luz chegou ali comigo depois de ter brigado com um dos três namorados. Com isso, ela acabou perdendo a visão do olho esquerdo – Reilly lançou um rápido olhar para ele. – Eu vi acontecer. Na verdade, é a primeira memória que tenho.


– Quantos anos você tinha? – ele perguntou um pouco tenso.

– Três anos e meio. Ela brigava com ele por qualquer coisa, até aí nenhuma novidade, mas, daquela vez, ela agarrou uma faca e foi atrás dele. Ele a empurrou para se defender, mas ela continuou atacando até que ele começou a bater nela. Com força. Eu disse aos policiais que ele a espancou e, então, o colocaram na cadeia. E foi assim que terminamos no abrigo, pois o apartamento em que estávamos hospedadas era dele – Reilly acionou a seta e entrou numa via principal, pouco depois de um colégio. – De qualquer forma, ficamos no local onde meus pais trabalhavam como voluntários, mas a mulher que me deu à luz roubou algumas coisas de outra família, e, então, foi o fim da estadia. Tivemos que ficar com seus outros dois namorados por mais ou menos uma semana e, então... ela me levou de volta ao abrigo e me deixou lá. Simplesmente me abandonou.

Veck encontrou seus olhos.

– Onde ela está agora?

– Não faço ideia. Nunca mais a vi de novo e, sei que soará amargo, mas não dou a mínima para o que aconteceu com ela – aproximou-se de um semáforo e pisou no freio. – Era uma mentirosa e uma viciada, e a única coisa boa que fez por mim foi ter me deixado. Mas tenho certeza de que ela não tinha a intenção de me proporcionar algum benefício com isso. Provavelmente, eu estava atrapalhando seu estilo de vida, e ela devia saber que matar uma criança era o tipo de crime que garantiria toda uma vida atrás das grades.

Nesse ponto, era o momento de entrar na pista expressa... que veio em boa hora, pois essa era a parte mais difícil da história Fez uma pequena pausa e respirou um pouco ao se posicionar no trânsito.

– Nossa, a chuva está ficando forte mesmo – ela disse, aumentando a velocidade dos limpadores.

– Não precisa terminar a história.

– Não, está tudo bem. O verdadeiro pesadelo teria acontecido se meus pais não tivessem se interessado por mim. Isso me assusta ainda hoje – verificou o espelho retrovisor, mudou para a faixa da esquerda e afundou o acelerador. – Aconteceu de meus pais estarem trabalhando naquele dia... E eu simplesmente grudei neles feito cola. Eu adorei meu pai desde a primeira vez que o vi, pois ele era tão grande e forte, com aquela voz profunda... sabia que me protegeria. E minha mãe sempre me deu bolachas e leite... e brincava comigo. Quase que de imediato eu já estava determinada a ir para a casa com eles, mas eles estavam tentando engravidar na época e, meu Deus, não estavam necessariamente interessados em bebês com histórico de pais viciados em drogas.

– Naquela noite e durante a semana seguinte, tentaram encontrar a mulher e instigar um pouco de sentimento nela, pois sabiam que, quando uma criança entrava no sistema, era difícil sair dele. Quando finalmente a encontraram, ela não me quis... e disse que renunciaria seus direitos. Voltaram mais tarde e sentaram-se comigo. Eu não poderia ficar no abrigo, pois era preciso estar acompanhada de um responsável. Então minha mãe decidiu dormir lá comigo para que eu pudesse ter direito a um beliche. Me lembro de ter tido certeza de que me diriam para ir embora, mas um dia transformou-se em dois... e depois em mais outra semana. Eu era muito bem comportada, e tinha a impressão de que meu pai estava trabalhando em alguma coisa. Finalmente, voltaram e me perguntaram se eu queria ficar com eles por um tempo. Ele conseguiu ajeitar as coisas para que se encaixassem no sistema como candidatos a meus pais adotivos. Só ele mesmo – ela olhou e sorriu. – Um tempo que se transformou em vinte e tantos anos. Conseguiram me adotar oficialmente um ano depois que me mudei.

– Isso é incrível – Veck devolveu um sorriso e, em seguida, ficou sério outra vez. – E seu pai biológico?

– Ninguém sabe quem é, inclusive a mulher que me deu à luz, de acordo com o que os meus pais dizem. Me disseram, bem depois, quando eu já estava crescida, que ela acreditava ser um dos dois ex-namorados. E os dois estavam na cadeia por tráfico de drogas – acelerou ainda mais os limpadores. – E, veja bem, sei que pareço... estar com raiva em alguns momentos da história. Mas acho que é apenas uma tentativa de lutar com a teoria de que o vício é uma doença genética. Com dois viciados na minha base genética, há uma probabilidade estatística de que eu termine como eles, mas não vou seguir por esse caminho. Sabia que era uma porta que eu não deveria abrir e, de fato, nunca fiz isso. E, sim, você pode argumentar que meus pais me deram oportunidades que meus pais biológicos nunca teriam dado, e é verdade. Mas você faz o próprio destino. Você escolhe seu caminho.


Durante algum tempo, ouviu-se apenas o ruído dos limpadores e da água chicoteando a parte inferior do carro.

– Desculpe, acho que falei demais.

– Não, nem um pouco.

Reilly olhou para Veck e teve a impressão de que ele estava voltando ao próprio passado.

Em silêncio, esperou que ele se abrisse, mas o homem continuou calado, cotovelo apoiado na porta, uma das mãos massageando o queixo.

Do nada, um carro enorme rugiu na faixa do meio. O suv espirrou litros e litros de água sobre o capô de Reilly e obscureceu a visão.

– Deus – ela disse, diminuindo a velocidade. – Devem estar a mais de 150 quilômetros por hora.

– Nada como um desejo de morte para diminuir o tempo na viagem.

O veículo desviou para a direita, em seguida para a esquerda, e depois para a direita outra vez, movimentando-se dentre os outros carros num zigue-zague atordoante.

Reilly franziu a testa ao imaginar Veck em sua moto naquele aguaceiro tendo de lidar com um maníaco na estrada como aquele.

– Ei, consegue voltar para casa nessa chuva? Está ficando perigoso.

– Não, não tem problema – ele respondeu.

Pensando num palavrão, não teve certeza se ele estava entendendo direito a situação. E o fato de ser estúpido o suficiente para pegar aquele foguete que dizia ser uma moto e sair naquelas condições não a alegrou muito.

Enquanto Veck permanecia sentado ao lado de Reilly, viu-se pensando sobre seu pai... e sobre sua mãe também. Embora não conseguisse se preocupar muito com ela. Que irônico. DelVecchio pai estava sempre em sua mente, mas sua mãe...

– Acho melhor eu levar você para a sua casa – Reilly disse. – Não é nada interessante enfrentar esse tempo na sua moto.

– Eu não fazia ideia do seu passado – ele murmurou. – E nunca teria imaginado. Você é tão segura.

Houve uma pausa, como se tivesse que trocar a faixa do assunto na sua cabeça.

– Bem, devo muito disso aos meus pais. Foram um exemplo e uma realidade, são tudo o que desejo ser e quem me tornei. Porém, nem sempre foi fácil. Por um longo tempo, achava que, se eu não fosse perfeita, eles me devolveriam como se fosse uma torradeira com defeito. Mas destruí o carro do meu pai nas minhas aulas de direção... Um bom teste para essa teoria, não? E, adivinhe só? Eles continuaram comigo.

Olhou o perfil do rosto dela e disse: – Acho que você não dá crédito suficiente a si mesma.

– A única coisa que fiz foi aproveitar o bom exemplo que tinha diante de mim.

– E isso é muito.

Quando ela entrou no bairro dele, cinco minutos depois, ele percebeu que ela tinha seguido o próprio conselho sobre ele, sua moto e o clima.

Os freios rangeram ligeiramente quando ela parou na calçada e, de repente, a chuva sobre o teto do carro começou a soar como bolas de pingue-pongue.

– Acho que está caindo um pouco de granizo – ele disse.

– Sim – ela olhou pelo para-brisa dianteiro. – Que tempestade.

– Nenhum trovão.

– Não.

Os limpadores continuaram o movimento, clareando a visão por alguns momentos.

Em dado momento, olhou para ela.

– Quero te beijar de novo.

– Eu sei.

Ele riu um pouco.

– Sou tão óbvio assim?

– Não... eu quero também.

Então, vire a cabeça para mim, ele pensou. Tudo o que tem a fazer é virar a cabeça que eu beijo você.

A chuva caiu. Os limpadores continuaram. Motor parado.

Ela virou a cabeça. E fixou os olhos na boca dele.

– Quero muito isso.

Veck inclinou-se em direção a ela e aproximou-a de seus lábios. O beijo foi bastante lento e profundo. E quando a língua de Reilly encontrou a sua, teve consciência de que desejava algo mais dela que apenas sexo. Em última análise, no entanto, a definição daquilo não importava. Não dentro daquele carro sem marcas de identificação, estacionado na sua calçada, com a tempestade que caía lá fora.

O que os dois precisavam não tinha como resolver conversando.

Deus, ela ainda era tão macia embaixo dele, pele macia, cabelo macio, perfume suave, mas foi sua essência firme, sua solidez e obstinação que realmente excitaram-no. A ideia de que era uma sobrevivente, que era tão forte e esclarecida com quem era e de onde vinha fez com que a respeitasse ainda mais.

E, como pode imaginar... aquilo era mais sensual do que qualquer coisa naquela sacola da Victoria’s Secret.

Com um movimento do tronco, tentou chegar ainda mais perto, mas a lateral do corpo atingiu o volante, que o bloqueou. O homem das cavernas nele de fato rosnou quando tentou aproximar-se outra vez, mas não conseguiu chegar nem perto de onde queria. Ou seja, nu em cima dela.

Com um palavrão, recuou. Sob as luzes dos faróis refletidas dentro do carro, o belo rosto de Reilly iluminou-se, a sombra da chuva sobre o para-brisa tocava suas feições, manchando-as um pouco, até que os limpadores dissipassem o que parecia ser lágrimas.

Pensou nela com sua família, tão feliz e em paz.

Simplesmente pensou nela, ponto final.

– Vou entrar sozinho – disse abruptamente.

Veck não esperou uma resposta. Saiu do carro uma fração de segundo depois e correu até a porta da frente de sua casa, não por causa da tempestade, mas porque conseguia observar seu interior com muita clareza.

– Espere! – ela gritou quando ele pegou as chaves.

– Volte para o carro – ele murmurou com a voz áspera.

Correndo até ele, balançou a cabeça e disse: – Não quero.

Com isso, ergueu a mão e apontou para o carro. Quando acionou o alarme, as portas foram trancadas e os faróis piscaram.

Veck fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, a chuva atingiu sua testa e bochechas.

– Se você entrar, eu não vou conseguir parar.

A resposta de Reilly foi tirar as chaves das mãos dele, destrancar a porta e, sutil e implacavelmente, empurrá-lo para dentro da casa.

Desejava outro beijo como aquele dado no carro.

Fechando a porta com um chute, Veck desvencilhou-se do casaco, agarrou-a e puxou-a contra ele, segurando-a com força, tomando sua boca outra vez. E ela atacou de volta, envolvendo com força os braços ao redor dos ombros e pressionando seu corpo contra o dele.

O sofá.

Tinha mudado o sofá de lugar.

Ainda bem.

Houve um emaranhado de movimentos para chegar até lá, e tirar o casaco molhado dela e os coldres com as armas dos dois não facilitou as coisas. Mas logo ele moveu-a, estendendo-a sobre as almofadas... e montou sobre ela, pulando em cima de seu corpo.

O beijo foi desesperado, do tipo em que os dentes se encontram de vez em quando, e ele não queria nem sequer parar para respirar, mesmo com os pulmões queimando por falta de oxigênio. Especialmente quando ela começou a arranhar seus ombros.

Com isso, resolveu não ser bonzinho com a camisa dela. Sem romper o vínculo formado pelo beijo, pegou as lapelas e separou a maldita coisa da gola à bainha, liberando todos os botões perolados que navegaram pelo ar e caíram sobre o tapete.

O sutiã por baixo da roupa era de um tom pastel bem claro e a simples peça de algodão ficou espetacular sobre os seios. E que alívio não ter que se preocupar em rasgar rendas delicadas.

Enquanto ele abria o fecho frontal, ela respirava rápido e com força e o movimento sinuoso de suas costelas sob a pele era muito excitante, mas nada comparado ao momento em que afastou os modestos bojos para os lados.

– Você é incrível – ele gemeu ao dar uma boa olhada nela... Algo que evitou fazer na noite anterior.

Oh, cara, os seios eram mais pesados que aparentavam ser com roupas, mais cheios e redondos também... Com isso, ele até se perguntou se ela não usaria sutiãs mais apertados intencionalmente para disfarçá-los. Que desperdício seria. Mas pensar que outro homem poderia olhá-la com cobiça instigou-lhe a vontade de recorrer à sua arma.

Apalpando o que havia sido revelado, teve outra surpresa que deixou passar na pressa da noite passada. Era toda natural, tudo presente de Deus, nenhuma intervenção por insegurança ou vaidade. E o peso maleável de seus seios fez seu pau pulsar... lembrando-lhe quanto tempo havia se passado desde a última vez que ficara com uma mulher sem a rigidez dos implantes.

Pressionando os seios, sentiu os mamilos rígidos e eretos e abaixou-se para sugar um, depois o outro. Em seguida, aninhou-se ali.

Bem, parecia ser um homem que adorava seios, ele pensou, quando seus quadris foram impulsionados contra as pernas dela. Quem diria?

Ou... talvez fosse um homem que adorasse Sophia Reilly.

– Você é linda demais – rosnou quando voltou a trabalhar sobre os mamilos cor-de-rosa.

Estava desesperado para entrar nela, e encantado com a parte de cima, explorando, lambendo, tocando e observando suas reações. De alguma maneira, as coxas dela separaram-se – talvez tenha sido o joelho dele, talvez a necessidade dela, quem se importa? –, e os dois uniram-se onde mais desejavam.

Erguendo-se com os braços, começou a pressioná-la, seu pênis rijo acariciando o núcleo dela. Em resposta, ela arqueou o corpo de uma forma muito erótica, os seios subiram quando a coluna movimentou-se e ela cravou as unhas nos antebraços de Veck.

Quando ergueu-se contra ela, os seios balançaram com o movimento e ele ficou entorpecido, com o corpo dormente e hipersensível ao mesmo tempo – mas percebeu que tinha perdido o contato com os lábios. Voltando a beijá-la, soube que estava prestes a não conseguir mais se controlar... E, então, sentiu as mãos dela puxando sua camisa.

Parece que não era o único desejando algo.

De repente, perdeu a paciência com suas roupas e o que cobria seu peito desapareceu um momento depois, arrancando tudo como fez com Reilly.

– Sinta minha pele – ele exclamou, ao colocar-se sobre ela.

Ele beijou-a com força enquanto as mãos dela passavam por todo o seu corpo, passeando sobre seus músculos, agarrando os ombros, riscando as unhas ao longo de suas costelas.

Mais.

– Posso te deixar nua? – disse.

– Sim...

Veck ergueu-se e ela levantou os quadris e começou a tirar o cinto. Fez um trabalho tão bom com as calças, que ele simplesmente sentou-se e observou quando uma calcinha de algodão apareceu em sua frente.

Quando ela mostrou estar com dificuldade para continuar, pois, ora, tinha um homem de noventa quilos em cima dela, ele ajudou a mulher a tirar as calças descendo-as sobre suas pernas longas e lisas.

Oh, cara... – pensou, passando as mãos sobre as coxas. Era esguia e levemente musculosa, e imaginou-se separando aquelas coxas e mergulhando sua cabeça...

Agarrando-a, investiu contra ela, esticando-se por cima dela mais uma vez. O plano? Facilitar o caminho ao sul e tomar a calcinha com os dentes. Então, passaria um tempo ali certificando-se de que o corpo dela estava pronto para ele. Com seus lábios, língua e dedos.

Parece que havia um pequeno cavalheiro dentro dele, afinal. Sim. Havia. Não era por estar morrendo de desejo de possuí-la... só que, em seguida, ela tocou o cinto dele. Veck congelou e colocou as mãos sobre as dela, acalmando-a.

– Se isso acontecer – disse em tom rude –, não serei capaz de esperar mais um segundo.

Com o corpo absolutamente sólido de Veck posicionado sobre o dela, o cérebro de Reilly estava focado em apenas uma coisa: tirar as calças dele.

– Não quero esperar.

– Tem certeza? – a voz dele era tão gutural que se aproximava do inaudível.

Como resposta, ela passou a mão entre as coxas dele e envolveu seu sexo. No instante em que a conexão foi feita, ele amaldiçoou numa respiração explosiva e seu corpo foi investido contra o dela, o material macio das calças dele não fizeram nada para ocultar aquela extensão rígida.

– Quero ver você – ela exigiu com voz rouca.

Não precisaria pedir duas vezes: com mãos violentas e rápidas, abriu a braguilha e foi ela quem puxou a cintura. Em seguida, trabalharam juntos com a cueca para libertar a...

O pau duro de Veck projetou-se dos quadris e as pálpebras dele abaixaram-se para vê-la observar o que havia ali.

Santo...

Bem, ela poderia usar um dicionário de sinônimos para definir aquilo como “magnífico”, não? E, se era correto afirmar que tinha ficado impressionada com o que viu naquela noite no banheiro ou quando o sentiu por cima das roupas na cozinha dela, podia-se dizer que agora explodia ao vê-lo totalmente revelado e pronto para rugir. E o sexo dele não era a única bela visão: seu peito era tão macio e musculoso quanto se lembrava e seu abdômen era incrível, havia linhas firmes e bem definidas que iam até sua pélvis e seu...

– Me f...

Ao agarrá-lo, com as palmas das mãos sobre a coisa, ele estremeceu violentamente, e Reilly adorou a sensação de poder por ter abalado sua estrutura. E, oh, Deus, era firme e longo, pulsava e latejava reagindo à carícia.

Nunca vou esquecer isso – ela pensou, vendo-o sobre si, dentes expostos, cabeça para trás, o peitoral enorme esticado enquanto se esforçava para assumir o controle. Era a coisa mais quente que já tinha visto. E explorar primeiro era uma virtude, com certeza... Mas desejava possuí-lo de maneira mais profunda antes de aprender suas particularidades.

Pensando assim...

– Sua carteira? – ela tinha visto o que ele guardava ali quando manipulou a carteira na floresta... e a visão das camisinhas constrangeu-a naquele momento. Agora, estava agradecida, pois Deus sabia que ela não tinha nada disso. E não havia necessidade de se culpar por isso, um homem tinha que estar preparado sempre. Além disso, tinha alguma noção de como ele era. Testemunhou o efeito daquilo sobre Britnae.

– Agora – ela exclamou.

Outra coisa que não precisou pedir duas vezes. Quando encontrou as calças e tirou a carteira, ela levantou-se e tirou a calcinha – assim, estava pronta quando ele ergueu umas das mãos e trouxe a camisinha entre os dedos.

Ele fez uma pausa, como se quisesse que ela desse mais uma boa olhada.

Ela não hesitou. Sentou-se, pegou o pacote, mordeu e rasgou para abri-lo.

Ele gemeu e disse: – Eu posso colocar...

– Não, me deixe fazer.

Detalhes práticos nunca foram tão eróticos. Ela lidou bem com o objeto, acariciando a grande extensão de seu pênis ao cobri-lo, até Veck arquear-se e segurar o peso do corpo sobre os braços. Quando Reilly começou a tocá-lo, os olhos dele começaram a queimar, e, quando ela puxou-o, Veck rosnou... E beijou-a da maneira de sempre: com um domínio que vinha de um homem que sabia exatamente o que poderia fazer com uma mulher.

Ela posicionou-o sobre seu núcleo e, apesar de estar desesperada e de estar evidente que ele a desejava, Veck foi lento e cuidadoso ao pressioná-la por dentro. Muito bom. O corpo dela estava pronto – mas “pronto” era um termo relativo, considerando o tamanho dele.


Gloriosamente relativo: o toque de toda aquela extensão foi eletrizante, e ela abriu as pernas ainda mais, inclinando os quadris para cima, facilitando o caminho.

E, finalmente, estavam juntos.

Ao contrário da fúria que tinha tomado conta deles até ali, agora tudo desacelerava. Enquanto ele a esperava se adaptar ao seu órgão, lambeu seus lábios com a língua escorregadia; os movimentos preguiçosos atordoaram-na. Então, moveu os quadris, curvando a coluna, criando um arrepio insano.

O assovio que ele soltou foi seguido por outro gemido. Em seguida, Reilly fundiu sua boca com a dele e continuou, mantendo o ritmo equilibrado e sem pressa. Seguindo o exemplo dele, começou a golpear também. Com isso, o sexo ganhou um impulso que a levou, ao mesmo tempo, para fora de seu corpo e para os locais mais profundos de seu íntimo.

A casa estava em silêncio. Tudo o que faziam era muito alto. Desde o ranger do sofá, até o atrito sutil das almofadas, a respiração e... Tudo estava amplificado até ela imaginar que não ficaria surpresa se pessoas no centro da cidade pudessem ouvir.

Mais rápido. Mais forte. Mais profundo.

O corpo dele transformou-se numa máquina, e ela segurou-o, deixando ser levada pelo turbilhão, agarrando suas costas primeiro com as mãos, depois com as unhas.

Reilly gozou com uma explosão selvagem tão poderosa que ficou surpresa por não ter se partido ao meio. E ele seguiu-a de imediato, os quadris dele começaram a pulsar violentamente quando houve a pressão dentro de seu órgão.

Passou-se um bom tempo antes do rugido em seus ouvidos diminuir e, quando aconteceu, o silêncio na casa aumentou.

Depois do momento de paixão, a realidade retornou: tomou consciência de que estava nua e Veck estava dentro dela... e tinham acabado de fazer sexo.

Com o homem que era seu parceiro. Com o detetive que deveria fiscalizar. Com uma pessoa com quem tinha passado apenas algumas horas... que não era nada além de um estranho, afinal.

Um estranho que levou para a casa de sua família.

Um estranho que ela deveria adicionar à sua lista das poucas pessoas com quem ela havia estado.

O que eles tinham acabado de fazer?


CAPÍTULO 22

 

Adrian e Eddie ficaram mais um tempo ao longo da noite sentados naquela mesa do Iron Mask, bebendo cervejas nas garrafas longneck e paquerando as mulheres que passavam por eles. Nenhum dos dois falou muito. Era como se o que acontecera no banheiro tivesse sugado suas cordas vocais. E outra rodada de sexo estava fora de questão.

Ao sentar-se ao lado do seu parceiro, Ad esperava que algo dentro dele protestasse e trouxesse-o de volta ao normal. Maaas... nada aconteceu. A questão era: poderia lutar com seu inimigo com facas e punhos, mas a alma não tinha armas para lutar naquela guerra, pois não tinha como vencer. Também não conseguia lutar contra a realidade no ringue – não havia alvo para atingir. A não ser um obstáculo intransponível. Então, apenas sentou-se naquele clube, observando a multidão beber, mas sem ficar embriagado.

– Vamos voltar ao hotel? – perguntou finalmente.

Enquanto esperava por uma resposta, tinha plena consciência do quanto confiava no outro anjo como sendo a voz da razão; era aquele que tomava as decisões certas, que os guiava na direção correta.

E o que ele dava em troca?

Além do sexo – e, naquela noite, Eddie tinha provado que não precisava dos seus serviços nesse sentido também.

Ai, ai, ai – Ad pensou. Se continuasse assim ganharia o prêmio de covarde do ano.

– O que eu quero mesmo é uma audiência com Nigel – Eddie murmurou. – Mas ele está me afastando.

Ad olhou para ele.

– Será que ele foi demitido outra vez? Porque não deve se preocupar, não é nossa culpa. Jim é quem está com problemas, não nós. Ele nos dispensou.

E tudo por causa daquela maldita virgem.

Cara, se ele pudesse voltar atrás em alguma coisa desde que conheceu o salvador, seria manter o cara longe da toca de Devina. Sim, com certeza, a questão Sissy foi uma tragédia. Mas o que isso estava causando a Jim era pior. Uma garota, uma família, versus a totalidade das almas existentes? Matemática cruel para os Bartens, mas era a realidade.

Ad passou uma das mãos pelos cabelos e sentiu vontade de gritar.

– Olha, não consigo mais ficar aqui.

O grunhido que saiu de Eddie poderia ser um gesto de acordo, fome, ou a cerveja que não tinha caído bem.

– Vamos – Ad declarou, levantando-se.

Pela primeira vez, Eddie seguiu-o e, juntos, desviaram-se da multidão e afastaram-se do tumulto, chegando à porta de saída. Do outro lado? Chuva. Frio. Era o período noturno numa cidade que não era diferente de nenhuma outra no planeta e uma noite que não destoava de tantas outras pelas quais já tinham passado juntos.

Droga, talvez precisassem se acertar com Jim... relaxar. Nada de bom poderia vir com o salvador lutando sozinho.

Saindo do clube, não seguiram para uma direção específica. Mais cedo ou mais tarde, encontrariam um lugar para ficar – a menos que fossem acolhidos no território de Nigel, mas parece que isso não aconteceria tão cedo. Precisavam descansar. Imortais eram imortais só até certo ponto quando estavam na Terra. Não, não envelheciam, mas eram vulneráveis de algumas maneiras e precisavam comer, dormir, seguir as regras de higiene...

O ataque aconteceu tão rápido que Adrian não conseguiu ver nada. Nem Eddie. Seu parceiro apenas soltou um palavrão, agarrou a lateral de seu corpo e caiu como uma árvore, de lado, sobre o pavimento molhado do beco.

– Eddie? O que aconteceu?

O outro anjo gemeu e curvou-se todo... deixando atrás de si uma mancha brilhante de sangue fresco sobre o asfalto sujo.

– Eddie! – gritou.

Antes que pudesse se ajoelhar, um riso maníaco ecoou na escuridão fria e úmida. Levou apenas um segundo para Adrian reagir. Virou-se e desembainhou a faca, esperando enfrentar Devina. Acompanhada de um de seus subordinados. Ou doze deles.

Mas tudo o que viu... foi um humano. Um maldito pedaço de carne humana. Com um canivete na mão e um olhar selvagem de viciado no rosto encolhido.

Mais risos saíram da boca escancarada do homem.

– O diabo me obrigou a fazer isso! O diabo me obrigou a fazer isso!

O mendigo ergueu a faca por cima do ombro e saltou à frente, atirando-se contra Adrian com uma força sobre-humana, que só os loucos possuem.

Ad firmou-se sobre as coxas. Seu movimento normal seria sair correndo e olhar para trás bem depois, mas não com Eddie no chão: precisava manter contato visual com seu amigo... porque o cara não estava se movendo, nem para pegar uma arma, nem... ah, droga, não estava se movendo...

– Vamos lá, Eddie. Mexa-se! – passou a adaga de cristal para a mão esquerda e observou o antebraço do maluco possuído, esperando o momento certo...

O cara vacilou um pouco e foi o momento perfeito para Ad pegar o braço dele, mudar a trajetória do canivete e redirecioná-lo contra o bastardo. E a correção de percurso deveria ter sido muito fácil, a arma faria um arco evitando o contato com os órgãos vitais de Ad e terminaria no intestino do agressor.

Não foi bem assim. O corpo magro controlado pela mente caótica desvencilhou-se de Ad como se fosse uma rajada de vento, e ele, então, percebeu que Eddie não se levantaria.

Como se o maluco pudesse ler sua mente, um riso borbulhou de sua alma perdida, soando como um piano sendo tocado aleatoriamente por uma mão pesada, nada além de ruídos e sons dissonantes.

O filho da mãe quase voava sobre o chão ao investir contra Eddie outra vez, a faca por cima do ombro, a pele descamada sobre o rosto em que se via mais ossos que carne.

Ad não teve escolha. Precisava se concentrar no agressor e se proteger. Eddie morreria naquela calçada se ele não sobrevivesse e tirasse-o dali em segurança. Não podia perder aquela luta.

Agachando-se no último momento, investiu contra o bastardo e fazendo-o colidir contra uma construção. Quando o impacto aconteceu, uma dor ardente acima de seus rins disse-lhe que a faca havia ultrapassado a pele e mergulhado bem fundo, mas não houve tempo de se preocupar com o sangramento. Estendeu a mão, pegou aquele braço enlouquecido e acertou-o em cheio com um tijolo molhado. Fixando o membro no chão, fez um longo ferimento nele com sua adaga.

A risada maníaca foi substituída por um grito agudo de dor.

Esfaqueou outra vez. E uma terceira vez... uma quarta, uma quinta. Era claro que estava tão enlouquecido quanto o agressor, mas não parou. Com um poder preciso e cruel, golpeou a lâmina de cristal por cima do tronco várias vezes até quebrar todas as costelas, como se a lâmina penetrasse numa esponja molhada. Mesmo assim, continuou, só não precisava mais controlar o cara, apenas mudou-o de lugar para terminar de esfaqueá-lo.

A diversão e as brincadeiras finalmente pararam quando sua lâmina de cristal atingiu a parede de tijolos, esculpindo-a nos locais onde Ad havia golpeado.

Ele estava ofegante quando deixou a arma cair ao seu lado. Havia sangue por toda parte, e o maluco estava com muitos problemas no trato intestinal – na verdade, o cara quase tinha sido partido em dois, a coluna era a única coisa que ligava os quadris à parte superior do corpo.

Com lábios frouxos e flácidos, os engasgos interromperam o fluxo constante de plasma que bloqueava o ar que o homem ainda tentava fazer passar pela garganta. Mas aquilo terminaria em breve.

– O demônio... me obrigou... a fazer...

– E ela pode ficar com você – Ad rosnou, antes de lançar uma facada entre os olhos do maluco.

Houve um barulho terrível quando a essência de Devina explodiu daqueles olhos que uma vez tinham pertencido a um viciado de rua perdido. A fumaça negra fundiu-se e preparava um ataque por conta própria.

– Droga! – com um grande salto, Adrian ergueu o corpo e saiu correndo. Eddie ferido no chão era seu principal objetivo e cobriu o corpo do anjo com o seu, tornando-se o único escudo que manteria Devina longe da carne de seu parceiro.

Preparando-se para o impacto, pensou: Bem, não esperava ser assim, tão rápido.

Estava pensando na morte.

Ao menos Eddie sairia dessa. Era preciso mais que um grande golpe para derrubá-lo de vez. Afinal, feridas poderiam ser consertadas... tinha de ser assim.

Enquanto Jim estava parado com Cachorro na calçada da casa de Veck, entendeu que tinha assumido uma posição observadora com a alma em questão, apenas seguindo o cara em todos os lugares, deixando o tempo passar até Devina fazer a próxima jogada. Isso era extremamente chato.

Ficava muito mais à vontade assumindo uma postura agressiva, mas, às vezes, esperar e observar eram o X do problema. Contudo, caramba, o clima poderia estar melhor. A chuva continuava a cair e ele poderia muito bem continuar o seu trabalho sem o frio. Poderia muito bem ignorar o que acontecia dentro da casa também. Claro que aqueles dois estavam fazendo sexo. Dã.

Visualizou o início da diversão quando entraram e, então, ficou óbvio qual seria o próximo passo: a química deles estava explodindo e, em geral, não era o tipo de coisa da qual se fugia.

Jim cruzou os braços sobre o peito e agachou-se, todo aquele movimento sensual o fez pensar nas mulheres com quem estivera. Hum... Devina contava? Apenas se estivesse com o disfarce da bela morena, concluiu. Sem isso, teria que iniciar uma categoria “animal” na sua lista.

Tanto faz. Independentemente da espécie, nunca ficou com alguém a quem dava a mínima importância. Transar era como uma masturbação interativa para ele – e, pensando assim, prostitutas baratas pareciam um bom negócio. Gostava de ficar com elas, a sensação de controle era melhor que qualquer outra coisa que fizessem.

Contudo, sua vida sexual tinha acabado, não? Não poderia considerar o que teve com aquele demônio – foi uma luta em meio à guerra, apenas com punhos e cotovelos movimentando-se de forma diferente. E seu estilo de vida não incentivava muito um namoro. Porém...

De repente, uma imagem de Adrian e Eddie transando com aquela ruiva no quarto de hotel em Massachusetts escorreu em sua mente como chuva sobre a cabeça. Viu Eddie estendido em cima dela e Adrian juntando-se a eles com um olhar de quem já estava morto por dentro.

Devina havia feito aquilo com o anjo. Colocou aquele vazio em seu olhar.

Vadia da porra.

Pegou um cigarro, acendeu e inalou.

Veck era um homem de sorte por estar com a mulher que desejava. Jim nunca teria aquilo. Mesmo se libertasse Sissy...

– Idiota – murmurou ao exalar.

Será que a importância que dava àquela garota em alguma parte ridícula de seu cérebro tinha ido tão longe que ultrapassara os limites do termo “sua” ao referir-se a ela como alguém por quem era responsável? Pensava nela como sendo “sua” de fato? Será que tinha enlouquecido? Ela estava mais ou menos com seus dezenove anos e ele devia ter 140 mil naquele momento.

Certo, talvez Adrian e Eddie estivessem certos. O que estava fazendo com relação àquela garota era distração. Sim, tentou disfarçar com o discurso de que estava tudo bem, mas mentiu o tempo todo. E, naturalmente, quando seus parceiros forçaram-no a olhar a realidade, voltou-se contra eles e bufou como uma biscatinha.

Um arranhão na perna o fez baixar a cabeça. Cachorro tinha se sentado próximo aos seus pés e dava patadas na panturrilha. Parecia preocupado.

– O que foi?

O telefone de Jim tocou e, antes de atender, verificou a tela e teve a premonição de uma tragédia.

Aceitou a ligação e tudo o que ouviu foi uma respiração difícil. Em seguida, a voz de Eddie, fraca e entrecortada.

– Rua do Comércio... com a 13. Ajuda...

O riso entrecortado ao fundo significava más notícias, e Jim não perdeu tempo. Deixou Cachorro na calçada e foi para o centro da cidade, rezando para que um piscar de olhos fosse o suficiente para chegar a tempo.

O endereço era irrelevante, tudo o que tinha a fazer era seguir a essência de seus amigos. Chegou lá no momento em que Adrian pegou sua adaga de cristal e investiu entre os olhos de um bastardo louco e ensanguentado.

Devina.


Jim não precisava ouvir o barulho estridente para saber que algo maligno surgiria daquele saco de carne, e não havia nada para impedi-lo de investir contra Eddie: o anjo estava caído, todo contorcido, com o celular numa das mãos, agora totalmente rendido.

Sem pensar, Jim jogou-se em direção ao anjo sem defesa, arremessando o corpo no ar – Adrian fez a mesma coisa, ao mesmo tempo.

Ad aterrissou primeiro. E Jim cobriu os dois, sem muita esperança de proteger alguém...

Mas a coisa mais estranha aconteceu: seu corpo dissolveu-se em luz, da mesma maneira que aconteceu quando ficou furioso com Devina na última rodada. Num momento estava em sua forma corpórea... no outro, era pura energia.

Cobriu os anjos embaixo dele. Conseguiu mantê-los em segurança.

O servo, demônio, seja lá o que fosse aquilo, atingiu-o com o impacto de uma bola de golfe sobre o capô de um carro, ricocheteando, sem fazer qualquer estrago. Tentou outra vez imediatamente e obteve o mesmo resultado. Eeeee uma terceira vez.

Houve uma longa pausa em que Jim não vacilou. Podia sentir a presença em volta deles, procurando uma maneira de entrar.

Ficou claro que Eddie sangrava. O cheiro pungente era muito forte para estar vindo do corpo que jazia próximo à parede de tijolos. Inferno, talvez os dois anjos estivessem feridos. Hora de acabar com aquela bobagem.

Jim retraiu-se, levantou-se numa coluna de luz brilhante que iluminou cada centímetro nas proximidades e dissipou todas as sombras daquele local sujo. Colocando-se em posição de defesa frente ao ser maligno, condensou tudo o que havia no ar... E lançou tudo contra o filho da mãe.


A explosão não produziu luz, mas o grito foi tão alto quanto dois carros freando com força ao mesmo tempo em asfalto seco, e, em seguida, houve um ruído estranho como se areia estivesse sendo despejada.

Jim retomou sua forma corpórea e ajoelhou-se sobre os rapazes.

– Quem está ferido?

Adrian gemeu e saiu de cima de seu melhor amigo, uma das mãos pressionava a lateral do corpo.

– Ele. Levou uma facada no estômago.

Estava claro que Ad tinha sido ferido também, mas Eddie não se movia. Ao menos até Jim tocar o ombro do anjo. Com isso, o cara encolheu-se.

– Como você está?

Quando não houve resposta alguma, Jim olhou ao redor. Precisavam sair da rua. Era uma área movimentada da cidade durante a noite, e a última coisa que precisava era de alguém bem intencionado chamando a emergência. Ou pior, de um assaltante passando por ali. Ou de um policial em patrulha.

– E você? – perguntou a Adrian ao examinar o outro lado do beco.

– Estou bem.

– Mesmo? – edifícios de escritório, comércios ao redor. – Então por que está tremendo assim?

– Estou resfriado.

– Ah. Certo.

Não havia como voltar ao hotel. Precisavam de mais privacidade e, de qualquer maneira, era impossível carregar Eddie pela recepção: mesmo que conseguisse camuflar os dois, o cara ainda deixaria um rastro de sangue.

Além disso, as alternativas eram discutíveis, pois não poderia voar com aquele peso. Precisava encontrar abrigo para eles perto dali.

– E a sua mobilidade? – perguntou a Adrian.

– Depende. Se for para andar? Tudo bem. Voar? Nem pensar.

Jim mergulhou os braços sob o corpo de Eddie.

– Prepare-se, garotão. Isto vai doer.

Com um impulso, Jim estendeu os músculos da coxa como apoio e ergueu o peso do anjo do pavimento úmido. Em resposta, Eddie gemeu e ficou mais tenso, o que foi bom, pois facilitou segurar o cara.

Também significava que o bastardo ainda estava com eles.

Antes que Jim começasse a andar, o celular de Eddie atingiu o chão e deslizou para longe, batendo na bota de combate de Adrian.

O anjo curvou-se e pegou. A tela brilhava, e o sangue projetou uma luz vermelha.

Passando a mão pelos cabelos molhados, Ad disse: – Então, ele te ligou.

– Sim – já na saída do beco, Jim indicou com a cabeça um banco do outro lado da rua. – Vamos entrar lá.

– Como?

– Pela porta da frente – quando Jim começou a caminhar, murmurou para Eddie: – Caramba, garoto, você pesa tanto quanto um carro.

O passo arrastado atrás dele indicava que Ad acompanhava-os. O comentário em seguida apenas confirmou tal fato: – Um banco? Aquele lugar deve estar todo trancado. Tão perto de...

Quando chegaram à entrada com portas de vidro da recepção, as luzes internas apagaram-se, o sistema de segurança foi desativado e a porta da frente... abriu-se, completamente.

Quando entraram, tudo voltou ao normal, exceto as luzes e os sensores de movimento.

– Como fez isso? – Adrian sussurrou.

Jim olhou por cima do ombro. O anjo atrás dele parecia ter sofrido um acidente de trem: rosto muito pálido, olhos muito arregalados, sangue nas mãos e escorrendo pela camiseta.

– Não sei – disse Jim com voz suave. – Apenas fiz. E você precisa se sentar. Agora.

– Dane-se... Precisamos cuidar de Eddie.

Verdade. O problema era que numa situação como aquela... Eddie era o cara a quem Jim perguntaria o que fazer.

Hora de começar a rezar por um milagre – Jim pensou.


CAPÍTULO 23

 

Veck sentiu a mudança em Reilly imediatamente: mesmo ainda dentro dela, percebeu que, em sua mente, ela havia colocado suas roupas, aberto a porta e ido embora.

Droga.

Movendo uma das mãos entre seus corpos, apoiou-se e recuou.

– Sei o que está pensando.

Ela esfregou os olhos.

– Sabe?

– Sim. E provavelmente eu deveria dizer algo como “foi um erro”. Assim, você poderia dar logo um fim nisto.

Antes que se ajeitasse sobre as almofadas do sofá ao lado dela, abaixou-se e pegou a camisa dele para cobrir o corpo nu de Reilly.

Enquanto ele puxava a gola até o queixo, ela examinava seu rosto.

– Foi um erro, para todos os efeitos. É um erro.

Certo, esta doeu.

– Mas eu não consegui me conter – ela disse com voz suave.

– A tentação é assim – e ele tinha que manter isto em mente: tentação foi tudo o que a moveu.

Os olhos dela moveram-se para o chão próximo ao sofá... Onde a carteira dele estava aberta e havia outro preservativo guardado numa das divisórias.

– Acho melhor eu ir – disse ela um tanto rude.

Deus, por que sempre tinha que manter duas ali?

A última coisa que desejava era que ela fosse embora – e a última coisa que poderia impedir.

– Vai ter que ficar com a minha camisa. Eu rasguei a sua.

Fechando os olhos, ela amaldiçoou em voz baixa.

– Desculpe.

– Meu Deus, pelo quê?

– Não sei.

Acreditava que não sabia mesmo. Mas tinha certeza de que descobriria muito em breve exatamente o que e o quanto lamentava.

Quando Reilly levantou-se do sofá, ele escondeu o pênis com uma das mãos: ela não tinha motivos para ver aquilo agora. E não tinha motivos para pensar que a noite não tinha sido como ela mesma descrevera: um erro.

Para ele? Graças a Reilly, teve a sua primeira refeição caseira do século XXI, uma carona em meio à tempestade e uma relação sexual que se aproximava bastante do conceito piegas de “fazer amor”.

Irônico como duas pessoas poderiam cumprir a mesma lista de tarefas com uma perspectiva totalmente diferente. Infelizmente, o ponto de vista dela era o que contava.

Em silêncio, reuniu as roupas dela uma a uma e entregou-as. Ouviu quando ela vestiu as calças, as meias e os sapatos. Concluiu que tinha vestido o sutiã também, mesmo que a peça não fizesse muito barulho. O coldre foi a última coisa que entregou e, enquanto ela lidava com o cinto de couro, Veck subiu a própria calça e prendeu-a sobre os quadris.

– Vou te acompanhar até a porta – disse, quando ela terminou de vestir-se.

Não havia razão para prolongar aquela situação constrangedora. Além disso, iria embora de qualquer maneira.

Deus, isto tudo é como tomar um tiro – pensou ao aproximar-se da porta.

Quando Reilly aproximou-se, procurou olhar por sobre o ombro dela, o que, infelizmente, levou seus olhos para o sofá.

– Não quero que isso termine assim – ela disse.

– As coisas são como são. Sei de onde você veio, seus valores.

– Não é o que você pensa.

– Posso imaginar.

– Não quero... Eu queria muito isso. Mas é difícil ser apenas outra mulher em sua cama.

Ao abrir a porta, foi atingido por uma rajada de vento frio e úmido.

– Eu nunca te levaria lá para cima. Confie em mim.

Ela piscou confusa. Limpou a garganta e disse: – Certo. Ah... vejo você amanhã.

– Sim, às nove.

Assim que saiu, fechou a porta e foi até a cozinha para vê-la entrar no carro e afastar-se sob a chuva.

– Filho da puta.

Apoiando a palma das mãos sobre o balcão, deixou a cabeça pender por um momento. Então, enojado de si mesmo, virou-se e subiu as escadas rapidamente. Em seu quarto, passou pela cama e pensou: Não, de jeito nenhum, nunca traria Reilly até aqui.

Naquele colchão, trazido de Manhattan, deitaram-se as várias mulheres com quem tinha se relacionado ao acaso em bares e locais assim – nem sequer sabia o nome de algumas delas, muito menos o telefone. Pedia para que todas fossem embora antes mesmo do suor secar.

A mulher com quem teve a sorte de ficar naquela noite não era uma qualquer, e, mesmo que não sentisse o mesmo que ele, nunca a desvalorizaria deitando-a sobre aquele lugar sujo. Lençóis limpos não escondiam as manchas do modo como ele vivia.

No banheiro, tirou o preservativo e jogou-o na cesta de lixo. Ao olhar para o chuveiro, pensou em tomar uma ducha. Mas acabou vestindo uma calça de moletom e depois desceu para ficar no sofá, o perfume delicado de Reilly ainda estava sobre ele.

Patético.

O bom de ter passado três anos fazendo patrulha em vários pontos da cidade de Caldwell era que Reilly conseguia chegar em casa saindo de qualquer lugar sem nem sequer pensar no que estava fazendo. Muito útil numa noite como aquela.

Nunca a levaria lá para cima. Confie em mim.

É, aquela pequena frase ficaria em sua mente para o resto da vida. E, claro, ficou imaginando que tipo raro de mulher seria bem-vinda naquele local tão especial. Deus, com quantas mulheres deve ter ficado naquele sofá? E como seria a seleção para chegar até o quarto?


Mas não o culpava pelo que sentia agora. Desejava exatamente o que tinha acontecido e lidaria com as consequências – as quais, por ter sido sexo seguro, seriam apenas emocionais: escolhera aquele resultado... Seguiu Veck até a porta, empurrou o cara para dentro da casa, pediu para que pegasse a carteira. Então, seria adulta o suficiente naquele momento e passaria as próximas dez horas recompondo-se para voltar ao escritório às nove da manhã do outro dia. Era o que profissionais faziam. E o motivo pelo qual profissionais não deixavam as coisas chegarem àquele ponto.

Depois de dez minutos de estrada embaixo de uma tempestade, parou na calçada de sua casa e acionou o controle do portão da garagem. Enquanto esperava os painéis subirem, pensou: Ah, que droga. Entre o jantar e o que tinha feito depois, já fazia horas que não checava o celular.

Quando o pegou, verificou que havia três chamadas perdidas. Havia apenas uma mensagem de voz, mas, considerando quem tentara ligar, não perdeu tempo com isso. Simplesmente ligou de volta para De la Cruz.

Um toque. Dois toques. Três toques. Caramba, talvez ele estivesse dormindo. Era tarde... A voz dele interrompeu um dos toques.

– Esperava que fosse você.

– Desculpe, eu estava ocupada – fez uma careta. – O que aconteceu?

– Sei que gostaria de falar com Kroner e acho que pode e deve fazer isso agora. Os médicos dizem que ele está melhor do que pela manhã, mas a maré pode virar, e acho que se fizer uma entrevista como parte neutra no caso, pode ajudar Veck e também pode influenciar a opinião pública.

– Quando posso vê-lo? – inferno, iria naquela noite mesmo se pudesse.

– Provavelmente amanhã de manhã seja o melhor horário. Tive notícias há uma hora de que ele está descansando tranquilamente. Não está mais encubado, não tomou mais sedativos e até comeu alguma coisa. Mas, agora está dormindo profundamente.

Lembrando-se da condição do cara naquela floresta, era loucura ele ainda estar respirando, quanto mais comendo as refeições do hospital – e pensou em Sissy Barten. Tão injusto. Aquele tal de Kroner estava vivo e a garota... bem, provavelmente não.

– Estarei lá amanhã às nove horas.

– Tem segurança 24 horas. Vou me certificar de que sejam comunicados da sua visita. Ei, como estão você e Veck juntos?

Fechou os olhos e conteve um palavrão.

– Bem. Perfeito.

– Ótimo. Não o leve com você.

– Não iria mesmo – por mais de um motivo.

– Depois me diga como foi, se não se importa.

– Detetive, será a primeira pessoa para quem vou telefonar.

Depois de desligar, esfregou a nuca, tentando aliviar a tensão que pensava ter sido causada pelos exercícios que fizera com o parceiro naquele sofá.

Soltando o freio, deixou o motor levá-la devagar para dentro da garagem. Desligou o carro, saiu e... parou enquanto fechava a porta do motorista.

– Quem está aí? – ela gritou, colocando uma das mãos sob o casaco para pegar a arma.

A luz automática do teto deu-lhe uma visão clara das vassouras, da lata de lixo e do saco de sal que jogava na calçada durante o inverno para que os carteiros conseguissem entregar a correspondência. Mas também fez dela um alvo fácil para quem a observava.

E havia mesmo alguém.

Num movimento rápido, deu a volta pelo capô, e não pelo porta-malas, e já estava com a chave a postos antes de chegar à porta. Com movimentos rápidos e certeiros, abriu a fechadura, entrou na casa e acionou o portão da garagem ao mesmo tempo. E a fechadura foi trancada assim que entrou.

O sistema de alarme começou a apitar no canto da cozinha. Ou seja, estava ativado e fora ela mesma quem o tinha disparado. Com a mão esquerda, digitou a senha e silenciou o barulho. A arma estava na mão direita.

Com as luzes apagadas, passeou pela casa, olhando pelas janelas. Não viu nada. Não ouviu nada. Mas seus instintos gritavam que estava sendo vigiada.

Reilly pensou naqueles “agentes do FBI” e no fato de que alguém tinha entrado ou andado em volta da casa de Veck na noite anterior. Oficiais de polícia também são perseguidos. Isso já havia acontecido com muitos. E, embora há muitos anos não atuasse num caso com apelo público, hoje estava envolvida com Veck.

E ele estava longe de ser um cara sem controvérsias.

No escritório, pegou o telefone e verificou se havia linha. Sim, havia. E, ironicamente, Veck foi a primeira pessoa que pensou em chamar. Mas não chamaria, era perfeitamente capaz de se defender.

Puxando a cadeira da escrivaninha, posicionou-a para que pudesse ver a porta da frente e a que dava acesso à garagem ao mesmo tempo. Em seguida, arrastou um criado-mudo. No armário, num cofre à prova de fogo, havia três outras armas e vários cartuchos de munição; ela pegou outra automática e preparou-a para atirar.

Sentando-se apoiada contra a parede, pegou o receptor do telefone sem fio e colocou-o sobre a mesa com a arma extra, mantendo o celular no bolso caso precisasse agir rápido.

Alguém queria atacá-la?

Tudo bem. Podiam entrar para ver a recepção que teriam.


CAPÍTULO 24


No centro da cidade, na recepção de mármore do banco que Jim havia arrombado, Adrian estava perdendo sangue e com vertigens, mas se recusou a desmaiar.

Sob um facho de luz externa, Jim colocou Eddie suavemente no chão duro e polido. O anjo ainda estava contorcido, o corpo enorme assumiu uma posição fetal ao lado dele, sua trança escura serpenteava como uma corda.

– Podemos estender você um pouco, amigão? Ver o que está acontecendo? – disse Jim. Não eram bem perguntas. Era mais um aviso a Eddie de que mais movimentação estava por vir. E quando o cara esticou-se um pouco, foi bom ouvir o palavrão que soltou. Sinal de que o grande bastardo ainda estava respirando.

Só que continuou curvado sobre a barriga. E seu rosto... não estava certo. A pele, que era sempre de um tom mais escuro, estava clara como a neve, e seus olhos estavam fechados com tanta força que os traços distorciam-se.

Havia sangue na boca, manchando os lábios de vermelho. Sangue... estava saindo da boca.

Adrian começou a arfar, os punhos fecharam-se, o suor escorria pelo corpo inteiro.

– Você vai ficar bem, Eddie. Vai ficar...

– Se estenda um pouco, por favor – disse Jim. – Sei que dói demais, mas temos que ver.

–... tudo bem. Vai ficar tudo bem...

– Ai, merda – Jim sussurrou.

Ai... merda... era isso mesmo. O sangue não só manchava ou escorria de onde Eddie segurava... saía em fluxos.

Jim arrancou seu casaco de couro molhado, amassou-o e tirou do caminho as mãos de Eddie, escorregadias, brilhantes e vermelhas de sangue. Mas congelou em seguida.

De alguma maneira, a faca daquele maluco penetrou no intestino de Eddie e foi puxada para a lateral, produzindo um buraco longo e profundo o suficiente para que uma boa parte das vísceras fosse exposta. Mas essa não era a pior parte: considerando a quantidade de sangue que saía do ferimento, era evidente que uma veia importante ou uma artéria fora rompida. E isso iria matá-lo.

Jim estremeceu e colocou a jaqueta embolada sobre a ferida.

– Pode segurar isto para mim, Ed?

Eddie fez uma tentativa de erguer as mãos, mas conseguiu movê-las apenas um centímetro ou dois.

Jim olhou para cima.

– Ele pode morrer?

Adrian balançou a cabeça enquanto sentia as pernas ficarem dormentes.

– Eu não sei.

Mentira. Sabia a resposta. Só não conseguia dizer.

– Maldição – Jim inclinou-se em direção ao rosto de Eddie. – Cara, tem alguma coisa que pode me dizer?

Adrian caiu de joelhos. Em seguida, pegando a mão de seu melhor amigo, ficou horrorizado com o quanto estava fria. Fria e molhada por conta do sangue e da chuva.

– Eddie... Eddie, olhe para mim – Jim falava.

Aquilo não estava certo. O combatente heroico, o guerreiro que percorrera séculos, não poderia ser abatido por um louco com uma faca. Eddie era forte e destacava-se em tudo, glorioso, era alguém que poderia enfrentar um exército de escravos demoníacos sozinho. Não poderia ser assim... Não naquela noite.

Eddie soltou um suspiro ao apertar a mão de Adrian, seu corpo enorme tremia.

– Estou aqui... – disse Ad ao esfregar os olhos com as costas da mão livre. – Não vou a lugar algum. Não está sozinho...

Puta merda. Estamos perdendo Eddie.

E esse ponto era inexplicável. Como anjos, estavam e não estavam vivos, existiam e não eram constituídos de carne e osso ao mesmo tempo, eram imortais, mas capazes de perder a vida que lhes tinha sido concedida.

– Eddie, maldição... Não vá... Você consegue sair desta... – olhou para Jim. – Faça alguma coisa!

Jim soltou um palavrão e olhou em volta, caramba... Estavam na recepção de um banco e não num hospital. Além disso, o salvador não poderia pegar uma agulha e linha e começar a suturar, poderia?

Mas Jim fechou os olhos e acomodou-se no chão, cruzando as pernas no estilo indiano, conseguindo ficar completamente calmo. Quando Ad estava prestes a gritar dizendo que aquela não era hora de fazer meditação, o cara começou a brilhar: dos pés à cabeça, uma luz branca e pura começou a emanar de sua cabeça, corpo e mãos.

Um momento depois, o salvador estendeu-se... e colocou as mãos sobre o peito grande e volumoso de...

O tronco de Eddie arqueou-se para cima com força, como se tivesse recebido uma descarga elétrica daqueles desfibriladores cardíacos que os humanos usam e, em seguida, respirou fundo. Imediatamente, seus olhos vermelhos abriram-se... e voltaram-se para Adrian.

Sentindo-se uma menina por chorar, Ad limpou outra vez os olhos.

– Ei – teve que limpar a garganta. – Tem que ficar firme e enfrentar isto. Cure-se. Use o que Jim está lhe dando...

Eddie balançou a cabeça um pouco e abriu a boca. Tudo o que saiu foi um gemido.

–... firme. Vamos lá, cara, apenas...

– Preste... atenção... – Ad ficou imóvel, a voz de Eddie estava muito fraca. – Precisa... ficar... com Jim...

– Não. De jeito nenhum. Você não vai partir...

– Fique... com Jim... não... – lutou para respirar mais uma vez. – Fique com Jim.

– Não pode acabar assim! Sou eu quem deve ir primeiro...

Eddie ergueu o braço com esforço e colocou o dedo indicador sobre os lábios de Ad, para silenciá-lo.

– Seja... inteligente... ao menos uma vez... certo? Prometa.

Adrian começou a se mover para frente e para trás, os olhos inundados de lágrimas ao ponto de a visão ficar completamente turva.

– Prometa... por sua honra...

– Não. Não prometo nada. Dane-se! Não vai me deixar!

As pálpebras do anjo começaram a se fechar devagar.

– Eddie! Maldito! Não morra assim! Vai se foder!

Quando os ecos daquelas palavras desapareceram no ar, a respiração de Eddie ficou mais difícil enquanto abria a boca ao máximo. E, nos momentos terríveis e silenciosos que se seguiram, o coração de Ad começou a pulsar cada vez mais rápido, com a certeza de que o do seu amigo fazia o contrário e desacelerava.

Edward Lucifer Blackhawk morreu depois de respirar mais duas vezes.

Não foi a abrupta falta de movimentos nas costelas, ou a maneira como o corpo relaxou, ou o fato de a mão dele ter perdido a pouca força que ainda restava que confirmaram a morte. Foi o perfume de flores da primavera que flutuou pelo ar.

Adrian agarrou a frente da camiseta de Jim.

– Pode trazê-lo de volta. Traga-o de volta, pelo amor de Deus, coloque suas... mãos... em cima dele...

Por alguma razão, Adrian não conseguiu mais falar depois disso. Em seguida, não conseguia mais enxergar. Ficou confuso por um momento, olhou em volta, os pensamentos estavam nublados, sentiu um pouco de asfixia.

Oh, espere.

Ele estava soluçando como uma menininha.

Nem sequer fingiu se importar com isso, agarrou Eddie ao redor do peito e embalou junto ao coração o anjo caído que sempre o acompanhara, séculos e séculos, em cada passo de seu caminho na terra e no purgatório. E, quando o segurou, parecia leve em seus braços, mesmo o tamanho do corpo sendo o mesmo de sempre.

A essência de Eddie havia partido.

Eddie enterrou o rosto no pescoço grosso e começou a balançar para trás e para frente, para trás e para frente... para trás e para frente...

– Não me deixe... não... oh, Deus, Eddie...

Adrian não estava certo de quantos minutos ou horas se passaram, mas percebeu, mesmo naquele estado de perturbação, que algo havia mudado.

Olhando sobre a cabeça de Eddie, viu o salvador... E teve que piscar algumas vezes para se certificar de que a imagem fazia sentido.

Jim Heron estava agachado, dentes expostos, o corpo enorme muito tenso. Os olhos estavam fixos em Adrian e Eddie, e um brilho negro profano emanava deles, a luz maligna irradiava pelo ar perfumado.

Eram vingança, ira e raiva subindo e espalhando-se. Era a promessa do inferno na Terra. Era tudo o que dizia respeito a Devina... na forma e nas feições do salvador. Foi estranho, mas Adrian sentiu-se aliviado com a visão. Calmo. Centrado. Não estava sozinho ao sentir-se violado, roubado. Não estava sozinho ao olhar para o futuro.

O caminho que ele seguiria para abater aquele demônio teria dois pares de pegadas, não apenas um...

Naquele momento, Jim abriu a boca e soltou um rugido mais alto que o som de um avião decolando seguido por uma grande explosão: As janelas de vidro da recepção do banco, em toda sua imensa extensão, explodiram de uma só vez, banhando a calçada como se fosse uma nevasca de pequenos cacos de vidro.


CAPÍTULO 25

 

No céu, Nigel deu um salto em seu leito de cetim e seda. Não estava em repouso – não conseguia fechar os olhos sem Colin ao seu lado –, mas, acordado ou dormindo, a visão que lhe sobreveio iria deixá-lo chocado e em estado de alerta seja lá quais fossem as circunstâncias.

Com mãos trêmulas, vestiu um roupão para cobrir sua nudez. Edward... Oh, caro e estoico Edward. Havia partido. Naquele exato momento, na Terra. Uma terrível reviravolta nos acontecimentos. Uma desestabilização horrível.

Como isso foi acontecer?

Na verdade, a ideia de que um dos dois guerreiros fosse abatido não fora contemplada em nenhum de seus planos: enviou os anjos caídos para ajudar Jim, pois eram fortes e flexíveis e muito capacitados a defenderem o bem que tantas vezes subestimaram. E, dentre os dois, Eddie deveria sobreviver: era o prudente, o inteligente, aquele que equilibrava seu parceiro elétrico, eclético e fora de controle.

Mas o destino havia surpreendido a todos.

– Maldição, maldição... maldição...

Não tinha como trazer Edward de volta – ao menos não de alguma maneira que Nigel pudesse atuar: ressurreição era algo que só cabia ao Criador, e a última vez que um anjo havia retornado fora... nunca.

Nigel secou o rosto com um lenço de linho. Havia apostado tanto em Edward e Adrian, jogando-os como dados e, agora, Adrian, o volátil, sofreria um naufrágio sem sua bússola, sua âncora, seu capitão. E Jim, que já estava distraído, estava pior que sozinho. Ele teria que cuidar do outro anjo. Era uma tragédia.

E uma grande manobra da parte do demônio – afinal, como aquilo havia acontecido? Edward estava sempre alerta. O que o teria distraído de seus instintos?

Aproximando-se do balcão de chá, Nigel começou a aquecer a chaleira. Suas mãos tremiam ao pensar sobre o que havia feito. Edward vivia seguro naquele local incomparável que ele supervisionava – estava esperando para ser útil em alguma situação, é verdade, e emocionado por ser perdoado por quebrar as regras e salvar Adrian há muitos anos. Mas ainda assim. Um bom homem. Agora, havia partido. Não era para ser assim.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Apoiando as mãos sobre a tampa de mármore da cômoda, não conseguia suportar o peso em seu coração. Se não tivesse tirado os dois de seus respectivos purgatórios, isso não teria acontecido. Tinha sido tão arrogante com a certeza de ter feito a escolha certa.

O que foi que eu fiz...?

Parado ali, sem ninguém diante ou atrás dele, sozinho com seus maus pensamentos e com o peso de seus atos dentro do peito, pensou em Adrian. Sozinho. Com dor. Na guerra.

Enquanto Nigel esforçava-se para respirar, mesmo sem precisar disso, havia apenas uma entidade a quem recorrer naquela solidão terrível. E o fato de Colin não estar lá e, mais triste ainda, o fato de que ele não podia se aproximar do arcanjo fizeram-no chorar pela situação de Adrian. Perder sua outra metade era pior que a morte. Era uma tortura, embora fosse um aprendizado...

Ao longo do que se poderia considerar seus dias e noites, na rotação interminável de suas refeições de faz de conta e de seus jogos de críquete falsos, dentro daquela estrutura tão bem construída que arquitetou para manter a si mesmo e seus arcanjos sãos ao longo da eternidade em que existiam, Nigel nunca influenciara a vontade de outra pessoa. Não era de sua natureza fazê-lo. Além disso, Colin fazia parte dele. Ao contrário de Adrian, poderia falar com sua outra metade, buscar socorro em meio àquele terror, solidão e tristeza.

Adrian nunca mais teria acesso àquilo de novo: a não ser por um milagre impossível de acontecer, estaria cada vez mais longe da outra metade de si.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Quando o apito estridente da chaleira irrompeu ao longo do local, Nigel deixou que a água continuasse fervendo, seus pés moveram-se em direção à saída de seus aposentos particulares e ele cruzou o chão com passos rápidos, vestindo um roupão.

Influenciando os ciclos que comandava, a noite caiu como uma capa de veludo sobre a paisagem. Mais à frente, as chamas das tochas começaram a queimar ao longo das muralhas e das torres do castelo produzindo um brilho cintilante que se estendeu pelo gramado.

Edward estava perdido. Colin estava ali. Só havia muito gramado entre eles.

Seguindo pelas paredes da mansão, aproximou-se do canto mais a oeste da fortaleza e virou à direita. Ao longe, a tenda de Colin surgia construída contra a linha de árvores, a estrutura do local era feita de lonas pesadas sustentadas por grandes hastes. Ao contrário do santuário privado de Nigel, era pequeno e modesto. Nada de sedas. Nada de cetins. Nada de apetrechos de luxo: o arcanjo banhava-se no rio que corria atrás do local e não dormia sobre uma cama, mas sobre um leito rústico e pobre. Nada de cobertores. Nada de travesseiros. Apenas livros para se divertir.

Por tudo isso, Nigel insistia que dividissem seus aposentos; o outro arcanjo praticamente havia se mudado para lá há muitos séculos.

Na verdade, quando chegou à tenda, Nigel percebeu que nunca havia passado uma “noite” ali. Sempre era Colin quem se locomovia.

Quando foi a última vez que estive aqui? – Nigel pensou.

Não havia batentes de porta para bater.

– Colin? – disse calmamente.

Quando não houve resposta, repetiu o nome. E fez isso mais uma vez.

Parecia que todas as luzes estavam apagadas; então, convocou uma lanterna na palma de uma de suas mãos, produzindo um pouco de iluminação diante de seus olhos. Estendendo um dos braços, empurrou a lona para um dos lados e afastou-a, a iluminação penetrou no interior escuro.

Vazio.

De fato, se algum ser desavisado entrasse ali, poderia achar que havia acontecido um assalto. Havia tão pouca coisa ali dentro. Sim, sim... apenas um leito simples com um baú posicionado aos pés do objeto. Alguns livros encadernados em couro. Uma lamparina a óleo. No chão, não havia sequer um mero tapete, apenas a mesma grama do pátio externo.

Os quartos de Bertie e Byron, constituídos na outra extremidade da muralha, eram tão luxuosos quanto o de Nigel, apenas decorados de acordo com as preferências de cada um. E Colin poderia ter mais do que aquilo. Colin poderia ter o mundo.

Virando-se, Nigel saiu da tenda e seguiu até o riacho. Havia toalhas penduradas em galhos de árvores e marcas de um par de pegadas sobre a areia.

– Colin... – sussurrou.

O som triste da própria voz foi o que o alertou para a realidade.

De repente, o desespero atingiu-o e fez com que repensasse sobre a decisão de ter ido até ali mesmo em meio à realidade da guerra: pensou em Jim, em Adrian e em suas fraquezas. Fraquezas que estavam sendo expostas e exploradas pelo outro lado.

Ele mesmo era fraco em relação a Colin. O que significava que também possuía uma brecha desprotegida. Com rapidez, Nigel virou-se e começou a correr, seus passos levando-o na noite enquanto puxava o roupão para se cobrir melhor. Não se desviaria do caminho de seus aposentos outra vez.

Não era Adrian. Não se perderia... como Adrian perdera-se. E não se comprometeria com o que sentia como aconteceu com Jim. O dever exigia dele um grande isolamento e muita força. O céu não merecia um esforço menor.


CAPÍTULO 26

 

Na manhã seguinte, Veck sentou-se em sua mesa e olhou para Bails sobre a caneca da cafeteria. O cara mastigava em ritmo acelerado, o rosto animado, as mãos movendo-se em círculos.

–... toda a maldita coisa explodiu – Bails parou e acenou na frente do rosto de Veck. – Oi! Está me ouvindo?

– Desculpe, o quê?

– O primeiro andar inteiro do Banco de Caldwell, na rua do Comércio com a 13, está no meio da rua.

Veck balançou a cabeça para voltar a se concentrar.

– O que quer dizer, no meio da rua?

– Todos os vidros das janelas da recepção explodiram. Não restou nada além das estruturas metálicas. Aconteceu um pouco antes da meia-noite.

– Foi uma bomba?

– A bomba mais estranha que já se viu. Não há danos na recepção... bem, algumas cadeiras da sala de espera foram removidas, mas não há evidências de detonação. Não há um raio de impacto. Há uma mancha estranha no piso do saguão formada pelo que parece ser esmalte, e o local cheirava a uma floricultura. Mas, além disso, nada.

– Os policiais que investigaram a cena assistiram às fitas de segurança?

– Sim, e adivinhe só? O sistema apagou por volta das 23h e continuou assim.

Veck franziu a testa.

– Simplesmente apagou?

– Apagou. Mesmo sem nenhuma avaria no fornecimento de energia elétrica ter sido relatada no bairro. Parece que as luzes da recepção foram apagadas também. Mas nenhum outro dispositivo ou sistema foi afetado no local, incluindo o alarme e a rede de computadores. É muito estranho. Como apenas os registros de vídeo são perdidos e nada mais?

A nuca de Veck formigou. Pelo amor de Deus, onde foi que ouvira aquilo antes...?

– Sim, é estranho.

– É a única palavra para definir isso.

Bails inclinou a cabeça, os olhos estreitaram-se.

– Ei, você está bem?

Veck voltou-se para seu computador e acessou seu e-mail.

– Nunca estive melhor.

– Se você diz – houve uma pausa. – Acho que sua parceira está entrevistando Kroner.

Veck virou-se bruscamente.

– Está?

– Não sabia? – Bails encolheu os ombros. – De la Cruz me mandou uma mensagem ontem à noite. Eu queria voltar lá hoje, mas é a vez do Departamento de Assuntos Internos lidar com ele... Sem dúvida para envolver você com um belo laço dizendo “inocente”.

Maldição. A ideia de Reilly perto daquele monstro fez seu sangue congelar.

– Quando?

– Agora, eu acho.

E, como pode imaginar, o primeiro instinto dele seria sair correndo até o Hospital São Francisco. Claro, esta deve ter sido a razão pela qual ela nem sequer passou ali para comentar onde estava indo.

– Bem, te vejo depois. Preciso voltar ao trabalho.

Por instinto, Veck pegou o celular e verificou as mensagens. Havia uma mensagem de texto de Reilly que não ouvira chegar: “Vou me atrasar hoje. R.”

– Que foda.

Olhou ao redor, como se o gesto pudesse ajudá-lo de alguma maneira. Em seguida, tentou se concentrar na tela do computador à frente dele.

Maldição... sem chance de conseguir continuar sentado naquela cadeira enquanto ela entrevistava um louco.

E, no entanto... era uma oportunidade, não?

Pegou o café e atravessou o Departamento de Homicídios, virou à esquerda e dirigiu-se à saída de emergência. Subiu dois degraus de cada vez na escada de concreto, passou pela porta de aço e seguiu até a sala de provas.

Ali, identificou-se à recepcionista, conversou um pouco – como se tudo o que precisasse lá dentro fosse questão rotineira – e, depois de mais um pouco de conversa jogada fora, estava em meio às estantes.

Como policial de patrulhas em Manhattan, passou um bom tempo manipulando evidências como embalagens com drogas, celulares e dinheiro apreendido – coisas usadas em crimes diversos. Agora que estava no Departamento de Homicídios, lidava mais com roupas ensanguentadas, armas e objetos pessoais – coisas que foram deixadas para trás.

Passando pelas longas fileiras de estantes, concentrou sua atenção na parte de trás da instalação, onde estavam as mesas.

– Oi, Joe – disse, ao aproximar-se da parede de 1,8 metros de altura.

O investigador de cenas criminais veterano ergueu o olhar de um microscópio.

– Oi.

– Como vai?

– Trabalhando muito.

Quando o cara levantou os braços sobre a cabeça e espreguiçou-se, Veck encostou-se contra a estação de trabalho, todo casual.

– Como você aguenta?

– O turno da noite é mais fácil que o diurno. Claro, nesta última semana, os dois estão uma droga.

– Ainda falta muito para examinarem tudo?

– Talvez umas 48 horas. Estamos em três. E não paramos em momento algum, com exceção da noite passada.

Veck olhou a coleção de coisas que haviam sido catalogadas e seladas, bem como a bandeja enorme com itens já registrados, mas que ainda precisavam ser examinados e devidamente embalados.

O investigador usou uma pinça para colocar uma amarra de cabelo debaixo da lente de aumento. Depois de colocar o elástico preto numa embalagem plástica, pegou um adesivo amarelo fosforescente longo e fino e colou sobre a abertura. Em seguida, fez uma anotação com uma caneta azul, colocando suas iniciais logo abaixo e digitou algo no teclado do notebook. O passo final foi passar o código de barras da embalagem sobre um leitor. O sinal sonoro produzido significava que agora o objeto estava oficialmente no sistema.

Veck tomou um gole de seu café.

– Bem, estou trabalhando num caso de pessoa desaparecida. Uma jovem.

– Quer dar uma olhada no que temos?

– Tem problema?

– Não. Apenas não leve nada daqui.

Veck começou pelo final das estantes que foram instaladas ali em caráter temporário. Nenhum objeto daquela coleção tinha um local exato para ficar ainda, pois todos, desde os oficiais de polícia até o FBI, examinariam tudo.

Pulou os frascos de amostra de pele, pois Cecília não tinha nenhuma tatuagem, e concentrou-se na variedade de anéis, pulseiras, presilhas, colares...

Onde você está, Sissy? – pensou.

Abaixando-se, pegou um saco plástico transparente selado com a assinatura de um dos investigadores. Dentro, havia uma pulseira de couro manchada e com um pingente em forma de crânio. Não era o estilo de Cecília.

Continuou e pegou uma argola prateada já registrada. Em todas as fotos na casa dos Barten, a garota usava acessórios dourados.

Onde você está, Sissy... onde diabos você está?

No Hospital São Francisco, Reilly estava concentrada ao caminhar ao longo de um dos milhares de corredores. Enquanto andava, passou por médicos com jalecos brancos, atendentes de uniformes azuis, enfermeiras de verde e pacientes e familiares vestidos com roupas casuais.

A unidade que procurava ficava à direita, e separou o distintivo enquanto aproximava-se do balcão das enfermeiras. Depois de uma rápida conversa, foi orientada para seguir em frente e virar à esquerda. Quando virou na última esquina, o guarda próximo à cela de vidro levantou-se.

– Oficial Reilly? – disse.

– Sou eu – mostrou o distintivo. – Como ele está?

O homem balançou a cabeça.

– Acabou de tomar café da manhã – havia um evidente tom de desaprovação na resposta, como se o guarda desejasse que o suspeito fizesse uma greve de fome. Ou talvez que morresse de fome. – Acho que vão tirá-lo daqui logo, pois ele está indo muito bem. Quer que eu entre com a senhora?

Reilly sorriu enquanto guardava o distintivo e tirava um pequeno bloco de notas.

– Posso lidar com ele.

O oficial de segurança pareceu medi-la, mas assentiu com a cabeça em seguida.

– Sim, parece que sim.

– Não se trata apenas de aparências. Confie em mim.

Ela abriu a porta de vidro, empurrou a cortina verde-clara... Congelou com a visão de uma enfermeira inclinando-se sobre Kroner.

– Oh, desculpe...

A morena olhou para ela e sorriu.

– Por favor, entre, oficial Reilly.

Quando Reilly olhou aqueles olhos de um negro tão intenso que pareciam não possuir íris, sentiu uma onda de terror irracional: cada instinto em seu corpo dizia para correr. O mais rápido e para o local mais distante possível.

Só que Kroner era o único com quem precisava ser cautelosa – não uma mulher que estava apenas fazendo seu trabalho.

– Ah... acho melhor voltar depois – Reilly disse.

– Não – a enfermeira sorriu outra vez, revelando dentes brancos perfeitos. – Ele está pronto para você.

– Ainda assim, vou esperar até que você...

– Fique. Estou feliz em deixar os dois juntos.

Reilly franziu a testa, pensando: Como assim? – como se os dois estivessem namorando?

A enfermeira voltou-se para Kroner, proferiu algo em voz baixa e acariciou a mão dele de uma maneira que deixou Reilly ligeiramente enjoada. Em seguida, a mulher aproximou-se, ficando mais e mais bonita – ficou tão resplandecente que era de se perguntar por que não seguia a carreira de modelo.

Ainda assim, Reilly só queria ficar bem longe dela. Não fazia sentido.

A enfermeira parou na porta e sorriu mais uma vez.

– Fique o tempo que quiser. Ele é tudo o que você precisa.

Então, ela se foi.

Reilly piscou um pouco para entender. Mais um pouco. Então, inclinou o corpo para fora da porta e olhou ao redor.

O guarda ergueu o olhar de seu assento.

– Você está bem?

Com exceção de um carrinho, uma caixa com rodinhas cheia de roupa suja e uma maca, o corredor estava vazio, nada, nem ninguém. Será que a enfermeira teria entrado em outro quarto? Tinha de ser. Havia outras unidades ao redor do local em que Kroner estava.

– Sim, tudo bem.

Voltando para dentro, Reilly recompôs-se e concentrou-se no paciente, encarando um homem que havia matado pelo menos uma dúzia de jovens mulheres em todo o país.

Que olhos brilhantes – foi seu primeiro pensamento. Olhos brilhantes e espertos, como os que se vê em ratos esfomeados.

Segundo pensamento?

Mas você é tão pequeno. Difícil de acreditar que consegue carregar uma sacola cheia de compras, quanto mais dominar mulheres jovens e saudáveis. Provavelmente, usa drogas para ajudar a incapacitar as vítimas, impedindo fuga e barulho. Ao menos num primeiro momento.

Seu pensamento final foi...

Cara, quanto curativo.

Estava quase mumificado, com tiras de gaze em volta do crânio e do pescoço e bandagens acolchoadas nas bochechas e no queixo. Ainda assim, embora parecesse um trabalho do doutor Frankenstein, estava alerta e a cor de sua pele estava radiante.


Na verdade, nem parecia normal. Será que estava com febre?

Quando aproximou-se da cama, ergueu o distintivo.

– Sou a oficial Reilly, do Departamento de Polícia de Caldwell. Gostaria de fazer algumas perguntas. Soube que renunciou ao seu direito de ter a presença de um advogado.

– Gostaria de se sentar? – a voz de Kroner era suave, o tom, respeitoso. – Tenho uma cadeira no quarto – como se estivesse em sua sala de estar ou algo assim.

– Obrigada – ela puxou a cadeira de plástico perto da cabeceira, aproximando-se dele, mas não muito. – Quero conversar com você sobre aquela noite, quando foi atacado.

– Um detetive já fez isso. Ontem.

– Sei. Mas estou dando seguimento.

– Disse-lhe o que me lembrava.

– Bem, importa-se de repetir para mim?

– Nem um pouco – ergueu-se na cama com fraqueza e, em seguida, olhou para Reilly como se estivesse esperando uma oferta de ajuda. Quando não houve nada da parte dela, pigarreou. – Eu estava na floresta. Caminhando lentamente. Através dos bosques...

Reilly não acreditou no consentimento e na receptividade dele em contar tudo aquilo nem por um instante. Alguém como Kroner? Sem dúvida, poderia transformar o discurso para que acreditassem que ele fosse a vítima. É assim que psicopatas agem. Poderia convencer a todos, por um tempo, e até a si mesmo de que era uma pessoa normal, como todas as outras: com características boas e más – nas quais o “mau” seria apenas sonegar impostos ou ultrapassar os limites de velocidade numa estrada ou talvez falar mal da sogra pelas costas. Mas assassinar moças? Nunca. No entanto, não se conseguia vestir máscaras para sempre.

– E para onde estava indo? – ela perguntou.

As pálpebras de Kroner abaixaram.

– Você sabe.

– Por que não diz você?

– Para o Monroe Motel & Suítes – houve uma pausa, os lábios ficaram tensos. – Eu queria ir até lá. Fui roubado, entende?

– Sua coleção?

Houve uma longa pausa.

– Sim – quando ele franziu a testa, disfarçou a expressão do olhar ao observar as mãos. – Eu estava na floresta e alguma coisa se aproximou de mim. Um animal. Veio do nada. Tentei lutar contra a coisa, mas era forte demais...

Que tal a sensação, seu bastardo? – ela pensou.

– Havia um homem lá... Ele viu o que aconteceu. Ele pode lhe dizer. Consegui distingui-lo em algumas fotos que me deram ontem.

– O que aconteceu com o homem?

– Ele tentou me ajudar – franziu a testa mais ainda. – Ligou para a emergência... não me lembro... de muita coisa... Além disso... espere um minuto – os olhos redondos ficaram astutos. – Você esteve lá, não foi?

– Tem alguma coisa que me possa dizer sobre o animal?

– Você esteve lá. Viu quando me colocaram na ambulância.

– Se pudesse continuar a descrever o animal...

– E você o observava também – o “senhor bonzinho e normal” sorriu e pareceu adormecer um pouco, um estranho esquema mental surgiu em seus olhos. – Você estava observando o homem que esteve comigo. Acha que foi ele quem fez isso?

– O animal, por favor. É o que me interessa.

– Não é sóóó isso que te interessa – o só foi pronunciado com uma cadência monótona. – Mas tudo bem. Não tem problema desejar coisas.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Um leão, um tigre, um urso... oh, Deus.

– Isto não é brincadeira, senhor Kroner. Precisamos saber se temos um problema de segurança pública.

Pelo que havia estudado sobre técnicas de entrevista, imaginou ter dado uma abertura para que ele pensasse ser um herói. Às vezes, suspeitos como ele entravam no jogo na esperança de se insinuarem ou tentavam ganhar uma confiança da qual poderiam se aproveitar mais tarde.

Kroner deixou as pálpebras caírem.

– Oh, acho que você cuida muito bem da segurança pública. Não é mesmo?

Sim, isso se o cara não fugisse do hospital e se o sistema jogasse-o na prisão para o resto da vida.

– Devia ter presas – ela disse.

– Sim... – tocou o rosto arruinado. – Presas... e era grande. Seja lá o que for... era avassalador. Ainda não sei por que sobrevivi... mas o homem, ele me ajudou. É um velho amigo...

Reilly esforçou-se para que sua expressão não mudasse em nada.

– Velho amigo? Você o conhece?

– Os iguais se reconhecem.

Um arrepio passou pela coluna de Reilly, Kroner ergueu uma das mãos e impediu-a de voltar a falar.

– Espere... preciso te dizer algo.

– O que é?

As bandagens no rosto contorceram-se como se ele estivesse fazendo uma careta e a mão subiu até a cabeça.

– Preciso te dizer...

Considerando que ele não a conhecia, era impossível dizer algo importante.

– Senhor Kroner...

– Ela tinha cabelos longos e loiros. Lisos, cabelos longos... – ele respirou ofegante e apalpou as têmporas como se estivesse com dor. – Estava presa pelo cabelo... aqueles cabelos loiros cheios de sangue. Ela morreu na banheira... mas não é onde seu corpo está agora – a cabeça de Kroner erguia-se e voltava a cair no travesseiro. – Vá até a pedreira. Ela está lá. Na caverna... Você vai precisar entrar bem fundo para encontrar...

O coração de Reilly começou a bater forte. O interrogatório deveria se limitar à noite do ataque, mas não tinha como não tentar entender aquilo. E também não havia razão alguma para que Kroner soubesse que ela estava trabalhando no caso de Cecília Barten.

– De quem está falando?

Kroner deixou cair o braço e, de repente, a cor de sua pele passou a exibir um aspecto cinzento.

– A garota do mercado. Precisava te dizer isso... Ela quer que eu te diga. É tudo o que sei...

De repente, começou a tremer, a convulsão em seu tronco aumentou tanto que começou a puxar os travesseiros e revirar os olhos.

Reilly avançou e acionou o botão de emergência num interfone.

– Precisamos de ajuda aqui!

No auge do ataque, Kroner pegou o pulso dela com força, os olhos exibiam um brilho profano.

– Diga a ele que ela sofreu... Ele precisa saber... Ela sofreu...


CAPÍTULO 27

 

Na delegacia, na sala de provas, Veck examinou tudo o que pertencia à coleção de Kroner, arquivando fotos mentais dos objetos. Infelizmente, não havia nada dentre as joias ou outros objetos ali parecido com o que observou nas fotografias na casa dos Barten.

Recuou e cruzou os braços sobre o peito.

– Droga.

– Ainda tem mais – o investigador disse, sem tirar os olhos do que estava fazendo, e afastou uma cortina que cobria tudo o que ainda não havia sido catalogado.

Veck tomou um gole de seu café frio, aproximou-se e inclinou-se sobre os objetos. Sem tocar em nada, é claro. Estava tudo organizado lado a lado. Mais joias... Mais elásticos de cabelo com fios pretos, castanhos, cor-de-rosa...

Seu telefone tocou e ele virou-se para atender.

– DelVecchio. Sim, sim... uh-hum... sim, sou eu...

Era o Departamento de Recursos Humanos, verificando seus dados antes que enviassem o primeiro salário após a transferência de unidade. Enquanto respondia, pensou, sem ofensa, que tinha coisa melhor para fazer.

Quando finalmente terminou, voltou-se para a bandeja. Tinha tanta certeza de que Sissy fora vítima de Kroner. Maldição...

Em meio às luvas de látex do investigador, surgiu um brilho dourado quando apoiou alguma coisa sob o microscópio.

Era um brinco. Um brinco pequeno em forma de pássaro. Como uma pomba ou um pardal.

– Posso ver isso? – disse Veck com voz rouca.

Mas, mesmo sem um olhar mais atento, reconheceu o que era... Tinha visto aquilo na estante dos Barten, naquela foto que tiraram de Sissy sem que ela soubesse. Estava usando um brinco igual àquele. Talvez fosse exatamente o mesmo.

O telefone tocou novamente assim que o investigador soltou a prova. Quando Veck olhou para a tela e viu que era Reilly, aceitou a ligação imediatamente.

– Não vai acreditar... Estou olhando para um dos brincos de Sissy Barten.

– Na sessão de provas dedicada a Kroner – foi uma afirmação, não uma pergunta.

Veck franziu a testa. Algo soava errado na voz dela.

– Você está bem? O que aconteceu com Kroner?

Houve uma breve pausa.

– Eu...

Veck afastou-se do investigador, indo em direção a um dos cantos da sala e virou de costas para o cara. Baixando o volume da voz, disse: – O que aconteceu?

– Acho que ele a matou. Sissy. Ele... a matou.

A mão de Veck apertou o celular com força.

– O que ele disse?

– Ele a identificou pelo cabelo e pelo mercado.

– Levou alguma foto dela? Podemos ter um resultado efetivo de que...

– Ele teve uma crise no meio do interrogatório. Estou fora da UTI agora e os médicos estão cuidando dele. Não sabem dizer se vão conseguir salvá-lo desta vez.

– Ele disse mais alguma coisa?

– O corpo está em algum lugar na pedreira. De acordo com ele.

– Vamos...

– Já liguei para De la Cruz. Está indo até lá com Bails...

– Estou saindo daqui agora mesmo.

– Veck! – ela exclamou. – Esse caso não está mais relacionado com o Departamento de Pessoas Desaparecidas. Você e eu estamos fora dessa.

– Não estamos, não. Ela ainda é minha até encontrarem o corpo. Me encontre lá e pode me dar uma suspensão, se quiser. Ou melhor, pode dar uma mãozinha com as pedras.

Houve uma pausa bem longa.

– Você está me colocando numa posição terrível.

O arrependimento fez com que apertasse o maxilar.

– Parece que eu me destaco nisso quando se trata de você. Mas tenho que fazer isso... Prometo não ser um idiota.

– Você se destaca nisso, também.

– Está certo. Olha, não posso sair dessa até saber o que aconteceu. Não vou enfrentar Kroner se encontrarmos alguma coisa e não vou tocar em nada, mas tenho que fazer isso.

Outra pausa interminável. Então: – Tudo bem. Estou a caminho. Mas se De la Cruz nos expulsar de lá, não vamos discutir com ele, está claro?

– Como água cristalina – Veck fez uma prece de agradecimento. E então... – Ele disse mais alguma coisa? Kroner?

Houve um ruído, como se ela estivesse trocando o telefone de uma das mãos para outra.

– Disse que conhecia você.

– O quê?

– Kroner disse que conhecia você.

– Que grande mentira. Nunca o encontrei antes na minha vida – quando não se ouviu qualquer reação da parte dela, ele soltou um palavrão. – Reilly, eu juro. Não conheço o cara.

– Acredito em você.

– Não parece – e, por alguma razão, a opinião dela não era apenas importante, era crucial. – Vou fazer o teste do polígrafo.

A respiração dela soou exausta.

– Talvez ele só quis me confundir. É difícil saber.

– O que ele disse exatamente?

– Algo como “os iguais se reconhecem”.

Veck congelou.

– Não sou Kroner.

– Eu sei. Bem, me deixe ir para o carro e começar a dirigir. A pedreira é do outro lado da cidade e só vamos entrar se De la Cruz permitir. Vejo você em meia hora.

Quando desligou, o investigador olhou por cima do microscópio.

– Achou o que precisava?

– Acho que sim. Entre em contato comigo se descobrir alguma coisa sobre esse brinco. Tenho a impressão de que é da minha garota desaparecida.

– Sem problema.

– Onde é a pedreira?

– Siga na Northway por uns trinta quilômetros. Não sei a saída exata, mas vai encontrar placas. Não tem como errar, haverá mais sinalizações que o levarão até lá.

– Obrigado, cara.

– É um bom lugar para esconder coisas, se é que me entende.

– Entendo. Infelizmente.

Cinco minutos depois, Veck estava em sua moto rugindo em direção à interestadual. Não precisava acionar De la Cruz. Discutiriam pessoalmente quando chegasse lá.

A saída em questão apareceu quinze minutos depois e havia uma placa na qual se lia “pedreira thomas greenfield”. Foi fácil seguir a sinalização e, alguns minutos depois, virou e entrou numa pequena estrada de terra cercada por grandes árvores. Sem dúvida, formavam um romântico passeio no verão. Naquele momento, pareciam braços esqueléticos arranhando-se uns aos outros.

Diminuiu a velocidade ao virar à direita e começou a subir uma ladeira muito íngreme. O vento, frio e intenso, chicoteava seu rosto, e as nuvens pareciam se aproximar como se tentassem sufocar o chão. Começou a pensar que estava perdido quando chegou ao topo, mas lá estava ela.

Pedreira? Parecia mais o Grand Canyon.

Membros do Departamento de Polícia de Caldwell e os bombeiros já estavam ali: havia dois veículos de busca e um de resgate. Algumas viaturas. Um carro sem identificação que deveria ser de De la Cruz. Uma unidade com cães farejadores.

Veck estacionou a certa distância e não tentou disfarçar sua chegada ao aproximar-se do amontoado de homens, mulheres e cachorros.

De la Cruz saiu do meio deles e caminhou até Veck. A expressão de tristeza constante do detetive não havia mudado em nada. Porém, não devia estar surpreso com tudo aquilo, e a chegada de Veck não era uma boa notícia.

– Que coisa encontrá-lo aqui – De la Cruz murmurou, estendendo a mão para um aperto.

– Este lugar é enorme – as mãos encontraram-se em uma batida. – Com certeza poderia ajudar em alguma coisa.

A pedreira devia ter mais de um quilômetro de diâmetro e mais outro de profundidade – e o formato era mais consequência da formação natural que da operação mineradora. Três quartos de suas paredes eram quedas acentuadas, mas uma delas mais ao sul exibia um declive desagradável marcado por escavações rochosas desalinhadas, havia também vários buracos negros que deviam ser cavernas.

– Então, vai me deixar trabalhar? – Veck perguntou.

– Onde está sua parceira?

– A caminho.

De la Cruz olhou para o grupo de colegas.

– Estamos com uma equipe reduzida, pois não queremos chamar atenção. Se a imprensa ficar sabendo disto, teremos um dia longo e cheio de curiosos.

– Então, isto é um sim?

De la Cruz o encarou bem dentro de seus olhos.

– Não toque em porcaria nenhuma e não saia daqui enquanto Reilly não chegar.

– Está certo, detetive.

– Vamos lá... Pode se juntar à fase de planejamento estratégico.

A antiga casa de Jim não era tão antiga nem exatamente sua.

Assim que chegara a Caldwell, havia alugado a garagem e o estúdio no segundo andar de um cara que se vestia com terno de mordomo. Quando saiu há mais ou menos uma semana, achou que seria pela última vez: seu antigo chefe, o maldito Matthias, perseguia-o, e ele precisava ir até Boston para travar a próxima batalha com Devina.

Mas, cara, o que tinha acontecido de acordo com o planejado? Matthias não estava mais em cena, Jim voltara a Caldwell e ele e Adrian precisavam de um lugar seguro para ficar.

Olá, velhos fantasmas, digamos assim... E era hora de rezar para que o proprietário não tivesse alugado para outra pessoa e as chaves tivessem sido deixadas ali.

Dirigindo sua caminhonete na longa estrada que levava até o local, verificou se Adrian ainda o seguia com aquela moto – sim, o cara continuava a segui-lo. Juntos, passaram pela casa vazia, mas muito bem cuidada pelo proprietário, e continuaram pela pista, atravessando um campo que teria mais ou menos uns vinte acres. A garagem ficava bem nos fundos da propriedade e, provavelmente, tinha sido usada para guardar equipamentos agrícolas e cortadores de grama, com um zelador morando no andar de cima. Contudo, quando alugou, teve a impressão de que estava vazia há um tempo.

Parando o carro em frente às grandes portas duplas, saiu, pegou uma das alças e jogou seu peso sobre o objeto, imaginando se o lugar estaria...

O painel retumbou ao abrir, revelando um chão de cimento muito limpo e um teto rústico com altura suficiente para estacionar um trailer de carregar cavalos.

Jim voltou a se sentar atrás do volante e deixou o motor levá-lo devagar para dentro. Adrian estava bem atrás dele, estacionou e fechou a porta. Quando a luz cinzenta do dia foi bloqueada, Jim desligou o motor, abriu a porta...

O aroma fresco e suave de flores invadiu o ar. Ao ponto de quase vomitar, mesmo sendo um perfume indiscutivelmente agradável.

Ele e Adrian não disseram uma palavra ao se posicionarem um de cada lado da parte de trás da caminhonete. A lona que compraram no mercado há uma hora estava presa por alguns cabos elásticos e começaram a libertar os ganchos e as faixas um a um. Ao enrolarem a lona grossa e azul, revelaram o corpo, com o qual foram muito cuidadosos, envolto num lençol.

Deixaram a recepção do banco não muito depois de a fúria de Jim ter explodido todas as janelas do local e, em seguida, levaram Eddie com eles – o que não foi difícil, ao menos não fisicamente. Depois da morte, o corpo ficou leve como uma pluma, como se toda massa bruta tivesse desocupado a pele e os ossos. O que ficou para trás parecia ser apenas o esboço do que Eddie havia sido.

Jim não fazia ideia de onde ir, mas Cachorro apareceu no caminho... e guiou-os a um prédio abandonado de três andares.

Ao deixar Adrian e o animal velando seu morto, Jim voltou ao hotel, pegou tudo o que tinham e carregou a caminhonete. Quando voltou, estacionou numa garagem subterrânea a alguns quarteirões de distância e começou a pensar em várias maneiras de mudarem-se para um local mais seguro levando os outros veículos e motos que ainda estavam no estacionamento do hotel.

Porém, no final, apenas sentou-se e deu um tempo para Adrian – pois parecia que o cara estava prestes a quebrar ao meio.

Contudo, em dado momento, precisaram se mover e Jim decidiu que ir até aquele local era a melhor aposta que poderia fazer em curto prazo. E Adrian seguiu-o sem comentários, só que isso não era um bom sinal: era evidente que ainda estava entorpecido, mas aquilo não duraria muito tempo. Qual seria o outro extremo da situação? Era provável que a expressão “proporções bíblicas” fosse pouco para refletir sequer a metade do que aconteceria.

Jim destravou a abertura traseira e deixou-a cair.

– Você quer...

Adrian adiantou-se e subiu, posicionando-se de maneira hábil ao lado de Eddie. Pegando os restos mortais, saiu da caminhonete e andou até a porta lateral.

– Pode abrir aqui para nós?

– Sim, com certeza.

Com Cachorro liderando o caminho outra vez, Jim seguiu-o e abriu a porta de saída do galpão; em seguida, os três dirigiram-se às escadas externas. Usando um canivete no topo, abriu a maçaneta em questão de segundos, e ficou de lado enquanto Adrian entrava.

A cama de solteiro estava do mesmo jeito que Jim havia deixado quando partiu, os lençóis emaranhados da última noite de sono ruim que teve ali. E, sim, o dinheiro e as chaves estavam exatamente onde os colocara, sobre o balcão da estreita cozinha. O sofá ainda estava sob a janela, as leves cortinas, fechadas. O ar cheirava um pouco a feno, mas não por muito tempo.

Não com Eddie por perto.

Quando Jim olhou para Adrian, sabia que não havia razão para não usar o local. Matthias estaria na parede de almas de Devina por toda eternidade, então, não era uma ameaça, e o resto das Operações Extraoficiais estaria ocupado procurando um novo líder para preencher a vaga que o cara havia deixado. Além disso, o único problema de Jim com o departamento estava relacionado ao seu antigo chefe. Que perdera na última rodada.

– Tem um espaço meio apertado aqui atrás – disse Jim, caminhando até a cozinha.

Ao lado da geladeira, havia uma porta estreita que se abria por cima e por baixo e que levava a uma área de teto rebaixado, envolvida com placas de gesso, sob o beiral do telhado. Entrando, acendeu a lâmpada e saiu do caminho.

Quando Adrian agachou-se e entrou com sua carga, Jim abriu uma das gavetas sob o balcão da cozinha e pegou uma faca longa. Não hesitou ao passar a lâmina na palma de sua mão e pressioná-la contra a pele.

– Caralho – sussurrou.

Adrian saiu do espaço estreito.

– O que está fazendo?

Gotas brilhantes e vermelhas caíram no chão formando uma pequena trilha enquanto andava em direção ao local onde Eddie havia sido colocado. A verdade é que não tinha plena certeza do que estava acontecendo ali, mas seus instintos guiavam-no, faziam-no prosseguir e, assim, passou a palma da mão que sangrava pela porta... bem como o próprio corpo. Antes de retrair a mão sangrenta, prometeu: – Não deixo soldados caídos para trás. Você estará conosco... até voltar. Pode apostar.

Ao fechar a porta, olhou para Adrian, que tinha se apoiado no balcão e envolvido o próprio corpo com os braços. O anjo olhava para o chão como se fossem folhas de chá... ou um mapa... ou um espelho... ou nada, talvez. Quem poderia saber?

– Preciso saber como vai se posicionar – disse Jim. – Quer ficar aqui com ele ou quer continuar a lutar?

Os olhos vazios ergueram-se do chão.

– Não era para ser assim. Ele teria lidado melhor com isso.

– Não tem uma maneira melhor de lidar com isso. Mas não vou tentar convencê-lo de nada. Se não quiser fazer mais nada além de lamentar, não tem problema nenhum para mim. Mas preciso saber o que está disposto a fazer.

Caramba, provavelmente era cedo demais para perguntar ao cara o que ele queria no almoço, quanto mais se estava disposto a lutar. Mas Jim não poderia se dar ao luxo de bancar o terapeuta e trabalhar os sentimentos. Aquilo era guerra.

Quando Adrian apenas resmungou alguma coisa como “não está certo”, Jim entendeu que precisava chamar a atenção do cara.

– Ouça – disse devagar e com clareza. – Devina fez isso de propósito. Ela o tirou de você, pois acha que a perda vai te incapacitar. É uma estratégia básica: isolamento. Está tentando tirar os dois de mim... E você do mundo. A escolha é sua em deixar que isso funcione ou não.

Adrian mudou seu olhar e mirou a porta que Jim havia fechado.

– Como pode algo tão grande... acontecer tão rápido?

Jim voltou-se para o próprio passado, para uma cozinha que conhecia tão bem, para uma cena sangrenta que nunca havia esquecido: sua mãe morrendo numa poça de seu próprio sangue, enquanto dizia para que corresse o mais rápido e seguisse para o mais longe possível...

Entendia muito bem o trauma pelo qual Adrian estava passando, era a constatação terrível de que os pilares da estrutura que o levava aos céus eram feitos de papel em vez de pedra.

– Desastres acontecem.

Houve um período de silêncio, em seguida, um som suave sobre o chão. Cachorro, que havia ficado fora do caminho a maior parte do tempo, aproximava-se de Adrian mancando e, quando chegou perto do cara, sentou-se sobre a bota de combate do anjo e reclinou a cabeça contra a canela.

– Não estou bravo – Adrian disse finalmente. – Não sinto... nada.

Aquilo iria mudar, Jim pensou. A questão era: quando?

– Fique aqui com ele – disse Jim. – Preciso voltar ao campo de batalha. Não quero DelVecchio por aí sozinho.

– Sim... sim – Adrian abaixou e pegou Cachorro. – Sim.

O anjo andou um pouco e sentou-se no sofá, colocando o animal em seu colo e mantendo os olhos fixos na porta daquele espaço de teto rebaixado.

– Pode me ligar – disse Jim. – E estarei aqui num instante.

– Sim.

Deus, Ad parecia um objeto inanimado que respirava. E o último pensamento de Jim ali foi que Devina estava brincando com fogo. Adrian acordaria de seu estupor... E, então, seria implacável ao fazê-la pagar por aquilo.

Depois de fechar a porta, Jim parou para acender um cigarro e olhar para o céu. As nuvens pareciam fervilhar sobre a garagem e viu-se procurando por uma imagem ou sinal entre elass.

Nada.

Terminou o cigarro e, quando estava prestes a sair, ouviu um rádio ser ligado dentro do apartamento.

À capela. Bon Jovi cantava “Blaze of Glory”.

Muito apropriado.

Jim projetou-se pelo ar, seguindo o farol que era DelVecchio. E estava a meio caminho de seu alvo quando se deu conta...

Ele não possuía rádio algum.


CAPÍTULO 28

 

– Aqui, me deixe ajudar você.

Reilly equilibrou-se sobre duas pedras do tamanho de poltronas, em seguida, inclinou-se e estendeu a mão.

Veck olhou para ela por um momento.

– Obrigado.

As palmas das mãos encontraram-se e firmaram-se uma na outra e, então, Reilly dobrou-se para trás, colocando todo seu peso no ato de erguê-lo. Mesmo com o corpo fazendo movimento de alavanca, era como puxar um carro entalado numa vala, e a mulher percebeu claramente que, se ele não tivesse pulado e dado um impulso, não chegariam a lugar algum.

Quando ele juntou-se a ela no planalto, olharam em volta. Já estavam trabalhando na longa encosta da pedreira há várias horas, iluminando cavernas com lanternas e examinando saliências rochosas. Os oficiais de resgate ficaram com o lado mais íngreme e os outros policiais iam mais à esquerda ou percorriam as bordas com os cães. Os minutos passavam lenta e dolorosamente, a extensão total do que ainda havia para ser examinado oprimia Reilly.

E ainda havia tudo aquilo implícito em relação a Veck, coisas não ditas, que não ajudavam.

Deus, odiava aquela situação. Especialmente o fato de estarem em meio à tentativa de encontrar o corpo de uma jovem.

– Tem outra caverna por ali – ela disse, pulando de uma pedra e aterrissando de cócoras no chão lamacento.

O terreno parecia árido visto da borda da pedreira. De perto, era uma pista de obstáculos, do tipo que requeria botas para ser explorada – ao menos tinha se prevenido e trazido mais que um agasalho extra e um kit de armazenamento de provas no porta-malas. Muito bom também a chuva da noite anterior ter parado ou a tarefa seria mais que exaustiva. Com o clima mais estável, o topo das rochas já havia secado com o sol, então, já contavam com partes mais firmes para pisarem, afinal, as poças e a lama nos pontos mais baixos do local já desaceleravam o suficiente o trabalho deles.

– Já esteve aqui antes? – perguntou Veck depois de firmar-se ao lado dela. Como sempre, ele não estava com roupa suficiente...

Espere, me deixe reformular a frase – ela pensou – Como sempre, não está agasalhado o suficiente e seus sapatos são mais para um serviço de escritório que para um trabalho externo.

Mas Veck não parecia se importar com nada disso: apesar de os sapatos estarem arruinados e sua jaqueta preta isolar o vento frio tão bem como uma folha de papel, ele continuava como um soldado, seguindo decidido como se estivesse muito à vontade e confortável. Apesar de estarem trabalhando ensopados de suor.

Espere, qual era a pergunta que ele tinha feito mesmo...?

– Como a maioria das pessoas daqui, conheço a pedreira desde sempre – olhou para a borda. – Mas esta é a minha primeira visita. Cara, é como se tivessem arrancado um pedaço gigantesco da Terra.

– Muito grande mesmo.

– Dizem que foi criada por geleiras.

– Ou isso, ou Deus era um jogador de golfe e o buraco que desejava acertar estava na Pensilvânia.

Ela riu um pouco.

– Pessoalmente, apostaria meu dinheiro no gelo pré-histórico. Na verdade, isto tudo é simplesmente chamado de “a pedreira”... Nunca foi, mas parece uma.

Subiram outra pedra, pularam novamente e seguiram em direção à boca escura da caverna que ela tinha visto. Aquela parecia maior que as outras e, de perto, a entrada parecia alta o suficiente para passarem sem se curvar. Contudo, não tinha como os ombros de Veck caberem ali a menos que se virasse de lado.

Acendendo a lanterna, não havia nada além de paredes rochosas, um chão de terra e, Deus, o mau cheiro. Úmido, mofado. Todas exalavam o mesmo cheiro, como se o lugar tivesse uma espécie de odor corporal próprio.

– Nada – ela disse. – Mas não consigo ver o final desta.

– Me deixe entrar mais.

Agora seria o momento perfeito para a mulher moderna dentro dela aparecer dizendo “Que inferno, não, deixe que eu cuido disso”. Mas só Deus sabia o que havia ali dentro, e ela não era muito fã de morcegos. Ursos. Cobras. Aranhas. Era a única situação com a qual se acovardava.

Quando Reilly abriu caminho, Veck adiantou-se e espremeu-se dentro do espaço fino. O fato de seu peito ter passado tão perto lembrou-lhe o quanto conhecia seu corpo. Olhou ao redor e tentou encontrar outro foco, desesperadamente.

– Nada – Veck murmurou quando reapareceu e fez um X vermelho sobre a pedra com tinta spray.

– Espere, você tem... – ela ergueu-se na ponta dos pés e tirou uma teia de aranha do cabelo de Veck. – Isso, mais apresentável agora.

Quando Reilly virou-se, Veck agarrou a mão dela.

Ao ser puxada de surpresa, olhou ao redor rapidamente, então, Veck disse: – Não se preocupe, ninguém pode nos ver.

Parecia ser verdade: estavam num local profundo da pedreira, entre três pedras enormes. Mas não era algo bom, não precisavam de privacidade.

Holofotes. Um palco. Megafones presos em seus rostos seriam mais adequados...

– Olha, sei que é inapropriado – Veck murmurou com um tom de voz que fez o coração dela bater ainda mais rápido. – Mas aquela porcaria que Kroner disse... sobre me conhecer...

Reilly respirou aliviada. Graças a Deus não se tratava deles.

– Sim?

Veck soltou-a e andou fazendo um pequeno círculo. Então, tirou um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça na direção oposta a Reilly.

– Acho que, de alguma maneira, isso é o que mais me assusta neste mundo.

Sentindo-se uma tola por ter se assustado, ela apoiou-se sobre o flanco de uma rocha aquecido pelo sol.

– O que quer dizer?

Veck encarou o céu, a sombra de seu queixo forte projetou-se sobre seu peito, formando um arco escuro sobre o tronco.

– Iguais se reconhecem...

– Acha mesmo que tentou matá-lo? – disse ela suavemente.

– Olha, vai parecer loucura... Mas parece que meu pai está sempre comigo – colocou a mão sobre o peito, exatamente sobre a sombra escura. – Essa... coisa faz parte de mim, mas não do meu ser. E sempre fui amedrontado com a possibilidade disso sair e... – interrompeu-se com uma maldição. – Oh, Cristo, quanta besteira...

– Não é besteira – quando ele virou-se para Reilly, os olhos de ambos encontraram-se. – E pode conversar comigo. Sem julgamentos. Ninguém mais saberá, nunca. Desde que não tenha infringido a lei.

A boca de Veck contorceu-se com amargura.

– Não fiz nada para que me prendam. Mas ainda me pergunto se fui eu quem fez aquilo com Kroner na floresta.

– Bem, se tem medo de ser como seu pai e, quando surge um banho de sangue na sua frente, você não consegue se lembrar de nada... é natural se questionar.

– Não quero ser como ele. Nunca.

– Você não é.

– Não me conhece.

A expressão tensa de Veck produziu um calafrio nela, mesmo com os pés secos e quentes e vestindo um casaco e luvas. Tinha tanta certeza de ser um estranho para ela, que Reilly perguntou-se por que tamanha obviedade não os impediu na noite anterior. Mas sexo e atração sexual faziam as pessoas sentirem-se próximas, quando, na verdade, eram apenas dois corpos esfregando-se.

O quanto ela realmente sabia sobre ele? Não muito além do que havia registrado em seus arquivos no Departamento de Recursos Humanos. Porém, estava certa de uma coisa: ele não tinha, de forma alguma, machucado aquele homem.


– Precisa conversar com um profissional – ela disse, pois ter um pai como aquele deveria repercutir psicologicamente. – Tire esse peso de você.

– Mas esse é o problema... está dentro de mim.

Algo naquele tom que usou fez o calafrio retornar – dez vezes mais forte. Só que agora achou ser loucura.

– Estou dizendo, você precisa desabafar.

Veck olhou o céu azul brilhante outra vez com suas listras passageiras de nuvens brancas.

Depois de um momento, ele disse: – Fiquei aliviado por você ter saído tão rápido na noite passada.

Que belo tapa no rosto para trazê-la de volta à realidade.

– Fico feliz por ter feito esse favor – ela disse em tom decidido.

– Porque eu poderia me apaixonar por você.

Quando a boca de Reilly abriu-se e ela piscou confusa, Veck bateu o cigarro e exalou, a fumaça ergueu-se no ar frio da primavera.

– Sei que isso não ajuda em nada. Tanto o fato de confessar isso agora como ser a mais pura verdade.

Verdade. Mesmo assim, ela não deixou de continuar a conversa.

– Mas ontem à noite... você disse que nunca me levaria para a sua cama.

Balançou a cabeça, o lábio superior fez um movimento sinuoso de desgosto.

– De jeito nenhum. Fiquei com mulheres sem importância ali. Você foi importante... É importante – soltou um palavrão em voz baixa e profunda. – Não é como as outras.

Reilly respirou fundo. E de novo. Sabia que aquele era um bom momento para tentar dizer algo que os mantivesse dentro dos limites.

– Estou muito lisonjeada, mas...

Em vez disso, apenas olhou para ele quando virou o cigarro e focou-se na pequena ponta alaranjada. Examinando os traços belos e rígidos de seu rosto, tentou lutar contra o impulso de jogar-se nele... Desistiu: naquele pequeno espaço de privacidade em frente à caverna, com a brisa assoviando entre as pedras e o sol iluminando seus rostos, as engrenagens entre eles voltaram a funcionar direito outra vez... Deu-se conta da verdadeira razão pela qual havia deixado a casa dele tão rápido. Dane-se o profissionalismo: sentia o mesmo que ele, e aquilo assustava-a.

– Mas está tudo ligado à porcaria de relação que eu tenho com meu pai.

– Desculpe, o quê? – Reilly ouviu-se dizer.

– Essa coisa com você... está ligada a ele também – seus olhos brilharam em direção a ela. – Ele era apaixonado pela minha mãe. Tanto que a fatiou viva e formou um coração com seus intestinos, no chão, ao lado dela. Sei disso pois fui eu quem encontrou o corpo.

Quando Reilly começou a ofegar, uma das mãos subiu até a garganta e, por instinto, deu um passo para trás... apenas para descobrir que estava encurralada pela pedra em que havia se recostado.

– Sim... – disse Veck. – Essa é a história da minha família.

Que maneira de cortejar uma mulher, Veck pensou quando Reilly ficou pálida como neve e tentou se afastar dele. Dando um trago profundo em seu cigarro, exalou para longe dela.

– Eu não devia ter dito isso.

Reilly balançou a cabeça, talvez para esclarecer um pouco os pensamentos.

– Não... não, fico feliz por você ter contado. Só estou um pouco...

– Chocada. Sim. E é apenas um dos motivos pelos quais não converso sobre isso.

Ela afastou uma mecha de cabelo solta sobre os olhos.

– Mas eu falei sério. Pode conversar comigo. Quero que converse comigo.

Não tinha tanta certeza se Reilly dizia a verdade. Mas, por alguma razão, abriu a boca.

– Minha mãe foi a 13a vítima dele – cara, invejava aqueles cujas “histórias ruins” da vida eram apenas de encrencas por conta de cervejadas, depredação de propriedade pública e, talvez, urinar no tanque de gasolina de alguém.

– Eu estava em férias de verão do ensino médio, hospedado numa casa alugada em Cape Cod com os amigos. Saí na última noite que tínhamos para ficar ali e também fui o último a ir para casa; então, estava sozinho. Ele a trouxe até a sala de estar e fez tudo ali. Depois, deve ter subido as escadas e dado uma olhada em mim... Quando acordei, havia duas marcas de sangue no batente da porta do meu quarto. Foi a primeira evidência de que algo ruim havia acontecido. Ele havia colocado fita adesiva na boca dela, então, não ouvi nada.

– Oh... meu Deus...

Dando outro trago profundo no cigarro, falou através da fumaça que exalou.

– Como pode imaginar, mesmo naquela época, a primeira coisa que fiz quando vi as marcas no chão foi olhar para as minhas próprias mãos. Quando percebi que não havia nada, corri para o meu banheiro, verifiquei as toalhas, as minhas roupas... Irônico, as mesmas coisas que eu fiz depois do episódio com Kroner. E, então, me dei conta... Droga, a vítima. Liguei para a emergência e estava no telefone com eles quando desci as escadas.

– Você a encontrou.

– Sim – esfregou os olhos lutando contra as imagens do sangue vermelho sobre o tapete azul barato e um coração feito de órgãos humanos. – Sim, encontrei, e sabia que tinha sido ele.

Não conseguiu ir além disso, não dava mais, nem para ela nem para si mesmo. Essa memória não era acessada há tanto tempo que ele esperava ter caído num modo reflexivo, saudável talvez. Mas não. A cena da qual se lembrara naquele momento ainda estava desenhada em neon nos seus pensamentos, como se os vapores do pânico e do terror que sentiu emergissem e distorcessem a fotografia mental, mas sem alterar a nitidez.

– Já li sobre seu pai... Estudei sobre ele na faculdade – disse Reilly suavemente.

– É um tema popular.

– Mas não havia nada sobre...

– Eu tinha dezessete anos, menor de idade, e minha mãe não tinha o meu sobrenome, então, não poderia ter ouvido falar nada mesmo. Engraçado, foi quando os representantes da lei conversaram pela primeira vez com meu pai sobre uma vítima. Não preciso dizer que acreditaram quando ele disse que estava aflito. E Deus sabe o quanto ele era bom em fingir sentimentos. Ah, e as marcas sobre o batente da porta? Ele tinha usado luvas, claro; então não havia nada para acusá-lo.


– Deus, sinto muito.

Veck ficou em silêncio, mas não por muito tempo.

– Não o vi muito. E, quando ele se aproximava, eu percebia que minha mãe seria capaz de fugir com ele. Ela nunca se cansava dele... Era sua droga, a única coisa que importava, só pensava nele. Olhando para trás, tenho certeza de que ele a induziu a toda aquela fixação. Eu ficava irritado... Até que percebi o que ele era e vi que ela não tinha qualquer chance com ele. Para ele? Acho que foi divertido, mas parece que o jogo ficou enjoativo depois de um tempo.

Com isso, Veck ficou exausto, como um corredor que não aguenta mais avançar.

– De qualquer forma, é por isso que nunca jantaremos na casa dos meus pais.

Péssima tentativa de fazer piada. Nenhum deles riu.

Quando chegou ao final do cigarro, amassou a ponta incandescente sobre a sola do sapato – e notou pela primeira vez que seus sapatos não sobreviveriam àquele banho de lama. Reilly, no entanto, deu um jeito de conseguir um par de botas. Bem típico dela. Estava sempre preparada...

Quando olhou para cima, ela estava bem na frente dele. As bochechas estavam rosadas por causa do vento e do esforço, seus olhos brilhavam com um calor que vinha não apenas de um coração bom mas também de um coração aberto. As mechas de cabelo que se soltaram do rabo de cavalo produziam um halo vermelho, e seu perfume de xampu, ou seja lá o que fosse, o fez lembrar do verão – um verão normal, não aquele de que tinha acabado de se lembrar, quando ainda era uma “criança”.

Então, ela aproximou-se, colocou os braços ao redor dele e simplesmente abraçou-o. Levou um minuto para Veck entender o que estava acontecendo, pois era a última coisa que esperava. Mas, então, abraçou-a de volta. E os dois ficaram ali só Deus sabe por quanto tempo.


– Não tenho o hábito de namorar – ele disse um tanto rude.

– Namorar colegas de trabalho? – ela afastou-se e olhou para ele.

– Qualquer pessoa – alisou o cabelo dela com a palma das mãos. – E você é boa demais para mim.

Houve uma breve pausa e, em seguida, ela sorriu um pouco.

– Então, o sofá é o local preferido, hein?

– Pode me chamar de Casanova.

– O que vou fazer com você? – ela murmurou, como se estivesse falando consigo mesma.

– Honestamente? Não sei. Se eu fosse seu amigo, diria para correr em direção à saída, nada de ir andando.

– Eles não são você, sabe disso, não? – ela disse. – Seus pais não te definem.

– Não tenho tanta certeza. Ela era a bajuladora de um psicopata. Ele é um demônio com uma bela máscara. Daí surgiu um bebê num carrinho. Vamos encarar os fatos, até agora, minha vida tem girado em torno de evitar o passado, desperdiçando o presente e me recusando a pensar sobre o futuro... Pois fico apavorado de não compartilhar apenas o nome com meu pai.

Reilly balançou a cabeça.

– Ouça, eu ficava assustada com a possibilidade de a mulher que me deu à luz voltar e me querer de volta. Por muito tempo, eu tinha a convicção de que qualquer coisa que meu pai fizesse legalmente não seria suficiente se ela me quisesse de volta. Isso costumava me deixar acordada à noite. E ainda tenho pesadelos. Na verdade, e vai achar que é loucura, eu ainda deixo uma cópia do meu certificado de adoção do meu lado, em cima do criado-mudo, quando vou dormir. Aonde quero chegar? Não pode fazer alguma coisa se tornar realidade só porque tem medo dela. O medo não vai tornar real uma história fictícia.

Houve outro longo silêncio, mas Veck interrompeu-o.

– Apague o que eu disse antes. Acho que estou me apaixonando por você. Bem aqui. Agora.


CAPÍTULO 29

 

Ficando um pouco distante de Reilly e Veck, Jim fingiu ser uma pedra e esforçou-se para não ouvir a conversa entre eles, tanto que, ao se aproximar, virou a cabeça. Havia lá as vantagens de ser invisível, mas não era muito adepto de ficar espiando casais. Além do mais, não estava muito satisfeito com aquele atraso emotivo. Estavam procurando por Sissy – a porcaria melosa poderia esperar até encontrarem algo ou descobrirem que a indicação do local era uma farsa.

Afastando-se da rocha na qual se apoiara, caiu numa poça, a água turva espirrou sobre suas roupas de couro e suas botas de combate, mas não fez som algum graças ao campo de força que havia projetado em volta de si. Cara, aquela pedreira parecia um cenário dos antigos episódios de Jornada nas Estrelas, as pessoas só não usavam camisas vermelhas nem se teletransportavam...

De repente, um calor floresceu na lateral de seu rosto e a sensação fez com que erguesse a cabeça e inclinasse-a para a direita. Um raio de sol derramava-se sobre ele, tocando-lhe os olhos e a bochecha.

Que merda é essa? – pensou, percebendo que vinha da direção errada.

Com a testa franzida, recuou e virou-se, seguindo o caminho da faixa amarelo-limão... que o levou para a caverna atrás dele.

Algo aconteceu em suas entranhas.

– Oh, droga – Jim sussurrou quando uma premonição lavou-o como chuva fria.

Preparando-se, caminhou até uma abertura irregular. Não havia necessidade de virar de lado, a iluminação passava por ele como se não estivesse lá. A abertura era bem grande, quase dois metros de altura, talvez um metro de largura, contudo, estreitava-se quase imediatamente após a entrada. Então, como a luz era refletida ali dentro?


Ao entrar, a luz do sol seguiu-o, fazendo-o pensar em Cachorro e sua companhia calma e reconfortante. E não parou para pensar em como a iluminação conseguia envolver até mesmo as extremidades do local ou para se perguntar por que parecia orientar seus passos...

– Oh... Deus... – apoiou-se numa parede de pedra para manter-se em pé ao descobrir o que fazia a luz emergir da escuridão: contra a parede íngreme da caverna, envolto numa lona áspera, havia um corpo deitado no chão, como lixo descartado.

O feixe luminoso acabou por fundir-se com o pacote e foi quando Jim viu o comprimento do cabelo – que, se estivesse limpo, seria loiro. Atordoado, caiu contra uma das laterais da caverna. Dar-se conta, repentinamente, de todo o seu esforço até aquele momento – droga, talvez tudo que tinha feito – era como uma trombeta tocando em sua nuca, sem cessar, ensurdecendo-o.

Não existem coincidências – ouviu Nigel dizer.

Quando alguém colocou a mão sobre seu ombro, virou-se e sacou sua adaga de cristal ao mesmo tempo. Baixou a arma imediatamente.

– Meu Deus, Adrian... quer levar uma facada?

Péssima pergunta para se fazer num dia como aquele. O outro anjo não respondeu. Apenas olhou para a luz que pairava acima da cabeça de Sissy, como uma coroa celestial dourada marcando seus restos mortais. Com uma voz baixa, disse: – Quero te ajudar com esta perda. Você me ajudou com a minha.

Jim olhou para Ad por alguns momentos.

– Obrigado, cara.

Adrian assentiu com a cabeça, como se tivessem combinado algo, trocado algum voto, e esse acordo fez Jim perguntar-se... Se tudo tinha um propósito, será que Sissy havia morrido para que houvesse aquele momento entre eles? Seria a razão pela qual perderam Eddie? Pois, quando os olhos mortos de Adrian encontraram os dele, os dois estavam na mesma situação, dois caras explosivos realinhados por tragédias paralelas e, ao mesmo tempo, vivendo exatamente a mesma situação.

Em vez de ir até sua garota, Jim estendeu uma das mãos para o parceiro. E, quando o anjo retribuiu o gesto, puxou Adrian contra si e abraçou o bastardo com força. Sobre o ombro do cara, olhou para Sissy.

Foi difícil, mas, ao avaliar os interesses da guerra junto à perda que sofreu a família da garota e, agora, Adrian, concluiu que as duas passaram a ter um valor inesperado: até onde Jim conseguia entender, na melhor das hipóteses, o jogo estava empatado, com apenas um fio de cabelo pesando a favor de Devina na batalha.

Só que, às vezes, uma simples gota d’água resultava em tragédia. E famílias perdiam suas filhas, melhores amigos não voltavam para casa no final da noite. Parece que viver não vale mais a pena, mas você continua de qualquer maneira.

Quando se afastaram, Adrian colocou o dedo sobre o colar de Sissy.

– Ela é sua garota.

Jim assentiu.

– E já é hora de tirar ela daqui.

Caramba – Reilly pensou. Parecia que Veck iria beijá-la. E parecia que ela deixaria. Mas, então, surgiu aquele papo que envolvia a palavra “amor”, e aquilo deixou-a paralisada, não sabia ao certo como reagir. Estava se apaixonando por ele também. Mas não conseguia lidar com aquilo direito em sua mente. Dizer essas coisas em voz alta era expor-se demais. Contudo, havia outras maneiras de responder.

Quando ela inclinou-se em direção à boca dele, Veck abaixou-se, aproximando-se dos lábios dela... Alguém apareceu sobre a rocha acima deles. Alguém grande, que surgiu das alturas e bloqueou o sol. Quando ela pulou afastando-se de seu parceiro, seu pensamento imediato foi: Oh, Deus, não permita que seja alguém da delegacia...

Seu desejo tornou-se realidade, infelizmente: era aquele “agente do FBI”.

Veck moveu-se tão rápido que Reilly só percebeu que havia um escudo humano à sua frente quando sentiu suas mãos repousarem nas costas dele. Foi um movimento muito cavalheiro, mas ela não precisava de proteção. Colocando a mão dentro do casaco, Reilly encontrou a coronha de sua arma – ele também fez o mesmo – e recuou com a arma apontada para cima.

Só que... o homem que os olhava de cima não parecia nem um pouco agressivo. Parecia arruinado. Totalmente destruído.

– Sissy Barten está logo ali – ele apontou para trás de si. – Na parede dos fundos da próxima caverna.

Ele não vai nos machucar – ela pensou com uma convicção vinda da alma.

Redirecionando o cano da nove milímetros para o chão, ela franziu a testa. Ao redor do corpo do agente havia um brilho sutil, um esplendor que poderia ser explicado por estar posicionado de costas para um raio de sol – mas, espere um minuto, a posição dele não era essa. Era muito tarde para que houvesse tal projeção no local onde ele estava.

– Você está bem? – ouviu-se perguntar ao homem.

Os olhos assombrados fixaram-se nos dela.

– Não, não estou.

Veck falou alto, forte e exigente: – Como sabe onde o corpo está?

– Acabei de ver.

– Liguei para o FBI. Nunca ouviram falar de você.

– Por conta da administração atual – o tom era entediado. – Vai ajudar a moça ou perder tempo com...

– Fingir ser um oficial federal é crime.

– Então, pegue essa força toda e venha atrás de mim... por aqui.

Quando o cara ergueu-se da pedra e desapareceu, Veck olhou por cima do ombro.

– Fique aqui.

– Até parece.

Algo na expressão dela deve ter lhe dito que discutir seria uma perda de tempo, pois murmurou alguma coisa – e começou a andar. Juntos, escalaram a pedra à frente, agarrando pontos precisos na subida. Quando chegaram ao topo... Jim Heron, ou seja lá quem fosse, tinha desaparecido. No entanto, viram a entrada de uma grande caverna.

– Chame reforços – Veck disse, saltando para baixo ao pegar a lanterna. – Vou entrar... e preciso que me cubra daqui de fora.

– Entendido – Reilly pegou o rádio, mas exclamou em seguida: – Pare! Precisa prestar atenção nas pegadas. Perto das bordas, certo?

Olhou para ela.

– Bem lembrado.

– Cuidado.

– Tem minha palavra.

Seguindo com a lanterna e a arma, entrou na caverna, seus ombros largos mal passaram pela entrada. Devia existir um obstáculo logo ao entrar, pois o brilho da lanterna esmaeceu e, em seguida, não se via mais iluminação alguma.

Enquanto Reilly chamava seus colegas e recebia a confirmação de que estavam a caminho, abaixou-se cuidadosamente em direção à entrada lamacenta da caverna que lhe dava boas-vindas. Sabia que levaria um tempo até que os outros chegassem e rezou para que seus instintos estivessem certos sobre o homem grande e loiro. Ele não parecia nem um pouco preocupado em mentir ou distorcer o que dizia, mas era certo que parecia arrasado em relação a Sissy Barten.

Se alguma coisa acontecesse com Veck enquanto vigiava, nunca iria se perdoar...

– Que... droga é essa? – murmurou.

Reilly franziu a testa e agachou-se. Bem no meio do caminho de terra encharcada, onde Veck tinha aterrissado ao pular, as pegadas pareciam crateras lunares. Da mesma forma, perto da entrada, o rastro ali marcado era profundo, as pegadas de sapatos de sola lisa eram fundas e indicavam que um homem com seus noventa quilos havia passado por ali.

Erguendo-se, Reilly apoiou um dos pés sobre uma pedra alta e olhou para trás ao longo do caminho por onde Veck e ela tinham atravessado. Na parte superior da plataforma de pedra, existiam dois pares de pegadas umedecidas: dela e de Veck. Era isso.

Ao analisar a extensão do declive, balançou a cabeça. Não tinha como Jim Heron, ou seja lá quem fosse, ter descido até ali sem ficar com os pés encharcados. E também era impossível ficar parado onde ficou sem deixar pegadas úmidas para trás, assim como ela e Veck tinham deixado.


Que diabos está acontecendo?

Atrás dela, Veck reapareceu na abertura da caverna.

– É Sissy Barten. Ele estava certo.

Reilly engoliu em seco ao descer mais um pouco.

– Tem mais alguma coisa aí?

– Não que eu consiga enxergar. Chamou o pessoal?

– Sim. Tem certeza de que é ela?

– Não toquei em nada, mas há um pouco de cabelo loiro exposto e o corpo está onde Kroner indicou – as sobrancelhas de Veck estreitaram-se. – O que foi?

– Tem pegadas no chão da caverna?

– Me deixe ver – ele desapareceu. Voltou em seguida. – Não. Mas não é a melhor superfície para verificar isso. Está relativamente seco, e o solo tem pouca profundidade. O que você...

– É como se tivesse caído do céu.

– Quem? Heron?

– Não há qualquer evidência de que ele esteve aqui, Veck. Onde estão as pegadas? Aqui no chão? Lá em cima?

– Espere, não tem...

– Nada.

Ele franziu a testa e olhou ao redor.

– Filho de uma puta.

– Sinto a mesma coisa.

Ao longe, Reilly ouviu os oficiais aproximarem-se, então, colocou as mãos ao redor da boca e gritou: – Aqui! Estamos aqui!

Talvez alguém pudesse entender alguma coisa. Porque não lhe ocorria nada... e era evidente que acontecia o mesmo com Veck.


CONTINUA

CAPÍTULO 20

 

Gary Peters sempre achara que seu nome soava como ele: nada de especial. Havia milhares de Garys no país – a mesma coisa para Peters – e sua aparência física também não o diferenciava muito. De alguma maneira, conseguiu evitar uma barriga de cerveja, mas seu cabelo era fino e, agora que tinha chegado aos quarenta, passava pela crise de perdê-los. O rosto era branco como um purê de batatas, os olhos eram de um castanho-terra e a existência de um queixo era discutível: talvez pescoço, bochechas e clavícula estivessem todos unidos.

Moral da história? Era um homem invisível, daqueles que as mulheres nem percebem a existência entre tantos metrossexuais musculosos, atletas e caras ricos e famosos.

Razão pela qual a visão de Britnae avançando até sua mesa e lançando um olhar... digamos, daqueles... foi uma grande surpresa.

– Desculpe – ele balançou a cabeça. – O que você disse?

Ela inclinou-se e... bom Deus, aqueles seios...

Quando ela ergueu-se outra vez, ele teve a sensação de que a mulher falara alguma coisa, mas não fazia ideia do que tinha sido...

– Desculpe, telefone – esticando o corpo, pegou o fone. – Departamento de Polícia de Caldwell, pois não. Sim. Uh-hum. Sim, está sob custódia e intimado. Sim, claro... Darei o recado de que estará lá pela manhã.

Fez algumas anotações no caderno e voltou sua atenção para Britnae. Que tinha decidido sentar-se à mesa em que se apoiou antes.

No começo achava que a saia era pequena. Agora, parecia micromíni.

– Ah... o quê? – ele disse.

– Perguntei quando será seu intervalo.

– Ah, desculpe – pelo amor de Deus, tinha alguma coisa errada naquela abordagem. – Não tão cedo. Ei, você não costuma sair às cinco da tarde?

– Estou presa aqui examinando uma folha de pagamento – quando ela fez beicinho, o lábio inferior, já volumoso, pareceu um travesseiro. – É tão injusto... e ainda tenho mais uma hora pela frente, pelo menos, e está tão tarde.

Ele olhou o relógio: 20h. Tinha acabado de iniciar seu turno de dez horas, aquele em que vigiava provas e prisioneiros, então, era cedo para ele. Costumava ir para casa às 6h, e o departamento dela chegava ali às 8h30.

Ela inclinou-se outra vez.

– É verdade que todas as coisas de Kroner estão aqui?

– Na sala de provas? Sim, estão.

– Você chegou a vê-las?

– Algumas delas.

– Mesmo?

Foi muito curioso como os olhos dela arregalaram-se um pouco enquanto colocava a mão sobre a garganta.

– São horríveis – ele acrescentou, sentindo o peito inflar.

– Como assim... o que são?

A hesitação dela mostrava que estava em dúvida se desejava mesmo saber mais.

– Partes e pedaços... Se é que me entende.

A voz dela tornou-se quase um sussurro.

– Você pode me levar lá?

– À sala de evidências? Ah, sim, não, não posso. Apenas pessoal autorizado.

– Mas você é autorizado, não é?

– E gostaria de manter o meu emprego também.

– Quem ficaria sabendo? – ela inclinou-se ainda mais. Gary pensou que, caso ela se endireitasse um pouco mais, poderiam se beijar.

Temendo passar por tonto, afastou-se e empurrou a cadeira para trás.

– Eu não diria a ninguém – ela sussurrou.

– Não é tão simples. Precisa se identificar na entrada e na saída e tem as câmeras de segurança. Não é uma sala de descanso.

Ele podia ouvir a petulância em sua voz e, de repente, desprezou sua calvície e sua meia-idade. Talvez aquele tom fosse a razão pela qual ainda era virgem.

– Mas você poderia me deixar entrar... se quisesse – os lábios dela eram absolutamente hipnotizantes, moviam-se devagar à medida que enunciavam as palavras. – Certo? Sei que poderia, se quisesse. E eu não vou tocar em nada.

Deus, como aquilo era estranho. Esperava entrar no trabalho e cumprir suas tarefas como sempre fazia todas as noites. Mas lá estava ele, com aquela... encruzilhada.

Será que Gary Peters não faria nada, como de costume? Ou será que tomaria uma atitude de verdade com a gostosa do departamento?

– Sabe de uma coisa? Vamos lá.

Ele levantou-se e verificou outra vez se as chaves estavam no cinto – onde, é claro, elas estavam. E, como era de se esperar, havia uma equipe reduzida na delegacia, então, era o único responsável por levar qualquer coisa ao andar de cima – e os detetives Hicks e Rodriguez tinham acabado de trazer dois gramas de maconha embalados e assinados.

– Oh, meu Deus – ela disse, saltando da mesa. – De verdade?

O peito dele voltou a se encher, em vez da sensação de vazio de sempre.

– Sim. Vamos.

Colocou o sinal de que estava em intervalo, para que as pessoas ligassem em seu celular – alguém poderia aparecer para registrar ou cadastrar alguma prova – e, então, abriu a porta para ela.

Quando ela passou e Gary sentiu o perfume, pensou ser mais alto do que era quando começara a trabalhar, a sensação era ótima. Sabia que havia uma grande possibilidade de sair impune daquilo. A equipe de evidências trabalhara muito, há dias, nas evidências de Kroner, mas, finalmente, decidiram que também precisavam dormir; então, não havia ninguém ali. E, com certeza, Britnae não tocaria em nada mesmo – ele iria se certificar disso. Assim, não haveria necessidade de verificar as gravações das câmeras de segurança.

Arriscado? Um pouco. Mas, na pior das hipóteses, receberia uma advertência. Tinha o registro mais irrepreensível em termos de assiduidade e desempenho no departamento de recepção e segurança – ele não tinha vida. E Britnae nunca iria abordá-lo novamente.

Algumas vezes, você precisa ser algo mais que um mero Gary Peters atrás de uma mesa...

Britnae pulou e abraçou-o.

– Você é tão legal!

– Ah... imagina.

Droga, como Gary era imbecil. Graças a Deus ela não ficou agarrada por muito tempo, pois ele quase desmaiou.

O engraçado foi que se sentiu calmo ao mostrar o caminho, levando-a para o elevador até o segundo andar. Dali em diante, insistiu, como se fosse um agente secreto, que seguissem pelas escadas. Lá em cima, abriu a saída de incêndio e ouviu. Nada. Nem mesmo alguém da limpeza. E, no final do corredor, as luzes do laboratório forense estavam apagadas.

– Nunca estive aqui antes – Britnae sussurrou perto da manga da camisa ao agarrar o braço dele.

– Vou cuidar de você. Vamos.

Andaram na ponta dos pés pelo corredor até uma porta de aço pesada na qual se lia “evidências – apenas pessoal autorizado”. Com suas chaves, abriu-a e seguiu até uma antessala de identificação. Sentiu seus nervos exaltados quando aproximou-se da mesa em que a recepcionista ficava durante o horário comercial, mas, quando identificou-se e entrou, sabia que não tinha mais volta.

– Oh, meu Deus, estou tão animada! – quando Britnae colocou as mãos sobre o antebraço de Gary e inclinou-se, como se ele fosse seu protetor, o homem não se incomodou mais em esconder o sorriso, pois ela não conseguia visualizar seu rosto.

Isso é... muito legal – ele pensou ao registrar no sistema a maconha apreendida.

Quando Devina esfregou-se contra o corpo do oficial, fez um favor àquele triste humano, um tal de Gary Peters. Era engraçado fingir ser a bonitona do escritório, e o idiota da recepção engolia a mentira. Seu plano só precisava ter um início e um fim. Ele não se lembraria de nada na manhã seguinte: para que aquilo tudo funcionasse, o statu quo tinha que ser preservado.


– Certo, vamos entrar – o cara disse ao sair da frente do computador.

Usando o tom de voz alto de Britnae e aquela pronúncia ao estilo de modelos famosas californianas, disse: – Oh, meu Deus, estou tããão empolgada. Isso é muito real!

Blá-blá-blá... mas usou o tom certo, pois já estava usando a carcaça há algum tempo. E a garota não tinha um vocabulário muito extenso – era só acrescentar “oh, meu Deus” a cada substantivo ou verbo e pronto.

Na segunda porta de aço, Gary Peters passou seu cartão pelo leitor magnético na parede e a fechadura soltou-se em seguida com uma batida.

– Está pronta? – ele disse, todo protetor.

– Não sei... Quero dizer, sim!

Ela saltitou um pouco e, então, voltou a ofegar sobre o braço dele enquanto segurava uma de suas mãos. E, ao vê-lo todo encantado com o show, ela pensou: que idiota.

No instante em que entrou no interior das instalações de armazenamento de provas, a habitual cena de gato e rato assumiu seu lugar na missão. De alguma maneira, estava entediada daquele tipo de diversão, porém, tinha que fazer algo de qualquer jeito. O desaparecimento de Jim Heron obrigou-a a antecipar algumas coisas, o que ela odiava.

Não conseguia acreditar que não havia qualquer sinal dele. Era a primeira vez que acontecia com um anjo e tinha certeza de apenas uma coisa: ele não tinha recuado ou desistido. Não estava em sua natureza. A guerra continuava e havia uma alma para tomar... Além disso, havia maneiras de conseguir que Jim aparecesse outra vez.

O guarda conduziu-a ao longo dos corredores cheios de prateleiras que se estendiam do chão ao teto, cheias de caixas de uma variedade incalculável de formatos e tamanhos. Tudo estava bem catalogado e indexado, havia pequenas etiquetas penduradas e muitos sinais alfanuméricos indicando algum tipo de sistema.

Que coleção. Que organização...

Devina teve que parar e desabafou: – Isso é incrível.

O oficial idiota ficou todo orgulhoso, mesmo sendo apenas uma pequena engrenagem de uma máquina maior.

– Sempre há dezenas de milhares de provas aqui. Tudo está identificado pelo número do caso e registrado no computador para que possamos encontrar tudo de maneira eficiente – começou a andar outra vez, dirigindo-se a alguns recantos do local. – No entanto, existem algumas exceções, como o caso Kroner, pois há muita coisa envolvida no processo.

Enquanto ele seguia, Devina olhava para cima e observava todos os objetos ao redor. Que demais!

Ao longo de todo o caminho, havia algumas mesas com cadeiras, como se fosse uma cafeteria em que se serve objetos inanimados para consumo.

– Os detetives e oficiais têm autorização para entrar, tirar fotos, reexaminar coisas ou pegar alguma evidência para julgamentos. O laboratório também retira os objetos do lugar de tempos em tempos, mas tudo precisa retornar ao departamento. As coisas de Kroner estão bem aqui. Não toque em nada.

Atrás de uma divisória de 1,8 metros de altura, havia uma estação temporária de trabalho constituída de mesas, cadeiras, computadores e um equipamento fotográfico, assim como caixas de sacos plásticos vazias e rolos de etiquetas adesivas. Mas isso não importava. Em prateleiras rebaixadas, que tinham 2,5 metros ou mais de comprimento, havia vários saquinhos enfileirados, todos com códigos de barras, contendo frascos, joias e outros itens.

Seu pequeno servo tinha sido um menino muito, muito ocupado, não?

– Geralmente, a evidência é registrada lá embaixo, na entrada, ou no laboratório, se for restos humanos, mas havia tantas coisas naquela caminhonete apreendida que tiveram que criar uma unidade temporária de processamento de dados aqui. Todas as amostras de tecido foram examinadas primeiro, pois havia uma preocupação com a preservação dos elementos... Entretanto, parece que Kroner já sabia exatamente como manter tudo. Claro que sabia. Queria ter sempre parte de suas vítimas junto dele.

– Há muitos outros objetos aqui – o policial levantou um lençol branco que cobria uma caixa enorme e rasa.

Ah, sim, exatamente o que ela esperava encontrar: um amontoado de camisetas, joias, bolsas, laços de cabelo e outros objetos pessoais.

Vendo tudo aquilo, ela sentiu-se profunda e verdadeiramente triste por Kroner, pois sabia muito bem de onde vinha a obsessão dele. Ninguém quer perder as conquistas do trabalho duro, as pessoas passam a valorizar seus objetos. No caso de Kroner, era mais difícil, pois, ao contrário dela, ele não tinha como manter suas vítimas para sempre... E, agora, também tinha perdido sua coleção.

De repente, Devina sentiu dificuldade para respirar.

Ela tinha perdido seus preciosos objetos, e lá estavam eles, sob a tutela de seres humanos, que tocaram e recatalogaram tudo. Eles poderiam, muito bem, um dia, num futuro distante, jogá-los fora.

– Britnae? Você está bem?

O oficial apareceu bem ao lado dela, mostrando uma cadeira de escritório.

– Sente-se – ouviu-o dizer ao longe.

Quando a sala começou a girar, Devina fez o que ele havia sugerido e colocou a cabeça entre os joelhos que não eram dela. Estendendo uma das mãos, pegou na borda da mesa, como se assim pudesse manter a consciência.

– Merda, merda... certo, vou pegar um pouco de água para você.

Quando o oficial saiu, seus pés iniciaram uma corrida mortal em direção às pilhas de evidências, pois sabia que não tinha muito tempo. Com a mão trêmula e suada, pegou o brinco de ouro que tinha trazido de sua coleção. As lágrimas vieram à tona quando percebeu que tinha de abrir mão novamente daquilo se quisesse progredir naquela rodada com Heron... e DelVecchio.

Há pouco, quando estava em seus aposentos privados, parecia haver uma perspectiva tão razoável, tão fácil, mas ali, cercada por centenas de milhares de troféus, o que era o brinco de uma virgem morta? Ficaria com a outra peça do par... além do mais, tinha outros objetos para se lembrar daquela maldita Sissy Barten.

Agora, porém, sentada ao lado da carnificina que eram as lembranças de Kroner, sentia como se estivesse enviando uma de suas muitas almas às profundezas de um mar de perda e esquecimento permanentes. Mas que escolha tinha? Tinha que eliminar as forças de Heron e, mais importante, tinha que configurar o final do jogo...

De repente, a imagem da secretária gostosa começou a se desintegrar, a verdadeira forma de Devina passou a emergir da camada de pele humana jovem e rosada, sua carne morta e enrugada e suas garras cinzas e retorcidas embalavam o brinco barato em formato de pássaro.

Por um momento, não se importou. Estava abalada demais por sua possessividade, não conseguia lidar com o fato de que o oficial voltaria em breve e que, então, teria de infectá-lo ou matá-lo – e não tinha energia para nada disso. Ela tinha, porém, de se recompor.

Obrigando-se a pensar um pouco, convocou a visão de sua terapeuta, imaginando aquelas formas arredondadas, aquela pessoa realizada, acolhedora, que já tinha passado da menopausa e que não só parecia ter resposta para tudo... Mas parecia saber exatamente do que ela estava falando.

Devina, a ansiedade não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo... Você deve se lembrar de que não necessita de objetos para justificar sua existência ou para se sentir bem ou segura.

Ou seja, se não conseguisse se recompor e colocar aquele brinco ali, comprometeria mais ainda seus objetivos.

Você já perdeu uma vez – lembrou a si mesma.

Duas respirações profundas... mais outra. Então, olhou para sua mão e desejou a imagem da jovem e a bela carne de volta. A concentração que aquilo exigia deu-lhe uma dor de cabeça permanente, mesmo depois que voltou a ser Britnae, mas não havia tempo para desperdiçar com as têmporas que latejavam. Ao colocar-se em pé sobre pernas tão fortes quanto canudos de refrigerante, saiu tropeçando em direção à caixa de objetos. Agarrando-se a uma cortina, colocou ali o brinco em formato de pomba e, em seguida, patinou de volta ao assento que o oficial havia providenciado para ela. Bem a tempo.

– Aqui, beba isso.

Olhou para o cara. Considerando a expressão em seu rosto, parecia que o disfarce Britnae ainda estava funcionando. Uma coisa era certa sobre humanos: ficavam totalmente chocados quando a viam como era de fato.

– Obrigada – disse com voz rouca ao estender uma das mãos... com uma camada de esmalte rosa nas unhas. Mas quanto tempo aquilo duraria?

Bebeu a água, amassou o copo de papel e jogou-o numa lata de lixo embaixo da mesa.

– Por favor, pode me tirar daqui? Agora?

– Claro.

Ele tirou-a da cadeira, jogando um braço surpreendentemente forte em volta da cintura e sustentando a maior parte de seu peso. Passaram pelos longos corredores. Saíram pela porta desbloqueada graças àquele cartão magnético. Enfim, o corredor que daria para a saída. O elevador foi uma bênção, mesmo ficando ainda mais tonta com a descida.

O plano, disse a si mesma. Trabalhar no plano. Era o sacrifício necessário para trazer as coisas de volta ao lugar.

Quando chegaram ao escritório, ele sentou-a numa das cadeiras de plástico de sua mesa e trouxe um segundo copo de água. O que ajudou um pouco a clarear a mente de Devina. Ela concentrou-se no oficial e decidiu não só deixá-lo viver, daria também um pequeno presente.

– Obrigada – disse-lhe, com sinceridade.

– Por nada. Quer uma carona para casa?

Ela não respondeu e inclinou-se para frente. Estendendo-se mentalmente pelo ar, infiltrou-se pelos olhos de Gary e adulou-o dentro do cérebro, passeando pelos corredores metafóricos de sua mente, visualizando ao acaso as provas que havia em suas estantes particulares.

Da mesma maneira que colocou o brinco na caixa, inseriu a convicção no cérebro do homem de que ele era um Casanova, um cara que, apesar de sua modesta aparência, era desejado pelas mulheres e, portanto, confiante e viril.

Era o tipo de coisa que o faria conseguir uma transa. Pois, ao contrário dos homens, criaturas visuais, as mulheres tendiam a valorizar mais o conteúdo que havia entre as orelhas de alguém. E autoconfiança era muito sensual.


Devina partiu em seguida, levando com ela as memórias do que tinham feito e onde tinham estado. Seu ato de caridade enojou-a, e ela desejou fazer um gesto obsceno àquele Nigel insuportável.

Mesmo uma freira com o coração mais puro que se possa imaginar teria vontade de soltar um palavrão naquela ocasião. Eram raros os casos em que um demônio motivava-se a mostrar compaixão. Ela sentiu vontade de tomar um banho para tirar o fedor.


CAPÍTULO 21

 

– Acho que estou no céu.

Reilly escondeu um sorriso quando Veck olhou com admiração o pedaço de torta que sua mãe havia colocado à frente dele.

– A senhora fez mesmo isso? – disse ao olhar para cima.

– Do zero, incluindo a massa – o pai dela anunciou. – E não só isso, ela pode calcular seus impostos de olhos fechados com um dos braços amarrado nas costas.

– Acho que estou apaixonado.

– Desculpe, ela já é comprometida – o pai de Reilly puxou sua esposa para um rápido beijo ao pegar seu pedaço de sobremesa. – Certo?

– Certo – a resposta foi pronunciada de boca cheia.

Reilly ofereceu um pouco de sorvete de baunilha a Veck.

– Sorvete?

– Com certeza.

O detetive DelVecchio acabou se mostrando muito bom de garfo. Levou segundos para comer a carne de vitela e o espaguete ao molho pomodoro. Não era muito fã de saladas, o que não era muito surpreendente. E poderiam ter servido a sobremesa em dose dupla.

Contudo, não foi a capacidade de apreciar a comida de sua mãe que impressionou Reilly: ele inteirou-se bem com o pai. Brincava e, com respeito, mostrou que não era alguém influenciável, mesmo Tom Reilly sendo conhecido por assustar até à morte seus subordinados. Resultado disso?

– E, sim, Veck, concordo com você – o pai dela anunciou. – Há muita coisa que precisa ser modificada no sistema. É muito difícil obter um equilíbrio entre acusação e perseguição, especialmente com relação a alguns grupos étnicos e raciais. Socioeconômicos também.


Sim, seu parceiro tinha sido agraciado com a plena aprovação.

Quando a conversa encaminhou-se para o assunto da aplicação da lei, ela sentou-se e observou Veck. Ele parecia mais relaxado que nunca. E, cara, como estava lindo.

Meia hora e mais um pedaço de torta depois, Veck ajudou a levar os pratos até a pia e ajudou a secar a louça. Então, chegou o momento de colocarem os casacos e dirigirem-se à saída.

– Obrigada, mãe – ela disse, abraçando a mulher que sempre estaria ali por ela. – E pai.

Ao aproximar-se do pai, teve que ficar na ponta dos pés para colocar os braços ao redor dele, esticou-se bem e não chegou nem à metade do caminho dos ombros.

– Eu te amo – ele disse, segurando-a com firmeza. E, então, sussurrou em sua orelha: – Tem um bom rapaz aí.

Antes que pudesse retornar ao discurso “não, eu não tenho ninguém”, passaram aos apertos de mãos e saíram pela porta.

Na rua, os dois acenaram e, enfim, tudo acabou.

– Seus pais são incríveis – Veck disse, enquanto se afastavam de carro.

Um rubor de orgulho da família a fez sorrir.

– São mesmo.

– Se não se importa, queria perguntar...

Quando percebeu que ele não a olhava e que não terminaria a frase, Reilly sabia qual era a pergunta que tinha ficado no ar. Era importante, mas isso não significava que ele iria forçá-la a responder.

– Fico muito feliz em conversar sobre isso – quando a chuva começou a cair, aguardou num sinal vermelho e ligou os limpadores de para-brisa. – Meus pais sempre trabalharam com jovens de risco e centros de recuperação... Começaram antes mesmo de se conhecerem. Existe um centro assim na igreja católica do centro da cidade e, depois que se casaram, costumavam passar os sábados lá, organizando livros, solicitando doações, ajudando famílias desabrigadas. A mulher que meu deu à luz chegou ali comigo depois de ter brigado com um dos três namorados. Com isso, ela acabou perdendo a visão do olho esquerdo – Reilly lançou um rápido olhar para ele. – Eu vi acontecer. Na verdade, é a primeira memória que tenho.


– Quantos anos você tinha? – ele perguntou um pouco tenso.

– Três anos e meio. Ela brigava com ele por qualquer coisa, até aí nenhuma novidade, mas, daquela vez, ela agarrou uma faca e foi atrás dele. Ele a empurrou para se defender, mas ela continuou atacando até que ele começou a bater nela. Com força. Eu disse aos policiais que ele a espancou e, então, o colocaram na cadeia. E foi assim que terminamos no abrigo, pois o apartamento em que estávamos hospedadas era dele – Reilly acionou a seta e entrou numa via principal, pouco depois de um colégio. – De qualquer forma, ficamos no local onde meus pais trabalhavam como voluntários, mas a mulher que me deu à luz roubou algumas coisas de outra família, e, então, foi o fim da estadia. Tivemos que ficar com seus outros dois namorados por mais ou menos uma semana e, então... ela me levou de volta ao abrigo e me deixou lá. Simplesmente me abandonou.

Veck encontrou seus olhos.

– Onde ela está agora?

– Não faço ideia. Nunca mais a vi de novo e, sei que soará amargo, mas não dou a mínima para o que aconteceu com ela – aproximou-se de um semáforo e pisou no freio. – Era uma mentirosa e uma viciada, e a única coisa boa que fez por mim foi ter me deixado. Mas tenho certeza de que ela não tinha a intenção de me proporcionar algum benefício com isso. Provavelmente, eu estava atrapalhando seu estilo de vida, e ela devia saber que matar uma criança era o tipo de crime que garantiria toda uma vida atrás das grades.

Nesse ponto, era o momento de entrar na pista expressa... que veio em boa hora, pois essa era a parte mais difícil da história Fez uma pequena pausa e respirou um pouco ao se posicionar no trânsito.

– Nossa, a chuva está ficando forte mesmo – ela disse, aumentando a velocidade dos limpadores.

– Não precisa terminar a história.

– Não, está tudo bem. O verdadeiro pesadelo teria acontecido se meus pais não tivessem se interessado por mim. Isso me assusta ainda hoje – verificou o espelho retrovisor, mudou para a faixa da esquerda e afundou o acelerador. – Aconteceu de meus pais estarem trabalhando naquele dia... E eu simplesmente grudei neles feito cola. Eu adorei meu pai desde a primeira vez que o vi, pois ele era tão grande e forte, com aquela voz profunda... sabia que me protegeria. E minha mãe sempre me deu bolachas e leite... e brincava comigo. Quase que de imediato eu já estava determinada a ir para a casa com eles, mas eles estavam tentando engravidar na época e, meu Deus, não estavam necessariamente interessados em bebês com histórico de pais viciados em drogas.

– Naquela noite e durante a semana seguinte, tentaram encontrar a mulher e instigar um pouco de sentimento nela, pois sabiam que, quando uma criança entrava no sistema, era difícil sair dele. Quando finalmente a encontraram, ela não me quis... e disse que renunciaria seus direitos. Voltaram mais tarde e sentaram-se comigo. Eu não poderia ficar no abrigo, pois era preciso estar acompanhada de um responsável. Então minha mãe decidiu dormir lá comigo para que eu pudesse ter direito a um beliche. Me lembro de ter tido certeza de que me diriam para ir embora, mas um dia transformou-se em dois... e depois em mais outra semana. Eu era muito bem comportada, e tinha a impressão de que meu pai estava trabalhando em alguma coisa. Finalmente, voltaram e me perguntaram se eu queria ficar com eles por um tempo. Ele conseguiu ajeitar as coisas para que se encaixassem no sistema como candidatos a meus pais adotivos. Só ele mesmo – ela olhou e sorriu. – Um tempo que se transformou em vinte e tantos anos. Conseguiram me adotar oficialmente um ano depois que me mudei.

– Isso é incrível – Veck devolveu um sorriso e, em seguida, ficou sério outra vez. – E seu pai biológico?

– Ninguém sabe quem é, inclusive a mulher que me deu à luz, de acordo com o que os meus pais dizem. Me disseram, bem depois, quando eu já estava crescida, que ela acreditava ser um dos dois ex-namorados. E os dois estavam na cadeia por tráfico de drogas – acelerou ainda mais os limpadores. – E, veja bem, sei que pareço... estar com raiva em alguns momentos da história. Mas acho que é apenas uma tentativa de lutar com a teoria de que o vício é uma doença genética. Com dois viciados na minha base genética, há uma probabilidade estatística de que eu termine como eles, mas não vou seguir por esse caminho. Sabia que era uma porta que eu não deveria abrir e, de fato, nunca fiz isso. E, sim, você pode argumentar que meus pais me deram oportunidades que meus pais biológicos nunca teriam dado, e é verdade. Mas você faz o próprio destino. Você escolhe seu caminho.


Durante algum tempo, ouviu-se apenas o ruído dos limpadores e da água chicoteando a parte inferior do carro.

– Desculpe, acho que falei demais.

– Não, nem um pouco.

Reilly olhou para Veck e teve a impressão de que ele estava voltando ao próprio passado.

Em silêncio, esperou que ele se abrisse, mas o homem continuou calado, cotovelo apoiado na porta, uma das mãos massageando o queixo.

Do nada, um carro enorme rugiu na faixa do meio. O suv espirrou litros e litros de água sobre o capô de Reilly e obscureceu a visão.

– Deus – ela disse, diminuindo a velocidade. – Devem estar a mais de 150 quilômetros por hora.

– Nada como um desejo de morte para diminuir o tempo na viagem.

O veículo desviou para a direita, em seguida para a esquerda, e depois para a direita outra vez, movimentando-se dentre os outros carros num zigue-zague atordoante.

Reilly franziu a testa ao imaginar Veck em sua moto naquele aguaceiro tendo de lidar com um maníaco na estrada como aquele.

– Ei, consegue voltar para casa nessa chuva? Está ficando perigoso.

– Não, não tem problema – ele respondeu.

Pensando num palavrão, não teve certeza se ele estava entendendo direito a situação. E o fato de ser estúpido o suficiente para pegar aquele foguete que dizia ser uma moto e sair naquelas condições não a alegrou muito.

Enquanto Veck permanecia sentado ao lado de Reilly, viu-se pensando sobre seu pai... e sobre sua mãe também. Embora não conseguisse se preocupar muito com ela. Que irônico. DelVecchio pai estava sempre em sua mente, mas sua mãe...

– Acho melhor eu levar você para a sua casa – Reilly disse. – Não é nada interessante enfrentar esse tempo na sua moto.

– Eu não fazia ideia do seu passado – ele murmurou. – E nunca teria imaginado. Você é tão segura.

Houve uma pausa, como se tivesse que trocar a faixa do assunto na sua cabeça.

– Bem, devo muito disso aos meus pais. Foram um exemplo e uma realidade, são tudo o que desejo ser e quem me tornei. Porém, nem sempre foi fácil. Por um longo tempo, achava que, se eu não fosse perfeita, eles me devolveriam como se fosse uma torradeira com defeito. Mas destruí o carro do meu pai nas minhas aulas de direção... Um bom teste para essa teoria, não? E, adivinhe só? Eles continuaram comigo.

Olhou o perfil do rosto dela e disse: – Acho que você não dá crédito suficiente a si mesma.

– A única coisa que fiz foi aproveitar o bom exemplo que tinha diante de mim.

– E isso é muito.

Quando ela entrou no bairro dele, cinco minutos depois, ele percebeu que ela tinha seguido o próprio conselho sobre ele, sua moto e o clima.

Os freios rangeram ligeiramente quando ela parou na calçada e, de repente, a chuva sobre o teto do carro começou a soar como bolas de pingue-pongue.

– Acho que está caindo um pouco de granizo – ele disse.

– Sim – ela olhou pelo para-brisa dianteiro. – Que tempestade.

– Nenhum trovão.

– Não.

Os limpadores continuaram o movimento, clareando a visão por alguns momentos.

Em dado momento, olhou para ela.

– Quero te beijar de novo.

– Eu sei.

Ele riu um pouco.

– Sou tão óbvio assim?

– Não... eu quero também.

Então, vire a cabeça para mim, ele pensou. Tudo o que tem a fazer é virar a cabeça que eu beijo você.

A chuva caiu. Os limpadores continuaram. Motor parado.

Ela virou a cabeça. E fixou os olhos na boca dele.

– Quero muito isso.

Veck inclinou-se em direção a ela e aproximou-a de seus lábios. O beijo foi bastante lento e profundo. E quando a língua de Reilly encontrou a sua, teve consciência de que desejava algo mais dela que apenas sexo. Em última análise, no entanto, a definição daquilo não importava. Não dentro daquele carro sem marcas de identificação, estacionado na sua calçada, com a tempestade que caía lá fora.

O que os dois precisavam não tinha como resolver conversando.

Deus, ela ainda era tão macia embaixo dele, pele macia, cabelo macio, perfume suave, mas foi sua essência firme, sua solidez e obstinação que realmente excitaram-no. A ideia de que era uma sobrevivente, que era tão forte e esclarecida com quem era e de onde vinha fez com que a respeitasse ainda mais.

E, como pode imaginar... aquilo era mais sensual do que qualquer coisa naquela sacola da Victoria’s Secret.

Com um movimento do tronco, tentou chegar ainda mais perto, mas a lateral do corpo atingiu o volante, que o bloqueou. O homem das cavernas nele de fato rosnou quando tentou aproximar-se outra vez, mas não conseguiu chegar nem perto de onde queria. Ou seja, nu em cima dela.

Com um palavrão, recuou. Sob as luzes dos faróis refletidas dentro do carro, o belo rosto de Reilly iluminou-se, a sombra da chuva sobre o para-brisa tocava suas feições, manchando-as um pouco, até que os limpadores dissipassem o que parecia ser lágrimas.

Pensou nela com sua família, tão feliz e em paz.

Simplesmente pensou nela, ponto final.

– Vou entrar sozinho – disse abruptamente.

Veck não esperou uma resposta. Saiu do carro uma fração de segundo depois e correu até a porta da frente de sua casa, não por causa da tempestade, mas porque conseguia observar seu interior com muita clareza.

– Espere! – ela gritou quando ele pegou as chaves.

– Volte para o carro – ele murmurou com a voz áspera.

Correndo até ele, balançou a cabeça e disse: – Não quero.

Com isso, ergueu a mão e apontou para o carro. Quando acionou o alarme, as portas foram trancadas e os faróis piscaram.

Veck fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, a chuva atingiu sua testa e bochechas.

– Se você entrar, eu não vou conseguir parar.

A resposta de Reilly foi tirar as chaves das mãos dele, destrancar a porta e, sutil e implacavelmente, empurrá-lo para dentro da casa.

Desejava outro beijo como aquele dado no carro.

Fechando a porta com um chute, Veck desvencilhou-se do casaco, agarrou-a e puxou-a contra ele, segurando-a com força, tomando sua boca outra vez. E ela atacou de volta, envolvendo com força os braços ao redor dos ombros e pressionando seu corpo contra o dele.

O sofá.

Tinha mudado o sofá de lugar.

Ainda bem.

Houve um emaranhado de movimentos para chegar até lá, e tirar o casaco molhado dela e os coldres com as armas dos dois não facilitou as coisas. Mas logo ele moveu-a, estendendo-a sobre as almofadas... e montou sobre ela, pulando em cima de seu corpo.

O beijo foi desesperado, do tipo em que os dentes se encontram de vez em quando, e ele não queria nem sequer parar para respirar, mesmo com os pulmões queimando por falta de oxigênio. Especialmente quando ela começou a arranhar seus ombros.

Com isso, resolveu não ser bonzinho com a camisa dela. Sem romper o vínculo formado pelo beijo, pegou as lapelas e separou a maldita coisa da gola à bainha, liberando todos os botões perolados que navegaram pelo ar e caíram sobre o tapete.

O sutiã por baixo da roupa era de um tom pastel bem claro e a simples peça de algodão ficou espetacular sobre os seios. E que alívio não ter que se preocupar em rasgar rendas delicadas.

Enquanto ele abria o fecho frontal, ela respirava rápido e com força e o movimento sinuoso de suas costelas sob a pele era muito excitante, mas nada comparado ao momento em que afastou os modestos bojos para os lados.

– Você é incrível – ele gemeu ao dar uma boa olhada nela... Algo que evitou fazer na noite anterior.

Oh, cara, os seios eram mais pesados que aparentavam ser com roupas, mais cheios e redondos também... Com isso, ele até se perguntou se ela não usaria sutiãs mais apertados intencionalmente para disfarçá-los. Que desperdício seria. Mas pensar que outro homem poderia olhá-la com cobiça instigou-lhe a vontade de recorrer à sua arma.

Apalpando o que havia sido revelado, teve outra surpresa que deixou passar na pressa da noite passada. Era toda natural, tudo presente de Deus, nenhuma intervenção por insegurança ou vaidade. E o peso maleável de seus seios fez seu pau pulsar... lembrando-lhe quanto tempo havia se passado desde a última vez que ficara com uma mulher sem a rigidez dos implantes.

Pressionando os seios, sentiu os mamilos rígidos e eretos e abaixou-se para sugar um, depois o outro. Em seguida, aninhou-se ali.

Bem, parecia ser um homem que adorava seios, ele pensou, quando seus quadris foram impulsionados contra as pernas dela. Quem diria?

Ou... talvez fosse um homem que adorasse Sophia Reilly.

– Você é linda demais – rosnou quando voltou a trabalhar sobre os mamilos cor-de-rosa.

Estava desesperado para entrar nela, e encantado com a parte de cima, explorando, lambendo, tocando e observando suas reações. De alguma maneira, as coxas dela separaram-se – talvez tenha sido o joelho dele, talvez a necessidade dela, quem se importa? –, e os dois uniram-se onde mais desejavam.

Erguendo-se com os braços, começou a pressioná-la, seu pênis rijo acariciando o núcleo dela. Em resposta, ela arqueou o corpo de uma forma muito erótica, os seios subiram quando a coluna movimentou-se e ela cravou as unhas nos antebraços de Veck.

Quando ergueu-se contra ela, os seios balançaram com o movimento e ele ficou entorpecido, com o corpo dormente e hipersensível ao mesmo tempo – mas percebeu que tinha perdido o contato com os lábios. Voltando a beijá-la, soube que estava prestes a não conseguir mais se controlar... E, então, sentiu as mãos dela puxando sua camisa.

Parece que não era o único desejando algo.

De repente, perdeu a paciência com suas roupas e o que cobria seu peito desapareceu um momento depois, arrancando tudo como fez com Reilly.

– Sinta minha pele – ele exclamou, ao colocar-se sobre ela.

Ele beijou-a com força enquanto as mãos dela passavam por todo o seu corpo, passeando sobre seus músculos, agarrando os ombros, riscando as unhas ao longo de suas costelas.

Mais.

– Posso te deixar nua? – disse.

– Sim...

Veck ergueu-se e ela levantou os quadris e começou a tirar o cinto. Fez um trabalho tão bom com as calças, que ele simplesmente sentou-se e observou quando uma calcinha de algodão apareceu em sua frente.

Quando ela mostrou estar com dificuldade para continuar, pois, ora, tinha um homem de noventa quilos em cima dela, ele ajudou a mulher a tirar as calças descendo-as sobre suas pernas longas e lisas.

Oh, cara... – pensou, passando as mãos sobre as coxas. Era esguia e levemente musculosa, e imaginou-se separando aquelas coxas e mergulhando sua cabeça...

Agarrando-a, investiu contra ela, esticando-se por cima dela mais uma vez. O plano? Facilitar o caminho ao sul e tomar a calcinha com os dentes. Então, passaria um tempo ali certificando-se de que o corpo dela estava pronto para ele. Com seus lábios, língua e dedos.

Parece que havia um pequeno cavalheiro dentro dele, afinal. Sim. Havia. Não era por estar morrendo de desejo de possuí-la... só que, em seguida, ela tocou o cinto dele. Veck congelou e colocou as mãos sobre as dela, acalmando-a.

– Se isso acontecer – disse em tom rude –, não serei capaz de esperar mais um segundo.

Com o corpo absolutamente sólido de Veck posicionado sobre o dela, o cérebro de Reilly estava focado em apenas uma coisa: tirar as calças dele.

– Não quero esperar.

– Tem certeza? – a voz dele era tão gutural que se aproximava do inaudível.

Como resposta, ela passou a mão entre as coxas dele e envolveu seu sexo. No instante em que a conexão foi feita, ele amaldiçoou numa respiração explosiva e seu corpo foi investido contra o dela, o material macio das calças dele não fizeram nada para ocultar aquela extensão rígida.

– Quero ver você – ela exigiu com voz rouca.

Não precisaria pedir duas vezes: com mãos violentas e rápidas, abriu a braguilha e foi ela quem puxou a cintura. Em seguida, trabalharam juntos com a cueca para libertar a...

O pau duro de Veck projetou-se dos quadris e as pálpebras dele abaixaram-se para vê-la observar o que havia ali.

Santo...

Bem, ela poderia usar um dicionário de sinônimos para definir aquilo como “magnífico”, não? E, se era correto afirmar que tinha ficado impressionada com o que viu naquela noite no banheiro ou quando o sentiu por cima das roupas na cozinha dela, podia-se dizer que agora explodia ao vê-lo totalmente revelado e pronto para rugir. E o sexo dele não era a única bela visão: seu peito era tão macio e musculoso quanto se lembrava e seu abdômen era incrível, havia linhas firmes e bem definidas que iam até sua pélvis e seu...

– Me f...

Ao agarrá-lo, com as palmas das mãos sobre a coisa, ele estremeceu violentamente, e Reilly adorou a sensação de poder por ter abalado sua estrutura. E, oh, Deus, era firme e longo, pulsava e latejava reagindo à carícia.

Nunca vou esquecer isso – ela pensou, vendo-o sobre si, dentes expostos, cabeça para trás, o peitoral enorme esticado enquanto se esforçava para assumir o controle. Era a coisa mais quente que já tinha visto. E explorar primeiro era uma virtude, com certeza... Mas desejava possuí-lo de maneira mais profunda antes de aprender suas particularidades.

Pensando assim...

– Sua carteira? – ela tinha visto o que ele guardava ali quando manipulou a carteira na floresta... e a visão das camisinhas constrangeu-a naquele momento. Agora, estava agradecida, pois Deus sabia que ela não tinha nada disso. E não havia necessidade de se culpar por isso, um homem tinha que estar preparado sempre. Além disso, tinha alguma noção de como ele era. Testemunhou o efeito daquilo sobre Britnae.

– Agora – ela exclamou.

Outra coisa que não precisou pedir duas vezes. Quando encontrou as calças e tirou a carteira, ela levantou-se e tirou a calcinha – assim, estava pronta quando ele ergueu umas das mãos e trouxe a camisinha entre os dedos.

Ele fez uma pausa, como se quisesse que ela desse mais uma boa olhada.

Ela não hesitou. Sentou-se, pegou o pacote, mordeu e rasgou para abri-lo.

Ele gemeu e disse: – Eu posso colocar...

– Não, me deixe fazer.

Detalhes práticos nunca foram tão eróticos. Ela lidou bem com o objeto, acariciando a grande extensão de seu pênis ao cobri-lo, até Veck arquear-se e segurar o peso do corpo sobre os braços. Quando Reilly começou a tocá-lo, os olhos dele começaram a queimar, e, quando ela puxou-o, Veck rosnou... E beijou-a da maneira de sempre: com um domínio que vinha de um homem que sabia exatamente o que poderia fazer com uma mulher.

Ela posicionou-o sobre seu núcleo e, apesar de estar desesperada e de estar evidente que ele a desejava, Veck foi lento e cuidadoso ao pressioná-la por dentro. Muito bom. O corpo dela estava pronto – mas “pronto” era um termo relativo, considerando o tamanho dele.


Gloriosamente relativo: o toque de toda aquela extensão foi eletrizante, e ela abriu as pernas ainda mais, inclinando os quadris para cima, facilitando o caminho.

E, finalmente, estavam juntos.

Ao contrário da fúria que tinha tomado conta deles até ali, agora tudo desacelerava. Enquanto ele a esperava se adaptar ao seu órgão, lambeu seus lábios com a língua escorregadia; os movimentos preguiçosos atordoaram-na. Então, moveu os quadris, curvando a coluna, criando um arrepio insano.

O assovio que ele soltou foi seguido por outro gemido. Em seguida, Reilly fundiu sua boca com a dele e continuou, mantendo o ritmo equilibrado e sem pressa. Seguindo o exemplo dele, começou a golpear também. Com isso, o sexo ganhou um impulso que a levou, ao mesmo tempo, para fora de seu corpo e para os locais mais profundos de seu íntimo.

A casa estava em silêncio. Tudo o que faziam era muito alto. Desde o ranger do sofá, até o atrito sutil das almofadas, a respiração e... Tudo estava amplificado até ela imaginar que não ficaria surpresa se pessoas no centro da cidade pudessem ouvir.

Mais rápido. Mais forte. Mais profundo.

O corpo dele transformou-se numa máquina, e ela segurou-o, deixando ser levada pelo turbilhão, agarrando suas costas primeiro com as mãos, depois com as unhas.

Reilly gozou com uma explosão selvagem tão poderosa que ficou surpresa por não ter se partido ao meio. E ele seguiu-a de imediato, os quadris dele começaram a pulsar violentamente quando houve a pressão dentro de seu órgão.

Passou-se um bom tempo antes do rugido em seus ouvidos diminuir e, quando aconteceu, o silêncio na casa aumentou.

Depois do momento de paixão, a realidade retornou: tomou consciência de que estava nua e Veck estava dentro dela... e tinham acabado de fazer sexo.

Com o homem que era seu parceiro. Com o detetive que deveria fiscalizar. Com uma pessoa com quem tinha passado apenas algumas horas... que não era nada além de um estranho, afinal.

Um estranho que levou para a casa de sua família.

Um estranho que ela deveria adicionar à sua lista das poucas pessoas com quem ela havia estado.

O que eles tinham acabado de fazer?


CAPÍTULO 22

 

Adrian e Eddie ficaram mais um tempo ao longo da noite sentados naquela mesa do Iron Mask, bebendo cervejas nas garrafas longneck e paquerando as mulheres que passavam por eles. Nenhum dos dois falou muito. Era como se o que acontecera no banheiro tivesse sugado suas cordas vocais. E outra rodada de sexo estava fora de questão.

Ao sentar-se ao lado do seu parceiro, Ad esperava que algo dentro dele protestasse e trouxesse-o de volta ao normal. Maaas... nada aconteceu. A questão era: poderia lutar com seu inimigo com facas e punhos, mas a alma não tinha armas para lutar naquela guerra, pois não tinha como vencer. Também não conseguia lutar contra a realidade no ringue – não havia alvo para atingir. A não ser um obstáculo intransponível. Então, apenas sentou-se naquele clube, observando a multidão beber, mas sem ficar embriagado.

– Vamos voltar ao hotel? – perguntou finalmente.

Enquanto esperava por uma resposta, tinha plena consciência do quanto confiava no outro anjo como sendo a voz da razão; era aquele que tomava as decisões certas, que os guiava na direção correta.

E o que ele dava em troca?

Além do sexo – e, naquela noite, Eddie tinha provado que não precisava dos seus serviços nesse sentido também.

Ai, ai, ai – Ad pensou. Se continuasse assim ganharia o prêmio de covarde do ano.

– O que eu quero mesmo é uma audiência com Nigel – Eddie murmurou. – Mas ele está me afastando.

Ad olhou para ele.

– Será que ele foi demitido outra vez? Porque não deve se preocupar, não é nossa culpa. Jim é quem está com problemas, não nós. Ele nos dispensou.

E tudo por causa daquela maldita virgem.

Cara, se ele pudesse voltar atrás em alguma coisa desde que conheceu o salvador, seria manter o cara longe da toca de Devina. Sim, com certeza, a questão Sissy foi uma tragédia. Mas o que isso estava causando a Jim era pior. Uma garota, uma família, versus a totalidade das almas existentes? Matemática cruel para os Bartens, mas era a realidade.

Ad passou uma das mãos pelos cabelos e sentiu vontade de gritar.

– Olha, não consigo mais ficar aqui.

O grunhido que saiu de Eddie poderia ser um gesto de acordo, fome, ou a cerveja que não tinha caído bem.

– Vamos – Ad declarou, levantando-se.

Pela primeira vez, Eddie seguiu-o e, juntos, desviaram-se da multidão e afastaram-se do tumulto, chegando à porta de saída. Do outro lado? Chuva. Frio. Era o período noturno numa cidade que não era diferente de nenhuma outra no planeta e uma noite que não destoava de tantas outras pelas quais já tinham passado juntos.

Droga, talvez precisassem se acertar com Jim... relaxar. Nada de bom poderia vir com o salvador lutando sozinho.

Saindo do clube, não seguiram para uma direção específica. Mais cedo ou mais tarde, encontrariam um lugar para ficar – a menos que fossem acolhidos no território de Nigel, mas parece que isso não aconteceria tão cedo. Precisavam descansar. Imortais eram imortais só até certo ponto quando estavam na Terra. Não, não envelheciam, mas eram vulneráveis de algumas maneiras e precisavam comer, dormir, seguir as regras de higiene...

O ataque aconteceu tão rápido que Adrian não conseguiu ver nada. Nem Eddie. Seu parceiro apenas soltou um palavrão, agarrou a lateral de seu corpo e caiu como uma árvore, de lado, sobre o pavimento molhado do beco.

– Eddie? O que aconteceu?

O outro anjo gemeu e curvou-se todo... deixando atrás de si uma mancha brilhante de sangue fresco sobre o asfalto sujo.

– Eddie! – gritou.

Antes que pudesse se ajoelhar, um riso maníaco ecoou na escuridão fria e úmida. Levou apenas um segundo para Adrian reagir. Virou-se e desembainhou a faca, esperando enfrentar Devina. Acompanhada de um de seus subordinados. Ou doze deles.

Mas tudo o que viu... foi um humano. Um maldito pedaço de carne humana. Com um canivete na mão e um olhar selvagem de viciado no rosto encolhido.

Mais risos saíram da boca escancarada do homem.

– O diabo me obrigou a fazer isso! O diabo me obrigou a fazer isso!

O mendigo ergueu a faca por cima do ombro e saltou à frente, atirando-se contra Adrian com uma força sobre-humana, que só os loucos possuem.

Ad firmou-se sobre as coxas. Seu movimento normal seria sair correndo e olhar para trás bem depois, mas não com Eddie no chão: precisava manter contato visual com seu amigo... porque o cara não estava se movendo, nem para pegar uma arma, nem... ah, droga, não estava se movendo...

– Vamos lá, Eddie. Mexa-se! – passou a adaga de cristal para a mão esquerda e observou o antebraço do maluco possuído, esperando o momento certo...

O cara vacilou um pouco e foi o momento perfeito para Ad pegar o braço dele, mudar a trajetória do canivete e redirecioná-lo contra o bastardo. E a correção de percurso deveria ter sido muito fácil, a arma faria um arco evitando o contato com os órgãos vitais de Ad e terminaria no intestino do agressor.

Não foi bem assim. O corpo magro controlado pela mente caótica desvencilhou-se de Ad como se fosse uma rajada de vento, e ele, então, percebeu que Eddie não se levantaria.

Como se o maluco pudesse ler sua mente, um riso borbulhou de sua alma perdida, soando como um piano sendo tocado aleatoriamente por uma mão pesada, nada além de ruídos e sons dissonantes.

O filho da mãe quase voava sobre o chão ao investir contra Eddie outra vez, a faca por cima do ombro, a pele descamada sobre o rosto em que se via mais ossos que carne.

Ad não teve escolha. Precisava se concentrar no agressor e se proteger. Eddie morreria naquela calçada se ele não sobrevivesse e tirasse-o dali em segurança. Não podia perder aquela luta.

Agachando-se no último momento, investiu contra o bastardo e fazendo-o colidir contra uma construção. Quando o impacto aconteceu, uma dor ardente acima de seus rins disse-lhe que a faca havia ultrapassado a pele e mergulhado bem fundo, mas não houve tempo de se preocupar com o sangramento. Estendeu a mão, pegou aquele braço enlouquecido e acertou-o em cheio com um tijolo molhado. Fixando o membro no chão, fez um longo ferimento nele com sua adaga.

A risada maníaca foi substituída por um grito agudo de dor.

Esfaqueou outra vez. E uma terceira vez... uma quarta, uma quinta. Era claro que estava tão enlouquecido quanto o agressor, mas não parou. Com um poder preciso e cruel, golpeou a lâmina de cristal por cima do tronco várias vezes até quebrar todas as costelas, como se a lâmina penetrasse numa esponja molhada. Mesmo assim, continuou, só não precisava mais controlar o cara, apenas mudou-o de lugar para terminar de esfaqueá-lo.

A diversão e as brincadeiras finalmente pararam quando sua lâmina de cristal atingiu a parede de tijolos, esculpindo-a nos locais onde Ad havia golpeado.

Ele estava ofegante quando deixou a arma cair ao seu lado. Havia sangue por toda parte, e o maluco estava com muitos problemas no trato intestinal – na verdade, o cara quase tinha sido partido em dois, a coluna era a única coisa que ligava os quadris à parte superior do corpo.

Com lábios frouxos e flácidos, os engasgos interromperam o fluxo constante de plasma que bloqueava o ar que o homem ainda tentava fazer passar pela garganta. Mas aquilo terminaria em breve.

– O demônio... me obrigou... a fazer...

– E ela pode ficar com você – Ad rosnou, antes de lançar uma facada entre os olhos do maluco.

Houve um barulho terrível quando a essência de Devina explodiu daqueles olhos que uma vez tinham pertencido a um viciado de rua perdido. A fumaça negra fundiu-se e preparava um ataque por conta própria.

– Droga! – com um grande salto, Adrian ergueu o corpo e saiu correndo. Eddie ferido no chão era seu principal objetivo e cobriu o corpo do anjo com o seu, tornando-se o único escudo que manteria Devina longe da carne de seu parceiro.

Preparando-se para o impacto, pensou: Bem, não esperava ser assim, tão rápido.

Estava pensando na morte.

Ao menos Eddie sairia dessa. Era preciso mais que um grande golpe para derrubá-lo de vez. Afinal, feridas poderiam ser consertadas... tinha de ser assim.

Enquanto Jim estava parado com Cachorro na calçada da casa de Veck, entendeu que tinha assumido uma posição observadora com a alma em questão, apenas seguindo o cara em todos os lugares, deixando o tempo passar até Devina fazer a próxima jogada. Isso era extremamente chato.

Ficava muito mais à vontade assumindo uma postura agressiva, mas, às vezes, esperar e observar eram o X do problema. Contudo, caramba, o clima poderia estar melhor. A chuva continuava a cair e ele poderia muito bem continuar o seu trabalho sem o frio. Poderia muito bem ignorar o que acontecia dentro da casa também. Claro que aqueles dois estavam fazendo sexo. Dã.

Visualizou o início da diversão quando entraram e, então, ficou óbvio qual seria o próximo passo: a química deles estava explodindo e, em geral, não era o tipo de coisa da qual se fugia.

Jim cruzou os braços sobre o peito e agachou-se, todo aquele movimento sensual o fez pensar nas mulheres com quem estivera. Hum... Devina contava? Apenas se estivesse com o disfarce da bela morena, concluiu. Sem isso, teria que iniciar uma categoria “animal” na sua lista.

Tanto faz. Independentemente da espécie, nunca ficou com alguém a quem dava a mínima importância. Transar era como uma masturbação interativa para ele – e, pensando assim, prostitutas baratas pareciam um bom negócio. Gostava de ficar com elas, a sensação de controle era melhor que qualquer outra coisa que fizessem.

Contudo, sua vida sexual tinha acabado, não? Não poderia considerar o que teve com aquele demônio – foi uma luta em meio à guerra, apenas com punhos e cotovelos movimentando-se de forma diferente. E seu estilo de vida não incentivava muito um namoro. Porém...

De repente, uma imagem de Adrian e Eddie transando com aquela ruiva no quarto de hotel em Massachusetts escorreu em sua mente como chuva sobre a cabeça. Viu Eddie estendido em cima dela e Adrian juntando-se a eles com um olhar de quem já estava morto por dentro.

Devina havia feito aquilo com o anjo. Colocou aquele vazio em seu olhar.

Vadia da porra.

Pegou um cigarro, acendeu e inalou.

Veck era um homem de sorte por estar com a mulher que desejava. Jim nunca teria aquilo. Mesmo se libertasse Sissy...

– Idiota – murmurou ao exalar.

Será que a importância que dava àquela garota em alguma parte ridícula de seu cérebro tinha ido tão longe que ultrapassara os limites do termo “sua” ao referir-se a ela como alguém por quem era responsável? Pensava nela como sendo “sua” de fato? Será que tinha enlouquecido? Ela estava mais ou menos com seus dezenove anos e ele devia ter 140 mil naquele momento.

Certo, talvez Adrian e Eddie estivessem certos. O que estava fazendo com relação àquela garota era distração. Sim, tentou disfarçar com o discurso de que estava tudo bem, mas mentiu o tempo todo. E, naturalmente, quando seus parceiros forçaram-no a olhar a realidade, voltou-se contra eles e bufou como uma biscatinha.

Um arranhão na perna o fez baixar a cabeça. Cachorro tinha se sentado próximo aos seus pés e dava patadas na panturrilha. Parecia preocupado.

– O que foi?

O telefone de Jim tocou e, antes de atender, verificou a tela e teve a premonição de uma tragédia.

Aceitou a ligação e tudo o que ouviu foi uma respiração difícil. Em seguida, a voz de Eddie, fraca e entrecortada.

– Rua do Comércio... com a 13. Ajuda...

O riso entrecortado ao fundo significava más notícias, e Jim não perdeu tempo. Deixou Cachorro na calçada e foi para o centro da cidade, rezando para que um piscar de olhos fosse o suficiente para chegar a tempo.

O endereço era irrelevante, tudo o que tinha a fazer era seguir a essência de seus amigos. Chegou lá no momento em que Adrian pegou sua adaga de cristal e investiu entre os olhos de um bastardo louco e ensanguentado.

Devina.


Jim não precisava ouvir o barulho estridente para saber que algo maligno surgiria daquele saco de carne, e não havia nada para impedi-lo de investir contra Eddie: o anjo estava caído, todo contorcido, com o celular numa das mãos, agora totalmente rendido.

Sem pensar, Jim jogou-se em direção ao anjo sem defesa, arremessando o corpo no ar – Adrian fez a mesma coisa, ao mesmo tempo.

Ad aterrissou primeiro. E Jim cobriu os dois, sem muita esperança de proteger alguém...

Mas a coisa mais estranha aconteceu: seu corpo dissolveu-se em luz, da mesma maneira que aconteceu quando ficou furioso com Devina na última rodada. Num momento estava em sua forma corpórea... no outro, era pura energia.

Cobriu os anjos embaixo dele. Conseguiu mantê-los em segurança.

O servo, demônio, seja lá o que fosse aquilo, atingiu-o com o impacto de uma bola de golfe sobre o capô de um carro, ricocheteando, sem fazer qualquer estrago. Tentou outra vez imediatamente e obteve o mesmo resultado. Eeeee uma terceira vez.

Houve uma longa pausa em que Jim não vacilou. Podia sentir a presença em volta deles, procurando uma maneira de entrar.

Ficou claro que Eddie sangrava. O cheiro pungente era muito forte para estar vindo do corpo que jazia próximo à parede de tijolos. Inferno, talvez os dois anjos estivessem feridos. Hora de acabar com aquela bobagem.

Jim retraiu-se, levantou-se numa coluna de luz brilhante que iluminou cada centímetro nas proximidades e dissipou todas as sombras daquele local sujo. Colocando-se em posição de defesa frente ao ser maligno, condensou tudo o que havia no ar... E lançou tudo contra o filho da mãe.


A explosão não produziu luz, mas o grito foi tão alto quanto dois carros freando com força ao mesmo tempo em asfalto seco, e, em seguida, houve um ruído estranho como se areia estivesse sendo despejada.

Jim retomou sua forma corpórea e ajoelhou-se sobre os rapazes.

– Quem está ferido?

Adrian gemeu e saiu de cima de seu melhor amigo, uma das mãos pressionava a lateral do corpo.

– Ele. Levou uma facada no estômago.

Estava claro que Ad tinha sido ferido também, mas Eddie não se movia. Ao menos até Jim tocar o ombro do anjo. Com isso, o cara encolheu-se.

– Como você está?

Quando não houve resposta alguma, Jim olhou ao redor. Precisavam sair da rua. Era uma área movimentada da cidade durante a noite, e a última coisa que precisava era de alguém bem intencionado chamando a emergência. Ou pior, de um assaltante passando por ali. Ou de um policial em patrulha.

– E você? – perguntou a Adrian ao examinar o outro lado do beco.

– Estou bem.

– Mesmo? – edifícios de escritório, comércios ao redor. – Então por que está tremendo assim?

– Estou resfriado.

– Ah. Certo.

Não havia como voltar ao hotel. Precisavam de mais privacidade e, de qualquer maneira, era impossível carregar Eddie pela recepção: mesmo que conseguisse camuflar os dois, o cara ainda deixaria um rastro de sangue.

Além disso, as alternativas eram discutíveis, pois não poderia voar com aquele peso. Precisava encontrar abrigo para eles perto dali.

– E a sua mobilidade? – perguntou a Adrian.

– Depende. Se for para andar? Tudo bem. Voar? Nem pensar.

Jim mergulhou os braços sob o corpo de Eddie.

– Prepare-se, garotão. Isto vai doer.

Com um impulso, Jim estendeu os músculos da coxa como apoio e ergueu o peso do anjo do pavimento úmido. Em resposta, Eddie gemeu e ficou mais tenso, o que foi bom, pois facilitou segurar o cara.

Também significava que o bastardo ainda estava com eles.

Antes que Jim começasse a andar, o celular de Eddie atingiu o chão e deslizou para longe, batendo na bota de combate de Adrian.

O anjo curvou-se e pegou. A tela brilhava, e o sangue projetou uma luz vermelha.

Passando a mão pelos cabelos molhados, Ad disse: – Então, ele te ligou.

– Sim – já na saída do beco, Jim indicou com a cabeça um banco do outro lado da rua. – Vamos entrar lá.

– Como?

– Pela porta da frente – quando Jim começou a caminhar, murmurou para Eddie: – Caramba, garoto, você pesa tanto quanto um carro.

O passo arrastado atrás dele indicava que Ad acompanhava-os. O comentário em seguida apenas confirmou tal fato: – Um banco? Aquele lugar deve estar todo trancado. Tão perto de...

Quando chegaram à entrada com portas de vidro da recepção, as luzes internas apagaram-se, o sistema de segurança foi desativado e a porta da frente... abriu-se, completamente.

Quando entraram, tudo voltou ao normal, exceto as luzes e os sensores de movimento.

– Como fez isso? – Adrian sussurrou.

Jim olhou por cima do ombro. O anjo atrás dele parecia ter sofrido um acidente de trem: rosto muito pálido, olhos muito arregalados, sangue nas mãos e escorrendo pela camiseta.

– Não sei – disse Jim com voz suave. – Apenas fiz. E você precisa se sentar. Agora.

– Dane-se... Precisamos cuidar de Eddie.

Verdade. O problema era que numa situação como aquela... Eddie era o cara a quem Jim perguntaria o que fazer.

Hora de começar a rezar por um milagre – Jim pensou.


CAPÍTULO 23

 

Veck sentiu a mudança em Reilly imediatamente: mesmo ainda dentro dela, percebeu que, em sua mente, ela havia colocado suas roupas, aberto a porta e ido embora.

Droga.

Movendo uma das mãos entre seus corpos, apoiou-se e recuou.

– Sei o que está pensando.

Ela esfregou os olhos.

– Sabe?

– Sim. E provavelmente eu deveria dizer algo como “foi um erro”. Assim, você poderia dar logo um fim nisto.

Antes que se ajeitasse sobre as almofadas do sofá ao lado dela, abaixou-se e pegou a camisa dele para cobrir o corpo nu de Reilly.

Enquanto ele puxava a gola até o queixo, ela examinava seu rosto.

– Foi um erro, para todos os efeitos. É um erro.

Certo, esta doeu.

– Mas eu não consegui me conter – ela disse com voz suave.

– A tentação é assim – e ele tinha que manter isto em mente: tentação foi tudo o que a moveu.

Os olhos dela moveram-se para o chão próximo ao sofá... Onde a carteira dele estava aberta e havia outro preservativo guardado numa das divisórias.

– Acho melhor eu ir – disse ela um tanto rude.

Deus, por que sempre tinha que manter duas ali?

A última coisa que desejava era que ela fosse embora – e a última coisa que poderia impedir.

– Vai ter que ficar com a minha camisa. Eu rasguei a sua.

Fechando os olhos, ela amaldiçoou em voz baixa.

– Desculpe.

– Meu Deus, pelo quê?

– Não sei.

Acreditava que não sabia mesmo. Mas tinha certeza de que descobriria muito em breve exatamente o que e o quanto lamentava.

Quando Reilly levantou-se do sofá, ele escondeu o pênis com uma das mãos: ela não tinha motivos para ver aquilo agora. E não tinha motivos para pensar que a noite não tinha sido como ela mesma descrevera: um erro.

Para ele? Graças a Reilly, teve a sua primeira refeição caseira do século XXI, uma carona em meio à tempestade e uma relação sexual que se aproximava bastante do conceito piegas de “fazer amor”.

Irônico como duas pessoas poderiam cumprir a mesma lista de tarefas com uma perspectiva totalmente diferente. Infelizmente, o ponto de vista dela era o que contava.

Em silêncio, reuniu as roupas dela uma a uma e entregou-as. Ouviu quando ela vestiu as calças, as meias e os sapatos. Concluiu que tinha vestido o sutiã também, mesmo que a peça não fizesse muito barulho. O coldre foi a última coisa que entregou e, enquanto ela lidava com o cinto de couro, Veck subiu a própria calça e prendeu-a sobre os quadris.

– Vou te acompanhar até a porta – disse, quando ela terminou de vestir-se.

Não havia razão para prolongar aquela situação constrangedora. Além disso, iria embora de qualquer maneira.

Deus, isto tudo é como tomar um tiro – pensou ao aproximar-se da porta.

Quando Reilly aproximou-se, procurou olhar por sobre o ombro dela, o que, infelizmente, levou seus olhos para o sofá.

– Não quero que isso termine assim – ela disse.

– As coisas são como são. Sei de onde você veio, seus valores.

– Não é o que você pensa.

– Posso imaginar.

– Não quero... Eu queria muito isso. Mas é difícil ser apenas outra mulher em sua cama.

Ao abrir a porta, foi atingido por uma rajada de vento frio e úmido.

– Eu nunca te levaria lá para cima. Confie em mim.

Ela piscou confusa. Limpou a garganta e disse: – Certo. Ah... vejo você amanhã.

– Sim, às nove.

Assim que saiu, fechou a porta e foi até a cozinha para vê-la entrar no carro e afastar-se sob a chuva.

– Filho da puta.

Apoiando a palma das mãos sobre o balcão, deixou a cabeça pender por um momento. Então, enojado de si mesmo, virou-se e subiu as escadas rapidamente. Em seu quarto, passou pela cama e pensou: Não, de jeito nenhum, nunca traria Reilly até aqui.

Naquele colchão, trazido de Manhattan, deitaram-se as várias mulheres com quem tinha se relacionado ao acaso em bares e locais assim – nem sequer sabia o nome de algumas delas, muito menos o telefone. Pedia para que todas fossem embora antes mesmo do suor secar.

A mulher com quem teve a sorte de ficar naquela noite não era uma qualquer, e, mesmo que não sentisse o mesmo que ele, nunca a desvalorizaria deitando-a sobre aquele lugar sujo. Lençóis limpos não escondiam as manchas do modo como ele vivia.

No banheiro, tirou o preservativo e jogou-o na cesta de lixo. Ao olhar para o chuveiro, pensou em tomar uma ducha. Mas acabou vestindo uma calça de moletom e depois desceu para ficar no sofá, o perfume delicado de Reilly ainda estava sobre ele.

Patético.

O bom de ter passado três anos fazendo patrulha em vários pontos da cidade de Caldwell era que Reilly conseguia chegar em casa saindo de qualquer lugar sem nem sequer pensar no que estava fazendo. Muito útil numa noite como aquela.

Nunca a levaria lá para cima. Confie em mim.

É, aquela pequena frase ficaria em sua mente para o resto da vida. E, claro, ficou imaginando que tipo raro de mulher seria bem-vinda naquele local tão especial. Deus, com quantas mulheres deve ter ficado naquele sofá? E como seria a seleção para chegar até o quarto?


Mas não o culpava pelo que sentia agora. Desejava exatamente o que tinha acontecido e lidaria com as consequências – as quais, por ter sido sexo seguro, seriam apenas emocionais: escolhera aquele resultado... Seguiu Veck até a porta, empurrou o cara para dentro da casa, pediu para que pegasse a carteira. Então, seria adulta o suficiente naquele momento e passaria as próximas dez horas recompondo-se para voltar ao escritório às nove da manhã do outro dia. Era o que profissionais faziam. E o motivo pelo qual profissionais não deixavam as coisas chegarem àquele ponto.

Depois de dez minutos de estrada embaixo de uma tempestade, parou na calçada de sua casa e acionou o controle do portão da garagem. Enquanto esperava os painéis subirem, pensou: Ah, que droga. Entre o jantar e o que tinha feito depois, já fazia horas que não checava o celular.

Quando o pegou, verificou que havia três chamadas perdidas. Havia apenas uma mensagem de voz, mas, considerando quem tentara ligar, não perdeu tempo com isso. Simplesmente ligou de volta para De la Cruz.

Um toque. Dois toques. Três toques. Caramba, talvez ele estivesse dormindo. Era tarde... A voz dele interrompeu um dos toques.

– Esperava que fosse você.

– Desculpe, eu estava ocupada – fez uma careta. – O que aconteceu?

– Sei que gostaria de falar com Kroner e acho que pode e deve fazer isso agora. Os médicos dizem que ele está melhor do que pela manhã, mas a maré pode virar, e acho que se fizer uma entrevista como parte neutra no caso, pode ajudar Veck e também pode influenciar a opinião pública.

– Quando posso vê-lo? – inferno, iria naquela noite mesmo se pudesse.

– Provavelmente amanhã de manhã seja o melhor horário. Tive notícias há uma hora de que ele está descansando tranquilamente. Não está mais encubado, não tomou mais sedativos e até comeu alguma coisa. Mas, agora está dormindo profundamente.

Lembrando-se da condição do cara naquela floresta, era loucura ele ainda estar respirando, quanto mais comendo as refeições do hospital – e pensou em Sissy Barten. Tão injusto. Aquele tal de Kroner estava vivo e a garota... bem, provavelmente não.

– Estarei lá amanhã às nove horas.

– Tem segurança 24 horas. Vou me certificar de que sejam comunicados da sua visita. Ei, como estão você e Veck juntos?

Fechou os olhos e conteve um palavrão.

– Bem. Perfeito.

– Ótimo. Não o leve com você.

– Não iria mesmo – por mais de um motivo.

– Depois me diga como foi, se não se importa.

– Detetive, será a primeira pessoa para quem vou telefonar.

Depois de desligar, esfregou a nuca, tentando aliviar a tensão que pensava ter sido causada pelos exercícios que fizera com o parceiro naquele sofá.

Soltando o freio, deixou o motor levá-la devagar para dentro da garagem. Desligou o carro, saiu e... parou enquanto fechava a porta do motorista.

– Quem está aí? – ela gritou, colocando uma das mãos sob o casaco para pegar a arma.

A luz automática do teto deu-lhe uma visão clara das vassouras, da lata de lixo e do saco de sal que jogava na calçada durante o inverno para que os carteiros conseguissem entregar a correspondência. Mas também fez dela um alvo fácil para quem a observava.

E havia mesmo alguém.

Num movimento rápido, deu a volta pelo capô, e não pelo porta-malas, e já estava com a chave a postos antes de chegar à porta. Com movimentos rápidos e certeiros, abriu a fechadura, entrou na casa e acionou o portão da garagem ao mesmo tempo. E a fechadura foi trancada assim que entrou.

O sistema de alarme começou a apitar no canto da cozinha. Ou seja, estava ativado e fora ela mesma quem o tinha disparado. Com a mão esquerda, digitou a senha e silenciou o barulho. A arma estava na mão direita.

Com as luzes apagadas, passeou pela casa, olhando pelas janelas. Não viu nada. Não ouviu nada. Mas seus instintos gritavam que estava sendo vigiada.

Reilly pensou naqueles “agentes do FBI” e no fato de que alguém tinha entrado ou andado em volta da casa de Veck na noite anterior. Oficiais de polícia também são perseguidos. Isso já havia acontecido com muitos. E, embora há muitos anos não atuasse num caso com apelo público, hoje estava envolvida com Veck.

E ele estava longe de ser um cara sem controvérsias.

No escritório, pegou o telefone e verificou se havia linha. Sim, havia. E, ironicamente, Veck foi a primeira pessoa que pensou em chamar. Mas não chamaria, era perfeitamente capaz de se defender.

Puxando a cadeira da escrivaninha, posicionou-a para que pudesse ver a porta da frente e a que dava acesso à garagem ao mesmo tempo. Em seguida, arrastou um criado-mudo. No armário, num cofre à prova de fogo, havia três outras armas e vários cartuchos de munição; ela pegou outra automática e preparou-a para atirar.

Sentando-se apoiada contra a parede, pegou o receptor do telefone sem fio e colocou-o sobre a mesa com a arma extra, mantendo o celular no bolso caso precisasse agir rápido.

Alguém queria atacá-la?

Tudo bem. Podiam entrar para ver a recepção que teriam.


CAPÍTULO 24


No centro da cidade, na recepção de mármore do banco que Jim havia arrombado, Adrian estava perdendo sangue e com vertigens, mas se recusou a desmaiar.

Sob um facho de luz externa, Jim colocou Eddie suavemente no chão duro e polido. O anjo ainda estava contorcido, o corpo enorme assumiu uma posição fetal ao lado dele, sua trança escura serpenteava como uma corda.

– Podemos estender você um pouco, amigão? Ver o que está acontecendo? – disse Jim. Não eram bem perguntas. Era mais um aviso a Eddie de que mais movimentação estava por vir. E quando o cara esticou-se um pouco, foi bom ouvir o palavrão que soltou. Sinal de que o grande bastardo ainda estava respirando.

Só que continuou curvado sobre a barriga. E seu rosto... não estava certo. A pele, que era sempre de um tom mais escuro, estava clara como a neve, e seus olhos estavam fechados com tanta força que os traços distorciam-se.

Havia sangue na boca, manchando os lábios de vermelho. Sangue... estava saindo da boca.

Adrian começou a arfar, os punhos fecharam-se, o suor escorria pelo corpo inteiro.

– Você vai ficar bem, Eddie. Vai ficar...

– Se estenda um pouco, por favor – disse Jim. – Sei que dói demais, mas temos que ver.

–... tudo bem. Vai ficar tudo bem...

– Ai, merda – Jim sussurrou.

Ai... merda... era isso mesmo. O sangue não só manchava ou escorria de onde Eddie segurava... saía em fluxos.

Jim arrancou seu casaco de couro molhado, amassou-o e tirou do caminho as mãos de Eddie, escorregadias, brilhantes e vermelhas de sangue. Mas congelou em seguida.

De alguma maneira, a faca daquele maluco penetrou no intestino de Eddie e foi puxada para a lateral, produzindo um buraco longo e profundo o suficiente para que uma boa parte das vísceras fosse exposta. Mas essa não era a pior parte: considerando a quantidade de sangue que saía do ferimento, era evidente que uma veia importante ou uma artéria fora rompida. E isso iria matá-lo.

Jim estremeceu e colocou a jaqueta embolada sobre a ferida.

– Pode segurar isto para mim, Ed?

Eddie fez uma tentativa de erguer as mãos, mas conseguiu movê-las apenas um centímetro ou dois.

Jim olhou para cima.

– Ele pode morrer?

Adrian balançou a cabeça enquanto sentia as pernas ficarem dormentes.

– Eu não sei.

Mentira. Sabia a resposta. Só não conseguia dizer.

– Maldição – Jim inclinou-se em direção ao rosto de Eddie. – Cara, tem alguma coisa que pode me dizer?

Adrian caiu de joelhos. Em seguida, pegando a mão de seu melhor amigo, ficou horrorizado com o quanto estava fria. Fria e molhada por conta do sangue e da chuva.

– Eddie... Eddie, olhe para mim – Jim falava.

Aquilo não estava certo. O combatente heroico, o guerreiro que percorrera séculos, não poderia ser abatido por um louco com uma faca. Eddie era forte e destacava-se em tudo, glorioso, era alguém que poderia enfrentar um exército de escravos demoníacos sozinho. Não poderia ser assim... Não naquela noite.

Eddie soltou um suspiro ao apertar a mão de Adrian, seu corpo enorme tremia.

– Estou aqui... – disse Ad ao esfregar os olhos com as costas da mão livre. – Não vou a lugar algum. Não está sozinho...

Puta merda. Estamos perdendo Eddie.

E esse ponto era inexplicável. Como anjos, estavam e não estavam vivos, existiam e não eram constituídos de carne e osso ao mesmo tempo, eram imortais, mas capazes de perder a vida que lhes tinha sido concedida.

– Eddie, maldição... Não vá... Você consegue sair desta... – olhou para Jim. – Faça alguma coisa!

Jim soltou um palavrão e olhou em volta, caramba... Estavam na recepção de um banco e não num hospital. Além disso, o salvador não poderia pegar uma agulha e linha e começar a suturar, poderia?

Mas Jim fechou os olhos e acomodou-se no chão, cruzando as pernas no estilo indiano, conseguindo ficar completamente calmo. Quando Ad estava prestes a gritar dizendo que aquela não era hora de fazer meditação, o cara começou a brilhar: dos pés à cabeça, uma luz branca e pura começou a emanar de sua cabeça, corpo e mãos.

Um momento depois, o salvador estendeu-se... e colocou as mãos sobre o peito grande e volumoso de...

O tronco de Eddie arqueou-se para cima com força, como se tivesse recebido uma descarga elétrica daqueles desfibriladores cardíacos que os humanos usam e, em seguida, respirou fundo. Imediatamente, seus olhos vermelhos abriram-se... e voltaram-se para Adrian.

Sentindo-se uma menina por chorar, Ad limpou outra vez os olhos.

– Ei – teve que limpar a garganta. – Tem que ficar firme e enfrentar isto. Cure-se. Use o que Jim está lhe dando...

Eddie balançou a cabeça um pouco e abriu a boca. Tudo o que saiu foi um gemido.

–... firme. Vamos lá, cara, apenas...

– Preste... atenção... – Ad ficou imóvel, a voz de Eddie estava muito fraca. – Precisa... ficar... com Jim...

– Não. De jeito nenhum. Você não vai partir...

– Fique... com Jim... não... – lutou para respirar mais uma vez. – Fique com Jim.

– Não pode acabar assim! Sou eu quem deve ir primeiro...

Eddie ergueu o braço com esforço e colocou o dedo indicador sobre os lábios de Ad, para silenciá-lo.

– Seja... inteligente... ao menos uma vez... certo? Prometa.

Adrian começou a se mover para frente e para trás, os olhos inundados de lágrimas ao ponto de a visão ficar completamente turva.

– Prometa... por sua honra...

– Não. Não prometo nada. Dane-se! Não vai me deixar!

As pálpebras do anjo começaram a se fechar devagar.

– Eddie! Maldito! Não morra assim! Vai se foder!

Quando os ecos daquelas palavras desapareceram no ar, a respiração de Eddie ficou mais difícil enquanto abria a boca ao máximo. E, nos momentos terríveis e silenciosos que se seguiram, o coração de Ad começou a pulsar cada vez mais rápido, com a certeza de que o do seu amigo fazia o contrário e desacelerava.

Edward Lucifer Blackhawk morreu depois de respirar mais duas vezes.

Não foi a abrupta falta de movimentos nas costelas, ou a maneira como o corpo relaxou, ou o fato de a mão dele ter perdido a pouca força que ainda restava que confirmaram a morte. Foi o perfume de flores da primavera que flutuou pelo ar.

Adrian agarrou a frente da camiseta de Jim.

– Pode trazê-lo de volta. Traga-o de volta, pelo amor de Deus, coloque suas... mãos... em cima dele...

Por alguma razão, Adrian não conseguiu mais falar depois disso. Em seguida, não conseguia mais enxergar. Ficou confuso por um momento, olhou em volta, os pensamentos estavam nublados, sentiu um pouco de asfixia.

Oh, espere.

Ele estava soluçando como uma menininha.

Nem sequer fingiu se importar com isso, agarrou Eddie ao redor do peito e embalou junto ao coração o anjo caído que sempre o acompanhara, séculos e séculos, em cada passo de seu caminho na terra e no purgatório. E, quando o segurou, parecia leve em seus braços, mesmo o tamanho do corpo sendo o mesmo de sempre.

A essência de Eddie havia partido.

Eddie enterrou o rosto no pescoço grosso e começou a balançar para trás e para frente, para trás e para frente... para trás e para frente...

– Não me deixe... não... oh, Deus, Eddie...

Adrian não estava certo de quantos minutos ou horas se passaram, mas percebeu, mesmo naquele estado de perturbação, que algo havia mudado.

Olhando sobre a cabeça de Eddie, viu o salvador... E teve que piscar algumas vezes para se certificar de que a imagem fazia sentido.

Jim Heron estava agachado, dentes expostos, o corpo enorme muito tenso. Os olhos estavam fixos em Adrian e Eddie, e um brilho negro profano emanava deles, a luz maligna irradiava pelo ar perfumado.

Eram vingança, ira e raiva subindo e espalhando-se. Era a promessa do inferno na Terra. Era tudo o que dizia respeito a Devina... na forma e nas feições do salvador. Foi estranho, mas Adrian sentiu-se aliviado com a visão. Calmo. Centrado. Não estava sozinho ao sentir-se violado, roubado. Não estava sozinho ao olhar para o futuro.

O caminho que ele seguiria para abater aquele demônio teria dois pares de pegadas, não apenas um...

Naquele momento, Jim abriu a boca e soltou um rugido mais alto que o som de um avião decolando seguido por uma grande explosão: As janelas de vidro da recepção do banco, em toda sua imensa extensão, explodiram de uma só vez, banhando a calçada como se fosse uma nevasca de pequenos cacos de vidro.


CAPÍTULO 25

 

No céu, Nigel deu um salto em seu leito de cetim e seda. Não estava em repouso – não conseguia fechar os olhos sem Colin ao seu lado –, mas, acordado ou dormindo, a visão que lhe sobreveio iria deixá-lo chocado e em estado de alerta seja lá quais fossem as circunstâncias.

Com mãos trêmulas, vestiu um roupão para cobrir sua nudez. Edward... Oh, caro e estoico Edward. Havia partido. Naquele exato momento, na Terra. Uma terrível reviravolta nos acontecimentos. Uma desestabilização horrível.

Como isso foi acontecer?

Na verdade, a ideia de que um dos dois guerreiros fosse abatido não fora contemplada em nenhum de seus planos: enviou os anjos caídos para ajudar Jim, pois eram fortes e flexíveis e muito capacitados a defenderem o bem que tantas vezes subestimaram. E, dentre os dois, Eddie deveria sobreviver: era o prudente, o inteligente, aquele que equilibrava seu parceiro elétrico, eclético e fora de controle.

Mas o destino havia surpreendido a todos.

– Maldição, maldição... maldição...

Não tinha como trazer Edward de volta – ao menos não de alguma maneira que Nigel pudesse atuar: ressurreição era algo que só cabia ao Criador, e a última vez que um anjo havia retornado fora... nunca.

Nigel secou o rosto com um lenço de linho. Havia apostado tanto em Edward e Adrian, jogando-os como dados e, agora, Adrian, o volátil, sofreria um naufrágio sem sua bússola, sua âncora, seu capitão. E Jim, que já estava distraído, estava pior que sozinho. Ele teria que cuidar do outro anjo. Era uma tragédia.

E uma grande manobra da parte do demônio – afinal, como aquilo havia acontecido? Edward estava sempre alerta. O que o teria distraído de seus instintos?

Aproximando-se do balcão de chá, Nigel começou a aquecer a chaleira. Suas mãos tremiam ao pensar sobre o que havia feito. Edward vivia seguro naquele local incomparável que ele supervisionava – estava esperando para ser útil em alguma situação, é verdade, e emocionado por ser perdoado por quebrar as regras e salvar Adrian há muitos anos. Mas ainda assim. Um bom homem. Agora, havia partido. Não era para ser assim.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Apoiando as mãos sobre a tampa de mármore da cômoda, não conseguia suportar o peso em seu coração. Se não tivesse tirado os dois de seus respectivos purgatórios, isso não teria acontecido. Tinha sido tão arrogante com a certeza de ter feito a escolha certa.

O que foi que eu fiz...?

Parado ali, sem ninguém diante ou atrás dele, sozinho com seus maus pensamentos e com o peso de seus atos dentro do peito, pensou em Adrian. Sozinho. Com dor. Na guerra.

Enquanto Nigel esforçava-se para respirar, mesmo sem precisar disso, havia apenas uma entidade a quem recorrer naquela solidão terrível. E o fato de Colin não estar lá e, mais triste ainda, o fato de que ele não podia se aproximar do arcanjo fizeram-no chorar pela situação de Adrian. Perder sua outra metade era pior que a morte. Era uma tortura, embora fosse um aprendizado...

Ao longo do que se poderia considerar seus dias e noites, na rotação interminável de suas refeições de faz de conta e de seus jogos de críquete falsos, dentro daquela estrutura tão bem construída que arquitetou para manter a si mesmo e seus arcanjos sãos ao longo da eternidade em que existiam, Nigel nunca influenciara a vontade de outra pessoa. Não era de sua natureza fazê-lo. Além disso, Colin fazia parte dele. Ao contrário de Adrian, poderia falar com sua outra metade, buscar socorro em meio àquele terror, solidão e tristeza.

Adrian nunca mais teria acesso àquilo de novo: a não ser por um milagre impossível de acontecer, estaria cada vez mais longe da outra metade de si.

Não é tão poderoso quanto imagina, Nigel.

Quando o apito estridente da chaleira irrompeu ao longo do local, Nigel deixou que a água continuasse fervendo, seus pés moveram-se em direção à saída de seus aposentos particulares e ele cruzou o chão com passos rápidos, vestindo um roupão.

Influenciando os ciclos que comandava, a noite caiu como uma capa de veludo sobre a paisagem. Mais à frente, as chamas das tochas começaram a queimar ao longo das muralhas e das torres do castelo produzindo um brilho cintilante que se estendeu pelo gramado.

Edward estava perdido. Colin estava ali. Só havia muito gramado entre eles.

Seguindo pelas paredes da mansão, aproximou-se do canto mais a oeste da fortaleza e virou à direita. Ao longe, a tenda de Colin surgia construída contra a linha de árvores, a estrutura do local era feita de lonas pesadas sustentadas por grandes hastes. Ao contrário do santuário privado de Nigel, era pequeno e modesto. Nada de sedas. Nada de cetins. Nada de apetrechos de luxo: o arcanjo banhava-se no rio que corria atrás do local e não dormia sobre uma cama, mas sobre um leito rústico e pobre. Nada de cobertores. Nada de travesseiros. Apenas livros para se divertir.

Por tudo isso, Nigel insistia que dividissem seus aposentos; o outro arcanjo praticamente havia se mudado para lá há muitos séculos.

Na verdade, quando chegou à tenda, Nigel percebeu que nunca havia passado uma “noite” ali. Sempre era Colin quem se locomovia.

Quando foi a última vez que estive aqui? – Nigel pensou.

Não havia batentes de porta para bater.

– Colin? – disse calmamente.

Quando não houve resposta, repetiu o nome. E fez isso mais uma vez.

Parecia que todas as luzes estavam apagadas; então, convocou uma lanterna na palma de uma de suas mãos, produzindo um pouco de iluminação diante de seus olhos. Estendendo um dos braços, empurrou a lona para um dos lados e afastou-a, a iluminação penetrou no interior escuro.

Vazio.

De fato, se algum ser desavisado entrasse ali, poderia achar que havia acontecido um assalto. Havia tão pouca coisa ali dentro. Sim, sim... apenas um leito simples com um baú posicionado aos pés do objeto. Alguns livros encadernados em couro. Uma lamparina a óleo. No chão, não havia sequer um mero tapete, apenas a mesma grama do pátio externo.

Os quartos de Bertie e Byron, constituídos na outra extremidade da muralha, eram tão luxuosos quanto o de Nigel, apenas decorados de acordo com as preferências de cada um. E Colin poderia ter mais do que aquilo. Colin poderia ter o mundo.

Virando-se, Nigel saiu da tenda e seguiu até o riacho. Havia toalhas penduradas em galhos de árvores e marcas de um par de pegadas sobre a areia.

– Colin... – sussurrou.

O som triste da própria voz foi o que o alertou para a realidade.

De repente, o desespero atingiu-o e fez com que repensasse sobre a decisão de ter ido até ali mesmo em meio à realidade da guerra: pensou em Jim, em Adrian e em suas fraquezas. Fraquezas que estavam sendo expostas e exploradas pelo outro lado.

Ele mesmo era fraco em relação a Colin. O que significava que também possuía uma brecha desprotegida. Com rapidez, Nigel virou-se e começou a correr, seus passos levando-o na noite enquanto puxava o roupão para se cobrir melhor. Não se desviaria do caminho de seus aposentos outra vez.

Não era Adrian. Não se perderia... como Adrian perdera-se. E não se comprometeria com o que sentia como aconteceu com Jim. O dever exigia dele um grande isolamento e muita força. O céu não merecia um esforço menor.


CAPÍTULO 26

 

Na manhã seguinte, Veck sentou-se em sua mesa e olhou para Bails sobre a caneca da cafeteria. O cara mastigava em ritmo acelerado, o rosto animado, as mãos movendo-se em círculos.

–... toda a maldita coisa explodiu – Bails parou e acenou na frente do rosto de Veck. – Oi! Está me ouvindo?

– Desculpe, o quê?

– O primeiro andar inteiro do Banco de Caldwell, na rua do Comércio com a 13, está no meio da rua.

Veck balançou a cabeça para voltar a se concentrar.

– O que quer dizer, no meio da rua?

– Todos os vidros das janelas da recepção explodiram. Não restou nada além das estruturas metálicas. Aconteceu um pouco antes da meia-noite.

– Foi uma bomba?

– A bomba mais estranha que já se viu. Não há danos na recepção... bem, algumas cadeiras da sala de espera foram removidas, mas não há evidências de detonação. Não há um raio de impacto. Há uma mancha estranha no piso do saguão formada pelo que parece ser esmalte, e o local cheirava a uma floricultura. Mas, além disso, nada.

– Os policiais que investigaram a cena assistiram às fitas de segurança?

– Sim, e adivinhe só? O sistema apagou por volta das 23h e continuou assim.

Veck franziu a testa.

– Simplesmente apagou?

– Apagou. Mesmo sem nenhuma avaria no fornecimento de energia elétrica ter sido relatada no bairro. Parece que as luzes da recepção foram apagadas também. Mas nenhum outro dispositivo ou sistema foi afetado no local, incluindo o alarme e a rede de computadores. É muito estranho. Como apenas os registros de vídeo são perdidos e nada mais?

A nuca de Veck formigou. Pelo amor de Deus, onde foi que ouvira aquilo antes...?

– Sim, é estranho.

– É a única palavra para definir isso.

Bails inclinou a cabeça, os olhos estreitaram-se.

– Ei, você está bem?

Veck voltou-se para seu computador e acessou seu e-mail.

– Nunca estive melhor.

– Se você diz – houve uma pausa. – Acho que sua parceira está entrevistando Kroner.

Veck virou-se bruscamente.

– Está?

– Não sabia? – Bails encolheu os ombros. – De la Cruz me mandou uma mensagem ontem à noite. Eu queria voltar lá hoje, mas é a vez do Departamento de Assuntos Internos lidar com ele... Sem dúvida para envolver você com um belo laço dizendo “inocente”.

Maldição. A ideia de Reilly perto daquele monstro fez seu sangue congelar.

– Quando?

– Agora, eu acho.

E, como pode imaginar, o primeiro instinto dele seria sair correndo até o Hospital São Francisco. Claro, esta deve ter sido a razão pela qual ela nem sequer passou ali para comentar onde estava indo.

– Bem, te vejo depois. Preciso voltar ao trabalho.

Por instinto, Veck pegou o celular e verificou as mensagens. Havia uma mensagem de texto de Reilly que não ouvira chegar: “Vou me atrasar hoje. R.”

– Que foda.

Olhou ao redor, como se o gesto pudesse ajudá-lo de alguma maneira. Em seguida, tentou se concentrar na tela do computador à frente dele.

Maldição... sem chance de conseguir continuar sentado naquela cadeira enquanto ela entrevistava um louco.

E, no entanto... era uma oportunidade, não?

Pegou o café e atravessou o Departamento de Homicídios, virou à esquerda e dirigiu-se à saída de emergência. Subiu dois degraus de cada vez na escada de concreto, passou pela porta de aço e seguiu até a sala de provas.

Ali, identificou-se à recepcionista, conversou um pouco – como se tudo o que precisasse lá dentro fosse questão rotineira – e, depois de mais um pouco de conversa jogada fora, estava em meio às estantes.

Como policial de patrulhas em Manhattan, passou um bom tempo manipulando evidências como embalagens com drogas, celulares e dinheiro apreendido – coisas usadas em crimes diversos. Agora que estava no Departamento de Homicídios, lidava mais com roupas ensanguentadas, armas e objetos pessoais – coisas que foram deixadas para trás.

Passando pelas longas fileiras de estantes, concentrou sua atenção na parte de trás da instalação, onde estavam as mesas.

– Oi, Joe – disse, ao aproximar-se da parede de 1,8 metros de altura.

O investigador de cenas criminais veterano ergueu o olhar de um microscópio.

– Oi.

– Como vai?

– Trabalhando muito.

Quando o cara levantou os braços sobre a cabeça e espreguiçou-se, Veck encostou-se contra a estação de trabalho, todo casual.

– Como você aguenta?

– O turno da noite é mais fácil que o diurno. Claro, nesta última semana, os dois estão uma droga.

– Ainda falta muito para examinarem tudo?

– Talvez umas 48 horas. Estamos em três. E não paramos em momento algum, com exceção da noite passada.

Veck olhou a coleção de coisas que haviam sido catalogadas e seladas, bem como a bandeja enorme com itens já registrados, mas que ainda precisavam ser examinados e devidamente embalados.

O investigador usou uma pinça para colocar uma amarra de cabelo debaixo da lente de aumento. Depois de colocar o elástico preto numa embalagem plástica, pegou um adesivo amarelo fosforescente longo e fino e colou sobre a abertura. Em seguida, fez uma anotação com uma caneta azul, colocando suas iniciais logo abaixo e digitou algo no teclado do notebook. O passo final foi passar o código de barras da embalagem sobre um leitor. O sinal sonoro produzido significava que agora o objeto estava oficialmente no sistema.

Veck tomou um gole de seu café.

– Bem, estou trabalhando num caso de pessoa desaparecida. Uma jovem.

– Quer dar uma olhada no que temos?

– Tem problema?

– Não. Apenas não leve nada daqui.

Veck começou pelo final das estantes que foram instaladas ali em caráter temporário. Nenhum objeto daquela coleção tinha um local exato para ficar ainda, pois todos, desde os oficiais de polícia até o FBI, examinariam tudo.

Pulou os frascos de amostra de pele, pois Cecília não tinha nenhuma tatuagem, e concentrou-se na variedade de anéis, pulseiras, presilhas, colares...

Onde você está, Sissy? – pensou.

Abaixando-se, pegou um saco plástico transparente selado com a assinatura de um dos investigadores. Dentro, havia uma pulseira de couro manchada e com um pingente em forma de crânio. Não era o estilo de Cecília.

Continuou e pegou uma argola prateada já registrada. Em todas as fotos na casa dos Barten, a garota usava acessórios dourados.

Onde você está, Sissy... onde diabos você está?

No Hospital São Francisco, Reilly estava concentrada ao caminhar ao longo de um dos milhares de corredores. Enquanto andava, passou por médicos com jalecos brancos, atendentes de uniformes azuis, enfermeiras de verde e pacientes e familiares vestidos com roupas casuais.

A unidade que procurava ficava à direita, e separou o distintivo enquanto aproximava-se do balcão das enfermeiras. Depois de uma rápida conversa, foi orientada para seguir em frente e virar à esquerda. Quando virou na última esquina, o guarda próximo à cela de vidro levantou-se.

– Oficial Reilly? – disse.

– Sou eu – mostrou o distintivo. – Como ele está?

O homem balançou a cabeça.

– Acabou de tomar café da manhã – havia um evidente tom de desaprovação na resposta, como se o guarda desejasse que o suspeito fizesse uma greve de fome. Ou talvez que morresse de fome. – Acho que vão tirá-lo daqui logo, pois ele está indo muito bem. Quer que eu entre com a senhora?

Reilly sorriu enquanto guardava o distintivo e tirava um pequeno bloco de notas.

– Posso lidar com ele.

O oficial de segurança pareceu medi-la, mas assentiu com a cabeça em seguida.

– Sim, parece que sim.

– Não se trata apenas de aparências. Confie em mim.

Ela abriu a porta de vidro, empurrou a cortina verde-clara... Congelou com a visão de uma enfermeira inclinando-se sobre Kroner.

– Oh, desculpe...

A morena olhou para ela e sorriu.

– Por favor, entre, oficial Reilly.

Quando Reilly olhou aqueles olhos de um negro tão intenso que pareciam não possuir íris, sentiu uma onda de terror irracional: cada instinto em seu corpo dizia para correr. O mais rápido e para o local mais distante possível.

Só que Kroner era o único com quem precisava ser cautelosa – não uma mulher que estava apenas fazendo seu trabalho.

– Ah... acho melhor voltar depois – Reilly disse.

– Não – a enfermeira sorriu outra vez, revelando dentes brancos perfeitos. – Ele está pronto para você.

– Ainda assim, vou esperar até que você...

– Fique. Estou feliz em deixar os dois juntos.

Reilly franziu a testa, pensando: Como assim? – como se os dois estivessem namorando?

A enfermeira voltou-se para Kroner, proferiu algo em voz baixa e acariciou a mão dele de uma maneira que deixou Reilly ligeiramente enjoada. Em seguida, a mulher aproximou-se, ficando mais e mais bonita – ficou tão resplandecente que era de se perguntar por que não seguia a carreira de modelo.

Ainda assim, Reilly só queria ficar bem longe dela. Não fazia sentido.

A enfermeira parou na porta e sorriu mais uma vez.

– Fique o tempo que quiser. Ele é tudo o que você precisa.

Então, ela se foi.

Reilly piscou um pouco para entender. Mais um pouco. Então, inclinou o corpo para fora da porta e olhou ao redor.

O guarda ergueu o olhar de seu assento.

– Você está bem?

Com exceção de um carrinho, uma caixa com rodinhas cheia de roupa suja e uma maca, o corredor estava vazio, nada, nem ninguém. Será que a enfermeira teria entrado em outro quarto? Tinha de ser. Havia outras unidades ao redor do local em que Kroner estava.

– Sim, tudo bem.

Voltando para dentro, Reilly recompôs-se e concentrou-se no paciente, encarando um homem que havia matado pelo menos uma dúzia de jovens mulheres em todo o país.

Que olhos brilhantes – foi seu primeiro pensamento. Olhos brilhantes e espertos, como os que se vê em ratos esfomeados.

Segundo pensamento?

Mas você é tão pequeno. Difícil de acreditar que consegue carregar uma sacola cheia de compras, quanto mais dominar mulheres jovens e saudáveis. Provavelmente, usa drogas para ajudar a incapacitar as vítimas, impedindo fuga e barulho. Ao menos num primeiro momento.

Seu pensamento final foi...

Cara, quanto curativo.

Estava quase mumificado, com tiras de gaze em volta do crânio e do pescoço e bandagens acolchoadas nas bochechas e no queixo. Ainda assim, embora parecesse um trabalho do doutor Frankenstein, estava alerta e a cor de sua pele estava radiante.


Na verdade, nem parecia normal. Será que estava com febre?

Quando aproximou-se da cama, ergueu o distintivo.

– Sou a oficial Reilly, do Departamento de Polícia de Caldwell. Gostaria de fazer algumas perguntas. Soube que renunciou ao seu direito de ter a presença de um advogado.

– Gostaria de se sentar? – a voz de Kroner era suave, o tom, respeitoso. – Tenho uma cadeira no quarto – como se estivesse em sua sala de estar ou algo assim.

– Obrigada – ela puxou a cadeira de plástico perto da cabeceira, aproximando-se dele, mas não muito. – Quero conversar com você sobre aquela noite, quando foi atacado.

– Um detetive já fez isso. Ontem.

– Sei. Mas estou dando seguimento.

– Disse-lhe o que me lembrava.

– Bem, importa-se de repetir para mim?

– Nem um pouco – ergueu-se na cama com fraqueza e, em seguida, olhou para Reilly como se estivesse esperando uma oferta de ajuda. Quando não houve nada da parte dela, pigarreou. – Eu estava na floresta. Caminhando lentamente. Através dos bosques...

Reilly não acreditou no consentimento e na receptividade dele em contar tudo aquilo nem por um instante. Alguém como Kroner? Sem dúvida, poderia transformar o discurso para que acreditassem que ele fosse a vítima. É assim que psicopatas agem. Poderia convencer a todos, por um tempo, e até a si mesmo de que era uma pessoa normal, como todas as outras: com características boas e más – nas quais o “mau” seria apenas sonegar impostos ou ultrapassar os limites de velocidade numa estrada ou talvez falar mal da sogra pelas costas. Mas assassinar moças? Nunca. No entanto, não se conseguia vestir máscaras para sempre.

– E para onde estava indo? – ela perguntou.

As pálpebras de Kroner abaixaram.

– Você sabe.

– Por que não diz você?

– Para o Monroe Motel & Suítes – houve uma pausa, os lábios ficaram tensos. – Eu queria ir até lá. Fui roubado, entende?

– Sua coleção?

Houve uma longa pausa.

– Sim – quando ele franziu a testa, disfarçou a expressão do olhar ao observar as mãos. – Eu estava na floresta e alguma coisa se aproximou de mim. Um animal. Veio do nada. Tentei lutar contra a coisa, mas era forte demais...

Que tal a sensação, seu bastardo? – ela pensou.

– Havia um homem lá... Ele viu o que aconteceu. Ele pode lhe dizer. Consegui distingui-lo em algumas fotos que me deram ontem.

– O que aconteceu com o homem?

– Ele tentou me ajudar – franziu a testa mais ainda. – Ligou para a emergência... não me lembro... de muita coisa... Além disso... espere um minuto – os olhos redondos ficaram astutos. – Você esteve lá, não foi?

– Tem alguma coisa que me possa dizer sobre o animal?

– Você esteve lá. Viu quando me colocaram na ambulância.

– Se pudesse continuar a descrever o animal...

– E você o observava também – o “senhor bonzinho e normal” sorriu e pareceu adormecer um pouco, um estranho esquema mental surgiu em seus olhos. – Você estava observando o homem que esteve comigo. Acha que foi ele quem fez isso?

– O animal, por favor. É o que me interessa.

– Não é sóóó isso que te interessa – o só foi pronunciado com uma cadência monótona. – Mas tudo bem. Não tem problema desejar coisas.

– Que tipo de animal acha que foi?

– Um leão, um tigre, um urso... oh, Deus.

– Isto não é brincadeira, senhor Kroner. Precisamos saber se temos um problema de segurança pública.

Pelo que havia estudado sobre técnicas de entrevista, imaginou ter dado uma abertura para que ele pensasse ser um herói. Às vezes, suspeitos como ele entravam no jogo na esperança de se insinuarem ou tentavam ganhar uma confiança da qual poderiam se aproveitar mais tarde.

Kroner deixou as pálpebras caírem.

– Oh, acho que você cuida muito bem da segurança pública. Não é mesmo?

Sim, isso se o cara não fugisse do hospital e se o sistema jogasse-o na prisão para o resto da vida.

– Devia ter presas – ela disse.

– Sim... – tocou o rosto arruinado. – Presas... e era grande. Seja lá o que for... era avassalador. Ainda não sei por que sobrevivi... mas o homem, ele me ajudou. É um velho amigo...

Reilly esforçou-se para que sua expressão não mudasse em nada.

– Velho amigo? Você o conhece?

– Os iguais se reconhecem.

Um arrepio passou pela coluna de Reilly, Kroner ergueu uma das mãos e impediu-a de voltar a falar.

– Espere... preciso te dizer algo.

– O que é?

As bandagens no rosto contorceram-se como se ele estivesse fazendo uma careta e a mão subiu até a cabeça.

– Preciso te dizer...

Considerando que ele não a conhecia, era impossível dizer algo importante.

– Senhor Kroner...

– Ela tinha cabelos longos e loiros. Lisos, cabelos longos... – ele respirou ofegante e apalpou as têmporas como se estivesse com dor. – Estava presa pelo cabelo... aqueles cabelos loiros cheios de sangue. Ela morreu na banheira... mas não é onde seu corpo está agora – a cabeça de Kroner erguia-se e voltava a cair no travesseiro. – Vá até a pedreira. Ela está lá. Na caverna... Você vai precisar entrar bem fundo para encontrar...

O coração de Reilly começou a bater forte. O interrogatório deveria se limitar à noite do ataque, mas não tinha como não tentar entender aquilo. E também não havia razão alguma para que Kroner soubesse que ela estava trabalhando no caso de Cecília Barten.

– De quem está falando?

Kroner deixou cair o braço e, de repente, a cor de sua pele passou a exibir um aspecto cinzento.

– A garota do mercado. Precisava te dizer isso... Ela quer que eu te diga. É tudo o que sei...

De repente, começou a tremer, a convulsão em seu tronco aumentou tanto que começou a puxar os travesseiros e revirar os olhos.

Reilly avançou e acionou o botão de emergência num interfone.

– Precisamos de ajuda aqui!

No auge do ataque, Kroner pegou o pulso dela com força, os olhos exibiam um brilho profano.

– Diga a ele que ela sofreu... Ele precisa saber... Ela sofreu...


CAPÍTULO 27

 

Na delegacia, na sala de provas, Veck examinou tudo o que pertencia à coleção de Kroner, arquivando fotos mentais dos objetos. Infelizmente, não havia nada dentre as joias ou outros objetos ali parecido com o que observou nas fotografias na casa dos Barten.

Recuou e cruzou os braços sobre o peito.

– Droga.

– Ainda tem mais – o investigador disse, sem tirar os olhos do que estava fazendo, e afastou uma cortina que cobria tudo o que ainda não havia sido catalogado.

Veck tomou um gole de seu café frio, aproximou-se e inclinou-se sobre os objetos. Sem tocar em nada, é claro. Estava tudo organizado lado a lado. Mais joias... Mais elásticos de cabelo com fios pretos, castanhos, cor-de-rosa...

Seu telefone tocou e ele virou-se para atender.

– DelVecchio. Sim, sim... uh-hum... sim, sou eu...

Era o Departamento de Recursos Humanos, verificando seus dados antes que enviassem o primeiro salário após a transferência de unidade. Enquanto respondia, pensou, sem ofensa, que tinha coisa melhor para fazer.

Quando finalmente terminou, voltou-se para a bandeja. Tinha tanta certeza de que Sissy fora vítima de Kroner. Maldição...

Em meio às luvas de látex do investigador, surgiu um brilho dourado quando apoiou alguma coisa sob o microscópio.

Era um brinco. Um brinco pequeno em forma de pássaro. Como uma pomba ou um pardal.

– Posso ver isso? – disse Veck com voz rouca.

Mas, mesmo sem um olhar mais atento, reconheceu o que era... Tinha visto aquilo na estante dos Barten, naquela foto que tiraram de Sissy sem que ela soubesse. Estava usando um brinco igual àquele. Talvez fosse exatamente o mesmo.

O telefone tocou novamente assim que o investigador soltou a prova. Quando Veck olhou para a tela e viu que era Reilly, aceitou a ligação imediatamente.

– Não vai acreditar... Estou olhando para um dos brincos de Sissy Barten.

– Na sessão de provas dedicada a Kroner – foi uma afirmação, não uma pergunta.

Veck franziu a testa. Algo soava errado na voz dela.

– Você está bem? O que aconteceu com Kroner?

Houve uma breve pausa.

– Eu...

Veck afastou-se do investigador, indo em direção a um dos cantos da sala e virou de costas para o cara. Baixando o volume da voz, disse: – O que aconteceu?

– Acho que ele a matou. Sissy. Ele... a matou.

A mão de Veck apertou o celular com força.

– O que ele disse?

– Ele a identificou pelo cabelo e pelo mercado.

– Levou alguma foto dela? Podemos ter um resultado efetivo de que...

– Ele teve uma crise no meio do interrogatório. Estou fora da UTI agora e os médicos estão cuidando dele. Não sabem dizer se vão conseguir salvá-lo desta vez.

– Ele disse mais alguma coisa?

– O corpo está em algum lugar na pedreira. De acordo com ele.

– Vamos...

– Já liguei para De la Cruz. Está indo até lá com Bails...

– Estou saindo daqui agora mesmo.

– Veck! – ela exclamou. – Esse caso não está mais relacionado com o Departamento de Pessoas Desaparecidas. Você e eu estamos fora dessa.

– Não estamos, não. Ela ainda é minha até encontrarem o corpo. Me encontre lá e pode me dar uma suspensão, se quiser. Ou melhor, pode dar uma mãozinha com as pedras.

Houve uma pausa bem longa.

– Você está me colocando numa posição terrível.

O arrependimento fez com que apertasse o maxilar.

– Parece que eu me destaco nisso quando se trata de você. Mas tenho que fazer isso... Prometo não ser um idiota.

– Você se destaca nisso, também.

– Está certo. Olha, não posso sair dessa até saber o que aconteceu. Não vou enfrentar Kroner se encontrarmos alguma coisa e não vou tocar em nada, mas tenho que fazer isso.

Outra pausa interminável. Então: – Tudo bem. Estou a caminho. Mas se De la Cruz nos expulsar de lá, não vamos discutir com ele, está claro?

– Como água cristalina – Veck fez uma prece de agradecimento. E então... – Ele disse mais alguma coisa? Kroner?

Houve um ruído, como se ela estivesse trocando o telefone de uma das mãos para outra.

– Disse que conhecia você.

– O quê?

– Kroner disse que conhecia você.

– Que grande mentira. Nunca o encontrei antes na minha vida – quando não se ouviu qualquer reação da parte dela, ele soltou um palavrão. – Reilly, eu juro. Não conheço o cara.

– Acredito em você.

– Não parece – e, por alguma razão, a opinião dela não era apenas importante, era crucial. – Vou fazer o teste do polígrafo.

A respiração dela soou exausta.

– Talvez ele só quis me confundir. É difícil saber.

– O que ele disse exatamente?

– Algo como “os iguais se reconhecem”.

Veck congelou.

– Não sou Kroner.

– Eu sei. Bem, me deixe ir para o carro e começar a dirigir. A pedreira é do outro lado da cidade e só vamos entrar se De la Cruz permitir. Vejo você em meia hora.

Quando desligou, o investigador olhou por cima do microscópio.

– Achou o que precisava?

– Acho que sim. Entre em contato comigo se descobrir alguma coisa sobre esse brinco. Tenho a impressão de que é da minha garota desaparecida.

– Sem problema.

– Onde é a pedreira?

– Siga na Northway por uns trinta quilômetros. Não sei a saída exata, mas vai encontrar placas. Não tem como errar, haverá mais sinalizações que o levarão até lá.

– Obrigado, cara.

– É um bom lugar para esconder coisas, se é que me entende.

– Entendo. Infelizmente.

Cinco minutos depois, Veck estava em sua moto rugindo em direção à interestadual. Não precisava acionar De la Cruz. Discutiriam pessoalmente quando chegasse lá.

A saída em questão apareceu quinze minutos depois e havia uma placa na qual se lia “pedreira thomas greenfield”. Foi fácil seguir a sinalização e, alguns minutos depois, virou e entrou numa pequena estrada de terra cercada por grandes árvores. Sem dúvida, formavam um romântico passeio no verão. Naquele momento, pareciam braços esqueléticos arranhando-se uns aos outros.

Diminuiu a velocidade ao virar à direita e começou a subir uma ladeira muito íngreme. O vento, frio e intenso, chicoteava seu rosto, e as nuvens pareciam se aproximar como se tentassem sufocar o chão. Começou a pensar que estava perdido quando chegou ao topo, mas lá estava ela.

Pedreira? Parecia mais o Grand Canyon.

Membros do Departamento de Polícia de Caldwell e os bombeiros já estavam ali: havia dois veículos de busca e um de resgate. Algumas viaturas. Um carro sem identificação que deveria ser de De la Cruz. Uma unidade com cães farejadores.

Veck estacionou a certa distância e não tentou disfarçar sua chegada ao aproximar-se do amontoado de homens, mulheres e cachorros.

De la Cruz saiu do meio deles e caminhou até Veck. A expressão de tristeza constante do detetive não havia mudado em nada. Porém, não devia estar surpreso com tudo aquilo, e a chegada de Veck não era uma boa notícia.

– Que coisa encontrá-lo aqui – De la Cruz murmurou, estendendo a mão para um aperto.

– Este lugar é enorme – as mãos encontraram-se em uma batida. – Com certeza poderia ajudar em alguma coisa.

A pedreira devia ter mais de um quilômetro de diâmetro e mais outro de profundidade – e o formato era mais consequência da formação natural que da operação mineradora. Três quartos de suas paredes eram quedas acentuadas, mas uma delas mais ao sul exibia um declive desagradável marcado por escavações rochosas desalinhadas, havia também vários buracos negros que deviam ser cavernas.

– Então, vai me deixar trabalhar? – Veck perguntou.

– Onde está sua parceira?

– A caminho.

De la Cruz olhou para o grupo de colegas.

– Estamos com uma equipe reduzida, pois não queremos chamar atenção. Se a imprensa ficar sabendo disto, teremos um dia longo e cheio de curiosos.

– Então, isto é um sim?

De la Cruz o encarou bem dentro de seus olhos.

– Não toque em porcaria nenhuma e não saia daqui enquanto Reilly não chegar.

– Está certo, detetive.

– Vamos lá... Pode se juntar à fase de planejamento estratégico.

A antiga casa de Jim não era tão antiga nem exatamente sua.

Assim que chegara a Caldwell, havia alugado a garagem e o estúdio no segundo andar de um cara que se vestia com terno de mordomo. Quando saiu há mais ou menos uma semana, achou que seria pela última vez: seu antigo chefe, o maldito Matthias, perseguia-o, e ele precisava ir até Boston para travar a próxima batalha com Devina.

Mas, cara, o que tinha acontecido de acordo com o planejado? Matthias não estava mais em cena, Jim voltara a Caldwell e ele e Adrian precisavam de um lugar seguro para ficar.

Olá, velhos fantasmas, digamos assim... E era hora de rezar para que o proprietário não tivesse alugado para outra pessoa e as chaves tivessem sido deixadas ali.

Dirigindo sua caminhonete na longa estrada que levava até o local, verificou se Adrian ainda o seguia com aquela moto – sim, o cara continuava a segui-lo. Juntos, passaram pela casa vazia, mas muito bem cuidada pelo proprietário, e continuaram pela pista, atravessando um campo que teria mais ou menos uns vinte acres. A garagem ficava bem nos fundos da propriedade e, provavelmente, tinha sido usada para guardar equipamentos agrícolas e cortadores de grama, com um zelador morando no andar de cima. Contudo, quando alugou, teve a impressão de que estava vazia há um tempo.

Parando o carro em frente às grandes portas duplas, saiu, pegou uma das alças e jogou seu peso sobre o objeto, imaginando se o lugar estaria...

O painel retumbou ao abrir, revelando um chão de cimento muito limpo e um teto rústico com altura suficiente para estacionar um trailer de carregar cavalos.

Jim voltou a se sentar atrás do volante e deixou o motor levá-lo devagar para dentro. Adrian estava bem atrás dele, estacionou e fechou a porta. Quando a luz cinzenta do dia foi bloqueada, Jim desligou o motor, abriu a porta...

O aroma fresco e suave de flores invadiu o ar. Ao ponto de quase vomitar, mesmo sendo um perfume indiscutivelmente agradável.

Ele e Adrian não disseram uma palavra ao se posicionarem um de cada lado da parte de trás da caminhonete. A lona que compraram no mercado há uma hora estava presa por alguns cabos elásticos e começaram a libertar os ganchos e as faixas um a um. Ao enrolarem a lona grossa e azul, revelaram o corpo, com o qual foram muito cuidadosos, envolto num lençol.

Deixaram a recepção do banco não muito depois de a fúria de Jim ter explodido todas as janelas do local e, em seguida, levaram Eddie com eles – o que não foi difícil, ao menos não fisicamente. Depois da morte, o corpo ficou leve como uma pluma, como se toda massa bruta tivesse desocupado a pele e os ossos. O que ficou para trás parecia ser apenas o esboço do que Eddie havia sido.

Jim não fazia ideia de onde ir, mas Cachorro apareceu no caminho... e guiou-os a um prédio abandonado de três andares.

Ao deixar Adrian e o animal velando seu morto, Jim voltou ao hotel, pegou tudo o que tinham e carregou a caminhonete. Quando voltou, estacionou numa garagem subterrânea a alguns quarteirões de distância e começou a pensar em várias maneiras de mudarem-se para um local mais seguro levando os outros veículos e motos que ainda estavam no estacionamento do hotel.

Porém, no final, apenas sentou-se e deu um tempo para Adrian – pois parecia que o cara estava prestes a quebrar ao meio.

Contudo, em dado momento, precisaram se mover e Jim decidiu que ir até aquele local era a melhor aposta que poderia fazer em curto prazo. E Adrian seguiu-o sem comentários, só que isso não era um bom sinal: era evidente que ainda estava entorpecido, mas aquilo não duraria muito tempo. Qual seria o outro extremo da situação? Era provável que a expressão “proporções bíblicas” fosse pouco para refletir sequer a metade do que aconteceria.

Jim destravou a abertura traseira e deixou-a cair.

– Você quer...

Adrian adiantou-se e subiu, posicionando-se de maneira hábil ao lado de Eddie. Pegando os restos mortais, saiu da caminhonete e andou até a porta lateral.

– Pode abrir aqui para nós?

– Sim, com certeza.

Com Cachorro liderando o caminho outra vez, Jim seguiu-o e abriu a porta de saída do galpão; em seguida, os três dirigiram-se às escadas externas. Usando um canivete no topo, abriu a maçaneta em questão de segundos, e ficou de lado enquanto Adrian entrava.

A cama de solteiro estava do mesmo jeito que Jim havia deixado quando partiu, os lençóis emaranhados da última noite de sono ruim que teve ali. E, sim, o dinheiro e as chaves estavam exatamente onde os colocara, sobre o balcão da estreita cozinha. O sofá ainda estava sob a janela, as leves cortinas, fechadas. O ar cheirava um pouco a feno, mas não por muito tempo.

Não com Eddie por perto.

Quando Jim olhou para Adrian, sabia que não havia razão para não usar o local. Matthias estaria na parede de almas de Devina por toda eternidade, então, não era uma ameaça, e o resto das Operações Extraoficiais estaria ocupado procurando um novo líder para preencher a vaga que o cara havia deixado. Além disso, o único problema de Jim com o departamento estava relacionado ao seu antigo chefe. Que perdera na última rodada.

– Tem um espaço meio apertado aqui atrás – disse Jim, caminhando até a cozinha.

Ao lado da geladeira, havia uma porta estreita que se abria por cima e por baixo e que levava a uma área de teto rebaixado, envolvida com placas de gesso, sob o beiral do telhado. Entrando, acendeu a lâmpada e saiu do caminho.

Quando Adrian agachou-se e entrou com sua carga, Jim abriu uma das gavetas sob o balcão da cozinha e pegou uma faca longa. Não hesitou ao passar a lâmina na palma de sua mão e pressioná-la contra a pele.

– Caralho – sussurrou.

Adrian saiu do espaço estreito.

– O que está fazendo?

Gotas brilhantes e vermelhas caíram no chão formando uma pequena trilha enquanto andava em direção ao local onde Eddie havia sido colocado. A verdade é que não tinha plena certeza do que estava acontecendo ali, mas seus instintos guiavam-no, faziam-no prosseguir e, assim, passou a palma da mão que sangrava pela porta... bem como o próprio corpo. Antes de retrair a mão sangrenta, prometeu: – Não deixo soldados caídos para trás. Você estará conosco... até voltar. Pode apostar.

Ao fechar a porta, olhou para Adrian, que tinha se apoiado no balcão e envolvido o próprio corpo com os braços. O anjo olhava para o chão como se fossem folhas de chá... ou um mapa... ou um espelho... ou nada, talvez. Quem poderia saber?

– Preciso saber como vai se posicionar – disse Jim. – Quer ficar aqui com ele ou quer continuar a lutar?

Os olhos vazios ergueram-se do chão.

– Não era para ser assim. Ele teria lidado melhor com isso.

– Não tem uma maneira melhor de lidar com isso. Mas não vou tentar convencê-lo de nada. Se não quiser fazer mais nada além de lamentar, não tem problema nenhum para mim. Mas preciso saber o que está disposto a fazer.

Caramba, provavelmente era cedo demais para perguntar ao cara o que ele queria no almoço, quanto mais se estava disposto a lutar. Mas Jim não poderia se dar ao luxo de bancar o terapeuta e trabalhar os sentimentos. Aquilo era guerra.

Quando Adrian apenas resmungou alguma coisa como “não está certo”, Jim entendeu que precisava chamar a atenção do cara.

– Ouça – disse devagar e com clareza. – Devina fez isso de propósito. Ela o tirou de você, pois acha que a perda vai te incapacitar. É uma estratégia básica: isolamento. Está tentando tirar os dois de mim... E você do mundo. A escolha é sua em deixar que isso funcione ou não.

Adrian mudou seu olhar e mirou a porta que Jim havia fechado.

– Como pode algo tão grande... acontecer tão rápido?

Jim voltou-se para o próprio passado, para uma cozinha que conhecia tão bem, para uma cena sangrenta que nunca havia esquecido: sua mãe morrendo numa poça de seu próprio sangue, enquanto dizia para que corresse o mais rápido e seguisse para o mais longe possível...

Entendia muito bem o trauma pelo qual Adrian estava passando, era a constatação terrível de que os pilares da estrutura que o levava aos céus eram feitos de papel em vez de pedra.

– Desastres acontecem.

Houve um período de silêncio, em seguida, um som suave sobre o chão. Cachorro, que havia ficado fora do caminho a maior parte do tempo, aproximava-se de Adrian mancando e, quando chegou perto do cara, sentou-se sobre a bota de combate do anjo e reclinou a cabeça contra a canela.

– Não estou bravo – Adrian disse finalmente. – Não sinto... nada.

Aquilo iria mudar, Jim pensou. A questão era: quando?

– Fique aqui com ele – disse Jim. – Preciso voltar ao campo de batalha. Não quero DelVecchio por aí sozinho.

– Sim... sim – Adrian abaixou e pegou Cachorro. – Sim.

O anjo andou um pouco e sentou-se no sofá, colocando o animal em seu colo e mantendo os olhos fixos na porta daquele espaço de teto rebaixado.

– Pode me ligar – disse Jim. – E estarei aqui num instante.

– Sim.

Deus, Ad parecia um objeto inanimado que respirava. E o último pensamento de Jim ali foi que Devina estava brincando com fogo. Adrian acordaria de seu estupor... E, então, seria implacável ao fazê-la pagar por aquilo.

Depois de fechar a porta, Jim parou para acender um cigarro e olhar para o céu. As nuvens pareciam fervilhar sobre a garagem e viu-se procurando por uma imagem ou sinal entre elass.

Nada.

Terminou o cigarro e, quando estava prestes a sair, ouviu um rádio ser ligado dentro do apartamento.

À capela. Bon Jovi cantava “Blaze of Glory”.

Muito apropriado.

Jim projetou-se pelo ar, seguindo o farol que era DelVecchio. E estava a meio caminho de seu alvo quando se deu conta...

Ele não possuía rádio algum.


CAPÍTULO 28

 

– Aqui, me deixe ajudar você.

Reilly equilibrou-se sobre duas pedras do tamanho de poltronas, em seguida, inclinou-se e estendeu a mão.

Veck olhou para ela por um momento.

– Obrigado.

As palmas das mãos encontraram-se e firmaram-se uma na outra e, então, Reilly dobrou-se para trás, colocando todo seu peso no ato de erguê-lo. Mesmo com o corpo fazendo movimento de alavanca, era como puxar um carro entalado numa vala, e a mulher percebeu claramente que, se ele não tivesse pulado e dado um impulso, não chegariam a lugar algum.

Quando ele juntou-se a ela no planalto, olharam em volta. Já estavam trabalhando na longa encosta da pedreira há várias horas, iluminando cavernas com lanternas e examinando saliências rochosas. Os oficiais de resgate ficaram com o lado mais íngreme e os outros policiais iam mais à esquerda ou percorriam as bordas com os cães. Os minutos passavam lenta e dolorosamente, a extensão total do que ainda havia para ser examinado oprimia Reilly.

E ainda havia tudo aquilo implícito em relação a Veck, coisas não ditas, que não ajudavam.

Deus, odiava aquela situação. Especialmente o fato de estarem em meio à tentativa de encontrar o corpo de uma jovem.

– Tem outra caverna por ali – ela disse, pulando de uma pedra e aterrissando de cócoras no chão lamacento.

O terreno parecia árido visto da borda da pedreira. De perto, era uma pista de obstáculos, do tipo que requeria botas para ser explorada – ao menos tinha se prevenido e trazido mais que um agasalho extra e um kit de armazenamento de provas no porta-malas. Muito bom também a chuva da noite anterior ter parado ou a tarefa seria mais que exaustiva. Com o clima mais estável, o topo das rochas já havia secado com o sol, então, já contavam com partes mais firmes para pisarem, afinal, as poças e a lama nos pontos mais baixos do local já desaceleravam o suficiente o trabalho deles.

– Já esteve aqui antes? – perguntou Veck depois de firmar-se ao lado dela. Como sempre, ele não estava com roupa suficiente...

Espere, me deixe reformular a frase – ela pensou – Como sempre, não está agasalhado o suficiente e seus sapatos são mais para um serviço de escritório que para um trabalho externo.

Mas Veck não parecia se importar com nada disso: apesar de os sapatos estarem arruinados e sua jaqueta preta isolar o vento frio tão bem como uma folha de papel, ele continuava como um soldado, seguindo decidido como se estivesse muito à vontade e confortável. Apesar de estarem trabalhando ensopados de suor.

Espere, qual era a pergunta que ele tinha feito mesmo...?

– Como a maioria das pessoas daqui, conheço a pedreira desde sempre – olhou para a borda. – Mas esta é a minha primeira visita. Cara, é como se tivessem arrancado um pedaço gigantesco da Terra.

– Muito grande mesmo.

– Dizem que foi criada por geleiras.

– Ou isso, ou Deus era um jogador de golfe e o buraco que desejava acertar estava na Pensilvânia.

Ela riu um pouco.

– Pessoalmente, apostaria meu dinheiro no gelo pré-histórico. Na verdade, isto tudo é simplesmente chamado de “a pedreira”... Nunca foi, mas parece uma.

Subiram outra pedra, pularam novamente e seguiram em direção à boca escura da caverna que ela tinha visto. Aquela parecia maior que as outras e, de perto, a entrada parecia alta o suficiente para passarem sem se curvar. Contudo, não tinha como os ombros de Veck caberem ali a menos que se virasse de lado.

Acendendo a lanterna, não havia nada além de paredes rochosas, um chão de terra e, Deus, o mau cheiro. Úmido, mofado. Todas exalavam o mesmo cheiro, como se o lugar tivesse uma espécie de odor corporal próprio.

– Nada – ela disse. – Mas não consigo ver o final desta.

– Me deixe entrar mais.

Agora seria o momento perfeito para a mulher moderna dentro dela aparecer dizendo “Que inferno, não, deixe que eu cuido disso”. Mas só Deus sabia o que havia ali dentro, e ela não era muito fã de morcegos. Ursos. Cobras. Aranhas. Era a única situação com a qual se acovardava.

Quando Reilly abriu caminho, Veck adiantou-se e espremeu-se dentro do espaço fino. O fato de seu peito ter passado tão perto lembrou-lhe o quanto conhecia seu corpo. Olhou ao redor e tentou encontrar outro foco, desesperadamente.

– Nada – Veck murmurou quando reapareceu e fez um X vermelho sobre a pedra com tinta spray.

– Espere, você tem... – ela ergueu-se na ponta dos pés e tirou uma teia de aranha do cabelo de Veck. – Isso, mais apresentável agora.

Quando Reilly virou-se, Veck agarrou a mão dela.

Ao ser puxada de surpresa, olhou ao redor rapidamente, então, Veck disse: – Não se preocupe, ninguém pode nos ver.

Parecia ser verdade: estavam num local profundo da pedreira, entre três pedras enormes. Mas não era algo bom, não precisavam de privacidade.

Holofotes. Um palco. Megafones presos em seus rostos seriam mais adequados...

– Olha, sei que é inapropriado – Veck murmurou com um tom de voz que fez o coração dela bater ainda mais rápido. – Mas aquela porcaria que Kroner disse... sobre me conhecer...

Reilly respirou aliviada. Graças a Deus não se tratava deles.

– Sim?

Veck soltou-a e andou fazendo um pequeno círculo. Então, tirou um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça na direção oposta a Reilly.

– Acho que, de alguma maneira, isso é o que mais me assusta neste mundo.

Sentindo-se uma tola por ter se assustado, ela apoiou-se sobre o flanco de uma rocha aquecido pelo sol.

– O que quer dizer?

Veck encarou o céu, a sombra de seu queixo forte projetou-se sobre seu peito, formando um arco escuro sobre o tronco.

– Iguais se reconhecem...

– Acha mesmo que tentou matá-lo? – disse ela suavemente.

– Olha, vai parecer loucura... Mas parece que meu pai está sempre comigo – colocou a mão sobre o peito, exatamente sobre a sombra escura. – Essa... coisa faz parte de mim, mas não do meu ser. E sempre fui amedrontado com a possibilidade disso sair e... – interrompeu-se com uma maldição. – Oh, Cristo, quanta besteira...

– Não é besteira – quando ele virou-se para Reilly, os olhos de ambos encontraram-se. – E pode conversar comigo. Sem julgamentos. Ninguém mais saberá, nunca. Desde que não tenha infringido a lei.

A boca de Veck contorceu-se com amargura.

– Não fiz nada para que me prendam. Mas ainda me pergunto se fui eu quem fez aquilo com Kroner na floresta.

– Bem, se tem medo de ser como seu pai e, quando surge um banho de sangue na sua frente, você não consegue se lembrar de nada... é natural se questionar.

– Não quero ser como ele. Nunca.

– Você não é.

– Não me conhece.

A expressão tensa de Veck produziu um calafrio nela, mesmo com os pés secos e quentes e vestindo um casaco e luvas. Tinha tanta certeza de ser um estranho para ela, que Reilly perguntou-se por que tamanha obviedade não os impediu na noite anterior. Mas sexo e atração sexual faziam as pessoas sentirem-se próximas, quando, na verdade, eram apenas dois corpos esfregando-se.

O quanto ela realmente sabia sobre ele? Não muito além do que havia registrado em seus arquivos no Departamento de Recursos Humanos. Porém, estava certa de uma coisa: ele não tinha, de forma alguma, machucado aquele homem.


– Precisa conversar com um profissional – ela disse, pois ter um pai como aquele deveria repercutir psicologicamente. – Tire esse peso de você.

– Mas esse é o problema... está dentro de mim.

Algo naquele tom que usou fez o calafrio retornar – dez vezes mais forte. Só que agora achou ser loucura.

– Estou dizendo, você precisa desabafar.

Veck olhou o céu azul brilhante outra vez com suas listras passageiras de nuvens brancas.

Depois de um momento, ele disse: – Fiquei aliviado por você ter saído tão rápido na noite passada.

Que belo tapa no rosto para trazê-la de volta à realidade.

– Fico feliz por ter feito esse favor – ela disse em tom decidido.

– Porque eu poderia me apaixonar por você.

Quando a boca de Reilly abriu-se e ela piscou confusa, Veck bateu o cigarro e exalou, a fumaça ergueu-se no ar frio da primavera.

– Sei que isso não ajuda em nada. Tanto o fato de confessar isso agora como ser a mais pura verdade.

Verdade. Mesmo assim, ela não deixou de continuar a conversa.

– Mas ontem à noite... você disse que nunca me levaria para a sua cama.

Balançou a cabeça, o lábio superior fez um movimento sinuoso de desgosto.

– De jeito nenhum. Fiquei com mulheres sem importância ali. Você foi importante... É importante – soltou um palavrão em voz baixa e profunda. – Não é como as outras.

Reilly respirou fundo. E de novo. Sabia que aquele era um bom momento para tentar dizer algo que os mantivesse dentro dos limites.

– Estou muito lisonjeada, mas...

Em vez disso, apenas olhou para ele quando virou o cigarro e focou-se na pequena ponta alaranjada. Examinando os traços belos e rígidos de seu rosto, tentou lutar contra o impulso de jogar-se nele... Desistiu: naquele pequeno espaço de privacidade em frente à caverna, com a brisa assoviando entre as pedras e o sol iluminando seus rostos, as engrenagens entre eles voltaram a funcionar direito outra vez... Deu-se conta da verdadeira razão pela qual havia deixado a casa dele tão rápido. Dane-se o profissionalismo: sentia o mesmo que ele, e aquilo assustava-a.

– Mas está tudo ligado à porcaria de relação que eu tenho com meu pai.

– Desculpe, o quê? – Reilly ouviu-se dizer.

– Essa coisa com você... está ligada a ele também – seus olhos brilharam em direção a ela. – Ele era apaixonado pela minha mãe. Tanto que a fatiou viva e formou um coração com seus intestinos, no chão, ao lado dela. Sei disso pois fui eu quem encontrou o corpo.

Quando Reilly começou a ofegar, uma das mãos subiu até a garganta e, por instinto, deu um passo para trás... apenas para descobrir que estava encurralada pela pedra em que havia se recostado.

– Sim... – disse Veck. – Essa é a história da minha família.

Que maneira de cortejar uma mulher, Veck pensou quando Reilly ficou pálida como neve e tentou se afastar dele. Dando um trago profundo em seu cigarro, exalou para longe dela.

– Eu não devia ter dito isso.

Reilly balançou a cabeça, talvez para esclarecer um pouco os pensamentos.

– Não... não, fico feliz por você ter contado. Só estou um pouco...

– Chocada. Sim. E é apenas um dos motivos pelos quais não converso sobre isso.

Ela afastou uma mecha de cabelo solta sobre os olhos.

– Mas eu falei sério. Pode conversar comigo. Quero que converse comigo.

Não tinha tanta certeza se Reilly dizia a verdade. Mas, por alguma razão, abriu a boca.

– Minha mãe foi a 13a vítima dele – cara, invejava aqueles cujas “histórias ruins” da vida eram apenas de encrencas por conta de cervejadas, depredação de propriedade pública e, talvez, urinar no tanque de gasolina de alguém.

– Eu estava em férias de verão do ensino médio, hospedado numa casa alugada em Cape Cod com os amigos. Saí na última noite que tínhamos para ficar ali e também fui o último a ir para casa; então, estava sozinho. Ele a trouxe até a sala de estar e fez tudo ali. Depois, deve ter subido as escadas e dado uma olhada em mim... Quando acordei, havia duas marcas de sangue no batente da porta do meu quarto. Foi a primeira evidência de que algo ruim havia acontecido. Ele havia colocado fita adesiva na boca dela, então, não ouvi nada.

– Oh... meu Deus...

Dando outro trago profundo no cigarro, falou através da fumaça que exalou.

– Como pode imaginar, mesmo naquela época, a primeira coisa que fiz quando vi as marcas no chão foi olhar para as minhas próprias mãos. Quando percebi que não havia nada, corri para o meu banheiro, verifiquei as toalhas, as minhas roupas... Irônico, as mesmas coisas que eu fiz depois do episódio com Kroner. E, então, me dei conta... Droga, a vítima. Liguei para a emergência e estava no telefone com eles quando desci as escadas.

– Você a encontrou.

– Sim – esfregou os olhos lutando contra as imagens do sangue vermelho sobre o tapete azul barato e um coração feito de órgãos humanos. – Sim, encontrei, e sabia que tinha sido ele.

Não conseguiu ir além disso, não dava mais, nem para ela nem para si mesmo. Essa memória não era acessada há tanto tempo que ele esperava ter caído num modo reflexivo, saudável talvez. Mas não. A cena da qual se lembrara naquele momento ainda estava desenhada em neon nos seus pensamentos, como se os vapores do pânico e do terror que sentiu emergissem e distorcessem a fotografia mental, mas sem alterar a nitidez.

– Já li sobre seu pai... Estudei sobre ele na faculdade – disse Reilly suavemente.

– É um tema popular.

– Mas não havia nada sobre...

– Eu tinha dezessete anos, menor de idade, e minha mãe não tinha o meu sobrenome, então, não poderia ter ouvido falar nada mesmo. Engraçado, foi quando os representantes da lei conversaram pela primeira vez com meu pai sobre uma vítima. Não preciso dizer que acreditaram quando ele disse que estava aflito. E Deus sabe o quanto ele era bom em fingir sentimentos. Ah, e as marcas sobre o batente da porta? Ele tinha usado luvas, claro; então não havia nada para acusá-lo.


– Deus, sinto muito.

Veck ficou em silêncio, mas não por muito tempo.

– Não o vi muito. E, quando ele se aproximava, eu percebia que minha mãe seria capaz de fugir com ele. Ela nunca se cansava dele... Era sua droga, a única coisa que importava, só pensava nele. Olhando para trás, tenho certeza de que ele a induziu a toda aquela fixação. Eu ficava irritado... Até que percebi o que ele era e vi que ela não tinha qualquer chance com ele. Para ele? Acho que foi divertido, mas parece que o jogo ficou enjoativo depois de um tempo.

Com isso, Veck ficou exausto, como um corredor que não aguenta mais avançar.

– De qualquer forma, é por isso que nunca jantaremos na casa dos meus pais.

Péssima tentativa de fazer piada. Nenhum deles riu.

Quando chegou ao final do cigarro, amassou a ponta incandescente sobre a sola do sapato – e notou pela primeira vez que seus sapatos não sobreviveriam àquele banho de lama. Reilly, no entanto, deu um jeito de conseguir um par de botas. Bem típico dela. Estava sempre preparada...

Quando olhou para cima, ela estava bem na frente dele. As bochechas estavam rosadas por causa do vento e do esforço, seus olhos brilhavam com um calor que vinha não apenas de um coração bom mas também de um coração aberto. As mechas de cabelo que se soltaram do rabo de cavalo produziam um halo vermelho, e seu perfume de xampu, ou seja lá o que fosse, o fez lembrar do verão – um verão normal, não aquele de que tinha acabado de se lembrar, quando ainda era uma “criança”.

Então, ela aproximou-se, colocou os braços ao redor dele e simplesmente abraçou-o. Levou um minuto para Veck entender o que estava acontecendo, pois era a última coisa que esperava. Mas, então, abraçou-a de volta. E os dois ficaram ali só Deus sabe por quanto tempo.


– Não tenho o hábito de namorar – ele disse um tanto rude.

– Namorar colegas de trabalho? – ela afastou-se e olhou para ele.

– Qualquer pessoa – alisou o cabelo dela com a palma das mãos. – E você é boa demais para mim.

Houve uma breve pausa e, em seguida, ela sorriu um pouco.

– Então, o sofá é o local preferido, hein?

– Pode me chamar de Casanova.

– O que vou fazer com você? – ela murmurou, como se estivesse falando consigo mesma.

– Honestamente? Não sei. Se eu fosse seu amigo, diria para correr em direção à saída, nada de ir andando.

– Eles não são você, sabe disso, não? – ela disse. – Seus pais não te definem.

– Não tenho tanta certeza. Ela era a bajuladora de um psicopata. Ele é um demônio com uma bela máscara. Daí surgiu um bebê num carrinho. Vamos encarar os fatos, até agora, minha vida tem girado em torno de evitar o passado, desperdiçando o presente e me recusando a pensar sobre o futuro... Pois fico apavorado de não compartilhar apenas o nome com meu pai.

Reilly balançou a cabeça.

– Ouça, eu ficava assustada com a possibilidade de a mulher que me deu à luz voltar e me querer de volta. Por muito tempo, eu tinha a convicção de que qualquer coisa que meu pai fizesse legalmente não seria suficiente se ela me quisesse de volta. Isso costumava me deixar acordada à noite. E ainda tenho pesadelos. Na verdade, e vai achar que é loucura, eu ainda deixo uma cópia do meu certificado de adoção do meu lado, em cima do criado-mudo, quando vou dormir. Aonde quero chegar? Não pode fazer alguma coisa se tornar realidade só porque tem medo dela. O medo não vai tornar real uma história fictícia.

Houve outro longo silêncio, mas Veck interrompeu-o.

– Apague o que eu disse antes. Acho que estou me apaixonando por você. Bem aqui. Agora.


CAPÍTULO 29

 

Ficando um pouco distante de Reilly e Veck, Jim fingiu ser uma pedra e esforçou-se para não ouvir a conversa entre eles, tanto que, ao se aproximar, virou a cabeça. Havia lá as vantagens de ser invisível, mas não era muito adepto de ficar espiando casais. Além do mais, não estava muito satisfeito com aquele atraso emotivo. Estavam procurando por Sissy – a porcaria melosa poderia esperar até encontrarem algo ou descobrirem que a indicação do local era uma farsa.

Afastando-se da rocha na qual se apoiara, caiu numa poça, a água turva espirrou sobre suas roupas de couro e suas botas de combate, mas não fez som algum graças ao campo de força que havia projetado em volta de si. Cara, aquela pedreira parecia um cenário dos antigos episódios de Jornada nas Estrelas, as pessoas só não usavam camisas vermelhas nem se teletransportavam...

De repente, um calor floresceu na lateral de seu rosto e a sensação fez com que erguesse a cabeça e inclinasse-a para a direita. Um raio de sol derramava-se sobre ele, tocando-lhe os olhos e a bochecha.

Que merda é essa? – pensou, percebendo que vinha da direção errada.

Com a testa franzida, recuou e virou-se, seguindo o caminho da faixa amarelo-limão... que o levou para a caverna atrás dele.

Algo aconteceu em suas entranhas.

– Oh, droga – Jim sussurrou quando uma premonição lavou-o como chuva fria.

Preparando-se, caminhou até uma abertura irregular. Não havia necessidade de virar de lado, a iluminação passava por ele como se não estivesse lá. A abertura era bem grande, quase dois metros de altura, talvez um metro de largura, contudo, estreitava-se quase imediatamente após a entrada. Então, como a luz era refletida ali dentro?


Ao entrar, a luz do sol seguiu-o, fazendo-o pensar em Cachorro e sua companhia calma e reconfortante. E não parou para pensar em como a iluminação conseguia envolver até mesmo as extremidades do local ou para se perguntar por que parecia orientar seus passos...

– Oh... Deus... – apoiou-se numa parede de pedra para manter-se em pé ao descobrir o que fazia a luz emergir da escuridão: contra a parede íngreme da caverna, envolto numa lona áspera, havia um corpo deitado no chão, como lixo descartado.

O feixe luminoso acabou por fundir-se com o pacote e foi quando Jim viu o comprimento do cabelo – que, se estivesse limpo, seria loiro. Atordoado, caiu contra uma das laterais da caverna. Dar-se conta, repentinamente, de todo o seu esforço até aquele momento – droga, talvez tudo que tinha feito – era como uma trombeta tocando em sua nuca, sem cessar, ensurdecendo-o.

Não existem coincidências – ouviu Nigel dizer.

Quando alguém colocou a mão sobre seu ombro, virou-se e sacou sua adaga de cristal ao mesmo tempo. Baixou a arma imediatamente.

– Meu Deus, Adrian... quer levar uma facada?

Péssima pergunta para se fazer num dia como aquele. O outro anjo não respondeu. Apenas olhou para a luz que pairava acima da cabeça de Sissy, como uma coroa celestial dourada marcando seus restos mortais. Com uma voz baixa, disse: – Quero te ajudar com esta perda. Você me ajudou com a minha.

Jim olhou para Ad por alguns momentos.

– Obrigado, cara.

Adrian assentiu com a cabeça, como se tivessem combinado algo, trocado algum voto, e esse acordo fez Jim perguntar-se... Se tudo tinha um propósito, será que Sissy havia morrido para que houvesse aquele momento entre eles? Seria a razão pela qual perderam Eddie? Pois, quando os olhos mortos de Adrian encontraram os dele, os dois estavam na mesma situação, dois caras explosivos realinhados por tragédias paralelas e, ao mesmo tempo, vivendo exatamente a mesma situação.

Em vez de ir até sua garota, Jim estendeu uma das mãos para o parceiro. E, quando o anjo retribuiu o gesto, puxou Adrian contra si e abraçou o bastardo com força. Sobre o ombro do cara, olhou para Sissy.

Foi difícil, mas, ao avaliar os interesses da guerra junto à perda que sofreu a família da garota e, agora, Adrian, concluiu que as duas passaram a ter um valor inesperado: até onde Jim conseguia entender, na melhor das hipóteses, o jogo estava empatado, com apenas um fio de cabelo pesando a favor de Devina na batalha.

Só que, às vezes, uma simples gota d’água resultava em tragédia. E famílias perdiam suas filhas, melhores amigos não voltavam para casa no final da noite. Parece que viver não vale mais a pena, mas você continua de qualquer maneira.

Quando se afastaram, Adrian colocou o dedo sobre o colar de Sissy.

– Ela é sua garota.

Jim assentiu.

– E já é hora de tirar ela daqui.

Caramba – Reilly pensou. Parecia que Veck iria beijá-la. E parecia que ela deixaria. Mas, então, surgiu aquele papo que envolvia a palavra “amor”, e aquilo deixou-a paralisada, não sabia ao certo como reagir. Estava se apaixonando por ele também. Mas não conseguia lidar com aquilo direito em sua mente. Dizer essas coisas em voz alta era expor-se demais. Contudo, havia outras maneiras de responder.

Quando ela inclinou-se em direção à boca dele, Veck abaixou-se, aproximando-se dos lábios dela... Alguém apareceu sobre a rocha acima deles. Alguém grande, que surgiu das alturas e bloqueou o sol. Quando ela pulou afastando-se de seu parceiro, seu pensamento imediato foi: Oh, Deus, não permita que seja alguém da delegacia...

Seu desejo tornou-se realidade, infelizmente: era aquele “agente do FBI”.

Veck moveu-se tão rápido que Reilly só percebeu que havia um escudo humano à sua frente quando sentiu suas mãos repousarem nas costas dele. Foi um movimento muito cavalheiro, mas ela não precisava de proteção. Colocando a mão dentro do casaco, Reilly encontrou a coronha de sua arma – ele também fez o mesmo – e recuou com a arma apontada para cima.

Só que... o homem que os olhava de cima não parecia nem um pouco agressivo. Parecia arruinado. Totalmente destruído.

– Sissy Barten está logo ali – ele apontou para trás de si. – Na parede dos fundos da próxima caverna.

Ele não vai nos machucar – ela pensou com uma convicção vinda da alma.

Redirecionando o cano da nove milímetros para o chão, ela franziu a testa. Ao redor do corpo do agente havia um brilho sutil, um esplendor que poderia ser explicado por estar posicionado de costas para um raio de sol – mas, espere um minuto, a posição dele não era essa. Era muito tarde para que houvesse tal projeção no local onde ele estava.

– Você está bem? – ouviu-se perguntar ao homem.

Os olhos assombrados fixaram-se nos dela.

– Não, não estou.

Veck falou alto, forte e exigente: – Como sabe onde o corpo está?

– Acabei de ver.

– Liguei para o FBI. Nunca ouviram falar de você.

– Por conta da administração atual – o tom era entediado. – Vai ajudar a moça ou perder tempo com...

– Fingir ser um oficial federal é crime.

– Então, pegue essa força toda e venha atrás de mim... por aqui.

Quando o cara ergueu-se da pedra e desapareceu, Veck olhou por cima do ombro.

– Fique aqui.

– Até parece.

Algo na expressão dela deve ter lhe dito que discutir seria uma perda de tempo, pois murmurou alguma coisa – e começou a andar. Juntos, escalaram a pedra à frente, agarrando pontos precisos na subida. Quando chegaram ao topo... Jim Heron, ou seja lá quem fosse, tinha desaparecido. No entanto, viram a entrada de uma grande caverna.

– Chame reforços – Veck disse, saltando para baixo ao pegar a lanterna. – Vou entrar... e preciso que me cubra daqui de fora.

– Entendido – Reilly pegou o rádio, mas exclamou em seguida: – Pare! Precisa prestar atenção nas pegadas. Perto das bordas, certo?

Olhou para ela.

– Bem lembrado.

– Cuidado.

– Tem minha palavra.

Seguindo com a lanterna e a arma, entrou na caverna, seus ombros largos mal passaram pela entrada. Devia existir um obstáculo logo ao entrar, pois o brilho da lanterna esmaeceu e, em seguida, não se via mais iluminação alguma.

Enquanto Reilly chamava seus colegas e recebia a confirmação de que estavam a caminho, abaixou-se cuidadosamente em direção à entrada lamacenta da caverna que lhe dava boas-vindas. Sabia que levaria um tempo até que os outros chegassem e rezou para que seus instintos estivessem certos sobre o homem grande e loiro. Ele não parecia nem um pouco preocupado em mentir ou distorcer o que dizia, mas era certo que parecia arrasado em relação a Sissy Barten.

Se alguma coisa acontecesse com Veck enquanto vigiava, nunca iria se perdoar...

– Que... droga é essa? – murmurou.

Reilly franziu a testa e agachou-se. Bem no meio do caminho de terra encharcada, onde Veck tinha aterrissado ao pular, as pegadas pareciam crateras lunares. Da mesma forma, perto da entrada, o rastro ali marcado era profundo, as pegadas de sapatos de sola lisa eram fundas e indicavam que um homem com seus noventa quilos havia passado por ali.

Erguendo-se, Reilly apoiou um dos pés sobre uma pedra alta e olhou para trás ao longo do caminho por onde Veck e ela tinham atravessado. Na parte superior da plataforma de pedra, existiam dois pares de pegadas umedecidas: dela e de Veck. Era isso.

Ao analisar a extensão do declive, balançou a cabeça. Não tinha como Jim Heron, ou seja lá quem fosse, ter descido até ali sem ficar com os pés encharcados. E também era impossível ficar parado onde ficou sem deixar pegadas úmidas para trás, assim como ela e Veck tinham deixado.


Que diabos está acontecendo?

Atrás dela, Veck reapareceu na abertura da caverna.

– É Sissy Barten. Ele estava certo.

Reilly engoliu em seco ao descer mais um pouco.

– Tem mais alguma coisa aí?

– Não que eu consiga enxergar. Chamou o pessoal?

– Sim. Tem certeza de que é ela?

– Não toquei em nada, mas há um pouco de cabelo loiro exposto e o corpo está onde Kroner indicou – as sobrancelhas de Veck estreitaram-se. – O que foi?

– Tem pegadas no chão da caverna?

– Me deixe ver – ele desapareceu. Voltou em seguida. – Não. Mas não é a melhor superfície para verificar isso. Está relativamente seco, e o solo tem pouca profundidade. O que você...

– É como se tivesse caído do céu.

– Quem? Heron?

– Não há qualquer evidência de que ele esteve aqui, Veck. Onde estão as pegadas? Aqui no chão? Lá em cima?

– Espere, não tem...

– Nada.

Ele franziu a testa e olhou ao redor.

– Filho de uma puta.

– Sinto a mesma coisa.

Ao longe, Reilly ouviu os oficiais aproximarem-se, então, colocou as mãos ao redor da boca e gritou: – Aqui! Estamos aqui!

Talvez alguém pudesse entender alguma coisa. Porque não lhe ocorria nada... e era evidente que acontecia o mesmo com Veck.

 


CONTINUA