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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


INVERNO DO MUNDO / Ken Follett
INVERNO DO MUNDO / Ken Follett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

INVERNO DO MUNDO

Primeira Parte

 

1933

            Carla sabia que os pais estavam prestes a brigar. Assim que entrou na cozinha, pôde sentir a hostilidade no ar, como o vento frio que varre as ruas de Berlim antes de uma nevasca de fevereiro – penetrante, de gelar os ossos. Quase deu meia-volta e tornou a sair.

           Eles não brigavam com frequência. Na maior parte do tempo, eram afetuosos um com o outro – às vezes até demais. Carla ficava com vergonha sempre que os dois se beijavam em público. Seus amigos achavam aquilo estranho: os pais deles não se comportavam daquele jeito. Certa vez Carla dissera isso à mãe. A mulher rira com satisfação e respondera: “No dia seguinte ao nosso casamento, seu pai e eu fomos separados pela Grande Guerra.” A mãe era inglesa, embora isso quase não transparecesse em seu sotaque. “Eu fiquei em Londres. Ele veio para a Alemanha e entrou para o Exército.” Carla já tinha ouvido essa história muitas vezes, mas sua mãe nunca se cansava de contá-la. “Achamos que a guerra iria durar três meses, mas passaram-se cinco anos até que eu tornasse a ver seu pai. Passei todo esse tempo ansiando tocá-lo. Agora nunca me canso de fazer isso.”

           Com o pai as coisas não eram muito melhores. “Sua mãe é a mulher mais inteligente que eu já conheci na vida”, tinha dito ele bem ali na cozinha, poucos dias antes. “Foi por isso que me casei com ela. Não teve nada a ver com...” A frase ficara pela metade, e ele e a mãe começaram a rir feito conspiradores, como se Carla, aos 11 anos, não soubesse nada sobre sexo. Que constrangedor!

           Mas de vez em quando eles discutiam. Carla conhecia os sinais. E uma nova briga ia estourar.

           O casal estava sentado em lados opostos da mesa da cozinha. O pai usava uma roupa sóbria: terno cinza-escuro, camisa branca engomada, gravata preta de cetim. Estava elegante, como sempre, apesar das entradas no cabelo e do colete um pouco apertado sob a corrente de ouro do relógio de bolso. Tinha o rosto congelado numa expressão de calma que não era verdadeira. Carla conhecia aquela expressão. O pai a adotava sempre que alguém da família fazia algo que o deixava zangado.

           Ele estava segurando um exemplar da revista semanal para a qual a mãe trabalhava, chamada O Democrata. Ela escrevia uma coluna de fofocas políticas e diplomáticas sob o pseudônimo de Lady Maud. O pai começou a ler em voz alta:

           – Nosso novo chanceler, Herr Adolf Hitler, fez seu début na sociedade diplomática durante a recepção do presidente Hindenburg.

           Carla sabia que o presidente era o chefe de Estado. Apesar de eleito, ficava acima das disputas mesquinhas do dia a dia político, agindo como um árbitro. O premier era o chanceler. Embora Hitler tivesse sido nomeado para o cargo, o Partido Nazista, ao qual era filiado, não tinha a maioria absoluta no Reichstag, o Parlamento alemão. Assim, por ora os outros partidos ainda conseguiam restringir os excessos nazistas.

           O pai falava com desagrado, como se estivesse sendo forçado a se referir a algo repulsivo, como esgoto.

           – Parecia pouco à vontade de casaca.

           A mãe tomou um gole de café e olhou pela janela para a rua lá fora, como se tivesse interesse nas pessoas que seguiam apressadas para o trabalho de luvas e cachecol. Ela também fingia calma, mas Carla sabia que estava só esperando a hora de se manifestar.

           Ada, a criada da família, fatiava um queijo diante da bancada. Pôs um prato na frente do pai de Carla, mas ele ignorou a comida.

           – Herr Hitler ficou visivelmente encantado com a esposa do embaixador italiano, a culta Elisabeth Cerruti, que usava um vestido de veludo rosa-claro debruado de zibelina.

           A mãe sempre escrevia sobre o que as pessoas usavam. Dizia que isso ajudava os leitores a visualizá-las. Ela própria tinha roupas finas, mas os tempos andavam difíceis e fazia muitos anos que não comprava nenhuma peça nova. Nessa manhã, estava esguia e elegante num vestido de caxemira azul-marinho que devia ter a mesma idade de Carla.

           – A Signora Cerruti, judia, é também uma fascista fervorosa, e os dois passaram vários minutos conversando. Será que ela implorou a Hitler que pare de fomentar o ódio aos judeus?

           O pai largou a revista sobre a mesa, fazendo barulho.

           Lá vem, pensou a menina.

           – Você sabe que isso vai deixar os nazistas furiosos – disse ele.

           – Espero que deixe mesmo – respondeu a mãe, calma. – No dia em que eles gostarem do que escrevo, largo o jornalismo.

           – Eles se tornam perigosos quando são provocados.

           Os olhos da mãe faiscaram de raiva.

           – Walter, não se atreva a me tratar como criança. Eu sei que eles são perigosos... e é justamente por isso que me oponho a eles.

           – É que não vejo sentido em enfurecê-los, só isso.

           – Você os ataca no Reichstag.

           O pai era deputado eleito pelo Partido Social-Democrata.

           – Eu participo de um debate racional.

           Típico, pensou Carla. O pai era um homem lógico, cauteloso, respeitador das leis. A mãe tinha estilo e bom humor. Ele conseguia o que queria graças a uma persistência silenciosa; ela, graças ao charme e ao atrevimento. Os dois nunca iriam concordar.

           – Eu não deixo os nazistas loucos de raiva – acrescentou o pai.

           – Vai ver é por isso que não os atinge muito.

           A sagacidade da resposta deixou o pai irritado e o fez levantar a voz:

           – E você acha que os atinge com piadas?

           – Eu zombo deles.

           – A zombaria é como você substitui a discussão?

           – Acho que as duas coisas são necessárias.

           Seu pai ficou ainda mais bravo.

           – Mas, Maud, será que você não percebe que está pondo a si mesma e a sua família em risco?

           – Muito pelo contrário. O verdadeiro perigo é não zombar dos nazistas. Que vida nossos filhos teriam se a Alemanha virasse um Estado fascista?

           Esse tipo de conversa deixava Carla incomodada. Ela não suportava ouvir que a família estava correndo perigo. A vida precisava prosseguir como sempre havia sido. Queria poder se sentar naquela cozinha por uma infinidade de manhãs, com os pais em lados opostos da mesa de pinho, Ada junto à pia, e seu irmão, Erik, fazendo barulho no andar de cima, atrasado mais uma vez. Por que alguma coisa tinha que mudar?

           Durante toda a sua vida Carla escutara conversas sobre política durante o café da manhã e achava que entendia o que os pais faziam e como planejavam transformar a Alemanha num lugar melhor para todos. Ultimamente, porém, os dois haviam começado a falar de um jeito diferente. Pareciam crer que um perigo terrível os ameaçava, mas Carla não conseguia imaginar que perigo era esse.

           – Só Deus sabe como estou fazendo tudo o que posso para conter Hitler e sua laia – falou o pai.

           – Eu também estou. Só que, quando você faz isso, acha que está agindo de forma sensata. – A expressão da mãe ficou mais dura, ressentida. – E, quando sou eu, você me acusa de pôr a família em risco.

           – E com razão – rebateu o pai.

           A discussão estava só começando, mas nesse momento Erik desceu as escadas fazendo o mesmo estardalhaço de um cavalo e irrompeu na cozinha com a bolsa da escola pendurada no ombro. Tinha 13 anos, dois a mais que Carla. Pelos pretos horrorosos brotavam acima de seu lábio superior. Quando eram pequenos, Carla e Erik brincavam juntos o tempo todo, mas isso agora era parte do passado e desde que ele ficara alto daquele jeito fingia pensar que a irmã era tola e infantil. Na verdade, ela era mais esperta do que ele e sabia muitas coisas sobre as quais ele nem desconfiava, como, por exemplo, os ciclos mensais femininos.

           – Qual era aquela última música que você estava tocando? – perguntou ele à mãe.

           Muitas vezes o piano os acordava de manhã. Era um Steinway de cauda – herdado dos avós paternos junto com a casa. A mãe costumava tocar a essa hora, porque, segundo ela, passava o restante do dia ocupada demais e, à noite, estava um caco. Nessa manhã, havia tocado uma sonata de Mozart e depois um jazz.

           – Chama-se “Tiger Rag” – respondeu ela a Erik. – Quer um pouco de queijo?

           – O jazz é uma música decadente – comentou o filho.

           – Não seja bobo.

           Ada serviu a Erik um prato de queijo e salsichão fatiado. Ele começou a comer em grandes bocados. Carla achava que o irmão não tinha modos.

           Seu pai assumiu um ar severo.

           – Erik, quem tem lhe ensinado essas bobagens?

           – Hermann Braun diz que jazz não é música, só crioulos fazendo barulho.

           Hermann era o melhor amigo de Erik e seu pai era do Partido Nazista.

           – Hermann deveria tentar tocar jazz – sugeriu o pai. Em seguida olhou para a mãe e a expressão em seu rosto se suavizou. – Sua mãe tentou me ensinar o ragtime há muitos anos, mas eu não consegui aprender o ritmo.

           A mãe riu.

           – Foi como tentar ensinar uma girafa a andar de patins.

           Aliviada, Carla viu que a briga havia terminado. Começou a se sentir melhor. Pegou um pedaço de pão preto e molhou no leite.

           Mas agora era Erik que queria brigar.

           – Os crioulos são uma raça inferior – afirmou ele, desafiador.

           – Duvido muito – retrucou o pai, paciente. – Se um negro fosse criado numa casa boa, cheia de livros e quadros, e estudasse numa escola cara, com bons professores, talvez se tornasse mais inteligente que você.

           – Isso é ridículo! – protestou Erik.

           A mãe interveio:

           – Não chame seu pai de ridículo, moleque. – Seu tom foi brando, pois ela havia esgotado toda a raiva com o marido. Agora, só parecia decepcionada e cansada. – Você não sabe do que está falando. Nem você, nem Hermann Braun.

           – Mas a raça ariana com certeza é superior... nós dominamos o mundo! – disse Erik.

           – Os seus amigos nazistas não sabem nada de história – falou o pai. – Os antigos egípcios construíram as pirâmides quando os alemães ainda viviam em cavernas. Na Idade Média, os árabes dominavam o mundo... os muçulmanos já sabiam álgebra quando os príncipes alemães não conseguiam nem escrever o próprio nome. Isso não tem nada a ver com raça.

           Carla franziu o cenho e perguntou:

           – Então tem a ver com o quê?

           O pai olhou para ela com ar afetuoso.

           – Essa é uma ótima pergunta. Você se mostra uma menina muito inteligente por fazê-la. – O rosto da filha se acendeu com esse elogio. – As civilizações ascendem e caem... chineses, astecas, romanos... mas ninguém sabe muito bem o motivo.

           – Comam, vocês dois. E vistam seus casacos – disse a mãe. – Está ficando tarde.

           O pai puxou o relógio do bolso do colete e o consultou com as sobrancelhas arqueadas.

           – Não está tarde.

           – Tenho que levar Carla à casa dos Franck – esclareceu a mãe. – A escola das meninas está fechada hoje... para consertar o sistema de calefação, parece. Então Carla vai passar o dia com Frieda.

           Frieda Franck era a melhor amiga de Carla. Suas mães também eram grandes amigas. Na verdade, Monika, mãe de Frieda, fora apaixonada pelo pai de Carla na juventude – um fato hilário que a avó de Frieda deixara escapar certo dia depois de ter exagerado no espumante.

           – Por que Ada não pode ficar com Carla?

           – Ada tem consulta marcada no médico.

           – Ah.

           Carla esperou o pai perguntar o que havia de errado com Ada, mas ele apenas assentiu, como se já soubesse, e guardou o relógio no bolso. Carla queria saber o que era, mas algo lhe disse que não deveria indagar. Pensou que não podia se esquecer de perguntar à mãe mais tarde. No instante seguinte, porém, já nem se lembrava mais do assunto.

           O pai foi o primeiro a sair de casa, com um sobretudo preto por cima do terno. Em seguida Erik pôs a boina da escola, posicionando-a o mais para trás possível na cabeça sem que ela caísse – como era a moda entre seus amigos –, e seguiu o pai porta afora.

           Carla e a mãe ajudaram Ada a tirar a mesa. A menina amava Ada quase tanto quanto a própria mãe. Quando ela era pequena, antes de ter idade para ir à escola, Ada cuidava dela em tempo integral, pois a mãe sempre trabalhara fora. A criada ainda era solteira. Tinha 29 anos e uma aparência meio sem graça, mas um sorriso bonito e bondoso. No verão anterior tivera um romance com um policial chamado Paul Huber, mas a história não havia durado.

           Carla e a mãe postaram-se em frente ao espelho do hall para pôr o chapéu. A mãe se arrumou sem pressa. Escolheu um chapéu de feltro azul-escuro, de copa redonda e aba estreita, do tipo que todas as mulheres estavam usando. No entanto, inclinou-o sobre a cabeça num ângulo diferente, dando-lhe um aspecto chique. Enquanto vestia o gorro de tricô, Carla se perguntou se algum dia teria o talento de sua mãe para o estilo. Maud parecia uma deusa da guerra: pescoço comprido, queixo e malares que pareciam esculpidos em mármore branco. Sem dúvida era uma mulher linda, mas não de uma beleza convencional. Carla tinha os mesmos cabelos escuros e olhos verdes da mãe, porém parecia mais uma boneca rechonchuda do que uma estátua. Certa vez, ouvira por acaso a avó dizer à mãe: “Seu patinho feio vai crescer e virar um cisne, você vai ver.” Carla ainda estava esperando isso acontecer.

           Quando a mãe ficou pronta, as duas saíram. A casa, situada no bairro de Mitte, o antigo centro da cidade, fazia parte de um conjunto de imóveis residenciais altos e graciosos construídos para ministros e oficiais militares de alto escalão que trabalhavam nos prédios do governo ali perto, como o avô de Carla.

           Ela e a mãe pegaram um bonde que seguiu pela Unter den Linden. Depois embarcaram no trem rápido da Friedrichstrasse até a estação Zoo. Os Franck moravam no subúrbio de Schöneberg, a sudoeste da cidade.

           Carla estava torcendo para encontrar Werner, o irmão de Frieda, que tinha 14 anos. Gostava dele. Às vezes, Carla e Frieda se imaginavam casadas com o irmão uma da outra, vizinhas de porta e com filhos que eram melhores amigos. Para Frieda aquilo não passava de uma brincadeira, mas Carla, no fundo, levava a fantasia a sério. Werner era bonito, mais velho e nem um pouco bobo como Erik. Na casa de bonecas do quarto de Carla, a mãe e o pai que dormiam lado a lado na pequena cama de casal se chamavam Carla e Werner, mas ninguém sabia disso, nem mesmo Frieda.

           Frieda tinha outro irmão, Axel, de 7 anos, que nascera com espinha bífida e exigia cuidados médicos constantes. Ele morava num hospital especial nos arredores de Berlim.

           Durante o trajeto, a mãe de Carla se mostrou preocupada.

           – Espero que fique tudo bem – murmurou ela, meio para si mesma, enquanto as duas desciam do vagão.

           – É claro que vai ficar – retrucou Carla. – Vou me divertir muito com Frieda.

           – Não é disso que estou falando. Eu me referia ao que escrevi sobre Hitler.

           – Nós estamos correndo perigo? Papai tinha razão?

           – Seu pai quase sempre tem razão.

           – O que vai acontecer conosco se tivermos chateado os nazistas?

           A mãe passou vários instantes olhando para a filha com uma expressão estranha, e então disse:

           – Meu Deus, que mundo é este em que eu fui pôr você? – Depois não falou mais nada.

           As duas caminharam por dez minutos e chegaram a um casarão imponente situado num grande jardim. Os Franck eram uma família rica: Ludwig, pai de Frieda, tinha uma fábrica de rádios. Dois carros estavam parados em frente à casa. O maior deles, preto e lustroso, pertencia a Herr Franck. O motor estava ligado e uma nuvem de fumaça azulada saía do cano de descarga. Ritter, o motorista, estava de pé, pronto para abrir a porta. Usava a calça do uniforme enfiada para dentro das botas de cano longo e segurava seu quepe. Inclinando o corpo para a frente, ele falou:

           – Bom dia, Frau Von Ulrich.

           O segundo carro era pequeno, de apenas dois lugares, e verde. Um homem baixo de barba grisalha saiu da casa com uma pasta de couro na mão e tocou no chapéu para cumprimentar a mãe de Carla enquanto entrava no carro menor.

           – O que será que o Dr. Rothmann está fazendo aqui tão cedo? – perguntou a mãe, preocupada.

           As duas não demoraram a descobrir. Monika, mãe de Frieda, uma mulher alta com uma basta cabeleira ruiva, apareceu na porta da casa. Seu rosto pálido tinha uma expressão aflita. Em vez de convidar Carla e sua mãe a entrar, ficou parada na soleira da porta como se quisesse impedir que passassem.

           – Frieda está com catapora! – exclamou.

           – Ah, eu sinto muito! – disse a mãe de Carla. – Como ela está?

           – Péssima, com febre e tosse. O Dr. Rothmann disse que ela vai ficar boa, mas está de quarentena.

           – Claro. Você já teve catapora?

           – Já... quando era pequena.

           – E Werner também... lembro que ele ficou todo empolado. Mas e o seu marido?

           – Ludi também teve quando era criança.

           As duas mulheres olharam para Carla. Ela nunca tivera catapora. A menina logo entendeu que isso significava que não poderia passar o dia com Frieda.

           Carla ficou decepcionada, mas sua mãe ficou bastante abalada.

           – A edição desta semana é sobre as eleições... eu não posso faltar ao trabalho. – Ela parecia desnorteada. Todos os adultos estavam apreensivos com a eleição geral que aconteceria no domingo seguinte. Tanto a mãe quanto o pai de Carla temiam que os nazistas se saíssem bem o suficiente para assumir o controle total do governo. – Além disso, minha grande amiga veio de Londres me visitar. Será que consigo convencer Walter a tirar um dia de folga para ficar com Carla?

           – Por que não telefona para ele? – sugeriu Monika.

           Poucas eram as famílias com telefone em casa, mas os Franck tinham, e Carla e a mãe entraram no hall. O aparelho ficava em cima de uma mesinha de pernas finas junto à porta. A mãe pegou-o e disse para a telefonista o número do escritório do pai no Reichstag, sede do Parlamento alemão. Quando a ligação foi completada, ela explicou a situação ao marido. Passou um minuto ouvindo, então fez uma cara zangada.

           – Minha revista vai incentivar 100 mil leitores a fazerem campanha para o Partido Social-Democrata – disse ela. – Você tem mesmo algum compromisso mais importante do que esse para hoje?

           Carla podia prever como aquela discussão iria terminar. Sabia que o pai a amava muito, mas em seus 11 anos de vida ele nunca tinha cuidado dela um dia inteiro. Os pais de todas as suas amigas também eram assim. Homem nenhum fazia esse tipo de coisa. Mas a mãe de Carla às vezes fingia desconhecer as regras segundo as quais as mulheres viviam.

           – Nesse caso, vou ter que levá-la comigo para o escritório – disse a mãe ao telefone. – Não quero nem pensar no que Jochmann vai dizer. – Herr Jochmann era o chefe dela. – Mesmo nos dias bons, ele não é lá muito feminista. – Ela pôs o fone no gancho sem se despedir.

           Carla odiava quando os pais brigavam e aquela era a segunda vez no mesmo dia. As brigas faziam seu mundo parecer instável. Tinha muito mais medo delas do que dos nazistas.

           – Então vamos – disse-lhe a mãe, e Carla se dirigiu para a porta.

           Não vou nem ver Werner, pensou a menina, desanimada.

           Nesse momento o pai de Frieda apareceu no hall. Era um homem enérgico e animado, de rosto corado e bigodinho preto. Com simpatia, cumprimentou a mãe de Carla, que conversou educadamente com ele enquanto Monika o ajudava a vestir um sobretudo preto com gola de pele.

           Ele foi até o pé da escada.

           – Werner! – gritou. – Vou embora sem você! – Ele ajeitou um chapéu de feltro cinza na cabeça e saiu.

           – Estou pronto, estou pronto!

           Werner desceu a escada correndo, com a graça de um bailarino. Era tão alto quanto o pai, só que mais bonito, e usava os cabelos ruivo-claros um pouco mais compridos que o normal. Trazia debaixo do braço uma bolsa de couro que parecia estar cheia de livros e, na outra mão, segurava um par de patins de gelo e um taco de hóquei. Apesar da pressa, deteve-se para falar com elas, muito educado.

           – Bom dia, Frau Von Ulrich. – Então acrescentou em tom mais informal: – Oi, Carla. Minha irmã está com catapora.

           A menina sentiu o rosto corar, sem motivo algum.

           – Eu sei – respondeu. Tentou pensar em alguma coisa simpática e divertida para dizer, mas nada lhe ocorreu. – Nunca tive catapora, então não poderei ficar com ela.

           – Eu tive quando era criança – disse ele, como se isso tivesse sido muito tempo antes. – Preciso correr – acrescentou, em tom de quem pede desculpas.

           Carla não queria perdê-lo de vista assim tão depressa. Seguiu-o até o lado de fora. Ritter segurava a porta traseira do carro aberta.

           – Que carro é esse? – perguntou Carla. Meninos sempre sabiam a marca dos carros.

           – Uma limusine W10 da Mercedes-Benz.

           – Parece bem confortável. – Viu de relance a expressão da mãe, meio surpresa, meio achando graça.

           – Querem uma carona? – perguntou Werner.

           – Seria maravilhoso.

           – Vou pedir ao meu pai. – Werner pôs a cabeça dentro do carro e disse alguma coisa.

           Carla ouviu Herr Franck responder:

           – Está bem, mas andem logo!

           Virou-se para a mãe, animada:

           – Podemos ir no carro!

           A mãe hesitou, mas só por um momento. Não gostava do posicionamento político de Herr Franck – ele dava dinheiro aos nazistas –, mas não iria recusar uma carona num carro quentinho naquela manhã fria.

           – Quanta gentileza, Ludwig – falou a mãe.

           Elas entraram. Havia lugar para quatro pessoas no banco de trás. Ritter saiu com o carro sem dar nenhum solavanco.

           – Imagino que esteja indo para a Kochstrasse? – perguntou Herr Franck.

           Muitos jornais e editoras tinham escritório nessa rua, no bairro de Kreuzberg.

           – Por favor, não se desvie do seu caminho. A Leipziger Strasse já está bom.

           – Eu a levaria até a porta com prazer... mas imagino que você não queira que seus colegas de esquerda a vejam sair do carro de um plutocrata gordo. – Seu tom ficava entre o bom humor e a hostilidade.

           A mãe de Carla lançou um sorriso encantador para ele.

           – Ora, Ludi, você não é gordo... só um pouco cheinho. – Ela deu alguns tapinhas na frente do sobretudo dele.

           Herr Franck riu.

           – Tudo bem, eu mereci.

           A tensão se dissipou. Herr Franck pegou o fone interno e deu instruções a Ritter.

           Carla estava empolgada por andar de carro com Werner. Queria tirar todo o proveito possível da situação e conversar com ele, mas no início não conseguiu pensar em nenhum assunto. Na verdade, queria dizer: “Quando você for mais velho, acha que poderia se casar com uma moça de cabelos escuros e olhos verdes, inteligente e uns três anos mais nova que você?” Acabou apontando para os patins e perguntando:

           – Você tem jogo hoje?

           – Não, só um treino depois da escola.

           – Em que posição você joga? – Ela não entendia nada de hóquei no gelo, mas os jogos de equipe sempre tinham posições.

           – Ala direita.

           – Não é um esporte meio perigoso?

           – Não se você for rápido.

           – Você deve patinar muito bem.

           – Eu me viro – disse ele, modesto.

           Mais uma vez, Carla surpreendeu a mãe a observando com um sorrisinho enigmático. Será que ela havia adivinhado os sentimentos que a filha nutria por Werner? Sentiu-se corar outra vez.

           Então o carro parou em frente ao prédio de uma escola e Werner desceu.

           – Tchau, todo mundo! – falou, antes de entrar correndo no pátio.

           Ritter voltou a dirigir, seguindo a margem sul do canal de Landwehr. Carla olhou para as barcaças sobre a água, com seus carregamentos de carvão encimados de neve, parecendo montanhas. Estava um tanto desapontada. Conseguira mais tempo com Werner insinuando-se para aquela carona, mas depois o desperdiçara falando sobre hóquei no gelo.

           Mas sobre o que gostaria de conversar com ele? Não sabia dizer.

           Herr Franck estava falando com sua mãe:

           – Li sua coluna na revista O Democrata.

           – Espero que tenha gostado.

           – Lamentei seu tom desrespeitoso ao escrever sobre nosso chanceler.

           – Você acha que os jornalistas deveriam escrever respeitosamente sobre políticos? – retrucou a mãe, animada. – Que opinião mais radical! Nesse caso, a imprensa nazista teria de ser educada em relação ao meu marido! Aposto que eles não iriam gostar.

           – Não todos os políticos, é claro – respondeu Franck, irritado.

           Eles passaram pelo movimentado cruzamento da Potsdamerplatz. Carros e bondes disputavam lugar com carroças puxadas a cavalo e pedestres, formando uma confusão caótica.

           – Não é melhor que a imprensa possa criticar todo mundo sem diferença? – perguntou a mãe a Franck.

           – Em teoria, é uma ideia maravilhosa – respondeu ele. – Mas vocês, socialistas, vivem num mundo de fantasia. Nós, homens práticos, sabemos que a Alemanha não pode viver de ideais. As pessoas precisam de pão, sapatos e carvão.

           – Concordo – retrucou a mãe. – Eu mesma precisaria de mais carvão. Mas quero que Carla e Erik cresçam cidadãos de um país livre.

           – Você superestima a liberdade. Ser livre não faz ninguém feliz. As pessoas preferem ser guiadas. Eu quero que Werner, Frieda e o pobre Axel cresçam em um país orgulhoso, disciplinado e unido.

           – E para que sejamos unidos precisamos de jovens brutamontes de camisa marrom espancando velhos comerciantes judeus?

           – A política é uma coisa violenta. Não há nada que se possa fazer sobre isso.

           – Pelo contrário. Você e eu somos líderes, Ludwig, cada um a seu modo. É responsabilidade nossa tornar a política menos violenta: mais honesta, mais racional, menos bruta. Se não fizermos isso, estaremos falhando em nosso dever patriótico.

           Herr Franck pareceu ofendido.

           Carla não sabia muita coisa sobre os homens, mas podia perceber que eles não gostavam de ouvir sermões das mulheres a respeito dos seus deveres. Sua mãe devia ter esquecido de acionar o botão do charme naquela manhã. Mas a verdade era que todos estavam tensos. A eleição estava se aproximando e os deixando nervosos.

           O carro chegou à Leipziger Platz.

           – Onde posso deixá-las? – perguntou Herr Franck, frio.

           – Aqui mesmo está bom – respondeu a mãe de Carla.

           Franck deu uma batidinha na divisória de vidro. Ritter parou o carro e correu para abrir a porta.

           – Espero que Frieda fique boa logo – disse a mãe antes de saltar.

           – Obrigado.

           As duas desceram e Ritter fechou a porta.

           O escritório da revista ficava a vários minutos de caminhada dali, mas obviamente sua mãe não quisera passar mais tempo no carro. Carla torceu para que ela não começasse a brigar o tempo todo com Herr Franck. Isso poderia dificultar seus encontros com Frieda e Werner, e ela detestaria isso.

           As duas saíram andando a passos rápidos.

           – Tente não atrapalhar ninguém lá na revista – instruiu a mãe.

           O tom de súplica em sua voz deixou Carla comovida e envergonhada por lhe causar preocupação. Ela decidiu se portar de forma impecável.

           No caminho, a mãe cumprimentou várias pessoas. Até onde Carla conseguia se lembrar, ela sempre escrevera a coluna e era bastante conhecida no mundo jornalístico. Todos a chamavam de “Lady Maud”, assim mesmo, em inglês.

           Perto do prédio onde ficava o escritório da revista, elas toparam com um conhecido da família. O sargento Schwab havia lutado com o pai de Carla na Grande Guerra e ainda usava os cabelos muito curtos, ao estilo militar. Depois da guerra, passara a trabalhar como jardineiro, primeiro para o avô de Carla, depois para o pai. Mas roubara dinheiro da bolsa de sua mãe e fora mandado embora. Schwab estava usando o feio uniforme militar das tropas de assalto, os camisas-pardas, que não eram soldados, mas nazistas que gozavam da autoridade de uma polícia auxiliar.

           – Bom dia, Frau Von Ulrich! – cumprimentou Schwab em voz alta, como se não sentisse qualquer vergonha de ser ladrão. Ele nem sequer levou a mão ao quepe.

           A mãe de Carla aquiesceu com frieza e passou por ele sem parar de andar.

           – O que será que Schwab está fazendo aqui? – murmurou ela, aflita, enquanto as duas entravam.

           A revista ocupava o primeiro andar de um prédio comercial moderno. Carla sabia que uma criança não seria bem-vinda ali e torceu para que conseguissem chegar à sala da mãe sem serem vistas. Na escada, porém, cruzaram com Herr Jochmann. O chefe de sua mãe era um homem pesado, que usava óculos de lentes grossas.

           – O que é isso? – perguntou ele em tom brusco, sem deixar cair o cigarro que tinha na boca. – Isto aqui agora virou um jardim de infância?

           A mãe não reagiu à grosseria.

           – Estive pensando no comentário que o senhor fez outro dia – disse ela. – Sobre como os jovens pensam que o jornalismo é uma profissão cheia de glamour e não entendem como é preciso trabalhar duro.

           Ele franziu o cenho.

           – Eu disse isso? Bem, com certeza é verdade.

           – Então trouxe minha filha aqui para ver a realidade. Acho que vai ser bom para a educação dela, sobretudo se virar escritora. Ela vai fazer um relato sobre a visita para a turma da escola. Tive certeza de que o senhor iria concordar.

           A mãe estava improvisando, mas Carla achou que a desculpa soava convincente. Ela mesma quase acreditou. O botão do charme finalmente havia sido acionado.

           – A senhora não vai receber uma visita importante de Londres hoje? – perguntou Jochmann.

           – Vou, sim. Ethel Leckwith. Mas ela é uma velha amiga... conheceu Carla ainda bebê.

           Isso fez Jochmann se acalmar um pouco.

           – Hum. Bem, temos reunião editorial daqui a cinco minutos, assim que eu comprar cigarros e voltar.

           – Carla pode ir para o senhor. – A mãe virou-se para ela: – Há uma tabacaria nesta mesma rua, três prédios depois do nosso. Herr Jochmann fuma cigarros da marca Roth-Händle.

           – Ah, isso vai me poupar a viagem. – Jochmann entregou a Carla uma moeda de um marco.

           – Quando voltar, pode me encontrar na sala no alto da escada, ao lado do alarme de incêndio – disse-lhe a mãe. Então deu as costas para a filha e segurou o braço de Jochmann, confiante. – Acho que a edição da semana passada talvez tenha sido a melhor que já fizemos – declarou enquanto os dois subiam a escada.

           Carla saiu correndo para a rua. Sua mãe conseguira se safar usando a mistura de ousadia e flerte que lhe era característica. Ela às vezes dizia: “Nós, mulheres, temos que usar todas as armas de que dispomos.” Ao pensar nisso, Carla notou que tinha usado a mesma tática para conseguir a carona de Herr Franck. Talvez, no final das contas, fosse parecida com a mãe. Talvez por isso ela houvesse lhe lançado aquele sorrisinho curioso: estava se vendo trinta anos mais jovem.

           Havia fila na tabacaria. Metade dos jornalistas de Berlim parecia estar comprando seu estoque para o dia. Por fim, Carla conseguiu seu maço de Roth-Händle e voltou para a sede da revista O Democrata. Foi fácil encontrar o alarme de incêndio – uma grande alavanca presa à parede –, mas sua mãe não estava na sala. Sem dúvida devia ter ido à tal reunião editorial.

           Carla seguiu pelo corredor. Todas as portas estavam abertas e a maioria das salas, vazia, exceto por algumas mulheres que deviam ser datilógrafas e secretárias. Nos fundos do prédio, depois de virar num corredor, havia uma porta fechada na qual se lia “Sala de Reuniões”. Carla ouviu vozes masculinas exaltadas discutindo lá dentro. Bateu na porta, mas ninguém respondeu. Hesitou, então girou a maçaneta e entrou.

           A sala estava tomada pela fumaça de cigarro. Havia de oito a dez pessoas sentadas em volta de uma mesa comprida. Sua mãe era a única mulher. Todos se calaram, aparentemente espantados, quando Carla foi até a cabeceira e entregou a Jochmann os cigarros e o troco. Aquele silêncio a fez pensar que tinha sido errado entrar ali.

           Mas Jochmann apenas disse:

           – Obrigado.

           – De nada, senhor – respondeu ela e, por algum motivo, fez uma leve mesura.

           Os homens riram. Um deles falou:

           – Assistente nova, Jochmann?

           Então Carla entendeu que estava tudo bem.

           Saiu depressa da sala de reuniões e voltou para a de sua mãe. Não tirou o casaco – fazia frio lá dentro. Olhou em volta. Sobre a mesa, viu um telefone, uma máquina de escrever e pilhas de papel e papel-carbono.

           Ao lado do telefone havia um porta-retratos com uma fotografia de Carla e Erik com o pai. Fora tirada alguns anos antes, num dia ensolarado, na praia às margens do lago Wannsee, a uns 25 quilômetros do centro de Berlim. Seu pai estava de short. Todos riam. Aquilo fora antes de Erik começar a fingir que era um homem adulto e durão.

           A única outra fotografia, pendurada na parede, mostrava sua mãe com o herói social-democrata Friedrich Ebert, primeiro presidente da Alemanha depois da guerra. Havia sido tirada uns dez anos antes. Carla sorriu ao ver o vestido solto e de cintura baixa da mãe e seus cabelos curtos: aquela devia ser a moda da época.

           A estante continha publicações que listavam as figuras importantes da sociedade, cadernetas de telefone, dicionários e atlas em várias línguas, mas nada para ler. Na gaveta da mesa, Carla encontrou lápis, vários pares novos de luvas formais, ainda embrulhados em papel de seda, um pacote de toalhas higiênicas e um caderno com nomes e números de telefone.

           Carla acertou a data no calendário de mesa: segunda-feira, 27 de fevereiro de 1933. Então inseriu uma folha de papel na máquina de escrever. Datilografou seu nome completo: Heike Carla von Ulrich. Aos 5 anos, ela declarara que não gostava do nome Heike e queria que todos usassem seu segundo nome. De algum modo, para sua surpresa, a família aceitara.

           Cada uma das teclas da máquina fazia uma haste de metal se erguer e bater no papel por cima de uma fita de tinta, imprimindo assim uma letra. Sem querer, Carla apertou duas teclas ao mesmo tempo e as hastes ficaram presas. Tentou soltá-las, mas não conseguiu. De nada adiantou apertar outra tecla: agora eram três hastes emboladas. A menina soltou um gemido: estava encrencada.

           Um barulho vindo da rua a distraiu. Ela foi até a janela. Uns dez camisas-pardas marchavam pelo meio da rua gritando palavras de ordem: “Morte a todos os judeus! Vão para o inferno, judeus!” Carla não entendia por que toda aquela raiva dos judeus, que pareciam iguais a todo mundo, a não ser pela religião. Ficou espantada ao ver o sargento Schwab à frente do grupo. Sentira pena quando ele fora demitido, pois sabia que seria difícil para ele arrumar outro emprego. Havia milhões de desempregados na Alemanha: segundo seu pai, o país passava por uma depressão. Mas a mãe dissera: “Como podemos ter um homem que rouba dentro de casa?”

           Os gritos então se modificaram. “Destruição aos jornais de judeus!”, entoaram os homens em uníssono. Um deles atirou alguma coisa e um legume podre se espatifou na porta da sede de um jornal de circulação nacional. Então, para horror de Carla, eles se viraram para o prédio onde ela estava.

           A menina recuou e ficou espiando pelo canto da moldura da janela, torcendo para não ser vista. O grupo parou do lado de fora, ainda cantando. Um dos homens jogou uma pedra, que acertou a janela de Carla sem quebrá-la. Mesmo assim, a garota soltou um gritinho de medo. Instantes depois, uma das datilógrafas, uma moça de boina vermelha, entrou na sala.

           – O que houve? – perguntou e então olhou pela janela. – Ai, droga!

           Os camisas-pardas entraram no prédio e Carla ouviu botas na escada. Estava com medo: o que eles iriam fazer?

           O sargento Schwab entrou na sala de sua mãe. Hesitou ao ver a moça e a menina, mas depois pareceu tomar coragem. Pegou a máquina de escrever e atirou-a pela janela, estilhaçando a vidraça. Carla e a datilógrafa gritaram.

           Mais camisas-pardas passaram no corredor gritando suas palavras de ordem.

           Schwab segurou a mulher pelo braço e disse:

           – E agora, querida, onde fica o cofre do escritório?

           – Na sala do arquivo! – respondeu a secretária com voz aterrorizada.

           – Mostre para mim.

           – Sim, tudo o que o senhor quiser!

           Ele a empurrou para fora da sala marchando.

           Carla começou a chorar, mas então obrigou-se a parar.

           Pensou em se esconder debaixo da mesa, mas hesitou. Não queria mostrar a eles que estava com medo. Alguma coisa dentro dela queria desafiá-los.

           Mas o que ela deveria fazer? Decidiu avisar à mãe.

           Foi até o limiar da porta e espiou. Os camisas-pardas entravam e saíam das salas, mas ainda não tinham chegado ao final do corredor. Carla não sabia se as pessoas na sala de reuniões podiam ouvir a confusão. Disparou pelo corredor o mais depressa que pôde, porém um grito a deteve. Ela olhou para dentro de uma das salas e viu Schwab sacudindo a datilógrafa de boina vermelha, aos berros:

           – Onde está a chave?

           – Não sei, eu juro que não sei! – gritava a moça.

           Carla ficou indignada. Schwab não tinha o direito de tratar uma mulher daquele jeito.

           – Deixe a moça em paz, Schwab, seu ladrão! – esbravejou.

           Schwab olhou com ódio para a menina e, de repente, ela ficou dez vezes mais assustada. Então o olhar se desviou para alguém atrás dela e ele disse:

           – Tire essa porcaria de criança da minha frente.

           Alguém a agarrou por trás.

           – Você por acaso é uma judiazinha? – perguntou uma voz de homem. – Parece que é, com todo esse cabelo escuro.

           Aquilo a deixou em pânico.

           – Eu não sou judia! – gritou ela.

           O camisa-parda carregou Carla de volta para o corredor e a deixou na sala da mãe. Ela cambaleou e caiu no chão.

           – Fique aqui – disse ele e se afastou.

           Carla se levantou. Não estava machucada. O corredor agora estava cheio de camisas-pardas e ela não conseguiria chegar até a mãe. Mas precisava pedir ajuda.

           Olhou pela vidraça quebrada. Um pequeno grupo já se juntava na rua. Dois policiais conversavam no meio desses observadores. Carla gritou para eles:

           – Socorro! Socorro, polícia!

           Eles a viram e começaram a rir.

           Isso a deixou furiosa, e a raiva fez seu medo diminuir. Ela se virou de novo para o corredor. Seu olhar pousou no alarme de incêndio preso à parede. Ela ergueu a mão e segurou a alavanca.

           Hesitou. Não devia soar o alarme se não houvesse um incêndio, e um aviso na parede alertava quanto às severas penalidades para quem descumprisse a regra.

           Ela puxou a alavanca mesmo assim.

           Por um instante, nada aconteceu. Talvez o mecanismo não estivesse funcionando.

           Então um barulho alto e estridente de sirene encheu o prédio, o volume variando entre alto e baixo.

           Quase na mesma hora, as pessoas que estavam na sala de reuniões surgiram no final do corredor. Jochmann veio na frente.

           – Que diabo está acontecendo aqui? – perguntou com raiva, gritando mais alto que o alarme.

           – Esta revistazinha judaico-comunista insultou nosso líder e nós vamos fechá-la – disse um dos camisas-pardas.

           – Saiam já do meu escritório!

           O camisa-parda o ignorou e entrou em uma sala ao lado. Instantes depois, ouviu-se um grito de mulher e um estrondo que soou como uma mesa de aço sendo derrubada.

           Jochmann se virou para um de seus funcionários e ordenou:

           – Schneider, chame a polícia agora mesmo!

           Carla sabia que isso não iria adiantar. A polícia já estava lá e não fazia nada.

           A mãe abriu caminho entre as pessoas ali reunidas e correu na sua direção.

           – Você está bem? – exclamou, envolvendo a filha num abraço.

           Carla não queria ser consolada como uma criança. Empurrou a mãe para longe e disse:

           – Estou bem, não se preocupe.

           A mãe olhou em volta.

           – Minha máquina de escrever!

           – Eles a jogaram pela janela. – Carla então se deu conta de que agora não estava mais encrencada por ter emperrado as teclas.

           – Temos que sair daqui. – A mãe pegou o porta-retratos, segurou a mão de Carla e as duas deixaram a sala às pressas.

           Ninguém tentou impedi-las de descer correndo a escada. À sua frente, um rapaz forte que devia ser um dos repórteres tinha imobilizado um dos camisas-pardas por trás, pelo pescoço, e o arrastava para fora do prédio. Carla e a mãe seguiram os dois até a rua. Outro camisa-parda saiu atrás delas.

           Ainda arrastando o camisa-parda, o repórter chegou perto dos dois policiais.

           – Prendam este homem – disse. – Eu o peguei roubando nosso escritório. No bolso dele há uma lata de café roubada.

           – Solte-o, por favor – disse o mais velho dos policiais.

           Com relutância, o repórter obedeceu.

           O segundo camisa-parda se postou ao lado do colega.

           – Qual é o seu nome, senhor? – perguntou o policial ao repórter.

           – Rudolf Schmidt. Sou o principal correspondente parlamentar da revista O Democrata.

           – Rudolf Schmidt, o senhor está preso por agredir um policial.

           – Não seja ridículo. Eu flagrei este homem roubando!

           O policial meneou a cabeça para os dois camisas-pardas e falou:

           – Levem-no para a delegacia.

           Os dois seguraram Schmidt pelos braços. Ele deu a impressão de que ia resistir, mas depois mudou de ideia.

           – Todos os detalhes deste incidente serão publicados na próxima edição da revista! – gritou ele.

           – Não vai haver mais nenhuma edição da revista – disse o policial. – Levem-no embora daqui.

           Um carro de bombeiros chegou e meia dúzia de homens saltaram. O líder se dirigiu aos policiais em tom brusco.

           – Precisamos evacuar o prédio – falou.

           – Voltem para o quartel, não há incêndio algum aqui – esclareceu o policial mais velho. – São só as tropas de assalto fechando uma revista comunista.

           – Isso não me diz respeito – retrucou o bombeiro. – O alarme foi acionado e nosso primeiro dever é esvaziar o prédio, com ou sem tropas de assalto. Vamos nos virar sem a sua ajuda, então. – Ele conduziu seus homens para dentro do prédio.

           – Ah, não! – exclamou a mãe de Carla.

           Quando a menina se virou, viu que a mãe estava olhando para a máquina de escrever, espatifada na calçada onde caíra. O corpo de metal havia se soltado, expondo as conexões entre teclas e hastes. O teclado estava deformado, irreconhecível. Uma das extremidades do cilindro arrebentara e a campainha que tocava para indicar o fim de uma linha jazia no chão, abandonada. Uma máquina de escrever não era um objeto precioso, mas a mãe parecia à beira das lágrimas.

           Os camisas-pardas e os funcionários da revista saíram do prédio conduzidos pelos bombeiros. O sargento Schwab resistia, gritando com raiva:

           – Não há incêndio nenhum!

           Mas os bombeiros simplesmente continuavam a empurrá-lo.

           Jochmann saiu à rua e disse à mãe de Carla:

           – Eles não tiveram tempo de estragar muita coisa... os bombeiros não deixaram. Não sei quem foi, mas a pessoa que acionou o alarme nos prestou um enorme serviço!

           Carla, que antes estava com medo de ser repreendida por causa do alarme falso, se deu conta de que tinha feito exatamente a coisa certa.

           Segurou a mão da mãe e isso pareceu despertá-la de seu momento de tristeza. Ela enxugou os olhos com a manga da roupa, ato pouco usual que revelou quanto estava abalada: se Carla tivesse feito a mesma coisa, a mãe lhe teria dito para usar um lenço.

           – O que vamos fazer agora? – A mãe nunca dizia isso. Ela sempre sabia o que fazer.

           Carla percebeu duas pessoas em pé ali perto. Ergueu os olhos. Uma delas era uma mulher mais ou menos da mesma idade de sua mãe, muito bonita, com ar de autoridade. Carla a conhecia, mas não soube dizer de onde. Ao seu lado estava um rapaz jovem o bastante para ser seu filho. Era magro, não muito alto, mas parecia um astro de cinema. Tinha um rosto tão atraente que poderia ter sido quase bonito demais, não fosse pelo nariz achatado e torto. Ambos os recém-chegados pareciam chocados e o mais novo estava pálido de raiva.

           A mulher foi a primeira a falar, em inglês:

           – Olá, Maud. – Sua voz soou vagamente conhecida para Carla. – Não está me reconhecendo? – continuou ela. – Sou Eth Leckwith, e este é Lloyd.

 

           Lloyd Williams encontrou uma academia de boxe em Berlim onde podia treinar por uma hora ao custo de poucos pennies. Ficava em Wedding, um bairro operário ao norte. Ele se exercitou com os malabares indianos e com a bola de peso, pulou corda, bateu no saco de pancadas, em seguida pôs um capacete e lutou cinco rounds no ringue. O professor da academia arrumou para ele um parceiro de treino, um alemão da mesma idade de Lloyd e tão corpulento quanto ele, que era meio-médio. O alemão tinha um jab muito bom e veloz, que surgia do nada e conseguiu machucar Lloyd várias vezes antes que ele acertasse o adversário com um gancho de esquerda que o derrubou.

           Lloyd fora criado num bairro perigoso, o East End londrino. Aos 12 anos, sofrera provocações na escola.

           – Comigo aconteceu a mesma coisa – dissera Bernie Leckwith, seu padrasto. – Quando você é o menino mais inteligente da escola, passa a ser perseguido pelo valentão da turma.

           Bernie era judeu – a mãe dele só falava iídiche. Ele levara o enteado à Academia de Boxe de Aldgate. Ethel fora contra, mas Bernie havia ignorado a opinião dela, algo que não acontecia com muita frequência.

           Ali, Lloyd aprendeu a se mover depressa e a desferir socos fortes, e as provocações na escola cessaram. Foi lá também que quebrou o nariz, comprometendo um pouco sua bela aparência. Além disso, descobriu um talento: tinha reflexos rápidos e um temperamento combativo, o que lhe rendeu prêmios no ringue. Seu treinador estava decepcionado por ele querer estudar em Cambridge em vez de virar boxeador profissional.

           Ele tomou uma ducha e tornou a vestir o terno. Em seguida foi a um bar de operários, pediu um copo de cerveja e sentou-se para escrever uma carta contando o incidente com os camisas-pardas para Millie, sua meia-irmã. Ela estava enciumada por ele fazer aquela viagem com a mãe, e Lloyd prometera lhe enviar notícias com frequência.

           A confusão daquela manhã deixara Lloyd perturbado. A política fazia parte de seu dia a dia: Ethel já fora membro do Parlamento, Bernie era conselheiro regional em Londres, e ele próprio era o presidente londrino da Liga Juvenil Trabalhista. No entanto, a política sempre tivera a ver com debates e votações – até aquele dia. Era a primeira vez que ele via um escritório ser vandalizado por brutamontes uniformizados enquanto a polícia assistia a tudo com um sorriso no rosto. Aquilo era política violenta, e ele ficara chocado.

           “Será que isso pode acontecer em Londres, Millie?”, escreveu. Seu primeiro instinto era pensar que não. Hitler, contudo, tinha admiradores entre os industriais e os donos de jornal da Grã-Bretanha. Poucos meses antes, um membro dissidente do Parlamento, Sir Oswald Mosley, fundara a União Britânica de Fascistas. Assim como os nazistas, eles gostavam de se pavonear usando uniformes militares. O que viria depois?

           Terminou a carta, dobrou o papel e foi pegar o trem rápido de volta ao centro da cidade. Ele e sua mãe iriam jantar com Walter e Maud von Ulrich. Lloyd passara a vida toda ouvindo falar em Maud. A amizade entre ela e sua mãe surgira de um jeito pouco convencional: Ethel começara a vida profissional trabalhando como criada na mansão da família de Maud. Mais tarde, as duas tinham sido sufragistas e lutado juntas pelo direito de voto feminino. Durante a guerra, haviam publicado um jornal feminista chamado The Soldier’s Wife, “a esposa do soldado”. Depois disso brigaram por divergências políticas e se afastaram.

           Lloyd se lembrava muito bem da visita da família Von Ulrich a Londres, em 1925. Tinha 10 anos, idade suficiente para sentir vergonha de não falar alemão enquanto Erik e Carla, com 5 e 3 anos respectivamente, eram bilíngues. Foi nessa ocasião que Ethel e Maud fizeram as pazes.

           Ele foi andando até o restaurante, chamado Bistrô Robert. O interior era art déco, com mesas e cadeiras estritamente retangulares e luminárias rebuscadas, feitas de ferro maciço, com cúpulas de vidro coloridas. Mas Lloyd gostou dos guardanapos bem-engomados que aguardavam junto aos pratos, em posição de sentido.

           Os outros três já haviam chegado. Ao se aproximar da mesa, Lloyd reparou que as mulheres estavam belíssimas: ambas seguras, bem-vestidas, atraentes e confiantes. Os demais clientes do restaurante as olhavam com admiração. Ele se perguntou quanto do senso de estilo da mãe fora herdado da amiga aristocrata.

           Uma vez feito o pedido, Ethel explicou o motivo de sua viagem:

           – Perdi minha cadeira no Parlamento em 1931 – disse ela. – Espero recuperá-la nas próximas eleições, mas enquanto isso tenho que me sustentar. Por sorte, Maud, você me ensinou a ser jornalista.

           – Não precisei lhe ensinar muita coisa – retrucou Maud. – Você tinha um talento natural.

           – Estou escrevendo uma série de artigos sobre os nazistas para o News Chronicle e assinei um contrato com um editor chamado Victor Gollancz para escrever um livro. Trouxe Lloyd para ser meu intérprete. Ele está estudando francês e alemão.

           Lloyd observou o sorriso orgulhoso da mãe e sentiu que não o merecia.

           – Meus dotes de tradutor ainda não foram testados direito – disse ele. – Até agora, só encontramos pessoas como vocês, que falam um inglês perfeito.

           Lloyd tinha pedido vitela empanada, prato que nunca vira na Inglaterra. Achou uma delícia. Enquanto comiam, Walter lhe perguntou:

           – Você não deveria estar na escola?

           – Mamãe achou que eu aprenderia melhor o alemão assim, e a escola concordou.

           – Por que não vem trabalhar comigo no Reichstag por um tempo? Infelizmente não posso pagar, mas você falaria alemão o dia inteiro.

           Lloyd ficou muito animado.

           – Eu adoraria. Que oportunidade incrível!

           – Se Ethel não for precisar de você – acrescentou Walter.

           Ethel sorriu.

           – Talvez eu possa pegá-lo emprestado vez por outra, quando precisar muito dele.

           – Claro.

           Ela estendeu o braço por cima da mesa e tocou a mão de Walter. Era um gesto íntimo e Lloyd percebeu que o vínculo entre aqueles três era muito estreito.

           – Você é muito gentil, Walter.

           – Na verdade, não sou, não. Um assessor jovem e inteligente que entende de política é sempre útil para mim.

           – Não tenho certeza se ainda entendo de política – comentou Ethel. – O que está acontecendo aqui na Alemanha?

           – Nós estávamos indo bem em meados da década de 1920 – respondeu Maud. – Tínhamos um governo democrático e uma economia em crescimento. Mas tudo ruiu com o Crash de Wall Street, em 1929. Agora estamos mergulhados na Depressão. – A voz dela tremia com uma emoção que beirava a tristeza. – Às vezes chega-se a ver cem homens fazendo fila por um único anúncio de emprego. Fico olhando para o rosto deles... estão desesperados. Não sabem como vão alimentar os filhos. Então os nazistas lhes acenam com uma esperança e eles se perguntam: “O que tenho a perder?”

           Walter parecia pensar que sua mulher estava exagerando. Em tom mais alegre, disse:

           – A boa notícia é que Hitler não conseguiu conquistar a maioria entre os alemães. Nas últimas eleições, os nazistas tiveram um terço dos votos. Embora compusessem o maior partido, felizmente o governo de Hitler é minoritário.

           – Foi por isso que ele convocou uma nova eleição – disse Maud. – Precisa da maioria absoluta para transformar a Alemanha na ditadura brutal que ele quer.

           – E ele vai conseguir? – perguntou Ethel.

           – Não – respondeu Walter.

           – Vai – rebateu Maud.

           – Não acho que o povo alemão algum dia vá votar em uma ditadura – disse Walter.

           – Mas a eleição não vai ser justa! – argumentou Maud, zangada. – Vejam só o que aconteceu hoje na redação da minha revista. Qualquer um que critique os nazistas está correndo perigo. Enquanto isso, a propaganda deles está por toda parte.

           – Ninguém parece revidar! – exclamou Lloyd. Ele queria ter chegado alguns minutos antes ao escritório da revista O Democrata naquela manhã, para poder dar uns socos em alguns camisas-pardas. Percebeu que estava com o punho cerrado e se obrigou a abrir a mão. Mas a indignação não passou. – Por que os esquerdistas não atacam os escritórios dos jornais nazistas? Assim eles vão provar do próprio remédio!

           – Não podemos reagir à violência com violência! – disse Maud, enfática. – Hitler precisa de um pretexto para uma repressão: quer declarar emergência nacional, abolir os direitos civis e pôr seus opositores na cadeia. – A voz dela assumiu um tom de súplica: – Temos que evitar dar esse pretexto a ele... por mais difícil que seja.

           Os quatro terminaram de comer. O restaurante começou a esvaziar. Quando o café foi servido, o dono do restaurante, um primo distante de Walter chamado Robert von Ulrich, e o chef de cozinha, Jörg, se juntaram a eles. Robert tinha sido diplomata na embaixada austríaca em Londres antes da Grande Guerra, na mesma época em que Walter trabalhava na embaixada alemã na capital britânica – quando se apaixonara por Maud.

           Robert era parecido com Walter, mas vestia-se com mais apuro, com um alfinete de ouro na gravata, penduricalhos na corrente do relógio de bolso e muita brilhantina nos cabelos. Jörg era mais jovem, louro, com traços delicados e um sorriso franco. Os dois tinham se conhecido quando eram prisioneiros de guerra na Rússia. Agora moravam num apartamento em cima do restaurante.

           Ficaram trocando lembranças sobre o casamento de Walter e Maud, realizado em segredo às vésperas da guerra. Não houvera convidados, mas Robert e Ethel tinham sido os padrinhos.

           – Nós bebemos champanhe no hotel – contou Ethel. – Então, com muito tato, falei que Robert e eu iríamos embora, e Walter... – Ela reprimiu um acesso de riso. – Walter disse: “Ah, achei que fôssemos jantar todos juntos.”

           Maud deu uma risadinha.

           – Vocês podem imaginar como fiquei contente com isso!

           Constrangido, Lloyd manteve os olhos cravados em seu café. Tinha 18 anos e era virgem, e aquelas piadas sobre lua de mel o deixavam pouco à vontade.

           Então, mais séria, Ethel perguntou a Maud:

           – Vocês têm tido notícias de Fitz?

           Lloyd sabia que o casamento às escondidas tinha criado um imenso abismo entre Maud e seu irmão, o conde Fitzherbert. Como ela não o havia consultado, na condição de chefe da família, e pedido autorização para se casar, Fitz a deserdara.

           Maud fez que não com a cabeça, entristecida.

           – Escrevi para Fitz naquela vez em que fomos a Londres, mas ele não quis me encontrar. Feri seu orgulho ao me casar com Walter sem lhe dizer nada. Infelizmente, acho que meu irmão não sabe perdoar.

           Ethel pagou a conta. Tudo na Alemanha era muito barato para quem tinha moeda estrangeira. Estavam prestes a se levantar para ir embora quando um desconhecido se aproximou da mesa e, sem ser convidado, puxou uma cadeira. Era um homem corpulento, com um pequeno bigode no meio de um rosto redondo.

           Estava usando um uniforme dos camisas-pardas.

           – Em que posso ajudá-lo, senhor? – perguntou Robert com voz fria.

           – Meu nome é Thomas Macke, sou da polícia. – Ele segurou o braço de um garçom que passava e ordenou: – Traga-me um café.

           O garçom lançou um olhar de dúvida para Robert, que assentiu.

           – Trabalho no departamento político da polícia prussiana – prosseguiu Macke. – Sou encarregado do departamento de inteligência de Berlim.

           Lloyd traduziu para a mãe em voz baixa.

           – Mas quero falar com o dono do restaurante sobre uma questão pessoal – disse Macke.

           – Onde o senhor trabalhava um mês atrás? – quis saber Robert.

           A pergunta inesperada deixou Macke espantado e ele respondeu na hora:

           – Na delegacia de polícia de Kreuzberg.

           – E qual era o seu cargo lá?

           – Eu cuidava do arquivo. Por que a pergunta?

           Robert assentiu como se já esperasse algo daquele tipo.

           – Quer dizer que o senhor passou de assistente de arquivo a chefe do departamento de inteligência da capital. Parabéns pela ascensão tão rápida. – Ele se virou para Ethel. – Quando Hitler virou chanceler, no final de janeiro, seu capanga Hermann Göring assumiu o cargo de ministro do Interior da Prússia e passou a comandar a maior força policial do mundo. Desde então, Göring vem demitindo policiais a torto e a direito e os substituindo por nazistas. – Ele se virou novamente para Macke e falou em tom de sarcasmo: – Mas, no caso deste nosso convidado surpresa, estou certo de que a promoção foi puramente por mérito.

           Macke enrubesceu, mas manteve a calma.

           – Como eu disse, quero falar com o dono do restaurante sobre um assunto pessoal.

           – Venha me procurar amanhã de manhã, por gentileza. Às dez horas está bom?

           – Meu irmão trabalha no ramo de restaurantes – continuou Macke, ignorando a sugestão.

           – Ah! Talvez eu o conheça. O sobrenome dele é Macke? Que tipo de restaurante ele tem?

           – Um pequeno estabelecimento para operários em Friedrichshain.

           – Ah. Nesse caso, é pouco provável que já tenhamos nos encontrado.

           Lloyd não tinha certeza se era sensato Robert se mostrar tão petulante. Macke era grosseiro e não merecia ser tratado com educação, mas poderia criar sérios problemas.

           – Meu irmão gostaria de comprar este restaurante – declarou Macke.

           – Seu irmão quer subir na vida, assim como o senhor subiu.

           – Estamos dispostos a lhe oferecer 20 mil marcos, parcelados em dois anos.

           Jörg explodiu numa gargalhada.

           – Permita que eu lhe explique uma coisa – disse Robert. – Sou um conde austríaco. Vinte anos atrás, tinha um castelo e uma grande propriedade rural na Hungria, onde minha mãe e minha irmã moravam. Com a guerra, perdi minha família, meu castelo, minhas terras e até mesmo meu país, que foi... miniaturizado, digamos assim. – O tom de sarcasmo bem-humorado havia desaparecido e sua voz estava rouca de emoção. – Cheguei a Berlim sem nada a não ser o endereço de Walter von Ulrich, meu primo distante. Mesmo assim, consegui abrir este restaurante. – Ele engoliu em seco. – Este lugar é tudo que tenho. – Robert fez uma pausa e tomou um gole de café. Ninguém ao redor da mesa disse nada. Então ele se recompôs e recuperou parte da superioridade inicial de sua voz. – Mesmo que o senhor fizesse uma oferta generosa, coisa que não fez, eu iria recusar, porque estaria vendendo minha própria vida. Não é minha intenção ser grosseiro, ainda que o senhor tenha se comportado de forma desagradável. Mas o meu restaurante não está à venda por preço nenhum. – Ele se levantou e estendeu a mão para um cumprimento. – Boa noite, agente Macke.

           Macke apertou a mão de Robert sem pensar e logo em seguida pareceu arrependido. Levantou-se, obviamente zangado. Seu rosto rechonchudo tinha adquirido um tom púrpura.

           – Voltaremos a conversar – declarou, antes de sair.

           – Que imbecil – comentou Jörg.

           – Está vendo o que temos que aguentar? – disse Walter a Ethel. – Só porque ele usa aquele uniforme, pode fazer o que quer!

           O que mais incomodara Lloyd fora a segurança de Macke. Ele parecia ter certeza de que conseguiria comprar o restaurante pelo preço oferecido. Reagira à recusa de Robert como se ela não passasse de um contratempo passageiro. Será que os nazistas já eram tão poderosos assim?

           Aquele era o tipo de coisa que Oswald Mosley e os fascistas ingleses queriam: um país em que a força da lei fosse substituída por intimidação e agressão. Como as pessoas podiam ser tão burras?

           Eles vestiram seus casacos e chapéus e deram boa-noite a Robert e Jörg. Assim que saíram na rua, Lloyd sentiu cheiro de fumaça – não fumaça de tabaco, mas de outro tipo. Os quatro entraram no carro de Walter, um Dixi 3/15 da BMW, que Lloyd sabia ser um Austin Seven fabricado na Alemanha.

           Quando estavam atravessando o parque Tiergarten, dois caminhões de bombeiros os ultrapassaram, com as sirenes ligadas.

           – Onde será o incêndio? – indagou Walter.

           Instantes depois, viram a luz das chamas por entre as árvores.

           – Parece ser perto do Reichstag – comentou Maud.

           O tom de Walter mudou.

           – É melhor darmos uma olhada – disse ele, preocupado, enquanto fazia uma curva repentina.

           O cheiro de fumaça ficou mais forte. Por cima da copa das árvores, Lloyd pôde ver labaredas subindo em direção ao céu.

           – É um incêndio dos grandes – falou.

           Saíram do parque na Köningsplatz, a grande esplanada entre o prédio do Reichstag e a Ópera Kroll, em frente. O parlamento estava em chamas. Luzes vermelhas e amarelas dançavam por trás das clássicas fileiras de janelas. Chamas e fumaça saíam pela cúpula central.

           – Ah, não! – exclamou Walter. Para Lloyd, sua voz soou desesperada. – Ah, meu Deus, não!

           Walter parou o carro e todos saltaram.

           – Que catástrofe – disse ele.

           – Um prédio antigo tão lindo – comentou Ethel.

           – Estou pouco ligando para o prédio – disse Walter, para surpresa de todos. – É a nossa democracia que está em chamas.

           A uns cinquenta metros, uma pequena multidão observava o incêndio. Em frente ao prédio, caminhões dos bombeiros enfileirados esguichavam água sobre as chamas com mangueiras, direcionando os jatos para as janelas quebradas. Alguns policiais assistiam à cena sem fazer nada. Walter abordou um deles.

           – Sou deputado no Reichstag – falou. – Quando começou esse incêndio?

           – Há uma hora – respondeu o policial. – Pegamos um dos responsáveis: um homem vestido só de calça! Ele usou o restante das roupas para começar o incêndio.

           – Vocês deveriam montar um cordão para isolar o prédio – disse Walter com autoridade. – Para manter as pessoas a uma distância segura.

           – Sim, senhor – disse o policial e se afastou.

           Lloyd saiu de perto dos outros e se aproximou do prédio. Os bombeiros já estavam conseguindo controlar as chamas: havia mais fumaça que labaredas. Ele passou pelos carros de bombeiros e chegou junto a uma janela. Aquilo não parecia muito perigoso e, de toda forma, sua curiosidade suplantara seu senso de autopreservação – como sempre.

           Ao espiar por ali, viu que a destruição era grande: paredes e tetos haviam desabado e não passavam de pilhas de entulho. Além dos bombeiros, viu civis de sobretudo – provavelmente funcionários do Reichstag – andando em meio aos destroços para avaliar os estragos. Foi até a entrada e subiu os degraus.

           Dois Mercedes pretos chegaram rugindo no momento em que a polícia montava o cordão de isolamento. Lloyd observou com interesse. Do segundo carro saltou um homem usando um impermeável de cor clara e um chapéu de feltro preto. Tinha um bigode estreito debaixo do nariz. Lloyd entendeu que estava olhando para o novo chanceler, Adolf Hitler.

           Atrás de Hitler vinha um homem mais alto, com o uniforme preto da Schutzstaffel, a SS: seu guarda-costas. Mancando atrás deles vinha o chefe da Propaganda, Joseph Goebbels, que odiava os judeus. Lloyd os reconheceu das fotos que tinham saído nos jornais. Ficou tão fascinado por vê-los de perto que se esqueceu do horror que eles lhe provocavam.

           Hitler subiu os degraus correndo, de dois em dois, indo na direção de Lloyd, que, por impulso, abriu a grande porta e a segurou para o chanceler passar. Com um meneio de cabeça para o rapaz, Hitler entrou e seu séquito foi atrás.

           Lloyd se juntou a eles. Ninguém lhe dirigiu a palavra. O grupo que acompanhava Hitler parecia pensar que ele trabalhava no Reichstag, enquanto os funcionários do Reichstag acreditavam que ele estivesse com Hitler.

           Um cheiro ruim de cinza molhada pairava no ar. Hitler e seu grupo passaram por cima de vigas carbonizadas e mangueiras, pisando em poças de lama. Hermann Göring estava no hall de entrada, com um sobretudo de pele de camelo cobrindo sua imensa barriga e a aba do chapéu erguida na frente, à moda de Potsdam. Aquele era o homem que estava enchendo a força policial de nazistas, pensou Lloyd, lembrando-se da conversa no restaurante.

           Assim que viu Hitler, Göring gritou:

           – Este é o começo do levante comunista! Eles agora vão atacar! Não temos nenhum minuto a perder!

           Lloyd teve a estranha sensação de estar na plateia de um teatro, como se aqueles homens poderosos estivessem sendo representados por atores.

           Hitler se mostrou ainda mais dramático do que Göring.

           – Agora não haverá misericórdia! – gritou com voz aguda. Parecia estar falando para uma multidão. – Qualquer um que ficar em nosso caminho será massacrado! – Ele tremia e ficava cada vez mais furioso. – Todos os oficiais comunistas serão mortos a tiros onde forem encontrados. Os deputados comunistas do Reichstag têm de ser enforcados hoje mesmo! – Ele parecia prestes a explodir.

           Mas havia algo de artificial naquilo tudo. O ódio de Hitler parecia real, mas aquela explosão era uma encenação para todos aqueles que o cercavam, tanto os seus homens quanto os outros. Ele era um ator – sentia uma emoção genuína, mas a estava amplificando para o público. E Lloyd viu que aquilo funcionava: todos os que conseguiam ouvi-lo o encaravam enfeitiçados.

           – Meu Führer – disse Göring –, este aqui é meu chefe da polícia política, Rudolf Diels. – Ele apontou para um homem magro de cabelos escuros ao seu lado. – Ele já prendeu um dos responsáveis.

           Diels não estava histérico. Com calma, falou:

           – Ele se chama Marinus van der Lubbe, um holandês que trabalha na construção civil.

           – Holandês e comunista! – exclamou Göring, triunfante.

           – Foi expulso do Partido Comunista Holandês por ter provocado incêndios criminosos.

           – Eu sabia! – exclamou Hitler.

           Lloyd viu que Hitler estava decidido a culpar os comunistas, independentemente de quais fossem os fatos.

           Com um tom deferente, Diels falou:

           – A julgar pelo interrogatório inicial a que submeti o sujeito, está claro que se trata de um louco e que agiu sozinho.

           – Que bobagem! – gritou Hitler. – Isto foi planejado com muita antecedência. Mas eles calcularam mal! Não entendem que o povo está do nosso lado.

           – A partir de agora a polícia encontra-se em estado de emergência – disse Göring para Diels. – Temos listas de comunistas: deputados do Reichstag, representantes eleitos de governos locais, organizadores e ativistas do Partido Comunista. Prendam todos eles... hoje mesmo! Armas de fogo deverão ser usadas sem piedade. Não tenham misericórdia nos interrogatórios.

           – Sim, ministro – disse Diels.

           Lloyd entendeu que Walter tinha razão para estar preocupado. Aquele era o pretexto que os nazistas estavam procurando. Eles não dariam ouvidos a ninguém que dissesse que o incêndio fora obra de um louco agindo sozinho. Queriam um complô comunista para que pudessem anunciar uma repressão.

           Göring olhou com desagrado para a lama que sujava seus sapatos.

           – Minha residência oficial fica a apenas um minuto daqui, meu Führer, mas felizmente não foi atingida pelo fogo – disse ele. – Talvez possamos nos reunir lá.

           – Sim. Temos muito que discutir.

           Lloyd segurou a porta e todos saíram. Enquanto se afastavam, ele andou até o cordão de isolamento da polícia e tornou a se reunir à mãe e ao casal Von Ulrich.

           – Lloyd! – exclamou Ethel. – Onde você estava? Fiquei morta de preocupação!

           – Eu entrei lá – respondeu ele.

           – O quê? Como?

           – Ninguém me impediu. Está tudo um caos, uma confusão só.

           Sua mãe lançou as mãos para o alto.

           – Ele não tem a menor noção do perigo – disse ela.

           – Encontrei Adolf Hitler.

           – Ele disse alguma coisa? – perguntou Walter.

           – Está pondo a culpa do incêndio nos comunistas. Haverá um expurgo.

           – Que Deus nos ajude! – exclamou Walter.

 

           Thomas Macke continuava ofendido com o sarcasmo de Robert von Ulrich. “Seu irmão quer subir na vida, assim como o senhor subiu”, dissera ele.

           Macke desejava ter tido presença de espírito suficiente para responder: “E por que não deveríamos querer isso? Valemos tanto quanto você, seu vaidoso arrogante.” Agora ansiava por vingança. Durante alguns dias, porém, ficou ocupado demais para tomar qualquer providência.

           O quartel-general da polícia secreta prussiana ficava em um prédio grande e elegante, de arquitetura clássica, no número 8 da Prinz-Albrecht-Strasse, no bairro governamental. Macke sentia orgulho toda vez que cruzava aquela porta.

           A situação estava caótica. Quatro mil comunistas haviam sido presos nas 24 horas seguintes ao incêndio no Reichstag e mais deles eram detidos a cada hora. Uma praga estava sendo erradicada da Alemanha e, para Macke, o ar de Berlim já estava mais puro.

           Mas os arquivos da polícia não estavam atualizados. Pessoas tinham se mudado, eleições haviam sido perdidas e ganhas, velhos morreram e jovens assumiram seu lugar. Macke estava encarregado de um grupo que trabalhava na atualização dos registros, procurando novos nomes e endereços.

           Era bom nisso. Gostava de registros, diretórios, mapas de ruas, recortes de imprensa e qualquer tipo de lista. Seu talento não tinha sido devidamente reconhecido na delegacia de Kreuzberg, onde o serviço de inteligência consistia apenas em espancar os suspeitos até eles citarem alguns nomes. Esperava ser mais valorizado ali.

           Não que tivesse algum problema em espancar suspeitos. Em sua sala, nos fundos do prédio, podia ouvir os gritos de homens e mulheres sendo torturados no subsolo, mas isso não o incomodava. Aquelas pessoas eram traidoras, subversivas, revolucionárias. Haviam arruinado a Alemanha com suas greves e fariam coisas ainda piores se tivessem oportunidade. Ele não nutria nenhuma simpatia por elas. Tudo o que desejava era que Robert von Ulrich estivesse lá também, gemendo de dor e implorando misericórdia.

           Eram oito da noite de quinta-feira, 2 de março, quando finalmente teve uma chance de verificar os antecedentes de Robert.

           Dispensou sua equipe e foi ao andar de cima levando uma pilha de listas atualizadas para a sala de seu chefe, o inspetor de polícia Kringelein. Então voltou a seus arquivos.

           Não tinha pressa de voltar para casa. Morava sozinho. A esposa, uma mulher indisciplinada, havia fugido com um garçom do restaurante de seu irmão dizendo que queria ser livre. Os dois não tinham filhos.

           Começou a examinar os arquivos.

           Já descobrira que Robert von Ulrich havia entrado para o Partido Nazista em 1923 e saíra dois anos depois. Isso não significava muita coisa. Macke precisava de mais.

           O sistema de arquivamento não era tão lógico quanto ele gostaria. De modo geral, estava decepcionado com a polícia prussiana. Segundo os boatos, Göring também não estava muito bem-impressionado e planejava separar os departamentos político e de inteligência da força policial regular para criar uma polícia secreta nova e mais eficiente. Macke achava isso uma boa ideia.

           Por enquanto, porém, não conseguiu encontrar Robert von Ulrich em nenhum dos arquivos regulares. Talvez isso não fosse apenas um sinal de ineficiência. O homem podia ser mesmo inocente. Um conde austríaco tinha poucas probabilidades de ser comunista ou judeu. Aparentemente, o pior que se podia dizer a seu respeito era que tinha um primo social-democrata, Walter. E ser social-democrata não era crime – ainda.

           Macke então se deu conta de que deveria ter feito aquela pesquisa antes de abordar Robert. Em vez disso, fora até lá sem dispor de todas as informações. Deveria ter percebido que isso era um erro. Consequentemente, fora forçado a se submeter à condescendência e ao sarcasmo. Tinha sido humilhado, mas iria se vingar.

           Começou a vasculhar diversos papéis guardados num armário empoeirado no fundo da sala.

           O nome de Von Ulrich também não aparecia ali, mas havia um documento faltando.

           Segundo a lista presa com tachinhas na parte interna da porta do armário, devia haver um arquivo de 117 páginas intitulado “Polícia de Costumes – Estabelecimentos”. Pelo nome, devia ser um inventário das casas noturnas de Berlim. Macke podia adivinhar por que estava faltando. A pasta devia ter sido usada recentemente: todos os estabelecimentos mais decadentes tinham sido fechados quando Hitler se tornara chanceler.

           Macke voltou ao andar de cima. Kringelein estava instruindo policiais de uniforme encarregados de fazer buscas nos endereços de comunistas e seus aliados fornecidos por Macke.

           Ele não hesitou em interromper o chefe. Kringelein não era nazista e teria medo de repreender um membro da tropa de assalto.

           – Estou procurando o arquivo de estabelecimentos da polícia de costumes – falou.

           Embora parecesse contrariado, Kringelein não protestou.

           – Está na mesa do canto. Fique à vontade – respondeu.

           Macke pegou a pasta e voltou para sua sala.

           O levantamento fora feito cinco anos antes e listava as casas noturnas em funcionamento na época, descrevendo as atividades que ocorriam em cada uma delas: jogo, exposições indecentes, prostituição, venda de drogas, homossexualismo e outras depravações. A lista citava donos e investidores, sócios e funcionários das casas. Macke leu todos os registros com paciênca: talvez Robert von Ulrich fosse viciado em drogas ou gostasse de putas.

           Berlim era famosa por suas casas noturnas homossexuais. Macke leu a lamentável descrição da Pink Slipper, onde homens dançavam com homens e havia shows de cantores travestis. Às vezes seu trabalho era um nojo, pensou.

           Correu o dedo pela lista de sócios da boate e encontrou o nome de Robert von Ulrich.

           Deu um suspiro de satisfação.

           Mais adiante, viu o nome de Jörg Schleicher.

           – Ora, ora – falou. – Vamos ver como fica o sarcasmo de vocês agora.

 

           Quando Lloyd viu Walter e Maud outra vez, eles estavam com raiva – e mais assustados.

           Foi no sábado seguinte, dia 4 de março, um dia antes da eleição. Lloyd e Ethel pretendiam participar de um comício do Partido Social-Democrata organizado por Walter, mas antes passaram para almoçar na casa dos Von Ulrich, em Mitte.

           Era um imóvel do século XIX, de cômodos espaçosos e janelas amplas, mas a maioria dos móveis estava gasta. O almoço foi simples, costeletas de porco com batatas e repolho, porém o vinho servido era de boa qualidade. Walter e Maud falavam como se fossem pobres, mas, embora não houvesse dúvida de que estavam levando uma vida mais modesta que a de seus pais, não chegavam a passar fome.

           No entanto, estavam com medo.

           Hitler convencera o já idoso presidente alemão, Paul von Hindenburg, a aprovar o Decreto do Incêndio do Reichstag, que dava aos nazistas plenos poderes para fazer o que já vinham fazendo: espancar e torturar seus oponentes políticos.

           – Desde segunda à noite, 20 mil pessoas já foram presas! – exclamou Walter com a voz trêmula. – Não apenas comunistas, mas indivíduos que os nazistas chamam de “simpatizantes do comunismo”.

           – Ou seja, qualquer um de quem eles não gostem – disse Maud.

           – Como poderá haver uma eleição democrática agora? – indagou Ethel.

           – Temos que nos esforçar ao máximo – disse Walter. – Se não fizermos campanha agora, estaremos ajudando os nazistas.

           – Quando é que vocês vão parar de aceitar essa situação e revidar? – perguntou Lloyd, impaciente. – Por acaso ainda acham que seria errado reagir à violência com violência?

           – Com certeza – respondeu Maud. – A resistência pacífica é nossa única esperança.

           – O Partido Social-Democrata tem um braço paramilitar, o Reichsbanner, mas ele é fraco – disse Walter. – Um pequeno grupo chegou a propor uma reação violenta aos nazistas, mas foi derrotado em votação.

           – Lembre-se, Lloyd: os nazistas têm a polícia e o Exército do seu lado – disse Maud.

           Walter olhou para o relógio de bolso.

           – Temos que ir.

           – Walter, por que vocês não cancelam o comício? – perguntou Maud de repente.

           Ele encarou a mulher, espantado.

           – Vendemos 700 ingressos.

           – Ah, para o inferno com os ingressos – retrucou Maud. – Estou preocupada com você.

           – Não precisa se preocupar. Os lugares foram cuidadosamente marcados. Não haverá arruaceiros no salão.

           Lloyd não tinha certeza de que Walter estivesse tão seguro quanto fingia estar.

           – De toda forma, não posso decepcionar as pessoas que ainda estão dispostas a participar de um encontro democrático. Elas são a única esperança que nos resta.

           – Tem razão – disse Maud. Então dirigiu-se a Ethel: – Talvez fosse melhor você e Lloyd ficarem em casa. Não importa o que Walter diga, pode ser perigoso. E este nem é o país de vocês, afinal de contas.

           – O socialismo é internacional – disse Ethel, firme. – Assim como o seu marido, agradeço a preocupação, mas estou aqui para observar a política alemã em primeira mão e não vou perder esse comício.

           – Bom, as crianças não podem ir – declarou Maud.

           – Eu não quero ir, mesmo – disse Erik, seu filho.

           Carla pareceu decepcionada, mas não disse nada.

           Walter, Maud, Ethel e Lloyd entraram no pequeno carro de Walter. Lloyd estava nervoso, mas também animado. Aquela visão da política era muito mais privilegiada do que a que seus amigos na Inglaterra tinham. E, mesmo que houvesse briga, ele não sentia medo.

           Eles seguiram na direção leste, cruzaram a Alexanderplatz e chegaram a um bairro de casas pobres e pequenas lojas, algumas com letreiros em hebraico. O Partido Social-Democrata era de classe trabalhadora, mas, assim como o Partido Trabalhista britânico, tinha alguns filiados ricos. Walter von Ulrich fazia parte de uma minoria de classe alta.

           O carro parou em frente a uma marquise com um letreiro que anunciava: “Teatro do Povo”. Uma fila já se formara do lado de fora. Walter cruzou a calçada até a porta, acenando para a multidão reunida, que o aplaudiu e deu vivas. Lloyd e os outros seguiram para dentro do teatro.

           Walter apertou a mão de um rapaz muito sério, que devia ter cerca de 18 anos.

           – Este é Wilhelm Frunze, secretário do comitê do nosso partido aqui no bairro.

           Frunze era um daqueles rapazes que pareciam já ter nascido na meia-idade. Vestia um blazer de bolsos abotoados que devia ter sido moda uns dez anos antes.

           Ele mostrou a Walter como as portas do teatro podiam ser bloqueadas por dentro.

           – Quando o público estiver acomodado, trancaremos tudo para que nenhum arruaceiro possa entrar – explicou.

           – Ótimo – disse Walter. – Muito bem.

           Frunze os conduziu até o auditório. Walter subiu ao palco e cumprimentou alguns outros candidatos que já estavam lá. O público começou a entrar e ocupar seus lugares. Frunze mostrou a Maud, Ethel e Lloyd seus assentos reservados na primeira fila.

           Dois rapazes bem jovens se aproximaram. O mais novo parecia ter 14 anos, porém era mais alto do que Lloyd. Ele cumprimentou Maud de um jeito muito educado e fez uma leve mesura. Virando-se para Ethel, Maud falou:

           – Este é Werner Franck, filho da minha amiga Monika. – Então dirigiu-se a Werner: – Seu pai sabe que você está aqui?

           – Sabe... ele disse que eu deveria descobrir sozinho o que é a social-democracia.

           – Para um nazista, ele até que tem a mente bem aberta.

           Lloyd achou que esse comentário era um tanto duro para se fazer a um menino de 14 anos, mas Werner não deixou barato:

           – Meu pai não acredita muito no nazismo, mas acha que Hitler é bom para os negócios da Alemanha.

           Indignado, Wilhelm Frunze interveio:

           – Como prender milhares de pessoas pode ser bom para os negócios? Além de ser injustiça, elas não podem trabalhar!

           – Concordo com você – disse Werner. – Apesar disso, a população aprova a repressão de Hitler.

           – A população acha que está sendo salva de uma revolução bolchevique – argumentou Frunze. – A imprensa nazista a convenceu de que os comunistas estavam prestes a lançar uma campanha de assassinatos, incêndios criminosos e envenenamentos em todas as cidades e vilarejos da Alemanha.

           O rapaz que acompanhava Werner, mais baixo porém mais velho do que ele, se intrometeu:

           – Mas são os camisas-pardas, e não os comunistas, que arrastam pessoas para porões e quebram seus ossos com cassetetes. – Ele falava alemão fluentemente, com um leve sotaque que Lloyd não conseguiu identificar.

           – Perdoem-me – disse Werner –, esqueci de apresentar Vladimir Peshkov. Ele estuda na mesma escola que eu, a Academia para Meninos de Berlim, e todos o conhecem como Volodya.

           Lloyd se levantou para apertar a mão do rapaz. Volodya tinha mais ou menos a sua idade e era um jovem bonito, de olhos azuis e expressão franca.

           – Conheço Volodya Peshkov – disse Frunze. – Também estudo na Academia.

           – Wilhelm Frunze é o gênio da escola – disse Volodya. – Sempre tira nota máxima em física, química e matemática.

           – É verdade – concordou Werner.

           Maud examinou Volodya com atenção e perguntou:

           – Peshkov? Seu pai por acaso se chama Grigori?

           – Sim, Frau Von Ulrich. Ele é adido militar na embaixada soviética.

           Então Volodya era russo. Ele falava alemão sem dificuldade, pensou Lloyd com um pouco de inveja. Devia ser porque morava em Berlim.

           – Conheço bem os seus pais – disse Maud ao rapaz.

           Lloyd já entendera que ela conhecia todos os diplomatas de Berlim. Era parte do seu trabalho.

           Frunze olhou para o relógio e disse:

           – Está na hora.

           Ele subiu ao palco e pediu silêncio. Todos no teatro se calaram.

           Frunze anunciou que os candidatos fariam discursos e em seguida responderiam às perguntas do público. Os ingressos tinham sido vendidos apenas para os membros do partido, acrescentou ele, e as portas já haviam sido fechadas, assim, todos podiam falar livremente com a certeza de estar entre amigos.

           Era como fazer parte de uma sociedade secreta, pensou Lloyd. Aquilo não era o que ele chamava de democracia.

           Walter foi o primeiro a tomar a palavra. Lloyd observou que ele não era nenhum demagogo. Não lançava mão de floreios de retórica. No entanto elogiou as pessoas da plateia, afirmando que eram homens e mulheres inteligentes e bem-informados, que compreendiam a complexidade das questões políticas.

           Fazia apenas alguns minutos que ele estava discursando quando um camisa-parda subiu ao palco.

           Lloyd falou um palavrão. Como aquele homem tinha conseguido entrar? Ele viera das coxias. Alguém devia ter aberto a porta que dava para o palco.

           O homem era um brutamontes, com os cabelos cortados à escovinha. Avançou até a frente do palco e gritou:

           – Esta é uma reunião subversiva! A Alemanha não quer comunistas nem agitadores! O comício está encerrado!

           A confiança e a arrogância do camisa-parda deixaram Lloyd indignado. Ele desejou poder enfrentar aquele imbecil dentro de um ringue de boxe.

           Wilhelm Frunze se levantou de um salto, foi se postar na frente do intruso e, furioso, gritou:

           – Saia daqui, seu vândalo!

           O homem empurrou o peito de Frunze com força. Ele cambaleou para trás, desequilibrou-se e caiu de costas.

           O público já estava de pé. Alguns bradavam protestos irados, outros gritavam de medo.

           Mais camisas-pardas surgiram das coxias.

           Para sua consternação, Lloyd entendeu que os desgraçados haviam planejado aquilo muito bem.

           O brutamontes que havia empurrado Frunze gritou:

           – Fora daqui!

           Ao ouvir isso, os outros camisas-pardas puseram-se a entoar: “Fora daqui! Fora daqui! Fora daqui!” Agora havia cerca de vinte deles, e não paravam de aparecer mais. Alguns carregavam cassetetes da polícia ou porretes improvisados. Lloyd viu um taco de hóquei, um martelo de madeira e até uma perna de cadeira. Os camisas-pardas andavam de um lado para outro no palco, lançando sorrisos maus e brandindo as armas enquanto prosseguiam sua cantoria. Lloyd não tinha dúvidas de que estavam se coçando para bater em alguém.

           Sem pensar, ele, Werner e Volodya haviam se posto de pé e formado uma linha de proteção à frente de Ethel e Maud.

           Metade do público tentava ir embora, enquanto a outra metade gritava e sacudia os punhos fechados para os intrusos. Aqueles que tentavam sair empurravam outros e pequenas brigas haviam estourado aqui e ali. Muitas mulheres choravam.

           No palco, Walter segurou o atril e gritou:

           – Por favor, tentem manter a calma, todos vocês! Não há motivo para desordem! – A maioria das pessoas não conseguiu ouvir e o restante o ignorou.

           Os camisas-pardas começaram a descer do palco e se misturar ao público. Lloyd segurou o braço da mãe e Werner fez o mesmo com Maud. Juntos, avançaram em direção à saída. Porém todas as portas já estavam obstruídas por grupos de pessoas em pânico tentando sair. Isso não fazia a menor diferença para os camisas-pardas, que continuavam gritando para que o público se retirasse.

           Os agressores eram, em sua maioria, homens no auge da força física, enquanto o público do comício incluía mulheres e idosos. Lloyd quis reagir, mas não era uma boa ideia.

           Um homem usando um capacete de aço da Grande Guerra deu um empurrão em Lloyd com o ombro, fazendo com que ele se desequilibrasse para a frente e esbarrasse na mãe. Ele resistiu à tentação de se virar para enfrentar o agressor. Sua prioridade era proteger Mam.

           Um rapaz com o rosto cheio de espinhas, de cassetete em punho, pôs uma das mãos nas costas de Werner e o empurrou com toda a força, gritando:

           – Saiam daqui, saiam daqui!

           Werner se virou depressa e deu um passo na direção dele.

           – Não encoste em mim, seu porco fascista! – berrou.

           O camisa-parda parou onde estava, com ar assustado, como se não estivesse esperando resistência.

           Werner tornou a lhe dar as costas e, como Lloyd, concentrou-se em levar as duas mulheres para um lugar seguro. Mas o brutamontes que fora o primeiro a aparecer tinha ouvido o desafio e berrou:

           – Quem você está chamado de porco? – Ele partiu para cima de Werner e tentou acertá-lo na parte de trás da cabeça com o punho fechado. Errou a mira e o soco pegou de raspão, mas mesmo assim Werner gritou e cambaleou para a frente.

           Volodya se interpôs entre os dois e acertou o brutamontes no rosto duas vezes. Lloyd admirou os socos rápidos de Volodya, mas tornou a se concentrar na tarefa que tinha pela frente. Segundos depois, os quatro chegaram à porta. Lloyd e Werner conseguiram ajudar as mulheres a sair para o saguão do teatro. Ali, o empurra-empurra diminuiu e a violência cessou – não havia camisas-pardas.

           Vendo que as mulheres estavam seguras, Lloyd e Werner tornaram a olhar para dentro do auditório.

           Volodya enfrentava corajosamente o brutamontes, mas estava em apuros. Socava o rosto e o corpo do homem, mas seus golpes surtiam pouco efeito, e o adversário balançava a cabeça como alguém que está sendo importunado por um inseto. O camisa-parda era pesado e se movia devagar, mas acertou Volodya no peito e na cabeça, fazendo com que ele cambaleasse. O grandalhão recuou o punho, preparando-se para desferir um soco bem forte, que Lloyd temeu que fosse capaz de matar Volodya.

           Nesse momento Walter saltou do palco e aterrissou nas costas do brutamontes. Lloyd quis comemorar. Os dois caíram no chão, formando um emaranhado de pernas e braços, e Volodya foi salvo, pelo menos por enquanto.

           O rapaz espinhento que havia empurrado Werner agora estava importunando as pessoas que tentavam sair, acertando suas costas e cabeças com o cassetete.

           – Seu covarde de merda! – gritou Lloyd, dando um passo à frente.

           Mas Werner foi mais rápido. Passou por Lloyd com um empurrão e tentou arrancar o cassetete do rapaz.

           O homem mais velho com o capacete de aço se meteu e acertou Werner com o cabo de uma picareta. Lloyd se adiantou e desferiu um soco, que o acertou em cheio perto do olho esquerdo.

           Mas aquele homem era um veterano de guerra e não se deixaria abater tão facilmente. Girou o corpo e tentou atingir Lloyd com o porrete. Lloyd se esquivou sem dificuldade e lhe deu mais dois socos, que o acertaram no mesmo lugar que o primeiro, rasgando a pele ao redor do olho do homem. Mas o capacete o protegia, e Lloyd não conseguia acertar um gancho de esquerda, seu golpe nocauteador. Esquivou-se de uma investida do cabo da picareta e tornou a acertar o rosto do homem, que enfim recuou, com sangue escorrendo do corte em volta do olho.

           Lloyd olhou em torno. Viu que os social-democratas estavam revidando e sentiu um choque de prazer selvagem. A maior parte do público já saíra pelas portas e no auditório restavam principalmente rapazes, que pulavam por cima das cadeiras do teatro, avançando na direção dos camisas-pardas – e havia dezenas deles.

           Alguma coisa dura atingiu sua cabeça por trás. A dor foi tanta que ele gritou. Ao virar-se, viu um rapaz da sua idade erguendo um pedaço de madeira para bater outra vez. Lloyd chegou mais perto e o acertou na barriga duas vezes, primeiro com o punho direito, depois com o esquerdo. O rapaz arquejou e deixou cair o pedaço de madeira. Lloyd então acertou-lhe um gancho no queixo e ele perdeu os sentidos.

           Lloyd esfregou a parte de trás da cabeça. Estava doendo muito, mas não havia sangue.

           Notou que a pele dos nós de seus dedos estava esfolada e sangrando. Abaixou-se e pegou o pedaço de pau que o rapaz havia soltado.

           Quando tornou a olhar em volta, ficou empolgado ao ver que os camisas-pardas estavam recuando: subiam desabalados no palco e desapareciam nas coxias, sem dúvida com a intenção de sair pela mesma porta que haviam usado para entrar.

           O brutamontes que começara o tumulto estava caído no chão, gemendo e segurando o joelho como se houvesse deslocado algum osso. Wilhelm Frunze, em pé ao seu lado, batia nele com uma pá de madeira, repetindo o mais alto que podia as palavras que o homem usara para desencadear a confusão:

           – Não! Queremos! Vocês! Na Alemanha! De hoje! – Incapaz de se defender, o brutamontes tentava rolar para longe dos golpes, mas Frunze não o deixava escapar, até que outros dois camisas-pardas seguraram o homem pelos braços e o arrastaram dali.

           Frunze os deixou ir embora.

           Será que nós os derrotamos?, pensava Lloyd, cada vez mais exultante. Talvez sim!

           Vários dos homens mais jovens perseguiram seus oponentes até o palco, mas, ao chegar ali, pararam e se contentaram em gritar insultos enquanto os camisas-pardas desapareciam.

           Lloyd olhou para os outros. Volodya tinha o rosto inchado e um dos olhos fechado. O paletó de Werner estava rasgado, com um grande quadrado de pano pendurado. Walter estava sentado em uma das cadeiras da primeira fila, ofegante e esfregando o cotovelo, mas com um sorriso no rosto. Frunze atirou longe a pá de madeira, fazendo-a voar por cima das fileiras de cadeiras vazias até os fundos da sala.

           Werner, que tinha apenas 14 anos, estava exultante.

           – Nós demos uma lição neles, não foi?

           – Demos, sim, com certeza – respondeu Lloyd com um sorriso.

           Volodya passou o braço em volta dos ombros de Frunze.

           – Nada mal para um bando de estudantes, hein?

           – Mas eles interromperam o nosso comício – disse Walter.

           Os jovens o encararam ressentidos por ele estragar sua festa.

           – Meninos, sejam realistas – falou Walter, parecendo zangado. – Nosso público fugiu aterrorizado. Quanto tempo vai demorar para que essas pessoas tenham novamente a coragem de ir a uma reunião política? Os nazistas conseguiram o que queriam. O simples fato de escutar um partido que não seja o deles é perigoso. Quem mais perdeu com isso tudo foi a Alemanha.

           – Detesto esses camisas-pardas filhos da puta – disse Werner para Volodya. – Acho que talvez me junte a vocês, comunistas.

           Volodya o encarou de modo severo com seus intensos olhos azuis e falou, em voz baixa:

           – Se quiser mesmo combater os nazistas, talvez haja algo mais eficaz que possa fazer.

           Lloyd ficou se perguntando o que Volodya queria dizer.

           Nessa hora, Maud e Ethel entraram correndo no auditório, falando ao mesmo tempo, chorando e rindo aliviadas. Então Lloyd esqueceu as palavras de Volodya e não tornou a pensar no assunto.

 

           Quatro dias depois, Erik von Ulrich chegou em casa vestido com o uniforme da Juventude Hitlerista.

           Sentia-se um príncipe.

           Estava com uma camisa parda igual à das tropas de assalto, com vários escudos e uma braçadeira com a suástica. Usava também a gravata e o short pretos que completavam o uniforme. Era um soldado patriota dedicado a servir ao seu país. Finalmente havia entrado para a turma.

           Aquilo era ainda melhor do que torcer pelo Hertha, o time de futebol mais popular entre os berlinenses. Em alguns sábados, quando não tinha nenhuma reunião política, o pai de Erik o levava aos jogos. Aquilo lhe dava a sensação de pertencer a uma grande torcida, uma multidão de pessoas sentindo a mesma emoção.

           Mas o Hertha às vezes perdia e o menino voltava para casa inconsolável.

           Os nazistas eram vencedores.

           Ele estava apavorado com o que o pai iria dizer.

           Seus pais o irritavam com aquela insistência em andar fora da linha. Todos os outros meninos estavam entrando para a Juventude Hitlerista. Praticavam esportes, entoavam canções e viviam aventuras nos campos e florestas dos arredores da cidade. Eram inteligentes, atléticos, leais e eficientes.

           Pensar que um dia talvez precisasse lutar numa batalha – assim como o pai e o avô haviam feito – deixava Erik profundamente preocupado, e ele queria estar pronto para isso, treinado e aguerrido, disciplinado e agressivo.

           Os nazistas odiavam os comunistas, de quem seus pais também não gostavam. E daí que os nazistas odiavam os judeus? Os Von Ulrich não eram judeus. Por que deveriam se preocupar com isso? Mas seus pais se recusavam a entrar para o partido. Bom, Erik não aguentava mais ficar de fora e decidira enfrentá-los.

           Estava apavorado.

           Como de hábito, nem a mãe nem o pai estavam em casa quando ele e Carla chegaram da escola. Ao servir-lhes o chá, Ada franziu os lábios com ar de reprovação, mas disse apenas:

           – Hoje vocês vão ter que tirar a mesa sozinhos... estou com uma dor horrível nas costas. Vou me deitar.

           – Por isso você foi ao médico? – perguntou Carla, com ar de preocupação.

           Ada hesitou antes de responder:

           – Sim, foi por isso mesmo.

           Era óbvio que ela estava escondendo alguma coisa. A ideia de Ada estar doente – e mentir sobre isso – deixou Erik perturbado. Ele nunca chegaria tão longe quanto Carla a ponto de dizer que amava Ada, mas a criada tinha sido uma presença agradável durante toda a sua vida e ele nutria mais afeto por ela do que gostava de admitir.

           Carla, que estava tão apreensiva quanto o irmão, falou:

           – Espero que você melhore.

           Ultimamente, para espanto do irmão, Carla havia ficado mais madura. Embora fosse dois anos mais velho, ele ainda se sentia um garoto, mas a irmã agia como adulta durante a maior parte do tempo.

           – Vou ficar boa depois que descansar – disse Ada num tom reconfortante.

           Erik mordeu um pedaço de pão. Quando Ada saiu da sala, ele engoliu e disse:

           – Estou só na divisão juvenil, mas assim que fizer 14 anos posso subir de grupo.

           – Você está louco? Papai vai ficar uma fera! – disse Carla.

           – Herr Lippmann disse que papai vai se encrencar se me obrigar a sair.

           – Ah, que ótimo! – Carla havia desenvolvido um tipo de sarcasmo cruel que às vezes deixava Erik mordido. – Quer dizer que você vai fazer papai brigar com os nazistas? – perguntou com desdém. – Que ideia maravilhosa! Vai ser ótimo para a família toda.

           Erik ficou espantado. Não tinha pensado no assunto por esse ângulo.

           – Mas todos os meninos da minha turma entraram – retrucou, indignado. – Menos o francesinho Fontaine e Rothmann, aquele judeu.

           Carla espalhou patê de peixe sobre o pão.

           – Por que você tem que ser igual aos outros? – indagou a irmã. – A maioria desses meninos é burra. Você me disse que Rudi Rothmann era o mais inteligente da turma.

           – Eu não quero ficar com o francesinho e com Rudi! – esbravejou Erik e, para sua própria consternação, sentiu lágrimas lhe subirem aos olhos. – Por que eu deveria ser obrigado a andar com os garotos de que ninguém gosta? – Fora isso que lhe dera coragem de desafiar o pai: ele não aguentava mais sair da escola com os judeus e estrangeiros enquanto os meninos alemães marchavam pelo pátio de uniforme.

           Ambos escutaram um grito.

           – O que foi isso? – perguntou Erik, olhando para Carla.

           Ela franziu o cenho.

           – Acho que foi Ada.

           Então ouviram com mais clareza alguém chamar:

           – Socorro!

           Erik se levantou, mas Carla já havia tomado a frente. Ele seguiu a irmã. O quarto de Ada ficava no porão. Eles desceram a escada correndo e entraram no cômodo exíguo.

           Havia uma cama de solteiro estreita encostada na parede. Ada estava deitada ali, com o rosto contorcido de dor. Tinha a saia molhada e havia uma poça no chão. Erik mal pôde acreditar no que estava vendo. Ada tinha feito xixi na calça? Que coisa mais assustadora. Não havia outro adulto em casa. Ele não soube o que fazer.

           Carla também ficou assustada – Erik viu isso na sua expressão –, mas não entrou em pânico.

           – Ada, o que houve? – perguntou ela. Sua voz soou estranhamente calma.

           – Minha bolsa estourou – respondeu Ada.

           Erik não fazia a menor ideia do que isso significava.

           Nem Carla.

           – Não estou entendendo – disse a menina.

           – O bebê vai nascer.

           – Você está grávida? – perguntou Carla, atônita.

           – Mas você não é casada! – falou Erik.

           – Cale a boca, Erik... será que você não entende nada? – retrucou Carla, furiosa.

           É claro que ele sabia que as mulheres podiam ter bebês mesmo não sendo casadas – mas não Ada!

           – Então é por isso que você foi ao médico na semana passada – disse Carla à criada.

           Ada assentiu com a cabeça.

           Erik estava tentando se acostumar com aquela ideia.

           – Você acha que mamãe e papai sabem? – perguntou.

           – É claro que eles sabem. Só não nos contaram. Vá pegar uma toalha – ordenou Carla.

           – Onde?

           – No armário junto ao topo da escada.

           – Uma toalha limpa?

           – É claro!

           Erik subiu a escada correndo, pegou uma pequena toalha branca no armário e tornou a descer às pressas.

           – Não vai adiantar muito – disse Carla, mas mesmo assim pegou a toalha e secou as pernas de Ada.

           – O bebê vai nascer logo, estou sentindo – falou Ada. – Mas não sei o que fazer. – Ela começou a chorar.

           Erik observava a irmã. Carla agora estava no comando. Não importava que ele fosse o mais velho: era na irmã que buscava liderança. A menina estava se mostrando prática e mantendo a calma, mas ele sabia que estava aterrorizada e que seu equilíbrio era frágil. Ela poderia desmoronar a qualquer momento, pensou.

           Carla tornou a se virar para Erik:

           – Vá chamar o Dr. Rothmann – falou. – Você sabe onde fica o consultório dele.

           Erik ficou muito aliviado por receber uma tarefa que era capaz de cumprir. Então pensou que poderia haver um contratempo.

           – E se ele tiver saído?

           – Então pergunte a Frau Rothmann o que fazer, seu idiota! – disse Carla. – Vá logo... rápido!

           Erik ficou feliz por sair do quarto. O que estava acontecendo lá dentro era misterioso e assustador. Ele subiu os degraus de três em três e saiu correndo pela porta da frente. Correr pelo menos era uma coisa que sabia fazer.

           O consultório do médico ficava a menos de um quilômetro de distância. Ele diminuiu o ritmo para um trote rápido. Enquanto corria, pensava em Ada. Quem seria o pai do bebê? Lembrou-se de que ela tinha ido ao cinema com Paul Huber algumas vezes no verão passado. Será que eles haviam tido relações sexuais? Provavelmente! Erik e os amigos falavam muito sobre sexo, mas na verdade não sabiam nada a respeito. Onde será que Ada e Paul tinham feito aquilo? Não podia ter sido no cinema, é claro! Não era preciso estar deitado? Ele não conseguia entender.

           O Dr. Rothmann morava numa rua mais pobre. Erik ouvira a mãe dizer que ele era um bom médico, que tratava muita gente da classe operária que não podia pagar preços altos. A casa do médico tinha um consultório e uma sala de espera no térreo, e a família morava no andar de cima.

           Do lado de fora estava estacionado um Opel 4 verde, um carrinho feio de dois lugares que ganhara o apelido debochado de sapinho.

           A porta da frente da casa estava destrancada. Erik entrou, ofegante, e chegou à sala de espera. Havia um velho tossindo em um canto e uma jovem com um bebê no colo.

           – Olá! – disse Erik. – O Dr. Rothmann?

           A esposa do médico saiu do consultório. Hannelore Rothmann era uma mulher alta e loura, de traços marcantes. Ela fuzilou Erik com o olhar.

           – Como se atreve a entrar nesta casa com esse uniforme? – perguntou ela.

           Erik ficou petrificado. Frau Rothmann não era judia, mas seu marido, sim: de tão aflito, Erik se esquecera disso.

           – Nossa criada está tendo um bebê! – falou.

           – Então vocês querem ajuda de um médico judeu?

           Erik foi pego totalmente de surpresa. Nunca lhe ocorrera que os ataques dos nazistas pudessem provocar retaliações dos judeus. De repente, porém, viu que a atitude de Frau Rothmann fazia todo o sentido. Os camisas-pardas andavam por aí gritando: “Morte aos judeus!” Por que um médico judeu deveria ajudar pessoas assim?

           Agora ele não sabia o que fazer. Havia outros médicos, é claro, vários deles, mas Erik não sabia onde, nem se iriam se deslocar para ajudar uma desconhecida.

           – Minha irmã me mandou vir aqui – disse ele, com voz débil.

           – Carla tem muito mais juízo que você.

           – Ada disse que a bolsa estourou. – Erik não sabia ao certo o que isso significava, mas parecia importante.

           Com uma expressão de nojo, Frau Rothmann tornou a entrar no consultório.

           O velho que estava no canto começou a resmungar:

           – Somos todos uns judeus imundos até o dia em que vocês precisam da nossa ajuda! Aí é: “Por favor, Dr. Rothmann, venha nos ajudar”, “Qual é a sua opinião de advogado, Dr. Koch?”, “Empreste-me 100 marcos, Herr Goldman” ou então... – Ele foi acometido por um acesso de tosse.

           Uma menina de cerca de 15 anos surgiu do corredor. Erik imaginou que fosse a filha dos Rothmann, Eva. Fazia anos que não a via. Ela agora tinha seios, mas continuava feia e gorducha.

           – Seu pai deixou você entrar para a Juventude Hitlerista? – perguntou ela.

           – Ele não sabe – respondeu Erik.

           – Caramba, menino – comentou Eva. – Você está mesmo encrencado.

           Ele tirou os olhos dela e os pousou na porta do consultório.

           – Acha que o seu pai vai vir? – perguntou. – Sua mãe ficou muito zangada comigo.

           – É claro que ele vai – respondeu Eva. – Quando as pessoas estão doentes, ele as ajuda. – Sua voz assumiu um tom de desdém. – Não verifica primeiro sua raça nem sua filiação política. Nós não somos nazistas. – Ela tornou a sair.

           Erik estava pasmo. Não imaginava que seu uniforme fosse lhe causar tantos problemas. Na escola, todos achavam aquele uniforme uma maravilha.

           Instantes depois, o Dr. Rothmann apareceu e falou aos dois pacientes que aguardavam:

           – Voltarei assim que puder. Desculpem, mas um bebê não espera para nascer. – Então olhou para Erik. – Vamos, rapaz. É melhor vir no carro comigo, apesar desse uniforme.

           Erik o seguiu para fora da casa e se acomodou no banco do carona do Opel verde. Adorava carros e não via a hora de ter idade suficiente para dirigir. Normalmente, gostava de andar em qualquer veículo, observar os mostradores e estudar a técnica do motorista. Mas nesse dia teve a sensação de que estava exposto, sentado com sua camisa parda ao lado de um médico judeu. E se Herr Lippmann o visse? A viagem foi uma agonia.

           Felizmente, foi rápida: em poucos minutos eles chegaram à casa dos Von Ulrich.

           – Qual é o nome da moça? – quis saber Rothmann.

           – Ada Hempel.

           – Ah, sim, ela foi ao meu consultório na semana passada. O bebê está adiantado. Muito bem, leve-me até ela.

           Erik entrou na frente. Ouviu um choro de criança. O bebê já havia nascido! Desceu correndo até o porão, com o médico atrás dele.

           Ada estava deitada de costas. A cama encontrava-se ensopada de sangue e alguma outra coisa. Carla segurava no colo um bebê muito pequeno, coberto de sebo. Uma coisa parecida com um barbante grosso saía do bebê e subia por dentro da saia de Ada. Carla tinha os olhos arregalados de pavor.

           – O que devo fazer? – perguntou ela.

           – Você está fazendo exatamente a coisa certa – garantiu-lhe o Dr. Rothmann. – Apenas segure o bebê por mais um instantinho. – Ele se sentou junto a Ada, auscultou seu coração e depois tomou seu pulso. – Como está se sentindo, querida?

           – Muito cansada – respondeu ela.

           O Dr. Rothmann aquiesceu, satisfeito. Tornou a se levantar e olhou para o bebê no colo de Carla.

           – Um menininho – falou.

           Com um misto de fascínio e repulsa, Erik ficou olhando o médico abrir a maleta, pegar um barbante e amarrá-lo no cordão umbilical, dando dois nós. Enquanto fazia isso, falou com Carla em voz baixa:

           – Por que está chorando? Você fez um trabalho incrível! Fez o parto de um bebê sozinha. Quase não precisou de mim! Acho bom você virar médica quando crescer.

           Carla ficou mais calma. Então sussurrou:

           – Olhe a cabecinha dele. – O médico teve que se inclinar na sua direção para ouvi-la. – Acho que tem algo errado com ele.

           – Eu sei. – O médico pegou uma tesoura afiada e cortou o cordão entre os dois nós. Depois pegou o bebê do colo de Carla e o segurou com o braço esticado, examinando-o. Erik não conseguiu ver nada de errado, mas o bebê estava tão vermelho, enrugado e ensebado que era difícil de dizer. Depois de pensar por alguns instantes, porém, o médico tornou a falar: – Ai, meu Deus!

           Ao olhar com mais atenção, Erik pôde ver que havia mesmo algo errado. O rosto do bebê estava torto. Um dos lados era normal, mas no outro a cabeça parecia afundada e havia alguma coisa estranha com o olho.

           Rothmann entregou o bebê a Carla.

           Ada gemeu outra vez e pareceu fazer força.

           Quando ela relaxou, o Dr. Rothmann levou a mão embaixo de sua saia e pegou um naco de algo que se parecia repulsivamente com carne crua.

           – Erik – disse ele –, vá buscar um jornal para mim.

           – Qual deles? – perguntou o menino. Seus pais compravam todos os jornais importantes diariamente.

           – Qualquer um, rapaz – respondeu o Dr. Rothmann com a voz branda. – Não é para ler.

           Erik correu até o andar de cima e encontrou o Vossiche Zeitung do dia anterior. Quando voltou, o médico embrulhou o naco de carne no jornal e o pôs no chão.

           – Isso é a placenta – explicou ele para Carla. – Melhor queimá-la depois.

           Ele então tornou a se sentar na beirada da cama.

           – Ada, querida, você vai ter que ser muito corajosa – disse ele. – Seu bebê está vivo, mas pode ser que haja alguma coisa errada com ele. Vamos dar um banho nele, vesti-lo com roupas quentes e depois teremos que levá-lo ao hospital.

           – Qual é o problema? – perguntou a mãe, assustada.

           – Não sei. Ele precisa ser examinado.

           – Ele vai ficar bem?

           – Os médicos farão tudo o que puderem. O restante devemos deixar nas mãos de Deus.

           Erik lembrou que os judeus adoravam o mesmo Deus dos cristãos. Era fácil esquecer isso.

           – Acha que consegue se levantar e ir ao hospital comigo, Ada? – perguntou o Dr. Rothmann. – O bebê precisa de você para mamar.

           – Estou muito cansada – repetiu ela.

           – Então descanse por um ou dois minutos. Mas não muito mais que isso, porque o bebê precisa ser examinado logo. Carla vai ajudar você a se vestir. Vou esperar lá em cima. – Então ele se dirigiu a Erik com uma ironia suave: – Venha comigo, seu pequeno nazista.

           O comentário deixou Erik envergonhado. A complacência do Dr. Rothmann era ainda pior que o desprezo de Frau Rothmann.

           Quando eles estavam saindo, Ada chamou:

           – Doutor?

           – Sim, querida?

           – O nome dele é Kurt.

           – Ótimo nome – disse o Dr. Rothmann. Então saiu do quarto e Erik o seguiu.

 

           O primeiro dia de trabalho de Lloyd Willliams como assessor de Walter von Ulrich foi também o primeiro dia do novo Parlamento.

           Walter e Maud lutavam desesperadamente para salvar a frágil democracia alemã. Lloyd compartilhava o desespero do casal, em parte por serem pessoas boas que, mesmo sem ter uma convivência próxima, ele conhecia desde que havia nascido, e em parte porque temia que a Grã-Bretanha viesse a seguir a Alemanha na estrada rumo ao inferno.

           As eleições de nada haviam adiantado. Os nazistas obtiveram 44% do Parlamento, um aumento em sua representação, mas ainda sem chegar à maioria absoluta de que precisavam.

           Walter tinha esperança. Enquanto dirigia o carro para a sessão inaugural do Parlamento, falou:

           – Mesmo com as intensas intimidações, eles não conseguiram conquistar os votos da maioria dos alemães. – Ele deu um soco no volante. – Apesar de tudo o que dizem, eles não são populares! E quanto mais tempo ficarem no governo, mais as pessoas conhecerão sua crueldade.

           Lloyd não tinha tanta certeza.

           – Eles fecharam os jornais de oposição, prenderam deputados do Reichstag e corromperam a polícia – disse. – E mesmo assim têm a aprovação de 44% dos alemães? Não acho isso reconfortante.

           O prédio do Reichstag tinha sido bastante danificado pelo incêndio e estava interditado, por isso o Parlamento se reunia na Ópera Kroll, do outro lado da Köningsplatz. A Ópera era um grande complexo, com três salas de espetáculo e 14 auditórios menores, além de restaurantes e bares.

           Ao chegarem, os dois tiveram um choque. A Ópera estava cercada por camisas-pardas. Deputados e assessores se aglomeravam junto às entradas, tentando passar. Furioso, Walter perguntou:

           – É assim que Hitler pretende conseguir o que quer? Impedindo-nos de entrar no parlamento?

           Lloyd viu que camisas-pardas bloqueavam as portas. Deixavam entrar sem dizer nada os que estivessem de uniforme nazista, mas todos os outros tinham que mostrar as credenciais. Um rapaz mais novo que Lloyd o olhou de cima a baixo com uma expressão desdenhosa antes de deixá-lo entrar a contragosto. Aquilo era intimidação pura e simples.

           Lloyd sentiu seu temperamento começar a esquentar. Detestava ser intimidado. Sabia que podia derrubar o camisa-parda com um bom gancho de esquerda. Forçou-se a permanecer calmo, dar-lhe as costas e entrar.

           Depois da briga no Teatro do Povo, sua mãe tinha examinado o galo em sua cabeça e o mandara voltar para a Inglaterra. Ele conseguira convencê-la a deixá-lo ficar, mas por pouco.

           Ethel dizia que Lloyd não tinha noção do perigo, mas isso não era exatamente verdade. Às vezes ele sentia medo, entretanto isso sempre o deixava combativo. Seu instinto era atacar, não recuar. Isso assustava sua mãe.

           Por ironia, Ethel era igualzinha. Não voltaria para casa. Embora estivesse assustada, também se sentia empolgada por estar em Berlim naquele momento crucial da história da Alemanha. Ficava indignada com a violência e a repressão que via. Além do mais, estava certa de que poderia escrever um livro que alertasse os democratas de outros países sobre as táticas fascistas.

           – Você é pior do que eu – dissera-lhe Lloyd, e ela não soubera o que responder.

           Do lado de dentro, a Ópera estava coalhada de camisas-pardas e homens da SS, muitos deles armados. Postados diante de cada porta, eles demonstravam com expressões e gestos todo o ódio e desprezo que sentiam por qualquer um que não apoiasse os nazistas.

           Walter estava atrasado para uma reunião do Partido Social-Democrata. Lloyd correu pelo prédio à procura da sala certa. Deu uma espiada na sala do plenário e viu uma gigantesca suástica pendurada no teto, pairando sobre o recinto.

           A primeira questão a ser discutida ao se iniciarem os procedimentos daquela tarde era a Lei Plenipotenciária, que permitiria ao gabinete de Hitler sancionar leis sem a aprovação do Reichstag.

           A perspectiva apresentada pela lei era dura. Ela tornaria Hitler um ditador. A repressão, a intimidação, a violência, a tortura e os assassinatos que a Alemanha havia testemunhado nas últimas semanas se tornariam permanentes. Era inconcebível.

           Mas Lloyd não conseguia acreditar que algum Parlamento do mundo fosse aprovar uma lei assim. Eles estariam votando a perda do próprio poder. Era um suicídio político.

           Encontrou os social-democratas num pequeno auditório. A reunião já havia começado. Lloyd levou Walter às pressas até a sala e em seguida mandaram que ele fosse buscar café.

           Enquanto esperava na fila, ele se viu atrás de um rapaz pálido, de expressão intensa, vestido com roupas pretas e fúnebres. O alemão de Lloyd estava mais fluente e coloquial, e ele já se sentia seguro para puxar conversa com um desconhecido. Descobriu que o homem de preto se chamava Heinrich von Kessel. Estava fazendo o mesmo tipo de trabalho que Lloyd: era assessor não remunerado do pai, Gottfried von Kessel, deputado do Partido do Centro, de orientação católica.

           – Meu pai conhece Walter von Ulrich muito bem – disse Heinrich. – Os dois foram adidos na embaixada alemã em Londres em 1914.

           O mundo da política e da diplomacia internacional era mesmo bem pequeno, pensou Lloyd.

           Heinrich disse a Lloyd que o retorno à fé cristã era a solução para os problemas da Alemanha.

           – Eu não sou um cristão muito bom – disse Lloyd com sinceridade. – Espero que não se incomode por eu dizer isso. Meus avós eram galeses e viviam agarrados na Bíblia, mas minha mãe é indiferente à religião e meu padrasto é judeu. De vez em quando vamos à igreja do Evangelho do Calvário em Aldgate, sobretudo porque o pastor é do Partido Trabalhista.

           Heinrich sorriu e disse:

           – Vou rezar por vocês.

           Os católicos não eram proselitistas, lembrou Lloyd. Que contraste com seus dogmáticos avós de Aberowen, para quem todos os que não acreditassem na mesma coisa que eles estavam voluntariamente fechando os olhos para o Evangelho e seriam condenados à danação eterna.

           Quando Lloyd voltou à sala da reunião do Partido Social-Democrata, Walter estava discursando.

           – Não tem como isso acontecer! – disse ele. – A Lei Plenipotenciária é uma emenda constitucional. Para votá-la é preciso que dois terços dos representantes estejam presentes, o que significa 432 de 647. E dois terços dos presentes precisam votar a favor para que seja aprovada.

           Lloyd fez as contas de cabeça enquanto pousava a bandeja sobre a mesa. Os nazistas tinham 288 assentos, e os nacionalistas, seus aliados mais próximos, tinham 52, ou seja, um total de 340 – quase cem a menos que o necessário se todos comparecessem. Walter tinha razão. Não havia como aquela lei ser aprovada. Lloyd sentiu-se reconfortado e sentou-se para ouvir as discussões e treinar seu alemão.

           Mas seu alívio foi breve.

           – Não tenham tanta certeza – disse um homem com um jeito de falar da classe trabalhadora de Berlim. – Os nazistas estão negociando com o Partido do Centro. – Era o pessoal de Heinrich, lembrou Lloyd. – Isso pode lhes dar mais 74 votos – concluiu o homem.

           Lloyd franziu o cenho. Por que o Partido do Centro iria apoiar uma medida que tiraria todo o seu poder?

           Walter expressou o mesmo pensamento de maneira mais brutal:

           – Como os católicos poderiam ser tão burros?

           Lloyd desejou ter sabido disso antes de sair para buscar o café – poderia ter conversado com Heinrich a respeito. Talvez tivesse descoberto algo útil. Droga.

           O homem com sotaque popular de Berlim tornou a falar:

           – Na Itália, os católicos fizeram um pacto com Mussolini, um acordo para proteger a Igreja. Por que não fariam aqui?

           Lloyd calculou que o apoio do Partido do Centro faria os votos dos nazistas subirem para 414.

           – Mesmo assim não são dois terços do total – disse ele a Walter, aliviado.

           Outro jovem assessor o escutou e rebateu:

           – Mas isso não leva em conta o último anúncio do presidente do Reichstag. – O presidente era Hermann Göring, o aliado mais próximo de Hitler. Lloyd não ouvira falar de nenhum anúncio. Ninguém mais parecia ter conhecimento daquilo. Os deputados se calaram. O assessor prosseguiu: – Ele disse que os deputados comunistas que não comparecerem porque estão na prisão não contam.

           Protestos indignados irromperam por toda a sala. Lloyd viu o rosto de Walter ficar vermelho.

           – Ele não pode fazer isso! – exclamou Walter.

           – É totalmente ilegal – disse o assessor. – Mas ele já fez.

           Lloyd ficou arrasado. A lei não podia ser aprovada com uma artimanha, podia? Fez mais algumas contas. Os comunistas tinham 81 assentos. Se fossem descontados, os nazistas só precisariam de dois terços de 566, ou seja, 378. Só com os nacionalistas, não teriam votos suficientes – no entanto, se conseguissem o apoio dos católicos, seria possível.

           – Isso tudo é absolutamente ilegal – disse alguém. – Nós deveríamos nos retirar em protesto.

           – Não! – retrucou Walter, enfático. – Eles aprovariam a lei na nossa ausência. Precisamos convencer os católicos a não fazerem isso. Wels tem que falar com Kaas agora mesmo.

           Otto Wels era o líder do Partido Social-Democrata, e o padre Ludwig Kaas era o chefe do Partido do Centro.

           Um murmúrio de aprovação percorreu a sala.

           Lloyd respirou fundo e tomou a palavra:

           – Herr Von Ulrich, por que o senhor não convida Gottfried von Kessel para almoçar? Vocês trabalharam juntos em Londres antes da guerra.

           Walter deu uma risada sem alegria.

           – Aquele patife! – exclamou.

           Talvez o almoço não fosse uma ideia tão boa assim.

           – Eu não sabia que você antipatizava com ele – disse Lloyd.

           Walter pareceu pensativo.

           – Eu o odeio... mas, por Deus, estou disposto a tentar qualquer coisa.

           – Quer que eu o encontre e faça o convite? – perguntou Lloyd.

           – Muito bem, pode tentar. Se ele aceitar, diga-lhe para me encontrar no Herrenklub à uma da tarde.

           – Ótimo.

           Lloyd foi depressa à sala na qual Heinrich havia entrado. Ali acontecia uma reunião parecida com a que ele acabara de deixar. Correu os olhos pela sala, viu Heinrich todo vestido de preto, cruzou olhares com ele e chamou-o com um gesto urgente.

           Ambos saíram da sala e então Lloyd disse:

           – Estão dizendo que o seu partido vai apoiar a Lei Plenipotenciária!

           – Ainda não está certo – respondeu Heinrich. – Eles estão divididos.

           – Quem está contra os nazistas?

           – Brüning e alguns outros.

           Brüning era ex-chanceler e uma figura conhecida. Lloyd ficou mais esperançoso.

           – Quem são os outros?

           – Você me tirou da sala para obter informações?

           – Não, desculpe, não foi por isso. Walter von Ulrich quer almoçar com seu pai.

           Heinrich pareceu duvidar.

           – Eles não se dão bem... Você sabe disso, não sabe?

           – Foi o que entendi. Mas hoje vão deixar as diferenças de lado!

           Heinrich não pareceu tão certo.

           – Vou perguntar a ele. Espere aqui. – Então tornou a entrar na sala.

           Lloyd se perguntou se haveria alguma chance de aquilo funcionar. Era uma pena Walter e Gottfried não serem grandes amigos. Mas ele não podia acreditar que os católicos fossem votar a favor dos nazistas.

           O que mais o incomodava era pensar que, se aquilo podia acontecer na Alemanha, também poderia acontecer na Grã-Bretanha. Essa sinistra perspectiva provocou-lhe um calafrio. Ele tinha a vida inteira pela frente e não queria viver em uma ditadura repressiva. Desejava trabalhar na política, como os pais, e fazer do seu país um lugar melhor para pessoas como os mineiros de Aberowen. Para isso, eram necessárias reuniões políticas em que as pessoas pudessem dizer o que pensavam, jornais capazes de atacar o governo e bares onde os homens pudessem conversar sem ficar olhando por cima do ombro para ver quem estava escutando.

           O fascismo ameaçava tudo isso. Mas talvez o fascismo fracassasse. Walter talvez conseguisse convencer Gottfried e impedir que o Partido do Centro apoiasse os nazistas.

           Heinrich saiu da sala.

           – Ele aceitou.

           – Ótimo! Herr Von Ulrich sugeriu o Herrenklub à uma da tarde.

           – Sério? Ele é sócio?

           – Imagino que sim... por quê?

           – É uma instituição conservadora. Mas imagino que, como o nome dele é Walter von Ulrich, seja de uma família nobre, mesmo sendo socialista.

           – Eu provavelmente deveria reservar uma mesa. Você sabe onde fica?

           – Logo depois da esquina. – Heinrich explicou o caminho a Lloyd.

           – Faço a reserva para quatro?

           Heinrich sorriu.

           – Por que não? Se eles não nos quiserem, simplesmente nos pedirão para ir embora. – Ele voltou para a sala.

           Lloyd saiu do prédio e atravessou a praça depressa, passando pelo prédio do Reichstag todo queimado e seguindo em direção ao Herrenklub.

           Em Londres também havia clubes de cavalheiros, mas Lloyd nunca entrara em nenhum. Achou que o estabelecimento parecia uma mistura de restaurante e funerária. Garçons de uniforme de gala andavam de um lado para outro a passos leves, dispondo talheres sem fazer barulho sobre mesas cobertas com toalhas brancas. O maître anotou sua reserva e escreveu o nome “Von Ulrich” de forma tão solene quanto se estivesse incluindo um registro no Livro dos Mortos.

           Lloyd voltou para a Ópera. O lugar estava ficando mais movimentado e barulhento, e a tensão parecia maior. Lloyd ouviu alguém dizer animadamente que o próprio Hitler abriria os trabalhos daquela tarde com a nova proposta de lei.

           Alguns minutos antes da uma da tarde, Lloyd e Walter atravessaram a praça.

           – Heinrich von Kessel ficou surpreso ao saber que você é sócio do Herrenklub – comentou o rapaz.

           Walter assentiu.

           – Fui um dos fundadores do clube, há uns dez anos ou mais. Na época, chamava-se Juniklub. Nós nos reuníamos para fazer campanha contra o Tratado de Versalhes. Depois o clube virou um bastião da direita, e provavelmente sou o único membro social-democrata, mas continuo lá porque é um lugar útil para encontrar o inimigo.

           Dentro do clube, Walter apontou para um homem de aspecto bem-cuidado sentado no bar.

           – Aquele ali é Ludwig Franck, pai do jovem Werner, que lutou conosco no Teatro do Povo – falou. – Tenho certeza de que não é sócio do clube... nem nasceu na Alemanha. Mas parece que está almoçando com o sogro, o conde Von der Helbard, aquele senhor ao lado dele. Venha comigo.

           Os dois foram até o bar e Walter fez as apresentações. Franck disse a Lloyd:

           – Você e meu filho se meteram numa briga e tanto algumas semanas atrás.

           Por reflexo, Lloyd levou a mão à parte de trás da cabeça: embora não estivesse mais inchado, o local continuava dolorido.

           – Havia mulheres a proteger, senhor – disse ele.

           – Não há nada de errado com uma pequena troca de socos – comentou Franck. – É bom para vocês, rapazes.

           Impaciente, Walter se intrometeu:

           – Pelo amor de Deus, Ludi. Invadir comícios pré-eleitorais já é ruim o suficiente, mas agora o seu líder quer destruir por completo a nossa democracia!

           – Talvez a democracia não seja a forma adequada de governo para nós – respondeu Franck. – Afinal de contas, não somos iguais aos franceses e aos americanos... graças a Deus.

           – Você não se importa de perder a liberdade? Isso é sério!

           Franck perdeu subitamente o ar bem-humorado.

           – Tudo bem, Walter – disse com frieza. – Se você insiste, vou falar sério. Minha mãe e eu chegamos aqui vindos da Rússia há mais de dez anos. Meu pai não pôde vir conosco. Tinham encontrado com ele exemplares de literatura subversiva. Para ser mais exato, um livro chamado Robinson Crusoé, aparentemente um romance que promove a individualidade burguesa, seja lá o que isso signifique. Ele foi mandado para um campo de prisioneiros em algum lugar do Ártico. Talvez... – A voz de Franck falhou por um instante. Ele fez uma pausa, engoliu em seco e concluiu baixinho: – Talvez ainda esteja lá.

           Fez-se um instante de silêncio. Lloyd ficou chocado com aquela história. Sabia que o governo comunista russo podia ser cruel, mas era diferente ouvir um relato pessoal, narrado com simplicidade por um homem visivelmente ainda enlutado.

           – Ludi, todos nós odiamos os bolcheviques – disse Walter. – Mas talvez os nazistas sejam ainda piores!

           – Estou disposto a correr esse risco – respondeu Franck.

           – É melhor irmos almoçar – interrompeu o conde Von der Helbard. – Tenho um compromisso à tarde. Com licença. – Os dois se retiraram.

           – É o que eles sempre dizem! – exclamou Walter, furioso. – Os bolcheviques! Como se eles fossem a única alternativa aos nazistas! Tenho vontade de chorar.

           Heinrich entrou acompanhado por um homem mais velho, que obviamente era seu pai: ambos tinham os mesmos cabelos grossos e escuros repartidos ao meio, com a única diferença que os de Gottfried eram mais curtos e grisalhos. Embora tivessem os mesmos traços, Gottfried parecia um burocrata presunçoso usando um colarinho à moda antiga, enquanto Heinrich lembrava mais um poeta romântico do que um assessor político.

           Os quatro entraram no salão de jantar. Walter não perdeu tempo. Assim que fizeram o pedido, falou:

           – Não consigo entender o que o seu partido espera ganhar apoiando a Lei Plenipotenciária, Gottfried.

           Von Kessel foi igualmente direto:

           – Somos um partido católico e nosso dever primordial é proteger a posição da Igreja na Alemanha. É isso que as pessoas esperam ao votar em nós.

           Lloyd franziu o cenho em reprovação. Sua mãe tinha sido parlamentar e sempre dizia que seu dever era servir tanto às pessoas que não tinham votado nela quanto às que tinham.

           Walter usou outro argumento:

           – Um Parlamento democrático é a melhor proteção para todas as nossas igrejas... e mesmo assim você está prestes a jogar isso fora!

           – Acorde, Walter – disse Gottfried, ríspido. – Hitler ganhou as eleições. Ele está no poder. Não importa o que façamos, é ele quem vai governar a Alemanha no futuro próximo. Temos que nos proteger.

           – As promessas dele não valem nada!

           – Exigimos garantias específicas por escrito: a Igreja Católica vai ser independente do Estado, as escolas católicas poderão funcionar sem entraves, não haverá discriminação contra católicos no funcionalismo público. – Ele olhou para o filho com ar de quem faz uma pergunta.

           – Eles prometeram que receberíamos o acordo no começo da tarde – disse Heinrich.

           – Pese as alternativas! – exclamou Walter. – De um lado, um pedaço de papel assinado por um tirano, do outro, um Parlamento democrático... qual dos dois é melhor?

           – O maior poder de todos é o de Deus.

           Walter revirou os olhos.

           – Nesse caso, que Deus proteja a Alemanha – falou.

           Os alemães não haviam tido tempo de desenvolver a fé na democracia, pensou Lloyd enquanto Walter e Gottfried continuavam a discutir. O Reichstag só era soberano havia 14 anos. O país tinha perdido uma guerra, o valor de sua moeda se reduzira a quase nada e o desemprego era altíssimo: para eles, o direito ao voto não parecia grande coisa como proteção.

           Gottfried se mostrou irredutível. Ao término do almoço, sua posição estava mais firme do que nunca. Sua responsabilidade era proteger a Igreja Católica. Isso fez Lloyd ter vontade de gritar.

           Os quatro voltaram para a Ópera e os deputados ocuparam seus lugares no auditório. Lloyd e Heinrich sentaram-se numa galeria com vista para o plenário.

           Lloyd pôde ver os membros do Partido Social-Democrata reunidos em um grupo à extrema esquerda. Quando foi chegando a hora da sessão, reparou que camisas-pardas e membros da SS se posicionavam em frente às saídas e ao longo das paredes, formando um arco ameaçador atrás dos social-democratas. Era quase como se pretendessem impedir os deputados de sair do prédio antes de terem aprovado a lei. Lloyd achou aquilo extremamente sinistro. Perguntou-se, com um calafrio, se ele também poderia ficar preso ali dentro.

           Então ouviu-se o estrondo de vivas e aplausos, e Hitler adentrou o plenário trajando o uniforme dos camisas-pardas. Os deputados nazistas, a maioria vestida como ele, se levantaram em êxtase quando seu líder subiu à tribuna. Apenas os social-democratas permaneceram sentados, mas Lloyd percebeu alguns deles olhando por cima do ombro para os guardas armados, pouco à vontade. Como poderiam falar e votar livremente se estavam nervosos com o simples fato de não participar da ovação a seu oponente?

           Quando voltou a haver silêncio, Hitler começou a falar. Mantinha-se muito ereto, com o braço esquerdo junto ao corpo e gesticulando apenas com o direito. Tinha a voz áspera, rascante, mas também muito potente, o que fez Lloyd pensar ao mesmo tempo numa metralhadora e num cão latindo. Seu tom se alterou ao mencionar os “traidores de novembro” de 1918, que tinham se rendido quando a Alemanha estava prestes a ganhar a guerra. Não estava fingindo. Lloyd teve a sensação de que ele acreditava sinceramente em cada palavra estúpida e ignorante que dizia.

           Os traidores de novembro eram um tema batido para Hitler, mas ele adotou uma nova tática. Falou das igrejas e da importância do cristianismo para o Estado alemão. Era um tema pouco usual para ele, e suas palavras eram claramente direcionadas ao Partido do Centro, cujo posicionamento iria determinar o resultado da votação. Ele afirmou que considerava as duas religiões dominantes, protestantismo e catolicismo, os principais alicerces da nação. O governo nazista não iria interferir em seus direitos.

           Heinrich lançou a Lloyd um olhar de triunfo.

           – Se eu fosse você, pediria tudo por escrito – resmungou Lloyd.

           Duas horas e meia depois, Hitler encerrou o discurso com uma inconfundível ameaça de violência:

           – O governo do levante nacionalista está determinado e pronto para lidar com o anúncio de que a lei foi rejeitada e a resistência, declarada. – Fez uma pausa dramática para deixar que todos entendessem bem o recado: votar contra a lei seria uma declaração de resistência. Então reforçou o que acabara de dizer: – Cabe a vocês, cavalheiros, decidirem por si próprios entre a paz ou a guerra!

           Ele se sentou sob os urros de aprovação dos representantes nazistas e a sessão foi interrompida.

           Heinrich estava radiante; Lloyd, deprimido. Os dois saíram em direções opostas: seus partidos agora teriam reuniões desesperadas de última hora.

           Os social-democratas estavam pessimistas. Wels, líder do partido, precisava discursar no plenário, mas o que poderia dizer? Vários deputados afirmaram que, se ele criticasse Hitler, talvez não saísse vivo do prédio. Também temiam por suas vidas. Se os deputados fossem mortos, pensou Lloyd num instante de medo, o que iria acontecer com seus assessores?

           Wels então revelou que tinha uma cápsula de cianureto no bolso do colete. Se fosse preso, cometeria suicídio para não ser torturado. Lloyd ficou horrorizado. Wels era um representante eleito pelo povo, mas era obrigado a agir como uma espécie de sabotador.

           Lloyd começara o dia com falsas esperanças. Pensara que a Lei Plenipotenciária fosse uma ideia maluca sem qualquer chance de se tornar realidade. Agora, via que a maioria das pessoas esperava que a lei entrasse em vigor naquele dia mesmo. Tinha avaliado muito mal a situação.

           Estaria igualmente errado ao pensar que uma coisa dessas não poderia acontecer em seu próprio país? Estaria enganando a si mesmo?

           Alguém perguntou se os católicos já haviam tomado sua decisão. Lloyd se levantou.

           – Vou descobrir – falou.

           Saiu apressado da sala e correu até onde o Partido do Centro estava reunido. Como da outra vez, espichou a cabeça pelo vão da porta e acenou para Heinrich.

           – Brüning e Ersing estão hesitantes – informou-lhe Heinrich.

           Lloyd ficou mais desanimado ainda. Ersing era um líder sindicalista católico importante.

           – Como um sindicalista pode sequer pensar em votar a favor dessa lei? – indagou.

           – Kaas disse que a pátria-mãe está correndo perigo. Todos acham que, se rejeitarmos a lei, o país vai mergulhar numa anarquia sangrenta.

           – Se aprovarem a lei, o país vai mergulhar numa tirania sangrenta, isso sim.

           – E o seu pessoal?

           – Eles acham que serão baleados, mas vão votar contra mesmo assim.

           Heinrich tornou a entrar na sala e Lloyd voltou para junto dos social-democratas.

           – Os linhas-duras estão amolecendo – informou Lloyd a Walter e seus colegas. – Estão com medo de que estoure uma guerra civil se a lei for rejeitada.

           O pessimismo aumentou ainda mais.

           Às seis da tarde, todos voltaram para o plenário.

           Wels foi o primeiro a discursar. Mostrou-se calmo, racional e controlado. Ressaltou que a vida numa república democrática tinha sido boa para os alemães, de modo geral, proporcionando livre oportunidade e bem-estar social, e restabelecendo o papel da Alemanha como membro regular da comunidade internacional.

           Lloyd reparou que Hitler tomava notas.

           Wels concluiu corajosamente afirmando seu compromisso com os direitos humanos e a justiça, com a liberdade e com o socialismo.

           – Nenhuma Lei Plenipotenciária dá a ninguém o poder de aniquilar ideias que são eternas e indestrutíveis – disse ele, ganhando coragem à medida que os nazistas começavam a rir e a vaiar.

           Os social-democratas aplaudiram, mas quase não se fizeram ouvir.

           – Nós saudamos os perseguidos e oprimidos! – gritou Wels. – Saudamos nossos amigos no Reich. Sua firmeza e sua lealdade merecem admiração.

           Lloyd mal conseguia ouvir as palavras de Wels, tão altos eram os gritos e vaias dos nazistas.

           – A coragem de suas convicções e seu otimismo inquebrantável são a garantia de um futuro melhor!

           Ele se sentou em meio a protestos ruidosos.

           Será que aquele discurso faria alguma diferença? Lloyd não soube dizer.

           Depois de Wels, Hitler voltou a falar. Dessa vez, seu tom foi bem diferente. Lloyd percebeu que, no discurso anterior, o chanceler estava apenas se aquecendo. Sua voz agora era mais alta, suas expressões, mais destemperadas, seu tom, cheio de desprezo. Ele usava o braço direito para fazer gestos agressivos – apontava, martelava, cerrava o punho, levava a mão ao peito e cortava o ar com um movimento que parecia varrer para longe toda e qualquer oposição. Cada frase apaixonada era recebida por seus seguidores com vivas estrondosos. Todas elas expressavam a mesma emoção: uma ira selvagem, irrefreável, assassina.

           Hitler também estava muito confiante. Disse que nem precisava propor a Lei Plenipotenciária.

           – Recorremos agora ao Reichstag alemão para nos conceder algo que teríamos obtido de qualquer maneira! – vangloriou-se.

           Heinrich parecia preocupado e saiu da galeria. No minuto seguinte, Lloyd o viu no plenário, cochichando alguma coisa no ouvido do pai.

           Quando voltou para a galeria, tinha um ar infeliz.

           – Conseguiram as garantias por escrito? – perguntou Lloyd.

           Heinrich foi incapaz de encará-lo nos olhos.

           – O documento está sendo datilografado – respondeu ele.

           Hitler concluiu desdenhando os social-democratas. Não queria os seus votos.

           – A Alemanha será livre – berrou. – Mas não graças a vocês!

           Os líderes dos outros partidos fizeram discursos breves. Todos pareciam arrasados. O padre Kaas disse que o Partido do Centro votaria a favor da lei. O restante fez o mesmo. Todos estavam a favor da lei, menos os social-democratas.

           O resultado da votação foi anunciado e os nazistas comemoraram entusiasmados.

           Lloyd estava pasmo. Tinha visto o poder da violência ser exercido com brutalidade, e não era uma visão bonita.

           Saiu da galeria sem falar com Heinrich.

           Encontrou Walter no saguão do prédio, chorando. Ele usava um grande lenço branco para enxugar o rosto, mas as lágrimas não paravam de rolar. Lloyd só tinha visto homens adultos chorarem daquele jeito em funerais.

           Não soube o que dizer nem o que fazer.

           – Minha vida foi um fracasso – disse Walter. – É o fim de qualquer esperança. A democracia alemã morreu.

 

           Sábado, 1o de abril, foi o dia do Boicote aos Judeus. Lloyd e Ethel foram passear por Berlim e observaram, incrédulos, o que estava acontecendo. Ethel tomava notas para seu livro. A estrela de davi fora pintada nas vitrines dos estabelecimentos dos judeus. Camisas-pardas se postaram na porta das lojas, intimidando as pessoas que quisessem entrar. Escritórios de advogados e consultórios de médicos judeus foram alvo de piquetes. Lloyd viu dois camisas-pardas detendo pacientes a caminho do consultório do médico de família dos Von Ulrich, o Dr. Rothmann, mas então um carregador de carvão parrudo que havia torcido o tornozelo mandou os camisas-pardas darem o fora e eles saíram em busca de uma presa mais fácil.

           – Como as pessoas podem ser tão más umas com as outras? – indagou Ethel.

           Lloyd estava pensando no padrasto que tanto amava. Bernie Leckwith era judeu. Se o fascismo chegasse à Grã-Bretanha, ele seria alvo daquele tipo de ódio. Esse pensamento fez Lloyd estremecer.

           Nessa noite, houve uma espécie de velório no Bistrô Robert. Ao que parecia, ninguém tinha organizado nada, mas às oito horas o restaurante estava cheio de social-democratas, jornalistas colegas de Maud e amigos de Robert do meio artístico. Os mais otimistas entre eles diziam que a liberdade só tinha ido hibernar durante a crise econômica e que um dia despertaria. O restante só lamentava.

           Lloyd bebeu pouco. Não gostava do efeito que o álcool tinha em seu cérebro. Beber prejudicava seu raciocínio. Estava perguntando a si mesmo o que os esquerdistas alemães poderiam ter feito para impedir aquela catástrofe, mas não tinha a resposta.

           Maud lhes deu notícias de Kurt, filho de Ada:

           – Ela o levou de volta para casa e, por enquanto, ele parece razoavelmente feliz. Mas tem um problema no cérebro e nunca vai ser um menino normal. Quando ficar mais velho terá que ir para uma instituição, pobrezinho.

           Lloyd ouvira falar sobre como o parto do bebê tinha sido feito por Carla, que tinha apenas 11 anos. Que menina valente!

           Às nove e meia, o agente Thomas Macke entrou no restaurante usando seu uniforme dos camisas-pardas.

           Na última vez em que ele estivera ali, Robert o havia tratado com zombaria, mas Lloyd sentira a ameaça que aquele homem representava. Aquele bigodinho no meio do rosto gordo lhe dava um aspecto bobo, mas seus olhos tinham uma centelha de crueldade que deixava Lloyd nervoso.

           Robert tinha se recusado a vender o restaurante para ele. O que Macke poderia querer agora?

           O agente postou-se no meio do salão e gritou:

           – Este restaurante está sendo usado para promover um comportamento pervertido!

           Os clientes se calaram, sem saber do que ele estava falando.

           Macke ergueu um dedo, como se quisesse dizer: É melhor vocês escutarem! Lloyd sentiu que havia algo terrivelmente familiar naquele gesto e percebeu que Macke estava imitando Hitler.

           – O homossexualismo é incompatível com o caráter másculo da nação alemã!

           Lloyd franziu o cenho. Será que ele estava dizendo que Robert era gay?

           Jörg entrou no salão vindo da cozinha, usando seu chapéu alto de cozinheiro. Postou-se ao lado da porta, olhando para Macke com ódio.

           Um pensamento chocante ocorreu a Lloyd. Talvez Robert fosse gay.

           Afinal de contas, ele e Jörg moravam juntos desde a guerra.

           Ao correr os olhos por seus amigos do meio artístico, Lloyd reparou que eram todos casais de homens, com exceção de duas mulheres de cabelos curtos...

           Ficou estupefato. Sabia que os homossexuais existiam e, sendo uma pessoa de mente aberta, acreditava que eles não deveriam ser perseguidos, mas ajudados. No entanto, considerava-os pervertidos e desagradáveis. Robert e Jörg pareciam homens normais, que administravam um negócio e levavam uma vida discreta – quase como duas pessoas casadas!

           Virou-se para a mãe e perguntou, em voz baixa:

           – Robert e Jörg são mesmo...

           – São, querido – respondeu Ethel.

           Sentada ao seu lado, Maud disse:

           – Quando jovem, Robert era o terror dos lacaios.

           As duas deram risadinhas.

           Lloyd ficou duplamente chocado: não só Robert era gay, como Ethel e Maud consideravam isso um motivo para brincadeiras descontraídas.

           – Este estabelecimento está fechado! – disse Macke.

           – O senhor não tem esse direito! – rebateu Robert.

           Macke não poderia fechar o restaurante sozinho, pensou Lloyd. Então se lembrou de como os camisas-pardas tinham subido ao palco do Teatro do Povo. Olhou na direção da porta – e ficou boquiaberto ao ver outros camisas-pardas entrando no bistrô.

           Os homens percorreram as mesas derrubando garrafas e copos. Alguns clientes continuaram sentados imóveis, só observando, outros se levantaram. Vários homens começaram a protestar aos berros e uma mulher gritou.

           Walter ficou de pé e falou, com a voz alta, porém calma:

           – É melhor irmos embora sem fazer alarde. Não há necessidade de violência. Vamos todos pegar nossos casacos e nossos chapéus e voltar para casa.

           Os clientes começaram a sair. Alguns tentavam pegar os casacos, outros simplesmente fugiam. Walter e Lloyd conduziram Maud e Ethel em direção à porta. A caixa registradora ficava próxima à saída e Lloyd viu um dos camisas-pardas abri-la e começar a enfiar o dinheiro nos bolsos.

           Até então, Robert permanecera parado, olhando impotente seus clientes saírem apressados, mas aquilo era demais. Ele soltou um grito de protesto e empurrou o camisa-parda para longe da registradora.

           O homem lhe deu um soco, derrubando-o no chão, e começou a chutá-lo. Outro camisa-parda se juntou ao primeiro.

           Lloyd correu para salvar Robert. Ouviu a mãe gritar enquanto empurrava os camisas-pardas para o lado. Jörg foi quase tão rápido quanto ele, e os dois se abaixaram para ajudar Robert a se levantar.

           Foram imediatamente atacados por vários outros camisas-pardas. Lloyd levou socos e chutes, e alguma coisa pesada o atingiu na cabeça. Ao gritar de dor, ele pensou: De novo, não.

           Virou-se de frente para os agressores e começou a desferir socos com as duas mãos, acertando com força, tentando socar através do adversário, como haviam lhe ensinado nas aulas de boxe. Conseguiu derrubar dois camisas-pardas, então foi agarrado por trás e perdeu o equilíbrio. Instantes depois, estava no chão, com dois homens o segurando enquanto um terceiro o chutava.

           Então foi virado de bruços, teve os braços puxados para trás e sentiu algo metálico nos pulsos. Tinha sido algemado pela primeira vez na vida. Sentiu um novo tipo de medo. Aquilo não era só mais uma confusão. Ele fora espancado e chutado, mas o pior ainda estava por vir.

           – Levante-se – disse-lhe alguém em alemão.

           Ele pôs-se de pé com dificuldade. Sua cabeça doía. Viu que Robert e Jörg também haviam sido algemados. A boca de Robert sangrava e Jörg estava com um dos olhos fechado. Meia dúzia de camisas-pardas os rodeava. O restante bebia dos copos e garrafas deixados sobre as mesas ou então estava em pé junto ao carrinho de sobremesas entupindo-se de doces.

           Todos os clientes pareciam ter ido embora. Lloyd ficou aliviado por sua mãe ter conseguido escapar.

           A porta do restaurante se abriu e Walter tornou a entrar.

           – Agente Macke – disse ele, demonstrando a facilidade típica dos políticos para se lembrar de nomes. Então prosseguiu com a maior autoridade que conseguiu exibir: – O que significa este ultraje?

           Macke apontou para Robert e Jörg.

           – Esses dois homens são homossexuais – afirmou. – E o rapaz atacou um policial auxiliar que os estava prendendo.

           Walter apontou para a caixa registradora, com a gaveta escancarada e vazia, exceto por algumas moedas de pequeno valor.

           – Policiais por acaso andam roubando agora?

           – Um cliente deve ter se aproveitado da confusão criada pelos que estavam resistindo à prisão.

           Alguns dos camisas-pardas deram risadinhas cúmplices.

           – O senhor antes era agente de segurança pública, não era, Macke? Talvez sentisse orgulho de si mesmo naquele tempo. Mas e agora, o que o senhor é?

           Macke se ofendeu.

           – Nós aplicamos a lei para proteger a pátria-mãe.

           – Fico pensando para onde pretendem levar seus prisioneiros – insistiu Walter. – Para um local de detenção devidamente dentro das normas? Ou para algum porão clandestino meio escondido?

           – Eles serão levados para a caserna da Friedrichstrasse – respondeu Macke, indignado.

           Lloyd viu uma expressão de satisfação cruzar o semblante de Walter e percebeu que ele havia manipulado Macke com astúcia, usando o que restava de orgulho profissional ao agente para fazê-lo revelar suas intenções. Agora Walter sabia para onde Lloyd e os outros seriam levados.

           Mas o que iria acontecer na caserna?

           Lloyd nunca tinha sido preso. Mas morava no East End londrino e conhecia muita gente que tivera problemas com a polícia. Passara a maior parte da vida jogando bola na rua com meninos cujos pais eram presos com frequência. Conhecia a fama da delegacia da Leman Street, em Aldgate. Poucos homens saíam de lá ilesos. As pessoas diziam que as paredes eram todas manchadas de sangue. Será que a caserna da Friedrichstrasse seria melhor?

           – Trata-se aqui de um incidente internacional, agente – disse Walter. Lloyd imaginou que ele estivesse usando o título na esperança de fazer Macke se comportar mais como um agente de polícia e menos como um capanga violento. – O senhor acaba de prender três cidadãos estrangeiros: dois austríacos e um inglês. – Ele ergueu uma das mãos como para evitar algum protesto. – Agora é tarde para voltar atrás. As duas embaixadas serão informadas e não tenho dúvida de que seus representantes entrarão em contato com nosso Ministério das Relações Exteriores na Wilhelmstrasse em menos de uma hora.

           Lloyd se perguntou se isso seria verdade.

           Macke deu um sorriso desagradável.

           – O Ministério das Relações Exteriores não vai sair correndo em defesa de duas bichas e de um rapaz arruaceiro.

           – Nosso ministro das Relações Exteriores, Von Neurath, não é membro do seu partido – disse Walter. – Ele pode muito bem pôr os interesses da pátria-mãe em primeiro lugar.

           – Acho que o senhor vai descobrir que ele faz o que lhe mandam fazer. E agora, se me dá licença, está obstruindo o cumprimento do meu dever.

           – Estou lhe avisando! – disse Walter, corajoso. – É melhor o senhor seguir à risca o procedimento... ou então terá problemas.

           – Suma da minha frente! – esbravejou Macke.

           Walter saiu do restaurante.

           Lloyd, Robert e Jörg foram conduzidos para fora e jogados na traseira de algum tipo de caminhonete. Foram obrigados a se deitar no chão enquanto os camisas-pardas se sentavam nos bancos para vigiá-los. O veículo partiu. Lloyd descobriu que estar algemado era doloroso. Tinha a constante sensação de que seu ombro estava prestes a se deslocar.

           Graças a Deus, a viagem foi curta. Eles foram empurrados para fora da caminhonete e para dentro de um prédio. Estava escuro, e Lloyd não conseguia enxergar muita coisa. Diante de uma mesa, seu nome foi anotado num livro e seu passaporte confiscado. Robert perdeu o prendedor de gravata e a corrente do relógio, ambos de ouro. Por fim, as algemas foram retiradas e os três foram levados para um cômodo com luz mortiça e janelas gradeadas. Já havia uns quarenta detentos lá dentro.

           Todo o corpo de Lloyd estava dolorido. Uma dor no peito parecia indicar uma costela quebrada. Seu rosto estava cheio de hematomas e ele sentia uma dor de cabeça lancinante. Queria uma aspirina, uma xícara de chá e um travesseiro. Acreditava que iria demorar algumas horas para conseguir qualquer uma dessas coisas.

           Os três foram se sentar no chão perto da porta. Lloyd apoiou a cabeça nas mãos, enquanto Robert e Jörg debatiam quanto tempo a ajuda demoraria a chegar. Com certeza Walter ligaria para um advogado. No entanto, todas as regras normais haviam sido suspensas pelo Decreto do Incêndio do Reichstag, de modo que eles não dispunham de nenhuma proteção legal. Walter também entraria em contato com as embaixadas: sua maior esperança agora era a influência política. Lloyd achou que a mãe provavelmente tentaria fazer uma ligação internacional para o Ministério das Relações Exteriores britânico em Londres. Se conseguisse completá-la, o governo com certeza teria algo a dizer sobre a prisão de um estudante inglês. Tudo isso levaria tempo – uma hora, no mínimo, mais provavelmente duas ou três.

           No entanto quatro horas se passaram, depois cinco, e a porta não se abriu.

           Países civilizados tinham leis que regulamentavam o tempo máximo que a polícia podia manter alguém detido sem formalidades: uma acusação, um advogado, um julgamento. Lloyd então se deu conta de que essa regra não era apenas uma questão técnica. Ele poderia ficar ali para sempre.

           Descobriu que todos os outros prisioneiros eram políticos: comunistas, social-democratas, sindicalistas e um padre.

           A noite passou devagar. Nenhum dos três dormiu. Para Lloyd, isso era impensável. A luz cinzenta da manhã já entrava pelas janelas gradeadas quando a porta da cela finalmente foi aberta. No entanto, nenhum advogado ou diplomata entrou, apenas dois homens de avental empurrando um carrinho sobre o qual repousava um grande panelão. Serviram-lhes um mingau ralo de aveia. Lloyd não comeu, mas pegou uma caneca de latão e tomou um café com gosto de cevada queimada.

           Imaginou que os funcionários de plantão na embaixada britânica durante a noite fossem diplomatas em começo de carreira, com pouca influência. Pela manhã, assim que o embaixador acordasse, seriam tomadas as devidas providências.

           Uma hora depois do café da manhã, a porta tornou a se abrir, mas dessa vez só havia camisas-pardas do lado de fora. Eles fizeram todos os prisioneiros – uns quarenta ou cinquenta homens – saírem da cela e puseram-nos dentro de um caminhão, um veículo com laterais de lona, tão apertados que tiveram de ficar em pé. Lloyd deu um jeito de ficar perto de Robert e Jörg.

           Talvez estivessem indo para o tribunal, mesmo sendo domingo. Torceu para que isso acontecesse. Ao menos lá haveria advogados e algum arremedo de julgamento de acordo com a lei. Pensou que tinha fluência suficiente na língua alemã para fazer a defesa simples de seu caso, e começou a ensaiar seu discurso em silêncio. Estava jantando num restaurante com a mãe, viu um homem roubando a caixa registradora, se meteu na confusão e a situação fugiu ao controle. Imaginou o contrainterrogatório ao qual seria submetido. Iriam lhe perguntar se o homem que ele havia atacado era um camisa-parda. Ele responderia: “Não reparei na roupa dele – tudo o que vi foi um ladrão.” As pessoas no tribunal ririam e o promotor público ficaria com cara de bobo.

           Eles foram levados para fora da cidade.

           Dava para ver o lado de fora pelas frestas das laterais de lona do caminhão. Lloyd calculou que houvessem percorrido uns trinta quilômetros quando Robert disse:

           – Estamos em Oranienburg. – Era o nome de uma pequena cidade ao norte de Berlim.

           O caminhão parou diante de um portão de madeira entre duas colunas de tijolo. Dois camisas-pardas armados com fuzis estavam de guarda.

           Lloyd sentiu um pouco mais de medo. Onde estava o tribunal? Aquilo ali mais parecia um campo de prisioneiros. Como eles podiam jogar pessoas na prisão sem julgamento?

           Após uma curta espera, o caminhão entrou e parou junto a um conjunto de construções malcuidadas.

           Lloyd estava ficando cada vez mais nervoso. Na noite anterior, ao menos havia o consolo de Walter saber onde ele estava. Agora, era possível que ninguém mais soubesse. E se a polícia simplesmente dissesse que ele não tinha sido detido e que não havia registro da sua prisão? Como ele seria resgatado?

           Eles desceram do caminhão e seguiram até um prédio que parecia uma espécie de fábrica. O lugar tinha o mesmo cheiro de um bar. Talvez fosse uma antiga cervejaria.

           Novamente anotaram seus nomes. Lloyd ficou satisfeito por haver algum registro de sua movimentação. Nenhum deles estava amarrado ou algemado, mas eram constantemente vigiados por camisas-pardas armados com fuzis, e Lloyd teve a sinistra sensação de que aqueles rapazes estavam só esperando uma desculpa para atirar.

           Cada um deles recebeu um colchão de lona recheado de palha e um cobertor fino. Foram conduzidos para um prédio em mau estado que um dia talvez tivesse sido um armazém. Então começou a espera.

           Ninguém foi buscar Lloyd naquele dia.

           À noite apareceu outro carrinho com um panelão de ensopado de cenoura com nabo. Cada homem recebeu uma tigela de ensopado e um pedaço de pão. Fazia 24 horas que Lloyd não comia. Estava faminto. Devorou o parco jantar e desejou poder repetir.

           Em algum lugar do campo, havia três ou quatro cães que passaram a noite inteira uivando.

           Lloyd se sentia sujo. Era a segunda noite que passava com as mesmas roupas. Precisava tomar um banho, fazer a barba e vestir uma camisa limpa. O toalete, que consistia em dois barris num canto, era totalmente nojento.

           Mas a manhã seguinte seria segunda-feira. Alguma coisa iria acontecer.

           Lloyd pegou no sono por volta das quatro da manhã. Às seis, eles foram despertados por um camisa-parda que berrava:

           – Schleicher! Jörg Schleicher! Quem é Jörg Schleicher?

           Talvez eles fossem ser soltos.

           Jörg se levantou e disse:

           – Sou eu. Jörg Schleicher sou eu.

           – Venha comigo – disse o camisa-parda.

           Com a voz assustada, Robert perguntou:

           – Por quê? O que vocês querem com ele? Para onde ele vai?

           – E você, quem é? A mãe dele, por acaso? – retrucou o camisa-parda. – Deite-se aí e cale a boca. – Ele cutucou Jörg com o fuzil. – Você, para fora.

           Ao vê-los partir, Lloyd se perguntou por que não tinha dado um soco no camisa-parda e pegado seu fuzil. Talvez tivesse conseguido escapar. E, mesmo que não conseguisse, o que poderiam fazer com ele – jogá-lo na prisão? Mas a verdade era que na hora H a ideia de fugir nem lhe ocorrera. Estaria começando a pensar como um prisioneiro?

           Até ansiava pelo mingau de aveia.

           Antes do café da manhã, todos foram conduzidos para o lado de fora.

           Ficaram em pé ao redor de uma pequena área delimitada por uma cerca de arame, cujo tamanho equivalia a um quarto de uma quadra de tênis. O lugar parecia ter sido usado para armazenar alguma coisa sem muito valor, talvez toras de madeira ou pneus. O ar frio da manhã fez Lloyd estremecer: seu sobretudo ficara no Bistrô Robert.

           Foi então que ele viu Thomas Macke se aproximar.

           O policial usava um sobretudo preto por cima do uniforme de camisa-parda. Lloyd reparou que tinha um passo pesado e pés chatos.

           Atrás de Macke, dois camisas-pardas seguravam os braços de um homem nu com um balde enfiado na cabeça.

           Lloyd ficou olhando, horrorizado. As mãos do prisioneiro estavam amarradas nas costas, e o balde estava preso bem firme com barbante debaixo de seu queixo, para não cair.

           Era um homem relativamente jovem e magro, com pelos púbicos louros.

           – Ai, meu Deus... é Jörg – gemeu Robert.

           Todos os camisas-pardas do campo haviam se reunido ali. Lloyd franziu o cenho. O que era aquilo, alguma espécie de brincadeira cruel?

           Jörg foi conduzido para dentro do espaço cercado e deixado lá, tremendo. Os dois homens que o escoltavam se retiraram. Desapareceram por alguns minutos e então voltaram, cada um trazendo dois pastores-alemães pela coleira.

           Aquilo explicava os latidos durante a noite.

           Os cães estavam magros, com falhas na pelagem amarelada que indicavam problemas de saúde. Pareciam famintos.

           Os camisas-pardas conduziram os animais até o cercado.

           Lloyd teve uma vaga porém terrível premonição do que estava prestes a acontecer.

           – Não! – gritou Robert, correndo para a frente. – Não, não, não! – Ele tentou abrir o portão do cercado. Três ou quatro camisas-pardas o puxaram para trás com violência. Ele se debateu, mas já tinha quase 50 anos, enquanto os homens eram jovens e fortes. Robert não conseguiu vencê-los. Eles o jogaram no chão com desprezo.

           – Não – disse Macke para seus homens. – Façam-no assistir.

           Eles puseram Robert de pé e seguraram-no de frente para a cerca de arame.

           Os cães foram levados para dentro do cercado. Estavam agitados, latindo e salivando. Os dois camisas-pardas manejavam os animais com destreza e sem medo nenhum; ficou óbvio que tinham experiência. Lloyd se perguntou, consternado, quantas vezes já tinham feito aquilo antes.

           Os homens soltaram os cachorros e correram para fora do cercado.

           Os animais partiram para cima de Jörg. Um deles o mordeu no calcanhar, outro no braço, um terceiro na coxa. Dentro do balde de metal soou um grito abafado de dor e pânico. Os camisas-pardas vibravam e aplaudiam. Os prisioneiros assistiam, mudos de pavor.

           Depois do choque inicial, Jörg tentou se defender. Tinha as mãos amarradas e não conseguia ver nada, mas podia chutar a esmo. Ainda assim, seus pés descalços tinham pouco impacto sobre os animais famintos. Os cães se esquivavam dos chutes e tornavam a atacar, rasgando-lhe a carne com os dentes afiados.

           Jörg tentou fugir. Com os cães em seu encalço, correu às cegas em linha reta até trombar com a cerca de arame. Os camisas-pardas gritaram animados. Jörg correu em outra direção, com o mesmo resultado. Um dos cachorros arrancou um naco da nádega de Jörg, e os camisas-pardas riram muito alto.

           – A cauda! Morda a cauda dele! – gritava um deles.

           Lloyd supôs que “cauda”, der Schwanz em alemão, fosse uma gíria para pênis. A animação do homem beirava a histeria.

           O corpo branco de Jörg estava cheio de ferimentos que sangravam. Ele se encolheu junto à cerca, com o rosto encostado no arame, protegendo os genitais, desferindo chutes para trás e para os lados. Mas estava perdendo as forças. Seus chutes foram enfraquecendo. Já quase não conseguia se manter ereto. Os cães foram ficando mais ousados, mordendo-o e engolindo nacos sangrentos.

           Por fim, Jörg escorregou para o chão.

           Os cães se acomodaram para comer.

           Os homens que haviam trazido os animais tornaram a entrar no cercado. Com movimentos experientes, tornaram a prender as coleiras, puxaram os animais de cima de Jörg e os levaram embora.

           O espetáculo havia terminado e os camisas-pardas começaram a se retirar, ainda conversando animadamente.

           Robert correu para dentro do cercado e dessa vez ninguém o deteve. Ele se abaixou ao lado de Jörg, gemendo.

           Lloyd ajudou-o a desamarrar as mãos do companheiro e a retirar o balde. Jörg estava inconsciente, mas ainda respirava.

           – Vamos levá-lo para dentro. Segure as pernas dele – disse Lloyd, pegando Jörg pelas axilas.

           Os dois o levaram até o prédio onde haviam passado a noite. Puseram-no em cima de um colchão. Os outros prisioneiros se reuniram em volta, assustados e calados. Lloyd torceu para um deles anunciar que era médico, mas nenhum o fez.

           Robert despiu o paletó e o colete, depois tirou a camisa e usou-a para limpar o sangue.

           – Precisamos de água limpa – falou.

           Havia uma torneira no pátio. Lloyd foi até lá, mas não tinha nenhum recipiente. Voltou para o cercado. O balde continuava ali no chão. Ele o lavou, depois o encheu com água.

           Quando voltou para dentro, o colchão estava encharcado de sangue.

           Robert mergulhou a camisa no balde e, de joelhos, continuou a lavar as feridas de Jörg. O tecido branco não demorou a ficar vermelho.

           Jörg começou a recobrar a consciência.

           Robert pôs-se a falar com ele em voz baixa:

           – Calma, meu amor. Já passou e eu estou aqui. – Mas Jörg não parecia escutar.

           Então Macke apareceu com mais quatro ou cinco camisas-pardas. Agarrou Robert pelo braço e o puxou.

           – Então! – disse ele. – Agora você sabe o que pensamos sobre homossexuais pervertidos.

           Lloyd apontou para Jörg e falou, com raiva:

           – Pervertido é quem faz isso. – Reunindo toda a sua raiva e desprezo, concluiu: – Agente Macke.

           Macke assentiu de leve com a cabeça para um dos camisas-pardas. Com um movimento de falsa casualidade, o homem inverteu a posição do fuzil e acertou Lloyd na cabeça com a coronha.

           O rapaz caiu no chão segurando a cabeça, tomado pela dor.

           – Por favor, só me deixe cuidar de Jörg – pediu Robert.

           – Talvez – respondeu Macke. – Primeiro venha até aqui.

           Apesar da dor, Lloyd abriu os olhos para ver o que estava acontecendo.

           Macke puxou Robert pelo recinto até uma mesa de madeira. Tirou do bolso um documento e uma caneta-tinteiro.

           – Seu restaurante agora vale metade do que lhe ofereci da última vez: 10 mil marcos.

           – Qualquer coisa – disse Robert, aos prantos. – Deixe-me em paz com Jörg.

           – Assine aqui – ordenou Macke. – Depois vocês três poderão ir para casa.

           Robert assinou.

           – Este cavalheiro pode servir de testemunha – disse Macke, entregando a caneta a um dos camisas-pardas. Correu os olhos pelo recinto e seu olhar cruzou com o de Lloyd. – E talvez o nosso temerário hóspede inglês possa ser nossa segunda testemunha.

           – Faça o que ele está mandando e pronto, Lloyd – disse Robert.

           Lloyd se levantou com dificuldade, esfregou a cabeça dolorida, pegou a caneta e assinou.

           Triunfante, Macke pôs o contrato no bolso e saiu.

           Robert e Lloyd voltaram para junto de Jörg.

           Mas ele já estava morto.

 

           Walter e Maud foram à estação ferroviária de Lehrte, ao norte do Reichstag incendiado, para se despedir de Ethel e Lloyd. O prédio em estilo neorrenascentista parecia um palácio francês. Como chegaram cedo, foram sentar em um dos cafés da estação para esperar o trem.

           Lloyd estava contente por ir embora. Em seis semanas, aprendera muita coisa, tanto sobre a língua alemã quanto sobre política, mas agora queria voltar para casa, contar aos outros o que tinha visto e alertá-los para que a mesma coisa não acontecesse em seu país.

           Mesmo assim, sentia-se estranhamente culpado por partir. Estava indo para um lugar governado pela lei, onde a imprensa era livre e não era crime ser social-democrata. Estava deixando a família Von Ulrich numa ditadura cruel, onde um homem inocente podia ser devorado por cães sem que ninguém jamais fosse responsabilizado pelo crime.

           Os Von Ulrich estavam arrasados. Walter mais do que Maud. Eram como pessoas que tivessem recebido uma notícia ruim ou enfrentado uma morte na família. Pareciam incapazes de pensar em qualquer outra coisa que não a catástrofe que os havia acometido.

           Lloyd fora solto com profusas desculpas do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e uma explicação oficial que era ao mesmo tempo abjeta e mentirosa, dando a entender que ele havia se metido numa briga por insensatez e depois sido preso por um erro administrativo que as autoridades lamentavam profundamente.

           – Recebi um telegrama de Robert – disse Walter. – Ele chegou bem a Londres.

           Como era cidadão austríaco, Robert conseguira sair da Alemanha sem muita dificuldade. Tirar seu dinheiro do país tinha sido mais complicado. Walter pedira que Macke depositasse o dinheiro num banco da Suíça. No início, o agente dissera que isso era impossível, mas Walter o havia pressionado, ameaçando contestar a venda no tribunal e dizendo que Lloyd estava disposto a testemunhar que o contrato fora assinado sob pressão. No final das contas, Macke mexera alguns pauzinhos.

           – Fico feliz que Robert tenha conseguido sair – disse Lloyd.

           Ficaria mais feliz ainda quando ele próprio estivesse seguro em Londres. Sua cabeça ainda doía e ele sentia uma pontada nas costelas toda vez que se virava na cama.

           – Por que vocês não vão para Londres? – perguntou Ethel a Maud. – Os dois. Ou melhor, a família toda.

           – Talvez devêssemos ir mesmo – disse Walter, olhando para a esposa.

           Mas Lloyd pôde ver que não estava sendo totalmente sincero.

           – Você fez o melhor que pôde – continuou Ethel. – Lutou com bravura. Mas o outro lado venceu.

           – Ainda não acabou – disse Maud.

           – Mas vocês estão correndo perigo.

           – A Alemanha também.

           – Se forem morar em Londres, Fitz talvez amoleça e ajude vocês.

           Lloyd sabia que o conde Fitzherbert era um dos homens mais ricos da Grã-Bretanha, por causa das minas de carvão que havia debaixo de suas terras em Gales do Sul.

           – Ele não iria me ajudar – disse Maud. – Fitz não dá o braço a torcer. Sei disso e você também sabe.

           – Tem razão – concordou Ethel. Lloyd se perguntou como a mãe podia ter tanta certeza, mas não teve chance de perguntar. Ethel prosseguiu: – Bom, com a sua experiência, você não teria dificuldade para arrumar trabalho num jornal de Londres.

           – E eu? O que iria fazer lá? – indagou Walter.

           – Não sei – admitiu Ethel. – Mas o que vai fazer aqui? Não adianta muita coisa ser um representante quando o Parlamento é impotente. – Lloyd sentiu que ela estava sendo de uma franqueza brutal, mas, como era do seu feitio, dizia o que precisava ser dito.

           Entendia o argumento da mãe, mas achava que os Von Ulrich deveriam ficar.

           – Eu sei que vai ser difícil – falou Lloyd. – Mas, se as pessoas decentes fugirem do fascismo, ele vai se espalhar ainda mais depressa.

           – Já está se espalhando de toda forma – rebateu Ethel.

           Maud surpreendeu a todos dizendo com veemência:

           – Eu não vou. Recuso-me terminantemente a sair da Alemanha.

           Todos a encararam.

           – Há 14 anos vivo aqui. Sou alemã – disse ela. – Este agora é o meu país.

           – Mas você nasceu na Inglaterra – disse Ethel.

           – Um país é antes de tudo as pessoas que vivem nele – disse Maud. – Eu não amo a Inglaterra. Meus pais morreram faz tempo e meu irmão me renegou. Amo a Alemanha. Para mim, a Alemanha é Walter, meu marido maravilhoso; é Erik, meu filho desencaminhado; é Carla, minha filha incrivelmente esperta; é Ada e seu filhinho deficiente; é minha amiga Monika e sua família; são meus colegas jornalistas... Eu vou ficar para enfrentar os nazistas.

           – Você já fez mais do que a sua parte – disse Ethel com delicadeza.

           O tom de Maud se encheu de emoção.

           – Meu marido dedicou sua vida inteira, todo o seu ser a tornar este país um lugar livre e próspero. Não vai ser por minha causa que ele vai desistir do trabalho de uma vida toda. Se ele perder isso, vai perder a alma.

           Ethel insistiu de uma forma que só uma velha amiga podia fazer.

           – Mas você deve se sentir tentada a mandar seus filhos para um lugar seguro...

           – Tentada? Eu sonho com isso, anseio por isso, desejo isso desesperadamente! – Ela começou a chorar. – Carla vive tendo pesadelos com camisas-pardas e Erik veste aquele uniforme cor de merda sempre que tem uma oportunidade. – Lloyd ficou espantado com a veemência dela. Nunca tinha ouvido uma mulher de classe dizer “merda”. – É claro que eu quero tirá-los daqui – prosseguiu Maud. Lloyd pôde ver como ela estava dividida. Ela esfregou as mãos como se as estivesse lavando, virou a cabeça de um lado para outro, confusa, e por fim falou, com a voz muito trêmula por causa de seu conflito interior: – Mas isso seria errado, tanto para eles quanto para nós. Eu não vou me entregar! É melhor sofrer com o mal do que ficar parado sem fazer nada.

           Ethel tocou o braço da amiga.

           – Desculpe-me por ter perguntado. Talvez tenha sido besteira minha. Eu deveria ter sabido que você não iria fugir.

           – Fico feliz por você ter perguntado – disse Walter. Ele estendeu o braço e segurou as mãos esguias da mulher. – Essa pergunta pairava no ar entre mim e Maud, sem que nenhum de nós tocássemos no assunto. Já era hora de encararmos a questão. – Suas mãos repousavam, unidas, sobre a mesa.

           Lloyd raramente pensava na vida afetiva da geração de sua mãe: eram pessoas de meia-idade, casadas, e isso parecia resumir a questão. Mas agora podia ver que existia entre Walter e Maud uma ligação profunda que ia muito além do hábito de convivência de um casamento maduro. Eles não tinham qualquer ilusão: sabiam que, ficando na Alemanha, estariam pondo em risco sua vida e a dos filhos. Mas o seu compromisso mútuo era mais forte do que a morte.

           Lloyd se perguntou se algum dia iria conhecer um amor assim.

           Ethel olhou para o relógio.

           – Ai, meu Deus! Vamos perder o trem!

           Lloyd pegou as malas e os dois correram pela plataforma. Um apito soou. Eles subiram no trem bem a tempo. Ambos se debruçaram na janela enquanto saíam da estação.

           Em pé na plataforma, Walter e Maud acenaram e foram ficando cada vez menores, até sumirem de vista.

             

1935

            – Há duas coisas que você precisa saber sobre as garotas de Buffalo – disse Daisy Peshkov. – Elas bebem muito e são todas esnobes.

           Eva Rothmann deu uma risadinha.

           – Não acredito em você – falou. Quase já não se percebia seu sotaque alemão.

           – Ah, é verdade – insistiu Daisy. As duas estavam em seu quarto decorado de cor-de-rosa e branco, experimentando roupas em frente a um espelho de três folhas de corpo inteiro. – Azul-marinho e branco devem ficar bem em você – emendou ela. – O que acha? – Suspendeu uma blusa até junto do rosto de Eva e estudou o resultado. O contraste de cores parecia lhe cair bem.

           Daisy estava procurando em seu armário uma roupa que Eva pudesse usar para um piquenique na praia. Eva não era uma moça bonita e os babados e laçarotes que enfeitavam muitas das roupas de Daisy a deixavam mais desmazelada. Listras combinavam melhor com seus traços marcantes.

           Eva tinha cabelos escuros e olhos de um castanho também escuro.

           – Você pode usar cores fortes – disse-lhe Daisy.

           Eva tinha poucas roupas. Seu pai, um médico judeu de Berlim, gastara todas as suas economias para mandá-la para os Estados Unidos, e ela havia chegado um ano antes, sem nada. Uma instituição de caridade financiava seus estudos no mesmo colégio interno de Daisy – as duas tinham a mesma idade, 19 anos. Eva, porém, não tinha para onde ir nas férias de verão, e Daisy, por impulso, convidara-a para ficar em sua casa.

           Inicialmente Olga, mãe de Daisy, havia resistido.

           – Ah, mas você passa o ano todo na escola... fico tão ansiosa para ter minha filha comigo no verão!

           – Ela é ótima, mãe – dissera Daisy. – É encantadora, descontraída e uma grande amiga.

           – Imagino que você sinta pena por ela ser refugiada dos nazistas.

           – Não estou nem aí para os nazistas. Simplesmente gosto dela.

           – Tudo bem, mas ela precisa ficar na nossa casa?

           – Mãe, ela não tem para onde ir!

           Como sempre, no final Olga deixara Daisy fazer o que queria.

           – Esnobes? – disse Eva, continuando a conversa com a amiga. – Ninguém poderia ser esnobe com você!

           – Ah, poderia, sim.

           – Mas você é tão bonita e cheia de vida.

           Daisy não se deu o trabalho de negar.

           – Elas odeiam isso em mim.

           – E você é rica.

           Era verdade. O pai de Daisy era podre de rico, sua mãe havia herdado uma fortuna, e a própria Daisy teria direito a um bom dinheiro quando fizesse 21 anos.

           – Isso não quer dizer nada. Nesta cidade, o que vale é há quanto tempo a pessoa é rica. Se você trabalha, não é ninguém. As pessoas superiores são aquelas que vivem dos milhões deixados pelos bisavós. – Ela falava em tom alegre e zombeteiro, para esconder seu ressentimento.

           – E seu pai é famoso! – acrescentou Eva.

           – As pessoas acham que ele é um gângster.

           Josef Vyalov, avô de Daisy, tinha sido proprietário de bares e hotéis. Lev Peshkov, seu pai, usara os lucros desses estabelecimentos para comprar velhos teatros de vaudevile e transformá-los em salas de cinema. Hoje em dia, era também dono de um estúdio em Hollywood.

           Eva ficou indignada por Daisy.

           – Como podem dizer uma coisa dessas?

           – Acreditam que ele contrabandeava bebidas. Acho que têm razão. Não vejo de que outro modo ele teria conseguido ganhar dinheiro com bares durante a Lei Seca. Enfim, é por isso que mamãe nunca será convidada para fazer parte da Sociedade de Senhoras de Buffalo.

           As duas olharam para Olga, que estava sentada na cama de Daisy lendo o Buffalo Sentinel. Nas fotos de quando era jovem, Olga era uma beldade longilínea. Agora estava gorda e acabada. Perdera o interesse pela própria aparência, mas dedicava grande energia a fazer compras com Daisy e não economizava para deixar a filha linda. Olga ergueu os olhos do jornal e disse:

           – Não tenho certeza de que as pessoas se importem com o fato de seu pai ter sido contrabandista, meu bem. Mas ele é imigrante russo e, nas raras ocasiões em que resolve ir à missa, vai à igreja ortodoxa da Ideal Street. Isso é quase tão ruim quanto ser católico.

           – Que injustiça – comentou Eva.

           – E tenho que lhe avisar que eles também não gostam muito de judeus – disse Daisy. Eva na verdade era metade judia. – Desculpe o mau jeito.

           – Pode ter o mau jeito que quiser... em comparação com a Alemanha, este país parece a Terra Prometida.

           – Não comemore demais – alertou Olga. – Segundo este jornal aqui, muitos líderes empresariais americanos odeiam o presidente Roosevelt e admiram Adolf Hitler. E eu sei que é verdade, porque o pai de Daisy é um deles.

           – Política é uma chatice – comentou Daisy. – Alguma notícia interessante no Sentinel?

           – Sim. Muffie Dixon vai ser apresentada à corte da Grã-Bretanha.

           – Que sorte a dela – disse Daisy, amargurada, sem conseguir esconder a inveja.

           – “A Srta. Muriel Dixon, filha do finado Charles Dixon, o Chuck, morto na França durante a guerra, será apresentada no Palácio de Buckingham na próxima terça-feira pela esposa do embaixador norte-americano, Sra. Robert W. Bingham” – leu Olga.

           Mas Daisy já tinha ouvido o suficiente sobre Muffie Dixon.

           – Eu já fui a Paris, mas não a Londres – disse ela a Eva. – E você?

           – Também não – respondeu Eva. – A primeira vez que saí da Alemanha foi quando peguei o navio para os Estados Unidos.

           De repente, Olga exclamou:

           – Ai, não!

           – O que foi? – perguntou Daisy.

           Sua mãe amassou o jornal.

           – Seu pai levou Gladys Angelus à Casa Branca.

           – Ah, é? – Daisy teve a sensação de ter levado um tapa. – Mas ele disse que iria levar a mim!

           Na tentativa de conquistar apoio para seu projeto chamado New Deal, o presidente Roosevelt convidara cem empresários para uma recepção. Para Lev Peshkov, Franklin D. Roosevelt era praticamente um comunista, mas ficara lisonjeado em ser convidado para ir à Casa Branca. Olga, porém, recusara-se a acompanhá-lo, dizendo com raiva:

           – Não estou disposta a fingir para o presidente que nós temos um casamento normal.

           Oficialmente, Lev morava com elas, naquela suntuosa casa em estilo prairie anterior à guerra construída pelo vovô Vyalov, mas passava a maior parte das noites no grandioso apartamento da cidade onde mantinha sua amante de muitos anos, Marga. Além disso, todos achavam que ele estava tendo um caso com a maior estrela de seu estúdio, uma atriz chamada Gladys Angelus. Daisy entendia por que a mãe se sentia desprezada. Ela também se sentia assim quando Lev saía de carro para passar as noites com sua outra família.

           Ficara empolgada quando ele a convidara para acompanhá-lo à Casa Branca no lugar da mãe. Tinha dito a todo mundo que iria. Nenhum de seus amigos nunca fora apresentado ao presidente, com exceção dos irmãos Dewar, cujo pai era senador.

           Lev não lhe dissera a data exata e ela imaginara que o pai fosse avisá-la na última hora, como costumava fazer. Mas ele havia mudado de ideia, ou quem sabe simplesmente se esquecera. De todo modo, tinha desprezado Daisy mais uma vez.

           – Eu sinto muito, meu bem – disse Olga. – Mas promessas nunca significaram muita coisa para o seu pai.

           Eva tinha uma expressão compassiva. A pena da amiga feriu Daisy. O pai de Eva estava a milhares de quilômetros dali e talvez ela nunca mais tornasse a vê-lo, mas mesmo assim sentia pena de Daisy, como se a situação dela fosse pior do que a sua.

           Aquilo fez Daisy se sentir desafiadora. Não iria deixar aquele incidente estragar seu dia.

           – Bem, nesse caso vou ser a única garota de Buffalo que já levou um bolo por causa de Gladys Angelus – disse ela. – Mas então, o que devo usar?

           Em Paris, as saias nesse ano estavam absurdamente curtas, mas a conservadora alta sociedade de Buffalo só acompanhava a moda muito de longe. No entanto, Daisy tinha um vestido curto, na altura dos joelhos, do mesmo tom de azul-claro de seus olhos. Talvez esse fosse o dia de tirá-lo do armário. Ela despiu o vestido que estava usando e pôs o outro.

           – Que tal? – perguntou.

           – Ai, Daisy, ficou lindo, mas... – disse Eva.

           – Os olhos deles vão pular das órbitas – disse Olga. Ela gostava quando Daisy se vestia para matar. Talvez isso a fizesse se lembrar de sua juventude.

           – Daisy, se eles são todos uns esnobes, por que você quer ir a essa festa? – perguntou Eva.

           – Charlie Farquharson vai estar lá, e estou pensando em me casar com ele – respondeu Daisy.

           – Sério?

           – Ele é um ótimo partido – disse Olga, enfática.

           – Como ele é? – quis saber Eva.

           – Um amor – respondeu Daisy. – Não é o rapaz mais bonito de Buffalo, mas é doce e gentil, mais para tímido.

           – Parece muito diferente de você.

           – Os opostos se atraem.

           – Os Farquharson são uma das famílias mais antigas de Buffalo – atalhou Olga.

           – Esnobes? – perguntou Eva, arqueando as sobrancelhas escuras.

           – Muito – respondeu Daisy. – Mas o pai de Charlie perdeu todo o dinheiro no Crash de Wall Street e depois morreu... alguns dizem que se matou. Então eles precisam recuperar a fortuna da família.

           Eva fez cara de chocada.

           – Está dizendo que espera que ele se case com você por dinheiro?

           – Não. Ele vai se casar comigo porque vou enfeitiçá-lo. Mas a mãe dele vai me aceitar por causa do meu dinheiro.

           – Você diz que vai enfeitiçá-lo. Ele está sabendo dessa história?

           – Ainda não. Mas talvez eu comece hoje à tarde. Sim, esta sem dúvida é a roupa certa.

           Daisy usou o vestido azul-claro e Eva, as listras azul-marinho e brancas. Quando ficaram prontas, já estavam atrasadas.

           A mãe de Daisy não queria ter motorista. “Eu me casei com o motorista do meu pai e isso estragou minha vida”, costumava dizer. Ficava apavorada que Daisy fizesse algo parecido – era por isso que fazia tanto gosto em Charlie Farquharson. Sempre que precisava ir a algum lugar com seu barulhento Stutz 1925, fazia Henry, o jardineiro, tirar as galochas e vestir um terno preto. Mas Daisy tinha seu próprio carro, um Sport Coupe da Chevrolet.

           Daisy gostava de dirigir – adorava o poder e a velocidade associados a isso. As duas garotas saíram da cidade rumo ao sul. Ela quase lamentou que a praia ficasse a menos de dez quilômetros.

           Enquanto dirigia, ficou pensando na vida como esposa de Charlie. Com o seu dinheiro e a posição social dele, os dois seriam o casal mais importante da sociedade de Buffalo. Nos jantares que oferecessem, a louça, a prataria e os cristais seriam tão elegantes que as pessoas soltariam arquejos de admiração. Eles teriam o maior iate do porto e dariam festas a bordo para outros casais ricos que gostassem de se divertir. As pessoas ansiariam por um convite da Sra. Charles Farquharson. Nenhum evento beneficente seria um sucesso sem Daisy e Charlie na mesa principal. Em sua mente, ela assistiu a si mesma num filme, com um fabuloso vestido de Paris, andando por entre uma multidão de admiradores, homens e mulheres, e sorrindo graciosamente em retribuição aos elogios que recebia.

           Ainda estava sonhando acordada quando chegaram à praia.

           A cidade de Buffalo ficava na parte norte do estado de Nova York, perto da fronteira com o Canadá. A praia de Woodlawn era uma faixa de areia de pouco menos de dois quilômetros à margem do lago Erie. Daisy estacionou e as duas começaram a atravessar as dunas.

           Já havia umas cinquenta ou sessenta pessoas na festa. Eram os filhos adolescentes da elite de Buffalo, um grupo privilegiado que passava os verões velejando e praticando esqui aquático durante o dia e frequentando festas e bailes à noite. Daisy cumprimentou os que conhecia, ou seja, quase todos, e apresentou Eva. Elas pegaram dois copos de ponche. Daisy provou o seu com cautela: alguns dos rapazes achavam divertido batizar a bebida com algumas garrafas de gim.

           A festa era de Dot Renshaw, uma moça de língua afiada com quem ninguém queria se casar. Os Renshaw eram uma família tradicional de Buffalo, como os Farquharson, mas sua fortuna tinha sobrevivido à quebra da Bolsa. Daisy fez questão de ir falar com o anfitrião, pai de Dot, e agradecer-lhe.

           – Desculpe o atraso – disse ela. – Perdi a noção do tempo!

           Philip Renshaw a olhou de cima a baixo.

           – Essa saia é bem curta. – Na expressão dele, a desaprovação competia com a lascívia.

           – Que bom que o senhor gostou – respondeu Daisy, fingindo que ele havia lhe feito um elogio direto.

           – Que bom que você finalmente chegou – prosseguiu ele. – Um fotógrafo do Sentinel virá à festa e precisamos de moças bonitas na foto.

           – Então foi por isso que fui convidada – cochichou Daisy para Eva. – Que gentileza dele me avisar.

           Dot apareceu. Tinha rosto fino e nariz pontudo. Daisy sempre achava que ela parecia prestes a bicar alguém.

           – Pensei que você fosse com seu pai conhecer o presidente – disse ela de cara.

           Daisy se sentiu humilhada. Não deveria ter se gabado disso com todo mundo.

           – Vi que ele levou sua... ahn... sua atriz principal – continuou Dot. – Esse tipo de coisa não é muito comum na Casa Branca.

           – Imagino que o presidente goste de conhecer estrelas de cinema de vez em quando – retrucou Daisy. – Ele também merece um pouco de glamour, você não acha?

           – Não creio que Eleanor Roosevelt tenha aprovado. Segundo o Sentinel, todos os outros cavalheiros levaram as esposas.

           – Que atencioso da parte deles – disse Daisy, virando as costas, louca para sair dali.

           Viu Charlie Farquharson tentando montar uma rede de tênis. Ele era bondoso demais para zombar dela por causa de Gladys Angelus.

           – Tudo bem, Charlie? – cumprimentou animada.

           – Tudo, acho que sim. – Ele se levantou. Era um rapaz alto de cerca de 25 anos, um pouco acima do peso e com uma postura levemente curvada, como se temesse que a sua altura fosse intimidar os outros.

           Daisy apresentou Eva. Charlie se comportava de forma encantadoramente constrangida quando estava em grupo, sobretudo quando havia moças, mas fez um esforço e perguntou a Eva o que ela estava achando dos Estados Unidos e se tinha notícias da família em Berlim.

           Eva lhe perguntou se ele estava gostando do piquenique.

           – Não muito – respondeu ele, sincero. – Preferiria estar em casa com meus cachorros.

           Ele sem dúvida achava mais fácil lidar com animais de estimação do que com garotas, pensou Daisy. Mas a menção aos cachorros era interessante.

           – De que raça são os seus cães? – perguntou ela.

           – Jack Russell.

           Daisy arquivou essa informação na cabeça.

           Uma cinquentona de traços angulosos se aproximou.

           – Pelo amor de Deus, Charlie, ainda não montou essa rede?

           – Estou quase, mãe – respondeu ele.

           Nora Farquharson usava uma pulseira de ouro cravejada de brilhantes, brincos de diamante e um colar da Tiffany – mais joias do que precisava para um piquenique. A pobreza dos Farquharson era relativa, pensou Daisy. As pessoas diziam que eles haviam perdido tudo, mas a Sra. Farquharson ainda tinha criada, motorista e dois cavalos para cavalgar no parque.

           – Boa tarde, Sra. Farquharson – cumprimentou Daisy. – Esta aqui é minha amiga Eva Rothmann, de Berlim.

           – Como vai? – disse Nora Farquharson sem estender a mão. Não sentia a menor necessidade de ser simpática com russos arrivistas, muito menos com seus convidados judeus.

           Então um pensamento pareceu lhe ocorrer.

           – Ah, Daisy, você bem que poderia dar uma volta e ver se alguém quer jogar tênis.

           Daisy percebeu que estava sendo tratada como uma criada, mas resolveu ser dócil.

           – Claro – concordou. – Sugiro duplas mistas.

           – Boa ideia. – A Sra. Farquharson lhe estendeu um cotoco de lápis e um pedaço de papel. – Pode anotar os nomes aqui.

           Daisy deu um sorriso gentil e tirou da bolsa uma caneta de ouro e um bloquinho de notas de couro bege.

           – Estou equipada.

           Ela sabia quem eram os jogadores, tanto os bons quanto os ruins. Era sócia do Clube de Tênis, que não era tão exclusivo quanto o Iate Clube. Formou as duplas: Eva com Chuck Dewar, o filho de 14 anos do senador Dewar; Joanne Rouzrokh com o mais velho dos irmãos Dewar, Woody, que, apesar de ter só 15 anos, já era tão alto quanto o pai; e, naturalmente, ela mesma com Charlie.

           Daisy ficou espantada ao ver um rosto familiar e reconhecer o meio-irmão Greg, filho de Marga. Os dois não se encontravam com frequência e fazia um ano que não se viam. Nesse meio-tempo, ele parecia ter virado homem. Estava 15 centímetros mais alto e, embora ainda tivesse apenas 15 anos, já exibia a sombra escura de uma barba. Quando criança, era um menino desarrumado, e isso não havia mudado. Usava as roupas caras de um jeito descuidado: as mangas do blazer arregaçadas, a gravata listrada frouxa no pescoço, a calça de linho molhada do mar e suja de areia na barra.

           Daisy sempre ficava envergonhada quando encontrava Greg. Ele era uma prova viva de como seu pai havia rejeitado a ela e à mãe e escolhido Greg e Marga. Sabia que muitos homens casados tinham amantes, mas a pulada de cerca do pai dela aparecia nas festas para todo mundo ver. Lev deveria ter feito Marga e Greg se mudarem para Nova York, onde ninguém conhecia ninguém, ou então para a Califórnia, onde ninguém via nada de errado no adultério. Ali, eles eram um escândalo permanente e Greg fazia parte dos motivos que levavam as pessoas a olhar Daisy com desdém.

           Ele perguntou com educação como ela estava.

           – Se quer mesmo saber, estou furiosa – respondeu ela. – Papai me deixou na mão... outra vez.

           – O que ele fez? – perguntou Greg, desconfiado.

           – Ele tinha me convidado para acompanhá-lo à Casa Branca... mas levou aquela sirigaita da Gladys Angelus. Agora está todo mundo rindo de mim.

           – Deve ter sido uma ótima publicidade para Paixão, o novo filme dela.

           – Você sempre o defende porque ele prefere você a mim.

           Greg fez cara de irritação.

           – Talvez seja porque eu o admiro, em vez de ficar reclamando dele o tempo inteiro.

           – Eu não... – Daisy estava prestes a negar que reclamava quando percebeu que era verdade. – Bom, talvez eu reclame, mas ele deveria cumprir suas promessas, não deveria?

           – Ele tem muito com que se preocupar.

           – Talvez então não devesse ter duas amantes além da esposa.

           Greg deu de ombros.

           – É muita coisa para administrar.

           Depois de alguns instantes de silêncio, os dois acabaram rindo.

           – Bom, acho que eu não deveria culpar você – disse Daisy. – Você não pediu para nascer.

           – E eu provavelmente deveria perdoá-la por tirar meu pai de casa três noites por semana... por mais que eu chorasse e implorasse para ele ficar.

           Daisy nunca havia pensado nas coisas sob aquele ponto de vista. Na sua cabeça, Greg era sempre o usurpador, o filho ilegítimo que vivia roubando seu pai. Mas agora percebia que a mágoa dele era tão grande quanto a sua.

           Encarou o rapaz. Algumas garotas até poderiam achá-lo atraente, supôs. Ele era jovem demais para Eva, porém. E provavelmente se tornaria tão egoísta e pouco confiável quanto o pai.

           – Enfim – disse ela. – Você quer jogar tênis?

           Ele fez que não com a cabeça.

           – O pessoal do Clube de Tênis não gosta de gente como eu. – Forçou um sorriso indiferente e Daisy percebeu que, assim como ela, Greg se sentia rejeitado pela alta sociedade de Buffalo. – O meu esporte é hóquei no gelo – falou.

           – Que pena. – Ela continuou sua busca.

           Depois de recrutar uma quantidade suficiente de nomes, voltou para junto de Charlie, que finalmente conseguira armar a rede. Mandou Eva chamar as duas primeiras duplas. Então disse a Charlie:

           – Venha me ajudar a montar a tabela da competição.

           Os dois se ajoelharam lado a lado e desenharam na areia um diagrama com eliminatórias, semifinais e uma final. Quando estavam inserindo os nomes, Charlie perguntou:

           – Você gosta de cinema?

           Daisy se perguntou se ele iria convidá-la para sair.

           – Claro – respondeu.

           – Por acaso já assistiu a Paixão?

           – Não, Charlie, não assisti – disse ela em tom irritado. – A atriz principal é amante do meu pai.

           Ele ficou chocado.

           – Segundos os jornais, eles são apenas bons amigos.

           – E por que você acha que a Srta. Angelus, que mal completou 20 anos, é tão amiga assim do meu pai, que tem 40? – perguntou Daisy com sarcasmo. – Acha que ela gosta das entradas na cabeça dele? Ou daquela barriguinha que ele tem? Ou será que gosta de seus 50 milhões de dólares?

           – Ah, entendi – disse ele, parecendo consternado. – Eu sinto muito.

           – Não precisa se desculpar. Estou agindo mal. Você não é igual a todo mundo... não pensa automaticamente o pior dos outros.

           – Acho que devo ser simplesmente burro.

           – Não. Só gentil.

           Charlie pareceu encabulado, mas contente.

           – Vamos andar logo com isso – disse Daisy. – Temos que manipular as partidas para que os melhores jogadores cheguem à final.

           Nora Farquharson tornou a aparecer. Viu Charlie e Daisy ajoelhados lado a lado na areia e em seguida examinou a tabela.

           – Ficou muito bom, não acha, mãe? – perguntou Charlie. Era óbvio que ansiava pela sua aprovação.

           – Sim, muito bom. – Ela olhou para Daisy com um ar avaliador, como uma cadela ao ver um desconhecido se aproximar de seus filhotes.

           – Foi Charlie que fez quase tudo – disse Daisy.

           – Mentira – disse a Sra. Farquharson, indelicada. Olhou para Charlie, depois de volta para Daisy. – Você é uma moça esperta – falou. Parecia prestes a acrescentar alguma coisa, mas hesitou.

           – O que foi? – indagou Daisy.

           – Nada. – Ela virou as costas.

           Daisy se levantou.

           – Eu sei o que ela estava pensando – sussurrou para Eva.

           – O quê?

           – Você é uma moça esperta... quase boa o bastante para o meu filho, se viesse de uma família decente.

           – Você não tem como saber isso – disse Eva, cética.

           – É claro que tenho. E vou me casar com ele nem que seja só para provar que ela está errada.

           – Oh, Daisy, por que você se importa tanto com o que essa gente pensa?

           – Vamos ver as partidas de tênis.

           Daisy sentou-se na areia ao lado de Charlie. Ele podia não ser bonito, mas iria venerar a esposa e faria qualquer coisa por ela. A sogra seria um problema, mas Daisy achava que conseguiria domá-la.

           A alta Joanne Rouzrokh estava sacando. Usava um saiote branco que realçava suas pernas compridas. Seu parceiro, Woody Dewar, ainda mais alto do que ela, passou-lhe uma bola. Alguma coisa no modo como ele olhou para Joanne fez Daisy pensar que estava atraído por ela, talvez até apaixonado. Mas Woody tinha 15 anos e Joanne, 18. Não havia futuro nenhum ali.

           Ela se virou para Charlie.

           – Talvez no final das contas eu devesse assistir a Paixão – falou.

           Ele não entendeu a indireta.

           – Talvez devesse mesmo – respondeu ele, indiferente.

           A oportunidade havia passado.

           Daisy virou-se para Eva:

           – Estava pensando: onde eu poderia comprar um Jack Russell?

 

           Lev Peshkov era o melhor pai que um rapaz poderia ter – pelo menos seria, se fosse mais presente. Era rico, generoso, mais inteligente do que qualquer outra pessoa, e até sabia se vestir. Devia ter sido bonito quando jovem e ainda hoje as mulheres se atiravam em cima dele. Greg Peshkov adorava o pai e sua única reclamação era não vê-lo com frequência suficiente.

           – Eu deveria ter vendido essa droga de fundição quando tive oportunidade – comentou Lev enquanto os dois passeavam pela fábrica silenciosa e deserta. – Mesmo antes daquela maldita greve, já estava dando prejuízo. Deveria me concentrar em cinemas e bares. – Ele sacudiu o dedo para o filho, didático. – As pessoas nunca deixam de comprar bebida, não importa se os tempos são fáceis ou difíceis. E vão ao cinema mesmo quando não têm dinheiro para pagar o ingresso. Nunca se esqueça disso.

           Greg tinha quase certeza de que o pai jamais cometia erros profissionais.

           – Então por que você manteve a fábrica?

           – Valor sentimental – respondeu Lev. – Quando eu tinha a sua idade, trabalhei num lugar assim em São Petersburgo, a Metalúrgica Putilov. – Correu os olhos pelos guindastes, fornalhas, moldes, tornos e bancadas de trabalho. – Na verdade, era bem pior do que isto aqui.

           A Metalúrgica de Buffalo fabricava ventiladores de todos os tamanhos, incluindo grandes hélices para navios. Greg era fascinado pela matemática das pás curvas. Era o melhor aluno da turma em matemática.

           – Você era engenheiro? – perguntou ao pai.

           Lev sorriu.

           – Eu digo isso às pessoas quando preciso impressioná-las – respondeu. – Mas na verdade eu cuidava dos pôneis. Era cavalariço. Nunca fui muito bom com máquinas. Quem tinha talento para isso era meu irmão, Grigori. Você puxou a ele. De toda forma, nunca compre uma fundição.

           – Não comprarei.

           Greg iria passar o verão acompanhando o pai para aprender tudo sobre os negócios. Lev acabara de chegar de Los Angeles e as aulas de Greg tinham começado naquele mesmo dia. Só que o garoto não queria aprender nada sobre a fundição. Era bom em matemática, mas o que lhe interessava mesmo era o poder. Queria que o pai o levasse em uma de suas frequentes viagens a Washington, onde fazia lobby para a indústria do cinema. Era lá que as verdadeiras decisões eram tomadas.

           Estava ansioso pela hora do almoço. Ele e o pai iriam se encontrar com o senador Gus Dewar. Greg queria pedir um favor ao senador. No entanto, ainda não pedira permissão ao pai. Estava nervoso, com medo de pedir, e em vez disso falou:

           – Você tem notícias do seu irmão em Leningrado?

           Lev fez que não com a cabeça.

           – Nenhuma desde a guerra. Não me espantaria se ele tivesse morrido. Muitos antigos bolcheviques sumiram.

           – Falando em parentes, encontrei minha meia-irmã no sábado. Ela estava no piquenique na praia.

           – Vocês se divertiram?

           – Ela está zangada com você, sabia?

           – O que eu fiz desta vez?

           – Prometeu levá-la à Casa Branca, mas foi com Gladys Angelus.

           – É verdade. Eu me esqueci. Mas queria fazer propaganda para Paixão.

           Os dois foram abordados por um homem alto, cujo terno listrado era exagerado mesmo para os padrões da moda da época. Tocando a aba do chapéu Fedora, ele disse:

           – Bom dia, chefe.

           – Joe Brekhunov é o encarregado da segurança aqui – explicou Lev a Greg. – Joe, este é meu filho Greg.

           – Prazer – disse Brekhunov.

           Greg apertou a mão dele. Como a maioria das fábricas, a fundição tinha seus próprios funcionários de segurança. Brekhunov, porém, parecia mais um capanga do que um guarda.

           – Tudo tranquilo? – perguntou Lev.

           – Um pequeno incidente durante a noite – respondeu Brekhunov. – Dois maquinistas tentaram surrupiar uma barra de aço de quarenta centímetros, padrão aeronáutico. Nós os pegamos tentando passá-la por cima da cerca.

           – Chamaram a polícia? – perguntou Greg.

           – Não foi preciso – respondeu Brekhunov com um sorriso. – Nós lhes demos um pequeno sermão sobre o conceito de propriedade privada e os mandamos para o hospital refletir sobre o assunto.

           Greg não ficou surpreso ao saber que os seguranças de seu pai espancavam ladrões de forma tão brutal a ponto de mandá-los para o hospital. Embora Lev nunca tivesse batido nele nem em sua mãe, o garoto tinha a sensação de que a violência nunca estava muito longe da superfície afável do pai. Imaginou que fosse por causa da infância de Lev nos barracos miseráveis de São Petersburgo.

           Um homem corpulento, de terno azul e capacete de operário, surgiu de trás de uma fornalha.

           – Este é Brian Hall, líder sindical – apresentou Lev. – Bom dia, Hall.

           – Bom dia, Peshkov.

           Greg arqueou as sobrancelhas. Em geral, as pessoas chamavam seu pai de Sr. Peshkov.

           Lev se posicionou com os pés afastados e as mãos nos quadris.

           – Bem, tem uma resposta para mim?

           O rosto de Hall adquiriu uma expressão obstinada.

           – Os homens não vão voltar ao trabalho com um corte de salário, se é isso que está perguntando.

           – Mas eu melhorei a proposta!

           – Continua sendo um corte salarial.

           Greg começou a ficar nervoso. Seu pai não gostava de ser contrariado e talvez perdesse a paciência.

           – O gerente me disse que não estamos recebendo nenhuma encomenda, pois ele não consegue manter uma política de preços competitivos por conta dos níveis salariais.

           – Na verdade é porque suas máquinas estão ultrapassadas, Peshkov. Alguns desses tornos são de antes da guerra! Você precisa se reequipar.

           – No meio de uma depressão econômica? Ficou louco? Não vou jogar mais dinheiro fora.

           – É exatamente assim que os seus homens se sentem – disse Hall, com ar de quem lança mão de um trunfo. – Não vão dar dinheiro para você quando não têm nem o bastante para si mesmos.

           Greg pensou que os operários eram burros por fazer greve durante uma depressão e o atrevimento de Hall o irritou. Aquele homem falava com Lev de igual para igual, não como um funcionário.

           – Bem, do jeito que as coisas estão, todos nós estamos perdendo dinheiro – disse Lev. – Qual é o sentido disso?

           – Não está mais nas minhas mãos – disse Hall. Greg achou seu tom arrogante. – O sindicato vai mandar uma equipe da sede para assumir a situação. – Ele sacou do bolso do colete um grande relógio de aço. – O trem deles deve chegar daqui a uma hora.

           O semblante de Lev ficou sombrio.

           – Não precisamos de pessoas de fora criando problemas aqui.

           – Se não quer problemas, basta não provocá-los.

           Lev cerrou um dos punhos, mas Hall se afastou.

           Então Lev se virou para Berkhunov.

           – Você sabia sobre esses tais homens da sede do sindicato? – perguntou Lev zangado.

           Berkhunov pareceu nervoso.

           – Vou me informar agora mesmo, chefe.

           – Descubra quem são e onde vão ficar hospedados.

           – Não vai ser difícil.

           – E mande-os de volta para Nova York numa porra de uma ambulância.

           – Deixe comigo, chefe.

           Lev se virou para ir embora e Greg o seguiu. Aquilo sim era poder, pensou o garoto com certo assombro. Bastava uma palavra de seu pai para que representantes de um sindicato fossem espancados.

           Os dois saíram da fábrica e entraram no carro de Lev, um Cadillac sedã com capacidade para cinco passageiros, no novo estilo aerodinâmico. Os para-choques longos e curvos faziam Greg pensar nos quadris de uma garota.

           Lev percorreu a Porter Avenue até a beira do lago e estacionou no Iate Clube de Buffalo. A luz do sol reluzia nos barcos atracados na marina, criando um belo efeito. Greg tinha quase certeza de que o pai não era sócio daquele clube de elite. Gus Dewar devia ser.

           Os dois caminharam até o píer. A sede do clube era construída sobre pilotis na água. Lev e Greg entraram e deixaram os chapéus na chapelaria. Na mesma hora, Greg sentiu-se intimidado, sabendo que era um convidado num clube que jamais o aceitaria como sócio. As pessoas ali provavelmente achavam que ele deveria se sentir privilegiado pelo simples fato de lhe permitirem entrar. Pôs as mãos nos bolsos e adotou uma postura relaxada, para lhes mostrar que não estava impressionado.

           – Antigamente eu era sócio deste clube – disse Lev. – Mas em 1921 o presidente disse que eu tinha que sair porque era contrabandista de bebidas. Em seguida me pediu que lhe vendesse uma caixa de uísque escocês.

           – Por que o senador Dewar quer almoçar com você? – perguntou Greg.

           – Vamos descobrir daqui a pouco.

           – Você se importaria se eu pedisse um favor a ele?

           Lev franziu o cenho.

           – Acho que não. O que você quer?

           No entanto, antes que Greg pudesse responder, Lev cumprimentou um homem de mais ou menos 60 anos.

           – Este aqui é Dave Rouzrokh – disse ele a Greg. – Meu maior rival.

           – Quanta honra – disse o recém-chegado.

           A Roseroque Cinemas era uma cadeia de salas caindo aos pedaços que funcionava no estado de Nova York. Seu dono, por sua vez, era tudo, menos decrépito. Tinha um ar nobre: era alto, com os cabelos muito brancos e um nariz que mais parecia uma lâmina curva. Estava usando um blazer de caxemira azul com o escudo do clube no bolso da frente.

           – Tive o prazer de ver sua filha Joanne jogar tênis no sábado – disse Greg.

           Dave ficou satisfeito ao ouvir aquilo.

           – Ela joga bem, não é?

           – Muito.

           – Que bom que o encontrei, Dave – disse Lev. – Estava mesmo planejando telefonar para você.

           – Por quê?

           – Suas salas precisam de reforma. Estão muito antiquadas.

           Dave pareceu achar graça.

           – Você pretendia me telefonar para dar essa notícia?

           – Por que não toma uma providência?

           Dave deu de ombros com elegância.

           – Para quê? Ganho dinheiro suficiente. Na minha idade, não quero ter esse trabalho.

           – Você poderia dobrar seu lucro.

           – Aumentando o preço dos ingressos? Não, obrigado.

           – Você é louco.

           – Nem todos são obcecados por dinheiro – disse Dave com leve desdém.

           – Então venda as salas para mim – disse Lev.

           Greg ficou surpreso. Não tinha previsto isso.

           – Eu pago um bom preço – acrescentou Lev.

           Dave fez que não com a cabeça.

           – Não. Gosto de ser dono de salas de cinema – disse ele. – Elas dão prazer às pessoas.

           – Oito milhões de dólares – propôs Lev.

           Isso deixou Greg estupefato. Será que acabei mesmo de ouvir meu pai oferecer oito milhões de dólares a esse tal de Dave?

           – É um preço justo – reconheceu Dave. – Mas as salas não estão à venda.

           – Ninguém mais vai lhe pagar tanto – disse Lev, impaciente.

           – Eu sei. – Dave parecia já ter tido a sua cota de insolência. Engoliu o restante da bebida. – Foi um prazer ver vocês dois – falou e saiu do bar em direção ao restaurante do clube.

           A expressão de Lev era de asco.

           – “Nem todos são obcecados por dinheiro” – arremedou. – O avô de Dave chegou aqui cem anos atrás, vindo da Pérsia, sem nada a não ser a roupa do corpo e seis tapetes. Ele não teria feito pouco caso de oito milhões de dólares.

           – Eu não sabia que você tinha todo esse dinheiro – disse Greg.

           – E não tenho mesmo, pelo menos não em espécie. É para isso que existem os bancos.

           – Quer dizer que você pegaria um empréstimo para pagar Dave?

           Lev tornou a sacudir o indicador para o filho, dizendo:

           – Nunca use seu próprio dinheiro quando puder gastar o dos outros.

           Foi nessa hora que um homem alto e cabeçudo entrou no bar: Gus Dewar. Tinha 40 e poucos anos e cabelos castanho-claros salpicados de fios brancos. Cumprimentou pai e filho com uma cortesia distante, apertando a mão deles e lhes oferecendo uma bebida. Greg percebeu de imediato que Gus e Lev não se gostavam. Temeu que isso significasse que Gus não fosse fazer o favor que ele queria lhe pedir. Talvez devesse deixar para lá.

           Gus era um figurão. Antes dele, seu pai também havia sido senador, sucessão dinástica que, na opinião de Greg, não tinha nada a ver com os Estados Unidos. Gus ajudara Franklin Roosevelt a se tornar governador do estado de Nova York e, depois, presidente. Agora, era membro do poderoso Comitê de Relações Exteriores do Senado.

           Seus dois filhos, Woody e Chuck, estudavam na mesma escola que Greg. Woody era bom aluno; Chuck era bom atleta.

           – O presidente lhe disse para resolver minha greve, senador? – perguntou Lev.

           Gus sorriu.

           – Não... pelo menos não ainda.

           Lev virou-se para Greg:

           – Da última vez que a fundição entrou em greve, há vinte anos, o presidente Wilson mandou Gus me pressionar para aumentar o salário dos funcionários.

           – Eu o fiz poupar dinheiro – disse Gus, com voz suave. – Eles estavam pedindo um dólar e eu os fiz aceitar metade.

           – Ou seja, exatamente 50 cents a mais do que eu pretendia dar.

           Gus sorriu e deu de ombros.

           – Vamos almoçar?

           Os três entraram no restaurante. Depois de fazerem o pedido, o senador disse:

           – O presidente ficou contente por você ter podido ir à recepção na Casa Branca.

           – Eu provavelmente não deveria ter levado Gladys – disse Lev. – A Sra. Roosevelt foi meio fria com ela. Acho que não gosta de estrelas de cinema.

           Ela provavelmente não gosta é de estrelas de cinema que vão para a cama com homens casados, pensou Greg, mas ficou de boca fechada.

           Durante o almoço, Gus falou amenidades. Greg procurava uma oportunidade para pedir seu favor. Ele queria trabalhar em Washington durante um verão, para aprender os macetes e fazer contatos. Seu pai talvez pudesse lhe conseguir um estágio, que seria com um dos republicanos, mas eles não estavam no poder. Greg queria trabalhar na equipe do influente e respeitado senador Dewar, aliado e amigo pessoal do presidente.

           Perguntou-se por que estava tão nervoso. O pior que poderia acontecer era Dewar dizer não.

           Terminada a sobremesa, Gus começou a falar sobre negócios:

           – O presidente me pediu que conversasse com você sobre a Liga da Liberdade.

           Greg já tinha ouvido falar nessa organização, um grupo de direita contrário ao New Deal.

           Lev acendeu um cigarro e soprou a fumaça.

           – Temos que nos proteger do avanço do socialismo.

           – O New Deal é a única coisa que está nos salvando do tipo de pesadelo que as pessoas estão vivendo na Alemanha.

           – Os membros da Liga da Liberdade não são nazistas.

           – Ah, não? Eles têm um projeto de insurreição armada para derrubar o presidente. Não é um projeto realista, naturalmente... pelo menos não por enquanto.

           – Acho que tenho direito às minhas opiniões.

           – Nesse caso, está apoiando as pessoas erradas. A Liga não tem nada a ver com liberdade, você sabe.

           – Não me venha falar em liberdade – disse Lev com um traço de raiva na voz. – Quando eu tinha 12 anos, fui açoitado pela polícia de São Petersburgo porque meus pais fizeram greve.

           Greg não entendeu muito bem por que o pai tinha dito isso. A brutalidade do regime do czar parecia um argumento a favor do socialismo, não contra.

           – Roosevelt sabe que você doa dinheiro para a Liga e quer que pare – disse Gus.

           – Como ele sabe para quem eu doo dinheiro?

           – Por meio do FBI. Eles investigam esse tipo de gente.

           – Estamos vivendo em um Estado vigiado! Você teoricamente é um liberal.

           Não havia muita lógica na argumentação de Lev, percebeu Greg. Seu pai só estava fazendo o possível para levar Gus a tropeçar e pouco lhe importava que para isso fosse preciso contradizer a si mesmo.

           Mas Gus permaneceu calmo.

           – Estou tentando evitar que isso vire assunto de polícia.

           Lev sorriu.

           – O presidente sabe que eu roubei a sua noiva?

           Aquilo era novidade para Greg, mas devia ser verdade, porque seu pai finalmente conseguiu desestabilizar Gus. O senador pareceu chocado, desviou o olhar e corou. Ponto para o nosso time, pensou Greg.

           – Em 1915, Gus estava noivo de Olga – explicou Lev ao filho. – Mas então ela mudou de ideia e se casou comigo.

           Gus recuperou a compostura e falou:

           – Éramos todos muito jovens.

           – Você com certeza esqueceu Olga bem depressa – comentou Lev.

           Gus o encarou com um olhar frio e disse:

           – Você também.

           Greg viu que agora era o pai quem estava constrangido. O tiro de Gus tinha acertado o alvo.

           Após alguns instantes de silêncio constrangedor, Gus falou:

           – Lev, você e eu lutamos numa guerra. Eu fiz parte de um batalhão de metralhadoras junto com meu amigo de escola Chuck Dixon. Numa cidadezinha francesa chamada Château-Thierry, ele foi estraçalhado por uma bomba bem na minha frente. – O tom de Gus era casual, mas Greg se viu prendendo a respiração. Gus prosseguiu: – O que desejo para meus filhos é que eles jamais tenham que passar pelo que nós passamos. É por isso que grupos como a Liga da Liberdade precisam ser eliminados logo no começo.

           Greg viu sua chance.

           – Eu também me interesso por política, senador, e gostaria de aprender mais. O senhor me aceitaria como estagiário durante um verão? – Ele voltou a prender a respiração.

           Apesar do ar surpreso, Gus respondeu:

           – Sempre tenho lugar para um jovem inteligente disposto a trabalhar em equipe.

           Isso não queria dizer nem sim nem não.

           – Sou o melhor da minha turma em matemática e capitão do time de hóquei no gelo – insistiu Greg, vendendo seu peixe. – Pergunte a Woody sobre mim.

           – Vou perguntar. – Gus virou-se para Lev: – E você, vai pensar no pedido do presidente? É muito importante, mesmo.

           Quase pareceu que Gus estava sugerindo uma troca de favores. Mas será que seu pai iria concordar?

           Lev hesitou por alguns instantes, então apagou o cigarro e disse:

           – Acho que estamos acertados.

           Gus se levantou.

           – Ótimo – falou. – O presidente vai ficar satisfeito.

           Consegui, pensou Greg.

           Os três deixaram o clube em direção aos carros.

           Quando saía com o pai do estacionamento, Greg falou:

           – Obrigado, pai. Fico muito grato pelo que você fez.

           – Você soube escolher o momento certo – disse Lev. – Fico feliz por ver que é tão inteligente.

           O elogio agradou a Greg. Sob alguns aspectos, ele era mais inteligente do que o pai – com certeza sabia mais sobre matemática e ciências –, mas temia não ter a sua sagacidade nem a sua astúcia.

           – Eu quero que você seja um homem esperto – continuou Lev. – Não como alguns desses bobalhões. – Greg não fazia ideia de quem eram os tais bobalhões. – Você tem que estar um passo à frente o tempo todo. É só assim que se vai para a frente.

           Lev dirigiu até seu escritório, localizado em um quarteirão moderno do centro da cidade. Quando estavam passando pela portaria de mármore, ele disse:

           – Agora vou dar uma lição naquele idiota do Dave Rouzrokh.

           Enquanto os dois subiam de elevador, Greg se perguntou como o pai faria aquilo.

           A Peshkov Filmes ocupava o último andar do prédio. Greg seguiu Lev por um corredor largo e, juntos, atravessaram uma recepção ocupada por duas secretárias jovens e atraentes.

           – Liguem para Sol Starr, sim? – pediu Lev enquanto os dois entravam em seu escritório.

           Lev sentou-se atrás da mesa.

           – Solly é dono de um dos maiores estúdios de Hollywood – explicou ele.

           O telefone sobre a mesa tocou e Lev atendeu.

           – Sol! – exclamou. – Como estão as coisas? – Greg escutou um ou dois minutos de brincadeiras tipicamente masculinas e então Lev foi ao que interessava: – Um pequeno conselho – falou. – Aqui no estado de Nova York existe uma cadeia de pulgueiros chamada Roseroque Cinemas... isso, essa mesma... Ouça o que lhe digo: não mande para eles seus lançamentos mais importantes do verão. Vocês correm o risco de não receber. – Greg se deu conta de que aquilo seria um duro golpe para Dave: sem filmes novos e empolgantes para exibir, seu lucro iria despencar. – Para bom entendedor... não é mesmo? Não precisa me agradecer, Solly, você faria a mesma coisa por mim... tchau.

           Mais uma vez, Greg ficou espantado com o poder de seu pai. Lev podia mandar espancar pessoas; oferecer oito milhões de dólares do dinheiro dos outros; assustar um presidente; seduzir a noiva de outro homem. E também era capaz de arruinar um negócio com um simples telefonema.

           – Espere só e você verá – disse ele ao filho. – Daqui a um mês, Dave Rouzrokh vai estar implorando para eu comprar sua cadeia de cinemas... por metade do preço que eu lhe ofereci hoje.

 

           – Não sei qual é o problema com esse cachorro – disse Daisy. – Ele não faz nada que eu mando. Está me deixando louca. – Sua voz tremia, havia uma lágrima em seu olho e ela só estava exagerando um pouquinho.

           Charlie Farquharson analisou o filhote.

           – Não há nada de errado com ele – declarou. – Que graça. Qual é o nome dele?

           – Jack.

           – Ah.

           Os dois estavam sentados em cadeiras no bem-cuidado jardim de quase um hectare da casa de Daisy. Depois de cumprimentar Charlie, Eva muito discretamente havia se retirado para escrever uma carta para casa. Um pouco mais afastado, o jardineiro Henry afofava com uma enxada um canteiro de amores-perfeitos roxos e amarelos. Sua esposa, a criada Ella, trouxe uma jarra de limonada e alguns copos, que arrumou sobre uma mesinha dobrável.

           O cão era um pequeno filhote de Jack Russell, pequeno e forte, branco com manchas marrons. Tinha um ar inteligente, como se entendesse tudo o que os humanos diziam, mas não parecia ter qualquer inclinação para obedecer. Daisy o segurou no colo e acariciou-lhe o focinho delicadamente com a ponta dos dedos, de um jeito que esperava que Charlie achasse estranhamente perturbador.

           – Não gostou do nome?

           – Só achei um pouco óbvio. – Charlie olhou para a mão branca de Daisy sobre o focinho do cachorro e remexeu-se na cadeira, pouco à vontade.

           Daisy não queria exagerar na dose. Se provocasse muito Charlie, ele simplesmente iria embora. Era por isso que continuava solteiro aos 25 anos: várias moças de Buffalo, entre elas Dot Renshaw e Muffie Dixon, tinham achado impossível fazê-lo se comprometer. Mas Daisy era diferente.

           – Então escolha um nome para ele.

           – Seria bom se tivesse duas sílabas, como Bonzo, para que ele reconhecesse o nome mais facilmente.

           Daisy não fazia a menor ideia de como dar nome a cães.

           – Que tal Rover? – sugeriu ela.

           – Muito comum. Talvez Rusty seja melhor.

           – Perfeito! – disse ela. – Então o nome dele vai ser Rusty.

           O cachorro se desvencilhou das mãos de Daisy sem dificuldade e pulou no chão.

           Charlie o pegou. Daisy reparou que ele tinha as mãos grandes.

           – Você precisa mostrar a Rusty quem é que manda – disse Charlie. – Segure-o bem firme e só o deixe descer quando você mandar. – Ele pôs o cão de volta no colo dela.

           – Mas ele é tão forte! E tenho medo de machucá-lo.

           Charlie sorriu de um jeito condescendente.

           – Você provavelmente não conseguiria machucá-lo nem se quisesse. Segure a coleira com força... pode torcer um pouco se precisar. Depois ponha a outra mão nas costas dele com firmeza.

           Daisy seguiu as instruções de Charlie. O cachorro sentiu a pressão mais forte de sua mão e ficou parado, como se estivesse esperando para ver o que iria acontecer em seguida.

           – Mande que ele sente e ao mesmo tempo empurre o traseiro dele para baixo.

           – Sentado – disse ela.

           – Fale mais alto e dê bastante ênfase ao “s”. Depois empurre com força.

           – Rusty, sentado! – disse ela, empurrando para baixo o traseiro do filhote, que sentou.

           – Pronto – disse Charlie.

           – Como você é inteligente! – elogiou Daisy, efusiva.

           Charlie pareceu satisfeito.

           – É só uma questão de saber o que fazer – disse, modesto. – Com cachorros, é preciso ser sempre bem enfática e decidida. Você praticamente tem que latir para eles. – Ele se recostou na cadeira, parecendo contente. Era bem grandão e ocupava a cadeira toda. Falar sobre algo em que era especialista o fizera relaxar, como Daisy havia torcido para que acontecesse.

           Tinha lhe telefonado naquela mesma manhã.

           – Estou desesperada! – dissera. – Tenho um cachorrinho novo e não sei o que fazer com ele. Você pode me dar uns conselhos?

           – Qual é a raça dele?

           – Jack Russell.

           – Ah, a minha preferida... tenho três cães dessa raça!

           – Que coincidência!

           Como Daisy previa, Charlie se oferecera para ir até sua casa ajudá-la a adestrar o filhote.

           – Acha mesmo que Charlie é o rapaz certo para você? – perguntara Eva, cética.

           – Está falando sério? – retrucara Daisy. – Ele é um dos melhores partidos de Buffalo!

           Agora, no jardim, dizia para ele:

           – Aposto que você também levaria muito jeito com crianças.

           – Ah, isso eu já não sei.

           – Você adora cachorros, mas os trata com firmeza. Tenho certeza de que isso também funciona com crianças.

           – Não faço ideia. – Ele mudou de assunto: – Você pretende entrar para a faculdade em setembro?

           – Talvez vá para Oakdale. É uma escola para moças e o curso dura dois anos. A menos que...

           – A menos que o quê?

           A menos que eu me case, ela queria dizer, mas em vez disso falou:

           – Não sei. A menos que aconteça alguma outra coisa.

           – Como o quê, por exemplo?

           – Eu gostaria de conhecer a Inglaterra. Meu pai foi a Londres e conheceu o príncipe de Gales. E você? Quais são seus planos?

           – Sempre achamos que eu fosse assumir o banco de papai, mas agora o banco não existe mais. Mamãe tem um pouco de dinheiro da família dela e sou eu que o administro, mas, tirando isso, estou meio sem rumo.

           – Você deveria criar cavalos – disse Daisy. – Sei que seria ótimo nisso. – Ela era boa amazona e ganhara prêmios quando mais nova. Imaginou-se com Charlie no parque, cada um montado em um belo tordilho, e seus dois filhos logo atrás, em pôneis. A visão a fez sentir um calor que a iluminou por dentro.

           – Adoro cavalos – disse Charlie.

           – Eu também! Quero criar cavalos de corrida. – Esse entusiasmo Daisy não precisou fingir. Tinha o sonho de criar uma linhagem de campeões. Ela considerava os donos de cavalos de corrida a maior das elites internacionais.

           – Puros-sangues custam muito dinheiro – comentou Charlie, desanimado.

           Daisy tinha muito dinheiro. Se Charlie se casasse com ela, nunca mais precisaria se preocupar com isso na vida. É óbvio que ela não disse nada, mas imaginou que Charlie estivesse pensando a mesma coisa e deixou que esse pensamento ficasse suspenso no ar, implícito, pelo tempo mais longo possível.

           Depois de algum tempo, Charlie falou:

           – Seu pai mandou mesmo espancar aqueles dois sindicalistas?

           – Que ideia mais absurda! – Daisy não sabia se Lev Peshkov tinha feito uma coisa dessas, mas não ficaria surpresa se fosse verdade.

           – Os homens que vieram de Nova York comandar a greve – insistiu Charlie. – Eles foram hospitalizados. O Sentinel disse que eles brigaram com sindicalistas daqui, mas todo mundo acha que o responsável foi seu pai.

           – Eu nunca falo sobre política – disse Daisy em tom jovial. – Quando você ganhou seu primeiro cachorro?

           Charlie mergulhou numa longa reminiscência. Daisy ficou pensando no que fazer em seguida. Já consegui que ele viesse até aqui, pensou, e o deixei à vontade. Agora preciso deixá-lo excitado. Mas acariciar o cãozinho sugestivamente o deixara perturbado. O que eles precisavam era de um pouco de contato físico casual.

           – Qual é a próxima coisa que devo fazer com Rusty? – perguntou ela depois de Charlie concluir a história.

           – Ensiná-lo a andar junto – respondeu Charlie sem pestanejar.

           – Como é que se faz isso?

           – Você tem biscoitos para cães?

           – Claro. – As janelas da cozinha estavam abertas e Daisy elevou a voz para que a criada a escutasse. – Ella, pode me trazer aquela caixa de biscoitos de cachorro, por favor?

           Pouco depois, Charlie partiu um dos biscoitos e em seguida pegou o filhote no colo. Segurou um pedaço de biscoito dentro do punho fechado, deixou Rusty cheirar e então abriu a mão, permitindo que ele comesse. Pegou outro pedaço, certificando-se de que o cão soubesse que o biscoito estava dentro de sua mão. Então se levantou e pôs o cãozinho a seus pés. Rusty manteve o olhar cravado na mão de Charlie, que disse:

           – Junto!

           Ele deu alguns passos. O filhote foi atrás.

           – Bom menino! – disse Charlie, dando o biscoito para ele.

           – Que incrível! – exclamou Daisy.

           – Depois de um tempo, você não vai mais precisar do biscoito... ele vai andar junto só por uma festinha. E depois vai acabar fazendo isso automaticamente.

           – Charlie, você é um gênio!

           Ele pareceu contente. Tinha olhos castanhos bonitos, parecidos com os do filhote, reparou ela.

           – Agora tente você – falou ele.

           Daisy imitou o que Charlie havia feito e obteve o mesmo resultado.

           – Está vendo? – disse Charlie. – Não é tão difícil.

           Daisy riu, encantada.

           – Nós deveríamos abrir um negócio – disse ela. – Farquharson e Peshkov, adestradores de cães.

           – Que boa ideia – disse ele, e parecia falar sério.

           Aquilo estava correndo muito bem, pensou Daisy.

           Ela foi até a mesa e serviu dois copos de limonada.

           Em pé ao seu lado, ele disse:

           – Em geral sou meio tímido com as garotas.

           Não me diga, pensou Daisy, mas manteve a boca bem fechada.

           – Mas é tão fácil conversar com você – prosseguiu ele. Na sua cabeça, aquilo tudo era uma feliz coincidência.

           Quando ela estava lhe entregando o copo, atrapalhou-se e derramou limonada em cima dele.

           – Ah, como eu sou desastrada! – exclamou.

           – Não foi nada – disse ele, mas a bebida havia molhado seu blazer de linho e sua calça branca de algodão. Ele pegou um lenço e começou a enxugar.

           – Deixe que eu faço isso – disse Daisy, pegando o lenço da mão dele.

           Ela chegou bem perto para enxugar sua lapela. Charlie ficou imóvel, e ela soube que devia estar sentindo o cheiro de seu perfume Jean Naté – notas superiores de lavanda, base de almíscar. Com gestos que eram verdadeiras carícias, ela passou o lenço pela frente do paletó dele, embora a limonada não houvesse nem respingado ali.

           – Está quase – falou, como se lamentasse ter de parar tão cedo.

           Ela então se apoiou sobre um dos joelhos, como se o estivesse adorando. Com a mesma leveza de uma borboleta, começou a encostar o lenço nas partes molhadas da calça dele. Enquanto alisava sua coxa, adotou um ar de inocência sedutora e ergueu os olhos. Charlie a encarava, enfeitiçado, respirando forte pelo nariz.

 

           Woody Dewar inspecionou o iate Sprinter com impaciência, para verificar se os meninos tinham deixado tudo impecável. Era um barco de corrida de 48 pés, comprido e fino como uma faca. Dave Rouzrokh o havia alugado para os Shipmates, um clube do qual Woody era sócio e que levava os filhos dos desempregados de Buffalo para passear de barco no lago Erie e lhes ensinava os rudimentos da vela. Woody ficou satisfeito ao ver que os cabos de amarração e as defensas estavam no lugar, as velas amarradas, as adriças presas e todos os outros cabos cuidadosamente enrolados.

           Seu irmão Chuck, de 14 anos – um a menos do que ele –, já estava no píer, conversando animadamente com um par de meninos negros. Chuck tinha um temperamento descontraído que lhe permitia se dar bem com todo mundo. Woody, que queria ser político como o pai, invejava aquele charme natural do irmão.

           Os meninos estavam apenas de short e sandálias, e os três ali no píer pareciam um retrato da força e da vitalidade juvenis. Se tivesse trazido a câmera, Woody teria tirado uma foto. Gostava muito de fotografar e havia montado em casa um laboratório de revelação e ampliação.

           Convencido de que o Sprinter estava exatamente do mesmo jeito que eles o haviam pegado naquela manhã, Woody pulou para o píer. O grupo de mais ou menos dez meninos saiu da marina ao mesmo tempo, todos bronzeados e com os cabelos desarrumados pelo vento, agradavelmente doloridos por causa do exercício e rindo ao recordar os erros, tombos e brincadeiras do dia.

           O abismo entre os dois irmãos ricos e o grupo de meninos pobres tinha desaparecido quando eles estavam velejando, fazendo um esforço conjunto para controlar o barco, mas ressurgiu ali, no estacionamento do Iate Clube de Buffalo. Dois carros estavam estacionados lado a lado: o Chrysler Airflow do senador Dewar, com um motorista uniformizado ao volante à espera de Woody e Chuck; e uma picape Roadster da Chevrolet com bancos de madeira na caçamba, à espera dos outros. Woody ficou constrangido ao se despedir enquanto o motorista segurava a porta para ele, mas os outros meninos não pareceram ligar, agradecendo e dizendo:

           – Até sábado que vem!

           Quando estavam subindo a Delaware Avenue, Woody falou:

           – Foi divertido, mas não sei exatamente para que serve.

           O comentário deixou Chuck surpreso.

           – Como assim?

           – Bem, não estamos ajudando os pais deles a arrumar emprego, e isso é a única coisa que importa.

           – Talvez saber velejar ajude os filhos a ter trabalho daqui a alguns anos. – Buffalo era uma cidade portuária. Em circunstâncias normais, havia milhares de empregos em navios mercantes que singravam os Grandes Lagos e o canal de Erie, bem como em barcos de passeio.

           – Se o presidente conseguir fazer a economia andar outra vez.

           Chuck deu de ombros.

           – Vá trabalhar para Roosevelt, então.

           – Por que não? Papai trabalhou para Woodrow Wilson.

           – Eu vou ficar com a vela mesmo.

           Woody olhou para o relógio de pulso.

           – Ainda temos tempo de nos trocar para o baile... vai ser apertado, mas dá. – Os dois tinham um jantar dançante no Clube de Tênis. A expectativa fez o coração de Woody bater mais depressa. – Quero estar na companhia de gente de pele macia, voz aguda e vestidos cor-de-rosa.

           – Argh – murmurou Chuck com desdém. – Joanne Rouzrokh nunca usou rosa na vida.

           Woody ficou espantado. Vinha sonhando com Joanne o dia inteiro e metade da noite já havia algumas semanas, mas como seu irmão sabia disso?

           – Por que você acha que...

           – Ah, por favor – disse Chuck, zombeteiro. – Quando ela chegou à festa na praia usando aquele saiote de tênis você quase teve um troço. Todo mundo reparou que está louco por ela. Felizmente, ela não pareceu notar.

           – Por que “felizmente”?

           – Pelo amor de Deus... você tem 15 anos e ela, 18. É constrangedor! Ela está procurando um marido, não um moleque.

           – Puxa, obrigado. Tinha esquecido que você é um especialista em mulheres.

           Chuck corou. Ele nunca tivera uma namorada.

           – Não é preciso ser especialista para ver o que está bem debaixo do nosso nariz.

           Os dois viviam conversando assim. Não era por maldade: simplesmente eram de uma franqueza brutal um com o outro. Eram irmãos; não havia necessidade de dizer as coisas só para agradar.

           Chegaram em casa, uma mansão que imitava o estilo gótico construída por seu avô, o senador Cam Dewar. Entraram correndo e foram tomar banho e trocar de roupa.

           Woody tinha a mesma altura do pai e vestiu um dos ternos formais antigos de Gus. Estava meio gasto, mas tudo bem. Os rapazes mais jovens estariam todos de terno escolar ou blazer, mas os universitários usariam smoking e Woody queria parecer mais velho. Nessa noite iria dançar com ela, pensou enquanto passava brilhantina nos cabelos. Poderia segurá-la nos braços. As palmas de suas mãos sentiriam o calor da pele dela. Ele a olharia nos olhos quando ela sorrisse. Os seios dela roçariam seu paletó durante a dança.

           Quando ele desceu, seus pais estavam esperando na sala de estar. O pai tomava um drinque, a mãe fumava um cigarro. Seu pai era alto e magro, e o smoking de abotoamento duplo que estava usando fazia com que ele parecesse um cabide. Sua mãe era linda, apesar de ter apenas um olho e de o outro se manter permanentemente fechado – ela nascera assim. Nessa noite, estava deslumbrante, com um vestido de renda preta sobre seda vermelha que ia até o chão e um bolero curto de veludo preto.

           A avó de Woody foi a última a chegar. Aos 68 anos, era uma mulher de boa postura, elegante, tão magra quanto o filho, só que mignon. Examinou o vestido da mãe de Woody e disse:

           – Rosa, querida, você está maravilhosa. – Ela era sempre gentil com a nora. Com todos os outros, era uma megera.

           Gus preparou um drinque para a mãe sem que ela precisasse pedir. Woody disfarçou a impaciência enquanto a avó bebia sem pressa. Ela não era uma pessoa que se pudesse apressar. Para ela, nenhum evento social começaria antes de sua chegada: ela era a grande dame da sociedade de Buffalo, viúva de um senador e mãe de outro, matriarca de uma das famílias mais antigas e distintas da cidade.

           Woody perguntou a si mesmo quando tinha se apaixonado por Joanne. Os dois se conheciam praticamente desde que eram bebês, mas ele sempre havia considerado as meninas espectadoras sem graça das emocionantes aventuras dos meninos – até dois ou três anos antes, quando elas de repente se tornaram mais fascinantes que carros e lanchas. Nessa época, ele se interessava por meninas da sua idade ou um pouco mais novas. Joanne, por sua vez, sempre o tratara feito criança – um menino inteligente, com quem valia a pena conversar de vez em quando, mas com certeza não um candidato a namorado. Nesse verão, porém, por nenhum motivo que conseguisse identificar, ele de repente começara a achá-la a garota mais atraente do mundo. Infelizmente, os sentimentos dela por ele não tinham sofrido a mesma transformação.

           Não ainda.

           – Como anda a escola, Chuck? – perguntou a avó a seu irmão.

           – Um horror, vovó, como a senhora sabe muito bem. Eu sou o burro da família, um retrocesso a nossos antepassados chimpanzés.

           – Que eu saiba, burros não usam expressões como “nossos antepassados chimpanzés”. Tem certeza de que a preguiça não tem nada a ver com isso?

           – Os professores de Chuck dizem que ele se dedica bastante na escola, mãe – interveio Rosa.

           – E ele ganha de mim no xadrez – acrescentou Gus.

           – Então qual é o problema? – insistiu a avó. – Se continuar assim, ele não vai entrar para Harvard.

           – Eu leio devagar, só isso – disse Chuck.

           – Que curioso – comentou ela. – Meu sogro, seu bisavô paterno, foi o banqueiro mais bem-sucedido da sua geração, mas mal sabia ler e escrever.

           – Eu não sabia disso – falou Chuck.

           – É verdade – confirmou ela. – Mas não vá usar isso como desculpa. Estude mais.

           Gus olhou para o relógio.

           – Se estiver pronta, mãe, é melhor irmos andando.

           Por fim, eles entraram no carro e foram para o clube. Gus tinha reservado uma mesa para o jantar e convidado os Renshaw e seus filhos, Dot e George. Woody olhou em volta, mas, para sua decepção, não viu Joanne. Verificou o mapa de assentos, exposto em um cavalete no saguão, e ficou consternado ao ver que não havia uma mesa para a família Rouzrokh. Será que eles não vinham? Isso iria estragar sua noite.

           Enquanto a lagosta e o filé eram saboreados, a conversa girou em torno dos acontecimentos na Alemanha. Philip Renshaw achava que Hitler estava fazendo um bom trabalho. Mas o pai de Woody falou:

           – Segundo o Sentinel de hoje, eles prenderam um padre católico por criticar os nazistas.

           – Você é católico? – perguntou o Sr. Renshaw, surpreso.

           – Não, sou anglicano.

           – Não é uma questão de religião, Philip – disse Rosa, seca. – É a liberdade que está em jogo. – A mãe de Woody fora anarquista na juventude e, no fundo, ainda era uma libertária.

           Algumas pessoas pularam o jantar e foram chegando mais tarde para o baile, e novos convivas apareceram enquanto a sobremesa era servida na mesa dos Dewar. Woody se manteve atento para ver se encontrava Joanne. No salão anexo, uma banda começou a tocar “The Continental”, um sucesso do ano anterior.

           Não sabia dizer o que em Joanne o deixava tão fascinado. A maioria das pessoas não a acharia uma grande beldade, embora sem dúvida fosse atraente. Parecia uma rainha asteca: malares proeminentes e os mesmos olhos do pai, Dave. Seus cabelos eram escuros e cheios, e sua pele tinha um tom moreno, sem dúvida por causa da ascendência persa. Havia nela uma intensidade contida que fazia Woody ansiar por conhecê-la melhor, fazê-la relaxar e ouvi-la murmurar baixinho coisas sem importância. Sentia que sua atitude imponente devia significar uma capacidade de se apaixonar profundamente. Então pensou: e agora, quem é que está fingindo ser especialista em mulheres?

           – Procurando alguém, Woody? – perguntou sua avó, que não deixava passar quase nada.

           Chuck deu uma risadinha cúmplice.

           – Só estava me perguntando quem viria ao baile – respondeu Woody, casual, mas não conseguiu evitar que suas faces corassem.

           Ainda não a tinha visto quando sua mãe se levantou e todos saíram da mesa. Desconsolado, entrou no salão de baile enquanto a banda tocava “Moonglow”, de Benny Goodman. Então deu de cara com Joanne: ela devia ter entrado quando ele estava distraído. Ficou mais animado.

           Ela usava um vestido de seda cinza-prateado cujo modelo, simples mas elegante, tinha um decote em V profundo que realçava suas curvas. Já havia ficado sensacional com o saiote de tênis que deixava à mostra suas pernas compridas e morenas, mas aquilo era ainda mais excitante. Enquanto ela deslizava pelo salão, graciosa e segura, Woody sentiu a garganta seca.

           Ele avançou na direção dela, mas o salão agora estava cheio e, de repente, para sua irritação, descobriu-se muito popular: todos queriam falar com ele. Enquanto abria caminho pela multidão, ficou surpreso ao ver o sem graça Charlie Farquharson dançando com a espevitada Daisy Peshkov. Não conseguia se lembrar de ter visto Charlie dançar com mais ninguém, muito menos uma belezinha feito Daisy. O que ela teria feito para tirá-lo da concha?

           Quando conseguiu chegar até Joanne, ela já se encontrava na extremidade do salão, no canto mais distante da banda, e, para desgosto de Woody, estava muito entretida numa conversa com um grupo de rapazes uns quatro ou cinco anos mais velhos do que ele. Por sorte, Woody era mais alto do que a maioria dos outros e a diferença de idade não ficou tão evidente. Todos seguravam copos de Coca-Cola, mas Woody sentiu cheiro de uísque: um dos rapazes devia estar com uma garrafinha no bolso.

           Quando se juntou a eles, ouviu Victor Dixon dizer:

           – Ninguém é a favor de linchamentos, mas é preciso entender os problemas que eles têm lá no Sul.

           Woody sabia que o senador Wagner tinha proposto uma lei para punir os xerifes que permitissem linchamentos – mas o presidente Wilson se recusara a apoiar o projeto.

           Joanne estava indignada:

           – Como você pode dizer uma coisa dessas, Victor? Linchamento é assassinato! Nós não precisamos entender os problemas deles, o que precisamos fazer é impedir que pessoas sejam mortas!

           Woody ficou satisfeito em saber que Joanne compartilhava de seus valores políticos. No entanto, aquele claramente não era um bom momento para convidá-la para dançar. O que era uma pena.

           – Joanne, querida, você não está entendendo – disse Victor. – Aqueles negros lá do Sul não são civilizados.

           Eu posso ser jovem e inexperiente, pensou Woody, mas nunca cometeria o erro de falar com Joanne de forma tão condescendente.

           – Não civilizado é quem comete esses linchamentos, isso sim! – exclamou ela.

           Woody decidiu que aquele era o melhor momento para dar sua contribuição ao debate.

           – Joanne tem razão – falou. Forçou a voz a ficar mais grave, a fim de parecer mais velho. – Houve um linchamento na cidade dos nossos criados, Joe e Betty, que cuidam de mim e do meu irmão desde que éramos bebês. O primo de Betty foi despido e queimado com um maçarico enquanto uma multidão assistia. Depois foi enforcado. – Victor o encarou com ódio, ressentido por aquele pirralho estar roubando a atenção de Joanne. O restante do grupo, porém, o escutava com uma atenção horrorizada. – Pouco me importa qual foi o crime dele – disse Woody. – Os brancos que fizeram isso são uns selvagens.

           – Mas o seu amado presidente Roosevelt não apoiou o projeto de lei contra os linchamentos, não foi? – indagou Victor.

           – Não, e foi uma grande decepção – admitiu Woody. – Mas sei por que ele tomou essa decisão: teve medo de que os congressistas do Sul se zangassem e retaliassem boicotando o New Deal. De toda forma, eu gostaria que ele tivesse mandado todos eles para o inferno.

           – O que você sabe sobre essas coisas? Você é só um garoto – provocou Victor. Ele sacou do bolso do paletó uma garrafinha e completou o próprio copo.

           – As ideias políticas de Woody são mais maduras que as suas, Victor – disse Joanne.

           O elogio deixou Woody radiante.

           – A política é meio que o ramo da minha família – falou.

           Então foi importunado por um puxão em seu cotovelo. Educado demais para ignorar o chamado, virou-se e deu de cara com Charlie Farquharson, suando por causa das evoluções no salão.

           – Posso conversar com você um instante? – pediu Charlie.

           Woody resistiu à tentação de mandá-lo dar o fora. Charlie era um rapaz simpático, que nunca fazia mal a ninguém. Ter uma mãe como a dele era de dar dó em qualquer um.

           – Pois não, Charlie? – perguntou, com o máximo de solicitude que conseguiu expressar.

           – É sobre Daisy.

           – Vi você dançando com ela.

           – Ela não é ótima dançarina?

           Woody não havia reparado, mas, para ser agradável, falou:

           – Sim, é ótima, mesmo!

           – Ela é ótima em tudo.

           – Charlie, você e Daisy estão flertando? – indagou Woody, tentando reprimir a incredulidade na voz.

           Charlie pareceu encabulado.

           – Fomos cavalgar no parque algumas vezes, essas coisas.

           – Então estão flertando! – Woody estava surpreso. Aquele lhe parecia um casal improvável. Charlie era grandalhão e desengonçado, e Daisy tão miúda e delicada.

           – Ela não é igual às outras garotas – disse Charlie. – É tão fácil conversar com ela! E ela ama cachorros e cavalos. Mas as pessoas acham que o pai dela é um gângster.

           – Acho que ele é mesmo um gângster, Charlie. Todo mundo comprava bebida dele durante a Lei Seca.

           – É o que a minha mãe diz.

           – Então ela não gosta de Daisy. – Woody não estranhou isso.

           – Ela não tem nada contra Daisy. O problema é com a família dela.

           Uma ideia ainda mais surpreendente ocorreu a Woody.

           – Você está pensando em se casar com Daisy?

           – Ah, por Deus, estou sim – respondeu Charlie. – E acho que, se eu pedisse, ela aceitaria.

           Ora, ora, pensou Woody, Charlie tinha classe mas não tinha dinheiro, e Daisy era o contrário; talvez, no final das contas, os dois se completassem.

           – Coisas mais estranhas já aconteceram neste mundo – disse ele. Aquilo era fascinante, mas ele queria se concentrar em sua própria vida afetiva. Olhou em volta para ver se Joanne ainda estava por perto. – Por que está me contando isso? – perguntou a Charlie. Os dois não eram exatamente grandes amigos.

           – Minha mãe talvez mude de ideia se a Sra. Peshkov for convidada a entrar para a Sociedade de Senhoras de Buffalo.

           Por essa Woody não esperava.

           – Mas esse é o clube mais esnobe da cidade!

           – Justamente. Se Olga Peshkov fosse sócia, como minha mãe poderia se opor a Daisy?

           Woody não sabia se o plano iria funcionar ou não, mas não havia a menor dúvida quanto à sinceridade e ao arrebatamento de Charlie.

           – Talvez você tenha razão – disse Woody.

           – Você falaria com sua avó por mim?

           – Caramba! Espere aí um instante. Vovó Dewar é um verdadeiro dragão. Eu não lhe pediria um favor nem para mim mesmo, que dirá para você.

           – Woody, escute. Você sabe que quem manda lá é ela. Se ela quiser alguém na sociedade, a pessoa será aceita... se não quiser, a pessoa estará fora.

           Era verdade. A Sociedade tinha uma presidente, uma secretária e uma tesoureira, mas era Ursula Dewar quem mandava e desmandava no clube, como se ele lhe pertencesse. Mesmo assim, Woody relutava em falar com a avó. Ela seria capaz de arrancar sua cabeça.

           – Não sei, não – falou, em tom de quem se desculpa.

           – Ah, Woody, por favor. Você não entende. – Charlie baixou a voz. – Não entende o que é amar alguém tanto assim.

           Entendo sim, pensou Woody, e isso o fez mudar de ideia. Se Charlie está se sentindo tão mal quanto eu, como posso recusar o seu pedido? Espero que alguma outra pessoa faça o mesmo por mim, se isso significar uma chance com Joanne.

           – Tudo bem, Charlie – cedeu. – Vou falar com ela.

           – Obrigado! Me diga uma coisa... ela está aqui, não está? Será que você poderia falar hoje?

           – Meu Deus, hoje não. Estou com outras coisas na cabeça.

           – Claro, está bem... mas então quando?

           Woody deu de ombros.

           – Amanhã eu falo.

           – Você é demais!

           – Não me agradeça ainda. Ela provavelmente vai dizer não.

           Woody tornou a se virar para falar com Joanne, mas ela havia desaparecido.

           Começou a procurá-la, em seguida se controlou. Não podia se mostrar desesperado. Sabia que as mulheres não se interessavam por homens carentes.

           Cortês, dançou com várias moças: Dot Renshaw, Daisy Peshkov e Eva, a amiga alemã de Daisy. Pegou uma Coca-Cola e foi até o lado de fora, onde alguns dos rapazes fumavam. George Renshaw pôs um pouco de uísque na Coca de Woody, o que melhorou o gosto, mas ele não queria ficar bêbado. Já fizera isso antes e não gostara muito.

           Woody achava que Joanne fosse querer um homem que compartilhasse seus interesses intelectuais – e isso tirava Victor Dixon do páreo. Já a ouvira mencionar Karl Marx e Sigmund Freud. Na Biblioteca Pública, lera o Manifesto comunista, mas o texto lhe parecera apenas uma lenga-lenga politizada. Gostara mais dos Estudos sobre a histeria, de Freud, que transformavam a doença mental em uma espécie de história de detetive. Ansiava por contar a Joanne, de um jeito casual, que tinha lido esses livros.

           Estava decidido a dançar com ela pelo menos uma vez nessa noite e, depois de algum tempo, partiu à sua procura. Ela não estava no salão nem no bar. Será que ele perdera sua chance? Ao tentar não mostrar desespero, teria sido passivo demais? Era insuportável pensar que o baile talvez terminasse sem que ele sequer tivesse tocado o ombro dela.

           Tornou a sair. Apesar de estar escuro, viu-a quase imediatamente. Ela estava se afastando de Greg Peshkov com as faces levemente coradas, como se tivesse acabado de discutir com ele.

           – Você talvez seja o único aqui que não é uma droga de um conservador – disse ela a Woody. Sua voz soava um pouco embriagada.

           Woody sorriu.

           – Obrigado pelo elogio... eu acho.

           – Está sabendo da passeata amanhã? – perguntou ela sem rodeios.

           Ele sabia. Os grevistas da Metalúrgica de Buffalo estavam organizando uma passeata em protesto contra o espancamento dos sindicalistas de Nova York. Woody imaginava que esse tivesse sido o tema da desavença de Joanne com Greg: o pai dele era dono da fábrica.

           – Pretendo ir – falou. – Talvez tire umas fotos.

           – Que Deus o abençoe – disse ela, e então lhe deu um beijo.

           Ele ficou tão espantado que quase não conseguiu reagir. Durante um segundo, ficou parado, sem fazer nada, enquanto ela pressionava a boca na dele, e sentiu gosto de uísque em seus lábios.

           Mas então recuperou o controle. Envolveu-a com os braços e apertou o corpo dela contra o seu, sentindo o delicioso contato de seus seios e suas coxas. Teve um pouco de medo de ela se ofender, empurrá-lo para longe e acusá-lo de estar lhe faltando com o respeito; mas um instinto mais profundo lhe disse que estava pisando em terreno seguro.

           Woody não era muito experiente em beijar garotas – e nunca beijara mulheres maduras de 18 anos –, mas gostou tanto da textura macia da boca de Joanne que começou a roçar seus lábios nos dela, dando leves mordidinhas que lhe proporcionaram um prazer indizível, e foi recompensado ao ouvi-la gemer de leve.

           Teve a vaga consciência de que, se alguma pessoa mais velha passasse por ali, acharia aquela cena constrangedora, mas estava excitado demais para se importar com isso.

           A boca de Joanne se abriu e ele sentiu o contato de sua língua. Aquilo era novidade: as poucas meninas que ele havia beijado nunca fizeram isso. Mas imaginou que ela soubesse o que estava fazendo e gostou muito. Imitou os movimentos da língua dela com a sua. Aquilo era extremamente íntimo e muito excitante. Deve ter sido a coisa certa a fazer, porque ela deu outro gemido.

           Juntando toda a coragem que tinha, Woody levou a mão direita ao seio de Joanne, que lhe pareceu deliciosamente macio e pesado sob a seda do vestido. Ao acariciá-lo, sentiu uma pequena protuberância e pensou, com um arrepio de prazer, que devia ser o mamilo dela. Esfregou-o com o polegar.

           Ela se afastou dele abruptamente.

           – Meu Deus! – exclamou. – O que estou fazendo?

           – Me beijando – disse Woody, todo feliz. Pousou as mãos nos quadris arredondados de Joanne. Podia sentir o calor de sua pele através do vestido de seda. – Vamos fazer mais um pouco disso.

           Ela afastou as mãos dele.

           – Eu devo estar fora de mim. Pelo amor de Deus, isto aqui é o Clube de Tênis!

           Woody percebeu que o feitiço havia se quebrado e, infelizmente, não haveria mais beijos nessa noite. Olhou em volta.

           – Não se preocupe – falou. – Ninguém viu. – Teve a agradável sensação de ser um conspirador.

           – É melhor eu ir para casa antes que cometa uma burrice ainda maior.

           Ele tentou não se ofender:

           – Posso acompanhá-la até seu carro?

           – Está louco? Se entrarmos juntos no salão, todo mundo vai adivinhar o que estávamos fazendo... principalmente com esse sorrisinho idiota na sua cara.

           Woody tentou parar de sorrir.

           – Então por que você não entra e eu espero aqui um minuto?

           – Boa ideia. – Ela se afastou.

           – Até amanhã – disse ele para suas costas.

           Joanne não olhou para trás.

 

           Ursula Dewar tinha uma ala de cômodos só para ela na velha mansão vitoriana da Delaware Avenue. Havia um quarto de dormir, um banheiro e um quarto de vestir e, depois da morte do marido, ela transformara o quarto de vestir dele numa saleta. Na maior parte do tempo, tinha a casa inteira só para si: Gus e Rosa passavam muito tempo em Washington, e Woody e Chuck estudavam num colégio interno. No entanto, quando eles estavam todos em casa, ela passava boa parte do dia em seus aposentos.

           Woody foi falar com a avó no domingo de manhã. Ainda estava nas nuvens por causa do beijo de Joanne, embora tivesse passado metade da noite tentando entender o que ele significava. Poderia ser qualquer coisa, de amor verdadeiro a um simples pileque. Tudo o que sabia era que mal podia esperar para vê-la de novo.

           Entrou no quarto da avó atrás da criada, Betty, que foi levar a bandeja do café da manhã. Agradava-lhe o fato de Joanne ter se zangado com a forma como o primo sulista de Betty tinha sido tratado. Na sua opinião, a argumentação ponderada era supervalorizada no meio político. As pessoas deveriam se zangar com a crueldade e a injustiça.

           Sua avó já estava sentada na cama, usando um xale de renda por cima de uma camisola de seda bege.

           – Bom dia, Woodrow! – falou, espantada.

           – Queria tomar um café com a senhora, vovó, se for possível. – Ele já tinha pedido a Betty que levasse duas xícaras.

           – Será uma honra – respondeu Ursula.

           Betty era uma mulher grisalha de 50 e poucos anos, com o tipo de estrutura física que alguns chamavam de generosa. Pousou a bandeja na frente de Ursula, e Woody serviu café em duas xícaras de porcelana Meissen.

           Tinha pensado um pouco no que dizer, preparando seus argumentos. A Lei Seca não existia mais e Lev Peshkov era agora um homem de negócios dentro da lei. Além do mais, não era justo punir Daisy por seu pai ter sido um criminoso – sobretudo se a maioria das famílias respeitáveis de Buffalo tinha comprado sua bebida ilegal.

           – A senhora conhece Charlie Farquharson? – começou.

           – Conheço.

           É claro que sim. Ela conhecia todas as famílias da alta sociedade de Buffalo.

           – Quer um pedaço de torrada? – ofereceu ela.

           – Não, obrigado, já comi.

           – Rapazes da sua idade nunca comem o suficiente. – Ela olhou para ele com uma expressão sagaz. – A menos que estejam apaixonados.

           Sua avó estava afiadíssima nessa manhã.

           – A mãe de Charlie o mantém sob rédeas curtas – disse Woody.

           – Ela tratava o marido assim também – retrucou Ursula, seca. – Morrer foi a única forma que ele encontrou de se libertar. – Ela bebeu um gole de café e começou a comer sua grapefruit com um garfo.

           – Charlie veio falar comigo ontem à noite e perguntou se eu podia pedir um favor à senhora.

           Ela arqueou uma das sobrancelhas, mas não disse nada.

           Woody tomou fôlego antes de falar.

           – Ele gostaria que a senhora convidasse a Sra. Peshkov para fazer parte da Sociedade das Senhoras de Buffalo.

           Ursula deixou cair o garfo e um tilintar de prata sobre porcelana fina ecoou pelo quarto. Como para esconder o espanto, ela pediu:

           – Sirva-me mais um pouco de café, Woody, por favor.

           Ele obedeceu, sem dizer nada. Não se lembrava de ter visto a avó desconcertada antes.

           Ela tomou um gole de café e perguntou:

           – Por que Charles Farquharson, ou qualquer outra pessoa, iria querer Olga Peshkov na Sociedade?

           – Ele quer se casar com Daisy.

           – Ah, é?

           – E está com medo de que a mãe se oponha.

           – Nisso ele tem razão.

           – Mas acha que talvez consiga convencê-la...

           – Se eu aceitar Olga na Sociedade.

           – Assim talvez as pessoas esqueçam que o pai dela foi gângster.

           – Gângster?

           – Bem, contrabandista de bebidas, no mínimo.

           – Ah, isso – disse Ursula, sem dar importância. – Não é esse o motivo.

           – Ah, não? – Foi a vez de Woody ficar surpreso. – Qual é o motivo, então?

           Ursula pareceu pensativa. Passou tanto tempo em silêncio que Woody se perguntou se ela teria esquecido que ele estava ali. Então sua avó disse:

           – Seu pai foi apaixonado por Olga Peshkov.

           – Jesus!

           – Não diga o nome do Senhor em vão.

           – Desculpe, vovó. É que a senhora me surpreendeu.

           – Eles foram noivos.

           – Noivos? – repetiu Woody, pasmo. Pensou por um minuto e depois disse: – Acho que devo ser a única pessoa de Buffalo que não sabia dessa história.

           Ela sorriu para o neto.

           – Existe uma mistura toda especial de sabedoria e inocência que só os adolescentes têm. Lembro-me perfeitamente disso no seu pai, e vejo a mesma coisa em você. Sim, todo mundo em Buffalo sabe, embora a sua geração sem dúvida considere essa uma história antiga e sem graça.

           – Bem, mas o que aconteceu? – indagou Woody. – Quer dizer, quem rompeu o noivado?

           – Ela, quando engravidou.

           A boca de Woody se escancarou.

           – Do papai?

           – Não, do motorista dela... Lev Peshkov.

           – Ele era motorista dela? – Era um choque atrás do outro. Woody ficou calado, tentando assimilar aquilo tudo. – Caramba, papai deve ter se sentido um idiota.

           – Seu pai nunca foi idiota – disse Ursula, incisiva. – A única coisa idiota que ele fez na vida foi pedir Olga em casamento.

           Woody se lembrou de sua missão.

           – Mesmo assim, vovó, tudo isso foi há muito tempo atrás.

           – Ou há ou atrás. Não precisa usar os dois. Mas seu argumento é melhor do que sua gramática. Já faz mesmo muito tempo.

           Isso lhe deu esperanças.

           – Então a senhora vai ajudar?

           – Como você acha que seu pai se sentiria?

           Woody pensou um pouco. Não podia tentar enrolar Ursula: ela iria desmascará-lo na mesma hora.

           – Se ele iria se importar? Imagino que talvez ficasse constrangido se Olga vivesse por perto, como um lembrete permanente de um episódio humilhante de sua juventude.

           – Exatamente.

           – Por outro lado, ele é muito apegado à ideia de se comportar de forma justa com as pessoas à sua volta. Detesta injustiça. Não iria querer punir Daisy por uma coisa que a mãe dela fez. E muito menos Charlie. Papai tem um grande coração.

           – Maior do que o meu, você quer dizer – disse Ursula.

           – Não foi isso que eu quis dizer, vovó. Mas aposto que, se a senhora perguntasse, ele não iria se opor à entrada de Olga na Sociedade.

           Ursula assentiu.

           – Concordo. Mas fico me perguntando se você já entendeu quem realmente está por trás desse pedido.

           Woody viu aonde ela estava tentando chegar.

           – Ah, a senhora quer dizer que foi Daisy quem convenceu Charlie a fazer isso? Não me espantaria. Faz alguma diferença para os prós e contras da situação?

           – Acho que não.

           – Então a senhora vai ajudar?

           – Fico satisfeita por ter um neto de bom coração... mesmo desconfiando que ele esteja sendo usado por uma garota esperta e ambiciosa.

           Woody sorriu.

           – Isso é um sim, vovó?

           – Você sabe que não posso garantir nada. Vou fazer a sugestão ao comitê.

           As sugestões de Ursula eram consideradas por todas as outras sócias ordens de uma rainha, mas Woody não disse isso.

           – Obrigado. A senhora é muito gentil.

           – Agora me dê um beijo e vá se trocar para ir à igreja.

           Woody saiu do quarto.

           Logo se esqueceu de Charlie e Daisy. Sentado na Catedral de São Paulo, na Shelton Square, ignorou o sermão – sobre Noé e o Dilúvio – e pensou em Joanne Rouzrokh. Os pais dela estavam na missa, mas ela não. Será que iria mesmo aparecer na passeata? Se aparecesse, ele iria convidá-la para sair. Mas será que ela aceitaria?

           Joanne era inteligente demais para se importar com a diferença de idade, pensou. Devia saber que tinha mais coisas em comum com Woody do que com rapazes estúpidos como Victor Dixon. E aquele beijo! Ele ainda estava todo arrepiado. Aquilo que ela fizera com a língua – será que as outras meninas faziam a mesma coisa? Ele queria experimentar outra vez assim que possível.

           Planejando o futuro, pensou: se ela aceitasse sair com ele, o que iria acontecer em setembro? Sabia que ela estava matriculada no Vassar College, na cidade de Poughkeepsie. Ele, por sua vez, voltaria para a escola e só tornaria a vê-la no Natal. Vassar era uma instituição só para mulheres, mas certamente haveria homens em Poughkeepsie. Será que ela iria sair com outros rapazes? Woody já estava com ciúmes.

           Em frente à igreja, disse aos pais que não almoçaria em casa, pois iria à passeata de protesto contra a metalúrgica.

           – Muito bem – comentou sua mãe. Quando jovem, ela havia sido editora do jornal radical Buffalo Anarchist. Virou-se para o marido: – Você também deveria ir, Gus.

           – O sindicato deu queixa na polícia – respondeu o pai de Woody. – Você sabe que não posso influenciar o resultado de um caso no tribunal.

           A mãe tornou a falar com Woody:

           – Tome cuidado com os capangas de Lev Peshkov.

           Woody pegou a câmera na mala do carro do pai. Era uma Leica III, tão pequena que ele podia carregá-la em uma correia em volta do pescoço, mas tinha velocidades de exposição de até 1/500 de segundo.

           Caminhou alguns quarteirões até a Niagara Square, ponto de partida da manifestação. Lev Peshkov tentara convencer a prefeitura a proibir passeatas sob o pretexto de que elas geravam violência, mas o sindicato insistira que a manifestação seria pacífica. Os sindicalistas pareciam ter ganhado a queda de braço, pois várias centenas de pessoas já estavam reunidas em volta da prefeitura. Muitas carregavam faixas cuidadosamente bordadas, bandeiras vermelhas e cartazes com os dizeres “Não aos capangas dos patrões”. Woody olhou em volta à procura de Joanne, mas não a viu.

           O tempo estava bom e o clima, alegre. Woody tirou algumas fotos: operários com suas roupas de domingo e chapéus; um carro enfeitado com faixas; um jovem policial roendo as unhas. Ainda não havia nem sinal de Joanne e ele começou a achar que ela não iria aparecer. Talvez estivesse com dor de cabeça, pensou.

           O início da passeata estava marcado para o meio-dia. Acabou começando alguns minutos depois da uma da tarde. A presença policial ao longo do trajeto era forte. Woody acabou indo parar no meio do cortejo.

           Quando estavam seguindo a Washington Street em direção ao sul, a caminho do coração industrial da cidade, ele viu Joanne se juntar ao grupo alguns metros à sua frente, e seu coração deu um pulo. Ela usava uma calça feita sob medida que realçava suas curvas. Woody se apressou para alcançá-la.

           – Boa tarde! – disse, todo feliz.

           – Puxa, como você está bem-disposto – comentou ela.

           Aquilo era um eufemismo. Ele estava delirando de felicidade.

           – E você, está de ressaca?

           – Ou isso, ou fui contaminada com a peste bubônica. O que você acha?

           – Se estiver com erupções na pele, é peste bubônica. Apareceu alguma pintinha vermelha no seu corpo? – Woody mal sabia o que estava falando. – Não sou médico, mas, se você quiser, seria um prazer examiná-la.

           – Pare de ter resposta para tudo. Sei que é charmoso, mas não estou com disposição para isso.

           Woody tentou se acalmar.

           – Sentimos sua falta na igreja – falou. – O sermão foi sobre Noé.

           Para sua consternação, ela soltou uma gargalhada.

           – Ai, Woody. Gosto muito quando você é engraçado, mas, por favor, não me faça rir hoje.

           Ele achou que o comentário fosse positivo, mas não teve certeza.

           Viu uma mercearia aberta em uma rua lateral.

           – Você precisa se hidratar – falou. – Já volto.

           Correu até a loja e comprou duas garrafas de Coca-Cola bem geladas. Pediu que o vendedor as abrisse e então voltou para a passeata. Quando entregou uma das garrafas a Joanne, ela disse:

           – Ah, você salvou a minha vida. – Levou a garrafa aos lábios e tomou um grande gole.

           Woody teve a sensação de que até o momento estava dominando a situação.

           Apesar do sinistro incidente contra o qual estavam protestando, os manifestantes se mostravam bem-humorados. Um grupo de homens mais velhos entoava hinos políticos e canções tradicionais. Havia até algumas famílias com crianças. E nenhuma nuvem no céu.

           – Você já leu Estudos sobre a histeria? – perguntou Woody enquanto caminhavam.

           – Nunca ouvi falar.

           – Ah! É de Sigmund Freud. Pensei que você fosse fã dele.

           – As ideias dele me interessam. Mas nunca li nenhum de seus livros.

           – Pois deveria ler. Estudos sobre a histeria é incrível.

           Ela o fitou, curiosa.

           – O que fez você ler um livro desses? Aposto que na sua escola cara e antiquada vocês não têm aula de psicologia.

           – Ah, sei lá. Acho que ouvi você falar sobre psicanálise e o assunto me pareceu extraordinário. E é, mesmo.

           – Como assim?

           Woody teve a sensação de que ela o estava testando, para ver se ele entendera mesmo o livro ou se estava apenas fingindo.

           – A ideia de que um ato de loucura, como por exemplo derramar tinta obsessivamente em cima de uma toalha de mesa, pode ter uma espécie de lógica oculta.

           Ela assentiu.

           – É – concordou. – É isso.

           Woody soube instintivamente que ela não sabia do que ele estava falando. Ele já havia superado o conhecimento dela sobre Freud, mas Joanne estava com vergonha de admitir isso.

           – O que você mais gosta de fazer? – perguntou a ela. – Ir ao teatro? Ouvir música clássica? Imagino que ir ao cinema não seja nada de mais para alguém cujo pai tem uma centena de salas.

           – Por que a pergunta?

           – Bem... – Ele decidiu ser sincero. – Quero chamar você para sair e gostaria de atraí-la com algo de que você goste muito. Pode escolher o que quer fazer.

           Ela sorriu para ele, mas não era o sorriso que ele esperava. Apesar de simpático, tinha um quê de piedade, e ele soube que estava prestes a receber uma notícia ruim.

           – Woody, eu bem que gostaria, mas você tem 15 anos.

           – Como você mesma disse ontem à noite, sou mais maduro do que Victor Dixon.

           – Eu também não aceitaria sair com ele.

           Woody sentiu a garganta se contrair e sua voz saiu rouca.

           – Você está me dispensando?

           – Estou, sim, com muita firmeza. Não quero sair com um garoto três anos mais novo que eu.

           – Posso convidar você de novo daqui a três anos? Aí vamos ter a mesma idade.

           Ela riu e falou:

           – Pare de ser espirituoso, está me dando dor de cabeça.

           Woody decidiu não esconder a dor que estava sentindo. O que tinha a perder? Muito angustiado, perguntou:

           – Então o que foi aquele beijo?

           – Não foi nada.

           Ele balançou a cabeça, arrasado.

           – Para mim, foi. Foi o melhor beijo que já experimentei.

           – Ai, meu Deus, eu sabia que tinha sido um erro. Olhe, foi só um pouco de diversão. Sim, eu gostei... pode se gabar, tem todo o direito. Woody, você é uma graça de menino, e muito inteligente, mas um beijo não é uma declaração de amor, por mais que tenha sido bom.

           Eles estavam quase na frente da multidão, e Woody viu mais adiante o destino final da passeata: os altos muros da Metalúrgica de Buffalo. O portão estava fechado e vigiado por uma dúzia ou mais de seguranças, homens de aspecto violento usando camisas azul-claras que imitavam uniformes da polícia.

           – Além do mais, eu estava bêbada – acrescentou Joanne.

           – É, eu também estava – disse Woody.

           Foi uma tentativa patética de salvar sua dignidade, mas Joanne teve a elegância de fingir acreditar.

           – Nesse caso, nós dois fizemos uma coisa meio boba e o melhor é esquecer e pronto – disse ela.

           – É – disse Woody, olhando para outro lado.

           Estavam agora em frente à fábrica. Os manifestantes na frente do cortejo pararam diante do portão e alguém começou a fazer um discurso com um megafone. Quando olhou mais de perto, Woody viu que o orador era um sindicalista de Buffalo chamado Brian Hall. Seu pai o conhecia e gostava dele. Em algum momento do passado os dois haviam trabalhado juntos para solucionar uma greve.

           As pessoas que estavam mais para trás do cortejo continuaram a avançar, e uma multidão compacta ocupou toda a largura da rua. Embora os portões estivessem fechados, os seguranças não deixavam as pessoas se aproximarem da entrada. Woody então viu que estavam armados com cassetetes semelhantes aos de policiais. Um deles gritava:

           – Fiquem longe do portão! Isto aqui é propriedade particular! – Woody ergueu a câmera e tirou uma foto.

           As pessoas da frente estavam sendo empurradas pelas de trás. Woody pegou Joanne pelo braço e tentou levá-la para longe do foco de tensão. Foi difícil, porém: todo mundo agora estava imprensado e ninguém queria abrir passagem. Contra a própria vontade, Woody se pegou chegando cada vez mais perto do portão da fábrica e dos seguranças com seus cassetetes.

           – Esta situação não está nada boa – falou para Joanne.

           Mas ela estava corada de animação.

           – Esses desgraçados não podem nos deter! – gritou.

           Um homem ao seu lado concordou, também aos gritos:

           – É isso aí! Você está certa!

           A multidão ainda estava a uns dez metros ou mais do portão, mas mesmo assim os seguranças começaram a empurrar desnecessariamente os manifestantes. Woody tirou outra foto.

           Brian Hall estivera gritando no megafone sobre capangas dos patrões e apontando um dedo acusador para os seguranças da fábrica. Mas então mudou de tom e começou a pedir calma:

           – Companheiros, por favor, afastem-se dos portões. Vamos recuar, sem violência.

           Woody viu uma mulher ser empurrada por um segurança com força suficiente para fazê-la cambalear. Ela não caiu, mas gritou, e o homem que estava com ela disse ao segurança:

           – Calma lá, amigo!

           – Por acaso está tentando arrumar confusão? – retrucou o segurança, desafiador.

           – Pare de empurrar! – berrou a mulher.

           – Para trás, para trás! – gritou o segurança. Ele ergueu o cassetete. A mulher gritou.

           O cassetete desceu e Woody tirou uma foto.

           – O filho da mãe bateu naquela mulher! – disse Joanne, dando um passo à frente.

           Mas a maior parte da multidão começou a se mover na direção oposta, para longe da fábrica. Quando as pessoas se viraram, os seguranças foram atrás, empurrando, chutando e golpeando com os cassetetes.

           – Não há necessidade de violência! – disse Brian Hall. – Seguranças, cheguem para trás! Não usem os cassetetes! – Então o megafone foi derrubado de sua mão por um dos guardas.

           Alguns dos homens mais jovens revidavam. Meia dúzia de policiais se misturou à multidão. Não fizeram nada para conter os seguranças da fábrica, mas começaram a prender qualquer manifestante que revidasse.

           O segurança que dera início à confusão caiu no chão e dois dos manifestantes começaram a chutá-lo.

           Woody tirou outra foto.

           Joanne gritava, enfurecida. Partiu para cima do segurança e arranhou seu rosto com as unhas. Ele ergueu uma das mãos para afastá-la. Por acidente ou não, a base de sua mão acertou em cheio o nariz dela. Joanne cambaleou para trás, com sangue escorrendo das narinas. O segurança ergueu o cassetete. Woody a agarrou pela cintura e a puxou para trás. O cassetete errou o alvo.

           – Vamos! – gritou Woody para ela. – Temos que sair daqui!

           A pancada no rosto havia refreado a fúria de Joanne, que não resistiu quando ele meio que a puxou, meio que a carregou para longe dos portões o mais depressa que pôde, com a câmera fotográfica balançando na correia em volta de seu pescoço. A multidão agora estava em pânico: na ânsia de fugir, pessoas caíam e eram pisoteadas.

           Woody era mais alto do que a maioria e conseguiu se manter em pé e ainda sustentar Joanne. Eles foram abrindo caminho pelo mar de gente, mantendo-se um pouco à frente dos cassetetes. Por fim, a multidão ficou mais espaçada. Joanne se afastou do abraço de Woody e os dois começaram a correr.

           O barulho da confusão foi sumindo atrás deles. Depois de dobrar uma ou duas esquinas, viram que haviam chegado a uma rua deserta de fábricas e armazéns, todos fechados porque era domingo. Pararam de correr e começaram a andar, recuperando o fôlego. Joanne desatou a rir.

           – Foi tão emocionante! – exclamou.

           Mas Woody não conseguiu compartilhar seu entusiasmo.

           – Foi horrível, isso sim – disse ele. – E poderia ter sido pior. – Ele a havia resgatado e de certa forma torcia para que isso a fizesse mudar de ideia com relação a seu convite para saírem juntos.

           Mas Joanne não achava que lhe devesse nada.

           – Ah, por favor – disse ela, em tom de desdém. – Ninguém morreu.

           – Aqueles seguranças provocaram uma briga de propósito!

           – É claro que provocaram! Peshkov quer prejudicar a reputação dos sindicalistas.

           – Bem, nós sabemos a verdade. – Woody bateu de leve na câmera. – E posso provar.

           Caminharam quase um quilômentro, então Woody viu um táxi e fez sinal. Deu ao motorista o endereço da casa dos Rouzrokh.

           Sentado no banco de trás do táxi, puxou um lenço do bolso.

           – Não quero levar você para a casa do seu pai desse jeito – falou. Desdobrou o quadradinho de algodão branco e o encostou delicadamente no lábio superior de Joanne, sujo de sangue.

           Era um gesto íntimo e ele achou aquilo sexy, mas ela não o deixou aproveitar muito. No instante seguinte, falou:

           – Pode deixar. – Pegou o lenço da mão dele e limpou a própria boca. – Que tal?

           – Faltou um pedacinho – mentiu ele. Tornou a pegar o lenço. Joanne tinha a boca larga, dentes brancos perfeitos e sedutores lábios carnudos. Ele fingiu que havia alguma sujeira sob seu lábio inferior. Limpou o local com cuidado e então disse: – Pronto, assim está melhor.

           – Obrigada. – Ela o encarou com uma expressão estranha, meio afetuosa, meio irritada.

           Woody achou que ela percebera que ele havia mentido em relação ao sangue em seu queixo e que não sabia muito bem se deveria ficar zangada ou não.

           O táxi parou em frente à casa dos Rouzrokh.

           – Não entre – disse ela. – Vou mentir para meus pais sobre onde estive e não quero que você dê nenhum furo.

           Woody pensou que ele provavelmente era o mais discreto dos dois, mas disse apenas:

           – Ligo para você mais tarde.

           – Está bem. – Ela desceu do táxi, deu um aceno casual para ele e subiu o acesso até a casa.

           – Que bonequinha – comentou o taxista. – Mas ela é meio velha para você, não é?

           – Leve-me para a Delaware Avenue – disse Woody, sem responder. Deu ao motorista o número e a altura da rua. Não ia conversar sobre Joanne com um maldito taxista.

           Ficou pensando no fora que havia levado. Não deveria ter se surpreendido: todo mundo, de seu irmão ao motorista do táxi, dizia que ele era jovem demais para Joanne. Mesmo assim estava magoado. Tinha a sensação de que não sabia mais o que fazer de sua vida. Como conseguiria chegar ao final do dia?

           Em casa, os pais estavam tirando seu cochilo habitual de domingo à tarde. Chuck achava que era nessa hora que eles faziam sexo. Segundo Betty, Chuck saíra para nadar com um grupo de amigos.

           Woody entrou no laboratório para revelar o filme de sua câmera. Pôs água morna dentro da bandeja para deixar os produtos químicos na temperatura ideal, depois colocou o negativo dentro de um saco preto de modo a transferi-lo para o tanque de revelação.

           A revelação era um processo demorado, que exigia paciência, mas Woody ficou contente em sentar no escuro e pensar em Joanne. O fato de estarem juntos durante uma manifestação não a fizera se apaixonar por ele, mas com certeza os deixara mais próximos. Tinha certeza de que ela estava começando a gostar mais dele. Talvez a rejeição não fosse definitiva. Talvez ele devesse continuar tentando. Certamente não tinha interesse em qualquer outra moça.

           Quando o timer soou, ele transferiu o filme para um banho destinado a interromper a reação química, em seguida para um banho de fixador cuja finalidade era estabilizar as imagens impressas no negativo. Por fim, lavou o negativo com água, secou-o e examinou as fotografias em preto e branco sobre a mesa de luz.

           Achou que estavam muito boas.

           Cortou o negativo em quadros, em seguida posicionou o primeiro deles no ampliador. Pôs uma folha de papel fotográfico de 25x20cm sobre a bandeja, acendeu a luz e expôs o papel ao negativo enquanto ia contando os segundos. Depois colocou o papel dentro de uma bandeja destampada cheia de revelador.

           Aquela era a melhor parte do processo. Aos poucos, o papel começava a exibir manchas acinzentadas e a imagem ia surgindo. Aquele processo sempre lhe parecia um milagre. A primeira foto mostrava dois homens, um negro e um branco, ambos de roupa de domingo e chapéu, segurando uma faixa na qual se lia “Irmandade” em letras grandes. Quando a imagem ficou nítida, ele passou o papel para um banho de fixador, em seguida lavou-o com água e o secou.

           Ampliou todas as fotos que havia tirado, levou-as para um lugar iluminado e as dispôs sobre a mesa da sala de jantar. Ficou satisfeito: eram imagens vívidas, cheias de ação, que mostravam claramente uma sequência de acontecimentos. Quando ouviu passos dos pais no andar de cima, chamou a mãe. Rosa tinha sido jornalista antes de se casar e ainda escrevia livros e artigos para revistas.

           – O que acha? – perguntou a ela.

           Sua mãe estudou as fotografias cuidadosamente com seu único olho. Depois de algum tempo, falou:

           – Acho que estão boas. Você deveria oferecê-las a um jornal.

           – Sério? – espantou-se ele. Começou a ficar animado. – Que jornal?

           – Infelizmente, esta cidade só tem jornais conservadores. Quem sabe o Buffalo Sentinel? O editor de lá se chama Peter Hoyle... ele trabalha no jornal desde o início dos tempos. Como conhece bem o seu pai, provavelmente vai recebê-lo.

           – Quando eu devo levar as fotos?

           – Agora. A passeata é uma notícia fresca. Vai sair em todos os jornais de amanhã. Eles precisam das fotos hoje à noite.

           Woody sentiu-se cheio de energia.

           – Está bem – falou. Recolheu as folhas de papel brilhante e formou com elas uma pilha bem certinha. Sua mãe foi pegar uma pasta de papelão no escritório do pai. Woody lhe deu um beijo e saiu.

           Pegou um ônibus até o centro da cidade.

           A entrada principal da redação do Sentinel estava fechada, e ele se sentiu momentaneamente desanimado, mas concluiu que os repórteres deviam ter um jeito de entrar e sair do jornal no domingo se quisessem publicar uma matéria na segunda de manhã e encontrou uma entrada lateral.

           – Trouxe umas fotos para o Sr. Hoyle – disse ele a um homem sentado lá dentro junto à porta, que o instruiu a subir até o primeiro andar.

           Woody achou a sala do editor, uma secretária anotou seu nome e, no minuto seguinte, ele já estava apertando a mão de Peter Hoyle. Era um homem alto, imponente, com cabelos brancos e um bigode preto. Parecia estar terminando uma reunião com um colega mais jovem. Falava muito alto, como se quisesse se fazer ouvir acima do barulho de uma rotativa.

           – A matéria sobre os atropeladores que fugiram está boa, Jack, mas o lide está péssimo – disse ele, pousando uma das mãos no ombro do rapaz para dispensá-lo e o guiando em direção à porta. – Escreva uma abertura nova. Transfira a fala do prefeito para depois e comece com as crianças aleijadas. – Jack saiu da sala e Hoyle virou-se para Woody: – O que tem aí, rapaz? – perguntou ele, sem rodeios.

           – Eu fui à passeata hoje.

           – À confusão, você quer dizer.

           – Só virou uma confusão porque os seguranças da fábrica começaram a bater em mulheres com os cassetetes.

           – Ouvi dizer que os manifestantes tentaram invadir a fábrica e os seguranças impediram.

           – Não é verdade, senhor, e minhas fotos provam isso.

           – Deixe-me ver.

           Woody havia ordenado as imagens durante o trajeto de ônibus. Pôs a primeira delas sobre a mesa do editor.

           – Tudo começou de forma pacífica.

           Hoyle empurrou a foto para o lado e disse:

           – Isso não vale nada.

           Woody sacou uma fotografia tirada na fábrica.

           – Os seguranças estavam esperando no portão. Dá para ver os cassetetes. – A foto seguinte fora tirada no início do empurra-empurra. – Os manifestantes estavam a pelo menos dez metros do portão. Não havia por que os seguranças tentarem afastá-los. Foi uma provocação deliberada.

           – Certo – disse Hoyle, e dessa vez não empurrou as imagens para o lado.

           Woody tirou da pasta sua melhor imagem: um segurança usando um cassetete para bater numa mulher.

           – Eu vi esse incidente todo – falou. – Tudo o que a mulher fez foi pedir que ele parasse de empurrá-la, e ele bateu nela mesmo assim.

           – Boa foto – comentou Hoyle. – Tem mais alguma?

           – Só mais uma – respondeu Woody. – A maioria dos manifestantes saiu correndo assim que a briga começou, mas alguns revidaram. – Ele mostrou a Hoyle a foto de dois manifestantes chutando um segurança caído no chão. – Esses homens reagiram ao segurança que bateu na mulher.

           – Você fez um bom trabalho, meu jovem Dewar – disse Hoyle. Sentou-se à mesa e pegou um formulário dentro de uma bandeja. – Vinte pratas está bom?

           – Quer dizer que o senhor vai publicar minhas fotos?

           – Imagino que tenha sido para isso que você as trouxe aqui.

           – Foi sim, senhor, obrigado. Vinte dólares está bom, quer dizer, está ótimo. É mais do que suficiente.

           Hoyle anotou alguma coisa no formulário e assinou.

           – Leve isto aqui até o caixa. Minha secretária vai lhe dizer onde é.

           O telefone sobre a mesa tocou. O editor atendeu e bradou:

           – Hoyle. – Woody concluiu que estava dispensado e se retirou.

           Estava nas nuvens. Ter recebido dinheiro era incrível, mas o que o deixava mais empolgado era que o jornal iria usar suas fotos. Seguiu as indicações da secretária para chegar a uma salinha onde havia um balcão e um guichê. Lá recebeu seus 20 dólares. Depois pegou um táxi para casa.

           Os pais ficaram encantados com seu sucesso, e até mesmo Chuck pareceu satisfeito. Durante o jantar, sua avó disse:

           – Contanto que você não considere o jornalismo uma carreira... Não seria condizente com a sua condição.

           Na verdade, Woody vinha pensando que talvez pudesse abraçar o fotojornalismo em vez da política e ficou surpreso ao descobrir que a avó não aprovava.

           Sua mãe sorriu e disse:

           – Mas, Ursula, querida, eu já fui jornalista.

           – É diferente. Você é mulher – retrucou a sogra. – Woodrow precisa se tornar um homem distinto, como o pai e o avô.

           Sua mãe não pareceu se ofender com o comentário. Ela gostava da sogra e escutava com uma tolerância bem-humorada aqueles pronunciamentos ortodoxos.

           Mas Chuck se ressentiu daquela primazia tradicional dada ao filho mais velho.

           – E eu, devo virar o quê? – perguntou ele. – O cocô do cavalo do bandido?

           – Não seja vulgar, Charles – disse Ursula, dando a última palavra, como sempre.

           Nessa noite, Woody passou um tempão acordado. Mal podia esperar para ver suas fotos no jornal. Parecia que era véspera de Natal e ele tinha voltado a ser criança: de tanto ansiar pela manhã, não conseguia pregar o olho.

           Ficou pensando em Joanne. Ela estava errada por considerá-lo jovem demais. Ele era o homem certo para ela. Joanne gostava dele, os dois tinham muito em comum e o seu beijo a havia agradado. Woody ainda achava que conseguiria conquistá-la.

           Finalmente conseguiu pegar no sono e, quando acordou, já era dia. Pôs um roupão por cima do pijama e desceu a escada correndo. Joe, o mordomo, sempre saía cedo para comprar os jornais, que já estavam arrumados sobre a mesinha lateral da sala onde a família tomava café da manhã. Os pais de Woody estavam lá: seu pai comia ovos mexidos, sua mãe bebericava um café.

           Woody pegou o Sentinel. Seu trabalho estava na primeira página.

           Mas não era o que ele esperava.

           O jornal só havia usado uma de suas imagens – a última. Nela, um dos seguranças da fábrica estava caído no chão e dois operários o chutavam. A manchete dizia: “Rebelião de metalúrgicos em greve”.

           – Ah, não! – exclamou ele.

           Leu a matéria sem conseguir acreditar. Dizia que os manifestantes haviam tentado invadir a fábrica e tinham sido corajosamente repelidos pelos seguranças, vários dos quais tinham sofrido ferimentos leves. Declarações do prefeito, do chefe de polícia e de Lev Peshkov condenavam o comportamento dos operários. No fim da matéria, como se não tivesse a menor importância, o líder sindicalista Brian Hall era citado, negando a história e culpando os seguranças pela violência.

           Woody pôs o jornal na frente da mãe.

           – Eu disse a Hoyle que foram os seguranças que começaram a confusão... e dei a ele as fotos que provavam isso! – falou, zangado. – Por que ele publicou no jornal o contrário da verdade?

           – Porque ele é um conservador – respondeu ela.

           – Mas os jornais deveriam dizer a verdade! – protestou Woody, erguendo a voz com uma indignação furiosa. – Não podem simplesmente inventar mentiras!

           – Podem, sim – disse a mãe.

           – Mas não é justo!

           – Bem-vindo ao mundo real.

 

           Greg Peshkov e o pai estavam no lobby do Hotel Ritz-Carlton, em Washington, D.C., quando esbarraram com Dave Rouzrokh.

           Dave usava terno branco e chapéu de palha. Olhou para eles com ódio. Lev o cumprimentou, mas ele virou as costas com desprezo e não respondeu.

           Greg sabia por quê. Dave vinha perdendo dinheiro o verão todo porque a Roseroque Cinemas não estava recebendo os lançamentos de sucesso. E Dave devia ter adivinhado que Lev de alguma forma era o responsável por isso.

           Na semana anterior, Lev tinha oferecido a Dave quatro milhões de dólares pela cadeia – metade da oferta original –, mas ele tornara a recusar.

           – O preço está caindo, Dave – alertara Lev.

           Ali no hotel, Greg perguntou:

           – O que será que ele está fazendo aqui?

           – Veio se encontrar com Sol Starr. Vai perguntar por que Sol não está lhe passando os filmes bons. – Estava claro que Lev sabia tudo a respeito.

           – E o que o Sr. Starr vai fazer?

           – Enrolar Dave.

           Greg ficou maravilhado com a capacidade do pai de saber tudo e ser sempre capaz de se antecipar a uma situação instável. Lev estava sempre à frente de todo mundo.

           Os dois subiram no elevador. Era a primeira vez que Greg visitava os aposentos permanentes do pai no hotel. Sua mãe, Marga, nunca estivera ali.

           Como o governo vivia tentando interferir no mercado cinematográfico, Lev passava muito tempo em Washington. Homens que se consideravam bastiões da moralidade ficavam muito agitados com o que era mostrado na tela e pressionavam o governo para censurar alguns filmes. Lev considerava aquilo uma negociação – para ele, a vida era uma negociação –, e seu objetivo constante era evitar a censura formal aderindo a um código voluntário, estratégia apoiada por Sol Starr e pela maioria dos figurões de Hollywood.

           Os dois entraram numa sala de estar extremamente elegante, muito mais que o espaçoso apartamento de Buffalo onde Greg e a mãe moravam e que o rapaz sempre considerara luxuoso. Aquele cômodo tinha móveis de pés finos que Greg supôs serem franceses, refinadas cortinas de veludo marrom nas janelas e um fonógrafo grande.

           Ficou espantado ao ver a estrela de cinema Gladys Angelus sentada em um sofá de seda amarelo no meio da sala.

           As pessoas diziam que ela era a mulher mais linda do mundo.

           Greg logo viu por quê. Gladys irradiava sensualidade, dos convidativos olhos azul-escuros às longas pernas cruzadas sob a saia fina. Quando ela estendeu a mão para cumprimentá-lo, seus lábios vermelhos sorriram e seus seios redondos se balançaram sedutoramente dentro do suéter fino.

           Ele hesitou uma fração de segundo antes de apertar sua mão. Sentiu-se desleal com a mãe. Marga nunca havia pronunciado o nome de Gladys Angelus, sinal de que sabia o que as pessoas comentavam em relação à atriz e Lev. Greg teve a sensação de estar compactuando com a inimiga da mãe. Se Marga ficasse sabendo, iria chorar, pensou.

           Mas ele fora pego de surpresa. Se tivesse sido avisado, se houvesse tido tempo de refletir sobre a própria reação, talvez pudesse ter preparado e ensaiado uma recusa educada. Mas assim, de improviso, não conseguiu se forçar a ser grosseiro com aquela mulher tão formosa.

           Por isso, aceitou a mão que ela lhe oferecia, encarou aqueles olhos incríveis e abriu um sorriso sem graça.

           Gladys continuou a segurar sua mão enquanto dizia:

           – Estou tão feliz por finalmente conhecer você. Seu pai me falou tanto a seu respeito... só não disse como você era bonito!

           Havia nesse comentário algo desagradavelmente possessivo, como se ela fosse um membro da família, e não uma puta que havia usurpado sua mãe. Mesmo assim, ele se pegou caindo no seu feitiço.

           – Adoro seus filmes – falou, atrapalhado.

           – Ah, deixe disso, não precisa falar assim – disse a mulher, mas Greg pôde ver que ela havia gostado do elogio. – Venha se sentar aqui comigo – prosseguiu ela. – Quero conhecer você melhor.

           Ele fez o que ela mandava. Não conseguiu resistir. Gladys lhe perguntou em que escola ele estudava e, enquanto ele respondia, o telefone tocou. Escutou vagamente o pai dizer:

           – Era para ser amanhã... tudo bem, se for preciso podemos apressar as coisas... pode deixar, eu cuidarei disso.

           Lev desligou e interrompeu Gladys.

           – Greg, seu quarto fica mais adiante neste mesmo corredor – disse ele, entregando-lhe a chave. – E vai encontrar um presente meu lá. Acomode-se e aproveite. Nos vemos às sete para jantar.

           A dispensa foi bem abrupta e Gladys pareceu desapontada, mas Lev às vezes podia ser peremptório, e o melhor a fazer era simplesmente obedecer. Greg pegou a chave e saiu.

           No corredor havia um homem de ombros largos usando um terno barato. Fez Greg pensar em Joe Brekhunov, chefe dos seguranças da Metalúrgica de Buffalo. Greg meneou a cabeça, e o homem disse:

           – Boa tarde, senhor. – Com certeza devia ser um funcionário do hotel.

           Greg entrou no quarto. Era uma suíte bastante agradável, embora não tão luxuosa quanto a do pai. Não viu o presente que o pai havia mencionado, mas sua mala estava ali, e ele começou a desfazê-la enquanto pensava em Gladys. Teria sido desleal com a mãe por apertar a mão da amante do pai? Gladys, é claro, só estava fazendo o mesmo que a própria Marga havia feito: dormindo com um homem casado. Ainda assim, ele estava se sentindo muito desconfortável. Será que deveria contar à mãe que havia conhecido Gladys? Caramba, é claro que não.

           Quando estava pendurando as camisas no armário, ouviu uma batida. Vinha de uma porta que parecia conduzir ao quarto contíguo. No instante seguinte, a porta se abriu e uma garota entrou.

           Era mais velha que Greg, mas não muito. Tinha a pele cor de chocolate escuro, estava usando um vestido de bolinhas e segurava uma bolsa tipo carteira. Abriu um sorriso largo, exibindo dentes muito brancos, e disse:

           – Olá. Estou no quarto ao lado.

           – Isso eu já entendi – disse ele. – Quem é você?

           – Jacky Jakes. – Ela estendeu a mão. – Sou atriz.

           Greg apertou a mão da segunda linda atriz que conhecia em menos de uma hora. Jacky tinha um ar brincalhão que Greg achou mais atraente do que o magnetismo intenso de Gladys. Sua boca tinha o formato de um arco de Cupido rosa-escuro.

           – Meu pai me disse que iria me dar um presente... É você?

           Ela deu uma risadinha.

           – Acho que sou eu. Ele disse que eu iria gostar de você. Seu pai vai me fazer trabalhar no cinema.

           Greg entendeu tudo. O pai previra que ele talvez se sentisse mal por ter sido simpático com Gladys. Jacky era a sua recompensa por não ter feito uma cena. Pensou que provavelmente deveria rejeitar um suborno daqueles, mas não pôde resistir.

           – Você é um lindo presente – falou.

           – Seu pai é muito bom com você.

           – Ele é maravilhoso – respondeu Greg. – E você também.

           – Ah, que gracinha! – Ela pousou a bolsa em cima da cômoda, chegou mais perto de Greg, ficou na ponta dos pés e lhe deu um beijo na boca. Tinha lábios quentes e macios. – Gostei de você – falou. Então acariciou seus ombros. – Você é forte.

           – Eu jogo hóquei no gelo.

           – Isso faz uma garota se sentir segura. – Ela segurou seu rosto com as mãos e tornou a beijá-lo, dessa vez por mais tempo. Então deu um suspiro. – Ah, rapaz, eu acho que nós vamos nos divertir.

           – Vamos, é? – Washington era uma cidade do Sul, em grande parte ainda segregada. Em Buffalo, brancos e negros quase sempre podiam comer nos mesmos restaurantes e beber nos mesmos bares, mas ali era diferente. Greg não sabia ao certo quais eram as regras na cidade, mas teve certeza de que, na prática, um homem branco e uma mulher negra juntos iriam causar problemas. Era surpreendente que Jacky estivesse hospedada em um quarto daquele hotel. Aquilo devia ser coisa de Lev. Mas com certeza estava fora de cogitação que Greg e Jacky desfilassem pela cidade com Lev e Gladys. Nesse caso, como Jacky achava que eles fossem se divertir? A ideia improvável de que ela talvez estivesse disposta a ir para a cama com ele lhe passou pela cabeça.

           Ele levou as mãos à sua cintura de modo a puxá-la para mais um beijo, mas ela recuou.

           – Preciso tomar uma ducha – falou. – Me dê só alguns minutos. – Então se virou e desapareceu pela porta que ligava os dois quartos, que se fechou atrás dela.

           Greg se sentou na cama, tentando assimilar tudo aquilo. Jacky queria ser atriz de cinema e parecia disposta a usar o sexo para progredir na carreira. Com certeza não era a primeira atriz, branca ou negra, a usar essa estratégia. Gladys estava fazendo a mesma coisa ao dormir com Lev. Greg e seu pai eram apenas os sortudos beneficiários.

           Viu que ela havia deixado sua bolsa para trás. Pegou-a e tentou abrir a porta. Não estava trancada. Entrou no quarto.

           Ela estava ao telefone, vestida com um roupão de banho cor-de-rosa.

           – Sim, perfeito, sem problemas. – Sua voz soava diferente, mais madura. Greg entendeu que, com ele, Jacky havia usado um tom de menininha sexy que não era natural. Então ela o viu, deu um sorriso e tornou a falar ao telefone, agora com a voz mais infantil: – Por favor, não passe nenhuma ligação. Não quero ser incomodada. Obrigada. Tchau.

           – Você esqueceu isto – disse Greg, entregando-lhe a bolsa.

           – Ah, você só queria me ver de roupão – disse ela, coquete. A frente do roupão não tapava completamente seus seios e ele pôde ver uma sedutora curva de pele morena lisinha.

           – Não, mas estou contente por ter visto.

           – Volte para o seu quarto. Tenho que tomar uma ducha. Talvez depois eu deixe você ver mais.

           – Ai, meu Deus – disse ele.

           Voltou para o seu quarto. Aquilo era espantoso.

           – Talvez depois eu deixe você ver mais – repetiu para si mesmo, em voz alta. Que coisa para uma garota dizer!

           Sentiu que estava com uma ereção, mas não queria se masturbar quando o ato em si parecia tão próximo. Para se distrair, continuou a desfazer a mala. Tinha um kit de barbear bem caro, composto por navalha e pincel de cabo de madrepérola, que ganhara de presente da mãe. Arrumou os objetos no banheiro, se perguntando se iriam impressionar Jacky caso ela os visse.

           As paredes do hotel eram finas, e ele ouviu o som de água correndo no quarto ao lado. A imagem do corpo dela, nu e molhado, o dominou por completo. Ele tentou se concentrar em arrumar a roupa de baixo e as meias numa gaveta.

           Então a ouviu gritar.

           Congelou onde estava. Durante alguns segundos, ficou surpreso demais para se mexer. O que significava aquilo? Por que ela iria gritar daquele jeito? Um segundo grito funcionou como um choque, obrigando-o a agir. Com um safanão, abriu a porta que separava os dois quartos e entrou no dela.

           Jacky estava nua. Ele nunca tinha visto uma mulher nua ao vivo. Seus seios eram pontudos, com mamilos marrom-escuros. Entre as pernas erguia-se um emaranhado de pelos pretos e crespos. Ela estava encolhida contra a parede, tentando sem sucesso usar as mãos para ocultar a própria nudez.

           Em pé na sua frente estava Dave Rouzrokh, com dois arranhões paralelos em sua bochecha aristocrática, sem dúvida provocados pelas unhas cor-de-rosa de Jacky. A larga lapela de seu paletó branco de abotoamento duplo estava suja de sangue.

           – Tire ele de cima de mim! – gritou Jacky.

           Greg desferiu um soco. Dave era três centímetros mais alto que ele, mas era um velho e Greg, um adolescente atlético. Mais por sorte do que por cálculo, o soco acertou o queixo de Dave, que cambaleou para trás antes de cair no chão.

           A porta do quarto se abriu.

           O funcionário de ombros largos do hotel que Greg tinha visto antes entrou. Ele devia ter uma chave mestra, pensou Greg.

           – Meu nome é Tom Cranmer, sou detetive do hotel – disse o homem. – O que está acontecendo aqui?

           – Eu a ouvi gritar e, quando entrei, encontrei este senhor aqui – disse Greg.

           – Ele tentou me estuprar! – acusou Jacky.

           Dave se levantou com esforço.

           – Não é verdade – disse ele. – Fui chamado a este quarto para uma reunião com Sol Starr.

           Jacky começou a soluçar.

           – Ah, sim, agora ele vai negar tudo!

           – Senhorita, por favor, vá se vestir – pediu Cranmer.

           Jacky vestiu o roupão cor-de-rosa.

           O detetive pegou o telefone do quarto, discou um número e disse:

           – Na esquina do hotel costuma haver um policial. Peça que ele venha ao lobby, imediatamente.

           Dave encarava Greg.

           – Você é o filho bastardo de Peshkov, não é?

           Greg quase lhe deu outro soco.

           – Ah, meu Deus, isto aqui é uma armadilha – disse Dave.

           Greg ficou espantado com aquela acusação. Intuitivamente, sentiu que era verdade. Baixou o punho. Percebeu que a cena toda devia ter sido planejada por Lev. Dave Rouzrokh não era nenhum estuprador. Jacky estava fingindo. E o próprio Greg não passava de um ator naquele filme. Chegou a ficar tonto.

           – Por favor, senhor, venha comigo – pediu Cranmer, segurando Dave com firmeza pelo braço. – Vocês dois também.

           – O senhor não pode me prender – disse Dave.

           – Sim, senhor, eu posso – rebateu Cranmer. – E vou entregá-lo a um policial.

           – Você quer se vestir? – perguntou Greg a Jacky.

           Ela fez que não com a cabeça, um movimento rápido e decidido. Greg entendeu que fazia parte do plano ela aparecer de roupão.

           Segurou Jacky pelo braço e os dois seguiram Cranmer e Dave pelo corredor e entraram no elevador. Um policial aguardava no lobby. Ele e o detetive do hotel também deviam fazer parte da farsa, supôs Greg.

           – Ouvi um grito vindo do quarto dela e encontrei este senhor lá em cima – disse Cranmer. – Ela está dizendo que ele tentou estuprá-la. O rapaz é testemunha.

           Dave tinha um ar atônito, como se achasse que aquilo talvez fosse um pesadelo. Para sua própria surpresa, Greg sentiu pena de Dave. O homem fora cruelmente encurralado. Por um lado, admirava o pai; por outro, se perguntava se aquela crueldade era mesmo necessária.

           O policial algemou Dave e disse:

           – Muito bem, vamos indo.

           – Para onde? – indagou Dave.

           – Para o centro da cidade – respondeu o policial.

           – Todos temos que ir? – perguntou Greg.

           – Sim.

           Cranmer se dirigiu a Greg em voz baixa:

           – Não se preocupe, filho. Você fez um ótimo trabalho. Vamos até a delegacia prestar nossos depoimentos, e depois você vai poder foder com ela de hoje até o Natal.

           O policial conduziu Dave até a porta, e os outros foram atrás.

           Quando saíram à rua, um fotógrafo disparou um flash.

 

           Woody Dewar conseguiu que um livreiro de Nova York lhe mandasse um exemplar de Estudos sobre a histeria, de Freud. Na noite do baile do Iate Clube – o mais importante evento social da temporada de verão em Buffalo –, embrulhou-o cuidadosamente em papel pardo e amarrou com uma fita vermelha.

           – Chocolates para uma garota de sorte? – perguntou a mãe ao passar por ele no corredor. Apesar de ter um olho só, Rosa via tudo.

           – É um livro – respondeu ele. – Para Joanne Rouzrokh.

           – Ela não irá ao baile.

           – Eu sei.

           A mãe parou e lançou ao filho um olhar inquisitivo. Após alguns instantes, falou:

           – Você está levando isso a sério mesmo.

           – Acho que sim. Mas ela me acha muito novo.

           – Deve ser por orgulho. As amigas perguntariam por que ela não arruma um rapaz da sua idade para sair. Garotas podem ser cruéis.

           – Pretendo insistir até ela amadurecer mais um pouco.

           Sua mãe sorriu.

           – Aposto que você a faz rir.

           – Faço, sim. É o meu maior trunfo.

           – Bem, eu esperei tempo suficiente pelo seu pai.

           – Esperou mesmo?

           – Apaixonei-me por ele à primeira vista. Passei anos nutrindo esse amor platônico. Tive que vê-lo se apaixonar por aquela vaca fútil da Olga Vyalov, que não o merecia, mas tinha os dois olhos. Graças a Deus ela embuchou do motorista. – O linguajar de sua mãe podia ser um tanto cru, sobretudo quando sua avó não estava por perto. Ela havia adquirido maus hábitos durante os anos em que trabalhara em jornais. – Aí ele foi para a guerra. Tive que segui-lo até a França antes de conseguir fazê-lo se comprometer comigo.

           Woody percebeu que as lembranças dela mesclavam nostalgia e sofrimento.

           – Mas ele percebeu que você era a moça certa para ele.

           – No final, sim.

           – Talvez isso aconteça comigo.

           Sua mãe o beijou.

           – Boa sorte, filho.

           A casa dos Rouzrokh ficava a cerca de um quilômetro da sua, e Woody foi a pé. Nenhum membro da família estaria no Iate Clube nessa noite. Depois de um misterioso incidente no hotel Ritz-Carlton de Washington, Dave aparecera em todos os jornais. Uma das manchetes fora “Magnata do cinema acusado por atriz”. Woody havia aprendido recentemente a desconfiar dos jornais. As pessoas mais influenciáveis, porém, diziam que aquilo devia ter um fundo de verdade, do contrário por que a polícia teria prendido Dave?

           Desde então, nenhum membro da família fora visto em eventos sociais.

           Em frente à casa, um segurança armado deteve Woody.

           – A família não está recebendo visitas – falou com rispidez.

           Woody supôs que o homem tivesse passado muito tempo repelindo jornalistas e perdoou seu tom descortês. Lembrou-se do nome da criada dos Rouzrokh.

           – Por favor, peça à Srta. Estella que avise a Joanne que Woody Dewar trouxe um livro para ela.

           – Pode deixar comigo – disse o segurança, estendendo a mão.

           Woody segurou o livro com firmeza.

           – Não, obrigado.

           O segurança pareceu irritado, mas acompanhou Woody pelo acesso que conduzia à casa e tocou a campainha. Estella veio abrir, e disse na mesma hora:

           – Olá, Sr. Woody, pode entrar... Joanne vai ficar feliz em vê-lo! – Enquanto cruzava o portal, Woody se permitiu lançar um olhar de triunfo para o segurança.

           Estella o conduziu até uma sala de visitas vazia. Ofereceu-lhe leite com biscoitos como se ele ainda fosse criança, mas Woody recusou com educação. Um minuto depois, Joanne chegou. Estava abatida e sua pele morena parecia mais pálida, mas ela lhe abriu um sorriso simpático e sentou-se para conversar.

           Ficou satisfeita com o livro.

           – Agora vou ter que ler o Dr. Freud, em vez de ficar só falando nele – foi seu comentário. – Você é uma boa influência para mim, Woody.

           – Queria ser uma má influência.

           Ela não disse nada sobre o comentário dele.

           – Você não vai ao baile?

           – Tenho ingresso, mas sem você aquilo lá não me interessa. Quer ir ao cinema em vez disso?

           – Não, mas obrigada. De verdade.

           – Ou poderíamos apenas jantar. Em algum lugar bem discreto. Se você não se importar em ir de ônibus.

           – Ah, Woody, é claro que não me importo em ir de ônibus, mas você é jovem demais para mim. De toda forma, o verão está quase no fim. Você logo vai voltar para a escola, e eu vou estudar no Vassar.

           – Onde vai ter encontros, imagino.

           – Assim espero!

           Woody se levantou.

           – Muito bem, então vou fazer voto de castidade e entrar para um mosteiro. Por favor, não vá me visitar, você poderia perturbar os outros irmãos.

           Ela riu.

           – Obrigada por me distrair dos problemas da minha família.

           Era a primeira vez que ela mencionava o que havia acontecido com seu pai. Woody não planejava abordar o assunto, mas, agora que ela dera a deixa, falou:

           – Você sabe que estamos todos do seu lado. Ninguém acredita na história daquela atriz. Todos na cidade sabem que foi um golpe de Lev Peshkov, aquele safado, e estamos furiosos.

           – Eu sei – disse ela. – Mas a simples acusação já é vergonhosa demais para meu pai suportar. Acho que meus pais vão se mudar para a Flórida.

           – Eu sinto muito.

           – Obrigada. Agora vá para o baile.

           – Talvez eu vá.

           Ela o acompanhou até a porta.

           – Posso lhe dar um beijo de despedida? – pediu ele.

           Ela se inclinou para a frente e o beijou rapidamente na boca. Não foi como seu último beijo e ele soube que não deveria agarrá-la nem pressionar os lábios contra os dela. Foi um beijo delicado – a boca de Joanne encostou na sua por um doce instante que durou apenas um suspiro. Então ela se afastou e abriu a porta.

           – Boa noite – disse Woody ao sair.

           – Adeus – disse Joanne.

 

           Greg Peshkov estava apaixonado.

           Sabia que Jacky Jakes fora comprada por seu pai como recompensa por ele ajudar na armadilha montada para Dave Rouzrokh, mas mesmo assim era amor de verdade.

           Havia perdido a virgindade poucos minutos depois de voltarem da delegacia, e os dois tinham passado a maior parte da semana sem sair da cama do Ritz-Carlton. Jacky dissera que Greg não precisava usar nenhum método anticoncepcional, pois ela já estava “protegida”. Ele tinha apenas uma vaga ideia do que isso significava, mas acreditou em sua palavra.

           Nunca se sentira tão feliz na vida e adorava Jacky, sobretudo quando ela abandonava o papel de garotinha para revelar uma inteligência arguta e um senso de humor mordaz. Ela admitiu ter seduzido Greg a mando de Lev, mas confessou que, mesmo a contragosto, havia se apaixonado. Seu nome verdadeiro era Mabel Jakes e, embora fingisse ter 19 anos, na verdade tinha apenas 16 e era só alguns meses mais velha que Greg.

           Lev lhe prometera uma vaga num filme, mas dissera que ainda estava procurando o papel certo.

           – Mas, porra, não acho que ele esteja procurando com tanto afinco assim – disse ela, numa imitação perfeita do vestígio de sotaque russo de Lev.

           – Imagino que não haja muitos papéis para atores negros – comentou Greg.

           – Eu sei. Vou acabar tendo que fazer a criada e revirar os olhos dizendo “sinhá”. Algumas peças e filmes têm personagens africanos, como Cleópatra, Aníbal, Otelo. Mas esses papéis em geral são interpretados por atores brancos. – O pai dela, já falecido, tinha sido professor em uma universidade para negros, e ela entendia mais de literatura do que Greg. – Mas por que os negros só deveriam fazer papel de negros? Se Cleópatra pode ser representada por uma branca, por que Julieta não pode ser negra?

           – As pessoas achariam estranho.

           – As pessoas se acostumariam. Elas se acostumam com qualquer coisa. Por acaso Jesus tem que ser interpretado por um judeu? Ninguém liga para isso.

           Ela estava certa, pensou Greg, mas mesmo assim aquilo nunca iria acontecer.

           Quando Lev anunciara sua volta a Buffalo – deixando tudo para a última hora, como sempre –, Greg ficara arrasado. Perguntara ao pai se Jacky podia ir com eles, mas Lev apenas rira e dissera:

           – Filho, não se deve cagar no mesmo lugar em que se come. Você pode vê-la da próxima vez que vier a Washington.

           Apesar disso, Jacky fora para Buffalo um dia depois dele e se instalara em um pequeno apartamento barato perto da Canal Street.

           Lev e Greg passaram as duas semanas seguintes ocupados com a compra da Roseroque Cinemas. No final das contas, Dave vendera a cadeia por dois milhões de dólares, um quarto da oferta original, e a admiração de Greg pelo pai crescera um pouco mais. Jacky havia retirado a queixa na polícia e dado a entender aos jornais que aceitara uma compensação financeira. O implacável atrevimento do pai deixara Greg pasmo.

           E ele tinha Jacky. Todas as noites dizia à mãe que ia sair com amigos, mas na verdade passava todo o seu tempo livre com a garota. Mostrava-lhe a cidade, levava-a para fazer piqueniques na praia e até deu um jeito de levá-la para passear numa lancha alugada. Ninguém ligou sua imagem à da fotografia meio borrada de uma moça saindo do Ritz-Carlton só de roupão. Mas a maior parte de suas noites quentes de verão era passada num delírio de felicidade e sexo, suados em meio aos lençóis embolados da estreita cama do apartamento. Decidiram se casar assim que alcançassem a maioridade.

           Nessa noite, ele iria levá-la ao baile do Iate Clube.

           Fora dificílimo arrumar entradas, mas Greg havia subornado um colega de escola.

           Comprara um vestido novo para Jacky, de cetim cor-de-rosa. Marga lhe dava uma mesada generosa, e Lev costumava dar ao filho 50 pratas de presente de vez em quando, assim Greg sempre tinha mais dinheiro do que precisava.

           No fundo de sua mente, porém, um alarme havia começado a soar. Jacky seria a única pessoa negra no baile que não estaria servindo bebidas. Ela havia relutado muito em ir, mas Greg conseguira convencê-la. Os rapazes mais jovens ficariam com inveja; os mais velhos, porém, talvez se mostrassem hostis. Haveria cochichos. Mas ele sentia que a beleza e o charme de Jacky superariam boa parte do preconceito: como alguém poderia resistir a ela? Se algum imbecil ficasse bêbado e a ofendesse, Greg lhe ensinaria uma lição com os dois punhos.

           Ao mesmo tempo em que pensava isso, ouvia sua mãe lhe dizer para nunca ficar perdido de amor. Mas um homem não podia passar a vida escutando o que a mãe dizia.

           Enquanto percorria a Canal Street de casaca e gravata brancas, ansiava por vê-la com o vestido novo, e talvez se ajoelhar para levantar a barra até ver a calcinha e a cinta-liga.

           Entrou no prédio, uma antiga casa agora subdividida. Havia um tapete vermelho e puído na escada, e um cheiro de comida condimentada pairava no ar. Ele entrou no apartamento com sua própria chave.

           Não havia ninguém. Isso era estranho. Para onde ela teria ido sem ele?

           Com o coração cheio de medo, abriu o armário. Só o vestido de cetim cor-de-rosa estava pendurado lá dentro. Todas as outras roupas haviam sumido.

           – Não! – exclamou. Como aquilo era possível?

           Sobre a mesa bamba de pinho havia um envelope. Ele o pegou e viu seu nome escrito na frente, com a letra de Jacky. Ficou apreensivo.

           Ele rasgou o envelope com as mãos trêmulas e leu a mensagem curta:

            

           Greg, meu amor,

           As últimas três semanas foram as mais felizes de toda a minha vida.

           No fundo do meu coração, eu sabia que nunca poderíamos nos casar, mas foi bom fingir que sim.

           Você é um rapaz encantador e vai se tornar um bom homem, contanto que não puxe demais ao seu pai.

            

           Será que Lev tinha descoberto que Jacky estava morando ali e dera um jeito de obrigá-la ir embora? Seu pai não faria isso... ou faria?

            

           Adeus e não se esqueça de mim.

           Seu presente,

           Jacky.

            

           Greg amassou o papel e chorou.

 

           – Você está maravilhosa – disse Eva Rothmann a Daisy Peshkov. – Se eu fosse um rapaz, me apaixonaria por você num piscar de olhos.

           Daisy sorriu. Eva já era um pouco apaixonada por ela. E Daisy estava mesmo maravilhosa, com um vestido de baile de organdi de seda azul-claro que realçava a cor de seus olhos. A saia do vestido tinha uma barra de babados que, na frente, ficava na altura do tornozelo, mas subia de forma divertida atrás até alcançar o meio da canela, proporcionando um vislumbre encantador das pernas de Daisy enfeitadas por meias finas e brilhantes. No pescoço, usava um colar de safiras da mãe.

           – Seu pai comprou esse colar para mim na época em que ainda me tratava bem de vez em quando – dissera Olga. – Mas vamos logo, Daisy, vocês está atrasando todas nós.

           Olga usava um vestido azul-marinho de matrona, e Eva estava de vermelho, cor que combinava bem com seus cabelos escuros.

           Daisy desceu a escada envolta em uma nuvem de felicidade.

           As três saíram de casa. Henry, o jardineiro, que nessa noite fazia as vezes de motorista, abriu as portas do velho Stutz preto reluzente.

           Aquela era a noite de Daisy. Charlie Farquharson iria pedi-la oficialmente em casamento. Daria de presente a ela um anel de diamante que era herança de família – ela já o vira e aprovara, e o anel fora ajustado para caber em seu dedo. Ela aceitaria o pedido e eles anunciariam o noivado a todos os convidados do baile.

           Ela entrou no carro sentindo-se a própria Cinderela.

           Apenas Eva havia manifestado algumas dúvidas.

           – Achei que você fosse escolher alguém que combinasse mais com você – comentara ela.

           – Um homem que não me deixe mandar nele, você quer dizer – retrucara Daisy.

           – Não, mas alguém como você: bonito, charmoso, sensual.

           Era um comentário estranhamente incisivo para Eva: dava a entender que Charlie era feio, sem graça e nada glamouroso. Daisy ficara espantada e não soubera o que responder.

           Foi sua mãe que a salvou.

           – Eu me casei com um homem bonito, charmoso e sensual. E ele me fez profundamente infeliz.

           Depois disso, Eva não dissera mais nada.

           Quando o carro foi se aproximando do Iate Clube, Daisy prometeu a si mesma que iria se controlar. Não devia demonstrar quão triunfante se sentia. Devia agir como se não houvesse nada de inesperado no fato de sua mãe ser convidada a entrar para a Sociedade de Senhoras de Buffalo. Quando mostrasse o enorme diamante às outras moças, seria graciosa a ponto de afirmar que não merecia alguém tão maravilhoso quanto Charlie.

           Daisy tinha planos de torná-lo mais maravilhoso ainda. Logo depois da lua de mel, ela e Charlie começariam a montar seu haras de cavalos de corrida. Em cinco anos, estariam participando das competições de turfe mais prestigiosas do mundo: Saratoga Springs, Longchamp, Royal Ascot.

           O verão já cedia lugar ao outono e a noite estava caindo quando o carro se aproximou do píer.

           – Acho que estamos muito atrasados hoje, Henry, infelizmente – disse Daisy, alegre.

           – Não tem problema, Srta. Daisy – retrucou o jardineiro. Tinha verdadeira adoração por ela. – Divirta-se.

           Na porta, Daisy reparou que Victor Dixon entrou atrás delas. Como estava se sentindo muito bem-disposta em relação a todo mundo, falou:

           – Ouvi dizer que sua irmã foi apresentada ao rei da Inglaterra, Victor. Meus parabéns!

           – Humm, é – respondeu ele, com ar encabulado.

           As três entraram no clube. A primeira pessoa que viram foi Ursula Dewar, que concordara em deixar Olga ingressar em seu clube esnobe. Daisy lhe abriu um sorriso caloroso e disse:

           – Boa noite, Sra. Dewar.

           Ursula parecia aflita com alguma coisa.

           – Queira me dar licença só um instante – disse ela e afastou-se pelo saguão.

           Aquela mulher se achava uma rainha, pensou Daisy, mas nem por isso podia ser mal-educada. Um dia Daisy iria mandar na alta sociedade de Buffalo, mas jurou a si mesma que seria sempre encantadora com todos.

           As três entraram no toalete feminino, onde conferiram sua aparência nos espelhos para o caso de algo ter saído do lugar nos vinte minutos desde que tinham saído de casa. Dot Renshaw entrou, as viu e tornou a sair.

           – Garota estúpida – comentou Daisy.

           Mas sua mãe parecia preocupada.

           – O que está acontecendo? – perguntou ela. – Nós chegamos aqui há apenas cinco minutos e três pessoas já nos esnobaram!

           – É inveja – disse Daisy. – Dot queria se casar com Charlie.

           – Acho que, a esta altura, Dot Renshaw se casaria com praticamente qualquer um – comentou Olga.

           – Venham, vamos nos divertir – disse Daisy, saindo do toalete.

           Quando elas adentraram o salão, Woody Dewar foi cumprimentá-la.

           – Finalmente, um cavalheiro! – disse Daisy.

           Em voz baixa, ele falou:

           – Só gostaria de dizer que acho errado as pessoas culparem você por qualquer coisa que seu pai tenha feito.

           – Sobretudo quando todos compraram bebida dele! – retrucou ela.

           Foi então que viu a futura sogra, usando um vestido cor-de-rosa drapeado que não favorecia nem um pouco sua silhueta angulosa. Nora Farquharson não estava maravilhada com a noiva escolhida pelo filho, mas aceitara Daisy e mostrara-se encantadora com Olga quando as duas trocaram visitas.

           – Sra. Farquharson! – disse Daisy. – Que vestido mais lindo!

           Nora Farquharson deu-lhe as costas e se afastou.

           Eva soltou um arquejo.

           Uma sensação de horror tomou conta de Daisy. Ela tornou a se virar para Woody.

           – Isso não tem nada a ver com contrabando de bebidas, não é?

           – Não.

           – O que houve, então?

           – É melhor você perguntar para Charlie. Ele está vindo aí.

           Embora não estivesse calor, Charlie suava.

           – O que está acontecendo? – perguntou-lhe Daisy. – Todo mundo está me tratando mal!

           Ele estava muito nervoso.

           – Estão todos muito bravos com a sua família – disse ele.

           – Por quê?

           Várias pessoas por perto ouviram seu tom de voz alterado e olharam para ela. Daisy não ligou.

           – Seu pai arruinou Dave Rouzrokh – disse Charlie.

           – Está se referindo àquele incidente no Ritz-Carlton? O que eu tenho a ver com isso?

           – Todos gostam de Dave, mesmo ele sendo persa ou algo assim. E ninguém acredita que ele seria capaz de cometer estupro.

           – Eu nunca disse que ele era!

           – Eu sei – respondeu Charlie. Sua aflição era evidente.

           As pessoas agora os encaravam sem pudor: Victor Dixon, Dot Renshaw, Chuck Dewar.

           – Mas eu vou levar a culpa – disse Daisy a Charlie. – É isso?

           – O seu pai fez uma coisa horrível.

           Daisy estava gelada de medo. Seria possível seu triunfo lhe escapar assim, na última hora?

           – Charlie – disse ela. – O que você está querendo dizer? Pelo amor de Deus, seja claro.

           Eva passou o braço em volta da cintura de Daisy, em um gesto de amparo.

           – Minha mãe disse que é imperdoável.

           – Como assim, imperdoável?

           Ele a fitou com uma expressão arrasada. Não conseguia se forçar a falar.

           Mas nem precisava. Ela já sabia o que ele iria dizer.

           – Está tudo acabado, não é? – falou. – Você está me dispensando.

           Ele assentiu.

           – Daisy, vamos embora daqui – disse Olga, aos prantos.

           Daisy olhou em volta. Empinou o queixo e fitou todos com o rosto erguido: Dot Renshaw, maliciosamente satisfeita; Victor Dixon, admirativo; o adolescente Chuck Dewar, com a boca aberta de choque; e seu irmão Woody, com uma expressão de empatia.

           – Para o inferno, todos vocês! – disse ela bem alto. – Eu vou para Londres dançar com o rei!

             

1936

            Era uma tarde ensolarada de maio de 1936, um sábado – Lloyd Williams estava no final de seu segundo ano em Cambridge –, quando a cabeça imunda do fascismo despontou entre os claustros de pedra branca da antiquíssima universidade.

           Lloyd cursava Letras Modernas no Emmanuel College – conhecido como “Emma”. Estudava francês e alemão, mas preferia o alemão. Enquanto mergulhava nas glórias da cultura germânica e lia Goethe, Schiller, Heine e Thomas Mann, ocasionalmente erguia a cabeça de sua mesa na biblioteca silenciosa para observar com tristeza a atual derrocada alemã rumo à barbárie.

           Então o braço local da União Britânica de Fascistas anunciou que seu líder, Sir Oswald Mosley, faria um comício em Cambridge. A notícia fez Lloyd se lembrar de Berlim, três anos antes. Tornou a ver os violentos camisas-pardas vandalizando a redação da revista em que Maud von Ulrich trabalhava. Ouviu mais uma vez o som rascante da voz cheia de ódio de Hitler quando, em seu discurso no Parlamento, o líder alemão havia desprezado a democracia. Estremeceu com a lembrança dos focinhos sujos de sangue dos pastores-alemães que haviam dilacerado Jörg com a cabeça enfiada num balde.

           Agora estava em pé na plataforma da estação de Cambridge, esperando a mãe, que viria no trem de Londres. Ao seu lado estava Ruby Carter, sua colega ativista no Partido Trabalhista local. Ela o ajudara a organizar a reunião daquele dia para debater “A verdade sobre o fascismo”. Eth Leckwith, mãe de Lloyd, faria um discurso. Seu livro sobre a Alemanha tinha sido um grande sucesso. Ela se candidatara outra vez a uma vaga no Parlamento nas eleições de 1935, e era novamente deputada por Aldgate.

           Lloyd estava tenso com a reunião. O novo partido político de Mosley tinha conquistado milhares de membros, em parte por causa do entusiástico apoio do jornal Daily Mail, autor da infame manchete “Viva os camisas-negras!”. Mosley era um orador carismático e sem dúvida recrutaria novos membros no comício desse dia. Era fundamental que houvesse um farol de razão para contrastar com suas mentiras sedutoras.

           Ruby, porém, não parava de falar, animada, reclamando da vida social de Cambridge.

           – Estou tão entediada com os rapazes daqui. Tudo que eles querem fazer é ir ao pub se embebedar.

           Lloyd ficou espantado. Achava que Ruby tivesse uma vida social bem agitada. Ela usava roupas baratas sempre um pouco apertadas, destacando suas curvas cheinhas. A maioria dos homens devia considerá-la atraente, pensou.

           – O que você gosta de fazer? – perguntou ele. – Além de organizar reuniões do Partido Trabalhista?

           – Adoro dançar.

           – Imagino que não faltem parceiros. Aqui na universidade há 12 homens para cada mulher.

           – Sem querer ofender, quase todos os universitários são bichas.

           Lloyd sabia que havia muitos homossexuais em Cambridge, mas ficou espantado ao ouvi-la mencionar o fato. Ruby era famosa por ser direta, mas aquilo era chocante, mesmo vindo dela. Não soube o que responder, por isso ficou calado.

           – Você não é um deles, é? – perguntou Ruby.

           – Não! Deixe de ser ridícula.

           – Não precisa ficar ofendido. Tirando esse nariz achatado, você é bonito o bastante para ser bicha.

           Ele riu.

           – Isso é que é um elogio torto!

           – Mas você é, mesmo. Parece o Douglas Fairbanks Junior.

           – Bem, obrigado, mas não sou bicha.

           – Você tem namorada?

           Aquilo estava ficando constrangedor.

           – No momento, não. – Ele disfarçou olhando para o relógio e espichando os olhos à procura do trem.

           – Por que não?

           – Ainda não conheci a garota certa.

           – Ah, muito obrigada pela parte que me toca.

           Ele olhou para ela. Viu que sua brincadeira tinha um fundo de verdade e ficou arrasado por ela ter levado o comentário para o lado pessoal.

           – Eu não quis dizer...

           – Quis, sim. Mas tudo bem. O trem está chegando.

           A locomotiva entrou na estação e parou em meio a uma nuvem de vapor. As portas se abriram e os passageiros saltaram para a plataforma: universitários de paletó de tweed, mulheres de agricultores indo às compras, operários usando boinas chatas. Lloyd vasculhou a multidão com os olhos em busca da mãe.

           – Ela deve ter vindo no vagão da terceira classe – falou. – Questão de princípios.

           – Quer ir à minha festa de 21 anos? – perguntou Ruby.

           – Claro.

           – Minha amiga aluga um pequeno apartamento na Market Street, e a senhoria dela é surda.

           Lloyd não estava à vontade com aquele convite e hesitou antes de responder. Então sua mãe apareceu, toda bonita com um sobretudo vermelho de verão e um pequeno chapéu elegante. Ela abraçou e beijou o filho.

           – Você parece muito bem, meu lindo – falou. – Mas preciso lhe comprar um terno novo para o próximo semestre.

           – Este aqui está bom, Mam.

           Lloyd tinha uma bolsa de estudos que cobria os gastos com a faculdade e as despesas básicas de custo de vida, mas não era o bastante para comprar ternos. Quando começara a estudar em Cambridge, sua mãe havia usado parte de suas economias para lhe comprar um terno para o dia, de tweed, e outro para a noite, para jantares formais. Ele usara o de tweed todos os dias durante dois anos e isso era notório. Era um rapaz meticuloso com a própria aparência e sempre se certificava de estar com uma camisa limpa, uma gravata com um nó perfeito e um lenço branco dobrado no bolso da frente do paletó: devia haver algum dândi entre os seus antepassados. Apesar de bem-passado, o terno começava a parecer surrado e, na verdade, ele ansiava por um novo, mas não queria que a mãe gastasse as economias.

           – Vamos ver – disse ela. Virando-se para Ruby, deu um sorriso caloroso e estendeu a mão. – Eu sou Eth Leckwith – falou, com a mesma graça descontraída de uma duquesa.

           – Prazer em conhecê-la. Ruby Carter.

           – Você também estuda aqui, Ruby?

           – Não, sou criada em Chimbleigh, uma grande propriedade rural. – Ruby pareceu um pouco envergonhada ao fazer essa confissão. – Fica a oito quilômetros da cidade, mas geralmente consigo uma bicicleta emprestada.

           – Que interessante! – exclamou Ethel. – Quando eu tinha a sua idade, era criada em uma propriedade rural no País de Gales.

           Ruby ficou surpresa.

           – Criada? A senhora? E hoje é deputada?

           – É isso que significa democracia.

           – Ruby e eu organizamos juntos a reunião de hoje – disse Lloyd.

           – E como vão as coisas? – perguntou-lhe a mãe.

           – Ingressos esgotados. Na verdade, tivemos que nos mudar para uma sala maior.

           – Eu lhe disse que daria certo.

           A reunião tinha sido ideia de Ethel. Ruby Carter e muitos outros membros do Partido Trabalhista queriam organizar uma passeata de protesto pela cidade. De início, Lloyd havia concordado.

           – É preciso se opor publicamente ao fascismo sempre que houver oportunidade – dissera ele.

           Mas Ethel os aconselhara a fazer outra coisa.

           – Se sairmos em passeata gritando palavras de ordem, ficaremos iguaizinhos a eles – argumentara. – Vocês precisam mostrar que somos diferentes. Organizem uma reunião discreta e inteligente para discutir a realidade do fascismo. – Lloyd se mostrara cético. – Eu posso ir aí para fazer um discurso, se vocês quiserem – oferecera-se Ethel.

           Lloyd apresentara a sugestão ao partido em Cambridge. Seguira-se um debate acalorado no qual Ruby havia liderado a oposição ao plano de Ethel. No final das contas, porém, a perspectiva de ter uma deputada e feminista famosa discursando na reunião falou mais alto.

           Lloyd ainda não tinha certeza de que essa fora a melhor decisão. Lembrou-se de Maud von Ulrich em Berlim dizendo: “Não podemos reagir à violência com violência.” Essa fora a política adotada pelo Partido Social-Democrata alemão. Para a família Von Ulrich e para a Alemanha, essa política tinha se revelado uma tragédia.

           Os três saíram pelos arcos de tijolos amarelos em estilo românico da estação e seguiram apressados pela arborizada Station Road, uma rua de confortáveis residências de classe média construídas com o mesmo tijolo amarelo. Ethel deu o braço a Lloyd e perguntou:

           – Mas então, como tem passado meu pequeno estudante?

           Lloyd sorriu ao ouvir a palavra “pequeno”. Ele era dez centímetros mais alto que a mãe, além de musculoso, por causa dos treinos com a equipe de boxe da universidade: seria capaz de erguê-la do chão usando apenas uma das mãos. Ele sabia que Ethel não cabia em si de tanto orgulho. Poucas coisas na vida tinham lhe dado tanta alegria quanto vê-lo estudar em Cambridge. Era provavelmente por isso que ela queria lhe comprar ternos.

           – Você sabe que eu adoro isto aqui – respondeu ele. – Vou adorar mais ainda quando a universidade estiver cheia de rapazes da classe trabalhadora.

           – E moças – emendou Ruby.

           Eles dobraram na Hills Road, a rua principal, que conduzia ao centro da cidade. Desde a inauguração da ferrovia, a cidade havia se expandido para o sul, em direção à estação, e igrejas haviam surgido ao longo da Hills Road para atender ao novo subúrbio. Seu destino era uma capela batista cujo pastor, um esquerdista, concordara em ceder o salão sem custo.

           – Eu fiz um acordo com os fascistas – disse Lloyd. – Falei que não faríamos a passeata se eles prometessem a mesma coisa.

           – Fico surpresa por eles terem concordado – disse Ethel. – Fascistas adoram uma passeata.

           – Eles relutaram. Mas avisei às autoridades da universidade e à polícia o que estava propondo e os fascistas de certa forma foram obrigados a aceitar.

           – Você foi esperto.

           – Mas, Mam, você não vai acreditar quem é o líder deles aqui. O visconde de Aberowen... mais conhecido como Boy Fitzherbert, filho do conde Fitzherbert, seu antigo patrão! – Boy tinha 21 anos, mesma idade de Lloyd, e estudava no Trinity College, a faculdade mais aristocrática da Universidade de Cambridge.

           – O quê? Meu Deus!

           Sua mãe pareceu mais abalada do que ele esperava, e Lloyd a olhou de relance. Ethel estava pálida.

           – Ficou chocada?

           – Fiquei! – Ela então pareceu recobrar a compostura. – O pai dele tem um cargo adjunto no Ministério das Relações Exteriores. – O governo era uma coalizão dominada pelos conservadores. – Fitz deve estar constrangido.

           – Imagino que muitos conservadores sejam tolerantes com o fascismo. Eles não consideram tão errado assim matar comunistas e perseguir judeus.

           – Alguns deles, talvez, mas você está exagerando. – Ela olhou para Lloyd de viés. – Quer dizer então que você foi falar com Boy?

           – Fui. – Lloyd achou que aquilo parecia ter um significado especial para Ethel, mas não conseguiu imaginar qual seria. – Achei-o terrível. Ele tinha uma caixa inteira de uísque escocês no quarto dele no Trinity... doze garrafas!

           – Você já o encontrou uma vez, lembra?

           – Não. Quando foi isso?

           – Você tinha 9 anos. Eu o levei ao Palácio de Westminster pouco depois de ser eleita. Cruzamos com Fitz e Boy na escada.

           Lloyd se lembrava mais ou menos. Assim como agora, o incidente daquela época também parecia estranhamente importante para sua mãe.

           – Era ele? Que engraçado.

           – Eu o conheço – interveio Ruby. – Ele é nojento. Vive passando a mão nas criadas.

           Lloyd ficou chocado, mas sua mãe não pareceu espantada.

           – Isso é bem desagradável, mas acontece o tempo todo. – Aquele conformismo sombrio fez tudo lhe parecer ainda mais horripilante.

           Os três chegaram à capela e entraram pela porta dos fundos. Ali, numa espécie de sacristia, estava Robert von Ulrich, com uma aparência surpreendentemente britânica: terno vistoso quadriculado de verde e marrom e gravata listrada. Ele se levantou e Ethel lhe deu um abraço.

           – Ethel, querida, que chapéu mais encantador – disse Robert em um inglês impecável.

           Lloyd apresentou a mãe às mulheres do Partido Trabalhista local, que preparavam jarras de chá e pratos de biscoito para servir após a reunião. Como já tinha ouvido Ethel reclamar muitas vezes que as pessoas que organizavam eventos políticos pareciam crer que os deputados nunca precisavam usar o banheiro, falou:

           – Ruby, antes de começarmos, pode mostrar à minha mãe onde fica o toalete feminino? – As duas se afastaram.

           Lloyd sentou-se ao lado de Robert e, em tom casual, perguntou:

           – Como vão os negócios?

           Robert era agora dono de um restaurante muito popular entre os homossexuais dos quais Ruby reclamara mais cedo. Por algum motivo, intuíra que a Cambridge dos anos 1930 simpatizava tanto com homens assim quanto a Berlim dos anos 1920. Seu novo restaurante tinha o mesmo nome do antigo, Bistrô Robert.

           – Os negócios vão bem – respondeu ele. Uma sombra cruzou seu semblante: uma breve porém intensa expressão de medo. – Desta vez espero poder manter o que construí.

           – Estamos fazendo todo o possível para combater os fascistas e reuniões como esta são o melhor jeito de conseguir isso – disse Lloyd. – O seu discurso vai ajudar muito... vai abrir os olhos das pessoas. – Robert iria falar sobre a sua experiência pessoal de viver sob o fascismo. – Muitos dizem que isso não poderia acontecer aqui, mas estão errados.

           Robert concordou com a cabeça, muito sério.

           – O fascismo é uma mentira, mas uma mentira sedutora.

           A visita de Lloyd a Berlim três anos antes ainda era uma lembrança vívida.

           – Frequentemente me pergunto o que terá acontecido com o antigo Bistrô Robert – disse ele.

           – Recebi uma carta de um amigo – respondeu Robert com a voz cheia de tristeza. – Ninguém do antigo pessoal frequenta mais o restaurante. Os irmãos Macke leiloaram a adega. A clientela agora é quase toda de policiais e burocratas de médio escalão. – Com um tom ainda mais sofrido, acrescentou: – Eles nem usam mais toalhas de mesa. – Então mudou de assunto abruptamente: – Você quer ir ao baile do Trinity?

           A maioria das faculdades tinha bailes de verão para comemorar o fim das provas. Esses bailes, somados a festas e piqueniques semelhantes, constituíam a Semana de Maio, que, em total contrassenso, sempre acontecia em junho. O baile do Trinity era famoso por seu luxo.

           – Adoraria, mas não tenho dinheiro – respondeu Lloyd. – Os ingressos custam dois guinéus, não é?

           – Eu ganhei um. Mas pode ficar com ele. Na verdade, um bando de universitários bêbados dançando ao som de uma banda de jazz para mim é a visão do inferno.

           Lloyd sentiu-se tentado.

           – Mas não tenho casaca. – Os bailes universitários exigiam casaca e gravata-borboleta branca.

           – Pode pegar a minha emprestada. Vai ficar grande na cintura, mas temos a mesma altura.

           – Nesse caso, eu aceito. Obrigado!

           Ruby voltou.

           – Sua mãe é incrível – disse a Lloyd. – Não sabia que ela havia trabalhado como criada!

           – Conheço Ethel há mais de vinte anos – disse Robert. – Ela é mesmo extraordinária.

           – Agora entendo por que você não encontrou a garota certa – disse Ruby a Lloyd. – Está procurando alguém como ela, e não há muitas por aí.

           – Pelo menos quanto a isto você tem razão: não existe ninguém como ela – concordou Lloyd.

           Ruby fez uma careta, como se estivesse sentindo dor.

           – O que houve? – perguntou Lloyd.

           – Dor de dente.

           – Você precisa ir ao dentista.

           Ela o olhou como se ele tivesse acabado de dizer alguma coisa estúpida e Lloyd se deu conta de que, com seu salário de criada, ela não podia se dar ao luxo de pagar um dentista. Sentiu-se tolo.

           Foi até a porta e espiou para dentro do salão principal. Como em muitas igrejas protestantes não anglicanas, o local de culto era um recinto simples e retangular, com paredes pintadas de branco. Fazia calor e as janelas de vidro transparente tinham sido abertas. As filas de cadeiras estavam cheias de gente, que aguardava com grande expectativa.

           Quando Ethel reapareceu, Lloyd disse:

           – Se todos estiverem de acordo, vou dar início à reunião. Em seguida Robert vai contar sua história e depois minha mãe vai apontar as lições políticas que podem ser tiradas.

           Todos concordaram.

           – Ruby, pode ficar de olho nos fascistas? Avise-me se acontecer alguma coisa.

           Ethel franziu o cenho.

           – É mesmo necessário?

           – Provavelmente não deveríamos confiar que eles vão manter a promessa.

           – Eles marcaram uma reunião nesta mesma rua, uns 500 metros mais acima – disse Ruby. – Não me importo de ficar indo e vindo.

           Ela saiu pela porta dos fundos e Lloyd conduziu os outros para dentro da sala de culto. Não havia tablado, mas no final da sala estavam dispostas uma mesa e três cadeiras, com um atril ao lado. Enquanto Ethel e Robert se acomodavam, Lloyd foi até o atril. Ouviram-se aplausos discretos.

           – O fascismo está em marcha – começou Lloyd. – E ele é perigosamente sedutor. Dá falsas esperanças aos desempregados. Ostenta um patriotismo espúrio e os próprios fascistas usam imitações de uniformes militares.

           Para consternação de Lloyd, o governo britânico vinha se mostrando disposto a conduzir uma política de conciliação em relação aos regimes fascistas. O atual governo era uma coalizão dominada por conservadores, com alguns liberais e um punhado de ministros trabalhistas renegados que haviam se afastado de seu partido de origem. Poucos dias depois de reeleito, em novembro, o ministro das Relações Exteriores propusera ceder grande parte da Abissínia aos conquistadores italianos e seu líder fascista, Benito Mussolini.

           Pior ainda: a Alemanha estava se rearmando e se mostrava belicosa. Poucos meses antes, Hitler violara o Tratado de Versalhes enviando soldados para a Renânia desmilitarizada – e Lloyd ficara horrorizado ao constatar que nenhum país se mostrara disposto a detê-lo.

           Qualquer esperança de que o fascismo fosse apenas uma aberração temporária havia desaparecido. Lloyd acreditava que os países democráticos, como França e Inglaterra, precisavam se preparar para lutar. No entanto, não disse isso no discurso desse dia, pois sua mãe, assim como a maioria do Partido Trabalhista, era contrária a uma intensificação armamentista na Grã-Bretanha e esperava que a Liga das Nações conseguisse lidar com os ditadores. Seu desejo era evitar a todo custo uma repetição da terrível carnificina da Grande Guerra. Lloyd se identificava com essa esperança, mas temia que ela não fosse realista.

           Ele mesmo já estava se preparando para a guerra. Tinha sido cadete na escola e, ao ir para Cambridge, entrara para o Curso de Formação de Oficiais da universidade – era o único rapaz de classe trabalhadora no curso e certamente o único membro do Partido Trabalhista.

           Lloyd se sentou sob aplausos comedidos. Era um orador claro, lógico, mas não tinha a capacidade da mãe de tocar corações – pelo menos não ainda.

           Robert subiu ao atril.

           – Sou austríaco – falou. – Durante a guerra, fui ferido, capturado pelos russos e mandado para um campo de prisioneiros na Sibéria. Depois que os bolcheviques se reconciliaram com as Potências Centrais, os guardas abriram os portões e nos disseram que estávamos livres para ir embora. Voltar para casa era problema nosso, não deles. O caminho da Sibéria até a Áustria é longo: quase cinco mil quilômetros. Não havia ônibus, por isso fui a pé.

           Risadas surpresas percorreram a sala, seguidas de alguns aplausos de admiração. Lloyd viu que Robert já havia encantado a plateia.

           Ruby se aproximou dele com ar contrariado e falou em seu ouvido:

           – Os fascistas acabaram de passar. Boy Fitzherbert estava conduzindo Mosley até a estação, e um bando de esquentadinhos vestindo camisa preta corria atrás do carro dando vivas.

           Lloyd franziu o cenho.

           – Eles prometeram que não fariam uma passeata. Imagino que vão alegar que correr atrás de um carro não conta.

           – Que diferença faz?

           – Alguma violência?

           – Não.

           – Fique de olho.

           Ruby saiu. Lloyd estava preocupado. Embora não tivessem desrespeitado o acordo em si, sem dúvida tinham desrespeitado sua essência. Haviam saído à rua de uniforme – e nenhuma outra passeata lhes fizera frente. Os socialistas estavam ali, dentro da igreja, invisíveis. A única coisa que demonstrava publicamente suas opiniões era uma faixa em frente à igreja que dizia, em letras vermelhas garrafais: “A verdade sobre o fascismo”.

           Robert estava falando:

           – Estou feliz por estar aqui, honrado por ter sido convidado a falar para vocês e encantado em ver na plateia vários clientes do Bistrô Robert. Mas preciso lhes avisar que a história que tenho para contar é muito desagradável. Pavorosa, na verdade.

           Então relatou como ele e Jörg tinham sido presos após se recusarem a vender o restaurante de Berlim para um nazista. Descreveu Jörg como seu chef de cozinha e sócio de longa data, sem mencionar seu relacionamento íntimo, embora as pessoas mais sagazes da plateia provavelmente devam ter adivinhado.

           O público se calou quando ele começou a descrever os acontecimentos no campo de concentração. Lloyd ouviu arquejos de horror quando Robert chegou à parte dos cães. Robert narrou a tortura de Jörg com uma voz grave e límpida, que inundou a sala. Quando chegou à morte de Jörg, vários ouvintes já estavam chorando.

           O próprio Lloyd reviveu a crueldade e a angústia daqueles momentos e foi tomado por uma súbita raiva, raiva de idiotas como Boy Fitzherbert, cuja paixão por marchas e uniformes elegantes ameaçava levar aquele mesmo tormento à Inglaterra.

           Robert sentou-se e Ethel foi até o atril. Quando ela estava começando a falar, Ruby reapareceu, dessa vez com uma expressão furiosa.

           – Eu disse a você que isso não iria funcionar! – sibilou ela no ouvido de Lloyd. – Mosley foi embora, mas os rapazes estão cantando “Rule Britannia” do lado de fora da estação.

           Aquilo sem dúvida era uma violação do acordo, pensou Lloyd, zangado. Boy havia quebrado sua promessa. Como valia pouco a palavra de um nobre inglês.

           Ethel agora explicava como o fascismo oferecia soluções falsas, usando a estratégia simplista de culpar grupos como judeus e comunistas por problemas complexos, como o desemprego e a criminalidade. Zombou impiedosamente do conceito de triunfo da vontade, comparando o Führer e o Duce a valentões de escola. Eles clamavam por apoio popular, mas baniam qualquer oposição.

           Lloyd então se deu conta de que, quando os fascistas voltassem da estação de trem para o centro da cidade, teriam que passar por aquela igreja. Começou a prestar atenção nos sons vindos das janelas abertas. Podia ouvir carros e caminhões passarem rugindo pela Hills Road, pontuados de vez em quando pelo tilintar de uma sineta de bicicleta ou pelo choro de uma criança. Pensou ter ouvido um grito distante, e o som era preocupantemente parecido com o de rapazes desordeiros ainda jovens o bastante para sentir orgulho das vozes de adulto recém-adquiridas. Retesou o corpo, aguçando os ouvidos, e então escutou novos gritos. Os fascistas estavam marchando.

           À medida que o alarido na rua aumentava, Ethel também ergueu a voz. Argumentou que trabalhadores de todos os tipos precisavam se unir em sindicatos e no Partido Trabalhista para construir uma sociedade mais justa, passo a passo e democraticamente, e não por meio do mesmo tipo de perturbação violenta que já dera tão errado na Rússia comunista e na Alemanha nazista.

           Ruby tornou a entrar.

           – Eles estão marchando pela Hills Road – disse ela, com um sussurro baixo e urgente. – Temos que sair e confrontá-los!

           – Não! – sussurrou Lloyd. – O partido tomou uma decisão coletiva: não haverá passeatas. Temos que respeitar isso. Precisamos ser um movimento disciplinado! – Ele sabia que a referência à disciplina partidária surtiria efeito na colega.

           Os fascistas agora estavam bem próximos, cantando a plenos pulmões. Lloyd calculou que fossem uns cinquenta ou sessenta. Estava se coçando para ir lá fora enfrentá-los. Dois rapazes no fundo da sala se levantaram e foram até as janelas espiar. Ethel pediu cautela.

           – Não reajam ao vandalismo transformando-se em vândalos – disse ela. – Isso apenas dará aos jornais um pretexto para dizer que um lado é tão ruim quanto o outro.

           Ouviu-se um estrondo de vidro se quebrando e uma pedra entrou voando pela janela. Uma mulher gritou e várias pessoas se levantaram.

           – Por favor, fiquem sentados – pediu Ethel. – Creio que eles irão embora logo.

           Ela falava com voz calma e tranquilizadora. No entanto, poucos prestavam atenção no que ela dizia. Olhavam todos para trás, em direção à porta da igreja, escutando os gritos e vivas dos arruaceiros do lado de fora. Lloyd teve de se esforçar para ficar sentado. Olhou para a mãe com uma expressão neutra, fixa feito uma máscara. Cada osso de seu corpo ansiava por sair à rua e dar alguns socos.

           Dali a um minuto, a plateia silenciou um pouco. Embora ainda inquietos e olhando para trás por cima do ombro, todos tornaram a prestar atenção em Ethel.

           – Nós parecemos um bando de coelhinhos, tremendo dentro da toca enquanto a raposa regouga lá fora – murmurou Ruby em tom de desprezo, e Lloyd sentiu que ela estava certa.

           A previsão de sua mãe, porém, mostrou-se verdadeira, e nenhuma outra pedra foi lançada. A cantoria se afastou.

           – Por que os fascistas querem violência? – indagou Ethel; era uma pergunta retórica. – Aqueles rapazes lá fora na Hills Road podem ser simples arruaceiros, mas alguém os está dirigindo e suas táticas têm um objetivo. Quando há briga nas ruas, eles podem alegar que a ordem pública foi violada, e que é preciso tomar medidas drásticas para restabelecer a lei. Essas medidas de emergência incluem banir partidos políticos democráticos como o nosso, proibir a ação dos sindicatos e prender pessoas sem julgamento, pessoas como nós, homens e mulheres de paz, cujo único crime é discordar do governo. Isso por acaso lhes parece uma fantasia improvável, algo que jamais poderia acontecer? Bem, foi exatamente a tática que eles usaram na Alemanha... e funcionou.

           Ela seguiu falando sobre como o fascismo devia ser combatido: em grupos de discussão, em reuniões como aquela, escrevendo cartas aos jornais e usando qualquer oportunidade possível para alertar os outros do perigo. No entanto, mesmo para Ethel foi difícil fazer isso soar corajoso e decidido.

           O comentário de Ruby sobre coelhos na toca atingira Lloyd profundamente. Ele se sentia um covarde. Estava tão frustrado que mal conseguia se manter sentado.

           Aos poucos, a atmosfera do salão voltou ao normal. Lloyd se virou para Ruby.

           – Pelo menos os coelhos estão sãos e salvos – falou.

           – Por enquanto – disse ela. – Mas a raposa vai voltar.

 

           – Se você gostar de um rapaz, pode deixá-lo beijar você na boca – disse Lindy Westhampton, sentada ao sol no gramado.

           – E, se gostar dele de verdade, pode deixá-lo tocar seus seios – disse sua gêmea, Lizzie.

           – Mas nada abaixo da cintura.

           – Só depois que estiverem noivos.

           Essa conversa deixou Daisy intrigada. Imaginava que as moças inglesas fossem inibidas, mas se enganara. As gêmeas Westhampton eram obcecadas por sexo.

           Daisy estava maravilhada por ser hóspede em Chimbleigh, a casa de campo de Sir Bartholomew Westhampton, mais conhecido como Bing. Estar ali lhe dava a sensação de ter sido aceita na sociedade inglesa. Mas ela ainda não havia conhecido o rei.

           Recordou a humilhação no Iate Clube de Buffalo com uma vergonha que ainda parecia uma queimadura em sua pele e lhe provocava uma dor cruciante, mesmo depois de a chama ter sido afastada. No entanto, sempre que sentia essa dor, pensava que iria dançar com o rei e imaginava todas elas – Dot Renshaw, Nora Farquharson, Ursula Dewar – vendo sua foto no Buffalo Sentinel e lendo cada palavra da reportagem, mortas de inveja e desejando poder afirmar com sinceridade que sempre tinham sido suas amigas.

           Não fora nada fácil no começo. Fazia três meses que Daisy chegara à Inglaterra, com a mãe e a amiga Eva. Seu pai lhe dera um punhado de cartas de apresentação para pessoas que, no fim das contas, não pertenciam à nata da sociedade londrina. Daisy começara a se arrepender de sua saída ultraconfiante do baile do Iate Clube: e se tudo aquilo não desse em nada?

           Mas ela era uma moça decidida e cheia de recursos, e tudo de que precisava era um empurrãozinho. Mesmo em eventos mais ou menos públicos, como corridas de cavalos e óperas, podia conhecer pessoas importantes. Flertava com os homens e despertava a curiosidade de suas mães, dando a entender que era rica e solteira. Muitas famílias aristocráticas inglesas tinham sido arruinadas pela Depressão, e uma herdeira americana teria sido bem-vinda mesmo se não fosse bonita e encantadora. Todos gostavam do seu sotaque, toleravam o fato de ela segurar o garfo com a mão direita e achavam graça por ela saber dirigir – na Inglaterra, dirigir era coisa de homem. Muitas moças inglesas montavam a cavalo tão bem quanto Daisy, mas poucas demonstravam a mesma segurança e tanto atrevimento sobre a sela. Algumas mulheres mais velhas ainda a olhavam com desconfiança, mas ela estava certa de que acabaria por conquistá-las.

           Fora fácil flertar com Bing Westhampton. Franzino e de sorriso arrebatador, ele tinha faro fino para moças bonitas. E o instinto de Daisy lhe dizia que usaria mais do que apenas o faro caso tivesse a oportunidade de uma brincadeira no jardim, ao anoitecer. Estava claro que as filhas haviam puxado a ele.

           A festa na casa dos Westhampton era uma das muitas no condado de Cambridge organizadas para coincidir com a Semana de Maio. Entre os convidados estavam o conde Fitzherbert, mais conhecido como Fitz, e Bea, sua esposa. Ela, naturalmente, era a condessa Fitzherbert, mas preferia o título russo de princesa. O filho mais velho do casal, Boy, estudava no Trinity College.

           A princesa Bea era uma das matriarcas da sociedade que tinham reservas em relação a Daisy. Sem chegar a contar uma mentira, Daisy deixara que as pessoas supusessem que seu pai era um nobre russo que perdera tudo na revolução, e não um operário de fábrica que fugira para os Estados Unidos para não ser pego pela polícia. Bea, porém, não se deixara enganar.

           – Não me lembro de nenhuma família chamada Peshkov em São Petersburgo ou em Moscou – comentara, quase sem se fingir de intrigada.

           Daisy forçara um sorriso como se o fato de a princesa não lembrar não tivesse qualquer importância.

           Havia três moças da mesma idade de Daisy e Eva na casa: as gêmeas Westhampton e May Murray, filha de um general. Os bailes varavam a noite, por isso todos dormiam até o meio-dia, mas as tardes eram maçantes. As cinco moças relaxavam no jardim ou iam passear na floresta. Agora, sentando-se na rede em que estivera deitada, Daisy perguntou:

           – E o que se pode fazer depois do noivado?

           – Alisar o negócio dele – respondeu Lindy.

           – Até esguichar – emendou sua irmã.

           – Ai, que nojo! – exclamou May Murray, que não era tão atrevida quanto as gêmeas.

           Mas isso apenas serviu para incentivar ainda mais as irmãs Westhampton.

           – Ou então pode chupar – disse Lindy. – É disso que eles mais gostam.

           – Parem com isso! – reclamou May. – Vocês estão inventando.

           As duas pararam, pois já haviam provocado May o suficiente.

           – Estou entediada – disse Lindy. – O que poderíamos fazer?

           Um diabinho travesso se apoderou de Daisy, que falou:

           – Vamos descer para jantar vestidas de homem.

           Arrependeu-se na mesma hora. Uma brincadeira dessas poderia arruinar sua carreira social, que mal estava começando.

           A noção de compostura germânica de Eva foi perturbada.

           – Daisy, você não está falando sério!

           – Não – respondeu a amiga. – Foi uma ideia boba.

           As gêmeas tinham os cabelos louros e finos da mãe, não os cachos escuros do pai, mas haviam herdado a inclinação dele para as travessuras, e ambas adoraram a ideia.

           – Hoje à noite todos eles estarão de casaca, então podemos roubar seus smokings – disse Lindy.

           – Isso! – concordou a irmã. – Vamos roubar enquanto estiverem tomando o chá.

           Daisy viu que era tarde para voltar atrás.

           – Não poderíamos ir ao baile vestidas assim! – disse May Murray. Depois do jantar, todos os hóspedes da casa iriam ao baile do Trinity.

           – Trocaremos de roupa antes de sair – disse Lizzie.

           May era uma moça tímida, provavelmente oprimida pelo pai militar, e sempre concordava com qualquer coisa que as outras decidissem. Eva, a única a discordar, foi ignorada, e o plano prosseguiu.

           Quando chegou a hora de se vestir para o jantar, uma criada levou dois smokings até o quarto que Daisy dividia com Eva. A criada se chamava Ruby. Na véspera, estava sofrendo com uma terrível dor de dente, então Daisy lhe dera dinheiro para ir ao dentista, e ela arrancara o dente. Agora, livre da dor, Ruby estava corada de animação.

           – Aqui estão, senhoras! – disse ela. – O de Sir Bartholomew deve ser pequeno o suficiente para a Srta. Peshkov, e o do Sr. Andrew Fitzherbert deve servir na Srta. Rothmann.

           Daisy tirou o vestido e pôs a camisa masculina. Ruby a ajudou a encaixar as abotoaduras da frente e dos punhos, com as quais não estava acostumada. Ela então vestiu a calça de Bing Westhampton, preta, com uma faixa de cetim. Ajeitou a combinação dentro da calça e puxou os suspensórios até os ombros. Ao abotoar a braguilha, sentiu-se levemente ousada.

           Nenhuma das três moças sabia dar nó em gravata, de modo que os resultados foram sofríveis. Foi Daisy quem inventou o toque final. Usando um lápis de sobrancelha, pintou um bigode no próprio rosto.

           – Incrível! – exclamou Eva. – Você está ainda mais bonita!

           Daisy pintou costeletas no rosto de Eva.

           As cinco amigas se reuniram no quarto das gêmeas. Daisy entrou com um andar masculino que provocou risos histéricos nas outras.

           May expressou em voz alta a preocupação que Daisy ainda trazia bem lá no fundo da mente:

           – Espero que não tenhamos problemas com isso.

           – E daí se tivermos? – contrapôs Lindy.

           Daisy decidiu esquecer as apreensões e se divertir, e seguiu na frente das outras até a sala de estar.

           Foram as primeiras a chegar. Repetindo algo que ouvira Boy Fitzherbert dizer ao mordomo, Daisy forçou uma voz de homem e, arrastando as palavras, pediu:

           – Grimshaw, meu chapa, sirva-me um uísque... este champanhe tem gosto de xixi. – As outras puseram-se a guinchar com risinhos chocados.

           Bing e Fitz entraram juntos. Com seu colete branco, Bing fez Daisy pensar em um pássaro de duas cores atrevido. Fitz era um senhor de meia-idade atraente, com cabelos escuros salpicados de fios grisalhos. Por causa de ferimentos de guerra, mancava um pouco e tinha uma das pálpebras ligeiramente caída, mas as provas de sua coragem em batalha só aumentavam mais ainda seu poder de sedução.

           Fitz viu as moças, olhou duas vezes e exclamou:

           – Meu Deus do céu! – Seu tom foi severo e reprovador.

           Daisy experimentou um instante de pânico. Teria estragado tudo? Todo mundo sabia que os ingleses podiam ser assustadoramente conservadores. Será que ela seria convidada a ir embora da casa? Isso seria terrível. Dot Renshaw e Nora Farquharson mal caberiam em si caso ela voltasse para Buffalo em desgraça. Daisy preferiria morrer.

           Bing, contudo, soltou uma sonora gargalhada.

           – Que maravilha – comentou ele. – Olhe só para isso, Grimshaw!

           O mordomo, já de certa idade, que vinha entrando na sala com uma garrafa de champanhe em um balde de prata cheio de gelo, observou as moças com ar desanimado. Em tom seco e pouco sincero, falou:

           – Muito divertido, Sir Bartholomew.

           Bing continuou a observá-las com um misto de deleite e lascívia. Daisy percebeu – tarde demais – que se vestir como o sexo oposto poderia passar para alguns homens a falsa ideia de alto grau de liberdade sexual e disposição para experimentar coisas novas – que evidentemente poderia causar problemas.

           Quando o grupo se reuniu para jantar, a maioria dos outros hóspedes da casa seguiu o exemplo do anfitrião e tratou a brincadeira das moças como uma divertida farsa, mas Daisy percebeu que nem todos ficaram igualmente encantados. A mãe de Daisy empalideceu de susto ao ver as moças e sentou-se depressa, como se estivesse prestes a desmaiar. A princesa Bea, mulher de cerca de 40 anos, muito apertada por espartilhos e que outrora devia ter sido bonita, franziu a testa coberta de pó de arroz numa expressão de censura. Mas Lady Westhampton era uma mulher alegre, que reagia à vida com o mesmo sorriso tolerante que tinha para o marido desregrado: ela deu uma gostosa risada e parabenizou Daisy pelo bigode.

           Os rapazes, os últimos a chegar, também acharam divertido. O tenente Jimmy Murray, filho do general Murray, que não era tão rígido quanto o pai, gargalhou de satisfação. Os irmãos Fitzherbert, Boy e Andy, entraram juntos, e a reação de Boy foi a mais interessante de todas. Ele encarou as moças com fascínio. Apesar de ter tentado escondê-lo com galhofa, rindo alto como os outros, ficou claro que estava estranhamente atraído.

           Durante o jantar, as gêmeas imitaram a brincadeira de Daisy e puseram-se a falar como homens, com vozes graves e sonoras, fazendo os outros rirem. Lindy ergueu o copo e disse:

           – O que achou deste vinho, Liz?

           – Achei um pouco aguado, meu chapa. Tenho a impressão de que Bing anda diluindo seus vinhos, sabe?

           Durante todo o jantar, Daisy flagrou Boy olhando para ela. O rapaz não se parecia muito com o belo pai, mas ainda assim era atraente, e tinha os mesmos olhos azuis da mãe. Ela começou a ficar encabulada, como se ele estivesse olhando com volúpia para seus seios. Para romper o feitiço, perguntou:

           – Tem feito as provas na universidade, Boy?

           – Pelo amor de Deus, não – respondeu ele.

           – Ele está ocupado demais pilotando seu avião para estudar – comentou o pai. Apesar de formulada como uma crítica, a frase fez parecer que Fitz na verdade sentia orgulho do primogênito.

           Boy se fez de ultrajado.

           – Que calúnia! – disse ele.

           Eva estava perplexa.

           – Se você não quer estudar, por que está na universidade? – perguntou.

           – Alguns dos rapazes não fazem questão de se formar, sobretudo se não tiverem inclinação para a vida acadêmica – explicou Lindy.

           – Sobretudo se forem ricos e preguiçosos – acrescentou Lizzie.

           – Mas eu estudo! – protestou Boy. – Só que, de fato, não pretendo fazer as provas. Na verdade não pretendo ganhar a vida como médico, nem nada disso. – Quando Fitz morresse, Boy herdaria uma das maiores fortunas da Inglaterra.

           E sua sortuda esposa seria a condessa Fitzherbert.

           – Espere um instante – disse Daisy. – Você tem mesmo seu próprio avião?

           – Tenho. É um Hornet Moth. Faço parte do aeroclube da universidade. Nós usamos um pequeno campo de pouso fora da cidade.

           – Que maravilha! Você tem que me levar para voar!

           – Ai, querida, não! – protestou sua mãe.

           – Você não ficaria nervosa? – perguntou Boy a Daisy.

           – Nem um pouco!

           – Então vou levá-la. – Ele se virou para Olga. – É absolutamente seguro, Sra. Peshkov. Prometo que vou trazê-la de volta inteirinha.

           Daisy ficou animadíssima.

           A conversa passou para o assunto preferido daquele verão: o elegante novo rei da Inglaterra, Eduardo VIII, e seu romance com Wallis Simpson, uma americana separada pela segunda vez. Os jornais de Londres não comentavam nada a respeito, apenas incluíam a Sra. Simpson na lista de convidados dos eventos reais. A mãe de Daisy, porém, mandava vir os jornais americanos, repletos de especulações sobre se Wallis iria se divorciar do Sr. Simpson para se casar com o rei.

           – Isso está totalmente fora de cogitação – disse Fitz, severo. – O rei é o chefe da Igreja Anglicana. Não há a menor possibilidade de se casar com uma mulher divorciada.

           Quando as senhoras se retiraram, deixando os homens a sós para saborearem vinho do Porto e charutos, as moças correram para trocar de roupa. Daisy decidiu realçar sua feminilidade e escolheu um vestido de baile de seda cor-de-rosa estampado com pequenas flores, com um bolerinho de mangas curtas e bufantes do mesmo tecido.

           Eva pôs um vestido bem simples de seda preta, sem mangas. No ano anterior, ela havia emagrecido, mudado o penteado e aprendido – sob a orientação de Daisy – a usar roupas bem-cortadas e sem adereços, que a favoreciam. Eva agora era praticamente da família e Olga adorava comprar roupas para ela. Daisy a considerava a irmã que nunca tivera.

           Ainda estava claro quando todos subiram nos carros e carruagens e percorreram os oito quilômetros até o centro da cidade.

           Daisy achava Cambridge o lugar mais excêntrico que já vira, com suas ruazinhas sinuosas e os prédios elegantes das faculdades. Todos desceram no Trinity College, e Daisy ergueu os olhos para a estátua de seu fundador, o rei Henrique VIII. Quando atravessaram o portão de tijolos do século XVI, soltou um arquejo de prazer ao deparar com a visão à sua frente: uma grande área quadrada, com o gramado bem-aparado cercado por caminhos de pedra e, no centro, um chafariz cheio de detalhes arquitetônicos. Nos quatro lados, construções muito antigas de pedra dourada formavam o pano de fundo para rapazes de casaca que dançavam com moças lindamente vestidas, e para dúzias de garçons trajando roupas de gala, que circulavam com bandejas cheias de taças de champanhe. Daisy bateu palmas de alegria: aquilo era exatamente o tipo de coisa que adorava.

           Ela dançou com Boy, depois com Jimmy Murray e com Bing, que a apertou bem junto ao corpo e deixou a mão direita escorregar da base de suas costas pela curva do quadril. Ela decidiu não protestar. A banda inglesa tocava uma imitação sem graça de um jazz americano, mas o som era alto e rápido, e os músicos conheciam todos os sucessos mais recentes.

           A noite caiu e o espaço foi iluminado por tochas acesas. Daisy fez uma pausa para ver como Eva estava, pois a amiga não tinha a sua desenvoltura social e às vezes precisava ser apresentada às pessoas. No entanto, não havia por que se preocupar: Eva estava conversando com um universitário extremamente bonito, que usava uma casaca folgada demais para ele. A amiga o apresentou como Lloyd Williams.

           – Estávamos conversando sobre o fascismo na Alemanha – explicou Lloyd, como se Daisy pudesse querer entrar na conversa.

           – Ai, que coisa mais sem graça! – comentou Daisy.

           Mas Lloyd pareceu não ouvir.

           – Eu estive em Berlim três anos atrás, quando Hitler subiu ao poder. Não conheci Eva na época, mas parece que nós temos alguns conhecidos em comum.

           Jimmy Murray apareceu e tirou Eva para dançar. Lloyd ficou visivelmente decepcionado ao vê-la se afastar, mas reuniu seus bons modos e, gracioso, convidou Daisy para dançar também. Os dois foram para mais perto da banda.

           – Sua amiga Eva é muito interessante – comentou ele.

           – Ora, Sr. Williams, isso é exatamente o que toda moça sonha em ouvir do seu par durante uma dança – retrucou Daisy. Assim que pronunciou as palavras, se arrependeu de ter sido tão rabugenta.

           Mas Lloyd achou graça. Ele sorriu e disse:

           – Meu Deus, você tem toda a razão. Mereci o puxão de orelha. Preciso tentar ser mais galante.

           Na mesma hora, ela gostou mais dele por saber rir de si mesmo. Era uma prova de autoconfiança.

           – Você está hospedada em Chimbleigh, como Eva?

           – Estou.

           – Então deve ser a americana que deu o dinheiro para Ruby Carter ir ao dentista.

           – Como o senhor sabe disso?

           – Ela é minha amiga.

           Daisy ficou espantada.

           – Muitos universitários são amigos de criadas?

           – Puxa, que comentário mais esnobe! Minha mãe foi criada antes de ser eleita deputada.

           Daisy sentiu o rosto corar. Detestava pessoas esnobes e muitas vezes acusava os outros de ser assim, principalmente em Buffalo. Considerava-se totalmente inocente desse tipo de atitude indigna.

           – Começamos mesmo com o pé esquerdo, não foi? – disse ela quando a dança chegou ao fim.

           – Para falar a verdade, não – respondeu ele. – Você acha sem graça falar sobre fascismo, mas ainda assim acolhe uma refugiada alemã em sua casa e a convida para acompanhá-la à Inglaterra. Acha que criadas não podem ser amigas de universitários, mas dá dinheiro para Ruby ir ao dentista. Acho que não vou conhecer nenhuma moça tão intrigante quanto você esta noite.

           – Vou tomar isso como um elogio.

           – Lá vem Boy Fitzherbert, seu amigo fascista. Quer que eu dê um chega para lá nele?

           Daisy sentiu que Lloyd adoraria ter uma oportunidade para brigar com Boy.

           – De jeito nenhum! – respondeu ela, virando-se para acolher o recém-chegado com um sorriso.

           Boy cumprimentou Lloyd com um meneio de cabeça breve.

           – Boa noite, Williams.

           – Boa noite – respondeu Lloyd. – Fiquei decepcionado ao ver os seus fascistas marchando pela Hills Road no sábado passado.

           – Ah, sim – disse Boy. – Eles se entusiasmaram um pouco demais.

           – Fiquei surpreso, pois você me dera a sua palavra de que isso não iria acontecer.

           Daisy viu que, por baixo da fria máscara dos bons modos, Lloyd estava zangado.

           Mas Boy se recusou a levar o assunto a sério.

           – Peço desculpas – falou em tom casual. Então virou-se para Daisy: – Venha conhecer a biblioteca. Foi projetada pelo arquiteto Christopher Wren.

           – Com prazer! – Ela se despediu de Lloyd com um aceno e deixou Boy pegar seu braço. Lloyd pareceu desapontado ao vê-la se afastar.

           Do lado esquerdo do gramado, uma passagem conduzia a um pátio onde, na extremidade oposta, se erguia uma construção elegante e isolada. Daisy admirou os claustros do térreo. Boy lhe explicou que os livros ficavam no andar superior por causa das enchentes do rio Cam.

           – Vamos subir e olhar o rio – disse ele. – Fica muito bonito à noite.

           Daisy tinha 20 anos e, embora fosse inexperiente, sabia que Boy não estava nem um pouco interessado em admirar rios à noite. No entanto, ao pensar na reação dele ao vê-la vestida de homem, perguntou a si mesma se talvez ele não preferisse rapazes a moças. Imaginou que estivesse prestes a descobrir.

           – Você conhece mesmo o rei? – indagou ela enquanto ele a fazia atravessar um segundo pátio.

           – Conheço. Ele é mais amigo do meu pai, claro, mas de vez em quando vai à nossa casa. E posso lhe garantir que ele aprecia um bocado algumas das minhas opiniões políticas.

           – Eu adoraria conhecê-lo. – Ela sabia que estava soando ingênua, mas aquela era a sua chance e não iria desperdiçá-la.

           Os dois atravessaram um portão e chegaram a um gramado liso que descia na direção de um rio estreito, contido por muros.

           – Esta parte se chama The Backs, os fundos – explicou Boy. – A maioria das faculdades mais antigas possui terras do outro lado do curso de água. – Quando os dois iam se aproximando de uma pequena ponte, ele passou o braço em volta da cintura dela. Sua mão subiu mais um pouco, como por acaso, até o indicador tocar a parte inferior de seu seio.

           Do outro lado da pequena ponte, dois funcionários da universidade, uniformizados, montavam guarda, provavelmente para impedir a entrada de penetras no baile. Um dos homens murmurou:

           – Boa noite, visconde de Aberowen. – O outro conteve um sorriso.

           Boy respondeu com um meneio de cabeça quase imperceptível. Daisy se perguntou quantas outras moças ele teria conduzido por aquela mesma ponte.

           Sabia que Boy tinha um motivo para fazer aquele passeio com ela. E, como era de esperar, ele parou no escuro e pôs as duas mãos nos ombros de Daisy.

           – Você estava bem atraente com aquela roupa durante o jantar. – Sua voz soava rouca de excitação.

           – Que bom que você gostou. – Ela sabia que estava prestes a ser beijada e, ao pensar nisso, sentiu desejo por ele, mas ainda não estava de todo preparada. Pôs uma das mãos espalmada no peito dele, para mantê-lo a distância. – Quero mesmo ser apresentada na corte real – falou. – É difícil arranjar isso?

           – Nem um pouco – respondeu ele. – Pelo menos, não para a minha família. E não para alguém tão bonita quanto você. – Ele inclinou a cabeça ansiosamente na sua direção.

           Ela se afastou.

           – Você faria isso por mim? Daria um jeito de eu ser apresentada?

           – Claro.

           Ela chegou mais perto e pôde sentir a ereção na calça dele. Não, pensou, ele não prefere rapazes.

           – Promete? – pediu.

           – Prometo – respondeu ele, ofegante.

           – Obrigada – disse Daisy e então deixou que ele a beijasse.

 

           À uma hora da tarde de sábado, a pequena casa da Wellington Row em Aberowen, Gales do Sul, estava lotada. Sentado à mesa da cozinha, o avô de Lloyd parecia orgulhoso. Tinha a um de seus lados o filho, Billy Williams, um mineiro que fora eleito deputado por Aberowen. Do outro lado estava o neto, Lloyd, aluno da Universidade de Cambridge. A filha, também deputada, estava ausente. Aquela era a dinastia Williams. Ninguém ali jamais diria isso – o conceito de dinastia era antidemocrático, e aquelas pessoas acreditavam na democracia da mesma forma que o papa acreditava em Deus –, mas, ainda assim, Lloyd desconfiava que esse devia ser o pensamento de Granda.

           Também estava à mesa o amigo de longa data e agente de seu tio Billy, Tom Griffiths. Lloyd estava honrado por se sentar ao lado desses homens. Granda era um veterano do sindicato dos mineiros; seu tio Billy fora levado a corte marcial em 1919 por ter revelado a guerra secreta da Grã-Bretanha contra os bolcheviques; Tom lutara com Billy na batalha do Somme. Aquilo era mais impressionante do que jantar com membros da família real.

           A avó de Lloyd, Cara Williams, tinha servido um ensopado de carne com pão caseiro, e agora estavam todos ao redor da mesa bebendo chá e fumando. Amigos e vizinhos tinham aparecido, como sempre acontecia quando Billy ia à cidade, e meia dúzia deles se apoiava nas paredes pitando cachimbos e cigarros enrolados à mão, enchendo a cozinha com o cheiro de homens e tabaco.

           Billy tinha a mesma baixa estatura e os mesmos ombros largos de muitos outros mineiros, mas, ao contrário dos demais, estava bem-vestido, de terno azul-marinho, camisa branca limpa e gravata vermelha. Lloyd reparou que todos ali o chamavam pelo primeiro nome, como para ressaltar o fato de que Billy era um deles e que subira ao poder graças aos seus votos. E chamavam Lloyd de “garoto”, deixando claro que a sua condição de universitário não os impressionava. Granda, porém, era tratado como Sr. Williams: era a ele que de fato respeitavam.

           Pela porta do fundos, que estava aberta, Lloyd podia ver a pilha de resíduos de carvão da mina, uma montanha que não parava de crescer e já havia chegado à rua atrás da casa.

           Lloyd estava trabalhando como organizador num campo de mineiros desempregados, durante as férias de verão, em troca de um salário módico. O projeto consistia em reformar a biblioteca do Instituto dos Mineiros. Para ele, o trabalho braçal de lixar, pintar e montar estantes era uma mudança bem-vinda em sua rotina de leitura de Schiller em alemão e Molière em francês. Gostava daquele clima descontraído entre os homens: tinha herdado da mãe o apreço pelo senso de humor dos galeses.

           Aquilo era ótimo, mas não estava lutando contra o fascismo. Seu rosto se contraía numa careta sempre que ele se lembrava de como ficara encolhido dentro da capela batista enquanto Boy Fitzherbert e os outros arruaceiros entoavam cantos na rua e atiravam pedras pela janela. Desejava ter ido até lá fora e dado um soco em alguém. Poderia até ter sido burrice, mas ele teria se sentido melhor. Pensava nisso todas as noites antes de pegar no sono.

           Pensava também em Daisy Peshkov, com seu bolerinho de seda cor-de-rosa e mangas bufantes.

           Tinha visto Daisy uma segunda vez durante a Semana de Maio. Fora assistir a um recital na capela do King’s College, porque o aluno do quarto vizinho ao seu no Emmanuel era um dos violoncelistas, e Daisy estava na plateia com a família Westhampton. Usava um chapéu de palha com a aba virada para cima que lhe dava o aspecto de uma colegial travessa. Ele fora procurá-la depois do espetáculo e fizera perguntas sobre os Estados Unidos, onde nunca estivera. Queria informações a respeito do governo do presidente Roosevelt, descobrir se ele tinha alguma lição para ensinar à Inglaterra, mas Daisy só conseguiu falar de festas no Clube de Tênis, partidas de polo e o Iate Clube. Apesar disso, ele se sentira novamente cativado por ela. Sua conversa alegre o agradava ainda mais por ser pontuada por tiradas inesperadas de inteligência sarcástica.

           – Não quero afastá-la dos seus amigos – dissera ele. – Só queria perguntar sobre o New Deal.

           – Puxa, você sabe mesmo deixar uma garota lisonjeada – respondera ela. No entanto, ao se despedirem, falara: – Ligue para mim quando for a Londres: Mayfair 2434.

           Nesse dia, ele estava a caminho da estação de trem e foi almoçar na casa dos avós. Tinha alguns dias de folga do trabalho, então pegaria o trem para Londres e passaria alguns dias lá. Tinha a vaga esperança de esbarrar com Daisy, como se Londres fosse uma cidadezinha igual a Aberowen.

           No campo de mineiros, ele era responsável pelas aulas de educação política, e contou ao avô que havia organizado uma série de palestras com professores esquerdistas de Cambridge.

           – Digo a eles que essa é sua chance de descer da torre de marfim e conhecer a classe trabalhadora, e eles acham difícil recusar.

           Os olhos azul-claros de Granda espiaram por cima de seu nariz comprido e afilado.

           – Espero que nossos rapazes lhes ensinem algumas coisinhas sobre o mundo real.

           Lloyd apontou para o filho de Tom Griffiths, que ouvia a conversa de pé junto à porta dos fundos. Aos 16 anos, Lenny já exibia a sombra de uma barba preta típica dos Griffiths, que não desaparecia nem mesmo quando suas faces estavam recém-barbeadas.

           – Lenny teve uma discussão com um palestrante marxista.

           – Muito bem, Len – disse Granda. O marxismo era popular em Gales do Sul, região às vezes chamada, de brincadeira, de Pequena Moscou, mas Granda sempre fora um anticomunista feroz.

           – Conte para Granda o que você falou, Lenny.

           O rapaz abriu um sorriso e disse:

           – Em 1872, o líder anarquista Mikhail Bakunin alertou Karl Marx para o fato de que os comunistas, no poder, seriam tão opressores quanto a aristocracia que iriam substituir. Depois do que aconteceu na Rússia, alguém pode dizer que Bakunin estava errado?

           Granda bateu palmas. Um bom argumento era sempre muito valorizado à mesa da sua cozinha.

           A avó de Lloyd lhe serviu mais uma xícara de chá. Como todas as mulheres de Aberowen que tinham a sua idade, Cara Williams estava grisalha, enrugada e corcunda.

           – Já está cortejando alguma moça, meu anjo? – perguntou ela a Lloyd.

           Os homens sorriram e piscaram.

           Lloyd corou.

           – Estou muito ocupado estudando, Grandmam. – No entanto, a imagem de Daisy Peshkov surgiu em sua mente acompanhada pelo número de telefone: Mayfair 2434.

           – Então quem é essa tal de Ruby Carter? – quis saber a avó.

           Os homens riram e seu tio Billy falou:

           – Pegaram você, garoto!

           Estava claro que a mãe de Lloyd havia contado alguma coisa.

           – Ruby é a responsável pelas novas associações no escritório do Partido Trabalhista em Cambridge, só isso – protestou Lloyd.

           – Ah, sim, muito convincente – comentou Billy com sarcasmo, e os homens tornaram a rir.

           – Você não iria querer que eu saísse com Ruby, Grandmam – disse Lloyd. – Acharia as roupas dela justas demais.

           – É, ela não parece muito adequada – comentou Cara. – Você agora é um universitário. Precisa elevar seus padrões.

           Lloyd percebeu que a avó era tão esnobe quanto Daisy.

           – Não há nada de errado com Ruby Carter – defendeu ele. – Só que eu não estou apaixonado por ela.

           – Você deve se casar com uma mulher instruída, uma professora ou enfermeira.

           O problema era que sua avó tinha razão. Lloyd gostava de Ruby, mas jamais se apaixonaria por ela. Ela até que era bonita, além de inteligente, e Lloyd se deixava seduzir por um belo corpo tanto quanto qualquer um. Mas, ainda assim, sabia que ela não era a moça certa para ele. O pior de tudo era que Grandmam havia apontado com precisão o motivo disso: o futuro de Ruby era limitado e seus horizontes, estreitos. Ela não era instigante. Ao contrário de Daisy.

           – Chega dessa conversa sobre mulheres – disse Granda. – Billy, conte-nos as notícias da Espanha.

           – São ruins – falou Billy.

           A Europa inteira estava prestando atenção na Espanha. O governo de esquerda eleito em fevereiro desse mesmo ano sofrera uma tentativa de golpe militar apoiada por fascistas e conservadores. Franco, o general dos rebeldes, conseguira o apoio da Igreja Católica. A notícia havia atingido o resto do continente como um terremoto. Depois da Alemanha e da Itália, será que a Espanha também sucumbiria à maldição do fascismo?

           – Como vocês devem saber, a rebelião foi mal conduzida e quase fracassou – prosseguiu Billy. – Mas Hitler e Mussolini saíram em ajuda e salvaram a insurreição enviando de avião milhares de soldados rebeldes do norte da África como reforços.

           – E os sindicatos salvaram o governo! – interveio Lenny.

           – É verdade – concordou Billy. – O governo demorou a reagir, mas os sindicatos lideraram a organização dos trabalhadores e lhes deram armas confiscadas de arsenais militares, navios, lojas e qualquer outro lugar onde se pudesse encontrar armamento.

           – Pelo menos alguém está resistindo – comentou Granda. – Até agora, os fascistas conseguiram tudo o que queriam. Simplesmente entraram na Renânia e na Abissínia e pegaram o que desejavam. Graças a Deus os espanhóis existem, é isso que eu acho. Eles têm coragem de dizer não.

           Os homens reunidos junto às paredes murmuraram sua aprovação.

           Lloyd se lembrou novamente daquela tarde de sábado em Cambridge. Ele também tinha deixado os fascistas fazerem o que queriam. E fervilhava de frustração por causa disso.

           – Mas será que eles conseguem ganhar? – continuou Granda. – Parece que a questão agora são as armas, não é?

           – Sim – concordou Billy. – Os alemães e os italianos estão abastecendo os rebeldes com armas e munição, e também com caças e pilotos. Mas ninguém está ajudando o governo eleito da Espanha.

           – Droga! E por que não? – questionou Lenny, zangado.

           Cara ergueu do fogão seus olhos escuros de mulher mediterrânea, que chispavam de reprovação. Por um instante, Lloyd teve a impressão de estar vendo a linda moça que sua avó fora um dia.

           – Não quero saber desse palavreado na minha cozinha! – ralhou ela.

           – Desculpe, Sra. Williams.

           – Eu posso contar a vocês o que realmente aconteceu – disse Billy, e os homens se calaram para escutar. – O primeiro-ministro francês, Léon Blum, que, como todos sabem, é socialista, estava preparado para ajudar. Ele já tem um vizinho fascista, a Alemanha, e a última coisa que deseja é outro regime fascista em sua fronteira sul. Enviar armas para o governo espanhol enfureceria a direita francesa, assim como os socialistas católicos do país, mas Blum seria capaz de suportar isso, principalmente se tivesse o apoio dos britânicos e pudesse dizer que armar o governo espanhol era uma iniciativa internacional.

           – O que deu errado, então? – perguntou Granda.

           – Nosso governo convenceu Blum a não agir. Ele foi a Londres, e Anthony Eden, nosso ministro das Relações Exteriores, disse que não iríamos apoiá-lo.

           Granda ficou com raiva.

           – E por que ele precisa de apoio? Como um primeiro-ministro socialista se deixa intimidar pelo governo conservador de outro país?

           – Porque na França também existe o perigo de um golpe militar – respondeu Billy. – A imprensa de lá é direitista convicta, e está incitando os fascistas franceses ao frenesi. Com o apoio britânico, Blum pode combatê-la... mas, sem isso, talvez não.

           – Então é o nosso governo que está sendo mole com o fascismo de novo!

           – Todos os conservadores do Reino Unido têm investimentos na Espanha: vinho, têxteis, carvão, aço... eles têm medo de que o governo de esquerda os desaproprie.

           – E os Estados Unidos? Eles acreditam na democracia. Com certeza vão mandar armas para a Espanha, não?

           – Seria lógico, não é? Mas existe um lobby católico muito bem financiado, comandado por um milionário chamado Joseph Kennedy, que é contra qualquer ajuda ao governo espanhol. E um presidente democrata precisa do apoio dos católicos. Roosevelt não vai fazer nada que possa ameaçar o New Deal.

           – Bem, uma coisa nós podemos fazer – disse Lenny Griffiths, com uma expressão de ousadia adolescente no rosto.

           – O quê, Len? – indagou Billy.

           – Podemos ir para a Espanha lutar.

           – Pare de falar bobagem, Lenny – repreendeu seu pai.

           – Pessoas do mundo inteiro estão pensando em ir, até dos Estados Unidos. Elas querem formar unidades de voluntários para combater ao lado do Exército regular.

           Lloyd se empertigou na cadeira.

           – É mesmo? – Era a primeira vez que ouvia falar naquilo. – Como você sabe disso?

           – Li alguma coisa no Daily Herald.

           Lloyd ficou subitamente animado. Voluntários indo à Espanha combater os fascistas!

           – Bem, mas você não vai e pronto – disse Tom Griffiths a Lenny.

           – Lembram-se daqueles garotos que mentiram a própria idade para lutar na Grande Guerra? – perguntou Billy. – Milhares deles.

           – A maioria totalmente inútil – rebateu Tom. – Eu me lembro daquele menino que chorou antes da batalha do Somme. Qual era mesmo o nome dele, Billy?

           – Owen Bevin. Ele fugiu, não foi?

           – Foi... e deu de cara com um pelotão. Foi fuzilado como desertor. Ele tinha 15 anos, coitadinho.

           – Eu tenho 16 – disse Lenny.

           – Ah, sim – zombou seu pai. – Grande diferença.

           – Lloyd, vai acabar perdendo o trem que sai para Londres daqui a dez minutos – disse Granda.

           Ele ficara tão impressionado com a revelação de Lenny que perdera a noção do tempo. Pulou da cadeira, deu um beijo na avó e pegou sua pequena mala.

           – Vou com você até a estação – disse Lenny.

           Lloyd se despediu de todos e desceu a colina apressado. Lenny não disse nada durante o trajeto; parecia preocupado. Lloyd ficou feliz por não ter que conversar: sua mente era um verdadeiro turbilhão.

           O trem já estava na plataforma. Lloyd comprou uma passagem de terceira classe para Londres. Quando estava prestes a embarcar, Lenny disse:

           – Diga-me uma coisa, Lloyd: como se faz para tirar passaporte?

           – Você está falando sério sobre ir para a Espanha, não está?

           – Vamos lá, cara, não me enrole.

           O apito do trem soou. Lloyd subiu a bordo, fechou a porta e abaixou a janela.

           – Você tem que ir à agência dos correios e pedir um formulário – falou.

           – Se eu pedir um formulário de passaporte na agência dos correios de Aberowen, minha mãe vai ficar sabendo em trinta segundos – disse Lenny, desanimado.

           – Então vá à agência de Cardiff – retrucou Lloyd.

           Em seguida, o trem começou a andar.

           Ele se acomodou na cadeira e tirou do bolso um exemplar em francês de O vermelho e o negro, de Stendhal. Ficou olhando a página sem assimilar nada do texto. Só conseguia pensar em uma coisa: ir para a Espanha.

           Sabia que ficaria com medo, mas tudo o que sentia era excitação diante da possibilidade de lutar – lutar de verdade, e não apenas organizar reuniões – contra o tipo de gente que soltara cães famintos em cima de Jörg. O medo viria depois, sem dúvida. Antes de uma luta de boxe, no vestiário, ele não sentia medo. No entanto, quando pisava no ringue e via o homem que queria bater nele até fazê-lo perder os sentidos, olhava para os ombros musculosos, para os punhos firmes e para o rosto mal-encarado, sua boca ficava seca e seu coração disparava, e ele precisava resistir ao impulso de virar as costas e sair correndo.

           No momento, o que mais o preocupava eram seus pais. Bernie sentia muito orgulho de ter um enteado estudando em Cambridge – já tinha dito isso para metade do East End –, e ficaria arrasado se Lloyd abandonasse a universidade antes de se formar. Ethel ficaria apavorada com a possibilidade de o filho se ferir ou ser morto. Ambos ficariam muito preocupados.

           Havia também outras questões. Como ele conseguiria chegar à Espanha? Para que cidade iria? Como pagaria a passagem? Mas apenas um empecilho realmente o detinha.

           Daisy Peshkov.

           Disse a si mesmo que deixasse de ser ridículo. Tinha visto a moça duas vezes. Ela nem sequer estava interessada nele, o que mostrava que era inteligente, pois os dois nada tinham em comum. Ela era filha de um milionário, uma socialite fútil que achava maçante falar sobre política. Gostava de homens como Boy Fitzherbert: só isso já provava que era a mulher errada para Lloyd. Mesmo assim, ele não conseguia tirá-la da cabeça e a ideia de ir para a Espanha e perder qualquer chance de tornar a vê-la o deixava triste.

           Mayfair 2434.

           Sentiu vergonha da própria hesitação, sobretudo ao se lembrar da determinação de Lenny. Havia muitos anos que Lloyd falava em combater o fascismo. Agora tinha uma chance de fazer isso. Como poderia não ir?

           Chegou à estação londrina de Paddington, pegou o metrô até Aldgate e foi a pé até a casa geminada da Nutley Street na qual havia nascido. Entrou com a própria chave. O lugar não mudara muito desde que ele era criança, mas uma das inovações era o telefone sobre a mesinha ao lado do cabide para chapéus. Era o único telefone da rua e os vizinhos o tratavam como se fosse um bem público. Junto ao aparelho havia uma caixa onde depositavam o dinheiro para pagar as ligações.

           Sua mãe se encontrava na cozinha. Já estava de chapéu, pronta para discursar numa reunião do Partido Trabalhista – o que mais poderia ser? –, mas mesmo assim pôs a chaleira no fogo e preparou um chá para o filho.

           – Como vai todo mundo em Aberowen? – perguntou ela.

           – Tio Billy está passando o fim de semana lá – respondeu Lloyd. – Todos os vizinhos se reuniram na cozinha de Granda. Parece uma corte medieval.

           – Seus avós estão bem?

           – Granda está o mesmo de sempre. Grandmam parece envelhecida. – Ele fez uma pausa. – Lenny Griffiths quer ir para a Espanha lutar contra os fascistas.

           Sua mãe franziu os lábios em reprovação.

           – Ah, é?

           – Estou pensando em ir com ele. O que você acha?

           Ele já previa que ela fosse se opôr, mas mesmo assim sua reação o surpreendeu.

           – Não se atreva a fazer uma merda dessas! – disse ela, descontrolada. Ethel não compartilhava a aversão da mãe a xingamentos. – Nem fale disso! – Ela bateu com o bule de chá sobre a mesa da cozinha. – Eu pari você com dor e sofrimento, criei você, calcei sapatos nos seus pés e o mandei para a escola, e não passei por tudo isso para você jogar sua vida fora numa porcaria de uma guerra!

           Ele ficou espantado.

           – Eu não estava pensando em jogar minha vida fora – falou. – Mas talvez em arriscá-la em nome de uma causa na qual você me criou para acreditar.

           Para sua surpresa, ela começou a soluçar. Ethel raramente chorava – na verdade, Lloyd não conseguia nem se lembrar da última vez que isso havia acontecido.

           – Mãe, pare. – Ele passou o braço em volta de seus ombros trêmulos. – Não aconteceu nada ainda.

           Bernie, um homem de meia-idade, atarracado e careca, entrou na cozinha.

           – O que está acontecendo aqui? – perguntou. Parecia um pouco assustado.

           – Desculpe, pai. Eu a aborreci – disse Lloyd, recuando um passo para deixar Bernie abraçar Ethel.

           – Ele vai para a Espanha! – lamentava-se ela bem alto. – Vai ser morto!

           – Vamos todos manter o controle e conversar com calma – disse Bernie.

           Era um homem ponderado. Estava vestido com um terno escuro simples e calçava sapatos de solas grossas, consertados inúmeras vezes. Sem dúvida era por isso que as pessoas votavam nele: Bernie era o representante de Aldgate no Conselho do Condado de Londres. Lloyd não conhecia o pai biológico, mas não se imaginava amando um pai de verdade mais do que amava Bernie, que sempre tinha sido um padrasto amoroso, disposto a reconfortar e dar conselhos, e pouco inclinado a mandar ou punir. Tratava Lloyd exatamente do mesmo modo como tratava Millie, sua filha legítima.

           Bernie convenceu Ethel a se sentar à mesa da cozinha e Lloyd lhe serviu uma xícara de chá.

           – Certa vez achei que meu irmão tivesse morrido – disse Ethel, ainda com lágrimas escorrendo pelo rosto. – Era dia de telegramas na Wellington Row, e o pobre rapaz dos correios tinha que ir de casa em casa entregando a homens e mulheres pedacinhos de papel que diziam que seus filhos e maridos estavam mortos. Coitado, qual era mesmo o nome dele? Geraint, acho. Mas ele não tinha um telegrama para a nossa casa, e eu, má que sou, agradeci a Deus por outros terem morrido, mas não o nosso Billy!

           – Você não é má – disse Bernie, fazendo-lhe um carinho.

           A meia-irmã de Lloyd, Millie, veio do andar de cima. Tinha 16 anos, porém parecia mais velha, sobretudo vestida daquele jeito: com uma roupa preta bastante elegante e pequenos brincos de ouro. Ela passara dois anos trabalhando numa loja de roupas femininas de Aldgate, mas era inteligente e ambiciosa, e fazia poucos dias conseguira um emprego numa sofisticada loja de departamentos do West End. Olhou para Ethel e perguntou:

           – O que houve, Mam? – Millie falava com um sotaque tipicamente londrino.

           – Seu irmão quer ir para a Espanha morrer! – exclamou Ethel.

           Millie olhou para Lloyd com ar acusador.

           – O que você andou dizendo a ela? – Millie era sempre rápida para encontrar defeitos no irmão mais velho, que ela acreditava ser alvo de uma adoração imerecida.

           Lloyd respondeu com uma tolerância afetuosa:

           – Lenny Griffiths, de Aberowen, vai lutar contra os fascistas e falei para Mam que estava pensando em ir com ele.

           – É a sua cara – disse Millie com desdém.

           – Duvido que você consiga chegar lá – ponderou Bernie, sempre prático. – Afinal de contas, o país está no meio de uma guerra civil.

           – Posso pegar um trem até Marselha. Barcelona não fica muito longe da fronteira com a França.

           – São quase 150 quilômetros. E a travessia dos Pireneus é muito fria.

           – Deve haver navios que vão de Marselha a Barcelona. Por mar não é tão longe.

           – É verdade.

           – Pare com isso, Bernie! – gritou Ethel. – Parece até que vocês estão conversando sobre o caminho mais rápido para chegar a Piccadilly Circus. Ele está falando em ir para a guerra! Não vou permitir isso.

           – Ele tem 21 anos, você sabe – respondeu Bernie. – Não podemos impedi-lo.

           – Eu sei quantos anos ele tem, merda!

           Bernie olhou para o relógio.

           – Temos que ir para a reunião. Você é a oradora principal. E Lloyd não vai para a Espanha hoje.

           – Como é que você sabe? – rebateu ela. – Nós podemos muito bem chegar em casa e encontrar um bilhete dizendo que ele pegou o trem para Paris!

           – Vamos fazer o seguinte: Lloyd, prometa à sua mãe que não irá dentro de, pelo menos, um mês – pediu Bernie. – De toda forma, não é má ideia: antes de sair correndo, você precisa se informar sobre como estão as coisas por lá. Deixe sua mãe tranquila por enquanto. Depois podemos voltar a conversar sobre esse assunto.

           Era uma proposta típica de Bernie, pensada para fazer todo mundo recuar sem se sentir humilhado. Mas Lloyd relutava em assumir qualquer compromisso. Por outro lado, não poderia simplesmente pular dentro de um trem. Precisava descobrir que acordos o governo espanhol estava fazendo para receber voluntários. O ideal seria que ele fosse com Lenny e outros rapazes. Precisaria de vistos, moeda estrangeira, um par de botas...

           – Está bem – concordou. – Eu espero um mês.

           – Prometa – pediu sua mãe.

           – Eu prometo.

           Ethel se acalmou. Pouco depois, passou pó de arroz no rosto e recuperou um aspecto mais normal. Tomou um gole de chá.

           Então vestiu o casaco e saiu com Bernie.

           – Certo, também já vou – disse Millie.

           – Aonde você vai? – perguntou-lhe Lloyd.

           – Ao Gaiety.

           O Gaiety era uma casa de espetáculos no East End.

           – E eles deixam meninas de 16 anos entrar?

           Ela lhe lançou um olhar malicioso.

           – Quem tem 16 anos aqui? Eu não. De todo modo, Dave também vai, e ele só tem 15. – Millie estava se referindo ao primo David Williams, filho de tio Billy e tia Mildred.

           – Bom, divirtam-se.

           Ela foi até a porta, mas depois voltou.

           – Só não vá morrer na Espanha, seu idiota. – Envolveu o irmão com os braços e o apertou bem forte, depois saiu sem dizer mais nada.

           Assim que ouviu a porta da frente bater, Lloyd foi até o telefone.

           Não precisou nem pensar para se lembrar do número. Uma imagem de Daisy surgiu em sua mente, virando-se para se despedir com um sorriso arrebatador sob o chapéu de palha e dizendo:

           – Mayfair 2434.

           Ele pegou o telefone e discou.

           O que iria dizer? “Você me disse para ligar, então estou ligando”? Fraco. A verdade? “Não a admiro nem um pouco, mas não consigo tirá-la da cabeça.” O melhor seria convidá-la para fazer alguma coisa, mas o quê? Assistir a uma reunião do Partido Trabalhista?

           Um homem atendeu.

           – Residência da Sra. Peshkov, boa noite. – Pelo tom deferente, Lloyd achou que fosse um mordomo. A mãe de Daisy decerto alugara uma casa em Londres com empregados e tudo.

           – Aqui é Lloyd Williams... – Ele quis dizer alguma coisa que explicasse ou justificasse a ligação, por isso falou a primeira coisa que lhe veio à mente: – ...do Emmanuel College. – Não significava nada, mas ele torceu para que causasse uma boa impressão. – Posso falar com a Srta. Daisy Peshkov?

           – Lamento, professor Williams – respondeu o mordomo, supondo que Lloyd fosse do corpo docente. – Todos foram à ópera.

           É claro, pensou Lloyd, decepcionado. Nenhuma socialite ficava em casa àquela hora da noite, principalmente no sábado.

           – Ah, sim, agora me lembro – mentiu. – Ela me disse que iria e eu me esqueci. Covent Garden, não é? – Prendeu a respiração.

           O mordomo, porém, não desconfiou de nada.

           – Isso mesmo, senhor. A flauta mágica, se não me engano.

           – Muito obrigado – disse Lloyd e em seguida desligou.

           Foi até o quarto e trocou de roupa. No West End, a maioria das pessoas usava trajes formais, mesmo para ir ao cinema. Mas o que ele faria quando chegasse lá? Não tinha dinheiro para comprar um ingresso para a ópera e, de toda forma, o espetáculo iria terminar dali a pouco.

           Pegou o metrô. A Royal Opera House ficava ao lado do Covent Garden, o mercado de frutas e legumes de Londres – uma localização um tanto incongruente. Por terem horários distintos, os dois estabelecimentos conviviam bem: o mercado abria às três ou quatro da manhã, quando mesmo os festeiros mais resistentes de Londres já estavam começando a ir para casa, e fechava antes da matinê.

           Lloyd passou pelas barracas fechadas do mercado e espiou através de portas de vidro para dentro da ópera. O lobby muito iluminado estava deserto e ele pôde ouvir ao longe a música de Mozart. Entrou. Adotando a atitude casual da classe alta, perguntou ao funcionário:

           – A que horas termina o espetáculo?

           Se estivesse usando seu terno de tweed, provavelmente teria escutado que não era da sua conta, mas o smoking era o uniforme da autoridade e o funcionário respondeu:

           – Daqui a uns cinco minutos, senhor.

           Lloyd agradeceu com um meneio seco de cabeça. Dizer “obrigado” o teria denunciado.

           Saiu do prédio e deu a volta no quarteirão. Era uma hora tranquila. Nos restaurantes, as pessoas pediam o café; nos cinemas, o filme se encaminhava para o clímax melodramático. Em pouco tempo, tudo iria mudar e as ruas se encheriam de gente gritando por táxis, encaminhando-se para boates, despedindo-se com beijos nos pontos de ônibus e correndo para pegar os últimos trens de volta aos subúrbios.

           Ele voltou para a ópera e entrou. A orquestra havia parado de tocar e a plateia começava a se agitar. Libertos da longa prisão de seus assentos, todos conversavam animadamente, elogiando os cantores, criticando os figurinos e fazendo planos para jantares tardios.

           Ele viu Daisy quase na mesma hora.

           Ela estava deslumbrante, com um vestido lilás e uma pequena estola de vison cor de champanhe sobre os ombros nus. Saiu da sala na frente de um pequeno grupo de jovens da sua idade. Lloyd ficou chateado ao avistar Boy Fitzherbert ao lado dela e ao ver que ela ria alegremente de algo que ele havia murmurado em seu ouvido enquanto desciam a escada coberta por um tapete vermelho. Atrás dela vinha Eva Rothmann, a interessante moça alemã, acompanhada por um rapaz alto trajando uma farda militar de gala para ocasiões especiais.

           Eva reconheceu Lloyd e sorriu. Ele falou com ela em alemão:

           – Boa noite, Fräulein Rothmann. Espero que tenha gostado da ópera.

           – Gostei muito, obrigada – respondeu ela na mesma língua. – Não reparei que o senhor estava na plateia.

           – Falem inglês, vocês dois – disse Boy, em tom amigável.

           Sua voz soava ligeiramente embriagada. Ele era bonito de um jeito paradoxal, como um adolescente belo e emburrado, ou um cão de raça que revirasse latas de lixo. Tinha modos agradáveis e provavelmente devia ser capaz de demonstrar um charme estonteante quando queria.

           – Visconde de Aberowen, este é o Sr. Williams – apresentou Eva, em inglês.

           – Nós já nos conhecemos – falou Boy. – Ele estuda no Emma.

           – Oi, Lloyd – disse Daisy. – Estamos indo aos barracos.

           Lloyd já tinha ouvido aquela expressão antes. Significava ir ao East End visitar pubs de baixa reputação e assistir a espetáculos de entretenimento da classe trabalhadora, como rinhas de cães.

           – Aposto que Williams conhece alguns lugares – disse Boy.

           Lloyd hesitou apenas por uma fração de segundo. Estaria disposto a aguentar Boy para ficar perto de Daisy? É claro que sim.

           – Na verdade, conheço mesmo – respondeu ele. – Querem que eu os leve?

           – Sensacional!

           Uma mulher mais velha apareceu e sacudiu o dedo para Boy.

           – Você tem que levar essas moças para casa antes da meia-noite – disse ela, com sotaque americano. – Nenhum segundo de atraso, ouviu? – Lloyd supôs que aquela fosse a mãe de Daisy.

           O rapaz alto de farda disse:

           – O Exército vai cuidar disso, Sra. Peshkov. Seremos pontuais.

           Atrás da Sra. Peshkov vinha o conde Fitzherbert com uma mulher gorda que devia ser sua esposa. Lloyd gostaria de poder questionar o conde sobre a política do governo britânico na Espanha.

           Dois carros os aguardavam do lado de fora. O conde, a esposa e a mãe de Daisy entraram em um Rolls-Royce Phantom III preto e creme. Boy e seu grupo se apinharam dentro do outro carro, uma limusine Daimler E20 azul-escura, o veículo favorito da família real. Eram sete jovens ao todo, contando com Lloyd. Eva parecia estar com o soldado, que se apresentou a Lloyd como tenente Jimmy Murray. A terceira moça era May, irmã de Jimmy, e o outro rapaz – uma versão mais magra e mais calada de Boy – era Andy Fitzherbert.

           Lloyd deu ao motorista intruções para chegar ao Gaiety.

           Viu Jimmy Murray passar discretamente o braço em volta da cintura de Eva. A reação dela foi chegar um pouquinho mais perto dele: ficou claro que os dois estavam flertando. Lloyd ficou feliz por Eva. Não era uma moça bonita, mas era inteligente e encantadora. Gostava dela e ficou satisfeito ao ver que ela havia se arranjado com um soldado alto. Perguntou-se, porém, como os outros membros daquele grupo de grã-finos reagiriam se Jimmy anunciasse que iria se casar com uma alemã filha de um judeu.

           Ocorreu-lhe que os outros jovens formavam mais dois casais: Andy e May, e – para sua irritação – Boy e Daisy. Lloyd estava sobrando. Sem querer encará-los demais, ficou examinando a moldura de mogno encerado da janela do carro.

           A limusine subiu Ludgate Hill até a Catedral de São Paulo.

           – Pegue o Cheapside – disse Lloyd ao motorista.

           Boy sorveu um grande gole de uma garrafinha de bolso feita de prata. Limpando a boca, falou:

           – Você sabe mesmo andar por aqui, Williams.

           – Eu moro aqui – respondeu Lloyd. – Nasci no East End.

           – Que maravilha – comentou Boy, e Lloyd não soube dizer se ele estava sendo distraidamente educado ou desagradavelmente sarcástico.

           No Gaiety, todos os assentos estavam ocupados, mas havia muitos lugares em pé, e os espectadores não paravam quietos, cumprimentando amigos e indo até o bar. Estavam todos bem-arrumados, as mulheres com vestidos de cores vivas e os homens com seus melhores ternos. O ar dentro da casa de espetáculos estava quente e enfumaçado, e um cheiro forte de cerveja derramada impregnava o ambiente. Lloyd encontrou um espaço para seu grupo perto dos fundos da sala. As roupas os identificavam como visitantes do West End, mas eles não eram os únicos: as casas de espetáculos faziam sucesso entre todas as classes.

           No palco, um ator de meia-idade usando um vestido vermelho e uma peruca loura apresentava um esquete de duplo sentido.

           – Eu disse para ele: “Não vou deixar você entrar na minha garagem.” – A plateia gargalhou. – E ele me respondeu: “Estou vendo sua garagem daqui, meu bem.” E eu falei: “Pode ir tirando o nariz daí!” E ele disse: “Parece que ela precisa de uma boa faxina.” Ora! Vejam só – terminou ele, fingindo indignação.

           Lloyd viu que Daisy ostentava um largo sorriso. Inclinando-se para junto dela, murmurou em seu ouvido:

           – Você reparou que é um homem, não reparou?

           – Não pode ser! – exclamou ela.

           – Preste atenção nas mãos.

           – Ai, meu Deus! Ela é homem!

           David, primo de Lloyd, passou pelo grupo, viu Lloyd e voltou para falar com ele.

           – Por que você está assim todo elegante? – perguntou ele, com um forte sotaque londrino. Estava usando um cachecol de tricô e uma boina de tecido.

           – Oi, Dave, como vão as coisas?

           – Vou para a Espanha com você e Lenny Griffiths – respondeu Dave.

           – Não vai nada – disse Lloyd. – Você tem 15 anos.

           – Meninos da minha idade lutaram na Grande Guerra.

           – E não ajudaram em nada... pergunte ao seu pai. Além do mais, quem disse que eu vou?

           – Sua irmã – respondeu Dave, e então se afastou.

           – Williams, o que as pessoas costumam beber neste lugar? – perguntou Boy.

           Lloyd achava que Boy não precisava de mais nenhuma gota de álcool, mesmo assim respondeu:

           – Cerveja para os homens, e Porto com limão para as moças.

           – Porto com limão?

           – É, vinho do Porto misturado com limonada.

           – Que coisa mais intragável. – Boy sumiu na direção do bar.

           O comediante chegou ao ponto alto do esquete.

           – Então eu disse a ele: “Seu idiota, essa é a porta errada!” – E então ela, ou ele, saiu do palco sob uma enxurrada de aplausos.

           Millie apareceu diante de Lloyd.

           – Oi – disse ela. – Quem é a sua amiga? – perguntou, olhando para Daisy.

           Lloyd ficou feliz por Millie estar tão bonita, com seu vestido preto sofisticado, um colar de pérolas falsas e maquiagem discreta.

           – Srta. Peshkov, permita-me apresentar minha irmã, a Srta. Leckwith. Millie, esta é Daisy.

           As duas se cumprimentaram com um aperto de mãos.

           – É um prazer conhecer a irmã de Lloyd – disse Daisy.

           – Meia-irmã, para ser mais exata – retrucou Millie.

           – Meu pai morreu na Grande Guerra – explicou Lloyd. – Não cheguei a conhecê-lo. Minha mãe se casou de novo quando eu ainda era bebê.

           – Aproveitem o espetáculo – disse Millie, dando-lhes as costas. No entanto, antes de se afastar, dirigiu-se a Lloyd com um sussurro: – Agora estou vendo por que Ruby Carter não tem a menor chance.

           Lloyd grunhiu por dentro. Sua mãe obviamente tinha contado à família inteira que ele estava envolvido com Ruby.

           – Quem é Ruby Carter? – indagou Daisy.

           – A criada de Chimbleigh a quem você deu o dinheiro para a consulta com o dentista.

           – Ah, sim, me lembro. Quer dizer então que o nome dela está sendo romanticamente associado ao seu?

           – Na imaginação da minha mãe, está.

           Daisy riu do ar sem graça dele.

           – Quer dizer que não vai se casar com uma criada?

           – Não vou me casar com Ruby.

           – Talvez combine com você.

           Lloyd a encarou.

           – Nem sempre nos apaixonamos pelas pessoas que mais combinam conosco, não é?

           Ela olhou para o palco. O espetáculo estava chegando ao fim e o elenco inteiro começava a entoar uma canção conhecida. A plateia, animada, começou a cantar junto. Os espectadores que estavam em pé nos fundos da sala deram-se os braços e puseram-se a balançar ao ritmo da música, e o grupo de Boy fez o mesmo.

           Quando a cortina baixou, Boy ainda não tinha voltado.

           – Vou procurá-lo – disse Lloyd. – Acho que sei onde ele pode estar. – O Gaiety tinha um toalete feminino, mas os homens tinham que usar uma latrina seca e vários barris de óleo cortados ao meio que ficavam no quintal. Lloyd encontrou Boy vomitando em um dos barris.

           Emprestou-lhe um lenço para que ele limpasse a boca, depois o pegou pelo braço e o conduziu pelo teatro já meio vazio até a limusine Daimler que aguardava do lado de fora. O restante do grupo estava esperando. Os dois entraram no carro e Boy pegou no sono imediatamente.

           Quando chegaram de novo ao West End, Andy Fitzherbert disse ao motorista que fosse primeiro à casa dos Murray, que ficava numa rua modesta perto da Trafalgar Square. Desceu do carro com May e falou:

           – Podem ir. Vou acompanhar May até a porta, depois voltarei para casa a pé.

           Lloyd imaginou que Andy estivesse planejando uma despedida romântica em frente à casa de May.

           Eles seguiram até Mayfair. Quando o carro estava chegando à Grosvernor Square, onde ficava a casa de Daisy e Eva, Jimmy disse ao motorista:

           – Pare na esquina, por favor. – Em seguida, baixando a voz, dirigiu-se a Lloyd: – Williams, você se incomodaria em acompanhar a Srta. Peshkov até a porta? Eu e Fräulein Rothmann encontraremos vocês daqui a um minuto.

           – É claro que não me incomodo. – Era óbvio que Jimmy queria dar um beijo de despedida em Eva ali no carro. Boy não perceberia nada: estava roncando. Já o motorista fingiria não ver, na esperança de receber uma gorjeta.

           Lloyd saltou do carro e ajudou Daisy a descer. Quando ela segurou sua mão, ele sentiu um arrepio semelhante a um pequeno choque elétrico. Então lhe deu o braço e, juntos, seguiram caminhando devagar pela calçada. A meio caminho entre dois postes, no ponto em que a luz era mais fraca, Daisy parou.

           – Vamos dar mais um tempinho a eles – falou.

           – Estou muito contente por Eva ter encontrado um namorado – comentou Lloyd.

           – Eu também.

           Ele tomou fôlego para continuar.

           – Não posso dizer o mesmo em relação a você e Boy Fitzherbert.

           – Ele me apresentou na corte! – disse Daisy. – E dancei com o rei numa boate... saiu em todos os jornais dos Estados Unidos.

           – E é por isso que você está namorando com ele? – perguntou Lloyd, sem acreditar.

           – Não só por isso. Ele gosta das mesmas coisas que eu: festas, cavalos de corrida, roupas bonitas. Ele é tão divertido! Tem até o próprio avião.

           – Nenhuma dessas coisas significa nada – disse Lloyd. – Termine com ele. Namore comigo.

           Ela pareceu satisfeita, mas riu.

           – Você é louco – falou. – Mas eu gosto de você.

           – Estou falando sério – disse ele, aflito. – Não consigo parar de pensar em você, mesmo sendo a última moça do mundo com quem eu deveria me casar.

           Ela tornou a rir.

           – Quanta grosseria! Não sei por que ainda converso com você. Acho que o considero agradável por trás dessa sua falta de jeito.

           – Na verdade, não sou sem jeito... Só com você.

           – Pode até ser. Mas não vou me casar com um socialista pobretão.

           Lloyd havia aberto seu coração, fora rejeitado de um jeito bastante charmoso e agora estava arrasado. Tornou a olhar para a limusine.

           – Quanto tempo será que eles vão demorar? – perguntou, desconsolado.

           – Mas eu até que poderia beijar um socialista, só para ver como é – disse Daisy.

           Ele demorou alguns segundos para reagir. Imaginou que ela estivesse falando em teoria. Mas uma moça jamais diria uma coisa dessas em teoria. Aquilo era um convite. E ele quase foi burro o suficiente para deixá-lo passar.

           Chegou mais perto e levou as mãos à cintura fina de Daisy. Ela virou o rosto para cima, e sua beleza o deixou sem ar. Ele abaixou a cabeça e a beijou suavemente na boca. Ela não fechou os olhos, e ele tampouco. Sentia-se incrivelmente excitado, encarando aqueles olhos azuis enquanto roçava seus lábios nos dela. Daisy então entreabriu a boca e ele tocou seus lábios com a ponta da língua. Instantes depois, sentiu a língua dela reagir. Ela não tirava os olhos dos seus. Lloyd teve a sensação de estar no paraíso e desejou poder permanecer naquele abraço para sempre. Ela apertou mais o corpo de encontro ao seu. Ele estava com uma ereção e ficou encabulado, com medo de que ela sentisse, por isso recuou – mas ela tornou a pressionar o corpo contra o dele, e ele percebeu, ainda a encarando, que ela queria sentir o contato de seu pênis contra o corpo macio. Entender isso tornou sua excitação quase insuportável. Ele teve a sensação de que estava prestes a ejacular e ocorreu-lhe que ela talvez até desejasse isso.

           Foi então que ouviu a porta do carro se abrir e escutou a voz de Jimmy Murray falando a uma altura levemente exagerada, como quem dá um alerta. Lloyd soltou Daisy.

           – Bem – murmurou ela, em tom de surpresa –, foi um prazer inesperado.

           – Mais que um prazer – retrucou Lloyd, rouco.

           Jimmy e Eva se aproximaram e os quatro caminharam até a porta da casa da Sra. Peshkov. Era uma construção imponente, com degraus que conduziam a uma varanda coberta. Lloyd se perguntou se aquela varanda poderia servir de abrigo para mais um beijo, mas, quando estavam subindo os degraus, a porta foi aberta por dentro por um homem em traje formal, provavelmente o mordomo com quem ele havia falado mais cedo. Como estava feliz por ter dado aquele telefonema!

           As moças se despediram com recato, sem dar qualquer indício de que, segundos antes, estavam atracadas em abraços apaixonados. A porta então se fechou e elas desapareceram.

           Lloyd e Jimmy tornaram a descer os degraus.

           – Eu vou a pé daqui – disse Jimmy. – Quer que eu diga ao motorista para levá-lo de volta até o East End? Você deve estar a pelo menos uns cinco quilômetros de casa. E Boy não vai se importar... Acho que ele vai dormir até a hora do café da manhã.

           – É muita gentileza sua, Murray, e eu lhe agradeço. Mas, acredite ou não, estou com vontade de andar. Tenho muito em que pensar.

           – Como preferir. Boa noite, então.

           – Boa noite – respondeu Lloyd. E, com a mente em turbilhão e a ereção cedendo aos poucos, ele se virou para leste e tomou o rumo de casa.

 

           A temporada social londrina terminou em meados de agosto, mas Boy Fitzherbert ainda não havia pedido Daisy Peshkov em casamento.

           Ela estava magoada e confusa. Todos sabiam que os dois estavam namorando. Viam-se quase todos os dias. O conde Fitzherbert tratava Daisy como se fosse uma filha, e até a desconfiada princesa Bea se afeiçoara a ela. Boy a beijava sempre que tinha oportunidade, mas não falava nada sobre o futuro.

           A longa série de almoços e jantares fartos, de festas e bailes cintilantes, de eventos esportivos tradicionais e de piqueniques regados a champanhe teve um fim abrupto. Muitos dos novos amigos que Daisy tinha feito deixaram Londres de uma hora para outra. A maioria foi para casas de campo em que, até onde ela conseguira entender, passaria o tempo caçando raposas, perseguindo cervos e atirando em pássaros.

           Daisy e Olga ficaram em Londres para o casamento de Eva Rothmann. Ao contrário de Boy, Jimmy Murray teve pressa em se casar com a mulher que amava. A cerimônia foi celebrada na igreja da paróquia frequentada pelos pais do noivo, em Chelsea.

           Daisy sentia que tinha feito um ótimo trabalho com Eva. Ensinara a amiga a escolher roupas que lhe caíam bem, estilos elegantes e sem muitos detalhes, em cores fortes que realçavam seus cabelos escuros e seus olhos castanhos. Cada vez mais confiante, Eva aprendera a usar sua simpatia natural e sua inteligência rápida para encantar homens e mulheres. E Jimmy se apaixonara por ela. Ele não era nenhum astro de cinema, mas era alto e suas feições brutas tinham um certo charme. Vinha de uma família de militares dona de uma modesta fortuna, de modo que Eva teria uma vida confortável, embora não fosse ficar rica.

           Os britânicos eram tão preconceituosos quanto qualquer outro povo e, no início, o general Murray e sua esposa não tinham ficado nada satisfeitos com a ideia de seu filho se casar com uma refugiada alemã filha de um judeu. Eva não demorara a conquistá-los, mas muitos dos amigos do casal ainda tinham reservas veladas. No casamento, Daisy ouvira Eva ser chamada de “exótica”, Jimmy de “corajoso”, e os Murray de “incrivelmente liberais”: eram formas variadas de se referir do modo mais elogioso possível a um enlace inadequado.

           Jimmy tinha escrito uma carta formal ao Dr. Rothmann, em Berlim, e recebera dele a permissão de pedir a mão de Eva em casamento. Mas as autoridades alemãs não haviam permitido que a família Rothmann fosse à cerimônia. Chorosa, Eva comentara:

           – Eles odeiam tanto os judeus que deveriam ficar felizes em vê-los sair do país!

           Fitz, pai de Boy, ouvira esse comentário e depois conversara com Daisy a respeito.

           – Diga à sua amiga Eva para, se possível, não falar muito sobre judeus – alertara, com o tom de quem dá um conselho de amigo. – Ser casado com a filha de um judeu não vai ajudar em nada a carreira militar de Jimmy, você sabe.

           Daisy não tinha passado adiante esse conselho desagradável.

           O casal foi passar a lua de mel em Nice. Daisy percebeu, com uma pontada de culpa, que estava aliviada por não ser mais responsável por Eva. Boy e seus colegas políticos tinham tanta antipatia pelos judeus que a amiga estava se tornando um problema. A amizade entre Boy e Jimmy já havia terminado: Boy não aceitara ser seu padrinho de casamento.

           Depois do evento, Daisy e Olga foram convidadas pelos Fitzherbert para caçar em sua casa de campo, no País de Gales. Daisy voltou a ter esperança. Agora que Eva estava fora do caminho, nada impedia Boy de pedi-la em casamento. O conde e a princesa com certeza deviam achar que o pedido era iminente. Talvez o esperassem para aquele mesmo fim de semana.

           Numa sexta-feira de manhã, Daisy e Olga foram até a estação de Paddington e pegaram um trem para oeste. Atravessaram o coração da Inglaterra, uma zona rural rica e extensa pontuada por pequenos vilarejos, cada um deles com sua torre do campanário de pedra despontando em meio a um bosque de árvores ancestrais. Tinham um vagão de primeira classe só para elas, e Olga perguntou a Daisy o que a filha achava que Boy fosse fazer.

           – Ele deve saber que gosto dele – disse Daisy. – Já o deixei me beijar um número suficiente de vezes.

           – Você demonstrou interesse por mais alguém? – perguntou-lhe a mãe, astuta.

           Daisy reprimiu a lembrança cheia de culpa daquele breve instante de tolice com Lloyd Williams. Boy não tinha como saber disso e, de toda forma, ela não tornara a encontrar Lloyd nem respondera às três cartas que ele lhe enviara.

           – Não – respondeu.

           – Então é por causa de Eva – disse Olga. – E agora ela não está mais aqui.

           O trem passou por um túnel comprido sob o estuário do rio Severn e, quando saiu, já estavam no País de Gales. Ovelhas desgrenhadas pastavam pelas colinas, e no sulco de cada vale havia uma pequena cidade mineira, com o elevador que descia para dentro da mina se destacando entre um punhado de feias construções industriais.

           O Rolls-Royce preto e creme do conde Fitzherbert esperava por elas na estação de Aberowen. Daisy achou a cidadezinha deplorável, com pequenas casas de pedra cinzentas enfileiradas ao longo das encostas íngremes das colinas. Elas se afastaram uns dois quilômetros da cidade até chegarem à propriedade, que se chamava Tŷ Gwyn.

           Quando passaram pelos portões, Daisy soltou um arquejo de prazer. Tŷ Gwyn era uma imensa e esplendorosa mansão, com longas fileiras de janelas altas numa fachada clássica perfeita. Erguia-se em meio a elaborados jardins de flores, arbustos e árvores que obviamente enchiam o conde de orgulho. Que alegria seria ser dona daquela casa, pensou ela. A aristocracia britânica podia não dominar mais o mundo, mas havia aperfeiçoado a arte de viver, e Daisy ansiava por fazer parte dela.

           Tŷ Gwyn significava “casa branca”, mas a construção na verdade era cinza, e Daisy entendeu por que ao tocar as pedras da fachada e ficar com as pontas dos dedos sujas de fuligem de carvão.

           Ela foi acomodada na Suíte Gardênia.

           Nessa noite, antes do jantar, Daisy e Boy foram se sentar na varanda para ver o sol se pôr atrás do cume roxo da montanha. Ele fumava um charuto e ela bebericava um champanhe. Passaram algum tempo sozinhos, mas Boy não falou nada sobre casamento.

           Ao longo do fim de semana, Daisy foi ficando mais ansiosa. Boy teve muitas outras oportunidades de falar com ela a sós – ela fez de tudo para que isso acontecesse. No sábado, os homens saíram para caçar, mas Daisy foi encontrá-los no fim da tarde, e ela e Boy voltaram caminhando juntos pela floresta. No domingo de manhã, os Fitzherbert e a maioria de seus hóspedes foram à igreja anglicana da cidade. Depois da missa, Boy levou Daisy a um pub chamado Two Crowns, onde mineiros atarracados de ombros largos com boinas chatas a encararam, vestida com seu sobretudo de caxemira lilás, como se Boy estivesse conduzindo um leopardo na coleira.

           Ela lhe disse que logo teria que voltar para Buffalo com a mãe, mas ele não entendeu a indireta.

           Será que ele simplesmente não gostava dela o suficiente para torná-la sua esposa?

           Na hora do almoço de domingo, Daisy já estava desesperada. Ela e a mãe voltariam para Londres no dia seguinte. Se Boy não tivesse feito o pedido até lá, seus pais começariam a pensar que ele não estava levando a relação a sério, e não haveria mais convites para visitar Tŷ Gwyn.

           Essa ideia assustava Daisy. Ela estava decidida a se casar com Boy. Queria se tornar a viscondessa de Aberowen e, um dia, a condessa Fitzherbert. Sempre fora rica, mas ansiava pelo respeito e pela deferência que o status social oferecia. Ansiava por ser chamada de “Sua Graça”. Cobiçava a tiara de diamantes da princesa Bea. Queria ter amigos na realeza.

           Sabia que Boy gostava dela, e não havia dúvida quanto ao desejo que sentia ao beijá-la.

           – Ele precisa de um empurrãozinho – cochichou Olga para Daisy enquanto as duas tomavam seu café da tarde na sala íntima com as outras senhoras.

           – Mas qual?

           – Existe uma coisa que nunca falha com os homens.

           Daisy arqueou as sobrancelhas.

           – Sexo? – Ela e a mãe conversavam sobre quase tudo, mas em geral evitavam esse assunto.

           – Uma gravidez daria conta do recado – disse Olga. – Mas isso só acontece com certeza quando você não quer.

           – Então o quê?

           – Você precisa dar a ele um vislumbre da Terra Prometida, mas sem deixá-lo entrar.

           Daisy balançou a cabeça e disse:

           – Não tenho certeza, mas acho que talvez ele já tenha estado na Terra Prometida de outra pessoa.

           – Quem?

           – Não sei... Alguma criada, atriz, ou quem sabe uma viúva... É só uma suposição, mas é que ele não tem aquele ar virginal.

           – Tem razão, não tem mesmo. Sendo assim, você precisa oferecer algo que ele não possa obter das outras. Algo que ele faria qualquer coisa para ter.

           Por um breve instante, Daisy se perguntou de onde a mãe tirava tanta sabedoria, uma vez que passara a vida inteira presa a um casamento frio. Talvez ela tivesse refletido muito sobre como seu marido, Lev, fora roubado pela amante, Marga. De toda forma, não havia nada que Daisy pudesse oferecer a Boy que ele não conseguisse obter de outra moça, havia?

           As mulheres estavam terminando o café e se encaminhando para seus respectivos quartos, onde tirariam um cochilo vespertino. Os homens ainda estavam na sala de jantar fumando charutos, mas iriam fazer o mesmo dali a 15 minutos. Daisy se levantou.

           – O que você vai fazer? – perguntou Olga.

           – Não tenho certeza ainda – respondeu ela. – Vou pensar em alguma coisa.

           Ela saiu da sala. Estava decidida a ir ao quarto de Boy, mas não queria dizer nada, pois sua mãe poderia se opor. Estaria à sua espera quando ele subisse para a sesta. Os criados também faziam uma pausa a essa hora do dia, de modo que era improvável alguém entrar no quarto.

           Assim, teria Boy só para si. Mas o que diria, o que faria? Ainda não sabia muito bem. Teria que improvisar.

           Foi até a Suíte Gardênia, escovou os dentes, passou um pouco de colônia Jean Naté no pescoço e percorreu silenciosamente o corredor até o quarto de Boy.

           Ninguém a viu entrar.

           Era um quarto espaçoso, com vista para os cumes enevoados das colinas. Parecia ser seu havia muitos anos. Era decorado com poltronas estofadas de couro em estilo masculino, quadros de aviões e cavalos de corrida nas paredes, um umidificador de cedro cheio de charutos olorosos e uma mesinha lateral com decantadores de uísque e conhaque e uma bandeja de copos de cristal.

           Ela abriu uma das gavetas e viu folhas de papel timbrado de Tŷ Gwyn, um frasco de tinta, canetas e lápis. O papel era azul, enfeitado com o brasão dos Fitzherbert. Será que aquele brasão um dia seria seu?

           Perguntou-se o que Boy diria ao encontrá-la ali. Será que ficaria feliz, a tomaria nos braços e a beijaria? Ou será que ficaria zangado por ter tido sua privacidade invadida e a acusaria de estar bisbilhotando? Era um risco que ela precisava correr.

           Foi até o quarto de vestir contíguo. Havia uma pequena pia encimada por um espelho. Os apetrechos de barbear de Boy repousavam sobre a borda de mármore. Daisy pensou que gostaria de aprender a fazer a barba do marido. Seria tão íntimo...

           Abriu as portas do armário e examinou as roupas dele: um fraque, ternos de tweed, roupas de montaria, uma jaqueta de piloto de couro forrada de pele, dois smokings.

           Aquilo lhe deu uma ideia.

           Lembrou-se de como Boy ficara excitado em junho, na casa de Bing Westhampton, ao vê-la vestida de homem com as outras moças. Naquela noite ele a beijara pela primeira vez. Daisy não tinha certeza do que causara tanto desejo – essas coisas em geral eram inexplicáveis. Segundo Lizzie Westhampton, alguns homens gostavam que as mulheres dessem palmadas em seus traseiros: que explicação havia para isso?

           Talvez ela devesse vestir as roupas dele.

           Algo que ele faria qualquer coisa para ter, dissera sua mãe. O que poderia ser?

           Ela encarou a fileira de ternos pendurados em cabides, a pilha de camisas brancas dobradas, os sapatos de couro engraxados, cada um com sua forma de madeira no interior. Será que daria certo? Será que ela teria tempo?

           E por acaso tinha alguma coisa a perder?

           Podia pegar as roupas de que precisasse, levá-las até a Suíte Gardênia, trocar-se lá e voltar depressa, torcendo para que ninguém a visse no caminho...

           Não. Não havia tempo para isso. Fumar um charuto não demorava tanto assim. Ela precisava se trocar ali mesmo, e rápido – ou desistir da ideia.

           Tomou uma decisão.

           Tirou o vestido.

           Agora estava correndo perigo. Até esse momento, poderia ter explicado sua presença ali de maneira mais ou menos plausível, fingindo que havia se perdido nos muitos quilômetros de corredores de Tŷ Gwyn e entrado no quarto errado por engano. Mas reputação de moça nenhuma sobreviveria ao fato de ser flagrada só de combinação no quarto de um homem.

           Pegou a primeira camisa da pilha. Soltou um grunhido ao ver que o colarinho precisava ser preso com uma abotoadura. Encontrou uma dúzia de colarinhos engomados dentro de uma gaveta ao lado de uma caixa de abotoaduras e prendeu um deles à camisa, vestindo-a em seguida por cima da cabeça.

           Ouviu passos pesados de homem no corredor do lado de fora e congelou, com o coração batendo feito um enorme tambor, mas os passos se distanciaram.

           Resolveu vestir o fraque. A calça de listras não tinha suspensórios no cós, mas ela encontrou suspensórios avulsos em outra gaveta. Descobriu como prendê-los à calça e em seguida a vestiu. A cintura era larga o suficiente para caberem duas dela ali.

           Enfiou os pés calçados com meias finas dentro de um par de sapatos pretos lustrosos e amarrou os cadarços.

           Abotoou a camisa e pôs uma gravata prateada. O nó ficou feio, mas pouco importava – de toda forma, ela não sabia mesmo como dar o nó, então deixou como estava.

           Vestiu um colete bege de abotoamento duplo e o paletó preto. Então se olhou no espelho de corpo inteiro afixado à parte interna da porta do armário.

           As roupas estavam largas, mas mesmo assim ela estava uma graça.

           Agora que tinha tempo, fechou os punhos da camisa com abotoaduras de ouro e pôs um lenço branco no bolso da frente do paletó.

           Estava faltando algo. Ela continuou se olhando no espelho até se dar conta do que mais precisava.

           Um chapéu.

           Abriu outro armário e viu uma fileira de caixas de chapéu sobre uma prateleira alta. Encontrou uma cartola cinza e a pôs no topo da cabeça.

           Então se lembrou do bigode.

           Não tinha um lápis de sobrancelha ali consigo. Voltou ao quarto de dormir de Boy e se debruçou sobra a lareira. Como ainda era verão, não havia nenhum fogo aceso. Ela recolheu um pouco de fuligem com a ponta do dedo, voltou ao espelho e, com cuidado, desenhou um bigode acima do lábio superior.

           Estava pronta.

           Sentou-se em uma das poltronas de couro para esperar por ele.

           Seu instinto lhe dizia que estava fazendo a coisa certa, mas, de um ponto de vista racional, aquilo parecia bizarro. O desejo, porém, não tinha explicação. Ela própria havia ficado toda molhada quando ele a levara para voar em seu avião. Tinha sido impossível os dois trocarem carícias enquanto ele estava concentrado pilotando a aeronave, e fora melhor assim, pois subir em direção às nuvens tinha sido tão excitante que ela provavelmente o teria deixado fazer tudo que quisesse.

           Mas os rapazes podiam ser imprevisíveis, e ela temia que ele ficasse zangado. Quando isso acontecia, seu rosto bonito se contorcia até se transformar numa careta feia, ele batia com o pé no chão bem depressa e podia se tornar bastante cruel. Certa vez, quando um garçom manco lhe trouxera a bebida errada, ele dissera:

           – Volte mancando até o bar e traga-me o uísque que pedi. Você é aleijado, mas não é surdo, ou é? – O pobre coitado chegara a corar de tanta vergonha.

           Ela se perguntou o que Boy lhe diria caso ficasse bravo por encontrá-la em seu quarto.

           Cinco minutos depois, ele chegou.

           Ela o ouviu caminhando do lado de fora e se deu conta de que já o conhecia bem o bastante para identificar o som de seus passos.

           A porta se abriu e ele entrou sem notar sua presença.

           Forçando uma voz grave, ela falou:

           – Oi, meu chapa, como vai?

           Ele olhou para ela e exclamou:

           – Meu Deus do céu! – Então a encarou com mais atenção. – Daisy?

           Ele se levantou.

           – A própria – falou, com sua voz natural. Boy a encarava, surpreso. Ela ergueu a cartola, fez uma leve mesura e completou: – Ao seu dispor. – Tornou a pôr a cartola, ligeiramente de viés.

           Depois de um longo intervalo, ele se recuperou do choque e sorriu.

           Graças a Deus, pensou Daisy.

           – Essa cartola ficou bem em você, sabia? – disse ele.

           Ela chegou mais perto.

           – Eu a pus para agradá-lo.

           – Que gentileza a sua.

           Ela ergueu o rosto convidativamente. Gostava de beijá-lo. Na verdade, gostava de beijar a maioria dos homens. Nutria uma vergonha secreta por gostar tanto disso. Tinha gostado até de beijar outras moças no colégio interno, quando elas passavam muitas semanas sem ver um só rapaz.

           Ele abaixou a cabeça e encostou os lábios nos dela. A cartola caiu no chão, e os dois riram. Ele logo pôs a língua dentro da boca de Daisy. Ela relaxou para saborear o beijo. Boy era um grande entusiasta de todos os prazeres sensuais e essa disposição a deixava excitada.

           Daisy lembrou a si mesma de que tinha um propósito. As coisas estavam evoluindo bem, mas ela queria que ele fizesse o pedido. Será que ficaria satisfeito só com um beijo? Ela precisava fazê-lo querer mais. Muitas vezes, quando os dois dispunham de mais do que alguns instantes apressados, deixava que ele acariciasse seus seios.

           Muita coisa dependia de quanto vinho ele tivesse bebido no almoço. Boy tinha muita resistência à bebida, mas chegava um ponto em que perdia o desejo.

           Ela moveu o corpo, apertando-o de encontro ao dele. Boy pôs uma das mãos em seu peito, mas ela estava usando um colete largo de lã, e ele não conseguiu encontrar seus seios miúdos. Frustrado, soltou um grunhido.

           Então deslizou a mão pela barriga dela até entrar pelo cós da calça larga.

           Até esse momento, ela nunca o havia deixado tocá-la lá embaixo.

           Por baixo da calça, Daisy ainda usava uma combinação de seda e uma volumosa calcinha de algodão, de modo que ele certamente não podia sentir muita coisa, mas ele arrastou a mão até o meio das pernas dela e apertou com força através das muitas camadas de pano. Ela sentiu um arrepio de prazer.

           Afastou-se dele.

           Ofegante, ele perguntou:

           – Avancei o sinal?

           – Tranque a porta – pediu ela.

           – Ai, meu Deus. – Ele foi até a porta, girou a chave na fechadura e voltou para junto de Daisy. Os dois tornaram a se abraçar e ele prosseguiu de onde havia parado. Ela tocou a frente da calça dele, encontrou seu pênis ereto sob o tecido e segurou com firmeza. Boy gemeu de prazer.

           Ela tornou a se afastar.

           Uma sombra de raiva atravessou o semblante dele. Daisy teve uma lembrança desagradável. Certa vez, depois de fazer um rapaz chamado Theo Coffmann tirar a mão de seu seio, ele ficara violento e a chamara de putinha sacana. Ela nunca mais tornara a ver aquele rapaz, mas o xingamento havia lhe provocado uma vergonha inexplicável. Por um instante, temeu que Boy estivesse a ponto de fazer a mesma acusação.

           Então sua expressão se suavizou e ele disse:

           – Eu sou louco por você, sabia?

           Aquele era o momento de Daisy. É agora ou nunca, pensou ela.

           – Não deveríamos estar fazendo isso – falou, com um arrependimento que não era muito exagerado.

           – Por que não?

           – Ainda nem estamos noivos.

           A frase pairou no ar por vários segundos. Uma moça dizer isso era praticamente um pedido em casamento. Ela ficou observando seu rosto, morta de medo de que ele se assustasse, virasse as costas, balbuciasse uma desculpa qualquer e pedisse a ela que fosse embora.

           Mas ele não disse nada.

           – Eu quero fazer você feliz – continuou ela. – Mas é que...

           – Eu amo você, Daisy, de verdade – disse Boy.

           Aquilo não era o suficiente. Ela sorriu para ele e perguntou:

           – Ama mesmo?

           – Muito, amo demais.

           Ela não disse nada, mas o encarou com um ar de expectativa.

           Por fim, ele perguntou:

           – Quer se casar comigo?

           – Sim. Quero, sim – disse ela, e tornou a beijá-lo. Com a boca colada à dele, desabotoou-lhe a braguilha, enfiou a mão por dentro de sua cueca, encontrou o pênis e o puxou para fora. A pele era sedosa e quente. Ela o alisou, lembrando-se de uma conversa com as gêmeas Westhampton.

           – Você pode alisar o negócio dele – dissera Lindy.

           – Até esguichar – acrescentara Lizzie.

           A ideia de fazer isso com um homem deixava Daisy intrigada e excitada. Ela apertou com um pouco mais de força.

           Então lembrou-se do comentário seguinte de Lindy.

           – Ou então pode chupar... é do que eles mais gostam.

           Afastou a boca da de Boy e sussurrou em seu ouvido:

           – Vou fazer tudo pelo meu marido.

           Então se ajoelhou.

 

           Foi o casamento do ano. Daisy e Boy se tornaram marido e mulher no dia 3 de outubro de 1936, um sábado, na igreja de Santa Margarida, em Westminster. Daisy ficou decepcionada por não ter sido na Abadia de Westminster, mas ficou sabendo que só a família real se casava lá.

           Coco Chanel fez seu vestido de noiva. A moda da Depressão favorecia as linhas simples e quase nenhuma extravagância. O vestido de cetim de Daisy, cortado no viés do tecido, ia até o chão, tinha graciosas mangas borboleta e uma cauda curta que podia ser carregada por um pajem só.

           Seu pai, Lev Peshkov, atravessou o Atlântico para a cerimônia. Pelo bem das aparências, sua mãe aceitou se sentar ao lado dele na igreja e fingir que os dois formavam um casal razoavelmente feliz. O pesadelo de Daisy era que, em algum momento, Marga aparecesse de braços dados com Greg, seu meio-irmão bastardo, mas isso não aconteceu.

           As gêmeas Westhampton e May Murray foram as damas de honra e Eva Murray, a madrinha. Boy havia reclamado um pouco por Eva ser meio judia – não queria nem convidá-la para o casamento –, mas Daisy insistira.

           No altar da antiquíssima igreja, consciente de que estava linda de morrer, entregou-se com alegria e de corpo e alma a Boy Fitzherbert.

           Assinou o registro matrimonial como “Daisy Fitzherbert, viscondessa de Aberowen”. Vinha treinando essa assinatura havia muitas semanas, em seguida rasgando cuidadosamente o papel em pedacinhos, para que as letras ficassem ilegíveis. Agora tinha direito a assinar assim. Aquele era o seu nome.

           Na procissão que saiu da igreja, Fitz deu o braço a Olga, simpático, mas a princesa Bea se manteve a um metro de distância de Lev.

           A princesa não era uma pessoa agradável. Mostrava-se razoavelmente simpática com a mãe de Daisy e, ainda que seu tom contivesse um forte traço de superioridade, Olga não percebia, por isso a relação era amigável. Mas Bea não gostava de Lev.

           Daisy agora percebia que seu pai não tinha o verniz da respeitabilidade social. Ele caminhava, falava, comia, bebia, fumava, ria e se coçava como um gângster, e não se importava com o que os outros pensavam. Fazia o que queria porque era um milionário americano, da mesma forma que Fitz fazia o que queria porque era um conde inglês. Daisy sempre soubera disso, mas o fato a atingiu com força total quando viu o pai no meio de todos aqueles aristocratas ingleses, no salão de baile do Hotel Dorchester, durante o café da manhã no dia seguinte ao casamento.

           Porém aquilo já não tinha importância. Daisy agora era lady Aberowen, e ninguém poderia lhe tirar isso.

           Ainda assim, a constante hostilidade de Bea com Lev era irritante, como um cheiro levemente desagradável ou um zumbido distante, que provocava em Daisy um leve sentimento de insatisfação. Sentada ao lado de Lev na mesa principal, Bea sempre mantinha as costas ligeiramente viradas para ele. Quando ele lhe dirigia a palavra, ela respondia com monossílabos, sem encará-lo. Lev sorria e tomava champanhe, parecendo não notar, mas Daisy, sentada do outro lado do pai, sabia que este não poderia ter deixado de perceber os sinais. Seu pai era grosso, mas não burro.

           Depois que os brindes foram feitos, quando os homens começaram a fumar, Lev – que, na condição de pai da noiva, era quem pagaria a conta – correu os olhos pela mesa e disse:

           – Bem, Fitz, espero que tenha gostado da comida. Os vinhos estavam à altura do seu padrão?

           – Estavam muito bons, obrigado.

           – Vou lhe dizer uma coisa: achei que foi um banquete da porra!

           Bea deu um muxoxo de reprovação audível. Os homens não deviam dizer “porra” na sua frente.

           Lev virou-se para ela. Estava sorrindo, mas Daisy conhecia aquele seu olhar perigoso.

           – O que foi, princesa? Eu a ofendi?

           Bea não quis responder, mas ele continuou a fitá-la com uma expressão de quem aguarda, e não desviou os olhos. Por fim, ela respondeu:

           – Prefiro não ouvir esse tipo de brutalidade.

           Lev pegou sua charuteira e sacou um charuto. Não o acendeu de imediato. Em vez disso, cheirou-o e ficou a girá-lo entre os dedos.

           – Permitam-me que lhes conte uma história – disse ele, e correu os olhos de um lado a outro da mesa para ter certeza de que todos estavam ouvindo: Fitz, Olga, Boy, Daisy e Bea. – Quando eu era menino, meu pai foi acusado de deixar seus animais pastarem nas terras de outra pessoa. Nada de mais, vocês podem pensar, mesmo que fosse verdade. Mas ele foi preso e o administrador das terras construiu um cadafalso na campina norte. Os soldados foram até minha casa, pegaram meu irmão, nossa mãe e eu, e nos levaram até lá. Meu pai estava em cima do cadafalso com uma corda em volta do pescoço. Então o dono das terras chegou.

           Daisy nunca tinha escutado essa história. Olhou para a mãe. Olga parecia igualmente surpresa.

           O pequeno grupo ao redor da mesa agora estava em completo silêncio.

           – Fomos obrigados a assistir ao enforcamento do meu pai – disse Lev. Então se virou para Bea. – E sabe o que é mais estranho? A irmã do dono das terras também estava lá. – Ele pôs o charuto na boca para molhar a ponta com saliva, depois tornou a tirá-lo.

           Daisy viu que Bea tinha ficado pálida. Será que aquela história tinha a ver com ela?

           – Ela era princesa e, à época, tinha 19 anos – disse Lev, olhando para o charuto. Daisy ouviu Bea soltar um gritinho abafado e percebeu que a história era mesmo sobre ela. – A princesa ficou lá parada e assistiu ao enforcamento, fria como gelo – continuou Lev.

           Então olhou direto para Bea.

           – Para mim, isso sim é brutalidade – completou.

           Houve um longo silêncio.

           Lev então pôs o charuto de volta na boca e perguntou:

           – Alguém tem fogo?

 

           Sentado à mesa da cozinha da casa de sua mãe em Aldgate, Lloyd Williams estudava um mapa, ansioso.

           Era domingo, 4 de outubro de 1936, e nesse dia haveria uma passeata.

           A antiga cidade romana de Londres, construída sobre uma colina junto ao rio Tâmisa, era agora o bairro financeiro conhecido como City. A oeste dessa colina ficavam os palacetes dos ricos, os teatros, as lojas e as catedrais por eles frequentados. A casa em que Lloyd estava ficava a leste da colina, perto das docas e dos barracos. Era ali que, durante muitos séculos, haviam chegado as sucessivas ondas de imigrantes dispostos a trabalhar até as costas se vergarem para que um dia seus netos pudessem se mudar do East End, o lado leste da cidade, para o West End, o lado oeste.

           O mapa que Lloyd examinava com tanta atenção era uma edição especial do Daily Worker, o jornal do Partido Comunista, e mostrava o trajeto da passeata da União Britânica de Fascistas que aconteceria nesse dia. Os fascistas planejavam se reunir em frente à Torre de Londres, no limite entre a City e o East End, e depois seguir marchando rumo ao leste...

           Bem na direção do bairro de Stepney, habitado principalmente por judeus.

           A menos que Lloyd e outros que pensavam como ele conseguissem detê-los.

           Segundo o jornal, havia 300 mil judeus na Grã-Bretanha, e metade deles vivia no East End. Eram em sua maioria refugiados da Rússia, da Polônia e da Alemanha, onde tinham vivido com o medo constante de que a polícia, o Exército ou os cossacos entrassem na cidade para roubar as famílias, espancar os velhos e desonrar as moças, enfileirando pais e irmãos diante dos muros para serem fuzilados.

           Ali, nos barracos de Londres, esses judeus haviam encontrado um lugar onde tinham tanto direito de viver quanto qualquer outra pessoa. Como se sentiriam ao olhar pela janela e ver, marchando por suas ruas, uma gangue de arruaceiros uniformizados que havia jurado exterminá-los? Lloyd sentia que não podia deixar isso acontecer.

           O Worker destacava que, da Torre, só havia duas rotas possíveis para a passeata. Uma delas passava por Gardiner’s Corner, um cruzamento de cinco ruas conhecido como o portão de entrada do East End; a outra seguia pela Royal Mint Street e pela estreita Cable Street. Havia uma dúzia de outros caminhos possíveis para alguém que usasse as ruas laterais, mas não para uma passeata. A St. George Street conduzia ao bairro católico de Wapping, não ao bairro judeu de Stepney, e, por isso, não tinha serventia para os fascistas.

           O Worker estava conclamando uma parede humana para bloquear Gardiner’s Corner e a Cable Street, a fim de deter a passeata.

           O jornal muitas vezes conclamava para coisas que não aconteciam: greves, revoluções ou – mais recentemente – uma aliança de todos os partidos de esquerda para formar uma frente popular. A parede humana talvez fosse apenas mais uma utopia. Seria preciso milhares de pessoas para isolar o East End de maneira eficaz. Lloyd não sabia se elas iriam aparecer em número suficiente.

           Tudo o que sabia com certeza era que haveria problemas.

           Também estavam à mesa com ele seus pais, Bernie e Ethel; sua irmã, Millie; e Lenny Griffiths, de Aberowen, um rapaz de 16 anos vestido com seu terno de ir à missa. Lenny fazia parte de um pequeno exército de mineiros galeses que fora a Londres participar da oposição à passeata.

           Bernie ergueu os olhos do jornal e disse ao rapaz:

           – Os fascistas estão dizendo que as passagens de trem para vocês galeses virem a Londres foram pagas por judeus ricos.

           Lenny engoliu um bocado de ovo frito.

           – Não conheço nenhum judeu rico – falou. – Conheço a Sra. Levy da loja de doces, mas ela é gorda, não rica. De todo modo, cheguei a Londres na traseira de um caminhão junto com sessenta cordeiros galeses a caminho do mercado de Smithfield.

           – Ah, então o cheiro está explicado – comentou Millie.

           – Millie, que grosseria! – ralhou Ethel.

           Lenny estava dividindo o quarto com Lloyd, a quem confidenciara que, depois da passeata, não planejava voltar para Aberowen. Ele e Dave Williams iriam para a Espanha e se juntariam às Brigadas Internacionais formadas para lutar contra a insurreição fascista.

           – Você conseguiu o passaporte? – perguntara Lloyd.

           Tirar um passaporte não era difícil, mas o candidato tinha que apresentar a referência de um padre, um médico, um advogado ou outra pessoa importante, assim, não era fácil para um jovem manter segredo sobre isso.

           – Não precisa – respondera Lenny. – Basta ir à Victoria Station e comprar uma passagem de ida e volta para Paris. É possível fazer isso sem passaporte.

           Lloyd já sabia vagamente disso. Era uma brecha na lei que visava ao conforto da classe média próspera. Agora, os antifascistas a estavam aproveitando.

           – Quanto custa essa passagem? – perguntou Lloyd.

           – Três libras e quinze xelins.

           Lloyd arqueara as sobrancelhas. Era mais dinheiro do que um mineiro desempregado supostamente tinha.

           – Mas o Partido Trabalhista Independente vai pagar minha passagem – acrescentara Lenny –, e o Partido Comunista vai pagar a de Dave.

           Os dois rapazes deviam ter mentido a idade.

           – E depois de chegar a Paris, o que vocês vão fazer?

           – Os comunistas franceses vão nos esperar na Gare du Nord. – Ele pronunciava o nome da estação parisiense gardunó. Não falava uma palavra de francês. – De lá, seremos escoltados até a fronteira com a Espanha.

           Lloyd adiara sua partida. Dizia às pessoas que era para tranquilizar os pais, mas a verdade era que não tinha desistido de Daisy. Ainda sonhava em vê-la terminar com Boy. Era uma esperança vã – ela nem sequer respondera às suas cartas –, mas ele não conseguia esquecê-la.

           Enquanto isso, Grã-Bretanha, França e Estados Unidos haviam feito um acordo com Alemanha e Itália para que todos adotassem uma política de não intervenção na Espanha, o que significava que nenhum deles forneceria armas a nenhum dos lados da disputa. Só isso já deixava Lloyd furioso: as democracias não deveriam apoiar o governo eleito? No entanto, o que era ainda pior, a Alemanha e a Itália violavam o acordo diariamente, como a mãe de Lloyd e seu tio Billy haviam deixado bem claro em todas as reuniões públicas organizadas naquele outono para discutir a situação espanhola. O conde Fitzherbert, que era o ministro-adjunto do governo responsável por esse tipo de decisão, defendia ferrenhamente sua política, afirmando que o governo espanhol não deveria ser armado por causa do risco de se tornar comunista.

           Aquilo era uma profecia fadada a se cumprir, como dissera Ethel num discurso veemente. A única nação disposta a apoiar o governo espanhol era a União Soviética, e era natural que os espanhóis se aproximassem do único país no mundo que os havia ajudado.

           A verdade, no entanto, era que, segundo os conservadores, a Espanha elegera pessoas perigosamente de esquerda. Homens como Fitzherbert não achariam ruim se o governo espanhol fosse derrubado pela violência e substituído por extremistas de direita. Lloyd fervia de frustração.

           Então surgira aquela chance de combater o fascismo na sua própria cidade.

           – Isso é ridículo – dissera Bernie uma semana antes, quando a passeata fora anunciada. – A polícia metropolitana tem que obrigá-los a mudar de rota. É claro que eles têm o direito de fazer a passeata, mas não em Stepney.

           A polícia, porém, afirmava não ter o poder de interferir numa manifestação totalmente legal.

           Bernie, Ethel e os prefeitos de oito dos distritos de Londres tinham formado uma delegação para implorar ao ministro do Interior, Sir John Simon, que proibisse a passeata ou pelo menos mudasse sua rota, mas o secretário também alegara não ter poderes para agir.

           A questão do que fazer em seguida deixara o Partido Trabalhista, a comunidade judaica e a família Williams divididos.

           O Conselho do Povo Judeu contra o Fascismo e o Antissemitismo, criado por Bernie e outros companheiros três meses antes, convocara uma imensa contrapasseata que manteria os fascistas fora das ruas do bairro judeu. Sua palavra de ordem era a expressão em espanhol No pasarán, ou seja, “não passarão” – o grito daqueles que haviam defendido Madri dos fascistas. Apesar do nome grande, o conselho era uma organização pequena. Ocupava duas salas no primeiro andar de um prédio na Commercial Road e tinha uma copiadora Gestetner e um par de máquinas de escrever já antigas. Entretanto, gozava de amplo apoio no East End. Em 48 horas, o conselho havia recolhido o incrível número de 100 mil nomes para um abaixo-assinado a favor da proibição da passeata. Mesmo assim, o governo continuou sem fazer nada.

           Apenas um partido político importante apoiava a contrapasseata: os comunistas. O protesto também tinha o respaldo do marginal Partido Trabalhista Independente, ao qual Lenny era filiado. Todos os outros eram contrários ao protesto.

           – Estou vendo que o Jewish Chronicle aconselhou seus leitores a não saírem na rua hoje – disse Ethel.

           Para Lloyd, o problema era justamente esse. Muitas pessoas achavam que era melhor ficar longe de confusão. Mas isso daria espaço aos fascistas para fazer o que quisessem.

           Bernie, que apesar de ser judeu não era praticante, disse à mulher:

           – Como você pode citar o Jewish Chronicle para mim? Esse jornal diz que os judeus não devem ser contra o fascismo, só contra o antissemitismo. Que sentido político há nisso?

           – Ouvi dizer que o Conselho de Representantes dos Judeus Britânicos está recomendando o mesmo que o Chronicle – insistiu Ethel. – Parece que fizeram um anúncio ontem em todas as sinagogas.

           – Esses supostos representantes são todos novos-ricos de Golders Green – disse Bernie com desprezo. – Nunca foram xingados na rua por arruaceiros fascistas.

           – Você é membro do Partido Trabalhista – disse Ethel em tom de acusação. – Nossa política é não enfrentar os fascistas na rua. Onde está sua fidelidade partidária?

           – E a fidelidade a meus companheiros judeus? – rebateu Bernie.

           – Você só é judeu quando lhe convém. E ninguém nunca o xingou na rua.

           – Mesmo assim, o Partido Trabalhista cometeu um erro político.

           – Lembre-se de que, se vocês deixarem os fascistas provocarem violência, a imprensa vai pôr a culpa na esquerda, independentemente de quem tenha começado.

           – Se os garotos do Mosley começarem uma briga, vão ter o que merecem – disse Lenny, inflamado.

           Ethel suspirou.

           – Pense um pouco, Lenny: neste país, quem tem a maior quantidade de armas, você, Lloyd e o Partido Trabalhista ou os conservadores, com o Exército e a polícia do seu lado?

           – É – admitiu Lenny. Estava claro que não havia pensado nisso.

           – Como você pode falar assim? – perguntou Lloyd à mãe, zangado. – Você estava em Berlim três anos atrás... viu como eram as coisas lá. A esquerda alemã tentou se opor ao fascismo de forma pacífica, e veja o que aconteceu com ela.

           – Os social-democratas alemães não conseguiram formar uma frente popular com os comunistas – explicou Bernie. – Isso lhes permitiu serem eliminados separadamente. Juntos, talvez eles tivessem vencido. – Bernie ficara zangado quando o escritório local do Partido Trabalhista recusara uma oferta dos comunistas para formar uma coalizão contra a passeata.

           – Aliar-se aos comunistas é perigoso – disse Ethel.

           Ela e Bernie discordavam nesse ponto. Na verdade, essa era a questão que dividia o Partido Trabalhista. Para Lloyd, Bernie estava certo e Ethel, errada.

           – Temos que usar todos os recursos à disposição para derrotar o fascismo – afirmou seu padrasto. Então acrescentou, em tom diplomático: – Mas sua mãe tem razão: vai ser melhor para nós se o dia de hoje transcorrer sem violência.

           – Vai ser melhor se todos vocês ficarem em casa e se opuserem aos fascistas por meio dos canais normais da política democrática – disse Ethel.

           – Vocês tentaram obter salários iguais para as mulheres por meio dos canais normais da política democrática – disse Lloyd. – E não conseguiram. – Em abril desse mesmo ano, as deputadas trabalhistas haviam tentado aprovar um projeto de lei garantindo às funcionárias públicas salários iguais por serviços iguais. O projeto fora rejeitado pela Câmara dos Comuns, majoritariamente masculina.

           – Não se desiste da democracia toda vez que se perde uma votação – disse Ethel, seca.

           O problema, Lloyd sabia, era que essas divisões podiam enfraquecer as forças antifascistas de modo fatal, como havia acontecido na Alemanha. Aquele dia seria uma prova de fogo. Os partidos políticos podiam tentar liderar, mas as pessoas decidiriam quem seguir. Será que ficariam em casa, como instavam o tímido Partido Trabalhista e o Jewish Chronicle? Ou sairiam às ruas aos milhares para dizer não ao fascismo? No fim do dia ele teria a resposta.

           Alguém bateu na porta dos fundos, e seu vizinho Sean Dolan entrou usando o terno de ir à igreja.

           – Vou me juntar a vocês depois da missa – disse ele a Bernie. – Onde vai ser a concentração?

           – Em Gardiner’s Corner, às duas da tarde – respondeu Bernie. – Esperamos ter gente suficiente para deter os fascistas ali.

           – Todos os estivadores do East End estarão lá – disse Sean, entusiasmado.

           – Por quê? – perguntou Millie. – Os fascistas não odeiam os trabalhadores da estiva, odeiam?

           – Você é jovem demais para se lembrar, querida, mas os judeus sempre nos apoiaram – explicou Sean. – Na greve dos estivadores de 1912, quando eu estava com apenas 9 anos, meu pai não tinha como nos dar comida, e eu e meu irmão fomos recolhidos pela Sra. Isaacs, a mulher do padeiro da New Road. Que Deus abençoe seu grande coração! Naquela época, centenas de filhos de estivadores foram recolhidos por famílias judias. O mesmo aconteceu em 1926. Não vamos deixar esses malditos fascistas andarem pelas nossas ruas... Perdoe o meu linguajar, Sra. Leckwith.

           Lloyd ficou mais animado. Havia milhares de estivadores no East End: se eles comparecessem em massa, o contingente aumentaria muito.

           O som de um alto-falante ecoou do lado de fora:

           – Não deixem Mosley entrar em Stepney – dizia uma voz de homem. – Concentração em Gardiner’s Corner às duas horas.

           Lloyd terminou seu chá e se levantou. Sua tarefa nesse dia era bancar o espião: verificar a posição dos fascistas e passar informações atualizadas para o Conselho do Povo Judeu. Tinha os bolsos cheios de grandes moedas marrons de um penny para os telefones públicos.

           – É melhor eu ir andando – falou. – Os fascistas já estão se concentrando.

           Sua mãe se levantou e o acompanhou até a porta.

           – Não se meta em briga – advertiu. – Lembre-se do que aconteceu em Berlim.

           – Vou tomar cuidado – disse Lloyd.

           Ela tentou imprimir à voz um tom descontraído.

           – Sua americana rica não vai gostar de você sem dentes.

           – Ela já não gosta de mim, mesmo.

           – Não acredito. Que moça seria capaz de resistir a você?

           – Eu vou ficar bem, Mam – disse Lloyd. – Vou mesmo.

           – Acho que eu deveria estar feliz por você não ir para a maldita Espanha.

           – Sim, pelo menos por hoje. – Lloyd se despediu da mãe com um beijo e saiu.

           A manhã de outono estava clara e o sol, mais quente que o normal para a estação. No meio da Nutley Street, um palanque improvisado havia sido montado por um grupo de homens, um dos quais falava num megafone:

           – População do East End, não temos que ficar calados enquanto um bando de antissemitas marcha por nossas ruas nos insultando!

           Lloyd reconheceu o orador: era o representante local do Movimento Nacional de Trabalhadores Desempregados. Por causa da Depressão, havia milhares de alfaiates judeus desempregados. Eles se apresentavam diariamente na Central de Empregos da Settle Street.

           Lloyd mal havia percorrido dez metros quando Bernie o alcançou para lhe entregar um saco de papel cheio de bolinhas de gude.

           – Já participei de muitas passeatas – disse ele. – Se a polícia montada atacar os manifestantes, jogue essas bolinhas sob os cascos dos cavalos.

           Lloyd sorriu. Seu padrasto era pacifista, mas não era nenhum banana.

           Ainda assim, Lloyd estava em dúvida quanto às bolinhas. Não tinha muita experiência com cavalos, mas estes lhe davam a impressão de ser animais pacientes e inofensivos, e não lhe agradava a ideia de derrubá-los.

           Bernie entendeu a expressão em seu rosto e disse:

           – Melhor um cavalo no chão do que meu menino ser pisoteado.

           Lloyd guardou as bolinhas no bolso; aceitá-las não o obrigava a usá-las.

           Ficou satisfeito ao constatar que já havia muitas pessoas na rua. Reparou em outros indícios encorajadores. Para onde quer que olhasse, as palavras de “Não passarão” tinham sido escritas nas paredes com giz, em inglês e espanhol. Os comunistas, presentes em peso, distribuíam panfletos. Muitos peitoris de janela ostentavam bandeiras vermelhas. Um grupo de homens usando medalhas da Grande Guerra carregava uma faixa que dizia: “Associação de Ex-Combatentes Judeus”. Os fascistas detestavam ser lembrados de quantos judeus haviam lutado pela Inglaterra. Cinco soldados judeus tinham sido condecorados com a Cruz Vitória, a mais importante medalha por bravura da Grã-Bretanha.

           Lloyd começou a pensar que talvez fosse haver gente suficiente para conter a passeata.

           Gardiner’s Corner era um cruzamento largo de cinco ruas batizado em homenagem à loja de roupas escocesa chamada Gardiner and Company, que ocupava um prédio de esquina encimado por uma torre com um relógio. Ao chegar lá, Lloyd constatou que as autoridades previam problemas. Havia muitos postos de atendimento e centenas de voluntários da organização de primeiros socorros St. John’s Ambulance. Havia ambulâncias estacionadas em todas as ruas laterais. Lloyd torceu para que não houvesse briga; mas era melhor correr o risco da violência do que deixar os fascistas marcharem sem oposição, pensou.

           Ele fez um desvio e se aproximou da Torre de Londres pelo noroeste, para não ser identificado como morador do East End. Poucos minutos antes de chegar, já podia ouvir as bandas de metais.

           A Torre era um palácio situado à margem do rio e representava oito séculos de autoridade e repressão. Era rodeada por um muro extenso e antigo de pedras claras cuja cor parecia ter sido desbotada por séculos de chuvas londrinas. Do lado de fora dos muros, do lado oposto ao do rio, ficava um parque chamado Tower Gardens, os “jardins da torre”, e era ali que os fascistas estavam se concentrando. Lloyd calculou que já houvesse dois mil deles, formando uma fila que se estendia rumo a oeste em direção ao bairro financeiro. De vez em quando, eles irrompiam num canto ritmado:

            

           Um, dois, três, quatro,

           Vamos nos livrar dos judeus!

           Os judeus! Os judeus!

           Vamos nos livrar dos judeus!

            

           Os fascistas carregavam Union Jacks, a bandeira do Reino Unido. Por que uma gente que desejava destruir tudo o que o seu país simbolizava era a primeira a acenar com a bandeira nacional?, perguntou-se Lloyd.

           Nas colunas que formavam sobre o gramado, os manifestantes, usando cintos largos de couro e camisas pretas, tinham um aspecto marcadamente militar. Os oficiais usavam uniformes distintos: jaqueta preta de corte militar, calça de montaria cinza, botas de cano longo, um quepe preto de ponteira lustrosa e uma braçadeira vermelha e branca. Vários motociclistas de uniforme faziam rugir os motores de modo ostensivo, bradando mensagens com saudações fascistas. Não paravam de chegar manifestantes, alguns em caminhonetes blindadas com grades de metal nas janelas.

           Aquilo não era um partido político. Era um exército.

           O objetivo daquela passeata era ostentar uma falsa autoridade, concluiu Lloyd. Os fascistas queriam dar a impressão de que tinham o direito de interromper reuniões políticas e evacuar prédios, de invadir casas e escritórios para prender pessoas, de arrastá-las para a prisão e campos para serem espancadas, interrogadas e torturadas, assim como os camisas-pardas faziam na Alemanha sob o regime nazista tão admirado por Mosley e pelo dono do Daily Mail, lorde Rothermere.

           Aqueles homens iriam aterrorizar os moradores do East End, pessoas cujos pais e avós tinham fugido da repressão e dos pogrons na Irlanda, na Polônia e na Rússia.

           Será que os moradores do East End sairiam às ruas para combatê-los? Se não saíssem – se a passeata corresse conforme o planejado –, o que os fascistas ousariam fazer no dia seguinte?

           Ele deu a volta no parque, fingindo ser mais um entre tantos observadores reunidos ali. Ruas laterais partiam daquele centro como os raios de uma roda. Numa delas, Lloyd viu um conhecido Rolls-Royce preto e creme se aproximar. O motorista abriu a porta de trás e, para seu choque e sua consternação, Daisy Peshkov desceu do carro.

           Não havia dúvida do motivo pelo qual ela estava ali. Usava uma versão feminina do uniforme, de corte perfeito, com uma saia cinza comprida no lugar da calça e os cachos louros escapando do quepe preto. Por mais que detestasse aquela roupa, Lloyd não pôde evitar achá-la irresistivelmente atraente.

           Parou e ficou encarando a moça. Não deveria ter se espantado. Ela lhe dissera que gostava de Boy Fitzherbert e seu posicionamento político não mudava em nada esse fato. Mas vê-la ali, apoiando de forma aberta os fascistas em seu ataque aos judeus londrinos, o fez entender quanto ela era diametralmente oposta a tudo o que ele valorizava na vida.

           Devia apenas ter virado as costas, mas não conseguiu. Enquanto ela seguia apressada pela calçada, postou-se na sua frente.

           – O que você está fazendo aqui? – perguntou, brusco.

           Ela permaneceu calma.

           – Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta, Sr. Williams – respondeu. – Não imagino que pretenda marchar conosco.

           – Você não entende como essas pessoas são? Elas interrompem reuniões políticas pacíficas, intimidam jornalistas, põem seus adversários políticos na prisão. Você é americana... como pode ser contra a democracia?

           – A democracia não é necessariamente o sistema político mais adequado para todos os países em todos os momentos.

           Lloyd imaginou que ela estivesse citando a propaganda de Mosley.

           – Mas essa gente tortura e mata todo mundo que discorda de suas opiniões! – exclamou ele. Pensou em Jörg. – Vi isso com meus próprios olhos em Berlim. Passei alguns dias em um dos campos. Fui forçado a ver um homem nu ser dilacerado até a morte por cães famintos. Esse é o tipo de coisa que seus amigos fascistas fazem.

           Ela não se deixou intimidar:

           – E quem exatamente foi morto pelos fascistas aqui na Inglaterra nos últimos tempos?

           – Os fascistas britânicos ainda não subiram ao poder... mas esse seu Mosley admira Hitler. Se tiverem oportunidade, vão fazer exatamente a mesma coisa que os nazistas.

           – Acabar com o desemprego e dar orgulho e esperança às pessoas, você quer dizer?

           Lloyd se sentia tão atraído por ela que ouvi-la dizer aquelas bobagens o deixava com o coração despedaçado.

           – Você sabe o que os nazistas fizeram com a família da sua amiga Eva.

           – Ela se casou, sabia? – disse Daisy, com o tom decidido e alegre de quem tenta mudar o rumo de uma conversa ao redor da mesa para um assunto mais agradável. – Com o simpático Jimmy Murray. Ela agora é uma esposa inglesa.

           – E os pais dela?

           Daisy olhou para o outro lado.

           – Eu não os conheço.

           – Mas sabe o que os nazistas fizeram com eles. – Eva tinha contado tudo a Lloyd durante o baile do Trinity College. – O pai dela não pode mais exercer a medicina e agora trabalha como assistente numa farmácia. Não pode entrar em parques nem em bibliotecas públicas. Na cidade em que ele nasceu, o nome do pai dele foi raspado do monumento aos mortos na guerra! – Lloyd percebeu que havia levantado a voz. Prosseguiu em tom mais baixo: – Como você pode ficar do lado de pessoas que fazem esse tipo de coisa?

           Ela pareceu abalada, mas não respondeu à pergunta. Em vez disso, falou:

           – Já estou atrasada. Peço perdão, mas tenho que ir.

           – Não há perdão para o que você está fazendo.

           O motorista interveio:

           – Está bem, filho, agora chega.

           Ele era um homem pesado, de meia-idade, que obviamente se exercitava pouco, e Lloyd não ficou nem um pouco intimidado, mas não quis começar uma briga.

           – Já estou indo – falou, em tom brando. – Mas não me chame de filho.

           O motorista o segurou pelo braço.

           – É melhor tirar a mão de mim, senão o derrubarei antes de ir – disse Lloyd, encarando o motorista.

           O homem hesitou. Lloyd retesou o corpo, preparando-se para reagir, atento aos sinais, como ficaria num ringue de boxe. Se o motorista tentasse acertá-lo, seria com um soco aberto e grosseiro, fácil de esquivar.

           No entanto, ou o homem pressentiu que Lloyd estava disposto a reagir, ou então sentiu os músculos do braço que estava segurando. Seja como for, recuou e soltou Lloyd dizendo:

           – Não precisa me ameaçar.

           Daisy se afastou.

           Lloyd ficou admirando suas costas vestidas com o uniforme de corte perfeito enquanto ela seguia apressada em direção às fileiras de fascistas. Com um profundo suspiro de frustração, virou-se e começou a andar na outra direção.

           Tentou se concentrar na tarefa que tinha pela frente. Que bobagem sua ameaçar o motorista. Se tivesse entrado numa briga, provavelmente teria sido preso e passado o dia inteiro em uma cela de prisão – em que isso ajudaria a combater o fascismo?

           Era meio-dia e meia. Ele saiu de Tower Hill, encontrou uma cabine telefônica, ligou para o Conselho do Povo Judeu e falou com Bernie. Depois de ouvir o relato de Lloyd sobre o que tinha visto, seu padrasto lhe pediu que estimasse o número de policiais nas ruas entre a Torre de Londres e a Gardiner’s Corner.

           Lloyd atravessou o parque até o lado leste e explorou as ruas secundárias que partiam dali. O que viu o deixou boquiaberto.

           Esperava cerca de uma centena de policiais. Na verdade, havia milhares.

           Agentes da polícia margeavam as calçadas, aguardando dentro de dúzias de ônibus estacionados e montados em cavalos imensos, formando fileiras muito precisas. Apenas uma estreita brecha permitia às pessoas caminharem pelas ruas. O número de policiais era maior que o de fascistas.

           De dentro de um dos ônibus, um agente uniformizado o cumprimentou com a saudação nazista.

           Lloyd ficou arrasado. Se todos aqueles policiais estivessem do lado dos fascistas, como os contramanifestantes poderiam resistir?

           Aquilo era pior do que uma passeata fascista: era uma passeata fascista com o apoio da polícia. Que tipo de mensagem transmitia aos judeus do East End?

           Na Mansell Street, Lloyd viu um policial de bairro que conhecia, chamado Henry Clark.

           – Oi, Nobby – cumprimentou. Por algum motivo, todos os Clark eram chamados de Nobby. – Um policial acaba de me fazer a saudação nazista.

           – Eles não são daqui – disse Nobby em voz baixa, como quem faz uma confidência. – Não convivem com os judeus como eu. Tentei dizer a eles que os judeus são iguais a todo mundo, em sua maioria pessoas decentes e cumpridoras da lei, e poucos bandidos e arruaceiros. Mas eles não acreditaram em mim.

           – Mas a saudação nazista?

           – Pode ter sido brincadeira.

           Lloyd não achava que fosse.

           Despediu-se de Nobby e seguiu em frente. Viu que a polícia estava formando cordões no ponto em que as ruas laterais chegavam à área em volta da Gardiner’s Corner.

           Entrou em um pub que tinha telefone – fizera um reconhecimento de todos os telefones disponíveis na véspera – e disse a Bernie que havia pelo menos cinco mil policiais nas redondezas.

           – Não vamos conseguir resistir a tantos – falou, pessimista.

           – Não tenha tanta certeza – contrapôs Bernie. – Vá dar uma olhada na Gardiner’s Corner.

           Lloyd deu um jeito de contornar o cordão policial e foi se reunir aos contramanifestantes. Só quando chegou ao meio da rua em frente à loja Gardiner’s pôde avaliar o verdadeiro tamanho da multidão.

           Nunca vira tantas pessoas reunidas.

           O cruzamento de cinco ruas estava abarrotado, mas isso nem era o mais importante. A multidão se estendia rumo ao leste pela Whitechapel High Street até onde a vista alcançava. A Commercial Road, que seguia na direção sudeste, também estava lotada. A Leman Street, onde ficava a delegacia, estava intransitável.

           Devia haver cerca de 100 mil pessoas ali, calculou Lloyd. Teve vontade de atirar o chapéu para o alto e comemorar. Os moradores do East End tinham comparecido em peso para repelir os fascistas. Agora já não podia haver mais dúvidas quanto ao que sentiam.

           Bem no meio do cruzamento, um bonde estava parado, abandonado pelo condutor e pelos passageiros.

           Nada poderia passar por aquela multidão, percebeu Lloyd com um otimismo crescente.

           Viu seu vizinho Sean Dolan subir num poste de luz e prender uma bandeira vermelha no topo. A banda de metais da Brigada de Jovens Judeus estava tocando – provavelmente sem o conhecimento dos respeitáveis e conservadores organizadores da associação. Um avião da polícia voava baixo no céu, um tipo de autogiro, pensou.

           Perto da vitrine da Gardiner’s, ele esbarrou com a irmã Millie e sua amiga Naomi Avery. Não queria que Millie se envolvesse em nada violento: pensar nisso fez seu coração gelar.

           – Papai sabe que você está aqui? – perguntou, em tom de reprovação.

           Ela não pareceu preocupada.

           – Deixe de ser idiota – respondeu.

           Lloyd estava espantado por vê-la ali.

           – Você não costuma ligar muito para política – falou. – Pensei que estivesse mais interessada em ganhar dinheiro.

           – E estou mesmo – disse ela. – Mas isto aqui hoje é especial.

           Lloyd pôde imaginar como Bernie ficaria preocupado caso Millie se ferisse.

           – Acho que você deveria ir para casa.

           – Por quê?

           Ele olhou em volta. A multidão parecia pacífica. A polícia estava um pouco mais longe, e não dava para ver os fascistas. Uma coisa estava clara: não haveria passeata nesse dia. O pessoal de Mosley não conseguiria abrir caminho em meio a uma multidão de 100 mil pessoas determinadas a detê-los, e a polícia seria louca se tentasse intervir. Millie provavelmente estava segura.

           Bem na hora em que ele pensava isso, tudo mudou.

           Vários apitos soaram. Ao olhar na direção do barulho, Lloyd viu a polícia montada se aproximar numa coluna ameaçadora. Nervosos, os cavalos batiam com os cascos no chão e bufavam. A polícia havia sacado longos porretes em forma de espada.

           Eles pareciam estar se preparando para atacar – mas não podia ser.

           No instante seguinte, atacaram.

           As pessoas começaram a gritar de raiva e medo. Todos tropeçaram para sair da frente dos enormes cavalos. A multidão abriu espaço, mas quem estava nas margens caiu sob os cascos dos animais. A polícia golpeava a torto e a direito com os porretes compridos. Lloyd foi empurrado para trás e não conseguiu resistir.

           Ficou irado: o que a polícia achava que estava fazendo? Será que era burra o suficiente para crer que conseguiria abrir um caminho para Mosley passar? Será que achava mesmo que dois ou três mil fascistas gritando insultos poderiam atravessar uma multidão de 100 mil de suas vítimas sem dar início a um motim? Será que a polícia era chefiada por imbecis, ou estava fora de controle? Não soube dizer o que seria pior.

           Os policiais recuaram, viraram os cavalos ofegantes e tornaram a se reunir, formando uma coluna irregular. Então soou um apito e eles cutucaram os flancos dos animais com os calcanhares, impelindo-os em mais um ataque implacável.

           Millie agora estava apavorada. Tinha apenas 16 anos e sua bravata havia desaparecido. Ela gritou de medo enquanto era imprensada contra a vitrine da Gardiner and Company. Manequins vestidos com ternos e sobretudos baratos encaravam a multidão aterrorizada e a polícia montada, que lembrava uma cavalaria de guerra. O rugido de milhares de vozes gritando protestos apavorados fez Lloyd ensurdecer. Ele entrou na frente de Millie e empurrou as pessoas com toda a força, tentando protegê-la, mas foi em vão. Apesar de seus esforços, foi jogado contra ela. Quarenta ou cinquenta pessoas aos berros estavam espremidas de costas para a vitrine, e a pressão aumentava perigosamente.

           Furioso, Lloyd percebeu que a polícia estava decidida a abrir caminho pelo meio daquela gente a qualquer custo.

           Instantes depois, ouviu-se um estrondo terrível de vidro se quebrando e a vitrine cedeu. Lloyd caiu por cima de Millie, e Naomi caiu por cima dele. Dezenas de pessoas gritaram de dor e pânico.

           Lloyd se levantou com dificuldade. Por milagre, não estava ferido. Olhou em volta freneticamante à procura da irmã. Era muito difícil distinguir as pessoas dos manequins. Foi então que viu Millie caída em meio a uma profusão de cacos de vidro. Segurou-a pelo braço e a fez levantar. Ela chorava.

           – Minhas costas! – falou.

           Ele a virou. Seu casaco estava todo rasgado e as costas, cobertas de sangue. Ele ficou tão angustiado que sentiu náuseas. Passou o braço em volta dos ombros da irmã num gesto protetor.

           – Tem uma ambulância bem ali na esquina – falou. – Você consegue andar?

           Eles só haviam percorrido poucos metros quando os apitos da polícia soaram outra vez. Lloyd ficou com muito medo de que ele e Millie fossem novamente empurrados para cima da vitrine da Gardiner’s. Então se lembrou do pacote que Bernie lhe dera. Tirou do bolso o saco de papel cheio de bolinhas de gude.

           A polícia avançou para cima deles.

           Lloyd esticou o braço para trás e lançou o saco de papel por cima da cabeça das outras pessoas, fazendo-o cair na frente dos cavalos. Não era o único equipado com aquelas bolinhas, e várias outras pessoas também as jogaram. Quando os cavalos avançaram para cima deles, ouviu-se um barulho de fogos de artifício. Um dos animais escorregou nas bolinhas e caiu. Os outros, ao ouvir o estouro dos fogos, pararam e empinaram. A investida da polícia virou um caos. Naomi Avery tinha dado um jeito de chegar até a frente da multidão e Lloyd a viu explodir um saco de papel cheio de pimenta no focinho de um cavalo, fazendo o animal se esquivar enquanto sacudia a cabeça feito um louco.

           A pressão diminuiu, e Lloyd conduziu Millie até a esquina. Ela ainda sentia dor, mas havia parado de chorar.

           Uma fila de pessoas esperava para ser atendida pelos voluntários da St. John’s Ambulance: uma menina aos prantos cuja mão parecia ter sido esmagada; vários rapazes com a cabeça e o rosto sangrando; uma mulher de meia-idade sentada no chão segurando um joelho inchado. Quando Lloyd e Millie chegaram, viram Sean Dolan se afastar com uma atadura na cabeça e entrar outra vez no meio da massa.

           Uma enfermeira examinou as costas de Millie.

           – Isso está feio – disse ela. – A senhorita tem de ir para o Hospital de Londres. Vamos levá-la de ambulância. – Em seguida olhou para Lloyd. – Quer ir com ela?

           Lloyd queria, mas devia telefonar para dar informações atualizadas, então hesitou.

           Millie resolveu o dilema por ele com a energia que lhe era peculiar.

           – Não se atreva a vir comigo – falou. – Você não pode me ajudar em nada e tem um trabalho importante a fazer aqui.

           Ela estava certa. Lloyd a ajudou a subir numa ambulância estacionada.

           – Tem certeza...?

           – Sim, tenho certeza. E tente não precisar ir para o hospital também.

           Ele concluiu que estava deixando a irmã nas melhores mãos possíveis. Deu-lhe um beijo no rosto e voltou para o meio da confusão.

           A polícia havia mudado de tática. Continuava decidida a abrir caminho em meio à multidão, apesar de as pessoas terem conseguido repelir os ataques da cavalaria. Enquanto Lloyd tentava chegar até a frente, os policiais atacaram a pé, golpeando com os cassetetes. Os manifestantes desarmados recuavam para escapar deles como uma pilha de folhas soprada pelo vento, depois tornavam a avançar num lugar diferente.

           A polícia começou a prender pessoas, talvez na esperança de enfraquecer a determinação da multidão levando embora seus líderes. No East End, ser preso não era uma formalidade jurídica. Poucos voltavam da cadeia sem um olho roxo ou alguns dentes faltando. A delegacia da Leman Street tinha uma reputação particularmente ruim.

           Lloyd foi parar atrás de uma jovem que segurava uma bandeira vermelha e gritava. Reconheceu Olive Bishop, sua vizinha na Nutley Street. Um policial a golpeou na cabeça com o cassetete e berrou: “Puta judia!” Olive não era judia e com certeza não era puta. Na verdade, tocava piano na igreja do Evangelho do Calvário. No entanto, pareceu ter esquecido a recomendação de Jesus de dar a outra face e arranhou a cara do policial, deixando a pele dele marcada com linhas vermelhas paralelas. Dois outros policiais a pegaram pelos braços e a seguraram enquanto o que fora arranhado tornava a golpeá-la na cabeça.

           Ver três homens fortes atacando uma jovem sozinha deixou Lloyd enlouquecido. Ele deu um passo à frente e acertou o agressor de Olive com um gancho de direita no qual estava concentrada toda a sua raiva. O soco atingiu o policial na têmpora. Atordoado, ele cambaleou e caiu.

           Mais policiais se envolveram na briga, golpeando a esmo com os cassetetes, acertando braços, pernas, cabeça e mãos. Quatro homens seguraram Olive, cada um por um braço ou uma perna. Ela gritava e se contorcia, mas não conseguiu se soltar.

           Os observadores, porém, não ficaram passivos. Atacaram os policiais que carregavam a moça, tentando afastá-los dela. Os policiais se viraram contra esses agressores aos gritos de “Canalhas judeus!”, apesar de nem todos os seus agressores serem judeus e de um deles ser um marinheiro somaliano de pele negra.

           Os policiais largaram Olive no chão e começaram a se defender. Ela abriu caminho pela multidão e sumiu. Os policiais bateram em retirada, acertando quem estivesse pela frente ao recuar.

           Com uma ponta de triunfo, Lloyd viu que a estratégia da polícia não estava funcionando. Por mais brutais que fossem, seus ataques haviam fracassado em abrir caminho pela multidão. Outra investida com cassetetes começou, mas as pessoas enfurecidas avançaram de encontro aos policiais, agora ávidas pelo combate.

           Lloyd decidiu que estava na hora de mais uma atualização. Voltou pelo meio das pessoas até encontrar um telefone público.

           – Pai, não acho que eles vão conseguir – disse a Bernie, animado. – Estão tentando abrir caminho pelo meio de nós, mas não está adiantando. Somos numerosos demais.

           – Estamos redirecionando as pessoas para a Cable Street – disse Bernie. – Pode ser que a polícia esteja prestes a mudar seu ângulo de ataque, pensando que terá mais chances lá, por isso vamos mandar reforços. Vá para a Cable Street, veja o que está acontecendo e me avise.

           – Certo – disse Lloyd, desligando antes de se dar conta de que não havia contado ao padrasto que Millie fora levada para o hospital. Mas talvez fosse melhor não deixá-lo preocupado agora.

           Chegar à Cable Street não seria fácil. Da Gardiner’s Corner, a Leman Street conduzia diretamente para o sul até a extremidade mais próxima da Cable Street – uma distância de menos de 800 metros, mas a rua estava apinhada de manifestantes em conflito com a polícia. Lloyd tinha que seguir um caminho menos direto. Com esforço, foi andando para leste pelo meio das pessoas até a Commercial Road. Ao chegar lá, não foi fácil continuar avançando. Não havia polícia, portanto não havia violência, mas a multidão estava quase tão compacta quanto em Gardiner’s Corner. Era frustrante, mas Lloyd se consolou pensando que a polícia jamais poderia forçar passagem com tanta gente reunida.

           Perguntou-se o que Daisy Peshkov estaria fazendo. Era provável que estivesse sentada no carro, aguardando o início da passeata, batendo impacientemente com o bico do sapato caro no tapete do Rolls-Royce. Pensar que ele estava ajudando a frustrar os objetivos dela lhe proporcionou uma satisfação estranhamente vingativa.

           Com muita persistência e uma atitude ligeiramente truculenta com quem estivesse em seu caminho, Lloyd conseguiu se espremer pela multidão. A ferrovia que margeava o lado norte da Cable Street o impediu de prosseguir, e ele teve que andar um pouco antes de chegar a uma ruazinha lateral com uma passagem subterrânea. Atravessou por baixo da via férrea e chegou à Cable Street.

           A aglomeração ali não estava tão densa, mas a rua era estreita e ainda era difícil se mover. Aquilo era uma coisa boa: seria mais difícil ainda para a polícia. Mas então ele notou outro obstáculo. Havia um caminhão atravessado na rua, tombado de lado. Em ambas as extremidades do veículo, bloqueando a rua inteira, havia uma barricada formada com mesas e cadeiras velhas, pedaços de madeira e outros entulhos empilhados bem alto.

           Uma barricada! Aquilo fez Lloyd pensar na Revolução Francesa. Só que ali não estava havendo nenhuma revolução. Os moradores do East End não queriam derrubar o governo britânico. Pelo contrário: eles davam grande valor a suas eleições, seus conselhos distritais e seu Parlamento. Gostavam tanto de seu sistema de governo que estavam decididos a defendê-lo do fascismo, mesmo que o sistema não defendesse a si próprio.

           Lloyd havia emergido à rua atrás da barricada e avançou para perto dela a fim de ver o que estava acontecendo. Subiu num muro para enxergar melhor. Deparou com uma cena interessante. Do outro lado, policiais tentavam desmontar a barricada, retirando pedaços de móveis e arrastando colchões velhos para longe. Mas não estava sendo fácil. Uma chuva de projéteis se abatia sobre seus quepes, alguns lançados de trás da barricada, outros das janelas dos andares superiores das casas nos dois lados da rua, bem coladas umas às outras. Eram pedras, garrafas de leite, vasos quebrados e tijolos que estavam sendo tirados de um depósito de material de construção ali perto. Havia alguns rapazes mais ousados de pé sobre a barricada, atacando os policiais com porretes, e de vez em quando uma briga começava quando a polícia tentava puxar um deles para baixo e chutá-lo. Com um susto, Lloyd reconheceu dois desses rapazes: um deles era seu primo Dave Williams e o outro era Lenny Griffiths, de Aberowen. Lado a lado, eles repeliam os policiais a golpes de pá.

           No entanto, à medida que os minutos foram passando, Lloyd viu que a polícia estava vencendo. Agiam de forma sistemática, recolhendo os componentes da barricada e levando-os para longe. Do lado em que Lloyd estava, algumas pessoas reforçavam a barreira, substituindo os objetos removidos pela polícia, mas eram menos organizadas e não dispunham de um estoque infinito de material. Lloyd teve a impressão de que a polícia logo iria ganhar aquele jogo. E, caso conseguisse liberar a Cable Street, faria os fascistas marcharem por ali, passando em frente a incontáveis lojas de judeus.

           Então olhou para trás e constatou que os organizadores da defesa da Cable Street já estavam pensando à frente. Ao mesmo tempo que a polícia desmontava a primeira barricada, uma segunda ia sendo erguida algumas centenas de metros adiante na rua.

           Lloyd recuou e, empolgado, começou a ajudar na construção da segunda barricada. Estivadores com picaretas removiam pedras do calçamento, donas de casa arrastavam sacos de lixo de seus quintais, e proprietários de loja traziam caixotes e caixas vazios. Lloyd ajudou a carregar um banco de praça, depois removeu a placa afixada em frente a um prédio da prefeitura. Os construtores usaram a experiência com a primeira barricada e dessa vez fizeram um trabalho melhor, economizando materiais e certificando-se de que a estrutura estava firme.

           Ao olhar para trás outra vez, Lloyd viu que uma terceira barricada subia mais a leste.

           As pessoas começaram a se afastar da primeira barricada e a se reunir atrás da segunda. Alguns minutos depois, a polícia finalmente abriu uma brecha na primeira barreira e começou a passar por ali. Os primeiros policiais foram atrás dos jovens remanescentes, e Lloyd viu Dave e Lenny serem perseguidos por um beco. As casas de ambos os lados da rua foram fechadas depressa, com portas batendo e janelas sendo baixadas.

           Lloyd viu então que a polícia não sabia o que fazer em seguida. Havia conseguido furar a barricada apenas para deparar com outra, ainda mais sólida. Os homens não pareciam ter energia para começar a desmanchar a segunda. Ficaram aglomerados no meio da Cable Street, conversando desapontados, espiando ressentidos os moradores que os observavam das janelas dos andares superiores.

           Era cedo demais para cantar vitória, mas, ainda assim, Lloyd não conseguiu reprimir uma feliz sensação de sucesso. Estava começando a parecer que os antifascistas iriam ganhar o dia.

           Ele permaneceu onde estava por 15 minutos, porém, como a polícia não fez mais nada, Lloyd saiu dali, encontrou uma cabine telefônica e ligou para Bernie.

           Seu padrasto se mostrou cauteloso.

           – Não sabemos o que está acontecendo – disse ele. – As coisas parecem ter se acalmado por toda parte, mas precisamos descobrir o que os fascistas têm em mente. Você consegue voltar para a Torre?

           Lloyd não tinha como passar pelos policiais reunidos, mas talvez houvesse outro caminho.

           – Eu poderia tentar ir pela St. George Street – disse ele, em tom de dúvida.

           – Faça o melhor que puder. Quero saber qual vai ser o próximo passo deles.

           Lloyd se embrenhou por um labirinto de becos e seguiu rumo ao sul. Torceu para que estivesse certo em relação à St. George Street. A rua ficava fora da área prevista para a passeata, mas a multidão talvez tivesse transbordado.

           Conforme esperava, porém, não havia tumulto nenhum ali, embora ele ainda pudesse ouvir a contramanifestação e os gritos e apitos da polícia. Algumas mulheres conversavam de pé e um grupo de meninas pulava corda no meio da rua. Lloyd dobrou para oeste e apressou o passo até um trote acelerado, imaginando que fosse deparar com manifestantes ou policiais a cada esquina. Cruzou com algumas pessoas que haviam se distanciado da confusão – dois homens com ataduras na cabeça, uma mulher de sobretudo rasgado, um veterano de guerra com o braço pendurado numa tipoia –, mas nenhuma aglomeração. Correu até onde a rua terminava, junto à Torre. Conseguiu entrar em Tower Gardens sem problemas.

           Os fascistas ainda estavam lá.

           Aquilo em si já era uma vitória, pensou Lloyd. Já eram três e meia da tarde: havia horas que os manifestantes estavam ali, esperando, sem que a passeata começasse. Ele viu que a animação de antes tinha desaparecido. Ninguém mais cantava hinos ou gritava palavras de ordem; estavam todos calados e cabisbaixos, ainda enfileirados, mas já não tão ordenadamente, com as faixas caídas e as bandas de metais agora silenciosas. Já pareciam derrotados.

           Poucos minutos depois, entretanto, houve uma mudança. Um carro aberto surgiu de uma rua lateral e começou a margear as fileiras de fascistas. Houve comemorações. As fileiras se endireitaram, os oficiais ergueram as mãos numa saudação e todos os fascistas adotaram uma postura de sentido. No banco de trás do carro estava seu líder, Sir Oswald Mosley, um homem bonito, de bigode, vestido com um uniforme completo que incluía o quepe. Com as costas muito retas, fazia repetidas saudações enquanto o carro ia passando bem devagar, como um monarca inspecionando as tropas.

           Sua presença revigorou os manifestantes e deixou Lloyd preocupado. Aquilo provavelmente significava que eles iriam fazer a passeata conforme o planejado – caso contrário, o que Mosley estaria fazendo ali? O carro foi margeando a fileira de fascistas por uma rua lateral até entrar no bairro financeiro. Lloyd aguardou. Meia hora mais tarde, Mosley voltou, dessa vez a pé, saudando e agradecendo as vibrações.

           Quando chegou ao final da fila, deu meia-volta e, acompanhado por um de seus oficiais, entrou numa rua secundária.

           Lloyd foi atrás.

           Mosley se aproximou de alguns homens mais velhos reunidos na calçada. Lloyd ficou surpreso ao reconhecer o comissário de polícia Sir Philip Game, de gravata-borboleta e chapéu de feltro. Os dois entabularam uma conversa exaltada. Com certeza Sir Philip devia estar contando a Sir Oswald que a multidão de contramanifestantes era grande demais para ser dispersada. Mas qual seria então sua recomendação aos fascistas? Embora estivesse louco para chegar mais perto e entreouvir a conversa, Lloyd decidiu não se arriscar a ser preso e manteve uma distância discreta.

           O comissário de polícia foi quem mais falou. O líder fascista aquiesceu bruscamente várias vezes e fez algumas perguntas. Os dois então se cumprimentaram com um aperto de mãos e Mosley se afastou.

           Ele voltou ao parque e confabulou com seus oficiais. Entre eles, Lloyd reconheceu Boy Fitzherbert, que usava um uniforme igual ao de Mosley. Em Boy, no entanto, o traje não caía tão bem: o elegante uniforme militar não combinava com seu corpo fraco nem com a sensualidade preguiçosa de sua postura.

           Mosley parecia estar dando instruções. Os outros homens fizeram saudações e se afastaram, sem dúvida para executar suas ordens. Quais seriam elas? A única alternativa sensata era desistir de tudo e ir para casa. No entanto, se eles fossem sensatos, não seriam fascistas.

           Apitos soaram, ordens foram gritadas, as bandas puseram-se a tocar e os homens assumiram posição de sentido. Lloyd percebeu que iriam começar a passeata. A polícia devia ter lhes indicado um trajeto. Mas qual?

           Então a marcha começou – e eles partiram na direção contrária. Em vez de seguir para o East End, foram para oeste rumo ao bairro financeiro, que, por ser domingo à tarde, estava deserto.

           Lloyd mal pôde acreditar.

           – Eles desistiram! – falou em voz alta.

           – Parece que sim, não é? – retrucou um homem em pé ao seu lado.

           Ainda ficou ali por cinco minutos, observando as fileiras se afastarem devagar. Quando não restou mais nenhuma dúvida quanto ao que estava acontecendo, correu até uma cabine telefônica e ligou para Bernie.

           – Eles foram embora marchando! – falou.

           – Como assim? Para o East End?

           – Não, para o outro lado! Estão indo para oeste, na direção da City. Nós vencemos!

           – Meu Deus! – Bernie então se dirigiu às pessoas que estavam com ele: – Ei, pessoal! Os fascistas estão marchando para oeste. Eles desistiram!

           Lloyd ouviu uma explosão de vivas do outro lado.

           Após um momento, Bernie falou:

           – Fique de olho neles e avise quando todos tiverem saído de Tower Gardens.

           – Claro. – Lloyd desligou.

           Deu a volta no parque tomado por uma grande animação. A cada minuto ficava mais claro que os fascistas haviam sido derrotados. Suas bandas tocavam e eles marchavam no ritmo certo, mas faltava energia a seus passos, e eles já não cantavam que iriam se livrar dos judeus. Os judeus é que tinham se livrado deles.

           Ao passar pela Byward Street, Lloyd tornou a ver Daisy.

           Ela se dirigia para o conhecido Rolls-Royce preto e creme e teve que passar por Lloyd. Ele não resistiu à tentação de se gabar:

           – A população do East End rejeitou vocês e suas ideias imundas.

           Ela parou e o encarou, fria como nunca.

           – Fomos impedidos de passar por um bando de arruaceiros – retrucou com desdém.

           – Mesmo assim, agora estão marchando na outra direção.

           – Perder uma batalha não é o mesmo que perder a guerra.

           Podia até ser, pensou Lloyd, mas aquela tinha sido uma batalha importante.

           – Não vai marchar para casa com seu namorado?

           – Prefiro ir de carro – respondeu ela. – E ele não é meu namorado.

           O coração de Lloyd se encheu de esperança. Então ela completou:

           – É meu marido.

           Lloyd a encarou. Jamais acreditara que ela pudesse ser tão burra. Estava sem palavras.

           – É verdade – disse ela, vendo a incredulidade em seu rosto. – Não viu nosso noivado anunciado nos jornais?

           – Não leio as colunas sociais.

           Ela lhe mostrou a mão esquerda, com um anel de noivado de brilhante e uma aliança de ouro.

           – O casamento foi ontem. Adiamos a lua de mel para participar da passeata hoje. Amanhã vamos para Deauville no avião de Boy.

           Ela se aproximou do carro e o motorista lhe abriu a porta.

           – Para casa, por favor – pediu.

           – Pois não, milady.

           A raiva de Lloyd era tanta que ele estava com vontade de socar alguém.

           Daisy olhou por cima do ombro.

           – Adeus, Sr. Williams.

           Ele recuperou a voz.

           – Adeus, Srta. Peshkov.

           – Ah, não – corrigiu ela. – Agora sou a viscondessa de Aberowen.

           Lloyd pôde ver que ela adorou dizer aquilo. Agora era uma dama com um título de nobreza e, para ela, essa era a coisa mais importante do mundo.

           Daisy entrou no carro e o motorista fechou a porta.

           Lloyd deu as costas para o veículo. Sentiu vergonha ao constatar que estava com os olhos marejados.

           – Que droga – falou em voz alta.

           Fungou, reprimindo as lágrimas. Aprumou os ombros e voltou para o East End a passos rápidos. O triunfo do dia fora arruinado. Ele sabia que era um idiota por se importar com Daisy – ela obviamente não dava a mínima para ele –, mas mesmo assim o fato de ela desperdiçar a vida com Boy Fitzherbert lhe partiu o coração.

           Tentou tirá-la do pensamento.

           A polícia estava entrando nos ônibus para ir embora. Lloyd não ficara surpreso com a sua brutalidade – tinha morado a vida inteira no East End, um bairro violento –, mas o antissemitismo o chocara. Os policiais haviam xingado todas as mulheres de putas judias e todos os homens de canalhas judeus. Na Alemanha, a polícia tinha apoiado os nazistas e tomado o partido dos camisas-pardas. Será que ali iria acontecer a mesma coisa? Não podia ser!

           A multidão reunida em Gardiner’s Corner já tinha começado a comemorar. A banda da Brigada de Jovens Judeus tocava um jazz para que homens e mulheres dançassem, e garrafas de uísque e de gim passavam de mão em mão. Lloyd decidiu ir ao Hospital de Londres ver como Millie estava. Em seguida, o melhor seria ir até a sede do Conselho do Povo Judeu e avisar a Bernie que Millie tinha se ferido.

           Antes de conseguir se afastar muito, esbarrou com Lenny Griffiths.

           – Botamos os malditos para correr! – exclamou o rapaz, animado.

           – Foi mesmo – concordou Lloyd, sorrindo.

           Lenny baixou a voz:

           – Derrotamos os fascistas aqui e vamos derrotá-los na Espanha também.

           – Quando vocês viajam?

           – Amanhã. Eu e Dave vamos pegar o trem para Paris de manhã.

           Lloyd passou o braço em volta dos ombros de Lenny e disse:

           – Irei com vocês.

             

1937

            Ao atravessar a ponte sobre o rio Moscou, Volodya Peshkov baixou a cabeça para se proteger da neve que o fustigava. Usava um sobretudo grosso, um chapéu de pele e um pesado par de botas de couro. Poucos moscovitas se vestiam tão bem. Volodya era um homem de sorte.

           Sempre tivera botas de qualidade. Seu pai, Grigori, era comandante do Exército, mas não era nenhum figurão: embora fosse um herói da revolução bolchevique e conhecesse Stalin pessoalmente, sua carreira havia estagnado em algum momento da década de 1920. Apesar disso, a família sempre vivera com conforto.

           Volodya, por sua vez, era um figurão. Depois da universidade, ingressara na prestigiosa Academia de Inteligência Militar. Um ano depois, fora transferido para o quartel-general do Serviço de Inteligência do Exército Vermelho.

           Sua maior sorte foi ter conhecido Werner Franck em Berlim, quando seu pai era adido militar na embaixada soviética na capital alemã. Werner estudava na mesma escola que ele, numa série abaixo da sua. Ao saber que o rapaz alemão odiava o fascismo, Volodya lhe sugerira que talvez a melhor forma de combater os nazistas fosse virando espião dos russos.

           Na época, Werner tinha apenas 14 anos. Agora estava com 18, trabalhava no Ministério da Aeronáutica, detestava ainda mais os nazistas e tinha um poderoso transmissor de rádio e um manual para decifrar mensagens em código. Era um rapaz corajoso e cheio de recursos – corria riscos terríveis e estava coletando informações preciosas. E Volodya era o seu contato.

           Fazia quatro anos que Volodya não via Werner, mas lembrava-se dele com clareza. Alto, de vistosos cabelos louros, Werner tinha a aparência e a postura de um rapaz mais velho. Aos 14 anos, seu sucesso com as mulheres já era invejável.

           Recentemente, o alemão lhe dera informações sobre Markus, um diplomata da embaixada alemã em Moscou que na verdade era comunista. Volodya fora procurar Markus para recrutá-lo como espião. Havia alguns meses que Markus vinha fazendo uma série de relatórios que Volodya traduzia para o russo e transmitia a seu superior. O último deles era um fascinante relato de como industriais norte-americanos pró-nazismo estavam fornecendo caminhões, pneus e gasolina aos rebeldes espanhóis de direita. Torkild Rieber, presidente da Texaco e admirador de Hitler, usava os petroleiros da empresa para contrabandear combustível e abastecer os rebeldes, contrariando uma solicitação formal do presidente Roosevelt.

           Nesse exato momento, Volodya estava indo se encontrar com Markus.

           Percorreu a Kutuzovsky Prospekt e dobrou na direção da estação ferroviária de Kiev. O encontro desse dia era num bar de operários perto da estação. Eles nunca iam ao mesmo lugar duas vezes, mas ao fim de cada encontro combinavam o seguinte: Volodya era meticuloso com relação à espionagem. Os dois sempre se encontravam em bares ou cafés baratos, que os colegas diplomatas de Markus nem sequer cogitariam frequentar. Se por algum motivo Markus levantasse suspeitas e fosse seguido por um agente alemão de contraespionagem, Volodya saberia, pois um homem assim se destacaria dos outros clientes.

           O lugar escolhido dessa vez se chamava Bar Ucrânia. Como a maioria das construções de Moscou, era feito de madeira. As janelas estavam embaçadas, indicando que, pelo menos, estaria quente lá dentro. Mas Volodya não entrou imediatamente. Era preciso tomar outras precauções. Atravessou a rua e se escondeu na entrada de um prédio residencial. Ficou em pé no corredor frio, observando o bar por uma janelinha.

           Imaginou se Markus iria comparecer ao encontro. Ele sempre tinha ido, mas Volodya não podia ter certeza. Se aparecesse, que informações traria dessa vez? O assunto mais quente da política internacional no momento era a Espanha, mas a Inteligência do Exército Vermelho também estava muito interessada nos armamentos alemães. Quantos tanques estavam sendo produzidos por mês? Quantas metralhadoras Mauser M34 eram fabricadas por dia? O novo bombardeiro Heinkel He 111 era bom mesmo? Volodya ansiava por informações desse tipo para transmitir ao seu superior, o major Lemitov.

           Meia hora se passou e Markus não apareceu.

           Volodya começou a ficar preocupado. Será que Markus tinha sido desmascarado? Ele trabalhava como assistente do embaixador e via tudo o que passava pela mesa do chefe. No entanto, Volodya o vinha pressionando a tentar acessar outros documentos, sobretudo a correspondência dos adidos militares. Teria sido um erro? Será que alguém tinha surpreendido Markus dando uma olhadinha em cabogramas que não eram da sua conta?

           Nesse momento, porém, Markus apareceu andando pela rua: um homem de ar professoral, com óculos de grau e um Loden, um sobretudo austríaco feito de lã verde impermeável, salpicado de flocos brancos de neve. Ele entrou no Bar Ucrânia. Volodya esperou, ainda observando. Franziu o cenho, preocupado, ao ver outro homem entrar no bar atrás de Markus, mas logo ficou óbvio que esse segundo homem era um operário russo, não um agente de contraespionagem alemão. Era baixinho, usava botas envoltas em trapos, tinha cara de rato e enxugava a ponta do nariz fino com a manga do sobretudo puído.

           Volodya atravessou a rua e entrou no bar.

           O lugar estava enfumaçado, não era muito limpo e o cheiro de homens que não tomavam banho com muita frequência impregnava o ar. Nas paredes, aquarelas desbotadas de paisagens da Ucrânia pendiam em molduras baratas. Era o meio da tarde e não havia muitos clientes. A única mulher no recinto parecia uma prostituta já de certa idade recuperando-se de uma ressaca.

           Markus estava no fundo da sala, curvado sobre um copo de cerveja intocado. Embora tivesse 30 e poucos anos, parecia mais velho, com a barba e o bigode louros bem-aparados. Havia aberto o sobretudo, deixando à mostra um forro de pele. O russo com cara de rato sentou-se a duas mesas de distância e começou a enrolar um cigarro.

           Quando Volodya chegou perto, Markus se levantou e lhe deu um soco na boca.

           – Seu filho da puta escroto! – gritou em alemão.

           Volodya ficou tão chocado que, por alguns instantes, não fez nada. Sua boca doía e ele sentiu gosto de sangue. Por reflexo, ergueu o braço para revidar o soco, mas se conteve.

           Markus investiu contra ele de novo, mas dessa vez Volodya estava preparado e se esquivou com facildade.

           – Por que você fez isso? – berrou Markus. – Por quê?

           Então, tão subitamente quanto havia se levantado, ele desabou de volta sobre a cadeira, enterrou o rosto nas mãos e começou a soluçar.

           – Cale a boca, seu imbecil – disse Volodya, com os lábios sangrando. Virando-se, dirigiu-se aos outros clientes, que encaravam a cena: – Não foi nada, ele está só chateado.

           As pessoas desviaram o olhar; um homem saiu do bar. Moscovitas nunca se metem em confusão à toa. Até separar dois bêbados engalfinhados já era perigoso, pois um deles poderia ser influente no Partido. Os clientes sabiam que Volodya era um desses homens: seu casaco de boa qualidade o denunciava.

           Volodya tornou a se virar para Markus. Em voz baixa, perguntou, zangado:

           – Que porra foi essa? – falou em alemão, pois Markus não dominava a língua russa.

           – Você mandou prender Irina – respondeu Markus, em prantos. – Queimou os mamilos dela com um cigarro, seu canalha de merda.

           Irina era a namorada russa de Markus. Volodya fez uma careta. Começava a entender a situação e teve um mau pressentimento. Sentou-se de frente para Markus.

           – Eu não mandei prender Irina – declarou. – E sinto muito se ela foi ferida. Agora me conte o que aconteceu.

           – Eles foram buscá-la no meio da noite. A mãe dela me contou. Não se identificaram, mas não eram investigadores normais da polícia... suas roupas eram melhores. Irina não sabe para onde foi levada. Eles fizeram perguntas sobre mim e a acusaram de ser espiã. Ela foi torturada, estuprada e depois eles a soltaram.

           – Puta que pariu! – exclamou Volodya. – Sinto muito.

           – Sente muito? A responsabilidade deve ser sua... de quem mais seria?

           – Garanto que isso não tem nada a ver com a Inteligência do Exército.

           – Pouco importa – disse Markus. – Estou cheio de vocês e estou cheio do comunismo.

           – Às vezes sofremos baixas na guerra contra o capitalismo. – Mal havia pronunciado essas palavras, o próprio Volodya as achou levianas.

           – Seu idiota – disse Markus, furiso. – Não entende que socialismo significa se libertar desse tipo de babaquice?

           Volodya ergueu os olhos e viu um homem forte de sobretudo de couro entrar. Seu instinto lhe disse que ele não estava ali para tomar um drinque.

           Alguma coisa estava acontecendo, mas Volodya não sabia o quê. Era novo naquela brincadeira e nesse momento sentiu que essa falta de experiência era como um membro amputado. Pensou que talvez estivesse correndo perigo, mas não soube o que fazer.

           O recém-chegado se aproximou da mesa em que os dois estavam sentados.

           Então o homem com cara de rato se levantou. Tinha mais ou menos a mesma idade que Volodya. Para sua surpresa, quando ele falou foi como um homem instruído.

           – Vocês dois estão presos.

           Volodya soltou um palavrão.

           Markus se levantou com um pulo.

           – Eu sou adido comercial da embaixada alemã! – gritou em russo, cometendo muitos erros de gramática. – Vocês não podem me prender! Eu tenho imunidade diplomática!

           Os outros clientes saíram do bar apressados, empurrando-se enquanto se espremiam porta afora. Restaram apenas duas pessoas: o garçom, que enxugava nervosamente o balcão com um trapo imundo, e a prostituta, que fumava um cigarro encarando um copo de vodca vazio.

           – Vocês também não podem me prender – disse Volodya, calmo. Sacou a identidade do bolso. – Sou o tenente Peshkov, Inteligência do Exército. Quem são vocês?

           – Dvorkin, NKVD – falou o cara de rato.

           – Berezovsky, NKVD – disse o homem do casaco de couro.

           A polícia secreta. Volodya soltou um grunhido: deveria ter desconfiado. Ele tinha sido avisado de que a NKVD e a Inteligência do Exército viviam se esbarrando, mas aquela era sua primeira experiência com isso.

           – Imagino que tenham sido vocês que torturaram a namorada deste homem.

           Dvorkin enxugou o nariz na manga da roupa: aparentemente, esse hábito desagradável não fazia parte de seu disfarce.

           – Ela não tinha nenhuma informação.

           – Quer dizer que vocês queimaram os mamilos dela a troco de nada.

           – Ela teve sorte. Se fosse espiã, teria sido pior.

           – Nunca lhes ocorreu nos consultar primeiro?

           – E quando foi que vocês nos consultaram?

           – Vou embora daqui – disse Markus.

           Volodya foi tomado pelo desespero. Estava prestes a perder um colaborador valioso.

           – Não vá embora – implorou. – Vamos dar um jeito de compensar Irina. Vamos conseguir o melhor tratamento...

           – Vá se foder – disse Markus. – Você nunca mais vai me ver. – E saiu do bar.

           Dvorkin não soube o que fazer. Não queria deixar Markus ir embora, mas estava claro que não podia prendê-lo sem fazer papel de bobo. Acabou dizendo a Volodya:

           – Não deveria permitir que as pessoas falem nesse tom com você. Isso o faz parecer fraco. Elas deveriam respeitá-lo.

           – Seu babaca – retrucou Volodya. – Não percebe o que acabou de fazer? Aquele homem era uma fonte de informações confiáveis... mas agora, graças à sua trapalhada, ele nunca mais vai trabalhar para nós.

           Dvorkin deu de ombros.

           – Como você mesmo disse, às vezes há baixas em uma guerra.

           – Pelo amor de Deus, me poupe – retrucou Volodya, e em seguida também saiu do bar.

           Sentiu-se levemente enjoado enquanto voltava a atravessar o rio. O que a NKVD tinha feito com uma mulher inocente lhe causava repulsa, e a perda de seu informante o deixava desanimado. Tomou o bonde: não era graduado o suficiente para ter um carro. Enquanto o veículo abria caminho pela neve em direção ao seu local de trabalho, ele refletia. Tinha que relatar o ocorrido ao major Lemitov, mas estava hesitante, sem saber muito bem como contar aquela história. Precisava deixar claro que a culpa não fora sua, mas não podia dar a impressão de que estava inventando desculpas.

           O quartel-general do Serviço de Inteligência do Exército ficava numa das extremidades do campo de pouso de Khodynka, onde um limpa-neve se arrastava de um lado para outro, a fim de manter a pista livre. A arquitetura era peculiar: uma construção de dois andares sem janelas nas paredes externas cercava um pátio no qual se erguia um prédio de escritórios de nove andares, como se fosse um dedo em riste despontando de um punho de tijolo. Para não acionar os detectores de metal da entrada, era proibido entrar com isqueiros ou canetas-tinteiro, por isso o Exército fornecia esses objetos, um de cada, a seus funcionários. Fivelas de cinto também eram um problema, assim a maioria usava suspensórios. Essa segurança toda naturalmente era supérflua. Os moscovitas fariam de tudo para manter distância de um prédio assim: ninguém seria louco o bastante para querer se esgueirar lá para dentro.

           Volodya dividia uma sala com três outros subalternos. O espaço era tão apertado que a mesa de Volodya impedia a porta de se abrir completamente. Kamen, o engraçadinho de plantão, olhou para sua boca inchada e disse:

           – Deixe eu adivinhar... o marido chegou antes da hora.

           – Nem pergunte – respondeu Volodya.

           Sobre sua mesa havia uma mensagem decodificada pela seção de rádio, com as palavras em alemão escritas a lápis, letra por letra, sob os blocos de código.

           Era uma mensagem de Werner.

           A primeira reação de Volodya foi de medo. Será que Markus já havia relatado o que acontecera a Irina e convencido Werner a também desistir da espionagem? Aquele dia parecia azarado o bastante para um desastre desse tipo.

           Mas a mensagem não era um desastre, muito pelo contrário.

           Volodya leu o texto com assombro crescente. Werner explicava que as Forças Armadas alemãs tinham decidido despachar para a Espanha espiões disfarçados de voluntários antifascistas dispostos a lutar ao lado do governo na guerra civil. Eles enviariam relatórios clandestinos de trás das linhas inimigas para as estações de escuta operadas por alemães do lado rebelde.

           Só isso já era uma informação quentíssima.

           Mas não era tudo.

           Werner tinha os nomes.

           Volodya teve de se conter para não pular de alegria. Uma sorte daquelas podia só acontecer uma vez na vida de um funcionário da inteligência, pensou. Aquilo compensava com folga a perda de Markus. Werner era uma mina de ouro. Volodya não quis nem pensar nos riscos que o alemão devia ter corrido para tirar aquela lista de nomes do quartel-general do Ministério da Aeronáutica em Berlim.

           Sentiu-se tentado a correr até a sala de Lemitov, mas se conteve.

           Os quatro subalternos dividiam uma única máquina de escrever velha e pesada. Volodya a pegou da mesa de Kamen e a pôs sobre a sua. Usando apenas os dedos indicadores das duas mãos, datilografou uma tradução em russo da mensagem de Werner. Enquanto o fazia, a claridade do dia diminuiu e potentes luzes de segurança se acenderam do lado de fora do prédio.

           Pegou a folha, deixando sobre sua mesa uma cópia da mensagem em carbono, e subiu até o andar de cima. Lemitov estava em sua sala. Era um belo homem de cerca de 40 anos, os cabelos escuros cheios de brilhantina. Era esperto e tinha o dom de estar sempre um passo à frente de Volodya, que se esforçava para imitar o poder de antecipação do chefe. Lemitov não compactuava com a visão militar tradicional, segundo a qual uma organização como o Exército funcionava na base do grito e da intimidação, mas era implacável com os incompetentes. Volodya o respeitava e o temia.

           – Esta informação pode ser incrivelmente útil – disse Lemitov depois de ler a tradução.

           – Pode ser? – Volodya não via motivo para dúvida.

           – Talvez seja uma desinformação – assinalou Lemitov.

           Volodya não queria acreditar nisso, mas percebeu, com uma pontada de decepção, que precisava considerar a possibilidade de Werner ter sido capturado e transformado em agente duplo.

           – Que tipo de desinformação? – perguntou, desanimado. – Os nomes não existem, para nos fazer seguir uma pista falsa?

           – Pode ser. Ou então são nomes verdadeiros de voluntários genuínos, comunistas e socialistas que fugiram da Alemanha nazista e foram à Espanha lutar pela liberdade. Nós poderíamos acabar prendendo antifascistas de verdade.

           – Droga.

           Lemitov sorriu.

           – Não fique tão desanimado! A informação ainda é muito boa. Temos nossos próprios espiões na Espanha, jovens soldados e oficiais russos que se apresentaram como “voluntários” para lutar nas Brigadas Internacionais. Eles podem investigar. – O major pegou um lápis vermelho e começou a escrever na folha de papel com uma caligrafia miúda e certinha. – Bom trabalho – falou.

           Volodya interpretou aquilo como uma dispensa e encaminhou-se para a porta.

           – Você esteve com Markus hoje? – indagou Lemitov.

           Volodya deu meia-volta.

           – Houve um problema.

           – Foi o que imaginei, pelo machucado em sua boca.

           Volodya lhe contou o que havia acontecido.

           – Então perdi um bom informante – concluiu. – Mas não sei o que poderia ter feito de outro modo. Será que deveria ter contado à NKVD sobre Markus e lhes avisado que mantivessem distância?

           – Não, porra – respondeu Lemitov. – Eles não merecem confiança nenhuma. Nunca conte nada à NKVD. Mas não se preocupe, você não perdeu Markus. Vai ser fácil recuperá-lo.

           – Como? – indagou Volodya, sem entender. – Ele agora nos odeia.

           – Prenda Irina outra vez.

           – O quê? – Volodya ficou horrorizado. Ela já não tinha sofrido o bastante? – Ele vai nos odiar mais ainda.

           – Diga a ele que, se não cooperar mais conosco, vamos interrogá-la outra vez.

           Volodya fez de tudo para esconder sua repulsa. Era importante não parecer fraco. E ele entendia que o plano de Lemitov iria dar certo.

           – Está bem – conseguiu articular.

           – Diga a ele que, da próxima vez, vamos enfiar os cigarros acesos na boceta dela – prosseguiu Lemitov.

           Volodya teve a sensação de que iria vomitar. Engoliu em seco e falou:

           – Boa ideia. Vou buscá-la agora mesmo.

           – Pode ser amanhã – disse Lemitov. – Às quatro da manhã. Para o choque ser maior.

           – Sim, major. – Volodya saiu e fechou a porta atrás de si.

           Passou alguns instantes parado no corredor, sentindo-se tonto. Então um auxiliar que passava o olhou com um ar estranho e ele se forçou a se afastar.

           Teria que fazer aquilo. É claro que não iria torturar Irina: só a ameaça já bastaria. Mas ela com certeza pensaria que estava prestes a ser torturada outra vez e isso a deixaria completamente aterrorizada. Volodya teve a sensação de que, no lugar dela, ficaria louco. Ao entrar para o Exército Vermelho, jamais imaginara que teria que fazer essas coisas. É claro que estar no Exército significava matar pessoas, isso ele sabia, mas torturar moças?

           O prédio estava se esvaziando, as luzes das salas iam sendo apagadas, homens de chapéu passavam pelos corredores. Era hora de ir para casa. Volodya voltou para sua sala, ligou para a Polícia do Exército e combinou de encontrar uma equipe às três e meia da manhã para prender Irina. Então vestiu o sobretudo e saiu para pegar o bonde até sua casa.

           Volodya morava com seus pais, Grigori e Katerina, e com sua irmã, Anya, de 19 anos, que ainda estava na universidade. No bonde, ficou pensando se poderia conversar sobre aquilo com o pai. Imaginou-se perguntando: “Na sociedade comunista temos que torturar as pessoas?” Mas sabia qual seria a resposta. Aquilo era uma necessidade temporária, essencial para proteger a revolução de espiões e subversivos a serviço de imperialistas capitalistas. Talvez pudesse questionar: “Quanto tempo vai demorar até podermos abandonar essas práticas detestáveis?” É claro que seu pai não saberia a resposta. Ninguém sabia.

           Na volta de Berlim, a família Peshkov se mudara para a Casa do Governo, às vezes chamada de Casa do Aterro, um prédio residencial que ocupava um quarteirão inteiro do outro lado do rio, bem em frente ao Kremlin, habitado por membros da elite soviética. Era um prédio imenso, em estilo construtivista, com mais de 500 apartamentos.

           Volodya meneou a cabeça para o policial militar na porta do prédio, em seguida atravessou a espaçosa portaria – tão grande que às vezes abrigava bailes ao som de uma banda de jazz – e pegou o elevador. O apartamento era luxuoso pelos padrões soviéticos, com água quente à vontade e um telefone, mas não era tão agradável quanto sua casa em Berlim.

           Encontrou a mãe na cozinha. Katerina era péssima cozinheira e dona de casa pouco dedicada, mas o pai de Volodya a adorava. Era apaixonado por ela desde 1914, quando a resgatara das atenções indesejadas de um policial truculento em São Petersburgo. Aos 43 anos, Katerina ainda era bonita e, como a família frequentava o circuito diplomático, aprendera a se vestir com mais elegância do que a maioria das russas – embora tomasse cuidado para não parecer ocidentalizada, uma ofensa gravíssima em Moscou.

           – Machucou a boca? – perguntou ela depois que o filho lhe deu um beijo.

           – Não foi nada. – Volodya sentiu cheiro de frango. – Jantar especial?

           – Anya vai trazer o namorado.

           – Ah! Um colega da universidade?

           – Acho que não. Não sei muito bem o que ele faz.

           Volodya ficou satisfeito. Tinha carinho pela irmã, mas sabia que ela não era bonita. Era baixinha e gorducha, e usava roupas sem graça, de cores insossas. Não tivera muitos namorados, e o fato de aquele gostar dela o suficiente para ir jantar na sua casa era uma boa notícia.

           Foi até o quarto, tirou o paletó e lavou o rosto e as mãos. Seus lábios já tinham praticamente voltado ao normal: o soco de Markus não fora muito forte. Enquanto enxugava as mãos, ouviu vozes, e imaginou que Anya e o namorado tivessem chegado.

           Vestiu um cardigã de tricô para ficar confortável e saiu do quarto. Quando entrou na cozinha, encontrou Anya sentada à mesa com um homem baixinho e com cara de rato que reconheceu no mesmo instante.

           – Ah, não! – exclamou. – Você?

           Era Ilya Dvorkin, o agente da NKVD que prendera Irina. Seu disfarce havia desaparecido e ele usava um terno escuro normal e botas decentes. Encarou Volodya espantado.

           – Mas é claro... Peshkov! – falou. – Eu não tinha ligado o nome à pessoa.

           Volodya virou-se para a irmã.

           – Não vá me dizer que esse é o seu namorado!

           – Qual é o problema? – indagou Anya, consternada.

           – Nós nos encontramos hoje mais cedo – disse Volodya. – Ele estragou uma importante operação do Exército metendo o nariz onde não foi chamado.

           – Eu estava fazendo o meu trabalho – defendeu-se Dvorkin. Enxugou a ponta do nariz na manga.

           – E que trabalho!

           Katerina interveio para contornar a situação.

           – Não falem de trabalho dentro de casa – disse ela. – Volodya, por favor, sirva uma vodca para o nosso convidado.

           – Está falando sério? – indagou Volodya.

           A raiva fez os olhos de sua mãe chisparem.

           – Estou!

           – Tudo bem. – Com relutância, ele pegou a garrafa na prateleira. Anya tirou copos de um armário e Volodya serviu a bebida.

           Katerina pegou um dos copos e disse:

           – Agora, vamos começar de novo. Ilya, esse é meu filho Vladimir, que nós sempre chamamos de Volodya. Volodya, esse é Ilya, amigo de Anya, que veio jantar conosco. Por que não se cumprimentam?

           Volodya não teve alternativa senão apertar a mão de Ilya.

           Katerina pôs tira-gostos sobre a mesa: peixe defumado, picles de pepino, linguiça fatiada.

           – No verão, temos alface que mando cultivar na nossa datcha, mas nesta época do ano não há nada, é claro – disse ela, como quem pede desculpas.

           Volodya notou que a mãe tentava impressionar Ilya. Será que ela queria mesmo que a filha se casasse com aquele sujeito detestável? Imaginou que sim.

           Grigori chegou, vestido com seu uniforme do Exército, todo sorridente. Ao sentir o cheiro do frango, esfregou as mãos. Tinha 48 anos, as faces rosadas e um corpo volumoso: era difícil imaginá-lo invadindo o Palácio de Inverno em 1917, como de fato fizera. Ele devia ser mais magro na época.

           Grigori beijou a esposa com vontade. Volodya pensou que a mãe se sentia grata pela lascívia explícita do marido sem chegar de fato a retribuí-la. Sorria quando ele dava um tapinha em sua bunda, correspondia a seus abraços, lhe dava quantos beijos ele quisesse, mas nunca era ela quem tomava a iniciativa. Gostava do marido, respeitava-o e parecia feliz casada com ele, mas estava claro que não ardia de desejo. Volodya esperaria mais que isso de um casamento.

           Mas essa era uma ideia puramente hipotética: ele já tivera diversos namoros rápidos, mas ainda não conhecera nenhuma mulher com quem quisesse se casar.

           Volodya serviu uma dose de vodca para o pai, que a tomou de um só gole, com gosto, e em seguida comeu um pouco de peixe defumado.

           – Ilya, em que você trabalha?

           – Sou da NKVD – respondeu o homem, orgulhoso.

           – Ah! Uma ótima organização em que se trabalhar!

           Volodya desconfiou que o pai não achasse aquilo de verdade; só estava tentando ser simpático. Na sua opinião, a família devia era ser antipática, a fim de fazer Ilya ir embora.

           – Pai, imagino que, quando o resto do mundo seguir o exemplo da União Soviética e adotar o sistema comunista, não haverá mais necessidade de uma polícia secreta, e a NKVD poderá ser extinta – falou.

           Grigori optou por tratar a questão com leveza.

           – Nenhuma polícia precisará existir! – falou, alegre. – Nem tribunais criminais, nem prisões. Nem departamento de contraespionagem, uma vez que não haverá espiões. E tampouco nenhum exército, pois não teremos inimigos! Como será que vamos todos ganhar a vida? – Ele deu uma risada gostosa. – Mas isso talvez ainda pertença a um futuro distante.

           Ilya fez cara de desconfiado, como se sentisse que alguma coisa subversiva estava sendo dita, mas não conseguisse identificá-la com precisão.

           Katerina pôs na mesa uma travessa de pão preto e cinco tigelas de borche quente, e todos começaram a comer.

           – Quando eu era menino, lá no campo – começou Grigori –, durante todo o inverno minha mãe guardava cascas de legumes, miolos de maçã, as folhas externas dos repolhos que não eram usadas, a parte cabeluda das cebolas, qualquer coisa desse tipo, dentro de um grande barril do lado de fora da casa, onde tudo congelava. Então, quando vinha a primavera e a neve derretia, ela usava tudo para fazer borche. Na verdade o borche é isso, sabiam? Uma sopa de cascas. Vocês jovens não fazem ideia da sorte que têm.

           Alguém bateu na porta. Grigori franziu o cenho, pois não estava esperando visitas, mas Katerina disse:

           – Ah, esqueci! A filha de Konstantin vem jantar conosco.

           – Zoya Vorotsyntsev? – indagou Grigori. – Filha de Magda, a parteira?

           – Eu me lembro de Zoya – disse Volodya. – Uma menina magra de cachinhos louros.

           – Ela não é mais uma menina – corrigiu Katerina. – Tem 24 anos e é cientista. – Sua mãe se levantou para abrir a porta.

           Grigori tornou a franzir o cenho.

           – Não a vemos desde que a mãe dela morreu. Por que ela entrou em contato assim, do nada?

           – Ela quer falar com você – respondeu sua esposa.

           – Comigo? Sobre o quê?

           – Sobre física. – Katerina saiu da sala.

           – Konstantin, o pai dela, foi representante do Soviete de Petrogrado comigo em 1917 – disse Grigori com orgulho. – Fomos nós que emitimos a célebre Ordem Número Um. – Seu rosto ficou sombrio. – Infelizmente, ele morreu depois da guerra civil.

           – Ele devia ser bem jovem... Morreu de quê? – perguntou Volodya.

           Grigori olhou de relance para Ilya, depois desviou os olhos depressa.

           – De pneumonia – respondeu, e Volodya soube que o pai estava mentindo.

           Katerina voltou acompanhada por uma mulher que deixou Volodya sem ar.

           Zoya tinha uma beleza russa clássica: alta e magra, cabelos louros quase brancos e olhos de um azul tão claro que quase pareciam sem cor, além de uma pele branca perfeita. Usava um vestido simples entre o verde e o amarelo cujo despojamento chamava ainda mais atenção para seu corpo longilíneo.

           Depois de ser apresentada a todos os presentes, ela se sentou à mesa e aceitou uma tigela de borche.

           – Quer dizer que você é cientista, Zoya? – perguntou Grigori.

           – Sou pós-graduanda, estou fazendo doutorado, e dou aula para a graduação – respondeu ela.

           – O nosso Volodya aqui trabalha para a Inteligência do Exército Vermelho – informou Grigori, orgulhoso.

           – Que interessante – comentou ela, obviamente querendo dizer o contrário.

           Volodya percebeu que o pai via Zoya como uma nora em potencial. Torceu para que ele não fizesse alusões muito óbvias a isso. Já havia decidido chamá-la para sair antes do final do jantar, mas podia se virar sozinho. Não precisava da ajuda de Grigori. Muito pelo contrário: se o pai fosse pouco sutil nos elogios ao filho, a moça poderia não gostar.

           – Como está a sopa? – perguntou Katerina a Zoya.

           – Uma delícia, obrigada.

           Volodya tinha a impressão de que, por trás daquela aparência deslumbrante, havia um temperamento bem prático. Que combinação intrigante: uma mulher linda que não fazia nenhum esforço para ser sedutora.

           Anya retirou as tigelas de sopa enquanto Katerina trazia o prato principal: ensopado de frango com batatas. Zoya comeu com vontade: levava o garfo à boca, mastigava, engolia e comia mais. Assim como para a maioria dos russos, uma refeição tão boa como essa era uma raridade para ela.

           – Qual é a sua especialidade, Zoya? – perguntou Volodya.

           Ela parou de comer para responder, claramente contrariada:

           – Sou física. Estamos tentando entender o átomo: de que ele é composto, o que mantém seus componentes unidos.

           – É interessante?

           – É totalmente fascinante. – Ela pousou o garfo. – Estamos descobrindo de que o Universo é feito. Não há nada mais empolgante do que isso. – Seus olhos agora brilhavam. A física parecia ser a única coisa capaz de distraí-la do jantar.

           Ilya se pronunciou pela primeira vez:

           – Mas como toda essa teoria ajuda a revolução?

           Os olhos de Zoya chisparam de raiva e Volodya gostou dela ainda mais.

           – Alguns camaradas cometem o erro de subestimar a ciência pura e preferir as pesquisas práticas – disse ela. – Mas os progressos tecnológicos, como por exemplo aviões mais potentes, na verdade dependem de avanços teóricos.

           Volodya reprimiu um sorriso. Ilya tinha sido derrubado por um golpe despretensioso.

           Mas Zoya ainda não havia terminado.

           – Era por isso que eu queria falar com o senhor – disse ela, dirigindo-se a Grigori. – Nós, físicos, lemos todos os periódicos científicos publicados no Ocidente... eles são tolos o bastante para revelar seus resultados ao mundo inteiro. E ultimamente percebemos que têm feito progressos alarmantes na compreensão da física atômica. A ciência soviética corre grave risco de ficar para trás. Pergunto-me se o camarada Stalin tem consciência disso.

           Todos na cozinha ficaram em silêncio. A simples sugestão de uma crítica a Stalin já era perigosa.

           – Ele sabe quase tudo – disse Grigori.

           – É claro – respondeu Zoya automaticamente. – Mas talvez haja ocasiões em que camaradas leais como o senhor precisem chamar a atenção dele para questões importantes.

           – Sim, é verdade.

           – Com certeza o camarada Stalin acredita que a ciência deveria ser praticada de acordo com a ideologia marxista-leninista – disse Ilya.

           Volodya viu um brilho desafiador cruzar o olhar de Zoya, mas ela baixou os olhos e falou, em tom humilde:

           – Não há dúvida de que ele está certo. Nós cientistas precisamos redobrar os esforços, claro.

           Aquilo era uma bobajada e todos ali sabiam, mas ninguém diria nada. Era preciso manter as aparências.

           – De fato – concordou Grigori. – Mesmo assim, vou mencionar o fato na próxima vez que tiver a oportunidade de falar com o camarada secretário-geral do Partido. Ele talvez queira examinar a questão mais de perto.

           – Espero que sim – disse Zoya. – Queremos estar à frente do Ocidente.

           – E depois do trabalho, Zoya? – perguntou Grigori, alegre. – Você tem um namorado, ou quem sabe um noivo?

           – Pai! Isso não é da sua conta – protestou Anya.

           Mas Zoya não pareceu se importar.

           – Não tenho noivo – disse ela, suave. – Nem namorado.

           – Você é tão ruim quanto meu filho, Volodya! Ele também é solteiro. Tem 23 anos, é instruído, alto e bonito... mas não tem namorada!

           Volodya se remexeu na cadeira, incomodado com a obviedade daquela sugestão.

           – Difícil de acreditar – comentou Zoya e, quando ela olhou de relance para Volodya, ele pôde ver uma pontinha de humor nos olhos dela.

           Katerina levou a mão ao braço do marido.

           – Já chega – disse ela. – Você está deixando a pobre moça constrangida.

           A campainha tocou.

           – De novo? – estranhou Grigori.

           – Desta vez não faço ideia de quem possa ser – disse Katerina enquanto saía da cozinha para atender.

           Voltou acompanhada pelo chefe de Volodya, o major Lemitov.

           Espantado, Volodya se levantou da cadeira com um pulo.

           – Boa noite, major – falou. – Este é Grigori Peshkov, meu pai. Pai, este é o major Lemitov.

           Lemitov bateu uma continência ligeira.

           – Descansar. Sente-se, major, e coma um pouco de frango. Meu filho fez alguma coisa errada?

           Era exatamente esse pensamento que fazia as mãos de Volodya tremerem.

           – Não, comandante... muito pelo contrário. Mas... eu poderia dar uma palavrinha em particular com o senhor e com ele?

           Volodya relaxou um pouco. Talvez, no final das contas, não estivesse encrencado.

           – Bem, nós praticamente já acabamos – disse Grigori, levantando-se da mesa. – Vamos até meu escritório.

           Lemitov olhou para Ilya.

           – O senhor não trabalha na NKVD? – perguntou.

           – Com muito orgulho. Meu nome é Dvorkin.

           – Ah, sim! Foi o senhor quem tentou prender Volodya hoje à tarde.

           – Achei que ele fosse um espião. E eu estava certo, não estava?

           – O senhor precisa aprender a prender espiões inimigos, não os nossos. – Lemitov saiu da cozinha.

           Volodya sorriu. Era a segunda vez na mesma noite que Dvorkin era colocado em seu devido lugar.

           Ele cruzou o hall de entrada com Grigori e Lemitov. O escritório de seu pai era um cômodo pequeno e pouco mobiliado. Grigori ocupou a única poltrona que havia ali. Lemitov sentou-se diante de uma mesinha. Volodya fechou a porta e permaneceu em pé.

           – O camarada seu pai está sabendo sobre a mensagem que você recebeu de Berlim esta tarde? – perguntou Lemitov a Volodya.

           – Não, major.

           – É melhor contar a ele.

           Volodya relatou ao pai a história dos espiões na Espanha. Grigori ficou radiante.

           – Muito bem! – elogiou. – É claro que pode ser uma pista falsa, mas duvido muito: os nazistas não são tão criativos assim. Mas nós somos. Podemos prender os espiões e usar seus rádios para transmitir mensagens erradas para os rebeldes de direita.

           Volodya não tinha pensado nisso. Seu pai podia até bancar o bobo com Zoya, mas ainda tinha uma mente afiada para o trabalho de inteligência.

           – Exatamente – disse Lemitov.

           – Esse seu amigo de escola, Werner, é um homem corajoso – comentou Grigori com o filho. Então virou-se outra vez para Lemitov: – Como pretende organizar isso?

           – Vamos precisar de alguns bons agentes de inteligência na Espanha para investigar esses alemães. Não deve ser muito difícil. Se forem mesmo espiões, haverá provas: manuais de decodificação, aparelhos de rádio, essas coisas. – Ele hesitou. – Vim aqui sugerir ao senhor que mandemos seu filho.

           Volodya ficou estarrecido. Não esperava por isso.

           O rosto de Grigori murchou.

           – Ah – disse ele, pensativo. – Devo confessar que essa perspectiva me assusta. Sentiríamos muita saudade dele. – Então assumiu uma expressão resignada, como se estivesse percebendo que não tinha alternativa. – Mas a defesa da revolução deve vir em primeiro lugar, é claro.

           – Um agente de inteligência precisa de experiência de campo – disse Lemitov. – O senhor e eu já participamos de ações concretas, comandante, mas a geração mais nova nunca esteve numa batalha.

           – É verdade. Quando ele iria?

           – Daqui a três dias.

           Volodya percebeu que o pai tentava desesperadamente arrumar um motivo para mantê-lo em casa, mas que não conseguia encontrar nenhum. Ele, por sua vez, estava animado. Espanha! Pensou em vinho vermelho como sangue, em moças de cabelos escuros e musculosas pernas morenas, e no sol forte em vez da neve de Moscou. Seria perigoso, é claro, mas ele não tinha entrado para o Exército para ficar em segurança.

           – Bem, Volodya, o que acha? – indagou seu pai.

           Sabia que o pai esperava que ele mencionasse algum empecilho. A única desvantagem em que ele conseguia pensar era que não teria tempo para conhecer melhor a deslumbrante Zoya.

           – É uma oportunidade maravilhosa – falou. – Fico honrado por ter sido escolhido.

           – Só há um probleminha – disse Lemitov. – Ficou decidido que a Inteligência do Exército vai conduzir a investigação, mas não efetuará as prisões propriamente ditas. Isso ficará a cargo da NKVD. – Ele deu um sorriso sem graça. – Infelizmente, você terá que trabalhar com seu amigo Dvorkin.

 

           Era incrível a rapidez com que se passava a amar um lugar, pensou Lloyd Williams. Fazia apenas dez meses que estava na Espanha, mas sua paixão já era quase tão forte quanto o apego que tinha pelo País de Gales. Adorava ver uma flor rara brotar da paisagem seca; apreciava a sesta; gostava do fato de haver vinho para beber mesmo quando faltava comida. Tinha experimentado sabores antes desconhecidos: azeitonas, páprica, linguiça tipo chouriço e a forte bebida destilada que os espanhóis chamavam de orujo.

           Estava em pé no alto de um promontório, com um mapa na mão, fitando uma paisagem enevoada pelo calor. Havia campinas ao lado de um rio e umas poucas árvores se erguiam nas encostas das montanhas ao longe, mas entre essas duas coisas havia apenas um deserto estéril e poeirento de solo seco e pedra.

           – Não vamos ter muita cobertura para o ataque – falou, nervoso.

           Ao seu lado, Lenny Griffiths concordou:

           – É, vai ser uma batalha bem difícil.

           Lloyd examinou o mapa. Zaragoza ficava bem acima do rio Ebro, a uns 160 quilômetros da foz no Mediterrâneo. A cidade era o principal centro de comunicações da região de Aragão. Era um cruzamento importante, uma plataforma ferroviária, e ficava na confluência de três rios. Era ali que o Exército espanhol combatia os rebeldes antidemocratas numa árida terra de ninguém.

           Havia quem chamasse as forças do governo de republicanas e os rebeldes de nacionalistas, mas essas eram denominações equivocadas. Muitas pessoas de ambos os lados eram republicanas: não queriam ser governadas por um rei. E todas eram nacionalistas: amavam seu país e estavam dispostas a morrer por ele. Lloyd pensava nos grupos adversários como o governo e os rebeldes.

           Nesse momento, Zaragoza estava dominada pelos rebeldes de Franco, e Lloyd observava a cidade a partir de um ponto elevado, oitenta quilômetros mais ao sul.

           – Mas, se conseguirmos tomar a cidade, o inimigo vai ficar preso no norte por mais um inverno – disse ele.

           – Se – ressaltou Lenny.

           Quando o melhor que se podia desejar era que o avanço dos rebeldes fosse interrompido, as perspectivas não eram nada boas, pensou Lloyd, desanimado. Mas não havia previsão de vitória naquele ano para as forças do governo.

           Apesar de tudo, Lloyd ansiava pela batalha. Estava na Espanha havia dez meses, e aquele seria seu primeiro gostinho de ação militar. Até então, ele fora instrutor num campo de treinamento. Assim que os espanhóis descobriram que ele fizera o Curso de Formação de Oficiais Britânicos, aceleraram sua iniciação, nomeando-o tenente e tornando-o responsável pelos recém-chegados. Ele tinha de treiná-los até que obedecer as ordens se tornasse um reflexo, fazê-los marchar até seus pés pararem de sangrar e as bolhas se transformarem em calos, e lhes mostrar como desmontar e limpar os poucos fuzis disponíveis.

           O fluxo de voluntários, porém, diminuíra bastante e agora já não chegava quase ninguém, de modo que os instrutores tinham sido transferidos para os batalhões de combate.

           Lloyd estava usando uma boina, uma jaqueta com zíper na frente, com o escudo de sua patente costurado grosseiramente na manga, e uma calça de veludo cotelê. Estava armado com um fuzil espanhol de cano curto, um Mauser, cuja munição de 7mm provavelmente fora roubada de algum arsenal da Guarda Civil.

           Lloyd, Lenny e Dave tinham passado algum tempo separados, mas voltaram a se reunir no batalhão britânico da 15a Brigada Internacional. Lenny agora tinha uma barba negra e aparentava uma década a mais que seus 17 anos. Fora promovido a sargento, mas não usava uniforme, apenas um macacão azul e uma bandana listrada. Parecia mais um pirata do que um soldado.

           – Enfim, esse ataque não tem nada a ver com encurralar os rebeldes – comentou ele. – É um ataque político. Esta região sempre foi dominada pelos anarquistas.

           Lloyd já tinha visto o anarquismo em ação durante um breve período em Barcelona. Tratava-se de uma vertente alegremente fundamentalista do comunismo. Oficiais e soldados recebiam o mesmo soldo. Os restaurantes dos hotéis de luxo tinham sido transformados em cantinas para os trabalhadores. Garçons devolviam gorjetas, explicando com educação que essa prática era humilhante. Cartazes espalhados por toda parte condenavam a prostituição como exploração das mulheres. Reinava uma atmosfera incrível de liberação e camaradagem. Os russos odiavam isso.

           – Agora o governo trouxe tropas comunistas de Madri e reuniu todos nós num novo Exército do Leste – continuou Lenny. – Sob comando geral dos comunistas, é claro.

           Esse tipo de conversa deixava Lloyd desesperançado. O único jeito de a esquerda vencer era se todas as suas alas trabalhassem juntas, como tinha acontecido na batalha da Cable Street – pelo menos no final. No entanto, os anarquistas e comunistas vinham se enfrentando nas ruas de Barcelona.

           – O primeiro-ministro Negrín não é comunista.

           – Mas é como se fosse.

           – Ele entende que, sem o apoio da União Soviética, estamos perdidos.

           – Mas isso por acaso significa abandonar a democracia e deixar os comunistas tomarem o poder?

           Lloyd assentiu. Todas as conversas sobre o governo terminavam do mesmo jeito: devemos fazer tudo o que os soviéticos quiserem só porque eles são os únicos dispostos a nos vender armas?

           Os dois desceram a colina.

           – E agora vamos tomar uma boa xícara de chá, não é? – indagou Lenny.

           – Sim, por favor. Dois torrões de açúcar para mim.

           Era uma brincadeira clássica. Fazia meses que nenhum deles tomava chá.

           Chegaram ao acampamento às margens do rio. O pelotão de Lenny havia ocupado um pequeno conjunto de construções rústicas de pedra, que provavelmente serviam de currais para vacas antes de a guerra expulsar os camponeses dali. Poucos metros rio acima, uma garagem de barcos fora ocupada por alguns alemães da 11a Brigada Internacional.

           Lloyd e Lenny foram recebidos por Dave Williams, primo de Lloyd. Assim como Lenny, Dave tinha envelhecido dez anos em apenas um. Tinha um aspecto magro, duro, com a pele queimada de sol e suja de poeira, os olhos enrugados, espremidos por causa da claridade. Estava usando a túnica e a calça cáqui, a cartucheira de couro e o par de botas com fivelas nos tornozelos que constituíam o uniforme regular dos soldados – embora poucos deles tivessem o conjunto completo. Tinha um lenço de algodão vermelho enrolado no pescoço. Carregava um fuzil russo Moisin-Nagant com a baioneta antiquada virada para trás, o que tornava a arma menos desajeitada. Em seu cinto estava presa uma Luger 9mm alemã que devia ter sido roubada do cadáver de algum oficial rebelde. Aparentemente, Dave tinha pontaria certeira tanto com o fuzil quanto com a pistola.

           – Temos uma visita! – disse ele, animado.

           – Quem é o visitante?

           – A visitante! – corrigiu Dave, apontando.

           À sombra de um álamo carbonizado e torto, uma dezena de soldados britânicos e alemães conversavam com uma mulher de beleza estonteante.

           – Ai, ai, Duw – comentou Lenny, usando o termo galês para se referir a Deus. – Parece uma miragem para os nossos olhos cansados.

           A moça parecia ter uns 25 anos, avaliou Lloyd, e era mignon, com olhos grandes e cabelos negros e volumosos presos no alto da cabeça e encimados por uma boina bicorne. Misteriosamente, o uniforme largo parecia moldar seu corpo como um vestido de noite.

           Um voluntário chamado Heinz falou com Lloyd em alemão, pois sabia que ele dominava o idioma:

           – O nome dela é Teresa, senhor. Ela veio nos ensinar a ler.

           Lloyd meneou a cabeça para indicar que entendia. As Brigadas Internacionais eram compostas por voluntários estrangeiros misturados a soldados espanhóis, para quem o analfabetismo era um problema. Eles haviam passado a infância inteira entoando o catecismo em escolas rurais administradas pela Igreja Católica. Muitos padres não ensinavam as crianças a ler por medo de que, mais tarde, elas tivessem acesso a livros socialistas. O resultado foi que, com a monarquia, apenas metade da população era alfabetizada. O governo republicano eleito em 1931 tinha melhorado a educação, mas ainda restavam milhões de espanhóis analfabetos, e as aulas para os soldados prosseguiam até mesmo na frente de batalha.

           – Eu sou analfabeto – disse Dave, que não era.

           – Eu também sou – emendou Joe Eli, professor de literatura espanhola na Universidade Columbia, em Nova York.

           Teresa falava espanhol. Tinha uma voz grave, calma, muito sensual.

           – Quantas vezes vocês acham que já ouvi essa piada? – perguntou, mas não parecia muito chateada.

           Lenny se aproximou dela e se apresentou:

           – Sou o sargento Griffiths. Farei tudo o que puder para ajudá-la, naturalmente. – Suas palavras eram práticas, mas seu tom de voz fez com que parecessem um convite romântico.

           Ela lançou-lhe um sorriso arrebatador.

           – Vai ser muito útil – falou.

           Lloyd se dirigiu a ela de maneira formal, caprichando no espanhol:

           – Estou muito grato pela sua presença, señorita. – Passara grande parte dos últimos dez meses aprendendo o idioma. – Sou o tenente Williams. Posso dizer exatamente os membros do grupo que precisam de aulas... e os que não precisam.

           – Mas o tenente precisa ir a Bujaraloz buscar nossas ordens – disse Lenny, dispensando Lloyd. Bujaraloz era a cidadezinha onde as forças do governo haviam montado seu quartel-general. – Talvez você e eu devêssemos dar uma volta por aqui a fim de procurar um lugar adequado para as aulas. – Ele poderia muito bem estar sugerindo um passeio ao luar.

           Lloyd sorriu e meneou a cabeça, concordando. Não se importava em deixar Lenny paquerar Teresa. Ele próprio não estava com a menor disposição para flertar, ao passo que o amigo já parecia apaixonado. Na sua opinião, as chances de Lenny eram quase nulas. Teresa era uma moça instruída de 25 anos, que provavelmente recebia dezenas de cantadas por dia, enquanto Lenny era um mineiro de 17 anos que havia um mês não tomava banho. Mas Lloyd não disse nada. Teresa parecia capaz de cuidar de si mesma.

           Então surgiu outra pessoa, um rapaz da mesma idade de Lloyd, que lhe parecia vagamente familiar. Estava mais bem-vestido que os soldados, com calça de lã na altura do joelho e camisa de algodão. Trazia um revólver num coldre abotoado. De tão curtos, seus cabelos pareciam uma barba por fazer: o estilo favorito dos russos. Embora fosse apenas um tenente, tinha um ar de autoridade, ou até mesmo de poder.

           – Estou procurando o tenente García – falou, em alemão fluente.

           – Ele não está – respondeu Lloyd na mesma língua. – De onde nos conhecemos?

           O russo pareceu ao mesmo tempo chocado e irritado, como alguém que encontra uma cobra dentro de seu saco de dormir.

           – Nunca nos vimos antes – respondeu ele, firme. – Você está enganado.

           Lloyd estalou os dedos.

           – Berlim, 1935 – falou. – Fomos atacados por camisas-pardas.

           Uma expressão de alívio atravessou rapidamente o semblante do rapaz, como se ele estivesse esperando algo pior.

           – Sim, eu estava lá – disse ele. – Meu nome é Vladimir Peshkov.

           – Mas nós o chamávamos de Volodya.

           – Isso.

           – E, naquela confusão em Berlim, você estava acompanhado por um rapaz chamado Werner Franck.

           Por alguns instantes, Volodya pareceu tomado pelo pânico, mas se esforçou para esconder o medo.

           – Não conheço ninguém com esse nome.

           Lloyd resolveu não insistir. Podia adivinhar por que Volodya estava nervoso. Assim como todo mundo, os russos morriam de medo de sua polícia secreta, a NKVD, que operava na Espanha e tinha fama de ser brutal. Para eles, qualquer russo amigo de estrangeiros podia ser um traidor.

           – Meu nome é Lloyd Williams.

           – Sim, estou lembrado. – Volodya o encarou com um olhar azul penetrante. – Que coisa estranha nos encontrarmos aqui de novo.

           – Na verdade, não é tão estranho assim – discordou Lloyd. – Nós combatemos os fascistas onde quer que seja.

           – Podemos conversar a sós?

           – Claro.

           Eles se afastaram alguns metros dos outros.

           – Há um espião no pelotão de García – disse Peshkov.

           Lloyd se espantou.

           – Um espião? Quem?

           – Um alemão chamado Heinz Bauer.

           – Ora, é aquele ali, de camisa vermelha. Espião? Tem certeza?

           Peshkov não se deu o trabalho de responder.

           – Gostaria que o chamasse para ir ao seu abrigo, se você tiver um, ou a qualquer outro lugar reservado. – Peshkov olhou para o relógio de pulso. – Uma unidade virá prendê-lo daqui a uma hora.

           – Estou usando aquele pequeno curral como escritório – disse Lloyd, apontando. – Mas tenho que falar com meu superior sobre isso. – Seu superior era comunista e provavelmente não iria interferir, mas Lloyd queria tempo para pensar.

           – Como quiser. – Estava claro que Volodya não dava a mínima para o que o superior de Lloyd fosse achar. – Quero que o espião seja conduzido até o curral discretamente, sem alarde. Já expliquei à unidade que vai prendê-lo a importância da discrição. – Ele parecia não estar tão certo de que seu pedido fosse atendido. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

           – Por quê? – indagou Lloyd, mas, antes mesmo de Volodya responder, já tinha adivinhado a resposta. – Vocês querem transformá-lo em agente duplo, para enviar relatórios falsos ao inimigo. Mas, se muitas pessoas souberem que ele foi capturado, outros espiões podem alertar os rebeldes, e eles não vão acreditar nas informações.

           – Não é bom fazer suposições em relação a esses assuntos – disse Peshkov, severo. – Agora vamos ao seu curral.

           – Espere um instante – pediu Lloyd. – Como você sabe que ele é espião?

           – Não posso lhe revelar isso sem comprometer a segurança.

           – Essa resposta não é muito satisfatória.

           Peshkov pareceu se irritar. Obviamente não estava acostumado a ouvir que suas explicações eram insatisfatórias. A contestação das ordens era um aspecto peculiar da Guerra Civil Espanhola que os russos detestavam.

           Antes que Peshkov pudesse dizer mais alguma coisa, dois outros homens apareceram e se aproximaram do grupo reunido embaixo da árvore. Apesar do calor, um dos recém-chegados usava uma jaqueta de couro. O outro, que parecia estar no comando, era um homem magrelo, de nariz comprido e queixo recuado.

           Peshkov gritou, zangado:

           – Cedo demais! – Em seguida bradou uma palavra indignada em russo.

           O magrelo fez um gesto de quem não dava importância ao que Peshkov dizia e perguntou, num espanhol grosseiro:

           – Qual de vocês é Heinz Bauer?

           Ninguém respondeu. O magrelo enxugou a ponta do nariz com a manga.

           Então Heinz se moveu. Não fugiu imediatamente, mas partiu para cima do homem de jaqueta de couro, derrubando-o no chão. Em seguida saiu correndo – mas o magrelo esticou uma perna e o fez tropeçar.

           Heinz caiu com força no chão e seu corpo escorregou na terra seca. Ficou deitado, atordoado – apenas por alguns instantes, mas foi o suficiente. Quando tentou se levantar, os dois homens partiram para cima dele e tornaram a derrubá-lo.

           Ele ficou parado, mas mesmo assim os dois começaram a espancá-lo. Sacaram dois porretes de madeira e, de pé, cada um de um lado de Heinz, revezaram-se para lhe golpear a cabeça e o corpo, erguendo os braços bem alto e desferindo golpes como se aquilo fosse um balé cruel. Em poucos segundos, o rosto de Heinz ficou coberto de sangue. Desesperado, ele tentava escapar, mas, quando conseguia ficar de joelhos, os dois tornavam a empurrá-lo para o chão. Heinz então se encolheu em posição fetal e começou a choramingar. Era óbvio que estava rendido, mas os outros dois não pareciam satisfeitos: continuaram a bater sem parar no homem indefeso.

           Lloyd se viu gritando palavras de protesto e puxando o magrelo para longe. Segurou-o por trás pelo peito e o levantou do chão. Lenny imobilizou o outro homem no chão. Nessa hora, Lloyd ouviu Volodya dizer, em inglês:

           – Parados, senão eu atiro!

           Lloyd soltou o homem que estava segurando e virou-se, incrédulo. Volodya tinha sacado a arma que trazia no coldre, um revólver militar russo Nagant M1895, e soltado a trava de segurança.

           – Ameaçar um oficial com uma arma é uma ofensa punida com corte marcial em qualquer exército do mundo – disse Lloyd. – Você está numa grande encrenca, Volodya.

           – Deixe de ser idiota – retrucou Volodya. – Qual foi a última vez que um russo teve problemas neste exército? – Mesmo assim, baixou a arma.

           O homem de jaqueta de couro ergueu o porrete como se fosse bater em Lenny, mas Volodya berrou:

           – Para trás, Berezovsky!

           O homem obedeceu.

           Outros soldados apareceram, atraídos pelo misterioso magnetismo que puxa os homens para perto de uma briga, e em poucos segundos já havia vinte deles.

           O magrelo apontou um dedo para Lloyd. Com sotaque carregado, falou em inglês:

           – Você interferiu em questões que não lhe dizem respeito!

           Lloyd ajudou Heinz a se levantar. O alemão estava coberto de sangue e gemia de dor.

           – Vocês não podem simplesmente aparecer e começar a espancar pessoas! – disse Lloyd ao magrelo. – Que autoridade têm para fazer isso?

           – Esse alemão é um espião trotskista-fascista! – guinchou o russo.

           – Cale a boca, Ilya – ordenou Volodya.

           Ilya não lhe deu ouvidos.

           – Ele fotografa documentos! – continuou.

           – Onde estão as suas provas? – indagou Lloyd, calmo.

           Estava óbvio que Ilya não sabia da existência de provas e nem se importava com isso. Volodya, porém, suspirou e disse:

           – Examinem a bolsa dele.

           Lloyd meneou a cabeça para o cabo Marco Rivera.

           – Vá verificar – ordenou.

           O cabo Rivera correu até a garagem de barcos e desapareceu lá dentro.

           Mas Lloyd teve um terrível pressentimento de que Volodya estava dizendo a verdade.

           – Mesmo que você tenha razão, Ilya, poderia se comportar com um mínimo de cortesia.

           – Cortesia? – repetiu Ilya. – Isto aqui é uma guerra, não um chá inglês.

           – Talvez assim evite entrar em brigas desnecessárias.

           Ilya fez algum comentário desdenhoso em russo.

           Rivera saiu da garagem de barcos trazendo uma pequena câmera de aspecto caro e um maço de documentos oficiais. Mostrou tudo para Lloyd. O primeiro documento da pilha era a ordem geral emitida na véspera para o deslocamento de soldados antes do ataque iminente. O papel exibia uma mancha de vinho de formato conhecido, e Lloyd percebeu, com um choque, que era sua própria cópia e devia ter sido roubada de seu escritório.

           Olhou para Heinz, que se empertigou, fez a saudação fascista e disse:

           – Heil Hitler!

           Ilya exibiu uma expressão de triunfo.

           – Ilya, você acaba de destruir o valor do prisioneiro como agente duplo – disse Volodya. – Mais um ponto para a NKVD. Meus parabéns. – Então se afastou.

 

           Lloyd partiu para a batalha pela primeira vez na terça-feira, 24 de agosto.

           Seu lado, o governo eleito, contava com 80 mil homens. Os rebeldes antidemocratas tinham menos da metade desse efetivo. O governo também dispunha de 200 aviões, contra 15 dos rebeldes.

           Para explorar ao máximo essa superioridade numérica, o governo avançava numa frente ampla, uma linha de quase cem quilômetros disposta no sentido norte-sul, para impedir que os rebeldes concentrassem seus homens.

           Era um bom plano. Mas então por que não estava funcionando?, perguntou-se Lloyd dois dias depois.

           Tudo começara razoavelmente bem. No primeiro dia, os governistas tinham ocupado duas aldeias ao norte de Zaragoza e outras duas ao sul. O grupo de Lloyd, que combatia no sul, vencera uma forte resistência para tomar uma aldeia chamada Codo. O único fracasso era o avanço pelo centro, que subia o vale do rio: essa linha de combate havia estacionado num lugar chamado Fuentes de Ebro.

           Antes da batalha, Lloyd ficara com medo e passara a noite em claro, imaginando o que estaria por vir, como às vezes fazia antes de uma luta de boxe. No entanto, uma vez iniciada a batalha, ficou ocupado demais para se preocupar. O pior momento foi ter que avançar pelo terreno estéril, sem nenhuma proteção a não ser os arbustos mirrados, enquanto os defensores atiravam do interior de construções de pedra. Mesmo então, o que ele sentira não fora medo, mas uma espécie de astúcia desesperada enquanto corria em zigue-zague, rastejava e rolava para longe quando as balas chegavam perto demais, depois se levantava e tornava a correr por mais alguns metros com o corpo curvado. O maior problema era a escassez de munição: eles precisavam tirar o máximo proveito de cada tiro. Tomaram Codo pelo simples fato de serem mais numerosos, e Lloyd, Lenny e Dave terminaram o dia sãos e salvos.

           Os rebeldes eram resistentes e corajosos – mas as forças do governo também eram. As brigadas estrangeiras eram formadas por voluntários idealistas, que tinham ido à Espanha sabendo que talvez precisassem entregar a própria vida. Por sua reputação de coragem, eles muitas vezes decidiam encabeçar os ataques.

           A investida começou a dar errado no segundo dia. As forças do norte haviam mantido a posição, relutando em avançar por causa da falta de informações sobre as forças rebeldes – uma desculpa esfarrapada, na opinião de Lloyd. Apesar dos reforços que chegaram no terceiro dia, o grupo central continuou sem conseguir ocupar Fuentes de Ebro, e Lloyd ficou consternado ao saber que haviam perdido quase todos os tanques para um intenso fogo defensivo. No sul, o grupo de Lloyd, em vez de avançar, foi instruído a fazer um movimento lateral, em direção ao vilarejo ribeirinho de Quinto. Mais uma vez, tiveram que enfrentar defensores determinados num combate que ia de casa em casa. Quando o inimigo se rendeu, o grupo fez mil prisioneiros.

           Agora, sob a luz do crepúsculo, Lloyd estava sentado em frente a uma igreja devastada pela artilharia, cercado por ruínas fumegantes de casas e pelos corpos estranhamente imóveis dos mortos recentes. Um grupo de homens exaustos reunia-se à sua volta: Lenny, Dave, Joe Eli, o cabo Rivera e um galês chamado Muggsy Morgan. Havia tantos galeses na Espanha que alguém inventara um verso satírico com a semelhança de seus nomes.

            

           Era uma vez um sujeito chamado Price

           E outro sujeito chamado Price

           E um sujeito chamado Roberts

           E um sujeito chamado Roberts

           E mais um sujeito chamado Price.

            

           Os homens fumavam, aguardando em silêncio para ver se haveria jantar, cansados demais até para mexer com Teresa, que, por incrível que parecesse, continuava entre eles, já que o transporte que deveria tê-la levado para a retaguarda não tinha aparecido. De vez em quando, saraivadas de tiros ecoavam enquanto soldados passavam um pente fino na área, a algumas ruas dali.

           – O que nós conseguimos? – indagou Lloyd a Dave. – Usamos uma munição escassa, perdemos muitos homens e não avançamos nada. E o que é pior: demos tempo para os fascistas chamarem reforços.

           – Vou lhe dizer por que isso aconteceu – falou Dave, com seu forte sotaque do East End. Sua alma havia endurecido ainda mais que seu corpo, e ele se tornara cínico e desdenhoso. – Os nossos oficiais têm mais medo de seus agentes do que da porra do inimigo. Por um pretexto qualquer, podem ser acusados de serem espiões trotskistas-fascistas e torturados até a morte, então se borram de medo de se comprometer. Preferem ficar parados a avançar, não fazem nada por iniciativa própria e nunca correm nenhum risco. Aposto que nem cagam sem uma ordem por escrito.

           Lloyd pensou se a análise desdenhosa de Dave poderia estar correta. Os comunistas não paravam de repetir que era preciso ter um exército disciplinado, com uma cadeia de comando precisa. Com isso queriam dizer um exército que obedecesse aos russos, mas, apesar de tudo, Lloyd entendia a lógica de seu raciocínio. No entanto, uma disciplina exagerada poderia sufocar o pensamento. Será que era isso que estava dando errado?

           Lloyd não queria acreditar nisso. Com certeza social-democratas, comunistas e anarquistas eram capazes de lutar por uma causa comum sem que um grupo tiranizasse os outros. Todos odiavam o fascismo e acreditavam numa sociedade futura que fosse mais justa com todo mundo.

           Perguntou-se o que Lenny achava, mas o rapaz estava sentado ao lado de Teresa, com quem conversava em voz baixa. Ela riu de algo que ele disse, e Lloyd supôs que o amigo devia estar progredindo. Fazer uma garota rir era um bom sinal. Ela então tocou o braço de Lenny, disse algumas palavras e se levantou.

           – Volte logo – disse Lenny.

           Teresa sorriu por cima do ombro.

           Que sortudo, pensou Lloyd, sem nenhuma ponta de inveja. Romances passageiros não tinham atrativo nenhum para ele: não via sentido nisso. Imaginava que fosse um adepto do tudo ou nada. A única moça que realmente desejara na vida fora Daisy. E agora ela era esposa de Boy Fitzherbert. Lloyd ainda não havia conhecido uma garota capaz de ocupar esse espaço em seu coração. Estava certo de que um dia iria conhecer, enquanto isso, porém, não se sentia muito atraído por substitutas temporárias, ainda que fossem tão bonitas quanto Teresa.

           – Lá vêm os russos – disse alguém.

           Era a voz de Jasper Johnson, um negro de Chicago que trabalhava como eletricista. Lloyd ergueu os olhos e viu uns dez consultores militares percorrendo o vilarejo como se fossem conquistadores. Era possível reconhecer os russos por suas jaquetas de couro e seus coldres com botão.

           – Que estranho, eu não os vi enquanto estávamos lutando – continuou Jasper com sarcasmo. – Imagino que devessem estar em outra parte do campo de batalha.

           Lloyd olhou em volta para se certificar de que não havia nenhum comissário político por perto para ouvir aquela conversa subversiva.

           Quando os russos estavam passando pelo cemitério da igreja em ruínas, Lloyd identificou Ilya Dvorkin, o agente da polícia secreta com cara de rato com o qual se desentendera na semana anterior. O russo cruzou com Teresa e se deteve para falar com ela. Lloyd o ouviu dizer algo sobre um jantar em espanhol precário.

           Ela respondeu, ele tornou a falar, e ela fez que não com a cabeça, numa recusa evidente. Virou-se para se afastar, mas ele a segurou pelo braço para impedi-la.

           Lloyd viu Lenny se sentar mais ereto e observar a cena com um ar alerta, duas silhuetas emolduradas por uma entrada em arco que já não conduzia a lugar algum.

           – Ai, merda – disse Lloyd.

           Teresa tentou se afastar outra vez e Ilya pareceu apertar mais seu braço.

           Lenny fez menção de se levantar, mas Lloyd encostou a mão em seu ombro e o empurrou para baixo.

           – Deixe que eu cuido disso – falou.

           – Cuidado, cara... ele é da NKVD – balbuciou Dave entre os dentes. – É melhor não se meter com esses filhos da puta.

           Lloyd foi até onde estavam Teresa e Ilya.

           – Dê o fora daqui – disse o russo em espanhol quando o viu.

           – Oi, Teresa – falou Lloyd.

           – Posso cuidar disso sozinha, não se preocupe – disse ela.

           Ilya examinou Lloyd mais de perto.

           – Conheço você – falou. – Foi você quem tentou impedir a prisão de um perigoso espião trotskista-fascista na semana passada.

           – E esta moça por acaso também é uma perigosa espiã trotskista-fascista? – indagou Lloyd. – Acho que acabei de ouvir você convidá-la para jantar.

           Berezovsky, comparsa de Ilya, apareceu e postou-se agressivamente perto de Lloyd.

           Pelo canto do olho, Lloyd viu Dave sacar a Luger do cinto.

           Aquilo estava fugindo ao controle.

           – Vim lhe dizer, señorita, que o coronel Bobrov deseja vê-la em seu quartel-general imediatamente. Por favor, queira me acompanhar que a levarei até ele. – Bobrov era um “consultor” militar russo graduado. Ele não havia chamado Teresa, mas a história era plausível e Ilya não tinha como saber que era mentira.

           Por um segundo que pareceu durar uma eternidade, Lloyd não soube dizer como aquilo iria terminar. Ouviu-se então o estampido de um tiro ali perto, talvez na rua ao lado. O barulho pareceu chamar os russos de volta à realidade. Teresa tornou a se afastar de Ilya e dessa vez ele a deixou ir.

           Ilya apontou para a cara de Lloyd, agressivo:

           – Vamos nos ver de novo – falou e fez uma saída de efeito, com Berezovsky o seguindo feito um cachorrinho.

           – Babaca imbecil – disse Dave.

           Ilya fingiu não escutar.

           Todos se sentaram e Dave comentou:

           – Você arrumou um inimigo e tanto, Lloyd.

           – Não tive muita escolha.

           – Mesmo assim, fique alerta daqui em diante.

           – Foi uma discussão por causa de uma garota – disse Lloyd, sem dar importância. – Acontece mil vezes por dia.

           Quando a noite caiu, uma sineta manual ecoou, convocando todos à cozinha de campanha. Lloyd recebeu uma tigela de ensopado ralo, um naco de pão duro e uma caneca grande de vinho tinto tão rascante que imaginou a bebida corroendo o esmalte de seus dentes. Molhou o pão no vinho, melhorando o sabor de ambos.

           Terminada a refeição, ele ainda estava com fome, como sempre.

           – Vamos tomar uma boa xícara de chá?

           – Boa ideia – disse Lenny. – Dois torrões de açúcar, por favor.

           Todos desenrolaram seus cobertores finos e se prepararam para dormir. Lloyd foi procurar uma latrina e, como não encontrou, fez suas necessidades no meio de um pequeno pomar nos limites do vilarejo. A lua estava quase cheia e ele podia ver as folhas sujas de terra das oliveiras que haviam sobrevivido às bombas.

           Quando estava abotoando a braguilha, ouviu passos. Virou-se devagar – devagar demais. Quando viu o rosto de Ilya, o porrete já estava descendo sobre sua cabeça. Sentiu uma dor lancinante e caiu no chão. Atordoado, olhou para cima. Berezovsky segurava um revólver de cano curto apontado para sua cabeça. Ao seu lado, Ilya disse:

           – Parado, senão você morre.

           Lloyd estava apavorado. Em desespero, balançou a cabeça para tentar clarear os pensamentos. Aquilo era uma loucura.

           – Senão eu morro? – indagou, incrédulo. – E como você vai explicar o assassinato de um tenente?

           – Assassinato? – repetiu Ilya, com um sorriso. – Isto aqui é a frente de batalha. Uma bala perdida atingiu você. – Então completou, em inglês: – Tremenda falta de sorte.

           Lloyd se deu conta de que Ilya tinha razão e seu desespero aumentou. Quando seu corpo fosse encontrado, iria parecer que ele morrera em batalha.

           Que jeito de morrer!

           – Acabe com ele – disse Ilya a Berezovsky.

           Um tiro ecoou.

           Lloyd não sentiu nada. Seria aquilo a morte? Então Berezovsky se curvou e caiu no chão. No mesmo instante, Lloyd percebeu que o tiro viera de trás dele. Virou-se para olhar, incrédulo. À luz do luar, viu Dave segurando a Luger roubada. O alívio o invadiu como uma onda. Ele estava vivo!

           Ilya também vira Dave e começara a correr feito um coelho assustado.

           Dave o seguiu com a pistola por vários segundos e Lloyd desejou que ele atirasse, mas Ilya se esquivou freneticamente por entre as oliveiras, como um rato dentro de um labirinto, e então desapareceu na noite.

           Dave baixou a arma.

           Lloyd olhou para Berezovsky. O russo não estava respirando.

           – Obrigado, Dave – falou.

           – Eu disse para você ficar alerta.

           – Você ficou por mim. Mas foi uma pena não ter acertado Ilya também. Agora está encrencado com a NKVD.

           – Será mesmo? – questionou Dave. – Você acha que Ilya vai querer que todo mundo saiba que ele causou a morte de seu parceiro por causa de uma disputa envolvendo uma mulher? Até o pessoal da NKVD tem medo da NKVD. Acho que ele vai ser discreto.

           Lloyd tornou a olhar para o cadáver.

           – E como vamos explicar isto?

           – Você ouviu o que ele disse – respondeu Dave. – Isto aqui é a frente de batalha. Ninguém precisa explicar nada.

           Lloyd assentiu. Dave e Ilya tinham razão. Ninguém iria perguntar como Berezovsky tinha morrido. Uma bala perdida o acertara e pronto.

           Os dois se afastaram, deixando o corpo onde estava.

           – Tremenda falta de sorte – comentou Dave.

 

           Lloyd e Lenny foram falar com o coronel Bobrov para reclamar que o ataque a Zaragoza estava paralisado.

           Bobrov era um russo mais velho, de cabelos brancos ralos cortados bem curtos, já perto de se aposentar e inflexivelmente ortodoxo. Em tese, estava lá apenas para ajudar e aconselhar os comandantes espanhóis. Na prática, eram os russos que tomavam as decisões.

           – Estamos perdendo tempo e energia nesses vilarejos – disse Lloyd, traduzindo para o alemão o que Lenny e todos os homens experientes estavam dizendo. – Tanques devem ser como punhos blindados, usados para penetrações profundas, bem dentro do território inimigo. A infantaria deve vir depois, para limpar o terreno e garantir a ocupação quando o inimigo tiver dispersado.

           Volodya estava ali perto, ouvindo tudo, e, pela expressão em seu rosto, parecia concordar, mas não disse nada.

           – Pequenas posições como esta cidade minúscula não deveriam interromper o avanço das tropas. O melhor seria passar direto por elas e deixá-las a cargo de uma segunda linha de combate – concluiu Lloyd.

           Bobrov parecia chocado.

           – Essa é a teoria do desacreditado marechal Tuchachevsky! – disse em voz baixa. Era como se Lloyd estivesse mandando um bispo rezar para Buda.

           – E daí? – indagou Lloyd.

           – Ele se confessou culpado de alta traição e espionagem, e foi executado.

           Lloyd encarou o comandante, sem acreditar.

           – Está me dizendo que o governo espanhol não pode usar modernas táticas de combate com tanques porque um general qualquer foi expurgado em Moscou?

           – Tenente Williams, o senhor está faltando ao respeito.

           – Mesmo que as acusações contra Tuchachevsky sejam verdadeiras, isso não significa que os métodos dele estão errados.

           – Chega! – vociferou Bobrov. – Esta conversa terminou.

           Qualquer esperança que Lloyd ainda acalentasse acabou quando seu batalhão foi transferido de Quinto de volta na mesma direção de onde tinha vindo, em outra manobra lateral. No dia 1o de setembro, eles participaram do ataque a Belchite, uma cidadezinha bem-defendida mas sem qualquer importância estratégica a quarenta quilômetros de seu objetivo.

           Foi mais uma batalha difícil.

           Cerca de sete mil defensores estavam entrincheirados na maior igreja da cidade, San Agustín, e no topo de uma colina próxima, dentro de valas e atrás de barricadas de terra. Lloyd e seu pelotão conseguiram chegar aos arredores da cidade sem baixas, mas depois foram atacados por intenso fogo inimigo disparado de janelas e telhados.

           Seis dias depois ainda estavam ali.

           Os cadáveres fediam por causa do calor. Além de pessoas, também havia animais mortos, pois o abastecimento de água da cidade fora interrompido e os animais domésticos tinham morrido de sede. Sempre que podiam, os engenheiros militares empilhavam os corpos, cobriam-nos de gasolina e ateavam fogo, mas o cheiro de gente queimada era pior que o da decomposição. Parecia difícil respirar e alguns dos homens puseram suas máscaras de gás.

           As ruas estreitas em volta da igreja eram verdadeiros campos da morte, mas Lloyd havia bolado um jeito de avançar sem se expor. Lenny encontrara algumas ferramentas dentro de uma oficina. Agora, dois homens estavam abrindo um buraco na parede da casa em que estavam abrigados. Joe Eli manejava uma picareta e o suor reluzia em sua cabeça calva. O cabo Rivera, vestido com uma camisa listrada nas cores anarquistas, vermelho e preto, usava um martelo. A parede era feita de tijolos planos e amarelos produzidos ali mesmo, e tinha pouca argamassa. Para garantir que eles não derrubassem a casa inteira, Lenny comandava a operação: como era mineiro, tinha instinto para avaliar a solidez de um telhado.

           Quando o buraco já estava grande o suficiente para que um homem pudesse passar, Lenny meneou a cabeça para Jasper, outro cabo. Este retirou uma das poucas granadas que ainda tinha na cartucheira, sacou o pino e atirou-a dentro da casa ao lado, só para o caso de haver alguém de tocaia ali. Assim que a granada explodiu, Lloyd passou depressa pelo buraco, com o fuzil em riste.

           Viu-se dentro de outra casa espanhola pobre, com paredes caiadas e chão de terra batida. Não havia ninguém ali, vivo ou morto.

           Os 35 homens de seu pelotão seguiram-no pelo buraco e vasculharam depressa a pequena casa em busca de algum defensor. Estava vazia.

           Foram seguindo assim em direção à igreja, de forma lenta porém segura, por uma fileira de casinhas.

           Começaram a abrir o buraco seguinte, mas, antes de chegarem ao outro lado da parede, foram detidos por um major chamado Marquez, que chegou atravessando a fila de casas pelos buracos que eles haviam feito nas paredes.

           – Esqueçam isso – falou, num inglês com forte sotaque espanhol. – Vamos atacar a igreja.

           Lloyd gelou. Aquilo era suicídio.

           – Foi ideia do coronel Bobrov? – perguntou.

           – Sim – respondeu o major Marquez, neutro. – Aguardem o sinal: três apitos curtos.

           – Podemos ter mais munição? – pediu Lloyd. – Estamos com pouca, sobretudo para esse tipo de ação.

           – Não há tempo – respondeu o major, e foi embora.

           Lloyd estava horrorizado. Havia aprendido muita coisa em poucos dias de combate e sabia que a única forma de se tomar uma posição bem-defendida era com uma chuva de artilharia para dar cobertura. Caso contrário, os defensores iriam simplesmente massacrar os atacantes.

           Os homens pareciam começar a se revoltar.

           – É impossível – disse o cabo Rivera.

           Lloyd era responsável por manter o moral dos homens elevado.

           – Sem reclamações, pessoal – disse ele, em tom descontraído. – Vocês são todos voluntários. Acharam que a guerra não seria perigosa? Se lutar fosse seguro, suas irmãs poderiam ter vindo no seu lugar. – Todos riram e, por um instante, a sensação de perigo passou.

           Ele foi até a frente da casa, entreabriu a porta e espiou lá fora. O sol castigava uma rua estreita com casas e lojas de ambos os lados. As construções e o chão tinham o mesmo tom amarelo-claro que lembrava um pão mal-assado, a não ser nos pontos em que as bombas haviam revelado uma terra vermelha. Logo do lado de fora da porta, um miliciano jazia morto, com uma nuvem de moscas se banqueteando no buraco em seu peito. Ao olhar para a praça, Lloyd viu que a rua se alargava em direção à igreja. Os atiradores posicionados nas altas torres gêmeas do campanário tinham uma visão desimpedida e uma linha de tiro direta sobre qualquer um que se aproximasse. No chão, a proteção era mínima: algum entulho, um cavalo morto, um carrinho de mão.

           Vamos todos morrer, pensou.

           Mas por que outro motivo viemos aqui?

           Tornou a se virar para os homens, perguntando-se o que iria lhes dizer. Precisava fazer com que mantivessem o pensamento positivo.

           – Fiquem colados às laterais da rua, perto das casas – falou. – Lembrem-se: quanto mais devagar vocês avançarem, mais tempo estarão expostos... então, quando ouvirem o sinal, corram o mais rápido que puderem.

           Antes do esperado, ele ouviu os três silvos curtos do apito do major Marquez.

           – Lenny, você vai por último – ordenou.

           – Quem sai primeiro? – indagou Lenny.

           – Eu, claro.

           Adeus, mundo, pensou Lloyd. Pelo menos vou morrer combatendo os fascistas.

           Ele escancarou a porta.

           – Vamos! – gritou, e saiu correndo para a rua.

           O elemento-surpresa lhe proporcionou alguns segundos de trégua e ele conseguiu correr livremente pela rua em direção à igreja. Sentiu o calor do sol de meio-dia no rosto, ouviu as pancadas das botas de seus homens atrás de si, e percebeu, com um estranho sentimento de gratidão, que essas sensações significavam que ainda estava vivo. Então o tiroteio começou feito uma chuva de granizo. Ele continuou correndo por mais alguns segundos, ouvindo o zumbido e o impacto das balas, então sentiu algo no braço esquerdo, como se tivesse batido em alguma coisa, e caiu no chão sem entender por quê.

           Percebeu que tinha sido atingido. Não sentia dor, mas seu braço estava dormente e inerte. Conseguiu rolar de lado até topar com a parede da construção mais próxima. Os tiros continuavam zunindo e ele estava muito exposto, mas, poucos metros adiante, viu um cadáver encostado na parede da casa. O corpo era de um soldado rebelde. À primeira vista, parecia ter se sentado no chão, recostado a cabeça na parede e pegado no sono; mas o seu pescoço exibia um ferimento à bala.

           Lloyd rastejou para a frente, movimentando-se de forma esquisita, segurando o fuzil com a mão direita e arrastando o braço esquerdo atrás de si, e tentou se encolher atrás do cadáver.

           Apoiou o cano do fuzil no ombro do cadáver e mirou uma janela alta no campanário da igreja. Disparou todos os cinco tiros do pente em rápida sucessão. Não soube dizer se tinha acertado alguém.

           Olhou para trás. Para seu horror, viu a rua coalhada com os cadáveres de seu pelotão. Com sua camisa vermelha e preta, o corpo imóvel de Marco Rivera parecia uma bandeira anarquista amassada. Ao lado de Mario estava Jasper Johnson, com os cabelos crespos empapados de sangue. Sair de uma fábrica em Chicago para morrer na rua de uma cidadezinha espanhola por ter acreditado num mundo melhor, pensou Lloyd.

           Pior eram os que ainda estavam vivos, gemendo e chorando no chão. Em algum lugar, um homem gritava de agonia, mas Lloyd não conseguia ver quem era nem onde estava. Alguns de seus homens ainda corriam e, diante dos seus olhos, mais deles caíram e outros se jogaram no chão. Segundos depois, ninguém mais se movia a não ser os feridos, se contorcendo de dor.

           Que massacre, pensou ele, e uma onda amarga de raiva e tristeza subiu-lhe à garganta e o sufocou.

           Onde estariam as outras unidades? Certamente o pelotão de Lloyd não era o único envolvido no ataque. Talvez houvesse outros avançando pelas ruas paralelas que conduziam à praça. Mas tomar uma posição exigia um grande número de soldados. Lloyd e seus 35 homens obviamente não eram suficientes. Os defensores tinham conseguido matar e ferir quase todos eles, e os poucos que restavam tinham sido forçados a buscar abrigo antes de chegar à igreja.

           Ele cruzou olhares com Lenny, que espiava de trás do cavalo morto. Pelo menos ainda estava vivo. Lenny ergueu o fuzil e fez um gesto de impotência, sinalizando que estava sem munição. Lloyd também não tinha mais balas. No minuto seguinte, os tiros vindos da rua foram silenciando à medida que os outros também ficavam sem munição.

           Foi o fim do ataque à igreja. Aquela era mesmo uma missão impossível. Sem munição, teria sido um suicídio inútil.

           A chuva de tiros vindos da igreja havia diminuído depois que os alvos mais fáceis foram eliminados, mas tiros esporádicos continuavam a tentar atingir os atacantes abrigados. Lloyd percebeu que todos os seus homens acabariam morrendo. Eles tinham que recuar.

           E provavelmente seriam mortos na retirada.

           Tornou a cruzar olhares com Lenny e acenou freneticamente em direção à retaguarda, para longe da igreja. Lenny olhou em volta e repetiu o gesto para os outros poucos sobreviventes. Teriam mais chance caso se movessem todos ao mesmo tempo.

           Depois de dar o aviso ao maior número possível de homens, Lloyd se esforçou para ficar em pé.

           – Debandar! – gritou a plenos pulmões.

           Então começou a correr.

           A distância não passava de 200 metros, mas foi o trajeto mais longo de sua vida.

           Os rebeldes entrincheirados na igreja abriram fogo assim que viram as tropas do governo se moverem. Pelo canto do olho, Lloyd pensou ter visto cinco ou seis de seus homens batendo em retirada. Corria mancando, pois o braço ferido o desequilibrava. Lenny seguia na sua frente e não parecia estar ferido. Balas arrancavam pedaços de alvenaria dos prédios pelos quais Lloyd passava cambaleando. Lenny conseguiu chegar à casa da qual tinham saído, correu para dentro e segurou a porta aberta. Lloyd entrou depressa, ofegante, e desabou no chão. Três outros homens entraram atrás dele.

           Lloyd encarou os sobreviventes: Lenny, Dave, Muggsy Morgan e Joe Eli.

           – Só isso? – perguntou.

           – Só – respondeu Lenny.

           – Meu Deus! Éramos 36 e só sobraram cinco.

           – Que grande consultor militar é o coronel Bobrov!

           Ficaram ali parados, ofegantes. Lloyd recuperou a sensibilidade do braço, que doía terrivelmente. Descobriu que, apesar da dor, conseguia mexê-lo, então não devia estar quebrado. Olhou para baixo e viu que a manga de sua camisa estava encharcada de sangue. Dave tirou o lenço vermelho e improvisou uma tipoia.

           Lenny estava ferido na cabeça. Havia sangue em seu rosto, mas ele disse que era só um arranhão, e parecia bem.

           Dave, Muggsy e Joe estavam milagrosamente ilesos.

           – É melhor voltarmos para receber novas ordens – disse Lloyd após descansarem por alguns minutos. – De qualquer forma, não vamos conseguir nada sem munição.

           – Antes vamos tomar uma boa xícara de chá, que tal? – sugeriu Lenny.

           – Não dá, não temos como fazer o chá – respondeu Lloyd.

           – Ah, então tudo bem.

           – Não podemos descansar mais um pouco?

           – Vamos descansar na retaguarda – disse Lloyd. – É mais seguro.

           Foram voltando por dentro da fileira de casas, usando os buracos que tinham aberto nas paredes. Ter de se abaixar repetidas vezes deixou Lloyd tonto. Ele se perguntou se estaria fraco por ter perdido sangue.

           Saíram à rua já fora do campo de visão dos resistentes na igreja de San Agustín e seguiram apressados por uma rua secundária. O alívio de Lloyd por estar vivo rapidamente cedia lugar a uma sensação de raiva pelo desperdício da vida de seus homens.

           Chegaram ao celeiro nos arredores da cidade onde as forças do governo haviam montado seu quartel-general. Lloyd viu o major Marquez distribuindo munição atrás de uma pilha de caixotes.

           – Por que não nos deram um pouco dessa munição? – indagou, furioso.

           Marquez deu de ombros.

           – Vou relatar isso a Bobrov – disse Lloyd.

           O coronel Bobrov estava do lado de fora do celeiro, sentado numa cadeira diante de uma mesa – ambos os móveis pareciam ter sido retirados de uma das casas do vilarejo. Tinha o rosto vermelho por causa do sol. Estava conversando com Volodya Peshkov. Lloyd foi direto até eles.

           – Nós atacamos a igreja, mas não tínhamos apoio – falou. – E ficamos sem munição porque Marquez se recusou a nos reabastecer!

           Bobrov encarou Lloyd com frieza.

           – O que você está fazendo aqui? – perguntou.

           Lloyd não entendeu a pergunta. Imaginou que Bobrov fosse parabenizá-lo pelo esforço corajoso ou ao menos se mostrar indignado pela falta de apoio.

           – Acabei de dizer – enfatizou. – Não tínhamos apoio. Não se pode tomar um prédio ocupado com um pelotão só. Nós fizemos o possível, mas fomos massacrados. Perdi 31 dos meus homens. – Ele apontou para os quatro companheiros. – Isso é tudo o que sobrou do meu pelotão!

           – Quem lhes deu ordens para bater em retirada?

           Lloyd lutava contra a tontura. Sentiu que estava prestes a desmaiar, mas precisava explicar a Bobrov como seus homens tinham sido corajosos no combate.

           – Nós voltamos para receber novas ordens. O que mais poderíamos fazer?

           – Deveriam ter lutado até o último homem.

           – Lutado com o quê? Não tínhamos balas!

           – Silêncio! – bradou Bobrov. – Sentido!

           Automaticamente, todos adotaram a posição de sentido: Lloyd, Lenny, Dave, Muggsy e Joe, em fila. Lloyd temeu que fosse desmaiar.

           – Meia-volta, volver!

           Eles se viraram de costas. O que vai acontecer agora?, perguntou-se Lloyd.

           – Feridos, saiam da formação.

           Lloyd e Lenny deram um passo para trás.

           – Os feridos que puderem andar estão transferidos para o serviço de escolta aos prisioneiros.

           Lloyd suspeitou que aquilo significava que ele ficaria encarregado de vigiar prisioneiros de guerra num trem com destino a Barcelona. Ali, de pé, oscilou. Neste momento, não consigo vigiar sequer um rebanho de ovelhas, pensou.

           – Bater em retirada sob fogo inimigo sem ter recebido ordens para isso é deserção – disse Bobrov.

           Lloyd se virou e olhou para o coronel. Para seu espanto e horror, viu que Bobrov havia sacado o revólver do coldre com botão.

           O russo deu um passo à frente até ficar logo atrás dos três homens em posição de sentido.

           – Vocês três foram considerados culpados e condenados à morte. – Ele ergueu a arma até o cano ficar a menos de dez centímetros da nuca de Dave.

           Então disparou.

           O tiro ecoou. Um buraco de bala se abriu na cabeça de Dave, e sangue e miolos jorraram de sua testa.

           Lloyd não podia acreditar no que estava vendo.

           Ao lado de Dave, Muggsy começou a se virar, com a boca aberta para gritar, mas Bobrov foi mais rápido. Virou a arma para o pescoço de Muggsy e disparou outra vez. A bala entrou por trás da orelha direita e saiu pelo olho esquerdo, e Muggsy desabou no chão.

           Por fim, Lloyd conseguiu recuperar a voz e gritou:

           – Não!

           Joe Eli se virou, urrando de choque e raiva, e ergueu as mãos para agarrar Bobrov. A arma voltou a ser disparada, e Joe levou um tiro na garganta. O sangue jorrou feito um chafariz de seu pescoço e molhou o uniforme do Exército Vermelho de Bobrov, fazendo o coronel xingar e recuar um passo. Joe caiu no chão, mas não morreu na hora. Sem poder fazer nada, Lloyd ficou vendo o sangue esguichar da carótida do companheiro e empapar a terra seca da Espanha. Joe pareceu tentar dizer alguma coisa, mas nenhuma palavra saiu de sua boca. Seus olhos se fecharam e seu corpo ficou flácido.

           – Não há perdão para os covardes – disse Bobrov, e se afastou.

           Lloyd olhou para Dave, caído no chão: magro, imundo, corajoso feito um leão, morto aos 16 anos. Assassinado não pelos fascistas, mas por um oficial soviético estúpido e violento. Que desperdício, pensou Lloyd, e sentiu os olhos se encherem de lágrimas.

           Um sargento saiu do celeiro às pressas.

           – Eles desistiram! – gritou, eufórico. – A prefeitura se rendeu... eles ergueram a bandeira branca. Nós tomamos Belchite!

           A tontura finalmente tomou conta de Lloyd e ele perdeu os sentidos.

 

           Londres estava fria e chuvosa. Lloyd percorria a Nutley Street debaixo de chuva, a caminho da casa da mãe. Ainda usava a jaqueta com zíper e a calça de veludo do Exército espanhol, e calçava botas sem meias. Trazia nas costas uma pequena mochila contendo uma muda de roupa de baixo, uma camisa e uma caneca de metal. Em volta do pescoço, usava o lenço vermelho com o qual Dave havia improvisado uma tipoia para seu braço ferido. O braço ainda doía, mas ele não precisava mais da tipoia.

           Era outubro e a tarde estava quase no fim.

           Conforme previra, ele tinha sido posto num trem de material com destino a Barcelona, lotado de prisioneiros rebeldes. O trajeto tinha pouco mais de 150 quilômetros, mas a viagem levara três dias. Em Barcelona, fora separado de Lenny, e os dois perderam contato. Conseguira uma carona num caminhão com destino ao norte. Depois que o caminhoneiro o deixara, tinha andado, pedido mais caronas e viajado em vagões de trem carregados de carvão, cascalho ou – numa ocasião feliz – caixotes de vinho. Cruzara a fronteira com a França durante a noite. Havia dormido ao relento, implorado por comida, feito biscates em troca de umas poucas moedas e, durante duas gloriosas semanas, conseguira juntar o dinheiro necessário para a passagem de barco até a Inglaterra colhendo uvas num vinhedo de Bordeaux. Agora estava em casa.

           Respirou o ar úmido e recendendo a fuligem de Aldgate como se fosse um perfume. Parou diante do portão do jardim e ergueu os olhos para a casa com varanda em que havia nascido, mais de 22 anos antes. Viu luzes acesas atrás das janelas riscadas de chuva: havia gente lá dentro. Foi até a porta da frente. Ainda tinha a chave: guardara-a junto com seu passaporte. Entrou.

           Largou a mochila no chão do hall, junto ao cabide de chapéus.

           Da cozinha, ouviu alguém dizer:

           – Quem está aí? – Era a voz de Bernie, seu padrasto.

           Lloyd percebeu que não conseguia falar.

           Bernie saiu para o hall.

           – Quem está...? – Então reconheceu Lloyd. – Caramba! – exclamou. – É você!

           – Oi, pai – disse Lloyd.

           – Meu garoto – disse Bernie, abraçando Lloyd. – Vivo! – exclamou.

           Lloyd pôde sentir os soluços sacudirem o corpo do padrasto.

           Depois de alguns instantes, Bernie enxugou os olhos com a manga do cardigã e foi até o pé da escada.

           – Eth! – chamou.

           – O que foi?

           – Visita para você.

           – Só um instante.

           Ela desceu a escada segundos depois, bonita como sempre, usando um vestido azul. A meio caminho do térreo, viu o rosto do filho e empalideceu.

           – Ai, Duw – falou. – Lloyd! – Desceu o resto dos degraus correndo e jogou-se em cima dele para abraçá-lo. – Você está vivo!

           – Escrevi para vocês de Barcelona...

           – Não recebemos a carta.

           – Então vocês não sabem...

           – Não sabemos o quê?

           – Dave Williams está morto.

           – Ah, não!

           – Morreu na batalha de Belchite. – Lloyd decidira não contar a verdade sobre a morte de Dave.

           – E Lenny Griffiths?

           – Não sei. Perdi contato com ele. Estava torcendo para que ele tivesse voltado para casa antes de mim.

           – Não, nenhuma notícia dele.

           – Como foi lá? – indagou Bernie.

           – Os fascistas estão ganhando. E a culpa é dos comunistas, que estão mais interessados em atacar os outros partidos de esquerda.

           – Não pode ser – disse Bernie, chocado.

           – Mas é verdade. Se aprendi alguma coisa na Espanha, foi que precisamos combater os comunistas com tanto afinco quanto os fascistas. Ambos são maus.

           Sua mãe deu um sorriso irônico.

           – Ora, vejam só – disse ela. Lloyd percebeu que a mãe já tinha percebido isso havia muito tempo.

           – Chega de política – disse ele. – Como você está, Mam?

           – Ah, estou igualzinha, mas você... como está magro!

           – Na Espanha não há muito o que comer.

           – Então é melhor eu preparar alguma coisa para você.

           – Não há pressa. Já faz 12 meses que estou com fome... posso aguentar mais alguns minutos. Mas uma coisa seria bem-vinda...

           – O quê? Pode pedir o que quiser!

           – Eu adoraria uma boa xícara de chá.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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